Biblio VT
Series & Trilogias Literarias
Não havia nada de particularmente notável no terreno de cem metros quadrados de mato seco no limite de um vilarejo ao sopé das Dolomitas. Terminando em um talude, era coalhado de carvalhos prontos para virar lenha se assim quisessem, o que serviu de argumento para pôr o preço lá em cima quando o terreno e a casa bicentenária nele erigida foram colocados à venda. Ao norte, uma montanha de face escarpada projetava-se sobre a pequena cidade de Ponte nelle Alpi; a cem quilômetros ao sul, Veneza, longe o suficiente para ter qualquer influência sobre a política ou os costumes locais. Os habitantes dos vilarejos relutavam em falar italiano, ficando mais à vontade com o dialeto bellunese.
O terreno não era cultivado havia cerca de cinquenta anos, tempo em que a casa de pedra permanecera vazia. As enormes telhas que compunham o telhado tinham mudado com a passagem do tempo e as bruscas variações de temperatura, talvez até mesmo devido a um ou outro tremor de terra que atingiu a região nos séculos em que o telhado protegeu a casa da chuva e da neve, o que já não fazia mais, pois muitas dessas telhas jaziam no chão, deixando os pavimentos superiores expostos ao mau tempo. Em razão de a casa e a propriedade serem o centro de um inventário litigioso, nenhum dos oito herdeiros se dera ao trabalho de consertar os vazamentos, temerosos de jamais recuperarem as poucas centenas de milhares de liras que custariam os reparos. Com isso, a chuva e a neve caíram, depois jorraram para dentro, corroendo os plásticos e os pisos, e a cada ano que se passava o telhado se inclinava cada vez mais ébrio em direção ao solo.
O terreno fora abandonado pelos mesmos motivos. Nenhum dos herdeiros queria gastar tempo ou dinheiro cultivando a terra, nem queria colocar em risco seu direito ao ser visto fazendo uso irregular da propriedade. As ervas daninhas floresceram, fortalecidas pelo fato de os últimos encarregados de cultivar a terra terem usado como adubo por décadas os dejetos de seus coelhos.
Foi a perspectiva de dinheiro estrangeiro que resolveu o litígio: dois dias depois de um médico alemão aposentado ter feito uma oferta pela casa e pelo terreno, os oito herdeiros se reuniram na residência do mais velho. Antes que a noite acabasse haviam concordado unanimemente em vender tudo; em seguida, decidiram não vender até que o estrangeiro tivesse dobrado sua oferta inicial, o que constituiria o quádruplo do que qualquer um dos moradores da região estaria disposto a, ou teria condições de, pagar.
Três semanas antes de o acordo ser finalizado, os andaimes foram erguidos e as telhas centenárias e artesanais que restavam foram arremessadas para baixo, espatifando-se no quintal. A arte de instalar as telhas tinha morrido com os artesãos que sabiam como cortá-las, assim, elas foram substituídas por retângulos moldados de cimento pré-fabricado que guardavam uma vaga semelhança com as telhas de terracota. Tendo o médico contratado o herdeiro mais velho como seu capataz, a reforma foi rápida; e, por se estar na província de Belluno, foi realizada a contento e honestamente. Em meados da primavera, a reforma da casa estava quase terminada, e, perto dos primeiros dias de verão, o novo proprietário, que passara sua vida profissional enfurnado em centros cirúrgicos muito iluminados e supervisionava a reforma por telefone e fax a partir de Munique, passou a concentrar seus pensamentos na criação do jardim com que havia sonhado por anos.
A memória de um vilarejo é perene, e lembrou-se que o antigo jardim ficava ao longo de uma fila de nogueiras nos fundos da casa, o que fez Egidio Buschetti, o capataz, decidir arar ali. A terra não tinha sido cultivada pela maior parte de sua existência, o que levou Buschetti a calcular que devia passar seu trator por ali duas vezes, a primeira para cortar as ervas daninhas de um metro de altura, a segunda para sulcar para a superfície o rico solo em repouso abaixo.
A princípio, Buschetti achou que era um cavalo — lembrava que os antigos proprietários tinham dois —, de modo que manteve o trator em movimento até alcançar o ponto que estabelecera como limite do terreno. Forçando o enorme volante, deu meia-volta com o trator e voltou por onde tinha vindo, orgulhoso da retidão dos sulcos, contente de estar novamente ao sol, feliz com os sons e o ritmo do trabalho e agora certo de que a primavera tinha chegado. Então viu o osso projetando-se retorcido do sulco que tinha acabado de arar, sua extensão branca visivelmente destacada sobre a terra quase negra. Não, não era comprido o suficiente para ser de um cavalo, e ele não se lembrava de alguém ter criado ovelhas por ali. Intrigado, reduziu a marcha do trator, como que temendo esmigalhar o osso ao passar por cima dele.
Pôs a máquina em ponto morto e deixou que parasse. Acionou o freio de mão, desceu do alto assento de metal e caminhou até o osso ereto que apontava para o céu. Agachou-se para pegá-lo e tirá-lo do trajeto do trator, mas uma súbita relutância o fez se erguer novamente e dar uma pancadinha nele com a ponta de sua robusta bota, esperando com isso deslocá-lo. Mas o osso não se movia, então Buschetti voltou até o trator para buscar uma pá que mantinha atrás do assento. Quando virou, seus olhos foram atraídos por uma forma oval brilhante um pouco adiante no fundo do sulco. Não havia crânio de cavalo ou ovelha que pudesse apresentar formato tão arredondado, e nenhum deles o teria encarado com caninos tão afiados, assustadoramente semelhantes aos do próprio Buschetti.
2
As notícias nunca se propagam de forma tão rápida em uma cidade pequena quanto quando dizem respeito a mortes ou acidentes, de modo que a história de que ossos humanos haviam sido encontrados no jardim da velha casa dos Orsez já havia se espalhado pelo vilarejo de Col di Cugnan antes da hora do almoço. Somente a notícia da morte do filho do prefeito em um acidente de automóvel perto da fábrica de cimento, havia sete anos, tinha se espalhado tão rapidamente; mesmo a história sobre Graziella Rovere e o mecânico só tornara-se do conhecimento de todos após dois dias. Naquela noite, porém, os habitantes do vilarejo, todos os setenta e quatro, desligaram seus televisores durante o jantar ou conversaram sem ligar para o que neles passava, tentando especular sobre o que teria acontecido e, o que era mais interessante, sobre quem poderia ser.
A apresentadora de casaquinho de pele da RAI 3, a loira que a cada noite usava óculos diferentes, foi ignorada enquanto informava sobre as últimas atrocidades na antiga Iugoslávia, e ninguém deu a mínima para a prisão do ex-ministro do Interior sob acusações de corrupção. Notícias assim já faziam parte da rotina; mas um crânio em uma vala nos fundos da residência de um estrangeiro, isso sim era notícia. Até a hora de dormir, já se dizia que o crânio tinha sido esmigalhado pelo golpe de um machado ou de uma bala e que apresentava sinais de terem tentado dissolvê-lo em ácido. A polícia havia identificado, disso os habitantes tinham certeza, os ossos como sendo de uma mulher grávida, de um rapazinho e do marido de Luigina Menegaz, que havia partido para Roma doze anos antes e do qual nunca mais se ouvira falar desde então. Nessa noite, os moradores de Col di Cugnan trancaram suas portas, e os que tinham perdido suas chaves anos antes e nunca se haviam dado ao trabalho de procurá-las tiveram um sono mais agitado que os outros.
Na manhã seguinte, às oito horas, duas viaturas dos carabinieri chegaram à casa do dr. Litfin, passando por cima da grama recém-plantada para estacionar uma em cada lado dos dois longos sulcos arados no dia anterior. Somente depois de uma hora chegou o carro do centro da província de Belluno que trazia o medico legale daquela cidade. Ele não ouvira nenhum dos rumores sobre a identidade ou a causa da morte da pessoa cujos ossos jaziam sobre o terreno, dando início assim aos procedimentos que pareciam prioritários: colocar seus dois assistentes para revolver a terra e descobrir o resto.
Enquanto esse longo processo avançava, as duas viaturas dos carabinieri se revezavam atravessando o agora destruído gramado e dirigindo-se até o vilarejo, onde os seis policiais tomaram seu café em um boteco e começaram a perguntar aos habitantes se alguém tinha desaparecido. O fato de os ossos aparentemente terem ficado enterrados por muitos anos não os demoveu de sua decisão de indagar sobre eventos recentes, de modo que suas investigações não levaram a nada.
No terreno, os dois assistentes do dr. Bortot tinham montado uma peneira bem afunilada e lentamente iam despejando baldes de terra através dela, abaixando-se de quando em quando para apanhar um osso pequeno ou qualquer coisa que parecesse ser um. À medida que os iam recolhendo, mostravam os ossos a seu superior, que tinha se instalado na borda da vala, com as mãos para trás. Um grande plástico preto se estendia a seus pés, e à medida que os ossos iam sendo apresentados a ele, orientava seus assistentes sobre como dispô-los; assim, juntos, iam lentamente montando o macabro quebra-cabeça.
Vez ou outra ele pedia a um dos homens que lhe passasse um osso, que avaliava por um momento antes de se inclinar para posicioná-lo em algum lugar do plástico. Em duas ocasiões mudou de ideia; em uma delas se ajoelhou para mover um osso da direita para a esquerda, noutra, com um suspiro abafado, deslocou outro osso da base do metatarso para a extremidade do que antes fora um pulso.
O dr. Litfin chegou às dez, tendo sido informado na noite anterior sobre a descoberta em seu jardim e então dirigido por toda a noite vindo de Munique. Estacionou na frente da casa e saiu com dificuldade do carro. Entre ele e a casa viu as numerosas e profundas trilhas de pneus feitas sobre o novo gramado que ele havia cultivado com puro deleite três semanas antes. E logo viu os três homens no terreno mais adiante, quase tão distantes quanto os canteiros de mudas de framboeseiras que ele trouxera da Alemanha e plantara de imediato. Começou a cruzar o gramado destruído, mas de repente parou sob uma ordem gritada de algum ponto à sua direita. Olhou em torno, mas não viu nada além das três velhas árvores que tinham crescido em redor do poço em ruínas. Não tendo visto ninguém, retomou o andar em direção aos três homens no terreno. Não deu mais que alguns passos antes que dois homens trajando os ameaçadores uniformes negros dos carabinieri saíssem de debaixo da macieira mais próxima apontando metralhadoras em sua direção.
O dr. Litfin sobrevivera à ocupação de Berlim pelos russos e, embora isso tivesse sido mais de cinquenta anos antes, seu corpo não esquecera a visão de homens armados em uniforme. Instintivamente, ergueu as duas mãos sobre a cabeça e ficou imóvel como uma pedra.
Então os homens saíram das sombras e o doutor teve um momento alucinatório ao perceber o contraste dos uniformes pretos contra o inocente pano de fundo rosa da macieira em flor. As botas lustradas marchavam sobre um carpete de pétalas recém-caídas enquanto se aproximavam dele.
— O que o senhor faz por aqui? — indagou o primeiro.
— Quem é o senhor? — perguntou o outro, mantendo o mesmo tom raivoso.
Em um italiano desajeitado em virtude do medo, ele começou:
— Sou o doutor Litfin. Sou o... — e fez uma pausa em busca do termo mais adequado. — Sou o padrone daqui.
Os carabinieri tinham sido informados de que o novo proprietário era um alemão, e o sotaque parecia real o bastante, de modo que eles abaixaram as armas, mas mantiveram o dedo perto do gatilho. Litfin tomou o gesto como uma permissão para abaixar as mãos, o que fez bem devagar. Por ser alemão, sabia que as armas seriam sempre superiores a qualquer apelo a direitos civis, daí ter esperado que se aproximassem dele, o que não o impediu de voltar momentaneamente sua atenção para os três homens que permaneciam no terreno recém-arado, agora tão imóveis quanto ele, atentos aos carabinieri que se aproximavam e a ele próprio.
Os dois policiais, de repente inseguros frente à pessoa capaz de arcar com as reformas da casa e do terreno, à vista de todos, aproximaram-se do dr. Litfin e à medida que o faziam o equilíbrio do poder se alterava. Consciente disso, Litfin aproveitou a oportunidade.
— O que significa tudo isso? — perguntou, apontando para o terreno e deixando que os policiais concluíssem por si sós se ele estava se referindo ao gramado arruinado ou aos três homens que permaneciam do outro lado.
— Tem um cadáver no seu terreno — respondeu o primeiro policial.
— Sim, eu sei disso, mas o que é toda essa... — ele buscou o termo apropriado, mas só conseguiu emitir um “distruzione”.
As marcas das trilhas dos pneus pareciam se aprofundar enquanto os três homens as avaliavam, até que finalmente um dos policiais disse:
— Fomos obrigados a atravessar o terreno.
Embora fosse uma mentira descarada, Litfin optou por ignorá-la. Voltou as costas para os policiais e começou a caminhar em direção aos outros três homens tão rápido que ninguém tentou detê-lo. Chegando ao final da primeira vala, bastante profunda, perguntou ao homem que parecia estar no comando:
— O que é isso?
— O senhor é o doutor Litfin? — perguntou o outro médico, que já tinha sido informado sobre o alemão, sobre quanto havia pago pela casa e quanto havia gasto até então com as reformas.
Litfin confirmou e, como o outro demorava a responder, perguntou de novo:
— O que é isso?
— Um homem de uns vinte anos, acho — respondeu o dr. Bortot, voltando-se em seguida para seus assistentes a fim de fazê-los continuar com o trabalho.
Demorou um pouquinho para que Litfin se recuperasse da resposta grosseira, mas, quando o fez, passou sobre a terra revolvida e se posicionou ao lado do outro médico. Ficaram ali por um bom tempo sem dizer nenhuma palavra, lado a lado, observando os dois assistentes revolvendo a terra com vagar.
Passados alguns minutos, um dos homens entregou outro osso ao dr. Bortot, que, com um rápido olhar, identificou-o e posicionou-o ao final do outro pulso. O mesmo posicionamento rápido se deu com os dois ossos seguintes.
— Ali, à sua esquerda, Pizetti — disse Bortot, apontando para um minúsculo artelho exposto no extremo oposto da vala. O homem a quem ele se dirigiu visualizou o objeto, agachou-se, apanhou-o e entregou-o ao médico. Bortot o estudou por um instante, mantendo-o delicadamente entre o polegar e o indicador, e depois se voltou para o alemão.
— Cuneiforme lateral? — perguntou.
Litfin acompanhou o movimento dos seus lábios enquanto ele olhava para o osso. Sem dar tempo para que respondesse, Bortot passou o osso para ele. Litfin o pegou em suas mãos por um momento, depois olhou para os ossos espalhados sobre o plástico a seus pés.
— Ou intermediário — Litfin respondeu, mais à vontade com o latim que com o italiano.
— Sim, sim, talvez — Bortot replicou. Fez um aceno em direção ao plástico e Litfin se curvou para colocá-lo no fim do osso comprido que se unia ao pé. Ergueu-se e os dois olharam para ver o resultado.
— Ja, ja — murmurou Litfin, e Bortot assentiu com a cabeça.
Por mais uma hora os dois permaneceram juntos ao lado do sulco feito pelo trator, revezando-se para apanhar os ossos dados pelos assistentes, que continuavam a passar o rico solo pela peneira. De quando em quando divergiam sobre um fragmento ou uma lasca, mas em geral concordavam na classificação do que lhes era passado pelos dois cavadores.
O sol primaveril caía sobre eles. Ao longe, um cuco passou a emitir seu canto de acasalamento, repetindo-o até que os quatro homens não lhe dessem mais bola. À medida que o calor aumentava, eles começaram a tirar seus casacos, e depois seus paletós, que acabaram todos pendurados nos galhos mais baixos das árvores alinhadas a um dos lados do terreno que delimitavam a propriedade.
Como forma de passar o tempo, Bortot fez algumas perguntas sobre a casa para Litfin, que explicou que a reforma da fachada já havia terminado, mas faltava ainda a do interior, a qual calculava que fosse tomar a maior parte do verão. Quando Bortot perguntou ao outro médico como ele falava italiano tão bem, Litfin explicou que passara as férias dos últimos vinte anos na Itália e que, da última vez, tinha feito aulas três vezes por semana, para se preparar para a mudança. Nesse momento, os sinos do vilarejo acima badalaram doze vezes.
— Bem, dottore, acho que é isso — disse um dos assistentes e, para enfatizar, enfiou a pá bem fundo no solo, apoiou o cotovelo sobre ela, puxou um maço de cigarros do bolso e acendeu um. O outro assistente também parou, sacou um lenço e enxugou o rosto.
Bortot olhou para o pedaço de terra revolvida abaixo, agora com cerca de três metros quadrados, depois viu os ossos e órgãos ressecados dispostos sobre o plástico.
De repente, Litfin perguntou:
— O que o faz pensar que era um rapaz?
Antes de responder, Bortot se agachou e pegou o crânio.
— Os dentes — disse, passando o crânio para Litfin.
Mas em vez de olhar para os dentes, que estavam em bom estado, não apresentando os sinais de desgaste da velhice, Litfin, com um pequeno grunhido de surpresa, virou o crânio para observar a parte posterior. No centro, exatamente acima da endentação que se encaixaria em torno da ainda não encontrada parte superior da vértebra, havia um pequeno buraco redondo. Litfin já havia visto sua cota de crânios e mortes violentas, portanto não ficou chocado ou abalado.
— Mas por que você acha que era um jovem? — perguntou de novo, devolvendo o crânio a Bortot.
Antes de responder, ele se ajoelhou para devolver o crânio ao seu lugar no topo dos outros ossos.
— Isto aqui, que estava perto do crânio — Bortot disse enquanto se levantava, tirando algo do bolso de seu paletó e passando para Litfin. — Não acho que uma mulher colocaria algo do tipo.
O anel que passou a Litfin era um círculo grosso de ouro que possuía uma face achatada e redonda. Litfin colocou-o na palma da mão esquerda e o virou para cima com o indicador direito. O desenho estava tão gasto que a princípio ele não conseguiu distinguir nada, mas aos poucos tudo ficou mais nítido. Esculpido em baixo-relevo havia um intricado desenho de uma águia em posição de ataque, com uma bandeira na garra esquerda e uma espada na direita.
— Esqueci a palavra em italiano — disse Litfin enquanto olhava para o anel. — Um brasão?
— Stemma — completou Bortot.
— Sì, stemma — repetiu Litfin. — Você consegue identificá-lo?
Bortot anuiu.
— De quem é?
— Da família Lorenzoni.
Litfin balançou a cabeça. Nunca tinha ouvido falar deles.
— Eles são daqui da região?
Dessa vez, Bortot negou, balançando a cabeça.
— E de onde são? — perguntou Litfin enquanto devolvia o anel.
— Veneza.
3
Além de Bortot, quase todos da região do Vêneto reconheceriam o nome Lorenzoni. Estudantes de história recordavam o conde daquela família que acompanhou o doge cego, Dandolo, no saque a Constantinopla em 1204. A lenda conta que foi Lorenzoni quem passou ao velho sua espada enquanto abriam caminho escalando a muralha da cidade. Os músicos recordavam que a maior contribuição para a construção do primeiro teatro de ópera de Veneza fora de um Lorenzoni. Bibliófilos associavam o nome ao daquele homem que havia dado a Aldo Manúcio a quantia necessária para montar sua primeira prensa na cidade, em 1495. Mas essas são as recordações dos especialistas e historiadores, pessoas que têm motivos para evocar as glórias da cidade e da família. Os venezianos comuns recordam o nome como o do homem que, em 1944, forneceu à SS o que faltava para que descobrissem os nomes e endereços dos judeus que viviam na cidade.
Desses duzentos e cinquenta e seis judeus venezianos, oito sobreviveram à guerra. Mas isso é apenas um modo de encarar os fatos e os números. Colocando as coisas em outros termos, significa que duzentas e quarenta e oito pessoas, cidadãos italianos e moradores do que já fora chamado de a Sereníssima República de Veneza, foram retirados à força de seus lares e assassinados.
Sendo os italianos acima de tudo pragmáticos, muitos acreditam que se não tivesse sido Pietro Lorenzoni, o pai do atual conde, outra pessoa teria revelado o local do esconderijo dos líderes da comunidade judaica à ss. Outros sugerem que ele deve ter sido ameaçado para fazer o que fez, afinal, depois que a guerra acabou, membros dos vários ramos da família se devotaram ao bem da cidade, não apenas com seus muitos atos de caridade e generosidade a instituições públicas e privadas, mas também por terem assumido diversos cargos administrativos — até mesmo o de prefeito, embora por apenas seis meses —, tendo servido com distinção, como se diz, em diversos cargos públicos. Um dos Lorenzoni foi reitor da Universidade; outro, nos anos sessenta, foi por um período o curador da Bienalle; outro ainda, após sua morte, legou sua coleção de miniaturas islâmicas ao museu Correr.
Mesmo que não recordassem nenhum desses fatos, a maioria dos habitantes da cidade ligava o nome ao do jovem que fora sequestrado dois anos antes, levado por dois homens mascarados enquanto ele e a namorada estavam estacionados na frente dos portões da villa que a família tinha nos arredores de Treviso. Como a garota chamou primeiro a polícia, e não a família, os bens dos Lorenzoni foram congelados imediatamente, antes mesmo que eles fossem informados do crime. O primeiro pedido de resgate, quando chegou, exigia sete bilhões de liras, e à época houve muita especulação sobre a capacidade dos Lorenzoni de levantar tanto dinheiro. O pedido seguinte, feito três dias depois do primeiro, reduzia o montante para cinco bilhões.
Mas, então, as forças da ordem, embora não apresentassem sinais claros de progresso na descoberta dos responsáveis, cumpriram o protocolo em casos de sequestro e conseguiram bloquear todas as tentativas da família de conseguir um empréstimo ou trazer dinheiro de suas fontes no exterior, de modo que o segundo pedido tampouco foi atendido. O conde Ludovico, pai do rapaz sequestrado, apareceu na televisão nacional implorando aos responsáveis que libertassem seu filho, afirmando que se oferecia para ficar no lugar dele, embora estivesse muito abalado para explicar de que modo isso poderia ser feito.
Não houve resposta a seu apelo, nem um terceiro pedido de resgate.
Desde então, não houve mais sinal do rapaz, Roberto, e nenhum progresso, pelo menos oficial, na elucidação do caso. Os bens da família permaneceram bloqueados por seis meses e depois ficaram por mais um ano sob o controle de um administrador indicado pelo governo, ao qual cabia autorizar ou não o saque ou o pagamento de qualquer quantia superior a um milhão de liras. Foram muitas as somas desse nível que a família Lorenzoni despendeu durante aquele período, mas todas eram legítimas, recebendo portanto autorização para serem quitadas. Cessados os poderes do administrador, uma suave vigília governamental, discreta ao ponto da invisibilidade, continuou a monitorar os negócios e os gastos dos Lorenzoni, mas não constatou nenhum dispêndio acima do normal para a administração dos negócios.
Embora a lei determinasse que se esperasse mais três anos para que fosse declarada oficialmente a morte do rapaz, a família já o dava por morto. Seus pais viveram o luto à sua maneira: o conde Ludovico passou a se dedicar em dobro aos negócios, enquanto a condessa recolheu-se à devoção privada e dedicou-se a atos de piedade e caridade. Roberto era filho único, e a família ficou sem herdeiro, o que levou um sobrinho, o filho do irmão mais novo de Ludovico, a ser iniciado nos negócios e preparado para assumir a direção das empresas, que incluíam grandes e variadas firmas na Itália e no exterior.
A notícia de que o esqueleto de um jovem portando um anel com o brasão dos Lorenzoni tinha sido encontrado foi comunicada por telefone à polícia de Veneza do aparelho de uma das viaturas dos carabinieri, sendo recebida pelo sargento Lorenzo Vianello, que com cautela anotou o lugar, o nome do proprietário do terreno e o do homem que havia encontrado o esqueleto.
Ao desligar, Vianello dirigiu-se ao andar acima do seu e bateu à porta de seu superior imediato, o commissario Guido Brunetti. Ao ouvir um sonoro “Avanti”, Vianello empurrou a porta e entrou.
— Buon dì, commissario — cumprimentou e, sem ser convidado, assumiu seu lugar de costume na cadeira de frente para Brunetti, que estava sentado à sua escrivaninha, com uma enorme pasta aberta à sua frente. Vianello notou que seu superior estava usando óculos, mas não se lembrava de tê-los visto antes.
— E desde quando o senhor usa óculos, chefe?
Brunetti olhou para a frente, seus olhos estranhamente ampliados pelas lentes.
— São apenas para leitura — explicou, tirando-os e jogando-os sobre os papéis à sua frente. — Na verdade, não preciso deles. É que tornam mais fácil a leitura dessas letrinhas miúdas dos documentos de Bruxelas.
Com o polegar e o indicador, ele esfregou a ponte do nariz, como se para remover a marca deixada pelos óculos e também a que fora deixada pelos documentos que ele estava lendo.
Continuando a olhar para o sargento, perguntou:
— Do que se trata?
— Recebemos um telefonema dos carabinieri vindo de um local chamado... — ele começou, olhando em seguida para baixo, para o pedaço de papel em sua mão — Col di Cugnan. — Fez então uma pausa, mas Brunetti não disse nada. — Fica na província de Belluno — como se dar a Brunetti uma ideia mais clara da geografia fosse útil de algum modo. Brunetti continuou mudo, e Vianello prosseguiu: — Um fazendeiro de lá descobriu um corpo arando um terreno. Aparentemente, é de um jovem com vinte e poucos anos de idade.
— Segundo quem? — interrompeu Brunetti.
— Acho que segundo o medico legale, senhor.
— E quando foi isso?
— Ontem.
— E por que nos acionaram?
— Porque um anel com o brasão dos Lorenzoni foi achado junto ao corpo.
Brunetti levou novamente os dedos à ponte do nariz e fechou os olhos.
— Ah! O pobre rapaz... — suspirou, retirou a mão do nariz e encarou Vianello por sobre a mesa. — E eles têm certeza?
— Não sei, senhor — disse Vianello, respondendo à parte não explicitada da pergunta de Brunetti. — O homem com quem falei disse apenas que haviam identificado o anel.
— O que não significa que fosse do corpo, nem mesmo que tenha pertencido a... — Brunetti fez uma pausa, tentando lembrar o nome do rapaz — Roberto.
— E quem senão alguém da família usaria um anel desses, senhor?
— Não sei, Vianello, mas, se a pessoa que enterrou o corpo ali não quisesse que fosse identificado, certamente teriam tirado o anel dele. Estava na mão do corpo, não estava?
— Não sei, senhor. Tudo o que ele disse foi que o anel foi encontrado junto do corpo.
