Translate to English Translate to Spanish Translate to French Translate to German Translate to Italian Translate to Russian Translate to Chinese Translate to Japanese

  

 

Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O FADO DA SOMBRA - P.2 / Filipe Faria
O FADO DA SOMBRA - P.2 / Filipe Faria

 

 

                                                                                                                                                

  

 

 

 

 

 

Estilete e quebra-espadas embateram contra a dura madeira da lança de ponta de obsidiana, enquanto Tannath e Quenestil faziam espirrar neve aos seus pés com a sua fulminante dança de morte. O eahanoir procurava anular a vantagem de alcance do adversário, mantendo-se próximo dele com mortíferas ferroadas, mas o shura empunhava a sua nova arma como uma vara, aparando-lhos facilmente e evitando os restantes com golpes de rins e ancas. A cada golpe des­ferido, o gelo debaixo dos pés de ambos rachava como se os embates nele se refletissem, e o elétrico jogo de luzes verde-fluorescentes no céu parecia estar também a acompanhar os movimentos dos dois combatentes, que iam sendo polvilhados por flocos de neve enquanto lutavam.

Golpe, finta, parada, e o Aesh’alan esticou-se subitamente num contragolpe como uma cobra à primeira aberta. Quenestil recuou com a cabeça, transferindo o peso para a perna traseira ao mesmo tempo que enganchava a de Tannath com a dianteira. Conseguiu fazê-lo perder o equilíbrio com uma pancada da lança no golpe e desconcer­tou-o com um puxão da perna, deixando-o exposto a um golpe com a haste no torso, que derrubou o Aesh’alan. Antes sequer de o eahan negro cair ao chão, já o shura se preparava para o varar, mas Tannath contorceu-se como um gato e a ponta de obsidiana cravou-se no gelo. Com um grunhido, o eahanoir chutou Quenestil no estômago, afas­tando-o de si, e girou as pernas num movimento de hélice que espirrou neve para se pôr de pé, agachando-se novamente para receber a renovada acometida do adversário. A perícia de Quenestil com a lança surpreendera-o, pois desconhecia que a vara era outra das armas de eleição do eahan, e fora apanhado desprevenido pela investida inicial. Havia também algo de diferente nele, e algo de certamente estranho no ambiente que os rodeava, mas essas eram preocupações secundárias para Tannath, que, embrenhado no combate, nem ponderou os moti­vos pelos quais se sentira estranhamente chamado para aquele local.

 

 

 

 

Quenestil desferiu uma nova lançada, que Tannath evitou, apro­veitando para penetrar na guarda do eahan adentro quando este reco­lheu a lança, o que o expôs a um novo fustigo com a haste da arma, desta vez na parte de dentro do joelho. Novamente desequilibrado, Tannath quase não conseguiu desviar a cara do coto que veio direito à sua garganta, raspando-lhe a orelha ao falhar. O eahanoir passou então o braço por baixo da haste, agarrando-a com a mão para a prender contra o ombro, o que deixou as costelas de Quenestil expostas. Com um triunfante grunhido, o eahan negro estocou com o intuito de chegar ao coração, mas Quenestil relaxou simplesmente o aperto na haste, e passou-a por cima da cabeça, sofrendo dessa forma apenas uma incisão nas costelas. Com os braços agora cruzados numa pose muito pouco ortodoxa, o eahan soltou a mão direita, cerrando-a num punho fechado, e com ela desferiu um murro que partiu o nariz de Tannath debaixo da máscara deste. O crocante impacto coincidiu com o originar de uma grande fenda no gelo que pisavam, e no qual Tannath caiu de costas. A sua carne morta não se queixava de qualquer dor, mas a impressão residual de cartilagem desfeita entre os seus olhos atordoou mesmo assim o eahanoir, que contudo aproveitou o ímpeto da queda para rolar numa cambalhota para trás e pôr-se nova­mente de pé quase de imediato, vendo Quenestil já praticamente em cima de si.

O shura atacava como um predador com o cheiro de sangue nas frementes narinas, e o que lhe manchava as orelhas e maxilares de ver­melho dava-lhe um aspecto verdadeiramente possesso. Lutava em silêncio, emitindo apenas a ocasional rosnadela, mas cada movimento seu era um estalo, como se todos os tendões do seu corpo estivessem tensos, e os seus olhos davam mostras de um fogo interior que an­siava por lhe jorrar para fora em vorazes labaredas. Nunca antes o vira assim, nem em Jazurrieh, nem no seu combate nas ameias de Aemer-Anoth, onde fora por ele morto. O que se teria passado com o eahan entre aqueles ossos erguidos da bizarra armação no meio da caldeira? A resposta de Quenestil veio na forma de um ronco animalesco, e este tentou trespassar Tannath novamente, dando seguimento à lançada com uma lufada de golpes com a haste, que fizeram os agora escassos flocos de neve rodopiarem pelo ar à sua volta. A temperatura estava a aumentar perceptivelmente, e as bizarras condições atmosféricas que ali se faziam sentir pareciam sintomáticas da agitação debaixo dos pés dos dois combatentes.

«Fossos dos azigoth, que raio se está a passar aqui?»

Sem tempo para grandes considerações, o Aesh’alan foi pulando para longe do alcance de Quenestil, que varria o ar à sua frente com furio­sos golpes. A ponta de obsidiana parecia tão sedenta quanto quem a empunhava, luzindo com o brilho do fogo que a formara e cortando flocos de neve com chofres mais afiados que uma navalha. O solo rachava e espirrava neve em redor de ambos, e o desfiado manto verde que se estendia sobre a caldeira dançava em cima, revolto. No meio de tamanha calamidade, Tannath destoava pelos seus gestos frios e calculados, que tanto contrastavam com os selvagens golpes de Que­nestil e a fúria da terra e dos céus à sua volta. Sentia-se como um cris­tal a meio de uma derrocada, uma aranha a tentar tecer uma teia numa tempestade, e por momentos temeu mesmo ser avassalado pela fúria que o rodeava, mas cedo se recordou dos motivos que ali o tinham trazido, da traição que fizera com que perdesse tudo e que lhe custara a vida. A sua máscara encrespou-se de raiva a par do cenho franzido, e o eahanoir defrontou então a arrancada do adversário com renovado vigor.

Gumes e dentes de aço tentaram em vão morder a haste da lança, que parecia dura como pedra, pelo que Tannath tentou uma aborda­gem diferente, dardejando à volta de Quenestil como uma doninha à procura de uma abertura. Esta veio quando o shura ripostou com uma fulminante lançada, que o eahanoir aparou com um golpe do estilete, prendendo a haste momentaneamente com os curtos copos e enca­lhando a ponta da lança no quebra-espadas, que torceu bruscamente. Torcê-la foi também o melhor que conseguiu, pois a obsidiana não quebrou, e Quenestil chutou-lhe a ilharga para o afastar, puxando a lança de volta. Tannath derrapou com as botas pela neve, reposicionando-se numa pose agachada à qual Quenestil correspondeu, man­tendo porém a escassa distância que os separava durante ofegantes momentos, que sinalizaram o fim dos golpes de tenteio. Ambos sabiam agora o que esperar do adversário, e o verdadeiro combate podia enfim começar. Eahan e eahanoir arremeteram um contra o outro, olhos cinzentos fitos em isolado orbe azul, aço rutilante contra obsidiana negra, e ambos soltaram grunhidos guturais ao retesarem os braços em antecipação do embate...

Que não chegou a ocorrer, pois abriu-se uma fenda no gelo entre os dois oponentes, da qual jorrou ar quente acompanhado de uma luminescência vermelho-alaranjada. O gelo moveu-se e ergueu-se com um ruidoso estalido, obrigando Quenestil e Tannath a pararem e a estenderem os braços aos seus lados para não caírem, enquanto a fenda continuou simplesmente a alargar-se, rangendo e estalando. Recupe­raram os dois ao mesmo tempo, mas foi o Aesh’alan quem retomou a iniciativa, saltando atleticamente para o ar e fundindo-se parcialmente à sombra ambiente, passando por cima da cabeça de Quenestil e marcando-o nas costas com duas sibilantes presas de aço antes de aterrar acocorado no chão, onde se materializou novamente. O shura arqueara o dorso ao ser golpeado, mas virou-se logo de seguida para o seu adversário, que se ergueu num movimento de parafuso que fez a capa estalar no ar e borrifá-lo de neve ao tentar estocar Quenestil com as suas duas lâminas de braços estendidos. Ao falhar, Tannath estorcegou os rins e deslizou a perna para o lado, desferindo um segundo golpe ao nível da coxa do eahan com o quebra-espadas, rasgando-lhe a perna com os dentes da arma. Cerrando os dentes, Que­nestil desferiu um fustigo ascendente com o coto da lança, atingindo o adversário em cheio na cara e chicoteando-lhe o queixo para cima com a força do golpe, que o fez cambalear para trás. Rodopiando a arma sobre a cabeça, o shura investiu de seguida de ponta em riste, recomeçando a letal dança de desvios e estocadas com Tannath. Espirrando neve dos pés e cortando o ar com o chofre dos golpes, os dois combatentes deslizaram pelo gélido piso da caldeira fora en­quanto este se ia rachando, e os diáfanos fios verdes teciam uma ondulante tapeçaria esmeralda no céu.

Tannath dançava com mortífera elegância ante a ziguezagueante ponta da lança, aproveitando os espaços que lhe eram concedidos para tentar picar Quenestil como uma serpente acirrada. Após uma extensa e intensa troca de golpes e contragolpes, o eahanoir viu-se num impasse e tentou outra abordagem, recuando com um salto e empunhando a própria capa com a mão do quebra-espadas. Abanou a dobra num gesto reptante enquanto ocultava o braço do estilete com o seu corpo, e Quenestil aceitou o desafio sem hesitar, avançan­do com a ponta de obsidiana em riste. Tannath manteve-se agachado, oscilando a capa e acompanhando os movimentos do shura, até que este contra ele investiu com a lança, num gesto que se revelou uma finta quando Quenestil recuou logo de seguida, deixando o adversário espadanar inutilmente a dobra da capa, para de seguida arremeter decisivamente. O eahanoir baixou-se, deixando a lança passar-lhe por cima da cabeça, e tentou desferir uma rasteira a Quenestil, que con­tudo levantou a perna a tempo de a evitar, empunhando de seguida a lança para varar Tannath ao chão. Este contorceu-se com agilidade felina na sua posição agachada e conseguiu apoiar-se na haste da arma com a mão do quebra-espadas, usando-a como contrabalanço para o pontapé que desferiu para cima. Quenestil virou a cara e baixou-se, conseguindo que o eahanoir lhe acertasse apenas entre o trapézio e a nuca, respingando-lhe o cabelo com neve, mas Tannath recolheu a perna num gesto fulminante e impulsionou-a contra o epigastro do oponente. Embora os músculos ventrais estivessem retesados, o golpe ainda assim atingiu-o bem, e Quenestil recuou sem ar nos pulmões, empunhando a lança com uma mão e levando a outra à barriga. Tan­nath não perdeu um instante sequer, e pulou da sua posição flectida contra o esbaforido adversário com o intuito de lhe cravar o estilete no pescoço, mas o shura deixou-se simplesmente cair ao chão, man­tendo a lança enristada para que o eahanoir nela se empalasse. O eaha­noir deu novas mostras da sua agilidade felina, e contorceu-se em pleno ar, aterrando ao lado de Quenestil, que tentou seguidamente pisar, mas este rolou para o lado a tempo de evitar ter a cabeça espezinhada. Voltando o corpo sobre o ombro, Quenestil ajoelhou-se e tornou a enristar a lança para manter a distância entre si e Tannath enquanto recuperava o fôlego, mas o eahanoir não lhe deu um momento de descanso, forçando-o a estocar em frente num gesto dissuasor.

Fora esse o gesto que Tannath aguardara, para com uma torção certeira do braço enrolar a dobra da capa na ponta da lança, sobre cuja haste passou então a perna esquerda, prendendo-a. Em seguimento, desferiu um pontapé na cara que Quenestil expusera ao baixar forço­samente os ombros com o repelão, e largou a lança ao cair para trás com a força do golpe. Com um arquejo de triunfo, Tannath pisou a lança, enterrando-a na neve por via das dúvidas, e acercou-se de Que­nestil com ambas as armas empunhadas aos seus lados, e um sorriso na cara ao ver o eahan desembainhar o seu facalhão e erguer-se com uma careta de esforço. O gelo continuava a estalar ruidosamente, e pequenas cascatas de neve precipitavam-se pelas vibrantes paredes da caldeira abaixo.

— Assim está melhor, não achas? Sem arcos, sem lanças, só dois homens e o seu aço, um contra o outro — disse sardonicamente. — Essa coisa é de aço, não é?


Rosnando, o shura agachou-se, separado da lança por Tannath que se aproximava a um agravantemente confiante passo, julgando-se agora em vantagem. Quenestil tomou a iniciativa e acercou-se ele também do adversário, empunhando o facalhão com um braço flexionado e o outro de mão aberta, pronto a com ela aparar golpes, se necessário fosse. Estava ciente de que aquele era um estilo com o qual o eahanoir estava intimamente familiar, visto que lutas de faca faziam parte do quotidiano da sua raça, e concentrou-se de tal forma na abordagem a tomar ao combate que se esqueceu das novas habilidades do seu inimigo. Tannath mesclou-se de repente à sombra ambiente, tor­nando-se semimaterial e arrojando-se contra Quenestil numa sibilante carga que quase resultou numa garganta rasgada, não fosse pelos reflexos do shura. Sentiu o seu couro cabeludo ser repuxado e cabe­los ruivos voaram pelo ar quando se abaixou, flutuando como folhas outonais mortas antes de caírem à neve, na qual os pés de Tannath derraparam quando se tornou novamente sólido. Quenestil atacou para não ser novamente surpreendido, e seguiu-se uma retininte série de facadas aparadas de ambos os lados, durante a qual tentou ficar mais próximo do adversário para negar a vantagem que as duas armas lhe davam. O eahanoir não lho permitiu, dançando à sua volta os passos que lhe haviam sido incutidos desde que saíra do berço, altura na qual a morte já fizera parte do seu dia-a-dia. Um corte aqui, uma incisão ali, e cedo Quenestil ostentava uma série de riscas vermelhas nos bra­ços à medida que Tannath o ia lenta mas eficazmente desgastando, deixando um trilho de gotas de sangue no chão.

A dança entre ambos foi interrompida por uma nova fenda no gelo, esta mais ruidosa e mais célere na forma como as suas bordas se apar­taram, e que se repercutiu por toda a caldeira com um rumor que ameaçava um desmoronamento. Quenestil não se deixou distrair, porém, e aproveitou o breve olhar de relance que Tannath lançou às suas cercanias para retomar a sua investida, agachando-se ao ponto de quase tocar com os joelhos no chão e desferindo-lhe um golpe na perna. O eahanoir retirou-a a tempo, e a lâmina enganchou-se apenas na dobra da capa que ficou para trás, que Quenestil puxou com o peso do seu próprio corpo ao recuar, fazendo com que Tannath cambaleasse de barriga contra a ponta do facalhão que reverteu. A carne morta do seu adversário rasgou-se com tanta facilidade como se estivesse viva, mas o eahanoir não acusou aquele que de outra forma seria um grave ferimento, e respondeu com uma joelhada que derrubou Quenestil. Estendido de costas no chão, este sentiu o gelo apartar-se na sua ilharga, com um estalo que por momentos o fez pensar que partira alguma coisa ao cair. Percebeu apenas que era o próprio chão que cedia nas suas costas quando uma das partes da fenda se ergueu brusca­mente, encalhando-lhe debaixo das omoplatas e soerguendo-lhe o torso acima do nível do solo. Ficou dessa forma numa posição vul­nerável, e Tannath tirou logo partido, impelindo o pé numa tenta­tiva de partir o pescoço do eahan, que contudo se conseguiu desviar a tempo, chutando de seguida em arco para varrer a perna livre do eahanoir do chão, derrubando-o a ele também. Quenestil tentou saltar-lhe logo em cima de facalhão empunhado para baixo, mas Tan­nath contorceu-se como um gato e pontapeou-lhe a cara com o mesmo movimento com o qual girou no chão, ficando numa posição acoco-rada. Os dois adversários levantaram-se quase ao mesmo tempo, inves­tindo um contra o outro numa confusão de neve pisada, peles, capa, e o baque seco de braços e pernas a baterem uma contra a outra. Mais sangue pingou na neve, todo ele de Quenestil, embora também Tan­nath sofresse alguns golpes, que graças ao seu sangue coagulado mal se faziam notar além de rasgões na roupa.

O eahanoir interrompeu a fulminante troca de golpes com um rápido pontapé no peito para afastar o shura, mas este recusava-se terminantemente a dar espaço a Tannath e retomou o ataque, desta vez empunhando o facalhão paralelo ao seu antebraço. Os dois andavam à volta um do outro enquanto distribuíam golpes, com o eahan negro a tentar manter uma certa distância e Quenestil a fazer os possíveis por se acercar do adversário. Tannath estocou e o shura aparou, levando o braço à frente da cara, virando o pulso e passando o gume sem grande efeito pela zona venosa do antebraço do eahanoir, que ripostou com um golpe baixo, raspando as calças de Quenestil com os dentes do quebra-espadas e rasgando-lhe a pele ao puxar a lâmina de volta. Quenestil retribuiu com um golpe descendente com a ponta do facalhão virada para baixo, mas Tannath aparou-lho pelo braço com o seu membro ferido, tentando de seguida alojar o quebra-espadas nas suas costelas. O shura conseguiu agarrar-lhe o pulso a tempo, e aproveitou para ficar quase cara a cara com o adversário, dando um passo em frente. Tannath tentou evitá-lo, mas a testa de Quenestil veio contra a sua cara antes que pudesse sequer deslocar o pé. Osso embateu contra osso, rompendo pele, e Quenestil desferiu outra cabeçada ao mesmo tempo que levava uma joelhada nas costelas, momento no qual conseguiu forçar o braço do eahanoir o suficiente para encontrar o olho esquerdo deste com a ponta do facalhão. A pala de couro rompeu-se, e a cabeça de Tannath foi de repelão para trás, como se tivesse de fato sentido alguma coisa, mas deixou-se apenas cair para trás, arrastando Quenestil consigo e plantando-lhe os pés no torso, projetando-o dessa forma sobre a cabeça ao tombar no chão. Quenestil caiu desamparado ao mesmo tempo que o eahanoir impeliu as pernas para cima, alçando o resto do corpo com o movimento e ficando de cócoras e de costas para o oponente. Mal teve tempo para se levantar, pois abriu-se uma racha entre as suas mãos e os seus pés, forçando o eahanoir a saltar para um dos lados para evitar cair na inesperadamente larga fenda que se abriu, sorvendo a neve do solo e derretendo-a parcialmente com o ar quente que dela jorrou, fazendo os cabelos de Tannath esvoaçarem. Por sua vez, Quenestil não perdeu tempo e levantou-se ele também logo de seguida, embora de forma menos graciosa e, alheio ao que estava a acontecer em seu redor, foi prontamente ao encontro de Tannath, esse sim evidentemente apreen­sivo com o que se estava a passar. Com a pala do olho arruinada e a testa a sangrar ligeiramente de um corte, o nariz e sobrancelhas do eahan negro franziram-se numa expressão de raiva, e este passou as lâminas uma pela outra num gesto de desafio antes de receber a inves­tida de Quenestil.

Os dois embrenharam-se noutro furioso chorrilho de golpes, fintas e facadas, rosnando e grunhindo. Tannath foi mais afortunado com uma troca em particular, recebendo uma facada de Quenestil com um golpe seu, que lhe afastou o braço, criando uma aberta para um pontapé no joelho que fez com que a perna do eahan cambasse, deixando-o ajoelhado e à sua mercê. Porém, quando se preparava para lhe estocar a cervical, Quenestil arrojou-lhe uma mão-cheia de neve contra a cara, cegando-lhe o olho bom e espetando-lhe a zona do baixo-ventre com uma furiosa estocada, ao que o eahanoir respondeu com uma joelhada no queixo, afastando-se alguns passos.

— Que vicioso — comentou, passando os dedos pela pala, que agora se encontrava parcialmente enfiada na sua vazia cavidade ocular, e olhando para a punção acabada de infligir na virilha. — O que é que te deu? Nem mesmo em Aemer-Anoth estavas assim.

Quenestil não respondeu, e arremeteu uma vez mais contra o eahanoir, que atirou ambas as lâminas ao ar, cruzou os braços para deles remover as pequenas facas de arremesso que neles tinha afiveladas, e arremessou-as em dois gestos secos antes de agarrar o estilete e quebra-espadas. As facas foram lançadas descompassadamente, e embora Quenestil se conseguisse desviar da primeira, a segunda alo­jou-se parcialmente no ombro do braço do facalhão, ficando com parte do gume nele embebido. O ferimento abalou a sua investida, e Tan­nath aproveitou então para atacar, vendo naquele momento a sua abertura para uma estocada mortal, mas Quenestil recusava-se obsti­nadamente a vacilar, e estocou ele em frente numa tentativa de apa­nhar o eahanoir desprevenido. O golpe veio lento e previsível, porém, e foi fácil para Tannath interceptá-lo com o seu quebra-espadas, em cujos dentes o facalhão encalhou. Antes que Quenestil tivesse tempo para puxar a sua arma, o eahanoir torceu bruscamente o pulso, e a lâmina quebrou-se com um estalido metálico, caindo inutilmente na neve.

— Apanhei-te — declarou o eahanoir, pontuando o seu triunfo com uma bordoada do pomo do seu estilete, rasgando o canto da boca de Quenestil com a pancada e deitando-o por terra. Sem perder tempo, Tannath ajoelhou-se logo de seguida e tentou espetar a esguia lâmina na garganta do seu adversário, que ainda conseguiu erguer a mão esquerda a tempo de lhe agarrar o pulso.

Tannath preparou-se para o espetar então com o quebra-espadas, mas antes que o pudesse fazer, uma placa de gelo estalou e ergueu-se do chão, desequilibrando-os aos dois e fazendo com que rolassem pelo agora ligeiramente íngreme solo. As fluorescentes teias verdes no céu mexiam-se, elétricas, e praticamente cessara de nevar entretanto, mas os dois combatentes mal repararam, empenhados como estavam em matarem-se um ao outro. Foi Tannath quem conseguiu ficar por cima, com Quenestil a segurar-lhe ambos os pulsos para manter as trêmulas lâminas longe de si, mas o eahanoir apoiou nas mãos todo o seu peso corporal, e as sangrentas pontas de aço iam-se aproximando lentamente da cara do eahan.

— Isto não era pessoal... — grunhiu o eahanoir com o esforço. — Mas tu e a Slayra assim o tornaram...

Quenestil começou a ofegar, erguendo e baixando os braços de Tannath com cada movimento dos pulmões, e o eahan negro achou que estava a ceder, fazendo então mais força ainda. Porém, não era esse o caso, e as lâminas continuaram a avançar devagar, sendo novamente retidas quando aparentemente todos os músculos do corpo do eahan se retesaram. O gelo rachou-se em consonância, e com ele algo que Quenestil estivera a conter, algo do qual Tannath prontamente se deu conta. Os olhos do shura ficaram raiados de sangue, e este estorcegou subitamente debaixo de Tannath como um animal, ficando com os cabelos eriçados e parecendo aumentar de tamanho quando os seus músculos incharam debaixo das roupas. As suas veias palpitaram, mas o sangue dos ferimentos parou de escorrer, e um surto de força afas­tou as pontas das lâminas da sua cara, forçando Tannath a redobrar os seus esforços com uma perplexa expressão no cenho, incapaz de fazer face ao selvagem alento que se apossara do oponente. A força com que Quenestil lhe apertou os pulsos foi tal, que a ulna esquerda do eaha­noir estalou ante a pressão, fazendo com que deixasse cair o quebra-espadas. Chocado, o eahanoir não reagiu a tempo de evitar que Quenestil erguesse o torso numa retorção e esbarrasse de testa contra a sua cara num golpe que rachou osso e o atirou de costas para o chão. Rosnando, o shura lançou-se para cima do inimigo como uma fera embravecida determinada a esventrá-lo, e Tannath conseguiu apenas erguer uma perna, que foi prontamente esbofeteada para o lado com um golpe que fez ranger a canela do eahanoir. Uma vez em cima dele, Quenestil começou a percutir Tannath com uma feroz bateria de gol­pes que teria deixado um comum mortal esmagado e inerte, mas os tecidos mortos do Aesh’alan permitiram-lhe passar por entre a chuva de punhos com a mão de dedos hirtos, atingindo com ela a retesada garganta de Quenestil. O golpe surtiu efeito, e deu tempo a Tannath para empurrar o shura para longe de si com o pé e acocorar-se com o mesmo movimento, tentando perceber o que se estava ali a passar.

Quenestil levantou-se, não parecendo particularmente afetado pelo golpe que teria deixado qualquer outro a arquejar por ar, embora se ouvisse agora um som chiante na sua respiração. O que não pareceu incomodá-lo por aí além, visto que tornou a investir assim que se pôs de pé, atacando com mãos nuas o eahanoir, que agora estava unica­mente armado com o estilete, tendo a mão esquerda lassa e pendente ao seu lado. Tannath semicerrou o olho bom, pronto para o novo em­bate, mas o gelo mexeu-se uma vez mais antes que este se desse, erguendo-se desta vez de uma forma mais acentuada nas suas costas. O eahanoir saltou para trás como reflexo, ficando mais alto que Que­nestil, que escorregou quando a placa de gelo se inclinou um pouco mais, tentando então subi-la quase de gatas à medida que a superfície ia ficando rapidamente alcantilada. O Aesh’alan decidiu então saltar, rodopiando no ar por cima da cabeça de Quenestil antes de aterrar no solo numa posição agachada, da qual girou de braços estendidos para trás, arremessando outros dois punhais. Um deles bateu no gelo, mas o outro ficou espetado no flanco de Quenestil, que não lhe deu qual­quer atenção e meio correu, meio deslizou pela placa de gelo a seu encontro. O eahanoir aproveitou a desvairada carga para estocar, mas embora aparentemente possesso, o shura não via apenas vermelho à sua frente, e esbofeteou simplesmente a mão de Tannath como se esta estivesse desarmada, enterrando-lhe de seguida o punho no estômago. O eahanoir curvou-se com a força do golpe, que lhe ergueu os pés do chão, e Quenestil agarrou-o pela capa e roupas em pleno ar, arrojando-o sobre a sua cabeça como um boneco de trapos. Tannath contorceu-se desamparado pelo ar, derrapando pela neve ao cair desajeitadamente no chão com um impacto que teve o inesperado efeito de fazer toda a caldeira tremer. Mais violento que antes, o gelo mexeu-se debaixo dos dois combatentes, e ruidosos estalos gélidos preencheram o ar, fazendo com que, mesmo imerso na fúria vermelho-sangue, Quenestil reparasse naquilo que estava a acontecer e olhasse em redor. Temporariamente refreada, a raiva que lhe regava os músculos de adrenalina ameaçava queimar-lhos, mas o eahan sentiu o chamamento da lança, que jazia na neve a uma certa distância dali, e que estava prestes a ser engo­lida pelas rachas que se estendiam com vida própria pelo gelo. Fazendo outro uso do selvagem vigor que o acometera, Quenestil correu a ir buscar a arma, percorrendo rapidamente a distância que o separava dela com passadas explosivas, mas mesmo assim não chegou a tempo de evitar que esta ficasse suspensa do vazio quando a ponta de obsidiana deslizou pela borda.

Agindo por puro instinto, o shura saltou em frente de braço esti­cado e impeliu as pernas para cima, agarrando a ponta da haste ao cabriolar sobre a fenda com o impulso das pernas, que o fez rolar pelo chão. A faca de arremesso de Tannath enterrou-se um pouco mais no seu flanco com o movimento, mas Quenestil arrancou-a logo de seguida, empunhando então a lança com ambas as mãos e virando-se na direção do eahanoir, que se encontrava ajoelhado a meio do caos. Não se mexia, mas parecia concentrado, e não fez caso da luminescência vermelho-alaranjada que começava a irromper das frestas, rachas e fendas no gelo. Juntamente com as estranhas luzes esverdeadas no céu, o conjunto dava uma fantasmagórica luminescência ambiente ao local, que esquartelou a sombra de Tannath à sua volta. Quenestil foi a seu encontro de lança nas mãos, julgando-o acabado, mas então a cabeça do eahanoir ergueu-se, parecendo sorrir por detrás da máscara. O shura continuou a avançar enquanto gelo estalava e espirrava neve à sua volta, tentando controlar a fúria que lhe ardia nos membros para que esta não lhos queimasse, ansiosa por um alvo como estava. Tannath ergueu-se, prendendo a capa ao ombro direito com o pulso partido e cortando um pedaço desta com o estilete. Enquanto o fazia, as suas sombras mexeram-se com vida própria, e confluíram umas sobre as outras como aparas de ferro puxadas por um íman, assu­mindo a forma de uma silhueta umbral que ganhou vida, erguendo-se do chão. Quenestil franziu as sobrancelhas e o nariz, mas não se deteve no seu avanço enquanto o eahanoir ia atando o pulso partido com força.

— A caldeira vai-nos cair em cima, e mesmo assim só pensas em matar-me? — admirou-se, sobressaltando-se quando o gelo sobre o qual tinha os pés assentes se inclinou, forçando-o a esticar uma perna e a flexionar a outra. — Somos mais parecidos do que pensas. Entretém-te aí com ela, enquanto eu trato disto...

A sombra atacou, uma sósia perfeita de Tannath à parte da total ausência de expressão ou relevo, como se não passasse do seu vulto em condições de parca visibilidade. Isso, e o pulso aparentemente são, que surpreendeu Quenestil ao estocar por baixo após uma finta com o braço direito. Aço umbral mordeu-lhe a perna, e o eahan reagiu com um fustigo na amorfa cara da sombra, que se afastou a cambalear, e Quenestil olhou para o lado para Tannath — que ainda atava o pulso — antes de investir sobre o vulto deste de lança em riste. Mais gelo rachou, criando um relevo irregular no qual o eahan tropeçou, caindo desajeitadamente aos pés da sombra, que o chutou pron­tamente na cara, deixando-o prostrado. O eahan ainda conseguiu desviar a cabeça do golpe que se seguiu, deixando a afiada sombra enterrar-se na neve e chutando a cabeça do vulto com a canela antes de rolar pelo agora íngreme gelo, que se revoltava em crescente fúria debaixo dos pés dos presentes. Grandes dentes gelados de uma cor azulada irrompiam em espirros de neve, gretando e fazendo esta­lar a crosta esbranquiçada que os cobria, e as placas de gelo da super­fície da caldeira iam-se desnivelando progressivamente, ao ponto de ser difícil para Quenestil e Tannath manterem-se de pé. Quem não parecia particularmente incomodado era o vulto, que persistiu no seu ataque ao eahan sem qualquer receio pela sua integridade física.

Quenestil defrontou-o com dificuldades em manter uma pose está­vel, visto que a laje de gelo sobre a qual se encontrava estava a desnivelar-se para um lado com a pressão de algo que subia por baixo, e, ao desferir um golpe com a lança, desequilibrou-se, começando a der-rapar com os pés para um rutilante mar vermelho-alaranjado que já se entrevia em baixo através da fenda hiante. O eahan teve de pular para outra placa de gelo, a cuja borda se agarrou, mantendo a lança agar­rada com uma mão apenas, mas começou a deslizar lentamente pela álgida superfície escorregadia, estabilizando apenas quando a borda se inclinou o suficiente para lhe permitir agarrar-se melhor. Surgiu porém outro perigo imediato antes de o shura conseguir subir, quando a sombra singrou pelo ar, aterrando com pés umbrais perto das suas mãos e virando-se para ele com um bater da tenebrosa capa. Na precária posição em que se encontrava, Quenestil teve poucas alternativas além de tentar alçar as suas pernas pela borda, mas a sombra começou a pisar-lhe e chutar-lhe os braços e as mãos com malícia em cada um dos golpes. Parecia de fato feita à imagem e semelhança daquele que a originara, bem como aparentemente provida de uma inteligência própria, pois Tannath não estava à vista a controlá-la. Quenestil tentou agarrá-la pelo sombrio tornozelo com a mão livre, mas conseguiu ape­nas escorregar um pouco mais na borda, e em indefeso desespero de causa olhou para baixo, onde viu que outra camada de gelo se sobre­pusera à que se inclinara, apresentando uma superfície plana que naquele momento se lhe afigurou como a sua única hipótese.

Sem mais alternativas, o eahan deixou-se cair da borda no momento em que a sombra se preparava para lhe cortar os tendões dos braços com as lâminas negras como a noite. Voou entre o gelo e o vazio du­rante meros instantes que ainda assim fizeram com que o seu estô­mago e coração lhe subissem pelo torso acima, antes de embaterem contra costelas e parede abdominal quando Quenestil aterrou pesada­mente sobre a outra placa de gelo. Esta revelou-se porém traiçoeira­mente lisa, e o shura estatelou-se dolorosamente contra ela ao falhar em apoiar mãos e pernas, começando então a deslizar de costas por ela abaixo. Incapaz de reter a sua queda, Quenestil agiu por instinto ao sentir os calcanhares encalharem contra uma reentrância e arrojou-se contra a face inclinada da placa de gelo da qual se deixara cair. Chegou apenas a tocar nela com as mãos e a nela plantar os pés, pois logo de seguida impeliu-se de volta, desta vez pronto e com a lança empu­nhada em ambas as mãos, cravando a ponta de obsidiana no gelo com um grunhido de esforço ao aterrar novamente. Com esse ponto de apoio, olhou para cima sobre o ombro, e viu recortado contra as luzes verdes do céu o vulto negro de lâminas empunhadas e capa a adejar, vindo na sua direção. Teve apenas tempo para baixar os ombros e levantar a perna, em cujo pé aquilo que seria a barriga do vulto se enterrou, fazendo os ligamentos do eahan rangerem de dor com o choque. A sombra caiu e começou ela também a deslizar, agarrando-se então à outra perna de Quenestil com os dedos que pôde dispensar para não largar a arma, deixando-o estendido sobre o gelo e agarrado à lança com ambas as mãos. Não perdeu tempo, e o seu ato seguinte foi espetar a outra lâmina na barriga da perna do eahan, falhando o jarrete apenas devido a um escorregão. Quenestil começou a chutar a mão às cegas com o calcanhar, mas duvidava ser capaz de causar dor a uma sombra, pelo que se limitou a calcar os dedos negros e a tentar forçá-los a largarem-lhe o tornozelo. O vulto mostrou-se no entanto tenaz, e não só se manteve agarrado como continuou a tentar espetar a perna de Quenestil, acertando uma outra vez antes de o eahan cruzar os braços e virar-se de barriga para cima, dobrando o pescoço para pas­sar com o queixo sobre o ombro. Uma vez nessa posição, começou a puxar o vulto com a perna que este agarrava, o que não foi particu­larmente difícil, visto que embora material, este não tinha o peso do corpo que o projetara. A sombra reagiu com uma nova estocada, mas o eahan aparou com o pé livre o golpe que se destinava à parte interior da sua coxa, e assim que puxou o adversário suficientemente perto, chutou-o em cheio na cara com toda a força.

O golpe foi o suficiente para que a sombra o largasse, e esta deslizou pelo gelo abaixo, deixando nele dois trilhos esbranquiçados ao rilhar a superfície com as lâminas umbrais numa tentativa de abrandar a queda. Tal acabou por ser desnecessário, visto que a placa de gelo se estava a nivelar e o vulto acabou por conseguir cravar as lâminas e suster-se. Por essa altura, também Quenestil foi capaz de se endireitar e soerguer, apoiando-se na lança e nos joelhos, e aí teve oca­sião de constatar que a massa de gelo fraturado estava a subir pelas paredes da caldeira acima, empurrada pelo inferno que ardia em baixo, pressionando e derretendo o gelo milenar com fúria acabada de des­pertar. Os estalidos e rangidos tinham subido em tom para um rugido surdo que reduzia gelo a pó à medida que lajes e placas roça­vam umas contra as outras, ruindo e sobrepondo-se em fúria glacial. Mesmo aquela na qual Quenestil se encontrava começou a ceder diante da tremenda pressão exercida pelas outras, que pareciam estar a tomar parte numa corrida para ver qual chegava primeiro ao cimo da cal­deira. O mundo começou a desabar à volta do eahan, e a sombra de Tannath tornou-se uma preocupação secundária a sobreviver ao gé­lido cataclismo em seu redor. Para tal, deixou de resistir ao fogo que dentro dele ardia e que começara a fermentar nos seus músculos em sôfrega ânsia de lhe ser dado uso, e o tempo pareceu então desacelerar. Os pedaços e bocados de gelo que caíam em redor demoravam-se mais tempo no ar, e o tumultuoso embate das formações de gelo abrandou, e nessa altura Quenestil lançou-se numa desvairada corrida pelo gelo, saltando de uma placa para outra enquanto fragmentos cristalinos cho­viam em seu redor, cintilando rúbidos com o luzir do fogo da terra em baixo. A meio dos solavancos e repelos, a sua aljava abriu-se e despejou as flechas que continha, e que choveram pela caldeira abaixo, perdendo-se no pó branco e nos fragmentos de gelo. A sombra veio no seu encalço, fugaz como uma, mas o shura ignorou-a e continuou o seu acidentado trajeto, tentando alcançar a parede da caldeira antes de ser submergido e esmagado pelo revolto mar de gelo em redor.

Conseguiu saltar para uma periclitante plataforma ainda agarrada à rocha da parede, mas cedo constatou que esta era demasiado íngreme para subir, bem como escorregadia. A plataforma não tardou a descair, empurrada pelo resto do gelo em baixo, e Quenestil teve então de sal­tar para a borda de outra, essa inclinada a um ângulo quase vertical. Não tinha tempo para pensar nem para ponderar a melhor superfície onde aterrar; movia-se por instinto e deixou o corpo agir sem a inter­ferência da mente, e apenas ao aterrar sobre um minimamente estável bocado de gelo maciço a encimar a subida do glaciar ruído, é que se deixou estar quieto por breves instantes, olhando à sua volta. A borda da caldeira aproximava-se, e as luzes verdes no céu pareciam estra­nhamente próximas, quase hipnóticas na sua serpenteante dança, como se estivessem a tentar chamá-lo. Quenestil sabia que a partir dali o esperava uma queda pela vertente do vulcão abaixo, sem qualquer ponto de abrigo no qual ficasse a salvo da avalanche de gelo e da subsequente torrente de lava que se avizinhava, mas as suas conside­rações foram interrompidas pela chegada da sombra, que aterrou de cócoras sobre o seu bloco de gelo, ainda com as duas lâminas empu­nhadas. O eahan preparou-se para a reduzir a fiapos sombrios com a lança, mas antes que o pudesse fazer, captou movimento na sua visão periférica e virou-se para o lado, baixando a cabeça já em antecipação do golpe que sentira, mas não o suficiente para evitar que uma bota negra lhe chutasse a cabeça de raspão, fazendo-o cambalear na direção da sombra. Esta aproveitou prontamente a abertura, lançando-se sobre Quenestil e escarpelando-lhe as costas com as pontas umbrais das suas armas, e o eahan bateu cegamente com a lança para a afastar. Dessa forma, ficou exposto a um novo pontapé de Tannath, desta vez nas costelas, e a sombra aproveitou prontamente para estocar uma vez mais, conseguindo uma incisão no braço deste. Quenestil girou lou­camente a lança para evitar ser sobrepujado pela ofensiva conjunta dos dois adversários e conseguiu afastá-los, mas ficou numa posição com­prometedora entre os dois.

— O que tens andado tu a fazer, Quenestil? — perguntou Tannath a meio do rugido do gelo, flanqueando-o com a sua sombra, com um braço de pulso ligado e o outro de estilete empunhado. — És tu que estás a causar isto?

Quenestil olhava revezadamente para o eahanoir e para o vulto, agachado como um animal e de lança empunhada com força, esticando e flexionando as pernas alternadamente para compensar as oscilações do bloco de gelo.

— Isto é o Fragor — declarou numa voz baixa ao ponto de ser quase inaudível. — Eu sou o seu percursor. E tu és uma ferida infec­ta que eu vou cauterizar.

As proféticas palavras do eahan confundiram Tannath, que nunca nele ouvira semelhante tom. Quenestil não se mexeu para levar a cabo a sua ameaça, parecendo estar a aguardar que o eahanoir ou a sua som­bra dessem o primeiro passo.

— Então isto não é meramente pessoal? — indagou este. — Vieste pedir ajuda a um vulcão para seres capaz de me vencer?

— Vim aqui para fazer com que Tanarch pague — confessou o eahan. — Tu... tu és apenas...

Tens de saber quem são os teus verdadeiros inimigos, pois de outra forma ele consumir-te-á...

— Sim...? Sou apenas o quê?

Quenestil hesitou, recordando-se das palavras de Babaki, mas Tan­nath não aproveitou a sua vacilação, genuinamente curioso como estava.

— Sou uma ferida infecta, então? — repetiu, encolhendo os ombros. — Olha que já me chamaram coisas bem mais feias. Since­ramente, até pensei que me tivesses em pior conta.

O shura continuou sem responder, mantendo-se perfeitamente imóvel e mexendo apenas as íris, que tocavam alternadamente nos cantos dos seus olhos enquanto se mantinha atento aos movimentos de Tannath e da sua sombra.

— Bem, se era só isso, então...

O bloco de gelo passou nesse momento a orla da caldeira, inclinando-se bruscamente para fora, e Tannath estendeu os braços para os lados para se equilibrar, o momento pelo qual Quenestil esperara. Atacou antes que o eahanoir conseguisse recuperar, arrancando como um predador de membros retesados e chutando-lhe o peito, projetando-o para fora do bloco de gelo. Tannath voou pelo ar, precipitando-se para uma queda mortal pela escabrosa encosta do vulcão abaixo, mas quando o shura se virou para defrontar o vulto na alcantilada superfície do bloco, este colou-se à superfície branca, deslizando por ela como uma mancha de tinta a escorrer rapidamente. Tannath tornou-se então novamente semimaterial, e flutuou como um papel queimado durante alguns instantes, sibilando seguidamente em fúria para um outro bloco de gelo enquanto Quenestil descia no seu, mon­tando uma onda de gelo derretido, neve e cascalho. Começou então a estrepitosa descida pela encosta do vulcão, na qual o shura se mantinha de pé com pernas flexionadas sobre o seu bloco, enquanto atrás dele a orla do vulcão bolsava molhado gelo feito em pó e vapor. Alguns blo­cos acima, Tannath fazia o mesmo de capa a bater ao vento e de olhos fitos em Quenestil, que se viu forçado a cravar a lança no gelo para se equilibrar. O eahanoir saltou do seu e adejou ligeiramente pelo ar, antes de se dissolver parcialmente em sombra e vir sibilante na direção do shura, que se desviou para o lado quando Tannath aterrou perto dele, cortando o ar com o seu estilete.

Quenestil foi surpreendido pelo punho ligado do seu adversário, que o golpeou com as costas deste antes de ser forçado a agachar-se para não escorregar. Por sua vez, o eahan manteve-se agarrado à haste da sua lança, usando-a como eixo para desferir um pontapé que Tan­nath aparou com o braço do pulso partido, tentando de seguida espetar o estilete na coxa de Quenestil, que a conseguiu retirar a tempo de evitar um ferimento incapacitante. O eahanoir plantou então o punho bom no gelo, apoiando-se nele para chutar o flanco do adversário, que se desequilibrou até à borda do bloco no qual lutavam quando a ponta da lança se soltou. Quenestil não conseguiu compensar o contraba­lanço, e sentindo que estava prestes a cair, preferiu arriscar o salto para um outro bloco que vinha no encalço do seu, perseguido por uma torrente de lava cujo calor já se começava a fazer sentir. O eahan pulou com um grunhido de esforço, sentindo o seu estômago voar com a certeza de que o salto não bastaria para cobrir a distância, mas feliz­mente o bloco encontrava-se em movimento e acabou por vir conve­nientemente ao seu encontro. No entanto, quase antes de aterrar com os pés, Tannath surgiu ao seu lado em forma umbral, solidificando-se para lhe puncionar a omoplata com o estilete. O inesperado golpe raspou-lhe o osso perto da coluna e fez com que o corpo do eahan se arqueasse, fazendo-o também cair e rolar pela plataforma branca, obrigando-o a agarrar-se a uma saliência para não cair borda fora. Tan­nath deu logo seguimento ao ataque, saltando-lhe para cima para desferir o golpe de misericórdia, mas mesmo caído de costas, Que­nestil surpreendeu-o ao receber a sua investida com lança enristada, na qual o eahanoir se espetou, estacando sobre o shura com um surpreso olho arregalado. Porém, ao dar-se conta de que o golpe não o afetara, Tannath fez peso sobre a ponta de obsidiana, sentindo o seu incrivelmente afiado gume trinchar-lhe a carne por dentro até lhe irromper pela ilharga na forma de uma saliência na capa. Imune à dor, o Aesh’alan continuou a fazer peso, deslizando pela haste da lança com o intuito de chegar a Quenestil e cortar-lhe a garganta, mas o eahan levantou a perna e plantou-lhe o pé no peito, retendo o seu gro­tesco avanço pela arma.

Os dois ficaram assim num impasse, ambos com os cabelos adejantes com a intempestiva descida pela encosta do vulcão, gelados pelo vento e acalentados pela lava e gases quentes que agora vertiam do Caldeirão. Tannath esticava o braço ao máximo, deixando a ponta do estilete a escassos palmos da cara de Quenestil, enquanto o shura torcia e mexia ligeiramente a lança numa tentativa de tirar o eahanoir de cima de si. Este, ao ver que dificilmente chegaria a lado algum da­quela forma, optou por outra abordagem e parou de se mexer por breves instantes, parecendo estar a concentrar-se. Quenestil só per­cebeu quais as suas intenções ao ver de olhos alarmados a sombra do eahanoir erguer-se novamente, enquanto este sorria debaixo da más­cara. Não teve tempo para pensar, pois o vulto acercou-se rapidamente do desprotegido eahan com lâmina empunhada de ponta para baixo, pronto a desferir o golpe mortal. A única solução que lhe ocorreu foi puxar a parte posterior da haste da lança, cujo coto se encontrava apoiado contra uma reentrância no gelo, e deixar Tannath cair em cima de si, desviando a cara para evitar o estilete. O gesto apanhou o eaha­noir desprevenido, e este não tirou imediatamente partido da vanta­josa posição, o que permitiu a Quenestil desenvencilhar-se, colocando Tannath entre si e a sombra deste para se escudar. O Aesh’alan come­çou a debater-se pela posição, mas o eahan não estava interessado em contestá-la, apenas em afastar-se, o que conseguiu ao empurrar-se com as pernas para longe do adversário, ficando dessa forma desar­mado. A sombra saltou por cima de Tannath, atacando Quenestil enquanto este ainda se encontrava deitado, sem lança nem facalhão. O eahan optou por se manter agachado, desafiando a sombra a atacá-lo com o curto alcance da sua lâmina — aparentemente, perdera a segunda tal como o eahanoir ao unir-se a ele — mas esta não se deixou engodar, preferindo contorná-lo enquanto esperava que o seu trespas­sado mestre se erguesse. Tannath assim fez, flanqueando novamente Quenestil, mas parecia mais preocupado com a lança que lhe atraves­sava o torso do que em atacar o shura, que olhou em redor para pon­derar as suas opções.

Atrás deles vinha um outro bloco de gelo, a deslizar mais rapi­damente por estar a derreter com o calor da lava que vinha atrás, e foi para ele que Quenestil saltou, virando as costas aos seus dois opo­nentes. Derrapou pelo gelo molhado ao aterrar, mas conseguiu agarrar-se a ele antes de escorregar para a lava que o perseguia, enquanto a sombra de Tannath aterrou graciosamente na borda. O eahanoir não veio atrás, ocupado como estava a tentar desembaraçar-se da lança, e Quenestil decidiu que era aquele o melhor momento para despachar o segundo adversário, lançando-se de mãos nuas contra ele. O vulto correspondeu, cortando o ar com rápidos golpes da sua única lâmina e aparentemente resguardando o seu braço esquerdo, o que levou o shura a concluir que passara a espelhar as condições do seu mestre ao unir-se a ele. Era uma vantagem que fazia tenções de aproveitar, ten­tando agarrar-lhe o pulso da arma, mas o vulto era tão esquivo quanto Tannath, e dançou habilmente à sua volta enquanto o tentava estocar, sem grandes preocupações com a superfície escorregadia graças ao seu peso espectral. Conseguiu mesmo desferir um corte na mão de Que­nestil quando este se esticou demasiado, mas o eahan baixou-se de seguida e agarrou a ponta da sombria capa bafejada pelo vento, que puxou com força da sua posição acocorada. A sombra perdeu a esta­bilidade, e Quenestil levantou-se então de rompante, agarrando-lhe o pulso direito com força e desferindo com o mesmo movimento uma cabeçada naquilo que devia ser o queixo. Os dois contestaram então o controlo da lâmina, com o vulto a contorcer-se em movimentos serpeantes enquanto o shura o agredia com a cabeça, cotovelos e joelhos, tentando e falhando em atingir algum ponto vital ou sensível. A som­bra era simplesmente amorfa, e embora sentisse os golpes, não reagia como um ser de carne e osso o faria.

A contenda entre ambos foi quebrada quando o shura sentiu aço morder-lhe o músculo dorsal, resvalando na sua costela. O ferimento quebrou o seu ímpeto e permitiu à sombra libertar-se do implacável agarro no seu pulso, esmurrando Quenestil desajeitadamente no nariz com a inutilizada mão livre. Foi quanto bastou para o afastar, e o vulto tirou ainda partido com uma estocada, da qual o eahan se conseguiu esquivar, só para ser imediatamente pontapeado no esterno, o que no entanto o safou de ser atingido por outra faca de arremesso. Tannath permanecera no bloco anterior, e embora atravessado pela lança, esta não o parecia incomodar ao ponto de o impedir de continuar a ser um perigo. Reconhecendo-o como tal, Quenestil tentou pôr a sombra entre si e o eahanoir, mas esta não parecia disposta a cooperar, e continuou a tentar apunhalá-lo enquanto o eahan fazia os possíveis para se posicionar de forma mais favorável no escorregadio bloco de gelo. A lava vinha no seu encalço, e o calor por ela emanado já se fazia sentir nas suas costas, ameaçando derreter o gelo sobre o qual os dois adversários se encontravam e lançá-los numa desgovernada queda pela encosta abaixo. Mais premente era porém a ameaça da sombra, que acompanhava cada passo seu de forma a deixar Quenestil entre si e Tannath, que preparava aquela que parecia ser a sua última faca de arremesso. De lâmina empunhada, o vulto estava pronto a esfaquear o eahan à primeira abertura, e este, vendo-se sem grandes alternativas, não teve muito tempo para decidir: atacar o vulto diretamente im­plicaria expor as suas costas e sujeitar-se a uma facada; e saltar de volta para o bloco de Tannath torná-lo-ia um alvo fácil para a última faca que este pretendia arremessar.

Entre uma alternativa e outra, Quenestil preferiu seguir os seus instintos, entregando-se novamente ao fogo que dentro dele ardia. Rosnando, o eahan arrancou a faca das suas costas e arremessou-a con­tra o vulto, que, apesar da surpresa dela, se conseguiu desviar. O gesto criou uma abertura que Quenestil aproveitou, saltando para cima do sombrio adversário com pés e mãos como um volverino enfurecido, projetando-os a ambos para fora do bloco de gelo com o embate, que os lançou em queda para a lava que os seguia. Tannath esbugalhou o incrédulo olho azul, certo de que Quenestil selara o seu destino com a desvairada investida, mas o shura plantara ambos os pés no torso da sombra, e em plena queda serviu-se do corpo desta para se impelir para cima e para a frente. O impulso foi quanto bastou para o fazer cair na segurança de uma outra plataforma de gelo, enquanto o vulto caiu em silêncio na lava sem qualquer gesto de dor, dissolvendo-se nela como um torrão de piche seco. Tannath contorceu-se em ines­perada dor com o fenecimento da sua sombra, caindo de lado, ainda agarrado à haste da lança que o trespassava. A um bloco de gelo de distância, Quenestil agarrou-se desesperadamente ao seu, sentindo-o derreter rapidamente com o calor da lava que lhe ruborizava as fei­ções e abrasava a pele, enquanto olhava em redor como um animal aflito. Os pedaços de gelo mais próximos dificilmente seriam alcan­çáveis através de um salto, sobretudo porque lhe era impossível tomar grande balanço em tão escorregadia superfície. O seu coração ardia como o fogo líquido que o rodeava, e por momentos foi acometido por uma sensação de pânico ao ver-se encurralado e sem saída possível, mas ao olhar em frente viu que já estavam próximos do sopé da mon­tanha, no qual se formara uma reentrância côncava que deu esperan­ças ao eahan.

Tannath pareceu reparar nisso também, e recuperou rapidamente do choque de ter perdido a sua sombra para se soerguer, ainda agar­rado à lança, preparando-se para saltar. Quenestil fez o mesmo, mais cuidadoso devido ao precário estado do bloco de gelo sobre o qual se encontrava, e manteve-se numa aprestada posição acocorada de mãos plantadas, sacudindo de leve as costas num gesto animalesco de antecipação. O calor começava a tornar-se insuportável, mas o eahan alheou-se dele, arquejando enquanto mantinha uma suada máscara de concentração e os olhos fitos na formação basáltica que se aproxi­mava cada vez mais depressa. Podia bem espatifar-se contra ela ao saltar, mas era preferível a morrer imerso na torrente de lava que mon­tava quando esta se esparramasse na reentrância. Tannath pareceu pensar o mesmo, e assim que estimou a distância necessária, pulou do seu bloco de gelo com uma soberba impulsão das pernas que o fez singrar pelo ar, no qual o eahanoir contudo estacou a meia-distância. Quenestil não teve tempo de estranhar, vendo apenas o seu adversá­rio cair desajeitadamente sobre a reentrância antes de se ver ele pró­prio forçado a saltar, aliviado pelo bálsamo na sua pele na forma da repentina torrente de ar frio longe do inferno da lava. Foi alívio de pouca dura, e o shura teve de se concentrar na fragosa pedra que con­tra ele vinha, pronta a esmagá-lo, e retesou-se para o impacto, que veio tão violento quanto esperara. Nem mesmo rolando pela pedra teve grande sucesso em amortecê-lo, pois a superfície áspera esfar­rapou-lhe roupas e peles enquanto por ela rolava, vendo o mundo andar vertiginosamente à sua volta e sentindo ossos ranger ao bater com ombros, cotovelos e joelhos. Foi uma excrescência rochosa que o deteve dolorosamente ao embater contra ela de costas, mas a adre­nalina que banhava os seus músculos fazia Quenestil esquecer pron­tamente as suas dores e ferimentos, e o shura levantou-se quase de seguida, tropeçando com os primeiros movimentos. Ainda ligeira­mente desorientado, levou alguns instantes a localizar-se e a perceber que Tannath se encontrava a curta distância dali, e que se erguia com igual determinação no olho. O couro segmentado da sua jaqueta não estava menos rasgado que as roupas de Quenestil, e a sua capa forrada de escarlate ficara esfarrapada com a queda, que lhe deixara um corte exangue no lado da testa. Com o pulso partido pendendo enganosa­mente ao seu lado, empunhava ainda o estilete manchado de sangue.

— Desta não estava à espera — riu. — Mataste-me mesmo a sombra. Ia-me desfazendo aqui, pensando que ainda podia planar.

Quenestil não respondeu nem avançou, fitando apenas o eahanoir e inclinando a cabeça ligeiramente para o lado para ver o rebentar da lava, que como uma maré vermelha se abateu contra o penhasco na forma da reentrância do sopé. Não tardaria a subir, e arrastá-lo-ia e a Tannath para a morte, mas o eahanoir não parecia particularmente preocupado.

— Vem então, Quenestil — reptou. — Vamos acabar isto, antes que a lava que soltaste acabe conosco. Ou era isso que tu querias...?

O shura cerrou os punhos, erguendo-os e olhando para eles, para as luvas esfrangalhadas e com farrapos ensangüentados; um gesto que deixou Tannath intrigado, mas que este apesar de tudo não aproveitou para atacar. A temperatura subiu, sinalizando a ascensão da lava que agora revestia a encosta do vulcão com uma fluida camada vermelho-alaranjada, mas Quenestil parecia-lhe estranhamente indiferente, embora os seus cabelos ruivos se agitassem ao vento com as correntes quentes que detrás dele emanavam.

Tens de saber quem são os teus verdadeiros inimigos, pois de outra forma ele consumir-te-á...

Tinham sido essas as últimas palavras de Babaki a respeito do Fra­gor, e naquele momento fizeram mais sentido ao eahan, que viu passar diante dos seus olhos tudo aquilo que até ali o trouxera. Estranha­mente absorto, não viu Tannath retesar-se e crispar os dedos enluvados no estilete, embora a súbita tensão nos músculos das, pernas deste se devesse sobretudo a uma vontade de tentar fugir da iminente maré de lava, um impulso rapidamente esmagado pela consciência do quão fútil tal gesto seria. Quenestil despertou aparentemente com a mesma percepção, pois avançou na direção de Tannath de braço estendido e indicador esticado, um gesto que deixou o eahanoir em guarda.

— A lança — disse Quenestil — Dá-ma.

Absolutamente perplexo e sem conseguir sequer conceber uma resposta, Tannath franziu as sobrancelhas, enrugando a pala perfurada pela ponta do facalhão do adversário. O eahanoir parecia pronto a ata­car assim que Quenestil se achegasse a ele, mas o eahan não se deteve, avançando desarmado e com determinação nos passos. Atrás dele, o rubor da lava tingia de vermelho a borda da reentrância escabrosa sobre a qual os dois se encontravam.

— Dá-me a lança, ou morremos os dois — instou o shura. — Não me odeias ao ponto de quereres morrer comigo, pois não?

— O problema é que eu já morri. Não foi é contigo... — revidou Tannath.

— Eu não te odeio a esse ponto.

Embora inesperadas, as palavras de Quenestil soaram sinceras, ainda que Tannath se recusasse por princípio a acreditar nas inten­ções do seu oponente. Desconfiado, olhou o shura com ódio, mas pela primeira vez não o viu ser correspondido; pela primeira vez, Que­nestil deixou a aversão passar por ele como uma aragem malsã, estendendo-lhe apenas a mão naquele que quase parecia um gesto de ajuda. Sem saber o que concluir de tal desenvolvimento, o eaha­noir ainda assim baixou o estilete, e, por mais que tentasse, falhava em discernir qualquer sinal de hostilidade na linguagem corporal de Quenestil. O seu olho arregalou-se ao ver que a lava começava a lamber a orla da reentrância basáltica, refletindo-se vermelha no azul do orbe do eahanoir, e Quenestil olhou ele também para trás, dando a entender que estava alarmado somente através do súbito virar da cabeça.

— A lança, Tannath! Preciso dela!

A convicção na voz de Quenestil convenceu Tannath, e antes que este desse por si estava ajoelhado e curvado aos pés do seu inimigo, praguejando em eahan negro e agarrando a lança com ambas as mãos. Sentiu o shura fazer o mesmo nas suas costas, e empurrou a haste com força para o ajudar a arrancá-la do seu torso, por cuja carne a dura madeira deslizou lentamente. Ergueu a cabeça por reflexo quando Quenestil lhe pousou o pé sobre a omoplata para dele se servir como apoio e, por entre as pernas do eahan, viu a lava aproximar-se, hip­notizado pela aterradora beleza da viscosa pedra derretida a escorrer, coberta por chagas e crostas negras. Quenestil puxava com dentes cerrados sem olhar para trás, mas a haste revestida de sangue coa­lhado deslizava lentamente para fora da carne de Tannath, demasiado lenta, desesperantemente lenta.

— Não chegaste a acabar... — aproveitou o eahanoir para recordar com voz abafada, parando momentaneamente de empurrar a haste. — Eu sou apenas o quê?

— Tannath, continua a empurrar! — grunhiu Quenestil entre dentes, mantendo os olhos fitos na cruenta ponta de obsidiana.

— Vá, diz-me lá — insistiu o eahanoir com algo forçada ligeireza, ainda agarrado à haste, mas sem fazer força, enquanto via a lava apro­ximar-se, incapaz de sentir o calor desta na sua face. — Quero lem­brar-me da última coisa que me chamaram antes que o meu senhor me fique com a alma de vez...

— Tannath...!

— Sou apenas o quê?

— Um erro! — desabafou o shura com as veias do pescoço a palpitarem de esforço. — Um erro que eu cometi! Agora empurra a maldita lança, ou morremos os dois!

Surpreso, Tannath deu o derradeiro empurrão à haste, e sentiu-a chupar-lhe fluidos e sangue coagulado ao sair por fim do buraco no seu torso. Quenestil não teve tempo para nada mais além de se virar de lança empunhada em ambas as mãos e, com um movimento em arco, espetá-la no chão. O calor do lençol de lava abrasou-lhe a cara quando se virou para ele de frente, encontrando-se já a meros passos de ambos os combatentes, mas a ponta de obsidiana cravada na rocha exerceu nela um estranho efeito, cindindo o infernal lençol e deixando-o a escorrer para os lados como se tivesse sido apartado por uma cunha. Quenestil e Tannath ainda tiveram de se afastar aos tropeções, fumegando das roupas úmidas e escudando as faces do tremendo calor, mas a lava escorria agora para longe dos dois, abrindo-se num ângulo quase reto que os deixou a ambos a salvo enquanto os campos de lava seca à sua volta eram revestidos por uma nova camada incandescente. O seu progresso foi retardado pelas inúmeras reentrâncias e túneis como aquele no qual Quenestil vira as gravuras, mas a maré vermelha não tardou a espalhar-se pelo Caldeirão fora, der­retendo e fumegando à sua passagem.

Por sua vez, os dois adversários ficaram acocorados perto um do outro num ponto suficientemente afastado das correntes de lava que os flanqueavam, com Quenestil a arfar de feições afogueadas e Tannath com o pulso partido reflexivamente pousado sobre o buraco na sua barriga. O eahanoir ainda empunhava o seu estilete, mas de momento não parecia fazer tenções de o utilizar, olhando simplesmente para Quenestil com um ar surpreso enquanto este recuperava de membros trêmulos. O shura também não fez qualquer gesto ameaçador, nem se afastou por cautela, deixando-se estar onde estava e cruzando apenas fortuitamente o olhar com Tannath.

— Com que então um erro? — perguntou este com o tom mais casual possível.

Quenestil fez que sim com a cabeça, inspirando fundo umas últimas vezes para recuperar o fôlego.

— Essa é nova — reconheceu o eahanoir, sentando-se de pernas flexionadas e apoiando os braços em cima dos joelhos. — Importas-te de explicar?

— Não és tu... o meu verdadeiro inimigo — disse o shura, puxando para trás uma madeixa ruiva solta.

— A sério? Ninguém diria... — disse Tannath, passando os dedos pela pala mutilada no seu olho.

— Eras um teste. Tu, a Slayra, os tanarchianos, a kuvamora...

— A quem?

— Não interessa. Tudo isto — continuou Quenestil, cobrindo o cenário que os rodeava com um gesto da mão —, foi um teste. Foi a Mãe que me testou, que quis saber se eu era ou não digno do Fragor.

— Não percebo nada do que dizes, mas francamente, não vejo como isso seja um pretexto para que paremos de lutar... — disse o eahanoir com renovado tom de ameaça na voz.

— A culpa disto tudo não é tua, Tannath — declarou o shura, erguendo uma aplacadora mão. — Fui eu que fui para Jazurrieh, foi a Slayra que te traiu, foi o Babaki que te mutilou, fui eu que te matei.

Admirado, Tannath permaneceu em silêncio.

— Sim, foram eahanoir que levaram a Slayra para Jazurrieh, mas ela... ela também foi um teste. Nunca a devia ter encontrado, e prova­velmente tê-la-ia morto, ou ela a mim, se nos tivéssemos visto noutras circunstâncias.

O eahanoir ergueu uma fina sobrancelha.

— Eu jurei matar-te, a ti e à Slayra... — recordou.

— E eu a ti, várias vezes — desdenhou Quenestil. — Também disse à Slayra que a minha flecha tinha o nome dela; jurei que regres­saria aos pântanos de Moorenglade para purgar aquela que julgava ser a corrupção d’O Flagelo, quando tudo se devia apenas a um druida que não passava de um humano venal; e jurei que seria a ruína de Tanarch, que os faria pagar por aquilo que fizeram.

O shura abanou a cabeça, baixando o olhar.

— Essa última é a única promessa que irei cumprir. O resto eram só testes — concluiu. — Pedi à Mãe que me concedesse a fúria da tempestade e a cólera purificadora do fogo quando chegasse a altura; que fizesse de mim o retificador, o caçador. Mal sabia eu o que estava a pedir...

— Hum. Muito me contas — disse o eahanoir com tom algo céptico após um momento de silêncio. — Então e agora?

— Não és tu o meu inimigo, Tannath — reiterou Quenestil. — As Vagas de Fogo não se destinam a um homem só, nem sequer aos eahanoir em geral. Embora tenham desenvolvido os vossos próprios meios para lidar com os humanos, vocês estão tão ameaçados por eles como as restantes raças. É essa situação que eu vou retificar, a começar por Tanarch.

— Bem... confesso que não sei o que dizer — admitiu Tannath, pousando o punho bom no chão para se levantar. — Queres mesmo dizer que tudo aquilo que se passou entre nós... estás disposto a deixar simplesmente as coisas como estão?

— Sim, e... — hesitou o eahan, levantando-se ele também com uma careta de dor e indicando Tannath com um gesto da sua mão. — E lamento que elas tenham chegado a este ponto.

Quenestil não elaborou, mas as suas palavras foram quanto bas­tou para deixar o eahanoir verdadeiramente aturdido pela primeira vez, atingindo-o com mais força que qualquer um dos golpes que lhe infligira. Sem palavras, Tannath limitou-se a ficar a olhar lon­gamente para aquele que jurara fazer sofrer antes de matar, incapaz de crer que estava disposto a deixá-lo ir como se nada tivesse acon­tecido.

— Então... — lembrou-se. — E a... e o filho que a Slayra teve de mim?

Os olhos do eahanoir desceram para o punho que Quenestil ainda cerrou ao ouvir as suas palavras, mas o gesto não passou disso.

— Tu... podes ter morrido, Tannath. Mas criaste vida. Duas vidas, na verdade. — O eahanoir foi tomado de surpresa pela revelação, des­conhecendo que Slayra tivera gêmeos. — Peço-te que não a arruines, porque com a morte que eu irei desencadear em Allaryia, ela pode vir a ser um bem mais precioso ainda que aquilo que já é.

Aturdido, Tannath nada conseguiu dizer, remoendo as palavras de Quenestil enquanto este o fitava com a expressão serena de um céu com nuvens de tempestade no horizonte. Ao ver que o seu negro homólogo não falaria tão cedo, Quenestil apontou para trás dele, para o mar.

— Tens um barco numa reentrância ali nas falésias, se precisares — disse, deduzindo que, com a sua sombra destruída, o eahanoir não mais se conseguia mover pela penumbra.

— E tu? — perguntou Tannath num tom atordoado.

— Eu cá me arranjo — afirmou o eahan, lobrigando ulkatr à dis­tância em embarcações toscas.

Ainda por convencer, Tannath aproximou-se de Quenestil, embainhando o seu estilete e sem mais punhais de arremesso à vista nas suas luvas. O shura não se mexeu e não tirou os olhos do orbe azul do eaha­noir, nem mesmo quando este levou a mão à máscara e a baixou, exibindo a sua boca de lábios roxos com o canto rebentado e nariz de narinas ensangüentadas, cuja curvatura era o único indício de que estava partido. Juntamente com a pala rompida dentro da cavidade ocular orlada pela sua intrincada tatuagem vermelha, a face do eaha­noir apresentava um espetáculo intimidante, e ilustrava bem aquilo que queria dar a entender.

— Tu sabes porque é que eu ainda aqui estou — disse. — Sabes porque é que consigo andar e falar. E estás disposto a deixar-me sim­plesmente partir?

Quenestil não respondeu de imediato, recuando mesmo ligeira­mente com ó pescoço com o cheiro a morte que emanava da boca de Tannath, mas as suas mãos permaneceram abertas.

— Os tanarchianos estão do lado do teu senhor — disse por fim. — Tu estás do teu próprio lado, por isso não és o meu verdadeiro ini­migo. Ou és?

— Hunf — fungou o eahanoir, esboçando o seu sorriso enviesado, que mesmo de lábios de canto rebentado continuava a transmitir toda a confiança do mundo. — Não. Posto assim, realmente acho que não sou.

— Então vai — reiterou Quenestil, olhando para um dos afluen­tes de lava que os ladeavam. — O melhor é não dizermos mais nada.

O eahanoir concordou com um aceno de cabeça, mexeu ligeira­mente o pé, hesitou com uma última palavra pendente nos lábios, tornou a anuir e virou por fim as costas ao shura, que se deixou estar onde estava. Tannath afastou-se com o seu habitual andar fátuo, em­bora os seus membros entorpecidos pela morte o deixassem mais rígido que o que era costume, mas não levou mais que cinco passos a deter-se, o que fez com que Quenestil se retesasse involuntariamente. O eahanoir virou a cabeça, não o suficiente para poder olhar para trás, e ficou nessa irresoluta posição com a capa negra agitada pelas cor­rentes de ar quente que o rodeavam.

— O que... — vacilou. — O que é que lhes chamaram?

— Gifeahn e Kyrina — disse Quenestil após uma hesitação inicial.

— Menino e menina.

— Gifeahn? — repetiu Tannath.

— Sim.

Sem nada mais dizer, o eahanoir rornou a acenar com a cabeça, dei­xando-se estar um pouco mais na mesma posição antes de se retirar de vez sem olhar novamente para trás, seguido pelos olhos cinzen­tos de Quenestil. O eahan permaneceu imóvel onde estava, vendo partir aquele que até então julgara ser o seu mais mortal inimigo, sentindo uma pontada de dúvida mesmo com a resoluta certeza que grassava pelos seus membros. Foi porém uma sensação temporária, e Quenestil levou a mão ao colar com dente de volverino, palpando-o através da sua camisa e pressionando-o contra o esterno. Sabia agora porque ali estava, percebera por fim tudo aquilo que se passara na sua vida, todos os eventos que até ali o tinham conduzido, todas as dúvidas que até então o tinham acompanhado, fazendo-o sentir-se um estranho entre os seus. Sentia os ecos do Fragor nos ossos, as garras selvagens cravadas nos seus músculos doridos, repuxando-os com uma força animal que o mantinha de pé, altivo entre o mar de fogo aos seus lados, chamando os seus cabelos de símil cor enquanto estes aba­navam com as vagas de calor.

Quenestil olhou para trás para a lança, que se projetava ensan­güentada da rocha escabrosa, com os veios avermelhados da sua madeira a parecerem pulsar como veias empoladas. As correias de couro com contas de âmbar nas pontas tinham rebentado quando Que­nestil arrancara a haste do torso de Tannath, e jaziam no chão rodeadas de sangue coalhado, mas a arma não parecia ter perdido muito com isso. Antes pelo contrário, parecia ter despertado de um longo sono, e que a breve prova de sangue a deixara sedenta de mais.

«Permite-me ser o retificador, Mãe; permite-me ser o caçador», orou Quenestil, ecoando as suas palavras de meses atrás antes de partir da Sirulia. «Que quando o momento chegar as minhas flechas voem cer­teiras...»

Abrigado num úmido nicho na falésia, Loevrik olhava estoicamente para o rubor vindo ao longe do Caldeirão, sobre o qual dança­vam as verdes luzes norrenas, entre as quais se formara entretanto um escuro bulcão. O kahrkr aguardara ali durante um dia inteiro desde a partida de Quenestil, e os borrifos da marulha em baixo tinham-no deixado de louros cabelos esfiapados, umedecendo-lhe também a pele de lince que trajava sobre a cota de malha. Alheio ao frio, pro­pusera-se a aguardar até ao dia seguinte por um sinal do sucesso ou fracasso do eahan, mas aquilo que agora via excedera de longe todas as suas expectativas, mesmo as que procurara por força recalcar. As sobrancelhas louras sobre as suas orlas orbitais perpetuamente mol­dadas numa expressão carrancuda arregalaram-se pela primeira vez em anos, vincando-lhe profundamente a testa. O longínquo rubor bri­lhou-lhe nos encovados olhos azuis, ateando neles o fogo interior que ardia dentro de Loevrik, e a boca carrancuda deste abriu-se de relu­tante espanto.

— Quem diria... — disse para consigo. — O velho urso tinha razão...

 

Mais que a denominação da assembléia dos Fiordes dos Piratas, Balstirvirk era também o nome do local onde esta tomava parte, sig­nificando «Vale do Forte» em Hjrutmalv. O vale em questão era extenso e acidentado, cindido por um rio escuro proveniente de um glaciar que escorregava das montanhas no extremo norte, e cuja água turva se devia à preta pedra vulcânica em redor. O desfiladeiro ao longo do rio alimentava-o com as inúmeras cascatas que corriam de um dos seus lados, apresentando uma face viçosa com musgo a atapetar as derrocadas de pedras, entre as quais escorriam irregulares fios brancos. A outra face era rude, fragosa e disforme, rancorosamente negra em oposição à sua homóloga musgosa, sobre a qual assentava uma estreita planura pantanosa de erva crestada que circundava os charcos da água que caía em cachão pelas cascatas. Separada desta planura por uma elevação irregular no terreno, havia pouco mais além de rocha vulcânica e cascalho até ao sopé das montanhas, uma paisa­gem desolada e ligeiramente enevoada pelo constante borrifar das cascatas abanadas pelo vento, bem como pelo vapor de uma fonte de água quente próxima.

O nome do vale devia-se às bizarras formações vulcânicas que se encontravam entre a planura e o campo de lava, cuja forma lembrava com alguma imaginação um forte arruinado. Extensas e rugosas, as escuras formações pareciam vindas diretamente da Asmodeon do imaginário geral, com formas de pesadelo que durante a noite certa­mente seriam muito pouco convidativas, e buracos dos quais se espe­rava que saíssem monstros a qualquer instante. Embora quebradas, desenhavam um círculo quase perfeito, fazendo jus ao nome do local com a função defensiva que podiam de fato representar. Fora pro­vavelmente esse o motivo pelo qual tinha sido escolhido como local de assembléia pelos garding dos Fiordes em tempos idos, pois estes, conhecendo bem a sua traiçoeira terra e os perigos desta, nunca teriam abandonado a segurança das suas quintas sem a garantia de um mínimo de proteção. Enquanto terreno neutro, Dalstirvirk sempre oferecera condições únicas nesse sentido, além de que tinha espaço para acampamentos, erva para as montarias e água em abundância para homens e animais, bem como uma conveniente fonte quente.

A tradição manteve-se nesse ano, e o vale estava animado com todo o movimento em redor das formações de lava, à volta das quais se encontravam montadas tendas dos mais diversos tamanhos. Wolhynos de todos os cantos dos Fiordes dos Piratas encontravam-se ali presentes, falando animadamente enquanto trabalhavam, mon­tando não só tendas mas também bancadas com lã, queijo e produtos alimentares secos. Aparentemente, a assembléia servia também como feira, embora algo pobre mesmo para os modestos padrões dos Fior­des. Os representantes de quintas costeiras traziam peças esculpi­das de marfim de morsa, peixes vários em igualmente variados estados de conservação, algas secas e óleo de baleia. Os das quintas interiores pouco mais podiam oferecer além de velos de lã, produtos laticínios, chifre e enxofre em recipientes de talco. Moedas de qual­quer espécie eram raras mesmo ali, e efetuar-se-iam sobretudo pro­messas vinculativas com testemunhas e trocas, não só de bens como também de notícias. Foram sobretudo essas últimas o principal tó­pico de conversa mesmo enquanto se esperava pelos últimos repre­sentantes antes de ser dado início à assembléia. A ameaça skrimmen era já um dado adquirido para uns e um rumor preocupante para outros, assim como os rumores de que Tanarch pretendia invadir a Wolhynia através dos Fiordes, e as afins intrigas que faziam parte do quotidiano dos Fiordes ficaram para segundo plano logo à partida, para grande agastamento dos que viviam mais a sul e que tinham assuntos pendentes e prementes a tratar. Quem não se queixou foi Andvar de Rostungflokt, que todos os anos era forçado a discutir em assembléia o seu divórcio de Yhtte, filha de Oska de Horavog, pois esta recusava-se a prescindir do dote que lhe dera quando do pos­teriormente anulado casamento. Os dois garding tinham sido dos primeiros a chegar, juntamente com Skolsvein de Dal-unn-Soid e Drull de Kvisíbair, mas apesar da tensão que havia entre eles, a re­cente agressividade dos skrimmen convenceu-os a protelarem as biliosas trocas de palavras que já faziam parte do folclore de Dalstirvirk. Aguardavam ainda por Odhar de Odharloihj e Malgin de Kvalarenn, embora o primeiro já tivesse sido avistado ao longe pelos vigias à entrada do vale. Oska aguardava com expectativa a chegada do seu irmão, que embora raramente se dignasse a apoiá-la nas assembléias, sempre conferira um peso adicional às suas palavras, e equilibrava um pouco a sua contenda pessoal com Drull e Skolsvein, que se encontrava ao serviço do primeiro e, por conseguinte, era tudo menos imparcial.

Cada um dos garding viera com um séquito de homens armados, exceto Oska, que, além dos guerreiros de Knorl, trouxera consigo apenas um misterioso grupo de homens e mulheres encapuçados que ainda não se tinham revelado, e um imponente jovem com arnês e espadão, cuja presença por si só fazia a vez de um séquito. Drull e Skolsvein foram os que se mostraram mais cautelosos, questionando-se quanto às verdadeiras intenções da garding de Horavog, enquanto os restantes ficaram meramente intrigados. Aggor, Hyrm e Hjolld, os temidos sobrinhos de Skolsvein ficaram particularmente atentos, questionando-se se uma das figuras encapuzadas seria o indivíduo munido de arco que os escorraçara de Horavog da última vez que a tinham visitado. Instalara-se então em Dalstirvirk um ambiente mais tenso que aquilo que era normal, pois apesar da ameaça maior que ensombrava todos os presentes, era patente a animosidade entre Oska, Drull e Skolsvein.

Era o tipo de ambiente no qual Slayra se sentia como um peixe em água, mas na sua presente situação era difícil tirar partido dele, ocu­pada como estava a tentar manter Knorl fora das suas saias e as mulhe­res deste debaixo de olho. Passara por dias complicados durante a viagem até Dalstirvirk, pois as galinhas da capoeira de Knorlvog culpavam-na pela morte da matrona que fora trespassada por uma seta skrimmen, e a eahanoir tivera de se manter atenta a qualquer tentativa de vingança da parte destas. Comparadas aos seus conterrâneos, as raparigas wolhynas eram amadoras amamentadas, mas Slayra sabia estar numa posição precária na qual não podia revelar demasiado acerca das suas habilidades, o que a forçava a ser mais discreta ainda que o habitual. Ainda não chegara a falar com Deadan ou uma das eahlanas, e francamente nem tinha grande vontade de o fazer, sabendo de antemão que qualquer um deles quereria falar, nada do qual estava interessada em discutir. Os seus filhos tinham estado fugazmente nos seus pensamentos, mas não estava disposta a deixar-se persuadir a voltar para eles, ainda que os seus planos tivessem sido parcialmente gorados com a saída de Knorlvog. Pessoalmente, não guardava qualquer rancor aos eahlan, e Deadan era-lhe francamente indiferente, mas não tinha paciência para ouvi-los, temendo até que pudessem comprometer o seu estatuto privilegiado com Knorl.

