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Diante do olhar fascinador da mulher amada, todo homem é fraco.
Pensando na importância da meta que deveria ser alcançada, convinha ao menos aventurar. Dirigi-me então à casa de Mena, onde também reinava a maior desordem. Todos
lamentavam-se em voz alta. Rhadamés estava pálido e nervoso, aprontando-se para sair.
- Perde-se tudo, não sei mas o que fazer - disse apertando-me a mão.
Sem hesitar, comuniquei-lhe meu projeto, que ele ouviu de cenho carregado, acabando por dizer:
- Estás com razão, Necho. É preciso tudo tentar para evitar a ruína; e como Pinehas conhece o remédio que buscamos, nenhum sacrifício é demais para consegui-lo.
Mas, antes de falar com Smaragda, preciso consultar minha mãe e minhas Irmãs; vem comigo e eu te apresentarei a elas porque, afeiçoadas a mim, aqui se estabeleceram
e assim nos vemos seguidamente e evitamos dobrada despesa com a manutenção de duas casas.
Levou-me a uma sala ricamente decorada, onde se encontravam três mulheres a conversar ruidosamente, lamentando os prejuízos causados pela peste; uma era a genitora,
mulher de meia idade e de aparência agradável; as duas moças, de vinte o dois e vinte e quatro anos, respectivamente, muito se pareciam, eram bem irmãs pelos traços
fisionômicos, mas inexpressivos. Em compensação, estavam cobertas de jóias e muito bem vestidas. Rhadamés abraçou-as ternamente e depois apresentou-me, com frases
elogiosas. As duas moças, a requebrarem-se, endereçando-me olhares significativos, tomaram grande interesse pelo projeto que Rhadamés procurava expor.
- Sem dúvida Smaragda deve procurar Pinehas, exclamaram as três senhoras; será um mínimo que ela faz para salvar nossos rebanhos, evitando-nos a ruína.
- Vamos até lá - disse Rhadamés levantando-se.
Dirigimo-nos para o terraço, retiro favorito da jovem senhora, passando pelas salas e galerias já bem conhecidas. Ao entrar, vimo-la meio recostada no leito de repouso.
O semblante, pálido e abatido, revelava melancólica indiferença.
- Smaragda, reconduzo-te ao mundo, - disse o condutor do carro.
Ao ouvir a voz do marido, a jovem estremeceu e ergueu-se para dar-me as boas vindas.
Logo que nos sentamos, Rhadamés tomou-lhe as mãos e disse com uma ternura que me pareceu pouco sincera:
- De ti depende salvar nossa fortuna, assim como a de Necho, querida Smaragda - e, ato contínuo expôs-lhe o que se lhe pedia.
Enquanto ele falava, o rosto da esposa enrubescia e o cenho se carregava.
- Jamais! -- nada pedirei a Pinehas!
- Mas deves fazê-lo! exclamaram a um só tempo as cunhadas; todos os rebanhos perecem e isso é a ruína; Necho Julga que só o teu pedido poderá sensibilizar Pinehas.
- Sim, deves ir! - acrescentou Rhadamés aflito.
Os olhos de Smaragda fuzilaram:
- E és tu que exiges vá pedir algo a um homem que me ama? Isso não te repugna?
- É claro - respondeu de mau humor - isso me desagrada, mas, que fazer, quando se trata de nossa fortuna.
- Se é só isso o que te aflige - disse ela ironicamente - são os meus rebanhos que perecem. Pois que pereçam! Não me importa.
Gritos de indignação partiram de todas as bocas:
- Não tens o direito de arruinar teu marido - atacou a matrona.
- E a nós, porque os nossos bens são comuns - acrescentou uma das moças.
Rhadamés empertigou-se autoritário:
- Como teu senhor ordeno-te pedires a Pinehas que nos ajude a salvar nossos rebanhos. Que os demais pereçam, pouco me importa.
Ao notar, porém meu espanto, visto que de mim partira a sugestão, acrescentou em atitude obsequiosa:
- É claro que transmitirei a Necho o segredo desde que Pinehas o revele.
Smaragda calou-se e numa atitude indiferente, recostou-se na almofada e cerrou os olhos.
- Não penses só em ti, quando há milhares de famílias na iminência de se arruinarem, disse-lhe eu. Considera, também, que esta calamidade acabará por nos fazer perder
os hebreus.
- Tudo isso pouco me comove e nada pedirei a Pinehas, é escusado insistir.
Levantei-me e despedi-me mas apesar de tudo, achava graça no aspecto furioso da família tão sub-repticiamente instalada no palácio de Mena.
Ia entrar na liteira, quando Rhadamés aproximou-se correndo:
- Necho, escuta, tive uma idéia magnífica para vencer a teimosia de Smaragda. Vamos à casa de Omifer; ela o ama e não quererá a ruína dele, cuja principal riqueza
consiste em rebanhos, que se contam por milhares de bovinos e caprinos, centenas de camelos, etc. Julgo que se ele intervir, o caso estará resolvido.
A casa de Omifer parecia mais um palácio que uma residência particular e não ficava muito longe, conquanto ele morasse habitualmente em Thebas. Eu sabia que, fracassada
a evasão de Smaragda, ele regressara a Tanis.
Um criado atarefado e perturbado que nos atendeu disse que o amo acabava de regressar de um giro pelo campo, e nos levou a um pátio onde encontramos Omifer, que
mal acabara de apear da montaria branca de espuma.
A presença de Rhadamés fê-lo empalidecer, mas ainda assim, recebeu-nos com afabilidade.
Quando lhe declarei que a visita se prendia a assunto grave, ele nos levou a um gabinete de admiráveis tapetes e cujos móveis incrustados de ouro apenas teriam rivais,
em magnificência, no palácio de Mernephtah.
Com olhos invejosos Rhadamés examinou o ambiente rico e depois, com palavras estudadas, abordou o assunto.
Omifer corou vivamente e envolvendo-o num olhar de profundo desprezo, disse:
- Sinto muito, mas não tenho a sua largueza de vistas; sou muito ciumento para enviar a mulher amada à casa de outro homem por ela apaixonado e por isso, jamais
pedirei a Smaragda que se humilhe diante de Pinehas. Prefiro ver perdida a última cabeça dos meus rebanhos.
Levantou-se e tivemos que nos despedir.
Ao voltar a casa, após esse insucesso, encontrei Ilsiris em tal estado de desespero, que me alarmou, e indagando o que havia, vim a saber que Chamus saíra disposto
á obter da linda Léa o remédio para salvar nossos rebanhos. Foi a própria Ilsiris que lho pedira, apesar do seu ciúme, mas notava-se que a decisão muito lhe havia
custado.
Triste e faminto, mandei que me servissem qualquer repasto, porém, mal começara a comer, quando recebi umas tabuinhas trazidas por um portador de Rhadamés;
Admirado li: "Venha quanto antes, tudo arranjado".
Animado de nova esperança não fiz mais que tomar a liteira, ordenando que corressem à casa de Mena.
Rhadmés me recebeu muito nervoso e disse em surdina:
- Foi minha irmã que arranjou o negócio, inventando que Omifer está na iminência de suicidar-se para não sobreviver à perda total da sua fortuna. Ao ouvir tal notícia,
Smaragda sobressaltou-se e mancou chamar-me, mas - acrescentou rindo-se - também mudei de tom, declarei haver refletido e, achando o negócio inconveniente não podia
concordar. Ela está fora de si, a sapatear e a jurar que o fará, apesar de tudo; então, anuí, mas como não poderá ir só, chamei-te para acompanhá-la, visto não desejar
atritar-me com Pinehas; e o seu ciúme pela minha presença poderá prejudicar a empresa.
De bom grado concordei e quase em seguida apareceu Smaragda, envolvida em espesso véu. Rhadamés levou-nos até à liteira fechada que se encontrava ao pé da escadaria,
recomendando-me que a reconduzisse tão logo obtivéssemos o remédio salvador.
Calado sentei-me junto a Smaragda e assim chegamos à casa de Kermosa.
Informou-nos o negrinho que a patroa havia saído, mas Pinehas se encontrava só no quarto. Receoso de expor Smaragda a uma grosseria ou recusa descortês, fui sozinho
ao seu encontro.
Ao avistar-me, levantou a cabeça, como que admirado, e acabou esboçando um sorriso irônico:
- És tu, Necho? Decididamente, elegeste-me para salvadora. Extraordinária teimosia!
- Desta vez - respondi - não venho só: trago comigo uma das mais belas mulheres de Tanis, cuja voz melodiosa mais te comoverá, talvez, que a própria ruína de nossa
pátria.
Ele alçou bruscamente a fronte e respondeu desdenhoso;
- Uma mulher? Não conheço nenhuma que me possa honrar com sua visita e gabar-se de ter sobre mim ascendência, unicamente pela voz, a ponto de me fazer violar um
juramento. Mas, enfim, onde está essa deidade?
- Não sabendo se te era grato revê-la, deixei-a lá embaixo.
- Fizeste bem.
- Assim, direi a Smaragda que...
- Smaragda!? - atalhou empalidecendo - por que não disseste logo?
E sem mais demora, precipitou-se para fora.
- Está vencido - pensei.
Fui-lhe no encalço e o vi de rosto esfogueado ajudar Smaragda a descer da liteira.
- Sinto-me grandemente honrado em receber neste humilde teto a nobre irmã de Mena; minha mãe não está, mas não deve demorar - disse, devorando com os olhos o véu
espesso que encobria o rosto da visitante.
- Não te quero enganar - murmurou ela acompanhando-o ao interior - não é a Kermosa e sim a ti que pretendo falar.
Ao chegarem à sala, Pinehas ofereceu uma cadeira a Smaragda e convidou-me, também a sentar. A linda criatura desvelou-se e notei que intenso rubor lhe cobria as
faces; os grandes olhos brilhantes se fixaram em Pinehas, como se quisessem sondar no seu âmago a extensão do amor que ela pretendia explorar.
Como a serpente encantada ao som da música, Pinehas subjugado por aquele olhar fascinante, perdeu a compostura austera e baixou os olhos, pálido e conturbado. Um
raio de triunfo fulgurou nos olhos de Smaragda, que murmurou:
- Vim até aqui, repito-o, para implorar ao sábio Pinehas ajuda e conselho para evitar a destruição dos rebanhos que me ameaçam de ruína.
Uma palidez mortal estampava-se no rosto do egípcio e o peito arfava-lhe penosamente e nos olhos se alternavam relâmpagos de ódio e paixão.
- Não! - disse por fim, com voz rouca - por ti e por teu marido não violarei meu juramento; falemos de outra coisa, pois é inconcebível que salve teus bens para
ajudar Rhadamés.
Smaragda levantou-se de pronto como que magoada e voltou-lhe as costas; mas, logo reconsiderando esse gesto, aproximou-se de Pinehas, que também se levantara, e
tomando-lhe do braço inclinou-se para ele.
- Tu te enganas, murmurou com estranho olhar - Rhadamés só ama as minhas riquezas; eu nada valho para a sua felicidade, mas não o poderei humilhar e dominar, senão
enquanto for rica. Acreditarás, seriamente, que, se ele me tivesse amor, aqui me enviaria?
Uma onda de sangue tornou escarlate a face pálida de Pinehas.
- Se foi ele quem te enviou, vou fornecer o chicote com que o sujeites; mas, Necho, dize a Rhadamés - e seus olhos pareciam querer devorar a bela Smaragda - que,
para salvar os seus rebanhos, a esposa deverá pagar-me com três beijos...
Smaragda empalideceu e recuou de cenho carregado.
- Nunca por esse preço! - disse ela dirigindo-se para a porta de saída.
- Trata-se de Omifer! - soprei-lhe no ouvido.
Parou e cruzou os braços.
- Aceito, mas com a garantia de eficácia do remédio.
- Juro-o! - respondeu Pinehas estreitando-a nos braços e cobrindo-lhe os lábios descorados com os três beijos convencionados.
Pinehas passou a mão pelo rosto escaldante e levando-me para junto da janela, disse:
- Tens aí tabuinhas. Vou ditar o que é preciso fazer.
Apressei-me em tirá-las de meus bolsos. Declarou necessário, antes de tudo, colocar grande quantidade de sal na forragem, untar a cauda do animal com alcatrão e
esfregar-lhe todo o corpo com uma infusão de alcatrão e certa planta, que indicou; depois, apanhar os sargaços que crescem à margem do Nilo, picá-los, salgá-los
e ministrá-los ao gado, não lhe dando a beber senão água do rio. Além disso, defumações rigorosas nas baias e mesmo nos campos, e para casos especiais prescreveu
um tratamento à base de azeite doce.
Smaragda pôs novamente o véu e saiu tão apressada que mal pôde agradecer a Pinehas. Logo que entrou na liteira, ordenou que a levassem à casa de Omifer e não ousei
contrariá-la, pois fora por ele que ela consumara todos os sacrifícios.
Smaragda parecia voar, mal tocando o solo. Avisado, sem dúvida, Omifer nos recebeu à entrada de uma sala. A bela amada atirou-se-lhe nos braços.
- Salvei-te mas, a que preço! - exclamou fora de si, desmaiando de raiva.
Omifer colocou-a num leito e perguntou-me o que significava aquilo.
Em, poucas palavras relatei toda a história e lhe comuniquei o remédio. Ele tudo ouviu, indignado, e declarou que preferiria ver aniquilado todos os rebanhos, mas
ao mesmo tempo, mandou chamar o intendente para transmitir-lhe a receita.
Como Smaragda não recobrava os sentidos, despedi-me.
- Devo correr para casa, pois lá também a ruína está iminente; encarrega-te de reconduzir a mulher de Rhadamés e transmitir-lhe a receita.
Satisfeitíssimo voltei para casa sem perder tempo e pusemos mãos à obra. De toda parte se tirava sal e alcatrão; homens corriam à margem do Nilo para colhêr os sargaços,
transmitindo a todos que encontravam a receita salvadora. Com a rapidez do relâmpago, a boa nova se propagou. Todos buscavam utilizar o recurso e breve não se viam
nas ruas senão homens e mulheres carregando grandes molhos de sargaço ou cestas repletas de plantas. Outros conduziam sacos ou ânforas de azeite. Os armazéns onde
vendiam sal, alcatrão e azeite etc., eram investidos de assalto; e enchiam-se as carrocinhas com os preciosos ingredientes para enviá-los ao campo, porque o efeito
era evidente, mesmo para os animais já atacados. Desde que começamos a aplicar o remédio não perdemos um só animal.
Tarde da noite apareceu Chamus triunfante, trazendo a mesma receita.
No dia seguinte, todos estavam mais ou menos serenados. Febril atividade reinava por toda parte e um escravo que regressou do campo, trouxe igualmente consoladoras
notícias; o mal estava seguramente debelado, porque os casos de contágio eram raríssimos e a maior parte dos contaminados se restabelecia a olhos vistos.
Ao entardecer, fui ao palácio falar com um colega sobre certo negócio. Enquanto o procurava na sala da guarda, avistei Rhadamés e me aproximei para lhe apertar a
mão; com grande surpresa, porém, deixou de corresponder e medindo-me com desprezo, falou com voz rouca:
- Nunca te julguei tão miserável e desleal, tanto que te confiei minha mulher e graças a mim não ficaste reduzido à miséria... Em compensação, como te comportaste
para comigo? O remédio que foste buscar recebi-o dos transeuntes e não sei onde deixaste Smaragda, que só hoje de manhã regressou ao lar.
Falando assim, contorcia as mãos.
Abaixei a cabeça contrito e envergonhado:
- Ela quis ir à Casa de Omifer e lá teve uma síncope. Eu não podia perder tempo e Omifer me prometeu reenviá-la logo que recobrasse os sentidos.
- Mas... como deixar uma mulher a ti confiada, em casa do homem a quem ama e a quem corresponde com fervor? - disse sapateando. Mas, fiquem sabendo, os infames,
que hão de pagar esta afronta logo que eu regresse.
E saiu apressadamente.
- Vai fazer alguma viagem? - perguntei ao colega?
- Creio que foi chamado para acompanhar o Faraó, que, para se distrair um pouco de toda esta confusão, vai por alguns dias, caçar leões no deserto.
Compreendi que Rhadamés adiava projetos de vingança e mais do que isso interessava-lhe um olhar benevolente do rei, de cujas boas graças se prevalecia para tratar
os outros com arrogância. Ele bem que acariciava os pés de Mernephtah, mas à socapa mordia os que lhe desagradavam.
Os dias seguintes foram de calma. Moisés não era visto e cada qual procurava, com afinco, apagar os vestígios de todas as desgraças suportadas.
Meu pai resolveu aproveitar a tranquilidade reinante para realizar o casamento de Ilsiris dentro de oito dias.
Começaram os grandes preparativos, a casa parecia um formigueiro. Mulheres que cortavam e cosiam, preparando os vestidos de minha mãe e da noiva; bem como intendentes,
mordomos e cozinheiros, que ornamentavam as salas e preparavam a festa.
Convites eram expedidos a todas as pessoas notáveis de Tanis e fiz questão de ir pessoalmente convidar Pinehas e a genitora, que prometeram comparecer. Em seguida,
Pinehas levou-me ao seu quarto, onde me serviu uma beberagem que me preservaria do mau olhado, em paga - acrescentou sorridente - da visita de Smaragda, que lhe
facultei.
Ilsiris amanheceu queixando-se de violenta dor de cabeça na véspera dos esponsais, o que atribuímos à fadiga e excesso de atividade nos arranjos festivos, Minha
mãe concitou-a a não se deixar vencer e dominar por uma ligeira indisposição. Ela sorriu e respondeu:
- Tentarei.
A tarde porém, sentiu-se pior, o rosto lhe escaldava e tremores glaciais faziam-lhe tremer o corpo.
Quando, no dia seguinte pela manhã, entrei na sala de estar, notei meu irmão muito preocupado.
- Ilsiris vai mal - disse-me - veja que situação! Daqui a pouco os convidados começarão a chegar e a noiva lá na cama, incapaz de levantar-se.
- Posso vê-la?
- Sem dúvida; sobe ao seu quarto e lá irei também, pois quero apenas dar aqui algumas ordens.
Fui ao quarto de Ilsiris, situado num pequeno terraço ensombrado por plantas floridas. Encontrei-a estendida num leito de repouso, de olhos fechados, rosto incendido
e mãos convulsivamente crispadas. A velha Acca lhe aplicava na testa compressas de água fria. Inclinando-me, notei que da boca entreaberta lhe escapava um hálito
escaldante.
- Querida Ilsiris - disse tocando-lhe na mão - sofres? Lembra-te do dia de hoje e reanima-te!
Abriu os olhos baços, mortiços, tentando erguer a cabeça, mas deixou-a pender logo, gemendo. Esse movimento afastou o lençol fino, que a cobria, e pude ver, então,
no pescoço perto do ombro, escura mancha que se diria picada de cobra. Afastei a cortina que ensombrava o ambiente e pude notar outra mancha semelhante à primeira,
no braço. Fora de mim, procurei minha mãe, que, na outra extremidade do terraço estava preparando um refresco.
- Mãe querida, tem calma e ouve tudo com coragem. Ilsiris está atacada de peste. Providencia para que nenhuma das aias saia de seus quartos, enquanto corro a buscar
um médico e a prevenir meu pai.
- Necho, de que queres prevenir-me? - perguntou meu pai acabando de entrar. - Por Osiris! O que há? - acrescentou, ao ver minha mãe desfalecer numa cadeira e Acca,
de joelhos, batendo com a cabeça no soalho, a gemer surdamente.
- Os deuses retiraram de nós seu olhar - disse minha mãe estendendo, aflita, os braços para ele; ferem o que temos de mais caro. Ilsiris está empestada.
Meu pai cambaleou e apoiou-se à parede, pálido como um cadáver.
- Calma, pai - disse apertando-lhe a mão - os deuses ainda podem salvá-la; vou procurar um médico enquanto mandas prevenir os convidados que não venham, a fim de
não se exporem ao contágio.
Sem esperar resposta, saí precipitadamente, ordenando que atrelassem o carro; entretanto, já a desgraça havia transpirado, de modo que todos os criados, lívidos,
repetiam tremendo: "a peste, a peste"!
Chicoteando os cavalos, corri para junto do velho sacerdote, médico de nomeada, mas não consegui ser atendido. O criado informou que ele estava repousando, seriamente
indisposto. Corri a outro sábio e fui igualmente infeliz. A esposa, desconfiada e abatida, declarou que ele tinha ido Ver um doente.
Desencorajado e aflito com a perda de tempo, resolvi procurar um templo assaz distante e ao dobrar uma esquina, quase abalroei outro carro em disparada. Praguejando,
contive os animais; o outro fez o mesmo, e qual não foi minha surpresa ao reconhecer Omifer abatido e perturbado, a dizer-me:
- Graças a Amon que te encontro, pois ia justamente à tua procura.
- Fala então, depressa, pois também estou à procura de um médico.
- Também eu - respondeu - e quero que me informes o endereço do tal Pinehas, que tão maravilhosamente salvou nossos rebanhos; dize-me onde mora esse grande sábio
e feiticeiro, porque Smaragda está afetada de peste.
- Como não me lembrei dele? - exclamei batendo na testa - mas, por que vieste tu e não Rhadamés?
- É uma história que te contarei durante a viagem - passa para o meu carro e devolve o teu; ali vai um soldado, chama-o!
Aceitei o alvitre confiando o carro ao soldado para que o reconduzisse à casa e segui Omifer, que me passou as rédeas, dizendo:
- Tu conheces o caminho e não poupes o chicote.
Ob dois fogosos cavalos arrastavam o veículo com velocidade enquanto Omifer falava-me:
- Tu te admiras seja eu quem busque um médico para Smaragda e tens razão. Devo dizer-te, contudo, que ela está em minha casa. Esse miserável Rhadamés, que ontem
regressou da caçada real, renovou, ao que parece, as investidas contra ela, por haver passado em minha casa a noite daquele dia em que lá a deixaste, adoentada e
combalida por uma série de contrariedades; hoje, com, o frescor da manhã, ela regressou ao lar acompanhada da ama fiel, mas em viagem sentiu-se mal e notou no seio
pequena mancha negra. À porta da casa, surgiu-lhe o marido, que novamente explodiu em impropérios, e como Sacheprés lhe pedisse que não contrariasse a doente, exclamou:
- Que doença? Que lhe falta? Caprichos de enamorada!
- Oh! senhor - respondeu a velha - como podes chamar a peste de capricho? - Deixa-nos entrar para acamá-la quanto antes.
O covarde recuou espavorido:
- Então ela está contaminada pela peste e tu, bruxa, ousas trazê-la para cá? Pois fica sabendo que não entrareis. Permanecei na rua ou onde quiserem, menos aqui!
A aia, atarantada e sem saber o que fazer, voltou com Smaragda para minha casa e tive, assim, a ventura de cuidar pessoalmente da mulher amada, e certo não permitirei
que ela volte para a companhia do infame.
Com profundo desgosto ouvi o episódio, pois não supunha Rhadamés tão vil.
Chegamos enfim, à casa de Kermosa; parei o carro e Omifer desceu sobraçando pesada caixa que depôs no solo. O negrinho porteiro informou que a patroa estava na primeira
sala.
Fomos gentilmente recebidos por Kermosa, que nos informou estar Pinehas atarefadíssimo, não podendo receber ninguém. Entretanto, quando Omifer lhe ofereceu a caixa
repleta de ouro e jóias e, por minha vez, lhe prometi cinquenta vacas à sua escolha, se Smaragda e Ilsiris recobrassem a saúde, desanuviou a fronte e contestou visivelmente
comovida:
- É-me impossível ficar indiferente e surda ao vosso apelo, generoso Omifer e nobre Necho; tudo farei por conjurar o perigo, que, infortunada e horrivelmente, ameaça
duas criaturas preciosas; encarrego-me, pois, de vencer quaisquer escrúpulos de meu filho; ide ao seu gabinete, mesmo porque, se houver alguém no mundo capaz de
salvá-las, há de ser o meu sábio Pinehas.
Encontramo-lo em uma salinha contígua à que normalmente ocupava. De pé, junto de pequeno fogareiro, ele cozia qualquer coisa numa panela de alabastro. Sobre a mesa
de pedra, uma serpente estendida e meio esfolada, exalando odor penetrante e desagradável e de um grande depósito colado à parede, corria um líquido esverdeado para
uma gamela.
De início, Pinehas não se mostrou disposto a nos socorrer o murmurou mal humorado:
- Posso apostar que subornastes minha mãe a peso de ouro, para que ela vos deixasse vir até aqui; isso não é decente, Necho, porque detesto esmolas; o que possuo
me basta e não desejo que se diga, jamais, que mercadejo com minha ciência.
Contudo, o nome de Smaragda produziu o efeito desejado e recebi logo as instruções necessárias:
- Deves pegar alguns camundongos e queimá-los até reduzi-los a pó, que adicionarás a vinho novo e dessa mistura darás à doente meio copo de hora em hora. Como única
bebida, suco de sargaço (cortado, esmagado e coado num pano). Envolva a doente inteiramente, principalmente os braços e pernas, em panos embebidos no azeite doce
e renovados logo que sequem. Sob o lençol em que estiver deitada, estenda uma camada de terra fresca, renovada de duas em duas horas, e a terra substituída deverá
ser queimada em forno que não receba o pão, é claro.
De um armário retirou uma caixinha e um pote com alcatrão, que me entregou.
- Aqui tens um bálsamo para pincelar as manchas negras, e como será preciso muito tempo para preparar o pó de camundongo, leva-o já pronto nesta caixinha.
Vendo-me apressado, acrescentou:
- Vai na frente e pede o meu cavalo, pois ainda preciso falar a Omifer.
Agradeci e já me encontrava no umbral da porta quando ele advertiu.
- Não te esqueças, se alguém dos teus vier a falecer, de mandar incinerar todos os objetos que lhe serviram e só transportar para o cemitério o cadáver, envolto
em panos alcatroados.
Ao chegar a casa, pus logo em prática as prescrições de Pinehas e transporte e colocação da terra fresca sob o lenço da doente, cujo aspecto repugnava. Cortou-se
e espremeu-se o sargaço para lhe extrair o suco; quanto ao pó, ordenei que o empregassem sem dizer da sua origem.
Depois de transmitir as instruções à mãe, que, desfeita em lágrimas não tinha coragem de se chegar à enferma, fui a meu pai e conversamos acabrunhados.
Quando lhe contei o procedimento de Rhadamés, disse com desprezo:
- Pior que um réptil.
Recolhi-me por fim, ao quarto, cansado de corpo e alma, e adormeci profundamente.
Fui despertado já dia alto por meu pai, tão pálido e abatido que pensei ter morrido Ilsiris.
- Que há? - perguntei aflito.
- Más notícias, meu filho; durante a noite uma dúzia de escravos, homens e mulheres adoeceram. "É uma grande perda!
- É necessário tratá-los da mesma forma que estamos fazendo com Ilsiris. E como vai ela?
- Disse-me tua mãe que as manchas negras esmaeceram e que a respiração é mais tranquila. Pobre mulher! Parece que em toda a cidade a peste já fez numerosas vítimas
e confesso-te que também eu não me sinto bem; roda-me a cabeça e tenho os membros pesados como granito. É a mão de Moisés que pesa sobre nós e talvez estejamos errados
em reter os hebreus!
Observei, com angústia, a expressão fisionômica de meu pai, estranhamente transfigurado.
- Dá as ordens necessárias para o tratamento dos escravos, meu filho, enquanto vou repousar um pouco.
Levei-o ao dormitório e, tomando ás providências de mister, fui de coração opresso, até ao palácio do Faraó, porque estava na escala de serviço.
Ao atravessar a cidade, notei que a horrível moléstia havia invadido lares ricos e pobres; por toda parte, fisionomias aflitas e abatidas. Diante de uma porta, vi
um rabecão que recebia um cadáver repugnante, negro, disforme, coberto de manchas e tumores.
- Que estás fazendo, infeliz! - exclamei parando e recordando a recomendação de Pinehas. Vais difundir o contágio por toda a cidade! Envolve o cadáver num pano alcatroado
e queima toda a roupa e objetos de uso.
Chegado ao palácio, notei geral consternação e soube que o príncipe herdeiro contraíra a moléstia. O Faraó tentara congregar os maiores sábios à cabeceira do filho,
mas os mensageiros voltaram com a desoladora notícia de que, precisamente os sábios e feiticeiros, em sua maior parte, estavam atacados e impossibilitados de se
locomoverem.
No momento, estava reunido um conselho para assentar as providências adequadas.
Ocorreu-me logo a idéia de que o tratamento prescrito para Ilsiris poderia aproveitar ao príncipe herdeiro. Assim dirigi-me rapidamente para a sala da reunião, e
solicitei que me facilitassem a entrada, porque tinha em mira transmitir ao rei um assunto da mais alta relevância.
A princípio o porteiro hesitou, mas, as circunstâncias eram tão críticas que dispensavam formalidades extraordinárias, e acabei entrando e dirigindo-me ao mestre
de cerimônias, que, por sua vez me levou até junto do trono, onde me prostrei. Mernephtah, pálido e encanecido, fitou-me com olhar melancólico e fatigado.
- És tu, Necho? Se trazes ao teu rei um conselho ou remédio, serás regiamente recompensado.
- Permite, grande filho de Ra, dispensador de vida e felicidade, que a minha palavra seja absolutamente confidencial.
- Aproxima-te.
Subi o estrado e inclinando-me, relatei em poucas palavras que obtivera para minha irmã uma receita capaz de aproveitar ao príncipe e que conviria consultar Pinehas,
mas, com as maiores precauções, para não o expor à cólera de Moisés, que não deixaria de eliminar esse homem tão útil.
Um raio de esperança transpareceu no semblante de Mernephtah e coloriu-lhe as faces:
- Agradeço-te, fiel súdito. Jamais serás esquecido e desde já vou conduzir-te para junto do príncipe; depois, irás à casa de Pinehas para obter o pó e o bálsamo
e dir-lhe-ás que três medidas de anéis de ouro lhe pertencem, podendo recebê-las diretamente do meu tesoureiro, ou por teu intermédio.
Levantou-se e disse em voz alta:
- Que o conselho se conserve em sessão permanente, até nova ordem! Agora vou ver meu filho.
Em companhia apenas dos mais íntimos, dirigiu-se para o pavilhão ocupado pelo herdeiro, onde reinava um ambiente de incontida ansiedade. Os criados torciam as mãos
e os guardas, cabisbaixos, como sucumbidos, apenas se moveram para prestar continência.
Após atravessar diversos compartimentos ricamente mobiliados, ergui diante do rei o reposteiro azul e ouro, que ocultava a alcova do príncipe, uma sala não muito
grande, aberta numa das extremidades para o extenso terraço todo florido; paredes cobertas de esculturas e quadros representavam os altos feitos do fogoso rei Ramsés
II. Nos cantos haviam extensos aparadores, repletos de coleções das armas mais variadas e troféus de caça, artigos prediletos do príncipe.
Em um dos ângulos, sobre um estrado com degraus cobertos com peles de tigre, via-se a cama de ouro maciço e sob lençóis de púrpura, Seti, deitado, braços estendidos,
rosto congesto e todo o corpo sacudido por tremores convulsivos. Da boca entreaberta saía respiração opressa e sibilante. Ao redor do leito, comprimiam-se os companheiros
e criados do príncipe, pálidos e indecisos, olhando ora a fisionomia do enfermo, ora a dos dois médicos, dos quais um, de cenho carregado, preparava uma poção, enquanto
o outro evidentemente convencido da ineficácia do remédio, tinha-se voltado cobrindo o rosto com as mãos.
Imediatamente tomei todas às providências. Mandei buscar terra fresca e os vasos de alabastro com azeite doce e folhas de louro misturadas com alcatrão; despido
o enfermo, foi envolto no lençol embebido no azeite e colocado sobre a camada da terra. Mernephtah havia-se afastado para outro lado, em frente, observando atentamente
o que se fazia.
Ao cabo de alguns minutos, o doente, quiçá beneficiado pelo contato da terra fresca e do óleo, abriu os olhos congestionados e olhou a assistência.
- Tenho sede! - murmurou.
Naquele momento entravam dois criados com o suco de sargaço; despejei o líquido esverdeado num copo e, ajudado por um jovem companheiro do enfermo, amparei-lhe a
cabeça e aproximei aos lábios ressequidos o copo, que foi sorvido avidamente até a última gota. Uma expressão de calma e bem-estar estampou-se-lhe no rosto.
O Faraó ergueu-se satisfeitíssimo e batendo-me no ombro, disse:
- Muito te devo, Necho; agora, vai buscar o pó e o bálsamo e entrega ao homem esta prenda (retirou o pegador ornado de soberbas esmeraldas, que lhe segurava o manto).
Depois, volta aqui sem tardança, pois fico mais tranquilo quando te vejo, dado que nossos sábios médicos são verdadeiras negações que não previram nem souberam evitar
a peste.
Deu-me a mão a beijar e parti a toda pressa.
Invadi a sala onde Kermosa dormia na poltrona, junto da mesa cheia de garrafas vazias, sem fazer anunciar. A princípio ela se mostrou muito agastada por ter sido
incomodada; mas, quando lhe disse que vinha da parte do Faraó, que oferecia ao filho três medidas de anéis de ouro, a fisionomia se lhe abriu de contentamento e,
apertando-me a mão, chamou-me seu benfeitor e correu a prevenir Pinehas. Taciturno e preocupado, ele logo apareceu, dizendo:
- Que fazes, Necho? Tuas tagarelices me arriscam a vida...
Estendi a Pinehas o pegador de esmeralda e pedi que me fornecesse o pó e o bálsamo. Agradeceu, visivelmente satisfeito e foi ao quarto buscar um pote grande de bálsamo
e uma caixinha de pó.
- Diga ao Faraó que esta noite mande afastar os importunos e curiosos que rodeiam o enfermo, pois irei eu mesmo tratá-lo; que providencie para minha entrada no palácio,
sem dificuldade.
Correndo, voltei ao palácio, e encontrei Seti preso de sono agitado, embora respirando mais calmo; os circunstantes informaram que ele despertara, por vezes, bebendo
o suco de sargaço. Então eu próprio misturei o pó e o vinho, recomendando lhe ministrassem meio copo, de meia em meia hora; depois, ensinei como se pincelavam com
o bálsamo as manchas negras, e a seguir fui ter com o Faraó para informá-lo da visita de Pinehas. Estava, porém, em conselho e tive de esperar, até que saísse da
reunião. Ao ouvir-me, mostrou-se muito contente com a notícia. Mandou que voltasse para junto do príncipe, onde também estaria depois de expedir algumas ordens.
Assim, fui obrigado a permanecer no palácio, embora impaciente por saber como corriam as coisas em casa. Felizmente, a noite estava prestes a chegar e Pinehas, não
poderia tardar. Primeiro veio o rei, que mandou que saíssem todos, exceto eu e alguns jovens da nobreza, companheiros de infância do príncipe e a ele devotados de
corpo e alma.
O doente continuava desfalecido, mas notava-se que o mal não progredira.
Mernephtah sentara-se junto de uma mesa e servimo-lo de vinho. Após esvaziar o copo, disse com tristeza e ironia:
- Por toda a cidade a moléstia se agrava de momento a momento; mas, evidentemente, ela não me quer; talvez seja uma deferência de Moisés, temeroso de que não haja,
depois, quem lhe consinta a retirada dos hebreus.
- Caro rei! - dissemos - é Ra, o deus poderoso, do qual descendes, que te protege e imuniza; pois que seria do teu infeliz povo se não velasses por ele, nutrindo-lhe
a coragem?
O aviso de que o visitante do Faraó aguardava suas ordens, veio interromper nossa penosa espera. O rei ordenou que fosse introduzido e logo apareceu um velho de
barbas brancas, envolto em negro manto. Pelos olhos e ademanes, reconheci Pinehas.
Depois de saudar o Faraó, desfez-se do manto e tendo examinado o príncipe, disse que ia começar imediatamente o tratamento, pedindo ao rei e aos assistentes que
não se assustassem nem se admirassem do que iam presenciar e, sobretudo, que não o tocassem, a pretexto algum, porque daí poderia resultar acidente fatal ao enfermo.
Ninguém se moverá nem se aproximará de ti, sem que o autorizes - respondeu o rei - sobre isso podes ficar tranquilo.
Pinehas pediu um fogareiro com brasas e grande bacia d'água, que colocou junto do leito; a seguir, tirou do bolso um saquinho de ervas secas e jogou um punhado nas
brasas, produzindo uma fumaça acre, mas aromática. Inclinando-se para o fogareiro, aspirou fortemente a fumaça e ordenou que tirassem todas as lâmpadas, exceto uma
colocada num canto; depois, assentou-se no chão, junto da bacia, de pernas cruzadas e mãos estendidas na direção do enfermo. Silêncio absoluto. Reunidos atrás da
cadeira ocupada pelo rei, mal nos atrevíamos a respirar.
Longo tempo assim esteve Pinehas, de olhos fixos no príncipe; pouco a pouco o rosto cobriu-se-lhe de mortal pavor, como que petrificado. Olhos escancarados, inexpressivos,
braças sempre estendidos para frente, dir-se-ia uma estátua. Depois, começaram a lhe aflorar placas luminosas pelo corpo, ora esmaecendo, ora aumentando o brilho;
das mãos como que se desprendia tênue claridade, que, em chispas multicores, mergulhava nágua. De repente, sem mudar de posição e sem qualquer auxílio visível, Pinehas
elevou-se no ar e dessa forma pairou à altura do leito de Seti inteiramente descoberto.
Logo, notamos que das extremidades do enfermo, do vértice da cabeça e sobretudo da região do estômago, saía qualquer coisa negra, que se fundia em nuvem densa, aspirando
e dissipando-se, enquanto o corpo do mago continuava a expelir partículas luminosas.
Assombrados, contínhamos a respiração, contemplando o espetáculo extraordinário.
Tudo cessou por fim. Pinehas voltou ao solo e passado certo tempo deu um profundo suspiro, lançando em torno um olhar fatigado. Levantou-se e distendeu os membros.
Feito isso, lançou em outro vaso a água que absorvera as partículas luminosas, bebeu um gole do restante, lavou o rosto e as mãos e, aproximando-se de Seti com um
pano molhado na mesma água, esfregou-lhe o rosto, os pés e as mãos. Voltou-se depois para o Faraó e disse:
- Poderoso soberano, aproxima-te e verifica que as manchas desapareceram, e, com elas, a terrível moléstia. O príncipe se restabelecerá, pois todo o perigo passou.
O que resta é um estado de extrema fraqueza. Sigam a rigor o tratamento prescrito e logo teu filho recuperará as forças e o viço da mocidade.
Mernephtah aproximou-se e após verificar que o filho dormia um sono normal e profundo, bateu no ombro de Pinehas, dizendo:
- Tu és o maior médico do Egito, depois de Moisés; toma isto como prova do meu reconhecimento pela vida do meu herdeiro. - Tirou do dedo um anel com magnífica safira,
na qual estava esculpida a cabeça de Apis. - Acrescentando mais três medidas de ouro às que já te dei, presenteio-te com três cavalos encilhados, das minhas cavalariças;
cem vacas e cem carneiros dos meus rebanhos. Necho, registra estas ordens e providencia para que tudo seja enviado a Pinehas, da forma que melhor lhe convier.
Pinehas prostrou-se de braços cruzados, agradecendo.
Depois de entregar as tabuinhas com as prescrições a serem observadas, retomou o manto e saiu.
Logo depois, Seti abriu os olhos, inteiramente lúcido e pediu o que beber. Todos se aproximaram.
- Filho, como te sentes? - perguntou Mernephtah inclinando-se e beijando-o na fronte.
- Perfeitamente bem, apenas fraco. Tenho idéia de que um homem flutuava no ar, perto de mim, e que partia dele uma fonte d'água tão fresca, tão perfumada que, à
medida que escorria pelos meus membros abrasados e doloridos, eu me sentia renascer.
- É verdade, filho; os deuses te favoreceram com um verdadeiro sonho. Um grande mago aqui esteve, junto de ti e te restabeleceu a saúde; a horrível moléstia abandonou
o teu corpo; agora é preciso repousar, porque a calma e o silêncio te são necessários.
Mernephtah retirou-se e pouco depois eu também retomava, justamente aflito, o caminho de casa. Apesar do adiantado da hora, as ruas ainda formigavam de gente e,
certamente, alguma coisa do tratamento do herdeiro havia transpirado, porque muitos pobres carregavam sacos e cestas de sargaços e vasos de azeite.
Quando cheguei à casa, um velho escravo informou-me logo que nada de extraordinário ocorrera, mas várias pessoas haviam sido atacadas.
Fui até o quarto de meu pai. Dormia sono pesado e inquieto, remexendo-se no leito de um lado para outro. Não desejando incomodá-lo, retirei-me e fui dormir descansado.
De manhã, fui informado pelo velho criado que meu pai estava passando mal. Corri para junto dele e não tive dúvida em concluir, pelo rosto inchado, olhos esbugalhados
e corpo crispado, que tinha contraído a moléstia.
- Depressa - exclamei aos que deblateravam ao redor do leito - em lugar de ficarem aí inativos, vão buscar terra e azeite. Não há tempo a perder.
Depois de lhe dispensar todos os cuidados possíveis, resolvi chegar até os aposentos maternos. Ao atravessar a sala de jantar, notei, com espanto, que um escravo
estava caído perto do aparador, de onde pretendia retirar a baixela. O rosto intumescido e as feias manchas que lhe pontilhavam o corpo, assinalavam uma nova vítima
que ainda não tinha sido retirada. Na ante-câmara de minha mãe, várias mulheres amontoadas e desfiguradas, davam a impressão de que não viam nem, ouviam.
Encontrei minha mãe assentada perto de uma mesa com a cabeça apoiada às mãos. Com o ruído dos meus passos, levantou os olhos, dizendo:
- És tu, Necho? Teu pai também foi atingido, já sabes? Pobre Mentuhotep! Sinto, porém, que o seguirei de perto, pois a cabeça me roda e não me aguento nas pernas.
Ao ouvir tais palavras fui preso de íntimo desalento: Ilsiris, ela, e o pai... Iria perdê-los a todos?
- Não fales assim, mãe; isso não significará mais que passageira fraqueza, devido aos aborrecimentos e ao cansaço; como vai Ilsiris?
- Ainda vive. Queres vê-la? - acrescentou, deixando-se cair nos travesseiros.
Levantei-me e entrei no quarto contíguo, propositadamente mergulhado em penumbra. Ilsiris lá estava no leito, esquelética e desfigurada. A febre ainda lhe escaldava
as faces e os olhos, mas as manchas horrorosas tinham desaparecido. A velha Acca trocava, na ocasião, os panos molhados no azeite.
- Acca, como te sentes? perguntei, vendo que Ilsiris fechava novamente os olhos.
- Bem - respondeu a velha enxugando uma lágrima - bebo de todos os remédios, fricciono-me com azeite e como o pó com o pão; sinto-me vigorosa como um peixe n'água.
Só me falta que os meus bons senhores sejam salvos!
- Querida Acca - disse acariciando-lhe a face encarquilhada - nunca esqueceremos teu devotamento nestes dias amargurados.
Voltei para junto de minha mãe e notando-lhe o rosto afogueado, convidei-a a respirar um pouco de ar fresco, no terraço. Apoiada em mim, caminhou com dificuldade,
mas apenas deu alguns passos, parou e levou a mão ao peito.
- Como queima! Parece-me ter uma faca enterrada aqui! - disse afastando a roupa para mostrar-me a região. Vendo, entretanto, uma grande mancha violácea, deu um grito
agudo e tombou desacordada. Coloquei-a no leito e chamei Acca. Tornando-se indispensável e não podendo a velha, sozinha, atender a tudo, toquei a campainha dos criados,
mas apenas dois se apresentaram.
- Senhor - disse um deles todo lacrimoso - ninguém atenderá ao teu chamado, pois metade das mulheres estão doentes e as outras estão esgotadas a ponto de não poderem
fazer qualquer coisa.
Pus as mãos na cabeça e comecei a pensar que, da maneira em que vão as coisas, dentro em pouco não haverá quem cuide dos próprios doentes!
Lembrei-me novamente de Kermosa. Talvez me cedesse, por empréstimo, uma serva bastante inteligente para dirigir os socorros aos doentes e auxiliar Acca no tratamento
de meus pais; pagaria de bom grado o que fosse pedido.
Sem perder tempo, apanhei uma caixinha, enchia-a das jóias que encontrei à mão e, tomando o carro toquei para casa de Pinehas. Kermosa me recebeu amavelmente.
- Ajuda-me - disse apresentando-lhe o cofre - todos os meus estão atacados da peste, sem contar mais de trinta escravos e criados. Os que não estão doentes, estão
horrorizados, vendo seus parceiros, que morrem sob suas vistas.
- Vejo que estás desatinado, pobre rapaz. Teus pais estão doentes da peste e os servos, perturbados, incapacitados de agir. Não deves, porém, desesperar. Acalma-te,
Necho; gosto da tua família e te ajudarei; vou emprestar-te uma jovem capaz de cuidar dos doentes, dirigindo o tratamento. Entretanto, devo dizer-te uma coisa: estimo
essa moça que, jovem e bela, é, até certo ponto minha parenta - acrescentou baixando os olhos envergonhada. - Promete-me, pois, que nunca lhe faltarão atenções em
tua casa.
- Quanto a isso posso jurar - respondi. Ela te será restituída impoluta, ninguém lhe tocará com um dedo.
- Henaís - gritou Kermosa no seu metal de voz sonoro e agudo - depressa!
Logo, uma rapariga de beleza surpreendente assomou no umbral. Um vestido simples, de pano listrado, desenhava-lhe o corpo esbelto, deixando a descoberto uns ombros
e braços admiráveis. A cútis bronzeada era tão pura que se diria ver o sangue circular na sua transparência, traços regulares e encantadores, olhos negros, doces
e veludados, como os de uma gazela, exprimiam bondade extrema. Ao ver-me, perturbou-se e baixou a cabeça.
- Henaís, vês este nobre egípcio? - disse Kermosa - três membros de sua família foram atingidos pela peste e o pessoal doméstico morre como mosca; ele veio pedir-me
alguém capaz de o ajudar e foi a ti que escolhi. Sei que te desobrigarás a contento, porque fui eu que te educou de forma idêntica à dos ilustres egípcios, meus
patrícios. Portanto, podes ir tranquilamente cuidar dos pobres doentes, porque Necho me prometeu que, a começar por ele, até o último escravo, ninguém abusará de
ti.
- Mas - retrucou ela empalidecendo - Pinehas não há de concordar.
- Pinehas não tem outra coisa a fazer se não obedecer-me, compreendes? Evita palavras imprudentes, que possam dar a entender que meu filho tenha outra vontade que
não a minha, quando a verdade é que, desde a infância, sua adoração filial o faz considerar meus desejos como lei. Vai, pois, e prepara-te para acompanhar o nobre
Necho.
A moça, que muito respeitava Kermosa, desapareceu imediatamente. Perguntei se não poderia avistar-me, um momento, com Pinehas,
- Creio que não - respondeu Kermosa - pois está ocupadíssimo, junto de Smaragda, gravemente contaminada. Mas, vem comigo, e se for possível, vê-lo-ás.
