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O FANTASMA HOMICIDA / Catherine Aird
O FANTASMA HOMICIDA / Catherine Aird

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O FANTASMA HOMICIDA

 

A Casa Ornum estava aberta ao público, o que não favoreceu absolutamente nada a acção da Polícia.

Muito pelo contrário, na realidade.

Podia ser visitada às quartas, sábados e domingos, de Abril a Outubro, e, por grupos, noutras ocasiões, mediante acordo prévio com o administrador.

Assim como - segundo informavam todos os guias - nos feriados bancários (1) (à excepção de Sexta-Feira Santa). Henry Augustus Rudolfo Cremond Cremond, décimo terceiro conde Ornum de Ornum do condado de Calleshire, pôs termo ao hábito antigo de franquear a Casa Ornum na Sexta-Feira Santa.

- É um feriado religioso e não civil. Não quero pândegas em minha casa na Sexta-Feira Santa - decretou, para acrescentar, como fazia sempre que o assunto era abordado: - Não sei o que o meu pai pensaria de receber gente em troca de dinheiro.

E, nessa altura, havia sempre alguém perto para emitir um som de compreensão.

- Convidados, família e criados - continuava Sua Senhoria, em tom de queixume. - Nos tempos dele, eram só esses. Agora, entra metade de Calleshire.

A compreensível relutância em ver o lar da família inva.

 

(1) Feriado oficial, em Inglaterra: Sexta-Feira Santa, segunda-feira de Páscoa, segunda-feira de Pentecostes, primeira segunda-feira de Agosto e o dia 26 de Novembro. (N. do T.)

 

dido não o impedia, porém, de manifestar profundo interesse pelo contingente de visitantes. No final de cada dia de abertura, o administrador, Charles Purvis, era chamado para fornecer uma informação do número de turistas entrados - mais ou menos como na Escócia, nos dias subsequentes ao Glorioso Doze de Agosto, em que o couteiro apresentava, todas as noites, o total da bolsa de caça.

A Casa Ornum, apesar de indiscutivelmente atraente, não podia figurar no Catálogo das Residências Majestosas Nacionais, por se achar demasiado afastada das rotas turísticas usuais. No entanto, contava com um número respeitável de visitantes, todos os anos. Situava-se suficientemente perto de Berebury para constituir um "a não perder" para quem se dirigisse àquela cidade, e suficientemente distante do complexo industrial de Luston para as pessoas aí domiciliadas a considerarem uma "excursão".

Essa excursão costumava ser alargada, para incluir visitas à igreja do século XIII de St. Aidan ou a estalagem do século XX "Encanto do Violinista", mas raramente ambas.

Naquele domingo de Junho, a pequena capela junto da grandiosa casa oferecia os seus próprios atractivos. Era sossegada e fresca, e havia a possibilidade de uma pessoa se sentar em paz num banco e descalçar sub-repticiamente os sapatos apertados, numa tarde quente. Tinha esra vantagem- pelo menos, temporariamente - sobre o "Encanto do Violinista", que só abria às seis horas.

Mrs. Pearl Fisher fazia parte do público que viera admirar a Casa Ornum, e doíam-lhe os pés.

Ainda não a visitara e já a incomodavam. O facto devia-se a estarem comprimidos nos seus melhores sapatos, mas também porque permanecera muito tempo de pé. De um modo geral, passava as tardes de domingo imersa numa sesta tranquila, mas o daquela semana era diferente.

Em todo o caso, ainda não se lhe tornara aparente até que ponto seria diferente, quando ela, os gémeos e restantes membros do seu grupo saltaram do autocarro, pouco antes da hora do almoço.

A casa e recinto circundante apresentavam-se mais concorridos do que habitualmente. Chovera em três fins-de-semana consecutivos, e agora, de repente, o mês de Junho decidira vingar-se de forma flamejante. Havia piqueniquistas dispersos pelos jardins desde o meio-dia, instalados entre as árvores de um modo que não fora previsto por Capability Brown, quando convidado a elaborar o projecto do vasto parque num estilo, então, moderno. (Fora depois de um dos condes de Ornum mandar aplicar uma fachada pseudoclássica na parte sul da casa medieval. E isso acontecera após o regresso da sua primeira Grande Viagem.)

Em todo o caso, o público parecia ter abarcado a ideia das fantasias de Capability. Os jardins estavam positivamente cheios de gente, que experimentava prazer consciente em passear neles, apreciando as alternâncias de sol e sombra e a relva suave sob os pés, e, de vez em quando, soltando uma exclamação ante uma vista inesperada planeada meticulosamente pelo magistral artífice com a intenção exacta de que exclamassem.

Pelo menos duas pessoas tinham-se integrado no espirito da Loucura, disposta numa pequena elevação a certa distância da Casa.

- Não - disse Miss Mavis Palmer.

- Vá lá - urgiu o jovem e ardente companheiro.

- Não - repetiu ela, embora com menos firmeza.

- Sê camarada.

Como única resposta, soltou uma risada nervosa.

Tinham ido passar o dia à Casa Ornum com um grupo que se transportara de Luston num autocarro, e não subsistiam dúvidas de. que se divertiam.

Mrs. Pearl Fisher, que viajara no mesmo veículo, não se sentia muito inclinada para partilhar da euforia geral. Além dos pés, que a molestavam consideravelmente, havia os gémeos, Michael e Maureen, que levara consigo pela bem fundamentada razão de que Mr. Fisher nunca lhe perdoaria se os deixasse em casa. O domingo dele era sacrossanto para o "Poder Real" e a sua poltrona.

A semelhança de Mavis Palmer e o namorado, Bernard, ela provinha de Paradise Row, Luston. Qualquer estudante de filantropia industrial reconheceria imediatamente essa área como uma parte assaz sombria da não.menos obscura cidade. Em virtude de algum acesso de hipocrisia vitoriana, os nomes das ruas variavam na razão inversa dos seus atractivos.

Os lugares no autocarro tinham sido reservados de porta a porta, um dos motivos pelos quais Mrs. Fisher calçara os seus melhores sapatos. No entanto, não contara com a distância no interior das portas. Com efeito, se não existia praticamente distância alguma na casa de Paradise Row, Luston, o mesmo não se podia dizer - muito pelo contrário - uma vez transposto o portal da Casa Ornum.

Se era uma construção antiga quando Capability Brown a vira, agora constituía um pesadelo da arquitectura. Não obedecia as linhas de qualquer período, nem representava coisa alguma, à parte uma série de melhorias da parte de uma sequência de proprietários. Por detrás da fachada sul paladínica, havia tijolos de estilo Tudor, que antecediam os vestígios das masmorras - recordação de que, antes da casa, existira um castelo com a sua imponente torre de menagem.

O próprio lorde Ornum nunca esquecia o facto.

- Bons tempos!-costumava suspirar. - Ponte levadiça, fosso profundo e uma espada de lâmina larga eram suficientes para garantir a segurança. Mantinham os inimigos à distância. Mas agora... - neste ponto, estendia as mãos num gesto expressivo -... agora, para desencorajar o inimigo - (referia-se aos fiscais do Ministério das Finanças de Sua Majestade) -, tenho de baixar a ponte e deixar entrar toda a gente.

Mrs. Pearl Fisher e os gémeos não se juntaram aos piqueniquistas do parque.

Consumiram as suas sanduíches perto da capela, que se situava nas proximidades da casa. As igrejas eram algo que a intrinsecamente urbana Mrs. Fisher compreendia. Encarava com desconfiança as áreas espaçosas de relva e arvoredo. Os relvados que não fossem os de extensão limitada dos jardins domésticos achavam-se fora da sua experiência e o arvoredo abundante que conhecia em Luston não representava o lugar ideal para levar gémeos de treze anos.

- Entremos no bosque, mamã - sugeriu Maureen.

- Não.

- Porquê?

Mrs. Fisher comprimiu os lábios. A semelhança do ministro Disraeli, nunca pedia desculpa, nem fornecia explicações. Por conseguinte, encheu os pulmões de ar e anunciou:

- Vamos comer as sanduíches aqui, junto das sepulturas.

- Não quero aproximar-me dessa igreja velha e bolorenta - protestou Maureen.

No entanto, os gémeos reconheceram a inflexão autoritária implacável na voz da mãe e trataram de se instalar obedientemente entre as lápides. Mais tarde, enquanto aguardavam que se iniciasse a visita seguinte à casa, resolveram entrar na capela.

O que, em face do que aconteceu depois, foi uma ideia deplorável.

- É certo que Mrs. Fisher não perdeu tempo em se sentar num banco e aliviar os pés do martírio dos sapatos, mas era ainda muito cedo num dia que se revelaria particularmente longo, para que experimentasse verdadeiro conforto do breve período descalça. De resto, havia que contar com o desconforto de obrigar os pés a acomodarem-se de novo nuns sapatos agora demasiado pequenos...

Enquanto permanecia sentada, Michael e Maureen percorriam a capela de um modo singularmente desinibido. Mrs. Fisher já se apercebera de que não restava a menor parcela de reverência nos filhos desde que frequentavam uma escola polivalente no meio de Luston que tinha de tudo - incluindo banhos de chuveiro, que ela considerava pouco apropriados. (Esta última opinião não era de modo algum influenciada pelo facto de não haver casas de banho em Paradise Row.)

Os principais objectos de interesse na capela para os Fisher relacionavam-se, naturalmente, com os Ornum. O lugar destinado à família, por exemplo, com o seu brasão esculpido na porta de madeira. Na realidade, tanto um como outro deviam ter desaparecido com a abolição do aluguer de espaço nos templos, mas como o conde de Ornum era patrono dos vivos, o problema nunca fora levantado.

- Mamã... - começou Michael.

- Que mais temos?

- Que quer dizer "expiar"?

- Porque perguntas?

- Está escrito nesta gravura. - Fez deslizar o dedo ao longo da inscrição no brasão. - "Expiarei..."

- Está? - articulou Mrs. Fisher, sinceramente interessada.- Depende das faltas que tinham em vista.

Mas Michael já se transferira para junto de um túmulo, onde se via uma efígie de pedra de um homem, com a esposa, também petrificada, ao lado, e as mãos em torno do punho de uma espada. Havia um cão de pedra a seus pés - o que pareceu despropositado a Mrs. Fisher - e o homem tinha a perna traçada, o que ainda se lhe afigurou mais insensato, pois toda a gente sabia que os membros de uma pessoa se inteiriçavam, quando morria. E ela, que assistira a quase todas as mortes em Paradise Row desde que casara (o casamento era a maioridade emocional, naquela parte de Luston], deixou de se interessar por aquele conde de Ornum que participara nas Cruzadas.

Por seu turno, Maureen detinha-se diante de outro memorial muito mais recente, que ainda conservava colorido suficiente para despertar a curiosidade, assim como numerosas letras douradas no mármore enegrecido. Duas figuras- marido e mulher - ajoelhavam em frente uma da outra e, de cada lado delas, via-se uma fiada de vultos mais pequenos em idêntica posição.

- Quatro, cinco, seis... seis raparigas - comunicou Maureen à mãe.

- Não é preciso gritar - advertiu Mrs. Fisher, automaticamente.

- Há seis miúdas nesta sepultura. São uns amorzinhos... E quatro garotos.

- São os filhos. Havia famílias numerosas, naquela época.

A própria Mrs. Fisher fazia parte de uma prole de nove membros, e considerava que existia algo de agradável nas famílias numerosas. E quanto aos filhos... Bem, a mãe dela costumava dizer que os bebés das grandes famílias nasciam com inclinação para a obediência, o que de modo algum se aplicava aos gémeos.

- Descobri mais filhos neste lado, mamã - anunciou Maureen-, mas não se distingue se são rapazes ou raparigas.

Mrs. Fisher levantou-se e determinou com firmeza:

- São horas de irmos andando.

- Porque estão deste outro lado? - persistiu a filha. - Quase não vêem.

A mãe, que não possuía conhecimentos profundos de eclesiologia, podia calcular o motivo. O tecido da vida em Paradise Row era tão colorido e entrelaçado como o da aristocracia - somente as classes médias se revelavam incaracterísticas.

- Não faço a menor ideia - declarou, após a breve pausa motivada pelas reflexões precedentes. - Vamos.- E abandonaram a capela em direcção à casa.

- Cheira a lilás em toda a parte - disse Maureen, aspirando o ar com visível satisfação.

- Só perto dos lilases - corrigiu o irmão.

Mrs. Fisher insistiu em que se apressassem e incorporaram-se na pequena fila de pessoas que aguardavam para entrar na casa. Tratava-se de uma fila que foi convertida num grupo pela varredela colectiva do olhar do guia.

Este era Mr. Feathers, um professor primário aposentado que vivia na aldeia de Petering, não longe dali. A Casa Ornum contava com vários guias, que actuavam em obediência ao princípio de um por sala aberta ao público e não de um por grupo, decisão que constituía o fruto da experiência. Assim, ficava garantida a segurança da sala e respectivo conteúdo, pois houvera casos de ovelhas transviadas-para não dizer ronhosas-, nos tempos em que vigorava o princípio de um guia por grupo.

- É o conde, mamã? - perguntou Maureen, em voz alta.

- Não - replicou Mrs. Fisher, embora não soubesse explicar porque tinha a certeza disso. Talvez porque o homem usava óculos, instrumento que não costumava achar-se presente entre os ornamentos exibidos pelos detentores de semelhantes títulos nobiliárquicos.

Uma vez reunido o seu rebanho, Mr. Feathers conduziu-o para o Grande Salão.

- Tudor primitivo - informou sem preâmbulo, ao mesmo tempo que tentava avaliar o nível do grupo e determinar o seu interesse por pormenores como espigões e vigas mestras. Postando-se no meio do vasto aposento, prosseguiu:- Quando construíram esta sala, a lareira situava-se no lugar exacto em que me encontro.

- E o fumo? - argumentou alguém.

- O fumo que procurasse a melhor saída possível - replicou o guia, com brandura. - Como podem observar - acrescentou, apontando para o tecto, antecedido de um pesado lustre -, defumava as traves de uma forma substancial.

Trinta e cinco pares de olhos concentraram-se obedientemente no tecto. O trigésimo sexto pertencia a Michael Fisher, que manifestava um interesse potencial perigoso pelo mecanismo íntimo de um relógio admirável da autoria de Thomas Tompion. Por sorte, o trigésimo sétimo não perdia de vista os movimentos do rapaz. Mr. Feathers tinha trinta anos de experiência de ensino, pelo que podia perfeitamente apontar num sentido e olhar para outro. Além disso, conhecia os pontos vulneráveis do Grande Salão, e avançou para Michael com prontidão.

A mãe deste último, em geral a primeira pessoa a impedi-lo de cometer uma imprudência, sentiu-se perversamente contrariada ao ver que o guia se antecipava e colocou-se numa defensiva acalorada.

- O pequeno não chegou a tocar em nada - alegou, embora na altura estivesse concentrada nas traves do tecto. - Nem pôs um dedo em cima do relógio e...

No entanto, a voz de Mr. Feathers propagou-se com clareza e facilidade, na sala, e sobrepôs-se à dela.

- Após cerca de cem anos, cansaram-se de sufocar com o fumo e, em 1859, construíram aquela chaminé ao fundo.

Todos - incluindo, desta vez, Michael Fisher - contemplaram a chaminé e lareira, um conjunto sem dúvida admirável que ocupava metade da largura da parede, em cujo interior havia espaço suficiente para uma dúzia de pessoas. No amplo cão-de-chaminé repousavam vários troncos de árvore para combustível de Inverno e, por detrás, a parede exibia a mesma mensagem heráldica que se encontrava na capela, no espaço destinado à família.

- Que quer dizer aquilo, mamã? - perguntou Maureen, agora sotto voce.

- Propriedade do conde de Ornum - explicou Mrs. Fisher, sem hesitar. - Como nos autocarros da Companhia.

Mr. Feathers aclarou a voz e reatou a prelecção exortatória:

- Os pequenos guarda-loiças de cada lado destinavam-se ao sal. Assim, o lume mantinha-se sempre seco. O sal, como sabem, revestia-se de certo significado, naqueles tempos. Era uma espécie de símbolo de posição social...

- Abaixo do sal - interpôs uma mulher de expressão grave, que segurava um Guia de Calleshire.

- Exactamente.

Mrs. Fisher transferiu o não desprezível peso de um pé para o outro e deplorou não se poder sentar. O único símbolo de posição social reconhecido em Paradise Row era a aliança de casamento, o que serviu para lhe recordar Mavis Palmer e o namorado, Bernard. Se os seus pressentimentos não a enganavam, a rapariga não tardaria a necessitar de uma.

Mr. Feathers regressou ao centro da sala e, em traços largos, definiu uma imagem:

- Podem calcular o que se passaria aqui, nos velhos tempos. O conde e a família sentavam-se naquele estrado...

- Acima do sal - articulou a mulher de expressão severa, irritantemente.

-... e os criados e restante pessoal abaixo do sal na área principal do aposento. Ele mantinha os guardas sempre presentes, um dos quais permanecia continuamente vigilante. - O guia casquinou de forma pedante. - O chão não devia estar tão limpo como agora...

Pearl Fisher-Pearl Hipps, antes de casar com Mr. Fisher - concordou intimamente, sem hesitar. Na adolescência, vira a película em que Charles Laughton atirava os ossos de frango por cima do ombro, com a maior naturalidade. Parecia-lhe que era Henrique VII, mas do nome do protagonista não tinha a menor dúvida.

Fora na época em que se sentava na última fila da plateia, com Fred Cárter. Na verdade, costumavam comprar entradas para os lugares da frente, perto da tela, menos dispendiosas, e mudavam-se para lá depois de se apagarem as luzes. Por fim, emergiu das breves reminiscências que incluíam Fred Cárter (um rapagão em toda a acepção do termo, sem a menor dúvida) e a actual inflação (hoje, ninguém podia pensar em ir ao cinema pelo preço de outrora), e viu Mr. Feathers, agora de costas para a ampla lareira, que apontava para o lado oposto da sala.

Uma Galeria de Menestréis prolongava-se a toda a largura do Grande Salão.

- A música vinha dali, embora fosse de uma variedad" muito diferente da que se ouve nos nossos dias. Costumavam utilizar alaúdes e provavelmente um virginal...

- Mamã - murmurou Maureen, puxando a manga de Mrs. Fisher-, o que é um virginal?

A interpelada, que não dispunha de momento da resposta adequada, limitou-se a impor-lhe silêncio, com uma leve palmada no ombro.

-... e tocavam ali, sem serem vistos, durante a refeição da noite. Olhem para cima nesta direcção e um pouco para a esquerda... Não vêem, no canto ao fundo da Galeria dos Menestréis?...

- Uma janelinha - colaborou alguém.

- Uma janelinha -confirmou Mr. Feathers. - Atrás dela, há um pequeno aposento de onde o conde observava os movimentos de toda a gente - acrescentou com um gesto largo, mas volvendo os olhos para Michael Fisher.

- E os outros não o podiam ver - salientou outra voz de entre o grupo.

- Exacto. - O guia exibiu um sorriso de professor primário.- Não o podiam ver.

Vários pescoços inclinaram-se para trás, para permitirem a observação do postigo, mas achava-se imerso na sombra, em obediência aos desígnios dos seus criadores tudorianos. Como não havia a mínima luz atrás da janela, resultava impossível determinar se alguém espreitava através dela.

- Até podem estar a observar-nos neste momento - comentou Mr. Feathers, num tom algo sinistro.

Não teve, porém, oportunidade de se inteirar da reacção do grupo à sua sugestão. Com efeito, as suas palavras foram seguidas de um grito agudo terrível, que ecoou no Grande Salão e não devia provir de longe. Era tétrico, hediondo.

E absolutamente desumano.

Quase se podia afirmar que o som surgira como uma distracção deliberada, porque quando se extinguiu Mrs. Fisher descobriu que Michael desaparecera.

 

Se porventura havia escassez de alguma coisa em Paradise Row, a emoção e o drama não se achavam incluídos.

- Que foi aquilo? - balbuciou Mrs. Fisher, levando a mão ao peito e olhando em volta com apreensão. - E onde está Michael? - Apontou com firmeza. - Vinha dali.

- Pelo menos, lá de fora - concedeu uma mulher magra de sapatos leves, como se isso a dispensasse de qualquer acto.

- Dava a impressão de que estavam a matar alguém - persistiu Mrs. Fisher.

- Papagaios - explicou Mr. Feathers, secamente, meneando a cabeça. - No terraço.

- Papagaios? - ecoou ela, incrédula.

Entretanto, Maureen já se afastara em direcção ao ruído e começava a subir a uma cadeira, a fim de espreitar pela janela, o que galvanizou o guia.

- Desça daí, menina!-bradou. - Ninguém pôs os pés nessa cadeira desde que Chippendale a produziu, e você não vai ser a primeira pessoa a fazê-lo.

- Era só para ver... - começou Maureen, retrocedendo.

- Pregaram-me um susto!-declarou Mrs. Fisher a ninguém em especial, com uma expressão de desafio. No entanto, qualquer que fosse a sua atitude, Michael continuava ausente.

A mulher de ar severo, possuidora do Guia de Calleshire, que quase nem estremecera com o ruído, exibiu um vago sorriso, e todo o grupo principiou a mover-se em direcção a uma das saídas do Grande Salão. Mr. Feathers anunciou que havia outro guia à espera no primeiro piso, certificou-se minuciosamente de que Michael não se ocultava em parte alguma e foi ocupar-se do grupo seguinte.

Mrs. Fisher arrastou-se para a escada com os outros, pensando nos pés e no filho. Em Paradise Row, uma escada de madeira desnuda significava que não havia dinheiro para uma passadeira, mas era óbvio que na Casa Ornum queria dizer algo de muito diferente. Por um momento fugaz, cruzou-lhe o espírito a ideia de que resultaria maravilhoso varrer aqueles degraus envergando um vestido comprido e receber uma pisadela que lhe faria ver as estrelas, mas regressou ao presente sem demora.

E Michael continuava a brilhar pela ausência.

Havia retratos na parede da escada, óleos de pequenas dimensões do estilo holandês, que não lhe agradaram, embora apreciasse as molduras de ouro. No entanto, um que avistou no patamar do topo despertou-lhe particularmente a atenção.

O modelo devia estar a olhar para o artista, porque qualquer que fosse o ângulo de que Mrs. Pearl Fisher contemplasse o retrato, os olhos pareciam acompanhá-la. Era de uma mulher de vestido de veludo vermelho-escuro, cujo contraste com a tez rosada permitia obter um realce notável. Não foi, porém, o vestuário - que ela julgava ser um trajo de baile -, nem a tonalidade da pele que lhe suscitou a curiosidade, mas o rosto.

Na verdade, podia considerar-se encantador.

E de uma coisa não lhe restava a menor dúvida. A mulher que posara para o óleo que tinha na sua frente não era menos atraente do que a tela revelava.

- Por aqui - indicou a nova guia. - Vamos entrar na Longa Galeria...

Michael não se encontrava ali.

Em comparação com a dama do óleo do patamar, Mrs. Fisher achou as telas da Longa Galeria banais.

- Lely, Romney, Gainsborough... - entoava Miss Cleepe, uma solteirona de meia-idade da aldeia de Ornum, que tinha a seu cargo a Longa Galeria e recitava a sua lengalenga de pintores célebres a intervalos de meia hora ao longo da época das visitas, pelo que, em Junho, já perdera toda a vivacidade de Abril. - Podemos ver o conde e condessa de cada lado da lareira, com a indumentária que se apresentaram na coroação de Eduardo VII...

- Quem é aquela lá de fora? - quis saber Mrs. Fisher, agitando o polegar por cima do ombro. - A do óleo do patamar.

- Lady Elizabeth Murton - informou Miss Cleepe, franzindo os lábios. - Já faleceu. E agora, senhoras e senhores, se observarem as telas da Coroação, notarão uma excelente representação da coroa do conde...

- O óleo...-volveu Mrs. Fisher.

- A coroa - continuou a guia, com firmeza - tem oito esferas em espigões elevados que alternam com oito folhas de morangueiro...

Todavia, Mrs. Fisher não estava interessada na coroa e volveu:

- Essa Lady Elizabeth...

- Sim? - inquiriu Miss Cleepe.

- Quem era?

Voltou-se para trás com relutância e informou pausadamente:

- Uma filha da casa.

- Que fez?

- Fez?

- Para a colocarem lá fora.

- Um casamento assaz infeliz - explicou, algo embaraçada.

- Aaah...

- Com um lacaio.

- Fugiram juntos?

- Creio que sim.

- Porque não se limitaram a voltar o retrato para a parede? - disse alguém, na periferia do grupo.

A observação teve o condão de fazer Miss Cleepe parecer ainda mais embaraçada.

- O filho, Mr. William Murton, ainda frequenta a casa.

- Então, foi por isso que a puseram no patamar - concluiu Mrs. Fisher, com uma inclinação de cabeça de satisfação.

- Sim. - A guia fez uma pausa e, surpreendentemente, forneceu uma informação estranha à sua arenga habitual:

- Segundo consta, era conhecida por Betty Leviana.

Mrs. Fisher olhou em volta para os companheiros e comentou jovialmente:

- Afinal, aqui não são diferentes. Isto lembra-me o meu primo Alfred. Já ninguém tem fotografias dele ou, pelo menos, não são expostas.

- A tela mais valiosa da Longa Galeria - apressou-se Miss Cleepe a anunciar - é a que vêem acolá. A meio da parede da direita. - Fez uma pausa, enquanto as atenções gerais se fixavam num óleo algo obscuro. - Foi pintada por Holbein em 1532 e representa um membro da família que se dedicou ao direito civil. O juiz Cremond. - O tema principal do retrato segurava um pequeno barrete preto.

- Ficou conhecido popularmente por "A Morte Negra".

O grupo mostrou-se apropriadamente impressionado. A única excepção consistia num jovem com aspecto de artista e cabelos compridos, defensor acérrimo da opinião de que a forma feminina era o único tema que merecia ser pintado.

Miss Cleepe fez nova pausa para criar o efeito adequado e acrescentou:

- O seu fantasma ainda assombra o Grande Salão.

- Bem me parecia que tinha de haver um fantasma - proferiu alguém, com satisfação.

A guia inclinou a cabeça, agora absolutamente segura do interesse da audiência.

- Na sua qualidade de juiz, mandou a pessoa errada para a forca. Por conseguinte, a sua alma não pode descansar.- Os turistas dividiam-se em partes mais ou menos iguais entre os que acreditavam no que ouviam e os que duvidavam abertamente. - É daí que vem a divisa da família.

- "Expiarei" - interpôs Mrs. Fisher, com prontidão. Figurava, naturalmente, entre os crentes, pois a mãe educara-a mais com base nas fábulas do que nos factos.

- Não parece dos que se deixam abalar por coisas dessas - observou um membro do grupo. Do sector dos cépticos, evidentemente.

E era verdade. Os lábios finos que se estendiam sob o nariz inconfundível dos Cremond, comum a todos os retratos da família, não pareciam indicar que o homem ficasse particularmente preocupado com uma execução errada, ou mesmo duas, numa época de reconhecida agitação.

- Mas quem morreu foi o próprio filho - esclareceu Cleepe, numa intonação melodramática.- E agora, quando um membro da família está às portas da morte, o juiz faz a sua aparição. - Os cépticos continuaram a deixar transparecer incredulidade e os crentes reverência. - A seguir, temos um retrato do nono conde, quando jovem. O que vêem pousado no pulso é um falcão... - De súbito, agiu com uma rapidez surpreendente, a fim de estender a mão para um planetário de valor incalculável, no momento em que Maureen Fisher se preparava para o fazer girar.

- Ora! -articulou a garota, com um encolher de ombros. - Temos um na escola, e é melhor que este.

- Isso é que não têm - retorquiu Miss Cleepe, em tom incisivo. - Este é um planetário genuíno. O vosso não passa de um globo terrestre. O planetário refere-se ao espaço.

- Espaço? - ecoou Maureen, observando o objecto com uma expressão de dúvida.

- Espaço - reiterou a guia. Levantou a voz para abarcar todo o grupo e prosseguiu:-Outrora, as senhoras da casa passavam muito tempo nesta sala. Quando chovia, traziam os seus passatempos para aqui. - Apontou para a janela mais distante. - Nos dias bonitos, passeavam no parque... talvez em direcção à Loucura.

Todos os olhares se voltaram para a distante Loucura. Não havia vestígios de Miss Mavis Palmer e do seu jovem companheiro, Bernard. Entretanto, Mrs. Fisher lamentava que Miss Cleepe tivesse falado de passear, pois isso implicava caminhar e pés. Durante alguns preciosos minutos - enquanto pensava na errante Lady Elizabeth Murton conseguira esquecer os seus e a ausência de Michael, todavia agora regressavam ao primeiro plano do espírito.

- Quem é o homem de armadura? - perguntou a mulher de ar severo, indicando uma tela perto da porta mais distante.- Talvez um Rembrandt, - Não.- Miss Cleepe abanou a cabeça com veemência. - É uma pintura moderna, embora não pareça. O décimo segundo conde (ou seja, o pai do actual) era um grande coleccionador de armaduras medievais. Quem quiser ir lá abaixo, poderá ver o armeiro.

- Sim - disse simplesmente Maureen.

- O conde mandou-se pintar numa armadura pertencente a um antepassado.

Todos olharam com curiosidade a reprodução da figura cuja cabeça se achava protegida por um elmo, e Mrs. Fisher não se conteve de observar, com uma expressão de dúvida:

- Uma espécie de trajo de fantasia?

- Pode chamar-se-lhe isso - concedeu Miss Cleepe.- E agora, se quiserem ter a bondade de sair por aquela porta e voltar à direita...

Mrs. Fisher arrastou-se com o grupo, desconfortavel-mente consciente de que Maureen começava a aborrecer-se e, o que era pior, Michael tardava em reaparecer.

- Se calhar o fantasma levou-o - aventou a garota, com um sorriso divertido.

O aposento seguinte era o solário.

- O quê? - perguntou Mrs. Fisher à mulher a seu lado.

- Solário.

- Que é isso?

O novo guia procedeu à explicação e a seguir conduziu o rebanho ao quarto principal, cuja responsável era uma certa Mrs. Nutting.

("É ocupação para uma mulher casada", decidira Sua Senhoria. "Não convém atribuir essas funções a Miss Cleepe." Charles Purvis concordara e contratara Mrs. Nutting para o efeito.)

Esta última estava plenamente consciente dos principais pontos de interesse do quarto.

- Não, os actuais conde e condessa não dormiam na cama de quatro colunas.

Sim, esse tipo de leitos era demasiado curto. E alto.

O tecto era muito bonito. Sim, parecia rendado. Ou glacé.

Sim, a flor era a rosa dos Tudor. Maureen tomou a puxar a manga da mãe, para murmurar:

- Para que são as cortinas em volta da cama?

- Para aquecimento- replicou Mrs. Fisher em voz tensa, sem perder de vista os movimentos da guia.

Com efeito, esta dirigira-se a um canto do quarto, onde se via um largo armário de mogno, e a maioria dos membros do grupo preparou-se para admirar um estendal de roupas dispendiosas, de arminho para cima. No entanto, deparou-se-lhes uma casa de banho em miniatura.

- Foi o décimo segundo conde que a mandou construir aqui - esclareceu Mrs. Nutting. - Evidentemente que uma pessoa não se podia deitar na banheira, mas não era inferior às de assento de hoje. Como podem ver, há o lavatório em primeiro lugar e depois, à direita, a banheira.

Mrs. Fisher ficou encantada.

Não era daquelas pessoas que percorriam os aposentos da casa dominadas pelo sonho efémero de que tudo lhes pertencia. Não encarava o seu lar como uma miniatura do que observava na Casa Ornum. Nem sequer possuía qualquer mobiliário de reprodução de cuja qualidade agora se pudesse congratular.

E tão-pouco tentava convencer-se de que o abismo entre os Fisher deste mundo e os Ornum era pequeno, pois sabia que tal não acontecia. Dois minutos antes, poderia ter jurado que não alteraria nada, quando regressasse a Paradise Row.

Mas uma casa de banho num armário...

Havia espaço para um armário em Paradise Row, mas não para uma casa de banho, e aproximou-se para ver melhor.

- Antes disso, a água quente era trazida em jarros enormes - acrescentou Mrs. Nutting -, mas o décimo segundo conde concebeu este tipo de casa de banho e mandou construí-la aqui. Ocupa muito pouco espaço como podem verificar.

E era verdade.

O grupo, como ovelhas obedientes, começou a seguir a guia em direcção à porta, porém Mrs. Fisher foi a última a sair, entretida a observar a pequena banheira.

Michael ainda não reaparecera, e ela quase não prestou atenção à sala de visitas, dominada por preocupação crescente.

- Originariamente, a sala de estar - explicou Mrs. Mompson, ultraculta viúva de um antigo médico de Ornum que ficara encantada, segundo as suas próprias palavras, com "a possibilidade de ajudar o conde com os seus visitantes".

No entanto, Mrs. Fisher não a escutava. Uma ansiedade pungente sucedera à vaga apreensão. Em que ponto daquela imensa casa se encontraria Michael e, mais importante ainda, que estaria a fazer?

Após a sala de visitas, entraram num aposento mais pequeno, mas infinitamente atraente, com uma bela colecção de objectos de porcelana que se alinhavam ao longo da parede em expositores de vidro iluminados. Momentaneamente - mas apenas momentaneamente -, ela congratulou-se por o filho não ter oportunidade de lhes tocar.

As pessoas que tinham vindo - reconhecessem-no ou não - na esperança de vislumbrar algum membro da "família" ignoravam a identidade - na realidade, nem sequer suspeitavam - da mulher que tinha a porcelana a seu cargo.

- É quase tudo Wedgwood - informou Miss Gertrude Cremond, prima do actual conde, possuidora de uma voz grave e rouca e protegida por uma camisola de malha, apesar da temperatura elevada. - Também há algumas peças de Meisseu e Sèvres, trazidas do Continente pela família nas suas viagens. E uma ou outra do período Ming, quando dispunham de fundos para tal.

Era uma mulher de compleição vigorosa e idade indeterminada, que praticara hóquei na equipa de Calleshire na juventude e ainda dava a impressão de que o som de estiques em contacto com a bola seria capaz de a distrair de outros assuntos. Nunca casara e agora vivia com o primo, dedicando-se à assistência necessária às porcelanas, cuidando das flores e debruçando-se sobre a miríade de outras pequenas tarefas situadas simultaneamente acima e abaixo das funções da governanta, mas demasiado mundanas para a condessa.

Entretanto, registavam-se os comentários usuais à sua volta.

- São admiráveis, hem?

- Tenho uma pequena peça Wedgwood, lá em casa.

- Ainda bem que não tenho de limpar tudo isto.

- Mas tenho eu - declarou Miss Cremond, dissipando assim a remota suspeita que se pudesse desenhar em algum dos presentes sobre a eventualidade de ela ser algo mais de que uma simples empregada.

Registaram-se murmúrios de simpatia perante a enormidade do trabalho, mas o interesse geral não tardou a tomar novos rumos. A semelhança de todos os visitantes, viam, tocavam (se podiam), exclamavam e afastavam-se. Transcorrera cerca de uma hora desde que o grupo partira do Grande Salão, quando voltou a desembocar nele. O desconforto produzido pelos pés lutava pela primazia no espírito de Mrs. Fisher com a apreensão constante pelo paradeiro de Michael... e com o interesse suscitado pela casa de banho. Ansiava, acima de tudo, por uma cadeira que não tivesse um cordão vermelho proibitivo a antecedê-la.

Dava, todavia, a impressão de que a visita ainda não terminara, pois Mr. Feathers voltava a dirigir-se-lhes:

- Quem desejar, pode descer às masmorras e ao armeiro, sem qualquer pagamento suplementar. - Fez uma pausa. - O décimo segundo conde reuniu uma das melhores colecções de armaduras medievais do país. Devo, porém, prevenir de que a escada é um pouco difícil...

A advertência teria resultado útil para Mrs. Fisher, se Michael não continuasse ausente. Interrogado, o guia asseverou que não o vira e apressou-se a garantir que o reconheceria sem dificuldade.

- É como Maureen, mas um rapaz - acrescentou ela, numa tentativa para facilitar a identificação.

Mr. Feathers replicou com sinceridade absoluta que se recordava perfeitamente de Michael e estava seguro de que não o vira desde que o grupo abandonara o Grande Salão.

- Talvez descesse ao armeiro-acabou por segerir. Não exagerara ao prevenir o grupo da condição da escada, que era decididamente imprópria para pessoas idosas ou doentes. De pedra em vez de madeira, prolongava-se sinuosamente no interior de uma pequena torre. Havia uma corda suspensa que substituía o corrimão, mas Mrs. Fisher não a considerou merecedora de confiança. Ao invés, encostou-se à parede, auxiliada invisivelmente por uma força que não reconheceu como centrífuga.

- Conhecemos um pormenor indiscutível acerca de quem mandou construir isto - esclareceu Mr. Feathers, jovialmente, do topo. - Era canhoto. Esta escada estende-se no sentido errado e ó facto deve-se à necessidade de ter o braço livre para puxar da espada.

Contudo, Mrs. Fisher não prestou atenção ao pormenor.

A descida parecia interminável, e ela não fazia a menor ideia do número de voltas que já dera. Decidiu concentrar-se em seguir a pessoa à sua frente e tentar afastar-se do caminho da que a seguia. Por último, os degraus chegaram ao fim e tornou a encontrar-se em piso plano, numa atmosfera pouco iluminada.

- Não gosto disto aqui, mamã - queixou-se Maureen. - É muito escuro.

Com efeito, a única iluminação provinha de dois candeeiros na parede.

("Não gastem muita luz lá em baixo, Purvis."

"Muito bem, senhor."

"Convém criar o ambiente apropriado.")

Pela parte que dizia respeito a Mrs. Fisher, tinham-no criado, pois tremia e ansiava por se encontrar noutro lugar qualquer. Quando apanhasse o irresponsável do Michael ao seu alcance, ensiná-lo-ia a comportar-se convenientemente.

- As masmorras ficam para este lado. - A indicação fora proferida por Bert Hackle, um dos jardineiros da Casa Ornum, que acumulava essas funções com as de vigilante das masmorras, de seu pleno agrado. - Queiram seguir-me, por favor.

A voz ecoou no espaço estreito e as suas botas pesadas produziam sons que não deviam diferir muito dos resultantes de um carcereiro medieval, o que provocou novo acesso de arrepios a Mrs. Fisher.

- Esta é a parte mais antiga da casa - prosseguiu Bert Hackle. - Data da época em que era um castelo. Tudo o resto foi construído por cima disto e muito mais que desapareceu ao longo dos séculos. - Fez uma pausa, para que o eco terminasse. - Este pedaço - acrescentou, pousando a mão numa parede - era aquilo a que chamam bastião.

- Ninguém diria - murmurou alguém.

- E no interior encontra-se a masmorra ou calabouço. - O jardineiro-guia contornou a parede e, inclinando-se para a frente, transpôs um arco onde houvera uma porta. - Era aqui que conservavam os prisioneiros.

O grupo mostrou-se adequadamente impressionado.

- Tenebroso, hem?

- Ainda bem que não vivi nessa época.

- Reparem na humidade. Se não sofriam de outras doenças, não tardavam a contrair reumatismo.

Este último comentário constituía uma censura tão indirecta como imerecida aos construtores, os quais, na realidade, tinham utilizado pedra de qualidade perfeita. A humidade devia atribuir-se à acção de Bert Hackle. Com efeito, o instinto de jardineiro levava-o a lançar água em toda a parte, e decidira incutir laivos de verosimilhança ao cenário através da aplicação de um banho, chamemos-lhe assim, às paredes, pouco antes das visitas.

Sua Senhoria não tomara quaisquer medidas para se opor a isso. Na verdade, a última vez que visitara .as masmorras, felicitara Bert pelo facto de brotar uma espécie rara de feto de uma greta na parede.

("Que bela planta tens aqui, Hackle", declarara, com ar aprovador.

"Muito obrigado, senhor.")

O que o jardineiro encarara como o beneplácito à sua inspiração.

- Deve haver um poço algures - disse um membro do grupo que tinha algumas luzes acerca de castelos.

- Acolá - informou Bert Hackle, apontando.

O poço do castelo era suficientemente profundo para não carecer de artifícios e fora firmemente protegido, por recomendação da companhia de seguros de Sua Senhoria.