Felizmente, agora que se encontravam em Dalstirvirk, o garding estava demasiado ocupado com os seus pares para dar muita atenção a Slayra, o que sempre era uma distração a menos para a eahanoir enquanto esta ponderava o seu próximo passo. Não eram muitas as vias abertas diante de si, e a maior parte delas implicava um perigo maior do que esperar simplesmente que a assembléia terminasse, para poder regressar a Knorlvog e reiniciar o seu plano original. Afinal de contas, já tinha os preparativos feitos, e a menos que o jovem pesca­dor tivesse entretanto mudado de idéias, ou — cúmulo dos azares — a matrona que morrera tivesse sido a sua mãe, provavelmente ainda estaria disposto a fugir com ela. Slayra podia porventura ter embotado ligeiramente durante o período em que se tentara integrar com os companheiros e tornar-se uma companheira que Quenestil nunca abandonaria, mas estava certa de não ter perdido os seus encantos, e de que o jovem ficara irresistivelmente tomado por ela. Seria portanto melhor ser paciente e esperar que a assembléia decorresse sem inci­dentes de maior, o que a presença dos guerreiros de Knorl quase garan­tia, pois tal como o seu aguerrido senhor, estes pareciam merecer o respeito dos restantes. A eahanoir já tinha uma boa idéia geral daquilo que se passava e quais os assuntos que iriam ser postos sobre a inexis­tente mesa — disputas de pastos, doenças de ovelhas, desfeitas reais ou imaginárias entre famílias e rivais — e de início ponderara mesmo imiscuir-se neles, e aconselhar Knorl. Porém, seria presunçoso da sua parte julgar-se apta a dar pareceres a um garding, ainda que subtil-mente, além de que não lhe convinha dar a entender que era algo mais que uma escrava licenciosa e de pavio curto.

Por essa e outras razões, Slayra preferira isolar-se dos procedimen­tos, e encontrava-se indolentemente sentada numa das muitas excrescências rochosas do terreno, de capuz posto, abraçada ao seu xaile azul e com a capa negra sobre os joelhos. Não chamava muito a atenção, e os dois guerreiros de Knorl que a vigiavam sem grande descrição desencorajavam os mais curiosos. Pertencia ao senhor de Knorlvog, e embora este lhe desse uma medida de liberdade, não estava dis­posto a partilhá-la com ninguém, até porque as suas outras mulheres tinham dado a entender que fariam a eahanoir pagar, caso a apanhas­sem a jeito. Slayra congeminava formas de anular a menor mas incomodativa ameaça representada pelas galinhas de Knorl, ponderando inverter discretamente os papéis com umas oportunas visitas noturnas, ou mesmo envenenar as mais verbosas de entre elas, como o fizera com a kuvamora. Tais pensamentos eram relaxantes à sua maneira, reminiscentes das mais negras alturas da sua vida em Jazurrieh, quando tudo fora mais tão mais simples. Sem dúvidas nem remorsos, direita ao assunto como uma lâmina à garganta, limpando-a de seguida para lidar com o próximo problema como se nada fosse. Tinha porém o inconveniente de a deixar tensa que nem o fio de um arco, de tão desabituada que estava, e embora fosse terapêutico de uma forma doentia para os seus entibiados instintos assassinos, Slayra não podia negar que a fazia sentir uma angústia que deixara de fazer parte da sua vida desde que se juntara aos companheiros. Era-lhe algo desagradável de constatar, e a eahanoir preferia não pensar demasiado no assunto, mas antes que se pudesse forçar a refletir noutra coisa, a aproximação de duas figuras conhecidas chamou-lhe a atenção. Deadan vinha na sua direção, acompanhado de uma mulher encapuzada, e Slayra revirou os olhos antes mesmo de reconhecê-la como Sana, de todas as eahlanas a que mais companhia lhe fizera durante a gravidez.

O Ajuramentado vinha com peles e lãs sobre o seu sempre impecavelmente polido arnês, com o fiel espadão embainhado sobre as costas e estampado na cara o territorial olhar que assumia sempre que se encontrava próximo de uma eahanna branca. Sana vinha com um despretensioso vestido wolhyno azul e um toucado branco, mas havia algo no seu andar e no das suas congêneres que, independentemente da sua vontade, chamava sempre a atenção. Isso, e a aura de placitude que parecia emanar delas, e que mesmo esbatida com os rigores de uma impiedosa viagem e a dor de familiares mortos, ainda assim não passou despercebida aos dois homens de Knorl, que ficaram a olhar antes de erguerem as mãos. As sobrancelhas de Deadan formaram uma hostil linha horizontal sobre os seus olhos azuis, mas Sana refreou-o, estendendo o braço para o lado e tocando no coxote do jovem siruliano com os delicados dedos brancos. Foi ela quem primeiro dirigiu palavra aos homens de Knorl, intrigando Slayra antes de esta se lembrar que a eahlana poderia perfeitamente fazer-se entender através do Eridiaith. O seu encanto pessoal tratou do resto enquanto se aproximava, vigi­lantemente seguida por Deadan, e mesmo sem puxar o capuz para trás, conseguiu que os wolhynos esquecessem por completo a ameaçadora presença do Ajuramentado, centrando nela a atenção destes. Por momentos, Slayra pensou que tencionava distraí-los para que Deadan tratasse deles, mas o resultado foi bem menos dramático, embora não menos impressionante na rapidez com que Sana persuadiu os homens a deixarem-na vir ao seu encontro com o siruliano.

Suspirando pelo nariz, a eahanoir deixou descair a sua cabeça, ficando com algumas negras madeixas soltas dependuradas diante da cara, deixando-a assim até sentir próximos os pesados passos de Dea­dan esfarelarem a pedra vulcânica debaixo dos seus pés. Slayra agitou as madeixas com um outro suspiro, e puxou-as para trás com a mão antes de erguer a cabeça com um enfadado gesto.

— Sim...? — indagou ao ver os dois olharem para ela com ar hesi­tante, sobretudo Sana.

— Slayra... — disse Deadan à laia de cumprimento. Era a primeira vez que a tratava pelo nome, e sentia-se evidentemente pouco à vontade com a falta de um apelido, como se estivesse a ser demasiado íntimo ao ficar-se pelo nome próprio.

— Slayra Shassin, se isso te deixa mais à vontade — disse a eaha­noir com tom jocoso. — Mas não tenho a certeza. Como sabes, o meu povo não gosta muito de apelidos: imagine se os Shassin tinham ofendido alguém? Habilitava-me a ser esfaqueada só por ser associada ao nome.

Deadan não comentou, e a sua linguagem corporal evidenciava o fato de que fora persuadido a estar ali e que preferia estar noutro lugar. Slayra nem queria imaginar as horas perdidas a tentar con­vencê-lo a escoltar uma eahlana e a deixar os outros desprotegidos, e Sana tivera provavelmente um papel preponderante nisso, pois Slayra sabia o quão inadvertidamente persuasiva a eahanna branca sabia ser.

— Como se sente, Slayra? — perguntou esta, com o tom preo­cupado do qual a eahanoir ficara saturada durante a sua gravidez. Até se conseguira afeiçoar à eahlana após algum tempo, mas naquele momento o seu persistente tom de quem sabe quais são os problemas de outrem e sente pena deles por não os conseguir revolver irritou-a, aliado ao fato de ser simplesmente bonita demais.

— Sinto-me otimamente, Sana, obrigada — agradeceu com uma medida de sonsice. — E vocês, como vos tem tratado a Oska?

— Continua a tratar-nos com mais cortesia que a que é devida a estranhos que vieram à casa dela comer da sua comida, sem darem nada em troca — respondeu a eahlana, à qual o ligeiramente acintoso tom de Slayra passou ao lado. — Mesmo sem a presença de Quenestil, Oska e os outros tratam-nos como o fariam com os seus.

— Olha que isso não é necessariamente bom... — advertiu Slayra, mas Sana não se deu por achada, dando prova adicional de que a sua raça desconhecia ou era imune ao conceito de sarcasmo.

— Slayra, eu queria falar-lhe de uma coisa...

«Oh, cavem ela...», pensou Slayra, conseguindo contudo manter um falso sorriso. — Sim, Sana?

— Os vossos bebês, eles...

— Estão bem, não estão?

— Bem, sim, na medida do possível, mas...

— Então pronto, estamos conversadas — tornou a eahanoir a interromper, virando-se para Deadan. — E tu, Deadan? Como vão as coisas com a filha da Oska? Yhtte, não é?

O jovem siruliano sobressaltou-se de leve, claramente aturdido por se ver subitamente mais envolvido na conversa que o que certa­mente esperara.

— Porque perguntas isso, eahanoir? — indagou, regressando ao seu trato antigo.

— Por nada — disse Slayra inocentemente, levantando os joelhos e abraçando-se às pernas num gesto casual. — A não ser o fato de ela te comer com aqueles lindos olhos azuis, e de estar sempre a alisar o vestido sobre as ancas parideiras de cada vez que te vê...

A expressão de Deadan ensombrou-se, sendo provavelmente essa a única alternativa à ausência de vergonha ou embaraço dos sirulianos. Sana estava com a boca entreaberta, admirada com tão flagrante esquiva, mas a compunção com a qual Slayra contara não lhe permitiu interromper ela também a conversa.

— Não sei de que falas, eahanoir — escusou-se Deadan. — Yhtte cumpre apenas o seu dever filial de cuidar dos hóspedes da anfitriã, sua mãe.

— Oh, não tenhas a mínima dúvida de que ela gostaria de cuidar de ti — comentou a eahanoir com um sugestivo arquear das finas sobrancelhas. — Qual é o teu problema? Os Castelões disseram-te que só podias foder tanarchianas?

Mesmo antes de acabar a frase, Slayra apercebeu-se de que escolhera as palavras erradas, pois os maxilares de Deadan retesaram-se e os olhos do jovem chisparam de fúria. A eahanoir não iria voltar atrás com o que dissera, mas também achou mais avisado não insistir no assunto, o que contudo não bastou para vedar a torrente de fúria que ameaçava rebentar de Deadan. Os seus punhos fizeram ranger as placas da manopla, mas bastou Sana tocar numa delas para que o Ajuramentado acalmasse, exalando pelas narinas e de lábios apertados.

— Slayra, os bebes alimentam-se bem e estão de boa saúde, sim — assegurou a eahlana, embora não lhe tivessem sido pedidos detalhes. — Mas uma criança precisa sempre da mãe, sobretudo quando há diferenças tão... significativas entre a progenitora e a ama.

— Porquê, Sana? Achas que as tetas das wolhynas não são tão boas como as minhas? — indagou a eahanoir, levando as mãos ao seu peito enfaixado debaixo do vestido. — Podem não ser tão elegantes, mas vingam bem pelo tamanho. Sobretudo as da Yhtte...

— Slayra... — quase suplicou a eahlana, puxando para trás o capuz com um gesto elegante, como involuntariamente o eram quase todos os que ela e os seus faziam. Tinha os cabelos brancos presos numa enredada trança na nuca, mas ao contrário das sempre impecavelmente elegantes Eluana e Alija, fazia questão de ter umas madeixas soltas ao lado da cara oval. Os seus olhos azul-escuros eram tão irritantemente compreensivos como o tom da sua voz serena, e a boca em forma de coração como que prometia consolo com um beijo na testa, tudo sentimentos que Slayra naquele momento dispensava.

— Sim...? — perguntou ainda assim, achando impossível ignorar por completo as claramente boas intenções da eahlana. O seu tom fora contudo quase de advertência, desaconselhando Sana a enveredar por caminhos que desconhecia.

— Sei que está magoada, Slayra, mas...

— Oh, filha, que sabes tu de mágoa? — barafustou esta, atirando as mãos ao ar com a condescendência de que se sentia alvo. — O que é que te magoa? Ver um pássaro de asa partida? Uma pessoa triste? Um dia sem sol?

A eahlana ficou surpreendida com a intensidade da diatribe de Slayra e, aturdida, não respondeu, olhando-a simplesmente com olhos mais abertos que a boca. A expressão da cara de Deadan endureceu novamente ante a seu ver tão desrespeitoso trato, mas Slayra não se deixou intimidar e levantou-se, encarando Sana numa pose quase ameaçadora.

— Já foste abandonada pelos teus pais, solta na rua sem nada a não ser uma faca manchada com o sangue do primeiro homem que mataste? — exigiu saber. —Já te morreu algum amigo para te salvar a vida? Já engravidaste de alguém que te quer matar, porque se não o fizesses, ele matava-te e àquele de quem tu mais gostas? Já pariste os filhos do teu pior inimigo, e foste abandonada por quem te deu a esperança de uma vida melhor por causa disso? Já, Sana?

Sem palavras e meio encolhida, a eahlana fez que não com a cabeça, olhando Slayra com olhos quase assustados.

— Então não digas que sabes que eu estou magoada, quando não fazes a mínima idéia daquilo por que eu passei! — quase rosnou a eahanoir, agarrando Sana pelos braços e sacudindo-a de leve. — E, acima de tudo, não me venhas aqui com falinhas mansas a tentar convencer-me a voltar, que esta maldita terra não tarda nada vai entrar em guerra, e eu não vou ficar à espera dela numa quinta fumarenta com cheiro a leite azedo!

— Basta, eahanoir! — vociferou Deadan, praticamente arrancando Slayra de Sana com uma mão enquanto envolvia os ombros da eahlana com um braço protetor. Rápido para o tamanho do siruliano, o repelão do gesto fez Slayra tropeçar para trás, ficando separada de Sana pela mão de indicador erguido do jovem.

— Como ousas?! — indagou o Ajuramentado, mal contendo a sua raiva. — Eu devia...!

Os dois guardas de Knorl gritaram eles também nas costas do trio, e ambos avançaram com as mãos apoiadas nos pomos das armas, exigindo esclarecimentos pelo tom da sua voz. Deadan deu uma volta, ficando de ombro para Slayra e com Sana virada na direção desta, enquanto se interpunha entre ela e os wolhynos com uma promessa de morte no seu olhar que os fez hesitar.

— Hettad! — quase ordenou Slayra, erguendo as mãos, o que ser­viu como a desculpa ideal para os homens se deterem. O barulho atraíra também a atenção de outras pessoas, que interromperam a montagem das suas tendas para olharem na direção da altercação.

— É melhor vocês irem-se embora — aconselhou, mais como constatação do que propriamente como ameaça. Deadan agiu como se não a tivesse ouvido, inchando o peito tanto quanto a couraça lho permitia, enquanto Sana olhava com ar de súplica para a eahanoir.

— Slayra, por favor, não quer mesmo vir conosco? Só por um pouco, para ver os bebês? — quase rogou a eahlana com a alabastrina testa enrugada de angústia. — Eles sentem a sua falta...

— Pelo amor de Assana, rapariga, ainda mal sabem cagar, quanto mais sentir saudades da mãe — ciciou a eahanoir, sentindo os olhos de meia assembléia em cima de si, o que era a última coisa que naquele momento desejava. — Vão-se embora! Ou querem um confronto com os homens do Knorl?

Sana ainda ficou a olhar para Slayra, mas ao ver que esta não iria mudar de idéias, baixou os olhos tristes e apaziguou o ânimo de Dea­dan, afagando-lhe o braçal com a mão. O siruliano pareceu sentir o toque da eahlana mesmo através do aço, e embora não tirasse os olhos dos dois wolhynos armados, aquele tornou a acalmá-lo e a sua pose relaxou.

— Sabe onde nos encontramos, Slayra — disse Sana, puxando o capuz sobre a cabeça. — Sabe que sempre a receberemos de braços abertos.

Com isto, a eahanna branca virou-lhe as costas e anuiu quando Deadan a olhou com ar inquiridor, dando a entender que nada mais tinham ali a fazer. O Ajuramentado nem se dignou a olhar uma última vez para Slayra, fazendo simplesmente que sim com a cabeça e acompanhando Sana para longe dali, não sem lançar um olhar de advertência aos dois wolhynos, que lhes abriram caminho. Estes olharam de seguida para Slayra, que lhes virou as costas e a todos os outros que continuavam a mirar na sua direção, cruzando os braços e afagando-os. Sentia ter sido demasiado bruta, até porque Sana não tinha culpa, e sabia que as suas palavras também tinham sido algo injustas: afinal, vários eahlan tinham morrido desde a fuga de Gul-Yrith, e a vida dos Lasan fora virada do avesso. Estava era simples­mente saturada das boas intenções dos eahlan.

«Livra, não são mesmo capazes de evitar tentar corrigir o mais ínfimo pormenor que acham que destoa do seu mundo perfeitinho...», abespinhou-se, mais para justificar a sua reação que por genuína censura. «Que raio, mas que têm eles a ver com a minha vida?»

Slayra exalou pelos cantos da boca de bochechas cheias para se acalmar, olhando para a paisagem em redor em vã busca de algo no qual pudesse fixar a vista para relaxar. Entretanto, serenados os âni­mos, os dois homens de Knorl voltaram aos seus postos, trocando pala­vras entre si com olhares pouco amistosos para as costas de Deadan, e os outros retomaram os seus afazeres como se nada se tivesse passado, cochichando entre si ante o possível desenvolvimento de uma nova intriga.

«Farta desta maldita terra...», pensou Slayra. «Farta deste céu cinzento, deste frio, desta rocha preta e suja, desta gente...»

Imersa nos seus desagradados pensamentos, a eahanoir não se deu sequer conta da ligeira agitação que se originou no extremo norte do acampamento de Dalstirvirk quando da aproximação de um cava­leiro. A voz de um dos sentinelas na montanha ecoou também pela vertente abaixo, ao mesmo tempo que um fogo foi aceso no cume, e só então Slayra se apercebeu de que algo se passava. Deadan e Sana ainda nem tinham regressado à sua parte do acampamento, quando homens começaram a correr à sua volta, gerando um reboliço geral entre as tendas e fogueiras que estavam a ser preparadas, sobretudo quando se viu que o cavaleiro mal se mantinha ereto sobre a sua sela. Preocupada, mas apesar de tudo serena, entre a agitada multi­dão, Slayra foi juntamente com os guerreiros, escravos e mulheres em direção ao recém-chegado, temendo o pior não pela saúde deste, mas pelo que a sua atribulada chegada vaticinava. Mesmo os garding saí­ram das suas tendas, interrompendo a congeminação de tramóias para verem o que se passava, e até os homens que se encontravam a pre­parar o interior do rugoso forte basáltico para a assembléia o abando­naram.

«Oh, bolas, o que foi agora?», preocupou-se Slayra, vendo nas caras dos wolhynos à sua volta o medo que ela própria tentava ocultar.

O cavaleiro solitário levou uma eternidade a chegar até eles, trans­portado por um dos pequenos e robustos cavalos wolhynos, que mes­mo àquela distância parecia exausto. Uma vez mais próximos, deu para ver que o cavaleiro abanava na sela de cabeça pendente, e que a sua montaria estava ferida e cavalgava a custo. A especulação e os augúrios de desgraça não tardaram, e houve mesmo quem acusasse este ou aquele garding de ter tirado partido da sua ausência para atacar a sua quinta pelos mais variados motivos. Trocaram-se denúncias e aceita­ram-se mesmo apostas, mas mais que os intriguistas eram aqueles que temiam o pior, entre os quais Slayra, que viu a sua vida andar para trás, incrédula com as voltas que o destino lhe dera antes de sequer confirmar as suas suspeitas. Estas foram cedo validadas quando um wolhyno tomou a iniciativa de se colocar diante do cavalo de braços levantados para que o animal parasse, por pouco não atirando o cava­leiro ao chão ao fazê-lo. Era um jovem de cabelos de um louro muito amarelo, que apenas realçava o vermelho do sangue a escorrer-lhe da cabeça, e que envergava roupas pouco adequadas mesmo para o mais ameno tempo primaveril que por fim se fazia sentir. Por sua vez, o esbaforido cavalo ostentava feridas sangrentas nas coxas e na garupa, quase morto de exaustão com a sua certamente longa cavalgada. Dois homens ajudaram o jovem a descer, e este apoiou-se nos ombros de um deles, ainda incapaz de erguer a cabeça, enquanto murmurava algo ao ouvido de quem o ajudava. Os dois homens informaram solicita­mente a multidão de que viera de Hjoldejma, que Slayra deduziu ser uma qualquer quinta de fazendeiros, e foram então cercados por um magote de gente, apesar dos insistentes pedidos de espaço para o jovem respirar. Originou-se uma atribulada troca de palavras entre os presentes, na qual ninguém percebia o que o outro dizia, até que umas vozes mais estentorosas se impuseram e silenciaram a multidão, conse­guindo mesmo aliviar o cerco ao rapaz, cuja voz débil se fez então ouvir. O seu tom de voz foi porém inicialmente demasiado baixo para que o pudessem ouvir, e o estar de cabeça baixa em nada ajudou. Não foi senão quando alguém lhe pegou pelos lados da cabeça que o jovem se fez ouvir, de olhos semicerrados e ambos os braços apoiados sobre os ombros de outros dois.

— Skrimmen... skrimmen noymurnr — disse, altura na qual dele se propagou uma onda de pânico geral.

Homens levaram as mãos à cabeça e mulheres arquejaram de aflição, olhando uns para os outros com olhos espavoridos. Os garding como Knorl e Drull, que entretanto tinham aberto caminho através da multidão, tentaram debalde impor a ordem, mas ninguém os quis ouvir, sobretudo Slayra, que ficou brevemente desligada do mundo ao compreender as palavras do jovem. De emoções dormentes, a eahanoir deixou-se simplesmente estar onde se encontrava, isolada no meio da multidão em ebulição e sofrendo vários encontrões nos ombros quando o medo deu lugar a uma frenética e desordenada atividade. Pessoas começaram a andar de um lado para o outro, uns a falarem de fugir, outros de morte iminente, e uns poucos que sugeriam que ali ficassem para lutar e enfrentar cara a cara aqueles que havia muito os atormen­tavam com ataques pela calada. Não houve uma única voz concordante, e os garding viram-se incapazes de organizar o seu desgovernado rebanho, que não parecia querer saber quantos eram os skrimmen, quão perto se encontravam, de que direção vinham, e se traziam ou não ulkatr com eles. Tais pormenores eram desnecessários para a maioria de escravos e fazendeiros que ali se encontravam, para os quais bastava naquele momento saberem que o inimigo vinha na sua direção.

«Não... não acredito, não é possível...», pensou Slayra, mais pálida ainda que o costume e com um desagradável frio nas entranhas. Depois de tudo o que fizera e acontecera, conseguira ainda assim pôr-se à mão de semear dos skrimmen, e esse virar de eventos fez com que a eahanoir tivesse o ominoso pressentimento de que fora amal­diçoada pela kuvamora, cuja morte os seus vinham agora vingar.

Pela primeira vez em muito tempo, Slayra teve medo.

 

Worick fechou calmamente a porta atrás de si, abanando a cabeça ao cruzar olhares com Aewyre, que aguardava ansiosamente à entrada com Taislin. Os dois olharam para o thuragar, que tornou a abanar a cabeça e fez os lábios desaparecerem debaixo do bigode ao encolhê-los.

— A cachopa está destroçada — disse, baixinho, caminhando com incaracterístico cuidado para não fazer barulho com o seu arnês.

Aewyre passou a mão pelo desalentado cabelo e Taislin olhou-o de baixo com olhos felinos bem abertos.

— Não vais falar com ela? — perguntou.

— Está calado, mafarrico. Ela não quer falar com ninguém — regougou Worick.

— Não a podemos deixar simplesmente ali a... — disse Aewyre, gesticulando com as mãos por falta de palavras.

— Então e vais dizer-lhe o quê? Que a tua espada dos reis não é como as outras, e lhe pode dar um filho? — redarguiu o thuragar, indicando com um olhar a virilha do guerreiro.

— Não sejas cretino, Worick! — quase sibilou Aewyre, genuina­mente irritado. — Ela não sai dali desde ontem!

— Dá-lhe tempo — disse o thuragar com outro tom, apercebendo-se de que fora desnecessariamente bruto. — Tu não imaginas o que lhe fez, ouvir o próprio pai dizer aquilo à frente de outros...

— Pois não imagino... Mas que raio, não vamos deixá-la ali a mur­char só por causa disso.

— Ela também nos podia ter dito, não é vergonha nenhuma — disse Taislin na sua ingenuidade. — A minha mãe também tinha uma coelha que não era capaz de ter filhos, mas não foi por isso que viveu uma vida menos boa... até ir para a panela, isto é...

Apesar da situação, Aewyre viu-se incapaz de impedir uma risada implosiva que o fez resfolegar, pousando então a mão sobre a cabeça do burrik e aplacando Worick com o olhar.

— Mesmo assim, não é o tipo de coisa que se ande a contar às pessoas, Taislin — explicou. — Embora ela me pudesse de fato ter dito...

— Oh sim, claro, dizer ao último descendente viril da casa de Thoryn que é incapaz de dar continuidade à descendência dele — fantasiou Worick, revirando os olhos. — Era logo a primeira coisa que ela te iria dizer.

Aewyre suspirou, tendo já discutido o assunto com o thuragar. Tanto Lhiannah como Worick lhe tinham ocultado esse fato durante todo aquele tempo, e apesar de ser incapaz de negar que se sentia um pouco ressentido por tal, o jovem não os podia censurar. Explicava muita coisa: Lhiannah nunca por uma vez incomodara ou atrasara os companheiros durante as viagens devido ao choro lunar, e o simples fato de, com a sua idade e beleza, não ter sido sequer prometida pelo seu pai a um qualquer nobre syrithiano devia ter deixado Aewyre desconfiado. Sempre atribuíra o mau gênio de Lhiannah ao seu esta­tuto de filha bastarda, mas aparentemente o motivo sempre fora bem mais prosaico, embora bem mais sério do que o jovem julgara. Come­çava apenas agora a compreender o verdadeiro inferno que a vida em Vaul-Syrith devia ter sido para a princesa — uma bastarda estéril, que era ainda assim mais bonita que as outras raparigas da corte, não podia ter sido popular em qualquer círculo além do dos homens que pre­tendiam apenas meter-se debaixo das suas saias, o que explicava em grande parte a misandria inicial de Lhiannah, e a postura excessiva­mente protetora de Worick para com Aewyre quando se tinham conhecido.

— Eu percebo, Worick — garantiu. — Mas não é por isso que eu vou deixar de gostar dela...

— Falar é fácil.

— Então e porque não ser ela a avaliar isso? — retorquiu o guer­reiro, olhando o thuragar de cima e apontando para a porta. — Somos amigos, Worick, e é só por respeito que te estou a pedir autorização, porque eu vou falar com ela.

A expressão do thuragar não era amistosa, mas este não se mani­festou mais, lavando as mãos do assunto com um grunhido e afastando-se da porta. Aewyre tornou a suspirar e olhou para Taislin, que anuiu com a cabeça para o encorajar, parecendo então lembrar-se de algo, e pedindo ao jovem que esperasse com indicador erguido en­quanto remexia nos bolsos que aparentemente cosera na sua nova túnica vermelha.

— Já andaste a fazer traquinices no meu palácio? — perguntou Aewyre com um meio-sorriso.

— Não, não — assegurou o burrik, emitindo um ruído de triunfo ao encontrar aquilo que procurara, que de seguida ofereceu ao seu amigo de mão estendida. — Ah. Toma.

Eram umas flores de amachucadas pétalas amarelas, que tinham evidentemente passado um mau bocado entre as posses de Taislin nos bolsos escondidos deste, ostentando algumas fibras de tecido sujo como prova da sua permanência neles.

— As primeiras flores da Primavera — gabou-se o burrik. — Fresquinhas dos telhados de Allahn Anroth, que aliás devias man­dar lavar um pouco. Aquilo lá em cima está uma porcaria.

— Heh — riu Aewyre, abanando a cabeça e aceitando a oferenda.

— A ver se me lembro de o dizer ao Tomenno. Não podemos ter telhados sujos numa altura destas, não é?

Taislin concordou com um dos seus sorrisos retos, e o guerreiro despenteou-o ligeiramente com a mão antes de se dirigir à porta, mas não sem antes olhar uma última vez para Worick. Depois não digas que não te avisei, parecia estar este a dizer, mas Aewyre não partilhava da sua impressão e bateu à porta.

— Lhiannah? — chamou, olhando para os seus dois amigos en­quanto esperou em vão por uma resposta.

Worick encolheu os ombros com ar sabido, mas Taislin instou-o com um aceno da cabeça. Aewyre entreabriu então a porta, esprei­tando para a escuridão do interior pela fresta.

— Lhiannah?

— Sim? — veio uma inesperadamente seca voz do outro lado, abafada pela madeira.

— Posso entrar? — pediu o guerreiro, abrindo um pouco mais a porta.

— É o teu palácio.

Worick abanou a cabeça, mas Aewyre ignorou-o e entrou, fechan­do a porta atrás de si com ambas as mãos atrás das costas. O interior estava escuro, sem uma única vela acesa, e as adufas da janela estavam apenas entreabertas, deixando entrar pouca da já de si esparsa luz do sol do entardecer. O jovem deixou os seus olhos acostumarem-se à fraca iluminação, e distinguiu entretanto Lhiannah na cama, sentada sobre esta de costas para a parede, abraçada às pernas descobertas e com o queixo sobre os joelhos. A princesa não levantou a cabeça, nem parecia estar a olhar na sua direção, e Aewyre inicialmente nada disse, preferindo esperar por uma reação de Lhiannah. Como esta tardou em vir, dirigiu-se antes à janela para a abrir, roçando o chão com as botas no silêncio sepulcral do quarto antes de o banhar com tímida luz. Lhiannah não reagiu, não se recolhendo nem piscando os olhos com a súbita alumiação, mas Aewyre ainda assim sentiu-se aliviado ao constatar que fisicamente a arinnir não parecia estar mal, apenas algo despenteada e aparentemente com olheiras. A sua tiara eahlan estava no chão, como se tivesse sido atirada contra a parede num gesto de fúria, e a pedra-da-lua desta jazia desalojada a alguma distância da peça, perto dos tabuleiros com pratos com comida fria.

— Não comeste — constatou Aewyre, aproximando-se a passos lentos da cama, o que levou Lhiannah a cruzar os braços sobre os joelhos e a esconder neles a cara.

— Não tenho fome — disse esta aos seus joelhos.

— Também não perdeste nada. O jantar ontem estava uma porcaria.

A piada do guerreiro não teve qualquer efeito, e Aewyre olhou para o teto em busca de inspiração. A falta de uma idéia melhor, sentou-se sobre a cama, ficando de lado para Lhiannah, e levou uma algo hesitante mão ao ombro dela. A princesa também não reagiu ao seu toque, mas Aewyre não soube dizer se isso era bom ou mau.

— Ouve, Lhiannah — disse suavemente —, eu imagino que ouvir o nosso próprio pai dizer coisas daquelas deve magoar imenso, mas não penses que é por isso que vou gostar menos de ti.

A arinnir não respondeu, e Aewyre reconheceu que ele próprio não se deixaria convencer por tão banais palavras, mas lembrou-se também do ouvido de Lhiannah, e sacudiu-a de leve pelo ombro para a con­vencer a levantar a cabeça. Sem sucesso na sua tentativa, decidiu ser mais vigoroso, mas a arinnir limitou-se a sacudir o braço para se livrar da sua mão. Suspirando, Aewyre virou-se para Lhiannah, pousando a perna sobre a cama e agarrando-a pelos ombros de forma mais vigorosa, o que a levou a levantar a cabeça enquanto se debatia numa tentativa de se libertar.

— Lhiannah, olha para mim! — insistiu o guerreiro, conseguindo apenas que esta se libertasse e se arrastasse para fora da cama, afas­tando-se dele de costas viradas. — Lhiannah...!

— Desculpa, Aewyre... vai-te embora — pediu a arinnir, agarrando-se aos seus braços.

O jovem bufou de frustração e levantou-se do leito, indo ao encon­tro de Lhiannah e virando-a para si, agarrando-a pelos pulsos enquanto esta se debatia, mantendo a cabeça baixa.

— Lhiannah, olha para mim! — rogou o guerreiro, largando-lhe os pulsos e agarrando-a pela cara, mas havia demasiados cabelos diante da face para que Aewyre a pudesse fitar diretamente.

— Larga-me! — esbracejou Lhiannah, conseguindo afastar-se de Aewyre e encostar-se à parede, apoiando-se nela com ambas as mãos e olhando ofegante para o guerreiro por entre as frestas do reposteiro de cabelos diante da sua face.

Não querendo perturbar Lhiannah, Aewyre abrandou então, erguen­do as aplacadoras mãos.

— Pronto, pronto... eu só queria falar contigo.

— Não quero falar, Aewyre. Vai-te só embora, por favor.

Frustrado, o guerreiro passou a mão pelo restolho de barba, exa­lando profusamente através do nariz ao ver que a abordagem mais direta não funcionara.

— Lhiannah... — insistiu, conseguindo apenas que esta abanasse a cabeça. — Bolas, não percebes que era exatamente isto o que o teu pai queria?

— Sim, e conseguiu...

— Está a conseguir só porque tu o estás a deixar! Para mim, não importa...

Lhiannah não pareceu acreditar, abanando novamente a cabeça.

— A sério que não importa — assegurou-lhe o guerreiro, aproxi­mando-se discretamente. — Eu não me apaixonei por ti porque precisava de uma parideira...

— Então e agora que sabes que não posso ter? — revidou a princesa.

— Não importa...

— Ah, não importa? Nem mesmo agora que o teu pai morreu, e que o teu irmão já não pode ser regente? — lembrou Lhiannah sem qualquer rancor na voz, limitando-se a constatar a verdade.

— Mas que porra, Lhiannah, já te disse que não foi por isso que eu me apaixonei por ti! Isso não muda nada!

A arinnir continuou sem parecer convencida, mas não insistiu, e os dois ficaram a olhar-se em silêncio durante alguns momentos, nos quais Aewyre sentiu um distinto roçar bisbilhoteiro à porta. Irritado, olhou à volta em busca de algo, encontrando apenas a tiara, na qual pegou e de seguida arremessou contra a porta para conse­guir alguma privacidade. Lhiannah não ouvira, e interpretou mal a intenção do gesto de Aewyre, encolhendo-se ligeiramente contra a parede.

— O que queres que eu diga? — perguntou de seguida o guer­reiro, abrindo os frustrados braços. — Eu nem sequer tinha pensado em filhos. Fossos dos azigoth, nem sei se vou sobreviver ao que aí vem, Lhiannah! A única coisa que sei é que quero estar contigo até lá.

— Claro, com a princesa surda e estéril — riu esta com escarninho, puxando os cabelos por cima da cabeça ao dar um passo em frente. — Olha para mim, Aewyre.

— Não vejo nada que não estivesse aí antes de o teu pai ter dito o que disse...

— Olha para mim, Aewyre! — quase rosnou a arinnir, indican­do a sua cara com o indicador. — Já perdi dois molares, tenho uma sobrancelha separada por uma cicatriz, outras tantas nas pernas, marcas de porrada na cara, e... e até os meus cabelos estão a perder a cor! — terminou, agarrando com força nas pontas douradas e esticando-as para o guerreiro ver.

— Lhiannah...

— Lhiannah nada! Como é que alguma vez me verão como um bom partido para ti? — insistiu. — Como se não tivesses já proble­mas suficientes, agora ainda vais ter de ouvir dos teus homens e nobres por estares com uma bastarda deserdada, infértil e surda, que ainda por cima matou um dos teus guardas...!

O guerreiro estava prestes a perder a paciência, mas apercebeu-se então de algo que o fez sorrir inesperadamente, o que por sua vez calou Lhiannah, deixando-a perplexa.

— Porque é que estás a sorrir? Estás a gozar comigo ainda por cima, é?

Aewyre fez que não com a sorridente cabeça e acercou-se de Lhian­nah, agarrando-a sem força pelos braços.

— Não. Só percebi que afinal não estavas a ser patética.

A arinnir piscou os olhos e franziu as perplexas sobrancelhas, e Aewyre afagou-lhe os braços com os polegares.

— Estás a fazer isto por minha causa, não estás? — perguntou retoricamente. — Não é por te sentires feia ou inadequada, mas por­que não queres dar mais razões a outros para porem em causa a minha liderança. É, não é?

Lhiannah não respondeu logo, fitando Aewyre enquanto parecia ponderar a sua resposta, mas acabou por concordar com a cabeça, com um suspiro que lhe baixou os olhos.

— É — reconheceu. — Quer dizer, não é tudo, mas...

O guerreiro levantou uma mão para lhe afagar a cara, passando os dedos pelas já tênues marcas de violência na pele de Lhiannah, recordações do quase mortal encontro desta com a harahan Hazabel em Dul-Goryn. Com o mesmo movimento, o jovem alisou com o polegar a loura sobrancelha cindida, apreciando cada detalhe enquan­to com a outra descia pelo braço de Lhiannah até à mão dela, que agarrou.

— Mas então tu não sabes que cada uma destas tuas marcas e cica­trizes... que as tens porque lutaste ao meu lado, ou mesmo porque me salvaste?

A princesa não respondeu, olhando simplesmente para Aewyre enquanto ele lhe apertava a mão afetuosamente.

— Não ficas menos bonita por causa delas. Pelo menos não aos meus olhos.

Lhiannah fungou, divertida.

— Era isso que dizias às camponesas com varizes?

— Era — reconheceu Aewyre com um sorriso, abrindo então os braços e neles recebendo a arinnir, que apertou com força retribuída.

Lhiannah roçou o ombro do jovem com o amorável nariz, dei­xando-se afundar no seu abraço, e Aewyre passou-lhe os cabelos da nuca pelos dedos, esticando-se com um gesto desfiando-os como o faria um tecelão.

— Quanto ao teu cabelo é que não posso fazer nada.

— Estúpido — protestou Lhiannah, afastando-se dele e esbofeteando-lhe o ombro com força, enquanto tentava reprimir o sorriso que lhe assomou à face.

— Pronto, assim está melhor — alegrou-se Aewyre, cingindo a cintura da princesa com um braço e segurando-a pela nuca com o outro.

Lhiannah fitava-o agora diretamente nos olhos, e embora ain­da estivesse claramente magoada pelo sucedido com o seu pai, parecia ter sido aliviada de um tremendo peso, soltando-o com um suspiro antes de sorrir. Aewyre retribuiu, beijando-a suavemente nos lábios de seguida, uma carícia prolongada que se preparava para aprofundar quando de repente a porta se abriu, sobressaltando-os aos dois.

— Pronto, lá estão vocês outra vez — disse Worick à entrada. — Como é que conseguem respirar, se estão sempre com a boca colada um ao outro?

— Que raio, Worick... — protestou Aewyre enquanto Lhiannah se recompunha. — Porque é que estás sempre a...

— O Allumno chegou — interrompeu o thuragar como se nada fosse.

— Hã!? — exclamaram Aewyre e Lhiannah em incrédulo unís­sono.

— É verdade, ele chegou! — aproveitou Taislin para anunciar, surgindo ele também da porta. — O Daveanorn estava nos portões a falar com os guardas, e disse-nos que reconheceu o Allumno quando ele se anunciou, que viu a gema na testa dele, e que houve até pro­blemas porque outras pessoas tentaram entrar com ele, mas agora já chegaram ao palácio, e...

O burrik por pouco não foi atropelado por Aewyre, que correu de roldão para fora do quarto, detendo-se à porta ao deparar com Davea­norn, Allumno e meia dúzia de quase reverentes guardas armados. O mago estava com um aspecto gasto e exausto, com roupas sujas e sarapintadas de lama, sobretudo nas botas e na orla da capa vermelha, e com barba e cabelos mais compridos que Aewyre nele alguma vez vira. Apoiava-se com ar cansado no seu cajado, mas mesmo assim a sua barba mexeu-se num sorriso, vincando a face em rugas sujas ao ver o seu protegido, que ainda levou alguns instantes a processar a presença de Allumno. Não foram trocadas quaisquer palavras, e Daveanorn ficou ele também calado e de braços cruzados, até que Aewyre se lançou sobre o mago, esmagando-o num abraço de urso que lhe levantou os pés do chão, no qual o cajado caiu. Allumno emi­tiu um grunhido sufocado de olhos arregalados, mas deixou-se levar e tentou retribuir como pôde, observado por uns sorridentes Worick e Taislin enquanto Lhiannah vinha radiante ao seu encontro numa completa inversão de humor, juntando-se ao abraço. Embora já o tivesse feito, Taislin achou por bem juntar-se a eles também, e mesmo Worick, embora se recusasse a fazer o mesmo, sorriu de braços cru­zados ao ver os companheiros parcialmente reunidos, incapaz de estra­gar com uma piada aquele que podia bem ser dos últimos momentos de alegria que partilhariam juntos.

— Ainda deste umas valentes curvas... — avaliou Aewyre no final do longo relato de Allumno, que os deixara a todos fascinados, sobretudo com as saudades que tinham de ouvir a voz do mago e os seus substanciais relatos.

Os companheiros encontravam-se todos no quarto de Lhiannah e Aewyre, juntamente com Daveanorn, cuja presença fora ali requi­sitada. Um reconfortante fogo ardia na lareira com uma chaleira sobre ela, na qual Lhiannah aquecia um pouco de licor aromático.

— Também vocês, ao que parece — sorriu Allumno com ar can­sado, sentado num tamborete e de costas apoiadas contra a parede. — Infelizmente, não me parece que nenhum de nós tenha alcançado os objetivos a que se propôs quando nos separamos.

Era verdade. Aewyre pouco ou nada aprendera acerca da Essên­cia da Lâmina, e Kror recusava-se agora a cooperar com ele. Allumno falhara em resolver grande coisa, pois tudo não passara de um teste do seu mestre, uma prova cujo propósito ainda deixava o mago amar­gurado. Lhiannah, Worick e Taislin, que tinham vindo devolver o corpo de Aezrel à sua cidade e avisar Nolwyn da iminente ameaça d’O Flagelo, conseguiram apenas ser presos e virar três cidades-estado uma contra a outra com a sua vinda.

— Realmente, mais valia termos ficado juntos — concordou Lhian­nah, servindo uma taça de licor ao mago, que agradeceu com um sorriso.

— Então... estes tremores de terra que se têm sentido, é por causa do Pilar? — perguntou Taislin, atendo-se a esse fenômeno isolado a meio de todos os vaticínios de desgraça que Allumno proferira..

— Sim — respondeu o mago. — Com o sangue de Seltor espa­lhado pelo Pilar, os azigoth ficaram acirrados, e a sua luta eterna con­tra os divaroth intensificou-se. Como vocês sabem, ou talvez não, a Essência provém da chamada Fricção dos segmentos dos quais o Pilar é constituído. Esses segmentos estão em constante rotação, conforme os conflitos entre os divaroth, azigoth e uman, e o equilíbrio funda­mental era mantido pelos deuses e pela estabilidade das três raças. — O mago bebericou da sua taça, ponderando referir então a sua sus­peita de que os deuses também tinham caído ante O Flagelo, mas deci­diu não o fazer. — Agora, porém, que o sangue de Seltor se disseminou pelo Pilar, esse equilíbrio foi-se, e os azigoth guerreiam os seus opostos como nunca antes o fizeram, desestabilizando dessa forma o Pilar com os movimentos erráticos dos segmentos. Se o Pilar treme, Allaryia tam­bém tremerá, e com conseqüências potencialmente bem mais graves.

Allumno preferiu mesmo não falar ainda do seu bizarro encontro com os enfeitiçados fiéis de Nirille e do que com eles deduzira acerca do destino dos deuses, pois tinha apenas suspeitas que não podia con­firmar, até porque Zoryan tardava em falar com ele. Talvez até fosse melhor assim, pois não era informação que os concernia diretamente, e Aewyre e os outros já pareciam suficientemente abalados com as outras novas.

— Os drahregs... escorraçados? — perguntou o guerreiro, sentado na cama e ainda a digerir o relato, sobretudo a parte que mais respeito lhe dizia pessoalmente, neste caso a ameaça d’O Flagelo.

— Destruídos, mesmo — emendou Allumno, bebericando nova­mente da taça. — Completamente. Não chegam às centenas, os que escaparam, e não me parece que houvesse mulheres entre eles. Não sei se alguma vez recuperarão.

— São boas notícias — disse Daveanorn, de pé e com os braços cruzados atrás das costas.

— O que tu descreveste foi um desastre estratégico do mais alto nível, mago — desconfiou Worick. — Não estás a exagerar?

— Conheces-me o suficiente para saber que, embora aprecie uma linguagem colorida, não sou propenso a exageros, Worick — respon­deu Allumno, pousando no colo as mãos com a taça para nela as aquecer. — Acompanhei os procedimentos do princípio ao fim, e fiquei tão intrigado quanto vocês quando assisti ao desenvolvimento da batalha... quer dizer, do massacre. Foi uma chacina, e só houve res­posta dos drahregs porque houve algumas manobras políticas entre Laone e a Namuriqua pelo meio.

— Estás a dizer que os drahregs se arrastaram por três nações fora, morrendo aos poucos, e que só se lembraram de parar quando ficaram entalados? — insistiu o thuragar.

— Precisamente. Fiquei tão perplexo como tu — garantiu o mago. — Caminharam como possessos para as suas mortes, e julgo que teriam mesmo continuado a andar até morrerem todos de fome e doença, tal era a sua cadência...

— Mas atacaram-te quando deparaste com a Heldrada? — inqui­riu Aewyre, que recebera as notícias da morte da mulher sem que isso o afetasse minimamente.

— Sim, esses estavam provavelmente a caminho de se juntarem à horda. Uma vez entre os seus é que todos pareciam ensandecer... — recordou o mago, sentindo um arrepio provocado pela recordação da desmedida horda negra a mover-se com o compasso de uma clepsidra. — Todos doentes ou esfaimados, como se nada mais importasse além de seguirem seja qual fosse o chamamento negro que os mobilizou...

— Bom, estamos para aqui a especular, mas a verdade é que isso significa menos uma ameaça — impôs Worick. — Podemos riscar os drahregs e uma invasão militar de Asmodeon, a menos que o Seltor... — Para o thuragar e os restantes, ainda era estranho referir-se à quase mítica ameaça d’O Flagelo pelo próprio nome, mas a realidade da sua existência era algo que não mais podiam negar. — A menos que o Seltor queira invadir Allaryia com ogroblins e ulkekhlens, e mandar harahan nuas na dianteira...

Ninguém respondeu, e Worick ficou entretido com a imagem mental que evocara enquanto Aewyre ponderava com o queixo apoiado sobre os dedos enclavinhados, e Lhiannah se sentia com­pletamente perdida. A princesa conseguira deixar de parte a angústia causada pelas palavras do seu pai, mas as implicações daquilo que estava a ouvir naquele quarto começavam a deixá-la aterrada. Por sua vez, Taislin olhava revezadamente para as caras dos seus amigos e mesmo para a de Daveanorn, não tendo propriamente uma opinião acerca de tão graves questões, e esperando pelo parecer de outros para saber o que devia achar.

— Isto não é nada bom — disse Aewyre de lábios franzidos pelos dedos debaixo deles apoiados. — Mas mesmo assim, pode ser que algo de positivo ainda saia disto.

— Como assim? — perguntou Allumno num tom intrigado.

— O Savincar deve estar desejoso de se vingar desde que eu fugi debaixo das barbas dele em Arle — explicou o guerreiro, referindo-se ao barão que o tentara capturar. — Eu até temia que ele apro­veitasse para se aliar a Sunlar, ou aproveitar o caos em Nolwyn para passar a fronteira com o seu exército... mas agora com isso que suce­deu na batalha, pode ser que ele fique demasiado preocupado com os namuriquanos para olhar para sul.

Era algo frio e calculista de se dizer, mas era também verdade, e nenhum dos companheiros conseguiu censurar Aewyre, sabendo perfeitamente o peso que ameaçava esmagar-lhe o espírito todos os dias. Allumno achou ainda assim extraordinário como o seu protegido conseguira durante as suas viagens ganhar a inimizade de um barão laonês, e abanou ligeiramente a cabeça ao beber um outro gole de licor. Mais chocado ficara ao saber o que acontecera com Aereth, e foi-lhe impossível reprimir a sensação de culpa que o acometeu por ter abandonado o irmão de Aewyre na altura em que ele provavelmente teria mais precisado dos seus conselhos. Saber que um servo d’O Fla­gelo praticamente correra o palácio durante a sua ausência deixara-lhe uma sensação de náusea que o mago procurava afogar com o licor, preferindo não refletir demasiado nela naquele momento.

— Sim, sob esse aspecto é menos uma preocupação que tu tens — concordou, embora tivesse preferido que as circunstâncias fossem outras. — Contudo, ainda é possível que o barão Savincar não seja tão cedo afetado pelo sucedido, a menos que o rei Manados faça uma mobilização geral.

— Com os números com os quais a Namuriqua se pode opor a ele, é bem capaz de o fazer — opinou Daveanorn.

— Números não ganham batalhas — avaliou Worick. — E tanto um como o outro conseguem defender-se muito bem, que para huma­nos, as fortificações deles não são nada más. O mais certo é formar-se um impasse para já, enquanto cada um pondera se vale ou não a pena invadir, ou simplesmente assediar o inimigo.

— Devo recordar a Cavalgada, general Worick... — lembrou Daveanorn, referindo-se a uma famosa invasão de um particularmente aguerrido rei que conseguiu o consenso geral das companhias mercenárias, cujos infantes fizeram uma na altura inovadora parelha com a cavalaria real, varrendo toda a oposição à sua frente.

— Cavalgada essa que parou com um relincho assim que chega­ram ao Quadrelo — referiu o thuragar. — Os parolos dos laoneses foram demasiado orgulhosos para perceberem que estavam sobrepu­jados no campo de batalha, mas assim que alguém teve o bom senso de conservar as suas forças e deixar o inimigo atirar-se contra uma muralha em vez de uma fileira de cavaleiros pomposos que se achavam os maiores, virou logo o curso da guerra.

— Os tempos mudaram, general Worick. Os namuriquanos não cometerão o mesmo erro.

— Nem os laoneses. Eles...

— O Quadrelo....? — interrompeu Aewyre, erguendo a cara ao registrar a palavra.

— Eh? — resmungou Worick, irritado pela interrupção de uma conversa que por fim lhe agradava.

— Disseste o Quadrelo?

— Disse sim. O Quadrelo. Lasscou. Aquela cidade laonesa alojada num vale em forma de cunha. Porquê?

O jovem ergueu-se com uma expressão de assombro na cara, sem olhar para ninguém diretamente.

— Essa Lasscou... por acaso é conhecida pela sua indústria meta­lúrgica?

— Tanto quanto um humano pode ser conhecido por aquecer e dobrar um pouco de ferro — opinou Worick. — Fazem umas espadazinhas, tanto quanto sei. Mas então porquê? E para que é que é essa cara parva que estás a fazer?

Aewyre não respondeu, levantando-se da cama sem qualquer aviso e saindo de rompante do quarto, tal como anteriormente fizera quando da chegada de Allumno.

— Aewyre, espera! O que foi? — perguntou Lhiannah, indo-lhe atrás seguida pelos outros.

Os dois guardas à entrada do quarto alvoroçaram-se mesmo, e viraram-se para a porta com partasanas empunhadas, sobressaltando-se novamente ao verem o seu senhor passar por eles a passos apres­sados, murmurando estranhas palavras para consigo.

— Atravessado pelo familiar bastardo do quadrelo... — murmurou, caminhando com um brilho quase maníaco nos olhos, sem se dar conta da procissão que vinha atrás dele.

— Aewyre! — chegou Lhiannah ao seu lado, agarrando-lhe o braço. — O que foi?

— Agora não, Lhiannah! Não me desconcentres! — disse o guer­reiro bruscamente sem sequer olhar para ela. — A espada trocou de mãos. Tûmes lançou-se e morreu atravessado pelo familiar bastardo do qua­drelo.

Olhando para trás para os outros, Lhiannah encolheu os ombros e limitou-se a seguir ao lado do guerreiro, que caminhava como um possesso pelos corredores de Allahn Anroth, parecendo contudo ter um destino em vista. Allumno vinha atrás de todos a acompanhar os guardas, pois as suas pernas cansadas de semanas de,viagem não lhe permitiam mais, mas Worick e Taislin ainda não tinham perdido o ritmo que lhes fora incutido por meses a caminharem com o pernilongo jovem. Assim continuou o improvisado cortejo, subindo pelas alabastrinas escadas do agora silente palácio, no qual os passos do grupo reboavam pela desacostumada quietude, acompanhando o quase ritualístico murmurar de Aewyre como numa cerimônia.

— Mas que raio lhe deu agora? — questionou-se Worick, olhando desconfiado à volta para os corredores vazios, como se habituara a fazer no palácio no qual ainda não se sentia completamente à vontade.

— Não sei, mas acho que estamos a ir para o quarto daquela rapariga, a Layaline... — disse Taislin.

— Ai é? Então está bem. Pode ser que desta vez ela faça mesmo o que disse...

— Que te disse ela? — quis o curioso burrik saber.

— Quando tiveres idade, eu conto-te.

— Não há de ser nada que eu não tenha já ouvido...

— Duvido. A tua mãe deve tê-lo dito a todos menos ao teu pai... Olha, parece que é aqui.

De fato, Aewyre dirigia-se com ar determinado a uma porta em particular, que abriu com força e sem qualquer cerimônia, por pouco não arrancando a aldrava. Com isso assustou Layaline, que se encon­trava sentada na cama, a ler um livro com Làriana ao colo, por pouco não deixando a filha cair com o susto.

— Aewyre! — disse esta com o seu distinto sotaque, levando uma mão ao peito e pousando de lado o livro com a outra enquanto tirava a filha do colo para se levantar. — O que foi?

— Os apontamentos, Layaline. Onde estão eles? — perguntou o guerreiro com uma expressão de concentração férrea, tentando por força reter o que lhe ia na cabeça. — Onde?

— A... ali — respondeu a rapariga, apontando um nervoso dedo à arca do quarto, sobre a qual se encontrava o rolo de couro no qual Aewyre guardara as suas notas e apontamentos.

O guerreiro não se deteve e foi de imediato ajoelhar-se diante da arca, destapando o rolo e atirando a tampa ao chão antes de esfolhar os papéis dentro dele enrolados. Os outros entraram entretanto tam­bém no quarto, merecendo um olhar assustado de Layaline enquanto Làriana olhava ela também com ar dúbio para Aewyre, agarrada à saia da mãe.

— A espada trocou de mãos... — continuou o jovem a murmurar enquanto procurava o papel relevante. — Esteve sempre à nossa frente... o estupor do laonês e os seus versos de merda...

— O quê, Aewyre? O que é que estás a dizer? — perguntou Allumno, indo a seu encontro.

— Aqui! — declarou o guerreiro com tom triunfante, amarrotan­do o papel em questão com uma pancada das costas da mão ao erguer-se, e atirando os outros ao chão. — Era só ter perguntado a alguém o que era o Quadrelo... escrito com letra maiúscula e tudo!

— Aewyre, fala conosco! Estás a deixar-nos preocupados! — pediu Lhiannah, acompanhando o mago.

— É tão simples quanto isto! — declarou o jovem, virando-se por fim para os companheiros. — A espada trocou de mãos. Tûmes lançou-se e morreu atravessado pelo familiar bastardo do quadrelo! Tûmes matou-se com a espada de Blai!

— Perdeu a cabeça, o rapaz... — disse Worick, tão admirado quanto os outros.

— Quem são esse Tumas e Blaee? — indagou Taislin.

— Eram dois Portadores! Era esta a história de que eu vos falei, aquela que o Assiòn deu a entender que eu devia ler! — explicou Aewyre em tom alvoroçado. — Eles eram como eu e o Kror, ligaram-se às suas armas antes de se tornarem Lamelares, e tanto um como o outro conseguiram fazer uso da Essência da Lâmina antes de a dominar.

— Sim — acenou Lhiannah com a cabeça, tentando acompanhar. — E então?

— Eles lutaram várias vezes um com o outro, mas houve também sempre algo que os interrompia, até ao dia em que Blai matou a amada laonesa de Tûmes — continuou o guerreiro, andando em círculos pelo quarto enquanto gesticulava e olhava alternadamente para Layaline, os seus companheiros, e o papel rabiscado que tinha em mãos. — Decidiram-se então a acabar com o assunto, mas a família de Tûmes também se envolveu, e mandou um parente dele para matar Blai.

— E isso deixa-te tão excitado porque...? — perguntou Worick, cada vez mais confuso.

— Blai e Tûmes morreram ambos neste combate, e eu e a Layaline julgamos que tinham sido atingidos os dois pela besta do parente, porque no texto diz que morreram com um quadrelo, mas o «qua­drelo» aparece primeiro escrito com um quê maiúsculo, e depois minúsculo, lembras-te, Layaline?

A rapariga fez que sim com a cabeça de olhos castanhos bem aber­tos, embora mal fosse capaz de acompanhar o excitado chorrilho de palavras de Aewyre.

— Atravessado pelo familiar bastardo do Quadrelo! — repetiu. — Pen­samos que «familiar» se referia ao parente que empunhava a besta, e que «bastardo» era um insulto dirigido a ele por ter matado acidental­mente o Tûmes. Mas não, era a espada do Blai! Eu bem estranhei como a espada poderia ter simplesmente trocado de mãos como o texto o diz; só se Tûmes o tivesse desarmado, mas a isso realmente parecia-me difícil, porque a espada do Blai era maior.

Os presentes estavam desesperadamente confusos, entreolhando-se em busca de esclarecimento que nenhum foi capaz de providenciar, nem mesmo Layaline, que se limitou a abanar a cabeça e a encolher os ombros.

— Era uma espada bastarda, a avaliar pela descrição que o texto faz do tamanho dela, e da forma como o Blai a empunha. Era «familiar» porque a amada de Tûmes era laonesa, e era «do Quadrelo» porque foi feita em Lasscou! Tûmes morreu, matando-se com a espada do Blai porque, sem a sua amada, já não tinha motivos para viver, e no fim Blai morreu com um disparo de besta do familiar do Tûmes!

— Mas o que é que esse dramalhão tem a ver com o que quer que seja? — perguntou Worick.

— Porque o Blai foi brevemente detentor da Essência da Lâmina após Tûmes se ter suicidado! Lembras-te, Layaline? Daquilo que o Blai sentiu, de o seu sangue ficar quente?

— Eu... sim, lembro — respondeu a rapariga. — Mas depois morre...

— Mas por breves instantes, foi um Lamelar! Isso quer dizer que funcionou! Onde está aquele texto do Aghon? — perguntou, acocorando-se sobre os papéis no chão e remexendo-os.

— Não...

— Deixa estar, está aqui! — declarou o triunfante guerreiro, pegando no papel de linhas sublinhadas com ambas as mãos. — Isto... «nós somos o nosso próprio pior adversário»...

— Ahgon de Taygatar? — interveio Daveanorn.

— Esse mesmo. Escreveu uns textos e ensaios, e neste aqui... é isto, «a luta contra o nosso ego». Blai conseguiu que Tûmes se matasse com a sua espada, e sentiu brevemente a Essência da Lâmina antes de ser ele também morto. Mas conseguiu, funcionou! A Essência da Lâmina deu-se por satisfeita pelo... pelo confronto interior de Tûmes, que se combateu a si mesmo para se conseguir matar! Com a sua espada, o «familiar bastardo do Quadrelo», que estava ligada a Blai, e que no fundo foi como se este o tivesse conseguido matar! Era isto que o Assiòn me queria mostrar! Foi esta a solução que ele encontrou!

— Então... — alvitrou Lhiannah. — Quer dizer que para o Kror...?

— Ele...! — A excitada expressão de Aewyre ficou congelada na sua cara por breves instantes, os olhos quase arregalados, a boca aberta num sorriso rasgado, os ombros rígidos e curvados para a frente de excitamento, mas foi lentamente descontraindo ao mesmo tempo que a vivaz postura do jovem murchava a par das implicações daqui­lo que dizia. — Ele tem... de se matar. Com a Ancalach...

O papel foi amassado nos dedos de Aewyre, que se crisparam em crescente frustração antes de relaxarem com o desalento, deixando-o cair ao chão.

— Aewyre? — disse Lhiannah.

— Ele tem... de se matar — repetiu o jovem, levando as mãos às ancas e virando as costas aos seus companheiros, dirigindo-se à janela do quarto de cabeça a abanar.

— Aewyre, o que foi? — exigiu a princesa saber, indo a seu encon­tro e pousando-lhe uma mão sobre o ombro. Tal como os outros, tivera alguma dificuldade em acompanhar o monólogo.

— Não percebes, Lhiannah? — perguntou este, cabisbaixo e com as mãos plantadas na parede. — Estive este tempo todo à procura de uma outra forma de conseguir deter a Essência da Lâmina, sem ter de matar o Kror, porque era arriscado e porque a certa altura até simpatizei com ele.

— E este texto...?

— Diz que eu posso tornar-me um Lamelar, se conseguir levar o Kror a suicidar-se com a Ancalach, que está ligada a mim. Ao que parece, no caso do Tûmes, a Essência da Lâmina... bem, deu-se por satisfeita com o confronto interno que levou Tûmes a matar-se com a espada do seu inimigo.

— Hum — ponderou Allumno, cocando o queixo e francamente impressionado com a análise literária do protegido, que sempre tivera dificuldades em convencer a ler.

— Então só tens de fazer com que aquele monte de estéreo preto se mate, é? — perguntou Worick.

— Só? — exclamou Aewyre, afastando-se da parede e fitando intensamente o thuragar. — Achas pouco?

— Pouco? Nem por isso, até o fizemos bastantes vezes. Ou agora de repente ficaste com compunções em matar drahregs?

— Worick, eu não tinha o mínimo problema em varar aquele desgraçado de um lado ao outro com a Ancalach num combate — garantiu o jovem. — Até com os próprios punhos o matava numa luta, nem que tivesse de lhe moer a cabeça ao murro até lhe saírem os miolos pelos ouvidos.

A violência das palavras do jovem era sincera, o que mais assus­tadoras ainda as tornava para os presentes, que ao verem o jovem de punho cerrado quase podiam jurar que este se preparava para correr quarto fora para as levar a cabo. Porém, a sua mão relaxou e pendeu novamente em desalento ao seu lado, e Aewyre tornou a fazer que não com a cabeça.

— Mas levar alguém a suicidar-se, atormentar essa pessoa, mesmo um drahreg, ao ponto de ela se querer matar para não ter de agüentar mais o sofrimento...

— Não é preciso ir tão longe — opinou o thuragar. — Podias simplesmente...

— Seria ir longe demais, Worick. Mais longe que aquilo que eu estou disposto a ir, mesmo para vingar o meu pai e... salvar Allaryia.

Aewyre calou-se então por momentos, refletindo acerca das suas próprias palavras, e acabando por se rir da presunção implícita nas últimas.

— Se tenho de causar um sofrimento tal a alguém, ao ponto de ela se querer matar... então nem sei se vale a pena opor-me a’O Flagelo.

— Sim, porque eviscerá-lo seria muito mais humano, seja o que for que esse termo queira dizer... — desdenhou o thuragar.

— Já chega, Worick — interpelou-o Lhiannah, pousando as mãos nos ombros de Aewyre num gesto de apoio. — Não há outra solução, Aewyre? Já não podes lutar com ele?

— Não —’lamentou-se o jovem, abanando a desalentada cabeça. — Eu cortei-lhe o jarrete, e ele ainda está aleijado da outra perna. Não consegue andar, quanto mais lutar.

— Tudo isto adveio daquela noção de que a Essência da Lâmina não aceitaria nada além de um combate justo, correto? — perguntou Allumno.

— Sim. Quando encontramos o Kror pela primeira vez, eu e ele sentimos logo que aquele não era o momento certo, que ele tinha acabado de lutar contra a Lhiannah, o Quenestil e o Babaki — recordou Aewyre. — Depois de Aemer-Anoth, decidimos procurar outra via que não o combate, porque na altura eu... bem, não quis arriscar um combate, mas a verdade é que podíamos ter resolvido logo o assunto.

— E se ele por acaso vencesse? — interpôs Lhiannah, apertando-lhe os ombros. — O que seria de todos os que podem depender de ti agora?

— Era uma possibilidade — admitiu o guerreiro, deixando-se consolar. — Digam o que disserem dele, o Kror é realmente muito bom, e se houvesse a possibilidade de lutar ao lado dele... Bom, mas agora isso já não vai poder acontecer. Ele foi gravemente ferido no joelho na Cidadela da Lâmina, e aí convenci-me de que não havia mesmo outra alternativa que não encontrar outra forma de obter o controlo sobre a Essência da Lâmina, mas ele acabou por se fartar de toda a situação.

— Qual era o interesse dele, afinal? — quis Allumno saber, apoiando-se com ambas as mãos no seu cajado.

— O Kror é mais do que aquilo que aparenta ser — disse Aewyre. — Aqueles alfanges dele são quase mais antigos que a Ancalach, também forjados por Siris, e ao que parece têm neles alojados ou presos um azigoth e uma divaroth...

— Como...? — exclamou Daveanorn, a quem a conversa deixava particularmente assombrado, não tendo acompanhado os companhei­ros nas suas viagens.

— Que giro! Como é que isso aconteceu? — perguntou Taislin com curiosidade felina nos olhos.

— Ao que parece, foi uma aposta das Entidades, que decidiram verificar se um azigoth e uma divaroth seriam ou não capazes de se apaixonarem um pelo outro... mas isso agora não é importante. O que interessa é que esses dois também influenciaram o Kror nas suas decisões, mas o que me pareceu foi que ele se queria tornar num Lamelar por motivos bem mais simples: queria ser mais forte.

— E tu não? — lembrou Worick, refratário.

— Queria ser mais forte, porque está sozinho contra o mundo — continuou Aewyre, ignorando o thuragar. — Os seus vêem-no como um animal tresmalhado, e todos os outros atacam-no à primeira vista. No fundo, queria apenas poder defender-se melhor dos seus inimigos, que são praticamente todos os seres que possa vir a encontrar.

— E agora...? — incitou Allumno.

— Agora... agora está tudo perdido. Eu ainda lutei com ele algum tempo atrás, quando ele fugiu para as ruas da cidade, e embora estivesse ferido, eu senti que a Essência da Lâmina estava disposta a aceitar o resultado do nosso combate, de tantas vezes que já tínhamos lutado e sido interrompidos. Mas eu estropiei-lhe a perna, e ele agora nem andar consegue.

— Então e já pensaste forçar outra vez um combate? — sugeriu o mago. — Entrar na cela dele, e...

— Já estive com ele. Nem sequer reagiu quando o libertei dos grilhões, atirei os alfanges ao chão e desembainhei a Ancalach bem na cara dele. — Frustrado, o jovem tornou a abanar a cabeça, e pousou a mão na que Lhiannah tinha no seu ombro. — Ele recusa-se a lutar. Percebeu que sou eu quem mais tem a perder com esta situação. Ainda que a Essência da Lâmina se tenha mostrado, vá, compreensiva por ter lutado com ele ferido, duvido que me permitisse arreá-la se eu matasse alguém que nem sequer levantou os braços.

Ninguém foi capaz de oferecer uma solução para tal problema, e todos ficaram calados enquanto a lareira crepitava no silêncio dos apo­sentos. De todos, Daveanorn era aquele que se sentia mais fora do seu elemento e, por muito que quisesse, não sabia o que dizer ao seu agora senhor e antigo aluno, por muito que custasse vê-lo de tal forma desacorçoado.

— Não fiques assim, Aewyre — disse-lhe Allumno, vindo ao en­contro do seu protegido. — Havemos de arranjar forma, como sempre fizemos.

— Allumno, eu estive meio ano a tentar «arranjar forma», e vê bem de que é que isso me valeu...

— Mas pensar nunca foi dos teus pontos fortes. Isso sempre foi comigo.

Todos olharam então para o mago, admirados com a sua escolha de palavras, e este reteve a atenção de todos com a sua expressão séria, até que a rachou com um meio-sorriso que, tão depressa como fizera a tensão no quarto subir, a aliviou por completo. Os companheiros riram, e mesmo Daveanorn se juntou a eles, conhecendo ele também os trejeitos de Allumno.

— Quem diria. O mago ganhou um sentido de humor durante a viagem — troçou Worick, embora não deixasse de rir.

Aewyre também riu, juntamente com Lhiannah, e abanou a cabeça.

— Realmente, nunca foi o meu forte. Mas olha que eu tentei... — reconheceu, com cauteloso mas evidente alívio na voz pela confiança que as palavras do seu mentor nele tinham inspirado.

Ainda a sorrir, Allumno estendeu o punho à sua frente, emulando o gesto que Aewyre fizera em Val-Oryth, quando a coesão do grupo fora decisivamente posta à prova. Faltavam Quenestil e Slayra, e muita falta faziam os dois eahan, mas ainda assim o gesto pareceu apropriado, e Aewyre e Lhiannah pousaram ambos as mãos sobre o punho do mago. Taislin correu a juntar-se a eles com pequenos e excitados pas­sos, tomado por uma vaga de nostalgia à qual nem mesmo Worick ficou indiferente, indo ele também pousar a sua pesada manopla sobre as outras quatro mãos. Os companheiros entreolharam-se, e Aewyre ainda lançou um olhar a Daveanorn, que se limitou a fazer que sim com a cabeça e a cruzar os braços atrás das costas, ciente de que não fazia parte de tão unido círculo.

— Havemos de arranjar maneira — afiançou Allumno, olhando à vez para cada um dos seus companheiros, que por momentos tive­ram novamente a inconsciente sensação de invencibilidade que os impelira durante tantas e tão duras provações durante as suas via­gens.

Evidentemente que nada pelo qual tinham passado se equiparava ao que aí vinha, aos pesadelos despertos de uma era passada, mas juntos podiam ao menos dar-se ao luxo da esperança, por muito tênue que esta fosse. A presença e a sabedoria de Allumno eram por si só reconfortantes, até mesmo para Worick, que estava ciente de que a sua abordagem prosaica de resolver tudo à martelada podia não bastar para a situação em que se encontravam. Quanto ao próprio mago, este fez o melhor por transmitir aos companheiros a confiança que não sentia verdadeiramente, mantendo uma máscara serena num gesto de desafio ao desespero que ameaçava apossar-se dele.

 

Dalstirvirk estava cercado. Os wolhynos tinham desmontado apres­sadamente o acampamento, e encontravam-se agora reunidos entre a esfacelada proteção da cidadela de formações basálticas, onde mal havia espaço para todos, sobretudo devido aos cavalos. Além da dis­forme e irregular muralha que os protegia, aguardava uma verdadeira hoste de skrimmen em números até então nunca vistos nos Fiordes, acompanhados por ferozes ulkatr, que, apesar dos seus comparativa­mente reduzidos números, conseguiam fazer sentir a sua presença através de ameaçadores rugidos enquanto se preparavam para a imi­nente batalha. Embora contra a vontade de alguns, os wolhynos tinham decidido permanecer em Dalstirvirk, graças sobretudo à influência de Knorl e aos seus aguerridos guerreiros, de cuja proteção teriam pres­cindido caso tivessem partido. O senhor de Knorlvog estava disposto a lutar, e preferia fazê-lo na relativa proteção de Dalstirvirk, onde o terreno os favorecia contra os números superiores do inimigo.

Os skrimmen não tinham surgido sem aviso, e ainda sobrara tempo para fugir após a chegada do jovem cuja quinta fora destruída, mas a subsequente discussão entre os garding fizera-os perder demasiado tempo. Quando as primeiras formigas começaram a mexer-se no cimo das montanhas e à entrada do vale, todos sabiam ser já tarde demais, e nada mais puderam fazer além de se refugiarem na cidadela e espe­rarem que o cerco se fechasse à sua volta. Agora estavam cercados por um milhar de skrimmen num mortífero semicírculo em seu redor, mais os selvagens ulkatr que ameaçavam correr a atacá-los a qualquer momento como cães desenfreados. Porém, as hostilidades tardavam a serem abertas, pois os skrimmen tinham passado os últimos dois dias em ruidosos rituais que nada de bom auguravam, privando os wolhynos de sono com o constante batuque de tambores, cânticos ominosos e roncos territoriais dos ulkatr. Além do semicírculo, havia também uma série de ulkatr plantados do outro lado do penhasco, atentos a qualquer tentativa de fuga pelo rio, que ficou desde logo fora de questão para os sitiados, que agora poucas ou nenhumas alter­nativas tinham além de lutar. A atmosfera no vale era pesada, com a pressão ambiente reforçada pelas gordas nuvens pardas no céu, que ameaçavam havia dias uma chuva primaveril, sem que contudo a levassem a cabo.

Havia entre os wolhynos quem ainda não se conformara com a pre­sente situação, e embora Knorl e os seus homens tivessem já matado um detrator particularmente clamoroso, muitos ansiavam ainda por outra solução. Slayra era uma deles, sentindo-se completamente fora do seu meio e ainda inconformada com a reviravolta que a sua vida dera numa questão de dias. Com todos os seus planos e manhas, acabara por vir parar precisamente à situação que procurara evitar, e ao medo que não podia deixar de sentir, juntava-se também uma sensação de tremenda frustração, agora que se encontrava entre as lamurientas mulheres do acampamento. Abraçadas umas às outras, as wolhynas desesperavam perante o seu destino, tentando superar-se umas às outras na descrição mais grotesca de rumores que tinham ouvido acerca da­quilo que os skrimmen faziam a prisioneiras. Slayra permanecia em silêncio e o mais afastada possível delas, feliz pelo fato de ao menos as galinhas de Knorl estarem demasiado ocupadas com os seus receios para a importunarem. Colocadas como estavam no meio da cidadela basáltica, mais pareciam ovelhas aninhadas entre um círculo protetor de homens mais ou menos determinados, uns visivelmente pouco à vontade com as armas que empunhavam enquanto espreitavam do outro lado da de todo imponente muralha de lava seca. Algumas dessas eram as armas tanarchianas que Quenestil e Deadan tinham pilhado na quinta siruliana destruída: espadas, machados e achas-de-armas. A maior parte dos wolhynos tinha apenas machadinhas, facas e espadas curtas que mais pareciam punhais grandes, envergando na maior parte dos casos peles pouco mais protetoras que as dos skrimmen. Nenhum deles sabia lutar sobre uma sela, até porque os pequenos cavalos wolhynos pouca vantagem dariam, e as montarias tinham sido atadas com peias e reunidas num nervoso grupo perto dos homens. Não chegavam a vinte os que de entre eles tinham cotas de malha, e as espadas contavam-se pelos dedos de duas mãos, incluindo o espadão de Deadan.

O Ajuramentado achava-se perto de Slayra, pois as eahlanas tam­bém estavam no grupo de mulheres no meio da cidadela, tendo-se entretanto revelado por aquilo que eram, para grande espanto geral de todos os wolhynos. Não houvera tempo para se maravilharem com a presença dos feéricos eahan brancos, mas ainda assim Deadan permanecia próximo de Elijana e das outras, ameaçando com o olhar aqueles que ficavam demasiado tempo de olhos postos nelas. Hanah Taljn e os restantes Lasan estavam entre os wolhynos, empunhando eles também armas com expressões resignadas nas marmóreas faces, que pareciam ter perdido o brilho interior que delas emanara. Deadan opusera-se, claro, mas fora o próprio Patriarca quem declarara que os Lasan não mais iriam fugir ou esconder-se atrás de outros. Não o faziam de bom grado, e Slayra sabia bem o quanto lhes desagradava o derramamento de sangue, mas tinham evidentemente chegado ao ponto em que nada mais havia a fazer, e apenas o jovem siruliano se recusava a aceitar isso, embora jamais lhe ocorresse impor a sua von­tade aos eahlan. Em todo o caso, estava demasiado ocupado a organizar a eventual defesa do grupo de mulheres, embora todas menos as eahla­nas lhe fossem indiferentes. Temendo uma chuva de flechas ou lanças, o siruliano distribuía mochilas, lonas acolchoadas, e tudo o mais que pudesse servir de proteção contra projéteis, pois embora tivesse repetidamente jurado que haveria de jazer morto e mutilado no chão antes que algum skrimmen tocasse nas eahlanas, sabia que pouco podia fazer contra flechas.

«Deixa estar, que sozinho também de pouco servirás contra mil skrim­men...», vaticinou Slayra, sentada sobre uma fragosa rocha, cujas protuberâncias lhe mordiam as nádegas. A eahanoir tivera ocasião de estudar bem a cidadela durante a confusão que nela se instalara, e descobrira algumas reentrâncias e nichos nos quais talvez se pudesse esconder durante a batalha que se avizinhava. Se tivesse sorte, bastaria esperar pelo cair da noite e então tentar evadir-se, embora a presença de ulkatr a deixasse com dúvidas quanto às suas possibilidades de escapar ilesa do vale.

— Slayra?

«Oh... outra vez?», revirou a eahanoir os olhos, virando-se para ver Sana de mãos cruzadas sobre o regaço. — O que foi agora?

— Não quer juntar-se a nós? Numa altura destas... acho que nos faria bem a todas um pouco de companhia — disse a eahlana.

Pela mínima consideração que apesar de tudo ainda lhe tinha, Slayra mordeu a língua para evitar uma resposta mais mordaz.

— Isso não é outra tentativa de me reunir com os bebês, não?

— Eles estão calmos, os pobrezinhos. Nunca importunam nin­guém...

— Imagino que não...

— Não é por causa deles, Slayra. Sugiro-lho porque estamos preo­cupadas consigo, e gostaríamos da sua companhia neste momento.

— Vocês são inacreditáveis... — disse a eahanoir, abanando a cabeça. — Como é que numa altura destas ainda conseguem...

Sana esperou pelo fim da frase, inclinando para a frente a expectante cabeça de olhos bem abertos, mas Slayra limitou-se a abanar novamente a sua, expelindo pelos lábios o resto da imperceptível frase.

— Nada, deixa estar — acedeu. — Está bem. Vamos lá, então. A eahlana sorriu, e ofereceu uma mão que Slayra relutantemente aceitou, sentindo-se porém quase de imediato mais calma com o suave toque dos seus dedos, que mesmo involuntariamente transmitiam uma calma interior que a própria não parecia sentir. Juntas dirigiram-se então ao grupo de mulheres, que não deram grande atenção à sua che­gada, nem mesmo as de Knorl que também lá se encontravam. Apenas as outras eahlanas se alegraram com a presença de Slayra, entre elas Eluana e Alija, a beleza de cujo sorriso quase alumiou a fria e negra cidadela por si só, conseguindo mesmo trazer um à face de Slayra, que contudo rapidamente o conteve. A mulher do Patriarca e a sua filha levantaram-se para a receber, para aparente desagrado de Deadan, que viu interrompidas as suas instruções de segurança.