Levou-me aos apartamentos do filho e deteve-se diante da porta velada com uma cortina que ela entreabriu discretamente para lançar um olhar pelo interior; depois,
com o dedo nos lábios, em sinal de silêncio, acenou-me para que me aproximasse. Avancei curioso. Na sala confortavelmente mobiliada, vi Smaragda estendida como se
estivesse morta, num leito de repouso. Tão branca como a gase que a recobria, mas sem as manchas negras no corpo; a febre deveria ter cedido, pois ela dormia como
se apenas estivesse muito extenuada. Junto dela, de pé, Pinehas, inquieto e com as veias intumescidas. Com grande espanto, notei que, com a ponta dos dedos ele tocava
a fronte da moça, descendo depois as mãos sem tocar o corpo, até os pés. Isto incessante e seguidamente. Não vi Omifer, notando apenas que numa esteira dormia profundamente
uma negrinha.
Finalmente, Pinehas cessou de operar. Parecia exausto e suor copioso escorria-lhe da fronte; inclinou-se para a enferma e auscultou-a. Sua fisionomia tinha expressões
alternantes de ódio e de ternura. Depois, deixou-se abater no tapete, colou os lábios nas pequeninas mãos de Smaragda, que não se moveu.
Violentamente, Kermosa puxou-me para trás, sussurrando:
- Nada vimos, compreendes?
- Sem dúvida - respondi - percebo que no momento não lhe posso falar.
Henaís já estava à minha espera quando voltamos, com um véu na cabeça, envolvida num manto escuro e sobraçando um embrulho. Atirou-se aos pés de Kermosa e lhe beijou
as mãos.
- Felicidades, querida Henaís - disse esta beijando-a na testa.
- Fica a teu cuidado, Necho - acrescentou ao despedir-se.
- Vem - disse tocando a mão trêmula da moça - nada receies, pois tudo farei para que te sintas bem em nossa casa.
Fi-la subir ao carro e chegando à casa levei-a para junto da boa Acca, com quem a deixei.
Comunicou-me nosso velho intendente que o azeite estava quase esgotado e perguntou onde poderia obtê-lo.
Temendo pela sorte do portador, que poderia adoecer no caminho, fui pessoalmente à casa de um rico negociante com quem meu pai tinha transações.
Recebeu-me muito aflito, porque também tinha doentes e acabava de perder a filha, vitimada pela peste; ensinei-lhe o tratamento que tanto aliviou Ilsiris e, ele,
em sinal de reconhecimento, prometeu-me fornecer todo o azeite de que eu viesse a precisar.
Ao regressar, já encontrei as coisas noutro pé. Meu pai e minha mãe estavam revestidos de panos molhados em azeite; as ânforas estavam cheias de suco de sargaços.
Henaís, a correr de um doente para outro, ensopando de azeite os lençóis de um, dando a beber a mistura de vinho e pó a outro, atendendo a todos com solicitude.
Entre os criados, também parecia renascer a coragem. Todos os doentes estavam acomodados e já haviam recebido os primeiros socorros; enfim, por determinação de Henaís,
vários rapazes apanharam algumas serpentes e as esfolaram para retirar a gordura destinadas às fricções.
Quando cheguei junto de meus genitores, vi Henaís dando de beber a meu pai, que se encontrava em deplorável estado, com o corpo coberto de manchas, rosto disforme
e respiração sibilante. Não me reconheceu e assentei-me perto dele, admirado eu próprio de não experimentar nenhum incômodo. Estaria imune ao contágio?
Observei Henaís por muito tempo, não podendo desviar os olhos dessa encantadora criatura, que, ligeira e calada, parecia o anjo tutelar dos doentes.
Aproximei-me por fim, e tomando-lhe as pequeninas mãos morenas, disse reconhecidamente:
- Querida Henaís! É admirável o teu trabalho! Mas, não estarás abusando das tuas forças? Forte e saudável, não poderia eu ajudar-te?
A princípio, ela se mostrou tímida e calou; depois, desembaraçando-se, ergueu para mim os grandes olhos brilhantes, dizendo:
- Não te preocupes, pois nada sinto e cuidarei de todos, sem prejuízo de ninguém - acrescentou ainda hesitante - Não fiques assim triste e pálido; vai repousar um
pouco e amanhã entrega-te tranquilamente ao teu serviço; não te acabrunhes, porque ninguém morrerá enquanto estiver sob os cuidados de Henaís.
Comovido, apertei-lhe fortemente a mão e tentei abraçá-la. Recuou assustada e recordei, então, a promessa feita a Kermosa, afastando-me sem demora.
No dia seguinte, tudo continuava na mesma. Alguns dos nossos homens ainda continuavam enfermos, mas não houve óbito. Depois do almoço, fui ao palácio, onde o herdeiro
ia passando bem, apenas muito debilitado. Após a refeição do Faraó, um oficial perguntou-me:
- Não sabes o que há com Rhadamés? Há dois dias que não aparece; felizmente o rei não procurou por ele. Estará atacado da peste?
- Não sei - respondi - tenho muita desgraça em casa, por isso não posso pensar nas tragédias dos outros.
- Estamos em idênticas condições - acrescentou suspirando.
Havia muito que anoitecera, quando deixei o palácio, de volta à casa. O aspecto da cidade, que se tornara asilo da peste e da morte, era ainda mais sinistro que
durante o dia. Em todas as ruas notavam-se grandes fogueiras, a que os soldados atiravam ervas aromáticas misturadas com alcatrão. O revérbero das chamas refletia-se
fantasticamente nos corpos nus e nas cabeças selvagens dos guerreiros, assim como nos edifícios, quer fossem escuros, ou pintados de cores vivas. Pela sombra das
casas, evitando a luz dos braseiros, deslizavam pessoas transportando em padiolas grandes fardos envoltos em pano alcatroado. Eram as vítimas da peste. Silenciosos,
como se temessem despertar em sua passagem a atenção dos circunstantes aterrorizados, lá seguiam eles para o cemitério com a carga sinistra. Muitas vezes meu cavalo
empacava, recusando-se a prosseguir, ou se desviava ao passar junto de um corpo estendido no solo, às vezes inanimado, outras vezes gemendo surdamente.
Eram as vítimas que a patrulha ainda não havia retirado.
Após pequeno desvio para livrar-me de extensa fila de padiolas, aconteceu-me passar diante do palácio de Mena. O grande edifício estava imerso na escuridão e silencioso,
apenas iluminado pelo reflexo da fogueira acesa no meio da rua. Recordei-me de Rhadamés e da crueldade selvagem com que escorraçou daquela mesma porta a esposa gravemente
enferma. A peste que rondava o ponto, teria atingido aquela casa?
Procurei informar-me. Ao redor do fogo estavam acocorados soldados etíopes de largas mandíbulas e cabelo encarapinhado, alimentando o fogo com ar sinistro e apatetado.
Chamei um, ordenando-lhe que segurasse o cavalo e aproximei-me da porta. Suspendi o martelo de bronze para deixá-lo cair na campainha e um som agudo e prolongado
se fez ouvir, quebrando o silêncio da noite. Ninguém, entretanto, respondeu do interior, nem apareceu qualquer criado. Estariam todos mortos lá dentro?
Pedi uma tocha e chamei dois soldados para forçar a porta. Encontrei-a aberta e entrei sozinho, sem temor algum, pois já estava muito afeito ao contato de doentes,
para que me atemorizasse. Percorri o pátio e, ao atravessá-lo, tropecei num obstáculo. Abaixei a tocha e vi, horrorizado, um cadáver já em decomposição, nada mais
representando que uma pasta negra e putrefacta. Descortinei dezenas de corpos no solo, alguns assentados de encontro à parede, de olhos vidrados e boca escancarada,
inchados como tonéis. Um quadro verdadeiramente macabro e apavorante!
Que teria acontecido aos donos da casa? Era isso o que desejava saber.
Voltei e penetrei na casa, tremendo. No vestíbulo, apenas encontrei o cadáver de um homem. Galguei, então a soberba escadaria fracamente iluminada por uma tocha
presa à parede; prosseguindo, divisei finalmente, um preto velho que, acocorado junto de um fogareiro, queimava ervas alcatroadas, tal como faziam os soldados nas
ruas. A meu chamado, aproximou-se logo e disse-me que apenas ele e uma mulher ali se encontravam.
- Todos os demais criados fugiram - acrescentou. - O patrão expulsou os primeiros que adoeceram, mas, quando a velha senhora e duas filhas foram atingidas, todos
debandaram, inclusive o próprio patrão, que se meteu no subterrâneo e não mais apareceu. Talvez já esteja morto.
- Por que não removem os cadáveres?
- Porque são muitos e não tenho forças para tanto, além de não saber a quem me dirigir.
Perguntei onde estavam a mãe e irmãs de Rhadamés. O escravo deu-me a direção e depois de atravessar diversas salas cheias de cadáveres, cheguei a uma grande alcova
luxuosamente mobiliada e aclarada por duas lâmpadas, que iluminavam uma grande mesa repleta de pastéis, mel e uma ânfora de ouro cheia de vinho.
Jovem nubiana saboreava o rico repasto, após haver-se enfeitado, pois lá estavam cofres abertos, caixinhas viradas e o flagrante grotesco. Na extremidade do quarto,
três seres viventes se contorciam no leito, tão desfigurados que mal pude reconhecê-los.
Com a minha aproximação, a nubiana levantou-se contrafeita e assustada.
- Ouve, rapariga! fala-me sinceramente: não encontraste nada a fazer senão roubar e comer? Toda a cidade está em movimento, todos se auxiliam e no entanto estes
infelizes aqui agonizam à míngua de socorro...
- Mas ninguém manda nem pede nada! - disse a pobre criatura - pois as senhoras nada falam que se entenda, já há dois dias.
- É verdade - disse o preto velho que me acompanhara, meneando a cabeça - ordenai o que é preciso fazer, porque não ouso aproximar-me do meu senhor, que se conserva
furioso e incompreensível.
- Tens óleo de oliveira em casa?
- Ânforas deste tamanho - disse, designando altura quase igual à dele.
Indiquei-lhe, então, o tratamento a seguir, acrescentando que no dia seguinte voltaria a ver se tudo havia sido bem executado. E pedi que me indicasse o refúgio
de Rhadamés, pois se ele ainda vivesse queria envergonhá-lo por entregar-se a tal covardia, enquanto os parentes morriam à míngua de cuidados.
O preto levou-me até uma escada que descia para as adegas.
Desci, penetrando numa cava de tamanho regular, iluminada por uma tocha; junto às paredes, enormes cofres e ânforas de diferentes tamanhos e num canto, acocorado,
alguém de costas voltadas para mim, sorvia avidamente o conteúdo de diversos vasos cinzelados, que lhe ficavam à frente. Aproximei-me do personagem e iluminando-o
com a tocha, reconheci Rhadamés horrivelmente mudado - pálido, as vestes sujas e desmanteladas.
Ao ouvir meu chamado, deu um salto e quis fugir de espada em punho. Não encontrando saída, gritou:
- A peste que ataque a todo mundo, que todos morram. Basta que eu viva! - E batia com a espada nos vasos e ânforas, que se quebravam com fragor, molhando o chão.
- Os deuses tê-lo-iam enlouquecido, punindo-o pela falta de caridade? - perguntava-me apavorado. E de pernas bambas, fugi, entregando à proteção dos deuses a casa
de Mena com os seus moradores.
Ao entrar em casa, encontrei meus queridos doentes no mesmo estado; nem piores, nem melhores, a gemer e rolar no leito.
Enquanto eu ajudava a erguer minha mãe, Henaís falou:
- Não te aflijas, pois não pode ser de outra maneira. Só ao fim de três dias é que virão as melhoras. Quem o disse foi Pinehas e suas palavras são sempre verdadeiras,
pois é um grande sábio, na opinião de mãe Kermosa.
E ao notar meu aspecto de fadiga, acrescentou:
-Estás extenuado, vai ao quarto vizinho, onde acharás alguns refrescos; tardaste bastante e previ que chegarias com fome. Vai-te refrescar e repousar, pois aqui
estou de vigília e não há necessidade de teu concurso.
- Obrigado, boa Henaís, por teres pensado em mim - disse tomando-lhe a pequenina mão entre as minhas.
- Bem - disse, após um instante de hesitação - tu não estás, a bem dizer, doente do corpo, mas da alma, porque Pinehas diz que, quando entristecemos, a alma está
doente; e tu te sentes infelicitado, porque os teus queridos estão sofrendo. '
Antecedeu-me na sala contígua e, colocando-se perto da minha cadeira, encheu uma taça de vinho que me ofereceu sorrindo. Experimentei, então, uma viva e estranha
simpatia pela bondosa criatura. Seus gestos e suas palavras traduziam particular encanto. Depois de muito instalada, consentiu em sentar-se a meu lado e serviu-me
os melhores bocados. Tendo comido com apetite incomum, deixei-me persuadir por Henaís e fui deitar-me.
Alguns dias transcorreram sem maiores novidades dignas de menção. Ilsiris estava melhor, mas o estado dos meus genitores e da maior parte dos servos continuava deplorável:
por vezes, sentia-me desanimado, mas Henaís encorajava-me.
- Que queres? - dizia sorrindo - ninguém ainda morreu; e quanto ao mais, é preciso ter paciência.
E eu já estava tão afeito ao seu convívio naqueles dias amargurados, que alguma coisa me faltava, quando ao entrar em casa não a avistava logo.
Certa vez, precisei madrugar para ir ao palácio, a fim de acompanhar Faraó ao Templo. O príncipe Seti levantara-se, na véspera, pela primeira vez e o rei queria
render graças aos deuses por lhe haverem poupado o filho.
Acompanhado apenas de reduzido séquito, Mernephtah entrou no Templo, onde os sacerdotes, também dizimados pela terrível epidemia, o receberam com as habituais solenidades.
Nós permanecemos na ante-sala que precede o santuário em que foi introduzido o rei, por um dos profetas, na ausência do grão-sacerdote, enfermo e acamado. Vimos,
então, Mernephtah prosternar-se diante do ídolo. Ergueu os braços e a voz sonora ecoou pelas abóbadas:
- Poderoso Osiris, rendo-te graças por tua misericórdia em conservar-me o filho; mas tem piedade também do meu pobre povo! Serás menos poderoso que o deus cruel
dos hebreus? Se ele pode ferir-nos com a peste, tu, grande protetor do teu devotado povo, podes livrar-nos. Dá-nos a conhecer a natureza do sacrifício que exiges
para aumentar tua força e vencer o Deus inimigo e dá-me um sinal de que esta súplica foi aceita.
Todos nos prostramos e, braços alçados, unimos nossas preces à do nosso Faraó. Ao mesmo tempo, os sacerdotes e sacerdotisas entoaram um cântico sacro, muito emocionante,
ao Bom de suas harpas; isso num ambiente que, por sua fragrância ativa, me comoveu até as lágrimas. Foi então que vimos pequenas chamas aparecem na abóbada, e desceram
sobre o altar, iluminando espontaneamente a oblata preparada. Com este sinal evidente da graça de Osiris, nova esperança fortaleceu os corações; Mernephtah também
pareceu reconfortado, e depois de haver prometido grandes sacrifícios e dádivas aos deuses, deixou o Templo.
Embora não divulgada, a visita do rei ao Templo de Osiris se propalou com enorme celeridade e quando ele retomou a liteira, viu todas as ruas do itinerário apinhadas
de multidão compacta, da qual partiam soluços e lamentações.
Próximo ao palácio, foi preciso parar. As cabeças se tocavam, ondulando como vagas ululantes; milhares de braços se erguiam e, sobrepujando gemidos e lamentações,
ouviu-se o grito:
- Permite que partam os hebreus! Tem piedade do teu povo, Faraó, antes que a peste horrível nos ceife a todos. Olha que as casas se esvaziam, morrem senhores e servos,
breve não haverá braços para o trabalho.
Doentes de aspecto horripilante foram empurrados para a frente. Mulheres desesperadas enfrentavam a liteira, levando nos braços os filhos cobertos de pústulas e
manchas negras.
De repente, a massa comprimiu-se soltando gritos e sendo esmagada; um claro abriu-se dando passagem livre a uma fila de carretas, atulhadas de cadáveres envoltos
em panos alcatroados. Diante desse quadro, a multidão aterrada passou a gemer lugubremente.
- Perece tudo! - exclamavam - almas e corpos, pois no cemitério os corpos ficam amontoados como animais impuros, à falta de mãos que os embalsamem ou enterrem honrosamente!
Depois, todos os gritos se fundiram num só:
-- Deixa partir os hebreus! É a nossa única salvação!
Pálido, Mernephtah ergueu-se na liteira e seus olhos fuzilantes abrangeram a multidão desvairada que, vendo-o nessa atitude, emudeceu.
- Não sois os únicos atingidos - disse no seu diapasão de voz metálica, que facilmente atingia as últimas fileiras - o herdeiro da coroa não foi poupado e no palácio
sofrer se como na mais modesta choupana; meus parentes e conselheiros, todos os chefes e oficiais do meu estado-maior, tem a casa repleta de doentes. Nenhum deles,
porém, ainda me veio pedir que deixasse partir os hebreus! Vós temeis a tal ponto? Estais certos de que Moisés tem poderes para impedir a peste e a morte? Venho,
agora mesmo, do Templo de Osiris, onde o poderoso deus ouviu minha súplica, pois a fiam a celeste baixou sobre o altar para consumir a oferenda que lá depositara.
Ao ouvir essas palavras consoladoras, ditas com decisão e veemência, todas as cabeças se ergueram e a esperança brilhou em todos os olhares. Houve gritos de louvor
e bênçãos. A multidão abriu larga passagem.
- Meus fiéis egípcios, não desespereis, tudo que for possível o vosso Faraó fará por vós - acrescentou Mernephtah assentando-se. E a liteira se pôs novamente em
movimento.
Estrugiram aclamações frenéticas, pois o povo compreendeu que o espírito altivo do rei sofria e que, emocionado com a desgraça dos súditos, acabaria cedendo, para
os salvar.
O monarca recolheu-se acabrunhado sem tocar na refeição que lhe serviram. Também a taça ficou intacta e ninguém ousou quebrar o pesado silêncio do ambiente. Só à
tarde ele se dirigiu a um dos conselheiros que o assistiam dizendo-lhe:
- Que amanhã cedo Moisés venha à minha presença.
Ainda sentado à mesa do almoço, no qual não havia tocado, anunciaram-lhe, no dia seguinte que Moisés aguardava suas ordens.
- Que venha aqui! - disse com um clarão nos olhos.
O vulto corpulento do profeta hebreu logo insinuava-se na galeria, acompanhado pelo inseparável irmão Aarão.
Diante do rei, inclinou-se ligeiramente e, cruzando os braços, perguntou irônico:
- Poderoso Faraó, que desejas de mim? Se és forte por que me chamas?
- Cala-te, insolente! Acreditas ter-me amedrontado com as tuas feitiçarias? - exclamou o rei dando um murro na mesa, fazendo-a estalar e entornando o vasilhame -
empestaste o povo com processos infernais, pois não creio que isso possa ser obra de um deus. Não foi por mim que te mandei chamar e sim por meus súditos, que choram
e desesperam, supondo que podes conjurar a morte desencadeada. Povo cego e estúpido que imagina que tua força governe realmente o reino das trevas e das sombras.
Curvo-me diante dos seus desejos, concedo-te vinte e quatro horas; e, se dentro delas não houver um só egípcio empestiado, poderás reunir os hebreus e partir com
eles.
Fitando o rei com espanto, enquanto ardente rubor cobria-lhe as faces, Moisés recuou:
- São necessários três dias para extinguir a peste, - disse com voz pausada.
Malicioso sorriso descerrou os lábios de Mernephtah e, voltando-se para os guardas, ordenou:
- Descei com vossas trombetas e, percorrendo as ruas, convocai o povo a reunir-se aqui, diante do palácio, do lado do terraço.
Alguns oficiais desceram correndo, mas logo se convenceram de que não havia necessidade de convocação, porque, em todas as direções, por mais longe que a vista alcançasse
só se viam cabeças. É que haviam reconhecido Moisés e, a multidão, sempre crescente, quase o havia impedido ao palácio.
Prevenido de que o povo ali acorrera, Menerphtah dirigiu-se para o terraço de onde já havia falado.
Aproximou-se da balaustrada e com um gesto, chamou Moisés para junto de si elevando a voz sonora, para dizer:
- Fiéis egípcios: Moisés, o mágico, acaba de comprometer-se a extinguir dentro de três dias a peste que assola o Egito. Esgotado o prazo, não deverá restar um só
doente em todo o país. Se ele cumprir a promessa, concedo que se retire com o povo hebreu. Ordeno, portanto, que dentro de três dias aqui estejais novamente para
dar-me a prova do seu poder, ou da sua fraqueza, isto é, acompanhados dos vossos doentes, restabelecidos ou empestados.
Voltando-se para Moisés, que o ouvia estupefato e contrariado, disse:
- Vê bem o que exijo.
Saudou, com um gesto, o povo exultante de alegria, que se prostrava beijando as paredes do palácio. O monarca retirou-se e nós o seguimos e ficamos na sala contígua
à alcova real, onde só entraram alguns dignatários. Eu e outro colega nos postamos à porta.
Ainda pálido e combalido o príncipe Seti lá estava também numa cadeira, apoiado em almofadas. Beijando a mão paterna, interrogou inquieto:
- Que significam esses gritos e clamores do povo? Aqui, todos a quem pergunto, emudecem e baixam os olhos. Que há, papai? Alguma calamidade ameaça o Egito?
Mernephtah, sentando-se na cadeira que lhe trouxeram, respondeu:
- É o povo estúpido que pede deixe partir os hebreus. Pois bem, atendi ao povo. Moisés acaba de sair daqui e o que ouves são gritos de alegria de uma turba ensandecida,
que se aferra a tudo que acredita constituir desafogo a seu favor.
Rubor intenso coloriu o rosto do príncipe e os lábios tremiam-lhe nervosamente, quando disse:
- Deixas partir os hebreus, pai? É uma indigna fraqueza; como podes dar ouvidos a um povo atrasado e cego, que, no seu pavor, não sabe o que pede? Revoga tua promessa,
pois seria insensato mantê-la.
Exaltado, tentou levantar-se, mas logo recaiu extenuado.
O rei falou serenamente:
- Acalma-te, podes crer que eu ceda a clamores da populaça, embora me sangre o coração vê-la aflita? Sim, o coração confrange-se ao ver milhares de cadáveres levados
à morada dos mortos, ainda que lá seja a mansão do repouso e da alegria e aqui a das dores e lágrimas. Grande, porém, é o nosso egoísmo, desde o do Faraó que receia
por seu herdeiro, até o último operário, que treme pelo filho, menosprezado como ele. Cada qual quer reter os seus neste mundo de sofrimento e misérias. Mas tu te
enganas, se pensas que cedo por fraqueza, quando quero apenas mostrar ao povo enceguecido pelo terror, que o poder de Moisés não é ilimitado. Tu, discípulo dos mais
sábios sacerdotes, deves saber que é mais fácil desencadear que reter um mal; a morte impiedosa, sobretudo, que jamais cede suas vítimas, desde que as tenha nas
garras. Se ele, portanto, livrar o Egito da peste, quero inclinar-me ante o seu poder, porque aquele que detiver a morte será verdadeiramente um Deus.
Seti tomou a mão do Faraó e apertou-a contra os lábios, de olhos brilhantes.
- Em ti está toda a sabedoria como toda a justiça, meu rei e meu pai; perdoa minhas palavras cegas e imprudentes.
Apossou-se de todos febril agitação, motivada pela previsão de algum acontecimento extraordinário. Todos quantos tinham doentes em casa aguardavam um desafogo e
eu próprio não podia afastar a idéia de que talvez, ao entrar em casa, encontrasse os meus restabelecidos. Jamais o serviço me pareceu tão longo e penoso; e quando,
finalmente, pude deixar o palácio, corri para casa. Em vão busquei na fisionomia dos serviçais a alegria e o espanto que anunciassem o milagre. Como sempre, encontrei
Henaís às voltas com os doentes em seus leitos, sem me reconhecerem; apenas Ilsiris, ao aproximar-me, despertou de um sono calmo e reparador e sorriu-me em pleno
estado de consciência.
- Amanhã - disse Henaís - poderás conversar um pouco com ela.
Muito desencantado, recolhi-me aos meus aposentos.
No dia seguinte, quando fui procurar minha irmã, encontrei-a melhor, apesar da fraqueza; estendeu-me a mão descarnada e perguntou por nossos pais e por Chamus. Este
último havia desaparecido no mesmo dia em que adoecera e não mais fora visto, presumindo-se que tivesse ido para junto da encantadora Léa, que, certo, conheceria
os meios de imunizá-lo, pois ele não era bastante corajoso, e muito menos, escrupuloso, quando se tratava de salvar a própria pele. Teria, então, procurado o recurso
da saúde, ainda que fosse preciso encontrá-lo num coração hebreu. Mesmo assim, cuidei de ocultar o mais possível essa minha desconfiança, dizendo ao contrário, que,
provavelmente, Chamus teria ido à casa de Ramsés, onde morava a velha genitora e onde sua presença era indispensável à manutenção da ordem entre o pessoal, durante
a terrível epidemia. Acrescentei ainda que devia estar passando bem, porquanto não tivera notícia alguma a seu respeito.
Tranquilizada e reconfortada, a convalescente tratou de outro assunto. Como Henaís lhe viesse dar de beber, disse-me acompanhando-a com os olhos:
- Onde compraste esta moça tão bela e tão bondosa, Necho? Como enfermeira é talvez melhor que Acca e com isso já disse muito.
- Henaís não é pessoa que se deixe vender - respondi - é parenta de Kermosa, que a enviou aqui para vos cuidar, quando eu estava na iminência de perder a cabeça,
vendo os três contaminados; por isso, muito me alegra o teu julgamento.
Ilsiris fitou-me um instante, para acrescentar com um sorriso:
- Necho, ela te agrada, não negues; trata pois de comprá-la a Kermosa, que tudo especula e negocia, desde que lhe dê um bom lucro; e quanto ao alegado parentesco,
tenho cá as minhas dúvidas.
- Não, isso nunca - respondi levantando-me - porque a idéia de comprar Henaís me repugnava sem saber porquê.
Na manhã em que expirava o prazo dos três dias fixados por Moisés e aceito pelo rei, aprontei-me para chegar cedo ao palácio. Nesse interregno, ninguém mais adoecera
da peste, mas ainda se notavam por toda parte doentes que lutavam contra o terrível morbus. No meu trajeto para o palácio, encontrei grande quantidade de padiolas
e carroças cheias de pestilentos, que eram enfileirados em frente do palácio.
Logo após, Mernephtah apareceu no terraço e, dirigindo-se ao povo, disse:
- Pelo que vejo, não faltam doentes, o que prova que eu tinha razão e que Moisés não é o todo-poderoso. A epidemia declina, mas não por influência dele e sim por
uma lei natural. Nenhuma tempestade dura meses, nenhuma epidemia pode aumentar após haver atingido a máxima virulência. Retornai, pois, aos vossos lares, confiai
na misericórdia dos deuses e crede que o vosso Faraó vela por vós como um pai por seus filhos.
Aclamações e bênçãos responderam a essas palavras.
- Quero esperar Moisés - disse entrando na galeria - suporá ele convencer-me de que dominou a peste? Pensará tenha eu feito alguma transação com o povo estúpido
e apavorado? Se ele baseia nisso a sua ousadia, está muito enganado. Havendo a peste atingido todos os organismos predispostos ao contágio, deverá, por forca, diminuir
e cessar, pois não encontrará mais onde fazer vítimas. Os que permaneceram de pé continuariam ainda com saúde, mesmo que a moléstia durasse mais um ano. Moisés sabe
isto que vos digo, mas abusando da ignorância geral, quer basear numa lei pouco conhecida a libertação do seu povo, fazendo-nos crer que sustou a marcha da peste.
O povo poderá ser iludido na sua boa fé mas nunca um sábio, um pensador.
Ouviamos, admirados, a palavra real. Sabíamos que o Faraó trabalhava muitas vezes com sacerdotes, conquanto nunca falasse de ciência.
Tendo-se dirigido rapidamente para a pequena sala de recepção, sentou-se na cadeira alta em forma de trono, e pouco depois entrava Moisés, confiado e triunfante.
- Cumpri a promessa. A peste foi debelada. Os casos verificados diminuem e assim espero, Faraó, que cumpras tua palavra.
Mernephtah examinou-o com estranho sorriso:
- Tens muito espírito, Mesu - disse com ironia - mas não o bastante para o deus que te envia e de quem executas a vontade. Será que as leis ao teu deus serão diferentes
das dos nossos? O céu é igual para todos: para o hebreu como para o egípcio. A água é igualmente clara, a terra igualmente fértil; o sol queima, o vento refresca,
tanto a uns como a outros. As mesmas leis regem a vida e a morte. Quando o Nilo transborda e imunda a região marginal, as águas só atingem um certo limite, e após
determinado tempo, se retiram sem que vontade humana qualquer possa detê-las ou engrossá-las. O mesmo acontece com a epidemia. Desencadeaste-a sobre nós, como? É
um segredo teu. Dize-me, porém: se a epidemia declina, como provas que o seu declínio é fruto de tua ação ou da vontade de Jeová? Ainda esta manhã meus conselheiros
leram-me relatórios que demonstram que em Tanis e nas cidades próximas, nenhuma casa está completamente livre; o número de vítimas varia de três a quarenta em cada
família. Por outro lado, ficou provado que os não atingidos nos três primeiros dias de surto epidêmico ficaram incólumes, apesar de assistirem junto dos doentes.
Também os fiscais dos quarteirões hebreus informam que cadáveres ali foram consumidos secretamente: não seriam pestosos que, a despeito da tua ciência, não pudeste
preservar do contágio? Entretanto, isso é secundário! O essencial é que três quartos da população de Tanis continua afetada e o restante pereceu. De que modo detiveste
a epidemia, uma vez que os que ficaram incólumes nada provam? Disseste que dentro de três dias não deveria existir um só doente no país. Esta condição não foi satisfeita,
uma vez que não podes, em cada corpo contaminado, insuflar força e saúde - coisa que só deus poderia fazer; não passas, portanto, de poderoso feiticeiro, um grande
gênio do mal, que se empenha em sua salvaguarda pessoal contra merecida punição. Mas, não te entregarei os hebreus, e toma cuidado para que atrás desse deus, de
que te dizes enviado, eu não encontre o agitador ambicioso que emprega a ciência adquirida nos templos do Egito para destruir a terra que o educou. Não é Jeová quem
precisa de um povo para reinar sobre ele: és tu!
Grande calor espalhou-se pelo rosto expressivo de Moisés e seus olhos dardejavam chamas, enquanto amarfanhava o pano do manto.
Exclamou com voz rouca e sibilante, erguendo para o céu o punho fechado:
- O Deus supremo que me envia cuidará de te demonstrar o seu poder!
Depois, afogado em raiva, voltou-se e saiu quase a correr.
Ficamos admirados com o ardiloso discurso do nosso Faraó, que, sem dizer palavra, cabeça alta, desceu do trono e dirigiu-se para os seus aposentos. Detendo-se na
primeira sala, votou-se para os que o acompanhavam e disse gravemente:
- Creio que esperais algum dano que Moisés nos prepara, mas devo dizer-vos que, hoje, ao clarear do dia, estive no Templo e os astrólogos informaram-me que os astros
predizem para breve uma horrorosa tempestade, consequência do tremendo calor desses últimos tempos. Não vos assusteis e não a tomeis, como castigo, de Moisés, pela
nossa intransigência. Moisés também leu nos astros a aproximação do temporal e quererá, talvez, fazer crer que o desencadeou para nos punir. Mas não vos deixeis
iludir; se ele houvesse previsto minha recusa, não teria vindo triunfante e, além disso, os sábios fizeram a predição antes desta nossa entrevista.
Ao afastar-se, mais de um olhar inquieto voltou-se para a abóbada azulada, onde não havia a menor nuvem, a não ser o ar abafado e o sol causticante, impiedoso, a
requeimar a terra exausta.
Os dias seguintes decorreram tristes sob a impressão de vagos temores. Nada ocorria de extraordinário, mas pressentia-se alguma desgraça.
Meus pais estavam fora de perigo, em plena convalescença. No palácio nada de novo, a não ser a perspectiva de faustoso banquete oferecido pelo Faraó para festejar
o restabelecimento do herdeiro que, pela primeira vez, retomaria o seu lugar à mesa.
Nesse dia, quando me preparava para ir ao palácio, chegou Chamus abatido, desfigurado sem dúvida pelo terror, porque não havia adoecido. Recebido de braços abertos,
não pude, entretanto, ouvir a história fantástica das suas aventuras, por não dispor de tempo.
Desde cedo, o calor das ruas era sufocante e mal podia-se respirar; ao demais, a poeira em profusão, não só irritava os pulmões, como os olhos. Ao notar as nuvens
que se acumulavam no horizonte e as lufadas de vento que sopravam do deserto, levantando turbilhões de pó, não deixei de experimentar tal ou qual inquietação. Ainda
assim, o banquete começou sem novidade.
Com o fim de distrair e alegrar o príncipe Seti, que chegou carregado na sua cadeira preguiçosa, Mernephtah ordenara magnificência excepcional, convidando as damas
mais ilustres e mais belas da Corte.
A alegria dos convivas chegara ao apogeu. Erguiam-se vivas ao soberano e ao príncipe, quando o eco de trovões longínquos e o sibilar do vento atraíram as atenções
para o que se passava fora. Faraó, erguendo-se e chegando à janela, disse:
- É a tempestade prevista que se aproxima.
Muitos convidados o imitaram e, pálidos e mudos, puseram-se a contemplar o espetáculo verdadeiramente emocionante que se lhes oferecia. Toda a atmosfera estava saturada
de uma coloração pardacenta, que obscurecia o ambiente; grandes nuvens negras, zebradas pelas faíscas, amontoavam-se no horizonte e o vento rugia com violência,
vergando as palmeiras como se fossem arbustos e fustigando-lhes as grossas palmas com sinistro ruído. Ao longe descortinava-se o Nilo, cujas vagas negras de azeviche
se elevavam montanhosas, impelidas pelo vento; pessoas assustadas corriam de todos os lados, ansiosas por encontrar abrigo que as acolhesse com suas cargas ou animais.
Nesse momento, um raio que pareceu desmoronar o céu, iluminou o salão com fantástica claridade, acompanhado de ribombo que sacudiu o palácio até os alicerces; as
baixelas de ouro e prata oscilaram e tombaram sobre a mesa, enquanto, o vento invadia o recinto com aluviões de areia e grossas bátegas. Ouviram-se gritos das senhoras,
mas Mernephtah retomou lugar à mesa, ordenando que retirassem das janelas as pesadas cortinas azul-e-ouro e acendessem as lâmpadas, para que prosseguisse o banquete.
Ninguém, contudo, podia comer e era até impossível conversar, dado o fragor da tempestade.
Após serem retiradas ou arrancadas as cortinas, a fulgurância das faíscas elétricas empalidecia a luz das lâmpadas.
Todos estavam pálidos e angustiados e meu coração se travava ao conjeturar o que poderia estar ocorrendo em casa, onde todos se encontravam doentes e Ilsiris apenas
convalescente. A medonha tempestade os apavoraria, certamente; e como Henaís a fiel enfermeira, se arranjaria sozinha para atender a tudo? Arrependia-me de não haver,
qualquer que fosse a consequência, inventado um pretexto para ficar em casa. Naturalmente que mais de um comensal pensava do mesmo modo, pois muitos olhares se voltavam
para a porta da rua.
Afinal a tempestade pareceu abrandar um pouco. Embora a escuridão perdurasse quase completa, a chuva e o vento haviam cessado. Mernephtah, que notara com mágoa e
tristeza as fisionomias alteradas dos convivas, levantou-se para sair, ordenando ao mestre de cerimônias dissesse a todos, cuja permanência em serviço não fosse
indispensável, estarem livres para ausentarem-se, caso desejassem fazê-lo.
Não esperei que a concessão se repetisse e tratei de alcançar a escadaria, de quatro em quatro degraus.
Eu viera da liteira, mas, como essa condução me parecesse morosa, pedi a um oficial que ali ficava me emprestasse o cavalo em troca da liteira. Galgando a sela,
devorei o espaço e fui encontrar os meus, reunidos com uma porção de outros criados, num grande vestíbulo iluminado por tochas.
O período de calma e bonança não durou muito tempo, pois apenas cheguei a avistar a casa, o temporal recrudesceu. Os raios e trovões estalavam sem interrupção e
a chuva era mais torrencial e, no instante mesmo em que o cavalo, coberto de espuma, abrigava-se comigo sob a abóbada espessa da porta de entrada para o pátio, um
granizo do tamanho de ovos começou a cair com ruído ensurdecedor. Entregando o animal a um criado, galguei a escada e na galeria, fracamente iluminada por um archote
e pelos relâmpagos, notei extensa fila de verdadeiros espectros, colados à parede e apoiados uns aos outros. Uns mantinham a cabeça entre os joelhos, outros, cobertos
com as próprias roupas; eram os escravos e criados atacados da peste que tinham deixado o leito, acossados pelo terror e ali estavam. acreditando-se mais garantidos
contra a terrível tempestade, que julgavam representar o término de seus dias.
Ao me verem, gritos de aflição partiram de todos os lados. Braços descarnados se voltaram para mim.
- Jovem senhor! - exclamou um velho egípcio, copeiro de meu pai - isto deve ser castigo do Deus de Moisés; depois de nos ferir com a peste, quer acabar de nos destruir.
É o fim do mundo, senhor!
- Não! - respondi alteando a voz - o Deus de Moisés nada fez; a tempestade é proveniente do grande calor e logo passará. Tudo isto vai passar. Voltai aos vossos
leitos e não esgoteis as forças desta maneira.
Desviando a vista do quadro doloroso, dirigi-me para os aposentos de meus pais. Numa sala que devia atravessar, percebi uma silhueta feminina, de pé, junto à janela.
- Quem está aí? - perguntei.
O vulto estremeceu e precipitou-se para mim.
O clarão de um relâmpago permitiu-me ver o rosto assustadiço e pálido de Henaís.
Tateando-me, aflita, perguntou:
- És tu, Necho? as pedras não te feriram, não te fizeram algum dano? Que coisa horrorosa!
Atraí-a a mim, trêmula como haste verde e não resistiu.
- Henaís - murmurei-lhe no ouvido - tremias por mim... Também me agradas, mas dize: amas-me, então? Não temas confessar teu amor, pois saberei retribuir-te e amparar-te.
Colou seu corpo ao meu e respondeu hesitante:
- Sim, Necho, amo-te; és belo... tão bom... Ninguém ainda me distinguiu como tu, mas, nada poderás fazer por mim. Pertenço a Kermosa e ela exige que ame apenas a
ele, a quem temo e detesto, e diante de quem ela se curva como os demais, embora se gabe de ser por ele obedecida. Ele, por sua vez, não cederá apesar de não mais
me encarar, depois que conheceu a bela e altiva Smaragda.
Como picado por uma serpente, recuei:
- Henaís, que dizes? Pinehas gostou de ti? Não és, então, parenta de Kermosa?
Ela ajoelhou-se de mãos postas e vi, ao lampejar de um relâmpago, seu belo rosto inundado de lágrimas e desfigurado pelo desespero.
- Disseram-me que sou filha de nobre egípcio, cujo nome ignoro, mas sempre fui tratada como escrava e em Pinehas só devia enxergar um senhor a obedecer. Amar-me-ás
menos por isso, agora que sabes quem sou?
A voz foi-lhe embargada por um soluço e eu me envergonhei de mim mesmo.
Estaria louco ou cego? A bela criatura, entregue a Pinehas como escrava, não pertenceria de corpo e alma ao seu senhor? Seria essa a sua falta, quando eu chegava
em segundo lugar para amá-la? Ergui-a e apertando-a de encontro ao coração, disse:
- Amo-te apesar de tudo, Henaís, e te libertarei do jugo de Kermosa, a qualquer preço.
Ela cingiu-me o pescoço e colou nos meus os seus lábios ardentes. Cobri-lhe o rosto de beijos e, na embriaguez do amor, esqueci meus pais, os enfermos e até os elementos
da tempestade fragorosa.
À luz vacilante de uma lamparina projetada sobre nós, ecoaram estas palavras:
- Para o momento, é demais!
Chamado assim à realidade, vi meu pai, pálido qual sombra, amparado por Chamus. Depois, continuou, agitando os braços:
- Se não tivesse visto com os próprios olhos, não acreditaria. Trava-se aqui um perfeito idílio, enquanto o mundo se esboroa! E por cúmulo, com uma escrava! faltou
ocasião para essas tolices quando fazia bom tempo.
- Essa moça é tua enfermeira e neste sentido falaremos mais tarde. Mas, por que deixaste o leito?
- Porque é horrível permanecer deitado, quando a casa parece vir abaixo. Esse Moisés e seu Deus querem nos destruir. Que relâmpagos! Que trovões! Por Osiris te digo
que é a ruína, pois estamos no fim das colheitas. O trigo, as uvas, os legumes, nada resistirá a este granizo. Estás ouvindo? As pedras chovem nos quartos e quebram
tudo.
Baixei a cabeça, confuso, mas vendo aproximar-se minha mãe cambaleante e desmaiando ao pé da porta, atirei-me para ela.
- Que foi? - murmurou ela agarrando-se a mim. - Que escuridão, que barulho! Onde está Mentuhotep? Ele me deixou sozinha e tenho medo.
Levei-a para junto de meu pai e sentei-a numa cadeira ao lado dele. Pouco depois, apareceu Ilsiris apoiada em Acca e assim reunidos e mudos, permanecemos encolhidos
no canto mais isolado da sala. O furacão continuava com violência inaudita; não era uma dessas tempestades impetuosas, porém, rápidas, que às vezes se desencadeavam
na região. Mais parecia um cataclismo universal. A escuridão era tal que não permitia distinguir dois objetos mais próximos; pouco a pouco, tochas e lâmpadas se
apagaram e ficamos em trevas, não ousando abandonar as cadeiras. Horas, ou dias, assim passaram? Não saberia dizê-lo. Às vezes, tinha fome; depois, pesada sonolência
me invadia e, por fim, veio o cansaço. Embalado e aturdido pelo rugir da tempestade, adormeci como se estivesse morto.
Quanto tempo assim estive? Nem isso saberia informar. O que sei dizer é que quando despertei, era dia alto. Dei um salto e reparei nos que me cercavam. Poucos passos
além, vi meus pais igualmente adormecidos e extenuados como cadáveres. O aspecto da sala era desolador. Poças d'água por todo o chão, cacos de vasos preciosos, arbustos
raros colocados juntos das janelas, desfolhados. Desci, reuni o pessoal ainda atônito, ordenando que uns preparassem uma refeição e fossem outros para junto de seus
amos. A seguir, despertei meus pais e logo que eles se alimentaram e se acomodaram, disse-lhes que iria à cidade para informar-me do que houve no palácio e saber
quanto tempo realmente havia durado a tempestade, que a escuridão não permitira calcular.
Tão logo tomei uma ligeira refeição, saí de coração opresso. Henaís tinha desaparecido e isso preocupava-me muito mais que as ocorrências palacianas. As ruas continuavam
apinhadas de gente, posto que desfigurada e abatida, na faina de angariar alimentos. Uns conversavam em grupo. Outros, convalescentes, ainda ostentavam as marcas
da peste, procurando moverem-se arrimados em algum parente ou em bengalas, e todos comentavam e discutiam os acontecimentos. Entre a multidão vi, admirado, que circulavam
muitos hebreus, circunstância tanto mais estranhável quanto, nos últimos tempos, todos os que podiam se ocultavam. E tagarelavam que nada tinham visto nem ouvido,
pois em suas casas sempre fizera bom tempo, com dia claro. Os egípcios simplórios os cercavam para ouvi-los, mudos de terror e espanto. De passagem, simulando indiferença,
arrazoava de mim para mim: eles podem falar, mas quem provará que entre eles o tempo estivesse claro e aos ouvidos não lhes chegasse o rugir da tempestade, quando
ninguém saiu de casa? Depois do discurso do Faraó, eu enxergava por um prisma diferente. Seria, então, por ordem dele que os hebreus relatavam esse milagre, para
impressionar o povo.
Fui onde o coração me atraia, isto é, à casa de Kermosa, certo de lá encontrar a bela Henaís, antes de ir ao Palácio.
O rapazote de guarda informou-me que todos dormiam, exceto Pinehas. Assim fui, direto a ele, encontrando-o como sempre, absorvido com seus papiros.
Embora bastante emagrecido, pareceu-me muito satisfeito, acolhendo-me com um sorriso que aumentou minha tortura e me fez corar. Sem me dar tempo de falar foi logo
dizendo com sutil ironia:
- Compreendo... Vens por causa de Henaís, que te agrada e a quem desejas ter a todo custo.
Senti todo o sangue subira-me à cabeça.
- Como podes sabê-lo?
- Foi ela própria quem me confessou - respondeu tranquilamente. Achas que ela poderia esconder alguma coisa ao seu senhor?
Conformado baixei a cabeça.
- Tens razão, és o senhor e eu venho adquiri-la; estipula o preço.
- Não creio que Henaís esteja à venda; contudo, entende-te lá com minha mãe, pois foi ela que a educou e ludo que diz respeito a mulheres da casa está sob sua direção
e nisso não me intrometo.
Compreendi que não queria enfronhar-me em negócios e entrega o caso a Kermosa, que se aproveitaria para dar-me uma sangria. Astucioso Pinehas! Mudei, pois, de assunto
e perguntei:
- Que pensas dos últimos acontecimentos?
- Nada!
- Como pensas que acabará tudo isso? - insisti.
- É difícil de prever.
Evidentemente, não queria comentar. Levantei-me.
- Quando poderei falar a Kermosa? - perguntei despedindo-me friamente.
- Hoje à tarde ou amanhã, como quiseres - respondeu fingindo não ter percebido minha frieza.
Dirigi-me para o palácio, onde todos ainda comentavam a tempestade e o milagre da imunidade dos hebreus. Um oficial amigo, que estivera de guarda ao quarto de Faraó,
contou que os conselheiros relataram ao rei o extraordinário milagre e que o povo desejava ardentemente ver partir os hebreus, cuja presença se tornava intolerável.
Mernephtah, porém, mostrava-se intransigente, encolerizado, declarando que, cessada a escuridão, pouco importava que os judeus a houvessem ou não experimentado.
E quanto a sua libertação, nem queria ouvir falar.
Com a aparição de Moisés na sala a conversa foi interrompida. As sentinelas, mudas de terror, haviam-no deixado passar, e quando, com voz pousada e imperiosa, ordenou
que o anunciassem, ninguém ousou agir como desejava fazer, ou seja, escorraçá-lo de uma vez para sempre.
Ordenou Mernephtah que entrasse e nós o acompanhamos, ficando junto à porta, enquanto ele se aproximava do trono e perguntava sem mais preâmbulos:
- Soberano cio Egito. Pela última vez, venho saber se queres obedecer à voz de Jeová e deixar partir o povo de Israel.
O Faraó mediu-o com olhar altivo e glacial.
Com timbre de voz metálica onde transparecia surda indignação, respondeu:
-Não! - e a ti, Moisés, digo que estou farto das tuas insolências e ordeno que abandones o Egito dentro de três dias. Se esgotado este prazo ousares pisar a terra
submetida a meu governo, mandarei decapitar-te. Evita, pois, voltar à minha presença.