- É uma água excelente - salientou o jardineiro. - Leve e fresca.

- Melhor que a porcaria que nos fornecem pelos canos - resmungou uma mulher que ouvira falar (embora a desconhecesse por experiência própria) da febre tifóide.

Hackle moveu-se para além do poço e postou-se diante de uma grade num rectângulo do chão, após o que aclarou a voz com ares importantes. O eco ficou sem saber o que fazer com o novo som, pelo que se registou uma pausa apreciável antes de o jardineiro iniciar aquilo que era obviamente a sua pièce de résistance.

- Quem se comportava mal era encerrado nas masmorras - articulou em inflexão ominosa. - Mas quem se comportava mal a valer...

Mrs. Fisher tinha a certeza de que Michael não podia estar longe dali.

-... quem se comportava mal a valer, era metido aqui. - Ele estendeu os braços possantes e levantou a grade de ferro, juntamente com uma pedra pesada, que expôs uma abertura, onde caberiam três homens de pé. - Esses prisioneiros eram lançados aqui e esquecidos para sempre.

Mrs. Fisher estendeu o pescoço para se certificar de que Michael não se achava lá dentro.

- Construíram isto aqui para que os prisioneiros ouvissem extrair água do poço - explicou o jardineiro, em tom macabro. - Assim, a tortura da sede mortificava-os mais, pois não lhes davam de beber.

- Morriam de sede ao som da extracção da água - concluiu Mrs. Fisher, brilhantemente.

- Exacto. - Hackle fez estalar a língua. - Queiram seguir-me, para que lhes mostre o armeiro.

No entanto, o que tinham observado até ali era suficientemente impressionante para a maioria dos visitantes, e o grupo que entrou no armeiro achava-se substancialmente reduzido. A mulher de expressão severa não quis perder a oportunidade de contemplar um armeiro subterrâneo, juntamente com mais três ou quatro pessoas...

- Michael Fisher! - bradou Mrs. Fisher, numa intonação mista de alívio e indignação. - Seu atrevido! Espera até chegarmos a casa...

- Isto aqui em baixo é muito bonito, mamã.

- Porque saíste de o pé de mim?

- Aqui há coisas muito interessantes - explicou o rapaz, sem parecer impressionado com a cólera materna.

Mrs. Fisher olhou em volta por um momento. Havia uma coisa naquela parte da casa que a tranquilizava. Os objectos antigos, depois de resistirem ao teste de tanto tempo, reuniam maiores possibilidades de sobreviver à curiosidade de Michael, pelo que estava convencida de que ele produzira poucos, ou nenhuns, estragos no armeiro.

No que se enganava redondamente.

Tratava-se na realidade de uma colecção assustadora. Armas brotavam das paredes, espadas antigas encontravam-se expostas em vitrinas, grilhões pendiam de ganchos e, como se isso não bastasse, viam-se diversas armaduras quase a pedirem que as utilizassem.

- Queres ver o que tenho estado a fazer, mamã? - exclamou Michael. E fingiu que travava um combate de boxe com uma destas últimas, desferindo-lhe socos ocasionais, que produziam sons metálicos ao longo das paredes. - Toma, para aprenderes!

- Mamã... - chamou Maureen, que observava o conteúdo de uma das vitrinas, sem interesse especial.

- Que queres?

- O que é um cinto de castidade?

A resposta de Mrs. Fisher à embaraçosa pergunta consistiu "em aquilo a que os psicólogos chamam uma actividade deslocada e gritou ao filho:

- Deixa a armadura sossegada, Michael!

- Gostava de ver o que tem dentro.

- Deixa-a, já te disse.

A mulher de expressão severa arqueou as sobrancelhas ao ouvir alguém levantar a voz numa atmosfera tão solene, mas conservou-se polidamente silenciosa.

Entretanto, Michael tentava afastar a viseira, e a mãe insistiu:

- Não ouviste?

Subsistiam poucas dúvidas quanto à única resposta possível a semelhante pergunta, pois a voz de Mrs. Fisher podia ouvir-se distintamente de um extremo ao outro de Paradise Row, pelo que o armeiro não apresentava qualquer problema de audibilidade.

- Ouvi, mas queria só... - começou Michael, levantando a viseira com ambas as mãos.

- Mamã... - volveu Maureen, agora quase num gemido. - O que é um cinto de castidade?

- Escuta, Michael: se não largas a armadura imediatamente...

Nunca se chegou a conhecer a natureza da alternativa, porque naquele momento o rapaz conseguiu levantar a viseira.

Espreitou para dentro.

E deparou-se-lhe um rosto que, à primeira vista, parecia devolver-lhe a mirada.

Era humano e estava morto.

 

A informação não foi exactamente bem acolhida na esquadra de Polícia mais próxima. Com efeito, o superintendente de Berebury mostrou-se mesmo petulante, quando lha transmitiram. Cravou o olhar no chefe do Departamento de Investigação Criminal e inquiriu: - Tem a certeza de que não se trata de um falso alarme, com intenções maliciosas?

- Um corpo numa armadura - repetiu o inspector-detective C. D. Sloan, portador da indesejável notícia.

- Talvez seja um boneco - reconsiderou o superintendente Leeyes. - Um falso alarme, sem más intenções.

- Na Casa Ornum. !.

- Na Casa Ornum? - ecoou, empertigando-se na cadeira, atrás da secretária, cada vez menos satisfeito com o que ouvia. - O local visitado por chusmas de curiosos?

- Sim, senhor. - Sloan duvidava de que as pessoas que pagavam meia coroa para visitar a Casa Ornum se considerassem uma chusma de curiosos, mas não merecia a pena debater a questão com o superior, num momento daqueles.

- Em que parte da casa descobriram o corpo?

- No armeiro.

- Era de prever. Num cenário daqueles, as armaduras estão sempre no armeiro.

- Sim, senhor.

- Quem comunicou o facto?

- O administrador.

- Não foi o mordomo? - inquiriu Leeyes, com notável sarcasmo.

- Não, senhor. Foi lá para baixo, vigiar o local. O administrador, que se chama Purvis, telefonou-nos imediatamente.

- E qual é o nome do corpo na armadura? - quis saber, pertinentemente.

- Ele não o disse. Limitou-se a comunicar que Sua Senhoria pensava que gostaríamos de tomar conhecimento do facto.

- Ah, sim? - resmungou, olhando o subordinado com desconfiança.

- Sim, senhor. Respirou fundo e decidiu:

- Então, vá até lá e tente... como se costuma dizer?... desvendar o mistério, - Sim, senhor.

- Mas não se deixe envolver em indícios como cotas de malha, arcabuzes e coisas do género. Lembre-se de que estamos no século vinte.

- Sim, senhor.

- Por outro lado - acrescentou, em tom melífluo-, não perde nada em conservar presente no espírito que o conde de Ornum é deputado por Calleshire.

- Não o esquecerei um único instante - prometeu Sloan. "Apesar de estarmos no século vinte?", reflectiu, com estranheza.

- Ora bem. Quem há disponível para o acompanhar?

- Apenas o detective Crosby-informou, em inflexão de desculpa.

- Crosby, hem? - grunhiu o superintendente.

- O sargento Gelven está a frequentar um curso de refrescamento, como deve recordar.

O Departamento de Investigação Criminal de Berebury era uma unidade de dimensão modesta e todos os casos de natureza criminal estavam a cargo da Polícia do condado, cujas instalações se situavam em Calleford.

Leeyes fungou com suavidade e comentou:

- Julgo Crosby incapaz de desvender um problema de palavras cruzadas infantil, quanto mais uma charada masoquista como esta.

- Sem duvida, senhor - concedeu o inspector, consciente de que tinha de se contentar com ele, por não haver mais ninguém.

- Muito bem - transigiu Leeyes, com um suspiro.- Leve-o, mas providencie para que não se mostre impertinente com o conde.

O detective Crosby - ainda verde, mas ambicioso, conduziu o carro a uma velocidade prudente ao longo dos cerca de trinta quilómetros que separavam a Central da Polícia de Berebury da aldeia de Ornum, a qual se espraiava em torno da entrada do parque, de aspecto sem dúvida imponente, com um admirável portão de ferro forjado.

Se o portão da propriedade de um homem constituía um indício da posição do proprietário - e a experiência ensinara a Sloan que era assim-, o conde de Ornum situava-se num nível elevado. Sobre os pilares, viam-se duas esferas de pedra, que suportavam um par de grifos.

- Que pássaros tão esquisitos - observou Crosby, olhando-os com ar de crítico. - Nunca vi nada do género a voar por aí.

- Folgo em sabê-lo, porque não existem.

- Não me diga - volveu, virando-se fugazmente para| trás, a fim de lhes lançar nova olhadela.

- São aves mitológicas - explicou Sloan. - Como os unicórnios.

- Ah... - O detective reduziu a velocidade para uns conservadores trinta quilómetros em atenção a um letreiro que recomendava precisamente isso. Em seguida, aclarou a voz e disse: - Não consigo descortinar a casa.

- As residências senhoriais não devem ver-se da estrada.

- Nunca mais chegamos - tornou Crosby, após um breve silêncio.

- A distância, neste caso, entre o homem- rico no seu castelo e o homem pobre, à sua entrada, é de cerca de um quilómetro e meio.

- Um quilómetro e meio? - ecoou, efectuando uma mudança, pois o carro não estava habituado a uma velocidade constante tão reduzida.

- Exacto - confirmou o inspector, cuja cancela antecedia um caminho estreito e curto de acesso a uma casa vulgar, nos subúrbios de Berebury.

Considerava que o seu caminho tinha a vantagem, sobre o do conde, de ser ladeado por roseiras bem cuidadas, em vez dos impressionantes carvalhos que agora se lhe deparavam. Na realidade, sentia particular predilecção pelas rosas e pensava que os crimes deviam sofrer uma solução de continuidade na época em que aquelas flores desabrochavam.

- Se aumentar um pouco a velocidade, acha que infringirei o código da estrada? - perguntou Crosby, que era jovem e ansiava por uma promoção. - Teria de ser uma autuação interna, por assim dizer. Nós próprios podíamos tratar disso.

- De quê? - perguntou Sloan, que prestava atenção ao primeiro vislumbre da Casa Ornum.

- Da autuação por excesso de velocidade em propriedade privada - esclareceu o outro, sem desviar os olhos do velocímetro. - Os Serviços de Viação não nos pregavam uma partida dessas, sem dúvida.

O inspector emitiu um grunhido, como única resposta. Os Serviços de Viação não costumavam preocupar-se com pormenores de natureza sentimental. A sua linha de demarcação era simples.

Acidentes fatais e não fatais.

No entanto, se Crosby pretendia acelerar um pouco...

- Exceder o limite de velocidade em qualquer momento ou lugar, não é a mesma coisa que prová-lo.

- Pois não, mas se houver duas testemunhas independentes...

- De facto, seria diferente - admitiu, secamente. Inclinou-se um pouco para a frente, pois pareceu-lhe descortinar um edifício. - Não me recordo da última vez que vi-duas testemunhas independentes. Na verdade, são aves raras. Creio mesmo poder incluí-las na categoria dos grifos.

- Mas suponhamos que apareciam - persistiu Crosby. - Eu podia pedir aos Serviços de Viação...

Sloan sabia, de fonte segura, que o inspector Harpe, chefe dos Serviços de Viação, não ficaria grato a ninguém, se lhe pedissem um favor, naquele momento. Na realidade, o superintendente Leeyes dirigira-lhe a pergunta mais embaraçosa para um membro da Polícia: como se explicava que todas as viaturas do seu departamento necessitadas de reparações fossem parar à mesma oficina? Se alguém se lembrasse de aprofundar o assunto, as explicações resultariam difíceis...

- Vi qualquer coisa mover-se entre as árvores - anunciou Crosby, subitamente.

O inspector voltou-se e divisou um vulto castanho.

- É um veado. Ah, aí temos a casa, finalmente!

Havia uma jovem sentada junto de uma mesa coberta por uma toalha, perto da entrada principal. Usava um irrepreensível vestido de seda estampada e insistiu em cobrar meia coroa aos recém-chegados para poderem entrar.

- Disse meia coroa? - perguntou Sloan, dividido entre a relutância natural em revelar a alguém que o ignorava que a Polícia fora chamada e a dificuldade indiscutível que se lhe depararia para recuperar os cinco xelins da Tesouraria da Polícia.

- Sim, se quiserem entrar. - Desta vez, ela incutiu maior firmeza à voz. - Se se contentam com os jardins e parque, basta um xelim.

Foram salvos, no momento oportuno, por um mancebo de ar competente, que se apresentou como sendo Charles purvis, administrador do conde de Ornum, e disse à jovem:

- Não há novidade, Lady Eleanor. Estes senhores vieram Para conversar comigo. Não são visitantes.

Ela assentiu com um movimento de cabeça e concentrou o interesse num pequeno grupo de turistas.

O administrador precedeu os dois polícias através do Grande Salão, onde Mr. Feathers arengava diante, de outro grupo, e em seguida enveredou pela escada descendente.

- Encerrámos o armeiro, imediatamente, inspector... Cautela com os degraus, que são escorregadios.

Sloan reflectiu que teria o maior cuidado em ver onde pousava os pés, pois devia conservar a aposentação bem presente no espírito.

- Não se importam que vá à frente? - continuou Purvis. - O último lanço é o mais perigoso. Segurem-se à corda. Mas, como dizia, encerrámos o armeiro imediatamente e só informámos as pessoas que considerámos absolutamente necessário.

- Não disseram nada a Lady Eleanor? - estranhou o inspector.

- De facto, ainda não sabe. - Purvis virou à esquerda no fundo da escada e prosseguiu pelo corredor quase na penumbra. - Pareceu-nos que suscitaríamos comentários indesejáveis, se fechássemos toda a casa.

A presença de um corpo sem vida no armeiro de uma Residência Senhorial suscitaria mais do que comentários indesejáveis, mas Sloan absteve-se de o salientar. Ao invés, murmurou qualquer coisa relativa a impedir a saída a quem se encontrava dentro.

- Os primeiros grupos já partiram - declarou o administrador, com uma expressão de pesar. - O armeiro é o último local da visita, porque, em geral, pouca gente manifesta interesse nele. Em vez de descer aqui, segue para o parque.

Passaram pela masmorra e o poço e avistaram Bert Hackle, de guarda à entrada do armeiro.

- Só cá estou eu, Mr. Purvis. Mr. Dillow... - O mordomo-informou Purvis. ;

- Exacto - confirmou Hackle, desnecessariamente. - Levou todos os que estavam aqui para a cozinha, onde está Mrs. Morley.

- Obrigado. - O administrador abriu a porta do armeiro e entrou, seguido dos dois polícias.

À primeira vista, não parecia haver nada de insólito.

Imperava silêncio absoluto e o aspecto geral era de uma dependência de museu comum. Havia oito armaduras, voltadas para o centro da sala, como que atentas à primeira convocação. Sloan observou-as atentamente. Todas apresentavam viseiras baixadas, todavia uma, pelo menos, encobria algo de sinistro.

- Qual?... - começou.

- A segunda da direita - elucidou Charles Purvis.

O inspector e Crosby adiantaram-se e viram que a pequena placa no chão em frente da vestidura metálica informava: "Armadura com peças para torneio, circa 1595."

Sloan levantou a viseira com a maior prudência, consciente de que podia haver impressões digitais além das de Michael Fisher. Embora mais pesada do que supusera, acabou por conseguir afastá-la por completo.

No interior, encontrava-se o rosto de um homem idoso, inequivocamente morto. O inspector tocou-lhe na face, conquanto reconhecesse que não havia necessidade. Estava totalmente fria. Por fim, virou-se para o administrador e perguntou:

- Sabe quem é?

- Mr. Meredith. - Purvis julgou conveniente acrescentar:- O nosso Mr. Meredith.

- Hem?

- Bibliotecário e arquivista de Sua Senhoria.

- Nesse caso, conhecia-o bem?

- Sem dúvida - aquiesceu com prontidão. - Vem... vinha cá todos os dias. Escrevia a história da família.

- Sim? - murmurou o inspector, arrumando a informação num recanto do espírito. - Onde morava?

- Na aldeia de Ornum. Com a irmã.

Baixou a viseira, gesto que se lhe assemelhou ao de afastar um facto desagradável do pensamento, e o ambiente regressou instantaneamente à normalidade, enquanto Crosby puxava do bloco de apontamentos.

- Osborne Meredith - esclareceu Purvis - e vivia na Velha Forja, Ornum.

- Se vinha todos os dias - disse Sloan-, talvez se recorde da última vez que o viu.

- Hoje, não foi. Tenho a certeza disso. - (O inspector também, pois a face do cadáver estava demasiado fria.) - Tão-pouco me recordo de o ver ontem, mas podia ter vindo sem que me apercebesse. Movia-se pela casa a seu bel-prazer.

Sloan ergueu o braço num gesto largo que abarcava todo o edifício.

- Onde esperaria vê-lo?

- Passava a maior parte do tempo na biblioteca e na sala dos arquivos.

- Hum... - E acrescentou ambiguamente: - Irei inspeccioná-la, mais tarde.

- Confesso que não faço a menor ideia de como pode encontrar-se aí dentro - declarou o inspector - E morto - salientou Sloan.

- E morto - assentiu Purvis, com uma expressão sombria.- Sua Senhoria ficou sem pinga de sangue, por assim dizer, e recomendou-me que prestasse a melhor colaboração às autoridades.

- Movia-se pela casa a seu bel-prazer - comentou Crosby, um pouco irreflectidamente - e agora parou de se mover para sempre.

O Dr. Dabbe, patologista consultor do Grupo de Hospitais de Berebury, ainda parecia mais impressionado pela ocorrência que o próprio superintendente.

Mas por uma razão diferente. Era domingo e tencionava velejar um pouco no seu Albacore, em Kinnisport.

- Mande-o para o necrotério, Sloan - indicou pelo telefone do Yacht Club. - Hei-de examiná-lo, quando voltar.

"A maré deve estar propícia para velejar", reflectiu o inspector, que replicou em voz alta:

- Não pode ser assim, doutor. O corpo encontra-se na Casa Ornum.

- Que espera? - O médico parecia divertido. - Tratamento especial para o sangue azul? Se é isso, garanto-lhe...

- De modo algum. Não se trata de nada do género.- O telefone que o administrador lhe indicara situava-se num vestíbulo, e, na opinião de Sloan, permitia menos intimidade que uma cabina pública. - De momento, encaramos a situação como um caso de morte súbita.

- Bem, sendo assim...-transigiu o Dr. Dabbe.

- Encontra-se dentro de uma armadura com peças para torneio, circa 1959 - acrescentou Sloan - e, não sei se o devemos tirar de lá, como se podemos.

Em seguida, em cumprimento do dever, o inspector telefonou ao superintendente Leeyes, em Berebury.

- Começava a estranhar que ainda não tivesse dito nada - admitiu este último, em tom cordial. - Que lhe pareceu o homem da máscara de ferro?

- Morto...

- Sim, mas...

- Há uns dois dias, embora não esteja uma grande porção dele visível para traçar uma conclusão definitiva.

- Sempre pensei que uma simples olhadela ao rosto bastasse para um polícia realmente experiente poder decidir-se- retrucou Leeyes, com um grunhido de desagrado.

- Sim, senhor.- Sloan recorreu à fórmula que empregava com maior frequência nos seus diálogos com o superior, embora admitisse que não hesitaria em se pronunciar com segurança se a vítima apresentasse um orifício de bala entre os olhos.

- Que providências tomou?

- Mandei chamar o Dr. Dabbe, e agradecia que enviasse dois fotógrafos e um perito em impressões digitais...

- Resumindo: uma equipa de técnicos completa.

- Sim, senhor. Quando chegarem, devem pedir a Lady Eleanor que previna o administrador.

- Lady quê?

- Eleanor. É a filha de Sua Senhoria, que se encontra de serviço, à entrada.

- Ah, sim? Então, o mais certo é mandá-los entrar pelas traseiras, depois de os inspeccionar bem.

- Sim, senhor. O extinto é Osborne Meredith, bibliotecário do conde.

- Ah!-exclamou o superintendente, numa inflexão de triunfo. - Eu não lhe disse? Bibliotecário. Aposto que obteve a ideia de um livro. Fique ciente do seguinte: vai ser um caso de suicídio diferente de todos os outros.

- Diferente é, de certeza - concedeu Sloan. - Agora, quanto ao suicídio, não sei. Por enquanto, prefiro não me pronunciar.

 

O detective Crosby continuava de guarda ao armeiro, quando Charles Purvis e o inspector Sloan reapareceram.

- Acabo de examinar as outras sete armaduras - anunciou Crosby, virtuosamente.

- Óptimo.

- Estão todas vazias.

- Óptimo - repetiu Sloan, desta vez um pouco surpreendido.

Sincero como sempre, mesmo para consigo próprio, reconhecia que se tratava de uma hipótese que não considerara. Não havia dúvida de que Crosby estava ansioso por marcar posição e nem mesmo o Grand Guignol se lembraria de mais sete cadáveres noutras tantas armaduras.

- E também me certifiquei das vias de acesso - acrescentou o detective.

- Só há uma, suponho?

- Sim, senhor. A porta.

No entanto, o administrador julgou oportuno justificar o facto, que parecia afigurar-se-lhe uma deficiência.

- É porque estamos abaixo do nível do chão e não podia, portanto, haver janelas. Nem mesmo luz natural. A iluminação daqui é toda artificial.

Sloan olhou em volta. Numa razoável imitação da época medieval, tinham sido concebidos dispositivos com a configuração de archotes, embora utilizassem a corrente eléctrica.

- Não se pode considerar muito boa - acrescentou

Purvis.

- Mas é eficiente.

- Muitas pessoas mostram-se ansiosas por voltar lá para cima - admitiu, com uma inclinação de cabeça.

O inspector tornou a aproximar-se da segunda armadura da direita.

- Alguém lhe falou da ausência de Mr. Meredith?

- Não. Nós... ou seja, eu não fazia a menor ideia de que a situação diferia da habitual. Não teríamos franqueado a casa ao público, se houvesse a menor suspeita de...- Purvis interrompeu-se, com visível relutância em aludir à sinistra ocorrência.

- Claro que não.

- Foi uma surpresa geral - volveu, passando a mão pelo cabelo. - Posso mesmo chamar-lhe um choque terrível.

- Disse que ele vivia com a irmã...

- Sim. Sua Senhoria foi a Ornum transmitir a triste nova.

- Pessoalmente?

- Não é uma tarefa que se delegue em alguém parecia admirado e um pouco embaraçado. - Sendo ele a desempenhá-la, assume um aspecto mais formal. Digamos que é um gesto louvável.

- Talvez...

- Depois, ia prevenir o vigário, para que passasse por lá. É uma pessoa muito prestável, o vigário.

- Óptimo - aprovou Sloan, satisfeito por lhe prepararem o terreno. Depois de todas aquelas formalidades, a visita da Polícia não produziria tanta consternação.

- Mas quanto ao resto... - persistiu o administrador, gesticulando na direcção da armadura. - Confesso que não compreendo nada. Nem sequer era a sua especialidade. O perito na matéria é Mr. Ames.

- Ames?

- O vigário. Quase se lhe pode chamar entusiasta das armaduras. Se aparece algum visitante interessado nelas, telefonamos para o vicariato e ele acode imediatamente.

- Não há um guia permanente desta área?

- Não. Hackle acompanha os visitantes até à porta, depois de mostrar as masmorras, o poço, etc. é necessário um homem aí por causa da oubliette (1) e depois eles encaminham-se para a saída, quando se cansam de ver os objectos expostos.

- Compreendo...

- Não é um tópico ao alcance de qualquer pessoa - asseverou, apontando para um arcabuz pendurado na parede.

- Pois não.

- Mas Mr. Ames catalogou a colecção, há anos, e comparece sempre que há visitantes particularmente interessados, como referi.

- Particularmente interessados?

- Além dos visitantes vulgares, temos aquilo a que se pode chamar grupos de especialistas. Pessoas interessadas apenas numa faceta determinada da Casa Ornum.

 

(1) Masmorra secreta para a qual se entra por um alçapão. (N. do T.)

 

Portanto, se aparece alguém só para ver o armeiro, chamo Mr. Ames. Passa-se o mesmo com os quadros, livros e registos manuscritos. Tomemos a semana que vem, por exemplo. Teremos um grupo que se denomina "Os Jovens Mestres" e quer admirar as pinturas, na segunda-feira. Combinei tudo com Mr. Meredith para que ele... - Purvis calou-se ao aperceber-se do rumo que a frase assumia. - Va!ha-me Deus! Tinha-me esquecido por completo.

Sloan fixou o olhar na armadura que continha o falecido Mr. Meredith e perguntou:

- Que outra... especialidade da casa possuem?

- A colecção de porcelana fina - informou Purvis, não sem uma ponta de orgulho-, considerada uma das mais valiosas ainda em poder de um particular.

- Hum!... - O inspector coçou o queixo pensativamente por um breve momento. - Antes de me avistar com Sua Senhoria, pode fornecer-me uma indicação do contingente da casa?

Contingente?

- Quem vive cá.

- Bem, há a família, claro, Sua Senhoria, a condessa e três filhos.

- Lady Eleanor? - quis saber o inspector, enquanto Crosby puxava do bloco de apontamentos e começava a escrever.

- Lady Eleanor é a única filha - explicou o administrador, em voz algo estrangulada.

- Quem mais?

- Lorde Cremond, filho de Sua Senhoria.

- E herdeiro?

- É o único filho -esclareceu, com uma inclinação de cabeça.

- Mais ninguém?

- Pelo contrário.

- Continue.

- A prima de Sua Senhoria, Miss Gertrude Cremond.

- Uma família numerosa, ao que parece.

- Além das tias de Sua Senhoria - prosseguiu, imperturbável-, Lady Alice e Lady Maude. Evidentemente que já são um pouco... idosas.

Sloan emitiu um suspiro de compreensão ao pressentir que o homem empregava o termo "idosas" como sinónimo de excêntricas.

No entanto, Purvis ainda não terminara:

- O sobrinho de Sua Senhoria, Mr. Miles Cremond, reside presentemente aqui, com a esposa, Mrs. Laura Cremond, e temos depois, evidentemente, o pessoal interno: o mordomo, Dillow, etc. - Fez uma pausa, enquanto o inspector voltava a suspirar. - Quer que continue?

- Sem dúvida - assentiu Sloan, com ar resignado, apontando para a armadura. - Ninguém se encafuava ali dentro de livre vontade.

- Eu sei - redarguiu o outro - Foi por isso que chamámos a Polícia.

Mrs. Pearl Físher encontrava-se sentada na maior cozinha que Sloan vira em toda a sua vida.

Embora não fosse a única pessoa presente, conseguia - graças a alguma alquimia subtil que nenhuma actriz de renome desdenharia - dar a impressão de que não havia mais ninguém.

Sentava-se a uma ampla mesa e tomava chá. Os visitantes podiam saborear a mesma bebida nos Velhos Estábulos, desde que pagassem, mas aquele bule era obviamente por conta da casa. Servia-o a governanta, Mrs. Mor-ley, e uma personagem, que Sloan julgou ser o mordomo, Mr. Dillow, aguardava respeitosamente à distância apropriada.

- Duvido que jamais me recomponha do abalo - anunciava Mrs. Fisher, no momento em que o inspector e| Crosby entraram.

- O chá ajuda - indicou Mrs. Morley, secamente.

- Pôs-me o coração a trabalhar como um motor - volveu a outra, ignorando a observação.

- Então, então... - aventurou a governanta.

- Continua desvairado - afirmou Mrs. Fisher, pousando a mão no peito, num gesto histriónico.

- Torno a encher-lhe a chávena? - sugeriu Mrs. Morley.

Ambas sabiam que havia brande em quantidade apreciável numa casa daquelas, porém uma delas, pelo menos, não estava disposta a pô-lo a circular.

- Uma coisa dessas pode arrasar os nervos de uma pessoa - persistiu Mrs. Fisher.

A governanta recomendou mais alguns minutos de repouso e Mrs. Fisher salientou que passariam vários dias primeiro que o funcionamento do coração regressasse à normalidade.

Mrs. Morley esclareceu que não necessitava de se apressar em partir, porque, além de poder considerar-se virtualmente em sua casa, a Polícia desejaria interrogá-la.

Sloan confirmou as últimas palavras com uma inclinação de cabeça e Crosby tornou a puxar do bloco de apontamentos.

- Nunca mais volto a dormir descansada - proclamou Mrs. Fisher. - Aquela cara há-de povoar-me os sonhos até ao fim dos meus dias!

- Diga-me uma coisa, minha senhora...

- E os olhos!... Arregalados, como se encarassem a própria morte!

- Sem dúvida. Ora bem...

- Ele não morreu hoje, pois não? - gemeu Mrs. Fisher. - Entendo um pouco disso...

- Como assim? - inquiriu o inspector, em tom abrupto. - -Tinha a mesma cor do pobre Mr. Wilkins, da nossa rua.

- Mr. Wilkins?

- Parecia massa de vidraceiro, quando o encontraram.

- Sim?

- Havia garrafas de leite de três dias à porta dele, quando finalmente arrombaram a porta - disse ela, com uma expressão reminiscente. - E tinha o mesmo aspecto deste.

- Compreendo...

- Por sinal - prosseguiu, verificando que se achava em posição vantajosa e disposta a despejar o saco de um só fôlego-, se não fosse o meu Michael, só Deus sabe quando descobririam o corpo na armadura. - Olhou a reduzida audiência com uma expressão de desafio. - Desta vez, não havia garrafas de leite para provocar suspeitas.

Sloan aquiesceu, com novo movimento de cabeça. Era um ponto a favor de Mrs. Fisher. De facto, não havia garrafas de leite à entrada do armeiro, nada que ele soubesse, susceptível de indicar uma armadura em especial. Na verdade, não existia qualquer indício...

Mas onde se encontrava Michael, naquele momento?

Não tardou a constar que o rapaz se achava algures, visivelmente agoniado.

Com efeito, a descoberta do rosto cadavérico não deixara de exercer os seus efeitos. Apresentava as faces lívidas como as do morto que se lhe deparara e a fronte achava-se perlada de transpiração.

- Não lhe toquei - afirmou, olhando Sloan com desconfiança.- Só levantei a peça de ferro da cabeça.

- Para quê?

- Queria ver o que havia dentro.

- Mas porquê aquela em especial? Eram oito, ao todo.

- Diz tudo ao senhor inspector - interpôs Mrs. Fisher, desnecessariamente.

- Não sei porque escolhi essa.

- Tocaste em alguma das outras?

- Toquei, mais ou menos, em todas - admitiu Michael, humedecendo os lábios.

- Mais ou menos?

- Estou a aprender boxe, no colégio.

- Muito bem.

- Tentava socá-las em pontos vulneráveis.

- O que não devia ser difícil.

- Mais do que pensa. - Michael começava a recuperar a boa disposição. - Os braços metiam-se de permeio.

- Mas acabaste por tornear a dificuldade?

- Sim, senhor.

- E a que tinha o homem dentro... "

- O som era diferente, quando lhe toquei. Menos oco.

- Foi por isso que espreitaste?

- Foi.

- Por nenhuma outra razão? Abanou a cabeça com veemência.

Era a primeira vez na sua carreira que Sloan se via conduzido algures por um mordomo.

- Mr. Purvis recomendou-me que o levasse à presença de Sua Senhoria - esclareceu Dillow-, assim que regressasse da aldeia.

- Obrigado - murmurou o inspector, polidamente. Não conseguia identificar o sotaque do homem. De Calleshire não era, com certeza e, conquanto isso não fizesse dele um estrangeiro, Sloan estava convencido de que provinha de outra região do país. O conde podia ter vivido em Ornum ao longo dos séculos, todavia Dillow não. Era inegável que o mordomo tinha presença considerável. Tão alto como qualquer dos polícias e de aspecto mais grave. Sloan, que esperara subconscientemente ver um velho, verificou que se tratava de um indivíduo de meia-idade. Tinha uma maneira curiosa de caminhar e aspecto portentoso que lhe seria útil, se enveredasse pela política ou pela Igreja.

- Queiram ter a bondade de me seguir, cavalheiros... Sloan e Crosby obedeceram e empreenderam a longa jornada da cozinha àquilo a que Dillow chamava Apartamentos Privados.

- Você devia conhecer Mr. Meredith - começou o inspector, quando atravessavam o primeiro corredor.

- Decerto. Um cavalheiro muito discreto e atencioso. Nunca provocava problema.

- Nunca? - articulou, no tom mais neutro possível, reflectindo que Osborne Meredith talvez não provocasse problemas a um mordomo, mas seria indubitavelmente o responsável pelos que um inspector da Polícia teria de enfrentar. Nomeadamente, ele próprio.

- Costumava ir almoçar a casa - acrescentou Dillow. - Por aqui.

Mudou de direcção bruscamente ao soarem vozes distantes, e Sloan quase se esquecera de que a casa continuava cheia de gente que pagara para ver alguns - embora não todos - dos pontos mais notáveis da residência.

- Às vezes - continuou o mordomo, cuja mente parecia inteiramente concentrada nas refeições -, tomava chá com a família, mas na maioria dos casos mantinha-se imerso no trabalho e eu levava-lhe o bule à biblioteca.

- A propósito, depois precisarei de inspeccionar a biblioteca.

- Perfeitamente.

- E os arquivos.

- Decerto. - Dillow encontrou-se finalmente diante da porta que lhe interessava, adiantou-se um passo, tossiu com discrição e anunciou: - Dois representantes da Polícia pretendem falar-lhe, milorde.

Sloan reconheceu intimamente que não lhe teria ocorrido uma maneira mais delicada de mencionar um inspector policial provinciano e respectivo auxiliar.

Havia duas pessoas na sala: um homem de meia-idade, com bigode de guias inclinadas para baixo, e uma mulher atraente de cabelos louros e olhos azuis com expressão vaga. Era óbvio que acabavam de tomar o chá da tarde, e a cena recordou a Sloan um quadro que vira, certa vez, intitulado "Pausa na Conversa". A única diferença, tanto quanto conseguia evocar, residia em que na tela o chá ainda não fora tomado, enquanto agora chegara ao fim, pormenor que não escapou a Dillow, o qual principiou a levantar a mesa.

- Um assunto desagradável - declarou o conde de Ornum.

- Sim, senhor... milorde- apressou-se o inspector a corrigir, pois era raro ter de interrogar membros da nobreza no decurso das investigações habituais.

- Coitado de Mr. Meredith - disse a condessa. - Era tão boa pessoa...

Como não sabia concretamente como se devia dirigir a uma condessa, Sloan resolveu concentrar-se no marido.

- Sei que se avistou com a irmã dele, milorde.

- Não. Tentei, mas não estava em casa.

- Não?

- A porta encontrava-se trancada. - O conde cofiou o bigode por um momento. - Deve estar ausente. Fica assim explicada uma coisa.

- O quê, senhor... milorde?

- Ninguém veio perguntar pelo homem. Não houve um alarme geral. Foi por mero acaso que aquele rapaz... Suponho que tem o nome dele?

- Michael Fisher, de Paradise Row, Luston - informou Crosby, consultando os apontamentos.

- Foi por mero acaso que levantou a viseira da armadura.- Os dedos do conde voltaram a mover-se sobre o bigode. - De contrário, talvez nunca encontrássemos o corpo.

- É muito possível, milorde.

Sloan ponderou que Mr. Meredith não tardaria a exalar um odor pouco agradável, mas num castelo medieval as origens de um cheiro mais pungente e menos aprazível figuravam num vasto campo de possibilidades. Esgotos, por exemplo.

- É claro que a armadura podia ter exercido as funções de uma daquelas coisas egípcias - acrescentou Sua Senhoria.

- Sarcófagos?

- Isso mesmo. Podia ter mirrado... ficado ressequido. - é uma hipótese - admitiu Sloan, prudentemente, disposto a interrogar o patologista a esse respeito. Na verdade, um cadáver mumificado corria escassos riscos de ser descoberto.

- Eu, pelo menos, nunca me lembraria de o procurar aí. Nem que vivesse cem anos.

- Com certeza. Quando o viu pela última vez, milorde?

- Estava há pouco a falar nisso com minha mulher. Sexta-feira, salvo erro. No entanto, Millicent pensa que foi na quinta.

- Os dias são tão iguais uns aos outros, não acha, inspector?- A condessa tinha voz aguda, quase estridente.

Sloan conservou-se silencioso. Talvez fossem iguais para os aristocratas, porque não se dedicavam à carreira de inspector da Polícia.

- Creio que foi na quinta-feira, mas pode ter sido na sexta. - Ela olhou em volta, como se uma das numerosas peças de mobiliário lhe pudesse fornecer uma informação concreta.

- Compreendo...-Sloan reflectiu que, mais cedo ou mais tarde, necessitaria de aprender como se dirigir àquela mulher com certo aspecto de boneca e aventurou: - ...milady. - No entanto, duvidou de que o tivesse ouvido.

- Infelizmente, não aconteceu nada de especial em qualquer desses dias. - Os olhos azuis acabaram por se imobilizar nele.

- Não, milady?

- De contrário, eu havia de me recordar - volveu, com um sorriso.

- Seria muito útil para as investigações, se conseguisse lembrar-se, milady-insistiu Sloan, sob a vaga impressão de que interrogava um maço de algodão ou uma folha de papel mata-borrão.

- Compreendo. - Surgiu novo sorriso. - Farei um esforço. Um homem tão atencioso...

- Sim? - articulou o inspector, sem se deixar impressionar com o adjectivo, pois as diligências não se desenrolariam mais facilmente pelo facto de o extinto ter sido atencioso.

- Toda a gente gostava dele.

Havia, pelo menos, uma pessoa que não alinhava na tendência de simpatia generalizada pelo bibliotecário, mas ele absteve-se de referir o pormenor. Ao invés, virou-se para o conde, convencido de que constituía um alvo de interrogatório menos complexo.

- O patalogista e a equipa de técnicos não devem tardar, após o que removeremos o corpo para a casa mortuária da Polícia, em Berebury.

- Muito bem, inspector. - O titular voltou a cofiar o bigode. - Purvis prestará toda a colaboração necessária. A menos que pretenda alguém para transportar o corpo. Nesse caso, há Hackle, Dillow e o meu sobrinho.

- Sobrinho?

- Miles, filho do meu irmão, que passa uma temporada connosco. É um moço robusto.

- Onde o posso encontrar? - Sloan desejava interrogar todos com a maior prontidão possível, mas, em particular, o moço robusto.

Sua Senhoria puxou de um relógio e respectiva corrente de ouro da algibeira do colete e anunciou:

- Deve estar a jogar críquete, na partida de Ornum contra Petering.

- Muito bem, milorde.

- Um encontro encarniçado, sabe. Meredith não teria faltado por nada deste mundo.

- Apreciava essa modalidade?

- Muito. Foi até por isso que conseguiu o lugar aqui.

- Sim?

- A equipa precisava de um lançador. Foi meu pai que o contratou.

- Como bibliotecário?

- Como lançador, inspector. - O conde olhou Sloan com estranheza. - Quando deixou de ser um lançador, mais ninguém sabia encontrar nada na biblioteca.

- Compreendo. - Sloan iniciara a carreira como polícia de giro e fora trepando gradualmente, mas tudo indicava que as coisas se desenrolavam de uma maneira diferente, na Casa Ornum. Em seguida, aclarou a voz e perguntou:

- E quanto a Lorde Cremond, milorde? Precisarei igualmente de falar com ele.

- Henry? Também foi ao jogo. Tem a seu cargo o marcador.

- O marcador? - repetiu, consciente de que se tratava de funções pouco próprias do filho e herdeiro de um titular.

- Magoou a mão na sexta-feira, pelo que não pode jogar.

- Creio que foi na quinta - interpolou a condessa. Crosby, que acabava de escrever algo, riscou-o e voltou a utilizar a esferográfica ruidosamente.

- Lamento imenso - disse Sloan. - Espero que não seja nada de grave?

- Não, não. - Os dedos do conde cofiavam o bigode com insistência. - Contactou mais violentamente com metal, algures, segundo explicou.

- Bem, creio que não necessito de mais nada, para já.

- Não paro de me recriminar pelo sucedido a Meredith - declarou inesperadamente, em voz trémula. - É o que acontece a quem tem a casa "aberta". Eu sabia que não adviria nada de bom daí, mas sempre é um meio de equilibrar o orçamento doméstico.