— Alegra-me vê-la entre nós, Slayra — disse Eluana com a sua maviosa voz, e nem mesmo o fato de estar vestida com um avental e touca como uma comum wolhyna a tornava menos regia ao falar. — Venha, sente-se conosco.

Alija veio recebê-la, pegando-lhe pela outra mão, e só o fato de se levantar atraiu olhares dos homens que as rodeavam, pois era impos­sível a sua mera presença não chamar atenção. Tiveram também a con­sideração de não a arrastar contra a sua vontade para perto dos bebês, que a eahanoir viu ao colo de uma peituda rapariga wolhyna, em cujos braços também se encontrava um bebê humano. Houve algo em tal promiscuidade que desagradou a Slayra, mas esta fez por não se impor­tar e as eahlanas sentaram-na perto quanto bastasse para que não se sentisse pouco à vontade com a proximidade dos seus filhos.

— Compreendeu as minhas instruções? — retomou então Deadan a conversa, escondendo a custo o incômodo.

— Compreendemos, Deadan, obrigada — agradeceu Eluana, virando-se novamente para o jovem siruliano. — Segui-las-emos com todo o rigor. Agora vai ter com o meu esposo, que ele precisará mais de ti do que nós, e também não deixes de falar com os wolhynos. Isto não é algo que possas fazer sozinho.

O Ajuramentado acenou com a cabeça e olhou longo tempo para a matriarca, evidentemente ponderando aquilo que dizer, mas como sempre demasiado coibido na presença de uma eahanna branca para o fazer. Eluana sorriu novamente e, sabendo que Deadan não se sentia à vontade com contatos físicos com os da sua espécie, não foi ao seu encontro para lhe desejar sorte.

— Pela memória de Sirul — acrescentou Alisa, não sem uma certa dose de aparente fatalismo, o que contudo pareceu apenas acerar a determinação de Deadan, e talvez tivesse sido precisamente essa a intenção.

Sem nada mais, o Ajuramentado anuiu uma última vez à laia de saudação e virou-lhes então as costas, dirigindo-se já com morte no olhar para o círculo de homens, mas alguém chamou por ele antes que tivesse dado três passos. Olhando por cima do ombro, Deadan cons­tatou com alguma surpresa que quem saía do grupo de mulheres para vir a seu encontro era Yhtte, a filha de Oska. O jovem siruliano nunca chegara a fitá-la diretamente nos olhos, e mal se lembrava da cara dela, mas desta vez a surpresa reteve o seu olhar. Tal como as das outras mulheres, as suas feições alongadas de maxilares pronunciados estavam retesadas numa máscara de medo e determinação, e tinha os já de si finos lábios premidos numa linha decidida. Usava soltos os longos cabelos louros e ligeiramente ondulados, e os olhos de um azul-cerúleo estavam fitos no não menos azul dos de Deadan, recusando-se terminantemente a desviá-los como tantas vezes antes fizera.

— Olá, o que temos nós aqui? — indagou Slayra em surdina para consigo.

Deadan nada disse, limitando-se a virar-se para a rapariga, que se deteve a uma proximidade que já transgredia o cioso espaço pessoal do Ajuramentado, que todavia não se afastou nem a tentou intimidar com o olhar como habitualmente fazia com outros. Por essa altura, já estava neles centrada a atenção de boa parte do grupo de mulheres, mas era sobretudo Deadan quem mais incomodado parecia, a avaliar pela sua mais rígida ainda postura enquanto olhava para Yhtte.

— Deadan... — disse a rapariga, cuja voz ouvia pela primeira vez. — Gejt ehj kosa blodr din?

Não querendo ou tendo conseguido aprender uma única palavra de Hjrutmalv durante a sua estadia nos Fiordes, o Ajuramentado fran­ziu as sobrancelhas, incapaz de compreender.

— Bfod — repetiu Yhtte, apontando para o ombro do jovem, para o punho do seu enorme espadão.

Deadan apontou para ele com o indicador direito, e a rapariga anuiu afirmativamente, convencendo-o a desembainhar lentamente a arma com um ar pouco convencido. O espadão era quase do tamanho de Slayra, e Yhtte enclavinhou os nervosos dedos quando o Ajuramentado a empunhou diante dela antes de pousar a ponta no chão, sem nunca deixar de a olhar com uma expressão interrogativa. A rapariga desenlaçou então os dedos e estendeu uma hesitante mão, passando as pontas das unhas sobre o pomo de aço polido enquanto o cenho de Deadan se ia cerrando de confusão. Irresoluta, Yhtte desceu então para o punho no qual os dedos da manopla do Ajuramentado estavam crispados, fazendo-os roçar uns nos outros ao passar por eles também, e sobretudo ao agarrá-los com a sua outra mão. A rapariga avançou um passo e come­çou a fazer força para levantar o punho e a espada, sendo obsequiada por um perplexo Deadan, que mais pasmado ainda ficou quando Yhtte baixou a cabeça para lhe beijar o pomo da arma, largando-lhe então a mão e recuando um passo com a saia enrugada com a força com a qual a agarrava. Retirou-se de seguida de envergonhada cabeça baixada, dirigindo-se à sua mãe e deixando para trás um atônito Deadan a olhar para a impressão condensada dos seus lábios no pomo de aço.

— Deve ter sido o mais próximo que ele esteve de ser beijado por uma rapariga... — comentou Slayra para consigo, vendo que Oska nada disse à sua filha, embora não parecesse desaprovar o que esta fizera.

— Como diz? — perguntou Eluana, admirada e comovida com o que acabara de ver.

— Acho que é uma tradição que eles têm, que já vi várias mu­lheres beijarem as armas dos homens — explicou a eahanoir. — Mas cheira-me que não era bem a espada dele que a Yhtte queria beijar...

— Como assim? — indagou Alisa na sua inocência.

— Nada. Ela não me parece muito tradicional, só isso — evadiu-se Slayra, olhando à sua volta para o grupo de mulheres, que esta­vam demasiado nervosas para começarem a cochichar ou a gozar com Yhtte. A eahanoir ficou francamente admirada por não se estarem a portar como galinhas histéricas, o que, dada a situação, nem era de todo inconcebível. — Tenho de reconhecer que estão todas muito cal­mas aqui. Por acaso não foram vocês as responsáveis, não?

— Estas wolhynas são mulheres corajosas — afirmou a mulher do Patriarca. — Estão habituadas a privações e aos perigos desta terra selvagem.

— Há que lhes reconhecer mérito, então — admitiu Slayra, em­bora ela própria se sentisse mais tranqüila perto das eahlanas, que provavelmente nem se davam conta do efeito calmante da sua mera presença. Era quase como se nada de demasiado mau pudesse acontecer ao pé de tão belos e puros seres.

Sem que desse por si a fazê-lo, a eahanoir sentiu a sua mão rastejar para perto da de Eluana, que nela pegou com carinho quase maternal, afagando-lhe as costas com a sua outra. Por enquanto, dos bebês nem palavra, e com isso Slayra não pôde deixar de se sentir tocada pela genuí­na bondade das eahlanas, persuadida por fim de que estavam sincera­mente preocupadas com ela, e não apenas com o bem-estar dos seus filhos.

— Tem medo, Eluana? — perguntou.

— Temos todas, querida — respondeu a matriarca com um sorriso sereno, afagando-lhe a mão. — Mas a bondade de Sirul é infinita, e temos também esperança.

Slayra não ficou convencida, mas não elaborou, preferindo o silên­cio no qual as ondas de quietude das eahlanas mais facilmente manavam. Por sua vez, Deadan embainhou por fim o espadão, retirando-se sem olhar para Yhtte e dirigindo-se a Hanal, que o aguardava de ombro encostado à escabrosa fraga enquanto olhava para o exterior através do espaço entre duas formações rochosas.

— Algum movimento, Patriarca? — perguntou, todo ele frieza e eficácia, ignorando os wolhynos que se encontravam presentes.

— Já terminaram as danças. Estão a preparar-se para atacar — constatou o eahlan, que conseguira conservar a sua túnica negra sal­picada com fragmentos de mica. Empunhando uma longa,faca de gume único, com a sua tiara argêntea encastoada com uma hematite e os braceletes de prata embutidos com essas mesmas pedras, tinha mais ar de guerreiro que muitos dos homens ali presentes, mas esse fato nem por isso era mais reconfortante para Deadan.

— Chegaram mais entretanto? — perguntou este, pois tinham ouvido os ecos distantes de trompas nos dias anteriores, o que deixara todos em Dalstirvirk tementes de que a hoste dos skrimmen pudesse crescer mais ainda, avassalando-os como um selvagem vagalhão. Da forma como as coisas estavam, já não havia grande esperança, mas os ominosos toques que se tinham feito ouvir à distância fizeram os skrimmen formigar.

— Não, ninguém viu reforços — disse Hanal acenando encorajadoramente ao seu filho Taljn, que se encontrava a curta distância dali, também ele encostado à rocha e com um longo facalhão empunhado. — Parece que só teremos de nos haver com estes.

Deadan estranhou o humor quase soldadesco do Patriarca, mas não tinha familiaridade suficiente com ele para comentar ou mesmo cor­responder. Sem nada dizer, postou-se de frente para o eahlan, encos­tando a espaldeira à rocha e espreitando ele também para a chusma de skrimmen que os aguardava do outro lado da ilusória proteção das formações rochosas. Selvagens e bárbaros, os sitiantes encorajavam-se agora mutuamente, tendo já terminado as suas danças rituais, e pare­ciam estar a tentar superar-se uns aos outros com uma troca de berros e gritos de guerra ao longo da hoste. Envergavam peles na sua maio­ria; uns mais refinados que outros, que pareciam ter acabado de esfolar um animal para vestirem o seu pêlo. As armas que empunhavam não intimidavam ninguém, dardos e maças primitivas, arcos, lanças, facas, uns com pontas de obsidiana, outras de osso, e não muitas de ferro. Deadan estava confiante de que mataria muitas vezes o seu número, sobretudo se gerisse o esforço e se mantivesse relativamente resguar­dado, mas sabia que aquela era uma batalha que só por golpe de sorte poderiam ganhar. Não fosse a expansão do vale, teria investido ele só contra os skrimmen, aguentando-os a todos se necessário fosse até que os eahlan pudessem fugir, certo de que sobreviveria a uma chuva de flechas adversárias, e que estes teriam dificuldade em feri-lo mesmo com as suas primitivas maças. Fantasiara muitas vezes acordado com essa possibilidade nos últimos dias, pois tinha quase a certeza de que nenhum daqueles selvagens alguma vez vira um arnês de aço, e com a morte que o seu espadão iria certamente distribuir, teria uma carpete de cadáveres à sua volta antes de acabar inevitavelmente sobrepujado pelos números do inimigo. Seria uma morte digna, sem dúvida, e com ela aliviaria pelo menos o peso de não ter tombado com os seus irmãos em Gul-Yrith...

— Não te culpes, Deadan — leu-lhe Hanal os pensamentos, sorrindo fracamente. — Aedreth fez o que achava melhor, e não sei se hoje estaríamos aqui se não fosse por ti.

— Foi Quenestil Anthalos quem nos trouxe a esta terra. Não precisaram de mim — teimou o jovem, sem tirar os olhos do inimigo skrimmen, e dando a entender que continuava a preferir ter morrido com os seus.


— Teríamos todos morrido no mar, se não fosse por ti.

Era verdade. O Ajuramentado fora incansável, e praticamente opu­sera a sua força e vontade à tempestade que os atormentara durante a viagem de barco, mas embora se refreasse de discordar abertamente com Hanal, nem assim Deadan se deixou convencer. O eahlan per­cebeu que não valia a pena insistir no assunto, mas queria que o jovem ao menos soubesse que não fora em vão que as acompanhara até ali. Sem nada mais dizer, ergueu o seu facalhão wolhyno, no qual fixou os olhos, e começou a proferir umas palavras em Eridiaith que fizeram com que o gume riscado da lâmina vibrasse como cristal molhado afa­gado por um dedo, encantando-a para que cortasse de forma certeira e misericordiosa. Deadan não tinha semelhantes compunções, e bra­daria palavras de morte e sofrimento assim que se visse cercado por inimigos, jurando ficar com cadáveres pelos joelhos e regar o seu arnês de sangue inimigo antes de tombar. O jovem mussitou uma silenciosa prece a Sirul, encomendando a alma à distante potestade que o aco­lhera e aos seus, e rogando-lhe apenas a força para se manter de pé en­quanto tivesse a espada nas mãos.

Como se o tivessem sentido ou ouvido, os skrimmen acirraram-se nesse preciso momento, levantando as vozes em uníssono e erguen­do as toscas armas ao céu. Por sua vez, os ulkatr ficaram em silêncio, o que enervou os sitiados mais que os gritos e brados humanos, pois havia uma ameaça animal iminente no ar, que deixou de repente de ecoar com os rugidos das criaturas. Todos ficaram então tensos e atentos, suando nos cabos das armas e lambendo os nervosos lábios, e Knorl achou por bem dizer umas últimas palavras de encorajamento a todos. Naquele momento não havia quintas, nem ovelhas em dívida, nem ofensas passadas; apenas cerca de cento e sessenta wolhynos assus­tados e prestes a lutarem não pelo seu senhor ou pelo seu troço de terra, mas pelas suas vidas e por aqueles que estavam presentes e que lhes eram queridos. A única exceção era Deadan, que lutava somente para proteger os eahlan, sendo-lhe indiferente o seu destino e o dos wolhynos, mesmo o daqueles que o tinham acolhido e aos Lasan.

Alheios a semelhantes considerações, os skrimmen começaram então a abanar penduricalhos de ossos, milhares de ossos a serem chocalhados por centenas de mãos, resultando numa sinistra cacofonia seca que arranhava os ouvidos. Não contentes com isso, começaram também a soar os seus tambores, dando início a uma agourenta sinfonia que sina­lizou o avanço dos ulkatr. Os wolhynos aprestaram-se então, e por breves momentos a cidadela basáltica ganhou vida, quando homens assumiram e reassumiram as suas posições, oraram de formas mais ou menos efusivas aos deuses e olharam para trás para as mulheres, como para ganharem coragem. Estas abraçaram-se e apertaram com mais força os filhos que tinham ao colo, sem contudo entrarem em pânico nem se esquecerem das instruções que Deadan tivera de lhes transmitir por arrastamento. Slayra agarrou com mais força a mão de Lusia, a filha mais velha de Eluana, enquanto esta chegava a cabeça de Alija contra o seu peito e lhe afagava os cabelos brancos. Nenhuma delas ouviu a aproximação dos ulkatr, que se deslocavam em agachado silêncio ao ritmo dos tambores skrimmen, assassinos silenciosos de pelagem branca listrada de preto que se deslocavam agilmente pelo acidentado terreno na direção das formações basálticas de Dalstirvirk.

Deadan deu consigo a flexionar os dedos da mão livre, sentindo a falta de um bom arco siruliano, e desejando que os seus irmãos ali pudes­sem estar para desbastarem a investida dos ulkatr com algumas mortíferas salvas. Nenhum dos wolhynos tinha um arco, pelo que nada mais puderam fazer além de esperar que o inimigo ficasse ao alcance das suas armas, antecipando o certamente brutal embate. Os ulkatr moviam-se com uma agilidade e rapidez que deixava ante­ver a selvajaria do combate, no qual certamente saltariam por cima das formações basálticas, pulando bem para o coração do acampamento e desorganizando por completo a já de si periclitante defesa. No en­calço destes vinham já os skrimmen, prontos a atacarem através das aberturas causadas pelos seus bestiais aliados e antecipando o iminente massacre com cânticos roucos. Deadan ferrou os dentes e levou a outra mão ao punho do espadão, olhando de relance para o pomo beijado deste antes de o enristar em antecipação, prometendo-lhe uma cruenta safra se o seu gume o servisse bem. Ao seu lado, Hanal olhava com triste determinação para a vaga de inimigos que se aproximava, fixo numa relaxada pose como uma estátua alabastrina. Taljn não demons­trava a mesma serenidade do pai, e Deadan temeu por ele, embora o servo Çeluan se encontrasse por perto e parecesse tão resoluto como o próprio Patriarca, olhando para trás com leal devoção para a família que jurara proteger.

— Eis chegada a minha hora — mussitou Deadan, mal mexendo os lábios enquanto erguia o espadão a par da aproximação dos ulkatr. — Irmãos, de vós me despeço...

Soou uma trompa, e embora os wolhynos a tomassem como mais um sinal do seu destino iminente, o som desta teve um efeito inespe­rado nos skrimmen, fazendo-os desacelerar na sua infrene corrida e detendo mesmo alguns. Esses olharam para trás para as montanhas, e a inusitada paragem desses tantos fez com que os restantes se detivessem, confusos. Os ulkatr não fizeram caso da trompa, mas sentiram que não mais eram seguidos pelos seus aliados skrimmen, e pararam eles também de correr como cães furiosos aos quais fora dada uma ordem contraditória. Surpresos, os wolhynos olharam eles também para além da hoste inimiga, para o cimo das montanhas por cujas encostas o som parecera descer, mas nada havia nelas à vista. O som tornou-se todavia a ouvir, reboando pelo ar pesado, um som oco e profundo como o corno de um qualquer desmedido boi, que cedo foi correspondido por um raucíssono toque vindo sensivelmente da mesma direção, que deixou todos no vale em expectativa. Houve entre os wolhynos quem lamentasse a sua sorte, temendo reforços dos skrimmen, mas Deadan notou que estes não pareciam animados; quando muito estavam tão admirados quanto os seus inimigos com o inesperado som.

Enquanto todos se questionavam quanto ao que aí vinha, começa­ram a distinguir-se figuras em movimento à entrada do vale, figuras que à distância eram impossíveis de distinguir e que continuavam sem dar motivos para esperança ou desespero para qualquer uma das partes. Eram os skrimmen os que se encontravam mais próximos, mas mesmo estes tardaram a manifestar-se, acompanhando a vinda daque­les cujas intenções aparentemente também lhes eram desconheci­das. Passou-se um tenso e quase insuportável período de tempo, durante o qual os recém-chegados mal pareciam avançar, deixando wolhynos e skrimmen em interminável e quase insuportável expecta­tiva. Homens esticavam os pescoços e punham as mãos em pala sobre os olhos, tentando em vão lobrigar algum detalhe dos novos partici­pantes na agora interrompida batalha. Houve quem se quisesse ante­cipar a outrem no anúncio, e ouviu-se uma voz proclamar que eram os homens de Maígin ou Odhar com reforços, apenas para ser contra­dita por outra mais desalentada a anunciar a chegada de mais ulkatr. Essa última acabou por provar estar certa, pois tornou-se visível a pelagem branca dos humanóides, que também vinham acompanhados por humanos que à distância pareciam skrimmen devido às peles que envergavam.

Homens desesperaram, queixando-se de tão injusto destino aos deuses, mas outros apressaram-se a erguer as mãos, abanando negativa­mente indicadores e afirmando com convicção que não eram skrimmen. Deadan e Hanal não sabiam dizer ao certo, pois os recém-chegados usa­vam de fato mais peles que o comum wolhyno, mas a fraca luz do sol que conseguia passar pelo céu encoberto luzia em anéis metálicos e no aço de armas das quais os primitivos skrimmen não dispunham.

— Aquele não é...? — perguntou o Patriarca de concentradas sobrancelhas brancas franzidas.

— Onde? — olhou Deadan em redor, tentando seguir o dedo com o qual Hanal apontava. — Não ve...

E então avistou a cabeleira ruiva, e o familiar andar de animal des­confiado que agora se aproximava das linhas traseiras dos skrimmen.

— Quenestil Anthalos? — admirou-se. — Que faz ele com aque­las criaturas?

Ninguém lho soube responder, e o jovem siruliano ficou simples­mente a observar, sem saber o que pensar de tão inesperado desen­volvimento, que contudo não augurava muita esperança. Quenestil vinha acompanhado somente por uma vintena de homens, mais uns dez ou quinze ulkatr, e tanto quanto Deadan sabia, podia até ser pri­sioneiro destes, embora estivesse à dianteira do grupo. Em todo o caso, os skrimmen não os tinham atacado assim que os viram, e pareciam tão intrigados quanto os wolhynos que observavam tudo à distância. Estes ficaram mais surpresos ainda quando viram os seus inimigos apartarem as desorganizadas fileiras e abrirem caminho ao eahan e à sua intrigante escolta. Por momentos, Deadan ponderou mesmo o impensável, que Quenestil por alguma razão se aliara aos seus inimi­gos, mas tal suspeita foi-se mostrando cada vez mais infundada à medida que o eahan ia avançando por entre skrimmen, de olhos fitos na cidadela basáltica. Respeitosos, temerosos, ou simplesmente admi­rados com a ousadia do shura, o certo era que os skrimmen não fize­ram qualquer gesto contra ele, olhando com não menos espanto para os homens que o acompanhavam, e que Deadan reconheceu como sen­do kahrkar. Eram humanos com ar tão ou mais selvagem que os skrim­men, embora equipados com armas e vestimentas bem mais avançadas que as dos sitiantes, e mesmo à distância que se encontravam dava para ver que nenhum deles era particularmente jovem.

No interior da cidadela, as mulheres que já se tinham abraçado em preparação para o embate das duas forças deram-se conta de que algo se passara, e algumas perguntaram aos seus maridos, irmãos e fami­liares o que acabara de suceder. Nem todos responderam, pois eram poucos os que reconheciam Quenestil e se atreviam a esperar que a sua chegada significava que estavam a salvo, embora não conseguis­sem imaginar como este o poderia garantir com a sua diminuta es­colta. O único efeito assinalável era o interesse que os ulkatr davam aos que acompanhavam o eahan, olhando-os com aquilo que nos seus bestiais semblantes poderia passar por reverência. Tal como os skrim­men, foram também abrindo caminho ao díspar grupo, que estava completamente cercado de inimigos sem que estes fizessem algo a respeito, embora o movimento formigante nas fileiras skrimmen denotasse alguma agitação ou desconfiança. Os wolhynos permanece­ram nervosos, alguns dos quais assustados com a aproximação de mais ulkatr, outros reconhecendo os kahrkar e temendo represálias pela forma como este ou aquele familiar podia ter tratado um deles. Os kahrkar eram os proscritos da sociedade dos Fiordes, os exilados com os quais todos evitavam qualquer tipo de contato, tanto por decreto dos garding, como por medo incutido por histórias contadas à lareira que ninguém se importava de nunca terem visto corroboradas. Os kahrkar eram uma desagradável e demasiado familiar lembrança de um passado mais selvagem, do qual os wolhynos se tentavam resguar­dar e faziam por esquecer. Até mesmo os que viviam em degredo nos Fiordes, o fim de mundo no qual os wolhynos mais civilizados deixa­vam entregue à sua própria sorte, todos os que ousassem perturbar a ordem imposta na sua nação após anos de sangue e árdua labuta.

Nada disso dizia porém respeito aos homens e mulheres que ali se encontravam presentes, que temiam mais os mitos à volta dos kahrkar do que propriamente a ameaça que eles de fato representavam. Pela parte que os tocava, e embora estivessem todos indumentados para a guerra, os kahrkar pareciam serenos, seguindo Quenestil com um pro­pósito no passo. Deadan não reconheceu entre eles o velho kahrkr Ihjseorn que o levara e a Quenestil ao bizarro ritual skrimmen algu­mas semanas atrás, onde tinham capturado a kuvamora cuja morte apa­rentemente espoletara os acontecimentos que os tinham ali trazido. Os kahrkar que se aproximavam da cidadela tinham idades que ron­davam a de Ihjseorn, e trajavam peças de indumentária que tinham muito pouco em comum entre si, tendo como único padrão as peles ou plumas de animais. Uns usavam cota de malha, cujos anéis se entreviam entre peles, penas e couro; outros traziam pouco mais além dos pêlos no seu peito e costas; outros usavam armaduras de couro desgastado; e outros tantos ficavam-se pelas pelagens de animais que traziam aos ombros ou a tiracolo. A maior parte deles trazia facalhões embainhados à cintura, lanças de haste grossa e chuços de caça, com machados de vários tamanhos à mistura, bem como escudos redondos e arcos. Espadas havia poucas, e a maior parte delas tinha copos na forma de cornos de bode e pomos na forma de cascos, tal como a de Ihjseorn. Para Deadan, pouco importava a proveniência delas, con­tudo, desejando apenas saber se seriam ou não usadas contra si e os wolhynos que lutavam a seu lado, uma pergunta à qual apenas Que­nestil poderia responder.

O shura parecia que tinha sido mastigado e cuspido por um cão, mas caminhava com uma confiante determinação que Deadan não se lembrava de ver nele, pois embora não pudesse negar a sua coragem, Quenestil sempre lhe parecera pouco mais além de um estranho numa terra perigosa, pronto a disparar uma flecha sobre tudo o que lhe pare­cesse ameaçador. Agora mais parecia o senhor da bárbara hoste que os cercava, marcado pelas feridas de um tremendo combate que o faziam coxear ligeiramente, com os maxilares tensos de quem mordia a própria dor. O seu cabelo ruivo estava seboso e com a linha de couro cabeludo quase luzente, e trazia a face maculada com sujidade, equimoses e arranhões. Trajava as mesmas roupas de couro e pele de volverino de sempre, embora estas estivessem num estado miserável e esfarrapado, com alguns rasgões que lhe deixavam a pele ferida à mostra, e trazia à anca o estojo com o arco e a aljava aparentemente vazia. A única dife­rença além do seu estado lastimoso era a lança que empunhava, uma primitiva arma com haste de uma peculiar madeira suja de sangue seco, e ponta de reluzente e afiada obsidiana. Era supostamente nela que o interesse dos skrimmen incidia, pois os aparentemente menos impres­sionáveis entre estes foram atrás da escolta do shura, inclinando as cabeças para o lado e esticando os pescoços em bicos de pés, como se quisessem confirmar aquilo que tinham acabado de ver.

Quenestil não os obsequiou, caminhando de cansada cabeça ligei­ramente baixa, olhando as caras que o observavam da cidadela de de­baixo das suas orlas orbitais enquanto mantinha um aperto firme mas relaxado na sua nova arma com a luva esfarrapada. Deadan e Hanal entreolharam-se, apercebendo-se ambos algo de diferente no shura sem que o conseguissem identificar, mas era o eahlan quem mais o parecia sentir. A sua cara franziu-se numa expressão de desalento, como se esti­vesse a captar algo que passava despercebido ao Ajuramentado, e este chegou mesmo a temer ver confirmada a mais absurda hipótese que pusera, a de que Quenestil por alguma razão se virará contra eles.

— Patriarca, o que foi? — perguntou Deadan, sem tirar os olhos do eahan.

— Por Sirul, tamanha fúria... — disse Hanal, sentindo-se quase fisicamente nauseado com aquilo que sentia vindo de Quenestil. — O que é que lhe aconteceu...?

O Ajuramentado não soube responder, mas também a ele era evi­dente que algo mudara no shura, algo de selvagem e perigoso que deixava Deadan um tanto ou quanto apreensivo ao vê-lo aproximar-se dos eahlan. Alheio a tais considerações e a boa parte daquilo que o rodeava, Quenestil veio a seu encontro, trazendo no seu encalço um grupo de kahrkar e ulkatr de expressões semelhantemente pétreas. Ante a sua aproximação, quem primeiro tomou a iniciativa de dar um passo em frente foi Knorl, que, para todos os efeitos e apenas segundo o seu critério, assumira o comando dos sitiados. Fez sinal a dois homens para que o acompanhassem.

— Saudações — salvou com certas reservas. — Quem és, e o que...

Quenestil passou pelo garding sem lhe prestar qualquer atenção, dirigindo-se a Deadan como se mais ninguém se encontrasse na sua presença. Embora ainda apreensivo com a situação, Knorl conseguiu reunir suficiente indignação para ficar lívido, e os seus homens prepararam-se para defender a honra do seu senhor, levando as mãos às armas. Bastou no entanto um mero olhar de relance aos kahrkar que acompanhavam o eahan para que repensassem as suas intenções, pois não lhes passou despercebida a sangrenta tempestade de fúria que cada um deles parecia pronto a desencadear. Com essa hesita­ção, Quenestil entrou incontestado na cidadela, e ao vê-lo, muitas mulheres arquejaram de terror, tomando-o por um skrimmen. Outras porém reconheceram-no, entre elas Oska, as eahlanas e Slayra, que não pôde esconder o seu espanto ao ver o shura ali em tão inesperada altura. Oska murmurou uma prece de agradecimento, e Eluana levan­tou-se espontaneamente, largando Alija para ir ao seu encontro. Lusia viu-se movida por uma emoção semelhante, e vendo Slayra boquia­berta a olhar para Quenestil, arrastou-a pela mão contra a sua von­tade. Enquanto decorria o reencontro, a escolta de kahrkar e ulkatr virou-se para a hoste skrimmen no exterior, mantendo debaixo de olho os perplexos sitiantes. Alguns entre eles pareciam estar a reunir coragem, e houve mesmo quem começasse a atiçar os seus com­panheiros, afirmando que os inimigos estavam apenas a aproveitar a oportunidade para reforçarem as suas defesas. Não passavam porém de meras brasas numa seara acabada de molhar, pois de uma forma geral tanto os skrimmen como os ulkatr estavam mais intrigados do que desconfiados.

— Quenestil Anthalos... — saudou Deadan com a sua indecifrável expressão, limitando-se a inclinar a cabeça como se o eahan tivesse acabado de voltar de um simples passeio pelo vale.

— Deadan — retribuiu o shura com igual falta de emoção, embora reservasse um fraco sorriso para Hanal quando este veio apertar-lhe calorosamente a mão livre com as suas.

— Muito folgo em vê-lo, Quenestil — disse o Patriarca, forçando um sorriso apesar do subtil mal-estar que a presença deste lhe causava.

— Quem são estes que traz consigo?

— Aliados — respondeu o eahan sucintamente, virando-se então para receber o abraço de Eluana, que não teve pejo em lhe envolver o pescoço com os seus suaves braços e sujar o seu vestido wolhyno com as peles manchadas de Quenestil.

— Quenestil, que bom vê-lo! — exultou a eahlana, afastando-se e deslizando as mãos pelo braço do shura até agarrar a mão que o seu esposo acabara de largar. — Estávamos receosos de que algo lhe tivesse acontecido.

— Aconteceram-me muitas coisas, Eluana — admitiu Quenestil com voz cansada, conseguindo ainda assim conservar o sorriso, o que na presença dos eahlan não era particularmente difícil de fazer.

— Estão todos bem? Ninguém se feriu?

— Ninguém, Quenestil, estamos todos bem — assegurou Eluana, apontando para trás para o grupo de mulheres. — Mesmo os bebês, trouxemo-los conosco...

Sentiu então a mão de Quenestil retesar-se, e viu que a sua filha Lusia vinha com Slayra ao seu encontro, o que fez com que a brevemente dissipada tensão naquele ponto da cidadela subisse novamente em pico. A eahanoir vinha puxada pela mão de braço esticado, de gélidos olhos azuis fitos em Quenestil e com uma tez mais pálida que o costume na cara, que naquele momento mais parecia uma máscara de gelo. Em contraste, Lusia vinha radiante, e largou Slayra para abraçar ela também Quenestil, dizendo-lhe algo que o eahan não ouviu, pois mesmo com a cabeça da eahlana no seu ombro, tinha apenas olhos para Slayra. Esta retribuiu o olhar de forma completamente desapaixonada, observando com indiferença a alegria de outros por verem o shura e deixando perfeitamente claro que não devia justificações a ninguém. Atrás dela, Oska aproximava-se discretamente, claramente sem a confiança das eahlanas para se lançar simplesmente para os braços de Quenestil, mas queria de alguma forma participar nas boas-vindas ao eahan, para dar a entender a todos os que estavam a ver que estava nas boas graças dele.

Lusia largou então o eahan, sentindo que a atenção deste não estava nela, e decidiu afastar-se da tensão criada pelos olhares cruzados do casal, recuando para perto da sua mãe. Nem Quenestil nem Slayra deram um passo em frente, mal se mexendo enquanto se entreolhavam com expressões neutras nas faces, ela de braços petulantemente cru­zados e ele de cansados braços abertos num gesto de desafio a quem via os seus ferimentos. Ninguém falou, e mesmo os cochichos entre as mulheres no centro da cidadela cessaram no momento de silêncio que se seguiu, durante o qual pouco mais se ouviu além do murmú­rio das vozes de skrimmen do outro lado das formações rochosas. Sen­tiu-se também a vibração das desconfiadas rosnadelas de alguns ulkatr, embora esses se mantivessem na sua maioria respeitosamente silencio­sos diante da presença dos seus pares que acompanhavam Quenestil, que pareciam gozar de um certo estatuto. Oska decidiu aproveitar o momento para se anunciar, pigarreando de mãos cruzadas sobre o regaço para chamar atenção sobre si.

— Saudações, Quenestil, amigo de Horavog — declarou suficien­temente alto para que todos a ouvissem. — Alegra-me vê-lo entre nós.

O eahan olhou apenas momentaneamente para a garding, mexen­do os olhos e não a cabeça, e nem se dignou a responder-lhe antes de tornar a fitar Slayra. Embaraçada, Oska ficou em silêncio e encolheu-se ligeiramente na sua posição, sentindo sobre si os olhares dos seus pares. A eahanoir limitou-se a erguer uma delicada sobrancelha, como a perguntar se Quenestil iria ficar o dia inteiro a olhar para ela, o que levou o shura a avançar na sua direção. Slayra não conseguiu evitar engolir em seco, pois havia algo distintamente mais selvagem em Quenestil, uma aura animal de ameaça que parecia capaz de irrom­per a qualquer instante. E a lança que empunhava... era como se dela emanasse a vibração de um terremoto iminente, que deixava nervosos todos na sua presença como animais que sentiam o impendente perigo. Na proximidade da afiada ponta de obsidiana, era como se a noite estivesse para cair, augurando o despertar de garras e presas brancas a luzirem na escuridão, e eriçando os cabelos como a atmosfera carregada que antecede uma tempestade. Tanto que, quando Slayra deu por si, estava com os olhos postos na lança e com Quenestil a fitá-la a um mero passo de distância. Apenas os seus gélidos nervos conseguiram suprimir o involuntário sobressalto que dela se ia apossando, e os dois continuaram de olhos postos um no outro, sem que qualquer palavra saísse dos seus lábios.

Meros espectadores de um drama pessoal que desconheciam, al­guns wolhynos tornaram a virar as suas atenções para o exterior, onde o confronto entre crenças e a sede de vingança ia deixando os skrimmen progressivamente mais agitados. Aparentemente desprovidos de um verdadeiro líder, não havia quem lançasse um mote que todos pudes­sem seguir, e para os wolhynos pouca diferença faria se apenas metade dos skrimmen decidisse atacar. Já os kahrkar e ulkatr que tinham escoltado Quenestil até à cidadela mantinham-se serenos e vigilantes, refreando a horda com o seu mero olhar, mas mesmo entre eles houve quem olhasse sutilmente para trás, esperando evidentemente alguma iniciativa da parte do eahan. Este não parecia porém dar a atenção a nada mais além de Slayra, como se estivesse a tentar quebrar o gelo dos olhos da eahanoir com a rocha dos seus. Nenhum deles falara ainda, nem sequer um grunhido de reconhecimento ou uma fungadela desdenhosa, e Sana aproveitou para se intrometer, trazendo ao colo os dois bebês.

— Quenestil, os seus filhos... — disse, sorridente, parecendo pron­ta a ir entregar-lhos aos braços.

O shura porém limitou-se a soerguer as pontas dos dedos da mão esquerda, retendo a eahlana com o gesto, e Slayra revirou os olhos antes de Quenestil restabelecer o contato visual entre ambos, que se pro­longou em silêncio até que a eahanoir por fim o quebrou.

— Estás com péssimo aspecto.

— Já tu não pareces nada mal — replicou o eahan em tom acusatório, ao qual Slayra se limitou a erguer o canto da sardônica boca.

O shura virou-lhe de seguida as costas, parecendo de alguma forma satisfeito com tão esparsa troca de palavras, o que deixou a eahanoir algo admirada. Afinal, era a primeira vez que se viam desde que partira de Horavog, e seria de esperar que Quenestil tivesse muito para lhe dizer, mas este não olhou sequer por cima do ombro ao voltar para o seu séquito de kahrkar e ulkatr, deixando uma admirada eaha­noir para trás. Sana deixou-se estar tristemente com os, bebês ao colo ao lado de Slayra, olhando para Eluana como se tivesse medo de ter feito algo de errado, mas a matriarca estava demasiado concentrada em Quenestil e na perturbadora aura que deste emanava para sequer a consolar com um olhar. O shura passou em silêncio por Hanal, Dea­dan e Eluana, serenando-os com um olhar que teve quase o efeito oposto, agradecendo com um mero nuto quando o Patriarca lhe con­seguiu apenas dar uma palmadinha no ombro ao tentar nele pousar a sua mão. Deadan deu um passo para o acompanhar, mas Quenestil refreou-o, erguendo a mão esquerda sobre o ombro e saindo então da relativa proteção da quebrada muralha rochosa, juntando-se nova­mente aos kahrkar que o tinham até ali acompanhado. Loevrik encon­trava-se entre eles, e os dois cruzaram brevemente o olhar, no qual o kahrkr lhe transmitiu confiança com um aceno da cabeça.

O eahan virou então a sua atenção para os ulkatr que tinham até ali refreado os da sua espécie, incapaz de comunicar com eles mas compreendendo-os e sendo por eles compreendido a um nível instin­tivo. Também estes lhe transmitiram a sua confiança através dos orbes francos e azulados, tendo presenciado o seu regresso do vulcão, rodeado pela lava que se recusava a tocar-lhe; um sinal que todos haviam reconhecido e que os levara a acompanhá-lo até Dalstirvirk. Seguiam-no por razões diferentes das dos kahrkar, embora a seu ver a crença fosse a mesma: por bons ou maus motivos, seria Quenestil o catalisa­dor da mudança pela qual todos ansiavam. Essa certeza tê-lo-ia demo­vido meses atrás, porventura mesmo indignado ou levado a opor-se a ela com todas as suas forças, mas após a epifania que tivera em Eihroin, Quenestil apercebera-se de que havia muitos aspectos cinzentos que se recusara a considerar entre o preto e branco que sempre haviam regido a sua vida. Mesmo os skrimmen que agora via diante de si, a horda bárbara que não hesitaria em chacinar os eahlan, os seus bebes e todos quantos estivessem refugiados atrás da pedra nas suas costas... mesmo esses pareciam-lhe agora puros nas suas intenções, movidos por motivos não mais maldosos que o de uma alcatéia de lobos que pro­curava proteger o seu território.

Sem se deter com mais considerações, Quenestil olhou para o lado para uma irregular formação rochosa, e pulou para cima de uma reentrância nela, subindo-a até chegar ao topo, onde conseguiu a atenção de praticamente todas as cabeças que se encontravam no vale. Fez-se então silêncio, no qual até mesmo as articulações da armadura de Deadan se ouviam, e o shura contemplou o lago de inimigos que o tinha cercado e que, embora vedado, ameaçava transbordar a qualquer momento.

— E assim começa... — disse para consigo em Hjrutmalv, mas a meio de tamanho silêncio a sua voz era audível para os wolhynos na cidadela. — As vossas preciosas Vagas de Fogo vêm aí... mas será que vocês estão preparados?

As suas palavras mereceram-lhe alguns admirados cenhos franzidos, mas houve entre os sitiados quem empalidecesse ao ouvir o termo do qual apenas guardavam assustadoras recordações de histórias contadas por anciãos. Proferidas por tão intimidante figura em tão assustadoras circunstâncias, as palavras de Quenestil tinham todo um novo peso que oprimiu os corações dos wolhynos que ali se encontravam presentes. Mesmo Oska, que desde o início contara com Quenestil como a arma que utilizaria contra os seus inimigos, se mostrou intimidada pelas implicações que estavam patentes no tom de voz do eahan.

— Tornarão a ser como outrora foram: bravos e indomáveis, o povo do Norte sem medo da morte e com amor à vida, de aço empu­nhado mas sempre com respeito pelas árvores cuja madeira foi utilizada para o forjar — continuou, parafraseando o que Ihjseorn lhe dissera antes da sua partida de Horavog. — Camponeses e pescadores pegaram em armas quando os piratas de cabelos flamejantes vos inva­diram. Fá-lo-ão novamente, agora que um novo inimigo se acerca da vossa costa, mas vil e perigoso que os piratas da Forlornya. O fogo que sempre ardeu nos vossos corações para vos manter vivos no frio da vossa terra deflagrará uma vez mais, mais brilhante que o sol do Verão, e o ânimo dos vossos inimigos encarquilhar-se-á como papel atirado às brasas.

— Não são os skrimmen os vossos inimigos, nem os ulkatr aqueles que vocês devem temer — prosseguiu, açambarcando os referidos com um gesto largo da sua lança, que fez com que a hoste de skrimmen se mexesse como uma seara soprada pelo vento. — Esquecerão o san­gue derramado por vocês e por eles, deixarão para trás todas as quezílias e jurarão lutar ao lado deles como irmãos. Eles atacaram-vos porque vocês lhes invadiram as terras, mas vocês apenas lhes inva­diram as terras porque foram para aqui exilados contra a vossa von­tade.

Mesmo sem o perceberem, os skrimmen pareceram ficar excita­dos com o exaltado discurso do eahan, julgando que estava a tentar animar os wolhynos ou mesmo a organizar uma surtida, agora que os números destes se encontravam reforçados. Os gestos que Quenestil fazia com a lança na sua direção assim o davam a entender, e vários dos bárbaros enristaram as armas, gritando pela morte dos wolhynos e de todos os que se encontravam do seu lado.

— Vêm aí os tanarchianos, os imundos cães que venderam a alma à Sombra e que agora pretendem invadir a terra que para aqui vos expulsou — continuou o shura, sem dar grande atenção à crescente hostilidade da parte das fileiras dos skrimmen. Mesmo os ulkatr come­çavam a ficar mais nervosos, apesar da presença apaziguadora dos de Eihroin. — Ameaçam-vos tanto a vocês como àqueles que vocês erra­damente tomam por inimigos, e destruir-vos-ão a todos se não se uni­rem contra eles.

— Os skrimmen atacam! — declarou Knorl, apontando com a sua espada de lâmina larga na direção dos que agora avançavam.

— Quenestil, eles assim não o percebem! — quase rogou Oska, temendo agora verdadeiramente pela sua vida.

— Isto eles já perceberão... — disse o eahan em surdina, atirando a lança ao ar e agarrando-a novamente para a arremessar.

Os ulkatr que se encontravam por baixo rosnaram ameaçadora-mente e arreganharam os dentes em aviso, e os kahrkar que os acom­panhavam levaram sutilmente as mãos às armas, sem medo nem nervosismo, prontos a fazerem valer com sangue o ponto de vista que partilhavam com Quenestil. Não foi todavia necessário, pois os cabelos e jubas de todos foram então bafejados por uma inesperada rajada de vento, e fez-se ouvir um trovão à distância, cujo estrondo ribombou cada vez mais próximo do vale como um contínuo fragor que se recu­sava a esmorecer. Quenestil abriu a boca e juntou-se a ele num cres­cente brado, que cedo assumiu desmedidas proporções à medida que o ribombo se espalhava pelo vale, alimentado pelo antinatural urro do eahan, que fez com que os skrimmen se detivessem, olhando para cima, para as nuvens carregadas que agora se revoltavam no céu, e em redor, para as vertentes das montanhas como se temessem que estas lhes viessem a desabar em cima. Os cavalos no interior da cida­dela nitriam de medo, alguns empinando-se mesmo enquanto outros olhavam à volta com pânico no branco dos olhos bem abertos. Que­nestil inclinou-se então para trás e arrojou a lança com toda a força.

A arma voou pelo ar num arco ascendente, vibrando por ele fora com a força do rugido que o preenchia e que levou aos ouvidos as mãos de todos os que se encontravam no vale. Quando a lança atingiu o seu apogeu, o clarão de um relâmpago banhou Dalstirvirk de branco, ori­ginando uma série de gritos sobressaltados e assustados, esses cedo abafados pelo ensurdecedor fragor ambiente, que atingiu o seu pico com o subsequente trovão. Não foi senão quando humanos e ulkatr já estavam a cair de joelhos que o ruído começou a esmorecer, descaindo a par da lança enquanto esta descia o fim da sua trajetória, cessando de forma quase abrupta quando a ponta de obsidiana aterrou entre um grupo de skrimmen que se afastou, cravando-se no chão, cuja rocha preta começou a ficar polvilhada por escuras gotas de chuva. Os skrimmen e os wolhynos destaparam os receosos ouvidos, que ainda zumbiam em resultado do fragor que varrera o vale, e alguns tornaram a tapá-los reflexivamente quando se começou a ouvir um outro rumor à distância. Aqueles que de entre eles se encontravam em posições mais privilegiadas apontaram para noroeste com gritos de alarme, e mesmo os wolhynos abrigados entre a muralha basáltica viram o rubor vermelho no céu ao longe. Assim que alguém se lembrou de declarar que o gelo de Eihroin cuspia novamente fogo, instaurou-se o caos entre os wolhynos, cujas reações foram no mínimo díspares. Em con­traste, os skrimmen e ulkatr que se encontravam além da muralha eram coletivamente cativos do atemorizante espetáculo de fúria vermelha que se espalhava pelo céu, cuspida pela vasta e negra massa espessa de vapores expelidos pelo Caldeirão.

Todos se encolheram e sobressaltaram quando uma corrente de relâmpagos dançou em volta do bulcão negro, enleando-se nele e real­çando os seus contornos escarlates num intermitente abraço de con­trastantes elementos da cólera do céu e da terra. Quenestil erguia-se na fronteira entre ambos, altivo na sua posição de braços apartados e punhos fechados sobre a formação rochosa, a sua silhueta recortada pelos revezados relâmpagos que iluminavam o choroso céu do qual se precipitou chuva como para esfriar os ânimos daqueles que ainda pre­tendiam lutar. Deadan, Slayra, Hanal e todos os outros sitiados olha­ram boquiabertos para Quenestil, que contemplava indiferente a hoste de atemorizados skrimmen, que eram também fitados pelos imóveis kahrkar enquanto a chuva lhes ia empapando os cabelos e pingando dos narizes. Criou-se um amedrontado espaço vazio em redor da lança arremessada pelo eahan, que permanecia cravada na rocha com todo o peso das implicações das palavras de Quenestil, que ninguém na­quele momento pensou em desafiar. A arma em si provocava medo naqueles que a desconheciam, mas para os skrimmen que conheciam as lendas, e que tinham estado prestes a entrar no frenesi da batalha, era como se um novo propósito sé lhes revelasse. Compreenderam a mensagem de Quenestil e olharam-no com olhos diferentes, alguns chegando mesmo a erguer as armas num gesto de saudação ou de empenho. O shura não se exaltou nem deu mostras de qualquer outra emoção, limitando-se a contemplar aquela que agora via como a sua modesta hoste, um mero punhado de homens que seriam o brasido com o qual atearia o incêndio que iria varrer Tanarch.

As Vagas de Fogo tinham por fim chegado.

Allumno flutuava sem rumo pelo Pilar de Allaryia, vagando de olhos fechados com a sua manifestação espiritual pelas plácidas águas etéreas, que nele sempre tinham um efeito paliativo. Independente­mente das suas preocupações e angústias, o mago sentia-se sempre em paz no Pilar, mesmo com a frustração que ameaçava apossar-se dele enquanto esperava em vão pelo seu mestre, que continuava a ignorar os seus chamamentos. Por mais desesperado que Allumno se mos­trasse, não conseguia obter qualquer resposta de Zoryan, e começava ele também a desesperar por não saber oferecer a Aewyre as respostas de que este necessitava. A única esperança que agora tinham era um qualquer fulgor de inspiração do arquimago, uma improvável solução na qual não tivessem pensado e que lhes pudesse dar algum alento em tão sombria altura, na qual o triunfo d’O Flagelo parecia inevitável.

Por si só, a chegada de Allumno a Ul-Thoryn enchera Aewyre de confiança e esperança, certo de que o seu mentor arranjaria uma solu­ção como sempre o fizera. Era essa esperança que agora mais ator­mentava o mago, que maldizia o seu mestre em segredo, por o ter feito perder tempo a matar outros quando podia ter ajudado Aewyre a decifrar os segredos da Essência da Lâmina. Talvez tivesse conseguido descobrir algo de conclusivo antes de a relação entre Aewyre e Kror ter ficado irremediavelmente quebrada, talvez tivesse chegado a al­guma conclusão enquanto ainda havia tempo, se tivesse acompanhado os treinos na Cidadela da Lâmina...

— Talvez, talvez, talvez... — murmurou o mago no vazio sideral do Pilar, ciente da futilidade de tais especulações, e a sua má dis­posição refletiu-se numa aura turva à volta da sua manifestação espiritual, em cuja testa ardeu um fulgor vermelho. — Maldição, porque é que o mestre não me responde?!

Allumno chegou mesmo a ponderar o pior, que o seu mestre de alguma forma se perdera nas tais «coisas» que tinha de fazer. Dissera-lhe que, dada a situação, seria melhor procurarem outras formas de combater O Flagelo, mas não lhe explicara o que com isso queria dizer ao certo, o que em nada contribuíra para a paz de espírito de Allumno. Ter-se-ia aventurado pela sombra do Pilar? Envolvido com algum grupo de guerra azigoth, que segundo os seus relatos estavam agora mais ativos do que nunca? Ou — como Allumno já chegara a temer, embora se recusasse a acreditar nessa possibilidade — teria Zoryan sido corrompido pelo sangue de Seltor espalhado pelo Pilar? Era uma possibilidade quase demasiado horrível de se contemplar, mas na presente situação Allumno não podia descartar nada, ainda que ter o arquimago do lado de Seltor significasse provavelmente o fim de toda e qualquer esperança, não só para Aewyre como também para todos os que se opusessem a’O Flagelo. Afinal, poucos tinham tanto conhe­cimento acerca do cerne de Allaryia, da própria fonte da Essência, à qual o arquimago estava intimamente ligado. As implicações daqui­lo que Seltor poderia fazer com o conhecimento de Zoryan eram incon­cebíveis, mas nem mesmo assim Allumno conseguiu deixar de pensar nelas, pelo que acabou por abrir os olhos, numa tentativa de abando­nar tão funestos pensamentos.

O Pilar apresentava a mesma paisagem de sempre, baço, monótono e sem quaisquer características de relevo na sua uniforme imensidão, na qual os únicos sinais de vida eram as formas vitais emanadas pelos habitantes do palácio. Ao longe, tal como estrelas num,céu sem hori­zonte definido, viam-se os pontos luminescentes de todos os seres vivos de Ul-Thoryn, que, aglomerados à centena de milhar, apresentavam um quase desconcertante espetáculo luminoso. Allumno contemplou então a cidade que adotara como sua, embora tivesse nascido um rapaz do campo e ainda hoje se sentisse algo alienado pelas dimensões da Pérola do Sul. Não obstante, enquanto conselheiro do regente, jurara proteger a cidade e os seus interesses, e era isso que tencionava fazer, embora a seu ver Ul-Thoryn não estivesse de momento ameaçada. Havia o risco de Lennhau dar início a uma guerra civil, evidentemente, mas Aewyre fora apesar de tudo prudente ao tentar impedir que as notícias daquilo que acontecera à corte lennhesa se espalhassem. Sabia contudo que não poderiam deixar Ul-Thoryn em quarentena perma­nente, e que cedo ou tarde as notícias chegariam a Lennhau. O mais importante por enquanto era de fato manter a ordem na cidade, im­pedir que o silêncio dos deuses causasse grandes distúrbios e, acima de tudo, preparar os cidadãos para o que aí vinha, embora ninguém sou­besse ainda ao certo em que forma esse «que» viria. Allumno duvidava de que o próprio Flagelo se lançasse num trilho de destruição por Allaryia fora, embora tivesse certamente o poder para o fazer, e agora que os drahregs estavam praticamente extintos, era difícil prever...

Algo chamou a atenção do mago a meio das suas reflexões, um aglo­merado de brilhantes formas vitais que se mexiam naquela que Allumno julgou ser a base do palácio. Era difícil dizer, pois barreiras físicas como paredes, muralhas e mesmo o chão não se faziam ver no Pilar, sendo desprovidas de energia vital de qualquer espécie. Todavia, magos habi­tuados a vaguearem pelo Pilar adquiriam uma noção espacial que lhes permitia calcular os reflexos do Pilar no mundo sólido, sobretudo quan­do se tratava de lugares que conheciam, e embora se encontrasse bas­tante longe dos pontos, Allumno conhecia Allahn Anroth bastante bem. Começou portanto a flutuar na direção deles para averiguar, des­confiando de cidadãos descontentes ou espiões, eventualmente mesmo sabotadores ou alguém que pretendia envenenar a fonte de água do palácio. Nas presentes circunstâncias, o mago não estava disposto a pôr de parte qualquer hipótese, e a paranóia alimentada pela desesperante situação em que todos se encontravam fazia-o supor o pior.

— Allumno — chamou-o uma familiar voz, que fez com que a manifestação espiritual do mago estacasse, virando-se para trás com um movimento fluido de quem estava a nadar em água.

— Mestre!? — exclamou, desviando a torrente de raiva reprimida que sentiu assomar-se ao ver o lastimoso estado de Zoryan. — Velos deuses, o que lhe aconteceu?

A manifestação de Zoryan costumava ser nítida e mais definida que a de Allumno, de tão habituado que o arquimago estava a viver no Pilar, mas naquele momento o seu pupilo reconheceu-o apenas de­vido à sua silhueta. Estava baço e indistinto como um pano de linho fino embebido em barrela, e as suas feições eram mais uma impres­são residual que um verdadeiro relevo. Embora não estivesse de pé, Zoryan estava curvado, como se a sua manifestação portasse um tre­mendo peso que fazia com que as intangíveis águas do Pilar lhe pare­cessem melaço, oprimindo-o e dificultando-lhe a mobilidade. Porém, não foi isso o que mais preocupou o mago, mas sim as gavinhas de sombra que oscilavam do corpo de Zoryan como algas negras no fundo do mar, aparentemente presas a ele.

Allumno ficou boquiaberto, e foi brevemente tomado por um jorro de pânico que fez com que o fulgor vermelho da sua gema esmore­cesse. Atravessaram-se-lhe na mente as mais macabras possibilidades, que o seu mestre sempre estava corrompido, que fora tomado pela Sombra, que era agora um enviado d’O Flagelo, que viera matá-lo por­que sabia demais... tudo antes de Zoryan sequer tornar a falar, altura na qual o mago estava já pronto a descarregar uma saraivada arcana em defesa.

— Acalma-te, pupilo — sossegou este, com uma voz que contudo denotava plena consciência da sua condição, o que aliviou o mago. — Eu estou bem.

— Mas o que é que lhe aconteceu, mestre? — insistiu Allumno em saber, pouco apaziguado pela aparente clareza de mente de Zoryan.

— Estive demasiado perto... demasiado tempo... da sombra do Pilar — disse este. — A situação no Pilar é crítica, Allumno. Nunca julguei que tal fosse possível, mas os azigoth estão a ganhar vantagem. As conseqüências disso podem ser...

— Na sombra do Pilar? O que esteve o mestre a fazer na sombra do Pilar?

— Não te exaltes, pupilo. Eu tive uma idéia, e só havia uma forma de verificar se ela era ou não exeqüível...

— Isso foi loucura, mestre! Podia ter-se perdido para sempre! Porque não me avisou? Eu podia tê-lo ajudado...

— Por isso mesmo, não queria arriscar-te a ti também. Sabem os deuses o que poderia ter acontecido se estivesses em contato comigo enquanto eu me imergia na sombra...

— Os deuses...? — redarguiu Allumno, incrédulo. — Os deuses já não sabem nada, mestre! O Flagelo matou-os, e eu estive este tempo todo a tentar contatá-lo para lho dizer, para lhe pedir conselhos...!

— Então é verdade... — suspirou Zoryan. — O cessar das atividades no centro dos segmentos, o redobrar das investidas dos azigoth...

— Porque é que me faz isto, mestre? — interrompeu Allumno, sem qualquer interesse em mais considerações. — Porque desaparece quase sem avisar e fica em silêncio durante semanas, enquanto eu tenho de ver o mun­do desmoronar-se à minha volta sem saber o que está a acontecer?!

— Allumno, não o fiz para te castigar... — disse Zoryan, com tom quase ofendido. — Se não o tivesse feito...

— O Aewyre já não tem qualquer hipótese de adquirir o controlo sobre a Essência da Lâmina, sabia? — tornou Allumno a interromper, com demasiadas palavras a dizer para perder tempo a ouvir as do seu mestre. — A nossa única esperança de vencermos O Flagelo foi-se, e sou eu a única pessoa que o impede de se entregar ao desespero, porque ele acha que eu terei alguma brilhante idéia para salvar a situação!

— O Aewyre...? Mas que aconteceu?

— O adversário dele, o drahreg, está incapacitado. Não consegue combater. E ainda que o pudesse fazer com unhas e dentes, não o fará, pois já percebeu que é o Aewyre o maior interessado na Essência da Lâmina.

Zoryan não respondeu imediatamente, guardando para si as suas palavras e refletindo brevemente sobre o que Allumno dissera.

— Isso é... problemático — reconheceu, embora não parecesse preo­cupado sobremodo. — Não têm nenhuma outra solução à vista, ainda que hipotética?

— O Aewyre leu nuns manuscritos que é possível tornar-se um Lamelar, se forçar o seu adversário a matar-se com a arma dele, mas...

— Dele? Ou a do outro?

A gema de Allumno fulgiu de irritação, sem paciência para os preciosismos gramaticais do seu mestre.

— A arma do Aewyre. A Ancalach. O drahreg teria de se matar com a Ancalach — elucidou. — Escusado será dizer que o Aewyre não está dis­posto a fazê-lo...

— Compreendo...

— O mestre não parece muito preocupado com isso.

— Não me entendas mal, Allumno — apressou-se Zoryan a retificar. — É menos uma solução que nós temos, mas felizmente ocorreu-me outra durante a minha ausência.

— Oh? — admirou-se Allumno, soando mais agressivo que o que porventura desejara, mas o arquimago não fez caso disso.

— Era uma teoria que eu tinha, e que tive de averiguar pelos meus pró­prios meios — explicou. — Agora que o fiz, sei que temos outra forma de vencer O Flagelo.

Zoryan não pôde deixar de reparar que a manifestação espiritual do seu pupilo o olhava com ar céptico, quase desconfiado, e levantou as suas mãos para olhar para as palmas destas, vendo nelas a dança de mais fiapos de sombra.

— Estou senhor de mim, pupilo — achou por bem afirmar, baixando as baças mãos. — Estás preocupado com o meu discernimento?

— Estou preocupado com muitas coisas, mestre, e não posso dizer que o seu silêncio e súbita aparição com esse aspecto me tenham sossegado.

— Allumno, não sejas acintoso — repreendeu-o o arquimago. — Jul­gas que isto foi fácil para mim, que te escondi propositadamente informações e que te deixei na ignorância porque não confiava em ti?

— Admito que foi o que pensei — disse Allumno. — Talvez o mestre me saiba explicar por que razão eu não deveria?

A manifestação de Zoryan pareceu então tornar-se mais nítida, e as sombras que à sua volta serpenteavam pareceram ficar mais exci­tadas, como se bebessem da sua exaltação. Não tardou porém a acal­mar, soltando um suspiro etéreo e deixando as gavinhas a flutuarem pacificamente à sua volta.

— Não, tens razão — reconheceu. — Não te posso censurar pelo que possas ter entretanto pensado de tudo aquilo a que te sujeitei.

— Sim, já sei, porque tinha de se certificar de que eu não fora corrompido pela sombra do Pilar — disse Allumno. — E agora surge-me o mestre, acabado de emergir da própria, e espera que eu...

— Esquece a maldita sombra, Allumno! — disse Zoryan com tom invulgarmente ríspido. — O mais importante era saber se podia ou não contar contigo para seguires as minhas instruções sem a mínima reserva e com absoluta confiança, independentemente do quão absurdas elas te pudessem pare­cer! Precisava de saber se estarias ou não pronto a fazer sacrifícios!

— Sacrifícios? Mestre, sabe bem que eu faria tudo...

— Não, não farias, Allumno. Pelo menos não o que eu estou para te dizer; certamente não enquanto não compreendesses que é esta a única alternativa que temos, agora que aparentemente não mais podemos contar com a Essência da Lâmina.

O eterno silêncio do Pilar tornou então a reinar, enquanto Allumno permaneceu aturdido com as ominosas palavras do seu mestre, que para ele ficou a olhar enquanto esperava que as digerisse bem.

— Como diz, mestre? — indagou por fim.

— É uma teoria... mas uma teoria que acredito que possa vir a ter gran­des probabilidades de sucesso, agora que a averigüei — começou o arqui­mago por dizer. — Combater O Flagelo fisicamente é impensável, como bem o sabes. Sem a Essência da Lâmina, o Aewyre não se equipara ao seu pai, que mesmo enquanto Lamelar conseguiu apenas vencê-lo com a minha ajuda e a de Sarea... se é que o que aconteceu pode sequer ser apelidado de uma vitória.

— E... de que forma implica ela um sacrifício?

— Viajei pela sombra do Pilar e deixei-me imergir nela — continuou Zoryan, sem se deixar interromper. — Foi arriscado da minha parte fazê-lo, pupilo. Eu sabia-o, e por essa razão não te disse o que ia fazer, para não ter que te mentir.

Allumno não manifestou qualquer agradecimento pela pretensa consideração do seu mestre, escutando-o em silêncio.

— A sombra ficou agitada quando Seltor espalhou a sua essência, o seu sangue pelo Pilar — prosseguiu o arquimago, conformado com a justifi­cável disposição do seu pupilo. — As almas dos Fadados que nela residem clamam pelo seu senhor, e enquanto eu naveguei por ela adentro... ocorreu-me uma semelhança entre mim e elas.

— Como assim, mestre? — inquiriu Allumno, tentando e falhando em suprimir o tom desconfiado da sua voz.

— Enquanto almas, deviam ter sido conduzidas ao domínio do seu respec­tivo deus, ou então sido absorvidas pelo Pilar quando da sua morte. Mas como sabes...

— Sim, a Dádiva Negra prendeu-os a Seltor, por isso os que morreram aglomeraram-se e formaram a sombra do Pilar ao longo dos anos — inter­pelou o mago. — Já me explicou isso tudo meses atrás, mestre. Por que razão é isso relevante agora?

— Porque pupilo, a minha situação e a das almas dos Fadados é seme­lhante. Eu devia ter-me fundido ao Pilar quando da minha morte, mas a minha alma permanece livre, graças à gema que portas — explicou Zoryan. — Os Fadados, por sua vez, permanecem na sombra pela crença no seu senhor, acreditam que um dia se unirão a ele... mas enquanto Seltor permanecer vivo, nunca serão mais que almas penadas no Pilar.

— Sim...? — disse Allumno, embora não estivesse a gostar do rumo que a conversa estava a tomar.

— Fogo, a única coisa que mantém a sombra no Pilar é a continuada permanência física de Seltor em Allaryia. Embora seja capaz de se manifes­tar no Pilar, como as suas ações recentes o demonstram, tanto quanto sei nunca fez uso do imenso poder latente na sombra criada pelas almas dos seus fiéis...

— Felizmente, mas continuo sem perceber como isso nos pode ajudar, mestre, nem de que forma implica um sacrifício de qualquer espécie.

— Estás mais impaciente, Allumno — não se absteve Zoryan de comentar.

— Tenho à minha espera um rapaz que viu o pai ser assassinado diante dos seus olhos, desesperado por o querer vingar mas incapaz de o fazer — quase rosnou Allumno, apontando para um ponto indeterminado do Pilar. — Ele tem o peso do mundo sobre os seus ombros, e o mínimo que eu lhe posso dar são esperanças, visto que não tenho respostas. Se o mestre tem alguma, então, por favor, partilhe-a comigo sem mais rodeios, porque teorias anímicas de pouco lhe servirão.

O arquimago fitou o seu pupilo com um olhar severo, pois embora compreendesse que tinha motivos para estar revoltado, o comporta­mento deste começava a bordejar o desrespeito, ainda que justificado pela angústia de Aewyre. Não era porém aquele o momento para uma repreensão, pois era essencial que Allumno compreendesse aquilo que estava em causa.

— Pois bem, eis o meu plano. Quero que arranques a gema, e assim que te encontres na presença de Seltor, quero que a quebres — disse Zoryan seca e sucintamente, cruzando os braços com serpenteantes fiapos de sombra.

As suas palavras tiveram o condão de por fim alterar a refratária expressão de Allumno, que ficou genuinamente boquiaberto, inicial­mente demasiado atordoado para sequer pensar em responder. Os seus lábios imateriais mexeram-se, como se estivesse a repetir o que o seu mestre dissera, mas o seu olhar incrédulo não se alterou.

— C-como...? — balbuciou, momentaneamente quase incapacitado de falar.

— Exatamente o que eu disse, pupilo — continuou Zoryan calma­mente. — Quero que arranques a gema da tua testa, e que a quebres quando ou se te deparares com O Flagelo.

— Mas mestre... isso...

— Privar-te-á definitivamente de qualquer contato comigo, sim. En­quanto a gema existir, permanecerei ancorado a esta existência, mas não mais seremos capazes de comunicar um com o outro. Uma vez separado da gema, estarás por tua conta.

Absolutamente siderado, Allumno nada disse.

— Assim que a arrancares, eu alojar-me-ei na sombra do Pilar, ao qual continuarei preso enquanto a gema estiver inteira — prosseguiu o arqui­mago num tom meramente factual. — Pelo menos até ao momento em que a quebrares. Aí sim, o Pilar não mais terá que chamar por mim, pois saldarei aquilo que lhe devo desde a minha morte, e a minha alma será dele.

Allumno tentava recuperar o seu severamente abalado discerni­mento enquanto Zoryan falava, mas não conseguiu fazer muito mais além de balbuciar.

— Mas... mestre... eu... eu não...

— Estás disposto a ouvir-me agora? — perguntou o arquimago seve­ramente, descruzando os braços ao tomar como uma resposta afir­mativa o contínuo tartamudear de Allumno. — Vais fazer isso tudo para conseguirmos aprisionar O Flagelo, pupilo.

— Aprisioná-lo...?

— Sim. Pelo que tu me dizes, Seltor é neste momento impossível de vencer em combate... a menos que confies que um golpe de sorte guie a Ancalach nas mãos do Aewyre?

Allumno fez que não com a cabeça.

— Eu vinha apenas apresentar-te isto como alternativa, mas ao que parece não temos mesmo outra escolha. Antes que O Flagelo decida agir pessoalmente, temos de tomar as providências necessárias.

— Sendo as providências necessárias arrancar esta gema da minha testa — recuperou Allumno momentaneamente, apontando para o brilho vermelho sobre os seus olhos —, e parti-la quando me encontrar na presença d’O Flagelo? Que espécie de plano é esse, mestre?

— Não estás a ouvir com atenção, Allumno, e estás a deixar-te levar pelas emoções. Ouve — disse Zoryan, estendendo ambas as mãos com fiapos de sombra agitando-se ao longo destas e dos braços, e pousando-as nos ombros do seu pupilo, cuja manifestação estremeceu com o contato das gavinhas de penumbra. — Não podemos vencer O Flagelo. A nossa única esperança é aprisioná-lo novamente, e rezar para que ele não torne a escapar. Seria provavelmente esse o resultado do combate dele com o Aewyre, caso ele se encontrasse em condições de enfrentá-lo.

— Muito bem... e aprisioná-lo de que forma? — perguntou Allumno, esforçando-se por ignorar os pedaços de sombra colados a Zoryan, que mais pareciam finos fios de piche vertidos em água.

— Uma vez que tenhas arrancado a gema, eu alojar-me-ei na sombra do Pilar. Quando a gema for quebrada, criarás um rasgão entre Allaryia e o Pilar. Se isso não o matar, então pelo menos enfraquecê-lo-á o suficiente para eu o atrair através dele para a sombra que por ele tanto anseia...

— Mas... um rasgão? Que conseqüências poderia isso ter? — ques­tionou-se Allumno. — Como quebrar a gema? E como ficaria Seltor apri­sionado dessa forma, se como o mestre diz ele vagueia à vontade pelo Pilar?

— É esse o sacrifício de que eu falava, pupilo. Enquanto ocupada, uma gema anímica é tão difícil de destruir como uma alma. Só um ser como Seltor o conseguiria fazer, ou uma arma como a Ancalach...

Zoryan não se delongou em explicações, e Allumno levou algum tempo a compreender aonde ele queria chegar.

— Mestre... — percebeu por fim. — Não me está a tentar dizer que...

— Temo bem que, a menos que de alguma forma consigas convencer Seltor a quebrar a gema por ti, terá de ser o Aewyre a fazê-lo.

— Mas o rasgão...

— Matá-lo-ia, sim.

— Mestre, como pode...?

— Percebes agora porque eu te fiz aquilo que fiz? — questionou-o o arquimago, não sem algum pesar na voz. — Mandar-te matar magos indiscriminadamente, sem qualquer motivo plausível além do fato de eu assim te instruir? Sacrifícios, Allumno — sentenciou. — Todos teremos de fazê-los.

— Não, o Aewyre não...

— Bem sei que o rapaz é como um filho para ti. Assim como tu o és para mim — confidenciou Zoryan, incapaz de apertar os ombros de Allum­no mas fazendo o gesto mesmo assim. — É por isso que não te posso pedir que o faças tu.

— Mas mestre, que espécie de plano é esse? Em que espécie de situação imagina que esse cenário seja sequer... seja sequer plausível?

— Allumno, tu próprio me disseste que não vês grande esperança na situa­ção — disse o equânime arquimago. — Estou apenas a providenciar-te uma solução. A única que aparentemente temos...

— Não... não! — recusou-se Allumno a acreditar, afastando-se de Zoryan. — O mestre não está a fazer sentido algum! Porquê arrancar a gema agora, quando nem sabemos do paradeiro de Seltor, nem Ul-Thoryn está ameaçada?

— Allumno...

— Porquê quebrar a gema, porquê o Aewyre a ter que o fazer?

— Allumno...

— E de que forma chegaremos perto d’O Flagelo para quebrar a gema diante dele? Já pensou nisso?

— Allumno! — bradou o arquimago, conseguindo com o tom da sua voz causar uma onda no Pilar, que reagiu como a superfície de um lago a uma pedra arremessada. Allumno também reagiu àquela que foi mais uma manifestação de Essência que um propagar de som, até porque a voz de Zoryan apenas se fazia ouvir na sua cabeça, e afastou-se involuntariamente do seu mestre, à volta do qual as sombras dan­çavam. — Ouça-me, Allumno...

O arquimago não procedeu logo, esperando antes para ver se o seu pupilo permanecia exaltado, após o qual retomou a fala num tom mais brando.

— Preciso que arranques a gema, já, agora, antes que possas mudar de idéias...

— Mudar de idéias, mestre? Ainda nem...

— Olha para mim, Allumno! — disse Zoryan, apontando para a sua face com uma gavinha de sombra enrolada no indicador. — Quanto tempo achas que temos até a sombra se espalhar por todo o Pilar? Quanto tem­po até os azigoth ruírem os seus alicerces? Quanto tempo até eu me ver impos­sibilitado de comunicar contigo, ou ser absorvido pelo Pilar numa qualquer calamidade?

Allumno foi surpreso pelo tênue tom de desespero na voz do seu mestre, que se estava evidentemente a agarrar com todas as forças àquela que era aparentemente a sua única idéia. Parecia estar tão deses­perado quanto o mago, mas, ao contrário dele, conseguira urdir um plano, por muito rebuscado e inconcebível que este fosse.

— Deves fazê-lo agora, Allumno. Se saíres daqui e mudares de idéias, posso não vir a conseguir persuadir-te a tempo — prosseguiu Zoryan. — É a única hipótese que temos. Não há outra. Uma vez com a gema não mais afixada a ti, deveras dá-la ao Aewyre, para que ele com a Ancalach a possa quebrar quando ou se vier a defrontar O Flagelo. Dessa forma, ainda que tenha de se sacrificar, pode ser que consiga aprisionar definitivamente o maldito.

Allumno não respondeu, esquecendo todos os ressentimentos que guardara para com o seu mestre, agora que se via confrontado com a possibilidade de o perder para sempre.

— Mestre... — disse. — É um sacrifício muito grande que me pede... por algo que pode nem funcionar.

— Bem sei, Allumno. Mas... eu estou cansado.

— Cansado?

— Cansado desta existência, pupilo — admitiu o arquimago. — A mi­nha hora chegou muito tempo atrás, e tenho vindo apenas a adiá-la indefini­damente.

Zoryan olhou com orbes vazios para a imensa extensão do Pilar sobre o ombro de Allumno, soltando mais um dos seus suspiros etéreos.

— Mais ainda que continuar o meu legado, assegurar-me de que Allaryia estava em boas mãos, e saber o que acontecera verdadeiramente ao Aezrel... o meu propósito era ver-te crescer.

Os olhos de ambos tornaram a encontrar-se, e um sorriso desenhou-se no semblante de Zoryan quando este viu a surpresa nos do seu pupilo.

— Sim, ver-te crescer e aprender, e tornares-te no homem que hoje és — concluiu, pousando-lhe novamente as mãos nos ombros imateriais.

— És o meu maior orgulho, Allumno. A única... coisa que eu acho que fiz verdadeiramente bem, embora me arrependa de muito pelo que te fiz passar. Os deuses sabem que não fui um mestre perfeito... muito menos o pai que eu desejava ser para ti... mas acho que te saíste muito bem pelos teus próprios meios.

Allumno não soube o que dizer e limitou-se a abraçar a manifes­tação de Zoryan, suficientemente ligado a ele para que tal gesto fosse possível entre dois seres imateriais. O arquimago retribuiu com igual sentimento.

— Tens de ser homem agora, Allumno — disse-lhe ao ouvido. — Tens de ser homem e fazer aquilo que deve ser feito.

— Mas Seltor... o Aewyre e a Ancalach... — balbuciou o mago, fazendo que não com a cabeça. — Porque não posso ser eu a fazê-lo? Eu posso empunhar a espada, posso...

— A Ancalach não te protege, como bem o sabes, e sem ela nunca te aproximarias o suficiente d’O Flagelo para partir a gema perto dele — disse Zoryan, afastando-se do seu pupilo sem contudo lhe largar os ombros.

— E se não funcionar, o que acontecerá à Ancalach num tal rasgão? — lembrou-se o mago. — Podemos perdê-la no Pilar, e aí sim, não teremos com que nos opor a Seltor caso ele não fique aprisionado...

— É um risco — reconheceu Zoryan. — Mas sem a Ancalach, o Aewyre nunca se conseguiria aproximar o suficiente de Seltor para tentar aprisioná-lo.

— E tem mesmo de ser ele, mestre? Eu...

— Não, Allumno. A menos que te ocorra algum subterfúgio, terá de ser o Aewyre a fazê-lo, a levar a gema para perto de Seltor e então quebrá-la com a Ancalach. Ele... certamente morrerá ao fazê-lo... mas pelo que te ouvi dizer, não julgo que o rapaz se importasse de fazer tal sacrifício para vingar o pai.

Allumno continuava a não acreditar na inevitabilidade do cenário que Zoryan lhe pintava, mas tão-pouco tinha vontade de contrariá-lo, sentindo que aquela cada vez mais parecia ser a última vez que iriam falar um com o outro.

— Vai tudo depender de ti, Allumno, mas eu confio em ti — assegurou-lhe o seu mestre, mas o mago limitou-se a abanar a cabeça.

— Eu... eu não sei se consigo, mestre. Não sei mesmo se consigo...

— Vais libertar-te da gema — disse Zoryan com tom peremptório. — E vais dizer ao Aewyre aquilo que deve ser feito, que terá de ser ele a levar a batalha a Seltor, tal como o seu pai o fez. Tens de fazê-lo, Allumno, pois se não fores tu, ninguém o fará, e Allaryia não terá qualquer esperança contra O Flagelo.

A verdade era dolorosa, e nem mesmo as duras palavras de Zoryan deixavam de o transmitir, mas o arquimago estava resoluto e decidido, e não se deixaria demover pelo desalento do seu pupilo.

— Faça-o, Allumno. Quanto mais... quanto mais esperares, mais difícil será para ti e para mim — disse, mexendo-se como se estivesse a abanar os ombros do mago.

— Não nos falaremos mais, mestre...?

— Não — respondeu Zoryan, abanando a cabeça. — Deixaremos de estar ligados. Continuarei a existir enquanto a gema estiver incólume, mas não mais conseguiremos comunicar um com o outro.

— E se algo acontecer, mestre? E se surgir algo com o qual eu não saiba...? E se o Aewyre...?

— Estás pronto, Allumno — garantiu-lhe o seu mestre. — Preparei-te tão bem quanto soube, não necessariamente para este momento... mas para uma altura na qual eu estivesse ausente e outros teriam de contar contigo. Leva a batalha a Seltor, pois de outra forma ele dificilmente se revelará até alcançar o que quer que tenha almejado.

— Mas mestre...

— Sabes o que eu sei, e aquilo que não sabes não te seria agora útil. Estás pronto, Allumno — vincou Zoryan. — Agora faça-o. Antes que a sombra se aposse de mim.

O mago levou algum tempo a dar-se conta daquilo que o seu mes­tre dissera, e do tom de voz contrito deste ao proferir as últimas palavras. Ao erguer a cabeça que estivera a abanar em desalento, viu o esforço nas etéreas feições de Zoryan, e como os fiapos de sombra que nele se agitavam pareciam estar a ficar mais excitados.

— Mestre...? — perguntou, a sua voz um apertado tom de imi­nente aflição.

— Desculpa, Allumno... não havia outra forma — explicou Zoryan. — Não havia outra maneira de ser conduzido à sombra uma vez que te tivesses livrado da gema... de outra forma, seria simplesmente absorvido pelo Pilar...

— Não...

— Liberta-te dela, Allumno. Faça-o agora e eu serei pouco mais que um vulto na sombra, incapaz de fazer mal a alguém — explicou o arquimago com um discreto tom de ameaça na voz. — Lá ficarei alojado, à espera de que a gema seja quebrada para poder aprisionar o meu... o senhor...

Zoryan debatia-se agora claramente, à medida que os fiapos iam crescendo e engrossando, alguns começando a tatear sofregamente na direção de Allumno, e a sua voz começava a alterar-se também ela ligeiramente, assumindo contornos mais sinistros.

— Faça-o, Allumno! Não esperes mais! — praticamente rogou o arquimago, tentando refrear os tentáculos de viscoso negrume que agora almejavam o seu pupilo. — Expele a gema! Livra-te dela, depressa!