De braços cruzados Moisés ouviu com atenção a ordem e um relâmpago sinistro iluminou-lhe os olhos.
- Tu o dizes, Faraó, e obedeço - replicou com indefinível sorriso - não voltarei à tua presença, até que me chames para pedir que leve o povo escolhido de Jeová!
A passos lentos, saiu, deixando nos circunstantes uma impressão de pavor e mal-estar. Mernephtah era o único que aparentava calma e disse aos conselheiros quando
se retirava:
- O insolente mágico tantas vezes ameaçou em vão, quantas ocasiões ficamos vitoriosos. De sorte que o seu Jeová deve estar esgotando os expedientes.
No dia seguinte, procurei Kermosa e renovei a proposta para comprar Henaís.
Ouviu-me com mal disfarçada hipocrisia, explicando depois, longa e capciosamente, que Henaís, filha de uma parenta, não era vendável. Mas, como se encontrava doente
há muito tempo, dar-se-ia por feliz se alguma família honrada quisesse tomar conta da rapariga, a quem prezava como filha. Portanto, se eu estivesse disposto a reembolsá-la
das despesas que tivera com a sua educação e manutenção, não me ofenderia com uma recusa.
Disse-lhe que fixasse o preço e exigiu uma coleção de vasos, ânforas, pratos e taças de ouro e prata.
Eu não podia compreender a utilidade e fins de tanta baixela, o que só mais tarde foi explicado. Concordei apesar do preço exorbitante, porque Henaís valia muito
mais. A seguir, perguntei por Henaís, mas a astuta megera respondeu que ela não estava em casa e só poderia levá-la no dia seguinte.
Acabrunhado regressei à casa e solicitei de meu pai autorizar o nosso intendente a levar imediatamente o que combinara com Kermosa. A princípio, protestou, achando
absurdo o negócio, mas depois meneou a cabeça e encarou-me desconfiado, acabando por palmear-me o rosto, dizendo:
- Sim, o fiel servidor levará a baixela preciosa e trará Henaís.
Só a vi, contudo, no dia seguinte, porque estive de serviço no palácio.
Logo que ficamos a sós, ela me caiu nos braços, desfeita em lágrimas.
- Que tens? - perguntei aconchegando-a ao coração. - Não te sentes feliz por te veres livre, para sempre, de Pinehas e de sua mãe?
- Muito feliz se algo de horrível não me oprimisse o coração. Vou contar-te tudo, mas jura que o não falarás a ninguém.
Prometi e mostrou-se mais calma.
- Horas antes de partir - confidenciou - surpreendi, por acaso, uma conversa entre Pinehas e Enoch. Não pude perceber tudo o que diziam, mas compreendi que se prepara
qualquer coisa pavorosa - um massacre de todos os primogênitos egípcios, do mais rico ao mais pobre. Tu, também és primogênito e, ao lembrar-me disso, a cabeça começou
a rodar-me e não pude aprender bem se o atentado se dará na quinta ou sexta à noite, a partir de hoje. Jura-me, pois, que, durante essas duas terríveis noites, não
dormirás e velarás armado, bem como teu pai. Só assim ficarei mais tranquila.
Apesar de muito surpreso, jurei tudo quanto ela quis, embora a coisa me parecesse improvável. Todavia, comuniquei a meu pai e resolvemos velar essas duas noites
sem alardear inutilmente.
O tempo transcorreu tristemente, e a primeira noite que consagramos á vigilância foi tranquila. Já começava a crer que Henaís tivesse compreendido mal, quando, à
tarde, ao sair de casa, encontrei logo adiante uma mulher embucada e visivelmente extenuada, que me perguntou com voz ofegante se não poderia indicar-lhe a casa
do nobre Necho, filho de Mentuhotep e comandante de um pelotão de carros. Admiradíssimo, respondi:
- Sou eu mesmo e aqui é nossa casa. Mas, quem és e que pretendes?
Ela estremeceu e, segurando-me convulsivamente o braço, murmurou:
- Se Chamus aí estiver, levai-me até ele.
Notando que ela desfalecia de fraqueza, amparei-a e levei-a para casa.
Ao galgar porém, as escadas que conduziam ao aposento de minha mãe, suas mãos brancas e finas, bem como o porte gracioso, fizeram-me pensar. Deve ser jovem e bela.
- Escutai - disse-lhe, detendo-me na galeria - que quereis dizer a Chamus? Não vos esqueçais que ele é noivo de minha irmã Ilsiris.
Ao ouvir minhas palavras, a desconhecida parou como ferida por um raio.
- Traidor! - exclamou levando a mão à cabeça.
Com esse gesto brusco, o véu se desprendeu e vi, então, um rosto de puro tipo semítico, mas de beleza deslumbrante. Massa de negros e sedosos cabelos lhe coroava
a fronte, ainda mais realçando a alvura da tez. Grandes olhos escuros a traduzir, no momento, sentimentos tumultuosos que lhe iam n'alma, ora parecendo extinguir-se,
ora inflamando-se de paixão e raiva.
Com voz entrecortada murmurou:
- Que morra - esquecendo-se da minha presença. Depois, voltou-se rapidamente e fugiu, ganhando a rua.
Permaneci estupefato, por alguns instantes! A seguir, fui tomado de angústia, pois era evidente que algo de terrível se tramava. A formosa Léa não se arriscaria
por qualquer futilidade, a vir prevenir Chamus assim como Henaís a mim o fizera. Mas, de que estaria cogitando Moisés, o poderoso mágico e tenaz conspirador? Talvez
uma revolta a mão armada.
Fui procurar meu pai e contei minhas novas suspeitas. Decidiu conservar-se armado em companhia de alguns homens fiéis e valorosos, capazes de defender as mulheres,
alheias ao que se tramava. Aconselhou-me, também, levasse minhas suspeitas ao rei, porque, se de fato pretendessem massacrar os primogênitos, a vida do príncipe
herdeiro também estaria em perigo.
Depois de auxiliá-lo nos preparativos de segurança, troquei de roupa e bem armado saí em direção ao palácio.
A poucos passos da casa, encontrei Chamus, que de pé, junto de uma mulher velada, lhe apertava as mãos e falava com ardor.
Ao ver-me, exclamou:
- Necho, Necho! Olha, tenho um pedido a fazer-te. Esta é a minha boa e querida Léa, a quem somos agradecidos pela salvação dos nossos rebanhos; ela deixou os próprios
pais para encontrar-se comigo, mas eu lhe confessei que estava noivo de tua irmã. Apesar disso, me perdoou e prometeu guardar-me amizade. Como teme a cólera paterna,
queria ir amanhã a Budastis, para casa de um parente, que intercederia em seu favor. Não tem, contudo, onde ficar esta noite e te suplica hospedagem. Espero que
não lhe recuses. Ilsiris nada precisa saber.
Temia acolher aquela criatura em casa, justamente nessa noite de ansiedade. Entretanto, recusar asilo de algumas horas a uma rapariga que, em todo caso, viera com
boas intenções, pareceu-me crueldade. Anuí, portanto.
Soube, no palácio, que o Faraó estava ocupado; depois, jantou e somente à noite consegui que me levassem à sua presença, quando se preparava para repousar, havendo
já despedido os familiares e tendo no quarto apenas Rhadamés, que lhe entregava a roupa de dormir.
- Fala, Necho. Que vens ainda ensinar-me?
Ainda que contrariado com a presença do condutor do carro, a quem detestava visceralmente, pela conduta que tivera com Smaragda e por sua malícia covarde, expus
em poucas palavras o que sabia e a presunção de que algo de mau se tramava. Enquanto discorria, observava Rhadamés e percebi que ele estremecera e seu olhar tomara
expressão equívoca e odiosa.
O Faraó escutou-me atento.
- Agradeço-te, viligante e devotado rapaz. É possível que o miserável conspirador, decepcionado nas suas esperanças, cogite de alguma sangrenta desforra. Entretanto,
um massacre geral parece-me muito arriscado eliminando o meu herdeiro. Mas tomarei minhas precauções. Rhadamés, vai ordenar que dobrem as sentinelas na ala do palácio
ocupada por Seti e procura saber, outrossim, quem comandará a guarda noturna dos seus aposentos.
- Sei que é Setnecht - informou Rhadamés.
- É um bravo e valente oficial, em quem se pode confiar
- acrescentou o Faraó - entretanto, junta-te a ele, Necho, para a guarda do teu futuro rei.
Rhadamés voltou-se para o rei e ajoelhando-se falou em tom súplice:
- Concede-me também, poderoso filho de Ra, meu senhor e benfeitor, a graça de velar junto do príncipe - esperança do Egito - pois do contrário, não terei um momento
de sossego.
- Teu pedido foi aceito - respondeu Mernephtah bondosamente - ide e dormirei tranquilo, certo de que três homens fiéis e devotados velam pelo príncipe.
Imediatamente, dirigi-me para os aposentos de Seti, embora não lhe votasse particular afeição; aliás, eu pouco conhecia o príncipe, cujas atitudes reservadas e altaneiras
afastavam dele os próprios íntimos. Mesmo assim, ele era a esperança da dinastia, o herdeiro do maior dos reis do Egito, e, para defender sua augusta cabeça, de
um atentado dos hebreus, cumpria-me derramar a última gota de sangue.
Setnecht mostrou-se contrariado com a minha presença e só ficou tranquilo quando Rhadamés cochichou com ele.
As sentinelas dos postos foram dobradas e estabelecidos novos postos, mesmo dentro da galeria que levava ao quarto de dormir.
Tomadas as providências, apresentei-me ao príncipe. Ele estava deitado, mas ainda não dormia; apoiado ao cotovelo, parecia absorto em si mesmo e assustou-se com
a minha presença, mas logo fez sinal para que me aproximasse e perguntou gentilmente o motivo que até ali me levava.
Ajoelhando-me à beira do leito, informei-o dos nossos temores e precauções.
- Ah! miserável! murmurou - Dá-me o punhal que aí está no banco, pois não quero ficar desarmado.
Atendi seu pedido, e inclinando-me respeitosamente, saí para fazer mais uma ronda. Ao chegar à galeria, Setnecht disse, encolhendo os ombros:
- Penso que tudo isso não passa de boato falso; vem beber conosco um copo de vinho para reanimar as forças.
Não aceitei, porque desejava estar calmo e senhor de todas as minhas faculdades. Voltando ao quarto do príncipe, postei-me a pequena distância do leito.
Pouco a pouco, profundo silêncio reinou em todo o palácio, apenas quebrado pelos passos fortes e cadenciados dos dois oficiais que marchavam no corredor. De vez
em quando, um escravo deslizava descalço, até os fogareiros, distribuídos em vários sítios, reavivando as brasas e renovando as essências.
Apoiei-me a uma coluna, e fiquei imóvel qual estátua. Enquanto assim permaneci, vi Rhadamés passar vagaroso. A poucos passos do soldado, estava um grande fogareiro,
no qual um escravo acabava de atiçar as brasas e lançar perfumes. Passando junto dele, o condutor do Carro pareceu deter-se um instante, oculto por uma coluna, e
vi-o estender a mão por baixo do fogareiro, cuja chama crepitou subitamente, como se alguma substância lhe fosse atirada. Quase no mesmo instante, reapareceu e prosseguiu
na ronda, sem olhar para o meu lado.
Esfreguei os olhos. Teria sonhado? Fora tudo tão rápido que eu mesmo duvidava do testemunho dos sentidos. Entretanto, avancei até a porta e acompanhei Rhadamés com
a vista. No fim da galeria, vi-o parar junto de Setnecht e, após rápida troca de palavras, aproximaram-se de uma mesa, onde se encontravam ânforas de vinho e vasos
de alabastro cheios d'água. Molhando num dos vasos um pano de linho branco, com ele esfregaram as mãos e o rosto. Como voltassem a ocupar seus postos, nada pude
descobrir de suspeito e afastei-me abanando a cabeça, para junto de Seti, que parecia haver adormecido.
Não me é possível calcular o tempo que se passou, até que comecei a sentir, pouco a pouco, estranho torpor em todos os membros, logo seguido de sonolência incoercível.
É verdade que tinha passado em claro a noite anterior, mas confesso que não havia sentido, em toda a minha vida, semelhante cansaço. A cabeça rodopiava, as pernas
tremiam e vergavam; as pálpebras, pesadas, fechavam-se a despeito de toda a resistência. Naquele momento, creio que daria, por uma hora de sono, até um membro do
corpo. Contudo, não queria dormir, pois da minha vigilância nessa noite dependia, talvez, a vida do príncipe herdeiro. Lutava, então, suando, contra o torpor que
me subjugava.
De repente, os olhos vagos e sonolentos deram com uma bacia d'água, colocada perto do leito, que servia para imersão das compressas que Seti pedia muitas vezes durante
a noite, porque, desde que adoecera da peste, sofria frequentes dores de cabeça. Reunindo as últimas energias, dirigi-me cambaleante até a mesa, e tirando o capacete,
mergulhei as mãos e o rosto na bacia. Senti-me refrescado, mas fatigado e modorrento, a ponto de não poder retomar o primitivo posto junto da coluna. Encostei-me
na parede e só então notei que um velho escravo, que não abandonava o príncipe e que velava ao pé do leito, estava estendido no estrado e dormia a sono solto.
Procurei apurar o ouvido, tanto quanto os sentidos embotados permitiam: nada quebrava o silêncio ambiente e até os passos dos oficiais da guarda haviam cessado;
os fogareiros já se haviam apagado e uma penumbra reinava ao longo da parede, vinda do terraço. Esfreguei os olhos julgando-me semi-adormecido, mas no mesmo instante
senti-me quase petrificado! Uma forma humana, envergando longo hábito branco, cabeça envolta em negro véu, surgiu no estrado da cama e um grande punhal lhe brilhou
na mão alçada e mergulhou, num ápice, no peito do príncipe! Seti tentou aprumar-se e agarrar o agressor, mas dando um grito, recaiu inerte.
Como ferido por um raio, permaneci imóvel. Depois, reunindo todas as forças, sacudi o torpor e atirei-me ao assassino, quando ele recolhia num copo o sangue real,
que borbotava do ferimento. Atraquei-me com o miserável tentando derrubá-lo, mas desgraçadamente o estranho torpor me tirara as forças e a destreza. O hebreu, a
debater-se tentava apunhalar-me e, afinal, vendo-me cair com um empurrão mais forte, fugiu levando o copo.
Caí, batendo com a cabeça no solo e dei um grito estridente, mas ninguém acudiu. Levantei-me a custo, apanhei uma lâmpada e precipitei-me para a galeria. A primeira
coisa que notei foi a sentinela estendida no chão, dormindo profundamente. Adiante, uma segunda e ainda terceira; num banco de pedra, mais além, igualmente estendidos
Rhadamés e Setnecht, mergulhados em profundo sono! Em vão os sacudi, gritando-lhe nos ouvidos. Em último recurso, lancei-lhes o conteúdo de um vaso que estava sobre
a mesa e eles deram então um salto, aturdidos, de olhos esbugalhados.
- Seti foi assassinado! - exclamei com voz rouca - correndo adiante e repetindo o mesmo grito, que reboava em todas as salas e corredores.
- Mataram o herdeiro, Seti foi assassinado.
Num ápice, o palácio pareceu despertar. De todos os lados surgiram escravos empunhando tochas e oficiais brandindo armas. E toda essa gente aterrada, repetia em
coro a nova apavorante, que ecoava de galeria em galeria, espalhando confusão e pavor. À entrada de uma sala, surgiu de repente Mernephtah pálido e meio descomposto,
tal como abandonara o leito, rodeado de guardas e criados.
Ao avistá-lo dei meia volta e nos dirigimos todos para os aposentos de Seti, já repleto de gente que, apavorada comprimia-se junto ao leito em que jazia o príncipe,
de cabeça derreada, descoberto, enquanto o velho nubiano, tremendo como vara verde, tentava enfaixar a ferida do peito com uma compressa umedecida.
À vista desse quadro o Faraó deu um grito, cambaleou e nada mais vi, pois que as forças me abandonavam, os ouvidos zumbiam e tudo rodopiava em torno de mim. A lâmpada
caiu-me da mão e perdi os sentidos.
Quando voltei a mim, estava estendido num banco e um preto me friccionava a testa e as mãos com essência fortificante. Levantei-me fraco, trêmulo, incapaz de compreender
o sucedido. As pessoas aparvalhadas que corriam no local reavivaram-me a memória.
- Seti morreu? - perguntei a um oficial que passava próximo.
- Não - respondeu, apertando-me a mão - até o momento, vive; se tens forças, vamos até lá, eu te auxiliarei.
Levou-me, com efeito, até o quarto do príncipe, cujas portas estavam guardadas por magotes de soldados. Lâmpadas e archotes em profusão iluminavam o ambiente, como
se fosse dia claro. Junto do leito uma sumidade médica, cabeça calva e reluzente, introduzia um aparelho na ferida; a seu lado, dois jovens sacerdotes, brancos como
seu hábito, sustendo cada qual, respectivamente, uma bacia com água avermelhada e uma caixa de medicamentos. No lado oposto do quarto, Mernephtah sentado, com a
cabeça apoiada nas mãos e os cotovelos fincados na mesa; a túnica de dormir aberta deixando entrever o peito; e atrás da cadeira dois conselheiros, mudos, de braços
cruzados, enquanto vários jovens da nobreza cercavam o Faraó. Ajoelhados, dois deles calçavam-lhe os pés nus; um terceiro tentava prender-lhe a roupa e ajustar um
manto de púrpura, enquanto o quarto lhe alisava os cabelos com um pente que introduzia num pote de óleo de rosas, que um nubiozinho segurava na bandeja de prata.
Imóvel e mudo, o rei a tudo se submetia, como se estivesse petrificado. Em vão o solícito copeiro lhe apresentava, por vezes, um copo de vinho reconfortante: o Faraó
parecia não ver nem ouvir.
Nesse momento, o médico desceu do estrado em que assentava o leito e vi o rosto pálido do príncipe apoiado no travesseiro. Os olhos estavam cerrados, mas o tremor
dos lábios indicava que vivia. O velho aproximou-se do rei, sempre insensível ao que se passava, e, rojando-se-lhe aos pés, abraçou-lhe os joelhos.
- Grande filho de Ra, querido senhor, pai e benfeitor de teu povo, ergue a fronte abatida pela tristeza; a graça dos imortais concede aos meus últimos dias uma grande
alegria, porque te afirmo: a esperança da tua raça, a alegria e orgulho do Egito - Seti, viverá! A mão poderosa de Ra amparou teu herdeiro; a arma criminosa foi
desviada por este amuleto, que se bem tenha sido perfurado lado a lado, logrou amortecer o golpe: o ferimento é grave, mas não mortal.
Mernephtah ergueu a cabeça, leve coloração tingiu-lhe as faces e, tomando o amuleto, estendeu os braços para o alto em fervorosa ação de graças:
- Se tuas palavras são verdadeiras, velho, se tua ciência me conserva o filho, este dia será verdadeiramente um dia de felicidade para ti e para tua prole.
Ao ver a taça que o copeiro lhe apresentava, esvaziou-a de um trago.
- Agora - acrescentou empinando-se - devo cuidar do meu povo: que, os conselheiros se reúnam imediatamente nos meus aposentos e tu, Necho, vai com alguns oficiais
e soldados dar o alarme em toda a cidade; batam a todas às portas, de ricos e pobres, que assim poderão, talvez, evitar o morticínio de entes caros.
Saí rapidamente pois, a ordem, muito razoável, me facultava saber o que se passava em casa, onde sé havia introduzido a suspeitosa judia, cuja paixão por Chamus
podia acarretar alguma vingança infernal.
À porta do palácio, separei-me dos companheiros, que, voluntariamente, me atribuíram o quarteirão de minha residência.
As ruas continuavam silenciosas e desertas. A grande cidade parecia mergulhada em profundo sono. Eu olhava ansioso aquelas casas fechadas e tranquilas, a conjeturar
que lá dentro talvez a desgraça já houvera penetrado. E monologava: "Quem sabe alguma erva, ou pó, atirado ao fogão, vos entorpece e imobiliza enquanto o sustentáculo
da vossa família, a esperança da vossa velhice é ceifado por uma morte miserável."
Iniciamos a tarefa penosa e difícil, casa por casa, rica ou pobre; batíamos com insistência, até que alguém viesse atender, e quando uma sombra, cabeceando de sono
e cansaço aparecia, dávamos o sinistro alarme: "Guardai vossos primogênitos, condenados a perecer esta noite!" E seguíamos adiante, muitas vezes ouvindo atrás gritos
clamorosos, denunciando o encontro de uma vítima.
Finalmente, louco de inquietação, precipitei-me para casa, igualmente mergulhada em lúgubre silêncio. Aos meus brados, o velho guardião deu, enfim, um salto e deixando,
os soldados na rua, para despertar os vizinhos, entrei e fui direto ao quarto de Chamus. Junto da porta estava estendido um escravo, ferrado no sono; agarrei-o pelos
ombros e o sacudi até que abrisse os olhos.
- Diz-me, onde está a mulher que Chamus aqui trouxe hoje? - perguntei - onde a acomodaram?
- Não sei - respondeu esfregando os olhos - só sei que lhe deram o quarto à esquerda da escada; mas o nobre Chamus mandou-me vigiar do lado; do muro para ver se
alguém se aproximava por ali, e... - acrescentou, coçando a cabeça, - parece (que ela saltou o muro...
Sem mais querer ouvi-lo precipitei-me para o quarto de Chamus, fracamente iluminado por uma lâmpada e em vão procurei Léa. Tomando a lâmpada, aproximei-me do leito
e fiquei aterrado; rosto contraído e violáceo, braços caídos, Chamus apresentava extenso ferimento no peito nu! O sangue tudo ensopava, formando no chão uma grande
poça negra. Mãos trêmulas, tentei reanimá-lo, mas estava frio e rígido. Deixei-o e corri ao quarto de meus pais.
Sacudindo meu pai, exclamei:
- Levantai-vos - Seti foi ferido no palácio e Chamus foi aqui assassinado; talvez um socorro imediato ainda possa salvá-lo.
Meu pai saltou do leito e minha mãe, igualmente despertada, gritou angustiosamente. Dentro em pouco toda a casa estava despertada e corria para os aposentos de Chamus.
À porta deparamos com Ilsiris em desalinho, amparada por Acca.
Com voz débil e segurando-me o braço, perguntou:
- Que há? Que sucedeu a meu noivo?
- Coragem! minha irmã; uma grande desgraça fere o Egito e nossa família; volta para teu quarto e ora; o aspecto deste aposento não te convém.
Ela cobriu o rosto banhado em lágrimas e deixou-se conduzir pela velha serva, que lhe pedia calma. Voltei para junto de meus soldados porque a tarefa não estava
terminada.
Ao atravessar o pátio, uma mulher descabelada precipitou-se para mim, gritando apavorada: reconheci a esposa do nosso segundo intendente, mas a infeliz parecia louca,
pois tanto comprimia ao peito, como erguia nos braços o corpo de um menino de três anos, em cujo peito se notava um ferimento sangrando. Horrorizado, tentei falar-lhe,
mas a infeliz não me reconheceu e dando um grito selvagem seguiu a correr, soluçando e desvairada.
Emocionado e desnorteado, prossegui na tarefa batendo nas portas ainda fechadas. A cidade, porém, já despertava e terrível era esse despertar. De quase todas as
casas partiam clamores desesperados; as ruas estavam cheias de pessoas horrorizadas e seminuas, correndo de todos os lados; umas em busca de médico, outras, sem
destino mas todas em desespero.
O sol despontava iluminando os cadáveres dos primogênitos egípcios, cercados dos parentes desolados, que haviam dormido profundo e sinistro sono, enquanto a morte
rondava e feria o que tinham de mais caro.
A lembrança do que vira fazer Rhadamés me assaltava, obsediante: seriam, ele e Setnecht, cúmplices da terrível conspiração? Ademais, eram dois oficiais geralmente
benquistos.
Perseguido por essa suspeita, voltei ao palácio.
Ao aproximar-me, vi enorme multidão diante da residência real. Choros e gritos explodiam em coro:
- Deixai partir os hebreus!
Procurei abrir passagem até uma entrada e, seguido por um colega, subi a uma das torrinhas da muralha que dominava a grande praça.
O companheiro informou-me que Seti vivia e o Faraó presidia a um conselho; que se haviam congregado em sala contígua todos os escribas do palácio e que haviam expedido
um destacamento militar em busca de Moisés, para trazê-lo quanto antes à presença do rei.
Enquanto conversávamos, a multidão, fora, aumentava de tal forma que todas as cabeças se tocavam e essa massa negra, febrilmente agitada, movimentava-se de todos
os lados, a perder de vista. Lamentos, gritos e súplicas, para que o Faraó se mostrasse, eram cada vez mais fortes. Mernephtah, porém, ainda retido junto dos conselheiros,
governadores e comandantes de corpos, não aparecera.
Subitamente, estalou um tumulto: alguém teria dito (ou a ausência prolongada do rei teria inspirado ao povo) que ele morrera, bem como Seti, cujo estado de saúde
ignoravam... Mas o fato é que os clamores continuavam:
- "Mataram Mernephtah, bem como o herdeiro! Moisés quer cingir a coroa e nós ficaremos à sua mercê! Quem nos protegerá, quem reinará sobre nós?".
Comprimindo-se contra as paredes, a massa avançou.
- "Mostrai-nos o nosso Faraó, vivo ou morto; queremos saber a verdade!" - ululavam milhares de bocas. E como desvairado, o povo investiu contra as portas do palácio,
tentando transpô-las em luta com os soldados, que, cerrando fileiras, de armas em punho, embargavam a passagem.
Advertido sem dúvida do que se passava, o Faraó apareceu no terraço. Ao vê-lo, as massas enceguecidas pelo desespero recuaram qual imensa vaga, lançando gritos de
alegria e alívio. Todos os braços se voltavam para ele em muda súplica.
Mernephtah, com a voz sonora e metálica anunciou ao povo, em breves mas enérgicas palavras, que de conformidade com o parecer de todos os conselheiros e sábios,
havia decidido a expulsão imediata dos hebreus, de modo que, até o pôr-do-sol, o último tivesse abandonado Tanis, e dentro de três dias o território egípcio estivesse
limpo.
Brados de alegria e reconhecimento abafaram as últimas palavras do soberano e a multidão começou a dispersar-se, apregoando por todos os cantos que os hebreus iam,
enfim, deixar o país.
Entrei e dirigi-me para a sala de recepção, porque desejava presenciar a entrevista com Moisés.
Na galeria que a precedia, estavam alguns escribas atarefados escrevendo sobre rolos de papiro o decreto liberatório do povo de Israel, que deveria ser lido e publicado
em todo o Egito. Através das colunas da galeria, via-se Mernephtah, pálido, de olhos brilhantes, sentado junto à mesa de alto estrado. Assinava os papiros que lhe
passava um velho conselheiro, enquanto outro dignatários lhes apunha logo o selo real.
À certa altura, entrou um oficial, para anunciar que Moisés acabava de chegar. Logo após, o profeta hebreu avançava empertigado e calmo até à cadeira real. Ao vê-lo,
o rosto do Faraó cobriu-se de uma palidez esverdeada, os punhos crisparam-se e flocos de espuma lhe afloravam na comissura dos lábios. Evidentemente, a raiva embargava-lhe
a voz.
- Faraó do Egito. Venho atender o teu chamado - disse Moisés detendo-se, com voz que mal disfarçava o sabor de triunfo - queres confirmar o que o povo reclama nas
ruas, ou seja: que te submetes, finalmente, á ordem de Jeová, deixando partir seu povo?
Silêncio absoluto. Todos os olhares voltaram-se ansiosamente para o Faraó, que, de pé, cruzara os braços.
- Sim - disse o Faraó com voz soturna - chefe de um povo de assassinos, leva esses filhos eleitos de um deus digno do seu enviado; que, ao pôr-do-sol, nenhum hebreu
reste em Tanis, sob pena de experimentar no lombo o ferro reservado aos retardatários. E a ti - o mais miserável dos súditos, uma última palavra: ingrato, educado
e sustentado pelo Egito, cumulado de honras e ciências; a ti, que mascaras a ingratidão com o nome de um deus, para torturar impunemente esta pátria, cobrindo-a
de ruínas e cadáveres, digo: esse deus que te envia eu o conclamo como juiz e vingador; vai-te, erra sem descanso, sem encontrar lugar para erigir o trono que ambicionas;
e que o sangue das vítimas da peste e do punhal recai sobre ti!...
Calou-se. A cólera embargava-lhe a voz; um copeiro entregou-lhe uma taça de vinho. Agarrou-a maquinalmente e, em vez de levá-la aos lábios, atirou-a ao rosto de
Moisés, exclamando com iracunda voz:
- Agora, réprobo, vai-te!
O hebreu, que tudo ouvira de rosto esfogueado, abaixou-se desviando o golpe, e apanhando a taça exclamou irônico:
- Nesta taça real beberei o primeiro vinho em louvor ao trono que me propus erguer.
Depois, guardou-a no bolso e afastou-se rápido. Foi um dia triste. Escoltas militares percorriam as ruas para manter a ordem, impedir conflitos sangrentos e patrulhar
os pontos de concentração, donde partiam os hebreus em colunas cercadas procurando as portas da cidade. Cada tribo capitaneada por seu chefe e ancião seguia em boa
ordem, levando quanto possuía em mulas, camelos ou carros.
Ao constatar tanta riqueza, a quantidade de cabeças de gado, meu coração transbordou de raiva; eu era muito egípcio para não sentir a perda dos nossos servos.
De pé, no terraço da torre mais alta do palácio, assistido por seus áulicos, Mernephtah, silencioso, contemplava com o olhar triste e inquieto o imenso e ruidoso
desfile de milhares de súditos válidos, úteis, prestimosos, que escapavam ao seu domínio.
Dominado pela fadiga, somente alta noite pude recolher-me. Apesar de tudo, sentia-me aliviado por haver enfim, chegado ao termo dessas tribulações, não mais sujeito
ao imprevisto de uma desgraça, não mais temer o despertar para algum espetáculo emocionante. Considerando, porém, que egípcios tais, como Rhadamés e Setnecht, haviam
tomado parte no infame conluio que custou a vida de tantos inocentes, cerrava os punhos e muito daria para desmascarar os dois traidores. Como não possuísse elementos
comprobatórios, vi que não era possível fazê-lo imediatamente. Rhadamés era muito estimado pelo Faraó e, em todo o Egito, dormira-se profundo sono nessa calamitosa
noite. Jurei, contudo, observar os miseráveis e na primeira oportunidade, denunciá-los, sem dó nem piedade.
Encontrei os meus ainda acordados: meu pai combinava com o intendente uma nova distribuição dos criados, dada a expulsão dos de origem hebraica; minha mãe e Ilsiris,
conchegadas, choravam amargamente a morte de Chamus; Acca fazia coro amaldiçoando Moisés, Léa e os hebreus; maldições de fazerem tremer os céus. Apenas Henaís, terna
e prestativa, como sempre, ia de minha mãe para Ilsiris, fazendo-as respirar essências e administrando-lhes compressas na fronte.
Querendo conversar um pouco com Henaís, dirigi-me para a galeria, fazendo-lhe sinal para que me acompanhasse.
Quando ficamos a sós, disse-lhe:
- Conta-me agora o que aqui se passou na minha ausência. Chamus ainda não deu sinal de vida?
- Chamus morreu e o desespero de tua mãe e de Ilsiris foi tão grande que rasgaram os vestidos, unharam os seios e deram com a cabeça pelas paredes; só a muito custo
conseguimos acalmá-las um pouco; o corpo, por ordem de teu pai, está numa sala lá em baixo, onde amanhã, os embalsamadores virão buscá-lo. Houve muito alarido e
perturbação entre os serviçais hebreus, expulsos: alguns não queriam sair e os dois velhos - Rebeca e Ruben - rojaram-se aos pés de teu pai, suplicando que os amparasse,
pois não tinham parentes e desejavam morrer junto dos seus bondosos senhores. O nobre Mentuhotep, porém, mostrou-se inflexível e eles partiram como loucos. Toda
a casa está em polvorosa e contudo eu me sinto feliz, porque te vejo vivo e tu és tudo para mim!
Pegou-me a minha mão e beijou-a.
Abraçando-a disse-lhe:
- Boa Henaís - há de chegar o dia de te demonstrar meu reconhecimento.
Nos dois ou três dias imediatos, além do desespero de milhares de famílias atingidas, a raiva empolgou a população, porque verificou-se que os hebreus ao partirem
haviam cometido enormes furtos; sem falar no prejuízo de empréstimos não resgatados. Muitos aproveitaram-se do profundo sono dos egípcios para se apossarem dos valores
que ambicionavam.
A idéia da perseguição a mão armada ganhava corpo em todos os espíritos, mas ninguém ousava falar abertamente, porque Faraó resistia.
Soube, também, com espanto, que Kermosa e Pinehas tinham acompanhado os hebreus, levando consigo Smaragda, ainda convalescente. O pobre Omifer, ferido na noite fatídica,
não se continha de desespero; mas o ferimento o impedia de rastrear o traidor. Rhadamés suportava com muita calma a perda da esposa; a alegria malsã que experimentava
com a tristeza de Omifer e, sobretudo, a idéia de ficar único possuidor da imensa riqueza de Mena, não seria, acaso, compensação consoladora? Por mim, lamentava
deveras que a bela e jovem Smaragda, tão elegante e prendada, fosse condenada a passar a vida no dorso de um camelo, no meio de um povo impuro e desmazelado, ademais
forçada a suportar a fogosa paixão de Pinehas. Infeliz destino!
Afinal, certa manhã, o desejo de vingança, que empolgava toda a população, encontrou eco no palácio. Por determinação de Faraó, reuniu-se um grande conselho, por
ele presidido. Analisaram-se, abertamente, todos os prejuízos causados ao país pelos hebreus; os governadores queixavam-se de que todas as obras públicas estavam
paralisadas por falta de operários; mas a maior grita era contra a pilhagem verdadeiramente atrevida dos judeus, aproveitando a tribulação das famílias ocupadas
com os seus mortos e feridos. O que eles haviam surrupiado em jóias, ouro, vasos preciosos, estojos etc., era positivamente incalculável.
Mernephtah, que havia acompanhado atento a discussão, levantou-se por fim, e disse:
- A mais elementar justiça manda não se deixe aos miseráveis judeus o produto da rapinagem; persigamo-los para dominá-los e reavermos nossos escravos e artífices;
já decidi que o exército marche no sétimo dia, a contar de hoje; será o décimo da sua partida mas, levando eles muitas mulheres, crianças e bagagens, não será difícil
alcançá-los, apesar do tempo decorrido. Que se publique, em todos os corpos de tropas, que aquele que me trouxer a cabeça de Moisés, ainda que seja o mais ínfimo
soldado, será elevado à primeira categoria da minha nobreza, por mim dotado e isento para sempre, bem como seus pósteros, de todos os impostos.
As palavras do Faraó foram acolhidas por fortes aclamações, e desde logo foram expedidas as necessárias providências.
Como o rei desejasse, em pessoa, comandar o exército, Seti foi nomeado regente na sua ausência. Em virtude, porém, de o ferimento ainda o reter no leito, foi-lhe
agregado um velho parente de Mernephtah, a título de auxiliar.
A notícia de que a guerra estava decidida alegrou a todos; não havia um guerreiro que não quisesse lavar no sangue hebreu sua legítima vingança. Todos os aprestos
foram acelerados. Diariamente chegavam batalhões vindo de Thebas, Memphis e outras cidades mais próximas, enquanto mensageiros partiam com ordens para os destacamentos
estacionados nas províncias mais distantes. Também eu fui enviado à cidade de Ramsés, levando ordens ao governador para abastecimento do exército e uma expedição
de espias que informassem o rumo exato seguido pelos Israelitas.
Tive ainda de cumprir a triste missão de comunicar à mãe de Chamus, lá residente, a morte do filho. Confesso que foi com dolorosa emoção que presenciei o desespero
da venerável matrona. Meus pais me haviam incumbido de convidá-la a passar alguns meses em nossa companhia, convite que ela aceitou reconhecida, por lhe parecer
menos desconsolante chorar em companhia dos que também estimavam o filho. Aconselhei-a entretanto, esperar a passagem do exército, para evitar o congestionamento
das estradas, prometendo a vinda oportuna do nosso velho intendente, a fim de conduzi-la a Tanis.
Cumprida minha missão, retomei o caminho dos penates, onde muitos negócios e providências reclamavam minha presença.
Ao atravessar, à noite, uma planície próxima de Ramsés, encontrei velho tropeiro tangendo algumas mulas extenuadas, numa das quais ia montada uma mulher envolta
em espesso véu. Lancei um olhar curioso à singular caravana fantasticamente iluminada pela lua, quando, de repente, a mulher deu um grito e me chamou pelo nome.
Surpreso e atônito, parei o animal, mas a mulher já havia tirado o véu e reconheci, então, o belo semblante de Smaragda.
- Tu aqui! como assim? - exclamei saltando do cavalo e apertando-lhe a mão.
- Deves saber que o miserável Pinehas sequestrou-me - raptou-me narcotizada com algum terrível filtro, - respondeu de olhos brilhantes. Quando despertei, estava
numa tenda em pleno acampamento hebreu!
Falou-me, então, do seu amor e disse que deveria acompanhá-lo e viver com ele o resto dos meus dias, entre o povo imundo. Aproveitando um momento favorável, arranquei-lhe
do cinto o punhal e matei-o. Olha, Necho - e dizendo-o tirou do seio um punhal cuia lâmina apresentava manchas negras mostrando-mo com selvagem alegria: - É sangue
de Pinehas... Quando o vi por terra, faces contraídas e o sangue a jorrar do peito como de uma fonte, fugi e errei sem rumo pelo acampamento, buscando uma saída,
até que, junto das últimas barracas, encontrei um homem de aspecto imponente e fisionomia atraente: devia ser um chefe, porque vários anciãos o seguiam reverentes.
Esse personagem deteve-me para perguntar quem eu era e para onde corria daquela maneira. Então, me rojei a seus pés, confessei-lhe a verdade e pedi que me deixasse
partir. Interrogou-me sobre minha família e parentela e, quando mencionei meu avô, ele estremeceu e pareceu meditar profundamente. Ao cabo de alguns instantes que
me pareceram uma eternidade, passou a mão pela fronte, ergueu-se e disse bondosamente:
- És casada, volta aos teus deveres; a lei do meu Deus condena o adultério e não permitirei no meu acampamento raptos nem violências; como, entretanto é arriscado
uma bela e jovem mulher viajar sozinha, dar-te-ei um condutor.
Falou aos do seu séquito no seu idioma e seguiu adiante, estendendo-me a mão em despedida.
Passado pouco tempo, chegou este velho com. estas mulas que ai vês e nos deixaram partir.
Dize-me onde posso encontrar Omifer, porque não desejo voltar para a casa de Rhadamés. Se podes, leva-me até lá.
Inteiramente perturbado, montei a cavalo.
Então Pinehas, o grande sábio, o homem triste e laborioso estava morto, assassinado pela pequenina mão branca daquela mulher franzina e graciosa, que a fatalidade
vigorizou?!
Durante a viagem, fiz a Smaragda um breve relato dos acontecimentos que ela ignorava: o ferimento de Omifer, a perseguição que se preparava, e ela me suplicou então,
que a conduzisse secretamente à casa do seu amigo, onde se albergaria até a partida de Rhadamés, no que concordei.
Rumei para casa depois de a entregar a Omifer, que de contentamento, sentiu-se meio restabelecido.
Os dois dias que se seguiram e antecederam à partida, passaram com relâmpago, entre preparativos de bagagem, visitas de despedida, compras e aprestos de toda a espécie.
Na véspera do grande dia, o intendente de Omifer levou-me dois magníficos cavalos, acompanhados de uma carta na qual me pedia aceitar os admiráveis animais para
serviço de campanha.
No dia da partida, levantei-me muito cedo e acabava de vestir-me, disposto a procurar meu pai, quando Henaís foi ao meu quarto abatidíssima e banhada em lágrimas.
- Necho, venho despedir-me de ti, - disse abraçando-me - dentro de alguns instantes, irás ter com teus pais e a pobre Henaís não se atreverá aproximar-se; entretanto,
sofro tanto quanto,eles ao ver-te partir para essa guerra sangrenta, e se não regressares, mato-me, pois tu és, nesta vida, tudo para mim.
A voz foi-lhe embargada pelos soluços; apertei-a apaixonadamente contra o peito e cobri-lhe o rosto de beijos.
- Henaís, enxuga essas lágrimas. Se os deuses permitirem que volte são e salvo juro solenemente fazer-te minha esposa legítima, pois amo-te e a ninguém amei senão
a ti.
Vivo rubor cobriu-lhe as faces pálidas e murmurou reconhecida:
- A aventura é tão grande, que nem ouso esperar, mas tuas boas palavras me ficarão na memória até o derradeiro alento.
Depois de poucas palavras mais e um último beijo, separamo-nos. Fui despedir-me de minha mãe e de Ilsiris, pois meu pai devia acompanhar-me até o palácio.
Foi comovente a despedida. As duas criaturas se desfaziam em lágrimas. Depois, desci entre alas de servos escalonados na escada e galerias, até à porta da rua. Todos
beijavam-me as mãos e as vestes, rogando que as bênçãos do céu caíssem sobre mim.
De coração opresso galguei o carro.
Era intenso o movimento no palácio. Pátios, galerias, escadas, repletas de guerreiros, sacerdotes, e dignatários que deviam integrar o cortejo, pois o Faraó se dirigia
previamente ao templo para implorar a proteção dos imortais. Foi lá que me despedi de meu pai, que tinha lugar adequado, e porque não esperava reencontrá-lo no cortejo.
Logo depois, apareceu Mernephtah, que tinha ido levar um terno beijo em despedida ao príncipe herdeiro; ele trazia, estampadas no rosto, energia, coragem e confiança
na empresa; o magnífico uniforme de guerra mais lhe realçava o imponente aspecto, ostentando a coroa do Alto e Baixo Egito, circundada de serpentes místicas. Ou
ando na liteira aberta, levada pelos condutores, príncipes e afins da Casa Real, apresentou-se à multidão, todos os olhos convergiram para ele, com estima e admiração.
Era bem o soberano de um grande povo, a encarnação da sua força e majestade.
O imponente e interminável cortejo atravessou as ruas entupidas da populaça, vagarosamente. Exclamações, gritos e bênçãos, quase abafavam a música e as fanfarras;
ruas tapizadas de flores e ramos de palmeiras, a multidão, alegre e animada pelo desejo de vingança, acreditava já estar vendo a chegada de todos os tesouros roubados
e resgatados no sangue dos ignóbeis rapinantes.
Com seu olhar de lince, Mernephtah perscrutava aquelas fisionomias satisfeitas, e, quando chegou diante do Templo, o rosto se lhe tornou mais radiante, o olhar mais
brilhante que ao sair do palácio.
O grão-sacerdote, seguido dos acólitos e sacerdotisas, o recebeu à entrada e o introduziu no santuário; mas, durante a cerimônia religiosa, um triste presságio amargurou
todos os corações: o fogo, que deveria consumir a oblata real, extinguiu-se de súbito, no momento em que Mernephtah, ajoelhado e de braços erguidos, suplicava aos
imortais que lhe concedessem a vitória.
Palidez intensa invadiu as feições másculas do Faraó, que preocupado e cabisbaixo, retomou à liteira para, em companhia dos sacerdotes que conduziam as estátuas
dos deuses, ganhar a planície além da cidade, onde o exército já estava acampado.
No centro do vasto quadrado constituído pelo grosso das tropas, via-se o altar das oferendas e solenes sacrifícios aos deuses exposto aos soldados. Bem como os demais
oficiais que haviam tomado parte no cortejo, retomei meu lugar no corpo em que servia, e como durante as calamidades houvesse assumido o comando de um destacamento
de carros na guarda nobre de Faraó, coloquei-me na primeira fila, logo atrás do carro real, então ocupado apenas pelo condutor Rhadamés.
Esse carro, de ouro maciço, finamente lavrado, era tirado por dois soberbos corcéis de crinas esvoaçantes. Impacientes, os animais riscavam o solo com os finos cascos,
mal sofreados na sua fogosidade pela mão vigorosa do condutor.
Olhei Rhadamés atentamente. Odiava-o e desconfiava de sua lealdade desde a noite dos massacres; ele estadeava boa presença assim de pé, segurando com uma das mãos
as rédeas, enquanto a outra se apoiava no grande escudo com que deveria cobrir o rei durante o combate. Uma couraça de escamas de peixe se lhe ajustava ao esbelto
e atlético busto; reluzente capacete lhe resguardava a cabeça, e contudo, estava pálido, lábios contraídos e olhos ora ternos, ora brilhantes, como que a maquinarem
algo de grave e maléfico.
Apertando o cabo de meu feixe d'armas, pensei:
- Toma cuidado, miserável, se é que tramas alguma nova traição - desta vez, tenho os olhos postos em ti, é não me escaparás.
Terminadas as cerimônias religiosas, o Faraó, acompanhado dos grandes sacerdotes e dignatários, tomou o carro. Por um momento, seu olhar profundo e estranho fixou-se
no rosto pálido do condutor.
- Rhadamés, estás doente, a ponto de me privares dos teus serviços? Que te falta? Vejo, satisfeito, que minha vontade te restituiu a saúde.
Não pude ouvir a resposta, mas notei que a fisionomia se lhe alterou, e tão vagarosamente retesou as rédeas que os animais empinaram e, arrancando, deslocaram bruscamente
a ligeira viatura.
Sobre a viagem não direi, senão que avançamos a marchas forçadas para alcançar os hebreus. É claro que essa caminhada sob os raios ardentes do sol e nuvens de poeira
sufocante, não podia ser agradável, mas ninguém se queixava, porque todos queriam vingar-se.
Finalmente, aproximando-nos do Mar dos Sargaços, avistamos o inimigo. A noite começava a cair e Mernephtah mandou fazer alto e acampar, dado que, através do mar,
Moisés não poderia escapar; e ao dealbar da aurora engajaríamos a luta.
Impaciente por verificar algo com exatidão, galguei a sela e galopei até um montículo, donde pude observar perfeitamente o acampamento hebreu e a massa escura dos
nossos antigos servos, que ondulava à distância.
Ao regressar, fomos honrados, eu e outros colegas, com um convite para jantar na tenda real.
Mernephtah, isolado em mesa à parte, sobre um estrado, mostrava-se muito bem humorado, conversando alegremente com os chefes e bebendo à vitória do exército egípcio.
Após o repasto, retirou-se para uma barraca menor, que lhe servia de dormitório.
Pouco a pouco o silêncio desceu sobre o acampamento, só quebrado pelo relinchar dos cavalos e mulas, ou pelo rugir dos leões enjaulados, pois tal como seu pai, Mernephtah
gostava de os ver na cauda do seu carro, em combate.
Todos dormiam no grande acampamento e também eu me recolhi a uma barraca, onde alguns camaradas repousavam tranquilamente. Em vão, porém, me revolvia na cama, sem
poder conciliar o sono, preso de vaga inquietação. Resolvi levantar-me, sair, respirar o ar livre. A noite estava escura, mas o céu recamado de milhares de estrelas.
