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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O FANTASMA / Robert Harris
O FANTASMA / Robert Harris

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

Ele sempre sorria para as câmeras à porta de Downing Street. Ao lado do presidente norte-americano, engajou-se na Guerra contra o Terror. Seu mandato foi fortemente abalado pela explosão de bombas no metrô de Londres. Agora, seu ex-secretário de Relações Internacionais ameaça levar seu nome à Corte Internacional.

Ao longo de quase uma década, Adam Lang foi primeiro-ministro britânico. Após o triste e solitário ocaso político, recebe, para escrever suas memórias, um dos maiores adiantamentos da história do mercado editorial. Isolado, ele começa a dar forma à sua biografia.

No entanto, quando o escritor é encontrado morto, um novo profissional é contratado. Cínico e sem grande talento literário, ele pressente a grande oportunidade de sua vida. Mas logo se arrepende, ao perceber que o passado do ex- primeiro-ministro é bem diferente daquele que é retratado pela mídia. Agora a vida do ghost-writer também pode estar em jogo. Escrito por Robert Harris, autor de consagrados romances históricos, este thriller político ganhou ampla cobertura na mídia britânica. A semelhança entre Adam Lang e Tony Blair não parece mera coincidência. Harris participou do projeto político do Novo Trabalhismo, mas rompeu com o líder após o alinhamento da Inglaterra à guerra contra o Iraque levada a cabo por George W. Bush. O Fantasma chamou a atenção do cineasta Roman Polanski (O pianista), que promete leva-lo às telas em breve.

 

 

 

 

De todas as vantagens que a profissão de ghost-writer oferece, uma das maiores é a oportunidade que se tem de conhecer pessoas interessantes.

Andrew Crofts, Ghostwriting

 

Assim que soube como McAra morreu, eu deveria ter dado o fora. Percebo isso agora. Deveria ter dito: "Rick, sinto muito, isso não é pra mim, não me soa bem", terminado meu drinque e ido embora. Mas ele, Rick, era tão bom em contar histórias - sempre pensei que ele deveria ter sido o escritor e eu, o agente literário -, que quando começava a falar, não havia a menor dúvida de que eu iria ouvir. Então, quando ele terminou, eu já estava fisgado.

A história, da forma como Rick me contou durante o almoço naquele dia, era assim:

McAra tinha pegado a última barca de Woods Hole, Massachusetts, para Martha's Vineyard dois domingos antes. Calculei mais tarde que deve ter sido no dia 12 de janeiro. Não se sabia ao certo se a barca iria sair ou não. Desde o meio da tarde que estava ventando muito e as últimas travessias haviam sido canceladas. Porém, por volta das vinte e uma horas, o vento diminuiu um pouco e às vinte e uma horas e 45 minutos o capitão decidiu que era seguro zarpar. O barco estava lotado: McAra teve sorte de conseguir uma vaga para o seu carro. Ele estacionou debaixo do convés e então subiu para pegar ar.

Foi a última vez que alguém o viu com vida.

A travessia até a ilha geralmente leva 45 minutos, porém, naquela noite em particular, o clima retardou consideravelmente a viagem: aportar uma embarcação de 60 metros com um vento de 50 nós, se Rick, não é moleza. Eram quase 11 horas da noite quando a barca atracou no porto de Vineyard e os carros começaram a sair - todos, menos um: um utilitário esportivo Ford Escape cor de canela novinho em folha. O comissário de bordo pediu pelo alto-falante que o dono retornasse ao seu veículo, pois ele estava atravancando os motoristas de trás. Quando mesmo assim ele não apareceu, a tripulação conferiu as portas do carro, que calharam de estar destrancadas, e manobrou o Ford com o motor desligado até o cais. Mais tarde, eles vasculharam o navio com atenção: as escadarias, o bar, os banheiros, até mesmo os botes salva-vidas - nada. Ligaram para o terminal de Woods Hole para confirmar se alguém havia desembarcado antes de o navio sair ou talvez tivesse sido deixado acidentalmente para trás - novamente: nada. Só então um oficial do Departamento de Embarcações a Vapor de Massachusetts finalmente entrou em contato com o posto da Guarda Costeira em Falmouth para comunicar um possível caso de homem ao mar.

A polícia descobriu que a placa do Ford estava registrada em nome de um tal Martin S. Rhinehart, da cidade de Nova York, embora o Senhor Rhinehart tenha sido localizado, algum tempo depois, na sua fazenda na Califórnia. Àquela altura, já era quase meia-noite na Costa Leste e cerca de vinte e uma horas na Oeste.

- Estamos falando do Marty Rhinehart? - interrompi.

- Ele mesmo.

Por telefone, Rhinehart confirmou imediatamente à polícia que o Ford lhe pertencia. Ele o mantinha em sua casa em Martha's Vineyard para uso próprio e de seus convidados no verão. Também confirmou que, apesar da época do ano, um grupo de pessoas estava hospedado lá no momento. Ele disse que pediria à sua assistente para ligar para a casa e descobrir se alguém tinha pegado o carro emprestado. Meia hora depois, ela ligou de volta para dizer que havia, de fato, alguém desaparecido, um homem chamado McAra.

Não havia mais nada a se fazer antes do raiar do dia. Não que isso fosse um problema. Todos sabiam que, se um passageiro tivesse caído no mar, a busca seria por um cadáver. Rick é um desses americanos irritantemente em boa forma de 40 e poucos anos, que parece ter 19 e faz coisas horríveis a seu corpo com bicicletas e canoas. Ele conhece o mar: já passou dois dias contornando os 96 quilômetros da ilha a remo em um caiaque. A barca de Woods Hole atravessa o canal onde o estreito de Vineyard se encontra com o estreito de Nantucket, e aquelas águas são perigosas. Quando a maré está alta, é possível ver a força das correntes sugar as enormes bóias do canal, entortando-as para o lado. Rick balançou a cabeça. Em janeiro, em um vendaval, na neve? Ninguém conseguiria sobreviver mais do que cinco minutos.

Uma moradora encontrou o corpo no início da manhã seguinte, jogado na praia a cerca de seis quilômetros da costa da ilha, em Lambert's Cove. A carta de motorista na sua carteira confirmou que se tratava de Michael James McAra, 50 anos, natural de Balham, ao sul de Londres. Lembro-me de ter sentido um acesso súbito de compaixão ao ouvir o nome daquele bairro lúgubre e nada exótico: ele certamente estava muito longe de casa, o pobre diabo. Seu passaporte trazia o nome da mãe como parente mais próximo. A polícia levou o corpo para o pequeno necrotério no porto de Vineyard e então foi até a casa de Rhinehart para dar a notícia e buscar um dos outros convidados para identificá-lo.

Deve ter sido uma cena e tanto, disse Rick, quando o convidado voluntário finalmente apareceu para ver o corpo: "Aposto que o funcionário do necrotério ainda está falando no assunto." Havia uma patrulha de Edgartown com uma luz azul piscante, um segundo carro com quatro guardas armados para proteger o edifício e um terceiro veículo, à prova de bombas, carregando o homem instantaneamente reconhecível que, até 18 meses atrás, tinha sido o primeiro-ministro da Grã-Bretanha e da Irlanda do Norte.

O almoço tinha sido idéia de Rick. Eu nem sabia que ele estava na cidade até ele me ligar na noite anterior. Insistiu em que nós encontrássemos no seu clube. O clube não era exatamente dele - Rick era, na verdade, membro de um mausoléu semelhante em Manhattan, cujos membros tinham cadeiras cativas mútuas em Londres -, mas ele o amava assim mesmo. Na hora do almoço, somente homens podiam entrar. Todos usavam ternos azul-marinho e tinham mais de 60 anos: não me sentia tão jovem desde que saí da universidade. Lá fora, o céu de inverno pesava sobre Londres como uma enorme lápide cinza. Dentro do clube, a luz elétrica amarela de três candelabros imensos refletia nas escuras mesas envernizadas, nos talheres de prata e nas garrafas avermelhadas de vinho tinto. Um pequeno cartão entre nós anunciava que aquela era a noite do torneio anual de gamão do clube. Era como a Mudança da Guarda ou as Casas do Parlamento - algo que um estrangeiro esperaria da Inglaterra.

- Estou impressionado que isso não tenha saído nos jornais - falei.

- Ah, mas saiu. Ninguém fez segredo. Obituários foram publicados.

E, pensando bem, eu me lembrava vagamente de ter visto alguma coisa. Mas tinha passado um mês trabalhando quinze horas por dia para terminar meu novo livro, a autobiografia de um jogador de futebol, e o mundo além do meu escritório se tornara um borrão.

- O que diabos um ex-primeiro-ministro estava fazendo identificando o corpo de um homem de Balham que caiu da barca para Martha's Vineyard?

- Michael McAra - anunciou Rick, usando o tom enfático de um homem que tinha voado quase 5 mil quilômetros para dizer esta frase - o estava ajudando a escrever suas memórias.

E é neste instante que, em uma vida paralela, eu expresso meus sinceros pêsames à idosa Senhora McAra ("deve ser um grande choque perder um filho nessa idade"). Dobro meu pesado guardanapo de linho, termino meu drinque, digo adeus e saio para a friorenta rua londrina com toda minha medíocre carreira se estendendo inofensiva diante de mim. Em vez disso, pedi licença, fui até o toalete do clube e analisei um cartoon sem graça da Punch enquanto urinava pensativo.

- Você sabe que eu não entendo nada de política, não é? - disse ao voltar.

- Mas votou nele, não votou?

- Em Adam Lang? Claro que sim. Todo mundo votou nele. Ele não era um político; era uma febre.

- Bem, a questão é essa. Quem liga para política? De qualquer forma, é de um ghost-writer profissional de que ele precisa, meu amigo, não de outra droga de político. - Ele olhou em volta. Era uma regra pétrea do clube não falar sobre negócios no recinto; o que era um problema para Rick, uma vez que ele nunca falava de outra coisa.

- Marty Rhinehart pagou 10 milhões de dólares por essas memórias sob duas condições. Primeiro, elas estariam nas livrarias em dois anos. Segundo, Lang não pegaria leve nas críticas à Guerra contra o Terror. Pelo que ouvi dizer, ele não está nem perto de respeitar nenhuma delas. As coisas ficaram tão ruins por volta do Natal que Rhinehart cedeu sua casa de veraneio em Vineyard para que Lang e McAra pudessem trabalhar sem nenhuma distração. Acho que McAra não aguentou a pressão. O médico-legista do estado encontrou quatro vezes mais álcool no sangue dele do que é permitido para dirigir.

- Então foi um acidente?

- Acidente? Suicídio? - Ele girou a mão no ar casualmente.

- Quem vai saber? Qual a importância? Foi o livro que o matou.

- Muito animador - falei.

Enquanto Rick continuava vendendo seu peixe, eu olhava para o meu prato e imaginava o ex-primeiro-ministro olhando para o rosto branco e frio de seu assistente no necrotério - olhando para o seu fantasma (aqui, o autor brinca com a palavra "ghost", "fantasma", fazendo um trocadilho com "ghost-writer", profissão do morto e do protagonista, jogo de palavras recorrente no livro (NOTA DO TRADUTOR), poderíamos dizer. Qual foi a sensação? Sempre faço perguntas aos meus clientes. Preciso fazê-la cem vezes por dia durante a fase de entrevistas: Qual foi a sensação? E, na maioria das vezes, eles não sabem responder, motivo que os leva a me contratarem para providenciar suas memórias: ao fim de uma parceria bem-sucedida, sou mais eles do que eles mesmos. Gosto bastante desse processo, para ser sincero: a breve liberdade de ser outra pessoa. Isto lhe parece sinistro? Caso pareça, deixe-me acrescentar que minha profissão requer um talento verdadeiro. Não só extraio das pessoas suas histórias de vida, como confiro a esta vida uma forma que normalmente ficaria invisível; às vezes lhes dou vidas que elas nem sequer percebiam ter. Se isso não é arte, o que é?

- Eu deveria saber a respeito de McAra? - perguntei.

- Sim, então vamos evitar admitir que não sabia. Ele era uma espécie de assistente quando Lang era primeiro-ministro. Escrevia os discursos, fazia pesquisas, bolava estratégias políticas. Quando Lang renunciou, McAra ficou com ele, para administrar seu gabinete.

Fiz uma careta.

- Não sei não, Rick - falei.

Durante todo o almoço, fiquei meio que observando um velho ator de televisão na mesa vizinha. Ele havia sido famoso na minha infância por interpretar um pai solteiro de filhas adolescentes em um seriado. Agora, ao se levantar trêmulo e começar a arrastar os pés em direção à saída, ele parecia ter nascido para interpretar o papel do próprio cadáver. Era desse tipo de pessoa que eu escrevia as memórias: gente que havia despencado alguns degraus na escada da fama, ou que ainda tinha alguns degraus para galgar, ou que estava se agarrando ao topo e tentando desesperadamente tirar vantagem disso enquanto havia tempo. De repente, fui invadido pelo ridículo da idéia de que eu pudesse colaborar nas memórias de um primeiro-ministro.

- Não sei - comecei a falar de novo, mas Rick me interrompeu.

- O pessoal da Rhinehart Inc, está ficando louco. Eles vão fazer uma seleção no escritório de Londres amanhã de manhã. Maddox está vindo em pessoa de Nova York para representar a empresa. Lang vai enviar o advogado que negociou o contrato original para ele, o mediador mais quente de Washington, um cara muito esperto chamado Sidney Kroll. Tenho outros clientes que poderia colocar nessa disputa; portanto, se não estiver interessado, é só me dizer agora. Mas, pelo que eles estão dizendo, acho que você é a melhor escolha.

- Eu? Pare com isso.

- É sério. Eu juro. Eles precisam fazer algo radical, correr riscos. É uma grande oportunidade para você. E a grana vai ser alta. As crianças não vão passar fome.

- Eu não tenho filhos.

- Não - disse Rick, piscando o olho -, mas eu tenho.

Eu e Rick nos separamos na escada do clube. Havia um carro esperando por ele em frente com o motor ligado. Não me ofereceu carona para lugar nenhum, o que me fez suspeitar que estivesse indo encontrar com outro cliente, para o qual faria exatamente a mesma oferta que havia acabado de fazer para mim. Rick tinha um monte de profissionais como eu trabalhando em seus livros. Dê uma olhada nas listas de best-sellers: você ficaria impressionado se soubesse quantos são escritos por ghost-writers, tanto romances quanto livros de não-ficção. Somos os operários fantasmas que mantêm o mercado editorial funcionando, como os trabalhadores invisíveis por trás da Disneylândia. Corremos pelos túneis subterrâneos da fama, aparecendo aqui e ali, vestidos como um ou outro personagem, preservando a ilusão perfeita do Mundo Encantado.

- Até amanhã - disse ele, desaparecendo dramaticamente em uma nuvem de fumaça de cano de descarga: um Mefistófeles com cinquenta por cento de comissão. Fiquei um minuto parado, indeciso, e se eu estivesse em alguma outra parte de Londres, talvez as coisas pudessem ter acontecido de outro jeito. Porém, eu estava naquele pequeno trecho em que o Soho deságua no Covent Garden: uma faixa entulhada de lixo, de teatros vazios, becos escuros, prostíbulos, pés-sujos e livrarias - tantas livrarias que você pode ficar enjoado só de olhar para elas; desde os pequenos livreiros da Cecil Court, especialistas em limpar os seus bolsos, até as gigantes da Charing Cross Road, que dão os melhores descontos. Geralmente entro em alguma destas últimas, para ver como meus livros estão expostos, e foi o que eu fiz naquela tarde. Uma vez lá dentro, bastou um pequeno passo pelo tapete gasto da seção de Biografias e Memórias para que eu fosse de "Celebridades" para "Política".

Fiquei surpreso ao ver quanta coisa eles tinham sobre o ex-primeiro-ministro - uma prateleira inteira, tudo desde a antiga hagiografia, Adam Lang: o estadista da nossa era, até uma esculhambação recente chamada: Dá pra acreditar nisso? As mentiras de Adam Lang, os dois do mesmo autor. Peguei a biografia mais grossa e abri nas fotografias: Lang quando bebê, dando mamadeira a uma ovelha diante de um muro de pedra; Lang como Lady Macbeth em uma peça estudantil; Lang vestido de frango em um espetáculo do grupo de teatro amador da Universidade de Cambridge; Lang como um banqueiro claramente chapado na década de 1970; Lang com a esposa e os filhos pequenos diante de uma casa nova; Lang usando uma roseta e acenando de cima de um ônibus com a capota aberta no dia em que foi eleito para o Parlamento; Lang com seus colegas; Lang com líderes mundiais, com pop stars, com soldados no Oriente Médio. Um cliente careca com uma jaqueta de couro surrada que estava vendo a prateleira ao meu lado olhou para a capa. Ele apertou o nariz com uma das mãos e fez como se estivesse puxando uma descarga com a outra.

Fui para o outro lado da estante e procurei McAra, Michael no índice remissivo. Havia apenas cinco ou seis referências inócuas - em outras palavras, não havia o menor motivo para alguém fora do partido ou do governo ter ouvido falar dele na vida. Então vá para o inferno, Rick, pensei. Folheei de volta para a fotografia do primeiro-ministro sentado sorridente na mesa do gabinete, com sua equipe da Downing Street disposta atrás dele. A legenda identificava McAra como a figura corpulenta na fileira de trás. Ele estava um pouco fora foco - uma mancha pálida, séria, de cabelos negros. Aproximei o rosto da página, apertando os olhos para vê-lo melhor. Ele parecia exatamente o tipo de incompetente desinteressante que se sente atraído pela política desde o berço e faz gente como eu se ater ao caderno de esportes. É possível encontrar um McAra em qualquer país, em qualquer sistema, por trás de qualquer líder que precise operar uma máquina política: um engenheiro sujo de graxa na sala de caldeiras do poder. E aquele foi o homem escolhido para ser o ghost-writer de um livro de memórias de 10 milhões de dólares? Senti-me profissionalmente afrontado. Comprei uma pequena pilha de material de pesquisa e saí da livraria com uma convicção crescente de que talvez Rick estivesse certo; talvez eu fosse o homem para aquele trabalho.

Assim que saí, ficou claro que outra bomba tinha explodido. Na Tottenham Court Road, as pessoas se derramavam das quatro saídas do metrô como água de chuva de um bueiro entupido. Um alto-falante disse algo sobre "um incidente em Oxford Circus". Parecia uma espécie de comédia romântica extrema: uma mistura de Desencanto com Guerra contra o Terror. Continuei subindo a rua, sem saber ao certo como chegaria em casa - táxis, como falsos amigos, sempre tendem a desaparecer ao primeiro sinal de perigo. Na janela de uma daquelas grandes lojas de eletrônicos, a multidão assistia ao mesmo boletim jornalístico transmitido simultaneamente por uma dúzia de televisões: tomadas aéreas de Oxford Circus, fumaça negra brotando da estação de metrô, explosões de labaredas laranja. Uma tarja correndo na parte inferior da tela anunciava a suspeita de um homem-bomba, muitos mortos e feridos, e dava um número de emergência para se telefonar. Acima dos telhados, um helicóptero oscilava e voava em círculos. Conseguia sentir o cheiro da fumaça - uma mistura amarga, de avermelhar os olhos, de diesel e plástico queimado.

Levei duas horas para chegar em casa a pé, carregando minha sacola pesada de livros - até a Marylebone Road e então para o oeste em direção a Paddington. Como de hábito, todo o metrô tinha sido fechado para que se pudesse verificar a existência de outras bombas; assim como as principais ferrovias. O tráfego nos dois lados da rua larga estava parado e, a julgar pelo passado, continuaria assim até a noite. (Se ao menos Hitler soubesse que não precisava de toda uma força aérea para paralisar Londres, pensei: bastava um adolescente pilhado com uma garrafa de solvente e um saco de herbicida.) De vez em quando, uma viatura policial ou uma ambulância subia o meio-fio, corria pela calçada e tentava avançar um pouco por alguma rua secundária. Eu continuei me arrastando em direção ao sol poente.

Devo ter chegado às seis horas da tarde ao meu flat. Eu ocupava os dois andares de cima de uma casa de estuque alta no que os moradores chamam de Notting Hill e os Correios insistem em que é North Kensington. Seringas usadas cintilavam na sarjeta; no açougue halal (Açougues muçulmanos que abatem e cortam a carne de acordo com os preceitos do Corão - NOTA DO TRADUTOR) do outro lado da rua, eles abatiam o gado nas próprias instalações. Era macabro. Porém, do anexo do sótão que me servia de escritório, eu tinha uma vista do oeste de Londres de dar inveja a qualquer arranha-céu: telhados, pátios de manobra da ferrovia, auto-estradas e céu aberto - um vasto céu urbano salpicado de luzes de avião descendo em direção ao Heathrow. Foi aquela vista que me fez comprar o apartamento, e não a conversa do corretor sobre a revitalização da área - o que foi uma boa coisa, visto que a burguesia endinheirada não voltou mais para lá, da mesma forma que não voltou para o centro de Bagdá.

Kate já havia chegado e estava assistindo ao noticiário. Kate: tinha me esquecido de que ela viria passar a noite. Ela era minha...? Nunca soube do que chamá-la. Dizer que era minha namorada seria um absurdo: ninguém de 30 e muitos têm namorada. Companheira também não estava certo, já que não morávamos sob o mesmo teto. Amante? Só rindo. Caso? Faça-me o favor. Noiva? Certamente que não. Suponho que deveria ter percebido que o fato de 40 mil anos de linguagem humana não ter gerado uma palavra para o nosso relacionamento era mau sinal. (A propósito, Kate não é seu nome verdadeiro, mas não vejo motivo para envolvê-la nessa história toda. De qualquer forma, combina melhor com ela do que seu nome real: ela tem cara de se é que você me entende - sensível, porém ousada; feminina, sempre disposta a se misturar aos marmanjos. Ela trabalha na televisão, mas não vamos julgá-la por isso).

- Obrigado pela preocupação em me telefonar - falei. - Na verdade, eu estou morto, mas não esquente com isso. - Beijei o topo da cabeça dela, larguei os livros em cima do sofá e fui para a cozinha me servir de um uísque. - O metrô inteiro está parado. Tive de vir andando desde Covent Garden.

- Pobrezinho - ouvi-a dizer. - Estou vendo que foi às compras. Enchi o copo com água da torneira, bebi metade, então o enchi novamente de uísque. Lembrei que deveria ter reservado uma mesa em um restaurante. Quando voltei para a sala de estar, ela estava tirando um livro atrás do outro da bolsa.

- O que significa tudo isso? - perguntou, erguendo os olhos para mim. - Você não se interessa por política. - E então percebeu o que estava acontecendo, porque era inteligente; mais inteligente do que eu. Sabia qual era o meu trabalho; sabia que eu tinha ido encontrar um agente; e sabia tudo sobre McAra. - Não me diga que eles querem que você seja o ghost-writer do livro dele! - Ela riu. - Fala sério. - Kate tentou fazer graça, mas eu conseguia ver sua decepção. Ela odiava Lang; sentia-se pessoalmente traída por ele. No passado, havia sido filiada ao partido. Eu tinha me esquecido disso também.

- Provavelmente não vai dar em nada - falei, bebendo um pouco mais de uísque.

Ela voltou a assistir ao noticiário, mas com os braços cruzados com força, o que é sempre um mau sinal. A tarja que corria na parte inferior da tela anunciou sete mortos, número que tendia a aumentar.

- Mas se lhe oferecerem você vai aceitar? - perguntou ela, olhar na minha direção.

Fui salvo da obrigação de responder pelo âncora do jornal, que anunciou que eles estavam entrando ao vivo de Nova York para transmitir a reação do ex-primeiro-ministro. E, de repente, lá estava Adam Lang, em um pódio com os dizeres "Walford-Astoria", onde, aparentemente, ele tinha ido para um almoço. "A essa altura, todos vocês já devem ter recebido as trágicas notícias de Londres", disse ele, "onde mais uma vez as forças do fanatismo e da intolerância..."

Nada do que ele falou naquela noite merece ser publicado. Era quase uma paródia do que um político diria após um ataque terrorista. No entanto, se o visse, você pensaria que sua mulher e seus filhos tinham sido viscerados na explosão. Esta era a sua genialidade: dar frescor aos clichês da política e elevá-los por meio do simples poder do seu desempenho. Até Kate ficou em silêncio por um instante. Somente depois dele terminar e de sua platéia predominantemente feminina e em sua maioria idosa se levantar para aplaudir, ela murmurou:

- O que ele está fazendo em Nova York, para começo de conversa?

- Dando palestras.

- Por que ele não pode dar palestras aqui?

- Suponho que porque ninguém aqui lhe pagaria 100 mil dólares por aparição.

Ela tirou o som da TV.

- Houve uma época - disse Kate lentamente, depois do que pareceu ser um grande silêncio - em que os príncipes que levavam seus países à guerra deviam arriscar a própria vida no campo de batalha; servir de exemplo, sabe? Agora eles viajam pelo mundo em carros à prova de bombas com seguranças armados e fazem fortunas a 5 mil quilômetros de distância, enquanto o restante de nós fica preso às consequências dos seus atos. Não entendo você - prosseguiu ela, virando-se para me olhar diretamente pela primeira vez. - Depois de ficar só concordando comigo sobre tudo o que eu falei a respeito dele nos últimos anos, enquanto eu o chamava de "criminoso de guerra" e o resto, você vai escrever em propaganda para ele e deixá-lo ainda mais rico, Tudo aquilo não significou nada para você?

- Espere um instante - falei. -Você não pode falar nada. Está tentando conseguir uma entrevista com ele há meses. Qual é a diferença?

- Qual é a diferença? Cristo! - Ela cerrou as mãos, aquelas mãos brancas e magras que eu conhecia tão bem, e ergueu-as, frustrada, metade garras, metade punhos. Os tendões saltaram em seus braços. Qual é a diferença? Nós queremos obrigá-lo a prestar contas; essa é diferença! Fazer perguntas pertinentes! Sobre torturas, bombardeios e mentiras! E não "Qual é a sensação?" Cristo! Mas que bela perda de tempo.

Então ela se levantou e foi ao banheiro arrumar a bolsa que sempre trazia nas noites em que pretendia ficar. Fiquei ouvindo-a guardar ruidosamente o batom, a escova de dente e o spray de perfume. Sabia que, se eu entrasse lá, poderia resolver a situação. Ela provavelmente estava esperando por isso: já havíamos tido brigas mais feias. Eu seria obrigado a admitir que ela estava certa, reconhecer que não servia para o trabalho e afirmar a superioridade moral e intelectual dela nisto e em todas as outras coisas. Nem precisava ser uma confissão verbal: um abraço prenhe de sentido provavelmente seria o suficiente para me absolver. Porém, a verdade era que, naquele momento, diante da escolha entre uma noite da presunçosa lição de moral esquerdista dela e a perspectiva de trabalhar com um suposto criminoso de guerra, eu preferia o criminoso de guerra. Então, simplesmente continuei olhando para a televisão.

Às vezes tenho um pesadelo no qual todas as mulheres com as quais fui para a cama se reúnem. O número está mais para respeitável do que para enorme - se fosse, digamos, um coquetel, minha sala de estar as acomodaria com bastante conforto. E se, Deus me livre, esta reunião um dia acontecesse, Kate seria, indiscutivelmente, a convidada de honra. Seria para ela que trariam uma cadeira, bem como seria ela que teria o copo reabastecido por mãos atenciosas e se sentaria no centro de um círculo de mulheres céticas enquanto meus defeitos morais e físicos seriam dissecados. Kate era a que tinha durado mais tempo.

Ela não bateu a porta ao sair; em vez disso, fechou-a com muito cuidado. Isso é que é estilo, pensei. Na tela da TV, o número de mortos tinha acabado de aumentar para oito.

 

Um ghost-writer que não passa de um leigo no assunto será capaz de fazer as mesmas perguntas que o leitor leigo, alcançando, desta forma, um número muito maior de leitores em potencial.

Ghostwriting

 

A Rhinehart Publishing UK consistia em cinco antigas empresas adquiridas em um violento arroubo de cleptomania corporativa durante a década de 1990. Depois de arrancadas de seus sótãos dickensianos em Bloomsbury, ampliadas, reduzidas, remodeladas, renomeadas, reorganizadas, modernizadas e fundidas, elas finalmente foram jogadas em Hounslow, em um prédio comercial de ferro e vidro fumê com toda a tubulação aparente. Ele ficava entre as casas residenciais chapiscadas como uma espaçonave abandonada depois de uma missão malsucedida em busca de vida inteligente.

Eu cheguei, com pontualidade profissional, cinco minutos antes do meio-dia, apenas para encontrar a porta principal trancada. Tive de tocar a campainha para entrar. Um quadro de avisos na sala de espera informava que o alerta de terrorismo estava em LARANJA / ALTO. Através do vidro escurecido, pude ver os seguranças em seu aquário sombrio me observando em um monitor. Quando finalmente entrei, tive de virar os bolsos do avesso e passar por um detector de metais.

Quigley estava esperando por mim em frente dos elevadores.

- Quem você acha que vai bombardeá-lo? - perguntei. - A Random House?

- Estamos publicando as memórias de Lang - respondeu Quigley com uma voz firme, - só isso já nos transforma em um alvo, pelo jeito. Rick já está lá em cima.

- Quantos você já viu?

- Cinco. Você é o último.

Eu conhecia Roy Quigley muito bem - bem o suficiente para saber que ele não gostava de mim. Ele devia ter uns 50 anos, era alto e gostava de vestir tweed. Em uma época mais feliz, estaria fumando cachimbo e oferecendo pequenos adiantamentos para acadêmicos modestos durante longos almoços no Soho. Hoje, sua refeição do meio-dia era uma marmita de plástico de salada que ele comia sentado à mesa com vista para a M4 e recebia ordens diretas da gerente de vendas e marketing, uma garota de uns 16 anos. Tinha três filhos matriculados em escolas particulares que não podia pagar. Para sobreviver, ele havia sido obrigado a desenvolver um interesse pela cultura popular: isto é, pela vida de vários jogadores de futebol, supermodelos e comediantes de boca suja, cujos nomes pronunciava cuidadosamente e cujos hábitos estudava nos tablóides com um distanciamento acadêmico, como se fossem membros de uma tribo remota da Micronésia. Eu havia tentado vender-lhe uma idéia no ano anterior, as memórias de um mágico de TV que tinha - é claro - sofrido abuso quando criança, mas que usara seu talento como ilusionista para invocar uma nova vida etc., etc. Ele recusara no ato. O livro havia ido direto para o primeiro lugar das listas: Vim, serrei e venci. Roy ainda guardava rancor.

- Tenho de dizer-lhe - falou ele, enquanto subíamos para a cobertura - que não acho que você seja a pessoa certa para esse trabalho.

- Então que bom que a decisão não é sua, Roy.

Ah, sim, eu sabia muito bem qual era a estatura de Quigley. Seu cargo era de editor-chefe da sucursal inglesa, o que significava que ele tinha tanta autoridade quanto um gato morto. O homem que de fato comandava o espetáculo em escala global estava esperando por nós na sala da diretoria: John Maddox, presidente da Rhinehart Inc., um nova-iorquino grande, de ombros largos, com alopecia. Sua cabeça careca brilhava sob a luz fria como um enorme ovo envernizado. Quando jovem, ele adquirira um físico de lutador profissional para (de acordo com a Publishers Weekly) jogar pela janela qualquer um que olhasse demais para seu couro cabeludo. Eu fazia questão que meu olhar nunca subisse além do seu tórax de super-herói. Ao seu lado estava Sidney Kroll, o advogado de Lang de Washington, um sujeito de 40 e poucos anos, que usava óculos e tinha um rosto pálido e delicado, cabelo preto escorrido e o aperto de mão mais frouxo e úmido que eu havia recebido desde que Dippy, o Golfinho, saltou de sua piscina quando eu tinha 12 anos.

- Acho que já conhece Nick Riccardelli - disse Quigley, finalizando as apresentações com as mãos tremendo quase imperceptivelmente. Meu agente, que vestia uma blusa cinza brilhante e uma gravata fina de couro vermelho, piscou para mim.

- Olá, Rick - falei.

Fiquei nervoso ao me sentar ao lado dele. A sala era forrada, no melhor estilo Gatsby, com impecáveis livros de capa dura não lidos. Maddox estava sentado com as costas para a janela. Ele pousou as mãos enormes e sem pêlos na mesa de tampo de vidro, como se quisesse provar que, pelo menos por enquanto, não tinha a intenção de sacar uma arma e disse:

- Rick me informou que você está ciente da situação e sabe o que estamos buscando. Então talvez possa nos dizer o que exatamente acha que pode trazer para este projeto.

- Ignorância - falei alegremente, o que pelo menos teve a vantagem de causar alguma surpresa, e, antes que alguém pudesse me interromper, parti para o pequeno discurso que eu havia ensaiado no táxi a caminho dali. - Você conhece o meu histórico. Não faz sentido fingir que sou algo que não sou. Serei completamente sincero. Não leio memórias de políticos. Mas e daí? - Dei de ombros. - Ninguém lê. Mas, na verdade, isso não é problema meu. - Apontei para Maddox. - Isso é problema seu.

- Faça-me o favor-disse Quigley baixinho.

- E deixe-me ser mais imprudentemente honesto ainda prossegui. - Estão dizendo que você pagou 10 milhões de dólares por este livro. Do jeito que as coisas estão, quanto acha que vai conseguir de volta? Dois milhões? Três? Isso é uma má notícia para você, e uma notícia pior ainda - falei, voltando-me para Kroll - para o seu cliente. Porque, para ele, não é uma questão de dinheiro. É uma questão de reputação. Esta é a oportunidade que Adam Lang tem de falar diretamente à história, de expor seus argumentos. A última coisa de que ele precisa é lançar um livro que ninguém leia. O que vai parecer se a história da vida dele acabar sendo vendida a preço de saldo? Porém, as coisas não precisam ser assim.

Olhando para trás, vejo que me comportei como um baita marqueteiro. Mas lembre-se de que a intenção era vender meu peixe - o que, como as declarações de amor eterno na cama de uma estranha à meia-noite, não deve necessariamente ser usado contra você na manhã seguinte. Kroll estava sorrindo para si mesmo, rabiscando no seu bloquinho amarelo. Maddox olhava feio para mim. Respirei fundo.

- O fato é que - prossegui - um grande nome sozinho não vende livros. Todos nós aprendemos isso do jeito mais difícil. O que vende um livro, ou um filme, ou uma música... é o coração. - Acho que cheguei até a bater no peito nesta hora. - E é por isso que as memórias de políticos é o buraco negro do mercado editorial. O nome do lado de fora da barraca pode ser grande, mas todos sabem que, assim que entrarem verão a mesma ladainha de sempre; e quem quer pagar 25 dólares por isso? É preciso colocar um pouco de coração no que está escrito, e esse é o meu trabalho. E que história tem mais coração do que a de um cara que começa do nada e termina comandando um país?

Inclinei-me para frente.

- É aí que está a graça: a autobiografia de um líder precisa ser mais interessante do que a maioria das memórias, não menos. Portanto, eu vejo minha ignorância sobre política como uma vantagem. Eu valorizo minha ignorância, para ser bem franco. Além do mais, Adam Lang não precisa de nenhuma ajuda minha na parte política deste livro; ele é um mestre no assunto. Do que ele precisa, na minha humilde opinião, é da mesma coisa que uma estrela de cinema precisa ou um jogador de beisebol, ou um astro do rock: de um parceiro experiente, que saiba fazer as perguntas certas para extrair seu coração.

Fez-se silêncio. Eu estava tremendo. Rick deu um tapinha tranquilizador no meu joelho debaixo da mesa. "Muito bem."

- Que papo furado - disse Quigley.

- Você acha? - perguntou Maddox, ainda olhando para mim. Ele falou numa voz neutra, mas, se eu fosse Quigley, teria detectado perigo.

- Ah, John, mas é claro - disse Quigley, com todo o desdém de quem carrega quatro gerações de acadêmicos de Oxford nas costas. - Adam Lang é uma figura histórica mundial, e sua autobiografia será um evento editorial mundial. Um pedaço da história, na verdade. Não deveria ser abordada como uma... - ele vasculhou sua mente bem fornida atrás de uma analogia adequada, mas concluiu de forma medíocre - uma matéria para uma revista de celebridades.

Fez-se outro silêncio. Além das janelas escurecidas, os carros estavam engarrafando na auto-estrada. A água da chuva ondulava o brilho dos faróis parados. Londres ainda não havia voltado ao normal depois da bomba.

- Parece-me - disse Maddox, na mesma voz lenta e baixa, suas mãos cor-de-rosa de manequim ainda descansando na mesa - que eu tenho depósitos inteiros cheios de "eventos editoriais mundiais" dos quais não consigo descobrir como me livrar. E uma porrada de gente lê revistas de celebridades. O que você acha, Sid?

Por alguns segundos, Kroll apenas continuou sorrindo para si mesmo e rabiscando. Fiquei me perguntando o que ele achava tão engraçado.

- A opinião de Adam sobre este assunto é muito clara - disse por fim. (Adam: ele atirou o primeiro nome na conversa com a mesma casualidade com que teria atirado uma moeda no chapéu de um mendigo.) - Ele leva este livro muito a sério; é o seu testamento, se vocês preferirem. Quer cumprir suas obrigações contratuais. E quer que o livro seja um sucesso comercial. Portanto, está mais do que disposto a ser conduzido por você, John, e por Marty também, até certo ponto. Claro que ainda está muito abalado pelo que aconteceu com Mike, que é insubstituível.

- Claro. - Todos fizemos os ruídos apropriados.

- Insubstituível - repetiu Kroll. - Ainda assim... ele precisa ter substituído. - Ele ergueu os olhos, satisfeito com seu deboche, e naquele instante tive certeza de que nenhum horror no mundo, fosse ele guerra, genocídio, fome ou câncer infantil, deixaria de ter um lado engraçado para Sidney Kroll. - Adam certamente sabe ver as vantagens de se tentar algo totalmente diferente. No fim das contas, é tudo uma questão de afinidade pessoal. - Seus óculos brilharam sob a luz fria enquanto ele me analisava. - Você malha? - Balancei a cabeça. - Pena. Adam gosta de malhar.

Quigley, ainda abalado depois do passa-fora de Maddox, tentou voltar à conversa.

- Na verdade, conheço um bom jornalista do Guardian que frequenta uma academia.

- Talvez - disse Rick, depois de uma pausa constrangida - pudéssemos falar rapidamente sobre como você vê a coisa em termos práticos.

- Para começar, precisamos do livro pronto em um mês - disse Maddox. - Essa é a opinião de Marty e a minha também.

- Um mês? - repeti. - Você quer um livro em um mês?

- Já existe um manuscrito completo - disse Kroll. - Só precisa ser um pouco trabalhado.

- Muito trabalhado - disse Maddox, fechando o rosto. - Certo, vamos pensar ao contrário: nós publicamos em junho, o que significa que mandamos para as livrarias em maio; isso, por sua vez, significa que editamos e imprimimos entre março e abril; então, precisamos do manuscrito na editora no final de fevereiro. Os alemães, os franceses, os italianos e os espanhóis precisam começar a traduzir imediatamente. Os jornais precisam vê-lo para negociar a publicação de trechos. Temos um contrato com a TV. A turnê promocional precisa ser organizada com bastante antecedência. Precisamos garantir espaço para o livro nas livrarias. Então, é fim de fevereiro e ponto final. O que eu gostei no seu currículo - disse ele, consultando uma folha de papel na qual eu conseguia ver todos os meus livros listados - é que você é obviamente experiente e, acima de tudo, é rápido. Cumpre prazos.

- Nunca estourou nenhum - disse Rick, colocando o braço ao redor dos meus ombros e me apertando. - Esse é o meu garoto.

- E é inglês. O ghost-writer definitivamente precisa ser inglês, na minha opinião. Para acertar o bom e velho tom.

- Estamos de acordo - disse Kroll. - Mas tudo terá de ser feito nos Estados Unidos. Adam está totalmente comprometido com uma série de palestras lá neste momento e com um programa de arrecadação de recursos para a sua fundação. Não acredito que ele volte para a Inglaterra antes de março, no mínimo.

- Um mês na América, sem problemas. Certo? - Rick olhou para mim avidamente. Conseguia senti-lo me instando a dizer sim, mas tudo em que eu pensava era: Um mês, eles querem que eu escreva um livro em um mês...

Assenti lentamente.

- Imagino que eu sempre possa trazer o manuscrito de volta para cá para trabalhar.

- O manuscrito não sai dos Estados Unidos - respondeu Kroll categoricamente. - Este é um dos motivos que levou Marty a disponibilizar a casa em Vineyard. É um ambiente seguro. Somente um pequeno grupo de pessoas tem permissão para lidar com ele.

- Está parecendo mais uma bomba do que um livro! - brincou Quigley. Ninguém riu. Ele esfregou as mãos tristemente. - Bem, eu vou precisar vê-lo em algum momento. Supostamente, eu sou o editor. - Em teoria -disse Maddox - Na verdade, precisamos conversar sobre isso mais tarde. - Ele voltou-se para Kroll. - Não temos espaço para a revisão neste cronograma. Vamos ter de revisar durante a produção.

Enquanto eles continuavam discutindo o calendário, fiquei analisando Quigley. Ele estava com as costas retas, mas imóvel, como uma daquelas vítimas que nos filmes são apunhaladas com um estilete no meio da multidão e morrem sem que ninguém perceba. Sua boca abria e fechava minimamente, como se tivesse uma mensagem final para transmitir. Porém, mesmo naquela hora, percebi que ele tinha feito uma pergunta perfeitamente cabível. Se ele era o editor, por que não deveria ver o manuscrito? E por que o manuscrito precisava ser mantido em um "ambiente seguro" numa ilha da Costa Leste dos Estados Unidos? Senti o cotovelo de Rick nas minhas costelas e percebi que Maddox estava falando comigo.

- Quando você poderia ir para lá? Supondo que escolhamos você, e não um dos outros...? Com que rapidez você poderia viajar?

- Hoje é sexta - falei. - Preciso de um dia para me organizar. Poderia estar no avião no domingo.

- E começar na segunda? Seria perfeito.

- Duvido que encontre alguém que seja mais rápido do que isso - disse Rick.

Maddox e Kroll olharam um para o outro, e eu tive certeza de que o trabalho era meu. Conforme Rick falou mais tarde, o truque é sempre se colocar na posição deles. "É como entrevistar um faxineiro novo. Você quer alguém que possa lhe contar a história e a teoria da faxina, ou quer alguém que simplesmente arregace as mangas e limpe a porra da casa? Eles escolheram você porque acharam que pode limpar a porra da casa deles."

- Vamos ficar com você - disse Maddox. Ele se levantou, estendeu o braço e apertou minha mão. - Desde que consigamos fechar um contrato satisfatório com nosso amigo Rick, é claro.

Kroll acrescentou:

- Você também vai precisar assinar um termo de confidencialidade.

- Sem problema - falei, levantando-me também. Aquilo não me incomodava. Termos de confidencialidade eram praxe no mundo dos ghost-writers. - Eu não poderia estar mais satisfeito.

E não poderia mesmo. Todos - menos Quigley - estavam sorrindo e, de repente, havia uma sensação de cumplicidade masculina, um certo clima no ar de vestiário-depois-do-jogo. Ficamos cerca de um minuto conversando, e foi então que Kroll me puxou para o lado e disse, muito casualmente:

- Tenho uma coisa aqui que talvez seja interessante você ver.

Ele colocou a mão debaixo da mesa e puxou uma sacola de plástico amarelo berrante com o nome de alguma loja de roupas chique de Washington impresso em letras pretas onduladas. Meu primeiro pensamento foi que aquilo devia ser o manuscrito das memórias de Lang e que toda aquela conversa sobre um "ambiente seguro" tinha sido uma piada. Porém, quando viu a expressão no meu rosto, Kroll riu e falou:

- Não, não. Não é isso. É só um livro de um outro cliente meu. Gostaria muito da sua opinião, se você puder dar uma olhada. Aqui está o meu número. - Peguei o cartão dele e coloquei-o no bolso. Quigley ainda não havia dito uma única palavra.

- Ligo para você quando chegarmos a um acordo - falou Rick.

- Faça-os chorar - disse-lhe eu, apertando seu ombro. Maddox riu.

- Ei! Lembre-se! - gritou ele enquanto Quigley me levava até a porta. Bateu com o punho grande no peito sob o terno azul. - Coração!

Enquanto descíamos no elevador, Quigley olhou para o teto.

- É imaginação minha ou eu acabei de ser despedido lá dentro?

- Eles não abririam mão de você, Roy - falei, com toda a sinceridade que consegui reunir, o que não era muito. - Você é o único que ainda se lembra de como o mercado editorial costumava ser.

- Abrir mão - disse ele com amargura. - Sim, esse é o eufemismo moderno, não é? Como se fosse um favor. Você está pendurado na beira de um precipício, e alguém diz: "Sinto muito, vamos ter de abrir mão de você."

Um casal em horário de almoço entrou no quarto andar, e Quigley ficou calado até os dois saírem em direção ao restaurante no segundo piso. Quando as portas se fecharam, ele disse:

- Tem alguma coisa de errado com este projeto.

- Está falando de mim?

- Não. Antes de você. - Ele franziu o cenho. - Não consigo saber direito o que é. Essa coisa de ninguém poder ter acesso a nada, por exemplo. E aquele tal de Kroll me dá arrepios. Além do pobre Mike McAra, é claro. Eu o conheci quando assinamos o contrato dois anos atrás. Ele não me pareceu o tipo suicida. Pelo contrário. Era o tipo de cara especialista em fazer outras pessoas quererem se matar, se é que você me entende.

- Durão?

- É, durão. Lang ficava sorrindo para todo mundo, mas tinha esse brutamontes do lado com os olhos iguais aos de uma cobra. Imagino que você precise ter alguém assim por perto quando está na posição dele.

Chegamos ao primeiro piso e saímos para o saguão.

- Você pode pegar um táxi na esquina - disse Quigley. E por esta atitude mesquinha, de me fazer andar na chuva em vez de chamar um táxi por conta da empresa, eu quis que ele apodrecesse no inferno. - Diga-me uma coisa - falou ele de repente -, quando foi que ser burro entrou na moda? Essa é a única coisa que eu não consigo entender. O Culto ao Idiota. A Elevação do Imbecil. Você sabia que dois dos nossos romancistas best-sellers, a atriz peituda e o ex-psicopata do exército, nunca escreveram uma só palavra de ficção?

- Você está falando como um velho, Roy - disse a ele. - As pessoas reclamam que o nível está caindo desde que Shakespeare começou a escrever comédias.

-Sim, mas agora está acontecendo de verdade, não está? Nunca foi desse jeito.

Ele estava tentando me provocar - o ghost-writer das celebridades prestes a produzir as memórias de um ex-primeiro-ministro -, mas eu estava muito satisfeito comigo mesmo para me importar. Desejei o melhor para ele em sua aposentadoria e comecei a atravessar o saguão balançando a maldita sacola plástica amarela.

Devo ter levado meia hora para conseguir um táxi de volta para a cidade. Tinha apenas uma idéia muito vaga de onde estava. As ruas eram largas e as casas, pequenas. Havia uma garoa constante e gelada. Meu braço doía de carregar o manuscrito de Kroll. A julgar por seu peso, calculei que devia ter quase mil páginas. Quem era o cliente? Tolstoi? Acabei parando debaixo da cobertura de um ponto de ônibus em frente de um verdureiro e uma funerária. Havia um cartão de uma companhia de táxi preso à armação de metal.

A viagem até minha casa levou quase uma hora, e eu tive bastante tempo para tirar o manuscrito da sacola e analisá-lo. O livro se chamava Um de muitos. Eram as memórias de algum velho senador americano, famoso apenas por ter continuado respirando por cerca de 150 anos. Estava além de qualquer escala de medição normal de tédio - muito, muito além, até alguma estratosfera desprovida de oxigênio de completa nulidade. O carro estava superaquecido e cheirava a comida para viagem velha. Comecei a me sentir enjoado. Coloquei o manuscrito de volta na sacola e baixei a janela. A corrida custou 40 libras.

Tinha acabado de pagar ao motorista e estava atravessando a rua em direção ao meu flat, de cabeça baixa na chuva, procurando minhas chaves, quando senti alguém me tocar de leve no ombro. Virei-me e dei de cara com um muro, ou fui atropelado por um caminhão - a sensação era essa: algum dínamo de ferro me atingiu e eu caí para trás, nos braços de um segundo homem. (Fui informado mais tarde de que eram dois deles, ambos na faixa dos 20 anos. Um estava parado na entrada do meu flat, o outro apareceu do nada e me agarrou por trás.) Dobrei o corpo, senti a pedra arenosa e fria da sarjeta contra a bochecha, arfei, suguei o ar e chorei corno um bebê. Meus dedos devem ter agarrado a sacola de plástico com uma força involuntária, pois senti, em meio àquela dor muito maior, uma dor mais fraca e aguda - uma flauta numa sinfonia - à medida que um pé esmagou minha mão e algo foi atirado para longe.

Certamente uma das palavras mais inadequadas da nossa língua é "resfolegar", por sugerir algo leve e passageiro - um arquejo, talvez, ou uma pequena falta de fôlego. Mas eu não resfolegava. Havia levado uma bordoada e quase fora asfixiado, tinha sido derrubado no chão e humilhado. Parecia ter levado uma facada no plexo solar. Arfando, tive certeza de que havia sido apunhalado. Senti pessoas pegando meus braços e me colocando sentado. Recostaram-me em uma árvore, seu tronco duro ferindo minha espinha, e quando finalmente consegui mandar um pouco de oxigênio para os pulmões, comecei imediatamente a tatear a barriga às cegas, procurando a ferida aberta que, tinha certeza, havia ali, imaginando meus intestinos espalhados à minha volta. Porém, quando vasculhei o abdome com os dedos úmidos em busca de sangue, senti apenas a água da chuva suja de Londres. Devo ter levado um minuto para perceber que não ia morrer - que estava basicamente intacto - e então tudo o que eu queria era me afastar daquelas pessoas de bom coração que se juntavam ao meu redor e pegavam seus celulares, perguntando se deviam ligar para a polícia ou chamar uma ambulância.

A perspectiva de ter de esperar dez horas para ser examinado e, em seguida, passar metade de um dia na delegacia local para dar queixa foi o suficiente para me fazer sair da sarjeta, subir as escadas e entrar no meu flat. Tranquei a porta, tirei os agasalhos e fui me deitar no sofá, tremendo. Devo ter passado uma hora sem me mexer, enquanto as sombras frias daquele janeiro se acumulavam lentamente na sala.

Então fui até a cozinha, vomitei na pia e depois me servi de uma dose generosa de uísque.

Pude me sentir passando do estado de choque para o de euforia. Na verdade, com um pouco de álcool no estômago, senti-me realmente alegre. Conferi o bolso de dentro do paletó e depois o meu pulso: minha carteira e meu relógio ainda estavam comigo. A única coisa que tinha sumido era a sacola de plástico amarelo contendo as memórias do senador Alzheimer. Soltei uma gargalhada ao imaginar ladrões correndo pela Ladbroke Grove e parando em algum beco para conferir o que haviam roubado: "Meu conselho para um jovem que pretenda entrar na vida pública hoje em dia..." Somente depois de ter tomado outro drinque percebi que aquilo poderia me trazer complicações. O velho Alzheimer podia não significar nada para mim, mas Sidney Kroll talvez encarasse a coisa de outra forma.

Peguei seu cartão. Sidney L. Kroll, da firma de advocacia Brinkerhof Lombardi Kroll, M Street, Washington DC. Depois de pensar a respeito por cerca de dez minutos, voltei para a sala, me sentei no sofá e liguei para o celular dele. Ele atendeu no segundo toque:

- Sid Kroll.

- Sidney- falei, tentado soar natural ao chamá-lo pelo primeiro nome -, você nem imagina o que aconteceu.

- Uns caras acabaram de roubar meu manuscrito? Por um instante, não consegui falar nada.

- Meu Deus - falei -, tem alguma coisa que você não saiba?

- O quê? - O tom dele mudou bruscamente. - Meu Deus - disse -, eu estava brincando. Foi isso mesmo que aconteceu? Você está bem? Onde está agora?

Expliquei o que havia acontecido. Ele disse para eu não me preocupar. O manuscrito não tinha importância nenhuma. Ele só o havia me dado porque achava que talvez fosse interessante para mim profissionalmente. Mandaria outro. O que eu pretendia fazer? Ia chamar a polícia? Eu disse que chamaria se ele quisesse, mas, na minha opinião, envolver a polícia geralmente causava mais problemas do que o necessário. Preferia encarar o ocorrido como mais uma volta no carrossel da vida urbana:

- Sabe como é: o que será, será, uma bomba aqui, um assalto ali. Ele concordou.

- Foi um verdadeiro prazer conhecê-lo hoje. É ótimo ter você a bordo. Até mais - disse ele, pouco antes de desligar, e lá estava aquele sorrisinho na voz dele novamente. Até mais.

Fui ao banheiro e abri a camisa. Havia uma mancha vermelho clara horizontal na minha pele, pouco acima do estômago e abaixo da caixa torácica. Fui para frente do espelho para olhar melhor. Tinha uns 8 centímetros de largura e menos de 2 centímetros de comprimento - e era estranhamente pontiaguda. Não havia sido causada por algo de carne e osso, pensei. Meu palpite seria um soco-inglês. Aquilo parecia profissional. Comecei a me sentir estranho novamente e voltei para o sofá.

Quando o telefone tocou, era Rick, para me dizer que tinha fechado o contrato.

- Qual é o problema? - disse ele, interrompendo-se. - Você está esquisito.

- Acabei de ser assaltado.

- Não!

Novamente, descrevi o que havia acontecido. Rick soltou interjeições apropriadamente solidárias, porém, assim que foi informado de que eu estava bem o suficiente para trabalhar, a ansiedade abandonou sua voz. À primeira oportunidade, levou a conversa ao assunto que o interessava de fato.

- Então você ainda está bem o suficiente para pegar o avião para os Estados Unidos no domingo?

- Claro, só estou um pouco chocado.

- Tudo bem, tenho outra coisa chocante para você. Por um mês de trabalho, em um manuscrito que supostamente já está escrito, a Rhinehart Inc. está disposta a lhe pagar 250 mil dólares, mais despesas.

- O quê?

Se eu já não tivesse sentado no sofá, teria caído nele. Dizem que todo homem tem um preço. Um quarto de milhão por quatro semanas de trabalho era aproximadamente dez vezes o meu.

- Isto dá 50 mil dólares pagos semanalmente pelas próximas quatro semanas - disse Rick -, mais um bônus de 50 mil se você terminar o trabalho dentro do prazo. Os custos de viagem e hospedagem são por conta deles. E você será creditado como colaborador.

- Na folha de rosto?

- Faça-me o favor! Nos agradecimentos. Mas, mesmo assim, as publicações do meio vão saber. Vou cuidar disso. Embora por enquanto seu envolvimento seja estritamente confidencial. Eles foram muito firmes quanto a isso. - Conseguia ouvi-lo rir ao telefone e imaginei-o se recostando na cadeira. - Sim senhor, todo um novo mundo está se abrindo diante de você, meu garoto.

Disso ele tinha razão.

 

Se você é extremamente tímido ou tem dificuldade em deixar as pessoas relaxadas e dispostas a se abrirem, talvez a profissão de ghost-writer não seja para você.

Ghostwriting

 

O vôo 109 da American Airlines estava marcado para partir do Heathrow para Boston às dez e meia da manhã de domingo. No sábado à tarde, Rhinehart enviou um portador com uma passagem de primeira classe só de ida, além de um contrato e do termo de confidencialidade. Tive de assinar ambos enquanto o mensageiro esperava. Confiei que Rick tivesse entendido o contrato direito e nem me preocupei em lê-lo; o termo de confidencialidade eu examinei rapidamente no hall. Lembrando agora, é quase engraçado: Tratarei todas as informações confidenciais como estritamente privadas e confidenciais e tomarei todas as medidas necessárias para evitar que elas sejam divulgadas ou levadas a público por qualquer pessoa ou terceiro... Não utilizarei, divulgarei ou permitirei que qualquer pessoa divulgue as informações confidenciais para benefício de terceiros... Em hipótese alguma eu ou qualquer pessoa deve copiar ou disponibilizar a terceiros a totalidade ou qualquer parte da informação confidencial sem autorização prévia do proprietário... Assinei sem medo.

Sempre gostei de poder desaparecer rapidamente. Eu costumava levar por volta de cinco minutos para colocar minha vida em Londres em compasso de espera. Todas as minhas contas eram pagas por meio de débito automático. Não havia entregas a cancelar - nada de leite nem de jornais. Duas vezes por semana, minha faxineira, que de qualquer forma eu não via quase nunca, traria toda a correspondência que estivesse no andar de baixo. Já havia limpado minha mesa de trabalho. Não tinha compromissos. Nunca havia falado com meus vizinhos. Kate provavelmente partira para sempre. A maioria dos meus amigos havia há muito entrado no reino da vida familiar, de cujas margens distantes, de acordo com minha experiência, nenhum viajante jamais retornou. Meus pais estavam mortos. Não tinha irmãos. Poderia morrer e, para o mundo, minha vida continuaria seguindo normalmente. Fiz uma mala com roupa para uma semana, um suéter e um par de sapatos sobressalente. Coloquei meu laptop e meu gravador de MiniDisc na bolsa a tiracolo. Usaria a lavanderia do hotel. Se precisasse de mais alguma coisa, compraria ao chegar.

Passei o resto do dia e a tarde inteira no meu escritório, lendo os livros sobre Adam Lang e fazendo listas de perguntas. Não quero parecer muito "O médico e o monstro" a respeito disso, mas, ao cair da noite - à medida que as luzes se acendiam nos arranha-céus do outro lado do pátio de manobra da ferrovia e as estrelas vermelhas, brancas e verdes piscavam e caíam em direção ao aeroporto -, eu já conseguia me sentir entrando na pele de Lang. Ele era alguns anos mais velho que eu, mas, fora isso, nossas origens eram parecidas. Não tinha notado as semelhanças antes: filho único, nascido na Inglaterra Central, formado na escola secundária da região, graduado em Cambridge, apaixonado por teatro amador, uma total falta de interesse por política estudantil.

Voltei para olhar as fotografias. "A atuação hilariante de Lang como um frango encarregado de um galinheiro para humanos no grupo de teatro amador de Cambridge em 1972 rendeu-lhe elogios." Conseguia imaginar nós dois atrás das mesmas garotas, levando um espetáculo ruim para o festival de Edinburgh Fringe na traseira de alguma van surrada da Volkswagen, dividindo um apartamento, ficando chapados. E ainda assim, de certa forma, metaforicamente falando, eu havia continuado sendo um frangote, enquanto ele se tornara primeiro-ministro. Foi então que meus habituais poderes de empatia me abandonaram, pois não parecia haver nada nos seus primeiros 25 anos que pudessem explicar os 25 restantes. No entanto, pensei, haveria tempo suficiente para encontrar a voz dele.

Dei duas voltas na chave da porta de entrada antes de ir para a cama naquela noite e sonhei que estava seguindo Adam Lang por um labirinto chuvoso de ruas de tijolos vermelhos. Quando entrei em um táxi e o motorista se virou para me perguntar para onde eu queria ir, ele tinha o rosto triste de McAra.

Na manhã seguinte, o Heathrow parecia um daqueles filmes de ficção científica ruins passados em um futuro próximo, depois de as forças de segurança terem assumido o controle do Estado. Dois veículos blindados estavam estacionados na frente do terminal. Uma dúzia de homens com metralhadoras estilo Rambo e cortes de cabelo horríveis patrulhavam o local. Passageiros esperavam em filas enormes para serem revistados e passarem no raio X, carregando seus sapatos em uma das mãos e seus patéticos artigos de toalete em um saco plástico transparente na outra. Viajar é vendido como um ato de liberdade, mas éramos tão livres quanto ratos de laboratório. É assim que eles vão conduzir o próximo Holocausto, pensei, enquanto arrastava meus pés para frente: simplesmente distribuirão as passagens aéreas e nós faremos qualquer coisa que eles mandarem.

Assim que passei pela segurança, comecei a atravessar os corredores perfumados do free shop em direção à sala de espera da American Airlines, querendo apenas um cafezinho de cortesia e o caderno de esportes do jornal de domingo. Um canal de notícias via satélite tagarelava em um canto. Ninguém estava assistindo. Servi-me de uma xícara de café e estava voltando a atenção para as notícias de futebol de um dos tablóides quando ouvi as palavras "Adam Lang". Três dias antes, como todo mundo na sala de espera, eu nem teria percebido, mas agora era como se tivessem chamado meu próprio nome. Fui até lá e parei diante da tela, tentando entender do que se tratava a matéria.

A princípio, não parecia muito importante. Dava a impressão de ser notícia antiga. Quatro cidadãos britânicos tinham sido apanhados no Paquistão alguns anos atrás-"raptados pela CIA", de acordo com o advogado deles -, levados para uma instalação militar secreta no Leste Europeu e torturados. Um deles morrera durante o interrogatório, os outros três haviam sido aprisionados em Guantánamo. O novo desdobramento, aparentemente, era que um jornal tinha conseguido um documento que havia vazado do Ministério de Defesa que parecia sugerir que Lang dera ordens a uma unidade das SAS, as Forças Aéreas Especiais do Reino Unido, para capturar os homens e entregá-los à CIA. Várias demonstrações de indignação se seguiram, de um defensor dos direitos humanos e de um porta-voz do governo paquistanês. Imagens de arquivo mostravam Lang usando uma guirlanda em volta do pescoço durante uma visita ao Paquistão quando era primeiro-ministro. Segundo a matéria, uma porta-voz de Lang havia declarado que o ex-primeiro-ministro não sabia nada sobre os relatórios e se recusava a comentá-los. O governo britânico havia rejeitado sistematicamente pedidos de abertura de inquérito. O jornal passou para a previsão do tempo, e foi isso.

Olhei em volta da sala de espera. Ninguém mais tinha se mexido. Mas, por algum motivo, parecia que alguém tinha acabado de arrastar uma bolsa de gelo pela minha espinha abaixo. Peguei meu celular e liguei para Rick. Não conseguia me lembrar se ele já havia voltado para a América ou não. Acabei descobrindo que estava a cerca de um quilômetro e meio de distância, na sala de espera da British Airways, esperando para embarcar no seu vôo para Nova York.

- Você viu as notícias? - perguntei a ele.

Ao contrário de mim, Rick era viciado em noticiários.

- Sobre Lang? Claro.

- Será que isso vai dar em alguma coisa?

- Como é que eu vou saber? Quem se importa? Pelo menos está mantendo o nome dele nas primeiras páginas,

- Acha que eu devo perguntar a respeito disso para ele?

- Ninguém está nem aí pra isso! - Pelo telefone, ouvi um alto falante berrar algo ao fundo. - Estão chamando meu vôo. Preciso desligar.

- Antes de você ir - atalhei depressa -, posso lhe perguntar uma coisa rapidinho? Quando eu fui assaltado na sexta-feira, achei muito estranho eles terem deixado minha carteira e apenas saído correndo com um manuscrito. Mas agora, vendo essa notícia... bem, eu fiquei pensando: você não acha que eles pensaram que eu estava com as memórias de Lang?

- Mas como eles saberiam disso? - disse Rick com uma voz intrigada. - Você tinha acabado de encontrar Maddox e Kroll. Eu ainda estava negociando o contrato.

- Bem, talvez alguém estivesse vigiando a editora e então me seguiu quando eu fui embora. Era uma sacola de plástico amarelo berrante, Rick. Era como se eu estivesse carregando um foguete de sinalização. - Então, outra idéia me veio à cabeça, tão alarmante que eu nem sabia por onde começar. - Enquanto você ainda está aí, me diga: o que você sabe sobre Sidney Kroll?

- O jovem Sid? - Rick deu uma risadinha de admiração. - Ora, ele é uma peça, não é? Vai acabar tirando vigaristas honestos como eu do mercado. Ele negocia taxas fixas em vez de comissões, e você não vai encontrar um ex-presidente ou membro de gabinete que não o queira na sua equipe. Por quê?

- Não é possível - falei, hesitante, verbalizando a idéia mais ou menos à medida que ela se formava na minha cabeça - que ele tenha me dado aquele manuscrito por achar que, se alguém estivesse de olho, iria parecer que eu estava saindo do prédio com o livro de Lang?

- E por que diabos ele faria isso?

- Não sei. Para tirar um sarro? Para ver o que aconteceria?

- Para ver se você seria roubado?

- Certo, tudo bem, sei que parece loucura, mas pense um pouco. Por que os editores estão tão paranóicos com esse manuscrito? Nem Quigley pôde vê-lo. Por que não o deixam sair dos Estados Unidos? Talvez seja porque acham que alguém aqui está desesperado para colocar as mãos nele.

- E daí?

- E daí que talvez Kroll estivesse me usando como isca para avaliar quem estava atrás dele, descobrir até onde eles estariam dispostos a ir.

No mesmo instante em que as palavras saíam da minha boca, eu percebia como estava soando ridículo.

- Mas o livro de Lang é uma merda, uma chatice só! - disse Rick. - As únicas pessoas que eles querem manter longe do manuscrito a essa altura são os acionistas! É por isso que estão fazendo segredo.

Eu estava começando a me sentir um idiota. Teria largado o assunto de mão, mas Rick estava se divertindo demais.

- Uma isca! - Eu poderia ter ouvido a gargalhada dele vindo do outro terminal mesmo sem o telefone. - Deixe-me ver se entendi direito. De acordo com a sua teoria, alguém sabia que Kroll estava na cidade, bem como onde ele estava na sexta-feira de manhã, qual o motivo da vinda dele...

- Está certo - falei. - Deixe para lá.

-... sabia, ainda, que talvez ele desse o manuscrito de Lang para um novo ghost-writer, sabia quem você era quando saiu da reunião e sabia também onde você morava. Porque você disse que eles o estavam esperando, não foi? Uau. Deve ter sido uma operação e tanto. Grande demais para um jornal. Deve ter sido um governo...

- Esqueça - falei, finalmente conseguindo cortá-lo. - É melhor você pegar o seu vôo.

- É, tem razão. Bem, tenha uma boa viagem. Durma um pouco no avião. Você está soando estranho. A gente se fala na semana que vem. E não se preocupe com isso.

Ele desligou.

Fiquei parado segurando meu telefone mudo. Era verdade. Eu estava soando estranho. Fui até o banheiro dos homens. A marca onde eu fora atingido na sexta-feira tinha amadurecido - ficara preta e roxa, cercada de amarelo, como alguma supernova explodindo em um livro didático de astronomia.

Pouco depois, eles anunciaram o embarque para o vôo de Boston, e, uma vez no ar, meus nervos se acalmaram. Adoro o instante em que uma paisagem cinza e sombria oscila até desaparecer debaixo de você, e o avião abre um túnel por entre as nuvens, emergindo sob a luz do sol. Quem consegue ficar deprimido a 3 mil metros de altitude com o sol brilhando enquanto os outros pobres-diabos ainda estão presos ao chão? Pedi um drinque. Assisti a um filme. Cochilei um pouco. Porém, tenho de admitir que também vasculhei aquela cabine da classe econômica atrás de qualquer jornal de domingo que pudesse encontrar, ignorei pela primeira vez na vida as páginas esportivas e li tudo o que havia sido escrito sobre Adam Lang e aqueles quatro suspeitos de terrorismo.

Chegamos às proximidades do aeroporto Logan a uma hora da tarde, horário local.

Enquanto passávamos rasantes sobre o porto de Boston, o sol que vínhamos perseguindo o dia todo parecia nos acompanhar correndo por sobre a água, atingindo os arranha-céus do centro da cidade um atrás do outro: emitindo colunas brancas e azuis, douradas e prateadas, em um espetáculo de luzes em meio ao vidro e ao aço. Oh, minha América! pensei, minha terra recém-descoberta - minha terra onde o mercado editorial é cinco vezes maior do que o do Reino Unido -, iluminai-me com vossa luz! Enquanto esperava na fila da imigração, estava praticamente cantarolando o hino dos Estados Unidos. Nem mesmo o sujeito do Departamento de Segurança Interna - uma personificação da regra de que quanto mais simples o nome de uma instituição, mais stalinista é sua função - conseguiu diminuir meu otimismo. Ele ficou sentado atrás de sua tela de vidro, a cara fechada diante da idéia de que alguém viajasse cerca de 5 mil quilômetros para passar um mês em Martha's Vineyard no meio do inverno. Quando descobriu que eu era um escritor, tratou-me com mais suspeita do que se eu estivesse usando uma roupa de pára-quedista laranja.

- Que tipo de livro o senhor escreve?

- Autobiografias.

Isto obviamente o deixou confuso. Ele suspeitou que eu estava de brincadeira, mas não tinha certeza.

- Autobiografias, é? Não é preciso ser famoso para fazer isso?

- Não mais.

Ele me olhou feio, então balançou a cabeça lentamente, como um São Pedro cansado diante dos Portões do Paraíso, que estivesse tendo de encarar mais um pecador que tentava entrar sorrateiramente no céu.

- Não mais - repetiu ele, exibindo uma expressão de infinito desgosto. Ele pegou seu carimbo de metal e bateu-o duas vezes. Recebi um visto de trinta dias.