Sentindo-se então verdadeiramente ameaçado pelas gavinhas de penumbra que o tentavam cercar, Allumno acatou por instinto as pala­vras do seu mestre, sem pensar nem se deixar deter pelo medo de per­der Zoryan. O fulgor vermelho na sua testa luziu com o ardor de uma pequena estrela escarlate, fazendo com que os tentáculos negros que lhe tocavam se encolhessem, mirrando, e então veio a dor que se fez sentir mesmo através da sua manifestação espiritual. Allumno gritou no opressivo silêncio do Pilar, contorcendo-se em agonia e com a face oculta e encandeada pelo cegante brilho vermelho proveniente da testa. Zoryan esboçou um esgar de dor, embora o lume escarlate não o afetasse, e disse as suas últimas palavras quando sentiu o chama­mento da sombra.

— Adeus, Allumno. Meu pupilo... — disse, ciente de que a sua voz esmorecia mesmo na cabeça do mago, que podia bem nem o estar a ouvir, agora que o elo entre ambos se fraturava. — Meu filho...

O Pilar explodiu então num silencioso clarão vermelho, que de seguida se propagou numa reverberação elíptica pela vazia imensi­dão fora, acabando por se desvanecer num difuso anel que persistiu como a pós-imagem de um relâmpago. Das manifestações de Allumno e Zoryan não restava qualquer sinal.

— ...berros do quarto... parecia morto...

Uma fresta branca horizontal cindiu a escuridão, inicialmente clara ao ponto de ferir a vista, forçando a um estreitamento da brancura que ameaçou mergulhar tudo novamente no negrume.

— ...janela estava fechada... vela acesa...

Vozes indistintas, uma nova tentativa de alargar a brancura, essa agora menos deslumbrante, mas ainda assim forte demais para per­mitir mais que um gradual desdobramento da abertura branca.

— ...de resto... nada...

Vultos que ganhavam forma, difusos a meio da leitosa ofuscação que afastava as trevas. Encontravam-se próximos, mas com uma fala emu­decida e movimentos indistintos. Com eles veio a sensação, uma dor surda que parecia entranhada nos ossos, primeira prova da existência dos quais foi a mão que surgiu a meio da brancura, parecendo estranhamente destacada da consciência que a sentia vagamente, e contudo inextricavelmente ligada a ela. A mão causou grande comoção num vulto em particular, que veio de bem longe na brancura ao encontro dela, tor­nando mais nítidas as suas cercanias a cada passo. Os vultos mais pró­ximos alvoroçaram-se eles também, tornando-se entretanto mais nítidos e revelando-se como sendo Lhiannah, Aewyre e Worick. A princesa tirou as mãos de cima dos ombros do guerreiro sentado, que desenclavinhava os dedos sobre os quais apoiara o queixo, enquanto Worick se limitou a descruzar os braços, todos ainda com as caras demasiado difusas para que nelas se reconhecesse qualquer expressão.

— Allumno! — exclamaram quase todos em uníssono, com Taislin a plantar-se aos pés da cama, e Aewyre a derrubar a cadeira ao erguer-se para se ajoelhar ao lado do leito, agarrando com força a mão do mago.

Ao fundo da gradualmente revelada sala distinguiram-se também Daveanorn e Thaddeo, que se apressaram eles também a vir a seu encontro, mais claros que o som das suas vozes, que continuavam a soar algo abafadas. Era Aewyre quem mais se fazia sentir, passan­do a ocupar todo o campo de visão de Allumno e apertando-lhe a mão com força, o que ajudou o mago a recuperar a plena consciência.

— A... Aewyre...? — crocitou com garganta seca, ouvindo a sua própria voz num tom algo abafado.

— Sim, Allumno, sou eu! — regozijou o abonançado jovem, chegando ao seu peito a mão do mago e contendo um soluço de alívio.

— Estás bem? — interveio Lhiannah, surgindo ao lado de Aewyre com o braço sobre os ombros deste.

— Eu...

— Por favor, dêem espaço ao conselheiro Allumno! — pratica­mente rogou Thaddeo, tentando chegar ao mago antes de Daveanorn, que não escondia o alívio que sentia ao ver Allumno mexer-se.

— Não te preocupes com a tua gema — disse Taislin, de braços esticados e mãos apoiadas sobre os pés da cama, da qual pendia inclinado para a frente. — Eu guardei-a.

— Hrunf. Quem mais tinha saudades de estarmos todos à volta de uma cama, à espera de que um de nós acorde? — perguntou Worick, não parecendo particularmente afetado pela situação, embora os inú­meros vincos da sua cara tivessem relaxado ligeiramente ao ver que o mago estava bem.

Os outros ignoraram o thuragar e Thaddeo, que teve de se meter entre Aewyre e Lhiannah, escusando-se respeitosamente enquanto os afastava para poder examinar Allumno.

— Com licença, lorde Aewyre — pediu, claramente constrangido com tanta gente à sua volta enquanto pegava delicadamente na cabeça do mago pelas têmporas. — Como se sente, conselheiro?

Allumno estava ainda demasiado aturdido pela torrente de sensa­ções que tomara os seus ainda dormentes sentidos de assalto, e não respondeu, mexendo apenas os olhos para olhar em redor enquanto o cirurgião lhe inclinava a cabeça de um lado para o outro. A testa de Allumno estava cingida por grossas ligaduras manchadas de sangue na fronte, algumas das quais lhe tapavam parcialmente os ouvidos, e havia um ligeiro inchaço no seu malar esquerdo, como se tivesse caído com a cara no chão.

— Como está ele, Thaddeo? — perguntou Aewyre, impaciente.

— Perdeu algum sangue, lorde Aewyre...

— Já sabemos. Eu escorreguei na poça — resmungou Worick.

— A gema estava parcialmente alojada no osso, e podem surgir complicações não imediatamente aparentes... — continuou o cirur­gião, habituado ao menosprezo do thuragar.

— A gema... — rouquejou o mago.

— Quantos dedos vê, conselheiro? — perguntou Thaddeo, erguendo indicador e médio diante da face de Allumno, que tentou tirá-los da frente.

— Ele está a delirar, Thaddeo? — perguntou Daveanorn em tom preocupado, olhando por cima do ombro de Aewyre.

— É difícil dizer, mas não poria de parte essa...

— Dá-me a gema, Taislin! — quase rosnou o mago, sobressaltando todos os que estavam à sua volta ao erguer o torso de rompante e esti­car o braço na direção do burrik, que por pouco não caiu de costas ao chão ao largar os pés da cama.

— Conselheiro Allumno, tenha calma! — pediu Thaddeo, de todos o que menos surpreendido ficou pela repentina explosão de movimento do mago.

— A gema, Taislin! Dê-me, já! — exigiu o mago de dentes cer­rados e com um brilho quase maníaco nos olhos, retesando de tal forma os dedos da mão que a exigia, que os tendões se viam salientes nas suas costas.

Surpreso e mesmo algo assustado, o burrik enfiou uma mão na sua nova túnica, remexendo apressadamente nela e retirando do seu inte­rior a escarlate jóia. Vendo o estado alterado em que Allumno se encontrava, não se atreveu sequer a aproximar-se dele, preferindo antes atirar-lhe a gema, que o mago apanhou em pleno ar, agarrando-a ciosamente com ambas as mãos como um frágil e precioso ovo.

— Mestre... — sussurrou, embaciando a jóia com o seu hálito, fazendo que não com a desalentada cabeça.

— Allumno, o que foi? — quis Aewyre saber, tão confuso quanto os outros ante tão bizarro comportamento.

— Perdi-o... perdemo-lo todos — lamentou-se o mago em res­posta, embora não parecesse ter ouvido. — Ele se foi...

— Quem? O outro mago? — indagou Worick.

— O Zoryan?! — exclamou Aewyre, agarrando o ombro de Allumno para lhe chamar a atenção. — O que aconteceu ao Zoryan?

— Ele... ele...

À medida que se ia lembrando das suas últimas palavras que trocara com o seu mestre, mais dificuldade tinha em explicar o que sucedera ao certo. Olhando para Aewyre, o mago praticamente perdeu a voz, recordando-se de súbito do sacrifício que Zoryan lhe assegurara ser necessário. Sem que Aewyre percebesse porquê, Allumno começou a abanar a cabeça num ato de negação, e crispou os dedos de uma mão na gema para com a outra agarrar a de Aewyre com força.

— Ele... ele disse-me... — tentou em vão explicar, mas as palavras teimavam em sair-lhe, sobretudo agora que olhava diretamente para o seu protegido.

— Disse-te o quê? Que estava farto da tua testa suada? — indagou Worick. — Desembucha, homem!

— Pára com isso, Worick! — repreendeu-o Lhiannah. — Allumno, o que se passa?

Por mais que tentasse, o mago não o conseguia dizer, e ficou sim­plesmente a apertar a gema com força na sua mão enquanto olhava revezadamente para as caras de todos os que o rodeavam. Sentiu assomar-se-lhe no peito uma sensação de pânico que o fez suar fria­mente, oprimido pelas expressões inquiridoras das faces em seu redor e contudo incapaz de satisfazer a sua curiosidade, pois ele próprio não aceitara ainda a resposta. Gaguejando e fitando alternadamente os companheiros, conseguiu apenas deixar Aewyre mais preocupado ainda, e o jovem olhou para Thaddeo em busca de res­postas.

— Não poria de parte um delírio, lorde Aewyre — disse o cirur­gião, encolhendo os ombros. — Se porventura rachou o crânio, pode bem ser um sintoma de...

— Mas afinal o que te aconteceu, mago? — interrompeu Worick. — Estavas estendido no chão e com um buraco na testa. Alguém a arrancou, ou foste tu a...

— Do pouco que vi do ferimento, antes de ter de tratá-lo — inter­veio por sua vez Thaddeo em defesa do seu paciente —, não há quaisquer sinais de violência ou extração forçada na pele da testa...

— Irra, então explica-nos, mago! Que raio aconteceu aqui para nos acordares a meio da noite com um berro e ficares nesse estado?

Allumno continuou a recusar-se a responder, embora nada na sua expressão desse a entender que o fazia por qualquer outro motivo além do estado de choque no qual evidentemente ainda se encontrava. Ouviu-se então um outro crocitar, este contudo não proveniente da garganta seca do mago, mas da janela aberta do quarto. Allumno foi liberto do peso das dezenas de olhares quando todos se viraram para trás para a origem do inesperado ruído, aparentemente proveniente da janela aberta. Nela encontrava-se um corvo numa pose atenta, com a luz do sol do meio-dia a luzir-lhe nas penas pretas, tingindo-as em tons de azul, e com os olhos negros desprovidos de alma a perscrutarem os presentes.

Nada nele destoava de uma comum ave da sua espécie, mas havia algo de funesto na sua pose imóvel, na forma como mantinha quieta a cabeça de olhos postos em nenhum dos companheiros em particular, e ainda assim parecendo que apontava para todos com o bico como o condenador dedo da própria morte. Não emitiu nenhum outro som, nem se mexeu com a atenção que agora fora para ele direcionada, mais seguro que qualquer pássaro tinha o direito de se sentir numa sala cheia de pessoas. Os companheiros sentiram-no, apercebendo-se de algo de profundamente antinatural no corvo, sem que contudo conseguissem perceber de que se tratava ao certo, e todos ficaram sim­plesmente estarrecidos a olhar para a ave, até que Worick se mani­festou.

— Terá... sentido o cheiro do sangue? — alvitrou, mais nervoso que o que deixou transparecer. — Devia estar à espera de carne de mago morto...

Ninguém respondeu nem tirou os olhos do corvo, e assim se pre­paravam todos para permanecer, não sentisse então Lhiannah os dedos de Aewyre apertarem-lhe o braço com força. A princesa virou a cara para o jovem, e viu que a face deste estava lívida e estarrecida, com olhos arregalados de terror que o aperto no braço de Lhiannah trans­mitia.

— Aewyre, o que foi...? — ciciou esta, como se temente de assus­tar o corvo.

Os outros ouviram a voz da arinnir e olharam eles também para Aewyre, que parecia empalidecer mais a cada instante que passava, formando palavras mudas com o movimento dos seus lábios.

— O quê? O que disseste? — perguntou Daveanorn, sem tirar os olhos do corvo.

— Mata-o... — quase suplicou o jovem num tom quase inaudível.

— Como?

— Mata-o! — vociferou então o guerreiro, fazendo com que a cabeça do corvo se mexesse pela primeira vez, olhando claramente na sua direção. — Taislin, mata-o!

Embora tomado de surpresa, o burrik não hesitou, sentindo es­poletados os instintos protetores originados pela sua promessa de que nada mais aconteceria aos seus amigos. Tirou um punhal de arremesso de uma das pregas da sua túnica e arrojou-o contra o corvo, que crocitou ruidosamente ao ver a lâmina guinar na sua direção. Exibindo o interior vermelho do seu bico hiante, a ave como que amaldiçoou os companheiros com um último crocitar antes de bater violentamente com as asas na estreita janela para retirar, tendo a sorte de o punhal de Taislin embater com o pomo na quina superior da abertura na parede. A ave escapou-se numa confusão de penas negras e voou janela fora, e Aewyre empurrou os seus companheiros para fora do seu caminho, galgando com duas passadas a distância que o separava da abertura, como se tencionasse saltar muralha fora e ir no seu encalço. Deteve-se todavia diante da janela, vendo através dela o já distante corvo a sobrevoar os telhados alaranjados de Ul-Thoryn, crocitando repetida e ominosamente, quase como se estivesse a rir.

De mãos plantadas na parede, o jovem curvou os dedos tensos, arranhando-a enquanto via o vulto de asas negras desaparecer de forma quase petulante no horizonte. Arquejava como se tivesse apanhado um grande susto e, quando Lhiannah lhe agarrou pelos ombros, virou-se para ela de rompante, sobressaltando a princesa com a brusquidão do gesto.

— Deuses, não... — disse. — Não ele... não agora...

— Aewyre, mas o que foi? O que se passa? — perguntou Lhian­nah, ela também enervada com toda a situação.

— Culpa... é ele — respondeu o guerreiro, olhando para trás por cima do ombro e em redor do quarto. — Ele vem aí.

— De quem é a culpa? — perguntou Taislin, tão perplexo quanto os restantes companheiros.

Aewyre não respondeu, levando antes as mãos à cabeça, abanando-a de punhos cerrados com os seus cabelos entre os dedos. Os seus companheiros olharam-no com ar preocupado, assim como Daveanorn, e mesmo Allumno recuperou o suficiente para esquecer brevemente a sua situação, tentando perceber o que perturbara o seu protegido de tal forma.

— Aewyre... — disse Lhiannah novamente, agarrando-o pelos pulsos e baixando-lhe as mãos. — O que foi? Era só um corvo...

— Não, não era... a Culpa... o Culpa vem aí — balbuciou o jovem, sentindo o coração tão apertado como o sentira no topo do torreão do baluarte da Cidadela da Lâmina, quando Kror por pouco não o matara com a sua conivência. As memórias da sensação de estar completa­mente indefeso e resignado com o seu destino aterravam-no agora, e viu-se incapaz de fazer algo mais além de tartamudear e abanar a cabeça, ignorando as palavras dos seus amigos, que lhe soavam quase emudecidas aos ouvidos.

Culpa vinha aí, e por muito que tentasse, não conseguiu deixar de sentir que tudo estava perdido.

 

A aia e o pajem caminhavam apressadamente pelos corredores do palácio, seguidos pelos pesados passos da guarda regencial de Allahn Anroth. O rapaz era praticamente arrastado pela mão, olhando para a frente e para trás com olhos assustados enquanto a rapariga lhe ia pedindo indicações que não sabia dar ao certo. Encontravam-se nos pisos inferiores do palácio, uma área que o pajem não tinha por hábito freqüentar, mas não tinha como dar a entender à aia que estava a apontar aleatoriamente para corredores de cada vez que esta lhe aper­tava e puxava a mão.

Devia saber mais que aquilo que se lembrava, contudo, pois a cada esquina que viravam, os seus passos eram seguidos pelos guardas que vinham no seu encalço, o que evidenciava alguma noção de onde se encontravam, ainda que subconsciente. Não foi senão quando a própria aia tomou a iniciativa de o puxar para dentro de um escuro recesso entre duas estátuas que os dois pararam, aguardando a passagem dos guardas enquanto se escondiam de forma cúmplice, abraçados um ao outro. Esperaram alguns tensos momentos, durante os quais o pajem mera­mente sentiu as vibrações do caminhar dos guardas arnesados, que cedo se viram passar apressadamente como um grupo de seis figuras reves­tidas de aço que mal se conseguiam distinguir, de tão açodados que eram os seus passos. Estes desapareceram tão depressa quanto haviam surgido, e os ruídos das suas passadas não tardaram a ser apenas um eco vindo do fundo dos distantes corredores que levavam às masmorras.

A aia deixou as costas descaírem contra a parede, olhando para cima e suspirando de alívio, enquanto o pajem ficou na mesma hirta posição que a proximidade da rapariga sempre lhe causava. Para não variar, não percebia quais as suas intenções, mas deixara-se arrastar, mesmo sabendo que estavam a cometer uma infração. Lorde Daveanorn dera-lhe a entender que não devia sair dos seus aposentos, e, pela sua linguagem corporal, fora-lhe evidente que o paladino estava deveras perturbado, mas não conseguira transmiti-lo à aia, que viera busca­do ao quarto no maior secretismo, ela também evidentemente com medo de ser apanhada. O pajem estava à espera de Smerunda, que tinha ficado de lhe transmitir as instruções de forma mais detalhada, mas fora arrancado dos seus aposentos e não mais parará de correr des­de que a aia o puxara pela sua porta fora.

— Desculpa... esta confusão... — sussurrou a ofegante rapariga, abanando as mãos diante da cara. — Não estava à espera... de que houvesse tantos guardas nos corredores... a estas horas...

Ofegando ele também, o pajem limitou-se a fazer que sim com a cabeça, sem sequer se preocupar em ler os gestos da rapariga para ten­tar descortinar o que esta queria dizer.

— Ah, é verdade... — lembrou-se esta. — Tu não és só mudo, pois não? Também não consegues ouvir o que te digo, não é?

O pajem não percebeu o que ela queria dizer, mas pelo alinhamento das sobrancelhas da aia, deduziu que esta esperava uma resposta nega­tiva, e abanou a cabeça de devido modo.

— Pois, foi o que me disseram... — explicou a rapariga, aprovei­tando para espreitar para fora do recesso, confirmando que ninguém se encontrava nem se aproximava do corredor em que se encontravam. — Mas mesmo assim... gosto de falar contigo, sabes?

Aparentemente, não era esse o caso, pois o pajem ficou à espera de mais pistas antes de responder.

— Eu. Gosto. De. Falar. Contigo — reiterou a rapariga, desta vez por meio de gestos, acabando com o dedo no peito do pajem, que arqueou as sobrancelhas e ergueu ligeiramente o queixo num gesto de compreensão.

— É que sabes, as outras dizem sempre que eu falo demais, mas contigo sinto que sou ouvida, que tu me percebes, sem que fiques farto com isso, porque sabes, é muitas vezes por isso que eu fico calada, como já hás de me ter visto durante os banquetes, não falo muito, porque sei que muitas pessoas já não me podem ouvir, mas como tu consegues perceber-me sem me ouvir, por isso entre nós isso nunca chega a ser um problema... percebes?

Era evidente que o pajem não tinha como perceber, mas acenou ainda assim afirmativamente com a cabeça. A aia sorriu e afagou-lhe o braço, descendo para a mão, que agarrou num gesto cúmplice.

— Tenho um bocado de medo desta situação toda, sabes? — con­fessou, fitando o pajem diretamente mas olhando alternadamente pelo recesso fora. — Primeiro temos de ficar presos no palácio, agora dizem-nos que temos de nos preparar para sair daqui, e talvez mesmo da cidade. Os guardas não disseram a ninguém o que se estava a passar, e acho que eles próprios não sabem, porque não pareciam assustados.

A aia olhou novamente para fora do recesso, desta feita cuidadosa­mente, baixando então mais ainda o tom de voz.

— Há quem ache que não passa de um plano do teu senhor Aewyre para matar o que resta da corte de Lennhau, e muitos estão assusta­dos — revelou, e os seus grandes olhos castanhos pareceram crescer mais ainda. — Eu não sei, quer dizer, lorde Aewyre pareceu-me bastante simpático quando o conheci, mais que lorde Aereth, pelo menos, e não acho que a princesa Lhiannah o deixasse fazer algo de mal... Lembras:te da princesa Lhiannah, não te lembras? Ela é muito bonita e muito corajosa, e lorde Aewyre gosta dela, por isso não acho que ele queira fazer mal à minha gente, mas mesmo assim acho toda esta situação um pouco estranha, sabes.

Encurralado com uma rapariga faladora em condições de parca luminosidade, o pajem sentia-se verdadeiramente desorientado, sobretudo quando a macia proximidade da aia lhe começou a causar um formigueiro na zona do baixo-ventre, do qual esta não se pareceu dar conta.

— Nós nem devíamos estar aqui, se calhar a princesa Lhiannah até está à minha procura — imaginou a rapariga. — Ela acolheu-me, sabias? Sou agora a aia dela, mas não tenho conseguido fazer muito por ela, já que ela quase não tem parado no seu quarto, e durante o dia praticamente não a vejo. Só anteontem consegui arranjar-lhe o cabe­lo de manhã, mas depois só a tornei a ver à noite, quando já estava a dormir, mas ela não se importou e foi-se deitar também, disse-me que não me preocupasse... bem, mas agora estou preocupada, como podes imaginar.

O pajem não podia, mas ainda assim anuiu e deu consigo a aper­tar a mão da rapariga, que pareceu reconfortada pelo gesto e lhe sorriu.

— És muito querido, sabes? Pena que não consigamos ver-nos mais vezes, mas as coisas realmente têm andado complicadas no palácio, não é?

Sem nada a acrescentar, o pajem anuiu simplesmente, assustando-se contudo quando a aia lhe tocou no braço com a outra mão, afa­gando-o com os dedos enquanto o fitava profundamente nos olhos. O formigueiro intensificou-se, e o rapaz apercebeu-se de que as suas caras se aproximavam mais e mais, retesando-lhe todo o corpo como o de um animal em plena queda numa armadilha.

Não chegou a cair, todavia, pois ambos ouviram ruídos metálicos ao fundo do corredor, e aquilo que pareciam ser grunhidos. Os dois detiveram-se, virando as caras para a entrada do recesso e olhando de seguida um para o outro enquanto tentavam perceber de que se tratara o estranho barulho. Ouviram então novos passos vindos na sua direção, e encolheram-se instintivamente no fundo do recesso, abraçados um ao outro com medo de que os guardas viessem à sua procura. Não que tivessem verdadeiramente algo a temer, embora o pajem estivesse ciente de que estava a transgredir as instruções de Daveanorn, e a aia tivesse sido ordenada a permanecer nos aposentos de Lhiannah. Era a rapariga quem estava mais assustada, não fazendo parte da corte de Ul-Thoryn e ainda traumatizada pelo que acontecera aos seus no ban­quete do aniversário da princesa Iollina, enquanto o pajem por sua vez simplesmente não gostava de claudicar, muito menos ser apanhado a fazê-lo.

No entanto, não parecia ser neles que os guardas estavam interes­sados, pois os dois falavam de prisioneiros que teriam de ser libertos, estranhando evidentemente as instruções que lhes haviam sido dadas. Ambos passaram pelo recesso, indo aparentemente transmitir ordens adicionais ao grupo que os precedera, mas detiveram-se abruptamente, como se tivessem visto alguma coisa. O pajem e a aia tentaram fundir-se à parede, certos de que os guardas se tinham apercebido da sua presença, mas cedo compreenderam que eram os ruídos metálicos ao fundo do corredor que lhes estavam a chamar a atenção, mais estriden­tes que antes. Os dois jovens viram os cotos das partasanas erguerem-se, como se os guardas as empunhassem antes de por fim avançarem na direção dos ruídos. O pajem e a aia permaneceram abraçados um ao outro, sentindo eles também a tensão acrescida pela sensação de que algo estava errado, arrepiados pelo retesado som de aço a roçar em aço dos arneses.

A tensão explodiu então em violenta e ruidosa ação, quando selvá­ticos berros se fizeram ouvir no corredor, no qual ecoaram os sons do aço, seguidos de berros roucos e ruídos de violência. Paralisados pelo terror, o pajem e a aia ficaram imóveis enquanto ouviam tudo, agarrando-se com força um ao outro quando um corpo metálico clangorou no chão, provavelmente tombado pelo baque rombo que o antecedeu.

Outros tantos embates fizeram-nos estremecer durante uma rápida troca de truculentos golpes, essa interrompida por uma inesperada­mente conhecida voz.

— Esperem! Deixem esse vivo! — disse esta, e o seu tom fez com que a aia arquejasse em seco, fitando o pajem com o branco dos olhos bem à vista.

A violência cessou momentaneamente, e então ouviu-se outra voz, desconhecida mas não menos aterradora, com o tom áspero de cascalho despejado.

— O que queres dele, bobo? — perguntou, arranhando os ouvi­dos da aia e do pajem, que evidentemente sentiu mais do que ouviu a voz.

— Fazer-lhe umas perguntas, só isso.

Movida por uma mórbida curiosidade que se sobrepôs ao seu sentido de auto preservação, a aia afastou-se do pajem e aproximou-se cuidadosamente do canto do recesso. Assustado, o rapaz não reagiu, permanecendo imóvel como um animal atento ao mínimo ruído.

— Não temos tempo para isso! Alguém pode ter ouvido...! — insistiu a áspera voz no momento em que a aia, de costas coladas à parede, engoliu em seco e ousou espreitar além da esquina.

Quem estivesse a olhar veria apenas um grande olho esbugalhado rodeado de empalidecida pele a surgir receoso da parede, mas naquele momento todos os presentes estavam concentrados naquele cuja voz aterrara a rapariga: Dilet encontrava-se sentado sobre o peito de um guarda caído, com braços apoiados sobre os joelhos enquanto atirava um dos seus punhais de uma mão para a outra. Usava uma grotesca máscara sorridente e com chifres recurvos em lugar dos seus habituais barretes, mas havia algo na sua postura e na voz que era inconfundí­vel. A aia arquejou ao vê-lo, plantando as mãos na parede e sentindo-as deslizar por ela com o suor que estas vertiam, suor esse causado pela torrente de memórias do sangrento aniversário da princesa Iollina. A cruel criatura parecia tão divertida como naquela fatídica noite, uma impressão apenas reforçada pela máscara de olhos bem abertos e narinas de ferro fremente, como se estivesse deleitado com o cheiro a sangue que pairava no ar — o sangue de um atarracado humanóide arnesado, que jazia no chão com a ponta de uma partasana cravada na garganta — e o sangue do segundo guarda, cujo elmo fora fendido pelo bico recurvo de um martelo, que nele deixara um buraco do qual escorriam sangue e outros fluidos. A aia não reconheceu os humanóides que os cercavam como thuragar, muito menos conseguiu conceber a identidade da horrenda criatura que empunhava uma des­medida maça com quatro afiados rebordos, e cuja face era uma carantonha saída de um pesadelo. Foi incapaz de conter um baixo e agudo gemido de abjeto medo, que mesmo de boca fechada lhe escapou da garganta, e duas cabeças revestidas de elmos com visores bicudos viraram-se na sua direção.

A aia gritou então, sentindo-se trespassada pelo ódio que nem mesmo as viseiras de aço conseguiam ocultar, e que lhes vertia pelas frestas dos respiradouros. Agindo sem pensar, arregaçou as saias e lançou-se a correr pelo corredor fora, deixando para trás o pajem, que contudo não tardou a ir em seu encalço. Os humanóides arnesados fizeram o mesmo, sem esperarem sequer pelas ordens do ser de cara mutilada que devia ser o seu líder.

— Sim, vão atrás dela. Fruam das mulheres bonitas dos humanos, e essas coisas todas — disse Dilet, dispensando a presença de todos com um gesto da mão livre.

Othragon ainda lançou um perigoso olhar ao bobo com os seus olhos injetados de sangue, fungando de raiva das fossas nasais expos­tas, embora a sua expressão de dentes perpetuamente arreganhados não se alterasse. Ao ver que os seus homens se lançavam em perseguição como cães danados, sentiu ele também o vermelho frenesi desenca­deado pelos corpos dos guardas amassados dentro das suas próprias armaduras pelos martelos dos thuragar. Rosnando algo em advertên­cia, o Aesh’alan empunhou então com ambas as mãos a sua enorme maça de rebordos curvos, e foi atrás dos seus guerreiros, invetivando a raça humana com a sua estentórea voz, decidindo que acabavam ali todas as cautelas e que era chegada a hora do massacre. Dilet ficou a olhar para os thuragar em perseguição, ignorando o guarda cuja cabeça tinha entre as pernas, e cujos olhos arregalados estavam fitos na ponta da adaga do bobo, com o branco destes bem visível mesmo através da viseira da barbuda. Dilet devolveu-lhe a sua atenção apenas quando Othragon desapareceu atrás de uma esquina, a expressão da sua más­cara forjada num sorriso rasgado, e inclinando a cabeça para o lado num gesto que fez com que as dobradiças desta rangessem ligeira­mente.

— Desejas misericórdia? — perguntou, oscilando a ponta da adaga diante da cara do guarda, que a seguiu com os olhos de pupilas redu­zidas a dois pontos.

— P-por favor... — suplicou este, mal se atrevendo a anuir. Era um homem novo, e tinha a espaldeira amolgada por um golpe de mar­telo, que provavelmente lhe deslocara o ombro ou uma clavícula, e bagas de suor pontilhavam-lhe a pele que a viseira da barbuda deixava entrever.

— Então só preciso de que me digas uma coisa: onde está lorde Aereth? — perguntou Dilet, deixando a lâmina da sua adaga ser lambida por filamentosas línguas de sombra, que sibilaram como minúsculas víboras na cara do guarda. Este arfou de medo e inclinou a cara ligeiramente para trás, olhando a arma quase sobre os malares.

— N-nas masmorras... na ala oeste... — tartamudeou o jovem guarda com uma careta de dor e medo. — Por favor... o m-meu ombro...

— Ah, sim. Vamos já tratar disso — disse Dilet, enfiando-lhe então a adaga por entre a viseira. O guarda contorceu-se com um sur­preso espasmo, roçando pelo chão as placas do seu arnês, mas cedo parou de se mexer, jazendo numa dobrada pose com sangue a escorrer-lhe da nuca. Remexendo um pouco com a lâmina no interior da órbita do guarda, Dilet fez um gutural ruído intrigado, olhando para cima como se estivesse a procurar algo enquanto escarafunchava com a ponta da adaga. Infrutífero na sua busca, acabou por encolher os ombros e levantar-se, limpando a arma à palma de couro da mano­pla do morto, em cuja couraça deu ainda umas palmadinhas de reconforto.

— Eu sei, deveras misericordioso da minha parte, poupar-te àquilo que os thuragar te iriam fazer — disse. — O Othragon ter-to-ia feito com as pontas daqueles dedos salsichosos de unhas sujas.

Satisfeito, murmurou uma melodia para consigo enquanto se dirigia novamente às masmorras com um passo gingão, saltaricando um pouco enquanto o fazia.

— ...então e já pensaste usar isso em teu proveito? — sugeriu Worick a meio do nervoso silêncio que se fazia sentir nos aposentos de Allumno. Tinham acabado de regressar da sala de audiências, onde Aewyre convocara um conselho de emergência a recomendação de Daveanorn. Por vontade do guerreiro, teria simplesmente ordenado a evacuação do palácio na hora, mas o velho paladino convencera-o a ao menos fazê-lo em cooperação com os conselheiros e afins represen­tantes da corte. O resultado fora praticamente o mesmo, pois nenhum manifestara grande oposição às sugestões de Aewyre, que a corte de Ul-Thoryn em grande parte ainda temia devido aos recentes eventos.

— Hum...? — disse este, absorto nos funestos pensamentos que teimavam abandoná-lo, pesadamente sentado numa cadeira com cotovelos sobre os joelhos e queixo enterrado nas mãos. Lhiannah encontrava-se ao seu lado, afagando-lhe os ombros

— O drahreg — explicou o thuragar. — Disseste que esse... Culpa... te ia levando ao suicídio, e que o fez a outros.

— Sim.

— E... é do teu interesse que o drahreg se suicide, não é? — pros­seguiu Worick, olhando para Allumno em jeito de pedido de con­firmação. O mago estava encostado à parede, agarrado ao seu cajado com ambas as mãos, e limitou-se a piscar os olhos ao thuragar, falhando em perceber o que dele era esperado. Tinha a testa vendada com uma ligadura sangrenta, e parecia estranhamente absorto. — Irra, mas está tudo a dormir? Deixa o drahreg como isco lá fora com a Ancalach, deixa que esse Culpa faça com que ele enfie os alfanges na barriga, torna-te um Lamelar e corta-o às postas. Vais-me dizer que não pensaste nisso?

Aewyre esfregou os malares com os dedos, batendo de seguida com as mãos nos joelhos ao levantar-se e cruzá-las atrás da nuca, começando a andar em círculos no quarto.

— Sim... quer dizer, mais ou menos... — admitiu. — Ele vem atrás de mim, mas quem quer que esteja no caminho dele também é afetado. Por isso é que quero evacuar o palácio.

— Pronto, evacuas o palácio e deixas o drahreg numa bandeja na praça mais próxima. Qual é o problema?

— O problema, Worick, é que... — hesitou o guerreiro, suspi­rando e deixando os braços cair, encostando um deles à parede perto da janela. A noite caíra, e o vento soprava com uma força que os dias anteriores não tinham deixado prever, ameaçando chuva. — O pro­blema é que eu não sei se o Culpa pode ser vencido assim. E o pai do Seltor, mas a Ancalach não me protegeu dele, e a Essência da Lâmina quando muito só me ajudaria a matar-me mais depressa assim que ele me dirigisse palavra.

— Então e se não o deixasses dirigir-te palavra? — sugeriu Taislin num invulgarmente sério tom. Desde que sentira que os seus amigos podiam estar em perigo, o burrik assumira uma postura à qual os res­tantes companheiros decididamente não estavam habituados. — Apa­nhá-lo a jeito, emboscá-lo com besteiros, um trabuquete?

Aewyre sorriu à parede, abanando a cabeça.

— Ele apareceu no cimo do torreão da Cidadela da Lâmina. Caiu dela, e agora está de volta — explicou, virando-se novamente para os seus amigos. — Nem sei onde ele pode aparecer, se sequer precisa de portas ou se consegue simplesmente surgir perto de quem se sente culpado... e acreditem que todos nos sentimos por alguma razão. Até tu, Worick.

O thuragar não objetou, limitando-se a encolher os ombros.

— Era uma idéia. Qual é a alternativa? Fugires dele e deixá-lo perseguir-te por Allaryia fora?

Aewyre não respondeu, sem qualquer alternativa a apresentar, e ficou-se por um abanar da cabeça. Allumno afagou a ligadura que cingia a sua, tentando afetar o ar mais calmo possível a meio do em tão má altura chegado revés. Não bastava ter de contemplar sacrificar Aewyre para os salvar a todos d’O Flagelo, como agora corria o risco de o perder antes de ter sequer tomado qualquer decisão, decisão essa que tardava a chegar de qualquer forma. Raramente se sentira tão deses­perançado e desprovido de idéias ou mesmo hipotéticas soluções, e logo agora que Aewyre e os outros companheiros dele mais precisavam.

— Eu... vou para a biblioteca — acabou por dizer, afastando-se da parede e tirando algumas mechas de apreensivo cabelo da sua liga­dura.

— Para a biblioteca? — gralhou Aewyre.

— Sim. Tentar... tentar saber um pouco mais... acerca de Culpa.

— Mal te agüentas de pé, mago. Para que é que te vais cansar? — perguntou Worick, dando mostras de rara preocupação com Allumno, talvez ciente de que em breve iriam precisar dele.

— Eu leio sentado — respondeu o mago secamente.

— Eu ainda acho que o devias emboscar com uns trabuquetes — insistiu Taislin, interrompendo a troca de palavras.

Aewyre sorriu um sorriso de pouca dura, fungando divertidamente com a invulgar belicosidade do burrik, de todos o mais disposto a encarar a ameaça de Culpa.

— Sim, deixamos o Kror amarrado num pátio como isco, e espe­ramos que o Culpa chegue para depois lhe atirarmos uns quantos pedregulhos para cima — imaginou o guerreiro, cruzando olhares com Lhiannah, que forçou ela também um sorriso que não sentia verda­deiramente.

— A mim parece-me uma boa idéia... — murmurou o pertinaz burrik.

— Antes do que quer que seja, temos de evacuar o palácio — con­cluiu Aewyre. — Eu já vi aquilo que Culpa pode fazer a um edifício cheio de gente, e este palácio fede a culpa e arrependimento. Seria um massacre se ele cá entrasse e virasse as cortes uma contra a outra, e os guardas contra quem estivesse mais próximo deles. Com ou sem trabuquetes, imagino que ele seja até capaz de nos virar uns contra os outros antes de o apanharmos de surpresa... e nem sei se ele pode ou não ser verdadeiramente morto...

A entrada de rompante de Daveanorn no quarto sobressaltou todos os presentes, que chegaram mesmo a levar as mãos às armas, princi­palmente Taislin, que se virou para a porta com ambos os punhais desembainhados antes que o paladino tivesse sequer entrado.

— Aewyre...!

— Daveanorn! O que foi? — perguntou o jovem com o coração aos pulos, hirto numa posição acocorada a meio caminho de Ancalach, que jazia embainhada a um canto.

— Aewyre, estamos a ser atacados! — avisou Daveanorn de espada desembainhada.

— O quê? Quem... como?! — disseram os companheiros em alar­mado uníssono.

— Alguém entrou no palácio... são vários... guerreiros arnesados...! — ofegou o paladino, que evidentemente já tivera de lutar, a julgar pelo sangue na sua espada.

— Lhiannah, fica aqui! — praticamente ordenou Aewyre, de todos o que mais rápido reagiu, correndo ao canto dos aposentos para pegar na bainha de Ancalach e desembainhá-la enquanto se dirigia à porta.

— Os outros, venham comigo!

O jovem não esperou, nem sequer aguardando pela resposta de Daveanorn, que se viu forçado a segui-lo assim que Aewyre saiu porta fora. Lhiannah não teve tempo de contestar, limitando-se ape­nas a ignorar as palavras do guerreiro e indo atrás de Worick, Taislin e Allumno, que foram no encalço de Daveanorn com mais ou menos presença de espírito. Aewyre não se deteve por nenhum deles, fazendo ouvidos moucos às palavras de advertência de Daveanorn e aos pru­dentes apelos de Allumno. Chegara finalmente algo que podia cortar e trespassar com Ancalach, algo com o qual podia lidar e que não transcendia as suas capacidades físicas, algo para o qual não teria de consultar a opinião de ninguém. Apenas ele, um adversário, e a sua espada entre ambos. Vinda numa altura de tamanho desalento, a sim­plicidade do inesperado ataque ao seu próprio palácio teve em Aewyre o efeito oposto ao que seria de esperar, e o jovem lançou-se corredor fora numa arrebatada corrida sedenta de sangue e aço.

 

— Lorde Aereth...? — perguntou Dilet em voz alta à porta da ala oeste das masmorras, inclinando-se por ela adentro e olhando para o teto, atento ao mínimo som.

O silêncio pétreo do corredor fê-lo encolher os ombros e entrar, cantarolando guturalmente para consigo enquanto olhava em redor para as impecavelmente asseadas galerias iluminadas pelo lume de tochas recentemente acendidas. A ala parecia estar vazia, o que até fazia sentido, dado o seu notório ocupante, e Dilet começou a ave­riguar despreocupadamente cada porta, espreitando para o interior enquanto perguntava por lorde Aereth, como se estivessem os dois a jogar às escondidas. Sem quaisquer pressas, e ignorando por completo os distantes ruídos metálicos de um confronto, o bobo foi espiando cada cela à vez, chamando suavemente por Aereth enquanto brincava com o punhal, girando-o na mão. A falta de uma resposta não o demo­veu, pois duvidava de que o guarda tivesse encontrado uma réstia de coragem às portas da morte e lhe tivesse dado falsas direções para proteger o seu senhor. Tamanha nobreza era inexistente entre as pare­des de Allahn Anroth, como Dilet bem o aprendera nos anos que passara como bobo no palácio. Desde que o seu pai fora morto às mãos do usurpador Aezrel Thoryn, a Pérola do Sul tornara-se numa fossa séptica de gorda e indolente corrupção, um cancro há muito decom­posto, e o bobo tencionava excisá-lo com a sua lâmina lambida por sombras, ainda que o preço que viesse a ter de pagar fosse uma eter­nidade de tormento nestas. Traíra o seu senhor na sua ânsia de se vingar, e sabia agora que teria um curto resto de vida, pois não nutria ilusões quanto ao argumento com o qual convencera Othragon. Certa­mente que ter Ancalach em sua posse e com uma descendente de Aewyre Thoryn para eventualmente a empunhar poderia ter algum peso, mas por si só tal não bastaria para impedir o seu antigo senhor de vir a seu encontro nas sombras da noite e fazer as suas entranhas implodirem-lhe por dentro, para de seguida lhe desfiar a alma e com ela urdir uma tapeçaria de eterno tormento.

— Sim, meu senhor lorde Aereth, uma tapeçaria de eterno tor­mento, é isso o que me aguarda — declarou em voz alta, inclinando a cabeça para os lados para melhor ouvir através das aberturas auriculares da máscara. — Um preço deveras elevado para quem tão fiel­mente vos serviu, não achais?

Não houve resposta, e Dilet continuou a espreitar, ora pondo-se em bicos de pés, ora arqueando o seu torso para o lado, roçando oca­sionalmente com as pontas dos chifres da máscara nas barras, murmu­rando para consigo enquanto o fazia. Não foi senão quando começou a julgar que o jovem guarda cometera de fato um derradeiro ato de coragem, quando por fim avistou um vulto sentado ao fundo de uma cela, abraçado às pernas e com o queixo aparentemente enterrado entre os joelhos. Dilet sorriu dentro da máscara, e desta saiu um agra­dado ruído quando o bobo reconheceu na miserável figura o seu antigo senhor, enfiando então a ponta do punhal no buraco da fechadura. Finos filamentos de sombra começaram a dançar ao longo do gume da arma, entranhando-se pelo mecanismo adentro e fazendo mexer os ferrolhos no seu interior, destrancando a porta.

— Muito boa noite, lorde Aereth — saudou Dilet sardonicamente, cobrindo o vulto com a sua sombra espalhada pela luz das tochas. — Estais confortável nos vossos novos aposentos?

Aereth não respondeu, reduzido a uma trêmula sombra com dois brancos pontos brilhantes na forma dos seus olhos arregalados.

— Deveras desconsiderado da parte do vosso irmão, prender-vos aqui perto da ralé. Esperava que ele no mínimo vos tivesse posto no Ninho, tal como fizésteis com a princesa Lhiannah...

Dilet piscou o olho ao dizê-lo, ainda desabituado ao fato de estar a usar uma máscara, e foi acocorar-se perto de Aereth, cujos pés roça­ram o chão quando se tentou fundir à parede da cela.

— Nada temeis, meu senhor. Não tenciono fazer-vos mal — as­segurou-lhe o bobo, cruzando os braços sobre os joelhos, mas man­tendo o punhal bem à vista. — Fostes um adorável néscio este tempo todo, e ao contrário do vosso irmão, nunca me haveis tratado desrespeitosamente.

Aereth continuou sem se pronunciar, atormentado pelas memó­rias do sangue quente de Iollina a ensopar-lhe as mangas, e pelas ima­gens do crescente palor na face da pobre e inocente criança que lhe morrera nos braços.

— Claro que continuo a odiar os vossos fígados e os da vossa feliz­mente reduzida família, pois devereis pagar pelo que o vosso pai fez ao meu, mas acho que os agradáveis tempos que passamos juntos ultimamente vos merecem um ligeiro atenuante...

— O que queres, bobo? — sussurrou Aereth, de tão apertada que tinha a garganta. — Não fizeste já mal quanto baste?

— Oh, nem por sombras, meu senhor — assegurou-lhe Dilet com um sorriso que o deposto regente não viu, reforçando as suas palavras com um espertar dos sibilantes fiapos de penumbra do seu punhal. — Nem por sombras. Mas hoje acaba tudo. Allahn Anroth está a ser atacada neste preciso momento por um bando de thuragar bastante zangados, que nada mais querem além de violar todas as mulheres bonitas do palácio e matar os homens à martelada.

Os olhos de Aereth avivaram-se um pouco mais com a notícia, e parou visivelmente de respirar por segundos, o que trouxe mais um sorriso inviso à cara de Dilet.

— Seria misericordioso da minha parte poupar-vos à crueldade dos thuragar, mas por outro lado seria deveras desleal matar-vos após tão prolongado serviço e boa serventia, não achais? — ponderou, mexendo o punhal diante da sua cara e a de Aereth, como se estives­se a observar o jogo de reflexos da luz das tochas na lâmina. Aereth seguiu-a atentamente com as diminutas pupilas, e estremeceu quando Dilet a girou na mão, crispando os dedos no punho e premindo o lado da lâmina contra o pulso.

— Não. Não serei desleal — decidiu o bobo, abanando a máscara e erguendo-se para uma posição de torso ominosamente inclinado sobre Aereth. — Deixo-vos entregue à vossa sorte, meu senhor. Tende só cuidado com os thuragar e tentai viver o suficiente para poderdes ver aquilo que vou fazer ao vosso irmão, sim?

O regente deposto nada disse, incapaz de tirar os olhos de Dilet mas igualmente impossibilitado de responder. O bobo não se impor­tou, embora estivesse desiludido por ver Aereth quebrado tão cedo, quando o melhor estava ainda para vir.

— Bem, então boa sorte, meu senhor — concluiu, endireitando-se com um suspiro antes de encolher os ombros e saltaricar alegre­mente até à entrada da cela. — Encontramo-nos por aí. Tentai não morrer antes do senhor vosso irmão, sim?

Com isto, Dilet retirou-se, desaparecendo na escuridão das mas­morras com o abafado eco metálico da sua risada dentro da máscara. Para trás deixou um Aereth abalado, mas por fim desperto do melan­cólico torpor que o deixara prostrado ao canto da cela todo aquele tempo. Com os dormentes membros a formigarem, o jovem regente esperou até deixar de ouvir a risada, altura na qual se afastou repenti­namente da parede com gestos trôpegos, arquejando com desprevenida urgência e estatelando-se ao comprido quando as suas pernas cederam.

— Aewyre...! — ofegou, aflito e assolado pelas memórias do san­grento aniversário de Iollina, temendo que tudo se viesse a repetir. — Bobo, não!

O seu plangente grito ecoou pelas masmorras, e pareceu a Aereth ouvir à distância uma breve e tênue risadinha.

— BOBO! — tornou o regente a gritar, arrastando-se tropegamente pelo chão enquanto fazia os possíveis por se levantar com membros tensos de dolorosas cãibras.

O eco da sua própria voz foi a única resposta que obteve.

— Homens! O que se passa? — perguntou Aewyre ao entrar de roldão na sala de audiências, abrindo a porta com o ombro e fazendo com que esta embatesse com força contra a parede.

Do outro lado da sala encontravam-se cerca de vinte guardas regenciais, boa parte dos quais encostado de ombros e costas às portas duplas que alguém tentava forçar violentamente do outro lado. Dois deles, que tinham arrastado um companheiro ferido até meio da sala, ergueram-se de súbito com o ruído, apontando as pontas das parta-sanas na direção do seu senhor, que ainda assim avançou na sua direção. Os guardas ergueram-nas prontamente ao reconhecerem Aewyre, mas tornaram a baixá-las quando Daveanorn veio no seu encalço, seguido de Lhiannah, Taislin, Worick e Allumno.

— Quem são? — insistiu Aewyre, direto como uma lâmina e tenso como um arame pronto a estalar.

— Não sabemos, lorde Aewyre! — disse um dos guardas, en­quanto o outro ia assistir o seu companheiro caído, cujo coxote estava furado e amolgado, tendo deixado um rasto de sangue que ia até às portas duplas. — Ainda ninguém percebeu de onde vieram, temos homens vindos da entrada que dizem que não chegaram pelos portões, e faltam homens que foram destacados para as masmorras, são guer­reiros arnesados, bem organizados, não estão a fazer prisioneiros, e...

— Quantos são? — perguntou o jovem, analisando a sala com um rápido olhar enquanto ponderava

— Cinqüenta, lorde Aewyre! — gritou um dos guardas encostado a uma porta, sacudido por um violento impacto.

— Mais que nós! — disse outro, de pernas flexionadas e mãos plan­tadas nas extremidades de ambas as portas. O bico curvo de um mar­telo surgiu de uma súbita excrescência de madeira rachada, cuspindo farpas sobre o elmo do homem.

— Vinte, mas lutam como azigoth! — disse outro ainda, sendo abalado por mais uma violenta pancada nas portas.

Vendo que os seus homens estavam tão surpreendidos quanto ele, o guerreiro fixou o seu olhar no majestoso candelabro sobre as suas cabeças, e agarrou o ombro de Taislin assim que este lhe surgiu à perna de punhais desembainhados, pronto a proteger o seu amigo.

— Fiquem aqui — disse-lhe e aos outros, retendo o olhar em Lhiannah ao ver a princesa armada com a sua espada mas de todo equi­pada para uma luta. Ainda abriu a boca para lhe pedir que se retirasse, mas a expressão na cara de Lhiannah dava a entender que o mais certo seria morrer às mãos dos atacantes antes de conseguir convencê-la a sair da sala. — Homens, a mim, todos os que não estiverem a suster a porta!

Os guardas acataram prontamente as ordens de Aewyre, embora, por força de hábito, muitos olhassem para Daveanorn à espera de instruções do paladino, que, ao que parecia, tivera outra sugestão em mente.

— Aqui, Aewyre? — perguntou, ele também de espada desembainhada e envergando roupas pouco adequadas para o combate que se avizinhava.

— Reúne os homens aqui, Daveanorn! Confia em mim! — meio pediu, meio ordenou Aewyre, e havia algo no tom da sua voz que fez com que os guardas se apressassem.

O jovem dirigiu-se a passos largos ao ponto da parede oposta, no qual a fina corrente que sustinha o candelabro estava enrolada numa elegante roldana, e postou-se ao lado desta de olhos cravadas na porta. Os companheiros perceberam a idéia de Aewyre e posicionaram-se atrás dos guardas, esses assumindo posições encouchadas de partasanas em riste, formando uma espinhosa muralha protetora diante dos quatro companheiros e Daveanorn. Os que ficaram para trás fizeram um derradeiro esforço a suster as portas para darem tempo aos outros para se organizarem, derrapando com os escarpins pelo chão enquanto apoiavam todo o seu peso de costas sobre a entrada, cuja madeira era constantemente abalada por pancadas surdas e bicos de aço que nela se cravavam.

— A minha palavra, afastem-se da porta e formem os flancos! — gritou Aewyre, pouco preocupado com a possibilidade de ser ouvido por quem se encontrava do outro lado das portas, que estremeciam até aos batentes com a pressão. Worick mantinha-se perto de Lhiannah e Taislin mantinha-se próximo de ambos, enquanto Allumno e Davea­norn trocavam olhares tensos e preocupados entre si. O mago estava pálido e não parecia estar a gozar das suas plenas faculdades, com a testa enfaixada por uma ainda ligeiramente ensangüentada ligadura, mas estava tão concentrado como sempre ficava antes de uma luta.

Porém, tanto ele como os outros estacaram e olharam para a porta com o súbito e violento silêncio que se fez sentir quando as pancadas e berros roucos cessaram. Os guardas que se encontravam à porta des­lizaram com as couraças pela madeira, retesando-se para o impacto que julgavam que certamente se seguiria. Este tardou, contudo, e a única coisa que ouviram do outro lado das portas foram as vozes rudes e metálicas dos invasores, o ferro de cujos pés raspava pelo piso en­quanto aparentemente se mexiam.

— Querem ver que vão trazer um aríete? — alvitrou um dos guar­das num contrito sussurro, olhando para Daveanorn em busca de con­firmação ou refutação.

Ninguém respondeu, atentos como estavam a tentar escutar o mais tímido ruído através das suas barbudas. Daveanorn não quis contrariar as ordens de Aewyre e semear a confusão entre os já de si assustados homens, e olhou para o jovem por cima do ombro, perguntando-lhe com o olhar o que tinha ele em mente. Aewyre não respondeu, gesti­culando apenas que deixasse os homens nas mesmas posições, indepen­dentemente do que os seus inimigos estivessem a pensar fazer. Aos seus amigos reservou apenas um olhar de relance que se prolongou ligeiramente ao passar por Lhiannah, tendo já sobrevivido a seu lado a ameaças com as quais os guardas provavelmente nem sonhavam, o que nem por isso tornava a situação mais fácil. Não suportaria que algo lhe acontecesse, mas sabia que era esse também o motivo pelo qual a princesa ali se encontrava; ela e Allumno, que temera mesmo perder com o recente incidente da gema, e que não estava certo de se encontrar ou não em condições de combater. Aewyre crispou os dedos no punho de Ancalach, apelando sem grande esperança ao «tendão» que este lhe concedesse a força necessária não tanto para sobreviver, mas para se assegurar de que nenhum dos seus companheiros cairia às mãos dos desconhecidos inimigos.

Contudo, tanto as suas considerações como as dos restantes pre­sentes foram interrompidas pelo som de pesados passos acerados vindos do outro lado da porta, que centraram novamente a atenção de todos na entrada. Os passos detiveram-se, e através da porta ouviram-se os distintos ruídos das placas de um arnês a rilharem umas nas outras, e na forçada quietude opressiva que quase vibrava pela sala, pareceu a Aewyre ouvir mesmo o couro das palmas de manoplas a ranger com o cerrar de punhos numa arma. O silêncio foi no entanto violentamente quebrado por um estentoroso barrido que se fez ouvir do outro lado da porta, e que fez com que os corações de boa parte dos guardas lhes saltassem para as gargantas.

— Karcr Rka!

Ninguém teve tempo sequer para se assustar, pois as portas duplas da sala explodiram então numa chuva de farpas, estilhaços e bocados de madeira dilacerada pelos gonzos que ficaram presos à parede. Os guardas que estavam encostados a elas foram projetados pelo ar como bonecos de lata oca, arrojados por uma força concussora que se pro­pagou do ponto de impacto e os atingiu a todos como algo de verdadeiramente sólido. Os homens que formavam a fileira de parta-sanas em riste encolheram-se e recuaram instintivamente com o ruído e a imagem dos seus companheiros a serem projetados pelo ar, como se toda a força que contra a agora destruída porta tinham aplicado nada tivesse sido. A fileira vacilou, e com ela os companheiros, eles também surpreendidos pela violência com a qual os guardas arnesados tinham sido arrojados. Worick e Lhiannah ainda se retesaram em antecipação da torrente de inimigos, mas na sala entrou apenas uma figura isolada e parcialmente obscurecida pela chuva de cacos de madeira, que catracalaram no chão em seu redor. Os guardas projetados estatelaram-se no piso, rolando ruidosamente por este aos metálicos trambolhões, mas a atenção de todos estava presa pela entrada do adversário que se expunha a eles de forma quase descarada. O impacto do seu aspecto foi quase tão brutal quanto o do golpe que fizera as portas em pedaços, e todos os humanos presentes ficaram momentaneamente estarrecidos a olhar para as horrendas feições do atarracado e corpulento humanóide arnesado que se lhes deparou.

Baixo de estatura, parecia contudo imenso dentro do seu arnês de uma qualquer liga metálica com tonalidade cinzenta, cóbrea e esverdeada, na qual pareciam luzir runas angulares nele cinzeladas em ângulos ofensivos à vista humana. Empunhava uma para o seu tama­nho desmedida maça com quatro afiados rebordos curvos, dos quais escorria sangue espesso como óleo para o sangrento quadro que eviden­temente pretendia pintar, tal como evidenciado pelo puro ódio que lhe raiava os olhos de vermelho. O que mais aterrou os guardas não foram contudo a sua arma e armadura, mas sim o grotesco semblante que se contorcia num esgar de mortífero asco como aquele que um homem reservaria para um qualquer verme repelente, um semblante desfigurado e mutilado, no qual pele rosada em redor das fossas nasais cicatrizadas contrastava com o palor da face de quem provavelmente nunca vira a luz do sol. Era uma medonha visagem de dentes arreganhados numa boca desprovida de lábio superior, de cujos cantos escor­riam espessos fios de saliva, alguns dos quais se encontravam colados aos dois entrançados crescimentos pilosos no seu queixo, do qual tam­bém pingava sangue que lhe espirrara na cara. Sangue de guardas, que fez com que o da face dos presentes se desvanecesse, de tão patente que era a cólera indignada do monstruoso thuragar cujo poder tinham acabado de testemunhar.

— Matem-nos, filhos das cavernas! — urrou o thuragar com desen­freada ferocidade. — Matem-nos a todos, e usufruam da mulher dos cabelos de sol!

Os atarracados guerreiros vagiram em uníssono, um som possante que reverberou no metal dos seus elmos quando investiram de mar­telos empunhados ao alto contra a muralha de lanças. Worick perce­beu as palavras do thuragar e acotovelou Lhiannah com o braço direito, posicionando o cabo da sua arma diante desta, pronto para a empurrar para trás.

— Queima-os, mago! — berrou a Allumno, cuja face era uma máscara de esforçada concentração.

— Espera! — praticamente ordenou Aewyre, recuando dois apres­sados passos para a parede, tão rápido que os outros nem tiveram tempo para ficarem surpresos. Ao fazê-lo, girou sobre si para ganhar balanço e, empunhando Ancalach com ambas as mãos, desferiu um possante golpe no elegante gancho no qual estava presa a corrente do candelabro.

Elos cederam com um agudo tinir, e a corrente serpenteou ruido­samente pelo aro que a sustinha no teto, lançando o candelabro em queda livre sobre as cabeças dos thuragar que debaixo dele se posi­cionaram ao carregarem sobre os guardas. Alguns olharam para cima, mas poucos tiveram presença de espírito para saltarem para o lado ao verem a maciça peça dourada mergulhar rapinante a pique contra eles como as águias retratadas nos motivos aquilinos dos castiçais. Mesmo os humanos recuaram, alguns praguejando de susto quando o enorme lampadário se precipitou com estrondo sobre os thuragar, que foram estrepitosamente esmagados contra o chão pelo peso deste. Elmos embateram contra o piso, chocalhando cabeças no seu interior, mar­telos deslizaram pelo chão e placas de arneses amolgaram-se e roçaram asperamente umas contra as outras, originando uma série de grunhidos sufocados por ossos quebrados e gritos de rouca dor.

— Agora! A eles, homens! — bradou Aewyre, ignorando a dolo­rosa vibração no braço resultante de ter batido com Ancalach contra a parede, e apontando com esta para os inimigos.

Daveanorn e Worick recuperaram antes de todos os outros, e deram o exemplo ao investirem com gritos de guerra que impeliram os guar­das a irem em seu encalço. Boa parte da vanguarda dos thuragar jazia esmagada ou presa no chão, e aqueles que não tinham ficado ator­doados tentavam agora esgueirar-se por entre os espaços do cande­labro. Os que se tinham desviado estavam dispersos e não mais apresentavam uma frente unida na forma de uma cunha que podia bem ter partido a muralha de lanças ao meio com o peso da sua inves­tida, e viam-se eles agora do lado errado de uma carga organizada. Worick abriu as hostilidades, oscilando o seu martelo de baixo para cima ao passar por um thuragar caído, arrancando-lhe a viseira bicuda e partindo-lhe o pescoço com a força do golpe sem sequer se deter. O impacto inicial não foi muito forte, resultando sobretudo em hastes de partasanas partidas, pois os thuragar estavam pesada e compactamente arnesados, mas ainda assim foi quanto bastou para esboroar os abalados adversários. Os guerreiros humanos pressionaram após o embate inicial, dispersando mais ainda os invasores, espetando com as pontas e fustigando com as hastes, falhando contudo em infligir grandes estragos.

Worick rugia com uma ferócia»que ninguém no salão foi capaz de igualar, fazendo thuragar estacarem em poses rígidas com o repelão dos seus tremendos golpes de martelo, que amolgavam aço e partiam ossos em igual medida, deixando pelo caminho uma série de bonecos de lata quebrados. Lhiannah procurava acompanhá-lo, plenamente ciente da nudeza da sua carne desprotegida no meio de aliados e ini­migos arnesados, procurando aberturas e contribuindo com punturas certeiras do seu estoque, cuja fina lâmina de ponta triangular pene­trava por frestas de armaduras adentro e regressava ensangüentada. Embora sem qualquer armadura, Daveanorn acompanhava os seus homens, mantendo-se avisadamente resguardado por estes para atacar em momentos oportunos, nos quais procurava fazer o melhor uso pos­sível da sua espada contra os quase impermeáveis arneses thuragar. Conseguiu pouco mais além de deixar a sua lâmina com bocas, pelo que optou por a agarrar com a enluvada mão esquerda, concutindo adversários com o pomo da espada e dando força adicional aos golpes com a ponta, alguns dos quais conseguiram mesmo encontrar as suas frestas. Por sua vez, Taislin ia distribuindo a morte pelos thuragar presos debaixo do candelabro, saltando-lhes em cima para os impedir de se escaparem, chutando cabeças revestidas por elmos e espetando-lhes as adagas pelas viseiras destes. Ainda assim, finda a investida inicial, os thuragar foram fincando os pés no chão, sustendo estoicamente os golpes dos inimigos e aglomerando-se à medida que outros iam sendo despejados pela porta estraçalhada, até que por fim se recusaram a ceder mais terreno.

A refrega decorria agora em fúria no salão, uma vez que os thuragar não mais gozavam do efeito de surpresa e que os humanos tinham visto o seu ímpeto absorvido pela simples determinação pétrea dos adversários, que agora começavam a retribuir como a oscilação con­trária de um pêndulo. Othragon encaminhava-se ameaçadoramente na direção da pugna, sopesando a maça com a qual parecia ser capaz de ceifar uma cruenta leira entre os humanos a qualquer momento. A sua mera presença chamou a atenção de Aewyre, que foi ao encontro de Allumno e o agarrou com força pelo ombro para o alertar.

— Aquele, Allumno! — disse com certa urgência na voz, vendo a absorta expressão na cara do mago, que já tinha o thuragar debaixo de dois semicerrados olhos, como se estivesse a sentir dor ou uma impressão na franzida testa. Aewyre ainda não estava convencido da aptidão do seu mentor, razão pela qual não lhe requisitara qualquer feitiço antes da investida, mas agora sabia que iriam precisar dos seus talentos. — Allumno!

Othragon avançou, alheio à atenção de que estava a ser alvo e dirigindo-se a um grupo de guardas que se iam mantinham firmes enquanto a sua fileira era lentamente quebrada pelos taurinos thu­ragar. Allumno não perdeu mais tempo e, começando a custo o seu recital arcano, soergueu o cajado sobre a sua cabeça e estendeu a mão livre na direção do Aesh’alan. Filamentos da cor do rubi na ponta do bastão colearam-lhe até à mão, com a qual o mago gesticulou en­quanto ia murmurando a Palavra, cerrando de seguida o punho e levando-o ao peito, para de seguida desferir um golpe em pleno ar e espraiar os dedos, dos quais os filamentos se desfraldaram com um som sibilante, voando contra Othragon. Este foi tomado de surpresa pelas luminescentes serpentinas que nele se enrolaram como chicotes, jungindo o thuragar, que grunhiu de surpresa e cujos olhos raiados de sangue se avivaram com um brilho maníaco.

— Ataca-o, Aewyre! — rogou o mago, em cuja voz era evidente o esforço que estava a fazer, pois mal mantinha os olhos abertos e tinha a cabeça baixa e de cabelos descaídos.

O jovem não hesitou e brandiu Ancalach, correndo ao longo do luzente rasto dos filamentos, tentando apressadamente cobrir a distân­cia que o separava de Othragon antes que este recuperasse, o que con­tudo acabou mesmo por suceder. Com uma crescente rosnadela, o thuragar começou a aplicar força com os seus robustos membros, fazendo com que as placas do arnês rangessem contra as serpentinas que o constringiam, e Allumno encolheu-se mais ainda com o esforço daí resultante, deixando a cabeça praticamente pendente dos ombros enquanto tremia. Aewyre foi ligeiramente desviado do seu caminho ao bater com o ombro nas costas de um guarda, e antes que conseguis­se chegar a Othragon, este levou atrás a cabeça ao abrir os braços e rebentar as cadeias arcanas com um tremendo barrido, que fez as pare­des tremerem como se da própria voz da terra se tratasse. Tão sonante foi o clamor que mesmo Aewyre se deteve a meio caminho como se o som tivesse embatido fisicamente nele, fazendo a massa de figuras arnesadas que combatiam na sala ondular como uma superfície de água perturbada. Allumno grunhiu com o repelão mental, camba­leando para trás e vendo-se forçado a agarrar-se com ambas as mãos ao cajado para não cair, e alguns guardas ficaram suficientemente abala­dos para desviarem momentaneamente a atenção dos seus adversários, o que resultou em dois elmos fendidos antes de o combate recomeçar.

— Despedacem-lhes os ossos, rasguem-lhes a carne com os fragmen­tos! — raivejou Othragon em assustadora cólera, sacudindo a cabeça como um animal ferido e pisando ruidosamente o chão ao brandir a sua maça. — Calquem-lhes as cabeças contra o chão até os olhos espirrarem sangue!

A sua grotesca diatribe tornou-o um alvo para um guarda, que se lembrou de investir contra ele de partasana em riste, visando a sua cabeça exposta. O Aesh’alan rugiu, vergastando a ponta da arma de haste com a manopla esquerda e trazendo abaixo a sua maça, da qual um rebordo abriu caminho à força por entre o gorjal do humano, trespassando-o através da clavícula até ao epigastro, fendendo o cola­rinho da couraça como se esta fosse feita de chumbo e partindo-lhe o pescoço pelo meio. Como se nada fosse, Othragon puxou o moribundo para si e desferiu-lhe um potente chuto no peito, que lhe levantou os pés do chão e o desenganchou do afiado rebordo curvo, do qual se estendeu um grosso fio de sangue que se desfez em espessas gotas pelo ar quando o thuragar a tornou a brandir. O guarda caiu inanimado, estremecendo frouxamente quando a sua armadura embateu com estrépito metálico no chão, para gáudio dos guerreiros thuragar em redor. Estes, acirrados pelas palavras e pelo violento exemplo do seu senhor, lançaram-se num desenfreado frenesi sobre os guardas regenciais, atacando com redobrada fúria.

Por sua vez, Othragon virou a sua atenção para Aewyre, bufando como um touro enraivecido ao encaminhar-se na direção do guerreiro com pesados passos que chocalhavam as placas da sua própria arma­dura. Aewyre empunhou Ancalach com ambas as mãos, e a visão do Flagício fez com que o thuragar hesitasse um passo ao reconhecer a arma e o seu portador, de olhos fitos na Espada dos Reis, em cuja lâmina a luz das tochas parecia incidir com especial ênfase. Um outro guarda viu Othragon parado e aproveitou para o atacar, empunhando uma espada, mas um possante golpe em arco da maça do thuragar projetou-o contra a parede, na qual embateu e deslizou esfacelado para o chão. O Aesh’alan pareceu mais enraivecido ainda pela sua própria hesitação, e estugou o passo para investir contra Aewyre, que ficou momentaneamente retido pela terrífica visão de Othragon a vir contra ele, inexorável como uma placa tectônica, um terror primordial vindo das profundezas da terra com a promessa de dor e escuridão.

— Enfrenta-me, príncipe! Enfrenta Othragon! — rugiu, mane­jando a sua desmedida arma e desafiando Aewyre a defrontar o seu ataque cara-a-cara.

Aewyre não aceitou o repto, desviando-se da maça, que rachou os belos ladrilhos do pavimento e soltou outros tantos com a força do golpe. Flexionou então a perna da frente e trouxe Ancalach num semi-círculo para trás da cabeça, impulsionando-a então num alto-abaixo des­tinado a fender a maciça cabeça careca de Othragon. Este, sem tempo de erguer a arma para se defender, soltou a mão esquerda e aparou o golpe com o antebraço, confiante na solidez da sua armadura. Porém, nem mesmo a suprema liga metálica forjada pelos mestres artífi­ces thuragar da Noite Infera se podia opor ao milenar minério de Siris, e o canhão da manopla foi fendido pelo gume da Espada dos Reis. O aço do Flagício não chegou a morder a carne impregnada pela sombra d’O Flagelo, mas a sua mera proximidade foi quanto bastou para que Othragon berrasse de dor e surpresa, sacudindo cegamente o braço. Aewyre foi ele também surpreendido pela antinatural força do Aesh’alan que mal lhe chegava ao peito, e ao manter firme o seu aperto no punho de Ancalach foi erguido ao ar e atirado para trás de Othragon, arrancando com o seu peso a lâmina dos lábios fendidos da manopla antes de deslizar pelo chão até perto de Worick e Lhian­nah, esses em frenético combate com os guerreiros thuragar.

Os dois companheiros mal deram pela atabalhoada chegada de Aewyre, dançando juntos com a fluidez de longas sessões de treino e inúmeros combates lado a lado, complementando os seus díspares estilos. Worick amolgava escudos e amassava elmos com a perícia de um artesão a trabalhar metal, enquanto Lhiannah aproveitava as aber­turas e rombos criados para estocar os bem protegidos adversários com a sua espada. Dada a falta de armadura da princesa, Worick era forçado a estar em constante movimento, interpondo-se entre Lhian­nah e os thuragar que a atacavam de forma a que esta pudesse apre­sentar um fugaz alvo móvel. Um deles preparava-se para golpear a arinnir, que acabara de inutilizar o braço de um dos seus ao cravar-lhe a ponta do estoque numa fenda da cotoveleira, rompendo os elos de cota de malha e espetando-lhe o sangradouro, mas ao ver Aewyre deslizar para perto dos seus pés, preferiu tentar esmagá-lo a ele. O guer­reiro mal teve tempo para recuperar antes de ouvir um grunhido aba­fado pelo metal de uma viseira e dois passos acerados perto da sua cabeça, e foi mais por instinto que se desviou para o lado, sentindo pequenos fragmentos de pedra picarem-lhe a cara quando as vibra­ções de um estampido metálico no chão lhe reverberaram pelo ombro esquerdo nele assente. Olhando sobre o direito, viu um elmo com um protuberante visor cônico diretamente por cima de si, e antes que o perculso adversário pudesse recuperar do abalo do golpe falhado, Aewyre desferiu uma desajeitada.estocada com Ancalach. Não teve a sorte de acertar em fresta alguma, e o golpe não foi suficientemente forte para atravessar o aço do elmo, mas o impacto certeiro da ponta contra o visor deslocou a cabeça do thuragar para o lado e afastou-o do guerreiro, que aproveitou o espaço para se levantar.

Viu-se então embrenhado numa intensa refrega, na qual o clangor de metal vibrava pelo ar e figuras arnesadas colidiam umas contra as outras em combate mortal. Os seus homens estavam dispersos, as­sim como o estavam os thuragar, que não mais atacavam em bloco, mas como lobos sedentos de sangue. Lhiannah e Worick eram o único foco organizado na caótica escaramuça, voluteando enquanto iam trocando de posições na sua praticada dança. Dois thuragar atacavam-nos naquele preciso momento, e o par executou um movimento de roque: Lhiannah esquivou-se do golpe do seu agressor e Worick esten­deu para trás o seu braço com escudo acoplado à manopla, resguar­dando a princesa e tomando o seu lugar com um passo, que culminou com uma martelada, da qual o thuragar oposto se defendeu com a sua tarja. Como parte do mesmo movimento que usara para se desviar, Lhiannah rodou com Worick, flexionando uma perna e levando o joelho da outra ao chão ao cravar a ponta do estoque entre a greva e o escarpim do adversário de Worick, cortando-lhe os tendões do pé.

— Costas! — exclamou Worick, deixando-se curvar para baixo pelo ímpeto do seu próprio golpe, e a arinnir percebeu de imediato, lançando-se de ombro sobre o dorso do seu mentor, sobre o qual ro­lou com uma impulsão das longas pernas enquanto este se virava novamente para trás, empunhando o martelo com ambas as mãos, uma das quais debaixo da cabeça da arma.

Os dois thuragar que os atacavam foram surpreendidos pela troca de posições, e Worick eliminou o manco, abatendo-o com um violento golpe que lhe arrojou a cabeça para trás. O outro thuragar recuperou o equilíbrio após se ter defendido da martelada de Worick com a tarja, apenas para o ver de repente de costas para ele e captar movimento à sua esquerda pelas restritas viseiras do seu elmo. Assim que virou a cabeça, o estoque de Lhiannah deslizou-lhe por uma oportuna fenda do gorjal adentro, trazendo um jorro de sangue atrás ao deslizar nova­mente para fora. Já o adversário de Aewyre provou ser consideravel­mente mais obstinado, e mal deixou o guerreiro levantar-se antes de tornar a atacá-lo, contando agora com o auxílio de um outro thuragar que a eles se juntou. Aewyre deixou-se embrenhar plenamente na dança de aço, entregando-se a ela com o abandono de um guerreiro nato que estava fora do seu meio havia demasiado tempo. Acompa­nhou com Ancalach a martelada de um dos thuragar, desviando-a da sua trajetória em vez de se opor diretamente ao pesado golpe e dese­quilibrando dessa forma o oponente. Enganchou também o tornozelo deste com o seu pé, puxando com força para o derrubar e plantando rapidamente o mesmo pé à sua frente para receber o ataque do outro que o atacava por trás, e que se preparava para lhe rachar a cabeça. O primeiro thuragar caiu ruidosamente de costas ao chão ao mesmo tempo que Aewyre ofereceu o lado da espada ao golpe, pousando a lâmina sobre a mão esquerda, cujo pulso rangeu dolorosamente com o impacto do martelo. Aewyre avançou então de lado com um golpe de ancas e uma rápida passada, percutindo a cabeça do thuragar com o pomo de Ancalach, que de seguida agarrou com a mão esquerda para se virar para trás, curvando-se sobre o adversário derrubado e atravessando-lhe a couraça com a ponta da espada. O thuragar grunhiu roucamente pelos buracos da viseira, erguendo ligeiramente o torso e as pernas com a surpresa e a dor quando a lâmina roçou asperamente pela brecha na armadura, penetrando-lhe pelas entranhas. Aewyre não se deteve um instante sequer, e passou por cima do moribundo, apoiando nele brevemente o pé como ponto de apoio para arrancar Ancalach do seu ventre. Um outro thuragar investia contra um guar­da que perdera a partasana e cuja espada fora quebrada, restando dela apenas um quarto da lâmina, e Aewyre interceptou-o, golpeando-o no jarrete com uma espadeirada de duas mãos. O thuragar perdeu o equilíbrio e caiu ao chão, e Aewyre meteu o pé debaixo da haste do martelo que o thuragar varado deixara cair, ajeitando-o debaixo da pesada cabeça da arma.

— Agarra! — gritou ao guarda, arrojando a arma na sua direção. O homem deixou cair a espada quebrada e tentou desajeitadamente agarrar o martelo, acabando por o abraçar ao peito para não o deixar cair. Aewyre não lhe pôde dar mais atenção, e tomou balanço com a perna para chutar violentamente a cabeça do thuragar manco.

Entretanto, um colérico Othragon vinha a pesados passos na sua direção, retinindo como um couraçado e bufando como um touro, roçando na haste da arma os dedos revestidos de aço. Um guarda ata­cou-o com a sua espada, mas o Aesh’alan limitou-se a varrê-lo do seu caminho com a maça, esbarrando de seguida contra um dos seus pró­prios homens, que contra ele embateu de frente, caindo ao chão como se tivesse corrido contra uma parede.

— Enfrenta-me, príncipe! — rugiu, agitando no ar um grosso fio de saliva que lhe pendia do canto da boca.

Aewyre ouviu o desafio de Othragon, e os homens deste compreen­deram os seus desígnios, pois os que se preparavam para atacar o guer­reiro optaram por outros alvos, dando-lhe espaço. Aewyre manteve-se em guarda, empunhando Ancalach com o braço em ângulo quase reto e mantendo o outro estendido e de mão aberta, como se estivesse a convidar o Aesh’alan a atacá-lo. O maciço thuragar não se fez rogado e veio ao seu encontro, mais determinado agora em fazer o humano pagar pela dor que lhe infligira do que propriamente em eliminar a ameaça representada pelo Flagício.

Uma crepitante descarga elétrica estralejou repentinamente no ar, eriçando os pêlos dos circunstantes e rebentando nas costas de Othragon, fazendo-o tropeçar dois passos para a frente. Várias caras viraram-se para a origem do ataque, fixando-se na curvada figura de Allumno, que apontava para a frente com uma mão e se apoiava no cajado com a outra. O Aesh’alan virou-se ele também para trás, fumegando da couraça dorsal, e os seus dentes rangeram de ódio ante tama­nha ousadia, fixando no mago os olhos esfriados de escarlate.

— Matem o mago! — ordenou com um raucíssono berro, apon­tando para Allumno.

Aewyre aproveitou a distração para carregar contra o thuragar, que contudo se virou a tempo de lhe aparar o golpe de Ancalach com a haste da maça, que usou como um bastão improvisado. O gume da espada mordeu a espessa madeira, entalhando-a, e Othragon volteou-a sobre a cabeça, passando os afiados rebordos com um ruidoso chofre diante de Aewyre, que recuou um passo. Enquanto Othragon com­pensava o ímpeto do golpe, o jovem tentou estocar-lhe a face exposta, sendo então surpreendido pelo thuragar quando este soltou uma mão e a usou para agarrar Ancalach, cujo fio rasgou o couro da manopla e lhe deslizou pela carne dos dedos com um afiado sibilar. Othragon urrou de dor, mas com antinatural raiva e pertinácia crispou os dedos na lâmina, mantendo no último quarto desta um aperto firme. Com a arma assim retida, Aewyre viu então a cabeça da maça descer de cima, sendo forçado a largar Ancalach para se desviar do golpe, que despedaçou outros tantos ladrilhos no chão.

— Aewyre! — gritou Lhiannah, vendo-o desarmado diante do monstruoso thuragar.

— Cuidado, cachopa! — advertiu Worick, interceptando com o escudo uma martelada que visava o ombro de Lhiannah.

O golpe foi desviado e oscilou inofensivamente para o lado, expon­do o agressor a uma martelada de Worick, que o curvou para a frente. O thuragar levou então a sua joelheira contra a cara do adversário, tornando a erguê-la para de seguida lha percutir com a praça do martelo.

— Ele precisa da nossa ajuda! — disse a princesa.

— O mago também! — reparou Worick, vendo que um grupo de thuragar agora atacavam Allumno, martelando os guardas para fora do caminho. — Protejam o mago!

Ninguém reconhecia qualquer autoridade a Worick, mas todos os humanos ali presentes sabiam que iriam precisar dos talentos do mago contra adversários que os excediam em número, ferocidade e equi­pamento, e correram em auxílio dele.

— Ajudem o conselheiro Allumno! — concordou Daveanorn, incentivando os seus homens, criando mais uma mossa na sua lâmina ao espadeirar o elmo de um adversário.