- Sem dúvida, milorde.

- Embora prefira não pensar no que meu pai diria por deixar entrar estranhos em casa por dinheiro...

- Portanto - disse Sloan, preparando-se para sair-, Mr. Osborne Meredith era o seu bibliotecário e arquivista?

- Exacto.

- Estava a escrever a história da família, não era, Harry? - A condessa agitou a mão num gesto vago.- Agora, já não a pode terminar, coitado. É pena.

- Pois é - assentiu o marido, secamente.

- O meu irmão também se chama Harry - informou

Crosby, com desprendimento.

Sloan lançou-lhe um olhar de advertência, enquanto a condessa julgava interessante acrescentar:

- Meredith acabava de fazer uma descoberta muito curiosa. Explicou-nos de que se tratava, a semana passada.

- Que era, milady? - perguntou o inspector.

O rosto de expressão vaga, emoldurado por cabelos louros com vestígios grisalhos, concentrou-se nele.

- Acabava de encontrar uns documentos que, segundo afirmou, provaram que Harry não era conde de Ornum.

 

- Diga lá isso outra vez, Sloan.

- Nobiliário Burke, por favor - repetiu o inspector pelo telefone, em tom mais elevado e claro.

- Então, não ouvi mal - grunhiu o superintendente Leeyes, que ainda se encontrava na Central da Polícia de Berebury. - É só isso que quer?

- Para já, é. Espero a todo o momento Dyson, para tirar as fotografias, e o Dr. Dabbe vem a caminho de Kinnisport.

- E você só precisa de um Nobiliário?

- Exacto. E daí, não... - Sloan fez uma pausa. - Há mais uma coisa.

- Pode saber-se o que é?

- Um dicionário.

- Um dicionário?!

- Sim, senhor. A menos que me possa explicar o significado de muniments (1).

No entanto, o superintendente não podia.

Os dois polícias tinham chegado ao local em que se encontrava o telefone com inequívoca dificuldade, pois sem

 

(1) Designação técnica de documentos, ao passo que munimenta-•room significa arquivos. (N. do T.)

 

o auxílio do mordomo, o trajecto afigurara-se-lhes longo e tortuoso.

E, em determinada altura, duvidoso.

Isso acontecera quando tinham virado à esquerda e não à direita junto do maior jarrão chinês que Sloan jamais vira.

- Mais valia que tivessem enfiado o cadáver aí para dentro - comentou Crosby, com uma expressão sombria. - Poupavam-nos muito trabalho.

- Deve ter havido uma razão de peso - murmurou o inspector.

Era uma das muitas coisas que a experiência lhe ensinara. A maioria dos actos humanos baseava-se num motivo. Não forçosamente válido, decerto, mas um motivo, pelo menos.

- Vamos ter de palestrar com o fulano que magoou a mão - volveu o detective.

- Vamos ter de palestrar com muita gente, antes de esclarecermos isto - profetizou Sloan. - Creio que é por aqui...

Equivocava-se. Depois de enveredarem por mais duas esquinas, tiveram de reconhecer que se haviam perdido.

Achavam-se no sector da casa onde as cadeiras não eram antecedidas de um cordão vermelho, nem as carpetas protegidas por plástico. E, nos diferentes móveis que se alinhavam ao longo dos corredores, havia objectos ornamentais facilmente subtraíveis...

- Importam-se de explicar o que fazem aqui? - Era uma voz débil, que parecia materializar-se no espaço atrás deles.

Crosby estremeceu visivelmente e voltaram-se ambos.

Uma mulher idosa, cuja saia terminava praticamente à altura dos tornozelos, contemplava-os de uma porta. Pendia-lhe do pescoço um colar de contas de várias voltas, uma fita cobria parte dos cabelos grisalhos ralos e as mãos apresentavam-se cobertas de petéquias, características de arterioesclerose própria da idade avançada. Segurava o microfone do dispositivo para facilitar a audição no estilo dos entrevistadores da Rádio e TV.

- A meia coroa que pagaram não lhes dá direito a percorrer toda a casa - acrescentou em tom agreste.

- Lady Alice? - aventurou Sloan.

- Eu conheço-o? - A mulher avançou um passo e voltou a deter-se, ao mesmo tempo que semicerrava as pálpebras.

- Não. - Bem me parecia, porque não sou a Alice - proclamou em inflexão de triunfo.

- Lady Maude? - tornou a tentar o inspector.

- Desta vez, acertou. - Ela olhou-o da cabeça aos pés. - Quem são e que fazem aqui?

- Viemos por causa de Mr. Meredith - explicou Sloan, sem falsear a verdade.

As contas - agora emaranhadas no cordão do aparelho de audição - desviaram-se perigosamente para estibordo no momento em que ela sacudiu a cabeça vigorosamente.

- Não pronunciem o nome daquele homem na minha frente! - Porquê?

No entanto, não parecia disposta a alongar-se em explicações e, retrocedendo para a porta, limitou-se a resmungar:

- Não quero voltar a vê-lo.

- Disso, podes ter a certeza absoluta - articulou Crosby, sotto voce.

- Nem pensar, depois das coisas que disse. - A voz de Lady Maude tinha o timbre variável das pessoas atacadas de forte surdez. - A minha irmã e eu estamos indignadas. Ele costumava tomar chá connosco, mas agora não tornaremos a convidá-lo.

A porta fechou-se, e os dois polícias ficaram sós no corredor.

- Que maçada!-proferiu Crosby, meneando a cabeça.

- Não tornam a convidá-lo para o chá. A decisão deve ter desolado o bibliotecário, sem dúvida.

- Mas não o suficiente para o levar ao suicídio - considerou o inspector, enquanto tentava orientar-se no corredor.

- Mas reveste-se de algum significado, hem?

- Sem margem para dúvidas. Mas o quê? Não faço a menor ideia. Por enquanto.

- É natural.

- Para já, tratemos de sair daqui.

- Boa ideia.

- Você primeiro - indicou, com certa malícia. - Demonstre as suas qualidades detectivescas.

Charles Purvis, administrador do décimo terceiro conde de Ornum, não tinha a menor dificuldade em se orientar na espaçosa e labiríntica residência, e transmitiu as últimas notícias ao seu superior, mais ou menos como Sloan fizera ao dele.

- Providenciei para que a chefe dos correios nos prevenisse, logo que Miss Meredith regressasse à Velha Forja.

- E quanto ao rapaz? - inquiriu Sua Senhoria, com uma inclinação de cabeça de aprovação.

- Michael Fisher? Tomei a liberdade de lhe oferecer uma libra.

- Fez bem. Não me agradaria que um homem estivesse morto na casa e continuássemos a ignorá-lo.

- Nunca o teríamos descoberto.

- Pois não. - Gesticulou para pôr termo à faceta menos atraente da situação. - Que aconteceu à mãe do rapaz?

- Mrs. Morley serviu-lhe o chá, e o inspector não vê inconveniente em que parta no autocarro, com o resto do grupo.

- Valha-nos isso, ao menos - articulou com fervor.- O rapaz parece um flagelo ambulante.

- Sem dúvida - assentiu Purvis. - Acabo de falar com o motorista do autocarro. Está disposto a partir, mas faltam duas pessoas.

- O rapaz e a mãe?

- Não, senhor. Uma tal Mavis Palmer e o namorado. Foram vistos pela última vez na Loucura, há três horas...

- Sim? - murmurou o conde, pensativamente. - Mande-os procurar, Charles. E depressa. Anseio por ver aquele autocarro daqui para fora, com todo o seu recheio. Depois, procure-me de novo. Há uma ou duas coisas que necessitam de ser resolvidas.

- Perfeitamente, senhor.

- E quando Henry e Miles voltarem do críquete, mande-mos cá.

- Sim, senhor.

- Charles...-volveu, cofiando o bigode.

- Senhor?

- Terá de enfrentar a Imprensa.

- Já pensei nisso. Dillow vai mandar entrar os repórteres para a sala de estar matinal e a seguir chama-me, o mais depressa possível.

- Temos depois a minha prima e Eleanor.

- Miss Gertrude continua na Sala das Porcelanas. Creio que os últimos visitantes ainda não saíram. E Lady Eleanor está a... conferir a caixa, à entrada.

- Têm de ser informadas. - Agitou a mão num gesto displicente. - A casa está cheia de polícias.

As últimas palavras constituíam um exagero. O inspector Sloan e o detective Crosby já tinham sido tragados pela casa e, de qualquer modo, haveria espaço mais do que suficiente para todo o contingente policial de Berebury, só no Grande Salão.

- Sim, senhor-murmurou Purvis, que era pago para não contradizer o conde.

- E as minhas tias.

- De momento, não há problema por esse lado, porque só aparecem depois de o último visitante se retirar.

- Se as conheço bèm, não tardam aí - asseverou Lorde Ornum. - E em pé de guerra. À procura de estragos.

- Ainda dispomos de algum tempo - disse o administrador, aproximando-se da janela. - Aguardarão que aquele autocarro parta.

- Além de tudo isso, Charles - tornou o conde, com um pesado suspiro-, convém averiguar onde o meu sobrinho William esteve durante toda a semana.

Purvis hesitou, antes de aventurar:

- Creio que se encontra em baixo.

- É o que eu receava. - O conde voltou a suspirar.

- Disseram-me que esteve em Ornum Arms, a noite passada.

- As más notícias propagam-se rapidamente.

- Sim, senhor.

- Passe pelo seu chalé e comunique-lhe que o quero ver. Julgo útil mantê-lo ao corrente da situação, apesar de tudo.

- Muito bem, senhor.

- Não concorda? - inquiriu, arqueando uma sobrancelha.

- É um jovem muito falador-observou Purvis, com a prudência necessária.

- Sai ao pai.

- Decerto, senhor, mas pode revelar-se prejudicial...

- É o filho de minha irmã. Por conseguinte, não o posso conservar a leste do problema que surgiu.

- Decerto que não, senhor.

- De resto - acrescentou o conde, com uma ponta de malícia-, inteiramo-nos sempre que ele tem problemas.

- Sem a menor dúvida, senhor - confirmou o administrador, com uma expressão compungida.

O primeiro dos peritos da morte chegou à Casa Ornum no momento em que Sloan e Crosby voltaram a descer ao armeiro. Tratava-se dos fotógrafos da Polícia Dyson e o seu ajudante Williams.

- Arranjou um cenário muito interessante, inspector - observou Dyson, postando-se à entrada com o equipamento.

- E um mistério não menos interessante - replicou Sloan, secamente.

O fotógrafo contemplou as duas fiadas de armaduras e comentou:

- Vou obter umas imagens muito pitorescas.

- Folgo em sabê-lo.

- Os rapazes do Laboratório vão pensar que visitei o museu de figuras de cera, ou coisa do género. - Começou a avançar para as armaduras. - Qual é que tem recheio?

- A segunda da direita - informou Sloan. - Mas precisamos de todo o enquadramento.

- Com o maior prazer.

Dyson montou a máquina no tripé com uma rapidez que contrastava com a lentidão dos seus movimentos anteriores. Em seguida, o ajudante entregou-lhe um objecto, registou-se uma pausa e um clarão repentino.

- Duvido que estes camaradas vissem uma luz tão intensa desde os tempos de Agincourt (1).

O inspector sentia-se inclinado para concordar, pois a atmosfera do armeiro continha algo de tenebroso sem qualquer ponto em comum com a presença de um cadáver.

A seguir, Williams colocou uma espécie de lençol branco junto da armadura com peças para torneio, circa 1595, e conseguiu convencer Crosby a pegar numa das pontas.

- Indispensável para reflectir a luz -explicou Dyson. Sloan inclinou a cabeça, reflectindo que o fotógrafo nunca se queixava das condições de iluminação. Se precisava de alguma coisa, levava-a consigo. Ele e Williams eram membros auto-suficientes da equipa da Polícia.

Moveram o tripé para diante da armadura que lhes interessava, e Dyson perguntou:

 

(1) Local onde se travou uma batalha célebre entre Henrique V e os Franceses. (N. do T.)

 

- Aberta ou fechada, inspector?

- Aberta e fechada. Crosby já recolheu as impressões digitais do capacete.

- Elmo fechado.

- Hem?

- Elmo fechado - repetiu o fotógrafo. - É o nome que tem e não capacete.

- Sim? - articulou Sloan, em voz neutra. - Tenho de tomar nota.

Houve novo clarão, após o que Williams se adiantou para levantar a viseira, e o inspector surpreendeu-se mais uma vez com o aspecto do rosto sem vida.

- Recordo-me dos meus tempos de aprendiz de fotógrafo na praia de Blackool, quando as pessoas metiam a cara numa abertura redonda como esta - disse Dyson.

- E daí?

- Tirávamos a fotografia e elas apareciam depois a montar um leão-marinho.

- Muito interessante.

- Ou um camelo - interpôs Crosby, que continuava a segurar uma ponta do lençol. - Eu preferia sempre os camelos.

- Parem lá com as parvoíces - sugeriu o inspector.

- Este fulano faz-me pensar nisso - volveu Dyson, imperturbável. - Parece que queria ser fotografado dentro de uma armadura. Só se vê a cara redonda.

- Está bem. Continue com o seu trabalho.

- Com certeza, patrão.

- No entanto, à parte o pormenor de o fotografado estar morto, dir-se-ia que se achavam num estúdio vulgar.

- Recue um pouco.

- Ligeiramente mais para a direita. Que diz a um ângulo inferior?

- É uma boa ideia.

- Quietinho - recomendou Dyson, desnecessariamente.

- A seguir, um grande plano.

- Já agora, bate-se mais uma, não concorda, inspector? - sugeriu Dyson. - Alguma outra coisa?

- Creio que a única coisa que vocês não lhe exigiram foi que dissesse "queijo" - comentou Sloan.

- Não era necessário - retrucou o fotógrafo, com uma expressão maliciosa. - Os músculos do rosto contraem-se com a morte e obtém-se o ricto facial sem ser preciso pedir nada.

- Compreendo.

O inspector reflectiu que Dyson só lucrara em abraçar a carreira de fotógrafo. Com efeito, como sabia sempre tudo, a ascensão na escada das promoções da Polícia revelar-se-lhe-ia particularmente difícil.

Ou mesmo impossível.

- Tem um ar muito sereno - observou Dyson.- Fazem alguma ideia do que o vitimou?

- Ainda não.

- Armas não faltam - acrescentou, com um gesto largo que abarcava toda a colecção. - Talvez fosse aquilo.

- É um espeto - anunciou Crosby, que se encontrava suficientemente próximo para ler a respectiva placa.

- Um quê? - perguntou Sloan.

- Espeto. Palavra de honra.

- Não me diga!

- "Frequentemente confundido com um ranseur" - esclareceu o detective, continuando a ler.

- Seja como for, eu preferia isso àquela outra geringonça.- Dyson indicou um objecto alongado provido de espigões pouco tranquilizadores. - Que diabo é?. Crosby acercou-se e consultou a placa.

- "Aspersor de água-benta."

- Essa, agora!-exclamou o fotógrafo. - E a coisa a seguir?

O detective transferiu-se para diante de uma pesada esfera de ferro na extremidade de corrente pouco extensa.

- Chama-se "Estrela de Alva", similar a um "Malho Militar".

- Os antigos tinham um sentido do humor muito peculiar - reconheceu Dyson, com um sorriso.

- Isso é verdade - concordou Sloan, secamente.

O outro entendeu a deixa e desmontou a máquina fotográfica do tripé.

- São horas de nos pormos a andar. Williams?...

- Vamos.

- Um momento. - Dyson apontou para a armadura. - Fecha a janela.

O ajudante baixou a viseira sem protestar.

Dillow pousou a pesada bandeja de prata do chá.

Mais tarde, levaria o bule de prata (Ann and Raul Bateman, 1792), o jarro de água quente (Paul Storr, 1816) e a bandeja (de artífice desconhecido, 1807), para os limpar e arrumar na copa. Para já, todavia, deixá-los-ia na mesa da cozinha. A governanta, Mrs. Morley, providenciaria pelo destino da loiça de porcelana (Copeland) e a criada ocupar-se-ia do resto.

- Não lhe faria mal uma chávena de chá, Mr. Dillow, após todo o rebuliço que houve - observou ela.

- Tem razão, Mrs. Morley, obrigado. - O mordomo sentou-se pesadamente numa cadeira. - O ambiente já é cansativo nos dias de visitas, mas com o que sucedeu a Mr. Meredith... Valha-me Deus.

- De facto, não é nada agradável - admitiu a governanta, franzindo os lábios. - Todos temos de morrer e precisamos de nos resignar, mas ser encontrado sem vida numa armadura...

Dillow abanou a cabeça. Observado de perto, não era tão velho como parecia à primeira vista. Simplesmente, a sua ocupação e ar de cansaço contribuíam para uma impressão de velhice.

- Confesso que o assunto não me agrada mesmo nada.

- Quem vai delirar são os jornalistas - prenunciou ela, leitora voraz dos semanários dominicais que exploravam o sensacionalismo. - Habituei-me à Imprensa na última casa em que trabalhei. O meu falecido patrão quase a encorajava. Oferecia sempre bebidas aos repórteres.

- Porque lhe convinha para o negócio.

- Rolamentos Baggles - apressou Dillow a referir.- "Toda a indústria funciona em Rolamentos Baggles" era a divisa da empresa. E creio que corresponde à verdade. Naquela casa, não havia problemas materiais.

- Os negócios são outra coisa - insistiu Mrs. Morley.

- Publicidade grátis. Era o que ele dizia, sempre que aparecia alguma referência nos jornais. Afirmava que até as alusões à sua colecção de objectos de arte acarretavam benefícios para os rolamentos.

- Imagine... - murmurou, sem fazer a menor ideia do que era um rolamento, e não entendia nada de publicidade.

- Mas note-se que, quando pegavam numa história, ninguém os podia conter.

- Não creio que Sua Senhoria aprecie qualquer referência à Casa Ornum nos jornais - observou, com uma expressão de desagrado.

- Hão-de explorar todos os pormenores que puderem.

- De qualquer modo, duvido que houvesse alguma coisa que Mr. Meredith desejasse ocultar. Na verdade, nunca conheci uma pessoa de trato tão agradável.

- Eu não estava a pensar em Mr. Meredith - esclareceu Dillow.

- Não me diga que o menino William voltou a meter-se em apuros? - balbuciou a governanta, escandalizada.

- Não faço a menor ideia. - Trocaram olhares de inteligência, enquanto ela servia duas chávenas de chá. Em seguida, o mordomo levou a sua aos lábios e segredou: - Só sei que se encontra em baixo.

- Palavra?

- Ouvi dizer que esteve no Ornum Arms, ontem à noite.

- As suas visitas àquele lugar nunca lhe proporciona- ram vantagens - disse Mrs. Morley, em óbvia desaprovação.

- A Polícia vai querer saber quando Mr. Meredith foi visto vivo pela última vez.

- Sexta-feira - declarou, sem hesitar. - Você levou-lhe o chá à biblioteca.

- Tem razão. Pouco depois das quatro.

- Torradas com manteiga, bolo esponja e biscoitos petit beurre.

- Tragou tudo. Quando fui recolher a bandeja, não havia nem vestígios.

- Que horas seriam?

- Por volta das cinco.

- Quem o viu, depois disso?

- Não faço ideia, Mrs. Morley. Não faço a menor ideia.

 

Charles Purvis afastou-se apressadamente dos Apartamentos Privados e enveredou com facilidade pela complexa topografia da casa, até alcançar o pátio de entrada, onde ainda se encontrava um autocarro. Fora pintado de um azul particularmente vivo e, graças a uma ironia demasiado profunda para se exprimir por palavras, achava-se ao lado do cepo de montar utilizado pelos treze condes de Ornum para subir para as viaturas de uma natureza totalmente diferente em vigor nas diferentes épocas.

Michael Fisher estava equilibrado no cepo e o motorista do autocarro sentava-se calmamente ao volante, munido da paciência infinita própria da sua tribo. Os passageiros apareceriam mais cedo ou mais tarde, o atraso poderia ser recuperado na estrada e, de qualquer modo, não merecia a pena iniciar a marcha antes da abertura das casas de bebidas. Mais valia esperar ali do que diante do "Encanto do Violinista".

O administrador aproximou-se do autocarro e foi saudado com vagas excitadas de reconhecimento por Mrs. Fisher.

- É muito atencioso, não acham? - proferiu, voltando-se para os companheiros de viagem, todos seus amigos ou vizinhos, o que Purvis considerou, não sem surpresa, mais irritante e embaraçoso do que o insulto mais contundente.- Chamam-lhe "adamastor"...

Ele foi salvo de ulteriores embaraços por Michael Fisher, que executava uma espécie de dança guerreira no cepo de montar.

- Aí vêm eles!

Purvis voltou-se, ao mesmo tempo que os ocupantes do autocarro torciam os pescoços, para observarem a aparição de uma Mavis Palmer um pouco desgrenhada e profundamente corada, seguida de perto pelo namorado. Acto contínuo, os passageiros começaram a soltar guinchos de incitação.

- Depressa, Mavis!

- Força nessas pernas, Bernard! - Mexam-se!

O motorista ligou o motor à guisa de reprimenda aos retardatários, que trataram de estugar o passo, nitidamente ofegantes. O administrador notou que Miss Palmer se adiantava ao rapaz com facilidade e, conquanto não aprovasse o género de actividades a que decerto se tinham entregado no parque ao longo da tarde, desviou-se prontamente para que subissem.

Com uma explosão final de aclamações e uma fanfarra a todos os títulos despropositada da buzina do autocarro, o grupo de excursionistas de Paradise Row, Luston, pôs-se finalmente em marcha.

Charles Purvis acompanhou o veículo com a vista por um momento e em seguida encaminhou-se para a entrada.

- Lady Eleanor...

- Dezassete, dezoito, dezanove...-Ela interrompeu a contagem e voltou-se. - Quanto é dezanove moedas de três pence?

- Quatro xelins e nove pence.

- Tem a certeza?

- Bem... acho que sim. - Apesar de ser um jovem normalmente muito seguro de si, Lady Eleanor Cremond conseguiu, com um olhar quase implorativo, convertê-lo numa criatura assaz hesitante.

- Então, está certo.

- Não vejo como pode estar-aventurou ele, num assomo de arrojo. - Os nove pence não fazem sentido, se cobra um xelim e meia coroa por cabeça.

- Havia um homem só com uma perna - esclareceu ela, com um sorriso encantador.

- Aplicou-lhe a tarifa reduzida?

- Deixei-o entrar no parque por nove pence. Não me pareceu que pudesse ir muito longe.

- Queria transmitir-lhe uma notícia muito desagradável.- Purvis sentou-se ao lado de Lady Eleanor, diante da mesa. - Mr. Meredith foi encontrado morto.

- Ossy! - articulou ela, abismada.- Coitadinho! Lastimo imenso. Quando morreu?

- Ainda não sabemos-disse o administrador, e referiu-se à armadura.

- Mas ele nem gostava das armaduras - protestou ela, com uma expressão de incredulidade. - As suas preferências concentravam-se nos livros e quadros. E em todos os documentos antigos, claro.

- Eu sei.

- Na verdade - acrescentou, com vivacidade-, nem sequer mostrava o armeiro às pessoas, a menos que Mr. Ames viesse do vicariato.

- Também estou ciente disso. - Purvis começou a mover, entre os dedos, um maço de talões de entrada. - Quando o viu pela última vez?

Lady Eleanor enrugou a fronte e replicou:

- Sexta-feira à tarde, salvo erro.

- Aconselho-a a certificar-se, porque a Polícia gosta de respostas definidas.

- A Polícia? - Fez uma pausa, enquanto ele aquiescia com um movimento de cabeça.- Foi na sexta, foi. Pouco antes do chá. Entrei na biblioteca e ele encontrava-se lá, sozinho. - Hesitou. - Parecia no estado normal... minto, mostrava-se, por assim dizer, exuberante. Eufórico. Excitado... Sim, o termo apropriado é esse: excitado.

- Disse alguma coisa?

- Quem, ele? Não, nada de especial. Limitei-me a comentar que costumava tomar o chá com as tias-avós às sextas-feiras, e respondeu...-Tornou a hesitar. - Que respondeu?

- Que julgava tê-las perturbado com as suas descobertas acerca do título de conde.

- Perturbado é uma expressão muito aquém da realidade- observou Purvis, secamente.

Afirmar que Dillow preparou uma emboscada aos que regressavam da partida de críquete na aldeia constituiria um exagero e a atribuição de particular ausência de subtileza ao competente mordomo.

Limitava-se a cruzar o átrio de entrada, em passos quase silenciosos, no momento em que eles surgiram.

- Ganhámos - anunciou Lorde Henry, uma paródia física do pai, influenciado pelo temperamento vago da mãe.- Foi um jogo excelente.

- Folgo em sabê-lo, senhor, mas...

- Evidentemente que o facto de contarmos com Henry para se ocupar do marcador ajudou um pouco - interpôs Miles Cremond, quase com ansiedade.

- Realmente, senhor?

- Até certo ponto.

Miles era um indivíduo atarracado, possuidor de apenas uma parte das características da família Cremond. Os traços fisionómicos endureceriam consideravelmente com o tempo e havia já linhas mais carregadas em torno do queixo. Em contraste, a esposa, Laura, possuía feições esculpidas com nitidez e era uma criatura habituada a mandar.

- É melhor ires mudar de roupa imediatamente, Miles.

- Pois sim, querida.

Dillow tossiu discretamente e comunicou:

- Sua Senhoria indicou-me que desejava falar a todos, mal chegassem.

O conde e a condessa continuavam na sala de estar, e o primeiro levantou-se no momento em que o trio entrou.

- Há alguma novidade, pai? - quis saber Lorde Henry.

- Há.

- Que aconteceu? - perguntou Laura Cremond, com curiosidade.

- Mr. Meredith sofreu um acidente, cá em casa...

- Santo Deus!-exclamou Henry. - Pobre homem. Eu nem sequer sabia que tinha vindo.

- Ninguém estava ao corrente disso - volveu o conde de Ornum.

- Aliás, eu pensava que não aparecia, nos fins-de-semana.

- E não aparecia.

- Na verdade, estranhei não o ver no jogo - acrescentou Henry. - Não me lembro de que perdesse um único, em vários anos.

- Em especial, o de Petering - acudiu Miles, ainda eufórico com a vitória.

O conde de Ornum, encorajado pelo movimento dos dedos nas guias do bigode, descreveu as circunstâncias relacionadas com a descoberta do corpo na armadura.

- Mas quando morreu? - perguntou Laura Cremond, sentando-se pesadamente na poltrona mais próxima.

- Não faço a menor ideia.

- Havia alguém que não queria que o encontrassem - conjecturou Lorde Henry.

- Dá essa impressão, de facto - concordou o conde.

- Ninguém podia adivinhar que aquele abelhudo... como disse que se chamava?...

- Michael Fisher.

- ...Michael Fisher, abriria o Rezingão dessa maneira.

- Abriria quem? - O Rezingão. -Henry exibiu um largo sorriso.- Disseste que era a segunda armadura da direita, pai?

- Exacto - confirmou o conde, em voz grave. - Então, era o Rezingão. Baptizámos cada uma com os nomes de Branca de Neve e os Sete Anões.

- Não sabia.

- A Branca de Neve era a de aspecto mais imponente - contribuiu Miles. - Víamos-lhe qualquer coisa de feminino. Isto foi nos nossos tempos de meninos e moços, claro.

- Muito interessante.

- Era a Decadência - tomou Henry. - Brincávamos lá em baixo com frequência, não é verdade, Miles?

- Sem dúvida. Pode dizer-se que desgastámos os nossos dentes de leite no armeiro.

- Mr. Ames encorajava-nos. O seu entusiasmo pelos objectos expostos era tão grande, que não se preocupava com as nossas brincadeiras. E ensinou-nos muita coisa.

- Os nomes das diferentes partes das armaduras e do armamento, por exemplo. Confesso que já esqueci quase todos. Aposto que Henry e William também não se lembram.

- William -proferiu o conde, com um suspiro.- Esquecia-me de que ele esteve a jogar convosco.

- Os anões chamavam-se Dorminhoco, Pateta, Espirra-dor... - Henry franziu o cenho, numa tentativa para se recordar dos outros-... este era o do nariz grande...

- Com certeza - aquiesceu-, mas não estou a ver...

- Babeira! - exclamou Miles, subitamente. - Acaba de me ocorrer.

- Julgava que isso era uma coisa que se colocava num bebé. - A condessa de Ornum, até então silenciosa, participou na conversa, como uma actriz que acabasse de escutar a sua deixa.

- Babeira - repetiu Miles. - Era o nome do elmo do Espirrador. Um bascinete com viseira.

- Exacto - assentiu Henry. - E o do pateta chamava-se borguinhota.

- Uma borguinhota fechada - acrescentou o outro. - Por isso parecia tão simples. Afinal, não esquecemos os nomes.

- Do que pareces ter-te esquecido é que não estamos agora perante um jogo de crianças - comentou a esposa, em tom incisivo.

- Pois é... - O entusiasmo de Miles atenuou-se com prontidão. - Tens razão.

- Eram sete, não contando com a Branca de Neve - ponderou Henry. - Porque seria que ele foi parar ao Rezingão?

- A explicação é simples- declarou Miles. - Não te recordas? O Rezingão era o mais fácil de desmontar.

- Quem estava ao corrente disso? - inquiriu o conde, com um clarão de curiosidade no olhar.

- Todos - disse Miles.

Laura Cremond olhou à sua volta e estranhou:

- Quem o colocou lá não queria que fosse encontrado?

- Dá essa impressão - confirmou o conde. - E a Polícia quer conversar convosco, sem demora.

Após o breve encontro com Lady Maude, o inspector Sloan experimentou profundo alívio ao trocar impressões com um especialista experiente.

Acudiu ao encontro do Dr. Dabbe e respectivo ajudante, Burns, no Grande Salão. O melhor condutor (vivo) de Calleshire não necessitara de muito tempo para transpor a distância que separava Kinnisport, na costa, de Ornum, com um pequeno desvio a Berebury, a fim de recolher Burns. O patologista não necessitara de fazer escala por sua casa, porque a maleta profissional acompanhava-o a toda a parte.

- As condições atmosféricas eram as ideais para velejar - salientou Dabbe, com uma inflexão de censura.- E, ainda por cima, a um domingo.

- Se aqui fizesse tanto calor como junto do mar, o nosso homem teria sido encontrado mais cedo - assegurou-lhe Sloan.

- A situação está nesse pé, hem?

Dabbe lançou uma olhadela rápida à decoração do espaçoso Grande Salão e seguiu o inspector pela escada descendente, com Burns na retaguarda do pequeno cortejo.

- Ele veio a pé cá para baixo ou transportaram-no?

- Não faço a menor ideia, doutor. Pelo menos, por enquanto. Ainda só lhe vi o rosto.

- Compreendo... - O patologista alcançou o último degrau. - Isto é a cave?

- Área das masmorras - corrigiu Sloan, em tom algo soturno, reflectindo que, no fundo, não se tratava de uma adega. - Não sei se se pode ir mais abaixo.

- Fosso? Costuma haver fossos. - Dabbe fez uma pausa, para aguardar que Crosby abrisse a porta do armeiro, entrou, olhou em redor e soltou uma exclamação apreciativa. - Posso escolher?

- Segunda à direita - indicou o inspector, admitindo para consigo que talvez não fosse má ideia substituir a placa que identificava a vestidura momentaneamente mais popular, com dizeres mais ou menos do seguinte teor: "Homem com Armadura" ou "Restos Humanos, marca Agora" - Traçámos um círculo a giz em volta - esclareceu.

- "Armadura com peças para torneio, circa 1595" - leu Dabbe. - Muito bem...

Sloan cogitou que não estava nada bem, mas absteve-se de objectar.

- Creio que é a primeira vez que se me depara um cadáver... embrulhado - admitiu o patologista.

- Acredito - redarguiu Sloan, que também conhecia a primeira experiência na matéria.

Dabbe aproximou-se e examinou a armadura atentamente. Era uma das facetas que o inspector admirava nele: chegava, olhava, inspecionava... e por fim falava.

- O extinto...

- Osborne Meredith.

- Não era muito alto.

- Pois não - concordou Sloan. As armaduras, embora intimidativas, nunca eram grandes.

- Davam-lhes demasiado leite na escola.

- Perdão?

- Hoje, somos mais altos. Naquele época, predominava a estatura mediana e baixa, tomando a actual como padrão. - O patologista começou a contornar a armadura. - É um trabalho perfeito. Quem mandou fazer isto não tencionava deixar-se apunhalar pelas costas.

O inspector aquiesceu com um movimento de cabeça. Do ponto em que se encontrava, dava a impressão de que o primitivo proprietário da armadura não tencionava deixar-se apunhalar em parte alguma do corpo.

- Nem uma única frincha - interpôs Crosby.

Sloan brindou-o com uma mirada fulminante, enquanto o ajudante do patologista, Burns, que raramente falava, puxava de um longo termómetro.

- Frio, mas não húmido - observou Dabbe.

- É verdade - concordou Sloan.

Era um dos dias mais quentes do Verão, todavia o calor não penetrara na área das masmorras. De um modo geral, podia considerar-se um lugar excelente para guardar um cadáver, sobretudo se havia em mente o desejo de que não fosse encontrado facilmente.

Dabbe continuava a circundar a armadura, mais ou menos como um terrier em torno de um adversário que ansiava por atacar.

- Ou o enfiaram aqui dentro com uma perícia extraordinária logo após a morte ou aguardaram que o rigor mortis se estabelecesse.

- Sim?

- Repare no ângulo dos braços.

O inspector tornou a observar a armadura e recordou-se de Michael Fisher ter dito qualquer coisa acerca dos braços.

Dabbe apontou para o direito, sem lhe tocar. Com efeito, achava-se dobrado pelo cotovelo, numa posição algo defensiva.

- Mantém-se em guarda.

- Tem razão, doutor.

- Antes ou depois do rigor mortis. Nunca durante.

- Compreendo.

- Depois, suponho-volveu, em tom mordaz. - Quando terminaram de lhe vestir a farpela, já se devia ter estabelecido.

Era mais um pormenor a considerar, e Sloan juntou-o mentalmente à lista cada vez mais extensa de pontos interessantes que exigiam uma investigação mais aprofundada. Alguns exigiam mesmo acção, mas só após o exame do patologista. Na realidade, o inspector possuía experiência suficiente para saber que os elementos fornecidos por este último se revestiam de importância capital.

- Há outra coisa - anunciou Dabbe.

- Qual? - Sloan regressou ao presente com um sobressalto.

- A maneira como o colocaram na armadura.

- Sem dúvida.

- E como o vamos tirar de lá.- O patologista exibiu um sorriso maquiavélico. - Não posso proceder à autópsia com um abre-latas.

- Claro que não.

- Evidentemente que havia um escudeiro para o efeito, nos velhos tempos.

- Exacto - assentiu o inspector, que esquecera o facto.

- Aquilo a que se poderia chamar um lacaio pessoal, hem? - O sentido do humor cáustico de Dabbe era bem conhecido da Polícia de Berebury.

- Precisamente.

- Não acredito que o homem se metesse aí dentro sozinho, apesar de vivermos numa época em que o pessoal doméstico pode considerar-se uma raridade.

- É pouco provável, com efeito.

- E julgo podermos pôr de parte as causas naturais, a menos que a deusa coincidência estendesse um braço particularmente longo.

- Decerto.

- O que nos deixa perante o habitual trio do coroner - acrescentou, em tom jovial.- Infortúnio, suicídio ou homicídio.

- Infortúnio?

- Mais vulgarmente conhecido por azar.

- Não estou a compreender como...

- O infortúnio pode considerar-se a armadilha preparada para o patologista imprevidente - explicou Dabbe, com veemência. - Suponhamos que o fulano se meteu na armadura por qualquer motivo perfeitamente razoável e depois não conseguiu sair...

- Sim?

- Podia estoirar os pulmões a gritar, que ninguém o ouviria através da viseira, para não mencionar as paredes de trinta centímetros de espessura como parecem ser as que nos rodeiam.

- Isso é verdade, mas não creio que ele entrasse para aí sozinho e em seguida pedisse auxílio.

. - Porquê?

- Procurámos pegadas e verificámos que o chão tinha sido bem varrido em torno da armadura. Demasiado bem varrido.

- E quanto a impressões digitais?

- Também não encontrámos nenhuma. Crosby examinou tudo minuciosamente. Manusearam a armadura, sem dúvida... mas com luvas calçadas.

Inclinou a cabeça várias vezes com lentidão e decidiu:

- Nesse caso, não precisamos de tomar precauções especiais para explorar o interior.

Sem tocar na viseira, estendeu as mãos para a parte posterior do elmo e levantou-o cuidadosamente.

Dissiparam-se as dúvidas quanto à causa da morte de Osborne Meredith.

A região da nuca fora esmagada.

 

Depois de se separar de Lady Eleanor, Charles Purvis dirigiu-se para o seu carro. A Casa Ornum situava-se demasiado longe dos vizinhos para os visitar a pé, sobretudo se o tempo escasseava.

Transpôs os cerca de mil e quinhentos metros até à aldeia, atravessou o portão ornamental e enveredou pela High Street. Quase todas as propriedades aí existentes achavam-se em boas condições e a maioria pertencia ao conde. O administrador conduziu o automóvel com prudência através do tráfego habitual nas tardes de domingo e imobilizou-o diante do último chalé de uma fiada, nas proximidades dos Correios. A maior parte dos habitantes da povoação devia estar a assistir à partida de críquete e a restante efectuava os preparativos para as Vésperas.

O homem que abriu a porta era mais velho do que Lorde Henry Cremond e Charles Purvis e denotava tendência para a obesidade. Usava calças de belbutina que decerto tinham visto melhores dias e maior asseio e camisa de gola aberta.

Além disso nem o mais optimista consideraria a sua atitude cordial.

- Ena, ena! Nada menos que o nosso Charley!

- Boa tarde, William - replicou Purvis, estremecendo. - O seu tio mandou-me...

- Já calculava que não tinha vindo por sua alta recreação.

- De facto, não viera.

O homem sorriu repentinamente e a expressão alterou-se por completo.

- Quinze igual. O serviço é seu.

- O seu tio mandou-me comunicar-lhe que precisa falar consigo.

- É uma variante agradável - comentou William .Mur-ton. - Nunca manifestou interesse em me ver.

- Pois, agora manifesta.

- Porquê?

- Houve um problema, lá em casa - declarou o administrador, após breve hesitação.

- Lamento imenso. - Na realidade, William Murton não parecia minimamente pesaroso e, semicerrando as pálpebras, inquiriu:-Alguém bateu asas com as pratas?

- Não se trata de um problema dessa natureza. Ergueu os braços ao céu, fingindo-se horrorizado.

- Não me diga que um irresponsável qualquer pediu a minha prima Eleanor em casamento!

- Também não é isso - retorquiu Purvis, corando efé à raiz dos cabelos.

- Tem a certeza? - insistiu o outro, em tom ofensivo.

- Tenho.

- Muito interessante. Vou imediatamente. - Murton deteve-se, quando se preparava para fechar a porta. - Sabe se a visita inclui uma refeição?

- O seu tio quer falar consigo - reiterou o administrador.

- Compreendo. É mais uma convocação geral do que um convite.

O inspector Sloan lamentava não dispor de um novelo de cordel.

Era o que utilizavam as pessoas que se introduziam numa gruta labiríntica e pretendiam certificar-se de que não teriam dificuldade em encontrar o caminho de regresso. O que se passava na Casa Ornum não diferia muito. De momento, ele procurava a porta por detrás da qual Lady Maude desaparecera quando a vira pela primeira e, até agora, única vez. Se conseguisse localizar um jarrão chinês de largas dimensões, decerto se orientaria satisfatoriamente a partir daí.

Podia, evidentemente, e sem a menor dificuldade, pedir a alguém que o conduzisse ao local, mas havia riscos inerentes à maneira como o anunciariam, susceptíveis de perturbar as duas idosas damas com as quais desejava conversar sem entraves. Com as quais desejava conversar sem entraves, antes que alguém as abordasse, motivo fundamental que o levara a ausentar-se do armeiro por uns momentos.