Assentei-me à sombra da barraca, num saco de forragem e absorvi-me nos próprios pensamentos: Tanis, meus pais, Henaís, desfilavam diante de mim ... Será que não
mais os tornaria a ver? Que nos reservaria o dia seguinte? O terrífico presságio do Templo não significaria um ferimento grave, ou quiçá a morte de Mernephtah?
Arrancou-me dessas cogitações, um rumor de passos, não mui distante. Ergui a cabeça e vi que um homem de elevada estatura, envolto em negro manto, caminhava cauteloso.
Ao passar junto de uma fogueira cujas chamas rubras iluminavam um grupo de soldados adormecidos, pareceu-me reconhecer Rhadamés. Onde iria? Ele não comandava nenhuma
patrulha, não tinha necessidade de abandonar o repouso, que, sabia, tanto lhe agradava. Veio-me a idéia de alguma nova traição.
Levantei-me e, fugindo à claridade das fogueiras, deslizei no seu encalço. Ele caminhava apressado e não tardou a alcançar as lanças fincadas no solo para delimitar
o acampamento. Aproveitando o momento em que a sentinela se afastava em direção oposta, deitou-se e desapareceu rastejando na obscuridade.
Fazendo manobra idêntica, acompanhei-o e chegando à certa distância, vi-o erguer-se e prosseguir quase correndo, até que, da sombra de um montículo, saíram dois
homens. Pelas frases que pude apanhar, fiquei sabendo que eram hebreus e tive, assim, corroborada a suspeita de uma nova traição. Tateei o cinto, porque havia alijado
as armas na barraca e experimentei grande satisfação ao verificar que ainda me restava longo e sólido punhal. Empunhando-o, continuei a seguir o traidor e logo atingimos
segundo montículo que limitava, provavelmente, o acampamento hebreu, e onde se erguia pequena barraca isolada.
Rhadamés e seus dois guias para ali se dirigiam, enquanto eu a contornava, deslizando pela encosta do montículo, a fim de atingi-la do lado oposto. Colado ao solo,
fiz com a ponta do punhal um pequeno orifício na lona da barraca e pus-me a sondar o interior.
À luz de um archote preso a um tronco enterrado no solo, vi Moisés em pessoa, sentado junto de uma mesinha de madeira branca, e sobre esta um estojo ricamente lavrado.
Em frente do profeta, ouvindo-o atentamente, Rhadamés sentado num banco tosco.
- Se concordares em ajudar-nos, repito-o, terás régia recompensa. Vê se me desembaraças, esta noite, de Mernephtah, - É louco, teimoso, que renega a palavra empenhada.
Só pela tua promessa, levarás este estojo, cheio de riquezas; mas eliminado Mernephtah, porei em tuas mãos uma força invisível que rojará a teus pés quantos homens
te aprouver dominar.
Retirou do seio um anel com uma pedra cintilante e acrescentou:
- Vê esta gema preparada por um grande mago; ela tem o poder de ligar todas as vontades à tua; por ela subirás degrau a degrau, ao trono dos Ramsessidas; Seti morrerá
e será a ti que o povo há de escolher por sucessor, pois o anel conquistará Os corações e te dará tesouros imperecíveis, comparáveis aos quais os de Faraó nada representam.
Calou-se, mas seu olhar de fogo não se desviava do rosto de Rhadamés, no qual se espelhavam ardente cobiça e estúpido orgulho.
Estendendo avidamente a mão disse:
- Dá-me esta pedra; ensina-me a produzir ouro à vontade e esta mesma noite Mernephtah morrerá.
Moisés sorriu:
- Vamos fixar as condições: um dos meus fiéis companheiros te acompanhará até meio-caminho e tu lhe entregarás a cabeça de Mernephtah: ou então, desde que os clamores
desesperados dos soldados egípcios me anunciem, com certeza, a sua morte, virás receber o anel mágico. Quanto ao poder de criar tesouros à vontade, vou dar-te uma
prova: Olha! - e indicou um monte de cascalho em forma de pirâmide, num canto da barraca.
- Vês aquelas pedras? Repara na sua transformação...
Levantou-se de olhar fixo e cenho carregado, ergueu o anel descrevendo círculos ao redor dos olhos de Rhadamés.
Notei, surpreendido, que a fisionomia do traidor começava a mostrar estupefação e acabou por esboçar a mais frenética alegria.
- Ouro! Que vejo! Lingotes de ouro!
De início não compreendi o que se passava, pois as pedras que lá estavam não se haviam transformado. Mas logo pensei que o traidor fora, certamente embrulhado, porque,
com as feições alteradas, olhos arregalados, dizia arquejante:
- Não duvido de ti. Dentro de duas horas entregarei ao teu delegado a cabeça de Mernephtah.
Sem mais ouvir, despenhei-me do montículo para o acampamento, qual cervo monteado em plena selva. Ofegante e coberto de suor, cheguei à barraca real e, conhecido
das sentinelas, não tive dificuldade em entrar e me aproximar do rei, que dormia profundamente. Ajoelhei-me e toquei-lhe no braço.
Despertando sobressaltado, perguntou:
- Que foi? És tu, Necho? Dize-me o que te traz aqui.
Emocionado, relatei sucintamente o que acabava de presenciar e o Faraó, que me ouvia meio recostado nos cotovelos, ergueu a cabeça, suspirando:
- Então esse homem, cumulado de benefícios, é um traidor? Afinal, teu relato não constitui novidade para mim; eu estava prevenido. Na véspera de nossa partida de
Tanis, Smaragda pediu-me uma audiência secreta e me relatou a conduta ignóbil de Rhadamés durante as calamidades, bem como as suspeitas veementes da sua convivência
com os hebreus, durante a noite do massacre. Agora, vejo que a jovem senhora tinha razão para prevenir-me. Quero, contudo, apanhar o miserável em flagrante de tentativa;
dá-me o meu punhal e esconde-te aí atrás dessa cortina, enquanto vou fingir que durmo.
Com o coração aos pulos, ocultei-me numa dobra da espessa cortina fenícia que circundava o leito, apertando nas mãos o feixe de armas e disposto a abrir a cabeça
do traidor, se o rei demorasse em lhe deter o braço.
Passaram-se momentos que me pareceram séculos em muda angústia; todos os sentidos intensamente concentrados, eu vigiava. O Faraó havia novamente cerrado os olhos,
conservando o punhal oculto sob a pele de leão com que se cobria. Parecia adormecido. De repente, estremeci: levíssimo toque na parede da barraca, logo seguido de
ligeiro ruído e vi surgir à luz da lamparina um vulto que avançava para o leito real, em atitude cautelosa...
Era Rhadamés! Na mão uma faca larga e curta. A face lívida e contraída espelhava todas as más paixões. Inclinou-se para o rei e alçou o braço, enquanto eu, de coração
palpitante, brandi o machado; mas a cena foi tão rápida que fiquei estatelado, de olhar fixo e como que chumbado ao solo! Assim que vi baixar, rutilante, a faca
de Rhadamés, num relâmpago, Mernephtah travou-lhe o braço, saltou do leito e, derrubando-o com um soco tremendo, enterrou-lhe o punhal no coração.
Tão rápida e silenciosa foi a cena que as sentinelas não deram pelo sombrio drama desfechado na tenda real.
Por instantes, Rhadamés manteve-se de joelhos, fisionomia petrificada de angústia, esvaiando-se em sangue; depois rolou sobre a pele de tigre que tapetava a barraca.
O Faraó deixou-se cair numa cadeira, pálido, de olhar sombrio.
Com a voz soturna, murmurou:
- A que prova me submetem os deuses! O mais querido dos meus súditos, de todos os funcionários ó mais chegado, cumulado de honras e depositário da minha confiança,
trair-me e atentar contra minha vida!...
Com as mãos trêmulas, enchi um copo de vinho é apresentei-o ao Faraó, mas um espetáculo inesperado nos fez estremecer, fazendo pender a mão de Mernephtah já estendida.
É que o ferido acabava de levantar-se sobre os joelhos! Lívido, olhos esgazeados, dirigiu-se para o rei com os braços já frouxos abraçou-lhe as pernas.
- Meu senhor e benfeitor - murmurou com voz débil, a extinguir-se: - perdoa; deixa-me levar tua mão aos lábios frios; não me abandones na hora da morte; estás vingado...
Um misto de inexprimível horror, piedade, arrependimento e pesar desenhava-se no rosto desfigurado de Mernephtah.
- Infeliz - disse estendendo-lhe a mão - que fizeste? Por que forçaste esta mão a ferir-me? Contudo, eu te perdôo, morre em paz.
O Faraó mal terminou suas palavras, os braços de Rhadamés afrouxaram e a cabeça tombou pesadamente sobre os joelhos do rei. Tudo estava consumado.
Calado o Faraó depôs o cadáver no tapete, cobrindo-o com o próprio manto; depois, apoiando os cotovelos na pequena mesa, abstraiu-se em triste cismar.
Retirando-me respeitosamente para um canto da barraca, passei a observá-lo com a maior curiosidade. Em que estaria ele pensando? Só aqui, na espiritualidade vim
a saber que remorsos e arrependimentos lhe sangravam o coração. Chegavam-lhe à mente, então episódios remotos: lembrava-se de como havia conhecido, em certa festividade,
a mãe de Rhadamés, jovem de grande beleza e de como a seduzira. O filho que lhe dera, nove meses depois, fora amado e protegido, mas o mal feito havia frutificado
e esse filho, arvorado em traidor, acabava de cair assassinado por suas próprias mãos.
Gritos e exclamações vindos de fora interromperam o silêncio.
- Vê o que se passa - disse Mernephtah, erguendo a cabeça contrariado. Antes, porém, que eu atingisse a porta, dois jovens oficiais, primos do rei, invadiram a barraca
exclamando fora de si:
- Faraó! eles nos escapam; os hebreus estão vadeando o mar!
Empurrando com o pé o cadáver de Rhadamés, o rei deu um salto e exclamou com voz retumbante:
- Arma-te, Necho, e ordena que atrelem o carro.
Corri e notei que todo o acampamento já estava em alvoroço. A hipótese de uma possível escapada do inimigo detestado parecia estimular as massas.
Quem levara a notícia da fuga dos israelitas, não pude saber, senão que a nova corria de boca em boca e ninguém conhecia a fonte.
Os carros eram atrelados com febril presteza. Encilhavam-se cavalos e revistavam-se as armas. Os relinchos dos animais, o vozerio dos soldados, as ordens de comandos
que tentavam manter a disciplina, tudo se confundia num caos indescritível. A princípio, quis agregar-me à minha companhia, mas lembrando que Mernephtah ficara sem
o condutor do carro, pensei talvez me concedesse o honroso posto e retomei, correndo, em direção da barraca real. Quando me aproximei, já o Faraó saía todo armado
e saltava para o carro, tomando as rédeas. Alçou o machado e deu o grito de guerra com voz tão forte que chegou a abafar o toque de clarim, partindo a galope. Tudo
se moveu na sua esteira.
Sem pensar em outra coisa que não avançar, apoderei-me de soberbo cavalo que um escravo havia trazido para um senhor, e dei de rédeas.
Despontava o dia cheio de brumas, e grossas nuvens deslizavam no horizonte impelidas por forte ventania. O espaço que nos separava do mar foi coberto em poucos minutos.
Aproximando-nos, notei, já na margem oposta, imensa mole de hebreus entalados entre os seus animais, enquanto os últimos elementos da retaguarda ainda atravessavam
céleres, em coluna cerrada, o leito do mar, quase descoberto na ocasião.
Via-se Moisés, de braços erguidos para o céu, no cimo de um cômoro.
Eu e um pequeno grupo de cavaleiros, antecipamo-nos aos demais e, levados pelos rápidos e fogosos corcéis, transpusemos o mesmo vau e atingimos a margem oposta,
com os últimos israelitas. Logo a seguir, ruidosos e formando larga coluna, vinham os carros pejados de soldados (assim conduzidos para maior presteza), entremeados
de cavalaria e seguidos pelo grosso do exército.
Arrebatada e não pensando em outra coisa que não fosse o seu objetivo, toda essa massa precipitou-se no mar, mas onde os hebreus haviam passado a pé, em longa fila
e não equipados, os carros egípcios, já pelo peso da carga, já pela largura frontal da coluna, não podiam passar e começaram a voltear no fundo lodoso. Em vão, os
condutores chicoteavam os animais cobertos de espuma, corcoveantes, tombando os carros e aumentando a desordem.
Ofegantes pela nossa rápida disparada, de arma em punho, íamos acometer os hebreus, quando gritos desesperados me fizeram voltar a cabeça. Aterrorizado, detive-me
a contemplar o espantoso espetáculo que se desenrolava à minha frente: quais flechas desferidas do arco, cujo inicial impulso ninguém podia deter, os carros, cavaleiros
e soldados continuavam a avançar, a precipitar-se, esmagando os que os precediam e atolados. Não podiam avançar nem retroceder, porque novas levas se despejavam
sobre eles. Confusão de homens, animais e carros a se chocarem e se esmagarem, e de todos os lados gritos de angústia e dor.
Nesse momento, uma nuvem passou-me diante dos olhos: formando uma como cinzenta muralha, as águas impelidas pelo vento cresciam ruidosamente; ainda um instante,
horroroso e pungente clamor pareceu fundir-se no barulho da massa revolta e espumante, que tudo cobriu! Ali ou acolá, ainda surgiram das ondas uma cabeça de cavalo,
um braço armado, um capacete brilhante, alguns corpos flutuando... Depois, nada mais vi; toldou-se-me a vista, a cabeça rodou, tombei do cavalo. Não era bem uma
síncope, era alucinação, pavor.
As notas harmoniosas de um canto de triunfo e alegria fizeram-me despertar; fixei o olhar desvairado nos hebreus, que, prostrados, braços erguidos, louvaram por
essa forma o deus que tão visivelmente os havia protegido.
À vista de todos, havia sucumbido todo um exército numeroso e aguerrido: comandantes experimentados e o nosso rei - o generoso e valente Mernephtah! Dessa poderosa
força não restava mais que míseros destroços, algumas centenas de homens dispersos, que, como loucos, corriam na outra margem, ou se rojavam ao solo. Instintivamente,
os companheiros me rodearam. Vivos, não queríamos render-nos de graça.
Moisés aproximou-se do pequeno grupo e seu porte majestoso parecia ainda maior: o olhar aquilino, fulgurante de orgulho e exaltação.
Com voz vibrante falou-nos:
- Guerreiros egípcios, concedo-vos a vida; voltai para o vosso país. Comunicai ao novo Faraó esta grande derrota do seu antecessor e dai-lhe testemunho de como o
Deus todo poderoso, de que sou enviado, protege o povo eleito.
Mais tarde, tristes e acabrunhados, repassamos o braço de mar e chegamos ao acampamento abandonado pelos guerreiros e ainda repleto de escravos, criados e bagagens,
guardados por alguns destacamentos de reserva.
Como alma penada e contendo soluços, vaguei entre as intermináveis filas de barracas intactas como se nada houvera mudado naquelas poucas horas! Contudo lá estava
o pavilhão azul e ouro, no qual passara, junto do Faraó os últimos momentos de sua existência, e onde ainda jazia o cadáver de Rhadamés! Agora, no reino das sombras,
estariam reunidos ele e sua vítima.
Durante a tarde e a noite, reuniram-se pouco a pouco os desesperados fugitivos, triste remanescente do brilhante exército de Mernephtah. Seu pranto se confundia
com o dos escravos e criados, cuja dor e desespero atingiam à loucura.
Entretanto, era preciso tomar uma decisão e abandonar aquele lugar fatídico. Com assentimento geral, assumi o comando e ao nascer o sol ordenei que, desarmadas as
barracas e carregadas as bagagens, se formassem colunas de marcha. Acabrunhado e indisposto, cavalguei um camelo e dei sinal de partida.
Lenta e preguiçosamente, retomamos o caminho do solo egípcio, onde só poderíamos ser recebidos com gritos de desespero e torrentes de lágrimas.
Não sou capaz de traduzir as emoções que me angustiavam nesse desventuroso regresso. Basta dizer que não experimentei um só momento de alegria por voltar são e salvo.
Via-me quase isolado e só, pois toda a flor da nobreza egípcia havia perecido e o desespero das famílias que perderam pais, irmãos, filho ou marido, me apertava
o coração como se fossem caros e próximos parentes meus.
Ao chegar à fronteira deixei a triste caravana e adiantei-me com alguns companheiros, para comunicar quanto antes ao novo Faraó o desastroso acontecimento.
O coração batia-me, ao considerar que ia à presença de Seti como mensageiro da desgraça, cumprindo descrever-lhe o espantoso desastre que lhe arrebatara o pai, o
exército e a nata do seu povo; mesmo assim não havia como esquivar-me.
Poeirentos e fatigados, um dia, de manhã, entramos em Tanis, em direção do palácio. Os transeuntes rios tomavam por mensageiros do exército e nos acompanhavam curiosos
e inquietos, formando desde logo um longo cortejo.
A vista do maravilhoso edifício reavivou meus dolorosos pensamentos, ao recapitular todos os detalhes da arrancada tão brilhante e esperançosa. Abatido, solicitei
do chefe dos guardas, surpreso e espantado, que nos levasse imediatamente à presença do príncipe.
Um oficial levou-me até um vasto terraço florido onde estava o jovem regente, pálido e enfraquecido, sentado junto de uma mesa e atento à leitura de um papiro submetido
à sua assinatura. Rodeavam-no alguns velhos conselheiros, que, em atitude respeitosa, anotavam em tabuinhas algumas breves disposições.
Ao lhe ditarem meu nome, Seti levantou-se bruscamente.
- Necho! tu aqui? Que significa essa palidez e o abatimento dos teus companheiros? Vindes anunciar uma desgraça, uma derrota? Fala, pois, em vez de me torturares
o coração com a serpente da dúvida e da angústia. Que é feito de meu pai?
Mal podendo reter as lágrimas, posternei-me e erguendo os braços, exclamei titubeante:
- Seti, filho de Ra, dispensador da vida e da felicidade, meu senhor e Faraó, que os deuses te concedam longa vida e glorioso reinado!
O príncipe tornou-se lívido e levou a mão ao peito ferido.
- Que dizes, infeliz? Como, por que assim me tratas? Teria meu pai perecido?
- Sim, o glorioso Mernephtah pereceu e com ele todo o exército, antes mesmo de desembainhar a espada.
Seti cambaleou e teria caído se os conselheiros não o tivessem amparado, sentando-o numa cadeira. Daí a pouco, reabriu os olhos e disse com voz calma, mas firme:
- Fala, quero tudo saber!
Narrei-lhe a catástrofe, em poucas palavras, entrecortadas pela emoção, mas enquanto o novo Faraó me ouvia desolado, de mãos crispadas, a notícia do grande desastre
já havia transpirado e o chefe dos guardas veio anunciar que o povo, apavorado e desesperado, comprimia-se diante do palácio e reclamava a presença do príncipe.
Seti revestiu-se das insígnias reais, cingiu a coroa do Alto e Baixo Egito e, acompanhado dos dignatários e cortesãos, apresentou-se no terraço.
Foi saudado pela multidão em desafogo de soluços e aclamações.
Com belas e incisivas frases, ele notificou a catástrofe que acabava de ferir a nação, encarecendo ao povo que se mantivesse calmo e conformado, quanto ele mesmo,
ante o inelutável desígnio dos imortais.
Retirou-se depois para conferenciar com os seus conselheiros sobre as medidas indispensáveis e nós tivemos permissão para procurar nossas famílias.
Este desiderato não era fácil, pois estando as ruas apinhadas de gente, a cada passo éramos detidos e crivados de perguntas sobre o acontecimento e notícias dos
que haviam perecido ou escapado. Agradeci a Osiris, quando, enfim, as portas da casa paterna se fecharam atrás de mim e as lágrimas de alegria dos meus e o olhar
radioso e úmido de Henaís me fizeram experimentar (pela primeira vez após o desastre), que a vida ainda tinha mérito para mim.
Dominadas as primeiras emoções e satisfeitas minuciosamente a curiosidade geral, resolvi, apesar de cansado, ir até à casa de Omifer, para cientificá-lo da morte
de Rhadamés.
Lá, o velho intendente informou-me que, após a partida do exército, Omifer se retirara para uma casa de campo, algumas léguas distante da cidade, onde se mantinha
em completo isolamento, não saindo e a ninguém recebendo. Tive, pois, de adiar a visita e somente no dia imediato fui até lá.
Julguei que o isolamento fosse devido à presença de Smaragda, que, sem dúvida, lá estaria homiziada, mesmo porque sabia, por meu pai, que ela não fôra ao palácio
de Mena, onde falecera uma irmã de Rhadamés e continuava acamada a genitora, gravemente enferma. Em todo caso, estava certo de que a notícia que levava me proporcionaria
o mais caloroso acolhimento.
Situada em pequeno bosque de palmeiras, contornada por grande jardim, como se estivesse perdida entre roseiras, a casa de campo de Omifer era encantadora vivenda,
A velha escrava que me recebeu só consentiu que entrasse depois de muito insistir. Afinal, apareceu Omifer, inquieto e admirado:
- Necho, es tu? - exclamou empalidecendo - por que estás de regresso e que motivos te trazem até aqui?
Resumidamente expliquei a situação.
Profundamente comovido, apertou-me a mão, dizendo:
- Smaragda aqui está, vamos procurá-la para que fique conhecendo os pormenores dessa tragédia.
Levou-me a um pequeno terraço, onde se encontrava Smaragda sentada à mesa de refeição, igualmente inquieta e nervosa.
Omifer precipitou-se para ela, e, abraçando-a murmurou comovido:
- Estás livre. Enfim, poderei esposar-te.
A jovem senhora deu um grito:
- Rhadamés morreu?
- Sim - respondi - e de morte bem triste.
Contei em detalhe todos os lúgubres acontecimentos que havia testemunhado e que ainda não haviam chegado ao conhecimento do amoroso par.
Smaragda ouvia-me com a cabeça apoiada nas mãos, chorando copiosamente.
Seriam de contentamento aquelas lágrimas, por estar livre? Ou seriam causadas pelas circunstâncias trágicas da morte do marido? Jamais pude sabê-lo.
Meses mais tarde, eles celebraram esponsais e foram-se para Thebas.
Também meu caso amoroso foi resolvido melhor, do que podia esperar.
O caráter meigo, atraente e prestativo de Henaís lhe havia granjeado, pouco a pouco, a estima de todos os meus parentes; e quando me arrisquei a falar em casamento,
meu pai não fez a mínima oposição. Quanto aos preconceitos maternos, consegui vencê-los a troco de súplicas. Henaís tornou-se, pois, minha esposa e, durante oito
anos, minha vida não foi mais que um rosário de felicidade; mas o advento do terceiro filho foi fatal a Henaís, que faleceu deixando-me desesperado.
Um amigo que me visitou na mesma tarde do seu falecimento, impressionado com o meu acabrunhamento em face da perda irreparável, aconselhou-me a procurar, para o
embalsamamento um sábio mago que morava fora da cidade e possuía maravilhoso segredo, graças ao qual as múmias conservavam absoluto frescor e aparência de vida;
e assegurava ter visto o corpo da noiva de um seu irmão, embalsamado pelo sábio Colchis.
O conselho animou-me um pouco: se o informante dizia a verdade, restava-me, ao menos, a consolação de contemplar, quando quisesse, o rosto encantador da querida
morta. Mais que depressa, tomei a liteira e fui procurar o mago.
Parei defronte a uma gruta cavada na rocha, em cujo pórtico estava sentado um negrinho, a preparar pacotes de ervas secas.
Respondendo à minha pergunta, disse que o sábio Colchis estava em casa e chamou outro serviçal para guiar-me. Atravessei primeiramente uma caverna cheia de ervas,
vidros e instrumentos de formas bizarras; a seguir, um pequeno corredor abobadado e uma segunda gruta menor, iluminada por algumas tochas e quase vazia; várias saídas
pareciam dissimuladas por cortinas de couro.
Junto de enorme mesa de pedra escura, estava assentado o sábio, lendo um papiro à luz da lâmpada. Ao avistar-me, levantou-se tossindo e fitou-me com olhar perscrutador.
Era um homem alto, magro e um tanto corcunda; as barbas brancas lhe caíam sobre as vestes negras e um gorro egípcio ocultava parte da fronte.
Trocamos cumprimentos. Indagou o motivo da minha visita.
Estremeci e examinei-o curioso. Onde teria ouvido aquela voz de timbre metálico? Onde teria visto aquele rosto pálido e anguloso, aqueles olhos sombrios e profundos?
Certo, não me era estranho, mas quando, onde, em que circunstâncias nos encontráramos não saberia dizê-lo.
Também ele não pareceu reconhecer-me e fixou cuidadosamente o preço e as condições do embalsamamento de Henaís. Concordei com todas as suas exigências e prometi
mandar-lhe o cadáver nessa mesma noite.
Enquanto aguardava impaciente o resultado do trabalho de Colchis, triste episódio se propalou em Tanis com a maior repercussão. Omifer e Smaragda ali tinham ido
para assistir ao casamento de um primo. Ambos compartilhavam sinceramente da minha mágoa, pois muitas vezes nos visitamos.
Certa manhã, um escravo titubeante foi comunicar-me que a jovem senhora acabava de expirar, após dezoito horas de agonia, em consequência da mordedura de uma serpente
escondida numa cesta de flores que lhe fôra levada por um desconhecido.
Penalizado, fui visitar Omifer, que me contou o deplorável acontecimento. Para confortá-lo um pouco no seu triste desespero, aconselhei-o a que confiasse igualmente
a Colchis, o embalsamamento de Smaragda. Conheci-o muito tarde para salvar Henaís, acrescentei, mas o seu saber é imenso e dizem que conserva o cadáver com todas
as aparências de vida. Esta manhã, mandou-me dizer que enviasse o ataúde e dentro de dois ou três dias poderia ir buscar a múmia de minha mulher.
- Vem comigo, ficarás conhecendo a casa dele e julgarás, por ti mesmo, da habilidade desse mago e se convém confiar-lhe o corpo de sua esposa - reiterei-lhe, convicto.
Concordou e partimos imediatamente.
Atendendo ao meu pedido para que mostrasse o seu trabalho ao amigo, Colchis nos levou à pequenina sala onde se achava um fardo alongado, coberto com um pano de seda.
Acendeu algumas tochas e retirou depois o véu, fazendo-nos sinal para nos aproximarmos. Com um grito mesclado de alegria e desespero, caí de joelhos: ali estava
Henaís estendida como se estivesse viva; a tez morena e transparente conservava todo o aveludado natural; os lábios, o rosto, o esmalte natural dos olhos que pareciam
fitar-me! Não fora as faixas que a envolviam até o pescoço, teria podido iludir-me e supor que a minha amada ia levantar-se, como vestida para uma festa.
- Sábio Colchis, agradeço-te - disse, finalmente, ao levantar-me - com exceção da vida, que é um dom dos deuses, tu ma restituis, tal como a amei. Quando poderei
mandar buscar o ataúde?
- Amanhã de manhã - respondeu.
Despedi-me, deixando o mago Com Omifer deslumbrado.
A vida em Tanis tornou-se-me insuportável; resolvi abandonar o serviço e transferir-me para Thebas com o corpo de Henaís, que eu desejava depositar no jazigo dos
meus antepassados, ali me estabelecendo definitivamente, porque meu bom pai havia recentemente falecido. Ilsiris se casara com um jovem sacerdote de Heliópolis,
onde morava, e minha mãe, sozinha, desejava a minha companhia, mas por coisa alguma deste mundo deixaria o lugar onde repousava o seu caro Mentuhotep.
Passaram-se mais de doze anos e não contraí novas núpcias, dedicando-me unicamente à educação dos dois filhos e da pequenina Henaís, que herdara a beleza e a bondade
maternas.
Uma tarde, ao regressar do cemitério, onde se havia celebrado pomposa cerimônia e onde me demorara no jazigo da família, ao atravessar o rio atravancado, minha embarcação
colidiu tão desastradamente com outra, que soçobrou. Mau nadador, gritei e me debati algum tempo, mas a escuridão impediu que os companheiros me localizassem, enquanto
a água me entrava pelos ouvidos e pela boca, .asfixiando-me. Horrível aflição! A cabeça rodava, tudo rodopiava e sibilava em torno de mim, dando-me a impressão de
rolar para um abismo sem fundo. Depois, perdi os sentidos.
Ao despertar, flutuava balançando-me ligeiramente num espaço transparente, sem. poder dar conta da situação: encontrava-me normalmente vestido e enxuto, apesar do
tremendo mergulho e, todavia, achava-me ainda no bojo do Nilo, pois via distintamente as duas margens, as pessoas que o atravessavam, etc.; enfim, percebi meus dois
filhos numa barca cheia de mergulhadores!
Desolados, sondavam o rio em todas as direções. A despeito dos meus gritos e gestos, não me viram e passaram junto a mim.
Comecei, então, a me sentir mal: que significava tudo aquilo? Porque me encontrava ali, impossibilitado de retornar à casa, como tanto desejava? Donde provinha aquela
estranha multidão que pululava ao redor de mim balançando-se no ar, ou sobre as ondas e mesmo no fundo do rio? Reconhecera vários dos que ali se encontravam, mas
todos já falecidos de muitos anos.
Apoderou-se de mim intenso desejo de abandonar o local; num instante, acreditei elevar-me no espaço, mas, dor aguda no cérebro e um calor que parecia consumir o
corpo aturdiram-me inteiramente. Quando recobrei a consciência, notei que ainda estava sobre as águas, mas o cenário havia mudado: o grande e sólido edifício rodeado
de palmeiras, que se refletia nas ondas transparentes, era o Templo de Isis, em Tanis. A entrada, vagava um homem com as vestes rotas e ensanguentadas, a torcer
as mãos, desesperado; depois, ajoelhado, batendo com a cabeça no solo. De repente, estremeci: aquele desgraçado era Mena, o pobre amigo desaparecido havia muitos
anos!
Quando a caravana a que ele se juntara voltou a Tanis, o sobrinho do nosso intendente contou que, durante a viagem, Mena, extravagante e versátil como sempre, havia
mudado de idéia e assim, em lugar de acompanhá-los até a Síria, como ficara combinado, reuniu-se a outra caravana e seguiu rumo A Babilônia. Desde então, nunca mais
se ouviu falar dele.
- Mena! - exclamei - e ao mesmo tempo um jacto de centelhas me esguichou do cérebro, indo tocar o dele. Percebeu-me e aproximou-se.
- Pobre amigo, de onde vens e que fazes aqui? Perguntei.
Contou-me então que durante a viagem sua caravana fora surpreendida e atacada, à noite, por um bando de malfeitores, sendo ele morto com uma facada.
Quando recobrei os sentidos - continuou - já me encontrava aqui, donde não posso afastar-me, obrigado a contemplar o horroroso espetáculo que me alucina. Vem comigo,
talvez possa ajudar-me a libertar Menchtu - terminou, vertendo lagrimas que pareciam gotas de fogo.
Como louco acompanhei-o até um sítio afastado do Templo, interdito aos profanos, e lá, numa espécie de cela fechada Por enorme pedra, vi Menchtu, a infeliz sacerdotisa
por ele seduzida! Parecia enlouquecida, descabelada, vestes trapejantes, a dar com a cabeça na parede da estreita prisão fracamente, Iluminada por uma lâmpada suspensa
da abóbada; depois, dando pontapés numa bilha vazia, rolava pelo chão, roendo os dedos com gritos horrorosos, entremeados com o nome de Mena, a quem ora invocava
apaixonadamente, ora maldizia por tê-la abandonado.
Impressionado com o que via quis ajudar o amigo, que fazia esforço sobrenatural para remover a pedra que vedava a entrada. Esforço inútil, Nada conseguimos, embora
vendo tudo que se passava no interior.
Diante da minha impotência fiquei desanimado, resolvi abandonar aquele sítio pavoroso e, dessa vez, consegui deslocar-me mais facilmente. Qual folha levada pelo
vento, deslizei na atmosfera: diante de alguns rochedos pardacentos, pareceu-me que me detinha, e subitamente recordei que ali havia residido o mágico que embalsamara
Henaís. Procurei a entrada, mas não pude encontrá-la logo. A seguir, notei que estava murada pela parte interior e, por fora, dissimulada com uma grande pedra. Surpreendi-me
por atravessar facilmente esse obstáculo e encontrar-me no interior da gruta, onde, pela primeira vez, falara com o sábio.
Assombrado, tudo observei: um largo facho de luz azulada e cintilante iluminava a sala, concentrando-se no centro, ao redor de um homem assentado no chão, de braços
cruzados. Um pouco acima, ligado a ele por larga faixa de fogo, pairava o duplo desse personagem, mais transparente, mais remoçado, porém numa completa imobilidade:
era Colchis! Olhei-o sem nada compreender de tudo aquilo, quando um riso sarcástico e desdenhoso fez-me estremecer e só então notei que, junto do adormecido, havia
um ataúde com o corpo de Smaragda, admiravelmente embalsamado, tendo na borda, sentada, uma segunda Smaragda perfeitamente viva e que continuava a rir.
- Estas louco, Necho, pois nem agora reconheces o miserável Pinehas; foi ele quem levou a serpente escondida sob as flores; ele quem envenenou Omifer para ficar
com minha múmia. Querendo fugir à responsabilidade, pôs-se em letargia, a fim de enganar a divindade; mas ele despertará e nós aguardamos esse momento - eu e todas
as vítimas do seu saber mal empregado.
Na realidade eu distinguia atrás de Smaragda uma multidão de seres horrorosos, de rostos disformes, uns com fermentos que exalavam odor nauseabundo, outros com punhais
de pontas fosforescentes, todos contemplando Pinehas com ódio e ferocidade, pedindo o seu despertar com imprecações tremendas.
Apavorado, eu não pensava mais que em fugir e quase no mesmo instante a gruta e seus horríveis ocupantes esmaeceram, parecendo desmantelar-se.
Depois encontrei-me, numa atmosfera cinzenta, oceânica, ilimitada.
Quanto tempo fiquei, desesperado e só, nesse deserto nevoento não saberia dizê-lo, senão que, certa feita, não sabendo o que fazer, nem para onde ir, dirigia a Osiris
ardente suplica para que me socorresse, me livrasse daquela situação miserável e imerecida, pois estava certo de não haver cometido crime algum. Instantaneamente
quase, surgiu diante de mim um ser luminoso, de expressão calma e terna, que me falou bondosamente:
- É verdade que nada fizeste, mas justamente a conseqüência de uma vida tão inútil é que te faz sofrer! Não cometeste crimes, não fizeste mal a ninguém, dizes...
Mas, isso porque rico, feliz, amado, satisfeito em todos os teus desejos, jamais experimentaste grandes tentações. Dize-me, porem: que bem praticaste? Deste do teu
supérfluo aos pobres? Mitigaste-lhes a miséria? Tens-te em conta de bom senhor, interessado pelos teus criados, que, embora escravos, são teus semelhantes? Cuidaste-os
nas suas enfermidades, amparaste os na velhice? Ou, pelo menos, trabalhaste intelectualmente para aumentar teus conhecimentos e tua espiritualidade? - Tu nada fizeste
neste sentido - continuou a entidade - garantido pela condição social e pela fortuna, evitaste o contato das misérias humanas, levando vida preguiçosa e instintiva,
de irracional. Sim, somente gozaste e agora que, despojado da carne, como espírito, continuas a errar preguiçosamente sem destino, perguntas por que sofres? Nada
sabes, nenhuma inclinação experimentas, apenas existes e sofres!
Compreendi que meu guia tinha razão e humilhei-me intimamente.
- Então que devo fazer para ser útil e não mais sofrer a inatividade?
- Vai e ora por todos os sofredores que encontrares; esclarece-lhes a própria condição em que se encontram; fala-lhes do arrependimento, persuade-os a buscarem a
consolação do trabalho digno do espírito, como operários do Universo, ou uma expiação terrena, porque a atividade, o arrependimento, e perdão das ofensas, são indispensáveis
a todos os espíritos que aspiram o bem.
Esvaneceu-se a aparição e engolfei-me em ardente prece, implorando ao Criador a força para reparar minhas faltas.
Lembrei-me depois de Henaís, que ainda não tinha visto e, instantaneamente, me encontrei no jazigo de nossa família, avistando-a só e desolada, a chamar por mim.
Não posso descrever a alegria desse encontro! Expliquei-lhe tudo e, juntos, percorremos o espaço, procurando nossos irmãos mergulhados na dor, sustentando-os com
as nossas preces e conselhos.
Ocorreu-me, certa feita, a idéia de ir ao sítio onde haviam perecido nosso rei e seus valentes guerreiros. Talvez, também eles se debatessem em angústia, julgando-se
ainda vivos na Terra.
Apenas idealizado esse desejo, já me encontrava no lugar fatídico. Diante de mim o Mar dos Sargaços e, sob as vagas, ainda se debatendo em medonha agonia, o nosso
malogrado exército. Ouvia gritos soturnos, desesperado retinir de armas, relinchos de animais enlouquecidos, e todo esse espantoso combate com a morte parecia não
ter fim!
Notei de repente que não estava só; sob as águas espumantes caminhava, triste e inquieto, Mernephtah tentando em vão explicar a nova situação àquelas sombras perturbadas
por suas paixões e ligadas por seu obscurantismo a esse lugar de sofrimento.
Vendo-me, disse:
- Tu também estás aqui, Necho? Vês? Estes infelizes não compreendem o próprio estado e nada posso fazer em seu favor.
- Ora por eles - respondi inspirado por uma voz do Alto.
O Faraó-espectro elevou ao Criador ardente prece, a fim de receber força e esclarecimento e poder auxiliar aqueles a quem ele próprio arrastara ao báratro.
Imediatamente pareceu transfigurar-se, e um apelo semelhante e longínquo trovão fez convergir para ele a atenção geral. Então falou:
- Insensatos! - acalmai vossa fúria impotente, voltai à razão, ponderai: o causador da vossa perda vai entrar no mundo dos espíritos e vamos ao seu encontro.
Lançou-se no espaço e, qual onda pardacenta, a nuvem de inteligências o acompanhou, guiada por sua vontade.
Com a rapidez do pensamento, atingimos alto cimo de árida montanha. Estendido sobre o manto, cabeça apoiada numa pedra, lobriguei um homem de rosto desfigurado,
barba e cabeleira grisalhas. Apenas os olhos de águia cheios de inteligência e audácia, não haviam mudado. Era Moisés.
Desiludido, esgotado de alma e corpo, ali morria só, com seu orgulho - último escudo, que lhe restava. E com o olhar espiritual revia o Egito, toda a sua vida se
desenrolava, paulatinamente, diante dele! Doloroso regresso à pátria espiritual.
Assaltado por seus inimigos flutuantes, debatia-se dolorosamente, quando um chamado partindo do espaço se fez ouvir:
- Espírito que te serviste do nome do Eterno, vem prestar contas de teus atos!
Necho
NOTA DO ESPIRITO AUTOR
Creio que será Interessante, para os meus leitores, saber como se encontra o Espírito de um faquir durante o estado de letargia, ou de qualquer pessoa nessa condição.
Darei assim algumas breves explicações.
As sensações do espírito durante esse estado são agradáveis. A Inatividade do pensamento é quase completa; o bem-estar do perispirito atinge o apogeu, porque, destacado
do corpo ao qual apenas fica retido pela artéria principal, paira num espaço de fluído azulado, fosfórico e renovador, que é a fonte onde a Terra se abastece dos
sucos vitais necessários à manutenção da vida material. O perispirito absorve todas as partículas indispensáveis ao sustento do corpo abandonado e lhas veicula por
intermédio do canal da grande artéria vital, à qual soprepaira, retido junto do corpo. Se assim não fosse, o corpo, privado de todo o alimento, deixaria de funcionar
e, como está provado, sem funcionamento cessaria a vida e teria Inicio a decomposição.
Com relação ao caso de que nos ocupamos, apesar de um estado de morte aparente, os órgãos continuam a exercer todas as funções indispensáveis para manter a união
do corpo ao Espírito, facultando, além disso, a este último, reentrar naquele, caso seja preciso, ativando-o como anteriormente. Entretanto, esse bem-estar, essa
beatitude do perispírito, só ocorre quando ele está separado do corpo, quase inteiramente. Nos casos de letargia, em que os órgãos são submetidos ao estado de torpor,
sem que o perispírito deixe o corpo, o espírito vê e ouve tudo que se passa ao redor e experimenta todas as angústias do seu estado.
OBSERVAÇAO SUPLEMENTAR DO ESPIRITO AUTOR
Alguns amigos meus, que leram esta obra ainda em manuscrito admiraram-se que em um país policiado como o Egito, com o governo firmemente estabelecido, um único homem
(qualquer que fosse, aliás, sua inteligência e audácia) ousasse tão abertamente afrontar um povo inteiro e o seu rei, que dispunha de todos os recursos de um poder,
de um exército forte e de apoio sacerdotal, sem que o mandassem prender e justificar como elemento perigoso, não só para lhe anular o prestígio ou, ao menos, consumir
com ele secretamente.
Na suposição de que a mesma idéia possa ocorrer a mais de um dos meus leitores, quis que se acrescentasse ao manuscrito a resposta que dei àqueles amigos.
Não há dúvida de que, em sua legislação, na arte e mesmo nas ciências, o Egito havia atingido elevado grau de civilização, mas isso não impedia que o povo (com exceção
de algumas poucas personalidades), se mantivesse na maior superstição; a própria religião, resguardada pelo sacerdócio, de véus e mistérios, assim o ensejava. Moisés
que, força é confessá-lo, era um impostor, porquanto utilizava as forças da Natureza, desconhecidas do vulgo, havia granjeado para a sua pessoa uma tal auréola de
temerosa superstição, por uma série de fatos cujo relato excederia o quadro de um romance, que ninguém, entre o povo desorientado, seria capaz de levantar a mão
contra ele, receoso de que o perigoso mago destruísse o temerário e quantos lhe pertenciam.
Assim entre outros casos, um egípcio que jogara uma pedra à cabeça de Moisés foi por ele amaldiçoado e, três dias depois graças a um veneno habilmente administrado
por criado hebreu, teve a família atacada de terrível enfermidade: com o corpo cheio de chagas em decomposição lenta, morreu vitima de atrozes sofrimentos.
Idênticos fatos, aliás exagerados pela voz popular, produziam feitos extraordinários.
Quando Moisés anunciou, por intermédio dos israelitas, que no dia em que fosse vítima de algum atentado o mundo acabaria, a multidão estúpida acreditou e tê-lo-ia
defendido mesmo contra os próprios soldados,
Mernephtah e seus conselheiros mais esclarecidos tentaram, então, eliminá-lo secretamente, para evitar o pânico, Um destacamento de soldados sob comando de oficiais
escolhidos, foi mandado, certa noite, cercar-lhe a residência e no momento de forçarem a porta romperam labaredas de todas as frestas: apesar do perigo evidente,
os guerreiros, que eram veteranos experimentados se precipitaram para o interior, mas, ao verem Moisés de pé no meio do fogo, com a roupa intacta, aureolado por
intensa claridade, perderam a coragem temendo o sobrenatural, e fugiram.
Outra feita, oito oficiais valentes juraram, à minha vista, que o seguiram passo a passo até abatê-lo, ainda que isso lhes custasse a vida. Necho menciona em seu
depoimento que, certa vez Moisés desaparecera por muito tempo; havia deixado Tanis para fiscalizar pessoalmente as suas próprias determinações. Justamente nessa
ocasião, foi que os citados oficiais o surpreenderam perto de uma cidade próxima, apenas acompanhado por dois hebreus. Atiraram-se a ele. Os dois israelitas tombaram
imediatamente e Moisés foi alcançado por alguns golpes de punhal, mas, revestido certamente de algum escudo protetor, ficou incólume e dando, então, um salto atrás,
retirou do cinto grande faca, ferindo o primeiro assaltante, enquanto com um soco repelia o segundo; mal a ponta da arma tocou o ombro do primeiro e sua mão à fronte
do segundo, ambos caíram como fulminados por um raio; a mesma sorte tiveram os demais. Escapou apenas um, que fugiu como louco, vindo contar-me o sucedido. Mandei
buscar os corpos dos infelizes militares, os quais foram encontrados horrorosamente decompostos, notando-se ao redor das feridas, e das pequenas incisões, parecendo
arranhaduras, um círculo negro como de queimaduras.
Essas tentativas e muitas outras ficaram ignoradas, mesmo de Necho. Entretanto, exasperado, eu teria sacrificado a metade dos meus súditos para deter o insolente
e descarregar sobre ele a minha vingança. Ordenava, pois, sempre, novas tentativas, até que uma pareceu, enfim, resultar eficiente.
Moisés foi agarrado de surpresa, e levado secretamente ao palácio, e, de pés e mãos atados, encerrado numa sala com dois soldados e todas, as saídas guardadas por
destacamentos armados. Pretendia mandar decapitá-lo publicamente, no dia seguinte. Quando, porém, horas mais tarde, foram buscá-lo para que me fosse apresentado
encontraram a sala vazia, os dois soldados profundamente adormecidos e as cordas e correntes amontoadas no solo. (Não me arguam de narrar coisas impossíveis: para
os que estudaram os fenômenos mediúnicos, a explicação se impõe por si mesma; para os demais, recordarei um fato perfeitamente idêntico, consagrado pela Igreja;
a libertação miraculosa do Apóstolo Pedro, que desembaraçado das cadeias, saiu igualmente da prisão, apesar dos guardas lá postados por Herodes).
Este último fato tornou-se público, ocasionando verdadeiro pânico.
Quanto a Mernephtah, estava convencido de que enfrentava um homem mais que perigoso, não só pela astúcia, como pelo saber, muito superior ao dos sábios egípcios,
o que o tornava quase invulnerável; assim a força do Faraó consistia em não ceder e lutar contra as calamidades, precisando para isso de toda a confiança e estima
que os súditos dedicavam ao seu soberano, para manter a ordem entre as massas desvairadas. Moisés, ao contrário, dispunha de milhares de serpentes que deslizavam
por toda parte no cumprimento de suas pérfidas ordens. Será um erro, entretanto, acreditar que tudo se passava calmamente, sem encontros entre egípcios e hebreus.
Na realidade houve inúmeros assassinatos e mesmo massacres parciais; apenas ninguém ousou tocar na pessoa de Moisés, pelos motivos acima mencionados, tão poderosos,
que o Faraó, apesar do seu poder e do seu ódio, não pôde abater a cabeça insolente e ambiciosa, que, em nome do Eterno, sancionava o roubo e assassínio, havendo
por bons todos os meios que conduziam ao fim.
Os monumentos egípcios silenciam essa época de subversão e desgraça nacional, e o que a Bíblia relata sobre Moisés foi escrito por seus irmãos hebreus, parciais
e animados unicamente do desejo de exaltar a grandeza do seu povo. Não obstante, nesse relato, o leitor atento encontrará elementos para retratar o verdadeiro Moisés,
grande legislador e homem de gênio, porém mau, arrebatado, ambicioso, inescrupuloso, que usurpou a direção de um povo sobre o qual nenhum direito tinha: dum povo
que ele não estimava, antes, detestava e de que se serviu para ferir o Egito e erguer um trono para si próprio.
É verdade que pregou a existência de um Deus único e pelos Dez Mandamentos estabeleceu uma base para o futuro edifício da cristandade, mas também lhe pertencerá
a responsabilidade de ter feito do Criador do Universo, do Ser infinitamente grande, sábio e misericordioso, o Deus parcial, vingador e sanguinário do Velho Testamento.