Quando passei pela imigração, liguei o telefone celular. Ele mostrou uma mensagem de boas-vindas da assistente pessoal de Lang, uma mulher chamada Amélia Bly, pedindo desculpas por não ter conseguido um motorista para me buscar no aeroporto. Em vez disso, ela sugeriu que eu pegasse um ônibus até o terminal das barcas em Woods Hole e prometeu que um carro estaria à minha espera quando eu descesse em Martha's Vineyard. Comprei um New York Times e um Boston Globe e dei uma olhada neles enquanto esperava o ônibus sair. Queria ver se tinham a história de Lang, mas ou a notícia tinha chegado tarde demais para eles ou não lhes interessava.

O ônibus estava quase vazio e eu me sentei bem na frente, perto do motorista, enquanto seguíamos para o sul pelo emaranhado de auto-estradas que saíam da cidade em direção ao campo. A temperatura estava alguns graus abaixo de zero e o céu estava limpo, mas tinha nevado pouco tempo atrás. Havia neve acumulada no acostamento e agarrada aos ramos mais altos das árvores que se estendiam dos dois lados da estrada em grandes ondas de branco e verde. A Nova Inglaterra era basicamente a Velha Inglaterra anabolizada - estradas mais largas, florestas maiores, espaços mais amplos; até o céu parecia enorme e brilhante. Eu tinha uma sensação agradável de estar aproveitando meu tempo ao imaginar uma noite de domingo escura e úmida em Londres, em contraste com aquela tarde de inverno resplandecente. Porém, aos poucos começou a escurecer ali também. Acho que eram quase seis horas da tarde quando chegamos a Woods Hole e paramos em frente ao terminal das barcas, e àquela altura a lua e as estrelas já estavam no céu.

Estranhamente, foi apenas quando vi a placa indicando a barca que me lembrei de McAra. Não era de espantar que eu não quisesse pensar muito sobre o fato de estar substituindo um homem morto neste trabalho, especialmente depois do assalto. Porém, ao arrastar minha mala com rodinhas até a bilheteria para comprar meu tíquete e depois sair novamente para o vento gelado, ficou fácil demais imaginar meu predecessor fazendo movimentos semelhantes apenas três semanas antes. Ele estava bêbado, claro, coisa que eu não estava. Olhei em volta. Havia vários bares bem diante do estacionamento. Talvez ele tivesse ido a algum daqueles. Eu mesmo bem que gostaria de um drinque. Mas daí poderia acabar me sentando na mesmíssima cadeira de bar que ele havia se sentado, e isso seria mórbido, pensei, como fazer uma daquelas excursões por locais de assassinatos em Hollywood. Em vez disso, entrei na fila de passageiros e tentei ler o suplemento de domingo do Times, usando o muro para me proteger do vento. Havia uma placa de madeira com os seguintes dizeres pintados: o NÍVEL DE ALERTA NACIONAL ESTÁ ELEVADO. Conseguia sentir o cheiro do mar, mas estava escuro demais para vê-lo.

O problema é que, quando você começa a pensar sobre uma coisa, nem sempre consegue se obrigar a parar. A maioria dos carros que aguardava o embarque estava com o motor ligado para que os motoristas pudessem usar o aquecedor contra o frio, e eu me vi procurando um utilitário esportivo Ford Escape cor de canela. Então, quando finalmente entrei na barca e subi as escadas de metal rangentes até o convés dos passageiros, me perguntei se aquele era o caminho que McAra havia feito. Disse a mim mesmo para esquecer aquilo, que estava me preocupando por nada. Mas suponho que fantasmas e ghost-writers combinem naturalmente. Sentei-me na cabine de passageiros abafada e analisei os rostos comuns e honestos dos meus companheiros de viagem, e então, quando a embarcação estremeceu e zarpou do terminal, dobrei meu jornal e saí para o convés aberto superior.

É impressionante como o frio e a escuridão podem mudar tudo. Imagino que a barca para Martha's Vineyard em uma noite de verão seja uma delícia. Há uma chaminé listrada que parece ter saído direto de um livro de histórias infantis e fileiras de assentos de plástico azuis que dão para fora, correndo por toda a extensão do convés, nos quais famílias inteiras certamente se sentam de bermuda e camiseta, os adolescentes parecendo entediados e os pais mal se contendo de empolgação. Porém, naquela noite de janeiro, o convés estava deserto, e o vento norte cortante que soprava de Cape Cod atravessava meu paletó e minha camisa e me causava calafrios. As luzes de Woods Hole ficaram para trás. Passamos por uma bóia que indicava a entrada do canal e balançava freneticamente na direção dele, como se estivesse tentando se livrar de algum monstro marinho. Seu sino badalava no ritmo das ondas como uma marcha fúnebre e os respingos d'água que se lançavam no ar pareciam tão vis quanto o cuspe de uma bruxa.

Enfiei as mãos nos bolsos, ergui os ombros até o pescoço e fui andando cambaleante para estibordo. O corrimão ia apenas até a altura da cintura e pela primeira vez notei com que facilidade McAra poderia ter caído. Na verdade, tive de me esforçar para não acontecer o mesmo comigo. Rick tinha razão. A fronteira entre acidente e suicídio nem sempre é muito clara. Você poderia acabar se matando antes mesmo de tomar a decisão final. O simples ato de inclinar o corpo demais para fora e imaginar como seria poderia jogá-lo lá embaixo. Bateria naquela água negra, revolta e gelada com um impacto que o faria afundar três metros, e quando voltasse à tona, o navio já poderia estar a 100 metros de distância. Torci para que McAra tivesse bebido o suficiente para diminuir seu horror, mas duvidava que houvesse um bêbado no mundo que não ficasse sóbrio depois de uma imersão total em um mar a apenas meio grau acima de zero.

E ninguém teria escutado sua queda! Este era outro problema. O clima não estava nem de longe tão ruim quanto há três semanas e, ainda assim, olhando em volta, não conseguia enxergar viva alma no convés. Nesse instante, comecei a tremer de verdade; meus dentes batiam como algum brinquedo mecânico de bazar.

Desci até o bar para tomar um drinque.

Contornamos o farol de West Chop e entramos no terminal do porto de Vineyard pouco antes das sete horas, ancorando com um chocalhar de correntes e um baque que quase me fez voar escada abaixo. Não estava esperando um comitê de boas-vindas, o que foi bom, pois não tive nenhum, apenas um motorista de táxi local segurando uma página arrancada de um bloco de anotações na qual meu nome estava escrito errado. Enquanto ele guardava minha bagagem no porta-malas, o vento ergueu um pedaço grande de plástico transparente e o fez sair rodopiando pelo gelo que cobria o estacionamento. O céu estava branco de estrelas.

Eu havia comprado um guia para a ilha, de modo que tinha uma vaga idéia do que me esperava. No verão, a população era de 100 mil habitantes, porém, depois que os veranistas fechavam suas casas e migravam para o oeste no inverno, ela caía para 15 mil. Estes compreendiam os robustos nativos da ilha: gente que chamava o continente de América. Havia algumas auto-estradas, um semáforo e dezenas de trilhas longas e arenosas que conduziam a lugares com nomes como Squilbnocket Pond e Job's Neck Cove. Meu motorista não disse uma palavra durante toda a viagem, apenas me examinou pelo espelho retrovisor. Quando meus olhos encontraram o olhar turvo dele pela vigésima vez, perguntei a mim mesmo se havia algum motivo para ele se ressentir em me apanhar. Talvez eu o estivesse impedindo de fazer alguma coisa. Era difícil imaginar o quê. As ruas em volta do terminal estavam praticamente desertas, e assim que saímos do porto de Vineyard e pegamos a estrada principal, não havia nada para se ver além de escuridão.

Àquela altura, eu estava viajando havia 17 horas. Não sabia onde estava, por que tipo de paisagem estava passando nem para onde estava indo. Todas as minhas tentativas de puxar conversa haviam fracassado. Enxergava apenas meu reflexo na escuridão fria da janela. Senti-me como se tivesse chegado à beirada da Terra, como algum explorador inglês do século dezessete prestes a encontrar pela primeira vez os nativos da área. Soltei um bocejo alto e levei rapidamente as costas da mão à boca.

- Desculpe - expliquei aos olhos sem corpo no espelho retrovisor. - De onde eu venho já passa da meia-noite.

Ele balançou a cabeça. A princípio, não soube dizer se ele estava demonstrando simpatia ou reprovação; então percebi que estava tentando me informar que não adiantava falar com ele: o homem era surdo. Voltei a olhar pela janela.

Algum tempo depois, chegamos a uma encruzilhada e viramos à esquerda, entrando no que imaginei ser Edgartown, um povoado de casas brancas de madeira com cercas brancas, pequenos jardins e pórticos, iluminadas por postes de luz vitorianos enfeitados. Nove entre dez estavam escuras, mas as poucas janelas que brilhavam com uma luz amarela vislumbrei pinturas a óleo de veleiros e ancestrais barbudos. No fim da colina, depois da antiga igreja local, uma lua grande e nebulosa lançava uma luz prateada sobre os telhados e recortava os mastros no porto contra o céu. Caracóis de fumaça de lenha subiam de algumas chaminés. Senti-me como se estivesse passando por um cenário do filme Moby Dick. Os faróis brilharam sobre uma placa para barca de Chappaquiddick e, pouco depois, paramos em frente do Hotel Lighthouse View.

Mais uma vez, posso visualizar a cena no verão: baldes, pás e redes de pesca empilhados na varanda, sandálias de corda diante da porta, um rastro de areia branca trazida da praia - esse tipo de coisa. Porém, na baixa temporada, o vento castigava e fazia ranger o antigo e enorme hotel de madeira como se ele fosse um veleiro preso em um recife. Imagino que a gerência estivesse esperando até a primavera para raspar a pintura descascada e limpar a crosta de sal das janelas. Perto dali, o mar espancava a orla na escuridão. Fiquei parado com minha mala na varanda de madeira e observei os faróis do táxi desaparecerem na esquina sentindo algo parecido com nostalgia.

No saguão, uma garota vestida de empregada vitoriana, usando um chapéu de pala com laço branco, entregou-me uma mensagem do escritório de Lang. Eu seria apanhado às dez horas na manhã seguinte e deveria levar meu passaporte para mostrá-lo à segurança. Estava começando a me sentir como um homem em uma viagem misteriosa: assim que chegava a um local, recebia uma nova série de instruções para me encaminhar até o próximo. O hotel estava vazio, o restaurante, escuro. Disseram-me que eu poderia escolher meu quarto e optei por um no segundo andar, que tinha uma mesa na qual eu poderia trabalhar e fotografias da Velha Edgartown na parede: a Casa de John Coffin, área 1890, o baleeiro Splendid, em Osborn Wharf, circa 1870. Depois que a recepcionista saiu, coloquei meu laptop, a lista de perguntas e as matérias que eu havia retirado dos jornais de domingo sobre a mesa e então me estirei na cama.

Caí no sono imediatamente e não acordei até as duas horas da manhã, quando o alarme do meu relógio biológico, ainda ajustado para o horário de Londres, disparou como o Big Ben. Passei dez minutos procurando um frigobar antes de perceber que não havia nenhum. Por impulso, liguei para a casa de Kate. Não fazia idéia do que exatamente ia dizer. Pretendia desligar, mas, em vez disso, me surpreendi divagando na secretária eletrônica. Ela devia ter saído bem cedo para o trabalho. Ou isso, ou não tinha voltado para casa na noite anterior. Aquilo dava o que pensar e, oportunamente, foi o que fiz. O fato de não ter ninguém para culpar além de mim mesmo não me fez sentir nada melhor. Tomei um banho e depois voltei para a cama, apaguei a luz e puxei os lençóis úmidos até o queixo. De poucos em poucos segundos, a luz lenta do farol enchia o quarto de um brilho vermelho esmaecido. Devo ter ficado horas deitado ali, os olhos arregalados, totalmente desperto, porém disperso, e foi assim que passei minha primeira noite em Martha's Vineyard.

A paisagem que se dissolveu da aurora na manhã seguinte era opaca e aluvial. Do outro lado da rua sob a minha janela, havia um córrego, mais adiante um canavial e, depois dele, uma praia e o mar. Um bonito farol vitoriano com um telhado em forma de sino e uma sacada de ferro batido dava vista para os estreitos até uma faixa de terra longa e baixa a cerca de 1 quilômetro de distância. Aquilo, percebi, devia ser Chappaquiddick. Um bando de centenas de minúsculos pássaros marinhos brancos, com uma formação tão rígida quanto a de um cardume, planou, fez piruetas e mergulhou nas águas rasas.

Desci e pedi um café-da-manhã enorme. Na lojinha ao lado da recepção, comprei um exemplar do New York Times. A matéria que eu procurava havia sido sepultada nas profundezas do caderno internacional e depois enterrada mais fundo no fim da página para garantir o máximo de obscuridade: LONDRES (AP) - O ex-primeiro-ministro Adam Lang autorizou o uso ilegal de tropas das forças especiais britânicas para a captura de dois supostos terroristas da al-Qaeda no Paquistão, que seriam posteriormente entregues à CIA para interrogatório, segundo matérias de jornal publicadas neste domingo.

Os homens - Nasir Ashraf, Shalctel Qazl, Salim Khan e Faruk Ahmed -, todos cidadão ingleses, foram capturados na cidade paquistanesa de Peshwar cinco anos atrás. Os quatro supostamente foram transferidos do país para um local secreto e torturados. Acredita-se que o Senhor Ashraf tenha morrido durante os interrogatórios. O Senhor Qazi, o Senhor Khan e o Senhor Ahmed ficaram detidos em Guantánamo por três anos. Apenas o Senhor Ahmed continua atualmente sob a custódia americana.

De acordo com documentos obtidos pelo Sunday Times de Londres, o Senhor Lang endossou pessoalmente a "Operação Tempestade", uma missão secreta para raptar os quatro homens realizada pelas Forças Áreas Especiais do Reino Unido (SAS). Uma operação deste gênero seria considerada ilegal tanto pelas leis britânicas quanto pelas leis internacionais.

Na noite passada, o ministro da Defesa da Inglaterra recusou-se a tecer comentários sobre a autenticidade dos documentos ou sobre a existência da "Operação Tempestade". Uma porta-voz do Senhor Lang afirmou que ele não planejava fazer declarações a respeito.

Li a notícia três vezes. Não parecia acrescentar muita coisa. Ou acrescentava? Já não era tão fácil saber. O posicionamento moral de uma pessoa não era mais tão fixo quanto antigamente. Métodos que a geração do meu pai teria considerado inadmissíveis, mesmo na luta contra os nazistas - tortura, por exemplo -, agora eram, aparentemente, comportamentos civilizados aceitáveis. Decidi que os dez por cento da população que se preocupava com este tipo de coisa ficaria horrorizado com a notícia, isto é, se conseguisse achá-la; os outros noventa por cento provavelmente apenas daria de ombros. Todo mundo sabia que o Mundo Livre está flertando com o lado negro. O que as pessoas esperavam?

Eu tinha algumas horas livres antes de o carro vir me buscar, então atravessei a ponte de madeira até o farol e depois caminhei até Edgartown. À luz do dia, ela parecia ainda mais vazia do que na noite anterior. Esquilos corriam despreocupadamente pelas calçadas e disparavam árvores acima. Devo ter passado por duas dúzias daquelas casas pitorescas, estilo século dezenove, de capitães de baleeiro, e nenhuma delas parecia estar ocupada. As sacadas frontais e laterais estavam desertas. Não havia mulheres de xale preto olhando melancolicamente para o mar, esperando seus homens voltarem para casa - provavelmente porque os homens estavam todos em Wall Street. Os restaurantes estavam fechados; as pequenas butiques e galerias não tinham absolutamente mais nada no estoque. Eu pretendia comprar um casaco impermeável, mas não havia nenhuma loja aberta. As janelas estavam cheias de poeira e casulos de insetos. "Obrigado pela ótima temporada!!!", diziam os cartazes. "Voltamos a nos ver na primavera!"

A mesma coisa na enseada. As cores primárias do porto eram cinza e branco - mar cinza, céu branco, telhados cinza, muros de madeira branca, mastros brancos lisos, quebra-mares que as intempéries tornaram azul ou verde-acinzentado, sobre os quais se empoleiravam gaivotas nos mesmos tons de branco e cinza. Era como se Martha Stewart tivesse escolhido as cores daquele lugar inteiro, misturando a ação do homem com a natureza. Até mesmo o sol, que pairava discretamente sobre Chappaquiddick tinha o bom gosto de iluminar tudo com uma luz branco-clara.

Levantei a mão para proteger os olhos e apertei-os em direção à faixa de areia distante com suas casas de veraneio isoladas. Era lá que a trajetória do senador Edward Kennedy tinha dado sua desastrosa guinada para o lado errado. De acordo com o meu livro, a ilha de Martha Vineyard inteira tinha sido um playground para a família Kennedy, que gostava de vir de barco desde Hyannisport para passar o dia nela. Dizem que certa vez Jack, quando era presidente, decidiu atracar seu barco no cais privativo do Clube de Iatismo de Edgartown, mas preferiu continuar navegando depois que viu uma multidão de sócios em fila, todos republicanos, com os braços cruzados, observando-o, desafiando-o a aportar. Foi no verão anterior ao assassinato dele.

Os poucos iates atracados agora estavam cobertos para o inverno. O único movimento era o de um barco pesqueiro solitário com um motor externo que seguia em direção às marambaias. Sentei-me um pouco em um banco e esperei para ver se algo acontecia. Gaivotas mergulhavam no ar e gritavam. Em um iate próximo, o vento fazia os cabos baterem contra um mastro de metal. Ouvia-se um martelar ao longe à medida que alguma casa era reformada para o verão. Um velho passou com um cachorro. Fora isso, durante quase uma hora não aconteceu nada que pudesse distrair um autor do seu trabalho. O lugar era a idéia que um não-escritor faria de um paraíso para escritores. Entendi por que McAra provavelmente tinha enlouquecido.

 

O ghost-writer também sofrerá pressão dos editores para revelar alguma polêmica que eles possam usar para vender a publicação de trechos na imprensa e gerar publicidade na época do lançamento.

Ghostwriting

 

Foi meu velho amigo, o taxista surdo, que me apanhou no hotel mais tarde naquela manhã. Uma vez que eu havia sido instalado em um hotel em Edgartown, naturalmente havia suposto que a propriedade de Rhinehart devia ser em algum lugar na própria enseada. Havia alguns casarões com vista para o porto que me pareciam exemplos perfeitos de imóveis bilionários - o que mostra como eu era ignorante em relação ao que a verdadeira riqueza pode comprar. Em vez disso, pegamos a saída da cidade durante cerca de dez minutos, seguindo placas para West Tisbury até uma região plana, onde a mata era cerrada, e então, antes mesmo que eu percebesse uma falha entre as árvores, dobramos à esquerda e descemos por uma trilha arenosa não asfaltada.

Até aquele instante, eu não havia sido apresentado ao carvalho americano. Talvez seja uma árvore bonita quando frondosa. Porém, no inverno, duvido que a natureza tenha uma visão mais deprimente para oferecer em toda a sua flora do que quilômetro após quilômetro daquelas árvores retorcidas, anãs e cinzentas. Algumas poucas folhas marrons enroscadas eram a única prova de que um dia elas talvez tivessem estado vivas. Chacoalhamos e quicamos por uma trilha estreita em meio à floresta por quase cinco quilômetros e a única criatura que vimos foi um gambá atropelado, até que finalmente chegamos a um portão fechado. E eis que se materializa, naquela selva petrificada, um homem carregando uma prancheta e vestindo um sobretudo Crombie e sapatos Oxford pretos engraxados, o traje inconfundível de um guarda inglês à paisana.

Baixei a janela e entreguei-lhe meu passaporte. Seu rosto grande e mal-humorado estava cor de tijolo naquele frio, suas orelhas, cor de terracota: não era um policial satisfeito com sua função. Pela sua cara, era como se tivesse sido escalado para fazer a guarda de uma das netas da rainha no Caribe por uma quinzena e então tivesse sido transferido para aquele lugar no último minuto. Ele me olhou feio enquanto conferia meu nome na lista em sua prancheta, limpou uma enorme gota de umidade da ponta do nariz e deu a volta no táxi, inspecionando-o. Pude ouvir as ondas executando suas cambalhotas contínuas e oscilantes em uma praia em algum lugar. Ele voltou, devolveu-me o passaporte e disse - ou pelo menos achei que disse isso, pois sua fala não passou de um resmungo:

- Bem-vindo ao hospício.

De repente, fiquei nervoso, coisa que espero ter conseguido esconder, pois a primeira impressão é importante para um ghost-writer. Tento nunca demonstrar ansiedade. Esforço-me para sempre parecer profissional. Meu estilo de vestir é camaleônico. Procuro usar o mesmo tipo de roupa que imagino que o cliente estará usando. Se for um jogador de futebol, talvez coloque um par de tênis; se for um cantor de música pop, uma jaqueta de couro. Para o meu primeiro encontro na vida com um ex-primeiro-ministro, eu havia decidido não usar terno - formal demais: teria ficado parecendo o advogado ou o contador dele -, mas sim uma camisa azul-clara, uma gravata listrada tradicional, um paletó esporte e uma calça cinza. Meu cabelo estava bem penteado, escovara e passara fio dental nos dentes, meu desodorante estava em dia. Estava mais preparado do que nunca. O hospício? Ele falou mesmo isso? Olhei para trás procurando o policial, mas ele tinha saído de vista.

O portão se abriu, a trilha fez uma curva e, logo em seguida, tive meu primeiro vislumbre do complexo Rhinehart: quatro construções em forma de cubo - uma garagem, um armazém, dois chalés para os funcionários - e, mais adiante, a casa principal. Tinha apenas dois andares, mas era tão extensa quanto uma mansão, com um telhado longo e baixo e duas chaminés quadradas de tijolos, do tipo que se vê em um crematório. O restante da casa era todo feito de madeira, mas embora ainda fosse nova, o clima já lhe havia conferido uma cor acinzentada, como mobília de jardim deixada ao relento por um ano. As janelas daquele lado eram altas e finas como as seteiras de um castelo e, juntando estas com o aspecto cinza e os fortins mais ao fundo, e com a floresta ao redor e a sentinela ao portão, a casa parecia, de certa forma, um lugar de veraneio projetado por Albert Speer; a Toca do Lobo veio à mente.

Antes mesmo de pararmos o carro, a porta da frente se abriu e outro guarda - camisa branca, gravata preta, jaqueta cinza com o zíper fechado - conduziu-me sem sorrir até o hall. Ele revistou rapidamente minha bolsa a tiracolo enquanto eu olhava em volta. Eu havia conhecido muitas pessoas ricas no decorrer de minha carreira, mas acho que nunca tinha visto o interior da casa de um bilionário antes. Havia fileiras de máscaras africanas nas paredes brancas e lisas, mostruários iluminados repletos de esculturas em madeira e cerâmicas primitivas de figuras toscas com falos gigantescos e seios em forma de torpedo - o tipo de coisa que uma criança travessa faria enquanto o professor estava de costas. Era algo completamente desprovido de habilidade, beleza ou mérito estético. A primeira Senhora Rhinehart, descobri mais tarde, fazia parte do Conselho do Metropolitan Museum of Modern Art; a segunda era uma atriz de Bollywood, cinquenta anos mais nova do que ele, com quem Rhinehart fora aconselhado a se casar por seus banqueiros para poder entrar no mercado indiano.

De algum lugar no interior da casa, ouvi uma mulher com um sotaque inglês gritar: "Esta é a coisa mais ridícula que eu já vi!" Então uma porta bateu e uma loura elegante, usando paletó e saia azul-escuros e carregando um caderno de anotações formato A4 preto veio descendo o corredor com seus saltos altos clicando no assoalho.

- Amélia Bly - disse ela com um sorriso tenso. Devia ter uns 45 anos, mas, de longe, poderia passar por dez anos mais nova. Tinha belos olhos grandes, azul-claros, mas usava maquiagem demais, como se trabalhasse no balcão de cosméticos de alguma loja de departamentos e fosse obrigada a demonstrar todos os produtos de uma vez só. Exalava um cheiro de perfume doce e opulento. Supus que ela era a porta-voz mencionada no Times daquela manhã. - Infelizmente, Adam está em Nova York e não voltará até o fim da tarde.

- Na verdade, esqueça o que eu disse: esta é a merda mais ridícula que eu já vi! - gritou a mulher invisível.

Amélia abriu um pouco mais o sorriso, criando pequenas fissuras nas bochechas lisas e rosadas.

- Minha nossa. Sinto muito. Temo que a pobre Ruth esteja tendo um daqueles dias.

Ruth. O nome ecoou brevemente, como o rufar de um tambor ou o barulho de uma lança sendo jogada em meio à arte tribal africana. Jamais me ocorrera que a mulher de Lang pudesse estar ali. Tinha imaginado que ela estaria na sua casa, em Londres. Tinha fama de independente, entre outras coisas.

- Se não for uma boa hora... - falei.

- Não, não. Ela está louca para conhecê-lo. Entre e tome um café. Eu vou buscá-la. Como está o hotel? - acrescentou ela, olhando por sobre o ombro. - Silencioso?

- Como uma tumba.

Peguei minha bolsa de volta do agente das Forças Especiais e acompanhei Amélia até o interior da casa, perseguindo o rastro de seu perfume. Notei que tinha pernas muito bonitas; o náilon sussurrava em suas coxas enquanto ela andava. Ela me conduziu até uma sala repleta de mobília em couro creme, serviu-me um pouco de café de uma cafeteira na mesa de canto e então desapareceu. Fiquei um tempo parado diante das janelas francesas com minha caneca, olhando para os fundos da propriedade. Não havia canteiros de flores - pelo jeito, nada delicado cresceria naquele lugar desolado -, somente um longo gramado que terminava a cerca de cem metros dali, transformando-se em uma vegetação rasteira de um marrom doentio. À esquerda, o terreno subia ligeiramente até as dunas que marcavam a beira da praia. Não conseguia ouvir o mar: as portas de vidro eram grossas demais - à prova de balas, descobri mais tarde.

Uma transmissão em código Morse urgente que veio do corredor anunciou a volta de Amélia Bly.

- Sinto muito. Infelizmente Ruth está um pouco ocupada neste momento. Ela pede desculpas. Falará com você mais tarde. - O sorriso de Amélia tinha endurecido um pouco. Parecia tão natural quanto um esmalte de unha. - Então, se já tiver terminado seu café, posso mostrar-lhe onde nós trabalhamos.

Ela insistiu em que eu subisse as escadas primeiro. A casa, explicou ela, tinha sido projetada para que todos os quartos ficassem no primeiro piso, com a área de estar no andar de cima, e assim que chegamos à imensa sala de estar aberta, entendi o porquê. A parede que dava para o litoral era toda de vidro. Não havia nada feito pelo homem ao alcance da vista, apenas mar, lago e céu. Era algo primordial: uma cena que permanecia inalterada havia dez mil anos. O vidro à prova de som e o aquecimento sob o piso criavam o efeito de uma exuberante máquina do tempo que houvesse sido lançada de volta para a era neolítica.

- É um lugar e tanto - falei. - Você não se sente sozinha à noite?

- Chegamos - disse Amélia, abrindo uma porta.

Entrei atrás dela em um escritório grande, contíguo à sala de estar, que aparentemente era o local de trabalho de Marty Rhinehart nas férias. Havia uma vista semelhante dali, embora o ângulo favorecesse mais o oceano do que o lago. As prateleiras estavam cheias de livros sobre a história militar da Alemanha, as lombadas com suásticas esbranquiçadas pela exposição ao sol e ao ar salinizado. Havia duas mesas - uma pequena no canto, na qual uma secretária estava digitando em um computador, e uma maior, totalmente vazia, exceto por uma fotografia de uma lancha e o modelo de um iate. O esqueleto amargo e velho que era Marty Rhinehart inclinava-se sobre o leme de seu barco - uma refutação viva do antigo provérbio de que não se pode ser magro nem rico demais.

- Somos uma equipe pequena - disse Amélia. - Eu, a Alice aqui - a garota que estava no canto ergueu os olhos - e Lucy, que está com Adam em Nova York. Jeff, o motorista, também está lá; ele vai trazer o carro de volta hoje à tarde. Seis seguranças ingleses: três aqui e três com Adam no momento. Precisamos desesperadamente de outra pessoa, nem que seja apenas para lidar com a imprensa, mas Adam não consegue se convencer a substituir Mike. Eles estavam juntos há muito tempo.

- E há quanto tempo você está com ele?

- Oito anos. Trabalhava na Downing Street. Fui transferida do Gabinete.

- Pobre Gabinete.

Ela abriu seu sorriso de esmalte de unhas.

- É do meu marido que eu sinto mais falta.

- Você é casada? Vejo que não está usando aliança.

- Não posso, infelizmente. É grande demais. Apita quando eu passo pela segurança do aeroporto.

- Ah. - Eu e Amélia nos entendíamos perfeitamente.

- Os Rhinehart também têm um casal de empregados vietnamitas que vivem na casa, mas eles são muito discretos, você mal vai notá-los. Ela cuida da casa e ele, do jardim. Dep e Duc.

- Quem é quem?

- Duc é o homem. É claro.

Ela pegou uma chave no bolso de seu paletó bem-cortado e destrancou um grande arquivo cinza-chumbo, do qual retirou uma caixa de papéis.

- Este material não deve sair desta sala - disse ela, largando a caixa na mesa. - Não deve ser copiado. Você pode fazer anotações, mas lembre-se de que assinou um termo de confidencialidade. Tem seis horas para lê-lo antes de Adam voltar de Nova York. Mandarei que lhe tragam um sanduíche para o almoço. Vamos, Alice. Não queremos que ele se distraia por nossa causa, queremos?

Depois que elas foram embora, sentei-me na cadeira giratória de couro, tirei meu laptop da bolsa, liguei-o e criei um documento intitulado "Lang MS". Então afrouxei a gravata, tirei meu relógio de pulso e coloquei-o na mesa ao lado do arquivo. Por alguns instantes, permiti-me ficar balançando para frente e para trás na cadeira de Rhinehart, saboreando a vista para o oceano e a vaga sensação de ser um ditador mundial. Então abri a tampa da caixa, tirei o manuscrito e comecei a ler.

Todos os bons livros são diferentes, mas todos os livros ruins são exatamente iguais. Sei que isso é verdade porque, no meu ramo de trabalho, leio um monte de livros ruins - tão ruins que nem chegam a ser publicados, o que é uma façanha, levando-se em conta o que vai para as livrarias.

E o que todos têm em comum, estes livros ruins, sejam eles romances ou memórias, é o seguinte: eles não soam verdadeiros. Não estou dizendo que um bom livro é necessariamente verdadeiro, apenas que ele parece verdadeiro enquanto você o está lendo. Um editor amigo meu chama isso de Teste do Hidroplano, referindo-se a um filme que viu sobre o povo da cidade de Londres que começava com o protagonista chegando para trabalhar em um hidroplano que ele pousou no rio Tâmisa. Daí em diante, segundo meu amigo, não valia mais a pena assistir.

As memórias de Adam Lang não passariam no Teste do Hidroplano.

O problema não estava necessariamente nos fatos - eu não tinha condições de julgá-los àquela altura -, mas sim na questão de que, de algum modo, o livro inteiro parecia falso, como se no meio. Ele consistia em 16 capítulos, organizados cronologicamente: "Juventude", "Entrando na Política", "Luta pela Liderança", "Mudando o Partido", "Vitória nas Eleições", "Reformando o Governo", "Irlanda do Norte", "Europa", "O Relacionamento Especial", "Segundo Mandato", "O Desafio do Terror", "A Guerra contra o Terror", "Mantendo as Diretrizes", "Render-se, Jamais", "Hora de Partir" e "Um Futuro de Esperança". Cada capítulo tinha algo entre 10 e 20 mil palavras e não havia sido exatamente escrito, mas sim costurado a partir de discursos, minutas oficiais, comunicados, memorandos, transcrições de entrevistas, diários oficiais, manifestos do partido e artigos de jornal. Ocasionalmente, Lang se permitia revelar um sentimento particular ("fiquei felicíssimo quando nosso terceiro filho nasceu"), uma observação pessoal ("o presidente americano era bem mais alto do que eu esperava") ou uma declaração incisiva ("como secretário de Relações Internacionais, Richard Rycart muitas vezes preferiu levar a questão dos imigrantes à Inglaterra, e não o contrário"), mas isso, além de não acontecer com muita freqüência, não surtia muito efeito. E onde estava a mulher dele? Ela mal era mencionada.

Um pedaço merda, Rick havia dito sobre o livro. Porém, na verdade, aquilo era pior. A merda, citando Gore Vidal, tem sua própria integridade. Aquilo não era nada. Era rigorosamente fiel, mas, como um todo, uma mentira - tinha de ser, pensei. Nenhum ser humano podia passar pela vida tendo sentido tão pouco. Especialmente Adam Lang, cuja maior característica política era a empatia emocional. Pulei até o capítulo intitulado "A Guerra ao Terror". Se houvesse alguma coisa de interessante para os leitores americanos, certamente estaria ali. Passei os olhos por ele, procurando palavras como "captura", "tortura", "CIA". Não encontrei nada, e certamente não havia menção alguma à Operação Tempestade. Mas claro que havia algumas críticas leves ao presidente dos EUA, ou ao secretário de Defesa, ou ao secretário de Estado; algo que sugerisse traição ou desilusão; algum furo de reportagem ou documento confidencial fisgado dos bastidores, certo?

Não. Em lugar nenhum. Engoli em seco, literal e metaforicamente, e comecei a ler novamente desde o início.

Em algum momento, Alice, a secretária, deve ter me trazido um sanduíche de atum e uma garrafa de água mineral, pois, mais tarde, percebi os dois na beirada da mesa. Porém, estava ocupado demais para parar e, além disso, não estava com fome. Na verdade, estava começando a ficar enjoado à medida que folheava aqueles 16 capítulos, vasculhando aquele rochedo branco e íngreme de prosa sem graça em busca de qualquer coisa minimamente interessante na qual pudesse me agarrar. Não era de surpreender que McAra tivesse se jogado da barca para Martha's Vineyard. Ou que Maddox e Kroll tivessem viajado para Londres para tentar salvar o projeto. Ou que estivessem me pagando 50 mil dólares por semana. Todos estes acontecimentos aparentemente bizarros tornavam-se completamente lógicos diante do horror que era aquele manuscrito. E agora seria a minha reputação que iria por água abaixo, presa ao banco traseiro do hidroplano camicase de Adam Lang. Eu seria apontado pelas pessoas nas festas das editoras - considerando que eu ainda fosse convidado para alguma - como o ghost-writer que havia colaborado no maior fracasso da história da literatura. Em um súbito insight paranóico, acreditei ter descoberto o meu verdadeiro papel na operação: eu era o bode expiatório da vez.

Terminei a última das 621 páginas no meio da tarde ("Ruth e eu estamos olhando para o futuro, venha o que vier") e, depois de largar o manuscrito, apertei as mãos contra as bochechas, escancarei a boca e arregalei os olhos, em uma imitação razoável de O grito, de Edvard Munch.

Foi então que ouvi alguém tossir no batente da porta e ergui os olhos para ver Ruth Lang me observando. Até hoje não sei há quanto tempo ela estava lá. Ela ergueu uma sobrancelha preta e fina.

- Tão ruim assim? - perguntou.

Ela usava um suéter branco masculino, grosso e disforme, com as mangas tão longas que apenas suas unhas roídas apareciam. Quando chegamos ao andar de baixo, vestiu por cima dele um casaco de chuva azul-claro, desaparecendo por um instante enquanto o passava pela cabeça, seu rosto pálido emergindo por fim, carrancudo. Seu cabelo preto curto ficou em pé como as madeixas da Medusa.

Ela havia proposto uma caminhada. Disse que parecia que eu estava precisando, o que era bem verdade. Emprestou-me o casaco impermeável do marido, que me serviu perfeitamente, e um par de botas de chuva que eram da casa, e saímos juntos em direção ao ar tempestuoso do Atlântico. Seguimos o caminho que contornava o jardim e subimos até as dunas. À nossa direita, ficava o lago com um ancoradouro e, próximo dele, um barco a remo que havia sido puxado até o canavial e virado de cabeça para baixo. À nossa frente, areia branca pura se estendia por alguns quilômetros e, quando olhei para trás, a paisagem era a mesma, exceto por um policial com um sobretudo que nos seguia a uns 50 metros de distância.

- A senhora deve se cansar disso - falei, indicando com a cabeça nosso acompanhante.

- Faz tanto tempo que é assim que eu já nem percebo mais.

Continuamos seguindo contra o vento. De perto, a praia não parecia tão idílica. Pedaços estranhos de plástico quebrado, montes de areia betuminosa, um sapato de lona azul-escuro endurecido pelo sal, um carretel de madeira, pássaros mortos, esqueletos e pedacinhos de ossos - era como andar pelo acostamento de uma rodovia de seis pistas. As ondas grandes chegavam com um rugido e voltavam como caminhões em disparada.

- E então - disse Ruth -, é muito ruim?

- A senhora ainda não leu?

- Não todo.

- Bem - falei, educadamente -, ele precisa de algum trabalho.

- Quanto?

A palavra Hiroshima flutuou brevemente pela minha cabeça.

- E consertarei - falei, o que imagino que fosse verdade: até Hiroshima foi consertada com o tempo. - O problema é o prazo. Precisamos dele pronto em quatro semanas, sem falta, e isso significa menos de dois dias por capítulo.

- Quatro semanas! - Ela deu uma risada forte, um tanto sacana. - Você nunca vai conseguir que ele fique parado tanto tempo assim.

- Ele não precisa escrever exatamente. É para isso que estão me pagando. Só tem de conversar comigo.

Ela havia colocado o capuz. Não conseguia ver bem seu rosto. Apenas a ponta branca e acentuada de seu nariz estava visível. Todos diziam que ela era mais inteligente do que o marido e que adorava a vida deles no topo ainda mais do que ele. Se houvesse alguma visita oficial a algum país estrangeiro, ela geralmente o acompanhava: recusava-se a ser deixada em casa. Bastava ver os dois juntos na TV para perceber como ela se banhava no sucesso dele. Adam e Ruth Lang: O Poder e a Glória. Então ela parou e se voltou para o mar, as mãos enfiadas no fundo dos bolsos. No meio da praia, como se estivesse brincando de sombra, o policial também parou.

- Você foi idéia minha - disse ela. Perdi o equilíbrio no vento. Quase caí.

- Fui?

- Sim. Foi você quem escreveu o livro de Christy para ele. Levei um instante para me lembrar de quem ela estava falando.

Christy Costello. Havia muito tempo que eu não pensava nele. Foi meu primeiro best-seller. As memórias íntimas de um roqueiro dos anos 1970. Álcool, drogas, garotas, um acidente de carro quase fatal, cirurgia e, finalmente, clínica de reabilitação e redenção nos braços de uma mulher boa. Tinha de tudo. Você poderia dá-lo de presente para o seu filho adolescente metido a grunge ou para a sua avó que vai à igreja, e os dois ficariam igualmente felizes. Ele vendeu 300 mil exemplares de capa dura somente na Inglaterra.

- A senhora conhece o Christy? - Aquilo parecia bastante improvável.

- Ficamos na casa dele na ilha de Mustique no inverno. Li as suas memórias. Estavam ao lado da cama. - Agora eu fiquei envergonhado.

- Sério? Por quê? Achei o livro brilhante, ainda que de um jeito horrível. Depois de ouvir as histórias confusas dele durante o jantar e ver como você as transformou em algo parecido com uma vida, falei para Adam: "Este é o homem de quem você precisa para escrever o seu livro".

Eu ri. Não pude evitar.

- Bem - falei -, espero que as recordações de seu marido não sejam tão nebulosas quanto as de Christy.

- Não conte com isso - disse ela, puxando o capuz para trás e respirando fundo. Era mais bonita ao vivo do que na TV. A câmera a odiava quase tanto quanto amava seu marido. Não capturava sua vivacidade faceira, a animação de seu rosto. - Deus, como eu sinto falta de casa - falou. -Mesmo com as crianças na faculdade. Vivo falando isso para ele; é como estar casada com Napoleão em Santa Helena.

- Então por que a senhora não volta para Londres?

Ela não disse nada por alguns instantes, ficou apenas olhando para o mar, mordendo o lábio. Então me encarou, analisando-me.

- Você assinou aquele termo de confidencialidade?

- Claro.

- Tem certeza?

- A senhora pode confirmar com o escritório de Sid Kroll.

- Porque não quero ler sobre isso em alguma coluna de fofocas na semana que vem nem em algum livrinho barato e enxerido de sua própria autoria daqui a um ano.

- Opa - falei, apanhado de surpresa pelo seu veneno. - Pensei que a senhora tinha acabado de dizer que a idéia havia sido sua. Eu não pedi para estar aqui. E ainda não sei de nada.

Ela assentiu.

- Certo. Então vou lhe dizer por que não posso ir para casa, cá entre nós. Porque tem alguma coisa errada com ele ultimamente, e estou um pouco temerosa de abandoná-lo.

Nossa, pensei. As coisas não param de melhorar,

- Sim - respondi diplomaticamente. - Amélia contou-me que ele ficou muito abalado com a morte de Mike.

- Ah, foi? Não sei bem quando a Sra. Bly se tornou uma especialista tão grande no estado emocional de meu marido. - Se ela tivesse sibilado e produzido garras, não teria deixado seus sentimentos tão claros. - Perder Mike certamente piorou a situação, mas não é só isso. A perda de poder, este é o verdadeiro problema. A perda de poder e agora o fato de ter de se sentar e reviver tudo, ano após ano. Enquanto a imprensa não pára de falar sobre o que ele fez e o que ele não fez. Ele não consegue se livrar do passado, entende? Não consegue seguir adiante. - Ela gesticulou desamparadamente para o mar, para a areia, para as dunas. - Ele está preso. Nós dois estamos presos.

Enquanto andávamos de volta para casa, ela enlaçou seu braço no meu.

- Ai, ai - disse ela. - Você deve estar começando a se perguntar onde foi se meter.

O complexo estava muito mais agitado quando voltamos. Havia uma limusine Jaguar verde-escura com uma placa de Washington estacionada na entrada, com uma min-van preta com janelas escurecidas parada atrás dela. Quando a porta da frente se abriu, pude ouvir vários telefones tocando de uma só vez. Um simpático homem grisalho vestindo um terno marrom barato estava sentado lá dentro, bebendo uma xícara de chá enquanto conversava com um dos guardas. Ele se levantou depressa quando viu Ruth Lang. Todos tinham bastante medo dela, pelo que percebi.

- Boa tarde, senhora.

- Olá, Jeff. Como está Nova York?

- Um maldito caos, como sempre. Como o Piccadilly Circus na hora do rush. - Ele tinha um sotaque londrino manhoso. - Cheguei a pensar que não conseguiria voltar a tempo.

Ruth voltou-se para mim.

- Eles gostam de estar com o carro a postos quando Adam aterrisa.

Ela estava começando o longo processo de tirar seu casaco quando Amélia Bly apareceu, com um celular preso entre o ombro elegante e o queixo esculpido, enquanto seus dedos ágeis abriam o zíper de uma pasta de documentos.

- Tudo bem, tudo bem. Eu vou dizer a ele. - Ela meneou a cabeça para Ruth e continuou falando. - Na quinta-feira ele estará em Chicago - então olhou para Jeff e deu uma batidinha no seu relógio de pulso.

- Na verdade, acho que eu vou para o aeroporto - disse Ruth, subitamente baixando de volta o casaco. - Amélia pode ficar aqui e fazer as unhas ou algo assim. Por que você não vem? - acrescentou ela para mim. - Ele quer muito conhecê-lo.

Um a zero para a esposa, pensei. Mas não: na melhor tradição do serviço público inglês, Amélia ricocheteou nas cordas e voltou desferindo socos.

- Então eu vou no carro de apoio - disse ela, fechando seu celular e sorrindo com doçura. - Posso fazer minhas unhas nele.

Jeff abriu uma das portas de trás do Jaguar para Ruth, enquanto eu dei a volta e quase quebrei meu braço puxando a outra. Deslizei para o assento de couro e a porta se fechou às minhas costas com um baque gasoso.

- Ela é blindada, senhor - disse Jeff, olhando pelo espelho retrovisor enquanto partíamos. - Pesa duas toneladas e meia. E ainda chega a cem por hora com todos os quatro pneus furados.

- Oh, cale a boca, Jeff - disse Ruth, bem-humorada. - Ele não quer ouvir nada disso.

- As janelas têm dois centímetros e meio de espessura e não abrem, caso o senhor esteja pensando em tentar. Ela é hermeticamente isolada contra ataques químicos e biológicos, com oxigênio para uma hora. Dá o que pensar, não é? O senhor provavelmente nunca esteve, ou estará, tão seguro na sua vida quanto neste momento. Ruth riu novamente e fez uma careta.

- Meninos e seus brinquedos.

O mundo externo parecia abafado, distante. A trilha da floresta corria macia e silenciosa como se fosse de borracha. Ser carregado no útero deve ser assim, pensei: esta sensação maravilhosa de segurança total. Passamos por cima do gambá morto e o carrão não registrou o menor tremor.

- Nervoso? - perguntou Ruth.

- Não. Por quê? Deveria estar?

- Nem um pouco. Ele é o homem mais encantador do mundo. Meu próprio Príncipe Encantado! - E soltou aquela sua risada gutural e masculina novamente. - Deus - disse ela, olhando pela janela -, como eu vou gostar de ver estas árvores pelas costas. É como viver em uma floresta de conto de fadas.

Olhei por sobre o ombro para a mini-van não-identificada que nos seguia de perto. Conseguia perceber como aquilo viciava. Eu mesmo já estava me acostumando. Ser forçado a abrir mão daquilo depois de ter virado um hábito seria como se separar da Mamãe. Porém, graças ao terrorismo, Lang jamais teria de abrir mão daquele conforto - jamais teria que fazer fila para pegar o transporte público; jamais precisaria sequer dirigir. Ele era paparicado e mimado como um Romanov antes da revolução.

Saímos da floresta para a estrada principal, viramos à esquerda e dobramos quase imediatamente para a direita, atravessando o perímetro do aeroporto. Olhei surpreso pela janela para a grande pista de decolagem.

- Já chegamos?

- No verão, Marty gosta de sair às quatro horas da tarde do seu escritório em Manhattan - disse Ruth - e estar na praia às seis.

- Imagino que ele tenha um jatinho particular - falei, tentando mostrar que sabia das coisas.

- É claro que ele tem um jatinho particular.

Ela olhou para mim de um jeito que fez com que eu me sentisse como um caipira que havia acabado de usar a faca de peixe para passar manteiga no pão. É claro que ele tem um jatinho particular. Ninguém tem uma casa de 30 milhões de dólares e vai até ela de ônibus. O cara sozinho devia ser responsável pela emissão de carbono equivalente à de uma cidade inteira. Foi então que me dei conta de que quase todas as pessoas que os Lang conheciam àquela altura tinham um jatinho particular. E, de fato, lá vinha o próprio Lang, em um jato executivo Gulfstream, descendo do céu crepuscular e planando por sobre os pinheiros sombrios. Jeff pisou no acelerador e um minuto depois estávamos parando em frente do pequeno terminal. Houve uma salva arrogante de portas batendo enquanto nos amontoávamos lá dentro: eu, Ruth, Amélia, Jeff e um dos seguranças. No terminal, um patrulheiro da polícia de Edgartown já estava esperando. Na parede atrás dele, vi uma fotografia de Bill e Hillary Clinton sendo recebidos na pista de decolagem no começo de umas férias presidenciais envoltas em escândalo.

O jatinho particular manobrou na pista. Era pintado de azul-escuro e tinha HALLINGTON escrito em letras douradas na porta. Parecia maior do que os símbolos fálicos presidenciais comuns, com uma cauda alta e seis janelas de cada lado. Quando ele parou e os motores foram desligados, o silêncio que caiu sobre o aeroporto deserto foi inesperadamente profundo.

A porta se abriu, os degraus foram baixados, e dois homens das Forças Especiais saíram. Um seguiu diretamente para o edifício do terminal. O outro esperou ao pé da escada, fazendo uma série de movimentos: verificando a pista vazia, olhando para cima, em torno de si e para trás. O próprio Lang não parecia ter pressa em desembarcar. Eu mal conseguia vê-lo nas sombras do interior da nave, apertando as mãos do piloto e de um comissário de bordo, então, finalmente - de forma quase relutante, ao que me pareceu - ele saiu e parou

no topo da descida. Estava carregando a própria valise, coisa que não fazia quando era primeiro-ministro. O vento levantou a parte de trás do seu paletó e fez sua gravata vibrar. Ele abaixou o cabelo com a mão. Olhou ao redor como se tentasse se lembrar do que deveria fazer. Aquilo estava prestes a ficar embaraçoso quando ele finalmente nos viu observando-o pela janela de vidro grande. Ele apontou, acenou e sorriu, exatamente como costumava fazer no seu auge, e aquele momento - o que quer que tenha significado - ficou para trás. Ele atravessou a pista animadamente, trocando a valise de uma das mãos para a outra, seguido por um terceiro agente das Forças Especiais e por uma jovem que puxava uma mala com rodinhas.

Saímos de trás da janela bem a tempo de encontrá-lo passando pelo portão de chegada.

- Olá, querida - disse ele, parando para beijar a esposa. O tom de sua pele era ligeiramente laranja. Notei que estava usando maquiagem.

Ela apertou seu braço.

- Como foi em Nova York?

- Ótimo. Eles me deram o Gulfstream Quatro, sabe? Aquele transatlântico, que tem as camas e o chuveiro. Olá, Amélia. Oi, Jeff. - Ele notou minha presença. - Olá - disse. - Quem é você?

- Sou seu fantasma - falei.

Na mesma hora, me arrependi do que disse. Havia concebido aquela frase como algo espirituoso, auto-depreciativo, para quebrar o gelo. Chegara até a praticá-la diante do espelho antes de sair de Londres. Porém, de alguma forma, lá fora, naquele aeroporto deserto, em meio àquela atmosfera cinza e silenciosa, ela soou pior do que a encomenda. Ele contraiu o rosto.

- Certo - disse ele com desconfiança e, embora tenha apertado minha mão, também recuou um pouco a cabeça, como se quisesse me inspecionar de uma distância mais segura.

Cristo, pensei, ele acha que eu sou um maluco.

- Não se preocupe - disse-lhe Ruth. - Ele não é sempre tão idiota assim.

 

É fundamental que o ghost-writer deixe o autor totalmente confortável na sua companhia.

Ghostwriting

 

- Maravilha de apresentação - disse Amélia no carro enquanto voltávamos para a casa. - Eles ensinam isso na escola de ghost-writers? Estávamos sentados juntos na parte traseira da mini-van. A secretária, que tinha acabado de chegar de Nova York - o nome dela era Lucy -, e os três seguranças ocupavam os assentos à nossa frente. Através do pára-brisa, eu podia ver logo adiante o Jaguar que transportava os Lang. Estava começando a escurecer. Sob a luz de dois pares de faróis, os carvalhos americanos agigantavam-se e retorciam-se.

- Foi especialmente de bom-tom - prosseguiu ela -, considerando que você está substituindo um homem morto.

- Tudo bem - grunhi. - Pare com isso.

- Mas você tem uma coisa a seu favor - disse ela, voltando seus enormes olhos azuis para mim e falando baixinho, para que ninguém mais pudesse ouvir. - Ao contrário de quase todos os membros da raça humana, você parece ter caído nas graças de Ruth Lang. Agora, por que será, na sua opinião?

- Gosto não se discute.

- É verdade. Talvez ela ache que você vai fazer o que ela mandar.

- Talvez. Como eu vou saber? - A última coisa de que eu precisava era me enfiar no meio daquela briga. - Ouça, Amélia, posso chamar você de Amélia? Meu único interesse aqui é ali um livro. Não quero me envolver em nenhuma intriga da corte.

- Claro que não. Você só quer fazer seu trabalho e cair fora.

- Agora você está curtindo com a minha cara de novo.

- Você facilita.

Depois dessa, fiquei um tempo calado. Conseguia entender por que Ruth não gostava dela. Sua inteligência ia um pouquinho além do tolerável e o louro de seus cabelos, muito além, especialmente do ponto de vista de uma esposa. Na verdade, enquanto eu ficava sentado ali, inalando passivamente seu Chanel, ocorreu-me que ela poderia estar tendo um caso com Lang. Aquilo explicaria muita coisa. Ele havia sido perceptivelmente frio com ela no aeroporto, e este não é sempre o sinal mais garantido? De qualquer forma, não era de espantar que eles estivessem tão paranóicos com a questão da confidencialidade. Havia ali material suficiente para manter os tablóides felizes por semanas.

Estávamos na metade do caminho quando Amélia falou:

- Você não me disse o que achou do manuscrito.

- Sinceramente? Não me divertia tanto desde que li as memórias de Leonid Brechnev. - Ela não sorriu. - Não entendo como isso aconteceu - prossegui. - Vocês estavam no comando do país ainda há pouco. Com certeza alguém da equipe tinha o inglês como primeira língua.

- Mike... - começou ela, e então se interrompeu. - Bem, não quero falar mal dos mortos.

- Por que abrir exceção para eles?

- Então está bem: Mike. O problema foi que Adam despejou tudo em cima dele desde o início, e o pobre Mike ficou simplesmente soterrado. Ele sumiu para Cambridge para fazer a pesquisa e nós ficamos quase um ano sem vê-lo.

- Cambridge?

- Cambridge, onde os papéis de Lang estão arquivados. Você fez mesmo o seu dever de casa, hein? Duas mil caixas de documentos. Duzentos e cinquenta metros de arquivos. Um milhão de papéis distintos, ou algo em torno disto, ninguém nunca se deu ao trabalho de contar.

- McAra consultou tudo isso? - Eu não podia acreditar. Minha idéia de pesquisa rigorosa era uma semana sentado diante do cliente com um gravador, incrementada por qualquer tipo de informação imprecisa que o Google tivesse para oferecer.

- Não - disse ela, irritada. - É óbvio que ele não vasculhou todas as caixas, mas fez o suficiente para estar completamente perturbado e exausto quando finalmente saiu de lá. Acho que ele simplesmente perdeu a noção do que deveria fazer. Isso parece ter desencadeado uma depressão clínica, embora nenhum de nós tenha percebido na época. Ele só foi sentar com Adam para repassar tudo pouco antes do Natal. E é claro que, àquela altura, já era tarde demais.

- Sinto muito - falei, girando o corpo no assento para poder vê-la direito. - Você está me dizendo que um homem que está recebendo 10 milhões de dólares para escrever suas memórias em um prazo de dois anos repassa o projeto inteiro para alguém que não sabe nada a respeito de produção de livros, a quem dá permissão para sair vagando sozinho por 12 meses?

Amélia levou um dedo aos lábios e lançou os olhos em direção à frente do carro.

- Você é muito escandaloso para um fantasma.

- Mas com certeza - sussurrei - um ex-primeiro-ministro reconhece a importância de suas próprias memórias.

- Para ser sincera, não acho que Adam tenha tido a menor intenção de produzir este livro em dois anos. E achou que isso não seria problema. Então deixou Mike assumir o projeto como uma espécie de recompensa por ele ter ficado ao seu lado até o fim. Mas então, quando Marty Rhinehart deixou claro que ia obrigá-lo a cumprir o contrato original, e quando os editores realmente leram o que Mike havia produzido... - A voz dela foi sumindo.

- Ele não poderia simplesmente ter devolvido o dinheiro e recomeçado do zero?

- Acho que você sabe a resposta.

- Ele não teria chegado nem perto de um adiantamento tão alto.

- Dois anos depois de abandonar o cargo? Não teria conseguido nem a metade.

- E ninguém previu isso?

- Eu levantava a questão para Adam de vez em quando. Mas ele não se interessa muito por história... nunca se interessou, nem pela dele mesmo. Estava muito mais interessado em estabelecer sua fundação.

Recostei-me no banco. Via a facilidade com que tudo devia ter acontecido: McAra, o funcionário leal do partido que virou operário Stakhanovista de arquivo, rebitando às cegas suas enormes e inúteis chapas de fatos; Lang, que sempre foi um homem que gostava de pensar lá na frente - "olhando para o futuro, não para o passado": não era esse um de seus slogans? -, sendo festejado no circuito de palestras americano, preferindo viver, em vez de reviver, sua vida; e então, a descoberta terrível de que o grandioso projeto das suas memórias estava em risco, seguida, imaginei, por recriminações, pelo fim de velhas amizades e por uma angústia suicida.

- Deve ter sido duro para todos vocês.

- Foi. Especialmente depois que descobriram o corpo de Mike. Eu me ofereci para ir fazer a identificação, mas Adam achava que a responsabilidade era dele. Foi uma coisa horrível. Suicídio sempre deixa todo mundo se sentindo culpado. Então, por favor, se você não se importar, chega de piadas sobre fantasmas.

Eu estava prestes a perguntar-lhe a respeito das matérias que haviam saído no fim de semana sobre a captura de suspeitos de terrorismo quando os faróis traseiros do Jaguar se acenderam e nós paramos.

- Bem, aqui estamos de volta - disse ela, e, pela primeira vez, notei um quê de cansaço na sua voz. - Lar, doce lar.

Estava bastante escuro daquela vez - eram mais ou menos cinco e meia - e a temperatura havia caído com o sol. Fiquei parado ao Iado da mini-van e observei Lang sair agachado do carro para dentro da casa pelo turbilhão habitual de guarda-costas e funcionários. Eles o fizeram entrar tão rápido que parecia que um assassino com uma mira telescópica tinha sido avistado na floresta. Imediatamente, por toda a fachada do casarão, as janelas começaram a se acender e, por um instante, foi possível imaginar que havia lá dentro uma concentração de verdadeiro poder, e não de uma mera paródia dele. Eu me sentia um intruso, sem saber o que deveria fazer e ainda me contorcendo de vergonha por conta da minha gafe no aeroporto. Então me demorei um pouco mais no frio. Para minha surpresa, a pessoa que notou minha falta e veio me buscar foi o próprio Lang.

- Ei, cara! - chamou ele da porta. - O que você está fazendo aí fora? Ninguém está cuidando de você? Entre, venha tomar um drinque.

Ele tocou meu ombro enquanto eu entrava e me conduziu pelo corredor em direção à sala em que eu tinha tomado café naquela manhã. Já havia tirado o paletó e a gravata e vestira um suéter cinza grosso.

- Sinto muito por não ter podido falar com você direito no aeroporto. O que vai beber?

- O que vocês estão bebendo? - Bom Deus, pedi, permita que seja algo alcoólico.

- Chá gelado.

- Chá gelado está ótimo.

- Tem certeza? Eu preferiria algo mais forte, mas Ruth me mataria. - Ele chamou uma de suas secretárias. - Luce, querida, você poderia pedir a Dep para nos trazer um pouco de chá? Então - disse ele, afundando-se no meio do sofá e abrindo os braços para descansá-los no encosto -, você precisa ser eu por um mês. Que Deus o ajude. - Ele cruzou rapidamente as pernas, o tornozelo direito descansando no joelho esquerdo. Tamborilou os dedos, balançou o pé e analisou-o por um instante, então voltou seu olhar desanuviado para mim.

- Espero que seja um processo relativamente indolor, para nós dois,... - disse eu, e então hesitei, sem saber ao certo como chamá-lo.

- Adam - falou ele, - Pode me chamar de Adam. Acredito que quando se lida com uma pessoa muito famosa cara a cara, sempre chega um momento em que você se sente como se estivesse em um sonho, e, para mim, foi aquele: uma verdadeira experiência extra-corpórea. Vi a mim mesmo como se estivesse no teto, conversando de maneira aparentemente descontraída com um estadista mundial na casa de um bilionário da mídia. E ele ainda estava se dando ao trabalho de ser simpático comigo. Precisava de mim. Que piada, pensei.

- Obrigado - falei. - Devo dizer-lhe que eu nunca tinha conhecido um ex-primeiro-ministro antes.

- Bem - sorriu ele. - Eu nunca tinha conhecido um ghost-writer; portanto, estamos quites. Sid Kroll diz que você é o homem certo para o trabalho. Ruth concorda. Então, como vai ser?

- Eu vou entrevistá-lo. Transformarei suas respostas em prosa. Quando necessário, talvez precise acrescentar trechos de ligação, tentando imitar seu estilo. A propósito, devo dizer que tudo o que eu colocar no papel o senhor poderá corrigir posteriormente. Não quero que pense que estarei colocando na sua boca palavras que o senhor na verdade não gostaria de usar.

- E quanto tempo isso leva?

- Para um livro grande, geralmente faço cinquenta ou sessenta horas de entrevista. Isso me dá cerca de 400 mil palavras, que eu então edito para cem mil.

- Mas nós já temos um manuscrito.

- Sim - falei -, mas, francamente, ele não é publicável. São anotações de pesquisa, não é um livro. Não tem estilo algum. - Lang fez uma careta. Estava claro que não entendia o problema. - Apesar disso - acrescentei rapidamente -, não é caso de se jogar o trabalho inteiro fora. Podemos retirar fatos e citações dele, e também não vejo problemas na estrutura de 16 capítulos, embora prefira começá-lo de outra forma, com algo mais pessoal.

A empregada vietnamita trouxe o nosso chá. Estava toda vestida de preto - calça de seda preta e uma blusa preta sem colarinho. Queria me apresentar, mas ela evitou meu olhar enquanto me entregava o copo.

- Você ficou sabendo de Mike? - perguntou Lang.

- Sim - disse. - Sinto muito.

Lang olhou para longe, em direção à janela escurecida.

- Temos de acrescentar alguma coisa simpática sobre ele no livro. A mãe dele iria gostar.

- Isso não é problema.

- Ele estava comigo havia anos. Desde antes de eu me tornar primeiro-ministro. Veio por indicação do partido. Eu o herdei do meu antecessor. Você acha que conhece uma pessoa bem, e então... - Ele deu de ombros e olhou em direção à noite.

Não sabia o que dizer, então não disse nada. É da natureza do meu trabalho funcionar como uma espécie de confessor e aprendi com os anos a me comportar como um analista - ficar sentado em silêncio e dar tempo ao cliente. Perguntei-me o que ele estava vendo lá fora. Depois de cerca de meio minuto, ele pareceu lembrar que eu ainda estava na sala.

- Certo. De quanto do meu tempo você vai precisar?

- No total? - Dei um gole na minha bebida e tentei não fazer uma careta diante do gosto doce. - Se trabalharmos pesado, podemos terminar o grosso em uma semana.

- Uma semana? - Lang fez uma expressão de falsa surpresa. Resisti à tentação de comentar que 10 milhões de dólares por uma semana de trabalho não eram exatamente o salário mínimo do país.

- Posso precisar voltar ao senhor para tirar alguma dúvida que surja, mas, se pudermos trabalhar juntos até sexta-feira, terei o bastante para reescrever boa parte desta primeira versão. O importante é começarmos amanhã, para nos livramos logo dos anos de juventude.

- Ótimo. Quanto antes terminarmos, melhor. - De repente, Lang estava se inclinando para frente, uma tentativa de intimidade sincera: os cotovelos nos joelhos, o copo entre as mãos. - Ruth está ficando completamente maluca aqui. Vivo falando para ela voltar para Londres enquanto eu termino o livro, para ver as crianças, mas ela não quer me deixar. Por sinal, adoro o seu trabalho. Quase engasguei com meu chá.

- O senhor leu alguma coisa dele? - Tentei adivinhar qual jogador de futebol, astro do rock, mágico ou participante de reality show poderia ter chamado a atenção de um primeiro-ministro.

- Claro - disse ele, sem titubear. - Teve um cara com quem a gente passou as férias...

- Christy Costello?

- Christy Costello! Genial. Se você consegue dar sentido à vida dele, talvez até consiga dar sentido à minha. - Ele ficou de pé e apertou minha mão. - Foi um prazer conhecê-lo, cara. Vamos começar amanhã bem cedo. Vou pedir para Amélia arranjar um carro para levar você de volta para o hotel. - E então, de repente, ele começou a cantar:

Once in a lifetime. You get to have it all. But you never knew you had it. I'll you go and lose it all. "Uma vez na vida/ Você consegue ter tudo/ Mas não percebe isso/ Até o dia em que perde tudo." (Tradução livre) (NOTA DO TRADUTOR).

Ele apontou para mim.

- Christy Costello, "Once in a Lifetime", 197... - ele balançou a mão especulativamente, a cabeça torta, os olhos meio fechados em concentração - 7?

- Oito.

- Mil novecentos e setenta e oito! Que época sensacional! Consigo sentir tudo voltando.

- Guarde para amanhã - falei.

- Como foi? - perguntou Amélia enquanto me conduzia até a porta.

- Bem, acho. Foi tudo muito amigável. Ele ficou me chamando de "cara".

- Sim - disse ela -, ele sempre faz isso quando não consegue se lembrar do nome de alguém.

- Amanhã - falei -, vou precisar de um quarto particular, onde eu possa fazer a entrevista. Também vou precisar de uma secretária para transcrever as respostas à medida que prosseguimos... Sempre que fizermos um intervalo eu trarei fitas novas para ela. Vou precisar de uma cópia digital do manuscrito para mim... sim, já sei - disse, erguendo a mão para cortar as objeções dela -, o manuscrito não vai sair desta casa. Mas vou ter de cortar e colar trechos dele no novo material, além de tentar reescrevê-lo para que pareça algo vagamente produzido por um ser humano.

Ela estava anotando tudo aquilo no seu caderno preto e vermelho.

- Mais alguma coisa?

- Quer jantar comigo?

- Boa noite - disse ela com firmeza, fechando a porta.

Um dos guardas deu-me uma carona de volta até Edgartown. Ele era tão rabugento quanto seu colega que ficava no portão.

- Espero que este livro fique pronto logo - falou ele. - Eu e os rapazes já estamos ficando de saco cheio de ficar presos aqui.

Ele me deixou no hotel e disse que me apanharia de novo pela manhã. Tinha acabado de abrir a porta do meu quarto quando meu celular tocou. Era Kate.

- Tudo bem? - disse ela. - Recebi sua mensagem. Você parecia meio esquisito.

- Foi? Ah, me desculpe. Estou bem agora. - Resisti ao impulso de perguntar onde ela estava quando liguei.

- E então? Já o conheceu?

- Conheci. Estava com ele ainda há pouco.

- E? - Antes que eu pudesse responder, ela falou! - Não me diga: encantador.

Segurei o telefone longe da orelha por um instante e mostrei o dedo médio para ele.

- O seu timing certamente é perfeito - prosseguiu ela. -Você viu os jornais de ontem? Deve ser a primeira vez na história em que um rato embarca em um navio que está afundando.

- Sim, é claro que eu vi as matérias - falei, na defensiva. - E vou perguntar sobre isso a ele.

- Quando?

- Quando chegar a hora.

Ela produziu um som explosivo que de alguma forma conseguiu combinar hilaridade, fúria, desprezo e descrença.

- Bem, faça isso, pergunte a ele. Pergunte por que ele rapta cidadãos britânicos ilegalmente em outros países e os entrega para serem torturados. Pergunte se ele sabe a respeito das técnicas que a CIA utiliza para simular afogamento. Pergunte o que ele pretende dizer para a viúva e para os filhos do homem que morreu de ataque cardíaco...

- Espere um pouco - interrompi. - Só consegui anotar até "afogamento".

- Estou saindo com outra pessoa - disse ela.

- Ótimo - respondi, e desliguei.

Depois disso, não parecia haver muito mais a fazer além de descer até o bar e encher a cara.

O bar era decorado de modo a parecer o tipo de lugar ao qual o capitão Ahab gostaria de ir depois de um dia difícil no baleeiro. As cadeiras e mesas eram feitas de barris velhos. Havia antigas redes de arrastão e marambaias penduradas nas paredes de tábuas brutas, além de escunas dentro de garrafas e fotografias em sépia de pescadores de águas profundas parados orgulhosamente ao lado dos cadáveres suspensos de suas presas: àquela altura, os pescadores estariam tão mortos quanto seus peixes, pensei, e meu humor estava tão ruim que a idéia me agradou. Uma televisão grande em cima do bar transmitia um jogo do hóquei no gelo. Pedi uma cerveja e uma tigela de sopa de marisco e me sentei em um lugar que desse para ver a tela. Não entendo nada de hóquei no gelo, mas esportes são ótimos para se desligar a cabeça por um tempo, e eu sou capaz de assistir a qualquer um.

- Você é inglês? - perguntou um homem na mesa do canto. Deve ter me ouvido fazer o pedido. Era o único outro cliente no bar.

- E você também - falei.

- Pois é. Está de férias?

Ele tinha aquele tipo de voz convidativa, estilo "olá, meu camarada, que tal uma partida de golfe?" Aquilo, e mais a camisa listrada com o colarinho liso puído, o blazer com duas fileiras de botões e o lenço de seda azul no bolso de cima, piscava tédio, tédio, tédio, com a clareza do farol de Edgartown.

- Não. Trabalhando. - Voltei a assistir ao jogo.

- Então, qual é o seu ramo? - Ele tinha um copo com algo claro com gelo e uma fatia de limão dentro. Vodca com tônica? Gim tônica? Eu estava desesperado para não enganchar em uma conversa com ele.