O mago não esperou sequer pelo auxílio, segurando o cajado com as duas mãos e emanando da ponta deste uma rajada concussora que arrancou do chão os pés de um dos thuragar, derrubando-o. Os outros não se detiveram, mas um deles sentiu um repentino peso nos ombros quando Taislin lhe saltou para cima, estocando-lhe repetidamente a viseira do elmo às cegas em busca de frestas. O thuragar deteve-se e agarrou uma das pernas que lhe enleavam a cabeça, ligeiramente corcovado para a frente pelo peso aos ombros, mas Taislin sacudia-lhe a cabeça com torções de ancas, e as pontas das suas adagas repenicavam repetidamente contra o elmo. Um outro thuragar veio por trás em auxílio do seu companheiro, e o burrik viu-o entre solavancos, esco­lhendo o momento certo para pular de cima do adversário quando o outro tentou arrancá-lo dele à martelada. A sua queda foi algo ataba­lhoada, pois o thuragar ainda o segurava pela perna, mas os seus dedos tornaram-se lassos assim que a martelada destinada a Taislin lhe clangorou violentamente na parte de trás do elmo, derrubando-o. O burrik caiu com ele, mas rolou rapidamente para longe do perigo por entre dois guardas que arremeteram contra o agressor.

Allumno teve ainda tempo para uma nova descarga de Essência do seu cajado, mas esta desfez-se inocuamente como vapor vermelho contra o thuragar visado, cancelada pelos resquícios de Entropia que este aparentemente portava. Viu-se então forçado a erguer um trans­lúcido escudo disciforme diante da sua mão para absorver o golpe de martelo deste, que abalou seriamente a manifestação. Agora sem gema através da qual pudesse canalizar pura Essência para reforçar a barreira, Allumno teve de usar o seu próprio corpo como conduta, e a dor na sua cabeça apenas se intensificava a cada martelada do adver­sário. Um outro thuragar optou por contornar a proteção numa tentativa de flanquear o mago, mas um martelo guinou pelo ar na sua direção, embatendo-lhe violentamente contra o ombro e der­rubando-o.

— Pedras vos partam, protejam o mago! — rosnou Worick, bai­xando-se para pegar num martelo inimigo caído enquanto corria.

Lhiannah optou por ajudar Aewyre, que enfrentava Othragon desarmado a meio de uma furiosa refrega entre humanos e thuragar. O Aesh’alan tinha Ancalach em sua posse, agarrando-a pela lâmina pela qual lhe escorria o seu sangue, e Aewyre mantinha-se numa pose flectida de mãos abertas, procurando uma abertura para reaver a arma. Esta veio quando Othragon, com um berro de fúria e dor, se viu forçado a largar a Espada dos Reis, atirando-a para longe de si e crispando com força a mão ferida, que lhe termia em espasmos. Ancalach voou pelo ar, acabando por embater contra a parede oposta e tilintar no chão, que salpicou com gotas do sangue do Braço d’O Flagelo. Um guarda tentou atacá-lo com a sua espada, vendo-o curvado de dor, mas Othragon enfreou-se como um animal ferido ante a investida do humano, arrojando-lhe a agonizante mão fechada contra a cara. O impacto do golpe e a arrancada do guarda fizeram com que as pernas deste se elevassem ao mesmo tempo que a sua cabeça era projetada para trás, obrigando-o a dar uma volta pelo ar e a cair de ombros e pescoço ao chão, pelo qual deslizou numa confusão de membros metálicos retorcidos.

Aewyre não perdeu um instante sequer e correu a ir buscar a sua espada, em redor da qual assentavam pés, e escarpins de aço roçavam asperamente nos ladrilhos. Othragon soltou um rugido de desafio que o jovem ignorou, concentrando-se antes no fluxo e refluxo dos guardas e thuragar pelo caminho, que se golpeavam como se quisessem arran­car as armaduras uns dos outros à força. Teve de fintar inimigos e alia­dos por mais que uma vez, desviando-se de um golpe de martelo errático e por pouco não esbarrando contra um guarda que se lançava sobre um adversário, mas um thuragar que se movia a interceptá-lo forçou o guerreiro a lançar-se contra ele de ombro, baixando-se para o atirar por cima das costas. Couraça embateu contra couraça, mas o centro de gravidade do thuragar era demasiado baixo e os dois caíram ao chão ao resvalarem um no outro. Um segundo thuragar que se encontrava por perto julgou ver a sua abertura, e decidiu eliminar ele próprio aquele que, tendo causado tamanha dor ao seu mestre, só podia ser perigoso. Aewyre fez por se levantar rapidamente, e um guarda vinha já em seu auxílio nas costas do thuragar, mas este encontrava-se já demasiado próximo e de martelo atrás das suas costas, pronto a moer o humano.

A lâmina de Lhiannah salvou-o, puncionando a axila do thuragar através da abertura debaixo da espaldeira do arnês deste e torcendo a lâmina para que o oponente largasse a arma e se inclinasse para o lado, gritando de dor. O guarda que vinha em socorro de Aewyre desferiu uma violenta oscilação com um martelo que pilhara, por pouco não arrancando o elmo ao thuragar, que caiu redondo ao chão aos pés do guerreiro.

— Aewyre! — arquejou Lhiannah em tom de alívio, ajoelhando-se ao seu lado para lhe pousar a mão sobre a espaldeira, sem contudo tocar com o joelho no chão, pronta a saltar novamente para o combate.

A mera presença da arinnir angustiou Aewyre, de tão desprote­gida que esta estava com a sua túnica vermelha cingida à cintura e pernas expostas com meras botas de caminhar nelas calçadas. No meio do redemoinho de aço em que se encontravam, Lhiannah parecia um alvo exposto de carne macia, apesar da cruenta espada que empunhava, dos braços salpicados de sangue e da tiara prateada na testa, que lhe dava um ar de princesa guerreira.

— Tem cuidado — limitou-se Aewyre a sussurrar, apertando a mão de Lhiannah antes de a largar e gatinhar desajeitadamente para os seus pés, correndo a ir buscar Ancalach.

— O príncipe deles foge! — berrou Othragon aos seus homens, apontando para Aewyre com uma manopla a pingar sangue das pontas dos dedos. — Esmaguem os humanos como os vermes que eles ver­dadeiramente são!

— Irra, será que ninguém cala aquela bestiaga? — rosnou Worick, amolgando o braçal de um thuragar.

— Que diz ele? — perguntou Allumno antes de proferir um enfático esconjuro, estendendo a mão para o seu lado e projetando pelo ar um outro thuragar que o tentara atacar.

— Nada de importante! — respondeu Worick, desviando-se de uma martelada e respondendo com um golpe do escudo na cara do adversário, concutindo-o e abrindo caminho para uma resposta que lhe desencaixou a viseira do elmo. — Quer só matar-nos a todos, caso não tenhas percebido!

Taislin estava bem ciente disso, e a sua esquiva presença entre os thuragar era para estes um perigoso incômodo, de tão determinado que este estava a não permitir que nada acontecesse aos seus amigos. O burrik dardejava entre as pernas dos humanos, aproveitando cada espaço para auxiliar os guardas, espetando adagas em jarretes e sal­tando endiabrado sobre ombros e cabeças em persistente incômodo dos thuragar. Do alto de um pulo reparou que Aewyre corria desarmado em busca de Ancalach, e que Lhiannah lutava perto dele, estocando thuragar lado a lado com os aflitos guardas. Reparou também que o monstruoso thuragar vinha na direção deles com morte no seu olhar e, ao aterrar com graça felina no chão, olhou momentaneamente para trás, vendo que Allumno e Worick se estavam a agüentar bem, em­bora os adversários estivessem em claro ascendente. Os guardas esta­vam mal equipados para combater oponentes arnesados, enquanto os martelos dos thuragar eram especificamente concebidos para tais refre­gas. Como tal, muitos procuravam apenas manter-se próximos deles, engajando-os em lutas corpo a corpo na qual contestavam os martelos, esclangando-lhes os elmos com cotoveleiras e cabeçadas. Outros agar­ravam-se simplesmente aos inimigos, procurando enfiar as pontas das espadas pelas frestas mais acessíveis enquanto tentavam curvá-los com joelhadas nas couraças.

Taislin percebeu que a natureza da contenda não mais o favorecia, e decidiu ir em auxílio de Aewyre e Lhiannah, correndo pela sala como uma barata entre pernas azeradas e golpes de espada e martelo. Todos os seus instintos lhe diziam que não se aproximasse sequer do thuragar careca que se acercava dos seus amigos, e de fato o burrik sentiu que estava a atacar um vulcão prestes a cuspir fogo das entranhas da terra, um descontrolado turbilhão de fúria elemental que o destruiria se lhe chamasse a atenção. A prerrogativa de salvar os seus amigos opôs-se a essa relutância motivada pela auto preservação, mas ainda assim Tais­lin hesitou, detendo-se diante do corpo caído de um guarda, cujo gorjal fora arrombado pelo espeto de um martelo, o que lhe esmagara a garganta. Olhou revezadamente para Othragon, que se aproximava, inexorável como uma fenda na terra espremida por um terremoto, para Lhiannah, que lutava lado a lado com os guardas, e Aewyre, que che­gou finalmente a Ancalach e se dobrou para a agarrar.

Antes que pudesse decidir quem atacar ou auxiliar, viu também a entrada em cena de um recém-chegado, um pequeno homem agachado que surgiu à estraçalhada porta, envergando uma bizarra máscara de ferro com cornos e empunhando dois longos punhais. Apesar do tama­nho, era evidentemente humano, e pesasse embora o seu algo sinis­tro aspecto, o burrik inicialmente não o identificou como inimigo. O recém-chegado olhou em redor em busca de algo ou alguém, não parecendo particularmente preocupado com o combate que se desen­rolava na sala, mas pareceu então encontrar aquilo que procurara e anuiu com ar satisfeito, caminhando sorrateiramente por entre os corpos de humanos e thuragar. Taislin começou a desconfiar, mas sobressaltou-se com o clangoroso estrépito de um guarda e um thura­gar que caíram e rolaram pelo chão perto do burrik, desarmados e tentando matar-se um ao outro com as próprias mãos. Distraído, não viu de imediato o miasma negro que começou a emanar dos punhais do mascarado quando este se encaminhou na direção de Aewyre com um andejar de predador. Porém, quando tornou a olhar para ele reco­nheceu logo a ameaça que representava, pois as sombras que efluíam das suas armas e deixavam para trás um trilho esfumado eram pura maldade destilada. Tal como o monstruoso thuragar, havia naquele esguio humano algo de tenebroso que perturbava a um nível subcons­ciente quem se encontrasse na sua presença, e o desflorar das serpenteantes trevas nos seus punhais não passou despercebido aos guardas. Alguns olharam por cima dos ombros enquanto combatiam, outros hesitaram a meio de um golpe, e outros ainda sentiram-se avassalados pela presença de dois Aesh’alan num recinto fechado, uma sensação que oprimia o coração e fazia vacilar os mais resolutos. Os companhei­ros não eram imunes a semelhante impressão, mas nenhum deles repa­rou na presença de Dilet, que ergueu então ambos os punhais, apontando com eles de braços estendidos para Aewyre, que lutava con­tra dois thuragar. Taislin viu as sombras nestes agastarem-se, sibilando como cobras, e soube de imediato que o seu amigo corria perigo.

— Aewyre, cuidado! — guinchou, mas nem mesmo a sua aguda voz se conseguia fazer ouvir a meio do tumulto na sala, através da qual duas serpentinas de sombra singraram na direção do guerreiro.

Mesmo sem ouvir o aviso de Taislin, Aewyre sentiu o perigo imi­nente que voava na sua direção, captando o sombrio silvo e sentindo um arrepio que lhe eriçou os pêlos do pescoço. Virou-se por instinto, ignorando a ameaça de um thuragar nas suas costas enquanto o outro ao seu lado recuperava de uma finta do jovem, que o fizera tropeçar. De Ancalach em punhos, posicionou a lâmina transversalmente diante de si como proteção, mas o ataque que sentira rechinou-lhe pelo ouvido, atingindo a viseira do thuragar atrás de si. O guerreiro arnesado largou o martelo e levou ambas as mãos ao elmo, por cujas frestas e respiradouro as sombras se tinham infiltrado. O seu vagido de dor soou metálico, abafado pela viseira e pelas mãos, e o thuragar caiu ao chão, contorcendo-se de um lado para o outro.

Todas as atenções se viraram então para Dilet, cujo comparativa­mente subtil ataque se fez sentir pelo salão inteiro como o possante golpe que Othragon usara para desfazer a porta em lascas. O bobo abriu os braços numa graciosa vênia, agradecendo o obséquio, mas além de Othragon e dos seus thuragar, apenas Aewyre o reconheceu.

— Bobo?! — rugiu este em Olgur dentro da cabeça de Dilet. — Como ousas... ?

— Devo recordar o acordo que tínhamos, meu bom Othragon — disse Dilet calmamente, também por via telepática. — Podes matar os homens e violar as mulheres, ou mesmo vice-versa, mas o príncipe é meu.

A troca de palavras entre os dois Aesh’alan passou despercebida a todos os restantes, que ainda assim não deram continuidade ao com­bate, como que tementes da silente e sinistra conferência. As sombras e a escuridão ambiente pareceram mexer-se com uma vida própria enquanto os dois dialogavam, e a mera presença em combate de um Braço e um Passo d’O Flagelo foi quanto bastou para reter todos, mesmo aqueles que não os reconheciam como tal. Os thuragar hesi­taram, abalados pelo ataque daquele que tinham como aliado e cujo poder não subestimavam, e deram aos humanos o refolgo que estes precisavam para recobrarem da sua feroz acometida. Os guardas apro­veitaram apenas para se reagruparem, uns arrastando-se feridos para perto dos seus companheiros, outros aglomerando-se protetoramente à volta de Allumno e Aewyre, ao qual Daveanorn também se juntou.

— O humano feriu-me. Vou fazê-lo pagar.

— Por mim, podes dar-lhe chutes entre as pernas até fazer papa quando eu tiver terminado com ele, mas antes disso não lhe tocas. Foi isso que acor­damos. ..

— Vou fazê-lo pagar! — interrompeu Othragon.

— Então? Sejamos razoáveis...

— Interfere, bobo, e eu mato-te.

Ninguém o viu, mas a expressão de Dilet tornou-se séria debaixo da sua máscara, e o bobo rilhou os punhais um no outro, soltando negras faíscas de sibilante sombra.

— Pois então seja.

— Matem os humanos! — urrou Othragon em Garogar, erguendo a maça como um estandarte de batalha e carregando contra Aewyre com pesados passos. — Matem o traidor! Matem o burrik! Matem-nos a todos!

A batalha recomeçou, e foram os thuragar quem tomou a inicia­tiva, galvanizados pela fúria do seu senhor, que os impeliu contra os humanos num entrechocar de aço, armas e membros. Já algo desmo­ralizados pela desvantajosa situação, os guardas foram pressionados para trás, empurrados por uma vaga de thuragar que agora dançavam a um único ritmo, seguindo Othragon rumo ao sangue e à vindicação. Os companheiros tiveram de redobrar esforços para manterem coesos os guardas, e Worick era entre eles um autêntico gigante, martelando inimigos para fora do caminho e berrando gritos de alento aos homens que nem eram os seus. Allumno fazia ele também os possíveis, igno­rando a persistente dor na sua cabeça e desfechando surriada após surriada de esconjuros, que abrasavam, eletrificavam e colidiam contra os thuragar num autêntico festival de energias arcanas.

Separada do seu mentor, Lhiannah lutava agora ao lado de Daveanorn, que enquanto parceiro provou estar mais que à altura, dançando com a espada entre os toscos golpes de martelo dos thuragar. Aewyre tentou juntar-se a eles, mas Othragon veio a seu encontro, esbarrando contra e derrubando os seus próprios guerreiros com a maça levada atrás ao nível das pernas. A careta do mais puro ódio que trazia à cara dava a entender que ou o enfrentava, ou o Aesh’alan faria o palácio cair sobre as suas cabeças, e o jovem não descreu minimamente a ameaça, arrostando o inimigo com ferrada determinação e com Ancalach numa guarda lateral.

Othragon uivou de triunfo com a proximidade do seu adversário, e o chofre que a sua maça causou ao oscilar no local do qual Aewyre recuara bafejou para trás os cabelos do guerreiro, com os rebordos a assobia­rem afiadamente pelo ar. Tal como da primeira vez, Aewyre respondeu com um alto-abaixo, mas desta feita o thuragar defendeu-se com a haste da arma, da qual Ancalach arrancou uma comprida lasca. Afastando a espada com o coto da maça, Othragon procurou fustigar o jovem com ele, mas este patinou com a perna de trás, esticando-a enquanto flexionava a da frente para se baixar e evitar o golpe, retribuindo com uma brusca estocada de baixo para cima. A lâmina de Ancalach rilhou pela couraça do Aesh’alan, desviando-se da trajetória rumo à garganta deste e entalhando-lhe apenas o queixo, lábio inferior e saliente orla orbital. Othragon urrou de dor quando o fio do Flagício lhe passou pela pele, abrasando-lha como um ferro incandescente, e escoiceou como um animal ferido, chutando Aewyre no peito e projetando o adversário a uma distância segura de si enquanto levava a mão à cara.

Aewyre arquejou ao cair de lado ao chão, derrapando por este até parar de barriga para baixo e com o torso por cima do braço que empu­nhava Ancalach. A primeira coisa que viu à sua frente foi um par de coloridos sapatos de pelica com pontas alongadas nas quais tiniam pequenos guizos, e quando plantou a mão esquerda no chão para se erguer e olhar para cima, viu uma horrenda carranca de ferro sorrir-lhe, grotescamente distorcida pela perspectiva.

— Olá — cumprimentou Dilet, chutando Aewyre na cara e deitando-o de costas.

Com o adversário nessa posição, apontou para ele um dos seus som­brios punhais, que cuspiu uma sibilante descarga destinada a incapa­citá-lo, mas Aewyre oscilou Ancalach num arco defensivo, desfazendo a sombra como uma folha de papel queimada. De seguida, deu um golpe de pernas para se colocar numa posição acocorada, fitando Dilet e fazendo um derradeiro apelo ao «tendão» para que lhe concedesse a força de que iria necessitar. Apertou o punho de Ancalach com força, como se estivesse a espremer uma réstia da Essência da Lâmina à qual já tivera acesso. Os nós dos seus dedos ficaram brancos, e os seus dentes eram duas filas cerradas dessa mesma cor no semblante ensombrado pela luz das tochas.

Os seus esforços foram em vão, e Dilet soltou uma gargalhada metálica.

— Lorde Aewyre, se nos continuarmos a encontrar desta forma, em breve não haverá candelabros em Allahn Anroth! — gozou o bobo, olhando ainda de lado para Othragon, que vagia com uma mão levada à cara, oscilando cegamente com a sua maça, que além de um guarda colheu ainda dois thuragar por acidente. — Não foi boa idéia magoar o Othragon sem o matar. Ele ainda deita abaixo o palácio com todos nós cá dentro...

Aewyre não deu ouvidos aos devaneios do bobo, nem se dignou a responder-lhe, erguendo-se em silêncio e defrontando-o com relu­tante respeito. No seu último encontro, Dilet provara ser incompa­ravelmente mais perigoso que aquilo que o jovem pensara, e não iria ser novamente surpreendido por ele.

— Vendeste a tua alma a’O Flagelo, idiota inconsciente — limi­tou-se a dizer, colocando-se numa guarda baixa com Ancalach descaída para o chão. — Vou fazer com que voltes para ele.

Dilet sorriu um sorriso inviso.

— O vosso irmão manda cumprimentos.

Os olhos de Aewyre arregalaram-se, e o coração afundou-se-lhe no estômago ante a mera noção daquilo que Dilet podia ter feito a Aereth, sozinho e desamparado na masmorra na qual o deixara. O riso jocoso do bobo fez ferver o seu sangue, e o guerreiro abandonou a abor­dagem cautelosa que tomara, arrancando contra o adversário com um grito de raiva. Dilet riu e desviou-se facilmente do primeiro golpe, deslizando com a perna para trás e baixando-se do que se lhe seguiu, penetrando na defesa de Aewyre e tentando espetar-lhe um punhal debaixo do queixo. O jovem girou sobre um pé, cruzando as pernas e tentando decepar as do bobo por trás em resposta, mas este pulou gra­ciosamente para trás num salto mortal, apontando para Aewyre com um punhal ao aterrar. Deste emanou uma coleante rajada de agasta penumbra da qual o guerreiro se desviou, apenas para perceber que visara um thuragar que se preparava para o atacar por trás, atingindo-o na viseira. O agressor largou o martelo e levou as mãos à cara, dei­xando-se cair em agonia no chão.

— O príncipe é meu, suas toupeiras mal paridas! — disse Dilet, sabendo que os thuragar não o compreenderiam, mas certo de que transmitira a sua mensagem de forma convincente.

A meio do cego frenesi da sua fúria, Othragon conseguiu dis­tinguir as palavras do bobo, e virou a cara manchada de sangue na sua direção. Com um esgar de cólera, levou a maça ao alto e embateu com ela novamente contra o chão.

— Trkak Rkro!

As suas palavras rocais uniram-se ao estrondo metálico da sua maça no chão, e os ladrilhos debaixo dos pés de Dilet explodiram quando uma excrescência rochosa por eles irrompeu, projetando o bobo pelos ares. Toda a sala tremeu com o abalo tectônico, que fez com que todos os presentes vacilassem, e Taislin foi dos que aproveitaram o momento para atacar um adversário, cravando a adaga no jarrete de um thuragar que ameaçava Allumno. O mago reagiu de imediato, passando a mão pelo ar e emanando do gesto um leque de chamas cujo calor abrasou mesmo as faces do burrik, atordoando o thuragar ao queimar o ar den­tro do seu elmo.

— Como é que aquele thuragar está a usar magia? Não podes fazer nada contra ela? — perguntou Taislin, enterrando a adaga mais fundo no jarrete da perna do que atacara para a levantar, fazendo com que este caísse de costas.

— Não é magia — disse Allumno sem elaborar, pois não havia tempo para explicar.

Compreendia a confusão do burrik, pois tal como ele sabia per­feitamente que eahan e thuragar eram incapazes de usar a Palavra, mas havia outras e mais variadas fontes de poder em Allaryia, tais como a Essência da Lâmina ou o elã vital que os druidas usavam. Uma outra fonte era a energia telúrica à qual os thuragar conseguiam aceder como poucos, invocando o monolítico poder da própria terra através de runas e padrões geométricos feitos à medida das chamadas «veias», nas quais afirmavam correr a própria energia vital de Allaryia. O fato de Othragon — um Aesh’alan — ter também acesso a tal poder, possivelmente potenciando-o através da Sombra que era a dádiva do seu senhor... Allahn Anroth podia ser reduzido a escombros.

— Temos de o deter! — disse o mago. — A mim, homens! Nenhum veio, contudo, pois os guardas estavam a ser lentamente sobrepujados pelos thuragar. Cada um dos companheiros estivera imerso no seu próprio combate, e ninguém reparara na disparidade entre cadáveres humanos e thuragar no piso do salão, nem que a guarda regencial estava lentamente a ser empurrada para um dos cantos como um rebanho de ovelhas a ser cercado para a matança. Os lados da esca­ramuça estavam agora em maior evidência, pois embora a fúria de Othragon fosse uma ameaça para aliados e inimigos em igual medida, também conseguira unificar os dispersos thuragar numa única e maciça fileira que ameaçava separar Allumno e Taislin dos outros.

— Maldição... — praguejou o mago. — Segue-me, Taislin!

O burrik fez como lhe fora ordenado, indo atrás de Allumno quando este fez um propositadamente teatral gesto ao declamar um outro esconjuro, que fez brotar do chão uma pequena barreira de laba­redas azuis. A súbita aparição deteve o avanço dos thuragar que amea­çavam apartá-los dos restantes companheiros, e que recuaram um passo, levando os antebraços à cara para a resguardarem. Taislin e Allumno aproveitaram para avançar, enredando-se na apertada con­tenda na qual o combate se transformara e na qual os humanos ten­tavam agora evitar ser encostados à parede pelos seus inimigos. Worick era dos poucos que ainda davam mostras de algum ardor ofen­sivo, martelando incessantemente à sua volta como se tentasse esculpir um corredor de metal em seu redor à martelada. Os guardas, porém, começavam a dar mostras de uma quebra de moral, vendo-se pratica­mente incapazes de ferir os couraçados thuragar ou de igualar a ferocidade com que estes atacavam. Afinal, embora fiéis a Aewyre e à casa de Thoryn, a lealdade da recentemente reempossada guarda regencial não se equiparava à fanática devoção que os thuragar tinham por Othragon, e o ódio que sentiam para com humanos estava neles mais profundamente arraigado que as raízes das montanhas, um ódio que fazia da morte uma alternativa aceitável.

— Mas será que nenhum de vocês rabilas tem namorada? Estes cagalhões de morcego vão matar-vos primeiro, e depois vão violar tudo o que tiver saias! — rugiu Worick, tentando outra abordagem para moralizar os homens. — Se não lutam pelo vosso senhor, então, pela espada cruenta de Gilgethan, pelo menos lutem pelas vossas mulheres! Lutem, ou juro que vos mato antes de me matarem a mim!

Alguns guardas berraram em resposta, e outros cerraram os dentes em oposição aos thuragar, mas nem mesmo as inflamadas palavras de Worick conseguiram travar a arremetida do inimigo. Eram já dema­siado poucos, demasiado amassados pelos martelos dos thuragar, demasiado jovens e inexperientes para lidarem com a selvajaria assas­sina que sobre eles se abatera na calada da noite. Lhiannah e Daveanorn aperceberam-se disso, e o paladino empurrou a princesa pelo ombro para a afastar dos oscilantes martelos que se aproximavam, embatendo contra aço como uma fileira de martinetes. Lhiannah não objetou, até porque Aewyre se encontrava mais recuado, e aproveitou para ir ao seu encontro. O guerreiro estava entre Othragon e Dilet, que aterrara como um gato após ser atirado ao ar e que agora parecia indeciso entre atacar Aewyre ou o seu análogo. Othragon não tinha semelhantes dúvidas, avançando com o intento de despedaçar quem quer que se lhe pusesse à frente, e com metade da sua cara coberta por uma máscara de sangue que lhe manchava também os dentes arreganhados.

Aewyre hesitou, sabendo que alguém teria de enfrentar o thuragar antes que este fizesse o salão desabar, mas ao mesmo tempo relutante em dar as costas ao traiçoeiro Dilet. Quando virou a cabeça para ver Lhiannah aproximar-se, apercebeu-se também do quanto a maré do combate volvera, que aquilo era mais que um combate individual e que a situação começava a ficar desesperada.

— Vem! — disse à princesa, agarrando-a pelo braço e correndo com ela para longe dos dois Aesh’alan e para perto dos seus homens, pois corriam o risco de se verem separados destes.

Um thuragar ferido interpôs-se entre eles e os guardas, mas o jovem enterrou Ancalach até à metade na articulação do braço deste, e Lhian­nah matou-o com uma estocada certeira no peito, penetrando pela fresta deixada pela espaldeira amolgada. Alguns guardas chegaram entretanto pela porta pela qual os companheiros tinham entrado, e a sua corajosa investida contra a retaguarda dos thuragar comprara algum tempo aos seus quase cercados camaradas, mas não tardaram a ser abatidos. Ainda assim, permitiu a Aewyre e Lhiannah juntarem-se à guarda regencial e aos seus companheiros, que, apesar dos seus esforços, estavam a ser len­tamente pressionados contra a parede.

— Temos de sair daqui! — advertiu Worick ao ver o guerreiro. — É assim que eles mais gostam de lutar!

— É demasiado pequena! — disse o jovem, desferindo uma opor­tuna estocada e apontando para a porta que dava saída para um dos pátios interiores. — Morremos todos se formos saindo à vez!

— Morremos todos se eles nos encostarem à parede! Eles estão habituados a lutar em túneis apertados!

De fato, embora quase encostados aos adversários e com dificul­dade em usarem os martelos, os thuragar baixavam as cabeças e fin­cavam os pés no chão e, usando lâminas de tarjas ou os espetos das armas, iam avançando sobre os humanos como uma lenta mas avas­saladora maré de aço. Othragon urrou em triunfo ao ver os seus ho­mens avançarem e sufocarem os humanos, mas esse mesmo urro transformou-se num rugido de raiva frustrada ao ver-se impossibi­litado de carregar contra o inimigo e varrer as suas fileiras até chegar ao príncipe. A clara vantagem dos seus homens temperara-lhe a raiva o suficiente para não os ceifar a eles também num frenesi cego, mas não ao ponto de lhe escoar a acerba sede de sangue e a necessidade de sentir as vibrações de ossos triturados oscilarem-lhe pela haste da maça. Mesclando raivosa espuma ao sangue que lhe escorria pela face cortada, o Aesh’alan olhou em redor em busca de Dilet, pronto a empalá-lo nos rebordos da arma, pisar-lhe as pernas e mantê-las presas ao chão para o esventrar com um puxão. Murmurou essa mesma ameaça enquanto sondava o salão, passando a vista pelos arneses sangrentos espalhados pelo chão, mas não viu o bobo em lado algum, e o sangue do thuragar tornou a ferver quando virou novamente a cara para a compacta fileira dos seus homens. Estes avançavam como uma prensa sobre os cada vez mais apertados humanos, e Othragon sentiu-se tentado a arremeter simplesmente contra eles e fazer o chão ceder debaixo dos seus pés, mas os seus frêmitos sanguinários foram apla­cados por uma idéia que lhe ocorreu ao olhar para uma tapeçaria na parede. Esta retratava um trio de figuras regenciais nas efeminadas poses características aos humanos, e embora tivesse no thuragar o efeito de um pano trêmulo num touro por associação ao príncipe, reve­lou-lhe também uma outra abordagem possível.

Agindo mais por instinto que por acuidade tática, Othragon arremeteu cegamente contra a parede, esboroando-a com um tremendo golpe e um igualmente vigoroso brado. Com um troar que restrugiu por todo o salão, a maça do thuragar fez um buraco na parede, arran­cando dela a tapeçaria e cuspindo pó de argamassa e pedras de alve­naria para o pátio exterior. Ambos os lados dos combatentes vacilaram com o estrondo, mas os thuragar não se deixaram distrair e dessa forma forçaram os humanos a manterem a sua atenção neles centrada. Othra­gon atirou para o chão a tapeçaria que ficara presa na sua arma e saiu pelo enorme buraco na parede, esmagando bocados de pedra debaixo dos seus pés.

Os seus homens mal deram pela sua saída, e os guardas e com­panheiros estavam demasiado ocupados a rechaçar a investida dos ini­migos para repararem naquilo que se estava a passar. Aewyre e os outros tinham-se entretanto posicionado atrás de uma vacilante barreira protetora de guardas, e procuravam evadir-se pela porta contra a qual estavam a ser pressionados. Porém, esta estava fechada e ninguém tinha a chave e, com a pressão contra eles exercida pelos thuragar, sobrava pouco espaço para a tentarem arrombar. Taislin encontrava-se já aper­tado entre as pernas dos outros, tentando dar-lhes o espaço necessário para forçarem a porta, mas estes não estavam a ter grande sorte. Aewyre enfiava Ancalach pela fresta numa tentativa de a arrombar, enquanto Worick ia batendo violentamente com o martelo e o espeto deste na madeira e na fechadura, em vão.

— Rebenta-me com isto, mago! Não temos espaço para a mandar abaixo! — pediu Worick com um invulgar tom de aflição.

— Não posso! — respondeu este, agarrado a Lhiannah. — Tu e o Aewyre têm armaduras, mas as farpas...!

— Arre, antes farpas que martelos nos chifres! — vociferou o thuragar. — Rebenta-me a porra da porta!

— Faça-o, Allumno! — concordou Aewyre, virando as costas à porta para com elas resguardar Lhiannah, que cobriu com os braços. — Deita-a abaixo! Vem cá, Taislin! Mestre, tenha cuidado e proteja-se.

Daveanorn anuiu, espetando ainda com a espada entre dois dos seus homens ao ver a cara de um thuragar surgir no meio deles.

— Chega-te para trás de mim, filho — disse a um dos guardas, puxando-o para trás pela espaldeira e tomando o seu lugar na irregular fileira que os thuragar tentavam quebrar.

Porém, nem este teve oportunidade para reclamar nem Allumno para pronunciar as palavras para desfazer a porta, pois um brado fez-se ouvir do outro lado da parede e o mundo desabou sobre todos com um estrondo que lhes despejou pedras e argamassa em cima. O impacto atingiu os guardas no flanco e derrubou vários quando cacos repicaram contra armaduras, mas o brado no exterior deixara os thuragar de sobreaviso, e estes protegeram-se a tempo. Aewyre levou com uma pedra na cabeça e Lhiannah sofreu um ligeiro corte no braço com um pedaço, mas embora os restantes companheiros e guardas fossem resguardados do pior, o abalo foi quanto bastou para providenciar aos thuragar a abertura de que estes precisavam. Vendo que os atordoados humanos tinham baixado a guarda, tornaram a arremeter sobre eles com renovado vigor ao mesmo tempo que Othra­gon urrava, emergindo do pó e dos escombros com uma vitoriosa pose de braços abertos.

— Morte! — exigia este, pronto a mergulhar na iminente carni­ficina, e os seus guerreiros responderam com redobrado alento, amas­sando e amolgando com os seus martelos numa acometida que deitou por terra boa parte dos guardas que restavam.

O pensamento não ocorreu sequer a Aewyre, mas a realidade de que iria morrer ali com os seus amigos decuplicou os seus esforços, e o guerreiro passou sobre o corpo do guarda quebrado aos seus pés para ceifar o primeiro thuragar que viu à frente. Worick reagiu da mesma forma, rugindo em Garogar e martelando com abandono, mas eram apenas dois contra um batalhão de thuragar e um Aesh’alan, e ambos sabiam que não durariam muito. Aewyre ainda fez um derradeiro apelo ao «tendão», cerrando os dentes e recorrendo à tênue e sempre presente tensão que este exercia na sua mente, prometendo-lhe um combate acerca do qual os bardos comporiam um hino ao aço, pro­metendo desbastar os inimigos à sua frente e fazer sangue, pele e metal voar. De nada serviu contudo, e se Kror sentira alguma coisa, tal não se refletiu minimamente no guerreiro, cuja vista era cevada por um ror de caras inimigas entre os ombros de dois desesperados guardas, e cujos braços nada acusaram além de uma crescente fadiga. Não olhou sequer para trás, temendo ver Lhiannah, Allumno ou Daveanorn mor­tos, e atirou-se simplesmente sobre os inimigos, preferindo morrer a ter de suportar semelhante visão.

Foi então que um dos elmos thuragar se inclinou bruscamente para trás, como se atingido por algo nas costas, sendo seguido por outro. A maior parte dos desesperados guardas nem deram por isso, ocupados como estavam a lutar pelas vidas ou, como era caso de alguns, a tenta­rem levar um último inimigo consigo antes de morrerem. Ainda assim, outros dois thuragar caíram com os sons rombos de metal a ser perfurado, levando alguns a despertarem do seu cego frenesi e olharem para trás. Esses soltaram roucos gritos de alarme, chamando a atenção dos seus camaradas, mas pouco mais puderam fazer antes de vultos envergando arneses amarelados entrechocarem com eles, malhando-os com espadas de lâminas largas e achas-de-armas. Na con­fusão inicial, pouco mais se viu além de um debulhar de braços e elmos dourados e azerados, no qual aço raspou contra aço e os thura­gar gritavam em rebate e desordem. Othragon percebeu apenas que os seus homens estavam a ser atacados por trás, pois os dois grupos de combatentes estavam entre ele e os recém-chegados que os acome­tiam, e esqueceu momentaneamente o príncipe, empurrando guer­reiros seus para fora do caminho para defrontar a nova ameaça.

Aewyre e os companheiros estavam igualmente confusos, arran­cados da hora do seu maior desespero pela inesperada investida de algo ou alguém que apenas não consideravam inimigo, por estar a atacar aqueles que se encontravam no caminho. Ninguém os conseguiu sequer reconhecer pelo que eram, mas o refolgo que providenciaram foi prontamente aproveitado: Allumno desencadeou uma fervilhante descarga sobre as cabeças dos guardas curvados à sua frente, quei­mando as dos thuragar dentro dos elmos destes; Aewyre empurrou um adversário demasiado próximo com o pé e espadeirou-lhe a cabeça; Worick martelou um outro e Lhiannah conseguiu encontrar espaço para estocar outro ainda na garganta. Os thuragar não reagiram de imediato, não mais avançando sobre os guardas mas sendo agora empurrados contra eles pela pressão daqueles que os atacavam por trás.

— Firmes, filhos da terra, firmes! — encorajou-os Othragon ao mesmo tempo que os derrubava numa tentativa de chegar ao inimigo, puxando thuragar pelos braços ao chão e esbofeteando para fora do seu caminho aqueles que via vacilarem.

— De onde vieram estes todos? — perguntou Worick a Aewyre, curvando com uma martelada a cabeça de um oponente para baixo.

— Não sei! Eles...

— A Hoste Dourada! — gritou Allumno a custo, com a sua cres­cente exaustão a transparecer-lhe na voz. — É a Hoste Dourada!

— Como?! — indagaram Aewyre, Worick e Daveanorn em unís­sono.

Os guardas não se lhes juntaram, mas vários soltaram arquejos de surpresa e incredulidade ao ouvirem as palavras do mago. Não houve porém ocasião para adicional troca de palavras, pois os thuragar recuperaram e tornaram a mostrar o boto dente, reagindo com desen­freados golpes. Martelos e espetos de tarjas tornaram a assaltar os humanos e viraram-se também para o inimigo que os atacava pela retaguarda e que os guardas mal conseguiam ver, mas cuja presença lhes deu novo alento. Mesmo aqueles que não ouviram as palavras de Allumno reagiram com renovado ânimo, lutando como animais encur­ralados, e os recém-chegados desbastavam a linha thuragar com pre­cisão e implacabilidade quase mecânicas, deixando-se entrever apenas como vultos dourados manchados de sangue, peças de armaduras dependuradas do ar, armas a oscilarem com a regularidade de enge­nhos.

— É a Hoste Dourada! — confirmou Aewyre, quase sufocado pelo alívio que partilhava com os guardas, e que cedo se transformou em vingativa represália. — A eles, homens!

Os thuragar viram-se então eles sitiados entre uma superciliosa força que os podava por trás, e uma agora inesperadamente resistente barreira humana à frente. Aewyre e Worick cedo vieram para a frente, assim que Allumno lhes abriu uma brecha com um faiscante leque amarelo da mão, e juntos deram o exemplo para os guardas assumirem a ofensiva. Tal não durou muito, pois assim que pareceu que a maré da batalha iria virar, Othragon surgiu de entre os seus thuragar, berrando com a grotesca cara tingida de sangue e projetando pelo ar um trio de armaduras douradas com um só raivoso golpe. A contenda tornou-se então mais frenética e viciosa que antes, com os humanos a lutarem desesperadamente pela sobrevivência e os thuragar a verem-se confron­tados com uma muito real possibilidade de serem exterminados. Com a linha de combate cada vez mais irregular e indefinida, os novos parti­cipantes ficaram por fim visíveis a todos, revelando-se como um sortido de armaduras segmentadas e feitas de ouro, inexpressivos elmos antropomórficos em cuja falta de expressão residia a sua inflexível determi­nação. Munidos de armas e escudos igualmente arcaicos, provavam não obstante ser adversários mais que equiparados aos pesadamente armados e armadurados thuragar, espadeirando-os com uma força do além que fendia as armaduras inimigas e embotava e rachava as suas próprias espadas. Os golpes dos thuragar amolgavam-lhes e amas­savam-lhes o vetusto metal, mas as armaduras continuavam a atacar e a matar em absoluto silêncio, imunes à dor e ao cansaço. Não só isso, como também pareciam distinguir perfeitamente os seus alvos, pois mesmo a meio da resultante confusão de lados difusos e adversários embrenhados uns nos outros, nem um único humano foi por elas atingido.

O salão encontrava-se atapetado por uma mortualha revestida a aço ensangüentado, com ladrilhos rachados e tingidos de vermelho e os seus belos padrões corteses substituídos pela autêntica bitola de corpos quebrados sobre eles dispostos em poses torcidas e com a luz das tochas refletida nos seus olhos vidrados. Os combatentes tropeçavam, pisavam e passavam por cima daqueles que tinham caído, escorregando no seu sangue enquanto tentavam acrescentar os seus adversários à macabra tapeçaria no chão. Othragon dançava em fúria entre as armaduras da Hoste Dourada, apercebendo-se de que os seus homens corriam agora sério perigo, e Worick, apercebendo-se de que o Aesh’alan podia virar a maré da batalha por si só, decidiu intervir. O thuragar varria o ar à sua volta com a desmedida maça, estraçalhando a oposição em seu redor, e Worick atacou-o por trás com uma martelada que falhou o alvo, pois Othragon mexia-se freneticamente. O golpe ressoou na couraça, dese­quilibrando o Aesh’alan, que se virou para a nova ameaça demasiado depressa para que Worick conseguisse recuperar para dar seguimento ao ataque.

— Traidor! — rosnou Othragon em Garogar, borrifando a cara e o elmo do thuragar com sangue e cuspe, e cortando o ar com os rebor­dos da sua maça.

Worick ainda se conseguiu desviar, mas não foi capaz de evitar o revés com o coto da arma, que lhe embateu no peito como um aríete, arrojando-o de costas contra a parede.

— Cão dos humanos! — raivejou o Aesh’alan, desfazendo outra armadura dourada que se lhe meteu no caminho e encaminhando-se a pesados passos na direção do atordoado Worick. — Primeiro tu, depois eles!

Allumno discordou, e enviou uma serpenteante saraivada de fei­xes azulados na direção de Othragon, contra cujo peito estes reben­taram em incandescentes fagulhas, detendo-o momentaneamente. Uma outra armadura atacou-o então, visando-lhe a cabeça com um golpe de espada, mas o thuragar defendeu-se com o cabo da arma, que cuspiu farpas ao ser mordido pela anciana lâmina, e que de seguida clangorou contra a animada armadura, decompondo-a nas suas par­tes com um possante golpe. Worick recuperou o suficiente para se levantar, mas Othragon investiu contra ele como um touro enrai­vecido, pronto a incrustá-lo na própria parede, sendo novamente deti­do pela magia de Allumno, que o atingiu na forma de uma bola de fogo que rugiu pelo ar antes de lhe explodir em chamas no flanco. O Aesh’alan rugiu em ardente dor, e um dos thuragar atacou o mago em resposta, mas Daveanorn varreu-lhe a perna do chão com uma espadeirada, derrubando-o de costas e enfiando-lhe a lâmina no peito com ambas as mãos. O paladino apoiou de seguida o pé sobre a cou­raça do thuragar e puxou a espada com um violento sacão, olhando para o mago com a cara salpicada de vermelho e vendo atrás deste uma figura familiar ao fundo da sala.

— Lorde Aereth! — gritou, vendo-o desprotegido à escancarada entrada.

O irmão de Aewyre mais parecia um desolado fantasma, envergando a sua suja e amarrotada túnica vermelha às portas destruídas, olhando à volta com ar assustado e assombrado. Não pareceu ouvir a voz de Daveanorn, pois avançou alguns trôpegos passos como se esti­vesse à procura de alguém, e nem reparou no colorido vulto que desceu do teto, aterrando numa pose felina nas suas costas.

— Aereth! — tornou o paladino a chamar ao ver Dilet erguer-se com ambos os punhais a fumegarem sombras. — Aereth, cuidado! Allumno!

Ao contrário do jovem regente, o mago ouviu o chamamento de Daveanorn, e virou-se na direção do grito, vendo o paladino tentar desesperadamente abrir caminho por entre os thuragar e armaduras. Foi então que avistou Aereth e a figura mascarada que dele se apro­ximava, e embora não a reconhecesse como Dilet, apercebeu-se pron­tamente da ameaça por ela representada. Como tal, ignorou os thuragar mais próximos e projetou três relampejantes dardos com uma sacudidela da mão, lançando-os numa irregular trajetória contra o bobo, que os viu virem como fulgurantes pontos luminosos na sua direção. Aereth também se apercebeu deles, encolhendo-se defen­sivamente, mas o alvo dos dardos era Dilet, que cortou o ar repeti­damente com golpes dos punhais, envolvendo os projéteis com fiapos de sombra que a eles se agarraram como pegajosas teias, deixando-os cair inertes no chão antes de se desvanecerem. Aereth nem se deu conta da presença do bobo atrás de si, mas este distinguiu Allumno entre a multidão e sorriu dentro da sua máscara, girando os punhais nas suas mãos e saltitando de encontro ao mago.

Aereth assustou-se ao ver Dilet passar ao seu lado, mas o bobo estava agora focado em Allumno, ciente de que este era o único capaz de o atacar à distância, e saltou sobre as cabeças de thuragar para o eliminar. Raios arcanos escarlates singraram pelo ar enquanto o mago o tentava atingir, mas Dilet evadia-se deles com destras piruetas pelo ar enquanto saltava de elmos dourados e espaldeiras thuragar. O bobo rodopiou após um alto pulo, surpreendendo Allumno ao apontar ambos os punhais contra ele e deles lançar um alongado pseudópode de sombra, forçando o mago a criar um novo escudo disciforme diante de si, contra o qual a penumbra se desfez oleosamente. Dilet caiu então de pé e perto de Allumno, e a sua risada metálica fez-se ouvir mesmo a meio do furioso combate que à volta de ambos se desenrolava.

— Saudações, conselheiro Allumno — cumprimentou com uma vênia de mãos armadas. — Nunca me haveis tratado tão mal quanto o vosso protegido, mas a vossa magia faz de vós um alvo a abater, e a verdade é que nunca simpatizei verdadeiramente convosco.

O mago reconheceu então Dilet mas não respondeu, procurando arrancar-lhe a máscara da cara com uma concussora emanação de energia da sua mão, da qual o bobo contudo se desviou, baixando-se. Em resposta, o seu pé surgiu do nada, atingindo Allumno com o cal­canhar na têmpora num golpe que trovejou na cabeça do mago, derrubando-o e fazendo com que largasse o cajado ao bater com as mãos no chão.

— Imagino-vos surpreso — achou-se Dilet no direito de se vangloriar, cuspindo sombra com um punhal contra a cara de um guarda que se aproximou e virando de seguida as pontas das armas para baixo. — Mas o poder d’O Flagelo pode fazer com que mesmo um bobo chegue para o filho de Aezrel Thoryn e o discípulo de Zoryan, dois homens que eu aliás sempre quis mortos. Na sua ausên­cia, vós e o vosso protegido terão de servir, e o meu senhor que se dane. Valerá a pena ter a minha alma destrinçada só pelo prazer de vos matar...

Dilet preparou-se para desferir a estocada mortal, mas Lhiannah interveio a tempo, atacando o bobo por trás. Este ouviu e sentiu a investida, virando-se a tempo e desviando-se da sangrenta ponta triangular do estoque de Lhiannah, que estava perfeitamente ciente do perigo que o bobo representava e não deu seguimento imediato ao golpe, preferindo deixar Dilet entre si e Allumno e esperar que este recuperasse a tempo.

— Ah, princesa — cumprimentou o bobo. — Admirável, a vossa coragem, mas agora tereis de... oh, mas que chatos! Porque não são capazes de morrer à vez?

Dilet notou a aproximação de Daveanorn, que retrocedera pelo seu caminho ao ver Aereth fora de perigo imediato, e viu-se então entre o paladino e Lhiannah, que atacou numa tentativa de o flanquear. O bobo aparou facilmente com um punhal o golpe destinado a distraí-lo, encalhando os copos na lâmina, e virou-se de rompante para Daveanorn, apontando a outra arma contra ele. Como parte do mesmo movimento, executou uma hábil pirueta, saltando por cima da cabeça de Lhiannah e expelindo uma língua de sombra contra o paladino, que dela se conseguiu afastar por pouco. O movimento torceu a espada da princesa, arrancando-lha bruscamente da mão e fazendo-a girar pelo ar a par de Dilet, cujos pés tocaram o chão ao mesmo tempo que a lâmina contra ele retiniu. Lhiannah reagiu, surpreendendo o bobo com um pé na virilha assim que este se achegou para terminar o serviço, e ainda o agarrou pelos chifres da máscara, puxando-o com o intuito de o derrubar aos pés de Daveanorn, mas Dilet deixou-se ir com a arrancada e, com um golpe de pernas caiu em pé entre os dois adver­sários. O paladino tentou espadeirá-lo, mas o bobo arqueou para trás as flexíveis costas, apercebendo-se de que Lhiannah ia pegar na sua espada, e ainda despediu uma sibilante serpente sombria antes de se endireitar, raspando na perna desnuda da princesa e recebendo logo de seguida o novo golpe de Daveanorn com os dois punhais cruzados.

Entretanto, Othragon ocupava-se com a quase exclusiva atenção que as armaduras douradas lhe davam, tendo sido evidentemente reconhecido como a principal ameaça. Worick desaparecera-lhe da vista entre tantas armaduras douradas, e o Aesh’alan virará toda a sua fúria para estas, golpeando com a sua maça como uma debulhadora e lançando pelo ar peças de arneses desconjuntados. Enquanto o fazia, rugia encorajamento aos seus homens e bradava invetivas de retri­buição aos humanos na sua própria língua, lutando como um titã das profundezas prestes a fazer o mundo desabar sobre a sua cabeça e as dos seus inimigos caso necessário fosse. Worick rondava-o, abatendo thuragar à martelada enquanto esperava por uma abertura para retri­buir o tremendo golpe que Othragon lhe desferira, mas as armaduras pareciam mais que dispostas a serem elas a tombar o inimigo, acicatadas pelas imemoriais reminiscências da Batalha do Sol Nascente e da Guerra da Hecatombe. Não foi senão quando Aewyre surgiu do nada e, de Ancalach em mãos, que os arneses dourados se apartaram, abrindo-lhe um convidativo caminho para Othragon. O jovem aper­cebeu-se de que as armaduras reconheciam a Espada dos Reis e, con­trariando o seu instinto de sobrevivência, avançou de encontro ao thuragar, que o desafiou a avançar. Sangrava de uma série de feri­mentos além daquele que o jovem lhe infligira, mas parecia ser esse aquele que mais dor ainda lhe causava, e Othragon estava desejoso de vingança, ao ponto de se deixar atingir por três golpes e avançar na direção do guerreiro.

— És meu, príncipe! — declarou, esboroando as armaduras mais próximas com uma oscilação em arco e erguendo a maça em prepa­ração de outro certamente devastador golpe ao chão.

Aewyre avançou a correr numa desesperada tentativa de evitar o abalo, mas não teria tempo para cobrir a distância que os separava e atingir o torso exposto do Aesh’alan antes de este destruir tudo à sua volta. Retesando-se já em antecipação da revolta do piso, o guerreiro ficou tão surpreendido quanto Othragon quando este sentiu um ines­perado peso adicional na sua maça, que lhe arqueou as costas ligeira­mente mais para trás e concedeu a Aewyre os preciosos segundos de que este precisava. Sem sequer reparar que era Taislin quem pendia de braços e pernas da extremidade da maça, tentando fazer-se mais pesado, Aewyre arremeteu com um grito, visando a fresta entre a faldra e a couraça de Othragon enquanto este estava exposto. O Aesh’alan arregalou os olhos vermelhos de sangue e fúria e, recuperado da surpresa, desferiu o golpe, projetando um guinchante Taislin pelo ar com o ímpeto. Aewyre foi ainda assim mais rápido, e com a maça ain­da a meio do golpe, perfurou a dobra do arnês do thuragar, espetando-lhe um quarto de Ancalach na barriga.

O vagido de Othragon foi ensurdecedor, e gelou o sangue de todos, humanos e thuragar, em igual medida. A incandescente dor que lhe trespassava as entranhas fê-lo perder momentaneamente a visão, e as vascas da sua agonia lançaram-no numa série de gestos convulsivos com os membros e a cabeça. Exposto como estava, Aewyre foi incapaz de evitar o braço arnesado que contra ele veio de mão aberta, atin­gindo-o na omoplata e lançando-o com violência para longe, sepa­rando novamente o jovem de Ancalach, que permaneceu cravada no ventre do Aesh’alan. Este agarrou o punho da Espada dos Reis numa tentativa de a arrancar, mas o mero contato com a arma fazia-lhe os ossos da mão rangerem de forma cruciante, e as armaduras douradas caíram-lhe em cima assim que Aewyre foi afastado a rolar pelo chão.

Do outro lado do salão, Daveanorn via-se forçado a fazer uso de toda a sua perícia e mestria com a espada para se opor às ligeiras e mortíferas estocadas de Dilet. Lhiannah tinha uma mancha escura no gêmeo direito da perna, como se a pele tivesse sido cauterizada sem qualquer calor, mas ignorou a dor e pegou no seu estoque caído entre um par de pernas humanas e thuragar para ajudar Daveanorn. O pala­dino tentava manter o bobo à distância, mas este acercava-se em repentinos golpes com rapidez viperina, e punhais chispavam como serpentes assanhadas ao rilharem na lâmina já com bocas. O bobo já não ria nem dizia piadas, determinado como estava a eliminar aqueles que o separavam de Aewyre, antes que o príncipe fosse morto por uma martelada perdida ou esmagado por Othragon, mas a situação chegara a um ponto em que não podia parar de se mexer. Havia guardas e thuragar por todos os lados, ambos igualmente dispostos a matá-lo, e o mestre de armas de Allahn Anroth estava a postos para o castigar pela mais pequena distração. Lhiannah juntou-se novamente ao combate, estocando sem aviso, mas Dilet posicionou-se entre os dois adversários, estendendo os braços para ambos e aparando os respecti­vos golpes com os punhais, que seguidamente torceu para travar as espadas com os copos. Não as conseguiu prender, mas encalhou as lâminas o suficiente para, com um puxão de ambos os braços para o centro, desequilibrar a princesa e o paladino. Deixando-se levar pelo movimento, o bobo rodopiou como um pião humano pelo ar, abrindo as pernas para chutar os dois ao descrever um rodopiante mortal e aterrar a poucos passos de distância dos inimigos.

Foi prontamente saudado por um thuragar, que lhe tentou arran­car a máscara com um brutal golpe por trás, do qual Dilet facilmente se baixou, despedindo por cima da cabeça um pontapé como um escorpião que desequilibrou o opositor. Um guarda carregou sobre ele com uma espada partida, bastando contudo uma passada lateral para que o humano chocasse contra o thuragar e os dois caíssem ao chão em combate mortal. Allumno estava suficientemente recuperado para não permitir ao bobo um único momento de refolgo, e a sua acometida arcana tomou este de surpresa, faiscando sobre Dilet como uma teia elétrica que lhe arqueou as costas e o fez tropeçar com as contorções dos membros. Daveanorn já investia, e assim que viu Dilet atordoado, tentou alanhar-lhe o pescoço, mas este conseguiu ainda baixar a cabeça, sofrendo dessa forma apenas uma espadeirada na cara que lhe partiu um dos chifres recurvos da máscara. O golpe repicou-lhe na cabeça, e o bobo cambaleou, exposto ao ataque de Lhiannah quando esta tentou flanqueá-lo novamente. Dilet formou um chicote de penumbra com um dos punhais, procurando vergastar a arinnir com ele, mas este saiu-lhe demasiado curto e alquebrado, e fez apenas com que a princesa recuasse, conseguindo ainda assim o espaço e o instante necessários para recuperar do golpe de Daveanorn, que retomou de imediato a ofensiva.

Othragon não recuperou tão depressa do ferimento que sofrerá, e a única forma que tinha de não se dobrar em agonia era varrer tudo à sua volta num ciclone de destruição, lançando destroçadas armadu­ras douradas pelo ar. Worick não via Aewyre a meio da confusão de arneses, e sentiu que teria de ser ele a tomar medidas antes que o Aesh’alan chegasse perto de um dos pilares do salão e fizesse com que o palácio lhes desabasse em cima. Ignorando o seu instinto de auto-preservação, que lhe gritava que não se aproximasse da desumana e imparável vaga destruição que era Othragon, o thuragar carregou contra este, tencionando enterrar-lhe Ancalach mais ainda no ventre à martelada ou esventrá-lo. Teve de se baixar de uma couraça dourada que contra ele voou, mas não perdeu um único passo na sua investida e penetrou por uma das devastadoras oscilações da sangrenta maça do Aesh’alan, bradando ao desferir o seu golpe. A martelada foi certeira, mas as contorções de Othragon fizeram com que embatesse contra o pomo de Ancalach num ângulo lateral. Dessa forma, a lâmina rasgou-lhe um pouco mais o ventre ao ser impelida para o lado, antes de lhe deslizar para fora da carne pela força do golpe, sendo expelida da fresta da couraça por um soluço de sangue escuro e deslizando pelo chão.

O misto de alívio e da mais crua dor no berro de Othragon foi atroa-dor, e pareceu atingir Worick fisicamente, mas o que o thuragar sen­tiu verdadeiramente foi a iminência da sua morte ao ver os braços do Aesh’alan tombarem sobre ele como dois pilares ruídos. Sem ter como deles se afastar, atirou-se de cabeça contra Othragon, e embora os re­bordos da maça retinissem aguda e inofensivamente contra o piso, os grossos braços embateram no dorso do thuragar com uma força que lhe levou os joelhos ao chão, expondo-o a uma joelhada que o fez cair de lado e de costas aos pés do Aesh’alan. Um destes amolgou-lhe a couraça ao pisá-la, violentando o ar para fora dos pulmões de Worick e prendendo-o numa posição vulnerável que o thuragar soube de imediato ser a sua sentença de morte, assim decretada pelos olhos injetados de sangue que se baixaram sobre ele.

— Morre, traidor! — rouquejou Othragon com a face contorcida numa sangrenta e odiosa máscara, alçando para trás a maça com o intuito de lhe pulverizar a cabeça.

Worick não cerrou os olhos, apenas os dentes, mas da sua posição não conseguiu ver Aewyre baixar-se a meio de uma corrida para pegar em Ancalach, galgando a distância que o separava de Othragon com desesperados passos das longas pernas. O Aesh’alan via apenas a morte do traidor aos seus pés, e tomou impulso com a cintura para trazer a maça num arco mortal, do qual Worick se tentou em vão defender, cruzando os braços. Aewyre conseguiu porém interceptar a arma a meio da sua trajetória, atingindo a já mordida e falqueada haste com um certeiro golpe de Ancalach. O gume da Espada dos Reis abcindiu a cabeça da maça na base, lançando pelo ar os quatro afiados rebordos, ao passo que a ponta da haste cortada ainda embateu com violência contra os braços de Worick, fazendo-os colidir com o elmo deste e com que este ressaltasse contra o chão. Othragon virou-se para trás com a boca hiante e dentes arreganhados com peganhentos fios de saliva esticados entre estes, e Aewyre respondeu à hedionda visão com um berro e um golpe de Ancalach com as duas mãos, decapitando o Aesh’alan.

A maciça cabeça caiu ao chão com um baque sonoro, rolando com um grito de fúria e frustração nela estampado até que ficou a oscilar de lado sobre os ladrilhos, olhando para ninguém em particular com os seus entrançados crescimentos pilosos colados ao rasto de san­gue que deixara. O corpo de Othragon tentou dar-se conta daquilo que sucedera, mexendo-se como para dar um passo na direção do seu carrasco, mas acabou por tombar estrepitosamente ao chão, jorrando sangue aos borbotões do pescoço decepado. Nem todos os thuragar o viram, mas aqueles que assistiram à morte do seu líder gritaram em desalento, como se a sua única ligação com a terra que lhes dava força tivesse acabado de ser cortada, e vários tombaram nesse mesmo instante. Nenhuma fúria vingativa deles se apossou, nem sequer o surto de energia desesperada de animais encurralados que nada mais tinham a fazer além de lutarem pelas suas vidas, e as armaduras da Hoste Dourada ceifaram-nos impiedosamente. Os poucos guardas que restavam sentiram eles também a repentina fraqueza do inimigo, e caíram-lhes em cima com espadas embotadas, partasanas partidas e os próprios punhos, nada mais querendo que arrancar a vida dos corpos desumanos e desprovidos de expressão dos seus inimigos. Os thuragar começaram a cair aos punhados, alguns largando debalde os martelos em sinal de rendição, só para serem abatidos por um indiferente arnês ou um vingativo humano.

Dilet deu-se conta de que a maré da batalha virará, e que as cir­cunstâncias deixavam de o favorecer. As armaduras exterminavam os thuragar, pisando os seus corpos com botas douradas enquanto avan­çavam, e não tardariam a virar as suas atenções para ele, pelo que urgia fugir e esperar por uma nova oportunidade para se vingar de Aewyre Thoryn. Lorde Daveanorn e a princesa Lhiannah continuavam a as­sediá-lo, tentando expô-lo a um novo ataque do conselheiro Allumno, que, agora rodeado de armaduras a eliminarem os thuragar que o ameaçavam, esperava apenas por uma abertura para melhor fazer uso dos seus poderes. Já sem quaisquer ilusões de conseguir levar a cabo os seus planos, o bobo sondou rapidamente o salão por uma via de fuga, e avistou a janela mais próxima sobre uma tapeçaria que pode­ria facilmente trepar. Traçando a sua rota mentalmente, optou por distrair o mago, evadir-se dos ataques que certamente se seguiriam dos seus dois adversários mais próximos, e correr desalmadamente para a janela. Esperou então pelo momento certo e, ao desviar-se de outra espadeirada de Daveanorn, agachou-se com uma perna flexionada e a outra estendida para o lado, apontando com os punhais para Allumno. Destes emanou outra negra rajada de pura penumbra, com a qual tencionava distrair o mago para poder escapar, mas este surpreen­deu-o, respondendo com uma esfuziada sua em vez de se defender. A rubiácea emanação da ponta do seu cajado fendeu a tetra língua de sombra, singrando na direção de Dilet e obrigando o bobo a cabriolar algo desajeitadamente para a evitar, o que o deixou exposto à estocada de Lhiannah.

A rígida ponta de aço rompeu-lhe a pele da coxa e mordeu-lhe a carne, raspando-lhe dolorosamente no osso, e o bobo contorceu-se afli­tivamente como um gato agarrado pela cauda. Os seus punhais silva­ram ameaçadoramente no local onde a cabeça de Lhiannah tinha estado antes de esta puxar o pescoço para trás, e os oleosos fiapos de sombra ainda se colaram às pontas louras do cabelo da arinnir. Foi todavia incapaz de se libertar da espada que lhe filava a perna, que lhe rasgou mais ainda a carne com o brusco movimento e cuja ponta lhe saiu do outro lado quando o bobo se torceu para chutar Lhiannah na cabeça com a perna livre. A princesa foi derrubada com o golpe, mas ao cair dilacerou a parte superior da coxa de Dilet, originando um aflito berro metálico da parte deste. Daveanorn aproveitou o momento e agarrou um dos pulsos do bobo, partindo-o com um tor­ção que o levou aos joelhos e de costas arqueadas, exposto à estocada mortal da espada do paladino.

— Não! — ouviu-se um grito a meio do massacre em redor, e a lâ­mina de Daveanorn viu-se envolta por uma luzente película cor de rubi.

Apesar da surpresa, o golpe foi ainda assim levado a cabo contra a base da garganta de Dilet, sem que contudo o aço penetrasse, emba­tendo antes num golpe contundente que originou um ruído estran­gulado da parte do bobo ao prostrá-lo de costas sobre as suas pernas flexionadas.

— Não o mate! — rogou Allumno, correndo a custo por entre armaduras ao encontro do estupefato paladino. — Precisamos dele!

Sem saber como reagir, Daveanorn distraiu-se momentanea­mente e não se apercebeu da mão boa de Dilet a erguer-se com um punhal chispante, que foi contudo, calcado contra o chão pelo pé de Lhiannah. O bobo tornou a berrar quando os seus dedos rangeram e estalaram debaixo da sola da bota, e a princesa preparava-se para varar Dilet ao piso, uma intenção que o sobressaltado paladino com ela par­tilhou.

— Malditos sejam, não! — vociferou Allumno, jorrando luz ver­melha sobre os combatentes com o seu cajado numa pose ameaçadora que fez com que mesmo Lhiannah julgasse que o mago os ia atacar, o que bastou para que esta retivesse a sua estocada.

Fez-se então um silêncio abrupto na sala, no qual os companheiros tiveram pela primeira vez ocasião de contemplar a carnificina espa­lhada em seu redor. Os abafados grunhidos de thuragar comprimidos e encurralados entre armaduras a serem mortos quebraram amiúde o silêncio, e o clangor do aço ressoava pelo salão durante aquela que se tornou numa lenta e tortuosa chacina. Os poucos guardas sobrevi­ventes deixaram-se cair de costas e ombros contra as paredes e pilares mais próximos; outros tremiam incontrolavelmente com a encarniçada adrenalina que lhes corria nas veias; nenhum se juntou às armaduras na sua matança. Além dos companheiros, ninguém tinha ainda per­cebido muito bem o que sucedera ou o que tinham acabado de enfren­tar, e agora que o perigo esmorecia aos gemidos aos seus pés, os guardas começavam a sentir as mentes entorpecidas, aturdidas pela enormidade daquilo a que tinham assistido e sobrevivido.

Aewyre ofegou e ofereceu a mão a Worick para o ajudar a levantar-se, fazendo um esgar de dor quando o seu braço magoado foi puxado e deixando o perculso thuragar apoiar-se nele.

— Pedras me partam — praguejou. — Eu não disse que não se podia andar neste maldito palácio sem armadura?!

Taislin caminhava sobre cadáveres arnesados de thuragar, olhando atentamente para estes como em busca de sobreviventes e parecendo algo abalado, embora sem ferimentos de maior. Lhiannah olhava de surpreso e algo desconfiado viés para Allumno, mantendo contudo a sua atenção no bobo, no qual o mago parecia concentrado à exclusão de tudo o resto. Daveanorn encontrava-se entre ambos, estranhando ele também a quase ameaçadora reação de Allumno, mas ainda assim mais preocupado em manter a espada a postos para trespassar Dilet ao mínimo movimento ameaçador. O bobo contorcia-se no chão, murmu­rando para consigo com voz estrangulada e além do mais abafada pela máscara, parecendo estar a rir da sua própria situação em frases inin­teligíveis. Nenhum dos companheiros proferiu qualquer palavra, demasiado cansados e aliviados para conseguirem sequer falar, e quando o último thuragar caiu esfacelado ao chão, fez-se um novo silêncio no qual as armaduras douradas cessaram abruptamente de se mexer.

O repentino cessar de toda e qualquer atividade no salão causou um efeito de descompressão nos ouvidos dos companheiros, que descruzaram olhares e observaram as suas sangrentas cercanias, contemplando o quão próximos tinham estado da morte sem sequer compreenderem como esta sequer viera ao seu encontro. As armaduras douradas que os haviam salvo estavam agora perfeitamente imóveis como peças decora­tivas, amolgadas, amassadas, respingadas de vermelho e com armas cruentas, mas sem o mínimo sinal de vida nas suas peças suspensas em pleno ar. Também os guardas as olhavam agora num misto de alívio e desconfiança, pois a forma maquinai e indiferente como estas tinham massacrado os thuragar sem um único som além do trespassar de carne com aço não podia deixar de lhes incutir um certo temor. Alguns membros da guarda regencial já as tinham visto nas masmorras, mas o fato de que estas os excediam a todos em número, e a idéia de que se podiam repentinamente virar contra os sobreviventes, eram o sufi­cientes para que uns quantos tornassem discretamente a pegar nas armas que tinham deixado cair.

Por essa razão, todos se sobressaltaram e se prepararam para o pior quando, assim que se ouviram dois passos, todas as armaduras ergue­ram as cabeças em uníssono, virando os elmos antropomórficos na direção dos sons. Mesmo os companheiros apertaram os punhos das suas armas, e Allumno tirou por instantes o olhar de Dilet com o coro de dobradiças a rangerem. Outro passo, e as armaduras mexeram-se como uma única peça, volvendo de frente para quem vinha hesitante-mente a seu encontro.

— Aereth...? — pasmou-se Aewyre, que não chegara a ver o seu irmão no meio da caótica refrega.

O jovem regente caminhava com ar abalado e alheio à matança que pisava, olhando à volta como se nunca tivesse entrado no salão, mas assim que viu Aewyre pareceu infinitamente aliviado, o que transpa­receu no seu suspiro.

— Aewyre... — disse. — Graças aos deuses... Ele disse que te matava...

As armaduras ouviram inexpressivamente a conversa, parecendo de alguma forma fitas no regente sem contudo esboçarem qualquer reação às suas palavras. Lhiannah ficou algo mais inquieta que os outros com a situação, tendo presenciado e sentido na pele os devaneios lunáticos de Aereth, e Worick não parecia muito mais sossegado, retesando-se debai­xo do braço de Aewyre. O jovem não partilhava de tais sentimentos, mas nem por isso ficou menos surpreso por ver o seu irmão liberto.

— A Hoste Dourada... — explicou o regente, abrindo os bra­ços como para açambarcar os arneses com as mãos. — Despertei-os para combater lorde Sunlar... o bobo soltou-me, disse-me que te ia matar... tive de as invocar...

Aewyre não respondeu, mas estava bem mais aliviado que Worick, Lhiannah e Taislin, que pareciam estar à espera de que Aereth atiçasse as armaduras contra eles. Os guardas aparentavam estar indecisos, enquanto Allumno dividia a sua atenção entre Aereth e Dilet, que ia rindo como se imerso no seu próprio mundo de sombras e loucura. Aereth ouviu, e os seus olhos arregalaram-se ao sentir um frio na espi­nha assim que o silêncio geral lhe permitiu captar a risadinha do bobo.

— Tu — disse com voz e lábios trêmulos, apontando para o corpo caído de Dilet. — Mataste a Iollina. Mataste aquela gente toda...

Dilet não respondeu às acusações, não parecendo tê-las sequer ouvido, e as palavras de Aereth assustaram mais os companheiros, sobretudo Worick e Lhiannah.

— Fizeste-me queimar o corpo do meu pai... viraste-me contra o meu irmão...! — continuou o regente, agora com tom mais irado e a apontar para o bobo. — Matem-no! Matem-no!

— Aereth, não! — gritou Allumno, postando-se entre o bobo e as armaduras mais próximas com o cajado nas mãos. — Nós precisamos dele...!

— Matem-no! Esquartejem-no como o porco imundo que é! — instou o jovem regente como se não tivesse ouvido as palavras do mago.

As armaduras deslocaram-se com precisão militar para executarem a ordem, aprestando as armas para retalharem o bobo estendido no chão. Lhiannah e Daveanorn afastaram-se, de todo dispostos a arris­carem-se para impedir que Dilet morresse, mas Allumno manteve-se firme e no caminho dos arneses, que ameaçavam atropelar e espezinhar o mago.

— Allumno, o que estás a fazer?! — gritou Aewyre, a quem a morte do bobo evidentemente não fazia qualquer diferença.

— Precisamos dele, Aereth! — insistiu o mago, vendo-se agora rodeado de ameaçadoras armaduras douradas. — O teu irmão precisa dele! Maldição, o Aewyre está morto se tu matares o bobo! Manda-as parar!

O desespero nas palavras de Allumno despertou Aereth da sua fúria, e as armaduras detiveram-se sem que este tivesse de proferir a ordem, como se tivessem sentido a sua hesitação.

— Como? — disseram este, Worick e Lhiannah em uníssono. Aewyre ficara demasiado surpreso para se lhes juntar, e Taislin estava mais concentrado em formas de combater adversários sem jarretes para cortar ou olhos para furar.

— Eu já sei como podemos vencer O Flagelo — declarou o mago com voz cansada e uma mancha de sangue fresco na ligadura branca da testa. — E precisamos do bobo para isso.

 

Embora ainda apinhado de skrimmen e ulkatr, Dalstirvirk estava agora calmo como o céu cinzento e desprovido de nuvens que sobre o vale pairava. Soprava apenas uma ligeira e fria brisa, e os únicos movimentos eram os do quotidiano, com os homens da tundra a fazerem-se ocupados com afazeres mundanos enquanto esperavam por algo. Havia ainda uma clara separação entre estes e os wolhynos, que permaneciam abrigados com os seus cavalos na cidadela basáltica, pois os animais tinham um medo instintivo aos ulkatr e não conseguiam ficar muito próximos destes. O único elo entre ambos os grupos eram os kahrkar, que se viam contudo mais bem recebidos entre os skrim­men que entre os seus, esses ainda receosos pelos mais variados moti­vos, temendo ser delatados como simpatizantes dos proscritos e receando-os com base em anos de histórias e tradições a retratá-los como devoradores de crianças e assassinos de homens.

Pela parte que lhes dizia respeito, os kahrkar lidavam de forma indiferente com os seus, não guardando qualquer rancor aparente nem demonstrando qualquer vontade de se vingarem de anos de perse­guição, agora que se viam numa situação mais vantajosa. Limitavam-se a exigir a todos os homens que pegassem em armas e treinassem com elas, observando-os atentamente sem os repreenderem por má postura nem elogiarem qualquer potencial que neles vissem. Nin­guém questionava a sua autoridade, até porque mostravam o bom senso de não exigirem o mesmo dos garding presentes, e os líderes achavam por bem assentir sempre que questionados pelos seus homens, não desejando sujeitar-se à fúria latente traída pelo ocasional rasgo de tensão a meio dos descontraídos gestos dos kahrkar. Enquanto mulher, Oska não se preocupava sequer com semelhantes considera­ções, ocupando-se antes a dar a entender aos outros que tinha Quenestil em sua dívida, e fazendo os possíveis para falar com o eahan. Ninguém na cidadela o tinha todavia visto nos últimos dias, e qual­quer kahrkr interpelado pela garding limitava-se a dizer que Quenestil viria quando viesse. Era frustrante, mas havia pouco mais que Oska pudesse fazer, e esta sorria sempre serenamente aos inquiridos, esfor­çando-se por esconder o medo quase irracional que mesmo ela sentia na presença dos intimidantes homens. Os kahrkar mal olhavam para os wolhynos, conferenciando entre si em murmúrios quando por acaso o faziam, embora nunca de forma sub-reptícia, o que dava a todos a idéia de que os papéis se tinham invertido e que eram agora eles pri­sioneiros dos proscritos entre os exilados. Não pareciam fazê-lo com intenções maliciosas, e muitos diriam até que havia quando muito um tom de desilusão nas vozes dos guerreiros do ermo.

Apesar da bizarra dinâmica de relações que se instalara no vale, nin­guém sabia ao certo qual o próximo passo a dar, pois aparentemente todos esperavam por uma decisão de Quenestil, embora ninguém sou­besse dizer onde este se encontrava. Por vezes vislumbrava-se entre os skrimmen uma cabeleira ruiva, que invariavelmente causava uma comoção de maior ou menor intensidade. Noutras o eahan era avistado a percorrer a periferia do vale, ocasionalmente divisado à distância nas montanhas, qual sentinela silenciosa. Noutras ainda conferenciava com um peculiar círculo de ulkatr, conseguindo de alguma forma uma certa medida de entendimento com estes, embora mal chegassem a falar. Raras eram as vezes que vinha à cidadela basáltica falar com os kahrkar, dois dos quais o acompanhavam constantemente, e, apesar de várias tentativas, ficava-se sempre por uma mera troca de olhares e palavras ou com o Patriarca ou com Deadan, nunca com Oska. Esta, para salvar a face, relatava então a todos os que quisessem ouvir a história de como o eahan de cabelos vermelhos viera do mar requi­sitar-lhe auxílio, e que, apesar das suas ominosas palavras, se encon­trava ali para os salvar a todos, pois grande era a sua dívida de gratidão para com ela. Alguns garding mostraram-se cépticos, outros ficaram desconfiados, mas Knorl pareceu intrigado com as possibilidades que a veracidade de tais histórias abria, e dessa forma a mulher conseguiu reforçar a tão necessitada aliança com o poderoso chefe.

— Diz-me, Oska — pediu este, reunido com a garding num discreto recesso da formação basáltica, debaixo da atenta vigilância dos homens de ambos —, este Quenestil... deve-te fidelidade?

— Tem uma dívida de gratidão para comigo — explicou a mulher, preferindo não exagerar. — Os rotden brancos que com ele vieram sobreviveram apenas graças à minha hospitalidade, e os filhos dele foram trazidos ao mundo por uma parteira minha.

Knorl ponderou, baixando o olhar e a cabeça, e dessa forma a cres­cente calva que se espalhava pelos seus cabelos acastanhados. Oska deu-se conta do quanto o garding envelhecera, ele que fora um dos seus muitos pretendentes quando fora mais jovem e bonita. Ainda era um homem vigoroso, e talvez ainda ponderasse ter uma outra concubina, sobretudo uma com terras, mas Oska não mais nutria tais ilusões, e a sua prioridade era agora proteger e assegurar aquilo que era seu e dos seus.

— Os filhos dele são os da dokrotda também, não são? — pergun­tou o homem por fim com um sorriso sabedor.

Oska tentou ocultar o quente afloramento nervoso que lhe grassou pelo peito, incapaz ainda assim de engolir em seco. Knorl certamente não imaginara que Slayra fosse virgem, pois tal em nada diminuía a sua beleza e exotismo, mas o fato de ser fruta tocada era um assunto bem diferente, minorando o valor da oferenda.

— Sim — reconheceu, segura no fato de não ter mentido, pois a verdade era que Knorl nem sequer inquirira a respeito. — Ficamos com eles, pois ela não desejava levá-los.

— Hum — murmurou Knorl, cocando o restolho de barba fulva sem sequer olhar para Oska, o que contudo a inquietou mais ainda. — Interessante.

Com isto, o garding retirou-se, deixando Oska sem saber em que pé a aliança entre ambos ficara, e chamou quatro dos seus homens para o acompanharem fora do abrigo que mais começava a parecer uma prisão. Quatro guerreiros armados apressaram-se a seguir o seu senhor, rodeando-o protetoramente, e com eles Knorl encaminhou-se ao longo do desfiladeiro, olhando com cara de poucos amigos para os ulkatr que se encontravam do outro lado, e que retribuíram o olhar com mera curiosidade. Entre ambos corriam as escuras águas verti­das pelo glaciar a norte, assim tingidas pela pedra vulcânica do vale, que nem mesmo as límpidas cascatas que corriam pela vertente dos wolhynos conseguiam lavar. As botas forradas de Knorl e dos seus homens chapinharam por estas, e três homens que ali tinham levado os seus cavalos para beberem olharam-nos com ar desconfiado. Apesar das circunstâncias, assembléias eram sempre ocasiões tensas e atreitas a traições, e os indivíduos não puderam deixar de se questionar quanto aos motivos que levavam um garding a caminhar de forma tão apressada para longe do local onde todos os outros estavam reunidos. Knorl não lhes deu qualquer atenção, deixando que os seus homens os fitassem ameaçadoramente enquanto ponderava as possibilidades daquilo que Oska lhe revelara. Se tinha como concubina a parceira e mãe dos filhos do eahan, tal significava que poderia exercer uma medida de influência nele; por muito pequena que esta fosse, sempre seria maior que a de todos os outros garding, e dessa forma não seria menos considerado que Oska.