Diante do olhar fascinador da mulher amada, todo homem é fraco.
Pensando na importância da meta que deveria ser alcançada, convinha ao menos aventurar. Dirigi-me então à casa de Mena, onde também reinava a maior desordem. Todos
lamentavam-se em voz alta. Rhadamés estava pálido e nervoso, aprontando-se para sair.
- Perde-se tudo, não sei mas o que fazer - disse apertando-me a mão.
Sem hesitar, comuniquei-lhe meu projeto, que ele ouviu de cenho carregado, acabando por dizer:
- Estás com razão, Necho. É preciso tudo tentar para evitar a ruína; e como Pinehas conhece o remédio que buscamos, nenhum sacrifício é demais para consegui-lo.
Mas, antes de falar com Smaragda, preciso consultar minha mãe e minhas Irmãs; vem comigo e eu te apresentarei a elas porque, afeiçoadas a mim, aqui se estabeleceram
e assim nos vemos seguidamente e evitamos dobrada despesa com a manutenção de duas casas.
Levou-me a uma sala ricamente decorada, onde se encontravam três mulheres a conversar ruidosamente, lamentando os prejuízos causados pela peste; uma era a genitora,
mulher de meia idade e de aparência agradável; as duas moças, de vinte o dois e vinte e quatro anos, respectivamente, muito se pareciam, eram bem irmãs pelos traços
fisionômicos, mas inexpressivos. Em compensação, estavam cobertas de jóias e muito bem vestidas. Rhadamés abraçou-as ternamente e depois apresentou-me, com frases
elogiosas. As duas moças, a requebrarem-se, endereçando-me olhares significativos, tomaram grande interesse pelo projeto que Rhadamés procurava expor.
- Sem dúvida Smaragda deve procurar Pinehas, exclamaram as três senhoras; será um mínimo que ela faz para salvar nossos rebanhos, evitando-nos a ruína.
- Vamos até lá - disse Rhadamés levantando-se.
Dirigimo-nos para o terraço, retiro favorito da jovem senhora, passando pelas salas e galerias já bem conhecidas. Ao entrar, vimo-la meio recostada no leito de repouso.
O semblante, pálido e abatido, revelava melancólica indiferença.
- Smaragda, reconduzo-te ao mundo, - disse o condutor do carro.
Ao ouvir a voz do marido, a jovem estremeceu e ergueu-se para dar-me as boas vindas.
Logo que nos sentamos, Rhadamés tomou-lhe as mãos e disse com uma ternura que me pareceu pouco sincera:
- De ti depende salvar nossa fortuna, assim como a de Necho, querida Smaragda - e, ato contínuo expôs-lhe o que se lhe pedia.
Enquanto ele falava, o rosto da esposa enrubescia e o cenho se carregava.
- Jamais! -- nada pedirei a Pinehas!
- Mas deves fazê-lo! exclamaram a um só tempo as cunhadas; todos os rebanhos perecem e isso é a ruína; Necho Julga que só o teu pedido poderá sensibilizar Pinehas.
- Sim, deves ir! - acrescentou Rhadamés aflito.
Os olhos de Smaragda fuzilaram:
- E és tu que exiges vá pedir algo a um homem que me ama? Isso não te repugna?
- É claro - respondeu de mau humor - isso me desagrada, mas, que fazer, quando se trata de nossa fortuna.
- Se é só isso o que te aflige - disse ela ironicamente - são os meus rebanhos que perecem. Pois que pereçam! Não me importa.
Gritos de indignação partiram de todas as bocas:
- Não tens o direito de arruinar teu marido - atacou a matrona.
- E a nós, porque os nossos bens são comuns - acrescentou uma das moças.
Rhadamés empertigou-se autoritário:
- Como teu senhor ordeno-te pedires a Pinehas que nos ajude a salvar nossos rebanhos. Que os demais pereçam, pouco me importa.
Ao notar, porém meu espanto, visto que de mim partira a sugestão, acrescentou em atitude obsequiosa:
- É claro que transmitirei a Necho o segredo desde que Pinehas o revele.
Smaragda calou-se e numa atitude indiferente, recostou-se na almofada e cerrou os olhos.
- Não penses só em ti, quando há milhares de famílias na iminência de se arruinarem, disse-lhe eu. Considera, também, que esta calamidade acabará por nos fazer perder
os hebreus.
- Tudo isso pouco me comove e nada pedirei a Pinehas, é escusado insistir.
Levantei-me e despedi-me mas apesar de tudo, achava graça no aspecto furioso da família tão sub-repticiamente instalada no palácio de Mena.
Ia entrar na liteira, quando Rhadamés aproximou-se correndo:
- Necho, escuta, tive uma idéia magnífica para vencer a teimosia de Smaragda. Vamos à casa de Omifer; ela o ama e não quererá a ruína dele, cuja principal riqueza
consiste em rebanhos, que se contam por milhares de bovinos e caprinos, centenas de camelos, etc. Julgo que se ele intervir, o caso estará resolvido.
A casa de Omifer parecia mais um palácio que uma residência particular e não ficava muito longe, conquanto ele morasse habitualmente em Thebas. Eu sabia que, fracassada
a evasão de Smaragda, ele regressara a Tanis.
Um criado atarefado e perturbado que nos atendeu disse que o amo acabava de regressar de um giro pelo campo, e nos levou a um pátio onde encontramos Omifer, que
mal acabara de apear da montaria branca de espuma.
A presença de Rhadamés fê-lo empalidecer, mas ainda assim, recebeu-nos com afabilidade.
Quando lhe declarei que a visita se prendia a assunto grave, ele nos levou a um gabinete de admiráveis tapetes e cujos móveis incrustados de ouro apenas teriam rivais,
em magnificência, no palácio de Mernephtah.
Com olhos invejosos Rhadamés examinou o ambiente rico e depois, com palavras estudadas, abordou o assunto.
Omifer corou vivamente e envolvendo-o num olhar de profundo desprezo, disse:
- Sinto muito, mas não tenho a sua largueza de vistas; sou muito ciumento para enviar a mulher amada à casa de outro homem por ela apaixonado e por isso, jamais
pedirei a Smaragda que se humilhe diante de Pinehas. Prefiro ver perdida a última cabeça dos meus rebanhos.
Levantou-se e tivemos que nos despedir.
Ao voltar a casa, após esse insucesso, encontrei Ilsiris em tal estado de desespero, que me alarmou, e indagando o que havia, vim a saber que Chamus saíra disposto
á obter da linda Léa o remédio para salvar nossos rebanhos. Foi a própria Ilsiris que lho pedira, apesar do seu ciúme, mas notava-se que a decisão muito lhe havia
custado.
Triste e faminto, mandei que me servissem qualquer repasto, porém, mal começara a comer, quando recebi umas tabuinhas trazidas por um portador de Rhadamés;
Admirado li: "Venha quanto antes, tudo arranjado".
Animado de nova esperança não fiz mais que tomar a liteira, ordenando que corressem à casa de Mena.
Rhadmés me recebeu muito nervoso e disse em surdina:
- Foi minha irmã que arranjou o negócio, inventando que Omifer está na iminência de suicidar-se para não sobreviver à perda total da sua fortuna. Ao ouvir tal notícia,
Smaragda sobressaltou-se e mancou chamar-me, mas - acrescentou rindo-se - também mudei de tom, declarei haver refletido e, achando o negócio inconveniente não podia
concordar. Ela está fora de si, a sapatear e a jurar que o fará, apesar de tudo; então, anuí, mas como não poderá ir só, chamei-te para acompanhá-la, visto não desejar
atritar-me com Pinehas; e o seu ciúme pela minha presença poderá prejudicar a empresa.
De bom grado concordei e quase em seguida apareceu Smaragda, envolvida em espesso véu. Rhadamés levou-nos até à liteira fechada que se encontrava ao pé da escadaria,
recomendando-me que a reconduzisse tão logo obtivéssemos o remédio salvador.
Calado sentei-me junto a Smaragda e assim chegamos à casa de Kermosa.
Informou-nos o negrinho que a patroa havia saído, mas Pinehas se encontrava só no quarto. Receoso de expor Smaragda a uma grosseria ou recusa descortês, fui sozinho
ao seu encontro.
Ao avistar-me, levantou a cabeça, como que admirado, e acabou esboçando um sorriso irônico:
- És tu, Necho? Decididamente, elegeste-me para salvadora. Extraordinária teimosia!
- Desta vez - respondi - não venho só: trago comigo uma das mais belas mulheres de Tanis, cuja voz melodiosa mais te comoverá, talvez, que a própria ruína de nossa
pátria.
Ele alçou bruscamente a fronte e respondeu desdenhoso;
- Uma mulher? Não conheço nenhuma que me possa honrar com sua visita e gabar-se de ter sobre mim ascendência, unicamente pela voz, a ponto de me fazer violar um
juramento. Mas, enfim, onde está essa deidade?
- Não sabendo se te era grato revê-la, deixei-a lá embaixo.
- Fizeste bem.
- Assim, direi a Smaragda que...
- Smaragda!? - atalhou empalidecendo - por que não disseste logo?
E sem mais demora, precipitou-se para fora.
- Está vencido - pensei.
Fui-lhe no encalço e o vi de rosto esfogueado ajudar Smaragda a descer da liteira.
- Sinto-me grandemente honrado em receber neste humilde teto a nobre irmã de Mena; minha mãe não está, mas não deve demorar - disse, devorando com os olhos o véu
espesso que encobria o rosto da visitante.
- Não te quero enganar - murmurou ela acompanhando-o ao interior - não é a Kermosa e sim a ti que pretendo falar.
Ao chegarem à sala, Pinehas ofereceu uma cadeira a Smaragda e convidou-me, também a sentar. A linda criatura desvelou-se e notei que intenso rubor lhe cobria as
faces; os grandes olhos brilhantes se fixaram em Pinehas, como se quisessem sondar no seu âmago a extensão do amor que ela pretendia explorar.
Como a serpente encantada ao som da música, Pinehas subjugado por aquele olhar fascinante, perdeu a compostura austera e baixou os olhos, pálido e conturbado. Um
raio de triunfo fulgurou nos olhos de Smaragda, que murmurou:
- Vim até aqui, repito-o, para implorar ao sábio Pinehas ajuda e conselho para evitar a destruição dos rebanhos que me ameaçam de ruína.
Uma palidez mortal estampava-se no rosto do egípcio e o peito arfava-lhe penosamente e nos olhos se alternavam relâmpagos de ódio e paixão.
- Não! - disse por fim, com voz rouca - por ti e por teu marido não violarei meu juramento; falemos de outra coisa, pois é inconcebível que salve teus bens para
ajudar Rhadamés.
Smaragda levantou-se de pronto como que magoada e voltou-lhe as costas; mas, logo reconsiderando esse gesto, aproximou-se de Pinehas, que também se levantara, e
tomando-lhe do braço inclinou-se para ele.
- Tu te enganas, murmurou com estranho olhar - Rhadamés só ama as minhas riquezas; eu nada valho para a sua felicidade, mas não o poderei humilhar e dominar, senão
enquanto for rica. Acreditarás, seriamente, que, se ele me tivesse amor, aqui me enviaria?
Uma onda de sangue tornou escarlate a face pálida de Pinehas.
- Se foi ele quem te enviou, vou fornecer o chicote com que o sujeites; mas, Necho, dize a Rhadamés - e seus olhos pareciam querer devorar a bela Smaragda - que,
para salvar os seus rebanhos, a esposa deverá pagar-me com três beijos...
Smaragda empalideceu e recuou de cenho carregado.
- Nunca por esse preço! - disse ela dirigindo-se para a porta de saída.
- Trata-se de Omifer! - soprei-lhe no ouvido.
Parou e cruzou os braços.
- Aceito, mas com a garantia de eficácia do remédio.
- Juro-o! - respondeu Pinehas estreitando-a nos braços e cobrindo-lhe os lábios descorados com os três beijos convencionados.
Pinehas passou a mão pelo rosto escaldante e levando-me para junto da janela, disse:
- Tens aí tabuinhas. Vou ditar o que é preciso fazer.
Apressei-me em tirá-las de meus bolsos. Declarou necessário, antes de tudo, colocar grande quantidade de sal na forragem, untar a cauda do animal com alcatrão e
esfregar-lhe todo o corpo com uma infusão de alcatrão e certa planta, que indicou; depois, apanhar os sargaços que crescem à margem do Nilo, picá-los, salgá-los
e ministrá-los ao gado, não lhe dando a beber senão água do rio. Além disso, defumações rigorosas nas baias e mesmo nos campos, e para casos especiais prescreveu
um tratamento à base de azeite doce.
Smaragda pôs novamente o véu e saiu tão apressada que mal pôde agradecer a Pinehas. Logo que entrou na liteira, ordenou que a levassem à casa de Omifer e não ousei
contrariá-la, pois fora por ele que ela consumara todos os sacrifícios.
Smaragda parecia voar, mal tocando o solo. Avisado, sem dúvida, Omifer nos recebeu à entrada de uma sala. A bela amada atirou-se-lhe nos braços.
- Salvei-te mas, a que preço! - exclamou fora de si, desmaiando de raiva.
Omifer colocou-a num leito e perguntou-me o que significava aquilo.
Em, poucas palavras relatei toda a história e lhe comuniquei o remédio. Ele tudo ouviu, indignado, e declarou que preferiria ver aniquilado todos os rebanhos, mas
ao mesmo tempo, mandou chamar o intendente para transmitir-lhe a receita.
Como Smaragda não recobrava os sentidos, despedi-me.
- Devo correr para casa, pois lá também a ruína está iminente; encarrega-te de reconduzir a mulher de Rhadamés e transmitir-lhe a receita.
Satisfeitíssimo voltei para casa sem perder tempo e pusemos mãos à obra. De toda parte se tirava sal e alcatrão; homens corriam à margem do Nilo para colhêr os sargaços,
transmitindo a todos que encontravam a receita salvadora. Com a rapidez do relâmpago, a boa nova se propagou. Todos buscavam utilizar o recurso e breve não se viam
nas ruas senão homens e mulheres carregando grandes molhos de sargaço ou cestas repletas de plantas. Outros conduziam sacos ou ânforas de azeite. Os armazéns onde
vendiam sal, alcatrão e azeite etc., eram investidos de assalto; e enchiam-se as carrocinhas com os preciosos ingredientes para enviá-los ao campo, porque o efeito
era evidente, mesmo para os animais já atacados. Desde que começamos a aplicar o remédio não perdemos um só animal.
Tarde da noite apareceu Chamus triunfante, trazendo a mesma receita.
No dia seguinte, todos estavam mais ou menos serenados. Febril atividade reinava por toda parte e um escravo que regressou do campo, trouxe igualmente consoladoras
notícias; o mal estava seguramente debelado, porque os casos de contágio eram raríssimos e a maior parte dos contaminados se restabelecia a olhos vistos.
Ao entardecer, fui ao palácio falar com um colega sobre certo negócio. Enquanto o procurava na sala da guarda, avistei Rhadamés e me aproximei para lhe apertar a
mão; com grande surpresa, porém, deixou de corresponder e medindo-me com desprezo, falou com voz rouca:
- Nunca te julguei tão miserável e desleal, tanto que te confiei minha mulher e graças a mim não ficaste reduzido à miséria... Em compensação, como te comportaste
para comigo? O remédio que foste buscar recebi-o dos transeuntes e não sei onde deixaste Smaragda, que só hoje de manhã regressou ao lar.
Falando assim, contorcia as mãos.
Abaixei a cabeça contrito e envergonhado:
- Ela quis ir à Casa de Omifer e lá teve uma síncope. Eu não podia perder tempo e Omifer me prometeu reenviá-la logo que recobrasse os sentidos.
- Mas... como deixar uma mulher a ti confiada, em casa do homem a quem ama e a quem corresponde com fervor? - disse sapateando. Mas, fiquem sabendo, os infames,
que hão de pagar esta afronta logo que eu regresse.
E saiu apressadamente.
- Vai fazer alguma viagem? - perguntei ao colega?
- Creio que foi chamado para acompanhar o Faraó, que, para se distrair um pouco de toda esta confusão, vai por alguns dias, caçar leões no deserto.
Compreendi que Rhadamés adiava projetos de vingança e mais do que isso interessava-lhe um olhar benevolente do rei, de cujas boas graças se prevalecia para tratar
os outros com arrogância. Ele bem que acariciava os pés de Mernephtah, mas à socapa mordia os que lhe desagradavam.
Os dias seguintes foram de calma. Moisés não era visto e cada qual procurava, com afinco, apagar os vestígios de todas as desgraças suportadas.
Meu pai resolveu aproveitar a tranquilidade reinante para realizar o casamento de Ilsiris dentro de oito dias.
Começaram os grandes preparativos, a casa parecia um formigueiro. Mulheres que cortavam e cosiam, preparando os vestidos de minha mãe e da noiva; bem como intendentes,
mordomos e cozinheiros, que ornamentavam as salas e preparavam a festa.
Convites eram expedidos a todas as pessoas notáveis de Tanis e fiz questão de ir pessoalmente convidar Pinehas e a genitora, que prometeram comparecer. Em seguida,
Pinehas levou-me ao seu quarto, onde me serviu uma beberagem que me preservaria do mau olhado, em paga - acrescentou sorridente - da visita de Smaragda, que lhe
facultei.
Ilsiris amanheceu queixando-se de violenta dor de cabeça na véspera dos esponsais, o que atribuímos à fadiga e excesso de atividade nos arranjos festivos, Minha
mãe concitou-a a não se deixar vencer e dominar por uma ligeira indisposição. Ela sorriu e respondeu:
- Tentarei.
A tarde porém, sentiu-se pior, o rosto lhe escaldava e tremores glaciais faziam-lhe tremer o corpo.
Quando, no dia seguinte pela manhã, entrei na sala de estar, notei meu irmão muito preocupado.
- Ilsiris vai mal - disse-me - veja que situação! Daqui a pouco os convidados começarão a chegar e a noiva lá na cama, incapaz de levantar-se.
- Posso vê-la?
- Sem dúvida; sobe ao seu quarto e lá irei também, pois quero apenas dar aqui algumas ordens.
Fui ao quarto de Ilsiris, situado num pequeno terraço ensombrado por plantas floridas. Encontrei-a estendida num leito de repouso, de olhos fechados, rosto incendido
e mãos convulsivamente crispadas. A velha Acca lhe aplicava na testa compressas de água fria. Inclinando-me, notei que da boca entreaberta lhe escapava um hálito
escaldante.
- Querida Ilsiris - disse tocando-lhe na mão - sofres? Lembra-te do dia de hoje e reanima-te!
Abriu os olhos baços, mortiços, tentando erguer a cabeça, mas deixou-a pender logo, gemendo. Esse movimento afastou o lençol fino, que a cobria, e pude ver, então,
no pescoço perto do ombro, escura mancha que se diria picada de cobra. Afastei a cortina que ensombrava o ambiente e pude notar outra mancha semelhante à primeira,
no braço. Fora de mim, procurei minha mãe, que, na outra extremidade do terraço estava preparando um refresco.
- Mãe querida, tem calma e ouve tudo com coragem. Ilsiris está atacada de peste. Providencia para que nenhuma das aias saia de seus quartos, enquanto corro a buscar
um médico e a prevenir meu pai.
- Necho, de que queres prevenir-me? - perguntou meu pai acabando de entrar. - Por Osiris! O que há? - acrescentou, ao ver minha mãe desfalecer numa cadeira e Acca,
de joelhos, batendo com a cabeça no soalho, a gemer surdamente.
- Os deuses retiraram de nós seu olhar - disse minha mãe estendendo, aflita, os braços para ele; ferem o que temos de mais caro. Ilsiris está empestada.
Meu pai cambaleou e apoiou-se à parede, pálido como um cadáver.
- Calma, pai - disse apertando-lhe a mão - os deuses ainda podem salvá-la; vou procurar um médico enquanto mandas prevenir os convidados que não venham, a fim de
não se exporem ao contágio.
Sem esperar resposta, saí precipitadamente, ordenando que atrelassem o carro; entretanto, já a desgraça havia transpirado, de modo que todos os criados, lívidos,
repetiam tremendo: "a peste, a peste"!
Chicoteando os cavalos, corri para junto do velho sacerdote, médico de nomeada, mas não consegui ser atendido. O criado informou que ele estava repousando, seriamente
indisposto. Corri a outro sábio e fui igualmente infeliz. A esposa, desconfiada e abatida, declarou que ele tinha ido Ver um doente.
Desencorajado e aflito com a perda de tempo, resolvi procurar um templo assaz distante e ao dobrar uma esquina, quase abalroei outro carro em disparada. Praguejando,
contive os animais; o outro fez o mesmo, e qual não foi minha surpresa ao reconhecer Omifer abatido e perturbado, a dizer-me:
- Graças a Amon que te encontro, pois ia justamente à tua procura.
- Fala então, depressa, pois também estou à procura de um médico.
- Também eu - respondeu - e quero que me informes o endereço do tal Pinehas, que tão maravilhosamente salvou nossos rebanhos; dize-me onde mora esse grande sábio
e feiticeiro, porque Smaragda está afetada de peste.
- Como não me lembrei dele? - exclamei batendo na testa - mas, por que vieste tu e não Rhadamés?
- É uma história que te contarei durante a viagem - passa para o meu carro e devolve o teu; ali vai um soldado, chama-o!
Aceitei o alvitre confiando o carro ao soldado para que o reconduzisse à casa e segui Omifer, que me passou as rédeas, dizendo:
- Tu conheces o caminho e não poupes o chicote.
Ob dois fogosos cavalos arrastavam o veículo com velocidade enquanto Omifer falava-me:
- Tu te admiras seja eu quem busque um médico para Smaragda e tens razão. Devo dizer-te, contudo, que ela está em minha casa. Esse miserável Rhadamés, que ontem
regressou da caçada real, renovou, ao que parece, as investidas contra ela, por haver passado em minha casa a noite daquele dia em que lá a deixaste, adoentada e
combalida por uma série de contrariedades; hoje, com, o frescor da manhã, ela regressou ao lar acompanhada da ama fiel, mas em viagem sentiu-se mal e notou no seio
pequena mancha negra. À porta da casa, surgiu-lhe o marido, que novamente explodiu em impropérios, e como Sacheprés lhe pedisse que não contrariasse a doente, exclamou:
- Que doença? Que lhe falta? Caprichos de enamorada!
- Oh! senhor - respondeu a velha - como podes chamar a peste de capricho? - Deixa-nos entrar para acamá-la quanto antes.
O covarde recuou espavorido:
- Então ela está contaminada pela peste e tu, bruxa, ousas trazê-la para cá? Pois fica sabendo que não entrareis. Permanecei na rua ou onde quiserem, menos aqui!
A aia, atarantada e sem saber o que fazer, voltou com Smaragda para minha casa e tive, assim, a ventura de cuidar pessoalmente da mulher amada, e certo não permitirei
que ela volte para a companhia do infame.
Com profundo desgosto ouvi o episódio, pois não supunha Rhadamés tão vil.
Chegamos enfim, à casa de Kermosa; parei o carro e Omifer desceu sobraçando pesada caixa que depôs no solo. O negrinho porteiro informou que a patroa estava na primeira
sala.
Fomos gentilmente recebidos por Kermosa, que nos informou estar Pinehas atarefadíssimo, não podendo receber ninguém. Entretanto, quando Omifer lhe ofereceu a caixa
repleta de ouro e jóias e, por minha vez, lhe prometi cinquenta vacas à sua escolha, se Smaragda e Ilsiris recobrassem a saúde, desanuviou a fronte e contestou visivelmente
comovida:
- É-me impossível ficar indiferente e surda ao vosso apelo, generoso Omifer e nobre Necho; tudo farei por conjurar o perigo, que, infortunada e horrivelmente, ameaça
duas criaturas preciosas; encarrego-me, pois, de vencer quaisquer escrúpulos de meu filho; ide ao seu gabinete, mesmo porque, se houver alguém no mundo capaz de
salvá-las, há de ser o meu sábio Pinehas.
Encontramo-lo em uma salinha contígua à que normalmente ocupava. De pé, junto de pequeno fogareiro, ele cozia qualquer coisa numa panela de alabastro. Sobre a mesa
de pedra, uma serpente estendida e meio esfolada, exalando odor penetrante e desagradável e de um grande depósito colado à parede, corria um líquido esverdeado para
uma gamela.
De início, Pinehas não se mostrou disposto a nos socorrer o murmurou mal humorado:
- Posso apostar que subornastes minha mãe a peso de ouro, para que ela vos deixasse vir até aqui; isso não é decente, Necho, porque detesto esmolas; o que possuo
me basta e não desejo que se diga, jamais, que mercadejo com minha ciência.
Contudo, o nome de Smaragda produziu o efeito desejado e recebi logo as instruções necessárias:
- Deves pegar alguns camundongos e queimá-los até reduzi-los a pó, que adicionarás a vinho novo e dessa mistura darás à doente meio copo de hora em hora. Como única
bebida, suco de sargaço (cortado, esmagado e coado num pano). Envolva a doente inteiramente, principalmente os braços e pernas, em panos embebidos no azeite doce
e renovados logo que sequem. Sob o lençol em que estiver deitada, estenda uma camada de terra fresca, renovada de duas em duas horas, e a terra substituída deverá
ser queimada em forno que não receba o pão, é claro.
De um armário retirou uma caixinha e um pote com alcatrão, que me entregou.
- Aqui tens um bálsamo para pincelar as manchas negras, e como será preciso muito tempo para preparar o pó de camundongo, leva-o já pronto nesta caixinha.
Vendo-me apressado, acrescentou:
- Vai na frente e pede o meu cavalo, pois ainda preciso falar a Omifer.
Agradeci e já me encontrava no umbral da porta quando ele advertiu.
- Não te esqueças, se alguém dos teus vier a falecer, de mandar incinerar todos os objetos que lhe serviram e só transportar para o cemitério o cadáver, envolto
em panos alcatroados.
Ao chegar a casa, pus logo em prática as prescrições de Pinehas e transporte e colocação da terra fresca sob o lenço da doente, cujo aspecto repugnava. Cortou-se
e espremeu-se o sargaço para lhe extrair o suco; quanto ao pó, ordenei que o empregassem sem dizer da sua origem.
Depois de transmitir as instruções à mãe, que, desfeita em lágrimas não tinha coragem de se chegar à enferma, fui a meu pai e conversamos acabrunhados.
Quando lhe contei o procedimento de Rhadamés, disse com desprezo:
- Pior que um réptil.
Recolhi-me por fim, ao quarto, cansado de corpo e alma, e adormeci profundamente.
Fui despertado já dia alto por meu pai, tão pálido e abatido que pensei ter morrido Ilsiris.
- Que há? - perguntei aflito.
- Más notícias, meu filho; durante a noite uma dúzia de escravos, homens e mulheres adoeceram. "É uma grande perda!
- É necessário tratá-los da mesma forma que estamos fazendo com Ilsiris. E como vai ela?
- Disse-me tua mãe que as manchas negras esmaeceram e que a respiração é mais tranquila. Pobre mulher! Parece que em toda a cidade a peste já fez numerosas vítimas
e confesso-te que também eu não me sinto bem; roda-me a cabeça e tenho os membros pesados como granito. É a mão de Moisés que pesa sobre nós e talvez estejamos errados
em reter os hebreus!
Observei, com angústia, a expressão fisionômica de meu pai, estranhamente transfigurado.
- Dá as ordens necessárias para o tratamento dos escravos, meu filho, enquanto vou repousar um pouco.
Levei-o ao dormitório e, tomando ás providências de mister, fui de coração opresso, até ao palácio do Faraó, porque estava na escala de serviço.
Ao atravessar a cidade, notei que a horrível moléstia havia invadido lares ricos e pobres; por toda parte, fisionomias aflitas e abatidas. Diante de uma porta, vi
um rabecão que recebia um cadáver repugnante, negro, disforme, coberto de manchas e tumores.
- Que estás fazendo, infeliz! - exclamei parando e recordando a recomendação de Pinehas. Vais difundir o contágio por toda a cidade! Envolve o cadáver num pano alcatroado
e queima toda a roupa e objetos de uso.
Chegado ao palácio, notei geral consternação e soube que o príncipe herdeiro contraíra a moléstia. O Faraó tentara congregar os maiores sábios à cabeceira do filho,
mas os mensageiros voltaram com a desoladora notícia de que, precisamente os sábios e feiticeiros, em sua maior parte, estavam atacados e impossibilitados de se
locomoverem.
No momento, estava reunido um conselho para assentar as providências adequadas.
Ocorreu-me logo a idéia de que o tratamento prescrito para Ilsiris poderia aproveitar ao príncipe herdeiro. Assim dirigi-me rapidamente para a sala da reunião, e
solicitei que me facilitassem a entrada, porque tinha em mira transmitir ao rei um assunto da mais alta relevância.
A princípio o porteiro hesitou, mas, as circunstâncias eram tão críticas que dispensavam formalidades extraordinárias, e acabei entrando e dirigindo-me ao mestre
de cerimônias, que, por sua vez me levou até junto do trono, onde me prostrei. Mernephtah, pálido e encanecido, fitou-me com olhar melancólico e fatigado.
- És tu, Necho? Se trazes ao teu rei um conselho ou remédio, serás regiamente recompensado.
- Permite, grande filho de Ra, dispensador de vida e felicidade, que a minha palavra seja absolutamente confidencial.
- Aproxima-te.
Subi o estrado e inclinando-me, relatei em poucas palavras que obtivera para minha irmã uma receita capaz de aproveitar ao príncipe e que conviria consultar Pinehas,
mas, com as maiores precauções, para não o expor à cólera de Moisés, que não deixaria de eliminar esse homem tão útil.
Um raio de esperança transpareceu no semblante de Mernephtah e coloriu-lhe as faces:
- Agradeço-te, fiel súdito. Jamais serás esquecido e desde já vou conduzir-te para junto do príncipe; depois, irás à casa de Pinehas para obter o pó e o bálsamo
e dir-lhe-ás que três medidas de anéis de ouro lhe pertencem, podendo recebê-las diretamente do meu tesoureiro, ou por teu intermédio.
Levantou-se e disse em voz alta:
- Que o conselho se conserve em sessão permanente, até nova ordem! Agora vou ver meu filho.
Em companhia apenas dos mais íntimos, dirigiu-se para o pavilhão ocupado pelo herdeiro, onde reinava um ambiente de incontida ansiedade. Os criados torciam as mãos
e os guardas, cabisbaixos, como sucumbidos, apenas se moveram para prestar continência.
Após atravessar diversos compartimentos ricamente mobiliados, ergui diante do rei o reposteiro azul e ouro, que ocultava a alcova do príncipe, uma sala não muito
grande, aberta numa das extremidades para o extenso terraço todo florido; paredes cobertas de esculturas e quadros representavam os altos feitos do fogoso rei Ramsés
II. Nos cantos haviam extensos aparadores, repletos de coleções das armas mais variadas e troféus de caça, artigos prediletos do príncipe.
Em um dos ângulos, sobre um estrado com degraus cobertos com peles de tigre, via-se a cama de ouro maciço e sob lençóis de púrpura, Seti, deitado, braços estendidos,
rosto congesto e todo o corpo sacudido por tremores convulsivos. Da boca entreaberta saía respiração opressa e sibilante. Ao redor do leito, comprimiam-se os companheiros
e criados do príncipe, pálidos e indecisos, olhando ora a fisionomia do enfermo, ora a dos dois médicos, dos quais um, de cenho carregado, preparava uma poção, enquanto
o outro evidentemente convencido da ineficácia do remédio, tinha-se voltado cobrindo o rosto com as mãos.
Imediatamente tomei todas às providências. Mandei buscar terra fresca e os vasos de alabastro com azeite doce e folhas de louro misturadas com alcatrão; despido
o enfermo, foi envolto no lençol embebido no azeite e colocado sobre a camada da terra. Mernephtah havia-se afastado para outro lado, em frente, observando atentamente
o que se fazia.
Ao cabo de alguns minutos, o doente, quiçá beneficiado pelo contato da terra fresca e do óleo, abriu os olhos congestionados e olhou a assistência.
- Tenho sede! - murmurou.
Naquele momento entravam dois criados com o suco de sargaço; despejei o líquido esverdeado num copo e, ajudado por um jovem companheiro do enfermo, amparei-lhe a
cabeça e aproximei aos lábios ressequidos o copo, que foi sorvido avidamente até a última gota. Uma expressão de calma e bem-estar estampou-se-lhe no rosto.
O Faraó ergueu-se satisfeitíssimo e batendo-me no ombro, disse:
- Muito te devo, Necho; agora, vai buscar o pó e o bálsamo e entrega ao homem esta prenda (retirou o pegador ornado de soberbas esmeraldas, que lhe segurava o manto).
Depois, volta aqui sem tardança, pois fico mais tranquilo quando te vejo, dado que nossos sábios médicos são verdadeiras negações que não previram nem souberam evitar
a peste.
Deu-me a mão a beijar e parti a toda pressa.
Invadi a sala onde Kermosa dormia na poltrona, junto da mesa cheia de garrafas vazias, sem fazer anunciar. A princípio ela se mostrou muito agastada por ter sido
incomodada; mas, quando lhe disse que vinha da parte do Faraó, que oferecia ao filho três medidas de anéis de ouro, a fisionomia se lhe abriu de contentamento e,
apertando-me a mão, chamou-me seu benfeitor e correu a prevenir Pinehas. Taciturno e preocupado, ele logo apareceu, dizendo:
- Que fazes, Necho? Tuas tagarelices me arriscam a vida...
Estendi a Pinehas o pegador de esmeralda e pedi que me fornecesse o pó e o bálsamo. Agradeceu, visivelmente satisfeito e foi ao quarto buscar um pote grande de bálsamo
e uma caixinha de pó.
- Diga ao Faraó que esta noite mande afastar os importunos e curiosos que rodeiam o enfermo, pois irei eu mesmo tratá-lo; que providencie para minha entrada no palácio,
sem dificuldade.
Correndo, voltei ao palácio, e encontrei Seti preso de sono agitado, embora respirando mais calmo; os circunstantes informaram que ele despertara, por vezes, bebendo
o suco de sargaço. Então eu próprio misturei o pó e o vinho, recomendando lhe ministrassem meio copo, de meia em meia hora; depois, ensinei como se pincelavam com
o bálsamo as manchas negras, e a seguir fui ter com o Faraó para informá-lo da visita de Pinehas. Estava, porém, em conselho e tive de esperar, até que saísse da
reunião. Ao ouvir-me, mostrou-se muito contente com a notícia. Mandou que voltasse para junto do príncipe, onde também estaria depois de expedir algumas ordens.
Assim, fui obrigado a permanecer no palácio, embora impaciente por saber como corriam as coisas em casa. Felizmente, a noite estava prestes a chegar e Pinehas, não
poderia tardar. Primeiro veio o rei, que mandou que saíssem todos, exceto eu e alguns jovens da nobreza, companheiros de infância do príncipe e a ele devotados de
corpo e alma.
O doente continuava desfalecido, mas notava-se que o mal não progredira.
Mernephtah sentara-se junto de uma mesa e servimo-lo de vinho. Após esvaziar o copo, disse com tristeza e ironia:
- Por toda a cidade a moléstia se agrava de momento a momento; mas, evidentemente, ela não me quer; talvez seja uma deferência de Moisés, temeroso de que não haja,
depois, quem lhe consinta a retirada dos hebreus.
- Caro rei! - dissemos - é Ra, o deus poderoso, do qual descendes, que te protege e imuniza; pois que seria do teu infeliz povo se não velasses por ele, nutrindo-lhe
a coragem?
O aviso de que o visitante do Faraó aguardava suas ordens, veio interromper nossa penosa espera. O rei ordenou que fosse introduzido e logo apareceu um velho de
barbas brancas, envolto em negro manto. Pelos olhos e ademanes, reconheci Pinehas.
Depois de saudar o Faraó, desfez-se do manto e tendo examinado o príncipe, disse que ia começar imediatamente o tratamento, pedindo ao rei e aos assistentes que
não se assustassem nem se admirassem do que iam presenciar e, sobretudo, que não o tocassem, a pretexto algum, porque daí poderia resultar acidente fatal ao enfermo.
Ninguém se moverá nem se aproximará de ti, sem que o autorizes - respondeu o rei - sobre isso podes ficar tranquilo.
Pinehas pediu um fogareiro com brasas e grande bacia d'água, que colocou junto do leito; a seguir, tirou do bolso um saquinho de ervas secas e jogou um punhado nas
brasas, produzindo uma fumaça acre, mas aromática. Inclinando-se para o fogareiro, aspirou fortemente a fumaça e ordenou que tirassem todas as lâmpadas, exceto uma
colocada num canto; depois, assentou-se no chão, junto da bacia, de pernas cruzadas e mãos estendidas na direção do enfermo. Silêncio absoluto. Reunidos atrás da
cadeira ocupada pelo rei, mal nos atrevíamos a respirar.
Longo tempo assim esteve Pinehas, de olhos fixos no príncipe; pouco a pouco o rosto cobriu-se-lhe de mortal pavor, como que petrificado. Olhos escancarados, inexpressivos,
braças sempre estendidos para frente, dir-se-ia uma estátua. Depois, começaram a lhe aflorar placas luminosas pelo corpo, ora esmaecendo, ora aumentando o brilho;
das mãos como que se desprendia tênue claridade, que, em chispas multicores, mergulhava nágua. De repente, sem mudar de posição e sem qualquer auxílio visível, Pinehas
elevou-se no ar e dessa forma pairou à altura do leito de Seti inteiramente descoberto.
Logo, notamos que das extremidades do enfermo, do vértice da cabeça e sobretudo da região do estômago, saía qualquer coisa negra, que se fundia em nuvem densa, aspirando
e dissipando-se, enquanto o corpo do mago continuava a expelir partículas luminosas.
Assombrados, contínhamos a respiração, contemplando o espetáculo extraordinário.
Tudo cessou por fim. Pinehas voltou ao solo e passado certo tempo deu um profundo suspiro, lançando em torno um olhar fatigado. Levantou-se e distendeu os membros.
Feito isso, lançou em outro vaso a água que absorvera as partículas luminosas, bebeu um gole do restante, lavou o rosto e as mãos e, aproximando-se de Seti com um
pano molhado na mesma água, esfregou-lhe o rosto, os pés e as mãos. Voltou-se depois para o Faraó e disse:
- Poderoso soberano, aproxima-te e verifica que as manchas desapareceram, e, com elas, a terrível moléstia. O príncipe se restabelecerá, pois todo o perigo passou.
O que resta é um estado de extrema fraqueza. Sigam a rigor o tratamento prescrito e logo teu filho recuperará as forças e o viço da mocidade.
Mernephtah aproximou-se e após verificar que o filho dormia um sono normal e profundo, bateu no ombro de Pinehas, dizendo:
- Tu és o maior médico do Egito, depois de Moisés; toma isto como prova do meu reconhecimento pela vida do meu herdeiro. - Tirou do dedo um anel com magnífica safira,
na qual estava esculpida a cabeça de Apis. - Acrescentando mais três medidas de ouro às que já te dei, presenteio-te com três cavalos encilhados, das minhas cavalariças;
cem vacas e cem carneiros dos meus rebanhos. Necho, registra estas ordens e providencia para que tudo seja enviado a Pinehas, da forma que melhor lhe convier.
Pinehas prostrou-se de braços cruzados, agradecendo.
Depois de entregar as tabuinhas com as prescrições a serem observadas, retomou o manto e saiu.
Logo depois, Seti abriu os olhos, inteiramente lúcido e pediu o que beber. Todos se aproximaram.
- Filho, como te sentes? - perguntou Mernephtah inclinando-se e beijando-o na fronte.
- Perfeitamente bem, apenas fraco. Tenho idéia de que um homem flutuava no ar, perto de mim, e que partia dele uma fonte d'água tão fresca, tão perfumada que, à
medida que escorria pelos meus membros abrasados e doloridos, eu me sentia renascer.
- É verdade, filho; os deuses te favoreceram com um verdadeiro sonho. Um grande mago aqui esteve, junto de ti e te restabeleceu a saúde; a horrível moléstia abandonou
o teu corpo; agora é preciso repousar, porque a calma e o silêncio te são necessários.
Mernephtah retirou-se e pouco depois eu também retomava, justamente aflito, o caminho de casa. Apesar do adiantado da hora, as ruas ainda formigavam de gente e,
certamente, alguma coisa do tratamento do herdeiro havia transpirado, porque muitos pobres carregavam sacos e cestas de sargaços e vasos de azeite.
Quando cheguei à casa, um velho escravo informou-me logo que nada de extraordinário ocorrera, mas várias pessoas haviam sido atacadas.
Fui até o quarto de meu pai. Dormia sono pesado e inquieto, remexendo-se no leito de um lado para outro. Não desejando incomodá-lo, retirei-me e fui dormir descansado.
De manhã, fui informado pelo velho criado que meu pai estava passando mal. Corri para junto dele e não tive dúvida em concluir, pelo rosto inchado, olhos esbugalhados
e corpo crispado, que tinha contraído a moléstia.
- Depressa - exclamei aos que deblateravam ao redor do leito - em lugar de ficarem aí inativos, vão buscar terra e azeite. Não há tempo a perder.
Depois de lhe dispensar todos os cuidados possíveis, resolvi chegar até os aposentos maternos. Ao atravessar a sala de jantar, notei, com espanto, que um escravo
estava caído perto do aparador, de onde pretendia retirar a baixela. O rosto intumescido e as feias manchas que lhe pontilhavam o corpo, assinalavam uma nova vítima
que ainda não tinha sido retirada. Na ante-câmara de minha mãe, várias mulheres amontoadas e desfiguradas, davam a impressão de que não viam nem, ouviam.
Encontrei minha mãe assentada perto de uma mesa com a cabeça apoiada às mãos. Com o ruído dos meus passos, levantou os olhos, dizendo:
- És tu, Necho? Teu pai também foi atingido, já sabes? Pobre Mentuhotep! Sinto, porém, que o seguirei de perto, pois a cabeça me roda e não me aguento nas pernas.
Ao ouvir tais palavras fui preso de íntimo desalento: Ilsiris, ela, e o pai... Iria perdê-los a todos?
- Não fales assim, mãe; isso não significará mais que passageira fraqueza, devido aos aborrecimentos e ao cansaço; como vai Ilsiris?
- Ainda vive. Queres vê-la? - acrescentou, deixando-se cair nos travesseiros.
Levantei-me e entrei no quarto contíguo, propositadamente mergulhado em penumbra. Ilsiris lá estava no leito, esquelética e desfigurada. A febre ainda lhe escaldava
as faces e os olhos, mas as manchas horrorosas tinham desaparecido. A velha Acca trocava, na ocasião, os panos molhados no azeite.
- Acca, como te sentes? perguntei, vendo que Ilsiris fechava novamente os olhos.
- Bem - respondeu a velha enxugando uma lágrima - bebo de todos os remédios, fricciono-me com azeite e como o pó com o pão; sinto-me vigorosa como um peixe n'água.
Só me falta que os meus bons senhores sejam salvos!
- Querida Acca - disse acariciando-lhe a face encarquilhada - nunca esqueceremos teu devotamento nestes dias amargurados.
Voltei para junto de minha mãe e notando-lhe o rosto afogueado, convidei-a a respirar um pouco de ar fresco, no terraço. Apoiada em mim, caminhou com dificuldade,
mas apenas deu alguns passos, parou e levou a mão ao peito.
- Como queima! Parece-me ter uma faca enterrada aqui! - disse afastando a roupa para mostrar-me a região. Vendo, entretanto, uma grande mancha violácea, deu um grito
agudo e tombou desacordada. Coloquei-a no leito e chamei Acca. Tornando-se indispensável e não podendo a velha, sozinha, atender a tudo, toquei a campainha dos criados,
mas apenas dois se apresentaram.
- Senhor - disse um deles todo lacrimoso - ninguém atenderá ao teu chamado, pois metade das mulheres estão doentes e as outras estão esgotadas a ponto de não poderem
fazer qualquer coisa.
Pus as mãos na cabeça e comecei a pensar que, da maneira em que vão as coisas, dentro em pouco não haverá quem cuide dos próprios doentes!
Lembrei-me novamente de Kermosa. Talvez me cedesse, por empréstimo, uma serva bastante inteligente para dirigir os socorros aos doentes e auxiliar Acca no tratamento
de meus pais; pagaria de bom grado o que fosse pedido.
Sem perder tempo, apanhei uma caixinha, enchia-a das jóias que encontrei à mão e, tomando o carro toquei para casa de Pinehas. Kermosa me recebeu amavelmente.
- Ajuda-me - disse apresentando-lhe o cofre - todos os meus estão atacados da peste, sem contar mais de trinta escravos e criados. Os que não estão doentes, estão
horrorizados, vendo seus parceiros, que morrem sob suas vistas.
- Vejo que estás desatinado, pobre rapaz. Teus pais estão doentes da peste e os servos, perturbados, incapacitados de agir. Não deves, porém, desesperar. Acalma-te,
Necho; gosto da tua família e te ajudarei; vou emprestar-te uma jovem capaz de cuidar dos doentes, dirigindo o tratamento. Entretanto, devo dizer-te uma coisa: estimo
essa moça que, jovem e bela, é, até certo ponto minha parenta - acrescentou baixando os olhos envergonhada. - Promete-me, pois, que nunca lhe faltarão atenções em
tua casa.
- Quanto a isso posso jurar - respondi. Ela te será restituída impoluta, ninguém lhe tocará com um dedo.
- Henaís - gritou Kermosa no seu metal de voz sonoro e agudo - depressa!
Logo, uma rapariga de beleza surpreendente assomou no umbral. Um vestido simples, de pano listrado, desenhava-lhe o corpo esbelto, deixando a descoberto uns ombros
e braços admiráveis. A cútis bronzeada era tão pura que se diria ver o sangue circular na sua transparência, traços regulares e encantadores, olhos negros, doces
e veludados, como os de uma gazela, exprimiam bondade extrema. Ao ver-me, perturbou-se e baixou a cabeça.
- Henaís, vês este nobre egípcio? - disse Kermosa - três membros de sua família foram atingidos pela peste e o pessoal doméstico morre como mosca; ele veio pedir-me
alguém capaz de o ajudar e foi a ti que escolhi. Sei que te desobrigarás a contento, porque fui eu que te educou de forma idêntica à dos ilustres egípcios, meus
patrícios. Portanto, podes ir tranquilamente cuidar dos pobres doentes, porque Necho me prometeu que, a começar por ele, até o último escravo, ninguém abusará de
ti.
- Mas - retrucou ela empalidecendo - Pinehas não há de concordar.
- Pinehas não tem outra coisa a fazer se não obedecer-me, compreendes? Evita palavras imprudentes, que possam dar a entender que meu filho tenha outra vontade que
não a minha, quando a verdade é que, desde a infância, sua adoração filial o faz considerar meus desejos como lei. Vai, pois, e prepara-te para acompanhar o nobre
Necho.
A moça, que muito respeitava Kermosa, desapareceu imediatamente. Perguntei se não poderia avistar-me, um momento, com Pinehas,
- Creio que não - respondeu Kermosa - pois está ocupadíssimo, junto de Smaragda, gravemente contaminada. Mas, vem comigo, e se for possível, vê-lo-ás.