— Quem está no comando lá?
— O homem com quem falei disse que quem pediu para ligar para nós foi o medico legale. Devo ter anotado o nome dele em algum lugar. — Consultou o papel que trazia na mão e disse: — Bortot. E é só, ele não me disse o primeiro nome.
Brunetti balançou a cabeça.
— Diga de novo o nome do lugar.
— Col di Cugnan. — Ao ver a expressão de interrogação no olhar de Brunetti, Vianello deu de ombros para demonstrar que tampouco ouvira falar no lugar. — Fica para cima, próximo a Belluno. O senhor sabe como são estranhos os nomes dos lugares por ali: Roncan, Nevegal, Polpet.
— E vários dos nomes de família também, se bem me recordo.
Vianello sacudiu o papel.
— Como o medico legale.
— E os carabinieri não disseram mais nada? — perguntou Brunetti.
— Não, mas achei que o senhor deveria ser informado, chefe.
— Certo, muito bem — disse Brunetti, sem prestar muita atenção. — E alguém já contatou a família?
— Não sei. O homem com quem falei não disse nada a respeito.
Brunetti pegou o telefone. A telefonista respondeu, e ele pediu para ser posto em contato com o comando dos carabinieri em Belluno. Quando atenderam, ele se identificou e disse que queria falar com o encarregado da investigação sobre o corpo que haviam encontrado no dia anterior. Daí a pouco já conversava com o maresciallo Bernardi, que se apresentou como o encarregado daquela investigação. E não, ele não sabia se o anel fora encontrado na mão do homem na vala. Se o commissario estivesse lá teria visto como era difícil determinar. Talvez o medico legale fosse a pessoa mais indicada para responder à pergunta. Na verdade, o maresciallo não tinha mesmo muito a informar, à exceção do que já estava anotado no pedaço de papel na mão de Vianello. O corpo tinha sido levado para o hospital municipal de Belluno, onde ficaria até a realização da autópsia. Sim, ele tinha o número do telefone do dr. Bortot, e passou-o a Brunetti, que não tinha mais nada para perguntar.
Brunetti desligou e imediatamente discou o número que o carabiniere havia lhe passado.
— Bortot — atendeu o médico.
— Bom dia, doutor, aqui quem fala é o commissario Brunetti, da polícia de Veneza. — E fez uma pausa, acostumado com a interrupção que as pessoas costumavam fazer nesse ponto para perguntar o motivo da ligação. Como Bortot não disse nada, continuou. — Estou ligando para saber sobre o corpo do jovem que foi encontrado ontem. E sobre o anel que estava com ele.
— Pois não, commissario?
— Eu queria saber onde o anel estava.
— Não estava nos ossos da mão, se é isso o que o senhor quer saber. Mas não posso dizer com segurança se não estava na mão a princípio.
— O senhor poderia explicar melhor, doutor?
— É difícil dizer exatamente o que aconteceu, commissario. Há alguns indícios de que o corpo foi remexido. Por animais. O que é perfeitamente normal quando se passa algum tempo sob o solo. Faltam alguns dos ossos e órgãos, e os que restaram não estão em bom estado. De modo que é difícil estabelecer onde estava o anel quando deram cabo do rapaz.
— Deram cabo? — perguntou Brunetti.
— Há motivos para crer que ele levou um tiro.
— Que motivos?
— Um pequeno orifício, de uns dois centímetros de diâmetro, na base do crânio.
— Só um?
— Só um.
— E a bala?
— Meus assistentes tinham com eles apenas uma peneira para vasculhar o local à cata dos ossos, de modo que, se lá estivesse, algo tão pequeno como fragmentos de balas poderiam ter passado através dela.
— E os carabinieri continuam com a coleta?
— Não tenho como lhe responder isso, commissario.
— É o senhor quem vai fazer a autópsia?
— Sim. Nesta tarde.
— E os resultados?
— A que resultados especificamente o senhor se refere, commissario?
— Idade, sexo, causa da morte.
— A idade eu já posso lhe dizer: por volta de vinte anos, e não creio que encontre durante a autópsia algo que contradiga isso ou dê uma ideia mais precisa da idade. Quanto ao sexo, trata-se provavelmente de um homem, pelo tamanho dos ossos dos braços e das pernas. E creio que a causa da morte tenha sido a bala.
— E o senhor terá condições de confirmar essa afirmação?
— Vai depender do que eu encontrar.
— Em que condições estava o corpo?
— O senhor quer saber quanto restava dele?
— Sim.
— O suficiente para obter tecidos e amostras de sangue. Havia pouco tecido — animais, como eu já lhe disse —, mas parte dos maiores ligamentos e músculos, especialmente os da coxa e da perna, estão em boas condições.
— E quando o senhor terá os resultados, dottore?
— Há alguma razão para a pressa, commissario? Afinal, ele ficou enterrado por mais de um ano.
— Minha preocupação é com a família dele, dottore, não com os procedimentos policiais.
— Ah, sim! O senhor está falando do anel.
— Sim, se for o corpo do garoto, acho que os Lorenzoni deveriam ser informados o mais rápido possível.
— Commissario, não tenho comigo informação suficiente para identificar o corpo como sendo de alguém em particular além do que eu já lhe disse. Enquanto eu não tiver os registros odontológicos ou médicos de Lorenzoni, não posso afirmar com certeza nada além de sua idade, sexo e, talvez, a causa da morte. E quando ela ocorreu.
— O senhor já tem uma estimativa?
— Há quanto tempo o rapaz desapareceu?
— Há cerca de dois anos.
Fez-se um longo intervalo.
— Bem, a partir do que vi, é possível que sim. Mas ainda preciso dos registros para fazer qualquer tipo de identificação positiva.
— Vou procurar a família, então, e pedir a eles. Assim que os tiver, encaminharei por fax ao senhor.
— Obrigado, commissario. Pelas duas coisas. Não gosto de ter que falar com os familiares.
Brunetti não conseguia imaginar alguém que gostasse, mas só disse ao doutor que ligaria de novo à tarde para saber se a autópsia de fato confirmara suas especulações.
— Ouviu tudo? — perguntou Brunetti a Vianello quando colocava o fone no gancho.
— Ouvi o bastante. Se o senhor quiser falar com a família, posso ligar para Belluno e confirmar se os carabinieri acharam a bala. Se não, pedirei a eles que voltem para o terreno onde o encontraram e o vasculhem até achar.
O aceno de Brunetti serviu ao mesmo tempo como agradecimento e concordância. Quando Vianello se foi, Brunetti pegou a agenda na última gaveta e a folheou até chegar à letra L. Ali encontrou três entradas para Lorenzoni, todas no mesmo endereço da Piazza San Marco: “Ludovico, avvocato”, “Maurizio, ingeniere” e “Cornelia”, sem assinalar a profissão.
Fez menção de apanhar o telefone, mas, em vez disso, levantou-se e foi falar com a signorina Elettra.
Ao entrar na pequena antecâmara à entrada do gabinete de seu superior, o vice-questore Giuseppe Patta, a secretária falava ao telefone. Ao vê-lo, ela sorriu e o convidou a entrar com um aceno. Brunetti se aproximou da mesa e, ao mesmo tempo que lia de relance as manchetes do dia de ponta-cabeça, uma habilidade que às vezes lhe era muito útil, ouvia o que ela dizia. L’esule di Hammamet, dizia a manchete, e Brunetti ficou a se perguntar por que ex-políticos que fogem do país para não serem presos são sempre “exilados”, jamais “fugitivos”.
— Vejo você à noite, então — disse a signorina Elettra, terminando com um “Ciao caro”, antes de pôr o fone no gancho.
Que jovem teria provocado aquela última e provocante risada e estaria sentado à noite de frente para aqueles olhos escuros?
— Uma nova paixão? — perguntou Brunetti, sem pensar em como sua pergunta era atrevida.
A signorina não pareceu se importar com isso.
— Magari — ela disse, em conformada resignação. — Quem me dera. Não, é o meu corretor de seguros. Nós nos encontramos uma vez por ano, ele me paga um drinque e eu dou a ele o meu salário do mês.
Mesmo acostumado aos excessos retóricos da signorina, Brunetti ficou espantado.
— Um mês?
— Bem — ela contemporizou —, quase isso.
— E, se a senhorita me permite, que tipo de seguro?
— Não de vida, certamente — ela disse rindo alto, e Brunetti, ao se dar conta de como estaria sendo sincero, evitou o galanteio de dizer que não havia seguro algum que pudesse compensar tamanha perda. — Meu apartamento e tudo o que ele contém, meu carro, e, de uns três anos pra cá, um plano de saúde.
— E sua irmã sabe disso? — ele perguntou, curioso em saber o que uma médica que trabalhava para o sistema de saúde pública pensaria de uma irmã que pagava para não ter que utilizá-lo.
— E quem é que o senhor acha que me disse para fazer isso? — Elettra replicou.
— E por quê?
— Acho que é porque ela passa muito tempo nos hospitais, e por isso sabe o que acontece por ali. — E, refletindo um pouco no que acabara de dizer, acrescentou: — Apesar de que, baseado no que ela me disse, é mais uma questão do que não acontece. Na semana passada, uma das pacientes dela estava em um quarto do Civile com outras seis mulheres. Elas ficaram sem receber comida por dois dias e não encontraram ninguém que lhes explicasse por quê.
— E o que aconteceu?
— Por sorte, quatro delas tinham parentes que as visitavam, então elas dividiram a comida trazida por eles com o resto. Se não fosse isso, não teriam se alimentado.
A voz de Elettra ia subindo enquanto ela falava, e quanto mais ela falava, mais alta ficava.
— Para que alguém troque suas roupas de cama lá é preciso pagar. Ou para levar um penico. Barbara cansou disso e me aconselhou a procurar uma clínica particular se eu tivesse que ir a um hospital algum dia.
— E eu nem sabia que a senhorita tinha um carro — ele disse, sempre surpreso ao descobrir que alguém que morava e trabalhava em Veneza tivesse um. Ele nunca teve, nem sua esposa, embora os dois soubessem dirigir, mal.
— Fica na casa do meu primo, em Mestre. Ele o usa durante a semana, e eu fico com ele nos fins de semana em que quero dar um passeio.
— E o apartamento? — continuou Brunetti, que nunca tinha se dado ao trabalho de fazer um seguro para o seu.
— Estudei com uma mulher que tinha um apartamento no Campo della Guerra. O senhor lembra quando teve aquele incêndio por lá? O apartamento dela era um dos que foram destruídos pelas chamas.
— Eu achava que a comune tinha arcado com a restauração — disse Brunetti.
— Sim, mas com a restauração básica — ela o corrigiu. — Isso não inclui trivialidades como roupas, bens ou móveis.
— E o seguro paga? — perguntou Brunetti, pois ouvira contarem horrores sobre a dificuldade de receber dinheiro de uma seguradora, não importando quão legítimo fosse o pleito.
— Prefiro arriscar com uma companhia privada a arriscar com a prefeitura.
— E quem não preferiria? — perguntou Brunetti, em exausta resignação.
— Mas o que posso fazer pelo senhor, commissario? — ela perguntou, interrompendo a conversa e os pensamentos de perda e dor.
— Eu queria que fosse à sala dos arquivos para me trazer a pasta sobre o sequestro de Lorenzoni — disse Brunetti, devolvendo ao ambiente tanto a perda quanto a dor.
— Roberto?
— A senhorita o conhecia?
— Não, mas o cara que eu namorava na época tinha um irmão mais novo que estudava na mesma escola que ele. Os Vivaldi, eu acho. Faz um bocado de tempo.
— E ele alguma vez falou sobre o Roberto?
— Não lembro direito, mas acho que ele não gostava muito dele.
— E a senhorita lembra por quê?
Ela levantou um pouco o queixo e fez um bico com os lábios que teria diminuído em muito a beleza de qualquer outra mulher. Mas, no caso de Elettra, tudo o que esse movimento fez foi revelar a ele o elegante alinhamento de sua mandíbula e enfatizar a vermelhidão de seus lábios carnudos.
— Não — ela disse por fim. — De qualquer maneira, acabou.
Brunetti não sabia bem como fazer a próxima pergunta.
— A senhorita mencionou seu antigo namorado. A senhorita ainda... hum... a senhorita ainda tem contato com ele?
Ela abriu um sorriso, tanto pela pergunta dele quanto pelo modo desajeitado como a fez.
— Sou madrinha do primeiro filho dele — ela disse. — De modo que não haveria problema algum em ligar e pedir para perguntar se o irmão consegue se lembrar de algo. Farei isso hoje à noite. — Ela se levantou. — Vou agora lá para baixo pegar a pasta. Devo levá-la para seu gabinete?
Brunetti ficou grato por ela não ter perguntado por que ele queria ver a pasta. Supersticiosamente, esperava que se não falasse do assunto evitaria que o corpo fosse mesmo de Roberto.
— Sim, por favor — ele disse, e subiu para esperar.
4
Por ser pai, Brunetti preferiu adiar o contato com a família Lorenzoni até que a autópsia estivesse encerrada. Considerando o que o dr. Bortot dissera e a presença do anel, eram mínimas as chances de ele descobrir algo durante a operação que pudesse excluir a possibilidade de o corpo ser de Roberto Lorenzoni, mas, enquanto houvesse essa possibilidade, Brunetti preferia poupar a família do que poderia se revelar um sofrimento desnecessário.
Enquanto esperava a pasta original sobre o crime, fez um esforço para recordar o que sabia sobre o caso. O sequestro tinha ocorrido em Treviso, então a polícia de lá fora responsável pela investigação inicial, a despeito da vítima ser veneziana. Brunetti estava encarregado de outro caso na época, mas se lembrou do sentimento de frustração que se apossara da questura após a investigação ter se ampliado para Veneza e as tentativas da polícia de encontrar os homens que haviam sequestrado o garoto.
Dentre todos os crimes, Brunetti sempre achou o sequestro o mais horrível de todos, e não somente por ter dois filhos, mas por causa da mancha que ele trazia à humanidade, ao dar um preço totalmente arbitrário a uma vida e destruir essa vida quando não se recebia tal quantia. Ou pior, o que ocorria em muitos casos, levando a pessoa, recebendo o dinheiro e depois não libertando o refém. Ele esteve presente quando o corpo de uma mulher de vinte e sete anos foi recuperado; ela tinha sido sequestrada e em seguida colocada viva em uma tumba de um metro de profundidade, deixada ali para sufocar. Ele ainda se lembrava das mãos dela, tão enegrecidas quanto a terra que a cobria, envolvendo inutilmente o rosto no momento da morte.
Não se podia dizer que Brunetti conhecesse alguém da família Lorenzoni, embora ele e Paola tivessem ido uma vez a um jantar formal em que o conde Ludovico também estava presente. Como sempre ocorria em Veneza, de vez em quando ele cruzava com o velho na rua, mas jamais tinham trocado uma palavra. O commissario encarregado da parte veneziana da investigação fora transferido para Milão no ano anterior, de modo que Brunetti não poderia ir até ele perguntar sobre o andamento do caso na ocasião ou sobre suas impressões acerca da ocorrência. Na maioria das vezes, esse tipo de conversa informal se mostrava útil, especialmente quando um caso voltava a ser considerado. Brunetti considerou a possibilidade de o corpo encontrado não ser o do garoto Lorenzoni, o que não levaria à reabertura do caso, deixando a investigação sobre o corpo sob a responsabilidade da polícia de Belluno. Mas, então, como explicar o anel?
Antes que pudesse responder a si próprio, a signorina Elettra apareceu à sua porta.
— Entre, por favor — convidou Brunetti. — A senhorita foi muito rápida. — Não fora sempre assim com os arquivos na questura, pelo menos não até a abençoada chegada da signorina. — Há quanto tempo está conosco?
— Vai fazer três anos no verão, commissario. Por que a pergunta?
Ele esteve a ponto de dizer “Para que eu possa quantificar melhor minhas alegrias”, mas isso lhe soou parecido demais aos exageros retóricos da própria signorina, de modo que ele preferiu responder: — Para que eu possa encomendar flores em comemoração a esse dia.
Ela riu alto, e o dois se lembraram do choque inicial dele quando soube que uma das primeiras providências dela ao assumir o cargo de secretária do vice-questore Patta tinha sido solicitar uma remessa quinzenal de flores, não raro vistosíssimas flores, e nunca menos que uma dezena delas. Patta, cuja única preocupação era que sua verba municipal cobrisse seus muitos almoços — normalmente tão vistosos quanto as flores —, nunca pensou em questionar a despesa, de modo que sua antecâmara tornou-se uma fonte de prazer para toda a questura. Era impossível afirmar se o prazer da equipe vinha do que a signorina resolvera vestir naquele dia, das flores no pequeno ambiente ou do fato de que quem pagava por elas era o governo. Brunetti, que se deleitava igualmente com as três alternativas, lembrou-se de um verso, de Petrarca, em que o poeta louvava o mês, o dia e a hora em que vira sua Laura pela primeira vez. Sem dizer a ela nada disso, apanhou a pasta e a colocou na mesa à sua frente.
Assim que ela saiu, Brunetti abriu a pasta e começou a ler seu conteúdo. Ele recordava apenas que o sequestro tinha acontecido no outono, em 28 de setembro, pouco antes da meia-noite de uma terça-feira. A namorada de Roberto tinha parado o carro (lia-se em seguida o ano, marca e número da placa) em frente aos portões da villa da família Lorenzoni, abaixara a janela e digitara o código numérico na fechadura digital que controlava o acesso. Como o portão não abriu, Roberto desceu do carro para ver o que estava errado. Um pedregulho forçava o portão e impedia sua abertura.
Roberto, disse a garota em seu depoimento, agachou-se para tentar retirar o pedregulho, e quando ele ainda estava encurvado dois homens surgiram dos arbustos às suas costas. Um deles encostou a pistola na cabeça do rapaz, enquanto o outro se pôs ao lado da janela, apontando sua pistola na direção dela. Os dois estavam com máscaras de esqui.
Ela disse que no começo pensou se tratar de um roubo, o que a fez pôr as mãos no colo e tentar tirar o anel de esmeralda que estava usando para deixá-lo cair no assoalho do carro, a salvo dos ladrões. O rádio estava ligado, o que a impediu de escutar o que os homens disseram, mas ela contou à polícia que percebeu não ser um roubo ao ver Roberto se virar e caminhar mato adentro à frente do primeiro homem.
O segundo homem permaneceu onde estava por mais alguns momentos, ao lado da janela, apontando a arma para ela, mas sem dar nenhum sinal de que falaria. Em seguida, entrou no mato e desapareceu.
Sua primeira reação foi travar a porta do carro. Depois, procurou seu telefonino entre os bancos do carro, mas constatou que a bateria tinha acabado, o que o tornava inútil. Esperou para ver se Roberto voltaria. Como ele não retornou — ela não lembrava quanto tempo tinha esperado —, ela deu meia-volta, afastando-se do portão, e guiou na direção de Treviso, até encontrar uma cabine telefônica às margens da rodovia. Ligou então para a polícia e contou o que havia acontecido. Mesmo então, disse, não lhe ocorrera ainda que podia se tratar de um sequestro; ela chegou até a pensar que podia ser algum tipo de trote.
Brunetti leu o inquérito até o fim, querendo saber se o policial que a tinha interrogado lhe perguntou o porquê de ela pensar que uma coisa daquelas poderia ser uma brincadeira, mas a pergunta não fora feita. Então ele abriu uma gaveta, procurando uma folha de papel, mas não havia nenhuma, então se inclinou, pegou um envelope no cesto de lixo, escreveu um lembrete no verso e continuou a ler o inquérito.
A polícia contatou a família, sabendo apenas que o rapaz tinha sido levado sob a mira de uma arma. O conde Ludovico tinha chegado à villa às quatro daquela tarde, conduzido para lá por seu sobrinho, Maurizio. A essa altura, a polícia já considerava a possibilidade de ser um sequestro, de modo que o mecanismo de congelamento de todos bens familiares fora posto em movimento. Mas isso só podia ser feito com os bens registrados no país, o que deixava a família com acesso a suas posses em bancos estrangeiros. Sabendo disso, o commissario de Treviso que liderava a investigação tentou convencer o conde Ludovico da futilidade de atender às exigências dos sequestradores. Somente o bloqueio de qualquer possibilidade de dar a eles o que pediam poderia dissuadi-los de cometer futuros crimes. Na maior parte das vezes, ele disse ao conde, a pessoa nunca mais voltava, e frequentemente não era mais encontrada.
O conde insistiu não haver motivo para acreditar que se tratasse de um sequestro. Podia ser um roubo, um trote ou um engano. Brunetti conhecia bem a necessidade de negação da tragédia, tendo sempre lidado com pessoas que não conseguiam ser convencidas de que um membro de sua família estava em risco ou, como era comum, morto. De modo que a insistência do conde em afirmar que não se tratava, não podia se tratar, de um sequestro era totalmente compreensível. Mas uma vez mais Brunetti ficou intrigado com a sugestão de que poderia ser um trote. Que tipo de jovem seria Roberto para as pessoas mais próximas dele aventarem algo do tipo?
Ficou provado que esse não era o caso dois dias depois, com a chegada do primeiro pedido de resgate. Encaminhado por via expressa do correio central de Veneza, provavelmente postado em um dos coletores do lado de fora do prédio, pedia-se nele sete bilhões de liras, mas vinha sem nenhuma instrução para a entrega do dinheiro.
A essa altura, a história já estava estampada na primeira página dos jornais de circulação nacional, e portanto os sequestradores já não teriam nenhuma dúvida de que a polícia estava investigando o caso. O segundo pedido, remetido de Mestre no dia seguinte, baixou o resgate para cinco bilhões e dizia que as instruções sobre como e quando pagar seriam dadas por telefone a um amigo da família, sem contudo mencionar ninguém. Foi depois de receber esse pedido que o conde suplicou aos sequestradores, em cadeia nacional de televisão, que libertassem seu filho. O texto desse apelo tinha sido anexado ao inquérito. Lorenzoni explicou que não tinha como levantar a quantia, pois todos os seus bens haviam sido congelados. Ele disse ainda que, se os sequestradores falassem com a pessoa que pretendiam contatar para lhe dizer como proceder, ele de bom grado trocaria de lugar com o filho e obedeceria a qualquer ordem que eles lhe dessem. Brunetti acrescentou outro lembrete ao envelope, dizendo a si mesmo para tentar conseguir uma cópia do discurso do conde.
Havia uma lista com os nomes e endereços de todas as pessoas que tinham sido interrogadas em conexão com o caso, os motivos que haviam levado a polícia a interrogá-las e seu grau de relacionamento com os Lorenzoni. Em separado, vinham as páginas com as transcrições ou os resumos desses interrogatórios.
Brunetti correu os olhos pela lista, reconhecendo os nomes de pelo menos meia dúzia de notórios criminosos, mas sem conseguir identificar o que os ligaria ao caso. O primeiro era um assaltante, o segundo, um ladrão de carros, e o terceiro, Brunetti sabia, pois fora ele quem o prendera, estava na prisão por roubo a banco. Talvez fossem informantes da polícia de Treviso. Nada levava a lugar nenhum.
Brunetti identificou ainda outros nomes, não porque fossem criminosos, mas por sua posição social. O padre da paróquia dos Lorenzoni, o diretor do banco que abrigava a maior parte dos bens da família, além dos nomes do advogado e do contador da família.
Obstinadamente, ele leu cada palavra que havia na pasta; estudou as letras de forma impressas nos pedidos de resgate agora envoltos em plástico e os inquéritos periciais que os acompanhavam e diziam que não havia impressões digitais e que o papel era de um tipo que estava à venda por toda parte, o que tornava impossível identificar de onde tinha vindo. Examinou as fotos do portão aberto que conduzia à villa, tiradas de longe e de perto. As de perto incluíam uma foto do pedregulho que havia bloqueado o portão. Brunetti notou que era tão grande que não havia como passar por entre as barras do portão, assim, quem quer que o tivesse colocado ali, teria que ter feito isso de dentro da villa. Brunetti escreveu mais um lembrete.
Os últimos papéis na pasta tratavam das finanças dos Lorenzoni, incluindo uma lista de suas empresas na Itália e de outras que possuíam no exterior. Brunetti estava mais ou menos familiarizado com as italianas, assim como a maioria dos cidadãos do país. Falar em “aço” ou “algodão” era quase o mesmo que pronunciar o nome da família. As companhias estrangeiras eram mais variadas: os Lorenzoni eram donos de uma transportadora na Turquia, controlavam fábricas de enlatados na Polônia, uma cadeia de resorts na Crimeia e uma fábrica de cimento na Ucrânia. À semelhança da maior parte dos empreendimentos na Europa ocidental, os investimentos deles se expandiam para além dos limites do continente, muitos deles seguindo a trilha do capitalismo vitorioso rumo ao Oriente.
Demorou mais de uma hora para Brunetti ler todo o conteúdo da pasta. Ao terminar, ele o levou para a sala da signorina Elettra.
— A senhorita poderia fazer uma cópia de tudo? — ele perguntou enquanto colocava a pasta na mesa dela.
— Das fotos também?
— Sim, se a senhorita puder.
— Ele foi encontrado, o garoto Lorenzoni?
— Alguém foi — respondeu Brunetti, mas então, consciente dessa pequena evasão, completou: — É provável que seja ele.
Ela retraiu os lábios e franziu o cenho, balançando a cabeça em seguida.
— Pobrezinho. Coitados dos pais. — Como nenhum deles disse mais nada, ela então perguntou: — O senhor viu quando ele apareceu na televisão, o conde?
— Não, eu não vi. — Brunetti não conseguia lembrar a razão, mas sabia que não tinha visto.
— Ele estava totalmente maquiado, do mesmo jeito que os apresentadores dos telejornais. Eu entendo um pouco do assunto, e me lembro de ter pensado que era estranho que um homem, especialmente naquelas circunstâncias, se deixasse maquiar daquele jeito.
— Que impressão ele lhe passou?
Ela refletiu um pouco e então respondeu:
— Ele parecia desesperançado, como se tivesse a certeza absoluta de que implorasse o que implorasse, pedisse o que pedisse, não receberia nada.
— Desespero?
— É o que a gente pensaria, não é? — Ela desviou o olhar de Brunetti e fez uma nova pausa, depois respondeu: — Não, não desespero. Mais algum tipo de exausta resignação, como se ele soubesse o que ia acontecer e que não havia nada que pudesse fazer para evitá-lo. — Ela voltou a olhar para Brunetti e, com uma combinação de sorriso e dar de ombros, arrematou: — Lamento não poder explicar melhor do que isso. Talvez se o senhor visse por si mesmo pudesse entender o que estou querendo dizer.
— E como é que eu consigo uma cópia?
