Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
O FANTASMA DA ÓPERA
Dentro da Ópera de Paris viveu um fantasma — pobre de quem duvidou disso. O fantasma da Ópera habitava o imenso subterrâneo do teatro mais famoso de Paris, e de lá só saía para acalentar suas duas paixões, a música e a jovem cantora Christine Daaé.
Prisioneiro de sua própria feiúra, o fantasma perambula pelo teatro, ora aterrorizando quem zombou de sua existência, ora fazendo da voz de Christine a mais cristalina que Paris já escutou. Ninguém o vê, mas cedo ou tarde todos sentem — e temem — sua presença.
Nos corredores, salas e alçapões escuros da Ópera a figura misteriosa do fantasma pouco a pouco vai se revelando; a imagem de espírito maldito vai se desfazendo, e o protagonista se humaniza. Narrado quase como uma reportagem, o livro nos deixa o tempo todo em dúvida, a ponto de não ser possível condenar o comportamento do fantasma atroz. Isso porque, como ele mesmo explicará, para ser bom só lhe faltou ser amado.
EM QUE O AUTOR DESTA OBRA SINGULAR CONTA AO LEITOR COMO FOI LEVADO A ADQUIRIR A CERTEZA DE QUE O FANTASMA DA ÓPERA REALMENTE EXISTIU
O fantasma da Ópera existiu. Não foi, como muito tempo se acreditou, uma inspiração de artistas, uma superstição de diretores, a criação aloucada de cérebros excitados de donzelas do corpo de baile, das mães delas, das “lanterninhas”, dos funcionários do vestiário e da portaria.
Ele existiu, sim, em carne e osso, ainda que assumisse a aparência de um verdadeiro fantasma, isto é, de uma sombra.
Chamara-me a atenção, desde o início, quando comecei a compulsar os arquivos da Academia Nacional de Música, pela coincidência surpreendente entre os fenômenos atribuídos ao fantasma e ao mais misterioso, ao mais fantástico dos dramas e logo eu deveria ser levado à idéia de que talvez se pudesse racionalmente explicar este por aquele. Os acontecimentos datam de apenas uns trinta anos atrás e não seria difícil encontrar ainda hoje, na própria academia de balé, anciãos muito respeitáveis, cuja palavra não se pode colocar em dúvida, que se lembram, como se o fato datasse de ontem, das condições misteriosas e trágicas que acompanharam o rapto de Christine Daaé, o desaparecimento do visconde de Chagny e a morte do seu irmão mais velho, o conde
Philippe, cujo corpo foi encontrado à beira do lago que se estende nos baixos da Ópera de Paris, do lado da rua Scribe. Mas nenhuma dessas testemunhas acreditara até esse dia que devesse associar a essa pavorosa aventura a personagem lendária do fantasma da Ópera.
A verdade foi lenta em penetrar o meu espírito perturbado por uma busca que se chocava a cada instante com acontecimentos que, à primeira vista, podiam julgar-se extraterrestres, e, mais de uma vez, estive prestes a abandonar uma tarefa era que me extenuava a perseguir — sem nunca agarrá-la — uma vã imagem. Finalmente, tive a prova de que os meus pressentimentos não me haviam enganado e fui recompensado de todos os meus esforços no dia em que adquiri a certeza de que o fantasma da Ópera tinha sido mais do que uma sombra.
Nesse dia, eu passara longas horas em companhia das “Memórias de um diretor”, obra ligeira do céptico Moncharmin, que nada entendeu, durante a sua passagem pela Ópera, da conduta tenebrosa do fantasma, e que pilheriou a respeito tanto quanto pôde, no momento mesmo em que ele era a primeira vítima da curiosa operação financeira que se dava no interior da “verba mágica”.
Desesperado, eu acabava de sair da biblioteca quando encontrei o simpático administrador de nossa Academia Nacional, que proseava num patamar com um velhinho esperto e frajola, a quem me apresentou alegremente. O administrador estava a par das minhas pesquisas e sabia com que impaciência eu tinha em vão tentado descobrir o paradeiro do juiz que instruíra o famoso processo Chagny, M. Faure. Não se sabia o que acontecera com ele, morto ou vivo; e eis que, recém-chegado do Canadá, onde passara quinze anos, a primeira coisa que fizera em Paris fora vir procurar um lugar de cortesia na secretaria da Ópera. Aquele velhinho era o próprio M. Faure.
Passamos uma boa parte da tarde juntos e ele contou-me o caso Chagny tal como o havia entendido na época. Tinha sido obrigado a concluir, por falta de provas, pela loucura do visconde e pela morte acidental do irmão mais velho, mas continuava persuadido de que um drama terrível se passara entre os dois irmãos a respeito de Christine Daaé. Não soube me dizer o que fora feito desde então de Christine, nem do visconde. Evidente, quando lhe falei do fantasma, ele apenas sorriu. Também ele tinha sido posto a par das singulares manifestações que pareciam então atestar a existência de um ser excepcional que elegera domicílio num dos recantos mais misteriosos da Ópera e tomara conhecimento da história da “verba”, mas não tinha visto em tudo isso nada que pudesse chamar a atenção do magistrado encarregado de instruir o processo Chagny, e mal ouviu por instantes o depoimento de uma testemunha que se apresentara espontaneamente para afirmar que tinha tido a oportunidade de encontrar o fantasma. Essa personagem — a testemunha — outra não era senão aquela a quem o Tout-Paris chamava “o Persa” e que era bem conhecido por todos os assinantes da Ópera. O juiz tomara-o por um iluminado.
Vocês não imaginam como fiquei prodigiosamente interessado por essa história do Persa. Quis encontrar, caso ainda fosse tempo, essa preciosa e original testemunha. Graças à minha boa fortuna que tomou a dianteira, consegui descobri-lo em seu pequeno apartamento da rua de Rivoli, que não havia abandonado desde aquela época e onde viria a morrer cinco meses depois da minha visita.
De início, fiquei desconfiado; mas depois que o Persa me contou, com uma candura de criança, tudo que sabia pessoalmente do fantasma e me entregou com toda propriedade as provas de sua existência e em particular a estranha correspondência de Christine Daaé, correspondência que aclarava com uma luz tão ofuscante o seu pavoroso destino, não mais me foi possível duvidar! Não! Não! O fantasma não era um mito!
Sei muito bem que me responderam que toda essa correspondência talvez não fosse autêntica e que podia ter sido fabricada por um homem cuja imaginação tivesse sido alimentada pelos contos mais sedutores, mas me foi possível, felizmente, descobrir a letra de Christine fora do famoso pacote de cartas e, por conseguinte, entregar-me a um estudo comparativo que eliminou qualquer dúvida.
Documentei-me igualmente a respeito do Persa e assim apreciei nele um homem de bem incapaz de inventar uma maquinação que pudesse perturbar as pistas da Justiça.
É aliás a opinião das mais eminentes personalidades que em maior ou menor grau estiveram ligadas ao caso Chagny, que foram amigas da família, às quais expus todos os documentos e diante das quais relatei todas as minhas deduções. Recebi dessa parte os mais nobres incentivos e me permitirei reproduzir aqui algumas linhas que me foram endereçadas pelo General D...
Prezado senhor,
Não poderia eu deixar de incitá-lo a publicar os resultados de sua pesquisa. Lembro-me perfeitamente de que, algumas semanas antes do desaparecimento da grande cantora lírica Christine Daaé e do drama que enlutou todo o Faubourg Saint-Germain, falava-se muito, na academia de dança, do fantasma, e creio mesmo que só se deixou de falar a respeito em seguida ao processo que ocupava todas as mentes; mas, se for possível, como acredito depois de tê-lo ouvido, explicar o drama pelo fantasma, rogo-lhe, meu senhor, volte a falar-nos do fantasma. Por mais misterioso que este possa de início parecer, será sempre mais explicável que essa sombria história em que pessoas mal-intencionadas quiseram ver dilacerar-se até a morte dois irmãos que se adoraram a vida toda...
Queira aceitar, etc.
Finalmente, com o dossiê em mãos, eu havia de novo percorrido todo o vasto domínio do fantasma, o formidável monumento de que fizera o seu império, e tudo aquilo que os meus olhos tinham visto, tudo aquilo que a minha mente tinha descoberto, corroborava admiravelmente os documentos do Persa, quando um achado maravilhoso veio coroar de maneira definitiva os meus trabalhos.
Todos se lembram de que, recentemente, ao se fazerem escavações no subsolo da Ópera para aí enterrar as vozes fonografadas dos artistas, a picareta dos operários pôs a descoberto um cadáver; ora, tive imediatamente a prova de que tal cadáver era o do fantasma da Ópera! Fiz até com que o próprio administrador tocasse com a própria mão essa prova e, agora, é para mim indiferente que os jornais contem que foi encontrada uma vítima da Comuna.
Os infelizes que foram massacrados, quando da Comuna, nos porões da Ópera, não estão enterrados desse lado; posso dizer onde encontrar os seus esqueletos, bem longe dessa cripta imensa onde haviam acumulado, durante o cerco de Paris, toda espécie de mantimentos. Dei com esses vestígios justamente quando procurava os restos do fantasma da Ópera, que eu não teria encontrado não fosse o inaudito acaso do sepultamento das vozes dos vivos!
Voltaremos a falar desse cadáver e do que convém fazer com ele; agora importa-me terminar este muito necessário prefácio agradecendo os modestíssimos comparsas que, como o delegado de polícia Mifroid (a tempo chamado para as primeiras verificações quando do desaparecimento de Christine Daaé), como ainda o antigo secretário Rémy, o antigo administrador Mercier, o antigo chefe de canto Gabriel e, mais particularmente, a baronesa de Castelot-Barbezac, que foi outrora a “pequena Meg” (e que disso não se envergonha), a mais encantadora estrela de nosso admirável corpo de balé, filha primogênita da honorável Sra. Giry — antiga e falecida lanterninha do camarote do fantasma —, prestaram-me a mais útil ajuda e graças aos quais vou poder, com o leitor, reviver, nos menores detalhes, aquelas horas de puro amor e espanto.[1]
AO MEU VELHO IRMÃO JO
Que, nada sabendo de fantasma, nem por isso deixa de ser, como Erik, um Anjo da música.
Com toda a afeição, Gaston Leroux.
É O FANTASMA?
Naquela tarde, a mesma em que os Srs. Debienne e Poligny, diretores demissionários da Ópera, davam a sua última noite de gala, por ocasião de sua retirada, o camarim de Sorelli, uma das primeiras bailarinas da Ópera, era subitamente invadido por uma meia dúzia daquelas moças do corpo de baile que retornavam do palco após terem “dançado” Polyeucte. Precipitaram-se ali em grande confusão, algumas dando risos excessivos e outras, gritos de terror.
A bailarina Sorelli, que desejava ficar sozinha um instante para “repassar” o elogio que ela deveria pronunciar logo mais na academia, diante dos Srs. Debienne e Poligny, viu com mau humor toda essa turba estouvada atirar-se atrás dela. Voltou-se para as colegas e ficou tomada também de uma emoção tumultuosa. Foi a pequena Jammes — narizinho caro à Grevin, olhos de miosótis, faces de rosas, colo de lírio — que deu motivo a isso em três palavras, com voz trêmula, sufocada pela angústia:
— É o fantasma!
E fechou a porta a chave. O camarim de Sorelli era de uma elegância oficial e banal. Um psichê, um divã, um toucador e alguns armários constituíam a mobília necessária. Algumas gravuras na parede, lembranças da mãe, que conhecera os belos dias da antiga Ópera da Rua Le Peletier. Retratos de Vestris, de Gardel, de Dupont, de Bigottini. Esse camarim parecia um palácio para as meninas do corpo de baile, alojadas em quartos comuns, onde passavam o tempo cantando, discutindo, batendo nos cabeleireiros e nas figurinistas e tomando copinhos de cassis ou de cerveja, ou mesmo de rum, até o aviso dado pela badalada do sino.
Sorelli era muito supersticiosa. Ao ouvir a pequena Jammes falar do fantasma, arrepiou-se toda e disse:
— Bestinha!
E, como ela era a primeira a acreditar nos fantasmas em geral e no da Ópera em particular, quis imediatamente colher informações.
— Você o viu? — perguntou.
— Como estou vendo você! — replicou gemendo a pequena Jammes, que, já não se agüentando mais de pé sobre as pernas, deixou-se cair numa cadeira.
E logo a pequena Giry, olhos de jabuticaba, cabelos de nanquim, tez de bistre, com sua pobre pelezinha sobre os seus pobres ossinhos, acrescentou:
— Se for ele, ele é bem feio!
— Oh! sim — fez o coro das bailarinas.
E falaram todas juntas. O fantasma tinha aparecido como um senhor de trajes negros que se erguera de repente na frente delas, no corredor, sem que se pudesse saber de onde viera. A aparição fora tão repentina que se podia acreditar que saíra da muralha.
— Bah! — fez uma delas que havia mantido mais ou menos o sangue-frio —, vocês vêem o fantasma por toda parte.
E é verdade que, havia alguns meses, só se falava na Ópera desse fantasma de trajes negros que passeava como uma sombra de alto a baixo do edifício, que não dirigia a palavra a ninguém, a quem ninguém ousava falar e que se esvanecia, aliás, logo que alguém o via, sem que se pudesse saber por onde nem como. Não fazia barulho ao caminhar, como convém a um fantasma de verdade. As pessoas começaram por rir disso e por zombar dessa alma penada vestida como um mundano ou como um papa-defunto, mas a lenda do fantasma tomou logo proporções colossais no corpo de baile. Todas alegavam ter encontrado mais ou menos esse ser extranatural e ter sido vítimas de seus malefícios. Quando não se deixava ver, marcava a sua presença ou passagem com fatos esquisitos ou funestos pelos quais a superstição generalizada o tornava responsável. Havia um acidente a deplorar, alguma colega pregava uma peça a uma das moças do corpo de baile, sumia um arminho de pó-de-arroz? Tudo era culpa do fantasma, do fantasma da Ópera!
Na verdade, quem o tinha visto? Podem encontrar-se muitos trajes negros na Ópera que não são de fantasmas. Mas esses tinham uma característica que nenhum outro traje negro tem. Eles vestiam um esqueleto.
Pelo menos é o que diziam aquelas moças.
E ele tinha, naturalmente, uma caveira.
Tudo isso era sério? A verdade é que a imagem do esqueleto tinha nascido da descrição do fantasma feita por Joseph Buquet, maquinista-chefe, que, este sim, o vira realmente. Ele tinha trombado — não se poderia dizer nariz com nariz, já que o fantasma não o tinha — com a misteriosa personagem na escadinha que, depois da rampa, desce diretamente aos baixos. Teve tempo de visualizá-lo por um segundo — pois o fantasma fugiu — e conservara uma lembrança indelével dessa visão.
E eis o que disse Joseph Buquet do fantasma a quem quisesse ouvir:
“Ele é de uma magreza prodigiosa e a sua roupa preta flutua sobre uma estrutura esquelética. Tem os olhos tão profundos que não se distinguem as pupilas imóveis. Apenas se vêem, em suma, dois grandes buracos negros como nos crânios dos mortos. Sua pele, que fica esticada por sobre a ossatura como um couro de tambor, não é branca, mas feiamente amarela; o nariz é tão pouca coisa que não se vê de perfil, e a ausência desse nariz é horrível de se ver. Três ou quatro longas mechas pardas sobre a testa e atrás das orelhas fazem as vezes de cabeleira”.
Em vão Joseph Buquet perseguira essa estranha aparição. Ela desaparecera como por encanto e ele não pôde encontrar-lhe o rastro.
Esse maquinista-chefe era um homem sério, acomodado, de imaginação lenta, e estava sóbrio. Sua fala foi ouvida com estupor e interesse, e logo apareceram pessoas para dizer que também elas haviam cruzado com uns “trajes negros em uma caveira”.
As pessoas sensatas que tiveram notícia dessa história afirmaram primeiro que Joseph Buquet tinha sido vítima de uma brincadeira armada por algum de seus subordinados. E a seguir aconteceram, um após outro, incidentes tão curiosos que os mais espertos começaram a se atormentar.
Um tenente do corpo de bombeiros, isso é gente corajosa! Gente que não tem medo de nada, não tem medo principalmente de fogo!
Pois bem, o tenente do corpo de bombeiros em questão[2], que tinha ido fazer uma ronda nos baixos e se tinha aventurado, ao que parece, um pouco mais longe do que de costume, reapareceu de repente sobre o tablado, pálido, assustado, trêmulo, com os olhos fora das órbitas, e quase desmaiou nos braços da nobre mãe da pequena Jammes. E por quê? Porque tinha visto avançar para ele, à altura da cabeça, mas sem corpo, uma cabeça de fogo! E eu repito, um tenente do corpo de bombeiros é gente que não tem medo de fogo.
Esse tenente do corpo de bombeiros chamava-se Papin.
O corpo de baile ficou consternado. Primeiro essa cabeça de fogo não correspondia absolutamente à descrição que Joseph Buquet dera do fantasma. Fizeram-se muitas perguntas ao bombeiro, interrogou-se de novo o maquinista-chefe, depois do que as moças ficaram persuadidas de que o fantasma tinha várias cabeças que trocava conforme queria. Naturalmente, elas imaginaram que corriam os maiores riscos. Do momento em que um tenente do corpo de bombeiros não hesitava em desmaiar, coriféias e coristas bisonhas — “ratinhos” na gíria da Ópera — podiam invocar bastantes desculpas para o terror que as fazia fugir com toda a força de suas patinhas quando passavam diante de algum buraco escuro de um corredor mal-iluminado.
Tanto assim que, para proteger, na medida do possível, o monumento entregue a tão horríveis malefícios, a própria Sorelli, cercada de todas as bailarinas e seguida até pela meninada das classes iniciais em roupa de malha, havia colocado — no dia seguinte ao da história do bombeiro —, sobre a mesa que se encontra no Vestíbulo do porteiro, do lado do pátio da administração, uma ferradura que qualquer pessoa que penetrasse na Ópera, a qualquer título que não fosse o de espectador, devia tocar com a mão antes de colocar o pé no primeiro degrau da escada. E isso sob pena de se tornar a vítima do poder oculto que se tinha apossado do edifício, dos porões ao sótão!
Essa ferradura, como aliás toda esta história, não a inventei, infelizmente, e ainda hoje se pode vê-la em cima da mesa do vestíbulo, na portaria, quando se entra na Ópera pelo pátio da administração.
Aí estão alguns elementos que dão rapidamente uma idéia do estado de alma daquelas moças, no dia em que penetramos com elas no camarim de Sorelli.
— E o fantasma! — gritara pois a pequena Jammes.
E a inquietação das bailarinas só havia crescido. Agora um silêncio angustiante reinava no camarim. Só se ouvia o ruído das respirações ofegantes. Enfim, tendo Jammes se lançado, com as marcas de um sincero pavor, até o canto mais recuado da muralha, murmurou esta única palavra:
— Escutem!
Parecia a todos, de fato, que um roçar se fazia ouvir atrás da porta. Nenhum ruído de passos. Dir-se-ia de uma seda ligeira que escorregasse sobre um painel. Depois, mais nada. Sorelli tentou mostrar-se menos pusilânime do que as suas companheiras. Avançou rumo à porta e perguntou com voz trêmula:
— Quem está aí?
Mas ninguém respondeu.
Então, sentindo sobre si os olhares que vigiavam os seus menores gestos, ela se esforçou para ser corajosa e disse bem forte:
— Há alguém atrás da porta?
— Oh! sim! sim! certamente há alguém atrás da porta! — repetiu aquela ameixinha seca da Meg Giry, que segurou heroicamente Sorelli pela saia de filó... — Por favor, não abra! Meu Deus, não abra!
Mas Sorelli, armada com um estilete que estava sempre com ela, ousou virar a chave na fechadura e abrir a porta, enquanto as bailarinas recuavam até a toalete e Meg Giry suspirava:
— Mamãe! Mamãe!
Sorelli olhou corajosamente no corredor. Estava deserto; uma borboleta de fogo, na sua prisão de vidro, lançava um clarão vermelho e turvo no meio das trevas ambientes, sem chegar a dissipá-las. E a bailarina fechou bruscamente a porta com um grande suspiro:
— Não — disse ela —, não há ninguém!
— No entanto, bem que nós o vimos! — afirmou ainda Jammes retomando com passos tímidos o seu lugar junto de Sorelli. — Ele deve estar em algum lugar por aí, rondando. Eu não volto para me vestir. Deveríamos descer à academia juntas, imediatamente, para o “elogio”, e subiríamos de volta juntas.
Nesse momento, a menina tocou piedosamente a figuinha de coral que se destinava a livrá-la do azar. E Sorelli desenhou, às escondidas, com a ponta da unha rósea do polegar direito, uma cruz de Santo André sobre o anel de madeira que lhe envolvia o anular da mão esquerda.
“Sorelli”, escreveu um cronista célebre, “é uma bailarina alta, bela, de rosto grave e voluptuoso, com uma cintura tão flexível quanto um ramo de salgueiro; diz-se comumente dela que é ‘uma bela criatura’. Os seus cabelos loiros e puros coroam uma fronte opaca abaixo da qual se incrustam dois olhos de esmeralda. Sua cabeça balança suavemente sobre o pescoço longo, elegante e altivo, como uma garça. Quando dança, tem um movimento de quadris indescritível, que dá a todo o seu corpo um estremecer de inefável langor. Quando ergue os braços e se inclina para começar uma pirueta, acusando assim todo o desenho do busto, e a inclinação do corpo faz ressaltar a anca dessa deliciosa mulher, parece que é um quadro capaz de levar qualquer um a dar um tiro na cabeça”.
Em matéria de cérebro, parece fato verificado que ela não teve muito. Ninguém a recriminava por isso.
Ela disse ainda às pequenas bailarinas:
— Meninas, é preciso se “recomporem”!... O fantasma, talvez nunca ninguém o tenha visto!...
— Sim! sim! Nós o vimos!... nós o vimos agora mesmo! — replicaram as meninas. — Ele tinha uma caveira em lugar do rosto e a sua roupa era negra, como na noite em que apareceu a Joseph Buquet!
— E Gabriel também o viu!... — acrescentou Jammes — nada menos que ontem! ontem à tarde... em pleno dia...
— Gabriel, o mestre de canto?
— É sim... Como! Vocês não estão sabendo?
— E estava com os seus trajes, em pleno dia?
— Quem? Gabriel?
— Não! O fantasma!
— Lógico que ele estava com os seus trajes! — afirmou Jammes. — Foi o Gabriel mesmo quem me disse... Por causa das roupas que ele o reconheceu. E vejam como aconteceu. O Gabriel estava no escritório do gerente. De repente, a porta se abriu. Era o Persa que estava entrando. Vocês sabem quanto o Persa tem “olho mau”.
— Oh! sim! — responderam em coro as pequenas bailarinas, que, logo que evocaram a imagem do Persa, fizeram cornos com o dedo indicador e o mínimo em riste para esconjurar o Destino, enquanto o dedo médio e o anular ficavam dobrados sobre a palma da mão e seguros pelo polegar.
— ... E quanto o Gabriel é supersticioso! — continuou Jammes. — Mas ele é sempre educado e quando vê o Persa contenta-se em enfiar tranqüilamente a mão no bolso e tocar as suas chaves... Pois bem, logo que a porta se abriu diante do Persa, o Gabriel deu um salto da poltrona onde estava sentado até a fechadura do armário, para tocar em ferro! Nesse movimento ele rasgou num prego toda uma aba de seu paletó. Com pressa de sair, ele foi bater a cabeça num cabide e fez um galo enorme; depois, recuando bruscamente, esfolou o braço no biombo, perto do piano; quis apoiar-se no piano, mas tão desajeitadamente que a tampa lhe caiu sobre as mãos e lhe esmagou os dedos; saltou como um louco para fora do escritório e finalmente calculou tão mal o tempo ao descer as escadas que despencou sobre os quadris por todos os degraus do primeiro andar. Eu ia passando nesse momento com a Sra.. Precipitamo-nos para levantá-lo. Ele estava todo machucado e com o rosto cheio de sangue, que até dava medo. Mas logo ele se pôs a sorrir e a exclamar: “Obrigado, meu Deus! por ter-me livrado disso por tão pouco!” Então nós o interrogamos e ele nos contou todo o seu medo. Esse medo lhe tinha vindo do fato de ele ter visto, atrás do Persa, o fantasma! O fantasma com a caveira, como o descreveu Joseph Buquet.
Um murmúrio assustado saudou o fim dessa história, a cujo término Jammes chegou toda esbaforida, de tão depressa que a tinha narrado, como se estivesse sendo perseguida pelo fantasma.
Em seguida, houve ainda um pequeno silêncio que interrompeu, a meia voz, a pequena Giry, enquanto, muito comovida, Sorelli polia as unhas.
— Joseph Buquet faria melhor se se calasse — enunciou Meg.
— Por que então ele ia se calar? — perguntaram-lhe.
— É a opinião da mamãe... — replicou Meg, em voz bem baixa desta vez, e olhando em torno de si, como se tivesse medo de ser ouvida por outros ouvidos que não os daquelas que estavam ali.
— E por que sua mãe tem essa opinião?
— Psiu! Mamãe diz que o fantasma não gosta que o aborreçam!
— E por que é que ela diz isso, a sua mãe?
— Porque... porque... nada... — disse Meg.
Essas sábias reticências tiveram o condão de exasperar a curiosidade daquelas mocinhas, que se acotovelaram em torno da pequena Meg Giry e lhe suplicaram que se explicasse. Estavam ali, ombro a ombro, debruçadas num mesmo movimento de pedido e de espanto. Comunicavam seu medo umas às outras, sentindo nisso um prazer penetrante que as gelava.
— Jurei não dizer nada! — replicou ainda Meg num sopro. Mas elas não lhe deram sossego e prometeram guardar tão bem silêncio que Meg, que ardia de desejo de contar o que sabia, começou, com os olhos fixos na porta:
— Está bom... é por causa do camarote...
— Que camarote?
— O camarote do fantasma!
— O fantasma tem um camarote?
Diante dessa idéia de que o fantasma tinha o seu camarote, as bailarinas não puderam conter a sua estupefação. Entre pequenos suspiros, elas disseram:
— Oh! meu Deus! conte... conte...
— Mais baixo! — ordenou Meg. É o primeiro camarote, o de número 5, vocês sabem, o primeiro camarote de boca, da esquerda.
— Não é possível!
— É como eu lhes estou dizendo... É a mamãe a lanterninha que cuida dele... Mas vocês juram mesmo que não vão contar nada?
— Lógico que sim, mas continue!...
— Pois é, é o camarote do fantasma... Ninguém entra ali há mais de um mês, exceto o fantasma, evidente, e foi dada ordem à administração para nunca mais o alugar...
— E é verdade que o fantasma vai lá?
— É sim...
— Mais alguém vai lá?
— Não!... Apenas o fantasma vai até lá, mais ninguém.
As bailarinazinhas se entreolharam. Se o fantasma ia ao camarote, elas deviam vê-lo, já que ele trajava uma roupa preta e tinha uma caveira em lugar do rosto. Foi o que disseram a Meg, mas esta lhes replicou:
— Justamente! A gente não vê o fantasma! E ele não tem nem roupa nem caveira!... Tudo isso que contaram a respeito da caveira e da cabeça de fogo dele são balelas! Ele não tem nada disso... A gente apenas o ouve quando ele está no camarote. Mamãe nunca o viu, mas ouviu. Mamãe bem sabe, pois é ela quem lhe dá o programa!
Sorelli achou que devia intervir:
— Giryzinha, você está zombando de nós. Então a pequena Giry se pôs a chorar.
— Eu teria feito melhor se ficasse calada... Se um dia mamãe souber disso!... Mas é certo que Joseph Buquet faz mal de se ocupar com coisas que não são da conta dele... isso vai lhe dar azar... mamãe estava dizendo isso ainda ontem à noite...
Nesse momento, ouviram-se passos possantes e apressados no corredor e uma voz esbaforida que gritava:
— Cécile! Cécile! Você está aí?
— E a voz da mamãe! — disse Jammes. — O que será que aconteceu?
E ela abriu a porta. Uma honorável senhora, talhada como um granadeiro pomerânio, enfiou-se pelo camarim e deixou-se cair a gemer numa poltrona. Os olhos lhe rolavam, enlouquecidos, alumiando lugubremente a sua face de tijolo cozido.
— Que infelicidade! — exclamou. — Que infelicidade!
— O quê? O quê?
— Joseph Buquet...
— Joseph Buquet o quê?
— Joseph Buquet morreu!
O camarim se encheu de exclamações, de protestos, de assustados pedidos de explicações...
— Sim... acabaram de encontrá-lo enforcado no terceiro patamar abaixo do palco!... Mas o mais terrível — continuou, ofegante, a pobre e honorável senhora —, o mais terrível é que os maquinistas que encontraram o corpo afirmam que se ouvia em torno do cadáver algo como o canto dos mortos!
— Foi o fantasma! — deixou escapar, como sem querer, a pequena Giry, mas caiu em si imediatamente: — Não!... não!... eu não disse nada!... não disse nada!...
Ao redor dela, todas as suas companheiras, aterrorizadas, repetiam em voz baixa:
— Com certeza! Foi o fantasma!... Sorelli estava pálida...
— Nunca vou poder dizer o meu elogio — disse.
A mãe de Jammes deu a sua opinião esvaziando um cálice de licor que andava ali pela mesa: devia ter algum fantasma lá embaixo...
A verdade é que nunca se ficou sabendo direito como morreu Joseph Buquet. A perícia, sumária, não deu nenhum resultado, a não ser suicídio natural. Nas Memórias de um diretor, Moncharmin, que era um dos dois diretores, sucedendo aos Srs. Debienne e Poligny, relata assim o incidente do enforcado:
“Um fatídico incidente veio perturbar a festinha que os Srs. Debienne e Poligny estavam oferecendo a si mesmos para celebrar a sua saída. Estava no escritório da direção quando vi entrar de repente Mercier — o administrador. — Ele estava transtornado ao me informar que tinham acabado de descobrir, enforcado no terceiro patamar abaixo do palco, entre o suporte e um cenário do Rei de Labore, o corpo de um maquinista. Eu exclamei: ‘Vamos desamarrá-lo!’ O tempo que eu levei para descer pela escadaria e para tirar a escada do suporte, o enforcado já estava sem a sua corda!”
Aí está uma ocorrência que o Sr. Moncharmin acha natural. Um homem está enforcado na ponta de uma corda, alguém vai desamarrá-lo e a corda desaparece. Oh! O Sr. Moncharmin encontrou uma explicação bem simples. Ouçam-no: “Estava na hora da dança, e coriféias e constas tinham tomado as suas precauções contra o mau-olhado”. Ponto final. Vocês estão vendo daqui o corpo de baile tirando a escadinha do seu suporte e distribuindo entre si a corda de enforcado em menos tempo do que se leva para escrever. Não é sério. Quando penso, pelo contrário, no lugar exato onde o corpo foi encontrado — no terceiro patamar debaixo do palco —, imagino que podia haver em algum lugar algum interesse no desaparecimento dessa corda depois que ela tivesse feito o seu serviço e veremos adiante se não tenho razão para ter essa imaginação.
A sinistra notícia espalhou-se depressa de alto a baixo da Ópera, onde Joseph Buquet era muito estimado. Os camarins se esvaziaram, e as pequenas bailarinas, agrupadas em torno de Sorelli, como carneiros medrosos em torno do pastor, tomaram o caminho da academia, através dos corredores e das escadarias mal-iluminadas, trotando com toda a pressa com as suas patinhas cor-de-rosa.
A NOVA MARGARIDA
No primeiro patamar, Sorelli chocou-se com o conde de Chagny que ia subindo. O conde, geralmente tão calmo, demonstrava grande exaltação.
— Eu estava indo ao seu camarim — disse o conde saudando a jovem de maneira muito galante. — Ah! Sorelli, que bela noite! E Christine Daaé: que triunfo!
— Não é possível! — protestou Meg Giry. — Há seis meses ela cantava como um prego! Mas deixe-nos passar, meu caro conde — disse a garota com uma reverência estouvada —, estamos em busca de notícias de um pobre homem que encontraram enforcado.
Nesse momento passava, atarefado, o administrador, que parou bruscamente ao ouvir a conversa.
— Como! Vocês já sabem, mocinhas? — perguntou em tom bastante rude... — Pois bem, não falem sobre isso... e sobretudo que os Srs. Debienne e Poligny não sejam informados! Isso seria demasiado penoso para eles no último dia.
Todos foram para o pavilhão da dança, que já estava invadido.
O conde de Chagny tinha razão; nunca uma noite de gala fora comparável àquela; os privilegiados que assistiram falam dela comovidos aos seus filhos e netos. Imaginem pois que Gounod, Reyer, Saint-Saëns, Massenet, Guiraud, Delibes subiram cada um por sua vez no tablado do maestro e dirigiram pessoalmente a execução de suas obras. Tiveram, entre outros intérpretes, Faure e Krauss, e foi nessa noite que se revelou ao Tout-Paris estupefato e ébrio essa Christine Daaé cujo destino misterioso quero dar a conhecer neste livro.
Gounod tinha feito executar A marcha fúnebre de uma marionete; Reyer, a sua bela abertura de Sigurd; Saint-Saëns, A dança macabra e uma Rêverie orientale; Massanet, uma Marcha húngara inédita; Guiraud, o seu Carnaval; Delibes, A valsa lenta de Sylvia e os pizzicati de Coppelia. As cantoras Krauss e Denise Bloch interpretaram, a primeira, o bolero das Vésperas sicilianas; a segunda, o brindisi de Lucrécia Bórgia.
Mas todo o triunfo pertenceu a Christine Daaé, que primeiro se fizera ouvir em alguns trechos de Romeu e Julieta. Era a primeira vez que a jovem artista cantava essa obra de Gounod, que, aliás, ainda não tinha sido trazida para a Ópera de Paris e que a Opéra Comique acabava de retomar muito tempo depois de ter sido montada no antigo Théâtre-Lyrique pela Sra. Carvalho. Ah! Há que se lamentar aqueles que não puderam ouvir Christine Daaé nesse papel de Julieta, que não conheceram a graça singela, que não vibraram com os acentos de sua voz seráfica, que não sentiram voar por sobre os túmulos dos amantes de Verona: “Senhor! Senhor! perdoai-nos!”
Pois bem, tudo isso ainda não era nada diante dos acentos sobre-humanos que ela fez ouvir no ato da prisão e o trio final de
Fausto, em que ela substituiu a cantora Carlotta, que estava indisposta. Nunca se tinha visto isso!
Isso era a “nova Margarida” que Christine Daaé estava revelando, uma Margarida de um esplendor, de um brilhantismo ainda insuspeitos.
A sala toda saudara com os mil clamores de sua inenarrável emoção Christine, que soluçava e desfalecia nos braços de suas companheiras. Foi preciso carregá-la para o camarim. Ela parecia ter entregue a alma. O grande crítico P. de St.-V. fixou a lembrança inesquecível desse minuto maravilhoso numa crônica a que deu justamente o título de A nova Margarida. Como grande artista que era, descobria simplesmente que essa bela e doce menina tinha trazido naquela noite, para o tablado da Ópera, um pouco mais do que a sua arte, ou seja, o seu coração. Nenhum dos amigos da Ópera ignorava que o coração de Christine tinha permanecido puro como aos quinze anos, e P. de St.-V. declarou “que, para compreender o que acabava de acontecer com Christine Daaé, estava na necessidade de imaginar que ela tinha acabado de amar pela primeira vez! Talvez eu seja indiscreto”, acrescentou, “mas só o amor é capaz de realizar tamanho milagre, tão fulminante transformação. Ouvimos, há dois anos, a Christine Daaé em seu concurso para o Conservatório, e ela nos dera então uma esperança encantadora. De onde vem o sublime de hoje? Se ele não desce do céu nas asas do amor, será preciso pensar que ele sobe do inferno e que Christine, como o mestre de canto Ofierdingen, firmou um pacto com o Diabo! Quem não ouviu a Christine cantar o trio final de Fausto não conhece Fausto: a exaltação da voz e a embriaguez sagrada de uma alma pura não poderiam ir além”.
Entretanto, alguns assinantes protestavam. Como puderam ter-lhes escondido durante tanto tempo semelhante tesouro? Christine Daaé fora até então um Siebel conveniente junto dessa Margarida algo esplendidamente material que era Carlotta. E foi necessária a ausência incompreensível e inexplicável de Carlotta, nessa noite de gala, para que, sem qualquer preparação, a pequena Christine Daaé pudesse dar toda a medida do seu valor numa parte do programa reservada à diva espanhola! Finalmente, como, privados de Carlotta, os Srs. Debienne e Poligny tinham-se dirigido a Christine Daaé? Eles conheciam então o seu gênio escondido? E se eles o conheciam, por que o esconderam? Coisa estranha, não se conhecia o seu professor atual. Ela tinha declarado várias vezes que, doravante, trabalharia sozinha. Tudo isso era bem inexplicável.
O conde de Chagny tinha assistido, de pé em seu camarote, a esse delírio e a ele se juntara com os seus “bravos” retumbantes.
O conde de Chagny (Philippe-Georges-Marie) tinha então exatamente 41 anos. Era um grande senhor e um belo homem. Com altura acima da média, rosto agradável, apesar da fronte severa e dos olhos um pouco frios, ele era extremamente cortês e fino com as mulheres e um pouco altivo com os homens, que nem sempre lhe perdoavam os seus sucessos mundanos. Tinha excelente coração e consciência honesta. Pela morte do velho conde Philibert, ele se tornara o chefe de uma das mais ilustres e antigas famílias da França, cujo lado nobre remontava até Louis le Hutin. A fortuna dos Chagny era considerável, e quando o velho conde, que era viúvo, morreu, não foi tarefa fácil para Philippe aceitar gerir tão pesado patrimônio. As suas duas irmãs e o irmão Raoul não quiseram ouvir falar de partilha e deixaram tudo entregue a Philippe, como se o direito de primogenitura não tivesse deixado de existir. Ao se casarem as duas irmãs — no mesmo dia —, retomaram as suas partes das mãos do irmão, não como algo que lhes pertencesse, mas como um dote pelo qual expressaram a maior gratidão.
A Condessa de Chagny — nascida de Moerogis de La Martynière — tinha morrido ao dar à luz Raoul, nascido vinte anos depois do seu irmão primogênito. Quando morreu o velho conde, Raoul tinha 12 anos. Philippe cuidou ativamente da educação do menino. Nessa tarefa, foi admiravelmente secundado pelas irmãs, primeiro, e depois por uma velha tia, viúva de um marinheiro, que morava em Brest e que passou ao jovem Raoul o gosto pelas coisas do mar. O rapaz inscreveu-se na escola naval do Borda, foi classificado entre os primeiros e realizou tranqüilamente a sua volta ao mundo. Graças a poderosos apoios, acabara de ser designado para tomar parte da expedição oficial do Requin, que tinha por missão procurar nas geleiras do pólo os sobreviventes da expedição do d’Artois, dos quais não se tinha notícias fazia três anos. Enquanto esperava, gozava de longas férias que não deviam terminar antes de seis meses, e as velhas senhoras da sociedade, moradoras no bairro nobre de Saint-Germain, ao verem esse menino bonito, que parecia tão frágil, já tinham dó dele pelos rudes trabalhos que o esperavam.
A timidez desse marujo, eu estaria até tentado de dizer, sua inocência, era notável. Parecia ter saído na véspera da mão das mulheres. De fato, mimado pelas duas irmãs e pela velha tia, ele havia conservado dessa educação puramente feminina maneiras quase cândidas, marcadas por um encanto que nada, até então, pudera empanar. Nessa época, tinha pouco mais de 21 anos e parecia ter 18. Possuía um bigodinho loiro, belos olhos azuis e cútis de moça.
Philippe mimava muito Raoul. Primeiro, tinha muito orgulho dele e previa com alegria uma carreira gloriosa para o seu caçula nessa Marinha em que um de seus antepassados, o famoso Chagny de La Roche, tivera o posto de almirante. Aproveitava a licença do jovem para lhe mostrar Paris, desconhecida por este no que pode oferecer de alegria luxuosa e de prazer artístico.
O conde estimava que, na idade de Raoul, não se é totalmente ajuizado. Era um caráter equilibrado, o de Philippe, ponderado tanto em seus trabalhos como em seus prazeres, sempre de uma postura perfeita, incapaz de dar ao irmão um mau exemplo. Levou-o consigo por toda parte. Fê-lo até conhecer o pavilhão da dança. Bem sei que andavam dizendo que o conde “se dava extremamente bem” com Sorelli. Mas o quê! Alguém pode querer fazer um crime do fato de esse gentil-homem, que escolheu ficar solteiro e, por conseguinte, tinha bastantes lazeres diante de si, principalmente depois que as irmãs tinham-se casado, vir passar uma hora ou duas, depois do jantar, na companhia de uma bailarina que, evidentemente, não é lá muito espiritual, mas tinha os mais lindos olhos do mundo? E, além disso, há lugares onde um verdadeiro parisiense, quando ocupa a posição do conde de Chagny, deve aparecer e, nessa época, o pavilhão da dança da Ópera era um desse lugares.
Finalmente, talvez Philippe não tivesse conduzido o irmão aos bastidores da Academia Nacional de Música se ele não tivesse sido o primeiro, por repetidas vezes, a pedir-lhe que o fizesse, com uma gentil obstinação de que o conde se lembraria mais tarde.
Philippe, depois de ter aplaudido a Christine Daaé naquela noite, voltara-se para o lado de Raoul e o vira tão pálido que ficou assustado.
— Você não está vendo — disse Raoul — que essa mulher está se sentindo mal?
De fato, no palco tiveram de segurar Christine Daaé.
— É você que vai desmaiar... — disse o conde inclinando-se para Raoul. — O que é que você tem?
Mas Raoul já estava de pé.
— Vamos — disse ele com voz trêmula.
— Aonde você quer ir, Raoul? — interrogou o conde, admirado com a emoção em que se encontrava o caçula.
— Ora, vamos ver! É a primeira vez que ela canta assim!
O conde olhou curiosa e fixamente para o irmão e um leve sorriso brincalhão delineou-se no canto de seus lábios.
— Bah!... — exclamou, para logo acrescentar: — Vamos! Vamos!
Ele parecia encantado.
Logo chegaram à entrada dos assinantes, já toda congestionada. Enquanto esperavam para poder entrar no palco, Raoul rasgava as suas luvas, num gesto inconsciente. Philippe, que era bom, não zombou da sua impaciência. Mas ele já estava sabendo. Agora sabia por que Raoul permanecia distraído quando falava com ele e também por que parecia sentir tão grande prazer em levar todos os assuntos das conversas para a Ópera.
Penetraram ambos sobre o tablado.
Uma multidão de roupas pretas comprimia-se na direção do pavilhão da dança ou se dirigia aos camarins das artistas. Aos gritos dos maquinistas se misturavam as alocuções veementes dos chefes de serviço. Os figurantes do último quadro que se vão, que se chocam com você, uma armação de cenário que passa, uma tela de fundo que desce do suporte, um suporte que é subjugado a grandes marteladas, o eterno “dêem lugar para o teatro” que repica em seus ouvidos como a ameaça de alguma nova catástrofe para a sua cartola ou de uma contusão séria em suas costas, tal é o acontecimento habitual dos intervalos que nunca deixam de perturbar um noviço como o jovem de bigodinho loiro, de olhos azuis e cútis de moça que atravessava, tão depressa quanto o congestionamento lhe permitia, esse palco sobre o qual Christine Daaé tinha acabado de triunfar e sob o qual Joseph Buquet tinha acabado de morrer.
Naquela noite, nunca a confusão havia sido mais completa, mas Raoul nunca estivera menos tímido. Afastava com os ombros firmes tudo aquilo que lhe opunha obstáculo, não ligando para o que se dizia em torno dele, não tentando entender as falas apavoradas dos maquinistas. Estava preocupado apenas com o desejo de ver aquela cuja voz mágica lhe havia arrancado o coração. Sim, ele sentia que o seu coração tão novo já não lhe pertencia. Bem que tentara se defender desde o dia em que Christine, a quem conhecera ainda pequena, tinha reaparecido em sua frente. Sentira diante dela uma emoção dulcíssima que ele havia tentado rechaçar, pela reflexão, pois tinha jurado que, tamanho era o respeito por si mesmo e sua fé, que só amaria aquela que viria a ser a sua mulher, e não podia pensar, nem por um segundo, em desposar uma cantora; mas eis que à dulcíssima emoção sucedera uma sensação atroz. Sensação? Sentimento? Havia dentro daquilo algo de físico e algo de moral. Sentia dor no peito, como se este houvesse sido aberto para tomar-lhe o coração. Sentia ali um buraco horrível, um vazio real que não poderia nunca mais ser preenchido senão pelo coração de outra pessoa! Esses são acontecimentos de uma fisiologia toda particular que, ao que parece, não podem ser compreendidos senão por aqueles que foram atingidos pelo amor, com esse golpe estranho a que chamam, em francês corrente, coup de foudre, literalmente: “golpe de raio”.
O conde Philippe tinha dificuldade para segui-lo. Continuava sorrindo.
No fundo do palco, passada a porta dupla que dá para os degraus que conduzem ao pavilhão e para os que levam aos camarins à esquerda do pavimento térreo, Raoul teve de parar diante do pequeno grupo de jovens bailarinas que, tendo descido havia pouco do sótão, impediam-lhe a passagem. Não faltaram gracejos a ele dirigidos pelas meninas de lábios pintados, às quais ele não respondeu; finalmente pôde passar e mergulhou nas sombras do corredor barulhento de exclamações de entusiastas admiradores. Um nome cobria todos os rumores: “Christine Daaé! Christine!” O conde, seguindo Raoul, se dizia: “O malandro conhece o caminho!”, e perguntava a si mesmo como o havia aprendido. Ele próprio nunca havia levado Raoul ao camarim de Christine. E de crer que este tinha ido sozinho enquanto o conde ficava conversando no camarim com Sorelli, que muitas vezes lhe pedia que ficasse junto dela até o momento de entrar em cena, e que por vezes tinha essa mania tirânica de lhe pedir que tomasse conta das pequenas perneiras com que descia do seu camarim, as quais usava para proteger o brilho de suas sapatilhas de cetim e a limpeza do seu collant da cor da pele. Sorelli tinha uma desculpa: perdera a mãe.
O conde, retardando de alguns minutos a visita que devia fazer a Sorelli, seguia, pois, a galeria que conduz ao camarim de Christine e se dava conta de que esse corredor nunca tinha sido tão freqüentado como nessa noite, quando todo o teatro estava em polvorosa devido ao sucesso da artista, e também do seu desmaio. Porque a bela menina ainda não havia voltado a si, e tinham ido buscar o médico do teatro, que nesse momento chegou, empurrando os grupos e seguido de perto por Raoul, que lhe andava nos calcanhares.
Assim, o médico e o enamorado se viram no mesmo instante ao lado de Christine, que recebeu os primeiros socorros de um e abriu os olhos nos braços do outro. O conde tinha ficado, com muitos outros, na soleira da porta diante da qual se sufocava.
— O senhor não acha, doutor, que esses senhores deveriam “desentulhar” um pouco o camarim? — perguntou Raoul com incrível audácia. — Não se pode mais nem respirar aqui.
— Ora, o senhor tem toda a razão — aquiesceu o médico e pôs todo mundo para fora da porta, com exceção de Raoul e da camareira.
Esta olhava para Raoul com olhos arregalados pela mais sincera estupefação. Nunca o tinha visto antes.
Não ousou, no entanto, questioná-lo.
E o médico imaginou que, se o jovem agia assim, era evidentemente porque tinha esse direito. Tanto que o visconde permaneceu no camarim a contemplar Christine que renascia para a vida, enquanto os dois diretores, os próprios Srs. Debienne e Poligny, que tinham vindo exprimir a admiração pela sua jovem pensionista, foram rechaçados para o corredor. O conde de Chagny, rechaçado como os outros, ria às gargalhadas.
— Ah! esse malandrinho! Ah! esse malandrinho! E acrescentava in petto: — Vão confiar nesses mancebos que tomam ares de donzelas! — Estava radiante. Em seguida concluiu: — É um Chagny! — e se dirigiu ao camarim de Sorelli; mas esta descia para o pavilhão com o seu pequeno rebanho tremendo de medo, e o conde encontrou-a a caminho, como foi dito.
No camarim, Christine Daaé deu um suspiro profundo ao qual respondeu um gemido. Ela virou a cabeça, viu Raoul e estremeceu. Olhou para o doutor e lhe sorriu, depois para a camareira, depois de novo para Raoul.
— Meu senhor! — perguntou ela a este último, com uma voz que ainda não passava de um sopro — ... quem é o senhor?
— Senhorita — respondeu o jovem que colocou um joelho no chão e deu um ardente beijo na mão da diva —, senhorita, eu sou aquele menino que foi recolher a sua echarpe no mar.
Christine olhou de novo para o médico e para a camareira e os três puseram-se a rir. Raoul ergueu-se todo vermelho.
—- Senhorita, já que lhe apraz não me reconhecer, eu queria lhe dizer algo em particular, algo muito importante.
— Quando eu estiver melhor, meu senhor, importa-se? — e a voz dela tremia. — O senhor é muito gentil...
— É preciso que o senhor saia... — acrescentou o médico com o mais amável de seus sorrisos. — Deixe-me cuidar da senhorita.
— Eu não estou doente — replicou de repente Christine com uma energia tão estranha quanto inesperada. E levantou-se, passando a mão sobre as pálpebras num gesto rápido. — Agradeço-lhe, doutor!... Preciso ficar sozinha... Saiam todos! Eu lhes rogo, deixem-me... Estou muito nervosa esta noite...
O médico quis externar alguns protestos, mas diante da agitação da jovem estimou que o melhor remédio para semelhante estado consistia em não contrariá-la. E saiu com Raoul, que se viu no corredor, desarvorado. O médico lhe disse:
— Não a estou reconhecendo esta noite... Geralmente ela é tão meiga...
E o deixou.
Raoul ficou só. Toda essa parte do teatro estava deserta agora. Devia-se proceder à cerimônia de adeus, no pavilhão da dança. Raoul pensou que talvez Christine fosse até lá e ficou esperando na solidão e no silêncio. Chegou até a dissimular-se na sombra propícia de um canto de porta. Continuava com essa horrível dor no lugar do coração. E era disso que ele queria falar com Christine, sem tardar. De repente a porta se abriu e ele viu a camareira saindo sozinha, carregando alguns pacotes. Ele a fez parar e pediu notícias de sua patroa. Respondeu rindo que ela ia muito bem, mas não se devia perturbá-la pois desejava ficar só. E foi-se embora. Uma idéia atravessou o cérebro abrasado de Raoul: evidentemente Christine queria ficar sozinha para ele!... Não lhe havia ele dito que queria falar com ela em particular e não foi esta a razão por que esvaziara o espaço em torno de si? Mal conseguindo respirar, aproximou-se do camarim e, de ouvido inclinado para a porta a fim de ouvir o que lhe seria respondido, dispôs-se a bater. Mas a sua mão caiu de volta. Acabara de perceber, no camarim, uma voz de homem, que dizia num tom singularmente autoritário:
— Christine, você precisa me amar!
E a voz de Christine, dolorosamente, que se adivinhava vir acompanhada de lágrimas, voz trêmula, respondia:
— Como pode me dizer isso? Eu que só canto para você! Raoul apoiou-se na porta, de tanto que sofria. O seu coração, que ele acreditara ter ido embora para sempre, tinha voltado para o seu peito e lhe dava batidas retumbantes. Elas ressoavam por todo o corredor e os ouvidos de Raoul estavam ficando ensurdecidos. Certamente, se o coração dele continuasse fazendo tanto estardalhaço, iriam ouvi-lo, iriam abrir a porta e seria vergonhosamente expulso. Que situação para um Chagny! Ficar escutando atrás da porta! Pegou o coração com as duas mãos para fazê-lo calar-se. Mas um coração não é a goela de um cão, e mesmo quando se segura a goela de um cão com as duas mãos — um cão que late insuportavelmente —, continua-se a ouvi-lo rosnar.
A voz de homem fez-se ouvir novamente:
— Você deve estar cansada.
— Oh! esta noite eu lhe dei a minha alma e estou morta.
— A sua alma é muito bela, minha menina — replicou a voz grave de homem —, e eu lhe agradeço. Não há imperador que tenha recebido presente igual! Os anjos choraram esta noite.
Depois destas palavras: os anjos choraram esta noite, o visconde não ouviu mais nada. Entretanto, não se retirou, mas, como temesse ser surpreendido, lançou-se de novo no seu canto escuro, decidido a esperar ali que o homem saísse do camarim. Na mesma hora, ele acabava de conhecer o amor e o ódio. Sabia que estava amando. Queria conhecer a quem odiava. Para sua grande estupefação, a porta se abriu e Christine Daaé, envolta em peles e com o rosto escondido sob uma renda, saiu sozinha. Encostou a porta, mas Raoul observou que ela não a fechara com chave. Ela passou. Ele não a seguiu nem sequer com os olhos, pois os seus olhos estavam fixos na porta que não se reabria. Então o corredor ficou novamente deserto e ele o atravessou. Abriu a porta do camarim e voltou a fechá-la atrás de si. Encontrava-se na mais completa escuridão. Tinham apagado o gás.
— Há alguém aqui? — disse Raoul com voz vibrante. — Por que está se escondendo?
Ao dizer isso, mantinha-se encostado na porta fechada.
A noite e o silêncio. Raoul só ouvia o ruído da sua própria respiração. Por certo não se dava conta de que a sua conduta era de uma indiscrição que ultrapassava tudo que pudesse imaginar.
— Você só sairá daqui quando eu permitir! — bradou o rapaz. — Se não me responder, você é um covarde! Eu vou saber desmascará-lo!
E riscou um fósforo. A chama iluminou o camarim. Não havia ninguém ali! Raoul, depois de ter tido o cuidado de fechar a porta a chave, acendeu os globos, os candeeiros. Penetrou no banheiro, abriu os armários, procurou, apalpou as paredes com suas mãos suadas. Nada!
— Ah! essa não — disse bem alto —, será que eu estou ficando louco?
Permaneceu assim dez minutos, a escutar o assobio do gás na paz do camarim abandonado; enamorado, nem sequer pensou em furtar alguma fitinha que lhe trouxesse o perfume daquela a quem amava. Saiu, sem saber mais o que fazer nem aonde ir. Em dado momento de sua incoerente deambulação, um ar gelado veio bater-lhe no rosto. Estava ao pé de uma escada estreita que descia; atrás dele, um cortejo de operários debruçados sobre uma espécie de maca coberta por um pano branco.
— A saída, por favor — indagou a um desses homens.
— O senhor está vendo ali! À sua frente — foi-lhe respondido. — A porta está aberta. Mas deixe-nos passar.
— O que que é isso aí? — perguntou maquinalmente mostrando a maca.
O operário respondeu:
— Isto é Joseph Buquet que encontramos enforcado no terceiro patamar inferior, entre um suporte e um cenário do Rei de Labore.
Ele se afastou para o cortejo passar, fez uma saudação e saiu.
EM QUE, PELA PRIMEIRA VEZ, OS SRS. DEBIENNE E POLIGNY DÃO, EM SEGREDO, AOS NOVOS DIRETORES DA ÓPERA, SRS. ARMAND MONCHARMIN E FIRMIN RICHARD, A VERDADEIRA E MISTERIOSA RAZÃO DE SUA SAÍDA DA ACADEMIA NACIONAL DE MÚSICA
Durante esse tempo, dava-se a cerimônia de despedidas.
Eu disse que essa magnífica festa fora oferecida, por ocasião de sua saída da Ópera, pelos Srs. Debienne e Poligny que tinham querido, como se diz hoje em dia, morrer “numa boa”.
Na realização desse programa ideal e fúnebre, haviam sido secundados por tudo aquilo de que Paris podia dispor de melhor na sociedade e nas artes.
Toda essa gente tinha marcado encontro no pavilhão da dança, onde Sorelli esperava, com uma taça de champanha na mão e um pequeno discurso na ponta da língua, os diretores demissionários. Atrás dela, comprimiam-se as suas jovens e velhas companheiras do corpo de baile, umas conversando em voz baixa sobre os acontecimentos do dia, outras dirigindo discretamente sinais aos seus amigos, cuja tagarela multidão já rodeava o bufê, que tinha sido arrumado em cima do assoalho em declive, entre a dança guerreira e a dança campestre do Sr. Boulenger.
Algumas bailarinas já haviam vestido suas roupas esporte; a maioria ainda estava com a saia de filó; mas todas acharam que deviam assumir semblantes de circunstância. Só a pequena Jammes, cujas 15 primaveras já pareciam ter esquecido em sua despreocupação — idade feliz — o fantasma e a morte de Joseph Buquet, não parava de cacarejar, tagarelar, pilheriar, tanto assim que, quando os Srs. Debienne e Poligny surgiram nos degraus do pavilhão da dança, ela foi chamada severamente à ordem por Sorelli, impaciente.
Todo mundo percebeu que os diretores demissionários pareciam alegres, o que, na província, não teria parecido natural a ninguém, mas, em Paris, foi visto como de muito bom gosto. Nunca será parisiense quem não tiver aprendido a colocar a máscara da alegria por cima de suas dores e o disfarce da tristeza, do tédio ou da indiferença por sobre a sua alegria íntima. Você vem a saber que um amigo seu está infeliz, não tente consolá-lo; ele dirá que já está bem; mas, se lhe aconteceu algo feliz, nem pense em felicitá-lo; ele acha a boa fortuna tão natural que ficaria admirado se alguém lhe falasse sobre isso. Em Paris, sempre se está num baile de máscaras e não é no pavilhão da dança que pessoas tão “avisadas” como os Srs. Debienne e Poligny iriam cometer o erro de mostrar a sua tristeza que era real. E eles já sorriam muito para Sorelli, que começava a desfiar o seu cumprimento, quando uma reclamação da louquinha da Jammes veio quebrar o sorriso dos diretores de maneira tão brutal que a imagem da desolação e do espanto, que estava por baixo, apareceu aos olhos de todos:
— O fantasma da Ópera!
Jammes lançara essa frase num tom de indizível pavor e o seu dedo apontava no meio da multidão das roupas pretas um rosto tão pálido, tão lúgubre e tão feio, com os buracos negros das arcadas superciliares tão profundos, que essa caveira assim designada obteve de imediato um sucesso louco:
— O fantasma da Ópera! O fantasma da Ópera!
E o pessoal ria, e se empurrava, e queria dar de beber ao fantasma da Ópera; mas ele já tinha sumido! Tinha deslizado no meio da multidão e buscaram-no em vão, enquanto dois senhores idosos tentavam acalmar a pequena Jammes e a pequena Giry soltava gritos apavorados.
Sorelli estava furiosa; não pudera terminar o seu discurso; os Srs. Debienne e Poligny abraçaram-na, agradeceram e escapuliram tão depressa quanto o próprio fantasma. Ninguém se admirou, pois sabia-se que eles iam ter de agüentar a mesma cerimônia no andar superior, no pavilhão do canto, e que por fim os amigos íntimos seriam recebidos por eles, pela última vez, no grande Vestíbulo do gabinete da diretoria, onde um jantar de verdade os esperava.
Foi lá que os reencontramos com os novos diretores Armand Moncharmin e Firmin Richard. Os primeiros mal conheciam os segundos, mas derramaram-se em grandes protestos de amizade e estes lhes responderam com mil elogios; de tal sorte que aqueles dentre os convidados que estavam temerosos por preverem uma noitada um pouco insossa mostraram imediatamente semblantes satisfeitos. O jantar foi quase alegre e, como houve oportunidade para vários brindes, o senhor comissário do governo mostrou-se particularmente tão hábil mesclando a glória do passado aos sucessos do futuro que a maior cordialidade logo reinou entre os convivas. A transmissão dos poderes diretoriais tinha sido feita na véspera, com a maior simplicidade possível, e as questões que restavam para acertar entre a antiga e a nova direção tinham então sido resolvidas, sob a presidência do comissário do governo, com um desejo tão grande de entendimento de parte a parte que, na verdade, não era de admirar encontrarem-se, naquela noite memorável, quatro semblantes de diretores tão sorridentes.
Os Srs. Debienne e Poligny já tinham entregue aos Srs. Armand Moncharmin e Firmin Richard as duas chaves minúsculas, as gazuas que abriam todas as portas da Academia Nacional de Música — vários milhares. E celeremente essas chavinhas, objeto da curiosidade geral, passavam de mão em mão quando a atenção de alguns foi desviada para a descoberta que acabavam de fazer, na extremidade da mesa, daquela estranha, pálida e fantástica figura de olhos cavos que já aparecera no pavilhão da dança e que fora saudada pela pequena Jammes com esta apóstrofe: “O fantasma da Ópera!”
Ele estava ali, como o mais natural dos convivas, exceto que não comia nem bebia.
Os que tinham começado a olhar para ele a sorrir acabaram por desviar a cabeça, tanto essa visão conduzia a mente para os mais fúnebres pensamentos. Ninguém recomeçou a brincadeira do pavilhão, ninguém gritou: “Olhem o fantasma da Ópera!”
Ele não tinha pronunciado uma única palavra e mesmo os seus vizinhos não saberiam dizer em que momento preciso ele viera sentar-se ali, mas nenhum pensou que, se os mortos viessem um dia sentar-se à mesa dos vivos, não conseguiriam mostrar cara mais macabra do que aquela. Os amigos dos Srs. Firmin Richard e Armand Moncharmin pensaram que esse conviva descarnado fosse alguém íntimo dos Srs. Debienne e Poligny, enquanto os amigos dos Srs. Debienne e Poligny pensaram que esse cadáver pertencesse à clientela dos Srs. Richard e Moncharmin. De tal maneira que nenhum pedido de explicação, nenhuma reflexão desagradável, nenhuma facécia de mau gosto ameaçou importunar esse hóspede de além-túmulo. Alguns convivas que estavam a par da lenda do fantasma e que conheciam a descrição que dele tinha feito o chefe dos maquinistas — ignoravam a morte de Joseph Buquet — achavam in petto que o homem na ponta da mesa poderia muito bem passar pela realização viva da personagem criada, segundo eles, pela irremovível superstição do pessoal da Ópera; e, no entanto, segundo a lenda, o fantasma não tinha nariz e essa personagem tinha, mas o Sr. Moncharmin afirma em suas “memórias” que o nariz do conviva era transparente. “O nariz dele”, diz, “era longo, fino e transparente” — e eu acrescento que podia ser um nariz falso. O Sr. Moncharmin pode tomar como transparência o que era apenas luzidio. Toda gente sabe que a ciência faz narizes falsos admiráveis para as pessoas que deles foram privadas pela natureza ou por alguma operação. Na realidade, o fantasma teria vindo sentar-se, aquela noite, no banquete dos diretores sem ser convidado? E podemos estar seguros de que aquele rosto era do próprio fantasma da Ópera? Quem ousaria dizê-lo? Se falo aqui desse incidente, não é porque queira acreditar ou fazer o leitor acreditar que o fantasma tenha sido capaz de tão soberba audácia, mas porque, em suma, isso é possível.
E aqui está, parece, uma razão suficiente. O Sr. Armando Moncharmin, ainda em suas memórias, diz textualmente no Capítulo XI: “Quando penso nessa primeira noite, não posso separar a confidência que nos foi feita, em seu gabinete, pelos Srs. Debienne e Poligny, da presença, em nosso jantar, dessa fantasmagórica personagem que ninguém de nós conhecia”.
Eis exatamente o que se passou:
Os Srs. Debienne e Poligny, colocados no meio da mesa, não tinham ainda notado o homem com cabeça de caveira, quando este se pôs, de repente, a falar.
— As bailarinazinhas têm razão — disse ele. — A morte do pobre Buquet pode não ser tão natural como se crê.
Debienne e Poligny tiveram um sobressalto.
— Buquet morreu? — exclamaram.
— Morreu — replicou tranqüilamente o homem ou a sombra de homem. — Encontraram-no enforcado, hoje à tarde, no terceiro patamar inferior, entre um suporte e um cenário do Rei de Labore.
Os diretores, ou melhor, ex-diretores, levantaram-se imediatamente, fixando estranhamente o interlocutor. Eles estavam mais agitados do que o razoável, isto é, mais do que é razoável ficar agitado pelo anúncio do enforcamento de um chefe maquinista. Ambos se olharam. Tinham ficado mais pálidos do que a toalha. Finalmente, Debienne fez um sinal aos Srs. Richard e Moncharmin: Poligny dirigiu aos convivas algumas palavras de desculpas, e os quatro passaram ao escritório da diretoria. Passo a palavra a Moncharmin.
“Os Srs. Debienne e Poligny pareciam cada vez mais agitados”, conta ele em suas memórias, “e pareceram ter alguma coisa para nos dizer que os embaraçava muito. Primeiro, perguntaram-nos se conhecíamos o indivíduo sentado à cabeceira da mesa, que lhes havia dado a notícia da morte de Joseph Buquet, e, como respondêssemos negativamente, mostraram-se ainda mais perturbados. Tomaram as gazuas de nossas mãos, observaram-nas por um instante, balançaram a cabeça, depois aconselharam-nos que fizéssemos outras fechaduras, no maior segredo, para os apartamentos, gabinetes e objetos que desejássemos fechar hermeticamente. Eles pareciam tão estranhos ao dizer isso que nos pusemos a rir, perguntando-lhes se havia ladrões na Ópera. Responderam que havia algo pior que era o fantasma. Começamos a rir de novo, convencidos de que estavam fazendo alguma pilhéria que seria como que o coroamento daquela festinha íntima. E depois, a pedido deles, voltamos a ficar ‘sérios’, decididos a entrar naquela espécie de jogo, para lhes agradar. Disseram-nos que jamais nos teriam falado do fantasma se não tivessem recebido ordem formal do próprio fantasma para nos empenhar em sermos amáveis com ele e em conceder-lhe tudo que nos pedisse. Todavia, felizes demais por deixar um espaço em que reinava soberana essa sombra tirânica e por ficarem, pelo fato mesmo, livres dela, tinham hesitado até o último instante em comunicar tão curiosa aventura para a qual certamente os nossos espíritos cépticos não estavam preparados, quando o anúncio da morte de Joseph Buquet lhes havia brutalmente lembrado que, cada vez que não obedeciam aos desejos do fantasma, algum acontecimento fantástico e funesto vinha rapidamente trazê-los de volta ao sentimento de sua dependência.
“Durante esses pronunciamentos inesperados, feitos em tom da mais secreta e importante confidência, eu ficava olhando para Richard. Richard, no tempo em que era estudante, tivera a reputação de ser um farsante, isto é, não ignorava nenhuma das mil e uma maneiras que se tem de zombar uns dos outros, e as zeladoras dos prédios do Boulevard Saint-Michel tiveram o seu quinhão nessa história. Assim, ele parecia estar gostando muito do prato que lhe serviam agora. Não perdia um bocado, embora o condimento fosse um pouco forte devido à morte de Buquet. Ele meneava a cabeça com tristeza, e suas feições, à medida que os outros falavam, iam ficando lamentáveis, como as de um homem que se arrependesse amargamente ter-se metido nesse negócio da Ópera, agora que tomava conhecimento de que havia um fantasma lá dentro. O melhor que eu podia fazer era copiar servilmente essa atitude desesperada. Entretanto, apesar de todos os nossos esforços, não pudemos, ao final, nos impedir de deixar escapar uma “explosão” de riso nas barbas dos Srs. Debienne e Poligny que, vendo-nos passar sem transição do mais sombrio estado de espírito à mais insolente alegria, procederam como se acreditassem que tínhamos ficado loucos.
“Como a farsa se prolongasse um pouco demais, Richard perguntou, entre sério e brincalhão: — Afinal, o que quer esse seu fantasma?
“Poligny dirigiu-se ao seu gabinete e voltou com uma cópia do caderno de encargos.
“O caderno de encargos começa por estas palavras: ‘A direção da Ópera tem por obrigação dar às representações da Academia Nacional de Música o esplendor que convém ao primeiro dos palcos líricos franceses’, e termina pelo artigo 98 que tem o seguinte teor: ‘O presente privilégio poderá ser retirado se o diretor não respeitar as disposições exaradas no caderno de encargos.’
“Seguem estas disposições.
“Esta cópia”, disse Moncharmin, “está escrita com tinta preta e inteiramente conforme àquela que nós possuímos.
“No entanto, vimos que o caderno de encargos que Poligny nos estava mostrando comportava in fine um parágrafo, escrito com tinta vermelha — com letra esquisita e atormentada, como se tivesse sido traçada com palitos de fósforos, letra de criança que ainda estivesse fazendo bastõezinhos e não soubesse ainda ligar as letras. E esse parágrafo, que alongava tão estranhamente o artigo 98, dizia textualmente:
“5º Se o diretor atrasar mais de quinze dias a mensalidade devida ao fantasma da Ópera, mensalidade fixada até nova ordem em 20 mil francos, 240 mil francos por ano.
“Poligny mostrava-nos, com dedo hesitante, essa cláusula suprema, pela qual não esperávamos.
“— É só isso? Ele não quer mais nada? — perguntou Richard com o maior sangue-frio.
“— Sim, replicou Poligny.
“E, depois de folhear de novo o caderno de encargos, leu:
‘ART. 63. — O grande camarote de boca à direita dos primeiros camarotes nº 1 ficará reservada para o Chefe do Estado. A frisa nº 20, às segundas-feiras, e o primeiro camarote nº 30 às quartas e sextas serão postos à disposição do ministro. O segundo camarote nº 27 será reservado a cada dia para o uso do Governador do Departamento do Sena e do Chefe de Polícia.’
“E ainda, no final desse artigo, Poligny nos mostrou uma linha escrita com tinta vermelha que tinha sido acrescentada.
“O primeiro camarote n°. 5 será colocado, em todas as representações, à disposição do fantasma da Ópera.
“Depois disso, não pudemos fazer outra coisa senão apertar calorosamente as mãos dos nossos predecessores felicitando-os por terem imaginado essa encantadora brincadeira, que provava que a velha jovialidade francesa nunca perderia os seus direitos. Richard achou até dever acrescentar que agora entendia por que os Srs.
Debienne e Poligny abandonavam a direção da Academia Nacional de Música. Os negócios se tornavam impossíveis com um fantasma tão exigente.
“— Evidentemente”, replicou sem pestanejar Poligny, “240 mil não se acham debaixo da ferradura de um cavalo. E os senhores se deram conta do que pode nos custar a não locação do primeiro camarote nº 5 reservado para o fantasma em todas as representações? Sem mencionar que tivemos de reembolsar o assinante, é assustador! Realmente, nós não trabalhamos para sustentar fantasmas!... Preferimos ir-nos embora!
“— Sim — repetiu Debienne —, preferimos ir-nos embora! Vamos embora!
“E levantou-se.
“Richard disse:
“— Mas afinal, a mim parece que os senhores são bem bonzinhos com esse fantasma. Se eu tivesse um fantasma que incomodasse tanto assim, eu não hesitaria em mandá-lo prender...
“— Sim, mas onde? Mas como? — clamaram em coro os ex-diretores — Nós nunca o vimos!
“— E quando ele vem ao seu camarote?
“— Nós nunca o vimos em seu camarote.
“— Então aluguem-no.
“— Alugar o camarote do fantasma da Ópera! Pois bem, experimentem!
“Depois disso, saímos os quatro do gabinete da direção. Richard e eu nunca tínhamos rido tanto.”
O CAMAROTE Nº 5
Armand Moncharmin escreveu relatórios tão volumosos que, no que concerne particularmente ao período de sua co-direção, tem-se o direito de perguntar se algum dia encontrou tempo para cuidar da Ópera de outro jeito que não fosse contando o que lá acontecia. Moncharmin não conhecia uma nota de música, mas, com a maior intimidade, tratava de “você” o ministro da Instrução Pública e das Belas-Artes, havia feito um pouco de jornalismo sobre espetáculos e gozava de uma fortuna assaz importante. Enfim, era um rapaz encantador a quem não faltava inteligência; tomada a decisão de comanditar a Ópera, tinha sabido escolher aquele que dela seria o diretor útil e tinha ido diretamente a Firmin Richard.
Firmin Richard era um músico de projeção e um homem galante. Eis o retrato que dele traça, no dia de sua tomada de posse, a Revue des Théâtres:
O Sr. Firmin Richard tem seus 50 anos, é alto, de compleição robusta, sem excesso de peso. Tem prestância e distinção, uma bela cor, cabelos plantados rijos, um pouco baixos e cortados em escova, barba combinando com os cabelos, o aspecto da fisionomia tem algo de um pouco triste a que tempera logo um olhar franco e reto unido a um sorriso encantador. O Sr. Firmin Richard é um músico muito distinto. Hábil harmonista, contrapontista competente, a grandeza é a principal característica de sua composição. Publicou música de câmara muito apreciada pelos aficionados, música para piano, sonatas ou fugas cheias de originalidade, uma coletânea de melodias. Enfim La mort d’Hercule (A morte de Hércules), executada nos concertos do Conservatório, respira um ar épico que faz pensar em Gluck, um dos mestres venerados do Sr. Firmin Richard. Todavia, se adora Gluck, não tem menos amor por Piccini; o Sr. Richard toma o prazer onde o encontra. Cheio de admiração por Piccini, inclina-se diante de Meyerbeer, deleita-se com Cimarosa e ninguém aprecia melhor do que ele o inimitável gênio de Weber. Enfim, no que diz respeito a Wagner, o Sr. Richard não está longe de pretender que é ele, Richard, o primeiro na França e talvez o único a tê-lo compreendido.
Paro aqui a minha citação, da qual parece-me resultar bastante claramente que, se Firmin Richard amava praticamente toda a música e todos os músicos, era dever de todos os músicos gostar também dele. Digamos, para terminar este rápido retrato, que o Sr. Richard era o que se convencionou chamar autoritário, isto é, tinha um péssimo temperamento.
Os primeiros dias que os dois associados passaram na Ópera foram só de alegria por se sentirem senhores de tão vasta e bela empresa e tinham certamente esquecido essa curiosa e estranha história do fantasma quando aconteceu um incidente que lhes provou que — se havia farsa — a farsa não tinha terminado.