Levou-me aos apartamentos do filho e deteve-se diante da porta velada com uma cortina que ela entreabriu discretamente para lançar um olhar pelo interior; depois,
com o dedo nos lábios, em sinal de silêncio, acenou-me para que me aproximasse. Avancei curioso. Na sala confortavelmente mobiliada, vi Smaragda estendida como se
estivesse morta, num leito de repouso. Tão branca como a gase que a recobria, mas sem as manchas negras no corpo; a febre deveria ter cedido, pois ela dormia como
se apenas estivesse muito extenuada. Junto dela, de pé, Pinehas, inquieto e com as veias intumescidas. Com grande espanto, notei que, com a ponta dos dedos ele tocava
a fronte da moça, descendo depois as mãos sem tocar o corpo, até os pés. Isto incessante e seguidamente. Não vi Omifer, notando apenas que numa esteira dormia profundamente
uma negrinha.
Finalmente, Pinehas cessou de operar. Parecia exausto e suor copioso escorria-lhe da fronte; inclinou-se para a enferma e auscultou-a. Sua fisionomia tinha expressões
alternantes de ódio e de ternura. Depois, deixou-se abater no tapete, colou os lábios nas pequeninas mãos de Smaragda, que não se moveu.
Violentamente, Kermosa puxou-me para trás, sussurrando:
- Nada vimos, compreendes?
- Sem dúvida - respondi - percebo que no momento não lhe posso falar.
Henaís já estava à minha espera quando voltamos, com um véu na cabeça, envolvida num manto escuro e sobraçando um embrulho. Atirou-se aos pés de Kermosa e lhe beijou
as mãos.
- Felicidades, querida Henaís - disse esta beijando-a na testa.
- Fica a teu cuidado, Necho - acrescentou ao despedir-se.
- Vem - disse tocando a mão trêmula da moça - nada receies, pois tudo farei para que te sintas bem em nossa casa.
Fi-la subir ao carro e chegando à casa levei-a para junto da boa Acca, com quem a deixei.
Comunicou-me nosso velho intendente que o azeite estava quase esgotado e perguntou onde poderia obtê-lo.
Temendo pela sorte do portador, que poderia adoecer no caminho, fui pessoalmente à casa de um rico negociante com quem meu pai tinha transações.
Recebeu-me muito aflito, porque também tinha doentes e acabava de perder a filha, vitimada pela peste; ensinei-lhe o tratamento que tanto aliviou Ilsiris e, ele,
em sinal de reconhecimento, prometeu-me fornecer todo o azeite de que eu viesse a precisar.
Ao regressar, já encontrei as coisas noutro pé. Meu pai e minha mãe estavam revestidos de panos molhados em azeite; as ânforas estavam cheias de suco de sargaços.
Henaís, a correr de um doente para outro, ensopando de azeite os lençóis de um, dando a beber a mistura de vinho e pó a outro, atendendo a todos com solicitude.
Entre os criados, também parecia renascer a coragem. Todos os doentes estavam acomodados e já haviam recebido os primeiros socorros; enfim, por determinação de Henaís,
vários rapazes apanharam algumas serpentes e as esfolaram para retirar a gordura destinadas às fricções.
Quando cheguei junto de meus genitores, vi Henaís dando de beber a meu pai, que se encontrava em deplorável estado, com o corpo coberto de manchas, rosto disforme
e respiração sibilante. Não me reconheceu e assentei-me perto dele, admirado eu próprio de não experimentar nenhum incômodo. Estaria imune ao contágio?
Observei Henaís por muito tempo, não podendo desviar os olhos dessa encantadora criatura, que, ligeira e calada, parecia o anjo tutelar dos doentes.
Aproximei-me por fim, e tomando-lhe as pequeninas mãos morenas, disse reconhecidamente:
- Querida Henaís! É admirável o teu trabalho! Mas, não estarás abusando das tuas forças? Forte e saudável, não poderia eu ajudar-te?
A princípio, ela se mostrou tímida e calou; depois, desembaraçando-se, ergueu para mim os grandes olhos brilhantes, dizendo:
- Não te preocupes, pois nada sinto e cuidarei de todos, sem prejuízo de ninguém - acrescentou ainda hesitante - Não fiques assim triste e pálido; vai repousar um
pouco e amanhã entrega-te tranquilamente ao teu serviço; não te acabrunhes, porque ninguém morrerá enquanto estiver sob os cuidados de Henaís.
Comovido, apertei-lhe fortemente a mão e tentei abraçá-la. Recuou assustada e recordei, então, a promessa feita a Kermosa, afastando-me sem demora.
No dia seguinte, tudo continuava na mesma. Alguns dos nossos homens ainda continuavam enfermos, mas não houve óbito. Depois do almoço, fui ao palácio, onde o herdeiro
ia passando bem, apenas muito debilitado. Após a refeição do Faraó, um oficial perguntou-me:
- Não sabes o que há com Rhadamés? Há dois dias que não aparece; felizmente o rei não procurou por ele. Estará atacado da peste?
- Não sei - respondi - tenho muita desgraça em casa, por isso não posso pensar nas tragédias dos outros.
- Estamos em idênticas condições - acrescentou suspirando.
Havia muito que anoitecera, quando deixei o palácio, de volta à casa. O aspecto da cidade, que se tornara asilo da peste e da morte, era ainda mais sinistro que
durante o dia. Em todas as ruas notavam-se grandes fogueiras, a que os soldados atiravam ervas aromáticas misturadas com alcatrão. O revérbero das chamas refletia-se
fantasticamente nos corpos nus e nas cabeças selvagens dos guerreiros, assim como nos edifícios, quer fossem escuros, ou pintados de cores vivas. Pela sombra das
casas, evitando a luz dos braseiros, deslizavam pessoas transportando em padiolas grandes fardos envoltos em pano alcatroado. Eram as vítimas da peste. Silenciosos,
como se temessem despertar em sua passagem a atenção dos circunstantes aterrorizados, lá seguiam eles para o cemitério com a carga sinistra. Muitas vezes meu cavalo
empacava, recusando-se a prosseguir, ou se desviava ao passar junto de um corpo estendido no solo, às vezes inanimado, outras vezes gemendo surdamente.
Eram as vítimas que a patrulha ainda não havia retirado.
Após pequeno desvio para livrar-me de extensa fila de padiolas, aconteceu-me passar diante do palácio de Mena. O grande edifício estava imerso na escuridão e silencioso,
apenas iluminado pelo reflexo da fogueira acesa no meio da rua. Recordei-me de Rhadamés e da crueldade selvagem com que escorraçou daquela mesma porta a esposa gravemente
enferma. A peste que rondava o ponto, teria atingido aquela casa?
Procurei informar-me. Ao redor do fogo estavam acocorados soldados etíopes de largas mandíbulas e cabelo encarapinhado, alimentando o fogo com ar sinistro e apatetado.
Chamei um, ordenando-lhe que segurasse o cavalo e aproximei-me da porta. Suspendi o martelo de bronze para deixá-lo cair na campainha e um som agudo e prolongado
se fez ouvir, quebrando o silêncio da noite. Ninguém, entretanto, respondeu do interior, nem apareceu qualquer criado. Estariam todos mortos lá dentro?
Pedi uma tocha e chamei dois soldados para forçar a porta. Encontrei-a aberta e entrei sozinho, sem temor algum, pois já estava muito afeito ao contato de doentes,
para que me atemorizasse. Percorri o pátio e, ao atravessá-lo, tropecei num obstáculo. Abaixei a tocha e vi, horrorizado, um cadáver já em decomposição, nada mais
representando que uma pasta negra e putrefacta. Descortinei dezenas de corpos no solo, alguns assentados de encontro à parede, de olhos vidrados e boca escancarada,
inchados como tonéis. Um quadro verdadeiramente macabro e apavorante!
Que teria acontecido aos donos da casa? Era isso o que desejava saber.
Voltei e penetrei na casa, tremendo. No vestíbulo, apenas encontrei o cadáver de um homem. Galguei, então a soberba escadaria fracamente iluminada por uma tocha
presa à parede; prosseguindo, divisei finalmente, um preto velho que, acocorado junto de um fogareiro, queimava ervas alcatroadas, tal como faziam os soldados nas
ruas. A meu chamado, aproximou-se logo e disse-me que apenas ele e uma mulher ali se encontravam.
- Todos os demais criados fugiram - acrescentou. - O patrão expulsou os primeiros que adoeceram, mas, quando a velha senhora e duas filhas foram atingidas, todos
debandaram, inclusive o próprio patrão, que se meteu no subterrâneo e não mais apareceu. Talvez já esteja morto.
- Por que não removem os cadáveres?
- Porque são muitos e não tenho forças para tanto, além de não saber a quem me dirigir.
Perguntei onde estavam a mãe e irmãs de Rhadamés. O escravo deu-me a direção e depois de atravessar diversas salas cheias de cadáveres, cheguei a uma grande alcova
luxuosamente mobiliada e aclarada por duas lâmpadas, que iluminavam uma grande mesa repleta de pastéis, mel e uma ânfora de ouro cheia de vinho.
Jovem nubiana saboreava o rico repasto, após haver-se enfeitado, pois lá estavam cofres abertos, caixinhas viradas e o flagrante grotesco. Na extremidade do quarto,
três seres viventes se contorciam no leito, tão desfigurados que mal pude reconhecê-los.
Com a minha aproximação, a nubiana levantou-se contrafeita e assustada.
- Ouve, rapariga! fala-me sinceramente: não encontraste nada a fazer senão roubar e comer? Toda a cidade está em movimento, todos se auxiliam e no entanto estes
infelizes aqui agonizam à míngua de socorro...
- Mas ninguém manda nem pede nada! - disse a pobre criatura - pois as senhoras nada falam que se entenda, já há dois dias.
- É verdade - disse o preto velho que me acompanhara, meneando a cabeça - ordenai o que é preciso fazer, porque não ouso aproximar-me do meu senhor, que se conserva
furioso e incompreensível.
- Tens óleo de oliveira em casa?
- Ânforas deste tamanho - disse, designando altura quase igual à dele.
Indiquei-lhe, então, o tratamento a seguir, acrescentando que no dia seguinte voltaria a ver se tudo havia sido bem executado. E pedi que me indicasse o refúgio
de Rhadamés, pois se ele ainda vivesse queria envergonhá-lo por entregar-se a tal covardia, enquanto os parentes morriam à míngua de cuidados.
O preto levou-me até uma escada que descia para as adegas.
Desci, penetrando numa cava de tamanho regular, iluminada por uma tocha; junto às paredes, enormes cofres e ânforas de diferentes tamanhos e num canto, acocorado,
alguém de costas voltadas para mim, sorvia avidamente o conteúdo de diversos vasos cinzelados, que lhe ficavam à frente. Aproximei-me do personagem e iluminando-o
com a tocha, reconheci Rhadamés horrivelmente mudado - pálido, as vestes sujas e desmanteladas.
Ao ouvir meu chamado, deu um salto e quis fugir de espada em punho. Não encontrando saída, gritou:
- A peste que ataque a todo mundo, que todos morram. Basta que eu viva! - E batia com a espada nos vasos e ânforas, que se quebravam com fragor, molhando o chão.
- Os deuses tê-lo-iam enlouquecido, punindo-o pela falta de caridade? - perguntava-me apavorado. E de pernas bambas, fugi, entregando à proteção dos deuses a casa
de Mena com os seus moradores.
Ao entrar em casa, encontrei meus queridos doentes no mesmo estado; nem piores, nem melhores, a gemer e rolar no leito.
Enquanto eu ajudava a erguer minha mãe, Henaís falou:
- Não te aflijas, pois não pode ser de outra maneira. Só ao fim de três dias é que virão as melhoras. Quem o disse foi Pinehas e suas palavras são sempre verdadeiras,
pois é um grande sábio, na opinião de mãe Kermosa.
E ao notar meu aspecto de fadiga, acrescentou:
-Estás extenuado, vai ao quarto vizinho, onde acharás alguns refrescos; tardaste bastante e previ que chegarias com fome. Vai-te refrescar e repousar, pois aqui
estou de vigília e não há necessidade de teu concurso.
- Obrigado, boa Henaís, por teres pensado em mim - disse tomando-lhe a pequenina mão entre as minhas.
- Bem - disse, após um instante de hesitação - tu não estás, a bem dizer, doente do corpo, mas da alma, porque Pinehas diz que, quando entristecemos, a alma está
doente; e tu te sentes infelicitado, porque os teus queridos estão sofrendo. '
Antecedeu-me na sala contígua e, colocando-se perto da minha cadeira, encheu uma taça de vinho que me ofereceu sorrindo. Experimentei, então, uma viva e estranha
simpatia pela bondosa criatura. Seus gestos e suas palavras traduziam particular encanto. Depois de muito instalada, consentiu em sentar-se a meu lado e serviu-me
os melhores bocados. Tendo comido com apetite incomum, deixei-me persuadir por Henaís e fui deitar-me.
Alguns dias transcorreram sem maiores novidades dignas de menção. Ilsiris estava melhor, mas o estado dos meus genitores e da maior parte dos servos continuava deplorável:
por vezes, sentia-me desanimado, mas Henaís encorajava-me.
- Que queres? - dizia sorrindo - ninguém ainda morreu; e quanto ao mais, é preciso ter paciência.
E eu já estava tão afeito ao seu convívio naqueles dias amargurados, que alguma coisa me faltava, quando ao entrar em casa não a avistava logo.
Certa vez, precisei madrugar para ir ao palácio, a fim de acompanhar Faraó ao Templo. O príncipe Seti levantara-se, na véspera, pela primeira vez e o rei queria
render graças aos deuses por lhe haverem poupado o filho.
Acompanhado apenas de reduzido séquito, Mernephtah entrou no Templo, onde os sacerdotes, também dizimados pela terrível epidemia, o receberam com as habituais solenidades.
Nós permanecemos na ante-sala que precede o santuário em que foi introduzido o rei, por um dos profetas, na ausência do grão-sacerdote, enfermo e acamado. Vimos,
então, Mernephtah prosternar-se diante do ídolo. Ergueu os braços e a voz sonora ecoou pelas abóbadas:
- Poderoso Osiris, rendo-te graças por tua misericórdia em conservar-me o filho; mas tem piedade também do meu pobre povo! Serás menos poderoso que o deus cruel
dos hebreus? Se ele pode ferir-nos com a peste, tu, grande protetor do teu devotado povo, podes livrar-nos. Dá-nos a conhecer a natureza do sacrifício que exiges
para aumentar tua força e vencer o Deus inimigo e dá-me um sinal de que esta súplica foi aceita.
Todos nos prostramos e, braços alçados, unimos nossas preces à do nosso Faraó. Ao mesmo tempo, os sacerdotes e sacerdotisas entoaram um cântico sacro, muito emocionante,
ao Bom de suas harpas; isso num ambiente que, por sua fragrância ativa, me comoveu até as lágrimas. Foi então que vimos pequenas chamas aparecem na abóbada, e desceram
sobre o altar, iluminando espontaneamente a oblata preparada. Com este sinal evidente da graça de Osiris, nova esperança fortaleceu os corações; Mernephtah também
pareceu reconfortado, e depois de haver prometido grandes sacrifícios e dádivas aos deuses, deixou o Templo.
Embora não divulgada, a visita do rei ao Templo de Osiris se propalou com enorme celeridade e quando ele retomou a liteira, viu todas as ruas do itinerário apinhadas
de multidão compacta, da qual partiam soluços e lamentações.
Próximo ao palácio, foi preciso parar. As cabeças se tocavam, ondulando como vagas ululantes; milhares de braços se erguiam e, sobrepujando gemidos e lamentações,
ouviu-se o grito:
- Permite que partam os hebreus! Tem piedade do teu povo, Faraó, antes que a peste horrível nos ceife a todos. Olha que as casas se esvaziam, morrem senhores e servos,
breve não haverá braços para o trabalho.
Doentes de aspecto horripilante foram empurrados para a frente. Mulheres desesperadas enfrentavam a liteira, levando nos braços os filhos cobertos de pústulas e
manchas negras.
De repente, a massa comprimiu-se soltando gritos e sendo esmagada; um claro abriu-se dando passagem livre a uma fila de carretas, atulhadas de cadáveres envoltos
em panos alcatroados. Diante desse quadro, a multidão aterrada passou a gemer lugubremente.
- Perece tudo! - exclamavam - almas e corpos, pois no cemitério os corpos ficam amontoados como animais impuros, à falta de mãos que os embalsamem ou enterrem honrosamente!
Depois, todos os gritos se fundiram num só:
-- Deixa partir os hebreus! É a nossa única salvação!
Pálido, Mernephtah ergueu-se na liteira e seus olhos fuzilantes abrangeram a multidão desvairada que, vendo-o nessa atitude, emudeceu.
- Não sois os únicos atingidos - disse no seu diapasão de voz metálica, que facilmente atingia as últimas fileiras - o herdeiro da coroa não foi poupado e no palácio
sofrer se como na mais modesta choupana; meus parentes e conselheiros, todos os chefes e oficiais do meu estado-maior, tem a casa repleta de doentes. Nenhum deles,
porém, ainda me veio pedir que deixasse partir os hebreus! Vós temeis a tal ponto? Estais certos de que Moisés tem poderes para impedir a peste e a morte? Venho,
agora mesmo, do Templo de Osiris, onde o poderoso deus ouviu minha súplica, pois a fiam a celeste baixou sobre o altar para consumir a oferenda que lá depositara.
Ao ouvir essas palavras consoladoras, ditas com decisão e veemência, todas as cabeças se ergueram e a esperança brilhou em todos os olhares. Houve gritos de louvor
e bênçãos. A multidão abriu larga passagem.
- Meus fiéis egípcios, não desespereis, tudo que for possível o vosso Faraó fará por vós - acrescentou Mernephtah assentando-se. E a liteira se pôs novamente em
movimento.
Estrugiram aclamações frenéticas, pois o povo compreendeu que o espírito altivo do rei sofria e que, emocionado com a desgraça dos súditos, acabaria cedendo, para
os salvar.
O monarca recolheu-se acabrunhado sem tocar na refeição que lhe serviram. Também a taça ficou intacta e ninguém ousou quebrar o pesado silêncio do ambiente. Só à
tarde ele se dirigiu a um dos conselheiros que o assistiam dizendo-lhe:
- Que amanhã cedo Moisés venha à minha presença.
Ainda sentado à mesa do almoço, no qual não havia tocado, anunciaram-lhe, no dia seguinte que Moisés aguardava suas ordens.
- Que venha aqui! - disse com um clarão nos olhos.
O vulto corpulento do profeta hebreu logo insinuava-se na galeria, acompanhado pelo inseparável irmão Aarão.
Diante do rei, inclinou-se ligeiramente e, cruzando os braços, perguntou irônico:
- Poderoso Faraó, que desejas de mim? Se és forte por que me chamas?
- Cala-te, insolente! Acreditas ter-me amedrontado com as tuas feitiçarias? - exclamou o rei dando um murro na mesa, fazendo-a estalar e entornando o vasilhame -
empestaste o povo com processos infernais, pois não creio que isso possa ser obra de um deus. Não foi por mim que te mandei chamar e sim por meus súditos, que choram
e desesperam, supondo que podes conjurar a morte desencadeada. Povo cego e estúpido que imagina que tua força governe realmente o reino das trevas e das sombras.
Curvo-me diante dos seus desejos, concedo-te vinte e quatro horas; e, se dentro delas não houver um só egípcio empestiado, poderás reunir os hebreus e partir com
eles.
Fitando o rei com espanto, enquanto ardente rubor cobria-lhe as faces, Moisés recuou:
- São necessários três dias para extinguir a peste, - disse com voz pausada.
Malicioso sorriso descerrou os lábios de Mernephtah e, voltando-se para os guardas, ordenou:
- Descei com vossas trombetas e, percorrendo as ruas, convocai o povo a reunir-se aqui, diante do palácio, do lado do terraço.
Alguns oficiais desceram correndo, mas logo se convenceram de que não havia necessidade de convocação, porque, em todas as direções, por mais longe que a vista alcançasse
só se viam cabeças. É que haviam reconhecido Moisés e, a multidão, sempre crescente, quase o havia impedido ao palácio.
Prevenido de que o povo ali acorrera, Menerphtah dirigiu-se para o terraço de onde já havia falado.
Aproximou-se da balaustrada e com um gesto, chamou Moisés para junto de si elevando a voz sonora, para dizer:
- Fiéis egípcios: Moisés, o mágico, acaba de comprometer-se a extinguir dentro de três dias a peste que assola o Egito. Esgotado o prazo, não deverá restar um só
doente em todo o país. Se ele cumprir a promessa, concedo que se retire com o povo hebreu. Ordeno, portanto, que dentro de três dias aqui estejais novamente para
dar-me a prova do seu poder, ou da sua fraqueza, isto é, acompanhados dos vossos doentes, restabelecidos ou empestados.
Voltando-se para Moisés, que o ouvia estupefato e contrariado, disse:
- Vê bem o que exijo.
Saudou, com um gesto, o povo exultante de alegria, que se prostrava beijando as paredes do palácio. O monarca retirou-se e nós o seguimos e ficamos na sala contígua
à alcova real, onde só entraram alguns dignatários. Eu e outro colega nos postamos à porta.
Ainda pálido e combalido o príncipe Seti lá estava também numa cadeira, apoiado em almofadas. Beijando a mão paterna, interrogou inquieto:
- Que significam esses gritos e clamores do povo? Aqui, todos a quem pergunto, emudecem e baixam os olhos. Que há, papai? Alguma calamidade ameaça o Egito?
Mernephtah, sentando-se na cadeira que lhe trouxeram, respondeu:
- É o povo estúpido que pede deixe partir os hebreus. Pois bem, atendi ao povo. Moisés acaba de sair daqui e o que ouves são gritos de alegria de uma turba ensandecida,
que se aferra a tudo que acredita constituir desafogo a seu favor.
Rubor intenso coloriu o rosto do príncipe e os lábios tremiam-lhe nervosamente, quando disse:
- Deixas partir os hebreus, pai? É uma indigna fraqueza; como podes dar ouvidos a um povo atrasado e cego, que, no seu pavor, não sabe o que pede? Revoga tua promessa,
pois seria insensato mantê-la.
Exaltado, tentou levantar-se, mas logo recaiu extenuado.
O rei falou serenamente:
- Acalma-te, podes crer que eu ceda a clamores da populaça, embora me sangre o coração vê-la aflita? Sim, o coração confrange-se ao ver milhares de cadáveres levados
à morada dos mortos, ainda que lá seja a mansão do repouso e da alegria e aqui a das dores e lágrimas. Grande, porém, é o nosso egoísmo, desde o do Faraó que receia
por seu herdeiro, até o último operário, que treme pelo filho, menosprezado como ele. Cada qual quer reter os seus neste mundo de sofrimento e misérias. Mas tu te
enganas, se pensas que cedo por fraqueza, quando quero apenas mostrar ao povo enceguecido pelo terror, que o poder de Moisés não é ilimitado. Tu, discípulo dos mais
sábios sacerdotes, deves saber que é mais fácil desencadear que reter um mal; a morte impiedosa, sobretudo, que jamais cede suas vítimas, desde que as tenha nas
garras. Se ele, portanto, livrar o Egito da peste, quero inclinar-me ante o seu poder, porque aquele que detiver a morte será verdadeiramente um Deus.
Seti tomou a mão do Faraó e apertou-a contra os lábios, de olhos brilhantes.
- Em ti está toda a sabedoria como toda a justiça, meu rei e meu pai; perdoa minhas palavras cegas e imprudentes.
Apossou-se de todos febril agitação, motivada pela previsão de algum acontecimento extraordinário. Todos quantos tinham doentes em casa aguardavam um desafogo e
eu próprio não podia afastar a idéia de que talvez, ao entrar em casa, encontrasse os meus restabelecidos. Jamais o serviço me pareceu tão longo e penoso; e quando,
finalmente, pude deixar o palácio, corri para casa. Em vão busquei na fisionomia dos serviçais a alegria e o espanto que anunciassem o milagre. Como sempre, encontrei
Henaís às voltas com os doentes em seus leitos, sem me reconhecerem; apenas Ilsiris, ao aproximar-me, despertou de um sono calmo e reparador e sorriu-me em pleno
estado de consciência.
- Amanhã - disse Henaís - poderás conversar um pouco com ela.
Muito desencantado, recolhi-me aos meus aposentos.
No dia seguinte, quando fui procurar minha irmã, encontrei-a melhor, apesar da fraqueza; estendeu-me a mão descarnada e perguntou por nossos pais e por Chamus. Este
último havia desaparecido no mesmo dia em que adoecera e não mais fora visto, presumindo-se que tivesse ido para junto da encantadora Léa, que, certo, conheceria
os meios de imunizá-lo, pois ele não era bastante corajoso, e muito menos, escrupuloso, quando se tratava de salvar a própria pele. Teria, então, procurado o recurso
da saúde, ainda que fosse preciso encontrá-lo num coração hebreu. Mesmo assim, cuidei de ocultar o mais possível essa minha desconfiança, dizendo ao contrário, que,
provavelmente, Chamus teria ido à casa de Ramsés, onde morava a velha genitora e onde sua presença era indispensável à manutenção da ordem entre o pessoal, durante
a terrível epidemia. Acrescentei ainda que devia estar passando bem, porquanto não tivera notícia alguma a seu respeito.
Tranquilizada e reconfortada, a convalescente tratou de outro assunto. Como Henaís lhe viesse dar de beber, disse-me acompanhando-a com os olhos:
- Onde compraste esta moça tão bela e tão bondosa, Necho? Como enfermeira é talvez melhor que Acca e com isso já disse muito.
- Henaís não é pessoa que se deixe vender - respondi - é parenta de Kermosa, que a enviou aqui para vos cuidar, quando eu estava na iminência de perder a cabeça,
vendo os três contaminados; por isso, muito me alegra o teu julgamento.
Ilsiris fitou-me um instante, para acrescentar com um sorriso:
- Necho, ela te agrada, não negues; trata pois de comprá-la a Kermosa, que tudo especula e negocia, desde que lhe dê um bom lucro; e quanto ao alegado parentesco,
tenho cá as minhas dúvidas.
- Não, isso nunca - respondi levantando-me - porque a idéia de comprar Henaís me repugnava sem saber porquê.
Na manhã em que expirava o prazo dos três dias fixados por Moisés e aceito pelo rei, aprontei-me para chegar cedo ao palácio. Nesse interregno, ninguém mais adoecera
da peste, mas ainda se notavam por toda parte doentes que lutavam contra o terrível morbus. No meu trajeto para o palácio, encontrei grande quantidade de padiolas
e carroças cheias de pestilentos, que eram enfileirados em frente do palácio.
Logo após, Mernephtah apareceu no terraço e, dirigindo-se ao povo, disse:
- Pelo que vejo, não faltam doentes, o que prova que eu tinha razão e que Moisés não é o todo-poderoso. A epidemia declina, mas não por influência dele e sim por
uma lei natural. Nenhuma tempestade dura meses, nenhuma epidemia pode aumentar após haver atingido a máxima virulência. Retornai, pois, aos vossos lares, confiai
na misericórdia dos deuses e crede que o vosso Faraó vela por vós como um pai por seus filhos.
Aclamações e bênçãos responderam a essas palavras.
- Quero esperar Moisés - disse entrando na galeria - suporá ele convencer-me de que dominou a peste? Pensará tenha eu feito alguma transação com o povo estúpido
e apavorado? Se ele baseia nisso a sua ousadia, está muito enganado. Havendo a peste atingido todos os organismos predispostos ao contágio, deverá, por forca, diminuir
e cessar, pois não encontrará mais onde fazer vítimas. Os que permaneceram de pé continuariam ainda com saúde, mesmo que a moléstia durasse mais um ano. Moisés sabe
isto que vos digo, mas abusando da ignorância geral, quer basear numa lei pouco conhecida a libertação do seu povo, fazendo-nos crer que sustou a marcha da peste.
O povo poderá ser iludido na sua boa fé mas nunca um sábio, um pensador.
Ouviamos, admirados, a palavra real. Sabíamos que o Faraó trabalhava muitas vezes com sacerdotes, conquanto nunca falasse de ciência.
Tendo-se dirigido rapidamente para a pequena sala de recepção, sentou-se na cadeira alta em forma de trono, e pouco depois entrava Moisés, confiado e triunfante.
- Cumpri a promessa. A peste foi debelada. Os casos verificados diminuem e assim espero, Faraó, que cumpras tua palavra.
Mernephtah examinou-o com estranho sorriso:
- Tens muito espírito, Mesu - disse com ironia - mas não o bastante para o deus que te envia e de quem executas a vontade. Será que as leis ao teu deus serão diferentes
das dos nossos? O céu é igual para todos: para o hebreu como para o egípcio. A água é igualmente clara, a terra igualmente fértil; o sol queima, o vento refresca,
tanto a uns como a outros. As mesmas leis regem a vida e a morte. Quando o Nilo transborda e imunda a região marginal, as águas só atingem um certo limite, e após
determinado tempo, se retiram sem que vontade humana qualquer possa detê-las ou engrossá-las. O mesmo acontece com a epidemia. Desencadeaste-a sobre nós, como? É
um segredo teu. Dize-me, porém: se a epidemia declina, como provas que o seu declínio é fruto de tua ação ou da vontade de Jeová? Ainda esta manhã meus conselheiros
leram-me relatórios que demonstram que em Tanis e nas cidades próximas, nenhuma casa está completamente livre; o número de vítimas varia de três a quarenta em cada
família. Por outro lado, ficou provado que os não atingidos nos três primeiros dias de surto epidêmico ficaram incólumes, apesar de assistirem junto dos doentes.
Também os fiscais dos quarteirões hebreus informam que cadáveres ali foram consumidos secretamente: não seriam pestosos que, a despeito da tua ciência, não pudeste
preservar do contágio? Entretanto, isso é secundário! O essencial é que três quartos da população de Tanis continua afetada e o restante pereceu. De que modo detiveste
a epidemia, uma vez que os que ficaram incólumes nada provam? Disseste que dentro de três dias não deveria existir um só doente no país. Esta condição não foi satisfeita,
uma vez que não podes, em cada corpo contaminado, insuflar força e saúde - coisa que só deus poderia fazer; não passas, portanto, de poderoso feiticeiro, um grande
gênio do mal, que se empenha em sua salvaguarda pessoal contra merecida punição. Mas, não te entregarei os hebreus, e toma cuidado para que atrás desse deus, de
que te dizes enviado, eu não encontre o agitador ambicioso que emprega a ciência adquirida nos templos do Egito para destruir a terra que o educou. Não é Jeová quem
precisa de um povo para reinar sobre ele: és tu!
Grande calor espalhou-se pelo rosto expressivo de Moisés e seus olhos dardejavam chamas, enquanto amarfanhava o pano do manto.
Exclamou com voz rouca e sibilante, erguendo para o céu o punho fechado:
- O Deus supremo que me envia cuidará de te demonstrar o seu poder!
Depois, afogado em raiva, voltou-se e saiu quase a correr.
Ficamos admirados com o ardiloso discurso do nosso Faraó, que, sem dizer palavra, cabeça alta, desceu do trono e dirigiu-se para os seus aposentos. Detendo-se na
primeira sala, votou-se para os que o acompanhavam e disse gravemente:
- Creio que esperais algum dano que Moisés nos prepara, mas devo dizer-vos que, hoje, ao clarear do dia, estive no Templo e os astrólogos informaram-me que os astros
predizem para breve uma horrorosa tempestade, consequência do tremendo calor desses últimos tempos. Não vos assusteis e não a tomeis, como castigo, de Moisés, pela
nossa intransigência. Moisés também leu nos astros a aproximação do temporal e quererá, talvez, fazer crer que o desencadeou para nos punir. Mas não vos deixeis
iludir; se ele houvesse previsto minha recusa, não teria vindo triunfante e, além disso, os sábios fizeram a predição antes desta nossa entrevista.
Ao afastar-se, mais de um olhar inquieto voltou-se para a abóbada azulada, onde não havia a menor nuvem, a não ser o ar abafado e o sol causticante, impiedoso, a
requeimar a terra exausta.
Os dias seguintes decorreram tristes sob a impressão de vagos temores. Nada ocorria de extraordinário, mas pressentia-se alguma desgraça.
Meus pais estavam fora de perigo, em plena convalescença. No palácio nada de novo, a não ser a perspectiva de faustoso banquete oferecido pelo Faraó para festejar
o restabelecimento do herdeiro que, pela primeira vez, retomaria o seu lugar à mesa.
Nesse dia, quando me preparava para ir ao palácio, chegou Chamus abatido, desfigurado sem dúvida pelo terror, porque não havia adoecido. Recebido de braços abertos,
não pude, entretanto, ouvir a história fantástica das suas aventuras, por não dispor de tempo.
Desde cedo, o calor das ruas era sufocante e mal podia-se respirar; ao demais, a poeira em profusão, não só irritava os pulmões, como os olhos. Ao notar as nuvens
que se acumulavam no horizonte e as lufadas de vento que sopravam do deserto, levantando turbilhões de pó, não deixei de experimentar tal ou qual inquietação. Ainda
assim, o banquete começou sem novidade.
Com o fim de distrair e alegrar o príncipe Seti, que chegou carregado na sua cadeira preguiçosa, Mernephtah ordenara magnificência excepcional, convidando as damas
mais ilustres e mais belas da Corte.
A alegria dos convivas chegara ao apogeu. Erguiam-se vivas ao soberano e ao príncipe, quando o eco de trovões longínquos e o sibilar do vento atraíram as atenções
para o que se passava fora. Faraó, erguendo-se e chegando à janela, disse:
- É a tempestade prevista que se aproxima.
Muitos convidados o imitaram e, pálidos e mudos, puseram-se a contemplar o espetáculo verdadeiramente emocionante que se lhes oferecia. Toda a atmosfera estava saturada
de uma coloração pardacenta, que obscurecia o ambiente; grandes nuvens negras, zebradas pelas faíscas, amontoavam-se no horizonte e o vento rugia com violência,
vergando as palmeiras como se fossem arbustos e fustigando-lhes as grossas palmas com sinistro ruído. Ao longe descortinava-se o Nilo, cujas vagas negras de azeviche
se elevavam montanhosas, impelidas pelo vento; pessoas assustadas corriam de todos os lados, ansiosas por encontrar abrigo que as acolhesse com suas cargas ou animais.
Nesse momento, um raio que pareceu desmoronar o céu, iluminou o salão com fantástica claridade, acompanhado de ribombo que sacudiu o palácio até os alicerces; as
baixelas de ouro e prata oscilaram e tombaram sobre a mesa, enquanto, o vento invadia o recinto com aluviões de areia e grossas bátegas. Ouviram-se gritos das senhoras,
mas Mernephtah retomou lugar à mesa, ordenando que retirassem das janelas as pesadas cortinas azul-e-ouro e acendessem as lâmpadas, para que prosseguisse o banquete.
Ninguém, contudo, podia comer e era até impossível conversar, dado o fragor da tempestade.
Após serem retiradas ou arrancadas as cortinas, a fulgurância das faíscas elétricas empalidecia a luz das lâmpadas.
Todos estavam pálidos e angustiados e meu coração se travava ao conjeturar o que poderia estar ocorrendo em casa, onde todos se encontravam doentes e Ilsiris apenas
convalescente. A medonha tempestade os apavoraria, certamente; e como Henaís a fiel enfermeira, se arranjaria sozinha para atender a tudo? Arrependia-me de não haver,
qualquer que fosse a consequência, inventado um pretexto para ficar em casa. Naturalmente que mais de um comensal pensava do mesmo modo, pois muitos olhares se voltavam
para a porta da rua.
Afinal a tempestade pareceu abrandar um pouco. Embora a escuridão perdurasse quase completa, a chuva e o vento haviam cessado. Mernephtah, que notara com mágoa e
tristeza as fisionomias alteradas dos convivas, levantou-se para sair, ordenando ao mestre de cerimônias dissesse a todos, cuja permanência em serviço não fosse
indispensável, estarem livres para ausentarem-se, caso desejassem fazê-lo.
Não esperei que a concessão se repetisse e tratei de alcançar a escadaria, de quatro em quatro degraus.
Eu viera da liteira, mas, como essa condução me parecesse morosa, pedi a um oficial que ali ficava me emprestasse o cavalo em troca da liteira. Galgando a sela,
devorei o espaço e fui encontrar os meus, reunidos com uma porção de outros criados, num grande vestíbulo iluminado por tochas.
O período de calma e bonança não durou muito tempo, pois apenas cheguei a avistar a casa, o temporal recrudesceu. Os raios e trovões estalavam sem interrupção e
a chuva era mais torrencial e, no instante mesmo em que o cavalo, coberto de espuma, abrigava-se comigo sob a abóbada espessa da porta de entrada para o pátio, um
granizo do tamanho de ovos começou a cair com ruído ensurdecedor. Entregando o animal a um criado, galguei a escada e na galeria, fracamente iluminada por um archote
e pelos relâmpagos, notei extensa fila de verdadeiros espectros, colados à parede e apoiados uns aos outros. Uns mantinham a cabeça entre os joelhos, outros, cobertos
com as próprias roupas; eram os escravos e criados atacados da peste que tinham deixado o leito, acossados pelo terror e ali estavam. acreditando-se mais garantidos
contra a terrível tempestade, que julgavam representar o término de seus dias.
Ao me verem, gritos de aflição partiram de todos os lados. Braços descarnados se voltaram para mim.
- Jovem senhor! - exclamou um velho egípcio, copeiro de meu pai - isto deve ser castigo do Deus de Moisés; depois de nos ferir com a peste, quer acabar de nos destruir.
É o fim do mundo, senhor!
- Não! - respondi alteando a voz - o Deus de Moisés nada fez; a tempestade é proveniente do grande calor e logo passará. Tudo isto vai passar. Voltai aos vossos
leitos e não esgoteis as forças desta maneira.
Desviando a vista do quadro doloroso, dirigi-me para os aposentos de meus pais. Numa sala que devia atravessar, percebi uma silhueta feminina, de pé, junto à janela.
- Quem está aí? - perguntei.
O vulto estremeceu e precipitou-se para mim.
O clarão de um relâmpago permitiu-me ver o rosto assustadiço e pálido de Henaís.
Tateando-me, aflita, perguntou:
- És tu, Necho? as pedras não te feriram, não te fizeram algum dano? Que coisa horrorosa!
Atraí-a a mim, trêmula como haste verde e não resistiu.
- Henaís - murmurei-lhe no ouvido - tremias por mim... Também me agradas, mas dize: amas-me, então? Não temas confessar teu amor, pois saberei retribuir-te e amparar-te.
Colou seu corpo ao meu e respondeu hesitante:
- Sim, Necho, amo-te; és belo... tão bom... Ninguém ainda me distinguiu como tu, mas, nada poderás fazer por mim. Pertenço a Kermosa e ela exige que ame apenas a
ele, a quem temo e detesto, e diante de quem ela se curva como os demais, embora se gabe de ser por ele obedecida. Ele, por sua vez, não cederá apesar de não mais
me encarar, depois que conheceu a bela e altiva Smaragda.
Como picado por uma serpente, recuei:
- Henaís, que dizes? Pinehas gostou de ti? Não és, então, parenta de Kermosa?
Ela ajoelhou-se de mãos postas e vi, ao lampejar de um relâmpago, seu belo rosto inundado de lágrimas e desfigurado pelo desespero.
- Disseram-me que sou filha de nobre egípcio, cujo nome ignoro, mas sempre fui tratada como escrava e em Pinehas só devia enxergar um senhor a obedecer. Amar-me-ás
menos por isso, agora que sabes quem sou?
A voz foi-lhe embargada por um soluço e eu me envergonhei de mim mesmo.
Estaria louco ou cego? A bela criatura, entregue a Pinehas como escrava, não pertenceria de corpo e alma ao seu senhor? Seria essa a sua falta, quando eu chegava
em segundo lugar para amá-la? Ergui-a e apertando-a de encontro ao coração, disse:
- Amo-te apesar de tudo, Henaís, e te libertarei do jugo de Kermosa, a qualquer preço.
Ela cingiu-me o pescoço e colou nos meus os seus lábios ardentes. Cobri-lhe o rosto de beijos e, na embriaguez do amor, esqueci meus pais, os enfermos e até os elementos
da tempestade fragorosa.
À luz vacilante de uma lamparina projetada sobre nós, ecoaram estas palavras:
- Para o momento, é demais!
Chamado assim à realidade, vi meu pai, pálido qual sombra, amparado por Chamus. Depois, continuou, agitando os braços:
- Se não tivesse visto com os próprios olhos, não acreditaria. Trava-se aqui um perfeito idílio, enquanto o mundo se esboroa! E por cúmulo, com uma escrava! faltou
ocasião para essas tolices quando fazia bom tempo.
- Essa moça é tua enfermeira e neste sentido falaremos mais tarde. Mas, por que deixaste o leito?
- Porque é horrível permanecer deitado, quando a casa parece vir abaixo. Esse Moisés e seu Deus querem nos destruir. Que relâmpagos! Que trovões! Por Osiris te digo
que é a ruína, pois estamos no fim das colheitas. O trigo, as uvas, os legumes, nada resistirá a este granizo. Estás ouvindo? As pedras chovem nos quartos e quebram
tudo.
Baixei a cabeça, confuso, mas vendo aproximar-se minha mãe cambaleante e desmaiando ao pé da porta, atirei-me para ela.
- Que foi? - murmurou ela agarrando-se a mim. - Que escuridão, que barulho! Onde está Mentuhotep? Ele me deixou sozinha e tenho medo.
Levei-a para junto de meu pai e sentei-a numa cadeira ao lado dele. Pouco depois, apareceu Ilsiris apoiada em Acca e assim reunidos e mudos, permanecemos encolhidos
no canto mais isolado da sala. O furacão continuava com violência inaudita; não era uma dessas tempestades impetuosas, porém, rápidas, que às vezes se desencadeavam
na região. Mais parecia um cataclismo universal. A escuridão era tal que não permitia distinguir dois objetos mais próximos; pouco a pouco, tochas e lâmpadas se
apagaram e ficamos em trevas, não ousando abandonar as cadeiras. Horas, ou dias, assim passaram? Não saberia dizê-lo. Às vezes, tinha fome; depois, pesada sonolência
me invadia e, por fim, veio o cansaço. Embalado e aturdido pelo rugir da tempestade, adormeci como se estivesse morto.
Quanto tempo assim estive? Nem isso saberia informar. O que sei dizer é que quando despertei, era dia alto. Dei um salto e reparei nos que me cercavam. Poucos passos
além, vi meus pais igualmente adormecidos e extenuados como cadáveres. O aspecto da sala era desolador. Poças d'água por todo o chão, cacos de vasos preciosos, arbustos
raros colocados juntos das janelas, desfolhados. Desci, reuni o pessoal ainda atônito, ordenando que uns preparassem uma refeição e fossem outros para junto de seus
amos. A seguir, despertei meus pais e logo que eles se alimentaram e se acomodaram, disse-lhes que iria à cidade para informar-me do que houve no palácio e saber
quanto tempo realmente havia durado a tempestade, que a escuridão não permitira calcular.
Tão logo tomei uma ligeira refeição, saí de coração opresso. Henaís tinha desaparecido e isso preocupava-me muito mais que as ocorrências palacianas. As ruas continuavam
apinhadas de gente, posto que desfigurada e abatida, na faina de angariar alimentos. Uns conversavam em grupo. Outros, convalescentes, ainda ostentavam as marcas
da peste, procurando moverem-se arrimados em algum parente ou em bengalas, e todos comentavam e discutiam os acontecimentos. Entre a multidão vi, admirado, que circulavam
muitos hebreus, circunstância tanto mais estranhável quanto, nos últimos tempos, todos os que podiam se ocultavam. E tagarelavam que nada tinham visto nem ouvido,
pois em suas casas sempre fizera bom tempo, com dia claro. Os egípcios simplórios os cercavam para ouvi-los, mudos de terror e espanto. De passagem, simulando indiferença,
arrazoava de mim para mim: eles podem falar, mas quem provará que entre eles o tempo estivesse claro e aos ouvidos não lhes chegasse o rugir da tempestade, quando
ninguém saiu de casa? Depois do discurso do Faraó, eu enxergava por um prisma diferente. Seria, então, por ordem dele que os hebreus relatavam esse milagre, para
impressionar o povo.
Fui onde o coração me atraia, isto é, à casa de Kermosa, certo de lá encontrar a bela Henaís, antes de ir ao Palácio.
O rapazote de guarda informou-me que todos dormiam, exceto Pinehas. Assim fui, direto a ele, encontrando-o como sempre, absorvido com seus papiros.
Embora bastante emagrecido, pareceu-me muito satisfeito, acolhendo-me com um sorriso que aumentou minha tortura e me fez corar. Sem me dar tempo de falar foi logo
dizendo com sutil ironia:
- Compreendo... Vens por causa de Henaís, que te agrada e a quem desejas ter a todo custo.
Senti todo o sangue subira-me à cabeça.
- Como podes sabê-lo?
- Foi ela própria quem me confessou - respondeu tranquilamente. Achas que ela poderia esconder alguma coisa ao seu senhor?
Conformado baixei a cabeça.
- Tens razão, és o senhor e eu venho adquiri-la; estipula o preço.
- Não creio que Henaís esteja à venda; contudo, entende-te lá com minha mãe, pois foi ela que a educou e ludo que diz respeito a mulheres da casa está sob sua direção
e nisso não me intrometo.
Compreendi que não queria enfronhar-me em negócios e entrega o caso a Kermosa, que se aproveitaria para dar-me uma sangria. Astucioso Pinehas! Mudei, pois, de assunto
e perguntei:
- Que pensas dos últimos acontecimentos?
- Nada!
- Como pensas que acabará tudo isso? - insisti.
- É difícil de prever.
Evidentemente, não queria comentar. Levantei-me.
- Quando poderei falar a Kermosa? - perguntei despedindo-me friamente.
- Hoje à tarde ou amanhã, como quiseres - respondeu fingindo não ter percebido minha frieza.
Dirigi-me para o palácio, onde todos ainda comentavam a tempestade e o milagre da imunidade dos hebreus. Um oficial amigo, que estivera de guarda ao quarto de Faraó,
contou que os conselheiros relataram ao rei o extraordinário milagre e que o povo desejava ardentemente ver partir os hebreus, cuja presença se tornava intolerável.
Mernephtah, porém, mostrava-se intransigente, encolerizado, declarando que, cessada a escuridão, pouco importava que os judeus a houvessem ou não experimentado.
E quanto a sua libertação, nem queria ouvir falar.
Com a aparição de Moisés na sala a conversa foi interrompida. As sentinelas, mudas de terror, haviam-no deixado passar, e quando, com voz pousada e imperiosa, ordenou
que o anunciassem, ninguém ousou agir como desejava fazer, ou seja, escorraçá-lo de uma vez para sempre.
Ordenou Mernephtah que entrasse e nós o acompanhamos, ficando junto à porta, enquanto ele se aproximava do trono e perguntava sem mais preâmbulos:
- Soberano cio Egito. Pela última vez, venho saber se queres obedecer à voz de Jeová e deixar partir o povo de Israel.
O Faraó mediu-o com olhar altivo e glacial.
Com timbre de voz metálica onde transparecia surda indignação, respondeu:
-Não! - e a ti, Moisés, digo que estou farto das tuas insolências e ordeno que abandones o Egito dentro de três dias. Se esgotado este prazo ousares pisar a terra
submetida a meu governo, mandarei decapitar-te. Evita, pois, voltar à minha presença.