— Acho que a RAI deva ter nos arquivos. Vou ligar para uma pessoa que conheço em Roma e ver se consigo uma.
— Alguém que a senhorita conhece? — Às vezes Brunetti se perguntava se existia algum homem na Itália entre vinte e um e cinquenta anos que a signorina Elettra não conhecesse.
— Bem, na verdade trata-se de alguém que a Barbara conhece, é um antigo namorado dela. Ele trabalha no departamento de notícias da RAI. Eles se formaram na mesma escola.
— Então ele é médico?
— Bem, ele tem diploma de médico, mas acho que nunca praticou. O pai dele trabalha na RAI, por isso ele recebeu uma proposta de emprego assim que saiu da universidade. Como pode-se dizer que ele é médico, eles o utilizam para responder a perguntas sobre assuntos da área que aparecem, o senhor sabe como é. Quando apresentam um programa sobre dietas ou queimaduras de sol e querem se assegurar de que o que dizem está correto, eles põem o Cesare para fazer a pesquisa. Algumas vezes ele chega a ser entrevistado no ar, o doutor Cesare Bellini, e informa ao público os últimos avanços da medicina.
— Por quantos anos ele frequentou a faculdade?
— Sete, eu acho, o mesmo que Barbara.
— Tudo isso para ser entrevistado sobre queimaduras solares?
O sorriso apareceu de novo, tão rápido quanto sumiu.
— Na verdade, tem muitos médicos fazendo isso. Ele teve muita sorte de conseguir o emprego. E adora viver em Roma.
— Bem, sendo assim, entre em contato com ele se a senhorita puder.
— Claro, dottore, e assim que fizer as cópias eu as levarei ao seu gabinete.
Ele percebeu que ela queria dizer mais alguma coisa.
— Pois não?
— Se for reabrir o inquérito, o senhor gostaria que eu fizesse uma cópia dele para o vice-questore?
— É um pouco cedo para afirmar que vamos reabrir a investigação, de modo que uma cópia simples é o suficiente para mim — disse Brunetti naquele seu tom mais enviesado.
— Está bem, dottore — disse a signorina em tom prudente —, vou providenciar para que os originais voltem depois para a pasta.
— Bom. Obrigado.
— E depois ligarei para o Cesare.
— Obrigado, signorina — disse Brunetti, e voltou para o seu gabinete, refletindo sobre um país com tantos doutores, mas em que era cada vez mais difícil encontrar um carpinteiro ou um sapateiro.
5
Embora não conhecesse o homem que comandara as investigações sobre o sequestro em Treviso, Brunetti se lembrava bem de Gianpiero Lama, o responsável pela parte da investigação a cargo da polícia de Veneza. Um romano que fora para Veneza galardoado pela bem-sucedida prisão e subsequente condenação de um assassino da Máfia, Lama trabalhara na cidade por apenas dois anos, antes de ser promovido ao cargo de vice-questore e transferido para Milão, onde Brunetti acreditava que ele ainda estivesse.
Ele e Brunetti já haviam trabalhado juntos, mas nenhum dos dois tinha apreciado muito a experiência. Lama julgava seu colega muito tímido no combate ao crime e aos criminosos, relutando em assumir o tipo de riscos que ele considerava necessários. E como Lama também achava perfeitamente aceitável que a lei fosse por vezes ignorada, ou mesmo descumprida, para se efetuar uma prisão, era comum que as pessoas que prendia fossem soltas depois pela magistratura por conta de uma tecnicalidade. Mas como isso somente acontecia depois de passado algum tempo da abordagem inicial do caso por parte de Lama, seu comportamento raramente era considerado a causa da posterior recusa das acusações ou da reversão de uma condenação. A ousadia aparente do comportamento de Lama projetou sua carreira, que, como um foguete em ascensão, subiu mais e mais, cada promoção abrindo caminho para a próxima.
Brunetti lembrou que foi Lama quem interrogou a namorada; ele, que não havia se importado em investigar a sugestão dela e do conde, que achavam que o sequestro podia não ter passado de uma brincadeira. Ou então, se os havia questionado, esquecera de mencionar o assunto no inquérito.
Brunetti puxou o envelope para si e começou a fazer outra lista, agora das pessoas que pudessem lhe fornecer novas informações, se não sobre o sequestro, ao menos sobre os Lorenzoni. No topo da lista colocou sem pestanejar o nome de seu sogro, o conde Orazio Falier. Se havia alguém na cidade sensível à delicada teia em que se entrelaçavam nobreza, negócios e muita riqueza, esse alguém era o conde Orazio.
A entrada da signorina Elettra desviou momentaneamente sua atenção da lista.
— Falei com o Cesare — ela disse enquanto colocava uma pasta na mesa de Brunetti. — Ele procurou no computador e achou a data, então vai ser fácil fazer uma cópia da fita, que ele vai mandar pelo correio ainda hoje à tarde. — Antes mesmo que Brunetti lhe perguntasse como ela tinha conseguido, a signorina respondeu: — Não teve nada a ver comigo, dottore. Ele disse que tem que vir a Veneza no mês que vem, então eu acho que vai usar nossa conversa como uma desculpa para se encontrar com Barbara mais uma vez.
— E o envio?
— Ele disse que vai lançar a despesa na conta da reportagem que a rai vem fazendo sobre a estrada para o aeroporto — ela disse, lembrando Brunetti do escândalo da vez. Bilhões haviam sido pagos a amigos de membros do governo que haviam sido os responsáveis pelo planejamento e construção da desnecessária autostrada que ligava Veneza a seu minúsculo aeroporto. Alguns deles foram posteriormente condenados por fraude, mas o caso encontrava-se agora paralisado na interminável fase de apelação, enquanto o ex-ministro que fizera fortuna concebendo todo o esquema continuava não somente a receber sua aposentadoria, mais de dez milhões de liras por mês, segundo se comentava, mas estaria em Hong Kong, amealhando outra fortuna.
Saindo de seu devaneio, Brunetti voltou-se para a signorina Elettra.
— Por favor, agradeça a ele por mim.
— Não, dottore, acho que podemos deixar ele pensar que deve nos agradecer pelo favor que lhe fazemos ao dar uma desculpa para voltar a encontrar a Barbara. Eu até disse a ele que comentaria nosso contato com ela, assim ele ficaria livre para ligar para Barbara.
— E por que tudo isso?
Ela ficou surpresa por Brunetti não ter percebido.
— Para o caso de precisarmos dele de novo. Nunca se sabe quando os serviços de uma rede de televisão serão necessários, certo? — Lembrando-se dos últimos passos de uma eleição em que o proprietário de três das maiores redes de tv as tinha usado de forma vergonhosa para fazer sua campanha deslanchar, Brunetti esperou pelo comentário final da signorina. — Acho que já está na hora de a polícia, e não os outros, se aproveitarem delas.
Sempre evitando entrar em discussões políticas, Brunetti optou por deixar pra lá, simplesmente pegando a pasta e agradecendo-a enquanto ela se afastava.
O telefone tocou antes que ele pudesse fazer algo mais que pensar em dar alguns telefonemas. Ao atender, ouviu a voz familiar de seu irmão.
— Ciao, Guido, come stai?
— Bene — respondeu Brunetti, perguntando-se qual seria a razão do irmão ligar para ele na questura. Sua cabeça, e em seguida o coração, pensaram de imediato em sua mãe. — Qual é o problema, Sergio?
— Nada, nada mesmo. A mamma está bem, não é por ela que estou ligando. — Como ocorria desde a infância, a voz de Sergio o acalmou, assegurando-lhe de que tudo estava, ou logo estaria, bem. — Bem, não diretamente por ela.
Brunetti não disse nada.
— Guido, sei que você visitou a mamma nos dois últimos fins de semana. Não, não diga nada ainda. Vou vê-la no domingo, mas queria saber se você pode ir nos dois depois deste.
— Claro que posso — disse Brunetti.
Sergio prosseguiu como se não tivesse ouvido.
— É importante, Guido. Eu não pediria se não fosse.
— Eu sei disso, Sergio. Pode deixar que eu vou. — E, ao dizer isto, Brunetti sentiu-se constrangido de perguntar o motivo.
Sergio continuou.
— Recebi uma carta hoje. Três semanas pra receber uma carta de Roma. Puttana Eva, se eu fosse andando daqui até Roma levaria menos tempo. Eles têm o número do fax do laboratório, mas você acha que eles pensaram em passar um fax? Não, os idiotas mandaram o negócio pelo correio.
Brunetti sabia, de longa experiência, que Sergio tinha de ser chamado à razão antes que enveredasse pelo assunto da incompetência dos serviços públicos.
— E o que tinha na carta, Sergio?
— O convite, claro. Foi por isso que eu liguei.
— Para a conferência em Chernobyl?
— É, eles querem que apresentemos nosso estudo. Bem, quem vai apresentar é o Battestini, já que é o nome dele que está lá, mas ele me pediu para explicar minha parte da pesquisa e ajudar a responder as perguntas depois da leitura. Eu só soube que teríamos que ir quando o convite chegou. Foi por isso que eu não te liguei antes, Guido.
Sergio, um pesquisador do laboratório de radiologia médica, vinha falando nessa conferência pelo que pareciam anos, embora fosse na verdade há apenas alguns meses. Os danos provocados pela incompetência de outro sistema estatal já não podiam mais ser escondidos, o que gerara intermináveis conferências sobre os efeitos da explosão e do subsequente vazamento, e a última dessas conferências teria lugar em Roma, na próxima semana. Ninguém, pensava Brunetti em seus momentos de maior cinismo, se atrevera a sugerir que não se deveria construir novos reatores nem realizar novos testes — e aqui ele amaldiçoava em silêncio os franceses —, mas todos acorriam a intermináveis conferências para se engajar em painéis de debate coletivos e trocar informações.
— Fico feliz que você possa comparecer, Sergio. Parabéns. Maria Grazia vai poder ir com você?
— Não sei ainda. O trabalho dela naquele lugar da Giudecca está quase no fim, mas alguém pediu que ela fizesse alguns projetos e apresentasse uma estimativa dos custos para a restauração completa de um palazzo de quatro pavimentos lá no Ghetto, e, se ela não os tiver concluído até lá, não creio que poderá ir.
— E ela não se preocupa em deixar você sozinho em Roma? — perguntou Brunetti, compreendendo, no momento em que perguntava, como sua pergunta era tola. Sendo bem parecidos na maioria das coisas, i fratelli Brunetti partilhavam uma grande afeição pelas esposas, o que era uma fonte de gozação constante entre seus amigos.
— Se ela conseguir o contrato, posso ir à Lua sozinho que não vai nem notar.
— E sobre o que é o seu estudo? — sabendo de antemão que possivelmente não entenderia a resposta.
— Ah, é uma coisa técnica, sobre as variações na contagem de glóbulos vermelhos e brancos durante as primeiras semanas após a exposição ao vazamento ou à radiação intensa. Fizemos contato com algumas pessoas em Auckland que estavam tabulando os mesmos dados, e parece que os resultados obtidos por eles são idênticos aos nossos. Essa é uma das razões pelas quais quero ir à conferência. Battestini iria de qualquer jeito, mas se formos juntos teremos as despesas pagas e poderemos falar com eles e comparar os resultados.
— Bom. Fico feliz por você. E quanto tempo você vai ficar por lá?
— Serão seis dias de conferência, de domingo até sexta-feira. Talvez eu fique mais uns dois dias em Roma e volte somente no domingo. Espere um pouco, vou passar as datas. — Brunetti ouviu as páginas serem folheadas por um momento, e de novo a voz de Sergio. — Do dia oito até o dezesseis. Devo estar de volta na manhã do dia dezesseis. E, Guido, depois disso, os próximos dois domingos são meus.
— Não seja bobo, Sergio. Essas coisas acontecem. Vou enquanto você estiver fora, daí você vai no primeiro domingo depois que voltar e eu vou no seguinte. Você já fez o mesmo por mim.
— Só não quero que você pense que não estou querendo visitá-la, Guido.
— Não vamos nem falar disso, certo, Sergio? — Brunetti declarou, surpreso com a intensidade da dor que ainda sentia ao pensar na mãe. No ano anterior tentara se convencer, fracassando espetacularmente, de que a mãe deles, aquela mulher espirituosa que os havia criado e amado com irrestrita devoção, tinha se mudado para outro lugar, onde aguardava, ainda esperta e sempre pronta a sorrir, aquela casca confusa que era seu corpo voltar a se unir a ela para que pudessem juntos encontrar a paz derradeira.
— É que eu fico constrangido de lhe pedir isso, Guido — repetiu o irmão, recordando a Brunetti, como ele já o havia feito, de como Sergio sempre fora cioso em não se aproveitar de sua posição de primogênito ou da autoridade que aquela posição lhe conferia.
Brunetti lembrou um termo que os americanos costumavam usar nessas situações, e “enquadrou” o irmão.
— E os meninos, Sergio, como é que vão os meninos?
Sergio gargalhou na hora ao reconhecer o padrão familiar: sua necessidade de justificar tudo e a recusa do irmão mais novo em achar que isso fosse necessário.
— Marco está quase terminando o serviço militar; vai passar quatro dias conosco no fim do mês. E Maria Luisa só fala inglês ultimamente, para estar afiada quando chegar a hora de ir para Courtauld no outono. Não é estranho, Guido, que ela tenha que ir estudar restauração na Inglaterra?
A mulher de Brunetti, Paola, ensinava literatura inglesa na universidade de Cà Foscari. Não havia quase nada que seu irmão pudesse dizer a ele sobre a insanidade do sistema universitário italiano que Brunetti já não soubesse.
— O inglês dela é bom o bastante? — ele perguntou.
— Melhor que seja, hein? Se não for, mando Maria Luisa passar o verão com você e com Paola.
— E o que faremos então, conversaremos em inglês o tempo todo?
— Exatamente.
— Sinto muito, Sergio, só fazemos isso quando não queremos que as crianças saibam o que estamos dizendo. E, mesmo assim, com o que aprenderam na escola, nem isso podemos fazer mais.
— Por que não tentam o latim? — disse Sergio com uma gargalhada. — Você sempre foi bom em latim.
— Isso foi há muito tempo — respondeu Brunetti com pesar.
Sergio, sempre sensível às coisas que não podia mencionar, percebeu a deixa do irmão.
— Ainda ligo para você antes de viajar, Guido.
— Bom, stammi bene — disse Brunetti.
— Ciao — devolveu Sergio, e desligou.
Por toda a vida Brunetti ouviu as pessoas começarem suas frases com “Se não fosse por ele...”, e sempre que ouvia isso era inevitável que substituísse o pronome pelo nome de Sergio. Brunetti fora sempre considerado o estudioso da família e, quando completou dezoito anos, chegaram à conclusão de que não havia dinheiro para mandá-lo a uma universidade e adiar assim o momento em que ele passaria a contribuir com as despesas da casa. Ele desejava estudar com a intensidade que seus amigos desejavam as mulheres, mas aceitou a decisão e começou a procurar emprego. E foi Sergio, que ficara noivo e arrumara um emprego de técnico em um laboratório de análises clínicas havia pouco, que aceitou contribuir mais com a família se isso permitisse ao seu irmão mais novo continuar os estudos. Já naquela época, Brunetti sabia que queria estudar direito, mais sua história e os motivos pelos quais evoluíra daquela maneira que a parte prática.
Como não havia faculdade de direito em Cà Foscari, Brunetti teria que estudar em Pádua, o que implicava acrescentar os custos de sua mudança e da sua estadia lá à responsabilidade que Sergio já havia assumido. O casamento do irmão foi adiado por três anos, período em que Brunetti ascendeu rapidamente ao primeiro lugar de sua turma e começou a ganhar algum dinheiro orientando estudantes mais jovens que ele.
Se não tivesse continuado os estudos, Brunetti não teria encontrado Paola na biblioteca da universidade e não teria se tornado um policial. Às vezes ele imaginava se teria então se tornado o mesmo homem, se as coisas que considerava vitais em si teriam evoluído do mesmo jeito caso ele tivesse se tornado um corretor de seguros ou um burocrata. Sabendo reconhecer um devaneio inútil quando se deparava com um, alcançou o telefone e puxou-o em sua direção.
6
Por sempre ter achado vulgar perguntar a Paola quantos quartos havia no palazzo da família dela, Brunetti ficou sem saber quantos havia de fato. Assim, ele não fazia ideia de quantas eram as linhas telefônicas instaladas no palazzo Falier. Mas conhecia três dos números: aquele mais ou menos público que se fornecia a todos os amigos ou colegas de trabalho, aquele dado apenas aos membros da família e o número privado do conde, que ele nunca precisara utilizar.
Resolveu então discar o primeiro, já que o assunto dificilmente seria um caso de emergência ou um assunto de importância estritamente particular.
— Palazzo Falier — atendeu ao terceiro toque uma voz masculina que Brunetti nunca tinha ouvido antes.
— Bom dia, aqui é Guido Brunetti. Gostaria de falar com... — e fez uma pausa, indeciso quanto a chamar o conde por seu título ou referir-se a ele como sogro.
— Ele está em outra ligação, dottor Brunetti. Posso pedir para ele retornar a... — agora foi a vez do outro homem fazer uma pausa. — Ah! A luz acabou de desligar. Vou transferir o senhor.
— Falier — foi o que ouviu Brunetti, depois de um suave clique, na voz grave de barítono de seu sogro, e nada mais.
— Bom dia, é o Guido.
A voz, como sempre fazia, adquiriu um tom amistoso.
— Ah, Guido, como vai você? E as crianças?
— Tudo bem com todos. E vocês? — Guido não podia tratar a mulher do conde por “Donatella”, e não ia se referir a ela como “a condessa”.
— Estamos bem, obrigado. O que posso fazer por você? — O conde sabia que não haveria outra razão para o telefonema de Brunetti.
— Eu gostaria de saber qualquer coisa que o senhor puder me contar sobre a família Lorenzoni.
No silêncio que se seguiu, Brunetti quase podia ouvir o conde vasculhando décadas de informações, escândalos e rumores que conhecia sobre os mais notáveis habitantes da cidade.
— E por que é que você está interessado neles, Guido? — perguntou o conde, acrescentando em seguida: — Se é que você pode me contar.
— Encontraram o corpo de um jovem enterrado na região de Belluno. Havia um anel na cova com ele com o brasão dos Lorenzoni.
— Poderia ser a pessoa que o roubou dele — especulou o conde.
— Poderia ser qualquer pessoa — concordou Brunetti. — Mas dei uma olhada na pasta da investigação original do sequestro e queria esclarecer algumas coisas, se puder.
— Do tipo? — perguntou o conde.
Nas mais de duas décadas desde que conhecera o conde, ele nunca se revelara indiscreto; além do mais, o que Brunetti tinha a dizer podia ser dito a qualquer um que tivesse interesse na investigação.
— Duas pessoas disseram ter pensado que tudo não passava de uma brincadeira. E a pedra que bloqueava o portão só pode ter sido colocada naquela posição de dentro da propriedade.
— Não me lembro muito bem dos fatos, Guido. Acho que estávamos no exterior quando aconteceu. Foi na villa deles, não foi?
— Sim — respondeu Brunetti, e então, motivado por algo no tom da voz do conde, perguntou: — O senhor já esteve lá?
— Uma ou duas vezes — o tom de voz do conde era bastante descompromissado.
— Então o senhor conhece os portões — disse Brunetti, evitando perguntar diretamente sobre a familiaridade do conde com os Lorenzoni. Não agora, pelo menos.
— Sim, eles abrem para dentro. Há uma caixa na parede, e tudo o que um visitante tem de fazer é apertar a campainha e se identificar. Os portões são abertos de dentro da casa.
— Ou de fora, se a pessoa souber o código — acrescentou Brunetti. — Que foi o que a namorada tentou fazer, mas os portões não se abriram.
— Foi a garota Valloni, não foi? — o conde perguntou.
O nome era o mesmo do inquérito.
— Sim. Francesca.
— Uma bela garota. Estivemos em seu casamento.
— Casamento? — perguntou Brunetti. — E isso foi há quanto tempo?
— Há pouco mais de um ano. Ela se casou com um Salviati. Enrico, filho de Fulvio. O que gosta de lanchas.
Brunetti fez um ruído de reconhecimento de uma vaga memória que tinha do rapaz.
— O senhor conhecia o Roberto?
— Encontrei-o poucas vezes. Não gostava muito dele.
Brunetti imaginou se seria a posição social do conde que o autorizava a falar mal dos mortos ou se seria porque o rapaz tinha desaparecido havia dois anos.
— E por que não?
— Porque ele tinha toda a empáfia do pai e nem uma partícula do seu talento.
— E qual é o talento do conde Ludovico?
Do outro lado da linha veio um ruído, como se de uma porta sendo fechada, e o conde disse:
— Com licença um momento, Guido.
Passados alguns segundos, ele retomou a conversa:
— Desculpe-me, mas é que acabou de chegar um fax e eu tenho de dar alguns telefonemas enquanto meu agente na Cidade do México ainda está no escritório.
Brunetti não tinha muita certeza, mas podia jurar que a Cidade do México estava cerca de meio dia atrás deles.
— Não é noite lá agora?
— Sim. Ele é pago para ficar lá e eu quero contatá-lo antes que saia.
— Certo. Quando posso ligar novamente?
O conde respondeu prontamente.
— Seria possível marcar um almoço, Guido? Tem algumas coisas sobre as quais eu gostaria de falar com você. Assim poderíamos fazer tudo de uma vez.
— Ótimo. Para quando então?
— Hoje. Está muito em cima para você?
— Não, de forma alguma. Vou dizer para a Paola. O senhor quer que ela venha?
— Não — o conde disse, quase com rispidez, e depois acrescentou: — Algumas das coisas que eu quero discutir com você dizem respeito a Paola, por isso prefiro que ela não participe.
Confuso, Brunetti só pôde responder:
— Está bem. E onde nos encontraremos? — perguntou esperando que o conde fosse mencionar um dos famosos restaurantes da cidade.
— Tem um lugar perto do Campo del Ghetto, comandado por uma amiga minha e pelo marido dela. A comida é muito boa. Se não for muito longe para você, podemos nos encontrar lá.
— Tudo bem. Qual é o nome do lugar?
— La bussola. Fica um pouco depois de San Leonardo, no rumo do Campo del Ghetto Nuovo. À uma?
— Perfeito. Nos encontramos lá, à uma.
Brunetti desligou e apanhou a lista telefônica, folheando-a até chegar à letra S. Lá encontrou um número da família Salviati, de um tal Enrico, listado como consulente, termo que sempre divertira Brunetti, tanto quanto o confundia.
O telefone tocou seis vezes até que a voz de uma mulher, já demonstrando má vontade com quem ligava, respondeu:
— Pronto.
— Signora Salviati? — perguntou Brunetti.
A mulher resfolegava, como se tivesse corrido para atender o telefone.
— Ela mesma. Quem fala?
— Signora Salviati, commissario Brunetti falando. Tenho algumas perguntas a lhe fazer sobre o sequestro do garoto Lorenzoni.
Ao fundo, Brunetti podia ouvir o choro alto de um bebê, aquele uivo carregado que nenhum ser humano consegue ignorar. Ouviu então o som do aparelho sendo largado sobre uma superfície dura, achou ter ouvido a mulher lhe pedindo que aguardasse, e depois todos os sons foram engolidos pelo choro, que logo virou um soluço compassado e, tão rápido quanto havia começado, parou.
— Eu disse a vocês tudo o que sabia há dois anos — respondeu a mulher ao apanhar novamente o telefone. — Nem lembro mais muito bem como foi. Faz muito tempo, tanta coisa aconteceu depois.
— Sei de tudo isso, signora, mas seria de grande ajuda para nós se pudesse me conceder um minuto do seu tempo. Prometo-lhe que não será muito.
— Então por que não podemos resolver tudo logo, por telefone?
— Prefiro tratar disso pessoalmente, signora, não gosto muito de discutir esse tipo de assunto por telefone.
— Quando? — ela perguntou, querendo terminar a conversa.
— A senhora mora em Santa Croce, certo? Tenho um compromisso por esses lados hoje de manhã — era mentira, mas o endereço ficava próximo do traghetto de San Marcuola, e de lá ele poderia chegar rápido a San Leonardo e ao almoço com o conde —, de modo que para mim seria fácil dar uma passada aí. Se for conveniente para a senhora, claro.
— Vou ver se não tenho nenhum compromisso — ela disse, largando novamente o telefone.
Ela tinha dezessete anos na época do sequestro, então ainda não devia ter feito vinte. E além disso tinha um bebê. Agenda?
— Se o senhor chegar quinze para o meio-dia, podemos conversar. Mas na hora do almoço tenho um compromisso.
— Perfeito para mim, signora. Nos encontramos aí, então — ele disse, colocando o fone no gancho antes que ela tivesse a chance de mudar de ideia e conferir de novo a agenda.
Brunetti ligou para Paola para dizer que não ia almoçar em casa. Como sempre, ela aceitou o fato com tanta tranquilidade que Brunetti se perguntou por um instante se também não teria outros planos.
— E o que você vai fazer? — ele perguntou.
— Hein? Ah, ler.
— E as crianças, quem vai cuidar delas?
— Vou dar a comida delas, não se preocupe, Guido. Nós dois sabemos que engolem a comida se não houver um de nós por perto para exercer uma influência civilizadora sobre elas, mas ainda terei um bocado de tempo para mim mesma.
— E você vai comer também?
— Guido, você é obcecado com comida. Acho que sabe disso, não sabe?
— Só porque você não cansa de me lembrar disso, tesouro — ele disse rindo alto. E pensou em dizer à sua mulher que ela também era obcecada, com a leitura, mas Paola consideraria isso um elogio, então ele só disse que estaria em casa para o jantar e desligou.
Saiu da questura sem se preocupar em avisar aonde ia, tomando o cuidado de descer pela saída dos fundos, para não cruzar com o vice-questore Patta, que muito provavelmente já estava em seu gabinete, considerando que passavam das onze.
Do lado de fora, Brunetti, que vestia uma camisa de lã e um paletó leve devido ao frio da madrugada, surpreendeu-se com o aumento da temperatura. Começou a caminhada pelas margens do canal e, no momento em que dobrava à esquerda rumo às vias internas que o levariam ao Campo Santa Maria Formosa e de lá ao Rialto, parou por um momento para tirar o paletó, dar meia-volta e retornar à questura. Ao entrar de volta no prédio, os guardas a postos o reconheceram e apertaram o botão que abria as grossas portas de vidro. Quando chegou ao pequeno gabinete à direita, avistou Pucetti à sua mesa, falando ao telefone. Ao ver seu superior, Pucetti disse algo e desligou, levantando-se imediatamente em prontidão.