- Nada em especial. Com licença.

Levantei-me e fui até o banheiro lavar as mãos. O rosto no espelho era o de um homem que tinha dormido seis horas nas últimas quarenta. Quando voltei para a mesa, minha sopa tinha chegado. Pedi outro drinque, mas fiz questão de não me oferecer para pagar um para o meu compatriota. Podia senti-lo me observando.

- Ouvi dizer que Adam Lang está na ilha - falou ele.

Olhei diretamente para ele desta vez. Era um cinquentão magro, porém espadaúdo. Forte. Seu cabelo cinza-chumbo era lambido para trás desde a testa. Tinha um ar vagamente militar, mas também parecia algo desleixado e decadente, como se dependesse de cestas básicas de um programa de caridade para veteranos. Respondi em um tom neutro:

- É mesmo?

- É o que estão dizendo. Você por acaso não saberia onde ele está?

- Não. Infelizmente, não. Com licença.

Comecei a tomar minha sopa. Ouvi-o suspirar alto e depois o gelo tinir quando ele largou o copo.

- Babaca - disse ele ao passar pela minha mesa.

 

Muitos clientes meus já me disseram que, ao final da etapa de entrevistas, eles têm a sensação de que fizeram uma terapia.

Ghostwriting

 

Não havia sinal dele quando desci para o café-da-manhã no dia seguinte. A recepcionista disse-me que não havia nenhum outro hóspede além de mim no hotel. Foi igualmente categórica ao afirmar que não tinha visto nenhum inglês de blazer. Eu já estava acordado desde as quatro da manhã - o que era melhor do que duas, mas não muito - e estava grogue o suficiente e ressacado o bastante para me perguntar se todo o encontro não tinha sido uma alucinação. Senti-me melhor depois de tomar um pouco de café. Atravessei a estrada e dei algumas voltas pelo farol para clarear a cabeça. Quando retornei para o hotel, a mini-van tinha chegado para me levar para o trabalho.

Havia imaginado que meu maior problema no primeiro dia seria colocar Adam Lang fisicamente em um aposento e mantê-lo lá por tempo suficiente para começar a entrevistá-lo. Porém, o mais estranho foi que, quando cheguei à casa, ele já estava esperando por mim. Amélia decidira que devíamos usar o escritório de Rhinehart, e encontramos o ex-primeiro-ministro, que vestia um moletom verde escuro, esparramado na poltrona grande de frente para a mesa, com uma perna jogada sobre um dos braços dela. Ele folheava um livro sobre a Segunda Guerra Mundial que obviamente tinha acabado de tirar da prateleira. Havia uma xícara de chá no chão ao seu lado. Seus tênis estavam com areia nas solas: supus que ele tinha corrido na praia.

- Oi, cara - disse ele, erguendo os olhos para mim. - Pronto para começar?

- Bom dia - falei. - Só preciso resolver algumas coisas antes.

- Claro. Vá em frente. Pode me ignorar.

Ele voltou ao seu livro enquanto eu abria minha bolsa a tiracolo e retirava cuidadosamente as ferramentas do meu ofício de ghost-writer: um gravador digital da Sony com um monte de MiniDiscs de 74 minutos e um carregador (aprendi do jeito mais difícil a não confiar somente em pilhas); um laptop cinza-metálico da Panasonic, que não era muito maior do que um romance de capa dura, além de consideravelmente mais leve; dois bloquinhos de anotações pretos e três canetas esferográficas novinhas, feitas pela Mitsubishi Pencil Co.; e, por fim, dois adaptadores brancos de plástico, um deles um plugue de três pinos inglês e o outro um adaptador para tomadas americanas. É uma superstição minha sempre usar os mesmos objetos e dispô-los na mesma ordem. Também tinha uma lista de perguntas, retiradas de livros que eu havia comprado em Londres e da leitura que fizera do manuscrito de McAra no dia anterior.

- Você sabia-falou Lang de repente-que os alemães tinham caças a jato em 1944? Olha só isso. - Ele levantou a página para mostrar a fotografia. - Foi um milagre termos ganhado.

- Não temos disquetes - disse Amélia -, somente esses pen drives. Salvei o manuscrito neste aqui para você. - Ela me entregou um objeto do tamanho de um isqueiro de plástico pequeno. - Fique à vontade para copiá-lo para o seu computador, mas, infelizmente, se você fizer isso, o seu laptop terá de ficar aqui, trancado até o dia seguinte.

- E pelo jeito foi a Alemanha que declarou guerra aos Estados Unidos, e não o contrário.

- Isso tudo não é um pouco paranóico demais?

- O livro contém informações potencialmente confidenciais que ainda precisam ser aprovadas pelo Gabinete. Mais especificamente, há também um risco muito grande de algum veículo de imprensa estar usando métodos inescrupulosos para se apossar dele. Qualquer vazamento poderia colocar em risco nossos contratos de publicação de trechos na mídia, Lang falou:

- Você está dizendo que o meu livro inteiro está aí dentro?

- Cabem cem livros ali dentro, Adam - disse Amélia, pacientemente.

- Impressionante. - Ele balançou a cabeça. - Sabe qual é a pior coisa na minha vida? - Ele fechou o livro com um estalo e recolocou-o na prateleira. - Você perde o contato com as coisas. Nunca entra em uma loja. Tudo é feito para você. Jamais carrega dinheiro; se eu quiser algum dinheiro, mesmo agora, tenho de pedir para uma das secretárias ou para um dos seguranças pegá-lo para mim. E, de qualquer forma, não conseguiria pegá-lo sozinho. Não sei o meu... como se chama mesmo? Nem isso eu sei.

- PIN?

- Está vendo? Não faço a mínima idéia. Vou lhe dar outro exemplo. Na semana passada, Ruth e eu saímos para jantar com algumas pessoas em Nova York. Eles sempre foram muito generosos conosco, então, eu disse: "Certo, esta noite é por minha conta." E dei meu cartão de crédito para o gerente, que voltou alguns minutos depois, todo envergonhado e me mostrou qual era o problema. A faixa onde a assinatura deveria estar ainda estava em branco. - Ele jogou os braços para cima e sorriu. - O cartão não tinha sido desbloqueado.

- Este - falei, empolgado - é exatamente o tipo de detalhe que temos de colocar no seu livro. Ninguém sabe sobre este tipo de coisa.

Lang pareceu alarmado.

- Não posso colocar isso. As pessoas vão achar que eu sou um completo idiota.

- Mas é um detalhe humano. Mostra como é ser o senhor. - Eu sabia que aquele era o meu momento. Precisava fazê-lo se concentrar em nossas necessidades desde o início. Saí de trás da mesa e encarei-o.

- Por que não tentamos tornar este livro diferente de qualquer memória política já escrita? Por que não tentamos contar a verdade?

Ele riu.

- Isso, sim, seria novidade.

- Estou falando sério. Vamos contar às pessoas qual é a verdadeira sensação de ser primeiro-ministro. Não só os aspectos políticos, qualquer zé-mané pode escrever sobre isso. - Quase citei McAra, mas consegui evitar no último instante. - Vamos nos ater ao que ninguém além do senhor sabe: como é o dia-a-dia de quem realmente comanda um país. O que o senhor sente pela manhã? Quais são as tensões? Como é estar tão desligado da vida comum? Como é ser odiado?

- Muito obrigado.

- O que fascina as pessoas não é a política. Quem se importa com a política? O que fascina as pessoas é sempre a pessoa, os detalhes da vida da outra pessoa. Porém, naturalmente o senhor está tão acostumado a esses detalhes, que não consegue descobrir o que o leitor quer saber. É por isso que precisa de mim. Este não deve ser um livro para políticos. Deve ser um livro para todos.

- As memórias do povo - disse Amélia com indiferença, mas eu a ignorei e, o que é mais importante, Lang também. Ele estava me olhando de um jeito bem diferente agora: era como se uma lâmpada na qual se lia "lucro pessoal" tivesse começado a brilhar nos seus olhos.

- A maioria dos ex-líderes não conseguiria fazer isso dar certo - falei. - Eles são muito formais. Muito esquisitos. Muito velhos. Se tirassem o terno e a gravata e colocassem um... gesticulei para a roupa dele - colocassem um moletom, por exemplo, pareceriam falsos. Mas o senhor é diferente. E é por isso que deve escrever um outro tipo de memória política, para uma outra geração.

Lang estava olhando para mim.

- O que você acha, Amélia?

- Acho que vocês nasceram um para o outro. Estou começando a achar que estou segurando vela.

- O senhor se importa - perguntei - se eu começar a gravar? Algo de útil pode sair daqui. Não se preocupe, as fitas serão todas de sua propriedade.

Lang deu de ombros e gesticulou para o gravador da Sony. Quando apertei GRAVAR, Amélia saiu e fechou a porta silenciosamente às suas costas.

- A primeira coisa que me chama a atenção - falei, trazendo uma cadeira de trás da mesa para poder me sentar de frente para ele - é que o senhor não é realmente um político, no sentido convencional da palavra, embora tenha alcançado um sucesso tão impressionante. - Este tipo de pergunta era minha especialidade. - Quero dizer, quando era mais jovem, ninguém poderia imaginar que fosse entrar para a política, ou será que poderia?

- Por Deus, não - falou Lang. - De jeito nenhum. Eu não tinha o menor interesse por política, nem quando criança e nem na adolescência. Achava as pessoas que eram obcecadas por política estranhas. Ainda acho, para dizer a verdade. Gostava de jogar futebol. Gostava de teatro e cinema. Um pouco mais tarde, passei a gostar de sair com garotas. Nunca sonhei em me tornar político. A maioria dos estudantes envolvidos em política me parecia um bando de completos nerds.

Bingo! pensei. Estávamos trabalhando há apenas dois minutos, e eu já tinha uma frase de abertura em potencial para o livro bem ali:

Quando era mais jovem, não tinha interesse em política. Na verdade, achava as pessoas que eram obcecadas por política estranhas. Ainda acho...

- Então, o que mudou? O que despertou seu desejo pela política?

- Desejo é a palavra - disse Lang, soltando uma risada. - Eu me formei em Cambridge e fiquei à toa por um ano. Na verdade, esperando uma peça em que eu estava envolvido ser aceita por algum teatro de Londres. Porém, isso não aconteceu, e então acabei indo trabalhar em um banco, morando em um flat horrível, num porão em Lambeth, e sentindo muita pena de mim mesmo, porém os meus amigos de Cambridge estavam trabalhando na BBC, ou ganhando uma fortuna fazendo narrações de comerciais, ou qualquer outra coisa do gênero. Lembro que era uma tarde chuvosa de domingo, eu ainda estava na cama, e alguém começou a bater à porta...

Aquela era uma história que ele devia ter contado mil vezes, mas nem dava para perceber se você o visse naquela manhã. Ele estava recostado na poltrona, sorrindo por conta da lembrança, repetindo as mesmíssimas palavras, usando os mesmos gestos ensaiados - imitava alguém batendo à porta -, e pensei no macaco velho que ele era: o tipo de profissional que sempre se esforça para oferecer um bom espetáculo, quer estivesse diante de uma platéia de um ou de um milhão.

- ... e a pessoa simplesmente não ia embora. Toc, toc, toc. E, você sabe como é, eu tinha bebido um pouco na noite anterior, coisa e tal, de modo que continuei na cama, grunhindo e resmungando. Coloquei o travesseiro sobre a cabeça, mas começou de novo: toc, toc, toc. Então, finalmente, e a essa altura pode ter certeza de que já estava xingando bastante, eu me levantei, coloquei um pijama e abri a porta. E lá estava aquela garota... aquela garota linda. Toda ensopada de chuva, mas sem dar a menor bola para isso, disparou a falar sobre a eleição local. Bizarro. Devo dizer que eu nem sabia da eleição local, mas pelo menos tive o bom senso de fingir que estava muito interessado. Então a convidei para entrar, preparei-lhe uma xícara de chá, e ela se secou. E aí pronto, já estava apaixonado. Logo vi que a melhor maneira de vê-la novamente era pegar um de seus panfletos e aparecer na próxima noite de quinta-feira, ou sei lá quando, e me afiliar ao partido local. E foi o que fiz.

- E essa é Ruth?

- Essa é Ruth.

- E se ela fosse membro de um outro partido político?

- Eu teria me afiliado do mesmo jeito. Mas não teria ficado - apressou-se em acrescentar. - Quero dizer, é óbvio que este foi o começo de um longo despertar político para mim, Aquilo trouxe à tona valores e crenças que já existiam em mim, mas que estavam adormecidos na época. Não, eu não teria ficado em qualquer partido. Porém, tudo teria sido diferente se Ruth não tivesse batido à minha porta naquela tarde... e continuado a bater.

- E se não estivesse chovendo.

- Se não estivesse chovendo, eu teria inventado alguma outra desculpa para convidá-la a entrar - disse Lang com um sorriso. - Quero dizer, francamente cara, eu estava completamente desesperado.

Sorri de volta, balancei a cabeça e rabisquei "abertura?" no meu bloco de notas.

Trabalhamos a manhã inteira sem intervalo, exceto quando acabava uma fita. Então eu corria até a sala do andar de baixo, que Amélia e as secretárias estavam usando como escritório temporário, e a entregava para ser transcrita. Isso aconteceu umas duas vezes, e sempre que voltava encontrava Lang sentado exatamente onde eu o havia deixado. A princípio, achei que isso era prova da sua capacidade de concentração. Somente aos poucos fui percebendo que era porque ele não tinha mais nada para fazer.

Eu o conduzi com cautela pela sua juventude, sem me concentrar tanto nos fatos e nas datas (isto McAra havia coletado com muito zelo) quanto nas impressões e objetos físicos da sua infância: a casa semi-geminada em um conjunto habitacional em Leicester; a personalidade de seu pai (um construtor) e de sua mãe (uma professora); os valores pacatos e apolíticos das províncias inglesas na década de 1960, nas quais os únicos sons que se ouvia em um domingo eram os sinos da igreja e as melodias das carrocinhas de sorvete; os lamacentos jogos de futebol no parque do bairro nas manhãs de sábados e as partidas de críquete à beira do rio nas longas tardes de verão; o Austin Atlantic de seu pai e sua primeira bicicleta Raleigh; os gibis - o Eagle e o Victor - e as comédias do rádio - I'm Sorry, I'll Read That Again e The Navy Lark - a final da Copa do Mundo de 1966 e os programas de TV - Z Cars e Ready, Steady, Gol; Os canhões de Navarone e Manda ver, doutor na ABC local -, Millie cantando "My Boy Lollipop" e compactos dos Beatles tocados a 45 rpm na vitrola Dansette Capri de sua mãe.

Sentado ali no escritório de Rhinehart, os detalhes da vida inglesa de quase meio século atrás me pareciam tão remotos quanto os bricabraques em uma pintura trompe l'oeil vitoriana - e, você poderia estar pensando, tão relevantes quanto. Porém, havia astúcia no meu método, e Lang, com seu talento para a empatia, reconheceu-a imediatamente, pois não era apenas a infância dele que estávamos inventariando, mas também a minha e a de qualquer um que tivesse nascido na Inglaterra nos anos 1950 e chegado à maturidade na década de 1970.

- O que precisamos fazer - disse-lhe eu - é persuadir o leitor a identificar-se emocionalmente com Adam Lang. Ver além da figura distante no carro à prova de bombas. Ver nele as mesmas coisas que vê em si mesmo. Porque, se tem alguma coisa que sei neste negócio, é isto: uma vez que você conquiste a simpatia dos leitores, eles o seguirão para qualquer lugar.

- Entendi - disse ele, assentindo enfaticamente. - Acho genial. E assim nós trocamos memórias por horas a fio, e não posso dizer exatamente que começamos a conceber uma infância para Lang - tive sempre o cuidado de não me afastar do registro histórico conhecido -, mas certamente juntamos nossas experiências, a tal ponto que algumas das minhas lembranças inevitavelmente se misturaram às dele. Isso talvez seja chocante para você. Eu mesmo fiquei chocado na primeira vez em que vi um dos meus clientes na televisão descrevendo - às lágrimas - um momento doloroso do seu passado, que, na verdade, fazia parte do meu. Mas a questão é essa. As pessoas que vencem na vida raramente são reflexivas. A atenção delas está sempre voltada para o futuro: é por isso que elas chegam lá. Não é da natureza delas lembrar o que sentiram, o que estavam vestindo, quem estava com elas, o cheiro de grama recém-cortada no adro da igreja no dia em que elas se casaram ou a força com que seu primeiro bebê apertou-lhes o dedo. É por isso que precisam de ghost-writers - para lhes dar vida, por assim dizer,

No fim das contas, minha colaboração com Lang foi curta, mas posso dizer com sinceridade que nunca havia tido um cliente tão responsivo. Decidimos que sua primeira lembrança seria a vez em que tentou fugir de casa aos 3 anos de idade e ouviu o som dos passos de seu pai vindo atrás dele e a dureza de seus braços musculosos quando ele o recolheu de volta para casa. Lembramo-nos de sua mãe passando roupa e do cheiro das roupas molhadas secando em uma armação de madeira diante da lareira a carvão - e de como ele gostava de fingir que o varal era uma casa. Seu pai usava camiseta à mesa e comia assado de porco e peixe defumado; sua mãe gostava de beber uma taça de xerez de vez em quando e tinha um livro de capa vermelha e dourada chamado A Thing of Beauty. O jovem Adam ficava horas olhando as gravuras; foi isso que lhe despertou o interesse pelo teatro. Recordamos as pantomimas de Natal das quais ele havia participado (fiz uma observação para procurar o que exatamente estava em cartaz em Leicester durante a sua infância) e sua estréia nos palcos na peça natalina da escola.

- Eu era um dos reis magos?

- Isso me parece presunçoso demais.

- Um carneiro?

- Modesto demais.

- Uma estrela-guia?

- Perfeito!

Quando paramos para almoçar, já havíamos alcançado a idade de 17 anos, época em que sua atuação como protagonista da peça Doutor Fausto, de Christopher Marlowe, havia lhe confirmado seu desejo de se tornar ator. McAra, com a meticulosidade que lhe era peculiar, já havia desencavado a resenha publicada em dezembro de 1971 no Leicester Mercury, descrevendo como Lang tinha "hipnotizado a platéia" com seu discurso final, à medida que vislumbrava a danação eterna.

Quando Lang saiu para jogar tênis com um de seus guarda-costas, passei no escritório do andar de baixo para ver como estava indo transcrição. Uma hora de entrevistas em geral rende algo entre 7 e 8 mil palavras, e Lang e eu havíamos trabalhado das 7 horas da manhã até quase uma da tarde. Amélia tinha escalado as duas secretárias para O serviço. Ambas usavam fones de ouvido. Seus dedos deslizavam pelos teclados, enchendo a sala com um som tranquilizante de plástico. Com alguma sorte, eu teria cerca de cem páginas em espaço duplo de material para mostrar só por aquela manhã de trabalho. Pela primeira vez desde que chegara à ilha, senti a brisa aquecedora do otimismo.

- Isso é tudo novidade para mim - disse Amélia, que estava debruçada sobre o ombro de Lucy, lendo as palavras de Lang à medida que elas se desenrolavam na tela. - Nunca o ouvi falar sobre nada disso antes.

- A memória humana é uma sala de tesouros, Amélia - disse eu, friamente. - A questão é apenas achar a chave correta.

Deixei-a encarando a tela e fui até a cozinha, que era quase do tamanho do meu flat em Londres, com granito polido suficiente para suprir o mausoléu de uma família inteira. Uma bandeja de sanduíches havia sido servida. Coloquei um deles em um prato e dei uma volta pelos fundos da casa até chegar a um solário - imagino que possa chamá-lo assim - com uma grande porta de vidro corrediça que dava para uma piscina externa. A piscina estava coberta por uma lona cinza, afundada pela chuva, na qual flutuava um caldo marrom de folhas podres. Na outra extremidade, havia duas construções prateadas de madeira em forma de cubo e, além delas, carvalhos americanos e o céu branco. Uma figura pequena e escura - tão agasalhado contra o frio que parecia quase esférica - estava varrendo folhas e empilhando-as em um carrinho de mão. Supus que ele fosse o jardineiro vietnamita, Duc. Eu realmente devia tentar ver aquele lugar no verão, pensei.

Sentei-me em uma espreguiçadeira, que soltou um cheiro ameno de cloro e bronzeador, e liguei para Rick, em Nova York. Ele estava com pressa, como sempre.

- Como está indo?

- Tivemos uma boa manhã. O homem é um profissional.

- Ótimo. Vou ligar para Maddox. Ele vai ficar feliz em ouvir isto. Aliás, os primeiros 50 mil acabaram de entrar. Vou fazer a transferência. Depois a gente se fala.

A linha ficou muda.

Terminei meu sanduíche e voltei para o andar de cima, ainda com o telefone mudo na mão. Tivera uma idéia, e minha confiança recém-nascida deu-me a coragem para colocá-la em prática. Fui até o escritório e fechei a porta. Conectei o pen drive de Amélia no meu laptop, depois liguei um cabo do meu computador ao celular e acessei a internet. Como minha vida seria mais fácil, pensei - e como eu acabaria o trabalho mais rápido -, se eu pudesse trabalhar no livro todas as noites no meu quarto de hotel. Disse a mim mesmo que não estava fazendo nada de errado. Os riscos eram mínimos. A máquina quase nunca saía do meu lado. Se necessário, era pequena o bastante para caber debaixo do meu travesseiro enquanto eu dormia. Assim que fiquei on-line, escrevi um e-mail para mim mesmo, anexei o arquivo do manuscrito e cliquei em ENVIAR.

O up-load pareceu levar séculos. Amélia começou a chamar meu nome do andar de baixo. Olhei para a porta e, de repente, a ansiedade deixou meus dedos grossos e atrapalhados. "Seu arquivo foi transferido", disse a voz feminina que, por algum motivo, era a mais usada pelo meu provedor de internet. "Você tem novas mensagens", anunciou ela menos de um segundo depois.

Imediatamente puxei o cabo do meu laptop e tinha acabado de remover o pen drive quando, em algum lugar no casarão, uma sirene começou a tocar. Na mesma hora, um zumbido e uma trepidação começaram sobre a janela às minhas costas e eu me voltei para ver uma persiana de metal pesado caindo do teto. Ela desceu muito rápido, bloqueando primeiro a vista do céu, depois o mar e as dunas, transformando a tarde de inverno em um começo de noite, esmagando o último brilho prateado do dia até a escuridão. Tateei em busca da porta e, quando a escancarei, o som não filtrado da sirene foi alto o suficiente para fazer meu estômago vibrar.

O mesmo processo estava acontecendo na sala de estar: uma, duas, três persianas caindo como cortinas de ferro. Saí tropeçando pela escuridão e bati com o joelho em uma quina. Deixei cair o telefone. Quando parei para apanhá-lo de volta, a sirene sustentou uma nota aguda e morreu com um gemido. Ouvi passos pesados subindo as escadas e então um facho de luz iluminou o salão, apanhando-me furtivamente agachado, os braços erguidos para proteger meu rosto: um arremedo de culpa.

- Desculpe, senhor - disse a voz desconcertada de um policial, vinda da escuridão. - Não sabia que havia gente aqui em cima.

Era um exercício. Eles o faziam uma vez por semana e o chamavam de "confinamento", se bem me lembro. A equipe de segurança de Rhinehart havia instalado o sistema para protegê-lo contra ataques terroristas, sequestros, furacões, trabalhadores sindicalizados, a Comissão de Títulos e Câmbios americana ou quaisquer pesadelos que porventura atormentassem o sono agitado dos membros da Fortune 500. Quando as persianas se ergueram e a luz branca do Atlântico voltou a banhar o interior da casa, Amélia entrou na sala de estar para se desculpar por não ter me avisado.

- Você deve ter levado um susto.

- Pode-se dizer que sim.

- Mas, também, eu tinha perdido você de vista. - Havia uma ponta de suspeita na sua voz irretocável.

- A casa é grande. E eu já sou grandinho. Não dá para você ficar de olho em mim o tempo todo. - Tentei parecer relaxado, mas sabia que estava irradiando nervosismo.

- Um pequeno conselho. - Seus lábios cor-de-rosa de glossy se abriram em um sorriso, mas seus grandes olhos azul-claros estavam frios como cristal. - Não fique andando muito por aí sozinho. Os rapazes da segurança não gostam.

- Entendido, - Sorri de volta.

Houve um ranger de sola de borracha em madeira envernizada, e Lang veio subindo as escadas numa velocidade impressionante, saltando dois ou três degraus por vez. Estava com uma toalha em volta do pescoço. Seu rosto estava afogueado, o cabelo grosso e ondulado úmido e escurecido pelo suor. Parecia irritado com alguma coisa.

- Você venceu? - perguntou Amélia.

- Acabei não jogando tênis. - Ele soltou a respiração, jogou-se no sofá mais próximo, inclinou o corpo para frente e começou a passar a toalha vigorosamente pela cabeça. - Estava na academia.

Academia? Olhei para ele espantado. Ele já não tinha corrido antes de eu chegar? Para o que estava treinando? Para as Olimpíadas?

Falei, em um tom jovial, para mostrar a Amélia que não estava perturbado:

- Então... o senhor está pronto para voltar ao trabalho? Ele encarou-me furiosamente e disse com rispidez:

- Você chama o que nós estamos fazendo de trabalho?

Foi a primeira vez que vi um rompante de mau humor vir dele, e aquilo me atingiu com a força de uma revelação: todo aquele negócio de correr, se exercitar e puxar ferro não tinha nada a ver com treinar; não era nem por diversão. Era simplesmente o que seu metabolismo exigia. Ele era como algum espécime raro fisgado das profundezas do oceano que só conseguia viver sob pressão extrema. Se mantido no litoral, exposto ao ar rarefeito da vida comum, Lang estava sob constante risco de morrer de puro tédio.

- Bem, eu sem dúvida chamo de trabalho - falei com gravidade. - Para nós dois. Mas se o senhor não o acha intelectualmente desafiante o suficiente, podemos parar agora.

Pensei que talvez tivesse ido longe demais, mas então, com um grande esforço para se controlar - tão grande que praticamente deu para ver o complexo mecanismo dos seus músculos faciais, todas aquelas alavancas, polias e cabos funcionando - ele conseguiu içar um sorriso cansado até seu rosto.

- Certo, cara - disse ele, sem emoção na voz. - Você venceu, - Ele bateu de leve em mim com a toalha. - Estava só brincando. Vamos voltar.

 

Muitas vezes, especialmente se você estiver ajudando alguém a escrever suas memórias ou uma autobiografia, o autor se desmanchará em lágrimas quando estiver contando a história... Nestas circunstâncias, seu trabalho é passar o lenço, ficar calado e continuar gravando.

Ghostwriting

 

- Seus pais tinham algum interesse em política?

Estávamos novamente no escritório, em nossas posições habituais. Ele, esparramado na poltrona, ainda de moletom, a toalha em volta do pescoço. Exalava um cheiro fraco de suor. Eu estava de frente para ele com meu bloco de anotações e uma lista de perguntas. O gravador de MiniDisc estava na mesa ao meu lado.

- Não, nem um pouco. Nem sei ao certo se meu pai votava. Ele dizia que os políticos eram todos farinha do mesmo saco.

- Fale-me a respeito dele.

- Ele era construtor. Autônomo. Estava na casa dos 50 anos quando conheceu minha mãe. Já tinha dois filhos adolescentes com sua primeira mulher, que o havia abandonado pouco antes. Mamãe era professora, vinte anos mais nova que ele. Muito bonita, muito tímida. A história era que ele foi fazer um conserto no telhado da escola, eles começaram a conversar, uma coisa levou à outra, e eles se casaram. Ele construiu uma casa para a família e os quatro se mudaram. Eu nasci no ano seguinte, o que foi um espanto para ele, eu acho.

- Por quê?

- Ele achava que já havia tido sua cota de bebês.  

- Tenho a impressão, lendo o que já escrevi, de que vocês não eram muito próximos.

Lang levou um tempo para responder.

- Ele morreu quando eu tinha 16 anos. Já estava aposentado a essa altura, por problemas de saúde, e meus meio-irmãos tinham crescido, se casado e saído de casa. Então essa é a única época em que me lembro da presença constante dele. Eu estava apenas começando a conhecê-lo, na verdade, quando ele teve um enfarte. Quero dizer, eu me dava bem com ele. Mas se você quer dizer que eu era mais próximo da minha mãe... então, sim, é óbvio.

- E seus meio-irmãos? O senhor era próximo deles?

- Por Deus, não! - Pela primeira vez desde o almoço, ele deu uma gargalhada. - Na verdade, é melhor você passar batido por essa parte. Podemos deixá-los de fora, não podemos?

- O livro é seu.

- Então, deixe-os de fora. Ambos entraram no ramo da construção, e nenhum dos dois perdeu uma oportunidade sequer de dizer à imprensa que não votaria em mim. Faz anos que não os vejo. Já devem ter uns 70 anos agora.

- Como exatamente ele morreu?

- Perdão?

- Desculpe-me, o seu pai. Fiquei tentando imaginar como ele morreu. Onde foi?

- Ah, no jardim. Tentando levantar uma laje pesada demais para ele. Velhos hábitos... - Ele olhou para o relógio.

- Quem o encontrou?

- Eu.

- O senhor poderia descrever o momento? - A coisa estava mais difícil, muito mais difícil do que a sessão matinal.

- Eu tinha acabado de voltar da escola. Lembro que fazia um belo dia de primavera. Mamãe tinha ido resolver alguma coisa para um de seus trabalhos de caridade. Peguei alguma coisa para beber na cozinha e fui para o jardim, ainda com o uniforme do colégio, pensando em jogar um pouco de bola ou sei lá o quê. E lá estava ele, no meio do gramado. Apenas um arranhão na parte do rosto que levou o impacto. Os médicos disseram que provavelmente ele morreu antes de bater no chão. Mas imagino que eles sempre digam isso, para tornar as coisas mais fáceis para a família. Quem sabe? Não pode ser uma coisa tranquila, pode? Digo, morrer.

- E sua mãe?

- Todos os filhos não acham que suas mães são santas? - Ele olhou para mim em busca de confirmação. - Bem, a minha era. Ela parou de dar aulas quando eu nasci, e não havia nada que não fizesse por quem quer que fosse. Vinha de uma família muito forte. Completamente abnegada. Ficou muito orgulhosa quando fui para Cambridge, mesmo sabendo que ficaria sozinha. Nunca me deixou saber o quanto estava doente... não queria atrapalhar minha vida lá, especialmente quando comecei a atuar e passei a ficar muito ocupado. Isso era típico dela. Eu não fazia idéia do quanto as coisas estavam mal até o final do meu segundo ano.

- Conte-me mais sobre isso.

- Certo. - Lang pigarreou. - Deus. Eu sabia que ela não estava bem, mas... sabe como é, quando você tem 19 anos, não presta atenção em muita coisa além de si mesmo. Eu estava no grupo de teatro da faculdade. Saía com algumas garotas. Cambridge era o paraíso para mim. Costumava ligar para ela todo domingo à noite, e ela sempre parecia muito bem, mesmo morando sozinha. Quando voltei para casa e ela estava... eu fiquei chocado... ela estava... praticamente pele e osso. Tinha um tumor no fígado. Quero dizer, talvez hoje em dia eles pudessem fazer alguma coisa, mas na época... - Ele fez um gesto de impotência. - Ela morreu em um mês.

- E o que o senhor fez?

- Voltei para Cambridge no começo do meu último ano e... caí no mundo, por assim dizer.

Ele ficou calado.

- Eu tive uma experiência parecida - falei,

- É mesmo? - Seu tom era inexpressivo. Olhava para o mar, para as ondas do Atlântico que quebravam na praia, seus pensamentos aparentemente muito além do horizonte.

- Sim. - Geralmente não falo sobre mim mesmo em situações profissionais, nem em qualquer situação, na verdade. Porém, às vezes um pouco de revelação pessoal pode ajudar um cliente a se expor.

- Perdi meus pais por volta da mesma idade. E o senhor não achou, estranhamente, apesar de toda a tristeza, que isso o deixou mais forte?

- Mais forte? - Ele parou de olhar pela janela e fechou a cara para mim.

- No sentido de se tornar auto-suficiente. Saber que a pior coisa que poderia acontecer com você aconteceu e que você sobreviveu. Que pode funcionar sozinho.

- Talvez você tenha razão. Nunca pensei muito sobre isso. Pelo menos não até recentemente. É estranho. Posso lhe contar uma coisa?

- Ele se inclinou para frente. - Vi dois cadáveres quando era adolescente e então, apesar de ter sido primeiro-ministro, com tudo o que isso implica, como ter de mandar homens para a guerra, visitar locais bombardeados e tudo o mais, passei 35 anos sem ver outro.

- E quem foi que o senhor viu? - perguntei, como um idiota.

- Mike McAra.

- O senhor não poderia ter mandado um dos policiais identificá-lo?

- Não. - Ele balançou a cabeça. - Não, não poderia. Era o mínimo que eu devia a ele. - Fez outra pausa, então agarrou bruscamente a toalha e esfregou o rosto. - Esta conversa está mórbida - declarou. - Vamos mudar de assunto.

Baixei os olhos para minha lista de perguntas. Queria lhe perguntar muitas coisas sobre McAra. Não que eu pretendesse necessariamente utilizar as respostas no livro: até eu reconhecia que uma visita ao necrotério após a renúncia para identificar o corpo de um assistente dificilmente cairia bem em um capítulo intitulado "Um Futuro de Esperança", era mais para satisfazer minha própria curiosidade. Porém, também sabia que não tinha tempo para ser auto-indulgente: precisava correr com aquilo. Então, fiz o que ele pediu e mudei de assunto.

- Cambridge - falei. - Vamos falar sobre isso.

Sempre achei que os anos em Cambridge, do meu ponto de vista, leriam a parte mais fácil de escrever. Eu mesmo havia estudado lá, pouco depois de Lang, e o lugar não tinha mudado muito. Ele nunca mudava muito: este era o seu charme. Eu poderia incluir todos os clichês: bicicletas, cachecóis, becas, apostas, bolos, estufas a gás, ruas estreitas, a emoção de caminhar sobre as pedras já trilhadas por Newton e Darwin etc, etc. E não haveria o menor problema, pensei, olhando para o manuscrito, pois novamente minhas memórias teriam que substituir as de Lang. Ele havia começado a ler sobre economia, jogara futebol por um breve período no time da universidade e ganhara reputação como ator estudantil. Porém, embora McAra tivesse listado com obediência todas as produções em que o ex-primeiro-ministro havia atuado, e até incluído citações de alguns dos esquetes que Lang fizera para o grupo de teatro amador da faculdade, havia - novamente - algo de ralo e apressado naquilo tudo. O que estava faltando era paixão. Naturalmente, culpei McAra. Podia muito bem imaginar a antipatia que aquele funcionário carrancudo do partido nutria por todos aqueles diletantes e suas poses adolescentes em montagens ruins de Bretch e lonescu. No entanto, o próprio Lang parecia estranhamente evasivo a respeito de toda aquela época.

- Faz tanto tempo - disse ele. - Não me lembro de quase nada. Para ser franco, eu não era muito bom. Atuar era basicamente uma oportunidade de conhecer garotas. Aliás, não coloque isso no livro.

- Mas o senhor era muito bom - protestei. - Quando estava em Londres, li entrevistas com pessoas que disseram que o senhor era bom o suficiente para se tornar um profissional.

- Acho que teria gostado disso - admitiu Lang - durante uma fase. Só que você não consegue mudar as coisas sendo ator. Apenas os políticos podem fazer isso. - Ele olhou para o relógio novamente.

- Mas Cambridge - insisti - deve ter tido uma importância enorme na vida do senhor, considerando suas origens.

- Sim. Gostei do meu período lá. Conheci pessoas ótimas. Mas não era o mundo real. Era uma terra de fantasia.

- Eu sei. Era disso que eu gostava.

- Eu também. Cá entre nós: eu adorava. - A lembrança fez os olhos de Lang brilharem. - Subir no palco e fingir ser outra pessoa! E os outros ainda aplaudirem você por isso! Quer coisa melhor?

- Ótimo - falei, desnorteado pela sua mudança de humor. - Agora, sim. Vamos colocar no livro.

- Não.

- Por que não?

- Por que não? - suspirou Lang. - Porque essas são as memórias de um primeiro-ministro. - De repente, ele esmurrou com força a lateral da poltrona. - Durante toda a minha carreira, sempre que meus adversários estavam realmente à procura de algo para me atingir, falavam que eu era uma porra de um ator. - Ele saltou de pé e começou a andar para cima e para baixo. - "Adam Lang?" - ele arrastou as palavras, numa imitação perfeita de um aristocrata inglês. - "Você já notou como ele muda de voz para combinar com quem quer que esteja falando?" "É" - passou a falar como um escocês grosseirão -, "não dá pra acreditar em nada que o safado diz. O cara é um ator, uma empulhação!" - E então se tornou pomposo, calculista, lamuriento: "A tragédia do Senhor Lang é que um ator jamais consegue ir além do papel que lhe é dado e, finalmente, as falas deste primeiro-ministro se esgotaram." Você talvez reconheça esta última frase das suas pesquisas, que tenho certeza de que foram abrangentes.

Balancei a cabeça. Estava surpreso demais com aquela tirada para falar.

- É do editorial do Times no dia em que anunciei minha renúncia. A manchete era "Tenha a gentileza de abandonar o palco".

- Ele voltou cuidadosamente para sua cadeira e alisou o cabelo para trás. - De modo que não, se você não se importa, não vamos nos ater aos meus anos de ator estudantil. Deixe exatamente como Mike escreveu.

Ficamos os dois calados por alguns instantes. Fingi organizar minhas anotações. Lá fora, um dos policiais lutava para atravessar o topo das colinas, a cabeça erguida contra o vento, mas a casa era tão eficientemente à prova de som, que ele parecia um mímico. Lembrava-me das palavras de Ruth Lang sobre seu marido: Tem alguma coisa errada com ele ultimamente, e estou um pouco temerosa de abandoná-lo. Agora eu entendia o que ela quisera dizer. Ouvi um clique e me inclinei para frente para conferir o gravador.

- Preciso trocar a fita - falei, grato pela oportunidade de sair dali. - Só vou descer para levar isso para Amélia. Já volto.

Lang estava meditabundo novamente, olhando pela janela. Ele fez um gesto discreto e ligeiramente desdenhoso com uma das mãos para indicar que eu deveria ir. Desci até onde as secretárias estavam digitando. Amélia estava parada ao lado de um arquivo. Voltou-se quando eu entrei. Imagino que meu rosto tenha me entregado.

- O que foi? - perguntou ela.

- Nada. - Porém, senti necessidade de compartilhar minha apreensão. - Na verdade, ele parece um pouco tenso.

- Sério? Não é do feitio dele. Como assim?

- Ele estourou comigo por nada. Imagino que seja o excesso de exercício na hora do almoço - falei, tentado fazer graça com aquilo.

- Não pode fazer bem para um homem.

Entreguei a fita para uma das secretárias - acho que para a Lucy - e peguei as últimas transcrições. Amélia continuava olhando para mim, a cabeça meio inclinada.

- O que foi? - perguntei.

- Você tem razão. Parece que alguma coisa o está incomodando, não é? Ele recebeu uma ligação logo depois que vocês terminaram a entrevista desta manhã.

- De quem?

- Foi no celular. Ele não me disse. Será que... Alice querida, pode me dar licença?

Alice levantou-se e Amélia assumiu seu lugar diante da tela do computador. Acho que eu nunca tinha visto dedos se moverem tão rápido sobre um teclado. Os cliques pareciam se unir em um ruído contínuo de plástico, como o som de um milhão de dominós caindo. As imagens na tela mudavam quase com a mesma velocidade. E então os cliques desaceleraram até algumas batidinhas em staccato quando Amélia encontrou o que estava procurando.

- Merda.

Ela girou a tela na minha direção, então se recostou na cadeira, assombrada. Inclinei-me para ler.

O cabeçalho da página da internet dizia "Últimas Notícias":

27 de janeiro, 14 horas e cinqüenta e sete minutos

NOVA YORK (AP) - O ex-secretário de Relações Internacionais britânico, Richard Rycart, pediu ao Tribunal Penal Internacional de Haia para investigar as alegações de que o ex-primeiro-ministro inglês Adam Lang teria ordenado a entrega ilegal de suspeitos para tortura da CIA.

O Senhor Rycart, que foi afastado do Gabinete pelo Senhor Lang quatro anos atrás, atualmente é o embaixador especial das Nações Unidas para assuntos humanitários e um crítico notório da política externa dos EUA. Na época em que deixou o governo Lang, o Senhor Rycart sustentou que foi demitido por ser insuficientemente pró-americano.

Em uma declaração feita de seu escritório em Nova York, o Senhor Rycart afirmou que havia passado uma série de documentos para o TPI algumas semanas atrás. Os documentos - cujos detalhes vazaram para um jornal inglês no fim de semana - supostamente revelavam que o Senhor Lang, quando primeiro-ministro, autorizou pessoalmente a captura de quatro cidadãos ingleses no Paquistão há cinco anos.

O Senhor Rycart prosseguiu: "Pedi várias vezes, em particular, que o governo inglês investigasse essa atitude ilegal. Ofereci-me para testemunhar em um inquérito. Ainda assim, o governo recusou-se sistematicamente a até mesmo reconhecer a existência da Operação Tempestade. Assim, não vejo outra alternativa, a não ser apresentar as provas que tenho em mãos ao TPI."

- Aquele merdinha - sussurrou Amélia.

O telefone na mesa começou a tocar. Então, outro, em uma mesinha ao lado da porta, o acompanhou. Ninguém se moveu. Lucy e Alice olharam para Amélia à espera de ordens, e, enquanto o faziam, o celular de Amélia, que ela guardava em uma bolsinha de couro presa ao cinto, soltou seu próprio piado eletrônico. Pelo mais breve dos momentos, eu a vi entrar em pânico - aquela deve ter sido uma das pouquíssimas situações em sua vida em que ela não soube o que fazer -, e, na falta de qualquer tipo de instrução, Lucy começou a estender o braço para atender ao telefone na sua mesa.

- Não - gritou Amélia, então acrescentou, com mais calma: - Deixe tocar. Precisamos desenvolver uma linha de argumentação. - Àquela altura, outros dois telefones já estavam tocando no interior da casa. Era como se fosse meio-dia em uma fábrica de relógios. Ela pegou o celular e examinou o número da chamada. - A bola está rolando - disse ela, desligando-o. Tamborilou por alguns segundos a ponta dos dedos na mesa. - Certo. Desligue todos os telefones - falou para Alice, com algo da sua antiga confiança de volta na voz -, depois comece a navegar pelos principais sites de notícia da internet para ver se consegue descobrir qualquer outra coisa que Rycart possa estar dizendo. Lucy, encontre uma televisão e monitore todos os canais de notícia. - Ela olhou para o seu relógio. - Ruth ainda está caminhando? Merda! Ela está, não está?

Ela pegou seu caderno preto e vermelho e desceu ruidosamente o corredor com seus saltos altos. Sem saber ao certo o que deveria fazer, e nem o que exatamente estava acontecendo, decidi que era melhor segui-la. Ela estava chamando um dos homens do Serviço Especial.

- Barry! Barry! - Ele botou a cabeça para fora de cozinha. - Barry, por favor, encontre a Senhora Lang e traga-a de volta o mais rápido possível. - Ela começou a subir as escadas até a sala de estar.

Lang estava outra vez parado na cadeira, exatamente onde eu o havia deixado. A única diferença era que tinha seu próprio celular pequeno na mão. Ele o fechou com um estalo quando nós entramos.

- A julgar por todos esses telefonemas, imagino que ele tenha feito sua declaração - disse ele.

Amélia espalmou as mãos, irritada.

- Por que o senhor não me contou?

- Antes de contar para Ruth? Não acho que essa teria sido uma política muito boa, concorda? Além do mais, achei melhor não contar a ninguém por um tempo. Desculpe-me - disse ele para mim - por ter perdido a cabeça.

Fiquei comovido pelas suas desculpas. Aquilo era benevolência em meio à adversidade, pensei.

- Não se preocupe - falei.

- E o senhor contou? - perguntou Amélia. - Para ela?

- Eu queria contar pessoalmente. É claro que isto está fora de cogitação, de modo que acabei de ligar para ela.

- E como ela recebeu a notícia?

- O que você acha?

- Aquele merdinha - repetiu Amélia.

- Ela deve chegar a qualquer instante.

Lang levantou-se e ficou olhando pela janela com as mãos na cintura. Senti novamente o cheiro do seu suor. Aquilo me fez pensar em um animal acuado.

- Ele queria muito que eu soubesse que não era nada pessoal - disse Lang, de costas para nós. - Ele queria muito, muito mesmo, que eu soubesse que era só por conta da sua conhecida militância pelos direitos humanos que ele achava que não podia mais ficar calado.

- Ele riu com desdém para seu próprio reflexo. - Sua conhecida militância pelos direitos humanos... Bom Deus...

- O senhor acha que ele estava gravando a ligação? - perguntou Amélia,

- Quem sabe? Provavelmente. Provavelmente vai divulgá-la, Com ele, tudo é possível. Eu só disse: "Muito obrigado, Richard, por me informar", e desliguei. - Ele se virou de volta, as sobrancelhas franzidas. - Está um silêncio enervante lá embaixo.

- Mandei que desligassem os telefones. Precisamos trabalhar no que vamos dizer.

- O que nós dissemos no fim de semana?

- Que não tínhamos visto o que saiu no Sunday Times e que não pretendíamos fazer comentários.

- Bem, pelo menos agora sabemos onde eles conseguiram a matéria. - Lang balançou a cabeça. A expressão no seu rosto era quase de admiração. - Ele está querendo mesmo me pegar, não é? Um vazamento de informação para a imprensa no domingo, preparando o terreno para um pronunciamento na terça. Três dias de cobertura em vez de um, em direção a um clímax. Ele está seguindo o manual a risca.

- O seu manual.

Lang reconheceu o elogio meneando de leve a cabeça e voltou a olhar para a janela.

- Ah - disse ele. - Lá vem encrenca.

Uma figura pequena e determinada em um casaco azul vinha descendo o caminho das dunas, movendo-se tão depressa que o policial atrás dela teve de dar uma ou outra corridinha para acompanhá-la. O capuz pontudo estava baixado para proteger seu rosto, e seu queixo estava colado ao peito, dando a Ruth Lang a aparência de um cavaleiro medieval com uma viseira de poliéster, encaminhando-se para a batalha.

- Adam, precisamos muito transmitir uma declaração sua - disse Amélia. - Se você não disser nada, ou se deixar a coisa rolar muito tempo, vai parecer... - Ela hesitou. - Bem, eles vão tirar suas próprias conclusões.

- Certo - disse Lang, - Que tal isso? -, uma pequena caneta prateada e abriu seu caderno. - Em resposta à declaração de Richard Rycart, Adam Lang fez as seguintes observações: "Quando uma política que oferecia cem por cento de apoio aos Estados Unidos na guerra mundial contra o terror era popular no Reino Unido, o Senhor Rycart a aprovava. E quando, graças à sua própria incompetência administrativa, foi afastado do cargo de secretário de Relações Internacionais, ele subitamente desenvolveu um interesse ardoroso pela defesa dos supostos direitos humanos de suspeitos de terrorismo. Até uma criança de 3 anos conseguiria perceber sua tática infantil no intuito de constranger seus antigos colegas." Ponto final. Parágrafo único.

Amélia tinha parado de escrever o que Lang ditava na metade. Estava olhando para o ex-primeiro-ministro e, se eu não soubesse que isso era impossível, poderia jurar que uma lágrima começava a despontar de um dos olhos da Rainha do Gelo. Ele devolveu-lhe o olhar. Houve uma leve batida na porta aberta e Alice entrou, segurando uma folha de papel.

- Com licença, Adam - disse ela. - Isto acabou de chegar da Associated Press.

Lang pareceu relutar em interromper o contato visual com Amélia, e então eu soube - nunca tive tanta certeza de algo na vida - que a relação entre os dois não era apenas profissional. Depois do que pareceu um interlúdio embaraçosamente longo, ele pegou o papel de Alice e começou a lê-lo. Foi então que Ruth entrou no escritório. Àquela altura, eu estava começando a me sentir como um espectador que se levantou no meio da peça para procurar um banheiro e acabou entrando sem querer no palco: os atores fingiam que eu não estava lá, e eu sabia que tinha de sair, mas não conseguia pensar em uma desculpa.

Lang terminou de ler o papel e entregou-o para Ruth.

- De acordo com a Associated Press - anunciou ele -, fontes em Haia, sejam elas quais forem, estão dizendo que a procuradoria do Tribunal Penal Internacional fará um pronunciamento pela manhã.

- Oh, Adam!- exclamou Amélia, velando a mão à boca,

- Por que não fomos avisados sobre nada disso? - exigiu saber Ruth. - E quanto a Downing Street? Por que não tivemos notícias da embaixada?

- Os telefones estão desligados - disse Lang, - Eles devem estar tentando entrar em contato agora.

- Esqueça o agora! - gritou Ruth. - De que merda nos adianta o agora? Deveríamos ter ficado sabendo disso há uma semana! O que vocês estão fazendo aqui? - disse ela, voltando sua fúria para Amélia. - Pensei que todo o sentido da sua presença fosse mantermos um vínculo com o Gabinete. Não me venha dizer que eles não sabiam que isso estava por vir.

- O procurador do TPI tem o cuidado de não notificar um suspeito se ele estiver sendo investigado - disse Amélia. - Nem o governo do suspeito, por sinal. Para evitar que eles comecem a destruir provas.

Suas palavras pareceram abalar Ruth. Ela levou um instante para se recuperar.

- Então é isso o que Adam é agora? Um suspeito? - Ela se voltou para o marido. - Você precisa falar com Sid Kroll.

- Ainda não sabemos o que o TPI vai dizer, na verdade - assinalou Lang. - Eu deveria falar primeiro com Londres.

- Adam - disse Ruth, falando bem devagar, como se ele tivesse sofrido um acidente e pudesse estar em estado de choque -, se acharem conveniente, eles vão crucificá-lo. Você precisa de um advogado. Ligue para Sid.

Lang hesitou, então se voltou para Amélia.

- Coloque Sid na linha.

- E quanto à imprensa?

- Transmita uma declaração tapa-buraco - disse Ruth. - Só uma ou duas frases.

Amélia pegou o celular e começou a correr os nomes listados na agenda do telefone.

- Quer que eu rascunhe alguma coisa? - perguntei.

- Por que ele não faz isso? - disse Ruth, apontando para mim.

- Não é ele o escritor?

- Ótimo - disse Amélia, mal conseguindo esconder sua irritação -, mas preciso despachá-la imediatamente.

- Devo parecer confiante - disse Lang para mim -, certamente não na defensiva, isso seria fatal. Mas também não posso soar arrogante. Nada de amargura. Nada de raiva. Mas não diga que estou satisfeito por ter esta oportunidade de limpar meu nome nem qualquer besteira dessas.

- Então - falei -, o senhor não está na defensiva, mas também não quer parecer arrogante, não está com raiva, mas também não está satisfeito.

- Isso.

- Então como é que o senhor está exatamente? Surpreendentemente, dadas as circunstâncias, todos riram.

- Eu falei que ele era engraçado - disse Ruth.

Amélia ergueu a mão de repente e gesticulou para que ficássemos quietos.

- Estou com Adam Lang na linha para Sidney Kroll - disse ela.

- Não, ele não pode esperar.

Acompanhei Alice até o andar de baixo e parei atrás do seu ombro enquanto ela se sentava diante do teclado, esperando pacientemente que as palavras do ex-primeiro-ministro saíssem da minha boca. Somente depois que comecei a pensar sobre o que Lang deveria dizer percebi que não lhe havia feito a pergunta crucial: ele tinha mesmo ordenado a captura daqueles quatro homens? Foi então que soube que era claro que sim; caso contrário, ele simplesmente teria negado tudo abertamente no fim de semana, quando a primeira matéria saiu. Não pela primeira vez, senti-me completamente além da minha competência.

- Sempre fui um ardoroso... - comecei, - Não, risque isso. Sempre fui um grande, não, um aguerrido defensor do trabalho do Tribunal Penal Internacional. - (Ele tinha sido mesmo? Eu não fazia idéia. Parti do princípio de que sim. Ou que, pelo menos, sempre fingira ser). - Não tenho dúvidas de que o TPI logo perceberá que isso não passa de uma provocação motivada por interesses políticos. - Fiz uma pausa. Senti que precisava de mais uma frase: algo mais abrangente, digno de um homem de Estado. O que eu falaria se fosse ele? - A luta internacional contra o terror - falei, em um arroubo de inspiração - é importante demais para ser usada em prol de vinganças pessoais.

Lucy imprimiu a declaração, e quando eu a levei de volta ao escritório, senti uma curiosa mistura de orgulho e acanhamento, como um estudante entregando seu dever de casa. Fingi não ver a mão estendida de Amélia e mostrei-a primeiro para Ruth (pelo menos estava aprendendo a etiqueta daquela corte de exilados). Ela assentiu sua aprovação e fez o papel deslizar pela mesa até Lang, que estava escutando alguém ao telefone. Ele olhou para a declaração em silêncio, pediu minha caneta com um gesto e inseriu uma única palavra. Jogou o papel de volta e ergueu o polegar para mim.

Ao telefone, ele disse:

- Isso é ótimo, Sid. E o que sabemos sobre esses três juizes?

- Será que eu posso ver? - disse Amélia, enquanto descíamos as escadas.

Ao entregar o papel, notei que Lang havia acrescentado o adjetivo "doméstico" à frase final: "A luta internacional contra o terror é importante demais para ser usada em prol de vinganças pessoais domésticas." A antítese brutal entre "internacional" e "doméstica" fez Rycart parecer ainda mais mesquinho.

- Muito bom - disse Amélia. - Você poderia ser o novo Mike McAra.

Olhei para ela. Acho que sua intenção era me elogiar. No caso dela, era sempre difícil saber. Não que eu me importasse. Pela primeira vez na vida, estava experimentando a adrenalina da política. Passei a entender por que a aposentadoria deixava Lang tão agitado. Imaginei que o esporte devia oferecer a mesma sensação, quando praticado no nível mais extremo e veloz. Era como jogar tênis na quadra central em Wimbledon. O saque de Rycart passara rente à rede, e nós havíamos corrido atrás da bola, a alcançado com a raquete e a atirado de volta para ele, com um efeito extra.

Os telefones foram religados um a um. Eles começaram a tocar imediatamente, exigindo atenção, e eu ouvi as secretárias alimentando os repórteres famintos com minhas palavras: "Sempre fui um aguerrido defensor do trabalho do Tribunal Penal Internacional." Vi minhas frases serem enviadas por e-mail para as agências de notícias. E, em questão de minutos, na tela do computador e na televisão, comecei a vê-las e ouvi-las novamente. ("Em uma declaração feita poucos minutos atrás, o ex-primeiro-ministro disse...") O mundo tinha se tornado nossa câmara de eco.

No meio disso tudo, meu próprio telefone tocou. Grudei o receptor a uma orelha e coloquei um dedo na outra para ouvir a pessoa que estava ligando. Uma voz fraca disse:

- Está me ouvindo?

- Quem está falando?

- É John Maddox, da Rhinehart, em Nova York. Onde você está? Parece um hospício.

- Você não é o primeiro a chamar isso aqui de hospício. Espere um pouco, John. Vou tentar achar um lugar mais silencioso. - Saí em direção ao corredor e continuei caminhando por ele até dar a volta e chegar aos fundos da casa. - Melhor agora?

- Acabei de ouvir a notícia - disse Maddox. - Isso só pode ser bom para a gente. Deveríamos começar com isso.

- O quê? - Eu ainda estava andando.

- Essa coisa de crimes de guerra. Você perguntou sobre isso a ele?

- Para ser sincero, John, não tive muita oportunidade. -Tentei não soar sarcástico demais. - Ele está um pouco enrolado no momento.

-Certo. Então, o que você cobriu até agora?

- O começo da vida dele, a infância, a faculdade...

- Não, não - falou Maddox, impaciente. - Esqueça essa merda. Este negócio de agora é o que interessa. Faça com que ele se concentre nisso. E ele não deve falar sobre este assunto com mais ninguém. Temos de mantê-lo absolutamente exclusivo para as memórias.

Acabei chegando ao solário, onde havia falado com Rick na hora do almoço. Mesmo com a porta fechada, eu ainda conseguia ouvir o barulho distante dos telefones tocando do outro lado da casa. A idéia de que Lang conseguiria evitar qualquer menção a capturas ilegais e tortura até o lançamento do livro era uma piada. Naturalmente, não coloquei a coisa exatamente nesses termos para o presidente da terceira maior editora do mundo.

- Eu direi a ele, John - falei. - Talvez seja bom você conversar com Sidney Kroll. Adam poderia dizer que seus advogados o instruíram a não falar nada.

- Boa idéia. Vou ligar para Sid agora. Enquanto isso, quero que você acelere o cronograma.

- Acelerar? - No cômodo vazio, minha voz soou fraca e surda.

- Claro. Acelerar. No sentido de apressar as coisas. Neste exato momento, Lang está em alta. As pessoas estão começando a se interessar por ele novamente. Não podemos deixar essa oportunidade escapar.

- Agora você está dizendo que quer o livro em menos de um mês?

- Sei que é duro. E talvez isso signifique se contentar apenas com uma ajeitada em muita coisa no manuscrito em vez de reescrever tudo. Mas e daí? A maior parte ninguém vai ler mesmo. Quanto mais cedo lançarmos, mais vamos vender. Você acha que consegue?

Não, era a resposta. Não, seu careca desgraçado, seu canalha psicopata, você leu aquele lixo para valer? Será que perdeu a porra do juízo?

- Bem, John - disse suavemente -, eu posso tentar.

- Bom homem. E não se preocupe com a sua parte do contrato. Vamos lhe pagar a mesma coisa por duas semanas de trabalho que pagaríamos por quatro. Ouça o que eu digo, se essa coisa de crimes de guerra der certo, pode ser a resposta para as nossas orações.

Quando ele desligou, de alguma forma duas semanas haviam deixado de ser um número fisgado ao acaso no ar e se tornado um prazo concreto. Eu já não conduziria quarenta horas de entrevista com Lang, abrangendo toda a sua vida: faria com que ele se concentrasse especificamente na Guerra contra o Terror, e nós começaríamos as memórias com aquilo. O resto eu faria o máximo para melhorar, reescrevendo o que fosse possível.

- E se Adam não gostar disso? - perguntei, no que acabou sendo nossa última troca de palavras.

- Ele vai gostar - disse Maddox. - Caso contrário, você pode simplesmente recordar Adam - seu tom sugeria que nós não passávamos de uma dupla de ingleses frescos, tramando para roubar um americano de sangue quente - da sua obrigação contratual de produzir um livro que nos ofereça um relato abrangente e franco sobre a Guerra contra o Terror. Estou confiando em você. Certo?

É melancólico estar em um solário quando não há sol. Eu podia ver o jardineiro no mesmíssimo lugar em que ele havia trabalhado no dia anterior, rígido e desajeitado nas suas roupas de frio grossas, ainda empilhando folhas no seu carrinho de mão. Assim que ele acabava de limpar uma parte dos detritos, o vento trazia mais. Permiti-me um breve momento de desespero, recostando-me na parede, minha cabeça virada para o teto, ponderando sobre a fugacidade dos dias de verão e da felicidade humana. Tentei ligar para Rick, mas sua assistente me disse que ele estava passando a tarde fora, então deixei uma mensagem pedindo que ele retornasse a ligação. Em seguida, saí em busca de Amélia.

Ela não estava no escritório, onde as secretárias ainda atendiam ligações, nem no corredor, nem na cozinha. Para minha surpresa, um dos guardas falou que ela havia saído. Já devia passar das quatro da tarde àquela altura, e estava ficando frio. Ela estava parada na rotatória em frente da casa. Na penumbra de janeiro, a ponta de seu cigarro emitiu um brilho vermelho forte quando ela tragou, então desapareceu.

- Eu não teria adivinhado que você era fumante - falei.

- Fumo muito de vez em quando. E, mesmo assim, só em momentos de muito estresse, ou de muita alegria.

- E qual deles é agora?

- Muito engraçado.

Ela havia abotoado o paletó para se proteger do anoitecer friorento e fumava naquele curioso estilo noli me tangere que certos tipos de mulheres têm de fumar, com um braço apoiado frouxamente contra a cintura e o outro - o que segurava o cigarro - enviesado diante do peito. O cheiro perfumado do tabaco queimando ao ar livre me fez querer um cigarro também. Teria sido meu primeiro em mais de uma década e, sem dúvida, me faria voltar a quarenta por dia - porém, ainda assim, naquele instante, se ela tivesse me oferecido um, eu teria aceitado.

Ela não ofereceu.

- John Maddox acabou de ligar - falei. - Agora ele quer o livro em duas semanas em vez de quatro.

- Cristo. Boa sorte.

- Imagino que não exista a menor chance de eu me sentar novamente com Adam hoje para outra entrevista, não é?

- O que você acha?

- Nesse caso, será que alguém poderia me levar de volta para o hotel? Posso trabalhar um pouco lá em vez de aqui.

Ela soltou a fumaça pelo nariz e me analisou.

- Você não está pensando em tirar aquele manuscrito daqui, está?

- Claro que não! - Minha voz sempre sobe uma oitava quando eu minto. Jamais poderia ser um político: soaria como o Pato Donald. - Quero apenas colocar no papel o trabalho de hoje, só isso.

- Porque você percebe como a coisa está ficando séria, certo?

- Claro. Pode conferir meu laptop se quiser.

Ela fez uma pausa longa o bastante para transmitir sua suspeita.

- Tudo bem - disse, terminando o cigarro. - Confio em você. - Ela largou a guimba no asfalto e apagou-a delicadamente com o bico pontudo do sapato, depois parou e apanhou-a de volta. Imaginei-a na escola, removendo da mesma forma a prova do crime: a CDF que nunca foi pega fumando. - Apanhe suas coisas. Vou pedir para um dos rapazes levá-lo até Edgartown.

Entramos de volta na casa e nos separamos no corredor. Ela retornou para os telefones, que ainda tocavam. Eu subi até o escritório e, enquanto me aproximava, ouvi Ruth e Adam Lang gritando um com o outro. Suas vozes estavam abafadas, e as únicas palavras que ouvi com clareza constituíam a última parte da sua diatribe final: "Passar o resto da minha droga de vida aqui!" A porta estava entreaberta. Eu hesitei. Não queria interromper, mas, por outro lado, não queria ficar ali e ser pego espiando, como se estivesse ouvindo a conversa alheia. No fim das contas, bati de leve e, depois de uma pausa, ouvi Lang dizer com uma voz cansada:

- Entre.

Ele estava sentado à mesa. Sua esposa estava na outra ponta da sala. Ambos respiravam pesado, e percebi que algo grave - alguma explosão há muito contida - tinha acabado de acontecer. Agora entendia por que Amélia tinha fugido para fumar lá fora.

- Desculpe-me por interromper - falei, gesticulando para meus pertences. - Eu só queria...

- Está bem - disse Lang.

- Vou ligar para as crianças - disse Ruth com amargura. - A não ser, é claro, que você já tenha ligado.

Lang não olhou para ela, ele olhou para mim. E, oh, quantas camadas de significado havia para interpretar naqueles olhos opacos! Durante aquele longo instante, ele me convidou a ver no que havia se tornado: destituído de seu poder, ofendido pelos inimigos, caçado, com saudades de casa, preso entre a esposa e a amante. Você poderia escrever cem páginas apenas sobre aquele breve olhar e, ainda assim, não o esgotaria.

- Com licença - disse Ruth passando por mim com bastante violência, seu corpo pequeno e sólido batendo no meu. No mesmo instante, Amélia apareceu no batente da porta, segurando um telefone.

- Adam - disse ela. - É a Casa Branca. Eles estão com o presidente dos Estados Unidos na linha para você. - Ela sorriu para mim e conduziu-me em direção à porta. - Com licença? Precisamos da sala,

Já estava bem escuro quando voltei para o hotel. Havia luz no céu suficiente apenas para mostrar as nuvens carregadas grandes e escuras que se juntavam sobre Chappaquiddick, vindas do Atlântico. A garota da recepção, com seu chapeuzinho de pala com laço, disse que os próximos dias seriam de tempo ruim.

Subi até o meu quarto e fiquei parado nas sombras por um tempo, ouvindo o ranger da velha placa da pousada e o implacável estouro-e-chiado, estouro-e-chiado da maré além da estrada vazia. O farol foi ligado no exato momento em que o facho de luz estava apontando diretamente para o hotel, e a vermelhidão que subitamente invadiu o quarto dissipou meus devaneios. Liguei o abajur e tirei o laptop da bolsa a tiracolo. Estávamos juntos na estrada havia um bom tempo, aquele laptop e eu. Tínhamos aturado astros do rock que se achavam messias destinados a salvar o planeta. Sobrevivido a jogadores de futebol cujos grunhidos monossilábicos fariam um gorila adulto parecer estar recitando Shakespeare. Suportado atores que logo seriam esquecidos, com egos tão grandes quanto o de um imperador romano e séquitos compatíveis. Dei um tapinha amigável na máquina. Seu estojo de metal, que já fora reluzente, estava arranhado e amassado: os ferimentos honrosos de uma dúzia de campanhas. Tínhamos sobrevivido àquelas. Daríamos um jeito de sobreviver a esta também.

Liguei-o ao telefone do hotel, disquei meu provedor de internet e, enquanto a conexão se completava, fui ao banheiro pegar um copo d'água, O rosto que me encarou de volta do espelho estava deteriorado, mesmo em comparação ao espectro da noite anterior. Puxei as pálpebras inferiores para baixo e examinei o branco gelatinoso dos meus olhos antes de partir para os dentes acinzentados e o cabelo, e daí para os pontinhos vermelhos nas bochechas e no nariz. Martha's Vineyard, no auge do inverno, parecia estar me envelhecendo. Era como Shangri-lá ao contrário.

Do outro cômodo, ouvi o aviso familiar: "Você tem novas mensagens".

Logo notei que algo estava errado. Havia a habitual lista de lixo eletrônico, uma dúzia de mensagens me oferecendo desde aumento do pênis até o Wall Street Journal, mais um e-mail do escritório de Rick confirmando o pagamento da primeira parte do adiantamento. A única coisa que não estava listada era o e-mail que eu havia mandado para mim mesmo à tarde.

Por alguns instantes, fiquei olhando como um idiota para a tela, então abri a pasta separada no disco rígido do laptop que armazenava automaticamente cada e-mail meu, recebido ou enviado. E lá estava, para meu imenso alívio, no topo da lista de "e-mails enviados". Uma mensagem intitulada "Sem assunto", à qual eu havia anexado O manuscrito das memórias de Adam Lang. Porém, quando abri o e-mail em branco e cliquei na caixa que dizia "download", tudo o que recebi foi a seguinte mensagem: "O arquivo não está disponível no momento." Tentei mais algumas vezes, sempre com o mesmo resultado.

Peguei meu celular e liguei para a empresa de internet.

Pouparei você de um relato completo da meia hora tensa que se seguiu - a interminável escolha dentre uma lista de opções, a espera, a música em midi no ouvido, a conversa cada vez mais desesperada com o representante do provedor em Uttar Pradesh ou em qualquer outro raio de lugar que ele estivesse.

A questão era que o manuscrito sumira e o provedor não tinha nenhum registro de que ele houvesse existido.

Não tenho uma cabeça multo técnica, mas até eu estava começando a entender o que devia ter acontecido. De alguma forma, o manuscrito de Lang tinha sido apagado da memória dos computadores do meu servidor de internet. Havia duas explicações possíveis para isso. Uma, era que o upload não tinha sido feito corretamente desde o início - mas isso não fazia sentido, porque eu havia recebido duas mensagens quando ainda estava no escritório: "O seu arquivo foi transferido" e "Você tem novas mensagens". A outra era que o arquivo havia sido apagado. Mas como seria possível? Se fosse assim, isso significaria que liguem tinha acesso aos computadores de um dos maiores conglomerados de internet do mundo, e era capaz de apagar seus rastros ao seu bel-prazer. O que também significaria - tinha de significar - que todos os meus e-mails vinham sendo monitorados.

A voz de Rick flutuou na minha mente: "Uau. Deve ter sido uma Operação e tanto. Grande demais para um jornal. Deve ter sido um governo...", seguida rapidamente pela de Amélia: "Você percebe como a coisa está ficando séria, certo?"

- Mas o livro é uma merda! - gritei, desesperadamente, para o retrato do baleeiro vitoriano pendurado diante da cama. - Não tem nada nele que compense todo esse trabalho!

O lobo-do-mar vitoriano, carrancudo e velho, olhou de volta para mim, impassível. Eu havia quebrado minha promessa, sua expressão parecia dizer, e alguma coisa lá fora - alguma força sem nome - sabia disso.

 

Os autores em geral são pessoas ocupadas e pouco acessíveis: às vezes, são temperamentais. Consequentemente, os editores contam com os ghost-writers para que o processo de edição seja o mais tranquilo possível.