De braços cruzados Moisés ouviu com atenção a ordem e um relâmpago sinistro iluminou-lhe os olhos.
- Tu o dizes, Faraó, e obedeço - replicou com indefinível sorriso - não voltarei à tua presença, até que me chames para pedir que leve o povo escolhido de Jeová!
A passos lentos, saiu, deixando nos circunstantes uma impressão de pavor e mal-estar. Mernephtah era o único que aparentava calma e disse aos conselheiros quando
se retirava:
- O insolente mágico tantas vezes ameaçou em vão, quantas ocasiões ficamos vitoriosos. De sorte que o seu Jeová deve estar esgotando os expedientes.
No dia seguinte, procurei Kermosa e renovei a proposta para comprar Henaís.
Ouviu-me com mal disfarçada hipocrisia, explicando depois, longa e capciosamente, que Henaís, filha de uma parenta, não era vendável. Mas, como se encontrava doente
há muito tempo, dar-se-ia por feliz se alguma família honrada quisesse tomar conta da rapariga, a quem prezava como filha. Portanto, se eu estivesse disposto a reembolsá-la
das despesas que tivera com a sua educação e manutenção, não me ofenderia com uma recusa.
Disse-lhe que fixasse o preço e exigiu uma coleção de vasos, ânforas, pratos e taças de ouro e prata.
Eu não podia compreender a utilidade e fins de tanta baixela, o que só mais tarde foi explicado. Concordei apesar do preço exorbitante, porque Henaís valia muito
mais. A seguir, perguntei por Henaís, mas a astuta megera respondeu que ela não estava em casa e só poderia levá-la no dia seguinte.
Acabrunhado regressei à casa e solicitei de meu pai autorizar o nosso intendente a levar imediatamente o que combinara com Kermosa. A princípio, protestou, achando
absurdo o negócio, mas depois meneou a cabeça e encarou-me desconfiado, acabando por palmear-me o rosto, dizendo:
- Sim, o fiel servidor levará a baixela preciosa e trará Henaís.
Só a vi, contudo, no dia seguinte, porque estive de serviço no palácio.
Logo que ficamos a sós, ela me caiu nos braços, desfeita em lágrimas.
- Que tens? - perguntei aconchegando-a ao coração. - Não te sentes feliz por te veres livre, para sempre, de Pinehas e de sua mãe?
- Muito feliz se algo de horrível não me oprimisse o coração. Vou contar-te tudo, mas jura que o não falarás a ninguém.
Prometi e mostrou-se mais calma.
- Horas antes de partir - confidenciou - surpreendi, por acaso, uma conversa entre Pinehas e Enoch. Não pude perceber tudo o que diziam, mas compreendi que se prepara
qualquer coisa pavorosa - um massacre de todos os primogênitos egípcios, do mais rico ao mais pobre. Tu, também és primogênito e, ao lembrar-me disso, a cabeça começou
a rodar-me e não pude aprender bem se o atentado se dará na quinta ou sexta à noite, a partir de hoje. Jura-me, pois, que, durante essas duas terríveis noites, não
dormirás e velarás armado, bem como teu pai. Só assim ficarei mais tranquila.
Apesar de muito surpreso, jurei tudo quanto ela quis, embora a coisa me parecesse improvável. Todavia, comuniquei a meu pai e resolvemos velar essas duas noites
sem alardear inutilmente.
O tempo transcorreu tristemente, e a primeira noite que consagramos á vigilância foi tranquila. Já começava a crer que Henaís tivesse compreendido mal, quando, à
tarde, ao sair de casa, encontrei logo adiante uma mulher embucada e visivelmente extenuada, que me perguntou com voz ofegante se não poderia indicar-lhe a casa
do nobre Necho, filho de Mentuhotep e comandante de um pelotão de carros. Admiradíssimo, respondi:
- Sou eu mesmo e aqui é nossa casa. Mas, quem és e que pretendes?
Ela estremeceu e, segurando-me convulsivamente o braço, murmurou:
- Se Chamus aí estiver, levai-me até ele.
Notando que ela desfalecia de fraqueza, amparei-a e levei-a para casa.
Ao galgar porém, as escadas que conduziam ao aposento de minha mãe, suas mãos brancas e finas, bem como o porte gracioso, fizeram-me pensar. Deve ser jovem e bela.
- Escutai - disse-lhe, detendo-me na galeria - que quereis dizer a Chamus? Não vos esqueçais que ele é noivo de minha irmã Ilsiris.
Ao ouvir minhas palavras, a desconhecida parou como ferida por um raio.
- Traidor! - exclamou levando a mão à cabeça.
Com esse gesto brusco, o véu se desprendeu e vi, então, um rosto de puro tipo semítico, mas de beleza deslumbrante. Massa de negros e sedosos cabelos lhe coroava
a fronte, ainda mais realçando a alvura da tez. Grandes olhos escuros a traduzir, no momento, sentimentos tumultuosos que lhe iam n'alma, ora parecendo extinguir-se,
ora inflamando-se de paixão e raiva.
Com voz entrecortada murmurou:
- Que morra - esquecendo-se da minha presença. Depois, voltou-se rapidamente e fugiu, ganhando a rua.
Permaneci estupefato, por alguns instantes! A seguir, fui tomado de angústia, pois era evidente que algo de terrível se tramava. A formosa Léa não se arriscaria
por qualquer futilidade, a vir prevenir Chamus assim como Henaís a mim o fizera. Mas, de que estaria cogitando Moisés, o poderoso mágico e tenaz conspirador? Talvez
uma revolta a mão armada.
Fui procurar meu pai e contei minhas novas suspeitas. Decidiu conservar-se armado em companhia de alguns homens fiéis e valorosos, capazes de defender as mulheres,
alheias ao que se tramava. Aconselhou-me, também, levasse minhas suspeitas ao rei, porque, se de fato pretendessem massacrar os primogênitos, a vida do príncipe
herdeiro também estaria em perigo.
Depois de auxiliá-lo nos preparativos de segurança, troquei de roupa e bem armado saí em direção ao palácio.
A poucos passos da casa, encontrei Chamus, que de pé, junto de uma mulher velada, lhe apertava as mãos e falava com ardor.
Ao ver-me, exclamou:
- Necho, Necho! Olha, tenho um pedido a fazer-te. Esta é a minha boa e querida Léa, a quem somos agradecidos pela salvação dos nossos rebanhos; ela deixou os próprios
pais para encontrar-se comigo, mas eu lhe confessei que estava noivo de tua irmã. Apesar disso, me perdoou e prometeu guardar-me amizade. Como teme a cólera paterna,
queria ir amanhã a Budastis, para casa de um parente, que intercederia em seu favor. Não tem, contudo, onde ficar esta noite e te suplica hospedagem. Espero que
não lhe recuses. Ilsiris nada precisa saber.
Temia acolher aquela criatura em casa, justamente nessa noite de ansiedade. Entretanto, recusar asilo de algumas horas a uma rapariga que, em todo caso, viera com
boas intenções, pareceu-me crueldade. Anuí, portanto.
Soube, no palácio, que o Faraó estava ocupado; depois, jantou e somente à noite consegui que me levassem à sua presença, quando se preparava para repousar, havendo
já despedido os familiares e tendo no quarto apenas Rhadamés, que lhe entregava a roupa de dormir.
- Fala, Necho. Que vens ainda ensinar-me?
Ainda que contrariado com a presença do condutor do carro, a quem detestava visceralmente, pela conduta que tivera com Smaragda e por sua malícia covarde, expus
em poucas palavras o que sabia e a presunção de que algo de mau se tramava. Enquanto discorria, observava Rhadamés e percebi que ele estremecera e seu olhar tomara
expressão equívoca e odiosa.
O Faraó escutou-me atento.
- Agradeço-te, viligante e devotado rapaz. É possível que o miserável conspirador, decepcionado nas suas esperanças, cogite de alguma sangrenta desforra. Entretanto,
um massacre geral parece-me muito arriscado eliminando o meu herdeiro. Mas tomarei minhas precauções. Rhadamés, vai ordenar que dobrem as sentinelas na ala do palácio
ocupada por Seti e procura saber, outrossim, quem comandará a guarda noturna dos seus aposentos.
- Sei que é Setnecht - informou Rhadamés.
- É um bravo e valente oficial, em quem se pode confiar
- acrescentou o Faraó - entretanto, junta-te a ele, Necho, para a guarda do teu futuro rei.
Rhadamés voltou-se para o rei e ajoelhando-se falou em tom súplice:
- Concede-me também, poderoso filho de Ra, meu senhor e benfeitor, a graça de velar junto do príncipe - esperança do Egito - pois do contrário, não terei um momento
de sossego.
- Teu pedido foi aceito - respondeu Mernephtah bondosamente - ide e dormirei tranquilo, certo de que três homens fiéis e devotados velam pelo príncipe.
Imediatamente, dirigi-me para os aposentos de Seti, embora não lhe votasse particular afeição; aliás, eu pouco conhecia o príncipe, cujas atitudes reservadas e altaneiras
afastavam dele os próprios íntimos. Mesmo assim, ele era a esperança da dinastia, o herdeiro do maior dos reis do Egito, e, para defender sua augusta cabeça, de
um atentado dos hebreus, cumpria-me derramar a última gota de sangue.
Setnecht mostrou-se contrariado com a minha presença e só ficou tranquilo quando Rhadamés cochichou com ele.
As sentinelas dos postos foram dobradas e estabelecidos novos postos, mesmo dentro da galeria que levava ao quarto de dormir.
Tomadas as providências, apresentei-me ao príncipe. Ele estava deitado, mas ainda não dormia; apoiado ao cotovelo, parecia absorto em si mesmo e assustou-se com
a minha presença, mas logo fez sinal para que me aproximasse e perguntou gentilmente o motivo que até ali me levava.
Ajoelhando-me à beira do leito, informei-o dos nossos temores e precauções.
- Ah! miserável! murmurou - Dá-me o punhal que aí está no banco, pois não quero ficar desarmado.
Atendi seu pedido, e inclinando-me respeitosamente, saí para fazer mais uma ronda. Ao chegar à galeria, Setnecht disse, encolhendo os ombros:
- Penso que tudo isso não passa de boato falso; vem beber conosco um copo de vinho para reanimar as forças.
Não aceitei, porque desejava estar calmo e senhor de todas as minhas faculdades. Voltando ao quarto do príncipe, postei-me a pequena distância do leito.
Pouco a pouco, profundo silêncio reinou em todo o palácio, apenas quebrado pelos passos fortes e cadenciados dos dois oficiais que marchavam no corredor. De vez
em quando, um escravo deslizava descalço, até os fogareiros, distribuídos em vários sítios, reavivando as brasas e renovando as essências.
Apoiei-me a uma coluna, e fiquei imóvel qual estátua. Enquanto assim permaneci, vi Rhadamés passar vagaroso. A poucos passos do soldado, estava um grande fogareiro,
no qual um escravo acabava de atiçar as brasas e lançar perfumes. Passando junto dele, o condutor do Carro pareceu deter-se um instante, oculto por uma coluna, e
vi-o estender a mão por baixo do fogareiro, cuja chama crepitou subitamente, como se alguma substância lhe fosse atirada. Quase no mesmo instante, reapareceu e prosseguiu
na ronda, sem olhar para o meu lado.
Esfreguei os olhos. Teria sonhado? Fora tudo tão rápido que eu mesmo duvidava do testemunho dos sentidos. Entretanto, avancei até a porta e acompanhei Rhadamés com
a vista. No fim da galeria, vi-o parar junto de Setnecht e, após rápida troca de palavras, aproximaram-se de uma mesa, onde se encontravam ânforas de vinho e vasos
de alabastro cheios d'água. Molhando num dos vasos um pano de linho branco, com ele esfregaram as mãos e o rosto. Como voltassem a ocupar seus postos, nada pude
descobrir de suspeito e afastei-me abanando a cabeça, para junto de Seti, que parecia haver adormecido.
Não me é possível calcular o tempo que se passou, até que comecei a sentir, pouco a pouco, estranho torpor em todos os membros, logo seguido de sonolência incoercível.
É verdade que tinha passado em claro a noite anterior, mas confesso que não havia sentido, em toda a minha vida, semelhante cansaço. A cabeça rodopiava, as pernas
tremiam e vergavam; as pálpebras, pesadas, fechavam-se a despeito de toda a resistência. Naquele momento, creio que daria, por uma hora de sono, até um membro do
corpo. Contudo, não queria dormir, pois da minha vigilância nessa noite dependia, talvez, a vida do príncipe herdeiro. Lutava, então, suando, contra o torpor que
me subjugava.
De repente, os olhos vagos e sonolentos deram com uma bacia d'água, colocada perto do leito, que servia para imersão das compressas que Seti pedia muitas vezes durante
a noite, porque, desde que adoecera da peste, sofria frequentes dores de cabeça. Reunindo as últimas energias, dirigi-me cambaleante até a mesa, e tirando o capacete,
mergulhei as mãos e o rosto na bacia. Senti-me refrescado, mas fatigado e modorrento, a ponto de não poder retomar o primitivo posto junto da coluna. Encostei-me
na parede e só então notei que um velho escravo, que não abandonava o príncipe e que velava ao pé do leito, estava estendido no estrado e dormia a sono solto.
Procurei apurar o ouvido, tanto quanto os sentidos embotados permitiam: nada quebrava o silêncio ambiente e até os passos dos oficiais da guarda haviam cessado;
os fogareiros já se haviam apagado e uma penumbra reinava ao longo da parede, vinda do terraço. Esfreguei os olhos julgando-me semi-adormecido, mas no mesmo instante
senti-me quase petrificado! Uma forma humana, envergando longo hábito branco, cabeça envolta em negro véu, surgiu no estrado da cama e um grande punhal lhe brilhou
na mão alçada e mergulhou, num ápice, no peito do príncipe! Seti tentou aprumar-se e agarrar o agressor, mas dando um grito, recaiu inerte.
Como ferido por um raio, permaneci imóvel. Depois, reunindo todas as forças, sacudi o torpor e atirei-me ao assassino, quando ele recolhia num copo o sangue real,
que borbotava do ferimento. Atraquei-me com o miserável tentando derrubá-lo, mas desgraçadamente o estranho torpor me tirara as forças e a destreza. O hebreu, a
debater-se tentava apunhalar-me e, afinal, vendo-me cair com um empurrão mais forte, fugiu levando o copo.
Caí, batendo com a cabeça no solo e dei um grito estridente, mas ninguém acudiu. Levantei-me a custo, apanhei uma lâmpada e precipitei-me para a galeria. A primeira
coisa que notei foi a sentinela estendida no chão, dormindo profundamente. Adiante, uma segunda e ainda terceira; num banco de pedra, mais além, igualmente estendidos
Rhadamés e Setnecht, mergulhados em profundo sono! Em vão os sacudi, gritando-lhe nos ouvidos. Em último recurso, lancei-lhes o conteúdo de um vaso que estava sobre
a mesa e eles deram então um salto, aturdidos, de olhos esbugalhados.
- Seti foi assassinado! - exclamei com voz rouca - correndo adiante e repetindo o mesmo grito, que reboava em todas as salas e corredores.
- Mataram o herdeiro, Seti foi assassinado.
Num ápice, o palácio pareceu despertar. De todos os lados surgiram escravos empunhando tochas e oficiais brandindo armas. E toda essa gente aterrada, repetia em
coro a nova apavorante, que ecoava de galeria em galeria, espalhando confusão e pavor. À entrada de uma sala, surgiu de repente Mernephtah pálido e meio descomposto,
tal como abandonara o leito, rodeado de guardas e criados.
Ao avistá-lo dei meia volta e nos dirigimos todos para os aposentos de Seti, já repleto de gente que, apavorada comprimia-se junto ao leito em que jazia o príncipe,
de cabeça derreada, descoberto, enquanto o velho nubiano, tremendo como vara verde, tentava enfaixar a ferida do peito com uma compressa umedecida.
À vista desse quadro o Faraó deu um grito, cambaleou e nada mais vi, pois que as forças me abandonavam, os ouvidos zumbiam e tudo rodopiava em torno de mim. A lâmpada
caiu-me da mão e perdi os sentidos.
Quando voltei a mim, estava estendido num banco e um preto me friccionava a testa e as mãos com essência fortificante. Levantei-me fraco, trêmulo, incapaz de compreender
o sucedido. As pessoas aparvalhadas que corriam no local reavivaram-me a memória.
- Seti morreu? - perguntei a um oficial que passava próximo.
- Não - respondeu, apertando-me a mão - até o momento, vive; se tens forças, vamos até lá, eu te auxiliarei.
Levou-me, com efeito, até o quarto do príncipe, cujas portas estavam guardadas por magotes de soldados. Lâmpadas e archotes em profusão iluminavam o ambiente, como
se fosse dia claro. Junto do leito uma sumidade médica, cabeça calva e reluzente, introduzia um aparelho na ferida; a seu lado, dois jovens sacerdotes, brancos como
seu hábito, sustendo cada qual, respectivamente, uma bacia com água avermelhada e uma caixa de medicamentos. No lado oposto do quarto, Mernephtah sentado, com a
cabeça apoiada nas mãos e os cotovelos fincados na mesa; a túnica de dormir aberta deixando entrever o peito; e atrás da cadeira dois conselheiros, mudos, de braços
cruzados, enquanto vários jovens da nobreza cercavam o Faraó. Ajoelhados, dois deles calçavam-lhe os pés nus; um terceiro tentava prender-lhe a roupa e ajustar um
manto de púrpura, enquanto o quarto lhe alisava os cabelos com um pente que introduzia num pote de óleo de rosas, que um nubiozinho segurava na bandeja de prata.
Imóvel e mudo, o rei a tudo se submetia, como se estivesse petrificado. Em vão o solícito copeiro lhe apresentava, por vezes, um copo de vinho reconfortante: o Faraó
parecia não ver nem ouvir.
Nesse momento, o médico desceu do estrado em que assentava o leito e vi o rosto pálido do príncipe apoiado no travesseiro. Os olhos estavam cerrados, mas o tremor
dos lábios indicava que vivia. O velho aproximou-se do rei, sempre insensível ao que se passava, e, rojando-se-lhe aos pés, abraçou-lhe os joelhos.
- Grande filho de Ra, querido senhor, pai e benfeitor de teu povo, ergue a fronte abatida pela tristeza; a graça dos imortais concede aos meus últimos dias uma grande
alegria, porque te afirmo: a esperança da tua raça, a alegria e orgulho do Egito - Seti, viverá! A mão poderosa de Ra amparou teu herdeiro; a arma criminosa foi
desviada por este amuleto, que se bem tenha sido perfurado lado a lado, logrou amortecer o golpe: o ferimento é grave, mas não mortal.
Mernephtah ergueu a cabeça, leve coloração tingiu-lhe as faces e, tomando o amuleto, estendeu os braços para o alto em fervorosa ação de graças:
- Se tuas palavras são verdadeiras, velho, se tua ciência me conserva o filho, este dia será verdadeiramente um dia de felicidade para ti e para tua prole.
Ao ver a taça que o copeiro lhe apresentava, esvaziou-a de um trago.
- Agora - acrescentou empinando-se - devo cuidar do meu povo: que, os conselheiros se reúnam imediatamente nos meus aposentos e tu, Necho, vai com alguns oficiais
e soldados dar o alarme em toda a cidade; batam a todas às portas, de ricos e pobres, que assim poderão, talvez, evitar o morticínio de entes caros.
Saí rapidamente pois, a ordem, muito razoável, me facultava saber o que se passava em casa, onde sé havia introduzido a suspeitosa judia, cuja paixão por Chamus
podia acarretar alguma vingança infernal.
À porta do palácio, separei-me dos companheiros, que, voluntariamente, me atribuíram o quarteirão de minha residência.
As ruas continuavam silenciosas e desertas. A grande cidade parecia mergulhada em profundo sono. Eu olhava ansioso aquelas casas fechadas e tranquilas, a conjeturar
que lá dentro talvez a desgraça já houvera penetrado. E monologava: "Quem sabe alguma erva, ou pó, atirado ao fogão, vos entorpece e imobiliza enquanto o sustentáculo
da vossa família, a esperança da vossa velhice é ceifado por uma morte miserável."
Iniciamos a tarefa penosa e difícil, casa por casa, rica ou pobre; batíamos com insistência, até que alguém viesse atender, e quando uma sombra, cabeceando de sono
e cansaço aparecia, dávamos o sinistro alarme: "Guardai vossos primogênitos, condenados a perecer esta noite!" E seguíamos adiante, muitas vezes ouvindo atrás gritos
clamorosos, denunciando o encontro de uma vítima.
Finalmente, louco de inquietação, precipitei-me para casa, igualmente mergulhada em lúgubre silêncio. Aos meus brados, o velho guardião deu, enfim, um salto e deixando,
os soldados na rua, para despertar os vizinhos, entrei e fui direto ao quarto de Chamus. Junto da porta estava estendido um escravo, ferrado no sono; agarrei-o pelos
ombros e o sacudi até que abrisse os olhos.
- Diz-me, onde está a mulher que Chamus aqui trouxe hoje? - perguntei - onde a acomodaram?
- Não sei - respondeu esfregando os olhos - só sei que lhe deram o quarto à esquerda da escada; mas o nobre Chamus mandou-me vigiar do lado; do muro para ver se
alguém se aproximava por ali, e... - acrescentou, coçando a cabeça, - parece (que ela saltou o muro...
Sem mais querer ouvi-lo precipitei-me para o quarto de Chamus, fracamente iluminado por uma lâmpada e em vão procurei Léa. Tomando a lâmpada, aproximei-me do leito
e fiquei aterrado; rosto contraído e violáceo, braços caídos, Chamus apresentava extenso ferimento no peito nu! O sangue tudo ensopava, formando no chão uma grande
poça negra. Mãos trêmulas, tentei reanimá-lo, mas estava frio e rígido. Deixei-o e corri ao quarto de meus pais.
Sacudindo meu pai, exclamei:
- Levantai-vos - Seti foi ferido no palácio e Chamus foi aqui assassinado; talvez um socorro imediato ainda possa salvá-lo.
Meu pai saltou do leito e minha mãe, igualmente despertada, gritou angustiosamente. Dentro em pouco toda a casa estava despertada e corria para os aposentos de Chamus.
À porta deparamos com Ilsiris em desalinho, amparada por Acca.
Com voz débil e segurando-me o braço, perguntou:
- Que há? Que sucedeu a meu noivo?
- Coragem! minha irmã; uma grande desgraça fere o Egito e nossa família; volta para teu quarto e ora; o aspecto deste aposento não te convém.
Ela cobriu o rosto banhado em lágrimas e deixou-se conduzir pela velha serva, que lhe pedia calma. Voltei para junto de meus soldados porque a tarefa não estava
terminada.
Ao atravessar o pátio, uma mulher descabelada precipitou-se para mim, gritando apavorada: reconheci a esposa do nosso segundo intendente, mas a infeliz parecia louca,
pois tanto comprimia ao peito, como erguia nos braços o corpo de um menino de três anos, em cujo peito se notava um ferimento sangrando. Horrorizado, tentei falar-lhe,
mas a infeliz não me reconheceu e dando um grito selvagem seguiu a correr, soluçando e desvairada.
Emocionado e desnorteado, prossegui na tarefa batendo nas portas ainda fechadas. A cidade, porém, já despertava e terrível era esse despertar. De quase todas as
casas partiam clamores desesperados; as ruas estavam cheias de pessoas horrorizadas e seminuas, correndo de todos os lados; umas em busca de médico, outras, sem
destino mas todas em desespero.
O sol despontava iluminando os cadáveres dos primogênitos egípcios, cercados dos parentes desolados, que haviam dormido profundo e sinistro sono, enquanto a morte
rondava e feria o que tinham de mais caro.
A lembrança do que vira fazer Rhadamés me assaltava, obsediante: seriam, ele e Setnecht, cúmplices da terrível conspiração? Ademais, eram dois oficiais geralmente
benquistos.
Perseguido por essa suspeita, voltei ao palácio.
Ao aproximar-me, vi enorme multidão diante da residência real. Choros e gritos explodiam em coro:
- Deixai partir os hebreus!
Procurei abrir passagem até uma entrada e, seguido por um colega, subi a uma das torrinhas da muralha que dominava a grande praça.
O companheiro informou-me que Seti vivia e o Faraó presidia a um conselho; que se haviam congregado em sala contígua todos os escribas do palácio e que haviam expedido
um destacamento militar em busca de Moisés, para trazê-lo quanto antes à presença do rei.
Enquanto conversávamos, a multidão, fora, aumentava de tal forma que todas as cabeças se tocavam e essa massa negra, febrilmente agitada, movimentava-se de todos
os lados, a perder de vista. Lamentos, gritos e súplicas, para que o Faraó se mostrasse, eram cada vez mais fortes. Mernephtah, porém, ainda retido junto dos conselheiros,
governadores e comandantes de corpos, não aparecera.
Subitamente, estalou um tumulto: alguém teria dito (ou a ausência prolongada do rei teria inspirado ao povo) que ele morrera, bem como Seti, cujo estado de saúde
ignoravam... Mas o fato é que os clamores continuavam:
- "Mataram Mernephtah, bem como o herdeiro! Moisés quer cingir a coroa e nós ficaremos à sua mercê! Quem nos protegerá, quem reinará sobre nós?".
Comprimindo-se contra as paredes, a massa avançou.
- "Mostrai-nos o nosso Faraó, vivo ou morto; queremos saber a verdade!" - ululavam milhares de bocas. E como desvairado, o povo investiu contra as portas do palácio,
tentando transpô-las em luta com os soldados, que, cerrando fileiras, de armas em punho, embargavam a passagem.
Advertido sem dúvida do que se passava, o Faraó apareceu no terraço. Ao vê-lo, as massas enceguecidas pelo desespero recuaram qual imensa vaga, lançando gritos de
alegria e alívio. Todos os braços se voltavam para ele em muda súplica.
Mernephtah, com a voz sonora e metálica anunciou ao povo, em breves mas enérgicas palavras, que de conformidade com o parecer de todos os conselheiros e sábios,
havia decidido a expulsão imediata dos hebreus, de modo que, até o pôr-do-sol, o último tivesse abandonado Tanis, e dentro de três dias o território egípcio estivesse
limpo.
Brados de alegria e reconhecimento abafaram as últimas palavras do soberano e a multidão começou a dispersar-se, apregoando por todos os cantos que os hebreus iam,
enfim, deixar o país.
Entrei e dirigi-me para a sala de recepção, porque desejava presenciar a entrevista com Moisés.
Na galeria que a precedia, estavam alguns escribas atarefados escrevendo sobre rolos de papiro o decreto liberatório do povo de Israel, que deveria ser lido e publicado
em todo o Egito. Através das colunas da galeria, via-se Mernephtah, pálido, de olhos brilhantes, sentado junto à mesa de alto estrado. Assinava os papiros que lhe
passava um velho conselheiro, enquanto outro dignatários lhes apunha logo o selo real.
À certa altura, entrou um oficial, para anunciar que Moisés acabava de chegar. Logo após, o profeta hebreu avançava empertigado e calmo até à cadeira real. Ao vê-lo,
o rosto do Faraó cobriu-se de uma palidez esverdeada, os punhos crisparam-se e flocos de espuma lhe afloravam na comissura dos lábios. Evidentemente, a raiva embargava-lhe
a voz.
- Faraó do Egito. Venho atender o teu chamado - disse Moisés detendo-se, com voz que mal disfarçava o sabor de triunfo - queres confirmar o que o povo reclama nas
ruas, ou seja: que te submetes, finalmente, á ordem de Jeová, deixando partir seu povo?
Silêncio absoluto. Todos os olhares voltaram-se ansiosamente para o Faraó, que, de pé, cruzara os braços.
- Sim - disse o Faraó com voz soturna - chefe de um povo de assassinos, leva esses filhos eleitos de um deus digno do seu enviado; que, ao pôr-do-sol, nenhum hebreu
reste em Tanis, sob pena de experimentar no lombo o ferro reservado aos retardatários. E a ti - o mais miserável dos súditos, uma última palavra: ingrato, educado
e sustentado pelo Egito, cumulado de honras e ciências; a ti, que mascaras a ingratidão com o nome de um deus, para torturar impunemente esta pátria, cobrindo-a
de ruínas e cadáveres, digo: esse deus que te envia eu o conclamo como juiz e vingador; vai-te, erra sem descanso, sem encontrar lugar para erigir o trono que ambicionas;
e que o sangue das vítimas da peste e do punhal recai sobre ti!...
Calou-se. A cólera embargava-lhe a voz; um copeiro entregou-lhe uma taça de vinho. Agarrou-a maquinalmente e, em vez de levá-la aos lábios, atirou-a ao rosto de
Moisés, exclamando com iracunda voz:
- Agora, réprobo, vai-te!
O hebreu, que tudo ouvira de rosto esfogueado, abaixou-se desviando o golpe, e apanhando a taça exclamou irônico:
- Nesta taça real beberei o primeiro vinho em louvor ao trono que me propus erguer.
Depois, guardou-a no bolso e afastou-se rápido. Foi um dia triste. Escoltas militares percorriam as ruas para manter a ordem, impedir conflitos sangrentos e patrulhar
os pontos de concentração, donde partiam os hebreus em colunas cercadas procurando as portas da cidade. Cada tribo capitaneada por seu chefe e ancião seguia em boa
ordem, levando quanto possuía em mulas, camelos ou carros.
Ao constatar tanta riqueza, a quantidade de cabeças de gado, meu coração transbordou de raiva; eu era muito egípcio para não sentir a perda dos nossos servos.
De pé, no terraço da torre mais alta do palácio, assistido por seus áulicos, Mernephtah, silencioso, contemplava com o olhar triste e inquieto o imenso e ruidoso
desfile de milhares de súditos válidos, úteis, prestimosos, que escapavam ao seu domínio.
Dominado pela fadiga, somente alta noite pude recolher-me. Apesar de tudo, sentia-me aliviado por haver enfim, chegado ao termo dessas tribulações, não mais sujeito
ao imprevisto de uma desgraça, não mais temer o despertar para algum espetáculo emocionante. Considerando, porém, que egípcios tais, como Rhadamés e Setnecht, haviam
tomado parte no infame conluio que custou a vida de tantos inocentes, cerrava os punhos e muito daria para desmascarar os dois traidores. Como não possuísse elementos
comprobatórios, vi que não era possível fazê-lo imediatamente. Rhadamés era muito estimado pelo Faraó e, em todo o Egito, dormira-se profundo sono nessa calamitosa
noite. Jurei, contudo, observar os miseráveis e na primeira oportunidade, denunciá-los, sem dó nem piedade.
Encontrei os meus ainda acordados: meu pai combinava com o intendente uma nova distribuição dos criados, dada a expulsão dos de origem hebraica; minha mãe e Ilsiris,
conchegadas, choravam amargamente a morte de Chamus; Acca fazia coro amaldiçoando Moisés, Léa e os hebreus; maldições de fazerem tremer os céus. Apenas Henaís, terna
e prestativa, como sempre, ia de minha mãe para Ilsiris, fazendo-as respirar essências e administrando-lhes compressas na fronte.
Querendo conversar um pouco com Henaís, dirigi-me para a galeria, fazendo-lhe sinal para que me acompanhasse.
Quando ficamos a sós, disse-lhe:
- Conta-me agora o que aqui se passou na minha ausência. Chamus ainda não deu sinal de vida?
- Chamus morreu e o desespero de tua mãe e de Ilsiris foi tão grande que rasgaram os vestidos, unharam os seios e deram com a cabeça pelas paredes; só a muito custo
conseguimos acalmá-las um pouco; o corpo, por ordem de teu pai, está numa sala lá em baixo, onde amanhã, os embalsamadores virão buscá-lo. Houve muito alarido e
perturbação entre os serviçais hebreus, expulsos: alguns não queriam sair e os dois velhos - Rebeca e Ruben - rojaram-se aos pés de teu pai, suplicando que os amparasse,
pois não tinham parentes e desejavam morrer junto dos seus bondosos senhores. O nobre Mentuhotep, porém, mostrou-se inflexível e eles partiram como loucos. Toda
a casa está em polvorosa e contudo eu me sinto feliz, porque te vejo vivo e tu és tudo para mim!
Pegou-me a minha mão e beijou-a.
Abraçando-a disse-lhe:
- Boa Henaís - há de chegar o dia de te demonstrar meu reconhecimento.
Nos dois ou três dias imediatos, além do desespero de milhares de famílias atingidas, a raiva empolgou a população, porque verificou-se que os hebreus ao partirem
haviam cometido enormes furtos; sem falar no prejuízo de empréstimos não resgatados. Muitos aproveitaram-se do profundo sono dos egípcios para se apossarem dos valores
que ambicionavam.
A idéia da perseguição a mão armada ganhava corpo em todos os espíritos, mas ninguém ousava falar abertamente, porque Faraó resistia.
Soube, também, com espanto, que Kermosa e Pinehas tinham acompanhado os hebreus, levando consigo Smaragda, ainda convalescente. O pobre Omifer, ferido na noite fatídica,
não se continha de desespero; mas o ferimento o impedia de rastrear o traidor. Rhadamés suportava com muita calma a perda da esposa; a alegria malsã que experimentava
com a tristeza de Omifer e, sobretudo, a idéia de ficar único possuidor da imensa riqueza de Mena, não seria, acaso, compensação consoladora? Por mim, lamentava
deveras que a bela e jovem Smaragda, tão elegante e prendada, fosse condenada a passar a vida no dorso de um camelo, no meio de um povo impuro e desmazelado, ademais
forçada a suportar a fogosa paixão de Pinehas. Infeliz destino!
Afinal, certa manhã, o desejo de vingança, que empolgava toda a população, encontrou eco no palácio. Por determinação de Faraó, reuniu-se um grande conselho, por
ele presidido. Analisaram-se, abertamente, todos os prejuízos causados ao país pelos hebreus; os governadores queixavam-se de que todas as obras públicas estavam
paralisadas por falta de operários; mas a maior grita era contra a pilhagem verdadeiramente atrevida dos judeus, aproveitando a tribulação das famílias ocupadas
com os seus mortos e feridos. O que eles haviam surrupiado em jóias, ouro, vasos preciosos, estojos etc., era positivamente incalculável.
Mernephtah, que havia acompanhado atento a discussão, levantou-se por fim, e disse:
- A mais elementar justiça manda não se deixe aos miseráveis judeus o produto da rapinagem; persigamo-los para dominá-los e reavermos nossos escravos e artífices;
já decidi que o exército marche no sétimo dia, a contar de hoje; será o décimo da sua partida mas, levando eles muitas mulheres, crianças e bagagens, não será difícil
alcançá-los, apesar do tempo decorrido. Que se publique, em todos os corpos de tropas, que aquele que me trouxer a cabeça de Moisés, ainda que seja o mais ínfimo
soldado, será elevado à primeira categoria da minha nobreza, por mim dotado e isento para sempre, bem como seus pósteros, de todos os impostos.
As palavras do Faraó foram acolhidas por fortes aclamações, e desde logo foram expedidas as necessárias providências.
Como o rei desejasse, em pessoa, comandar o exército, Seti foi nomeado regente na sua ausência. Em virtude, porém, de o ferimento ainda o reter no leito, foi-lhe
agregado um velho parente de Mernephtah, a título de auxiliar.
A notícia de que a guerra estava decidida alegrou a todos; não havia um guerreiro que não quisesse lavar no sangue hebreu sua legítima vingança. Todos os aprestos
foram acelerados. Diariamente chegavam batalhões vindo de Thebas, Memphis e outras cidades mais próximas, enquanto mensageiros partiam com ordens para os destacamentos
estacionados nas províncias mais distantes. Também eu fui enviado à cidade de Ramsés, levando ordens ao governador para abastecimento do exército e uma expedição
de espias que informassem o rumo exato seguido pelos Israelitas.
Tive ainda de cumprir a triste missão de comunicar à mãe de Chamus, lá residente, a morte do filho. Confesso que foi com dolorosa emoção que presenciei o desespero
da venerável matrona. Meus pais me haviam incumbido de convidá-la a passar alguns meses em nossa companhia, convite que ela aceitou reconhecida, por lhe parecer
menos desconsolante chorar em companhia dos que também estimavam o filho. Aconselhei-a entretanto, esperar a passagem do exército, para evitar o congestionamento
das estradas, prometendo a vinda oportuna do nosso velho intendente, a fim de conduzi-la a Tanis.
Cumprida minha missão, retomei o caminho dos penates, onde muitos negócios e providências reclamavam minha presença.
Ao atravessar, à noite, uma planície próxima de Ramsés, encontrei velho tropeiro tangendo algumas mulas extenuadas, numa das quais ia montada uma mulher envolta
em espesso véu. Lancei um olhar curioso à singular caravana fantasticamente iluminada pela lua, quando, de repente, a mulher deu um grito e me chamou pelo nome.
Surpreso e atônito, parei o animal, mas a mulher já havia tirado o véu e reconheci, então, o belo semblante de Smaragda.
- Tu aqui! como assim? - exclamei saltando do cavalo e apertando-lhe a mão.
- Deves saber que o miserável Pinehas sequestrou-me - raptou-me narcotizada com algum terrível filtro, - respondeu de olhos brilhantes. Quando despertei, estava
numa tenda em pleno acampamento hebreu!
Falou-me, então, do seu amor e disse que deveria acompanhá-lo e viver com ele o resto dos meus dias, entre o povo imundo. Aproveitando um momento favorável, arranquei-lhe
do cinto o punhal e matei-o. Olha, Necho - e dizendo-o tirou do seio um punhal cuia lâmina apresentava manchas negras mostrando-mo com selvagem alegria: - É sangue
de Pinehas... Quando o vi por terra, faces contraídas e o sangue a jorrar do peito como de uma fonte, fugi e errei sem rumo pelo acampamento, buscando uma saída,
até que, junto das últimas barracas, encontrei um homem de aspecto imponente e fisionomia atraente: devia ser um chefe, porque vários anciãos o seguiam reverentes.
Esse personagem deteve-me para perguntar quem eu era e para onde corria daquela maneira. Então, me rojei a seus pés, confessei-lhe a verdade e pedi que me deixasse
partir. Interrogou-me sobre minha família e parentela e, quando mencionei meu avô, ele estremeceu e pareceu meditar profundamente. Ao cabo de alguns instantes que
me pareceram uma eternidade, passou a mão pela fronte, ergueu-se e disse bondosamente:
- És casada, volta aos teus deveres; a lei do meu Deus condena o adultério e não permitirei no meu acampamento raptos nem violências; como, entretanto é arriscado
uma bela e jovem mulher viajar sozinha, dar-te-ei um condutor.
Falou aos do seu séquito no seu idioma e seguiu adiante, estendendo-me a mão em despedida.
Passado pouco tempo, chegou este velho com. estas mulas que ai vês e nos deixaram partir.
Dize-me onde posso encontrar Omifer, porque não desejo voltar para a casa de Rhadamés. Se podes, leva-me até lá.
Inteiramente perturbado, montei a cavalo.
Então Pinehas, o grande sábio, o homem triste e laborioso estava morto, assassinado pela pequenina mão branca daquela mulher franzina e graciosa, que a fatalidade
vigorizou?!
Durante a viagem, fiz a Smaragda um breve relato dos acontecimentos que ela ignorava: o ferimento de Omifer, a perseguição que se preparava, e ela me suplicou então,
que a conduzisse secretamente à casa do seu amigo, onde se albergaria até a partida de Rhadamés, no que concordei.
Rumei para casa depois de a entregar a Omifer, que de contentamento, sentiu-se meio restabelecido.
Os dois dias que se seguiram e antecederam à partida, passaram com relâmpago, entre preparativos de bagagem, visitas de despedida, compras e aprestos de toda a espécie.
Na véspera do grande dia, o intendente de Omifer levou-me dois magníficos cavalos, acompanhados de uma carta na qual me pedia aceitar os admiráveis animais para
serviço de campanha.
No dia da partida, levantei-me muito cedo e acabava de vestir-me, disposto a procurar meu pai, quando Henaís foi ao meu quarto abatidíssima e banhada em lágrimas.
- Necho, venho despedir-me de ti, - disse abraçando-me - dentro de alguns instantes, irás ter com teus pais e a pobre Henaís não se atreverá aproximar-se; entretanto,
sofro tanto quanto,eles ao ver-te partir para essa guerra sangrenta, e se não regressares, mato-me, pois tu és, nesta vida, tudo para mim.
A voz foi-lhe embargada pelos soluços; apertei-a apaixonadamente contra o peito e cobri-lhe o rosto de beijos.
- Henaís, enxuga essas lágrimas. Se os deuses permitirem que volte são e salvo juro solenemente fazer-te minha esposa legítima, pois amo-te e a ninguém amei senão
a ti.
Vivo rubor cobriu-lhe as faces pálidas e murmurou reconhecida:
- A aventura é tão grande, que nem ouso esperar, mas tuas boas palavras me ficarão na memória até o derradeiro alento.
Depois de poucas palavras mais e um último beijo, separamo-nos. Fui despedir-me de minha mãe e de Ilsiris, pois meu pai devia acompanhar-me até o palácio.
Foi comovente a despedida. As duas criaturas se desfaziam em lágrimas. Depois, desci entre alas de servos escalonados na escada e galerias, até à porta da rua. Todos
beijavam-me as mãos e as vestes, rogando que as bênçãos do céu caíssem sobre mim.
De coração opresso galguei o carro.
Era intenso o movimento no palácio. Pátios, galerias, escadas, repletas de guerreiros, sacerdotes, e dignatários que deviam integrar o cortejo, pois o Faraó se dirigia
previamente ao templo para implorar a proteção dos imortais. Foi lá que me despedi de meu pai, que tinha lugar adequado, e porque não esperava reencontrá-lo no cortejo.
Logo depois, apareceu Mernephtah, que tinha ido levar um terno beijo em despedida ao príncipe herdeiro; ele trazia, estampadas no rosto, energia, coragem e confiança
na empresa; o magnífico uniforme de guerra mais lhe realçava o imponente aspecto, ostentando a coroa do Alto e Baixo Egito, circundada de serpentes místicas. Ou
ando na liteira aberta, levada pelos condutores, príncipes e afins da Casa Real, apresentou-se à multidão, todos os olhos convergiram para ele, com estima e admiração.
Era bem o soberano de um grande povo, a encarnação da sua força e majestade.
O imponente e interminável cortejo atravessou as ruas entupidas da populaça, vagarosamente. Exclamações, gritos e bênçãos, quase abafavam a música e as fanfarras;
ruas tapizadas de flores e ramos de palmeiras, a multidão, alegre e animada pelo desejo de vingança, acreditava já estar vendo a chegada de todos os tesouros roubados
e resgatados no sangue dos ignóbeis rapinantes.
Com seu olhar de lince, Mernephtah perscrutava aquelas fisionomias satisfeitas, e, quando chegou diante do Templo, o rosto se lhe tornou mais radiante, o olhar mais
brilhante que ao sair do palácio.
O grão-sacerdote, seguido dos acólitos e sacerdotisas, o recebeu à entrada e o introduziu no santuário; mas, durante a cerimônia religiosa, um triste presságio amargurou
todos os corações: o fogo, que deveria consumir a oblata real, extinguiu-se de súbito, no momento em que Mernephtah, ajoelhado e de braços erguidos, suplicava aos
imortais que lhe concedessem a vitória.
Palidez intensa invadiu as feições másculas do Faraó, que preocupado e cabisbaixo, retomou à liteira para, em companhia dos sacerdotes que conduziam as estátuas
dos deuses, ganhar a planície além da cidade, onde o exército já estava acampado.
No centro do vasto quadrado constituído pelo grosso das tropas, via-se o altar das oferendas e solenes sacrifícios aos deuses exposto aos soldados. Bem como os demais
oficiais que haviam tomado parte no cortejo, retomei meu lugar no corpo em que servia, e como durante as calamidades houvesse assumido o comando de um destacamento
de carros na guarda nobre de Faraó, coloquei-me na primeira fila, logo atrás do carro real, então ocupado apenas pelo condutor Rhadamés.
Esse carro, de ouro maciço, finamente lavrado, era tirado por dois soberbos corcéis de crinas esvoaçantes. Impacientes, os animais riscavam o solo com os finos cascos,
mal sofreados na sua fogosidade pela mão vigorosa do condutor.
Olhei Rhadamés atentamente. Odiava-o e desconfiava de sua lealdade desde a noite dos massacres; ele estadeava boa presença assim de pé, segurando com uma das mãos
as rédeas, enquanto a outra se apoiava no grande escudo com que deveria cobrir o rei durante o combate. Uma couraça de escamas de peixe se lhe ajustava ao esbelto
e atlético busto; reluzente capacete lhe resguardava a cabeça, e contudo, estava pálido, lábios contraídos e olhos ora ternos, ora brilhantes, como que a maquinarem
algo de grave e maléfico.
Apertando o cabo de meu feixe d'armas, pensei:
- Toma cuidado, miserável, se é que tramas alguma nova traição - desta vez, tenho os olhos postos em ti, é não me escaparás.
Terminadas as cerimônias religiosas, o Faraó, acompanhado dos grandes sacerdotes e dignatários, tomou o carro. Por um momento, seu olhar profundo e estranho fixou-se
no rosto pálido do condutor.
- Rhadamés, estás doente, a ponto de me privares dos teus serviços? Que te falta? Vejo, satisfeito, que minha vontade te restituiu a saúde.
Não pude ouvir a resposta, mas notei que a fisionomia se lhe alterou, e tão vagarosamente retesou as rédeas que os animais empinaram e, arrancando, deslocaram bruscamente
a ligeira viatura.
Sobre a viagem não direi, senão que avançamos a marchas forçadas para alcançar os hebreus. É claro que essa caminhada sob os raios ardentes do sol e nuvens de poeira
sufocante, não podia ser agradável, mas ninguém se queixava, porque todos queriam vingar-se.
Finalmente, aproximando-nos do Mar dos Sargaços, avistamos o inimigo. A noite começava a cair e Mernephtah mandou fazer alto e acampar, dado que, através do mar,
Moisés não poderia escapar; e ao dealbar da aurora engajaríamos a luta.
Impaciente por verificar algo com exatidão, galguei a sela e galopei até um montículo, donde pude observar perfeitamente o acampamento hebreu e a massa escura dos
nossos antigos servos, que ondulava à distância.
Ao regressar, fomos honrados, eu e outros colegas, com um convite para jantar na tenda real.
Mernephtah, isolado em mesa à parte, sobre um estrado, mostrava-se muito bem humorado, conversando alegremente com os chefes e bebendo à vitória do exército egípcio.
Após o repasto, retirou-se para uma barraca menor, que lhe servia de dormitório.
Pouco a pouco o silêncio desceu sobre o acampamento, só quebrado pelo relinchar dos cavalos e mulas, ou pelo rugir dos leões enjaulados, pois tal como seu pai, Mernephtah
gostava de os ver na cauda do seu carro, em combate.
Todos dormiam no grande acampamento e também eu me recolhi a uma barraca, onde alguns camaradas repousavam tranquilamente. Em vão, porém, me revolvia na cama, sem
poder conciliar o sono, preso de vaga inquietação. Resolvi levantar-me, sair, respirar o ar livre. A noite estava escura, mas o céu recamado de milhares de estrelas.