Firmin Richard chegou naquela manhã às 11 horas ao seu gabinete. O seu secretário, Sr. Rémy, mostrou-lhe meia dúzia de cartas que ele não tinha aberto por trazerem a menção “pessoal”. Uma dessas cartas chamou de imediato a atenção de Richard não apenas porque a subscrição do envelope estava em vermelho, mas também porque pareceu-lhe já ter visto aquela letra em algum lugar. Não precisou procurar muito: era a letra vermelha com que tinha sido completado tão estranhamente o caderno de encargos. Reconheceu-lhe o desenho irregular e infantil. Abriu-a e leu:
Caro diretor, peço-lhe que me perdoe por vir perturbar estes momentos tão preciosos em que o senhor decide a sorte dos melhores artistas da Ópera, em que renova importantes contratos e em que inclui novos; e isso com uma segurança de vistas, um entendimento do teatro, uma ciência do público e dos seus gostos, uma autoridade que esteve bem perto de deixar estupefata a minha velha experiência. Estou a par do que o senhor acaba de fazer para Carlotta, Sorelli e a pequena Jammes, e por alguns outros de quem adivinhou as admiráveis qualidades, o talento e o gênio. — (O senhor sabe muito bem de quem estou falando quando escrevo estas palavras; não é evidentemente pela Carlotta, que canta como uma seringa e que nunca deveria ter abandonado os Embaixadores e o café Jacquin; nem pela Sorelli, que tem sucesso principalmente na carroceria; nem pela pequena Jammes, que dança como um bezerro no pasto. Não é tampouco pela Christine Daaé, cujo gênio é indiscutível, mas a quem o senhor deixa, com um zelo ciumento, afastada de qualquer criação importante.) — Afinal, o senhor é livre para administrar o seu pequeno negócio como melhor lhe convier, não é? Mesmo assim, desejaria aproveitar o fato de o senhor ainda não ter posto a Christine Daaé pela porta afora para ouvi-la esta noite no papel de Siebel, já que o de Margarida, desde o seu triunfo de outro dia, lhe está proibido, e peço-lhe para não dispor do meu camarote hoje nem nos dias subseqüentes; pois não terminarei esta carta sem confessar-lhe quanto estive desagradavelmente surpreso, nestes últimos tempos, ao chegar a Ópera, de ficar sabendo que o meu camarote havia sido alugado — no escritório de locação — atendendo a ordens suas.
Não protestei, primeiro porque sou inimigo de escândalos, depois porque imaginei que os seus predecessores, Srs. Debienne e Poligny, que sempre foram muito corretos comigo, tinham negligenciado, antes de deixarem o cargo, de falar com o senhor a respeito das minhas pequenas manias. Ora, acabo de receber dos Srs. Debienne e Poligny a resposta ao meu pedido de explicações, resposta essa que me prova que o senhor está a par do meu caderno de encargos e, por conseguinte, o senhor está zombando de mim de forma ultrajante. Se o senhor quiser que vivamos em paz, não deve começar por retirar-me o meu camarote! Sob o favor dessas pequenas observações, queira considerar-me, caro senhor diretor, seu mais humilde e obediente servo.
Assinado: F. da Ópera.
A carta vinha acompanhada de um extrato da pequena correspondência da Revue théâtral, em que se lia o seguinte: “F. da Ó.: R. e M. são indesculpáveis. Nós os avisamos e lhes passamos às mãos o seu caderno de encargos. Saudações!”.
Mal Firmin Richard havia terminado essa leitura, a porta de seu gabinete se abriu e Armand Moncharmin veio à sua presença, com uma carta na mão, absolutamente semelhante à que seu colega recebera. Olharam um para o outro e caíram na gargalhada.
— A pilhéria continua — disse Richard —, mas não tem graça!
— O que significa isso? — perguntou Moncharmin. — Eles estão pensando que porque foram diretores da Ópera nós lhes vamos conceder um camarote vitalício?
Porque, tanto para o primeiro como para o segundo, não havia dúvida de que a carta dupla fosse o resultado da colaboração faceciosa dos seus predecessores.
— Não tenho paciência para me deixar tapear por muito tempo! — declarou Firmin Richard.
— É inofensivo! — observou Armand Moncharmin.
— Afinal de contas, o que é que eles querem? Um camarote para esta noite?
Firmin Richard deu ordem ao secretário para enviar o primeiro camarote nº 5 aos Srs. Debienne e Poligny, se não estivesse alugado.
Não estava. Foi imediatamente expedido a eles. Debienne e Poligny moravam, o primeiro, na esquina da rua Scribe com o Boulevard des Capucines; o outro, na rua Auber. As duas cartas do fantasma da Ópera tinham sido postadas na agência dos correios do Boulevard des Capucines. Moncharmin notou isso ao examinar os envelopes.
— Você está vendo! — disse Richard.
Deram de ombros e lamentaram que pessoas nessa idade ainda se divertissem com brincadeiras tão inocentes.
— Mesmo assim, eles poderiam ter sido mais educados! — observou Moncharmin. — Você viu como nos tratam a respeito de Carlotta, de Sorelli e da pequena Jammes?
— Ora, meu caro, essas pessoas estão doentes de ciúmes!... Quando penso que chegaram a ponto de pagar por uma pequena correspondência na Revue théâtral!... Eles não têm mais nada para fazer?
— A propósito! — continuou Moncharmin —, eles parecem interessar-se muito pela pequena Christine Daaé...
— Você sabe tão bem quanto eu que ela tem a reputação de ser muito ajuizada! — respondeu Richard.
— A gente rouba tantas vezes a reputação que tem — replicou Moncharmin. — Eu, por exemplo, não tenho a reputação de entender de música? E eu ignoro a diferença entre a clave de sol e a clave de fá.
— Você nunca teve essa reputação — declarou Richard —, fique tranqüilo.
Nesse momento, Firmin Richard deu ordem ao contínuo para mandar entrar os artistas que, havia duas horas, passeavam pelo grande corredor da administração à espera de que a porta da diretoria se abrisse, essa porta atrás da qual os esperavam a glória e o dinheiro... ou a despedida.
Todo esse dia se passou em discussões, confabulações, assinaturas ou rupturas de contratos; também lhes peço que creiam que, naquela noite — a noite de 25 de janeiro —, os nossos dois diretores, cansados de uma árdua fornada de cóleras, intrigas, recomendações, ameaças, protestos de amor ou de ódio, foram dormir cedo, sem sequer ter a curiosidade de dar uma olhadela no camarote nº 5, para saber se Debienne e Poligny estavam achando o espetáculo a seu gosto. A Ópera não tinha interrompido as atividades desde a partida da antiga diretoria, e o Sr. Richard tinha mandado proceder às reformas necessárias sem interromper o curso das apresentações.
No dia seguinte, pela manhã, Richard e Moncharmin encontraram na sua correspondência, por um lado, uma carta de agradecimento do fantasma, assim concebida:
Caro Diretor,
Obrigado. Noite encantadora. Daaé, um requinte. Cuide dos coros. A Carlotta, magnífico e banal instrumento. Logo lhes escreverei sobre os 240 mil francos — exatamente 233.424 fr 70. Os Srs. Debienne e Poligny mandaram-me 6.575 fr 30, o que representa os dez primeiros dias da minha pensão deste ano — visto que os privilégios deles terminaram no dia 10 a noite.
Servo.
Por outro lado, uma carta de Debienne e de Poligny:
Senhores,
Agradecemo-lhes a amável atenção, mas os senhores compreenderão facilmente que a perspectiva de ouvir de novo Fausto, por mais amena que possa ser para antigos diretores da Ópera, não pode fazer-nos esquecer de que não temos nenhum direito de ocupar o primeiro camarote n°. 5, que pertence exclusivamente àquele de quem tivemos a oportunidade de lhes falar, ao relermos, com os senhores, pela última vez, o caderno de encargos — último parágrafo do artigo 63. Queiram aceitar, senhores, etc.
— Ah! mas eles estão começando a me irritar, esses fulanos! — declarou com violência Firmin Richard, amassando a carta de Debienne e Poligny.
Naquela noite, o primeiro camarote nº 5 foi alugado.
No dia seguinte, ao chegar a seu gabinete, Richard e Moncharmin encontraram um relatório do inspetor relativo aos acontecimentos que se desenrolaram na véspera, à noite, no primeiro camarote nº 5:
— Fui obrigado, escreveu o inspetor, a requisitar, esta noite — o inspetor escrevera o seu relatório na véspera à noite - um guarda municipal para evacuar, por duas vezes, no início e no meio do segundo ato, o primeiro camarote nº 5. Os ocupantes — tinham chegado no começo do segundo ato — causavam um verdadeiro escândalo com as suas risadas e os seus comentários impertinentes. De toda parte em torno deles ouviam-se psiu!’ e toda a sala começava a protestar quando a lanterninha veio me procurar; entrei no camarote e externei as observações necessárias. Aquelas pessoas não pareciam gozar de bom senso e me disseram coisas sem nexo. Adverti-os de que, se semelhante escândalo se repetisse, eu me veria forçado a mandar evacuar o camarote. Mal eu tinha me retirado, ouvi de novo as suas risadas e os protestos da sala. Voltei com um guarda municipal que os fez sair. Reclamaram, rindo sempre, declarando que não iriam embora se não lhes devolvessem o dinheiro. Finalmente, se acalmaram, e eu os deixei voltar para o camarote; logo recomeçaram as risadas e, desta vez, eu mandei expulsá-los definitivamente.
— Mandem vir aqui o inspetor — gritou Richard ao seu secretário, que tinha sido o primeiro a ler o relatório e já o tinha anotado com lápis azul.
O secretário, Sr. Rémy — 24 anos, bigode fino, elegante, distinto, traje a rigor — naquele tempo, fraque obrigatório durante o dia, inteligente e tímido diante do diretor, 2 400 francos de proventos anuais, pagos pelo diretor, compulsa os jornais, responde às cartas, distribui camarotes e entradas de cortesia, arranja os encontros, conversa com aqueles que ficam na antecâmara, corre à casa dos artistas doentes, procura substitutos, corresponde com os chefes de serviço, mas antes de tudo faz as vezes de tranca no gabinete da diretoria, pode ser despedido sem qualquer compensação, pois não é reconhecido pela administração —, o secretário, que já tinha mandado procurar o inspetor, deu ordem para o fazerem entrar.
O inspetor entrou e parecia um pouco preocupado.
— Conte-nos o que se passou — disse bruscamente Richard. O inspetor imediatamente começou a gaguejar e fez alusão ao relatório.
— Afinal! aquela gente, por que estava rindo? — perguntou Moncharmin.
— Senhor diretor, eles deviam ter jantado muito bem e pareciam mais dispostos a fazer algazarra do que a ouvir boa música. Já ao chegarem, mal tinham entrado no camarote, saíram e chamaram a lanterninha que lhes perguntou o que é que eles queriam. Disseram à lanterninha: “Olhe dentro do camarote, não tem ninguém, não é?” “Não”, respondeu a lanterninha. “Pois bem”, afirmaram, “quando entramos, ouvimos uma voz que dizia que havia alguém”.
Moncharmin não pôde olhar para Richard sem sorrir, mas ele, Richard, não sorria. Tinha “trabalhado” muito no gênero para não reconhecer na narrativa que lhe fazia, com a maior ingenuidade do mundo, o inspetor todas as marcas de uma dessas maldosas pilhérias que de início divertem os que delas são vítimas, mas acabam por fazê-los ficar enraivecidos.
O inspetor, para agradar ao Sr. Moncharmin que estava sorrindo, achou que devia também sorrir. Sorriso infeliz! O olhar do Sr. Richard fulminou o empregado, que de imediato fez por mostrar um semblante horrivelmente consternado.
— Enfim, quando essa gente chegou — perguntou vociferando o terrível Richard —, não havia ninguém no camarote?
— Ninguém, senhor diretor! ninguém! nem no camarote da direita, nem no camarote da esquerda, ninguém, eu lhe juro! ponho a minha mão no fogo! e é isso o que prova que tudo não passa de uma brincadeira.
— E a lanterninha, o que foi que ela disse?
— Oh! para a lanterninha, é muito simples, ela disse que foi o fantasma da Ópera.
E o inspetor deu um sorriso amarelo. Ainda assim compreendeu que fazia mal de sorrir, pois nem bem tinha pronunciado “Ela disse que foi o fantasma da Ópera!” e a fisionomia do Sr. Richard, de sombria que estava, passou a brava.
— Mandem me buscar a lanterninha! — ordenou ele... — Imediatamente! E que ela me seja trazida aqui! E que se ponha toda essa gente aí para fora!
O inspetor quis protestar, mas Richard lhe fechou a boca com um temível “Cale-se!” Depois, quando os lábios do infeliz subordinado pareceram fechados para sempre, o diretor ordenou que se abrissem de novo.
— O que é que é o “fantasma da Ópera”? — decidiu perguntar com um grunhido.
Mas o inspetor agora era incapaz de dizer palavra. Deu a entender por uma mímica desesperada que não sabia de nada, ou melhor, que não queria saber de nada.
— Você viu, você, o fantasma da Ópera?
Com um gesto enérgico de cabeça, o inspetor negou tê-lo visto.
— Azar! — declarou friamente Richard.
O inspetor arregalou enormemente os olhos, olhos que lhe saíam das órbitas, para perguntar por que o diretor havia pronunciado aquele sinistro : “Azar!”
— Porque eu vou mandar fazer as contas de todos aqueles que não o viram! — explicou o diretor. — Já que ele está por toda parte, não é admissível que não o vejam em lugar nenhum. Gosto que as pessoas façam o seu serviço!
SEQÜÊNCIA DO CAMAROTE Nº 5
Tendo dito aquelas palavras, o Sr. Richard não mais deu atenção ao inspetor e tratou de diversos expedientes com o seu administrador que acabava de entrar. O inspetor pensou que podia ir-se embora e bem devagarinho, devagarinho, oh! meu Deus! tão devagarinho!... caminhando para trás, tinha se aproximado da porta, quando Richard, percebendo a manobra, pregou o homem no lugar com um tonitruante “Não se mexa!”
Por iniciativa do Sr. Rémy, tinham ido buscar a lanterninha, que trabalhava de zeladora na rua de Provence, a dez passos da Ópera. Logo ela apareceu.
“Como é que a senhora se chama?
— Sra. Giry. O senhor me conhece bem, senhor diretor; sou eu a mãe da pequena Giry, da pequena Meg, enfim!
Isso foi dito em tom rude e solene que impressionou por um instante o Sr. Richard. Ele olhou para a Sra. Giry (xale desbotado, sapatos gastos, vestido velho de tafetá, chapéu cor de fuligem). Era evidente, pela atitude do diretor, que este não conhecia ou não se lembrava de ter conhecido a Sra. Giry, nem tampouco a pequena Giry, “nem sequer a pequena Meg”! Mas o orgulho da Sra. Giry era tamanho que essa célebre lanterninha (creio mesmo que foi a partir do nome dela que se fez o nome bem conhecido na gíria dos bastidores: “giries”. Exemplo: uma artista recrimina uma colega por suas fofocas, seus papos-furados; ela lhe dirá: “Tudo isso são ‘giries’ “), que essa lanterninha, dizíamos, se achava conhecida por todo mundo.
— Não a conheço não! — acabou por proclamar o diretor — Mas, Sra. Giry, isso não impede que eu queira saber o que lhe aconteceu ontem à noite, para que a senhora tenha sido forçada, a senhora e o inspetor, a recorrer a um guarda municipal...
— Eu tava justamente querendo lhe ver, seu diretor, só pra não acontecer com o senhor os mesmos desagrados que com os
Srs. Debienne e Poligny... Eles também, no começo, não queriam me escutar...
— Não estou lhe perguntando tudo isso. Estou perguntando o que lhe aconteceu ontem à noite!
A Sra. Giry ficou vermelha de indignação. Nunca lhe tinham falado num tom assim. Ela se levantou como para ir-se embora, já pegando as pregas da saia e agitando com dignidade as plumas do chapéu cor de fuligem; mas, mudando de idéia, voltou a sentar-se e disse com voz arrogante:
— Aconteceu que mais uma vez importunaram o fantasma!
A essa altura, como Richard ia explodir, Moncharmin interveio e dirigiu o interrogatório, de onde resultou que a Sra. Giry achava totalmente natural que uma voz se fizesse ouvir para proclamar que havia alguém num camarote onde não havia ninguém. Não podia explicar a si mesma esse fenômeno, que para ela não era novo, senão pela intervenção do fantasma. Esse fantasma, ninguém o via no camarote, mas todo mundo podia ouvi-lo. Ela mesma o tinha ouvido muitas vezes, e podiam acreditar nela, pois não mentia nunca. Podiam perguntar aos Srs. Debienne e Poligny e a todos aqueles que a conheciam, e também ao Sr. Isidore Saack, a quem o fantasma tinha quebrado uma perna!
— Mesmo? — interrompeu Moncharmin. — O fantasma quebrou a perna desse pobre Isidore Saack?
A Sra. Giry arregalou os olhos onde se retratava o espanto que se apoderava dela diante de tanta ignorância. Finalmente, consentiu em instruir aqueles dois infelizes inocentes. O fato se deu no tempo de Debienne e Poligny, sempre no camarote nº 5 e também durante a representação de Fausto.
A Sra. Giry tosse, afirma a voz... começa... dir-se-ia que ela se prepara para cantar toda a partitura de Gounoud.
— Pois é, meu senhor. Estavam, naquela noite, na primeira fileira, o Sr. Maniera e sua senhora, os lapidários da rua Mogador, e, atrás da Sra. Maniera, o amigo deles, Sr. Isidore Saack. Mefistófeles cantava (a Sra. Giry canta): “Você que se faz de adormecida”, e então o Sr. Maniera ouve no ouvido direito (sua mulher estava à esquerda) uma voz que lhe diz: “Ah! ah! não é Julie que faz o papel de adormecida!” (A mulher dele se chama justamente Julie). O Sr. Maniera vira-se para a direita para ver quem lhe falava assim. Ninguém! Esfrega a orelha e diz a si mesmo: “Será que estou sonhando?” Enquanto isso, Mefistófeles continuava a sua canção... Mas talvez eu esteja aborrecendo os senhores diretores?
— Não! Não! — continue...
— Os senhores diretores são bons demais! (uma careta da Sra. Giry). Então, Mefistófeles continuava a sua canção (A Sra. Giry canta): “Catarina que eu adoro — por que recusar — ao amante que lhe implora — um beijo tão doce?” e logo em seguida o Sr. Maniera ouve, sempre do lado direito: “Ah! ah! não é Julie que recusaria um beijo a Isidore?” Nisso, ele se volta, mas, desta vez, para o lado da sua senhora e de Isidore, e o que vê? Isidore que tinha pegado por trás a mão da sua senhora e que a cobria de beijos no buraquinho da luva... deste jeito, meus bons senhores. (A Sra. Giry cobre de beijos o pedacinho de carne deixado descoberto pela sua luva de filosela.) Então os senhores calculam que tudo isso não se passou “numa boa!” Clic! Clac! O Sr. Maniera, que era alto e forte como o senhor, Sr. Richard, distribuiu um par de bofetões ao Sr. Isidore Saack, que era magro e fraco como o Sr. Moncharmin, salvo o respeito que eu lhe devo. Foi um escândalo. Na sala, gritavam: “Chega! Chega!... Ele vai matá-lo!...” Finalmente, o Sr. Isidore Saack conseguiu escapar...
— Então o fantasma não lhe tinha quebrado a perna? — perguntou Moncharmin um pouco vexado por seu físico ter causado tão fraca impressão sobre a Sra. Giry.
— Ele quebrou ela sim, senhor — replicou a Sra. Giry com altivez (pois tinha entendido a intenção maldosa). — Quebrou ela bem ali, na escadona, que ele ia descendo depressa demais! E tanto assim, palavra, que o pobre não vai subir ela de volta tão cedo!...
— Foi o fantasma que lhe contou as palavras que sussurrou na orelha direita do Sr. Maniera? — questionou sempre com uma seriedade, que ele acredita ser muito cômica, o juiz de instrução Moncharmin.
— Não, senhor, foi o próprio Sr. Maniera. Assim...
— Mas a senhora já falou com o fantasma, minha boa senhora?
— Como estou falando com o senhor, meu bom senhor.
— E quando ele fala com a senhora, o fantasma, o que é que ele lhe diz?
— Ele me diz para trazer um banquinho para ele!
A essas palavras, pronunciadas com solenidade, o rosto da Sra. Giry ficou como de mármore, de mármore amarelo, rajado de veias vermelhas, como o das colunas que sustentam a grande escadaria e a que chamam mármore sarrancolino.
Desta vez Richard tinha voltado a rir em companhia de Moncharmin e do secretário Rémy; mas, instruído pela experiência, o inspetor não ria mais. Encostado na parede, perguntava-se, remexendo febrilmente as suas chaves no bolso, como ia terminar aquela história. E quanto mais a Sra. Giry empregava um tom “arrogante”, mais ele temia a volta da cólera do diretor! E, agora, eis que diante da hilaridade dos diretores a Sra. Giry ousava tornar-se ameaçadora! Ameaçadora de verdade!
— Em vez de rir do fantasma — bradou indignada —, fariam melhor se fizessem como o Sr. Poligny, que por se convencer por si mesmo...
— Convencer-se de quê? — interrogou Moncharmin, que nunca se divertira tanto.
— Do fantasma!... Pois eu estou dizendo para os senhores... Olhem!... (Ela se acalma subitamente, pois julga que a hora é grave.) Olhem!... Eu me lembro como se fosse ontem. Dessa vez estavam representando A judia. O Sr. Poligny quisera assistir sozinho, no camarote do fantasma, à representação. A Sra. Krauss tinha tido um sucesso louco. Ela tinha acabado de cantar, os senhores sabem, a máquina do segundo ato (a Sra. Giry canta a meia voz):
Junto daquele a quem amo Quero viver e expirar, E nem a própria morte Vai poder nos separar.
— Bem! Bem! já entendi... — observou com um sorriso desanimador o Sr. Moncharmin.
Mas a Sra. Giry continuou a meia voz, balançando a pluma do seu chapéu cor de fuligem:
Partamos! partamos! Neste mundo, ou no Além, Sorte igual cabe a mim e a ti também.
— Sim! Sim! já entendemos! — repetiu Richard, de novo impaciente... — e daí?
— E daí, é nesse momento que Leopoldo exclama: “Fujamos!” não é? e que Eleazar os prende, enquanto lhes pergunta: “Para onde correis?” Pois bem, nesse momento, o Sr. Poligny, que eu estava observando do fundo de um camarote ao lado, que tinha ficado vazio, o Sr. Poligny levantou-se reto e saiu duro como uma estátua, e só tive tempo de perguntar a ele, como Eleazar: “Aonde o senhor vai?” Mas ele não me respondeu e estava mais pálido do que um defunto! Olhei ele descer a escadaria, mas ele não quebrou a perna... Entretanto, caminhava como num sonho e não conseguia achar o caminho... ele que era pago para conhecer bem a Ópera!
Assim se exprimiu a Sra. Giry e depois se calou para julgar o efeito que havia produzido. A história de Poligny tinha feito Moncharmin balançar a cabeça.
— Nada disso me diz em que circunstâncias, nem como o fantasma da Ópera lhe pediu um banquinho? — insistiu ele, olhando fixamente para a Sra. Giry, como se diz, olho no olho.
— Então, foi desde aquela noite... porque, a partir daquela noite, deixaram ele em paz, nosso fantasma... não brigaram mais com ele por causa do camarote. Os Srs. Debienne e Poligny deram ordens para deixarem o camarote para ele em todas as representações. Então, quando ele chegava, me pedia o seu banquinho...
— Hã! hã! um fantasma que pede um banquinho? Então é uma mulher, o seu fantasma? — interrogou Moncharmin.
— Não, o fantasma é homem.
— Como é que a senhora sabe?
— Ele tem voz de homem, oh! uma voz suave de homem! Vejam como é que isso acontece: quando ele vem à Ópera, chega em geral lá pelo meio do primeiro ato, dá três pancadinhas secas na porta do camarote nº 5. Na primeira vez que eu ouvi essas três pancadas, quando sabia muito bem que não havia ainda ninguém no camarote, os senhores imaginam se eu não fiquei intrigada! Abro a porta, escuto, olho: ninguém! Depois não é que eu escuto uma voz me dizendo: “Sra. Jules (é o nome do meu falecido marido), um banquinho, por favor?” Salvo o respeito que eu lhe devo, Sr. diretor, fiquei que nem um tomate... Mas a voz continuou: “Não se assuste, Sra. Jules, sou eu, o fantasma da Ópera!!!” Olhei para o lado de onde vinha a voz, que era, aliás, tão boa, tão “acolhedora” que quase já não me dava mais medo. A voz, Sr. diretor, estava sentada na primeira poltrona da primeira fileira à direita. Só que eu não via ninguém na poltrona, podia-se jurar que tinha alguém em cima, que falava, e alguém muito educado, palavra.
— O camarote à direita do de nº 5 — perguntou Moncharmin, estava ocupado?
— Não; tanto o camarote nº 7 como o camarote nº 3 à esquerda não estavam ainda ocupados. O espetáculo ainda estava no comecinho.
— E o que foi que a senhora fez?
— Pois bem, eu trouxe o banquinho. Evidente, não era para ele que ele pedia o banquinho, era para a senhora dele! Mas ela, eu nunca vi nem ouvi...
O fantasma agora tinha uma mulher! Da Sra. Giry o duplo olhar de Moncharmin e Richard subiu até o inspetor que, atrás da lanterninha, agitava os braços para atrair sobre si a atenção de seus chefes. Ele bateu na testa com o indicador desolado para dar a entender aos diretores que a Sra. Jules estava por certo completamente maluca, pantomima que levou definitivamente o Sr. Richard a decidir livrar-se de um inspetor que mantinha em seu serviço uma louca. A boa mulher continuava, toda envolvida com o seu fantasma, a elogiar a sua generosidade.
— No fim do espetáculo, ele sempre me dá uma moeda de dois, quatro, às vezes até de dez francos, quando passou vários dias sem vir. Só que, desde que voltaram a aborrecê-lo, ele não me dá mais nada de nada...
— Desculpe, minha boa senhora... {Nova revolta da pluma do chapéu cor de fuligem diante de tão persistente familiaridade) desculpe!... Mas como é que o fantasma faz para lhe entregar o dinheiro? — interrogou Moncharmin, curioso de nascença
— Ele deixa em cima da mesinha do camarote, ora! Eu o encontro ali com o programa que sempre levo para ele; algumas noites, encontro até flores na minha saleta, uma rosa que terá caído do busto de sua dama... pois, certamente, ele deve vir, às vezes, com uma dama, para que possa ter esquecido, um dia, um leque.
— Ah! ah! o fantasma esqueceu um leque? E o que é que a senhora fez desse leque?
— Ora, eu devolvi para ele na vez seguinte. Aqui, ouviu-se a voz do inspetor:
— A senhora não observou o regulamento, Sra. Giry, tenho de puni-la por isso.
— Cale a boca, imbecil! (Voz de baixo de Firmin Richard.) Com que então a senhora devolveu o leque! E aí?
— E aí eles o levaram embora, Sr. diretor; não o encontrei mais no fim do espetáculo, prova é que eles deixaram no lugar uma caixa de bombons ingleses de que eu gosto tanto, Sr. diretor. E uma das gentilezas do fantasma...
— Está bem, Sra. Giry... A senhora pode se retirar. Quando a Sra. Giry, depois de cumprimentar respeitosamente, não sem certa dignidade que nunca a abandonava, os seus dois diretores, estes declararam ao inspetor que estavam decididos a se privar dos serviços daquela velha louca. E dispensaram o inspetor.
Quando o inspetor se retirou, depois de ter protestado a sua dedicação à casa, os diretores pediram ao administrador que fizesse as contas do inspetor. Quando ficaram sós, os diretores se comunicaram um mesmo pensamento, que lhes viera a ambos ao mesmo tempo, o de ir dar uma voltinha para os lados do camarote nº 5.
Logo os acompanharemos até lá.
O VIOLINO ENCANTADO
Christine Daaé, vítima de intrigas de que voltaremos a falar adiante, não conseguiu repetir de imediato na Ópera o triunfo da famosa noite de gala. Desde então, entretanto, ela teve oportunidade de mostrar sua voz na cidade, na casa da duquesa de Zurique, onde cantou os mais belos trechos de seu repertório; e eis como o grande crítico X..Y. A., que se encontrava entre os convidados importantes, se exprimiu a respeito:
Quando a gente a ouve em Hamlet, se pergunta se Shakespeare veio dos Campos Elísios ensaiar com ela Ofélia... E verdade que, quando ela cinge o diadema de estrelas da rainha da noite, Mozart, de seu lado, deve deixar as moradas eternas para vir ouvi-la. Mas não, ele não precisa se incomodar, pois a voz aguda e vibrante da intérprete mágica de sua Flauta encantada vai encontrar-se com ele no Céu, que ela escala com facilidade, exatamente como soube, sem esforço, passar da cabana da aldeia de Skotelof ao palácio de ouro e de mármore construído por Garnier.
Mas depois do sarau da duquesa de Zurique, Christine não cantou mais para a alta sociedade. O fato é que, nessa época, recusou qualquer convite, qualquer cachê. Sem. dar pretexto plausível, renunciou aparecer numa festa de caridade, para a qual havia anteriormente prometido contribuir com sua presença. Agiu como se não fosse mais dona do seu destino, como se tivesse medo de um novo triunfo.
Ela soube que o conde de Chagny, para agradar o irmão, tinha feito intervenções a seu favor junto ao Sr. Richard; ela lhe escrevera para agradecer e também para lhe pedir que não falasse mais dela aos diretores. Quais poderiam ser as razões de semelhante atitude? Alguns achavam que havia nisso um orgulho incomensurável; outros proclamavam tratar-se de uma divina modéstia. Não se é tão modesto assim quando se está no teatro; na verdade, não sei se não deveria escrever simplesmente esta palavra: pavor. Sim, acredito que Christine Daaé estava com medo do que acabara de lhe acontecer e tão estupefata quanto todas as pessoas ao seu redor. Estupefata? Vamos! Tenho uma carta de Christine (coleção do Persa) que se refere aos acontecimentos dessa época. Pois bem, depois de tê-la relido, não escreverei que Christine estava estupefata nem mesmo assustada com o seu triunfo, mas sim apavorada. Sim, sim... apavorada! “Não me reconheço mais quando canto”, dizia ela.
Pobre, pura, doce menina!
Não ia a lugar nenhum, e o visconde de Chagny tentou em vão colocar-se em seu caminho. Ele lhe escrevera, pedindo permissão de se apresentar em sua casa, e já estava perdendo a esperança de ter uma resposta quando, numa manhã, ela fez chegar a ele o seguinte bilhete:
Meu senhor, não esqueci o menininho que foi buscar a minha echarpe no mar. Não posso impedir-me de lhe escrever isto, hoje, quando estou partindo para Perros, levada por um dever sagrado. Amanhã é o aniversário da morte do meu pobre pai, que o senhor conheceu, e que o amava tanto. Ele está enterrado lá, com o seu violino, no cemitério que rodeia a igrejinha, ao pé do morro onde, ainda pequeninos, brincamos tanto; à beira dessa estrada onde, já um pouco mais crescidos, nós nos dissemos adeus pela última vez.
Quando recebeu esse bilhete de Christine, Raoul precipitou-se sobre um guia de trens, vestiu-se às pressas, escreveu algumas linhas que o camareiro devia remeter ao seu irmão e lançou-se num carro que aliás o deixou tarde demais na plataforma da estação de Montparnasse para lhe permitir tomar o trem da manhã com que contava.
Raoul passou o dia tristonho e só retomou o gosto pela vida quando se instalou em seu vagão. Ao longo de toda a viagem, releu o bilhete de Christine e aspirou o seu perfume; ressuscitou a doce imagem de seus tenros anos. Passou essa admirável noite de estrada de ferro num sonho febril que tinha por início e fim Christine Daaé. O dia despontava quando desembarcou em Lannion. Correu para a diligência de Perros-Guirec. Ele era o único passageiro. Interrogou o cocheiro. Soube que na véspera, à noite, uma jovem que parecia ser uma parisiense fora conduzida a Perros e descera na Hospedaria do Sol-Poente. Só podia ser Christine. Viera sozinha. Raoul deixou escapar um suspiro profundo. Ia poder, em completa paz, falar com Christine naquela solidão. Estava sufocando de amor. Aquele rapagão, que dera a volta ao mundo, era puro como uma virgem que nunca abandonou a casa da mãe.
Na medida em que se aproximava dela, lembrava devotamente a história da cantorazinha sueca. Numerosos detalhes ainda são ignorados pela multidão.
Houve uma vez, num pequeno burgo, nas redondezas de Upsala, um camponês que ali vivia, com a família, cultivando a terra durante a semana e cantando no coro aos domingos. Esse camponês tinha uma filhinha a quem, muito antes que ela soubesse ler, ensinou decifrar o alfabeto musical. O Sr. Daaé era, sem que ele próprio se desse conta disso talvez, um grande músico. Tocava violino e era considerado o melhor menestrel de toda a Escandinávia. A sua reputação aumentava e todos se dirigiam a ele para os bailes de núpcias e os festins. A Sra. Daaé, entrevada, morreu quando Christine estava com 10 anos. Logo a seguir, o pai, que só amava a sua filha e a música, vendeu o seu pedaço de terra e foi para Upsala em busca da glória. Lá só encontrou a miséria.
Então, voltou para o campo, indo de feira em feira, arranhando as suas melodias escandinavas, enquanto a sua menina, que nunca o abandonava, escutava-o com êxtase ou o acompanhava cantando. Um dia, na feira de Limby, o professor Valérius ouviu-os a ambos e os levou para Gotemburgo. Achava que o pai era o primeiro violinista do mundo e a filha tinha o necessário para vir a ser uma grande artista. Proveu-se à educação e à instrução da menina. Por toda parte maravilhava as pessoas por sua beleza, sua graça e sua sede de aprender. Seus progressos eram rápidos. O professor Valérius e sua mulher, nessa ocasião, tiveram de ir morar na França. Levaram consigo Daaé e a Christine. A mulher de Valérius tratava Christine como filha. Quanto ao bom velho, começava a definhar, tomado pela saudade da terra. Em Paris, nunca saía. Vivia numa espécie de sonho que ele alimentava com o seu violino. Horas a fio, fechava-se em seu quarto com a filha, e ouvia-se tocar violino e cantar baixinho. Por vezes, a Sra. Valérius ia escutá-los atrás da porta, soltava um grande suspiro, enxugava uma lágrima e ia embora na ponta dos pés. Também ela tinha nostalgia do seu céu escandinavo.
O velho Daaé parecia só recobrar as forças no verão, quando toda a família ia passear em Perros-Guirec, num canto da Bretanha então quase desconhecido dos parisienses. Ele gostava muito do mar dessa região, achando-o, dizia, da mesma cor do de sua terra natal e muitas vezes, na praia, tocava para ele as suas mais dolentes árias; Daaé pretendia que o mar se calava para ouvi-lo. E, depois, ele tinha suplicado tanto à Sra. Valérius que esta consentira a mais um capricho do antigo menestrel.
Na época dos “perdões”, das festas de aldeias, das danças e das “folias”, lá se ia ele, como outrora, com o seu violino, e tinha o direito de levar consigo a filha durante oito dias. Ninguém se cansava de ouvi-los. Eles derramavam harmonia para o ano todo nos menores vilarejos e dormiam à noite nos paióis, recusando o leito da hospedaria, apertando-se um contra o outro em cima da palha, como nos tempos em que eram tão pobres na Suécia.
Ora, eles andavam bem-vestidos e recusavam as moedas que lhes ofereciam, não faziam coleta, e as pessoas, ao seu redor, não compreendiam o comportamento desse tocador de violino que percorria os caminhos com aquela bela menina que cantava tão bem que dava a impressão de se estar ouvindo um anjo do paraíso. Eram seguidos de aldeia em aldeia.
Um dia, um rapazinho da cidade, que estava com a governanta, fez com que esta percorresse um longo caminho, pois não se decidia a se afastar da menina cuja voz tão suave e tão pura parecia tê-lo encantado. Chegaram assim à beira de uma angra a que chamam ainda hoje Trestraou. Naquele tempo, só havia nesse lugar o céu e o mar e a praia dourada. E, além de tudo, havia um forte vento que carregou a echarpe de Christine para dentro do mar. Christine deu um grito e estendeu os braços, mas a echarpe já estava longe por sobre as ondas. Christine ouviu uma voz que lhe dizia:
— Não se perturbe, mocinha, eu vou buscar a sua echarpe no mar.
E ela viu um garotinho que corria, corria apesar dos gritos e dos protestos indignados de uma senhora toda de preto. O garotinho entrou no mar de roupa e lhe trouxe de volta a echarpe. O garoto e a echarpe estavam num estado deplorável! A senhora de preto não conseguia se acalmar, mas Christine ria de coração pleno, e deu um beijo no menino. Era o visconde Raoul de Chagny. Ele morava com a tia, nessa época, em Lannion. Durante a estação eles voltaram a se ver quase todos os dias e brincaram juntos. A pedido da tia e com a intermediação do professor Valérius, o velho Daaé consentiu em dar lições de violino ao jovem visconde. Assim, Raoul aprendeu a gostar das mesmas árias que tinham encantado a infância de Christine.
Eles tinham mais ou menos a mesma almazinha sonhadora e calma. Só gostavam das histórias, dos velhos contos bretões, e sua principal brincadeira era ir buscá-los na soleira das portas, como mendigos. “Minha senhora ou meu bom senhor, teriam uma historinha para nos contar, por favor?” Era raro que não lhes “dessem” o que pediam. Qual é a velha avó bretã que não viu, pelo menos uma vez na vida, dançarem os “korrigans”[3], sobre a charneca, em noite de luar?
Mas a grande festa para eles era quando, no crepúsculo, na grande paz da noite, depois que o sol já se deitara no mar, o Sr. Daaé vinha sentar-se ao lado deles à beira da estrada e lhes contava em voz baixa, como se temesse espantar os fantasmas que evocava, as belas, ternas ou terríveis lendas do país do Norte. Ora eram bonitas como os contos de Andersen, ora tristes como os cantos do grande poeta Runeberg. Quando se calava, as duas crianças diziam: “Conta outra!”
Havia uma história que começava assim:
Um rei tinha-se sentado num barquinho, sobre uma dessas águas tranqüilas e profundas que se abrem como um olho brilhante no meio dos montes da Noruega...
E outra:
A pequena Lotte pensava em tudo e não pensava em nada. Passarinho de verão, ela planava nos raios de ouro do sol, levando sobre os cachos louros a sua coroa primaveril. Tinha a alma tão clara, tão azul quanto o seu olhar. Tratava a mãe com extremo carinho, era fiel à sua boneca, tinha muito cuidado com a roupa, com os sapatinhos vermelhos e com o seu violino, mas gostava, acima de tudo, de ouvir, para adormecer, o Anjo da música.
Enquanto o bom senhor dizia essas coisas, Raoul ficava olhando para os olhos azuis e para o cabelo dourado de Christine. E Christine pensava que a pequena Lotte era bem feliz de poder ouvir, para adormecer, o Anjo da música. Quase não havia história do velho Daaé em que não interviesse o Anjo da música, e as crianças lhe pediam explicações a respeito desse Anjo, infindavelmente. O Sr. Daaé era de opinião que todos os grandes músicos, todos os grandes artistas recebem pelo menos uma vez na vida a visita do Anjo da música. Esse Anjo se debruçou alguma vez sobre o berço deles, como aconteceu com a pequena Lotte, e é assim que existem pequenos prodígios que tocam violino aos 10 anos melhor do que homens de 50, o que, vocês hão de reconhecer, é absolutamente extraordinário. Às vezes, o Anjo vem muito mais tarde, porque as crianças não são bastante boazinhas e não querem aprender o método ou descuidam do estudo das escalas musicais. Às vezes, o Anjo não vem nunca, porque não se tem o coração puro nem a consciência tranqüila. Nunca se vê o Anjo, mas ele se faz ouvir pelas almas predestinadas. Isso muitas vezes acontece no momento em que menos esperam, quando estão tristes ou desanimadas. Então, o ouvido percebe, de repente, harmonias celestes, uma voz divina, e se lembrará disso pelo resto da vida. As pessoas visitadas pelo Anjo ficam como que inflamadas. Vibram com um frêmito desconhecido para o resto dos mortais. E têm esse privilégio de não mais poder tocar um instrumento ou abrir a boca para cantar sem produzir sons que dão vergonha por sua beleza a todos os outros sons humanos. Aqueles que não sabem que o Anjo visitou essas pessoas dizem que elas têm gênio.
A pequena Christine perguntava ao pai se ele tinha ouvido o Anjo. Mas ele balançava a cabeça com tristeza, depois o seu olhar brilhava e, olhando para a filha, dizia:
— Você, minha filha, vai ouvi-lo um dia! Quando eu estiver no céu, vou enviá-lo a você, eu prometo!
O Sr. Daaé começara a tossir nessa época.
O outono veio e separou Raoul e Christine.
Voltaram a se ver três anos mais tarde; já eram mocinhos. Isso aconteceu em Perros ainda e Raoul conservou do fato impressão tão grande que iria acompanhá-lo por toda a vida. O professor Valérius tinha morrido, mas a Sra. Valérius tinha ficado na França, cuidando de seus interesses, com o velho Daaé e a filha, que continuavam cantando e tocando violino, arrastando em seu sonho harmonioso a sua querida protetora, que parecia não mais viver senão de música. O jovem tinha vindo, por via das dúvidas, a Perros e, da mesma forma, penetrou na casa outrora habitada pela sua amiguinha. Viu primeiro o ancião Daaé, que se levantou de sua poltrona com lágrimas nos olhos e o beijou, dizendo-lhe que tinham guardado dele a mais fiel lembrança. De fato, quase não se passava dia sem que Christine falasse de Raoul. O ancião falava ainda quando a porta se abriu e, encantadora, apressada, a moça entrou, trazendo numa bandeja o chá fumegante. Reconheceu Raoul e livrou-se do seu fardo. Uma leve chama espalhou-se sobre o seu rosto encantador. Ela permanecia hesitante, calada. O Sr. Daaé olhou para os dois. Raoul se aproximou da jovem e deu-lhe um beijo que ela não evitou. Ela lhe fez algumas perguntas, desempenhou belamente o seu papel de anfitriã, retomou a bandeja e saiu do quarto. Depois foi refugiar-se no seu banco na solidão do jardim. Experimentava sentimentos que se agitavam pela primeira vez em seu coração adolescente. Raoul veio ter com ela e conversaram até a tarde, bastante embaraçados. Tinham mudado completamente, não reconheciam as suas personagens, que pareciam ter adquirido uma importância considerável. Estavam prudentes como diplomatas e se contavam coisas que nada tinham a ver com os seus sentimentos nascentes. Quando se deixaram, à beira da estrada, Raoul disse a Christine, pousando um beijo correto em sua mão trêmula: “Senhorita, eu não a esquecerei jamais!”. E foi-se embora, já arrependido de ter dito aquelas palavras ousadas, pois sabia bem que Christine Daaé não podia ser a mulher do visconde de Chagny.
Quanto a Christine, foi ter com o pai e lhe disse: “O senhor não acha que o Raoul não é mais tão gentil como antigamente? Eu não gosto mais dele!” E tentou não pensar mais nele. Tinha bastante dificuldade para conseguir isso e se lançou à sua arte que lhe tomou todos os instantes. Os seus progressos passaram a ser maravilhosos. As pessoas que a ouviam diziam que ela seria a primeira artista do mundo. Mas nessa época o seu pai faleceu e, com o golpe, ela pareceu perder, juntamente com ele, a voz, a alma e o gênio. Disso tudo ainda lhe restou um pouco, o estritamente suficiente para entrar no Conservatório. Ela não se distinguiu de nenhum modo, seguiu as aulas sem entusiasmo e ganhou um prêmio para agradar à Sra. Valérius, com a qual continuou vivendo. A primeira vez que Raoul reviu Christine na Ópera, ficara encantado com a beleza da moça e com a evocação das ternas imagens de outrora, mas até admirara com o lado negativo de sua arte. Ela parecia estar fora de tudo. Ele voltou a ouvi-la. Seguia-a nos bastidores. Ouviu-a por detrás de um suporte de cenário. Tentou chamar-lhe a atenção. Mais de uma vez, seguiu-a até a entrada de seu camarim, mas ela não o via. Parecia, aliás, não ver ninguém. Era a imagem da indiferença. Raoul sofreu com tudo isso, pois ela era bela; ele era tímido e não ousava confessar a si mesmo que a amava. E depois foi a paixão fulminante daquela noite de gala: os céus rasgados, uma voz de anjo a se fazer ouvir na Terra para o arrebatamento dos homens e a consumação do seu coração...
E depois aquela voz de homem atrás da porta: “E preciso me amar!”, e ninguém no camarim...
Por que ela tinha sorrido quando ele lhe disse, no momento em que reabria os olhos: “Eu sou aquele menino que foi recolher a sua echarpe no mar”? Por que ela não o havia reconhecido? E por que ela lhe havia escrito?
Oh! como é longa esta descida... longa... Ali está o cruzeiro dos três caminhos... Ali a landa deserta, a charneca gelada, a paisagem imóvel sob o céu branco. As vidraças tilintam, quebram-lhe nos ouvidos os seus vidros... Quanto barulho faz esta diligência que avança tão pouco! Ele reconhece as choupanas... os cercados, os barrancos, as árvores à beira do caminho... Ali está a última curva da estrada, depois vai-se vale abaixo e será o mar... a grande baía de Perros...
Desce então para a Hospedaria do Sol-Poente. Nossa! Não há outra. Mas fica-se muito bem ali. Ele se lembra de que, nos velhos tempos, contavam-se ali belas histórias! Como está batendo o seu coração! O que é que ela vai dizer quando o vir?
A primeira pessoa que avista quando entra na velha sala enfumaçada da hospedaria é a Sra. Tricard. Ela o reconhece. Faz-lhe cumprimentos. Pergunta-lhe o que o traz ali. Ele cora. Diz que, tendo vindo a Lannion a negócio, fez questão de “dar uma espichada até ali para lhe dizer um bom-dia”. Ela quer servir-lhe um jantar, mas ele diz: “Logo mais”. Parece estar esperando alguma coisa ou alguém. A porta se abre. Ele está de pé. Não se enganou: é ela! Ele quer falar, não consegue. Ela fica ali à sua frente, sorridente, sem demonstrar espanto ou surpresa. Suas faces estão frescas e rosadas como um morango nascido na sombra. Por certo a jovem está excitada por uma caminhada rápida. O seu seio, que encerra um coração sincero, arfa suavemente. Os olhos, claros espelhos de um azul pálido, da cor dos lagos que sonham imóveis, bem lá no alto rumo ao norte do mundo, os olhos lhe trazem tranqüilamente o reflexo da alma cândida. O casaco de pele está entreaberto sobre um porte flexível, sobre a linha harmoniosa de seu jovem corpo cheio de graça. Raoul e Christine olham longamente um para o outro. A Sra. Tricard sorri e, discreta, se esquiva. Finalmente Christine fala:
— Você veio, e isso não me admira. Eu tinha o pressentimento de que iria encontrá-lo aqui, nesta hospedaria, ao voltar da missa. Alguém me disse, lá. Sim, alguém me anunciou a sua chegada.
— Quem foi? — pergunta Raoul, tomando nas suas as mãozinhas de Christine que não as retira.
— Ora, o meu pobre falecido papai. Houve um silêncio entre os dois jovens. Depois, Raoul retoma a conversa:
— O seu pai lhe disse também que eu a amo, Christine, e que eu não posso viver sem você?
Christine cora até os cabelos e desvia a cabeça. E diz com voz trêmula:
— A mim? Você está louco, meu amigo.
E ela se põe a rir para, como se diz, não ficar sem jeito.
— Não ria, Christine, é muito sério.” E ela replica, grave:
— Eu não fiz você vir até aqui para me dizer coisas assim.
— Você me fez vir, Christine; você adivinhou que a sua carta não me deixaria indiferente e que eu viria correndo para Perros. Como você pôde pensar assim, se você não sabia que eu a amava?
— Pensei que você se lembraria das brincadeiras da nossa infância às quais o meu pai se juntava com freqüência... Talvez tenha feito mal em lhe escrever... O seu aparecimento tão súbito, na outra noite, no meu camarim, havia me levado para longe, bem longe no passado, e eu lhe escrevi como uma menina que eu era então, que ficaria feliz de rever e de ter ao lado, num momento de tristeza e de solidão, o seu companheirinho
Por um instante, guardaram silêncio. Há na atitude de Christine alguma coisa que Raoul não acha natural, embora não consiga precisar o que seja. Entretanto, ele não a sente hostil; longe disso... a ternura desolada de seus olhos o diz suficientemente. Mas por que essa ternura está desolada?... Aí está, talvez, o que é preciso saber e o que já irrita o rapaz...
— Quando você me viu em seu camarim, era a primeira vez que você estava me vendo, Christine?
Esta não sabia mentir. Ela disse:
— Não! Eu já tinha visto você várias vezes no camarote do seu irmão. E também depois no tablado.
— E o que eu achava! — exclama Raoul apertando os lábios. — Mas por que então, quando você me viu no seu camarim e lembrando a você que eu tinha ido buscar a sua echarpe no mar, por que você respondeu como se não me conhecesse e até riu?
O tom dessas perguntas é tão ridículo que Christine olha para Raoul, espantada, e não lhe responde. O próprio rapaz fica estupefato diante dessa briga súbita, que ele provocara no momento em que só queria fazer com que Christine ouvisse dele palavras de doçura, de amor e de submissão. Um marido, um amante que tem todos os direitos não falaria diferentemente à sua mulher ou companheira que o tivesse ofendido. Mas ele se irrita com os erros que comete e, achando-se estúpido, não encontra outra saída para aquela ridícula situação a não ser na decisão intempestiva que toma de se mostrar odioso.
— Você não me responde! — diz ele, enraivecido e infeliz. — Pois bem, vou responder para você! É porque havia alguém naquele camarim que a perturbava, Christine! Alguém a quem você não queria mostrar que você podia estar se interessando por outra pessoa que não fosse ele!...
— Se alguém me perturbava, meu amigo... — interrompe Christine num tom gelado — ... se alguém me perturbava, naquela noite, devia ser você, porque foi você que eu pus para fora da porta!...
— Sim!... para ficar com o outro!...
— O que é que está dizendo, meu senhor? — pergunta a moça ofegante — ... e de que outro se trata agora?
— Daquele a quem você disse: “Eu só canto para você! Eu lhe dei a minha alma esta noite, e estou morta!”
Christine agarra o braço de Raoul: apertou-o com uma força que não se suporia ser possível em um ser tão frágil.
— Você estava escutando atrás da porta?
— Estava! porque eu amo você... E ouvi tudo...
— Você ouviu o quê? — E a moça, retomando uma calma estranha, larga o braço de Raoul.
— Ele lhe disse: “É preciso me amar!”
A estas palavras, uma palidez cadavérica se espalha pelo rosto de Christine, os seus olhos se turvam... Ela cambaleia, vai cair, Raoul se precipita, estende o braço, mas já Christine superou esse desfalecimento passageiro e, em voz baixa, quase expirante:
— Diga! diga de novo! diga tudo o que você ouviu!
Raoul olha para ela, hesita, não entende nada do que está se passando.
— Mas diga! diga sim! Não vê que você está me matando!...
— Eu ouvi ainda que ele lhe respondeu, quando você lhe disse que lhe havia dado a alma: “A sua alma é muito bela, minha menina, e eu lhe agradeço. Não há imperador que tenha recebido presente igual! Os anjos choraram esta noite!”
Christine coloca a mão sobre o coração. Fita Raoul com uma emoção indescritível. O seu olhar está tão agudo, tão fixo, que parece o de uma pessoa insensata. Raoul está apavorado. Mas eis que os olhos de Christine se umedecem e sobre as suas faces de marfim deslizam duas pérolas, duas pesadas lágrimas...
— Christine!...
— Raoul!...
O rapaz quer segurá-la, mas ela lhe escorrega das mãos e escapa muito confusa.
Enquanto Christine permanecia fechada em seu quarto, Raoul fazia a si mesmo mil recriminações por sua brutalidade; mas, por outro lado, o ciúme retomava o seu galope nas suas veias em fogo. Para que a jovem tivesse demonstrado tamanha emoção ao saber que tinha sido surpreendida em seu segredo, era preciso que este fosse muito importante! Sem dúvida, Raoul, a despeito do que tinha ouvido, não duvidava da pureza de Christine. Sabia que ela tinha grande reputação de seriedade e ele não era tão noviço que não entendesse a necessidade em que se vê por vezes uma artista, acuada, de ouvir propostas amorosas. É verdade que ela respondera que lhe dera a sua alma, mas, com toda evidência, tratava-se, em tudo isso, de canto e de música. Com toda evidência? Então por que toda essa emoção de há pouco? Meu Deus, como Raoul estava infeliz! E, se ele tivesse pegado o homem, a voz de homem, ter-lhe-ia pedido explicações precisas.
Por que Christine fugiu? Por que não descia?
Estava pesarosíssimo e sentia enorme dor por ver escoarem-se longe da jovem sueca aquelas horas que esperara tão doces. Por que ela não vinha percorrer com ele a região em que tantas lembranças lhes eram comuns? E por que, como ela parecia nada mais ter para fazer em Perros e que de fato ela nada fazia ali, não retomava logo o caminho de Paris? Ele soubera que, pela manhã, tinha mandado rezar uma missa pelo descanso da alma do pai e que havia passado longas horas em oração na igrejinha e junto ao túmulo do menestrel.
Triste, desanimado, Raoul partiu em direção ao cemitério que rodeava a igreja. Empurrou o portão. Vagou solitário entre os túmulos, decifrando as inscrições, mas quando estava chegando atrás da abside, foi logo informado pela nota brilhante das flores que suspiravam sobre o granito sepulcral e transbordavam até por sobre a terra branca. Elas perfumavam todo aquele canto gelado do inverno bretão. Eram miraculosas rosas vermelhas que pareciam ter desabrochado pela manhã, na neve. Eram um pouco de vida entre os mortos, pois a morte, ali, estava por toda parte. Também ela transbordava da terra que tinha rejeitado o seu excesso de cadáveres. Esqueletos, crânios às centenas estavam amontoados contra a parede da igreja, presos apenas por uma ligeira tela de arame que deixava descoberto todo o macabro edifício. As caveiras, empilhadas, alinhadas como tijolos, consolidadas nos intervalos por ossos limpamente brancos, pareciam formar o primeiro alicerce sobre o qual se tinham construído as paredes da sacristia. A porta da sacristia abria-se no meio desse ossuário, tal como se vêem muitos ao longo das velhas igrejas bretas.
Raoul rezou por Daaé, depois, lamentavelmente impressionado por esses sorrisos eternos que têm as bocas das caveiras, saiu do cemitério, subiu o outeiro e sentou-se à beira da landa que domina o mar. O vento corria bravo pelas praias, latindo atrás da pobre e tímida claridade do dia. Esta cedeu, fugiu, e ficou apenas uma fímbria lívida no horizonte. Então, calou-se o vento. Era noite. Raoul estava envolto em sombras geladas, mas não sentia frio. O seu pensamento vagava pela landa deserta e desolada. Fora ali, naquele lugar, que estivera tantas vezes, ao cair da noite, com a pequena Christine, para ver dançar os “korrigans”, bem no momento em que a lua se levanta. No que lhe diz respeito, nunca os tinha visto, embora tivesse vista excelente. Christine, pelo contrário, que era um pouco míope, assegurava ter visto muitos deles. Essa idéia fê-lo sorrir e, a seguir, de repente, ele estremeceu. Uma forma, uma forma precisa, mas que tinha chegado ali sem que se soubesse como, sem que o menor ruído tivesse avisado, uma forma de pé ao seu lado, estava dizendo:
— Você acredita que os “korrigans” virão esta noite?
Era Christine. Ele quis falar. Ela lhe tapou a boca com a mão enluvada.
— Escute-me, Raoul, estou resolvida a lhe dizer algo de grave, muito grave!
A voz dela tremia. Ele esperou. Ela recomeçou a falar, oprimida.
— Você está lembrado, Raoul, da lenda do Anjo da música?
— Se me lembro! — disse ele. — Creio que foi aqui que o seu pai nos contou essa lenda pela primeira vez.
— Foi aqui também que ele me disse: “Quando eu estiver no céu, minha menina, vou enviá-lo a você”. Pois bem, Raoul, meu pai está no céu e eu recebi a visita do Anjo da música.
— Não duvido — replicou o rapaz com seriedade, pois achava que, num pensamento piedoso, a amiga misturava a lembrança do pai com o brilho do seu último triunfo.
Christine pareceu ligeiramente admirada com o sangue-frio com que o visconde de Chagny tomava conhecimento de que ela recebera a visita do Anjo da música.
— Como você entende isso, Raoul? — inquiriu ela, inclinando suas faces pálidas tão perto do rosto do rapaz que este pensou que Christine ia lhe dar um beijo, mas ela só queria ler, apesar das trevas, dentro dos seus olhos.
— Entendo — replicou ele — que uma criatura humana não canta como você cantou na outra noite sem que intervenha um milagre, sem que o Céu tenha a ver com isso. Não existe professor na face da terra que possa ensinar semelhantes inflexões. Você ouviu o Anjo da música, Christine.
— Sim, no meu camarim. É lá que ele vem me dar lições diárias. O tom com que disse isso era tão penetrante e tão singular que
Raoul olhou para ela preocupado, como se olha uma pessoa que diz uma enormidade ou afirma alguma visão enlouquecida em que acredita com todas as forças do seu pobre cérebro doente. Mas ela havia recuado e já não era mais, imóvel, do que uma sombra na noite.
— No seu camarim? — repetiu ele como um eco imbecil.
— Sim, foi lá que eu o ouvi, e não fui a única a ouvi-lo...
— Quem mais o ouviu, Christine?
— Você, meu amigo.
— Eu? Eu ouvi o Anjo da música?
— Sim, naquela noite, era ele quem estava falando enquanto você escutava atrás da porta do meu camarim. Foi ele quem me disse: “E preciso me amar”. Mas eu achava que era a única que podia perceber a voz dele. Assim, imagine o meu espanto quando soube, hoje de manhã, que você também podia ouvi-lo...
Raoul deu uma gargalhada. E imediatamente dissipou-se a noite sobre a landa deserta e os primeiros raios da lua vieram envolver os dois jovens. Christine tinha-se voltado, hostil, para Raoul. Os seus olhos, geralmente tão meigos, lançavam raios.
— Por que você está rindo? Você acha, talvez, que ouviu uma voz de homem?
— Nossa Senhora! — respondeu o rapaz, cujas idéias começavam a se atrapalhar diante da atitude de combate de Christine.
— E você, Raoul! você quem me diz isso! Um antigo companheirinho meu! um amigo do meu pai! Não estou reconhecendo você. Mas o que é que você está pensando? Eu sou uma moça honesta, senhor visconde de Chagny, e não me tranco com vozes de homem no meu camarim. Se você tivesse aberto a porta, teria visto que não tinha ninguém lá!
— É verdade! Quando você saiu, eu abri a porta e não encontrei ninguém no camarim...
— Você está vendo... então?
O visconde fez apelo à sua coragem.
— Então, Christine, eu acho que estão zombando de você! Ela deu um grito e fugiu. Ele correu atrás, mas ela, numa irritação feroz, lhe lançou as seguintes palavras:
— Me deixe! me deixe!
E desapareceu. Raoul voltou à hospedaria muito cansado, desanimado e triste.
Soube que Christine acabara de subir para o seu quarto e avisara que não desceria para jantar. O rapaz perguntou se ela não estava doente. A boa hospedeira respondeu-lhe de maneira ambígua que, se estava sofrendo, devia ser de um mal não muito grave e, como ela achava que os dois enamorados estavam zangados, afastou-se erguendo os ombros e exprimindo sorrateiramente o dó que tinha de jovens que desperdiçam em vãs disputas as horas que Deus lhes permitiu passar sobre a terra. Raoul jantou sozinho, no canto perto da lareira, e, como vocês podem imaginar, de maneira bastante aborrecida. Já no quarto, tentou ler, depois, na cama, tentou dormir. Não se ouvia ruído algum no apartamento ao lado. Que estaria fazendo Christine? Estaria dormindo? E, se não, em que estaria pensando? E ele estava pensando em quê? Teria sido capaz de dizer? A conversa estranha que tivera com Christine o tinha perturbado completamente!... Pensava menos em Christine do que em torno de Christine, e esse “em torno” era tão difuso, tão nebuloso, tão impalpável que lhe causava um mal-estar curiosíssimo e muito angustiante.
Assim, as horas passavam muito lentas; podiam ser onze e meia da noite quando ouviu distintamente alguém andar no quarto vizinho. Era um passo ligeiro, furtivo. Christine não se tinha deitado então? Sem arrazoar o seu gesto, o rapaz se vestiu às pressas, cuidando para não fazer nenhum barulho. E, pronto para tudo, ficou esperando. Pronto para quê? Será que ele sabia? O seu coração deu um salto quando ouviu a porta de Christine girar lentamente sobre os gonzos. Aonde iria ela àquela hora em que tudo descansava em Perros? Entreabriu levemente a sua porta e pôde ver, num raio de luar, a forma branca de Christine que deslizava com precaução pelo corredor. Atingiu a escada, desceu, e ele, acima dela, debruçou-se sobre a rampa. Súbito, ouviu duas vozes que conversavam rapidamente. Uma frase lhe chegou: “Não perca a chave”. Era a voz da hospedeira. Embaixo, abriram a porta que dava para a enseada. Fecharam-na. A forma branca de Christine erguia-se sobre o cais deserto.
Aquele primeiro andar da Hospedaria do Sol-Poente não era alto e uma árvore que esparramava os galhos até os braços impacientes de Raoul permitiu que este saísse sem que a hospedeira desconfiasse de sua ausência. Assim, qual não foi a estupefação da boa senhora, na manhã do dia seguinte, quando lhe trouxeram o rapaz quase congelado, mais morto do que vivo, e lhe contaram que o tinham encontrado estendido nos degraus do altar-mor da igrejinha de Perros. Correu para dar imediatamente a notícia a Christine, que desceu às pressas e prodigalizou, ajudada pela hospedeira, os seus cuidados preocupados ao rapaz, que não tardou em abrir os olhos e voltou completamente à vida ao perceber, acima de si, o rosto encantador da amiga.
O que havia acontecido? O delegado Mifroid teve a oportunidade, algumas semanas mais tarde, quando o drama da Ópera provocou a intervenção do ministério público, de interrogar o visconde de Chagny sobre os acontecimentos da noite de Perros, e eis de que modo estes foram transcritos nas folhas do relatório de inquérito. (Cota 150).
Pergunta: — A Srta. Daaé não tinha visto o senhor descer do seu quarto pelo singular caminho que escolheu?
Resposta: — Não, senhor, não, não. Entretanto, cheguei por trás dela sem cuidar de abafar o ruído dos meus passos. Naquele momento eu só queria uma coisa: que ela se virasse e me visse, e que me reconhecesse. Acabava de dizer a mim mesmo, de fato, que a minha perseguição era totalmente incorreta e que o tipo de espionagem a que me entregava não era digno de mim. Mas ela não pareceu me ouvir e, realmente, agiu como se eu não estivesse ali. Deixou tranqüilamente o cais e então, de repente, subiu depressa o caminho. O relógio da igreja acabara de bater um quarto para meia-noite, e pareceu-me que o som da hora determinou a pressa da sua corrida, pois ela começou quase a correr. Assim, ela chegou à porta do cemitério.
P: — A porta do cemitério estava aberta?
R: — Estava, sim, senhor, e isso me surpreendeu, mas parece não ter causado espanto à Srta. Daaé.
P: — Não havia ninguém no cemitério?
R: — Eu não vi ninguém. Se houvesse alguém, eu teria visto. O luar estava ofuscante e a neve que cobria a terra, devolvendo-nos os seus raios, tornava a noite mais clara ainda.
P: — Não podia alguém se esconder atrás dos túmulos?
R.: — Não, senhor. Eram pobres lápides que desapareciam debaixo da camada de neve e que alinhavam as suas cruzes rente com o chão. As únicas sombras eram as das cruzes e as nossas duas. A igreja era banhada pela claridade. Eu nunca vi tamanha luz noturna. Era um espetáculo belíssimo, muito transparente e muito frio. Nunca tinha ido em cemitérios à noite e ignorava que se pudesse encontrar ali tamanha luz, “uma luz que não pesa nada”.
P: — O senhor é supersticioso?
R.: — Não, senhor, eu tenho minha fé.
P.: — Em que estado de espírito o senhor estava?
R: — Muito são e tranqüilo, palavra. É certo que a saída insólita da Srta. Daaé tinha-me perturbado muito de início; mas logo que vi a moça penetrar no cemitério, disse a mim mesmo que ela estava indo cumprir algum voto no túmulo do pai e achei a coisa tão natural que recobrei a calma. Estava apenas admirado de que ela ainda não me tivesse ouvido andar atrás dela, porque a neve estalava sob os meus pés. Mas certamente ela estava por demais absorvida em seu pensamento piedoso. Resolvi, aliás, não perturbá-la e, quando ela chegou ao túmulo do pai, fiquei a alguns passos para trás. Ela se ajoelhou na neve, fez o sinal-da-cruz e começou a rezar. Nesse momento deu meia-noite. A décima segunda badalada ressoava ainda no meu ouvido quando, de repente, vi a moça levantar a cabeça; o seu olhar fixou-se na abóbada celeste, os braços se estenderam para o astro das noites; ela pareceu-me em êxtase e eu me perguntava ainda qual tinha sido a razão súbita e determinante desse êxtase quando eu próprio levantei a cabeça, lancei em torno de mim um olhar desvairado e todo o meu ser tendeu para o Invisível, o invisível que tocava música para nós. E que música! Já a conhecíamos! Christine e eu já a tínhamos ouvido em nossa juventude. Mas nunca no violino do Sr. Daaé ela se tinha expressado com uma arte tão divina. O melhor que pude fazer, nesse instante, foi lembrar-me de tudo que Christine acabara de dizer do Anjo da música, e não soube bem o que pensar desses sons inesquecíveis que, se não desciam do céu, deixavam ignorar a sua origem na terra. Não havia instrumento nem mão para conduzir o arco. Oh! lembrei-me da admirável melodia. Era a Ressurreição de Lázaro, que o Sr. Daaé nos tocava nas suas horas de tristeza e de fé. Tivesse existido o Anjo de Christine, não teria tocado melhor naquela noite o violino do falecido menestrel. A invocação de Jesus nos arrebatava da terra, e, palavra, eu esperei quase ver a pedra do túmulo do pai de Christine se levantar. Veio-me também a idéia de que Daaé havia sido enterrado com o seu violino e, na verdade, eu não sabia até onde, nesse minuto fúnebre e radiante, no fundo desse pequeno cemitério escondido de província, ao lado dessas caveiras que riam para nós com todas aquelas mandíbulas imóveis, não, eu não sei até onde se foi a minha imaginação, nem onde ela parou. Mas a música se calou e recobrei os meus sentidos. Pareceu-me ouvir barulho do lado das caveiras do ossuário.
R: — Ah! o senhor ouviu barulho do lado do ossuário?
R: — Ouvi; pareceu-me que as cabeças dos mortos davam risadinhas agora e não pude impedir-me de me arrepiar.
R: — O senhor não pensou logo que atrás do ossuário podia estar escondido justamente o músico celeste que tanto o encantava?
R.: — Tanto pensei nisso que só fiquei pensando nisso, senhor delegado, e me esqueci de seguir a Srta. Daaé que acabava de se levantar e tranqüilamente alcançava a porta do cemitério. Quanto a ela, estava tão absorvida que não é de espantar que não me tenha visto. Não arredei pé, de olhos fixos no ossuário, decidido a ir até o fim dessa incrível aventura e conhecer-lhe o verdadeiro sentido.
R: — O que foi que aconteceu então para acharem o senhor na manhã seguinte, estendido e meio morto nos degraus do altar-mor?
R.: — Oh! Foi rápido... Uma caveira rolou a meus pés... depois outra... mais outra... Parecia que eu era a meta desse fúnebre jogo de bolas. E tive o pensamento de que algo devia ter destruído a harmonia do andaime atrás do qual se escondia o nosso músico. Esta hipótese me pareceu ainda mais razoável porque uma sombra deslizou de repente pelo muro brilhante da sacristia. Eu me precipitei. A sombra já tinha, empurrando a porta, penetrado na igreja. Eu tinha asas, a sombra tinha um manto. Fui bastante rápido para agarrar uma ponta do manto da sombra. Nesse momento, estávamos, a sombra e eu, bem diante do altar-mor e os raios da lua, através do grande vitral da abside, caíam diretamente à nossa frente. Como não larguei o manto, a sombra se voltou e, abrindo-se o manto com que estava envolta, eu vi, senhor juiz, como estou vendo o senhor, uma medonha caveira que dardejava sobre mim um olhar em que ardiam os fogos do inferno. Acreditei estar tratando com o próprio Satanás e, diante dessa aparição de além-túmulo, o meu coração, apesar de toda a sua coragem, desfaleceu, e eu não me lembro de mais nada até o momento em que acordei no quartinho da Hospedaria do Sol-Poente.
UMA VISITA AO CAMAROTE N° 5
Deixamos os Srs. Firmin Richard e Armand Moncharmin no momento em que decidiam ir fazer uma visitinha ao primeiro camarote nº 5.
Deixaram atrás de si a larga escadaria que conduz do Vestíbulo da administração ao palco e a suas dependências; atravessaram o palco (o tablado), entraram no teatro pela entrada dos assinantes, depois, na sala, pelo primeiro corredor à esquerda. Resvalaram então entre as poltronas da platéia e olharam para o primeiro camarote nº 5. Enxergaram-no mal porque estava mergulhado em uma semi-escuridão e porque imensas capas tinham sido jogadas por sobre o veludo vermelho dos apoios de braço.
Nesse momento, estavam quase sós na imensa nave tenebrosa e um grande silêncio os cercava. Era a hora tranqüila em que os maquinistas vão beber.
A equipe tinha momentaneamente esvaziado o palco, deixando um cenário meio plantado; algumas réstias de luz (uma luz opaca, sinistra, que parecia roubada de um astro moribundo) tinham-se insinuado, por não se sabe que abertura, até uma velha torre que levantava as suas ameias de papelão sobre o palco; as coisas, nessa noite factícia, ou melhor, nesse dia enganoso, tomavam estranhas formas. Sobre as poltronas da platéia, o pano que as cobria parecia um mar em fúria, cujas vagas glaucas tinham sido instantaneamente imobilizadas pela ordem secreta do gigante das tempestades, que, como todos sabem, se chama Adamastor. Moncharmin e Richard eram os náufragos dessa reviravolta imóvel de um mar de pano pintado. Avançavam em direção dos camarotes da esquerda, com grandes braçadas, como marujos que abandonaram o bote e procuram alcançar a praia. As oito grandes colunas de mármore polido erguiam-se na sombra como outros tantos prodigiosos pilotis destinados a sustentar a falésia ameaçadora, barriguda e prestes a desmoronar, cujas fundações eram representadas pelas linhas circulares, paralelas e arcadas dos parapeitos dos primeiros, segundos e terceiros camarotes. Do alto, bem no alto da falésia, dependuradas no céu de cobre de Lenepveu, figuras faziam caretas, riam, zombavam da inquietação dos Srs. Moncharmin e Richard. Elas se chamavam Ísis, Anfitrite, Hebéia, Flora, Pandora, Psique, Tétis, Pomona, Dafne, Clítia, Galatéia, Aretusa. Sim, a própria Aretusa e Pandora, que todos conhecem por causa de sua caixa, olhavam para os novos diretores da Ópera que acabavam de se agarrar em algum destroço e, de lá, contemplavam em silêncio o primeiro camarote nº 5. Disse que estavam inquietos. Pelo menos, presumo. Moncharmin, em todo caso, confessava-se impressionado. Disse textualmente:
Aquele balanço (que estilo!) do fantasma da Ópera, sobre o qual nos fizeram tão gentilmente subir, desde que assumimos a sucessão dos
Srs. Poligny e Debienne, acabou, sem dúvida, por perturbar as minhas faculdades imaginativas e, afinal de contas, visuais, pois (seria o cenário excepcional em que nos movíamos, no centro de um incrível silêncio que nos impressionou a esse ponto?... Teríamos sido joguete de uma espécie de alucinação possibilitada pela quase escuridão da sala e a penumbra que envolvia o camarote n°. 5?) eu vi e Richard também viu, no mesmo instante, uma forma no camarote n°. 5. Richard não disse nada, nem eu, aliás. Mas seguramos a mão um do outro num mesmo gesto. Depois, esperamos assim alguns minutos, sem nos mexer, com os olhos sempre fixos no mesmo ponto: mas a forma tinha sumido. Então, saímos e, no corredor, trocamos as nossas impressões e falamos da forma. O problema é que a minha forma, a que eu vi, não era absolutamente a forma de Richard. Eu tinha visto como uma espécie de caveira que estava colocada no rebordo do camarote, ao passo que Richard tinha vislumbrado uma forma de mulher velha que era parecida com a Sra. Giry. Tanto assim que nós vimos e corremos sem demora, rindo como loucos, para o primeiro camarote n°. 5, no qual entramos e não achamos ninguém.
E agora aqui estamos no camarote nº 5.
É um camarote como todos os outros primeiros camarotes. Na verdade, nada o distingue dos outros.
Moncharmin e Richard, divertindo-se ostensivamente e rindo um do outro, remexiam os móveis do camarote, levantavam as capas e as poltronas e examinavam particularmente aquele em que a voz tinha o costume de sentar-se. Mas constataram que era uma poltrona honesta, que nada tinha de mágica. Em suma, o camarote era o mais normal dos camarotes, com a sua tapeçaria vermelha, poltronas, carpete, e seu apoio de braço em veludo vermelho. Após ter apalpado o mais seriamente possível o carpete e não ter achado, deste lado como dos outros, nada de especial, desceram para a frisa nº 5, que fica bem no canto da primeira saída à esquerda das poltronas da platéia, e não encontraram nada tampouco que merecesse ser mencionado.
— Toda essa gente está zombando de nós — acabou por exclamar Firmin Richard. — Sábado leva-se Fausto; nós dois vamos assistir à representação no primeiro camarote nº 5!