Ghostwriting

 

Não havia a menor chance de eu trabalhar mais naquela noite. Nem sequer liguei a televisão. Tudo o que eu desejava era o esquecimento. Desliguei o celular, desci até o bar e, quando ele fechou, sentei-me no meu quarto e fui esvaziando uma garrafa de uísque até bem depois da meia-noite, o que, sem dúvida, explica por que finalmente dormi uma noite inteira.

Acordei com o telefone tocando ao lado da cama. O toque metálico estridente pareceu fazer meus globos oculares vibrarem nas órbitas cansadas e, quando rolei para o lado para atendê-lo, senti meu estômago continuar rolando, arrastando-se para longe de mim e atravessando o cobertor, indo para o chão, como um balão cheio de um líquido intoxicante e viscoso. O quarto, que girava, estava muito quente; o ar-condicionado estava ligado no máximo. Notei que tinha ido dormir completamente vestido e que havia deixado todas as luzes acesas.

- Você precisa fazer o check out do hotel imediatamente - disse Amélia. - As coisas mudaram. - Sua voz penetrou meu crânio como uma agulha de crochê. - Um carro está a caminho.

Foi tudo o que ela disse. Não discuti; não tive como. Ela Já havia desligado.

Certa vez li que, no Antigo Egito, eles costumavam preparar um faraó para mumificação retirando cérebro pelo nariz com um gancho. Em algum momento da noite, uma operação semelhante parecia ter sido executada em mim. Arrastei os pés pelo carpete e puxei as cortinas, revelando um céu e um mar cinza como a morte. Nada se movia. O silêncio era total; nem mesmo o grito de uma gaivota o quebrava. Não havia dúvida de que uma tempestade estava vindo: até eu conseguia perceber isso.

Quando eu estava prestes a me afastar dali, ouvi o som distante de um motor. Apertei os olhos para observar a rua debaixo da minha janela e vi dois carros pararem. As portas do primeiro se abriram e dois homens saíram - jovens, aparentemente em boa forma, usando casacos de esqui, jeans e botas. O motorista ergueu os olhos para a minha janela e, instintivamente, dei um passo para trás. Quando arrisquei olhar uma segunda vez, ele tinha aberto a mala do carro e estava inclinado sobre ela. Ao endireitar o corpo, segurava o que, a princípio, no meu estado paranóico, pensei ser uma metralhadora. Na verdade, era uma câmera de TV.

Então, comecei a me mover rápido, ou pelo menos com o máximo de rapidez que minha condição permitia. Escancarei a janela para deixar entrar uma lufada de ar gelado. Tirei a roupa, tomei um banho morno e fiz a barba. Vesti roupas limpas e arrumei as malas. Quando desci para a recepção, eram 8 horas e quarenta e cinco minutos - uma hora depois de a primeira barca do continente ter atracado no porto de Vineyard - e o hotel parecia estar recebendo uma conferência internacional de imprensa. Digam o que disserem de Adam Lang, ele certamente estava fazendo maravilhas para a economia local: Edgardtown não ficava tão agitada desde Chappaquiddick. Devia haver trinta pessoas por ali, bebendo café, trocando histórias em meia dúzia de idiomas, falando em seus celulares, conferindo equipamentos. Eu já havia passado tempo suficiente com repórteres para saber diferenciar um tipo do outro. Os correspondentes de TV se vestiam como se estivessem indo a um funeral; os repórteres de agências de notícias eram os que pareciam coveiros.

Comprei um exemplar do New York Times e fui direto para o restaurante, onde imediatamente bebi três copos de suco de laranja antes de voltar minha atenção para o jornal. Lang não estava mais enterrado no caderno internacional. Estava bem ali na primeira página:

TRIBUNAL DE CRIMES DE GUERRA DECIDIRÁ O DESTINO DE EX-PREMIER BRITÂNICO

PRONUNCIAMENTO AGUARDADO PARA HOJE

Ex-secretário de Relações Internacionais alega que Lang aprovou uso de tortura pela CIA

Lang havia feito uma declaração "vigorosa", dizia o jornal (senti um arrepio de orgulho). Ele estava "sob ataque", "enfrentando um golpe atrás do outro" - a começar pelo "afogamento acidental de um assistente particular neste mesmo ano". O caso causava "constrangimento" para os governos inglês e americano. "Um oficial administrativo sênior insistiu, no entanto, em que a Casa Branca continuava leal ao homem que, no passado, foi seu aliado mais próximo. 'Ele ficou do nosso lado e nós ficaremos do lado dele', acrescentou o oficial, falando apenas depois de ter a garantia do anonimato."

No entanto, foi o último parágrafo que me fez engasgar com o café:

A publicação das memórias do Senhor Lang, que estava prevista para junho, foi antecipada para o final de abril. John Maddox, presidente da Rhinehart Publishing Inc., que supostamente pagou 10 milhões de dólares pelo livro, afirmou que o manuscrito está recebendo os últimos retoques. "Este vai ser um evento editorial mundial", disse o Senhor Maddox ao New York Times em uma entrevista concedida ontem por telefone. "Adam Lang será o primeiro líder a dar uma versão completa dos bastidores da Guerra contra o Terror promovida pelo Ocidente."

Dobrei o jornal, me levantei e atravessei com dignidade o saguão, pisando cuidadosamente entre as malas das câmeras, as lentes zoom de meio metro e os microfones de mão com suas capas de proteção contra o vento cinza e felpudas. Um clima alegre, quase festivo, prevalecia entre os membros do Quarto Poder, do tipo que deve ter existido entre gente de bem do século dezoito reunida para um belo dia de lazer em um enforcamento.

- A redação está dizendo que a coletiva de impressa em Haia vai ser agora, às dez da manhã, horário da Costa Leste - gritou alguém.

Passei despercebido e saí para o terraço, de onde liguei para o meu agente. O assistente dele atendeu - Brad, ou Brett, ou Brat: não me lembro do nome; Rick mudava de equipe quase com a mesma rapidez com que mudava de esposa.

Pedi para falar com o Senhor Ricardelli.

- Ele não está no escritório no momento.

- E onde ele está?

- Viajou para pescar.

- Pescar?

- Ele vai ligar de vez em quando para conferir as mensagens.

- Que ótimo. Para onde ele foi?

- Para o Parque Florestal Bouma National Heritage.

- Cristo. Onde fica isso?

- Foi uma coisa de momento...

- Onde fica?

Brad, ou Brett, ou Brat hesitou.

- Nas ilhas Fiji.

A mini-van levou-me colina acima, para fora de Edgartown, passando pela livraria, pelo pequeno cinema e pela igreja. Quando chegamos aos limites da cidade, seguimos as placas à esquerda para West Tisbury em vez de pegar a direita, para o porto de Vineyard, o que pelo menos significava que estavam me levando de volta para a casa, e não me deportando por quebrar a Lei de Segredos de Estado. Eu estava sentado atrás do policial motorista, com minha mala no banco ao lado. Ele era um dos mais jovens e vestia o uniforme padrão que todos eles usavam quando estavam à paisana: um casaco cinza com o zíper fechado e gravata preta. Seus olhos buscaram os meus pelo retrovisor e ele comentou que tudo aquilo era uma grande furada. Respondi brevemente que era, sim, uma furada, então olhei explicitamente pela janela para evitar mais conversa.

Logo chegamos às planícies da zona rural. Uma ciclovia deserta. Corria paralela à estrada. Além dela, estendia-se a floresta pardacenta. Meu frágil corpo podia estar em Martha's Vineyard, mas minha mente estava no Pacífico Sul. Estava pensando em Rick nas ilhas Fiji e em todas as maneiras complexas e humilhantes que eu poderia usar para despedi-lo quando ele voltasse. Minha parte racional sabia que eu jamais faria aquilo - por que ele não deveria ir pescar? -, mas era a irracional que estava no comando naquela manhã. Imagino que estivesse com medo, e o medo distorce o juízo de uma pessoa ainda mais do que o álcool e o cansaço. Sentia-me ludibriado, abandonado, ressentido.

- Depois que eu deixar o senhor - disse o policial, sem se permitir desanimar pelo meu silêncio -, tenho de buscar o Senhor Kroll no aeroporto. Quando os advogados começam a aparecer, pode ter certeza de que é uma roubada. - Ele se interrompeu e inclinou o corpo na direção do pára-brisa. - Ah, caralho, lá vamos nós de novo.

Mais adiante, era como se tivesse acontecido um acidente de carro. As intensas luzes azuis de uma dupla de radiopatrulhas piscavam dramaticamente na manhã sombria, iluminando as árvores ao redor como um relâmpago correndo pelas nuvens em uma ópera de Wagner. À medida que nos aproximamos, pude ver uma dúzia ou mais de carros e vans estacionados no acostamento de ambos os lados da estrada. As pessoas estavam paradas por ali, sem fazer nada, e eu supus, daquela maneira preguiçosa com que o cérebro às vezes junta as informações, que elas haviam sofrido um acidente coletivo. Porém, quando a mini-van desacelerou e indicou que ia virar à esquerda, os curiosos começaram a apanhar coisas do acostamento e vieram correndo na nossa direção.

- Lang! Lang! Lang! - gritou uma mulher com um megafone. - Mentiroso! Mentiroso! Mentiroso!

Imagens de Lang com um macacão laranja, agarrando barras de prisão com mãos ensanguentadas, dançaram diante do pára-brisa: PROCURADO! CRIMINOSO DE GUERRA! ADAM LANG!

A polícia de Edgartown havia bloqueado a trilha para o complexo Rhinehart com cones de trânsito e retirou-os rapidamente do caminho para que pudéssemos passar, mas não antes de sermos parados. Os manifestantes nos cercaram e uma fuzilaria de pancadas e chutes castigou a lateral da van. Vislumbrei um arco brilhante de luz branca iluminando uma figura - um homem, encapuzado como um monge. Ele se virou de costas para seu entrevistador para olhar para nós, e eu o reconheci vagamente de algum lugar. Mas então ele desapareceu atrás de uma massa de rostos contorcidos, mãos que esmurravam e saliva que gotejava.

- Eles são sempre os putos mais violentos - disse meu motorista -, os manifestantes pela paz. - Ele pisou fundo, os pneus de trás derraparam inutilmente, então colaram no asfalto, e nós disparamos em direção à floresta silenciosa.

Amélia recebeu-me no corredor. Ela olhou com desdém para minha única mala, como somente uma mulher poderia olhar.

- É só isso mesmo?

- Gosto de viajar leve.

- Leve? Eu diria flutuando, - Deu um suspiro. - Certo. Siga-me.

Minha bagagem era uma daquelas onipresentes malas de puxar, com um cabo retrátil e rodinhas. Produzia um zumbido industrial sobre o assoalho de pedra enquanto eu seguia Amélia pelo corredor e dava a volta até os fundos da casa.

- Tentei ligar para você várias vezes na noite passada - disse ela, sem se virar -, mas você não atendeu.

Lá vem, pensei.

- Esqueci de carregar meu celular.

- Ah, é? E quanto ao telefone do seu quarto? Tentei ligar para ele também.

- Eu saí.

- Até a meia-noite? Encolhi-me atrás dela.

- O que você queria me contar?

- Isto.

Ela parou diante de uma porta, abriu-a e saiu da frente para me deixar entrar. O quarto estava escuro, mas as cortinas pesadas tinham uma pequena fresta no meio, de modo que havia luz suficiente apenas para eu discernir o vulto de uma cama de casal. Senti o cheiro de roupa guardada e sabonete velho. Ela atravessou o quarto e abriu rapidamente as cortinas.

- Você vai dormir aqui daqui para frente.

Era um quarto simples, com portas de vidro corrediças que davam acesso diretamente para o jardim. Além da cama, havia uma mesa com uma luminária regulável, uma poltrona coberta com algo bege de tecido grosso e um guarda-roupa embutido de parede inteira com portas espelhadas. Também pude ver o interior de um banheiro de azulejos brancos, formando uma suíte. Era tudo arrumadinho e funcional; deplorável.

Tentei fazer piada.

- É aqui que vocês colocam a vovó, não é?

- Não, aqui é onde nós havíamos colocado Mike McAra.

Ela puxou uma das portas do armário, revelando alguns paletós e camisas pendurados em cabides.

- Infelizmente ainda não tivemos a oportunidade de limpá-lo, e a mãe dele está em uma casa de repouso, de modo que não tem espaço para guardar nada. Mas, como você mesmo diz, você viaja leve. E, além disso, será apenas por alguns dias, agora que o lançamento foi antecipado.

Nunca fui particularmente supersticioso, mas acredito que certos lugares têm uma aura e, desde o primeiro momento em que pisei naquele quarto, não gostei dele. A idéia de tocar nas roupas de McAra encheu-me de algo parecido com pânico.

- É uma regra pessoal minha não dormir na casa de um cliente - falei, tentando manter a voz tranquila e casual. - Depois de um dia de trabalho, geralmente acho essencial mudar de ares.

- Mas agora você pode ter acesso constante ao manuscrito. Não é isso que você quer? - Ela abriu um sorriso para mim e, pela primeira vez, havia uma alegria genuína nele. Eu estava exatamente onde ela queria, literal e metaforicamente. - Além do mais, você não conseguiria continuar fugindo da horda de jornalistas. Cedo ou tarde eles descobririam onde você está e começariam a aborrecê-lo com perguntas. Isso seria horrível para você. Aqui, pode trabalhar em paz.

- Tem algum outro quarto que eu possa usar?

- Existem apenas seis quartos na casa principal. Adam e Ruth têm dois separados. Eu fico com um. As garotas dividem outro. Os policiais de plantão precisam de um quinto para o turno da noite. E o bloco de hóspedes está todo ocupado pelas Forças Especiais. Não fique melindrado: os lençóis foram trocados. - Ela consultou seu elegante relógio de ouro. - Olhe - disse -, Sidney Kroll vai chegar a qualquer momento. Devemos receber o pronunciamento do TPI em menos de meia hora. Por que você não se instala aqui e depois sobe para se juntar a nós? Qualquer que seja a decisão, ela vai afetá-lo. Você é praticamente um dos nossos agora.

- Sou?

- Claro. Você escreveu a declaração ontem. Isso o torna cúmplice.

Depois que ela foi embora, não desfiz as malas. Estava sem condições. Em vez disso, sentei-me cautelosamente na ponta da cama e pela janela para o gramado castigado pelo vento, os arbustos rasos e o céu imenso. Uma pequena luz branca e brilhante cruzava valente a extensão cinza, seu tamanho aumentando à medida que se aproximava. Um helicóptero. Passou voando baixo, fazendo tremer as portas de vidro pesadas, e então, um ou dois minutos depois, reapareceu, pairando a mais de um quilômetro de distância, pouco acima do horizonte, como um cometa sinistro e agourento. Aquilo era um sinal de como a coisa tinha ficado séria, pensei, já que um diretor de jornalismo sob pressão e com um orçamento gordo havia se disposto a contratar um helicóptero na esperança de conseguir uma imagem fugaz do ex-primeiro-ministro. Imaginei Kate assistindo, cheia de si, à cobertura ao vivo no seu escritório em Londres e fui invadido por um desejo extraordinário de correr lá para fora e começar a rodopiar, como Julie Andrews em A noviça rebelde: sim, querida, sou eu! Estou aqui com o criminoso de guerra! Sou um cúmplice!

Fiquei um tempo sentado ali, até ouvir o barulho da minivan estacionando diante da casa, seguido por uma comoção de vozes no hall e depois por um pequeno exército de passos subindo ruidosamente as escadas de madeira: calculei que aquele devia ser o som de mil dólares por hora em honorários em movimento. Dei alguns minutos para Kroll e seus clientes apertarem as mãos, trocarem condolências e manifestações gerais de confiança, então deixei, cansado. O quarto do homem morto, que passara a ser meu, e subi para me juntar a eles.

Kroll tinha vindo em um jato particular de Washington com dois jovens assistentes, uma mexicana de beleza exótica que ele apresentou como Encarnación e um negro nova-iorquino que ele chamava de Josh. Eles se sentaram cada um de um lado dele, com os laptops abertos, em um sofá que os deixava de costas para a vista oceânica. Adam e Ruth Lang ocupavam o sofá de frente para os três, Amélia e eu, duas poltronas separadas. Uma TV de tela plana do tamanho de uma tela de cinema do lado da lareira mostrava o plano aéreo da casa, transmitido ao vivo do helicóptero que ouvíamos zumbir baixinho lá fora. De vez em quando, o canal de notícias cortava para os jornalistas que esperavam no salão amplo e decorado com candelabros em Haia no qual se daria a coletiva de imprensa. Toda vez que eu via o pódio vazio com o logotipo do TPI em seu elegante azul ONU - os ramos de loureiro e a balança da justiça -, sentia-me um pouco mais nervoso. Porém, o próprio Lang parecia tranquilo. Ele estava sem paletó, usando uma camisa branca e gravata azul-escura. Aquele era o tipo de momento de alta pressão para o qual o seu metabolismo fora construído.

- Então, a situação é a seguinte - disse Kroll, quando todos já havíamos nos acomodado. - O senhor não está sendo acusado. O senhor não está sendo preso. Isso não vai dar em nada, eu prometo. Tudo o que a procuradora está pedindo agora é permissão para iniciar uma investigação formal. Certo? Então, quando sairmos daqui, ande de cabeça erguida, pareça tranquilo e fique com o coração em paz, pois vai dar tudo certo.

- O presidente falou-me que achava que eles talvez nem a deixassem investigar - disse Lang.

- Sempre hesito antes de contradizer o líder do mundo livre - disse Kroll -, mas a sensação geral em Washington hoje de manhã era de que eles vão precisar deixar. Nossa digníssima procuradora parece ser muito habilidosa. O governo britânico recusou-se sistematicamente a investigar por conta própria a Operação Tempestade, o que lhe dá um precedente legal para fazê-lo ela mesma. E, ao fazer o caso vazar pouco antes de ele ir para o Juízo de Instrução, ela pressionou bastante aqueles três juizes para que eles lhe dessem, pelo menos, permissão para seguir para o estágio de investigação. Se eles a mandarem desistir, sabem muito bem que todos vão falar que estão com medo de ir atrás de uma figura mais poderosa.

- Isso é uma tática grosseira de difamação - falou Ruth. Ela estava usando calça legging e outro dos seus suéteres disformes. Seus pés descalços estavam enfiados debaixo das pernas no sofá, suas costas, viradas para o marido.

Lang deu de ombros.

- É política.

- É exatamente isso que quero dizer - falou Kroll. - É melhor tratá-lo como um problema político, e não legal.

Ruth disse:

- Precisamos levar a público a nossa versão do que aconteceu. Recusar-se a comentar já não é suficiente.

Reconheci minha chance.

- John Maddox... - comecei a falar.

- Sim - disse Kroll, cortando-me -, eu falei com John, e ele tem razão. Agora precisamos contar essa história tintim por tintim nas memórias; é o veículo perfeito para a sua resposta, Adam. Eles estão muito empolgados.

- Tudo bem - disse Lang.

- Assim que possível, o senhor precisa se sentar com o nosso amigo aqui - percebi que Kroll tinha esquecido meu nome - e repassar tudo nos mínimos detalhes. Porém, antes precisa se certificar de que tem o meu sinal verde para tudo. O teste que precisamos fazer é imaginar como cada palavra soaria se fosse lida com o senhor sentado no banco dos réus.

- Por quê? - disse Ruth. - Pensei que você tinha dito que tudo isso não daria em nada.

- E não vai dar - disse Kroll com brandura -, principalmente se tivermos o cuidado de não lhes dar mais munição.

- Dessa forma, conseguimos apresentar a questão do nosso jeito - disse Lang. - E, toda vez que alguém me perguntar, posso mandar a pessoa recorrer ao relato nas minhas memórias. Quem sabe? Pode até ajudar a vender alguns exemplares. - Ele olhou em volta. Todos sorrimos. - Certo - disse -, vamos voltar para o presente. Pelo que exatamente estou propenso a ser investigado?

Kroll gesticulou para Encarnación.

- Oito crimes contra a humanidade - disse ela cautelosamente -, ou crimes de guerra.

Fez-se um silêncio. É estranho o efeito que palavras como estas podem ter. Talvez fosse o fato de ter sido ela quem as disse: ela parecia muito inocente. Paramos de sorrir.

- Inacreditável - disse Ruth, por fim -, igualar o que Adam fez ou deixou de fazer com os nazistas.

- É exatamente por isso que os Estados Unidos não reconhecem o tribunal - disse Kroll. Ele balançou o dedo. - Nós avisamos ao senhor o que aconteceria. Um tribunal internacional para crimes de guerra parece, a princípio, algo muito nobre. Porém, se você for atrás daqueles maníacos homicidas do Terceiro Mundo, cedo ou tarde o Terceiro Mundo virá atrás de você; se não fosse assim, pareceria discriminação. Eles matam 3 mil dos nossos, nós matamos um deles e, de repente, somos todos criminosos de guerra. É o pior tipo de equivalência moral. Bem, eles não têm como arrastar a América até a sua corte fajuta, então quem vão arrastar? É óbvio: nosso aliado mais próximo, o senhor. É como eu digo, não é uma questão legal, é política.

- Deve ser exatamente esse o seu argumento, Adam - disse Amélia, escrevendo algo no seu caderno preto e vermelho.

- Não se preocupe - disse ele, fechando a cara. - Vai ser.

- Continue, Connie - disse Kroll. - Vamos ouvir o resto.

- O que não nos permite ter certeza de qual caminho eles vão tomar a essa altura é que a tortura é considerada ilegal tanto pelo Artigo 7 do Estatuto de Roma, de 1998, sob o título de crimes contra a humanidade, quanto pelo Artigo 8, referente aos crimes de guerra. O Artigo 8 também categoriza como crime de guerra - ela consultou seu laptop - "Privação intencional de um prisioneiro de guerra ou de outra pessoa sob proteção do seu direito a um julgamento justo e imparcial" e "deportação ou transferência ilegais, ou a privação ilegal de liberdade". Prima facie, senhor, eles poderiam acusá-lo tanto sob o Artigo 7 quanto sob o 8.

- Mas eu não ordenei que ninguém fosse torturado! - disse Lang. Ele soava incrédulo, horrorizado. - E não privei ninguém de um julgamento justo, nem aprisionei ninguém ilegalmente. Talvez, talvez, eles pudessem fazer esse tipo de acusação contra os Estados Unidos, mas não contra a Grã-Bretanha.

- Isso é verdade, senhor - concordou Encarnación. - No entinto, o Artigo 25, que se refere à responsabilidade criminosa individual, afirma que - e novamente seus olhos negros e frios se voltaram para a tela do computador - "será considerado criminalmente responsável e poderá ser punido pela prática de um crime da competência do Tribunal quem, com o propósito de facilitar a prática desse crime, for cúmplice, encobridor ou colaborar de algum modo na prática ou na tentativa de prática do crime, nomeadamente pelo fornecimento dos meios para a sua prática".

- Isso é bem abrangente - falou Lang, baixinho.

- É um absurdo, isso sim - atalhou Kroll. - Significa que se a CIA manda um suspeito para algum lugar para ser interrogado em um avião particular, os donos do avião são tecnicamente culpados de facilitar um crime contra a humanidade.

- Mas, legalmente... - começou a falar Lang.

- Não é uma questão legal, Adam - disse Kroll, com um quê de irritação -, é política.

- Não, Sid - disse Ruth. Ela estava muito concentrada, franzindo as sobrancelhas para o carpete e balançando enfaticamente a cabeça. - É legal também. As duas coisas são inseparáveis. O trecho que a jovem acabou de ler esclarece perfeitamente por que os juizes terão de permitir uma investigação, porque Richard Rycart apresentou provas documentais que sugerem que Adam fez, de fato, todas essas coisas: colaborou, foi cúmplice e facilitou. - Ela ergueu os olhos. - É uma situação de risco penal; não é assim que vocês chamam? E que leva a uma situação inescapável de risco político. Porque, no fim das contas, terá apenas uma questão de opinião pública, e nós já somos bastante impopulares no nosso país sem isso.

- Bem, se serve de algum consolo, Adam certamente não está em risco enquanto continuar aqui, entre amigos.

O vidro blindado tremeu um pouco. O helicóptero estava vindo novamente para olhar mais de perto. A luz do seu holofote invadiu a ala. Porém, na tela da TV, tudo o que aparecia na janela panorâmica era um reflexo do mar.

- Espere um minuto - disse Lang, levando a mão à cabeça e agarrando os cabelos, como se percebesse a situação pela primeira vez.

- Você está dizendo que eu não posso sair dos Estados Unidos?

- Josh - disse Kroll, assentindo para seu outro assistente.

- Senhor - falou Josh com gravidade -, se me permite, gostaria de ler o começo do Artigo 58, referente aos mandados de detenção.

- Ele fixou seu olhar solene em Adam Lang. - "A todo o momento após a abertura do inquérito, o Juízo de Instrução poderá, a pedido do procurador, emitir um mandado de detenção contra uma pessoa se, após examinar o pedido e as provas ou outras informações submetidas pelo procurador, considerar que existem motivos suficientes para crer que essa pessoa cometeu um crime da competência do Tribunal; e a detenção dessa pessoa se mostra necessária para garantir o seu comparecimento em tribunal."

- Meu Deus - disse Lang. - O que são "motivos suficientes"?

- Não vai acontecer - disse Kroll.

- Você fica falando isso - disse Ruth, irritada -, mas poderia acontecer, sim.

- Não vai, mas poderia - disse Kroll, espalmando as mãos.

- Essas duas afirmações são incompatíveis. - Ele se permitiu um de seus sorrisos íntimos e voltou-se para Lang. - Mesmo assim, como seu advogado, até que isso tudo esteja resolvido, sugiro enfaticamente que o senhor não viaje para nenhum pala que reconheça a competência do Tribunal Penal Internacional. Bastaria apenas que dois desses juizes decidissem impressionar a turma dos direitos humanos e expedissem um mandado, e o senhor poderia ser preso.

- Mas praticamente todos os países do mundo reconhecem o TPI - disse Lang.

- Os Estados Unidos não.

- E quem mais?

- O Iraque - disse Josh. - China, Coréia do Norte, Indonésia. Esperamos que Josh continuasse; ele parou por ali.

- Só isso? - disse Lang. - Todos os outros o reconhecem?

- Não, senhor. Israel, não. E alguns dos piores regimes da África. Amélia falou:

- Acho que tem alguma coisa acontecendo. Ela apontou o controle para a televisão.

E então assistimos à procuradora-geral espanhola - toda cabeleira preta e batom vermelho berrante, tão glamourosa quanto uma estrela de cinema sob o espocar prateado dos flashes das câmeras - anunciar que havia recebido permissão naquela manhã para investigar o ex-primeiro-ministro, Adam Peter Benet Lang, sob os Artigos 7 e 8 do Estatuto de Roma, de 1998, do Tribunal Penal Internacional.

Ou melhor, os demais assistiram à procuradora, e eu observava Lang. "AL - concentração intensa, escrevi no meu bloquinho, fingindo estar anotando as palavras da procuradora-geral, enquanto, na verdade, analisava meu cliente em busca de algum insight que pudesse usar posteriormente. Estende a mão para R: ela não corresponde. Olha para ela. Solitário, confuso. Retrai a mão. Olha de volta para a tela. Balança a cabeça. PG diz: "Terá sido este um incidente isolado ou pane de um padrão sistemático de comportamento criminoso?"- AL se encolhe. Furioso. PG: "A justiça deve ser a mesma para ricos e pobres, poderosos e fracos." Ele grita para a tela: 'E quanto aos terroristas?'"

Jamais havia visto um dos meus autores vivenciar uma crise verdadeira antes e, examinando Lang, aos poucos comecei a perceber que minha pergunta genérica favorita - "Qual foi a sensação?" - era, na verdade, uma ferramenta grosseira e quase inútil de tão vaga. No decorrer daqueles poucos minutos, à medida que os procedimentos legais eram explicados, uma rápida sucessão de emoções atravessou o rosto duro de Lang, tão fugazes quanto sombras de nuvens passando por uma colina na primavera - espanto, fúria, mágoa, desprezo, medo, vergonha... Como desembaraçá-las? E se mesmo naquele momento ele não sabia exatamente como estava se sentindo, como esperar que soubesse dali a dez anos? Até sua reação naquele instante eu teria de produzir para ele. Teria de simplificá-la para torná-la plausível. Teria de recorrer à minha própria imaginação. De certa forma, teria de mentir.

A procuradora-geral terminou sua declaração, respondeu brevemente a duas perguntas gritadas da platéia, depois deixou o pódio. Na metade do salão, parou para posar para as câmeras novamente, e houve outra nevasca fosforosa quando, antes de ir embora, ela se virou para ofertar ao mundo seu magnífico perfil aquilino. A tela voltou para o plano aéreo da casa de Rhinehart, no seu cenário de floresta, lago e oceano, enquanto o mundo esperava Lang aparecer.

Amélia diminui o volume. No andar de baixo, os telefones começaram a tocar.

- Bem - disse Kroll, quebrando o silêncio -, não teve nada ali que não estivéssemos esperando.

- É - falou Ruth. - Parabéns. Kroll fingiu não ter ouvido.

- Deveríamos levá-lo para Washington, Adam, imediatamente. Meu avião está esperando no aeroporto.

Lang ainda olhava para a tela.

- Quando Marty disse que eu poderia usar a casa de veraneio dele, não percebi como esse lugar é isolado. Nunca deveríamos ter vindo para cá. Agora, parece que estamos nos escondendo.

- É exatamente o que eu acho. O senhor não pode ficar simplesmente entocado aqui, pelo menos não agora. Dei alguns telefonemas. Posso marcar um encontro para a hora do almoço com o líder da maioria na Câmara e uma sessão de fotos com o secretário de Estado à tarde.

Lang finalmente afastou os olhos da televisão.

- Não sei se quero fazer tudo isso. Pode parecer que estou ficando desesperado.

- Não, não vai parecer. Já falei com eles. Estão torcendo pelo senhor: querem fazer tudo o que estiver ao seu alcance. Os dois dirão que os encontros já estavam marcados há semanas, para conversar sobre a Fundação Adam Lang.

- Mas isso soa falso, você não acha? - Lang franziu o cenho. - Qual seria o assunto da conversa?

- Quem se importa? Aids. Pobreza. Mudanças climáticas. Paz no Oriente Médio. África. Tanto faz. A mensagem é a seguinte: estamos fazendo negócios como sempre, tenho minha agenda, são coisas importantes, e não vou deixá-las de lado por causa desses palhaços que fingem ser juizes em Haia.

- E quanto à segurança? - perguntou Amélia.

- O Serviço Secreto vai cuidar dela. Vamos tapar os buracos na agenda no caminho. A cidade inteira vai ficar do seu lado. Estou esperando uma resposta do vice-presidente, mas esta vai ser uma reunião particular.

- E a imprensa? - perguntou Lang. - Precisamos responder logo.

- No caminho para o aeroporto, pararemos para dizer algumas palavras. Posso fazer uma declaração, se o senhor quiser. Tudo o que precisa fazer é ficar do meu lado.

- Não - disse Lang com firmeza. - Não. De forma alguma. Isso, sim, vai me fazer parecer culpado. Tenho de falar com eles eu mesmo. Ruth, o que você acha de irmos para Washington?

- Acho uma péssima idéia. Sid, me desculpe, sei que você está trabalhando duro por nós, mas precisamos considerar o impacto disso na Inglaterra. Se Adam for para Washington, ele vai ficar parecendo o bode expiatório da América, correndo para chorar no colo do papai.

- Então o que você faria?

-Voltaria para Londres. - Kroll começou a se opor, mas Ruth passou por cima dele. - Os ingleses podem não gostar muito dele no momento, mas se tem algo que eles odeiam mais do que Adam são estrangeiros intrometidos lhes dizendo o que fazer. O governo será obrigado a apoiá-lo.

- O governo britânico vai cooperar plenamente com a investigação - disse Amélia.

- É mesmo? - disse Ruth, com uma voz tão doce quanto cianureto. - E o que faz você pensar isso?

- Não estou pensando, Ruth, estou lendo. Está na televisão. Olhe.

Nós olhamos. A manchete corria na parte inferior da tela: ULTIMAS NOTÍCIAS: GOVERNO BRITÂNICO "VAI COOPERAR PLENAMENTE" COM INVESTIGAÇÃO DE CRIMES DE GUERRA.

- Como ousam fazer isso? - exclamou Ruth. - Depois de tudo que você fez por eles.

- Com todo o respeito, senhora - disse Josh -, como signatário do TPI, o governo britânico não tem escolha. Eles são obrigados pela lei internacional a "cooperar plenamente". Essas são as exatas palavras do Artigo 86.

- E se eventualmente o TPI decidir me prender? - perguntou Lang calmamente. - O governo britânico também vai "cooperar plenamente" com isso?

Josh já havia encontrado a parte referente àquilo no seu laptop.

- Isto está especificado no Artigo 59, senhor. "O Estado Parte que receber um pedido de prisão preventiva ou de detenção e entrega adotará imediatamente as medidas necessárias para proceder à detenção."

- Bem, acho que isso resolve a questão - disse Lang. - Vamos para Washington.

Ruth cruzou os braços. O gesto me fez lembrar de Kate: um sinal de tempestade a caminho.

- Ainda acho que isto vai pegar mal - disse ela.

- Não tanto quanto sair do Heathrow algemado para a prisão.

- Pelo menos mostraria que você tem alguma coragem.

- Então, por que você não pega o avião de volta sem mim? - estourou Lang. Como na sua explosão da tarde anterior, o mais impressionante não foi nem tanto a demonstração de impaciência, mas a maneira repentina como ela surgiu. - Se o governo britânico quer me entregar para essa corte de araque, então eles que se fodam! Eu vou para onde as pessoas me queiram. Amélia, diga aos rapazes que vamos partir em cinco minutos. Mande uma das meninas fazer uma mala para mim, só para uma noite. E é melhor você fazer as malas, também.

- Oh, mas por que vocês não dividem uma mala só? - disse Ruth. - Seria muito mais conveniente.

Depois daquilo, o próprio ar pareceu congelar. Até o sorrisinho de Kroll congelou nas pontas. Amélia hesitou, então alisou a blusa com nervosismo, pegou seu caderno e levantou-se com um chiado de seda. Enquanto atravessava a sala em direção às escadas, não desgrudou o olhar do caminho à sua frente. Seu pescoço estava corado em um tom bonito de rosa, seus lábios, apertados. Ruth esperou que ela saísse, então desenroscou lentamente os pés de debaixo de si e calçou seus sapatos lisos, de sola de madeira, cuidadosamente. Ela também saiu sem dizer palavra. Trinta segundos depois, uma porta bateu no andar de baixo.

Lang encolheu-se e suspirou. Ele se levantou, pegou o paletó que estava nas costas da cadeira e vestiu-o, balançando os ombros. Foi o sinal para todos nos mexermos. Os assistentes fecharam seus laptops. Kroll levantou-se e espreguiçou, esticando bastante os dedos: ele me lembrou um gato, arqueando as costas e mostrando brevemente as garras. Guardei meu bloco de anotações.

- Até amanhã - disse Lang, estendendo a mão para mim. - Fique à vontade. Sinto muito por ter de abandoná-lo. Pelo menos toda essa cobertura deve aumentar as vendas.

- É verdade - falei. Procurei algo para dizer que pudesse deixar o clima menos pesado. - Talvez o departamento de publicidade de Rhinehart tenha armado tudo isso.

- Bem, então peça para eles pararem, sim? - Ele sorriu, mas seus olhos pareciam feridos e inchados.

- O que o senhor vai dizer a imprensa? - perguntou Kroll, colocando um braço em volta dos ombros de Lang.

- Não sei. Vamos conversar sobre isso no carro.

Enquanto Lang se virava para ir embora, Kroll deu uma piscadela para mim.

- Bom trabalho - disse ele.

 

E se eles mentirem para você? "Mentira" é provavelmente uma palavra forte demais. A maioria de nós tende a enfeitar as próprias memórias que elas nos mostrem como gostaríamos que o mundo nos visse.

Ghostwriting

 

Eu poderia ter descido para acompanhá-los até a saída. Em vez disso, fiquei assistindo à partida pela televisão. Sempre digo que não há nada melhor do que se sentar diante da tela da TV se você quiser vivenciar algo de forma autêntica, em primeira mão. Por exemplo, é curioso como planos aéreos de helicópteros conferem até às atividades mais inocentes um ar perigoso de criminalidade. Quando Jeff, o chofer, manobrou o Jaguar até a entrada da casa e deixou o motor ligado, o mundo inteiro teve a impressão de que ele estava organizando a fuga de um bando de mafiosos pouco antes da chegada da polícia. No ar frio da Nova Inglaterra, o carrão parecia flutuar em um mar de fumaça de cano de descarga.

Tive a mesma sensação de vertigem que havia experimentado no dia anterior, quando a declaração de Lang começou a voltar para mim do nada. Na televisão, vi um dos agentes das Forças Especiais abrir a porta traseira do lado do carona e ficar parado, segurando-a aberta, enquanto, no fim do corredor, ouvia Lang e os demais se preparando para partir.

- Tudo certo, pessoal? - flutuou a voz de Kroll escadaria acima. - Todo mundo pronto? Certo. Lembrem-se, caras alegres. Vamos.

A porta da frente se abriu e, logo em seguida, vislumbrei na tela o topo da cabeça do ex-primeiro-ministro, à medida que ele, apressado, dava os poucos passos até o carro. Então ele desapareceu, mergulhando no Jaguar, enquanto seu advogado vinha depressa atrás dele, dando a volta até o outro lado do carro. Na parte inferior da tela, aparecia O texto: ADAM LANG DEIXA CASA EM MARTHA's VINEYARD. Essa garotada da transmissão via satélite pode saber de tudo, pensei, mas nunca ouviu falar em tautologia.

Atrás deles, a equipe desaguou da casa em uma fila única e apressada e seguiu em direção à mini-van. Amélia a liderava, segurando o cabelo louro imaculado para protegê-lo da corrente de ar que as hélices mandavam para baixo; depois dela, vinham as secretárias, seguidas pelos assistentes de Kroll e, finalmente, por dois guarda-costas.

Os vultos longos e escuros dos carros, com os faróis brilhando, saíram do complexo e pegaram o caminho cinzento de carvalhos americanos em direção a auto-estrada de West Tisbury. O helicóptero os acompanhou, soprando em espiral algumas poucas folhas de inverno e achatando a grama esparsa. Pouco a pouco, pela primeira vez naquela manhã, à medida que o barulho das hélices se afastava, algo parecido com paz retornou a casa. Era como se o olho de uma grande tempestade elétrica finalmente tivesse passado. Perguntei-me onde Ruth estaria, se ela também estaria assistindo à cobertura. Levantei-me, parei no topo da escada e fiquei ouvindo por um instante, mas o silêncio era total e, quando retornei à televisão, a cobertura tinha sido transferida do ar para o solo, e a limusine de Lang saía da floresta.

Um número muito maior de policiais tinha chegado ao fim da pista, cortesia do estado de Massachusetts, e um cordão deles mantinha os manifestantes seguramente encurralados do outro lado da auto-estrada. Por um instante, o Jaguar pareceu estar acelerando em direção ao aeroporto, mas então as luzes de freio brilharam e ele parou. A minivan deu uma guinada e estacionou atrás dele. E, de repente, lá estava Lang, sem agasalho, aparentemente tão indiferente ao frio quanto estava à multidão que cantava, caminhado em direção às câmeras, seguido por dois agentes das Forças Especiais. Procurei pelo controle remoto na poltrona em que Amélia se sentara - ainda dava para sentir seu perfume no couro -, apontei-o para a tela e aumentei o volume.

- Peço desculpas por tê-los deixado tanto tempo esperando no frio - começou Lang. - Queria apenas dizer algumas palavras em resposta às notícias de Haia.

Ele fez uma pausa e olhou para o chão. Sempre fazia aquilo. Seria algo genuíno ou meramente artificial, para dar a impressão de esponeidade? Em se tratando dele, era impossível saber. Ouvia-se com clareza o coro de "Lang! Lang! Lang! Mentiroso! Mentiroso! Mentiroso ao fundo.

- Vivemos em uma época estranha - disse ele, hesitando novamente -, uma época estranha - e então finalmente olhou para ia -, em que aqueles que sempre defenderam a liberdade, a paz e a justiça, são acusados de serem criminosos, enquanto aqueles que incitam abertamente o ódio, glorificam a matança e buscam a destruição da democracia são tratados pela justiça como se eles fossem as vítimas.

- Mentiroso! Mentiroso! Mentiroso!

- Como disse na minha declaração de ontem, sempre fui um grande defensor do Tribunal Penal Internacional. Acredito no trabalho dele. Acredito na integridade de seus juizes. E é por isso que não temo esta investigação. Porque sei, no meu íntimo, que não fiz nada de errado.

Ele lançou um olhar para os manifestantes. Pela primeira vez, pareceu notar os cartazes que as pessoas balançavam: seu rosto, as barras de prisão, o macacão laranja, as mãos cheias de sangue. A linha de sua boca endureceu.

- Recuso-me a ser intimidado - disse ele, empinando o queixo. - Recuso-me a ser um bode expiatório. Recuso-me a ser afastado do meu trabalho no combate a Aids, à pobreza e ao aquecimento global. Por este motivo, pretendo viajar agora para Washington para dar prosseguimento à minha agenda conforme planejado. Para todos os que tiverem me assistindo no Reino Unido e em todo o mundo, quero deixar uma coisa bem clara. Enquanto tiver forças, lutarei contra o terrorismo onde quer que ele precise ser combatido, seja no campo de batalha ou, se necessário, nos tribunais. Obrigado.

Ignorando as perguntas que lhe eram gritadas - "Quando voltará para a Inglaterra, Senhor Lang?" O senhor apóia a tortura, Senhor Lang?" -, ele deu as costas e saiu andando, os músculos de seus ombros largos flexionando-se debaixo do terno sob medida e seu trio de guarda-costas formando um leque atrás de si. Uma semana atrás, eu teria ficado impressionado, como havia ficado com seu discurso em Nova York depois do ataque suicida em Londres, porém, naquele instante, fiquei surpreso diante da minha impassibilidade. Era como assistir a um grande ator na última fase da sua carreira, emocionalmente esgotado, sem nada mais a recorrer além da técnica.

Esperei até ele voltar para a segurança do seu casulo à prova de gás e bombas e então desliguei a televisão.

Com Lang e os demais fora dali, a casa parecia não só vazia, como desolada, destituída de propósito. Desci as escadas e passei pelos mostruários iluminados de erotismo tribal. A poltrona diante da porta, em que um dos guarda-costas sempre se sentava, estava vazia. Refiz meus passos e desci o corredor até o escritório das secretárias. A sala pequena, geralmente muito bem arrumada, parecia ter sido abandonada em um momento de pânico, como a sala de criptografia de uma embaixada estrangeira em uma cidade rendida. Havia uma profusão de papéis, discos rígidos e edições antigas do Hansarde do Congressional Record espalhados pela mesa. Lembrei-me de que não tinha uma cópia do manuscrito de Lang para trabalhar, mas quando tentei abrir O fichário, ele estava trancado. Ao seu lado, um cesto cheio de lixo do fragmentador de papel transbordava.

Olhei para dentro da cozinha. Uma fileira de facas de açougueiro estava disposta sobre uma tábua de corte; havia sangue fresco em alas lâminas.

- Olá - falei, hesitante, passando a cabeça pela porta da despensa e olhando em volta, mas a governanta não estava lá.

Não fazia idéia de qual era o meu quarto, de modo que minha única opção era descer o corredor e experimentar uma porta depois da outra. A primeira estava trancada. A segunda estava aberta, o quarto atrás dela exalando um cheiro opulento e doce de loção pós-barba forte; um training estava jogado sobre a cama: obviamente aquele era o quarto usado pelas Forças Especiais durante o turno da noite. A terceira porta estava trancada e, quando eu estava prestes a experimentar a quarta, ouvi o som de uma mulher chorando. Pude perceber que era Ruth: até mesmo seus soluços soavam combativos. Existem apenas seis quartos na casa principal, dissera Amélia. Adam e Ruth têm dois separados. Que situação, pensei, enquanto me afastava: o ex-primeiro-ministro e sua mulher dormindo em quartos separados, com a amante dele no mesmo corredor. Era uma coisa quase francesa.

Delicadamente, experimentei a maçaneta do quarto seguinte. Aquele não estava trancado, e o cheiro de roupa usada e sabonete de lavanda, mais até do que a visão da minha velha mala, deixou imediatamente claro que aquele era o antigo aposento de McAra. Entrei e fechei a porta com muito cuidado. O grande armário espelhado cobria toda a parede que separava o meu quarto do de Ruth, e quando abri uma pequena fresta da porta de vidro, consegui ouvir, ao longe, seu choro abafado. A porta rangeu sobre as corrediças, e acho que ela ouviu, pois os soluços pararam de repente, e eu a imaginei assustada, levantando a cabeça do travesseiro úmido e olhando para a parede. Afastei-me. Na cama, notei que alguém havia colocado uma caixa de papel, A4, tão cheia que a tampa não encaixava direito. Um Post-it amarelo dizia: "Boa sorte! Amélia." Sentei-me na colcha e levantei a tampa. "MEMÓRIAS", proclamava a página título, "de Adam Lang". Então ela não havia se esquecido de mim, afinal, apesar das circunstâncias absolutamente embaraçosas da sua partida. Você poderia dizer o que quisesse da Senhora Bly, mas a mulher era uma profissional.

Percebi que me encontrava em um ponto decisivo. Ou eu continuava às margens daquele projeto claudicante, esperando pateticamente que em algum momento aparecesse alguém para me ajudar, ou - e senti minha coluna se empertigar ao considerar esta alternativa - ou eu assumia as rédeas dele, tentava transformar aquelas 621 páginas inomináveis em algo publicável, pegava meus 250 mil e partia para um mês numa praia em algum lugar até ter esquecido completamente os Lang.

Pensando nestes termos, nem era uma questão de escolha. Preparei-me para ignorar tanto os vestígios de McAra remanescentes naquele quarto quanto a presença mais corpórea de Ruth no quarto vizinho. Retirei o manuscrito da caixa e coloquei-o na mesa que ficava perto da janela, abri minha bolsa e retirei o laptop e as transcrições das entrevistas do dia anterior. Não havia muito espaço para trabalhar, mas isto não me importava. De todas as atividades humanas, escrever é a mais fácil de se encontrar desculpas para não começar: quando a mesa não é muito grande, ela é muito pequena; quando o lugar não é muito barulhento, é muito silencioso; quando não está muito calor, está muito frio; quando não está muito cedo, está muito tarde. Aprendi com o tempo a ignorar todos esses motivos e simplesmente começar. Liguei meu laptop, acendi a luminária e contemplei a tela em branco e o cursor pulsante.

Um livro não escrito é um delicioso universo de possibilidades infinitas. No entanto, basta você colocar uma palavra no papel para ele se tornar imediatamente algo concreto. Se colocar uma frase, já é meio caminho andado para ele ficar igual a qualquer porcaria de livro já escrito. Porém, nunca devemos permitir que os melhores expulsem os bons da pista. Na falta de genialidade, há sempre o talento. Pode-se ao menos tentar escrever algo que prenda a atenção do leitor - que o estimule, depois de ler o primeiro parágrafo, a dar uma olhada no segundo, e depois no terceiro. Peguei o manuscrito de McAra para me recordar como não se deve começar uma autobiografia de 10 milhões de dólares:

Capítulo Um - Juventude

Minha família, os Lang, é originária da Escócia e se orgulha disso. Nosso nome deriva de "long", que significava alto em inglês arcaico e meus antepassados vieram do norte da fronteira. Foi no século dezesseis que o primeiro dos Lang...

Deus que me livre! Risquei aquilo com minha caneta e passei uma linha azul grossa em ziguezague por todos os parágrafos subsequentes sobre a história dos antigos Lang. Se você quer uma árvore genealógica, vá até uma loja de jardinagem - é o que digo aos meus clientes. Só você se interessa por isso. A instrução de Maddox era começar o livro, as alegações de crimes de guerra, e por mim tudo bem, embora Júlio só pudesse servir como uma espécie de prólogo alongado. Em momento, as memórias propriamente ditas teriam de comer, e para tanto, eu queria encontrar um tom estimulante, original, algo que fizesse Lang parecer um ser humano normal. O fato de ele não ser um ser humano normal era completamente irrelevante.

Do quarto de Ruth Lang, veio o som de passos, e então da porta lendo aberta e fechada. A princípio, pensei que talvez ela viesse investigar quem estava se movimentando no quarto ao lado, mas, em vez disso, eu a ouvi se afastando. Larguei o manuscrito de McAra e voltei minha atenção para as transcrições das entrevistas. Sabia o que queria. Estava lá na nossa primeira sessão:

Lembro que era uma tarde chuvosa de domingo. Eu ainda estava na cama. E eis que alguém começou a bater na porta...

Se eu desse uma ajeitada na gramática, o relato de como Ruth tinha pedido votos a Lang para as eleições locais, atraindo-o dessa forma para a política, daria um começo perfeito. Ainda assim, McAra, com sua habitual surdez para qualquer coisa de interesse humano, não havia nem mencionado àquilo. Pousei meus dedos sobre as teclas do laptop e comecei a digitar:

Capítulo Um - Juventude

Entrei para a política por amor. Não por um partido ou ideologia em especial, mas por uma mulher que veio bater à minha porta em uma tarde chuvosa de domingo...

Você pode alegar que era um começo piegas, mas não se esqueça de que (a) pieguice vende como água, (b) eu só tinha duas semanas para reelaborar o manuscrito inteiro e (c) aquilo era muito melhor do que começar com as origens do nome Lang. Logo estava espancando o teclado com toda a rapidez que meu estilo "cata-milho" permitia:

Ela estava ensopada pela chuva, mas nem parecia notar. Em vez disso, iniciou um discurso apaixonado sobre as eleições locais. Até aquele momento, envergonho-me de dizer, eu nem sequer sabia que elas estavam acontecendo, mas tive o bom senso de fingir que sabia...

Ergui os olhos. Pela janela, pude ver Ruth marchando com determinação através das dunas, contra o vento, em outra de suas caminhadas meditativas e solitárias, tendo apenas o guarda-costas que a seguia como companhia. Fiquei observando-a até ela sumir de vista, então voltei ao meu trabalho.

Continuei por mais algum tempo, até cerca de uma da tarde, então ouvi alguém bater muito de leve, com a ponta dos dedos, na madeira. Pulei de susto.

- Senhor?- veio uma voz tímida de mulher. - O senhor quer almoçar?

Abri a porta e me deparei com Deb, a governanta vietnamita, com seu uniforme de seda preto. Tinha uns 50 anos e era do tamanho de um passarinho. Tive a impressão de que, se espirrasse, poderia fazê-la voar de uma ponta à outra da casa.

- Seria ótimo. Obrigado.

- Aqui ou na cozinha?

- Na cozinha está bem.

Depois que ela foi embora, arrastando seus chinelos pelo chão, voltei-me para olhar para o meu quarto. Sabia que não podia mais adiar. Faça como quando precisa escrever, disse a mim mesmo: meta a cara. Abri o zíper da minha mala e coloquei-a sobre a cama. Então, respirando fundo, arrastei as portas do armário e comecei a retirar as roupas dos cabides, empilhando-as sobre meu braço - camisas baratas, paletós comprados prontos, calças de loja de departamento e o tipo de gravatas que você encontra em aeroportos: nada feito sob medida no seu armário, não é, Mike? Ele era um homem grande, percebi, quando senti todos aqueles colarinhos tamanho gigante e cintos enormes. E, é claro, foi exatamente como eu temia: a sensação do tecido estranho - e até mesmo o barulho que os cabides de metal faziam contra a haste cromada - foi suficiente para penetrar a barreira de um quarto de século de defesas cuidadosamente erguidas e prontamente me atirar de volta ao quarto dos meus pais, o qual tive de criar coragem para limpar sozinho três meses depois do funeral de minha mãe.

São os objetos pessoais dos mortos que sempre mexem comigo. Tem alguma coisa mais triste do que os entulhos que eles deixam para trás? Quem disse que o amor é o nosso único legado? O legado de McAra era um monte de coisas. Amontoei tudo na poltrona, depois alcancei a prateleira sobre o cabideiro para puxar sua mala para baixo. Eu havia imaginado que estivesse vazia, mas quando agarrei a alça, algo escorregou dentro dela. Ah, pensei. Finalmente. O documento secreto.

A mala era enorme e feia, grande demais para ser manejada com o modelado, e bateu no chão com um estrondo. Aquilo pareceu reverberar por toda a casa silenciosa. Aguardei um instante, então deitei cuidadosamente a mala no chão, ajoelhei-me diante dela e pressionei as fivelas. Elas saltaram para cima com um estalo alto e simultâneo.

Era o tipo de mala que já não era produzida havia mais de uma década, exceto, talvez, nas regiões menos modernas da Albânia. O revestimento interno era feito de um plástico brilhoso com uma estampa horrível, do qual pendiam elásticos franjados. O conteúdo consistia em um envelope acolchoado endereçado ao limo. Senhor McAra, aos cuidados de uma caixa postal no porto de Vineyard. Uma etiqueta no verso mostrava que ele tinha vindo do Arquivo Adam Lang, em Cambridge, Inglaterra. Eu o abri e retirei um punhado de fotografias e fotocópias, junto com um bilhete com os cumprimentos da Doutora Julia Crawford-Jones, PhD, Diretora.

Reconheci imediatamente uma das fotografias: Lang em sua fantasia de frango, no grupo de teatro amador de Cambridge no começo dos anos 1970. Havia mais uma dúzia de fotos da peça mostrando o elenco inteiro; uma série de fotografias de Lang remando, usando um chapéu de palha e um blazer listrado; e três ou quatro dele em um piquenique na beira de um rio, aparentemente tiradas no mesmo dia que aquelas em que ele remava. As fotocópias eram de vários programas do grupo de teatro e resenhas teatrais de Cambridge, além de notícias do jornal local sobre as eleições de maio de 1997 do Conselho da Grande Londres e do cartão original de membro do partido de Lang. Só me toquei que havia algo errado depois que vi a data no cartão. Ele era de 1975.

Voltei a examinar o pacote com mais atenção depois daquilo, a começar pelas matérias sobre a eleição. À primeira vista, achei que elas fossem do Evening Standard, de Londres, mas então notei que eram do jornal interno de um partido político - o de Lang - e que ele, na verdade, aparecia como cabo eleitoral em uma foto, em meio a um grupo de pessoas. Era difícil discerni-lo na xérox mal tirada. Seu cabelo estava longo. Suas roupas, surradas. Mas era ele, sem dúvida, em uma equipe, que batia de porta em porta em um conjunto habitacional. "Cabo eleitoral: A, Lang."

Fiquei mais irritado do que qualquer outra coisa. Certamente achei estranho. Todos tendemos a engrandecer nossa própria reide. Começamos com uma fantasia particular sobre nossa vida e um dia, por diversão, a transformamos em uma história. Nada de mal nisso. Com o passar dos anos, a história é repetida com tanta regularidade que passa a ser aceita como fato. Logo, logo contradizer este fato passa a ser embaraçoso. Com o tempo, provavelmente chegara a acreditar que ele sempre foi verdade. E por meio destes pequenos acréscimos ao mito, como um recife de corais, o registro histórico é formado. Compreendia como seria conveniente a Lang fingir que só havia entrado para a política porque se apaixonara por uma garota. Era-lhe lisonjeiro, pois fazia com que parecesse menos ambicioso, e a tia também, pois fazia com que parecesse mais influente do que provavelmente era. O público gostava. Todos ficavam felizes. Mas aquilo gerava um problema: o que eu devia fazer?

Não era um dilema raro na profissão de ghost-writer, e a etiqueta nestes casos é simples: você informa o autor da discrepância e deixa a decisão de como solucioná-la nas mãos dele. O papel do colaborador é não insistir na verdade absoluta: caso contrário, o peso morto da realidade faria nossa parte da indústria editorial desmoronar. Da mesma forma que um esteticista não diz às suas clientes que elas têm rosto de sapo, um ghost-writer não esfrega na cara do autor que metade das suas queridas lembranças são falsas. Não imponha, sugira: este é o nosso lema. Obviamente, McAra não respeitara essa regra sagrada. Deve ter desconfiado do que estavam lhe contando, solicitou um pacote com material de pesquisa dos arquivos e então retirou a história mais caprichada do ex-primeiro-ministro das suas memórias. Que amador! Posso imaginar quão bem aquilo havia sido recebido. Certamente ajudava a explicar por que as relações haviam se tornado tão tensas.

Voltei minha atenção para o material de Cambridge. Havia um tipo estranho de inocência naquela jeunesse dorée esmaecida, encalhada naquele vale perdido, porém alegre, em algum lugar entre os picos culturais dos hippies e dos punks. Espiritualmente, eles pareciam muito mais próximos dos anos 1960 que dos 1970. As garotas usavam vestidos longos de estampas floridas, com laços e decotes cavados, e chapéus de palha grandes para se protegerem do sol. Os cabelos dos homens eram quase tão longos quanto os das mulheres. Na única foto colorida, Lang segurava uma garrafa de champanhe em uma das mãos e o que parecia bastante um baseado na outra; uma garota parecia estar lhe dando morangos para comer, enquanto ao fundo um homem sem camisa erguia o polegar.

A maior da série de fotografias mostrava um grupo de oito jovens, sob a luz de um refletor, seus braços abertos, como se tivessem acabado de terminar um sensacional número cantado de dança em um cabaré. Lang estava no canto direito, usando seu blazer listrado, uma gravata-borboleta e um chapéu de palha. Havia duas garotas de collant, meia arrastão e salto alto: uma de cabelo louro curto, a outra de cabelo escuro encaracolado, provavelmente ruiva (era impossível saber pela foto preto-e-branco) - as duas bonitas. Reconheci os dois homens afastados de Lang: um havia se tornado um comediante de sucesso, o outro era um ator. Um outro homem parecia mais velho que os demais: um pesquisador da pós-graduação, talvez. Todos usavam luvas.

Havia uma etiqueta datilografada colada no verso, listando os nomes dos atores e seus respectivos colleges: G. W. Syme (Caius), W. K. Innes (Pembroke), A. Parke (Newnham). P. Emmett (St John's), A. D. Martin (King's), E. D. Vaux (Chrisfs), H. C. Martineau (Girton), A. P. Lang (Jesus).

Havia um carimbo de copyright - Cambridge Evening News - no canto inferior esquerdo e, escrito na diagonal ao lado dele com uma caneta esferográfica, um número de telefone, com o prefixo internacional da Inglaterra. Sem dúvida McAra, sendo o infatigável farejador de fatos que era, tinha ido atrás de um dos membros do elenco, e fiquei me perguntado quem teria sido e se ele ou ela se lembrava dos acontecimentos representados nas fotografias. Por puro capricho, peguei meu celular e disquei o número.

Em vez do habitual tom de chamada em dois toques inglês, ouvi o toque único e prolongado americano. Deixei tocar bastante. Quando estava prestes a desistir, um homem atendeu, cauteloso.

- Richard Rycart.

A voz, com seu sotaque ligeiramente colonial - Richard Roicart, era inconfundivelmente a do ex-secretário de Relações Interionais. Ele parecia desconfiado.

- Quem está falando? - perguntou.

Desliguei imediatamente. Na verdade, fiquei tão alarmado que cheguei a atirar o telefone na cama. Ele ficou quieto ali por cerca de trinta segundos e então começou a tocar. Corri até ele e o agarrei - o número da chamada estava aparecendo como "confidencial" -, desligando-o rapidamente. Fiquei meio minuto sem me mexer, de tão abalado. Disse a mim mesmo para não tirar conclusões apressadas. Não ter certeza de que McAra tinha anotado o número ou mesmo ligado para ele. Conferi o envelope para ver quando ele havia sido enviado. Tinha deixado o Reino Unido no dia 3 de janeiro - nove dias antes de McAra morrer.

De repente, pareceu-me de vital importância remover qualquer vestígio que restasse do meu antecessor daquele quarto. Às pressas, tirei suas últimas roupas do armário, virando as gavetas de meias e cuecas dentro da sua mala (lembro-me de que ele usava meias grossas que iam até os joelhos e cuecas brancas largas: isso é que é ser conservador). Não consegui encontrar nenhum papel pessoal - nada de diário, agenda, cartas ou mesmo livros - e supus que eles deviam ter lido levados pela polícia logo depois de sua morte. Do banheiro, retirei seu aparelho de barbear descartável azul, a escova de dente, o pente e todo o resto, e então pronto: todos os objetos pessoais de Michael McAra, ex-assistente do Excelentíssimo Adam Lang, estavam enfiados em uma mala e prontos para serem jogados no lixo. Arrastei-o até o corredor e depois até o solário. Por mim, poderia flcar ali até o verão: desde que eu não tivesse de vê-la novamente. Precisei de um instante para recuperar o fôlego,

E, ainda assim, enquanto seguia de volta para o seu - o meu - o nosso - quarto, eu podia sentir sua presença, seguindo-me a passos largos, desajeitado,

- Caia fora, McAra - murmurei para mim mesmo. - Caia fora e me deixe em paz para terminar este livro e sumir daqui.

Enfiei as fotografias e as fotocópias de volta no envelope original e olhei ao redor em busca de algum lugar para escondê-lo, então parei e me perguntei por que deveria me preocupar em fazer aquilo. Não era exatamente confidencial. Não tinha nada a ver com crimes de guerra. Era só um jovem, um ator estudantil, na margem ensolarada de um rio, bebendo champanhe com os amigos mais de trinta anos atrás. Poderia haver inúmeros motivos para o telefone de Rycart estar no verso daquela foto. Porém, ainda assim, de alguma forma a foto pedia para ser escondida e, na falta de alguma outra idéia brilhante, me envergonho de dizer que recorri ao clichê de erguer o colchão e meter o envelope debaixo dele.

- Almoço, senhor - chamou Dep baixinho, do corredor. Virei-me para trás. Não sabia ao certo se ela havia me visto, mas também não sabia se aquilo importava: comparado ao que ela devia ter testemunhado naquela casa nas poucas semanas anteriores, meu próprio comportamento estranho deve ter parecido café pequeno.

Eu a segui até a cozinha.

- A Senhora Lang está por aí? - perguntei.

- Não, senhor. Ela foi até o porto de Vineyard. Compras.

Ela havia preparado um sanduíche enorme, com três fatias de pão. Sentei-me em um banco alto no balcão do café-da-manhã e me forcei a comê-lo, enquanto ela embrulhava algumas coisas em papel-alumínio e as colocava de volta em uma das seis geladeiras de aço inox de Rhinehart. Refleti sobre o que deveria fazer. Normalmente, eu me obrigaria a voltar para a mesa e continuar escrevendo a tarde inteira. Porém, pela primeira vez na minha carreira de ghost-writer, eu estava sofrendo de bloqueio de escritor. Havia desperdiçado metade da manhã dando forma a uma lembrança charmosamente íntima de um momento que não tinha acontecido - que não poderia ter acontecido, pois Ruth Lang só havia chegado a Londres para começar sua carreira em 1976, época em que seu futuro marido já era membro do partido havia um ano. Mesmo a idéia de atacar a parte sobre Cambridge, que antes eu considerado dinheiro fácil, agora me levava a dar de cara com um muro em branco. Quem era ele, aquele aspirante a ator despreocupado, caçador de garotas e alérgico à política? O que o transformou de repente em um ativista político, que ficava batendo perna em conIjuntos habitacionais, se não foi o fato de ter conhecido Ruth? Não fazia sentido para mim. Foi então que percebi que tinha um problema fundamental em relação ao nosso ex-primeiro-ministro. Ele não era um personagem psicologicamente verossímil. Em carne e osso, ou na tela da TV, interpretando o papel de estadista, parecia ter uma persoidade forte. Porém, de algum forma, quando você se sentava para pensar a respeito dele, era como se ele desaparecesse. Isso tornava meu rabalho quase impossível: ao contrário de todos os malucos do show business e do esporte com os quais eu havia trabalhado no passado, em se tratando de Lang, eu simplesmente não conseguia inventá-lo como personagem.

Peguei meu celular e pensei em ligar para Rycart. Porém, quanto mais eu pensava em como poderia ser aquela conversa, mais relutava em iniciá-la. O que exatamente deveria dizer? "Alô, o senhor não me conhece, mas substituí Mike McAra como ghost-writer de Adam Lang. Acredito que ele tenha falado com o senhor um ou dois dias antes de O mar devolver seu cadáver na praia." Coloquei o telefone de volta no bolso e, de repente, não conseguia tirar da cabeça a imagem do corpo pesado de McAra rolando para lá e para cá na arrebentação. Ele bateu em alguma pedra ou foi parar direto na areia macia? Qual era o nome do lugar em que ele havia sido encontrado? Rick tinha mencionado quando almoçamos no clube dele em Londres. Lambert alguma coisa.

- Com licença, Dep - falei para a governanta.

Ela se desencurvou da frente da geladeira. Tinha um rosto agradavelmente simpático.

- Senhor?

- Você saberia me dizer se tem algum mapa da ilha na casa que eu possa pegar emprestado?

 

É perfeitamente possível escrever um livro para alguém apenas ouvindo suas palavras; porém, uma pesquisa extra geralmente ajuda a angariar mais material e idéias descritivas.

Grostwriting

 

Parecia ficar a uns 16 quilômetros de distância, na margem noroeste do porto de Vineyard. Lambert's Cove: esse era o nome.

Havia um certo charme nos nomes das localidades que cercavam aquela enseada: Blackwater Brook, Uncle Seth's Pond, Indian Hill, Old Herring Creek Road. Era como o mapa de uma história infantil de aventura e, estranhamente, era assim que eu concebia meu plano: como uma espécie de divertida excursão. Dep sugeriu que eu pegasse uma bicicleta emprestada - ah, sim, o Sr. Rhinehart mantinha muitas, muitas bicicletas para o uso dos convidados -, e havia algo naquela idéia que também me agradava, muito embora fizesse anos que eu não andava de bicicleta e soubesse, em um nível mais íntimo, que boa coisa não sairia daquilo. Mais de três semanas haviam se passado desde que o corpo fora recuperado. O que teria para se ver lá? Porém, a curiosidade é um impulso humano poderoso - um tanto mais fraco do que o sexo e a ganância, concordo, mas bem mais forte do que o altruísmo -, e eu estava simplesmente curioso.

O maior impedimento era o clima. A recepcionista do hotel em Edgartown havia me avisado que a previsão era de tempestade e, embora ela ainda não tivesse caído, o céu estava começando a ceder com o teu peso, como um saco cinza frágil prestes a se rasgar em dois. Porém, a tentação de sair da casa por um tempo era esmagadora, e eu não aguentaria voltar para o antigo quarto de McAra e me sentar diante do computador. Peguei o casaco impermeável de Lang que estava pendurado no vestiário e segui o jardineiro Duc pela frente da casa até os cubículos de madeira castigados pelo clima que serviam como anexos e alojamentos para os empregados.

- Você deve ter de trabalhar duro aqui - falei - para manter tudo tão bonito.

Duc não desgrudou os olhos do chão.

- Solo ruim. Vento ruim. Chuva ruim. Sal ruim. Merda.

Depois disso, não parecia haver muito mais o que dizer sobre o assunto horticultura, de modo que fiquei calado. Passamos pelos primeiros dois cubículos. Ele parou diante do terceiro e destrancou as portas duplas grandes. Arrastou uma delas para trás e nós entramos. Deveria haver uma dúzia de bicicletas estacionadas em duas fileiras, mas meu olhar foi direto para o utilitário esportivo Ford Escape cor de canela que ocupava a outra metade da garagem. Ouvira falar tanto dele - e o havia imaginado tantas vezes na barca para cá - que era um choque e tanto encontrá-lo de forma tão inesperada.

Duc me viu olhando para o carro.

- Quer emprestado? - perguntou.

- Não, não - falei rapidamente. Primeiro pegava o trabalho de um homem morto, depois dormia na sua cama, depois dirigia seu carro; onde aquilo ia parar? - Uma bicicleta está ótimo. Vai me fazer bem.

O jardineiro assumiu uma expressão de profundo ceticismo ao me observar partir, oscilando com insegurança pelo caminho em uma das mountain bikes caras de Rhinehart. Obviamente achava que eu estava louco, e talvez estivesse mesmo - loucura insular, não é assim que eles chamam? Ergui a mão para o agente das Forças Especiais em sua pequena guarita de madeira meio escondida entre as árvores, e aquilo por muito pouco não se mostrou um erro doloroso, pois me fez dar uma guinada em direção aos arbustos. Porém, de alguma forma consegui trazer a bicicleta de volta para o meio da pista e, assim que peguei o jeito das marchas (minha última bicicleta tinha apenas três, e duas não funcionavam), percebi que estava me movimentando em uma velocidade razoável sobre a areia dura e compactada.

Estava um silêncio sinistro na floresta, como se tivesse acontecido alguma grande catástrofe vulcânica que houvesse tornado a vegetação esbranquiçada e frágil e intoxicado os animais selvagens. Vez por outra, ao longe, um pombo torcaz emitia um de seus arrulhos surdos, que pareciam uma buzina, mas isto servia mais para acentuar o silêncio do que para quebrá-lo. Subi pedalando a pequena inclinação até chegar na auto-estrada.