Assentei-me à sombra da barraca, num saco de forragem e absorvi-me nos próprios pensamentos: Tanis, meus pais, Henaís, desfilavam diante de mim ... Será que não
mais os tornaria a ver? Que nos reservaria o dia seguinte? O terrífico presságio do Templo não significaria um ferimento grave, ou quiçá a morte de Mernephtah?
Arrancou-me dessas cogitações, um rumor de passos, não mui distante. Ergui a cabeça e vi que um homem de elevada estatura, envolto em negro manto, caminhava cauteloso.
Ao passar junto de uma fogueira cujas chamas rubras iluminavam um grupo de soldados adormecidos, pareceu-me reconhecer Rhadamés. Onde iria? Ele não comandava nenhuma
patrulha, não tinha necessidade de abandonar o repouso, que, sabia, tanto lhe agradava. Veio-me a idéia de alguma nova traição.
Levantei-me e, fugindo à claridade das fogueiras, deslizei no seu encalço. Ele caminhava apressado e não tardou a alcançar as lanças fincadas no solo para delimitar
o acampamento. Aproveitando o momento em que a sentinela se afastava em direção oposta, deitou-se e desapareceu rastejando na obscuridade.
Fazendo manobra idêntica, acompanhei-o e chegando à certa distância, vi-o erguer-se e prosseguir quase correndo, até que, da sombra de um montículo, saíram dois
homens. Pelas frases que pude apanhar, fiquei sabendo que eram hebreus e tive, assim, corroborada a suspeita de uma nova traição. Tateei o cinto, porque havia alijado
as armas na barraca e experimentei grande satisfação ao verificar que ainda me restava longo e sólido punhal. Empunhando-o, continuei a seguir o traidor e logo atingimos
segundo montículo que limitava, provavelmente, o acampamento hebreu, e onde se erguia pequena barraca isolada.
Rhadamés e seus dois guias para ali se dirigiam, enquanto eu a contornava, deslizando pela encosta do montículo, a fim de atingi-la do lado oposto. Colado ao solo,
fiz com a ponta do punhal um pequeno orifício na lona da barraca e pus-me a sondar o interior.
À luz de um archote preso a um tronco enterrado no solo, vi Moisés em pessoa, sentado junto de uma mesinha de madeira branca, e sobre esta um estojo ricamente lavrado.
Em frente do profeta, ouvindo-o atentamente, Rhadamés sentado num banco tosco.
- Se concordares em ajudar-nos, repito-o, terás régia recompensa. Vê se me desembaraças, esta noite, de Mernephtah, - É louco, teimoso, que renega a palavra empenhada.
Só pela tua promessa, levarás este estojo, cheio de riquezas; mas eliminado Mernephtah, porei em tuas mãos uma força invisível que rojará a teus pés quantos homens
te aprouver dominar.
Retirou do seio um anel com uma pedra cintilante e acrescentou:
- Vê esta gema preparada por um grande mago; ela tem o poder de ligar todas as vontades à tua; por ela subirás degrau a degrau, ao trono dos Ramsessidas; Seti morrerá
e será a ti que o povo há de escolher por sucessor, pois o anel conquistará Os corações e te dará tesouros imperecíveis, comparáveis aos quais os de Faraó nada representam.
Calou-se, mas seu olhar de fogo não se desviava do rosto de Rhadamés, no qual se espelhavam ardente cobiça e estúpido orgulho.
Estendendo avidamente a mão disse:
- Dá-me esta pedra; ensina-me a produzir ouro à vontade e esta mesma noite Mernephtah morrerá.
Moisés sorriu:
- Vamos fixar as condições: um dos meus fiéis companheiros te acompanhará até meio-caminho e tu lhe entregarás a cabeça de Mernephtah: ou então, desde que os clamores
desesperados dos soldados egípcios me anunciem, com certeza, a sua morte, virás receber o anel mágico. Quanto ao poder de criar tesouros à vontade, vou dar-te uma
prova: Olha! - e indicou um monte de cascalho em forma de pirâmide, num canto da barraca.
- Vês aquelas pedras? Repara na sua transformação...
Levantou-se de olhar fixo e cenho carregado, ergueu o anel descrevendo círculos ao redor dos olhos de Rhadamés.
Notei, surpreendido, que a fisionomia do traidor começava a mostrar estupefação e acabou por esboçar a mais frenética alegria.
- Ouro! Que vejo! Lingotes de ouro!
De início não compreendi o que se passava, pois as pedras que lá estavam não se haviam transformado. Mas logo pensei que o traidor fora, certamente embrulhado, porque,
com as feições alteradas, olhos arregalados, dizia arquejante:
- Não duvido de ti. Dentro de duas horas entregarei ao teu delegado a cabeça de Mernephtah.
Sem mais ouvir, despenhei-me do montículo para o acampamento, qual cervo monteado em plena selva. Ofegante e coberto de suor, cheguei à barraca real e, conhecido
das sentinelas, não tive dificuldade em entrar e me aproximar do rei, que dormia profundamente. Ajoelhei-me e toquei-lhe no braço.
Despertando sobressaltado, perguntou:
- Que foi? És tu, Necho? Dize-me o que te traz aqui.
Emocionado, relatei sucintamente o que acabava de presenciar e o Faraó, que me ouvia meio recostado nos cotovelos, ergueu a cabeça, suspirando:
- Então esse homem, cumulado de benefícios, é um traidor? Afinal, teu relato não constitui novidade para mim; eu estava prevenido. Na véspera de nossa partida de
Tanis, Smaragda pediu-me uma audiência secreta e me relatou a conduta ignóbil de Rhadamés durante as calamidades, bem como as suspeitas veementes da sua convivência
com os hebreus, durante a noite do massacre. Agora, vejo que a jovem senhora tinha razão para prevenir-me. Quero, contudo, apanhar o miserável em flagrante de tentativa;
dá-me o meu punhal e esconde-te aí atrás dessa cortina, enquanto vou fingir que durmo.
Com o coração aos pulos, ocultei-me numa dobra da espessa cortina fenícia que circundava o leito, apertando nas mãos o feixe de armas e disposto a abrir a cabeça
do traidor, se o rei demorasse em lhe deter o braço.
Passaram-se momentos que me pareceram séculos em muda angústia; todos os sentidos intensamente concentrados, eu vigiava. O Faraó havia novamente cerrado os olhos,
conservando o punhal oculto sob a pele de leão com que se cobria. Parecia adormecido. De repente, estremeci: levíssimo toque na parede da barraca, logo seguido de
ligeiro ruído e vi surgir à luz da lamparina um vulto que avançava para o leito real, em atitude cautelosa...
Era Rhadamés! Na mão uma faca larga e curta. A face lívida e contraída espelhava todas as más paixões. Inclinou-se para o rei e alçou o braço, enquanto eu, de coração
palpitante, brandi o machado; mas a cena foi tão rápida que fiquei estatelado, de olhar fixo e como que chumbado ao solo! Assim que vi baixar, rutilante, a faca
de Rhadamés, num relâmpago, Mernephtah travou-lhe o braço, saltou do leito e, derrubando-o com um soco tremendo, enterrou-lhe o punhal no coração.
Tão rápida e silenciosa foi a cena que as sentinelas não deram pelo sombrio drama desfechado na tenda real.
Por instantes, Rhadamés manteve-se de joelhos, fisionomia petrificada de angústia, esvaiando-se em sangue; depois rolou sobre a pele de tigre que tapetava a barraca.
O Faraó deixou-se cair numa cadeira, pálido, de olhar sombrio.
Com a voz soturna, murmurou:
- A que prova me submetem os deuses! O mais querido dos meus súditos, de todos os funcionários ó mais chegado, cumulado de honras e depositário da minha confiança,
trair-me e atentar contra minha vida!...
Com as mãos trêmulas, enchi um copo de vinho é apresentei-o ao Faraó, mas um espetáculo inesperado nos fez estremecer, fazendo pender a mão de Mernephtah já estendida.
É que o ferido acabava de levantar-se sobre os joelhos! Lívido, olhos esgazeados, dirigiu-se para o rei com os braços já frouxos abraçou-lhe as pernas.
- Meu senhor e benfeitor - murmurou com voz débil, a extinguir-se: - perdoa; deixa-me levar tua mão aos lábios frios; não me abandones na hora da morte; estás vingado...
Um misto de inexprimível horror, piedade, arrependimento e pesar desenhava-se no rosto desfigurado de Mernephtah.
- Infeliz - disse estendendo-lhe a mão - que fizeste? Por que forçaste esta mão a ferir-me? Contudo, eu te perdôo, morre em paz.
O Faraó mal terminou suas palavras, os braços de Rhadamés afrouxaram e a cabeça tombou pesadamente sobre os joelhos do rei. Tudo estava consumado.
Calado o Faraó depôs o cadáver no tapete, cobrindo-o com o próprio manto; depois, apoiando os cotovelos na pequena mesa, abstraiu-se em triste cismar.
Retirando-me respeitosamente para um canto da barraca, passei a observá-lo com a maior curiosidade. Em que estaria ele pensando? Só aqui, na espiritualidade vim
a saber que remorsos e arrependimentos lhe sangravam o coração. Chegavam-lhe à mente, então episódios remotos: lembrava-se de como havia conhecido, em certa festividade,
a mãe de Rhadamés, jovem de grande beleza e de como a seduzira. O filho que lhe dera, nove meses depois, fora amado e protegido, mas o mal feito havia frutificado
e esse filho, arvorado em traidor, acabava de cair assassinado por suas próprias mãos.
Gritos e exclamações vindos de fora interromperam o silêncio.
- Vê o que se passa - disse Mernephtah, erguendo a cabeça contrariado. Antes, porém, que eu atingisse a porta, dois jovens oficiais, primos do rei, invadiram a barraca
exclamando fora de si:
- Faraó! eles nos escapam; os hebreus estão vadeando o mar!
Empurrando com o pé o cadáver de Rhadamés, o rei deu um salto e exclamou com voz retumbante:
- Arma-te, Necho, e ordena que atrelem o carro.
Corri e notei que todo o acampamento já estava em alvoroço. A hipótese de uma possível escapada do inimigo detestado parecia estimular as massas.
Quem levara a notícia da fuga dos israelitas, não pude saber, senão que a nova corria de boca em boca e ninguém conhecia a fonte.
Os carros eram atrelados com febril presteza. Encilhavam-se cavalos e revistavam-se as armas. Os relinchos dos animais, o vozerio dos soldados, as ordens de comandos
que tentavam manter a disciplina, tudo se confundia num caos indescritível. A princípio, quis agregar-me à minha companhia, mas lembrando que Mernephtah ficara sem
o condutor do carro, pensei talvez me concedesse o honroso posto e retomei, correndo, em direção da barraca real. Quando me aproximei, já o Faraó saía todo armado
e saltava para o carro, tomando as rédeas. Alçou o machado e deu o grito de guerra com voz tão forte que chegou a abafar o toque de clarim, partindo a galope. Tudo
se moveu na sua esteira.
Sem pensar em outra coisa que não avançar, apoderei-me de soberbo cavalo que um escravo havia trazido para um senhor, e dei de rédeas.
Despontava o dia cheio de brumas, e grossas nuvens deslizavam no horizonte impelidas por forte ventania. O espaço que nos separava do mar foi coberto em poucos minutos.
Aproximando-nos, notei, já na margem oposta, imensa mole de hebreus entalados entre os seus animais, enquanto os últimos elementos da retaguarda ainda atravessavam
céleres, em coluna cerrada, o leito do mar, quase descoberto na ocasião.
Via-se Moisés, de braços erguidos para o céu, no cimo de um cômoro.
Eu e um pequeno grupo de cavaleiros, antecipamo-nos aos demais e, levados pelos rápidos e fogosos corcéis, transpusemos o mesmo vau e atingimos a margem oposta,
com os últimos israelitas. Logo a seguir, ruidosos e formando larga coluna, vinham os carros pejados de soldados (assim conduzidos para maior presteza), entremeados
de cavalaria e seguidos pelo grosso do exército.
Arrebatada e não pensando em outra coisa que não fosse o seu objetivo, toda essa massa precipitou-se no mar, mas onde os hebreus haviam passado a pé, em longa fila
e não equipados, os carros egípcios, já pelo peso da carga, já pela largura frontal da coluna, não podiam passar e começaram a voltear no fundo lodoso. Em vão, os
condutores chicoteavam os animais cobertos de espuma, corcoveantes, tombando os carros e aumentando a desordem.
Ofegantes pela nossa rápida disparada, de arma em punho, íamos acometer os hebreus, quando gritos desesperados me fizeram voltar a cabeça. Aterrorizado, detive-me
a contemplar o espantoso espetáculo que se desenrolava à minha frente: quais flechas desferidas do arco, cujo inicial impulso ninguém podia deter, os carros, cavaleiros
e soldados continuavam a avançar, a precipitar-se, esmagando os que os precediam e atolados. Não podiam avançar nem retroceder, porque novas levas se despejavam
sobre eles. Confusão de homens, animais e carros a se chocarem e se esmagarem, e de todos os lados gritos de angústia e dor.
Nesse momento, uma nuvem passou-me diante dos olhos: formando uma como cinzenta muralha, as águas impelidas pelo vento cresciam ruidosamente; ainda um instante,
horroroso e pungente clamor pareceu fundir-se no barulho da massa revolta e espumante, que tudo cobriu! Ali ou acolá, ainda surgiram das ondas uma cabeça de cavalo,
um braço armado, um capacete brilhante, alguns corpos flutuando... Depois, nada mais vi; toldou-se-me a vista, a cabeça rodou, tombei do cavalo. Não era bem uma
síncope, era alucinação, pavor.
As notas harmoniosas de um canto de triunfo e alegria fizeram-me despertar; fixei o olhar desvairado nos hebreus, que, prostrados, braços erguidos, louvaram por
essa forma o deus que tão visivelmente os havia protegido.
À vista de todos, havia sucumbido todo um exército numeroso e aguerrido: comandantes experimentados e o nosso rei - o generoso e valente Mernephtah! Dessa poderosa
força não restava mais que míseros destroços, algumas centenas de homens dispersos, que, como loucos, corriam na outra margem, ou se rojavam ao solo. Instintivamente,
os companheiros me rodearam. Vivos, não queríamos render-nos de graça.
Moisés aproximou-se do pequeno grupo e seu porte majestoso parecia ainda maior: o olhar aquilino, fulgurante de orgulho e exaltação.
Com voz vibrante falou-nos:
- Guerreiros egípcios, concedo-vos a vida; voltai para o vosso país. Comunicai ao novo Faraó esta grande derrota do seu antecessor e dai-lhe testemunho de como o
Deus todo poderoso, de que sou enviado, protege o povo eleito.
Mais tarde, tristes e acabrunhados, repassamos o braço de mar e chegamos ao acampamento abandonado pelos guerreiros e ainda repleto de escravos, criados e bagagens,
guardados por alguns destacamentos de reserva.
Como alma penada e contendo soluços, vaguei entre as intermináveis filas de barracas intactas como se nada houvera mudado naquelas poucas horas! Contudo lá estava
o pavilhão azul e ouro, no qual passara, junto do Faraó os últimos momentos de sua existência, e onde ainda jazia o cadáver de Rhadamés! Agora, no reino das sombras,
estariam reunidos ele e sua vítima.
Durante a tarde e a noite, reuniram-se pouco a pouco os desesperados fugitivos, triste remanescente do brilhante exército de Mernephtah. Seu pranto se confundia
com o dos escravos e criados, cuja dor e desespero atingiam à loucura.
Entretanto, era preciso tomar uma decisão e abandonar aquele lugar fatídico. Com assentimento geral, assumi o comando e ao nascer o sol ordenei que, desarmadas as
barracas e carregadas as bagagens, se formassem colunas de marcha. Acabrunhado e indisposto, cavalguei um camelo e dei sinal de partida.
Lenta e preguiçosamente, retomamos o caminho do solo egípcio, onde só poderíamos ser recebidos com gritos de desespero e torrentes de lágrimas.
Não sou capaz de traduzir as emoções que me angustiavam nesse desventuroso regresso. Basta dizer que não experimentei um só momento de alegria por voltar são e salvo.
Via-me quase isolado e só, pois toda a flor da nobreza egípcia havia perecido e o desespero das famílias que perderam pais, irmãos, filho ou marido, me apertava
o coração como se fossem caros e próximos parentes meus.
Ao chegar à fronteira deixei a triste caravana e adiantei-me com alguns companheiros, para comunicar quanto antes ao novo Faraó o desastroso acontecimento.
O coração batia-me, ao considerar que ia à presença de Seti como mensageiro da desgraça, cumprindo descrever-lhe o espantoso desastre que lhe arrebatara o pai, o
exército e a nata do seu povo; mesmo assim não havia como esquivar-me.
Poeirentos e fatigados, um dia, de manhã, entramos em Tanis, em direção do palácio. Os transeuntes rios tomavam por mensageiros do exército e nos acompanhavam curiosos
e inquietos, formando desde logo um longo cortejo.
A vista do maravilhoso edifício reavivou meus dolorosos pensamentos, ao recapitular todos os detalhes da arrancada tão brilhante e esperançosa. Abatido, solicitei
do chefe dos guardas, surpreso e espantado, que nos levasse imediatamente à presença do príncipe.
Um oficial levou-me até um vasto terraço florido onde estava o jovem regente, pálido e enfraquecido, sentado junto de uma mesa e atento à leitura de um papiro submetido
à sua assinatura. Rodeavam-no alguns velhos conselheiros, que, em atitude respeitosa, anotavam em tabuinhas algumas breves disposições.
Ao lhe ditarem meu nome, Seti levantou-se bruscamente.
- Necho! tu aqui? Que significa essa palidez e o abatimento dos teus companheiros? Vindes anunciar uma desgraça, uma derrota? Fala, pois, em vez de me torturares
o coração com a serpente da dúvida e da angústia. Que é feito de meu pai?
Mal podendo reter as lágrimas, posternei-me e erguendo os braços, exclamei titubeante:
- Seti, filho de Ra, dispensador da vida e da felicidade, meu senhor e Faraó, que os deuses te concedam longa vida e glorioso reinado!
O príncipe tornou-se lívido e levou a mão ao peito ferido.
- Que dizes, infeliz? Como, por que assim me tratas? Teria meu pai perecido?
- Sim, o glorioso Mernephtah pereceu e com ele todo o exército, antes mesmo de desembainhar a espada.
Seti cambaleou e teria caído se os conselheiros não o tivessem amparado, sentando-o numa cadeira. Daí a pouco, reabriu os olhos e disse com voz calma, mas firme:
- Fala, quero tudo saber!
Narrei-lhe a catástrofe, em poucas palavras, entrecortadas pela emoção, mas enquanto o novo Faraó me ouvia desolado, de mãos crispadas, a notícia do grande desastre
já havia transpirado e o chefe dos guardas veio anunciar que o povo, apavorado e desesperado, comprimia-se diante do palácio e reclamava a presença do príncipe.
Seti revestiu-se das insígnias reais, cingiu a coroa do Alto e Baixo Egito e, acompanhado dos dignatários e cortesãos, apresentou-se no terraço.
Foi saudado pela multidão em desafogo de soluços e aclamações.
Com belas e incisivas frases, ele notificou a catástrofe que acabava de ferir a nação, encarecendo ao povo que se mantivesse calmo e conformado, quanto ele mesmo,
ante o inelutável desígnio dos imortais.
Retirou-se depois para conferenciar com os seus conselheiros sobre as medidas indispensáveis e nós tivemos permissão para procurar nossas famílias.
Este desiderato não era fácil, pois estando as ruas apinhadas de gente, a cada passo éramos detidos e crivados de perguntas sobre o acontecimento e notícias dos
que haviam perecido ou escapado. Agradeci a Osiris, quando, enfim, as portas da casa paterna se fecharam atrás de mim e as lágrimas de alegria dos meus e o olhar
radioso e úmido de Henaís me fizeram experimentar (pela primeira vez após o desastre), que a vida ainda tinha mérito para mim.
Dominadas as primeiras emoções e satisfeitas minuciosamente a curiosidade geral, resolvi, apesar de cansado, ir até à casa de Omifer, para cientificá-lo da morte
de Rhadamés.
Lá, o velho intendente informou-me que, após a partida do exército, Omifer se retirara para uma casa de campo, algumas léguas distante da cidade, onde se mantinha
em completo isolamento, não saindo e a ninguém recebendo. Tive, pois, de adiar a visita e somente no dia imediato fui até lá.
Julguei que o isolamento fosse devido à presença de Smaragda, que, sem dúvida, lá estaria homiziada, mesmo porque sabia, por meu pai, que ela não fôra ao palácio
de Mena, onde falecera uma irmã de Rhadamés e continuava acamada a genitora, gravemente enferma. Em todo caso, estava certo de que a notícia que levava me proporcionaria
o mais caloroso acolhimento.
Situada em pequeno bosque de palmeiras, contornada por grande jardim, como se estivesse perdida entre roseiras, a casa de campo de Omifer era encantadora vivenda,
A velha escrava que me recebeu só consentiu que entrasse depois de muito insistir. Afinal, apareceu Omifer, inquieto e admirado:
- Necho, es tu? - exclamou empalidecendo - por que estás de regresso e que motivos te trazem até aqui?
Resumidamente expliquei a situação.
Profundamente comovido, apertou-me a mão, dizendo:
- Smaragda aqui está, vamos procurá-la para que fique conhecendo os pormenores dessa tragédia.
Levou-me a um pequeno terraço, onde se encontrava Smaragda sentada à mesa de refeição, igualmente inquieta e nervosa.
Omifer precipitou-se para ela, e, abraçando-a murmurou comovido:
- Estás livre. Enfim, poderei esposar-te.
A jovem senhora deu um grito:
- Rhadamés morreu?
- Sim - respondi - e de morte bem triste.
Contei em detalhe todos os lúgubres acontecimentos que havia testemunhado e que ainda não haviam chegado ao conhecimento do amoroso par.
Smaragda ouvia-me com a cabeça apoiada nas mãos, chorando copiosamente.
Seriam de contentamento aquelas lágrimas, por estar livre? Ou seriam causadas pelas circunstâncias trágicas da morte do marido? Jamais pude sabê-lo.
Meses mais tarde, eles celebraram esponsais e foram-se para Thebas.
Também meu caso amoroso foi resolvido melhor, do que podia esperar.
O caráter meigo, atraente e prestativo de Henaís lhe havia granjeado, pouco a pouco, a estima de todos os meus parentes; e quando me arrisquei a falar em casamento,
meu pai não fez a mínima oposição. Quanto aos preconceitos maternos, consegui vencê-los a troco de súplicas. Henaís tornou-se, pois, minha esposa e, durante oito
anos, minha vida não foi mais que um rosário de felicidade; mas o advento do terceiro filho foi fatal a Henaís, que faleceu deixando-me desesperado.
Um amigo que me visitou na mesma tarde do seu falecimento, impressionado com o meu acabrunhamento em face da perda irreparável, aconselhou-me a procurar, para o
embalsamamento um sábio mago que morava fora da cidade e possuía maravilhoso segredo, graças ao qual as múmias conservavam absoluto frescor e aparência de vida;
e assegurava ter visto o corpo da noiva de um seu irmão, embalsamado pelo sábio Colchis.
O conselho animou-me um pouco: se o informante dizia a verdade, restava-me, ao menos, a consolação de contemplar, quando quisesse, o rosto encantador da querida
morta. Mais que depressa, tomei a liteira e fui procurar o mago.
Parei defronte a uma gruta cavada na rocha, em cujo pórtico estava sentado um negrinho, a preparar pacotes de ervas secas.
Respondendo à minha pergunta, disse que o sábio Colchis estava em casa e chamou outro serviçal para guiar-me. Atravessei primeiramente uma caverna cheia de ervas,
vidros e instrumentos de formas bizarras; a seguir, um pequeno corredor abobadado e uma segunda gruta menor, iluminada por algumas tochas e quase vazia; várias saídas
pareciam dissimuladas por cortinas de couro.
Junto de enorme mesa de pedra escura, estava assentado o sábio, lendo um papiro à luz da lâmpada. Ao avistar-me, levantou-se tossindo e fitou-me com olhar perscrutador.
Era um homem alto, magro e um tanto corcunda; as barbas brancas lhe caíam sobre as vestes negras e um gorro egípcio ocultava parte da fronte.
Trocamos cumprimentos. Indagou o motivo da minha visita.
Estremeci e examinei-o curioso. Onde teria ouvido aquela voz de timbre metálico? Onde teria visto aquele rosto pálido e anguloso, aqueles olhos sombrios e profundos?
Certo, não me era estranho, mas quando, onde, em que circunstâncias nos encontráramos não saberia dizê-lo.
Também ele não pareceu reconhecer-me e fixou cuidadosamente o preço e as condições do embalsamamento de Henaís. Concordei com todas as suas exigências e prometi
mandar-lhe o cadáver nessa mesma noite.
Enquanto aguardava impaciente o resultado do trabalho de Colchis, triste episódio se propalou em Tanis com a maior repercussão. Omifer e Smaragda ali tinham ido
para assistir ao casamento de um primo. Ambos compartilhavam sinceramente da minha mágoa, pois muitas vezes nos visitamos.
Certa manhã, um escravo titubeante foi comunicar-me que a jovem senhora acabava de expirar, após dezoito horas de agonia, em consequência da mordedura de uma serpente
escondida numa cesta de flores que lhe fôra levada por um desconhecido.
Penalizado, fui visitar Omifer, que me contou o deplorável acontecimento. Para confortá-lo um pouco no seu triste desespero, aconselhei-o a que confiasse igualmente
a Colchis, o embalsamamento de Smaragda. Conheci-o muito tarde para salvar Henaís, acrescentei, mas o seu saber é imenso e dizem que conserva o cadáver com todas
as aparências de vida. Esta manhã, mandou-me dizer que enviasse o ataúde e dentro de dois ou três dias poderia ir buscar a múmia de minha mulher.
- Vem comigo, ficarás conhecendo a casa dele e julgarás, por ti mesmo, da habilidade desse mago e se convém confiar-lhe o corpo de sua esposa - reiterei-lhe, convicto.
Concordou e partimos imediatamente.
Atendendo ao meu pedido para que mostrasse o seu trabalho ao amigo, Colchis nos levou à pequenina sala onde se achava um fardo alongado, coberto com um pano de seda.
Acendeu algumas tochas e retirou depois o véu, fazendo-nos sinal para nos aproximarmos. Com um grito mesclado de alegria e desespero, caí de joelhos: ali estava
Henaís estendida como se estivesse viva; a tez morena e transparente conservava todo o aveludado natural; os lábios, o rosto, o esmalte natural dos olhos que pareciam
fitar-me! Não fora as faixas que a envolviam até o pescoço, teria podido iludir-me e supor que a minha amada ia levantar-se, como vestida para uma festa.
- Sábio Colchis, agradeço-te - disse, finalmente, ao levantar-me - com exceção da vida, que é um dom dos deuses, tu ma restituis, tal como a amei. Quando poderei
mandar buscar o ataúde?
- Amanhã de manhã - respondeu.
Despedi-me, deixando o mago Com Omifer deslumbrado.
A vida em Tanis tornou-se-me insuportável; resolvi abandonar o serviço e transferir-me para Thebas com o corpo de Henaís, que eu desejava depositar no jazigo dos
meus antepassados, ali me estabelecendo definitivamente, porque meu bom pai havia recentemente falecido. Ilsiris se casara com um jovem sacerdote de Heliópolis,
onde morava, e minha mãe, sozinha, desejava a minha companhia, mas por coisa alguma deste mundo deixaria o lugar onde repousava o seu caro Mentuhotep.
Passaram-se mais de doze anos e não contraí novas núpcias, dedicando-me unicamente à educação dos dois filhos e da pequenina Henaís, que herdara a beleza e a bondade
maternas.
Uma tarde, ao regressar do cemitério, onde se havia celebrado pomposa cerimônia e onde me demorara no jazigo da família, ao atravessar o rio atravancado, minha embarcação
colidiu tão desastradamente com outra, que soçobrou. Mau nadador, gritei e me debati algum tempo, mas a escuridão impediu que os companheiros me localizassem, enquanto
a água me entrava pelos ouvidos e pela boca, .asfixiando-me. Horrível aflição! A cabeça rodava, tudo rodopiava e sibilava em torno de mim, dando-me a impressão de
rolar para um abismo sem fundo. Depois, perdi os sentidos.
Ao despertar, flutuava balançando-me ligeiramente num espaço transparente, sem. poder dar conta da situação: encontrava-me normalmente vestido e enxuto, apesar do
tremendo mergulho e, todavia, achava-me ainda no bojo do Nilo, pois via distintamente as duas margens, as pessoas que o atravessavam, etc.; enfim, percebi meus dois
filhos numa barca cheia de mergulhadores!
Desolados, sondavam o rio em todas as direções. A despeito dos meus gritos e gestos, não me viram e passaram junto a mim.
Comecei, então, a me sentir mal: que significava tudo aquilo? Porque me encontrava ali, impossibilitado de retornar à casa, como tanto desejava? Donde provinha aquela
estranha multidão que pululava ao redor de mim balançando-se no ar, ou sobre as ondas e mesmo no fundo do rio? Reconhecera vários dos que ali se encontravam, mas
todos já falecidos de muitos anos.
Apoderou-se de mim intenso desejo de abandonar o local; num instante, acreditei elevar-me no espaço, mas, dor aguda no cérebro e um calor que parecia consumir o
corpo aturdiram-me inteiramente. Quando recobrei a consciência, notei que ainda estava sobre as águas, mas o cenário havia mudado: o grande e sólido edifício rodeado
de palmeiras, que se refletia nas ondas transparentes, era o Templo de Isis, em Tanis. A entrada, vagava um homem com as vestes rotas e ensanguentadas, a torcer
as mãos, desesperado; depois, ajoelhado, batendo com a cabeça no solo. De repente, estremeci: aquele desgraçado era Mena, o pobre amigo desaparecido havia muitos
anos!
Quando a caravana a que ele se juntara voltou a Tanis, o sobrinho do nosso intendente contou que, durante a viagem, Mena, extravagante e versátil como sempre, havia
mudado de idéia e assim, em lugar de acompanhá-los até a Síria, como ficara combinado, reuniu-se a outra caravana e seguiu rumo A Babilônia. Desde então, nunca mais
se ouviu falar dele.
- Mena! - exclamei - e ao mesmo tempo um jacto de centelhas me esguichou do cérebro, indo tocar o dele. Percebeu-me e aproximou-se.
- Pobre amigo, de onde vens e que fazes aqui? Perguntei.
Contou-me então que durante a viagem sua caravana fora surpreendida e atacada, à noite, por um bando de malfeitores, sendo ele morto com uma facada.
Quando recobrei os sentidos - continuou - já me encontrava aqui, donde não posso afastar-me, obrigado a contemplar o horroroso espetáculo que me alucina. Vem comigo,
talvez possa ajudar-me a libertar Menchtu - terminou, vertendo lagrimas que pareciam gotas de fogo.
Como louco acompanhei-o até um sítio afastado do Templo, interdito aos profanos, e lá, numa espécie de cela fechada Por enorme pedra, vi Menchtu, a infeliz sacerdotisa
por ele seduzida! Parecia enlouquecida, descabelada, vestes trapejantes, a dar com a cabeça na parede da estreita prisão fracamente, Iluminada por uma lâmpada suspensa
da abóbada; depois, dando pontapés numa bilha vazia, rolava pelo chão, roendo os dedos com gritos horrorosos, entremeados com o nome de Mena, a quem ora invocava
apaixonadamente, ora maldizia por tê-la abandonado.
Impressionado com o que via quis ajudar o amigo, que fazia esforço sobrenatural para remover a pedra que vedava a entrada. Esforço inútil, Nada conseguimos, embora
vendo tudo que se passava no interior.
Diante da minha impotência fiquei desanimado, resolvi abandonar aquele sítio pavoroso e, dessa vez, consegui deslocar-me mais facilmente. Qual folha levada pelo
vento, deslizei na atmosfera: diante de alguns rochedos pardacentos, pareceu-me que me detinha, e subitamente recordei que ali havia residido o mágico que embalsamara
Henaís. Procurei a entrada, mas não pude encontrá-la logo. A seguir, notei que estava murada pela parte interior e, por fora, dissimulada com uma grande pedra. Surpreendi-me
por atravessar facilmente esse obstáculo e encontrar-me no interior da gruta, onde, pela primeira vez, falara com o sábio.
Assombrado, tudo observei: um largo facho de luz azulada e cintilante iluminava a sala, concentrando-se no centro, ao redor de um homem assentado no chão, de braços
cruzados. Um pouco acima, ligado a ele por larga faixa de fogo, pairava o duplo desse personagem, mais transparente, mais remoçado, porém numa completa imobilidade:
era Colchis! Olhei-o sem nada compreender de tudo aquilo, quando um riso sarcástico e desdenhoso fez-me estremecer e só então notei que, junto do adormecido, havia
um ataúde com o corpo de Smaragda, admiravelmente embalsamado, tendo na borda, sentada, uma segunda Smaragda perfeitamente viva e que continuava a rir.
- Estas louco, Necho, pois nem agora reconheces o miserável Pinehas; foi ele quem levou a serpente escondida sob as flores; ele quem envenenou Omifer para ficar
com minha múmia. Querendo fugir à responsabilidade, pôs-se em letargia, a fim de enganar a divindade; mas ele despertará e nós aguardamos esse momento - eu e todas
as vítimas do seu saber mal empregado.
Na realidade eu distinguia atrás de Smaragda uma multidão de seres horrorosos, de rostos disformes, uns com fermentos que exalavam odor nauseabundo, outros com punhais
de pontas fosforescentes, todos contemplando Pinehas com ódio e ferocidade, pedindo o seu despertar com imprecações tremendas.
Apavorado, eu não pensava mais que em fugir e quase no mesmo instante a gruta e seus horríveis ocupantes esmaeceram, parecendo desmantelar-se.
Depois encontrei-me, numa atmosfera cinzenta, oceânica, ilimitada.
Quanto tempo fiquei, desesperado e só, nesse deserto nevoento não saberia dizê-lo, senão que, certa feita, não sabendo o que fazer, nem para onde ir, dirigia a Osiris
ardente suplica para que me socorresse, me livrasse daquela situação miserável e imerecida, pois estava certo de não haver cometido crime algum. Instantaneamente
quase, surgiu diante de mim um ser luminoso, de expressão calma e terna, que me falou bondosamente:
- É verdade que nada fizeste, mas justamente a conseqüência de uma vida tão inútil é que te faz sofrer! Não cometeste crimes, não fizeste mal a ninguém, dizes...
Mas, isso porque rico, feliz, amado, satisfeito em todos os teus desejos, jamais experimentaste grandes tentações. Dize-me, porem: que bem praticaste? Deste do teu
supérfluo aos pobres? Mitigaste-lhes a miséria? Tens-te em conta de bom senhor, interessado pelos teus criados, que, embora escravos, são teus semelhantes? Cuidaste-os
nas suas enfermidades, amparaste os na velhice? Ou, pelo menos, trabalhaste intelectualmente para aumentar teus conhecimentos e tua espiritualidade? - Tu nada fizeste
neste sentido - continuou a entidade - garantido pela condição social e pela fortuna, evitaste o contato das misérias humanas, levando vida preguiçosa e instintiva,
de irracional. Sim, somente gozaste e agora que, despojado da carne, como espírito, continuas a errar preguiçosamente sem destino, perguntas por que sofres? Nada
sabes, nenhuma inclinação experimentas, apenas existes e sofres!
Compreendi que meu guia tinha razão e humilhei-me intimamente.
- Então que devo fazer para ser útil e não mais sofrer a inatividade?
- Vai e ora por todos os sofredores que encontrares; esclarece-lhes a própria condição em que se encontram; fala-lhes do arrependimento, persuade-os a buscarem a
consolação do trabalho digno do espírito, como operários do Universo, ou uma expiação terrena, porque a atividade, o arrependimento, e perdão das ofensas, são indispensáveis
a todos os espíritos que aspiram o bem.
Esvaneceu-se a aparição e engolfei-me em ardente prece, implorando ao Criador a força para reparar minhas faltas.
Lembrei-me depois de Henaís, que ainda não tinha visto e, instantaneamente, me encontrei no jazigo de nossa família, avistando-a só e desolada, a chamar por mim.
Não posso descrever a alegria desse encontro! Expliquei-lhe tudo e, juntos, percorremos o espaço, procurando nossos irmãos mergulhados na dor, sustentando-os com
as nossas preces e conselhos.
Ocorreu-me, certa feita, a idéia de ir ao sítio onde haviam perecido nosso rei e seus valentes guerreiros. Talvez, também eles se debatessem em angústia, julgando-se
ainda vivos na Terra.
Apenas idealizado esse desejo, já me encontrava no lugar fatídico. Diante de mim o Mar dos Sargaços e, sob as vagas, ainda se debatendo em medonha agonia, o nosso
malogrado exército. Ouvia gritos soturnos, desesperado retinir de armas, relinchos de animais enlouquecidos, e todo esse espantoso combate com a morte parecia não
ter fim!
Notei de repente que não estava só; sob as águas espumantes caminhava, triste e inquieto, Mernephtah tentando em vão explicar a nova situação àquelas sombras perturbadas
por suas paixões e ligadas por seu obscurantismo a esse lugar de sofrimento.
Vendo-me, disse:
- Tu também estás aqui, Necho? Vês? Estes infelizes não compreendem o próprio estado e nada posso fazer em seu favor.
- Ora por eles - respondi inspirado por uma voz do Alto.
O Faraó-espectro elevou ao Criador ardente prece, a fim de receber força e esclarecimento e poder auxiliar aqueles a quem ele próprio arrastara ao báratro.
Imediatamente pareceu transfigurar-se, e um apelo semelhante e longínquo trovão fez convergir para ele a atenção geral. Então falou:
- Insensatos! - acalmai vossa fúria impotente, voltai à razão, ponderai: o causador da vossa perda vai entrar no mundo dos espíritos e vamos ao seu encontro.
Lançou-se no espaço e, qual onda pardacenta, a nuvem de inteligências o acompanhou, guiada por sua vontade.
Com a rapidez do pensamento, atingimos alto cimo de árida montanha. Estendido sobre o manto, cabeça apoiada numa pedra, lobriguei um homem de rosto desfigurado,
barba e cabeleira grisalhas. Apenas os olhos de águia cheios de inteligência e audácia, não haviam mudado. Era Moisés.
Desiludido, esgotado de alma e corpo, ali morria só, com seu orgulho - último escudo, que lhe restava. E com o olhar espiritual revia o Egito, toda a sua vida se
desenrolava, paulatinamente, diante dele! Doloroso regresso à pátria espiritual.
Assaltado por seus inimigos flutuantes, debatia-se dolorosamente, quando um chamado partindo do espaço se fez ouvir:
- Espírito que te serviste do nome do Eterno, vem prestar contas de teus atos!
Necho
NOTA DO ESPIRITO AUTOR
Creio que será Interessante, para os meus leitores, saber como se encontra o Espírito de um faquir durante o estado de letargia, ou de qualquer pessoa nessa condição.
Darei assim algumas breves explicações.
As sensações do espírito durante esse estado são agradáveis. A Inatividade do pensamento é quase completa; o bem-estar do perispirito atinge o apogeu, porque, destacado
do corpo ao qual apenas fica retido pela artéria principal, paira num espaço de fluído azulado, fosfórico e renovador, que é a fonte onde a Terra se abastece dos
sucos vitais necessários à manutenção da vida material. O perispirito absorve todas as partículas indispensáveis ao sustento do corpo abandonado e lhas veicula por
intermédio do canal da grande artéria vital, à qual soprepaira, retido junto do corpo. Se assim não fosse, o corpo, privado de todo o alimento, deixaria de funcionar
e, como está provado, sem funcionamento cessaria a vida e teria Inicio a decomposição.
Com relação ao caso de que nos ocupamos, apesar de um estado de morte aparente, os órgãos continuam a exercer todas as funções indispensáveis para manter a união
do corpo ao Espírito, facultando, além disso, a este último, reentrar naquele, caso seja preciso, ativando-o como anteriormente. Entretanto, esse bem-estar, essa
beatitude do perispírito, só ocorre quando ele está separado do corpo, quase inteiramente. Nos casos de letargia, em que os órgãos são submetidos ao estado de torpor,
sem que o perispírito deixe o corpo, o espírito vê e ouve tudo que se passa ao redor e experimenta todas as angústias do seu estado.
OBSERVAÇAO SUPLEMENTAR DO ESPIRITO AUTOR
Alguns amigos meus, que leram esta obra ainda em manuscrito admiraram-se que em um país policiado como o Egito, com o governo firmemente estabelecido, um único homem
(qualquer que fosse, aliás, sua inteligência e audácia) ousasse tão abertamente afrontar um povo inteiro e o seu rei, que dispunha de todos os recursos de um poder,
de um exército forte e de apoio sacerdotal, sem que o mandassem prender e justificar como elemento perigoso, não só para lhe anular o prestígio ou, ao menos, consumir
com ele secretamente.
Na suposição de que a mesma idéia possa ocorrer a mais de um dos meus leitores, quis que se acrescentasse ao manuscrito a resposta que dei àqueles amigos.
Não há dúvida de que, em sua legislação, na arte e mesmo nas ciências, o Egito havia atingido elevado grau de civilização, mas isso não impedia que o povo (com exceção
de algumas poucas personalidades), se mantivesse na maior superstição; a própria religião, resguardada pelo sacerdócio, de véus e mistérios, assim o ensejava. Moisés
que, força é confessá-lo, era um impostor, porquanto utilizava as forças da Natureza, desconhecidas do vulgo, havia granjeado para a sua pessoa uma tal auréola de
temerosa superstição, por uma série de fatos cujo relato excederia o quadro de um romance, que ninguém, entre o povo desorientado, seria capaz de levantar a mão
contra ele, receoso de que o perigoso mago destruísse o temerário e quantos lhe pertenciam.
Assim entre outros casos, um egípcio que jogara uma pedra à cabeça de Moisés foi por ele amaldiçoado e, três dias depois graças a um veneno habilmente administrado
por criado hebreu, teve a família atacada de terrível enfermidade: com o corpo cheio de chagas em decomposição lenta, morreu vitima de atrozes sofrimentos.
Idênticos fatos, aliás exagerados pela voz popular, produziam feitos extraordinários.
Quando Moisés anunciou, por intermédio dos israelitas, que no dia em que fosse vítima de algum atentado o mundo acabaria, a multidão estúpida acreditou e tê-lo-ia
defendido mesmo contra os próprios soldados,
Mernephtah e seus conselheiros mais esclarecidos tentaram, então, eliminá-lo secretamente, para evitar o pânico, Um destacamento de soldados sob comando de oficiais
escolhidos, foi mandado, certa noite, cercar-lhe a residência e no momento de forçarem a porta romperam labaredas de todas as frestas: apesar do perigo evidente,
os guerreiros, que eram veteranos experimentados se precipitaram para o interior, mas, ao verem Moisés de pé no meio do fogo, com a roupa intacta, aureolado por
intensa claridade, perderam a coragem temendo o sobrenatural, e fugiram.
Outra feita, oito oficiais valentes juraram, à minha vista, que o seguiram passo a passo até abatê-lo, ainda que isso lhes custasse a vida. Necho menciona em seu
depoimento que, certa vez Moisés desaparecera por muito tempo; havia deixado Tanis para fiscalizar pessoalmente as suas próprias determinações. Justamente nessa
ocasião, foi que os citados oficiais o surpreenderam perto de uma cidade próxima, apenas acompanhado por dois hebreus. Atiraram-se a ele. Os dois israelitas tombaram
imediatamente e Moisés foi alcançado por alguns golpes de punhal, mas, revestido certamente de algum escudo protetor, ficou incólume e dando, então, um salto atrás,
retirou do cinto grande faca, ferindo o primeiro assaltante, enquanto com um soco repelia o segundo; mal a ponta da arma tocou o ombro do primeiro e sua mão à fronte
do segundo, ambos caíram como fulminados por um raio; a mesma sorte tiveram os demais. Escapou apenas um, que fugiu como louco, vindo contar-me o sucedido. Mandei
buscar os corpos dos infelizes militares, os quais foram encontrados horrorosamente decompostos, notando-se ao redor das feridas, e das pequenas incisões, parecendo
arranhaduras, um círculo negro como de queimaduras.
Essas tentativas e muitas outras ficaram ignoradas, mesmo de Necho. Entretanto, exasperado, eu teria sacrificado a metade dos meus súditos para deter o insolente
e descarregar sobre ele a minha vingança. Ordenava, pois, sempre, novas tentativas, até que uma pareceu, enfim, resultar eficiente.
Moisés foi agarrado de surpresa, e levado secretamente ao palácio, e, de pés e mãos atados, encerrado numa sala com dois soldados e todas, as saídas guardadas por
destacamentos armados. Pretendia mandar decapitá-lo publicamente, no dia seguinte. Quando, porém, horas mais tarde, foram buscá-lo para que me fosse apresentado
encontraram a sala vazia, os dois soldados profundamente adormecidos e as cordas e correntes amontoadas no solo. (Não me arguam de narrar coisas impossíveis: para
os que estudaram os fenômenos mediúnicos, a explicação se impõe por si mesma; para os demais, recordarei um fato perfeitamente idêntico, consagrado pela Igreja;
a libertação miraculosa do Apóstolo Pedro, que desembaraçado das cadeias, saiu igualmente da prisão, apesar dos guardas lá postados por Herodes).
Este último fato tornou-se público, ocasionando verdadeiro pânico.
Quanto a Mernephtah, estava convencido de que enfrentava um homem mais que perigoso, não só pela astúcia, como pelo saber, muito superior ao dos sábios egípcios,
o que o tornava quase invulnerável; assim a força do Faraó consistia em não ceder e lutar contra as calamidades, precisando para isso de toda a confiança e estima
que os súditos dedicavam ao seu soberano, para manter a ordem entre as massas desvairadas. Moisés, ao contrário, dispunha de milhares de serpentes que deslizavam
por toda parte no cumprimento de suas pérfidas ordens. Será um erro, entretanto, acreditar que tudo se passava calmamente, sem encontros entre egípcios e hebreus.
Na realidade houve inúmeros assassinatos e mesmo massacres parciais; apenas ninguém ousou tocar na pessoa de Moisés, pelos motivos acima mencionados, tão poderosos,
que o Faraó, apesar do seu poder e do seu ódio, não pôde abater a cabeça insolente e ambiciosa, que, em nome do Eterno, sancionava o roubo e assassínio, havendo
por bons todos os meios que conduziam ao fim.
Os monumentos egípcios silenciam essa época de subversão e desgraça nacional, e o que a Bíblia relata sobre Moisés foi escrito por seus irmãos hebreus, parciais
e animados unicamente do desejo de exaltar a grandeza do seu povo. Não obstante, nesse relato, o leitor atento encontrará elementos para retratar o verdadeiro Moisés,
grande legislador e homem de gênio, porém mau, arrebatado, ambicioso, inescrupuloso, que usurpou a direção de um povo sobre o qual nenhum direito tinha: dum povo
que ele não estimava, antes, detestava e de que se serviu para ferir o Egito e erguer um trono para si próprio.
É verdade que pregou a existência de um Deus único e pelos Dez Mandamentos estabeleceu uma base para o futuro edifício da cristandade, mas também lhe pertencerá
a responsabilidade de ter feito do Criador do Universo, do Ser infinitamente grande, sábio e misericordioso, o Deus parcial, vingador e sanguinário do Velho Testamento.
J.W. Rochester
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