Com intrigas e contingências a fervilharem-lhe na cabeça, Knorl dirigiu-se ao recesso do desfiladeiro do qual brotava uma fonte de água quente, na qual as mulheres do seu séquito presentemente se banha­vam e lavavam roupas. Ninguém quisera abandonar a relativa segu­rança da formação basáltica, mas Knorl decidira dar o exemplo e mostrar que as suas gentes eram feitas de outra fibra, a começar pelas mulheres, que tinham sido praticamente ordenadas a lavarem-se e às roupas sujas dos seus homens. Quaisquer receios que estas pudessem ter tinham sido certamente amainados pelo reconfortante calor dos vapores da fonte, que brotava do recesso no desfiladeiro e desaguava no rio vertido pelo glaciar, criando um charco de temperatura amena, cujas propriedades haviam sido enaltecidas ao longo dos anos. A maior parte das mulheres não se sentia à vontade, vigiadas por quatro homens e com a consciência de que havia ulkatr e skrimmen a curta distância dali, e ficavam-se por lavar as roupas que lhes tinham sido entregues. Outras, na sua maioria concubinas de Knorl, quer por se sentirem sujas, quer com receio de contrariarem as ordens do seu senhor, tinham optado por um banho quente. Slayra encontrava-se entre elas, man­tendo como sempre uma certa distância das wolhynas enquanto se banhava placidamente, vertendo água sobre a sua pele cor de neve. Atenta, foi a primeira a dar-se conta da aproximação de Knorl, olhan­do para trás para confirmar o que ouvira. O garding não escondeu um sorriso ao apreciar as molhadas curvas das costas da eahanoir, nas quais os cabelos negros desta escorriam, luzentes.

— Continuem — disse algo desdenhosamente às outras quando estas o viram descer o trilho de toros de madeira que fora erigido ao longo de uma derrocada no desfiladeiro. — Olá, dokrotda.

— Meu senhor — saudou Slayra de volta, deslizando suavemente com os membros pela água ao virar-se para Knorl.

Não fez o mínimo esforço para ocultar os seios, mas pela primeira vez o garding surpreendeu-a ao manter contato visual, ao contrário dos dois homens que o acompanhavam e que não se coibiram de apre­ciar a vista.

— Veste-te — ordenou Knorl, palavras que Slayra também pela primeira vez ouviu da boca dele. — Onde tens as roupas? — per­guntou ainda, olhando à sua volta.

Slayra ergueu um braço, escorrendo água, e apontou para o vestido e avental que deixara debaixo de uma pedra perto do garding, uns meros passos atrás dele. Um dos homens de Knorl foi prontamente buscá-los, acocorando-se para tratar as roupas da favorita do seu senhor com o devido cuidado, mas ao fazê-lo estacou de cócoras, olhando para o topo do desfiladeiro. Knorl não reparou, mas viu os olhos de Slayra arregalarem-se ligeira e involuntariamente ao ver algo atrás de si, e virou-se para seguir o olhar da eahanoir. Foi incapaz de conter uma invetiva a meia-voz ao ver o eahan observá-los de forma sobranceira do desfiladeiro, flanqueado pelos dois kahrkar que o tinham acom­panhado pelo vale. Um deles era um homem louro com uma cicatriz sobre a boca, que envergava uma cota de malha e uma pele de lince, armado com um facalhão e duas machadas. O outro era um indivíduo robusto de barba e cabelo negros, com uma mancha branca no lado esquerdo da cabeça, que usava uma pele de volverino como a de Quenestil aos ombros, detrás dos quais se projetava a cabeça de um machado. O eahan tinha ainda assim bem pior aspecto que os dois, parecendo ter acabado de sobreviver a uma luta pela sua vida. As suas roupas ainda estavam sujas, rotas e rasgadas em partes, bem como manchadas por sangue seco que, a par de marcas de sujidade, lhe maculava a pele branca. Do seu arco e facalhão não havia sinal, e trazia empunhada apenas a estranha lança com ponta de obsidiana, cuja mera visão atemorizava os presentes a um nível instintivo. Indiferente aos efeitos que a sua presença causava, Quenestil desceu o trilho de toros de madeira, seguido pelos dois kahrkar, e não olhou para ninguém mais além de Slayra.

A eahanoir não se mostrou surpresa pela inesperada visita; escondeu até uma certa medida de satisfação consigo própria pelo fato de Quenestil ter vindo ter com ela. Este, no entanto, olhava-a com a mes­ma expressão pétrea com a qual caminhara por entre wolhynos, skrimmen e ulkatr, parecendo ter assumido uma linha de sobrancelhas quase reta como as dos dois kahrkar. A expressão do shura era severa, e os seus olhos cinzentos tinham tanta vida quanto a de um calhau acabado de usar para esmagar o crânio de alguém. Knorl e os seus homens sentiram as mãos aproximarem-se das armas, embora nenhum ousasse desnudar aço diante de Quenestil, pois todos estavam cientes de que era apenas o eahan que se encontrava entre eles e uma hoste de skrimmen provavelmente ainda sedentos de sangue. Fosse como fosse, Quenestil não lhes deu a mínima atenção, olhando unicamente para Slayra enquanto descia.

— Saiam. Todos — disse em Hjrutmalv com um tom de voz que não dava espaço para discussões, caminhando de punhos fechados como se estivesse pronto a arrancar com as próprias mãos a vida do primeiro homem a opor-se-lhe.

Knorl ainda crispou os lábios e esbugalhou os olhos azuis, indignado com tamanha ousadia, mas a sua temperança, adquirida ao longo de anos de intrigas com o fim de manter a sua posição na hierar­quia dos Fiordes, permitiu-lhe manter a compostura. Tão-pouco lhe foi aprazível ver o alívio dos seus homens quando acenou com a cabeça para que estes fizessem como o eahan lhes dissera, mas ainda assim o garding nada disse, fazendo um ademane chamativo às suas mulheres sem deixar de olhar para Quenestil. Estas pegaram nas roupas molha­das que estavam a lavar e fizeram apressadamente como lhes fora ordenado, e as que se banhavam chapinharam desnudas pela água até aos seus vestidos, enfiando-os apressadamente sobre as cabeças molha­das. Apenas Slayra se deixou estar, passando delicadamente os braços pela água sem tirar os olhos dos de Quenestil, que de alguma forma conseguiu não tropeçar nos úmidos toros ao descer. Com os kahrkar no seu encalço, o shura não se deteve sequer ao passar por Knorl, tendo mesmo o desplante de forçar o garding a desviar o ombro para lhe abrir caminho, um momento no qual o homem se retesou e a tensão no local atingiu um pico. Quenestil deteve-se e não virou sequer a cara, mas os seus olhos foram até aos cantos, como se dessa forma pudesse ver e desafiar Knorl a fazer algo a respeito, e assim ficaram enquanto o wolhyno se debatia com o seu bom senso e amor-próprio.

Foi um debate de pouca dura, e Knorl teve a sensatez de nada dizer, retirando-se do local com passos tempestuosos que os seus homens emularam e as suas mulheres tiveram dificuldade em seguir, pois algu­mas ainda se calçavam.

— Deixem-nos — disse então o eahan aos dois kahrkar que o acompanhavam. Ambos anuíram em silêncio e subiram a derrocada atrás de Knorl, postando-se discretamente ao cimo do desfiladeiro en­quanto esperavam por Quenestil.

Seguiram-se uns tensos e silenciosos momentos, nos quais os dois eahan se entreolharam como animais desconfiados que se viam pela primeira vez. Nenhum dos dois se mexeu nas suas respectivas posi­ções, embora Slayra continuasse a passar suavemente os braços pela água, sem manifestar qualquer incômodo mas dando perfeitamente a entender que tinha todo o direito de estar ali sem ser incomodada. Quenestil não avançou, não suavizou a linha das suas sobrancelhas, nem sequer pigarreou em preparação de palavra alguma; olhou ape­nas, silencioso e austero como uma estátua rupestre gasta pela intem­périe.

— Muito viril — comentou a eahanoir. — Não eras tu que querias unir os Fiordes? Isto não é um início muito auspicioso...

Quenestil não respondeu, continuando a fitá-la sem piscar os olhos.

— Isto dos skrimmen foi uma chatice, sabes? Já tinha planeada uma viagem para a Wolhynia... — continuou a eahanoir descontraidamente, levando um punhado de água ao ombro esquerdo. — Por esta altura já estaria bem longe de toda esta confusão, e podia estar a tomar um banho descansada sem alguém a tentar fitar-me até à morte.

Nenhuma resposta. Slayra suspirou, baixando o olhar com enfado e trazendo um maneio de escura areia mineral para esfoliar o braço esquerdo, no qual se via uma nódoa negra.

— Então agora vai ser guerra contra Tanarch, é? — perguntou sem olhar para Quenestil, cuja expressão se mantinha inalterada. — Precisavas de um exército, não era? Parece que agora o tens, embora não inspire muita confiança. Não te estava era a ver como garding...

O shura continuou sem responder, e Slayra suspirou novamente, tornando a fitá-lo nos olhos.

— Muito bem. Se a única coisa que queres é olhar, bem que posso fazer-te a vontade.

E com isto ergueu-se, escorrendo água tépida pelas brancas cur­vas do seu corpo e ficando de pé a olhar para Quenestil com uma mão na anca e a outra descaída ao lado numa pose claramente provocadora. Houve um quase imperceptível movimento da pele da cara do eahan, e este, como que aceitando o desafio, baixou o olhar e pas­sou-o pelas formas de Slayra. Ainda tinha os seios túmidos da gravidez, com o azul de veias visível na alvura das suas redondas for­mas, e o ventre ainda não recuperara a elegante firmeza, apresen­tando-se algo flácido, mas a orgulhosa e sedutora postura da eahanoir continuava irrecusável.

— Não estás nada mal — comentou Quenestil por fim ao retomar contato visual. — Tens sido montada muitas vezes pelo Knorl?

— Não. Não tem sido preciso ser montada por outros para te salvar o couro — retorquiu a eahanoir, tentando e falhando em esconder o tom acerbo da voz. — E tu, tens andado a galar muitas skrimmen? Deves ser popular, agora... Vai na volta, é por isso que vens todo esfarrapado.

— Não. Isso foi o Tannath.

Slayra estivera prestes a descarregar todo o azedume e palavras cirurgicamente dolorosas que albergara durante as semanas que esti­vera separada de Quenestil, mas o nome do eahanoir vedou-lhe a tor­rente de amargura de forma tão repentina que quase se engasgou.

— Como...?

— Encontrei-o no local aonde me mandaram ir — relatou o shura prosaicamente, sentindo uma dor fantasma nos ferimentos mal sarados que lhe tinham sido infligidos no mais duro combate da sua vida. — Ele disse que se sentiu chamado para lá, e lutamos.

— E...? — incentivou Slayra, mais nervosa que aquilo que alguma vez admitiria.

— E eu deixei-o viver. Cada um seguiu o seu caminho.

Os olhos da eahanoir avivaram-se, e esta sentiu um arrepio que lhe eriçou os mamilos e a levou a cruzar os braços, temendo por momentos a possibilidade de que Quenestil simplesmente desistira e dissera a Tannath que fizesse com ela o que bem entendesse.

— Não é ele o inimigo — disse o eahan, não tanto para aplacar os medos de Slayra como para fazer uma simples constatação. — Não me vai incomodar mais, nem a ti. Nem... aos bebês...

Uma vez mencionada a palavra proibida, tanto um como o outro se sentiram genuinamente pouco à vontade. Por muito que o tentassem negar, havia muita culpa partilhada entre ambos devido aos bebês, e embora os dois tivessem passado por bastante nos últimos tempos, os nomes de Gifeahn e Kyrina nunca tinham abandonado os seus pensa­mentos.

— A propósito, como estão eles?

— Como queres que eu saiba? — perguntou Slayra quase retoricamente num tom de voz contrito, que apenas foi aliviado por um sus­piro. — Estão bem. A rapariga que os amamenta é uma autêntica vaca leiteira. Chega para os dois e para o filho dela.

— Tordar, não é?

— Não sei. Que importa?

— Nada.

A resposta mais brusca de Slayra despertou-os a ambos do seu mo­mento de fraqueza, e os dois eahan fizeram por se lembrar dos ressen­timentos que ainda guardavam um ao outro. Nem mesmo os vapores da fonte quente conseguiram então dissipar os olhares frios com que então se miraram.

— Vai haver guerra, agora — declarou Quenestil, e por momentos Slayra julgou que se referia a eles os dois. — Vou unir os exilados dos Fiordes, os skrimmen e os ulkatr debaixo de um único estandarte, e com eles vou destruir a hoste invasora que Tanarch para cá envia. Depois disso, vou destruir a própria Tanarch. Vou fazer com que os malditos traidores paguem.

— A tratares garding da forma como trataste o Knorl, a única coisa que vais unir são os Fiordes contra ti... — zombou Slayra da habitual falta de diplomacia do shura.

— Juntar-se-ão a mim, ou morrerão sozinhos — ameaçou este. — Ou então mato-os eu. Se não são capazes de reconhecer o seu ver­dadeiro inimigo, é porque são meus. Tal como Malgin.

— Malgin? Não era dele que andávamos todos à espera para a assembléia?

— Malgin de Kvalarenn aliou-se a Tanarch. Prepara-se neste momento para receber a hoste tanarchiana na sua baía, e por isso vai morrer com eles — disse Quenestil sem qualquer raiva ou indig­nação na voz, apenas a certeza assassina de uma tempestade a formar-se sobre uma barcaça isolada no oceano.

Slayra sentiu um certo nervosismo ante a fria expressão do eahan, e os seus olhos descaíram para a incomplacente lança que este empu­nhava, e que irradiava uma aura de ameaça. Era estranha, a forma como Quenestil falava, e a sua determinação era assustadora, pois não augurava nada de bom.

— Como é que sabes...?

— Os kahrkar disseram-mo. Estão espalhados pelos Fiordes, e têm enviado sinais. Os do Oeste vêm aí, prontos a juntarem-se a mim na batalha contra Tanarch. Os do Leste permanecem na costa como vigias.

— Estás mesmo a falar a sério, não estás?

O shura não respondeu, pois as suas ações falavam mais alto que quaisquer palavras que pudesse dizer à eahanoir, que com­preendeu.

— Felicidades, então — desejou. — E achas que isso pode esperar até eu me pôr a milhas?

— Não.

— Como assim, «não»? — quase balbuciou Slayra, descruzando os braços.

— Não vais a lado nenhum.

O tom peremptório enfureceu a eahanoir, que avançou nua para Quenestil de punhos cerrados e rosados pelo frio, sem que este se mexesse ou a sua expressão se alterasse.

— Tu não me dizes o que faço — quase sibilou Slayra com o indicador diante da cara do eahan, baixando-o logo de seguida e reas­sumindo um tom mais calmo. — Além do mais, pertenço ao Knorl agora. A menos que queiras entrar em conflito com ele...

— Se Knorl entrar em conflito comigo, mato-o — interrompeu Quenestil, silenciando Slayra ao surpreendê-la com a sua mão, que dardejou para os seus cabelos e neles se fincou, puxando-a para si e a cabeça ligeiramente para trás. — Mato-o e a todos os que se me opu­serem em vez de virarem as armas para Tanarch.

Slayra viu-se momentaneamente paralisada, incapaz de reagir como os seus reflexos lho mandavam, de cravar os dedos na garganta do eahan ou de lhe enfiar o joelho entre as pernas abertas. Havia algo nos olhos cinzentos do shura, algo que parecia ter despertado e que aterrou a eahanoir mais do que esta alguma vez estaria disposta a ad­mitir. Quenestil apertava-a contra o seu corpo, mantendo um aperto firme e algo doloroso nos seus cabelos úmidos, e mantinha-lhe a cabeça inclinada como se desejasse arrancar-lhe a garganta à dentada, uma ameaça latente durante os momentos em que os corações de ambos bateram um contra o outro. Não só isso, mas também a gélida sensação da ponta daquela horrível lança encostada à parte interior da sua perna molhada, que se arrepiou com a mera proximidade do gume afiado como uma lâmina. Slayra fez por se recompor e fitou Quenestil diretamente nos olhos cinzentos com os seus líquidos orbes azuis num gesto quase desafiador. Houve um momento no qual os dois tive­ram a familiar e já algo esquecida sensação de pedra a quebrar gelo, e o shura deu consigo a aproximar a cara da eahanoir.

— Atreve-te, e eu arranco-te a língua — disse esta num tom baixo de ameaça, a única que se achava na posição de fazer.

O olhar fixo que ambos partilhavam intensificou-se, e a jugular de Slayra pulsou na sua garganta manifestamente exposta quando a eahanna negra foi acometida por um novo arrepio ao sentir a obsidiana acariciar-lhe ameaçadoramente a perna. A ponta subiu-lhe quase até ao joelho antes de se retirar quase tão bruscamente quanto Quenestil a afastou com um custoso grunhido.

— Veste-te — disse o shura, pegando nas roupas da eahanoir que o homem de Knorl deixara no chão, e atirando-as para os braços de Slayra.

Esta não viu qualquer motivo para não aceder, e secou-se com o avental azul antes de enfiar o quente vestido branco sobre a cabeça, sendo observada pelo eahan enquanto o fazia.

— Então e agora? — perguntou Slayra, secando o cabelo.

— Agora preparamo-nos para partirmos de Dalstirvirk — disse Quenestil, ignorando a verdadeira pergunta. — A hoste que Tanarch enviou não tarda a chegar a Kvalarenn, e quero que estejamos prontos para eles quando isso acontecer.

— A tua flecha tem mesmo o nome de Tanarch, não tem? — inda­gou a eahanoir, tentando esconder o tom zombeteiro ao olhar para a aljava vazia. — Que é feito dela?

O shura não respondeu.

— Também já teve o meu nome, não foi? E contudo, ainda cá estou.

— Não és tu a minha inimiga. Nunca foste — disse Quenes­til com o cansaço a transparecer-lhe da voz. — Tudo não passou de uma... de um ritual de iniciação.

Slayra não percebeu, dando-o a entender com um franzir das deli­cadas sobrancelhas, e o eahan também não parecia disposto a explicar naquele momento.

— Não importa. Vem.

— Vou aonde? — teimou Slayra.

— Vais ficar com os Lasan. Não te quero com o Knorl.

A eahanoir não soube se ficar indignada com o desplante de estar a ser tratada como a posse de alguém, se satisfeita pelo apego que a vontade do eahan ainda evidenciava.

— O que é que queres mesmo, Quenestil? — perguntou Slayra, cruzando os braços debaixo do peito.

— Eu quero... — hesitou o shura, debatendo-se com as suas pala­vras como se estas não coincidissem com os seus pensamentos. — Tu és a única pessoa neste vale...

«Em quem eu posso confiar?», ousou Slayra supor.

— A única que... «Realmente importa?»

Quenestil rosnou de frustração, sacudindo a cabeça como para aturdir as palavras que lhe tentavam escapar.

— O Ihjseorn quer ajudar-me, mas apenas porque deseja que a Wolhynia volte aos seus gloriosos tempos de guerra — disse por fim. — A Oska ajudou-me, mas apenas quer a segurança da sua quinta, e consolidar e alargar o seu poder. A maior parte dos wolhynos para já segue-me apenas por medo. Os skrimmen estão dispostos a lutar ao meu lado, mas apenas porque acham que sou o profeta da sua ascen­são, e os ulkatr juntaram-se a mim porque me vêem como o arauto de uma nova era para eles.

«Podes não ser a melhor intriguista, Slayra, mas sabes de intrigas como poucos. E não nasceste neste meio, não cresceste com as lendas e histórias que moldaram esta gente, nem tens os teus próprios inte­resses para os Fiordes. Por isso és a única... que me pode dar conselhos nos quais eu me possa fiar.

— Oh — disse a eahanoir. — Estou a ver.

Os dois olharam-se num silêncio algo penoso, que se prolongou até ser quebrado por um roufenho coro vindo do outro lado do desfi­ladeiro, e que fez com que Quenestil virasse a cara ligeiramente para o lado.

— Tenho de ir — disse o shura, tornando a olhar para Slayra. — O Loevrik leva-te aos Lasan.

A eahanoir anuiu, embora não estivesse satisfeita com o resultado, reconhecendo contudo que nas presentes circunstâncias era Quenestil a autoridade suprema no vale. O shura pareceu querer dizer algo mais, mas tal ou não lhe ocorreu ou não se lhe afigurou apropriado nesse momento, pois limitou-se a acenar com a cabeça e a virar as costas a Slayra, preparando-se para subir novamente pelos toros da derrocada.

— Quenestil — chamou a eahanoir, e este virou-se como se tivesse esperado essa mesma reação.

— Sim?

— Ainda que consigas tornar esta ralé num exército, e ainda que por acaso consigas rechaçar a hoste invasora com eles, os wolhynos nunca te seguirão para Tanarch.

Quenestil não refutou, esperando antes que Slayra elaborasse aquilo que queria dizer.

— Tens de perceber como esta gente funciona. A vida deles resume-se a lutar por terra infértil e ovelhas, e a promessa de território novo até os pode aliciar, mas tens de o fazer nos termos deles.

— Como assim?

— Drull tentou apropriar-se da quinta de Oska, dizendo que esta estava a lidar com kahrkar, o que é proibido e a deixava em dívida para com os seus pares — explicou a eahanoir, que não estivera de todo surda durante o tempo em que convivera com os wolhynos de duas quintas diferentes. — Ele tem homens e meios suficientes para tomar Horavog, mas se o fizesse teria uma dívida de sangue para com Odhar, o irmão da Oska, bem como uma dívida para com os outros garding, por ter quebrado as regras pelas quais eles se regem. Se assim não fosse, seria a anarquia total nos Fiordes.

— Que sugeres, então? — perguntou Quenestil, tudo menos sur­preso pelo conhecimento aprofundado que Slayra revelava acerca das maquinações dos garding.

— Tanarch não lhes deve nada. E se tu por acaso venceres o exér­cito que os tanarchianos enviaram, ainda que te morram uns quantos wolhynos, quem ficará a ver dos wolhynos em dívida serás tu. Terás uma dívida de sangue a pagar a Tanarch. Ou, na melhor das hipóteses, consideram que eles ficaram endividados ao invadir, mas que a dívida foi saldada por os teres rechaçado. Em todo o caso, não terão motivos para invadir.

Quenestil suspirou, não tendo nutrido quaisquer ilusões de que, com ou sem profecias, seria fácil unir os wolhynos nos Fiordes e para além destes. Pelo menos não para algo mais além de defenderem as suas terras.

— Então que devo fazer? Deixar os tanarchianos aterrarem em Kvalarenn e chacinarem a quinta mais próxima? — alvitrou o eahan. — Os homens que tenho já são poucos. Se deixo morrer alguns só para Tanarch ter uma dívida de sangue...

— Não é preciso. Só tens de cobrar aquilo que Tanarch já deve ao Deadan.

Quenestil ergueu a sobrancelha ruiva, falhando em compreender aonde Slayra quereria chegar.

— Os irmãos e amigos do Deadan foram massacrados por Tanarch. O seu lar foi destruído. Os tanarchianos devem-lhe tonéis de sangue.

— E que tem isso que ver com os Fiordes?

— A filha da Oska quer saber se o que o Deadan tem entre as per­nas é tão grande como o seu espadão — sorriu a eahanoir. — Dá-lhe essa satisfação, e terás os wolhynos do teu lado.

Quenestil arregalou os olhos, perdendo a fria compostura pela pri­meira vez desde que chegara ao vale.

— Como?! O Deadan e a Yhtte...?

— Faz a vontade à rapariga. Convence o Deadan a casar com ela nos Fiordes, e tê-los-ás do teu lado, prontos a cobrarem sangue a Tanarch — concluiu Slayra com um certo grau de satisfação.

— Mas que tem isso...?

— A parte engraçada das dívidas de sangue? São transmissíveis como uma doença aqui nos Fiordes. Passam de família em família, gera­ção em geração, e pelo que me foi dado a entender, nunca são esquecidas.

Quenestil permanecia confuso, e Slayra esforçou-se por não achar adorável o ar de selvagem completamente desconcertado que este nunca conseguia evitar sempre que exposto aos refinados enredos da civilização.

— Se o Deadan casar com a Yhtte, passa a fazer parte da família da Oska — explicou a eahanoir pacientemente. — Dessa forma, as dívidas de sangue que outros possam ter para com ele, neste caso Tanarch, passam também a dizer-lhe respeito a ela e aos seus familiares e aliados. Como Odhar. E Knorl.

O último nome foi judiciosamente plantado para despontar dúvidas em Quenestil, para lhe dar a entender que não devia sim­plesmente apropriar-se das concubinas do poderoso garding sem mais nem menos, se queria realmente contar com a ajuda dele de futuro.

— Com esses três do teu lado, terás certamente aliados, favores e dívidas suficientes a teu favor para mobilizares todos os Fiordes. O resto advirá da batalha com o exército de Tanarch. Só então deveras pensar numa invasão a sério.

Quenestil ponderou as palavras de Slayra em silêncio, olhando para ela enquanto o fazia. A eahanoir secou um pouco mais o cabelo com ar satisfeito, cobrindo-o de seguida com um toucado branco para o resguardar do frio, o que, não fosse pelas suas belas feições exóticas e curvas orelhas expostas, lhe daria um ar de wolhyna de gema.

— Vou oferecer Kvalarenn a Knorl em compensação — disse o shura por fim, anuindo em anuência consigo próprio. Slayra esmo­receu um pouco ao ver gorado o seu plano, mas Quenestil não se fez de achado. — Obrigado pelos conselhos. Torm!

O kahrkar barbudo virou-se para o eahan do cimo do desfiladeiro, tendo estado de costas respeitosamente viradas durante a conversa entre ambos os eahan.

— Leva-a a Oska — pediu em Hjrutmalv, indicando Slayra. — Se Knorl disser alguma coisa, diz-lhe que fale comigo. Loevrik, vem comigo.

Torm desceu e o outro kahrkr ficou à espera de Quenestil, que se virou uma última vez para Slayra, olhando-a como se algo tivesse ficado por dizer entre os dois. Se havia, a eahanoir não contribuiu, limitando-se a retribuir o olhar com um misto de ressentimento repri­mido, sentimentos em conflito, e uma quase mistificada admiração por aquilo no qual Quenestil aparentemente se tornara. Havia tam­bém sentimentos contraditórios no olhar do eahan, que contudo aca­bou por endurecer como cera de vela acabada de derreter, acabando por ser reassumido no semblante austero do eahan.

— Falamos depois — disse a Slayra, virando-lhe as costas e indo ao encontro do kahrkr que por ele esperava.

Pelo caminho, ainda trocou algumas palavras com Torm ao passar por este, palavras que Slayra mal ouviu mas que deduziu serem de advertência, pois o kahrkr olhou para a eahanoir com uma expressão que dava a entender que estava pronto para as suas manhas, e que não as toleraria. Slayra mal lhe ligou, acenando distraidamente com a cabeça quando o kahrkr lhe rosnou algo sem grande paciência. Quenestil não tornou a olhar para trás, e só quando desapareceu atrás da borda do desfiladeiro é que Slayra deu atenção àquele que iria aparentemente ser a sua escolta. Também ele emanava uma nada sub-til aura de ameaça, sendo quase palpável a tensão que os seus aparen­temente descontraídos membros escondiam, prontos a explodir em assassina e sangrenta ação a qualquer momento. Quenestil fizera-a sentir algo de semelhante, e apenas agora a eahanoir se questionava quanto ao que verdadeiramente acontecera ao shura.

— Anda — disse o kahrkr, olhando em frente da mesma forma que os homens de Ihjseorn tinham evitado pôr-lhe os olhos em cima. Respeito pela fêmea do líder, porventura?

«Quer mesmo declarar guerra a uma nação...», descreu Slayra, absorta, fazendo mesmo assim como lhe fora dito. «Pela mão decepada de Kispryn, Quenestil, ainda nos matas a todos! E o pior é que não sei se é ou não isso mesmo que tu queres...»

 

O caos instalara-se em Ul-Thoryn na madrugada após a incursão noturna dos thuragar. Pequenas escaramuças ao longo do palácio e a devastação causada por Othragon tinham deixado os habitantes e os reféns lennheses em pânico, sobretudo quando a aia de Lhiannah foi de encontro aos seus e deu o alarme. Espavoridos, os cortesãos forçaram a saída dos aposentos nos quais se encontravam em menagem, uns por genuíno medo, outros por verem aquela que achavam ser a sua única oportunidade de escaparem. Os guardas tinham sido mobilizados para combater a inesperada ameaça, e como tal não houve ninguém para os impedir de sair. Mesmo os guardas do perímetro exterior acabaram por ser conduzidos ao interior do palácio, abandonando os seus postos de vigia aos portões, o que acabou por permitir a fuga de alguns len­nheses. Uns poucos foram detidos pelos vigias que tinham ficado para trás, mas a maior parte desses acabou por se evadir quando os guardas se deram conta de que havia uma situação bem mais premente em Allahn Anroth. Feitas as contas no final, vinte dos trinta cortesãos tinham conseguido escapar, e os que foram trazidos à presença de Aewyre lançaram-se de joelhos, temendo pelas suas vidas.

A sala do trono do palácio servia naquela manhã de conselho de guerra, sala de audiências, caserna e enfermaria em simultâneo, pois a situação urgia que se tomassem medidas rápidas. A luz primaveril que emanava das janelas estreitas caía em fachos oblíquos sobre os dez homens e mulheres de Lennhau pateticamente ajoelhados sobre os ladrilhos da sala, que aguardavam as suas sentenças como condenados à morte. Alguns tinham-se mesmo prostrado, alegando inocência e ali­ciamento pelos seus pares, implorando pelas suas vidas como gado a ser conduzido ao matadouro. Aewyre pouca ou nenhuma atenção lhes dava, deixando-os rojarem-se no chão e sujarem as suas refinadas roupas enquanto ponderava assuntos bem mais importantes. O guer­reiro e os seus companheiros estavam a ser tratados pelas assistentes de Thaddeo, que ali também se ocupavam dos ferimentos superficiais de alguns guardas regenciais. Isto porque não havia espaço para todos na enfermaria do palácio, onde os feridos graves tinham sido levados, e onde o próprio cirurgião se encarregava deles. Mesmo assim, segundo Thaddeo, era provável que muitos deles não sobrevivessem. Allahn Anroth sofrerá terríveis baixas que Daveanorn não se atrevera ainda a contabilizar, ele que fora dos mais afortunados no combate, tendo ficado apenas com um hematoma na cara como recordação.

Além de lúgubre, o ambiente na sala do trono era acima de tudo tenso, pois todos os presentes eram vigiados por armaduras douradas espalhadas pela sala, que aguardavam a próxima ordem de Aereth. O regente encontrava-se sentado nos degraus do sólio ao lado do seu irmão, que achara por bem não se sentar no trono, não mais preocu­pado com as aparências diante dos seus e dos lennheses. Lhiannah olhava desconfiadamente para Aereth enquanto uma rapariga lhe tratava da queimadura negra na perna, que, embora não parecesse infectada, não deixava de lhe doer bastante. Não lhe agradava a idéia de que estavam à mercê dos caprichos do irmão de Aewyre, pois as armaduras pareciam reconhecer nele uma autoridade que o guerreiro não tinha, e cumpriam cada ordem sua à letra.

— És o herdeiro legítimo de Ul-Thoryn, que elas juraram servir quando do seu sacrifício — explicou Allumno, que, apesar da tempe­ratura amena da sala, tinha bagas de suor febril na sua testa enfaixada por uma ligadura recente, que também já estava manchada de vermelho.

— Mas eu não quero que me sirvam a mim — afirmou o jovem regente com voz cansada. — Quero que sirvam o Aewyre. Ele é que precisa delas, e ele é que sabe o que fazer.

Aewyre parecia ser o único disposto a confiar em Aereth, e pousou-lhe uma fraternal mão sobre o ombro, que apertou. Lhiannah e Worick não gostaram do gesto, e mesmo Daveanorn parecia algo incerto, tendo acompanhado a espiral de demência na qual Aereth aparentemente caíra, e da qual não tinha a certeza de que este con­seguira escapar. Ainda assim, a maior parte dos guardas parecia apesar de tudo aquietada por verem perto do trono daquele que, para todos os efeitos, ainda era o seu senhor, e Allahn Anroth precisava de toda a calma que se conseguisse manter.

— O Aewyre será o próximo, caso tu fiques... indisponível — con­tinuou o mago, escolhendo as palavras com cuidado.

— Isso não interessa — disse Aewyre em tom quase protetor para com o seu irmão. — A Hoste Dourada vai ser muito útil, Aereth, seja qual de nós for a orientá-la.

— Bem iremos precisar delas, com as baixas que tivemos — lamen­tou-se Daveanorn, pressionando um cataplasma contra o inchaço na sua face. — A começar pela população. As notícias espalharam-se como fogo em palha seca, Aewyre, e há sinais de agitação na cidade.

— Sim, sabem os deuses o que os cortesãos de Lennhau podem ter espalhado pelas ruas... — disse o senescal Tomenno, não sem um tom ligeiramente acusatório na voz. — Tanto quanto eles sabem, lorde Aereth está morto, e o trono foi ocupado por vós, lorde Aewyre, que o haveis usurpado. Com os mercadores descontentes com a falta de audiências, a populaça já alvoroçada por ter ficado presa dentro da sua própria cidade nas últimas semanas, e com todos os rumores que entretanto certamente grassaram... a situação pode tornar-se preocu­pante.

— Enviamos a Hoste Dourada para as ruas, se necessário for — disse Aewyre, algo arreliado. Aereth fez que sim com a cabeça, ansioso por ser útil.

— O problema é o que pode vir a suceder além das ruas, lorde Aewyre — explicou Tomenno. — Parte da vossa guarda regencial encontra-se nas muralhas para impedir as pessoas de saírem ou entrarem, mas com as baixas que tivemos, tereis de mandar vir alguns para o palácio, correndo de outra forma o risco de vos verdes despro­tegido durante uma...

— Sim...? Durante uma quê, Tomenno?

— Temo bem que, a menos que sejam tomadas medidas imediatas e drásticas, não poderemos pôr completamente a eventualidade de uma rebelião, meu senhor.

Era a palavra que ninguém queria ouvir, mas que tivera de ser dita. O semblante de Aewyre ensombrou-se, ao passo que o de Aereth pareceu apenas ficar mais pálido. Os cortesãos de Lennhau lamuriaram-se um pouco mais, alguns alarmados pela possibilidade de se verem presos numa ratoeira à espera de que a populaça de Ul-Thoryn se viesse vingar deles por alguma razão.

— Oh, pela palma de Bellex, ninguém vos vai fazer mal. Levem-me estes daqui — ordenou Aewyre aos poucos guardas que tinha ao seu dispor. — Metam-nos nos aposentos deles, e tranquem-nos lá dentro.

Os cansados guardas fizeram prontamente como lhes foi ordenado, demasiado aturdidos pelos eventos da noite para pondera­rem ou duvidarem. Muitos queriam apenas ordens que pudessem cumprir para se manterem ocupados, para não terem de pensar nos horrores pelos quais tinham passado. Aewyre suspirou, cansado, ele que mal pregara olho, mas estava perfeitamente ciente do quão deli­cada era a situação.

— Ajuda-me, Allumno — pediu com tom algo desalentado, pas­sando os dedos pelo cabelo. — Preciso de evacuar uma cidade em polvorosa, antes que Culpa chegue. Se alguns dos lennheses que fugi­ram por acaso não tentaram ser subtis, provavelmente espalharam a palavra pelas ruas, e corro o risco de a população se virar contra mim...

— Se tivésseis informado as vossas gentes, lorde Aewyre... — admoestou Tomenno, sendo propriamente interrompido por um brus­co gesto do jovem.

— Agora não, Tomenno — disse Aewyre em advertência. — Agora não preciso disso.

Humilhado, o senescal baixou a cabeça e deu um passo atrás, dei­xando o guerreiro conferenciar com os seus.

— Como estava a dizer, tenho de evacuar uma cidade, e corro o risco de que esta se rebele — prosseguiu Aewyre. — Se o fizer, as notícias espalhar-se-ão por Nolwyn fora, e Lennhau virar-se-á contra mim. Se não o fizer, o mais certo é o povo virar-se contra mim, e a anarquia instalar-se em Ul-Thoryn quando Culpa chegar. Como se isso não bastasse — acrescentou ainda —, tenho um Aesh’alan agrilhoado nas masmorras a deixar o palácio inteiro numa pilha de nervos, à espera de que tu me digas de que forma ele me pode ajudar a vencer O Flagelo.

Allumno acenou com a cabeça, escusando-se a responder enquanto não tivesse uma pergunta concreta, como sempre fora seu hábito.

— O que é que eu faço primeiro? — obsequiou-o o jovem. — Man­do procurar e capturar os lennheses antes que estes inflamem a populaça? Mando a Hoste Dourada para as ruas, abro os portões e eva­cuo cem mil pessoas à força? Vou contigo às masmorras e tratamos do que quer que tenha de ser feito com o bobo? Não posso ignorar ne­nhum destes problemas, e mesmo resolvendo um, ainda tenho de lidar com os outros. E ainda nem sei o que tens em mente para o bobo.

Mesmo com a pergunta feita, Allumno não respondeu de imediato, estalando os lábios pensativamente e torcendo o cajado nas suas mãos. Embora tentasse não o mostrar, o mago estava mais cansado que qualquer um dos companheiros, pois a passada noite não fora a única na qual mal dormira. As palavras de Zoryan tinham-lhe ecoado na cabeça durante a calada da noite, mesmo depois de ter enfiado a gema no fundo de uma arca e empilhado várias camadas de roupa e lençóis em cima desta. O plano que lhe ocorrera ao ouvir as palavras de Dilet durante o combate era pura loucura, mas, tal como o que o seu mestre lhe apresentara, era a única alternativa que se lhes apresentava.

— Allumno? Estás bem? — perguntou Aewyre, despertando-o do seu momento de introspecção.

— Não tens dormido nada, mago. Vê-se nos teus olhos — comen­tou Worick, que além de umas valentes nódoas negras sofrera apenas uma ligeira contusão. Postado ao lado de Lhiannah, o thuragar obser­vava os procedimentos à sua volta com ambas as mãos no pomo do martelo, esse de cabeça pousada sobre o chão.

— É da febre, nada mais — escusou-se Allumno, sentindo o peso da gema na sua sacola ao olhar para Aewyre. — Eu...

O mago foi interrompido pelo berro de dentes cerrados de um guarda, cujo ombro deslocado por um golpe de martelo lhe foi for­çosamente realinhado. Tomenno fechou os olhos e levou a mão à cara, de todo habituado a tamanho sofrimento humano, e acima de tudo escandalizado por ver a nobre sala do trono de Allahn Anroth con­vertida em enfermaria. O salão de audiências ficara porém inutilizável, meio ruído e com o piso ensopado de sangue, e mesmo com os cadá­veres removidos, ninguém quisera’ tornar a pôr os pés ali. Os corpos dos guardas caídos tinham sido honrosa e temporariamente dispos­tos na Sala dos Reis à espera de um enterro condigno, juntamente com as peças das armaduras douradas que tinham sido destroçadas no combate. Os dos thuragar e o de Othragon nada mais tinham mere­cido além da fossa séptica pela qual Lhiannah e Worick tinham ten­tado escapar, pois não houvera sequer tempo para tirar os arneses dos cadáveres e queimá-los numa pira. O túnel que estes tinham escavado até uma das mais distantes alas das masmorras do palácio já fora devi­damente tapado e calafetado, e ficara vigiado por uma das armaduras douradas.

— Acquon o cure, não podem levar esse desgraçado à enferma­ria? — perguntou Lhiannah à assistente de Thaddeo que lhe acabava de ligar a perna.

— Ele não corre risco de vida, alteza — disse a rapariga timi­damente, erguendo-se com as mãos cruzadas sobre o regaço. — Os outros podem morrer.

— Dizias tu, Allumno? — instou Taislin de braços cruzados, invulgarmente concentrado naquilo que o mago tinha para dizer. O burrik não parecia sequer ter combatido, encontrando-se praticamente incólume apesar de ter sido arremessado contra o teto por Othragon.

— Dizia eu... — pigarreou Allumno, invulgarmente pouco à vontade com os olhares que lhe eram dirigidos. Aereth ouvia e olhava ele também com atenção, e embora Lhiannah, Worick e Taislin objetassem à sua presença, ninguém tivera ainda vontade de con­trariar o homem ao qual a Hoste Dourada obedecia. — Eu penso que devíamos tratar do bobo primeiro. Se tudo correr como eu julgo, conseguiremos aprisionar O Flagelo definitivamente, e dessa forma resolveremos dois dos teus problemas, Aewyre.

— Como assim? — quis o jovem saber, com um olhar rígido como uma lâmina e o corpo descontraído como quem esperava o momento certo para desferir um golpe mortal.

— Acho que, enquanto solução, aprisionar O Flagelo se explica por si só — disse o mago, num laivo da sua habitual forma algo con­descendente de falar. — Que te disse Culpa quando vocês se encon­traram na torre?

— Disse que eu era a única ameaça para o filho dele...

— Não, acerca dele e d’O Flagelo.

— Que era pai dele... e que... estava debaixo da alçada dele, acho, e que se sentia culpado por tudo — recordou-se Aewyre, semicerrando os olhos e abanando ligeiramente a cabeça. — Disse também que eu era uma ameaça que ele gostaria de deixar viver, para que eu pudesse matar o filho dele... mas que não podia.

— Precisamente — enfatizou Allumno, apontando com o dedo para o jovem. — Aprisiona o Seltor, e Culpa deixa de estar debaixo da alçada dele. Há uma forte possibilidade que ele te ignore depois disso, pois tanto quanto sei, Culpa não procura ativamente os cul­pados. As lendas e os relatos que existem dizem respeito apenas àque­les que tiveram o infortúnio de se depararem com ele por acaso...

— Esse Culpa é pai... d’O Flagelo? — interveio Aereth, para grande surpresa de todos. Aewyre foi o único que pareceu animado com a iniciativa do seu irmão, e apressou-se a esclarecê-lo.

— Sim, Aereth. É um humano que... bem, engravidou Luris — explicou o jovem, olhando para Allumno a pedir-lhe ajuda, pois era o mago o verdadeiro especialista em lendas obscuras.

— Luris seduziu-o e engravidou dele, e essa cópula tornou-o algo... diferente — disse Allumno. — Houve quem o considerasse um imor­tal, um semideus, ou quase um deus por direito próprio, mas infeliz­mente não passam de teorias, pois poucos dos que com ele se depa­raram sobreviveram para relatarem a experiência.

— Mas porque é que ele vem atrás de ti, Aewyre? — indagou o jovem regente, que ao contrário de mesmo Daveanorn, parecia agora mais disposto a acreditar nas algo mirabolantes histórias dos compa­nheiros.

— Porque o filho dele assim lhe ordenou, pelo que percebi...

— Aquilo que faz Culpa perdurar, aquilo que lhe dá o poder que ele não deseja verdadeiramente, é a culpa por ter trazido O Flagelo ao mundo — acrescentou Allumno. — Tanto quanto se sabe, nunca confrontou o seu filho, embora pareça desejar a sua morte, o que nos leva a concluir que O Flagelo detém uma certa medida de influência sobre ele. Porventura, uma vez mais, devido à culpa que sente.

Aereth fez que sim com a cabeça e levou a mão à boca enquanto parecia ponderar. Aewyre e Allumno entreolharam-se, estranhando a envolvimento do regente, enquanto Daveanorn parecia simples­mente admirado. Lhiannah e Worick partilharam eles também um olhar cúmplice, ambos ainda desconfiados e incapazes de partilharem das esperanças de Aewyre de que o seu irmão despertara para o mal que causara na sua cegueira.

— Se ele começar a ficar esquisito — sussurrou o thuragar de lado à sua protegida quando esta ficou ao nível da sua cabeça ao levantar-se —, despachamo-lo.

— E as armaduras? — ciciou a princesa em resposta, deixando-se estar de costas curvadas enquanto fingia massagear a perna ligada.

— Pelo que percebi, elas obedecem ao legítimo herdeiro de Ul-Thoryn — prosseguiu Worick. — Se o Aereth morrer, é o Aewyre que manda.

— Está bem — concordou Lhiannah, erguendo-se e olhando dis­cretamente à volta para se certificar de que ninguém os ouvira, mas todos os presentes na sala estavam ocupados a ligar feridas, a pensar ou a falar, e os sussurros conspiradores de ambos tinham passado des­percebidos.

Todos, menos Taislin, que a arinnir viu a olhar para ela e para Worick com olhos bem abertos. Lhiannah levou discretamente o indi­cador aos lábios, e o burrik assentiu, embora não parecesse particu­larmente convencido, sobretudo ao ver a princesa soltar a faca na bainha que tinha à cintura, mantendo Aereth debaixo de olho. Dava a idéia de que estava quase a orar para que o regente lhe desse um motivo.

— E que quer esse Culpa contigo, Aewyre? — perguntou Aereth, parecendo meio distante na forma como olhava o vazio em vez do seu irmão.

— Bom... — hesitou o guerreiro, franzindo ligeiramente o sobro-lho. — Como estávamos a dizer, Aereth, Culpa vem matar-me por­que O Flagelo assim o obrigou.

— Mas que... culpa tens tu?

Aewyre suspirou pesadamente, não devido às perguntas mas às recordações do seu único e quase fatal confronto com Culpa, cujas reminiscências de ter estado completamente indefeso ainda lhe propagavam um desagradável frio nas entranhas.

— Por falta de termo melhor, Culpa traz ao de cima a culpa que um indivíduo possa sentir — explicou Allumno. — Exacerba-a, faz com que esta devore a pessoa por dentro, e acaba por a levar ao suicí­dio, ou ao homicídio de outrem.

— Fiz muitas coisas durante a minha viagem, Aereth — concor­dou Aewyre. — Muitas das quais me arrependo. Quando defrontei Culpa, ele teve apenas de pegar numa delas, e quase morri por isso, sem poder fazer nada a respeito.

— Culpa sente-se culpado... e culpa outros pelo seu estado — murmurou Aereth, permanecendo sentado no degrau ao lado do seu irmão, sem olhar para este ou para Allumno.

— Bem... não — esclareceu Aewyre. — Tanto quanto possível, ele pareceu-me pesaroso por ter de me matar. Se mostrou alguma emo­ção, foi quando muito alguma tristeza.

— Então sente-se culpado porque outros têm de pagar pela sua culpa...

— Aonde queres tu chegar, Aereth? — perguntou Allumno.

O regente não respondeu, parecendo perdido nos seus próprios pensamentos, e o mago encolheu os ombros ao trocar um novo olhar com Aewyre.

— Então e porque não mandam as armaduras contra esse Culpa? — sugeriu Taislin, olhando para um dos inexpressivos elmos antropomórficos que vigiavam os presentes. — Não me parece que elas se sintam culpadas pelo que quer que seja.

A expressão de Aewyre alumiou-se quase visivelmente, e este levantou-se de rompante, apontando para o burrik com uma expressão de quase maníaca esperança na cara.

— Pelos mamilos de Nirille, como é que ainda não tínhamos pen­sado nisso? — descreu o guerreiro. — As armaduras, é claro!

— Eu pensei nisso — disse Allumno em tom refreador. — As armaduras alojam almas, Aewyre. Estariam tão vulneráveis aos poderes de Culpa como qualquer ser vivo.

— O quê? — exclamou o jovem, virando-se para o mago. — Que dizes, Allumno? Então elas mal dão por nós, só têm ouvidos para o Aereth...

— Enquanto despertas, vêem e ouvem. As almas que animam a Hoste são tão humanas quanto tu ou eu, e o sacrifício que fizeram não há-de ter sido sem conseqüência para as suas consciências...

— Olha que isso a mim soa-me um bocado rebuscado, ó mago — interveio Worick. — Pedras me partam, são armaduras...

— Com almas humanas nelas alojadas — reiterou Allumno, pare­cendo algo incomodado. — Ainda corremos o risco que elas se virem contra o Aereth ou o Aewyre, caso culpem um descendente da casa de Thoryn pelo seu predicamento.

— Mas não achas que vale a pena tentar? — perguntou Aewyre, agarrando-se à réstia de esperança que lhe fora tão repentina e tenta­doramente exposta.

— Sim, armaduras e trabuquetes — sugeriu Taislin, protetor.

— Pára de dizer disparates, Taislin! — regougou Allumno, sobres-saltando o burrik e surpreendendo os restantes companheiros com a brusquidão com que se virou para ele, volteando a capa. Com uma mão a apertar o cajado, apontou com a outra para o chão num gesto enfático. — Temos ali em baixo nas masmorras a solução para todos os nossos problemas, e vocês não conseguem pensar noutra coisa que não brincar à Demanda pelo Trono com a Hoste Dourada?

A explosão de Allumno surpreendeu todos, incluindo os guardas feridos e as assistentes que deles tratavam, que pela primeira vez olha­ram para o importante conclave que decorria no salão sem o tentarem disfarçar. Mesmo Aereth, que de resto parecia absorto nos seus pró­prios pensamentos, despertou e ficou a olhar, piscando os olhos.

— Estás a tentar dizer-nos alguma coisa, mago? — perguntou Worick ao fim de um tenso silêncio, no qual apenas Allumno se mexeu, ofegante, fitando à vez os seus siderados companheiros.

Como poderiam eles compreender? Como poderia qualquer um deles sequer conceber o inferno pelo qual tinha passado desde que Zoryan lhe revelara o seu plano e as suas implicações? Nenhum conse­guiria alguma vez imaginar as noites que passara em branco com a testa mutilada a pulsar-lhe de dor enquanto a sua cabeça fervilhava em febril atividade, lidando com a perda do seu mestre e tentando engendrar uma forma de não ter de sacrificar Aewyre. Agora que Dilet lhe pro­videnciara um inesperado meio, queria apenas testar a sua teoria o quanto antes, e agravavam-no as considerações secundárias nas quais os seus companheiros se estavam a concentrar de forma tão insistente.

De qualquer forma, não podia explicar-lhes, não sem que o tomas­sem por um louco que perdera a sanidade ao perder a gema na testa, que desde então não parará de sangrar e para cuja ligadura manchada de vermelho Aewyre e os outros olharam naquele momento.

— Allumno, passa-se alguma coisa? — perguntou o jovem, acercando-se deste e pousando-lhe a mão sobre o ombro.

O mago hesitou, ciente de que naquele momento a sua credibi­lidade era pouca e que não era aquela a melhor altura para explicar sequer parte do seu ousado plano aos companheiros. Teria de o fazer, isso era certo, mas o seu receio era não ser levado a sério, visto que ele próprio duvidava das suas probabilidades de sucesso.

— Eu... — hesitou, percorrendo o salão com o olhar e sentindo o peso dos de todos os presentes.

O ruído das portas duplas a serem abertas de escantilhão ecoou pelo salão como uma trabucada, fazendo várias pessoas saltarem de susto. Um guarda entrou apressadamente, desviando para si a atenção dos que fitavam o mago, que ficou grato pelo refolgo.

— Lorde Aewyre, lorde Aewyre! — disse o jovem com tom esbaforido, tendo perdido ou largado a sua partasana em algum lugar pelo caminho.

— O que foi? — perguntou o guerreiro, largando Allumno e avançando uns passos a encontro do guarda, sentindo a premência que ali o impelira.

— Os portões, lorde Aewyre! O povo revolta-se aos portões!

— Oh, os desgraçados! — imprecou o jovem, virando a cara para os companheiros ao lançar-se a correr. — Venham!

Lhiannah, Worick, Taislin e Allumno foram de imediato e sem hesi­tar, esquecendo rapidamente a presente situação e deixando-se levar pelos reflexos condicionados por um ano de convivência e luta conjunta pela sobrevivência. Daveanorn seguiu-se-lhes, e Aereth foi rápido demais a juntar-se ao paladino para que a arinnir ou o thuragar pudessem objetar, até porque as longas pernas de Aewyre já quase o tinham levado até às portas abertas. Atrás do díspar grupo vieram ainda os guardas capazes de andar, bem como as armaduras douradas que, a um silente comando de Aereth, se lançaram numa clangorosa corrida no encalço deste.

 

Deixando para trás um agitado palácio, os companheiros e o seu séquito saíram a correr por entre as patas da desmedida águia de mármore que vigiava a entrada de Allahn Anroth, flanqueada por duas torres. Encabeçado por Aewyre, o grupo correu pela ampla praça fora, na qual quatro enormes águias de asas unidas rodeavam um sol com os brasões das províncias do antigo Nolwyn nele retratadas num padrão de losangos. Um orbe difuso atrás de nuvens primaveris no céu espelhava pobremente o esplendoroso sol do piso, que estava molhado do chuviscar da noite anterior. Havia guardas na praça, boa parte deles a correrem de um lado para o outro como ovelhas deso­rientadas, mas que rapidamente se juntaram a Aewyre na sua corrida para os portões. Gritos e vozes ecoavam pelo terreiro, abafando o ruído da água que escorria dos ornamentos das fachadas com colunas coladas aos lados da muralha, onde estavam expostas estátuas que retratavam os nobres que se tinham sacrificado em prol da Hoste Dourada.

Além desses sons, ouviam-se também do outro lado da muralha os roucos protestos e agravos de uma multidão, que apenas acicataram Aewyre a uma corrida mais desenfreada ainda. Não pareciam estar já aos portões, mas o simples fato de uma turba se ter aglomerado aos pés de Allahn Anroth era urgente quanto bastasse, e o jovem temia as repercussões que tal poderia ter no resto da cidade. Por essa razão, não se deteve até chegar aos portões interiores, entrando de rompante pela porta aberta que levava a uma das torres flanqueantes, galgando os degraus das escadas em caracol a um ritmo que os seus companheiros e sobretudo os guardas arnesados tiveram dificuldade em acompanhar. Aewyre interpelou mesmo alguns na escadaria, perguntando-lhes o que se estava a passar mas passando por eles antes que estes tivessem sequer tempo para responder. Não foi senão quando chegou ao topo das escadas, onde três guardas nervosos se viraram para ele de parta-sanas empunhadas, que pôde ver do topo das ameias o que se estava verdadeiramente a passar.

Allahn Anroth fora construído sobre uma íngreme colina, em cuja parte plana o palácio e a respectiva praça assentavam. A encosta alcantilada permanecera inalterada ao longo dos anos, mas a parte dianteira desta na qual se situava a escadaria fora trabalhada, com trilhos secun­dários que partiam ao longo das escadas até aos lanços de muralha que desciam pela ladeira. Esses lanços uniam-se a uma outra muralha com portão, esta semicircular e com o único propósito de resguardar a esca­daria. Era diante destes portões exteriores que se concentrava a turba que Aewyre ouvira da praça, e que, embora não parecesse propria­mente disposta a fazer uma escalada, estava claramente agitada. Entre a multidão encontravam-se pessoas dos mais variados estratos sociais: ufanos burgueses ricamente indumentados e cercados pelos seus guardas pessoais, esterqueiros munidos com os seus imundos ancinhos, ferradores empunhando martelos, peixeiras de facas na mão e, mais alarmante que todos os restantes, homens da milícia armados, que arrastavam membros da guarda do palácio presos por cordas. Os cabisbaixos homens deixavam-se levar, de cabeças desprovidas de barbudas e vergadas pela humilhação, e embora não ostentassem sinais de vio­lência de maior, era evidente que não tinham sido capturados paci­ficamente.

— Ui. Isto não é bom — comentou Worick, espreitando por um merlão enquanto Lhiannah se postava ao lado de Aewyre, que não respondeu.

Daveanorn chegou pouco depois, precedido por Taislin e um guar­da regencial que ajudara Allumno a subir as escadas, e foi o paladino quem mais sonoramente se manifestou ante aquilo que todos viam.

— Joral esteja teso, eu não acredito! — praguejou. — O Ábaco, aquela camarilha...

De fato, pareciam ser os mercadores os principais incitadores da turba, que apesar de tudo certamente não precisara de grandes incentivos para se manifestar. Aereth desrespeitara e chantageara o Ábaco, e os membros deste tinham evidentemente achado que a altura era certa para soprar as brasas do descontentamento dos habitantes aquarentenados de Ul-Thoryn. Custou-lhe ainda assim ver membros da milícia entre a multidão, pois era certo que conhecera e treinara alguns daqueles rapazes, e vê-los pegarem em armas contra o seu senhor — independentemente das assumidamente drásticas e porven­tura impensadas ordens de Aewyre — era algo que o paladino nunca julgara vir a presenciar.

— O que se passa? — perguntou Aereth ao irromper da porta da torre, seguido pelos passos metálicos das armaduras douradas. — Oh...

— Morte ao usurpador! — gritavam os homens reunidos aos portões ao verem cabeças desprovidas de barbudas a olharem para eles, estando Aereth entre elas sem que ninguém o reconhecesse.

— Traição! Traição! — berrava a turba em díspar uníssono.

— Sabem os deuses o que os lennheses hão-de ter espalhado pelas ruas... — disse Daveanorn. — Se calhar foram até acolhidos pelo Ábaco.

— Eles exigem a presença de lorde Aereth... lorde Aewyre — referiu um dos guardas.

— Não seja por isso, não? — indagou Worick, olhando para Aewyre e ficando surpreendido com o olhar frio e afiado como aço que este lançava à multidão.

— Como dizes? — perguntou o jovem com um tom de voz peri­gosamente baixo, que mal se ouviu a meio do barulho da arruaça.

— Como digo?! Mostra-lhes o teu irmão, que diabo! — exclamou o thuragar. — Aqueles toscos devem pensar que o mataste e lhe usurpaste o trono, ou algo parecido.

— Os imbecis... — mussitou o jovem para consigo, como se não tivesse ouvido. — O Flagelo a tentar destruir-nos a todos, e só se lhes dá para se amotinarem nas ruas da sua própria cidade...

— Aewyre, esta gente não sabe... — refreou-o Daveanorn, não gostando do tom da voz do guerreiro. — Estão isolados do mundo exterior há semanas, e só ouviram rumores de que estava prevista uma tentativa de assassinato contra o teu irmão... que, tanto quanto eles sabem, ainda é o seu senhor.

O jovem continuava a não parecer convencido, e embora ninguém lhe conseguisse adivinhar os pensamentos, transparecia no seu olhar uma ameaçadora predisposição para eliminar o obstáculo em vez de o tentar contornar. Desviara-se já demasiado da senda da lâmina, per­mitira-se demasiadas distrações, voluntárias ou não, e agora a própria gente que procurava proteger rebelava-se contra ele.

— Aewyre, deixa só que eles vejam o Aereth — recomendou Lhiannah, pousando-lhe uma mão sobre o ombro.

— Eles estão a vê-lo... — rosnou o guerreiro.

— Talvez... se o levarmos aos portões? — ofegou Allumno, que ainda não se recompusera da corrida.

Aereth empalideceu antes que Aewyre pudesse sequer refutar a sugestão, como se preparava para o fazer, e o jovem regente agarrou-lhe o outro ombro em pânico. Lhiannah fulminou-o com o olhar, mas Aereth nem se deu conta, fitando o seu irmão com olhos arregalados de medo quando este se virou para ele.

— Não, Aewyre, por favor! Não me leves até eles! — suplicou. — Eu fiz... eu fiz coisas ao Ábaco, aos membros dele! O bobo conven­ceu-me...! Eu não queria...

«Sim, aposto que agora preferias não ter feito aquilo que fizeste, covarde», pensou Lhiannah, abstendo-se contudo de o dizer e olhando em vez disso com ar desconfiado para as armaduras douradas que vinham das escadas.

— Sangue no trono, sangue nas ruas! — clamou a multidão. — Sangue no trono, sangue nas ruas!

— Calma, Aereth — sossegou-o prontamente Aewyre, agarrando o aflito regente pelos braços. — Ninguém te vai tocar enquanto eu puder fazer algo a respeito.

— Ninguém vai tocar no teu irmão — assegurou Daveanorn, ciente de que com Aereth não valia a pena falar. — Levamo-lo só aos portões para que todos o possam ver...

— Para quê? Para que um daqueles traidores da milícia lhe enfie um virote no peito? — acusou Aewyre, apontando com um feroz dedo para além das ameias. — Achas que eles vieram cá só para verem se estava tudo bem, para depois voltarem para casa para jantar?!

— Aewyre -— descreu Daveanorn —, não podes estar a...

— Erguem armas diante de Allahn Anroth! — gritou o jovem, largando Aereth e esbracejando em mal contida fúria diante dos seus companheiros e súditos. — Capturaram e amarraram homens meus, e vêm às portas do palácio exigir a minha morte!

— Eles não sabem, Aewyre... obtemperou Allumno.

— Então se não sabiam, que não pegassem em armas e se voltas­sem contra os seus, quando todos nós estamos em risco! — raivejou Aewyre. — Pelos deuses, a minha vontade é soltar a Hoste Dourada sobre aqueles imbecis e dar a alguns deles o sangue que eles querem...

— Meu senhor! — exclamaram os guardas mais próximos, choca­dos com a mera noção de derramarem o sangue da sua própria gente, ainda que tivessem capturado colegas e camaradas seus.

— Aewyre! — chamou-o Daveanorn à atenção, sem qualquer servilismo na voz. — Não podes estar a falar a sério!

— Não faças isso, Aewyre! — quase rogou Lhiannah, tornando a agarrá-lo e forçando-o a olhar para ela enquanto apontava um acusador indicador ao seu irmão. — Não vês que é precisamente isso que ele quer?

— Arre, eu não me oponho a enfiar bom senso em cabeças à mar­telada — comentou Worick —, mas isso seria um bocado demais.

— Eu cá acho que pelo menos devias assustá-los com as armadu­ras — opinou Taislin, ele com uma expressão quase tão ensombrada quanto a de Aewyre, ao ver que alguém ameaçava os seus amigos.

— Pensa bem... — pediu Allumno ao seu protegido. — Ninguém te está a pedir que lhes entregues o Aereth...

— Um de cada vez, azigoth vos levem! — praguejou Aewyre ao ver-se acometido por meia dúzia de vozes e opiniões. — Quando digo sangue, não estou a falar de cortar as cabeças daqueles cretinos, mas de mandar as armaduras partirem-lhes os narizes e algumas costelas, só para correr com eles daqui.

— Mas não achas que isso apenas acerbará mais ainda os ânimos da cidade? — perguntou Allumno.

— Quero lá saber dos ânimos — disse o jovem com um desdenhoso e violento gesto da mão. — Eu preciso daquela gente suficiente­mente assustada, para que não seja tão difícil evacuar a cidade. Pode ser que uns quantos escalpes abertos por armaduras animadas os amansem quanto baste para isso.

— Nisso ele já tem alguma razão... — concordou Worick.

— O quê? Estás à espera de evacuar cem mil pessoas com cin­qüenta armaduras? — perguntou Daveanorn, incrédulo, curvando os ombros para a frente e abrindo as mãos em obsecração de um pouco de bom-senso.

— Toda a gente desta cidade conhece as histórias, ainda que tenha esquecido o mal que as causou — disse Aewyre, obstinado, virando-se então para os guardas que acompanhavam a conversa com caras preocupadas. — Com a ajuda da Hoste Dourada, homens, vocês con­seguirão evacuar a população sem dificuldades de maior, a começar aqui pelo distrito da cidade velha...

— Aewyre... — opôs-se Allumno, vendo escapar-se-lhe por entre os dedos a oportunidade de resolver de uma vez por todas o assunto que lhe flagelava a alma. — Como esperas evacuar a cidade assim, com a população contra ti? E que pensas fazer com o Dilet? Queres correr o risco que o desgraçado escape?

— Levamo-lo conosco, agrilhoado até que as costas lhe rebentem, se necessário for — disse o jovem, cuja indecisão parecia ter sido ple­namente dissipada pela turba. — Vendamo-lo, amordaçamo-lo, partimos-lhe as pernas, o que for preciso. Ele não escapa, não te preocupes.

Lhiannah e Worick não se pronunciaram mais, pois embora lhes desagradasse a influência que Aereth ainda parecia ter sobre o seu irmão, tanto um como o outro sabiam ver que a situação requeria medi­das mais drásticas do que simplesmente entregar o regente. Apenas Daveanorn e Allumno se opunham com mais vigor ao modo de ação proposto por Aewyre, se bem que por motivos bem diferentes.

— Aewyre, pensa bem... — pediu o paladino.

— Já chega de pensar, porra! — vociferou este.-Desde que che­guei cá que não faço outra coisa senão pensar! Está na hora de agir, e é isso que vou fazer, nem que cometa o Terceiro Pecado!

— Mas tu ouves aquilo que estás a dizer? — indagou Allumno, incrédulo.

— Não só ouço e digo, como também vou...!

— Eu... — interrompeu-os a aflautada voz de Taislin, que se dependurava de um merlão para ver o que se passava em baixo. — Acho que vocês deviam ver isto.

Aewyre e os outros interromperam a discussão, olhando primeiro para o burrik e depois sobre as ameias, sendo então surpreendidos por uma de todo imprevista cena de violência. Esta não era porém dirigida às cabeças que espreitavam a turba detrás da segurança das ameias, mas sim aos homens que vinham no encalço da arruaça. Alguns cida­dãos tinham-se deixado cair de joelhos, uns pedido perdão, outros prostrando-se como se tivessem profundamente arrependidos dos seus atos. Os que permaneceram de pé reagiram de formas diferentes à inesperada vacilação, com alguns a chutarem os caídos e outros a agredirem-nos com as armas improvisadas que traziam.

— Faíscas da Bigorna, que deu àqueles mariolas? — admirou-se Worick.

Ninguém lhe soube responder, e todos reagiram com igual sur­presa quando a violência se intensificou e espalhou pela multidão, e as primeiras gotas de sangue pingaram sobre as pedras brancas da cal­çada. Havia agora homens a discutirem entre si na turba, outros que gritavam de angústia e apontavam dedos denunciantes aos merca­dores. Os guardas destes apressavam-se a silenciar os mais ruidosos com porretes, e ao contrário do que seria de esperar, os guardas regenciais amarrados não aproveitaram a confusão para se libertarem ou fugirem. Em vez disso, limitaram-se a ajoelhar-se e ergueram os bra­ços a quem os observava da torre, rogando por perdão e cobrindo as caras em desonra. Entretanto, as acusações continuaram a fazer-se ouvir no seio da multidão naquilo que parecia ser um vigoroso apurar de responsabilidades, e pessoas confessavam-se a outras, que retri­buíam com gritos de ferida raiva e as golpeavam e espancavam. Os próprios guardas dos mercadores começavam eles também a virar-se contra os seus mestres, acusando-os e exigindo satisfações, e a mal con­tida tensão ambiente explodiu por fim quando um gordo mercador caiu redondo ao chão, sangrando do nariz em resultado de uma por­rada na nuca. O balofo baque do cabecilha do Ábaco deu então início a uma autêntica batalha campal.

Os guardas no cimo da torre agitaram-se, sobretudo ao verem al­guns dos seus camaradas caídos serem espezinhados, mas os compa­nheiros ficaram demasiado surpreendidos para reagir. Aereth olhava boquiaberto para o grotesco espetáculo que os seus súditos lhe pro­videnciavam às portas do seu palácio, e Daveanorn praguejou, agar­rando Aewyre pelo ombro.

— Pelos deuses, Aewyre, eles estão a matar-se uns aos outros! Temos de fazer alguma coisa!

O jovem nem respondeu, deixando-se sacudir pela mão do pala­dino, e tal como Aereth olhava especado para a onda de violência que varria a multidão. Havia contudo algo de diferente na sua expressão, com os olhos brancos de desespero e um aterrorizado palor nas faces.

— É ele... — disse Aewyre, sem que ninguém o conseguisse ouvir. — Ele está aqui.

— Que dizes? — tornou Daveanorn a gritar. — Nós temos de...!

— Temos de tirar toda a gente daqui! Rápido! — interrompeu-o o guerreiro, explodindo em movimento. — Todos fora daqui! Fora!

Ainda retidos pela amotinação do próprio motim que decorria em baixo, os companheiros viram-se de repente empurrados para a porta da torre por Aewyre. O jovem agarrou a folgada manga de Aereth, puxou Taislin pelo colarinho com a outra mão e com esse braço cingiu ainda a cintura de Lhiannah, arrastando os três como se tivesse visto a morte a trepar a muralha. As armaduras douradas que os tinham acompanhado viraram os elmos em uníssono, parecendo momenta­neamente tão surpresas quanto aquele a quem obedeciam.

— Aewyre...?! — foi tudo o que a princesa conseguiu dizer, arqueando as costas para trás e sendo quase arrebatada pela arrancada do guerreiro.

— Culpa! Ele já chegou! — insistiu Aewyre, gritando aos guardas e aos seus restantes companheiros. — Venham! Venham depressa! Temos de evacuar o palácio antes que fiquem todos como aqueles lá em baixo!

Allumno, Daveanorn e Worick ainda hesitaram momentanea­mente, nada habituados a verem o seu companheiro em tal estado a roçar o pânico, e foram os guardas e as armaduras quem primeiro seguiu o guerreiro, que já descia de escantilhão pelas escadas em caracol. Com uma última espreitadela das ameias, Daveanorn segu­rou o braço de Allumno para o ajudar e os dois juntaram-se então à corrida com Worick. Os ruídos do tumulto aos portões foram abafa­dos pelo tropel metálico dos passos que ecoaram pelas escadas em caracol da torre. Espaldeiras e cotoveleiras embateram e roçaram con­tra a parede, à medida que os guardas arnesados iam tropeçando uns nos outros na ânsia de acompanharem Aewyre, que por pouco não caiu ele também, levando Lhiannah, Taislin e Aereth consigo. O burrik e a princesa já corriam sozinhos, mas ainda assim davam consigo a serem puxados a espaços por Aewyre, que jamais haviam visto de tal forma assustado. O guerreiro ofegava a cada larga passada que dava, empur­rando para baixo o punho de Ancalach para que esta não batesse contra os degraus, e os dois mal o conseguiam acompanhar. As armaduras vinham também no seu encalço, mais estáveis e disciplinadas que os guardas, e embora não sentissem que o seu senhor estava em perigo, viam-se forçadas a estugar o passo para conseguirem sequer acompa­nhar Aereth. Arrastado pela mão pelo seu irmão, o regente acabou mesmo por tropeçar na toga, caindo alguns degraus antes de se conse­guir agarrar. Aewyre olhou para trás e ainda fez tenções de subir para ajudar o seu irmão a levantar-se, mas ao ver a avalanche de aço que vinha atrás de si, achou melhor continuar para que não colidissem e caíssem todos pelas escadas abaixo.

— Ajudem lorde Aereth! — ordenou, retomando então a sua apressada descida com Taislin e Lhiannah a seu lado.

Os guardas que iam à frente repetiram o comando de Aewyre, tentando dessa forma evitar uma colisão quando parassem, mas a desenfreada descida dos que vinham atrás não o permitiu, e foi apenas graças a algum esforço que Aereth não foi atropelado. Alguns guardas continuaram simplesmente a correr, outros ficaram hesitantes pelo meio, e outros tencionavam deixar-se ficar para trás para levarem Aereth, mas esses começavam a ver-se empurrados para a frente pela pressão das armaduras que vinham atrás.

— Vão! As armaduras levam-me! — disse o regente, ao que os guardas aquiesceram, vendo que estavam apenas a bloquear as escadas.

Aereth deixou-se então levantar por manoplas douradas enquanto os seus homens passavam a correr por estas, mas um deles fez questão de ficar e ajudar o seu senhor. Nenhuma das armaduras objetou, até que a que erguia Aereth foi abalada pela desgovernada descida de Worick.

— Sai-me da frente, douradinho! — grunhiu o thuragar, seguido por Daveanorn e Allumno. Os dois ainda se detiveram momentanea­mente, hesitando em deixar Aereth para trás, mas ao verem que as armaduras tinham a situação controlada e que Aewyre já mal se ouvia, seguiram em frente.

O regente foi então praticamente transportado pelas escadas abaixo, e o incansável e regular passo das armaduras cedo lhe permitiu apanhar a retaguarda do grupo em fuga. O guarda que com ele ficara teve algumas dificuldades em acompanhar as passadas metálicas de pernas incorpóreas revestidas com placas douradas. Vistas de trás, estas pare­ciam flutuar no ar com vida própria, sustentando couraças vazias sobre as quais se balançavam elmos. Era uma visão algo perturbadora para o homem, que contudo se limitou a correr ao lado das armaduras como se nada fosse, impelido pela urgência das circunstâncias.

O díspar grupo encabeçado por Aewyre jorrou então da porta da torre, percorrendo a praça numa desenfreada correria enquanto o rebate soava pelo exterior do palácio. Guardas alarmados adiantavam-se já ao grupo, incentivados pelos gritos do guerreiro, e corriam a avisar os que se encontravam no interior. Aewyre não tardou a distanciar-se dos outros, com as suas longas pernas impelidas pelas memórias de caos e morte no baluarte da Cidadela da Lâmina. Lhiannah vinha atrás, seguida de perto pelos guardas, com Taislin entre estes a tentar não ser atrope­lado. Seguiam-se Worick, Daveanorn e Allumno, em cujo encalço vi­nham as armaduras douradas, Aereth e o guarda que decidira ficar para trás com o seu senhor. Este estranhou quando sete das armaduras come­çaram a abrandar o passo, mas os inescrutáveis elmos destas nada reve­lavam acerca das suas intenções. Foram ficando gradualmente afastadas das outras, que seguiram o grupo até estes entrarem no palácio, dei­xando-os para trás, e o homem lançou um olhar dúbio a Aereth.

— Meu senhor, porque param as...

Embora não o fitasse diretamente, a expressão quase maníaca do regente entalou-lhe o resto das palavras na garganta, e o guarda falhou um passo. Antes que conseguisse recuperar, os dedos frios de uma manopla enfiaram-se-lhe por baixo da barbuda e taparam-lhe a boca, puxando-o contra uma couraça com força fantasmagórica. Silenciado e preso, o guarda ficou com o elmo deslocado pelos dedos que lhe tapavam a boca, e teve o campo de visão limitado pela torta abertura em forma de Y para mirar o seu senhor com olhos espavoridos. Este olhava à sua volta, certificando-se de que os guardas ao longo das muralhas estavam demasiado ocupados a correr para o palácio para repararem naquilo que se passava. Ofegava da corrida e tinha os cabelos em desalinho, e os seus dentes cerrados eram uma linha branca entre o preto da espessa barba e bigode.

— Tragam-no — disse por fim às armaduras, aterrando o guarda ao olhar de maníaca esguelha para ele. — E abram os portões.

 

O pânico instalara-se novamente em Allahn Anroth, pois todos estavam ainda com os nervos à flor da pele após o ataque noturno dos thuragar. Os guardas não estavam menos nervosos, e os gritos enervados com que mandavam os serviçais pararem de trabalhar e os residentes abandonarem os seus aposentos não transmitiam confiança alguma. Dadas as dimensões do palácio, não havia homens suficientes para organizarem a evacuação em grupos, e Aewyre tivera de os sepa­rar individualmente para que conseguissem cobrir cada sala e corredor. Allahn Anroth assentava sobre uma colina plana de encostas íngremes, que descrevia uma curva para leste que culminava num clivoso esporão. Uma divisão do palácio acompanhava essa curva, em cuja extremi­dade fora construído um suntuoso miramar voltado para o porto, por baixo do qual corria um dos muitos canais da cidade que depois desaguavam no mar. Um engenhoso sistema de diques com massivas comportas fora construído na base do esporão, controlando o nível da água dentro de uma caverna, à qual um túnel secreto dava acesso. A caverna artificialmente inundada tinha uma série de longas gôndolas para o caso de uma evacuação de emergência do palácio, nas quais era possível escapar com o abrir de uma comporta, que esvaziaria a caverna e lançaria as embarcações pelo canal fora.

Aewyre tencionava levar os habitantes e os cortesãos de Lennhau até essa mesma caverna, e foi nesse sentido que ordenou aos guardas que conduzissem as pessoas até à divisão leste de Allahn Anroth. O centro de operações da evacuação era o ajardinado pátio interior do palácio, no qual se encontravam o guerreiro e os companheiros, que o rodeavam ociosamente, tentando não ficar no caminho e sem saberem ao certo como poderiam ajudar. Aewyre era um foco de atividade, berrando ordens e instruções aos atarefados guardas, que iam conduzindo pes­soas confusas e assustadas ao abrigo das pérgulas revestidas de trepa­deiras com botões verdes já a despontarem. As armaduras douradas que ali se encontravam estavam simplesmente de pé como arneses deco­rativos, tão imóveis como a estátua da águia de Ul-Thoryn no pavi­lhão no centro do pátio. A orgulhosa ave observava os procedimentos, erguendo-se majestosa do sol no piso e parecendo desaprovar da queda de graça da Pérola do Sul com o seu severo olhar aquilino.

— Depressa, não há tempo a perder! — incitou o guerreiro, batendo com as mãos. — A ala norte?

— Vêm já a caminho, lorde Aewyre — disse um atarefado guarda. — O Moreato disse que ia lá e que se juntava a lorde Daveanorn, não vão os lennheses aprontar alguma.

— Muito bem. Vocês não querem ir também? — perguntou aos seus companheiros.

— Nem penses — recusou-se terminantemente Lhiannah, anteci­pando-se à anuência de Worick. — Ficamos aqui contigo até ires tu também.

O thuragar nada disse, mas o olhar que lançou à princesa eviden­ciava uma algo remordente vontade de aceitar a sugestão de Aewyre. Não que fizesse tenções de o abandonar à sua sorte ou que tivesse medo de combater o que aí vinha, mas o pavor que o guerreiro visivel­mente tinha por Culpa, e o fato de não estarem ali realmente a fazer nada, deixavam Worick irrequieto e assustado por Lhiannah.

— O Dilet, Aewyre? — perguntou Allumno. — Não nos pode­mos esquecer dele.

— Belas prioridades, as tuas, mago — comentou Worick, irritado consigo próprio e com a situação.

— Mandei um guarda ir buscá-lo e ao Kror — disse o jovem sem sequer olhar para o mago, olhando antes à sua volta. — Se estão a demorar, deve ser por causa das duas armaduras que ficaram a vigiá-lo. Onde está o...

— Aewyre! — chamou-o uma voz feminina com característicos erres exagerados.

O jovem virou-se na sua direção e viu Layaline correr para ele com uma assustada Làriana ao colo. A rapariga vinha à frente de um grupo de lennheses, seguida pela antiga aia da princesa Iollina e o pajem surdo-mudo. Aewyre foi ao seu encontro e tentou reconfortar mãe e filha com um curto mas forte abraço.

— O que é que se está a passar, Aewyre? Os guardas não nos expli­caram... O que é que nos vai acontecer?

— Nada — prometeu o guerreiro sem contudo o poder garantir. — Mas é muito perigoso ficarem aqui agora, por isso vão para onde os guardas vos mandam. Nós vamos sair do palácio em barcos, e vai correr tudo bem, está bem?