A manifestação anti-Lang havia se reduzido a apenas um homem do outro lado da estrada. Ele claramente tinha se mantido ocupado nas últimas horas, erguendo alguma espécie de instalação - murais de madeira baixos, nos quais havia pregado centenas de imagens terríveis, arrancadas de revistas e jornais, de crianças queimadas, cadáveres de vítimas de tortura, reféns decapitados e bairros destruídos por bombardeios. Espalhados por aquela colagem de morte havia longas listas de nomes e alguns poemas e cartas manuscritos. Tudo estava protegido das intempéries por folhas de polietileno. Havia uma faixa estendida por cima, como em uma barraca numa feira beneficente de igreja, dizendo: ASSIM COMO EM ADÃO TODOS MORREM, TODOS RENASCERÃO EM CRISTO. (Em inglês, "Adam", como Adam Lang. (NOTA DO TRADUTOR).

Debaixo dela, havia um abrigo precário feito de suportes de madeira e mais polietileno, contendo o que parecia uma mesa de cartas e uma cadeira dobrável. Sentado pacientemente à mesa, estava o homem que eu havia visto de relance naquela manhã e do qual não conseguira me lembrar. Agora, porém, eu o reconhecia muito bem. Era o tipo militar do bar do hotel que tinha me chamado de babaca.

Parei a bicicleta, relutante, e olhei para a esquerda e para a direita da estrada antes de atravessar, consciente o tempo todo do olhar dele sobre mim a menos de seis metros de distância. E ele deve ter me reconhecido, pois vi, para o meu terror, que havia se levantado.

- Espere um instante! - gritou ele, naquela voz entrecortada peculiar, mas eu estava tão disposto a não me envolver com a sua loucura que, mesmo com um carro vindo, oscilei em direção à estrada e comecei a pedalar para longe dele, ficando em pé no selim para tentar ganhar mais velocidade. O carro buzinou. Houve um borrão de luz e som, e senti o ar se deslocando quando ele passou, porém, quando olhei para trás, o manifestante tinha desistido de me perseguir e estava parado no meio da estrada, olhando para mim com as mãos na cintura.

Depois disso, pedalei com força, sabendo que logo começaria a escurecer. O ar no meu rosto era frio e úmido, mas o bombear das minhas pernas me deixava suficientemente aquecido. Passei pela entrada do aeroporto e segui contornando a floresta estadual, suas pistas de acesso para bombeiros estendendo-se largas e altas como as naves laterais cobertas de sombras de uma catedral. Não conseguia imaginar McAra fazendo aquilo - ele não me parecia fazer o estilo ciclista - e novamente me perguntei o que esperava conseguir, além de ficar encharcado. Continuei a pedalar, passando pelas casas brancas de madeira e pelo interior bem cuidado da Nova Inglaterra, e não precisei me esforçar muito para visualizá-lo ainda povoado por mulheres com severos chapéus pretos e homens que consideravam domingo o dia para se colocar um terno, e não para tirá-lo.

Logo depois de West Tisbury, parei na Scotchman's Lane para conferir meu trajeto. O céu já estava realmente ameaçador e um vento começava a soprar mais forte. Quase perdi o mapa. Na verdade, quase voltei. No entanto, tinha ido tão longe que parecia idiotice retornar àquela altura; portanto, sentei-me novamente no selim fino e duro e voltei a pedalar. Uns três quilômetros depois, a estrada se bifurcou, e eu saí da rodovia principal, pegando a esquerda em direção ao mar. A trilha para a enseada era parecida com os arredores da propriedade de Rhinehart - carvalhos americanos, lagos, dunas. A única diferença era que havia mais casas ali. Em sua maioria, eram casas de veraneio, fechadas para o inverno. Algumas chaminés, no entanto, expeliam veios finos de fumaça marrom e, de uma janela, ouvi um rádio tocando música clássica. Um concerto para violoncelo. Foi então que finalmente começou a chover - pingos grossos, pesados e frios, quase granizo, que explodiam nas minhas mãos e no meu rosto e carregavam o cheiro do mar com eles. Num momento eles estavam caindo esporadicamente sobre o lago e tamborilando nas árvores ao meu redor e, no outro, a chuva começou a jorrar do céu como se alguma enorme represa aérea tivesse rompido. Foi então que lembrei por que eu não gostava de andar de bicicleta: elas não têm teto, pára-brisa e nem aquecedor.

Os carvalhos americanos finos e desfolhados não ofereciam esperança de abrigo, mas era impossível continuar pedalando - eu não conseguia ver para onde estava indo -, de modo que desci da bicicleta e fui empurrando-a até chegar a uma cerca de madeira baixa. Tentei escorar a bicicleta nela, mas ela caiu ruidosamente de lado, com a roda de trás girando. Não me dei ao trabalho de apanhá-la, mas subi correndo o caminho de blocos de concreto, passando por um mastro de bandeira, até a varanda da casa. Uma vez fora da chuva, inclinei-me para frente e balancei a cabeça vigorosamente para tirar a água do cabelo e, de imediato, um cachorro começou a latir e arranhar a porta às minhas costas. Eu havia imaginado que a casa estivesse vazia - certamente parecia vazia -, mas um rosto como uma lua branca e enevoada apareceu na janela poeirenta, embaçado pela tela contra mosquitos, e, logo em seguida, a porta se abriu e o cachorro voou para cima de mim.

Não gosto de cachorros quase tanto quanto eles não gostam de mim, mas fiz o meu melhor para parecer encantado com aquela bola de pêlo branco repugnante que não parava de latir, nem que fosse apenas para acalmar seu dono, um velho não muito longe dos 90 anos, a julgar pelas manchas na pele, pelo corpo curvado e pelo crânio ainda bonito que forçava a pele fina do rosto. Ele usava um paletó esporte bem cortado sobre um cardigã abotoado até a gola e tinha um cachecol de lã em volta do pescoço. Gaguejei um pedido de desculpas por perturbar sua privacidade, mas ele me cortou de imediato.

- Você é inglês? -- perguntou ele, apertando os olhos para mim.

- Sou.

- Tudo bem. Pode se abrigar aqui. É de graça.

Eu não conhecia a América bem o suficiente para saber identificar pelo sotaque de onde ele era ou o que teria feito na vida. Porém, imaginei que fosse um aposentado, e com uma situação bastante boa - essa é a única possibilidade quando se vive em um lugar onde uma cabana com um banheiro externo custa meio milhão de dólares.

- Inglês, hein? - repetiu. Ele me analisou através dos óculos sem armação. - Tem alguma coisa a ver com esse tal de Lang?

- De certa forma - respondi.

- Parece inteligente, ele. Por que se misturar com aquele idiota na Casa Branca?

- É o que todo mundo gostaria de saber.

- Crimes de guerra! - disse ele, girando a cabeça, e pude ver de relance dois aparelhos auditivos cor de pele, um em cada orelha. - Todos poderíamos ter sido acusados disso! E talvez devêssemos ter ido. Não sei. Imagino que vou ter de confiar em uma justiça superior.

- Ele deu uma risadinha triste. - Não vou tardar a descobrir.

Eu não sabia do que ele estava falando. Estava apenas feliz por estar em um lugar seco. Apoiamo-nos no corrimão castigado pelo tempo e observamos juntos a chuva, enquanto o cachorro corria alucinado sobre as próprias patas em volta da varanda. Através de uma abertura nas árvores, conseguia ver com dificuldade o mar - enorme e cinza, com as linhas brancas das ondas que chegavam movendo-se impiedosamente na beirada, como interferência em uma televisão em preto-e-branco antiga.

- Então, o que o traz até esta parte de Vineyard? - perguntou o velho.

Não vi sentido em mentir.

- Uma pessoa que eu conhecia apareceu morta lá na praia - falei. - Pensei em dar uma olhada no local. Prestar meus respeitos.

- Acrescentei, caso ele pensasse que eu era um ladrão de defuntos.

- Agora, isso sim, foi esquisito - disse ele. - Você está falando daquele inglês de umas semanas atrás? Não tem a menor chance de a corrente ter carregado o corpo dele tão para o oeste. Não nessa época do ano.

- O quê? - Eu me virei para encará-lo. Apesar da idade, ainda havia algo de muito jovial nos seus traços fortes e no seu jeito entusiasmado. Seu cabelo branco e fino estava penteado para trás desde a testa. Ele parecia um escoteiro veterano.

- Conheço esse mar minha vida quase inteira. Que diabo, um cara tentou me jogar para fora daquela maldita barca quando eu ainda fitava no Banco Mundial, e posso lhe dizer o seguinte: se ele tivesse conseguido, eu não teria vindo flutuando até Lambert's Cove.

Senti um rufar nos meus ouvidos, mas não consegui descobrir se era meu sangue ou a chuva batendo nas telhas.

- O senhor disse isso à polícia?

- A polícia? Meu jovem, na minha idade, tenho coisas melhores para fazer com o pouco tempo que me resta do que desperdiçá-lo com a polícia! De qualquer forma, contei tudo isso para Annabeth. Foi ela quem lidou com a polícia. - Ele notou a confusão no meu rosto. - Annabeth Wurmbrand - disse. - Todo mundo conhece Annabeth, a viúva de Mars Wurmbrand. A casa dela é a que fica mais perto do mar. - Ao ver que eu não esboçava reação, ele ficou um pouco irritado. - Foi ela quem contou à polícia sobre as luzes.

- As luzes?

- As luzes na praia na noite em que o mar devolveu o corpo. Não acontece nada por aqui que ela não veja. Kay costumava dizer que nunca via problema em deixar Mohu (Nome da mansão de Katharine Graham em Martha's Vineyard. A jornalista, que foi presidente do jornal Americano The Washington Post, teve um papel crucial na revelação do escândalo Watergate, que culminou na renúncia do presidente Richard Nixon, em 1974. (NOTA DO TRADUTOR) no outono, pois tinha certeza de que Annabeth ficaria de olho na casa durante todo o inverno.

- E que tipo de luzes eram essas?

- Lanternas, eu acho.

- Por que isso não saiu na imprensa?

- Na imprensa? - Ele deu outra de suas risadinhas ásperas. - Annabeth nunca falou com um repórter em toda a sua vida! Exceto, talvez, a editora daquela revista de decoração, The World of Interiors. Ela levou uma década para confiar em Kay, por causa do Post.

Isso o fez começar a falar sobre o antigo casarão de Kay na Lambert's Cove Road, do qual Bill e Hillary gostavam tanto, e onde Lady Di tinha ficado, e do qual só restavam as chaminés, mas, àquela altura, eu já havia parado de ouvir. Pareceu-me que a chuva tinha diminuído um pouco, e eu estava louco para ir embora. Então, o interrompi.

- O senhor poderia me explicar como eu faço para chegar à casa da Senhora Wurmbrand?

- Claro - disse ele. - Mas não faz muito sentido ir lá.

- Por que não?

- Ela caiu das escadas duas semanas atrás. Está em coma desde então. Pobre Annabeth. Ted diz que ela nunca mais vai recuperar a consciência. Então é mais uma que se vai. Ei! - chamou ele, mas, àquela altura, eu já tinha descido metade dos degraus da varanda.

- Obrigado pelo abrigo - falei por sobre o ombro - e pela conversa. Preciso ir andando.

Ele parecia tão desamparado parado sozinho ali, debaixo do seu telhado gotejante, com a bandeira americana pendurada como um pano de prato do seu mastro liso, que quase voltei.

- Bem, diga ao seu senhor Lang para ele não perder o ânimo! - Ele prestou uma continência trêmula para mim e transformou-a em um aceno. - Cuide-se.

Endireitei minha bicicleta e comecei a descer a trilha. Nem notava mais a chuva. Menos de meio quilômetro ladeira abaixo, em uma clareira próxima das dunas e do lago, havia uma casa grande e baixa, com uma cerca de arame em volta e placas discretas dizendo que aquela era uma propriedade privada. Não havia lâmpadas acesas, apesar da escuridão causada pela tempestade. Aquela, supus, devia será residência da viúva em coma. Será que era verdade? Teria ela visto luzes? Bem, certamente das janelas do andar de cima você teria uma boa visão da praia. Recostei a bicicleta em um arbusto e subi com dificuldade o pequeno caminho que havia, passando pela vegetação de aspecto doente e amarelada e por samambaias verdes. Quando cheguei à crista da duna, o vento pareceu me empurrar de volta, como se aquilo também fosse uma propriedade privada que eu não tinha nada que estar invadindo.

Já tinha visto de relance o que havia além das dunas quando estava na casa do velho e, enquanto descia a trilha de bicicleta, ouvira o barulho das ondas ficando cada vez mais alto. Porém, ainda foi um choque chegar lá em cima e, de repente, dar de cara com aquela vista - aquele hemisfério cinza imaculado de nuvens correndo e mar revolto, as ondas aproximando-se com violência e quebrando na praia em explosões contínuas e furiosas. A faixa de areia do litoral estendia-se em uma curva à minha direita por cerca de um quilômetro e meio e terminava no rochedo protuberante de Makonikey Head, em meio à névoa da água que o mar borrifava. Limpei a chuva dos meus olhos para tentar ver melhor e pensei em McAra sozinho naquela praia imensa - o rosto virado para baixo, inchado pela água salgada, seus agasalhos baratos duros por conta da salmoura e do frio. Imaginei-o vindo à tona na manhã gelada, trazido pela maré desde o estreito de Vineyard, raspando a areia com seus pés grandes, sendo levado pelo mar novamente e depois voltando, o corpo arrastando-se lentamente praia acima até finalmente ficar agarrado. E então o imaginei sendo jogado pela lateral de um barquinho e arrastado para o litoral por homens com lanternas, que voltariam alguns dias depois para atirar urna testemunha idosa e tagarela de suas escadas encomendadas a um arquiteto.

Algumas centenas de quilômetros mais adiante na praia, dois vultos surgiram das dunas e começaram a andar na minha direção - escuros, pequenos e frágeis em meio a toda aquela natureza enfurecida. Olhei na direção oposta. O vento estava açoitando jatos d'água da superfície das ondas e atirando-os para o litoral, como se esboçasse uma invasão anfíbia: eles chegavam até a metade da praia e depois se dissolviam.

O que eu devia fazer, pensei, cambaleando um pouco no vento, era entregar tudo aquilo para um jornalista: algum repórter obstinado do Washington Post, algum nobre herdeiro da tradição de Woodward e Bernstein. Conseguia visualizar a manchete. Conseguia até escrever a matéria na minha mente.

WASHINGTON (AP) - A morte de Michael McAra, assistente do ex-primeiro-ministro britânico Adam Lang, foi uma operação secreta que deu tragicamente errado, de acordo com fontes da comunidade de inteligência americana.

Aquilo era tão implausível assim? Olhei novamente para os vultos na praia. Pareceu-me que eles tinham apertado o passo e estavam vindo na minha direção. O vento atirava a chuva no meu rosto e eu tive de limpá-lo com a mão. É melhor ir andando, pensei. Quando voltei a olhar, eles estavam ainda mais perto, subindo, cambaleantes e com determinação, pela extensão de areia. Um era baixo e o outro era alto. O alto era um homem, o baixo era uma mulher.

O vulto mais baixo era Ruth Lang.

Eu estava impressionado por ela ter aparecido por lá. Esperei até ter certeza de que era ela, então desci a metade do caminho até a praia para encontrá-la. O barulho do vento e do mar encobriu nossas primeiras palavras. Ela teve de me pegar pelo braço e me puxar um pouco para baixo, para poder gritar no meu ouvido.

- Eu falei - repetiu ela, e seu hálito era de uma quentura quase atroz contra minha pele gelada - que Dep me contou que você estava aqui! - O vento tirou o capuz de náilon azul de cima do seu rosto e ela tentou pegá-lo na nuca, mas depois desistiu. Gritou alguma coisa, mas na mesma hora uma onda explodiu no litoral às suas costas. Ela sorriu desamparadamente, esperou o barulho diminuir e então fez uma concha com as mãos e gritou: - O que você está fazendo?

- Ah, só tomando um ar.

- Não, de verdade.

- Queria ver o lugar onde Mike McAra foi encontrado.

- Por quê?

Dei de ombros.

- Curiosidade.

- Mas você nem o conhecia.

- Estou começando a me sentir como se conhecesse.

- Onde está a sua bicicleta?

- Logo atrás das dunas.

- Nós viemos buscar você antes que a tempestade começasse.

- Ela acenou para o policial. Ele estava parado a uns cinco metros de distância, nos observando; encharcado, entediado, bravo. - Barry - gritou ela -, traga o carro e nos espere na estrada, sim? Nós vamos trazer a bicicleta e encontramos você. - Ela se dirigia a ele como se fosse um criado.

- Infelizmente não posso fazer isso, senhora Lang - gritou ele de volta.

- O regulamento diz que eu devo estar com a senhora o tempo todo.

- Oh, pelo amor de Deus! - disse ela, zombando. -Você acha mesmo que há uma célula terrorista em Uncle Seth's Pond? Vá apanhar o carro antes que você pegue uma pneumonia.

Observei seu rosto quadrado e triste à medida que o senso de dever batalhava com sua vontade de estar seco.

- Está certo - disse ele, por fim. - Encontro vocês em 10 minutos. Mas não saiam do caminho nem falem com ninguém.

- Não vamos fazer isso, oficial - disse ela, fingindo humildade.

- Eu prometo.

Ele hesitou, depois começou a refazer o caminho de volta.

- Eles nos tratam como crianças - reclamou Ruth, enquanto subíamos a praia. - Às vezes penso que as ordens deles não são para nos proteger, mas para nos espiar.

Chegamos ao topo da duna e automaticamente nos viramos os dois para olhar para o mar. Depois de um ou dois segundos, arrisquei um breve olhar na direção dela. Sua pele clara brilhava com a chuva, seu cabelo escuro e curto estava achatado e brilhante como uma touca de nadador. Sua carne parecia dura, como alabastro no frio. As pessoas costumavam dizer que não conseguiam entender o que o marido vira nela, porém, naquele instante, eu conseguia - ela possuía uma espécie de firmeza; uma energia célere, nervosa: era uma força.

- Para ser honesta, eu mesma voltei aqui uma ou duas vezes - disse ela. - Em geral trago algumas flores, que acomodo à força por baixo de uma pedra. Pobre Mike. Ele detestava estar longe da cidade. Detestava caminhadas no campo. Sequer sabia nadar.

Ela esfregou rapidamente as bochechas com a mão. Seu rosto estava molhado demais para eu saber se ela estava chorando ou não.

- Que lugar horrível para se terminar - falei.

-Ah, não. Não é, não. Quando está sol, é maravilhoso. Faz com que eu me lembre de Cornwall.

Ela desceu a pequena trilha até a bicicleta com dificuldade, e eu a segui. Para minha surpresa, subiu nela de repente e começou a pedalar, parando uns cem metros mais adiante no caminho, na beirada da floresta. Quando a alcancei, ela me encarou com seriedade, seus olhos Castanho-escuros quase negros na luz mortiça da tarde.

- Você acha que a morte dele foi suspeita?

A objetividade da pergunta me pegou de surpresa.

- Não sei bem - falei. Foi o melhor que pude fazer para me impedir de lhe contar lá mesmo o que tinha ouvido do velho. Porém, senti que aquele não era nem o lugar e nem a hora certa. Eu não estava suficientemente convencido dos fatos e me parecia, de alguma forma, grosseiro transmitir uma fofoca não verificada para um amigo em luto. Além disso, sentia um pouco de medo dela: não queria ser eu o alvo de uma de suas mordazes contra-investigações. De modo que tudo o que disse foi: - Não sei muito a respeito, para ser franco. Imagino que a polícia tenha investigado todo o caso bem a fundo.

- Sim. É claro.

Ela desceu da bicicleta, entregou-a para mim e começamos a subir em direção à estrada em meio aos carvalhos americanos. O clima estava muito mais brando longe do mar. O temporal tinha quase parado e a chuva desprendera cheiros pungentes e frios de terra, árvores e ervas. Eu podia ouvir o tique-taque da roda traseira enquanto caminhávamos.

- A polícia foi muito ativa no início - disse ela -, mas ultimamente não se fala mais nada. Acho que o inquérito foi adiado. De qualquer forma, não podem estar muito preocupados: eles liberaram o corpo de Mike na semana passada e a embaixada o enviou de avião de volta para a Inglaterra.

- É mesmo? - Tentei não soar surpreso demais. - Isso me parece meio rápido.

- Não, nem é. Já se passaram três semanas. Eles fizeram uma autópsia. Ele estava bêbado e se afogou. Fim da história.

Andamos em silêncio e me passou pela cabeça que McAra poderia facilmente ter deixado a ilha por um fim de semana para visitar Richard Rycart em Nova York. Isso explicaria por que ele havia anotado o número de Rycart, e também por que não tinha dito aos Lang para onde estava indo. Como poderia?

- Até logo, pessoal, vou só dar um pulo nas Nações Unidas para ver o pior inimigo político de vocês...

Passamos pela casa em que eu havia buscado abrigo do temporal. Fiquei olhando para ver se o velho aparecia. Porém, a casa de madeira branca parecia tão deserta quanto da primeira vez em que eu a havia visto - tão fria, trancada e abandonada, na verdade, que quase me perguntei se não tinha imaginado todo aquele encontro.

- O funeral é na segunda-feira, em Londres - disse Ruth. - Ele vai ser enterrado em Streatham. A mãe dele está doente demais para comparecer. Fiquei pensando que talvez eu devesse ir. Um de nós deveria comparecer, e não me parece provável que vá ser meu marido.

- Pensei que a senhora tinha dito que não queria abandoná-lo.

- Está parecendo mais que ele me abandonou, você não acha?

Ela não falou mais depois disso, mas começou a tatear em busca do capuz outra vez, embora não precisasse realmente dele. Eu o peguei para ela com minha mão livre e ela o puxou para cima bruscamente, sem me agradecer, e então seguiu andando, um pouco na minha frente, olhando para o chão.

Barry estava esperando por nós no fim da trilha dentro da minivan, lendo um livro do Hany Potter. O motor estava ligado e os faróis acesos. De vez em quando, o grande limpador de pára-brisa raspava ruidosamente o vidro. Ele largou o livro de lado com clara relutância, saltou, abriu a porta traseira e empurrou os bancos para frente. Eu e Ruth colocamos juntos a bicicleta na mala da van, então ele voltou para o seu lugar atrás do volante e eu entrei para me sentar do lado dela.

Pegamos um trajeto diferente daquele que eu havia feito de bicicleta, a estrada se distanciando do mar enquanto subia uma colina sinuosa. O anoitecer estava úmido e sombrio, como se uma das imensas nuvens carregadas não tivesse rompido, mas aos poucos estivesse baixando sobre a terra como um dirigível esvaziado, assentando-se sobre a ilha. Eu podia entender por que Ruth disse que a paisagem fazia com que ela se lembrasse de Cornwall. Os faróis da minivan iluminaram uma região erma, quase um pântano, e pelo retrovisor eu conseguia ver indistintamente as luminosas ondas espumantes manchando as águas do estreito de Vineyard. O aquecedor estava no máximo, e eu tinha de ficar esfregando o vidro para ver para onde estávamos indo. Sentia minhas roupas secando, grudando na minha pele, soltando o mesmo cheiro ligeiramente desagradável de suor e produto para lavagem a seco que eu sentira no quarto de McAra.

Ruth não falou nada durante toda a viagem. Ela manteve as costas um pouco viradas para mim e ficou olhando pela janela. Porém, assim que passamos pelas luzes do aeroporto, sua mão fria e dura atravessou o assento e agarrou a minha. Não sabia o que ela estava pensando, mas podia imaginar, e apertei sua mão de volta: até mesmo um fantasma pode demonstrar um pouco de solidariedade de vez em quando. No retrovisor do motorista, os olhos de Barry fitavam os meus. Enquanto dávamos seta para virar à direita, em direção à floresta, as imagens de morte e tortura e as palavras ASSIM COMO EM ADÃO TODOS MORREM piscaram brevemente na escuridão, porém, até onde eu via, a pequena barraca de polietileno estava vazia. Descemos aos trancos o caminho em direção à casa.

 

Às vezes, o autor pode dar ao ghost-writer uma informação que contradiz algo que ele disse antes ou algo que o ghost-wríter já sabe a respeito dele. Caso isso aconteça, é importante mencioná-lo imediatamente.

Ghostwriting

 

A primeira coisa que fiz quando voltei foi preparar um banho quente, jogando dentro da banheira meia garrafa de óleo para banho orgânico (pinho, cardamomo e gengibre) que encontrei no armarinho do banheiro. Enquanto ela enchia, fechei as cortinas do quarto e tirei minhas roupas úmidas. Naturalmente, uma casa tão moderna quanto a de Rhinehart não tinha algo tão toscamente útil quanto um aquecedor, então as deixei largadas no chão, fui para o banheiro e entrei na banheira grande.

Da mesma forma como vale a pena ficar realmente faminto de vez em quando apenas para saborear de fato a comida, o prazer de um banho quente só pode ser plenamente apreciado se você tiver passado horas de frio na chuva. Gemi de alívio, deixei meu corpo deslizar para baixo até apenas minhas narinas estarem acima da superfície aromática e fiquei deitado ali por vários minutos, como um jacaré pegando sol em sua lagoa fumegante. Imagino que tenha sido por isso que não ouvi ninguém bater à minha porta e só percebi que havia uma pessoa no quarto quando vim à tona e escutei seus movimentos.

- Olá? - chamei.

- Desculpe-me - respondeu Ruth. - Eu bati. Sou eu. Estava apenas trazendo algumas roupas secas para você.

- Não se preocupe - falei. - Eu me viro.

- Você precisa vestir algo que tenha sido devidamente arejado, ou então vai ficar doente. Vou pedir para Dep lavar as outras.

- Sério, não tem necessidade.

- O jantar é daqui a uma hora. Está bom para você?

- Está ótimo. - falei, rendendo-me. - Obrigado.

Esperei ouvir o clique da porta depois de ela sair. Então, levantei-me imediatamente da banheira e apanhei uma toalha. Na cama, ela havia colocado uma camisa recém-lavada de seu marido (era feita sob medida, com seu monograma, APBL, no bolso), um suéter e uma calça jeans. No local onde eu havia largado minhas roupas, havia apenas uma mancha de umidade. Ergui o colchão - o envelope ainda estava ali embaixo - e então o larguei de volta.

Havia algo desconcertante em Ruth Lang. Você nunca sabia em que situação se encontrava quando estava em sua presença. Em alguns momentos ela podia ser agressiva sem motivo - eu não me esquecera do seu comportamento durante nossa primeira conversa, quando ela praticamente me acusara de estar planejando escrever uma memória fofoqueira sobre ela e Lang - e então, em outros, demonstrava um excesso de intimidade bizarro, segurando-lhe a mão ou ditando o que você deveria vestir. Era como se houvesse um pequeno mecanismo faltando em seu cérebro: a parte que lhe dizia como ser comportar com naturalidade com as outras pessoas.

Apertei mais a toalha em volta do corpo, amarrei-a na cintura e sentei-me à mesa. Antes, eu havia ficado intrigado por ela estar estranhamente ausente da autobiografia do marido. Este era um dos motivos que me fizeram querer começar a parte principal do livro com a história sobre como os dois haviam se conhecido - até descobrir que Lang a havia inventado. Lá estava ela, naturalmente, na dedicatória:

Para Ruth, para meus filhos e para o povo britânico... mas depois era preciso esperar outras cinquenta páginas até ela aparecer em pessoa. Folheei o manuscrito até chegar ao trecho.

Foi na época das eleições de Londres que conheci Ruth Capel, uma das mais entusiasmadas integrantes da associação local. Gostaria de poder dizer que me interessei por ela por conta de seu comprometimento político, mas a verdade é que a achei muito atraente - pequena, intensa, com um cabelo preto muito curto e olhos negros penetrantes, Ela era do norte de Londres, a única filha de dois professores universitários, e nutria um interesse apaixonado pela política praticamente desde que aprendera a falar - ao contrário de mim! Ela também era, como meus amigos nunca se cansaram de frisar, muito mais inteligente do que eu! Na graduação em Oxford, recebera graus de primeira da classe em política, filosofia e economia e depois havia feito uma especialização de um ano sobre o governo pós-colonial como bolsista da Fulbright. Como se isso não bastasse para me intimidar, também passara em primeiro lugar na prova de admissão do Gabinete, embora o tenha abandonado posteriormente para fazer pane da equipe de política externa do partido no parlamento.

No entanto, o lema da família Lang sempre foi "quem não arrisca, não petisca", e consegui arranjar para que caçássemos votos juntos. Daí, foi relativamente fácil, depois de uma noite de trabalho duro batendo deporta em porta e distribuindo panfletos, sugeri um drinque sem compromisso em um pub da região. No começo, outros membros do comitê de campanha se juntavam a nós nessas ocasiões, porém, aos poucos, eles foram percebendo que eu e Ruth queríamos ficar sozinhos. Um ano depois das eleições, começamos a dividir um flat, e quando Ruth ficou grávida de nosso primeiro filho, eu a pedi em casamento. A cerimônia aconteceu no cartório de Marylebone em junho de 1979, com Andy Martin, um dos meus velhos amigosddo gripo de teatro, como padrinho. Para nossa lua-de-mel, pegamos emprestado o chalé dos pais de Ruth, que ficava próximo e Hay-on-Wye. Depois de duas semanas divinas, voltamos para Londres, preparados para a luta bem diferente que se seguiu à eleição de Margaret Thatcher.

- Aquela era a única referência importante a ela.

Segui lentamente pelos capítulos posteriores, marcando as partes em que ela era mencionada. Sua "relação de uma vida inteira com o partido" foi uma ajuda "inestimável" para que Lang conquistasse uma cadeira no Parlamento. "Ruth percebeu a possibilidade de que eu poderia me tornar líder do partido muito antes de mim", dizia o começo promissor do capítulo três, mas como ou por que ela chegou a essa conclusão visionária não era explicado. Ela surgia para "dar conselhos especialmente perspicazes" quando ele precisava demitir um colega. Ela dividia com ele as suítes nos hotéis quando havia reuniões do partido. Ela ajeitou sua gravata na noite em que ele se tornou primeiro-ministro. Foi às compras com as esposas de outros líderes mundiais em visitas oficiais. Até deu à luz os filhos dele ("meus filhos sempre mantiveram meus pés bem presos ao chão"). No entanto, apesar de tudo isso, ela era uma presença fantasma nas memórias, o que me intrigava, pois certamente não o era na vida dele. Talvez tivesse sido por isso que ela quis me contratar: por achar que eu iria querer acrescentar mais coisas a seu respeito.

Quando olhei para o relógio, percebi que já estava lendo o manuscrito havia uma hora e que o jantar já devia estar servido. Contemplei as roupas que ela havia deixado sobre a cama. Eu sou o que os ingleses chamariam de "melindroso" e os americanos de "fresco": não gosto de comer comida que venha do prato de outra pessoa, beber do mesmo copo de alguém, nem vestir roupas que não sejam as minhas. No entanto, aquelas roupas estavam mais limpas e quentes do que qualquer uma que eu tivesse, e ela tinha se dado ao trabalho de buscá-las para mim, de modo que as vesti - dobrando as mangas, pois não tinha abotoaduras - e fui para o andar de cima.

A lenha queimava na lareira de pedra e alguém, possivelmente Dep, acendera velas ao redor da sala inteira. As luzes de segurança dos jardins também estavam acesas e iluminavam os corpos brancos e delgados das árvores e a vegetação amarelo-esverdeada que o vento curvava. Quando entrei na sala, uma rajada de chuva açoitou a enorme janela panorâmica. Era como o saguão de algum hotel luxuoso fora de temporada, que contava apenas com dois hóspedes.

Ruth estava sentada no mesmo sofá, na mesma posição que assumira naquela manhã, com as pernas encolhidas sob o próprio corpo, lendo The New York Review of Books. Dispostas em leque na mesa de centro baixa diante dela havia uma série de revistas e, ao lado destas - um prenúncio do que estava por vir, torci -, uma taça de haste longa do que parecia vinho branco. Ela ergueu os olhos com um ar de aprovação.

- Ficaram perfeitas - disse ela. - E agora você precisa de um drinque. - Ela inclinou a cabeça por sobre as costas do sofá, e eu pude ver os músculos salientes de seu pescoço sobressaírem enquanto ela gritava em direção às escadas com aquela voz masculina: - Dep! - E, depois, para mim: - O que você quer beber?

- O que a senhora está bebendo?

- Vinho branco biodinâmico - disse ela -, do vinhedo Rhinehart, no Napa Valley.

- Ele não possui uma destilaria também, possui?

- É delicioso. Você precisa experimentar. Dep - disse ela para a governanta, que havia aparecido no topo da escada - traga a garrafa, sim? E mais uma taça.

Sentei-me de frente para Ruth. Ela usava um longo vestido vermelho transpassado e seu rosto, em geral limpo, estava ligeiramente maquiado. Havia algo de comovente na sua determinação em não perder a pose, mesmo enquanto as bombas, por assim dizer, caíam ao seu redor. Se tivéssemos um gramofone à manivela, poderíamos ter interpretado o impetuoso casal inglês de alguma peça de Noél Coward, mantendo as frágeis aparências enquanto o mundo desmoronava à nossa volta. Dep serviu-me uma taça de vinho e deixou a garrafa.

- Jantaremos em vinte minutos - instruiu Ruth -, porque primeiro - disse ela, pegando o controle remoto e apontando-o com violência para a TV - temos de assistir ao jornal. Saúde - falou, erguendo a taça.

- Saúde - respondi, fazendo o mesmo.

Sequei a taça em trinta segundos. Vinho branco. Qual o sentido em se beber isso? Peguei a garrafa e analisei o rótulo. Aparentemente as uvas eram cultivadas em solo tratado em harmonia com o ciclo lunar, usando adubo enterrado dentro do chifre de uma vaca e flores de milefólio fermentadas na bexiga de um cervo. Parecia o tipo de atividade suspeita pela qual as pessoas costumavam, com muita justiça, ler queimadas como bruxas.

- Gostou? - perguntou Ruth.

- Suave e frutado - falei -, com um toque de bexiga.

- Então nos sirva um pouco mais. Lá vem Adam. Cristo, ele é a matéria principal. Acho que vou ter de encher a cara, para variar.

A manchete atrás do ombro do âncora dizia LANG: CRIMES DE GUERRA. Não gostei do fato de eles nem estarem mais se incomodando em usar um ponto de interrogação. As cenas familiares daquela manhã se sucederam: a coletiva de imprensa em Haia, Lang deixando a casa em Vineyard, a declaração aos repórteres na auto-estrada de West Tisbury. Em seguida, surgiram imagens de Lang em Washington, primeiro cumprimentando os membros do Congresso sob um brilho quente de flashes e admiração mútua e, então, com mais sobriedade, com o secretário de Estado. Amélia Bly estava claramente visível ao fundo: a esposa oficial. Não ousei olhar para Ruth.

- Adam Lang - disse o secretário de Estado - ficou do nosso lado na Guerra contra o Terror, e tenho orgulho de estar ao lado dele na tarde de hoje e de lhe oferecer, em nome do povo americano, nossa mão amiga. Adam. É um prazer vê-lo.

- Não sorria - disse Ruth.

- Obrigado - disse Adam, sorrindo e apertando a mão que lhe era oferecida. Ele escancarou o sorriso para as câmeras. Parecia um estudante entusiasmado recebendo o prémio do campeonato de debates da escola. - Muito obrigado. É um prazer vê-lo também.

- Ah, pelo amor de Deus! - exclamou Ruth.

Ela apontou o controle para a TV e estava prestes a apertá-lo quando Richard Rycart apareceu, atravessando o saguão das Nações Unidas, cercado pela sua habitual falange de burocratas. No último instante, pareceu desviar da sua rota inicial e andou em direção às câmeras. Ele era um pouco mais velho que Lang, beirando os 60 anos. Havia nascido na Austrália, ou na Rodésia, ou em alguma parte da Comunidade Britânica, antes de vir para a Inglaterra na adolescência. Tinha uma cascata de cabelo cinza metálico que se despejava dramaticamente sobre seu colarinho e sabia perfeitamente - a julgar pela maneira como se posicionava - qual era o seu melhor lado: o esquerdo. Seu perfil bronzeado e aquilino lembrava-me um pouco um chefe sioux.

- Assisti à declaração hoje, em Haia - disse ele -, com um grande choque e pesar. - Sentei mais para frente. Definitivamente, aquela era a voz que tinha ouvido mais cedo ao telefone: o resíduo de sotaque cantarolado era inconfundível. - Adam Lang é um velho amigo...

- Seu hipócrita desgraçado - disse Ruth.

- ... E sinto muito que ele tenha optado por levar isto para o âmbito pessoal. Esta não é uma questão individual, e sim de justiça. A questão aqui é se deve existir uma lei para as nações ricas e brancas do Ocidente e outra para o resto do mundo. A questão é nos certificarmos de que cada líder político e militar saiba que, quando toma uma decisão, deve prestar satisfações à lei internacional. Obrigado.

Um repórter gritou:

- Se o senhor for chamado para testemunhar, vai comparecer?

- Certamente.

- Aposto que vai, seu merdinha - disse Ruth.

O noticiário passou para a notícia de um bombardeio suicida no Oriente Médio, e ela desligou a televisão. Imediatamente, seu celular começou a tocar. Ela olhou para o aparelho.

- É Adam, ligando para perguntar como eu achei que ele se saiu. - Ela desligou aquilo também. - Deixe que ele sue um pouco.

- Ele sempre pede seus conselhos?

- Sempre. E costumava segui-los sempre. Até pouco tempo atrás.

Servi um pouco mais de vinho para nós. Muito lentamente, conseguia senti-lo começando a fazer efeito.

- A senhora tinha razão - falei. - Ele não deveria ter ido para Washington. Realmente não ficou nada bem.

- Ele nunca deveria ter vindo para cá - disse ela, gesticulando com seu vinho para a sala. - Quero dizer, olhe só esse lugar. E tudo em prol da Fundação Adam Lang. Que é o que exatamente? Apenas uma atividade ocupacional de alto nível para os recém-desempregados. - Ela se inclinou para frente para pegar sua taça. - Quer que eu lhe diga a regra número um da política?

- Por favor.

- Nunca perca contato com as suas bases.

- Vou tentar.

- Pare com isso. Estou falando sério. Você pode ir além das suas bases, sem dúvida. Precisa fazer isso, se quiser vencer. Mas nunca, nunca perca completamente o contato com elas. Porque, quando isso acontece, você está acabado. Imagine se aquelas imagens de hoje à noite tivessem sido dele chegando a Londres; voltando para combater essa gente ridícula e suas acusações absurdas. Teria sido magnífico! Em vez disso... Deus! - Ela balançou a cabeça e soltou um suspiro de raiva e frustração. - Venha. Vamos comer.

Ela se empurrou para fora do sofá, derramando um pouco de vinho durante o processo, que pingou na frente de seu vestido de lã. Ela não pareceu notar, e tive uma premonição terrível de que ela ficaria bêbada. (Compartilho do preconceito comum dos bebedores profissionais de que não há nada pior do que um homem bêbado, exceto uma mulher bêbada: elas conseguem, de alguma forma, desanimar qualquer pessoa.) Porém, quando fiz menção de encher sua taça, ela a cobriu com a mão.

- Já bebi o suficiente.

A longa mesa diante da janela tinha sido posta para dois, e a visão da natureza revoltando-se silenciosamente para além do vidro grosso aumentava a sensação de intimidade: as velas, as flores, o fogo estalando. Aquilo parecia ligeiramente exagerado. Dep trouxe duas tigelas de uma sopa clara e, por alguns instantes, retinimos nossas colheres contra a porcelana de Rhinehart em um silêncio constrangido.

- Como está indo? - disse ela, por fim.

- O livro? Está parado, para ser franco.

- E por que, além do motivo óbvio? Hesitei.

- Posso ser sincero?

- Claro.

- Tenho dificuldades em entendê-lo.

- Ah, é? - Àquela altura, ela estava bebendo água com gelo. Por sobre a borda de sua taça, seus olhos negros me alvejaram como uma espingarda de dois canos. - Como assim?

- Não consigo entender por que esse garoto bonitão de 18 anos, que chega a Cambridge sem o menor interesse em política e passa seu tempo atuando, bebendo e perseguindo garotas, de repente acaba...

- Casando comigo?

- Não, não, não é isso. De forma alguma. - (Sim, é o que eu queria dizer: sim, isso mesmo; é claro.) - Não. Não entendo por que, quando ele chega aos 22, 23 anos, de repente entra para um partido político. De onde saiu isso?

-Você não perguntou a ele?

- Ele me disse que entrou para o partido por sua causa. Que a lenhora apareceu fazendo campanha eleitoral e que ele se sentiu atraído e seguiu-a para a política por amor, essencialmente. Para continuar a vê-la. Quero dizer, isso faz sentido para mim. Deveria ser verdade.

- Mas não é?

- Bem, a senhora sabe que não. Ele era membro do partido há pelo menos um ano antes mesmo de conhecê-la.

- Era? - Ela franziu a testa e bebericou um pouco mais de água. - Mas aquela história que ele sempre conta sobre o que o levou à política... eu me lembro bem daquele episódio, porque fiz campanha nas eleições de Londres de 1977 e certamente bati à porta dele. E foi depois disso que ele começou a aparecer regularmente nas reuniões do partido. Então tem de haver alguma verdade nela.

- Alguma - admiti. - Talvez ele tenha entrado para o partido em 1977, não tenha demonstrado interesse quase nenhum por dois anos, e então conheceu a senhora e passou a se envolver mais. Mas isso ainda não responde à pergunta essencial do que o levou a um partido político em primeiro lugar.

- Isso é tão importante assim?

Dep chegou para retirar os pratos de sopa e, durante a pausa na nossa conversa, refleti sobre a pergunta de Ruth.

- É - falei, quando ficamos sozinhos novamente -, por estranho que pareça, eu acho isso importante.

- Por quê?

- Porque mesmo que seja um detalhe insignificante, ainda significa que ele não é exatamente quem nós pensamos que é. Nem tenho certeza se ele é exatamente quem ele pensa que é. E isso é complicado quando você precisa escrever as memórias do sujeito. Sinto-me como se não o conhecesse nem um pouco. Não consigo capturar a voz dele.

Ruth fechou a cara para a mesa e alterou minimamente a disposição da faca e do garfo. Sem erguer os olhos, perguntou:

- Como você lsabe que ele entrou para o partido em 1975? Por um instante, tive medo de ter falado demais. Porém, não me parecia haver motivo para não lhe contar.

- Mike McAra encontrou o cartão original de sócio do partido de Adam nos arquivos de Cambridge.

- Cristo - disse ela -, aqueles arquivos! Eles têm tudo lá, desde seus boletins da escola primária até nossas contas da lavanderia. Típico de Mike, estragar uma boa história por excesso de pesquisa.

- Ele também desencavou um informativo obscuro do partido que mostra Adam fazendo campanha em 1977.

- Isso deve ter sido depois que ele me conheceu.

- Talvez.

Eu podia notar que algo a incomodava. Outra saraivada de chuva explodiu na janela e ela colocou a ponta dos dedos no vidro pesado, como se quisesse acompanhar as gotas de chuva. O efeito da iluminação no jardim o fazia parecer a superfície do oceano: todo ele folhagem oscilante e troncos de árvores finos e cinzas, erguendo-se como mastros de navios naufragados. Dep chegou com o prato principal - peixe defumado, talharim e algum tipo de verdura obscura verde clara que parecia mato: provavelmente era mato. Derramei ostensivamente o resto do vinho na taça e analisei a garrafa.

Dep falou:

- O senhor gostaria de outra?

- Vocês não teriam uísque, teriam?

A governanta olhou para Ruth em busca de instruções.

- Ah, traga logo um uísque para ele - disse Ruth.

Dep voltou com uma garrafa de Chivas Regai Royal Salute 50 anos e um copo de vidro lapidado. Ruth começou a comer. Eu preparei um uísque com água para mim.

- Está uma delícia, Dep! - gritou Ruth. Ela limpou a boca com a ponta do guardanapo e então inspecionou a mancha de batom no linho branco com uma expressão de surpresa, como se achasse que talvez tivesse começado a sangrar. -Voltando à sua pergunta - disse ela para mim -, não acho que você deva tentar encontrar mistério onde não há. Adam sempre teve uma consciência social... ele a herdou da mãe... e sei que depois que saiu de Cambridge e se mudou para Londres ele ficou muito infeliz. Acredito que tenha até desenvolvido uma depressão clínica.

- Depressão clínica? Ele chegou a se tratar? Sério?

Tentei não soar entusiasmado. Se aquilo fosse verdade, seria a melhor notícia que teria recebido naquele dia inteiro. Nada vende tão bem uma memória quanto uma boa dose de tristeza. Abuso sexual na infância, pobreza opressiva, tetraplegia: nas mãos certas, aquilo significava dinheiro no bolso. Devia haver uma seção separada nas livrarias chamada Schadenfreude.

- Coloque-se no lugar dele. - Ruth continuava a comer, gesticulando com seu garfo erguido. - Sua mãe e seu pai estavam mortos. Ele tinha saído da faculdade, que ele adorava. A maioria de seus amigos atores tinha agentes e estava recebendo propostas de trabalho. Mas ele, não. Acho que ele estava perdido e voltou-se para a atividade política para compensar isso tudo. Talvez ele não quisesse colocar a coisa nessas palavras, pois não é muito chegado à auto-análise, mas essa é a minha leitura do que aconteceu. Você ficaria surpreso se soubesse quantas pessoas acabam na política porque não alcançam sucesso nas suas primeiras escolhas profissionais.

- Então, conhecê-la deve ter sido um momento muito importante para ele.

- Por que você diz isso?

- Porque a senhora era genuinamente apaixonada pela política. E tinha experiência. E contatos no partido. Deve ter lhe dado o equilíbrio para seguir adiante. - Sentia-me como se uma neblina estivesse se dissipando. - A senhora se importa se eu anotar isso?

- Vá em frente. Se você acha que pode ser útil.

- Ah, se é. - Juntei minha faca e meu garfo... Afinal, não sou exatamente um homem de peixe e verduras, peguei meu bloco de anotações e o abri em uma página em branco. Estava me imaginando no lugar de Lang novamente: 20 e poucos anos, órfão, sozinho, ambicioso, talentoso, mas não o suficiente, procurando por um novo caminho a seguir, dando alguns passos incertos em direção à política e, então, conhecendo uma mulher que, de repente, tornou o futuro possível.

- Casar-se com a senhora foi uma verdadeira virada.

- Eu sem dúvida era um pouco diferente das suas namoradas de Cambridge, todas aquelas Jocastas e Pandoras. Mesmo quando menina, sempre me interessei mais por política do que por pôneis.

- A senhora nunca quis ser uma política de verdade, por seus próprios méritos? - perguntei.

- Claro. Você nunca quis ser um escritor de verdade?

Foi como levar um soco na cara. Não lembro bem se cheguei a baixar o bloco de anotações.

- Ai - falei.

- Desculpe-me. Não quis ser grossa. Mas você precisa entender que nós dois estamos no mesmo barco. Sempre entendi mais de política do que Adam. E você sabe mais sobre como escrever. Mas, no fim das contas, ele é o astro, não é? E nós dois sabemos que nosso trabalho é servir ao astro. É o nome dele no livro que vai puxar as vendas, não o seu. Comigo foi a mesma coisa. Não demorei muito para perceber que ele poderia chegar ao topo na política. Tinha a beleza e o charme. Era um grande orador. As pessoas gostavam dele. Enquanto eu sempre fui um pouco patinho feio, com este maravilhoso talento para cometer gafes. Conforme acabei de demonstrar. - Ela colocou a mão sobre a minha novamente. Estava mais quente, mais macia. - Desculpe-me. Eu feri seus sentimentos. Imagino que até fantasmas tenham sentimentos, como todos nós.

- Se nos cortarem - falei -, nós sangramos.

- Já terminou de comer? Se tiver terminado, por que não me mostra aquele material que Mike desencavou? Pode refrescar minha memória. Fiquei interessada.

Desci até o meu quarto e resgatei o envelope de McAra. Quando subi de volta, Ruth havia retornado para o sofá. Lenha fresca tinha sido jogada no fogo e o vento rugia na chaminé, sugando para cima as faíscas laranja. Dep retirava os pratos. Consegui, por pouco, salvar meu copo e a garrafa de uísque.

- Você quer sobremesa? - perguntou Ruth. - Um café?

- Não, obrigado.

- Já terminamos. Obrigada. - Ela se empertigou um pouco, para indicar que eu deveria me sentar ao seu lado, mas fingi não notar e assumi meu lugar anterior à sua frente. Ainda estava magoado com ela por ter dito que eu não era um escritor de verdade. Talvez não seja mesmo. Nunca escrevi poesia, é verdade. Não escrevo análises sensíveis sobre a minha angústia adolescente. Não tenho opinião sobre a condição humana, exceto que é melhor não a examinar muito de perto. Considero-me o equivalente literário de um torneiro mecânico habilidoso ou de um fabricante de cestos; um oleiro, talvez: crio peças de entretenimento leve que as pessoas querem comprar.

Abri o envelope e retirei as fotocópias do cartão de sócio de Lang e os artigos sobre as eleições de Londres. Empurrei-os na direção dela. Ela cruzou as pernas na altura dos tornozelos e inclinou-se para frente para ler, e eu me peguei olhando para o vale surpreendentemente profundo e coberto de sombras da fenda entre seus seios.

- Bem, não dá para discutir diante disso-disse ela, colocando o cartão de sócio de lado. - É a assinatura dele, sem dúvida. -Ela bateu com a ponta dos dedos na matéria sobre os cabos eleitorais em 1977. - E eu reconheço alguns desses rostos. Eu devia estar de folga naquela noite ou fazendo campanha com outro grupo. Do contrário estaria na foto com ele. - Ela ergueu os olhos. - O que mais você tem aí?

Não parecia haver muito sentido em esconder o que quer que fosse, de modo que lhe entreguei o envelope inteiro. Ela averiguou os nomes e endereços, depois o carimbo postal e então olhou para mim.

- O que Mike estava tramando, então?

Ela abriu a boca do envelope e segurou-a com o polegar e o indicador, olhando para dentro dele com cautela, como se tivesse alguma coisa no interior acolchoado que pudesse mordê-la. Então o virou de cabeça para baixo e espalhou o conteúdo sobre a mesa. Eu a observava com atenção, à medida que ela esmiuçava as fotografias e os programas, analisando seu rosto pálido e inteligente atrás de qualquer pequena pista que esclarecesse por que aquilo teria sido tão importante para McAra. Vi seus traços duros suavizarem-se quando ela pegou a fotografia de Lang com seu blazer listrado na margem ensolarada de um rio.

- Oh, olhe pare ele - disse ela. - Não é uma graça? Ela segurou a foto ao lado da bochecha.

- Irresistível - falei.

Ela inspecionou a fotografia mais de perto.

- Meu Deus, olhe para eles. Olhe o cabelo dele. Era outro mundo, não era? Quero dizer, as coisas que estavam acontecendo quando essa foto foi tirada. Vietnã. A Guerra Fria. As primeiras greves de mineradores na Inglaterra desde 1926. O golpe militar no Chile. E o que eles fazem? Compram uma garrafa de champanhe e vão passear de barco!

- Para mim, isso merece um brinde. Ela pegou uma das fotocópias.

- Ouça isso - disse, em seguida começou a ler:

As garotas vão todas sentir saudade de nós

Quando o trem começar a partir.

Mandarão um beijo e dirão: "Voltem Para Cambridge algum dia."

Atiraremos uma rosa descuidadamente e nos viraremos para

Suspirar um adeus

Pois sabemos que a chance delas

É a mesma de uma bola de neve no inferno.

Salve Cambridge, com seus jantares, bumps e danças de maio,

Salve Trlnners, Fenner's, as partidas de críquete e de tênis,

As peças e os espetáculos,

Daremos uma caminhada de despedida

Pela boa e velha KP,

E subiremos a remo o velho Cam uma última vez

Para tomar chá em Grantchester.

Ela sorriu e balançou a cabeça.

- Não consigo entender nem metade. Está no dialeto de Cambridge.

- Bumps são as corridas de barco da faculdade - falei. - Na verdade, vocês também tinham isso em Oxford, mas a senhora provavelmente estava ocupada demais com a greve dos mineradores para perceber. As danças de maio se referem aos bailes, que são no começo de junho, é óbvio.

- Óbvio.

- Trinner's é o Trinity College. Fenner's é o campo de críquete da universidade.

- E KP?

- King's Parade.

- Eles escreveram o poema para tirar um sarro do lugar - disse ela. - Mas agora parece nostálgico.

- O nome disso é sátira.

- E que número de telefone é esse?

Eu deveria ter desconfiado que nada lhe escaparia. Ela me mostrou a fotografia com o número escrito no verso. Não respondi. Senti meu rosto começar a corar. Obviamente, deveria ter lhe contado antes. Agora me faria parecer culpado.

- E então?

Falei baixinho:

- É de Richard Rycart.

Quase valeu a pena só pela cara que ela fez. Parecia que tinha engolido uma vespa. Ela levou a mão à garganta.

- Você andou ligando para Richard Rycart? - falou ela, ofegante.

- Eu, não. Deve ter sido McAra.

- Isso é impossível.

- Quem mais teria anotado este número? - Estendi meu celular. - Pode testar.

Ela me encarou por um instante, como se estivéssemos brincando de verdade ou consequência, então estendeu o braço, pegou meu telefone e digitou os 14 dígitos. Levou-o à orelha e encarou-me novamente. Cerca de trinta segundos depois, um lampejo de pavor correu pelo seu rosto. Ela apertou desajeitadamente o botão para encerrar a ligação e colocou o telefone de volta na mesa.

- Ele atendeu? - perguntei.

Ela assentiu.

- Parecia estar em um restaurante.

O telefone começou a tocar, saltando pela superfície da mesa como se tivesse criado vida.

- O que eu faço? - perguntei.

- O que você quiser. O telefone é seu.

Eu o desliguei. Fez-se um silêncio, quebrado apenas pelos rugidos e estalos do fogo de lenha. Ela falou:

- Quando você descobriu isso?

- Hoje mais cedo. Quando me mudei para o quarto de McAra.

- E daí foi até Lambert's Cove, para ver onde o mar devolveu o corpo dele?

- Isso.

- E por que fez isso? - Ela estava falando muito baixo. - Responda com sinceridade.

- Não sei bem. - Fiz uma pausa. - Havia um homem lá. - Desembuchei. Não consegui mais guardar segredo. - Um velho, que conhece bem as correntes do estreito de Vineyard. Segundo ele, é impossível, nesta época do ano, um corpo cair da barca de Woods Hole e vir parar em Lambert's Cove. E ele também disse que outra mulher, que tem uma casa logo atrás das dunas, tinha visto luzes de lanterna na praia na noite em que McArc desapareceu. Mas depois ela caiu das escadas e entrou em coma. Então não pode contar nada para a polícia. - Espalmei as mãos. - É tudo o que sei.

Ela estava olhando para mim um pouco boquiaberta.

- Isso - falou lentamente - é tudo o que você sabe. Jesus. - Ela começou a tatear em volta do sofá, dando tapinhas no couro com as mãos, então voltou sua atenção para a mesa, levantando as fotografias para olhar embaixo. - Jesus. Merda. - Ela balançou os dedos na minha direção. - Passe-me seu telefone.

- Por quê? - perguntei, entregando-o para ela.

- Não é óbvio? Preciso ligar para Adam. - Ela segurou o aparelho na palma da mão com o braço esticado, inspecionou-o e começou a digitar rapidamente o número dele com o polegar. Chegou mais ou menos na metade e então parou.

- O que foi? - perguntei.

- Nada. - Ela estava olhando para além de mim, por cima do meu ombro, mordiscando a parte de dentro dos lábios. Seu polegar pairava sobre o teclado do celular e, por um longo instante, ficou parado lá, até que ela finalmente colocou o telefone de volta na mesa.

- Não vai ligar para ele?

- Talvez. Daqui a pouco. - Ela se levantou. - Vou dar uma caminhada antes.

- Mas são nove da noite - protestei. - Está caindo um temporal.

- Vai clarear minhas idéias.

- Eu vou com a senhora.

- Não. Obrigada, mas preciso pensar nisso tudo sozinha. Fique aqui e tome outro drinque. Parece que está precisando. Não espere por mim acordado.

Era do pobre policial que eu tinha pena. Sem dúvida ele estava no andar de baixo, com os pés para cima diante da televisão, ansioso por uma noite dentro de casa. E, de repente, lá estava Lady Macbeth novamente, saindo para outra de suas incessantes caminhadas, dessa vez no meio de uma tempestade atlântica. Parei diante da janela e os observei atravessarem o jardim em direção à vegetação que se agitava silenciosamente. Ela andava na frente, como de hábito, a cabeça curvada, como se tivesse perdido algo de valor e estivesse refazendo seus passos, tentando encontrá-lo pelo chão. Os holofotes espalhavam sua sombra em quatro direções. O agente das Forças Especiais ainda estava colocando o paletó.

De repente, senti-me esmagadoramente cansado. Andar de bicicleta deixara minhas pernas rígidas. Eu começava a sentir frio. Até mesmo o encanto do uísque de Rhinehart tinha se quebrado. Ela havia dito para que eu não a esperasse acordado, então decidi não esperar. Guardei as fotografias e fotocópias no envelope e desci para o meu quarto. Quando tirei as roupas e apaguei a luz, o sono pareceu me engolir de imediato - sugou-me para baixo através do cobertor até suas águas escuras, como se fosse uma corrente forte e eu, um nadador exaurido.

Vim à tona em um determinado momento e me vi ao lado de McAra, seu corpo grande e desajeitado revirando na água como o de um golfinho. Ele estava completamente vestido, com uma grossa capa de chuva preta e sapatos pesados de sola de borracha. Não vou conseguir, disse-me ele, continue sem mim.

Acordei apavorado, sentando-me na cama. Não fazia idéia de quanto tempo havia dormido. O quarto estava escuro, a não ser pela faixa de luz vertical à minha esquerda.

- Está acordado? - falou baixinho Ruth, batendo à porta.

Ela a havia aberto alguns centímetros e estava parada no corredor.

- Agora estou.

- Desculpe-me.

- Não tem importância. Espere um pouco.

Fui até o banheiro e vesti o roupão felpudo que estava pendurado atrás da porta. Quando voltei ao quarto e a deixei entrar, vi que ela estava usando um roupão idêntico ao meu. Era grande demais para ela. Ela parecia inesperadamente pequena e vulnerável. Seu cabelo estava encharcado. Seus pés descalços tinham deixado uma trilha de pegadas úmidas do quarto dela até o meu.

- Que horas são? - perguntei.

- Não sei. Acabei de falar com Adam. - Ela parecia abalada, trêmula. Seus olhos estavam muito arregalados.

- E?

Ela olhou pelo corredor.

- Posso entrar?

Ainda grogue por conta do sonho, liguei o abajur. Saí da frente para ela passar e fechei a porta às suas costas.

- Um dia antes de Mike morrer, ele e Adam tiveram uma briga horrorosa - disse ela, sem preâmbulos. - Nunca contei isso para ninguém, nem para a polícia.

Massageei as têmporas e tentei me concentrar.

- Qual foi o motivo da briga?

- Não sei, mas foi muito violenta, definitiva, e eles nunca mais voltaram a se falar. Quando perguntei a Adam sobre isso, ele se recusou a falar a respeito. E tem sido assim sempre que eu levanto o assunto. Depois do que você descobriu hoje, senti que tinha de esclarecer isso com ele de uma vez por todas.

- O que ele disse?

- Ele estava jantando com o vice-presidente. A princípio, aquela desgraçada não quis nem entrar para lhe passar o telefone.

Ela se sentou na beirada da cama e colocou o rosto entre as mãos. Eu não sabia o que fazer. Parecia impróprio continuar de pé, agigantando-me diante dela, então me sentei ao seu lado. Ela tremia dos pés à cabeça: poderia ser medo, raiva, ou talvez fosse apenas o frio.

- Ele começou dizendo que não podia falar comigo - prosseguiu ela -, mas eu disse que ele tinha a obrigação de falar. Então ele foi para o banheiro masculino com o telefone. Quando lhe disse que Mike havia entrado em contato com Rycart pouco antes de morrer, ele nem mesmo fingiu surpresa. - Ela se virou para mim. Parecia chocada. - Ele sabia.

- Ele disse isso?

- Nem precisou dizer. Deu para eu perceber pela sua voz. Ele disse que não deveria falar mais nada pelo telefone. Que era melhor conversarmos quando ele voltasse. Meu Deus do céu, no que ele foi se meter?

Algo pareceu ceder dentro dela e seu corpo caiu para frente, os braços estendidos. Sua cabeça veio descansar no meu peito e, por um instante, pensei que ela tivesse desmaiado, mas então percebi que estava se agarrando a mim, segurando-me com tanta força que eu podia sentir a ponta de seus dedos de unhas roídas através do tecido grosso do roupão. Minhas mãos flutuavam uns cinco centímetros acima dela, movendo-se indecisas para frente e para trás, como se ela emitisse alguma espécie de campo magnético. Por fim, acariciei seu cabelo e tentei murmurar palavras tranquilizadoras nas quais não acreditava de fato.

- Estou com medo - disse ela com uma voz abafada. - Nunca tinha sentido medo na minha vida. Mas estou sentindo agora.

- Seu cabelo está molhado - falei com brandura. - A senhora está encharcada. Deixe-me pegar uma toalha.

Soltei-me e fui até o banheiro. Olhei minha imagem no espelho. Sentia-me como um esquiador no topo de uma pista desconhecida. Quando voltei para o quarto, ela havia tirado o roupão e entrado na cama, puxando o lençol para cima para cobrir os seios.

- Você se importa? - perguntou.

- Claro que não.

Apaguei a luz e fui para o seu lado, deitando-me na parte fria da cama. Ela se virou, colocou a mão sobre o meu peito e apertou os lábios com muita força contra os meus, como se tentasse me dar o beijo da vida.

  

O livro não é um veículo para o ghost-writer expressar suas opiniões sobre assunto algum.

Ghostwriting

 

Quando acordei na manhã seguinte, esperava que ela não estivesse mais lá. Não era esse o protocolo habitual nesse tipo de situação? Uma vez concluídas as negociações noturnas, o visitante retorna para seu próprio aposento, com a ânsia de um vampiro que quer evitar os inclementes raios da alvorada. Mas não Ruth Lang. Na penumbra pude ver seu ombro nu e sua cabeleira preta e percebi, por sua respiração irregular, quase inaudível, que ela estava tão acordada quanto eu, deitada lá, me ouvindo.

Deitei de costas, as mãos cruzadas sobre a barriga, tão imóvel quanto uma efígie de pedra no túmulo de um cavaleiro das Cruzadas, fechando os olhos periodicamente à medida que um novo aspecto daquela confusão me vinha à mente. Na escala Richter de idéias ruins, aquela certamente chegaria a dez. Era como a queda de um meteoro de estupidez. Alguns instantes depois, deixei minha mão andar como um caranguejo até o criado-mudo e procurar pelo meu relógio. Aproximei-o do meu rosto. Eram 7 horas e quinze minutos.

Cuidadosamente, ainda fingindo não saber que ela estava fingindo, saí da cama e arrastei os pés em direção ao banheiro.

- Você está acordado - disse ela, sem se mexer.

- Desculpe, não quis incomodar - falei. - Estava só indo tomar um banho.

Fechei a porta às minhas costas, liguei a ducha o mais forte e o mais quente que pude aguentar e deixei que ela me castigasse - costas, barriga, pernas, couro cabeludo. O banheiro pequeno logo ficou cheio de fumaça. Depois, quando fui me barbear, tive de ficar esfregando minha imagem no espelho para não desaparecer.

Quando voltei ao quarto, ela tinha colocado o roupão e estava sentada à mesa, folheando o manuscrito. As cortinas ainda estavam fechadas.

- Você cortou a história da família dele - disse ela. - Ele não vai gostar disso. Tem muito orgulho dos Lang. E por que você sublinhou meu nome sempre que ele aparece?

- Quis ver quantas vezes você era mencionada. Fiquei surpreso por não haver mais a seu respeito.

- Isso é um efeito retardado dos grupos de pesquisa.

- Como assim?

- Quando estávamos na Downing Street, Mike costumava dizer que cada vez que eu abria a boca Adam perdia dez mil votos.

- Tenho certeza de que isso não é verdade.

- Claro que é. As pessoas estão sempre procurando alguém para odiar. Muitas vezes penso que minha principal utilidade, no que diz respeito a ele, era servir de pára-raios. Eles podiam descontar sua raiva em mim em vez de descontarem nele.

- Mesmo assim - falei -, você não deveria ser excluída da história.

- Por que não? A maioria das mulheres o é. Até as Amélia Blys do mundo são excluídas no fim das contas.

- Bem, então eu vou colocá-la de volta. - Na pressa, abri a porta do armário com tanta força que ela bateu. Eu precisava sair daquela casa. Precisava me distanciar um pouco daquele ménage à trois destrutivo antes que acabasse tão louco quanto eles. - Gostaria de me sentar com você, quanto você tiver tempo, e fazer uma longa entrevista. Acrescentar todos os momentos importantes dos quais ele se esqueceu.

- Quanta gentileza sua - dlise ela com amargura. - Como a secretária do chefe cujo trabalho é lembrá-lo do aniversário da esposa?

- Algo assim. Mas, como você diz, não posso me chamar de um escritor de verdade.

Percebia que ela estava me observando atentamente. Vesti uma cueca, puxando-a para cima por debaixo do roupão.

- Ah - disse ela, secamente -, o recato da manhã seguinte.

- Um pouco tarde para isso - falei.

Tirei o roupão e procurei uma camisa, e quando o cabide produziu seu tilintar surdo, pensei que uma saída discreta no meio da noite tinha sido inventada justamente para evitar aquele tipo de cena infeliz. Típico dela não perceber o que a ocasião pedia. Agora, nossa intimidade de antes se estendia entre nós como uma sombra. O silêncio se alongou e ficou mais pesado, até eu conseguir sentir sua raiva quase como uma barreira sólida. Já não podia me aproximar e beijá-la tanto quanto não podia no dia em que nos conhecemos.

- O que você vai fazer? - disse ela.

- Vou embora.

- Por mim, isso não é necessário.

- Infelizmente, por mim é. Puxei minhas calças para cima.

- Você vai contar para Adam o que aconteceu? - perguntou ela.

- Oh, pelo amor de Deus! - exclamei. - O que você acha? Deitei minha mala na cama e abri o zíper.

- Para onde você vai? - Tive a impressão de que talvez ela estivesse prestes a chorar novamente. Esperava que não; eu não aguentaria isso.

- Vou voltar para o hotel. Posso trabalhar muito melhor lá.

- Comecei a jogar minhas roupas dentro da mala, sem me importar em dobrá-las, tamanha era minha pressa em ir embora. - Desculpe. Nunca deveria ter ficado na casa de um cliente. Isso sempre termina... - hesitei.

- Com você comendo a mulher dele?

- Não, claro que não. Só torna difícil manter uma distância profissional. E, além disso, a idéia não foi só minha, caso você tenha se esquecido.

- Que falta de cavalheirismo da sua parte.

Não respondi. Continuei fazendo as malas. Seu olhar acompanhava cada movimento meu.

- E quanto às coisas que lhe contei na noite passada? - disse eIa. - O que pretende fazer a respeito delas?

- Nada.

- Não pode simplesmente ignorá-las.

- Ruth - disse eu, finalmente parando. - Eu sou o ghost-writer dele, não um repórter investigativo. Se ele quiser contar a verdade sobre o que está acontecendo, estou aqui para ajudá-lo. Se não, ótimo. Sou moralmente neutro.

- Esconder os fatos quando você sabe que algo ilegal aconteceu não é ser moralmente neutro, é crime.

- Mas eu não sei se aconteceu algo ilegal. Tudo o que tenho é um número de telefone no verso de uma fotografia e a fofoca de um velho qualquer que pode muito bem estar senil. Se alguém tem provas, esse alguém é você. Essa que é a questão, na verdade: o que você vai fazer a respeito?

- Não sei - disse ela. - Talvez escreva minhas próprias memórias. "Mulher do Ex-Primeiro-Ministro Revela Tudo."

Voltei a fazer as malas.

- Bem, se um dia você decidir fazer isso, ligue para mim.

Ela emitiu uma daquelas risadas guturais que eram sua marca registrada.

- Você acha mesmo que eu preciso de alguém como você para escrever um livro?

Então ela se levantou, desfez o nó do cinto e, por um instante, pensei que fosse ficar nua, mas estava apenas o afrouxando para colar mais o roupão ao corpo. Ela apertou bastante o cinto, refazendo o nó, a determinação daquele gesto de alguma forma restituiu sua superioridade em relação a mim. Com aquilo, meu direito de acesso estava revogado. Sua resolução foi tão firme que me deixou quase triste e, se ela tivesse estendido os braços, teria sido a minha vez de me deixar cair contra o seu corpo. Porém, ela se virou e, com a prática de uma esposa de primeiro-ministro, puxou o cordão de náilon para abrir a cortina.

- Declaro este dia oficialmente iniciado - disse ela. - Deus o abençoe, e a todos que tenham de passar por ele.

- Bem - falei, olhando a paisagem -, esta é mesmo a manhã do dia seguinte.