Afinal, o jarrão chinês não se revelou da utilidade prevista. Conseguiu, na verdade, localizá-lo. Vasto, bem proporcionado e delicadamente colorido, não oferecia dificuldades de monta à sua identificação.

Subsistia, porém, um óbice.

O seu irmão gémeo.

Só depois de abrir uma série de portas erradas, Sloan verificou que o jarrão gigantesco que ele e Crosby tinham visto fazia parte de um par absolutamente idêntico. Descobriu o outro.- o que lhe interessava - na extremidade mais distante do mesmo corredor interminável. A partir daí, decerto não se registariam problemas.

Bateu à porta de Lady Maude, e uma anciã magra - a mesma que vira anteriormente - abriu transcorridos uns momentos. Por sorte, reconheceu-o e resmungou:

- Já o vi em qualquer parte.

- É verdade, Lady Maude. Gostava de voltar a falar consigo. E com Lady Alice.

- Gostava? - (Sloan sentiu-se alvo de um exame minucioso.)- Para quê?

- Mataram Mr. Meredith.

- Não me diga! - articulou, arregalando os olhos.- É melhor entrar. Por aqui. - Deu meia volta com brusqui-dão e principiou a afastar-se da porta. - Alice! Onde estás?

Lady Alice era - se possível - ainda mais velha do que a irmã. No entanto, a idade avançada não alterara a configuração do nariz dos Cremond, esculpido firmemente no meio de um rosto que, outrora, devia ter sido deslumbrante. Mais ou menos no ano da morte da rainha Vitória...

- Boa tarde, milady - saudou o inspector.

Uma mão pouco diferente de uma garra pegou numa luneta e examinou-o num silêncio que acabou por se tornar enervante. Sloan não experimentava uma sensação similar desde que, nos primeiros tempos na Polícia, quando não passava de um guarda raso e o sargento de serviço na esquadra o inspeccionava meticulosamente antes de ir patrulhar as ruas. Lápis, bloco-notas, apito... apetecia-lhe subconscientemente certificar-se de que não se esquecera de nada.

- Quem é você, meu rapaz?

- Chamo-me Sloan, Lady Alice...

- Que pretende?

Reflectiu que a forma de abordagem talvez não fosse a mais conveniente, afinal de contas. Os circunlóquios constituíam o instrumento apropriado para enfrentar as pessoas de meia-idade, mas não as muito idosas.

- Mataram Mr. Meredith.

- Ah!-fez ela, enigmaticamente.

Ponderou que, para as muito idosas, talvez a morte estivesse tão próxima e fosse uma companheira tão constante, que as impressionava menos.

- Sou o responsável pelas investigações destinadas a esclarecer as circunstâncias do crime.

- Não se perdeu grande coisa - acrescentou a velha dama, em tom enfático. - Empenhava-se em provar que o tetravô Cremond era filho ilegítimo.

- Que ideia... - murmurou Sloan, consciente do despropósito do comentário.

- Pensava que o título pertencia a outrem.

- Não!

- Sim - contradisse Lady Alice, firmemente. -Garantia que estava tudo registado nos arquivos.

O inspector cogitava que quanto mais depressa o superintendente Leeyes lhe fornecesse o dicionário melhor. Poderia então verificar se o termo "arquivos" era sinónimo de muniments-room.

- Sempre afirmei que era perigoso bisbilhotar na papelada antiga - persistiu a velha dama.-Aliás, preveni o meu irmão. Devia ter corrido com Meredith, quando abandonou a prática do críquete. Eu, por exemplo, sempre quis morrer na sela.

Sloan observou melhor a interlocutora. Embora soubesse que os tempos das cargas de cavalaria pertenciam ao passado, as mulheres nunca haviam participado nelas.

- Uma bela maneira de abandonar este mundo - acrescentou a anciã.

Fez-se-lhe luz no espírito.

- O campo da caça...

- Exacto. E agora, meu rapaz, diga-me quem o matou, - E a luneta pareceu adquirir vida própria, no inconfundível nariz dos Cremond.

- Não sei, Lady Alice.

- Suponho que não fracturou a espinha?

- De modo algum.

- Vi muitos homens abandonarem-nos por esse motivo. Na transposição de obstáculos.

Tudo indicava que ela superara os seus obstáculos sem problemas. E provavelmente, a galope.

A toda a brida.

O que o fazia regressar ao tópico de Osborne Meredith.

A entrevista descrevera um círculo completo.

- Que me pode dizer acerca de sexta-feira?

Lady Alice seria mais velha, mas mostrava-se menos vaga do que Millicent, esposa do sobrinho.

- Às sextas-feiras, Maude e eu preparamo-nos para o sábado e domingo.

- Sábado e domingo?

- Não saímos dos nossos quartos até ao fim da tarde dos sábados, domingos e quartas-feiras.

O inspector pestanejou. Constara-lhe que os maometanos observavam determinadas regras de comportamento entre o nascer e o pôr-do-sol, mas nunca ouvira dizer nada do género acerca de velhas solteironas inglesas de persuasão cristã.

- Durante todo o ano? - aventurou, ciente de que, no caso dos maometanos, era no decurso do Ramadão.

- De Abril a Outubro - esclareceu Lady Alice.

- E feriados bancários - contribuiu a irmã.

- Excepto a Sexta-Feira Santa - acrescentou a outra.

- Compreendo - admitiu Sloan, que realmente começava a inteirar-se da situação.

- Evidentemente que o meu sobrinho é agora o chefe da família, mas...

- Mas?...

- A minha irmã e eu não aprovamos a abertura da casa ao público. Preferimos não imaginar sequer o que o nosso falecido irmão pensaria.

- Muito bem - articulou, diplomaticamente. - Portanto, quando a casa é... "aberta", conservam-se ambas nos aposentos.

- Sempre.

Reconheceu para consigo que era pena, pois Lady Alice e Lady Maude constituíam peças de museu dignas de ser admiradas pelos visitantes que esportulavam meia coroa.

- Voltemos à sexta-feira...

- Sim?

- Viram Meredith, nesse dia?

- Não.

- Que fizeram, depois do chá?

- O que fazemos sempre depois do chá. Jogámos à arrenegada.

- Arrenegada?

De uma coisa não subsistia a menor dúvida no espírito dele. A arrenegada, o que quer que fosse, já não se jogava a dinheiro, pois conhecia todos os jogos em que tal era possível e aquele não figurava na longa lista.

- É um jogo que aprendemos com a nossa mãe - esclareceu a velha dama.

Ora, isso recambiava a conversa para o século XIX, e aquilo que preocupava Sloan localizava-se na segunda metade do século XX.

- Quem ganhou? - perguntou com naturalidade, reconhecendo que se tratava de um teste da memória satisfatório como qualquer outro.

Mas equivocava-se.

- Maude - informou Lady Alice, com prontidão.-Às sextas-feiras, é sempre ela que ganha - Moveu a mão num gesto largo. - Assim, as coisas ficam facilitadas.

- Compreendo.

- Eu ganho às terças-feiras, quintas e sábados.

- Sexta-feira à tarde-volveu Sloan, exasperado.- Viram alguém nessa ocasião?

- Só o Juiz - disse Lady Alice. - E foi muito mais tarde. Quando ia vestir-me para jantar.

- O juiz? - O inspector arrebitou as orelhas, consciente de que devia ver onde punha os pés, se havia magistrados envolvidos no assunto.

- O juiz Cremond - explicou Lady Alice.

Ele exalou um suspiro. Seria possível que ainda houvesse mais Cremond? Purvis não o mencionara ao enumerar as pessoas que viviam na Casa Ornum.

- Suponho que também faz parte da família?

- Sem dúvida que faz - assentiu ela, com uma gargalhada.

- Nesse caso, vou ter de o procurar. Vou tomar nota do...

A risada converteu-se quase num grasnido impregnado de malícia.

- Duvido que consiga concretizar semelhante intento. Não acredito sequer que o veja.

- Porquê?

- Morreu há duzentos e cinquenta anos.

- Um fantasma? - Sloan voltou a suspirar.

Era de prever. Numa casa daquelas, a ausência de um fantasma representaria uma omissão quase sacrílega. Em todo o caso, o superintendente Leeyes não se mostraria contente com o novo elemento.

A luneta descreveu um arco no espaço, a caminho do nariz Cremond.

- Exacto. Fique ciente do seguinte, meu rapaz: morrerá alguém, em breve.

E Lady Maude reforçou as palavras da irmã numa inflexão própria de um membro de coro de carpideiras gregas:

- O juiz fica inquieto sempre que alguém da família está na iminência de morrer.

O reverendo Walter Ames, vigário de Ornum e coadjutor perpétuo da Maple-juxta-Handling, não era pregador de longos sermões.

Naquele entardecer de Junho, escolheu para texto "a quem tem será dado" (tema que, de qualquer modo, raramente lhe proporcionava ensejo para se alongar demasiado), pronunciou-o com celeridade e apressou-se a transpor a distância que separava a Igreja da Casa Ornum.

Alcançou o armeiro precisamente quando o inspector Sloan regressava e declarou, um pouco ofegante:

- Acabo de saber a triste nova. Terrível. A todos os títulos terrível.

- Sem dúvida.

Sloan lançou uma rápida olhadela em volta. O Dr. Dabbe contemplava a armadura como o inexperiente conviva de um banquete que efectua uma pausa antes de desencadear a primeira investida contra uma lagosta, enquanto o detective Crosby continuava a mover-se ao longo das paredes, para examinar as armas expostas.

- Pressenti que havia algo de estranho - acrescentou o vigário, que tinha cabelos grisalhos e o hábito evidente de fornecer as informações em doses intermitentes.

- Sim? Porquê?

- Não me perdoo por não ter intervindo na altura, se bem que não veja que mais...

- Por não ter intervindo em quê? - inquiriu o inspector, pacientemente.

- Trata-se do seguinte. - Mr. Ames encheu os pulmões de ar antes de iniciar a tirada reveladora. - Meredith mandou-me chamar...

- Quando?

- Sexta-feira à tarde. Telefonou a minha mulher (eu estava ausente momentaneamente) e comunicou que fizera uma descoberta importante, acerca da qual gostaria de conhecer a minha opinião.

- Que espécie de descoberta? - perguntou Sloan, com brusquidão.

- Não disse. - O clérigo meneou a cabeça com lentidão.- Negou-se a ser mais explícito pelo telefone. A rede de Ornum ainda não é automática, pelo que uma inconfidência não constitui um exemplo inaudito, sobretudo no caso de haver uma telefonista curiosa... Não sei se me faço entender.

Sloan assegurou-lhe que fazia.

- Portanto - prosseguiu Ames -, limitou-se a deixar recado para que o procurasse.

- E procurou-o?

- Decerto. E é aí que reside o aspecto mais singular no caso.

- Onde?

- Quando cheguei, não consegui encontrá-lo.

- Que horas seriam?

- Umas cinco e meia. Meredith indicou a minha mulher que estaria a trabalhar nos arquivos depois do chá e o encontraria lá. Mas não encontrei.

- Que fez, então?

- Espreitei para a biblioteca, onde também não o vi, e retirei-me.

- Mais alguma coisa?

- Concluí que nos tínhamos desencontrado pelo caminho e resolvi passar pela Velha Forja, no regresso ao vicariato. E assim fiz.

- Mas ele tão-pouco estava lá.

- Exacto. Ninguém respondeu, quando bati à porta.- O vigário esforçava-se por não olhar para a armadura com recheio. - a altura, pensei que o veria no críquete, sábado e domingo (é um torneio de dois dias entre Ornum e Petering), pelo que não voltei aqui.

- Mas não estava igualmente no críquete - persistiu Sloan.

- Pois não. Devo confessar que fiquei surpreendido, se bem que agora seja fácil compreender a sua ausência.

- Efectuou mais alguma diligência?

- Não. - Ames tornou a abanar a cabeça com lentidão. - Reconheço agora que devia ter efectuado, mas passou-me...- Volveu o olhar para o Dr. Dabbe, o seu silencioso ajudante Burns e Crosby e acrescentou em tom de desculpa: - Receio ter subestimado a importância da descoberta do infortunado Meredith... qualquer que ela fosse.

- Vejo-me forçado a concordar.

- Ele entusiasmava-se frequentemente com o seu trabalho...- tentou ainda justificar-se, deixando transparecer que necessitaria de se modificar com insistência antes de considerar expiada a falta.

- Compreendo. Julgou que se tratava de um rebate falso.

- Creio que todos temos tendência para exagerar aquilo que é importante para nós e menosprezar o que se reveste de importância para os outros.

No entanto, foi após este longo preâmbulo que o vigário começou na realidade a revelar-se útil para a Polícia. Não no sentido vulgar, evidentemente.

- Calculei que seria esta a armadura envolvida, mal tomei conhecimento da tragédia.

- Porquê? - quis saber o inspector, subitamente interessado.

- Desarticula-se com maior facilidade que as outras.

- Não me diga! - murmurou Dabbe, que ainda não conseguira desarticular uma única peça.

- Quem estava ao corrente disso? - perguntou Sloan.

- Todos - declarou o vigário, jovialmente. - É com essa que procedo a demonstrações, quando há visitantes. Trata-se de uma vestidura muito interessante, acrescente-se. Pobre Meredith... Era um autêntico perito na sua especialidade.

- Estou empenhado em proceder à autópsia - interveio o patologista, ansioso por exercer a sua especialidade.

- Sem dúvida. Vejo que já expôs o crânio...

Havia alguém que também estivera interessado no crânio de Meredith, e Ames estremeceu visivelmente ante o espectáculo que se lhe deparava.

- Sim - aquiesceu Dabbe -, mas só isto não chega para o coroner poder trabalhar.

- Claro que não - aquiesceu o vigário, inclinando a cabeça rapidamente. - O que o senhor pretende é chegar ao... enfim, ao...

- Corpo.

- Pois. Bem, não é difícil.

- Podemos retirai isto, para começar?

- A espaldeira? Só se remover o guarda-nuca, primeiro...

Sloan fez sinal a Crosby e afastaram-se por uns momentos, a fim de confiarem a edificante situação a uma pessoa que empregava termos incompreensíveis para o patologista.

Este último inclinou-se para a frente e a manga prendeu-se num gancho saliente, o que o fez soltar uma imprecação entre dentes.

- Vejo que localizou o riste - observou Ames.

- Digamos que foi o riste que me localizou.

- Talvez não seja má ideia principiar pelas manoplas e as cotoveleiras. Depois, poderemos passar aos braçais. - De facto, parece o mais indicado...

- Assim, poderá ver as mãos e os antebraços - informou, com ares eficientes. - A couraça e a faldra é que são...

- Perdão?

- A couraça e a faldra...

- Faldra?

- Exacto.

- Foi então aí que tudo começou.....

- O corselete era uma espécie de semiarmadura - explicou, academicamente -, mas isto é uma faldra autêntica - Muito curioso...

- Moldada expressamente para o utente.

- Imagine! E isto?

- É a escarcela. Convém não esquecer também o gorjal.

A figura de um homem idoso de fato cinzento-escuro começava a ficar exposta.

O sangue deslizara pela nuca, embebera a gola do casaco e coagulara um pouco abaixo.

No momento em que o vigário desprendeu a couraça em movimentos hábeis, o corpo principiou a inclinar-se para a frente.

 

Reunida pelo imprevisto, a família formava um grupo na sala de estar dos Apartamentos Privados, onde ainda se encontrava quando Charles Purvis regressou da aldeia de Ornum com William Murton.

- Querem falar comigo? - perguntou este último, com uma reverência irónica, ao mesmo tempo que imprimia leve ênfase a "querem".

- Julgámos conveniente pôr-te ao corrente da situação - disse o conde, em voz rouca. - Houve um acidente...

- Sim?

- Meredith foi encontrado morto no armeiro.

- Dentro de uma armadura - apressou-se Lorde Henry a esclarecer. - Naquela a que chamávamos Rezingão. Lembras-te dela?

- Sem dúvida - assentiu o interpelado, com uma inclinação de cabeça. Enrugando a fronte, acrescentou:-Era a segunda à direita de quem entra.

- Exacto - confirmou o conde, com uma expressão soturna.

Registou-se uma breve pausa.

- Pobre Ossy - disse William Murton, que constituía uma mescla estranha de características físicas. Embora mais pesado do que os Cremond, possuía a mesma configuração de nariz. No entanto, aliava-lhe um ar descontraído que achava ausente nos outros. - Depreendo que alguém o meteu lá.

- É a única conclusão plausível - confirmou o conde.

- Quando?

- Parece que ninguém o via desde sexta-feira.

- Eu estive cá nesse dia, uma vez que não se atrevem a perguntar-mo.

- A que horas? - inquiriu Laura Cremond, com aspereza.

- À tarde. - William voltou-se para ela, de rosto inexpressivo.- E tu?

- Quinta-feira - articulou ela, corando.

- Viemos para o jogo - murmurou Miles.

- Jogo? - William contemplou cada um alternadamente.

- Qual jogo?

- Ornum contra Petering - elucidou Miles.

- Tiddlewinsks (1)?

- Não, críquete.

- Ele está a entrar contigo, Miles - advertiu Laura.

- Críquete! - exclamou William, desferindo uma palmada na perna. - É claro. A propósito, arrisquei algum dinheiro.

 

(1) Jogo de sala com pequenos discos de marfim, que se fazem saltar para dentro de uma bandeja colocada no centro de uma mesa. (N. do T.)

 

- Apostaste num jogo de críquete? - bradou Miles, arregalando os olhos.

- Exacto, rapaz.

- Mas ninguém...

- Os cavalheiros é que não apostam. As pessoas correntes sim. Quem ganhou?

- Fomos nós.

- Óptimo. Eu contava com isso. Nesse caso, o velho Lambert deve-me uma nota de cinco libras.

- Ebeneezer Lambert nunca apostou em toda a sua vida - observou o conde, com uma expressão de amargura. - No tempo de meu pai, era a mesma coisa. Era um mau juiz de cavalos.

- E de homens - volveu William.

- De homens?

- Era amigo de meu pai, como sabes.

- É verdade.

- Quase se podiam considerar colegas - prosseguiu, com uma ponta de rancor-, atendendo a que Lambert era albardeiro e meu pai moço de estrebaria.

- Precisamente.

- Só que o termo "colega" não é o indicado, quando se trata de seguir um ofício, hem?

- Uma arte - corrigiu o conde. - Preocupas-te demasiado com o passado, tudo isso já lá vai há muito.

- Eu, preocupar-me com o passado? Essa é boa! Vocês têm cá um homem empenhado exclusivamente em investigar a história da família. Se isso não é preocuparem-se com o passado, não sei o que lhe devem chamar.

- Já não o temos - proferiu Lorde Henry, em tom de desafio.

- Pois não. - William virou-se para o primo. - Sofreu um acidente fatal, hem?

- É o que parece. A Polícia encontra-se neste momento no armeiro. Depois, virá interrogar-nos.

- É pena que isso acontecesse precisamente quando Ossy ia tão bem encaminhado - observou a ninguém em particular.

- Muito bem encaminhado.

- Ou fui mal informado?

- Não.

- Há quem diga que remexer no passado é perigoso.

- Pois há - aquiesceu Lorde Henry. - E quem pode afirmar que não é verdade?

Afastada do resto da família, Gertrude Cremond continuava a presidir na sala destinada à exibição das porcelanas raras.

O inspector Sloan encontrou-a aí graças ao simples processo de seguir o caminho que o público percorria através da casa. Na sua opinião, assemelhava-se a entregar-se a um daqueles jogos baseados no princípio do labirinto. Cada vez que chegava a um sem saída - no caso vertente, uma porta fechada à chave ou um pesado cordão vermelho-, retrocedia dois passos e tomava outro rumo.

Finalmente, desembocou na sala das porcelanas, a qual apresentava um aspecto admirável ao clarão prolongado do crepúsculo do princípio do Verão - o que não se aplicava a Gertrude Cremond. Na verdade, era mais baixa e atarracada que o conde, embora conservasse os traços inconfundíveis dos Cremond.

Sobretudo, o nariz.

Não se recordava da última vez que vira Osborne Meredith vivo e salientou:

- Ele não se interessava pela porcelana. Pelo menos, como perito.

- Compreendo. Muito obrigado, Miss. - Sloan tratava algumas mulheres solteiras por "Miss" e outras por "minha senhora". Na realidade, existia uma distinção subtil entre ambas que ele preferia não traduzir por palavras e não tinha nada a ver com a idade.

- Mas se lhe puder ser útil de algum modo... - acrescentou ela.

- As porcelanas estão a seu cargo, suponho?

- Todas. E as flores. Lady Eleanor ajuda-me no jardim, quando está em casa. Em regra, ocupamo-nos disso às terças e sextas-feiras. Temos flores frescas em todas as salas franqueadas ao público, nos dias de visitas.

- Portanto, às sextas tem muito que fazer.

- Sempre.

- Recorda-se do que. fez na tarde da última?

- O Lustre do Grande Salão - informou, com prontidão. - Exigiu muito tempo. Por sinal, não consegui terminar o trabalho antes do chá e tive de o concluir mais tarde. Precisa de estar bem areado, para que o público o admire no seu melhor aspecto.

- Sem dúvida. E depois?

- Estive ocupada até quase à hora de jantar. Dillow voltou a pendurá-lo, mais tarde.

- Muito bem. - O inspector fez uma pausa. - Se lhe ocorrer algum pormenor fora do normal dessa sexta-feira, agradecia que me informasse.

- Com certeza.

- Lady Alice diz que viu o juiz Cremond, sexta à tarde. Subconscientemente, Sloan esperava obter uma breve risada e palavras de justificação das excentricidades de uma mulher idosa. Ao invés, porém, ouviu a interlocutora balbuciar:

- Meu Deus...-O semblante de Gertrude Cremond alterou-se com uma expressão apreensiva. - Isso é um prenúncio tenebroso.

- Então, Sloan, novidades?

O inspector achava-se, mais uma vez, em contacto telefónico com a Central da Polícia de Berebury.

- O Dr. Dabbe pôde finalmente examinar o corpo?

- Que apurou? - inquiriu o superintendente Leeyes.

- Fractura da base do crânio.

- Portanto, não foi suicídio.

- Não, senhor. Nem acidente. A não ser que alguém tornasse a colocar o capacete... digo, elmo, e varresse chão em volta.

- Por conseguinte, homicídio.

- Receio bem que sim. Foi atingido violentamente na nuca com um instrumento que podia ou não ser contundente.

- No fundo, acho que devíamos contar com o tradicional, em Ornum.

- Sim, senhor. Quanto ao objecto utilizado...

- Se se refere à arma, pode dizê-lo abertamente.

- As possibilidades de escolha são muitas e variadas, nesse capítulo.

- Sim?

- Nada menos que cento e setenta e sete, sem contar com os dois pequenos canhões à entrada.

- Julgo que podemos eliminar os canhões da lista, não concorda?

- Decerto.

- Que espécie de armas há... ao alcance da mão? Sloan respirou fundo e informou:

- Aquilo a que se pode chamar uma ampla variedade. Tudo de uma facha de armas a uma partasana.

- Uma quê?

- Partasana. De aço azulado. - Hesitou, consciente de que a revelação de informações ao superintendente podia tornar-se por vezes difícil. - É uma espécie de alabarda.

- Ah, sim? - grunhiu Leeyes. Os únicos Resistentes que ele conhecia eram os seus inimigos na Comissão de Vigilância (1). (Na realidade, o único lugar em que havia um Movimento de Resistência.) - Depreendo que uma partasana e uma alabarda são a mesma coisa?

- Não, senhor... ou melhor, mais ou menos.

- Nesse caso, parece-me conveniente averiguar com qual delas mataram o homem.

 

(1) A confusão do superintendente reside no facto de -partisan significar partasana, mas também Resistente (membro da Resistência). (N. do T.)

 

- Sim, senhor. -Sloan aclarou a voz. - crosby está neste momento a consultar o catálogo...

- Catálogo? Pretende, porventura, procurar o assassino no Who's Who ou outra publicação similar qualquer?

- Não, senhor-replicou, pacientemente. - O vigário Walter Ames, autoridade em armas e armaduras, elaborou um catálogo e...

- Não me diga!

- E encarreguei Crosby de o consultar.

- Compreendo.

- O pior é que a família tem sido armígera...

- Tem sido quê?

- Armígera.

- Onde foi desencantar esse termo?

- O médico empregou-o.

- Isso não quer dizer que você também o deva fazer - advertiu o superintendente, com uma ponta de severidade.

- Pertence à heráldica e não à medicina. Significa que os Ornum estão autorizados a possuir armas desde longa data. Mais ou menos como os polícias de giro, que podem usar bastões.

A imagem não se podia considerar das mais felizes, e as consequências surgiram imediatamente.

- Que têm os bastões a ver com o assunto?

- São armas, por assim dizer, que os polícias estão autorizados a usar. Analogamente, os Ornum podiam andar armados, nos velhos tempos. É por isso que há tantos exemplares no armeiro, além de que o décimo segundo conde era um coleccionador ferrenho.

- Tenho a vaga impressão (na verdade, não é tão vaga como isso] de que não se deve preocupar com esse tipo de armamento. Que outros termos difíceis empregou Dabbe?

- Disse que a vítima devia estar morta há cerca de quarenta e oito horas.

- Sexta-feira.

- Sim, senhor.

- Suponho que ninguém o viu vivo no sábado? - aventurou Leeyes, que tinha tão pouca fé nos médicos como em qualquer outra opinião considerada.

- Que eu saiba, não - redarguiu Sloan, prudentemente. - A última vez parece ter sido na sexta-feira, há hora do chá.

- Há quanto tempo estava na armadura?

- O Dr. Dabbe não pôde traçar uma conclusão definitiva, mas pensa que não o podiam colocar antes de estabelecido o rigor mortis.

- Nesse caso, o corpo devia estar oculto algures.

- Ou talvez o deixassem onde foi morto.

- Onde foi?

- Não sei, senhor. Por enquanto. A casa é enorme.

- Suponho que não há um aposento para cada dia do ano. - O superintendente julgou oportuno tornar a manifestar o seu sarcasmo.

- Não é bem isso, mas...

- Mas ainda não se familiarizou com a topografia, hem? Sloan reflectiu que era uma maneira de pôr a questão.

Não correspondia exactamente à sua, mas Leeyes não admitia argumentações.

Assim, em vez de argumentar, o inspector declarou em tom formal:

- Já interroguei alguns ocupantes da casa^e preveni-os de que tornaria a procurá-los mais tarde. - Fez uma pausa, todavia o superintendente limitou-se a emitir um grunhido. - Por outro lado, mandei proceder a diligências acerca do actual paradeiro da irmã da vítima e tento determinar quem viu Meredith vivo pela última vez.

- Se apurar quem foi o penúltimo a vê-lo, já não é mau, à falta de melhor.

- Sim, senhor.

- Quanto aos ocupantes da casa...

- Os Ornum e o pessoal doméstico.

- Pois. Por conseguinte, o conde...

- A esposa, a prima, duas tias de parte do pai, o filho e a filha, o sobrinho e respectiva esposa.

- Ah! A família alargada. - Leeyes lera, outrora, um livro sobre sociologia e julgava que ficara a dominar aquela ardilosa disciplina.

- Perdão?

- Não faça isso, É apenas uma expressão técnica.

- Há mais um sobrinho - esclareceu Sloan.

- Sim?

- Um tal William Murton.

- Ao menos não é um Ornum, para variar.

- A mãe era. Casou com um lacaio.

- Casou com quem? - O superintendente, que lidava diariamente com casos de morte súbita, roubo, acidentes de viação e, de um modo geral, observava a faceta menos agradável da natureza humana, não se sentia chocado com facilidade, mas havia certas coisas...

- Fugiu de casa com um lacaio - repetiu o inspector. - William Murton, o sobrinho do conde, é o produto da união.

- E que papel desempenha no meio de tudo isto?

- Não faço ideia. Por enquanto. Tem um chalé na aldeia de Ornum, que utiliza... sobretudo nos fins-de-semana. No resto do tempo, vive em Londres. Creio que pinta.

Leeyes não ficou muito comprazido com esta última informação.

- Além disso - continuou Sloan-, temos o administrador do conde, um fulano chamado Charles Purvis. Mora numa pequena casa no Parque e fica perturbado sempre que olha para a jovem Lady Eleanor.

- Ah, é dessas?

- Não, senhor, não é - retrucou com firmeza. - Há ainda o pessoal doméstico.

- Leal até à medula, não?

- Bem...

- Acima de qualquer suspeita?

Não era precisamente a expressão que o inspector tencionava empregar.

- Então, fidedigna até à raiz - persistiu Leeyes, que lera muitos romances de capa e espada, na juventude.

- Não exactamente...

- Estão todos na casa desde a infância? - volveu, reconhecendo que se lhe esgotavam as frases feitas associadas aos servidores das grandes famílias.

- Não, senhor. Apenas a cozinheira. Foi para lá como ajudanta de cozinha aos doze anos e ascendeu gradualmente à posição que agora ocupa. A governanta entrou ao serviço há dois e o mordomo ainda menos. Dezoito meses, salvo erro. A outra rapariga... não sei como lhe devo chamar...

- Pode chamar-lhe pau para toda a obra.

- Já completou três anos na casa. Isto quanto ao pessoal interno. No que se refere ao externo, há dois homens e um rapaz que cuidam do Parque e jardins, um dos quais, Albert Hackle, aparece nos dias de visitas para mostrar as masmorras.

- Talvez não seja má ideia interrogá-los.

Sloan prometeu envidar os melhores esforços nesse sentido e desligou.

A seguir, interessava-lhe descobrir a área da casa onde Osborne Meredith costumava trabalhar. A biblioteca e os arquivos.

Quando se afastava do telefone, a primeira pessoa que se lhe deparou foi Lorde Henry, ao qual pediu que o conduzisse àqueles aposentos.

Não tardou a arrepender-se de só agora os visitar.

A biblioteca encontrava-se aparentemente em perfeita ordem.

Quanto aos arquivos, pareciam ter sido devastados por um furacão.

 

O inspector Sloan não permaneceu muito tempo nos arquivos.

Apenas o suficiente para se certificar de que a desarrumação não se devia a um estudioso excepcionalmente desleixado.

Do ponto em que se encontrava, podia observar que o cenário fora meticulosamente preparado. Havia folhas manuscritas espalhadas pelo chão e documentos de toda a espécie dispersos nos lugares mais variados, assim como uma volumosa arca aberta e o conteúdo distribuído por todos os lados.

- Ena, pai! - exclamou Lorde Henry, por cima do ombro de Sloan.

- Não avance mais - advertiu este último. - Primeiro, preciso de examinar a sala.

- Que desarrumação!

- Sem dúvida.

O olhar do inspector incidiu em todos os recantos e notou que o caos tinha todo o aspecto de ser. sistemático. Dava a impressão de que todas as gavetas haviam sido abertas e todos os documentos esquadrinhados. Longos rolos de papel cobriam todas as superfícies e, espalhados em cima de tudo, como confetis monstruosos, viam-se dezenas de cartões de ficheiros.

- Pobre Ossy - murmurou Lorde Henry. - Oxalá não chegasse a ver isto, pois nunca conheci um homem mais metódico.

- Aqueles cartões...

- Todas as escrituras e outra documentação foram registadas e catalogadas. Levou anos a consegui-lo.

- A porta costumava estar fechada à chave?

- Não. Esta parte da casa encontra-se vedada ao público. - Continuava a contemplar a sala o melhor possível, por detrás de Sloan. - Há, no entanto, um pormenor curioso.

- Qual?

- As arcas que contêm os documentos estão...

- Estão, quê?

- Fechadas à chave.

- Quem guarda as chaves? - perguntou o inspector, automaticamente.

- Meu pai e Ossy.

Anotou o facto mentalmente. O conteúdo das algibeiras da vítima seria inventariado pela Polícia, oportunamente. De momento, achavam-se inacessíveis no interior de uma armadura.

Entretanto, Lorde Henry enrugava a fronte e acrescentava:

- Ossy nunca as deixaria abertas ou sequer com as chaves na fechadura. São demasiado importantes, para que cometesse semelhante imprudência.

- Talvez não tivesse qualquer alternativa.

- Sim, claro. Já não me lembrava. - O seu olhar não parava de esquadrinhar a sala. - Há outra coisa extraordinária.

- O quê?

- Toda esta confusão...

- Mas sem estragos.

As palavras de Sloan correspondiam à verdade. Apesar de imperar um caos impressionante, nenhum dos documentos parecia rasgado ou sequer maltratado.

- Dá a impressão de que só queriam bisbilhotar - comentou Lorde Henry.

- Estes documentos devem ter valor.

- Para um antiquário, talvez. Mas não um valor intrínseco, como os quadros, os livros ou as porcelanas.

- Nota a falta de alguma coisa?

- É uma pergunta a que só Ossy poderia responder.

- E impossibilitaram-no de o fazer.

- Exacto. - Fez uma pausa, com ar pensativo. - De qualquer modo, mesmo que estivesse aqui connosco, necessitaria de muito tempo para arrumar tudo, embora suponhamos que não se registaram estragos. Meses. Talvez anos.

- É possível que estabelecessem esta desordem, porque de contrário a sala poderia fornecer-nos algum indício importante.

- Mas o quê? - articulou Lorde Henry, contemplando os documentos dispersos com uma expressão de perplexidade.

Sloan decidiu para consigo que a mensagem transmitida pela papelada, se porventura existia, teria de ficar para segundas núpcias.

Concentrou a atenção no chão e verificou que não havia vestígios de sangue imediatamente visíveis. Tudo indicava que Osborne Meredith não fora morto ali. E o causador do caos tomara a precaução de não pisar qualquer dos documentos dispersos.

Ou pisara?

Agachou-se e quase encostou a cabeça ao sobrado. Com efeito, havia uma marca qualquer numa folha de papel.

Uma marca de salto.

Tão pequena e rectangular, que devia pertencer a um sapato de mulher.

Crosby perguntava o nome do conde a Charles Purvis.

Embora desconhecesse o facto, tratava-se de uma diligência que, à semelhança do casamento, não se podia encarar de ânimo leve.

- É para o coroner - explicou. - Preciso de saber o nome completo do dono da casa onde se presume que a vítima encontrou a morte.

- O nome completo? - repetiu o administrador, com uma réstia de incredulidade.

- O nome completo.

- Henry. O filho mais velho chama-se sempre Henry. Crosby começou a escrever.

- Augustus - continuou Purvis. Em homenagem ao duque da Cumberlândia... ou seria do general romano?

Crosby inscreveu o novo nome.

- Rudolfo.

- Rudolfo?

- O décimo conde foi investido com uma Ordem estrangeira. Era embaixador inglês num período diplomaticamente difícil e saiu-se da missão a contento. Na realidade, salvou-a, por assim dizer. Atribuiu ao filho o nome do monarca corrente e conservou-o sempre.

- Compreendo - proferiu o detective, secamente.- Só esses?

- De modo algum! - retorquiu Purvis, empertigando-se. - Também se chama Cremond.

- Isso não é um apelido?

- Também.

- Também, quê?

- Também, além de nome de baptismo.

Crosby não entendia o que ouvia e não hesitou em declará-lo.

- Duas vezes.

- Quer dizer que foi baptizado Cremond, à parte ser também o seu apelido?

- Precisamente.

- Cremond e Cremond? - inquiriu, com uma expressão de dúvida.

O administrador tossiu discretamente e explicou:

- Isso data de meados do século dezoito, quando... Mas Crosby não lhe prestava atenção.

- William Edward Crosby Crosby - pronunciou a meia-voz, para verificar como soava.

- Perdão?

Tornou a concentrar-se no bloco de apontamentos e leu:

- Henry Augustus Rudolfo Cremond Cremond?

- Exacto - confirmou Purvis. - Décimo terceiro conde Ornum de Ornum, do condado de Calleshire. Barão Cremond de Petering...

O detective William Edward Crosby, de Hillview Terrace, 24, Berebury, anunciou com dignidade impressionante:

- O impresso não tem espaço que chegue para nomes quilométricos.

Sloan selou metodicamente a porta dos arquivos e entrou na biblioteca ao lado, uma sala sem dúvida admirável.

Dividia-se em seis pequenos compartimentos, todos repletos de livros - três em cada lado do centro. Os da direita terminavam junto de uma janela, com um assento apropriado, sobranceira ao parque. Os da esquerda consistiam inteiramente em estantes, com uma pequena mesa no meio. Na extremidade oposta à entrada encontrava-se um busto de Lorde Henry.

- O meu tetravô - murmurou Lorde Henry.

Sloan desviou fugazmente o olhar para o companheiro e de novo para o busto e não notou qualquer diferença importante entre ambos.

- Exército - acrescentou o outro, à guisa de explicação. - Era demasiado jovem para Waterloo e demasiado velho para a Crimeia.

O inspector moveu-se para diante. Se não fosse o modelo do colarinho, o busto passaria perfeitamente pelo de Lorde Henry. Com efeito, tratava-se de uma réplica quase exacta.

- Suponho que Mr. Meredith também trabalhava aqui?

- Passava quase todo o seu tempo entre a biblioteca e os arquivos, embora não descurasse os quadros.

- Se tivesse estado a trabalhar na sexta-feira, que espécie de indícios deveríamos encontrar?

- Nenhuma - declarou Lorde Henry, sem hesitar.- Não era desse género de estudiosos. Quando deixava de necessitar um livro, voltava a colocá-lo no seu lugar.

Sloan não estava surpreendido. O pouco que observara do corpo que emergia da crisálida da armadura bastara-lhe para concluir que Meredith era um homem meticuloso.

- Podia mostrar-se descuidado com tudo o resto - elucidou Lorde Henry-, mas por nada deste mundo deixaria uma estante desarrumada.

Com efeito, achava-se tudo numa ordem irrepreensível. Ao fundo, junto da porta, um pequeno maço de papéis em cima da mesa constituía o único testemunho de que a sala era utilizada. Os dois primeiros compartimentos pareciam apresentar um aspecto normal, todavia Sloan deteve-se diante do terceiro.

Um observador comum, sem o olhar treinado, provavelmente não se aperceberia de nada. Mas ele apercebeu-se.

O que detectou achava-se na lombada do Volume XXIV de As Transacções da Sociedade de Calleshire.

Sangue.

Fora, pois, ali, com toda a probabilidade, que o bibliotecário e arquivista da família Ornum encontrara a morte.

O inspector contornou cautelosamente a pequena mesa e mediu algumas distâncias com a vista. Os fotógrafos teriam de voltar, com todo o equipamento. Entretanto...

Segundo uma conjectura preliminar, a vítima devia sentar-se do lado interior da mesa que se prolongava pelo compartimento e fora atingido pelas costas - como, aliás, o patologista já deduzira - de um ponto mais elevado. A altura do livro manchado de sangue confirmava esta hipótese.

- Foi aqui? - perguntou Lorde Henry, aclarando a voz.

- Penso que sim.

Pouco ou nada mais havia que apontasse naquela direcção. A mesa podia ter estado manchada de sangue e sido limpa. Também existia a possibilidade de haver algumas gotas no chão, mas a carpeta era vermelha, o que não facilitaria as pesquisas. E qualquer alteração reveladora na posição da cadeira ou mesa fora rectificada oportunamente.

- Qual é o esquema da limpeza desta sala?

- Lamento, mas isso não pertence ao meu departamento. Dillow é que deve saber. - Muito bem. - Sloan reflectiu que não lhe desagradaria conversar um pouco mais com o mordomo. - Onde o posso encontrar?

- É muito simples. - Lorde Henry cruzou a biblioteca e puxou um cordão verde junto da parede. - Virá ele ao nosso encontro.

- Obrigado. - Sloan aclarou a voz por seu turno. - Sei que se magoou...

- Foi uma estupidez. - A mão ligada de Lorde Henry pendia ao lado do corpo como a pata inerte de um cachorro. - Cortei-me quando mexia no carro, sexta-feira de manhã.

- Estava só?

- Receio bem que sim, inspector. Sou o único que se interessa por carros, nesta casa. De facto, foi uma imprevidência. Estendi a mão entre a ventoinha e o motor.

- Compreendo...

- Queria suprimir uma vibração incomodativa.

- Chamou, milorde? - perguntou o mordomo, que acabava de assomar à porta.

- Chamei, Dillow. O inspector quer falar consigo.

O recém-chegado, profissionalmente inexpressivo, virou-se para Sloan, que disse:

- Se bem entendi as suas declarações anteriores, na sexta-feira à tarde trouxe o chá a Mr. Meredith, aqui.