EM QUE OS SRS. FIRMIN RICHARD E ARMAND MONCHARMIN TÊM A AUDÁCIA DE FAZER REPRESENTAR FAUSTO NUMA SALA MALDITA, E O PAVOROSO ACONTECIMENTO QUE DISSO RESULTOU
Mas no sábado de manhã, ao chegarem ao seu gabinete, os diretores encontraram uma carta dupla do fantasma da Ópera com o seguinte teor:
Meus caros diretores,
Então é a guerra?
Se os senhores ainda fazem questão da paz, aqui vai o meu ultimátum.
Ele está nas quatro condições seguintes:
1ª Devolver-me o meu camarote — e quero que esteja ao meu inteiro dispor a partir de agora;
2ª O papel de Margarida será cantado esta noite por Christine Daaé. Não se preocupem com a Carlotta, que estará doente;
3ª Faço absoluta questão de continuar com os bons e leais serviços da Sra. Giry, minha lanterninha, a quem os senhores reintegrarão imediatamente em suas funções;
4ª Dêem-me conhecimento, mediante uma carta entregue a Sra. Giry, que a passará às minhas mãos, de que os senhores aceitam, como os seus predecessores, as condições do meu caderno de encargos relativas aos meus honorários mensais. Comunicarei ulteriormente aos senhores de que forma deverão fazer o pagamento.
Senão, os senhores levarão Fausto, esta noite, em uma sala maldita.
A bom entendedor, saudações!
— Ora bolas, para mim, ele já está enchendo as minhas medidas!... Está enchendo!... — urrou Richard, levantando os punhos vingadores e deixando-os cair ruidosamente sobre a mesa do seu gabinete.
Entrementes, Mercier, o administrador, entrou.
— Lachenal gostaria de falar com um dos senhores — disse. — Parece um caso urgente, e o homem me parece completamente alterado.
— Quem é esse Lachenal? — perguntou Richard.
— É o seu escudeiro-chefe.
— Como! meu escudeiro-chefe?
— Sim, senhor — explicou Mercier. — Existem na Ópera vários escudeiros, e o Sr. Lachenal é o chefe deles.
— E o que é que faz esse escudeiro?
— É responsável pela alta direção da estrebaria.
— Que estrebaria?
— A sua, meu senhor. A estrebaria da Ópera.
— Existe uma estrebaria na Ópera? Palavra que eu não sabia! E onde é que ela fica?
— Na parte de baixo, do lado da Rotunda. E um serviço muito importante, nós temos doze cavalos.
— Doze cavalos! E para fazer o quê, Deus do céu?
— Ora, para os desfiles de A judia, do Profeta etc, são necessários cavalos adestrados, que “saibam representar no palco”. Os escudeiros estão encarregados de ensinar isso a eles. O Sr. Lachenal é extremamente habilidoso nisso. Ele é o antigo diretor das estrebarias de Franconi.
— Muito bem... mas o que é que ele quer de mim?
— Eu não sei de nada... Nunca o vi em semelhante estado.
— Mandem-no entrar!...
O Sr. Lachenal entra. Traz um chicote na mão e açoita nervosamente com ele uma de suas botas.
— Bom dia, Sr. Lachenal — disse Richard, impressionado. — A que devemos a honra da sua visita?
— Senhor diretor, venho lhe pedir para pôr toda a estrebaria no olho da rua.
— Como! O senhor quer pôr os nossos cavalos no olho da rua?
— Não se trata dos cavalos, mas dos cavalariços.
— Quantos cavalariços o senhor tem, Sr. Lachenal?
— Seis!
— Seis cavalariços! Tem pelo menos dois a mais!
— São “vagas” que foram criadas e nos foram impostas pela Subsecretaria das Belas-Artes. Estão sendo ocupadas por protegidos do governo, e se ouso me permitir...
— O governo, estou pouco ligando para ele!... — afirmou Richard com energia. — Não precisamos de mais de quatro cavalariços para doze cavalos.
— Onze! — retificou o escudeiro-chefe.
— Doze! — insistiu Richard.
— Onze! — redarguiu Lachenal.
— Ah! foi o administrador quem me disse que o senhor tinha doze cavalos!
— Tinha doze, mas agora só tenho onze, desde que nos roubaram o César!
E, ao dizer isso, o Sr. Lachenal dá uma forte chicotada na bota.
— Roubaram o César — gritou o administrador. — César, o cavalo branco do Profeta.
— Não existem dois Césares! — declarou em tom seco o escudeiro-chefe. — Estive dez anos a serviço de Franconi e vi um bocado de cavalos! Pois bem, não existem dois Césares! E nos roubaram esse cavalo.
— Como assim?
— Eu não sei de nada! Ninguém sabe de nada! Aí está por que eu estou lhe pedindo para pôr toda a estrebaria no olho da rua.
— O que é que eles dizem, os seus cavalariços?
— Asneiras... uns acusam os figurantes... outros pretendem que foi o porteiro da administração.
— O porteiro da administração? Respondo por ele como por mim mesmo! — protestou Mercier.
— Mas afinal, senhor primeiro-escudeiro — bradou Richard —, o senhor deve ter alguma idéia!...
— Pois bem, tenho, tenho uma idéia! — declarou de repente o Sr. Lachenal —, e vou lhes dizer qual é. Para mim, não há dúvida. — O primeiro-escudeiro aproximou-se dos diretores e lhes cochichou no ouvido: — Foi o fantasma da ópera quem deu esse golpe!
Richard levou um susto.
— Ah! o senhor também! o senhor também!
— Como? eu também? É a coisa mais natural do mundo...
— Mas como então! Sr. Lachenal!, mas como então, Sr. primeiro-escudeiro.. .
— Vou dizer o que é que eu penso depois do que vi.
— E o que é que o senhor viu, Sr. Lachenal?
— Eu vi, como estou vendo o senhor, uma sombra negra que montava um cavalo branco que se parecia como duas gotas de água com o César!
— E o senhor não correu atrás desse cavalo branco e dessa sombra preta?
— Eu corri e chamei, senhor diretor, mas eles fugiram com uma rapidez desconcertante e desapareceram na noite da galeria...
O Sr. Richard se levantou.
— Está bem, Sr. Lachenal. O senhor pode se retirar... nós vamos registrar queixa contra o fantasma...
— E o senhor vai botar a minha estrebaria no olho da rua!
— Certo! Até logo, meu senhor.
O Sr. Lachenal cumprimentou e saiu. Richard estava espumando.
— O senhor vai fazer as contas desse imbecil!
— Ele é amigo do comissário do governo! — ousou Mercier...
— E ele toma o aperitivo em Tortoni com Lagrené, Scholl e Pertuiset, o matador de leões — acrescentou Moncharmin. — Vão colocar toda a imprensa nos seus calcanhares! Ele vai contar a história do fantasma e todo mundo vai se divertir à nossa custa! Se cairmos no ridículo, estamos mortos!
— Está certo, não se fala mais nisso... — concedeu Richard, que já estava pensando noutra coisa.
Nesse momento a porta se abriu e, sem dúvida, essa porta não estava sendo então defendida por seu cérbero costumeiro, pois se viu entrar de supetão a Sra. Giry com uma carta na mão e dizer precipitadamente:
— Com licença, desculpem, meus senhores, mas recebi hoje de manhã uma carta do fantasma da Ópera. Ele me diz para passar aqui, pois aparentemente os senhores têm alguma coisa para me...
Não terminou a frase. Viu o rosto de Firmin Richard e ele estava terrível. O honorável diretor da Ópera estava prestes a explodir. O furor que o agitava ainda não se traduzia exteriormente senão pela cor escarlate de suas faces furibundas e pelo brilho dos seus olhos fulgurantes. Ele não disse nada. Não podia falar. Mas, de repente, o seu gesto saiu. Foi primeiro o braço esquerdo que pegou a risível pessoa da Sra. Giry e fê-la descrever uma meia-volta tão inesperada, uma pirueta tão rápida que esta soltou um clamor desesperado e, depois, foi o pé direito do mesmo honorável diretor que foi imprimir a sua sola no tafetá preto de uma saia que, certamente, ainda não tivera, num lugar desses, recebido tamanho ultraje.
O acontecimento fora tão precipitado que a Sra. Giry, quando já se encontrava na galeria, estava ainda atordoada e parecia não entender o que se passara. Mas, de repente, entendeu, e a Ópera ressoou com os seus gritos indignados, com os seus protestos violentos, com as suas ameaças de morte. Foram necessários três rapazes para levá-la para baixo, até o pátio da administração, e dois policiais para carregá-la até a rua.
Mais ou menos na mesma hora, Carlotta, que morava num pequeno hotel da rua do Faubourg-Saint-Honoré, tocava a campainha para chamar a camareira e pedir-lhe que trouxesse a correspondência até a cama. Nessa correspondência encontrou uma carta anônima que dizia:
Se você cantar esta noite, tema que lhe aconteça uma grande desgraça no momento mesmo em que estiver cantando... uma desgraça pior do que a morte.
Essa ameaça estava traçada em vermelho, com uma letra hesitante e feita de bastõezinhos.
Lida a carta, Carlotta ficou sem apetite para tomar o café da manhã. Empurrou a bandeja sobre a qual a camareira lhe apresentava o chocolate fumegante. Sentou-se na cama e refletiu profundamente. Não era a primeira carta do gênero que recebia, mas nunca tinha lido nenhuma tão ameaçadora.
Ela acreditava, nesse momento, ser vítima das mil tramas do ciúme e contava a todos que tinha um inimigo secreto que havia jurado a sua ruína. Pretendia que se urdia contra ela alguma armação maldosa, alguma cabala que explodiria qualquer dia desses; mas não era mulher de se deixar intimidar, acrescentava.
A verdade era que, se cabala havia, esta era conduzida pela própria Carlotta contra a pobre Christine, que nem desconfiava de nada. Carlotta não perdoara a Christine o triunfo que arrebatara quando a substituíra de última hora.
Quando lhe contaram a acolhida extraordinária que tinham dado à sua substituta, Carlotta se sentira instantaneamente curada de um início de bronquite e de um acesso de mau humor contra a administração, e nunca mais mostrara a menor veleidade de abandonar o emprego. Desde o episódio, vinha trabalhando com todas as forças para “abafar” a sua rival, fazendo agir amigos poderosos junto dos diretores para que não dessem a Christine qualquer oportunidade de novo triunfo. Certos jornais que tinham começado a cantar o talento de Christine só cuidavam agora da glória de Carlotta. Enfim, mesmo no teatro, a célebre diva dizia sobre Christine as coisas mais ultrajantes e tentava causar-lhe mil pequenos aborrecimentos.
Carlotta não tinha nem coração nem alma. Era apenas um instrumento! Um maravilhoso instrumento, por certo. Seu repertório incluía tudo aquilo que pode tentar a ambição de uma grande artista, tanto entre os mestres alemães quanto os italianos ou franceses. Jamais se ouviu, até o dia de hoje, Carlotta cantar errado, ou ter falta do volume de voz necessário para a tradução de qualquer passagem do seu repertório imenso. Em suma, o instrumento era possante e de uma precisão admirável. Mas ninguém poderia ter dito a Carlotta o que Rossini dizia a Krauss, depois de ela ter cantado para ele, em alemão, Sombrias florestas: “Você canta com a alma, minha filha, e a sua alma é bela!”
Onde estava a tua alma, ó Carlotta, quando dançavas nas espeluncas de Barcelona? Onde estava ela quando, mais tarde, em Paris, cantavas, sobre os tristes tablados, as tuas canções cínicas de bacante de music-hall? Onde estava a tua alma quando, diante dos senhores reunidos na casa de um de teus amantes, fazias ressoar esse instrumento dócil cujo aspecto maravilhoso está em cantar com a mesma perfeição indiferente o sublime amor e a mais baixa orgia? Ó Carlotta, se jamais tivesses tido uma alma e a tivesses perdido então, tê-la-ias recuperado quando te tornaste Julieta, quando foste Elvira, e Ofélia, e Margarida! Porque outras subiram de mais baixo que tu e a quem a arte, ajudada pelo amor, purificou!
Na verdade, quando penso em todas as vilanias que Christine Daaé teve de sofrer, nessa época, da parte dessa Carlotta, não posso reter a minha cólera, e não posso me espantar de que a minha indignação se traduza em comentários um pouco vastos sobre a arte em geral e sobre a do canto em particular, em que os admiradores de Carlotta não terão por certo nenhum interesse.
Quando Carlotta terminou de refletir sobre a ameaça da estranha carta que acabara de receber, levantou-se.
— Veremos — retorquiu ela... E pronunciou em espanhol alguns juramentos, com um jeito bastante resoluto.
A primeira coisa que viu ao botar o nariz para fora da janela foi um carro mortuário. O carro mortuário e a carta persuadiram-na de que corria os mais sérios riscos naquela noite. Reuniu em sua casa o bando e o sub-bando de seus amigos, informou-os de que estava ameaçada, na representação da noite, de uma cabala organizada por Christine Daaé, e declarou que era necessário pregar uma peça naquela menina enchendo a sala com os seus próprios admiradores. Eles não lhe faltavam, não é? Contava que eles estivessem prontos para qualquer eventualidade e que conseguiria fazer calarem-se os perturbadores se, como temia, eles desencadeassem o escândalo.
Tendo o secretário particular do Sr. Richard vindo em busca de notícias da saúde da diva, voltou com a garantia de que ela estava se sentindo muitíssimo e, “mesmo que estivesse agonizando”, cantaria naquela mesma noite o papel de Margarida. Como o secretário havia, da parte de seu chefe, recomendado à diva que não cometesse nenhuma imprudência, que não saísse de casa e evitasse vento encanado, Carlotta não pôde deixar de relacionar essas recomendações excepcionais e inesperadas com as ameaças contidas na carta.
Eram cinco horas quando ela recebeu pelo correio uma nova carta anônima com a mesma letra da primeira. Era breve. Dizia simplesmente:
Você está resfriada; se fosse razoável, entenderia que é loucura querer cantar hoje à noite.
Carlotta deu um sorrisinho de desprezo, levantou os ombros, que eram magníficos, e lançou ao ar duas ou três notas que lhe deram total segurança.
Os amigos dela foram fiéis à promessa. Estavam todos presentes, naquela noite, na Ópera, mas procuraram em vão em torno de si aqueles ferozes conspiradores que tinham recebido a missão de combater. Se se fizesse exceção de alguns profanos, alguns corretos burgueses cujo semblante plácido outra intenção não refletia a não ser a de ouvir novamente uma música que, já havia muito, conquistara os seus sufrágios, só havia ali os freqüentadores habituais cujos costumes elegantes, pacíficos e corretos afastavam qualquer idéia de manifestação. A única coisa que parecia anormal era a presença dos Srs. Richard e Moncharmin no camarote n°. 5. Os amigos de Carlotta pensaram que, talvez, os diretores tivessem ouvido, de sua parte, algum rumor do escândalo projetado e resolvido se fazerem presentes na sala para sustá-lo logo que eclodisse, mas era uma hipótese injustificada, como vocês sabem; os Srs. Richard e Moncharmin só pensavam no fantasma.
Nada?... Em vão interrogo a velar incendido
A Natureza e o Criador.
Nenhuma voz sussurra ao meu ouvido
Algo consolador!...
O célebre barítono Carolus Fonta mal acabava de lançar o primeiro apelo do doutor Fausto às potências do inferno quando Firmin Richard, que se tinha sentado na própria poltrona do fantasma — a da direita, na primeira fila — se inclinou, com o melhor humor do mundo, em direção de seu sócio e lhe disse:
— E você, alguma voz já sussurrou algo em seu ouvido?
— Vamos esperar! não tenhamos tanta pressa — respondeu no mesmo tom brincalhão Armand Moncharmin. — A representação apenas começou e você bem sabe que o fantasma só chega geralmente lá pelo meio do primeiro ato.
O primeiro ato se passou sem incidente, o que não causou espanto aos amigos de Carlotta, visto que Margarida, nesse ato, não canta. Quanto aos diretores, ao cair do pano, entreolharam-se a sorrir:
— Um já se foi! — disse Moncharmin.
— Certo, o fantasma está atrasado — declarou Firmin Richard.
Moncharmin, sempre pilheriando, acrescentou:
— Afinal, a sala não está tão mal composta assim, esta noite, para uma sala maldita.
Richard dignou-se a sorrir. Mostrou ao seu colaborador uma senhora gorda, bastante vulgar, vestida de preto, que estava sentada numa poltrona no meio da sala, ladeada por dois homens de aspecto rude em suas casacas de casimira.
— Quem é aquele “pessoalzinho” ali? — perguntou Moncharmin.
— Aquele pessoalzinho, meu caro, é a minha zeladora, o irmão e o marido dela.
— Você deu entradas para eles?
— Dei, por que não?... Minha zeladora nunca tinha vindo à Ópera... é a primeira vez... e como, agora, ela deve vir todas as noites, quis que estivesse num bom lugar antes de passar o tempo a indicar o lugar dos outros.
Moncharmin pediu explicações e Richard lhe informou que tinha convencido a zeladora, em quem tinha inteira confiança, a vir, por algum tempo, tomar o lugar da Sra. Giry.
— A propósito da velha Giry — disse Moncharmin —, você sabe que ela vai registrar queixa contra você?
— Junto a quem? Junto ao fantasma?
O fantasma! Moncharmin já tinha quase se esquecido dele. Aliás, a misteriosa personagem nada estava fazendo para que os diretores se lembrassem dela.
De repente, a porta se abriu diante do gerente apavorado.
— O que é que está havendo? — perguntaram ambos, estupefatos de ver o gerente naquele lugar, naquele momento.
— Está acontecendo — disse o gerente — que uma cabala está montada pelos amigos de Christine Daaé contra Carlotta. Ela está furiosa.
— O que é que significa mais esta história? — perguntou Richard franzindo as sobrancelhas.
Mas a cortina se erguia sobre a Quermesse e o diretor fez sinal ao gerente para que se retirasse.
Quando o gerente deixou o lugar, Moncharmin inclinou-se ao ouvido de Richard:
— Então Daaé tem amigos? — perguntou.
— Sim — retrucou Richard —, tem.
— Quem?
Richard designou com o olhar um primeiro camarote onde só havia dois homens.
— O conde de Chagny?
— E, ele a recomendou para mim... tão calorosamente que, se eu não soubesse que ele é o amigo de Sorelli...
— Ora! ora! — murmurou Moncharmin. — E quem é aquele rapaz tão pálido, sentado ao seu lado?
— É o irmão dele, o visconde.
— Ele faria melhor se fosse se deitar. Está parecendo doente. O palco retumbava de cantos alegres. A embriaguez em música. Triunfo da taça.
Vinho ou cerveja, Cerveja ou vinho, Meu copo esteja Sempre cheinho!
Estudantes, burgueses, soldados, moças e matronas, de coração alegre, turbilhonam diante do cabaré com a efígie do deus Baco à porta. Siebel faz a sua entrada.
Christine estava encantadora fantasiada. Sua juventude franca, sua graça melancólica seduziam à primeira vista. Imediatamente, os partidários de Carlotta imaginaram que ela ia ser saudada com uma ovação que lhes daria informações sobre as intenções dos seus amigos. Essa ovação indiscreta teria sido, aliás, de uma inabilidade enorme. Entretanto, ela não aconteceu.
Pelo contrário, quando Margarida atravessou o palco e cantou os dois únicos versos do seu papel nesse segundo ato: Não senhores, não sou senhorita tão bela, E eu não necessito que me dêem a mão! retumbantes “bravo” acolheram Carlotta. Era tão imprevista e tão inútil aquela manifestação que os que não estavam a par de nada se olharam perguntando-se o que estava acontecendo, e o ato ainda terminou sem nenhum incidente. Cada um dizia a si mesmo então: “Vai ser para o próximo ato, evidentemente”. Alguns que estavam, parece, mais bem informados do que os outros afirmaram que o “barulho” devia começar na “Copa do rei de Tule” e se precipitaram em direção da entrada dos assinantes para ir avisar Carlotta.
Os diretores deixaram o camarote durante esse intervalo para se informar a respeito dessa história de cabala de que tinha falado o gerente, mas logo voltaram dando de ombros e tratando todo esse caso de ninharia. A primeira coisa que viram ao entrar foi, sobre a tabuinha do apoio de mão, uma caixa de bombons ingleses. Quem a havia posto ali? Interrogaram as lanterninhas. Ninguém soube dar informações. Ao voltarem-se então novamente para o lado do apoio de mão, viram, desta vez, ao lado da caixa de bombons ingleses, um binóculo. Entreolharam-se. Não tinham vontade de rir. Tudo aquilo que a Sra. Giry lhes havia dito voltou-lhes à mente... e depois... parecia-lhes haver em torno deles como uma estranha corrente de ar... Sentaram-se em silêncio, realmente impressionados.
A cena representava o jardim de Margarida...
Fazei-lhe minhas confissões. Levai meus votos...
Enquanto cantava esses dois primeiros versos, com o buquê de rosas e lilases na mão, Christine, levantando a cabeça, divisou em seu camarote o visconde de Chagny e, a partir daí, pareceu a todos que a sua voz estava menos segura, menos pura, menos cristalina do que de costume. Alguma coisa que não se sabia tornava surdo, pesado o seu canto... Havia, por baixo, tremor e temor.
— Menina estranha — observou quase em voz alta um amigo de Carlotta que estava na platéia... Na outra noite, estava divina e, hoje, aí está ela balindo. Sem experiência, sem método!
Em vós eu confio, sim, Falai por mim.
O visconde colocou a cabeça entre as mãos. Chorava. O conde, atrás dele, mordia violentamente a ponta do bigode, levantava os ombros, franzia as sobrancelhas. Para que traduzisse por tantos sinais exteriores os seus sentimentos íntimos, o conde, normalmente tão correto e frio, devia estar furioso. E estava. Tinha visto o irmão voltar de uma viagem rápida e misteriosa num estado de saúde alarmante. As explicações que seguiram não tinham por certo tido a virtude de tranqüilizar o conde, que, desejoso de saber a que se ater, pedira um encontro com Christine Daaé. Esta tivera a audácia de lhe responder que não podia recebê-lo, nem a ele nem ao irmão. Pensou tratar-se de um cálculo abominável. Não perdoava Christine por fazer Raoul sofrer, mas sobretudo não perdoava Raoul por sofrer por Christine. Ah! tinha feito muito mal de interessar-se um instante por essa pequena, cujo triunfo de uma noite permanecia incompreensível para todos.
Que a flor em sua boca Saiba depor ao menos Um beijo ameno.
— Vai, fingida — resmungou o conde.
E ele se perguntou o que ela queria... o que afinal podia esperar... Era pura, diziam-na sem amigo, sem protetor de espécie alguma... esse Anjo do Norte devia ser bem espertinho!
Raoul, atrás das próprias mãos, cortina que escondia as lágrimas de criança, só pensava na carta que recebera, logo ao voltar a Paris, onde Christine tinha chegado antes dele, tendo escapado de Perros como uma ladra.
“Meu caro antigo amiguinho, é preciso ter a coragem de não me rever mais, de não falar mais comigo... se você me ama um pouco, faça isso por mim, por mim que nunca o esquecerei... meu querido Raoul. Principalmente, nunca mais penetre no meu camarim. Isso tem a ver com a minha vida. Sua pequena Christine.”
Um trovão de aplausos... É Carlotta que entra em cena.
O ato do jardim se desenrolava com as suas peripécias costumeiras.
Quando Margarida acabou de cantar a ária do Rei de Tule, foi aclamada; foi de novo aclamada quando terminou a ária das jóias:
Ah! rio ao ver-me assim Tão bela neste espelho...
Daí por diante, segura de si, segura de seus amigos na sala, segura de sua voz e de seu sucesso, nada mais temendo, Carlotta se deu inteira, com ardor, com entusiasmo, com embriaguez. O seu jogo não teve mais nenhum recato nem pudor... Já não era mais Margarida, era Carmem. Aplaudiram-na ainda mais, e seu dueto com Fausto parecia preparar-lhe um novo sucesso quando sobreveio de repente... algo de apavorante.
Fausto se ajoelhara:
Deixa-me contemplar, deixa-me, teu semblante Sob a luz fugidia
Com que o astro da noite, em nuvem tão distante, Tua graça acaricia.
E Margarida respondia:
Ó silêncio! Ó ventura! inefável mistério! Langor inebriante!
Escuto!... E entendo que essa voz solitária Em meu coração cante.
Nesse momento pois... nesse momento exato... aconteceu alguma coisa... eu disse alguma coisa de apavorante...
...A sala, num só movimento, se levantou... Em seu camarote, os diretores não conseguem reter uma exclamação de horror... Espectadores e espectadoras se olham como para se perguntar uns aos outros a explicação de tão inesperado fenômeno... O rosto de Carlotta exprime a dor mais atroz, seus olhos parecem habitados pela loucura. A pobre mulher se levanta, com a boca ainda aberta, tendo terminado de cantar o verso “em meu coração cante”. Mas daquela boca não sai mais nenhum som... mais nenhuma palavra...
Porque aquela boca, criada para a harmonia, aquele instrumento ágil que nunca havia falhado, órgão magnífico, gerador das mais belas sonoridades, dos mais difíceis acordes, das mais exigentes modulações, dos ritmos mais ardentes, sublime mecânica humana a que não faltava, para ser divina, senão o fogo do céu que, só ele, dá a verdadeira emoção que eleva as almas... aquela boca tinha deixado passar...
Daquela boca havia escapado...
...Um sapo! Um medonho, asqueroso, peçonhento, viscoso, chiante sapo!...
Por onde teria ele entrado? Como se tinha acocorado sobre a língua de Carlotta? Com as patas de trás encolhidas, para saltar mais alto e mais longe, soturnamente, havia saído da boca da cantora e...
Pois vocês imaginam que só se deve falar de sapo no sentido figurado. A gente não o via mas, pelos diabos!, a gente o ouvia coaxando!
Nunca batráquio algum, à beira dos brejos ressoantes, havia rasgado a noite com mais medonho coaxar.
E por certo ele se fazia ouvir por toda gente. Carlotta não acreditava ainda nem na sua garganta nem nos seus ouvidos. Um raio, se caísse aos seus pés, não a teria espantado mais do que aquele sapo coaxando que acabava de sair da sua boca...
E ela não o teria desonrado. Ao passo que é bem sabido que um sapo encolhido sobre a língua desonra sempre uma cantora. Algumas morreram por causa disso.
Meu Deus! Quem teria acreditado numa coisa dessas?... Ela estava cantando tão tranqüilamente: “E entendo que essa voz solitária em meu coração cante!” Cantava sem esforço, como sempre, com a mesma facilidade com que vocês dizem: “Bom dia, minha senhora, como está?”
Não se pode negar que existem cantoras presunçosas, que cometem o grande erro de não medir as suas forças, e que, em seu orgulho, querem atingir, com a fraca voz com que o Céu as brindou, efeitos excepcionais e emitir notas que lhes foram proibidas ao virem ao mundo. E então que o Céu, para as punir, lhes envia, sem que saibam, um sapo na boca, um sapo que coaxa! Todo mundo sabe disso. Mas ninguém podia admitir que uma Carlotta, que tinha pelo menos duas oitavas em sua voz, tivesse também um sapo.
Ninguém podia ter-se esquecido de seus contrafás estridentes, de seus stacati inauditos em A flauta encantada. Todos se lembravam de seu Don Juan, em que ela era Elvira e em que arrebatou o mais estrondoso triunfo, certa noite, emitindo ela própria o si bemol que sua colega Dona Anna não conseguia alcançar. Então, realmente, que significava esse coaxar, na ponta dessa tranqüila, sossegada, pequenina “voz solitária que cantava em seu coração”?
Não era natural. Havia aí algum sortilégio. Esse sapo estava com cheiro de queimado. Pobre, miserável, desesperada, aniquilada Carlotta!...
Na sala, o rumor crescia. Fosse outra que não Carlotta a quem acontecesse semelhante aventura, tê-la-iam vaiado! Mas com ela, de quem se conhecia o perfeito instrumento, ninguém mostrava raiva, mas consternação e pavor. Assim os homens tiveram de suportar essa espécie de espanto se houve algum que assistiu à catástrofe que quebrou os braços da Vênus de Milo!... e ainda puderam ver o golpe que feria... e compreender...
Mas naquele caso? O sapo era incompreensível!...
Tanto assim que depois de passados alguns segundos a se perguntar se ela havia realmente ouvido sair de sua própria boca aquela nota — seria uma nota, um som? — poderia chamar-se aquilo um som? Um som é ainda música — aquele barulho infernal, ela quis se persuadir de que nada tinha sido; que tinha havido ali, por um instante, uma ilusão de seu ouvido, e não uma criminosa traição do órgão vocal.
Lançou, desvairada, olhares em torno de si como para procurar refúgio, proteção, ou melhor, a segurança espontânea da inocência de sua voz. Levara os dedos crispados à garganta num gesto de defesa e protesto! Não! aquele coaxo não era dela! E parece mesmo que o próprio Carolus Fonta era dessa opinião, pois olhava para ela com uma expressão inenarrável de estupefação infantil e gigantesca. Porque, afinal, ele estava perto dela. Não a havia deixado. Talvez ele pudesse dizer-lhe como tinha acontecido semelhante coisa! Não, ele não podia! Os seus olhos estavam estupidamente pregados na boca de Carlotta como os olhos das crianças contemplando o chapéu inesgotável do prestidigitador. Como uma boca tão pequena podia ter contido um tão grande coaxo?
Tudo isso, sapo, coaxo, emoção, terror, rumor da sala, confusão do palco, dos bastidores — alguns comparsas exibiam caras espantadas —, tudo isso que lhes descrevo com pormenores durou apenas alguns segundos.
Alguns segundos horríveis que pareceram principalmente intermináveis aos olhos dos dois diretores lá em cima, no camarote nº 5. Moncharmin e Richard estavam muito pálidos. Esse episódio inaudito e que permanecia inexplicável os enchia de uma angústia que ficava ainda mais misteriosa na medida em que estavam havia alguns instantes sob a influência direta do fantasma.
Tinham sentido o seu sopro. Alguns cabelos de Moncharmin se tinham levantado sob esse sopro... E Richard tinha passado o lenço na testa banhada em suor... Sim, ele estava lá... em torno deles... atrás deles, ao lado deles, eles o sentiam sem o ver!... Ouviam a sua respiração... e tão perto deles, tão perto deles!... A gente sabe quando alguém está presente... Pois bem, eles sabiam agora!... Estavam certos de que eram três no camarote... Estavam tremendo... Tinham vontade de fugir... Não ousavam... Não ousavam fazer nenhum movimento, trocar uma palavra que pudesse deixar o fantasma perceber que eles sabiam que ele estava ali!... O que ia acontecer? O que iria se produzir?
Acima de todos os barulhos da sala ouviu-se a exclamação de horror dos dois. Eles se sentiam sob os golpes do fantasma. Debruçados acima do camarote, olhavam para Carlotta como se não a reconhecessem. Aquela moça infernal devia ter dado, com o seu coaxo, o sinal de alguma catástrofe! Ah! a catástrofe, eles a esperavam! O fantasma lhes havia prometido! A sala maldita! O seu duplo peito diretorial arfava já sob o peso da catástrofe. Ouviu-se a voz sufocada de Richard que gritava para Carlotta:
— Pois bem! continue!
Não, Carlotta não continuou... Ela recomeçou bravamente, heroicamente, o verso fatal ao fim do qual tinha aparecido o sapo.
Um silêncio assustador sucede a todos os ruídos. Só a voz de Carlotta enche de novo o vaso sonoro.
Escuto!... A sala toda escuta:
Escuto!... E entendo que essa voz solitária (coaxo!) Coaxo!... Em meu... coaxo... cante... coaxo...
O sapo também recomeçou.
A sala explode num prodigioso tumulto. Caídos em suas poltronas, os diretores nem arriscam voltar a cabeça; não têm forças para isso. O fantasma lhes ri no pescoço! E finalmente eles ouvem distintamente no ouvido direito a sua voz, a impossível voz, a voz sem boca, a voz que diz:
“Esta noite ela está cantando de arrancar o lustre!”
Num movimento conjunto, levantaram a cabeça para o teto e soltaram um grito terrível. O lustre, a imensa massa do lustre deslizava, vinha a eles, ao apelo dessa voz satânica. Despregado, o lustre mergulhava das alturas da sala e se despencava no meio da platéia, em meio a mil clamores. Foi um espanto, um salve-se-quem-puder generalizado. Minha intenção não é reviver aqui um momento histórico. Aos curiosos, basta abrir os jornais da época. Houve numerosos feridos e uma morta.
O lustre tinha-se arrebentado em cima da cabeça da infeliz que tinha vindo aquela noite à Ópera pela primeira vez na vida, em cima daquela que o Sr. Richard havia designado para substituir nas funções de lanterninha a Sra. Giry, a lanterninha do fantasma. Ela morreu instantaneamente e, no dia seguinte, um jornal saía com esta manchete: Duzentos mil quilos sobre a cabeça de uma zeladora!
Esse foi todo o seu panegírico.
O MISTERIOSO CUPÊ
Essa noitada trágica foi má para toda gente. Carlotta caiu doente. Quanto a Christine Daaé, desapareceu depois da representação. Quinze dias se passaram sem que a vissem no teatro, sem que se mostrasse fora do teatro.
Não há que se confundir este primeiro desaparecimento, que se deu sem escândalo, com o famoso rapto que, algum tempo depois, devia acontecer em condições tão inexplicáveis e tão trágicas.
Raoul foi, naturalmente, o primeiro a não entender nada da ausência da diva. E lhe havia escrito no endereço da Sra. Valérius e não tinha obtido resposta. De início, não ficara particularmente admirado, conhecendo o seu estado de espírito e a resolução em que ela estava de romper qualquer relação entre eles, sem que ele, aliás, tivesse podido adivinhar a razão disso.
O que só fez aumentar a sua dor, e acabou ficando preocupado por não ver a cantora em nenhum programa. Levaram Fausto sem ela. Uma tarde, ali pelas 5 horas, foi informar-se junto à direção sobre as causas do desaparecimento de Christine Daaé. Encontrou os diretores muito preocupados. Os próprios amigos deles não os reconheciam mais; tinham perdido toda alegria e todo entusiasmo. Eram vistos atravessando o teatro cabisbaixos, fronte preocupada, rostos pálidos como se estivessem sendo perseguidos por algum pensamento abominável, ou sendo vítimas de alguma maldade do destino que agarra o seu homem e não o larga mais.
A queda do lustre tinha acarretado muitas responsabilidades, mas era difícil fazer com que os diretores se explicassem a esse respeito.
A diligência concluiu por acidente advindo em conseqüência do desgaste dos meios de sustentação, mas assim mesmo teria sido dever dos antigos diretores, assim como dos novos, verificar esse desgaste e tomar providências antes que este provocasse a catástrofe.
E preciso dizer que os Srs. Richard e Moncharmin mostraram-se nessa época tão mudados, tão distantes... tão misteriosos... tão incompreensíveis que muitos assinantes puseram-se a imaginar que algum acontecimento mais medonho ainda do que a queda do lustre tinha modificado o estado de alma dos diretores.
Em suas relações cotidianas, mostravam-se por demais impacientes, exceto, entretanto, com a Sra. Giry, que fora reintegrada em suas funções. Dá para desconfiar qual foi a maneira com que receberam o visconde de Chagny quando este veio pedir notícias de Christine. Limitaram-se a responder que ela estava de licença. Ele perguntou quanto tempo duraria essa licença; foi-lhe respondido secamente que era ilimitada, pois Christine Daaé a pedira por motivo de saúde.
— Então ela está doente! — exclamou. — O que é que ela tem?
— Nós não sabemos!
— Os senhores não lhe mandaram o médico do teatro?
— Não! Ela não pediu e, como confiamos nela, acreditamos em sua palavra.
O caso não pareceu natural para Raoul, que deixou o teatro às voltas com os mais sombrios pensamentos. Resolveu, acontecesse o que acontecesse, ir atrás de notícias na casa da Sra. Valérius. Por certo se lembrava dos termos enérgicos da carta de Christine, que lhe proibia tentar o que quer que fosse para se encontrar com ela. Mas o que tinha visto em Perros, o que tinha ouvido atrás da porta do camarim, a conversa que tinha tido com Christine à beira da landa, lhe faziam pressentir alguma maquinação que, por ser um pouco diabólica, nem por isso era menos humana. A imaginação exaltada da moça, a sua alma terna e crédula, a educação primitiva que cercara os seus jovens anos com um círculo de lendas, o contínuo pensamento do pai morto e principalmente o estado de sublime êxtase em que a música a mergulhava logo que essa arte se manifestava a ela em certas condições excepcionais — não tinha ele estado em condição de presenciar o fato por ocasião da cena do cemitério? —, tudo isso lhe aparecia como devendo constituir um terreno moral propício para as iniciativas malfazejas de alguma personagem misteriosa e sem escrúpulos. De quem Christine Daaé estava sendo vítima? Eis a questão muito sensata que Raoul levantava para si mesmo enquanto ia, às pressas, para a casa da Sra. Valérius.
O visconde tinha, com efeito, uma mente das mais sadias. Sem dúvida era poeta e gostava de música no que ela tem de mais alado, era grande aficionado dos contos bretães em que dançam os “korrigans”, e, além de tudo, estava enamorado dessa fadinha do norte que era Christine Daaé; isso não impedia que ele só acreditasse no sobrenatural em matéria de religião e que a história mais fantástica do mundo não seria capaz de fazê-lo esquecer que dois e dois são quatro.
O que é que ele ia ficar sabendo na casa da Sra. Valérius? Tremia de medo ao tocar a campainha da porta de um pequeno apartamento da rua Notre-Dame-des-Victoires.
A camareira que, uma noite, tinha saído diante dele do camarim de Christine veio abrir-lhe. Ele perguntou se podia ver a Sra. Valérius. Foi-lhe respondido que ela estava adoentada, de cama, e impossibilitada de “receber”.
— Faça chegar a ela o meu cartão — pediu ele.
Não esperou por muito tempo. A camareira voltou e fê-lo entrar numa pequena sala de visitas bastante escura e sumariamente mobiliada onde os dois retratos, um do professor Valérius e outro do Sr. Daaé, estavam colocados frente a frente.
— Minha senhora se desculpa junto ao senhor visconde — disse a doméstica. — Ela só poderá recebê-lo no seu quarto, pois as pobres pernas já não a podem sustentar.
Cinco minutos depois Raoul era introduzido num quarto quase escuro, onde distinguiu imediatamente, na penumbra de uma alcova, a bondosa figura da benfeitora de Christine. Agora os cabelos da Sra. Valérius estavam totalmente brancos, mas os olhos não tinham envelhecido: jamais, pelo contrário, o seu olhar havia sido tão claro, nem tão puro, nem tão infantil.
— Sr. De Chagny! — disse ela alegremente estendendo as duas mãos ao visitante... — Ah! é o Céu que me envia o senhor!... Vamos poder falar dela.
Esta última frase soou bastante lúgubre aos ouvidos do jovem. Perguntou de imediato:
— Minha senhora, onde está Christine?
A velha senhora respondeu-lhe com tranqüilidade:
— Ora, ela está com o seu “bom gênio”!
— Que bom gênio? — perguntou o pobre Raoul.
— Ora, o Anjo da musica!
O visconde de Chagny, consternado, sentou-se pesadamente numa cadeira. Realmente, Christine estava com o Anjo da música! E a Sra. Valérius, em seu leito, lhe sorria colocando um dedo na boca para lhe recomendar silêncio. Ela acrescentou:
— Isso não deve ser dito a ninguém!
— A senhora pode confiar em mim! — replicou Raoul sem saber bem o que dizia, pois as suas idéias sobre Christine, já bastante confusas, se embaralhavam cada vez mais, e parecia que tudo começava a girar em seu redor, ao redor do quarto, ao redor dessa extraordinária boa senhora de cabelos brancos, de olhos de céu azul pálido, de olhos de céu vazio... — A senhora pode confiar em mim...
— Eu sei! eu sei! — afirmou ela com um sorriso feliz. — Mas aproxime-se então de mim, como quando o senhor era pequenino. Dê-me as suas mãos como quando me relatava a história da pequena Lotte que lhe tinha sido contada pelo Sr. Daaé. Eu gosto muito do senhor, sabe, Sr. Raoul. E Christine também gosta muito!
— ... Ela gosta muito de mim... — suspirou o jovem que juntava com dificuldade o seu pensamento em torno do gênio da Sra. Valérius, em torno do Anjo de que tão estranhamente lhe falara Christine, da cabeça de caveira que ele tinha vislumbrado numa espécie de pesadelo nos degraus do altar-mor de Perros e também do fantasma da Ópera, cuja reputação lhe tinha chegado aos ouvidos, numa noite em que se tinha atrasado no palco, a dois passos de um grupo de maquinistas que lembravam a descrição que dele fizera antes de seu misterioso fim o enforcado Joseph Buquet...
Perguntou em voz baixa:
— O que é que a leva a Crer, minha senhora, que Christine gosta de mim?
— Ela me falava do senhor todos os dias!
— Mesmo? ... E o que é que ela lhe dizia?
— Ela me disse que o senhor lhe fez uma declaração!...
E a boa velhinha se pôs a rir às gargalhadas, mostrando todos os dentes, que tinha zelosamente conservado. Raoul levantou-se, com a fronte avermelhada, sofrendo atrozmente.
— E então, aonde o senhor vai?... O senhor não quer se sentar?... O senhor vai me deixar assim?... O senhor se zangou porque eu ri, eu lhe peço perdão... Afinal, não é culpa sua, o que aconteceu... O senhor não sabia... O senhor é jovem... e acreditava que Christine estava livre...
— Christine está noiva? — perguntou com voz estrangulada o infeliz Raoul.
— Não! não mesmo!... O senhor sabe bem que Christine, ainda que quisesse, não pode se casar!...
— O quê? Mas eu não sabia de nada!... E por que Christine não pode se casar?
— Por causa do gênio da música, ora!...
— Outra vez...
— Sim, ele lhe proíbe!...
— Ele lhe proíbe!... O gênio da música lhe proíbe de se casar!...
Raoul se debruçava sobre a Sra. Valérius, com o maxilar avançado, como para mordê-la. Se tivesse vontade de devorá-la, não a olharia com olhos mais ferozes. Há momentos em que a inocência de espírito exagerada aparece tão monstruosa que se torna digna de ódio. Raoul achava a Sra. Valérius por demais inocente.
Ela não se deu conta do olhar horrível que pesava sobre ela. Retomou a conversa da maneira mais natural:
— Oh! ele lhe proíbe... sem lhe proibir... Ele lhe diz simplesmente que, se ela se casar, não ouvirá mais a sua voz! Isso é tudo!... e que ele irá embora para sempre!... Então, o senhor compreende, ela não quer deixar que vá embora o gênio da música. E muito natural.
— Sim, sim — obtemperou Raoul num sopro —, é muito natural.
— Aliás, eu pensava que Christine lhe tivesse dito tudo isso, quando se encontrou com o senhor em Perros sobre o túmulo de Daaé! Ele lhe tinha prometido que tocaria A ressurreição de Lázaro com o violino do pai dela!
Raoul de Chagny levantou-se e pronunciou estas palavras decisivas com grande autoridade:
— Minha senhora, a senhora vai me dizer onde mora esse gênio! A velha senhora não pareceu particularmente surpresa com essa pergunta indiscreta. Levantou os olhos e respondeu:
— No céu!
Tanta candura o desarmou. Uma fé tão simples e perfeita num gênio que, todas as noites, desce do céu para freqüentar os camarins de artistas na Ópera deixou-o estupefato.
Dava-se conta agora do estado de espírito em que podia se encontrar uma mocinha criada entre um menestrel supersticioso e uma boa senhora “iluminada”; estremeceu ao pensar nas conseqüências de tudo isso.
— Christine continua sendo uma moça honesta? — não pôde deixar de perguntar de repente.
— Pelo meu lugar no paraíso, eu juro! — exclamou a velha, que desta vez pareceu irritada. — E, se o senhor duvida disso, não sei o que veio fazer aqui!...
Raoul arrancava as luvas.
— Há quanto tempo ela travou conhecimento com esse “gênio”?
— Cerca de três meses!... Sim, faz bem três meses que ele começou a lhe dar aulas!
O visconde estendeu os braços num gesto imenso e desesperado e os deixou cair com desânimo.
— O gênio lhe dá aulas!... E onde isso?
— Agora que ela saiu com ele eu não saberia dizer, mas há quinze dias isso acontecia no camarim de Christine. Aqui seria impossível. A casa toda ouviria. Ao passo que na Ópera, às oito horas da manhã, não há ninguém. Ninguém os atrapalha!... Entende?...
— Entendo! entendo! — exclamou o visconde, e se despediu precipitadamente da velha senhora que se perguntava se o visconde não estava perdendo o juízo.
Ao atravessar a sala, Raoul viu-se defronte da camareira e, por um instante, teve a intenção de interrogá-la, mas pensou surpreender em seus lábios um leve sorriso. Achou que zombava dele. Fugiu.
Já não estava sabendo de bastante coisa? Voltou a pé para o domicílio do irmão, num estado de ânimo de causar dó...
Quisera se castigar, bater a cabeça nas paredes! Ter acreditado em tanta inocência, em tanta pureza! Ter tentado, por um instante, explicar tudo com ingenuidade, com simplicidade de espírito, com candura imaculada! O gênio da música! Conhecia-o agora! Estava vendo! Era sem nenhuma dúvida algum horroroso tenor, belo rapaz, e que cantava fazendo biquinho! Ele achava-se ridículo e infeliz quanto merecia! Ah! que miserável, pequeno, insignificante e tolo garoto era o Sr. visconde de Chagny!, pensava raivosamente Raoul. E ela, que criatura audaciosa e satanicamente fingida!
Apesar de tudo, essa caminhada pelas ruas tinha-lhe feito bem, tinha refrescado um pouco a chama de seu cérebro. Quando penetrou em seu quarto, não pensava noutra coisa que não fosse atirar-se na cama para ali abafar os seus soluços. Mas o seu irmão estava lá e Raoul lançou-se em seus braços, como um bebê. O conde, paternalmente, consolou-o, sem lhe pedir explicações; aliás, Raoul teria hesitado em narrar-lhe a história do gênio da música. Se existem coisas de que a gente não se vangloria, existem outras das quais há demasiada humilhação em se queixar.
O conde levou o irmão para jantar no cabaré. Com um desespero tão recente, é provável que Raoul declinasse, naquela noite, qualquer convite se, para decidi-lo, o conde não houvesse dito que, na véspera, à noite, na alameda do Bosque, a dama de seus pensamentos havia sido vista em galante companhia. De início o visconde não quis acreditar e depois foram-lhe dados pormenores tão precisos que não protestou mais. Afinal, não era aquilo a aventura mais banal? Tinham-na visto num cupê cujo vidro estava abaixado. Ela parecia aspirar longamente o ar gélido da noite. Fazia um luar soberbo. Tinham-na reconhecido perfeitamente. Quanto ao seu companheiro, só tinham distinguido uma vaga silhueta, na sombra. A carruagem seguia lentamente por uma alameda deserta, atrás das tribunas de Longchamp.
Raoul vestiu-se com ansiedade, já pronto para esquecer a sua desgraça, a lançar-se, como se diz, no “turbilhão do prazer”. Infelizmente, ele foi um triste conviva e, tendo deixado cedo o irmão, encontrou-se, pelas 10 horas da noite, numa caleça, atrás das tribunas de Longchamp.
Fazia um frio terrível. A estrada mostrava-se deserta e muito iluminada sob a lua. Deu ordem ao cocheiro que o esperasse pacientemente na esquina de uma pequena alameda adjacente e, dissimulando-se tanto quanto possível, começou a caminhar.
Não fazia meia hora que se entregava a esse exercício quando um carro, vindo de Paris, virou a esquina e, tranqüilamente, ao passo do cavalo, veio em sua direção.
Ele pensou imediatamente: é ela! E o seu coração começou a dar pancadas fortes e surdas, como as que ouvira no peito quando escutava a voz de homem atrás da porta do camarim... Meu Deus! como ele a amava!
O carro continuava avançando. Quanto a ele, não se tinha mexido. Esperava!... Se fosse ela, estava decidido a saltar para a cabeça dos cavalos!... Custasse o que custasse, ele queria ter uma explicação com o Anjo da música!...
Mais alguns passos e o cupê ia passar ao seu lado. Não duvidava de que fosse ela... Uma mulher, com efeito, inclinava a cabeça na porta.
E, de repente, a lua a iluminou com pálida auréola.
— Christine!
O nome sagrado de seu amor brotou-lhe dos lábios e do coração. Ele não conseguiu se segurar!... Saltou para agarrá-lo, pois esse nome lançado na face da noite havia sido como o sinal esperado de uma carreira furiosa da parelha de cavalos e o cupê passou diante dele sem que tivesse tempo para pôr em execução o seu projeto. O vidro da porta tinha sido levantado. A figura da jovem mulher tinha desaparecido. E o cupê, atrás do qual ele corria, não era mais do que um ponto preto sobre a estrada branca.
Ele ainda chamou: Christine!... Nada lhe respondeu. Ele ficou parado, no meio do silêncio.
Lançou um olhar desesperado para o céu, para as estrelas; golpeou com o punho o peito em fogo; ele amava e não era amado!
Com um olhar abatido, contemplou aquela estrada desolada e fria, a noite pálida e morta. Nada estava mais frio, nada estava mais morto do que o seu coração; tinha amado um anjo e desprezava uma mulher!
Raoul, como brincou com você a fadinha do Norte! Não é verdade, não é verdade que é inútil ter um rosto tão fresco, uma fronte tão tímida para passar na noite solitária, no fundo de um cupê de luxo, em companhia de um misterioso amante? Não é verdade que deveria haver limites sagrados para a hipocrisia e para a mentira?... E que não se devia ter os olhos claros da infância quando se tem a alma das cortesãs?
... Ela havia passado sem responder ao seu apelo...
Também, por que ele tinha vindo atravessar o seu caminho?
Com que direito tinha ele levantado, de repente, diante dela, que não lhe pedia mais do que o esquecimento, a censura de sua presença?...
— Vai-te embora!... desaparece!... Tu não contas!...
Pensava em morrer e só tinha 20 anos!... O seu criado surpreendeu-o, pela manhã, sentado na cama. Não se tinha despido, e o valete, ao vê-lo, temeu por alguma desgraça, de tal maneira ele estava com uma cara de desastre. Raoul arrancou-lhe das mãos a correspondência que lhe trazia. Ele reconhecera uma carta, um papel, uma letra. Christine lhe dizia:
Meu amigo,
esteja, depois de amanhã, no baile de máscaras da Ópera, à meia-noite, no pequeno salão que fica atrás da lareira do grande pavilhão; fique de pé junto da porta que conduz à Rotunda. Não fale deste encontro a ninguém neste mundo. Fantasie-se de dominó branco, bem mascarado. Por minha vida, que não o reconheçam.
Christine.
NO BAILE DE MÁSCARAS
O envelope, todo maculado de lama, não trazia nenhum selo. “Para entregar em mãos do Sr. visconde de Chagny” e o endereço a lápis. Isto certamente tinha sido jogado na esperança de que algum transeunte recolhesse o bilhete e o entregasse em domicílio; o que se deu. O bilhete tinha sido encontrado numa calçada da Praça da Ópera. Raoul releu-o febrilmente.
Não precisava mais que isso para que ele renascesse para a esperança. A sombria imagem que se fizera por um instante de uma Christine negligente dos deveres para consigo mesma cedeu à primeira imaginação que tivera de uma criança inocente, vítima de uma imprudência e de sua sensibilidade demasiada. Até que ponto, a esta hora, ela era realmente vítima? De quem era prisioneira? Para que abismo a tinham arrastado? Perguntava-se tudo isso com uma angústia cruel; mas essa dor mesma lhe parecia suportável ao lado do delírio em que o lançava a idéia de uma Christine hipócrita e mentirosa!
O que tinha acontecido? A que influência estava submetida? Que monstro a tinha raptado, e com que armas?...
... Com que armas, pois, se não fossem as da música? Sim, sim, quanto mais pensava, mais se persuadia de que era por esse lado que encontraria a verdade. Teria esquecido o tom com que, em Perros, ela lhe contara que tinha recebido a visita do enviado celeste? E a própria história de Christine, nestes últimos tempos, não devia ela ajudá-lo a esclarecer as trevas em que se debatia? Teria ele ignorado o desespero que se tinha apossado dela após a morte do pai e a aversão que tinha tido então por todas as coisas da vida, mesmo por sua arte? No Conservatório, tinha passado como uma pobre máquina cantante, desprovida de alma. E, de repente, tinha acordado, como ao sopro de uma intervenção divina. O Anjo da música tinha chegado. Ela canta a Margarida de Fausto e triunfa!... O Anjo da música!... Quem então, quem então se faz passar a seus olhos por esse maravilhoso gênio?... Quem então, informado sobre a lenda cara ao velho Daaé, serve-se dela a ponto de a jovem já não passar, entre as suas mãos, de um instrumento sem defesa que ele faz vibrar como quer?
E Raoul ficava pensando que uma aventura assim não era excepcional. Lembrava-se do que tinha acontecido com a princesa de Belmonte, que acabara de perder o marido e cujo desespero tinha-se tornado estupor... Havia meses, a princesa nem mesmo falava. Essa inércia física e moral ia se agravando a cada dia e o enfraquecimento da razão levava aos poucos ao aniquilamento da vida. Todas as tardes, levavam a doente aos seus jardins; mas ela não parecia nem mesmo entender onde estava. Raff, o maior cantor da Alemanha, de passagem por Nápoles, quis visitar aqueles jardins, famosos por sua beleza. Uma das acompanhantes da princesa rogou ao grande artista que cantasse, sem se deixar ver, junto do bosquezinho onde a princesa estava estendida. Raff consentiu e cantou uma ária simples que a princesa tinha ouvido da boca de seu marido nos primeiros dias do seu himeneu. Essa ária era expressiva e tocante. A melodia, a letra, a voz admirável do artista, tudo se reuniu para mexer profundamente na alma da princesa. As lágrimas lhe correram dos olhos... ela chorou, foi salva e ficou persuadida de que o seu esposo, naquela tarde, tinha descido do céu para cantar para ela a ária de outrora!
“Sim... naquela tarde!... Uma tarde”, pensava agora Raoul, “uma única tarde...” Mas essa bela imaginação não teria resistido diante de uma experiência repetida...
Ela teria acabado por descobrir Raff, atrás do bosque, a ideal e dolente princesa de Belmonte, se tivesse voltado àquele lugar, voltado todas as tardes, durante três meses...
O Anjo da música, durante três meses, tinha dado aulas particulares a Christine... Ah! era um professor pontual!... E agora levava-a para passear no Bosque!...
Arrastando os dedos crispados sobre o peito onde batia o seu coração ciumento, Raoul rasgava a carne. Inexperiente, perguntava-se agora com terror a que jogo a senhorita o convidava para uma próxima mascarada? E até que ponto uma rapariga da Ópera pode zombar de um rapaz totalmente novo no amor? Que miséria!...
Assim, o pensamento de Raoul ia aos extremos. Não sabia mais se devia ter compaixão de Christine ou maldizê-la e, alternadamente, tinha compaixão dela e a maldizia. Por via das dúvidas, entretanto, ele providenciou uma fantasia de dominó branco.
Finalmente, chegou a hora do encontro. Com o rosto coberto por meia máscara prolongada por uma longa e espessa renda, todo de branco, o visconde achou-se ridículo por ter envergado esse traje das mascaradas românticas. Um homem de posição não se fantasiava para ir ao baile da Ópera. Provocaria risos. Um pensamento consolava o visconde: certamente não o reconheceriam! E, além disso, aquela roupa e aquela máscara tinham outra vantagem: Raoul ia poder passear lá dentro “como se estivesse em casa”, sozinho, com a desordem de sua alma e a tristeza do seu coração. Não precisaria fingir; ser-lhe-ia supérfluo compor uma máscara para o seu rosto: ele já a tinha!
Esse baile era uma festa excepcional, dada antes da terça-feira gorda, em homenagem ao aniversário de nascimento de um antigo desenhista dos folguedos de antanho, um êmulo de Gavarni, cujo lápis tinha imortalizado os “bacanas” e a descida da “Courtille”. Assim, devia ter um aspecto muito mais alegre, mais boêmio do que os bailes de máscaras comuns. Numerosos artistas tinham marcado presença nesse baile, seguidos de toda uma clientela de modelos e troca-tintas que, por volta da meia-noite, começavam a fazer uma enorme algazarra.
Raoul subiu a grande escadaria às cinco para meia-noite. Não demorou para considerar ao seu redor o espetáculo dos trajes multicoloridos que se estendia ao longo dos degraus de mármore, num dos mais suntuosos cenários do mundo, não se deixou seduzir por nenhuma máscara faceciosa, não respondeu a nenhuma pilhéria, e sacudiu a familiaridade assediadora de vários casais que já estavam alegres demais. Tendo atravessado o grande pavilhão e escapado de um cordão que, por um momento, o tinha aprisionado, penetrou finalmente no salão que o bilhete de Christine lhe havia indicado. Naquele pequeno espaço havia uma multidão; pois era ali o cruzamento onde se encontravam todos aqueles que iam cear na Rotunda ou que voltavam depois de tomar uma taça de champanhe. O tumulto ali era ardente e alegre. Raoul pensou que Christine tinha, para seu misterioso encontro, preferido aquela confusão a qualquer cantinho isolado: ali estariam mais dissimulados.
Encostou-se à porta e esperou. Não por muito tempo. Um dominó negro passou e lhe apertou rapidamente a ponta dos dedos. Raoul entendeu que era ela e acompanhou-a.
— E você, Christine? — perguntou num sussurro.
O dominó negro voltou-se com vivacidade e levantou o dedo até a altura dos lábios para lhe recomendar sem dúvida que não repetisse aquele nome.
Raoul continuou a acompanhar em silêncio.
Tinha medo de perdê-la, depois de tê-la tão estranhamente reencontrado. Já não sentia nenhum ódio contra Christine. Nem mesmo duvidava de que ela “nada tivesse para se recriminar”, por mais inexplicável que tivesse sido a sua conduta. Estava pronto para todas as mansidões, para todos os perdões, para todas as covardias. Ele a amava. E, certamente, logo lhe seria explicada muito naturalmente a razão de uma ausência tão singular...
O dominó negro, de vez em quando, virava-se para trás para ver se continuava sendo seguido pelo dominó branco.
Como Raoul estivesse atravessando de volta, atrás do seu guia, o grande pavilhão do público, não pôde fazer de outro modo senão notar, entre todas as gritarias, uma gritaria... entre todos os grupos que se entregavam às mais loucas extravagâncias, um grupo que se comprimia em torno de uma personagem cuja fantasia, cujo jeito original causavam sensação...
Essa personagem estava toda vestida de escarlate com um imenso chapéu de plumas em cima da cabeça de esqueleto. Ah! que bela imitação de caveira era aquela! Os jovens pintores em torno dele faziam grande alarido, felicitavam-no... perguntavam-lhe com que mestre, em qual ateliê, freqüentado por Plutão, lhe tinham feito, desenhado, maquilado uma caveira tão linda! A própria Morte devia ter pousado para isso.
O homem com a cabeça de esqueleto, chapéu vermelho com plumas e vestes escarlates arrastava atrás de si um imenso manto de veludo vermelho cuja chama se alongava regiamente sobre o piso; e sobre esse manto tinham bordado em letras de ouro uma frase que cada um lia e repetia em voz alta: “Não me toques! Eu sou a Morte vermelha que passa!...”
E alguém quis tocá-lo... mas uma mão de esqueleto, saindo de uma manga de púrpura, agarrou brutalmente o pulso do imprudente e este, tendo sentido o apertão dos ossos, o abraço furioso da Morte que parecia não querer largá-lo nunca mais, soltou um grito de dor e de pavor. A Morte vermelha devolveu-lhe finalmente a liberdade e ele fugiu feito um louco, em meio aos gracejos. Foi nesse instante que Raoul cruzou pela fúnebre personagem que, justamente, acabava de voltar-se para o seu lado. E ele esteve a ponto de soltar um grito: “A caveira de Perros-Guirec!” Ele a tinha reconhecido!... Quis precipitar-se, esquecendo Christine; mas o dominó negro, que parecia tomado, também ele, por uma estranha emoção, lhe agarrara o braço e o arrastava... arrastava para longe do pavilhão, para fora daquela multidão demoníaca onde passava a Morte vermelha...
A cada instante, o dominó negro se voltava e pareceu-lhe, sem dúvida, por duas vezes, perceber alguma coisa que o apavorava, pois apressou ainda mais o seu passo e o de Raoul como se estivessem sendo perseguidos.
Assim subiram dois andares. Ali, as escadas, os corredores estavam quase desertos. O dominó negro empurrou a porta de um camarote e fez sinal para que o dominó branco entrasse atrás dele. Christine (pois era mesmo ela, ele pôde reconhecê-la pela voz) fechou imediatamente a porta do camarote e recomendou-lhe, em voz baixa, que ficasse na parte de trás e que não se mostrasse. Raoul retirou a máscara. Christine conservou a sua. E, como o rapaz ia pedir à cantora que se desfizesse dela, ficou muito espantado de vê-la inclinar-se para a divisória e escutar atentamente o que se passava ao lado. Depois ela entreabriu a porta e olhou no corredor, dizendo em voz baixa: “Ele deve ter subido ali em cima, no camarote dos Cegos”! De repente ela exclamou: “Ele está descendo!”
Ela quis fechar a porta, mas Raoul se opôs, pois ele tinha visto no degrau mais alto da escada que subia para o andar superior pousar um pé vermelho, depois outro... e lentamente, majestosamente, desceu toda a vestimenta escarlate da Morte vermelha. E ele reviu a caveira de Perros-Guirec.
— É ele! — exclamou o visconde. — Desta vez ele não me escapa!...
Mas Christine havia fechado a porta no momento em que Raoul se lançava em sua direção. Ele quis afastá-la de seu caminho...
— Ele quem? — perguntou ela com voz alterada. — Quem não vai lhe escapar?...
Brutalmente, Raoul tentou vencer a resistência da moça, mas ela o empurrava com uma força inesperada... Ele compreendeu ou achou que compreendeu e ficou imediatamente furioso.
— Ele quem? — disse ele com raiva. — Ora, ele! O homem que se dissimula sob essa horrível imagem mortuária!... O mau gênio do cemitério de Perros!... A Morte vermelha!... Enfim, o seu amigo, madame... O seu Anjo da música!... Mas eu vou lhe arrancar a máscara da cara, como arrancarei a minha, e nós nos olharemos cara a cara, sem véu e sem mentira, e ficarei sabendo quem você ama e quem ama você!
Ele explodiu numa risada insensata enquanto Christine, atrás da sua máscara, emitiu um doloroso gemido.
Ela estendeu num gesto trágico os seus dois braços que puseram uma barreira de carne branca sobre a porta.
— Em nome do nosso amor, Raoul, você não vai passar!...
Ele estacou. O que é que ela dissera?... Em nome do amor deles?... Mas nunca ela lhe tinha dito que o amava. E, no entanto, não lhe tinham faltado ocasiões!... Ela já o tinha visto bastante infeliz, debulhado em lágrimas diante dela, implorando uma palavra de esperança que não tinha chegado!... Ela o tinha visto doente, quase morto de terror e de frio depois da noite do cemitério de Perros! Teria ela pelo menos ficado ao pé dele no momento em que mais precisava de seus cuidados? Não! Ela tinha fugido!... E estava dizendo que o amava! Falava “em nome do amor deles”. Vamos! Seu único objetivo era retardá-lo por alguns segundos... Era preciso dar à Morte vermelha o tempo de escapar... O amor deles? Ela estava mentindo!...
— Está mentindo, madame! porque não me ama, e nunca me amou! E preciso ser um mocinho muito infeliz como eu para se deixar enganar, para se deixar tapear como eu fui! Por que então por sua atitude, pela alegria do seu olhar, por seu silêncio mesmo, quando nos encontramos pela primeira vez em Perros, você me permitiu todas as esperanças? Todas as esperanças honradas, pois eu sou homem de honra e achava que você fosse uma mulher honrada, quando você tinha apenas a intenção de zombar de mim! E triste! Você zombou de todo mundo! Abusou até do coração cândido da sua benfeitora, que continua no entanto a acreditar na sua sinceridade quando você passeia pelo baile da Ópera com a Morte vermelha!... Eu a desprezo!...
E ele chorou. Ela deixava que a injuriasse. Só pensava numa coisa, retê-lo.
— Um dia você me pedirá perdão por todas as suas palavras feias, Raoul, e eu o perdoarei!...
Ele sacudiu a cabeça.
— Não! não! Você tinha me deixado louco!... quando penso que eu não tinha outro objetivo na vida senão dar o meu nome a uma moça de Ópera!...
— Raoul!...
— Vou morrer de vergonha!
— Viva, meu amigo — disse Christine com a voz grave e alterada. — E adeus!...
— Adeus, Christine!...
— Adeus, Raoul!...
O rapaz avançou com passo cambaleante. Arriscou ainda um sarcasmo:
— Oh! você vai me permitir que ainda venha aplaudi-la de vez em quando.
— Não cantarei mais, Raoul!...
— Realmente — acrescentou ele com mais ironia ainda... — Estão arranjando distrações para você: meus parabéns!... Mas a gente vai se ver no Bosque uma noite dessas!
— Nem no Bosque, nem em lugar nenhum, Raoul, você não me verá mais...
— A gente poderia pelo menos saber a que trevas você retorna? Para que inferno você está partindo de volta, misteriosa dama?... ou para que paraíso?...
— Eu tinha vindo para lhe dizer... meu amigo... mas não posso mais lhe dizer nada.... Você não acreditaria em mim! Você perdeu a confiança em mim, Raoul, está tudo acabado!...
Ela disse aquelas últimas palavras num tom tão desesperado que o rapaz estremeceu e o remorso por sua crueldade começou a lhe perturbar a alma.
— Mas afinal — exclamou —, você vai nos dizer o que significa tudo isto!... Você é livre, sem entrave... Passeia pela cidade... veste uma fantasia para vir ao baile... Por que não volta para casa?... O que é que você tem feito nestes quinze dias?... Que história é essa de Anjo da música que você contou à Sra. Valérius? Alguém pode ter enganado você, abusado da sua credulidade... Eu próprio fui testemunha disso em Perros, mas agora você sabe a que se ater!... Você me parece bastante sensata, Christine... Você sabe o que está fazendo!... e no entanto a Sra. Valérius continua esperando você, invocando o “bom gênio”!... Explique-se, Christine, eu lhe peço!... O que significa essa comédia?...
Christine, simplesmente, tirou a máscara e disse:
— E uma tragédia, meu amigo...
Raoul viu então o seu rosto e não pôde reter uma exclamação de surpresa e de terror. As frescas cores de outrora haviam desaparecido. Uma palidez mortal se estendia sobre aquelas feições que ele conhecera tão encantadoras e tão suaves, reflexos da graça tranqüila e da consciência impoluta. O vinco da dor as havia impiedosamente talhado e os belos olhos claros de Christine, outrora límpidos como os lagos que serviam de olhos para a pequena Lotte, mostravam-se de uma profundeza escura, misteriosa e insondável, e cercados com uma sombra pavorosamente triste.
— Minha amiga! minha amiga! — gemeu ele estendendo os braços... — você prometeu me perdoar...
— Talvez!... talvez um dia... — disse ela recolocando a máscara, e se foi, proibindo-lhe de a seguir com um gesto que o rechaçava...
Quis lançar-se atrás dela, mas esta se virou e repetiu com tal autoridade o seu gesto de adeus que ele não ousou dar nem mais um passo.
Ele a viu afastar-se... Depois desceu até a multidão, sem saber precisamente o que fazia, com as têmporas a pulsar forte, o coração dilacerado, e perguntou, na sala que estava atravessando, se tinham visto passar a Morte vermelha. Diziam-lhe: “Quem é essa Morte vermelha?” Ele respondia: “É um homem fantasiado com uma caveira e um grande manto vermelho”. Por toda parte diziam que a Morte vermelha tinha acabado de passar, arrastando o seu manto real, mas ele não a encontrou em lugar nenhum e voltou, pelas duas da manhã, ao corredor que, atrás do palco, conduzia ao camarim de Christine Daaé.
Seus passos o conduziram a esse lugar onde tinha começado a sofrer. Bateu à porta. Ninguém respondeu. Entrou como tinha entrado quando procurava por toda parte a voz de homem. O camarim estava deserto. Um bico de gás estava aceso, com a chama baixa. Sobre uma pequena escrivaninha havia papel de carta. Pensou em escrever a Christine, mas soaram passos no corredor... Só teve o tempo de se esconder no toucador que estava separado do camarim por uma simples cortina. Uma mão empurrou a porta do camarim. Era Christine!
Ele segurou a respiração. Queria ver! Queria saber!... Alguma coisa lhe dizia que ia assistir a uma parte do mistério e que ia começar a compreender talvez...
Christine entrou, retirou a máscara num gesto cansado e a jogou sobre a mesa. Suspirou, deixou cair a linda cabeça entre as mãos... Em que estava pensando?... Nele, Raoul?... Não! porque ouviu-a em seguida murmurar: “Pobre Erik!”
A princípio pensou ter ouvido mal. De início, estava persuadido de que, se alguém merecia dó, era ele, Raoul. O que de mais natural, depois do que tinha acabado de acontecer entre eles, do que ela dizer num suspiro: “Pobre Raoul!” Mas ela repetiu, sacudindo a cabeça: “Pobre Erik!” O que é que esse Erik vinha fazer nos suspiros de Christine e por que a fadinha do Norte exprimia a sua compaixão por Erik quando Raoul estava tão infeliz?
Christine pôs-se a escrever, pausadamente, tranqüilamente, tão pacificamente que Raoul, que ainda tremia pelo drama que os separava, ficou singular e raivosamente impressionado com o que via. “Quanto sangue-frio!”, pensou. Assim, ela foi escrevendo, enchendo duas, três, quatro páginas. De repente, levantou a cabeça e escondeu as folhas no decote. Parecia estar tentando escutar algo... Raoul fez o mesmo... De onde vinha aquele barulho estranho, aquele ritmo distante?... Um canto surdo que parecia sair das muralhas... Sim, dir-se-ia que as paredes cantavam!... O canto ia se tornando mais claro... as palavras, inteligíveis... distinguiu-se uma voz... uma belíssima, suavíssima e cativante voz... mas tanta doçura se mantinha entretanto máscula e assim podia-se deduzir que a voz não pertencia a uma mulher... A voz continuava a se aproximar... atravessou a parede... chegou... e a voz agora estava no camarim, diante de Christine. Christine se levantou e falou para a voz como se estivesse falando com alguém presente junto dela.
— Aqui estou eu, Erik. Estou pronta. E você que está atrasado, meu amigo.
Raoul, que olhava com prudência atrás da sua cortina, não podia acreditar em seus olhos que não lhe mostravam nada.
A fisionomia de Christine se iluminou. Um sorriso veio pousar em seus lábios exangues, um sorriso como aquele dos convalescentes quando começam a esperar que o mal que os atingiu não os levará.
A voz sem corpo começou a cantar novamente e Raoul concluiu que nunca ouvira nada neste mundo de mais suave, de mais insidioso, de mais delicado na força, de mais forte na delicadeza, enfim, de mais irresistivelmente triunfante. Havia ali acentos definitivos que cantavam magistralmente e que deviam certamente, pela força apenas de sua audição, fazer nascer acentos elevados nos mortais que sentem, amam e traduzem a música. Havia ali uma fonte tranqüila e pura de harmonia a que os fiéis podiam com toda segurança devotamente beber, certos de que estavam bebendo a graça musical oriunda de um Anjo. E a sua arte, por si só, tendo atingido o divino, ficava transfigurada. Raoul ouvia essa voz febrilmente e começava a entender como Christine Daaé tinha podido aparecer uma noite diante do público estupefato, com acentos de uma beleza desconhecida, de uma exaltação sobre-humana, sem dúvida ainda sob a influência do misterioso e invisível mestre! E tanto mais entendia tão considerável acontecimento ao ouvir a excepcional voz quanto esta justamente não cantava nada de excepcional: com barro, ela havia feito o céu. A banalidade do verso e a facilidade e a quase vulgaridade popular da melodia pareciam transformadas em beleza por um sopro que as elevava e as carregava em pleno céu sobre as asas da paixão. Porque aquela voz angélica glorificava um hino pagão.
Aquela voz cantava “a noite de himeneu” de Romeu e Julieta.
Raoul viu Christine estender os braços para a voz como, no cemitério de Perros, fizera para o violino invisível que tocava A ressurreição de Lázaro...
Nada poderia descrever a paixão com que a voz disse:
O destino acorrenta-te a mim sem retorno!...
Raoul teve o coração como que traspassado e, lutando contra o encantamento que parecia lhe tirar toda vontade e toda energia, e quase toda lucidez no momento em que mais precisava dela, conseguiu puxar a cortina que o escondia e caminhou em direção de Christine. Esta, que avançava para o fundo do camarim cuja parede era toda ocupada por um grande espelho que lhe devolvia a sua imagem, não podia vê-lo, pois ele estava exatamente atrás dela e inteiramente coberto por ela.
O destino acorrenta-te a mim sem retorno!...
Christine caminhava sempre em direção de sua imagem e sua imagem descia para ela. As duas Christines — o corpo e a imagem — acabaram por tocar-se, confundir-se. E Raoul estendeu o braço para, num mesmo gesto, pegá-las a ambas.
Entretanto, por uma espécie de milagre ofuscante que o fez balançar, Raoul foi de repente repelido para trás, enquanto um vento gelado lhe varria o rosto; ele viu já não mais duas, mas quatro, oito, vinte Christines que giraram ao seu redor com tal ligeireza, que zombavam e fugiam tão rapidamente que a sua mão não pôde agarrar nenhuma. Finalmente, tudo voltou a ficar imóvel e ele se viu no espelho. Mas Christine tinha desaparecido.
Ele se precipitou sobre o espelho. Chocou-se contra as paredes. Ninguém! E no entanto o camarim ainda ressoava com um ritmo distante, apaixonado:
O destino acorrenta-te a mim sem retorno!...