A chuva havia se misturado à neve e o gramado estava coberto com os detritos da tempestade - pequenos galhos, ramos, uma cadeira de bambu branca virada de lado. Aqui e ali, pelas beiradas da porta, onde havia cobertura, a mistura de chuva e neve tinha se acumulado e congelado em listras, como pedaços de embalagem de poliestireno. O único brilho na escuridão era o reflexo da luz do nosso quarto, que parecia um disco voador pairando sobre as dunas. Eu podia ver o rosto de Ruth com bastante clareza no vidro: vigilante, pensativo.

- Não vou lhe dar entrevista nenhuma - disse ela. - Não quero estar nesta droga de livro para receber a condescendência e os elogios dele por intermédio das suas palavras. - Ela se virou e passou roçando em mim. Parou na porta do quarto. - Ele está sozinho agora. Vou pedir o divórcio. E então ela pode visitá-lo na prisão.

Ouvi o som da sua porta abrindo e fechando e, logo depois, o som quase inaudível de uma descarga. Eu estava quase acabando de fazer as malas. Dobrei as roupas que ela havia me emprestado na noite anterior e coloquei-as na cadeira; em seguida, coloquei meu laptop na bolsa a tiracolo e, então, a única coisa que restava era o manuscrito. Ele estava em uma pilha grossa sobre a mesa onde ela o havia deixado, quase oito centímetros mal-encarados de papel - meu fardo, meu estorvo, meu ganha-pão. Eu não poderia trabalhar sem ele, mas não deveria tirá-lo da casa. Ocorreu-me que talvez eu pudesse argumentar que a investigação sobre crimes de guerra tinha mudado as circunstâncias da vida de Lang de tal forma que as regras antigas não se aplicavam mais. De qualquer forma, poderia usar aquilo como desculpa. Certamente não aguentaria o constrangimento de ficar ali e topar com Ruth várias vezes por dia. Coloquei o manuscrito na mala, bem como o envelope do arquivo, fechei o zíper e saí para o corredor.

Barry, o agente das Forças Especiais, estava sentando na cadeira de frente para a porta de entrada com seu livro do Harry Potter. Ele ergueu o rosto enorme das páginas e me lançou um olhar aborrecido de censura, com um sorrisinho de desdém para completar.

- Bom dia, senhor - disse ele. - Chega de trabalho por uma noite, não chega?

Pensei: Ele sabe. E então pensei também: É claro que ele sabe, seu idiota; o trabalho dele é saber. Num flash, eu o vi conversando às risadinhas com seus colegas, o registro das suas observações oficiais sendo transmitido para Londres, um comentário discreto em um arquivo qualquer, e senti uma pontada de fúria e ressentimento. Talvez devesse ter respondido com uma piscadela ou um ditado em tom conspiratório - "Bem, oficial, sabe como é: panela velha é que faz comida boa", ou algo do gênero -, porém, em vez disso, respondi friamente:

- Por que você não vai se catar?

Não era exatamente Oscar Wilde, mas me ajudou a sair da casa. Passei pela porta e segui em direção à trilha, percebendo com algum atraso que, infelizmente, uma nobre indignação moral não oferece proteção contra lufadas cortantes de chuva e neve. Caminhei penosamente por mais alguns metros, em uma tentativa de manter a dignidade, depois corri com a cabeça abaixada para me abrigar a sotavento da casa. Água da chuva transbordava da calha e se infiltrava no chão arenoso. Tirei meu paletó e segurei-o sobre a cabeça, pensando em como faria para chegar até Edgartown. Foi então que a idéia de pegar o Ford Escape cor de canela emprestado teve a bondade de pipocar na minha cabeça.

Como a trajetória da minha vida teria sido diferente - muito diferente - se eu não tivesse imediatamente saído correndo em direção àquela garagem, desviando das poças e segurando meu paletó como uma tenda sobre a cabeça com uma das mãos, enquanto com a outra arrastava minha pequena mala. Vejo-me agora como se estivesse em um filme, ou talvez, melhor dizendo, em uma daquelas reconstituições de programa de TV: a vítima seguindo inocentemente rumo ao seu destino, enquanto violinos agourentos compõem a trilha sonora. A porta ainda estava destrancada do dia anterior e as chaves do Ford estavam na ignição - afinal, para que se preocupar com ladrões quando se vive no final de uma trilha de três quilômetros, protegido por seis guarda-costas armados? Ergui minha mala até o banco do carona, coloquei meu paletó de volta e deslizei para trás do volante.

Estava frio como um necrotério, aquele Ford, e empoeirado como um sótão abandonado. Corri as mãos sobre o painel de controle não familiar e meus dedos voltaram empoeirados. Na verdade, não tenho carro - nunca senti muita necessidade, vivendo sozinho em Londres -, e nas raras ocasiões em que alugo um, sempre me parece que outra fileira de engenhocas foi acrescentada, de modo que o painel de um automóvel de família comum hoje em dia me parece a cabine de um Jumbo. Havia uma tela misteriosa à direita do volante, que acendeu quando liguei o motor. Arcos verdes pulsantes que estavam sendo enviados da Terra para uma estação espacial em órbita surgiram nela. Enquanto eu observava, o pulso mudou de direção e os arcos passaram a descer do céu. Logo em seguida, a tela mostrou uma seta vermelha grande, um caminho amarelo e uma listra azul grossa.

Uma voz feminina americana, suave, porém imperativa, disse, de algum lugar atrás de mim:

"Pegue a estrada assim que possível."

Eu a teria desligado, mas não conseguia ver como, e sabia que, provavelmente, o barulho do motor logo faria Barry vir andando da casa com seus passos pesados para investigar. A idéia do seu olhar obsceno foi o suficiente para que eu me mexesse. Engatei rapidamente a ré e saí da garagem. Em seguida, ajustei os retrovisores, liguei os faróis e os limpadores de pára-brisa, passei a marcha e segui para o portão. Ao passar pela guarita, a imagem no meu peuqneo monitor de navegação via satélite girou de forma agradável, como se eu estivesse jogando fliperama, e então a seta vermelha parou no centro do caminho amarelo. Eu estava fora.

Havia algo de estranhamente tranquilizador em dirigir vendo todas aquelas pequenas pistas e rotas, ordenadamente classificadas, aparecendo no topo da tela e rolando para baixo até desaparecerem no fundo. Dava a imprssão de que o mundo era um lugar seguro e ordenado, com cada uma de suas características rotuladas, medidas e armazenadas em alguma sala de controle celestial, na qual anjos de fala mansa vigiavam com bondade os viajantes abaixo.

"Daqui a 180 metros", instruiu a mulher, "vire à direita".

"Dê meia-volta assim que possível."

Com desânimo, me rendi ao destino. Dei a seta, virei em uma pequena rua residencial - Summer Street, se não me engano, por mais inapropriado que fosse a rua se chamar "verão" - e pisei no freio. A chuva castigava o teto do Ford; o limpador de pára-brisa batia para lá e para cá. Um pequeno terrier branco e preto defecava na sarjeta, com uma expressão de concentração profunda no seu rosto velho e inteligente. Seu dono, encapotado demais por causa da chuva e do frio para que eu pudesse identificar sua idade ou seu sexo, virou-se desajeitadamente para olhar para mim, como um astronauta manobrando a si mesmo na lua. Em uma das mãos, carregava uma pá de catar cocô, na outra, um saco plástico com merda de cachorro. Voltei rapidamente de ré para a Main Street, girando o volante com tanta força que por um instante subi no meio-fio. Com um emocionante cantar de pneus, comecei a subir a colina de volta. A seta girou alucinadamente, antes de parar com satisfação sobre a rota amarela.

Até hoje não sei bem o que exatamente estava passando pela minha cabeça. Eu não tinha nem como saber ao certo se realmente havia sido McAra o último motorista a inserir um endereço no sistema. Poderia ter sido algum dos demais convidados de Rhinehart; poderia ter sido Dep ou Duc; poderia ter sido até a polícia. Fosse como fosse, eu certamente pensava, no fundo, que se as coisas começassem a ficar remotamente alarmantes, poderia parar a qualquer momento, e imagino que isso tenha me dado uma falsa sensação de confiança.

Depois que saí de Edgartown e segui em direção à Vineyard Haven Road, fiquei vários minutos sem ouvir mais nada da minha guia celestial. Passei por trechos escuros de floresta e pequenas casas brancas. Os poucos carros que se aproximavam estavam com os faróis acesos e seguiam devagar, zumbindo pela estrada escorregadia por conta da chuva. Sentei-me bem na ponta do banco, espreitando a manhã suja. Passei por uma escola secundária, que começava a se preparar para aquele dia, e pelo semáforo da ilha (ele aparecia no mapa como uma atração turística: algo para se visitar durante o inverno), que ficava ao seu lado. A rua dobrou acentuadamente, as árvors pareceram se fechar sobre ela; a tela mostrou uma nova série de nomes sugestivos: Deer Hunter's Way; Skiff Avenue.

"Daqui a 180 metros vire à direita."

Em seguida:

"Daqui a 45 metros, vire à direita."

E por fim:

"Vire à direita."

Desci a colina até o porto de Vineyard, passando por um ônibus escolar que subia com dificuldade. Vislumbrei brevemente uma rua comercial deserta à minha esquerda, e então estava na área plana e decadente que cercava a enseada. Dobrei uma esquina, passei por um café e parei em um estacionamento grande. A cerca de cem metros dali, além do asfalto enlameado e varrido pela chuva, uma fila de veículos subia a rampa de uma barca. A seta vermelha apontava o meu na direção dela.

No calor do Ford, da maneira como era mostrada na tela de navegação, a rota proposta era convidativa, como o desenho de uma criança sobre as férias de verão - um píer amarelo se estendendo pelo azul berrante do porto de Vineyard. Porém, a realidade que se via através do pára-brisa não era nada atraente: a boca preta aberta da barca, manchada de ferrugem nas beiradas e, além dela, a ondulação cinza do mar e o cordame de chuva e neve a se debater.

Alguém bateu no vidro ao meu lado, e eu tateei em busca do botão para baixar a janela. Ele usava uma capa de chuva azul-escura com o capuz levantado, que precisava segurar firme com uma das mãos para que ele não saísse voando de sua cabeça. Seus óculos estavam pingando de chuva. Um distintivo anunciava que ele trabalhava para o Departamento de Embarcações a Vapor.

- É melhor se apressar - gritou ele, dando as costas para o vento. - Ela vai sair às 8 horas. O tempo está piorando. A próxima deve demorar a sair. - Ele abriu a porta para mim e quase me empurrou na direção da bilheteira. - Vá pagando. Vou dizer a eles que o senhor está indo.

Deixei o motor ligado e entrei na pequena estação. Mesmo diante do balcão, ainda estava indeciso. Pela janela, podia ver os últimos carros embarcando e o funcionário do estacionamento parado ao lado do Ford, batendo os pés no chão para se proteger do frio. Ele viu que eu estava olhando para ele e acenou insistentemente para que eu me apressasse.

Pela cara da senhora atrás da mesa, ela também parecia conseguir pensar em lugares melhores para se estar às 8 horas de uma manhã de sexta-feira.

- Vai pegar a barca ou não vai? - perguntou ela.

Soltei um suspiro, peguei minha carteira, atirei cinco notas de dez na mesa e recebi um bilhete e algumas moedas de troco.

Depois que subi com o carro a rampa de metal barulhenta até o interior escuro e oleoso da embarcação, outro homem com capa de chuva me conduziu até uma vaga, e guiei devagarzinho para frente até ele erguer a mão, me mandando parar. Por todo lado, motoristas saíam de seus veículos e se espremiam pelos corredores estreitos em direção às escadas. Fiquei onde estava e continuei tentando entender como o sistema de navegação funcionava. Porém, após cerca de um minuto. O tripulante bateu na minha janela e indicou com gestos que eu precisava desligar o motor. Quando obedeci, a tela apagou-se novamente. Atrás de mim, as portas traseiras da barca se fecharam. Os motores da embarcação começaram a pulsar, o casco se inclinou e, com um desanimador ranger de metal, começamos a nos mover.

De repente, senti-me aprisionado, sentando no crepúsculo frio daquele porão, com seu fedor de diesel e fumaça de cano de descarga, e a sensação era mais do que uma simples claustrofobia por estar sob o convés. Era McAra. Eu podia sentir sua presença ao meu lado. Suas obsessões tenazes e opressivas agora pareciam ter se tornado minhas. Ele era como um estranho grandalhão e burro com o qual você cometeu o erro de conversar durante uma viagem e que depois se recusa a deixar você em paz. Saí do carro, tranquei a porta e subi em busca de um café. No bar do andar de cima, entrei na fila atrás de um homem que lia o USA Today e, por cima do seu ombro, vi uma foto de Lang com o secretário de Estado. LANG ENFRENTARÁ JULGAMENTO POR CRIMES DE GUERRA, era a manchete. WASHINGTON ACENA COM APOIO. A câmera o pegara sorrindo.

Peguei meu café, fui me sentar em um canto e refleti sobre até onde minha curiosidade havia me levado. Para começar, eu era tecnicamente culpado por roubar um carro. Devia pelo menos ligar para a casa e avisá-los que o pegara. Porém, aquilo provavelmente envolveria falar com Ruth, que exigiria saber onde eu estava, o que eu não queria lhe contar. E também havia a questão de se o que eu estava fazendo era ou não inteligente. Se eu estava de fato seguindo o mesmo trajeto de McAra, tinha de encarar o fato de que ele não tinha voltado vivo daquela viagem. Como poderia saber o que havia no final do caminho? Talvez devesse contar meus planos para alguém ou, melhor ainda, levar outra pessoa comigo como testemunha. Ou talvez devesse apenas desembarcar em Woods Hole, esperar em algum bar, pegar a próxima barca para a ilha e planejar a coisa toda direito, em vez de me lançar no desconhecido tão despreparado.

Por estranho que pareça, eu não me sentia especialmente em perigo - talvez por tudo parecer tão comum. Olhei em volta para o rosto de meus companheiros de viagem: trabalhadores, em sua maioria, a julgar por suas calças de brim e botas - sujeitos cansados, que tinham acabado de fazer uma entrega de manhã cedo na ilha, ou pessoas indo para o continente para fazer compras. Uma onda grande bateu na lateral da embarcação, e todos balançamos juntos, como algas oscilando no fundo mar. Através da janela coberta de salmoura, a linha cinza e baixa do litoral e o mar revolto e gelado pareciam completamente genéricos. Poderíamos estar no Báltico, no canal de Solent ou no mar Branco - em qualquer extensão sombria de litoral plano, onde as pessoas têm de encontrar uma maneira de ganhar a vida no ponto mais extremo da orla.

Alguém saiu para fumar um cigarro no convés, deixando entrar uma lufada de ar frio e molhado. Não tentei segui-lo. Tomei outro café e relaxei na segurança da atmosfera quente, úmida e amarelada do bar, até que, meia hora depois, passamos pelo farol de Nobska Point e um alto-falante nos instruiu a voltar para nossos veículos. O convés arfava iem parar nas ondas e bateu na lateral do cais com um estrondo que reverberou por toda a extensão do casco. Fui atirado contra o batente de metal ao pé da escada. Alguns alarmes de carro começaram a uivar, minha sensação de segurança desapareceu, sendo substituída pelo pânico de que o Ford tivesse sido arrombado. Porém, quando cambaIeei mais para perto dele, o carro parecia intocado e, ao abrir minha mala para me certificar, vi que as memórias de Lang ainda estavam lá dentro.

Liguei o motor e quando emergi para a chuva cinza e o vento de Woods Hole, a tela do satélite já me oferecia seu familiar caminho dourado. Teria sido simples parar o carro e entrar em um dos bares próximos dali para tomar o café-da-manhã, porém, em vez disso, continuei acompanhando o tráfego e o deixei me levar adiante - adentrando o inverno sujo da Nova Inglaterra, subindo a Woods Hole Road até a Locus Street, a Main Street e além. Tinha meio tanque de gasolina e o dia inteiro pela frente.

- Daqui a 180 metros, no trevo, pegue a segunda saída.

Obedeci e, durante os 45 minutos seguintes, segui por duas grandes auto-estradas na direção norte, mais ou menos refazendo meu trajeto de volta para Boston. Aquilo parecia solucionar pelo menos uma questão: McAra podia estar fazendo qualquer coisa pouco antes de morrer, mas não estava indo para Nova York ver Rycart. Perguntei-me o que poderia tê-lo atraído a Boston. O aeroporto, talvez? Deixei minha mente se encher de imagens suas esperando alguém sair de um avião - vindo da Inglaterra, talvez? -, seu rosto solene voltado ansiosamente para o céu, uma recepção apressada no saguão de desembarque e, de lá, para algum ponto de encontro clandestino. Ou talvez ele tivesse voado para algum lugar sozinho. Porém, no momento em que aquele cenário ganhava consistência na minha imaginação, fui orientado a seguir para o oeste, em direção à rodovia interestadual 95, e mesmo com meu parco conhecimento da geografia de Massachusetts, eu sabia que aquilo me afastaria do aeroporto Logan e do centro de Boston.

Segui o mais lentamente possível pela estrada ampla por cerca de 25 quilômetros. A chuva tinha diminuído, mas ainda estava escuro. O termômetro indicava uma temperatura de menos 3,8°C. Lembro-me de grandes extensões de floresta, intercaladas por lagos, com prédios comerciais e fábricas de alta tecnologia brilhando intensamente em meio a áreas ajardinadas, instalados com a delicadeza de um country club ou de um cemitério. Quando estava começando a pensar que talvez McAra estivesse tentando fugir para a fronteira canadense, a voz atrás de mim me disse para pegar a próxima saída da interestadual, e eu desci em outra auto-estrada grande de seis pistas, que, de acordo com a tela, era a Concord Turnpike.

Conseguia ver muito pouco através da cortina de árvores, mesmo que seus galhos estivessem nus. Minha lentidão estava enfurecendo os motoristas atrás de mim. Uma série de caminhões enormes se amontoou na minha traseira, piscando os faróis e buzinando, antes de manobrarem para me ultrapassar jorrando água suja para todo lado.

A mulher no banco de trás voltou a falar.

"Daqui a 180 metros, pegue a próxima saída."

Passei para a pista da direita e desci a estrada secundária. No fim da curva, me vi em um bairro rústico de casas grandes, garagens duplas, entradas para carros largas e gramados sem cercas - um lugar de gente rica porém amistoso, as casas separadas umas das outras por árvores, quase todas as caixas de correio exibindo uma fita amarela em homenagem às Forças Armadas. Se não me engano, tinha "agradável" até no nome - Pleasant Street.

Uma placa indicava o Belmont Center, e foi mais ou menos naquela direção que eu segui, por estradas que iam ficando cada vez menos povoadas à medida que o preço das propriedades subia. Passei por um campo de golfe e dobrei à esquerda, entrando em um bosque. Um esquilo vermelho atravessou a estrada na minha frente, pulando em cima de uma placa que proibia fogueiras de piquenique, e foi então que, no meio do que parecia ser lugar nenhum, meu anjo da guarda finalmente anunciou, em um tom calmo de inevitabilidade: "Você chegou ao seu destino".

 

Por ser um entusiasta tão grande da profissão de ghost-writer, posso ter dado a impressão de que se trata de um jeito fácil de se ganhar a vida. Neste caso, devo acrescentar às minhas palavras uma pequena advertência.

Ghostwriting

 

Parei no acostamento e desliguei o motor. Olhando em volta para a floresta cerrada e gotejante, senti uma profunda decepção. Não sabia ao certo o que estava esperando - não necessariamente uma Garganta Profunda em um estacionamento subterrâneo, mas certamente mais do que aquilo. No entanto, McAra tinha me surpreendido mais uma vez: estamos falando de um homem que supostamente era mais avesso ao campo do que eu e, no entanto, seu rastro tinha simplesmente me levado ao paraíso dos amantes de trilhas.

Saí do carro e tranquei as portas. Depois de duas horas dirigindo, precisava encher os pulmões com o ar frio e úmido da Nova Inglaterra. Espreguicei-me e comecei a descer a estrada molhada. O esquilo observou-me de seu poleiro do outro lado da rua. Dei alguns passos na direção dele e bati palmas para o roedorzinho fofo. Ele subiu correndo uma árvore próxima, balançando o rabo para mim como um dedo médio inchado. Olhei em volta em busca de um graveto para jogar nele, então parei. Estava passando tempo demais sozinho no meio do mato, concluí, enquanto continuava descendo a estrada. Ficaria feliz em não ouvir o silêncio profundo e vegetativo de 10 mil árvores por muito tempo depois daquilo.

Continuei andando por una 50 metros até chegar a uma falha quase invisível entre as árvores. Ligeiramente afastado da estrada, um portão eletrificado de cinco barras bloqueava o acesso a uma entrada particular para carros, que fazia uma curva fechada depois de alguns metros e desaparecia atrás das árvores. Não conseguia ver a casa. Ao lado do portão, havia uma caixa de correio de metal cinza sem nenhum nome nela, apenas um número - 3551 - e um pilar de pedra com um interfone e um teclado numérico. Um aviso dizia: ESTA ÁREA É PROTEGIDA PELA CYCLOPS SECURITY; o número de um telefone de ligação gratuita estava escrito sobre um globo ocular. Depois de hesitar um instante, apertei a campainha. Enquanto esperava, olhei à minha volta. Havia uma pequena câmera de vídeo instalada em um galho próximo dali. Apertei novamente a campainha. Não houve resposta.

Dei um passo para trás, sem saber ao certo o que fazer. Passou brevemente pela minha cabeça escalar o portão e fazer uma inspeção não-autorizada da propriedade, mas não gostei da cara daquela câmera e nem de como Cyclops Security soava aos meus ouvidos. Percebi que a caixa de correio estava entupida demais para fechar direito e não vi mal algum em descobrir o nome do dono da casa. Depois de olhar mais uma vez para trás e dar de ombros para a câmera, como se pedisse desculpas puxei um punhado de cartas. Estavam endereçadas, de várias maneiras diferentes, ao Senhor e Senhora Paul Emmett, ao professor e Senhora Paul Emmett, ao professor Emmett e Nancy Emmett. A julgar pelos carimbos do correio, parecia que ninguém apanhava a correspondência havia pelo menos dois dias. Os Emmett estavam viajando ou... o quê? Estavam mortos lá dentro? Eu estava desenvolvendo uma imaginação mórbida. Algumas cartas tinham sido encaminhadas com um adesivo cobrindo o endereço original. Puxei um deles para trás com o polegar. Emmett, descobri, era presidente emérito de algo chamado Instituto Arcádia, que ficava em Washington DG.

Emmett... Emmett... Por algum motivo aquele nome me era familiar. Enfiei as cartas de volta na caixa e voltei para o carro. Abri minha mala, peguei o envelope endereçado a McAra e, dez minutos depois, descobri do que havia me lembrado vagamente: P. Emmett (Saint John) fazia parte do elenco do grupo de teatro amador, na foto com Lang. Ele era o mais velho, o que eu havia achado que era um aluno da pós-graduação. Tinha o cabelo mais curto do que os outros, parecia mais convencional: "quadrado", como se dizia naquela época. Era isso que tinha levado McAra tão longe: pesquisar ainda mais sobre Cambridge? Pensando melhor, Emmett também era mencionado nas memórias. Peguei o manuscrito e folheei a parte sobre os dias de universitário de Lang, mas o nome dele não aparecia ali. Em vez disso, ele era citado no último capítulo:

Paul Emmett, professor da Universidade de Harvard, escreveu sobre a excepcional importância dos povos anglófonos na disseminação da democracia no mundo: "Enquanto estas nações permanecerem unidas, a liberdade estará garantida; sempre que elas vacilaram, a tirania ganhou força." Concordo profundamente com este sentimento.

O esquilo voltou e encarou-me com malevolência do acostamento.

Estranho: essa era a esmagadora sensação que eu tinha a respeito de tudo naquele momento. Estranho.

Não sei exatamente por quanto tempo fiquei sentado ali. Lembro-me de que estava tão pasmo que me esqueci de ligar o aquecedor do Ford e que apenas quando ouvi o som de outro carro se aproximando percebi quão frio e rígido eu tinha ficado. Olhei pelo retrovisor e vi dois faróis, então um carro japonês pequeno passou por mim. Uma mulher morena, de meia-idade, estava ao volante e, ao seu lado, um homem por volta dos 60 anos, de óculos, paletó e gravata. Ele se virou para me olhar, e eu soube imediatamente que era Emmett, não por tê-lo reconhecido (o que não foi o caso), mas porque não conseguia imaginar quem mais estaria passando por uma estrada tão erma quanto aquela. O carro parou diante da entrada para carros, e vi Emmett saltar para esvaziar sua caixa de correio. Mais uma vez, ele olhou na minha direção, e pensei que talvez fosse vir tirar satisfação comigo.

Em vez disso, voltou para o carro, que seguiu adiante, saindo do meu campo de visão e indo, ao que tudo indicava, em direção à casa.

Enfiei as fotografias e a página das memórias na minha bolsa a tiracolo, dei aos Emmetts dez minutos para abrirem a casa e se instalarem, então liguei o motor e segui até o portão. Desta vez, quando apertei a campainha, a resposta veio imediatamente.

- Alô?

Era uma voz feminina.

- Estou falando com a Senhora Emmett?

- Quem fala?

- Eu gostaria, se possível, de falar com o professor Emmett.

- Ele está muito cansado. - A voz dela era arrastada, algo entre uma aristocrata inglesa e uma belle do sul dos Estados Unidos, o que era acentuado pelo som metálico do interfone.

- Não tomarei muito do tempo dele.

- Você tem hora marcada?

- É sobre Adam Lang. Estou ajudando-o a escrever suas memórias.

- Aguarde um instante, por favor.

Sabia que eles estariam me observando pela câmera de vídeo. Tentei assumir uma postura respeitável, condizente com a situação. Quando o interfone estalou novamente, foi uma voz masculina, americana, que falou: ressonante, adocicada, de ator.

- Aqui é Paul Emmett. Acredito que você tenha se enganado.

- O senhor estudou em Cambridge com o Senhor Lang, correto?

- Fomos contemporâneos, sim, mas eu não diria que nos conhecemos.

- Eu tenho uma foto dos senhores juntos em uma peça do grupo de teatro da faculdade.

Fez-se uma longa pausa.

- Suba até a casa.

Um motor elétrico rangeu e o portão abriu lentamente.

Enquanto eu seguia pela entrada para carros, o casario de três andares ia aparecendo por entre as árvores: um conjunto central de pedra cinza, flanqueado por alas feitas de madeira e pintadas de branco. A maioria das janelas era arqueada, com vidro canelado e grandes persianas de ripas de madeira. Ela poderia ter qualquer idade, de seis meses a um século. Um pequeno lance de degraus levava a uma varanda sustentada por pilares, na qual o próprio Emmett me esperava. A extensão do terreno e as árvores que o invadiam davam uma grande sensação de isolamento. Parei diante da garagem, ao lado do carro de Emmett, e saí carregando minha bolsa.

- Perdoe-me se pareço um pouco grogue - disse Emmett, depois de trocarmos um aperto de mãos. - Acabamos de voltar de Washington, estou me sentindo um pouco cansado. Geralmente não recebo ninguém sem hora marcada. Mas sua menção à fotografia atiçou bastante a minha curiosidade.

Ele se vestia com o mesmo esmero com que falava. Seus óculos tinham uma armação moderna de casco de tartaruga, seu paletó era cinza-escuro, a camisa era de um azul-claro meio esverdeado e a gravata vermelha tinha uma estampa de faisões em vôo; um lenço de seda no bolso de cima do paletó combinava com ela. Ao me aproximar dele, pude perceber o jovem que havia por trás dos olhos do homem mais velho: a idade apenas o embotara, só isso. Ele não conseguia parar de olhar para a minha bolsa. Sabia que ele queria que eu retirasse a fotografia ali mesmo nos degraus da entrada. Porém, eu era esperto demais para fazer isso. Esperei - e continuei esperando - até ele se ver obrigado a dizer:

- Certo. Por favor, entre.

A casa tinha um piso de madeira brilhante e cheirava a cera de polimento e flores secas. Havia um clima sinistro de abandono nela. Um relógio de pêndulo fazia um tique-taque alto no patamar. Eu conseguia ouvir sua mulher ao telefone em outro cômodo.

- Sim - disse ela -, ela está aqui agora.

Então deve ter se afastado. Sua voz ficou indistinta, e então desapareceu de todo,

Emmett fechou a porta às nossas costas,

- Posso ver? - perguntou ele.

Retirei a fotografia do elenco e a entreguei a ele. Paul Emmett Ievantou os óculos até o emaranhado de cabelos grisalhos e encaminhou-se com ela até a janela do hall. Parecia em boa forma para a sua idade e imaginei que praticasse algum esporte regularmente: squash, provavelmente; golfe, sem dúvida.

- Ora, ora - disse ele, segurando a imagem em preto-e-branco lob a luz fraca de inverno, inclinando-a para um lado e para o outro, fltando-a de cima do seu nariz grande, como um especialista conferindo se uma pintura é autêntica. - Eu, absolutamente, não me lembro diiso,

- Mas é o senhor?

- Ah, sim. Eu fazia parte do conselho da Dramat nos anos 1960. Que foi uma época e tanto, como o senhor pode imaginar. - Ele trocou uma risadinha de cumplicidade com sua imagem juvenil. - Ah, sim.

- A Dramat?

- Perdão. - Ele ergueu os olhos. - A Associação de Artes Cênicas de Yale. Pensei que daria prosseguimento ao meu interesse pelo teatro quando fui para Cambridge, para minha pesquisa de doutorado. Infelizmente, só consegui ficar um período no grupo de teatro de lá) antes de a pressão do trabalho colocar um ponto final na minha carreira dramática. Posso ficar com isso?

- Infelizmente, não. Mas certamente posso conseguir uma cópia para o senhor.

-Você faria isso? Seria muita gentileza. - Ele virou a fotografia e examinou o verso. - Cambridge Evening News. Precisa me contar como encontrou essa foto.

- Seria um prazer - falei. E, novamente, esperei. Era como jogar cartas. Ele não abriria o jogo se eu não o forçasse. O relógio grande tique taque ou algumas vezes.

- Venha até o meu escritório - disse ele.

Ele abriu uma porta e eu o segui até uma sala que parecia ter saído do clube de Rick em Londres: papel de parede verde-escuro, livros do chão ao teto, escadinha de biblioteca, mobília de couro marrom estofada demais, um púlpito de latão em forma de águia, um busto romano; um leve aroma de charutos. Uma parede era dedicada às lembranças notáveis: condecorações, prêmios, títulos honorários e um monte de fotografias. Pude ver Emmett com Bill Clinton e Al Gore, Emmett com Margaret Thatcher e Nelson Mandela. Eu lhe diria o nome dos demais se soubesse quem eram. Um chanceler alemão. Um presidente francês. Havia também uma fotografia sua com Lang, um aperto de mão sorridente no que parecia ser um coquetel. Ele notou que eu estava olhando.

- A parede do ego - disse ele. - Todos temos uma dessas. Pense nela como o equivalente ao aquário no consultório de um dentista. Por favor, sente-se. Infelizmente, posso lhe dar apenas alguns minutos.

Sentei-me no sofá marrom duro enquanto ele assumia a cadeira do comandante atrás da mesa. Ela deslizava com facilidade para frente e para trás. Ele colocou os pés em cima da mesa, oferecendo-me uma bela vista das solas ligeiramente gastas de seus sapatos.

- Então - disse. - A foto.

- Estou trabalhando com Adam Lang nas suas memórias.

- Eu sei. Você disse. Pobre Lang. Um negócio muito sujo, este embuste em Haia. Quanto a Rycart, a meu ver ele foi o pior secretário de Relações Internacionais desde a guerra. Foi um erro terrível tê-lo nomeado. Porém, se o TPI continuar se comportando de forma tão ridícula, eles vão conseguir apenas transformar Lang em um mártir, depois em herói e, daí - acrescentou ele, gesticulando graciosamente na minha direção -, em um best-seller.

- Qual o seu grau de amizade com ele?

- Com Lang? Mal o conheço. Você parece surpreso.

- Bem, para começar, ele menciona o senhor nas memórias.

Emmett pareceu genuinamente admirado,

-Agora é minha vez de ficar surpreso. O que ele diz?

- É uma citação, no começo do último capítulo. - Peguei a página em questão na bolsa. - "Enquanto estas nações", o senhor se refere a todas as nações que falam inglês, "permanecerem unidas", abre aspas, "a liberdade estará garantida: sempre que elas vacilarem, a tirania ganhou forças." E então Lang diz: "Concordo profundamente com este sentimento."

- Bem, é muita gentileza da parte dele - falou Emmett. - E seus instintos como primeiro-ministro eram bons, na minha opinião. Mas isso não significa que eu o conhecesse.

- E tem aquilo ali, também - falei, apontando para a parede do ego.

- Ah, aquilo. - Emmett abanou a mão com desdém. - É apenas uma foto tirada em uma recepção no Claridge's, para registrar o décimo aniversário do Instituo Arcádia.

- O Instituto Arcádia? - repeti.

- É uma pequena organização que eu costumava administrar. Ela é muito seleta. Você não tem motivos para ter ouvido falar dela. O primeiro-ministro nos honrou com sua presença. Foi uma coisa meramente profissional.

- Mas o senhor deve ter conhecido Adam Lang em Cambridge - insisti.

- Não exatamente. Durante um período de verão, nossos caminhos se cruzaram. Foi só isso.

- O senhor não se lembra bem dele? - Peguei meu bloco de anotações. Emmett encarou-o como se eu tivesse sacado um revólver.

- Desculpe-me - falei. - O senhor se importa?

- Em absoluto. Vá em frente. Só estou um pouco perplexo. Durante todos esses anos, ninguém mencionou nossa ligação através de Cambridge. Eu mesmo mal tinha pensado sobre isso até agora. Não acho que possa dizer nada que valha à pena colocar no papel.

- Mas os senhores atuaram juntos?

-Em uma peça. Um espetáculo de verão. Nem me lembro mais o nome. O grupo tinha umas cem pessoas.

- Então ele não causou impressão nenhuma no senhor?

- Nenhuma.

- Mesmo ele tendo se tornado primeiro-ministro.

- É claro que se eu soubesse que ele iria chegar a isso, teria me dado ao trabalho de conhecê-lo melhor. Porém, no meu tempo, conheci oito presidentes, quatro papas e cinco primeiros-ministros ingleses, e nenhum deles me pareceu o que eu chamaria de verdadeiramente extraordinário em pessoa.

Sim, pensei, mas nunca lhe passou pela cabeça que talvez eles não o tenham achado grande coisa, também? Mas não falei isso. O que disse foi:

- Posso lhe mostrar outra coisa?

- Se você achar mesmo que pode me interessar. - Ele conferiu ostensivamente as horas no relógio.

Peguei as outras fotografias. Olhando-as novamente, era óbvio que Emmett estava presente em várias delas. Na verdade, ele era inequivocamente o homem no piquenique de verão que fazia sinal de positivo com o polegar atrás das costas de Lang, enquanto o futuro primeiro-ministro fazia uma imitação de Bogart com seu baseado e recebia morangos e champanhe na boca.

Estendi o braço e entreguei as fotos a Emmett, que fez sua pequena atuação afetada novamente, puxando os óculos para cima para poder analisá-las com os olhos nus. Eu podia vê-lo agora: sagaz, rosado e imperturbável. A expressão dele não vacilou, o que me pareceu estranho, pois a minha certamente teria vacilado, em circunstâncias semelhantes.

- Minha nossa - falou ele. - Isso é o que eu estou pensando? Espero que ele não tenha tragado.

- Mas é o senhor que está atrás dele, não é?

- Creio que sim. E creio também que estou prestes a adverti-lo severamente sobre os perigos do abuso de drogas. Não consegue perceber as palavras se formando nos meus lábios? - Ele me devolveu as fotografias e puxou os óculos de volta para o nariz, Inclinando-ae mais para trás na cadeira ele me examinou com atenção. - O Senhor Lang quer mesmo que essas fotos saiam nas memórias? Se ele quiser, eu preferiria não ser identificado. Meus filhos ficariam mortificados. Eles são muito mais puritanos do que eu.

- O senhor saberia me dizer o nome de qualquer outra pessoa na foto? Da garota, talvez?

-Sinto muito. Aquele verão não passa de um borrão para mim... um longo e alegre borrão. O mundo podia estar desmoronando à nossa volta, mas nós estávamos festejando.

As palavras dele me fizeram lembrar de algo que Ruth havia dito: sobre todas as coisas que estavam acontecendo na época em que aquela foto foi tirada.

- O senhor deve ter tido a sorte - falei -, já que estava em Yale no fim dos anos 1960, de não ter sido convocado para o Vietnã.

- É como aquele velho ditado: "Se você fosse endinheirado, não precisava virar soldado." Fui dispensado por ser estudante. Agora - disse ele, girando na cadeira e tirando os pés de cima da mesa. De repente, ficou muito mais sério. Pegou uma caneta e abriu um bloco de anotações. - Você estava para me dizer onde conseguiu essas fotos.

- O nome Michael McAra significa algo para o senhor?

- Não. Deveria?

Ele respondeu só um pouquinho depressa demais, pensei.

- McAra foi meu predecessor no que diz respeito às memórias de Lang - falei. - Foi ele quem solicitou as fotos da Inglaterra. Ele veio de carro até aqui para ver o senhor umas três semanas atrás e morreu poucas horas depois.

- Veio me ver? - Emmett balançou a cabeça. - Temo que você esteja enganado. De onde ele estava vindo?

- De Martha's Vineyard.

- Martha's Vineyard! Meu caro, não tem ninguém em Martha's Vineyard nesta época do ano.

Ele eestava me provocando novamente: qualquer pessoa que tivesse assistido ao noticiário no dia anterior saberia onde Lang estava hospedado.

- O veículo que McAra estava dirigindo tinha o endereço do lenhor programado no sistema de navegação - falei.

- Bem, não consigo imaginar o porquê disso. - Emmett acariciou o queixo e pareceu refletir cuidadosamente sobre a questão. - Não, realmente não consigo. E, mesmo que isso seja verdade, certamente não prova que ele tenha de fato feito a viagem. Como ele morreu?

- Afogado.

- Sinto muito. Nunca acreditei no mito de que a morte por afogamento é indolor, você acredita? Tenho certeza de que deve ser excruciante.

- A polícia nunca falou com o senhor a respeito disso?

- Não. Não tive nenhum tipo de contato com a polícia.

- Onde o senhor estava no fim de semana dos dias 11 e 12 de janeiro.

Emmett suspirou.

- Um homem menos moderado do que eu estaria começando a achar suas perguntas insolentes. - Ele saiu de trás da mesa e caminhou até a porta. - Nancy! - chamou. - Nosso convidado quer saber onde estávamos no fim de semana dos dias 11 e 12 de janeiro. Nós temos esta informação? - Ele ficou parado segurando a porta aberta e lançou-me um sorriso inamistoso. Quando a Senhora Emmett surgiu, ele não se deu ao trabalho de me apresentar. Ela carregava uma agenda.

- Foi o fim de semana que passamos no Colorado - disse ela, mostrando a agenda ao marido.

- É claro - falou ele. - Estávamos no Instituto Aspen - disse ele, sacudindo a página para mim. - Relações bipolares em um mundo multipolar.

- Parece divertido.

- E foi - Ele fechou a agenda com um estalo que encerrava a questão. - Eu fui o palestrante principal,

- O senhor passou o fim de semana inteiro lá?

- Eu, sim - disse a Senhora Emmett. - Fiquei para esquiar. Emmett voltou no domingo, não foi, querido?

- Então o senhor poderia ter encontrado McAra - disse-lhe.

- Poderia, mas não encontrei.

- Retornando para Cambridge... - comecei a falar.

- Não - retrucou ele, erguendo a mão. - Por favor. Se você não se importa, gostaria de não retornar para Cambridge. Já disse tudo o que tinha a dizer sobre o assunto. Nancy?

Ela devia ser vinte anos mais jovem que Emmett e pulou ao ser chamada por ele de um jeito que nenhuma primeira esposa jamais faria.

- Emmett?

- Você poderia acompanhar nosso amigo até a saída? Enquanto trocávamos um aperto de mãos, ele disse:

- Sou um leitor assíduo de memórias políticas. Com certeza comprarei o livro de Lang quando for lançado.

- Talvez ele lhe mande um exemplar - falei -, pelos velhos tempos.

- Duvido muito - respondeu ele. - O portão abrirá automaticamente. Não se esqueça de pegar à direita no fim da entrada para carros. Se pegar a esquerda, a estrada o levará para as profundezas da floresta e o senhor nunca mais será visto novamente.

A Senhora Emmett fechou a porta às minhas costas antes mesmo de eu chegar ao último degrau. Eu podia sentir seu marido me observando da janela do escritório enquanto andava pela grama úmida até o Ford. No fim da entrada para carros, enquanto eu esperava o portão abrir, o vento soprou de repente pelos galhos das árvores altas dos meus dois lados, fazendo a água da chuva açoitar com violência todo o carro. Levei um susto tão grande que senti os pêlos da minha nuca se levantarem, transformando-se em pequenos espinhos.

Parei na estrada vazia e comecei a voltar pelo mesmo caminho. Sentia-me um pouco nervoso, como se tivesse acabado de descer um lance de escadas na escuridão e dado falta dos últimos degraus. Minha prioridade imediata era deixar aquelas árvores para trás.

- Dê meia-volta assim que possível.

Parei o Ford, agarrei o sistema de navegação com as duas mãos e o torci e puxei ao mesmo tempo. Ele se desgrudou do painel de controle com um barulho gratificante de cabos se partindo e eu o atirei no vão para os pés do carona. No mesmo instante, percebi que um carro preto grande com faróis altos se aproximava por trás de mim. Ele ultrapassou o Ford rápido demais para que eu pudesse ver quem estava dirigindo, acelerou até o cruzamento e desapareceu. Quando olhei para trás, a pista estava deserta novamente.

É curioso como o medo funciona. Se uma semana antes tivessem me pedido para prever o que eu faria numa situação dessas, eu teria dito que voltaria direto para Martha's Vineyard e tentaria tirar tudo aquilo da minha cabeça. Porém, descobri que, na verdade, a natureza mistura um elemento inesperado de raiva ao medo, supostamente para incentivar a sobrevivência da espécie. Como um homem das cavernas diante de um tigre, meu instinto naquele momento foi não fugir, mas sim, por algum motivo, voltar até o arrogante Emmett - o tipo de reação louca e atávica que leva chefes de família normalmente sãos a perseguir ladrões armados pela rua, na maioria das vezes com consequências desastrosas.

Então, em vez de agir com sensatez e tentar encontrar o caminho de volta para a interestadual, segui as placas até Belmont, uma cidade desenvolvida, arborizada e rica, de uma limpeza e ordem aterrorizantes - o tipo de lugar em que você precisa de licença até para ter um gato. As ruas bem cuidadas, com seus mastros de bandeiras e veículos com tração nas quatro rodas, passavam uma atrás da outra, aparentemente Idênticas. Segui pelos bulevares, sem conseguir me encontrar, até que finalmente cheguei a algo que parecia ser o centro da cidade. Desta vez, quando estacionei o carro, levei minha mala comigo.

Eu estava em uma rua chamada Leonard Street, na qual uma série de lojas bonitas com toldos coloridos contornava um pano de fundo de árvores grandes e desfolhadas. Um dos prédios era rosa. Uma camada de neve, derretida nas pontas, cobria os telhados cinza. Poderia ler uma estação de esqui. Ela me oferecia várias coisas das quais eu não precisava-um agente imobiliário, um joalheiro, um cabeleireiro - e uma de que eu precisava: um cyber café. Pedi um café e um baguete e sentei-me o mais longe possível da janela. Coloquei minha mala na cadeira à minha frente, para desencorajar qualquer pessoa que pensasse em se sentar comigo, beberiquei meu café, dei uma mordida no meu baguete, cliquei no Google, digitei "Paul Emmett" "Instituto Arcádia" e inclinei-me em direção à tela.

De acordo com o www.arcadiainstitution.org, o Instituto Arcádia foi fundado, em agosto de 1991, no quinquagésimo aniversário da primeira reunião de cúpula entre o primeiro-ministro Winston S. Churchill e o presidente Franklin D. Roosevelt, em Placentia Bay, Newfoundland. Havia uma fotografia de Roosevelt no convés de um encouraçado americano, usando um elegante terno cinza, recebendo Churchill, que era cerca de uma cabeça mais baixo e vestia um estranho uniforme naval azul-escuro amarrotado e um quepe para completar. Ele parecia um jardineiro-chefe matreiro cumprimentando um proprietário de terras local.

O objetivo da instituição, segundo a página na internet, era "aprofundar as relações anglo-americanas e fomentar os eternos ideais da democracia e da liberdade de expressão que as duas nações sempre defenderam em tempos de paz e guerra". Isto seria conquistado "por meio de seminários, ações políticas, conferências e iniciativas de desenvolvimento de lideranças", assim como pela publicação de uma revista semestral, The Arcadian Review, e pelo financiamento de dez Bolsas Arcádia, concedidas anualmente, para pesquisas de pós-graduação sobre "assuntos Culturais, políticos e estratégicos de interesse mútuo para a Grã-Bretanha e os Estados Unidos". O Instituto Arcádia possuía escritórios em Saint James Square, Londres, e em Washington, e os nomes que constavam em seu conselho de administração - ex-embaixadores, presidentes de Corporações, professores de universidade - pareciam uma lista de convidados para a festa mais entediante que você suportaria na sua vida.

Paul Emmett foi o primeiro presidente e diretor-executivo da instituição, e a página na internet oferecia, de forma muito útil, sua vida em um parágrafo: nascido em Chicago, em 1949, formado pela Universidade Yale e pelo Saint John's College, Cambridge (bolsista da Rhodes); palestrante sobre política externa na Universidade Harvard, 1975-79 e, subseqüentemente, professor de relações internacionais, 1979-91; posteriormente fundador do Instituto Arcádia; presidente emérito desde 2007; publicações: Para onde vais: o relacionamento especial 1940-1956; O enigma da mudança: perdendo impérios, descobrindo papéis: alguns aspectos das relações EUA-Reino Unido desde 1956; As correntes de Prometeu: limitações da política externa na era nuclear, A geração triunfante: América, Inglaterra e a nova ordem mundial; Porque estamos no Iraque. Havia um perfil na revista Time, que descrevia seus hobbies como sendo squash, golfe e as óperas de Gilbert & Sullivan, "que ele e sua segunda esposa, Nancy Cline, uma analista de segurança de Houston, Texas, geralmente pedem que seus convidados representem no final de seus famosos jantares na próspera cidade-dormitório de Belmont, MA".

Vasculhei as primeiras das 37 mil entradas que o Google prometia sobre Emmett e o Arcádia.

Mesa-redonda sobre a Política no Oriente Médio - Instituto Arcádia... O estabelecimento da democracia na Síria e no Ira... Paul Emmett em sua palestra de abertura afirmou sua crença...

www.arcadiainstitution.org/site/roundtable/A56fl%2004.htm-35k - Em cachê - Páginas semelhantes.

 

Instituto Arcádia - Wikipédla, a enciclopédia livre

O Instituto Arcádia é uma organização sem fins lucrativos anglo-americana fundada em 1991 sob a presidência do professor Paul Emmett...

en.wikipedia.org/wiki/Arcadia Institution - 35k - Em cache - Páginas semelhantes

 

Instituto Arcadia/Grupo Estratégico Arcadia - SourceWatch - O Instituto Arcádia descreve a si mesmo como dedicado a fomentar...

O professor Paul Emmett, um especialista em assuntos anglo-americanos...

www.sourcewatch.org/index.php?title=ArcadiaInstitution - 39k -

 

USATODAY.com - 5 Perguntas para Paul Emmett

Paul Emmett, ex-professor de relações internacionais em Harvard, agora comanda o influente Instituto Arcadia...

www.usatoday.com/world/2002-08-07/questions_x.htm?tab1. htm - 35k -

 

Quando fiquei entediado com aquela ladainha sobre seminários e conferências de verão, mudei minha pesquisa para "Instituto Arcadia" "Adam Lang" e encontrei uma matéria na página do Guardian sobre a recepção de aniversário do instituto e o comparecimento do primeiro-ministro. Mudei para o Google Imagens e recebi um mosaico de imagens bizarras: um gato, uma dupla de acrobatas de collant, um cartum de Lang respirando em um saco com a legenda: "Prestes a ser humilhado." Este era o problema com a pesquisa na internet, pela minha experiência. A proporção entre o que é útil e o que é lixo degringola muito depressa, e de repente é como se você estivesse procurando por algo que caiu pelo vão de trás do sofá e achasse um punhado de moedas, botões, sujeira e doces chupados. O importante é fazer a pergunta certa, e de algum modo eu percebi que estava indo pelo caminho errado.

Parei para esfregar meus olhos doloridos. Pedi outro café e outro baguete e dei uma olhada nos outros clientes. Eram poucos, levando-se em conta que era hora de almoço: um senhor com seu jornal, um homem e uma mulher de 20 e poucos anos de mãos dadas, duas mães - ou, mais provavelmente, babás - fofocando enquanto seus três bebês brincavam discretamente debaixo da mesa e dois rapazes com cabelo cortado à escovinha, que poderiam ser das Forças Armadas, ou de um dos serviços de emergência, talvez (eu tinha visto um corpo de Bombeiros lá perto): estavam todos sentados em banquinhos no bar), as costas viradas para mim, conversando animadamente. Retornei à página do Instituto Arcadia e cliquei no conselho administrativo. E então todos eles vieram à tona, como espíritos conjurados das vastas profundezas transatlânticas: Steven D. Engler, ex-secretário de Defesa dos EUA; lorde Leghorn, ex-secretário de Relações Internacionais britânico; Sir David Moberly, GCMG, KCVO, o centenário ex-embaixador britânico em Washington; Raymond T. Streicher, ex-embaixador americano em Londres; Arthur Prússia, presidente e dlretor-executivo do Grupo Hallington; professor Mel Crawford, da John F. Kennedy School of Government; Dame Unity Chambers, da Fundação de Estudos Estratégicos; Max Hardaker, da Godolphin Securities; Stephanie Cox Morland, diretora sênior da Manhattan Equity Holdings; Sir Milius Rapp, da Faculdade de Economia de Londres; Cornelius Iremonger, da Cordesman Industriais; e Franklin R. Dollerman, sócio principal da McCosh & Partners.

Diligentemente, comecei a digitar seus nomes, juntos com o de Adam Lang, na ferramenta de busca. Engler havia elogiado a coragem inabalável de Lang na página de opinião do New York Times. Leghorn havia feito um discurso constrangido na Câmara dos Lordes, lamentando a situação no Oriente Médio, porém chamando o primeiro-ministro de "um homem honesto". Moberly sofrera um derrame e não tinha nada a dizer. Streicher tinha expressado seu apoio na época em que Lang viajou até Washington para receber sua Medalha Presidencial da Liberdade. Eu estava começando a me cansar de todo aquele processo quando digitei Arthur Prússia. Foi então que encontrei um press release de um ano atrás.

LONDRES-O Grupo Halllngton tem o prazer de anunciar que Adam Lang, o ex-primeiro-ministro da Grt-Bretanha, se juntará à companhia como consultor estratégico.

O cargo do Senhor Lang, que não será em tempo integral, envolverá o fornecimento de consultoria e assessoria a investidores sénior do Grupo Hallington em todo o mundo.

Segundo Arthur Prússia, presidente e diretor-executivo do Grupo: "Adam Lang é um dos estadistas mais respeitados e experientes do mundo, e estamos honrados de poder contar com sua vasta experiência."

Adam Lang disse: "Recebo de braços abertos o desafio de trabalhar com uma companhia de alcance global, comprometida com a democracia e de renomada integridade como o Grupo Hallington."

Eu nunca tinha ouvido falar do Grupo Halligton, então fui pesquisar. Seiscentos funcionários; 24 escritórios em todo o mundo; meros quatrocentos investidores, quase todos sauditas - e 35 bilhões de dólares em caixa. A listagem das companhias controladas por ele parecia ter sido selecionada por Darth Vader. Os subsidiários do Grupo Hallington produziam bombas de fragmentação, morteiros de autopropulsão, mísseis interceptadores, helicópteros antitanque, bombardeiros com asas de geometria variável, tanques, centrífugas nucleares, porta-aviões. Ele era dono de uma companhia que fornecia segurança para empreiteiras no Oriente Médio, de outra que executava operações de vigilância e checagem de dados nos Estados Unidos e em todo o mundo e de uma construtora especializada em bunkers e pistas de decolagem. Dois membros do seu conselho principal haviam sido diretores da CIA.

Sei que a internet é a mãe dos delírios de todos os paranóicos. Sei que ela coloca tudo no mesmo pacote - Lee Harvey Oswald, princesa Diana, al-Qaeda, Israel, M16, círculos que aparecem no meio de plantações - e o amarra com belas fitas azuis de hyperlinks, criando uma grande e única conspiração. Mas também sei da sabedoria daquele velho ditado de que um paranóico é simplesmente uma pessoa que conhece todos os fatos, e quando digitei "Instituto Arcadia" "Grupo Hallington" "CIA", notei que algo estava começando a vir à tona, como os contornos de um navio-fantasma, da neblina de dados na tela.

 

washingtonpost.com: jato do Grupo Hailington relacionado aos "vôos de tortura" da CIA

A companhia negou qualquer conhecimento do programa de "capturaextraordinária" da CIA... membros do conselho do prestigioso...

 

O Instituto Arcádia em...

www.washingtonpost.com/ac2/wp-dyn/A278242007Dec26language= - Em Cache - Páginas semelhantes

 

Cliquei na matéria e desci a barra de rolagem até a parte que me interessava:

O jato Gulfstream Quatro do Grupo Hallington foi fotografado clandestinamente - menos o logotipo da empresa - na base militar de Stare Kiejkuty, na Polônia, onde a CIA manteria um centro de detenção secreto, no dia 18 de fevereiro.

Isto aconteceu dois dias depois de quatro cidadãos britânicos - Nasir Ashraf, Shakeel Qazi, Salim Khan e Faruk Ahmed - terem sido supostamente raptados por agentes da CIA em Peshawar, no Paquistão. Segundo informações, o Senhor Ashraf morreu de falência cardíaca depois de ser submetido à técnica de interrogatório conhecida como "water boarding'.

Entre fevereiro e julho daquele mesmo ano, o jato fez 51 visitas a Guantánamo e 82 visitas ao Aeroporto Internacional Washington Dulles, além de aterrissagens na base aérea de Andrews, fora da capital, e em bases aéreas americanas, em Ramstein e RheinMain, na Alemanha.

A caixa-preta do avião também registra visitas ao Afeganistão, Marrocos, Dubal, Jordânia, Itália, Japão, Suíça, Azerbaijão e República Tcheca.

O logotipo do Grupo Hallington estava visível em fotografias tiradas em uma exposição de aviões em Schenectady, NY, em 23 de agosto, oito dias depois de o Gulfstream voltar para Washington de um vôo que deu a volta ao mundo, incluindo paradas em Anchorage; Osaka, Japão; Dubai e Shannon.

O logotipo não estava visível quando o Gulfstream foi fotografado durante uma parada para abastecimento, em Shannon, no dia 27 de setembro. Porém, quando o avião chegou ao Aeroporto Internacional de Denver, em fevereiro deste ano, uma foto mostrava que ele trazia não só o logotipo do Grupo Hallington, como também um novo número de registro.

Um porta-voz do grupo confirmou que o Gulfstream havia sido alugado com freqüência para outros operadores, mas insistiu em que a companhia não tinha conhecimento dos usos que foram feitos dele.

Water boarding! Eu nunca tinha ouvido falar daquilo. Parecia bastante inofensivo, uma espécie de esporte exclusivo dos americanos, uma mistura de windsurfe com rafting. Procurei em um site.

Water boarding consiste em amarrar com firmeza um prisioneiro em uma tábua inclinada, de maneira que seus pés fiquem mais altos que a cabeça, imobilizando-o por completo. Um pedaço de pano ou celofane é então usado para cobrir o rosto do prisioneiro, sobre o qual o interrogador derrama um fluxo constante de água. Embora um pouco do líquido possa entrar nos pulmões da vítima, é a sensação psicológica de se estar debaixo d'água que torna o water boardingtão eficiente. Um reflexo de vômito é desencadeado, o prisioneiro sente que está literalmente se afogando e quase imediatamente pede para ser libertado. Agentes da CIA que foram submetidos ao water boarding como parte do seu treinamento suportaram uma média de 14 segundos antes de sucumbir. O prisloneiro mais imperturbável da al-Qaeda e suposto mentor dos ataques de 11 de setembro, Khalld Sheik Mohammed, ganhou a admiração dos seus interrogadores da CIA ao conseguir suportar dois minutos e meio antes de começar sua confissão.

O water boarding pode causar dores fortes e danos aos pulmões e ao cérebro graças à falta de oxigenação, fraturas e deslocamentos nos membros graças ao esforço para se libertar e traumas psicológicos duradouros. Em 1947, um oficial japonês foi condenado por crime de guerra a 15 anos de trabalhos forçados por ter submetido um cidadão americano ao water boarding. De acordo com uma investigação realizada pela ABC News, a CIA autorizou o início da utilização do water boarding em meados de março de 2002 e recrutou um grupo de 14 interrogadores treinados na técnica.

Havia uma ilustração do Camboja de Pol Pot de um homem amarrado pelos pulsos e tornozelos a uma mesa inclinada, deitado de costas, de cabeça para baixo. Ele tinha um saco na cabeça. Seu rosto estava sendo encharcado por um homem que segurava um regador. Em uma outra fotografia, um suspeito vietnamita, preso ao chão, recebia um tratamento semelhante de três soldados americanos que usavam água de uma garrafa. O soldado com a garrafa estava sorrindo. O homem sentado na cadeira do prisioneiro segurava um cigarro casualmente entre o segundo e terceiro dedos da mão direita.

Recostei-me na minha cadeira e pensei em várias coisas. Pensei, especialmente, no comentário de Emmett sobre a morte de McAra - que se afogar não era indolor, mas excruciante. Naquela hora, pareceu-me estranho que um professor dissesse uma coisa daquelas. Flexionando os dedos, como um pianista de concerto que se prepara para tocar um movimento final desafiador, digitei uma nova pesquisa na ferramenta de busca: "Paul Emmett" "CIA".

Imediatamente, a tela se encheu de resultados, todos eles, à primeira vista, lixo: artigos e resenhas de livros escritos por Emmett nos quais ele calhava de mencionar a CIA; artigos de outras pessoas sobre CIA que também continham referências a Emmett; artigos sobre o Instituto Arcadia em que as palavras "CIA" e "Emmett" apareciam. Devo ter passado por trinta ou quarenta entradas ao todo, até chegar a uma que parecia promissora.

 

A CIA na Academia

"A Agência Central de Inteligência atualmente está usando várias centenas de acadêmicos americanos... Paul Emmett...

www.spooks-on-campus.org/Church/llstKI897a/html -11 k

 

O cabeçalho da página dizia "Em quem Frank estava pensando???" e começava com uma citação do relatório do comitê legislativo sobre a CIA do senador Frank Church, publicado em 1976: A Agência Central de Inteligência atualmente está usando centenas de acadêmicos americanos ("acadêmicos" inclui funcionários administrativos, professores e estudantes da pós-graduação que fazem parte do corpo docente) que, além de fornecerem pistas e, quando necessário, apresentarem pessoas para fins de inteligência. Ocasionalmente escrevem livros e outros materiais que são usados para propaganda no exterior. Além disso, um pequeno grupo adicional é usado involuntariamente para atividades menores.

Abaixo, em ordem alfabética, havia uma lista com links para cerca de vinte nomes. Um deles era o de Emmett e, quando cuquei nele, me senti como se tivesse caído em um alçapão.

Segundo o informante da CIA Frank Molinari, Paul Emmett, formado em Yale, entrou para a CIA como agente em 1969 ou 1970, sendo designado para a Divisão de Recursos Internacionais do Diretório de Operações. (Fonte: Dentro da Agência, Amsterdã,1977)

- Ah, não - falei baixinho. - Não, não. Isso não pode estar certo.

Devo ter ficado um minuto inteiro olhando para a tela, até que o barulho repentino de uma louça se quebrando me arrancou dos meus devaneios. Olhei em volta e vi que uma das crianças que estavam brincando debaixo da mesa havia derrubado tudo. Enquanto uma garçonete vinha correndo com uma pá de lixo e uma vassoura e as babás (ou mães) ralhavam com as crianças, percebi que os dois homens de cabelo à escovinha no balcão não estavam dando a menor atenção àquele pequeno drama: em vez disso, olhavam fixamente para mim. Um deles estava com um celular na orelha.

Muito calmamente - torci para que mais calmamente do que eu estava me sentindo - desliguei o computador e fingi dar um último gole no café. O líquido tinha esfriado enquanto eu trabalhava, e eu o senti gelado e amargo nos lábios. Então, peguei minha mala e coloquei uma nota de vinte dólares na mesa. Já estava pensando que, se alguma coisa acontecesse comigo, a garçonete aborrecida certamente se lembraria do inglês solitário que pegara a mesa mais longe da janela e dera uma gorjeta absurdamente alta. Não faço a mínima idéia de que bem isto poderia me fazer, mas me pareceu inteligente na hora. Fiz questão de não olhar para os dois homens de cabelo à escovinha quando passei por eles.

Na rua, sob a luz cinza e fria, com o Starbucks de toldo verde algumas portas para trás, o tráfego que passava lentamente ("Bebê a Bordo: Por favor, Dirija com Atenção") e os pedestres idosos com seus chapéus e luvas de pele, pude imaginar por um instante que havia passado a última hora jogando algum jogo caseiro de realidade virtual. Mas então a porta do café se abriu atrás de mim e os dois homens saíram. Subi depressa a rua em direção ao Ford e, assim que estava atrás do volante, tranquei-me lá dentro. Quando olhei pelos retrovisores, não consegui ver nenhum dos meus companheiros de café.

Fiquei parado por algum tempo. Sentia-me mais seguro simplesmente sentado ali. Fantasiei que, talvez, se eu ficasse na mesma posição por tempo suficiente, de alguma forma seria absorvido por osmose pela vida pacífica e próspera de Belmont. Poderia fazer o que todos aqueles aposentados se dedicavam a fazer - jogar uma partida de bridge, talvez, ou assistir a um filme na matinê, ou passear pela biblioteca local para ler os jornais e balançar a cabeça diante da maneira como o mundo estava todo indo para o inferno, agora que minha geração imatura e mimada estava no comando. Fiquei olhando as mulheres com seus cabelos recém-cortados saírem do cabeleireiro e tatearem de leve seus penteados. O jovem casal que antes estava de mãos dadas no café examinava alianças na vitrine da joalheria.

E quanto a mim? Eu sentia uma pontada de autocomiseração. Estava apartado de toda aquela normalidade como se estivesse em uma bolha de vidro.

Retirei as fotografias do envelope novamente e peguei a de Lang e Emmett juntos no palco. Um futuro primeiro-ministro e um suposto agente da CIA desfilando com luvas e chapéus em um espetáculo cômico? Parecia não só improvável, como grotesco, mas lá estava a prova nas minhas mãos. Virei a fotografia e analisei o número escrito no verso, e quanto mais o analisava, mais óbvio parecia que só havia uma atitude a tomar. O fato de que eu iria, novamente, seguir os passos de McAra era inevitável.

Esperei os jovens amantes entrarem na joalheria e então peguei meu celular. Desci a barra de rolagem até onde o número estava gravado e liguei para Richard Rycart.

 

Metade do trabalho do ghost-writer é descobrir sobre a vida de outras pessoas.

Ghostwriting

 

Dessa vez, ele atendeu em poucos segundos.

- Então você ligou de volta - disse com tranquilidade, naquela sua voz nasalada e monocórdia. - De certa forma, tinha a sensação de que ligaria, seja você quem for. Poucas pessoas têm esse número. - Ele esperou que eu respondesse. Eu conseguia ouvir um homem falando ao fundo... dando uma palestra, pareceu-me. - Bem, meu amigo, vai ficar na linha desta vez?

- Vou - respondi.

Ele esperou novamente, mas eu não sabia como começar. Não parava de pensar em Lang - no que ele pensaria se me visse falando com o seu aspirante a nêmesis. Eu estava quebrando todas as regras do manual dos ghost-writers. Estava violando o termo de confidencialidade que havia assinado com Rhinehart. Era um suicídio profissional.

- Tentei ligar para você algumas vezes - continuou ele. Detectei um quê de repreensão.

Do outro lado da rua, os jovens amantes haviam saído da joalheria e andavam na minha direção.

- Eu sei - disse, encontrando finalmente minha voz. - Desculpe-me. Eu encontrei o seu número anotado em um lugar. Não sabia de quem era, então arrisquei ligar. Não me pareceu correto falar com o senhor.

- E por que não?

O casal passou. Eu os segui pelo retrovisor. Estavam com as mãos um no bolso de trás do outro, como batedores de carteira em um encontro às escuras.

Mergulhei de cabeça.

- Estou trabalhando para Adam Lang. Meu...

- Não diga seu nome - apressou-se ele em dizer. - Não use nenhum nome. Não especifique nada. Onde exatamente encontrou meu número?

A pressa dele me irritou.

- No verso de uma fotografia.

- Que tipo de fotografia?

- Da época em que meu cliente estava na universidade. Ela estava com meu antecessor.

- Estava com ele? Deus do céu. - Então foi a vez de Rycart fazer uma pausa. Ouvi pessoas aplaudindo do outro lado da linha.

- O senhor parece chocado - falei.

- Sim, bem, isso explica algo que ele havia me dito.

- Eu fui ver uma das pessoas na fotografia. Pensei que talvez pudesse me ajudar.

- Por que você não conversa com o seu empregador?

- Ele está viajando.

- É claro que está. - Sua voz traía um sorriso de satisfação. - E onde você está? Sem ser muito específico.

- Na Nova Inglaterra.

- Você conseguiria vir até a cidade em que eu estou, imediatamente? Sabe onde eu estou, certo? Onde eu trabalho?

- Imagino que sim - falei, em dúvida. - Tenho um carro. Poderia ir com ele.

- Não - disse Rycart -, não venha de carro. Voar é mais seguro do que pegar a estrada.

- Isso é o que dizem as companhias aéreas.

- Preste atenção, meu amigo - sussurrou ele, ferozmente, se eu estivesse no seu lugar, não estaria fazendo piadas. Vá até o aeroporto mais próximo. Pegue o primeiro avião disponível. Mande uma mensagem de texto para mim com o número do vôo, e mais nada. Vou mandar alguém buscá-lo quando você aterrissar.

- Mas como eles vão saber quem sou eu?

- Eles não vão saber. Você é quem vai ter de achá-los.

Houve uma explosão renovada de aplausos ao fundo. Tentei começar a levantar uma nova objeção, mas era tarde demais. Ele tinha desligado.

Saí de Belmont sem fazer a mínima idéia de como pegar a rota que deveria seguir. Conferia o espelho retrovisor neuroticamente a cada poucos segundos, mas, se estava sendo seguido, não conseguia perceber. Vários carros diferentes apareceram atrás de mim, mas nenhum pareceu ficar lá por mais do que alguns minutos. Fiquei atento às placas para Boston e, algum tempo depois, atravessei um rio grande e peguei a interestadual, na direção leste.

Ainda não eram três da tarde, mas o dia já começava a escurecer. À minha esquerda, ao longe, os prédios comerciais brilhavam dourados contra um céu atlântico intumescido, enquanto mais adiante as luzes dos aviões grandes caíam em direção ao Logan como estrelas cadentes. Mantive minha habitual velocidade prudente pelos próximos poucos quilómetros. O aeroporto Logan, para os que nunca tiveram o prazer de conhecê-lo, fica no meio do porto de Boston, e quem vem do sul chega a ele por um túnel aparentemente interminável. À medida que a estrada descia para a pista subterrânea, eu me perguntava se iria mesmo levar aquilo até o fim, e o fato de que, mais de um quilômetro e meio depois, quando voltei à superfície para a penumbra mais espessa da tarde, ainda não havia decidido dava uma boa medida da minha incerteza. Segui as placas até o estacionamentoe estava entrando de ré em uma vaga quando meu telefone tocou. O número de chamada era desconhecido. Quase não atendi, quando o fiz, uma voz agressiva perguntou:

- O que diabos você está fazendo?

Era Ruth Lang. Ela tinha aquela presunção de começar uma conversa sem falar primeiro quem estava ligando: uma falta de educação da qual - eu tinha certeza - seu marido nunca tinha sido culpado, nem mesmo quando era primeiro-ministro.

- Trabalhando - respondi.

- É mesmo? Você não está no hotel.

- Não estou?

- Você está? Eles me disseram que nem fez o check-in. Procurei uma mentira adequada e acabei usando uma meia-verdade.

- Decidi ir para Nova York.

- Por quê?

- Achei melhor me encontrar com John Maddox, conversar sobre a estrutura do livro, tendo em vista - decidi que precisava de um eufemismo diplomático - as novas circunstâncias.

- Fiquei preocupada com você - disse ela. - Passei o dia inteiro andando para cima e para baixo nessa praia de merda pensando na nossa conversa da noite passada...