— Pucetti — disse Brunetti, fazendo com a mão um gesto para que o jovem voltasse a sentar. — Queria deixar isto aqui por algumas horas. Pego quando voltar.
Em vez de voltar a sentar, Pucetti adiantou-se e apanhou o paletó de Brunetti.
— Se o senhor me permite, vou levá-lo a seu gabinete, dottore.
— Não, está bem aqui. Não precisa se incomodar.
— Prefiro assim, senhor. Algumas coisas andaram sumindo por aqui nas últimas semanas.
— Como? — perguntou Brunetti sinceramente surpreendido. — Do guarda-volumes da questura?
— A culpa é deles, senhor — disse Pucetti apontando para a interminável fila que se alongava desde a porta do Ufficio Stranieri, que aparentemente reunia centenas de pessoas que aguardavam para preencher os formulários que serviriam para legalizar sua moradia na cidade.
— Estamos recebendo um monte de albaneses e eslavos, e o senhor sabe que eles são um bando de ladrões.
Se Pucetti dissesse aquilo a Paola, ela responderia na hora, chamando-o de intolerante e racista e dizendo que cada albanês e cada eslavo era um indivíduo diferente. Mas, como ela não estava lá e Brunetti em geral tendia a concordar com os sentimentos de Pucetti, ele apenas agradeceu ao jovem e saiu do prédio de novo.
7
Quando estava saindo do Campo Santa Maria Formosa, Brunetti lembrou de repente de algo que havia visto no outono anterior no Campo Santa Marina, então cortou caminho pelo campo menor e dobrou à direita assim que entrou nele. As gaiolas de metal já estavam penduradas no lado de fora da loja de animais. Brunetti se aproximou para ver se o merlo indiano ainda estava lá. Claro que estava, na gaiola mais alta, com suas penas pretas e brilhantes, um olho vítreo sobre o commissario.
Brunetti se aproximou da gaiola, abaixou-se e disse “ciao”. Nem uma resposta. Sem se abalar, ele repetiu, “ciao”, cuidando para soletrar pausadamente as duas sílabas da palavra. O pássaro pulou nervosamente de uma barra paralela para a outra, virou-se e encarou Brunetti com o outro olho. O commissario olhou em redor, notando que uma mulher de cabelos grisalhos havia parado em frente à edicola no meio do campo e o olhava com uma expressão muito estranha. Ele a ignorou, voltando a concentrar-se no pássaro. “Ciao”, disse de novo.
E de repente Brunetti percebeu que aquele podia ser um pássaro diferente; afinal, os mainás de tamanho médio eram muito parecidos entre si. Ele tentou uma vez mais: “ciao”. Silêncio. Desapontado, virou-se, dando um sorriso amarelo para a mulher, que ainda estava ali plantada, encarando-o do outro lado do campo.
Brunetti não dera mais que dois passos quando, às suas costas, ouviu sua própria voz responder “ciao”, a última vogal bem escandida, ao modo dos pássaros.
Ele se virou na mesma hora e reassumiu seu lugar à frente da gaiola. “Come ti stai?”, perguntou, dessa vez fazendo uma pausa e perguntando a mesma coisa de novo. Ele sentiu, antes de ver, uma presença ao seu lado, e ao se virar notou que a mulher grisalha estava ali parada. Ele sorriu, ela sorriu de volta. “Come ti stai?”, ele perguntou ao pássaro de novo, e, com uma fidelidade vocal absoluta, o pássaro lhe respondeu “Come ti stai?”, em uma voz estranhamente igual à sua.
— O que mais ele consegue dizer? — perguntou a mulher.
— Não sei, signora. Isso é tudo o que já ouvi dele.
— Não é maravilhoso? — ela perguntou, e ao observar o sorriso de completo deleite que a mulher dava, Brunetti percebeu que ela já não era tão jovem.
— É, maravilhoso — ele disse, e a deixou na frente da loja a repetir “ciao, ciao, ciao” ao pássaro.
Ele seguiu pela Santi Apostoli e pela Strada Nuova até a San Marcuola, onde pegou o traghetto para atravessar o Grand Canal. O reflexo da água era tão intenso que Brunetti lamentou não estar com seus óculos escuros, mas quem, ao sair naquela manhã nublada e úmida do começo da primavera, teria pensado que a cidade seria brindada com tamanho esplendor?
Do outro lado, pegou a direita, depois a esquerda e depois a direita de novo, seguindo instruções que foram implantadas no seu inconsciente durante as décadas de caminhada pelas ruas da cidade para visitar os amigos, levar as namoradas para casa, tomar um café ou fazer uma das milhares de coisas que um jovem faz sem nenhuma consciência de seu destino ou da rota a trilhar. Em um instante ele entrava no Campo San Zan Degolà. Até onde Brunetti sabia, ninguém tinha certeza se era o corpo decapitado de são João ou sua cabeça desaparecida que era venerada na igreja. O que não parecia fazer muita diferença para ele.
O Salviati com quem a mulher tinha se casado era o filho de Fulvio, o notário, portanto Brunetti sabia que a casa tinha que ser depois da segunda calle à direita, a terceira casa à esquerda. E ele estava certo: o número era o mesmo que o da lista telefônica, embora morassem ali três Salviati. A campainha de baixo tinha a inicial E, sendo portanto a que Brunetti tocou, imaginando se eles teriam mudado para os andares mais altos do prédio quando os membros mais velhos da família morreram e deixaram os apartamentos vagos.
A porta se abriu com um clique e ele entrou. À sua frente, um corredor estreito levava por um canteiro a um lance de escadas. Simpáticas tulipas ladeavam os dois lados do corredor, e uma corajosa magnólia acabava de florir no meio do gramado à esquerda do caminho.
Ele subiu os degraus e, ao chegar ao topo, ouviu a porta sendo aberta. Do outro lado o aguardavam mais degraus, que conduziam a um patamar em que havia duas portas.
A porta à esquerda se abriu e uma jovem apareceu.
— O senhor é o policial? Esqueci seu nome.
— Brunetti — ele disse enquanto galgava os últimos degraus na direção dela.
A jovem permaneceu em frente à porta, sem nenhuma expressão no que de outra maneira seria um belo rosto. Se o bebê fosse de fato dela, e se fosse tão novo como sugeria a informação que ele tinha, então ela não perdera tempo em recuperar seu corpo esguio, sobre o qual havia uma saia vermelha justa e um suéter preto ainda mais justo. Sua face inexpressiva estava imersa numa nuvem de cabelos negros cacheados que iam até seus ombros, e ela olhava para ele com surpreendente falta de interesse.
— Obrigado por se dispor a falar comigo, signora — disse Brunetti ao chegar ao topo da escada.
Ela não se deu ao trabalho de responder ou de dar algum sinal de que o tinha ouvido, mas se afastou para permitir que entrasse no apartamento, ignorando o “permesso” que ele murmurou.
— Podemos ficar por aqui — ela disse por cima dos ombros, conduzindo-o a uma grande sala de estar à esquerda. Nas paredes, Brunetti viu gravuras com ilustrações de tamanha violência que só podiam ser de Goya. Três janelas davam para um espaço fechado que ele deduziu ser o estreito corredor pelo qual tinha entrado; a parede que dava para o exterior ficava desconfortavelmente próxima. A mulher sentou-se no meio de um sofá baixo e cruzou as pernas, deixando à mostra mais coxa do que Brunetti se acostumara a ver de jovens mães. Apontando para uma cadeira à sua frente, ela perguntou:
— O que o senhor quer saber?
Brunetti tentou identificar o sentimento que emanava dela e percebeu que procurava um sinal de nervosismo, mas só encontrou irritação.
— Eu gostaria de saber por quanto tempo a senhora se relacionou com Roberto Lorenzoni.
Ela pressionou um cacho de seus cabelos com as costas da mão, provavelmente sem perceber quão impaciente o gesto a fazia parecer.
— Eu disse tudo aos outros policiais.
— Sei disso, signora. Li o inquérito, mas gostaria de ouvir em suas próprias palavras.
— Minhas próprias palavras deveriam estar no inquérito — ela disse sem rodeios.
— Tenho certeza de que são elas que estão lá, mas gostaria de ouvir com meus próprios ouvidos o que a senhora tem a dizer sobre ele. Isso poderia me fazer entender melhor o tipo de homem que ele foi.
— O senhor encontrou as pessoas que o levaram? — ela perguntou, demonstrando o primeiro sinal de curiosidade desde que ele chegara.
— Não.
Ela pareceu desapontada ao ouvir isso, mas não disse nada.
— E por quanto tempo a senhora se relacionou com ele?
— Saímos por um ano, mais ou menos. Antes do que aconteceu, claro.
— E que tipo de pessoa ele era?
— O que o senhor quer dizer com “que tipo de pessoa ele era”? Estudávamos na mesma escola. Tínhamos pontos em comum, gostávamos das mesmas coisas. Ele me fazia rir.
— Foi por isso que a senhora pensou que o sequestro podia ter sido uma brincadeira?
— Por isso que eu o quê? — ela perguntou de fato confusa.
— Consta no inquérito original que a senhora inicialmente pensou que poderia ser uma brincadeira — explicou Brunetti. — Assim que aconteceu, claro.
Ela desviou o olhar, como se esforçando para ouvir o som de uma música que estivesse sendo tocada muito baixo em outro aposento.
— Eu disse isso?
Brunetti anuiu.
Depois de uma longa pausa, ela disse:
— Bem, acho que posso ter dito. Roberto tinha uns amigos muito esquisitos.
— Que tipo de amigos?
— Ah, o senhor sabe, amigos da faculdade.
— Acho que não estou entendendo por que eles seriam esquisitos.
— Bem, nenhum deles trabalhava, mas todos tinham um bocado de dinheiro. — E, como se soubesse que o que havia dito não era revelador, continuou: — Não, não é isso. Eles falavam coisas estranhas, sobre como podiam fazer o que quisessem na vida ou com suas vidas. Coisas assim. O tipo de coisa que estudantes dizem. — Vendo pela expressão de Brunetti que ele ainda aguardava, ela completou: — E eles pareciam ter um interesse particular pelo medo.
— Medo?
— Sim, liam livros de horror, sempre assistiam aos filmes mais violentos e coisas do tipo.
Brunetti balançou a cabeça e emitiu um som de descontentamento.
— Na verdade, essa foi uma das razões que me levaram a decidir não ver mais Roberto. Mas então tudo aconteceu e eu nem precisei contar para ele.
Teria sido alívio o que ele ouvira em sua voz?
A porta se abriu e uma mulher de meia-idade entrou no quarto, carregando nos braços um bebê com a boca aberta, prestes a berrar. Ao ver Brunetti, a mulher parou. Acompanhando o movimento dela, o bebê fechou a boca e olhou na direção da fonte da surpresa dela.
Brunetti se levantou.
— Esse é o policial, mamma — informou a jovem, sem dar a mínima atenção ao bebê e perguntando em seguida: — A senhora quer alguma coisa?
— Não, não, Francesca. É que é hora de mamar.
— Acho que teremos que esperar, não? — respondeu a jovem, como se a ideia lhe agradasse um pouco. Ela olhou para Brunetti e de novo para a mulher que chamara de mamma. — A não ser que a senhora queira que o policial me veja dando de mamar.
A mulher emitiu um ruído inarticulado e segurou mais firme o bebê, que — Brunetti jamais conseguia identificar o sexo dos bebês muito novinhos — continuava a encará-lo e naquele momento se voltou para a avó e deu uma risadinha.
— Acho que podemos aguardar uns dez minutos — disse a velha, virando-se e saindo da sala, com a risada do bebê a acompanhá-la como a trilha de um barco.
— Sua mãe? — perguntou Brunetti, embora não estivesse certo disso.
— Sogra — foi a resposta seca. — O que mais o senhor quer saber sobre Roberto?
— A senhora chegou a pensar que alguns dos amigos dele pudesse ter armado tudo?
Antes de responder, ela escovou de novo o cabelo.
— E o senhor pode me dizer por que quer saber?
O tom da pergunta subtraiu anos da postura que ela vinha assumindo até ali e lembrou Brunetti de que ela provavelmente ainda não tinha chegado aos vinte.
— Saber lhe ajudará a responder? — ele perguntou.
— Não sei. É que eu ainda me relaciono com várias dessas pessoas e não quero dizer nada que possa... — ela preferiu não completar a sentença, deixando que Brunetti imaginasse que tipo de resposta poderia dar.
— Encontramos um corpo que pode ser de Roberto — ele disse, sem dar mais detalhes.
— Então não pode ter sido uma brincadeira — ela disse rapidamente.
Brunetti sorriu e assentiu, sugerindo concordância, sem se dar ao trabalho de dizer que com frequência ele fora testemunha das violentas consequências de coisas que haviam começado como simples brincadeiras.
Ela baixou os olhos para observar a cutícula do dedo indicador da mão direita e começou a cutucá-la com os dedos da esquerda.
— Roberto vivia dizendo que achava que o pai gostava mais do seu primo, Maurizio, do que dele. E isso o levava a fazer coisas que forçassem o pai a prestar atenção nele.
— Como ele fazia isso?
— Ah, arrumando encrenca na escola, destratando os professores, coisinhas assim. Mas um dia ele pediu a uns amigos para fazerem ligação direta em seu carro e o roubarem. E providenciou que o fizessem quando o carro estivesse estacionado na frente de um dos escritórios do pai, em Mestre, enquanto ele conversava com o pai no escritório. Assim ele não pensaria que Roberto tinha deixado as chaves no contato ou emprestara o carro para alguém.
— E o que aconteceu?
— Ah, eles dirigiram até Verona, deixaram o carro num estacionamento e voltaram de trem. O carro ficou lá por meses, e quando o encontraram tiveram de devolver o dinheiro do seguro e pagar as taxas do estacionamento.
— E como é que a signora sabe disso?
Ela começou a responder, parou, e disse:
— Foi Roberto quem me disse.
Brunetti resistiu ao impulso de perguntar a ela em que ocasião ele lhe havia dito aquilo, já que sua próxima pergunta era mais importante.
— E esses amigos são os mesmos que poderiam ter feito uma brincadeira como essa?
— Como qual?
— Um falso sequestro?
Ela olhou novamente para o indicador.
— Não foi isso que eu disse. E se vocês encontraram o corpo dele, então não se trata mais disso, não é? Não foi uma brincadeira.
Brunetti deixou a questão no ar por enquanto e, em vez de responder, perguntou:
— A senhora poderia me dar os nomes deles?
— Por quê?
— Eu gostaria de falar com eles.
Por um momento Brunetti pensou que a moça recusaria, mas ela cedeu.
— Carlo Pianon e Marco Salvo.
Ele se lembrou dos nomes, que constavam do arquivo original. Por serem os melhores amigos de Roberto, a polícia chegou a pensar que poderiam ser eles as pessoas com quem os sequestradores haviam dito que entrariam em contato para servirem de intermediadores. Mas os dois estavam matriculados em um curso de línguas na Inglaterra na época do sequestro.
Ele agradeceu pelos nomes e acrescentou:
— A senhora disse que essa foi uma das razões pelas quais rompeu com Roberto. Houve outras?
— Ah, uma porção — ela respondeu vagamente.
Brunetti não disse nada, deixando que a resposta inconclusa dela ecoasse na sala. Por fim, ela completou:
— Bem, ele deixou de ser um cara divertido, pelo menos na última semana. Estava sempre cansado, dizia não estar se sentindo bem. No fim ele só falava em como estava cansado e se sentia fraco. Eu não aguentava ter de ficar ouvindo ele reclamar o tempo todo. Ou vê-lo cair no sono no carro e coisas do tipo.
— Ele chegou a procurar um médico?
— Sim. Logo depois de ele ter dito que não conseguia mais sentir o cheiro das coisas. Ele sempre reclamava do cheiro de cigarro, chegava a ser pior do que um americano quanto a isso, e de repente disse que não conseguia nem sentir mais o cheiro da fumaça. — O nariz dela fremiu frente ao absurdo da situação. — Foi então que decidiu procurar um especialista.
— E o que o médico disse?
— Que não havia nada de errado com ele. — Ela fez uma pausa e acrescentou: — Exceto pela diarreia, mas o médico lhe receitou algo para isso.
— E?
— Acho que parou — ela disse, querendo mudar de assunto.
— Mas ele continuou a se sentir cansado, do jeito que a senhora descreveu antes?
— Sim. Continuava a dizer que estava mal e os médicos continuavam a dizer que não havia nada de errado com ele.
— Médicos? Então ele foi a mais de um?
— Acho que sim. Ele falou de um especialista em Pádua. Foi o único que disse que ele tinha anemia e lhe receitou uns comprimidos para tomar. Mas logo depois tudo aconteceu, e ele se foi.
— A senhora acha que ele estava doente?
— Sei lá. — Ela cruzou as pernas, mostrando ainda mais as coxas. — Ele gostava de chamar a atenção.
Brunetti tentou fazer a próxima pergunta de maneira delicada.
— A senhora ficou convencida de que ele estava realmente doente ou anêmico?
— O que o senhor quer dizer com “convencida”?
— Ele, hum, demonstrava menos vigor que o usual?
Ela o avaliou, como se Brunetti tivesse acabado de entrar na sala vindo de outro século.
— Ah, o senhor quer dizer sexo?
Brunetti anuiu.
— Sim, ele perdeu o interesse. Outro motivo pelo qual eu queria terminar a relação.
— Ele sabia disso? Que a senhora queria terminar a relação?
— Nunca tive a chance de discutir o assunto com ele.
Brunetti avaliou a resposta e perguntou em seguida:
— O que a levou à villa naquela noite?
— Tínhamos ido a uma festa em Treviso, e Roberto não queria dirigir todo o caminho desde Veneza. Então decidimos passar a noite na villa e voltar na manhã seguinte.
— Entendo — disse Brunetti, e perguntou: — Tirando o cansaço, o comportamento dele estava de algum modo diferente nas semanas antes de tudo acontecer?
— Como assim?
— Ele parecia especialmente nervoso?
— Não, não que eu notasse. Ele estava de pavio curto comigo, mas era assim com todo mundo. Teve uma discussão com o pai, e depois outra com Maurizio.
— E sobre o que foi a discussão?
— Não sei. Ele nunca falava comigo sobre essas coisas. Não que eu estivesse muito interessada.
— E qual era seu interesse nele, signora? — perguntou Brunetti, e, notando a cara que ela fez, acrescentou: — Se a senhora me permite.
— Ah, ele era boa companhia. Pelo menos no começo. E sempre tinha muito dinheiro no bolso.
Brunetti achou que a ordem de importância dessas duas coisas seria mais representativa se fosse trocada, mas não disse nada.
— Percebo. A senhora conhece o primo dele?
— Maurizio? — ela perguntou, desnecessariamente, pensou Brunetti.
— Sim.
— Encontrei-o algumas vezes. Na casa de Roberto. E numa festa.
— A senhora gostava dele?
Ela desviou o olhar para uma das gravuras e, como inspirada por sua violência, disse:
— Não.
— Por quê?
Ela deu de ombros, desfazendo de uma recordação tão distante no passado.
— Sei lá. Eu o achava meio arrogante. — E, ao ouvir isso, ela mesma acrescentou: — Não que Roberto não pudesse ser assim também às vezes, mas é que Maurizio era mesmo... bem, ele sempre queria dizer aos outros o que fazer. Ou pelo menos assim me parecia.
— E a senhora o viu novamente depois do desaparecimento de Roberto?
— Claro — ela respondeu, estranhando a pergunta. — Logo depois que aconteceu ele estava lá, com os pais de Roberto. E ficou com eles por todo o tempo, quando os pedidos de resgate chegaram. Sim, eu o vi.
— E depois, quando os pedidos pararam?
— Não, não o vi mais, pelo menos não num encontro formal, com tempo para uma conversa, se o senhor quer saber. Eu o vejo de passagem às vezes, na rua, mas não temos nada a dizer um ao outro.
— E os pais de Roberto?
— Não, eles também não.
Brunetti não achava mesmo que os pais do garoto sequestrado fossem manter relações com a antiga namorada do filho, principalmente depois de ela ter se casado com outro. Assim, não tendo mais nada a perguntar, mas querendo sondar se ela estaria aberta a novas perguntas no caso de elas aparecerem, disse, olhando para o relógio:
— Bem, signora, não vou separá-la do seu bebê por mais tempo.
— Ah, sem problemas, eu não me incomodo — ela respondeu, e Brunetti ficou espantado ao perceber como ela fora convincente e o quanto isso o fez desprezá-la. Então ele se levantou rápido.
— Muito obrigado, signora. Acho que é tudo por enquanto.
— Por enquanto?
— Signora, caso se confirme que o corpo é de Roberto, as investigações serão reabertas, e eu suspeito que todos que estavam de alguma forma envolvidos com o sequestro inicial serão interrogados novamente.
Ela contraiu os lábios com um esgar de irritação ao perceber o desperdício de tempo que a conversa tinha sido para ela.
Ele se dirigiu à porta, para não dar a ela a chance de reclamar.
— Mais uma vez, obrigado, signora.
Ela se levantou do sofá e foi até ele. O rosto dela reassumiu a curiosa expressão imóvel que ele havia notado quando a viu pela primeira vez, e a beleza que ela demonstrara tinha desaparecido.
Ela o acompanhou até a porta e, no momento em que a abria, o bebê berrou de algum lugar nos fundos do apartamento. Não dando a mínima para isso, ela disse:
— O senhor poderia me informar quando souberem se é mesmo Roberto?
— Mas claro, signora.
Ele começou a descer as escadas. O som do choro do bebê foi interrompido pelo fechamento da porta.
8
Brunetti olhou novamente para o relógio quando saiu da casa dos Salviati. Faltavam vinte minutos para a uma. Pegou o traghetto de novo e, ao descer em San Leonardo, cruzou o campo e entrou na primeira à esquerda. Algumas mesas vazias já estavam armadas na sombra à frente do restaurante.
Dentro, à sua esquerda, um caixa; atrás dele, numa prateleira, alguns garrafões de vinho com longos tubos de borracha saindo de seus gargalos. À direita, duas portas em arco conduzindo a outro ambiente, onde havia uma mesa na qual estava sentado seu sogro, Orazio Falier. O conde tinha uma taça do que parecia ser um prosecco à sua frente e lia Il Gazzetino, o jornal local. Brunetti ficou surpreso ao vê-lo com esse jornal, o que talvez se devesse ao fato de que tinha pelo conde uma consideração mais alta do que imaginava, ou que não considerava muito o jornal.
— Buon dì — cumprimentou Brunetti ao se aproximar da mesa.
O conde deu uma espiada por sobre o jornal e levantou-se, deixando-o se espalhar na mesa à sua frente.
— Ciao, Guido — saudou o conde, estendendo a mão para cumprimentar Brunetti. — Que bom que você veio.
— Fui eu que pedi para falar com o senhor, lembra? — respondeu Brunetti.
— Os Lorenzoni, certo? — lembrou-se o conde.
Brunetti puxou a cadeira de frente para o conde e se acomodou. Ele olhou para o jornal e, embora o corpo ainda não tivesse sido identificado, ficou imaginando se já teriam publicado algo sobre o caso.
— Nada ainda — disse o conde, interpretando seu olhar e dobrando lentamente o jornal em dois, depois em dois novamente. — Decaiu tanto, não? — perguntou, segurando o jornal.
— Não para quem aprecia canibalismo, incesto e infanticídio — respondeu Brunetti.
— Você já leu o de hoje? — Quando Brunetti respondeu que não com a cabeça, o conde explicou: — Na edição matutina tem a história de uma mulher em Teerã que matou o marido, arrancou o coração dele e o comeu com algo chamado ab goosht. — Antes que Brunetti pudesse demonstrar surpresa ou nojo, o conde prosseguiu: — E chegam ao requinte de dar a receita do ab goosht: tomates, cebolas e carne em cubinhos. — Ele balançou a cabeça. — Para quem eles escrevem? Quem quer saber dessas coisas?
Fazia muito tempo que Brunetti abandonara qualquer resquício de fé que ainda pudesse ter no gosto do público em geral, de modo que respondeu:
— Os leitores do Il Gazzettino, acho.
O conde o encarou, balançando a cabeça.
— Você deve ter razão — e jogou o jornal na mesa mais próxima. — O que você quer saber sobre os Lorenzoni?
— Hoje de manhã o senhor disse que o garoto não tinha nada do talento do pai. Eu queria saber a que talento se referia.
— Ciappar schei — respondeu o conde, apelando ao dialeto.
Reconhecendo de pronto a sonoridade do veneziano, Brunetti perguntou:
— E ele fazia dinheiro como?
— De qualquer jeito que conseguisse: aço, cimento, comércio. Se algo pudesse se mover, os Lorenzoni fariam chegar até você. Se pudesse ser construído, os Lorenzoni venderiam os materiais necessários para a construção. — Refletindo sobre o que acabara de dizer, o conde acrescentou: — Seria um belo slogan para eles, não seria? — Quando Brunetti concordou, o conde acrescentou: — Não que os Lorenzoni precisassem de publicidade. Pelo menos não aqui, no Vêneto.
— O senhor tem negócios com eles? A empresa, quero dizer.
— No passado contratei a transportadora deles para levar tecidos para a Polônia e trazer... Não tenho muita certeza, foi há uns quatro anos... Vodca, acho. Mas com o relaxamento das regras e das taxas de importação achei mais barato fazer o transporte por trem, e não tenho mais nenhum negócio com eles.
— O senhor os conhece socialmente?
— Não mais do que conheço algumas centenas de pessoas na cidade — e voltou sua atenção para a garçonete que viera atendê-los.
Ela vestia uma camisa masculina enfiada em um jeans justíssimo, os cabelos curtos como os de um rapaz. Embora não usasse maquiagem, sua aparência nem de longe era masculina, pelo molde que o jeans oferecia de seus quadris e pelos três botões de cima desabotoados de sua camisa estarem revelando que não usava sutiã, mas que poderiam muito bem aconselhá-la a fazê-lo.
— Conde Orazio — ela disse, em um baixo contralto repleto de calor e promessas —, é um prazer vê-lo de novo por aqui — e voltou-se para Brunetti, estendendo-lhe o calor de seu sorriso.
Brunetti lembrou-se de que o conde lhe havia dito que a filha de um amigo administrava o lugar, e concluiu que era como um velho amigo da família que o conde perguntou: — Come stai, Valeria? — Contudo, o uso que ele fez do “tu” familiar soava tudo menos avuncular, o que fez Brunetti observar a jovem para ver como ela responderia.
— Molto bene, signor conte. E lei? — foi a resposta dela, a formalidade das palavras em conflito explícito com o tom impresso a elas.
— Bem, obrigado, querida. — Ele apresentou Brunetti com um aceno de mão: — Esse é meu genro.