As suas mãos apertaram a fronte banhada em suor, apalparam a sua carne dolorida, tatearam a penumbra, devolveram ao bico de gás toda a sua força. Estava certo de que não sonhava. Encontrava-se no centro de um jogo formidável, físico e moral, de que não possuía a chave e que talvez fosse triturá-lo. Ele se via assim vagamente como um príncipe aventureiro que tivesse ultrapassado o limite proibido de um conto de fadas e que não deve mais se espantar de estar a braços com fenômenos mágicos que inopinadamente enfrentou e desencadeou por amor...
Por onde Christine tinha saído?...
Por onde ela voltaria?...
Acaso voltaria?... Tristeza! Não lhe afirmara Christine que tudo estava terminado!... e a parede não estava a repetir: O destino acorrenta-te a mim sem retorno? A mim? A quem?
Então, extenuado, vencido, sentou-se no lugar que havia pouco estava ocupado por Christine. Como ela, deixou a cabeça pender entre as mãos. Quando a ergueu, lágrimas abundantes lhe corriam ao longo do jovem rosto, verdadeiras e pesadas lágrimas, como as que vertem as crianças ciumentas, lágrimas que caíam sobre uma desgraça nada fantástica, mas comum a todos os amantes da terra e que ele explicitou bem alto:
— Quem é esse Erik? — perguntou Raoul.
É PRECISO ESQUECER O NOME DA “VOZ DE HOMEM”
No dia seguinte ao que Christine tinha desaparecido diante de seus olhos numa espécie de ofuscamento que o fazia ainda duvidar de seus sentidos, o visconde de Chagny foi procurar notícias na casa da Sra. Valérius. Deparou com um quadro encantador.
À cabeceira da velha senhora, que, sentada na cama, tricotava, Christine fazia renda. Nunca rosto mais encantador, nunca fronte mais pura, nunca olhar mais terno se debruçaram sobre um trabalho de virgem. O frescor das cores tinha voltado às faces da jovem. O círculo azulado em torno de seus olhos havia desaparecido. Raoul não reconheceu mais o rosto trágico da véspera. Se o véu da melancolia espalhado sobre os seus traços adoráveis não se tivesse mostrado ao rapaz como o último vestígio do drama inaudito em que se debatia aquela misteriosa criança, ele poderia pensar que Christine não era a sua incompreensível heroína.
Ela se levantou, sem emoção aparente, quando o viu aproximar-se, e estendeu-lhe a mão. Mas a estupefação de Raoul era tal que ele permanecia ali, aniquilado, sem um gesto, sem uma palavra.
— Pois bem, Sr. De Chagny — disse a Sra. Valérius. — Então o senhor não conhece mais Christine? O “bom gênio” dela no-la devolveu.
— Mamãe! — interrompeu a moça num tom breve, enquanto um vivo rubor lhe subia até os olhos. — Eu pensava que nunca mais se trataria disso!... A senhora bem sabe que não existe gênio da música algum!
— Minha filha, ele lhe deu aulas, no entanto, durante três meses!
— Mamãe, eu lhe prometi explicar tudo um dia desses; assim espero... mas, até esse dia, a senhora me prometeu guardar silêncio e não me interrogar nunca!
— Se você me prometesse não mais me abandonar! Você vai me prometer isso, Christine?
— Mamãe, nada disso pode interessar ao Sr. De Chagny...
— É aí que você se engana, senhorita — interrompeu o rapaz cora uma voz que queria tornar firme e corajosa e que ainda estava trêmula —, tudo que lhe diz respeito me interessa a um ponto que você acabará talvez um dia por entender. Não posso esconder-lhe que o meu espanto iguala a minha alegria ao reencontrá-la ao pé de sua mãe adotiva e aquilo que ontem se passou entre nós, o que você pôde me dizer, ou que eu pude adivinhar, nada me fazia prever um tão rápido retorno. Eu seria o primeiro a me alegrar com isso se você não se obstinasse em conservar sobre essas coisas todas um segredo que pode lhe ser fatal... e eu sou seu amigo há tempo demais para não ficar preocupado, como a Sra. Valérius, com uma aventura funesta que continuará perigosa enquanto não tivermos desfeito a sua trama e de que você acabará sendo vítima, Christine.
A essas palavras, a Sra. Valérius se agitou em seu leito.
— Que significa isso? Então Christine está correndo perigo?
— Isso mesmo, minha senhora.... — declarou corajosamente Raoul, ignorando os sinais que Christine fazia.
— Meu Deus! — exclamou, ofegante, a boa e ingênua velhinha. — Você tem de me dizer tudo, Christine! Por que você estava tentando me tranqüilizar? E de que perigo se trata, Sr. De Chagny?
— Um impostor que está abusando da boa fé de Christine!
— O Anjo da música é um impostor?
— Ela mesma disse para a senhora que não existe Anjo da música nenhum!
— E o que é que existe então, em nome do Céu! — suplicou a inválida. — Assim vocês estão me matando!
— Existe, em torno de nós, em torno da senhora, em torno de Christine, um mistério terrestre muito mais temível do que todos os fantasmas e todos os gênios!
A Sra. Valérius dirigiu para Christine um rosto terrificado, mas esta já se precipitara em direção da mãe adotiva e a apertava nos braços:
— Não acredite nele, mamãe... não acredite nele... — repetia e tentava, com seus afagos, consolá-la, pois a velha senhora soltava suspiros de cortar a alma.
— Então diga-me que você não vai me abandonar mais! — implorou.
Christine permanecia calada e Raoul disse:
— É isso que é preciso prometer, Christine... É a única coisa que nos pode deixar tranqüilos, à sua mãe e a mim! Nós nos comprometemos a não fazer mais nem uma única pergunta sobre o passado se você nos prometer ficar sob a nossa salvaguarda no futuro...
— É um compromisso que eu não lhes peço, e é uma promessa que não lhes farei! — pronunciou a moça com altivez. — Sou livre em minhas ações, Sr. De Chagny; o senhor não tem nenhum direito de as controlar e eu lhe peço que se dispense disso daqui para a frente. Quanto ao que venho fazendo há quinze dias, só existe um homem no mundo que teria o direito de exigir que eu lhe relatasse tudo: o meu marido! Ora, eu não tenho marido, e nunca vou me casar!
Dizendo isso, estendeu a mão para Raoul, de modo a tornar suas palavras mais solenes, e Raoul empalideceu, não apenas por causa das palavras que acabava de ouvir, mas porque percebera, no dedo de Christine, um anel de ouro.
— Você não tem marido e, no entanto, você usa uma “aliança”. E quis agarrar-lhe a mão, mas, com presteza, Christine retirou-a.
— Foi um presente! — declarou ela, corando e esforçando-se para esconder o seu embaraço.
— Christine! Já que você não tem marido, esse anel só pode ter-lhe sido dado por aquele que espera um dia vir a sê-lo! Por que continuar nos enganando? Por que me torturar ainda mais? Esse anel é uma promessa! E essa promessa foi aceita!
— Foi o que eu lhe disse! — exclamou a velha senhora.
— E o que foi que ela lhe respondeu?
— Isso não lhe diz respeito — interferiu Christine exasperada. — O senhor não acha que este interrogatório já está durando demais?... Quanto a mim...
Raoul, muito emocionado, temeu deixá-la pronunciar as palavras de uma ruptura definitiva e interrompeu-a:
— Desculpe-me se lhe falei assim, senhorita... Bem sabe quanto é honesto o sentimento que me leva a imiscuir-me, neste momento, em coisas que, sem dúvida, não me dizem respeito! Mas deixe-me dizer-lhe o que vi... e vi mais do que você pensa, Christine... ou o que eu acreditei ver, pois, na verdade, o mínimo que se pode, numa aventura assim, é duvidar dos próprios olhos.
— O que foi então que o senhor viu, ou acreditou ter visto?
— Eu vi o seu êxtase ao som da voz, Christine! da voz que saía da parede, ou de um camarim, ou de aposentos ao lado... sim, o seu êxtase!... E é isto que, por você, me assusta!... Você está sob a ação do mais perigoso dos encantamentos!... E parece, entretanto, que você se deu conta da impostura, visto que você declarou há pouco que não existe gênio da música... Então, Christine, por que você o seguiu uma vez mais? Por que você se levantou, com o rosto radiante, como se realmente estivesse ouvindo os anjos?... Ah! essa voz é perigosíssima, Christine, já que eu mesmo, enquanto a ouvia, fiquei tão arrebatado que você desapareceu da minha vista sem que eu pudesse dizer por onde você tinha saído!... Christine! Christine! Em nome do Céu, em nome do seu pai que está no céu e que tanto amou você, e que me amou, Christine, você vai nos dizer, à sua benfeitora e a mim, a quem pertence aquela voz!... E, apesar de você, nós a salvaremos!... Vamos, o nome desse homem, Christine?... Desse homem que teve a audácia de colocar no seu dedo um anel de ouro!...
— Sr. De Chagny — declarou friamente a moça —, o senhor nunca o saberá!...
A seguir, ouviu-se a voz acre da Sra. Valérius que, de repente, tomou o partido de Christine, vendo com que hostilidade a sua pupila acabara de se dirigir ao visconde.
— E se ela o ama, senhor visconde, se ama esse homem, isso não é da sua conta ainda!
— E pena, minha senhora — disse humildemente Raoul sem poder reter as lágrimas. — E pena! Eu acredito, de fato, que Christine o ama... Tudo me prova isso, mas não é só isso que faz o meu desespero, pois aquilo de que não estou certo, senhora, é que aquele que é amado por Christine seja digno desse amor!
— Só a mim cabe julgar, meu senhor! — redarguiu Christine olhando bem de frente para Raoul e mostrando-lhe no rosto uma irritação soberana.
— Quando se usa — continuou Raoul, que sentia as suas forças o abandonarem —, para seduzir uma moça, meios tão românticos...
— É preciso, não é, que o homem seja miserável ou que a moça seja bem tola? — Christine aparteou.
— Christine!
— Raoul, por que você condena assim um homem a quem você nunca viu, que ninguém conhece e de quem você mesmo não sabe nada?...
— Sim, Christine... Sim... Eu sei pelo menos aquele nome que você pretendia me esconder para sempre... O seu Anjo da música, senhorita, chama-se Erik...
Christine traiu-se imediatamente. Ficou, desta vez, branca como uma toalha de altar. Balbuciou:
— Quem foi que lhe disse?
— Você mesma!
— Como assim?
— Quando manifestava compaixão por ele, na outra noite, na noite do baile de máscaras. Ao chegar ao seu camarim, você disse: “Pobre Erik!” Pois bem, Christine, havia, em algum lugar, um pobre Raoul que ficou esperando por você.
— E a segunda vez que o senhor escuta atrás das portas, Sr. de Chagny!
— Eu não estava atrás da porta!... Eu estava dentro do camarim!... no seu toucador.
— Infeliz! — gemeu a moça, que manifestou todas as marcas de um verdadeiro pavor... — Infeliz! Você está querendo ser morto?
— Talvez!
Raoul pronunciou esse “talvez” com tanto amor e desespero que Christine não pôde segurar um soluço.
Ela pegou então as mãos dele e o olhou com toda a terna pureza de que era capaz, e o jovem, sob aqueles olhos, sentiu que já se aplacava a sua angústia.
— Raoul — disse ela. — É necessário esquecer a voz de homem e nunca mais se lembrar desse nome... e jamais tentar penetrar o mistério da voz de homem.
— Esse mistério deve ser então muito terrível?
— Não existe nenhum mais pavoroso sobre a terra!
Um silêncio separou os dois jovens. Raoul estava arrasado.
— Jure para mim que você não tentará descobrir mais nada — insistiu ela. — Jure para mim que você não vai mais entrar no meu camarim sem que eu o chame.
— Você promete que vai me chamar ali de vez em quando, Christine?
— Prometo.
— Quando?
— Amanhã.
— Então eu juro o que você me pediu! Foram as suas últimas palavras naquele dia.
Ele beijou-lhe as mãos e se foi, maldizendo Erik e prometendo a si mesmo que teria paciência.
ACIMA DOS ALÇAPÕES
No dia seguinte encontraram-se na Ópera. Ela continuava com a aliança de ouro no dedo. Mostrou-se meiga e boa. Conversou com ele sobre projetos que tinha, o seu futuro, a carreira.
Ele lhe contou que a partida da expedição polar tinha sido antecipada e que, dentro de três semanas, no mais tardar dentro de um mês, ele deixaria a França.
Ela o incentivou quase prazerosamente a considerar essa viagem com alegria, como uma etapa de sua glória futura. E como ele respondesse que a glória sem amor não oferecia a seus olhos nenhum encanto, ela o tratou como criança cujos pesares devem ser passageiros. Ele lhe disse:
— Como é que você pode, Christine, falar tão levianamente de coisas tão sérias? Talvez nunca mais voltemos a nos ver!... Posso morrer durante essa expedição!...
— E eu também — disse ela simplesmente.
Ela já não sorria, já não estava mais brincando. Parecia pensar em alguma coisa nova que lhe vinha pela primeira vez à mente. O seu olhar estava iluminado.
— Em que você está pensando, Christine?
— Estou pensando que nós não nos veremos mais.
— E é isso que a torna tão radiante?
— E que, dentro de um mês, teremos que nos dizer adeus... para sempre!...
— Pelo menos, Christine, empenhemos a nossa fé e fiquemos nos esperando para sempre.
Ela lhe colocou a mão sobre a boca:
— Cale-se, Raoul!... Não se trata disso, você bem sabe!... E nós nunca nos casaremos! Está entendido!
De repente ela parecia conter com dificuldade uma alegria transbordante. Bateu em suas mãos com uma alegria infantil. Raoul olhava para ela, inquieto, sem entender.
— Mas... mas... — ela balbuciou estendendo as duas mãos para o rapaz, ou melhor, dando-as a ele, como se, de súbito, tivesse resolvido fazer-lhe presente delas. — Mas se não podemos nos casar, podemos... podemos ficar noivos!... Ninguém ficará sabendo, Raoul!... Já houve casamentos secretos!... Pode haver também noivado secreto!... Ficamos noivos, meu amigo, por um mês!... Dentro de um mês, você partirá e eu poderei ficar feliz, com a lembrança desse mês, pela vida toda!
Ela estava radiante com a sua idéia e voltou a ficar séria.
— Isso... — disse — é uma felicidade que não fará mal a ninguém.
Raoul tinha entendido. Atirou-se sobre essa inspiração. Quis imediatamente fazer dela uma realidade. Inclinou-se diante de Christine com uma humildade sem igual e disse:
— Senhorita, tenho a honra de pedir a sua mão!
— Ora, você já tem as duas, meu querido noivo!... Oh! Raoul, como vamos ser felizes!... Nós vamos brincar de futuro maridinho e de futura mulherzinha!...
Raoul dizia consigo: “Daqui a um mês, terei tempo para fazê-la esquecer ou para penetrar e destruir o ‘mistério da voz de homem’, e em um mês Christine consentirá em tornar-se a minha mulher. Enquanto se espera, vamos ficar brincando!”.
Foi o jogo mais bonito do mundo, e desfrutaram dele como duas crianças que eram. Ah! como disseram coisas maravilhosas um ao outro! E quantas juras eternas trocaram! A idéia de que, passado um mês, não haveria mais ninguém para guardar aqueles juramentos os deixava entre o riso e as lágrimas. Brincavam “de coração” como outros brincam “de bola”; só que, como eram os seus corações que eles jogavam um para o outro, era-lhes necessário ser muito bons jogadores para recebê-lo sem provocar dor. Um dia — era o oitavo do jogo — o coração de Raoul doeu muito e o rapaz interrompeu a partida com estas palavras extravagantes: “Não vou mais para o Pólo Norte”.
Christine, que, na sua inocência, não pensara nessa possibilidade, descobriu de repente o perigo do jogo e ficou amargamente zangada consigo mesma. Não respondeu uma palavra para Raoul e voltou para casa.
Isso aconteceu à tarde, no camarim da cantora onde ela marcava todos esses encontros e onde se divertiam em verdadeiros “jantares” constituídos por alguns biscoitos, dois cálices de vinho do Porto e um buquê de violetas.
À noite, ela não cantava. Ele não recebeu a carta costumeira, embora se tivessem permitido escrever todos os dias um ao outro durante aquele mês. Na manhã seguinte, ele correu à casa da Sra. Valérius, que lhe informou que Christine estaria ausente por dois dias. Tinha partido na tarde do dia anterior, às 5 horas, dizendo que não estaria de volta antes de dois dias. Raoul ficou transtornado. Estava detestando a Sra. Valérius que lhe dava uma notícia dessas com estupenda tranqüilidade. Tentou “tirar alguma coisa” dela, mas parecia evidente que a boa senhora não sabia de nada. Consentiu apenas em responder às perguntas enlouquecidas do rapaz:
— É o segredo de Christine!
E levantava o dedo, dizendo isso com uma unção comovente que recomendava a discrição ao mesmo tempo em que pretendia dar segurança.
— Ah! as moças estão bem protegidas com essa Sra. Valérius! — exclamou com raiva Raoul enquanto descia as escadas como louco.
Onde poderia estar Christine?... Dois dias... Dois dias a menos na já tão curta felicidade deles! E, era culpa dele! Não tinha sido combinado que ele devia partir?... E se a sua firme intenção era não partir, por que tinha falado tão cedo? Ele se acusava de falta de tato e foi o mais infeliz dos homens durante quarenta e oito horas, ao cabo das quais Christine reapareceu.
Reapareceu num triunfo. Reencontrou finalmente o sucesso inaudito da noite de gala. Desde a aventura do “sapo”, Carlotta não tinha podido se apresentar no palco. O terror de falhar novamente habitava-lhe o coração e lhe tirava todas as forças; e os lugares, testemunhas de sua incompreensível derrota, tinham-se tornado odiosos para ela. Encontrou um meio de romper o seu contrato. Momentaneamente, pediu-se a Daaé que ocupasse a vaga. Um verdadeiro delírio acolheu-a em A judia.
O visconde, presente nessa noite, naturalmente, foi o único a sofrer ao ouvir os mil ecos desse novo triunfo; porque viu que Christine conservava no dedo o seu anel de ouro. Uma voz distante murmurava no ouvido do rapaz: “Esta noite, ela ainda está com o anel de outro, e não foi você quem o deu para ela. Esta noite, ela deu de novo a sua alma, e não foi para você”.
E a voz o perseguia ainda: “Se ela não quer lhe dizer o que faz, há dois dias... se lhe esconde o lugar onde se retirou, é preciso ir perguntá-lo a Erik!”.
Correu para o palco. Colocou-se no caminho dela. Ela o viu, pois os seus olhos o procuravam. Ela lhe disse: “Depressa! Depressa! Venha!” E puxou-o para o seu camarim, sem se preocupar com todos os cortesãos da sua jovem glória que murmuravam diante da porta fechada: “É um escândalo!”.
Raoul caiu imediatamente a seus pés. Jurou-lhe que iria partir e suplicou-lhe que doravante não cortasse mais nenhuma hora da felicidade ideal que ela lhe tinha prometido. Ela deixou correrem as lágrimas. Abraçaram-se como irmão e irmã desesperados que acabam de ser atingidos por um luto comum e se reencontram para chorar um morto.
Súbito, ela se arrancou ao suave e tímido abraço do rapaz, pareceu escutar alguma coisa e, com um gesto breve, mostrou a porta a Raoul. Quando ele estava saindo, ela lhe disse, tão baixo que o visconde adivinhou mais do que ouviu as palavras:
— Amanhã, meu querido noivo! E seja feliz, Raoul... foi para você que eu cantei esta noite!...
E ele voltou.
Mas, infelizmente, esses dois dias de ausência tinham rompido o encanto da amável mentira que havia entre eles. Olharam um para o outro, no camarim, sem nada dizer, com olhos tristes. Raoul se segurava para não gritar: “Eu estou com ciúmes!”. Mas ela o ouvia assim mesmo.
Então, ela disse:
— Vamos dar um passeio, meu amigo, o ar livre lhe fará bem. Raoul pensou que ela fosse lhe propor alguma brincadeira no campo, longe daquele monumento, que ele detestava como se fosse uma prisão, e cujo carcereiro ele sentia raivosamente passear pelas paredes... o carcereiro Erik... Mas ela o conduziu ao palco e fê-lo sentar-se sobre a beirada de madeira de uma fonte, na paz e no frescor duvidosos de um primeiro cenário plantado para o próximo espetáculo; num outro dia, ela vagou com ele, segurando-lhe a mão, pelas alamedas abandonadas de um jardim cujas trepadeiras tinham sido recortadas pelas mãos hábeis de um decorador, como se o céu de verdade, as flores de verdade, a terra de verdade lhe estivessem para sempre proibidos e ela estivesse condenada a não respirar outro ar que não fosse o do teatro! O rapaz hesitava em fazer-lhe a menor pergunta, pois, como parecia imediatamente que ela não podia responder, temia fazê-la sofrer inutilmente. De vez em quando, um bombeiro passava, e de longe espiava o seu idílio melancólico. Por vezes, ela tentava corajosamente enganá-lo sobre a beleza mentirosa daquele quadro inventado para a ilusão dos homens. A sua imaginação sempre viva o enfeitava com as mais brilhantes cores e tais, dizia ela, que a natureza não podia produzir comparáveis. Ela se exaltava, enquanto Raoul apertava a sua mão febril. Dizia: “Veja, Raoul, essas muralhas, esses bosques, esses dosséis, essas imagens pintadas na tela, tudo isso viu os mais sublimes amores, pois aqui foram inventados por poetas, que ultrapassam de cem côvados o tamanho dos homens. Diga-me então que o nosso amor está aí presente, meu Raoul, pois que ele também foi inventado, e que não é, tampouco ele, infelizmente, mais que uma ilusão!”.
Desolado, ele não respondia.
“O nosso amor é triste demais sobre a terra, vamos fazê-lo passear no céu!... Veja como é fácil aqui!”
E ela o puxava para um lugar acima das nuvens, na desordem magnífica da rede de cordames e se divertia em provocar-lhe vertigem correndo à sua frente sobre as pontes frágeis da gambiarra, entre os cabos que se amarravam às roldanas, aos guindastes, aos tambores, no meio de uma verdadeira floresta aérea de mastros. Se ele hesitasse, ela lhe dizia com um beicinho adorável: “Você, um marinheiro?!”
Depois desciam para a terra firme, isto é, para algum corredor que os conduzia a risos, a danças, à juventude que se fazia repreender por uma voz severa: “Mais flexibilidade, mocinhas!... Cuidado com as suas pontas!”... E a classe das garotas, daquelas que acabam de passar dos seis anos ou que logo vão fazer nove ou dez... e já têm a blusinha decotada, o saiote ligeiro, a calça colante branca e as meias cor-de-rosa, e trabalham, trabalham com toda a força dos seus pezinhos doloridos na esperança de se tornarem alunas das quadrilhas, coriféias, dançarinas, primeiras dançarinas, com muitos diamantes em volta... Enquanto esperam, Christine lhes distribui balas.
Noutro dia, ela o fazia entrar num vasto salão do seu palácio, todo cheio de ouropéis, vestimentas de cavaleiros, lanças, escudos e penachos, e passava em revista todos os fantasmas de guerreiros imóveis e cobertos de poeira. Dirigia-lhes boas palavras, prometendo-lhes que voltariam a vir noites ofuscantes de luz, e os desfiles de música diante da rampa retumbante.
Ela o fez passear assim por todo o seu império, que era factício, mas imenso, a estender-se por dezessete andares do térreo até o topo e era habitado por um exército de súditos. Passava pelo meio deles como uma rainha popular, animando os trabalhos, sentando-se nos armazéns, dando sábios conselhos às operárias cujas mãos hesitavam em dar o pique nos ricos estofos que deviam vestir heróis. Os habitantes desse país tinham todas as profissões. Havia sapateiros e ourives. Todos tinham aprendido a amá-la, pois ela se interessava pelos sofrimentos e pelas pequenas manias de cada um. Sabia de recantos desconhecidos habitados em segredo por velhos casais.
Batia à porta deles e apresentava Raoul como um príncipe encantado que tinha pedido a sua mão, e ambos sentados sobre algum acessório carunchado escutavam as lendas da Ópera como outrora tinham escutado, na infância, os velhos contos bretões. Esses anciãos não tinham outra lembrança que não fosse a Ópera. Moravam ali desde inumeráveis anos. As administrações desaparecidas os tinham esquecido ali; as revoluções de palácio os tinham ignorado; fora, a história da França tinha passado sem que eles se dessem conta, e ninguém se lembrava deles.
Assim se passavam os preciosos dias e Raoul e Christine, pelo interesse excessivo que pareciam atribuir às coisas exteriores, esforçavam-se inabilmente por esconder um do outro o único pensamento de seu coração. Um fato certo era que Christine, que se tinha mostrado até então a mais forte, ficou de repente nervosa além de qualquer expressão. Em suas expedições, punha-se a correr sem motivo ou parava bruscamente, e a sua mão, que ficara gelada num instante, segurava o rapaz. Os seus olhos pareciam às vezes seguir sombras imaginárias. Gritava: “Por aqui”, depois “por aqui”, e novamente “por aqui”, rindo, com um riso ofegante que terminava muitas vezes em lágrimas. Raoul então queria falar, interrogar apesar de suas promessas, de seus compromissos. Mas, antes mesmo que tivesse formulado uma pergunta, ela respondia febrilmente: “Nada!... juro-lhe que não há nada”.
Uma vez em que, no palco, eles passavam diante de um alçapão entreaberto, Raoul se debruçou sobre o abismo escuro e disse: “Você me fez visitar os altos do seu império, Christine... mas contam histórias estranhas sobre os baixos... Você não gostaria que a gente descesse até lá?”. Ouvindo isso, ela o agarrou pelo braço, como se temesse vê-lo desaparecer no buraco negro, e lhe disse bem baixinho a tremer: “Nunca!... Proíbo-o de ir lá embaixo!.. E depois, não é meu!... Tudo que está debaixo da terra lhe pertence!...”
Raoul mergulhou o seu olhar no dela e lhe disse com voz rude:
— Então ele mora lá embaixo?
— Eu não lhe disse isso!... Quem foi que lhe disse semelhante coisa? Vamos! venha! Há momentos, Raoul, em que eu me pergunto se você não está louco... Você sempre ouve coisas impossíveis!... Venha! Venha!
E ela o arrastava literalmente, pois ele queria obstinadamente ficar perto do alçapão, aquele buraco o atraía.
O alçapão de repente se fechou, e tão subitamente, sem que tivessem nem mesmo percebido a mão que o fazia mover-se, que ficaram completamente aturdidos.
— Talvez fosse ele quem estava lá? — Raoul acabou por dizer. Ela levantou os ombros, mas não parecia nada sossegada.
— Não! não! são os “fechadores de alçapões”. Eles têm de fazer alguma coisa... Abrem e fecham os alçapões sem motivo... É como os “fechadores de portas”; eles têm de fazer algo para “matar o tempo”.
— E se fosse ele, Christine?
— Não! Não é! Ele está trancado! Ele está trabalhando.
— Ah! realmente, ele trabalha?
— E, ele não pode abrir e fechar os alçapões e trabalhar ao mesmo tempo. Não temos com que nos preocupar.
Ao dizer isso, ela estremecia.
— Em que é que ele trabalha?
— Oh! em alguma coisa de terrível!... Assim, nós ficamos despreocupados!... Quando ele trabalha nisso, não vê nada; ele não come, não bebe, nem respira... durante dias e noites... é um morto vivo e não tem tempo para ficar brincando com alçapões!...
Ela estremeceu mais uma vez, inclinou-se para escutar do lado do alçapão... Raoul ficou calado. Temia agora que o som de sua voz a fizesse refletir, interrompendo-o no curso ainda tão frágil de suas confidências.
Ela não o tinha largado, continuava a segurá-lo pelo braço e por sua vez acrescentou:
— Se fosse ele!
Raoul, tímido, perguntou:
— Você tem medo dele? Ela disse:
— Ora, não!
O rapaz, involuntariamente, ficou com dó dela, como se faz com uma pessoa impressionável que ainda está a braços com um sonho recente. Ele parecia dizer: “Porque você sabe, eu... eu estou aqui!” E o seu gesto foi, quase involuntariamente, ameaçador; então Christine olhou para ele assustada, como um fenômeno de coragem e de virtude, e pareceu, em sua mente, medir em seu justo valor tanto cavalheirismo inútil e audacioso. Abraçou o pobre Raoul como uma irmã que o recompensasse, com um acesso de ternura, por ter fechado o seu punhozinho fraternal para defendê-la contra os perigos sempre possíveis da vida.
Raoul entendeu e corou de vergonha. Ele se achava tão frágil quanto ela. Dizia a si mesmo: “Ela quer demonstrar que não está com medo, mas nos afasta do alçapão a tremer”. Era verdade. No dia seguinte e nos outros dias subseqüentes, foram abrigar os seus curiosos e castos amores quase nos sótãos, bem longe dos alçapões. A agitação de Christine só ia aumentando à medida que passavam as horas. Finalmente, numa tarde, ela chegou atrasadíssima, com o rosto pálido e os olhos avermelhados por um desespero incontestável, que Raoul resolveu chegar a todos os extremos, àquele, por exemplo, que lhe exprimiu sem rodeios, de que só partiria para o Pólo Norte se ela lhe confiasse o segredo da voz de homem.
— Cale-se! Em nome do Céu, cale-se. Se ele ouvisse o que você está dizendo, pobre Raoul!
E os olhos ferozes da moça rondavam pelas coisas em seu redor.
— Eu retirarei você do poder dele, Christine, juro! E você nem sequer pensará mais nele, o que é necessário.
— Seria possível?
Ela se permitiu essa dúvida que era um incentivo, enquanto arrastava o rapaz até o último andar do teatro, “na altitude”, lá onde se está bem longe dos alçapões.
— Esconderei você num canto desconhecido do mundo, onde ele não irá procurar você. Você estará salva, e então eu partirei pois que você jurou nunca se casar.
Christine atirou-se às mãos de Raoul e as apertou com um ímpeto incrível. Mas, ficando de novo inquieta, virava a cabeça.
— Mais alto! — disse apenas... mais alto ainda!... — E o arrastava para os pontos mais elevados.
Ele tinha dificuldade para segui-la. Logo estavam abaixo do telhado, num labirinto de vigas. Escorregavam entre os arcos de sustentação, as cavilhas, as mãos-francesas, os painéis, as águas, os desníveis; corriam de viga em viga, como se, numa floresta, corressem de árvore em árvore, de troncos formidáveis...
E, apesar da precaução que tomava de olhar a cada instante para trás, ela não viu uma sombra que a seguia como a sua sombra, que parava com ela, que seguia quando ela seguia e que não fazia barulho maior do que o que faria uma sombra. Quanto a Raoul, não percebeu nada, pois, quando tinha Christine diante de si, nada do que se passava atrás lhe interessava.
A LIRA DE APOLO
Assim, chegaram aos telhados. Ela deslizava sobre eles, leve e familiar, como uma andorinha. O olhar deles, entre as três cúpulas e o frontão triangular, percorreu o espaço deserto. Ela respirou com força, acima de Paris, de onde se avistava todo o vale a trabalhar. Olhou para Raoul com confiança. Chamou-o para bem pertinho de si e, lado a lado, caminharam, bem lá no alto, pelas ruas de zinco, nas avenidas de ferro; colocaram a sua forma gêmea dentro dos vastos reservatórios cheios de água imóvel onde, na estação quente, os garotinhos do balé, cerca de vinte meninos, mergulham e aprendem a nadar. A sombra atrás deles, sempre fiel aos seus passos, tinha surgido, achatando-se sobre os telhados, alongando-se com movimentos de asas negras. nas esquinas das ruelas de ferro, dando a volta às depressões, contornando, silenciosa, os zimbórios; e as pobres crianças nem desconfiavam da sua presença quando se sentaram finalmente, confiantes, sob a alta proteção de Apoio, que levantava o seu semblante de bronze, a sua prodigiosa lira, no coração do céu em fogo.
Uma tarde inflamada de primavera os rodeava. Algumas nuvens, que acabavam de receber do poente a leve roupagem de ouro e púrpura, passavam lentamente; e Christine disse a Raoul: “Logo, iremos mais longe e mais depressa do que as nuvens, ao fim do mundo, e depois você me abandonará, Raoul. Mas se, chegado o momento de você me raptar, eu não consentir mais em segui-lo, então, Raoul, você me carregaria embora!”
Com que força, que parecia dirigida contra si mesma, ela disse isso, enquanto se apertava nervosamente contra ele. O rapaz ficou impressionado.
— Então você teme mudar de idéia, Christine?
— Não sei — disse ela, sacudindo estranhamente a cabeça. — É um demônio!
E ela, estremecendo, encolheu-se nos braços dele com um gemido.
— Agora tenho medo de voltar a habitar com ele na terra!
— O que é que força você a voltar, Christine?
— Se eu não voltar para junto dele, podem acontecer grandes desgraças!... Mas não agüento mais!... Sei que é preciso ter pena das pessoas que moram “debaixo da terra”... Mas aquele lá é muito horrível! No entanto, aproxima-se o momento; só tenho mais um dia! E, se eu não voltar, ele é que virá me buscar com aquela sua voz! Irá me arrastar com ele, para onde mora, debaixo da terra, e se porá de joelhos na minha frente, com aquela sua caveira! E dirá que me ama! E irá chorar! Ah! aquelas lágrimas, Raoul! Aquelas lágrimas nos dois buracos negros da caveira. Não posso mais ver correrem aquelas lágrimas!
Ela torceu horrivelmente as mãos, enquanto Raoul, também tomado desse desespero contagioso, apertava-a contra o coração:
— Não! não! Você nunca mais vai ouvi-lo dizer que a ama! Não verá mais correrem as suas lágrimas! Vamos fugir!... Imediatamente, Christine, vamos fugir! — E já queria arrastá-la.
Mas ela o fez parar.
— Não, não — disse ela, meneando dolorosamente a cabeça —, agora não!... Seria cruel demais... Deixe que ele me ouça cantar ainda amanhã à noite, pela última vez... e depois nós iremos embora. À meia-noite, você virá buscar-me no meu camarim; à meia-noite em ponto. Nesse momento, ele estará me esperando na sala de jantar do lago... nós estaremos livres e você me raptará!... Ainda que eu recuse, você tem de me jurar isso, Raoul... porque estou sentindo que, desta vez, se eu voltar para lá, talvez nunca mais retorne...
E acrescentou:
— Você não pode entender!...
Lançou um suspiro ao qual, pareceu-lhe, atrás dela outro suspiro respondeu.
— Você não ouviu?
Ela estava batendo os dentes.
— Não — garantiu Raoul —, não ouvi nada...
— E terrível demais — confessou a moça —, ficar tremendo assim!... E no entanto, aqui, não corremos nenhum risco; estamos em casa, em minha casa, no céu, em pleno ar, em pleno dia. O sol está em chamas, e as aves noturnas não gostam de olhar o sol! Nunca o vi à luz do dia... Deve ser horrível!... — balbuciou, voltando para Raoul uns olhos desvairados. — Ah! a primeira vez que eu o vi!... Achei que ele ia morrer!
— Por quê? — perguntou Raoul, realmente assustado com o tom que tomava essa estranha e tremenda confidência. — Por que você achou que ele ia morrer?
— PORQUE EU O TINHA VISTO!!!
Desta vez Raoul e Christine viraram-se ao mesmo tempo. — Há alguém aqui! — disse Raoul. — Talvez um ferido. Você ouviu?
— Eu? Eu não poderia lhe dizer — confessou Christine. — Mesmo quando ele não está mais presente, os meus ouvidos estão repletos dos seus suspiros... Entretanto, se você ouviu...
Levantaram-se, olharam em torno de si... Estavam completamente sozinhos sobre o luminoso teto de chumbo. Voltaram a sentar-se. Raoul perguntou:
— Como foi que você o viu pela primeira vez?
— Fazia três meses que eu o ouvia sem vê-lo. A primeira vez que o “ouvi”, acreditei, como você, que aquela voz adorável, que de repente começara a cantar ao meu lado, cantava em um camarim próximo. Saí e procurei-a por toda parte; mas meu camarim fica muito isolado, Raoul, como você sabe, e foi-me impossível encontrar a voz fora do meu camarim, enquanto ela permanecia fielmente ali. E não apenas ela cantava, mas falava comigo, respondia às minhas perguntas como uma voz de homem verdadeira, com a diferença que ela era bela como uma voz de anjo. Como explicar um fenômeno tão incrível? Eu nunca tinha deixado de pensar no Anjo da música que o meu pobre papai havia prometido me enviar logo depois de sua morte. Arrisco falar com você de tamanha infantilidade, Raoul, porque você conheceu o meu pai, e ele gostava muito de você, e você acreditou, ao mesmo tempo que eu, quando éramos pequenos, no Anjo da música, e porque tenho certeza de que você não vai rir nem caçoar de mim. Eu tinha conservado, meu amigo, a alma terna e crédula da pequena Lotte e não seria a companhia da Sra. Valérius que iria me tirar isso. Peguei entre as minhas mãos ingênuas aquela alma toda branca e ingenuamente a estendi, ofereci-a à voz de homem, acreditando oferecê-la ao anjo. A culpa coube, um pouco, à minha mãe adotiva, a quem eu não escondia nada do inexplicável fenômeno. Ela foi a primeira a dizer: “Deve ser o anjo; em todo caso, você sempre pode perguntar a ele”. Foi o que eu fiz e a voz de homem me respondeu que, de fato, era a voz do anjo que eu estava esperando e que meu pai me havia prometido ao morrer. A partir desse momento, uma grande intimidade se estabeleceu entre a voz e mim, e tive nela uma confiança absoluta. Disse-me que tinha descido à Terra para me fazer provar as supremas alegrias da arte eterna, e pediu-me licença para me dar aulas de música, todos os dias. Consenti com ardor fervoroso e não faltei a nenhum encontro marcado, desde a primeira hora, no meu camarim, quando aquele canto da Ópera estava totalmente deserto. Dizer-lhe como foram essas aulas! Você mesmo, que ouviu a voz, pode fazer idéia.
— Evidente que não! Não posso fazer idéia — replicou o rapaz. — Com que vocês faziam o acompanhamento?
— Com uma música que eu ignoro, que ficava atrás da parede e era de um armamento incomparável. E, além disso, eu poderia jurar, meu amigo, que a Voz sabia exatamente a que ponto o meu pai, ao morrer, tinha parado as minhas lições e de que método simples ele se tinha servido; e assim, me lembrando de todas as lições passadas, me beneficiei das presentes, fiz progressos prodigiosos, a tal ponto que, noutras condições, teria levado anos! Lembre-se de que eu sou bastante delicada, meu amigo, e minha voz, de início, era pouco caracterizada, as notas baixas estavam mal desenvolvidas; os tons agudos eram bastante duros e o médio, velado. Foi contra todos esses defeitos que meu pai havia combatido e triunfado por um instante; foram defeitos que a Voz venceu definitivamente. Pouco a pouco, eu aumentava o volume dos sons em proporções que a minha fraqueza passada não me permitia esperar: aprendi a dar à minha respiração a maior amplitude. Mas, principalmente, a Voz me confiou o segredo de desenvolver sons de peito numa voz de soprano. Finalmente, envolveu tudo isso no fogo sagrado da inspiração, despertou em mim uma vida ardente, devoradora, sublime. A Voz tinha a virtude, ao se fazer ouvir, de me elevar até ela. Colocava-me em uníssono com o seu vôo soberbo. A alma da Voz habitava a minha boca e ali soprava a harmonia!
“Ao fim de algumas semanas, eu não me reconhecia mais quando cantava!... Ficava até espantada com o que estava acontecendo... tive medo, um instante, que houvesse nisso algum sortilégio; mas a Sra. Valérius me tranqüilizou. Sabia que eu era uma menina simples demais, dizia, para dar chance ao demônio.
“Os meus progressos permaneceram secretos, entre a Voz, a Sra. Valérius e mim, por ordem da própria Voz. Coisa curiosa, fora do camarim, eu cantava com a minha voz de sempre, e ninguém percebia nada. Eu fazia tudo o que a Voz queria. Ela me dizia: ‘É preciso esperar... você verá! Nós vamos deixar espantada Paris!’ E eu esperava. Vivia numa espécie de sonho extático em que comandava a Voz.. Entrementes, Raoul, vi você, uma noite, na sala. Minha alegria foi tanta que nem pensei em escondê-la ao voltar ao camarim. Para nossa infelicidade, a Voz já estava lá e viu, pelo meu jeito, que havia algo de novo. Perguntou-me o que eu tinha e não vi nenhum inconveniente em lhe contar a nossa meiga história, nem achei que devesse lhe dissimular o lugar que você ocupava no meu coração. Então a Voz se calou. Chamei-a, ela não me respondeu; supliquei-lhe, foi em vão. Tive um pavor louco de que ela tivesse ido embora para sempre! Provera a Deus, meu amigo!... Voltei para casa, naquela noite, em estado de desespero. Lancei-me num abraço à Sra. Valérius dizendo-lhe: ‘Sabe, a Voz foi-se embora! Talvez não volte nunca mais!’ E ela ficou tão assustada quanto eu e me pediu explicações. Contei-lhe tudo. Ela me disse: ‘Por Deus! a Voz está com ciúme!’ Isso, meu amigo, fez-me descobrir que eu amava você...”
Neste ponto, Christine parou um instante. Debruçou a cabeça no peito de Raoul e ambos ficaram silenciosos por um momento, nos braços um do outro. A emoção que os unia era tanta que não viram, ou melhor, não sentiram deslocar-se, a alguns passos deles, a sombra rastejante de duas grandes asas negras que se aproximou, rente aos telhados, tão perto deles que teria podido, caindo sobre eles, sufocá-los...
— No dia seguinte — retomou Christine com um profundo suspiro —, voltei ao meu camarim toda pensativa. A Voz estava lá.
Ó meu amigo! Ela se dirigiu a mim com grande tristeza. Declarou claramente que, se eu devia dar o coração neste mundo, ela não tinha mais nada a fazer, senão voltar para o céu. E disse-me isso com um tom de dor humana tal que, a partir desse dia, eu deveria ter desconfiado e começado a compreender que tinha sido estranhamente vítima do engano dos meus sentidos abusados. Mas a minha fé naquela aparição de Voz, à qual se mesclava tão intimamente o pensamento de meu pai, estava ainda inteira. Nada eu temia mais do que parar de ouvi-la; por outro lado, tinha refletido sobre o sentimento que me levava para você; eu tinha medido todo o seu inútil perigo; ignorava até se você ainda se lembrava de mim. Acontecesse o que acontecesse, a sua situação na sociedade me proibia para sempre o pensamento de uma união honesta; jurei à Voz que você não era nada para mim além de um irmão e que você nunca seria mais do que isso, e que o meu coração estava vazio de amor terrestre... E aí está a razão, meu amigo, pela qual eu desviava os olhos quando, no palco ou nos corredores, você procurava atrair a minha atenção, a razão pela qual eu não o reconhecia... pela qual eu não o via!.. Durante esse tempo, as horas de aula, entre a Voz e mim, escoavam num delírio divino. Nunca a beleza dos sons me havia possuído a esse ponto e um dia a Voz me disse: “Agora, Christine Daaé, podes levar aos homens um pouco da música do céu!”
— Como, naquela noite, que era a noite de gala, Carlotta não veio ao teatro? Como fui chamada para substituí-la? Não sei; mas eu cantei... cantei com um enlevo desconhecido; estava leve como se me tivessem dado asas; acreditei por um instante que a minha alma abrasada tinha deixado o meu corpo!
— Ó, Christine! — exclamou Raoul, cujos olhos estavam úmidos com a lembrança —, aquela noite o meu coração vibrou a cada vibração da sua voz. Eu vi as suas lágrimas rolarem nas faces pálidas, e chorei com você. Como você podia cantar chorando?
— As minhas forças me abandonaram — disse Christine — fechei os olhos... Quando os reabri, você estava ao meu lado! Mas a Voz também estava, Raoul!... Fiquei com medo de você, e ainda desta vez não quis reconhecê-lo e me pus a rir quando você me lembrou que tinha recolhido a minha echarpe no mar!...
“Infelizmente, não se consegue enganar a Voz!... Ela reconheceu você!... E a Voz estava enciumada!... Nos dois dias seguintes, ela me fez cenas atrozes... Dizia-me: ‘Você o ama! Se você não o amasse, não fugiria dele! Seria um velho amigo de quem você apertaria a mão, como a todos os outros... Se você não o amasse, não recearia encontrar-se com ele e comigo sozinha no camarim!... Se você não o amasse, não o expulsaria!...’
“— Basta! — disse eu, irritada, à Voz. — Amanhã devo ir a Perros, ao túmulo de meu pai; pedirei ao Sr. Raoul de Chagny que me acompanhe.
“— Fique à vontade — disse ela —, “mas saiba que também eu estarei em Perros, porque estarei em toda parte onde você estiver, Christine, e se você continua digna de mim, se você não mentiu, tocarei para você, ao toque da meia-noite, sobre o túmulo de seu pai, A ressurreição de Lázaro, com o violino do falecido.
“Assim, fui levada, meu amigo, a escrever-lhe a carta que levou você a Perros. Como pude ser enganada a esse ponto? Como, diante das preocupações tão pessoais da Voz, não desconfiei de alguma impostura? É triste, mas eu não era mais senhora de mim: eu era um mero objeto em suas mãos!... E os meios de que dispunha a Voz deviam facilmente enganar uma menina como eu!”
— Mas afinal — exclamou Raoul, neste ponto da narrativa de Christine em que ela parecia deplorar com lágrimas a inocência exagerada de um espírito bem pouco perspicaz —, mas afinal, você logo soube a verdade!... Como você não saiu imediatamente desse abominável pesadelo?
— Ficar sabendo da verdade!... Raoul!... Sair desse pesadelo!... Mas eu só entrei, infeliz, nesse pesadelo no dia em que fiquei sabendo desta verdade!... Cale-se!... Cale-se!... Eu não lhe disse nada... e agora nós vamos descer do céu para a terra, lamente-me, Raoul!... lamente-me!... Uma noite, noite fatal... veja... era a noite em que deviam acontecer tantas desgraças... a noite em que Carlotta pôde, no palco, sentir-se transformada num sapo nojento e em que ela se pôs a soltar gritos como se tivesse morado a vida toda à beira dos brejos... a noite em que a sala ficou de repente mergulhada na escuridão, sob o raio do lustre que desabou sobre a platéia... Houve, naquele dia, mortos e feridos, e todo o teatro ressoou com os mais tristes clamores.
“O meu primeiro pensamento, Raoul, no estado de catástrofe, foi ao mesmo tempo para você e para a Voz, pois vocês eram, nessa época, as duas metades iguais do meu coração. Fui logo tranqüilizada no que diz respeito a você, porque o vi no camarote do seu irmão e sabia que não corria nenhum risco. Quanto à Voz, tinha-me anunciado que assistiria à representação, e temi por ela; sim, realmente temi, como se ela tivesse sido ‘uma pessoa normal viva que fosse capaz de morrer’. Dizia a mim mesma: ‘Meu Deus! Talvez o lustre tenha esmagado a Voz’. Eu estava então no palco e aflita a ponto de me dispor a correr para a sala e procurar a Voz entre os mortos e feridos, quando me veio a idéia de que, se nada de ruim lhe tivesse acontecido, ela já deveria estar no meu camarim, aonde se apressaria em ir para me tranqüilizar. Num salto, corri para o camarim. A Voz não estava lá. Fechei-me no camarim e, com lágrimas nos olhos, supliquei-lhe que, se ainda estivesse viva, se manifestasse a mim. A Voz não respondeu, mas de repente ouvi um longo, admirável gemido que eu conhecia bem. Era a queixa de Lázaro quando, à voz de Jesus, começa a levantar as pupilas e rever a luz do dia. Eram os choros do violino de meu pai. Reconhecia o toque de arco de Daaé, o mesmo, Raoul, que nos mantinha imóveis nos caminhos de Perros, o mesmo que tinha ‘encantado’ a noite do cemitério. E depois foi ainda, no instrumento invisível e triunfante, o grito de júbilo da vida, e a Voz, fazendo-se finalmente ouvir, pôs-se a cantar a frase dominante e soberana: ‘Vem! e crê em mim! Quem crê em mim reviverá! Anda! Quem acreditou em mim não poderá morrer!’ Eu não saberia dizer-lhe a impressão que recebi dessa música que cantava a vida eterna no momento em que, ao lado de nós, pobres infelizes, esmagados por aquele lustre fatal, entregavam a alma... Parecia que ela mandava também a mim que me levantasse, que caminhasse em sua direção. Ela ia se afastando, eu a segui. ‘Vem! e crê em mim!’ Eu acreditava nela, eu ia... pois eu tinha o espelho à minha frente... E de repente encontrei-me fora do meu camarim, sem saber como.”
Aqui Raoul interrompeu bruscamente a jovem:
— Como isso pôde acontecer, Christine? Você precisava tentar parar de sonhar!
— Pois é, pobre amigo, eu não estava sonhando! Eu me encontrava fora do meu camarim sem saber como! Você que me viu desaparecer do meu camarim uma noite, meu amigo, você poderia talvez explicar isso, mas eu não consigo!... Só posso lhe dizer uma coisa: é que, encontrando-me na frente do espelho, de repente não o vi mais na minha frente, e procurei atrás... mas não havia mais espelho, nem camarim... Estava num corredor escuro... fiquei com medo e gritei!...
“Tudo era negro ao meu redor; ao longe, um débil clarão vermelho iluminava um ângulo da parede, um canto de um cruzamento. Gritei. Apenas a minha voz enchia as paredes, pois o canto e os violinos tinham emudecido. E eis que de repente, no escuro, uma mão pousou sobre a minha... ou melhor, algo ossudo e gelado que me aprisionou o pulso e não me largou mais... Gritei. Um braço aprisionou a minha cintura e me ergueu... Debati-me um instante tomada de horror; meus dedos escorregaram ao longo das pedras úmidas em que não conseguiram agarrar-se. Depois, não me mexia mais, achei que ia morrer de pavor. Estava sendo levada na direção do pequeno clarão vermelho; penetramos nesse clarão e então eu vi que estava entre os braços de um homem envolto numa grande manta negra e cujo rosto estava todo escondido atrás de uma máscara... Tentei um esforço supremo: os meus membros se enrijeceram, minha boca se abriu para berrar o meu pavor, mas uma mão a fechou, uma mão que senti sobre os lábios, sobre a carne... e que cheirava à morte! Desmaiei.
“Quanto tempo fiquei sem sentidos? Não saberia dizer. Quando reabri os olhos, estávamos ainda, o homem de negro e eu, no seio das trevas. Uma lanterna surda, posta no chão, iluminava o jato de uma fonte. A água, marulhante, jorrando da muralha, desaparecia quase imediatamente sob o solo em que eu estava estendida; minha cabeça repousava no joelho do homem da máscara e do manto negros, e o meu silencioso companheiro refrescava-me as têmporas com um cuidado, uma atenção, uma delicadeza que me pareceram mais horríveis de suportar do que a brutalidade de seu rapto de há pouco. Suas mãos, por mais leves que fossem, não deixaram de cheirar à morte. Rechacei-as, mas sem força. Perguntei num sopro: ‘Quem é você? Onde está a Voz?’ Só um suspiro me respondeu. De repente, um bafo quente me passou pelo rosto e vagamente, nas trevas, ao lado da forma negra de homem, distingui uma forma branca. A forma negra me ergueu e me colocou sobre a forma branca. Imediatamente, um relinchar alegre atingiu os meus ouvidos estupefatos e murmurei: ‘César!’ O animal estremeceu. Meu amigo, eu estava meio deitada sobre uma sela e reconhecera o cavalo branco do Profeta, que tantas vezes eu tinha mimado com guloseimas. Ora, uma noite correra, no teatro, o rumor de que o animal havia desaparecido e tinha sido roubado pelo fantasma da Ópera. Quanto a mim, acreditava na Voz; nunca tinha acreditado no fantasma, e eis que, no entanto, perguntei a mim mesma, arrepiada, se eu não era prisioneira do fantasma! Chamei, do fundo do coração, a Voz em meu socorro, pois nunca teria imaginado que a Voz e o fantasma fossem um só! Você ouviu falar do fantasma da Ópera, Raoul?
— Ouvi — respondeu o rapaz. — Mas diga-me, Christine, o que lhe aconteceu quando você estava sobre o cavalo branco do Profeta?
— Não fiz nenhum movimento e me deixei conduzir... Pouco a pouco um estranho torpor sucedeu ao estado de angústia e de terror em que me havia lançado essa aventura infernal. A forma negra me segurava e eu não fazia mais nada para escapar-lhe. Uma paz singular se espalhara sobre mim e pensei estar sob a influência benfazeja de algum elixir. Gozava da plena disposição de meus sentidos. Os olhos se acostumavam com as trevas que, aliás, aqui e ali se iluminavam de breves clarões... Julguei que estivéssemos numa estreita galeria circular e imaginei que essa galeria fazia a volta da Ópera, que, debaixo da terra, é imensa. Uma vez, meu amigo, uma única vez, desci a esses subterrâneos, que são prodigiosos, mas parei no terceiro pavimento, não ousando ir mais adiante dentro da terra. E, no entanto, mais dois andares onde se poderia alojar uma cidade inteira se abriam a meus pés. Mas as figuras que se mostraram a mim me fizeram fugir. Existem ali demônios, bem pretos diante das caldeiras, e agitam pás, garfos, atiçam braseiros, acendem chamas, ameaçam você, se a gente se aproxima, abrindo de repente para você a goela vermelha dos fornos!... Ora, durante o tempo em que César, tranqüilamente, nessa noite de pesadelo, me levava nas costas, avistei, de repente, longe, muito longe, e bem pequenos, como na ponta de uns binóculos invertidos, os demônios negros diante dos braseiros vermelhos e de seus coloríferos... Apareciam... Desapareciam... Reapareciam ao sabor bizarro da nossa marcha... Finalmente, desapareceram de todo. A forma de homem continuava me segurando, e César caminhava sem guia e com pé firme... Não saberia lhe dizer, nem mesmo aproximadamente, quanto tempo, na noite, durou essa viagem; eu tinha apenas a idéia de que estávamos dando voltas! dando voltas!, de que descíamos seguindo uma inflexível espiral até o âmago mesmo dos abismos da terra; e ainda, não seria a minha cabeça que estava girando?... Todavia, não é o que penso. Não! Eu estava incrivelmente lúcida. César, um instante, levantou as narinas, cheirou a atmosfera e apressou um pouco o passo. Senti o ar úmido e aí César parou. A noite tinha clareado. Um clarão azulado nos cercava. Olhei onde nos encontrávamos. Estávamos à beira de um lago cujas águas de chumbo se perdiam ao longe, no breu... mas a luz azul iluminava essa margem e vi uma barquinha, amarrada a uma argola de ferro, no ancoradouro!
“Sem dúvida, eu sabia que tudo aquilo existia, e a visão do lago e da barca debaixo da terra não tinha nada de sobrenatural. Mas pense nas condições excepcionais em que abordei essas paragens. As almas dos mortos não deviam sentir mais inquietação ao abordarem o Stix. Caronte não era certamente mais lúgubre nem mais mudo do que a forma de homem que me transportou na barca. Teria terminado o efeito do elixir? O frescor desses lugares bastaria para me devolver tão completamente a mim mesma? O meu torpor ia desaparecendo e fiz alguns movimentos que denotavam o reinicio do meu terror. Meu sinistro companheiro deve tê-lo notado, porque, com um gesto, despachou César, que fugiu nas trevas da galeria e cujas ferraduras ouvi bater nos degraus sonoros de uma escada; depois o homem se lançou na barca e livrou-a de sua amarra de ferro; apoderou-se dos remos e remou com força e presteza. Os seus olhos, sob a máscara, não me deixavam; sentia sobre mim o peso de suas pupilas imóveis. A água, em torno de nós, não fazia nenhum barulho. Deslizamos nesse clarão azulado de que lhe falei e depois ficamos de novo totalmente mergulhados na noite, e abordamos. A barca bateu num corpo duro. Mais uma vez fui carregada nos braços. Eu tinha recuperado a força de gritar. Uivei. Depois, de repente, calei-me, atingida pela luz. Sim, uma luz radiante, no meio da qual eu tinha sido colocada. Levantei-me num salto. Estava com todas as minhas forças. No centro de um salão, que não me parecia enfeitado, ornado, mobiliado senão com flores, flores magníficas e tolas por causa das fitas de seda que as amarravam, a cestos, corno se vendem nas lojas das avenidas, flores civilizadas demais como aquelas que eu tinha o hábito de encontrar em meu camarim depois de cada première; no centro desse embalsamento muito parisiense, a forma negra do homem da máscara mantinha-se de pé, com os braços cruzados... e falou:
“— Fique tranqüila, Christine, você não corre nenhum risco.
“Era a Voz!
“O meu furor igualou a minha estupefação. Saltei sobre aquela máscara e quis arrancá-la, para conhecer o rosto da Voz. A forma de homem me disse:
“— Você não corre nenhum risco se não tocar na máscara!
“E aprisionando-me suavemente os pulsos, fez-me sentar.
“Em seguida, pôs-se de joelhos diante de mim e não disse mais nada!
“A humildade desse gesto me devolveu alguma coragem; a luz, que agora definia cada coisa ao meu redor, devolveu-me à realidade da vida. Por mais extraordinária que ela parecesse, a aventura se cercava agora de coisas mortais que eu podia ver e tocar. As tapeçarias da parede, os móveis, as tochas, os vasos e até as flores que eu podia dizer de onde vinham, com suas faixas douradas, e quanto tinham custado, encerravam fatalmente a minha imaginação nos limites de uma sala tão banal quanto outras, que tinham pelo menos a desculpa de não estar situadas nos subterrâneos da Ópera. Eu estava, sem dúvida, às voltas com algum maníaco original e medonho que, misteriosamente, tinha-se alojado nos porões, como outros. por necessidade, e, com muda cumplicidade da administração, tinha achado um abrigo permanente nos subterrâneos dessa Torre de Babel moderna, onde se faziam intrigas, onde se cantava em todas as línguas, onde se amava em todos os dialetos.
“E então a Voz, a Voz que eu tinha reconhecido sob a máscara, que não a tinha podido esconder, era isso que estava de joelhos diante de mim: um homem!
“Não pensei mais nem mesmo na horrível situação em que me achava, nem perguntei o que seria feito de mim e qual era o plano obscuro e friamente tirânico que me havia conduzido a essa sala como se tranca um prisioneiro numa jaula, uma escrava num harém. Não! não! e comecei a chorar.
“O homem, sempre de joelhos, compreendeu sem dúvida o sentido das minhas lágrimas, pois disse:
“— E verdade, Christine!... Eu não sou nem anjo, nem gênio, nem fantasma... Eu sou Erik!”
Aqui, mais uma vez, a narrativa de Christine foi interrompida. Pareceu aos jovens que o eco tinha repetido atrás deles: Erik!... Que eco?... Viraram-se para trás e perceberam que a noite tinha chegado. Raoul fez um movimento como para se levantar, mas Christine, o reteve junto de si:
— Fique! E preciso que você fique sabendo de tudo aqui!
— Por que aqui, Christine? Temo por você a friagem da noite.
— Nós só devemos temer os alçapões, meu amigo, e aqui estamos no fim do mundo dos alçapões... e eu não tenho o direito de ver você fora do teatro... Não é o momento de contrariá-lo... Não despertemos suspeitas...
— Christine! Christine! alguma coisa me diz que não podemos esperar até amanhã à noite e que deveríamos fugir imediatamente!
— Eu lhe digo que, se ele não me ouvir cantar amanhã à noite, ele ficará infinitamente magoado.
— E difícil não causar mágoa a Erik e fugir para sempre...
— Você tem razão, Raoul, nisso... pois certamente, com a minha fuga, ele morrerá...
A moça acrescentou com voz surda:
— Mas também a partida fica empatada... pois corremos o risco de ele nos matar.
— Ele gosta mesmo muito de você?
— Até o crime!
— Mas a sua morada não é impossível de ser encontrada... Pode-se ir procurá-lo lá. Se Erik não é um fantasma, pode-se falar com ele e mesmo forçá-lo a responder!
Christine meneou a cabeça:
— Não! não! Não se pode nada contra Erik!... Só se pode fugir!
— E como, podendo fugir, você voltou para junto dele?
— Porque era preciso... E você compreenderá isso quando souber como saí da casa dele...
— Ah! Como o detesto! — exclamou Raoul... e você, Christine, diga-me... eu necessito que você me diga isso para poder ouvir com mais calma a continuação desta extraordinária história de amor... e você, você o odeia?
— Não! — declarou Christine com simplicidade.
— Ah! Sim... Você certamente o ama! O seu medo, os seus terrores, tudo isso é também amor e do mais delicioso! Aquele que a gente não confessa — disse Raoul com amargura. — Aquele que, quando você pensa nele, faz você se arrepiar... Pense bem, um homem que habita num palácio debaixo da terra!
— Você quer então que eu volte para lá! — interrompeu brutalmente a moça. — Tome cuidado, Raoul, eu já lhe disse: eu não conseguirei retornar!
Houve um silêncio pavoroso entre os três... os dois que falavam e a sombra que estava ouvindo, atrás...
— Antes de lhe responder — disse finalmente Raoul com voz lenta -—, desejaria saber que sentimento ele lhe inspira, já que você não o odeia.
— De horror! — exclamou ela, lançando essas palavras com tal força que elas encobriram os suspiros da noite.
“É o que há de terrível... — acrescentou ela, numa febre crescente. — Tenho horror por ele e não o detesto. Como odiá-lo, Raoul? Veja Erik a meus pés, na morada do Lago, debaixo da terra. Ele se acusa, se maldiz, implora o meu perdão!...
“Confessa a sua impostura. Ele me ama! Coloca a meus pés um imenso e trágico amor!... Raptou-me por amor!... Aprisionou-me com ele, dentro da terra, por amor... e me respeita, e rasteja, e geme, e chora!... E quando me levanto, Raoul, quando lhe digo que só posso desprezá-lo se ele não me devolver imediatamente essa liberdade, que me roubou, coisa incrível... ele a oferece para mim... basta que eu vá embora... Está pronto para me mostrar o misterioso caminho... só que... só que ele também se levantou e sou obrigada a me lembrar de que, se ele não é fantasma, nem anjo, nem gênio, ele continua sendo a Voz, pois ele canta!...
“E eu o escuto... eu fico!
“Naquela noite, não trocamos mais nenhuma palavra... Tinha pegado uma harpa e começou a cantar para mim, ele, a voz de anjo, a romança de Desdêmona. A lembrança que eu tinha de tê-la cantado me deixava envergonhada. Meu amigo, existe uma virtude na música que faz com que nada exista no mundo exterior fora daqueles sons que vêm lhe tocar o coração. Só revivia a Voz e eu a seguia inebriada em sua viagem harmoniosa; eu fazia parte do rebanho de Orfeu! Ela me conduziu pela dor e pela alegria, no martírio, no desespero, no júbilo, na morte e nos triunfantes himeneus... Eu escutava... Ela cantava... Cantou para mim trechos desconhecidos... e me fez ouvir uma música nova que me causou uma estranha impressão de doçura, de langor, de repouso... uma música que, depois de elevar a minha alma, tranqüilizou-a pouco a pouco e a conduziu até o limiar do sonho. Adormeci.
“Quando despertei, estava sozinha, numa espreguiçadeira, num pequeno quarto bem simples, equipado com uma cama banal de mogno, com paredes lisas de tela de Jouy, e iluminado por um abajur colocado sobre o mármore de uma velha cômoda no estilo Louis Phillipe. Que novo cenário era esse?... Passei a mão na testa, como para espantar um mau sonho... Infelizmente, não demorei muito para perceber que eu não havia sonhado! Era prisioneira e não podia sair do meu quarto senão para entrar num banheiro dos mais confortáveis; água quente e fria à vontade. Ao voltar ao meu quarto, deparei, sobre a cômoda, com um bilhete a tinta vermelha que me informava detalhadamente sobre a minha triste situação e que, se isso fosse ainda necessário, tirava-me todas as dúvidas sobre a realidade dos acontecimentos: ‘Minha querida Christine, dizia o papel, fique sossegada quanto à sua sorte. Você não tem no mundo amigo melhor nem mais respeitoso do que eu. Você está sozinha, neste momento, nesta morada que lhe pertence. Saí para ir até as lojas e lhe trazer toda a roupa de que você pode precisar’.
“— Decididamente, caí nas mãos de um louco! — exclamei. — O que será de mim? E quanto tempo esse miserável pensa manter-me fechada em sua prisão subterrânea?
“Corri pelo meu pequeno apartamento como uma insensata, procurando sempre uma saída que não encontrava. Acusei-me amargamente pela minha estúpida superstição e tive um prazer medonho em recriminar a perfeita inocência com que havia acolhido, através das paredes, a Voz do gênio da música... Quando a gente é assim tão tola, tem de esperar pelas mais inauditas catástrofes, e todas elas são merecidas! Tinha vontade de bater em mim mesma e comecei a rir e a chorar ao mesmo tempo. Foi nesse estado que Erik me encontrou.
“Depois de dar três pancadinhas secas na parede, ele entrou por uma porta que eu não tinha descoberto e que deixou aberta. Estava carregado de caixas e pacotes e os colocou, sem pressa, em cima da cama, enquanto eu o cobria de ultrajes e o intimava a retirar a máscara, se tivesse a pretensão de dissimular um rosto de cavalheiro.
“Respondeu-me com grande serenidade:
“— Você jamais verá o rosto de Erik.
“E me recriminou por eu ainda não ter feito a toalete a essa hora do dia; dignou-se informar-me que eram duas horas da tarde. Ia deixar-me meia hora sozinha para que fizesse minha toalete. Enquanto dizia isso, tomou o cuidado de dar corda no meu relógio e colocá-lo na hora certa. A seguir, convidou-me para passar à sala de jantar, onde um excelente almoço nos esperava. Eu estava com muita fome, bati-lhe a porta no nariz e entrei no banheiro. Tomei um banho depois de ter colocado ao meu alcance uma tesoura magnífica com a qual estava disposta a me matar, caso Erik, depois de ter procedido como um louco, cessasse de agir como um cavalheiro. A frescura da água me fez bem e, quando reapareci diante dele, tinha tomado a sábia resolução de não entrar em choque com ele nem irritá-lo no que quer que fosse, de adulá-lo se necessário fosse para conseguir dele uma pronta liberdade. Foi ele, primeiro, quem me falou de seus projetos a meu respeito, e os precisou, para me tranqüilizar. Sentia prazer demais em minha companhia para privar-se dela imediatamente como, por um momento, tinha consentido na véspera, diante da expressão de meu terror. Eu devia entender agora que não tinha razão alguma para ficar apavorada por vê-lo ao meu lado. Amava-me, mas não me diria isso enquanto eu não permitisse, e o resto do tempo se passaria em música.
“O que é que você entende por ‘o resto do tempo’? — perguntei.
“Ele me respondeu com firmeza:
“— Cinco dias.
“E depois ficarei livre?
“— Você estará livre, Christine, pois, passados esses cinco dias, você terá aprendido a não ter mais medo de mim: e então você virá visitar, de vez em quando, o pobre Erik!...
“O tom em que ele pronunciou estas últimas palavras mexeu profundamente comigo. Pereceu-me descobrir nele um desespero tão real, tão digno de dó que levantei para a máscara o meu rosto enternecido. Não podia ver os olhos atrás da máscara e isso não diminuía o estranho sentimento de mal-estar que se tinha em interrogar esse misterioso quadrado de seda preta; mas por baixo do pano, na extremidade da barba da máscara, apareceram uma, duas, três, quatro lágrimas.
“Silenciosamente, apontou-me um lugar à frente dele, numa pequena mesa redonda que ocupava o centro da sala onde, na véspera, ele tinha tocado harpa para mim, e eu me sentei, muito perturbada. Comi, entretanto, com bom apetite, alguns caranguejos, uma asa de frango regada com um pouco de vinho de Tokay que ele próprio trouxera, dizia-me, das adegas de Koenigsberg, outrora freqüentadas por Falstaff. Quanto a ele, não comia, não bebia. Perguntei-lhe qual era a sua nacionalidade, e se esse nome, Erik, não manifestava uma origem escandinava. Respondeu-me que não tinha nem nome nem pátria, e que tomara o nome de Erik por acaso. Perguntei-lhe por que, já que me amava, não tinha encontrado outro jeito de me mostrar isso que não fosse me arrastando com ele e me prender dentro da terra.
“E muito difícil fazer-se amar dentro de um túmulo.
“— A gente tem — respondeu ele — os encontros que pode.
“Depois levantou-se e me estendeu os dedos, pois queria, dizia ele, fazer-me as honras de seu apartamento, mas eu retirei vivamente a minha mão da dele soltando um grito. O que eu tinha tocado era ao mesmo tempo úmido e ósseo, e lembrei-me de que as suas mãos cheiravam à morte.
“— Oh! Desculpe — gemeu.
“E abriu uma porta à minha frente.
“— Aqui está o meu quarto — disse ele. — Ele é bastante curioso de se visitar... se você quiser vê-lo?
“Não hesitei. As maneiras dele, as palavras, todo o seu jeito me dizia para ter confiança... e além disso eu sentia que não precisava ter medo.
“Entrei. Parecia que estava penetrando numa câmara mortuária. As paredes eram todas cobertas de preto, mas, em vez das lágrimas brancas que, em geral, complementam esse ornamento fúnebre, viam-se, numa enorme pauta musical, as notas repetidas do Dies irae. No meio desse quarto havia um dossel de onde pendiam cortinas de brocado vermelho e, sob o dossel, um esquife aberto.
“Ao ver aquilo, recuei.
“— É aí dentro que eu durmo — disse Erik. — É preciso acostumar-se com tudo na vida, mesmo com a eternidade.
“Desviei a cabeça, de tão sinistra que foi a impressão que recebi desse espetáculo. Os meus olhos deram então com o teclado de um órgão que ocupava todo um lado da parede. Sobre a estante estava um caderno, todo salpicado de notas vermelhas. Pedi licença para olhá-lo e li a primeira página: Don Juan triunfante.
“— Sim, algumas vezes eu componho. Já vão para vinte anos que comecei esse trabalho. Quando ele estiver terminado, vou levá-lo comigo para dentro desse caixão e não acordarei mais.
“— É preciso trabalhar nele o menos possível — disse eu.
“— Trabalho às vezes quinze dias e quinze noites seguidos, durante os quais só vivo de música, e depois descanso durante anos.
“— Você quer tocar para mim alguma coisa do seu Don Juan triunfante?— pedi, achando que ia agradar-lhe e vencendo a repugnância que sentia em ficar naquele quarto da morte.
“— Nunca me peça isso — respondeu com voz sombria. — Esse Don Juan aí não foi escrito em cima da letra de um Lorenzo d’Aponte, inspirado pelo vinho, pelos pequenos amores e pelo vício, finalmente castigado por Deus. Toco Mozart para você, se quiser, que fará correr as suas belas lágrimas e lhe inspirará honestas reflexões. Mas o meu Don Juan, ele queima, Christine, e, no entanto, não será fulminado pelo fogo do céu!...
“A seguir, voltamos para a sala que acabáramos de deixar. Notei que em nenhum lugar do apartamento havia espelhos. Ia fazer uma reflexão sobre isso, mas Erik acabara de sentar-se ao piano. Ele me disse:
“— Está vendo, Christine, existe uma música tão terrível que consome todos aqueles que dela se aproximam. Você ainda não chegou até essa música, felizmente, pois você perderia as suas frescas cores e não a reconheceriam mais quando voltasse a Paris. Cantemos a Ópera, Christine Daaé.
“Ele me disse: ‘Cantemos a Ópera, Christine Daaé’, como se estivesse me lançando uma injúria.
“Mas não tive tempo para ponderar o tom que ele tinha dado às suas palavras. Começamos imediatamente o dueto de Otelo, e já a catástrofe estava sobre as nossas cabeças. Desta vez, ele me tinha deixado o papel de Desdêmona, que cantei com um desespero, um pavor reais que nunca houvera atingido até esse dia. A vizinhança de semelhante parceiro, em vez de me aniquilar, inspirava-me um terror magnífico. Os acontecimentos de que eu era vítima me aproximavam singularmente do pensamento do poeta e encontrei acentos com que o músico teria ficado ofuscado. Quanto a ele, a sua voz era toante, a sua alma vingativa se transportava para cada som e aumentava-lhe terrivelmente a potência. O amor, o ciúme, o ódio explodiam em torno de nós em gritos lancinantes. A máscara negra de Erik me fazia pensar na máscara natural do Mouro de Veneza. Ele era o próprio Otelo. Acreditei que ele ia me ferir e que eu ia cair sob os seus golpes... e no entanto eu não fazia nenhum movimento para fugir, para evitar o seu furor como a tímida Desdêmona. Pelo contrário, aproximava-me dele, atraída, fascinada, encontrando encantos na morte no centro de tão grande paixão; mas, antes de morrer, quis conhecer, para levar sua imagem sublime no meu último olhar, essas feições desconhecidas que o fogo da arte eterna devia transfigurar. Quis ver o rosto da Voz e, instintivamente, num gesto de que eu não era dona, pois não mais me possuía, os meus dedos rápidos arrancaram a máscara...
“Oh! horror!... horror!... horror!...”
Christine parou, diante dessa visão que parecia ainda querer afastar com as duas mãos trêmulas, enquanto os ecos da noite, como tinham repetido o nome de Erik, repetiam três vezes o clamor: “Horror! horror! horror!” Raoul e Christine, mais estreitamente unidos ainda pelo terror da narrativa, levantaram os olhos para as estrelas que brilhavam num céu calmo e puro.
Raoul disse:
— É estranho, Christine, como esta noite tão suave e tão calma está cheia de gemidos. É como se ela se lamentasse conosco!
Ela lhe respondeu:
— Agora que você vai estar conhecendo o segredo, os seus ouvidos, como os meus, vão estar repletos de lamentações.
Ela aprisionou as mãos protetoras de Raoul nas suas e, sacudida por um longo gemido, continuou:
— Oh! sim, vivesse eu cem anos, ouviria sempre o clamor sobre-humano que ele lançou, o grito de sua dor e de sua raiva infernais, enquanto a coisa aparecia aos meus olhos imensos de horror, como a minha boca que não se fechava mais e que, no entanto, já não mais gritava.