- Exacto. Às quatro horas e vim recolher a bandeja vazia pouco antes das cinco.

- Viu-o, na altura?

- Na segunda vez, não. A bandeja estava junto da porta e limitei-me a levá-la. - Dillow hesitou.- Na verdade, supus que tinha ido para casa, porque o vigário perguntou por ele, cerca de meia hora depois, dizendo que não o encontrara nos arquivos. Tomei a liberdade de lhe comunicar que Mr. Meredith devia ter ido para casa, apesar de agora reconhecer que...

- Com certeza.- Sloan cortou o que parecia ser um desvio do assunto principal. - E depois?

- Depois?

- Quando voltou aqui?

- Ontem de manhã. Vim apenas para ver se a sala estava arrumada, embora Mr. Meredith fosse uma pessoa muito metódica.

- Havia necessidade de arrumar alguma coisa?

- Que me recorde, não.

- A quem compete velar pela arrumação disto?

- Eu tenho a obrigação de verificar se é necessária alguma coisa e Edith de executar o que for exigido.

- Edith?

- É a criada, mas... -Sim?

- Nos dias de visitas do público, concentramo-nos nas salas expostas.

- E quanto aos arquivos?

- Não entrei lá. Mr. Meredith gostava de se encarregar disso. É uma sala pequena e ele insistia em estar presente, sempre que havia necessidade de limpar o pó ou algo do género.

- Os arquivos virados do avesso? Cuidado, Dillow, que estás a entornar a sopa!

- Queira perdoar, milorde.

- Quem diabo pretenderia desarrumar aquilo, Henry? Não costuma entrar lá ninguém.

- Não faço a menor ideia - replicou o filho e herdeiro. - Mas a alguém esteve com esse trabalho. E não podes ir ver, porque o inspector selou a sala. E a biblioteca.

Naquela noite, a sala de jantar da Casa Ornum apresentava uma atmosfera pouco mais festiva que a do armeiro. O conde sentava-se a uma extremidade da mesa e a condessa no lado oposto. Em volta, dispunha-se o resto da família.

Com Dillow atento às operações.

William Murton, cuja convocação incluía de facto uma refeição, mostrou-se imediatamente interessado.

- Isso reveste-se de algum significado, nem? Ninguém se daria ao incómodo da revolver a papelada sem um motivo de peso.

-Eu, pelo menos, não o faria - declarou Henry.

- Mas que havia lá de importante? - quis saber Laura Cremond.

- Sei tanto como tu - redarguiu Henry. - Aliás, nunca percebi nada daqueles documentos arcaicos. Ainda por cima, em latim, na sua maioria. No entanto, admito que tivessem interesse para alguém.

- Para ti, por exemplo - salientou o pai, secamente.

- Por causa da tua herança.

- Acho que deviam ser importantes para mais alguém - opinou Miles Cremond, que secundava sempre os pontos de vista da esposa. - De contrário, não viravam tudo do avesso.

A prima Gertrude, que se podia considerar um bom garfo, interrompeu por segundos a mastigação persistente para inquirir:

- Isso quer dizer que agora ninguém pode provar que Harry não é o conde de Ornum?

Seguiu-se um breve, porém pesado silêncio.

O visado esmagou entre os dedos um pouco de miolo de pão, ao mesmo tempo que se perguntava porque seria que as mulheres glutonas não tinham papas na língua, quando, para variar, abriam a boca para falar.

- Pode ou não? - insistiu Gertrude.

Millicent, condessa de Ornum, tinha sempre artes de tornear uma pergunta embaraçosa.

- Pobre Mr. Meredith - proferiu tangencialmente -, mataram-no e destruíram-lhe o trabalho de anos...

- Ossy em Pélion - murmurou Lorde Henry, com cuja educação fora despendido muito dinheiro.

- Horrível - articulou a condessa.

- Ser morto por alguém conhecido...-observou a filha, a meia-voz.

- Não digas uma coisa dessas, Eleanor!

- A menos que aparecesse um desconhecido qualquer, que não gostou da cara dele e resolveu liquidá-lo.

- Mas a cara dele não tinha nada de censurável - objectou Millicent Ornum. - Era agradável, apesar das rugas. Ninguém antipatizaria com ele à primeira vista.

- Exactamente, mãe - apoiou Eleanor, com um suspiro.

- Portanto, não foi por causa da cara - concluiu William Murton.

- Então, foi por qualquer outra razão - deduziu Miles Cremond, com ares de quem acabava de efectuar uma descoberta importante.

- Exacto - disse Lorde Henry, com brandura. - É também a nossa opinião.

- Por conseguinte, se Ossy morreu e os documentos estão todos baralhados, ninguém pode provar nada.

- Uma dedução magistral, meu rapaz. Há, em todo o caso, um pequeno grão de areia na tua engrenagem?

- Qual?

- Quem matou Ossy?

- Sim, claro. - O rosto de Miles exibiu uma expressão de perplexidade.

- Não adianta fingir que não nos preocupa saber se Harry é o verdadeiro conde de Ornum. - Gertrude percorreu com o olhar os semblantes à sua volta. - Preocupa a todos. - Ergueu a mão no momento em que eclodiu um coro de protestos. - Preocupa - insistiu. - Henry acabará por se matar naquele seu carro sport. Cada vez pretende imprimir-lhe maior velocidade.

- Penso que exageras, prima Gertrude.

- Nessa eventualidade, o título iria para Miles, e não me digam que Laura não ficava contente.

- Francamente, Gertrude... - O rosto chupado da visada assumiu uma tonalidade rosada. - Não creio que as tuas palavras se possam considerar um modelo de bom gosto.

- O homicídio também não é.

- Sugeres que eu e o Miles matámos Meredith? Gertrude Cremond nunca recuava perante um ataque frontal, pois não fora em vão que alinhara a defesa central da equipa de hóquei e enfrentara a possante avançada-centro contrária.

- Não, mas chegaram atrasados para jantar, na sexta-feira.

- Isso tem todo o aspecto de uma insinuação.

- Uma simples observação - persistiu, imperturbável. - Porque apareceram tão tarde?

- Miles tinha ido dar uma volta e eu esperei por ele para descermos juntos.

- Foste dar uma volta, Miles?

- Hem? Ah, eu? Fui.

- Onde estiveste?

- Onde? Bem... no parque. Fiz um pouco de jogging. Queria manter a forma física para o jogo. Na cidade, é raro ter uma oportunidade dessas.

- Nunca faço - anunciou William Murton, observando com interesse os rostos corados em redor.

- Nunca fazes o quê? - perguntou Miles.

- Exercício físico - explicou o outro, com uma leve palmada no estômago. - Não me importo de engordar. Dá menos trabalho.

- Fazes mal em falar assim. - A prima Gertrude concentrou-se nele como se fosse uma adversária que surgira desmarcada para fuzilar as redes. - Sentias a falta do tio Harry mais do que qualquer de nós.

- É verdade.

- Podes não fazer exercício físico - acrescentou, implacável -, mas não hesitas em desenvolver esforços gigantescos, quando pretendes cravá-lo.

- Não nego. - William curvou-se numa leve reverência irónica. - No entanto, talvez te agrade saber que voltei uma nova folha no livro da minha existência. Os meus dias de... cravanço terminaram.

A revelação produziu um silêncio total, e o conde e o filho entreolharam-se.

- Falo a sério - volveu William. - Desta vez não te pedi nada, não é assim, tio?

- Por enquanto - replicou o interpelado, cautelosamente.

Todavia, a prima Gertrude nunca perdia um ensejo de se mostrar inexorável:

- Além disso, o juiz recomeçou a percorrer a casa. Ouvi dizer que a tia Alice o viu, sexta-feira à noite. Julgo desnecessário explicar o que isso significa.

Registou-se um coro imediato de Eleanor, Henry, Miles e William:

- Vai morrer alguém!

- Valha-te Deus, Miles! - exclamou Laura Cremond. voltando-se para o marido.

- Desculpa, querida, mas aprendi os responsos em criança.

- Mas agora és crescidinho.

- Tens razão, querida.

- Dá-me a impressão de que Laura não acredita que o facto de o juiz ser visto a vaguear pela casa signifique a morte iminente de alguém - disse Gertrude, em inflexão cáustica.

-Já morreu alguém - argumentou a outra.

- Ossy não conta - asseverou Gertrude. - Tem de ser um membro da família.

- É uma lenda antiga - comentou William Murton, que acrescentou com uma ponta de sarcasmo:-Não tens de te preocupar, Laura. A crença só se aplica aos parentes de sangue.

- Como os dois mochos pretos e o duque de Dorset em Zuleika Dobson - apressou-se Lorde Henry a explicar, enquanto Laura assumia uma expressão irritada.

- E a groselheira mirrada nas muralhas do castelo de Kilravock - acudiu Eleanor.

- E não menos verídico - tornou Laura Cremond.

- Deixa lá, prima Gerturde - aconselhou Henry, em tom conciliador. - Talvez seja uma das tias-avós. Já devem rondar os noventa anos e não hão-de viver eternamente.

- A propósito - proferiu Eleanor, subitamente. - Onde estão elas?

- Ofenderam-se - declarou o irmão.

- Porquê?

- A mãe confundiu o aparelho de audição da tia Maude com o pimenteiro, ontem à noite.

- Não me digas!

- É verdade. Pobre Maude... Pousou-o na mesa para ouvir melhor o que se dizia, e a mãe sacudiu-o sobre a sopa.

- Parece-se um pouco com um pimenteiro - murmurou Millicent, na defensiva.

Mas a prima Gertrude não terminara a sua actuação e, acalorada e ansiosa, perguntou:

- Ainda não se deram conta de que alguém que conhecemos matou o pobre Ossy? - Fez uma pausa no meio de um silêncio sepulcral. - Alguém daqui, da Casa Ornum, que talvez esteja sentado a esta mesa.

O conde de Ornum aclarou a voz e concedeu com gravidade:

- Vejo-me forçado a reconhecer que talvez tenhas razão.

- E tu, Gertrude? - contrapôs Laura Cremond, com uma expressão de desdém. - Não tens mais a perder do que qualquer de nós?

 

A manhã de segunda-feira surgiu com a sua inevitabilidade habitual.

- E, com ela, veio a notícia de que se registara um acidente de viação em Tappet's Cornér, na estrada de Berebury para Luston, na noite anterior, acontecimento que deixou o superintendente Leeyes pouco satisfeito.

- Uma amálgama horrorosa - gemeu, estendendo o relatório ao inspector Sloan.- Uma automobilista à qual nem um carrinho de bebé deviam confiar, um veículo comercial que não tinha nada que andar na estrada ao domingo e uma carrinha particular conduzida por uma velhota, com outra ao lado.

Sloan viu que, segundo o relatório, a última viatura mencionada tinha ao volante um homem com a mulher junto dele, mas compreendeu a intenção do superintendente. Exprimia-se no sentido figurado. No entanto, havia alguns números reais.

Duas pessoas tinham sido conduzidas ao hospital e três veículos à garagem suspeita.

- Se alguém da minha Divisão for envolvido nisto, vai haver burburinho do grande - prometeu Leeyes.

- Sim, senhor. - Sloan apontou para o relatório. - É a garagem mais próxima de Tappett's Corner.

- Bem sei.

- E a única que possui equipamento para rebocar uma carrinha.

- Também estou ao corrente disso, mas não serve para melhorar a situação.

- Pois não. E não servia.

Se havia algo de desagradável no assunto, as explicações não adiantariam nada.

- Quanto àquele outro problema... - Somente um verdadeiro polícia, zeloso da honra da Corporação, observaria semelhante ordem de prioridade. - Que apurou, até agora? Não podemos arrastar as investigações indefinidamente, como sabe.

- Bem, avançámos um pouco. - Sloan sabia que o superintendente não desejaria recorrer a investigadores estranhos, enquanto se mantivesse preocupado com os homens do inspector Harpe. - Creio que o crime ocorreu na biblioteca entre as quatro e cinco e meia da tarde de sexta-feira. - Fez uma pausa, porém o superior limitou-se a emitir um grunhido. - Foi visto vivo pela filha do conde, Lady Eleanor, pouco antes das quatro, e pelo mordomo, Díllow, logo a seguir.

- Mas às cinco e meia...

- Foi a hora a que o vigário, Walter Ames, chegou à Casa Ornum, em resposta a um recado...

- Um recado?

- ...um recado segundo o qual o seu amigo, Osborne Meredith, acabava de efectuar uma descoberta importante.

- O quê?!

- Exactamente.

- Que espécie de descoberta?

- Ainda não sabemos. A única coisa que apurámos é que Meredith telefonou para a casa do vigário durante a tarde e deixou recado à esposa deste no sentido de que o marido comparecesse na Casa Ornum, o mais depressa possível. - Deixou transcorrer uns segundos antes de acrescentar: - Creio que quando lá chegou Meredith já estava morto.

- Quer dizer que mais alguém se inteirou dessa descoberta?

- Julgo que sim. O telefone da Casa Ornum pode considerar-se mais ou menos público. Encontra-se no vestíbulo de entrada e qualquer pessoa podia ter ouvido.

- E alguém ouviu?

- Receio bem que sim. Leeyes voltou a grunhir e urgiu:

- Continue.

- Há manchas de sangue na extremidade mais afastada , da porta de um dos compartimentos da biblioteca e já as mandei analisar. É muito possível que o tivessem assassinado aí e só transferissem o corpo para o armeiro no momento oportuno.

- Sem que ninguém se apercebesse?

- O assassino tinha de se expor a esse risco. Segundo apurei, a biblioteca só era utilizada por Meredith e as manchas de sangue encontram-se na extremidade oposta à entrada, como referi. Aliás, o vigário procurou-o lá e pronunciou o seu nome, mas retirou-se quando não obteve resposta.

- Sim, o pobre homem já não podia ouvir.

- Depois, temos os muniments...

- Documentos conservados como provas de direitos ou privilégios - traduziu o superintendente.

- Obrigado, senhor. É o que eu pensava. Numa altura indeterminada depois das cinco e meia da tarde de sexta-feira, quando o vigário espreitou para os arquivos e não notou nada de anormal e antes de eu comparecer no local, ontem à tarde, alguém converteu tudo num pandemónio.

- Olá! - exclamou, arqueando as sobrancelhas.

- Exacto. A única coisa que sabemos acerca do autor da proeza é que calçava sapatos número trinta e seis, de senhora.

- Uma mulher, hem?

- Alguém que calçava sapatos de senhora - frisou Sloan. - Há três na Casa Ornum que calçam esse número: Laura Cremond, Gertrude Cremond e a governanta, Mrs. Morley. - Fez uma pausa. - É uma medida corrente.

- Por conseguinte, havia alguma coisa importante, nos arquivos... - ponderou Leeyes, movendo os dedos no queixo.

- Alguma coisa que alguém considerava importante - corrigiu o inspector, algo obliquamente.

- O móbil?

- É possível - admitiu, e referiu-se ao título ameaçado.

- Muito interessante.

- Se apurarmos que isso corresponde à verdade, há várias pessoas empenhadas na manutenção do status quo, mas...

- Mas quê?

- Essa descoberta já era conhecida há relativamente muito, na passada sexta-feira.

- Relativamente até que ponto?

- A família imediata e o administrador conheciam-na havia cerca de uma semana.

Os administradores não costumam ser merecedores de confiança - interrompeu o superintendente, didacticamente.

- Um conceito injusto - murmurou Sloan, cuja educação, embora modesta, fora impecável. - Por enquanto, não sei se este é ou não merecedor de confiança. De qualquer modo, se os Ornum e o administrador conheciam o facto há tanto tempo, não compreendo por que razão Meredith estava tão excitado na tarde de sexta-feira. No caso de se tratar da mesma descoberta, evidentemente.

- Quando se inteiraram os sobrinhos? - quis saber Leeyes, cuja teoria da relatividade se podia expor com maior simplicidade que a de Einstein.

Quanto mais próximo o grau de parentesco, maior a possibilidade de homicídio.

- Miles Cremond e a esposa foram informados quando chegaram para o fim-de-semana, quinta-feira.

- Para o fim-de-semana, na quinta-feira? - bradou, surpreendido, pois os fins-de-semana da Polícia principiavam no sábado ao meio-dia.

- Sim, senhor. Ele trabalha em Londres.

- Então, está explicado. Em quê?

- Numa companhia de navegação - informou Sloan, cautelosamente. - Suponho que exerce um cargo de chefia nominal.

- Não deve ter cabeça para os números.

- Creio que possui uma inteligência mediana. É a Pedes Line.

- Esses fulanos navegam em águas profundas. Toda a gente está ao corrente do facto.

- Sim, senhor.

- E o outro sobrinho, o artista?

- Não sei quando se inteirou. - Fez uma pausa. - É um pouco enigmático.

- Estou farto de rapazes complicados, Sloan.

- Ainda não compreendi bem o seu papel - admitiu o inspector. - Pode muito bem ser um dos tais... Não sei se me faço entender. Mandei indagar elementos mais pormenorizados sobre ambos os sobrinhos, em Londres.

- Óptimo. E a irmã da vítima? - prosseguiu Leeyes.- Já apareceu?

- Continua a não haver nem vestígios dela. A chefe dos Correios crê que foi visitar uma amiga, mas não tem a certeza. Crosby inspeccionou as imediações da casa, para se certificar de que não está pendurada numa árvore ou algo do género, no entanto custa-me solicitar um mandado de busca para entrar e examinar os aposentos.

O grunhido do superintendente indicou que Sloan não o obteria, mesmo que o solicitasse.

- Que tenciona fazer a seguir? Não posso manter as altas patentes alheias ao assunto eternamente.

- Aguardo o relatório da autópsia, para voltar à Casa Ornum.

- Dabbe deve estar pior que uma barata - observou, com um sorriso sardónico. - Estragaram-lhe o domingo.

O detective Crosby encontrava-se no gabinete de Sloan debruçado sobre o texto em corpo miúdo do Nobiliário.

- Acaba de chegar uma mensagem de Londres.

- Acerca dos sobrinhos?

- Não, senhor. De uma firma de solicitadores denominada Oaten, Oaten and Cossington, que representa o conde de Ornum. O sócio mais antigo vem a caminho.

O inspector não se surpreendeu e, apontando para o livro, perguntou:

- Já determinou a sucessão?

- Sim, senhor. Sabia que, outrora, todos eram condes ou plebeus? - Tudo indicava que Crosby começara mesmo pelo princípo. - Dividiam-se apenas nesses dois grupos.

- As pessoas sempre se dividiram em dois grupos, e quanto mais depressa a noção se lhe meter na cabeça melhor.

Sloan reflectiu que, no liceu, ouvira falar de patrícios e plebeus e, mais tarde, de proletários e... proletários e... De momento, não se recordava da designação dos outros, embora não tivesse esquecido que se sentira entusiasmado com o assunto. Na verdade, afigurara-se-lhe muito importante. Agora que amadurecera, sabia que o agrupamento se revelava mais simples do que então lhe parecera.

Eu Próprio contra os Restantes.

- E - acrescentou Crosby, com uma expressão de incredulidade - faziam os homens condes, quando não os queriam tornar marqueses ou duques.

- Não me diga! A posição social erguia a hedionda cabeça, mais uma vez.

- Perdão?

- Não é nada. Os Ornum...

- Sim, senhor. Encontra-se tudo aqui. - Fez uma pausa. - Tudo.

- Tudo?

- Com todos os pormenores.

Sloan olhou o pesado volume com respeito, consciente de que não costumava ser o caso em obras daquela natureza.

- Muito bem.

- Hum!... - Crosby baixou os olhos para a página e leu em voz alta: - "A sucessão é limitada aos herdeiros da parte masculina."

- Curioso - articulou o inspector, gravemente.

- Também fala dos Senhores da criação.

- Tem a certeza?

- Senhores da primeira criação.

- Suponho que Ornum não é um desses? - observou, lembrando-se da torre de menagem normanda e do Grande Salão tudoriano.

- Não, senhor. Pelo menos, não creio. Henrique VIII concedeu-lhes mais algumas terras, após uma batalha qualquer...

- Inglaterra, Pátria e Pilhagem - articulou entre dentes.

- ...e parece que foram Conservadores do Facho Hereditário da Coroa pelo condado de Calleshire desde o reinado de Isabel I.

- Uma informação muito útil. Mas quanto à actualidade?

- Quem herda o título e tudo o resto é Lorde Henry.

- E se lhe acontecer alguma coisa?

- Miles Cremond, filho mais velho do irmão mais novo do décimo segundo conde, figura a seguir na sucessão.

- É o que eu calculava.

- Não consigo encontrar Gertrude Cremond...

- Está muito afastada da linha principal.

- ...mas as duas velhotas são mencionadas. Filhas do décimo primeiro conde.

- Isso representa recuar um pouco.

- E descobri William Murton - anunciou Crosby, pousando o dedo em determinada linha. - Pelo menos, é o que parece. Diz aqui, depois de Lady Elizabeth... casar com W. Murton de Ornum, "um f.".

- É o que acontece a quem foge de casa com um lacaio - declarou Sloan, solenemente. - Temos de voltar a conversar com William Murton, em breve. Agora, quanto a essa história de o conde não ser o conde...

- Não vem cá nada. - Crosby deu uma palmada seca no livro... - Há uma referência ao seu escudo...

- Nenhuma mácula? - perguntou, inexpressivo.

- Por enquanto, não - admitiu o detective, sorrindo. - Segue-se um longo arrazoado sobre o brasão, mas não me parece que nos interesse.

- Nunca se sabe. Os Borden (1) tinham um leão, de

 

(1) Apelido de uma assassina célebre inglesa, Lizzie Borden. (N. do T.)

 

aspecto feroz, no seu brasão, que empunhava uma acha de armas. Deixe-me espreitar...

Se subsistiam dúvidas acerca do direito ao título de conde de Ornum, não havia nenhuma quanto à ascendência de Lorde Henry Cremond.

Observados juntos, o conde e o filho eram ridiculamente parecidos. Sentado entre o pai e a mãe, Lorde Henry serviria perfeitamente para ilustrar um compêndio de Mendel sobre as características hereditárias. Tinha a tez dela, a cor do cabelo dele, o nariz dos Cremond, a atitude vaga da mãe e os maneirísmos do pai.

Lady Eleanor, a filha, também presente, tinha uma aparência menos nitidamente Cremond. Mais firme que a mãe, menos pessimista que o pai e mais prática que ambos, munira-se gradualmente de uma dose substancial de senso comum como mera reacção a uma mãe tão distraite como a sua.

Encontravam-se os quatro na sala de estar dos Apartamentos Privados e tinham todo o aspecto de um tableau vivant de uma família.

Até que o conde falou:

- Não estou a gostar disto. É pouco próprio de William não lutar com falta de dinheiro.

- Pois não - concordou Lorde Henry.

- Estava sempre em dificuldades financeiras.

- Exacto.

- E supus que continuaria sempre assim.

- Com certeza.

- Na realidade, não existe razão nenhuma para que a situação se tenha alterado, - O conde cofiou o bigode e rectificou: - Não existe razão nenhuma do nosso conhecimento para que a situação se tenha alterado.

- Decerto que não.

- O pai era a mesma coisa. Sempre sem cheta.

- Desta vez, Henry (imitou-se a aquiescer com um movimento de cabeça.

- O meu pai tinha de sustentar o dele, de contrário a minha irmã morreria de fome. Ora, não podia consentir que uma coisa dessas acontecesse.

- Pois não.

- E tu, meu rapaz, terás provavelmente de lhe sustentar os filhos.

- Com certeza.

- Também não se podem deixar morrer de fome. Pertencem à nossa família.

- Claro que não.

- Mas o William ainda não casou - lembrou a condessa.

- Já devia ter casado - retorquiu o marido, algo enigmaticamente. Apercebendo-se da expressão de perplexidade dela, acrescentou: - Mais de uma vez.

- Que queres dizer, Harry?

- É um aventureiro de alcova - salientou, acalorado.- E não dispõe de dinheiro para financiar as consequências das suas actividades.

- Mas não tem filhos...

- As mães deles são de opinião diferente.

- Não é possível!

- Constou-me que se registaram várias tentativas infrutíferas para o arrastar ao altar - afirmou, secamente.

- Queres dizer?... - O rosto de Millicent Ornum assumiu um leve ar de compreensão.

- Exacto. Paternidade e sustento.

- Francamente, Harry, acho que isso...

- Não adianta escandalizarmo-nos - interpôs Eleanor, deixando transparecer a sua veia realista. - De resto, essas coisas são correntes no nosso ramo da família.

- Eleanor!

- É verdade. Não era sem razão que chamavam Betty

Leviana à tia Elizabeth.

Estas palavras foram excessivas para a capacidade de resistência da condessa, que recorreu ao marido.

- Harry, julgo desnecessário recordar-te que o teu pai nunca permitiu que o nome dessa mulher fosse mencionado nesta casa.

- Tens toda a razão, querida. - A mão do conde procurou consolação nas guias do bigode. - Talvez fosse mais sagaz do que supomos. Com efeito, o facto parece conduzir a complicações. Achas que promulgue uma interdição similar?

Todavia, a esposa já se concentrava numa imputação anterior.

- Eleanor... -Sim, mãe?

- A mãe de William não pertencia ao nosso ramo da família.

- Como assim? - Fazia parte do ramo de teu pai, o que é diferente.

- Pois sim, mãe - aquiesceu Eleanor, obedientemente. Como o facto se aplicava a todas as famílias, nobres ou não, absteve-se de argumentar.

- Na verdade, é pouco próprio de Henry apresentar-se em Ornum sem estar na penúria. - Lorde Henry tratou de mudar de assunto com a prontidão ditada por longa experiência.

- Não estou a gostar disto - reiterou o conde. - Não estou a gostar mesmo nada.

- Laura e Gertrude não morrem positivamente de amores uma pela outra, hem? - observou o filho, que, na falta de um bigode para cofiar, movia os dedos sobre a borla de uma almofada do sofá.

- Nunca se deram bem - volveu o conde. - Gertrude é uma mulher de trato difícil.

- Laura também não se pode considerar um modelo de pacifismo -• interveio Eleanor.

- Pois não - concordou o irmão, que aclarou a voz antes de acrescentar: - Ela e Miles chegaram atrasados para jantar, na sexta-feira.

- Eu reparei - disse o -conde, com uma inflexão grave.

- E ela foi-se deitar invulgarmente cedo.

- Também não me passou despercebido. - Parecia subitamente dominado por profunda melancolia.

- Eles vão ficar... refiro-me a Miles e Laura- lembrou a condessa-, por causa da morte de Meredíth, e Dillow não pode gozar o seu dia de folga devido à vinda dos repórteres.

Seguiu-se um momento de pesado silêncio e Eleanor aventurou:

- Há mais uma coisa, suponho.

- O quê? - inquiriu o irmão, com brusquidão.

- Uma coisa em que ninguém parece ter pensado. Estamos convencidos de que o pobre Ossy foi assassinado em virtude de algo que descobriu.

- Sim...

- O que ninguém sabe é porque estiveram com o trabalho de o meter numa armadura.

- Para que não o encontrassem - disse Henry, sem hesitar. - Como a irmã está ausente, só dariam pela sua falta daqui a muito tempo.

- É exactamente ao que me refiro - volveu Eleanor.- Talvez não o encontrassem nos dias mais próximos.

- E daí?

- A demora na descoberta do corpo era importante.

Não é verdade, pai?

- Receio bem que sim - aquiesceu o conde, com um suspiro.

- Porquê? - perguntou Henry, imediatamente.

- Não sei.

De vez em quando, Millicent Cremond participava na conversa com um comentário indicativo de que se achava atenta.

Foi o que se verificou naquele momento.

- Deve ser por causa de alguma coisa que ainda não aconteceu - proferiu, com ar de satisfação.

 

O inspector Sloan telefonou a Charles Purvis, logo que lhe foi possível.

- Prepare-se para receber visitas, durante o dia - advertiu.

- Se se refere aos repórteres - replicou o administrador-, já cá estão.

- Não, ao vigário. Quero que esteja presente, quando voltarmos a entrar no armeiro, juntamente com alguns técnicos do nosso laboratório, que vão examinar a biblioteca e os arquivos, entre outras coisas.

- Muito bem, inspector. Providenciarei para que os deixem entrar.

- E o arquivista do condado...

- Ah!...

- Com autorização do conde, bem entendido. Pedimos-lhe que se deslocasse do Departamento de Registos de Calleford, para examinar os documentos.

- Não faltará - profetizou Purvis, jovialmente. - Com a velocidade de uma bala.

- Como assim?

- Há anos que desejava examiná-los, mas Meredith opunha-se.

- Sim? - Sloan arquivou a nova informação num recanto do espírito. - Também pretendo conversar com os quatro guias habituais. Os que acompanharam os visitantes deste fim-de-semana.

O administrador prometeu ocupar-se de tudo imediatamente e perguntou:

- Por volta das onze, está bem?

O inspector assegurou-lhe que sim e cortou a ligação.

Em seguida, o detective Crosby conduziu-o pela segunda vez a Ornum, mas agora detiveram-se primeiro na aldeia.

Os Chalés Cremond consistiam numa sequência de quatro casas de aspecto irrepreensível, com as iniciais "H.C." esculpidas numa pequena placa por cima da data 1822. Conquanto não fosse de modo algum cedo quando bateram à porta do número quatro, William Murton ainda não se barbeara.

- Bom dia, meus senhores, e bem-vindos a este humilde domicílio. - O termo "humilde" achava-se impregnado de ironia inconfundível. - Calculava que apareceriam, mais cedo ou mais tarde - acrescentou, indicando-lhes que entrassem.

As dependências do piso térreo tinham sido fundidas numa única, decorada num estilo mais próximo da cidade que do campo. Havia um quadro pendurado acima da lareira que Sloan julgou ser um exemplo da pintura abstracta. Via-se um olho enorme a um canto da tela e o resto consistia numa mistura de cor e traços impossíveis de identificar.

Quando o viu, ao entrar, Crosby encheu os pulmões de ar ruidosamente, mas não emitiu qualquer comentário.

- É de sua autoria, Mr. Murton? - perguntou Sloan, apontando apressadamente, antes que o companheiro se lembrasse de exprimir a opinião.

O interpelado assentiu com um movimento de cabeça.

- A minha avó (do lado paterno, julgo desnecessário salientar) manifestava predilecção pelos textos nas paredes e tinha este pendurado à cabeceira da cama.

- Este? - articulou o inspector, em voz débil.

- Bem, a mesma coisa por palavras. Eu prefiro simplesmente exprimir a ideia em pintura.

- Compreendo - concedeu, prudentemente, lançando nova olhadela ao quadro.

- Suponho que a reconheceu? - tornou Murton, com visível ironia.

Sloan, que só conhecia o que lhe desagradava da arte moderna, confessou:

- Receio bem que não.

- É uma reacção contra toda a trapalhada tradicional lá da casa.

- Estou a ver - admitiu, cogitando que se a tela constítuía um exemplo representativo, tratava-se de uma reacção a todos os títulos violenta.

-E acolá...

Murton apontou para uma espécie de consola excessivamente moderna na parede com a forma de uma mulher desnuda, que servia de suporte a um candeeiro.

Crosby arregalou os olhos e os lábios começaram a mover-se em silêncio.

- ... acolá-prosseguiu o dono da casa-, a minha avó tinha pendurado um rectângulo de loiça com os dizeres "Não existe lugar algum como o lar", circundado por um bordado artístico.

- Sim?

- Ao lado de rosas artificiais.

Sloan, cujo passatempo consistia mais em cultivar rosas do que mulheres, em particular desnudas, comentou:

- Devia ter um aspecto muito agradável.

- Sim, para quem aprecia os requintes vitorianos.

- Naturalmente. - Aclarou a voz antes de observar: - Penso que esta casa é o seu lar?

- Aí está uma boa pergunta, inspector.- Os olhos de Murton brilhavam com uma expressão maliciosa. - A situação é a seguinte. Em virtude da minha prolongada residência aqui, sou um locatário privilegiado...

O que devia causar fortes preocupações em determinados círculos, na opinião íntima de Sloan.

-... pelo que representaria uma insensatez de minha parte abandoná-la, não concorda?

- Compreendo o seu ponto de vista.

- Por conseguinte, não a abandono. No fundo - acrescentou Murton, com ar grave -, a minha família tem vivido aqui desde longa data.

- Com certeza.

- E não há nada de censurável em ser um aldeão. Meu pai também era.

- Utiliza, pois, este chalé para residência de fim-de-semana.

- Acertou em cheio, inspector.

- Vem todas as semanas?

- Todas, exactamente, não. Digamos, de vez em quando.

- Porque escolheu esta em especial?

- O espírito impeliu-me nesse sentido - declarou, com um encolher dos ombros surpreendentemente largos. - Não vim para liquidar o pobre Ossy, se é isso que tem em mente.

- Mas conhecia-o, claro.

- Sem dúvida. Crescemos todos juntos. Como cachorros. Os pais de Miles deslocavam-se ao estrangeiro com frequência e os meus não me podiam educar apropriadamente, pelo que... - Interrompeu-se, com um trejeito de reminiscências desagradáveis.

- Pelo que você recebeu o pior de dois mundos - concluiu Sloan.

- Precisamente. - O outro olhou-o com curiosidade.- Fui criado meio cavalheiro. Em criança, uma pessoa julga que o mundo é igual para todos. Só mais tarde descobre que os Henry herdam tudo.

- Desencorajador - aquiesceu Sloan.

- Em especial, quando se é mais velho do que ele e verifica que o pai possuía tudo. E tudo o que o seu próprio pai possuía não passava disto.

- É uma grande verdade.

- Foi o que me tornou um parasita.

- Perdão?

- Um parasita, inspector. Não ganho a vida, como a minha prima Gertrude, a limpar lustres eternamente, nem permaneço na periferia dos acontecimentos, como Laura, na esperança de recolher migalhas...

- Compreendo.

- Nem fica à espera de um milagre, como o eficiente idiota do Charles Purvis. Sou um autêntico pendura.

"- E no resto do tempo que faz?

- Isto e aquilo - disse Murton, com desprendimento.

Sloan reflectiu que podia averiguar a resposta apropriada utilizando o telefone. Ao invés, porém, sugeriu:

- Quanto a sexta-feira passada...

No entanto, o homem não tinha muito para lhe contar acerca daquele dia.

Sim, inicialmente tencionava vir apenas para o fim-de-semana.

Sim, chegara na tarde de sexta-feira.

De comboio.

Por volta das cinco e meia.

Passara o resto da tarde e o serão no chalé.

Só.

No sábado, ficara na cama até à hora do chá e passara o serão no Ornum Arms.

Pelo menos duas dezenas de pessoas podiam confirmar o que afirmava, incluindo Ebeneezer Lambert, que morava na mesma rua.

Se porventura o inspector se avistasse com este último, podia comunicar-lhe que perdera a aposta e lhe devia cinco libras.

E se o inspector estivesse interessado em saber quem ele supunha que cometera o crime...

As tias-avós.

- Para dizer a verdade - comentou Crosby, quando reatavam a marcha em direcção à Casa Ornum -, não nos podemos queixar de escassez de suspeitos.

- Pois não.

- Este fulano julgou que nos comia as papas na cabeça.

- Não mencionou Dillow, nem Ames - recordou Sloan.

- O vigário? Não me lembrava desse.

- Deve lembrar-se de todos. É para isso que está aqui.

- Sim, senhor.

- Chegou à Casa Ornum mais ou menos à hora conveniente, sexta-feira à tarde. Ele próprio o admitiu.

- Com certeza.

- E é perito de armaduras.

- Não tem aspecto de assassino.

- Crippen (1) também não tinha.

Esta observação profunda foi suficiente para manter Crosby silencioso até que alcançaram o seu destino.

Dillow achava-se disponível, como sempre. Na realidade, o termo "ubíquo" servia perfeitamente para o definir, pois parecia encontrar-se em toda a parte. Quando entrava ou saía alguém, ele não estava longe.

- O vigário encontra-se no Grande Salão e Mr. Purvis numa das salas de estar, a contas com a Imprensa - anunciou, com uma expressão grave.

- A rainha encontra-se na saleta a comer pão com manteiga- murmurou o incorrigível Crosby, irritado com tanta formalidade.

- Muito bem, senhor - volveu o mordomo com suavidade, sem se desconcertar.

Entretanto, Sloan reflectia que um expansivo agente da Polícia devia constituir um interlocutor fácil de enfrentar para quem estivera ao serviço de um milionário excêntrico, como Baggles.

- E Edith, a criada, responderá às vossas perguntas, quando vos parecer conveniente - acrescentou Dillow.

- De momento, só me interessa saber quando esteve na biblioteca pela última vez - disse Sloan.

O homem desapareceu com prontidão, para regressar com Edith quase imediatamente - uma rapariga dócil e viva, embora pouco inteligente.

- Foi no sábado de manhã - declarou, sem hesitar.- Não estava lá ninguém.

- Entrou... isto é, foi até ao fundo?

- Sim, senhor.

- Para além do compartimento mais afastado da entrada?

- Sim, senhor. Por causa do general.

- Do general?

- Enche-se de pó, se não se limpa todos os dias.

 

(1) Nome de um médico inglês que praticou crimes hediondos. (N. do T.)

 

- Ah!, refere-se ao busto?

Edith teve uma expressão indicativa de que preferiria não ouvir referir aquele vocábulo diante de homens, e limitou-se a aquiescer com uma inclinação de cabeça.

- Que horas seriam? - persistiu Sloan.

- Nove. Foi depois de levantar a mesa do pequeno-almoço.

- Obrigado. Não é necessário mais nada.

Ela mostrou-se aliviada e retirou-se. Ao longe, no topo do imponente corrimão da escadaria, vislumbraram a prima Gertrude que cruzava o patamar.

Ames aguardava-os no Grande Salão e parecia mais velho à luz do dia.

- Estivemos a verificar alguns factos - explicou o inspector, com sinceridade. - Antecedentes da família e coisas do género.

- É uma das mais antigas do condado - proclamou o vigário. Portadores do Facho Hereditário pela Coroa de Calleshire desde o reinado de Isabel I. Ela receava a vinda dos Espanhóis.

- Sim? - articulou Sloan, que não se referira àquele tipo de factos.

- A velha torre normanda por cima da de menagem tem um tecto plano. - Ames exibiu um sorriso clerical. - Se se recorda, a invasão normanda fora coroada de êxito. Altamente coroada de êxito, mesmo.

- Sim, senhor - assentiu Sloan, com gravidade.

- Uma fogueira acendida aí podia ser vista do castelo de Calle, que fica muito para o interior, onde, por sua vez, acendiam outra e assim sucessivamente.

- Estou a compreender. Muito obrigado pela informação.

- Houve, depois, Jaime II... - Ames fez uma pausa, enquanto o inspector emitia um suspiro de resignação.- Esse temia os Holandeses. Ora, Jorge III, por seu turno, preocupava-se com os Franceses. Nomeadamente, com Napoleão.

- Não creio que o aspecto histórico do assunto nos interesse particularmente - acabou Sloan por esclarecer.

- Mais tarde - prosseguiu o vigário, sem se aperceber da interrupção-, veio 1940, com os bombardeamentos alemães. Na altura, tínhamos tudo preparado para uma fogueira enorme. O pai de Bert Hackle, o velho Hackle, encarregava-se da vigilância...

- Desculpe, mas importa-se que nos concentremos num passado mais imediato, como a última sexta-feira, por exemplo?

Com uma paciência própria de um polícia, Sloan conduziu o interlocutor através de todos os pormenores da sua visita abortiva à casa, em obediência ao recado de Meredith, e Ames relatou a sua história pela segunda vez.

Recebera o recado, apresentara-se na Casa Ornum, não vira Meredith nos arquivos nem em qualquer outro lugar...

- As arcas dos documentos - cortou o inspector, subitamente. - Estavam fechadas ou abertas?

O interpelado semicerrou as pálpebras, como que para se recordar melhor, e declarou:

- Abertas. Foi, aliás, o que me levou a supor que ele ainda não fora para casa.

- Viu alguém, nessa ocasião?

- Dillow, o qual disse estar convencido de que Meredith se tinha retirado, e Miss Gertrude Cremond, que limpava o lustre desta sala. - Apontou para cima e todos ergueram os olhos instintivamente. - Uma peça valiosíssima. É de cristal francês.