Eu a interrompi.

- Eu não falaria nada a respeito disso por telefone.

-Não se preocupe, não vou falar. Não sou uma completa idiota. É só que, quanto mais repasso as coisas na minha cabeça, mais preocupada eu fico.

- Onde está Adam?

- Ainda em Washington, até onde eu sei. Ele continua tentando me ligar e eu continuo não atendendo. Quando você volta?

- Não tenho certeza.

- Hoje à noite?

-Vou tentar.

- Volte, se conseguir, - Ela baixou a voz: imaginei que o guarda-costas estivesse por perto. - É a noite de folga de Dep. Eu vou cozinhar.

- Isso era para ser um incentivo?

- Seu grosso - disse ela, soltando uma risada. Então desligou tão abruptamente quanto tinha ligado, sem se despedir.

Dei umas batidinhas nos dentes com o telefone. A perspectiva de uma conversa confidente diante da lareira com Ruth, e de talvez ser envolvido por seu abraço vigoroso uma segunda vez, não deixava de ter seus atrativos. Eu poderia dizer a Rycart que tinha mudado de idéia. Indeciso, tirei minha mala do carro e arrastei-a pelas poças em direção ao ônibus que esperava no ponto. Uma vez dentro dele, acomodei-a ao meu lado e analisei o mapa do aeroporto. Naquele momento, outra escolha me foi apresentada. Terminal B - o avião para Nova York e Rycart - ou Terminal E: partidas internacionais e um vôo noturno de volta para Londres? Não tinha pensado naquela possibilidade antes. Tinha meu passaporte e tudo o mais. Poderia simplesmente dar o fora.

As portas do ônibus se abriram com um suspiro profundo.

Desci no Terminal B, comprei minha passagem, enviei uma mensagem de texto para Rycart e peguei o avião da US Airways para o aeroporto La Guardia.

Por algum motivo, nosso avião sofreu atraso na decolagem. Taxiamos no horário, mas então paramos pouco antes da pista, abrindo passagem com cavalheirismo para deixar a fila de jatos atrás de nós nos ultrapassar. Olhei pela janela para a grama achatada e para o mar e o céu como duas chapas soldadas. Veios claros de águas pulsavam contra o vidro. A cada vez que um avião decolava, a pele fina da cabine tremia e os veios quebravam e voltavam a se juntar. O piloto surgiu no sistema de comunicação interna e pediu desculpas: segundo ele, estava havendo um problema com o nosso certificado de segurança. O Departamento de Segurança Interna tinha acabado de elevar o nível do sistema de alerta de amarelo (elevado) para laranja (alto), e ele agradecia nossa paciência. A irritação cresceu entre os homens de negócios à minha volta. O olhar do homem ao meu lado encontrou o meu por cima da beirada do seu jornal cor-de-rosa e ele balançou a cabeça.

- Pior impossível - disse ele.

Ele dobrou seu Financial Times, largou-o no colo e fechou os olhos. A manchete era LANG GANHA APOIO DOS ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA, e lá estava aquele sorriso novamente. Ruth tinha razão. Ele não devia ter sorrido. Aquilo tinha rodado o mundo.

Minha mala pequena estava no compartimento de bagagem sobre minha cabeça, meus pés descansavam na bolsa a tiracolo debaixo do assento à minha frente. Tudo estava em ordem. Porém, eu não conseguia relaxar. Sentia-me culpado, mesmo sem ter feito nada de errado. Meio que esperava que o FBI invadisse o avião e me arrastasse para fora. Depois de cerca de 45 minutos, de repente os motores começaram a rugir outra vez, e o piloto quebrou o silêncio do rádio para inundar que finalmente tínhamos recebido permissão para decolar e novamente nos agradeceu pela compreensão.

Seguimos pela pista e ganhamos as nuvens, e meu cansaço era tão grande que, apesar da ansiedade - ou talvez por causa dela -, eu caí no sono. Acordei com um espasmo quando senti alguém se inclinado sobre o meu corpo, mas era apenas o comissário de bordo, conferindo se meu cinto de segurança estava colocado. Parecia-me que não tinha ficado inconsciente por mais do que alguns segundos, mas a pressão nos meus ouvidos me disse que já estávamos nos aproximando para aterrissar no La Guardia. Tocamos o solo às 18 horas e seis minutos - lembro-me exatamente da hora: olhei no relógio - e às 18horas e vinte minutos eu já estava evitando a multidão impaciente em volta da esteira de bagagens e saindo do portão de desembarque.

Era um fim de tarde agitado, e as pessoas estavam ansiosas para chegar ao centro ou em casa para o jantar. Passei os olhos pela desconcertante sucessão de rostos, perguntando a mim mesmo se o próprio Rycart não teria vindo me receber, mas não conseguia reconhecer ninguém. A habitual fileira lúgubre de motoristas estava à espera, segurando os nomes dos passageiros contra seus respectivos peitos. Eles olhavam direto para frente, evitando contato visual, como suspeitos enfileirados para reconhecimento, enquanto eu, como uma testemunha nervosa, andava diante deles, examinando-os com atenção, querendo ter certeza. Rycart havia insinuado que eu reconheceria a pessoa certa quando a visse, e foi o que eu fiz, com meu coração quase parando. Ele estava separado dos demais, dentro de seu próprio espaço - rosto pálido, cabelo negro, alto, forte, 50 e poucos anos, em um terno de loja de departamentos que lhe caía mal -, e segurava um pequeno quadro-negro com "Mike McAra" escrito a giz. Até seus olhos eram como eu imaginara os de McAra: ardilosos e sem cor.

Ele estava mascando um chiclete. Acenou a cabeça para a minha mala.

- Você pode levar isso.

Era uma afirmação, não uma pergunta, mas não dei importância. Nunca tinha me sentido tão feliz em ouvir um sotaque nova-iorquino na vida. Ele virou-se de costas e eu o segui pelo saguão até sairmos no pandemônio da noite: gritos, apitos, portas batendo, gente lutando para pegar um táxi, sirenes ao longe.

Ele trouxe o carro até ali, baixou a janela e gesticulou para que eu entrasse rápido. Enquanto eu lutava para colocar minha mala no banco de trás, ele olhava direto para frente, as mãos no volante, sem dar corda para conversa. Não que tivesse havido muito tempo para conversar. Mal saímos do perímetro do aeroporto e já estávamos parando diante de um hotel grande de fachada de vidro e um centro de conferências dando vista para a Grand Central Parkway. Ele grunhiu ao virar seu corpo pesado para trás para falar comigo. O carro fedia ao seu suor, e tive um instante de puro terror existencial quando olhei para além dele, através da garoa, para aquele prédio sombrio e sem nome: o que, em nome de Deus, eu estava fazendo?

- Se precisar entrar em conttato, use isso - disse ele, dando-me um celular novo em folha, ainda na sua embalagem de polietileno. - Tem um chip com vinte dólares de crédito nele, Não use seu celular antigo. A coisa mais segura a fazer é desligá-lo. Você vai pagar o seu quarto adiantado, em dinheiro. Tem o suficiente? Vai dar umas trezentas pratas.

Assenti.

- Você vai ficar uma noite. Tem uma reserva no seu nome. - Ele arrancou sua carteira gorda do bolso de trás. - Este é o cartão que você vai usar para fazer o check in. Use um endereço no Reino Unido que não seja o seu. Se houver algum extra, não se esqueça de pagar em dinheiro. Este é o número de telefone que você vai usar para fazer contato no futuro.

- Você era policial antes - falei. Peguei o cartão de crédito e uma tira de papel na qual havia um número escrito em letra infantil. O papel e o plástico estavam quentes com o calor do seu corpo.

- Não use a internet. Não fale com estranhos. E, principalmente, evite qualquer mulher que tente se aproximar de você.

- Você está parecendo minha mãe.

O rosto dele continuou impassível. Ficamos sentados ali por alguns segundos.

- Bem - disse ele, com impaciência. Acenou sua mão grande na minha direção. - É isso.

Assim que passei pela porta giratória e entrei no lobby, conferi o nome no cartão. Clive Dixon. Uma grande conferência tinha acabado de terminar. Um monte de delegados vestindo ternos pretos com crachás amarelos berrantes atravessavam numa enxurrada a grande extensão de mármore branco, tagarelando entre si como um bando de corvos. Eles pareciam ávidos, confiantes, motivados, com os ânimos recém-renovados para alcançarem suas metas corporativas e objetivos pessoais. Vi pelos seus crachás que pertenciam a uma igreja. Sobre nossas cabeças, enormes globos de luz de vidro estavam presos ao teto, reluzindo nas paredes de cromo. Eu já não estava apenas além da minha competência; estava a anos-luz dela.

- Imagino que eu tenha uma reserva - falei para o atendente à mesa - em nome de Dixon.

Aquele não era um pseudônimo que eu teria escolhido. Não consigo me ver como um Dixon, seja lá o que um Dixon for. Porém, o recepcionista não pareceu se incomodar com o meu constrangimento. Eu estava no computador dele, e isso era tudo com que ele se importava de modo que meu cartão foi aceito. O quarto custava 275 dólares. Preenchi meu formulário de reserva e dei como endereço falso o número da casinha com varanda de Kate em Shepherd's Bush e a rua do clube de Rick em Londres. Quando falei que queria pagar em dinheiro, ele pegou as notas entre o indicador e o polegar como se fossem a coisa mais estranha que tinha visto na vida. Dinheiro? Se eu tivesse amarrado uma mula na sua mesa e oferecido peles de animais e cajados que havia passado o inverno inteiro entalhando como pagamento, ele não teria ficado tão impressionado.

Recusei quando quiseram me ajudar com a bagagem, peguei o elevador até o sexto andar e enfiei a chave eletrônica na porta. Meu quarto era bege e suavemente iluminado por abajures, com uma vista para além da Grand Central Parkway até o La Guardia e o negrume insondável do East River. A TV estava tocando I'll Take Manhattan" com uma mensagem que dizia "Bem-vindo a Nova York, Senhor Nixon". Eu a desliguei e abri o frigobar. Nem me dei ao trabalho de procurar um copo. Tirei a tampa e bebi direto da garrafa em miniatura.

Deve ter sido depois de uns vinte minutos e uma segunda garrafa em miniatura que meu novo telefone ficou azul de repente e começou a emitir um ruído eletrônico ligeiramente agourento. Saí de onde estava na janela para atendê-lo.

- Sou eu - disse Rycart. - Você já está instalado?

- Estou - respondi.

- Está sozinho?

- Sim.

- Abra a porta, então.

Ele estava parado no corredor, com o celular na orelha. Ao seu lado, o motorista que havia me buscado no La Guardia.

- Certo, Frank - disse Rycart para o seu subordinado. - Eu assumo a partir daqui. Fique de olho no lobby.

Rycart guardou o telefone no bolso do seu sobretudo enquanto Frank caminhava penosamente em direção aos elevadores. Ele era o que minha mãe teria chamado de "um bonitão, e sabe muito bem disso": tinha um perfil que impressionava, olhos azuis apertados acentuados por um bronzeado alaranjado e aquela cascata de cabelos penteados para trás que os cartunistas tanto adoravam. Parecia ter bem menos de 60 anos. Acenou a cabeça para a garrafa vazia na minha mão.

- Dia difícil?

- Pode-se dizer que sim.

Ele entrou no quarto sem esperar ser convidado, foi direto para a janela e fechou as cortinas. Eu fechei a porta.

- Peço desculpas pelo local - disse ele -, mas costumo ser reconhecido em Manhattan. Especialmente depois de ontem. Frank cuidou bem de você?

- Raras vezes fui tão calorosamente recebido.

- Sei do que você está falando, mas ele é útil. Ex-policial. É responsável pela logística e segurança para mim. No momento, não sou o garoto mais popular do bairro, como você pode imaginar.

- Quer beber alguma coisa?

- Água está ótimo.

Ele rondou pelo quarto enquanto eu lhe servia um copo. Conferiu o banheiro e até o armário.

- O que foi? - falei. - Está achando que isso é uma armadilha?

- Passou pela minha cabeça. - Ele desabotoou o sobretudo e estendeu-o cuidadosamente na cama. Imaginei que seu terno Armani tivesse custado mais ou menos o dobro da renda anual de um pequeno vilarejo africano. - Vamos encarar os fatos, você trabalha para Lang.

- Meu primeiro contato com ele foi na segunda - disse. - Nem o conheço.

Rycart riu.

- E quem conhece? Se foram apresentados na segunda, você provavelmente o conhece tão bem quanto qualquer outra pessoa. Trabalhei para ele por 15 anos, e certamente não tenho a mínima idéia do que se passa na sua cabeça. Mike McAra também não tinha... e estava com ele desde o início.

- A mulher dele insinuou mais ou menos a mesma coisa.

- Bem, então pronto. Se alguém tão inteligente quanto Ruth não o entende, e, pelo amor de Deus, ela é casada com ele, que esperança o restante de nós pode ter? O homem é um mistério. Obrigado. - Rycart pegou a água e deu um gole, pensativo, me analisando. - Mas você parece estar começando a destrinchá-lo.

- Para ser franco, parece que sou eu que estou sendo destrinchado.

- Vamos nos sentar - disse Rycart, dando um tapinha no meu ombro -, e você pode me contar tudo.

O gesto me fez lembrar de Lang. O charme de um grande homem. Eles me faziam sentir como um peixinho nadando em meio a tubarões. Teria de manter minhas defesas erguidas. Sentei-me cuidadosamente em uma das duas poltronas pequenas - era bege, como as paredes. Rycart sentou-se de frente para mim.

- Então - disse ele. - Como começamos? Você sabe quem eu sou. Quem é você?

- Sou um ghost-writer profissional - respondi. - Fui contratado para reescrever as memórias de Adam Lang depois que Mike McAra morreu. Não entendo nada de política. É como se eu tivesse ido parar atrás do espelho.

- Conte-me o que você descobriu.

Até eu era esperto demais para fazer isso. Demorei bastante para responder.

- Talvez o senhor pudesse me falar sobre McAra antes - falei.

- Se você preferir. - Rycart deu de ombros. - O que posso dizer? Mike era o funcionário perfeito. Se você colocasse uma roseta naquela mala ali e lhe dissesse que ela era o líder do partido, ele seguiria. Todo mundo achava que Lang o despediria assim que se tornasse um líder para trazer seu próprio homem. Mas Mike era útil demais. Ele conhecia o partido de cabo a rabo. O que mais você quer saber?

- Como ele era como pessoa?

- Como ele era como pessoa?- Rycart lançou-me um olhar estranho, como se aquela fosse a pergunta mais esquisita que já tinha ouvido na vida. - Bem, ele não tinha vida fora da política, se é disso que você está falando, então se poderia dizer que Lang era tudo para ele: mulher, filhos, amigos. Mais o quê? Ele era um homem obsessivo, detalhista. Quase tudo que Adam não era. Talvez tenha sido por isso que Mike durou, fazendo todo o caminho até Downing Street e todo o caminho de volta novamente, muito depois de todos os outros terem pedido as contas e ido embora para fazer algum dinheiro. Nada de cargos corporativos sofisticados para Mike. Ele era muito leal a Adam.

- Nem tão leal assim - falei. - Não se ele esteve em contato com o senhor.

- Ah, mas isso só é verdade muito no final. Você mencionou uma fotografia. Posso vê-la?

Quando peguei o envelope, seu rosto tinha a mesma expressão gananciosa de Emmett, porém, quando ele viu a foto, não conseguiu esconder sua decepção.

- É isso? - disse ele. - Só um bando de garotos brancos privilegiados fazendo um número de dança?

- É um pouco mais interessante do que isso - falei. - Para começar, por que seu número de telefone está no verso?

Rycart lançou-me um olhar malicioso.

- Por que exatamente eu deveria ajudá-lo?

- Por que exatamente eu deveria ajudá-lo?

Ficamos olhando um para o outro. Depois de um tempo, ele sorriu, revelando dentes brancos grandes e brilhantes.

- Você deveria ter sido político - disse ele.

- Estou aprendendo com o melhor.

Rycart fez uma pequena mesura, pensando que eu estava falando dele, mas, na verdade, era Lang que eu tinha em mente. Vaidade, esta era a sua fraqueza, percebi. Eu podia imaginar a habilidade com que Lang o bajulara, bem como o golpe que devia ter sido para o seu ego ser despedido. E, agora, com seu rosto fino, seu nariz imenso e aqueles olhos penetrantes, ele estava tão determinado a conseguir sua vingança quanto qualquer amante abandonado. Ele se levantou e foi até a porta. Conferiu o corredor nas duas direções. Quando voltou, parou na minha frente, apontando um dedo bronzeado bem na minha cara.

- Se você me trair - falou -, vai pagar por isso. E caso duvide da minha capacidade de guardar rancor e, no final, acertar as contas, pergunte a Adam Lang.

- Certo - falei.

Àquela altura, ele já estava agitado demais para ficar quieto, e aquilo foi outra coisa que só percebi naquele instante: a pressão à qual ele estava submetido. Você tinha de dar o braço a torcer. Era preciso alguma coragem para arrastar o ex-líder de seu partido e primeiroministro até um tribunal de crimes de guerra.

- Essa coisa do TPI - disse ele, andando para cima e para baixo diante da cama - só chegou aos jornais na semana passada, mas, acredite, eu venho correndo atrás disso por debaixo dos panos há anos. Iraque, captura, tortura, Guantánamo, o que tem sido feito nesta suposta Guerra contra o Terror é ilegal mediante a lei internacional, da mesma forma como tudo o que aconteceu em Kosovo ou na Libéria. A única diferença é a seguinte: somos nós que estamos fazendo. A hipocrisia é de dar engulhos.

Ele pareceu perceber que estava começando um discurso que já havia feito muitas vezes antes e se interrompeu. Bebeu um gole d'água.

- Enfim, retórica é uma coisa e apresentar provas é outra completamente diferente. Eu pude sentir o clima político mudando: isso foi útil. Cada vez que uma bomba explodia, cada vez que outro soldado morria, cada vez que ficava um pouco mais claro que tínhamos começado outra Guerra dos Cem Anos sem ter a mínima idéia de como terminá-la, as coisas pendiam mais para o meu lado. Já não era mais inconcebível que um líder político do Ocidente pudesse acabar no banco dos réus. Quanto maior ficava a bagunça que ele deixava atrás de si, mais as pessoas estavam dispostas a vê-la, queriam vê-la. O que eu precisava era apenas de uma prova que pudesse ser aceita dentro dos parâmetros legais, um só documento com seu nome nele bastaria, eu não tinha isso.

"E então, de repente, pouco antes do Natal, lá estava ela. Nas minhas mãos. Simplesmente veio pelo correio. Sem nem mesmo uma carta de apresentação. 'Confidencial: Memorando do primeiro-ministro para o secretário de Defesa do Estado.' Era um documento de cinco anos atrás, escrito na época em que eu ainda era secretário de Relações Internacionais, mas eu não fazia nem idéia da existência dele. Aquilo, sim, era uma arma quente; por Deus, o cano ainda estava pelando. Uma ordem do primeiro-ministro britânico para que aqueles quatro pobres-diabos fossem apanhados das ruas do Paquistão pelas SAS e entregues à CIA.

- Um crime de guerra - falei.

- Um crime de guerra - concordou ele. - De pequeno porte, tudo bem. Mas e daí? No fim das contas, eles só conseguiram pegar Al Capone por sonegação de impostos. Isso não significava que Capone não fosse um gângster. Fiz algumas verificações discretas para confirmar a autenticidade do memorando, então o levei para Haia pessoalmente.

- O senhor não fazia idéia de onde ele tinha saído?

- Não. Não até meu informante anônimo me ligar para contar. E espere só para ver quando Lang ficar sabendo quem era. Isso vai ser o pior de tudo. - Ele se inclinou mais para perto de mim. - Mike McAra!

Pensando agora, acho que eu já sabia disso. Porém, suspeitar é uma coisa, receber a confirmação é outra, e testemunhar o júbilo de Rycart naquele momento era compreender o grau da traição de McAra.

- Ele me telefonou! Dá para acreditar nisso? Se qualquer pessoa tivesse previsto que eu um dia eu receberia ajuda justamente de McAra, eu teria gargalhado na cara dela.

- Quando ele ligou?

- Umas três semanas depois de eu receber o documento. Oito de Janeiro? Nove? Por aí. "Olá, Richard. Recebeu o presente que eu lhe enviei?" Quase tive um enfarto. Então eu tive de fazê-lo calar a boca depressa. Porque é claro que você sabe que todas as linhas telefônicas da ONU são grampeadas, certo?

- São? - Eu ainda estava tentando digerir tudo.

- Oh, completamente. A Agência Nacional de Segurança monitora cada palavra que é transmitida no hemisfério ocidental. Cada sílaba que você diz em um telefone, cada e-mail que você envia, cada transação com cartão de crédito que você faz, é tudo gravado e armazenado. O único problema é fazer a triagem disso tudo. Na ONU, somos informados que o jeito mais fácil de contornar o monitoramento é usar telefones celulares descartáveis, tentar evitar mencionar detalhes e mudar de número com a maior freqüência possível; assim, conseguimos ficar pelo menos um pouco à frente deles. Portanto, eu disse para Mike parar por ali mesmo. Depois lhe dei um número novinho em folha, que eu nunca tinha usado antes, e pedi que ele me ligasse de volta imediatamente.

-Ah - falei. - Agora estou vendo. - E estava mesmo. Conseguia visualizar perfeitamente. McAra com o telefone preso entre o ombro e a orelha, segurando sua caneta esferográfica barata. - Ele deve ter escrito o número no verso da foto que estava segurando na hora.

- E então daí me ligou - disse Rycart. Ele tinha parado de andar e estava se olhando no espelho sobre a cômoda. Colocou as duas mãos na testa e alisou o cabelo para trás das orelhas. - Cristo, estou um bagaço - falou. - Olhe só para mim. Nunca cheguei a esse ponto quando estava no governo, nem quando estava trabalhando 18 horas por dia. Sabe, as pessoas entendem tudo errado. Não é o poder que deixa as pessoas exauridas; fatigante é não ter poder.

- O que McAra disse quando ligou?

- A primeira coisa que me chamou a atenção foi que ele não parecia nem um pouco o McAra de sempre. Você me perguntou como ele era. Bem, não era nada sutil, e isso, obviamente, era o que Adam gostava nele: ele sabia que sempre podia contar com Mike para fazer o trabalho sujo. Ele era ríspido, sério. Quase brutal, você poderia dizer, especialmente ao telefone. O pessoal do meu gabinete costumava chamá-lo de McMedonho: "McMedonho acabou de ligar para o senhor..." Porém, naquele dia, eu me lembro, a voz dele estava completamente fora de tom. Ele soava arrasado, na verdade. Disse que havia passado o ano anterior nos arquivos de Cambridge, trabalhando nas memórias de Adam, repassando todo o nosso período no governo, e que havia ficado cada vez mais desiludido com tudo. Falou que foi lá que encontrou o memorando sobre a Operação Tempestade. Porém, o verdadeiro motivo de sua ligação, segundo ele, era informar que aquilo era apenas a ponta do iceberg. Pelo que disse, ele havia descoberto algo muito mais importante, algo que explicava tudo que dera errado enquanto estávamos no poder. Eu mal conseguia respirar.

- O que era?

Rycart deu uma gargalhada.

- Bem, estranhamente, foi o que eu lhe perguntei, mas ele não quis me contar pelo telefone. Disse que queria me encontrar para conversarmos cara a cara: para você ver o tamanho da coisa. Falou apenas que a chave para aquilo poderia ser encontrada na autobiografia de Lang, se alguém se desse o trabalho de conferir... que estava tudo lá no começo.

- Essas foram as palavras exatas dele?

- Basicamente. Anotei enquanto ele falava. E então foi isso. Ele disse que me ligaria em um ou dois dias para marcar um encontro. Porém, não tive notícias, e então, mais ou menos uma semana depois, os jornais noticiaram sua morte. E ninguém nunca mais me ligou naquele telefone, porque nenhuma outra pessoa tinha o número. Então você pode imaginar por que fiquei tão empolgado quando ele começou a tocar de novo de repente. E aqui estamos nós - disse ele, gesticulando para o quarto -, no lugar perfeito para se passar uma noite de quinta-feira. E, agora, acho que você deveria me contar exatamente o que diabos está acontecendo.

- Eu vou contar. Mas antes, só mais uma coisa. Por que o senhor não contou isso para a polícia?

- Você está brincando, certo? O debate em Haia estava em um estágio muito delicado. Se eu tivesse contado que McAra havia entrado em contato comigo, naturalmente eles iriam querer saber o motivo. Então, a coisa estaria fadada a voltar para Lang, e ele teria lido capaz de tomar alguma atitude preventiva contra o Tribunal de Crimes de Guerra. Ele ainda é um jogador e tanto, você sabe. Aquela declaração que veiculou contra mim anteontem... "A luta internacional contra o terror é importante demais para ser usada em prol de vinganças pessoais domésticas"... nossa... - ele tremeu, admirado... - foi cruel.

Eu me contorci um pouco na cadeira, mas Rycart não pareceu notar. Havia voltado a se examinar no espelho.

- Além disso - falou ele, jogando o queixo para frente -, para mim, a versão de que Mike tinha se matado, fosse porque estava deprimido, ou bêbado, ou os dois, já havia sido aceita. Eu teria apenas confirmado o que eles já sabiam. Ele certamente estava em péssimo estado quando me ligou.

- E eu posso lhe dizer porque - falei. - O que ele tinha acabado de descobrir era que um dos homens naquela fotografia com Lang, em Cambridge, a foto que McAra tinha em mãos quando falou com o senhor, era um agente da CIA.

Rycart estava analisando seu perfil. Ele parou. Sua testa se enrugou. E então, com muito vagar, ele virou o rosto para mim.

- Ele era o quê?

- O nome dele é Paul Emmett. - De repente, não conseguia falar depressa o bastante. Estava absolutamente desesperado para tirar aquele peso das minhas costas, dividi-lo com alguém, deixar alguma outra pessoa tentar entender o que aquilo significava. - Mais tarde, ele se tornou professor em Harvard. Então foi administrar algo chamado Instituto Arcadia. O senhor já ouviu falar desse instituto?

- Já ouvi falar, claro que sim, e sempre quis distância daquele lugar, exatamente porque sempre achei que ele tinha CIA escrito na testa.

Rycart sentou-se. Parecia chocado.

- Mas isso é mesmo plausível? - perguntei. - Não sei como essas coisas funcionam. Uma pessoa pode se juntar à CIA e depois ser imediatamente enviada para fazer uma pesquisa de pós-graduação em outro país?

- Eu diria que isso é altamente plausível. Quer disfarce melhor que esse? E que lugar é melhor do que uma universidade para se ver o futuro com mais precisão e clareza? - Ele estendeu a mão. - Mostre-me a fotografia de novo. Qual deles é Emmett?

- Pode ser tudo besteira - avisei, apontando Emmett na foto. - Não tenho provas. Apenas encontrei o nome dele em uma dessas páginas paranóicas de internet. Lá se dizia que ele se juntou à CIA após sair de Yale, o que deve ter sido uns três anos depois de essa fotografia ter sido tirada.

- Ah, mas eu acredito - disse Rycart, examinando-o com atenção. - Na verdade, agora que você falou, acho que já ouvi uma fofoca sobre isso antes. Porém, o mundo do circuito internacional de conferências está apinhado deles. Eu os chamo de "o complexo militar-industrial-acadêmico". - Ele sorriu para a própria espirituosidade, então ficou sério novamente. - O que é verdadeiramente suspeito é ele ter conhecido Lang.

- Não - falei -, o que é verdadeiramente suspeito é que, poucas horas depois de McAra localizar Emmett na sua casa perto de Boston, ele foi encontrado morto em uma praia em Martha's Vineyard.

Depois disso, contei a ele tudo o que eu havia descoberto. Contei-lhe a história sobre as marés e as luzes de lanterna na praia em Lambert's Cove, bem como sobre a curiosa maneira como a investigação policial havia sido conduzida. Contei-lhe a versão de Ruth da briga de McAra com Lang na véspera de sua morte e a respeito da relutância de Lang em falar sobre seu período em Cambridge, e a maneira como ele tentou esconder o fato de que havia se tornado politicamente ativo logo depois de deixar a universidade em vez de dois anos mais tarde. Descrevi como McAra, com sua habitual minúcia e tenacidade, havia descoberto isso tudo, revirando detalhe atrás de detalhe que aos poucos destruíram o relato de Lang sobre sua juventude: que, presumivelmente, foi isso que ele quis dizer quando falou que a chave para tudo estava no começo da autobiografia. Contei-lhe sobre o sistema de navegação via satélite do Ford e sobre corno ele havia me levado até a porta de Emmett, e como Emmett tinha se comportado estranhamente.

E, é claro, quanto mais eu falava, mais empolgado Rycart ia ficando. Imagino que era como se o Natal tivesse chegado para ele.

- Vamos imaginar - disse ele, andando de um lado para o outro novamente -, que tenha sido Emmett quem sugeriu para Lang que ele deveria pensar em fazer carreira na política. Convenhamos, alguém deve ter colocado a idéia naquela cabecinha dele. Eu era membro júnior do partido desde os 14 anos de idade. Em que ano Lang entrou?

- Mil novecentos e setenta e sete.

- Setenta e sete! Está vendo? Faz todo o sentido. Você se lembra como era a Inglaterra em 1975? As agências de segurança estavam fora de controle, espionando o primeiro-ministro. A economia estava em colapso. Tivemos as greves, os protestos. Não seria exatamente uma surpresa que a CIA decidisse recrutar algumas cabeças jovens e brilhantes e incentivá-las a fazer carreira em lugares estratégicos: no funcionalismo público, na mídia, na política. Afinal de contas, é isso que eles fazem no mundo inteiro.

- Mas certamente não na Inglaterra - falei. - Somos um aliado.

Rycart olhou para mim com desdém.

- A CIA estava espionando estudantes americanos naquela época. Você acha mesmo que eles teriam escrúpulos em espionar os nossos? É claro que eles estavam em atividade na Inglaterra! Ainda estão. Eles têm um chefe de operações em Londres e uma equipe enorme. Agora mesmo posso lhe dar o nome de uma dúzia de membros do Parlamento que estão em contato constante com a CIA. Na verdade... - Ele parou de andar e estalou os dedos. - Aí está! - Ele girou o corpo e olhou para mim. - O nome Reg Giffen lhe diz algo?

- Vagamente.

- Reg Giffen, Sir Reginald Giffen, posteriormente lorde Giffen e atualmente morto, graças a Deus, passou tanto tempo discursando na Câmara dos Comuns em prol dos americanos que costumávamos chamá-lo de Membro de Michigan. Ele anunciou sua renúncia como parlamentar na primeira semana da campanha das eleições gerais de 1983, o que foi uma surpresa para todos, exceto para um jovem membro do partido, muito empreendedor e fotogênico, que tinha acabado de chegar àquela zona eleitoral seis meses antes.

- E que então conseguiu a indicação para ser o candidato do ptrtldo, com o apoio de Giffen - falei -, e que depois ganhou uma das cadeiras mais seguras do país quando tinha apenas 30 anos de idade. - A história era lendária. Foi o começo da ascensão de Lang em âmbito nacional. - Mas o senhor acha mesmo que a CIA pediu para Giffen mexer os pauzinhos para que Lang pudesse entrar no Parlamento? Isso me parece bastante forçado.

- Ah, por favor! Use sua imaginação! Imagine que você é o professor Emmett e agora está de volta a Harvard, escrevendo asneiras incompreensíveis sobre a aliança entre os povos anglófonos e a necessidade de se combater a ameaça comunista. Você tem ou não tem, potencialmente, o agente mais extraordinário da história nas suas mãos? Um homem que já começa a ser cogitado como futuro líder do partido? Um possível primeiro-ministro? Você não vai convencer os detentores do poder na Agência a fazerem tudo o que puderem para impulsionar a carreira deste homem? Eu mesmo já estava no Parlamento quando Lang chegou. Eu o testemunhei vir do nada e nos deixar a todos comendo poeira. - Ele fechou o rosto diante da lembrança. - Claro que ele teve ajuda. Não tinha nenhuma verdadeira ligação com o partido. Não conseguíamos nem começar a entender o que o motivava.

- Sem dúvida é este o problema dele - falei. - Ele não tinha uma ideologia.

- Ele podia não ter uma ideologia, mas aposto o que você quiser que tinha uma pauta. - Rycart sentou-se novamente. Ele se inclinou na minha direção. - Certo. Vou lhe fazer uma pergunta. Fale para mim uma decisão que Adam Lang tenha tomado como primeiro-ministro que não fosse de interesse dos Estados Unidos da América.

Fiquei mudo.

- Vamos lá - disse ele. - Não é uma pegadinha. É só me dizer uma coisa que ele tenha feito que Washington não teria aprovado. Vamos pensar. - Ele ergueu o polegar. - Um: envio de tropas britânicas para o Oriente Médio, contrariando quase todos os comandantes sêniores das nossas Forças Armadas e todos os nossos embaixadores que conhecem a região. Dois - e lá estava o seu indicador direito -, fracasso total em exigir qualquer forma de quid pró quo da Casa Branca em relação a contratos de reconstrução para empreiteiras britânicas ou a qualquer outra coisa. Três: apoio irrestrito à política externa americana no Oriente Médio, mesmo sendo claramente uma loucura para nós nos colocarmos contra todo o mundo árabe. Quatro: implantação de um sistema de defesa antimíssil americano em solo britânico que não faz absolutamente nada para a nossa segurança; na verdade, faz o contrário: torna-nos um alvo mais óbvio para um primeiro ataque... e só pode fornecer proteção para os EUA. Cinco: a compra, por 50 bilhões de dólares, de um sistema norte-americano de mísseis nucleares que chamamos de "independente", mas que jamais poderíamos disparar sem a aprovação dos EUA, o que prende os sucessores dele a mais vinte anos de subserviência a Washington no que diz respeito à política de segurança. Seis: um tratado que permite aos EUA extraditarem nossos cidadãos para serem julgados na América, mas não nos permite fazer o mesmo com os cidadãos deles. Sete: conivência com a captura ilegal, a tortura, o aprisionamento e até mesmo com o assassinato de nossos próprios cidadãos. Oito: uma tradição de despedir qualquer ministro, e falo por experiência própria, que demonstre menos de cem por cento de apoio à aliança com os Estados Unidos. Nove...

- Está bem - falei, erguendo a mão. - Já entendi a mensagem.

- Tenho amigos em Washington que simplesmente não conseguem acreditar na maneira como Lang conduziu a política externa britânica. Quero dizer, eles ficaram constrangidos com a quantidade de apoio que ele ofereceu e corno recebeu pouco em troca. E onde isso nos fez parar? Presos numa suposta guerra que não temos como ganhar, sendo coniventes com métodos que não usamos nem quando estávamos lutando contra os nazistas! - Rycart riu com tristeza e balançou a cabeça. - Sabe, de certa forma, estou quase aliviado em descobrir que pode haver uma explicação racional para o que fizemos no governo enquanto ele era primeiro-ministro. Se você parar para pensar, a alternativa é pior, na verdade. Se ele estava trabalhando para a CIA, pelo menos faz sentido. Então, agora - disse ele, afagando meu joelho -, a questão é: o que nós vamos fazer a respeito?

Não gostei daquela primeira pessoa do plural.

- Bem - falei, contorcendo um pouco o rosto -, eu estou numa situação delicada. Deveria estar ajudando-o com suas memórias. Tenho a obrigação legal de não divulgar a terceiros nada do que ouvir no decorrer do meu trabalho.

- Tarde demais para parar agora. Também não gostei daquilo.

- Mas não temos nenhuma prova - apontei. - Nem sabemos ao certo se Emmett estava na CIA, muito menos se ele recrutou Lang. Quero dizer, como essa relação teria funcionado depois que Lang foi para o Número 10 da Downing Street? Ele tinha um transmissor de rádio escondido no sótão ou o quê?

- Isso não é piada, meu amigo - disse Rycart. - Aprendi um pouco sobre como essas coisas são feitas na época em que estava na Secretaria de Relações Internacionais. A questão do contato pode ser resolvida com bastante facilidade. Para começo de conversa, Emmett estava sempre indo a Londres, por conta do Arcádia. Era a fachada perfeita. Na verdade, eu não ficaria surpreso se o instituto inteiro tivesse sido criado para fazer parte da operação clandestina para controlar Lang. O timing combinaria. Eles podem ter usado intermediários.

- Mas ainda não há provas - repeti -, e a não ser que Lang confesse, ou Emmett confesse, ou a CIA abra seus arquivos, nunca haverá.

- Então você vai ter de arranjar alguma - disse Rycart, sem rodeios.

- O quê? - Meu queixo caiu; tudo meu caiu.

- Você está numa posição perfeita - prosseguiu Rycart. - Tem a confiança de Lang. Ele deixa você perguntar o que quiser. Até lhe permite gravar suas respostas. Você pode colocar palavras na boca dele. Vamos ter de desenvolver uma série de perguntas que o enredem aos poucos, e depois você finalmente vai poder confrontá-lo com a alegação, e veremos como ele vai reagir. Ele vai negar, mas isso não tem a menor importância. O simples fato de você colocar as provas diante dele vai servir para deixar a história registrada.

- Não vai, não. As fitas são de propriedade dele.

- Vai, sim. As fitas podem ser intimadas pelo Tribunal de Crimes de Guerra, como prova da sua cumplicidade direta com o programa de captura da CIA.

- E se eu não fizer fita nenhuma?

- Neste caso, eu vou sugerir à procuradora que você seja intimado.

- Ah - disse eu, com astúcia -, mas e se eu negar a história toda?

- Então eu vou entregar isto a ela - falou Rycart, abrindo o paletó para mostrar um pequeno microfone preso na frente da sua camisa com um fio entrando no seu bolso interno. - Frank está gravando cada palavra lá embaixo no lobby, certo Frank? Ah, por favor! Não faça essa cara de chocado. O que você esperava? Que eu viesse para um encontro com um completo desconhecido, que está trabalhando para Lang, sem me precaver? Bem, mas só que você não está mais trabalhando para Lang. - Ele sorriu, mostrando mais uma vez aquela fileira de dentes de um branco mais reluzente do que qualquer outra coisa na natureza. - Está trabalhando para mim.

 

Autores precisam de ghost-writers que não os confrontem, mas que simplesmente ouçam o que eles têm a dizer e entendam por que agiram da forma que agiram.

Ghostwriting

 

Depois de alguns segundos, comecei a xingar, fluente e indiscriminadamente. Estava xingando Rycart e minha própria idiotice, Frank e quem quer que um dia fosse transcrever aquela fita. Estava xingando a procuradora de crimes de guerra, a corte, os juizes, a mídia. E teria continuado xingando por muito mais tempo se meu telefone não tivesse começado a tocar - não o que haviam me dado para eu contatar Rycart, mas o que eu tinha trazido de Londres. Desnecessário dizer que eu esquecera de desligá-lo.

- Não atenda - advertiu Rycart. - Vai trazê-los direto até a gente.

Olhei para o número de chamada.

- É Amélia Bly - falei. - Pode ser importante.

- Amélia Bly - repetiu Rycart, sua voz uma mistura de temor e cobiça. - Faz tempo que não a vejo. - Ele hesitou: era óbvio que estava louco para saber o que ela queria. - Se eles estiverem monitorando você, serão capazes de localizá-lo com uma precisão de até cem metros, e este hotel é o único prédio em que você estaria.

O telefone continuou a pulsar na minha palma estendida.

- Bem, vá para o inferno - falei. - Não aceito ordens suas.

Pressionei o botão verde,

- Alô - falei. - Amélia.

- Boa noite - disse ela, sua voz clara como o uniforme de uma enfermeira-chefe. - Estou com Adam na linha para você.

Fiz "É Adam Lang" com a boca para Rycart, abanando a mão a fim de alertá-lo para que não dissesse nada. Logo em seguida, sua voz familiar e sem classe definida encheu meu ouvido.

- Estava falando agora com Ruth - disse ele. - Ela me disse que você está em Nova York.

- Isso mesmo.

- Eu também. Em que parte você está?

- Não sei exatamente onde eu estou, Adam. - Fiz um gesto desesperado para Rycart. - Ainda não me hospedei em hotel nenhum.

- Nós estamos no Waldorf - disse Lang. - Por que você não vem até aqui?

- Espere um segundo, Adam. - Pressionei MUDO.

- Você - disse Rycart - é um grande idiota.

- Ele quer que eu vá encontrá-lo no Waldorf.

Rycart sugou as próprias bochechas, avaliando as opções.

- Você deve ir - falou ele.

- E se for uma armadilha?

- É um risco, mas vai ficar estranho se você não for. Ele vai suspeitar. Diga-lhe que sim, rápido, e desligue em seguida.

Pressionei MUDO novamente.

- Alô, Adam - falei, tentando manter a tensão longe da minha voz. - Por mim, está ótimo. Já vou para aí.

Rycart passou o dedo pela garganta.

- Por sinal, o que o traz a Nova York? - perguntou Lang. - Achei que você já tivesse bastante coisa para fazer lá na casa.

- Eu queria me encontrar com John Maddox.

- Certo. E como está ele?

- Bem. Ouça, tenho de desligar agora.

Rycart estava passando o dedo pela garganta cada vez com mais insistência.

- Tivemos dois dias ótimos - continuou Lang, como se não tivesse me ouvido. - Os americanos têm sido fantásticos. Sabe, é nos momentos difíceis que você vê quem são seus verdadeiros amigos.

Era minha imaginação ou ele tinha dado uma ênfase extra àquelas palavras especialmente para mim?

- Maravilha. Estarei aí o mais rápido possível, Adam. Encerrei a ligação. Minha mão tremia.

- Muito bem - disse Rycart. Ele estava de pé, pegando seu sobretudo na cama. - Temos cerca de dez minutos para sair daqui. Junte suas coisas.

Mecanicamente, comecei a reunir as fotografias. Coloquei-as de volta na mala, que fechei enquanto Rycart ia ao banheiro e mijava fazendo barulho.

- Como ele estava? - perguntou Rycart lá de dentro.

- Animado.

Ele deu a descarga e ressurgiu abotoando as calças.

- Bem, vamos ter de fazer alguma coisa a respeito disso, não é?

O elevador para o lobby estava cheio daqueles investidores online da igreja mórmon, ou seja, lá o que fossem. Ele parou em todos os andares. Rycart foi ficando cada vez mais nervoso.

- Não podemos ser vistos juntos - murmurou ele enquanto saíamos no primeiro piso. - Fique para trás. Encontro você no estacionamento.

Ele apertou o passo, afastando-se de mim. Frank já estava de pé - ao que tudo indicava, tinha ficado ouvindo e sabia dos nossos planos -, e os dois partiram sem trocar nenhuma palavra: Rycart, enérgico e grisalho, e seu companheiro inseparável taciturno e moreno. Que dupla, pensei. Agachei-me e fingi amarrar meu cadarço, então atravessei o lobby sem pressa, circulando deliberadamente pelos grupos de convidados que conversavam entre si, mantendo a cabeça abaixada. Havia algo de tão ridículo em toda aquela situação que, quando me juntei ao grupo amontoado diante da porta, esperando para sair, me peguei sorrindo. Era como uma comédia de Faydeau: cada nova cena era mais absurda que a última, mas, ainda assim, se você a examinasse, veria que não passava de um desdobramento lógico da anterior. Sim, era isso que tudo aquilo era: uma comédia! Fiquei na fila até minha vez chegar, e foi então que vi Emmett, ou pelo menos foi quando pensei ter visto Emmett, e de repente não estava mais sorrindo.

O hotel tinha uma daquelas portas giratórias grandes, com compartimentos que acomodavam cinco ou seis pessoas de cada vez, sendo que todas eram obrigadas a se atirar para dentro deles e arrastar os pés para frente para não bater umas nas outras, como detentos acorrentados. Para minha sorte, eu estava no meio do grupo que saía, e este provavelmente foi o motivo pelo qual Emmett não me viu. Ele fitava com um homem de cada lado, no compartimento que girava para dentro do hotel, e todos os três empurravam o vidro diante de si, como se estivessem extremamente apressados.

Saímos para a noite e, na minha pressa em me afastar dali, tropecei e quase caí. Minha mala tombou de lado e eu a arrastei atrás de mim, como se ela fosse um cachorro teimoso. O estacionamento era separado do átrio do hotel por um canteiro, porém, em vez de contorná-lo, passei andando por cima dele. Do outro lado do estacionamento, um par de faróis se acendeu, e então um carro veio correndo para cima de mim, desviando no último segundo. À porta de trás do lado do carona voou para fora.

- Entre - disse Rycart.

A velocidade com que Frank saiu acelerando fez a porta bater depois que eu entrei e me atirou para trás no assento.

- Acabei de ver Emmett - falei.

Richard trocou olhares com seu motorista pelo retrovisor.

- Tem certeza?

- Não.

- Ele viu você?

- Não.

- Tem certeza?

- Sim.

Eu estava agarrado à minha mala. Ela havia se tornado meu objeto transacional. Aceleramos pela estrada escorregadia e pegamos um tráfego pesado em direção à Manhattan.

- Eles podem ter nos seguido desde o La Guardia - disse Frank.

- E por que ficaram esperando? - perguntou Rycart.

- Poderiam estar esperando Emmett chegar de Boston, para identificá-lo.

Até aquele instante, eu não havia levado a espionagem amadora de Rycart muito a sério, porém, naquela hora, senti uma nova onda de pânico.

- Olhem - falei -, acho que não é uma boa idéia eu ir me encontrar com Lang agora. Se aquele era mesmo Emmett, Lang certamente já foi alertado sobre o que eu fiz. Ele vai saber que eu fui até Boston e mostrei as fotografias a Emmett.

- E daí? O que você acha que ele vai fazer a respeito? - perguntou Rycart. - Afogá-lo na banheira dele no Waldorf-Astoria?

- É - disse Frank. Ele riu, balançando um pouco os ombros. - Até parece.

Fiquei enjoado e, apesar do frio da noite, baixei a janela. O vento soprava do leste, vindo em rajadas do rio, espalhando pela sua margem fria e industrial o fedor enjoativo de combustível de avião. Ainda consigo senti-lo na minha garganta sempre que penso nele, e este, para mim, será sempre o gosto do medo.

- Eu não preciso ter uma história na manga? - falei. - O que vou dizer para Lang?

- Você não fez nada de errado - disse Rycart. - Está apenas dando prosseguimento ao trabalho de seu antecessor. Está tentando pesquisar os anos dele em Cambridge. Não aja com tanta culpa. Lang não tem como saber ao certo que você está querendo pegá-lo.

- Não é com Lang que estou preocupado.

Nós dois ficamos em silêncio. Alguns minutos depois, o horizonte noturno de Manhattan surgiu, e meus olhos imediatamente encontraram a falha na fachada reluzente. É estranho que algo que não está lá possa ser um ponto de referência. Era como um buraco negro. Pensei: como uma lágrima no cosmos. Poderia sugar tudo - cidades, países, leis; certamente poderia me engolir. Até mesmo Rycart parecia oprimido pela visão.

- Você pode fechar essa janela? Estou congelando.

Fiz o que ele pediu. Frank tinha ligado o rádio baixinho - uma citação de jazz, tocando suavemente.

- E quanto ao carro? - falei. - Ele ainda está no aeroporto Logan.

- Você pode pegá-lo pela manhã.

A estação passou a tocar blues. Pedi para Frank desligar o rádio. Ele me ignorou.

- Sei que Lang acha que isso é pessoal - disse Rycart -, mas não é. Tudo bem, existe um elemento de vingança, eu admito; afinal, quem gosta de ser humilhado? Mas se continuarmos permitindo torturta, e se simplesmente julgarmos quem é o vencedor pelo número de caveiras inimigas que trazemos de volta para decorarmos nossas cavernas... bem, o que será de nós?

- Vou dizer-lhe o que será de nós - falei, descontrolado. - Vamos ganhar 10 milhões de dólares pelas nossas memórias e viveremos felizes para sempre. - Percebi novamente que minha ansiedade estava me deixando com raiva. - O senhor sabe que isso é inútil, não sabe? No fim das contas, ele vai simplesmente se aposentar aqui com seu salário da CIA e mandar o senhor e seu maldito Tribunal de Crimes de Guerra se ferrarem.

- Talvez ele faça isso. Porém, os antigos consideravam o exílio uma punição pior do que a morte; e Lang vai ser um baita exilado. Ele não poderá viajar para lugar nenhum do mundo, nem mesmo para o punhado de países de merda que não reconhecem o TPI, porque estará sempre correndo o risco de seu avião ter de aterrissar em algum lugar com problemas no motor ou para reabastecer. E nós estaremos esperando por ele. E vai ser aí que o pegaremos.

Olhei para Rycart. Ele estava olhando direto para frente, assentindo discretamente.

- Ou o clima político aqui pode mudar um dia - prosseguiu ele -, e haverá um clamor público para que ele seja entregue à justiça. Eu me pergunto se ele já pensou nisso. A vida dele vai ser um inferno.

- O senhor quase me faz sentir pena dele.

Rycart lançou-me um olhar penetrante.

- Ele deixou você encantado, não foi? Charme! O mal inglês.

- Existem doenças piores.

Atravessamos a ponte Triborough, os pneus batendo nas junções da pista como um pulso acelerado.

- Sinto-me como se estivesse sendo levado para a guilhotina - falei.

Levamos algum tempo para chegar ao centro. Todas as vezes que o carro parava no tráfego da Park Avenue, eu pensava em abrir a porta e sair correndo. O problema era que eu conseguia imaginar muito bem a primeira parte - disparar em meio aos carros parados e sumir em alguma das ruas secundárias -, mas, depois, não conseguia pensar em nada. Para onde iria? Como pagaria por um quarto de hotel se meus perseguidores sabiam o número do meu próprio cartão de crédito e, era de se imaginar, também do cartão falso que eu havia usado antes? Minha conclusão relutante, de qualquer ângulo que examinasse minha enrascada, era que eu estava mais seguro com Rycart. Pelo menos ele sabia como sobreviver naquele mundo alienígena em que eu tinha me metido por burrice.

- Já que você está tão preocupado, podemos combinar um código à prova de erros - disse Rycart. - Você pode me ligar usando o telefone que Frank lhe deu, vamos supor, aos dez minutos de cada hora. Não precisamos necessariamente nos falar. Só deixe o telefone tocar algumas vezes.

- O que vai acontecer se eu não ligar?

-Eu não farei nada se você não ligar uma vez. Se deixar de ligar uma segunda vez, vou telefonar para Lang e dizer-lhe que o considero pessoalmente responsável pela sua segurança.

- Por que será que não acho isso muito tranquilizador? Àquela altura, estávamos quase chegando. Pude ver mais adiante, do outro lado da estrada, uma grande bandeira americana iluminada por holofotes e, ao lado dela, flanqueando a entrada do Waldorf, uma bandeira inglesa. A área em frente do hotel era isolada por blocos de concreto. Contei meia dúzia de motocicletas da polícia esperando, quatro viaturas, duas limusines pretas grandes, uma pequena multidão de cinegrafístas e outra um pouco maior de curiosos. À medida que observava aquilo, meu coração começou a acelerar. Fiquei sem fôlego. Rycart apertou meu braço.

- Coragem, meu amigo. Ele já perdeu um ghost-writer sob circunstâncias suspeitas. Não pode se dar ao luxo de perder outro.

- Isso com certeza não pode ser tudo por causa dele, pode? - perguntei, impressionado. - Qualquer um pensaria que ele ainda é primeiro-ministro.

-Parece que eu só consegui torná-lo uma celebridade ainda maior - disse Rycart. - Vocês deviam era me agradecer. Certo, boa sorte. Voltamos a nos falar mais tarde. Pare aqui, Frank.

Ele levantou o colarinho e afundou no assento, e aquela precaução trazia ridículo para a situação. Pobre Rycart: eu duvidava que uma em 10 mil pessoas em Nova York soubesse quem ele era. Frank parou por um instante na esquina para me deixar sair e então voltou habilidosamente para o tráfego, de modo que a última visão que tive de Rycart foi a parte de trás da sua cabeça grisalha afastando-se na noite de Manhattan.

E então eu estava sozinho.

Atravessei a grande extensão da rua, amarela de táxis, e passei pela multidão e pela polícia. Nenhum dos policiais parados por ali me interpelou: ao verem minha mala, devem ter imaginado que eu era apenas um hóspede fazendo o check in. Passei pelas portas art déco, subi a escadaria de mármore e adentrei o esplendor babilônico do lobby do Waldorf. Normalmente, teria usado meu celular para entrar em contato com Amélia. Porém, até eu tinha aprendido a lição. Andei até um dos recepcionistas e pedi para ele ligar para o quarto.

Ninguém atendeu.

Ele desligou, franzindo o cenho. Estava começando a conferir seu computador quando uma detonação alta veio da Park Avenue. Vários hóspedes que estavam fazendo o check in se agacharam, apenas para se endireitarem de forma lamentável quando a explosão se provou um bombardeio de motores de motocicleta disparando. De dentro do hotel, atravessando a imensa extensão do lobby dourado, veio um bando de seguranças, das Forças Especiais e do Serviço Secreto, com Lang enclausurado no meio deles, marchando com determinação no seu habitual jeito gingado e musculoso. Atrás dele, vinham Amélia e as duas secretárias. Amélia estava ao telefone. Andei em direção ao grupo. Lang passou direto por mim, olhando com firmeza para frente. O que não era do seu feitio. Geralmente, gostava de fazer contato com as pessoas quando passava por elas: lançar-lhes um sorriso que elas jamais esqueceriam. Assim que ele começou a descer as escadas, Amélia me viu. Parecia, pela primeira vez, desconcertada; chegava a estar com alguns fios de seu cabelo louro despenteados.

- Estava tentando ligar para você agora mesmo - disse ela ao passar. Não diminuiu o passo. - Houve uma mudança de planos - disse ela por sobre o ombro. - Estamos voltando agora para Martha's Vineyard.

- Agora? - corri atrás dela. - Está um pouco tarde, não? Começamos a descer as escadas.

- Adam está insistindo. Consegui arranjar um avião para nós.

- Mas por que agora?

- Não faço idéia. Alguma coisa aconteceu. Você vai ter de perguntar a ele.

Lang estava abaixo e à frente de nós. Já havia chegado à entrada principal. Os guarda-costas abriram as portas e seus ombros largos foram subitamente enquadradoí por um brilho halogénlco de luz. Os gritos dos repórteres, o fuzilamento dos obturadores das càmeras, o estrondo das Harley Davidsons - era como se alguém tivesse descerrado as portas do inferno.

- O que eu faço? - perguntei.

- Entre no carro de apoio. Imagino que Adam vá querer falar com você no avião. - Ela percebeu minha expressão de pânico.

- Você está muito estranho. Algum problema?

E agora, o que eu faço? perguntei a mim mesmo. Desmaio? Imploro para conversar com ele antes? Eu parecia estar numa passarela movediça sem maneira de escapar.

- Tudo parece estar acontecendo muito rápido - falei, cansado.

- Isso não é nada. Você precisava ter estado com a gente quando ele era primeiro-ministro.

Emergimos no tumulto de som e luz, e foi como se toda a controvérsia gerada pela Guerra contra o Terror, ano após ano, tivesse convergido por um instante sobre um homem e o feito em chamas. A porta da limusine de Lang estava aberta. Ele parou para acenar brevemente para a multidão além do cordão de segurança, então mergulhou dentro dela. Amélia pegou meu braço e me empurrou em direção ao segundo carro.

- Ande! - gritou ela. As motocicletas já estavam se afastando.

- Não se esqueça, não podemos parar se você ficar para trás.

Ela deslizou para o lado de Lang, e eu me vi entrando na segunda limusine, ao lado das secretárias. Elas se moveram alegremente pelo banco para abrir espaço para mim. Um agente das Forças Especiais entrou na frente, ao lado do motorista, e então estávamos a caminho, acompanhados pelo vup vup de uma das motocicletas, que ressoava como o apito alegre de um pequeno rebocador escoltando um transatlântico para o mar.

Em outras circunstâncias, eu teria me deliciado com aquela viagem: minhas pernas esticadas diante de mim; as Harley Davidsons deslizando por nós para conter o tráfego; os rostos pálidos dos pedestres, vislumbrados pelo vidro escurecido, virando para nos olharem à medida que irrompíamos adiante; o barulho das sirenes; a intensidade das luzes piscantes; a velocidade; a força. Só consigo pensar em duas categorias de seres humanos que são transportados com tanta pompa e circunstância: líderes mundiais e terroristas capturados.

No meu bolso, dedilhei às escondidas meu novo celular. Será que eu deveria alertar Rycart do que estava acontecendo? Decidi que não. Não queria ligar para ele diante de testemunhas. Eu me sentiria muito desconfortável, e minha culpa ficaria evidente. A traição pede privacidade. Rendi-me aos acontecimentos.

Voamos pela ponte como deuses - Alice e Lucy dando risadinhas de empolgação -, e quando chegamos ao La Guardia alguns minutos depois, atravessamos o terminal por um portão de metal aberto e seguimos diretamente para a pista, onde um jato particular grande estava sendo abastecido. Era um avião do Grupo Hallington, com sua carcaça azul-escura e o logotipo da empresa pintado na cauda alta: a Terra rodeada por um círculo, como o do logo da Colgate. A limusine de Lang fez uma curva e parou, e ele foi o primeiro a saltar. Mergulhou através do portal do detector de metais móvel e subiu a escada do Gulfstream sem olhar para trás. Um guarda-costas veio correndo atrás dele.

Enquanto lutava para sair do carro, eu me sentia quase artrítico de tanta ansiedade. Somente dar os passos até onde Amélia estava já foi um esforço. O ar noturno tremia com o barulho de jatos se aproximando para aterrissar. Eu conseguia vê-los, empilhados em cinco ou seis sobre a água, como uma escada de luz subindo na escuridão.

- Isso, sim, é jeito de viajar - falei, tentando parecer tranquilo. - É sempre assim?

- Eles estão querendo mostrar a Adam que gostam dele - disse Amélia. - E, sem dúvida, isso ajuda a mostrar aos outros como eles tratam os amigos. Pour encourager lês autres.

Seguranças com botões de metal insepcionavam todas as bagagens. Acrescentei minha mala à pilha.

- Ele está dizendo que precisa voltar para Ruth - continuou ela, erguendo os olhos para o avião. As janelas eram maiores do que as de uma aeronave comum. O perfil de Lang estava claramente visível perto da cauda. - Precisa conversar sobre alguma coisa com ela. - Sua voz soava intrigada. Ela estava quase falando para si mesma, como se eu não estivesse lá. Perguntei-me se eles teriam brigado no caminho para o aeroporto.

Um dos seguranças me mandou abrir a mala. Abri o zíper e a segurei aberta para ele. Ele levantou o manuscrito para olhar debaixo dele. Amélia estava tão preocupada que nem notou.

- É estranho - disse ela -, porque correu tudo tão bem em Washington. - Ela lançou um olhar inexpressivo para as luzes da pista.

- Sua bolsa - disse o segurança.

Entreguei-a para ele. Ele retirou o envelope de fotografias e, por um instante, pensei que ia abri-lo, mas estava mais interessado no meu laptop. Senti necessidade de continuar falando.

- Talvez ele tenha recebido alguma notícia de Haia - sugeri.

- Não. Não tem nada a ver com isso. Ele teria me contado.

- Tudo bem, você está liberado para embarcar - disse o guarda.

- Não vá falar com ele ainda - advertiu ela, enquanto eu passava pelo detector. - Não no atual estado de humor dele. Eu chamo você se ele quiser conversar.

Subi a escada.

Lang estava sentado no último lugar, o mais perto da cauda, com O queixo apoiado na mão, olhando pela janela. (Os seguranças sempre preferiam que ele se sentasse na última fileira, descobri mais tarde: significava que ninguém poderia vir por detrás dele.) A cabine tinha sido projetada para levar dez passageiros, dois em cada um dos dois sofás que corriam pela lateral da fuselagem, e os demais em seis poltronas grandes. As poltronas ficavam aos pares, uma de frente para a outra, com uma mesa de centro entre as duas. Parecia um anexo do lobby do Waldorf: acessórios dourados, mobília de nogueira envernizada, couro estofado cor de creme. Os agentes das Forças Especiais estavam sentados em um dos sofás. A comissária de bordo de paletó branco inclinava-se sobre o ex-primeiro-ministro. Não conseguia ver qual drinque ela lhe servia, mas conseguia ouvir. O seu som favorito pode ser uma dupla de rouxinóis cantando em um anoitecer de verão ou o repique de sinos de igreja em um vilarejo. O meu é o tinir de gelo em um copo de vidro lapidado. Nisto, sou um especialista. E aquilo soava claramente aos meus ouvidos como se Lang tivesse trocado o chá por um uísque puro.

A comissária me viu olhando e veio pelo corredor na minha direção.

- Posso lhe oferecer algo, senhor?

- Obrigado. Sim. Quero o que o Senhor Lang estiver bebendo. Eu errei: era conhaque.

Quando a porta se fechou, havia 12 de nós a bordo: três tripulantes (o piloto, o co-piloto e a comissária) e nove passageiros - duas secretárias, quatro guarda-costas, Amélia, Adam Lang e eu. Sentei-me de costas para a cabine do piloto para poder ficar de olho no meu cliente. Amélia estava bem de frente para ele e, quando os motores começaram a zumbir, tive de me conter para não me jogar em direção à porta e escancará-la. O vôo me parecia condenado desde o início. O Gulfstream tremeu um pouco e o terminal pareceu afastar-se lentamente. Eu podia ver a mão de Amélia fazendo gestos violentos, como se ela estivesse explicando alguma coisa, mas Lang apenas continuava olhando para a pista de decolagem.

Alguém tocou o meu braço.

- Você sabe quanto custa um desses?

Era o policial que tinha vindo no meu carro do Waldorf. Ele estava no assento do outro lado do corredor.

- Não, não sei.

- Tente adivinhar.

- Realmente não faço idéia. - Vamos lá. Dê um chute. Dei de ombros.

- Dez milhões de dólares?

- Quarenta milhões de dólares. - Ele soava triunfante, como se saber o preço implicasse de alguma forma que ele também era um pouco dono. - O Grupo Halligton tem cinco desses.

- Faz você se perguntar para que eles precisariam de tantos.

- Eles os alugam quando não estão precisando.

- Ah, sim, é verdade - falei. - Ouvi dizer.

O barulho dos motores aumentou quando começamos a acelerar pela pista. Imaginei os suspeitos de terrorismo, algemados e encapuzados, presos em suas poltronas de couro confortáveis, enquanto decolavam de alguma pista militar suja de terra vermelha perto da fronteira do Afeganistão, com destino às florestas de pinheiros do leste da Polónia. O avião pareceu saltar no ar, e eu fiquei observando pela minha janela as luzes de Manhattan se espalharem, enchendo a janela e depois deslizando e se inclinando, para então finalmente piscarem até sumirem na escuridão enquanto subíamos para as nuvens baixas. Tive a impressão de que estávamos subindo às cegas por um longo tempo em nosso vulnerável tubo de metal, mas então toda aquela nebulosidade ficou para trás e emergimos em uma noite clara. As nuvens eram tão maciças e sólidas quanto os Alpes, e a lua aparecia de vez em quando por detrás dos picos, iluminando vales, geleiras e ravinas.

Algum tempo depois de o avião estabilizar, Amélia se levantou e desceu o corredor na minha direção. Seus quadris balançavam, involuntariamente sedutores, com o movimento da cabine.

- Certo - disse ela -, ele está pronto para conversar. Mas pegue leve, sim? Os últimos dias foram um inferno para ele.

Para nós dois, pensei.

- Pode deixar - respondi.

Fisguei minha bolsa do lado do meu assento e comecei a me espremer para passar por ela. Ela agarrou meu braço.

- Você não tem muito tempo - alertou ela. - Este vôo é um pulo. Vamos começar a descer a qualquer momento.

Com certeza era um pulo. Conferi mais tarde. Menos de 420 quilômetros separavam a cidade de Nova York de Martha's Vineyard, e a velocidade média de um Gulfstream G450 é de 882 quilômetros por hora. A união destes dois fatos explica por que a gravação da minha conversa com Lang tem meros 11 minutos. Provavelmente já estávamos perdendo altitude enquanto eu me encaminhava para ele.

Ele estava de olhos fechados, ainda segurando o copo na mão estendida. Havia tirado o paletó, a gravata e os sapatos e estava estatelado na poltrona como uma estrela-do-mar, como se alguém o tivesse empurrado nela. A princípio, pensei que tinha pegado no sono, mas então percebi que seus olhos estavam apertados até virarem pequenas frestas e que ele me observava com atenção. Gesticulou vagamente com seu drinque para a poltrona diante de si.

- Oi, cara - disse ele. - Sente-se comigo. - Ele abriu os olhos por completo, bocejou e levou as costas da mão à boca. - Desculpe.

- Olá, Adam.

Eu me sentei. Estava com a bolsa no colo. Tateei dentro dela para pegar meu bloco de anotações, o minigravador e um disco sobressalente. Não era isso que Rycart queria? Fitas? O nervosismo me deixou desastrado, e se Lang tivesse apenas erguido uma sobrancelha, eu teria guardado o gravador de volta. Porém, ele não pareceu notar. Devia ter passado muitas vezes por aquele ritual ao fim de alguma visita oficial - o jornalista trazido à sua presença para alguns minutos de exclusividade; o gravador conferido com nervosismo para garantir que estava funcionando; a ilusão de informalidade durante o drinque relaxante do primeiro-ministro. Na gravação, dá para ouvir o cansaçona sua voz.

- E então - falou ele -, como está indo?

- Está indo - respondi, - Certamente está indo. Quando ouvi a fita, minha voz estava tão aguda por conta da ansiedade que parecia que eu havia inalado gás hélio.

- Descobriu algo de interessante?

Havia o brilho de alguma coisa nos seus olhos. Desprezo? Diversão? Percebi que ele estava jogando comigo.

- Uma coisinha ou outra. Como foi em Washington?

- Washington foi ótimo, na verdade. - Ouve-se um rangido quando ele se empertiga um pouco na cadeira, endireitando-se para mais uma performance antes de o teatro fechar o expediente. - Recebi um apoio maravilhoso em todos os lugares, no Capitólio, é claro, como você provavelmente assistiu, mas também do vice-presidente e do secretário de Estado. Eles vão me ajudar de todas as maneiras possíveis.

- E isso significa que o senhor poderá ficar na América?

- Oh, sim. Se o pior acontecer, eles certamente me oferecerão asilo. Talvez até algum tipo de função, desde que não envolva viagens para o exterior. Mas não vai chegar a tanto. Eles me fornecerão algo ainda mais valioso.

- É mesmo? Lang assentiu.

- Provas.

-- Certo. - Não fazia idéia do que ele estava falando.

- Esse negócio está ligado? - perguntou ele.

Na gravação, ouve-se um barulho metálico ensurdecedor de quando eu pego o gravador.

- Sim, acho que está. Tudo bem?

Com um som de pancada, eu o coloco de volta.

- Claro - disse Lang. - Só quero me certificar de que você vai registrar isso, porque acho que definitivamente podemos usá-lo. É importante. Devemos manter exclusivo para as memórias. Vai fazer maravilhas para o contrato de publicação em série. - Ele se inclinou para frente para frisar as suas palavras. - Washington está disposto a testemunhar sob juramento que nenhum agente britânico esteve diretamente envolvido na captura daqueles quatro homens no Paquistão.

- É mesmo? - É mesmo? fiquei repetindo como um papagaio, e me encolho toda vez que ouço o servilismo na minha voz. O cortesão bajulador. O ghost-writer acanhado.

- Pode apostar. O próprio diretor da CIA prestará um depoimento para o tribunal em Haia, dizendo que aquela foi uma operação secreta exclusivamente americana e, se isso não resolver, eles estão dispostos a permitir que os próprios agentes que estavam no comando da missão forneçam provas filmadas. - Lang recostou-se e bebericou seu conhaque. - Isso deve dar a Rycart o que pensar. Como ele vai fazer para uma acusação de crimes de guerra me atingir agora?

- Mas o seu memorando para o ministro da Defesa...

- Aquilo é autêntico - admitiu ele, dando de ombros. - É verdade, não posso negar que recomendei o uso das SAS. E é verdade que o governo britânico não pode negar que nossas forças especiais estavam em Peshawar na época da Operação Tempestade. E também não podemos negar que foi o nosso serviço de inteligência que rastreou aqueles homens até o local em que eles foram presos. Porém, não existe prova de que passamos a informação para a CIA.

Lang sorriu para mim.

- Mas nós passamos?

- Não existe prova de que passamos a informação para a CIA.

- Mas se nós passamos, certamente isso ainda configura colaboração e cumplicidade...

- Não existe prova de que passamos a informação para a CIA. Ele ainda sustentava o sorriso na cara, embora já estivesse comum pequeno vinco na testa causado pelo esforço, como um tenor ao sustentar uma nota no fim de um ária difícil.

- Então como a informação chegou a eles?

- Essa é uma pergunta difícil. Certamente não foi por meio de nenhum órgão oficial. E certamente não teve nada a ver comigo. - Fez-se uma longa pausa. O sorriso dele morreu. - Bem - falou ele. - O que você acha?

- Parece um pouco - tentei encontrar uma maneira diplomática de dizer aquilo - técnico.