Layaline pareceu incerta, e Làriana apertava a sua boneca contra a cara, mordendo os cabelos desta e olhando Aewyre com grandes olhos castanhos. O guerreiro apertou o ombro da rapariga e afagou a cabeça da criança, beijando os cabelos de ambas e empurrando-as delicada­mente na direção das restantes pessoas que se encaminhavam para a ala leste. Layaline reuniu coragem e engoliu os medos em seco, anuindo e apertando Làriana com mais força contra o seu peito ao fazer como lhe era dito. A criança ficou a olhar para Aewyre sobre o ombro da mãe, e o jovem ainda lhe acenou com mão, mas a passagem do grupo de lennheses forçou-o a devolver a atenção à tarefa que tinha em mãos. Os homens e mulheres de Lennhau passaram por ele de cabeças baixas, evitando contato visual, e o severamente impaciente olhar de Aewyre não lhes deu qualquer razão para se sentirem mais à vontade.

— Não queres enviar mais alguém para as masmorras? — insistiu Allumno nervosamente, torcendo o cajado nas mãos como se fizesse ele próprio tenções de ir.

— Não. Vamos esperar — disse o guerreiro distraidamente, olhan­do à volta para as armaduras que se encontravam em redor. — Alguém viu o Aereth?

— Da última vez que o vi, estava rodeado de armaduras — disse Taislin, vigiando a porta pela qual tinham vindo, atento ao mínimo de sinal perigo e com as mãos perto dos punhais.

— Eu não o... — ia Aewyre dizer, quando algo no grupo de len­nheses lhe chamou a atenção. Uma mulher com toucado branco e espantadiços olhos esverdeados baixou mais ainda o olhar quando os do guerreiro a seguiram, e esta acelerou o passo.

Porém, não fora ela quem lhe chamara a atenção, mas o que trazia ao colo: um bebê cingido com um pano branco, germinantes caracóis castanho-claros e penetrantes olhos de uma estranha tonalidade azu­lada. Aewyre nunca vira o bebê, nem o reconhecia de lado algum, mas uma estranha sensação de familiaridade fez com que o seguisse com o olhar enquanto era levado pela mulher. Lhiannah notou a expressão intrigada na cara do jovem, e tocou-lhe o braço de leve.

— Está tudo bem?

— Sim... foi só... — estranhou Aewyre, franzindo as sobrancelhas ao notar que o bebê continuava a olhar para ele à distância.

O jovem piscou então os olhos e abanou de leve a cabeça para se tornar a concentrar na situação que tinha em mãos. Sondou os seus companheiros de relance, sendo atentamente observado por todos menos Allumno, que olhava agora ele à volta.

— O que foi? — perguntou-lhe Aewyre.

— Estou a ver se vejo o Aereth... — explicou o mago, começando ele também a parecer preocupado.

Lhiannah e Worick não partilhavam do sentimento, e Taislin estava demasiado ocupado a olhar para a entrada, mas Aewyre e Allumno olharam os dois em redor, agora já com uma certa urgência na forma como mexiam as cabeças.

— Ele não está aqui... — disse o guerreiro.

— Não terá já ido para a ala leste? — especulou Lhiannah.

— Para isso tinha de passar por nós... oh, não...

Sem qualquer aviso, o jovem lançou-se a correr, forçando alguns guardas e serviçais a abrirem caminho ao tentarem entrar no pátio. Os companheiros chamaram por ele, sem sucesso, e Lhiannah foi atrás, para grande desalento de Worick, que seguiu ele também com Taislin e Worick.

O rastrilho de Allahn Anroth subiu, e com ele abriram-se os maci­ços portões do palácio. A figura solitária e pungente de Aereth sur­giu isolada no espaço dilatante, insignificante na imensidão da entrada escancarada, e hesitou diante da escadaria. Ao fundo desta os portões exteriores também se abriam, movidos pelas correntes que chocalha­vam ao longo dos lanços de muralha que desciam a encosta até à mura­lha semicircular em baixo. Além destes, aquilo que se via era um cenário de guerra no coração da própria Pérola do Sul, um monte de cadáveres de homens e mulheres, alguns agarrados uns aos outros como se tivessem acabado de se matar mutuamente. A virulenta turba que se apinhara diante de Allahn Anroth estava reduzida a uma pilha de cadáveres, e os gritos dos sobreviventes ecoavam pelas ruas e vielas por onde estes tinham fugido, proclamando a sua culpa numa caco-fonia plena de remorsos.

Aereth não lhes prestava grande atenção, às vozes ou aos corpos amontoados aos portões em baixo, mas a sua posição elevada permitia-lhe divisar o bulevar que atravessava a cidade velha até chegar a Allahn Anroth, e no fundo do qual tinha o olhar fito. A via calcetada ladeada por árvores e estátuas encontrava-se deserta, e à parte da água que corria em regatos pela encosta e dos gritos distantes que corriam ao desvario para longe dali, não se ouvia um único som. Aereth olhou para trás, para as cinco armaduras dispostas como uma cancela dourada diante da entrada. Uma delas segurava o guarda que ficara para trás, e que se agitava futilmente no fantasmal amplexo com a voz abafada pela manopla dourada que lhe tapava a boca, olhando com ar traído para o seu senhor. O jovem regente resistiu à tentação de ordenar às armaduras que tornassem a fechar os portões e, respirando fundo, deu um fatídico passo em frente, abandonando a ilusória segurança das muralhas. Os passos seguintes custaram-lhe um pouco mais, e o pri­meiro lanço de escadas foi descido com dificuldade, que parecia crescer de cada vez que assentava pé num degrau mais abaixo que o anterior.

A falda suja da sua regia túnica escarlate arrastava-se pelas escadas, e as abas das mangas pendiam-lhe longas e desalentadas dos braços frou­xos.

Não foi senão a meio do segundo lanço que Aereth tornou a hesitar, isto ao avistar ao fundo do bulevar um vulto sinistro que vinha na sua direção. Nunca vira um desenho de Culpa, e mal ouvira falar dele, mas soube de imediato com quem se estava prestes a deparar. Um corvo crocitou, sobressaltando o regente, que olhou para o lado e viu a ominosa ave negra pousada sobre a mão de uma estátua de mármore de um dos trilhos ladrilhados que partiam da escadaria. O corvo mirava-o com funestos olhos pretos, inclinando a cabeça para o lado numa pretensa encenação de insciência. Aereth começou a respirar mais depressa, e o coração reboava-lhe no peito. O vulto continuou a avançar calmamente, parecendo estar mais próximo que o seu anda­mento lho deveria permitir, fazendo chegar aos ouvidos do regente o seco som do seu cajado a bater no pavimento. Aereth engoliu em seco, esfregando as palmas das mãos suadas às abas das mangas, e conseguiu a custo descer o degrau no qual plantara os pés, sentindo que acabara de dar um passo em frente à borda de um penhasco, pois a partir de então não mais conseguiu parar.

Já não se ouviam gritos agora, e parecia não haver vida em Ul-Thoryn além das muralhas da cidade velha, pois o único som que se escutava era o da ponta do cajado na calçada e o do correr da água dos regatos da encosta palaciana. Nem mesmo o corvo crocitava, que­brando apenas o seu silêncio ao bater as asas e voar para a muralha semicircular em baixo, acompanhando o progresso de Aereth. Este, ao descer o penúltimo lanço de escadas, perdeu momentaneamente Culpa de vista, pois a muralha ocultou-os mutuamente, o que fez com que o jovem regente descesse um pouco mais depressa. O cora­ção retumbava-lhe aos ouvidos e as têmporas palpitavam-lhe ao ponto de fazer com que as suas pálpebras se contraíssem. Um segundo corvo crocitou, sobrevoando-o e batendo as asas ao pousar no lanço de muralha oposto ao do seu companheiro. Ambos observaram Aereth com o ar mais intrigado que tais aves eram capazes de mostrar, dando mesmo a impressão de que se entreolharam em certo instante. Aereth não lhes deu qualquer atenção, sentindo mesmo naquele nublado dia de Primavera uma aterrada necessidade de tornar a ter Culpa debaixo de olho, não fosse aquele mal anciano surgir de parte ines­perada e arrancar-lhe a alma do corpo com o puro terror da sua pre­sença.

Vê-lo assim que desceu ao nível dos portões foi um misto de alívio e reatado pavor, pois Culpa parecia novamente ter avançado mais que o seu ponderado passo deixaria pressupor. Aquela distância, era já possível distinguir alguns detalhes: uma túnica talar vermelha, um cajado retorcido empunhado, um homem velho que aparentava ser um louco eremita, com basta barba branca debaixo do queixo e uma venda escarlate sobre os olhos. Não era por si só uma visão aterradora, mas havia algo na sua presença e nos sinistros prenúncios que haviam antecedido a sua chegada. Algo que deixava trêmulas as pernas de Aereth, e o fazia considerar a cada passo a possibilidade de se lançar a correr escadas acima e mandar fechar os portões. Não o fez, porém, e continuou a avançar rumo ao seu destino.

A mera aproximação de Culpa começou por evocar os ainda crus remorsos do regente, com uma súbita pontada de compunção pela morte de Iollina a atravessar-lhe o coração. Foi quase fisicamente doloroso, e Aereth tropeçou, mas nem por isso deixou de andar. Seguiu-se-lhe a contrição pela ruína que trouxera à sua cidade, e as vozes das pessoas que por causa dele tinham morrido clamavam pela sua morte dentro da sua própria cabeça. Aereth ouviu-as todas, tal como já as ouvira nas suas noites na masmorra: a prostituta que fora espancada até à morte por Quinerio; os seus cortesãos mortos pelo suco do Teixo que permitira trazer ao seu palácio; a princesa Lhiannah, que atravessara meia Allaryia para lhe trazer o corpo do seu pai para um enterro condigno, e que deixara a apodrecer no Ninho; os seus guardas chacinados pela ameaça trazida pelo bobo cuja voz escutara sem reser­vas; o seu pai, que mandara cremar como a um cão vadio morto trazido à sua presença. Mesmo Aewyre, que o continuava a apoiar e defender incondicionalmente, mesmo o seu próprio irmão conseguira trair, atiçando os seus homens contra ele. Aereth aceitou todas as vozes, reco­nhecendo a sua própria culpa como há muito já o fizera, e continuou em frente.

Atravessar os portões foi das mais custosas decisões da vida do regente, pois não só os seus pecados lhe pesavam aos ombros, mas também o temor que sentia pelo que aí vinha lhe oprimia o peito, tornando a sua respiração rasa e arquejante. Cada vez mais próximo, Culpa avançava com ar indiferente, algo que Aereth apenas sentiu em relação aos corpos espalhados aos seus pés, que ignorou, passando entre e por cima deles. Os corvos tornaram a levantar voo, cada um postando-se num dos euónios enfileirados ao longo do bulevar, como dois espectadores atentos que estavam prestes a ver mais que o esperado.

Aereth olhou uma última vez para trás num momento de fraqueza, soltando um involuntário soluço e sentindo-se tentado a correr pela escadaria acima, mandar as armaduras atacarem ou pelo menos atrasarem Culpa, e fugir com Aewyre. O surto de pânico foi todavia apenas momentâneo, e o regente tornou a olhar em frente, só para quase ser acometido por uma síncope ao ver Culpa diante de si. Embora não perdesse os sentidos, a sua visão turvou-se por momentos, e o peso da consciência nos ombros vergou-lhe as pernas de joelhos liqüefeitos, deixando-o prostrado aos pés do pai d’O Flagelo.

Da posição em que Aereth se encontrava, Culpa parecia-lhe des­medido, mais alto que um humano tinha qualquer direito a ser, cobrindo-o com a sua sombra. As rígidas ombreiras que tinha aos om­bros faziam por atenuar o seu semblante alquebrado, pois Culpa era anciano para além da noção de qualquer mortal, embora nem por isso deixasse de se agigantar sobre o regente. Aereth mal conseguia olhá-lo na cara, fixando o olhar na túnica vermelha feita de imemorial tecido, no qual estavam cerzidos padrões nos quais o regente apenas conseguia ver feições atormentadas e bocas hiantes a gritarem por um refolgo do seu tormento. Revendo-se nelas, Aereth ergueu a cabeça, mirando então Culpa diretamente, ou pelo menos assim parecia, pois embora este o encarasse, tinha os olhos tapados por uma venda carmim com costuras onde os seus olhos deveriam estar. Duas badanas verme­lhas pendiam debaixo destas, parecendo viscosas lágrimas sangrentas a oscilarem diante da sua vincada cara, da qual pouco mais se distinguia além de um nariz adunco e uma boca desprovida de lábios sobre uma basta barba branca que lhe crescia debaixo do queixo.

-— Os homens habitualmente fogem à sua culpa — disse o próprio com uma voz eólica. — Raras foram as vezes em que vi alguém vir a seu encontro.

— Você... — hesitou Aereth, sentindo dificuldade em articular palavras. — Sois o pai d’O Flagelo.

Culpa baixou a cabeça em sinal de pesar, soltando um sentido sus­piro áspero.

— Sim. E amaldiçoada seja a minha alma para todo o sempre — disse, tornando a erguer a cabeça e olhando em frente, como se não estivesse a ver Aereth. — Grande é também a tua culpa, mas homens com pecados mais gravosos que os teus fugiram de mim. Vens contudo ao meu encontro. Porquê?

— Eu... — O regente engoliu em seco, reunindo toda a sua deter­minação para não se ir abaixo com o quase asfixiante aperto contrito que sentia na garganta e no peito. — O meu irmão... é o único que tem qualquer hipótese de vencer o... vosso filho.

— Sim — tornou Culpa a suspirar. — E é por isso que o meu filho deseja a morte do teu irmão.

— Mas... não desejais o vosso filho... vencido? — arriscou Aereth.

— Desejo-o morto.

O regente não esperara tão franca e fria resposta, e viu-se por momentos demasiado surpreendido para insistir no assunto.

— O Segundo Pecado cometi-o eu — continuou Culpa, sem nunca baixar a cara para Aereth. — O Flagelo de Allaryia foi gerado pela minha semente, e o mundo tem morrido uma morte lenta por causa dele desde então.

No bulevar reinava agora um silêncio opressivo, no qual as palavras de Culpa se arrastaram como um vento raso a soprar folhas mortas pela calçada. Um dos corvos crocitou ruidosamente, como se tivesse esperado mais ação e menos diálogo, mas o outro parecia compe­netrado.

— É ele o motivo da minha continuada existência, e ao mesmo tempo a razão pela qual não mereço continuar a viver — prosseguiu. — A minha culpa dá-lhe poder sobre mim, e sou forçado a cumprir os desígnios dele, embora nada mais deseje que vê-lo morto e quebrar a maldição que lancei sobre o meu próprio mundo.

— Mas então... não podeis poupar o meu irmão... para que ele tente fazê-lo?

Culpa abanou a cabeça com ar cansado.

— A culpa do teu irmão é muito grande, Aereth Thoryn. A culpa pela morte de muitos que lhe eram queridos arrasta-se atrás dele como um bragal demasiado pesado para que eu o possa ignorar.

— Por favor, levai-me a mim — rogou-lhe Aereth, abrindo convidativamente os suplicantes braços. — Levai-me a mim em vez dele.

— Um nobre sacrifício, Aezrel Thoryn, mas vão. Devo levar-te a ti e ao teu irmão, pois os vossos pecados são diferentes — disse Culpa, baixando a ponderosa cabeça e parecendo estar a olhar diretamente para o jovem regente pela primeira vez. — Lamento, mas agora devo...

— Não! O que eu quero dizer é... é... — gaguejou Aereth, incerto acerca de como se expressar. — Eu ofereço-me a vós.

A engelhada testa de Culpa franziu-se mais ainda, sulcando profun­damente a correenta pele da sua fronte.

— Bem sei que a culpa que eu sinto... por muito que me ator­mente... em nada se compara à vossa — disse o regente. — Mas eu mereço-a. Vós fostes apenas seduzido por uma potestade à qual... à qual homem algum poderia resistir. Embora tendes culpa... não a devereis sentir.

Culpa jamais ouvira tais palavras, e embora estas não o conven­cessem, fizeram-no hesitar pela primeira vez em milênios, como se um elo de uma das muitas correntes que o prendiam à sua miserável exis­tência tivesse estalado inesperadamente.

— Dai-me a vossa culpa... Passai o manto a quem verdadeiramente o merece. — pediu Aereth com lágrimas nos olhos, falando do cora­ção sem sequer refletir acerca das suas palavras. — Eu traí o meu povo, o meu pai e o meu irmão, e fi-lo voluntariamente, cego e crédulo para com quem nada mais desejava que a minha ruína e a dos meus.

Aereth apartou um pouco mais os joelhos, assentando as nádegas sobre as pernas e formando uma poça vermelha no chão com a falda da sua túnica.

— Passai-me o vosso fardo, que eu de bom grado o carregarei — soluçou o jovem regente. — Eu mereço-o, vós não. Deixai-me carregar a vossa culpa, e o meu irmão viverá para poder combater o vosso filho. Talvez, dessa forma, ambos consigamos um pouco de paz...

— Não tens noção daquilo que pedes — disse Culpa, embora com um tom incerto na voz. — Não seria qualquer absolvição para ti, apenas tormento eterno.

— Que eu mereço, ao contrário de vós — porfiou Aereth com lágrimas a ensoparem-lhe a espessa barba. — Mereceis paz, assim como o meu irmão merece uma oportunidade para se redimir dos seus pecados e combater o vosso filho. Eu nada mais fiz por merecer além do tormento de que me falais. Passai-me o vosso fardo, e eu alcançarei a minha paz através do sofrimento que mereço.

Culpa não respondeu, fitando Aereth através da venda com remen­dos no lugar de olhos. O jovem regente nada mais tinha a dizer, e per­maneceu na mesma posição suplicante, aguardando o veredito que, de uma forma ou de outra, sabia que acabaria por vir.

— Farias isso pelo teu irmão? — perguntou Culpa por fim, crispando os nodosos dedos de unhas grandes no igualmente nodoso cajado, e falando com um tom de uma voz não dissimulava a impor­tância da pergunta.

— Faço-o por mim — disse este com toda a franqueza. — Mas fá-lo-ia também pelo Aewyre. Todos nós dependeremos dele em breve, e a vida dele é mais importante que a minha, que perdeu todo o seu valor após aquilo que fiz.

— Então és melhor homem do que eu alguma vez fui — disse Culpa, suavizando o tom, parecendo agora mais compadecido e can­sado do que propriamente ameaçador. — O fardo requer um sacrifício.

— Estou pronto, seja ele qual for — disse Aereth, mais por impen­sada vontade de acabar com aquilo que por honestidade.

Culpa anuiu, e contornou então Aereth com passos lentos e pon­derados, arrastando o couro velho e gasto dos sapatos pela vestalina calçada do bulevar, como se esperasse que o regente mudasse de idéias a qualquer instante. Aereth manteve-se todavia firme, aguardando a sua sentença como um condenado e olhando em frente enquanto arfava em expectativa. Assim que Culpa desapareceu do seu campo de visão, ouviu apenas os vagarosos passos e o bater oco da ponta do cajado no chão, até que sentiu atrás de si a imensa presença, que lhe arrepiou o pescoço até à medula com uma súbita sensação de vulnerabilidade.

— Abre os braços — sentiu mais do que ouviu a eólica voz bafejar-lhe sobre a cabeça.

Aereth obedeceu, afastando os braços do seu torso, e foi incapaz de conter um estremeção quando Culpa lhe deslizou o cajado debaixo das axilas, puxando-o para cima para lhe prender os membros.

— Haverá dor — advertiu à laia de última hipótese, e as pontas da sua barba branca roçaram os cabelos do regente como teias de aranha acabrunhadas com pó.

— Estou pronto — declarou Aereth sem assim se sentir verdadei­ramente, acenando com a cabeça enquanto tentava controlar os tremores que lhe vertiam suores frios dos poros.

Culpa nada mais disse, e durante alguns instantes tudo o que Aereth ouviu foi o alvoroço do seu coração aflito, que, com a descon­fortável postura de ombros puxados para trás pelo cajado, lhe amea­çava irromper da caixa torácica a qualquer instante. Por momentos pensou que Culpa o iria torturar como num potro, mas então ouviu o bater de asas dos corvos que até então os tinham meramente obser­vado, e que agora pareciam estar a voar na sua direção. As pupilas de Aereth tocaram os cantos dos olhos enquanto a sua respiração lhe saía entre dentes cerrados e pelas narinas frementes. Deixou de ouvir o que quer que fosse além dos próprios arquejos, nenhum som de Culpa, nenhum outro ruído das aves.

E então o seu mundo transformou-se em bicos e garras negras que bicavam e arranhavam, com penas a entrarem-lhe na boca escancarada, da qual saiu um grito de agonia que abafou o frenético crás-crás das ensandecidas aves.

 

Aewyre tornou a irromper das portas de Allahn Anroth, seguido de não muito perto pelos seus companheiros. A praça encontrava-se agora vazia, pois todos os guardas estavam no interior a evacuar o palácio, e os aflitos passos ecoaram ruidosamente pelo piso ladrilhado. Aewyre viu ao fundo do terreiro uma linha de armaduras douradas dispostas diante dos portões, e teve um mau pressentimento que lhe deu um nó nas entranhas, e que fez com que estugasse mais ainda o passo. Lhiannah gritava atrás dele, mas o guerreiro nem ouvia, tinha toda a sua atenção fita na barreira arnesada que se interpunha entre ele e o seu irmão, que sabia estar do outro lado das muralhas, com Culpa lá fora.

As armaduras observaram a sua corrida com ar perfeitamente impassivo, sem que os seus elmos antropomórficos traíssem as suas inten­ções além da aparente tarefa de impedir que alguém saísse do palácio. Uma delas segurava um guarda com um braço e tapava-lhe a boca com a mão livre, e, assim que o rapaz viu Aewyre, começou a espernear com mais força, como se apanhado em flagrante delito e a tentar redi­mir-se. Aewyre não pensou nos cornos nem nos porquês, sabendo ape­nas que tinha que passar pelas armaduras, e a sua primeira reação foi desembainhar Ancalach em plena corrida, originando um grito de advertência da parte de Allumno quando este viu o luzir da lâmina à distância. Tivesse o guerreiro o domínio sobre a Essência da Lâmina, e não teria pensado duas vezes em varrer as armaduras para fora do seu caminho com uma afiada reverberação, mas o «tendão» não se dig­nou sequer a ranger em resposta ao seu apelo.

— Saiam-me do caminho! — bradou Aewyre, recorrendo a toda a autoridade que julgava poder ter a ver da Hoste Dourada, sem sucesso.

As cinco armaduras não se mexeram, permanecendo enfileiradas diante dos portões, e embora tivessem as espadas embainhadas, havia algo na sua espectral presença que denotava uma sempre presente ameaça. Ciente de que seria inútil lançar-se fisicamente contra elas e tentar abalroá-las, Aewyre deteve-se diante delas, empunhando Anca­lach como um símbolo da sua autoridade, que contudo não pareceu impressioná-las. Os passos dos seus companheiros aproximavam-se, mas o jovem nem esperou por eles, olhando por entre as armaduras em busca de Aereth ao longo da escadaria, mas a única coisa que conseguia ver eram os corpos da turba empilhados ao fim das escadas.

— Deixem-me passar, malditos sejam! — vociferou o guerreiro, lançando-se a correr numa tentativa de passar entre duas armadu­ras, mas estas estenderam os braços aos seus lados e bloquearam-lhe o caminho.

O guerreiro tentou fintá-las e passar pelo outro lado, mas outro par de braços se ergueu como uma cancela, contra a qual embateu de espaldeira. Aewyre ainda tentou forçar o seu caminho, mas a férrea força fantasmal dos arneses provou ser demasiada, e o jovem recuou esbaforido, empunhando Ancalach com ambas as mãos e intentos assassinos nos olhos.

— Aewyre, não! — rogou Allumno a curta distância dali, e então surgiu Lhiannah ao seu lado, também ela de espada desembainhada, embora não tão determinada a atacar.

— Aewyre, o que...

— O Aereth está lá fora, os portões exteriores estão abertos — disse o ofegante jovem, fazendo Ancalach tremer com a força com que apertava o punho da arma. — Saiam-me do caminho!

Taislin e Worick surgiram logo de seguida, também eles de armas em punho, embora apenas o martelo de Worick pudesse ter qualquer esperança de conseguir afetar as armaduras.

— Aewyre, não podes! — disse Allumno com uma careta de esfor­ço ao tentar ignorar a dor da perna que esforçara. — A Hoste Dou­rada. ..!

O mago envolveu mesmo Aewyre com o braço livre por trás, ten­tando refreá-lo, mas o jovem acabou por erguer ambas as mãos em sinal de paz, embora não largasse Ancalach.

— Está bem. Está bem! — disse, deixando-se arrastar ligeiramente pelo mago. — Eu estou calmo.

— Olha para mim, Aewyre. Olha para mim! — exigiu o mago, virando a custo o guerreiro para si, embora este continuasse a olhar para as armaduras sobre o ombro. Estas não pareceram convencidas, pois não baixaram os braços. — Aewyre!

O jovem anuiu, arriando Ancalach, inspirando fundo e baixando a cabeça de olhos postos no chão numa tentativa de se acalmar.

— Assim não, Aewyre. Corres o risco de virar a Hoste Dourada contra nós — disse Allumno, envolvendo-lhe os ombros com o braço. — Temos de tentar...

Não chegou a terminar a frase, pois o guerreiro libertou-se dele e, girando sobre o pé, arqueou Ancalach num alto-abaixo reforçado com um explosivo grunhido, que decepou uma manopla dourada. A lâmina retiniu agudamente ao apartar a peça pelo canhão, e antes de esta sequer cair ao chão, Aewyre deu outra volta e aproveitou o ímpeto do movimento para passar entre as duas armaduras. Colidiu de ombro contra dois pares de espaldeiras e braçais, ressaltando numa e noutra quando as armaduras tentaram debalde preencher o espaço criado pelo braço truncado. Aewyre foi porém demasiado rápido, passou por ambas e lançou-se a correr escadas abaixo com uma passada que os pesados arneses jamais conseguiriam acompanhar. Lhiannah tentou ir atrás, mas por essa altura já as armaduras se tinham recomposto, e a princesa embateu simplesmente contra uma sólida barreira dourada. Worick fez o mesmo, com pouco mais convincente resultado, mas Taislin conseguiu dar uma cambalhota por debaixo das pernas de um arnês, correndo a seguir Aewyre. Allumno ainda teve a reação instin­tiva de lançar um feitiço para tentar quebrar a fileira com uma força percuciente, mas vira a Hoste Dourada combater pela sobrevivência de Nolwyn durante a Guerra da Hecatombe, e isso fê-lo hesitar o sufi­ciente para que Aewyre galgasse dois lanços de escadas, deixando-os a todos para trás.

— Aereth! — gritou o jovem, temendo o que poderia ver assim que descesse ao nível dos portões exteriores. A resposta veio na forma de um grito cruciante que lhe gelou o sangue. — AERETH!

O desespero quase fez com que Aewyre caísse escadas abaixo, praticamente pulando pelos últimos dois lanços, e o que viu aos pés da escadaria apenas o esporeou para uma carga mais desenfreada ainda: Culpa estava de costas para ele e curvado sobre o seu irmão, prendendo-lhe os braços com o cajado enquanto este, ajoelhado, se sacudia de um lado para o outro em agonia. Dois corvos esvoaçavam na sua cara numa confusão de penas e bicos negros, soando sanguissedentos crocitos.

— AereEEEEETH! — bradou o jovem, correndo como nunca antes correra na sua vida, perfeitamente alheio aos corpos que jaziam no chão, a sua visão afunilada num túnel trepidante a visar Culpa e o seu irmão, com tudo o resto borrado à volta.

Culpa olhou de lado ao ouvir a aproximação do guerreiro, e largou prontamente Aereth, endireitando-se como para o defrontar. O jovem regente caiu de frente ao chão, levando as mãos à cara e goelando de dor através de dedos sangrentos, e os dois corvos retiraram-se com apressadas batidas de asas. Aewyre carregou sobre Culpa, esquecido de todo e qualquer receio que deste pudesse ter, e empunhou Anca­lach de lado com ambas as mãos, agüentando um berro contínuo a cada passo. Culpa não se mexeu, mantendo uma pose descontraída como se estivesse à espera do guerreiro para falar com ele, enquanto Aereth se ia contorcendo no chão com as mãos plantadas na cara empapada de sangue. O grito de agonia do seu irmão ressoava nos seus ouvidos, abafando todo e qualquer outro som, razão pela qual nem ouviu a única palavra que saiu da boca de Culpa quando arremeteu sobre ele.

— Obriga...

Não chegou a terminar, pois Ancalach decepou-lhe o abdome da bacia num golpe brutal de ombros, fendendo osso e dilacerando carne com um silvo molhado. O torso de Culpa caiu sem vida ao chão, ver­tendo surpreendentemente pouco sangue e despejando um molho de ressequidas entranhas escuras. O cajado catracalou na pedra, e pernas e baixo-ventre tombaram elas também de seguida, mas, antes que tivessem caído, já Aewyre largava Ancalach e se ajoelhava ao lado de Aereth, branco como a cal e com a raiva a dar lugar ao medo.

— Aereth, Aereth! — quase suplicou, agarrando o seu irmão deli­cadamente pelo braço.

— Os olhos... — balbuciou o regente a meio de arquejos e soluços, sem tirar as mãos da cara.

— Oh, deuses, oh, não — desesperou Aewyre, nauseado com o sangue do seu sangue que gotejava para a calçada, colando penas de corvo a esta. — Vais ficar bem, Aereth. O Thaddeo...

— Os olhos... enganam — impou Aereth, lambendo os fios de sangue que lhe escorriam para os lábios. — As aparências... iludem.

— Aereth? Fala comigo, Aereth!

O jovem foi incapaz de conter um arquejo de susto e horror quan­do o seu irmão destapou a cara, exibindo a face escalavrada por ar­ranhões e buracos vermelhos orlados de pele debicada. Tais ferimentos não se comparavam porém às horrendas fossas mutiladas nas órbitas de Aereth, com pregas de pele soltas no lugar de pálpebras e uma ruína escarlate onde os olhos deveriam estar, que escorria lágrimas sanguinolentas. Aewyre combatera e sobrevivera a muito durante as suas via­gens, mas ver o seu irmão de tal forma mutilado horrorizou-o e deu-lhe a volta ao estômago, deixando-o momentaneamente incapaz de falar.

— Não mais serei enganado pelos meus olhos... — declarou Aereth, «olhando» à volta com gestos quase espasmódicos da cabeça, virando então a cara para Aewyre.

— Em nome de Acquon, Aereth, que fizeste tu...? — perguntou este, varado ao ponto de nem ouvir os passos aflitos dos seus compa­nheiros a descerem a escadaria. Taislin já se encontrava aos pés desta, mas deteve-se ao ver a cena que decorria.

— O que podia, irmão... — Um dos corvos crocitou em assentimento, empoleirado num beirai. Aewyre lançou-lhe um olhar vingativo, mas a mão de Aereth encontrou de alguma forma a sua cara e virou-a para si. — Não culpes... Culpa, Aewyre. Fui eu que me ofereci...

— Deuses, o que foste tu fazer...? — repetiu o jovem de cabeça hirta, tentando não recuar diante da proximidade da cara desfigurada de Aereth.

— A única coisa que podia fazer. Aquilo que eu merecia.

Largou então a cara de Aewyre e apoiou um braço no chão para se erguer desajeitadamente, sendo acompanhado pelo seu irmão, que o ajudou. O jovem estava ainda sem palavras, nada mais conseguindo além de ficar a olhar para Aereth enquanto este esfregava o sangue da barba e lobrigava o bulevar sem olhos. Fixou-se então no corpo par­tido de Culpa, e arrastou os pés para perto dele, ajoelhando-se ao lado do torso e tateando o chão até fechar os dedos no nodoso cajado, com o qual se levantou então.

— A culpa levou-o a tentar enforcar-se na árvore desta madeira — explicou, parecendo estar a falar tanto para si como para Aewyre. — Dela pendeu durante dias, mas a culpa não permitiu que fosse abra­çado pelo Guia. Talvez agora consiga alcançar o pináculo da sua mon­tanha...

Aewyre olhou longo tempo para o seu irmão, ainda sem conse­guir compreender aquilo que verdadeiramente se passara ali, e mal se deu conta dos passos dos seus amigos, que agora se aproximavam, incertos. Apesar dos seus esforços, as armaduras tinham-lhes barrado forçosamente o caminho, mas de repente tinham ficado imóveis e os companheiros puderam passar por elas, correndo pelas escadas abaixo ao ouvirem o tremendo grito de Aewyre. Ao verem no chão o corpo decepado daquele que julgavam ser Culpa, Lhiannah e os outros jul­garam que tudo estaria bem, mas ao verem Aereth ficaram todos eles estarrecidos. Não tanto devido à sua face mutilada, que à distância a que se encontravam nem era tão horrífica assim, mas devido à sua pos­tura ereta de cajado empunhado, com a suja toga vermelha a abanar à brisa. Aereth não parecia ele próprio, mas algo ou alguém de dife­rente, e essa noção perturbou os companheiros mais que aquilo que seria de supor, além de que, por alguma inexplicável razão, todos começaram a sentir pontadas de remorsos por não terem chegado a tempo — para fazer o quê, isso ninguém o soube dizer, mas tinham a distinta sensação de terem chegado tarde demais, e arrependiam-se por isso. Sentiam-se culpados.

Também Aewyre começou a sentir uma sensação de pesar, uma crescente culpa por não ter estado presente quando o seu irmão mais dele precisara. Olhou para Ancalach, que jazia no chão de lâmina ensangüentada, e a visão da arma trouxe-lhe à memória tudo o que acontecera desde aquele fatídico dia em que partira de Allahn Anroth com a Espada dos Reis. Aereth «olhou» então para ele, e viu o jovem com lágrimas a aflorarem-lhe aos olhos, levando uma mão ao coração e estendendo a outra ao seu irmão.

— Aereth, desculpa... — pediu com voz trêmula. — A culpa disto tudo foi minha. Eu não devia ter levado a Ancalach... O Flagelo nunca se teria liberto, e nada disto teria acontecido...

Aereth não reagiu à confissão. A sua face não estava virada para nenhum dos companheiros, e as suas cruentas órbitas não deixavam adivinhar para onde ele estaria a olhar, se é que ainda era capaz de tal.

— Perdoe-me, lorde Aereth — disse Lhiannah para grande sur­presa de todos, avançando um passo com a ponta da espada baixa e a testa franzida de remorsos. — Perdoe-me por o ter atacado... se eu achasse que alguém estava a tentar fazer uso da morte do meu pai, talvez também tivesse feito o que fez...

Tais palavras eram inauditas e nada características da princesa, mas naquele momento ninguém estranhou, pois todos partilhavam senti­mentos semelhantes. Allumno sentiu-se ele também inesperadamente compungido, e deu consigo a dar mais atenção à sua culpa que ao que quer que acontecera ao jovem regente.

— Desculpa, Aereth... — disse o mago. — Eu sabia que o teu pai não estava morto... o meu mestre sabia-o... e achamos que seria a melhor oportunidade para descobrir o que lhe acontecera... mas eu nunca deveria ter deixado o Aewyre...

— Não deixem que a culpa vos consuma — interrompeu-o Aereth subitamente, erguendo um braço de mão estendida em advertência. A voz era a sua, mas a cadência era diferente, e não dera mostras de tão imperioso tom desde que se sentara no trono de Ul-Thoryn pela primeira vez.

Ninguém se pronunciou mais, e o regente olhou cegamente para o céu, que permanecia carregado de nuvens a taparem o sol. Os dois corvos empoleirados por perto pareceram reconhecer no gesto um sinal, e levantaram ambos voo, aterrando com ar petulante nos ombros do homem que tinham acabado de mutilar, como se tivessem todo o direito a estar ali. Nenhum dos companheiros reagiu às sinistras aves, pois parecia de fato natural vê-las com Aereth, como se tivessem fal­tado apenas elas para completar a transformação. Fisicamente, nada nele mudara além dos olhos, mas a sua postura, a forma como falava, e a inegável influência que começava a exercer sobre todos apenas evidenciou aquilo que os companheiros sentiam já a um nível sub­consciente.

— Eu sou a culpa, e todos irão pagar... — continuou Aereth, virando-se então para Aewyre, que os corvos também observaram com olhos em forma de contas escuras. — Mas não vocês. Não hoje. E é por isso que me devo retirar, antes que a culpa...

O regente pareceu momentaneamente confuso, debatendo-se com um monólogo interno, mas a sua vontade sobrepôs-se a este e tornou a encarar Aewyre.

— Mata O Flagelo, irmão — pediu. — Acaba com a ameaça dele, seja de que forma for. Faz com que ele pague pelo nosso pai, pela Iollina e por todos os que morreram em Allahn Anroth. Não terei paz se o conseguires, mas talvez assim a minha culpa seja mitigada...

— Aereth...

— Por ora, o melhor que posso fazer é poupar-te à culpa que dou­tra forma te mataria — disse Aereth, virando-lhe as costas e aos com­panheiros. — Caso chegue a hora de enfrentares O Flagelo, tentarei ajudar-te como puder, embora tal como Culpa, eu seja impotente contra ele.

— Aereth, o que é que isso...?

— Adeus, meu irmão.

Com isto, retirou-se a passos hesitantes de início, como se estivesse a ambientar-se a uma nova forma de ver o mundo. Rapidamente se adaptou, e então as suas passadas tornaram-se mais certas e regulares, pautadas pelo bater do cajado nodoso no chão, e o regente caído foi pelo bulevar fora sem olhar para trás uma única vez.

Aewyre estava demasiado abalado para o impedir, além de que a mera presença de Aereth continuava a toldar o discernimento de todos, fazendo com que os companheiros tentassem prever as suas próprias ações, temendo a culpa que delas poderia advir, e dessa forma não agindo sequer. A culpa que o jovem sentia era contudo bem dife­rente, pois ao contrário dos outros sabia traçar as causas que os tinham levado ali até àquela situação. E o resultado final fora que, embora Aereth não tivesse morrido como o seu pai ou Assiòn, Aewyre sabia que acabara mesmo assim por perder o seu irmão.

Para sempre.

 

Aewyre vestia em silêncio a regia armadura que Daveanorn lhe reservara, observado pelos seus apreensivos companheiros. O grupo encontrava-se nos aposentos de Lhiannah, que ia roendo as nervosas unhas enquanto o guerreiro acabava de se aprontar para aquilo que ia fazer. Todos tinham ficado em estado de choque após o que acon­tecera a Aereth, e além de Aewyre e Allumno, ninguém compreen­dera ainda muito bem a enormidade do evento que decorrera no bulevar, mas de uma coisa todos estavam cientes: o jovem perdera agora toda a sua família, tendo-lhe morrido a mãe, tendo visto o pai ser morto à sua frente, e agora tendo assistido em pessoa à conde­nação eterna do irmão, sem que nada pudesse fazer em qualquer uma das ocasiões. E O Flagelo fora direta ou indiretamente responsável por todas elas.

Por essa razão, ninguém pensara em objetar quando Allumno pousara a mão sobre o chocado ombro do guerreiro e lhe dissera que chegara a hora de porem um fim àquilo tudo. O mago nem explicara como, mas Aewyre concordara prontamente, acenando com a ator­doada cabeça e deixando-se conduzir pelos companheiros de volta a Allahn Anroth, onde reinava o caos. Aparentemente, como Aewyre desaparecera sem avisar, os lennheses e alguns guardas e cortesãos de Ul-Thoryn tinham entrado em pânico, e tomado a iniciativa de esva­ziarem a caverna e partirem nas gôndolas, deixando Daveanorn e os mais leais guardas para trás, para além de todos os que estes conse­guiram impedir de fugir. O efeito que a fuga poderia ter nos já de si exaltados ânimos da cidade era imprevisível, mas a Aewyre já nada disso importava, nem sequer explicou o que acontecera a Aereth.

Ordenou apenas, a conselho de Allumno, que aqueles que tinham ficado para trás fossem levados à praça.

Ninguém questionou os motivos de tal recomendação, e os guardas obedeciam já mais por cansaço anímico, exaustos com tudo o que sucedera nos últimos dias, e que em tanto transcendia as suas simples vidas. Layaline, a aia e o pajem eram dos que tinham ficado para trás, e também estes se deixaram conduzir como ovelhas obedientes de uma ponta do palácio à outra. A primeira ainda se tentou dirigir a Aewyre, que a despachou com alguma frieza, dizendo somente que ela deveria ir para a praça pela sua própria segurança. A segunda, como aia de Lhiannah, ainda perguntou à princesa se a devia acompanhar, mas a arinnir estava demasiado preocupada com Aewyre para lhe dar atenção e também a mandou ir com os outros.

Ul-Thoryn estava sem regente e à beira da rebelião, mas tais con­siderações já nem passavam pela cabeça de Aewyre, que ia endure­cendo a cada passo, revertendo ao duro e empedernido estado de espírito em que chegara à cidade. O jovem mal ouvia o que outros lhe diziam, caminhando com a retidão de uma lâmina e olhando em frente com um único propósito na expressão. Apenas as palavras de Allumno pareciam não resvalar nele como venábulos contra uma muralha de pedra, pois o guerreiro ia acenando com a cabeça à medida que o mago lhe relatava o seu plano.

— Os Aesh’alan agem como elos de ligação com O Flagelo — expli­cou enquanto Aewyre se trajava. — Podem entrar em comunhão com Ele, e Seltor consegue também servir-se deles como condutas, como o tentou fazer na última batalha da Guerra da Hecatombe, ou mesmo usa­dos como portais.

Aewyre anuiu com um assentimento gutural, e os outros nada dis­seram.

— Tive a idéia quando capturamos o Dilet durante o combate. Podíamos servir-nos dele como engodo para Seltor, forçando-o a entrar em comunhão com Ele e então testar a minha teoria — continuou o mago, apoiando-se com ambas as cansadas mãos no seu cajado. Ainda não mudara a ligadura da testa, e esta tinha um borrão de sangue cas­tanho. — Deves trespassar o Dilet com a Ancalach assim que ele estiver em comunhão.

Lhiannah tirou as unhas da boca e olhou para Allumno, admi­rada com a frieza com que este acabara de sugerir que se matasse um homem agrilhoado, por muito vil que este fosse. Worick não parti­lhava tais sentimentos, mas ainda assim cruzou olhares com Taislin.

— Sendo Dilet a conduta e a Ancalach a anterior grilheta de Seltor, estou confiante de que temos boas possibilidades de o conse­guirmos aprisionar novamente nela — concluiu Allumno. — Anca­lach certamente ainda detém uma medida de poder sobre Seltor, visto que ele passou duas décadas encarcerado nela.

— Então a tua idéia é simplesmente metê-lo dentro da espada outra vez? — perguntou Worick.

— Sim — suspirou o mago de cansaço. — O Aewyre não está em condições de o combater, e concordo com ele quando ele diz que, se tiver de se rebaixar ao nível d’O Flagelo para o conseguir fazer, então não valerá a pena.

Ninguém se lembrara mais de Kror, nem do fato de que este teria de ser levado a suicidar-se para que Aewyre conseguisse por fim dominar a Essência da Lâmina. O guerreiro ainda parecera ponderar essa possibilidade, mas Allumno tirara-lhe apressadamente o sentido de tal vertente.

— Ainda que a história daqueles Lamelares seja verdadeira, não temos garantias de que o Aewyre consiga vencer — relembrou. — Aezrel teve anos de treino e experiência enquanto Lamelar, e o melhor que conseguiu foi um impasse, mesmo resguardado dos poderes d’O Flagelo pela Ancalach. Não — reforçou —, o melhor que temos a fazer é isto mesmo. Na melhor das hipóteses, conseguimos aprisionar Seltor novamente na Ancalach, e se for necessário atiramo-la ao mar. Na pior das hipóteses, Dilet morre e ficamos sem meios de aprisio­narmos Seltor sem o defrontarmos diretamente...

— Então mas se é só isso — interveio Lhiannah —, porque é que tem de ser o Aewyre a trespassar o bobo? E porque é que tem de usar armadura para isso?

Allumno passou a mão pela estafada cara e suspirou, como se estivesse a explicar os mais altos princípios arcanos a crianças.

— Nunca presenciei a comunhão de um Aesh’alan com O Flagelo. Não sei que efeitos nefastos tal evento possa ter em quem estiver por perto. O Aewyre é o único de entre nós a quem a Ancalach protege do poder da Sombra, por isso é ele quem deve trespassar o Dilet no momento certo...

— Então e se a Ancalach o protege, porque é que ele tem de estar a vestir esta armadura? — insistiu a princesa, não porque desconfiasse do plano do mago, mas por receio pelo bem-estar de Aewyre.

— Uma mera precaução — respondeu o mago sucintamente. — Não se pode ter cuidado a mais, tendo em conta que, ainda que indiretamente, estaremos a lidar com O Flagelo

— E quem disse que o bobo aceita servir de conduta? — teimou Lhiannah, lembrando-se das palavras de Dilet durante o combate. — Ele não disse que o seu senhor o mataria pelo que ele fez?

Daveanorn abriu a porta nesse momento, trazendo cuidadosamente na mão um frasco tapado com uma rolha de cortiça e envolto num espesso pano de lã.

— Obrigado, Daveanorn — agradeceu o mago, pegando ele no frasco. — Pensei nisso, e julgo que o suco do Teixo que o Aereth man­dou vir nos poderá ser útil nesse aspecto.

Não menos abalado que os outros, o paladino não comentou e limitou-se a olhar para Aewyre, que afivelava a manopla que lhe faltava. Com o conjunto completo, a armadura regencial era de fato uma obra de arte e guerra e, montada sobre o porte alto e espadaúdo de Aewyre, fazia com que o jovem parecesse um rei guerreiro de antanho. Cada peça era revestida a tecido vermelho com orlas e saliências de ouro, com a couraça segmentada na zona ventral e uma águia dou­rada emalhetada ao peito, espaldeiras com águias douradas mais pequenas nelas encastradas, e joelheiras com saliências laterais na forma de asas áureas. As manoplas tinham garras aquilinas sobre os nós dos punhos, e Aewyre flexionou os dedos para esticar o couro rígido enquanto Taislin lhe trazia o elmo, que o guerreiro pegou com ambas as mãos, assentando-o sobre a cabeça num gesto quase cerimonial e com os olhos fitos no vazio. A peça era uma barbuda vermelha com abertura estilizada e uma cabeça de águia entre os olhos, bem como duas asas abertas para os lados, que davam um ar rapinante ao olhar de Aewyre.

— Estou pronto — disse este sem qualquer emoção na voz, já com Ancalach embainhada à anca, todo ele o guerreiro a postos para a sua derradeira batalha.

Os companheiros não souberam bem o que dizer. Não estavam cercados nos pântanos por inimigos que vinham da escuridão, nem rodeados por um batalhão ocarr nas estepes, nem havia uma horda de drahregs às muralhas. Aewyre estava simplesmente armado e arnesado para ir executar um prisioneiro indefeso, na esperança de dessa forma conseguir aprisionar O Flagelo. Apesar do tom sério de Allumno, e do fato de se tratar de um Aesh’alan a entrar em comunhão com o seu senhor — duas noções que bastariam individualmente para ater­rar o comum dos mortais — não era propriamente ocasião para dese­jar coragem. O mago parecia razoavelmente confiante no seu plano, e este enredava-se bem naquilo que os companheiros haviam apren­dido acerca de Ancalach e d’O Flagelo... e contudo não conseguiam deixar de se sentirem apreensivos.

Quem estava verdadeiramente nervoso era Daveanorn, que apesar de toda a sua coragem e experiência, nunca enfrentara mais do que drahregs e afins humanóides monstruosos no campo de batalha. Tais conversas acerca de usar o suco do Teixo para levar um Aesh’alan — que por acaso estava agrilhoado nas masmorras do palácio — a invocar o próprio Flagelo, só para depois o varar com Ancalach e tentar apri­sionar o Anátema... tudo isso era demais para o paladino, que se limi­tava a seguir as instruções da única pessoa que parecia saber o que fazer. Allumno dava-se por satisfeito por ao menos conseguir trans­mitir essa impressão, e olhou atentamente para o frasco de suco. O líquido era algo viscoso, com uma cor avermelhada, e refletia a luz das velas com um fulgor carmim.

— Cuidado, Allumno — recomendou Daveanorn, apontando para o frasco com ar desconfiado, recordando-se da sua desagradável expe­riência com o suco. — Um cheirinho dessa mistela, e ainda manda um feitiço para rebentar este quarto com todos nós cá dentro.

O mago anuiu e enfiou o frasco com cuidado numa das suas saco­las, devidamente embrulhado na pele de lã. Olhou para Aewyre, que continuava a fitar o vazio, e de seguida trocou olhares com os com­panheiros, nenhum dos quais soube o que dizer. Foi Lhiannah quem quebrou o impasse, avançando ao encontro do guerreiro, que só então despertou do seu acerado transe, piscando uma vez os olhos e mirando a princesa ao vê-la aproximar-se. Lhiannah envolveu-lhe então o pesco­ço com os braços, puxando a cabeça de Aewyre e beijando-o, um pro­longado beijo sem qualquer sofreguidão, no qual ambos mal se mexeram. Allumno pigarreou de leve, olhando para o lado, e Taislin sorriu fracamente; só Worick revirou os olhos com impaciência ao ver Aewyre agarrar Lhiannah pela cintura e puxá-la para si. Felizmente para o thuragar, os dois não se demoraram muito, e separaram-se com um último e suave beijo nos lábios, após o qual o guerreiro afagou os braços da princesa e esta se deixou afastar suavemente por ele. Aewyre olhou então para Allumno, endurecendo novamente a expressão como se tives­se acabado de embainhar toda e qualquer emoção.

— Vamos.

Ferrolhos roçaram uns nos outros na escuridão, e a fresta de uma porta aberta banhou a cela com um facho de luz amarela, que reluziu numa das duas armaduras douradas que ali estavam de sentinela.

Entre elas, Dilet pendia da parede, cabisbaixo, com os pulsos presos por manilhas e o resto do corpo igualmente agrilhoado com corren­tes à cintura e ao pescoço, e grilhetas nos tornozelos. Envergava as mesmas sujas roupas coloridas, estas manchadas de sangue sobretudo na perna que Lhiannah trespassara, e cuja ferida não fora sequer tra­tada. Tinha a mão esquerda torcida num ângulo partido, e a outra com dedos inchados de sangue pisado, mas não parecia em grande sofri­mento, pois, tal como Allumno especulara, o vigor sombrio que agora lhe corria nas veias permitia-lhe suportar dores que vergariam um homem comum. O bobo não se mexeu, nem sequer quando a luz se expandiu até o cobrir a ele, mas assim que a sombra de Aewyre lhe tocou, a máscara de Dilet ergueu-se, sorridente.

— Ah, visitas... — disse este com uma voz rouca e metálica, incli­nando para o lado a sua carantonha desprovida de um corno. — Será um desafio para mim entreter-vos nestas condições, mas farei o meu melhor. Não podem ser mais difíceis que estes espantalhos dourados, em todo o caso...

Aewyre e Allumno entraram então na cela, o guerreiro fez um gesto brusco para trás com a mão, e as duas armaduras ganharam vida, abandonando prontamente o cubículo.

— Oh, elas obedecem-te agora... — admirou-se Dilet, fazendo as correntes chocalharem ao mexer-se fracamente. — Quer isso dizer que o nosso adorado lorde Aereth já não se encontra entre nós?

O jovem não respondeu, deixando entrever uma fria expressão severa entre a abertura da sua barbuda alada, e desembainhou Anca­lach ao dirigir-se a Dilet. Este estacou, de máscara sempre sorridente como se apenas ele estivesse ciente de uma piada que a todos os res­tantes escapava, mas a súbita rigidez do seu corpo ao ver a luz das tochas fulgir no Flagício denotava medo que a carantonha não mos­trava. Allumno veio atrás do guerreiro, que pousou a ponta de Anca­lach na garganta de Dilet, fazendo suficiente força para verter uma baga de sangue e originar um grunhido sufocado da parte deste.

— Não te mexas — disse Aewyre. — Nem digas uma única palavra.

O bobo aquiesceu, e os tendões da sua garganta tornaram-se bem visíveis com a tensão no pescoço, que evitou mexer a todo o custo. Allumno posicionou-se ao seu lado, observando atentamente a más­cara de ferro e esforçando os olhos na fraca luz ambiente em busca de dobradiças ou palhetas. Sem sucesso, fez então uso da Palavra para acender a tocha que se encontrava no interior da cela, que alumiou aquilo que procurava. O mago abriu então as duas cavilhas e apar­tou as peças da máscara, removendo-a sem grandes cuidados e ati­rando a peça para o chão, onde esta clangorou ao rolar em círculos pela cela.

A face de Dilet era uma ruína esbranquiçada a pelar, com manchas escuras e avermelhadas por ela espalhadas. O cabelo da fronte fora queimado, mas o restante colava-se-lhe com suor e líquido seroso seco à testa em imundas farripas. Tinha os lábios gretados, perdera as pes­tanas, e estava com a face contorcida numa careta entre a dor, a raiva e o mais puro desprezo, suficientemente perturbadora para fazer com que Allumno recuasse de leve. Não se comparava porém à cara mutilada de Aereth, e Aewyre não vacilou sequer.

— Comunga com o teu senhor — disse numa voz fria e totalmente impassível.

— Heh, como...? — rouquejou Dilet, exibindo dentes brancos debaixo dos lábios queimados.

— Comunga com o teu senhor.

O bobo ficou apenas a olhar para Aewyre, como se não acreditasse que estava a falar a sério, mas nada viu nos olhos do guerreiro além de uma convicção tão acerada quanto a ponta que lhe estava a deixar um trilho de sangue na garganta.

— Heh — tornou a rir. — É isso que me propões? Ir ter com o meu senhor, comungando com ele, ou ser enviado para ele de pescoço cortado?

Aewyre não respondeu.

— Não, obrigado. Não vou abrir as portas ao maldito para que ele me possa desfiar a alma a seu bel-prazer — recusou-se Dilet com uma convulsiva risada, que verteu um outro fio de sangue. — Se é isso que querem, então vão ter de sujar as mãos.

A expressão de Aewyre manteve-se inalterada, e este limitou-se a olhar para Allumno como se o mago soubesse o que fazer, mas este pareceu hesitar.

— Allumno...?

— O quê? Acham que temo mais morrer com um feitiço que com o Flagício cravado na garganta? — perguntou Dilet. — Vão ter de fazer melhor que isso...

— Allumno? — tornou Aewyre a insistir, estranhando a sua irresolução, tendo em conta que o plano era dele.

Dilet sentiu o receio do mago e sorriu na direção deste, conven­cido de que continuava a ser temido. Não era porém dele que Allumno tinha medo, mas das conseqüências do seu arriscado plano, que lhe ia parecendo cada vez mais inverosímel conforme se aproximava da fruição.

— Allumno, o que foi? — perguntou o guerreiro, friamente impa­ciente.

— Afasta-te — acabou o mago por dizer, exalando profundamente em preparação daquilo que estava para vir.

A ponta de Ancalach descolou-se do pescoço de Dilet, vertendo outra lágrima de sangue, e o guerreiro recuou um passo enquanto Allumno tirava da sacola o frasco envolto em lã. Dilet franziu as quei­madas sobrancelhas ao ver o recipiente ser destapado, e mais ainda estranhou quando o mago cobriu a boca com a mão ao inclinar o torso para trás, como se tivesse medo que o bobo cuspisse faúlhas.

— Espera aí... — desconfiou o bobo. — Isso não é...?

Não chegou a terminar a pergunta, pois Allumno entornou-lhe na cara um viscoso líquido que lhe abrasou os ferimentos e queima­duras, arrancando-lhe um grito lancinante. Ardia como álcool em carne viva, e Dilet chocalhou violentamente as correntes ao sacudir-se em dores, obrigando Allumno a afastar-se para não apanhar com os respingos.

— Cobardes! Malditos! — gritou o bobo. — Soltem-me, e eu mos­tro-vos como é a verdadeira dor!

Dilet estava possesso, e o suco do Teixo surtira aparentemente efeito imediato, levando-o a rosnar e a sacudir os braços ao ponto de as manilhas lhe ferirem a carne dos pulsos. Aewyre estava a postos para o varar contra a parede ao mínimo sinal de perigo, mas esperou pelo sinal de Allumno, também ele preparado para qualquer efeito inesperado. O bobo limitou-se porém a raivejar e a prometer-lhes os mais horrendos suplícios, e o mago percebeu que teria de o incitar de alguma forma.

— Sem o teu senhor não és nada, bobo — disse com todo o des­prezo que conseguiu, tentando fazer-se ouvir a meio dos gritos de Dilet. — Independentemente da tua vingança mesquinha, nunca passaste de um verme, de um peão nos desígnios maiores d’O Flagelo. E agora olha para ti, quebrado, indefeso e com a alma condenada, aterrorizado à espera de que o teu senhor a venha clamar.

— Que os azigoth te estripem e se banqueteiem com as tuas entranhas, mago! — rugiu Dilet. — A minha alma a mim me per­tence, e o desgraçado nunca a terá! Ele não passava de uma voz numa espada antes de eu pôr os seus planos em ação!

— Nunca lho dirias, covarde! — acusou o mago. — Escondes-te atrás dos teus gracejos, como sempre o fizeste!

— Cala-te, néscio! Que sabes tu?! A tarefa de um bobo é dizer as verdades que cobardes como vocês não ousam!

Embora Dilet não tivesse ingerido, Allumno temia que a dose do suco tivesse sido excessiva, e que este em breve ficasse descontrolado ao ponto de se ver incapaz de sequer falar.

— Não serias capaz de dizer ao teu senhor fosse o que fosse, nem mesmo para salvares a tua própria vida! — arriscou. — Estás preso e à nossa mercê, e a tua única hipótese seria servires de conduta para Ele, mas teme-Lo tanto, que nem ousas chamá-Lo para salvar a tua mísera pele!

O bobo ficou apoplético, abrindo várias gretas sangrentas na face queimada com a força com que a contorcia, e as veias no pescoço ris­cado de sangue estavam violentamente salientes. Espumava da boca, da qual já não lhe saíam sequer palavras coerentes, e a Allumno apenas lhe restou esperar que o tivesse açulado o suficiente. O seu único receio era que Dilet se matasse nas correntes por não ter como descarregar a raiva que o suco lhe fermentava nas veias, deitando dessa forma tudo a perder. Aewyre olhava revezadamente para o bobo e para o mago, sem nunca baixar Ancalach, mas Allumno não lhe deu qualquer sinal, centrando toda a sua expectante atenção em Dilet, que se contorcia em violentas convulsões, rasgando a pele e deslocando ossos nos grilhões. Chegou mesmo a pensar que teria de o refrear com um feitiço, mas o Aesh’alan acabou por estacar de forma súbita e inesperada, gelando numa pose contorcida como se algo lhe tivesse trespassado a espinha.

Os seus membros relaxaram então, fazendo as correntes chocalha­rem quando estas penderam novamente lassas, e Dilet olhou boquia­berto para o vazio. O seu urro reduziu-se a um chiado gutural que mais parecia o estertor de um moribundo, e a boca mexia-se como se quisesse falar por vontade própria. Allumno retesou-se, mas soube apenas que o momento chegara quando viu os orbes do bobo ficarem enevoados por uma oleosa escuridão líquida, que cedo lhe preencheu o branco dos olhos.

— Agora, Aewyre, agora! — gritou com desnecessária urgência na voz, pois o guerreiro estava com músculos tensos como o arame de uma ratoeira, e estes saltaram assim que a primeira palavra saiu dos lábios do mago.

Ancalach trespassou o peito de Dilet, fendendo o esterno e fazendo algo estalar no seu coração antes de a ponta retinir contra a parede. Tal como Allumno lhe dissera, Aewyre não retirou a espada para apressar a morte do bobo, mantendo-a como estava com o intuito de aprisionar O Flagelo durante a comunhão. O negrume permaneceu nos olhos de Dilet, que eram agora dois orbes pretos sem vida, e este chiou mais um pouco quando as veias no seu pescoço se começaram a dilatar, pro­vavelmente devido à descompressão do coração. Porém, também os vasos foram adquirindo uma tonalidade negra, e o Aesh’alan começou a ser sacudido por intensos tremores que fizeram as correntes choca­lharem freneticamente. A tocha da cela bruxuleou como se soprada por uma brisa inexistente, e as sombras dançaram descompassadas da oscilação das chamas, revoltando-se contra a luz e adquirindo vida pró­pria. Aewyre manteve-se firme mesmo quando tentáculos filamentosos de penumbra lhe roçaram os braços e lhe agitaram os cabelos, confiando em Allumno e determinado a pôr fim à ameaça de uma vez por todas. Já o mago teve de fazer um esforço considerável para se manter calmo, pois embora o seu plano fizesse sentido na teoria, não tinha como saber o efeito que interpelar com Ancalach a comunhão entre um Aesh’alan e o próprio Flagelo poderia ter. Dilet arqueava as costas para trás, afun­dando mais ainda o peito na lâmina da espada, com os olhos já túmidos de negrume líquido. A sua pele empalidecia à medida que as veias e artérias lhe escureciam, e era a sua sombra a que na sala mais se insur­gia contra a luz da tocha. Subia pela parede e contorcia-se pelo teto em posturas desnaturais à medida que os membros lhe iam crescendo até açambarcarem a cela inteira. Com o pescoço curvado, o bobo tinha o olhar fito no teto, e o último som que dele saiu foi um grito de raiva e desalento ao ver o seu próprio vulto precipitar-se sobre ele como uma aranha.

A união entre ambos fez Dilet jorrar sombras de cada orifício e poro seu, irrompendo numa florescência de trevas sólidas que impeliram Aewyre para trás e forçaram Allumno a recuar e resguardar a face com o braço. A labareda da tocha foi esticada quase até ao limite, fustigada e quase extinguida pela violência da súbita erupção de sombras, que fez com que a porta da cela se fechasse, como se impelida por uma violenta corrente de ar. O fogo da tocha ficou reduzido a uma ponta em brasa durante alguns momentos, nos quais a cela se viu imersa em escuridão. Aewyre e Allumno estavam de pé, mas além de a repentina ausência de luz os deixar momentaneamente cegos, ambos sentiram que algo mudara no ar da cela, algo que parecia ter espessado a som­bra ambiente. Um odor que apenas podia ser definido como trevas úmidas e negrume fresco assaltou-lhes as narinas, e o guerreiro empunhou Ancalach ao alto, julgando que a própria penumbra os poderia atacar. Os seus olhos ainda não se tinham habituado à escu­ridão, mas tímidas centelhas começaram a despontar das brasas da tocha, delineando a silhueta de Dilet, que de alguma forma estava agora de joelho no chão, apoiando no outro a sua mão direita. Só que não era o bobo quem ali se encontrava presente, e tanto Aewyre como Allumno se deram conta disso mesmo antes de o vulto erguer a cabeça, altura na qual já o terror lhes plantara os pés ao chão.

— Isto não me agrada — disse Lhiannah.

Os companheiros encontravam-se na praça de Allahn Anroth com o que restava dos residentes do palácio. O díspar grupo reunira-se no meio do sol rodeado pelas asas das quatro enormes águias vermelhas à volta deste, como se procurassem o calor e conforto que o baço e nublado céu primaveril lhes continuava a negar. Todos estavam ator­doados e desorientados, mesmo os guardas, e o pouco que se falava era em sussurros e murmúrios. Até Daveanorn agia de forma distante, dispondo os seus homens e aquietando mulheres nervosas como se tudo não passasse de um exercício rotineiro no palácio, dando a impressão de que a sua mente ficara abarbada e embotada pelos eventos dos passados dias. Os companheiros tinham já estado na presença do pró­prio Flagelo, e, como tal, aquilo que Aewyre e Allumno se propunham a fazer não os afetava tanto como aos restantes, mas nem por isso esta­vam menos nervosos. Não lhes tendo soado propriamente razoável, o plano de Allumno parecera ainda assim a sua única alternativa viável, dadas as circunstâncias, mas não deixara de parecer um pouco abrupta, a forma como o mago tomara as rédeas da situação. Allumno tinha por hábito ponderar cada palavra sua, e fora a ver dos companheiros dema­siadamente repentino e categórico ao dar a entender que não lhes res­tava outra alternativa que não fazer o que ele dizia.

— Não me agrada mesmo nada... — insistiu a princesa à falta de uma resposta, bufando com as mãos sobre as ancas.

— Destas coisas eu não percebo nada — comentou Taislin, enco­lhendo os pequenos ombros. — Temos de confiar no Allumno.

— Não é que não confie nele — disse Lhiannah, embora estivesse patente alguma reserva na sua voz —, mas ele próprio disse que não tinha certezas, que esta era só a melhor hipótese que temos...

— Com a magia é mesmo assim, cachopa... — disse Worick de braços cruzados e o martelo dependurado da dobra de um deles. — Só uma boa martelada na cabeça é que dá certezas.

— Mas obrigarem o bobo a comungar com O Flagelo?! — exclamou Lhiannah, atirando as mãos ao ar e atraindo a atenção de alguns serventes.

— Mais baixo, cachopa — sussurrou o thuragar. — Não precisa­mos de pôr esta gente em pânico.

Lhiannah tornou a bufar, olhando para os portões do palácio, e flexionando e endireitando os joelhos em rápida e nervosa sucessão. O thura­gar teve receio de que ela tomasse alguma decisão impensada, e olhou à volta em busca de uma distração para a sua protegida.

— Aquela catraia é que quis ser tua aia, foi? — perguntou, apon­tando para a rapariga em questão

— Sim — respondeu a princesa desinteressadamente, sem vontade de ser distraída.

— Ela parece-me um bocado desorientada. Vai lá chamá-la, ó mafarrico — disse Worick a Taislin, batendo-lhe de leve com a manopla no peito.

O burrik percebeu a intenção, e acedeu com um aceno da cabeça antes de ir ter com a aia, que se encontrava com um bebe ao colo jun­to a um grupo de serventes lennhesas e nolwynas sentadas no chão. O rapaz surdo-mudo que a costumava acompanhar estava com Davea­norn, como competia a um pajem quando o seu senhor não se encon­trava presente, e a aia parecia de fato desarvorada, um sentimento que quase todos partilhavam na praça. A aproximação de Taislin levantou algumas caras, incluindo a da rapariga, e algumas mulheres olharam-no com ar assustado, mas o burrik desarmou-as com um dos seus sorrisos retos.

— Olá — cumprimentou. — A princesa Lhiannah quer falar con­tigo. Podes vir?

Para a condição de que a rapariga gozava, poder ou não era algo que nem se punha em causa, mas a bebê que tinha ao colo fê-la hesitar.

— Eu... não sei... — tartamudeou, olhando alternadamente para o burrik e para uma servente com toucado branco, que estava sentada no chão a massagear a perna. — Devo deixá-la, senhor...?

— Taislin. E podes trazê-la. O Worick é capaz de a assustar, mas não a vai comer.

A rapariga sorriu nervosamente, olhando uma vez mais para a servente, que preferiu nada ter que ver com o assunto. Taislin gesti­culou-lhe que o seguisse, e esta assim fez, deixando-se conduzir até Lhiannah, que a recebeu com um suspiro.

— Princesa... — saudou a aia com uma mesura com a bebê ao colo, inclinando ainda a cabeça a Worick em sinal de respeito. — General...

— De quem é esse bebê? — perguntou Lhiannah sem grande interesse, olhando de lado para a entrada do palácio.

— Oh, é uma menina — esclareceu a aia. — Ela é uma das... bem, quando a trouxeram disseram que fora... quer dizer... oh, eu não devia falar disto...

— Desembucha, rapariga... — incitou a arinnir com um tom algo impaciente na voz, e sabendo muito bem que a aia não queria outra coisa senão falar.

— É uma das filhas ilegítimas de lorde Aereth — explicou esta, baixando o tom de voz. — Segundo se disse, lorde Aereth... bem, levava muitas mulheres para os seus aposentos. Lorde Tylon aconse­lhou-o a fazer um... levantamento. Uma busca. Isto, não fossem alguns herdeiros ilegítimos causar-lhe problemas no futuro, pois já na altura se adivinhavam tempos difíceis, e lorde Tylon convenceu lorde Aereth a fazer esse tal levantamento... no qual, agora que penso nisso, parece que apenas encontraram esta pequerrucha aqui, coitadinha, que nem culpa de nada tem. A Casira é a ama-de-leite dela, mas apressou-se, passou à frente dos guardas e tentou saltar para um dos barcos quando todas aquelas pessoas fugiram da caverna, e caiu ao chão e magoou-se no joelho, por isso fico agora eu um pouco com ela ao colo, para a Casira descansar...

— Filha do Aereth? — admirou-se Worick, exagerando um pouco o tom de descrença numa tentativa de chamar a atenção de Lhiannah, que teimava em não tirar os olhos dos portões.

Foi bem sucedido, pois conseguiu que a princesa se aproximasse da aia para ver melhor. A aia obsequiou a sua curiosidade, ajeitando a bebe ao seu colo e virando-a para Lhiannah, roçando-lhe uma bochecha com o indicador.

— Olha a princesa, pequerrucha. Já viste como é bonita? Lhiannah não ligou à lisonja, olhando com ar intrigado para a bebê, que retribuiu a curiosidade. Era uma criança com pouco mais de um ano de vida, com uma cara muito redonda ornada com caracóis castanho-claros, e tinha os olhos grandes e vivazes, esses tingidos de um bonito tom de azul-escuro. Não foi porém a cor, mas o feitio deles que chamou a atenção da princesa: arredondados, separados por igual, e carúnculas afiladas a tenderem para baixo.

«Curioso», pensou a arinnir. «Tem os olhos do Aewyre...»

Os olhos de Aewyre estavam brancos e dilatados, todo o seu corpo hirto numa pose instintivamente defensiva e com os dedos de ambas as mãos crispados em Ancalach, ao ponto de os nós ficarem exangues. Allumno partilhava do seu sentimento, embora parecesse menos surpreso, e apoiava-se de ombro contra a parede como se as suas per­nas estivessem a fraquejar e o cajado não mais o suportasse. Os dois estavam estarrecidos a olhar para o imenso vulto de punho e joelho assentes no chão, no qual a capa negra deste se espalhava como uma poça de negrume sem fundo, espelhando o abismo tetro do qual certa­mente emergira.

Seltor erguera a cara, diante da qual penderam longos e sedosos fiapos dos seus cabelos negros, e entre os quais um par de olhos per­niciosos fitou os dois mortais que tinham ousado trazê-lo aí. Dois orbes negros e líquidos, nos quais íris e pupila eram indistinguíveis, tornados mais perigosos ainda pelo hostil franzimento das sobran­celhas angulares sobre eles, que lhes conferiu um aterrorizante peso que por pouco não vergou os joelhos de Aewyre. De Dilet não havia sinal, e as manilhas e grilhetas que o tinham prendido pendiam e jaziam agora desocupadas atrás d’O Flagelo, que parecia ele próprio surpreendido com o que acabara de acontecer, mas que rapidamente recuperou a compostura quando os seus olhos incidiram sobre Anca­lach, que fulgia à luz da tocha reavivada.

Lentamente, como uma sombra a estender-se conforme o sol se deita no céu, Seltor ergueu-se, sem que o seu esplendoroso arnês ebanizado fizesse um único som. Era mais alto que Aewyre, mas a dança de sombras à sua volta fez com que parecesse maior ainda, apeque­nando o guerreiro e o mago, e reduzindo-os à sua insignificância. A expressão com que olhava para Ancalach era a de um homem pru­dente a manter uma diminuta serpente venenosa debaixo de olho, sem que contudo isso abalasse a sublimidade do seu semblante. Os únicos termos mundanos de comparação que tanto Aewyre como Allumno tinham eram uma mescla entre a beleza dos eahlan e o magnetismo sinistro dos eahanoir, mas Seltor era a plenitude de ambas essas carac­terísticas, combinando-as num todo harmonioso e imaculado. Perfei­tamente escanhoadas como se lâmina alguma lhes tivesse alguma vez tocado, as suas feições eram angulares e suavizadas em igual medida, quase andróginas na sua antinatural beleza, e mesmo com a cautela a privar-lhe a expressão da sua habitualmente inabalável confiança, esta continuava a não deixar quaisquer dúvidas quanto ao seu poder. A sua mera presença em tudo excedia as mais sinistras concepções de Aewyre e Allumno, pois embora estes já o tivessem visto em pessoa, não se lhe tinham deparado como ameaça antes, e a atenção que agora recaía sobre Aewyre conseguiu mesmo arrefecer a raiva que ardia nas veias do jovem, como uma peça de ferro quente a ser imersa em água.

Seltor poupou o jovem momentaneamente ao quase intolerável peso seu olhar, mirando as suas restritas cercanias enquanto as som­bras à sua volta se iam acalmando, recolhendo-se no seu vulto. Os olhos passaram por Allumno e o mago encolheu-se como se tivesse sido vergastado, respirando freneticamente e com uma fresca orla vermelha em redor da mancha de sangue acastanhado na sua testa. Aewyre sentiu o punho de Ancalach escorregar-lhe ligeiramente nas mãos suadas, e relaxou os dedos antes de os flexionar novamente, ten­tando em vão apelar a todo o ódio e raiva que reservara ao Anátema durante o último ano.

— Intrigante — disse este para consigo. A voz era sedutora e agradável ao ouvido, saindo-lhe sem o mais ínfimo esforço, e deixou os pêlos de Aewyre e Allumno arrepiados. — Nunca pensei que a Ancalach ainda tivesse esse tipo de poder sobre mim.

Allumno nem satisfeito conseguiu ficar ao ver que o seu plano resultará, tal era o temor que dele se apossara, e conseguiu apenas manter a mão perto da bolsa na qual a sua gema se encontrava, incapaz de a tirar.

— Por acaso o vosso plano não seria aprisionar-me diretamente nela através do Dilet, não? — questionou-se O Flagelo, olhando para os dois e fixando-se breve e acusadoramente em Allumno, antes de devolver a sua atenção a Ancalach. — Tentaram repetir o que me aconteceu com Aezrel... Nem foi mal pensado de todo, mas para isso teriam mesmo de me trespassar diretamente com a espada. Tudo o que conseguiram com isto foi entregar-me prematuramente a alma daquele traidor.

O tom de Seltor não era sequer zombeteiro, mas tanto Aewyre como Allumno se sentiram como crianças censuradas por terem brincado com armas. Nem mesmo a menção do nome de Aezrel conseguiu acicatar o guerreiro, que se esquecera por completo da senda da lâmina, do ódio, da angústia, de todos os males que O Flagelo lhe causara a si e aos seus, e pelos quais prometera fazê-lo pagar. Sentia-se indefeso e insignificante como se exposto a uma força da natureza em estado bruto, cujo poder latente ananicava o de Othragon. Mesmo a ameaça de Culpa fora mais subtil; Seltor parecia-lhe capaz de o destruir e a Allumno com um sim­ples estalar de dedos. A eles e ao palácio, se necessário fosse.

— Bom, isto acaba por ser conveniente, de certa forma — conti­nuou O Flagelo, fixando Aewyre com o olhar. — Tu és o único que ainda representa uma ameaça para mim, rapaz, mas sem a Ancalach não tenho nada a temer de ti. Por isso, façamos isto da seguinte forma...

Seltor pareceu então focar todo o seu poder e atenção em Aewyre, o que libertou Allumno do subtil e terrífico encanto com o qual esti­vem a ser sustido. Embora ainda avassalado pela simples presença d’O Bastardo, o mago pareceu despertar de um transe horrorizado e, ainda com a respiração rasa, enfiou a mão na bolsa para dela tirar a sua gema.

— Larga a Ancalach, rapaz, e eu prometo que te deixo e aos teus em paz — sugeriu Seltor.

Apesar do seu pavor, Aewyre ainda conseguiu soltar um arquejo de descrença, apertando Ancalach com mais força ainda.

— Não acredito... — disse.

Seltor suspirou pelo nariz, erguendo a mão de palma virada para cima.

— Larga a Ancalach — tornou a dizer. Tinha a cara séria, seguro da sua superioridade, sem contudo subestimar o perigo da Espada dos Reis. — Não tens hipóteses de ganhar.

— Mat... mataste o meu pai... — conseguiu Aewyre dizer, cer­rando os dentes para tentar ser mais convincente e deixar de gaguejar.

— E tu mataste o meu. Estamos quites.

Allumno tirava a gema da sua bolsa, mas também ele ficou sur­preso pela ligeireza de tal afirmação, pela forma quase de igual para igual com que O Flagelo se dirigia a Aewyre, e sobretudo pelo fraco mas genuíno sentimento na sua voz.

— Já morreu demasiada gente por causa desta querela entre mim e a tua família, rapaz — continuou. — A minha luta não é convosco, nem mesmo com Allaryia, acredites ou não. Tenho coisas mais impor­tantes que fazer.

Allumno não conseguiu perceber aonde Seltor poderia querer chegar, mas ao ver Aewyre hesitar, tirou de vez a gema da sua bolsa, bem como um pedaço de metal enfaixado, que desembrulhou discre­tamente com uma mão enquanto segurava a gema com a outra. O me­tal estava quente ao contato com as suas mãos, das quais parecia querer sair, mas o mago manteve nele um aperto firme com os dedos, tendo cuidado para não se cortar no seu afiadíssimo gume.

— Aproximam-se tempos conturbados de Allaryia, e sou eu o único que ainda nos pode a salvar a todos da aniquilação — continuou O Flagelo, ao ver que Aewyre não se pronunciaria. — Já não tenho drahregs, e perdi os meus Aesh’alan, dois dos quais graças a ti. Não posso conquistar terra alguma, nem quero. A única coisa que quero é poder fazer o que me compete em paz, sem ter de estar a pensar nessa maldita espada. Larga-a, rapaz.

— Não... — disse Aewyre, sem estar verdadeiramente a ouvir o que Seltor dizia.

A expressão deste manteve-se inalterada, mas a mão que tinha estendida voltou-se de palma para o jovem, e dela emanou um vagalhão de poder negro que distorceu e borrou o ar, rugindo na direção de Aewyre. O jovem baixou a cabeça, fechou os olhos e empunhou Ancalach diante de si por instinto, e com ela talhou a esfumada vaga de destruição como um quebra-mar, deixando-a rugir para os seus lados e soprar-lhe os cabelos como uma rajada de vento redemoinhante. As pedras da parede atrás de Aewyre tremeram, algumas chegando mesmo a rachar-se, e a porta foi sacudida dos gonzos, esta­lando a madeira e amolgando as dobradiças de palheta. O guerreiro manteve-se firme e de espada empunhada, sentindo-se como se no centro de uma roaz tempestade, na qual mal conseguiu abrir os olhos, vendo apenas um sombrio vulto de mão aberta para ele a emanar aquela que parecia ser uma interminável vaga de destruição.

Allumno viu o seu protegido a ser avassalado pelo negro poder de Seltor, e foi impelido a agir por essa visão, esquecendo-se de que Anca­lach resguardaria o jovem. Sem mais hesitações, atirou para o chão o pano que resguardava o pedaço de metal, e investiu contra O Flagelo com este numa mão e a sua gema na outra. Seltor apercebeu-se das suas intenções, e a vaga de sombria ruína cessou abruptamente quando estendeu o braço para o mago de dedos esticados, como se o quisesse agarrar. Fiapos negros desenrolaram-se das sombras das pregas da roupa de Allumno, envolvendo-o como furiosas trepadeiras e alçando-o ao ar quando Seltor curvou os dedos para si. Os joelhos de Aewyre cambaram para a frente com o esforço que este estivera a fazer para resistir à destrutiva vaga, e embora o guerreiro estivesse ileso, tinha um zumbido nos ouvidos e ficou momentaneamente demasiado atordoado para sequer se dar conta daquilo que estava a acontecer a Allumno.