- Ela estava só? - quis saber Sloan.

O vigário assentiu com uma inclinação de cabeça.

- Miss Cremond tem a seu cargo a conservação de todas as porcelanas e cristais - informou, diplomaticamente. - Lady Eleanor ajuda-a a cuidar das. flores, mas ela ocupa-se de tudo o resto.

- Muito bem.

- Encontrava-se tudo ainda em cima da mesa, quando a vi. Eram centenas de peças.

- O trabalho de um dia - aquiesceu Sloan, preparando-se para sair.

De súbito, imobilizou-se.

Nunca se mostraria suficientemente optimista para se considerar sensitivo. Se porventura alguma vez pensava em si próprio, julgava-se um polícia vulgar. De momento, porém, acudiu-lhe a impressão atávica de que eram observados.

Na realidade, tratava-se de uma sensação primitiva.

Os pêlos da nuca eriçaram-se e um pequeno arrepio deslizou pela coluna vertebral. Reacções primitivas estabelecidas muito antes de o homem construir a sua primeira habitação... quanto mais castelos medievais.

Deixou o olhar passear naturalmente pelo Grande Salão e não tardou a descobrir o postigo perto do tecto para além da Galeria dos Menestréis. Ao aperceber-se disso, dirigiu-se com lentidão para a porta por baixo desta última e fora do campo visual do postigo.

Uma vez aí, principiou a correr pela ampla escadaria com todo o vigor possível, enquanto o instinto da orientação funcionava a todo o vapor.

Prosseguiu até ao topo dos degraus e abriu bruscamente a última porta, de acesso a uma sala revestida de lambrins.

Estava deserta.

Todavia, na parede oposta, havia uma pequena janela que dava para outro aposento. Sloan aproximou-se apressadamente e espreitou.

Deparou-se-lhe o Grande Salão, a seus pés. Do ponto onde se encontrava, podia ver o vigário, que conversava com Crosby, o qual escutava numa atitude de resignação paciente. O inspector voltou-se para dentro e olhou em volta.

E, não muito longe, ouviu uma porta fechar-se com suavidade.

 

Charles Purvis era posto à prova pela Imprensa, situação que estava longe de lhe agradar.

Não obstante, congratulava-se com uma coisa. Graças à colaboração de Dillow, conseguira finalmente encafuar todos os repórteres na mesma sala. A possibilidade de algum se transviar e esbarrar em Lady Alice era demasiado hedionda para considerar sequer.

- Pouco lhes posso revelar, meus senhores - começou em voz pausada.

- Podemos falar com o conde? - perguntou um dos jornalistas, o qual mencionou um jornal que o administrador só vira a embrulhar peixe. - O conde "não está em casa".

- Quer dizer que não se encontra aqui?

- Não, apenas que "não está em casa".

- Por outras palavras, não nos quer receber?

- Sua Senhoria não está disponível - insistiu Purvis, ao mesmo tempo que imaginava um cabeçalho: "O Conde de Ornum Não Faz Comentários." (Na realidade, o que os repórteres escreveram foi: "Conde Silencioso.")

- Devemos concluir que o corpo permaneceu na armadura todo o sábado e grande parte do domingo, enquanto os visitantes se moviam de um lado para o outro?

- Suponho que sim - concedeu com relutância, ao mesmo tempo que os repórteres escreviam afanadamente. ("Mal sabiam os que pagaram meia coroa, no fim-de- semana que...")

- Como se escreve arquivista? - perguntou alguém.

O representante de um dos jornais mais antigos elucidou-o e outro inquiriu:

- Quando voltam a abrir ao público?

- Quarta-feira - declarou Purvis, cautelosamente -, julgo eu.

- É o dia habitual?

(Escreveram: ""O Negócio Continua Normalmente", afirma o administrador.")

- Isso significa que não terão chegado a fechar?

- Exacto.

(""Nós Nunca Fechamos", revelou o administrador.")

- Creio que se trata do primeiro "Homicídio numa Casa Senhorial", rapazes.

Purvis estremeceu e os outros repórteres concordaram com inclinações de cabeça.

- Esse seu conde...-A voz provinha de um homem na retaguarda do grupo.

- Sim?

- Não é muito falador, hem?

- Falador? - O administrador descobria da maneira mais penosa que a obstrução era uma arte minimizada, tanto no críquete como em qualquer outra situação.

- Exacto - confirmou o repórter, que se preparara devidamente para a entrevista. - É membro da Câmara dos Lordes há trinta anos...

- Sim?

- Investiguei os seus antecedentes.

- E depois?

- Só se dirigiu aos deputados duas vezes. Para falar de cervos.

- É verdade.

- Ambas as vezes.

- É a especialidade dele.

Estas palavras suscitaram gargalhadas divertidas.

- O conde possui vários exemplares - esclareceu Purvis, corando.

No entanto, os repórteres preocupavam-se com outros temas.

- O nosso perito de objectos de arte, o nosso perito de objectos de arte antiga, melhor dizendo, garante que têm cá um Holbein.

- Decerto.

- Porque se dedica o conde a cobrar dinheiro em troca da visita à Casa Ornum, se possui um Holbein?

- Pertence a um membro da família. - Purvis não esperara que a sessão assumisse semelhante aspecto.

("O administrador diz que o Holbein já teria sido vendido, se não estivesse ligado a razões sentimentais.")

- O nosso perito de arte moderna - declarou outro jornalista - diz que o sobrinho do conde acaba de promover uma exposição. Chama-se William Murton.

- Sim? - A informação constituía uma novidade para

Purvis. - Não sabia.

- Numa pequena galeria, mas bem frequentada - acrescentou o homem.

- O outro sobrinho, Miles Cremond - revelou um indivíduo calvo, gratuitamente-, trabalha na Companhia de Navegação Pedes.

- Palavra?

- E o nosso editor - volveu o mesmo repórter-garante que vocês estão actualmente nas lonas.

- Será a altura de os ratos accionistas abandonarem o navio que se afunda? - sugeriu um homem de expressão cínica, junto da porta.

- Mais ou menos - admitiu o calvo.

- Ele tem mais alguma informação útil, Caracóis?

- Comprem a nossa folha e logo vêem. Garanto-lhes que é dinheiro bem empregado.

Achavam-se todos surpreendentemente bem documentados.

Com efeito, tinham esquadrinhado todos os livros de consulta. Haviam feito uma visita frutuosa a uma encantada Mrs. Pearl Fisher, em Paradise Row, Luston, quando se dirigiam a Ornum (toda a rua encomendara exemplares dos jornais do dia seguinte), tentando subornar a criada, Edith, nas traseiras da Casa Ornum, antes de baterem à porta da frente e assediado, arídamente, o superintendente Leeyes - tudo isto antes do pequeno-almoço, por assim dizer.

- A família - articulou um homem de expressão desiludida, cujo jornal se especializara naquilo que gostava de chamar "interesses humanos". - Pode fornecer-nos fotografias?

- Não - redarguiu Purvis, com firmeza.

- Os condes têm um filho e uma filha, não é assim?

- É. - Em voz tensa.

- Umas fotografiazinhas faziam-nos jeito. Um grupo da família e coisas do género.

- Não.

- Em todo o caso, creio que temos uma de Lady Eleanor nos nossos arquivos. - (O administrador empalideceu.) - Tirada numa festa de caridade, algures.

Charles Purvis voltou a respirar normalmente.

- Está comprometida? - aventou o repórter, com ar optimista.

- Não.

- Nem abriu uma boutique, uma loja de antiguidades ou algo desse estilo?

- Não.

- Há segredos de família transmitidos de pais para filhos, no dia em que estes atingem a maioridade?

- Não.

- E quartos secretos?

- Nada disso.

Purvis lamentava sinceramente que não houvesse ao menos um, pois conduzi-los-ia lá sem hesitar. Faria tudo o que fosse possível para se esquivar àquele interrogatório.

- Tem a certeza?

- Os fiscais das Finanças já o teriam encontrado, para aumentar a contribuição.

- Que foi feito da irmã da vítima? - inquiriu um rapaz de cabelos compridos e gravata vermelha.

- Não sabemos. - O administrador descontraiu-se um pouco. - Pensamos que está em casa de pessoas amigas, mas não temos a certeza. - Olhou em volta com ansiedade.- Vocês podiam ser-nos úteis nesse aspecto. É provável que ela ignore o que aconteceu ao irmão... - pelo canto do olho, viu o representante do "interesse humano" escrever apressadamente - ...e a Polícia espera que acabe por se inteirar pelos jornais e apareça.

- Trataremos disso.

Charles Purvis duvidava de que Miss Meredith costumasse ler o jornal de "interesse humano" ou o que o rapaz de cabelos compridos e gravata vermelha representava, todavia inteirar-se-ia de alguma coisa, mais cedo ou mais tarde.

Ante o seu pavor, o periódico de que Sua Senhoria era um leitor leal também enviara um repórter, munido de uma pergunta, o que se lhe afigurava uma traição.

- Pode revelar-nos a natureza da arma utilizada?

- Creio que ainda não foi encontrada.

No entanto, o administrador equivocava-se.

A arma fora encontrada.

O inspector Sloan reunira-se com a equipa do Laboratório no patamar do primeiro piso, um par de homens taciturnos, que sabiam reconhecer uma mancha de sangue sem margem para dúvidas. Na realidade, tinham reconhecido uma na lombada de um livro da biblioteca e agora contemplavam outra.

Achavam-se de momento no armeiro. Uma armadura fora separada da colecção - a armadura - e a lacuna produzida salientava-se como um dente acabado de arrancar. Aliás, o armeiro assemelhava-se a uma partida de xadrez gigantesca, após uma boa jogada inicial.

Crosby começara a trabalhar com base numa premissa muito diferente - a de que uma das cento e setenta armas enumeradas no catálogo estaria ausente. Por conseguinte, ele e o vigário procediam a um inventário bizarro.

- Uma adaga.

- Presente.

- Uma clava.

- Ei-la. Um modelo multo primitivo - declarou Ames, com satisfação.-Já não se encontram muitas.

- Uma alabarda do século XV?

- Exacto. O décimo conde trouxe-a do estrangeiro. É uma arma muito prática.

O detective olhou-a com desconfiança. Se aquilo era o género de recordação que se trazia do estrangeiro, preferia não sair do seu país.

- Era embaixador - esclareceu o vigário.

- Eu sei. - Crosby moveu o dedo ao longo da lista e proferiu cautelosamente: - Um par de badernas.

- Estão ambas aqui. São arrebéns para fixar os colhedores, quando se apertam as enxárcias, como sabe.

- Três espadas bastardas.

- Estão todas aqui.

- Um guardapolvo.

- Ei-lo.

- Um martelo de Lucerna.

- Sim.

Hesitou por um momento, antes de continuar:

- Um espontão.

- Aqui o temos.

- Um brandistock. - Ergueu os olhos da lista. - O que é?

- Uma arma com uma bainha tubular que encobre uma lâmina. - O vigário apontou. - Pode impelir-se a lâmina para diante.

- Uma navalha de ponta e mola é mais ou menos isso - retrucou Crosby, laconicamente. - Segue-se um godentag. Que vem a ser?

- Uma clava que engrossa em direcção à extremidade contrária à pega - explicou Ames, indicando-a com a mão - e termina num espigão de ferro... Não está na posição normal. Alguém deve ter...

- Não lhe toque - advertiu o detective, largando a lista e aproximando-se da parede.

A mão do vigário pendeu ao lado do corpo, mas ele continuou a olhar a arma com perplexidade.

O mesmo fizeram os dois técnicos do Laboratório, com a diferença de que utilizaram uma potente lupa e procederam a um exame demorado.

- Sangue e dois ou três cabelos - informou o mais velho.

O inspector Sloan voltou-se para Ames:

- Godentag. Traduzido literalmente, significa "bom-dia".

Crosby apercebeu-se do movimento de cabeça afirmativo do técnico do Laboratório a Sloan e interpretou-o correctamente:

- Se se trata da arma do crime, deviam chamar-lhe antes "boa-noite".

Charles Purvis desceu ao armeiro para comunicar ao inspector que os quatro guias o aguardavam na Sala Oriel.

- Falta apenas Hackle, que está a trabalhar no jardim, mas também comparecerá, se necessitar dele.

- Muito bem.

A Sala Oriel fora uma opção feliz do administrador. Embora nunca recebesse visitas do público, não era exactamente a mesma coisa que os Apartamentos Privados. Mrs. Mompson, Miss Cleepe, Mrs. Nutting e Mr. Feathers achavam-se presentes e Dillow servia-lhes café.

Um pseudoprivilégio para pseudoconvidados.

A magra Miss Cleepe recusou o açúcar e a atarracada Mrs. Nutting consumiu duas colheradas.

- Eu sei que não devia - reconheceu-, mas não posso resistir.

Como de costume, Mrs. Mompson mantinha-se um pouco distante da realidade.

- Pobre Miss Meredith - articulou, em inflexão condescendente.- Tenho tanta pena dela...

- Pois eu tenho mais de Osbome Meredith - replicou Mr. Feathers, praticamente. - Não é um fim que eu apreciaria para mim.

- Nem eu. - Mrs. Nutting estremeceu. - Temos de ajudar o inspector, na medida das nossas possibilidades.

O que não era muito, como se comprovou.

Sloan fê-los recapitular os acontecimentos de sábado e domingo - houvera poucos visitantes no sábado, como em geral sucedia - mas o domingo conhecera forte afluência. Na verdade, os quatro guias não ficariam surpreendidos se se tivesse registado um recorte. Ao mesmo tempo, o inspector reflectia que não constituiria um recorde por muito tempo, depois de os jornais divulgarem a insólita ocorrência.

Mr. Feathers não reparara em nada de extraordinário no Grande Salão. Miss Gertrude Cremond acudira para ver o lustre à luz do dia e mostrara-se encantada. Não precisaria de o tornar a limpar durante a época, à parte o que tudo se lhe deparara como habitualmente.

Mrs. Nutting declarou que uma criança se escondera debaixo da cama de quatro colunas quando ela se encontrava de costas, mas fora retirada (e repreendida) sem dificuldade.

- Quanto ao resto, nada de anormal - concluiu, em tom jovial. - O mesmo tipo de pessoas. As mesmas perguntas.

Miss Cleepe, tão angulosa como Mrs. Nutting curvilínea, torcia as mãos com nervosismo. A Longa Galeria fora mostrada como sempre, sem qualquer episódio fora do comum. A habitual dificuldade suscitada pelos grupos de pessoas que se interessavam realmente pela pintura e outras que não entendiam nada, nem manifestavam curiosidade.

- A nossa missão torna-se mais difícil, quando pressentimos que se aborrecem - salientou-, mas o Holbein desperta sempre interesse.

- Depois de você lhes dizer quanto vale - acudiu Mr. Feathers, brutalmente.

- Tem razão - concedeu ela, com um suspiro. - Nessa altura, olham-no com maior respeito. - Pousou a chávena e acrescentou:- E nunca deixam de insistir em pormenores acerca do fantasma. Nunca.

Mrs. Mompson, que ansiava há muito por proceder a uma troca de quadros entre a Longa Galeria e a Sala de Estar, interpôs:

- Essa tela não recebe a luz que merece, na Longa Galeria.

- É um pouco escura - concordou Miss Cleepe. - Trata-se de uma sala muito estreita e o globo da lâmpada de fraca intensidade partiu-se, mas já pedi a Dillow que o substituísse.

- Sempre sustentei que o Holbein devia estar na sala, por cima da lareira - volveu Mrs. Mompson. - Aí é que toda a gente o podia admirar em todos os pormenores.

- Isso não sei - redarguiu a outra, com nervosismo. - Em todo o caso, creio que a luz em excesso pode ser prejudicial para a tela.

- Na Longa Galeria, encontra-se praticamente às escuras. A meia distância de cada janela, e não são janelas muito satisfatórias, diga-se de passagem. - Mrs. Mompson tinha sobre a lareira da Sala de Estar um retrato do século XVIII da deusa da abundância, Ceres, de que há muito que se queria desembaraçar. Aliás, a deusa em causa achava-se representada com uma abundância de pormenores íntimos que lhe feria a susceptibilidade. - Estou convencida de que o Holbein só teria a lucrar se fosse exposto junto da minha lareira.

- Palavra? - Miss Cleepe corou. Perder dos seus domínios a peça mais valiosa da casa e o fantasma de uma assentada constituía uma perspectiva que lhe repugnava encarar. - Custar-me-ia muito ficar sem o juiz. Muito, mesmo. Penso que se reveste de interesse especial para aqueles que não apreciam os quadros.

Entretanto, Sloan não efectuava a menor tentativa para interromper o diálogo, consciente de que a arte de um polícia consistia em escutar e observar e não em actuar. Pelo menos, quando as testemunhas conversavam umas com as outras, quase esquecidas da presença de um estranho. Quase, mas não totalmente.

Mrs. Mompson, que não desejava conhecer imediatamente a decisão de Charles Purvis sobre o tópico do Holbein, proferiu com firmeza:

- Posso garantir-lhe, inspector, que não aconteceu nada de anormal na Sala de Estar, durante o meu turno de serviço.

Sloan, que teria ficado surpreendido se lhe fosse transmitida uma informação diferente, limitou-se a inclinar a cabeça.

- Uma jovem teve o atrevimento de tocar no centro de mesa - acrescentou ela-, mas chamei-lhe a atenção imediatamente.

- Muito bem. Agradeço-lhes a boa vontade...

Mas Miss Cleepe ainda não considerara o assunto encerrado.

- Não creio que conseguisse ocupar-me da Longa Galeria sem o Holbein - declarou em voz levemente trémula.

Sloan telefonou à base, que não se revelou muito encantada com as novidades.

- Alguém tentou entrar nos arquivos, desde que os selámos, ontem.

- Ah, sim? Para quê?

- Não sei, senhor. Eu tinha providenciado para que o arquivista do condado examinasse os documentos, mas quando Crosby o acompanhou lá descobriu que alguém tentara forçar a fechadura.

- Há aí alguma coisa importante.

- Sou da mesma opinião.

- De que alguém pretende apoderar-se.

- Exacto. Mas não conseguiu, porque a fechadura resistiu.

- Óptimo - grunhiu Leeyes. - Outra coisa. Recebi há pouco a visita do advogado dos Ornum e segue agora para aí. Olho nele, hem?

- Sim, senhor.

- É um daqueles espertalhões - insistiu, em tom pesaroso.- Diz que representa os interesses do conde. Representa!- Fungou desdenhosamente. - Está mas é a protegê-los como um falcão!

O inspector não se surpreendeu com a revelação. As pessoas como os Ornum dirigiam-se imediatamente ao topo e obtinham a melhor assistência possível.

- Aposto que o conde é daqueles que conhece as altas patentes pessoalmente -observou, em inflexão sombria.

- Seja realista, homem.

- Perdão?

- Ele não se preocuparia em estabelecer contacto com os nossos superiores imediatos.

- Não?

- O subsecretário do Interior foi seu companheiro de estudo e o Procurador-Geral é primo em terceiro grau da esposa.

- Valha-nos Deus...

- Exactamente. - Seguiu-se um som surdo indicativo de que o superintendente acabava de desferir um murro no tampo da secretária. - Por conseguinte, se houver alguma detenção a efectuar...

- Compreendo. - Sloan pressentiu aonde o interlocutor pretendia chegar e tentou inteirar-se de outra coisa. - Os preceitos não são diferentes para os pares do reino?

- Nada sei quanto aos escritos, mas os tácitos são de certeza.

- Sim, senhor - articulou pensativamente. Recordava-se da Torre de Londres, que ele e a mulher,

Margaret, tinham visitado durante a lua-de-mel. Fora convertida num mero museu, ou ainda haveria cantos obscuros onde permaneciam encerrados prisioneiros especiais?

- Pode dizer-se que estamos perante um caso em que uma detenção errada não contribuirá para melhorar a carreira do polícia que a determinar.

- Compreendo perfeitamente. - Aclarou a voz e acrescentou:- Ainda não estou na iminência de praticar um acto de semelhante natureza, mas julgo que descobrimos a arma do crime. Uma espécie de clava denominada "bom-dia".

- Uma espécie de clava denominada "bom-dia"? - repetiu Leeyes, pesadamente. - Suponho que não pretende desfrutar um pobre superintendente da Polícia, porque de contrário...

- De modo algum - apressou-se Sloan a asseverar. - É o número quarenta e nove do catálogo e encontra-se registado como uma godentag. Os rapazes do Laboratório encontraram sangue e cabelos, mas nenhuma impressão digital. É claro que o Dr. Dabbe ainda não a viu para confirmar...

- A propósito - interrompeu Leeyes. - Ele telefonou por causa do relatório.

- Sim?

- Esses patologistas baralham tudo.

- Porquê?

- Segundo você afirmou, o mordomo levou o chá a Meredith às quatro horas e foi buscar a bandeja às cinco.

- Exactamente. Viu-o às quatro, mas não às cinco. E Lady Eleanor recorda-se de o ter visto pouco antes da hora do chá.

- Da hora do chá, talvez, mas sem chá.

- Sem chá?

- Meredith não tinha ingerido nada nas três horas anteriores à morte, em conformidade com o Dr. Dabbe. Na realidade, morreu com o estômago vazio.

- Então, alguém consumiu o chá dele - disse Sloan, consultando o seu bloco-notas.

- É o mais provável, mas não foi Meredith - salientou o superintendente. - O Dr. Dabbe mostra-se peremptório a esse respeito.

 

- Isso quer dizer que o mataram no período entre o momento em que Dillow lhe levou o chá e antes de principiar a tomá-lo - concluiu Crosby, que continuava no armeiro, embora o vigário e os técnicos do Laboratório já se tivessem retirado.

- Precisamente - confirmou o inspector. - Mas depois de Meredith efectuar a sua famosa e misteriosa descoberta e telefonar ao vicariato.

- Sabemos quando foi isso?

- Ames supõe que deve ter sido por volta das três e meia.

- Então, não estamos a chegar a parte nenhuma a toda a velocidade - resmungou o detective, desapontado, pousando o bloco de apontamentos na mesa que Dillow lhes fornecera, a um canto do armeiro.

- Como assim?

- William Murton foi visto apear-se do comboio das cinco e vinte e sete de Luston para Berebury, na estação de Ornum, sexta-feira à tarde, e estou convencido de que é o nosso homem - declarou de um único fôlego.

- Está? - Sloan olhou-o com curiosidade. - Porquê?

- Para já, é pintor...

- O que ninguém considera um crime. Por enquanto.

- Refiro-me ao facto de ser um pouco excêntrico...

- Tão-pouco se pode encarar como um delito.

- De repente, deixou de lutar com falta de dinheiro.

- Meredith não era rico, e a ligação entre este caso e o dinheiro é, pelo menos, obscura.

- Isso é verdade.

- Providenciou para que o vigiassem?

- Sim, senhor. O agente Bloggs não o perde de vista. - Crosby fez uma breve pausa. - Chegaram notícias de

Londres.

- E então?

- Segundo conseguiram apurar, ele está em apuros com uma mulher.

O mais perto que Crosby estivera de se achar em apuros com uma mulher fora na ocasião em que, num dia de folga, se atrasara para a ir buscar, obrigando-a assim a perder grande parte de uma película de grande êxito.

- Se todos os homens nessa situação recorressem ao homicídio, não teríamos um momento de descanso - lembrou Sloan, em tom quase paternal.

- O conde pensa que foi ele. -Crosby jogou o seu trunfo com relativa modéstia.

- Eu sei. É a melhor prova acessória que temos de que não foi o próprio conde. Isto não significa que não fosse William Murton, claro.

- O conde? - ecoou, chocado. - Acha-o capaz disso?

- Não, mas temos de o incluir na lista de suspeitos, como os outros.

Todos eram iguais, mas uns mais iguais do que os outros.

Em particular, os condes.

Daí a Lorde Henry, era um passo natural.

- Investiguei outra coisa, sem prazer especial-volveu o detective.

- O quê?

- O carro de Sua Senhoria. Há vestígios de sangue entre a ventoinha e o radiador. Informei os dois vampiros...

- Técnicos do Laboratório - corrigiu Sloan, com brandura.

- Pois, esses. Prometeram examiná-los depois de acabarem com o "bom-dia".

- Ele podia tê-los colocado lá. - Com certeza. - Crosby consultou o bloco de apontamentos.- O "bom-dia" não contém impressões digitais.

- Eu não esperava outra coisa.

- E a governanta, Mrs. Morley, diz que aplicou a ligadura na mão de Lorde Henry, sexta-feira de manhã.

- Hum!...

- E viu o ferimento.

- Deviam chamar-nos São Tomes e não polícias, hem?

- Isso, não sei. Ela garante que era um corte profundo e insistiu em que consultasse o médico. Ia da palma da mão até ao indicador.

- E obteve-o do motor de um carro e não ao tentar introduzir um cadáver numa armadura. Teríamos assim que Lorde Henry pode ser eliminado da lista de suspeitos, mas William Murton não?

- O chefe da estação viu-o descer do comboio às cinco e vinte e sete - argumentou Crosby.

- E certificou-se de que não subiu na estação anterior?

- Ainda não - declarou de um modo que sugeria que se preparava para o fazer.

- A propósito, que número calça ele?

- Não reparei - admitiu, arregalando os olhos.

- Reparei eu. Quarenta, pelo menos.

- É um fulano alto e corpulento.

- Demasiado para calçar trinta e seis - observou Sloan, consultando o seu bloco-notas.- E a condessa e Lady Eleanor não vão além do trinta e quatro.

- Uma coisa cómoda.

- Cómoda?

- Podem partilhar os mesmos sapatos.

- As pessoas desse nível não partilham sapatos.

- Tem razão.

- Admitindo que a pessoa que produziu a marca do salto na sala dos arquivos o fez inadvertidamente, como creio...

- Sim?...

- Isso significaria que Miss Gertrude Cremond, Mrs. Laura Cremond ou Mrs. Morley entraram lá e viraram tudo do avesso.

- A não ser que fosse obra de um estranho.

- Por favor, Crosby. - Sloan dominou um suspiro de impaciência. - Ambos sabemos que não foi um trabalho de estranhos.

- Sim, senhor.

- Portanto, uma das três entrou naquela sala...

- Antes ou depois de terem assassinado Meredith?

- Não podemos aceitar a hipótese de ele ter assistido à devastação sem intervir.

- Pois não. - Crosby coçou a cabeça. - Miss Gertrude Cremond é suficientemente corpulenta para dominar um homem franzino sentado, de costas para ela.

- De acordo.

- Mrs. Laura Cremond não é.

- Lady Macbeth também não era.

- Perdão?

- Lady Macbeth. Outra mulher de pequena estatura, que mandou matar alguém.

- Actuou indirectamente?

- Exacto.

- Pensa que pode ter encorajado o venerável Miles?

- "Incitado" é o termo mais apropriado.

- De facto, duvido que ele decidisse fazê-lo por iniciativa própria.

- De acordo.

- Mrs. Morley necessitaria que Dillow lhe servisse de instrumento. Apesar de ter pés grandes para uma mulher, não a acho capaz de uma coisa dessas.

- Há outra possibilidade...

Crosby suspirou, pois não tinha capacidade para assimilar mais de duas ou três de cada vez.

Sloan pousou um dedo no bloco-notas e acrescentou:

- A de que o pandemónio nos arquivos não tem nada a ver com a morte de Meredith.

- Simples coincidência?

- Não é bem isso. Apenas duas coisas que aconteceram no mesmo dia. - Associáveis às duas diferentes descobertas? - sugeriu o detective, brilhantemente. - A respeitante ao título de conde...

- Que pode ou não corresponder à verdade...

- E a outra efectuada por Meredith na tarde de sexta- feira...

- De que não conhecemos nem uma sílaba.

- E o levou a tentar contactar com o vigário?

- Nem mais. Pode indicar o único ponto significativo que conhecemos, até agora, sobre a tarde de sexta-feira?

- Não aconteceu nada de especial, além de ele ter descoberto o que quer que fosse.

- Ponhamos a questão noutros termos - propôs Sloan, pacientemente. Por aquele andar, teriam de recorrer a unidades exteriores, por muito que isso contrariasse o superintendente Leeyes. - Que alteração na rotina, do nosso conhecimento, ocorreu na tarde de sexta-feira?

- A única coisa diferente que conhecemos de certeza...

- Continue.

- Diz respeito àquelas duas aves lá de cima.

- Lady Alice e Lady Maude.- Reflectiu que havia ocasiões em que desejaria poder dispor de colaboração mais sofisticada, como naquele momento.

- Lady Alice e Lady Maude - repetiu Crosby, aceitando tacitamente a correcção. - Não convidaram Meredith para tomar chá, como costumavam fazer às sextas-feiras.

- Precisamente.

- Quer dizer que isso é importante?

- Quero dizer que é único indicador positivo que possuímos até agora. Isso e o facto de William Murton ter estado em Ornum quarenta e oito horas consecutivas sem pedir dinheiro ao tio, o que, segundo as minhas informações, constitui virtualmente um recorde.

- É, de facto, pouco vulgar - admitiu o conde de Ornum, que se encontrava nos Apartamentos Privados e brindava um indivíduo alto e magro com algo proveniente de uma garrafa de cristal e biscoitos. - Julgo constituir uma tradição incontroversa que William só se refugia no chalé quando os seus outros compromissos se tornam assaz prementes.

O titular apresentara Sloan e Crosby ao homem de expressão austera, nada menos do que Adrian Cossington, o sócio mais antigo da velha e idónea firma de solicitadores Oaten, Oaten and Cossington, e se o seu aspecto ascético representava um indício fidedigno, há muito que renunciara a todos os desejos e sensações humanos. Dava mesmo a impressão de que os seus prazeres, se existia algum, se limitavam ao estudo de pormenores legais "agradáveis" ou porventura aconselhar contra as indulgências propostas pelos clientes.

De momento, opunha-se abertamente a que o conde prestasse qualquer espécie de declarações, naquela fase das investigações - sobretudo ao inspector Sloan.

- Não seja parvo, Cossington - retorquiu o conde, manifestando maior coragem no trato com o causídico do que o inspector o julgara capaz. - Este homem tem de descobrir quem matou Meredith.

- Sem dúvida, milorde, mas as suas responsabilidades no assunto cingen-se a...

- Não podemos esquecer uma coisa chamada justiça! - Virou-se para Sloan. - Não é verdade, inspector?

- Creio que sim - respondeu o interpelado, cautelosamente, pois ao ser increpado à queima-roupa não estava muito certo da existência do ingrediente acabado de mencionar.

- No seu próprio interesse, milorde - insistiu Cossington.

- Não é o meu interesse que está em causa, mas a lei e a ordem.

Isso era outra coisa.

Sloan, que acalentava dúvidas quanto à justiça, tinha ideias bem definidas sobre a lei e ordem. Se não existissem, instaurar-se-ia a barbárie.

- Não posso ficar impávido e sereno, depois de terem assassinado o meu bibliotecário e arquivista em minha própria casa - persistiu o conde.

O inspector reflectiu que era isso que indignava o titular. Do ponto de vista deste último, "quem molesta o meu servo desafia a minha posição". Na verdade, era o princípio que vigorava nos velhos tempos. O primeiro conde de Ornum decerto contava com um autêntico regimento de servidores, que acumulavam as funções de pessoal doméstico com as de guerreiros. Vassalos, obedientes até à morte. E o conde, por seu turno, renderia vassalagem ao rei, depois de prestar juramento de obediência durante as cerimónias da coroação.

Um conde presente em cada coroação.

Incluindo agora.

O juramento tinha um nome de que Sloan não se recordava, embora o pressentisse na ponta da língua... fidelidade!

O solicitador principiara a explicar ao conde a natureza da estreita divisória entre obstruir a acção da Polícia no cumprimento do dever e as ténues circunstâncias em que ninguém era obrigado a prestar declarações susceptíveis de o comprometer.

Todavia, Sloan não o escutava, entretido a contemplar o décimo terceiro conde de Ornum de um ângulo diferente. Ele, Charles Dennis Sloan, inspector-detective da Polícia do condado de Calleshire de Sua Majestade, era o herdeiro e sucessor natural do titular, naquele assunto de lei e ordem. E, à semelhança de outrora, este último continuava a manter os servos obedientes. Ora, Sloan também prestara juramento de fidelidade, e só agora se apercebia da antiguidade do seu dever.

O conde de Ornum tão-pouco manifestava interesse pelas palavras de Cossington e dirigiu-se de novo a Sloan:

- Purvis diz que mandou chamar o arquivista do condado, inspector.

- É verdade, milorde. Com a sua autorização...

- Decerto. Meredith não aprovaria, mas as circunstâncias actuais exigem-no. São uma chusma de fulanos possessivos, esses arquivistas, sempre empenhados em construir os seus próprios impérios. Nunca se mostram dispostos a ajudar o próximo.

- Havia alguma coisa que alguém ambicionasse? - inquiriu Sloan, consciente de que devia ter feito a pergunta há mais tempo.

O interpelado reflectiu por uns instantes e declarou:

- Há uns documentos que são pedidos emprestados com frequência.

- Quais?

- Um material da Corte muito antigo que sobreviveu miraculosamente - explicou com um gesto vago. - Registos de tribunais e coisas do género.

Sloan apenas tivera uma aula sobre a história do sistema legal inglês durante o estágio para promoção e não prestara muita atenção.

- Julgamentos de outras épocas - continuou o conde. - Os preceitos mudaram muito, nos tempos que correm.- A voz deixou transparecer uma ponta de ironia. - Agora, intervêm o senhor e Cossington, em vez de apenas eu.

Justiça, em vez de justiça sumária? Sloan não tinha bem a certeza. Com um leve suspiro, aclarou a voz e voltou ao ponto que interessava:

- Esses registos têm valor que justifique o seu roubo?

- Nada justifica o roubo, inspector.

- Queira desculpar, milorde - balbuciou, corando. - Quero eu dizer...

A atmosfera dos Apartamentos Privados alterou-se subtilmente.

- Sim, são valiosos.

- Nesse caso...

- Mas demasiado para terem um preço.

- Compreendo.

- Duvido que compreenda, inspector. O arquivista do condado gostaria de os ter no seu império. Considera-os representativos do homem comum... ao qual provavelmente julga que deviam pertencer. A encarnação do contribuinte.

- Decerto...

- Como foi que disse aquele francês?...

- Não faço a menor ideia, milorde.

- Propriedade é roubo.

O que não correspondia exactamente ao ponto de vista da Polícia. Da inglesa, pelo menos. A propriedade era considerada respeitável, no mundo policial. Os homens sem propriedade assemelhavam-se a jogadores sem parada, uma ameaça sem raízes, deambulatória. Homens sem nada a perder.

- Os Colégios de Jurisconsultos adorariam anexá-los ao seu império - volveu Sua Senhoria-, porque se consideram uma profissão e crêem que uma profissão necessita de um corpo. Mas enganam-se, é tão boa como o pior dos seus membros.

- Sem dúvida, milorde - assentiu o inspector, cogitando que, na opinião da aristocracia, as profissões não deviam passar de actividades de oportunistas.

- Uma universidade cobiça-os para o seu império porque julga que representam o homem intelectual e isso constitui razão suficiente. Evidentemente que não constitui.

- Pois não, milorde.

- O intelectual pode deixar-se influenciar pelo intelecto. ..

- Com certeza, milorde.

- O que constitui um conceito perigoso.

- É muito possível, milorde. - Pretenderia a aristocrata pronunciar-se sobre o meritocrata?

- Os cérebros têm a sua utilidade, dentro de limites - pronunciou o conde, numa tirada oracular. - Não é assim,

Cossington?

- É um ponto de vista, milorde, um ponto de vista.- O causídico era demasiado astuto para dar a entender que também possuía um.

- É nesse ponto que intervém a aritmética política, inspector.

- É, milorde? - Sloan não se achava documentado sobre a aritmética política, mas sabia que o titular tentava transmitir-lhe uma filosofia, filosofia essa que não abarcava o homicídio.

- O maior bem para o maior número.

- Compreendo milorde. - Não seria aquilo a que chamavam "bem-estar comum", ou tratar-se-ia de uma coisa diferente?

- E como se revestem de valor histórico, não os posso vender a quem oferecer mais.

- Não, milorde?

- O meu país, que me suga até à última gota de sangue, não permite a liberdade do mercado. - O conde fez uma pausa, enquanto Sloan se apercebia de certa agitação de Cossington. - A única coisa que posso fazer é contrair as despesas em face de um sistema tributário cuja única finalidade consiste em privar-me da minha herança.

- Esses registos antigos estariam nas arcas dos arquivos?- perguntou o inspector, que era polícia e não político.

- Assim sucederia, normalmente.

- Mas não na sexta-feira?

O titular meneou a cabeça com veemência.

- Encontram-se emprestados à Biblioteca Creatorex desde princípios de Junho.

- Quem estava ao corrente disso?

- Todos os que se mostrassem interessados em consultá-los.

- Safa! - exclamou Crosby, quando abandonavam os Apartamentos Privados. - O fulano não grama o Governo.

No entanto, o espírito de Sloan movia-se noutras paragens. Perguntava-se se os cães de caça sentiriam o mesmo desapontamento do que ele naquele momento, depois de seguirem um rasto que se revelava falso. Por algum tempo, convencera-se de que seguia uma pista prometedora.

- E chama àquilo justiça - acrescentou o detective.

- Tudo é relativo.

Todavia, até que ponto seria tudo aquilo relativo para um punhado de agentes da Polícia que recebiam alguns xelins das mãos untadas de óleo do dono de uma garagem, de vez em quando?

- Em todo o caso, não me importava de receber esse dinheiro - persistiu Crosby.

- Importava, sim.

A dicotomia mental entre a presente investigação e a outra era quase excessiva. Encontravam-se em pontos opostos da escala.

Mas a escala era a mesma.

E Sloan não o ignorava.

Assim como o superintendente Leeyes.

- Se a oportunidade surgir, verá - disse ainda o detective, com uma expressão jovial.

O inspector olhou-o e tentou descortinar nele o descendente linear dos primeiros condes de Ornum, mas não conseguiu.

- Quero avistar-me de novo com Lady Alice - decidiu subitamente.

Como da outra vez, foi Lady Maude quem abriu a porta e os conduziu à presença da irmã.

- Só mais uma pergunta, milady - começou Sloan.

- Oiçamo-la. - A luneta foi colocada no inconfundível nariz dos Cremond.

- Quem sabia que não tinha convidado Mr. Meredith para o chá, na sexta-feira?

- Apenas ele próprio - foi a resposta em inflexão grave.

 

Miles Cremond parecia capaz de ingerir todos os chás e respectivos acompanhamentos que lhe colocassem na frente, em qualquer altura. O seu excesso de peso era de uma variedade maciça e de longa data. Prontificou-se a conversar com o inspector Sloan e o detective Crosby, sobretudo porque não era vulgar obter uma audiência tão atenta.

- Vim para o críquete - explicou, mostrando-se levemente contristado - e não para assistir a uma coisa destas. Venho sempre que a partida se realiza. É uma tradição.

Sloan prestava a maior atenção, na expectativa de detectar um indício esclarecedor do motivo pelo qual o crime ocorrera naquele momento em especial.

- O pobre homem nunca fez mal a uma mosca - acrescentou Miles.

- Pois não, que eu saiba.

Em seguida, Sloan estabeleceu que o interlocutor e Laura se haviam inteirado pela primeira vez das dúvidas relacionadas com o título de conde na quinta-feira.

- Estou certo de que não passa de um chorrilho de disparates - afirmou com vigor. - Não tenho a menor dúvida de que o tio Harry é o verdadeiro titular. Parece evidente.

Sloan não sabia se a primogenítura tinha algo de comum com a evidência, mas conservou-se silencioso.

- O resto é História, não acha? - tornou Miles.

- Não faço a menor ideia.

- Muitas famílias andam sempre a mudar com a sucessão, mas a nossa tem tido sorte nesse aspecto.

- Sim?

- Por causa do pormenor das batalhas.

- Qual pormenor?

- Nunca participaram nelas. Sempre que havia uma guerra, os Cremond ou eram muito velhos ou muito jovens para combater.

- O general... - observou Sloan, lembrando-se repentinamente do busto na biblioteca.

- Sim, esse também. Creio que um deles ainda chegou até Blenheim, mas a gota impediu-o de entrar na liça.

- Muito bem. Passemos agora a sexta-feira...