— Piacere — disse Brunetti à jovem, cumprimento que ela devolveu com a mesma palavra, acrescentando apenas um sorriso.
— O que você nos sugere hoje, Valeria? — perguntou o conde.
— Como entrada, temos sarde in saor — ela disse — ou latte di seppie. A sarde foi feita ontem à noite e as seppie chegaram de Rialto hoje de manhã.
Congeladas, com certeza, pensou Brunetti. Era muito cedo para as ovas de lula estarem frescas, mas não para as sardinhas. Paola parecia nunca encontrar tempo para limpar as sardinhas e mariná-las com cebolas e uvas-passas, o que as tornava mais tentadoras agora.
— O que você acha, Guido?
— Sardinhas — ele disse, sem hesitar.
— Sim. Duas então.
— Spaghetti alle vongole — disse a jovem, não recomendando, mas já anotando.
Os dois concordaram.
— E em seguida — disse Valeria — eu sugiro o rombo, ou talvez a coda di rospo. Os dois estão frescos.
— Como eles são preparados? — perguntou o conde.
— O rombo é assado, a coda, cozida com vinho branco, zucchini e alecrim.
— E está boa, a coda?
Como resposta, ela pressionou o nó do indicador de sua mão direita em sua bochecha, fazendo um giro com ele e estalando os lábios ao mesmo tempo.
— Negócio fechado, então — disse o conde, sorrindo para ela. — E para você, Guido?
— Não, vou querer o rombo — disse Brunetti, achando que o outro prato parecia muito exagerado, o tipo de coisa que viria acompanhado de um pedaço de cenoura esculpida na forma de uma flor ou de um maço de hortelã arranjado de modo inusitado.
— Vinho? — ela perguntou.
— Você tem aquele Chardonnay que seu pai produz?
— É o que costumamos beber, conte, mas normalmente não servimos aqui. — Vendo o desapontamento do conde, ela acrescentou: — Vou lhe trazer uma carafe.
— Obrigado, Valeria. Já experimentei com seu pai. É excelente.
Ela balançou a cabeça em reconhecimento a essa verdade e depois acrescentou, em tom de brincadeira:
— Só não diga nada sobre isso se a Finanza aparecer.
E, antes que o conde pudesse fazer qualquer comentário, alguém chamou do outro ambiente, e ela foi ver o que era.
— Depois ninguém entende por que este país é uma economia de quinta — disse o conde num repentino acesso de fúria. — O melhor vinho que eles fazem e não podem servi-lo, provavelmente por causa de alguma determinação legal sem pé nem cabeça sobre a gradação alcoólica, ou porque algum idiota em Bruxelas resolveu que o vinho deles é muito semelhante a outro tipo de vinho feito em Portugal. Deus do céu, somos dominados por imbecis!
Brunetti, que sempre julgara que o sogro fizesse parte dessa classe dominante, achou que aquela indignação não combinava bem com ele. Mas antes que pudesse lhe perguntar algo sobre isso, Valeria voltou com uma carafe de um litro de um pálido vinho branco e, embora nenhum deles tivesse pedido, uma garrafa de água mineral.
O conde encheu duas taças de vinho e empurrou uma na direção de Brunetti.
— Diga-me o que acha.
Brunetti pegou a taça e tomou um gole. Ele sempre detestou opiniões sobre o gosto do vinho, toda a tagarelice sobre “ser amadeirado”, “o buquê de framboesas maceradas”, de modo que tudo o que disse foi “Muito bom”, devolvendo a taça à mesa.
— Fale mais sobre o rapaz. O senhor disse que não gostava dele.
Depois de vinte anos de convivência, o conde já havia se acostumado com o genro e suas técnicas, então tomou um gole do seu vinho e respondeu:
— Como eu disse, ele era chato e convencido, uma combinação muito pouco interessante.
— Que tipo de trabalho ele fazia para a firma?
— Acho que era uma espécie de “consulente”, embora eu não consiga imaginar sobre o que ele poderia ser consultado. Quando a firma precisava levar um cliente para jantar, Roberto ia junto. Acho que Ludovico tinha a esperança de que o contato do filho com os clientes e o envolvimento nos negócios o tornaria mais responsável, ou pelo menos faria com que levasse os negócios mais a sério.
Brunetti, que sempre trabalhou durante as férias da faculdade, perguntou:
— Mas com certeza o trabalho dele não podia ser apenas ir a esses jantares.
— Às vezes, se havia uma entrega importante a fazer ou uma encomenda importante a ser recebida, eles mandavam Roberto. Por exemplo, se algum contrato tinha que ser encaminhado a Paris ou um novo catálogo de amostras para as tecelagens tinha que ser entregue com urgência, Roberto os levava, e depois aproveitava para passar um fim de semana em Paris, Praga ou onde quer que fosse.
— Trabalho bacana — disse Brunetti. — E quanto à faculdade?
— Muito preguiçoso. Ou muito burro — explicou o conde sem se alongar.
Brunetti ia comentar que nenhuma daquelas qualidades era grande obstáculo à vida universitária, pelo que Paola dizia sobre os estudantes, mas foi interrompido pela chegada de Valeria à mesa, trazendo dois pratos repletos de pequenas sardinhas com a pele brilhando de óleo e vinagre.
— Buon apetito — ela disse, e foi logo atender a um aceno de mão em outra mesa.
Nenhum dos dois se incomodou em tirar as espinhas do peixe, espetando-o com o garfo e levando-o inteiro à boca, derramando vinagre, fatias de cebola e uvas-passas.
— Bon — disse o conde. Brunetti anuiu sem dizer nada, satisfeito com o peixe e o toque ácido do vinagre. Ele ouvira falar que, séculos antes, os pescadores venezianos eram forçados a comer o peixe dessa maneira, abrindo-o e espargindo-o com tempero para impedir que apodrecesse, e que o vinagre era acrescentado para prevenir o escorbuto. Brunetti não sabia se fora mesmo assim, mas se fora, um viva aos pescadores.
Terminadas as sardinhas, Brunetti pegou um pedaço de pão e limpou seu prato com ele.
— E ele fazia mais alguma coisa, o Roberto?
— Nos negócios?
— Sim.
O conde pôs mais vinho nas taças.
— Não, acho que ele só era capaz daquilo, ou só se interessava por aquilo. — E depois de tomar mais um gole: — Ele não era mau, só enfadonho. Da última vez que o vi, na verdade, senti pena dele.
— Quando foi isso? E por quê?
— Acho que um pouco antes do sequestro. Seus pais deram uma festa por ocasião do trigésimo aniversário de casamento e eu e Donatella fomos convidados. Roberto estava lá. — O conde fez uma pausa e acrescentou depois de um tempo: — Mas era quase como se não estivesse.
— Não entendo — disse Brunetti.
— Era como se ele fosse invisível. Não, não é bem isso. Ele parecia mais magro, e seus cabelos começavam a cair. Estávamos em pleno verão, mas sua aparência era a de alguém que não tivesse saído de casa desde o último inverno. E ele era conhecido por estar sempre na praia ou jogando tênis por aí. — O conde olhou no vazio, puxando pela memória. — Não cheguei a falar com ele e não quis dizer nada para os pais, mas ele parecia estranho.
— Doente?
— Não, nada disso. Bem, não de fato. Apenas muito pálido e magro, como se tivesse exagerado em algum regime.
Como se tivesse sido convocada a pôr um fim à conversa de regime, Valeria chegou bem naquele momento, com dois pratos repletos de espaguete cobertos de pequeninos mariscos ainda em suas conchas. O perfume do azeite e do alho projetavam-se à frente dela.
Brunetti afundou o garfo no espaguete e começou a enrolar os fios entrelaçados. Ao juntar o que considerou ser uma bela garfada, levou a porção aos lábios, encorajado pelo envolvente perfume do alho. Com a boca cheia, balançou a cabeça para o conde, que sorriu em resposta e também começou a comer.
Foi só quando a massa de Brunetti estava prestes a acabar e ele já tinha começado a abrir os mariscos que perguntou ao conde:
— E quanto ao sobrinho?
— Ouvi dizer que tem talento para os negócios. Tem jeito para lidar com os clientes e cabeça para os números e para contratar as pessoas certas.
— Quantos anos ele tem? — perguntou Brunetti.
— Dois anos a mais que Roberto, então deve ter uns vinte e cinco agora.
— Tem algo mais que o senhor saiba sobre ele?
— Que tipo de coisa?
— Qualquer coisa que o senhor possa saber.
— Isso é muito vago. — E antes que Brunetti pudesse explicar, o conde perguntou: — Se ele pode ter feito isso, você diz? Considerando que tenha sido feito?
Brunetti anuiu e continuou com seus mariscos.
— O pai dele, o irmão mais jovem de Ludovico, morreu quando Maurizio tinha oito anos. Os pais já estavam divorciados, e aparentemente a mãe não queria saber do filho, de modo que, quando a oportunidade surgiu, ela o deu para Ludovico e Cornelia criarem. Ele pode ser considerado irmão de Roberto.
Pensando em Caim e Abel, Brunetti perguntou:
— O senhor sabe disso ou alguém lhe contou?
— As duas coisas — foi a resposta curta do conde. — E acho pouco provável que Maurizio tenha algum envolvimento com o caso.
Brunetti deu de ombros e lançou a última concha de marisco sobre a pilha que havia se acumulado em seu prato.
— Ainda não sei se o corpo é do garoto Lorenzoni.
— Então por que todas essas perguntas?
— Pelo seguinte: duas das pessoas que foram interrogadas na época alegaram pensar ter se tratado de uma brincadeira ou de um trote. E a pedra que estava bloqueando o portão foi colocada ali pelo lado de dentro.
— Quem o fez poderia ter pulado o muro — sugeriu o conde.
Brunetti anuiu.
— Talvez. É que algo simplesmente não se encaixa no quadro geral.
O conde observou Brunetti com curiosidade, como se considerasse inusitado que ele tivesse sentimentos intuitivos.
— Além do que já me contou, o que mais você acha estranho?
— Que ninguém tenha investigado a afirmação dos que pensavam ter se tratado de uma brincadeira. Que não houvesse indicação no arquivo de que o primo fora interrogado. E que ninguém parece ter se preocupado com a pedra.
O conde colocou o garfo sobre o resto de espaguete que ainda havia no prato e assim que o fez Valeria se aproximou para tirar a mesa.
— O senhor não gostou do espaguete, conde?
— Estava uma delícia, minha cara, mas tenho que deixar algum espaço para a coda.
Valeria assentiu e recolheu seu prato, fazendo o mesmo com o de Brunetti. Quando ela retornou, o conde estava servindo mais vinho para os dois. Brunetti gostou de saber que estava certo quanto à coda. Ela veio enfeitada com ramos de alecrim e um rabanete.
— Por que é que eles fazem isso com a comida? — ele perguntou, apontando para o prato do conde com o queixo.
— Você quer mesmo saber ou está apenas criticando o serviço? — perguntou o conde.
— Quero mesmo saber — respondeu Brunetti.
O conde pegou o garfo e a faca para separar o peixe e verificar se estava bem cozido. Depois de confirmar que estava, ele disse:
— Eu me lembro do tempo em que por não mais que umas mil liras você podia comer bem em qualquer trattoria ou osteria na cidade. Risoto, peixe, uma salada e um bom vinho. Nada de enfeite, apenas a boa comida que os proprietários provavelmente também comiam. Mas isso foi quando Veneza era uma cidade viva, que tinha indústria e artesãos. Agora tudo o que temos são turistas, e aqueles que são ricos estão acostumados com esse tipo de penduricalho. Assim, para ser atraente para os paladares deles, agora nos servem comida que foi preparada para parecer bonita. — E, comendo um pedaço do peixe, completou: — Pelo menos isto aqui está tão bom quanto bonito. E o seu?
— Muito bom — respondeu Brunetti, colocando um ossinho ao lado do prato e dizendo: — O senhor quer conversar sobre algo comigo, não?
Com a cabeça voltada para o peixe, o conde disse:
— É sobre Paola.
— Paola?
— Sim, Paola. Minha filha. Sua mulher.
Brunetti foi tomado por uma súbita onda de fúria pelo tom displicente do conde, mas a conteve e replicou com refletido sarcasmo e distância na voz:
— E mãe dos meus filhos. Seus netos. Não se esqueça disso.
O conde pousou o garfo e a faca em seu prato e o afastou de si.
— Guido, não quis ofender...
Brunetti o interrompeu.
— Então não seja condescendente comigo...
O conde pegou a carafe de vinho, despejou metade de seu conteúdo na taça de Brunetti e pôs o resto na sua.
— Ela não está feliz. — Ele encarou Brunetti para avaliar como tinha recebido essa declaração, fez uma pausa e, como o genro não disse nada, continuou: — É minha única filha e não está feliz.
— Por quê?
O conde ergueu a mão que levava o anel com o brasão dos Falier. Ao vê-lo, Brunetti pensou imediatamente no corpo encontrado no terreno e se seria ou não identificado como o do garoto Lorenzoni. Se fosse, quem ele deveria interrogar em seguida, o pai, o sobrinho, talvez a mãe? Como poderia se imiscuir na dor que poderia ser ressuscitada pela descoberta do corpo?
— Você está me ouvindo?
— É claro que estou — respondeu Brunetti, mas não estava. — O senhor disse que Paola não é feliz e eu lhe perguntei a razão.
— Era o que eu estava lhe dizendo, Guido, mas você parece ter ido a algum lugar com os Lorenzoni e o corpo que foi encontrado, perguntando-se o que você poderia fazer para estabelecer a justiça. — Ele fez uma pausa, esperando que Brunetti dissesse algo. — Uma das razões que eu estava tentando lhe dar é justamente que sua busca pelo que entende como justiça o consome... — Aqui o conde fez uma pausa, movendo sua taça de vinho para a frente e para trás sobre a mesa, segurando-a entre as juntas do indicador e do médio. Então olhou para o genro e sorriu, embora a visão desse sorriso entristecesse Brunetti. — Seu trabalho suga muito de seu espírito, Guido, e acho que Paola sofre por isso.
— O senhor quer dizer que consome muito do meu tempo?
— Não, eu quis dizer o que eu disse. Você se envolve com esses crimes e com as pessoas que os cometeram ou que foram vítimas deles, e se esquece de Paola e das crianças.
— Isso não é verdade. Raramente me ausento quando tenho que estar com eles. Fazemos muita coisa juntos.
— Por favor, Guido — o conde disse suavemente. — Você é um homem muito inteligente para acreditar, ou esperar que eu acredite, que apenas por estar em um lugar ou com uma pessoa signifique que esteja lá por inteiro. Lembre-se de que eu já estive por perto quando você estava às voltas com um caso, e sei como você é. Seu espírito viaja. Você fala e escuta, sai para passear com as crianças, mas não está lá de verdade. — O conde serviu-se de água. — De certo modo, você é como o garoto Lorenzoni da última vez que o vi: distraído e distante, sem estar lá de fato.
— Foi Paola que lhe disse isso?
O conde pareceu surpreso.
— Guido, não acho que você precise acreditar em mim, mas Paola jamais diria uma palavra contra você, nem para mim nem para mais ninguém.
— Então por que o senhor tem tanta certeza de que ela é infeliz? — Brunetti se esforçava para conter a ira em sua voz enquanto fazia a pergunta.
Distraidamente, os dedos do conde buscaram um pedaço de pão à esquerda do prato e começaram a cortá-lo em pequenos pedaços.
— Quando Paola nasceu, Donatella passou por um período difícil. Ficou doente por muito tempo depois do parto, e quase toda a responsabilidade em cuidar da bebê caiu sobre mim. — Notando o espanto de Brunetti, ele deu uma gargalhada. — Eu sei, eu sei. Deve ser difícil me vislumbrar amamentando uma bebê ou trocando fraldas, mas foi exatamente isso que eu fiz nos primeiros meses. Quando Donatella voltou para casa, bem, aquilo tinha se tornado um hábito, e eu continuei fazendo tudo. Trocar as fraldas de uma bebê por um ano, alimentá-la, cantar para ela dormir, tudo isso faz com que se saiba quando ela está feliz ou triste. — E antes que Brunetti pudesse objetar, o conde continuou: — E não faz diferença se a bebê tem quatro meses ou quarenta anos, nem se a causa é uma cólica ou um casamento complicado. Você simplesmente sabe. De modo que sei que ela não está feliz.
As alegações de inocência ou ignorância de Brunetti morreram ali. Ele também trocara fraldas e passara muitas noites acalentando seus filhos e lendo para eles enquanto choravam ou caíam no sono, e sempre acreditou que foram essas noites, mais do que todo o resto, que lhe forneceram um tipo de radar que o fazia identificar o estado de — era necessário utilizar aqui o vocabulário do conde — espírito deles.
— Não sei fazer o que faço de outra maneira — ele disse por fim, em um tom sem ressentimento.
O conde continuou.
— Sempre quis lhe perguntar: por que isso é tão importante para você?
— Por que o que é tão importante para mim? Que eu prenda quem cometeu um crime?
O conde negou com um aceno.
— Não, eu não acho que seja isso o que é importante para você. Por que é que você tem de garantir que a justiça seja feita?
Valeria escolheu esse momento para vir de novo à mesa, mas ninguém ali estava interessado na sobremesa. O conde pediu duas grapas e voltou a Brunetti.
— O senhor leu os gregos, não leu? — Brunetti perguntou afinal.
— Alguns deles, sim.
— Crítias?
— Há tempo o bastante para ter apenas a mais vaga das memórias do que ele escreveu. Por quê?
Valeria surgiu de novo, serviu as taças e saiu silenciosamente.
Brunetti pegou a dele e tomou um golinho.
— Minha citação dele é provavelmente inexata, mas em algum de seus escritos ele afirma que as leis do Estado cuidarão dos crimes públicos, e é por isso que precisamos da religião, para acreditar que a justiça divina cuidará dos crimes privados. — E depois de uma pausa para um novo gole: — Mas agora não temos mais religião, temos? Não a sério. — O conde anuiu. — Assim, talvez seja isso que eu persiga, não que eu tenha algum dia falado sobre o assunto ou, para ser preciso, tenha pensado muito sobre isso. Se a justiça divina não se importa mais com os crimes privados, então é preciso que alguém se ocupe deles.
— O que você quer dizer com crime privado? O que o distingue do crime público?
— Dar um mau conselho a alguém de modo a lucrar posteriormente com o erro do aconselhado. Mentir. Trair a confiança de alguém.
— Nada disso é necessariamente ilegal.
Brunetti balançou a cabeça.
— Mas não é isso que importa. O que importa é por que se chega a pensar nessas coisas. — Ele fez uma pequena pausa e continuou em seguida: — Talvez os políticos forneçam melhores exemplos, ao dar contratos a amigos, basear decisões governamentais em desejos pessoais e empregar familiares no governo.
O conde o interrompeu.
— Ou seja, ao fazer a típica política italiana.
Brunetti assentiu pesaroso.
— Mas não cabe a você decidir que essas coisas são ilegais e começar a punir as pessoas por isso, cabe?
— Não. O que eu estava tentando dizer é que me empenho em tentar descobrir as pessoas responsáveis pelas coisas ruins, não apenas pelas ilegais, caso contrário vou começar a pensar no que as distingue e a acreditar que as duas são erradas.
— Então sua mulher sofre. O que nos traz de volta à minha afirmação original. — A mão do conde atravessou o espaço da mesa entre eles e pousou no braço de Brunetti. — Sei quão ofensivo você deve achar isso que eu disse. Mas ela é minha bebê e sempre será, de modo que eu queria lhe dizer algo, antes que ela o diga.
— Não sei bem se devo agradecê-lo por isso — Brunetti confessou.
— Não importa muito. Minha única preocupação é com a felicidade de Paola. — Aqui o conde fez uma pausa, avaliando o que ia dizer em seguida. — E, embora você possa achar difícil de acreditar, Guido, com a sua também.
Brunetti anuiu, descobrindo-se inesperadamente emocionado demais para falar. Notando isso, o conde fez o gesto de quem pede a conta para Valeria. Ao voltar a atenção a Brunetti, ele perguntou, em um tom de voz absolutamente normal:
— E então, o que achou da comida?
Em tom semelhante, Brunetti respondeu:
— Excelente. Seu amigo pode se orgulhar da filha. E o senhor da sua.
— Eu me orgulho — disse o conde simplesmente. Em seguida, fez uma pausa, encarou Brunetti e disse: — E embora não haja nenhuma razão para você acreditar nisso, me orgulho de você também.
— Obrigado, eu nem imaginava. — Antes de dizer isso, Brunetti tinha pensado que seria difícil fazê-lo, mas as palavras vieram fácil e sem dor.
— Não, eu não achava mesmo que você imaginasse.
9
Brunetti só retornou à questura depois das três. Assim que entrou, Pucetti saiu do gabinete próximo à porta, mas não para lhe devolver o casaco, já que não o carregava consigo.
— Algum deles o roubou? — perguntou Brunetti com um sorriso, olhando para a porta do Ufficio Stranieri, à frente da qual não havia mais fila, já que o horário de funcionamento ia até meio-dia e meia.
— Não, é que o vice-questore nos avisou que queria vê-lo assim que o senhor chegasse do almoço. — Nem mesmo um emissor tão simpático como Pucetti conseguia disfarçar o tom de contrariedade do recado de Patta.
— E ele já retornou do almoço?
— Sim, senhor. Há uns dez minutos. Perguntou onde o senhor estava. — Não era preciso ser um criptógrafo para decifrar o código utilizado na questura: a pergunta de Patta revelava algo mais sério que seu usual descontentamento com Brunetti.
— Vou vê-lo já — disse Brunetti, tomando o rumo das escadas frontais.
— Seu casaco está no armário do seu gabinete, senhor — disse Pucetti às costas de Brunetti, que ergueu uma mão em agradecimento.
A signorina Elettra estava em sua mesa numa sala contígua ao gabinete de Patta. Ao ver Brunetti se aproximar, ela tirou os olhos do jornal em sua mesa e disse:
— O relatório da autópsia está na sua mesa.
Embora estivesse curioso, ele não perguntou o que continha o documento, mesmo tendo certeza de que o havia lido. Se não soubesse os resultados, não haveria razão para mencionar a autópsia a Patta.
Reconhecendo as páginas alaranjadas do Il Sole Ventiquattro Ore, o jornal econômico, perguntou a ela:
— Trabalhando no seu portfólio?
— Pode-se dizer isso.
— Como assim?
— Uma das companhias em que invisto decidiu abrir uma fábrica de remédios no Tadjiquistão. Tem um artigo no jornal sobre os mercados emergentes na antiga União Soviética, e eu estou vendo se continuo com eles ou se tiro meu dinheiro de lá.
— E?
— Acho que as coisas não estão cheirando bem — ela disse, fechando o jornal com um gesto discreto.
— E por quê?
— Porque esses lugares parecem ter pulado da Idade Média direto para o capitalismo de ponta. Há cinco anos eles faziam escambo com martelos e batatas, e de repente todos se tornaram empresários, com telefonini e bmws. Pelo que pude ler, eles têm os princípios morais de uma víbora, e eu não acho que queira ter nenhum tipo de negócio com eles.
— Muito arriscado?
— Não, exatamente o contrário — ela disse com calma. — Acho que seria um investimento bem lucrativo, mas prefiro que meu dinheiro não seja usado por gente que negocie qualquer coisa, compre e venda o que for ou faça qualquer acordo para lucrar.
— Como os bancos? — perguntou Brunetti. Ela chegara à questura há alguns anos, deixando o emprego de secretária do presidente da Banca d’Italia por ter se recusado a escrever uma carta que lhe fora ditada para ser encaminhada a um banco em Johannesburgo. Nem a ONU acreditava em suas próprias sanções, mas a signorina Elettra achava que era necessário cumpri-las, mesmo que ao custo do próprio emprego.
Ela o encarou, os olhos brilhando, como um cavalo da tropa que tivesse acabado de ouvir os trompetes soarem o sinal de ataque.
— Exatamente.
Mas, se esperava que ela fizesse um discurso sobre isso ou comparasse os dois casos, ele logo se desapontou.
A signorina Elettra olhou de modo significativo para a porta de Patta.
— Ele está esperando o senhor.
— Alguma ideia do que quer comigo?
— Nenhuma.
Brunetti lembrou de repente a reprodução de uma pintura do seu livro de história do quinto ano que mostrava um gladiador romano voltando-se para saudar o imperador antes de se engajar em um combate com um inimigo que tinha uma espada maior e dez quilos a mais.
— Ave atque vale — ele disse sorrindo.
— Morituri te salutant — ela respondeu, tão distraidamente como se a consultar os horários de chegada e partida dos trens.
Ao entrar, o tema latino continuou, com Patta aparecendo de perfil e exibindo seu nariz imperial. Mas, quando ele se virou para encarar Brunetti, esse ar se esvaiu, sendo substituído por algo ligeiramente porcino, impressão oferecida pela tendência dos olhos negros de Patta de se afundarem cada vez mais na carne sempre bronzeada de seu rosto.
— O senhor queria me ver, vice-questore? — perguntou Brunetti em tom neutro.
— Você perdeu o juízo, Brunetti? — perguntou Patta de chofre.
“Teria perdido se eu não tomasse providência alguma após descobrir que algo está incomodando minha mulher”, Brunetti respondeu, apenas para si. Já para Patta ele disse:
— Do que o senhor está falando?
— Dessas recomendações para promoção e mérito — disse Patta, deixando a palma aberta de sua mão esquerda cair pesadamente sobre uma pasta fechada à sua frente. — Nunca em toda a minha vida vi um caso mais gritante de preconceito e favoritismo.
Por ser siciliano, Patta já devia ter visto bem mais que sua cota das duas coisas, refletiu Brunetti, mas disse apenas:
— Acho que não estou entendendo, senhor.
— Mas é claro que entende. Você recomendou apenas venezianos: Vianello, Pucetti e... como é mesmo o nome dele? — disse Patta, olhando para baixo e abrindo a pasta. Correu os olhos pela primeira página, virou-a e começou a ler a segunda. De repente, apunhalou-a com um indicador afiado. — Ah, aqui está, Montisi. Como é que se promove um piloto de barco, meu Deus?
— Do mesmo jeito que se promove qualquer outro oficial, acho, subindo-lhe uma divisa e pagando-lhe o salário correspondente a ela.
— E em razão do quê? — Patta perguntou retoricamente, olhando de novo para a página. — “Por notável bravura na perseguição a um criminoso em fuga”? — ele leu em tom sarcástico. — Você quer promovê-lo porque perseguiu alguém com o barco? — Como Brunetti não respondeu após sua pausa, Patta acrescentou, ainda mais sarcástico: — E eles nem conseguiram apanhar os homens que estavam perseguindo, não é?