- Como assim?

Minha resposta na gravação é tão evasiva, tão cheia de rodeios apreensivos, que faria qualquer pessoa morrer de rir.

- Bem, quero dizer, o senhor admite que queria que as SAS os capturassem, sem dúvida que... bem... por motivos compreensíveis, e mesmo que eles não tenham feito o serviço eles mesmos, o ministro da Defesa, no meu modo de ver, não teve como negar que eles estavam envolvidos, porque pelo jeito eles estavam, mesmo que estivessem apenas dentro de um carro parado na esquina. E, aparentemente, bem... a inteligência britânica informou à CIA o local em que eles poderiam ser capturados. E quando eles foram torturados, o senhor nlo se posicionou contra.

Falei depressa a última frase. Lang disse com frieza:

- Sid Kroll ficou muito satisfeito com o compromisso que a CIA assumiu com ele. Sid acredita que talvez a procuradora tenha até que abandonar o caso.

- Bem, se Sid está dizendo...

- Mas eu estou pouco me fodendo - falou Lang de repente. Ele bateu com a mão na beirada da mesa. Na fita, parece uma explosão.

O agente das Forças Especiais que cochilava no sofá próximo ergueu os olhos bruscamente. - Não me arrependo do que aconteceu com aqueles quatro homens. Se tivéssemos confiado nos paquistaneses, eles nunca teriam sido pegos. Precisávamos apanhá-los enquanto tínhamos a chance. Se não tivéssemos feito isso, eles teriam se escondido, e a próxima notícia que teríamos deles seria quando estivessem matando nossa gente.

- O senhor não se arrepende mesmo?

- Não.

- Nem do que morreu durante o interrogatório?

-Ah, esse - falou Lang com desprezo. - Ele tinha problemas no coração, uma doença cardíaca não diagnosticada. Poderia ter morrido a qualquer momento. Poderia ter morrido saindo da cama pela manhã.

Não disse nada. Fingi que estava fazendo uma anotação.

- Olhe - disse Lang -, eu não acho que a tortura seja justificável, mas deixe-me lhe dizer uma coisa. Em primeiro lugar, ela realmente dá resultados; eu tive acesso aos dados da inteligência. Em segundo lugar, ter poder, no fim das contas, se resume em calcular qual o pior dos males, e, se você pensar bem, o que são alguns poucos minutos de sofrimento para alguns indivíduos comparado à morte, e, veja bem, estou falando de morte, de milhares de outros? Em terceiro lugar, não me venha dizer que isso é exclusividade da Guerra contra o Terror. A tortura sempre fez parte da guerra. A única diferença é que no passado não havia a porra da imprensa em volta para divulgá-la.

- Os homens presos no Paquistão dizem que são inocentes - apontei.

- É claro que eles dizem que são inocentes! O que mais iriam dizer? - Lang examinou-me com atenção, como se me visse de fato pela primeira vez. - Estou começando a achar que você é muito ingênuo para esse serviço.

- Ao contrário de McAra? - falei.

- Mike! - Lang riu e balançou a cabeça. - Mike tinha outro tipo de ingenuidade.

O avião havia começado a descer com bastante rapidez. A lua e as estrelas tinham sumido. Estávamos despencando pelas nuvens. Eu conseguia sentir a pressão mudar nos meus ouvidos e tive de apertar o nariz e engolir com força.

Amélia veio andando pelo corredor.

- Está tudo bem? - perguntou ela. Parecia preocupada. Devia ter ouvido a explosão de Lang; todos deviam ter ouvido.

- Só estamos trabalhando um pouco nas minhas memórias - disse Lang. - Estou contando a ele o que aconteceu na Operação Tempestade.

- Você está gravando? - perguntou Amélia.

- Se não houver problema - falei.

- O senhor precisa tomar cuidado - disse ela a Lang. - Lembre-se do que Sid Kroll falou.

- As fitas ficarão com o senhor - interrompi -, não comigo.

- Elas ainda podem ser intimadas.

- Pare de me tratar como se eu fosse uma criança - disse Lang bruscamente. - Eu sei o que quero dizer. Vamos acabar com isso de uma vez por todas.

Amélia permitiu-se arregalar ligeiramente os olhos e foi embora.

- Mulheres! - murmurou Lang. Ele tomou outro gole de conhaque. O gelo tinha derretido, mas o líquido continuava escuro. Deve ter sido uma dose e tanto, e ocorreu-me que nosso ex-primeiro-ministro estava ligeiramente bêbado. Percebi que aquele era o meu momento

- Em que sentido - perguntei - Mike era ingênuo?

- Esqueça - resmungou Lang. Ele bebericou seu drinque, o queixo no peito, refletindo. De repente, voltou a levantar a cabeça. - Quero dizer, pegue, por exemplo, toda essa conversa sobre liberdades civis. Sabe o que eu faria se estivesse no poder novamente? Eu diria, então tudo bem, vamos ter duas filas nos aeroportos. À esquerda, teremos filas para vôos em que não fizemos investigação alguma sobre os passageiros, nenhum perfil, nada de análise biométrica, nada que possa infringir as preciosas liberdades civis de ninguém ou use informações obtidas sob tortura; nada. À direita, teremos filas para os vôos em que fizemos todo o possível para torná-los seguros para os passageiros. Então as pessoas poderiam decidir qual avião queriam pegar. Não seria ótimo? Recostar na cadeira e ver em qual fila os Rycart deste mundo de fato escolheriam colocar seus filhos na hora da verdade?

- E Mike era assim?

- Não no começo. Porém, infelizmente, Mike descobriu o idealismo depois de velho. Eu falei para ele, no que foi nossa última conversa, na verdade: se nosso Senhor Jesus Cristo não conseguiu resolver todos os problemas do mundo quando Ele desceu dos céus para viver entre nós, e veja bem, Ele era o filho de Deus, não era um pouco irracional da parte de Mike esperar que eu tivesse resolvido tudo em dez anos?

- É verdade que o senhor teve uma briga feia com ele pouco antes de ele morrer?

- Mike fez algumas acusações levianas. Eu não podia ignorá-las.

- Posso perguntar que tipo de acusações?

Eu conseguia imaginar Rycart e o procurador especial sentados escutando a gravação, empertigando-se em suas cadeiras ao ouvir aquilo. Tive de engolir novamente. Minha voz me soava abafada, como se eu estivesse falando em um sonho ou gritando para mim mesmo de muito longe. Na fita, a pausa que se segue é muito curta, mas, naquela hora, pareceu interminável, e quando Lang falou, sua voz saiu extremamente baixa.

- Prefiro não repeti-las.

- Elas tinham algo a ver com a CIA?

- Mas a essa altura você já sabe, não sabe? - disse Lang com amargura. - Já que foi ver Paul Emmett.

E, desta vez, a pausa é tão longa na gravação quanto na minha memória.

Tendo lançado sua bomba, Lang olhou para fora pela janela e bebericou seu drinque. Algumas luzes isoladas haviam começado a aparecer debaixo de nós. Olhei para ele e percebi que a idade finalmente o alcançara. Via-se isso na bolsa de carne que pendia sob seus olhos e na pele solta debaixo da mandíbula. Ou talvez não fosse a idade. Talvez ele estivesse simplesmente exausto. Eu duvidava que ele estivesse dormindo direito nas últimas semanas, provavelmente desde que McAra o confrontara. Certamente, quando ele finalmente voltou a olhar para mim, não havia raiva na sua expressão, apenas um grande cansaço.

- Quero que você entenda - disse ele, frisando bastante as palavras - que tudo o que fiz, tanto como líder do partido quanto como primeiro-ministro, tudo, eu fiz por convicção, por acreditar que era certo.

Murmurei uma resposta. Estava em estado de choque.

- Emmett disse que você mostrou algumas fotos para ele. É verdade? Posso vê-las?

Minhas mãos tremiam um pouco quando eu as retirei do envelope e as empurrei pela mesa na direção dele. Ele passou pelas primeiras quatro muito rapidamente, deteve-se na quinta - na qual ele aparecia junto com Emmettt no palco - e então voltou ao início e começou a olhá-las novamente, demorando-se em cada uma das imagens. Então falou, sem erguer os olhos:

- Onde você as conseguiu?

- McAra as requisitou do arquivo. Eu as encontrei no quarto dele.

Pelo alto-falante, o co-piloto nos pediu para colocar o cinto.

- É estranho - murmurou Lang. - É estranho como todos nós mudamos tanto, mas, ainda assim, continuamos exatamente os mesmos. Mike nunca mencionou nada para mim sobre fotografias. Ah, aquela praga de arquivo! - Ele apertou os olhos para ver melhor uma das fotografias da margem do rio. Eram as garotas, notei, mais do que ele mesmo ou Emmett, que pareciam fasciná-lo mais. - Eu me lembro dela - falou, batendo com os dedos na foto. - E dela. Ela me escreveu uma vez, quando eu era primeiro-ministro. Ruth não gostou nada. Oh, Deus - disse ele, passando a mão pelo rosto. - Ruth. - Por um instante, achei que ele fosse desmoronar, mas quando olhou para mim, seus olhos estavam secos. - E agora? Existe alguma rotina no seu ramo de trabalho para lidar com esse tipo de situação?

Àquela atura, já havia padrões de luz muito claros na janela. Eu podia ver os faróis de um carro em uma estrada.

- O cliente sempre tem a última palavra sobre o que entra no livro - falei. - Sempre. Porém, obviamente, neste caso, levando-se em conta o que aconteceu...

Na gravação, minha voz se perde, e então há um baque alto, de quando Lang se inclinou para frente e agarrou meu antebraço.

- Se você está falando sobre o que aconteceu com Mike, então deixe que eu lhe diga que fiquei completamente horrorizado com aquilo. - Seu olhar não desgrudava do meu: ele estava empregando todas as suas últimas forças na tarefa de me convencer, e devo confessar abertamente que, apesar de tudo o que eu tinha descoberto, ele conseguiu: até hoje, tenho certeza de que ele estava dizendo a verdade. - Mesmo que não acredite em mais nada, você deve, por favor, acreditar que a morte dele não teve nada a ver comigo, e que eu carregarei aquela imagem de Mike no necrotério até o dia da minha própria morte. Tenho certeza de que foi um acidente. Mas, tudo bem, digamos, em prol da discussão, que não foi. - Ele apertou meu braço com mais força. - O que estava passando pela cabeça dele para ir até Boston confrontar Emmett? Ele já estava na política há tempo suficiente para saber que não se faz uma coisa dessas, não quando os riscos são tão altos. Sabe, de certa forma, ele se matou mesmo. Foi um gesto suicida.

- É isso que me preocupa - falei.

- Você não está pensando a sério - disse Lang - que a mesma coisa pode acontecer com você, está?

- A idéia passou pela minha cabeça.

-Você não tem nada a temer neste sentido. Eu garanto. -Acho que minha descrença ficou patente. - Ah, por favor, cara! - disse ele com urgência. Novamente, seus dedos se enfiaram na minha carne. - Nós temos quatro policiais viajando neste avião conosco agora mesmo! Que tipo de pessoa você acha que nós somos?

- Bem, a questão é toda essa - falei. - Que tipo de pessoa é o senhor?

Estávamos descendo por sobre os topos das árvores. As luzes do Gulfstream brilhavam pelas ondas negras de folhagem. Tentei libertar meu braço.

- Com licença - falei.

Lang largou-me com relutância, e eu coloquei meu cinto de segurança. Ele fez o mesmo. Olhou pela janela para o terminal, depois de volta para mim, apavorado, à medida que mergulhávamos graciosamente na pista.

- Meu Deus, você já contou para alguém, não contou? Pude me sentir ficando vermelho.

- Não - falei.

- Contou, sim.

- Não contei. - Na gravação, eu soo tão impotente quanto uma criança pega no flagra.

Ele se inclinou para frente mais uma vez.

- Para quem você contou?

Enquanto eu olhava para a floresta negra além do perímetro do aeroporto, onde nada poderia estar à espreita, ela parecia ser a única coisa que poderia me dar segurança.

- Richard Rycart - disse.

Deve ter sido um golpe devastador para Lang. Ele deve ter percebido no mesmo instante que aquilo significava o fim de tudo. Na minha mente, ainda consigo vê-lo como um daqueles edifícios que já foram grandiosos, mas que agora estão condenados, momentos depois das bombas de demolição explodirem: por alguns segundos, a fachada continua intacta de forma bizarra, antes de começar a deslizar lentamente para baixo. Com Lang foi igual. Ele me lançou um longo olhar vazio, depois afundou de volta na poltrona.

O avião parou diante do prédio do terminal. Os motores morreram.

Neste instante, por fim, fiz algo de inteligente.

Enquanto Lang ficava sentado contemplando sua ruína e Amélia vinha correndo pelo corredor para descobrir o que eu tinha dito, tive a presença de espírito de ejetar o disco do minigravador e colocá-lo no bolso. No seu lugar coloquei outro em branco. Lang estava abalado demais para se importar, e Amélia, vidrada demais nele para perceber.

- Certo - disse ela com firmeza -, já chega por hoje. - Tirou o copo vazio da mão dele, que não esboçou resistência, e entregou-o à comissária. - Temos de levá-lo para casa, Adam. Ruth está esperando no portão. - Ela estendeu o braço e tirou seu cinto de segurança, então pegou seu paletó do encosto da poltrona. Segurou-o já pronto para ele vestir e balançou-o um pouco, como um toureiro com uma capa, mas sua voz era muito delicada. - Adam?

Ele se levantou como se estivesse em transe, para obedecer, lançando um olhar vazio para a cabine do piloto enquanto ela colocava seus braços nas mangas. Ela me fuzilou com o olhar por sobre o ombro dele e fez com a boca, furiosamente, com muita clareza e com sua dicção habitualmente precisa: "Que merda é essa que você está fazendo?"

E aquela era uma boa pergunta. Que merda era aquela que eu estava fazendo? Na parte da frente do avião, a porta tinha se aberto e três dos agentes das Forças Especiais estavam desembarcando. Uma rajada de ar frio correu pela cabine. Lang começou a andar em direção à saída, precedido pelo seu quarto guarda-costas, com Amélia atrás. Enfiei rapidamente o gravador e as fotografias na minha bolsa a tiracolo e os segui. O piloto tinha saído da cabine para se despedir, e vi Lang claramente endireitar os ombros e seguir na direção dele com a mão estendida.

- Foi ótimo - disse Lang, vagamente -, como sempre. Vocês são minha companhia preferida. - Ele apertou a mão do piloto, então se inclinou por cima dele para agradecer ao co-piloto e à comissária.

- Obrigado. Muito obrigado. - Ele se virou para nós, ainda com seu sorriso profissional nos lábios, mas o sorriso sumiu rápido; ele parecia chocado. Os guarda-costas já estavam na metade da escada. Apenas Amélia, eu e as duas secretárias esperávamos para segui-lo para fora do avião. Eu conseguia ver indistintamente, parado na janela de vidro iluminada do terminal, o vulto de Ruth. Ela estava longe demais para eu saber qual era a expressão de seu rosto. - Você se importa de esperar aqui um instante? - disse ele para Amélia. - E você também?- acrescentou ele para mim. - Preciso conversar em particular com a minha mulher.

- Está tudo bem, Adam? - perguntou Amélia. Ela estava com ele havia muito tempo, e imagino que o amasse demais, para não perceber que havia algo de terrivelmente errado.

- Vai ficar tudo bem - falou Lang. Ele tocou seu cotovelo de leve, então fez para todos nós, inclusive para mim e para a tripulação, uma pequena mesura. - Obrigado, senhoras e senhores, e boa noite.

Ele passou abaixado pela porta e parou no topo das escadas,

olhando em volta, alisando o cabelo para baixo. Amélia e eu o observamos de dentro do avião. Ele estava do mesmo jeito de quando eu o vi pela primeira vez - ainda, por uma questão de hábito, procurando uma platéia com a qual pudesse fazer contato, embora o pátio castigado pelo vento e iluminado pelos holofotes estivesse deserto, exceto pelos guarda-costas que o esperavam e por um funcionário do aeroporto de macacão, fazendo hora extra, sem dúvida louco para chegar em casa.

Lang também deve ter visto Ruth esperando na janela, pois de repente levantou a mão para acenar, então começou a descer os degraus, graciosamente, como um dançarino. Ele ganhou a pista e tinha andado cerca de dez metros na direção do terminal quando o funcionário do aeroporto gritou "Adam!" e acenou. A voz era inglesa, e Lang deve ter reconhecido o sotaque de um conterrâneo, pois se separou de repente dos seus guarda-costas e caminhou em direção ao homem com a mão estendida. E esta foi minha última imagem de Lang: um homem que estava sempre com a mão estendida. Ela está gravada na minha retina: sua sombra aflita contra a bola crescente de fogo branco brilhante que o engoliu; e então havia apenas os estilhaços voando, as partículas alfinetando nossa pele, o vidro, o calor intenso e o silêncio da explosão, como se estivéssemos debaixo d'água.

 

Se você ficar minimamente aborrecido com a idéia de não ver seu nomenos créditos ou não ser convidado para a festa de lançamento, então aprofissão de ghost-writer lhe trará muitas tristezas.

Ghostwriting

 

Não vi mais nada depois daquele clarão inicial de luz: havia muito vidro e sangue nos meus olhos. A força da explosão atirou todos nós para trás. Amélia, descobri mais tarde, bateu com a cabeça na lateral de um dos assentos e caiu inconsciente, enquanto eu fiquei estirado no corredor em meio à escuridão e ao silêncio pelo que podem ter sido minutos ou horas. Não senti dor, exceto quando uma das secretárias apavoradas pisou na minha mão com seu salto alto no desespero para sair do avião. Porém, eu não conseguia enxergar, e também se passaram várias horas até que eu pudesse ouvir direito. Até hoje, de vez em quando, escuto um zumbido nos ouvidos. Ele me isola do mundo, como uma interferência de rádio. Depois de um tempo, fui levantado e retirado dali e recebi uma maravilhosa injeção de morfina, que explodiu como fogos de artifício quentes no meu cérebro. Então fui levado de helicóptero com todos os demais sobreviventes para um hospital perto de Boston - muito próximo, por sinal, do lugar onde Emmett morava.

Você já fez algo escondido quando criança que parecia muito ruim na época e pelo qual você tinha certeza de que seria punido? Eu me lembro de ter quebrado um velho e precioso disco de vinil de meu pai e o colocado de volta na capa sem dizer nada a respeito. Durante dias, vivi sob terror, convencido de que o castigo viria a qualquer momento. Porém, ninguém nunca falou nada. Da próxima vez em que tive coragem de olhar, o disco tinha desaparecido. Ele deve tê-lo encontrado e jogado fora.

Senti algo parecido depois do assassinato de Adam Lang. Nos dois dias que se seguiram, deitado no meu quarto de hospital, com o rosto enfaixado e um policial montando guarda no corredor, repassei várias vezes em minha cabeça os acontecimentos da semana anterior, e sempre me pareceu óbvio que eu jamais deixaria aquele lugar vivo. Se você pensar bem, não existe lugar mais fácil de se livrar de alguém do que em um hospital: imagino que seja quase rotineiro. E quem melhor para servir de assassino do que um médico?

No entanto, acabou sendo parecido com o incidente do disco quebrado de meu pai. Nada aconteceu. Enquanto eu ainda estava vendado, fui interrogado gentilmente pelo agente especial Murphy, do departamento de Boston do FBI, que perguntou do que eu conseguia me lembrar. Na tarde seguinte, quando os curativos foram retirados dos meus olhos, Murphy retornou. Ele parecia um jovem padre musculoso em um filme da década de 1950 e, daquela vez, estava acompanhado por um inglês melancólico do Serviço de Segurança Britânico, o M15, cujo nome nunca entendi direito - o que, suponho, seja mesmo a intenção.

Eles me mostraram uma fotografia. Minha vista ainda estava embaçada, mas, ainda assim, consegui identificar o maluco que eu havia conhecido no bar do meu hotel, e que tinha montado aquela vigília solitária, com o slogan bíblico, no fim da trilha para o complexo Rhinehart. Seu nome, disseram eles, era George Arthur Boxer, ex-major do Exército britânico, cujo filho havia sido morto no Iraque e cuja mulher morrera seis meses depois em um ataque de um homem-bomba em Londres. O major Boxer considerava Adam Lang pessoalmente responsável pelas mortes e o havia seguido até Martha's Vineyard logo depois que a morte de McAra fora divulgada pelos jornais. Estudara as táticas dos homens bomba em páginas jihadistas na internet. Tinha alugado uma cabana em Oak Bluffs, para a qual levara carregamentos de solvente e herbicida, transformando-a em uma pequena fábrica de explosivos caseiros. E teria sido fácil para ele saber quando Lang estava voltando de Nova York, pois veria o carro à prova de bombas seguindo para o aeroporto para buscá-lo. Como ele chegara à pista, ninguém sabia ao certo, mas estava escuro, havia uma cerca de quase 6 quilômetros em volta do local, e os especialistas sempre partiram do princípio de que quatro agentes das Forças Especiais e um carro blindado eram proteção suficiente.

Porém, era preciso ser realista, disse o homem do M15. A segurança também tinha seus limites, especialmente contra um homem-bomba determinado. Ele citou Sêneca, no original em latim, e então teve a bondade de traduzir: "Aquele que despreza a própria vida é dono da sua." Tive a impressão de que todos estavam um pouco aliviados pela maneira como as coisas tinham acontecido: os ingleses porque Lang tinha sido assassinado em solo americano; os americanos porque ele tinha sido explodido por um inglês; e ambos porque não haveria mais julgamento por crimes de guerra, nenhuma revelação constrangedora e nenhum convidado abusando da hospitalidade alheia, vagando pelas mesas de jantar de Georgetown pelos próximos vinte anos. Poderíamos quase dizer que era a relação especial em prática.

O agente Murphy perguntou-me sobre o vôo de Nova York e se Lang havia expressado algum temor sobre sua segurança pessoal. Respondi com sinceridade que não.

- A Senhora Bly - disse o homem do M15 - disse-nos que você gravou uma entrevista com ele durante a parte final do vôo.

- Não, ela está enganada - falei. - Eu estava com o gravador na minha frente, mas não cheguei a ligá-lo. De qualquer forma, não foi exatamente uma entrevista. Foi mais um bate-papo.

- Você se importa se eu der uma olhada?

- Vá em frente.

Minha bolsa estava no armário ao lado de minha cama. O homem do M15 pegou o minigravador e ejetou o disco. Fiquei observando-o, com a boca seca.

- Posso levar isso emprestado?

- Pode ficar com ele - falei. Ele começou a remexer o resto dos meus pertences. - Por sinal, como está Amélia?

- Ela está bem. - Ele colocou o disco na sua maleta. - Obrigado.

- Posso vê-la?

- Ela pegou o avião de volta para Londres na noite passada. - Imagino que minha decepção deve ter ficado clara, pois o homem do M15 acrescentou, com um prazer frio. - Não é de surpreender. Ela não via o marido desde antes do Natal.

- E quanto a Ruth? - perguntei.

- Ela está voltando para casa com o corpo do Senhor Lang agora - disse Murphy. - O seu governo mandou um avião para apanhá-los.

- Ele receberá a mais alta honraria militar - acrescentou o homem do M15 - uma estátua no Palácio de Westminster e um funeral na Abadia, se ela quiser. Ele está mais popular do que nunca, depois da morte.

- Ele deveria ter feito isso anos atrás - falei. Eles não sorriram. - E é mesmo verdade que ninguém mais morreu?

- Ninguém - disse Murphy -, o que foi um milagre, acredite.

- Na verdade - falou o homem do M15 -, a Senhora Bly tem dúvidas se o Senhor Lang não teria reconhecido o assassino e seguido deliberadamente na direção dele, sabendo que algo parecido poderia acontecer. Você conseguiria ajudar a esclarecer isso?

- Parece-me forçado - falei. - Achei que um caminhão de combustível tivesse explodido.

- Foi mesmo uma explosão e tanto - falou Murphy, fechando lua caneta com um clique e deslizando-a para dentro de seu bolso interno. - Acabamos encontrando a cabeça do assassino no telhado do terminal.

Assisti ao funeral de Lang na CNN dois dias depois. Minha vista estava mais ou menos recuperada. Pude ver o bom gosto de tudo: a rainha, o primeiro-ministro, o vice-presidente dos EUA e metade dos líderes da Europa; o caixão envolvido na bandeira inglesa; a guarda de honra; o flautista solitário tocando uma elegia. Ruth ficava muito bem de preto, pensei: era definitivamente sua cor. Fiquei procurando por Amélia, mas não a vi. Durante um intervalo na cerimônia, houve até uma entrevista com Richard Rycart. Naturalmente, ele não tinha sido convidado, mas se dera ao trabalho de colocar uma gravata preta e prestar uma homenagem muito tocante do seu gabinete nas Nações Unidas: um grande colega, um verdadeiro patriota, tínhamos nossas desavenças, continuamos amigos, meu coração está com Ruth e a família, no que me diz respeito, todo este episódio chegou ao fim.

Encontrei o celular que ele havia me dado e atirei-o pela janela.

No dia seguinte, que era o dia em que eu receberia alta do hospital, Rick veio de Nova York para se despedir e me levar até o aeroporto.

- Você quer a notícia boa ou a ruim? - falou ele.

- Não tenho certeza se sua idéia de boa notícia é a mesma que a minha.

- Sid Kroll acabou de ligar. Ruth Lang ainda quer que você termine as memórias, e Maddox vai lhe dar um mês extra para você trabalhar no manuscrito.

- E qual é a boa notícia?

- Ah, muito engraçadinho. Olhe, não seja tão metido. Este é um livro muito quente agora. É a voz de Adam Lang vindo do além. Não precisa mais trabalhar nele aqui: pode terminá-lo em Londres. Aliás, você está péssimo.

- A voz dele vindo do além? - repeti, sem acreditar no que estava ouvindo. - Então agora eu devo ser o fantasma de um fantasma?

- Ora, o que é isso? A situação toda é cheia de possibilidades. Pense um pouco. Você pode escrever o que quiser, até certo ponto. Ninguém vai impedi-lo. E você gostava dele, não gostava?

Pensei naquilo. Na verdade, vinha pensando naquilo desde que acordara da anestesia. Pior do que a dor nos meus olhos e o zumbido noi meui ouvidoi, pior ité de que o meu medo de Jamais sair do hospital, era minha sensação de culpa. Isso pode parecer estranho, levando-se em conta o que eu havia descoberto, mas não conseguia inventar nenhuma desculpa para mim mesmo e nem ficar ressentido com Lang. Eu era o culpado. Não era só o fato de eu ter traído meu cliente, pessoal e profissionalmente: mas também a série de acontecimentos que meus atos haviam desencadeado. Se eu não tivesse ido ver Emmett, Emmett não teria contatado Lang para avisá-lo sobre a fotografia. Então talvez Lang não tivesse insistido em voar de volta para Martha's Vineyard naquela noite para ver Ruth. Então eu não teria sido obrigado a lhe contar sobre Rycart. E então, e então...? Aquilo me atazanava enquanto eu ficava deitado na escuridão. Simplesmente não conseguia apagar a lembrança de como ele parecera desolado no avião nos últimos instantes.

A Senhora Bly tem dúvidas se o Senhor Lang, na verdade, não teria reconhecido o assassino e seguido deliberadamente na direção dele, sabendo que algo parecido poderia acontecer...

- Sim - falei para Rick. - Sim, eu gostava dele.

- Bem, então pronto. Você lhe deve isso. E, além do mais, tem outra coisa.

- O quê?

- Sid Kroll está dizendo que, se você não cumprir suas obrigações contratuais e terminar o livro, ele vai jogar um processo nas suas costas.

E assim eu retornei para Londres e, durante as seis semanas que se seguiram, mal saí do meu flat, exceto uma vez, logo no início, para jantar com Kate. Nos encontramos em um restaurante na Notting Hill Gate, a meio caminho de nossas casas - um território tão neutro quanto a Suíça... e quase tão caro quanto. A maneira como Adam Lang morreu parecia ter silenciado até mesmo a hostilidade dela, e acredito que o fato de eu ter sido testemunha ocular me conferiu um certo glamour. Eu recusara uma série de pedidos de entrevistas, de modo que ela foi a primeira pessoa, além do FBI e do M15, para quem eu descrevi o ocorrido. Queria desesperadamente lhe contar sobre minha última conversa com Lang. E teria contado. Porém, no meio disso tudo, quando estava prestes a abordar o assunto, o garçom veio oferecer a sobremesa, e quando ele foi embora, ela anunciou que queria me contar algo antes.

Ela estava noiva.

Confesso que fiquei chocado. Não gostava daquele outro homem. Você o conheceria se eu dissesse seu nome: ele tinha traços fortes, era bonito, vibrante. Era especialista em viajar brevemente até os locais mais cheios de problemas do mundo e voltar com relatos comoventes sobre o sofrimento humano, geralmente o dele.

- Meus parabéns - falei.

Pulamos a sobremesa. Nosso caso, nosso relacionamento - nosso o que quer que fosse - terminou dez minutos depois com um beijinho na bochecha na calçada diante do restaurante.

- Você ia me contar alguma coisa - disse ela, pouco antes de entrar no táxi. - Por favor, me desculpe, eu cortei você. Só não quis que dissesse nada, sabe, muito pessoal antes de eu contar como as coisas estavam entre eu e...

- Não tem importância - falei.

- Tem certeza de que está tudo bem? Você parece diferente.

- Estou bem.

- Se você precisar de mim, eu sempre estarei lá para você.

- Lá? - disse eu. - Não sei quanto a você, mas eu estou aqui. Onde é lá?

Segurei a porta do táxi aberta para Kate. Não pude deixar de ouvir que o endereço que ela deu ao motorista não era o seu.

Depois disso, me desliguei do mundo. Passava todas as horas do meu dia com Lang e, com ele morto, percebi que subitamente havia encontrado sua voz. Era mais como se eu me sentasse diante de um tabuleiro do que diante de um teclado de computador todas as manhãas. Se meus dedos digitassem uma frase que soava errada, eu podia senti-los sendo quase fisicamente arrastados para a tecla DELETE. Eu era como um bom roteirista escrevendo falas com um astro particularmente exigente na cabeça: eu sabia que ele diria isto, mas não aquilo; faria esta cena, mas nunca aquela.

A estrutura básica da história continuou tendo os 16 capítulos de McAra, e meu método foi trabalhar sempre com o manuscrito dele à minha esquerda: para redigitá-lo de cabo a rabo e, enquanto o passava pelo meu cérebro e pelos meus dedos até o computador, livrá-lo dos clichês idiotas de meu antecessor. Não fiz menção a Emmett, claro, cortando até a sua citação anódina que antes abria o último capítulo. A imagem de Adam Lang que apresentei ao mundo foi em grande parte a do personagem que ele sempre optou por interpretar: o cara comum que caiu na política quase por acaso e subiu ao poder porque não era nem tribal e nem idealista. Encaixei isto na cronologia aceitando a sugestão de Ruth de que Lang se voltara para a política para aliviar sua depressão quando chegou a Londres. Não precisei exagerar na tristeza neste caso. Afinal de contas, Lang estava morto, o livro inteiro era permeado pelo fato de que o leitor sabia o que estava por vir, e calculei que isso deveria ser suficiente para deixar os mórbidos de plantão satisfeitos. Porém, ainda era útil ter uma ou duas páginas de luta heróica contra demônios internos etc.etc.

 

No trabalho superficialmente tedioso da política, encontrei alívio para minha dor. Encontrei energia, companheirismo, uma maneira de dar vazão à minha paixão por conhecer pessoas novas. Encontrei uma causa que era maior do que eu. E, acima de tudo, encontrei Ruth...

 

Na minha versão da história, o envolvimento de Lang com a política só deslanchou de verdade quando Ruth veio bater à sua porta dois anos mais tarde. Parecia plausível. Quem sabe? Poderia até ter sido verdade.

Comecei a escrever Memórias de Adam Lang no dia 10 de fevereiro e prometi a Maddox que estaria com tudo pronto, todas as 160 mil palavras, no fim de março. Isso significava que eu precisava produzir 3.400 palavras por dia, todos os dias. Eu tinha uma tabela na parede e a marcava todas as manhãs. Eu era como o capitão Scott voltando do pólo sul: precisava vencer aquelas distâncias diárias, ou ficaria irrevogavelmente para trás e morreria em uma selva branca de páginas vazias. Era um caminho árduo, principalmente porque não dava para salvar quase nenhuma frase de McAra, exceto, curiosamente, a última do manuscrito, que me fizera soltar um gemido quando a li em Martha's Vineyard: Ruth e eu estamos olhando para o futuro, venha o que vier. Leiam isso, seus desgraçados, pensei, enquanto a digitava na noite de 13 de março: quero ver vocês lerem isto e fecharem este livro sem um nó na garganta.

Acrescentei FIM e então, creio eu, tive uma espécie de colapso nervoso.

Despachei uma cópia do manuscrito para Nova York e outra para o escritório da Fundação Adam Lang em Londres, aos cuidados da Senhora Ruth Lang - ou, como teria sido mais adequado chamá-la àquela altura, baronesa Lang de Calderthorpe, uma vez que o governo havia acabado de lhe dar uma cadeira na Câmara dos Lordes, como prova do respeito da nação por ela.

Não tivera notícias de Ruth desde o assassinato. Havia escrito para ela enquanto ainda estava no hospital: uma das mais de cem mil pessoas que, segundo informações, lhe mandaram suas condolências, de modo que não fiquei surpreso quando tudo que recebi como resposta foi uma carta impressa padrão. Porém, uma semana depois que ela recebeu o manuscrito, uma mensagem escrita à mão chegou no papel de carta gravado em relevo vermelho da Câmara dos Lordes:

 

Você fez tudo que eu sempre esperei que fizesse - e mais! Captou o tom dele maravilhosamente bem e o trouxe de volta à vida - todo o seu extraordinário humor e compaixão e energia. Por favor, venha me ver aqui na C dos L quando tiver uma folga. Seria ótimo colocar o papo em dia. Martha's V. parece tão distante, como se tivesse acontecido há tanto tempo! Parabéns novamente pelo seu talento. E este é um livro de verdade!

Com muito amor,

R.

Maddox foi igualmente efusivo, porém sem o amor. A primeira tiragem seria de 400 mil exemplares. A data de publicação seria fim de maio.

Então era isso. O trabalho estava feito.

Não demorei muito para perceber que eu estava em péssimo estado. Meu combustível vinha sendo, suponho, o "extraordinário humor e compaixão e energia" de Lang, porém, assim que acabei de tirá-lo de mim para o papel, desabei como um terno vazio. Por anos, sobrevivi habitando uma vida depois da outra. Porém, Rick insistiu em que esperássemos até o lançamento das memórias de Lang - meu "livro da virada", como ele o chamava - antes de negociar contratos novos e melhores, e isso fez com que, pela primeira vez desde que eu conseguia me lembrar, eu não tivesse trabalho a fazer. Mal conseguia juntar forças para sair da cama antes do meio-dia, e quando conseguia, ficava deprimido de pijama no sofá, assistindo à programação diurna da TV. Não comia muito. Parei de abrir a correspondência ou atender ao telefone. Não fazia a barba. Só deixava meu flat por algum tempo nas segundas e quintas-feiras, para evitar ver minha faxineira - eu queria despedi-la, mas não tinha coragem -, e então eu me sentava no parque, se o tempo estivesse bom, ou em um café seboso próximo dali, se não estivesse; e, como estamos falando da Inglaterra, ele geralmente não estava.

E, ainda assim, paradoxalmente, ao mesmo tempo em que estava afundado em um estupor, também me sentia constantemente agitado. Tinha perdido as proporções de tudo. Ficava preocupadíssimo com banalidades - onde havia colocado um par de sapatos, por exemplo, ou se era uma boa idéia manter todo o meu dinheiro em um só banco. O nervosismo deixava-me fisicamente trêmulo, muitas vezes sem fôlego, e foi neste estado de espírito, tarde da noite, cerca de dois meses depois de terminado o livro, que fiz o que, para mim, naquelas condições, foi uma descoberta calamitosa.

Meu uísque havia acabado e eu sabia que tinha cerca de dez minutos para ir até o pequeno supermercado em Ladbroke Grove antes de ele fechar. Era fim de maio, estava escuro e chovia. Peguei o paletó mais próximo e já havia descido metade da escada quando percebi que aquele era o paletó que eu estava usando quando Lang foi assassinado. Estava rasgado na frente e manchado de sangue. Em um dos bolsos, estava a gravação da minha última entrevista com Adam, e no outro as chaves do Ford Escape.

O carro! Tinha me esquecido completamente dele. Ainda estava estacionado no aeroporto Logan! E custando 18 dólares por dia! Eu devia estar devendo milhares de dólares!

Tenho certeza de que para você - e, na verdade, para mim também agora - meu pânico parece ridículo. No entanto, eu subi aquelas escadas de volta correndo, com meu pulso martelando. Já passava das seis em Nova York, e a Rhinehart Inc. tinha encerrado o expediente. Desesperado, liguei para a casa de Rick e, sem preâmbulos, comecei a balbuciar os detalhes da crise. Ele ouviu por cerca de trinta segundos, então me mandou calar a boca com rispidez.

- Isso tudo foi resolvido há semanas. Os caras do estacionamento começaram a achar estranho e ligaram para a polícia, e eles ligaram para o escritório de Rhinehart. Maddox pagou a conta. Não quis incomodá-lo com isso porque sabia que você estava muito ocupado. Agora preste atenção, meu amigo. Acho que você está com um caso grave de choque pós-traumático. Precisa de ajuda. Eu conheço um analista...

Desliguei.

Quando finalmente adormeci no sofá, tive meu sonho de sempre com McAra - aquele em que ele boiava vestido dos pés à cabeça no mar ao meu lado e me dizia que não ia conseguir. Porém, daquela vez, em vez de terminar comigo acordando, o sonho durou mais. Uma onda levou McAra embora, com sua capa de chuva pesada e botas de sola de borracha, até ele se tornar apenas um vulto escuro ao longe, com o rosto virado para baixo na espuma rasa, deslizando para frente e para trás na beira da praia. Caminhei na água até ele e consegui passar minhas mãos pelo seu corpo volumoso e, com um enorme esforço, rolá-lo para cima; então, de repente, ele estava deitado em uma mesa branca, olhando para cima, com Adam Lang inclinado sobre seu corpo.

Na manhã seguinte, saí cedo do flat e desci a colina até a estação do metrô. Não precisaria de muito para me matar, pensei. Um pulo rápido diante de um trem chegando e, então, o esquecimento. Muito melhor do que se afogar. Porém, aquilo não passava do mais breve dos impulsos, principalmente porque não conseguia suportar a idéia de alguém tendo que me limpar depois. ("Encontraram a cabeça dele no telhado do terminal.") Em vez disso, embarquei no trem e viajei até o fim da linha em Hammersmith, depois atravessei a rua para a outra plataforma. Movimento, esta é a cura para a depressão, concluí. É preciso se manter em movimento. Na estação de Embankment mudei de linha novamente para Morden, que sempre me soou como o fim do mundo. Atravessamos Balham e eu saltei duas paradas depois.

Não demorei muito para encontrar o túmulo. Lembrava-me de que Ruth havia dito que o funeral tinha sido no cemitério Streatham. Procurei pelo nome dele e um funcionário me apontou o caminho da sepultura. Passei por anjos de pedra com asas de águia e querubins cobertos de musgo com cachinhos cheios de liquens; sarcófagos vitorianos do tamanho de cabanas de jardim e cruzes decoradas com rosas cor de mármore. No entanto, a contribuição de McAra para a necrópole era caracteristicamente simples. Nada de dizeres floreados - nada de "Não digas que a luta foi em vão" ou "Bem fizeste tu, bom e fiel servo" para o nosso Mike. Apenas uma lápide de pedra calcária com seu nome e as datas.

Era um fim de manhã de primavera, o pólen e a fumaça de gasolina deixavam o ar pesado. Ao longe, o tráfego subia a Garratt Lane em direção ao centro de Londres. Agachei-me e apertei a palma das mãos contra a grama orvalhada. Como já disse anteriormente, não sou do tipo supersticioso, mas, naquele instante, senti de fato uma corrente de alívio passar por mim, como se tivesse fechado um ciclo, ou cumprido uma tarefa. Senti que ele queria que eu fosse até ali.

Foi então que notei, recostado na pedra, meio escondido atrás da grama mal-cuidada, um pequeno buquê de flores murchas. Havia um cartão nele, escrito com uma caligrafia elegante, quase ilegível depois de sucessivos temporais londrinos. "Em memória de um bom amigo e um colega leal. Descanse em paz, querido Mike. Amélia."

Quando voltei para o meu flat, liguei para o celular dela. Ela não pareceu surpresa em ter notícias minhas.

- Olá - disse ela. - Estava pensando agora mesmo em você.

- Por quê?

- Estou lendo o seu livro, quero dizer, o livro de Adam.

- E?

- É bom. Não, na verdade, é melhor do que bom. É como tê-lo de volta. Só está faltando uma coisa, na minha opinião.

- O quê?

- Ah, não tem importância. Eu lhe digo se a gente se vir. Quem sabe não conseguimos conversar hoje na festa?

- Que festa?

Ela riu.

- A sua festa, seu idiota. O lançamento do seu livro. Não me diga que não foi convidado.

Fazia bastante tempo que eu não falava com ninguém. Levei um ou dois segundos para responder.

- Não sei se fui ou se não fui. Para ser sincero, não tenho conferido minha correspondência ultimamente.

- Você deve ter sido.

- Não aposte nisso. Autores costumam não gostar muito de ter seus ghost-writers olhando para eles por sobre os canapés.

- Bem, o autor não estará lá, não é mesmo? - disse Amélia. Ela quis soar animada, mas acabou parecendo deprimida e tensa. - Você deveria ir, independentemente de ter sido convidado. Na verdade, se não tiver sido mesmo, pode ir como meu convidado. Meu convite tem "Amélia Bly e acompanhante" escrito nele.

A perspectiva de voltar à sociedade fez meu coração disparar novamente.

- Mas você não quer levar outra pessoa? E quanto ao seu marido?

- Ah, ele. Acabou não dando certo entre nós, infelizmente. Eu não tinha percebido como era tedioso para ele ser o meu "acompanhante".

- Sinto muito.

- Mentiroso - disse ela. - Encontro você no final da Downing Street, às sete da noite. A festa é bem em frente do Whitehall. Só vou esperar cinco minutos; então, se você decidir ir, não se atrase.

Depois que acabei de falar com Amélia, vasculhei atentamente minhas semanas de correspondência acumulada. Não havia nenhum convite para a festa. Levando em conta as circunstâncias do meu último encontro com Ruth, não fiquei muito surpreso. Havia, no entanto, um exemplar final do livro. A capa, tendo em vista o mercado americano, era uma fotografia de Lang, parecendo charmoso, numa sessão conjunta do Congresso americano. As fotografias internas não incluíam nenhuma das de Cambridge descobertas por McAra: eu não as havia passado para o pesquisador responsável. Passei os olhos pelos agradecimentos, que eu havia escrito na voz de Lang:

Este livro não existiria sem a dedicação, o apoio, a sabedoria e a amizade do falecido Michael McAra, que colaborou comigo da primeira à última página. Obrigado Mike - por tudo.

Meu nome não era mencionado. Por mais que isso irritasse Rick, abri mão do crédito de colaborador. Não lhe disse o motivo, ou seja, que achei que essa era a solução mais segura. As informações cortadas e meu anonimato, eu esperava, serviriam como uma mensagem para qualquer pessoa de fora que estivesse atenta de que eu não causaria mais problemas.

Enfiei-me em um banho durante uma hora naquela tarde e refleti se deveria ou não ir à festa. Como sempre, consegui prolongar minha procrastinação por horas. Dizia a mim mesmo que ainda não tinha necessariamente me decidido enquanto tirava a barba, enquanto colocava um terno escuro decente e uma camisa branca, enquanto saía para a rua e chamava um táxi, e até mesmo enquanto estava parado na esquina da Downing Street às 18 horas e cinquenta e cinco minutos: ainda não era tarde demais para voltar. Do outro lado do bulevar amplo e luxuoso do Whitehall, eu podia ver os carros e táxis estacionando diante da Casa de Banquetes, onde eu achava que a festa estava acontecendo. Flashes de fotógrafos especavam no sol de fim de tarde, uma pálida lembrança dos dias de glória de Lang.

Continuei procurando Amélia, subindo a rua em direção ao oficial a cavalo diante do Palácio da Guarda Montada e voltando novamente, passando pelo Ministério das Relações Exteriores, até o hospício gótico vitoriano que era o Palácio de Westminster. Uma placa na entrada da Downing Street indicava o Gabinete de Guerra, com um desenho de Churchill, com direito ao Ve de vitória e charuto. O Whitehall sempre me faz lembrar do Ataque. Consigo visualizá-lo a partir das imagens que me foram mostradas na infância: os sacos de areia, as fitas brancas pelas janelas, os holofotes dedilhando às cegas a escuridão, o zumbido dos bombardeiros, o estrondo de explosivos pesados, o brilho vermelho dos incêndios no East End. Trinta mil mortos somente em Londres. Aquilo sim, como diria meu pai, era o que se podia chamar de guerra - e não esse pinga-pinga de transtornos, ansiedade e estupidez. Mesmo assim, Churchill costumava caminhar até o Parlamento através do Saint James's Park, levantando o chapéu para os transeuntes, com apenas um detetive solitário andando três metros atrás dele.

Ainda estava pensando sobre o assunto quando o Big Ben acabou de soar a hora. Olhei novamente para os dois lados, mas ainda não havia sinal de Amélia, o que me surpreendeu, pois achava que ela era do tipo pontual. Mas então eu senti alguém tocar a manga do meu paletó, e me virei para encontrá-la parada atrás de mim. Ela emergira do cânion sombrio da Downing Street em seu terninho azul-escuro, carregando uma pasta. Parecia mais velha, apagada e, por um breve instante, vislumbrei seu futuro: um pequeno flat, uma agenda eletrônica, um gato. Nós nos cumprimentamos educadamente.

- Bem - disse ela -, aqui estamos nós.

- Aqui estamos nós. - Ficamos um de frente para o outro, sem jeito, separados por alguns metros. - Não sabia que você estava trabalhando no Número 10 - falei.

- Eu tinha sido apenas transferida do Gabinete para trabalhar com Adam. O rei está morto - disse ela e, de repente, sua voz falhou. Abracei-a e afaguei suas costas, como se ela fosse uma criança que tivesse levado um tombo. Senti sua bochecha molhada contra a minha. Quando ela se afastou, abriu a pasta e tirou um lenço. - Desculpe - falou. Ela assoou o nariz e bateu com os pés de salto alto no chão, repreendendo a si mesma. - Fico pensando que já superei, mas aí percebo que não. Você está péssimo - acrescentou ela. - Na verdade, parece...

- Um fantasma? - falei. - Obrigado. Já ouvi essa antes.

Ela se olhou no espelho do estojo de pó-de-arroz e fez alguns ajustes ligeiros. Percebi que estava nervosa. Precisava de alguém para acompanhá-la; até eu serviria.

- Certo - disse ela, fechando-o com um clique. - Vamos lá. Andamos até o Whitehall, passando pelas multidões de turistas de primavera.

- Então, você foi mesmo convidado? - perguntou ela.

- Não, não fui. Na verdade, fiquei surpreso por você ter sido.

- Ah, isso não é tão estranho - disse ela, tentando soar casual. - Ela venceu, não foi? Ela é o ícone nacional. A viúva de luto. Nossa própria Jackie Kennedy. Não vai se incomodar comigo por perto. Nem chego a ser uma ameaça; sou apenas um troféu na sua trajetória de vitórias. - Atravessamos a rua. - Charles Primeiro saiu daquela janela para ser executado - disse ela, apontando. - Era de se esperar que alguém tivesse feito a associação, você não acha?

- Incompetência da equipe - falei. - Não teria acontecido quando você estava no comando.

Logo que entrei, soube que tinha sido um erro vir. Amélia teve de abrir sua pasta para os seguranças. Minhas chaves fizeram o detector de metal disparar, e eu tive de ser revistado. A coisa está preta, pensei, parado com as mãos para cima, com um segurança tateando minha virilha, quando você não pode ir nem sequer a um coquetel sem ser revistado por alguém. No grande espaço aberto da Casa de Banquetes, topamos com um rugido de pessoas falando e uma muralha de costas viradas para nós. Eu fazia questão de nunca ir às festas de lançamento dos meus próprios livros e, naquele momento, me lembrei por quê. Um ghost-writer é tão bem-vindo quanto o filho bastardo do noivo em um casamento da alta sociedade. Eu não conhecia uma alma.

Habilidosamente, agarrei duas taças de champanha de um garçom que passava e dei uma para Amélia.

- Não estou vendo Ruth - falei.

- Ela deve estar no meio da confusão, imagino. A você - disse ela.

Fizemos tintim. Champanha: mais sem sentido ainda do que vinho branco, na minha opinião. Mas não parecia haver nenhuma outra coisa.

- É Ruth, na verdade, o que está faltando no seu livro, se eu tivesse de fazer uma crítica.

- Eu sei - respondi. - Queria colocar mais a respeito dela, mas ela não quis.

- Bem, é uma pena, - A bebida parecia dar coragem à geralmente cautelosa Senhora Bly. Ou talvez fosse apenas o fato de que passáramos a ter um vinculo. Afinal de contas, éramos sobreviventes; tínhamos sobrevivido aos Lang. De qualquer forma, ela se inclinou para perto de mim, oferecendo-me uma baforada familiar do seu perfume. - Eu adorava Adam, e acho que ele sentia o mesmo por mim. Mas eu não tinha nenhuma ilusão; ele jamais a teria deixado. Ele me disse isso durante aquela última viagem até o aeroporto. Eles eram uma dupla perfeita. Adam sabia muito bem que não teria sido nada sem ela. Deixou isso totalmente claro para mim. Ele devia a ela. Era ela quem entendia de fato o poder. Originalmente, era ela quem tinha os contatos dentro do partido. Na verdade, era ela quem deveria ter chegado ao Parlamento, você sabia disso? Não ele. Isso não está no seu livro.

- Eu não sabia.

- Adam contou-me uma vez. Não é todo mundo que sabe; pelo menos nunca vi escrito em lugar nenhum. Mas dizem que a cadeira dele estava originalmente reservada para ela, só que no último minuto Ruth desistiu e deixou que ele a assumisse.

Pensei na minha conversa com Rycart.

- O Membro de Michigan - murmurei.

- Quem?

- O dono da cadeira no Parlamento era um homem chamado Giffen. Ele era tão pró-americano que era conhecido como Membro de Michigan. - Algo se inquietava na minha mente. - Posso lhe fazer uma pergunta? - falei. - Antes de Adam ser assassinado, por que você estava tão determinada a manter a sete chaves aquele manuscrito?

- Já disse: segurança.

- Mas não tinha nada nele. Eu sei disso melhor do que ninguém. Li cada palavra entediante dele dezenas de vezes.

Amélia olhou em volta. Ainda estávamos à margem da festa. Ninguém prestava a mínima atenção a nós.

- Aqui entre nós - disse ela baixinho. - Não éramos nós que estávamos preocupados. Pelo jeito, eram os americanos. Fui informada que eles disseram ao M15 que poderia haver algo no começo do manuscrito que era uma ameaça em potencial à segurança do país.

- Como eles sabiam disso?

- Quem vai saber? Tudo que posso lhe dizer é que, imediatamente depois da morte de McAra, eles nos pediram para tomar cuidados especiais para que o livro não circulasse antes que eles tivessem a chance de esclarecer isso.

- E eles fizeram isso?

- Não faço idéia.

Pensei novamente no meu encontro com Rycart. O que ele tinha dito que McAra lhe falara ao telefone, pouco antes de morrer? "A chave para tudo está na autobiografia de Lang; está tudo lá no começo".

Isso significava que a conversa deles tinha sido grampeada?

Senti que algo importante tinha acabado de mudar - que alguma parte do meu sistema solar tinha alterado sua órbita - mas não conseguia entender bem o que era. Precisava fugir para algum lugar silencioso, para repensar tudo aquilo com calma. O rugido das conversas começou a diminuir. As pessoas sussurravam umas com as outras. Um homem exclamou pomposamente: "Silêncio!", e eu me virei. Em um dos lados do salão, de frente para as janelas grandes, não muito distante de onde estávamos, Ruth Lang esperava pacientemente em um palanque, segurando um microfone.

- Obrigada - disse ela. - Muito obrigada. E boa noite. -Ruth fez uma pausa, e uma grande quietude espalhou-se por trezentas pessoas. Ela respirou fundo. Havia um nó na sua garganta. - Sinto falta de Adam o tempo todo. Mas nunca tanto quanto esta noite. Não só porque estamos reunidos para lançar seu maravilhoso livro e porque ele deveria estar aqui para compartilhar a alegria da sua história de vida conosco, mas também porque ele era tão brilhante como orador, enquanto eu sou horrível.

Fiquei surpreso com o seu profissionalismo ao proferir aquela última frase, como ela foi aumentando a tensão emocional para então cortá-lo. A platéia soltou uma gargalhada. Ela parecia muito mais confiante em público do que eu me lembrava, como se a ausência de Lang tivesse lhe dado espaço para crescer.

- Portanto - prosseguiu ela -, podem ficar aliviados, pois não vou fazer um discurso. Gostaria apenas de agradecer a algumas pessoas. Gostaria de agradecer a Marty Rhinehart e John Maddox não só por serem editores maravilhosos, mas também por serem grandes amigos. Gostaria de agradecer a Sidney Kroll por sua inteligência e por seus sábios conselhos. E, caso esteja parecendo que todas as pessoas envolvidas nas memórias de um primeiro-ministro britânico são americanas, eu também gostaria de agradecer em particular, e especialmente, a Mike McAra, que tragicamente também não pôde estar conosco. Mike: você está em nossos pensamentos.

O grande salão retiniu com um clamor de "bravo, bravo".

- E agora - disse Ruth -, vocês me permitam propor um brinde à pessoa a quem realmente devemos agradecer? - Ela ergueu seu copo de suco de laranja macrobiótico, ou seja lá o que fosse. - À memória de um grande homem e um grande patriota, um ótimo pai e um marido maravilhoso; a Adam Lang!

- A Adam Lang! - todos rugimos em uníssono, e então batemos palmas, e continuamos, redobrando o volume, enquanto Ruth assentia graciosamente para todos os cantos do salão, incluindo o nosso. Neste momento, ela me viu, piscou, e então se recompôs, sorrindo e erguendo seu copo para mim num cumprimento.

Ela desceu do palanque depressa.

- A viúva alegre - sibilou Amélia. - A morte lhe cai bem, você não acha? Ela está florescendo a cada dia que passa.

- Tenho a impressão de que ela está vindo para cá - falei.

- Merda - disse Amélia, secando sua taça. - Neste caso, estou dando o fora. Você gostaria de me levar para jantar?

- Amélia Bly, você está me propondo um encontro?

- Vejo você lá fora em dez minutos. Freddy! - chamou ela. - Que bom ver você.

No mesmo instante em que ela se afastou para falar com outra pessoa, a multidão à minha frente pareceu se abrir, e então Ruth surgiu, muito diferente da última vez em que eu a havia visto: os cabelos brilhosos, a pele macia, mais magra por causa da tristeza e vestindo algo preto e sedoso, de grife. Sid Kroll estava com ela.

- Olá, você - disse ela. Pegou minhas mãos nas suas e cumprimentou-me com dois beijinhos, sem encostar a boca em mim, mas esfregando seu capacete grosso de cabelo rapidamente nas minhas duas bochechas.

- Olá, Ruth. Olá, Sid. Assenti para ele. Ele piscou.

- Disseram-me que você não suporta esse tipo de festa - falou ela, ainda segurando minhas mãos, e fitando-me com seus olhos pretos brilhantes. - Do contrário, eu teria lhe mandado um convite. Você recebeu meu bilhete?

- Recebi. Obrigado.

- Mas não me ligou!

- Achei que poderia estar sendo apenas educada.

- Educada! - Ela balançou minhas mãos por um instante, censurando-me. - Desde quando eu sou educada? Você precisa me visitar.

E então ela fez aquele negócio que as pessoas importantes sempre fazem comigo nas festas: olhou por cima do meu ombro. E eu vi no seu olhar, quase imediatamente e de maneira bastante inequívoca, um lampejo de temor, que foi seguido de pronto por um balançar quase imperceptível da sua cabeça. Soltei minhas mãos, me virei e vi Paul Emmett. Ele estava a menos de dois metros de distância.

- Olá - disse ele. - Acho que já nos conhecemos. Voltei-me para Ruth. Tentei falar, mas as palavras não saíam.

- Ah - falei. - Ah...

- Paul foi meu orientador - disse ela calmamente - quando eu era bolsista da Fulbright, em Harvard. Eu e você precisamos conversar.

- Ah...

Afastei-me de costas de todos eles. Bati em um homem que protegeu seu drinque e alegremente me mandou prestar atenção. Ruth estava falando algo com intensidade, assim como Kroll, mas havia um zumbido em meu ouvido, e eu não conseguia escutá-los. Vi Amélia olhando para mim e acenei debilmente as mãos, então fugi do salão em direção ao lobby e de lá para a grandiosidade vazia e imperial do Whitehall.

Assim que cheguei lá fora, ficou claro que outra bomba tinha explodido. Eu podia ouvir as sirenes ao longe, e um pilar de fumaça já tornava a Nelson's Column pequena, subindo de algum lugar atrás da Galeria Nacional. Saí correndo a passos largos em direção à Trafalgar Square e passei na frente de um casal indignado para pegar o táxi deles. Rotas de fuga estavam sendo fechadas por todo o centro de Londres, como em um incêndio florestal se espalhando. Dobramos em uma rua de mão única, mas apenas para encontrar a polícia fechando o final dela com fita amarela. O motorista deu a ré no táxi, jogando-me para frente até a beirada do assento, e foi assim que fiquei até o fim da corrida, agarrado à alça ao lado da porta, enquanto serpenteávamos e manobrávamos pelas ruas secundárias na direção norte. Quando chegamos ao meu flat, paguei-lhe o dobro do preço da corrida.

A chave para tudo está na autobiografia de Lang; está tudo lá no começo.

Apanhei meu exemplar final do livro, levei-o até minha mesa e comecei a folhear os capítulos iniciais. Corri meu dedo depressa até o meio das páginas, passando os olhos por todos aqueles sentimentos inventados e lembranças feitas de meias-verdades. Minha prosa profissional, impressa e encadernada, havia transformado a aspereza de uma vida humana em algo tão regular quanto uma parede rebocada.

Nada.

Atirei o livro longe, enojado. Que lixo imprestável ele era: que exercício comercial sem alma. Fiquei feliz por Lang não estar mais lá para lê-lo. Na verdade, preferia o original: pela primeira vez, reconheci algo de honesto na sua laboriosa sinceridade. Abri uma gaveta e peguei o manuscrito original de McAra, desgastado pelo uso e com alguns trechos praticamente ilegíveis sob meus cortes e correções. Capítulo Um. Minha família, os Lang, é originária da Escócia e se orgulha disso. Lembro-me daquele começo imortal que eu havia cortado de forma tão implacável em Martha's Vineyard. Porém, pensando melhor, todos os começos de capítulo de McAra eram particularmente horrorosos. Não tinha deixado um só intacto. Vasculhei as páginas soltas, o manuscrito volumoso abrindo-se em um leque e se contorcendo em minhas mãos desajeitadas como se fosse uma coisa viva.

Capítulo dois. Mulher e filho a reboque, decidi me instalar em uma cidade pequena, onde pudesse viver longe da agitação da vida em Londres... Capítulo três. Ruth reconheceu a possibilidade de eu me tornar líder do partido muito antes de mim... Capítulo quatro. Estudante das falhas dos meus antecessores, decidi ser diferente... Capítulo cinco. Em retrospecto, nossa vitória nas eleições gerais parecia inevitável, porém, na época... Capítulo seis. Setenta e seis agências distintas administravam a previdência social... Capítulo sete. Foi com a Irlanda do Norte, de todos os países, que a história decidiu ser mais inclemente... Capítulo oito. Recrutada a dedo e composta dos mais diferentes estilos, nossa equipe de candidatos para as eleições européias me deixava orgulhoso... Capítulo nove. Como se sabe, via de regra as nações agem em benefício próprio no que diz respeito à política externa... Capítulo dez. Uma das questões problemáticas enfrentadas pelo novo governo... Capítulo onze. Novas avaliações da CIA sobre a ameaça terrorista... Capítulo doze. Agentes da CIA no Afeganistão... Capítulo treze. Quando decidi lançar um ataque em áreas civis, eu sabia... Capítulo quatorze. Nos Estados Unidos, há uma grande necessidade de aliados preparados... Capítulo quinze. Por volta da época da conferência anual do partido, aqueles que exigiam minha renúncia... Capítulo dezesseis. Paul Emmett, professor da Universidade de Harvard, escreveu sobre a importância...

Peguei todos 16 começos de capítulo e espalhei-os na mesa em sequência.

A chave para tudo está na autobiografia de Lang; está tudo lá no começo.

No começo, ou nos começos?

Nunca fui muito bom em enigmas. Porém, quando reli as páginas circulando as primeiras palavras de cada capítulo, até eu não conseguia deixar de ver a frase que McAra, temendo por sua segurança) tinha embutido no manuscrito, na voz de Lang, como uma mensagem do além-túmulo: "Minha Mulher Ruth Estudante em Setenta e Seis Foi Recrutada Como Uma das Novas Agentes da CIA Quando Nos Estados Unidos por Paul Emmett, professor da Universidade de Harvard."

 

Um ghost-writer não deve esperar a glória.

Ghostwriting

 

Deixei meu flat naquela noite para nunca mais voltar. Desde então, um mês se passou. Até onde sei, minha falta não foi sentida. Algumas vezes, especialmente durante a primeira semana, sentado sozinho no meu quarto de hotel imundo, tive certeza de que tinha enlouquecido. Deveria ligar para Rick, disse a mim mesmo, e pegar o nome do analista dele. Estava sofrendo delírios. Mas então, cerca de três semanas atrás, depois de um dia de trabalho duro escrevendo, quando já estava pegando no sono, ouvi no noticiário da meia-noite que o ex-secretário de Assuntos Internacionais, Richard Rycart, tinha morrido em um acidente de carro na cidade de Nova York, juntamente com seu motorista. Foi apenas a quarta notícia do jornal, se não me engano. Não há nada mais ex do que um ex-político. Rycart não teria gostado.

Depois disso, soube que não tinha mais volta.

Embora não tenha feito nada além de escrever e pensar no que aconteceu, ainda não sei dizer com precisão como McAra desvendou a verdade. Imagino que tenha começado ainda na época dos arquivos, quando ele topou com a Operação Tempestade. Ele já estava desiludido com os anos de Lang no poder, incapaz de entender por que algo que tinha começado de forma tão promissora havia resultado numa bagunça tão grande. Quando, do seu jeito obstinado, pesquisando a época de Cambridge, ele descobriu aquelas fotografias, elas devem ter lhe parecido a chave do mistério; certamente, se Rycart tinha ouvido boatos sobre a ligação de Emmett com a CIA, é razoável supor que McAra também os tivesse ouvido.

No entanto, McAra também sabia de outras coisas. Ele sabia que Ruth tinha sido bolsista da Fullbright em Harvard, e lhe bastariam dez minutos na internet para descobrir que Emmett estava ensinando sua especialidade no campus em meados da década de 1970. Também sabia melhor do que ninguém que Lang raramente tomava uma decisão sem consultar a esposa. Adam sabia vender idéias políticas de forma brilhante, enquanto Ruth era a estrategista. Se você tivesse de escolher qual deles tinha a inteligência, a ousadia e a impiedade para ser um recruta ideológico, só haveria uma escolha. McAra não pode ter sabido ao certo, mas acredito que ele tenha juntado uma quantidade de peças suficiente do quebra-cabeça para desembuchar sua suspeita para Lang durante aquela discussão acalorada na noite anterior à sua viagem para confrontar Emmett.

Tentei imaginar como Lang deve ter se sentido quando ouviu a acusação. Desdenhoso, sem dúvida; furioso, também. Porém, um ou dois dias mais tarde, quando um corpo surgiu na praia e ele foi até o necrotério identificar McAra - o que ele pensou naquela hora?

Venho ouvindo quase todos os dias a fita da minha última conversa com Lang. A chave para tudo está lá, tenho certeza, mas a história completa sempre continua sedutoramente fora de alcance. Nossas vozes estão baixas, porém reconhecíveis. Ao fundo, ouve-se o barulho dos motores do avião.

EU: É verdade que o senhor teve uma briga feia com ele pouco antes de ele morrer?

LANG: Mike fez algumas acusações levianas. Eu não podia ignorá-las.

EU: Posso perguntar que tipo de acusações?

LANG: Prefiro não repeti-las.

EU: Elas tinham algo a ver com a CIA?

LANG: Mas a essa altura você já sabe, não sabe? Já que foi ver Paul Emmett.

[Uma pausa de 75 segundos de duração]

LANG: Quero que você entenda que tudo o que fiz, tanto como líder do partido quanto como primeiro-ministro, tudo, eu fiz por convicção, por acreditar que era certo.

EU: [inaudível]

LANG: Emmett disse que você mostrou algumas fotos para ele. É verdade? Posso vê-las?

E então, por um tempo, não se ouve nada além do som do motor, enquanto ele as analisa, e eu avanço para a parte em que ele fica olhando as garotas no piquenique às margens do rio. Sua voz é de uma tristeza inenarrável.

Eu me lembro dela. E dela. Ela me escreveu uma vez, quando eu era primeiro-ministro. Ruth não gostou nada. Oh, Deus, Ruth...

Oh, Deus, Ruth...

Oh, Deus, Ruth...

Ouço essa frase várias vezes. Está óbvio na sua voz, agora que já a ouvi o suficiente, que, naquele momento, quando ele se lembra da esposa, está preocupado apenas com ela. Imagino que ela tenha telefonado para ele em pânico no fim daquela tarde para informá-lo que eu tinha ido me encontrar com Emmett e havia mostrado algumas fotografias. Ela deve ter sentido necessidade de falar com ele cara a cara o mais rápido possível - toda a história estava ameaçando ser desfiada -, daí a pressa para pegar um avião. Só Deus sabe se ela sabia o que poderia estar esperando pelo marido na pista de vôo: na minha opinião, com certeza não sabia, embora as perguntas sobre as falhas na segurança que permitiram o ocorrido nunca tenham sido plenamente respondidas. Porém, é o fato de Lang não ter conseguido completar a frase que eu acho tocante. "O que você fez" certamente é o que ele pretendia acrescentar. "Oh, Deus, Ruth - o que você fez?"' Este, imagino, é o instante em que os dias de suspeita se cristalizam bruscamente na sua cabeça, em que ele percebe que as "acusações levianas" de McAra deviam ser verdade, afinal, e que a mulher que era sua esposa havia trinta anos não era a pessoa que ele achava ser.

Não é de espantar que ela tenha sugerido que eu concluísse o livro. Ruth tinha muito a esconder - e deve ter tido a certeza de que o autor das memórias nebulosas de Christy Costello seria, no mundo todo, a pessoa com a menor probabilidade de descobrir seus segredos.

Gostaria de escrever mais, porém, olhando para o relógio, temo que isto vá ter de bastar, pelo menos por enquanto. Como você deve ter percebido, não gosto de me demorar por muito tempo em um só lugar. Já sinto que estranhos estão começando a se interessar demais por mim. Meu plano é colocar uma cópia deste manuscrito em um envelope e enviá-lo para Kate. Pretendo largá-lo na sua porta daqui a uma hora, antes de as pessoas acordarem, com uma carta pedindo que ela não o abra, mas o guarde para mim. Somente se não ouvir notícias minhas depois de um mês, ou se descobrir que algo me aconteceu, ela deve lê-lo e decidir qual a melhor maneira de torná-lo público. Ela vai pensar que estou sendo melodramático, e estou mesmo. Mas confio nela. Ela vai fazer isso. Se existe alguém teimoso e espírito de porco o suficiente para conseguir que isto aqui seja publicado, essa pessoa é Kate.

Pergunto a mim mesmo para onde vou agora. Não consigo decidir. Certamente sei o que gostaria de fazer. Isso talvez o surpreenda, mas eu gostaria de voltar para Martha's Vineyard. É verão lá agora, e tenho uma estranha vontade de ver aqueles tristes carvalhos americanos cobertos de folhas e os iates saírem deslizando em velocidade máxima de Edgartown pelo estreito de Nantucket. Gostaria de voltar àquela praia em Lambert's Cove, sentir a areia quente sob meus pés descalços, observar as famílias brincando nas ondas, e esticar minhas pernas e meus braços no calor do sol límpido da Nova Inglaterra.

Isso me coloca em uma espécie de dilema, como você deve notar, agora que chegamos ao parágrafo final. Devo ficar satisfeito que você esteja lendo isto ou não? Satisfeito, é claro, por finalmente estar falando com minha própria voz. Desapontado, é óbvio, pois isto provavelmente significa que estou morto. Porém, como minha mãe costumava dizer, infelizmente não se pode ter tudo nesta vida.

 

 

                                                                  Robert Harris

 

 

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