- Sim?

- Onde estava no momento cru... à hora do chá desse dia?

- Tomei-o apressadamente com os outros.

- Outros?

- O tio Harry, a tia Millicent, Henry, Eleanor, a prima Gertrude e a minha mulher. Não me demorei mais de cinco minutos. Queria ir lá para fora e Gertrude precisava de voltar para junto do seu lustre, pelo que saímos juntos.

- Que horas eram?

- Creio que me encaminhei para o ha-ha por volta das quatro e dez.

- Perdão?

- O ha-ha.

- Foi o que me pareceu. - O inspector tentou repetir o som, com prudência:-O ha-ha?

- Exacto.

- E que fez, quando lá chegou?

- Passeei em volta.

- Compreendo. - Era uma espécie daqueles jogos de salão em que todos estavam ao corrente do objecto, mais conhecido na Rádio por "Vinte Perguntas". Contendo-se com dificuldade de inquirir "É comestível?", articulou:-Viu alguém, enquanto estava aí?

- Purvis - disse Miles, depois de enrugar a fronte por um momento. - Conversava com Bert Hackle, junto do laranjal.

Sloan suspirou, reflectindo que seria demasiado simplista supor que havia laranjas no local.

- Mais alguém?

- Não.

- Quando voltou para dentro?

- Tarde.

- Tarde para quê?

- Jantar, inspector. Quase não tinha tempo para mudar de roupa. A minha mulher esperava-me e descemos juntos, um pouco atrasados.

- E esteve a passear durante todo esse tempo?

- Sim, inspector.

- Em redor do ha-ha? -Exacto.

- Que vontade de rir... - murmurou Crosby, entre dentes.

- Como disse? - Miles inclinou-se para a frente com curiosidade.

- Não foi nada - interveio Sloan, com brandura. - Ocorre-lhe mais alguma coisa acerca de sexta-feira?

Mas o ilustre Miles Cremond não tinha nada para acrescentar a respeito do dia em causa ou de qualquer outro.

O assunto constituía um mistério absoluto para ele, como não deixou de salientar.

E o mesmo se passava, aparentemente, com a esposa, Laura.

No entanto, não se absteve de comentar que quaisquer descobertas de Osborne Meredith relativas ao título de conde eram totalmente absurdas.

- Totalmente absurdas - repetiu, para a eventualidade de a expressão não se ter instalado devidamente nas mentes dos dois polícias.

- Nesse caso, não as encarou a sério?

- Com certeza que não, inspector.

- No entanto - retrucou Sloan, com desprendimento -, dá a impressão de que alguém pensava de modo diferente.

Com efeito, tudo indicava que alguém - que calçava sapatos de senhora número trinta e seis - as encarara suficientemente a sério para provocar o caos nos arquivos, como,ele teve oportunidade de recordar.

- Mas ninguém poderia levar tudo isto e entregá-lo a outra pessoa - protestou ela, com um gesto largo que abarcava a casa, o parque e, porventura, o próprio título.

- Teria de ser um pretendente bem sucedido através dos tribunais.

- Nem sequer sabemos quem seria esse pretendente.

- Não? - Sloan reconheceu que necessitaria de tentar determinar o sentido daquelas palavras, mais tarde. - Meredith podia saber. - Dir-se-ia que Laura Cremond não considerara a possibilidade, e ele sugeriu:-Talvez fosse a única pessoa ao corrente disso.

A hipótese fê-la empertigar a cabeça com brusquidão, e Sloan notou que ela não possuía nada dos Cremônd. Apenas uns vislumbres de beleza que se extinguiam apressadamente e a intervenção de um bom cabeleireiro.

- Quer dizer - aventurou, cautelosamente - que agora que ele morreu talvez nunca se venha a saber?

- Nesta fase das investigações, ainda não me quero pronunciar. Pode ter deixado alguma coisa escrita.

- Não. - O advérbio brotou com prontidão. Excessiva.

- Não?

- Ninguém tem conhecimento de nada do género - rectificou Laura Cremond, corando.

- Meredith podia ter comunicado o resultado das suas pesquisas a alguém estranho à família. - Os olhos de Sloan desviaram-se para os sapatos da interlocutora e solicitou, com uma expressão grave: - Queira explicar-me de novo o que se passou na tarde de sexta-feira.

- Não tenho nada de especial para lhe revelar, inspector.- A respiração dela começava a alterar-se. - Depois do chá, recolhi ao quarto, porque não havia nada para fazer. Gertrude tinha voltado para o seu lustre, o tio Harry costuma dormir a sesta àquela hora e o meu marido foi passear pelas imediações.

- Lorde Henry e Lady Eleanor?

- Foram à aldeia de Ornum visitar a sua antiga ama, que não tem passado bem.

- E a condessa? - Parecia a chamada da formatura da alvorada.

- A tia Millicent? Quem é que consegue manter uma conversa em termos com ela? - proferiu Laura Cremond em tom mordaz.

- Compreendo. - Sloan admitiu que ela tinha razão. Na verdade, tornava-se tão difícil dialogar com a dama em causa como com uma borboleta. - Por conseguinte, recolheu ao quarto?

- Exacto.

- E ficou lá?

- Fiquei.

Olhou-a em silêncio por um longo momento e declarou:

- Penso que efectuou uma incursão afortunada. Muito afortunada, mesmo.

A conversa com Lady Eleanor Cremond constituiu uma variante agradável, e Sloan não tinha dificuldade em compreender a inclinação sentimental de Charles Purvis.

Com efeito, ela era tudo o que uma boa testemunha deve ser.

Simples, directa, segura de si sem se mostrar categórica.

- Vi Ossy pouco antes das quatro - repetiu.

- Vivo e ileso?

- Bem vivo e ileso. Quase excitado.

- Acerca de quê?

- Não me disse. Limitámo-nos a trocar algumas palavras, escolhi um livro e retirei-me. - Fez uma pausa. - Era realmente um entusiasta.

- Assim me foi dado a entender. - Sloan reflectiu que o entusiasmo não o salvara. Muito pelo contrário. - Ele tomou o chá?

- Não fiquei, para assistir. Convidei-o a reunir-se-nos, uma vez que não o fora tomar com as tias-avós, mas alegou que tinha muito que fazer e esperava Mr. Ames a todo o momento.

A hora do chá de sexta-feira assumia subitamente uma importância invulgar.

Lady Eleanor, porém, pensava no almoço desse dia.

- Devem estar mortos de fome - disse, consultando

o relógio. - Vou indicar a Dillow que lhes traga alguma coisa. Onde estarão?

- Obrigada, milady, é muito atenciosa. No armeiro.

- Não me diga que vão comer aí! - Reflectiu por um momento e decidiu:-Já sei! Na sala de armas.

Seguiram para a sala de armas, o quartel-general do homicídio mais apropriado que se poderia desejar.

- Esta gente tem as armas entranhadas no sangue - resmungou Crosby, olhando em volta, no pequeno aposento que se achava literalmente repleto delas. - Repare nisto. Sempre pensei que as de lá de baixo lhes chegassem, para ainda guardarem todo este arsenal.

- Há um pormenor a considerar - esclareceu Sloan.- As de lá de baixo são ornamentais, enquanto estas podem utilizar-se.

Na verdade, as armas pareciam alvo de tantos cuidados como as porcelanas.

- Os veados que o conde parece ter em tão alta estima...

- Sim...

- Ele abate-os?

- Primeiro alimenta-os.

- E depois abate-os?

- Suponho que sim.

- Os aristocratas são gente estranha, não acha? - comentou Crosby, coçando a cabeça.

- Governo pelos melhores cidadãos, é o que isso significa.- O inspector puxou da esferográfica. - O nosso problema consiste em desvendar este mistério.

Pouco depois, Dillow levou-lhes cerveja e sanduíches e, a uma pergunta de Sloan, declarou:

- Só quando levei o chá às senhoras lá de cima me apercebi de que Mr. Meredith não lhes fazia companhia, como era hábito, às sextas-feiras.

- Que horas seriam?

- Cerca das três e meia. Elas gostam de o tomar cedo, porque gostam de dormir a sesta após o almoço.

- Muito bem. Obrigado, Dillow.

Quando ficaram sós, os dois polícias continuaram a trabalhar enquanto comiam. Sloan voltou a página do bloco-notas e, do lado de fora da janela, um pavão emitiu um som agudo.

- Porque não matará ele essas aves em vez dos veados?- grunhiu Crosby.

- Porque constituem outra espécie de ornamento.

- Prefiro os grifos - decidiu, pegando noutra sanduíche.

- Pelo menos, não fazem barulho.

- Ora bem. - Sloan fixou o olhar na página em branco à sua frente. - Até onde avançámos?

- Até parte nenhuma.

- Conhecemos a identidade da vítima - prosseguiu, pacientemente, reflectindo que isso representara um ponto de partida em muitos dos casos que investigara. - E sabemos onde julgamos que foi morta.

- Sentada à mesa da biblioteca - assentiu o detective.

- Facto confirmado como possível pelos técnicos do Laboratório.

- Com que aproximação sabemos a hora? - Chamava-se àquilo método indutivo, todavia Crosby não possuía inclinação especial para as deduções.

- Depois de Lady Eleanor e Dillow o terem visto, por volta das quatro.

- Mas antes de ter tempo" de tomar o chá.

- A menos que ambos mintam.

- Exacto.

- Ignoramos porque o mataram - continuou o detective, que fazia desaparecer as sanduíches sem dificuldade.

- Sabemos, em parte - salientou Sloan, apoderando-se de uma, enquanto havia. - Descobriu uma coisa que alguém não queria que soubesse. Mrs. Ames confirmou o telefonema, mas convém que você investigue os movimentos do vigário anteriores às cinco e meia.

- Já o fiz - anunciou Crosby, inesperadamente. - Avistei-me com a chefe dos Correios, uma mulher ao corrente de tudo o que se passa na região. Ames esteve na aldeia até um pouco depois das cinco e meia, pois ela viu-o entrar e sair de várias casas.

- Por conseguinte, sabemos quando... dentro de certos limites.

- Mas desconhecemos porquê.

- Sabemos onde.

- Mas não quem. - Pegou na última sanduíche sem hesitar. - Estão boas, hem?

- Estavam - redarguiu o inspector, com sarcasmo.

- Em todo o caso, sabemos quem não foi - volveu Crosby, com a boca cheia.

- Como assim?

- Não foram o conde e a condessa, porque estavam juntos na sala da hora do chá em diante.

- Podem ter preparado as declarações. Não esqueçamos que são marido e mulher.

- Eu não me atreveria a combinar nada com ela. É muito arriscado. De qualquer modo, os filhos só os deixaram às quatro e vinte, e aposto que Meredith já teria tomado o chá a essa hora, se estivesse vivo.

- Com a voracidade que você se lançou sobre as sanduíches.

- Não podemos admitir que ficou a olhar para a bandeja.

- Concordo que é pouco provável.

- E se o ilustre Miles fala verdade...

- Se...

-... Purvis e Hackle estavam juntos, fora de casa.

- Restam, portanto...

. -A prima Gertrude, que andava por aí, o próprio Miles, que podia ter visto os outros dois de uma janela...

- Tome nota para lhes perguntar se o viram.

- ...William Murton, que podia ou não encontrar-se em Ornum...

- E Dillow - concluiu Sloan.

- Quatro suspeitos - recapitulou Crosby. - A prima Gertrude, Miles, William e Dillow.

- Já que estamos a reconstituir o crime, continuemos com o que aconteceu depois.

- Depois?

- Não lhe deve ter passado despercebido que o corpo não foi encontrado na biblioteca.

- Com certeza que não.

- Então...

- Alguém o levou da biblioteca.

- Excelente. O assassino, não lhe parece? A não ser que admitamos que apareceu alguém e o arrumou noutro lugar, para não alterar a estética da biblioteca.

- Acho muito improvável.

- Claro que é improvável - retorquiu Sloan, começando a impacientar-se, ao mesmo tempo que reconhecia que o sarcasmo era uma arma do tipo boomerang.-O assassino transferiu-o para o armeiro - acrescentou, em tom menos agreste.

- Mas não o colocou imediatamente na armadura, por causa do rigor mortís. Pelo menos, foi o que o médico afirmou.

- Em que altura terá sido?

- A meio da noite? - sugeriu Crosby, com um clarão de inteligência no olhar.

- Deixou o corpo na biblioteca desde as quatro da tarde?

- Muito arriscado - concordou.

- Mas não desesperadamente arriscado. Os habitantes da casa não parecem muito inclinados para a leitura. Crosby...

- Sim?

- Raciocine.

- Sim, senhor, - Os documentos intervieram nisso de algum modo. Quem me dera saber de que maneira.

- Quem andou a mexer neles - declarou, após um momento de meditação-, fê-lo depois de Meredith estar morto.

- Plenamente de acordo - asseverou Sloan, sem vacilar.- Ele não admitiria que lhe destruíssem o trabalho de anos. Quando remexeram na papelada?

- Não sabemos.

As coisas que não sabemos formam uma lista interminável.- O inspector largou a esferográfica em cima do bloco-notas. -O que nos interessa é descobrir alguém que entrasse na biblioteca, naquela tarde.

- Ou que visse o assassino levar o corpo para o armeiro.

- Isso já nós sabemos.

- Sabemos?

- Não se recorda?

- Não, senhor - confessou Crosby, arqueando as sobrancelhas.

- -Alguém viu alguém no Grande Salão.

- Viu?

- Pouco antes de jantar, na sexta-feira- prosseguiu

Sloan, com entusiasmo crescente. - Depois de soar o gongo para mudarem de roupa. Quando deviam estar todos a vestir-se para a refeição, nos seus quartos.

- Não me diga... - começou o detective, em cuja mente despontava finalmente uma luz.

- Digo, Lady Alice Cremond viu...

- O juiz Cremond.

- Precisamente.

- Mas é um fantasma.

- Acredita em fantasmas? - perguntou Sloan, com um suspiro de resignação.

- De modo algum.

- Eu também não. Estou disposto a apostar que o que a velhota viu (sem a luneta, repare) não foi um fantasma do século dezasseis, mas um assassino do século vinte que arrastava o corpo de um homem frágil.

Foram interrompidos pelo agente Albert Bloggs, que Dillow conduziu à sala de armas.

- Ele disse que estavam aqui - explicou o primeiro, indicando com o polegar o mordomo que se afastava. - Não sabia se devia vir imediatamente ou telefonar à Central.

- Há alguma novidade? - inquiriu Sloan, desconfiado.

- Aquele fulano que me mandou vigiar, Murton...

- Que lhe aconteceu?

- Conseguiu escapulir-se-me.

 

- Descubra-o - determinou o superintendente Leeyes, pelo telefone.

- Sim, senhor - assentiu Sloan.

- E depressa.

- Sim, senhor.

- Onde desapareceu?

- Aqui.

- O quê?! - explodiu Leeyes. - Quer dizer que anda à solta nessa malfadada casa e você não sabe onde está?

- Sim, senhor. Bloggs seguiu-o do chalé na aldeia até à Casa Ornum, após o almoço, mas Murton encaminhou-se para as traseiras e ele perdeu-o de vista.

- Perdeu-o de vista?-repetiu em inflexão ominosa.- Assim, com essa facilidade? Aposto que um garoto de dez anos fazia melhor serviço. Aproximamo-nos do meio do Verão, quando ainda nem sequer começou a escurecer, e Bloggs perdeu-o de vista!

- Sim, senhor.

- Depois disso, ele, naturalmente, aproximou-se da porta da frente e tocou à campainha.

- Mais ou menos - admitiu o inspector, amargurado, sem compreender que outra coisa o agente podia ter feito.

- E que pretendia Murton? Já pensou nisso?

- Sim, senhor. - Na realidade, ele quase não pensara noutra coisa desde que Bloggs entrara na sala de armas.

- Não faço a menor ideia, mas estou preocupado.

- Também eu - anunciou o superintendente, no conforto do seu gabinete na Central da Polícia de Berebury.- E muito.

A condessa de Ornum tornou a encher a xícara de café a Mr. Adrian Cossington. Estava quase frio e ele não pedira que lhe renovassem a dose, mas não protestou. O almoço terminara há algum tempo e registava-se um movimento geral para longe da sala de estar.

- Gostava que desse uma olhadela à manada, Cossington - disse o conde. - Creio que se pode considerar um bom ano, atendendo às circunstâncias. As vezes, acontece, depois de um Inverno mau.

- Sem dúvida, milorde. Não deixarei de o fazer.

Na realidade, o que menos agradava ao solicitador da City era percorrer o parque na esteira do conde, na vaga esperança de vislumbrar os esquivos e tímidos animais. Do ponto de vista legal - e ele raramente se exprimia ou pensava noutros termos-, os veados não lhe interessavam particularmente. Por se tratar de ferae naturae, o seu abate não podia ser considerado um delito.

- É o ideal, após uma refeição - proclamou o titular.

- Um bom passeio pelo parque.

- De facto, é muito agradável. - Cossington continuava a ponderar automaticamente os aspectos legais dos veados. O único remédio para evitar que os matassem consistia em impedir a entrada a violadores da propriedade alheia dispostos a abatê-los ou castigar os intrusos.

- Nesse caso, quando tiver tomado o café... - O conde levantou-se, significativamente.

O solicitador apressou-se a ingerir o fluido tépido. Em geral, apreciava uma certa dose de sang froid nos clientes, todavia a aristocracia manifestava tendência para levar as coisas demasiado longe.

- Queres vir, Henry?

- Hum!... não. Tenho de afinar o motor do carro.

- Eleanor?

- Pois sim.

- Não posso continuar parada. - A prima Gertrude pôs-se de pé e acrescentou em voz rouca:-Tenho muito que fazer.

- Coitada - articulou o conde, com simpatia. - Estás sempre ocupadíssima.

- Alguém tem de cuidar das flores - argumentou ela. - Com todo este rebuliço, não recebem assistência desde sexta-feira.

- Foi um rebuliço de respeito - observou Miles. Todavia Gertrude ignorou-o.

- Hackle trouxe flores frescas, esta manhã. É uma coisa boa que tem o mês de Junho. Não há falta delas.

- Nem de jarrões - acudiu a condessa.

- Com certeza - assentiu a outra, em voz tensa.

Mr. Adrian Cossington sentiu-se compelido a dizer algo acerca do crime:

- Tenciona introduzir alguma alteração na... rotina, depois da... descoberta de ontem, milorde?

- Alteração? - O conde exibiu uma expressão de incredulidade.- Aqui?

- Sim, milorde.

- Não.

- Refiro-me ao público - insistiu o solicitador. - Continuará a ser-lhe franqueada a entrada?

- Sem dúvida.

- Parece-lhe prudente, milorde?

- Prudente?

- O homicídio...

- Se o público quer deliciar-se com a visita ao local de um crime, não serei eu a opor-me.

- Vai acudir uma multidão enorme...

- Acha? Óptimo.

- Abutres da cultura na Longa Galeria - interpôs Lorde Henry.

- Águias vorazes no Grande Salão - gemeu Lady Eleanor.

- E pé de esteta, quando entrarem na sala das porcelanas da prima Gertrude - acrescentou Henry.

- Que som horrível tem tudo isso - comentou a condessa. Voltando-se para os até aí silenciosos Miles e Laura, perguntou;-Que pensam fazer?

Laura declarou que tinha uma dor de cabeça excruciante e tencionava deitar-se e o marido iria dar uma volta.

- Precisa de um pouco de ar fresco - esclareceu.

- Como na sexta-feira - lembrou Gertrude.

- Não é nada como na sexta-feira - retorquiu Laura.

- Com certeza que não - grunhiu a outra.- Nessa altura, ele pretendia fazer um pouco de exercício, não era?

- E fê-lo, mas não matando o velho Meredith.

- Limitei-me a passear no parque - afirmou Miles.

A condessa efectuou um gesto vago na direcção da cafeteira de prata, mas ninguém aceitou o convite.

- Alguém se lembrou de dar de comer aos investigadores?

- Pedi a Dillow que lhes levasse sanduíches e cerveja - informou Lady Eleanor.

A alusão à Polícia suscitou nova intervenção de Adrian Cossington.

- Parece-lhe prudente reabrir a casa ao público tão cedo, milorde?

- Creio que devemos continuar a proceder como até aqui - redarguiu o conde, com uma frase que abarcava toda uma filosofia.

- Conviria introduzir algumas alterações, milorde. Na minha qualidade de conselheiro legal...

- Quando não é necessário mudar, é necessário não mudar - citou com gravidade. - Julgo podermos aceitar que a situação voltou à normalidade.

Mas não voltara.

Pelo menos, do ponto de vista de Sloan e Crosby, para não falar do infortunado Bloggs.

O inspector acabava de abandonar a sala de armas, quando chegou um estafeta de Berebury com um maço de relatórios.

O oficial do patologista, com a indicação "Cópia para o coroner": os factos da morte na linguagem da Academia, acrescidos de algumas observações em termos mais acessíveis.

Uma nota do coroner, que marcava o inquérito para quinta-feira.

Um comentário seco do Laboratório: o sangue da lombada do livro da biblioteca satisfazia todos os testes de comparação com o da vítima. Os cabelos encontrados no instrumento do crime, identificado como elemento B...

- Qual é o elemento A? - quis saber Sloan, subitamente.

- A armadura - explicou Crosby, que procedera à identificação.

... identificado como elemento B assemelhavam-se aos da vítima em todos os índices de comparação conhecidos. E o mesmo se aplicava ao elemento B. Fora efectuada uma tentativa para limpar as impressões digitais, não apresentando nenhuma.

Dois relatórios de Londres, onde se tinham desenrolado investigações sobre Míles Cremond e William Murton.

A Companhia de Navegação Pedes achava-se à beira da falência e suspeitava-se de que o nome do ilustre Miles Cremond figurava no Conselho de Administração apenas para conferir um aspecto de credulidade às operações da firma. E o signatário do relatório acrescentava que, se o inspector tinha em mente efectuar um investimento, a empresa South Sea Bubble oferecia melhores garantias.

William Murton vivia no endereço indicado, que consistia numa combinação de estúdio-sala de estar-quarto, e, aparentemente, possuía duas características deploráveis, quando reunidas: gostos dispendiosos e baixos rendimentos.

- É dos que gostam de parecer aquilo que não são - observou Crosby, que seria incapaz de viver semelhante situação.

- Com a diferença de que tem um tio para sugar - lembrou Sloan.

- Não percebo porque o conde lhe apara o jogo. Se fosse o meu tio...

- Chama-se a isso noblesse oblige.

O autor do relatório prosseguia informando que William Murton manifestava particular predilecção pelas damas jovens e núbeis.

No fundo da página, havia uma anotação do inspector Harpe, dos Serviços de Viação, em que solicitava a Sloan que o procurasse, o mais depressa possível.

Este último guardou-a no bolso interior do casaco, reflectindo que os problemas manifestavam a indesejável tendência para se multiplicar nos momentos menos propícios.

Havia igualmente uma comunicação do agente que visitara os executores do testamento de Beresford Baggles, no sentido de que Michael Joseph Dillow trabalhara em sua casa até à data da morte por apoplexia. Além disso, Baggles legara-lhe a quantia de quinhentas libras, que ainda não tinham sido entregues devido a dificuldades que se haviam deparado aos executores testamentários ao descobrirem que as obras do artista Van Gogh da colecção do finado eram falsas (causa da apoplexia fatal), mas o mordomo receberia o dinheiro logo que tudo ficasse esclarecido.

- Van Gogh - murmurou Sloan. - Não foi o fulano que cortou a orelha?

O agente Bloggs, que, noutra época, decerto veria ambas as orelhas seccionadas pelo deslize que cometera, conservou-se silencioso.

- São uns sujeitos curiosos, os pintores - comentou Crosby.

O que os fez concentrar de novo em William Murton.

- Só com um exército conseguiríamos localizá-lo numa casa destas - disse o detective. - Tem não sei quantas divisões...

- Não chegam a trezentas - assegurou-lhe Sloan.

- O que o impediria de saltitar de uma para outra, enquanto o procurávamos?

- Nada - concordou, com um suspiro. - Absolutamente nada. No entanto, não tardaremos a receber reforços.

No terraço junto da sala de armas, um pavão emitiu um grito de desdém.

- Isto serve, Mr. Purvis? - perguntou Bert Hackle, que se fazia acompanhar de uma tábua.

- Creio que sim - aquiesceu o administrador, medindo-a com a vista. - Obrigado, Bert. Vejamos...

Tinha na mão um largo cartão branco em que se via inscrita a seguinte informação: "Armeiro, 2 xelins suplementares."

- Excelente ideia - aprovou o jardineiro, que era um grande admirador do conde.

- É claro que não se pode comparar com um letreiro Impresso - murmurou Purvis, recuando um passo para observar o efeito-, mas não há tempo para arranjar melhor até quarta-feira.

- Acha que nos deixam entrar lá, nesse dia? - Hackle moveu o ombro na direcção do topo da escada de acesso ao armeiro.

- Sua Senhoria pensa que sim. - O administrador olhou em volta. - Agora, precisamos de uma coisa para afixar o letreiro.

- Convinha era uma espécie de cavalete. Rigorosamente, Bert Hackle não devia entrar no Grande

Salão com as botas que usava no jardim, mas como havia Hackles na aldeia de Ornum há quase tanto tempo como Cremonds na Casa Ornum - embora"não tão bem documen- tados-, gozava de pequenos privilégios e moveu-se, sem relutância na sala em busca de um objecto apropriado.

- Se o afixássemos nisto, ficava óptimo.

- Mas não se Mr. Feathers o visse - retorquiu Purvis, secamente. - É uma peça rara de malaquite.

O outro, cujo interesse pelos minerais se cingia às pedras que se lhe deparavam no exercício da profissão, efectuou nova tentativa.

- E esta espécie de caixa?

A espécie de caixa era de pau-cetim embutido a marfim e continha a colher de pedreiro cerimonial com que o undécimo conde cortara a primeira secção de relva para assentamento da primeira via férrea que ligaria Luston a Berebury. (Fora uma ocasião memorável em mais de um aspecto, porquanto Sua Senhoria, único proprietário das terras entre as duas localidades, pudera indicar o preço que desejara. E não perdera a oportunidade de o fazer.)

- Muito melhor - admitiu Purvis. - Importa-se de empurrar essa mesa um pouco mais para a porta?

Em cima da mesa e apoiado à caixa de pau-cetim, o letreiro achava-se agora em local bem visível.

Mr. Robert Hamilton não concordava com a concepção do inspector Sloan sobre o homem comum.

O arquivista do condado era inexcedivelmente activo, erudito e prestável.

Sloan, à falta de efectivos suficientes para o desempenho de pequenas tarefas, vira-se obrigado a acompanhá-lo pessoalmente à sala dos arquivos. Na medida em que o assassínio de Osborne Meredith tinha um ponto focal, situava-se naquela parte da casa.

Mais tarde, quando o procurou, Hamilton voltou-se para a entrada e declarou:

- Pode entrar à vontade, inspector. Creio não haver motivo para dizer que desarrumará as coisas mais do que estão.

- Pois não. Houve alguma visita, até agora?

- Miss Gertrude Cremond veio perguntar se precisava de ajuda, depois apareceu Mrs. Laura Cremond, a qual julgava que um objecto qualquer dela podia encontrar-se aqui, e o mordomo.

- Dillow?

- É esse o seu nome? Deixou-me qualquer coisa para trincar na biblioteca, mas pedi-lhe que trouxesse para aqui.

- Não viu William Murton?

O arquivista meneou a cabeça, enquanto Sloan olhava em volta, e proferiu, com uma expressão grave:

- Alguém quis impedir que se efectuassem pesquisas aqui.

- Dá essa impressão, de facto.

Agitando a mão na direcção do caos, calculou:

- Só dentro de uma semana, pelo menos, será possível estabelecer um pouco de ordem na papelada, para não falar da localização daquilo que devo procurar. - Inclinou a cabeça e semicerrou as pálpebras. - Não me pode fornecer um indício da sua natureza?

- A única coisa que sabemos é que alguém baralhou tudo e tentou entrar de novo, a noite passada, depois de selarmos a porta.

- Enfim, não vejo sinais de estragos, o que sempre é uma consolação. Na verdade, há aqui uma colecção de documentos particularmente valiosa. À primeira vista, o objectivo da devastação não parece ter sido o roubo.

- Pois não.

- Julgo tratar-se de obra de um ignorante. Um ignorante absoluto.

- Temos motivos para supor que foi uma mulher.

- Então, está explicado. Elas adoram o caos.

- Neste caso - salientou Sloan, pausadamente -, ela adorava provar que o conde de Ornum não é o verdadeiro detentor do título.

- Sim - assentiu Hamilton, inesperadamente. - O pobre homem escreveu-me a esse respeito, há cerca de uma semana.

- Escreveu-lhe?

- Estava equivocado, claro. Posso garantir-lhe que a sucessão está perfeitamente em ordem, inspector. Perfeitamente.

- Mas Meredith supunha...

- Cometeu um lapso frequente. Foi induzido em erro por um caso de mort d'ancestre na família. Uma situação enganadora, sem dúvida.

- Quer dizer?...

- Também ficou um pouco confuso com a socage.

- Com a socage... - repetiu Sloan, cautelosamente.

- Exacto. Socage vulgar. Meredith tinha os factos bem documentados, mas as inferências um pouco deturpadas. Era um amador - asseverou o totalmente profissional Robert Hamilton. - Um bom amador, note-se. Posso afirmá-lo com convicção, mas não um homem treinado.

- Ele não disse a ninguém que se tinha equivocado - articulou o inspector, tentando assimilar a novidade e situá-la no xadrez do crime.

- Voltando a essa socage...

- Posse de terra mediante um serviço certo e determinado sem relação com a herança. Por outras palavras, as propriedades dessa natureza procediam directamente da Coroa em troca de serviços prestados... de um modo geral, homens armados em tempo de guerra...

Sloan reflectiu que aquilo explicava o armeiro, embora não a sala de armas.

- Em teoria - acrescentou o arquivista -, todas as terras pertencem ao rei ou à rainha, consoante o caso.

- Ainda hoje? - estranhou Sloan, pensando nas suas rosas e modesta residência num subúrbio de Berebury.

- Sem dúvida. - Hamilton soltou uma risada seca.- Julgo poder afirmar que tem idade suficiente para haver prestado o seu serviço de cavaleiro, inspector.

Sloan nunca encarara o caso daquele modo, mas...

- Não é bem a mesma coisa - concedeu o outro-, mas não anda muito longe. É aí que intervém o título de conde. Homens que participavam nas guerras do rei com os seus próprios exércitos. Eram nomeados condes...

- Os outros - interrompeu o incorrigível Crosby - eram todos plebeus.

Não era frequente Charles Purvis ser apanhado em falso, pois tratava-se de um homem competente, que prestava particular atenção aos pormenores. Nem a distracção resultante da admiração distante da adorável Lady Eleanor costumava normalmente influir na qualidade e eficiência do seu trabalho.

No entanto, como foi subsequentemente reconhecido, um homicídio na casa bastava para perturbar qualquer pessoa e levá-la a descurar assuntos de importância menos premente.

Por conseguinte, quando um autocarro se imobilizou diante da entrada da Casa Ornum, às três horas em ponto, ele não hesitou em mandá-lo embora. É certo que não era o mesmo tipo de veículo que costumava aparecer nos dias de visitas, mas infinitamente mais luxuoso, e não proclamava o facto com letras de trinta centímetros de altura.

Charles Purvis avistou o autocarro do Grande Salão e como Dillow não se achava nas proximidades, resolveu ocupar-se pessoalmente do assunto.

- Lamento, mas a Casa não está aberta ao público, hoje...

- Mr. Purvis? - (O administrador sentiu a mão comprimida numa espécie de torno manual.) - Sou Cromwell T. Fortescue. Recebi a sua carta...

- Eu escrevi-lhe? - balbuciou Purvis.

- Sem dúvida. Escreveu-me a dizer que podíamos ver os quadros do conde, hoje. Somos da Sociedade de Arte dos Jovens Mestres...

Naquele momento, outro autocarro algo menos luxuoso surgiu atrás do primeiro.

Na realidade, era menos luxuoso porque fora requisitado pelo superintendente Leeyes para acomodar o maior número possível de efectivos para colaborarem nas diligências do inspector Sloan para encontrar William Murton.

As buscas, orientadas por Sloan, coadjuvado por Crosby e Floggs, prolongaram-se por cerca de uma hora, até que o encontraram.

Na oubliette.

Morto.

 

- Não é possível!-uivou o superintendente.

- Infelizmente, é - confirmou Sloan. - Lamento...

- E tem razões para lamentar. Mas isto não fica assim. Se Bloggs não o deixasse escapar...

O inspector conteve-se com dificuldade de observar que o agente seguia Murton por um motivo totalmente diferente.

- E se você tivesse suspeitado dele mais cedo, nada disto acontecia - persistiu Leeyes.

- Não, senhor. O Dr. Dabbe crê que o assassinaram mal entrou em casa.

- Depois de Bloggs o perder - volveu, inexoravelmente.

- Isso significa que alguém estava à espera dele.

- Bem sei. Não precisa de esmiuçar todos os pormenores.

- Pois não, senhor.

- Preparado para lhe aplicar o golpe de misericórdia.

- Sim, senhor.

- Com três polícias experientes na casa!

- Sim, senhor. - Não adiantava explicar que Ornum não era uma casa, mas uma "Casa", nem se limitava a um conjunto de três assoalhadas, com uma casa de banho, cozinha e despensa. Ou que as masmorras medievais eram à prova de som como um anexo construído sem preocupações especiais.

- A Imprensa vai delirar com isto.

- Sim, senhor.

Sloan reflectiu que William Murton, semicavalheiro e semipintor, pai, mas não marido, sobrinho porém nunca herdeiro, sem rendimentos embora nunca propriamente privado de fundos, transitara a outro mundo onde as coisas eram presumivelmente todas boas ou todas más.

- E quem o matou, Sloan? Ao menos, explique-me isso...

- Até esta tarde, tínhamos quatro suspeitos do homicídio de Osborne Meredith. William Murton era um deles.

- Espero que não estejamos a entreter-nos com o jogo das eliminações.

- De modo algum. Pondo de parte Murton...

- De um modo geral, os suicidas não costumam estrangular-se.

- Decerto que não. Pondo de parte Murton, teríamos três suspeitos para o primeiro assassínio...

Sloan não era um bárdico, pois nem sequer conhecia o significado do termo, apesar do que, um dia, assistira a uma representação de Macbeth, e ainda não esquecera a forma, na sua opinião, irónica como as personagens estavam enumeradas no programa: "Lordes, Cavalheiros, Oficiais, Soldados, Assassinos, Lacaios e Mensageiros."

Com a diferença de um soldado a mais ou a menos, afigurava-se-lhe que se achavam todos representados naquele momento na Casa Ornum.

Na peça havia o Primeiro e o Segundo Assassinos. Resultaria que houvera um Primeiro Assassino para Osborne Meredith e um Segundo Assassino para William Murton?

Custava-lhe a crer.

Ou um Primeiro e Segundo Assassinos para cada vítima, como na peça?

Um marido e respectiva mulher? Era a sociedade que mais frequentemente enveredava pelo homicídio. "Minha esposa e eu somos um único ser e eu sou ele", vem nos livros. No caso de Miles e Laura Cremond devia verificar-se o inverso. Não subsistiam dúvidas quanto a quem usava saias, naquele matrimónio...

Três suspeitos eram demasiados para o superintendente Leeyes, que se manifestou nesse sentido.

- Não consegue melhor do que isso, Sloan?

- De momento, não. Gertrude Cremond, Miles Cremond e a esposa e Dillow podem ter cometido o primeiro crime.

- Sim, mas qual deles?

- Não sei, senhor. É claro que o segundo homicídio confere um aspecto novo à situação...

O inspector arrependeu-se, mal acabou de pronunciar o termo.

Podia ter empregado outro qualquer, menos "aspecto".

O de William Murton era hediondo. O rosto azulado, com a língua pendente entre os lábios sem cor.

O Dr. Dabbe, chamado apressadamente, mostrara-se peremptório.

- Estrangulamento - declarou, com o habitual laconismo.- Há duas horas, quando muito. Qualquer coisa fina, como uma guita, aplicada pelas costas e apertada até cortar a respiração. De momento, não posso dizer o que foi. Fica para mais tarde, após um exame minucioso.

Até então, Sloan não se apercebera da assustadora vulnerabilidade do pescoço humano. Parecia-lhe inconcebível que um homem jovem e possante como William Murton pudesse ser eliminado do número dos vivos com o aperto de um fio ou arame fino em torno da garganta.

Depois do almoço.

Todos os ocupantes da casa tinham dispersado, após a refeição, como ele estabelecera com relativa facilidade.

Que contecera a seguir?

Entrara em cena o Primeiro Assassino para cometer o Segundo Homicídio?

- E porque o mataram? - volveu Leeyes.

- Confesso que...

Sloan interrompeu-se, compreendendo que conhecia o motivo.

Algo num recanto do espírito acabava de lho revelar.

E flagelava-lhe o subconsciente. Sem deixar de escutar o superintendente, pôs-se a folhear o bloco-notas. Em determinada altura daquela manhã - havia realmente tão pouco tempo?-, William Murton dissera-lhe uma coisa...

Por fim, localizou a passagem que procurava.

Com efeito, declarara que não ganhava a vida como a prima Gertrude, com a limpeza de lustres. E acrescentara: "Sou um pendura."

Como podia ele saber, se não estivera na Casa Ornum em todo o dia, que Gertrude se entretivera a limpar o lustre? Algo lho devia ter insuflado no espírito.

Não apenas "lustres", mas o lustre do Grande Salão.

O mesmo Grande Salão, onde, ao fim da tarde, a idosa Lady Alice Cremond vira aquilo que, carinhosamente, supusera ser o fantasma de um antepassado há muito extinto, o juiz Cremond.

Para saber que Gertrude estivera a limpar o lustre, uma pessoa deveria tê-la visto fazê-lo ou observado as peças de cristal em cima da mesa, consciente de que constituía uma das tarefas que a impressionante Miss Cremond lhe atribuíra. Ou, quando muito, ter conversado com alguém ao corrente disso.

Por outro lado, se William Murton estivera na Casa Ornum, sexta-feira à tarde, porque não o revelara?

A pergunta só tinha uma simples e assaz sinistra resposta. Seria porque ele avistara o mesmo vulto e não só compreendera que não se tratava do fantasma do juiz Cremond, como o reconhecera... perigosamente?

- Um chuço... - dizia Leeyes naquele momento.

- Perdão? - Gertrude era tão desprovida de atractivos como um chuço. Seria isso que ele queria dizer?

- Um chuço - repetiu o superintendente. - Mataram-no com algum dos artefactos exóticos do armeiro?

- Não, senhor. O armeiro encontra-se fechado à chave. Foi com um instrumento muito mais moderno.

O Dr. Dabbe ainda não estabelecera a natureza desse instrumento, quando Sloan regressou à oubliette.

O cenário era indiscutivelmente macabro para um homicídio. A morte condizia bem com paredes de pedra desnudas, e era o pequeno grupo de homens modernos que parecia deslocado.

Crosby achava-se presente, assim como um consideravelmente abalado Ben Hackle. Fora este último quem conduzira os polícias àquela parte da Casa e levantara a grade da oubliette sem a mais leve suspeita de que poderia conter alguma coisa e ainda menos o corpo que fora William Murton.

O reverendo Walter Ames também fazia parte do grupo, e Sloan não sabia se ele continuava ali desde a manhã ou fora a casa e voltara, mas preocupavam-no mais outras coisas para se concentrar em semelhante pormenor.

O Dr. Dabbe mantinha o papel de figura central do drama em que os outros constituíam personagens secundárias. No entanto, o inspector admitia para consigo que os médicos eram assim mesmo.

As três profissões tinham algo para lhe revelar.

À semelhança de "A Balada da Prisão de Reading", como cogitava Sloan, o qual, nos seus tempos, era conhecido por "bom nos estudos". A sua educação encontrava-se situada na era que incluía - ou, melhor, insistia - a aprendizagem de versos de cor.

- Murton não tinha nada que estar aqui - declarou o detective Crosby.

(O Governador era exigente no cumprimento do decreto sobre os regulamentos.)

I - Se ficasse no seu domicílio, não lhe acontecia nada - proferiu a Lei.