Brunetti deixou passarem alguns segundos antes de responder. Quando o fez, sua voz tinha a calma que a de Patta não demonstrara.
— Não, senhor, não foi porque Montisi perseguiu alguém em seu barco, mas porque ele o parou mesmo sob o ataque de homens que estavam em outro barco e mergulhou para resgatar um policial que havia levado um tiro e caído na água.
— Não era um ferimento grave — disse Patta.
— Não acho que o policial Montisi tenha parado para refletir sobre isso, senhor, ao ver o outro homem na água.
— Bem, é impossível. Não podemos promover alguém que é apenas um piloto.
Brunetti não disse nada.
— No caso de Vianello, talvez possamos fazer algo — concedeu Patta com perceptível falta de entusiasmo.
Num sábado de manhã, Vianello estava na Standa quando um homem armado de uma faca entrou, tirou a caixa do seu lugar e começou a pegar o dinheiro da registradora mais perto da porta. O sargento, que fora até a loja para comprar um par de óculos escuros, agachou-se atrás da máquina e, assim que o homem se dirigiu à porta, imobilizou-o, desarmou-o e prendeu-o.
— E não vamos nem falar sobre Pucetti — disse Patta furiosamente.
Havia seis semanas, Pucetti, um ciclista dedicado, passeava pelas montanhas ao norte de Vincenza quando quase foi jogado para fora da estrada por um carro que parecia estar sendo guiado por um bêbado. Passados alguns minutos, deparou com o mesmo carro, que havia se chocado com uma árvore ao lado da estrada e estava pegando fogo. Pucetti tirou o motorista do carro, queimando as mãos gravemente ao fazê-lo.
— Isso aconteceu fora da nossa jurisdição, portanto não podemos nem pensar numa promoção — acrescentou Patta, como esclarecimento, afastando a pasta e olhando para Brunetti. — Mas não foi por isso que eu o chamei aqui.
Se Patta estivera lendo suas outras recomendações, então Brunetti sabia o que estava por vir.
— Você não apenas deixou de recomendar que o tenente Scarpa fosse promovido, mas pediu sua transferência — disse, mal contendo sua raiva. Patta levara o tenente consigo ao ser transferido para Veneza alguns anos antes. Desde então, Scarpa era o assistente e espião do vice-questore.
— Sim, é isso mesmo.
— Isso eu não posso admitir.
— Não pode admitir o quê, vice-questore? Que o tenente seja transferido ou que eu o tenha sugerido?
— Os dois. Ambos.
Brunetti permaneceu em silêncio, esperando para ver até onde Patta iria em defesa de sua criatura.
— Você sabe que minha autoridade permite que eu recuse levar adiante essas recomendações, não sabe? Todas elas.
— Sim, eu sei.
— Então, antes que eu faça minhas próprias recomendações ao questore, sugiro que retire as observações que fez sobre o tenente. — Como Brunetti não disse nada, Patta perguntou: — O senhor me ouviu, commissario?
— Sim.
— E?
— A possibilidade de eu alterar minha opinião sobre o tenente é mínima e a de eu modificar minhas recomendações não existe.
— Você sabe que suas recomendações não vão dar em nada, não sabe? — Patta perguntou, pondo a pasta de lado, como se livrando do risco de contaminação.
— Mas serão registradas no arquivo dele — disse Brunetti, mesmo sabendo como era fácil fazer com que as coisas sumissem dos arquivos.
— Não vejo então qual seria o propósito disso.
— Eu gosto de história. Acho bom que as coisas sejam lembradas.
— No que se refere ao tenente Scarpa, a única coisa a ser recordada é que se trata de um excelente policial e um homem merecedor de minha confiança.
— Então talvez o senhor possa registrar isso, senhor, enquanto registrarei minha própria avaliação. E, assim, como sempre ocorre quando a história é lida, os futuros leitores determinarão quem estava com a razão.
— Não sei do que você está falando, Brunetti, sobre futuros leitores da história e coisas que precisam ser registradas. O que precisamos aqui é de confiança e apoio mútuos.
Brunetti não respondeu a isso, não querendo encorajar Patta em suas platitudes corriqueiras sobre a busca da justiça e o cumprimento da lei, duas coisas que Patta via como idênticas. Mas se havia algo de que o vice-questore não precisava era de encorajamento, e assim ele dedicou alguns minutos a esse assunto em particular, enquanto Brunetti pensava nas perguntas que faria a Maurizio Lorenzoni. Independentemente do resultado da autópsia, ele queria prosseguir em sua investigação do sequestro. O sobrinho, o garoto de ouro da família, parecia uma boa pessoa para a próxima tentativa.
A voz crescente de Patta interrompeu seus devaneios.
— Se o entedio, dottor Brunetti, basta me dizer que deixo o senhor sair.
Brunetti então se levantou, sorriu, sem dizer nada, e saiu do gabinete de Patta.
10
A primeira coisa que Brunetti fez ao retornar a seu gabinete foi abrir a janela e passar algum tempo olhando para o lugar em que o barco de Montisi costumava ficar ancorado. Só depois disso ele foi até a mesa para abrir o relatório da autópsia. Com o passar dos anos, Brunetti acabou se acostumando com o estilo idiossincrático desse tipo de relatório. A terminologia era toda médica, nomeando ossos, órgãos e tecidos de ligação; a gramática era quase que exclusivamente subjuntiva e condicional: “Se o corpo da vítima estivesse em boas condições de saúde”; “Se o corpo não tivesse sido movido”; “Se me fosse solicitada uma estimativa”.
Jovem, sexo masculino, provavelmente na faixa dos vinte anos, traços de trabalho dentário. Altura estimada de um metro e oitenta, peso de não mais que sessenta quilos. Provável causa da morte: uma bala no cérebro. Anexa, uma foto do buraco no crânio, com sua letalidade arredondada nem de longe diminuída pela pequenez. Um arranhão na superfície interna da cavidade do olho esquerdo pode ter sido causado pela saída da bala.
Aqui, Brunetti parou para refletir sobre a eterna cautela dos patologistas. Não importa que a vítima seja encontrada com uma adaga enterrada no coração, o relatório sempre dirá “Provável causa da morte...”. Ele lamentou não ter sido Ettore Rizzardi, o medico legale de Veneza, a realizar a autópsia: após anos trabalhando com ele, Brunetti normalmente conseguia obter de Rizzardi algo além da linguagem neutra e especulativa nos relatórios que ele escrevia, chegando até mesmo, em uma ou duas ocasiões, a levar o patologista a especular sobre a possibilidade de a causa da morte ser outra que não a sugerida pela autópsia.
Em razão de o trator haver deslocado alguns ossos e quebrado outros, não havia como determinar se o anel encontrado próximo ao corpo estava no dedo do falecido. Os primeiros policiais a chegarem ao local encontraram o anel, mas não assinalaram o exato ponto em que ele estava, entregando-o ao medico legale, o que tornou impossível mencionar sua posição em relação ao corpo, que também havia sido mexido após a chegada dos policiais.
Além de um par de sapatos de couro preto tamanho quarenta e dois e meias pretas, o homem vestia apenas uma calça de linho azul e uma camisa branca de algodão no momento em que foi enterrado. Brunetti lembrou que o inquérito policial mencionava que o garoto Lorenzoni vestia um paletó azul quando desapareceu. Devido às pesadas chuvas do outono e do inverno anteriores na província de Belluno e pela posição do terreno, no sopé de duas colinas, propício portanto a reter mais a água, a decomposição do tecido e da carne tinham sido mais rápidas que o normal.
Os órgãos recuperados ainda estavam sendo submetidos a exames toxicológicos, que ficariam prontos em uma semana, assim como os resultados de testes adicionais que estavam sendo feitos nos ossos. Embora os fragmentos de tecido pulmonar estivessem muito deteriorados para permitir uma conclusão confiável, dava para dizer que o corpo pertencera a um fumante inveterado. Brunetti lembrou o que a namorada de Roberto havia dito e ficou desolado pela inutilidade das autópsias. Havia um conjunto completo de radiografias dentais dentro de uma pasta transparente.
— Que seja o dentista, então — disse Brunetti em voz alta, e pegou o telefone.
Enquanto aguardava que atendessem, abriu sua cópia da pasta Lorenzoni e encontrou o número de telefone do conde Ludovico.
— Pronto — respondeu uma voz masculina ao terceiro toque.
— Conte Lorenzoni? — perguntou Brunetti.
— Signor Lorenzoni — corrigiu a voz, não dando nenhuma indicação se era o sobrinho ou se o conde estava sendo democrático.
— Signor Maurizio Lorenzoni? — perguntou Brunetti.
— Sim — e nada mais.
— Aqui quem fala é o commissario Guido Brunetti. Gostaria de ter uma conversa com o senhor ou com seu tio, se possível esta tarde.
— E sobre o que seria essa conversa, commissario?
— Sobre Roberto, seu primo.
Após uma longa pausa, Maurizio perguntou:
— Vocês o encontraram?
— Foi encontrado um corpo na província de Belluno.
— Belluno?
— Sim.
— E é de Roberto?
— Não sei, signor Lorenzoni. Pode ser: é o corpo de um jovem na casa dos vinte anos, com cerca de um metro e oitenta...
— Uma descrição que se aplica a metade dos jovens italianos — disse Lorenzoni.
— Um anel com o brasão dos Lorenzoni foi encontrado com ele — acrescentou Brunetti.
— O quê?
— Um anel com o selo do brasão familiar foi encontrado com ele.
— Quem o identificou?
— O medico legale.
— E ele tem certeza?
— Sim. A não ser que o brasão tenha mudado recentemente — acrescentou Brunetti elevando a voz.
A pergunta seguinte de Lorenzoni veio após outra longa pausa:
— E onde foi isso?
— Num lugar chamado Col di Cugnan, não muito distante de Belluno.
A pausa seguinte foi mais demorada. Então Lorenzoni perguntou, em um tom bem mais delicado:
— Podemos vê-lo?
Se a voz não tivesse ficado mais dócil, Brunetti teria respondido que não havia muito para ver. Em vez disso, ele disse:
— Temo que a identificação terá de ser feita por outros meios.
— E o que isso quer dizer?
— O corpo que foi encontrado esteve enterrado por algum tempo, o que o decompôs consideravelmente.
— Decompôs?
— Ajudaria muito se pudéssemos entrar em contato com o dentista dele. Há evidências de um trabalho ortodôntico considerável.
— Oh Dio — disse o jovem num murmúrio, e prosseguiu: — Roberto usou aparelho por anos.
— O senhor pode me dar o nome do dentista?
— Francesco Urbani. O consultório dele fica no Campo San Stefano. Todos nos consultamos com ele.
Brunetti escreveu o nome e o endereço.
— Obrigado, signor Lorenzoni.
— Quando vocês saberão? Devo dizer a meu tio? — E, depois de uma pausa, acrescentou, mas não em tom de interrogação: — E minha tia.
Brunetti apanhou os raios X emoldurados dos dentes. Ele podia encarregar Vianello de os levar ao dr. Urbani naquela tarde.
— Talvez eu possa lhe informar com mais precisão ainda hoje. E gostaria de falar com seu tio e sua tia, se for possível. Pode ser hoje à noite?
— Claro, claro — ele respondeu distraidamente. — Commissario, há alguma chance de não ser Roberto?
Essa possibilidade, se existiu de fato, parecia estar diminuindo cada vez mais conforme as peças de informação se juntavam.
— Me parece pouco provável, mas talvez seja melhor o senhor esperar até que falemos com o dentista antes de dizer a seu tio.
— Eu nem imagino como direi a ele — disse Lorenzoni. — E minha tia, minha tia.
Qualquer coisa que o dentista dissesse apenas confirmaria o que os instintos de Brunetti sabiam ser a verdade. Assim, ele decidiu ir conversar com os Lorenzoni, todos eles, e fazer isso o mais rápido possível.
— Se o senhor quiser, vou até aí e falo com eles.
— Sim, acho que é melhor assim. Mas e se o dentista disser que não é o Roberto?
— Sendo assim, ligarei para lhe informar. Pode ser neste número?
— Não, vou lhe dar o número do meu celular — ele respondeu, e Brunetti anotou.
— Estarei aí às sete — disse Brunetti, propositalmente não fazendo nenhuma menção ao que faria se os registros dentários não confirmassem nada.
— Certo. Às sete, então — disse Lorenzoni desligando o telefone sem se importar em dar o endereço ou informar como fazer para chegar até lá. Era de supor que em Veneza o nome seria o bastante.
Imediatamente, Brunetti ligou para o gabinete de Vianello e pediu que ele fosse pegar os raios X. Assim que o sargento entrou, Brunetti lhe passou o endereço do consultório do dr. Urbani e pediu que ele ligasse de lá para informar os resultados.
Como seria ter um filho sequestrado? E se a vítima tivesse sido Raffi, seu filho? Só de pensar nisso, o estômago de Brunetti embrulhou de medo e repulsa. Lembrou-se então da onda de sequestros que tomou conta do Vêneto durante os anos 1980 e da explosão dos negócios das firmas de segurança privada. A gangue por trás daqueles crimes fora desbaratada havia alguns anos, e seus líderes foram condenados à prisão perpétua. Com uma pontada de culpa, Brunetti se apanhou pensando que a pena não havia sido severa o suficiente para puni-los pelo que haviam feito, mas, já que a pena capital era um assunto controverso em sua própria família, ele interrompeu o raciocínio para evitar chegar às consequências lógicas de seu julgamento.
Ele precisava ver o muro para avaliar quão fácil seria pulá-lo, ou se haveria outro modo de se colocar a pedra atrás dos portões. Teria ainda de ligar para a polícia de Belluno e perguntar sobre as ocorrências de raptos na região, a qual ele sempre julgara ser a província com os índices mais reduzidos de criminalidade do país, mas talvez isso fosse a Itália de sua nostalgia. Já se havia passado um bom tempo, portanto os Lorenzoni talvez agora estivessem dispostos a dizer se tinham ou não conseguido juntar o dinheiro necessário para pagar o resgate. Caso tivessem conseguido, se chegaram a pagar o resgate e quando pagaram.
Seus anos de experiência alertaram-no para o fato de que ele estava assumindo a morte do rapaz sem a comprovação definitiva; e essa mesma experiência dizia a ele que a comprovação definitiva não era necessária aqui. Bastava a intuição.
Seus pensamentos passaram então à conversa que tivera com o conde Orazio e à relutância que teve em aceitar a intuição do sogro. No passado, Paola declarara por vezes que se sentia velha e que o melhor da vida havia passado, mas Brunetti sempre tinha conseguido fazer com que ela se livrasse desse tipo de pensamento. Ele não entendia nada de menopausa, ficando embaraçado à simples menção da palavra. Mas não seria isso um sinal de que estaria acontecendo algo parecido? Já não haviam ocorrido repentinas ondas de calor? Estranhas compulsões alimentares?
Ele percebeu que estava mesmo é torcendo para que fosse algo do tipo, algo físico, algo pelo qual ele não seria culpado de jeito algum e sobre o qual não poderia fazer nada. Em seus tempos de escola, Brunetti aprendeu com o padre que dava aula de religião que era preciso fazer um exame de consciência antes da confissão. O padre explicara que havia pecados por omissão e pecados por comissão, mas mesmo então Brunetti achava difícil distinguir entre os dois. Agora adulto, ele considerava a distinção ainda mais difícil de ser apreendida.
Apanhou-se pensando que devia levar flores a Paola, levá-la para jantar fora, perguntar sobre os trabalhos dela. Mas, no mesmo momento em que considerava tais gestos, percebeu como eles eram falsamente transparentes, até mesmo para si próprio. Se soubesse a origem da infelicidade dela, poderia ter alguma ideia sobre o que fazer a respeito.
Não podia ser nada em casa, onde ela continuava a ser tão explosiva como sempre. Tinha que ser coisa do trabalho então, e pelo que Paola vinha dizendo havia anos ele não achava mesmo que seria possível a alguém dotado de intelecto não ser levado ao desespero pelas políticas bizantinas da universidade. Acontece que a situação por lá normalmente a enraivecia, e ninguém se engajava em uma batalha com tanto entusiasmo quanto Paola. O que o conde disse foi que ela era infeliz.
Da felicidade da mulher, os pensamentos de Brunetti passaram para à sua própria, e ele se surpreendeu ao concluir que nunca antes lhe havia ocorrido refletir se era ou não feliz. Apaixonado pela mulher, orgulhoso dos filhos, capaz de fazer bem seu trabalho, por que iria ele se preocupar com a felicidade, e do que mais senão dessas coisas se constituía a felicidade? Todos os dias ele lidava com pessoas que achavam que não eram felizes e passaram então a acreditar que ao cometer algum crime — roubo, assassinato, fraude, chantagem, até mesmo sequestro — encontrariam o elixir mágico que transformaria a miséria que julgavam constituir suas vidas no mais desejado dos estados, a felicidade. Brunetti via-se frequentemente obrigado a examinar as consequências daqueles crimes, e o que via era sempre a destruição de toda a felicidade.
Paola sempre reclamava que ninguém a ouvia na universidade, que na verdade poucas pessoas se importavam em ouvir o que as outras tinham a dizer, mas Brunetti jamais se incluiu como parte dessa denúncia. E ele? Será que a ouvia? Quando ela discursava sobre a decrescente qualidade dos alunos e da ambição egoísta de seus colegas de profissão, será que ele lhe dedicava a devida atenção? Bastou considerar isso para o pensamento insidioso esgueirar-se em sua mente: e ela, será que dava ouvidos a ele quando reclamava de Patta ou das variadas incompetências que povoavam seu cotidiano? Com certeza as consequências do que ele presenciava eram bem mais graves do que as de algum estudante que não conseguia lembrar quem havia escrito Os noivos ou que não fazia ideia de quem tinha sido Aristóteles.
Repentinamente enjoado com a futilidade de todo esse exercício especulativo, ele se levantou e foi até a janela. O barco de Montisi estava de volta ao seu ancoradouro, mas nem sinal do piloto. Brunetti sabia que sua recusa em recomendar o tenente Scarpa para ser promovido custara a promoção de Montisi, mas a quase absoluta certeza de que o tenente tinha traído uma testemunha e causado assim sua morte tornava difícil considerá-lo um companheiro e impossível deixar um registro como o avalista de tal comportamento. Lamentou que o custo de seu desprezo por Scarpa tivesse de ser pago por Montisi, mas não conseguia vislumbrar nenhum meio de evitar isso.
Voltou a pensar em Paola, mas afastou o pensamento de si e saiu da janela, encaminhando-se ao andar de baixo, ao gabinete da signorina Elettra, dizendo-lhe ao entrar:
— Signorina, acho que está na hora de examinar novamente o caso Lorenzoni.
— Então era mesmo o garoto? — ela perguntou, erguendo os olhos do teclado.
— Estou convencido disso, mas aguardo o telefonema de Vianello. Ele está conferindo os registros dentários.
— Pobre mãe — disse Elettra, acrescentando em seguida: — Será que ela é religiosa?
— Por quê?
— Isso ajuda quando acontecem coisas terríveis, quando as pessoas morrem.
— A senhora é?
— Per carità — ela disse, afastando a ideia em direção a ele com as duas mãos levantadas. — A última vez que estive em uma igreja foi na minha crisma. Meus pais teriam ficado chateados se eu não tivesse feito, e foi assim também com meus amigos. Mas desde então jamais voltei a me envolver com a Igreja.
— Então por que a senhorita diz que a religião ajuda as pessoas?
— Porque é verdade — ela disse, simplesmente. — O fato de eu não acreditar não a impede de ajudar outras pessoas. Eu seria uma tola se o negasse.
E de tola a signorina Elettra não tinha nada, isso ele sabia bem.
— E quanto aos Lorenzoni? — Brunetti perguntou, e, antes que ela lhe pedisse, ele explicou o que queria saber. — Não, eu não estou interessado em suas convicções religiosas. Gostaria apenas de saber tudo o que puder sobre eles: casamento, negócios, onde ficam as residências, quem são os amigos, o nome do advogado.
— Acho que a maior parte dessas informações pode ser encontrada no Il Gazzetino — ela disse. — Posso ver o que há nos arquivos.
— E a senhorita pode fazer isso sem deixar pistas, como se não tivesse feito? — ele perguntou, embora não soubesse bem ao certo por que não queria que percebessem que ele estava investigando a família.
— Serei tão leve quanto um gato — ela disse, como se deleitada ou orgulhosa, e apontou para o teclado de seu computador.
— Com isso? — perguntou Brunetti.
Ela sorriu.
— Está tudo aqui.
— Como o quê?
— Se algum deles já teve algum problema conosco — ela respondeu, e ele se perguntou se ela percebia que tinha usado aquele pronome de maneira inconsciente.
— Claro. Eu não havia pensado nisso.
— Por ele ser um nobre? — ela perguntou, com a sobrancelha lá no alto e um sorriso nos lábios.
Reconhecendo a verdade em suas palavras, Brunetti negou em silêncio, balançando a cabeça.
— É que não me lembro de ter ouvido o nome deles envolvido em nada, com exceção do sequestro, claro. A senhorita sabe de algo sobre eles?
— O que sei é que Maurizio tem um temperamento que vez ou outra causa prejuízo a outras pessoas.
— E o que isso quer dizer?
— Que não gosta de ser contrariado e que quando não consegue o que quer ele se comporta de modo desagradável.
— E como a senhorita sabe disso?
— Do mesmo jeito que sei muitas coisas sobre o estado físico dos habitantes da cidade.
— Barbara?
— Sim. E não por ser ela a médica envolvida, pois nesse caso não creio que ela me diria algo. Mas, outro dia, ela foi jantar com outro médico, o que a substitui quando tira férias, e ele disse que atendera uma paciente cuja mão fora quebrada por Maurizio Lorenzoni.
— Ele quebrou a mão dela? Como?
— Batendo a porta do carro nela.
Brunetti levantou as sobrancelhas.
— Agora entendi o que a senhorita quis dizer com “desagradável”.
Ela anuiu.
— Não, não foi tão ruim quanto parece, de verdade. A própria garota disse que ele não fez de propósito. Eles tiveram uma briga. Parece que tinham ido jantar em algum lugar no continente e ele a convidou para ir até a villa, a mesma em que Roberto foi sequestrado. Ela não quis ir e pediu para ele levá-la de volta a Veneza. Ele ficou muito nervoso, mas a levou de volta. Quando chegaram ao estacionamento da Piazzale Roma, outro carro tinha estacionado mal, invadindo parte da vaga, e ele foi obrigado a estacionar bem rente à parede, o que a obrigou a ter de sair pelo lado do motorista. Mas ele nem notou o movimento dela e bateu a porta no exato momento em que a moça estava pondo a mão no apoio para pegar o impulso para sair.
— Ela estava certa de que ele não a tinha visto?
— Sim. Na verdade, quando ele ouviu o grito e percebeu o que tinha feito, ficou transtornado, chegando quase às lágrimas. Pelo menos foi isso que ela disse para o amigo da Barbara. Ele a levou para a saída de baixo do estacionamento, chamou um táxi aquático e a levou para o pronto soccorso do hospital municipal, e no dia seguinte levou-a de carro para uma consulta com um especialista em Udine, que consertou a mão dela.
— E por que ela teve que ir a esse outro médico?
— Ela teve algum tipo de infecção sob o gesso. Ele a estava atendendo por isso. E claro que ele perguntou a ela como tinha quebrado a mão.
— E foi essa a história que ela contou?
— Foi o que ele disse. Parece que ele achou que ela estava contando a verdade.
— Ela chegou a processar Maurizio por danos físicos?
— Não, não que eu saiba.
— E a senhorita sabe o nome dela?
— Não, mas posso perguntar ao amigo de Barbara.
— Pergunte, por favor. E veja o que mais pode descobrir sobre todos eles.
— Somente coisas relacionadas a crimes, commissario?
O impulso inicial de Brunetti foi de concordar, mas refletiu então sobre a aparente contradição demonstrada por Maurizio, primeiro tomado de fúria pela recusa de uma mulher a um convite seu, mas sendo depois levado às lágrimas à visão de sua mão quebrada. Começou a ficar curioso quanto às outras contradições que poderiam estar ocultas no seio dos Lorenzoni.
— Não, vamos ver o que podemos encontrar sobre eles, qualquer coisa.
— Está bem, dottore — ela disse, girando sua cadeira para pousar as mãos sobre o teclado do computador. — Vou começar pela Interpol, depois verei o que temos nas páginas do Il Gazzettino.
Brunetti fez um gesto em direção ao computador.
— A senhorita pode mesmo obter tudo com isso em vez de pelo telefone?
Ela olhou para ele com infinita paciência, exatamente o tipo de olhar que o professor de química de Brunetti costumava lhe dirigir após uma experiência fracassada.
— As únicas pessoas que telefonam para mim hoje em dia são as que fazem trotes obscenos.
— E todo mundo usa um desses hoje em dia? — ele disse, apontando para a pequena caixa em sua mesa.
— O nome disso é modem, senhor.
— Ah, é isso mesmo, eu me lembro. Bem, veja o que ele pode lhe dizer sobre os Lorenzoni.
Antes que a signorina Elettra, novamente espantada com a ignorância dele, pudesse começar a explicar o que exatamente era um modem e como funcionava, Brunetti deu meia-volta e saiu do gabinete. Nenhum deles considerou sua saída precipitada uma oportunidade perdida para o avanço da compreensão humana.
11
Ao voltar a seu gabinete, o telefone tocava, e ele acelerou o passo para atender. Antes mesmo que pudesse dizer seu nome, Vianello anunciou:
— É o Lorenzoni.
— Os raios X combinam?
— Sim, perfeitamente.
Embora Brunetti já esperasse por isso, percebeu que sua mente estava assimilando a confirmação. Uma coisa era dizer a alguém que tudo indicava que o corpo de seu primo havia sido encontrado; outra enormemente diferente era contar aos pais que seu único filho estava morto. Seu único filho. “Gesù, pietà”, ele sussurrou, e então, em voz mais alta, perguntou a Vianello:
— E o dentista? Fez algum comentário sobre o garoto?
— Nada de forma direta, mas pareceu triste ao saber que estava morto. Eu diria que gostava dele.
— E o que o faz tirar essa conclusão?
— Foi o jeito como falou dele. Afinal, o garoto foi seu paciente por anos, desde que tinha catorze anos. De certo modo, o dentista o viu crescer. — Como Brunetti não disse nada, Vianello continuou: — Ainda estou no consultório. O senhor quer que eu pergunte mais alguma coisa?
— Não, não, não precisa se incomodar, Vianello. É melhor voltar para cá. Eu quero que você vá até Belluno amanhã pela manhã, e é preciso que você leia todo o arquivo do caso antes disso.
— Sim, senhor — disse Vianello, e, sem mais, desligou.