O mago abriu a boca para fazer desesperado uso da Palavra, mas um dos filamentos de sombra atou-se-lhe aos cantos desta com uma série de rápidas voltas, que deixaram Allumno de boca aberta mas amordaçada, impossibilitando-lhe qualquer feitiço. Por via das dúvi­das, outros filamentos cingiram-lhe os pulsos, levando-lhe forçosa­mente os braços atrás das costas e laçando-os um ao outro. Atado e indefeso, Allumno foi assim trazido até à presença de Seltor, de dentes arreganhados pela força com que os filamentos de sombra lhe repuxavam os lábios, e de braços e pernas enleados sem qualquer hipótese de fuga, ameaçando espremer-lhe a vida para fora do corpo. Aewyre recuperou e apercebeu-se disso mesmo, e arquejou de olhos arrega­lados ao ver o seu mentor à mercê d’O Flagelo, que nem sequer olhava para o mago.

— Larga a espada — tornou O Flagelo a dizer. — Larga-a, ou ele morre.

O guerreiro sentiu uma frustrada desesperança apertar-lhe a garganta, fruto dos seus sentimentos em conflito. Queria matar o desgraçado, queria mais do que tudo fazer com que ele pagasse... mas tinha medo. Medo que lhe enfraquecia os braços, um medo avassalador que lhe coagulava a fúria, embotava o gume retilíneo e implacável pelo qual regera as suas ações desde a morte do seu pai. Aewyre descera às masmorras para aprisionar uma ameaça distante; não se mentalizara para enfrentar um deus. Fora tudo muito rápido, demasia­damente rápido e abrupto, e agora tinha o próprio Flagelo diante de si, e com a vida de Allumno nas suas mãos.

— Ninguém precisa de morrer aqui hoje, rapaz. Nem sequer tu — tentou Seltor ainda assim persuadi-lo. — Sem a Ancalach, não és uma ameaça para mim, e não tenho quaisquer motivos para te matar.

Allumno ia sacudindo a cabeça, emitindo grunhidos sufocados através das sombrias mordaças que ameaçavam apartar-lhe as mandíbulas. Tratava-se contudo apenas de uma manobra de distração, pois enquanto o fazia ia cortando com o pedaço de metal os filamentos de sombra que lhe atavam os pulsos. O fragmento da Lança de Istegard derretia a sombra como faca quente em manteiga, não devido ao calor que de fato irradiava na proximidade de Ancalach — à qual desejava evidentemente fundir-se, tal como quando Taislin o usara para procurar a espada na fortaleza de Coilen — mas por ser o seu propósito destruir Seltor e tudo o que este representava. Allumno ainda pensou tentar surpreender O Flagelo e espetar-lhe o pedaço na garganta, mas não estava assim tão próximo dele para garantir que este não conse­guiria reagir a tempo, além de que seria difícil infligir um ferimento mortal com a pequena lasca.

— Pousa a espada, e recua até à porta — comandou Seltor. — É a última vez que to peço.

Desalentado, Aewyre olhou para Allumno, que fez que sim com a cabeça num gesto calmo e ponderado, de todo movido pelo desespero que a sua situação justificaria. Sem ter mais por onde se virar, o guer­reiro teve de confiar na hipótese de que aquilo fazia de alguma forma parte do plano do seu mentor, e aquiesceu, erguendo uma mão aplacadora e baixando-se lentamente para pousar Ancalach.

— E não penses em repetir o truque do teu pai — advertiu Seltor, recordando-se do sucedido em Aemer-Anoth. Allumno grunhiu e arqueou as costas quando os filamentos apertaram com mais força, e Aewyre tornou a erguer-se, enristando a espada. — O teu mentor morre se tentares alguma coisa. Agora pousa-a!

Toda a calma e sedução desapareceram da voz d’O Flagelo, que queria evidentemente dar a situação por concluída. Aewyre tornou a baixar-se, sempre com Seltor e Allumno debaixo de olho, e pousou Ancalach no chão sem mais vacilar, embora hesitasse em largar o punho desta. O mago foi anuindo, e pousou o cálido pedaço da Lança de Istegard sobre os dois indicadores, pressionando a gema obliqua-mente contra o gume com os polegares. Podia não ser Ancalach, mas o seu mestre ou não se lembrara de que o metal da lança era tão ou mais forte que o da Espada dos Reis, ou então escolhera não lho dizer, preferindo a morte de Aewyre à do seu pupilo. Allumno não parti­lhava de tal opinião.

O jovem fitou o mago uma última vez antes de largar a espada, e Allumno tornou a acenar com a cabeça, rilhando a gema de leve no gume do pedaço. Seltor baixou o pescoço expectante, tentando refrear o seu ânimo em tão crucial momento, e as suas narinas dila­taram-se sutilmente com aquele que só podia ser um suspiro de alívio quando os dedos de Aewyre por fim largaram o punho.

— Agora recua até à porta — disse com voz calma mas tensa, esquecendo-se por completo da existência de Allumno e não reparando sequer nas gotas de sangue no chão, que pingavam dos dedos que o mago enterrara quase até ao osso no gume do pedaço. As falanges dos seus polegares estavam brancas, e dobradas até ao limite.

«Isso, afasta-te», concordou, incentivando o guerreiro a fazer como lhe fora dito. Aewyre não viu a lágrima que escorreu pela face do mago abaixo, mas a ponderada ânsia dos acenos da sua cabeça deram-lhe a confiança necessária para recuar um passo, preparando-se para o pior.

Seltor não agiu, contudo, e Aewyre recuou outro passo, e depois outro, lento, cuidadoso, atento ao mínimo gesto de traição d’O Fla­gelo, cuja atenção estava totalmente centrada em Ancalach. Não foi senão quanto Aewyre chegou por fim de costas à porta que os olhos de Seltor se avivaram e este ergueu a mão que Allumno por fim agiu.

«Antes eu do que tu», pensou, vertendo uma segunda lágrima e lançando um último olhar ao seu protegido. «Adeus, Aewyre.»

A gema rachou-se então, e um ouriço de fachos multicolores projetou-se das costas do mago. Seltor teve apenas tempo para virar a cara na direção da luz antes de esta implodir com um estampido surdo que quebrou a pressão nos ouvidos dos presentes, e a cela ser engolfada por um fulgor cegante que fez o mundo colapsar.

— O que foi aquilo? — perguntou Lhiannah, virando a cara na direção do ruído.

Ninguém lhe soube responder, mas todos na praça tinham ouvido o estouro vindo do interior do palácio, ao qual se seguira um rumor de pedra a desabar que fez o solo tremer, obrigando os presentes a mexerem os pés ou a apoiarem as mãos no chão. Serventes gemeram de medo, perguntando aos deuses o que mais poderia acontecer, e os guardas levaram as mãos às armas, como se esperassem que uma nova ameaça viesse a sair de Allahn Anroth.

— O que foi aquilo?! — tornou Lhiannah a perguntar, agora com uma nota de histeria na voz, e Worick teve de a segurar pelo pulso para a impedir de se lançar a correr para os portões do palácio. — Larga-me!

— Calma, cachopa! — disse o thuragar, puxando-a para si. — O mago disse que esperássemos até que eles voltassem, e que nos pusés­semos a andar se...!

— Quero lá saber do que ele disse! — rosnou a arinnir, contorcendo-se como uma gata assanhada e acabando por conseguir arrancar o pulso da mão de Worick, correndo possessa para Allahn Anroth. — Aewyre!

— Oh, pedras me partam! — berrou o thuragar, e ele e Taislin foram atrás de Lhiannah, cientes de que nunca a conseguiriam apanhar.

— General, o que...?! — tentou Daveanorn perguntar sem sucesso, pois os companheiros ignoraram-no e entraram a correr pelo palá­cio. O seu primeiro instinto foi de ir com eles, mas sabia que os seus homens e os serventes entrariam em pânico caso se retirasse, e essa certeza reteve o paladino.

— São os thuragar! Os thuragar vêm aí outra vez! — gritou uma das serventes, semeando o pânico entre lennheses e cortesãos de Ul-Thoryn em igual medida, que começaram a andar em redor em passo travado como ovelhas desorientadas.

— Tenham calma! — berrou Daveanorn, erguendo as mãos. — O que quer que esteja a acontecer lá dentro, aqui estamos todos em segurança!

Porém, nem mesmo os guardas encarregados de assegurar a dita segurança pareciam estar tão certos, entreolhando-se nervosamente e olhando à volta de armas empunhadas, como se não soubessem o que esperar. Crocitos sinistros e aziagos fizeram-se ouvir no céu, vaticinando desgraça.

Quando os sentidos de Aewyre regressaram, este ficou confuso por momentos, incapaz de se mexer e sem sequer saber onde estava, ou mesmo como ali fora parar. Sentia-se como se estivesse fora do seu corpo, um mero espectador dos seus membros inertes, e, com a cons­ciência, veio uma pletora de sensações que lhe avassalou a percepção das coisas: cheirava o jogo de cores que raiavam pelo ar, ouvia o odor a ozono que permeava o local e conseguia ver as pulsações que faziam o mundo vibrar. A mente de Aewyre ficou abalada com o refluxo sensorial ao tentar processar a informação contraditória, mas não foi senão quando a sua sensação de toque voltou que o guerreiro despertou do torpor em que se encontrava. Com essa nova consciência veio um breve assomo de pânico, pois estava preso e incapaz de se mexer, ou pelo menos assim o julgou antes de os seus membros começarem a obedecer-lhe, momento no qual se desenterrou da pilha de escombros na qual estivera parcialmente soterrado.

Arfando e arquejando, o guerreiro ergueu o torso subitamente, var­rendo a manta de entulho de cima da sua couraça empoeirada, cujo tecido vermelho fora rasgado em partes, pendendo em farrapos das peças do arnês. O brusco movimento escureceu-lhe a visão por instan­tes quando o sangue lhe desceu da cabeça palpitante, à qual Aewyre levou a mão, palpando a ligeira amolgadela na parte de trás do elmo. Uma implosão, um clarão cegante, um voo descontrolado pela sala, um impacto que lhe fizera a cabeça estremecer... Aewyre começava a lembrar-se do sucedido, e quando a imagem de Allumno lhe veio à cabeça, as suas grevas e coxotes rasparam asperamente com o repelão que lhe convulsionou o corpo na ânsia de se levantar. Foi só então que o guerreiro pôde contemplar a devastação na cela.

Boquiaberto, Aewyre olhou à volta para as paredes parcial ou totalmente ruídas, admirado ao ver que a porta não só ainda se sustinha dos seus gonzos, como estava do lado errado da cela... ou então fora ele arrancado pela força da implosão e de alguma forma arrojado contra a parede oposta. As paredes da porta estavam danificadas, mas ainda sólidas, só que as do outro lado tinham desabado juntamente com a que dividia aquela cela da adjacente, e agora ambas as divisões estavam ligadas por um buraco irregular. A tocha desaparecera, mas em seu lugar havia um brilho estranho a iluminar a cela, uma luminescência alienígena proveniente do vórtice que se contorcia no ar a poucos passos de Aewyre. O guerreiro contemplou com embrutecido fascínio o fenômeno orlado por um bulcão, em cujo cerne lampejavam veias relampejantes. O vórtice em si era incolor, e o que se encontrava do outro lado deste aparecia liquidamente distorcido ao ponto de ser irreconhecível, garrido por cores semelhantes às de uma bolha de sabão. O chão debaixo dele fora erguido como se uma enorme raiz tivesse tentado rachar a pedra, e o teto e a parede próxima apresen­tavam bojos semelhantes, que tinham ondulado a estrutura cúbica da cela. A atmosfera estava elétrica, pontuada por estalidos e crepitações no ar, no qual imperava um ruído que apenas podia ser descrito como o marulhar constante de uma onda a encapelar-se infi­nitamente.

Tão surpreso estava Aewyre, que nem reparou no vulto que se destacava na escuridão do buraco a dar para a outra cela. Kror obser­vava-o com semicerrados olhos vermelhos e desabituados à escuridão, ainda agrilhoado mas de alfanges empunhados, pois o guerreiro deixara as armas com o drahreg na vã esperança de que as vozes o persuadissem a lutar. O súbito estrondo tomara-o de sobressalto, mas Kror reagira rapidamente e preparara-se para o pior, julgando que a sua hora chegara por fim. Contudo, a única coisa que agora via era um guerreiro com a armadura em farrapos a olhar para uma estranha voragem, reconhecendo-o como sendo Aewyre apenas devido à couraça que já antes o vira usar. O drahreg não conseguiu conceber o que se poderia estar a passar, e optou por permanecer imóvel e em silêncio até perceber melhor a situação.

— Allumno...? — chamou Aewyre num tom tão baixo, que mal se fez ouvir a meio do ruído ambiente.

Agora já menos desorientado, o jovem ia olhando à volta, procu­rando por sinais do mago enquanto se erguia sobre pernas vacilantes, escorrendo pó e pedrinhas das asas nas espaldeiras. A única coisa que viu foi o punho de Ancalach, cuja lâmina se encontrava meio enterrada no entulho, mas de Allumno e Seltor não havia qualquer sinal. Segundo a sua ainda algo abalada estimativa, os dois tinham-se encon­trado precisamente no local onde o vórtice agora girava, e só quando Aewyre se lembrou dos instantes que tinham antecedido a implosão é que por fim percebeu o que acontecera.

— Não... — disse, abanando a cabeça e deixando-se cair de joe­lhos, esmigalhando pedras debaixo das joelheiras. — Oh, por favor, não... Allumno, não...

A voragem não deu qualquer resposta ao seu desespero, banhando simplesmente o guerreiro com o jogo de luzes e cores que dela ema­nava e que dava um aspecto alucinado à devassada cela. Aewyre ainda tentou convencer-se de que tudo não passava de um pesadelo, mas a dor que sentia no corpo era bem real, e a angústia que lhe compri­mia o peito mais ainda. Estava morto. Allumno, o seu mentor, o seu amigo...

Um grito lancinante interrompeu-lhe o luto, e um jorro de som­bras irrompeu do vórtice como um disforme organismo com ânsia de se libertar e respirar. Aewyre caiu para trás com o susto e com a força quase física com que o grito se abateu sobre ele, e viu com o coração aos saltos como a massa de sombras saiu do vórtice, ganhando feitio. Formou-se nela um núcleo parcamente distinguível, atrás do qual se arrastava uma serpenteante cauda de trevas que parecia tentar puxa­do de volta para o vórtice, mas o cerne exercia uma tremenda força contrária, como se estivesse a tentar escapar. O grito foi diminuindo de intensidade, sendo substituído por um audível ruído tênsil à medida que o núcleo ia gradualmente assumindo forma: uma forma humana de mãos e uma cara a tentarem sair de uma prisão de breu.

Aewyre observou a cena em negro fascínio e choque, incapaz de compreender o que se poderia estar a passar. A face que se formara da massa de negrume começou a adquirir detalhes, como o de uma boca escancarada presa num grito de agonia, e as mãos de dedos curvados procuravam rasgar o tenebroso invólucro que o envolvia. Não menos desesperado parecia o esforço da própria cauda de sombras, que se contorcia como uma serpente de cabeça pisada, tentando puxar o núcleo de volta como se a sua vida disso dependesse. Nenhum dos dois parecia interessado ou mesmo ciente da presença de Aewyre, que se endireitou e ergueu lentamente para uma posição acocorada, apoiando uma mão sobre a joelheira e a outra no chão. O jovem estava a ponderar o que fazer, sem saber se a sombria manifestação era ou não uma ameaça, mas antes que pudesse decidir, a contenda foi resol­vida tão repentinamente quanto começara. A forma humana no núcleo apartou os braços como para rasgar o invólucro e, com um ruído seme­lhante ao de uma espessa crosta a ser arrancada, conseguiu libertar-se, caindo de frente ao chão. As sombras emitiram um guincho quase ensurdecedor e retraíram-se com um forte recuo, desaparecendo no vórtice e devolvendo o silêncio à cela.

Fora Seltor quem se acabara de libertar, e O Flagelo estava agora de joelhos no chão a ofegar, com a cara tapada pela cortina negra dos seus cabelos e a capa da mais pura escuridão entornada dos seus om­bros. A sua armadura fumegava espessos fiapos de sombra, que a ela permaneciam agarrados como algas a oscilarem no fundo turvo do mar, mas de resto parecia ileso. Ainda acocorado, Aewyre pouco mais conseguiu fazer além de ficar a olhar estarrecido, o seu pesar abrindo o lugar para o mais abjeto terror ou para a mais ardente raiva, dei­xando em aberto qual dos dois se sobreporia primeiro. Nenhuma das duas veio reivindicar logo o seu lugar, nem mesmo quando Seltor ergueu a cabeça, puxando os cabelos para trás com um movimento rígido do braço para olhar o jovem diretamente.

— Muito ardiloso... — comentou, não com o tom confiante que Aewyre aprendera já a associar à sua voz, mas com o ligeiro tremor de quem tivera de lutar pela vida. — Tentar matar-me com um rasgão entre Allaryia e o Pilar, e enviar-me assim enfraquecido para a sombra que os meus fiéis lá formaram...

Aewyre não fazia idéia daquilo de que Seltor falava, e permane­ceu a olhar para ele sem qualquer expressão na cara, ainda pendente entre a raiva e o medo. Kror observava do buraco da sua cela, e foi incapaz de abafar um quase extasiado ofego ao ver-se na presença do seu criador, mas o som passou despercebido a meio do ruído ambiente.

— Tantas almas à minha espera há tanto tempo... ansiando pela libertação que apenas comigo morto poderiam ter... — continuou O Flagelo. — Não foi nada mal pensado, não, embora suicida... só gostava era de saber como é que o mago originou o rasgão, e como conseguiu que eu fosse diretamente puxado para a sombra... Por acaso não teria algo que ver com a alma do arquimago que recentemente se rendeu a ela, não?

Já mais composto, Seltor ergueu-se então num gesto ponderoso, denotando ainda alguma rigidez nos movimentos. Aewyre deixou-se estar onde estava sem responder, mas a sua face alterara-se subtil-mente. Tinha a boca numa linha fria de lábios premidos, e os olhos até então turvados pelo medo e pela confusão estavam agora afia­dos como uma espada acabada de amolar. Nem parecia respirar, imóvel como a estátua de um guerreiro capturado no momento em que estava prestes a desferir o golpe fatal. Seltor percebeu isso.

— Hum, então sempre é assim que vai ser?

— Mataste o meu pai... — mussitou o jovem.

— Sabes que tudo isto foi desnecessário, rapaz...

— Mataste o Assiòn...

— Como já te disse, a minha luta não é contigo. Nunca foi.

— Condenaste o Aereth...

— Vocês é que me arrastaram até aqui para me tentarem matar, e vê bem o que aconteceu...

— E agora mataste o Allumno...

— Eu tinha-me ido embora assim que me tivesse certificado de que a Ancalach não mais seria uma ameaça, mas vocês...

— Vais ter de ma arrancar dos meus dedos mortos, desgraçado.

A fria violência das palavras de Aewyre calou Seltor, a quem nin­guém assim se dirigira desde o seu último combate com Aezrel Thoryn. Reparou que o guerreiro nem sequer tinha a espada escon­dida debaixo de si, e seguiu então o subtil movimento das pupilas de Aewyre, que recaíram sobre o punho da parcialmente soterrada Ancalach. Os olhos dos dois tornaram a fitar-se, desta feita como duas espadas a serem desembainhadas, e de seguida ambos irromperam em movimento. Seltor estendeu o braço de mão aberta, da qual sibilou um venenoso tentáculo de sombra dirigido a Aewyre, que saltou para o lado, desembainhando Ancalach da sua bainha pétrea com uma cambalhota de lado no chão e erguendo-se agachado com esta trans­versalmente empunhada. O tentáculo desfez-se ao contato com a Espada dos Reis, e Aewyre pulou da sua posição para uma desenfreada carga gritante, arremetendo contra o adversário. O Flagelo deu um passo atrás e arrojou a outra mão, de cuja palma brotaram gavinhas de sombra, que se entrançaram num invólucro filamentoso que rapi­damente se dissolveu, dando lugar a Dalshagnar.

A Língua Negra e o Flagício entrechocaram estridulamente, saudando-se como velhos inimigos e lambendo-se com sofreguidão ao deslizarem uma pela outra antes de tornarem a embater. Aewyre atacou como um homem desesperado sem nada a perder, entregando-se plenamente à instintiva dança do aço. Não pensou no quão poderoso Seltor era, pois Ancalach deixava-os em pé de igualdade, e aquela luta seria espada contra espada, guerreiro contra guerreiro. Não pensou sequer no quão rápido O Flagelo era, quão superior a perícia dele era em relação à sua, pois isso significaria perder a luta antes de sequer a começar. Nada mais via à sua frente além do afiado gume de Dalshagnar e os olhos negros desprovidos de íris, nos quais se fixou em busca da única esperança que tinha, da mais ínfima réstia de receio que Seltor pudesse ter de Ancalach...

E encontrou-a: uma brasa mortiça acabada de atiçar pela proxi­midade da Espada dos Reis, as memórias de vinte anos preso em agonia, as cicatrizes do gume do Flagício, que nunca lhe haveriam de sarar completamente. Aewyre encontrou essa brasa, e soprou-a com quanto fôlego tinha para atear o medo ao adversário, desencadeando contra ele uma furiosa saraivada de golpes. Seltor acabara de sobreviver a uma implosão que criara uma brecha entre Allaryia e o Pilar, e fora quase absorvido pela sombra deste — não estava ainda plenamente recuperado, e isso permitiu a Aewyre manter-se em cima dele com uma implacável ofensiva, sem que contudo conseguisse atingi-lo. Mas O Bastardo era mais rápido, a sua perícia com uma lâmina era superior à do guerreiro, e não tardou a reagir, ripostando contra um corte ascen­dente na diagonal com um alto-abaixo de Dalshagnar, que embateu verticalmente contra Ancalach e ainda teve ímpeto suficiente para atingir o braçal esquerdo de Aewyre. O aço cedeu diante do gume da Língua Negra, que conseguiu ainda romper couro e morder carne antes de deslizar para fora com um sacão, que só não cortou o músculo porque o guerreiro soltou a mão esquerda, empurrando Dalshagnar para o lado com os copos de Ancalach. Sem dar atenção ao ferimento, Aewyre levou então o braço direito atrás, pousando a mão esquerda no pomo da espada, e impeliu-a para a frente. Seltor recuperou porém rapidamente, recuando um passo e puxando Dalshagnar para si, empunhando-a com ambas as mãos à cintura numa guarda próxima e desviando a estocada para o lado.

Aewyre por pouco não ficou mortalmente exposto, pois a lâmina do adversário veio mordê-lo como uma víbora negra direita à sua gar­ganta. Foi forçado a arquear o pescoço para trás e para o lado, rodando o corpo e trazendo Ancalach num rodopiante molinete que impediu que Seltor avançasse para tirar partido da sua precária posição. Uma vez recuperado o equilíbrio, o jovem retomou prontamente a ofen­siva, surpreendendo O Flagelo quando este se preparava para apro­veitar o recuo, lanhando-lhe as defesas com Ancalach a brilhar às luzes do vórtice. O retinir de lâminas ecoou pela cela, mas tudo o que Aewyre ouvia dentro da sua barbuda era o som da própria respiração acelerada, bem como o dos malhos que lhe martelavam as têmporas. A visão era-lhe algo restringida pela viseira em forma de Y, e o guer­reiro nada mais via além de Seltor e Dalshagnar, cuja lâmina de luzidio aço negro parecia estar em todo o lado. O arnês revestido a tecido era quente ao ponto de o sangue que lhe escorria da escoriação no braço esquerdo lhe parecer fresco, e Aewyre transpirava já abundante­mente. A armadura era muito bem feita e articulada, mas as espaldeiras não deixavam de lhe toldar os movimentos, e embora Seltor estivesse igualmente arnesado, o seu arnês sombrio não parecia atra­palhá-lo muito. A única relativa vantagem de Aewyre era a sua raiva e o fato de O Flagelo provavelmente não estar ainda no pleno das suas capacidades, após ter sido desfeito pela implosão e quase absor­vido pelas almas dos seus fiéis. Ainda assim, tal como o guerreiro não tardou a perceber, metade das capacidades de Seltor bastavam para enfrentar três como ele, com ou sem Ancalach.

A prova veio numa cegante seqüência de golpes, na qual o Anátema primeiro aparou uma espadeirada, respondendo com uma finta por baixo num golpe a partir dos cotovelos que, com um rápido girar de ombros, se converteu num inesperado alto-abaixo. Aewyre não teve hipótese de levantar Ancalach a tempo de se resguardar do fulminante golpe, e pôde apenas afastar a cara, erguendo o ombro para sobrepor a espaldeira à barbuda. Dalshagnar fez o aço de ambas guinchar, e o seu gume negro acutilou o trapézio do jovem, que desferiu de seguida um golpe desesperado na tentativa de travar o ímpeto de Seltor, varrendo o ar à sua frente com um golpe ascendente de Ancalach. O Flagelo desviou-se facilmente deste, e passou a sua lâmina pelos expostos segmentos ventrais da couraça de Aewyre. O sangrento silvo metálico curvou o guerreiro, que caiu de joelhos agarrado à barriga, deixando a ponta de Ancalach rilhar pelo chão. Mais sangue seu molhou-lhe a manopla esquerda, escurecendo o já de si vermelho tecido esfarrapado que a revestia, e o guerreiro cerrou olhos e dentes com a dor. Seltor virou-se então para o guerreiro prostrado de costas para ele, voluteando a capa negra e erguendo Dalshagnar como a espada de um executor.

«Venham», ordenou Aewyre.

A porta da cela foi arrancada dos gonzos por um golpe vindo do exterior, e Seltor virou a cara para ver duas armaduras douradas ar­remessarem dardos com pontas em forma de buril na sua direção. O Flagelo estendeu o braço de mão aberta, e ambos os projéteis foram retidos em pleno ar por um miasma sombrio pelo qual desliza­ram como em melaço, caindo inofensivamente ao chão. Aewyre apro­veitou a fração de instante que a distração lhe concedeu, e empurrou Ancalach para trás com ambas as mãos e um grunhido de esforço. A ponta rompeu o coxote negro como se de papel se tratasse, lanhando a parte interior da coxa d’O Flagelo e fazendo sair da sua boca um pri­meiro grito de dor. Kror sentiu uma necessidade premente de se libertar e auxiliar o seu senhor, mas o elo que o unia ao Segundo Peca­do não era tão forte quanto o dos seus congêneres, e ficou-se por retesar as correntes. As armaduras arremeteram então sobre Seltor de espadas desembainhadas, e Aewyre puxou Ancalach para fora ao rolar no chão com uma cambalhota sobre o ombro, erguendo-se num movi­mento fluido de frente para o adversário. Este reagiu com furiosos ecos das memórias de vinte anos de dor e agonia, golpeando o ar à sua frente com Dalshagnar, cujo chofre se propagou numa undíflua reverberação sombria na direção de Aewyre. O jovem quebrou-a com um tinir estrídulo num revés de Ancalach, e investiu sobre Seltor, reforçado pelo analéptico grito de dor deste, que se lançou sobre os três adversários como um lobo raivoso.

Espadas dançaram e retiniram umas nas outras, lampejando no ar à volta de Seltor, que dançava habilmente entre elas, pautando ele o ritmo do combate com quase cegante rapidez. Ainda assim, as arma­duras pareciam atacar com reencontrada paixão, desferindo golpe atrás de golpe com a força de almas que se defrontavam por fim com o inimigo pelo qual se tinham sacrificado para combater. Aewyre pressionou O Flagelo, contando com o recém-desperto receio pela dor que Ancalach era capaz de lhe infligir, e tentou encontrar uma aber­tura a meio da ofensiva das duas armaduras. As suas feridas sangravam, e embora a adrenalina lhe tamponasse a dor, o guerreiro não deixava de estar ciente da gravidade do ferimento na barriga, que teve de igno­rar sob pena de vacilar um instante que certamente significaria a sua morte. Morte essa que Seltor tinha nos orbes negros, cujas pupilas pareciam ter crescido até lhe preencherem quase por completo o branco dos olhos. Esquivava-se e flexionava-se entre as lâminas adversárias, com a capa preta a trilhar-lhe os movimentos e a tomar o lugar onde antes o seu corpo estivera, sofrendo vários cortes de espada em conse­qüência disso. Aewyre e as armaduras não lhe conseguiram tocar, mas a sua ousadia enfureceu Seltor, e este abriu subitamente os braços.

— Afastem-se! — gritou no momento em que uma vaga de poder negro aneliforme se propagou do seu corpo, atirando as armaduras contra paredes opostas.

Aewyre manteve-se firme, pois a sombria força concussora dissol­veu-se ao passar por ele, mas Seltor caiu-lhe logo em cima, fustigando-lhe as defesas com um imparável assalto lamelar que o guerreiro mal conseguiu conter. Dalshagnar parecia vir de todas as direções ao mesmo tempo, e Aewyre desligou simplesmente a mente, deixando o corpo defender-se como podia com os movimentos instintivos nele incutidos pelo treino com Daveanorn e na Cidadela da Lâmina. Porém, não havia nada que pudesse preparar mortal algum para um combate com o próprio Flagelo, e este não tardou a forçar uma brecha na desesperada defesa do adversário. Dalshagnar embateu contra a parte superior da lâmina de Ancalach, que não conseguiu oferecer resistência suficiente para travar o ímpeto do golpe, e este atingiu Aewyre na cabeça. O gume decepou uma das asas que se abriam para os lados do elmo, e foi apenas por mero acaso que encalhou na base reforçada da cabeça da águia ao fender metal e couro, embatendo ape­nas contra o couro cabeludo de Aewyre em vez de lhe rachar o crânio.

O golpe ainda assim apagou por instantes as luzes do mundo do guerreiro, que golpeou cegamente com Ancalach numa frenética tentativa de se afastar. A Espada dos Reis deslizou pela Língua Negra, passando paralelamente aos copos ornados desta, e cortou as costelas de Seltor ao vulnerar-lhe a couraça. O Flagelo tornou a gritar de dor como se lhe tivesse enfiado um ferro em brasa no umbigo, e recuou o passo de que Aewyre necessitava para recuperar. O golpe na cabeça abalara-o consideravelmente, contudo, e foi incapaz de aproveitar o refolgo, pois a sua perna fraquejou ao primeiro passo e o guerreiro tropeçou, caindo de joelhos. O elmo parecia-lhe agora mais apertado e sufocante do que antes, e o cabelo suado colava-se-lhe a sangue ao revestimento interior de couro. Sentindo-se asfixiado, o guerreiro rompeu a correia do queixo com uma das garras aquilinas da manopla para o remover, e as bordas de metal retorcido arrancaram-lhe cabelos com o gesto. Seltor apenas não o atacou enquanto estava de joelhos, porque uma das armaduras chegou primeiro a ele, tentando flanqueá-lo com a sua congênere. Incomodado, o Anátema recebeu a espadeirada da primeira, revirando o punho e aparando o golpe com o lado de Dalshagnar, um gesto após o qual se virou para a armadura que o tentava atacar por trás e praticamente a cortou ao meio. O golpe emi­tiu um ruído agudo de metal a ser retorcido repentinamente, e o arnês dourado caiu inanimado ao chão, partido em dois.

Aewyre saltou então da sua posição ajoelhada, lançando-se nova­mente sobre Seltor antes que este fizesse o mesmo à outra armadura, e humano e espectro digladiaram-se uma vez mais com o Segundo Pecado. Os braços do guerreiro ardiam-lhe, tal como os olhos de pes­tanas coladas de suor, e a língua quase se lhe pegava ao céu-da-boca seca, mas Seltor não parecia minimamente cansado. Antes pelo con­trário, mesmo com dois adversários a atacarem-no ao mesmo tempo, era O Flagelo o mais perigoso dos três, e apenas o respeito que tinha por Ancalach o mantinha à defesa. Aewyre tinha o corpo inteiro em total sintonia com os movimentos de Seltor, movendo-se em função deste e das resultantes oscilações de Dalshagnar, mas sabia que não agüentaria muito mais um combate no qual cada contragolpe do adversário era quase morte certa. Deixara já um rasto de sangue pro­veniente do ferimento no seu ventre, e sentia os seus membros enfra­quecerem gradualmente, dando-lhe a iminente certeza de que, findo o ímpeto desta sua última investida, o mais certo seria não conseguir resistir à resposta de Seltor.

Essa certeza impeliu-o a uma aflita ofensiva, apostando tudo num golpe derradeiro. Aewyre declarou as suas intenções com um grito, levando Ancalach atrás e sobre a cabeça naquele que se adivinhava como um alto-abaixo desgovernado. A finta foi óbvia, e Seltor evitou com um passo a cutilada lateral na qual esta se converteu, guardando antes Dalshagnar para aparar o golpe de espada da armadura. Aewyre deu seguimento ao golpe, cruzando a perna traseira atrás da dianteira de forma a manter-se de frente para Seltor, e o que fez então foi soltar a mão direita da espada, recuando um outro passo de braços convidativamente abertos e empunhando Ancalach com a mão esquerda, que continuava a carregar o ímpeto desta. A meio do pouco ortodoxo movimento do adversário, O Flagelo desfez a armadura que o atacava, estendendo o braço para trás e fazendo sombras irromperem dos espaços vazios entre as peças do arnês. Sem se deter por um instante sequer, deslizou então o pé dianteiro para a frente e preparou-se para a oscilação de Ancalach que certamente se seguiria. O jovem fez tal como previsto, falhando em surpreender o oponente ao usar a mão mais fraca, mas não fora essa a sua intenção. Inclinando o torso para o lado e para a frente, executou então um movimento de rotação com o ombro esquerdo, des­crevendo um largo arco com Ancalach por cima da cabeça ao levar o pé atrás e flexionar a perna. Seltor previra o movimento e lançara-se a ele com a distância instintivamente calculada, tencionando deixar o Flagício passar a rasar por ele e trespassar o coração do jovem pela clavícula antes que o golpe tivesse sequer terminado.

Só não contara com Aewyre deixar o punho de Ancalach deslizar-lhe pela mão até ao pomo, aumentando o alcance da lâmina e con­ferindo mais força ao golpe com o repelo. Os seus olhos negros esbugalharam-se ao ver o gume da Espada dos Reis vir inespe­radamente escachar-lhe o crânio, e a cabeça d’O Flagelo recuou com um grunhido quando este deixou cambar a perna traseira, inclinando o torso para trás com um golpe de rins. O corte rasou-lhe a cara com a ponta a luzir ao nariz de Seltor, segando-lhe os cabelos que foram arrojados para a frente e fazendo-os esvoaçarem com o chofre. O Fla­gelo erguera Dalshagnar numa vã tentativa de se proteger, mas conseguiu ainda assim interceptar Ancalach no ápice do seu movi­mento, e as duas espadas bateram com força uma na outra. A Língua Negra estava a ser firmemente empunhada, mas a Espada dos Reis era apenas segurada pelo pomo pelos dedos de Aewyre, e o estrídulo im­pacto fez os ossos e dentes do jovem vibrarem ao arrancar-lhe a arma da mão. Ancalach rodopiou pelo ar, espelhando os reflexos multicolores do vórtice na lâmina antes de embater de punho contra a parede esburacada e cair com um derrotado tinir no chão.

Seltor grunhiu de triunfo e virou a mão de dedos curvados para Aewyre, alçando o jovem com quatro gadanhos de sombra que o envolveram, apertando-o pelos ombros e cintura como tornos. O guer­reiro cochinou sufocado, sentindo os ossos rangerem com a força das garras constritoras, e Seltor deixou-o a flutuar um pouco no ar en­quanto ofegava de leve, ainda a sangrar do corte na coxa direita e nas costelas esquerdas.

— És bom, rapaz... — elogiou O Flagelo. — Muito bom. E acre­dita, eu lutei contra os melhores.

Aewyre não pôde responder, pois só respirar exigia-lhe todas as forças de que dispunha. Seltor estava entre ele e Ancalach, e tudo o que guerreiro pôde fazer foi cerrar olhos e dentes e tentar libertar-se das tetras garras que o envolviam.

— É uma pena, mas tal como os sirulianos e o teu pai, já percebi que não descansarás enquanto não me varares de um lado ao outro com a Ancalach... e esse é um risco que eu não posso correr, por muito pequeno que seja.

A meio da conversa, nenhum dos dois reparou no vulto que entrou na cela, caminhando pela destruição como se de nada se tratasse. O barulho do vórtice abafava completamente os seus passos e o oca­sional estalido do cajado que empunhava, e este encaminhou-se calma­mente até Ancalach.

— É que sabes, rapaz, Allaryia corre um perigo bem maior que aquele que eu alguma vez representei — continuou Seltor, como se sentisse a necessidade de se justificar antes de trespassar Aewyre com Dalshagnar. — E a verdade é que eu sou o único que ainda pode evitar a aniquilação total.

Kror observava a cena do buraco na sua cela, do qual conseguia ver o punho de Ancalach caída no chão, e parte de si quis impedir que Aewyre morresse, pois tal significaria que a Essência da Lâmina nunca seria sua. O «tendão» rangia violentamente, esticado até ao limite pelo desesperado apelo de Aewyre, que puxou como nunca antes puxara com o abandono de um homem entre a vida e a morte.

— Ajuda-o, Kror! — rogou-lhe a voz de Sassiras’s. — Se ele morrer, ninguém mais se poderá opor a’O Flagelo!

— Ele que se dane — rosnou Kerhex. — Traiu-te e deixou-te a apodrecer aqui. Não precisas dele.

O drahreg ignorou-os aos dois, mas deu razão a Kerhex. Não mais queria saber da maldita Essência da Lâmina, por muito que os seus instintos guerreiros clamassem por ela. Sobrevivera anos a fio sem ela, com o mundo inteiro a desejar a sua cabeça, e assim continuaria se necessário fosse. Kror ferrou os dentes de afiados caninos, vedando por completo o acesso ao «tendão». O humano traidor que morresse, e com ele a maldita quimera que já tanto sofrimento lhe causara.

Concentrado como estava no tenso e arqueado corpo de Aewyre, o drahreg ainda assim viu pelo canto do olho uma mão humana a fechar-se no punho de Ancalach, que de seguida desapareceu da sua vista. Os orbes vermelhos de Kror dardejaram nessa direção, e este chegou-se um pouco à frente para ver além da orla do buraco na parede, mas a cela estava vazia além de Aewyre e d’O Flagelo.

— Se te servir de algum consolo, de futuro serás certamente con­siderado como um herói cujas ações levaram à minha libertação — disse Seltor com sinceridade da qual Aewyre não se deu conta, sol­tando um ruidoso grunhido e sacudindo a cabeça para os lados num esforço vão.

O barulho fez com que Kror olhasse novamente para ele, e dessa forma não viu o vulto de toga escarlate que surgiu das sombras da sua cela. Sobressaltou-se então quando Ancalach caiu aos seus joelhos com um áspero tinir, e encostou-se à parede de alfanges empunhados para se defender.

— Eles fizeram-te trair a tua verdadeira natureza — disse o vulto vermelho, parcialmente iluminado pelos reflexos do vórtice mas ainda com as feições ensombradas.

Kror arquejou com o frio que sentiu na espinha, enregelado pelas memórias dos dias e noites passados nas álgidas Estepes de Karatai, na qual as vontades de Kerhex e Sassiras’s se opuseram à sua negra essência de fruto do Primeiro Pecado. Tinham-no mudado, forçado a renegar o seu verdadeiro âmago, tentado encaixá-lo à força num molde que não fora feito à sua forma. Toda a culpa subjacente que então sen­tira por estar a trair aquilo que fazia dele o que era ressurgiu como o jorro de uma lesão ignorada até rebentar, inchada de sangue e pus, e Kror largou os dois alfanges, incapaz de suportar o seu toque.

— Bom, fica sabendo que não tiro qualquer prazer disto, Aewyre Thoryn — disse Seltor com um tom mais sério, alheio ao que decorria na cela ao lado. — Assim como não tirei da morte do teu pai, ou da daqueles que o meu pai matou.

— O Poço de Songul — disse o vulto, avançando para a luz e revelando uma face barbada e vendada com um trapo vermelho.

Kror não reconheceu Aereth, mas lembrava-se perfeitamente do combate no qual tinham morrido tantos dos seus irmãos ocarr, os únicos que alguma vez o tinham acolhido num mundo hostil. Morrido em vão por sua culpa, que se deixara enganar por uma harahan que de bom grado os teria matado a todos. Ele, o pária sem lar, o traidor da sua raça, o fraco que se deixara arrastar por meia Allaryia em busca de uma ilusão que julgara poder torná-lo suficientemente forte para fazer pagar o mundo que tanto o odiava...

Aereth observou impassível enquanto as costas do drahreg se cur­vavam sob o peso da sua culpa, e os dedos deste procuraram uma arma, recolhendo-se como se queimados ao tocarem nos seus alfanges. Acabaram por se crispar nos copos de Ancalach, o que fez os seus dedos fumegarem quando Kror ergueu o punho da arma, assentando a ponta na sua barriga.

— Adeus, Aewyre Thoryn — despediu-se Seltor, levando Dals­hagnar atrás.

Kror enterrou então Ancalach na barriga, e a lâmina cauterizou-lhe as entranhas numa agonia tal, que o drahreg mal chegou a gritar antes de os seus sentidos entrarem em combustão, contraindo-lhe cada músculo do corpo e fazendo-o cair de ombro ao chão. Uma força invisível desprendeu-se então dele, singrando pela cela como o ríspido silvar de uma lâmina a sair da bainha, catapultando os membros de Aewyre para os lados como se as garras de sombra tivessem acabado de lhe partir a coluna. Seltor franziu a testa por um momento, e nesse instante de hesitação os olhos do jovem fixaram-se no punho de Ancalach, em cuja superfície dourada as luzes do vórtice se refletiam na cela oposta. O seu braço estendeu-se então para a frente com uma rigidez acerada, e a Espada dos Reis deslizou para fora do ventre de Kror, desprendendo-se dos lassos dedos negros e voando pela cela na direção da mão do seu manejador, refletindo luzes multicolores na lâmina manchada de sangue. Ainda com Dalshagnar pronta a tres­passar o jovem, Seltor virou a cabeça para olhar para trás, mas ainda a meio do movimento o punho de Ancalach passou-lhe pelo lado da face, com o gume rasante à altura do olho. Antes que O Flagelo con­seguisse reagir, a espada inclinou-se para fora de forma a assentar na mão de Aewyre, e ao fazê-lo, o outro lado do gume deslizou com um silvo molhado pela jugular de Seltor.

Assim que os dedos do guerreiro se fecharam no punho da espada, sangue negro como betume jorrou do pescoço do Anátema, que largou Dalshagnar e levou ambas as mãos à garganta, entre cujos dedos o sangue continuou a esguichar. Os gadanhos negros que sustinham Aewyre desfizeram-se, e o jovem caiu ajoelhado ao chão, apoiando-se com a mão esquerda. A sua recuperação foi contudo quase imediata, e o jovem levantou a cabeça, impulsionou-se com as pernas para cima e enterrou Ancalach até aos copos no ventre de Seltor, de cujas costas a lâmina brotou, negra e cruenta. Este curvou-se para a frente, apoiando a cabeça sobre o ombro esquerdo de Aewyre e agarrando-lhe o outro com uma mão enquanto emitia um chiado gorgolejante com sangue a sair-lhe dos cantos da boca. O arroubo de força de Aewyre foi também temporário, pois a Essência da Lâmina não o podia ajudar com as suas feridas, e o guerreiro começava a ficar tonto e fraco com a sua própria perda de sangue. Mesmo assim, teve a presença de espírito para assentar a mão sobre a couraça de Seltor e empurrar en­quanto puxava Ancalach com as forças que lhe restavam.

O Flagelo grunhiu guturalmente com a ardente dor, fechando os olhos quando o Flagício lhe foi arrancado da barriga com agoniante lentidão, caindo de joelhos enquanto se mantinha desesperadamente agarrado à espaldeira do jovem com a mão livre. A sua pele alabastrina adquirira um palor mortiço, úmido e frio, e o branco dos seus olhos revelava-se novamente à medida que as pupilas pareciam ir-se retraindo, como se esvaziadas do sangue negro que lhe escorria do pescoço às golfadas. Seltor tornou a cerrá-los quando Ancalach foi por fim desembainhada da sua barriga, e Aewyre atirou a espada para trás de si.

— Desta vez não te alojas nela, maldito... — disse por entre den­tes, tentando libertar-se d’O Flagelo, cuja mão direita lhe agarrava teimosamente a espaldeira.

Seltor não respondeu, largando apenas o seu pescoço, do qual o sangue já nem saía às golfadas, e agarrando-se com força à manopla de Aewyre, que tentava a custo afastar-se.

— Idiota... — gorgolejou, escorrendo sangue betuminoso do queixo. — Não sabes... o que está em jogo...

Aewyre nem queria saber, e as placas do seu arnês roçaram umas nas outras enquanto este se sacudia aflitamente para se soltar do abraço de morte do adversário, que mesmo ajoelhado e mortalmente ferido era uma presença avassaladora.

— Criança imbecil...! — sangrou Seltor da boca, e uma penumbra líquida começou a escorrer-lhe dos olhos, aflorando por cima destes como chamas negras e opacas. — Não vou permitir... que deites tudo a perder...!

Sem qualquer aviso, a sombra expandiu-se para os lados como as penas de uma negra ave ufana, flutuando em arco sobre os olhos de Seltor como duas sobrancelhas de pura penumbra. Os de Aewyre arregalaram-se, mas antes que este conseguisse sequer reconhe­cer o perigo, a sombra jorrou sem aviso dos orbes d’O Flagelo, cegando o jovem. Mãos de aço retiveram-no e o jovem sacudiu a cara para os lados, mas os dois tentáculos de sombra ondulante pareciam colados aos seus olhos, chiando e sibilando com vida própria. Ambos gritaram, unidos pelos elos de sombra líquida, e Aewyre tremia em convulsões às mãos d’O Flagelo, cuja boca estava presa num ricto de raiva de lábios franzidos, expondo os dentes tintos de negro.

Dois punhais rodopiaram pelo ar, um deles embebendo-se na têmpora de Seltor e o outro debaixo da maxila. O fluxo de sombras foi cortado, dissolvendo-se no ar, e o Anátema soltou Aewyre, que caiu esfacelado ao chão com grande estrépito do arnês. Por sua vez, o corpo de Seltor recuou com o recuo da ruptura, virando-se na direção do ataque, e conseguiu apenas ver um vulto vermelho e uma cabeleira loura antes de uma lâmina lhe trespassar o costado, curvando-o de encontro a um martelo que lhe esmagou a cabeça e lhe arrojou a cara contra o chão, desfazendo-a entre aço e pedra.

— Aewyre! — gritou Lhiannah em aflição, largando a espada cravada em Seltor e deixando-se cair de joelhos ao lado do corpo prostrado e imóvel do jovem.

Worick arrancou o martelo empapado de sangue, olhando incré­dulo para o vulto caído aos seus pés, que se começava a dissolver em fumarenta sombra da qual o thuragar recuou. Taislin veio a correr ter com os seus amigos, mas deteve-se ao ver o corpo de Seltor dissolver-se, temendo que este os fosse envolver a todos nas trevas que eram o seu domínio, mas o untuoso fumo desagregou-se inofensivamente no ar. A ameaça que todos temeram desaparecera, mas o medo não tardou a dar lugar ao desespero, e Lhiannah era o seu mais angustiado arauto, ignorando mesmo o vórtice que continuava a girar na cela.

— Não, não, oh, não... — afligiu-se a princesa, segurando a cabeça frouxa de Aewyre e molhando a mão nos cabelos empapados de sangue deste. Lágrimas brotaram-lhe dos olhos, e a voz mal lhe conseguia sair da garganta apertada. — Por favor, não, não pode...

— Tu! — berrou Worick, sobressaltando a arinnir, que abraçou a cabeça do guerreiro contra o seu peito num fútil gesto protetor ao olhar para onde Worick apontava com o martelo.

Aereth observava-os de um buraco na parede da cela, mirando a cena de olhos vendados e com uma expressão difícil de ler, pois a barba tapava-lhe a boca. Havia agora sem dúvida algo de diferente na postura do regente caído, mas naquele momento os companheiros estavam menos preocupados com aquilo em que se tornara, que com o que acabara de acontecer na cela.

— Eu... falhei... — confessou Aereth.

— Falhou o quê? O que é que aconteceu ao Aewyre? E onde está o Allumno? — exigiu Taislin saber, quase tão aflito quanto Lhiannah, que aninhava a cabeça do guerreiro no seu colo, apertando-lha com força como se estivesse a tentar prender a vida que parecia tê-lo abandonado. Lágrimas escorriam-lhe livremente pela face, e a princesa olhou com ar de súplica para o regente, como se este pudesse fazer algo.

— Fiz o que pude — continuou Aereth, como se tivesse ouvido a pergunta não verbalizada de Lhiannah e não a de Taislin. — Agora devo partir, antes que a culpa que impregna esta cidade me obrigue a fazer com que os meus anteriores súditos paguem... e a vocês, os companheiros do meu irmão.

Com isto, Aereth recolheu-se no buraco da cela, mas não sem lan­çar um último olhar ao corpo inerte de Aewyre, em volta de cuja cintura se começava a espalhar uma poça do sangue do seu ferimento ventral.

— Adeus, Aewyre — despediu-se Aereth, desaparecendo então da vista dos companheiros.

Worick ainda teve vontade de o perseguir, só para ter como exteriorizar a genuína angústia que sentia naquele momento, esmagando um bode expiatório à martelada, mas os soluços de Lhiannah deram-lhe a desculpa necessária para ali permanecer. Taislin dirigia-se lentamente à princesa, que deu então largas a um pranto de quebrar o coração, impando e gemendo e enterrando a cara nos cabelos de Aewyre, que permanecia de olhos fechados e boca entreaberta, sacudido pelos soluços de Lhiannah.

— Porquê? — perguntava ela de voz abafada pela cabeça de Aewyre, como se a resposta importasse. — Porquê?

O lábio inferior de Taislin tremia também quando este se postou ao lado da arinnir, forçando-o a engolir em seco antes de pousar uma pequena mão no ombro de Lhiannah. Worick abanou a cabeça num gesto ponderoso, sentindo ele também um formigueiro nas narinas, que o fez fungar e o obrigou a esfregar o repolhudo nariz com as costas da manopla.

— Ele... — hesitou ao sentir um quebrantar da voz. — Ele con­seguiu...

Lhiannah e Taislin não deram qualquer significância ao fato. Antes pelo contrário, a princesa derramou o seu pranto com renovado alento, apertando a cabeça de Aewyre com uma força tal, que pro­vavelmente o sufocaria. Ver a arinnir assim foi demais para Taislin, que cerrou os olhos com uma careta, e teve a cabeça sacudida por mal contidos soluços.

— Pedras partam esta merda toda, ele conseguiu... — tentou Worick consolar-se, mordendo o lábio inferior e eriçando o tufo de barba branca debaixo deste. — Matou O Flagelo... salvou-nos a todos.

As suas palavras passaram despercebidas. Lhiannah continuou o seu lamento, e Taislin ajoelhou-se ao lado dela, pegando na mão esquerda de Aewyre, segurando-a com as suas e levando-as à cara... que ergueu de repelão, arquejando de susto.

— Lhiannah...! — sussurrou agudamente, conseguindo arrancá-la do seu pranto com a urgência na sua voz.

A princesa levantou a cara úmida de lágrimas com uma inter­rogadora fungadela, mas ao ver os dedos de Aewyre mexerem-se espasmodicamente nas mãos de Taislin, também ela arquejou fundo e de olhos arregalados. A esperança que não se atreveu a alimentar foi atiçada pelo fraco gemido proveniente da cabeça que segurava, e Lhiannah soltou outro incrédulo arquejo do fundo dos pulmões ao ver que a testa de Aewyre se franzia.

— Oh... Aewyre? Aewyre? — ousou Lhiannah acreditar, afrou­xando o seu aperto e segurando a cabeça do guerreiro com todo o cuidado ao ver que as pestanas deste tremiam. — Aewyre, estás a...?

O que saiu a seguir da boca da princesa foi um grito do mais abjeto terror, e esta caiu de posterior ao ver o negrume líquido nos olhos de Aewyre a fitá-la. Lhiannah arrastou-se para longe com mãos e pés, e Taislin pulou para trás como um gato espantado, assustado mas demasiado atordoado para pensar em desembainhar um dos seus punhais. Worick não percebeu o que se estava a passar, mas o grito de Lhiannah deixou-o reflexivamente retesado, e quando o torso de Aewyre se ergueu e o pernicioso olhar tetro recaiu sobre ele, o thuragar ficou como que paralisado. A cara que o olhava era a de Aewyre, com um dos lados manchado com sangue que lhe empapara o cabelo e a barba, mas os olhos nos quais nadavam sombras não eram os do jovem.

Aewyre não deu qualquer atenção aos seus amigos, levantando apenas a mão que Taislin deixara cair e passando-a pela sua couraça esfarrapada, afagando o corte nos segmentos ventrais. Observado por três aterrorizados pares de olhos, o jovem começou então a erguer-se num esforçado coro de rangidos e roçagares metálicos em pedra, deixando rastos de sangue no piso ao perturbar a poça do seu próprio sangue. Imperturbável, Aewyre levantou-se e contemplou a devastação em seu redor, olhando apenas de relance para os seus companheiros, que se encolheram ante o seu olhar, de aterrados pés presos ao chão. O jovem fixou apenas o vórtice, no qual se deteve por momentos, durante os quais os companheiros foram incapazes de agir, falar, ou mesmo pensar. De alguma forma, todos sabiam o que acabara de acontecer, mas não o conseguiam conceber. Simplesmente não o conseguiam, era algo que os excedia aos três a níveis de cuja existência mal estavam cientes.

Placas de aço revestidas de tecido roçaram umas nas outras quan­do o jovem se virou abruptamente para trás, e gesto fez com que os seus companheiros arfassem em seco, mas foi em Ancalach que os seus orbes negros incidiram. Aewyre dirigiu-se a passos largos à espada caída, diante da qual se deteve e curvou, estendendo a mão como para a agarrar, mas hesitou a meio caminho do punho. Deixou-se ficar na vacilante posição, observado pela absolutamente silenciosa audiên­cia, até que tocou na espada com a ponta dos dedos da manopla, reti­rando-os ao mínimo contato como se a tentear uma superfície quente. Nada lhe aconteceu, e Aewyre tornou a experimentar, desta vez prolongando o toque, até que à terceira agarrou vagarosamente o punho, mexendo a espada de leve e arrastando a lâmina pelo chão. Entreabrindo a boca, o guerreiro endireitou-se e empunhou Ancalach ao alto, olhando enfeitiçado para o jogo de luzes do vórtice na lâmina, e brandiu a lâmina com um enviesado sorriso. O sorriso tornou-se num riso por entre dentes, que cresceu para uma sentida risada até cul­minar numa gargalhada que fez os companheiros tremerem com cala­frios.

— Confesso que desta não estava à espera — a voz era a de Aewyre, mas, a ver dos companheiros, esta adquirira contornos sinis­tros, soando também mais grave. — Tiveram o desplante de me arrastarem aqui para me tentarem matar, e agora vejam bem o que aconteceu.

Aewyre abriu os braços, chamando atenção ao cenário de destruição que os rodeava.

— O vosso mago matou-se para tentar levar-me com ele e, na ânsia de me destruir, é bem capaz de ter causado algo que poderá mudar Allaryia para sempre — disse, indicando o vórtice com a ponta da espada, que endireitou de seguida e para a qual ficou a olhar com ar quase embevecido. — E o vosso jovem companheiro deu-me este corpo e com ele... o Flagício.

A enormidade daquilo que estavam a observar fez com que Lhiannah, Worick e Taislin permanecessem em imóvel silêncio, presos entre o alívio por verem Aewyre a respirar, e o horror de ouvirem as palavras d’O Flagelo a saírem da boca dele. «Aewyre» olhou-os então pela primeira vez com interesse, ainda a sorrir.

— Nada temam, não vos quero mal — assegurou, caminhando uns passos para o centro da cela. — Nem a vocês, nem aos vossos com­panheiros que me tentaram matar. Eles é que me arrastaram para aqui. Eles é que causaram isto.

Os três recuaram ante o seu avanço, aparentemente não conven­cidos, e «Aewyre» sorriu um sorriso mais aberto, que fez tudo menos aquietá-los.

— Vocês não são ameaça para mim. Nem o jovem Aewyre Thoryn aqui o era, sem a Ancalach. Tivesse-me ele entregado a espada numa das várias vezes que lho sugeri, com a promessa de me ir embora e de o deixar e a vocês em paz... enfim — suspirou. — Fiz o que pude para que mais ninguém tivesse de morrer, mas agora tenho assuntos mais importantes a tratar em Tanarch.

Da parte dos companheiros não houve resposta, nem poderia ter havido ainda que estes o quisessem. Os três recusavam-se a aceitar que tudo aquilo era algo mais que um horrível pesadelo, e quanto menos se manifestassem nele, melhor.

— Recomendo-vos que abandonem Ul-Thoryn. É bem capaz de se vir a tornar um lugar pouco seguro em breve — advertiu «Aewyre» sem qualquer jactância na voz. — Assim como toda Allaryia, mas esse será infelizmente um mal necessário. Se sobreviverem, estou certo de que um dia ainda me agradecerão. Adeus.

Sem mais nada dizer, «Aewyre» baixou os braços, e de entre as frestas do seu arnês começou a sair um fumo oleoso, que rapidamente lhe engolfou o corpo e no qual o jovem aparentemente se dissipou, deixando para trás uma armadura vazia. As peças do arnês caíram umas sobre as outras, clangorando no chão e ficando com algumas partes a oscilarem sobre os seus lados convexos. Os companheiros nem mesmo então conseguiram reagir, em choque e incapazes de mais que olharem estarrecidos para a armadura desmanchada, sobre cuja couraça jazia caída a águia dourada de Ul-Thoryn, raspada e manchada de san­gue preto e vermelho.

 

Kror jazia dobrado sobre si próprio numa poça de sangue vermelho-escuro, com o ombro assente no chão e ambas as pernas flexionadas e viradas para o lado. O voo de Ancalach deixara-lhe os braços agrilhoados estendidos, cruzados sobre os alfanges que largara, e as correntes estavam enrodilhadas em cima das duas lâminas. Não se ouvia nada além do constante marulhar do vórtice na cela ao lado, cujas luzes iluminavam a espaços o interior do cubículo através do buraco, mas o fulgor que se via nas gemas de ambos os alfanges provinha de um brilho próprio. O punho argênteo e enfaixado a azul de um cintilava com o brilho das safiras que lhe cravejavam o pomo, a base e as pontas dos copos em elegante contracurva; o outro respondia com um fulgor escarlate dos rubis facetados em pontas no seu pomo negro enfaixado a vermelho e nos copos escabrosos. Mesmo as gravuras cinzeladas ao longo das lâmi­nas contavam histórias diferentes e contrastantes, com as elegantes linhas sinuosas do alfange das safiras em plena oposição aos agressivos traços do dos rubis, cujo próprio coto tinha chanfraduras afiadas. Havia algo na forma com que as gemas de ambas se acendiam e esmoreciam com a sua própria luz, lucilando de forma intermitente e dando a im­pressão de que conduziam um diálogo à sua maneira no silêncio da cela.

— Não pode acabar assim — declarou Kerhex.

— Não, não pode — concordou Sassiras’s, uma ocorrência suficien­temente rara para que nenhum dos dois adiantasse algo mais durante momentos.

— Qual de nós o fará, então? — perguntou o azigoth.

— Sempre pensei que quisesses fazer parte do Kror, para assim o con­trolar es...

— Esperta... — gracejou Kerhex. — Se fosse eu a imbuí-lo, quem o controlaria serias tu.

— A natureza dele está mais em concordância com a tua. Duvido de que o conseguisse controlar como dizes.

— Então e essa nobreza? Estarias disposta a sacrificá-lo só para me impedir de exercer a minha influência sobre ele?

— Não — reconheceu a divaroth. — Receio aquilo que possas levá-lo a fazer, sim, mas Seltor tem de ser detido. E se ele agora reside no corpo de Aewyre Thoryn, então Kror desejará vingança.

— Quanto calculismo... não te julgava capaz de tal.

— Nem eu te julgava capaz de abdicares do teu livre-arbítrio para dares uma segunda oportunidade a alguém.

— Bah! Esta existência enfada-me — rosnou Kerhex com desdém. — As Entidades queriam provar alguma coisa com isto, mas apenas conseguiram que nos tolerássemos. Prefiro ser o fogo que arderá no sangue do Kror, sentir outra vez a vibração de ossos a racharem diante de aço...

— Conseguiram mais do que isso — lembrou Sassiras’s. — Consegui­ram que eu não mais seja capaz de contemplar a minha vida sem ti, e que prefira ser a batida vital daquele que guiamos, o sangue que tu irás inflamar com essa tua fúria...

— És uma fraca — rosnou Kerhex, incomodado com as implica­ções das palavras da divaroth. — Caso alguma vez nos defrontássemos, os teus sentimentos levar-te-iam à derrota, e seria eu o vencedor.

Sassiras’s suspirou, um suspiro cansado e não de todo desprovido de algum desapontamento, embora nunca tivesse esperado mais do seu ancestral inimigo.

— Mas... fica sabendo...

— Sim...?

— Fica sabendo que, quando te matasse, eu me lançaria contra as lanças e espadas dos teus. Para morrer em glória...

Novo silêncio, no qual nada mais foi dito por ambos, pois mais palavras seriam simplesmente desnecessárias. As gemas dos dois alfan­ges luziram então em concordância, e a cela foi toda ela alumiada pelo fulgor rubro e cerúleo destas. Mesmo a escura poça de sangue debaixo de Kror espelhou o intenso brilho, que banhou intensamente a sua face escura.

— Amo-te, Kerhex — confessou Sassiras’s.

— Sinto algo mais do que ódio por ti, Sassiras’s — admitiu o azigoth. As safiras e rubis tremularam então, apagando-se de seguida como velas sopradas, e a escuridão tornou a descer sobre a cela, cortada ape­nas pelo variegado facho do vórtice que atravessava o buraco e cujo marulhar vagava pelas paredes. Nenhum som além deste, nenhum movimento além das luzes, e os alfanges permaneceram apagados debaixo das mãos de Kror, as suas gemas agora como que baças, extin­guidas, sem vida. Uma quietude sepulcral instalou-se ao redor, e as mãos do drahreg repousavam sobre as lâminas que em vida o tinham acompanhado, e que aparentemente com ele tinham partido para o escoltarem uma última vez na sua morte.

E então os dedos negros cerraram-se com um gesto convulso no punho enfaixado de vermelho.

 

                                                                        Filipe Faria

 

 
 

GLOSSÁRIO

 

Os Companheiros e Seus Aliados

Aewyre Thoryn (ÊI-uáire-THÓ-rine) Filho de Aezrel Thoryn e Adelayne, irmão de Aereth Thoryn. Empunha Ancalach.

Allumno (ál-LUM-nu) Pupilo do arquimago Zoryan, cuja alma trans­porta na gema vermelha incrustada na sua testa.

Deadan Belyth (DEI-a-dán BÉ-líth) Jovem Ajuramentado.

Kror (QRÓ-re) Drahreg que partilha a Essência da Lâmina com Aewyre.

Làriana (LLÁU-ri-á-ná) Filha de Layaline.

Layaline (llá-iá-LÍ-ne) Jovem prostituta de uma estalagem do recinto inferior da Cidadela da Lâmina.

Lhiannah (li-ÃN-na) Filha do regente de Vaul-Syrith e Lhiannon, uma arinnir.

Quenestil (QUÉ-néss-tile) Eahan das montanhas, shura.

Slayra (SLEI-ra) Assassina eahanoir.

Taislin (TEI-sline) Burrik aventureiro.

Worick (uo-RIQ) Thuragar mentor de Lhiannah.

Zoryan (zó-RI-ãne) Arquimago, companheiro de Aezrel Thoryn. Morto durante a Guerra da Hecatombe e presentemente com a alma alojada na gema que o seu pupilo Allumno porta à testa.

 

Os Fiordes dos Piratas

Aggor (ÁG-gore) Sobrinho de Skolsvein.

Engiv (ÉN-give) Escravo de Horavog.

Garding (GÁR-dhing) Título de proprietário de terras.

Hjlinar (CHLÍ-na-re) garding nominal de Horavog, filho de Oska e irmão de Yhtte.

Hjolld (CHÕULD) Sobrinho de Skolsvein.

Hordur (HOER-dhur) Habitante de Horavog.

Hyrm (HEERM) Sobrinho de Skolsvein.

Ihjseorn (ICHS-se-órne) Kahrkr e aparente zelador dos Fiordes dos Piratas.

Kahrkr (CÁH-rker) Nome pelos quais os poderosos guerreiros de elite da Wolhynia eram conhecidos.

Knorl (CNOERL) Poderoso garding de Knorlvog.

Kuvamora (CÚ-vá-mó-ra) Título das xamãs das tribos dos skrimmen.

Loevrik (LÓI-vrique) Kahrkr cujo animal é o lince.

Odhar (ÓDE-háre) Irmão de Oska, senhor de Odharloihj.

Ohttur (OHT-ture) Habitante de Horavog.

Oska (OEXA) Mãe de Hjlinar e Yhtte, senhora de Horavog.

Skolsvein (SCOU-svéin) Senhor de Dal-unn-Soid.

Yhtte (E-ih-te) Filha de Oska e irmã de Hjlinar.

 

As Cortes de Ul-Thoryn, Lennhau e Vaul-Syrith

Ábaco, O: Conselho de mercadores de Ul-Thoryn.

Aereth Thoryn (EI-reth-THÓ-rine) Irmão de Aewyre Thoryn, filho de Aezrel Thoryn e Adelayne. Reina em Ul-Thoryn como o primogênito de Aezrel. Casado com Iollina Nehin.

Cortun Allark (QÓR-túne ál-LÁRQUE) Paladino de lorde Tylon Nehin.

Daveanorn (DÁ-vé-à-nórne) Paladino de lorde Aereth Thoryn, mestre de armas de Allahn Anroth.

Dilet (DÍ-lét) Misterioso bobo de Allahn Anroth. Servo de Seltor.

Iollina Nehin (ió-LÍN-na NÉ-hine) Princesa de Lennhau, filha de Tylon Nehin e Lethia Nehin, prometida de Aereth Thoryn.

Jestiban Kilune (DJÉSS-tí-bãne QUÍ-lú-ne) Paladino de lorde Sunlar Syndar.

Lethia Nehin (LÉ-thia NÉ-hine) Esposa de lorde Tylon Nehin.

Smerunda (zmé-RÚN-da) Governanta do palácio de Allahn Anroth.

Sunlar Syndar (SÚNE-láre SÍN-dáre) Regente de Vaul-Syrith, pai de Lhiannah, casado com Alnara Syrith.

Thaddeo (THÁ-déo) Cirurgião de Allahn Anroth. Tomenno Eralmo Senescal de Ul-Thoryn.

Tylon Nehin (TÍ-lóne NÉ-hine) Regente de Lennhau. Casado com Lethia Nehin.

 

A família Lasan e Seu Séquito

Alisa Lasan (õ-LÍ-xa la-XAN) Filha mais nova do Patriarca.

Eluana Lasan (ã-LUUA-na la-XAN) Esposa do Patriarca.

Hanal Lasan (ha-NHÕL la-XAN) Patriarca da família Lasan.

Lusia Lasan (lu-XÍ-a la-XAN) Filha mais velha do Patriarca; a Primogênita.

Patriarca Título de líder de família eahlan.

Sana (XA-na) Serviçal dos Lasan.

Talin Lasan (tsa-LIIN la-XAN) Filho do Patriarca.

 

As forças d’O Flagelo

Aesh’alan (Aish-Alaan) Generais de Seltor, cinco homens corrompidos até ao âmago do seu ser pela Sombra, detentores de um terrível poder negro. Servem como emissários e como condutas para a influência de Seltor, seu senhor. Cinco no seu número, são eles dois Passos, dois Braços e um Juízo. Othragon, um Braço, e Nishekan, o Juízo, desapareceram no fim da guerra, ressurgindo após o regresso do seu senhor.

Alto Vulto Título do líder dos Filhos do Flagelo.

Braço Cargo de Aesh’alan, reservado aos mais poderosos guerreiros de Seltor que servem como seus generais no campo de batalha.

Culpa Humano de passado e propósito misteriosos, pai de Seltor.

Dalshagnar (dále-xágue-NÁRE) A Língua Negra, espada de Seltor.

Fadados Seita de Seltor constituída por homens e mulheres que ofe­receram as suas almas em troca da dádiva negra. O aspecto do Flagelo que veneram é a faceta da morte que o seu senhor adquiriu ao tomar o lugar de Ankhamon.

Flagelo, Filhos do Cabala dispersa e oculta de adoradores de Seltor. As suas fileiras são constituídas por indivíduos sem escrúpulos, ladrões, assas­sinos e afins párias da sociedade. Também usado como expressão geral para denominar toda a progênie da Sombra.

Flagelo, O Ver Seltor.

Juízo Cargo ocupado por um único Aesh’alan; para todos os efeitos o mordomo d’O Flagelo e o seu conselheiro.

Linsha Akselban (LÍNE-xa ÁCS-el-báne) Maga tanarchiana, antiga aprendiza do Alto Vulto, que presentemente ocupa esse cargo.

Nishekan (NÍ-xé-qáne) Aesh’alan, Juízo de Seltor.

Othragon (Ó-thrá-góne) Aesh’alan, Braço de Seltor.

Passo Cargo de Aesh’alan, reservado aos mestres de intriga de Seltor encarregues de funções insidiosas como assassinato ou espionagem.

Seltor (SÉL-tóre) Filho da união profana entre Luris e um mortal. O Se­gundo Pecado, o Usurpador de Deuses, o Flagelo de Allaryia, o Anátema, o Bastardo, o Mal Encarnado, a Sombra.

Tannath (tan-NÁ-th) Eahanoir assassino, antigo amante de Slayra.

Volgo Dokhan (VÔL-gô DÓ-qhán) Meirinho de Val-Oryth que se encontra debaixo da alçada de Linsha Akselban.

 

Novos Deuses e Entidades

Acquon (Á-quón) Deus da medicina.

Assana (as-SÁ-na) Deusa do amor, da paixão e do casamento.

Bellex (BÉL-lécs) Deus da lei e da justiça.

Gilgethan (GUIL-gé-thãne) Deus da guerra, da força de armas e dos feitos heróicos.

Gorfanna (gór-FAN-na) Deusa da agricultura, dos animais domésticos, da colheita, do lar e das terras domadas.

Guia Obscuro ser incumbido pelas Entidades de velar pelas almas dos defuntos, o seu dever é guiá-las até às suas Montanhas, deixando-as seguir o seu caminho sem interferir. Representa a morte em oposição à vida repre­sentada pela Mãe.

Joral (Jõ-RÁLE) Deus do dinheiro, dos negócios e do comércio.

Kispryn (kiss-PRINE) Deus da rebeldia, da irreverência, da brincadeira, das partidas, o Parlapatão dos Deuses. Criador dos burriks.

Mãe Obscuro ser incumbido pelas Entidades de velar pela Natureza em Allaryia, representando a vida em oposição à morte representada pelo Guia.

Nirille (ni-RÍL-le) Deusa da arte, da música e da dança.

Tharobar (THÁ-ró-báre) Deus da manufatura, dos ferreiros e do engenho.

 

Raças, Criaturas e Povos

Antroleo (ã-TRÓ-liu) Raça de origem indeterminada, possivelmente primordial. Têm uma aparência animalesca, que contribui para a sua justa reputação de ferocidade. A maioria dos clãs persiste nas regiões montanhosas de Latvonia, no Noroeste de Allaryia, nos Bosques Indomáveis do Norte e nas Colinas Anathol em Thyr.

Arinnir (ã-RINE-nir) Povo de mulheres exiladas que vivem em sociedades matriarcais, pregando a paz e isolando-se do mundo, que consideram corrupto e mau. Os únicos homens presentes nessas sociedades são escravos e reprodutores.

Azigoth (á-zí-GÓTH) Seres demoníacos criados à imagem de Luris.

Burrik (BUR-rique) Seres diminutos com olhos felinos não ver­dadeiramente nativos a Allaryia. Foram criados por Kispryn, que teve a sua mão cortada pelos seus pares como castigo pela audácia, vista como uma heresia e um atentado a toda a Criação, e foi graças a esta espécie que mais nenhum deus ousou criar vida. Criados à imagem do seu deus, são ir­reverentes, despreocupados e individualistas, merecendo a desconfiança de todos.

Divaroth (dí-vá-RÓ-th) Seres angelicais criados à imagem de Sirul.

Drahreg (DRÁ-reg) O Primeiro Pecado. Criaturas de pura maldade criadas a partir da essência dos thuragar.

Eahan (ÉÁ-hãne) Os Irmãos Belos dos humanos, criados à imagem de Sirul. São conhecidas quatro raças: eahan da montanha ou rúbidos, ruivos e de olhos cinzentos; eahan da floresta ou brunos, de cabelos castanhos e olhos verdes, eahlan e eahanoir. São belos e, com a notória exceção dos eahanoir, conhecidos pela sua bondade e compaixão.

Eahanoir (ÉÁH-nuar) Eahan corrompidos por Seltor. São das poucas coisas que podem levar um eahan a cometer atos contrários à sua natureza bondosa.

Eahlan (ÉAL-lane) Eahan antigamente protegidos por Sirul, tendo vivido debaixo do braço da benévola Entidade até esta se fragmentar. Migraram para Sirulia, onde vivem com os seus habitantes, ansiando pelo dia em que poderão tomar Asmodeon.

Haghral (HÁ-gue-rál) Filhos de harahan, fisicamente menos fortes mas capazes de insidiosos feitos como induzir raiva nas suas vítimas através da bile que regurgitam.

Harahan (ha-ra-HÁN) Seres femininos criados por Seltor e que o serviram como assassinas, espiãs e agentes de corrupção. Diz-se que os seus característicos lábios negros são efeito do beijo de Seltor.

Nekkr (NÉQR) Seres enfermos que venderam a alma a’O Flagelo, tornando-se parasitas que se devem alimentar da linfa de outros para curarem a sua doença e morrerem definitivamente.

Ocarr (Ó-cáre) Povo das Estepes de Karatai, uma gente de baixa esta­tura, pele tostada pelo sol e olhos ovais. São conhecidos pelas suas táticas de guerra únicas: unidades de arqueiros montados em hemíonos, burros sel­vagens das estepes.

Ogroblin (õ-GRÓ-bline) Criações de Seltor, humanóides de grande porte, parecidos com enormes drahregs. Vivem apenas para matar e comer, e as re­giões que habitam tendem a ficar extremamente pobres em fauna e flora.

Sirulianos Humanos que viveram sob a proteção de Sirul durante a Quarta Era. São um povo alto, forte e nobre, que habita Sirulia e cujos castelos servem de barreira às ameaças de Asmodeon.

Skrimmen (SCRÍM-man) Tribo bárbara do extremo Norte da Wolhynia e da Tundra de Frosth.

Thuragar (TÛ-rá-gáre) Seres criados por Luris a partir do pior que os humanos possuem. São baixos, atarracados e conhecidos pela mesquinhez e má disposição. Os seus olhos são pequenos por viverem debaixo de terra e os narizes e dedos sensíveis e apurados.

Ulkatr (UL-cathre) Subespécie de antroleos, de menor porte e mais adaptados ao frio das regiões setentrionais nas quais vivem.

Ulkekhlen (ÛL-qéq-lén) Diminutos duendes malignos dos subterrâneos.

 

Línguas e Idiomas

Eridiaith (e-RÍ-dí-eith) Língua abastardada da Palavra.

Fialass (fià-LÁS-se) Língua dos eahan rúbidos.

Garogar (GÁ-ró-gáre) Língua dos thuragar.

Glottik (GLÓ-tiq) Linguagem derivada dos antigos dialetos sirulianos. Presentemente, é a língua corrente em Allaryia, falada ou aceite em quase todas as regiões como o idioma universal.

Hjrutmalv (CHRUT-mál-ve) Língua da Wolhynia.

Leochlan (LÉ-óq-lãne) Língua de Tanarch.

Leriat (lé-ri-ÁTE) Dialeto falado nas regiões da fronteira entre Nolwyn e Laone.

Llorenc (DLÓ-rã-q) Língua do Laone.

Olgur (ÓLL-gúre) Idioma falado em Asmodeon.

Palavra, A Língua primordial, ensinada pelas Entidades aos humanos durante a Terceira Era. Através das palavras nela proferidas, é possível fazer uso da Essência para criar efeitos desejados. Este ato é conhecido como a Arte da Palavra e a sua ciência é conhecida como Magia. Leigos chamam-lhe «esconjurar feitiços» o «encantamentos».

Urial (u-ri-ÁLE) Língua da Latvonia.

Usgagg (uss-GÁ-gue) Língua da Namuriqua.

 

Miscelânea

Allaryia, Pilar de Obra das Entidades, um imenso pilar que atravessa Allaryia de um lado ao outro, fazendo com que gire em si e permitindo-lhe ser banhada pelo sol. Contém a essência das Entidades, da qual se alimentam os Novos Deuses, a fonte de energia que também é moldada pela Palavra.

Entropia A essência caótica primordial, à qual as Entidades se sobre­puseram durante a Criação. Para grande pesar dos magos, resquícios dela ainda perduram em Allaryia, o que freqüentemente interfere com o seu uso da Palavra.

Essência, A Resíduo de energia deixado pelas Entidades, que move o Pilar de Allaryia e alimenta os deuses.

Fricção Literalmente, a fricção causada pelo Pilar no espaço etéreo enquanto gira em si, um espaço amplo de energia descontrolada no qual os magos vagueiam pelo Pilar e canalizam livremente o poder da Essência.

Montanha Quando da morte de um indivíduo, a alma deste voa para um estranho e montanhoso reino espiritual. Lá deve escalar a montanha que representa aquilo que alcançou enquanto vivo, sendo a sua altura corres­pondente aos seus feitos, daí a expressão «subir a montanha» como eufe­mismo para a morte. No fim da escalada, na qual um indivíduo revê tudo em retrospectiva, são-lhe abertas as portas para o domínio do deus que venera ou, no caso dos magos, são absorvidos na Essência do Pilar de Allaryia.

Noite Ínfera Termo com o qual os thuragar designam o seu mundo subterrâneo.

Terceiro Pecado Expressão alusiva a um ato impensado de conseqüên­cias graves ou uma grande asneira. O primeiro e segundo foram a criação dos drahregs e a concepção de Seltor, respectivamente.

 

 

 

 

              Voltar à “SÉRIE"

 

 

 

                                         

O melhor da literatura para todos os gostos e idades