“Oh! Raoul, aquela coisa! Como não ver mais aquela coisa, se os meus ouvidos estão para sempre repletos dos seus gritos, os meus olhos estão para sempre assombrados por seu rosto! Que imagem! Como não vê-la mais e como fazer com que você a veja?... Raoul, você viu as caveiras quando foram ressequidas pelos séculos e, talvez, se você não foi vítima de um pavoroso pesadelo, você tenha visto a caveira dele, na noite de Perros. E também você viu passear, no último baile de máscaras, a Morte vermelha! Mas todas essas caveiras eram imóveis, e o seu mudo horror não estava vivo! Mas imagine, se puder, a máscara da Morte começando de repente a viver para exprimir com os quatro buracos negros de seus olhos, nariz e boca, a cólera em seu grau supremo, o furor soberano de um demônio, e sem um olhar naqueles buracos dos olhos, pois, como fiquei sabendo mais tarde, nunca se percebem os seus olhos de brasa, a não ser na noite profunda... Eu devia ser, colada contra a parede, a própria imagem do Espanto como ele era a da Hediondez.
“Então aproximou-se de mim com o ranger horrível de seus dentes sem lábios e, enquanto eu caía sobre os joelhos, ele disse para mim raivosamente coisas insensatas, palavras sem seqüência, maldições, delírio... Será que eu sei?!... Será que eu sei?!...
“Debruçado sobre mim gritava:
“— Olhe! Você quis ver! Veja! Repaste os seus olhos, embebede a sua alma com minha feiúra maldita! Olhe o rosto de Erik! Agora você conhece o rosto da Voz! Ouvir-me, diga, não lhe bastava? Você quis saber como eu era feito. Vocês são tão curiosas, vocês, as mulheres!
“E punha-se a rir, repetindo:
“— Vocês são tão curiosas, vocês, as mulheres!... — num riso estrondoso, rouco, espumante, formidável... Dizia ainda coisas como estas: — Está satisfeita? Eu sou bonito, heinº... Quando uma mulher me vê, como você, ela é minha. Ela me ama para sempre! Eu, eu sou um tipo do gênero Don Juan.
“E, erguendo-se em toda a sua altura, com o punho na boca, chacoalhando sobre os ombros aquela coisa hedionda que era a sua cabeça, ele esbravejava:
“— Olhe para mim! Eu sou o Don Juan triunfante!
“E como eu desviasse a cabeça pedindo clemência, puxou para junto de si a minha cabeça, brutalmente, pelos cabelos, onde tinham penetrado os seus dedos de morto.”
— Basta! Basta! — interrompeu Raoul. — Eu o matarei! Eu o matarei! Em nome de Deus, Christine, diga-me onde se encontra a sala de jantar do lago! Eu preciso matá-lo!
— Cale-se então, Raoul, se você quer saber!
— Ah! sim, quero saber como e por que você voltava para lá! É isso, o segredo, Christine, tome cuidado! não há outro! Mas. de qualquer jeito, eu o matarei!
— Oh! meu Raoul! escute! já que você quer saber, escute! Ele me arrastava pelos cabelos, e então... e então... Oh! isso é ainda mais horrível!
— Pois bem, diga, agora!... — exclamou Raoul, feroz. — Diga depressa!
— Então, ele disse: “Quê? eu lhe meto medo? É possível!... Você acha, talvez, que eu ainda estou com uma máscara, hein? e que isto... isto! Minha face é uma máscara? Pois bem, vá! — pôs-se então a berrar. — Arranque-a como à outra! Vamos! vamos! de novo! de novo! eu quero! Suas mãos! Suas mãos!... Dê aqui as suas mãos... se elas não lhe bastam, ofereço-lhe as minhas... e nós nos empenharemos a dois, para arrancar a máscara”.
“Eu rolava aos seus pés, mas ele agarrou as minhas mãos, Raoul... e as enfiou no horror do seu rosto.... Com as minhas unhas, ele rasgou as suas carnes, as suas horríveis carnes mortas!
“— Saiba! saiba! — cantava no fundo de sua garganta que soprava como uma forja... — saiba que eu sou feito inteiramente da morte!... da cabeça aos pés!... e que é um cadáver que ama você, que a adora e que não a deixará nunca mais! nunca!... Vou mandar aumentar o caixão, Christine, para mais tarde, quando chegarmos ao fim dos nossos amores!... Olhe! eu já não estou mais rindo, está vendo, estou chorando... chorando por você, Christine, que me arrancou a máscara, e que, por causa disso, não poderá me deixar nunca mais!... Enquanto você podia pensar que eu era belo, você podia voltar!... eu sei que você teria voltado... mas agora você conhece a minha feiúra, fugirá para sempre... Também, por que você quis me ver!... Insensata! louca Christine, que quis me ver!... quando o meu pai, mesmo ele, nunca me viu, quando a minha mãe, para não mais me ver, deu-me de presente a minha primeira máscara!
“Largou-me finalmente e se arrastava agora pelo chão com soluços horrendos. E depois, como um réptil, rastejou, arrastou-se para fora da sala, penetrou no quarto, cuja porta se fechou, e fiquei sozinha, entregue ao meu horror e às minhas reflexões, mas libertada da visão daquela coisa. Um prodigioso silêncio, o silêncio do túmulo havia sucedido a essa tempestade e pude pensar nas conseqüências terríveis do gesto que tinha arrancado a máscara. As últimas palavras do monstro tinham-me informado o bastante. Eu tinha para sempre me tornado prisioneira e a minha curiosidade ia ser a causa de todas as minhas desgraças. Ele tinha-me avisado suficientemente... Tinha repetido que eu não corria nenhum risco enquanto não tocasse na máscara, e eu tinha tocado nela. Maldisse a minha imprudência, mas verifiquei estremecendo que o raciocínio do monstro tinha lógica. Sim, eu teria voltado se não tivesse visto o seu rosto... Ele já tinha-me comovido, interessado, apiedado até por suas lágrimas mascaradas, para que eu não ficasse insensível aos seus rogos. Afinal eu não era ingrata, e a sua impossibilidade não podia fazer-me esquecer que ele era a Voz e que me havia acalentado com o seu gênio. Eu teria voltado! E agora, tendo saído daquelas catacumbas, não voltaria certamente! Não se volta para fechar-se num túmulo com um cadáver que ama você!
“Por certas maneiras aloucadas que tinha tido, durante a cena, de me olhar, ou melhor, de aproximar de mim os dois buracos negros do seu olhar invisível, eu tinha podido mensurar a selvageria de sua paixão. Para não me haver tomado nos braços, quando eu não podia oferecer-lhe nenhuma resistência, era necessário que esse monstro fosse metade anjo e quem sabe, afinal de contas, ele não era um pouco o Anjo da música, e quem sabe ele o tivesse sido inteiramente se Deus o tivesse vestido de beleza em vez de trajá-lo de podridão!
“Já desvairada pelo pensamento da sorte que me era reservada, a braços com o terror de ver reabrir-se a porta do quarto do esquife e de rever a figura do monstro sem máscara, eu tinha-me enfiado no meu próprio apartamento e tinha-me apoderado da tesoura, que podia pôr termo ao meu espantoso destino... quando os sons do órgão se fizeram ouvir...
“Foi então, meu amigo, que comecei a compreender as palavras de Erik sobre o que ele chamava, com um desprezo que me havia causado estupefação, a música de ópera.
“O que eu ouvia nada tinha a ver com o que me havia encantado até aquele dia. O seu Don Juan triunfante (pois eu não tinha dúvida de que ele se tinha atirado à sua obra-prima para esquecer o horror do minuto presente), o seu Don Juan triunfante não me pareceu mais do que um longo, medonho e magnífico soluço em que o pobre Erik tinha colocado toda a sua miséria maldita.
“Eu voltava a ver o caderno com notas vermelhas e imaginava facilmente que aquela música tinha sido escrita com sangue. Ela me conduzia por todo o detalhe do martírio; fazia-me entrar em todos os cantos do abismo, do abismo habitado pelo homem feio; mostrava-me Erik batendo atrozmente a pobre e horrível cabeça nas paredes fúnebres daquele inferno, fugindo para lá para não assustar os olhares dos homens. Assisti, aniquilada, ofegante, apiedada e vencida à eclosão daqueles acordes gigantescos em que era divinizada a Dor e depois os sons que subiam do abismo se agruparam de repente em um vôo prodigioso e ameaçador, a sua tropa rodopiante pareceu escalar o céu como a águia sobe para o sol, e o mundo pareceu abrasar-se por uma sinfonia triunfal a tal ponto que entendi que a obra estava enfim acabada e que a Feiúra, erguida nas asas do Amor, tinha ousado olhar face a face a Beleza! Eu estava como embevecida; a porta que me separava de Erik cedeu aos meus esforços. Ele tinha-se levantado ao ouvir-me, mas não ousou se voltar em minha direção.
“— Erik! — exclamei — mostre-me o seu rosto sem terror. Juro-lhe que você é o mais doloroso e o mais sublime dos homens, e se Christine Daaé estremecer, daqui em diante, ao olhar para você, é que ela pensará no esplendor do seu gênio!
“Então Erik voltou-se em minha direção, pois acreditou em mim, e eu também, infelizmente! Eu tinha confiança em mim... Levantou para o Destino as suas mãos descarnadas, e caiu nos meus joelhos com palavras de amor...
“... Com palavras de amor em sua boca de morto... e a música tinha silenciado...
“Abraçava-me a barra do vestido; não viu que eu fechava os olhos.
“Que lhe direi ainda, meu amigo? Agora você conhece o drama... Durante quinze dias, este se renovou... quinze dias durante os quais eu lhe menti. Minha mentira foi tão horrenda quanto o monstro que a inspirava, e a esse preço pude recuperar a minha liberdade. Queimei a sua máscara. E interpretei tão bem o meu papel que, mesmo quando ele não estava mais cantando, atrevia-se a mendigar um de meus olhares, como um cão tímido que ronda ao redor de seu dono. Ele estava assim, ao redor de mim, como um escravo fiel, e me cercava de mil atenções. Pouco a pouco, inspirei-lhe tamanha confiança que acedeu a levar-me a passeio às margens do Lago Averno e conduzir-me de barco sobre suas águas de chumbo; nos últimos dias de meu cativeiro, ele me fazia, à noite, ultrapassar as grades que fecham os subterrâneos do lado da rua Scribe. Ali, uma carruagem nos esperava e nos conduzia rumo às solidões do Bosque.
“A noite em que encontramos você quase me foi trágica, pois ele tem um ciúme terrível de você, ciúme que não combati senão lhe afirmando que você partiria em breve... Finalmente, após quinze dias desse abominável cativeiro em que estive alternadamente ardente de piedade, de entusiasmo, de desespero e de horror, ele acreditou em mim quando lhe disse: eu voltarei!”
— E você voltou, Christine — gemeu Raoul.
— É verdade, amigo, e devo dizer que não foram as espantosas ameaças com que ele acompanhou a minha libertação que me ajudaram a manter a minha palavra; mas o suspiro lancinante que ele soltou à saída do seu túmulo! Sim, esse suspiro — repetiu Christine, sacudindo dolorosamente a cabeça — me acorrentou ao infeliz mais do que supus eu mesma no momento da despedida. Pobre Erik! Pobre Erik!
— Christine — disse Raoul levantando-se —, você diz que me ama, entretanto, mal tinham passado umas poucas horas do momento em que você recobrara a liberdade, e já estava voltando para junto de Erik!... Lembre-se do baile de máscaras!
— As coisas estavam combinadas assim... Lembre-se, você também, que aquelas poucas horas, eu as passei com você, Raoul... para grande risco de ambos...
— Durante aquelas poucas horas duvidei de que você me amasse.
— E você ainda duvida, Raoul?... Fique então sabendo que cada uma de minhas viagens junto de Erik aumentou o meu horror por ele, pois cada uma dessas viagens, em vez de fazê-lo sossegar, como eu esperava, o tornou mais louco de amor!... E eu tenho medo! tenho medo!... tenho medo!...
— Você tem medo... mas você me ama?... Se Erik fosse belo, você me amaria, Christine?
— Infeliz! por que tentar o destino?... Por que perguntar coisas que eu escondo no fundo da minha consciência como se esconde o pecado?
Ela levantou-se, por sua vez, envolveu a cabeça do jovem em seus belos braços trêmulos e lhe disse:
— Ó meu noivo de um dia, se eu não o amasse, não lhe daria os meus lábios. Pela primeira vez e pela última, aqui estão eles.
Ele os tomou, mas a noite que os cercava teve tamanho laceramento que fugiram como ao aproximar-se uma tempestade, e os seus olhos, em que morava o terror de Erik, lhes mostraram, antes que desaparecessem na floresta dos cimos, bem no alto, acima deles, um imenso pássaro noturno que olhava para eles com olhos de brasa, que parecia agarrado às cordas da lira de Apoio!
UM GOLPE DE MESTRE DO AMADOR DE ALÇAPÕES
Raoul e Christine correram, correram. Agora fugiam do telhado onde havia os olhos de brasa que só se avistam na noite profunda; e só pararam no oitavo andar descendo para a terra. Naquela noite não havia representação, e os corredores da Ópera estavam desertos.
De repente uma silhueta estranha se ergueu à frente dos jovens, barrando-lhes o caminho:
— Não! por aqui não!
E a silhueta lhes indicou um outro corredor por onde deviam atingir os bastidores.
Raoul queria parar, pedir explicações.
— Vão! vão depressa!... — ordenou aquela forma vaga, dissimulada numa espécie de casacão e com um boné pontudo na cabeça.
Christine já arrastava Raoul, forçava-o a continuar correndo:
— Mas quem é? Mas quem é aquele ali? — perguntava o rapaz. E Christine respondia:
— É o Persa!...
— O que é que ele está fazendo ali...
— Sei lá!... Ele está sempre na Ópera!
— O que você me está obrigando a fazer é covardia, Christine — disse Raoul, que estava bastante emocionado. — Você me obriga a fugir, é a primeira vez na minha vida.
— Ora! — respondeu Christine, que começava a se acalmar —, eu acho que fugimos da sombra da nossa imaginação!
— Se realmente vimos Erik, eu deveria tê-lo pregado na lira de Apoio, como se prega a coruja nas paredes das fazendas da Bretanha, e estaria tudo acabado.
— Meu bom Raoul, primeiro você ia ter que subir até a lira de Apoio; não é uma subida fácil.
— É, mas os olhos de brasa estavam lá.
— Oh! você está agora como eu, pronto para vê-lo por toda parte, mas a gente raciocina depois e se diz: aquilo que eu achei que eram os olhos de brasa não passavam certamente dos pregos de ouro de duas estrelas que olhavam a cidade através das cordas da lira.
E Christine desceu mais um andar. Raoul ia seguindo. Ele disse:
— Já que você está decidida a ir-se embora, Christine, eu lhe garanto que seria melhor fugir imediatamente. Por que esperar até amanhã? Ele pode ter ouvido a nossa conversa desta noite!...
— Não! não mesmo! Ele está trabalhando, repito, no seu Don Juan triunfante, e ele não está preocupado conosco.
— Você está tão pouco segura disso que não pára de olhar para trás.
— Vamos para o meu camarim.
— É melhor marcarmos encontro fora da Ópera.
— Nunca, até o minuto da nossa fuga! Não cumprir a minha palavra me traria desgraça. Prometi a ele que só nos veríamos aqui.
— Ainda tenho que me dar por feliz se ele lhe permitiu isso. Sabe — declarou amargamente Raoul — que você foi de uma audácia incrível permitindo-nos a brincadeira do noivado.
— Mas, meu caro, ele está a par. Ele me disse: “Confio em você, Christine. O Sr. Raoul de Chagny está enamorado de você e deve partir. Antes de partir, que fique tão infeliz quanto eu!...”
— E que significa isso?
— Eu é que devia lhe perguntar. Então a gente fica infeliz quando está amando?
— Fica, Christine, quando se ama e não se tem certeza de estar sendo amado.
— E por Erik que você está dizendo isso?
— Por Erik e por mim - disse, meneando a cabeça com um ar pensativo e desolado.
Chegaram ao camarim de Christine.
— Por que você se sente mais segura neste camarim do que no teatro? — perguntou Raoul. — Já que você o ouvia através das paredes, ele também pode nos ouvir.
— Não! Ele me deu a palavra de que não ficaria mais atrás das paredes do meu camarim e eu acredito na palavra de Erik. Meu camarim e meu quarto, no apartamento do lago, são meus, exclusivamente meus, e sagrados para ele.
— Como será que você saiu deste camarim para ser transportada para o corredor escuro, Christine? E se nós tentássemos repetir os seus gestos, de acordo?
— É perigoso, meu amigo, pois o espelho poderia de novo me carregar embora e, em lugar de fugir, eu seria obrigada a ir até o fim da passagem secreta que conduz às margens do lago e lá chamar Erik.
— Ele ouviria você?
— Em toda parte onde eu chamar, Erik me ouvirá... Foi ele quem me disse, é um curiosíssimo gênio. Não se deve pensar, Raoul, que seja apenas um homem que resolveu brincar de morar debaixo da terra. Ele faz coisas que nenhum outro homem poderia fazer; ele sabe coisas que o mundo dos vivos ignora.
— Tome cuidado, Christine, você de novo vai fazer dele um fantasma.
— Não, não é um fantasma; é um homem do céu e da terra, só isso.
— Um homem do céu e da terra... só isso! Veja a maneira como fala dele!... E você continua decidida a fugir?
— Sim, amanhã.
— Você quer que eu lhe diga por que eu queria ver você fugir esta noite?
— Diga, meu amigo.
— Porque amanhã você não estará mais decidida a fazer coisa nenhuma!
— Então, Raoul, você me levará contra a minha vontade... não ficou decidido?
— Aqui, então, amanhã à noite! A meia-noite eu estarei no seu camarim — disse o rapaz com um ar sombrio. — Aconteça o que acontecer, cumprirei a minha promessa. Você disse que, depois de ter assistido à representação, ele deve ir esperar você na sala de jantar do lago?
— Foi lá, realmente, que ele marcou encontro comigo.
— E como é que você devia fazer para ir até ele, Christine, se você não sabe sair do seu camarim “pelo espelho”?
— Ora, indo diretamente para a beira do lago.
— Através de todos os subterrâneos? pelas escadas e corredores por onde passa o pessoal de serviço? Como é que você guardaria o segredo do que estava fazendo? Todo mundo iria seguir Christine Daaé e ela chegaria à beira do lago acompanhada por uma multidão.
Christine tirou de um cofrinho uma chave enorme e mostrou-a a Raoul.
— Que é isso? — perguntou ele.
— É a chave da grade do subterrâneo da rua Scribe.
— Entendi, Christine. Ele conduz diretamente ao lago. Dê-me essa chave, sim?
— Nunca! — respondeu ela com energia. — Seria uma traição! De repente, Raoul viu Christine mudar de cor. Uma palidez mortal espalhou-se sobre as suas feições.
— Oh! meu Deus! — exclamou. — Erik! Erik! tenha piedade de mim!
— Cale-se! — ordenou o rapaz. — Eu não lhe tinha dito que ele podia ouvir você?
Mas a atitude da cantora se tornava cada vez mais inexplicável. Esfregava os dedos uns nos outros, a repetir com um jeito desvairado:
— Oh! meu Deus! Oh! meu Deus!
— Mas o que é que há? o que é que há? — implorou Raoul.
— A aliança.
— A aliança o quê? Eu lhe imploro, Christine, volte a si!
— A aliança de ouro que ele me deu.
— Então foi Erik quem lhe deu o anel de ouro?
— Você sabe muito bem que sim, Raoul! Mas o que você não sabe é que ele me disse ao me dá-la: “Devolvo a sua liberdade, Christine, mas é com a condição de que este anel sempre esteja no seu dedo. Enquanto você o mantiver, estará preservada do perigo e Erik permanecerá seu amigo. Mas se você um dia se separar dele, ai de você, Christine, porque Erik se vingará!...” Meu amigo, meu amigo! A aliança não está mais no meu dedo!... ai de nós!
Procuraram em vão o anel ao redor deles. Não o encontraram. A moça não se acalmava.
— Foi quando eu lhe concedi aquele beijo, lá no alto, sob a lira de Apoio — ela tentou explicar, a tremer. — O anel escorregou do meu dedo e caiu sobre a cidade! Como encontrá-lo agora? E de que desgraça, Raoul, estamos ameaçados! Ah! Vamos fugir!
— Sim! Vamos fugir imediatamente — insistiu uma vez mais Raoul.
Ela hesitou. Ele pensou que ela ia dizer sim... E a seguir as suas claras pupilas se turvaram e ela disse:
— Não! amanhã!
Ela o deixou rapidamente, toda transtornada, continuando a esfregar os dedos uns nos outros, por certo na esperança de que o anel iria reaparecer.
Quanto a Raoul, voltou para casa, preocupadíssimo com tudo que tinha ouvido.
— Se eu não a salvar das mãos daquele charlatão — disse em voz alta no seu quarto —, está perdida; mas eu a salvarei!
Apagou a lâmpada e sentiu, na escuridão, necessidade de insultar Erik. Gritou três vezes em voz alta: “Charlatão!... Charlatão!... Charlatão!...”
Mas, de repente, levantou-se sobre um cotovelo; um suor frio lhe escorria pelas têmporas. Dois olhos, ardentes como brasas, acabavam de acender-se ao pé de sua cama. Olhavam para ele fixamente, terrivelmente, na noite negra.
Raoul era corajoso, e no entanto tremia. Avançou a mão, tateante, hesitante, incerta, sobre o criado-mudo. Ao encontrar uma caixa de fósforos, acendeu uma luz. Os olhos desapareceram.
Pensou, sentindo-se totalmente inseguro: “Ela me disse que os olhos dele só se viam na escuridão. Os olhos dele desapareceram com a luz, mas ele deve estar ainda aí.”
E levantou-se, procurou, deu prudentemente uma volta ao redor das coisas. Olhou debaixo da cama, como uma criança. Então, achou-se ridículo e disse em voz alta:
— Em que acreditar? Em que não acreditar com semelhante conto de fadas? Onde acaba o real, onde começa o fantástico? O que foi que ela viu? O que foi que ela achou que viu?
E acrescentou, estremecendo:
— E eu próprio, o que foi que eu vi? Vi mesmo os olhos de brasa agora há pouco? Será que eles não brilharam só na minha imaginação? Agora não estou mais seguro de nada! E eu não juraria sobre ter visto aqueles olhos.
Voltou a deitar-se. De novo se fez a escuridão. Os olhos reapareceram.
— Oh! — suspirou Raoul.
Erguendo-se na cama, fixava-os tão corajosamente quanto podia. Depois de um silêncio que usou para recuperar toda a sua coragem, gritou de repente:
— É você, Erik? Homem, gênio ou fantasma! É você? Ele raciocinou:
— Se for ele, está na sacada!
Então correu, em mangas de camisa, até um movelzinho onde agarrou, tateando, um revólver. Armado, abriu a porta-janela. A noite estava extremamente fria. Raoul só tomou o tempo de lançar um olhar sobre a sacada deserta e voltou para dentro, fechando a porta. Voltou a deitar-se sentindo um arrepio, e deixou o revólver sobre o criado-mudo, ao seu alcance.
Mais uma vez, apagou a vela.
Os olhos continuavam ali, depois da cama. Será que eles estavam entre a cama e o vidro da janela ou atrás do vidro, isto é, na sacada?
Era o que Raoul queria saber. Queria saber também se aqueles olhos pertenciam a um ser humano. Queria saber tudo...
Então, pacientemente, friamente, sem perturbar a noite que o envolvia, o rapaz pegou o revólver e apontou.
Apontou para as duas estrelas de ouro que continuavam a olhar para ele com um brilho tão singular e imóvel..
Mirou um pouco acima das duas estrelas. Certamente! Se aquelas duas estrelas eram olhos, e se acima daqueles olhos havia uma testa, e se Raoul não fosse muito desajeitado...
O estampido rolou com um barulho terrível na paz da casa adormecida... E enquanto nos corredores precipitavam-se passos, Raoul, sentado na cama, com o braço estendido, pronto para atirar de novo, olhava...
As duas estrelas, desta vez, tinham desaparecido.
Luz, gente, o conde Philippe medonhamente ansioso.
— O que foi, Raoul?
— Acho que sonhei — respondeu o rapaz. — Atirei em duas estrelas que me impediam de dormir.
— Você está delirando?... Está doente!... por favor, Raoul, o que é que aconteceu? — perguntou o conde apoderando-se do revólver.
— Não, não, não estou delirando!... Aliás, vamos ficar sabendo... Levantou-se, pôs um robe, calçou os chinelos, tomou das mãos de um criado um lampião e, abrindo a porta-janela, voltou à sacada. O conde notara que a janela tinha sido atravessada por um bala à altura de um homem. Raoul estava debruçado sobre a sacada...
— Oh! — exclamou. — Sangue... Aqui... ali... mais sangue! Ainda bem!... Um fantasma que sangra... é menos perigoso! — ridicularizou.
— Raoul! Raoul!
O conde sacudiu-o como se quisesse tirar um sonâmbulo de seu perigoso sonho.
— Mas, meu irmão, eu não estou devaneando! — protestou Raoul impaciente. — Você pode ver esse sangue como todo mundo. Pensei que estava sonhando e que tinha atirado em duas estrelas. Eram os olhos de Erik e aí está o seu sangue!...
Em seguida, acrescentou, subitamente preocupado:
— Afinal de contas, talvez eu tenha feito mal em atirar, e Christine é bem capaz de não me perdoar por isso!... Nada disso teria acontecido se eu tivesse tomado a precaução de fechar as cortinas da janela ao me deitar.
— Raoul, você ficou louco de repente? Acorde!
— De novo! Você faria melhor, meu irmão, de me ajudar a procurar Erik... pois afinal, um fantasma que sangra deve poder ser achado...
O camareiro do conde disse:
— E verdade, meu senhor, que tem sangue aqui no terraço.
Um empregado trouxe uma lâmpada à luz da qual se pôde examinar melhor o terraço. O rastro de sangue seguia a rampa da sacada e ia encontrar uma calha, e a marca de sangue subia ao longo da calha.
— Meu amigo — disse o conde Philippe —, você atirou num gato.
— Que desgraça! — disse Raoul, com uma risada que ressoou dolorosamente aos ouvidos do conde. — E bem possível. Com Erik, nunca se sabe. Será Erik? Será um gato? Será o fantasma? Será carne ou sombra? Não! Com Erik, nunca se sabe!
Raoul começou com essas falas estranhas que correspondiam tão intimamente e tão logicamente às preocupações de sua mente e que faziam seqüência perfeita às confidências estranhas, ao mesmo tempo reais e de aparência sobrenatural, de Christine Daaé; e essas falas não contribuíram pouco para persuadir a muita gente de que o cérebro do jovem estava perturbado. O próprio conde acreditou nisso e mais tarde o juiz de instrução, sobre o relatório do delegado de polícia, não teve dificuldade em concluir que isso era verdade.
— Quem é Erik? — perguntou o conde apertando a mão do irmão.
— É o meu rival! E, se ele não morreu, azar meu! Com um gesto, afastou os criados.
A porta do quarto voltou a fechar-se sobre os dois Chagny. Mas as pessoas não se afastaram tão depressa que o camareiro do conde não ouvisse Raoul pronunciar distintamente e com força:
— Esta noite, raptarei Christine Daaé!
Essa frase foi repetida posteriormente ao juiz de instrução Faure. Mas nunca se soube exatamente o que foi dito entre os dois irmãos durante aquela conversa.
Os empregados contaram que não era aquela noite a primeira briga que os fazia trancar-se.
Através das paredes, ouviam-se gritos, e sempre se tratava de uma atriz que se chamava Christine Daaé.
No café da manhã, que o conde tomava em seu gabinete de trabalho, Philippe deu ordem para que fossem pedir ao irmão que viesse encontrar-se com ele. Raoul chegou, taciturno e calado. A cena foi bem curta.
O conde: — Leia aqui!
Philippe estende ao irmão um jornal: L’Époque. Com o dedo, mostra-lhe a seguinte nota social: “Uma grande notícia no Faubourg Saint-Germain: existe promessa de casamento entre a Srta. Christine Daaé, artista lírica, e o Sr. visconde Raoul de Chagny. Se se der crédito às fofocas de bastidores, o conde Philippe teria jurado que, pela primeira vez, os Chagny não cumpririam a sua promessa. Como o amor, na Ópera mais do que em qualquer outro lugar, é onipotente, não se pergunta de que meios poderia dispor o conde Philippe para impedir que o visconde, seu irmão, conduza ao altar a nova Margarida. Dizem que os dois irmãos se adoram, mas o conde está estranhamente enganado se espera que o amor fraterno se sobreporá ao amor puro e simples!”
O visconde lê e depois encara o irmão.
O conde (triste): — Está vendo, Raoul, você está nos tornando ridículos!... Essa pequena virou completamente a sua cabeça com essas histórias de alma do outro mundo.
(O visconde contara, pois, a narrativa de Christine ao irmão.)
O visconde: — Adeus, meu irmão!
O conde: — Está bem entendido? Você parte esta noite com ela? (O visconde não responde.) Você não vai fazer uma besteira dessas, vai?! (Silêncio do visconde.) Eu saberei impedi-lo!
O visconde: — Adeus, meu irmão!
(Com estas palavras, Raoul vai embora.)
Essa cena foi contada ao juiz de instrução pelo próprio conde, que não deveria rever o irmão a não ser naquela noite mesma, na Ópera, alguns minutos antes do desaparecimento de Christine.
O dia todo, na verdade, foi dedicado por Raoul aos preparativos do rapto.
Os cavalos, a carruagem, o cocheiro, as provisões, as bagagens, o dinheiro necessário, o itinerário — não se devia pegar a estrada de ferro para despistar o fantasma —, tudo isso o manteve ocupado até as 9 horas da noite.
Às 9 horas, uma espécie de berlinda cujas cortinas estavam puxadas sobre as janelas hermeticamente fechadas veio entrar na fila do lado da Rotunda. Estava atrelada a dois vigorosos cavalos e era conduzida por um cocheiro cujo rosto era difícil de distinguir, de tal modo estava enrolado nas longas pregas de um cachenê. À frente dessa berlinda achavam-se três carros. O inquérito estabeleceu mais tarde que eram os cupês de Carlotta, que voltara subitamente a Paris, e de Sorelli, e, na ponta, do conde Philippe de Chagny. Da berlinda não desceu ninguém. O cocheiro permaneceu em seu assento. Os três outros cocheiros dos outros carros tinham ficado igualmente nos seus.
Uma sombra, envolvida num grande manto negro, e usando um chapéu mole de feltro preto, passou pela calçada entre a Rotunda e as equipagens. Parecia considerar mais atentamente a berlinda. Aproximou-se dos cavalos, depois do cocheiro, depois se afastou sem ter pronunciado uma palavra. O inquérito apontou, mais tarde, que essa sombra era o visconde Raoul de Chagny; quanto a mim, não acredito, visto que nessa noite, como nas outras, o visconde de Chagny usava uma cartola, que, aliás, foi depois encontrada. Acho mesmo que aquela sombra era a do fantasma, que estava a par de tudo como logo adiante se verá.
Levava-se Fausto, como por acaso. A sala estava das mais brilhantes. O Faubourg Saint-Germain estava magnificamente representado. Nessa época, os assinantes não cediam, não alugavam nem sublocavam, nem dividiam os seus camarotes com o mundo das finanças ou do comércio, nem com o estrangeiro. Hoje os camarotes continuam ostentando os títulos de seus contratantes: “camarote do marquês fulano de tal”, pois que o marquês em referência é por contrato o seu titular, entretanto nesse mesmo camarote se pavoneia um negociante de carne de porco salgada e sua família — o que está no direito do negociante de carne de porco, já que ele paga o camarote do marquês. Outrora, esses costumes eram praticamente desconhecidos. Os camarotes da Ópera eram salões onde se estava mais ou menos seguro de encontrar ou de ver pessoas da alta sociedade que, às vezes, gostavam de música.
Toda essa sociedade elegante se conhecia, sem para isso freqüentar-se necessariamente. Mas os nomes estavam todos ligados aos rostos e a fisionomia do conde de Chagny não era ignorada por ninguém.
A notícia que tinha aparecido pela manhã em L’Époque já devia ter produzido o seu efeito, pois todos os olhos estavam voltados para o camarote onde o conde Philippe, de aparência bem indiferente e de semblante despreocupado, achava-se sozinho. O elemento feminino dessa brilhante assembléia parecia singularmente intrigado e a ausência do visconde dava azo a mil cochichos por trás dos leques. Christine Daaé foi acolhida com bastante frieza. Aquele público especial não lhe perdoava ter mirado tão alto.
A diva deu-se conta da má disposição de uma parte da sala e ficou perturbada.
Os habitués que pretendiam estar a par dos amores do visconde não se privaram de sorrir em certas passagens do papel de Margarida. Foi assim que se viraram ostensivamente para o lado do camarote de Philippe de Chagny quando Christine cantou a frase: “Eu bem quisera saber quem era aquele jovem, se é um grande senhor e como ele se chama”.
Com o queixo apoiado na mão, o conde não parecia tomar conhecimento dessas manifestações. Fixava o palco; mas estava mesmo olhando para ele? Parecia longe de tudo...
Cada vez mais, Christine perdia toda a segurança. Estava tremendo. Caminhava para uma catástrofe... Carolus Fonta perguntou a si mesmo se ela não estava doente, se iria agüentar em cena até o fim do ato que era o do jardim. Na sala, todos se lembravam da desgraça acontecida no fim desse ato a Carlotta, que tinha momentaneamente suspendido a sua carreira em Paris.
Justamente Carlotta fez sua entrada, nesse momento, num camarote de frente, entrada sensacional. A pobre Christine levantou os olhos para esse novo motivo de comoção. Reconheceu a sua rival. Pensou tê-la visto rir zombeteiramente. Isso a salvou. Esqueceu tudo para, uma vez mais, triunfar.
A partir desse momento, cantou com toda a alma. Tentou superar tudo que tinha feito até então e conseguiu. No último ato, quando começou a invocar os anjos e a se levantar da terra, arrastou num novo ímpeto toda a sala fremente, e cada um pôde acreditar que ela tinha asas.
A esse apelo sobre-humano, no centro do anfiteatro, um homem tinha-se levantado e se mantinha de pé, face à atriz, como se no mesmo movimento ele deixasse a terra... Era Raoul.
Anjos puros! Anjos radiosos! Anjos puros! Anjos radiosos!
E Christine, de braços estendidos, garganta abrasada, envolta na glória de sua cabeleira desatada sobre os ombros nus, lançava o clamor divino:
Levai minha alma para o seio dos céus!
Foi então que uma brusca escuridão se abateu sobre o teatro. Foi tão rápido que os espectadores mal tiveram tempo de soltar um grito de estupor, pois a luz iluminou de novo o palco.
Mas Christine Daaé não estava mais lá!... Que foi feito dela?... Que milagre era aquele? Todos se olhavam sem entender e a emoção foi de imediato levada ao cúmulo. A emoção não era menor no palco do que na sala. Dos bastidores as pessoas se precipitavam para o lugar onde, naquele mesmo instante, Christine cantava. O espetáculo estava interrompido em meio à maior desordem. Aonde, afinal, tinha ido parar Christine? Que sortilégio a tinha roubado a milhares de espectadores entusiastas e nos braços mesmos de Carolus Fonta? Na verdade, podia-se perguntar se, atendendo à sua prece inflamada, os anjos não a tinham realmente levado “para o seio dos céus” em corpo e alma...
Raoul, sempre de pé no anfiteatro, soltara um grito. O conde Philippe levantara-se em seu camarote. Olhava-se para o palco, olhava-se para o conde, olhava-se para Raoul, e todos se perguntavam se aquele curioso acontecimento não tinha a ver com a notícia publicada naquela mesma manhã por um jornal. Mas Raoul abandonou o seu lugar às pressas, o conde desapareceu do seu camarote, e, enquanto caía o pano, os assinantes se precipitaram para a entrada dos bastidores. O público esperava uma informação numa confusão indescritível. Todo mundo falava a uma só vez. Cada um pretendia explicar como as coisas tinham acontecido. Alguns diziam: “Ela caiu num alçapão”; outros: “Ela foi arrebatada para as frisas; a coitada foi vítima, talvez, de um novo truque inaugurado pela nova direção”; outros ainda: “E uma armadilha. A coincidência entre o desaparecimento e a escuridão são provas suficientes”.
Finalmente a cortina se levantou lentamente, e Carolus Fonta, avançando até a estante do maestro, anunciou com voz grave e triste:
— Senhoras e senhores, um acontecimento nunca visto e que nos deixa em profunda preocupação acaba de produzir-se. Nossa colega, Christine Daaé, desapareceu sob os nossos olhos sem que se possa saber como!
SINGULAR ATITUDE DE UM ALFINETE DE PRESSÃO
No palco ocorre uma balbúrdia sem nome. Artistas, maquinistas, dançarinas, figurantes, coristas, assinantes, todo mundo interroga, grita, se acotovela. “Que foi feito dela?” “Ela foi raptada!” “Foi o visconde de Chagny que a seqüestrou!” “Não, foi o conde!” “Ah! ali está Carlotta! Foi Carlotta que armou o golpe!” “Não! foi o fantasma!”
E alguns riem, principalmente depois que o exame atento dos alçapões e dos assoalhos eliminou a idéia de acidente.
Nessa multidão barulhenta, nota-se um grupo de três personagens que conversam em voz baixa com gestos desesperados. É Gabriel, o mestre de canto, Mercier, o administrador, e o secretário Rémy. Retiraram-se no ângulo formado pela caixa de uma porta vaivém que fazia a comunicação entre o palco e o largo corredor do pavilhão da dança. Ali, atrás de enormes acessórios, parlamentavam:
— Eu bati! Eles não atenderam! Talvez não estejam mais no escritório. Em todo caso, é impossível saber, pois eles levaram as chaves.
Assim se exprime o secretário Rémy e não há dúvida de que designa com essas palavras os diretores. Estes deram ordem, no último intervalo, para que não fossem perturbá-los sob nenhum pretexto. Não estavam para ninguém.
— Ora essa — exclama Gabriel —, não se rapta uma cantora, em pleno palco, todos os dias!...
— Você gritou isso para eles? — interroga Mercier.
— Vou voltar lá — disse Rémy e, correndo, desaparece. Neste ponto, chega o gerente.
— Então, Sr. Mercier, o senhor vem? O que estão fazendo aqui os senhores dois? Estão precisando do senhor, senhor administrador.
— Não quero fazer nada nem saber de nada antes que chegue o delegado — declara Mercier. — Mandei procurar o Mifroid. Veremos quando ele estiver presente!
— E eu lhe digo que é preciso descer imediatamente até o jogo de tubos de órgão.
— Não antes que chegue o delegado...
— Eu já fui lá embaixo, no jogo de tubos de órgão.
— Ah! e o que é que você viu?
— Pois bem, eu não vi ninguém.
— O que é que você quer que eu faça lá?
— Nada, evidentemente — replica o gerente, que passa freneticamente as mãos numa cabeleira rebelde. — Mas talvez, se houvesse alguém no jogo de tubos de órgão, esse alguém pudesse nos explicar como a escuridão se fez de repente no palco. Ora, Mauclair não está em parte alguma, vocês entendem?
Mauclair era o chefe da iluminação que fazia aparecer à vontade sobre o palco o dia e a noite.
— Mauclair não está em parte alguma... — repete Mercier abalado. — E os seus ajudantes?
— Nem Mauclair nem os seus ajudantes! Ninguém na iluminação, estou lhe dizendo! Você deve imaginar que essa garota não foi raptada sozinha! Aí tem um “golpe montado” que é preciso esclarecer.... E os diretores não estão presentes?... Proibi que desçam à iluminação, coloquei um bombeiro diante do nicho do jogo de tubos de órgão! Não fiz bem?
— Fez, sim, você fez muito bem... E agora vamos esperar o delegado.
O gerente afasta-se erguendo os ombros, raivoso, mastigando impropérios contra aqueles “pamonhas” que ficam tranqüilamente encolhidos num canto enquanto todo o teatro está “de cabeça para baixo”.
Gabriel e Mercier não estavam nada tranqüilos. Somente tinham recebido uma ordem que os paralisava. Não se devia perturbar os diretores por razão nenhuma do mundo. Rémy tinha infringido essa ordem e isso não o tinha levado a nada.
Justamente aí vem ele voltando de sua nova expedição. Está com uma cara curiosamente espantada.
— E então, você falou com eles? — interroga Mercier. Rémy responde:
— Moncharmin acabou de me abrir a porta. Os olhos dele estavam saltando fora das órbitas. Achei que ele ia me bater. Não pude dizer palavra, e sabe o que foi que ele me gritou? “Você tem um alfinete de pressão?” Eu respondi que não. “Pois bem, me deixe em paz!...” Eu quero lhe explicar que no teatro se dá um fato nunca visto... O diretor clama: “Um alfinete de pressão! Me dê imediatamente um alfinete de pressão!” Um rapaz do escritório que tinha ouvido os seus berros, ele gritava como um surdo, acorre com um alfinete de pressão, entrega-o a ele e logo Moncharmin me bate a porta no nariz! Aí está!
— E você não pôde lhe dizer que Christine Daaé...
— Ah! eu queria ver você lá!... Ele estava espumando... Só pensava no seu alfinete de pressão... Acho que, se não lhe tivessem trazido imediatamente o tal alfinete, ele teria tido um ataque! Certamente, nada disso parece natural e os nossos diretores estão ficando malucos!...
O secretário Rémy não ficou nada contente. E demonstrou isso:
— Isso não pode continuar assim! Não estou acostumado a ser tratado assim!
De repente, Gabriel diz:
— É mais um golpe do F. da Ó.
Rémy dá uma risadinha. Mercier suspira, parece prestes a soltar uma confidência... mas tendo olhado para Gabriel que lhe faz sinal para ficar quieto, permanece mudo.
Entretanto, Mercier, que sente a sua responsabilidade crescer à medida que os minutos passam e que os diretores não aparecem, não agüenta mais:
— Ora! eu mesmo vou até lá fazer com que se mexam — decidiu.
— Pense no que está fazendo, Mercier! Se eles não saem do escritório, é porque, talvez, seja necessário! O F. da Ó. tem mais de uma mágica em sua cartola!
Mas Mercier sacode a cabeça.
— Tanto pior! Eu vou! Se tivessem me ouvido, há muito tempo que tudo teria sido dito à polícia!
Ele sai.
— Tudo o quê? — pergunta logo Rémy. — O que é que se teria dito à polícia? Ah! Vocês ficam calados!... Vocês também estão na confidência! Pois bem, vocês não fariam mal se me pusessem também nessa história, se não quiserem que eu saia gritando que vocês estão ficando todos loucos!... Isso mesmo, loucos, de verdade!
Gabriel gira os olhos abestalhados e afeta não estar entendendo nada dessa “saída” inconveniente do senhor secretário particular.
— Que confidência? — murmura ele. — Não sei o que você está querendo dizer.
Rémy exaspera-se.
— Esta noite, Richard e Moncharmin, aqui mesmo, nos intervalos, faziam gestos alienados.
— Não notei — resmunga Gabriel, muito enfadado.
— Você foi o único!... Você acha que eu não vi?!... E que o Sr. Parabise, diretor do Crédito Central, não percebeu nada?... E que o Sr. embaixador de La Broderie está cego?... Mas, senhor mestre de canto, todos os assinantes os apontavam com o dedo, aos nossos diretores!
— O que é então que fizeram os nossos diretores? — pergunta Gabriel com o seu jeito mais simplório.
— O que fizeram? Você sabe melhor do que ninguém o que é que eles fizeram!... Você estava lá!... E você os estava observando, você e Mercier!... E vocês eram os únicos que não riam...
— Não entendo!
Muito frio, muito “fechado”, Gabriel estende os braços e os deixa cair, gesto que significa evidentemente que ele se desinteressa da questão... Rémy continua:
— O que é essa nova mania agora de não querem mais que a gente se aproxime deles?
— Como é que é?
— Não querem mais que se toque neles!
— Aí está uma coisa realmente estranha!
— Você concorda! Já não é sem tempo! Pois eles caminham para trás quando nos aproximamos! Eu achava que eram só os caranguejos que caminhavam para trás.
— Não ria, Gabriel! Não ria!
— Não estou rindo — protesta Gabriel, que se mostra sério “como um papa”.
— Poderia explicar-me, por gentileza, Gabriel, você que é amigo íntimo da diretoria, por quê, no entreato do “jardim”, diante do foyer, quando eu avançava, com a mão estendida para o Sr. Richard, ouvi o Sr. Moncharmin me dizer precipitadamente em voz baixa: “Afaste-se! Afaste-se! Sobretudo não toque no senhor diretor?...”. Acaso eu sou um empesteado?
— Incrível!
— E alguns instantes mais tarde, quando o Sr. embaixador de La Broderie se dirigiu por sua vez em direção do Sr. Richard, você não viu o Sr. Moncharmin lançar-se entre os dois e não o ouviu exclamar: “Senhor embaixador, eu o conjuro, não toque no senhor diretor!”
— Espantoso!... E o que fazia o Sr. Richard durante esse tempo?
— O que ele fazia? Você bem viu! Fazia meia-volta, cumprimentava à frente dele, quando não havia ninguém na frente dele! e se retirava caminhando para trás.
— Para trás?
— E Moncharmin, atrás de Richard, também tinha dado meia-volta, quer dizer, tinha feito atrás de Richard um rápido semicírculo, e também ele se retirava “‘caminhando para trás”... E foram indo assim até a escada da administração, recuando!... recuando!... Afinal! se não estão malucos, você pode me explicar o que isso significa?
— Estavam ensaiando, talvez — explica Gabriel, sem convicção —, uma figura de balé!
O secretário Rémy sente-se ultrajado por tão vulgar gracejo em momento tão dramático. Os seus olhos se franzem, os lábios se apertam. Inclina-se para o ouvido de Gabriel.
— Não se faça de esperto, Gabriel. Estão acontecendo coisas aqui pelas quais você e Mercier poderiam ter sua parte de responsabilidade.
— O quê? — interroga Gabriel.
— Christine Daaé não é a única que desapareceu de repente, esta noite.
— Ah, é!?
— Não tem “ah, é!?”. Poderia me dizer por que, quando a Sra. Giry desceu há pouco ao foyer, Mercier tomou-a pela mão e a conduziu rapidinho com ele?
— Está aí! — diz Gabriel. — Eu não notei.
— Tanto você notou, Gabriel, que você seguiu Mercier e a Sra. Giry até o escritório de Mercier. Desde esse momento, você e Mercier foram vistos, mas a Sra. Giry ninguém mais viu...
— Você por acaso acha que a gente a engoliu?
— Não, mas vocês a trancaram com duas voltas de chave no escritório, e, quando se passa perto da porta do escritório, sabe o que se ouve? Ouvem-se estas palavras: “Ah! esses bandidos! Ah! esses bandidos!”
Neste ponto da singular conversa chega Mercier, todo esbaforido.
— Pronto! — diz ele com voz desanimada. — É mais forte do que tudo... Eu gritei para eles: “É gravíssimo! Abram! Sou eu, Mercier”. Ouvi passos. A porta se abriu e Moncharmin apareceu. Estava muito pálido. Perguntou-me: “O que é que você quer?” Respondi: “Raptaram Christine Daaé”. Sabem o que ele me respondeu? “Melhor para ela!” E fechou a porta colocando-me isto na mão.
Mercier abre a mão; Rémy e Gabriel olham.
— O alfinete de pressão! — exclama Rémy.
— Estranho! Estranho! — pronuncia baixinho Gabriel, que não pode evitar de ter um arrepio.
De repente, uma voz faz os três virarem para trás.
— Com licença, senhores, poderiam dizer-me onde está Christine Daaé?
Apesar da gravidade das circunstâncias, uma pergunta dessas certamente os teria feito rir se não tivessem percebido uma figura tão acabrunhada que imediatamente sentiram dó. Era o visconde Raoul de Chagny.
CHRISTINE! CHRISTINE!
O primeiro pensamento de Raoul, depois do desaparecimento fantástico de Christine Daaé, tinha sido o de acusar Erik. Não duvidava mais do poder sobrenatural do Anjo da música, no domínio da Ópera, onde havia diabolicamente estabelecido o seu império.
E Raoul tinha corrido para o palco, numa loucura de desespero e de amor. “Christine! Christine!”, gemia, desvairado, chamando-a como ela devia estar chamando-o do fundo desse abismo escuro onde o monstro a havia transportado como uma presa, toda fremente ainda de sua exaltação divina, toda vestida da branca mortalha na qual já se oferecia aos anjos do paraíso.
“Christine! Christine!”, repetia Raoul... e parecia-lhe ouvir os gritos da moça através das pranchas frágeis que o separavam dela! Inclinava-se, escutava!... vagava no palco como um insensato. Ah! descer! descer! descer! naquele poço de trevas cujas saídas todas lhe estão fechadas!
Ah! esse obstáculo frágil que ordinariamente desliza tão facilmente para deixar ver o abismo para onde tende todo desejo... essas tábuas que seus passos fazem estalar e que ressoam sob o seu peso o prodigioso vazio dos “subterrâneos”... essas tábuas estão mais do que imóveis esta noite: parecem imutáveis... Assumem a firme aparência de nunca ter-se movido... e eis que as escadas que conduzem para debaixo do palco estão interditadas para toda gente!...
“Christine! Christine!...” Empurram-no com risadas... zombam dele... Pensam que ele está com o cérebro avariado... o pobre noivo!...
Em que corrida desabalada, entre os corredores de noite e de mistério que só ele conhece, Erik terá arrastado a menina pura até aquele esconderijo medonho, cuja porta se abre sobre o lago do inferno?... “Christine!... Christine!... Você não responde! Pelo menos você ainda está viva, Christine? Você não exalou o último suspiro num momento de horror sobre-humano, sob o hálito abrasado do monstro?”
Pensamentos horríveis atravessavam como relâmpagos fuzilantes o cérebro congestionado de Raoul.
Evidentemente, Erik deve ter surpreendido o segredo deles, sabido que fora traído por Christine! Que vingança será a sua!
De que não seria capaz o Anjo da música, precipitado do alto de seu orgulho? Christine está perdida entre os braços todo-poderosos do monstro!
E Raoul pensa ainda nas estrelas de ouro que vieram na noite passada vagar sobre a sacada; por que não as fulminou com sua arma impotente?
Sem dúvida! Existem olhos comuns de homem que se dilatam nas trevas e brilham como estrelas ou como olhos de gato. (Alguns homens albinos, que parecem ter olhos de coelho de dia, têm olhos de gato de noite, todos sabem disso!)
Sim, sim, era realmente em Erik que Raoul atirara! Por que não o matou? O monstro tinha fugido pelas calhas como os gatos e os presidiários que — também todos sabem disso — escalariam o céu a pique, com o apoio de uma calha.
Certamente Erik estava pensando então em fazer algo decisivo contra o rapaz, mas tinha sido ferido e se voltara contra a pobre Christine.
Assim pensa cruelmente o pobre Raoul enquanto vai correndo ao camarim da cantora...
“Christine!... Christine!...” Lágrimas amargas queimavam as pálpebras do jovem que vê, esparramadas sobre os móveis, as roupas destinadas a vestir a sua bela noiva na hora da fuga!... Ah! Por que ela não quis partir antes! Por que demorou tanto?... Por que brincou com a catástrofe ameaçadora?... com o coração do monstro?... Por que quis, piedade suprema!, lançar, como última ceva àquela alma de demônio, este canto celeste:
Anjos puros! Anjos radiosos! Levai minha alma para o seio dos céus!
Raoul, em cuja garganta se misturam soluços, juras e injúrias, tateia com as palmas de suas mãos inábeis o grande espelho que se abriu uma noite diante dele para deixar Christine descer à tenebrosa morada. Empurra, aperta, apalpa... mas o espelho, ao que parece, só obedece a Erik... Talvez os gestos sejam inúteis com semelhante espelho?... Talvez bastasse pronunciar certas palavras?... Quando era menininho contavam-lhe que havia objetos que obedeciam assim à palavra!
De repente, Raoul se recorda... “uma grade que dá para a rua Scribe... Um subterrâneo que sobe diretamente do lago até a rua Scribe...”. Sim, Christine lhe falou de algo assim!... E, embora verificasse que a pesada chave já não está mais no cofrinho, correu mesmo assim para a rua Scribe.
E lá está ele fora; passa as mãos trêmulas por sobre as pedras ciclópicas, procura saídas... encontra as barras... seriam estas?... ou estas?... ou isto seria apenas um respiradouro?... Mergulha olhares impotentes por entre as barras da grade... que noite profunda lá dentro!... Escuta!... Que silêncio!... Dá a volta ao monumento!... Ah! Aqui estão as vastas barras! grades prodigiosas!... E a porta do pátio da administração!
Raoul corre até a zeladora:
— Desculpe, senhora, não poderia me indicar onde fica uma porta com grades, sim, uma porta feita de barras, de barras... de ferro... que dá para a rua Scribe... e que conduz ao lago! A senhora sabe, o lago? Sim, o lago, ora! O lago que está debaixo da terra... debaixo do chão da Ópera.
— Meu senhor, sei que existe um lago debaixo da Ópera, mas não sei que porta conduz a ele... nunca fui lá!...
— E a rua Scribe, senhora? A rua Scribe? A senhora nunca foi à rua Scribe?”
Ela ri! Dá gargalhadas! Raoul foge rugindo, salta, sobe escadas, desce outras, atravessa toda a administração, encontra-se sob a luz do “tabuleiro”.
Pára, o coração está batendo de arrebentar no peito ofegante: se tiverem encontrado Christine Daaé? Ali vem um grupo; ele pergunta:
— Com licença, os senhores viram Christine Daaé? E eles riem.
No mesmo minuto, o tabuleiro estronda com um rumor novo, e, numa multidão de roupas pretas que o cercam com muitos movimentos explicativos de braços, aparece um homem que, só ele, parece bem calmo e mostra uma cara amável, rosada e bochechuda, enquadrada em cabelos crespos, iluminada por dois olhos azuis de uma serenidade maravilhosa. O administrador Mercier aponta o recém-chegado ao visconde de Chagny e diz:
— Aqui está o homem, senhor, a quem daqui em diante, o senhor deverá fazer a pergunta. Apresento-lhe o delegado de polícia Mifroid.
— Ah! Sr. visconde de Chagny! Encantado em vê-lo, meu senhor — diz o delegado. — Se o senhor quiser se dar ao trabalho de me seguir... E agora, onde estão os diretores?... onde estão os diretores?...
Como o administrador ficasse calado, o secretário Rémy assume informar ao delegado que os senhores diretores estão trancados em seu escritório e ainda não sabem nada do acontecido.
— Será possível!... Vamos ao escritório deles!
E Mifroid, seguido de um cortejo que ia engrossando, dirige-se à administração. Mercier aproveita a confusão para escorregar uma chave na mão de Gabriel:
— Isso tudo está indo de mal a pior — murmura-lhe. — Vá dar um pouco de ar à Sra. Giry...
E Gabriel se afasta.
Logo se chega diante da porta da diretoria. Em vão Mercier faz ouvir as suas recriminações, a porta não se abre.
— Abra em nome da lei! — ordena a voz clara e um pouco preocupada de Mifroid.
Finalmente a porta se abre. Todos se precipitam para dentro do escritório, seguindo os passos do delegado.
Raoul é o último a entrar. Conforme se dispõe a seguir o grupo, uma mão pousa sobre o seu ombro e ele ouve estas palavras pronunciadas ao seu ouvido:
“Os segredos de Erik não dizem respeito a ninguém1.”
Ele se vira abafando um grito. A mão que tinha pousado em seu ombro está agora nos lábios de uma personagem com tez de ébano, olhos de jade e usando um boné de astracã... O Persa!
O desconhecido prolonga o gesto que recomenda a discrição e, no momento em que o visconde, estupefato, vai lhe perguntar a razão de sua misteriosa intervenção, ele cumprimenta e desaparece.
REVELAÇÕES ESPANTOSAS DA SRª GIRY, RELATIVAS ÀS SUAS RELAÇÕES PESSOAIS COM O FANTASMA DA ÓPERA
Antes de acompanhar o delegado de polícia Mifroid ao gabinete dos diretores, o leitor me permitirá discorrer sobre certos acontecimentos extraordinários que acabavam de se desenrolar no escritório onde o secretário Rémy e o administrador Mercier tinham em vão tentado penetrar, e onde os Srs. Richard e Moncharmin se tinham fechado tão hermeticamente com um objetivo ainda ignorado pelo leitor, mas que é de meu dever histórico — quero dizer, do meu dever de historiador — não lhe ocultar por mais tempo.
Tive a ocasião de dizer quanto o humor dos senhores diretores se havia modificado desagradavelmente de algum tempo para cá, e dei a entender que essa transformação não devia ter tido como causa única a queda do lustre nas condições já sabidas.
Informemos pois ao leitor — em que pese o desejo que teriam os diretores de que tal acontecimento ficasse escondido para sempre — que o fantasma tinha conseguido receber tranqüilamente os seus primeiros 20 mil francos! Ah! tinha havido choro e ranger de dentes! A coisa se fizera, entretanto, com a maior simplicidade do mundo:
Uma manhã, os diretores tinham encontrado um envelope já preparado sobre a sua escrivaninha. Esse envelope estava assim sobrescrito: Ao senhor F. da Ó. (confidencial) e vinha acompanhado de um bilhete do próprio F. da Ó.: “E chegado o momento de executar as cláusulas do caderno de encargos: os senhores colocarão 20 notas de mil francos neste envelope que fecharão com o seu próprio lacre e o entregarão à Sra. Giry que fará o necessário”.
Os diretores não se fizeram de rogados; sem perder tempo com perguntas sobre como essas missões diabólicas podiam chegar a um gabinete que tinham o maior cuidado de trancar à chave, acharam que era uma boa oportunidade para meterem a mão sobre o misterioso mestre de canto. E depois de terem contado tudo a Gabriel e a Mercier, sob o cunho do maior segredo, puseram os 20 mil francos no envelope e o confiaram, sem pedir explicações, à Sra. Giry, reintegrada em suas funções. A lanterninha não manifestou nenhum espanto. Nem é preciso dizer quanto ela foi vigiada! Aliás, ela se dirigiu imediatamente ao camarote do fantasma e colocou o precioso envelope na plaqueta do apoio de mão. Os dois diretores, assim como Gabriel e Mercier, ficaram escondidos de tal sorte que por nem um segundo perderam de vista o tal envelope durante todo o tempo da representação e mesmo depois, porque, como o envelope não fora tocado, os que o vigiavam não se mexeram tampouco e o teatro se esvaziou e a Sra. Giry foi-se embora enquanto os diretores, Gabriel e Mercier permaneceram ali. Finalmente eles se cansaram e abriram o envelope, depois de verificarem que os lacres não tinham sido violados.
À primeira vista, Richard e Moncharmin acharam que as notas continuavam ali, mas depois deram-se conta de que não eram as mesmas. As 20 notas verdadeiras tinham sumido e sido substituídas por 20 notas da “Santa Farsa”. Tiveram um acesso de raiva e depois também de pavor!
— É mais impressionante do que com Robert Houdini — exclamou Gabriel.
— Sim — replicou Richard —, e custa mais caro! Moncharmin queria que se fosse correndo buscar o delegado;
Richard se opôs. Ele tinha sem dúvida seu plano. Disse:
— Não sejamos ridículos! Toda a Paris ficaria rindo. F. da Ó. ganhou a primeira mão; retomaremos a segunda. — Estava pensando, evidentemente, na mensalidade seguinte.
Mesmo assim, tinham sido tão perfeitamente ludibriados que não puderam, durante as semanas subseqüentes, sobrepujar certo abatimento. E era, de fato, bem compreensível. Se o delegado não foi chamado logo, não se deve esquecer que foi porque os diretores guardavam no seu íntimo a idéia de que uma aventura tão estranha podia não ser mais do que uma detestável brincadeira, montada certamente por seus predecessores, e convinha não divulgar nada antes de conhecer a sua “razão profunda”. Essa idéia, por outro lado, se perturbava em certos momentos na cabeça de Moncharmin por uma suspeita com relação ao próprio Richard, que tinha algumas vezes imaginações burlescas. E foi assim que, prontos para qualquer eventualidade, esperaram os acontecimentos vigiando e mandando vigiar a Sra. Giry, a quem Richard quis que não se falasse de nada.
— Se ela é cúmplice — disse ele —, há muito tempo que as notas estão longe. Mas, para mim, ela não passa de uma imbecil!!
— Os imbecis são muitos nesta história! — replicou Moncharmin, cismando.
— A gente podia desconfiar?... — gemeu Richard —, mas não tenha medo... da próxima vez tomarei todas as minhas precauções...
E foi assim que chegou a próxima vez... caiu no mesmo dia do desaparecimento de Christine Daaé.
Pela manhã, uma missiva do fantasma que lhes lembrava o vencimento. “Façam como na última vez”, ensinava amavelmente F. da Ó. “Tudo correu muito bem. Remetam o envelope, no qual os senhores terão colocado os 20 mil francos, a essa excelente Sra. Giry.”
E o bilhete vinha acompanhado do envelope costumeiro. Era só recheá-lo.
A operação devia ser executada naquela mesma noite, meia hora mais ou menos antes do espetáculo. Foi então cerca de meia hora antes que as cortinas se levantassem para aquela famigerada representação de Fausto que penetramos no antro da diretoria.
Richard mostra o envelope a Moncharmin, depois conta diante dele os 20 mil francos e os coloca no envelope, mas sem fechá-lo.
— E agora — disse —, chame a Sra. Giry.
Foram buscar a velha. Ela entrou fazendo uma bela reverência. Continuava com seu vestido de tafetá preto, cuja cor tendia para o ferrugem e para o lilás, e com o chapéu de plumas cor de fuligem. Parecia de muito bom humor. Logo foi dizendo:
— Bom dia, meus senhores! Devem ter-me chamado por causa do envelope?
— Isso mesmo, Sra. Giry — disse Richard com grande amabilidade... — E por causa do envelope... E por causa de outra coisa também.
— Às suas ordens, senhor diretor, às suas ordens!... E qual é essa outra coisa, por favor?
— Primeiro, Sra. Giry, eu teria uma perguntinha a lhe fazer.
— Faça, senhor diretor, sua criada está aqui para responder.
— A senhora continua às boas com o fantasma?
— Melhor impossível, senhor diretor, melhor impossível.
— Ah! ficamos encantados de ouvir isso... Diga então, Sra. Giry — pronunciou Richard, tomando o tom de uma importante confidência. — Cá entre nós, a gente pode dizer... A senhora não e uma besta.
— Mas, senhor diretor!... — exclamou a lanterninha, parando o amável balanço das duas penas pretas do seu chapéu cor de picumã. — Peço-lhe que acredite que isso nunca teve sombra de dúvida para ninguém!
— Estamos de acordo e vamos nos entender. A história do fantasma é uma boa piada, não é?... Pois bem, sempre cá entre nós... ela já durou demais.
A Sra. Giry olhou para os diretores como se eles lhe tivessem falado em chinês. Aproximou-se da escrivaninha de Richard e disse, bastante preocupada:
— O que é que o senhor está querendo dizer?... Não entendi!
— Ah! a senhora nos entendeu muito bem. Em todo caso, é preciso nos entender... E, primeiro, a senhora vai nos dizer como é que ele se chama.
— Quem?
— Aquele de quem a senhora é cúmplice, Sra. Giry!
— Eu sou cúmplice do fantasma? Eu?... Cúmplice do quê?
— A senhora faz tudo que ele quer.
— Oh!... ele não é muito exigente, os senhores sabem.
— E sempre lhe dá gorjetas!
— Eu não me queixo!
— Quanto ele lhe dá para levar este envelope para ele?
— Dez francos.
— Com os diabos! não é caro!
— Mas por quê?
— Eu lhe direi isso daqui a pouco, Sra. Giry. Agora gostaríamos de saber por que razão extraordinária... a senhora se entregou de corpo e alma a esse fantasma de preferência a outro... Não é por dez tostões ou por dez francos que se pode ter a dedicação da Sra. Giry.
— Isso é verdade!... E, palavra, essa razão, posso dizê-la, senhor diretor! Certamente não há nisso nenhuma desonra!... pelo contrário.
— Não temos dúvida, Sra. Giry.
— Pois bem, aí está... o fantasma não gosta que eu conte as suas histórias.
— Ah! ah! — riu Richard.
— Mas essa aí só diz respeito a mim!... — retorquiu a velha. — Então, foi no camarote nº 5... uma noite, encontrei uma carta para mim... uma espécie de nota escrita com tinta vermelha... Essa nota, senhor diretor, eu não preciso ler para o senhor... eu sei de cor... e nunca esquecerei mesmo que viva cem anos!...
E a Sra. Giry, toda ereta, recita a carta com uma eloqüência comovedora:
“Minha senhora. — 1825, Srta. Ménétrier, coriféia, se tornou marquesa de Cussy. — 1832, Srta. Maria Taglioni, dançarina, foi feita Condessa Gilbert des Voisins. — 1846, Sota, dançarina, casa-se com um irmão do rei da Espanha. — 1847, Lola Montes, dançarina, casa-se morganaticamente com o rei Luís da Baviera e é feita Condessa de Landsfeld. — 1848, Srta. Maria, dançarina, torna-se baronesa de Hermeville. — 1870, Teresa Hessler, dançarina, casa-se com Dom Fernando, irmão do rei de Portugal...”
Richard e Moncharmin escutam a velha, que, à medida que avança na curiosa enumeração desses gloriosos himeneus, se anima, se levanta, vai tomando audácia e, finalmente, inspirada como uma sibila sobre o seu tripé, lança com voz retumbante de orgulho a última frase da carta profética: 1885, Meg Giry, imperatriz!
Esgotada com esse esforço supremo, a lanterninha cai de volta sentada na cadeira e diz:
— Senhores, a carta estava assinada: O fantasma da Ópera! Eu já tinha ouvido falar do fantasma, mas só acreditava nele pela metade. A partir do dia em que me anunciou que a minha pequena Meg, carne da minha carne, fruto das minhas entranhas, seria imperatriz, acreditei inteiramente.
Em verdade, em verdade, não era necessário considerar longamente a fisionomia exaltada da Sra. Giry para entender o que se pudera obter daquela bela inteligência com estas duas palavras : “fantasma” e “imperatriz”.
Mas quem é que puxava as cordinhas desse extravagante manequim?... Quem?
— A senhora nunca o viu, ele lhe fala, e a senhora acredita em tudo aquilo que ele diz? — perguntou Moncharmin.
— Acredito; primeiro, é a ele que eu devo o fato de a minha pequena Meg ter passado a coriféia. Eu tinha dito ao fantasma: “Para que ela seja imperatriz em 1885, o senhor não tem tempo a perder, ela precisa passar imediatamente a coriféia”. Ele me respondeu: “Está bem”. E foi só ele dizer uma palavra ao Sr. Poligny, estava feito...
— A senhora está dizendo que o Sr. Poligny o viu!?
— Tanto quanto eu, mas ele o ouviu! O fantasma lhe disse uma palavrinha ao ouvido, o senhor sabe, na noite em que ele saiu tão pálido do camarote nº 5.
Moncharmin solta um suspiro.
— Que história! — diz ele num gemido.
— Ah! — responde a Sra. Giry —, sempre achei que havia segredos entre o fantasma e o Sr. Poligny. Tudo que o fantasma pedia ao Sr. Poligny, o Sr. Poligny concedia... O Sr. Poligny não podia recusar nada ao fantasma.
— Está ouvindo, Richard, Poligny não tinha nada a recusar ao fantasma.
— Sim, sim, estou ouvindo bem! — declarou Richard. — O Sr. Poligny é amigo do fantasma! E, como a Sra. Giry é amiga do Sr. Poligny, chegamos ao ponto — acrescentou ele num tom bem rude. — Mas, a mim, o Sr. Poligny não preocupa... A única pessoa cuja sorte me interessa de fato, eu não escondo isso, é a Sra. Giry!... Sra. Giry, sabe o que está dentro desse envelope?
— Por Deus, não! — disse ela.
— Pois bem, olhe!
A Sra. Giry lançou para dentro do envelope um olhar turvo, mas que logo recuperou o brilho.
— Notas de mil francos! — exclamou.
— Sim, Sra. Giry!... isso mesmo, notas de mil!... E a senhora bem que já sabia!
— Eu, não, senhor diretor... Eu! eu lhe juro...
— Não jure, Sra. Giry!... E agora vou lhe dizer aquela outra coisa pela qual a fiz vir aqui... Sra. Giry, eu vou mandar prendê-la.
As duas plumas pretas do chapéu cor de picumã, que normalmente exibiam a forma de dois pontos de interrogação, transformaram-se imediatamente em ponto de exclamação; Quanto ao próprio chapéu, oscilou, ameaçador, sobre o seu birote em tempestade. A surpresa, a indignação, o protesto e o espanto se traduziram ainda na mãe da pequena Meg por uma espécie de pirueta extravagante, passo de jeté glissade da virtude ofendida, que a levou de um salto até debaixo do nariz do diretor, que não pôde evitar de recuar em sua poltrona.
— Me mandar prender!
A boca que dizia isso parecia que ia cuspir no rosto do Sr. Richard os três dentes de que ainda dispunha.
O Sr. Richard foi heróico. Recuou mais. O seu indicador já apontava, ameaçador, aos magistrados ausentes, a lanterninha do camarote nº 5.
— Vou mandar prendê-la, Sra. Giry, como ladra!
— Repita!
E a Sra. Giry esbofeteou com toda força o diretor Richard antes que o diretor Moncharmin tivesse tempo de se interpor. Resposta vingadora! Não foi a mão ressequida da velha colérica que veio se abater sobre a bochecha diretorial, mas o próprio envelope, causa de todo o escândalo, o envelope mágico que se entreabriu com o golpe para deixar escapar as notas que saíram voando num giro de borboletas gigantes.
Os dois diretores lançaram um grito e um mesmo pensamento os lançou a ambos de joelhos, recolhendo febrilmente e compulsando às pressas a preciosa papelada.
— Elas continuam verdadeiras?, Moncharmin.
— Elas continuam verdadeiras?, Richard.
— Elas continuam verdadeiras!
Acima deles, os três dentes da Sra. Giry se chocam numa confusão ressonante, cheia de horríveis interjeições. Mas só se percebe bem o leitmotiv:
— Eu, ladra!... Ladra, eu!... Fica sufocada.
Exclama:
— Estou arrasada!
E, de repente, salta de novo para debaixo do nariz de Richard.
— Em todo caso — rosnou a velha —, o senhor, Sr. Richard, deve saber melhor do que eu aonde foram parar os 20 mil francos!
— Eu? — perguntou Richard estupefato. — Como poderia saber?
Logo Moncharmin, severo e preocupado, quer que a mulher se explique.
— O que significa isso? — interroga. — E por que, Sra. Giry, está insinuando que o Sr. Richard deve saber melhor do que a senhora aonde foram parar os 20 mil francos?
Quanto a Richard, que sente estar ficando vermelho sob o olhar de Moncharmin, toma a mão da Sra. Giry e a sacode com violência. A voz dele imita o trovão. Troveja, rola... fulmina...
— Por que saberia eu melhor do que a senhora aonde foram parar os 20 mil francos? por quê?
— Porque foram parar no seu bolso!... — revela a velha, agora com um olhar de quem estivesse vendo o diabo.
E a vez do Sr. Richard ficar fulminado, primeiro por essa réplica inesperada, depois pelo olhar cada vez mais desconfiado de Moncharmin. Com isso, ele perde a força de que precisaria para rechaçar tão desprezível acusação.
Assim, os mais inocentes, surpreendidos na paz de seu coração, aparentam, de repente, por causa do golpe que os fere, os faz empalidecer, ou corar, ou fraquejar, ou se levantar, ou se aniquilar, ou protestar, ou não dizer nada quando seria preciso falar, ou falar quando seria preciso não dizer nada, ou ficar secos quando seria preciso enxugar o suor, ou suar quando seria preciso ficar secos, aparentam de repente, dizia eu, ser culpados.
Moncharmin interrompeu o ímpeto vingador com que Richard, que estava inocente, ia se precipitar sobre a Sra. Giry, e logo decide, encorajador, interrogá-la... com brandura.
— Como pôde a senhora suspeitar de que o meu colaborador Richard tenha botado no bolso os 20 mil francos?
— Eu nunca disse isso! — declara a Sra. Giry —, visto que fui eu mesma, em pessoa, quem colocou os 20 mil francos no bolso do Sr. Richard. — E acrescenta a meia-voz: — Azar meu! Está feito!... Que o fantasma me perdoe!
E como Richard se pusesse a berrar, Moncharmin, com autoridade, ordena-lhe que se cale:
— Com sua licença! Com sua licença! Deixe essa mulher se explicar! Deixe-me interrogá-la.
E acrescenta:
— E realmente estranho que você encare a coisa num tom assim!... Estamos chegando ao momento em que todo esse mistério vai se esclarecer! Você está furioso! Você está errado... Eu estou me divertindo bastante.
A Sra. Giry, mártir, levanta a cabeça em que brilha a fé em sua inocência.
— O senhor está dizendo que tinha 20 mil francos no envelope que eu coloquei no bolso do Sr. Richard, mas, repito, eu não sabia... Nem tampouco o Sr. Richard, aliás!
— Ah! ah! — fez Richard, afetando de repente um ar de bravura que desagradou a Moncharmin. — Eu também não sabia de nada! A senhora colocava 20 mil francos no meu bolso e eu não sabia de nada! Fico muito contente, Sra. Giry.
— Sim — aquiesceu a terrível senhora —, é verdade!... Nós não sabíamos de nada, nem um nem outro!... Mas o senhor, afinal, deve ter acabado por ficar sabendo.
Richard certamente devoraria a Sra. Giry se Moncharmin não estivesse presente! Mas Moncharmin a protege. Precipita o interrogatório.
— Que espécie de envelope a senhora colocou no bolso do Sr. Richard? Não foi aquele que nós lhe tínhamos dado, aquele que a senhora ia levar, diante de nós, ao camarote nº 5, e só aquele, no entanto, é que continha os 20 mil francos!