- A vítima foi atacada pelas costas e morreu rapidamente - decidiu o Dr. Dabbe, (O Médico disse que a Morte não passava de um Facto Científico.)

- Lutou, mas não lucrou nada com isso - observou a Medicina.

- Que Deus se compadeça da sua alma - murmurou o reverendo Walter Ames.

(E duas vezes por dia o Capelão aparecia E deixava um pequeno panfleto.)

- é possível que, com o rolar do tempo, possamos ver melhor a sua vida na verdadeira perspectiva - sugeriu a Igreja.

Sloan perguntou-se se aquele homem de Deus também pretenderia confortá-lo. O agente Bloggs não podia ser responsabilizado pela morte de Murton, mas aplicar-se-ia o mesmo conceito ao inspector? O superintendente responsabilizaria toda a gente, como sempre, pelo que se impunha apurar quem era o verdadeiro responsável.

Quanto à perspectiva, era o mesmo que espreitar pela extremidade errada de um telescópio. Muito ao longe, achava-se um vulto minúsculo...

- Já vi tudo o que necessitava, inspector - comunicou o Dr. Dabbe, preparando-se para sair. - Mande-o para Berebury e tratarei da autópsia o mais depressa possível.

- Obrigado, doutor.

- Esquecida - acrescentou o patologista, apontando para o oubliette-, mas não extinta.

Sloan devia ter aprofundado tudo aquilo anteriormente. Antes da morte de William Murton. Por fim, fez sinal a Crosby para que o acompanhasse e procurou as duas anciãs. Agora que a casa estava cheia de polícias, considerava que podia voltar as costas à oubliette por alguns minutos.

Lady Maude acudiu a abrir a porta, mais uma vez, e eles entraram. Era impossível determinar se algum apressado portador de más novas as informara da extinção prematura e violenta do sobrinho William. O próprio Sloan informara o conde e a condessa em primeiro lugar e depois o resto da família e, como calculara, Lorde Henry e Lady Eleanor tinham-se mostrado muito impressionados.

O caso das duas anciães, porém, dir-se-ia que uma vida inteira de conservação dos lábios tensos significava que não poderiam voltar a contrair-se.

- William... - começou ele, numa tentativa para apalpar o terreno, por assim dizer.

- Millicent informou-nos - declarou Lady Alice, com uma inclinação de cabeça. - Esperávamos algo do género, depois da aparição do juiz.

A cadeira em que o inspector se sentara era dura e de espaldar direito, e ele movia-se com desconforto sem saber concretamente o que dizer a seguir.

- Não devia ter morrido...

- Todos temos de morrer, Mr. Sloan. - O rosto sulcado de rugas mantinha-se inexpressivo. - Uns primeiros que os outros.

- Sem dúvida, milady. Mas ele era jovem.

- Ele foi percorrido por um pensamento ainda mais triste. Talvez, do ponto de vista de Lady Alice, a perda de uma pessoa de meia-idade não merecesse a pena ser chorada e, quanto à velhice, não passava de um período de expectativa do momento final.

- Pobre rapaz...-murmurou Lady Maude, que, na opinião de Sloan, não deixaria de verter uma ou duas lágrimas por William, quando se encontrasse só.

No entanto, Lady Alice era constituída por material mais resistente e, inclinando-se para a frente, perguntou:

- Alguma vez leu Boccaccio, inspector?

- Creio que não. - Sloan tinha uma vaga Ideia de quese tratava do nome de um dos autores que as bibliotecas públicas manifestavam relutância em ter nas suas estantes, mas admitiu a possibilidade de estar equivocado.

- Escreveu umas palavras muito apropriadas. - Ela fez uma pausa, como se tentasse recordá-las. - "Muitos homens valentes e muitas damas elegantes almoçaram com os seus familiares e na mesma noite jantaram com os seus antepassados, no outro mundo."

O inspector aclarou a voz, reconhecendo que, até certo ponto, o comentário não se afastava muito do motivo que o levara ali.

- Recorda-se da tarde de sexta-feira, Milady?

- Decerto.

- A hora do chá?

- Sim. - Quantas chávenas havia na bandeja?

Mas acabou por ser Lady Maude, e não a irmã, quem se recordou:

- Apenas duas, Mr. Sloan, porque não tínhamos convidado Osborne Meredith.

Sloan e Crosby desciam a ampla escadaria.

- Sabemos quando, Crosby.

- Sim, senhor.

- Sabemos onde, Crosby.

- Sim, senhor.

- E agora sabemos quem, Crosby.

- Sim, senhor.

O diálogo era tão rítmico como os seus passos nos degraus.

- Mas ainda não sabemos porquê.

- Não, senhor. Murton...

- William Murton tinha de morrer. - Sim, senhor.

- Esteve aqui ao fim da tarde de sexta-feira, embora nos revelasse o contrário...

- Sim, senhor.

- ...e viu alguma coisa.

- Que não lhe foi nada benéfica.

- Mas ele pensava que seria - articulou o inspector, com amargura. - Cometeu o erro de supor que tinha descoberto uma coisa proveitosa.

- Em virtude disso, voltou cá hoje...

- A chantagem é uma actividade ardilosa - murmurou, com uma expressão pensativa. - Não creio que ele estivesse à altura de a exercer. Devia ter-se limitado a recorrer ao conde, que o livraria de apuros, como acontecera várias vezes no passado.

Aproximava-se alguém no patamar superior atrás deles, e uma voz masculina chamou:

- Inspector...

Sloan voltou-se e viu Charles Purvis começar a descer a escada apressadamente.

- Inspector...

- Sim?

- Acabo de acompanhar os membros da Sociedade de Arte dos Jovens Mestres, na sua visita. Estava combinada a sua vinda e, com toda esta balbúrdia, esqueci-me de a cancelar...

- E então? - urgiu Sloan.

- Tinham-se deslocado propositadamente de Londres e não sabiam da morte de Meredith. - Era óbvio que o administrador ainda não se inteirara da de William Murton.

- Sim? - volveu Sloan.

- Quando viram a tela de Holbein, "A Morte Negra"...

- Do juiz Cremond?

- Exacto. Garantiram que não se trata de um Holbein.

 

Sloan teria sacrificado uma quantia avultada para não ser interrompido naquele preciso momento.

O que menos desejava era ter de conversar com o seu colega inspector Harpe, dos Serviços de Viação de Berebury.

Este último, mais conhecido por Harry Felizardo, porque nunca o tinham visto sorrir -alegava que jamais descortinara nada merecedor de um sorriso na unidade que dirigia-, telefonara a Sloan na Casa Ornum e pedira que o procurasse com urgência.

O recado foi-lhe transmitido por um agente. Um dos primeiros actos do destacamento policial proveniente de Berebury consistira em tomar conta do telefone. Outro fora cercar a casa.

- É você, Sloan? -perguntou Harpe, cautelosamente. Queria falar-lhe daquele assunto... sabe ao que me refiro.

- Sim, sei.

Houve um acidente, hoje, pouco antes da hora do jantar, ao fundo de Lockett Hill, perto da curva...

- É uma área perigosa.

A quem o diz! Há anos que insistimos junto do Município para que mande executar as obras que se impõem, mas você sabe como essas coisas são.

- Pois sei.

Desculpam-se sempre com a falta de verbas, e as iras do público, quando se regista um acidente, incidem sempre na Polícia. Desta vez, foi sério...

- Que aconteceu? - perguntou Sloan, reflectindo que Harry Felizardo não era o único com um caso "sério" entre mãos.

- Quando recebemos a chamada, o nosso carro mais próximo encontrava-se em Cullingoak. Na realidade, não podia estar mais longe, nem de propósito.

- É sempre assim - concordou, começando a impacientar-se, pois não tinha tempo para carpir mágoas com o colega.

- Quando cobriu a distância entre Cullingoak e Lockett Hill, os tipos da garagem, da garagem, não sei se me entende, já lá estavam.

- Demónio...

- Eu confio naqueles rapazes, por muito que lhes grite, às vezes...

- Com certeza, mas não adianta nada com isso, hem?

- Têm de arranjar outra maneira.

- Como? - perguntou, automaticamente.

Num caso daqueles, não bastava provar - ou dispor de acontecimentos comprovativos-de que alguém estava isento de culpa. Decerto que não haveria problema num tribunal... como lhe chamavam, em Inglaterra? O sistema acusatório: a Acusação provou para além de qualquer dúvida razoável, que esta pessoa praticou o acto de que o acusam?

Ou de que a acusam.

Todavia, Sloan preferia o outro sistema, o continental.

A concepção inquisitorial.

Quem cometeu o crime? A situação na Casa Ornum podia considerar-se similar à das brigadas de trânsito do inspector Harpe. Os acontecimentos tinham provado que William Murton não podia ser culpado da morte de Osborne Meredith, porém esses mesmos acontecimentos não haviam revelado a sua verdadeira sequência.

Por enquanto.

- Como? - repetiu. - Alguém deve ter informado a garagem. Alguém apita para lá sempre que há um acidente, de contrário eles não compareciam tão rapidamente.

- Tenho desenvolvido os maiores esforços para levantar essa ponta do véu do mistério. Li e reli várias vezes os relatórios de todos os incidentes.

"Incidentes" era, de facto, o termo apropriado.

Apesar da impaciência que o dominava, Sloan não podia deixar de o admitir. Abarcava tudo desde uma bomba voadora a condução perigosa... Graças a um esforço, conseguiu voltar a prestar atenção ao que o colega dizia.

- Deparou-se-me um pormenor curioso, comum a todos - referiu Harpe. -Até agora.

- Sim? - Somente o longo treino obrigava Sloan a conservar o ouvido colado ao auscultador, pois apetecia-lhe desligar e concentrar-se de novo nas investigações.

- Sempre que o reboque da garagem comparece tão misteriosamente no local do acidente...

- Continue.

- É fora das horas de serviço. Ontem à noite, em Tappetfs Corner, por exemplo...

- Mas hoje não - argumentou. - Hoje não é segunda-feira? - Na realidade, não o surpreenderia que já fosse terça-feira, pois o domingo afigurava-se-lhe muito distante.

- Exactamente. O caso de hoje foge à regra.

- Tem de aguardar mais algum tempo para chegar a uma conclusão definida - observou, em inflexão significativa, decidido a pousar o auscultador e alegar mais tarde que o telefone se desligara espontaneamente.

- Vou ter de consultar o Velho - grunhiu Harpe.

- Parece-me o mais indicado.

- Não acha que o impedirá de pedir pessoal para as suas investigações?

- É capaz de já o estar a fazer.

Charles Purvis acompanhou-o à Longa Galeria, quando cortou a ligação.

- Já não me lembrava deles - admitiu o administrador. - Passou-me por completo...

- Quem são?

- Intitulam-se Sociedade de Arte dos Jovens Mestres e efectuam uma digressão pela Europa, a fim de verem tantos...

- Velhos Mestres?

- Exacto. Tantos Velhos Mestres quantos puderem. Já visitaram colecções públicas, galerias, etc.

- Não é a mesma coisa - apressou-se Sloan a observar.

- Pois não. é o que eles dizem.

Voltaram ao primeiro piso, com o detective Crosby dois passos atrás deles.

- Eu acompanhava-os na Longa Galeria – acrescentou Purvis, explicando-lhes o pouco que sei acerca dos quadros... Na verdade, não é muito, pois trata-se de uma especialidade diferente da minha. Em todo o caso, falei-lhes da morte de Mr. Meredith e disse que tinham de se contentar comigo, até que chegámos ao Holbein...

- A meio da parede da direita e com iluminação deficiente?

- Precisamente. Não convém expor a tela mais valiosa sob a acção directa do sol. - Ele podia não conhecer os quadros tão a fundo como o extinto Meredith, mas estava ao corrente da maneira de os proteger. - Deve permanecer num local de iluminação difusa por assim dizer. Determinados tipos de luz artificial são preferíveis...

Sloan deteve-se subitamente, a meio da escada. Contudo, Crosby não o fez e evitou no último instante uma colisão de consequências imprevisíveis.

- Miss Cleepe!-exclamou o inspector, desferindo uma palmada no corrimão. - Ela disse-nos, esta manhã...

- Miss Cleepe!- ecoou o administrador, perplexo.- Não me recordo de nos ter dito nada.

- Uma pista de dimensões descomunais e passou-nos despercebida - declarou Sloan, solenemente. - Não é verdade?

- Sim, senhor - concedeu Crosby.

- Tem a certeza de que se refere a Miss Cleepe? - insistiu Purvis.

- Miss Cleepe, Crosby. Veja nos seus apontamentos o que ela disse.

O detective voltou as páginas obedientemente, para o que humedeceu o polegar, e perguntou:

- É aquela parte que se refere ao Holbein?

- Com certeza - assentiu Sloan, de novo impaciente. - Não compreende que tudo gira em torno do Holbein? Desde o princípio, embora não nos tivéssemos apercebido.

- Sem dúvida. - Crosby fez deslizar o indicador ao longo da página. - Onde quer que principie?

- Eles falavam da fraca iluminação da Longa Galeria, e Miss Cleepe referiu...

- Já encontrei. Foi a seguir à alusão ao fantasma. Ela disse que era uma sala longa e estreita e a lâmpada estava fundida, mas tinha pedido a Dillow que a substituísse.

- A lâmpada por cima do quadro estava fundida - murmurou Purvis. - Claro...

- Eu devia ter reparado nisso - salientou Sloan.- Tratava-se de uma alteração à normalidade e, por conseguinte, significativa.

- Essa luz destinava-se a permitir a exposição do quadro sem o afectar-concordou Purvis. - Sem ela, recebe iluminação muito deficiente.

Crosby efectuou uma tentativa aceitável para imitar a dicção impecável de Mrs. Mompson, levantando a voz até se converter em pouco menos que um guincho para ler a passagem:

-"Na Longa Galeria, encontra-se praticamente às escuras. A meia distância de cada janela, e não são janelas muito satisfatórias, diga-se de passagem."

- Sente-se mal, Crosby? - perguntou Sloan.

- Não, senhor. Obrigado pelo cuidado.

- Alguém colocou uma lâmpada fundida no suporte, para que não fosse possível ver o quadro com nitidez - conjecturou o administrador.

- Exacto.

- A maioria das pessoas não se aperceberia da diferença entre essa tela e a verdadeira. Eu, por exemplo, não daria por nada. Só um entendido...

- Não é a maioria das pessoas que nos interessa. Apenas uma. Apenas uma.

- Osborne Meredith?

- Acertou.

- O verdadeiro entendido - acrescentou Purvis. - A única pessoa capaz de descobrir...

- À parte os Jovens Mestres - disse Sloan, com brandura.

- Também estão envolvidos?

- Não me admirava nada.

- Isto está a tornar-se demasiado complicado para mim, inspector - confessou o administrador, apoiando-se ao corrimão.

- Pelo contrário, apresenta-se cada vez mais simples. Sei agora o que Mr. Hamilton deve procurar na sala dos arquivos. Crosby...

- Sim?

- Reúna todos nos Apartamentos Privados, enquanto me avisto com os Jovens Mestres e o arquivista.

Embora fossem horas do chá, não era uma atmosfera de salão de chá que predominava naquele momento nos Apartamentos Privados. É certo que os presentes tomavam a aromática bebida, mas faziam-no sem prazer, porque a necessitavam. E ninguém comia, porque o apetite se achava ausente.

Na verdade, a única pessoa que tocou na comida, como Sloan não deixou de notar, foi a prima Gertrude. Nela, o choque produzido pela morte de William Murton assumira uma forma diferente. Esquecera-se de tirar o avental de jardinagem com que cuidava das flores, e a ponta da tesoura de podar emergia de uma das algibeiras, juntamente com um pedaço de cordel.

A morte de William Murton levara a condessa a um grau de alheamento da realidade ainda mais pronunciado. Vertia chá na chávena como se a sua vida dependesse disso, mas a mão que segurava o bule tremia tanto, que a maior parte do líquido caía no pires. Dillow efectuou duas ou três tentativas para conjurar o desperdício, mas acabou por se afastar em busca de mais água quente e pires lavados.

Adrian Cossington não se mostrava particularmente consternado, porém Laura Cremond estava perturbada, sentada, invulgarmente dócil, junto de Miles, num pequeno sofá. O rosto exibia uma expressão de temor e não desviava os olhos de Sloan.

Este último e Crosby sentavam-se nas proximidades da porta. Se se inclinasse um pouco para a direita, o inspector poderia abarcar a entrada principal da casa, através da janela, e os dois homens de uniforme azul onde outrora se postara um lacaio de libré, com a diferença de que agora se tratava de polícias, incumbidos de impedir a passagem a pessoas estranhas. Encontravam-se outros nas diversas saídas, mas apenas Sloan e Crosby estavam ao corrente do facto.

À parte o vigário, que se dirigira à igreja, achavam-se todos presentes.

Lady Eleanor parecia ter estado a chorar e Lorde Henry deixava transparecer mágoa, como se a mão ferida lhe doesse. Dillow reaparecia com água quente para a condessa, quando Gertrude articulou em voz rouca:

- Eu sabia que havia de morrer alguém por causa da aparição do juiz. Só não pensava que fosse o William.

- Porque tinha de ser ele? - balbuciou Lady Eleanor. - Bem sei que provocava problemas e era impulsivo, mas nunca fez mal a ninguém.

Sloan consultou os seus apontamentos.

- Creio que esteve cá, sexta-feira ao fim da tarde.

- Não o vi.

- Ninguém o viu.

- Nesse caso, como sabe?...

- Não sei, de facto, mas penso que o fez. Julgo que chegou mais ou menos na altura em que todos se vestiam para jantar.

- Andava pouca gente por aí, a essa hora - articulou o conde.

- Exactamente. É o momento do dia em que cada um se encontra nos seus aposentos. - O inspector fez uma pausa significativa. - Pormenor que, diga-se a talhe de foice, também era do conhecimento do assassino.

Estabeleceu-se silêncio absoluto. A condessa parou de servir chá e conservou o bule na mão, em suspensão precária sobre a chávena, tudo indicando que só uma aragem de sorte evitaria que Dillow sofresse queimaduras.

- Mas porque veio ele à socapa? - quis saber Lorde Henry. - Era sempre bem-vindo. Quem o conhecia não o considerava a peste que se poderia deduzir da sua reputação. Aliás, ele próprio não se fazia justiça.

- Podia ter o hábito... mau hábito, porventura... de vir sem o conhecimento de ninguém - sugeriu Sloan, cautelosamente.

- Sou da sua opinião, inspector. - O conde aclarou a voz. - Também estou convencido disso. Aliás, já suspeitava, há algum tempo.

- Harry! - bradou a condessa.- Nunca me disseste nada.

- Não era necessário, querida. Como Eleanor disse há pouco, nunca fez mal a ninguém.

- Mas que vinha cá fazer?

- Provavelmente, nada de especial. Limitava-se a passear por aí.

- Aí, onde?

- Creio que o inspector tem uma ideia concreta a esse respeito - disse o conde, cofiando o bigode.

- É verdade, milorde. Penso que William Murton tinha o hábito... o mau hábito... de se introduzir na sala do postigo.

- Para ver o que pudesse - acrescentou, com uma inclinação de cabeça.

- Precisamente. Alguém me observava daí, esta manhã, mas quando corri para ver quem era, tinha desaparecido.

- Suponho que não era William?

- Não - confirmou Sloan. - Tratava-se de outra pessoa. - Agora, não lhe restava a menor dúvida quanto à sua identidade, pois havia duas possibilidades na sua frente para escolher.

- William viu alguma coisa importante, na sexta-feira- concluiu Lady Eleanor.

- Uma coisa hedionda - interpôs a prima Gertrude, enrolando um pedaço de cordel no dedo.

- Muito hedionda - asseverou Sloan. - Creio que viu alguém arrastar o corpo de Osborne Meredith em direcção à escada de acesso ao armeiro.

- Que esperto - murmurou a condessa, a despropósito.

- Esperto, querida? - inquiriu o marido, olhando-a com perplexidade.

- Escolher o único momento em que as probabilidades de se cruzar com um de nós eram quase nulas. - Ela exibiu um sorriso de candura. - Isso significa que essa pessoa conhece bem os nossos hábitos.

O inspector reflectiu que talvez se pudesse redefinir um aristocrata como o homem ou mulher para quem um facto não encerra o mínimo terror.

- Julgo que já nos mostrámos de acordo a esse respeito- observou o conde.

- De qualquer modo, é um facto indiscutível - opinou Gertrude, a solteirona irredutível, que, tendo há muito abandonado os sentimentos, se contentava apenas com a lógica.

- Não compreendo como podem estar tão calmos, sem saber... - começou Laura Cremond, agitando-se no sofá.

- Difícil, nem? - admitiu Miles.

- É possível que o inspector goste de nos manter na incerteza - aventurou Lorde Henry, com um leve sorriso malicioso.

Na realidade, Sloan aguardava uma mensagem do arquivista do condado, Robert Hamilton.

E não tardou a recebê-la.

O agente Bloggs bateu à porta e entregou-lhe um pedaço de papel.

Agora, o inspector dispunha de tudo o que necessitava.

 

Tanto se Sloan pretendia ou não manter a incerteza, conseguiu-o com a aparição à entrada dos Apartamentos Privados, momentos depois, de Charles Purvis e um indivíduo de expressão jovial, que se apresentou como sendo Fortescue.

- Cromwell T. Fortescue, da Sociedade de Arte dos Jovens Mestres, de visita a vossa casa por deferência do conde de Ornum, para admirar os vossos belos quadros - acrescentou.

A condessa pegou noutra chávena e recomeçou a verter chá algo precipitadamente.

O administrador seguiu o recém-chegado e colocou-se, como Sloan teve oportunidade de se aperceber, numa posição exactamente diante de Lady Eleanor. Era evidente que há muito que aprendera a lição do apaixonado sem esperança, segundo a qual pode sentar-se em frente de alguém sem parecer que o olha com insistência, ao passo que se estivesse de lado necessitaria de voltar a cabeça a cada momento.

O que dá nas vistas.

- Falou-lhe de Meredith, Purvis? - perguntou o conde.

- Sem dúvida que o fez, milorde - declarou Fortescue, antes que o interpelado pudesse responder. - Lastimo profundamente o sucedido. A nossa Sociedade deseja associar-se aos meus sentimentos.

- Também chegou uma mensagem de Miss Meredith - informou o administrador. - Leu um dos primeiros vespertinos postos à venda e vai regressar imediatamente.

- Coitada - murmurou a condessa. - Importa-se de a ir esperar à estação e providenciar para que não lhe falte nada? Talvez queira passar a noite aqui.

Sloan duvidava, mas absteve-se de o divulgar. No lugar de Miss Meredith, preferiria ficar em sua casa, onde pelo menos podia contar o número de divisões.

- Temos igualmente de nos ocupar da questão do jazigo - salientou o conde.

O inspector cogitou que a morte seria o grande elemento nivelador, mas William Murton passara a fazer inteiramente parte da família.

Cromwell T. Fortescue não parecia habituado a figurar em segundo plano de um cenário, pelo que proferiu em voz alta e distinta:

- Lamentamos ter aparecido num momento destes, milorde...

O conde inclinou a cabeça.

- ...e ser portadores de notícias tão desagradáveis, mas Cyrus Phillimore tem a certeza absoluta dos factos.

- Mais más notícias? - disse Laura Cremond, em tom quase inaudível. - Não acredito. Não bastam essas?

- Não se revestem de tanta gravidade - esclareceu Fortescue, numa tentativa para deitar água na fervura-, embora o conde decerto não queira subscrever um logro.

- Claro que não - acudiu Adrian Cossington -, e se quer insinuar...

- Que pretende Mr. Fortescue revelar-nos? - perguntou o titular, em inflexão suave.

- Entre os seus quadros, há uma obra considerada de autoria de Hans Holbein, o Moço.

- É verdade.

- É uma das telas menos conhecidas, porque permaneceu aqui desde que ele a pintou. Um único dono, por assim dizer.

- Correcto. O juiz, meu antepassado, mandou-a pintar em 1532, ano anterior... anterior à tragédia ocorrida na família. Holbein encontrava-se então em Londres... começava a ser conhecido...

- Cyrus Phillimore confirma tudo isso - explicou Fortescue.- A única coisa a que objecta é que Holbein tivesse pintado este quadro. Na realidade, garante tratar-se de uma falsificação. - Dillow colocou-lhe uma chávena e pires na mão e ele inclinou-se cortesmente na direcção da condessa. - Calculo que não seja a revelação que mais gostariam de escutar.

- Diga-me uma coisa, Mr. Fortescue. - A condessa não pousara o bule, mas isso não a impedia de falar. - Há quanto tempo não é um Holbein?

- Não faço a menor ideia. Só sei o que Cyrus Philli-more disse.

- Não há muito, mãe - interpelou Henry, pausadamente, - Concorda, inspector?

- Em absoluto, milorde. Não há muito, com efeito.

- Desde sexta-feira?

- É muito possível.

- Sexta-feira à tarde, talvez?

- Talvez.

- A descoberta de Ossy! - exclamou Lady Eleanor.- Deve ter sido isso que ele descobriu! Que não se tratava de um Holbein autêntico.

- É a nossa opinião, de facto, milady.

A condessa de Ornum pousou finalmente o bule com um som metálico.

- Quer dizer que as telas foram trocadas, sexta-feira à tarde?

- Exacto, milady.

- E Meredith estava ao corrente disso?

- Pensamos que se inteirou por mera casualidade.

- Cyrus Phillimore diz que é uma imitação excelente - anunciou Cromwell T. Portescue.

No entanto, ninguém lhe prestou atenção.

- E ao inteirar-se, pegou no telefone, a fim de pedir ao seu amigo vigário que viesse confirmar as suas suspeitas - conjecturou Henry.

- É essa a convicção da Polícia - admitiu Sloan.- Seria a diligência natural antes de informar o conde. Convém não esquecer que se tratava de uma revelação grave.

- Com certeza!-volveu Henry, pouco elegantemente.

- O velho juiz vale um balúrdio.

- E onde está agora? - inquiriu Gertrude.

- Eu sei onde está o quadro - declarou Laura Cremond, em voz trémula.

Todos os olhares se concentraram na mulher de feições angulosas sentada ao lado de Miles, que enrugou a fronte e perguntou:

- Sabes? Óptimo. Todavia, ela ignorou-o.

- Encontra-se debaixo de um monte de mapas, na sala dos arquivos, e não sofreu o menor dano. - Fez uma pausa no meio de um profundo silêncio de expectativa. - Receio ver-me forçada a fazer uma confissão - acrescentou, não sem uma ponta de dignidade-, e agradeço a gentileza do inspector por me proporcionar a oportunidade.

- Calma, rapariga - recomendou o marido, que parecia incapaz de acreditar no que via e ouvia. - Não estamos numa sessão de autocríticas.

- Vejo-me na contingência de revelar que, na tarde de sexta-feira, me portei muito mal...

- Não tanto como outra pessoa - articulou a condessa, com amargura. , - Quase - insistiu Laura. - Desarrumei a sala dos arquivos.

- Santo Deus!-bradou Miles.

- Lamento, mas não podia suportar a ideia de o tio Harry não ser conde.

- Se viste lá o quadro - quis saber Gertrude, que parara de enrolar o cordel no dedo-, porque não disseste e poupaste tantos aborrecimentos?

Laura corou e a voz tornou-se quase inaudível.

- Não me agradava dizê-lo...

- Não te agradava?!-vociferou a outra, com uma expressão de desdém, provavelmente porque nunca deixava nada por dizer.

- Pensei que o tio Harry podia ter providenciado para... - Laura interrompeu-se e recomeçou. - Há quem venda os seus quadros sem dizer nada a ninguém e coloque imitações no lugar dos originais.

- É o que ele terá de fazer, mais cedo ou mais tarde - profetizou a condessa, com serenidade.

- Reconheço que fiz uma coisa que não devia - confessou Laura, levantando-se. - Miles e eu partimos imediatamente e não esperamos voltar a ser convidados a Ornum...

Todavia, o conde seguia uma linha de raciocínio mais importante.

- Portanto, Meredith foi assassinado porque estava ao corrente da troca das telas...

- E para evitar que o divulgasse, milorde.

A voz de Sloan adquirira uma tonalidade acerada. Em seguida, pigarreou e todos se voltaram para ele. Se alguém o fazia na Central da Polícia de Berebury, a convicção geral era de que contraíra um resfriado, porém na Casa Ornum a reacção era diferente.

Na verdade, tudo era diferente, ali.

- O crime ocorreu porque não foi convidado para tomar chá com Lady Alice e Lady Maude, como acontecia às sextas-feiras.

- Está a brincar, inspector - disse Gertrude Cremond.

- De modo algum. Falo muito a sério. Em regra, Osborne Meredith tomava chá com elas, nos seus aposentos, às sextas-feiras.

- Não se podia contar com isso - observou Lady Eleanor.

- Alguém contou - redarguiu Sloan, calmamente - e foi o que o perdeu.

A condessa de Ornum tornou a pegar no bule. Por seu turno, Dillow espreitou para o jarro de água quente e, vendo-o aparentemente vazio, apressou-se a levantá-lo da mesa.

- Deixe-se estar, Dillow-indicou o inspector.

- Muito bem - acedeu o mordomo, com o jarro na mão.

- A última sexta-feira foi uma excepção - prosseguiu Sloan. - As duas irmãs não convidaram Meredith, porque as ofendera com as suas pesquisas históricas. No entanto, não revelaram o facto a ninguém...

- Por conseguinte - concluiu Henry-, o infortunado Ossy apareceu na Longa Galeria logo após a substituição do quadro, quando se supunha que estaria a suportar uma das habituais sessões das prezadas tias-avós sobre as voltas que o mundo levara desde os seus tempos.

- Precisamente.

- E depois, inspector?

- Depois - explicou Sloan, numa inflexão desprovida de ênfase -, pegou no telefone, situado num local em que toda a gente pode ouvir o que se diz. - Virou-se para o conde. - Na verdade, não se pode considerar propriamente uma linha particular, milorde.

- É o ponto da casa com mais correntes de ar - confirmou o titular. - Infelizmente, o meu pai não o queria noutro lugar. Detestava-o.

- A partir daí, creio que o assassino dispôs de cerca de um quarto de hora. Quinze minutos para decidir o que devia fazer, descer ao armeiro e munir-se do objecto que utilizou como arma do crime.

- Se eu tivesse ficado a conversar com Ossy...- murmurou Lady Eleanor, estremecendo.

- Não influiria no desenrolar dos acontecimentos. O nosso homem aguardaria nova oportunidade.

Uma ideia acabava de despontar no cérebro de Miles Cremond, que argumentou:

- Mas o fulano não podia percorrer a casa de clava em punho. Dava nas vistas.

- Plenamente de acordo. - No entanto, havia uma maneira de a transportar sem despertar a atenção...

O aparecimento da ideia esgotara-lhe aparentemente a fonte, pois permaneceu silencioso, enquanto Sloan continuava:

-... e não podemos esquecer que Meredith sabia de quem devia suspeitar de ter procedido à troca dos quadros.

Creio que a condessa já não precisa de mais chá, Dillow. Importa-se de levar a bandeja?

- Pois não.

De rosto inexpressivo, o mordomo pousou o jarro de água quente ao lado do bule e pegou na bandeja. Aproximava-se da porta, quando Sloan lhe perguntou com desprendimento:

- Teve alguma dificuldade em ocultar o godentag debaixo da bandeja do chá de Mr. Meredith?

Afinal, não foi a condessa que largou o bule de prata, mas Dillow.

- É você, Sloan? - O superintendente Leeyes não esperou pela resposta. - Parece-me chegado o momento de recorrermos a uma unidade mais especializada para deslindar o mistério.

- Já não é necessário.

- Não podemos permitir que o conde nos julgue uma chusma de incompetentes. Vou telefonar imediatamente ao comissário distrital e comunicar-lhe...

- Acabo de efectuar uma prisão.

- O mais acertado é contactar com a Scotland Yard. Vendo bem as coisas, você já anda nisso há vinte e quatro horas e...

- Acabo de prender Michael Joseph Dillow.

- Quem?

- O mordomo.

- Porquê?

- Pelo assassínio de Osborne Meredith.

- Tem a certeza?

- Sim, senhor. Todas as peças se ajustam perfeitamente.

- Quais peças?

- Motivo, método, oportunidade... - Sloan não se recordava de momento de que outros elementos constituíam um caso de homicídio.

- Motivo?

- O roubo de um quadro muito valioso. - E acrescentou com certa prudência: - Creio que o nosso homem teve um pouco de azar, nesse aspecto.

- Que aspecto?

- No facto de Osbome Meredith ter surpreendido a substituição por mera casualidade.

- O azar de Meredith não foi menor.

- Decerto. À parte isso, Dillow tinha sincronizado tudo de modo satisfatório para ele. Meredith iria assistir às partidas de críquete de sábado e domingo (espectáculo que por nada do mundo perderia) e existiam poucas possibilidades de outra pessoa se aperceber da troca das telas. Aliás, trata-se de uma imitação perfeita.

- Quem a fez?

- Dillow nega-se a revelá-lo, mas suspeito da mesma mão que produziu os Van Gogh falsos descobertos na colecção da casa onde trabalhou anteriormente.

Leeyes limitou-se a emitir um dos seus grunhidos, e o inspector prosseguiu:

- Mas para minorar os riscos, colocou uma lâmpada fundida no suporte por cima do quadro. O local é mal iluminado e Miss Cleepe, além de sofrer de miopia, não entende nada de obras de arte.

- Continue.

- Creio que Dillow matou Meredith quando lhe levou o chá, que ele próprio consumiu em seguida, e deixou o corpo na biblioteca.

- Tudo isso tem um aspecto antiquado - observou o superintendente, irritavelmente. - Mordomos, cadáveres na biblioteca...

- Tradicional - lembrou Sloan. - Se a memória não me atraiçoa, o senhor disse que podíamos esperar o tradicional, em Ornum.

Registou-se novo grunhido.

- Deixou, pois, o corpo na biblioteca e evitou que o vigário entrasse, graças a um pretexto qualquer. De resto, é pouco frequentada, pelo que o perigo não se podia considerar premente. A seguir, depois de tocar a sineta avisadora de que eram horas de mudar de roupa para jantar, transferiu o corpo para o armeiro.

- Escolheu uma boa altura.

- Excelente... excepto num pormenor. William Murton observava-o pelo postigo sobranceiro ao Grande Salão. Além de ver Dillow transportar o corpo de Meredith, deu-se conta do lustre desmontado em cima da mesa, que foi o que nos revelou que tinha estado lá.

O inspector decidiu omitir Lady Alice da narrativa. Os fantasmas aceitavam-se na Casa Ornum, mas no confortável gabinete do superintendente resultariam inadmissíveis.

- O que o fez suspeitar de Dillow?

- As chávenas. Devia haver três na bandeja das duas velhotas.

- Chávenas?

- Só havia duas, o que significava que, quando lhes levou o chá, Dillow já devia ter ouvido Meredith comunicar à esposa do vigário que aguardaria Ames na biblioteca e calculou a natureza da descoberta que efectuara.

- Meredith podia ter-lhe dito que não tomaria o chá com elas - objectou Leeyes.

- Se o fez, Dillow mentiu quando disse que não o vira antes.

- E Murton?

- Esse decidiu que, de futuro, Dillow financiaria as suas extravagâncias, razão pela qual não pediu dinheiro ao tio nesta visita, facto suficientemente raro para despertar a atenção.

- Portanto, obteve o que pediu...

- Receio bem que sim. Provavelmente, logo à primeira tentativa. Lidava com um osso mais duro de roer do que supunha. Do que nós supúnhamos - corrigiu Sloan, honestamente.

- Safa... - articulou o superintendente. - O que o impediu de se pôr ao fresco com o quadro?

- Michael Fisher, Laura Cremond e eu. O rapaz descobriu o cadáver demasiado cedo, Laura estabeleceu o caos na sala dos arquivos e eu selei a porta. Se não o fizesse, creio que Dillow levantaria voo com o quadro, hoje.

- Hoje?

- Era o seu dia de folga. Foi pouca sorte, na verdade. Escondeu-o no lugar mais seguro que conhecia. Tentou arrombar a porta durante a noite e fazer sair de lá o arquivista com o engodo da comida, hoje.

- Safa... - repetiu Leeyes. - E Murton?

- Penso que Dillow sugeriu que fossem para um lugar sossegado, a fim de conversarem à vontade... como, por exemplo, as masmorras.

O inspector Sloan deixara Crosby e o agente Bloggs de serviço à entrada dos Apartamentos Privados, com instruções firmes sobre a imperiosidade de ninguém incomodar a família Ornum.

Por conseguinte, em teoria, a porta não se deveria abrir naquele momento e ainda menos para dar passagem a uma mulher incrivelmente idosa, trajada de negro e armada com nada de mais assustador que uma luneta.

Mas abriu.

- Pode saber-se - proferiu a voz truculenta de Lady Alice - por que razão Dillow ainda não nos levou o chá?

O detective Crosby conduziu o carro da Polícia para o espaçoso parque de estacionamento diante da Casa Ornum, onde as carruagens dos condes da família do passado depositavam ou recolhiam os mais ou menos respeitáveis detentores do título.

Havia espaço mais do que suficiente para a formatura geral de toda a corporação policial do condado, mas apenas dois dos seus membros estavam presentes: o inspector Sloan e o detective Crosby.

- Para casa e a toda a velocidade - indicou o primeiro, instalando-se ao lado do subordinado.

- Perdão?

- Para a Central, por favor.

- Sim, senhor.

Atravessaram o parque, passaram diante da Loucura e ignoraram os veados do conde. Quando transpuseram o (argo portão da propriedade, Crosby nem se dignou a desviar a vista para os grifos.

Sloan consultou o relógio e decidiu que, com um pouco de sorte, chegaria a casa a tempo de inspeccionar o seu jardim antes que anoitecesse. Na véspera - fora apenas na véspera?-, vira despontar uma nova rosa. Talvez não fosse suficientemente perfeita para" expor, mas sentia-se tentado a desafiar a sorte.

Os juizes das exposições eram indivíduos imprevisíveis.

Deixaram a pitoresca aldeia de Ornum para trás e enveredaram pela auto-estrada.

Encontravam-se nos subúrbios de Berebury, quando avistaram a ambulância.

E deslocava-se velozmente, pelo que Crosby aliviou a pressão no pedal do acelerador e encostou à berma, enquanto o outro veículo passava no sentido contrário, como uma bala. O som da sereia era quase abafado pelo roncar da motocicleta que a seguia não menos apressadamente.

- É Pete Bellamy - observou Crosby.

- Oxalá que a Polícia da Estrada o autue.

- Segue sempre o transporte de carne.

- Diga lá isso outra vez.

- Acerca de Pete Bellamy? Como mora defronte do posto da ambulância...

- Onde trabalha?

- Numa garagem qualquer da vila. Acaba de comprar a mota.

- Por conseguinte, cada vez que ouve a ambulância, segue-a...

- Exacto.

- Só quando não trabalha, claro.

- Com certeza.

- A que horas janta?

- Não faço a menor ideia. É importante?

- E se há latas amolgadas, telefona ao patrão.

- Suponho que sim. Não lhe paga muito, uma vez que ainda é aprendiz.

- E o patrão acode com o reboque, por causa das dúvidas.

- Fazem-no noutros lugares - observou Crosby, na defensiva. - Nos condados de auto-estradas importantes. Junto de pontos perigosos, por exemplo. O reboque limita-se a seguir a ambulância.

- Os casos de maternidade devem constituir uma profunda decepção - comentou Sloan, com uma ponta de sarcasmo.

- Provavelmente, o trabalho compensa. É importante? - repetiu o detective, algo ansioso. - Quer que o mande pôr termo a isso?

- Não - replicou o inspector, com um suspiro. - Recomende-lhe apenas que conduza com maior prudência.

Abriu a pasta, puxou da folha que continha o texto de acusação formal e leu-o ao prisioneiro, que permanecia imerso em mutismo total:

- Michael Joseph Dillow é acusado de, na sexta-feira, 20 de Junho do ano corrente, ter provocado voluntariamente a morte a Osborne Meredith, contra a paz da Nossa Soberana a Rainha, a sua Coroa e Dignidade...

Fez uma pausa.

Nunca tinha encarado um homicídio sob aquela luz.

 

                                                                                Catherine Aird  

 

                      

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