Vinte e um anos e morto com uma bala no cérebro. Aos vinte e um anos a vida não foi vivida, sequer chegou a começar; a pessoa que começaria a emergir do casulo da juventude estava ainda inteiramente em hibernação. E o garoto estava morto. Brunetti pensou na enorme riqueza de seu próprio sogro e de novo lembrou que aquilo poderia facilmente ter acontecido com o neto dele, Raffi, que poderia ter sido sequestrado e assassinado. Ou mesmo sua neta. A existência dessa possibilidade fez com que saísse do gabinete, da questura, e se dirigisse à sua casa, tomado de uma preocupação irracional pela segurança de sua família: como são Tomé, ele só acreditaria no que suas mãos podiam tocar.
Embora não percebesse que subia as escadas mais rápido que o usual, ficou tão sem fôlego ao chegar ao começo do último lance de escadas que teve que se encostar à parede por um minuto até sua respiração voltar ao normal. Depois, forçou o passo para subir os últimos degraus, apanhando as chaves no bolso enquanto subia.
Entrou e ficou ali parado, apurando os ouvidos para ver se conseguia localizar os três e saber que estavam a salvo entre as paredes que ele lhes havia dado. Da cozinha ouviu o som de um metal caindo no chão, seguido da voz de Paola:
— Não tem problema, Chiara. É só lavar e pôr de novo na pia.
Ele voltou sua atenção para os fundos do apartamento, na direção do quarto de Raffi, e vindo de lá ouviu o baixo pesado de um ruído assustador, o som do que os jovens chamavam de música. Nunca a melodia — ele não identificava nenhuma ali — tivera um som mais agradável.
Pendurando o casaco no aparador do vestíbulo, ele percorreu o longo corredor que levava à cozinha. Chiara se voltou para ele enquanto entrava.
— Ciao, papà. Mamma está me ensinando a fazer ravióli. É o que vamos ter para hoje à noite. — Com as mãos cheias de farinha cruzadas às suas costas, ela deu alguns passos em sua direção. Ele se agachou, ela o beijou nas duas bochechas e ele limpou a bochecha esquerda dela, que estava suja de farinha. — Recheado com funghi, não é, mamma? — ela perguntou, olhando para Paola, que, em frente ao fogão, mexendo os cogumelos em uma grande frigideira, concordou, balançando a cabeça sem parar o que estava fazendo.
Numa mesa atrás deles repousavam alguns montinhos irregulares de pálidos retângulos de formas estranhas.
— São esses os raviólis? — ele perguntou, lembrando-se da geometria precisa dos quadrados que sua mãe costumava cortar e rechear.
— Serão, papà, assim que a gente rechear. — A filha se voltou para Paola para que a mãe confirmasse. — Não é mesmo, mamma?
Paola confirmou com um aceno, sem parar de mexer, e ofereceu o rosto para os beijos de Brunetti sem dizer nada.
— Não é, mamma? — repetiu Chiara, em um tom um pouco mais elevado.
— Sim. Mais alguns minutos para os cogumelos e podemos começar a recheá-los.
— A senhora disse que eu mesma poderia fazer isso, mamma — insistiu Chiara.
Antes que a filha pudesse se voltar para Brunetti para que ele fosse testemunha dessa injustiça, Paola cedeu.
— Só se o seu pai me servir uma taça de vinho enquanto termino os cogumelos.
— Você quer que eu te ajude a rechear? — perguntou Brunetti, em parte brincando.
— Ah, papà, não seja bobo. O senhor sabe que ia fazer uma bagunça.
— Não fale desse jeito com seu pai — disse Paola.
— De que jeito?
— Desse jeito.
— Não entendi.
— Entendeu, sim.
— Branco ou tinto, Paola? — interrompeu Brunetti. Ele passou por Chiara e, ao ver que a mulher tinha voltado a se concentrar no fogão, estreitou os olhos para Chiara, balançou discretamente a cabeça e apontou com o queixo para Paola.
Chiara fez bico, deu de ombros, mas por fim assentiu.
— Está bem, papà, se o senhor quiser, pode fazer. — Então, após uma pausa relutantemente longa: — E a mamma, se ela quiser.
— Tinto — disse Paola, e mexeu os cogumelos na frigideira.
Brunetti passou por ela e parou para abrir o armário sob a pia.
— Cabernet?
— Hã-hã — concordou Paola.
Ele abriu o vinho e serviu duas taças. Quando ela esticou o braço para pegar a sua, ele pegou a mão dela, levando a palma aos lábios e beijando-a. Surpresa, ela o encarou.
— E posso saber o porquê disso? — ela perguntou.
— Porque eu te amo de todo o meu coração — ele disse enquanto lhe passava a taça.
— Ah, papà — Chiara resmungou. — Só os artistas de cinema falam desse jeito.
— Você sabe que seu pai não costuma ir ao cinema — disse Paola.
— Então ele leu isso em algum livro — disse Chiara, já perdendo o mínimo interesse que pudesse ter manifestado pelas coisas que os adultos dizem uns aos outros. — E os cogumelos, ainda não estão prontos?
Feliz pela distração propiciada pela impaciência da filha, Paola disse:
— Só mais um minuto. Mas a senhorita vai ter que esperar eles esfriarem.
— E quanto tempo isso vai levar?
— Dez ou quinze minutos.
Brunetti ficou por ali, de costas para elas, olhando pela janela na direção das montanhas ao norte de Veneza.
— Posso sair então e voltar quando estiver na hora de aprontar tudo?
— Claro.
Ele ouviu Chiara sair da cozinha e ir para seu quarto pelo corredor.
— Por que você disse aquilo? — Paola perguntou quando a filha saiu.
— Porque é verdade — respondeu Brunetti, ainda olhando pela janela.
— Mas por que agora?
— Porque eu nunca digo.
Ele bebericou seu vinho. Passou-lhe pela cabeça perguntar a ela se não acreditava nele ou se não gostara de ter ouvido aquilo, mas preferiu não dizer nada e tomou mais um gole do vinho.
Antes que pudesse ouvi-la se movendo, sentiu que Paola se punha ao seu lado. Ela o enlaçou pela cintura com o braço esquerdo e se aconchegou a ele. Sem dizer nada, ficou ali a seu lado, olhando pela janela com ele.
— Não consigo lembrar a última vez em que o céu esteve tão aberto. Você acha que aquele ali é o Nevegal? — ela perguntou, erguendo a mão direita e apontando a montanha mais próxima.
— Fica perto de Belluno, não é? — ele perguntou.
— Acho que sim. Por quê?
— Talvez eu tenha que ir até lá amanhã.
— Para quê?
— Encontraram o corpo do garoto Lorenzoni. Um pouco para lá de Belluno.
Ela demorou um pouco para dizer algo.
— Ah, o pobre rapaz. E os pais dele. Terrível. — Após outra longa pausa, ela perguntou: — E eles já sabem?
— Não, e agora serei eu a lhes dizer. Antes do jantar.
— Ah, Guido, por que é sempre você que tem que fazer essas coisas desagradáveis?
— Se outros não fizessem coisas desagradáveis eu não teria de fazer isso, Paola.
Por um momento, ele temeu que ela fosse ficar ofendida com a resposta, mas ela a ignorou e se aconchegou a ele ainda mais.
— Não conheço nenhum deles, mas fico triste por eles. Que coisa horrível de acontecer. — Ele sentiu que ela ficava mais tensa com o pensamento de que aquilo poderia ter acontecido com seu bebê, com seu filho. O filho deles. — Que triste. Que triste fazer algo assim. Como alguém pode fazer isso?
Ele não tinha resposta para isso, assim como não tinha resposta para nenhuma das grandes questões sobre as motivações das pessoas que cometiam crimes ou violências umas contra as outras. As respostas que ele tinha eram apenas para as questões mais simples.
— Por dinheiro. Eles fazem isso por dinheiro.
— Pior ainda — ela respondeu de pronto. — Ah, espero que os peguem. — E então, ao lembrar-se, ela disse: — Espero que você os pegue.
Era o que ele também esperava, concluiu, surpreso pela força de seu desejo de encontrar as pessoas que haviam feito aquilo. Mas ele não queria, não agora, falar sobre esse assunto; em vez disso, queria responder à pergunta que ela fizera sobre o porquê de ele falar que a amava. Ele não era um homem acostumado a falar de suas emoções, mas ele queria dizer a ela, ligá-la a ele novamente com a força de suas palavras e de seu amor.
— Paola — ele começou, mas antes que pudesse acrescentar algo, ela se desvencilhou bruscamente dele, silenciando-o com o movimento.
— Os cogumelos — ela disse, tirando a frigideira do fogo com uma das mãos e abrindo a janela com a outra. E a conversa sobre o amor, assim como os cogumelos, esvaneceu em fumaça.
12
Quando terminou o vinho, Brunetti foi até o quarto de Raffi e bateu à porta. Não ouvindo nada senão o contínuo tum tum tum da música que vinha de dentro, ele mesmo abriu a porta. Raffi estava deitado em sua cama, um livro aberto em seu peito, dormindo profundamente. Pensando em Paola, Chiara, nos vizinhos e na sanidade humana, Brunetti foi até o pequeno aparelho de som na estante de Raffi e abaixou o volume. Olhou então para o filho, que não se moveu, e abaixou ainda mais o volume. Aproximando-se da cama, deu uma espiada no título do livro: Calculus. Não admirava que o menino dormisse.
Chiara estava na cozinha, praguejando contra os pedaços de ravióli que se recusavam a manter a forma que ela lhes dera. Ele se despediu dela e foi pelo corredor até o escritório de Paola. Colocando somente a cabeça para dentro, disse:
— Se for preciso, sempre temos a opção de ir ao Gianni’s comer uma pizza.
Ela o encarou por cima dos seus papéis.
— Não importa o que ela fez àqueles pobres raviólis, nós vamos comer cada um dos que puser em nossos pratos e vamos pedir para repetir. — E, antes que ele pudesse reclamar, ela o interrompeu, apontando ameaçadoramente com uma caneta. — É o primeiro jantar que ela preparou sozinha, e vai ser maravilhoso. — Ela percebeu que Brunetti ia começar a falar e interrompeu novamente: — Cogumelos queimados, massa que terá a consistência de cola de papel de parede e um frango que ela decidiu marinar em shoyu e que por isso vai ter a salinidade do Mar Morto.
— Você consegue tornar o jantar convidativo. — Bem, Brunetti pensou, pelo menos a filha não pode fazer nada com o vinho. — E quanto ao Raffi? Como é que você vai convencê-lo a comer aquilo?
— Você acha que ele não ama a irmãzinha? — ela perguntou com o tom de falsa indignação que ele conhecia tão bem.
Brunetti não disse nada.
— Está bem — Paola confessou. — Eu prometi que lhe daria dez mil liras se ele comesse tudo.
— Eu vou receber também? — perguntou Brunetti, e saiu.
Enquanto ia caminhando pela Rughetta na direção do Rialto, ele percebeu que se sentia bem melhor do que vinha se sentindo desde o almoço com o sogro. Embora ainda não tivesse a mínima ideia do que poderia estar incomodando Paola, a afetuosidade desse seu último contato o convenceu de que, fosse o que fosse, o substrato de seu matrimônio perduraria. Ele andou para cima e para baixo pelas pontes, assim como seu estado de espírito foi para cima e para baixo o dia todo, primeiro com a excitação de um novo caso, depois frente à incômoda revelação feita pelo conde, e por fim com a confissão de Paola, que admitiu ter subornado o filho.
Para encarar o encontro com os Lorenzoni, ele só tinha diante de si a esperança do jantar que o aguardava na volta e em como devoraria voluntariamente os jantares de Chiara por um mês ou mais se pudesse com isso evitar ser novamente o portador de dor e miséria.
O palazzo ficava perto do municipio, mas ele tinha que fazer um desvio depois do cinema Rossini e dali voltar um pedaço pelo Grand Canal para chegar até lá. Na Ponte del Teatro ele deu uma paradinha a fim de avaliar os alicerces restaurados dos prédios que margeavam o canal dos dois lados. Em seus tempos de menino, os canais eram constantemente submetidos a um processo de limpeza, suas águas sendo conservadas tão cristalinas que as pessoas podiam nadar nelas. Hoje, a limpeza de um canal era um evento portentoso, tão raro que chegava às manchetes dos jornais e gerava elogios à boa administração da cidade. O contato com suas águas, porém, era uma experiência que a maioria das pessoas preferiria não ter.
Ao encontrar o palazzo, um majestoso prédio de quatro pavimentos cujas janelas frontais projetavam-se sobre o Grand Canal, ele tocou a campainha, esperou por um minuto e tocou novamente. Uma voz masculina perguntou pelo transmissor:
— Commissario Brunetti?
— Ele.
— Entre, por favor — disse a voz, e a porta se abriu com um clique. Brunetti entrou e se viu em um jardim de tamanho bem maior que o que ele esperaria encontrar nessa parte da cidade. Somente os muito ricos poderiam se dar ao luxo de rodear seu palazzo com tanto espaço aberto, e apenas descendentes de igual riqueza poderiam continuar a mantê-lo.
— Aqui em cima — chamou uma voz de uma porta no topo de um lance de escadas à esquerda de Brunetti, que foi em sua direção e começou a subir. No alto, aguardava-o um jovem em um paletó azul. Seus cabelos eram castanho-escuros, e ele tinha uma vultosa entrada que procurava disfarçar penteando-os de forma a cobrir a testa. Quando Brunetti se aproximou, ele estendeu a mão, apresentando-se: — Boa noite, commissario. Maurizio Lorenzoni. Meu tio e minha tia o aguardam. — Seu aperto era do tipo flácido, que sempre despertava em Brunetti a vontade de limpar a palma da própria mão nas calças, o que não fez devido ao olhar do jovem, que era direto e franco. — O senhor falou com o dottore Urbani? — ele perguntou, no tom mais asséptico que Brunetti poderia imaginar.
— Sim, falamos, e infelizmente foi confirmada a identificação. É seu primo, Roberto.
— Sem dúvida nenhuma? — ele perguntou, num tom de quem já sabia a resposta.
— Sem dúvida nenhuma.
O jovem afundou os punhos nos bolsos do paletó, pressionando-os para baixo e com isso apertando-o contra seus ombros.
— Isso vai matá-los. Não sei o que minha tia vai fazer.
— Lamento — disse Brunetti com sinceridade. — Não seria melhor se o senhor contasse a eles?
— Não acho que eu consiga fazer isso — respondeu Maurizio com os olhos no chão.
Em todos os anos em que vinha sendo o portador de notícias como essa, Brunetti jamais havia encontrado alguém que se dispusesse a fazê-lo por ele.
— Eles sabem que estou aqui? Sabem quem eu sou?
O jovem assentiu e ergueu os olhos.
— Tive que contar a eles, de modo que sabem o que esperar. Mas é...
Brunetti terminou a frase por ele.
— É diferente esperar por algo e vê-lo confirmado. É melhor o senhor me levar até eles.
O rapaz deu meia-volta e conduziu Brunetti ao interior do prédio, deixando a porta às suas costas aberta. Brunetti deu um passo atrás e a fechou, mas o jovem não percebeu. Ele levou Brunetti através de um corredor forrado de mármore até um conjunto imenso de portas de nogueira. Sem bater, ele as empurrou, ficando de lado para permitir que o commissario entrasse no aposento antes dele.
Brunetti reconheceu o conde pelas fotos que havia visto: o cabelo grisalho, a postura ereta e o queixo quadrado que ele já devia estar cansado de ouvir que era parecido com o de Mussolini. Mesmo sabendo que o conde já estava pelo fim dos seus cinquenta anos, o ar de vibrante masculinidade que dele emanava dava a impressão de um homem quase dez anos mais novo. Ele estava de pé em frente a uma enorme lareira, os olhos fixos no feixe de flores secas que a adornavam, mas se voltou na direção de Brunetti assim que o commissario entrou.
Reduzida pelo tamanho da poltrona em que estava encolhida, uma mulher com cara de pardal encarava Brunetti como se ele fosse o demônio que vinha cobrar sua alma. E de fato ele era, pensou Brunetti, tomado de súbita piedade à visão das magras mãos pousadas nervosamente em seu colo. Embora a condessa fosse mais nova que o marido, o sofrimento dos últimos dois anos tinha drenado toda a sua juventude e esperança, deixando em seu lugar uma velha que poderia mais facilmente ser tomada como a mãe do conde que como sua mulher. Brunetti sabia que ela tinha sido considerada dona de uma das maiores belezas da cidade e, por certo, os ossos de seu rosto continuavam a dar mostras dessa perfeição. Mas não havia muito mais que ossos a se apreciar naquele rosto.
Antes mesmo que o marido pudesse falar, ela perguntou, em uma voz tão tênue que teria se perdido naquele aposento se não tivesse sido o único som a ser emitido ali.
— É o senhor o policial?
— Sim, contessa, sou eu.
Nesse momento, o conde veio da lareira e estendeu sua mão a Brunetti. Seu aperto era tão firme quanto o do sobrinho era flácido e comprimiu os dedos de Brunetti uns contra os outros.
— Boa noite, commissario. Perdoe-me se não lhe ofereço nada para beber. Acho que o senhor entenderá. — Sua voz era profunda, mas surpreendentemente suave, quase tanto quanto a de sua mulher.
— Venho lhe dar a pior das notícias, signor conte — disse Brunetti.
— Roberto?
— Sim. Ele está morto. Seu corpo foi encontrado perto de Belluno.
Do outro lado do aposento, a mãe perguntou:
— O senhor tem certeza?
Brunetti olhou para ela e se surpreendeu ao perceber que parecia ter ficado bem menor nesses poucos instantes que haviam passado, ainda mais afundada entre os dois altos braços da poltrona.
— Sim, contessa, mostramos os raios X de seus dentes a seu dentista, e ele confirmou que são mesmo os de Roberto.
— Raios X? — ela perguntou. — E seu corpo? Ninguém o identificou?
— Cornelia — disse o marido delicadamente —, deixe que ele termine. Depois faremos as perguntas.
— Quero saber sobre o corpo, Ludovico. Quero saber sobre meu bebê.
Brunetti voltou sua atenção para o conde, procurando saber se deveria continuar e como. Ele fez um aceno ao commissario, que prosseguiu.
— Ele foi enterrado em um terreno. Aparentemente por um bom tempo, mais de um ano. — Brunetti fez uma pausa, esperando que eles entendessem o que acontece com um corpo que passa um ano debaixo da terra desobrigando-o assim de ter que explicar a eles.
— Mas por que os raios X? — insistiu a contessa. À semelhança das muitas outras pessoas que Brunetti havia encontrado sob as mesmas circunstâncias, havia coisas que ela não queria entender.
Antes que Brunetti pudesse falar do anel, o conde o interrompeu, encarando a mulher.
— Porque o corpo estava deteriorado, Cornelia, e eles só podiam identificá-lo dessa maneira.
Brunetti, que observava a condessa enquanto o marido falava, viu o exato instante em que a explicação penetrou quaisquer defesas que ela ainda tivesse. Talvez tenha sido o uso da palavra “deteriorado”; seja como for, assim que entendeu, ela recostou a cabeça no espaldar da poltrona e fechou os olhos. Os lábios dela se moveram, em oração ou protesto. Brunetti sabia que a polícia de Belluno lhes restituiria o anel e se poupou, portanto, da dor de ter de lhes contar essa parte.
O conde voltou as costas para Brunetti e redirecionou sua atenção para as flores na lareira. Por um bom tempo, ninguém no aposento disse nada, até que por fim o conde perguntou, sem olhar para Brunetti.
— Como devemos proceder para tê-lo de volta?
— O senhor terá de contatar as autoridades de Belluno, mas estou certo de que eles farão o que o senhor quiser.
— E como faço para entrar em contato com eles?
— Se ligar para a questura de Belluno — Brunetti começou a explicar, mas então se ofereceu. — Posso fazer isso pelo senhor. Talvez seja mais fácil assim.
Maurizio, que esteve quieto durante todo o tempo, interrompeu, dirigindo-se ao conde.
— Eu cuidarei disso, zio. — E, ao cruzar o olhar com Brunetti, indicou-lhe a porta com um aceno, mas o commissario o ignorou.
— Signor conte, assim que for possível eu gostaria de conversar sobre o sequestro.
— Não agora — disse o conde, continuando a não olhar para ele.
— Compreendo como isso tudo é horrível, senhor — disse Brunetti —, mas vou precisar falar com o senhor.
— O senhor falará comigo quando eu quiser, commissario, e não antes disso — disse o conde, continuando a não se importar em desviar seu olhar da contemplação das flores.
No silêncio que se seguiu a isso, Maurizio saiu da porta e foi até a poltrona da tia. Ali, ele se agachou e pousou brevemente uma mão em seu ombro. Sem rodeios, ele disse a Brunetti:
— Vou acompanhá-lo até a saída, commissario.
Brunetti o seguiu, deixando o aposento. No corredor, ele disse ao jovem como proceder para contatar o pessoal de Belluno responsável por liberar o corpo de Roberto e encaminhá-lo de volta a Veneza. O commissario não perguntou quando poderia falar de novo com o conde Ludovico.
13
O jantar, quando por fim eles se sentaram para comer, conseguiu superar todas as expectativas, que, verdade seja dita, ele suportou com um estoicismo digno dos escritores romanos de sua preferência. Ele não só pediu para repetir, como comeu mesmo uma segunda porção de ravióli, afundado em algo que ele julgava ter sido outrora manteiga, com folhas queimadas de sálvia misturadas no meio. O frango estava tão salgado quanto previsto, tanto que ele teve que abrir uma terceira garrafa de água mineral antes que o jantar acabasse. Pelo menos dessa vez Paola não reclamou quando ele abriu uma segunda garrafa de vinho e até mesmo se serviu de uma dose bem mais generosa para ajudar a dar cabo dela.
— E qual vai ser a sobremesa? — ele perguntou, provocando a mais terna expressão que vira no rosto de Paola em semanas.
— Não deu tempo de fazer nada — disse Chiara, sem perceber os olhares trocados pelas outras três pessoas à mesa. E os sobreviventes dos Andes trocaram olhares de satisfação ao ouvir os primeiros chamados dos homens que chegavam para resgatá-los.
— Acho que ainda tem um pouco de gelato — Raffi sugeriu, cumprindo com galhardia sua parte negociada com a mãe.
— Não tem mais não, eu comi o resto hoje de manhã — confessou Chiara.
— Por que vocês dois não vão até o Campo Santa Margarita para comprar mais? — sugeriu Paola.
— Mas e a louça, mamma? — perguntou Chiara. — A senhora disse que como eu tinha cozinhado era o Raffi que ia lavar os pratos.
Antes mesmo que Raffi pudesse protestar, Paola disse:
— Se você e seu irmão forem buscar o sorvete eu lavo a louça.
Entre gritos de aceitação, Brunetti sacou a carteira e deu a Raffi vinte mil liras. E os irmãos saíram, já discutindo que sabores comprariam.
Paola levantou da mesa e começou a juntar os pratos.
— E aí? Você vai sobreviver? — ela perguntou.
— Se eu puder tomar outro litro de água antes de irmos para a cama e deixar uma garrafa à cabeceira durante a noite.
— Que fria, não? — Paola admitiu.
— Ela ficou feliz — Brunetti concluiu. E depois acrescentou: — Mas foi realmente um argumento a mais em defesa da liberação das mulheres, não foi?
Paola deu uma gargalhada ao ouvir isso e colocou os pratos na pia. Com calma, então, eles discutiram o jantar, ambos sentindo-se felizes com o fato de Chiara ter ficado tão satisfeita consigo própria, prova suficiente do sucesso do engodo familiar. E, Brunetti se apanhou a pensar, do amor familiar.
Quando terminaram com os pratos e os puseram sobre a pia para secar, ele disse:
— Devo ir a Belluno com Vianello amanhã.
— O garoto Lorenzoni?
— Sim.
— Como é que eles reagiram quando você contou?
— Mal, principalmente a mãe.
Ele percebeu que a perda de um filho único pela mãe não era algo em que Paola queria pensar. Como de costume, ela se apegou a detalhes para desviar do assunto.
— Onde o encontraram?
— Num terreno.
— Um terreno? Onde?
— Em um daqueles lugares com nomes bellunese esquisitos. Col di Cugnan, eu acho.
— Mas como foi que o encontraram?
— Um camponês estava arando o terreno e expôs os ossos.
— Deus do céu, que coisa horrível — ela disse, e logo acrescentou: — E foi você que teve de dizer a eles, e depois disso ainda voltou para casa para esse jantar horrível.
Ele não conseguiu conter o riso frente a essa relação.
— Qual foi a graça?
— É que você só pensa em comida.
— Isso eu peguei de você, meu querido — ela disse, em um tom de polida negação. — Antes de te conhecer eu não dava a mínima para a comida.
— Então como é que você aprendeu a cozinhar tão bem?
Ela encerrou o assunto com um aceno, mas ele detectou tanto embaraço quanto um desejo de ter a verdade arrancada dela, o que o fez insistir.
— Não, agora você tem que me dizer: como é que você aprendeu a cozinhar? Segundo me consta, você cozinha há anos.
Falando bem rápido, ela disse:
— Eu comprei um livro de receitas.
— Um livro de receitas? Você? Por quê?
— Quando percebi que gostava muito mesmo de você e vi a importância que dava para a comida, decidi que era melhor aprender a cozinhar. — Ela olhou para o marido, esperando algum comentário, mas, como ele não disse nada, ela prosseguiu. — Comecei a cozinhar em casa e, pode acreditar, algumas das primeiras coisas que fiz foram piores que o que comemos esta noite.
— Difícil de acreditar — disse Brunetti. — Prossiga.
— Bem, eu sabia que gostava de você, e acho que eu sabia que queria ficar com você. De modo que me empenhei e acho que acabei...
Ela interrompeu a si própria para fazer um gesto que abarcava toda a cozinha.
— Acho que aprendi.
— De um livro?
— E com alguma ajuda.
— De quem?
— Damiano. Ele é um bom cozinheiro. E com minha mãe. Depois, quando ficamos noivos, com a sua.
— Minha mãe? Ela te ensinou a cozinhar? — Paola confirmou e Brunetti disse: — Mas ela nunca me disse.
— Eu a fiz prometer que não diria.
— Por quê?
— Sei lá, Guido — ela respondeu, uma mentira óbvia. Ele não disse nada, sabendo de longa experiência que a explicação viria a seguir. — Acho que eu queria que você pensasse que eu era capaz de tudo, inclusive de cozinhar.
Ele se encostou na cadeira e pegou a mulher pela cintura, puxando-a para si. Ela tentou se livrar sem muita convicção.