— Perdão! Era mesmo aquele que me foi dado pelo senhor diretor que eu enfiei no bolso do senhor diretor — explica a Sra. Giry. — Quanto àquele que eu coloquei no camarote do fantasma, era outro envelope exatamente igual, que eu tinha, já preparado, na minha manga, e que me havia sido dado pelo fantasma!
Ao dizer isso, a Sra. Giry tira da manga um envelope já preparado e idêntico, com o respectivo sobrescrito, ao que contém os 20 mil francos. Os diretores se apossam dele. Examinam-no, constatam que está fechado com lacres selados com o seu próprio sinete diretorial. Abrem... Ele contém 20 notas da “Santa Farsa . como aquelas que os tinham deixado tão estupefatos um mês antes.
— Como é simples! — exclama Richard.
— Como é simples! — repete mais solenemente do que nunca Moncharmin.
— Os golpes mais famosos — responde Richard — sempre foram os mais simples! Basta ter um comparsa...
— Ou uma comparsa! — acrescenta com voz pálida Moncharmin.
E continua, com os olhos fixos na Sra. Giry, como se quisesse hipnotizá-la:
— Era mesmo o fantasma que fazia chegar até a senhora o tal envelope e era mesmo ele que lhe dizia para substituir por este o que nós lhe entregávamos?
— Oh! era ele mesmo!
— Então a senhora poderia mostrar-nos uma amostra dos seus pequenos talentos?... Aqui está o envelope. Faça como se nós não soubéssemos de nada.
— Às suas ordens, meus senhores!
A Sra. Giry tomou do envelope recheado com as notas e se dirigiu para a porta. Está prestes a sair. Os dois diretores caem sobre ela.
— Ah! não! Ah! não! Não vão nos aplicar o mesmo golpe! Já basta! Não vamos recomeçar!
— Perdão, meus senhores — desculpa-se a velha —, perdão... Os senhores disseram para fazer como se não soubessem de nada!... Pois bem, se os senhores não soubessem de nada, eu iria embora com o seu envelope!
— E então, como é que a senhora o enfiaria no meu bolso? — pergunta Richard, a quem Moncharmin segue de perto com o olho esquerdo enquanto o olho direito está todo ocupado com a Sra. Giry. Aquela era uma posição difícil para o olhar; mas Moncharmin está decidido a tudo para descobrir a verdade.
— Tenho de enfiá-lo no seu bolso no momento em que o senhor menos espera, senhor diretor. O senhor sabe que sempre vou durante a noite, dar uma voltinha pelos bastidores, e muitas vezes acompanho, como é de meu direito de mãe, a minha filha ao pavilhão da dança; carrego para ela as sapatilhas, no momento do divertimento, e até o seu esborrifadorzinho... Em resumo, vou e venho à vontade... Os assinantes também... O senhor também, senhor diretor... Tem muita gente... Passo por trás do senhor e escorrego o envelope no bolso de trás... Isso não é bruxaria!
— Isso não é bruxaria — repete Richard com voz de trovão, rolando olhos de Júpiter tonitruante —, isso não é feitiçaria! Mas eu a estou pegando em flagrante delito de mentira, velha feiticeira!
O insulto atinge menos a honrada senhora do que o golpe que estão querendo aplicar à sua boa fé. Ela se levanta, hirsuta, com os três dentes para fora.
— Por causa?
— Por causa de que aquela noite eu fiquei na sala vigiando o camarote nº 5 e o envelope falso que a senhora tinha colocado lá. Não desci nem por um segundo ao pavilhão da dança...
— Também, senhor diretor, não foi naquela noite que eu lhe passei o envelope!... Mas na representação seguinte... E, foi na noite em que o subsecretário de Estado das Belas-Artes...
A essas palavras, Richard interrompe bruscamente a Sra. Giry.
— Ah! é verdade — diz ele, pensativo —, eu me lembro... eu me lembro agora! O senhor subsecretário de Estado foi até os bastidores. Ele procurou por mim. Desci um instante ao pavilhão da dança. Eu estava nos degraus do pavilhão... O subsecretário de Estado e o seu chefe de gabinete estavam no pavilhão mesmo... De repente, virei para trás... era a senhora que estava passando atrás de mim... Sra. Giry... Pareceu-me que a senhora raspou em mim.. Só havia a senhora atrás de mim... Oh! ainda a estou vendo... ainda a estou vendo!
— Pois bem, senhor diretor, é isso mesmo! Eu tinha acabado de fazer o meu trabalhinho no seu bolso! Aquele bolso é muito cômodo!
E uma vez mais a Sra. Giry acrescenta o gesto à palavra. Passa por trás do Sr. Richard e, tão rapidamente que o próprio Moncharmin, que agora está olhando para ela com os dois olhos, fica impressionado, ela enfia o envelope no bolso de uma das abas do fraque do diretor.
— Evidentemente! — exclama Richard, pálido. — É um pouco forte da parte do F. da Ó. O problema, para ele, colocava-se assim: suprimir qualquer intermediário perigoso entre quem dá os 20 mil francos e o que os pega! Não podia encontrar nada melhor do que vir pegá-los no meu bolso sem que eu notasse, visto que eu nem mesmo sabia que ele estava lá... E admirável!
— Oh! admirável! sem dúvida — reforça Moncharmin —, só que, Richard, você está se esquecendo de que desses 20 mil francos eu dei 10 mil, e, no meu bolso, não puseram nada!
CONTINUAÇÃO DA CURIOSA ATITUDE DE UM ALFINETE DE PRESSÃO
A última frase de Moncharmin exprimia de modo demasiado evidente a suspeita em que mantinha agora o seu colaborador para que daí não resultasse, de imediato, uma explicação tempestuosa, ao fim da qual ficou entendido que Richard iria se dobrar a todas as vontades de Moncharmin com o fito de ajudá-lo a descobrir o miserável que os estava ludibriando.
Assim, chegamos ao “entreato do jardim” durante o qual o secretário Rémy, a quem nada escapa, fez tão curiosa observação sobre o comportamento dos diretores e, a partir daí, nada nos será mais fácil do que encontrar uma razão para atitudes tão excepcionalmente barrocas e principalmente tão pouco conformes com a idéia que se deve ter da dignidade diretorial.
O comportamento de Richard e de Moncharmin estava todo traçado pela revelação que acabava de lhes ser feita: 1º Richard devia repetir exatamente, naquela noite, os gestos que tinha feito quando do desaparecimento dos primeiros 20 mil francos; 2º Moncharmin não devia perder de vista, por um segundo sequer, o bolso de trás de Richard, no qual a Sra. Giry teria colocado os segundos 20 mil.
No lugar exato em que se encontrava quando cumprimentou o subsecretário de Estado das Belas-Artes veio colocar-se Richard, tendo às suas costas, a alguns passos, Moncharmin.
A Sra. Giry passa, esbarra em Richard, livra-se dos 20 mil no bolso da aba do diretor e desaparece...
Ou melhor, fazem com que ela desapareça. Em cumprimento à ordem que Moncharmin lhe havia dado fazia alguns instantes, antes da reconstituição da cena, Mercier vai trancar a boa senhora no gabinete da administração. Assim, será impossível à velha comunicar-se com o seu fantasma. E ela não opôs resistência, porque a Sra. Giry não é mais do que uma pobre figura desplumada, perdida de espanto, abrindo olhos de galinha apavorada sob uma crista em desordem, ouvindo o delegado que a ameaça e soltando suspiros capazes de rachar as colunas da grande escadaria.
Durante esse tempo, Richard se curva, faz uma reverência, saúda, anda para trás como se tivesse diante dele aquele alto e onipotente funcionário que é o Sr. subsecretário de Estado das Belas-Artes.
Só que, se semelhantes provas de cortesia não teriam provocado nenhum espanto caso diante do diretor estivesse o Sr. subsecretário de Estado, provocaram nos espectadores dessa cena tão natural, mas inexplicável, uma estupefação bem compreensível quando não havia ninguém diante do diretor.
Richard cumprimentava no vazio... curvava-se diante do nada... e recuava... andava para trás... diante de nada...
... Enfim, a alguns passos dali, Moncharmin fazia a mesma coisa que ele.
... E, afastando o Sr. Rémy, suplicava ao embaixador de La Broderie e ao diretor do Crédito Central que “não tocassem no senhor diretor”.
Moncharmin, que tinha a sua idéia, não queria que daí a pouco, desaparecidos os 20 mil francos, Richard viesse lhe dizer: “Foi talvez o Sr. embaixador ou o Sr. diretor do Crédito Central, ou mesmo o Sr. secretário Rémy.”
Tanto mais que, quando da primeira cena, conforme a confissão do próprio Richard, este não tinha encontrado ninguém, depois de ter tido o esbarrão da Sra. Giry, naquela parte do teatro... Por que então, pergunto, já que os mesmos gestos deviam ser repetidos exatamente, ele encontraria alguém hoje?
Tendo inicialmente andado para trás para cumprimentar, Richard continuou andando desse modo por prudência... até o corredor da administração. Assim, continuava sendo vigiado por trás por Moncharmin e ele próprio também vigiava “quem se aproximava” pela frente.
Mais uma vez, essa maneira toda nova de passear pelos bastidores adotada pelos diretores da Academia Nacional de Música não devia, evidentemente, passar despercebida.
Foram notados.
Felizmente para Richard e Moncharmin, no momento dessa tão curiosa cena, os “ratinhos” estavam quase todos no sótão. Pois os diretores teriam feito sucesso junto às mocinhas.
... Mas eles só pensavam nos seus 20 mil francos.
Chegando ao corredor meio escuro da administração, Richard disse em voz baixa a Moncharmin:
— Estou certo de que ninguém tocou em mim... agora você vai ficar mais afastado de mim e me vigiar na obscuridade até a porta do meu gabinete... não devemos chamar a atenção de ninguém e veremos o que vai acontecer.
Mas Moncharmin replica:
— Não, Richard!... Vá à frente... eu vou imediatamente atrás! Não fico nem um passo longe de você!
— Mas assim nunca poderão nos roubar os 20 mil francos!
— É o que espero! — declara Moncharmin.
— Então, o que estamos fazendo é um absurdo!
— Fazemos exatamente o que fizemos na última vez... Na última vez, juntei-me a você na saída do tablado, no canto deste corredor... e segui grudado às suas costas.
— De fato é verdade! — suspira Richard, sacudindo a cabeça e obedecendo passivamente a Moncharmin.
Dois minutos mais tarde os dois diretores se fechavam no seu gabinete.
Foi o próprio Moncharmin quem colocou a chave no bolso.
— Ficamos assim os dois fechados na última vez, até o momento em que você saiu da Ópera para voltar para casa.
— É verdade! E ninguém veio nos perturbar?
— Ninguém.
— Então — interrogou Richard que se esforçava por juntar as suas lembranças —, então terei sido roubado certamente no trajeto entre a Ópera e a minha residência...
— Não! — disse Moncharmin, num tom mais seco do que nunca... — Não... isso não teria sido possível... Fui eu quem levou você para casa em meu carro. Os 20 mil francos desapareceram na sua casa, isso, para mim, não deixa a menor dúvida.
Era essa a idéia que Moncharmin tinha agora.
— Isso é inacreditável! — protestou Richard. — E, se um dos dois tivesse dado o golpe, teria desaparecido em seguida.
Moncharmin ergueu os ombros, parecendo dizer que não entrava nesses detalhes.
A essa altura, Richard começa a achar que Moncharmin o está tratando num tom insuportável.
— Moncharmin, agora chega!
— Richard, agora é demais!
— Você tem coragem de desconfiar de mim?
— Sim, desconfio de uma brincadeira deplorável!
— A gente não brinca com 20 mil francos!
— É o que eu penso! — declara Moncharmin, desdobrando um jornal em cuja leitura mergulha com ostentação.
— O que é que você vai fazer? — pergunta Richard. — Você vai ler o jornal agora!
— Vou, Richard, até a hora de levar você para casa.
— Como da última vez?
— Como da última vez.
Richard arranca o jornal das mãos de Moncharmin. Moncharmin se levanta, mais irritado do que nunca. Encontra diante de si um Richard exasperado que lhe diz, cruzando os braços sobre o peito, gesto de desafio insolente desde o começo do mundo:
— Veja, estou pensando no seguinte. Estou pensando no que eu poderia pensar se, como na última vez, depois de passar boa parte da noite na sua companhia, você me levasse para casa, e se, no momento de nos separar, eu constatasse que os 20 mil francos tinham desaparecido do meu bolso... como na última vez.
— E o que é que você poderia pensar? — exclamou Moncharmin, enrubescido.
— Eu poderia pensar que, já que você não me largou um nadinha, e que, conforme seu desejo, foi o único a se aproximar de mim como na última vez, eu poderia pensar que, se esses 20 mil francos não estiverem mais no meu bolso, eles têm muitas possibilidades de estar no seu!
Moncharmin deu um salto diante dessa hipótese.
— Oh!— gritou —, um alfinete de pressão!
— O que é que você quer fazer com um alfinete de pressão?
— Prender você!... Um alfinete de pressão!... um alfinete de pressão!
— Você quer me prender com um alfinete de pressão?
— Sim, prender você com os 20 mil francos!... Assim, seja aqui, seja no trajeto daqui à sua residência ou em sua casa, você sentirá seguramente a mão que puxar o seu bolso... e você verá se é a minha, Richard!... Ah! é você que está desconfiando de mim agora... Um alfinete de pressão!
E foi nesse momento que Moncharmin abriu a porta do corredor gritando:
— Um alfinete de pressão! Quem me arranja um alfinete de pressão?
E já sabemos como, no mesmo instante, o secretário Rémy, que não tinha alfinete de pressão, foi recebido pelo diretor Moncharmin, enquanto um servente do escritório providenciava o alfinete tão desejado.
E eis o que aconteceu a seguir:
Moncharmin, depois de ter fechado a porta, ajoelhou-se às costas de Richard.
— Espero — disse — que os 20 mil francos estejam sempre aí.
— Eu também — acrescentou Richard.
— Os verdadeiros? — perguntou Moncharmin, que desta vez estava bem decidido a não se deixar enganar.
— Verifique! Eu, nem quero tocar neles — declarou Richard. Moncharmin retirou o envelope do bolso de Richard e tirou as notas a tremer, pois desta vez, para poder verificar com freqüência a presença das notas, eles não tinham lacrado e nem mesmo colado o envelope. Tranqüilizou-se ao verificar que as notas estavam todas lá, bem autênticas. Reuniu-as no bolso da aba e alfinetou-as com cuidado.
Depois do que sentou-se atrás da aba para a qual ficou olhando o tempo todo, enquanto Richard, sentado à escrivaninha, não fazia nenhum movimento.
— Um pouco de paciência, Richard — aconselhou Moncharmin —, só temos de agüentar mais alguns minutos... Logo o relógio vai dar as doze badaladas da meia-noite. Foi às doze pancadas que saímos da última vez.
— Oh! terei toda a paciência que for preciso!
A hora passava, lenta, pesada, misteriosa, sufocante. Richard tentou rir.
— Vou acabar acreditando na onipotência do fantasma. E neste momento, particularmente, você não acha que tem, na atmosfera desta sala, um não sei quê que preocupa, que indispõe, que assusta?
— É verdade — confessou Moncharmin, que estava realmente impressionado.
— O fantasma! — retomou Richard em voz baixa e como que temendo ser ouvido por ouvidos invisíveis... — o fantasma! se afinal de contas fosse o fantasma quem deu agora há pouco as três pancadas secas sobre esta mesa, que ouvimos muito bem... que coloca sobre ela os envelopes mágicos... que fala no camarote nº 5... que mata Joseph Buquet... que solta o lustre... e que nos rouba! pois afinal só estamos aqui você e eu!... e se as notas desaparecerem sem que façamos nada para isso, nem você, nem eu... vamos ter de acreditar no fantasma...
Nesse momento, o relógio sobre a lareira fez ouvir o seu disparo e a primeira badalada da meia-noite soou.
Os dois diretores estremeceram. Uma angústia os apertava, de que não sabiam dizer a causa e que em vão procuravam combater. O suor escorria em suas frontes. E a décima segunda pancada ressoou singularmente em seus ouvidos.
Quando o relógio se calou, soltaram um suspiro e se levantaram.
— Acho que podemos ir embora — disse Moncharmin.
— Eu também acho — concordou Richard.
— Antes de sairmos, você permite que olhe no seu bolso?
— Mas como, Moncharmin! E necessário?
— E então? — perguntou Richard a Moncharmin que lhe apalpava o bolso.
— Pois bem, continuo sentindo o alfinete.
— Evidentemente, como você dizia muito bem, não podem me roubar sem que eu perceba.
Mas Moncharmin, cujas mãos continuavam ocupadas ao redor do bolso, berrou:
— Continuo sentindo o alfinete, mas não estou mais sentindo as notas.
— Não... não faça piada, Moncharmin!... Não é o momento.
— Então apalpe você mesmo.
Com um gesto, Richard se desfez da casaca. Os dois diretores puxam o bolso!... O bolso está vazio.
O mais curioso é que o alfinete continuava fincado no mesmo lugar.
Richard e Moncharmin empalideceram. Não se podia mais duvidar do sortilégio.
— O fantasma — murmura Moncharmin. Mas Richard saltou de repente sobre o colega:
— Só teve você que mexeu no meu bolso!... Devolva os meus 20 mil francos!... Me devolva os meus 20 mil francos!...
— Pela minha alma — suspira Moncharmin que parece prestes a desmaiar —, eu lhe juro que não estou com eles...
E, como estavam batendo de novo à porta, foi abri-la, caminhando com um andar quase automático, parecendo mal reconhecer o administrador Mercier, não entendendo nada do que o outro lhe dizia; e depositando, num gesto inconsciente, na mão daquele fiel servidor completamente atônito, o alfinete de pressão que já não lhe podia mais servir para nada...
O DELEGADO DE POLÍCIA, O VISCONDE E O PERSA
A primeira palavra do delegado de polícia, ao penetrar no gabinete dos diretores, foi para pedir notícias da cantora.
— Christine Daaé não está aqui?
Ele vinha seguido, como já disse, de uma multidão compacta.
— Christine Daaé? Não — respondeu Richard —, por quê? Quanto a Moncharmin, não tem mais forças para pronunciar uma palavra sequer... O seu estado de espírito é muito mais grave do que o de Richard, pois Richard pode ainda desconfiar de Moncharmin, mas Moncharmin, não, ele se encontra diante do grande mistério... aquele mistério que faz tremer a humanidade desde a sua origem: o Desconhecido.
Richard retomou, pois a multidão ao redor dos diretores e do delegado guardava um silêncio impressionante:
— Por que me pergunta, senhor delegado, se Christine Daaé está aqui?
— Porque é preciso encontrá-la, senhores diretores da Academia Nacional de Música — declara solenemente o delegado de polícia.
— Então ela desapareceu?!
— Em plena representação!
— Em plena representação! É extraordinário!
— Não é mesmo? E o que é igualmente extraordinário nesse desaparecimento é que seja eu que lhes esteja dando a informação!
— Realmente... — aquiesce Richard, que segura a cabeça entre as mãos e murmura: — Que nova história é esta? Oh! decididamente, há motivos para se pedir demissão!...
E arranca alguns pêlos do bigode sem se dar conta disso:
— Então — disse ele como em sonho — ela desapareceu em plena representação.
— É, ela foi raptada no ato da prisão, no momento em que invocava a ajuda do Céu, mas duvido que tenha sido raptada pelos anjos.
— Já eu estou certo disso!
Todos se voltam para trás. Um jovem, pálido e trêmulo de emoção, repete:
— Estou certo disso!
— Está certo do quê? — interroga Mifroid.
— De que Christine Daaé foi raptada por um anjo, senhor delegado, e eu poderia lhe dizer o nome dele...
— Ah! ah! Sr. visconde de Chagny, o senhor está insinuando que a Srta. Christine Daaé foi raptada por um anjo, por um anjo da Ópera, por certo?
Raoul olha ao redor de si. Evidentemente, procura alguém. Nesse minuto em que lhe parece tão necessário chamar para a sua noiva a ajuda da polícia, não seria mau rever aquele misterioso desconhecido que, há pouco, lhe recomendou discrição. Mas não o viu em parte alguma. Vamos! é necessário que ele fale!... Mas ele não saberia se explicar diante daquela multidão que o encara com curiosidade indiscreta.
— Sim, senhor, por um anjo da Ópera — respondeu a Mifroid —, e lhe direi onde ele mora quando estivermos a sós...
— O senhor tem razão.
E o delegado, mandando Raoul sentar-se junto de si, põe todo mundo para fora, exceto, naturalmente, os diretores que, no entanto, não teriam protestado, a tal ponto pareciam estar acima de todas as contingências.
Então Raoul se decide:
— Senhor delegado, esse anjo se chama Erik, mora na Ópera e é o Anjo da música!
— O Anjo da música! Na verdade, aí está algo muito curioso!... O Anjo da música!
E, voltando-se para os diretores, o delegado Mifroid pergunta:
— Senhores, os senhores têm esse anjo em sua instituição? Richard e Moncharmin balançaram a cabeça sem nem mesmo sorrir.
— Oh! esses senhores bem que ouviram falar do fantasma da Ópera. Pois bem, eu posso lhes afirmar que o fantasma da Ópera e o Anjo da música são a mesma coisa. E o seu verdadeiro nome é Erik.
Mifroid se levantara e olhava para Raoul com atenção.
— Perdão, meu senhor, acaso o senhor tem a intenção de zombar da Justiça?
— Eu? — protestou Raoul, que pensou dolorosamente: “Mais um que não vai querer me ouvir”.
— Então, que história é essa que está me contando sobre o seu fantasma da Ópera?
— Estou dizendo que esses senhores já ouviram falar dele.
— Senhores, parece que os senhores conhecem o fantasma da Ópera?
Richard levantou-se, com os últimos pêlos do bigode na mão.
— Não, senhor delegado, nós não o conhecemos! Mas gostaríamos muito de conhecê-lo, porque, ainda esta noite, ele nos roubou 20 mil francos!...
E Richard lançou em direção de Moncharmin um olhar que parecia dizer: “Devolva-me os 20 mil francos ou eu conto tudo”. Moncharmin entendeu-o tão bem que disse com um gesto desvairado: “Ah! conte tudo! conte tudo!...”
Quanto a Mifroid, olhava alternadamente para os diretores e para Raoul e se perguntava se não estava perdido num asilo de alienados. Passou a mão pelos cabelos:
— Um fantasma que, na mesma noite, rapta uma cantora e rouba 20 mil francos é um fantasma bastante atarefado! Se os senhores concordarem, vamos seriar as perguntas. A cantora primeiro, os 20 mil francos depois! Vejamos, Sr. De Chagny, tentemos falar seriamente. O senhor acredita que a Srta. Christine Daaé foi raptada por um indivíduo chamado Erik. O senhor então conhece esse indivíduo? O senhor o viu?
— Vi, senhor delegado.
— Onde isso?
— Num cemitério.
Mifroid teve um sobressalto, voltou a contemplar Raoul e disse:
— Evidentemente!... É geralmente nesse lugar que se encontram os fantasmas. E o que fazia o senhor nesse cemitério?
— Senhor — disse Raoul —, eu tenho consciência da esquisitice das minhas respostas e do efeito que elas produzem no senhor. Mas lhe suplico que acredite que estou em pleno gozo de minha razão. Disso depende a salvação da pessoa que mais me é cara neste mundo, juntamente com o meu irmão bem-amado Philippe. Quisera convencer o senhor em poucas palavras, pois o tempo urge e os minutos são preciosos. Infelizmente, se não lhe conto a mais estranha das histórias desde o início, não vai acreditar em mim. Vou lhe dizer, senhor delegado, tudo que sei sobre o fantasma da Ópera. Infelizmente, senhor delegado, não sei grande coisa...
— Diga assim mesmo! Diga assim mesmo! — exclamaram Richard e Moncharmin, subitamente muito interessados; infelizmente, para a esperança que tinham esboçado um instante de ficar sabendo de algum detalhe capaz de colocá-los na pista do seu mistificador, tiveram que render-se à triste evidência de que Raoul de Chagny tinha perdido completamente a razão. Toda aquela história de Perros-Guirec, de caveiras, de violino encantado não podia ter nascido senão no cérebro desajustado de um apaixonado.
Era visível, aliás, que o delegado Mifroid partilhava cada vez mais com eles essa maneira de ver e, certamente, o magistrado teria posto fim àquelas falas desordenadas de que demos um resumo na primeira parte desta narrativa se as próprias circunstâncias não se tivessem encarregado de as interromper.
A porta acabava de se abrir e um indivíduo singularmente vestido com uma vasta casaca preta e com uma cartola na cabeça ao mesmo tempo gasta e luzidia, que lhe chegava até as orelhas, adentrou o recinto. Correu para o delegado e falou com ele em voz baixa. Era sem dúvida algum agente da Segurança que vinha prestar contas de uma missão urgente.
Durante esse colóquio, os olhos de Mifroid não saíam de cima de Raoul.
E finalmente, dirigindo-se a ele, disse:
— Senhor visconde, já se falou bastante do fantasma. Vamos falar um pouco do senhor, se não vê inconveniente; o senhor devia raptar, esta noite, a Srta. Christine Daaé?
— Sim, senhor delegado.
— A saída do teatro?
— Sim, senhor delegado.
— Todas as providências tinham sido tomadas para isso?
— Sim, senhor delegado.
— A carruagem que o trouxe devia levá-los. O cocheiro estava avisado... o itinerário fora traçado de antemão... Melhor! Devia encontrar a cada etapa cavalos bem descansados...
— É verdade, senhor delegado.
— E no entanto o seu carro continua lá, à espera de suas ordens, ao lado da Rotunda, não é?
— Sim, senhor delegado.
— O senhor sabia que, ao lado da sua, havia três outras carruagens?
— Não prestei a menor atenção...
— Eram as carruagens da Srta. Sorelli, que não achou lugar no pátio da administração; de Carlotta e do seu irmão, o Sr. conde de Chagny...
— É possível...
— O que é certo, em contrapartida... é que, se a sua própria equipagem, a de Sorelli e a de Carlotta continuam no mesmo lugar, ao longo da calçada da Rotunda, a equipagem do conde de Chagny não se encontra mais lá...
— Isso nada tem a ver com o caso, senhor delegado...
— Perdão! O conde não se tinha oposto ao seu casamento com a Srta. Daaé?
— Isso só diz respeito à minha família.
— O senhor já respondeu... ele tinha-se oposto... e é por isso que o senhor ia raptar Christine Daaé, para longe das possíveis intervenções do seu irmão... Pois bem, Sr. De Chagny, permita-me dizer-lhe que o seu irmão foi mais rápido do que o senhor!... Foi ele quem raptou a Srta. Christine Daaé!
Raoul gemeu, colocando a mão no coração.
— Não é possível... Está certo disso?
— Logo depois do desaparecimento da artista, que foi organizado com a ajuda de cúmplices que ainda estamos por apurar, ele se lançou na carruagem que saiu em corrida desabalada através de Paris.
— Através de Paris? O que é que o senhor entende por “através de Paris”?
— E fora de Paris...
— Fora de Paris... que estrada?
— A estrada de Bruxelas.
Um grito rouco escapou da boca do infeliz rapaz.
— Eu juro que os alcançarei!
E em dois saltos estava fora do gabinete.
— Traga-a de volta para nós — ordenou alegremente o delegado. — Aí está uma pista que vale tanto quanto aquela do Anjo da música!
Dito isso, o Sr. Mifroid se volta para o seu auditório estupefato e lhe administra este pequeno curso de polícia, honesto mas nada pueril:
— Eu absolutamente não sei se foi realmente o conde de Chagny quem raptou Christine Daaé... mas preciso saber, e não creio que, a esta hora, ninguém mais do que o visconde, irmão dele, deseja dar-me essa informação... Neste momento, ele está correndo, voando! E o meu principal auxiliar! Assim é, senhores, a arte, que pensam ser tão complicada, da polícia, e que se mostra no entanto tão simples desde que se descobriu que ela deve consistir em fazer agir essa polícia sobretudo através de pessoas que não pertencem a ela!
Mas o delegado Mifroid não estaria talvez tão contente de si mesmo se soubesse que a corrida de seu veloz mensageiro tinha sido bloqueada logo na entrada deste no primeiro corredor, já vazio da multidão de curiosos que se tinham dispersado. O corredor parecia deserto.
Raoul fora barrado em seu caminho por uma grande sombra.
— Aonde vai com tanta pressa, Sr. De Chagny? — perguntou a sombra.
Raoul, impaciente, levantara a cabeça e reconhecera o boné de astracã que vira apenas alguns minutos atrás. Parou.
— E o senhor! — gritou com voz febril — o senhor que conhece os segredos de Erik e que não quer que eu fale deles. Quem é mesmo o senhor?
— O senhor bem o sabe!... Sou o Persa! — disse a sombra.
O VISCONDE E O PERSA
Raoul lembrou-se então de que seu irmão, numa noite de espetáculo, tinha-lhe mostrado essa vaga personagem sobre a qual tudo se ignorava, uma vez em que se tinha dito só que era um persa e morava num velho apartamento da rua de Rivoli.
O homem de tez de ébano, de olhos de jade, de boné de astracã, inclinou-se para Raoul.
— Espero, Sr. De Chagny, que não tenha traído o segredo de Erik.
— E por que teria eu hesitado em trair aquele monstro, meu senhor? — replicou Raoul com altivez, tentando livrar-se do importuno. — Acaso ele é seu amigo?
— Espero que o senhor nada tenha dito de Erik, meu senhor, porque o segredo de Erik é o de Christine Daaé! E falar de um é falar do outro!
— Oh! senhor! — disse Raoul, cada vez mais impaciente —. o senhor parece estar a par de muitas coisas que me interessam, e no entanto não tenho tempo para ouvi-lo!
— Ainda uma vez, Sr. De Chagny, aonde é que o senhor vai tão às pressas?
— Não adivinha? Em socorro de Christine Daaé...
— Então, meu senhor, permaneça aqui!... pois Christine Daaé está aqui!...
— Com Erik?
— Com Erik!
— Como é que sabe?
— Eu estava na representação, e só existe um Erik no mundo para perpetrar semelhante seqüestro!... — declarou ele com um suspiro profundo. — Reconheci a mão do monstro!...
— Então o conhece?
O Persa não respondeu, mas Raoul ouviu novo suspiro....
— Senhor, ignoro quais são as suas intenções... mas pode fazer alguma coisa por mim?... quero dizer, por Christine Daaé?
— Creio que sim, Sr. De Chagny, e é justamente por isso que o abordei.
— O que é que pode fazer?
— Tentar conduzi-lo para junto dela... e para junto dele!
— Meu senhor, é uma tentativa que já fiz em vão esta noite... mas, se me prestar esse serviço, a minha vida lhe pertence!... Mais uma palavra, senhor: o delegado de polícia acabou de ser informado de que Christine Daaé tinha sido raptada por meu irmão, o conde Philippe...
— Ora! Sr. De Chagny, eu não acredito em nada disso...
— Isso não é possível, não é?
— Não sei se é possível, mas há maneiras de raptar e, que eu saiba, o conde Philippe não trabalha com magia.
— Os seus argumentos são contundentes, senhor, e eu não passo de um louco!... Oh! corramos! corramos! eu faço tudo que o senhor resolver!... Como não acreditaria no senhor se é o único que acredita em mim? Quando é o único que não sorri quando se pronuncia o nome de Erik.
Dizendo isso, o rapaz, cujas mãos ardiam de febre, tomara, num gesto espontâneo, as mãos do Persa. Estavam geladas.
— Silêncio! — ordenou o Persa, parando e escutando os ruídos distantes do teatro e os menores estalidos que se produziam nas paredes e nos corredores vizinhos. — Não pronunciemos mais essa palavra aqui. Digamos: ele; correremos menos riscos de chamar a sua atenção...
— Acha então que ele está bem perto de nós?
— Tudo é possível, meu senhor... se não está, neste momento, com a sua vítima, na morada do Lago.
— Ah! o senhor também conhece aquela morada?
— ... Se não estiver naquela morada, pode estar nesta parede, neste assoalho, neste teto! Sei lá eu?... De olho nessa fechadura!... De ouvido nessa viga!... — E o Persa, pedindo-lhe que não fizesse barulho ao andar, conduziu Raoul por corredores que este nunca tinha visto, mesmo no tempo em que Christine o levava por aquele labirinto.
— Tomara que Darius tenha chegado! — disse o Persa.
— Quem é esse Darius?—interrogou Raoul, sem parar de correr.
— Darius é o meu empregado...
Estavam nesse momento no centro de uma verdadeira praça deserta, cômodo imenso a que mal alumiava o pavio de uma lamparina. O Persa parou Raoul e, baixinho, tão baixinho que Raoul tinha dificuldade para ouvir, perguntou-lhe:
— O que é que o senhor disse ao delegado?
— Disse-lhe que o raptor de Christine Daaé era o Anjo da música, dito o fantasma da Ópera, e que o seu verdadeiro nome era...
— Psiu!... E o delegado acreditou no senhor?
— Não.
— Não deu nenhuma importância ao que o senhor dizia?
— Nenhuma!
— Ele o tomou um pouco por louco?
— Isso.
— Tanto melhor! — suspirou o Persa. E a corrida recomeçou.
Depois de ter subido e descido várias escadarias desconhecidas por Raoul, os dois homens se encontraram ante uma porta que o Persa abriu com uma pequena gazua que tirou de um bolso do colete. O Persa, como Raoul, estava naturalmente em trajes de gala. Só que, enquanto Raoul usava uma cartola, o Persa tinha um boné de astracã, conforme já observei. Era uma agressão ao código de elegância que regula os bastidores em que se exige a cartola, mas fica entendido que na França tudo se permite aos estrangeiros: a casque-te de viagem aos ingleses, o boné de astracã aos persas.
— Meu senhor, a sua cartola vai atrapalhá-lo na expedição que projetamos... Seria melhor deixá-la no camarim.
— Que camarim? — perguntou Raoul.
— O de Christine Daaé, ora!
E o Persa, tendo feito Raoul passar pela porta que acabara de abrir, mostrou-lhe, à frente, o camarim da atriz.
Raoul ignorava que se podia chegar ao camarim de Christine por outro caminho que não fosse aquele que seguia normalmente. Encontrava-se então na extremidade do corredor que de hábito tinha de percorrer todo antes de bater à porta do camarim.
— Oh! o senhor conhece bem a Ópera!
— Não tão bem quanto ele! — disse modestamente o Persa. E empurrou o rapaz para dentro do camarim de Christine. Estava exatamente como Raoul o deixara momentos antes.
O Persa, depois de ter fechado a porta, dirigiu-se rumo ao painel bastante fino que separava o camarim de um imenso quarto de despejo que vinha a seguir. Escutou, depois, com força, tossiu.
Logo ouviu-se que algo se mexia no quarto de despejo e, alguns segundos depois, alguém batia à porta do camarim.
— Entre! — ordenou o Persa.
Entrou um homem, também usando um boné de astracã e vestido com uma longa capa.
Cumprimentou-os e tirou de debaixo do manto uma caixa ricamente cinzelada. Colocou-a sobre a mesa de toalete, cumprimentou-os de novo e dirigiu-se para a porta.
— Ninguém viu você entrar, Darius?
— Não, meu amo.
— Que ninguém o veja sair.
O empregado arriscou uma olhadela no corredor e rapidamente desapareceu.
— Senhor, podem muito bem surpreender-nos aqui, e isso, evidentemente, nos atrapalharia. O delegado não vai demorar para vir inspecionar este camarim.
— Ora! não é o delegado que devemos temer.
O Persa tinha aberto a caixa. Havia ali um par de pistolas longas, com um desenho e um ornamento magníficos.
— Logo após o seqüestro de Christine Daaé, mandei avisar o meu empregado para me trazer estas armas, meu senhor. Conheço-as há muito tempo; não existem mais seguras.
— O senhor quer duelar com alguém? — interrogou o rapaz, surpreso com a chegada daquele arsenal.
— E mesmo para um duelo que nós estamos indo, senhor — respondeu o outro, examinando a espoleta de suas pistolas. — E que duelo!
Dito isso, estendeu uma pistola a Raoul e lhe disse ainda:
— Nesse duelo, seremos dois contra um; mas esteja pronto para tudo, senhor, pois não lhe escondo que vamos lidar com o mais terrível adversário que se possa imaginar. Mas o senhor ama Christine Daaé, não é?
— Se a amo! Mas o senhor, que não a ama, poderia explicar-me por que se prontifica em arriscar a vida por ela!... Por certo odeia Erik!
— Não, meu senhor — disse tristemente o Persa —, não o odeio. Se o odiasse, há muito tempo que ele já não faria mal a ninguém.
— Ele lhe fez mal?
— O mal que ele fez a mim, já lhe perdoei.
— É absolutamente extraordinário ouvi-lo falar daquele homem! Trata-o de monstro, fala dos seus crimes, ele lhe fez mal e reencontro no senhor aquela piedade inaudita que me desesperava na própria Christine!...
O Persa não respondeu. Tinha ido pegar um tamborete e o encostara à parede oposta ao grande espelho que ocupava toda a parede à frente. Depois subira no tamborete e, com o nariz no papel que cobria a parede, parecia procurar alguma coisa.
— E então, senhor! — disse Raoul que fervia de impaciência. — Estou esperando. Vamos!
— Vamos aonde? — perguntou o outro sem virar a cabeça.
— Ao encontro do monstro, ora! Vamos descer! Não me disse que tinha os meios para isso?
— Estou procurando.
E o nariz do Persa passeou ainda por toda a extensão da parede.
— Ah! — disse de repente o homem do boné — é aqui! — E o seu dedo, acima da cabeça, apertou um canto do desenho do papel.
Depois se virou e pulou de cima do tamborete.
— Dentro de meio minuto estaremos no caminho dele!
E, atravessando todo o camarim, foi apalpar o grande espelho.
— Não! ainda não está cedendo — murmurou.
— Oh! Vamos sair pelo espelho? — perguntou Raoul. — Como Christine!...
— Então o senhor sabia que Christine Daaé tinha saído por este espelho?
— Diante de mim, meu senhor!... Eu estava escondido ali, atrás da cortina do banheiro e a vi desaparecer, não pelo espelho, mas no espelho!
— E o que é que o senhor fez?
— Acreditei que se tratava de uma aberração dos meus sentidos! da loucura! de um sonho!
— De alguma nova fantasia do fantasma... Ah! Sr. De Chagny, praza aos Céus que estivéssemos mesmo lidando com um fantasma! Poderíamos deixar na caixa o par de pistolas!... Coloque o seu chapéu, por favor, ali... e agora feche a sua casaca o mais que puder sobre o peitilho... como eu... desdobre a gola, levante o colarinho... devemos ficar o mais invisível possível... — instruiu o Persa, sempre com a mão no espelho.
Acrescentou ainda, depois de um curto silêncio, e forçando o espelho:
— O movimento do contrapeso, quando se age sobre a mola no interior do camarim, demora um pouco para disparar. Não é a mesma coisa quando se está atrás da parede e se pode agir diretamente sobre o contrapeso. Nesse caso, o espelho gira, instantaneamente, e é carregado numa rapidez louca...
— Que contrapeso? — perguntou Raoul.
— Ora, o que faz levantar todo esse painel de parede sobre o seu eixo! Você não está pensando que ele se desloca sozinho, por encanto!
E o Persa, puxando com uma mão Raoul contra si, continuava a empurrar o espelho com a outra (com a que segurava a pistola).
— O senhor vai ver daqui a pouco, se prestar atenção, o espelho se levantar alguns milímetros e depois deslocar-se também alguns milímetros da esquerda para a direita. Estará então sobre um eixo e girará. Nunca se saberá o que se pode fazer com um contrapeso! Uma criança pode, com o dedinho, fazer girar uma casa... quando um painel de parede, por mais pesado que seja, é balanceado por um contrapeso sobre o seu eixo, bem equilibrado, não pesa mais do que um pião sobre a sua ponta.
— Essa coisa não quer girar! — disse Raoul, impaciente.
— Espere um pouco! Terá tempo para se impacientar, meu senhor! O mecanismo, evidentemente, está enferrujado ou a mola não está funcionando mais.
A fronte do Persa demonstrou preocupação.
— Além disso — disse —, pode acontecer outra coisa.
— O quê, meu senhor?
— Talvez ele tenha simplesmente cortado a corda do contrapeso e imobilizado todo o sistema...
— Por quê? Ele não ignora que vamos descer por aqui?
— Talvez ele desconfie, pois sabe que conheço o sistema.
— Foi ele quem lhe mostrou?
— Não! andei procurando por ele, atrás dos seus desaparecimentos misteriosos, e achei. Oh! é o mais simples dos sistemas de portas secretas! É um mecanismo tão antigo como os palácios sagrados de Tebas com suas cem portas, como a sala do trono de Ecbatane, como a sala do tripé de Delfos.
— Essa coisa não gira!... E Christine, senhor!... Christine!... O Persa disse com frieza:
— Faremos tudo que for humanamente possível!... mas ele. ele pode nos bloquear logo nos primeiros passos!
— Então ele é dono e senhor destas paredes?
— Ele manda nas paredes, nas portas, nos alçapões. Entre nós, chamamo-lo com um nome que significa o amador de alçapões.
— E assim mesmo que Christine me falava dele... com o mesmo mistério e atribuindo-lhe o mesmo temível poder... Mas tudo isso me parece bem extraordinário!... Por que estas paredes obedecem só a ele? Ele as construiu?
— Sim, senhor!
E como Raoul olhava para ele, atônito, o Persa lhe fez sinal para se calar, depois, com um gesto, mostrou-lhe o espelho... Foi como um reflexo trêmulo. A dupla imagem deles se turvou como no arrepio de uma água, e a seguir tudo voltou a ficar imóvel.
— O senhor viu bem que isso não gira! Tomemos outro caminho!
— Esta noite, não há outros! — declarou o Persa, com voz singularmente lúgubre... — E agora, atenção! e fique pronto para atirar!
Ele mesmo levantou a pistola na frente do espelho. Raoul imitou o gesto. O Persa, com o braço que ficara livre, puxou o rapaz para junto do peito, e de repente o espelho girou num ofuscamento, num cruzar obcecante de fogos; girou tal como uma dessas portas rolantes com compartimentos que dão acesso agora às salas públicas... girou, carregando Raoul e o Persa em seu movimento irresistível e jogando-os bruscamente da plena luz para a mais profunda escuridão.
NOS SUBTERRÂNEOS DA ÓPERA
— Mão erguida, pronta para atirar! — repetiu apressado o companheiro de Raoul.
Atrás deles, a parede, continuando a dar uma volta completa sobre si mesma, voltara a fechar-se.
Os dois homens ficaram imóveis por alguns instantes, segurando a respiração.
Naquelas trevas reinava um silêncio que nada vinha perturbar.
Finalmente, o Persa decidiu-se a fazer um movimento e Raoul ouviu-o escorregar de joelhos, procurando alguma coisa na noite, com as mãos tateantes.
Súbito, diante do rapaz, as trevas se aclararam prudentemente à chama de uma lanterninha de furta-fogo, e Raoul deu um recuo instintivo como para escapar à investigação de um inimigo secreto.
Mas logo entendeu que aquele fogo pertencia ao Persa, de quem seguia todos os gestos. O pequeno disco vermelho passeava pelos flancos, no alto, embaixo, em torno deles, meticulosamente. Esses flancos eram formados, à direita, por uma parede; à esquerda, por uma divisória de tábuas; em cima e embaixo, por forro e assoalho. E Raoul dizia consigo que Christine tinha passado por ali no dia em que seguira a voz do Anjo da música. Devia ser esse o caminho costumeiro de Erik quando vinha através das paredes surpreender a boa fé e intrigar a inocência de Christine. E Raoul, que se lembrava das palavras do Persa, pensou que esse caminho tivesse sido misteriosamente estabelecido pela mão do próprio fantasma. Ora, viria a saber mais tarde que Erik tinha encontrado ali, já pronto para ele, um corredor secreto cuja existência, durante muito tempo, fora o único a conhecer. Esse corredor tinha sido criado durante a Comuna de Paris para permitir aos carcereiros conduzir diretamente os prisioneiros às masmorras que tinham sido construídas nos porões, pois os federados haviam ocupado o edifício logo após o dia 18 de março e feito, bem no alto, um ponto de partida para os balões encarregados de levar às províncias as suas proclamações incendiárias, e, embaixo, uma prisão do Estado.
O Persa colocara-se de joelhos e tinha posto no chão a lanterna. Parecia ocupado com alguma tarefa no assoalho e, de repente, cobriu a luz.
Então Raoul ouviu um leve estalido e viu no chão do corredor um quadrado luminoso muito pálido. Era como se uma janela acabasse de ser aberta nos subterrâneos ainda iluminados da Ópera. Raoul não enxergava mais o Persa, mas sentiu-o subitamente do seu lado e ouviu a sua respiração.
— Siga-me e faça tudo que eu fizer.
Raoul foi dirigido para a lucarna luminosa. Então viu o Persa que se ajoelhava de novo e, dependurando-se pelas mãos à lucarna, deixava-se escorregar no subterrâneo. O Persa segurava então a pistola com os dentes.
Coisa curiosa, o visconde tinha total confiança no Persa. Embora ignorasse tudo sobre ele, e a maioria de suas palavras só tivessem aumentado a obscuridade daquela aventura, não hesitava em acreditar que, naquela hora decisiva, o Persa estava com ele contra Erik. A sua emoção lhe pareceu sincera quando falara do “monstro”; o interesse que lhe tinha demonstrado não lhe parecia suspeito. Afinal, se o Persa tivesse alimentado algum plano sinistro contra Raoul, não teria colocado uma arma nas mãos dele. E além do mais, para dizer tudo, não precisava ele chegar, a qualquer custo, até junto de Christine? Raoul não estava em condição de escolher os meios. Se tivesse hesitado, mesmo com dúvidas sobre as intenções do Persa, o rapaz ter-se-ia considerado o último dos covardes.
Raoul, por sua vez, ajoelhou-se e dependurou-se no alçapão com as duas mãos. “Largue tudo!”, ouviu ele, e caiu nos braços do Persa, que lhe ordenou imediatamente que se lançasse de bruços no chão, fechou acima de suas cabeças o alçapão, sem que Raoul pudesse ver com que estratagema, e veio se deitar ao lado do visconde. Este quis lhe fazer uma pergunta, mas a mão do Persa se apoiou em sua boca e logo ele ouviu uma voz que reconheceu como sendo do delegado de polícia que pouco antes o havia interrogado.
Raoul e o Persa encontravam-se então ambos atrás de uma espécie de biombo que os escondia perfeitamente. Perto dali, uma escada estreita subia para uma salinha, onde o delegado devia perambular enquanto fazia perguntas, pois se ouvia o barulho dos seus passos ao mesmo tempo que o da sua voz.
A luz que envolvia os objetos era bem fraca, mas, ao sair dessa escuridão espessa que reinava no corredor secreto do alto, Raoul não teve dificuldade em distinguir a forma das coisas.
E não conseguiu segurar uma surda exclamação, pois havia ali três cadáveres.
O primeiro estava estendido sobre o estreito patamar da escadinha que subia até a porta atrás da qual se ouvia a voz do delegado; os dois outros tinham rolado escada abaixo, com os braços em cruz. Raoul, passando os dedos através do biombo que os escondia, poderia ter tocado na mão de um daqueles infelizes.
— Silêncio! — disse novamente o Persa num sopro. Também ele tinha visto os corpos estendidos e com uma palavra explicou tudo:
— Ele!
A voz do delegado se fazia ouvir então com mais força. Exigia explicações sobre o sistema de iluminação, que o gerente lhe dava. O delegado devia então se encontrar no “jogo de tubos de órgão” ou em suas dependências. Contrariamente ao que se poderia pensar, principalmente quando se trata de um teatro de ópera, o “jogo de tubos de órgão” não é destinado a fazer música.
Naquele tempo, a eletricidade só era utilizada para certos efeitos cênicos e para as campainhas. O imenso edifício e o palco mesmo eram ainda iluminados a gás e era sempre com hidrogênio que se regulava e se modificava a iluminação de um cenário, e isso mediante um aparelho especial ao qual se deu o nome de “jogo de tubos de órgão” devido à multiplicidade de seus tubos.
Um nicho estava reservado, ao lado do buraco do ponto, ao chefe da iluminação, que dali dava as suas ordens aos seus subalternos e supervisionava a execução. Era nesse nicho, em todas as representações, que ficava Mauclair.
Ora, Mauclair não estava no seu nicho nem seus subalternos em seus lugares.
— Mauclair! Mauclair!
A voz do gerente ressoava agora nos subterrâneos como um tambor. Mas Mauclair não respondia.
Dissemos que uma porta dava para uma escadinha que subia para o segundo subsolo. O delegado empurrou-a, mas ela resistiu:
— Ora! Ora! Veja, senhor gerente, não estou conseguindo abrir esta porta... ela é sempre assim tão difícil?
O gerente, com um vigoroso golpe de ombro, empurrou a porta. Percebeu que empurrava ao mesmo tempo um corpo humano e não pôde evitar uma exclamação: aquele corpo, ele o reconheceu de imediato:
— Mauclair!
Todos os personagens que tinham acompanhado o delegado naquela visita ao jogo de tubos de órgãos se adiantaram, preocupados.
— Pobre coitado! Está morto! — gemeu o gerente.
Mas o delegado Mifroid, a quem nada surpreendia, já estava debruçado sobre aquele corpo grande.
— Não — disse ele — ele está morto de bêbado! Não é a mesma coisa.
— E a primeira vez — declarou o gerente.
— Então fizeram-no tomar um narcótico... É bem possível. Mifroid levantou-se, desceu mais alguns degraus e exclamou:
— Olhem!
A luz de um pequeno fanal vermelho, ao pé da escada, dois outros corpos estavam estendidos. O gerente reconheceu os ajudantes de Mauclair... Mifroid desceu, auscultou-os.
— Estão dormindo profundamente — disse. — Caso curiosíssimo! Não podemos mais duvidar da intervenção de um desconhecido no serviço de iluminação... e esse desconhecido trabalha evidentemente para o raptor!... Mas que idéia esquisita essa de raptar uma artista em cena!... É brincar com a dificuldade, isso, ou eu não entendo mais nada! Alguém vá chamar o médico do teatro.
E Mifroid repetiu:
— Curioso! curiosíssimo este caso!
Depois virou-se para o interior da saleta, dirigindo-se a pessoas que, do lugar onde estavam, nem Raoul nem o Persa podiam ver.
— Que dizem os senhores de tudo isto? — perguntou. — Os senhores são os únicos que não dão a sua opinião. Os senhores devem ter entretanto uma opinião...
Então, acima do biombo, Raoul e o Persa viram avançar os dois rostos apavorados dos diretores — só se enxergavam os seus rostos acima do biombo — e ouviram a voz comovida de Moncharmin:
— Estão se passando aqui, senhor delegado, coisas que não podemos explicar.
E os dois rostos desapareceram.
— Obrigado pela informação, senhores — disse Mifroid, irônico. Mas o gerente, cujo queixo se apoiava então na palma da mão direita, o que é um gesto de reflexão profunda, disse:
— Não é a primeira vez que Mauclair adormece no teatro. Lembro-me de tê-lo encontrado, uma noite, roncando em seu nicho, ao lado da sua tabaqueira.
— Faz muito tempo? — perguntou Mifroid, enxugando com um cuidado meticuloso as lentes do seu pincenê, pois o delegado era míope, como acontece aos mais belos olhos do mundo.
— Meu Deus!... — disse o gerente — não, não faz muito tempo... Isso!... Foi na noite... Por Deus, sim... foi na noite em que Carlotta, o senhor sabe, senhor delegado, teve o problema com a voz!...
— Foi mesmo? na noite em que Carlotta soltou o seu famigerado coaxo?
E Mifroid, tendo recolocado no nariz o seu pincenê com as lentes agora transparentes, fixou atentamente o gerente, como se quisesse penetrar no seu pensamento.
— Isso mesmo, senhor delegado... Veja, aqui está justamente a tabaqueira dele. Oh! é um grande tomador de rapé.
— E eu também... — disse o delegado, colocando a tabaqueira no bolso.
Raoul e o Persa assistiram, sem que ninguém suspeitasse de sua presença, ao transporte dos três corpos que alguns maquinistas vieram retirar. O delegado os acompanhou e todos subiram atrás dele. Pôde-se ouvir, alguns instantes ainda, os seus passos que ressoavam sobre o tablado.
Quando se viram sós, o Persa fez um gesto a Raoul para que se levantasse. Este obedeceu; mas como, ao mesmo tempo, não tinha levantado a mão à altura dos olhos, pronto para atirar, assim como o Persa não deixara de fazer, este lhe recomendou que retomasse essa posição e a mantivesse, acontecesse o que acontecesse.
— Mas isso cansa a mão inutilmente! — murmurou Raoul. — Se eu atirar, não terei mais segurança!
— Troque a arma de mão, então! — concedeu o Persa.
— Não sei atirar com a mão esquerda!
Ao que o Persa respondeu com esta declaração bizarra, que não era, evidentemente, de natureza a esclarecer a situação no cérebro confuso do rapaz:
— Não se trata de atirar com a mão esquerda ou com a mão direita; trata-se de ter uma das mãos colocada como se ela fosse acionar o gatilho de uma pistola, estando o braço ligeiramente dobrado; quanto à pistola mesma, pode colocá-la no bolso.
E acrescentou:
— Fique isso entendido, ou não respondo mais por nada! É uma questão de vida ou de morte. Agora, silêncio, e siga-me!
Encontravam-se então no segundo subsolo; Raoul só entrevia à luz de algumas mechas imóveis, aqui e ali, em suas prisões de vidro, uma parte ínfima daquele abismo extravagante, sublime e infantil, divertido como uma caixa de boneco de mola, apavorante como um sorvedouro, que são os subsolos do palco da Ópera.
São formidáveis e em número de cinco. Reproduzem todos os planos do palco, os seus alçapões e aberturas de vários tipos. Apenas as aberturas por onde correm os cenários são substituídas por trilhos. Madeiramentos transversais suportam alçapões e aberturas de passagem. Postes, repousando sobre cubos de ferro fundido ou de pedra, de tocos de vigas ou “cartolas”, formam séries de praticáveis que permitem deixar a passagem livre para as “glórias” e outras combinações ou truques. Dá-se a esses dispositivos certa estabilidade prendendo-os com ganchos de ferro, conforme as necessidades do momento. Os guindastes, os tambores, os contrapesos são geralmente distribuídos generosamente nos subsolos. Servem para manobrar os grandes cenários, operar as mudanças com o palco aberto, provocar o desaparecimento súbito de personagens em cenas de magia. É dos subsolos, disseram os senhores X., Y., Z., que dedicaram à obra de Garnier um estudo tão interessante, é a partir dos subsolos que se transformam os caquéticos em belos cavaleiros, as feiticeiras horrendas em fadas radiosas de juventude. Satã vem dos subsolos, do mesmo modo que neles mergulha. As luzes do inferno escapam deles, neles se colocam os coros dos demônios.
... E os fantasmas passeiam por eles como se estivessem em casa.
Raoul seguia o Persa, obedecendo à risca a suas recomendações, não tentando compreender os gestos que lhe ordenava... dizendo a si mesmo que só nele tinha esperança.
... Que teria feito sem o companheiro naquele dédalo medonho? Não ficaria bloqueado a cada passo pelo entrecruzamento prodigioso de vigas e cordames? Não ficaria preso, sem poder se desvencilhar, nessa teia de aranha gigantesca?
E, se tinha podido passar através daquela rede de fios e contrapesos sempre renascendo à sua frente, não corria o risco de cair num desses buracos que se abriam por instantes sob os seus pés e cujo fundo de trevas os olhos não conseguiam ver!
... Eles iam descendo... continuavam descendo...
Agora estavam no terceiro subsolo.
E a sua caminhada sempre era iluminada por alguma tocha longínqua.
Quanto mais se descia, mais o Persa parecia tomar precauções... Voltava-se com freqüência para Raoul e lhe recomendava proceder conforme era necessário, mostrando-lhe o modo como ele próprio mantinha o seu punho, desarmado agora, mas sempre pronto para atirar como se segurasse uma pistola.
De repente, uma voz estridente os imobilizou. Alguém, acima, berrava.
— Sobre o tablado todos os “fechadores de portas”! O delegado de polícia os está chamando.
... Ouviram-se passos, e sombras deslizaram no escuro. O Persa tinha puxado Raoul para trás de um suporte... Viram passar perto deles, acima deles, velhos curvados pelos anos e pelo fardo antigo de cenários de ópera. Alguns mal conseguiam se arrastar... outros, por hábito, com a espinha abaixada e as mãos para a frente, procuravam portas para fechar.
Pois eram os fechadores de portas... Os antigos maquinistas, esgotados, e dos quais uma caridosa administração tivera piedade. Fizera deles fechadores de portas nos subsolos, nos altos. Iam e vinham sem cessar de alto a baixo do palco para fechar as portas — e eram também chamados naquele tempo, pois creio que já morreram todos, “caçadores de vento encanado”[4].
Os ventos encanados, venham de onde vierem, são muito ruins para a voz.
O Persa e Raoul felicitaram-se por esse incidente que os livrava de testemunhas embaraçosas, pois alguns dos fechadores de portas, não tendo mais nada para fazer e não tendo domicílio, ficavam, por preguiça ou por necessidade, na Ópera, onde passavam a noite. Podia-se dar de encontro com eles, acordá-los, provocar um pedido de explicações. O inquérito do Sr. Mifroid livrava provisoriamente os nossos dois companheiros desses maus encontros.
Mas não gozaram por muito tempo da sua solidão... Outras sombras agora desciam o mesmo caminho por onde os fechadores de portas tinham subido. Essas sombras tinham cada uma à sua frente uma pequena lanterna... que agitavam muito, levantando, abaixando, examinando tudo em torno de si e parecendo, evidentemente, procurar alguma coisa ou alguém.
— Diabo! — murmurou o Persa... — não sei o que estão procurando, mas poderiam nos achar... vamos fugir!... depressa!... com a mão em guarda, meu senhor, sempre pronta para atirar!... Dobremos o braço, mais, assim!... mão à altura dos olhos, como se estivesse em duelo e esperasse o comando de “fogo!...” Deixe então a pistola no bolso!... Depressa, desçamos!... (arrastava Raoul para o quarto subsolo) Isso, por aqui, esta escada!... (chegavam no quinto subsolo)... Ah! que duelo, senhor, que duelo!...
O Persa, ao chegar embaixo do quinto subsolo, suspirou... Parecia desfrutar um pouco mais de segurança do que tinha demonstrado havia pouco, quando os dois tinham parado no terceiro, mas não abandonava a atitude da mão!...
Raoul teve tempo para se espantar uma vez mais, sem, aliás, fazer qualquer nova observação. Pois, na verdade, não era o momento de estranhar essa extraordinária concepção de defesa pessoal que consistia em guardar a pistola no bolso enquanto a mão continuava pronta para utilizá-la, como se a pistola estivesse ainda na mão, à altura do olho; posição de espera do comando de “fogo” no duelo daquela época.
E, a respeito disso, Raoul achava que podia pensar também o seguinte: “Lembro-me muito bem de que ele me disse: ‘São pistolas em que confio’”.
Donde lhe parecia lógico tirar esta conclusão interrogativa: “De que lhe adianta confiar numa pistola que se acha inútil usar?”
Mas o Persa o fez parar com esses vagos ensaios de cogitação. Com um sinal para que ficasse ali parado, subiu alguns degraus da escada que tinham acabado de deixar. Depois, rapidamente, voltou para junto de Raoul.
— Burrice nossa — sussurrou-lhe —, logo vamos estar livres das sombras com lanternas... São os bombeiros que fazem a ronda[5].
Os dois homens permaneceram então em posição de defesa durante pelo menos cinco longos minutos, depois o Persa levou de novo Raoul rumo à escada que tinham acabado de descer; mas, de repente, seu gesto lhe ordenou de novo a imobilidade.
... Diante deles, a noite se movia.
— De bruços! — murmurou o Persa.
Os dois homens deitaram-se no chão.
Já não era sem tempo.
... Uma sombra, que desta vez não carregava nenhuma lanterna... uma sombra simplesmente nas sombras passava.
Passou tão perto que quase esbarrou neles.
Sentiram, no rosto, o sopro quente do seu manto...
Pois puderam divisá-la com clareza suficiente para ver que a sombra tinha um manto que a envolvia dos pés à cabeça. Na cabeça, um chapéu de feltro mole.
... Ela se afastou, raspando as paredes com os pés e, algumas vezes, nas viradas, dando pontapés nas paredes.
— Ufa! — disse o Persa... — escapamos por pouco... Essa sombra me conhece e já me levou duas vezes ao gabinete dos diretores.
— E alguém da segurança do teatro? — perguntou Raoul.
— É alguém muito pior[6]! — respondeu sem outra explicação o Persa.
— Não é... ele?
— Ele... se ele não chegar por trás, a gente vai ver os olhos de ouro dele!... E um pouco a nossa vantagem na noite. Mas ele pode chegar por trás, a passos de gato... e estaremos mortos se não mantivermos sempre as mãos como se fossem atirar, à altura do olho, na frente!
Mal o Persa acabara de formular de novo essa “linha de atitude” quando, diante dos dois homens, apareceu um rosto fantástico.
... Um rosto inteiro... uma face; não apenas dois olhos de ouro.
... Mas todo um rosto luminoso... todo um rosto em fogo!
Sim, um rosto em fogo que avançava à altura de um homem, mas sem corpo!
Esse rosto soltava fogo.
Parecia, na noite, como uma chama com forma de rosto de homem.
— É a primeira vez que o vejo!... — disse o Persa entre os dentes. — O tenente dos bombeiros não estava louco! Ele o tinha visto mesmo!... O que é essa chama? Não é ele! mas pode ser ele quem o envia até nós. Cuidado!... Cuidado!... Sua mão à altura do olho, em nome do Céu!... à altura do olho!
O rosto em fogo, parecendo uma figura do inferno — de demônio abrasado —, continuava avançando, à altura de um homem, sem corpo, diante dos dois homens espantados...
— Ele talvez nos mande essa figura pela frente para melhor nos surpreender por trás... ou pelos lados... com ele nunca se sabe!... Conheço muitos dos seus truques!... mas este!... este!... não conhecia ainda!... Vamos fugir!... por prudência!... não é?... por prudência!... com a mão à altura do olho.
E fugiram ambos pelo longo corredor subterrâneo que se abria à sua frente.
Ao fim de alguns segundos dessa corrida, que lhes pareceu longos, longos minutos, pararam.
— Entretanto — disse o Persa —, ele raramente vem por aqui! Este lado não diz respeito a ele!... Este lado não conduz ao lago nem à morada do Lago!... Mas talvez ele saiba que nós estamos ao seu encalço!... embora eu lhe tenha prometido deixá-lo sossegado doravante e não me preocupar mais com as suas histórias.
Dizendo isso, virou a cabeça, e Raoul fez o mesmo.
Ora, divisaram ainda a cabeça em fogo atrás de suas duas cabeças. Ela os havia seguido... Deve ter corrido também e talvez mais depressa do que eles, pois parecia que se tinha aproximado.
Ao mesmo tempo, começaram a distinguir certo ruído cuja natureza lhes era impossível adivinhar; simplesmente se deram conta de que esse ruído parecia deslocar-se e aproximar-se com a chama-rosto-de-homem. Era um raspar, ou melhor, um ranger como se milhares de unhas se esfregassem no quadro-negro, ruído assustadoramente insuportável que também é produzido às vezes por uma pedrinha no interior do giz que começa a ranger no quadro-negro.
Recuaram ainda, mas o rosto-chama continuava avançando, ganhando vantagem sobre eles. Agora se podia ver muito bem os seus traços. Os olhos eram bem redondos e fixos, o nariz um pouco de través e a boca grande com um lábio inferior em semicírculo, pendente; mais ou menos como os olhos, o nariz e os olhos da lua, quando a lua está toda vermelha, cor de sangue.
Como é que essa lua vermelha deslizava pelas trevas, à altura de um homem sem ponto de apoio, sem corpo para suportá-la, pelo menos aparentemente? E como andava tão depressa, em linha reta, com os olhos fixos, tão fixos? E todo esse ranger, estalir, raspar que arrastava consigo, de onde vinha?
Em dado momento, o Persa e Raoul não puderam mais recuar e se espremeram contra a muralha, não sabendo o que ia acontecer com eles por causa desse rosto incompreensível de fogo e, principalmente agora, do ruído mais intenso, mais buliçoso, mais vivo, muito “numeroso”, pois certamente esse ruído era feito de centenas de ruidinhos que se mexiam nas trevas, sob a cabeça-chama.
Vai avançando, a cabeça-chama... aí está ela!... com o seu ruído!... aí está ela à altura!...
E os dois companheiros, achatados contra a parede, sentem os cabelos se arrepiarem de horror em suas cabeças, pois sabem agora de onde vêm os mil ruídos. Vêm em bando, sendo rolados na escuridão por inumeráveis ondas apressadas, mais rápidas do que as ondas que trotam na areia, quando a maré sobe, que ondulam como carneiros embaixo da lua, embaixo da lua-cabeça-chama.
E as ondinhas lhes passam nas pernas, sobem pelas pernas, irresistivelmente. Então Raoul e o Persa não podem mais reter os gritos de horror, de espanto e de dor.
Não podem mais, tampouco, continuar a manter os braços à altura do olho, postura do duelo à pistola nessa época, antes do comando de “fogo!” — As suas mãos descem até as pernas para rechaçar as ilhotas luzentes, que rolam coisinhas pontudas, ondas que estão cheias de patas, e de unhas, e de garras, e de dentes.
Sim, Raoul e o Persa estão prestes a desmaiar como o tenente dos bombeiros Papin. Mas a cabeça-fogo virou-se para eles por causa dos rugidos. E ela lhes fala:
— Não se mexam! Não se mexam!... Principalmente, não me sigam!... Sou eu, o matador de ratos!... Deixem-me passar com os meus ratos!...
E bruscamente a cabeça-fogo desaparece, desfeita nas trevas, enquanto adiante dela o corredor, ao longe, se ilumina, simples resultado da manobra que o matador de ratos acaba de operar com sua lanterna surda. Há pouco, para não espantar os ratos à sua frente, tinha virado a lanterna surda sobre si mesmo, iluminando a própria cabeça: agora, para apressar a fuga, ilumina o espaço negro à sua frente... Então salta, arrastando consigo as ondas de ratos, trepando, rangendo, todos os mil ruídos...
O Persa e Raoul, liberados, respiram, embora ainda trêmulos.
— Deveria ter-me lembrado de que Erik me falou do matador de ratos, mas não me disse que se apresentava com esse aspecto... e é estranho que eu nunca o tenha encontrado[7].
— Ah! achei que esse era mais um dos golpes do monstro!...
— suspirou... Mas não, ele nunca vem a estas paragens!
— Estamos então muito longe do lago? — interrogou Raoul.
— Quando é que chegaremos lá?... Vamos ao lago!... Vamos ao lago!... — Quando estivermos no lago, chamaremos, sacudiremos as paredes, gritaremos!... Christine nos ouvirá!... E ele também nos ouvirá!... E já que o senhor o conhece, falaremos com ele!
— Menino! — disse o Persa. — Nunca entraremos na morada do Lago pelo lago!
— Por quê?
— Porque foi lá que ele concentrou toda a sua defesa... Eu mesmo nunca pude aportar na outra margem!... na margem da casa!... E necessário primeiro atravessar o lago... e ele é bem guardado!... Temo que mais de um daqueles antigos maquinistas, velhos fechadores de portas, que nunca mais foram vistos, tenham simplesmente tentado atravessar o lago... É terrível... Eu próprio quase fiquei lá... Se o monstro não me tivesse reconhecido a tempo!... Um conselho, nunca se aproxime do lago. E, principalmente, feche os ouvidos se ouvir cantar a Voz debaixo da água, a voz da Sereia.
— Mas então — retomou Raoul num transporte de febre, de impaciência e de raiva — o que é que estamos fazendo aqui?... Se não pode fazer nada por Christine, deixe-me, pelo menos, morrer por ela.
O Persa tentou acalmar o rapaz.
— Não temos senão um meio de salvar Christine Daaé, acredite-me; é penetrar naquela morada sem que o monstro o perceba.
— Podemos ter esperança disso?
— Ora! Se eu não tivesse essa esperança, não teria vindo procurá-lo!
— E por onde se pode entrar na morada do Lago sem passar pelo lago?
— Pelo terceiro subsolo, de onde fomos tão inoportunamente rechaçados... e para onde vamos voltar já... Vou lhe dizer — disse o Persa, com a voz subitamente alterada... —, vou lhe dizer o lugar exato... Encontra-se entre um suporte e um cenário abandonado do Rei de Labore, exatamente, no lugar onde foi morto Joseph Buquet...
— Ah! aquele chefe dos maquinistas que foi achado enforcado?
— Certo — acrescentou com um tom singular o Persa —, e cuja corda ninguém pôde encontrar!... Vamos! coragem... e pé na estrada!... e recoloque a sua mão em guarda, senhor... Mas onde é que nós estamos?
O Persa teve de acender de novo a lanterna surda. Dirigiu o jato luminoso sobre dois vastos corredores que se cruzavam em ângulo reto e cujas arcadas se perdiam no infinito.
— Devemos estar na parte reservada ao serviço de águas... Não estou vendo nenhum fogo vindo dos aquecedores.
Ele foi à frente de Raoul, procurando o caminho, parando bruscamente quando suspeitava que algum mecânico da hidráulica ia passar, depois tiveram de se esconder da luminosidade de uma espécie de forja subterrânea que tinham acabado de apagar e diante da qual Raoul reconheceu os demônios avistados por Christine quando de sua primeira viagem no dia de seu primeiro cativeiro.
Assim, voltavam pouco a pouco até debaixo dos prodigiosos subsolos do palco.
Deviam estar então bem no fundo da cuba, a uma grande profundidade, se se pensa que a terra foi cavada a quinze metros abaixo dos lençóis de água que existiam em toda essa parte da capital; e foi preciso drenar toda a água... Retirou-se tanta água que, para se ter uma idéia do volume bombeado, seria necessário representar-se em superfície o pátio do Louvre, e em profundidade uma vez e meia a altura das torres de Notre Dame. Mesmo assim foi preciso conservar um lago.
Nesse momento, o Persa tocou numa divisória e disse:
— Se não me engano, aqui está uma parede que bem poderia pertencer à morada do Lago!
Batia então numa parede da cuba. E talvez não seja inútil para o leitor saber como tinham sido construídos o fundo e as paredes da cuba.
A fim de evitar que as águas que cercam a construção ficassem em contato imediato com as paredes que sustentam todo o estabelecimento da maquinaria do teatro, cujo conjunto de madeiramentos, de marcenaria, de serralheria, de telas pintadas à têmpera deve ser cuidadosamente preservado da umidade, o arquiteto se viu na necessidade de estabelecer por toda a parte um duplo invólucro.
O trabalho desse duplo invólucro exigiu um ano inteiro. Contra a parede do primeiro invólucro interior é que o Persa estava batendo quando falava a Raoul sobre a morada do Lago. Para alguém que conhecesse a arquitetura do monumento, o gesto do Persa parecia indicar que a misteriosa morada de Erik tinha sido construída dentro do duplo invólucro, formado por uma grossa muralha construída como dique, depois por uma parede de tijolos, uma enorme camada de cimento e outro muro de vários metros de espessura.
Às palavras do Persa, Raoul se lançara para junto da parede e avidamente se pusera a escutar.
... Mas não ouvia nada... nada além dos passos distantes que ressoavam sobre o tablado nas partes altas do teatro.
O Persa apagara novamente a sua lanterna.
— Atenção! — disse ele — cuidado com a mão! e agora silêncio! pois vamos tentar ainda penetrar em sua morada.
E puxou Raoul até a escadinha pela qual tinham descido havia pouco.
... Foram subindo, parando a cada degrau, espiando as sombras e o silêncio...
Assim se encontraram novamente no terceiro subsolo...
O Persa fez sinal então para que Raoul se pusesse de joelhos, e foi assim, arrastando-se de joelhos e em uma das mãos — a outra sempre na posição indicada — que chegaram até a parede do fundo.
Apoiada nessa parede estava uma vasta tela abandonada do cenário do Rei de Labore.
... E, bem perto desse cenário, um suporte...
Entre o cenário e o suporte havia apenas lugar para um corpo.
... Um corpo, que um dia tinha sido encontrado enforcado... o corpo de Joseph Buquet.
O Persa, sempre de joelhos, tinha parado. Escutava.
Por um momento, ele pareceu hesitar e olhou para Raoul, depois seus olhos se fixaram acima, em direção do segundo subsolo, que lhes enviava a fraca luz de uma lanterna, pelo vão entre duas tábuas.
Evidentemente, essa claridade atrapalhava o Persa.
Finalmente, balançou a cabeça e se decidiu.
Escorregou entre o suporte e o cenário do Rei de Labore.
Raoul o seguia de perto.
A mão livre do Persa tateava a parede. Raoul o viu um instante empurrar fortemente a divisória como fizera com a parede do camarim de Christine...
... E uma pedra cedeu...
Havia agora um buraco na divisória...
O Persa desta vez tirou a pistola do bolso e indicou a Raoul que devia imitá-lo. Armou a pistola.
E resolutamente, sempre de joelhos, entrou pelo buraco que a pedra, ao ceder, deixara na parede.
Raoul, que queria passar primeiro, teve de contentar-se com ir atrás.
O buraco era muito estreito. O Persa parou quase imediatamente. Raoul ouvia-o apalpar a pedra ao seu redor. E, depois, ele tirou ainda a sua lanterna surda e inclinou-se para a frente, examinou alguma coisa debaixo de si e apagou imediatamente a lanterna. Raoul ouviu-o dizer num sopro:
— Vai ser preciso saltar alguns metros, mas sem fazer barulho: tire as botinas.
O próprio Persa procedeu a essa operação. Passou as botinas para Raoul.
— Coloque-as do lado de lá da parede... Nós as pegaremos ao sair[8].
Dito isso, o Persa avançou um pouco. Depois virou-se completamente, sempre de joelhos, e ficou, assim, com o rosto perto do de Raoul. Disse-lhe então:
— Vou me dependurar pelas mãos à extremidade da pedra e deixar-me cair na casa. Em seguida, faça exatamente como eu. Não tenha medo: eu o apanharei nos meus braços.
O Persa fez como dissera; e, abaixo dele, Raoul ouviu logo um barulho surdo que era produzido evidentemente pela queda do companheiro. O rapaz estremeceu, com receio de que esse barulho revelasse a presença deles.
Entretanto, mais do que o barulho, a ausência de qualquer outro ruído era para Raoul um terrível motivo de angústia. Como! se, segundo o Persa, eles acabavam de penetrar dentro dos próprios muros da morada do Lago, e não se ouvia Christine!... Nenhum apelo!... Nenhum gemido!... Deus do céu! estariam chegando tarde demais?...
Raspando com os joelhos a muralha, agarrando-se à pedra com os dedos nervosos, Raoul, por sua vez, deixou-se cair.
Imediatamente sentiu um abraço.
— Sou eu! — sussurrou o Persa. — Silêncio! E ficaram ambos imóveis, escutando...
Nunca, em torno deles, a noite tinha sido mais opaca... Nunca o silêncio mais pesado nem mais terrível... Raoul enterrava as unhas nos lábios para não gritar: “Christine! Sou eu!... Responda-me se não estiver morta, Christine?”
Enfim, o jogo da lanterna surda recomeçou. O Persa dirigiu o seu facho acima de suas cabeças, para a muralha, procurando o buraco por onde tinham vindo e não mais o encontrava...
— Oh! — disse — a pedra se fechou sozinha.
E o jato luminoso da lanterna desceu ao longo da parede, depois até o chão.
O Persa abaixou-se e recolheu alguma coisa, uma espécie de fio que examinou por um segundo e lançou fora com horror.
— O fio do Punjab!— murmurou.
— O que é isso? — perguntou Raoul.
— Isso — respondeu o Persa estremecendo —, isso bem poderia ser a corda do enforcado que tanto se procurou!...
E, subitamente, tomado de nova ansiedade, deslizou o pequeno disco vermelho da lanterna pelas paredes... Assim ele iluminou, fato estranho, um tronco de árvore que parecia ainda vivo com as suas folhas... e os galhos dessa árvore subiam ao longo da muralha e iam perder-se no teto.
Devido à pequenez do disco luminoso, era difícil de início dar-se conta das coisas... via-se o canto de um galho... e depois uma folha... e outra... e, ao lado, não se via mais nada... nada além do jato de luz que parecia refletir a si mesmo... Raoul escorregou a mão sobre esse nada de nada, sobre esse reflexo...
— Olhe! — disse ele — a parede é um espelho!
— Sim! um espelho! — disse o Persa, num tom de profunda emoção. E acrescentou, passando a mão que segurava a pistola pela testa suada: — Caímos dentro do quarto dos suplícios!
INTERESSANTES E INSTRUTIVAS TRIBULAÇÕES DE UM PERSA NOS SUBTERRÂNEOS DA ÓPERA
(Narrativa do Persa)
O próprio Persa contou como tinha inutilmente tentado, até aquela noite, penetrar na morada do Lago pelo lago; como tinha descoberto a entrada do terceiro subsolo e como, finalmente, o visconde de Chagny e ele se viram a braços com a infernal imaginação do fantasma no quarto dos suplícios. Eis a narrativa escrita que ele nos deixou (nas condições que adiante se precisarão) e da qual não mudei uma palavra sequer. Transmito-a tal qual, porque achei que não devia silenciar as aventuras pessoais do daroga[9] em torno da morada do Lago, antes que nela caísse em companhia de Raoul. Se, durante alguns instantes, esse início muito interessante parece afastar-nos um pouco do quarto dos suplícios, é apenas para melhor nos levar para ele em seguida, após nos ter explicado coisas bastante importantes e certas atitudes e maneiras de fazer do Persa, que podem ter parecido extraordinárias.
Era a primeira vez que eu penetrava na casa do Lago, escreve o Persa. Em vão havia pedido ao amador de alçapões — era assim que, entre nós, em persa, era chamado Erik — que me abrisse as suas misteriosas portas. Ele sempre tinha recusado. Eu, que era pago para conhecer muitos de seus segredos e truques, tentara inutilmente, por astúcia, forçar a senha. Desde que eu voltara a encontrar Erik na Ópera, onde parecia ter escolhido morar, muitas vezes tinha-o espiado, ora dos corredores dos altos, ora nos do subsolo, ora na margem mesma do Lago, quando ele julgava estar sozinho, quando subia na barquinha e aportava diretamente na parede defronte. Mas as sombras que o cercavam eram sempre demasiado opacas para me permitir ver em que lugar exato ele Óperava a sua porta na parede. A curiosidade e também uma idéia temível que me tinha vindo ao refletir sobre algumas frases ditas pelo monstro me levaram, um dia em que eu achava estar só por meu turno, a me lançar na barquinha e a dirigir-me rumo a essa parte da parede onde tinha visto Erik desaparecer. Foi então que me vi às voltas com a Sereia que guardava as bordas daquelas paragens, e cujo encanto quase me foi fatal, nas condições precisas que seguem. Mal eu havia deixado a margem, o silêncio dentro do qual eu navegava foi perturbado por uma espécie de sopro cantante que me envolveu. Era ao mesmo tempo uma respiração e uma música; aquilo subia suavemente das águas do lago e me envolvia sem que eu pudesse descobrir por qual artifício. Aquilo me seguia, deslocava-se comigo, e era tão suave que não me dava medo. Ao contrário, no desejo de aproximar-me da fonte dessa doce e cativante harmonia, eu me debrucei, por cima da minha barquinha, em direção às águas, pois não havia dúvida para mim de que aquele canto vinha das próprias águas. Já estava no meio do lago e não havia ninguém mais na barca além de mim; a voz — pois agora era bem distintamente uma voz — estava ao meu lado, sobre as águas. Debrucei-me... Debrucei-me mais... O lago estava calmo e o raio de lua que, depois de ter passado pelo respiradouro da rua Scribe, vinha iluminá-lo não me mostrou absolutamente nada sobre a superfície lisa e negra como nanquim. Sacudi um pouco a cabeça com o fito de me desvencilhar de um possível zumbido, mas tive que ceder à evidência de que não havia zumbido tão harmonioso quanto o sopro cantante que me seguia e que, agora, me atraía.
Se eu fosse supersticioso ou facilmente acessível às fábulas, não teria deixado de achar que estava sendo envolvido por alguma Sereia encarregada de perturbar o viajante, ousado o bastante para viajar pelas águas da casa do Lago, mas, graças a Deus!, sou de um país onde se aprecia muito o fantástico para não conhecê-lo a fundo e eu próprio o havia estudado muito noutros tempos: com os truques mais simples, uma pessoa que conhece o seu ofício pode fazer trabalhar a pobre imaginação humana.
Não duvidei pois de que estava às voltas com uma nova invenção de Erik, mas, uma vez mais, essa invenção era tão perfeita que. ao me debruçar por cima da barquinha, era mais impelido a descobrir a artimanha do que a desfrutar seu encanto.
E debrucei-me, debrucei-me... quase a virar o barco.
De repente, dois braços monstruosos saíram do interior das águas e me agarraram o pescoço, arrastando-me para o abismo com uma força irresistível. Eu estaria certamente perdido se não tivesse tido o tempo de soltar um grito, pelo qual Erik me reconheceu.
Porque era ele, e em vez de me afogar, como certamente era a sua intenção, nadou e me colocou suavemente na margem.
— Veja como você é imprudente — disse-me ele, levantando-se à minha frente enquanto aquela água do inferno lhe escorria pelo corpo. — Por que tentar penetrar na minha morada! Não convidei você. Não quero saber nem de você nem de ninguém deste mundo! Você só me salvou a vida para torná-la insuportável? Por maior que seja o serviço prestado, Erik acabará, talvez, por esquecê-lo e você sabe que nada pode deter Erik, nem mesmo o próprio Erik.
Ele falava, mas agora eu não tinha outro desejo que não fosse o de conhecer o que eu já chamava de truque da Sereia. Ele concordou em satisfazer a minha curiosidade, pois Erik, que é um verdadeiro monstro — para mim, é assim que o julgo, tendo tido, enquanto persa, a triste oportunidade de vê-lo agindo —, é também, sob certos aspectos, uma verdadeira criança presunçosa e vaidosa, e aquilo de que mais gosta, além de espantar as pessoas, é provar toda a engenhosidade realmente prodigiosa de sua mente.
Ele pôs-se a rir e me mostrou uma longa haste de caniço.
— E de uma simplicidade total! mas é bem cômodo para se respirar e para se cantar dentro da água! E um truque que aprendi com os piratas de Tonquim, que podem assim ficar horas escondidos no fundo dos rios[10].
Falei com ele severamente.
— É um truque que quase me matou!... e talvez tenha sido fatal para outros!
Ele não me respondeu, mas levantou-se diante de mim com aquele ar de ameaça pueril que lhe conheço tão bem. Não me dei por vencido. Disse-lhe com clareza:
— Você sabe o que me prometeu, Erik! Parar com os crimes!
— Será que, realmente, cometi crimes? — perguntou com jeito amável.
— Infeliz!... — exclamei... — Você se esqueceu das horas cor-de-rosa de Mazenderã?
— Sim — respondeu, ficando triste de repente —, prefiro esquecer, mas bem que fiz rir a sultanazinha.
— Tudo isso é passado... mas há o presente... e você me deve contas do presente, visto que, se eu tivesse querido, ele não existiria para você!... Lembre-se disso, Erik: eu salvei a sua vida!...
E aproveitei de a conversa ter-se enveredado por esse caminho para lhe falar de uma coisa que, havia algum tempo, voltava-me com freqüência à mente,
— Erik, Erik, jure-me...
— O quê? você bem sabe que não cumpro os meus juramentos. Os juramentos são feitos para apanhar os trouxas
— Diga-me... Você bem pode, a mim, dizer isso!
— Pois bem, o quê?
— Pois bem!... O lustre... o lustre, Erik...
— O que tem o lustre?
— Você sabe muito bem o que é que estou querendo dizer!
— Ah!, o lustre!... Vou dizer para você... O lustre, isso não fui eu!... Estava muito gasto...
Quando ria, Erik ficava ainda mais horroroso. Saltou para dentro da barca chasqueando de maneira tão sinistra que comecei a tremer.
— Muito gasto, caro daroga! Muito gasto, o lustre... Ele caiu sozinho... Fez bum! E agora um conselho, daroga, vá se secar, se não quer apanhar um resfriado!... e não volte nunca a subir na minha barca... e, principalmente, não tente entrar em minha casa... nem sempre eu estou lá... daroga!E seria muito triste para mim dedicai a você a minha missa dos mortos!
Dizendo isso com um riso sardônico, ia remando de pé na parte traseira da barca e gingava com um balanço de macaco. Tinha então um aspecto fatal, com os seus olhos de ouro flutuando na escuridão. Em seguida, não vi mais do que os seus olhos e, finalmente, desapareceu na noite do lago.
Foi a partir desse dia que desisti de penetrar na sua morada do Lago! Evidentemente, aquela entrada estava muito bem guardada, sobretudo depois que ele ficou sabendo que eu a conhecia. Mas pensei que devia haver alguma outra, porque mais de uma vez vi Erik desaparecer no terceiro subsolo, enquanto o vigiava, e sem que eu pudesse imaginar como. Desde que encontrei Erik instalado na Ópera, eu vivia num perpétuo terror de suas horríveis fantasias, não com relação a mim, por certo, mas eu temia tudo dele para com as outras pessoas[11]. E quando acontecia algum acidente, algum acontecimento fatal, eu não podia deixar de dizer a mim mesmo: “Talvez seja o Erik!...” como outros diziam ao meu redor: “E o fantasma!...” Quantas vezes não ouvi pronunciar diante de mim essa frase por pessoas que sorriam! Infelizes! Se soubessem que esse fantasma existia em carne e osso e era mais terrível do que a sombra vã que evocavam, juro que teriam parado de fazer troça!... Se apenas tivessem sabido do que Erik era capaz, principalmente num campo de manobra como a Ópera!... E se tivessem conhecido o âmago do meu temível pensamento!...
Embora Erik me houvesse anunciado com grande solenidade que tinha mudado e se tornara o mais virtuoso dos homens, desde que estava sendo amado pelo que ele era, frase que me deixou de imediato extremamente perplexo, não podia deixar de fremir ao pensar no monstro. Sua horrível, única e repulsiva feiúra o punha à margem da humanidade, e pareceu-me, com freqüência, que ele não julgava, por esse fato mesmo, ter nenhum dever para com a raça humana. A maneira como falou de seus amores só fez aumentar os meus temores, pois previa nesse acontecimento, a que aludia num tom gabola que eu já conhecia nele, a causa de novos dramas mais terríveis do que todo o resto. Eu sabia até que grau de sublime e desastroso desespero podia ir a dor de Erik, e as palavras que me dissera — vagamente prenunciadoras da mais terrível catástrofe — não cessavam de habitar o meu pensamento.
Por outro lado, tinha descoberto o estranho comércio moral que se tinha estabelecido entre o monstro e Christine Daaé. Escondido no quarto de despejo contíguo ao camarim da jovem diva, eu tinha assistido a admiráveis sessões de música, que evidentemente mergulhava Christine num maravilhoso êxtase, mas, mesmo assim, não teria pensado que a voz de Erik — que era retumbante como o trovão e suave como a dos anjos, à sua vontade — pudesse fazer esquecer a sua feiúra. Compreendi tudo quando descobri que Christine ainda não o tinha visto! Tive a oportunidade de penetrar no camarim e, lembrando-me das lições que ele me dera havia tempos, não tive dificuldade para encontrar o truque que fazia girar a parede que suportava o espelho, e verifiquei por que inserção de tijolos ocos fazia com que Christine o ouvisse como se estivesse ao lado dela. Assim descobri também o caminho que conduz à fonte e à masmorra — à masmorra dos communards, como eram chamados os partidários da Comuna de Paris — e também o alçapão que devia permitir a Erik introduzir-se diretamente nos subsolos do palco.
Alguns dias mais tarde, qual não foi a minha estupefação ao descobrir, por meus próprios olhos e ouvidos, que Erik e Christine Daaé se encontravam, e ao surpreender o monstro, debruçado sobre a fontezinha que chora, no caminho dos communards (bem na extremidade, debaixo da terra), refrescando com água a fronte de Christine Daaé desmaiada. Um cavalo branco, o cavalo do Profeta, que desaparecera das estrebarias dos subsolos da Ópera, estava ali, tranqüilo, ao lado deles. Apresentei-me. Foi terrível. Vi faíscas saírem dos olhos de ouro e recebi, antes que pudesse dizer palavra, uma pancada no meio da testa, que me deixou atordoado. Quando voltei a mim, Erik, Christine e o cavalo branco haviam desaparecido. Não tive dúvida de que a infeliz tinha sido feita prisioneira na morada do Lago. Sem hesitar, resolvi voltar para a margem. apesar do perigo iminente que essa atitude comportava. Durante 24 horas fiquei espreitando, escondido perto da beira negra, o aparecimento do monstro, pois achava que ele devia sair, forçado a ir fazer as suas provisões. E a respeito disso devo dizer que, quando ele saía por Paris ou ousava mostrar-se em público, colocava, no lugar de seu horrível buraco de nariz, um nariz de pasta de cartão com um bigode, o que não lhe retirava completamente o aspecto macabro, visto que, quando passava, diziam atrás dele: “Olhe, lá vai o velho Engana-a-Morte”, mas isso o tornava mais ou menos suportável de se ver.
Eu estava então vigiando à beira do lago — do lago Averne, como ele chamara várias vezes, diante de mim, ironizando, o seu lago — e, cansado da minha longa espera, dizia a mim mesmo: “Ele saiu por outra porta, aquela do terceiro subsolo”, quando ouvi um leve marulhar no escuro; vi os dois olhos de ouro brilharem como fanais, e logo a barca aportou. Erik saltou na margem e veio em minha direção.
— Já faz 24 horas que você está aí; você me aborrece! anuncio-lhe que tudo isso ainda vai acabar muito mal. E é você que está querendo! pois minha paciência é prodigiosa com você!... Você pensa estar me seguindo, imenso pateta — (textual) —, e sou eu que o sigo, e eu sei tudo que você sabe sobre mim. Poupei você ontem, no meu caminho dos communards; mas digo-lhe, em verdade, não quero mais ver você lá! Tudo isso é muito imprudente de sua parte! Dou minha palavra! E me pergunto se você ainda sabe o que falar quer dizer!
Estava tão encolerizado que evitei, no momento, interrompê-lo. Depois de ter resfolegado como uma foca, explicitou o seu horrível pensamento — que correspondia ao meu.
— Sim, é preciso saber de uma vez por todas o que falar quer dizer! Eu lhe digo que com as suas imprudências, porque você já se deixou prender duas vezes pela sombra do chapéu de feltro, que não sabia o que você estava fazendo nos subsolos e conduziu você aos diretores, que o tomaram por um fantasioso persa amante dos truques de magia e de bastidores de teatro (eu estava lá, sim, no escritório; você sabe que eu estou em toda parte) — eu lhe digo, pois, que com as suas imprudências acabarão por perguntar-se o que é que você procura aqui... e acabarão por saber que você procura Erik... e vão querer, como você, procurar Erik... e vão descobrir a casa do Lago... Então, azar seu, meu velho! azar seu!... eu já não respondo por mais nada!
Resfolegou de novo como uma foca, antes de continuar:
— Por mais nada!... Se os segredos de Erik não permanecerem segredos de Erik, azar para muitos da raça humanai E tudo o que eu tinha a lhe dizer e, a menos que você seja um imenso pateta — (textual) — isso deveria bastar; a menos que você saiba o que falar quer dizer!...
Ele estava sentado na parte de trás da barca e batia com os calcanhares na madeira da embarcação, à espera do que eu tinha para lhe responder; eu lhe disse simplesmente:
— Não é Erik que eu vim buscar aqui!...
— Então é quem?
— Você sabe muito bem: é Christine Daaé! Replicou-me:
— Tenho o direito de marcar encontro com ela na minha casa. Sou amado por aquilo que sou.
— Não é verdade, você a raptou e a mantém prisioneira!
— Escute, você me promete não se intrometer mais na minha vida se eu lhe provar que sou amado por aquilo que eu sou?
— Sim, prometo — respondi sem hesitar —, pois pensava que para aquele monstro essa prova era impossível de obter.
— Pois bem, veja! E absolutamente simples!... Christine Daaé sairá daqui quando achar melhor... e voltará de livre e espontânea vontade, porque ela me ama pelo que eu sou!...
— Oh! duvido de que ela volte!... Mas você tem o dever de deixá-la ir-se embora.
— Meu dever, imenso pateta! (textual), é a minha vontade... minha vontade de deixá-la ir-se, e ela voltará... porque ela me ama!... Tudo isso, eu lhe digo, vai acabar em casamento... um casamento na igreja da Madeleine, imenso pateta! (textual). Você acredita em mim, afinal? Quando lhe digo que a minha missa de casamento já está escrita... você verá esse Kyrie...
Tamborilou ainda com os calcanhares na madeira da barca, numa espécie de ritmo que ele acompanhava a meia voz cantando: “Kyrie!... Kyrie!... Kyrie eleison!... Você verá, você verá essa missa!”
— Escute, acreditarei em você se eu vir Christine Daaé sair da casa do Lago e voltar para ela livremente!
— E você não se meterá mais na minha vida? Pois bem, verá isso esta noite... Vá ao baile de máscaras. Christine e eu iremos dar uma voltinha por lá... Você irá depois se esconder no quarto de despejo e verá que Christine, que terá voltado ao seu camarim, não vai querer outra coisa que não seja tomar o caminho dos comrnunards.
— Entendido!
Se de fato eu visse isso, só me restaria inclinar-me, porque uma pessoa belíssima sempre teve de amar o mais horrível monstro, principalmente quando, como este, ele tem a sedução da música e quando essa pessoa é justamente uma distintíssima cantora.
— E agora vá-se embora porque eu preciso ir para fazer o meu trato!...
Fui-me embora pois, realmente, sempre preocupado com Christine Daaé, mas sobretudo tendo, no fundo de mim mesmo, um pensamento temível, desde que ele o tinha despertado tão formidavelmente, a propósito das minhas imprudências.
Dizia comigo: “Como vai acabar tudo isto?” E, embora fosse bastante fatalista por temperamento, não podia desfazer-me de uma indefinível angústia por causa da incrível responsabilidade que tinha assumido um dia, deixando viver o monstro que ameaçava hoje muitos da raça humana.
Para meu prodigioso espanto, as coisas se passaram como ele me havia anunciado. Christine Daaé saiu da casa do Lago e para lá voltou várias vezes sem que aparentemente fosse forçada a isso. Minha mente quis então se desligar daquele amoroso mistério, mas era muito difícil, sobretudo para mim — por causa do temível pensamento —, não pensar em Erik. Todavia, resignado a uma extrema prudência, não cometi o erro de voltar à beira do lago nem de retomar o caminho dos communards. Mas, perseguido pela idéia fixa da porta secreta do terceiro subsolo, fui mais de uma vez diretamente a esse lugar que eu sabia deserto na maior parte do dia. Ficava ali parado, interminavelmente, rolando os polegares, escondido atrás de um cenário do Rei de Labore, que haviam deixado ali, não sei por quê, pois não era freqüente representarem o Rei de Labore. Tanta paciência tinha de ser recompensada. Um dia, vi o monstro, de joelhos, vir em minha direção. Eu estava seguro de que ele não podia me ver. Passou entre o cenário que se achava ali e um suporte, foi até a muralha e acionou, num lugar que pude precisar de longe, uma mola que fez bascular uma pedra, abrindo-lhe uma passagem. Desapareceu por essa passagem e a pedra voltou a fechar-se atrás dele. Eu estava de posse do segredo do monstro, segredo que podia, na hora que me conviesse, entregar-me a morada do Lago.
Para estar seguro, esperei pelo menos meia hora e fiz, por minha vez, funcionar a mola. Tudo aconteceu como para Erik. Mas evitei penetrar no buraco, sabendo que Erik estava em casa. Por outro lado, a idéia de que eu podia ser surpreendido ali por ele trouxe-me de repente à memória a morte de Joseph Buquet e, não querendo comprometer tal descoberta, que podia ser útil a muita gente, a muitos da raça humana, deixei os subsolos do teatro, depois de ter cuidadosamente reposto a pedra no lugar, segundo um sistema que não tinha variado desde a Pérsia.
Imagine que eu continuava muito interessado pela intriga entre Erik e Christine Daaé, não porque obedecesse no caso a uma curiosidade doentia, mas sim, como já disse, por causa daquele pensamento temível que não saía da minha cabeça: “Se Erik”, pensava eu, “descobrir que não é amado pelo que é, tudo pode acontecer”. E, não parando de vaguear — prudentemente — pela Ópera, fiquei logo sabendo da verdade sobre os tristes amores do monstro. Ele ocupava o espírito de Christine pelo terror, mas o coração da doce menina pertencia inteirinho ao visconde Raoul de Chagny. Enquanto estes dois brincavam, como dois noivos inocentes, nos altos da Ópera — fugindo do monstro —, não tinham dúvida de que alguém os estava vigiando. Eu estava decidido a tudo: a matar o monstro, se preciso fosse, e a dar em seguida explicações à Justiça. Mas Erik não se mostrou — e nem por isso eu estava mais seguro.
Eu preciso dizer todo o meu cálculo. Eu achava que o monstro, expulso de sua morada pelo ciúme, me permitiria assim penetrar sem perigo na casa do Lago, pela passagem do terceiro subsolo. Eu tinha todo interesse, por todos, em saber exatamente o que podia haver lá dentro! Um dia, cansado de esperar uma oportunidade, fiz a pedra girar e imediatamente ouvi uma música formidável; o monstro estava trabalhando, com todas as portas abertas, na composição do seu Don Juan triunfante. Eu sabia que aquela era a obra de sua vida. Tomei cuidado para não me mexer e fiquei prudentemente no meu buraco escuro. Em dado momento, parou de tocar e pôs-se a andar pela casa, como um louco. E disse bem alto, com voz retumbante: “É preciso que tudo isso esteja terminado antes! Bem terminado!” Essa palavra não teve o dom de me tranqüilizar e, como a música recomeçasse, fechei a pedra devagarinho. Ora, apesar de a pedra estar fechada, eu ainda ouvia um vago canto distante, distante, que subia do fundo da terra, como tinha ouvido o canto da Sereia subir do fundo das águas. E lembrei-me das palavras de alguns maquinistas, que tinham provocado sorrisos incrédulos quando da morte de Joseph Buquet: “Havia em torno do corpo do enforcado um ruído que parecia o canto dos mortos”.
No dia do rapto de Christine Daaé só cheguei ao teatro bastante tarde da noite e tremendo por tomar conhecimento das más notícias. Tinha passado um dia atroz, pois não parara, desde a leitura de um jornal matutino que anunciava o casamento de Christine com o visconde de Chagny, de me perguntar se, depois de tudo, eu não faria melhor em denunciar o monstro. Mas a razão me voltou e fiquei persuadido de que tal atitude só podia precipitar a catástrofe possível.
Quando o meu carro me deixou diante da Ópera, olhei para o monumento como se estivesse admirado por ainda vê-lo de pé!
Mas sou, como todo bom oriental, um pouco fatalista e entrei, pronto para tudo!
O rapto de Christine Daaé no ato da prisão, que naturalmente surpreendeu a todos, encontrou-me preparado. Eu estava certo de que Erik o tinha transformado, como rei dos prestidigitadores que era, em verdade. E pensei mesmo que desta vez era o fim para Christine e talvez para todo mundo.
Tanto assim que em dado momento me perguntei se não devia aconselhar, a todas essas pessoas que se tardam no teatro, que saíssem rápido. Mas desisti de prosseguir nesse pensamento de denúncia pela certeza de que me tomariam por um louco. Afinal, não ignorava que, se por exemplo eu gritasse para que todas aquelas pessoas saíssem: “Fogo!”, eu poderia ser a causa de uma catástrofe, sufocamentos na fuga, pisoteamentos, lutas selvagens — pior do que a própria catástrofe. Entretanto, resolvi agir sem mais tardança, pessoalmente. O momento me parecia, aliás, propício. Eu tinha bastantes chances de que, nessa hora, Erik não pensasse senão na sua cativa. Era preciso aproveitar para entrar em sua morada pelo terceiro subsolo, e pensei em juntar a mim, para essa iniciativa, aquele pobrezinho do visconde desesperado, que, à primeira palavra, aceitou com uma confiança em mim que me sensibilizou profundamente; tinha mandado um doméstico buscar as minhas pistolas. Darius veio encontrar-nos com a caixa no camarim de Christine. Dei uma pistola ao visconde e lhe aconselhei estar pronto para atirar, como eu, pois, afinal de contas, Erik podia estar à nossa espera atrás da parede. Devíamos passar pelo caminho dos communards e pelo alçapão.
O viscondezinho me perguntara, ao ver as minhas pistolas, se íamos nos bater em duelo. Certamente! e lhe disse: “Que duelo!” Mas não tive tempo, bem entendido, de lhe explicar nada. O jovem visconde é corajoso, mas ignorava quase tudo de seu adversário! E assim era melhor!
Que é um duelo com o mais terrível dos espadachins perto do combate com o mais genial dos prestidigitadores? Eu mesmo dificilmente aceitava essa idéia de que ia entrar em luta com um homem que só é visível quando quer e que, em contrapartida, vê tudo ao seu redor, quando tudo para você permanece escuro!... Com um homem cuja ciência bizarra, sutileza, imaginação e destreza lhe permitem dispor de todas as forças naturais, combinadas para criar aos nossos olhos ou aos nossos ouvidos a ilusão que é a nossa perda!... E isso, nos subterrâneos da Ópera, quer dizer, no próprio território da fantasmagoria! Pode-se imaginar isso sem tremer? Pode-se ao menos ter uma idéia do que poderia acontecer aos olhos e aos ouvidos de um habitante da Ópera, se se fechasse dentro da Ópera — nos seus cinco subsolos e nos seus 25 pavimentos superiores — um Robert Houdin feroz e “gozador”, que ora zomba, ora odeia!, que ora esvazia os bolsos, ora mata!... Pensem nisto: “Combater o amador de alçapões?” — Deus meu! Terá ele fabricado em nossa casa, em todos os nossos palácios, desses espantosos alçapões pivotantes que são os melhores alçapões! — Combater o amador de alçapões no domínio dos alçapões!...
Se a minha esperança era que ele não havia deixado Christine Daaé naquela morada do Lago aonde devia tê-la transportado, mais uma vez, desmaiada, meu terror era que ele já estivesse em algum lugar perto de nós, preparando o laço do Pendjab.
Ninguém melhor do que ele sabe lançar o laço do Pendjab, e ele é o príncipe dos estranguladores, como é o rei dos prestidigitadores. Quando terminou de fazer rir a pequena sultana, no tempo das horas cor-de-rosa de Mazenderã, ela própria lhe pedia que se divertisse fazendo-a estremecer. E ele não achou nada melhor do que o jogo do laço do Pendjab. Erik, que tinha estagiado na índia, voltara de lá com uma destreza incrível para estrangular. Fazia com que o fechassem num pátio aonde traziam um guerreiro — no mais das vezes condenado à morte — armado com uma longa lança e com uma larga espada. Quanto a Erik, só tinha o seu laço, e era sempre no momento em que o guerreiro acreditava estar abatendo Erik com um golpe formidável que se ouvia o laço assobiar. Com um lance de punho, Erik já tinha apertado o fino laço no pescoço do inimigo e arrastava-o imediatamente diante da pequena sultana e de suas mulheres que olhavam de uma janela e aplaudiam. A pequena sultana aprendeu também a lançar o laço do Pendjab e matou assim várias de suas mulheres e até algumas de suas amigas em visita. Mas prefiro abandonar esse assunto da horas cor-de-rosa de Mazenderã. Se falei disso é porque, ao chegar com o visconde de Chagny nos subsolos da Ópera, tive de colocar o meu companheiro de sobreaviso contra uma possibilidade sempre ameaçadora ao redor de nós, de estrangulamento. Certamente, uma vez nos subsolos, as minhas pistolas não podiam mais servir para nada, pois eu estava certo de que, uma vez que não se tinha oposto de início à nossa entrada no caminho dos communards, Erik não mais se deixaria ver. Mas sempre podia estrangular-nos. Não tive tempo de explicar tudo isso ao visconde e até nem sei se, caso dispusesse desse tempo, ousaria contar-lhe que havia, em algum lugar na escuridão, um laço do Pendjab pronto para assobiar. Era mesmo inútil complicar a situação e limitei-me a aconselhar ao Sr. De Chagny que mantivesse sempre a mão à altura do olho, com o braço dobrado na posição do atirador de pistola que aguarda o comando de fogo. Nessa posição, é impossível, mesmo ao mais adestrado estrangulador, lançar eficazmente o laço do Pendjab. Ao mesmo tempo que no pescoço, ele pega no braço ou na mão, e assim esse laço, que se pode facilmente desfazer, torna-se inofensivo.
Depois de termos evitado o delegado de polícia e alguns fechadores de portas, depois os bombeiros, e de encontrado pela primeira vez o matador de ratos e passado despercebidos aos olhos do homem do chapéu de feltro, o visconde e eu chegamos sem tropeços ao terceiro subsolo, entre o suporte e o cenário do Rei de Labore. Fiz bascular a pedra e saltamos na morada que Erik construíra para si dentro do duplo invólucro dos muros de fundação da Ópera (e isso o mais tranqüilamente possível, pois que Erik foi um dos primeiros empreiteiros de alvenaria de Philippe Garnier, o arquiteto da Ópera, e continuara a trabalhar, misteriosamente, sozinho, depois que as obras estavam oficialmente suspensas, durante a guerra, o cerco de Paris e a Comuna).
Eu conhecia bastante o meu Erik para acalentar a presunção de chegar a descobrir todos os truques que tinha podido arquitetar durante todo esse tempo: assim, não estava nada confiante ao saltar para dentro da sua casa. Sabia o que ele tinha feito de certo palácio de Mazenderã. Da mais inocente construção do mundo ele fez em pouco tempo a casa do diabo, onde não se podia mais pronunciar uma palavra sem que ela fosse envenenada ou espalhada pelo eco. Quantos dramas de família! Quantas tragédias sangrentas o monstro arrastava atrás de si com os seus alçapões! Sem contar que nunca se podia, nos palácios onde implantara os seus truques, saber exatamente onde a gente se encontrava. Ele tinha invenções espantosas. Certamente, a mais curiosa, a mais horrível e a mais perigosa de todas era o quarto dos suplícios. Afora os casos excepcionais em que a pequena sultana se divertia fazendo sofrer o burguês, só se deixava entrar ali os condenados à morte. Era, a meu ver, a mais atroz fantasia das horas cor-de-rosa de Mazenderã. Além do mais, quando o visitante que tinha entrado no quarto dos suplícios “já estava farto”, sempre lhe era permitido ir acabar no laço de Pendjab que se deixava à sua disposição ao pé da árvore de ferro!
Ora, qual não foi a minha emoção, logo depois de ter penetrado na morada do monstro, ao perceber que o cômodo em que acabáramos de saltar, o visconde de Chagny e eu, era justamente a reconstituição exata do quarto dos suplícios das horas cor-de-rosa de Mazenderã.
A nossos pés, encontrei o laço do Pendjab que tanto temera toda a noite. Estava convencido de que esse fio já tinha servido para Joseph Buquet. O chefe dos maquinistas, como eu, deve ter surpreendido, certa noite, Erik no momento em que acionava a pedra do terceiro subsolo. Curioso, tinha, por sua vez, tentado a passagem antes que a pedra voltasse a se fechar e tinha caído no quarto dos suplícios, e de lá só tinha saído morto. Imaginei muito bem Erik arrastando o corpo de que desejava se livrar até o cenário do Rei de Lahore e dependurando-o ali para servir de exemplo e para engrossar o terror supersticioso que devia ajudá-lo a guardar os acessos de sua caverna!
Mas, depois de uma reflexão, Erik voltara para buscar o laço de Pendjab, que é muito singularmente feito de tripas de gato e teria podido excitar a curiosidade de um juiz de instrução. Assim se explicava o desaparecimento da corda de enforcado.
E eis que eu o descobria a nossos pés, o laço, no quarto dos suplícios!... Não sou pusilânime, mas um suor frio me inundou o rosto.
A lanterna cujo pequeno disco eu fazia deslizar pelas paredes do famigerado quarto tremia em minha mão.
O Sr. De Chagny percebeu e me disse:
— O que é que está acontecendo?
Fiz-lhe, violentamente, sinal para se calar, pois eu ainda podia ter esta suprema esperança de que estávamos no quarto dos suplícios sem que o monstro soubesse de nada!
E mesmo essa esperança não era a salvação, pois eu podia muito bem imaginar que, do lado do terceiro subsolo, o quarto dos suplícios tinha a função de guardar a morada do Lago, e isso, talvez, automaticamente.
Sim, os suplícios iriam talvez começar automaticamente.
Quem poderia dizer que gestos nossos eles esperavam para isso?
Recomendei a imobilidade mais absoluta ao companheiro.
Um silêncio esmagador pesava sobre nós.
E a minha lanterna vermelha continuava a dar a volta pelo quarto dos suplícios... eu o conhecia... eu o conhecia...
NO QUARTO DOS SUPLÍCIOS
(Continuação da narrativa do Persa)
Estávamos no centro de uma salinha de forma perfeitamente hexagonal, cujos seis painéis de paredes eram interiormente munidos de espelhos, de alto a baixo. Nos cantos, distinguiam-se muito bem as emendas de espelho... os pequenos setores destinados a girar sobre tambores... Sim, sim, eu os reconheço... e reconheço a árvore de ferro num canto, no fundo de um desses pequenos setores... a árvore de ferro, com o seu galho de ferro... para os enforcados.
Eu tinha pegado o braço do meu companheiro. O visconde de Chagny estava todo a tremer de excitação, pronto para gritar para a sua noiva o socorro que lhe trazia... Temi que ele não conseguisse se conter.
De repente, ouvimos um ruído à nossa esquerda.
Foi primeiro como uma porta que se abrisse e se fechasse, no cômodo ao lado, depois houve um gemido surdo. Segurei com mais força o braço do Sr. De Chagny, depois ouvimos distintamente estas palavras:
— E pegar ou largar! A missa de núpcias ou a missa de defuntos. Reconheci a voz do monstro.
Houve ainda um gemido.
Em seguida, um longo silêncio.
Estava persuadido, agora, de que o monstro ignorava a nossa presença em sua morada, pois, se não fosse assim, teria dado um jeito para que não o ouvíssemos. Bastaria, para isso, que fechasse hermeticamente a janelinha invisível pela qual os amantes dos suplícios olham para dentro do quarto de suplícios.
Depois, eu estava certo de que se ele soubesse da nossa presença os suplícios teriam começado imediatamente.
Tínhamos, pois, uma grande vantagem sobre Erik: estávamos ao seu lado e ele não sabia de nada.
O importante era não deixá-lo saber, e eu não temia nada quanto o impulso do visconde de Chagny, que queria se atirar através das paredes para se juntar a Christine Daaé, que, em intervalos, acreditávamos ouvir gemer.
— A missa de defuntos não é nada alegre! — disse Erik —, ao passo que a missa de núpcias é magnífica! É preciso tomar uma decisão e saber o que se quer! Para mim, é impossível continuar a viver assim, no fundo da terra, num buraco, como uma toupeira! Don Juan triunfante está terminado, agora eu quero viver como toda gente. Quero ter uma mulher como toda gente e iremos passear aos domingos. Inventei uma máscara que me faz ficar com o rosto de qualquer um. Não vão nem virar para trás. Você será a mais feliz das mulheres. E cantaremos só para nós, até morrer. Você está chorando? Tem medo de mim? No fundo, entretanto, eu não sou mau! Ame-me e verá! Só me faltou ser amado para ser bom! Se você me amasse, eu seria doce como um cordeiro e você faria de mim o que quisesse.
Logo o gemido que acompanhava essa espécie de ladainha de amor aumentou. Nunca ouvi nada mais desesperado, e o Sr. De Chagny e eu reconhecemos que esse espantoso lamento pertencia ao próprio Erik. Quanto a Christine, devia, em algum lugar, talvez do outro lado da parede que tínhamos à nossa frente, permanecer muda de horror, não tendo mais forças para gritar, com o monstro aos seus pés.
Esse lamento era tonitruante como a queixa de um oceano. Por três vezes Erik arrancou da garganta esta queixa do rochedo.
— Você não me ama! Você não me ama! Você não me ama! Depois, abrandou-se:
— Por que está chorando? Você sabe muito bem que me deixa magoado.
Silêncio.
Cada silêncio, para nós, era uma esperança. Dizíamos a nós mesmos: “Quem sabe ele deixou Christine atrás da parede”.
Só pensávamos na possibilidade de avisar Christine Daaé de nossa presença sem que o monstro desconfiasse.
Agora só podíamos sair do quarto dos suplícios se Christine nos abrisse a porta; e era essa a condição primeira para podermos socorrê-la, pois ignorávamos até o lugar em torno de nós onde estava a porta.
De repente, o silêncio ao lado foi quebrado pelo barulho de uma campainha.
Houve um salto do outro lado da parede e a voz de trovão de Erik:
— Estão tocando! Queira dar-se ao trabalho de entrar! Uma risada lúgubre.
— Quem mais está chegando para nos atrapalhar? Espere aqui um pouco... vou dizer à sereia para abrir.
E passos se afastaram, uma porta se fechou. Não tive tempo de pensar no novo horror que se preparava; esqueci que o monstro só saía para um novo crime talvez; só compreendi uma coisa: Christine estava sozinha do outro lado da parede!
O visconde de Chagny já a chamava:
— Christine! Christine!
Uma vez que estávamos ouvindo o que se dizia no cômodo ao lado, não havia nenhuma razão para que o meu companheiro não fosse ouvido por sua vez. E, no entanto, o visconde teve de repetir várias vezes o seu chamado.
Finalmente, uma voz fraca chegou até nós.
— Estou sonhando — dizia.
— Christine! Christine! Sou eu, Raoul! Silêncio.
— Mas responda, Christine!... se você está sozinha, em nome de Deus, responda.
Então a voz de Christine murmurou o nome de Raoul.
— Sim! Sim! Sou eu! Não é um sonho!... Christine, tenha confiança!... Estamos aqui para salvá-la... Mas nenhuma imprudência!... Quando você ouvir o monstro, avise-nos.
— Raoul! Raoul!
Ela quis que lhe repetisse várias vezes que não estava sonhando e que Raoul de Chagny conseguira vir até ela, conduzido por um companheiro dedicado que conhecia o segredo da morada de Erik.
Mas, brevemente, à muito fugaz alegria que lhe trazíamos sucedeu um terror maior. Ela queria que Raoul se afastasse imediatamente. Tremia de medo de que Erik descobrisse o seu esconderijo pois, nesse caso, ele não hesitaria em matar o rapaz. Informou-nos em poucas palavras que Erik tinha ficado totalmente louco de amor e estava decidido a matar todo mundo e a si mesmo, se ela não consentisse em se tornar sua mulher diante do juiz e do vigário da igreja da Madeleine. Ele lhe tinha dado até o dia seguinte às 11 horas da noite para pensar. Era o último prazo. Era preciso então escolher, como ele dizia, entre a missa de núpcias e a missa de defuntos!
E Erik pronunciara esta frase que Christine não tinha entendido muito bem: “Sim ou não; se for não, todo mundo está morto e enterrado!”
Mas eu, sim, entendi bem a frase, pois ela correspondia de maneira terrível ao meu pensamento temível.
— Poderia nos dizer onde está Erik? — perguntei. Ela respondeu que ele devia ter saído da morada.
— Você poderia certificar-se disso?
— Não!... Estou amarrada... não posso fazer nenhum movimento.
Ao ouvir isso, o Sr. De Chagny e eu não pudemos reter um grito de raiva. Nossa salvação, dos três, dependia da liberdade de movimentos da moça.
— Oh! libertá-la! Chegar até ela!
— Mas onde é que você está? — perguntou ainda Christine... Existem duas portas no meu quarto: o quarto Louis Philippe, de que lhe falei, Raoul!... uma porta por onde Erik entra e sai, e outra que nunca foi aberta na minha frente e pela qual ele me proibiu de jamais passar, porque é a mais perigosa das portas... a porta dos suplícios!...
— Christine, estamos atrás dessa porta!...
— Estão no quarto dos suplícios?
— Estamos, mas não vemos a porta.
— Ah! se eu pudesse pelo menos me arrastar até ela!... Eu bateria na porta e vocês veriam o lugar exato da porta.
— É uma porta com uma fechadura? — perguntei.
— É, com uma fechadura.
Pensei: “Ela se abre do outro lado com uma chave, como todas as portas, mas do nosso lado ela se abre com a mola e o contrapeso, e isso não vai ser fácil de descobrir”.
— Christine! — disse —, é absolutamente necessário que nos abra essa porta.
— Mas como? — respondeu a voz chorosa da infeliz. Ouvimos um corpo que tentava com toda evidência se livrar das amarras que o aprisionavam...
— A única saída para nós é a astúcia — disse eu. — Precisamos ter a chave dessa porta...
— Sei onde ela está — respondeu Christine que parecia esgotada pelo esforço que acabara de fazer. — Mas continuo amarrada!... Aquele miserável!...
E houve um suspiro.
— Onde está a chave? — perguntei, ordenando ao Sr. De Chagny que se calasse e me deixasse conduzir a ação, pois não tínhamos tempo a perder.
— No quarto, ao lado do órgão, com uma outra chavinha de bronze, em que também ele me proibiu de tocar. Estão ambas numa bolsinha de couro que ele chama de A bolsinha da vida e da morte... Raoul!... Raoul... fuja!... tudo aqui é misterioso e terrível... e Erik vai ficar enlouquecido se descobrir que estão aqui... E vocês estão no quarto dos suplícios!... Vão embora por onde vieram! Esse quarto deve ter razões para ser chamado assim!
— Christine! — disse o rapaz —, nós sairemos daqui juntos ou morreremos!
— Só depende de nós sairmos daqui sãos e salvos — repliquei —, mas é preciso conservar o sangue-frio. Por que ele amarrou você? Você não pode escapar da casa dele, ele bem sabe!
— Eu quis me matar! O monstro, esta noite, depois de ter-me transportado desmaiada para cá, meio cloroformizada, ausentou-se. Estava, foi ele quem me disse, na casa do seu banqueiro!... Quando voltou, encontrou-me com o rosto em sangue... eu tinha tentado me matar! Tinha batido a testa nas paredes.
— Christine! — gemeu Raoul e começou a soluçar.
— Então ele me amarrou... não tenho o direito de morrer a não ser amanhã à noite, às 11 horas!...
Toda essa conversa através da parede era muito mais entrecortada e muito mais prudente do que eu poderia dar a impressão ao transcrevê-la aqui. Muitas vezes parávamos no meio de uma frase, porque nos parecia ouvir um estalido, um passo, um movimento insólito... Ela nos dizia: “Não! Não! não é ele!... Ele saiu! Ele saiu mesmo! Reconheci o barulho que faz, ao se fechar, a parede do lago”.
— Christine! — disse eu —, foi o monstro que a amarrou... ele é quem vai desamarrá-la... Trata-se apenas de representar a peça necessária para isso!... Não esqueça que ele a ama!
— Infeliz de mim, como farei para esquecê-lo um dia!
— Lembre-se disso para lhe sorrir... suplique-lhe... diga-lhe que essas amarras a estão machucando.
Mas Christine Daaé nos disse:
— Psiu!... Estou ouvindo algo na parede do lago!... E ele!... Vão-se embora!... Vão-se embora!... Vão-se embora!...
— Não iremos embora, mesmo se quisermos! — afirmei de modo a impressionar a moça. — Não podemos mais sair! E estamos no quarto dos suplícios!
— Silêncio! — sussurrou Christine.
Calamo-nos os três. Passos pesados arrastavam-se lentamente atrás da parede, depois paravam e de novo faziam gemer o assoalho.
Então houve um suspiro formidável seguido de um grito de horror de Christine, e ouvimos a voz de Erik.
— Peço-lhe perdão por lhe mostrar um rosto como este! Estou num belo estado, não é? A culpa é do outro! Por que tocou a campainha? Acaso pergunto aos que passam que horas são? Ele não perguntará mais a hora para ninguém. É culpa da sereia...
Mais um suspiro, mais profundo, mais formidável, vindo das profundezas do abismo de uma alma.
— Por que você gritou, Christine?
— Porque estou sofrendo, Erik.
— Pensei que lhe tinha metido medo...
— Erik, desamarre as cordas... não sou a sua prisioneira?
— Você ainda vai querer morrer...
— Você me deu até amanhã à noite, às 11 horas, Erik... Os passos se arrastam ainda no assoalho.
— Afinal de contas, já que devemos morrer juntos... e tenho tanta pressa quanto você... sim, eu também, estou farto desta vida, você entende!... Espere, não se mexa, vou soltar você... Você só tem uma palavra a dizer: não! e tudo estará acabado imediatamente, para todo o mundo... Você tem razão... você tem razão! Por que esperar até amanhã às 11 horas da noite? Ah! sim, porque ficaria mais bonito!... sempre tive a doença do decoro... do grandioso... é infantil!... E preciso pensar só em si mesmo na vida!... em sua própria morte... o resto é supérfluo... Está vendo como estou molhado?... Ah! minha querida, é que eu fiz mal de sair... está um tempo do cão!... Afora isso, Christine, creio que estou tendo alucinações... Sabe, aquele que estava tocando há pouco a campainha da sirene, vá ver no fundo do lago se ele ainda toca. Pois bem, ele parecia... Aí, vire... está contente? Você está livre... Meu Deus! os seus pulsos, Christine! eu os machuquei, diga?... Só isso já merece a morte... Por falar em morte, eu preciso cantar a missa para ele!
Ao ouvir essas terríveis palavras, não pude evitar um pressentimento horroroso... Também, uma vez, havia tocado a campainha à porta do monstro... e sem o saber, é claro, tinha acionado alguma corrente de alarme... E ainda me lembro dos dois braços que saíram das águas negras como tinta... quem era desta vez o infeliz perdido naquelas margens?
O pensamento daquele infeliz me impedia quase de me alegrar com o estratagema de Christine e, no entanto, o visconde de Chagny murmurava no meu ouvido esta palavra mágica: “Livre!...” Quem? Quem era o outro? Aquele por quem ouvíamos agora a missa de defuntos?
Ah! esse canto sublime e furioso! Toda a casa do Lago troava com ele... Todas as entranhas da terra estremeciam... Tínhamos aplicado os ouvidos contra a parede de espelho para ouvir melhor o jogo de Christine Daaé, o jogo que ela jogava para nossa libertação, mas só ouvíamos a missa de defuntos. Aquilo era mais uma missa de condenados... Fazia, no fundo da terra, uma ronda de demônios.
Lembro-me de que o Dies irae que ele cantou nos envolveu como uma tempestade. Sim, tínhamos o raio ao redor de nós, e relâmpagos... Realmente! eu o ouvira cantar no passado... Ele chegava até a fazer cantar as gargantas de pedra dos meus touros androcéfalos, nas muralhas do palácio de Mazenderã... Mas cantar assim, nunca! nunca! Ele cantava como o deus do trovão...
De repente, a voz e o órgão pararam tão bruscamente que o Sr. De Chagny e eu recuamos atrás da parede, de tal modo ficamos surpresos... E a voz, subitamente mudada, transformada, rangeu distintamente todas estas sílabas metálicas:
— O que é que você fez da minha bolsa?
COMEÇAM OS SUPLÍCIOS
(Continuação da narrativa do Persa)
A voz repetiu com furor:
— O que é que você fez da minha bolsa?
Christine Daaé não devia estar tremendo mais do que nós.
— Era para pegar a minha bolsa que você queria que eu a soltasse, diga?...
Ouviram-se passos precipitados, a corrida de Christine que voltava para o quarto Louis Philippe, como para buscar abrigo diante da nossa parede.
— Por que você está fugindo? — Dizia a voz enraivecida que a seguia... — Você quer me devolver a minha bolsa!? Você não sabe que é a bolsa da vida e da morte?
— Ouça-me, Erik, visto que doravante ficou combinado que devemos viver juntos... o que é que o preocupa?... Tudo o que é seu me pertence!...
Isso foi dito de maneira tão trêmula que dava dó. A coitada devia estar usando tudo que lhe restava de energia para vencer o seu terror... Mas não era com protestos tão infantis, ditos a bater os dentes, que se podia surpreender o monstro.
— Você sabe que aí dentro só estão duas chaves... O que é que você quer fazer? — perguntou.
— Eu queria visitar aquele quarto que eu não conheço e que você sempre me escondeu... E uma curiosidade de mulher! — acrescentou num tom que queria mostrar-se sedutor, mas só conseguiu aumentar a desconfiança de Erik de tanto que soava falso...
— Não gosto de mulheres curiosas! — replicou Erik —, e você deveria se precaver desde a história do Barba-Azul... Vamos! devolva a minha bolsa!... devolva a minha bolsa!... Pequena curiosa!
E ele deu uma risada enquanto Christine soltava um grito de dor... Erik acabara de retomar a bolsa.
Foi nesse momento que o visconde, perdendo o controle, lançou um grito de raiva e de impotência, que tive grande dificuldade para reter em seus lábios...
— Ora essa! — disse o monstro. — O que é isso?... Você não ouviu, Christine?
— Não! não! — respondeu a infeliz —, não ouvi nada!
— Parece-me que deram um grito!
— Um grito!.. Você está ficando louco, Erik?... Quem você acha que iria gritar no fundo desta morada?... Fui eu que gritei porque você estava me machucando!... Eu não ouvi nada!...
— Enquanto você está dizendo isso, você está tremendo!... Você está bastante perturbada!... Você está mentindo!... Alguém gritou! alguém gritou! Há alguém no quarto dos suplícios!... Ah! estou entendendo agora!...
— Não tem ninguém, Erik!...
— Estou entendendo!...
— Ninguém!...
— O seu noivo... talvez!...
— Eu não tenho noivo!... Você sabe muito bem!... Mais uma risada sardônica.
— Aliás, é tão fácil saber... Minha queridinha, meu amor... não é preciso abrir a porta para ver o que se passa no quarto dos suplícios... Basta puxar a cortina preta e apagar as luzes aqui... Pronto, está feito... Vamos apagar! Você não tem medo da noite, na companhia do seu maridinho!...
Então se ouviu a voz agonizante de Christine.
— Não!... Eu tenho medo!... Eu lhe digo que morro de medo na noite!... Aquele quarto não me interessa mais!... E você que me deixa com medo o tempo todo, como a uma criança, com esse quarto dos suplícios!... Então fiquei curiosa, é verdade!... Mas ele não me interessa mais, absolutamente... absolutamente!...
E aquilo que eu temia mais do que tudo começou automaticamente... Fomos, de repente, inundados de luz!... Sim, atrás da nossa parede, foi como um abrasamento. O visconde de Chagny, que não esperava por aquilo, ficou tão surpreso que cambaleou. E a voz de cólera estrondeou ao lado.
— Eu lhe disse que tinha alguém!... Você está vendo, agora a janela?... a janela luminosa!... Bem lá no alto!... Quem está atrás da parede não a vê!... Mas você vai subir na escadinha. Ela está aí para isso!... Você me perguntou muitas vezes para que ela servia... Pois bem, você agora está sabendo!... Serve para se olhar pela janela do quarto dos suplícios... pequena curiosa!...
— Que suplícios?... que suplícios existem lá dentro?... Erik! Erik! diga-me que você quer meter-me medo!...Diga-me isso, se você me ama, Erik!... Não é verdade que não há suplícios? São histórias para crianças!...
— Vá ver, minha querida, na janelinha!...
Não sei se o visconde, ao meu lado, ouvia agora a voz abatida da jovem mulher, de tal modo estava ocupado com o espetáculo inaudito que acabara de surgir diante dos seus olhos perdidos... Quanto a mim, que já tinha visto esse espetáculo muitas vezes, pela janelinha das horas cor-de-rosa de Mazenderã, estava atento ao que se dizia ao lado, buscando uma razão para agir, uma resolução a tomar.
— Vá olhar, vá olhar na janelinha!... Você me dirá!... Você me dirá depois como é feito o nariz dele!
Ouvimos rolar a escada que foi encostada à parede...
— Suba então!... Não!... Não, eu vou subir... eu, minha querida!...
— Pois bem, deixe... eu vou ver... deixe-me!
— Ah! minha queridinha!... Minha queridinha!... como você é engraçadinha... E muito gentil da sua parte poupar-me desse trabalho, na minha idade!... Você me dirá como é feito o nariz dele!... Se as pessoas tivessem idéia da felicidade que há em se ter um nariz... um nariz bem da gente... nunca viriam passear no quarto dos suplícios!...
Nesse instante, ouvimos distintamente, acima de nossas cabeças, estas palavras:
— Meu amigo, não há ninguém!...
— Ninguém?... Você está certa de que não há ninguém?...
— Palavra, não... não há ninguém...
— Ora, tanto melhor!... O que é que você tem, Christine?...
Ora, quê! Você não vai se sentir mal!... Já que não há ninguém!... Lá!... desça!... Aí!... Recupere-se, já que não há ninguém... Mas o que você acha da paisagem?...
— Oh! muito bonita!...
— Vamos! agora está melhor!... Não é, está melhor!... Tanto melhor!... Sem emoção!... E que casa esquisita, não é, onde se podem ver semelhantes paisagens?...
— Sim, parece que se está no Museu Grévin!... Mas diga, Erik... não há suplícios lá dentro!... Sabe que você me pôs um medo!...
— Por quê, já que não há ninguém!...
— Foi você quem fez aquele quarto, Erik?... Sabe que é muito bonito! Realmente, você é um grande artista, Erik...
— Sim, um grande artista “no meu gênero”.
— Mas diga-me, Erik, por que você chama de quarto dos suplícios?...
— E bem simples. Primeiro, o que foi que você viu?
— Vi uma floresta!...
— E o que há na floresta?
— Árvores!...
— E o que há numa árvore?
— Passarinhos...
— Você viu passarinhos...
— Não, não vi passarinhos.
— Então, o que foi que você viu? Procure!... Você viu galhos! E o que há num galho? — pergunta a voz terrível. — Há uma forca! Aí está por que chamo a minha floresta de quarto dos suplícios!... Está vendo, não passa de um modo de falar! Tudo isso é de brincadeira!... Eu nunca me exprimo como os outros!... Não faço nada como os outros!... Mas já estou cansado de tudo isso!... bem cansado!... Estou farto, está vendo, de ter uma floresta na minha casa e um quarto dos suplícios!... E de ficar alojado, como um charlatão, no fundo de uma caixa de fundo duplo!... Estou farto!... estou farto!... Quero ter um apartamento tranqüilo, com portas e janelas comuns e uma mulher honesta dentro, como toda a gente!... Você deveria entender isso, Christine, e eu não devia precisar repetir-lhe isso a toda hora!... Uma mulher como toda gente tem!...
Uma mulher que eu amaria, que levaria para passear aos domingos, e que eu faria rir a semana toda! Ah! Você não ia se aborrecer comigo! Eu tenho mais de um truque na manga, sem contar os truques de baralho!... Escute! Quer que eu lhe mostre um truque de baralho? Sempre vai servir para passarmos alguns minutos, enquanto esperamos chegar amanhã à noite, 11 horas!... Minha pequena Christine!... Minha pequena Christine!... Você está me escutando?... Você vão me rejeita mais!... diga? Você me ama!... Não, você não me ama!... Mas não faz mal! Você me amará! Antigamente você não podia olhar para a minha máscara porque não sabia o que estava atrás... E agora você pode olhar e você esquece o que está atrás, e você aceita não me rejeitar mais!... A gente se acostuma com tudo, quando quer... quando se tem boa vontade!... quantos jovens que não se amavam antes do casamento passaram a se adorar depois! Ah! não sei mais o que estou dizendo... Mas você vai se divertir muito comigo!... Não existe um como eu, por exemplo, isso eu lhe juro diante do bom Deus que vai nos casar — se você for razoável —, não há ninguém como eu para fazer o truque do ventríloquo! Sou o primeiro ventríloquo do mundo! Você está rindo?... Você não acredita em mim!... Escute!
O miserável (que era de fato o primeiro ventríloquo do mundo) atordoava a pequena (eu me dava conta disso perfeitamente) para desviar-lhe a atenção do quarto dos suplícios!... Cálculo estúpido!... Christine só pensava em nós!... Ela repetiu várias vezes, no tom mais meigo que pôde encontrar e com a mais ardente súplica: “Apague a janelinha!... Erik! apague a janelinha!...”
Porque ela pensava que aquela luz, de repente surgida na janelinha, e de que o monstro tinha falado de maneira tão ameaçadora, tinha a sua razão terrível de ser... Uma única coisa devia tranqüilizá-la momentaneamente: é que ela nos tinha visto a ambos, atrás da parede, no centro do magnífico abrasamento, de pé e bem dispostos!... Mas teria ficado mais sossegada, claro, se a luz fosse apagada...
O outro já tinha começado a sua demonstração de ventríloquo. Dizia:
— Olhe, estou levantando um pouco a minha máscara! Um pouco só... Está vendo os meus lábios? O que tenho de lábios? Eles não se movem!... Minha boca está fechada... minha espécie de boca... e no entanto você está ouvindo a minha voz!... Eu falo com a barriga... é muito natural... chamam a isso ser ventríloquo!... É bastante conhecido: ouça a minha voz... aonde você quer que ela vá? No seu ouvido esquerdo? no seu ouvido direito?... na mesa?... nos cofrinhos de ébano da lareira!... Ah! isso a espanta?... Minha voz está nos cofrinhos da lareira! Você a quer distante?... Você a quer próxima?... Retumbante?... Aguda?... Fanhosa?... Minha voz passeia por toda parte!... por toda parte!... Ouça, minha querida... no cofrinho da direita da lareira, e ouça o que ela está dizendo: É preciso girar o escorpião?... E agora ouça ainda o que ela diz no cofrinho da esquerda: É preciso girar o gafanhoto? E agora lá está ela na bolsinha de couro... O que é que ela diz? “Eu sou a bolsinha da vida e da morte!” E agora ela está na garganta de Carlotta, no fundo da garganta dourada, da garganta de cristal de Carlotta, minha palavra!... O que é que ela diz? Ela diz: “Sou eu, o senhor sapo! sou eu quem canta Escuto essa voz solitária... coaxo!... que canta coaxando!!...” E agora ela chegou a uma cadeira do camarote do fantasma... e ela diz: “A Sra. Carlotta esta noite está cantando de arrancar o lustre!...” E agora, ah! ah! ah!... aonde vai a voz de Erik?... Ouça, Christine, minha querida!... Ouça... Ela está atrás da porta do quarto dos suplícios!... Ouça-me!... Sou eu que estou no quarto dos suplícios!... E o que é que eu digo? Digo: “Ai daqueles que têm a felicidade de ter um nariz, um nariz próprio e de verdade, e que vêm passear no quarto dos suplícios!... Ah! ah! ah!”
Maldita voz do formidável ventríloquo! Ela estava por toda parte, por toda parte!... Passava pela janelinha invisível... através das paredes... corria ao redor de nós... entre nós... Erik estava ali!... Falava conosco!... Fizemos um gesto como que para nos atirar sobre ele... mas, já, mais rápido, mais inatingível do que a voz sonora do eco, a voz de Erik tinha saltado de volta para trás da parede!...
Logo não pudemos mais ouvir absolutamente nada, pois eis o que se passou:
A voz de Christine:
— Erik! Erik!... Você está me cansando com a sua voz... Fique quieto, Erik!... Você não acha que está fazendo muito calor aqui?...
— Oh! Sim! — respondeu a voz de Erik —, o calor está se tornando insuportável!...
E de novo a voz rouca de angústia de Christine:
— O que significa isto?!... A parede está toda quente!... A parede está queimando!...
— Vou lhe dizer, Christine, minha querida, é por causa da “floresta ao lado!...”
— E então... o que é que você quer dizer... a floresta?...
— Você não viu então que era uma floresta do Congo?
E a risada do monstro explodiu tão terrível que não distinguíamos mais os clamores suplicantes de Christine!... O visconde de Chagny gritava e batia nas paredes como um louco... Eu não conseguia mais segurá-lo... Mas só se ouvia a risada do monstro... e o monstro mesmo só devia ouvir seu próprio riso... Depois houve o ruído de uma rápida luta, de um corpo que cai no chão e que é arrastado... e o estalo de uma porta que se fecha com toda força... e depois, nada mais ao redor de nós a não ser o silêncio abrasado do meio-dia... no coração de uma floresta da África!...
“TONÉIS! TONÉIS! TÊM TONÉIS PARA VENDER?”
(Continuação da narrativa do Persa)
Eu disse que aquele quarto em que nos encontrávamos, o Sr. De Chagny e eu, era regularmente hexagonal e inteiramente revestido de espelhos. Viu-se depois, principalmente em certas exposições, esse tipo de quartos dispostos absolutamente assim e chamados “casa das miragens” ou “palácio das ilusões”. Mas a invenção cabe inteiramente a Erik, que construiu, sob a minha vista, a primeira sala desse gênero no tempo das horas cor-de-rosa de Mazenderã. Bastava colocar em um dos cantos algum motivo decorativo, como uma coluna, por exemplo, para se ter instantaneamente um palácio com mil colunas, pois, pelo efeito dos espelhos, a sala real se desdobrava em seis salas hexagonais, das quais cada uma se multiplicava ao infinito. Outrora, para divertir a “pequena sultana”, ele tinha arrumado um cenário que se tornara o “templo inumerável”; mas a pequena sultana se cansou depressa de uma ilusão tão infantil, e então Erik transformou a sua invenção em câmara de suplícios. Em vez do motivo arquitetônico posto nos cantos, colocou no primeiro quadro uma árvore de ferro. Por que essa árvore, que imitava perfeitamente a vida, com suas folhas pintadas, era de ferro? Porque tinha de ser bastante forte para resistir a todos os ataques do “paciente” que era trancado na câmara dos suplícios. Veremos como, por duas vezes, o cenário assim obtido se transformou instantaneamente em dois outros cenários sucessivos, graças à rotação automática dos tambores que se encontravam nos cantos e tinham sido divididos por terços, adequando-se aos ângulos dos espelhos e suportando cada motivo decorativo que aparecia por sua vez.
As paredes dessa estranha sala não ofereciam ao paciente nada a que ele pudesse se agarrar, visto que, afora o motivo decorativo de uma resistência a toda prova, eram guarnecidas apenas de espelhos suficientemente grossos para que não houvesse nada a temer da raiva do miserável que lançavam lá dentro, aliás, de mãos limpas e pés descalços.
Nenhum móvel. O teto era luminoso. Um sistema engenhoso de aquecimento elétrico, que foi imitado depois, permitia aumentar a temperatura das paredes à vontade e dar assim à sala a temperatura desejada...
Faço questão de enumerar todos os pormenores precisos de uma invenção natural que dá a impressão sobrenatural, com alguns galhos pintados, de uma floresta equatorial abrasada pelo sol do meio-dia, para que ninguém possa pôr em dúvida a tranqüilidade atual do meu cérebro, para que ninguém tenha o direito de dizer: “Esse homem ficou louco”, ou “esse homem está mentindo”, ou “esse homem nos toma por imbecis”.[12]
Se eu tivesse simplesmente contado as coisas assim: “Tendo descido ao fundo de um porão, encontramos uma floresta equatorial abrasada pelo sol do meio-dia”, teria obtido um grande espanto, mas não busco causar espanto em ninguém, sendo o meu objetivo, ao escrever estas linhas, contar exatamente o que nos aconteceu, ao Sr. visconde de Chagny e a mim, no decurso de uma aventura terrível que, em dado momento, ocupou a Justiça deste país.
Retomo agora os fatos onde os deixei.
Quando o teto se iluminou e, ao redor de nós, a floresta se iluminou, a estupefação do visconde ultrapassou tudo que se possa imaginar. A aparição dessa floresta impenetrável, cujos troncos e galhos incontáveis nos enlaçavam até o infinito, mergulhou-o numa consternação apavorante. Passou a mão na testa como para espantar uma visão de sonho e os seus olhos piscavam como olhos que têm dificuldade, ao acordar, para retomar a consciência da realidade das coisas. Por um instante, ele se esqueceu de escutar!
Disse que a aparição da floresta não me surpreendeu. Assim, continuava escutando, para nós dois, o que se passava na sala ao lado. Finalmente, minha atenção ficou especialmente voltada menos para o cenário, de que o meu pensamento se livrava, do que para o próprio espelho que o produzia. Esse espelho, em alguns pontos, estava fendido.
Sim, tinha trincaduras; tinham conseguido “estrelá-lo”, apesar de sua solidez, e isso me provava, sem deixar dúvidas, que o quarto dos suplícios em que nos encontrávamos já tinha sido utilizado!
Algum infeliz, cujos pés e mãos estavam menos despidos do que os dos condenados das horas cor-de-rosa de Mazenderã, tinha certamente caído nessa “ilusão mortal”, e, louco de raiva, tinha batido nesses espelhos que, apesar de suas leves feridas, não deixaram de continuar refletindo a sua agonia! E o galho da árvore, onde terminara o seu suplício, estava disposto de tal forma que, antes de morrer, tinha podido ver estrangular-se junto com ele — consolo supremo — milhares de enforcados!
Sim! Sim! Joseph Buquet tinha passado por ali!...
Também nós vamos morrer como ele?
Eu não acreditava, pois sabia que ainda tínhamos algumas horas e poderia usá-las mais utilmente do que Joseph Buquet fora capaz de fazer.
Não tinha eu um conhecimento aprofundado da maioria dos truques de Erik? Era o momento — ou nunca mais — de me servir dele.
Primeiro, não pensei mais em voltar pela passagem que nos conduzira a esse quarto maldito, não me preocupei mais com a possibilidade de repetir o movimento da pedra interior que fechava essa passagem. A razão era simples: eu não tinha os meios!... Tínhamos saltado de muito alto para dentro do quarto dos suplícios e nenhum móvel nos permitia de ora em diante atingir aquela passagem, nem mesmo o galho da árvore de ferro, nem mesmo os ombros de um de nós dois que servisse de escada.
Só havia uma saída possível: a que dava para o quarto Louis Philippe, onde se encontravam Erik e Christine Daaé. Mas, se essa saída do lado de Christine tinha o aspecto de uma porta comum, do nosso lado ela era totalmente invisível... Era preciso então tentar abri-la sem mesmo saber em que lugar da parede estava, o que não era uma tarefa corriqueira.
Quando estive completamente certo de que não havia mais nenhuma esperança para nós, quando ouvi o monstro puxar, ou melhor, arrastar a infeliz moça para fora do quarto Louis Phillipe para que ela não atrapalhasse o nosso suplício, resolvi entregar-me totalmente à tarefa, isto é, à procura do truque da porta.
Mas primeiro foi necessário acalmar o Sr. De Chagny, que já andava pela clareira como um alucinado, soltando clamores incoerentes. Os farrapos de conversa que ele pôde captar, apesar de sua emoção, entre Christine e o monstro não tinham contribuído pouco para colocá-lo fora de si; se acrescentarmos a isso o golpe da floresta mágica e o calor escaldante que começava a fazer escorrer o suor em suas fontes, não será difícil entender que o humor do Sr. De Chagny começava a sofrer certa exaltação. Apesar de todas as minhas recomendações, meu companheiro não demonstrava mais nenhuma prudência.
Ia e vinha sem razão, precipitava-se num espaço inexistente, acreditando entrar numa alameda que conduzia ao horizonte e chocando a testa, depois de alguns passos, contra o próprio reflexo de sua ilusão de floresta!
Enquanto fazia isso, gritava: “Christine! Christine!...” e brandia a pistola, chamando ainda, com todas as suas forças, o monstro, desafiando para um duelo de morte o Anjo da música, e injuriava igualmente a sua floresta ilusória. Era o suplício que produzia o seu efeito numa mente desprevenida. Tentei tanto quanto possível combater isso, fazendo, com toda tranqüilidade, com que o visconde voltasse à plenitude de sua razão: fi-lo tocar com a mão os espelhos e a árvore de ferro, os galhos sobre os tambores, explicando-lhe, segundo as leis da óptica, todo o jogo de imagens luminosas de que estávamos cercados e de que não podíamos, como ignorantes vulgares, nos tornar vítimas!
— Estamos num quarto, num pequeno quarto, eis aí o que o senhor deve repetir continuamente... e sairemos deste quarto quando tivermos encontrado a porta. Pois bem, procuremos essa porta!
E prometi-lhe que, se me deixasse agir, sem me atordoar com os seus gritos e seus passeios de louco, antes de uma hora eu encontraria a porta.
Então ele se deitou no chão e declarou que esperaria que eu achasse a porta da floresta, já que não tinha nada melhor para fazer! E ainda acrescentou que, do lugar onde se encontrava, “a vista era esplêndida”. (O suplício, apesar de tudo que eu tinha dito, continuava agindo.)
Quanto a mim, esquecendo a floresta, escolhi um painel de espelhos e pus-me a apalpá-lo em todos os sentidos, procurando o seu ponto fraco, onde se devia apertar para fazer girar as portas segundo o sistema das portas e alçapões pivotantes de Erik. Às vezes esse ponto fraco podia ser uma simples mancha sobre o espelho, do tamanho de uma ervilha, por baixo da qual estava a mola que se devia acionar. Procurei! Procurei! Apalpei tão alto quanto as minhas mãos podiam alcançar. Erik tinha mais ou menos o meu porte e eu achava que ele não tinha colocado a mola acima do que a sua altura poderia atingir — isso era, aliás, apenas uma hipótese, mas era a minha única esperança. — Decidira assim, sem fraquejar e minuciosamente, fazer a volta dos seis painéis de espelhos e depois examinar igualmente, com muita atenção, o piso.
Ao mesmo tempo que apalpava cuidadosamente os painéis, esforçava-me por não perder um minuto, pois o calor me dominava cada vez mais e estávamos literalmente sendo cozinhados nessa floresta inflamada.
Estava trabalhando assim havia meia hora e terminara três painéis quando nossa má sorte quis que eu me voltasse para uma surda exclamação lançada pelo visconde.
— Estou sufocando! — disse ele. — Todos esses espelhos enviam uns aos outros um calor infernal!... Será que você vai demorar para encontrar a sua mola? Se você atrasar um pouco, vamos ficar assados aqui dentro!
Não me desagradou ouvi-lo falar assim. Não tinha dito nenhuma palavra sobre a floresta e esperei que a razão do meu companheiro pudesse lutar por bastante tempo ainda contra o suplício. E ele acrescentou:
— O que me consola é que o monstro deu até amanhã às 11 horas da noite a Christine: se não pudermos sair daqui para socorrê-la, pelo menos teremos morrido antes dela! A missa de Erik poderá servir para todos!
E aspirou uma baforada de ar quente que quase o fez desmaiar...
Como eu não tivesse as mesmas razões desesperadas que o visconde de Chagny para aceitar a morte, voltei-me, depois de algumas palavras encorajadoras, para o painel, mas fiz mal de dar alguns passos enquanto falava; tanto assim que no entrecruzamento enorme da floresta ilusória não sabia mais com certeza qual era o meu painel! Via-me obrigado a recomeçar tudo, ao acaso... Assim, não pude deixar de manifestar minha desdita e o visconde entendeu que tudo estava por refazer. Isso lhe deu um novo golpe.
— Nunca sairemos desta floresta! — gemeu.
E o seu desespero não fez mais que aumentar. E, aumentando, esse desespero o fazia cada vez mais se esquecer que estava tratando com espelhos e acreditar cada vez mais que estava a braços com uma floresta verdadeira.
Eu tinha voltado às minhas buscas... a tatear... A febre, agora, começava a tomar conta de mim... pois eu não encontrava nada... absolutamente nada... No quarto ao lado era sempre o mesmo silêncio. Estávamos mesmo perdidos na floresta... sem saída... sem bússola... sem guia... sem nada. Oh! eu sabia o que nos esperava se ninguém viesse em nosso socorro... ou se não achasse a mola... Mas por mais que a procurasse, só achava galhos... admiráveis, belos galhos que se erguiam bem eretos diante de mim ou se arredondavam preciosamente acima de minha cabeça... Mas não faziam sombra! E bastante natural, aliás, visto que estávamos numa floresta equatorial com o sol bem acima de nossas cabeças... uma floresta do Congo...
Repetidas vezes, o Sr. De Chagny e eu tínhamos tirado e voltado a colocar os nossos casacos, achando ora que nos davam mais calor, ora que nos protegiam, ao contrário, desse calor.
Eu ainda resistia moralmente, mas o Sr. De Chagny me pareceu totalmente “desligado”. Ele julgava que já fazia três dias e três noites que estávamos caminhando na floresta, sem parar, em busca de Christine Daaé. De vez em quando, acreditava que a avistava atrás de um tronco de árvore ou deslizando entre os galhos, e a chamava com palavras suplicantes que me faziam vir lágrimas aos olhos.
— Christine! Christine! — dizia —, por que você foge de mim? Você não me ama?... Não estamos noivos?... Christine, pare!... Você está vendo que estou exausto!... Christine, tenha piedade!... Vou morrer na floresta... longe de você!... Oh! tenho sede! — disse ele finalmente com um acento delirante.
Eu também estava com sede... estava com a garganta em fogo....
E no entanto, agachado agora no chão, isso não me impedia de procurar... procurar... procurar a mola da porta invisível... tanto mais que o dia na floresta se tornava perigoso com a aproximação da noite... isso chegou rápido como cai a noite nas regiões equatoriais... subitamente, quase sem crepúsculo...
Ora, a noite nas florestas do equador é sempre perigosa, principalmente quando a gente não tem com que acender uma fogueira para afastar os animais ferozes. Eu bem que tentei, deixando um pouco de lado a busca da minha mola, quebrar alguns galhos que eu acenderia com a minha lanterna surda, mas esbarrara, também eu, nos famigerados espelhos, e isso me lembrou a tempo que só estávamos lidando com imagens de galhos...
Com o dia, o calor não foi embora, pelo contrário... Fazia ainda mais calor sob o clarão azul da lua. Recomendei ao visconde que mantivesse as nossas armas prontas para fazer fogo e que não se afastasse do lugar do nosso acampamento, enquanto eu continuava procurando a mola.
De repente, ouviu-se o rugido do leão, a alguns passos. O ruído dilacerou os nossos ouvidos.
— Ele não está longe! — disse o visconde em voz baixa —, ele não está longe!... Não o está vendo?... ali... por entre as árvores! naquela moita... Se rugir de novo, eu atiro!...
E o rugido recomeçou, mais formidável. E o visconde atirou, mas não penso que tenha atingido o leão; só que ele quebrou o espelho, constatei isso no dia seguinte, na aurora, de madrugada. Durante a noite devemos ter feito uma boa caminhada, pois nos encontramos de repente à beira do deserto, de um imenso deserto de areia, de pedras e rochedos. Não valia realmente a pena sair da floresta para cair no deserto. Cansado de guerra, estendi-me ao lado do visconde, pessoalmente exausto de buscar molas que não encontrava nunca.
Eu estava mesmo admirado (disse isso ao visconde) de não ter tido outros encontros desagradáveis durante a noite. Geralmente, depois do leão, vinha o leopardo, depois, às vezes, o zumbido da mosca tsé-tsé. Eram efeitos bem fáceis de se obter, e expliquei ao Sr. De Chagny, enquanto descansávamos antes de atravessar o deserto, que Erik obtinha o rugido do leão com um longo tamborim, terminado por uma pele de jumento em apenas uma das extremidades. Sobre essa pele era esticada uma corda de tripa amarrada pelo centro a outra corda do mesmo gênero que atravessava o tambor em toda a sua altura. Erik só precisava então esfregar essa corda com uma luva untada de colofônia e, pela maneira como esfregava, imitava perfeitamente a voz do leão ou do leopardo, ou mesmo o zumbido da mosca tsé-tsé.
Essa idéia de que Erik podia estar no quarto ao lado, com os seus truques, me impeliu a tomar a resolução de tentar negociar com ele, pois, evidentemente, eu tinha de renunciar à idéia de surpreendê-lo. E agora ele devia saber a que se ater com relação aos hóspedes do quarto dos suplícios.
— Erik! Erik!... — gritei o mais forte que pude através do deserto, mas ninguém respondeu à minha voz... Por toda parte ao nosso redor, o silêncio e a imensidão nua daquele deserto pétreo... Que seria de nós no meio daquela horrenda solidão?...
Literalmente, começávamos a morrer de calor, de fome e de sede... de sede principalmente... Enfim, vi o Sr. De Chagny levantar-se sobre os cotovelos e indicar-me um ponto no horizonte... Acabara de descobrir o oásis!...
Sim, lá, bem longe, o deserto cedia lugar ao oásis... um oásis com água... água límpida como um espelho... água que refletia a árvore de ferro!... Ah aquilo... era o quadro da miragem... eu o reconheci imediatamente... o mais terrível... Ninguém tinha conseguido resistir a ele... ninguém... Esforcei-me para segurar toda a minha razão... e não esperar a água... porque eu sabia que, se a gente esperasse a água, a água que refletia a árvore de ferro, e se, depois de ter esperado a água, a gente esbarrasse contra o espelho, só havia uma coisa a fazer: enforcar-se na árvore de ferro!...
Assim, gritei ao Sr. De Chagny:
— E uma miragem!... é uma miragem!... não acredite na água!... é ainda o truque do espelho!...
Então ele me mandou, como se diz, simplesmente passear, com o meu truque do espelho, minhas molas, minhas portas giratórias e meu palácio de miragens!... Afirmou, raivoso, que eu estava louco ou cego para imaginar que toda aquela água que corria lá longe, entre tão belas e inumeráveis árvores, não era água de verdade!... E o deserto era de verdade! E a floresta também!... Não era a ele que eu devia estar querendo enganar... ele tinha viajado bastante... e em todos os países...
E arrastou-se dizendo:
— Água! Água!...
E estava com a boca aberta como se bebesse...
E eu também estava com a boca aberta como se bebesse...
Porque não só nós víamos a água, como também a ouvíamos!... Ouvíamos a água correr... marulhar!... Vocês entendem essa palavra marulhar?... E uma palavra que a gente ouve com a língua!... A língua se puxa para fora da boca para escutá-la melhor!...
Finalmente, suplício mais intolerável do que tudo, ouvimos a chuva e não estava chovendo! Isso era a invenção demoníaca... Oh! eu sabia também como é que Erik obtinha esse efeito! Enchia de pedrinhas uma caixa bem estreita e longa, cortada em intervalos por barras transversais de madeira ou de metal. As pedrinhas, ao caírem, encontravam essas barras transversais e ricocheteavam de uma para outra, e daí se produziam sons sacudidos que lembravam de modo absolutamente perfeito o ruído de uma tempestade com granizo.
... Era preciso ver como púnhamos a língua de fora, o Sr. De Chagny e eu, arrastando-nos pela margem marulhante... os nossos olhos e orelhas estavam cheios de água, mas a nossa língua estava seca!...
Chegando ao espelho, o Sr. De Chagny pôs-se a lambê-lo... e eu também... lambi o espelho...
Ele estava quentíssimo!...
Então rolamos pelo chão, uivando desesperadamente. O Sr. De Chagny aproximou do ouvido a última pistola que restava carregada e eu olhei, aos meus pés, um laço do Pendjab.
Eu sabia por que, nesse último cenário, tinha voltado a árvore de ferro!...
A árvore de ferro estava à minha espera!...
Mas, conforme eu olhava o laço do Pendjab, vi uma coisa que me fez estremecer tão violentamente que o Sr. De Chagny parou no seu movimento de suicídio. Ele já murmurava: “Adeus, Christine!...”
Agarrei-lhe o braço. Tomei-lhe a pistola... e depois arrastei-me de joelhos até aquilo que eu tinha visto.
Tinha acabado de descobrir, perto do laço do Pendjab, na ranhura do assoalho, um prego de cabeça preta que eu sabia muito bem para que servia...
Finalmente! tinha encontrado a mola!... a mola que ia acionar a porta!... que ia dar-nos a liberdade!... que ia entregar-nos Erik.
Apalpei o prego... Mostrei ao Sr. De Chagny um rosto radiante!... O prego de cabeça preta cedia à minha pressão...
E então...
... E então não foi uma porta que se abriu na parede, mas um alçapão que disparou no assoalho.
Imediatamente, desse buraco escuro, chegou-nos ar fresco. Debruçamo-nos sobre esse quadrado de sombra como sobre uma fonte cristalina. Com o queixo na sombra fresca, nós a bebíamos.
E nos curvávamos cada vez mais sobre o alçapão. O que poderia haver naquele buraco, naquele porão que acabara de abrir misteriosamente a sua porta no assoalho?...
Talvez houvesse, lá dentro, água...
Água para beber...
Estendi o braço na escuridão e encontrei uma pedra, depois outra... uma escada... uma escada negra que descia para o porão.
O visconde já estava prestes a se lançar no buraco!...
Lá dentro, mesmo que a gente não encontrasse água, poderia escapar ao abraço brilhante desses abomináveis espelhos.
Segurei o visconde, pois temia um novo golpe do monstro e, com a minha lanterna acesa, desci primeiro...
A escadaria mergulhava nas mais profundas trevas e girava sobre si mesma. Ah! que adorável frescor o da escada e das trevas!...
Esse frescor devia vir menos do sistema de ventilação estabelecido necessariamente por Erik do que da frescura natural da terra que devia estar toda saturada de água no nível em que nos encontrávamos... E além disso o lago não devia estar longe!...
Não demorou, chegamos ao pé da escada... Os nossos olhos começavam a se acostumar com a escuridão, a distinguir, em torno de nós, formas... formas redondas... para as quais dirigi o jato luminoso de minha lanterna...
Tonéis!...
Estávamos na adega de Erik!
Era ali que ele devia guardar o vinho e, talvez, a água potável... Eu sabia que Erik era grande amador de bons vinhos... Ah! se tinha ali o que beber!...
O Sr. De Chagny acariciava as formas redondas e dizia incansavelmente:
— Tonéis! tonéis!... Quantos tonéis!...
De fato, havia ali certa quantidade, alinhada simetricamente em duas fileiras, entre as quais nos encontrávamos...
Eram tonéis pequenos e imaginei que Erik os havia escolhido desse tamanho para facilitar o transporte para a casa do Lago!...
Nós os examinávamos uns depois dos outros, procurando se dentre eles não havia algum que tivesse uma torneirinha, a indicar que de vez em quando se retirava um pouco de seu conteúdo.
Mas todos os tonéis estavam hermeticamente fechados.
Então, depois de ter levantado um pouco um para ver se estava cheio, pusemo-nos de joelhos e, com a lâmina de um canivete que trazia comigo, tomei as providências para fazer saltar a rolha.
Nesse momento, pareceu-me ouvir, como se viesse de muito longe, uma espécie de canto monótono cujo ritmo me era conhecido, pois o tinha ouvido com freqüência nas ruas de Paris:
“Tonéis!... Tonéis!... Têm tonéis para vender?...”
Minha mão ficou paralisada sobre a rolha... O Sr. De Chagny também tinha ouvido. Ele me disse:
— E esquisito!... Tem-se a impressão de que é o tonel que está cantando!...
O canto recomeçou mais longinquamente... “Tonéis!... Tonéis!... Têm tonéis para vender?...”
— Oh! oh! eu lhe juro — disse o visconde — que o canto se afasta dentro do tonel!...
Levantamo-nos e fomos olhar atrás do tonel...
— É lá dentro — dizia o Sr. De Chagny —, é lá dentro!... Mas já não ouvíamos mais nada... e ficamos reduzidos a pôr a culpa no mau estado, na confusão real de nossos sentidos...
E voltamos para a rolha. O Sr. De Chagny pôs as duas mãos juntas embaixo e, num último esforço, fiz saltar a rolha.
— Que é isto? — bradou imediatamente o visconde. — Isto não é água!
O visconde tinha aproximado as duas mãos cheias da minha lanterna... Debrucei-me sobre as mãos do visconde... e, de imediato, atirei tão bruscamente a lanterna para longe de nós que ela se quebrou e se apagou... e se perdeu para nós...
O que eu acabara de ver nas mãos do visconde de Chagny era pólvora!
É PRECISO GIRAR O ESCORPIÃO?
É PRECISO GIRAR O GAFANHOTO?
(Final da narrativa do Persa)
Assim, descendo ao fundo do subterrâneo, eu tinha tocado no âmago do pensamento temível! O miserável não me havia enganado com as suas vagas ameaças dirigidas a muitos daqueles da raça humana! Fora da humanidade, ele tinha construído para si um antro de bicho subterrâneo, resolvido a fazer tudo saltar com ele pelos ares numa estrondosa catástrofe se aqueles de cima da terra viessem a acuá-lo no antro onde tinha refugiado a sua monstruosa fealdade.
A descoberta que acabáramos de fazer nos lançou numa emoção que nos fez esquecer todas as nossas agruras passadas, todos os nossos sofrimentos presentes... Nossa situação excepcional, quando poucos instantes antes nos encontrávamos à beira do suicídio, não se tinha ainda mostrado a nós com precisão mais espantosa. Compreendíamos agora tudo aquilo que tinha querido dizer e tudo aquilo que tinha dito o monstro a Christine: “Sim ou não!... Se for não, todo o mundo está morto e enterrado!...” Sim, enterrado sob os escombros do que havia sido a grande Ópera de Paris!... Podia-se imaginar crime mais pavoroso para se deixar o mundo numa apoteose de horror? Preparada para a tranqüilidade de seu retiro, a catástrofe ia servir para vingar os amores do mais horrível monstro que andou por sob os céus.!... Amanhã à noite, às 11 horas, último prazo!... Ah! ele tinha escolhido bem a sua hora!... Haveria muita gente na festa!... muitos daqueles da raça humana... lá em cima... nos altos fulgurantes da casa da música!... Que cortejo mais belo poderia ele sonhar para morrer?... Ia descer ao túmulo com os mais belos ombros do mundo, enfeitados com todas as jóias... amanhã à noite, às 11 horas!... Devíamos saltar pelos ares em plena representação... se Christine Daaé dissesse: Não!... Amanhã à noite, às 11 horas!... E como Christine Daaé não diria: Não!? Não preferiria ela casar-se com a própria morte em vez desse cadáver vivo? Não ignorava que de sua recusa dependia a sorte fulminante de muitos daqueles da raça humana?... Amanhã à noite, às 11 horas!...
E, arrastando-nos nas trevas, fugindo da pólvora, tentando reencontrar os degraus de pedra... pois bem lá no alto, acima de nossas cabeças... o alçapão que conduz ao quarto dos espelhos apagou-se por sua vez... ficávamos repetindo: Amanhã à noite, às 11 horas!...
... Finalmente, encontro a escada... mas de repente, levanto-me bem ereto sobre o primeiro degrau, pois um pensamento terrível se apossa subitamente de meu cérebro:
“Que horas são?”
Ah! que horas são? que horas?... pois afinal amanhã à noite, às 11 horas, talvez seja hoje, talvez seja daqui a pouco!... quem poderia nos dizer que horas são!... Parece-me que estamos encerrados neste inferno há dias e dias... há anos... desde o começo do mundo... Tudo isto talvez vá saltar pelos ares num instante!... Ah! um ruído!... um estalo!... o senhor ouviu?... Ali!... ali, naquele canto... Deus do céu!... como o ruído de um mecanismo!... De novo!... Ah! uma luz!... talvez seja o mecanismo que vai fazer tudo saltar!... eu lhe digo: um estalido... o senhor está surdo?
O Sr. De Chagny e eu começamos a gritar feito loucos... o medo nos persegue de perto... subimos a escada rolando por sobre os degraus... O alçapão talvez esteja fechado lá em cima! Talvez seja essa porta fechada que provoca toda esta escuridão... Ah! sair do escuro! sair do escuro!... Reencontrar a claridade mortal do quarto dos Espelhos!...
...E chegamos ao alto da escada... não, o alçapão não está fechado, mas está tão escuro agora no quarto dos espelhos quanto no porão de onde estamos vindo!... Saímos completamente do porão... arrastamo-nos pelo chão do quarto dos suplícios.... o assoalho que nos separa daquele paiol de pólvora... que horas são?... Gritamos, chamamos!... O Sr. De Chagny clama, com todas as suas forças que renascem: “Christine!... Christine!...” E eu chamo Erik... lembro-lhe que lhe salvei a vida!... O meu relógio parou faz tempo... mas o do Sr. De Chagny ainda está funcionando... Disse-me que deu corda quando fez a toalete da noite, antes de vir para a Ópera... Tentamos tirar desse fato alguma conclusão que nos permitisse esperar não estarmos ainda no minuto fatal...
... O menor tipo de ruído que nos venha pelo alçapão que tentei em vão fechar nos lança na angústia mais atroz... Que horas são?... Não temos sequer um fósforo... E no entanto seria preciso saber... O Sr. De Chagny pensa em quebrar o vidro do relógio e tatear os dois ponteiros... Um silêncio durante o qual ele tateia, interroga os ponteiros com a ponta dos dedos. O anel do relógio lhe serve de ponto de referência!... Ele calcula, pela distância entre os ponteiros, que podem ser justamente 11 horas...
Mas as 11 horas que nos fazem exultar já passaram talvez, não é? ... talvez sejam 11 e dez... e teríamos pelo menos 12 horas à nossa frente.
E, de repente, ele grita:
— Silêncio!
Parece-me ter ouvido passos na morada ao lado.
Não me enganei! Estou ouvindo um barulho de portas, seguido de passos precipitados. Estão batendo na parede. A voz de Christine Daaé:
— Raoul! Raoul!
Ah! gritamos todos de uma vez, agora de um e de outro lado da parede. Christine está soluçando, não sabia se encontraria o Sr.
De Chagny ainda vivo!... O monstro foi terrível, parece... Não fez outra coisa senão delirar enquanto esperava que aceitasse dizer o “sim” que ela lhe recusava... E entretanto, ela lhe prometia esse “sim” se ele aceitasse conduzi-la ao quarto dos suplícios!... Mas ele se opusera obstinadamente a isso, com ameaças atrozes a todos da raça humana... Finalmente, depois de horas e horas desse inferno, ele acabara de sair um instante... deixando-a sozinha para pensar pela última vez...
... Horas e horas!...
— Que horas são? Que horas são, Christine?...
— São 11 horas!... cinco para as 11!...
— Mas que 11 horas?...
— As 11 horas que devem decidir da minha vida ou da minha morte!... Ele acabou de repetir isso ao sair — disse a voz agoniada de Christine. — Ele é medonho!... Está delirando e arrancou a máscara, e os seus olhos de ouro lançam chamas! E não pára de rir!... Ele me disse rindo, como um demônio bêbado: “Cinco minutos! Deixo você sozinha por causa do seu conhecido pudor!... Não quero que você core diante de mim quando me disser ‘sim’, como as tímidas noivas!... Que diabo! a gente conhece as pessoas!” Eu disse a você que ele estava como um demônio bêbado!... “Tome! (e ele enfiou a mão na bolsinha da vida e da morte) Tome! disse-me, aqui está a chavinha de bronze que abre os cofres de ébano que estão sobre a lareira do quarto Louis Phillipe... Num desses cofres, você encontrará um escorpião no outro, um gafanhoto, animais muito bem imitados em bronze do Japão; são animais que dizem sim ou não! Quer dizer que você só terá que girar o escorpião em cima do seu eixo, na posição contrária daquela que você o encontrar... isso significará aos meus olhos, quando eu voltar para o quarto Louis Phillipe, para o quarto das núpcias: sim!... Já o gafanhoto, se você o girar, quererá dizer: não! aos meus olhos quando eu voltar para o quarto da morte!...” E ele ria como um demônio bêbado! Eu só reclamava de joelhos a chave do quarto dos suplícios, prometendo-lhe ser sua mulher para sempre se ele me concedesse isso... Mas ele me disse que nunca mais iríamos precisar dessa chave e que ele ia atirá-la no fundo do lago!... E depois, rindo, entregou-me a chave e disse que só voltaria dentro de cinco minutos, porque sabia tudo que se deve ao pudor das mulheres quando se é um homem galante!... Ah! sim, gritou-me ainda ele: “O gafanhoto!... Cuidado com o gafanhoto!... Um gafanhoto não gira apenas, ele salta!... ele salta!... ele salta que é uma beleza!”
Tento aqui reproduzir com frases, palavras entrecortadas, exclamações, o sentido das palavras delirantes de Christine!... Pois também ela, durante estas 24 horas, deve ter tocado no fundo da dor humana... e talvez tenha sofrido mais do que nós!... A cada instante, Christine se interrompia e nos interrompia para exclamar:
— Raoul! você está sofrendo?... — E apalpava as paredes, que estavam frias agora, e perguntava por que razão tinham estado tão quentes!...
E os cinco minutos se escoavam e, no meu pobre cérebro, arranhavam com todas as forças de suas patas o escorpião e o gafanhoto!...
Eu tinha conservado, entretanto, bastante lucidez para compreender que, se se girasse o gafanhoto, o gafanhoto saltava... e com ele muitos daqueles da raça humana!... Não havia dúvida de que o gafanhoto comandava alguma corrente elétrica destinada a fazer explodir o paiol de pólvora!... Apressadamente, o Sr. De Chagny, que parecia agora, desde que ouvira a voz de Christine, ter recobrado toda a força moral, explicava à moça em que situação terrível nos encontrávamos, nós e toda a Ópera... Era preciso girar o escorpião, imediatamente...
Aquele escorpião, que correspondia ao sim tão desejado por Erik, devia ser alguma coisa que impedia, talvez, que a catástrofe se produzisse.
— Vá!., vá então, Christine, minha mulher adorada!... — ordenou Raoul.
Houve um silêncio.
— Christine — perguntei —, onde você está?
— Perto do escorpião!
— Não toque nele!
Tinha-me vindo a idéia — pois eu conhecia o meu Erik — de que o monstro tinha enganado, mais uma vez, a jovem mulher.
Talvez fosse o escorpião que iria fazer tudo saltar pelos ares. Porque. afinal, por que ele próprio não tinha ficado ali? Já fazia bom tempo agora que os cinco minutos tinham decorrido... e ele não voltara... Tinha, certamente, se colocado a salvo!... E esperava, talvez, pela explosão formidável... Não esperava mais do que isso!... Não podia esperar, na verdade, que Christine consentisse nunca em se tornar a sua presa voluntária!... Por que ele não tinha voltado?... Não toque no escorpião!
— Ele!... — gritou Christine. — Eu o estou ouvindo!... Aí está ele!”
Ele estava chegando, de fato. Ouvimos os seus passos que se aproximavam do quarto Louis Philippe. Voltara para junto de Christine. Não pronunciara nenhuma palavra...
Então levantei a voz:
— Erik! sou eu! Você me reconhece?
A esse chamado, ele respondeu imediatamente num tom extraordinariamente pacífico:
— Então vocês não morreram aí dentro?... Pois bem, procurem ficar tranqüilos.
Quis interrompê-lo, mas ele me disse tão friamente que fiquei gelado atrás da parede:
— Nem mais uma palavra, daroga, ou eu faço saltar tudo! E logo acrescentou:
— A honra deve caber à senhorita!... A senhorita não tocou no escorpião (como falava pausadamente!), a senhorita não tocou no gafanhoto (com que espantoso sangue-frio!), mas não é tarde demais para fazê-lo direito. Veja, abro sem chave, eu, porque sou o amador dos alçapões, abro e fecho tudo que quero, como quero... Abro os cofrinhos de ébano: olhe aí, senhorita, nos cofrinhos de ébano... os lindos bichinhos... São imitações muito boas... e como parecem inofensivos... Mas o hábito não faz o monge! (Tudo isso com uma voz clara, uniforme...) Se a gente girar o gafanhoto, saltamos todos, senhorita... Há, debaixo de nossos pés, pólvora bastante para fazer saltar pelos ares um bairro inteiro de Paris... se a gente girar o escorpião, toda essa pólvora ficará inundada!... Senhorita, por ocasião de nossas núpcias, você vai dar um presente lindo a algumas centenas de parisienses que aplaudem neste momento uma obra-prima bastante pobre de Meyerbeer... Você vai lhes dar de presente a vida... porque você vai, senhorita, com as suas lindas mãos (que cansada aquela voz), você vai girar o escorpião!... E alegria, alegria, nós nos casaremos! Um silêncio, e depois:
— Se dentro de dois minutos, senhorita, você não tiver girado o escorpião, tenho um relógio — acrescentou a voz de Erik —, um relógio que funciona muito bem... então eu vou girar o gafanhoto... e o gafanhoto, isso salta que é uma beleza!...
O silêncio recomeçou mais apavorante por si só do que todos os outros pavorosos silêncios. Eu sabia que quando Erik assumia essa voz pacífica e tranqüila, e cansada, é que tinha chegado ao extremo de tudo, capaz do mais titânico atentado ou da mais desvairada dedicação e que uma sílaba desagradável ao seu ouvido podia desencadear o furacão. O Sr. De Chagny tinha entendido que só restava rezar e, de joelhos, rezava... Quanto a mim, o meu sangue pulsava tão forte que tive de segurar o coração com a mão, de medo que ele explodisse... E que pressentíamos o que se passava nesses segundos supremos no pensamento enlouquecido de Christine Daaé... é que compreendíamos a sua hesitação em girar o escorpião... E se fosse o escorpião que ia fazer saltar tudo!... Se Erik tivesse resolvido engolir-nos a todos com ele!
Finalmente, a voz de Erik, suave desta vez, de uma suavidade angelical...
— Os dois minutos já passaram... adeus, senhorita!... salte, gafanhoto!...
— Erik! — gritou Christine, que devia ter-se precipitado sobre a mão do monstro —, você me jura, monstro, você me jura por seu amor infernal que é o escorpião que é preciso girar...
— Sim, para saltar para as nossas núpcias...
— Ah! você está vendo! nós vamos saltar!
— Para as nossas núpcias, inocente menina!... O escorpião abre o baile!... Mas já basta!... Você não quer o escorpião? Eu me encarrego do gafanhoto!
— Erik!...
— Basta!...
Eu tinha juntado os meus gritos aos de Christine. O Sr. De Chagny, sempre de joelhos, continuava rezando...
— Erik! Eu girei o escorpião!...
Ah! esse instante que vivemos então!
A esperar!
A esperar que já não fôssemos nada mais do que migalhas, no meio do trovão e das ruínas...
... A sentir estalar debaixo dos nossos pés, no abismo aberto... coisas... coisas que podiam ser o começo da apoteose de horror... pois, pelo alçapão aberto nas trevas, goela negra na noite negra, um assobio inquietante — como o primeiro ruído de um foguete — vinha...
... Primeiro bem fino... e depois mais espesso... depois bem forte...
Mas escute! escute! e segure com as duas mãos o coração prestes a saltar com muitos dos da raça humana.
Isso não é o crepitar do fogo.
Não se diria um jorro de água?...
Ao alçapão! ao alçapão!
Escute! escute!
Agora está fazendo gluglu... gluglu...
Ao alçapão!... ao alçapão!... ao alçapão!...
Que frescor!
A fresca! à fresca! Toda a nossa sede, que tinha cessado quando viera o pavor, voltou mais forte com o barulho da água.
A água! a água! a água que vem subindo!...
Que vem subindo pelo porão, por cima dos tonéis, todos os tonéis de pólvora. (Tonéis! tonéis!... Têm tonéis para vender?) A água!... a água em direção da qual descemos com as gargantas abrasadas... a água que vem subindo até os nossos queixos, até as nossas bocas...
E bebemos... No fundo do porão, bebemos, diretamente do porão...
E subimos de volta, na noite negra, a escada, degrau por degrau, a escada que tínhamos descido em busca da água, na morada do Lago! Se isso continuar, todo o lago vai entrar no porão...
Porque, na verdade, não se sabe mais agora onde ela vai parar...
Já saímos do porão e a água continua subindo...
E a água também sai do porão, espalha-se sobre o assoalho... Se isso continuar, toda a morada do Lago vai ficar inundada. O assoalho do quarto dos Espelhos já virou um pequeno lago no qual os nossos pés chafurdam. Já basta de água! É preciso que Erik feche a torneira: Erik! Erik! Já é água bastante para a pólvora! Gire a torneira! Feche o escorpião!
Mas Erik não responde... Não se ouve mais nada além da água que vem subindo... Já estamos agora com água pela metade da perna!...
— Christine! Christine! a água está subindo! subindo até os nossos joelhos — grita o Sr. De Chagny.
Mas Christine não responde... não se ouve nada além da água que vem subindo.
Nada! nada! no quarto ao lado... Ninguém mais! Ninguém para girar a torneira! ninguém para fechar o escorpião!
Estamos sozinhos, no escuro, com a água escura que nos envolve, que nos gela! Erik! Erik! Christine! Christine!
Agora perdemos pé e giramos na água, levados num movimento de rotação irresistível, pois a água gira conosco e nós batemos nos espelhos negros que nos mandam de volta... e as nossas gargantas levantadas acima do turbilhão urram...
Será que vamos morrer afogados no quarto dos suplícios?... Nunca vi isso! Erik, no tempo das horas cor-de-rosa de Mazenderã, nunca me mostrou isso pela janelinha invisível!... Erik! Erik! Eu lhe salvei a vida! Lembre-se!... Você estava condenado!... Você ia morrer!... Abri para você as portas da vida, Erik!...
Ah! girávamos na água como destroços de um barco!...
Mas agarrei de repente, com minhas mãos desnorteadas, o tronco da árvore de ferro!... e chamei o Sr. De Chagny... e lá estávamos nós dois suspensos ao galho da árvore de ferro...
E a água continua subindo!
Ah! ah! Lembre-se! Quanto espaço há entre o galho da árvore de ferro e o teto do quarto dos Espelhos?... Procure lembrar-se!... Afinal, a água talvez vá parar!... Não! não! horror!... A nado!... A nado!... nossos braços, nadando, se enroscam; estamos sufocando!... debatemo-nos na água escura... o ar que está fugindo, que ouvimos fugir acima de nossas cabeças por não sei que aparelho de ventilação... Ah! vamos girando! girando! girando até que encontremos a entrada de ar... colaremos a nossa boca à entrada de ar... Mas as forças me abandonam, tento agarrar-me às paredes! Ah! como as paredes de espelho são escorregadias!... Afundamos... Um derradeiro esforço!... Um derradeiro grito!... Erik... Christine!... gluglu, gluglu!... nos ouvidos!... Gluglu, gluglu, gluglu!... no fundo da água escura, nossos ouvidos fazem gluglu!... Parece-me ainda, antes de perder totalmente consciência, ouvir entre dois gluglus... “Tonéis!... tonéis!... Têm tonéis para vender?”
FIM DOS AMORES DO FANTASMA
É aqui que termina a narrativa escrita que o Persa me deixou.
Apesar do horror de uma situação que parecia definitivamente condenada à morte, o Sr. De Chagny e seu companheiro foram salvos pela dedicação sublime de Christine Daaé. E obtive todo o resto da aventura da boca do próprio daroga...
Quando fui encontrar-me com ele, continuava morando em seu pequeno apartamento da rua de Rivoli, em frente às Tulherias. Estava bastante doente e foi necessário nada menos do que todo o meu ardor de repórter-historiador a serviço da verdade para decidi-lo a reviver comigo o incrível drama. Era ainda o seu velho e fiel empregado Darius que o servia e que me conduziu para junto dele. O daroga me recebeu no canto da janela que dá para o jardim, sentado numa poltrona em que tentava aprumar um corpo que devia ter tido a sua beleza. Nosso Persa mantinha ainda os olhos magníficos, mas o seu pobre rosto mostrava muito cansaço. Tinha raspado completamente a cabeça que normalmente estava coberta com um boné de astracã; vestia-se com uma capa muito simples em cujas mangas passava o tempo a girar inconscientemente os polegares, mas tinha conservado a mente bem lúcida.
Não podia lembrar-se das agruras antigas sem que certa febre voltasse a tomar conta dele, e foi por pedaços que eu lhe arranquei o fim surpreendente desta estranha história. Por vezes fazia-se de rogado, por algum tempo, antes de responder às minhas perguntas, e por vezes, exaltado com suas lembranças, evocava espontaneamente diante de mim, com destaque surpreendente, a imagem espantosa de Erik e as horas terríveis que o Sr. De Chagny e ele tinham vivido na morada do Lago.
Era preciso ver o estremecimento que o agitava quando me descrevia o seu despertar na penumbra inquietante do quarto Louis Philippe... depois do drama das águas... E aqui está o fim desta terrível história, tal qual ele me contou de maneira a completar a narrativa escrita que tinha concordado em ceder-me:
Ao abrir os olhos, o daroga viu-se estendido numa cama... O Sr. De Chagny estava deitado num divã, ao lado do armário com espelho. Um anjo e um demônio velavam sobre eles...
Depois das miragens e ilusões do quarto dos suplícios, a precisão dos detalhes burgueses desse quarto pequeno e tranqüilo parecia ter sido inventada com o desígnio de fazer extraviar-se a mente do mortal que fosse bastante temerário para se perder nesses domínios do pesadelo vivo. A cama com gavetas, as cadeiras de mogno encerado, a cômoda, as peças de cobre, o cuidado com que as toalhinhas de crochê estavam postas no espaldar das poltronas, o relógio de pêndulo e, de cada lado da lareira, os cofrinhos de aparência tão inofensiva... enfim a prateleira enfeitada de conchas, de almofadinhas vermelhas para alfinetes, de navios de madrepérola e de um enorme ovo de avestruz... sendo o conjunto iluminado discretamente por um abajur colocado sobre uma mesinha redonda... toda essa mobília que era de uma feiúra caseira comovente, tão tranqüila, tão razoável “no fundo dos porões da Ópera”, desconcertava a imaginação mais do que todas as fantasmagorias passadas. E a sombra do homem com a máscara, nesse pequeno quadro antiquado, preciso e limpo, assumia uma aparência mais formidável. Inclinou-se até o ouvido do Persa e disse-lhe em voz baixa:
— Está melhor, daroga?... Você está examinando a minha mobília?... É tudo que me restou da pobre miserável da minha mãe...
Disse-lhe ainda outras coisas de que já não se lembrava; mas — e isso lhe parecia bem singular — o Persa tinha lembrança exata de que, durante essa visão do quarto Louis Philippe, só Erik falava. Christine Daaé não dizia uma palavra; caminhava sem ruído como uma irmã de caridade que tivesse feito voto de silêncio... Trouxe uma xícara com um reconstituinte... ou um chá fumegante... O homem da máscara pegou-a de suas mãos e estendeu-a para o Persa.
Quanto ao Sr. De Chagny, estava dormindo...
Erik disse derramando um pouco de rum na xícara do daroga e mostrando-lhe o visconde deitado:
— Ele voltou a si antes que pudéssemos saber se você ainda estaria vivo, daroga. Ele vai muito bem... Está dormindo... Não se deve acordá-lo...
Por um instante, Erik saiu do quarto e o Persa, erguendo-se um pouco sobre o cotovelo, olhou em torno de si... Viu, sentada ao lado da lareira, a silhueta branca de Christine Daaé. Dirigiu-lhe a palavra... chamou-a... mas ainda estava muito fraco e voltou a cair sobre o travesseiro... Christine veio até ele, colocou-lhe a mão na testa, depois se afastou... E o Persa lembrou-se então de que, ao ir-se embora, ela não lançou nenhum olhar para o Sr. De Chagny que, ao lado, é verdade, estava num sono tranqüilo... e voltou para sentar-se na poltrona, ao lado da lareira, silenciosa como uma irmã de caridade que tivesse feito voto de silêncio...
Erik voltou com alguns frasquinhos que colocou em cima da lareira. E baixinho ainda, para não acordar o Sr. De Chagny, disse ao Persa, depois de sentar-se à sua cabeceira e de ter-lhe tomado o pulso:
— Agora vocês estão salvos. E logo irei conduzi-los para a superfície da terra, para agradar a minha mulher.
Nisso, levantou-se sem outra explicação, e desapareceu de novo.
O Persa olhava agora para o perfil tranqüilo de Christine Daaé à luz do abajur. Ela estava lendo num livrinho minúsculo com o corte dourado como se costuma ver nos livros religiosos. A imitação de Cristo tem edições assim. E o Persa conservava ainda no ouvido o tom tranqüilo com que Erik dissera: “Para agradar a minha mulher...”
Bem suavemente, o daroga chamou de novo, mas Christine devia estar longe em sua leitura, porque não ouviu...
Erik voltou... deu uma poção para o daroga beber, depois de lhe ter recomendado que não dirigisse mais a palavra à “sua mulher” nem a ninguém, porque isso poderia ser muito perigoso para a saúde de todo mundo.
A partir desse momento, o Persa se lembra ainda da sombra negra de Erik e da silhueta branca de Christine que deslizavam sempre em silêncio pelo quarto e debruçavam-se sobre o Sr. De Chagny. O Persa estava ainda muito fraco e o menor ruído, a porta do armário com espelho que se abria rangendo, por exemplo, causava-lhe dor de cabeça... e depois adormeceu como o Sr. De Chagny.
Desta vez, só devia despertar já em sua casa, sob os cuidados do fiel Darius, que lhe informou que o haviam encontrado, na noite anterior, diante da porta de seu apartamento, para onde devia ter sido transportado por um desconhecido, que tinha tido o cuidado de tocar a campainha antes de ir-se embora.
Logo que o daroga recobrou as forças e a responsabilidade, mandou saber notícias do visconde no domicílio do conde Philippe.
Foi-lhe respondido que o jovem não tinha reaparecido e o conde Philippe tinha morrido. Tinham encontrado o seu cadáver à beira do lago da Ópera, do lado da rua Scribe. O Persa lembrou-se da melodia para os mortos que ouvira Erik executar, quando esteve preso no quarto dos suplícios, e não teve dúvidas quanto ao crime e quanto ao criminoso. Sem dificuldade, infelizmente, conhecendo Erik, pôde reconstituir o drama. Acreditando que o irmão havia raptado Christine Daaé, Philippe tinha-se precipitado em seu encalço na estrada de Bruxelas onde sabia que tudo estava preparado para essa aventura. Como não encontrasse o jovem casal, voltara à Ópera, lembrara-se das estranhas confidências de Raoul sobre o seu fantástico rival, soubera que o visconde tinha tentado de tudo para penetrar nos subsolos do teatro e, finalmente, que tinha desaparecido, deixando o chapéu no camarim da diva, ao lado de uma caixa de pistolas. E o conde, que não tinha mais dúvidas sobre a loucura do irmão, lançara-se, por sua vez, naquele infernal labirinto subterrâneo. Seria preciso mais do que isso, aos olhos do Persa, para que se encontrasse o cadáver do conde à beira do lago, onde vigiava o canto da sereia, a sereia de Erik, essa zeladora do lago dos Mortos?
Assim, o Persa não hesitou. Espantado com esse novo delito, não podendo permanecer na incerteza em que se encontrava relativamente à sorte definitiva do visconde e de Christine Daaé, decidiu dizer tudo à Justiça.
Ora, a instrução do processo tinha sido confiada ao juiz Faure e à porta dele é que foi bater. Não é difícil imaginar de que modo um espírito cético, materialista, superficial (digo isso como penso) e nada preparado para semelhante confidência recebeu o depoimento do daroga. Este foi tratado como louco.
O Persa, sem esperança de se fazer ouvir, pusera-se então a escrever. Visto que a Justiça não queria saber do seu testemunho, a imprensa se apoderaria dele, talvez, e ele acabara, uma noite, de traçar a última linha da narrativa que reproduzi fielmente aqui, quando o empregado Darius lhe anunciou um estranho que não dissera o nome, cujo rosto era impossível ver, e que tinha declarado simplesmente que não sairia dali antes de falar com o daroga.
O Persa, pressentindo imediatamente a personalidade desse singular visitante, ordenou que o fizesse entrar.
O daroga não se enganara.
Era o fantasma! Era Erik!
Aparentava extrema fraqueza e apoiava-se na parede como se temesse cair... Ao tirar o chapéu, mostrou uma testa pálida como cera. O restante do rosto estava escondido pela máscara.
O Persa erguera-se à sua frente:
— Assassino do conde Philippe, o que é que você fez do irmão dele e de Christine Daaé?
A essa formidável interpelação, Erik cambaleou e guardou silêncio por alguns instantes, depois, arrastando-se até uma poltrona, deixou-se cair nela soltando um profundo suspiro. E, ali, disse com fôlego curto:
— Daroga, não me fale do conde Philippe... Ele estava morto... já... quando saí da minha casa... ele estava morto... já... quando... a sereia cantou... foi um acidente... Ele tinha caído no lago!...
— Você está mentindo! — bradou o Persa. Então Erik curvou a cabeça e replicou:
— Não vim aqui para lhe falar do conde Philippe... mas para lhe dizer que... eu vou morrer....
— Onde estão Raoul de Chagny e Christine Daaé?...
— Eu vou morrer.
— Raoul de Chagny e Christine Daaé?
— ... de amor... daroga... vou morrer de amor... é isso mesmo... eu a amava tanto!... E ainda a amo, daroga, pois que estou morrendo disso, eu lhe digo... Se você soubesse como estava bela quando me prometeu beijar-me viva, jurando pela sua salvação eterna... Era a primeira vez, daroga, a primeira vez, está ouvindo, que eu beijava uma mulher... Sim, viva, sim, eu a beijei viva e ela estava bela como uma morta!...
O Persa levantara-se e ousara tocar em Erik. Sacudiu-lhe o braço.
— Você vai me dizer se ela está morta ou viva?...
— Por que está me sacudindo assim? — respondeu Erik com esforço. — Estou lhe dizendo que sou eu que vou morrer... sim, eu a beijei viva...
— E agora, ela está morta?
— Eu lhe digo que dei um beijo nela assim, na testa... e ela não retirou a testa da minha boca!... Ah! é uma moça honesta! Quanto a estar morta, eu não acredito, embora isso não me diga mais respeito... Não! não! ela não está morta! E não quero ficar sabendo que alguém tenha tocado num fio de cabelo sequer de sua cabeça! E uma moça corajosa e honesta, que lhe salvou a vida, além do mais, daroga, num momento em que eu não teria dado um tostão furado por essa sua pele de persa. No fundo, ninguém se importava com você. Por que você estava lá com aquele mocinho? Você ia morrer, além do mais! Palavra, ela me suplicava pelo seu mocinho, mas eu lhe respondi que, já que ela tinha girado o escorpião, eu me tinha tornado, por esse fato mesmo, e por sua boa vontade, o seu noivo, e que ela não precisava de dois noivos, o que era bastante justo; quanto a você, você não existia, já não existia mais, repito, e ia morrer com o outro noivo! Só que, escute bem, daroga, como vocês estavam gritando como dois possessos por causa da água, Christine veio até mim, com os seus belos e grandes olhos azuis abertos e me jurou, pela sua salvação eterna, que consentia em ser minha mulher viva! Até então, daroga, eu sempre tinha visto, no fundo dos seus olhos, uma mulher morta; era a primeira vez que eu via neles a minha mulher viva. Ela estava sendo sincera, pela sua salvação eterna. Não iria se matar. Trato feito. Meia hora depois, toda a água tinha voltado para o lago, e eu puxava a sua língua, daroga, pois acreditara, palavra, que você não ia voltar!... Enfim!... E isso! Estava entendido! eu devia levá-lo de volta para a sua casa, acima da terra. Enfim, quando você já tinha desocupado o meu quarto Louis Philippe, voltei para lá, sozinho.
— E o que é que você tinha feito do visconde de Chagny? — interrompeu o Persa.
— Ah! você compreende... aquele lá, daroga, eu não ia levá-lo assim sem mais nem menos para cima da terra... Era um refém... Mas eu não podia tampouco guardá-lo na morada do Lago, por causa de Christine; então, tranquei-o, acorrentei-o convenientemente (com o perfume de Mazenderã ele tinha ficado mole como um trapo) no calabouço dos communards que fica na parte mais deserta do mais distante porão da Ópera, abaixo do quinto subsolo, lá aonde ninguém nunca vai e de onde não é possível fazer-se ouvir por ninguém. Fiquei sossegado e voltei para junto de Christine. Ela estava me esperando...
Neste ponto de sua narrativa parece que o fantasma se levantou tão solenemente que o Persa, que retomara lugar na poltrona, teve de se levantar também, como que obedecendo ao mesmo movimento e sentindo que era impossível ficar sentado num momento tão solene e até (disse-me o próprio Persa) tirou, embora estivesse com a cabeça raspada, o seu boné de astracã.
— Sim, ela estava me esperando! — retomou Erik, que se pôs a tremer como uma folha, mas a tremer de uma verdadeira emoção solene. — Estava me esperando de pé, viva, como uma noiva viva de verdade, pela sua salvação eterna... E quando me adiantei em sua direção, mais tímido do que uma criancinha, ela não fugiu... não, não... ficou ali... me esperou... acho até, daroga, que ela um pouco... oh! não muito... mas um pouco, como uma noiva, aproximou a sua testa... E... e... eu a... beijei!... Eu!... eu!... eu!... E ela não morreu!... E ficou ali bem naturalmente, ao meu lado, depois que eu a beijei, assim... na testa... Ah! como é bom, daroga, beijar alguém!... Você não pode saber, não pode!... Mas eu! eu!... Minha mãe, daroga, minha pobre miserável mãe nunca quis que eu a beijasse... Ela fugia... lançando-me a minha máscara!... nem nenhuma mulher!... nunca!... nunca!... Ah! ah! ah! Então, eu chorei de tamanha felicidade. E caí chorando aos seus pés.... e beijei os seus pés, seus pezinhos, chorando... Você também está chorando, daroga; e ela também chorava... o anjo chorou...
Enquanto contava essas coisas, Erik soluçava, e o Persa, realmente, não conseguia reter as lágrimas diante daquele homem mascarado que, sacudindo os ombros, com a mão no peito, gemia ora de dor, ora de enternecimento.
— ... Oh! daroga, eu senti as lágrimas dela correrem sobre a minha testa! sobre a minha testa! Eram quentes... eram suaves!... inundavam tudo debaixo da minha máscara, as lágrimas dela!... iam misturar-se com as minhas, nos meus olhos!... escorriam até na minha boca... Ah! as suas lágrimas sobre mim! Escute, daroga, escute o que eu fiz... Arranquei a minha máscara para não perder uma só de suas lágrimas... E ela não fugiu!... E ela não morreu! Permaneceu viva, a chorar... sobre mim... comigo... Nós choramos juntos!... Senhor do céu! vós me destes toda a felicidade do mundo!...
E Erik estava largado, chorando e gemendo na poltrona.
— Ah! Não vou morrer ainda... tão logo... mas deixe-me chorar! — disse ele ao Persa.
Ao fim de um momento, o homem da máscara retomou:
— Escute, daroga... escute bem isto... enquanto eu estava aos seus pés... ouvi-a dizer: “Pobre infeliz Erik!.. “. Eu fiquei assim... você compreende, nada mais do que um pobre cão prestes a morrer por ela... como lhe digo, daroga! Imagine que eu tinha na mão um anel, um anel de ouro que eu lhe dera... que ela tinha perdido... que eu achei... uma aliança, enfim!... Passei o anel para a mãozinha dela e disse: Tome!... Pegue isso!... pegue isso para você... e para ele... Será o meu presente de núpcias... o presente do pobre infeliz Erik... Sei que você o ama, aquele rapaz... não chore mais!... Ela me perguntou com voz bem suave o que eu queria dizer; então fiz que ela compreendesse, e ela compreendeu imediatamente que eu não era para ela mais do que um pobre cãozinho pronto para morrer... mas que ela poderia casar-se com o rapaz quando quisesse, porque tinha chorado comigo... Ah! daroga... você está pensando... que... quando eu lhe dizia isso, era como se eu cortasse devagarinho o meu coração em quatro, mas ela tinha chorado comigo... ela tinha dito: ‘“Pobre infeliz Erik!... “.
A emoção de Erik era tamanha que teve de avisar o Persa que não olhasse para ele, pois estava sufocando e precisava tirar a máscara. A respeito disso, o Persa me contou que tinha ido até a janela e que a tinha aberto, com o coração pesado de piedade, mas tomando grande cuidado de fixar o topo das árvores do jardim das Tulherias para não encontrar o rosto do monstro.
— Eu fui libertar o jovem — continuou Erik — e disse-lhe que me seguisse até junto de Christine... Eles se beijaram na minha frente no quarto Louis Phillipe... Christine estava com o meu anel... Fiz Christine jurar que, quando eu morresse, ela viria uma noite, passando pelo lago da rua Scribe, para me enterrar em grande segredo com o anel de ouro que ela traria consigo até esse momento... disse-lhe como ela encontraria o meu corpo e o que era preciso fazer com ele... Então Christine me beijou, por sua vez, aqui na testa, pela primeira vez... (não olhe, daroga!) aqui, na testa... na minha testa!... (não olhe, daroga!) e foram embora, os dois...
Christine já não estava mais chorando... só eu estava chorando... daroga, daroga... se Christine cumprir o juramento, voltará logo!...
E Erik se calara. O Persa não lhe fizera mais nenhuma pergunta. Estava totalmente tranqüilo quanto à sorte de Raoul de Chagny e de Christine Daaé, e ninguém da raça humana teria podido, depois de ouvi-la naquela noite, pôr em dúvida a palavra de Erik que chorava.
O monstro tinha recolocado a máscara e juntado as forças para afastar-se do daroga. Anunciara-lhe que, quando sentisse o fim muito próximo, enviar-lhe-ia, como agradecimento pelo bem que este lhe quisera no passado, o que tinha de mais caro neste mundo: todos os papéis de Christine Daaé, que ela tinha escrito, no momento mesmo daquela aventura, destinados a Raoul, e que ela deixara a Erik, e mais alguns objetos que lhe tinham vindo dela, dois lenços, um par de luvas e um cordão de sapato. Respondendo a uma pergunta do Persa, Erik informou-lhe que os dois jovens, logo que se viram livres, tinham resolvido ir procurar um padre em algum lugar ermo onde esconderiam a sua felicidade e que, com esse intuito, tinham tomado “a estação do Grande Norte do Mundo”. Finalmente, Erik contava com o Persa para, logo que este tivesse recebido as relíquias e os papéis prometidos, anunciar a sua morte aos dois jovens. Devia para isso pagar um espaço nos anúncios necrológicos do jornal L’Époque.
Era só isso.
O Persa reconduziu Erik até a porta do apartamento e Darius o acompanhou até a calçada servindo-lhe de apoio. Uma caleça esperava. Erik subiu nela. O Persa, que voltara à janela, ouviu-o dizer ao cocheiro: “Aterro da Ópera”.
E depois a caleça mergulhou na noite. O Persa tinha visto, pela última vez, o pobre infeliz Erik.
Três semanas mais tarde, o jornal L’Époque publicava este anúncio necrológico:
MORREU ERIK
Assim é a história verídica do fantasma da Ópera. Como anunciei no início deste livro, não se poderia duvidar agora de que Erik tenha realmente vivido. O número de provas dessa existência colocadas hoje à disposição de cada um é grande demais para que não se possa acompanhar, racionalmente, os fatos e os gestos de Erik através de todo o drama dos Chagny.
Desnecessário é repetir aqui quanto este caso apaixonou a capital. A artista raptada, o conde de Chagny morto em condições tão excepcionais, o irmão dele desaparecido e o tríplice sono dos empregados da iluminação da Ópera!... Que dramas! Que paixões! Que crimes se tinham desenrolado em torno do idílio de Raoul com a doce e encantadora Christine!... Que foi feito da sublime e misteriosa cantora da qual a terra nunca, nunca mais ouviria falar?... Foi representada como a vítima da rivalidade entre os dois irmãos, e ninguém imaginou o que se passou; ninguém entendeu que, já que Raoul e Christine tinham ambos desaparecido, os dois noivos se retiraram para longe do mundo para desfrutar uma felicidade que não queriam tornar pública após a morte inexplicada do conde Philippe... Tomaram um dia um trem na estação do Norte do Mundo... Também eu, talvez, um dia tome o trem nessa estação e vá procurar em torno dos teus lagos, ó Noruega! ó silenciosa Escandinávia!, as pegadas ainda vivas de Raoul e de Christine, e também da Sra. Valérius, que desapareceu igualmente no mesmo tempo!... Quem sabe um dia eu ouça com os meus ouvidos o eco solitário do Norte do Mundo repetir o canto daquela que conheceu o Anjo da música?...
Bem depois que o caso, pela atuação inteligente do juiz de instrução Faure, foi arquivado, a imprensa, de tempos em tempos, buscava ainda penetrar no mistério... e perguntava-se onde estava a mão monstruosa que tinha preparado e executado tantas catástrofes inauditas! (Crime e desaparecimento.)
Um jornal do Boulevard Saint-Germain foi o único a escrever: Essa mão é a do fantasma da Ópera.
E ainda fizera isso num tom de ironia.
Só o Persa, a quem não quiseram ouvir e que não retomou, depois da visita de Erik, a sua primeira iniciativa junto à Justiça, possuía toda a verdade.
E também detinha as provas principais que lhe tinham chegado às mãos junto com as piedosas relíquias anunciadas pelo fantasma...
Essas provas, coube a mim completá-las, com a ajuda do próprio daroga. Dia a dia eu o punha a par das minhas pesquisas e ele as conduzia. Havia anos e anos ele não voltava mais à Ópera, mas tinha conservado do monumento a mais precisa lembrança e não havia melhor guia para fazer-me descobrir os cantos mais secretos. Era também ele quem indicava as fontes onde eu podia pesquisar, as personagens a interrogar; foi ele quem me levou a bater à porta do Sr. Poligny, no momento em que o pobre homem estava à beira da agonia. Eu não sabia que ele estava tão mal e nunca esquecerei o efeito que produziram sobre ele as minhas perguntas relativas ao fantasma. Ele olhou para mim como se estivesse vendo o diabo e não me respondeu senão com algumas frases sem seqüência, mas que atestavam (isso era o essencial) quanto o F. da Ó. tinha lançado, em seu tempo, a perturbação naquela vida já agitada (Poligny era o que se convencionou chamar um boa-vida).
Quando relatei ao Persa o fraco resultado de minha visita a Poligny, o daroga deu um vago sorriso e me disse:
— Nunca Poligny ficou sabendo quanto esse extraordinário crápula do Erik (ora o Persa falava de Erik como de um deus, ora como de um vil canalha) usou e abusou dele. Poligny era supersticioso e Erik sabia disso. Erik sabia também muitas coisas sobre os negócios públicos e privados da Ópera. Quando Poligny ouviu a voz misteriosa contar-lhe, no camarote nº 5, a maneira como empregava o tempo e como abusava da confiança do seu sócio, não quis ouvir o resto. Assustado primeiro com uma voz do Céu, acreditou estar condenado, e depois, como a voz lhe pedisse dinheiro, acabou por ver que estava sendo enganado por um mestre cantor de que o próprio Debienne fora vítima. Ambos, já cansados de sua direção por numerosas razões, retiraram-se, sem tentar conhecer mais a fundo a personalidade desse estranho F. da Ó., que tinha feito chegar-lhes às mãos aquele tão estranho caderno de encargos. Legaram todo o mistério à diretoria seguinte, soltando um grande suspiro de satisfação, desembaraçados de uma história que os havia intrigado muito sem que nenhum dos dois achasse a menor graça.
Assim se exprimiu o Persa com relação aos Srs. Debienne e Poligny. A esse respeito, falei-lhe de seus sucessores e espantei-me de que nas Memórias de um diretor, do Sr. Moncharmin, se falasse de maneira tão completa dos gestos e atos do F. da Ó. na primeira parte, para chegar a nada mais dizer a respeito, ou quase nada, na segunda. Ao que o Persa, que conhecia essas memórias como se ele próprio as tivesse escrito, fez-me observar que encontraria a explicação de todo o problema se me desse ao trabalho de refletir sobre as poucas linhas que, na segunda parte precisamente do livro, Moncharmin dedicou ao fantasma. Aqui estão essas linhas, que nos interessam, aliás, particularmente, visto que nelas está relatada a maneira muito simples como terminou a famosa história dos 20 mil francos:
A respeito do F. da Ó. (é Moncharmin quem fala), de quem narrei aqui mesmo, no começo destas minhas memórias, algumas das singulares fantasias, não quero dizer senão uma coisa: é que ele resgatou com um belo gesto todos os dissabores que tinha causado ao meu colaborador e, devo confessar, a mim mesmo. Achou, certamente, que havia limites para qualquer brincadeira, principalmente quando esta custa tão caro e quando o delegado de polícia é ‘apanhado’, pois, no minuto mesmo em que tínhamos marcado encontro em nosso gabinete com o Sr. Mifroid para lhe contar toda a história, alguns dias depois do desaparecimento de Christine Daaé, encontramos sobre a escrivaninha de Richard, num belo envelope sobre o qual se lia em tinta vermelha: Da parte do F da Ó., as importâncias bastante grandes que ele tinha feito sair momentaneamente, e numa espécie de jogo, da caixa da diretoria. Richard foi de opinião que se devia parar por aí e não levar adiante o caso. Consenti em ter a mesma opinião de Richard. E tudo está bem quando acaba bem. Não é, meu caro F. da Ó.?
Evidentemente, Moncharmin, principalmente depois dessa restituição, continuava a acreditar que por um momento tinha sido joguete da imaginação burlesca de Richard, como, do seu lado, Richard não parou de acreditar que Moncharmin tinha-se divertido, para se vingar de algumas pilhérias, inventando todo o caso do F. da Ó.
Não seria o momento de pedir ao Persa que me informasse por qual artifício o fantasma fazia desaparecer 20 mil francos no bolso de Richard, apesar do alfinete de pressão? Ele me respondeu que não tinha aprofundado esse pequeno detalhe, mas que, se eu próprio quisesse “trabalhar” in loco, certamente devia encontrar a chave do enigma no gabinete da diretoria, lembrando-me de que não era à toa que Erik tinha sido apelidado de amador de alçapões. Prometi ao Persa entregar-me, logo que tivesse tempo, a úteis investigações desse lado. Direi já ao leitor que os resultados dessas investigações foram perfeitamente satisfatórios. Eu não achava, na verdade, que iria descobrir tantas provas incontestáveis da autenticidade dos fenômenos atribuídos ao fantasma.
E convém que se saiba que os papéis do Persa, os de Christine Daaé, as declarações que me foram feitas pelos antigos colaboradores dos Srs. Richard e Moncharmin e pela própria pequena Meg (tendo falecido, infelizmente, a excelente Sra. Giry) e pela cantora Sorelli, que se encontra agora aposentada em Louveciennes — convém, dizia eu, que se saiba que tudo isso, que constitui as peças documentais da existência do fantasma, peças que vou entregar aos arquivos da Ópera, encontra-se corroborado por várias descobertas importantes de que posso justamente tirar motivo para algum orgulho.
Se não pude encontrar a morada do Lago, visto que Erik condenou definitivamente todas as suas entradas secretas (e ainda estou seguro de que seria fácil penetrar nela se se procedesse à drenagem do lago, como por diversas vezes já pedi à administração das Belas-Artes[13]), descobri pelo menos o corredor secreto dos communards, cuja parede de tábua está, em alguns lugares, caindo em ruínas; e, igualmente, desvendei o alçapão pelo qual o Persa e Raoul desceram aos subsolos do teatro. Revelei, na masmorra dos communards, muitas iniciais traçadas nas paredes pelos infelizes que ali ficaram trancados e, entre essas iniciais, um R e um C. — RC? Isso não é significativo? Raoul de Chagny! As letras são ainda hoje bem visíveis. Não parei, evidentemente, nesse ponto. No primeiro e no terceiro subsolos, fiz funcionar dois alçapões de um sistema pivotante, totalmente desconhecidos pelos maquinistas, que só usam alçapões com deslizamento horizontal.
Enfim, posso dizer, com todo conhecimento de causa, ao leitor: Visite um dia a Ópera, peça para passear em paz, sem nenhum guia estúpido, entre no camarote nº 5 e bata na enorme coluna que separa esse camarote do proscênio; bata com sua bengala ou com os punhos e escute... até a altura de sua cabeça: a coluna tem um som oco! E depois disso não ficará admirado de que ela tenha sido habitada pela voz do fantasma: existe, nessa coluna, lugar para dois homens. Se você se admira de que, quando dos fenômenos do camarote nº 5, ninguém se tenha voltado para a coluna, não se esqueça de que ela oferece o aspecto do mármore maciço e que a voz fechada lá dentro parecia vir do lado oposto (pois a voz do fantasma ventríloquo vinha de onde ele queria). A coluna está trabalhada, esculpida, mexida e remexida pelo cinzel do artista. Não perco a esperança de descobrir um dia a parte de escultura que devia se abaixar e se levantar à vontade, para deixar uma livre e misteriosa passagem à correspondência do fantasma com a Sra. Giry e às suas generosidades. Por certo, tudo isso que eu vi, senti, apalpei, nada é ao lado do que um ser enorme e fabuloso como Erik deve ter criado no mistério de um monumento como a Ópera, mas daria todas essas descobertas pela que me foi dado fazer, diante do próprio administrador, no gabinete do diretor, a alguns centímetros da poltrona: um alçapão, do comprimento da tábua do assoalho, da largura de um antebraço, não mais... um alçapão que se rebaixa como a tampa de um cofre, um alçapão por onde vejo sair uma mão que trabalha com destreza na aba do fraque que se arrasta...
Foi por ali que tinham ido embora os 40 mil francos!... Foi por ali que, graças a algum intermediário, tinham voltado...
Foi com emoção bem compreensível que falei ao Persa:
— Erik estava simplesmente se divertindo, visto que os 40 mil francos voltaram, dando uma de brincalhão com o seu caderno de encargos?...
Ele me respondeu:
— Não creia nisso!... Erik precisava de dinheiro. Acreditando-se fora da humanidade, não se deixava perturbar pelo escrúpulo e se valia dos dons extraordinários de destreza e de imaginação que tinha recebido da natureza em compensação da atroz feiúra com que ela o havia dotado, para explorar os humanos, e isso às vezes da maneira mais artística do mundo, pois o golpe valia muitas vezes o seu peso em ouro. Se devolveu os 40 mil francos, por iniciativa própria, aos Srs. Richard e Moncharmin, foi porque, no momento da restituição, não estava mais precisando deles!Tinha renunciado ao casamento com Christine Daaé. Tinha renunciado a todas as coisas do lado de cima da terra.
Segundo o Persa, Erik era originário de uma cidadezinha dos arredores de Ruão. Era filho de um empreiteiro de obras. Tinha fugido cedo do domicílio paterno onde a sua feiúra era objeto de horror e de espanto dos próprios pais. Durante algum tempo, exibiu-se em feiras onde o seu empresário o apresentava como “morto-vivo”. Deve ter atravessado a Europa de feira em feira e completado a sua estranha educação de artista e de mágico na fonte mesma da arte e da magia, entre os ciganos. Todo um período da existência de Erik era bastante obscuro. Foi visto na feira de Nijni-Novgorod, onde então ele se exibia em toda a sua horrorosa glória. Então já cantava como ninguém no mundo jamais cantou; fazia o número do ventríloquo e se entregava a malabarismos extraordinários de que as caravanas, ao voltarem à Ásia, falavam ainda, ao longo do caminho. Foi assim que a sua reputação atravessou as muralhas do palácio de Mazenderã, onde a pequena sultana, favorita do xainxá, se entediava. Um mercador de peles, que estava indo para Samarkand e que voltava de Nijni-Novgorod, contou os milagres que tinha visto sob a tenda de Erik. Mandaram vir o mercador ao palácio, e o daroga de Mazenderã teve de interrogá-lo. Depois, o daroga foi encarregado de se pôr em busca de Erik. Trouxe-o para a Pérsia, onde durante alguns meses ele fez, como se diz na Europa, “a chuva e o bom tempo”. Cometeu assim bastantes horrores, pois não parecia conhecer o bem e o mal, e cooperou em alguns belos assassínios políticos tão tranqüilamente quanto combateu, com invenções diabólicas, o emir do Afeganistão, em guerra com o Império. O xainxá tomou-se de amizade por ele. E nesse momento que se situam as horas cor-de-rosa de Mazenderã, de que a narrativa do daroga nos deu um apanhado. Como Erik tivesse, em arquitetura, idéias totalmente pessoais e concebia um palácio como um prestidigitador pode imaginar um cofre de combinações, o xainxá lhe encomendou uma construção desse tipo, que levou a bom termo, e era, parece, tão engenhoso que Sua Majestade podia passear por toda parte sem que fosse percebido e desaparecer sem que fosse possível descobrir por que artifício. Quando o xainxá se viu senhor de semelhante jóia, ordenou, como tinha feito certo czar com relação ao genial arquiteto de uma igreja da praça Vermelha, em Moscou, que furassem os olhos de ouro de Erik. Mas raciocinou que, mesmo cego, Erik poderia construir ainda, para outro soberano, uma morada igualmente extraordinária, e, afinal, que, enquanto Erik estivesse vivo, alguém possuiria o segredo do maravilhoso palácio. Assim, ficou decidida a morte de Erik, juntamente com a de todos os operários que tinham trabalhado sob as suas ordens.
O daroga de Mazenderã foi encarregado da execução dessa ordem abominável. Erik lhe havia prestado alguns serviços e o tinha feito rir muito. Ele o salvou dando-lhe os meios para fugir, mas quase teve de pagar com a cabeça essa generosa fraqueza. Felizmente para o daroga, encontraram, numa praia do Mar Cáspio, um cadáver meio devorado por aves marinhas e que passou por ser o de Erik, por causa dos amigos do daroga que vestiram esses despojos mortais com as roupas que tinham pertencido a Erik. O daroga ficou quite mediante a perda de seu cargo, de seus bens e pelo exílio. Q Tesouro persa continuou entretanto a lhe pagar uma pensão de algumas centenas de francos por mês, pois o daroga era originário de raça real, e foi então que ele foi refugiar-se em Paris.
Quanto a Erik, tinha passado para a Ásia Menor, depois fora para Constantinopla, onde entrara para o serviço do sultão. Terei dado a entender os serviços que pode ter prestado ao sultão quando disser que foi Erik quem construiu todos os famosos alçapões e quartos secretos e cofres-fortes misteriosos que foram encontrados em Yildiz-Kiosk depois da última revolução turca. Foi ainda ele[14] quem teve a idéia de inventar autômatos vestidos como o príncipe e tão parecidos com ele que seriam capazes de enganar o próprio príncipe, autômatos que faziam acreditar que o chefe dos crentes estava num lugar, acordado, quando ele repousava em outro.
Naturalmente, ele deve ter deixado o serviço do sultão pelas mesmas razões por que tinha sido obrigado a fugir da Pérsia. Sabia demais. Então, muito cansado de sua vida aventurosa, formidável e monstruosa, desejou tornar-se alguém como todo mundo. Fez-se empreiteiro, como qualquer empreiteiro que constrói casas para todo mundo, com tijolos comuns. Assinou um contrato para execução de certos trabalhos nas fundações da Ópera. Quando se viu nos subterrâneos de um teatro tão vasto, seu temperamento de artista, fantasista e mágico, voltou à tona. E, depois, não continuava ele igualmente feio? Sonhou em construir para si uma morada desconhecida do resto da terra e que o escondesse para sempre do olhar dos homens.
Sabe-se e adivinha-se a seqüência. Ela está ao longo de toda esta incrível e no entanto verídica aventura. Pobre coitado do Erik! É o caso de se ter pena dele? É o caso de maldizê-lo? Ele só pedia para ser alguém, como todo mundo! Mas era feio demais! E teve de esconder o seu gênio ou aplicar golpes com ele, quando, com um rosto comum, teria sido um dos mais nobres da raça humana! Tinha um coração capaz de conter o império do mundo e teve de se contentar, finalmente, com um porão. Decididamente, há que se ter pena do fantasma da Ópera!
Rezei, apesar dos seus crimes, sobre os seus despojos mortais, e pedi a Deus que tivesse finalmente piedade dele! Por que Deus fez um homem tão feio assim?
Estou certo, creio, de ter rezado sobre o seu cadáver, no outro dia, quando o tiraram da terra, no lugar mesmo onde são enterradas as vozes vivas; era o seu esqueleto. Não foi pela feiúra de seu rosto que eu o reconheci, pois, quando estão mortos há tanto tempo, todos os homens são feios, mas pelo anel de ouro que estava usando e que Christine Daaé certamente tinha vindo enfiar-lhe no dedo, antes de sepultá-lo, conforme lhe tinha prometido.
O esqueleto estava bem perto da pequena fonte, naquele lugar onde, pela primeira vez, quando a levou para os subterrâneos do teatro, o Anjo da música tinha segurado nos braços trêmulos Christine Daaé desmaiada.
E agora, que se vai fazer desse esqueleto? Não se vai lançá-lo na vala comum?... Quanto a mim, digo: o lugar do esqueleto do fantasma da Ópera é nos arquivos da Academia Nacional de Música; não é um esqueleto comum.
[1] Eu seria um ingrato se não agradecesse igualmente, à porra desta espantosa e verídica história, à direção atual da Ópera, que se prestou tão amavelmente a todas as minhas investigações e, em particular, a M. Messager; também ao simpaticíssimo administrador M. Gabion e ao amabilíssimo arquiteto encarregado da boa conservação do monumento, que não hesitou em me emprestar os livros de Charles Garnier, embora estivesse mais ou menos certo de que eu não lhos devolveria. Enfim, resta-me reconhecer de público a generosidade do meu amigo e antigo colaborador M. J.-L. Croze, que me permitiu pesquisar em sua admirável biblioteca teatral e dela retirar por empréstimo edições únicas que lhe eram muito caras. — G. L.
[2] Este caso, igualmente autêntico, foi-me contado pelo próprio Pedro Gailhard, ex-diretor da Ópera.
[3] Nome dado, na tradição popular da Bretanha, a certos duendes ou espíritos malfazejos (N. T.).
[4] O próprio Pedro Gailhard contou-me que tinha também criado a função de fechadores de portas para velhos maquinistas que não queria despedir.
[5] Naquele tempo, os bombeiros tinham ainda a missão de, fora das representações, velar pela segurança da Ópera; mas esse serviço foi posteriormente suprimido. Como eu perguntasse a Pedro Gailhard a razão disso, respondeu-me que “era porque se temia que, em sua total inexperiência dos subsolos do teatro, “ateassem fogo ao edifício”.
[6] O autor, assim como o Persa, não dará maiores explicações sobre a aparição dessa sombra. Enquanto tudo, nesta história histórica, será explicado normalmente no curso de acontecimentos às vezes aparentemente normais, o autor não fará nenhum comentário para levar o leitor a entender o que o Persa quis dizer com estas palavras: “É alguém muito pior!” (do que alguém da segurança do teatro). O leitor terá de adivinhar, pois o autor prometeu ao ex-diretor da Ópera, Sr. Pedro Gailhard, guardar segredo sobre a personalidade extremamente interessante e útil da sombra errante com o manto, a qual, ainda que se condenando a viver nos subterrâneos do teatro, prestou tão prodigiosos serviços aos que, nas noites de gala, por exemplo, ousavam aventurar-se pelos subsolos. Falo aqui de serviços de Estado, e não posso dizer mais nada, palavra de honra.
[7] O antigo diretor da Ópera, Sr. Pedro Gailhard, contou-me um dia no Cabo de Ail, em casa da Sra. Pierre Wolff, sobre a imensa devastação subterrânea feita pelos ratos, até o dia em que a administração tratou, por um preço bastante elevado, aliás, com um indivíduo que garantia ser capaz de suprimir o flagelo vindo fazer uma ronda pelos porões a cada quinze dias. Desde essa época, não há mais ratos na Ópera, além dos que são admitidos no pavilhão da dança. O Sr. Gailhard achava que esse homem tinha descoberto um odor secreto que atraía para junto de si os ratos como o produto que alguns pescadores usam nas pernas para atrair o peixe. Ele os levava atrás de si para algum porão onde os ratos, embriagados, se deixavam afogar. Vimos o pavor que a aparição dessa figura já tinha causado no tenente dos bombeiros, pavor que tinha chegado até ao desmaio — conversa com o Sr. Gailhard — e, para mim, não há dúvida de que a cabeça-chama encontrada pe!o bombeiro seja a mesma que colocou em tão grande comoção o Persa e o visconde De Chagny (papéis do Persa).
[8] Nunca foram encontrados dois pares de botinas que tinham sido colocados, segundo os papéis do Persa, entre o suporte e o cenário do Rei de Labore, no lugar onde fora encontrado enforcado Joseph Bouquet. Devem ter sido apanhados por algum maquinista ou “fechador de portas”.
[9] Daroga: em persa, comandante-geral da polícia do governo (N. T.).
[10] Um relatório administrativo, vindo de Tonquim e chegado a Paris em fins de julho de 1900, conta como o célebre chefe de bando De Thain, acuado com seus piratas por nossos soldados, conseguiu escapar, com todos os seus, graças ao uso do caniço.
[11] Aqui o Persa poderia ter confessado que a sorte de Erik interessava igualmente a ele próprio, pois não ignorava que, se o governo de Teerã tivesse sabido que Erik ainda estava vivo, acabaria com a modesta pensão do antigo daroga. É justo, aliás, acrescentar que o Persa tinha um coração nobre e generoso, e não duvidamos de que as catástrofes que temia para os outros ocupassem a sua mente com freqüência. Seu procedimento, aliás, no presente caso, é prova mais que suficiente e está acima de qualquer elogio.
[12] Na época em que o Persa escrevia, compreende-se muito bem que tenha tomado tantas precauções contra o espírito de incredulidade; hoje, quando todos podem ver esse tipo de sala, tais precauções teriam sido supérfluas.
[13] Ainda 48 horas antes da publicação deste livro, eu falava a esse respeito com o Sr. Dujardin-Beaumetz, nosso tão simpático subsecretário de Estado das Belas-Artes, que me deixou alguma esperança, e eu lhe dizia que é dever do Estado acabar com a lenda do fantasma para restabelecer em suas bases indiscutíveis a história tão curiosa de Erik. Para tanto, é necessário, e isso seria o coroamento de meus trabalhos pessoais, reencontrar a morada do Lago, onde ainda se encontram encerrados tesouros para a arte musical. Não se duvida mais de que Erik tenha sido um artista incomparável. Quem sabe não acharemos na morada do Lago a famosa partitura de seu Don Juan triunfante?
[14] Entrevista de Mohamed-Ali Bey, no dia seguinte ao da entrada das tropas da Tessalônica em Constantinopla, pelo enviado especial do Matin.
Gaston Leroux
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