— Sinto-me tão tola contando tudo isso depois de tanto tempo — ela disse, aninhando-se contra ele, abaixando-se para beijar o topo de sua cabeça. De repente, ela se lembrou de algo e disse: — Minha mãe a conhece.
— Quem?
— A condessa Lorenzoni. Acho que elas fazem parte do conselho de alguma instituição de caridade... — Paola se levantou. — Não consigo lembrar qual, mas sei que elas se conhecem.
— E ela chegou a fazer algum comentário sobre a contessa?
— Não, não que eu me lembre. Com exceção do que aconteceu com o filho dela. Isso a destruiu, ou pelo menos foi o que mamma disse. Ela costumava se envolver em muitas coisas: Os Amigos de Veneza, o teatro, levantar fundos para a restauração do La Fenice. Mas, quando aquilo aconteceu, ela parou com tudo. Minha mãe disse que ela nunca sai, não atende ninguém ao telefone. Ninguém a visita mais. Acho que mamma disse certa vez que não era o conhecimento do que tinha acontecido a ele que fez com que ficasse assim, isso ela provavelmente podia aceitar. Mas o modo como as coisas aconteceram, sem saber se ele estava vivo ou morto... Não consigo imaginar algo mais horrível. Até mesmo saber que ele está morto é melhor do que isso.
Brunetti, que normalmente votava em favor da vida, tenderia a contestar essa visão, mas ele não queria discutir essas coisas naquela noite. Passara o dia pensando em desaparecimentos e mortes de crianças, e não queria mais saber disso agora. Sem nenhum constrangimento, mudou de assunto.
— E como estão indo as coisas na fábrica de ideias?
Ela se afastou dele, pegou a louça do lado da pia e começou a enxugá-la.
— Quase no mesmo nível do nosso jantar — ela respondeu afinal, enquanto deixava cair um a um os garfos e as facas numa gaveta. — O chefe do departamento tem insistido para que comecemos a nos ocupar da literatura colonial.
— E o que é isso? — Brunetti perguntou.
— Você não vai acreditar — ela respondeu, polindo uma colher. — São aquelas pessoas que cresceram em culturas em que o inglês não é a língua nativa, mas que escrevem em inglês.
— E o que isso tem de errado?
— Ele pediu que alguns de nós comecem a lecionar essa matéria no ano que vem.
— Você?
— Sim — ela respondeu, deixando cair a última colher na gaveta e fechando-a com uma batida.
— E qual vai ser o curso?
— “A voz das mulheres caribenhas”.
— Por você ser uma mulher?
— Não pode ser porque eu sou caribenha.
— E?
— E eu me recusei a dar esse curso.
— Por quê?
— Porque o tema não me interessa. Porque eu o ensinaria mal e sem vontade. — Brunetti percebeu que havia algo mais ali, e deixou que ela confessasse. — E porque não vou deixar que me diga o que tenho que ensinar.
— É isso o que a estava incomodando? — ele perguntou como quem não quer nada.
Embora ela o tivesse fuzilado com os olhos, sua resposta foi tão descompromissada quanto a pergunta dele.
— Eu não sabia que tinha algo me incomodando. — E, quando ela ia começar a desenvolver esse assunto, a porta se abriu num estrondo, deixando as crianças entrarem com o sorvete, e a pergunta dele permaneceu sem resposta.
Na verdade, naquela noite Brunetti acordou pelo menos duas vezes, e em cada uma delas bebeu dois copos de água. A segunda vez foi pouco antes de amanhecer, quando, ao se voltar depois de colocar o copo no chão ao lado da cama, ele se apoiou sobre o cotovelo para observar o rosto de Paola. Um cacho de cabelo caía sobre sua bochecha e alguns fios se moviam delicadamente acompanhando sua respiração. De olhos fechados, toda a agitação apagada, seu rosto revelava apenas ossos e personalidade. Secreta e separada, ela repousava ao seu lado, e ele estudou seu rosto em busca de algum sinal que o ajudaria a conhecê-la mais profundamente. Com repentina urgência, ele desejou que aquilo que o conde Orazio lhe tinha dito não fosse verdade. Queria desesperadamente que ela, e eles, vivessem felizes e tranquilos.
Como se a fazer troça desse desejo, os sinos da San Polo soaram seis vezes, e os pardais que haviam escolhido fazer um ninho entre os tijolos soltos da chaminé anunciaram o nascer do dia e que era hora de trabalhar. Brunetti não lhes deu atenção e pôs a cabeça de volta no travesseiro. Fechou os olhos, certo de que não voltaria a pegar no sono, mas logo descobriu quão facilmente poderia ignorar o chamado para retornar ao trabalho.
14
Pela manhã, Brunetti decidiu que seria prudente brindar Patta com o mínimo de informações que ele tinha sobre o “assassinato Lorenzoni” — era assim que iam chamá-lo dali em diante —, e foi isso o que fez assim que o vice-questore chegou à questura. Brunetti temia encarar dificuldades em razão de seu comportamento diante de Patta no dia anterior, mas não houve nenhuma; pelo menos nada explícito. Patta tinha lido o jornal e lamentou a morte de forma protocolar, seu grande pesar aparentemente devendo-se ao infortúnio ter acontecido a um membro da nobreza.
Brunetti explicou que, por ter sido ele a atender ao telefonema que confirmara a identificação da ficha dentária, assumira a incumbência de informar os pais. Com a experiência de anos, cuidou de não demonstrar o menor interesse no assunto, perguntando quase que de passagem quem o vice-questore queria designar para o caso, chegando mesmo a sugerir o nome de um de seus colegas.
— Você está trabalhando no que agora, Brunetti?
— No despejo de lixo em Marghera — ele respondeu de pronto, cuidando para que a poluição soasse mais importante do que um assassinato.
— Ah, sim — Patta respondeu. Ele ouvira falar do que acontecia em Marghera. — Bem, acho que isso pode ficar a cargo do nosso pessoal fardado.
— Mas eu ainda tenho que interrogar o capitão do porto — insistiu Brunetti. — E alguém tem de conferir os registros daquele navio-tanque do Panamá.
— Encarregue Pucetti disso — disse Patta encerrando o assunto.
Brunetti lembrou-se de um jogo que costumava jogar com os filhos, quando eles eram bem mais novos. Eles soltavam um punhado de varetas de madeira e depois disputavam para ver quem conseguiria pegar o maior número delas sem mover os outros. O truque era fazer tudo com extrema delicadeza; um movimento em falso poria tudo a perder.
— O senhor não acha que Mariani poderia cuidar disso? — Brunetti sugeriu, dando o nome de um dos outros dois commissari. — Ele acabou de voltar de férias.
— Não, eu acho que você deve ficar com o caso. Afinal, sua mulher conhece essa gente, não conhece?
“Essa gente” era uma expressão que por anos Brunetti ouvira ser utilizada em sentido pejorativo, normalmente racista, e aqui estava ela novamente, recém-saída dos lábios do próprio vice-questore, soando agora para o mundo inteiro como o mais alto elogio possível. Brunetti anuiu sem muita convicção, não tendo muita certeza quanto ao tipo de pessoa que a sua mulher poderia conhecer ou o que ela poderia saber sobre elas.
— Bom, então sua relação com a família dela poderá ajudá-lo aqui — disse Patta, sugerindo que o poder do Estado ou a autoridade da polícia não serviam de nada com “essa gente”. O que, Brunetti refletiu, podia muito bem ser verdade.
Ele conseguiu emitir um “Bem...” relutante, por fim aceitando, tendo afastado cuidadosamente de sua voz qualquer tom que pudesse dar indício de algum entusiasmo.
— Se o senhor insiste, vice-questore, vou instruir Pucetti sobre Marghera.
— Mantenha a mim e ao tenente Scarpa atualizados sobre o que você fizer, Brunetti — acrescentou Patta quase de passagem.
— Claro, senhor — ele disse. Era a promessa mais vazia que tinha feito nos últimos tempos. Percebendo que Patta tinha terminado, Brunetti levantou-se e saiu do gabinete.
Ao sair, a signorina Elettra perguntou:
— O senhor o convenceu a lhe passar o caso?
— “Convenceu?” — Brunetti repetiu, surpreso que a signorina, mesmo depois de todo esse tempo trabalhando com Patta, pudesse realmente acreditar que ele fosse do tipo aberto à razão ou ao convencimento.
— Dizendo a ele que o senhor estava ocupado com outras coisas, claro — ela disse, pressionando uma tecla do computador para ativar a impressora.
Brunetti não conseguiu conter um sorriso.
— Por um momento achei que teria de usar de violência para recusar o caso — disse Brunetti.
— O senhor parece estar muito interessado nele, commissario.
— Estou mesmo.
— Então, talvez se interesse por isto — ela disse, inclinando-se para tirar algumas páginas que saíam da impressora, passando-as para ele.
— E o que é isso?
— Uma lista de todas as ocasiões em que os Lorenzoni chamaram nossa atenção.
— Nossa?
— Das forças da ordem.
— Que inclui...?
— Nós, os carabinieri, a alfândega e a guarda de finanças.
Brunetti fez uma cara de falsa admiração.
— Sem acesso ao Serviço Secreto, signorina?
— Não até que seja realmente necessário, senhor. Teria que dispor de um contato que prefiro não incomodar a toda hora.
Brunetti a estudou, buscando em seus olhos algum sinal de que ela estava brincando. Ele tinha dúvida do que seria pior: saber que ela dizia a verdade ou o fato de que ele não tinha como saber a diferença.
Devido à sua equanimidade, ele preferiu não continuar a incomodá-la com perguntas e voltou sua atenção para os papéis. A primeira lista era de três anos antes, mais precisamente do mês de outubro: Roberto fora preso por dirigir embriagado. Uma pequena multa e caso encerrado.
Antes que pudesse continuar a ler, ela o interrompeu.
— Não incluí aí nada que tivesse relação com o sequestro, senhor. Estou compilando uma lista separada somente sobre isso. Achei que ficaria menos confuso.
Brunetti anuiu e saiu, continuando a ler enquanto subia as escadas que levavam a seu gabinete. No Natal daquele mesmo ano — no dia de Natal —, um caminhão da transportadora dos Lorenzoni tinha sido roubado na rodovia estadual 8, perto de Salerno. A carga, equipamentos laboratoriais de fabricação alemã valendo duzentos e cinquenta milhões de liras, jamais foi recuperada.
Quatro meses depois, uma inspeção ocasional da alfândega em um caminhão da mesma transportadora descobriu que o manifesto de carga declarava apenas metade do número de binóculos húngaros que continha de fato. Lavrou-se uma multa, que foi paga imediatamente. Passou-se um ano inteiro em que os Lorenzoni não voltaram a chamar a atenção da polícia, mas depois desse intervalo Roberto se envolveu em uma briga numa boate. Não houve nenhuma queixa formal, mas num acordo em juízo os Lorenzoni tiveram que pagar doze milhões de liras a um rapaz que saiu da briga com o nariz quebrado.
E isso era tudo. Não havia mais nada. Nos oito meses de intervalo entre a briga na boate e o sequestro, Roberto, sua família ou qualquer um de seus abrangentes negócios deixaram de existir completamente para os muitos poderes de polícia que vigiavam o país e seus cidadãos. Até o momento em que, como um raio vindo de um céu tranquilo, veio o sequestro. Dois bilhetes, um apelo público aos sequestradores e, então, o silêncio. Até o corpo do garoto ser encontrado em um terreno perto de Belluno.
No momento em que fazia essas reflexões, Brunetti se perguntou por que pensava em Roberto desde o começo como sendo um garoto. Afinal, o jovem, por ocasião do sequestro e presumivelmente no momento de sua morte, que ao que tudo indica ocorrera pouco depois do ato, tinha vinte e um anos. Brunetti puxou pela memória as impressões que as várias pessoas com quem conversara durante o dia anterior tinham dele: sua namorada mencionara suas “pegadinhas” e seu egoísmo; o conde Orazio fora quase condescendente; sua mãe lamentara a perda do seu bebê.
Os pensamentos de Brunetti foram interrompidos pela chegada de Vianello.
— Resolvi ir a Belluno com você, Vianello. Será que pode providenciar um carro para nós?
— Posso fazer melhor que isso — respondeu o sargento com um sorriso. — Na verdade, é por isto que vim até aqui.
Sabendo que ele tinha que estar ali de qualquer modo, Brunetti perguntou:
— O que você quer dizer com isso?
— Montisi — respondeu o sargento de modo cifrado.
— Montisi?
— Sim, senhor. Ele pode nos levar.
— Eu não sabia que haviam construído um canal até Belluno.
— A filha dele, senhor.
Brunetti sabia que o grande orgulho de Montisi era o fato de que as três filhas que ele mandara para a universidade haviam se tornado uma médica, uma psicóloga e uma arqueóloga.
— Qual delas?
— Renata, a psicóloga — respondeu Vianello, e, antes que Brunetti pudesse perguntar, ele explicou: — Ela também pilota. Um amigo dela mantém um Cessna no Lido. Se quisermos, ela pode nos deixar lá esta tarde e depois seguir para Udine.
— Negócio fechado — disse Brunetti, incorporando de Vianello o tom de ânimo por uma expedição.
A filha acabou se revelando tão bom piloto quanto o pai. Brunetti e Vianello, ainda inebriados pelo entusiasmo e ineditismo da situação, mantiveram os narizes pressionados contra as pequenas janelas do avião pela maior parte dos vinte minutos de voo, durante o qual Brunetti aprendeu duas coisas: que duas companhias aéreas tinham se recusado a contratá-la como piloto em razão de ela ser psicóloga formada, pois poderia “constranger os outros pilotos” com seu nível cultural; e que as várias porções de terra ao redor de Vittorio Veneto haviam sido batizadas pelos militares como “Pio XII”, gíria de caserna para “proibito”, sendo portanto vetado voar sobre elas. Essa foi a razão pela qual o pequeno avião os levou margeando a costa do Adriático, depois, bem a noroeste, sobre Pordenone, só então chegando a Belluno. Abaixo deles, a terra mudou de cor, do amarelo para o marrom, para o verde e depois em sentido inverso, à medida que sobrevoavam terrenos sendo arados ou enormes faixas de novas plantações; de vez em quando um trecho de árvores frutíferas surgia em meio a campos de floração pastel, ou então uma rajada de vento lançava admiráveis porções de pétalas na direção do avião.
Ivo Barzan, o commissario que ficara encarregado da remoção do corpo de Roberto Lorenzoni do terreno para o hospital e que informara a polícia de Veneza, estava esperando por eles quando o avião pousou.
Ele os levou primeiro à casa do dr. Litfin, caminhando com eles até o retângulo negro próximo à fileira de árvores. Uma solitária galinha marrom bicava laboriosamente a terra recém-revolvida do raso buraco, nem um pouco incomodada pelo barulho que o vento fazia ao se chocar com as fitas vermelhas e brancas que isolavam o local. Nenhuma bala fora encontrada, Barzan lhes informou, embora os carabinieri tivessem vasculhado o terreno por duas vezes com detectores de metal.
Enquanto olhava para a vala e ouvia os ruídos que a galinha fazia revolvendo a terra e bicando, Brunetti ficou a imaginar o aspecto do lugar quando o garoto morreu, se é que ele havia mesmo morrido ali. No inverno, teria sido inóspito e soturno; no outono, haveria pelo menos alguns sinais de vida. Mas ele logo se censurou pela estupidez de suas reflexões. Se a morte espreita no fim do terreno, pouco importa se a terra está coberta de lama ou de flores. Com as mãos no bolso, ele se voltou deixando a vala para trás.
Barzan disse a eles que os vizinhos não contaram nada de útil à polícia. Uma velha insistia que o corpo era de seu marido, envenenado pelo prefeito, um comunista. Ninguém lembrava nada incomum, embora Barzan acrescentasse, com bom humor, que achava difícil que alguém pudesse ter sido de grande ajuda quando a polícia tinha se limitado a perguntar se haviam visto algo estranho cerca de dois anos atrás.
No caminho, Brunetti conversou com algumas pessoas. Um casal de velhos já no fim de seus oitenta anos tentou compensar sua incapacidade de lembrar o que quer que fosse oferecendo café aos policiais. Quando eles aceitaram, o café veio com açúcar e grapa.
O dr. Bortot, que os aguardava em seu consultório no hospital, disse não haver muito a acrescentar ao relatório que já havia encaminhado a Veneza. Tudo havia sido registrado: o orifício mortal na base do crânio, a ausência de um orifício que pudesse ser claramente identificado como o de saída do projétil, os enormes danos e a deterioração dos órgãos internos.
— Danos? — perguntou Brunetti.
— Nos pulmões, pelo que eu pude ver. Esse garoto deve ter fumado como um turco, por anos a fio — disse Bortot, interrompendo para acender um cigarro. — E o baço — ele começou, prosseguindo depois de uma pausa. — O dano pode ter sido causado pela exposição à natureza, mas isso não explica seu tamanho tão reduzido. Mas é difícil de afirmar com certeza, já que ele esteve enterrado por tanto tempo.
— Mais de um ano? — Brunetti perguntou.
— É o que eu diria, sim. É mesmo o garoto Lorenzoni?
— É.
— Bem, então deve ter sido esse tempo, mesmo. Se eles o mataram logo depois do sequestro, ele estaria enterrado então por pouco menos de dois anos, e é mais ou menos isso o que eu teria estimado. — E, livrando-se do cigarro, perguntou de forma genérica: — Os senhores têm filhos?
Os três policiais responderam que sim balançando a cabeça.
— Pois é — disse Bortot, de maneira inconclusiva, e pediu licença, explicando que ainda tinha três autópsias a fazer naquela tarde.
Barzan, com notável generosidade, colocou o seu motorista à disposição para levar Brunetti e Vianello de volta a Veneza, o que Brunetti, cansado daquele lugar, aceitou. No regresso para o sul, nem ele nem Vianello tinham muito a dizer, embora Brunetti tenha se chocado ao descobrir como a paisagem era menos interessante quando vista da janela de um carro. No solo, não havia nenhuma sinalização informando que lugares eram “zona proibita”.
15
Os jornais matutinos, como Brunetti previra, caíram sobre o caso Lorenzoni com a voracidade de raposas. Por presumirem que o público leitor era incapaz de se lembrar dos mais importantes detalhes de um fato que tenha sido reportado há não mais que dezoito meses — presunção que Brunetti considerava correta —, a cobertura de cada um deles começava recontando a história do sequestro. Roberto era descrito de várias formas: como o filho mais velho, o sobrinho e o filho único da família Lorenzoni. Quanto ao sequestro, as reportagens informavam ter ocorrido em Mestre, Belluno e Vittorio Veneto. Não só os leitores haviam esquecido os detalhes.
Sem dúvida em razão de sua incompetência em conseguir uma cópia do relatório da autópsia, o tom de deleite mórbido que a imprensa normalmente assumia na cobertura dos casos de exumação estava estranhamente ausente do noticiário, tendo os leitores que se contentar com tediosos “avançado estágio de decomposição” e “restos humanos”. Ao ler as matérias, Brunetti ficou incomodado com seu próprio desapontamento com a linguagem morna, imaginando se seu paladar estava se acostumando a uma dieta mais rica.
Ao chegar a seu gabinete, encontrou na mesa uma fita de vídeo em um envelope marrom, com seu nome escrito nele, e ligou para a signorina Elettra.
— É a fita da RAI?
— Sim, dottore. Chegou ontem à tarde.
Ele examinou o envelope, que parecia não ter sido aberto.
— A senhorita chegou a vê-lo em casa?
— Não. Não tenho videocassete.
— Mas teria visto, se tivesse.
— Com certeza.
— Que tal assistir no laboratório? — ele sugeriu.
— Com o maior prazer, senhor — ela disse, e desligou.
Quando ele chegou ao laboratório do térreo, ela o aguardava à porta, vestindo um jeans que parecia ter sido passado com todas as suas energias. A informalidade do traje era reforçada por um par do que Brunetti considerou serem botas de caubói com bicos afiadíssimos e saltos vertiginosos. Uma blusa de seda crepe dava à vestimenta um ar mais profissional, assim como o coque apertado que ela usava.
— O Bocchese está aí? — ele perguntou.
— Não, ele está prestando testemunho pericial hoje.
— Em qual caso?
— No do assalto aos Brandolini.
Nenhum dos dois se deu ao trabalho de balançar a cabeça pelo fato de esse roubo de quatro anos atrás, cujos ladrões foram presos dois dias depois, estar indo a julgamento somente então.
— Mas eu perguntei a ele ontem se poderíamos usar o laboratório hoje para assistir à fita e ele disse que tudo bem — ela explicou.
Brunetti abriu a porta e a segurou para que ela entrasse. A signorina Elettra foi direto ao aparelho, ligando-o como se estivesse em casa no laboratório. Brunetti colocou a fita. Eles esperaram um pouco até que a tela foi tomada pelo logotipo da RAI e pelas faixas de teste de cor, logo seguidas pela data e por algumas poucas linhas que Brunetti concluiu serem especificações técnicas.
— Temos que devolver a fita depois? — ele perguntou, afastando-se para sentar-se em uma das cadeiras dobráveis de madeira de frente para o monitor.
A signorina sentou-se na cadeira ao lado da dele.
— Não. Cesare disse que é uma cópia. Mas ele pediu para não dizer a ninguém que foi ele que mandou.
A resposta de Brunetti foi interrompida pela voz do apresentador, que informava os então mais recentes fatos sobre o sequestro do garoto Lorenzoni e anunciava aos telespectadores da RAI que transmitiriam com exclusividade uma mensagem do conde Ludovico Lorenzoni, pai da vítima. Enquanto se sucediam as previsíveis imagens dos pontos turísticos de Veneza, o apresentador explicava que o conde tinha gravado o apelo naquela tarde, e que ele seria transmitido com exclusividade pela RAI na esperança de que os sequestradores cedessem ao apelo de um pai em desespero. Então, com a tela se fixando em um ângulo baixo da fachada da San Marco, o apresentador passou a transmissão para a sucursal da RAI em Veneza.
Um homem em trajes escuros e expressão consternada postava-se à frente de um amplo corredor do que Brunetti reconheceu ser o palácio dos Lorenzoni. Atrás dele podiam ser vistas as portas duplas que conduziam ao escritório em que o commissario havia conversado com a família. O homem de negro resumiu o que o apresentador anterior havia dito e em seguida abriu uma das portas do escritório, que permaneceu aberta para que a câmera focasse o conde Ludovico, e depois se aproximasse dele, que estava sentado atrás de uma mesa que Brunetti não lembrava ter visto no aposento.
No começo, o conde olhava para baixo, para as próprias mãos, mas à medida que a câmera foi se aproximando ele levantou os olhos, olhando diretamente para ela. Passados alguns segundos, a câmera encontrou a distância certa, parou de se mover, e o conde começou a falar.
— Dirijo minhas palavras aos responsáveis pelo desaparecimento de meu filho, Roberto, e peço que escutem o que vou dizer com atenção e caridade. Estou disposto a pagar qualquer quantia pelo retorno dele, mas os órgãos governamentais me impedem que o faça. Não posso mais movimentar nenhuma das minhas contas e não há a mínima possibilidade de levantar a soma exigida, nem na Itália nem no exterior. Se pudesse fazê-lo, juro pela minha honra que o faria, e juro também que ficaria feliz em dar qualquer quantia que assegurasse o retorno a salvo de meu filho.
Nesse ponto, o conde fez uma pausa e baixou a cabeça, olhando para as próprias mãos. Passado um momento, voltou a encarar a câmera.
— O que peço a essas pessoas é que tenham compaixão, de mim e da minha mulher, que se junta a mim nesse pedido. Apelo a seus sentimentos humanitários e peço que libertem meu filho. Se quiserem, ficarei feliz em trocar de lugar com ele: basta que concordem e será feito. Eles disseram que entrariam em contato comigo por intermédio de um amigo que não identificaram. Tudo o que eles precisam fazer é entrar em contato com essa pessoa e deixar as instruções para a troca. O que pedirem eu farei e de bom grado, se isso garantir o retorno do meu amado filho.
Nova pausa, mais curta.
— Apelo a seu sentimento de compaixão e peço a eles que se apiedem de minha mulher e de mim.
O conde parou, mas a câmera permaneceu em seu rosto até que ele desviasse o olhar por um segundo, para o lado esquerdo da câmera, e voltasse a encará-la de frente.
A tela foi escurecendo gradualmente, sendo gradualmente substituída pela imagem do apresentador no estúdio. Ele voltou a lembrar os telespectadores que essa tinha sido uma transmissão exclusiva da RAI e acrescentou que qualquer um que tivesse alguma informação a respeito de Roberto Lorenzoni poderia ligar para o número reproduzido na parte de baixo da tela. Aparentemente, em razão de tratar-se de uma cópia, e não de uma transmissão ao vivo, nenhum número foi mostrado na tela.
A tela ficou escura.
Brunetti se levantou e abaixou o som, mas deixou o monitor ligado. Apertou o botão de rebobinar e esperou até que o ruído característico da fita retrocedendo parasse. Ao ouvir o clique que indicava a parada total, ele se voltou para a signorina Elettra.
— O que a senhorita acha?
— Eu estava certa quanto à maquiagem.
— Sim — concordou Brunetti. — Algo mais?
— A linguagem? — ela sugeriu.
Brunetti assentiu.
— A senhorita quer dizer o modo como ele se referia aos sequestradores como “eles”, e não como a “vocês”? — ele perguntou.
— Sim. É estranho. Mas talvez tenha sido muito difícil para ele se dirigir aos sequestradores diretamente, considerando o que fizeram com seu filho.
— É provável — concordou Brunetti, tentando imaginar qual seria a reação de um pai a algo assim, o maior dos horrores.
Ele estendeu a mão e apertou o play novamente. A fita voltou a girar, agora sem som.
Brunetti olhou de relance para a signorina Elettra, que ergueu as sobrancelhas.
— Nunca ponho os fones de ouvido nas viagens de avião — ele explicou. — É notável o que se pode ver nos filmes quando não há nenhum som para nos distrair.
Ela assentiu, e eles começaram a ver o filme novamente. Dessa vez puderam notar os olhos do apresentador percorrendo o roteiro que estava sendo projetado de algum lugar à esquerda da câmera. O outro apresentador, que estava à porta do escritório do conde, parecia ter decorado sua fala, mas a expressão de seriedade em seu rosto era forçada e pouco natural.
Se Brunetti esperava que o nervosismo ou a raiva do conde se mostrassem mais claramente observando o vídeo desse modo, ele se enganara. Assim, em silêncio, o conde parecia não demonstrar emoção alguma. Quando ele olhou para as mãos, qualquer espectador teria duvidado de que o conde encontraria forças para erguer o olhar novamente, mas seus olhos foram atraídos para um dos lados da câmera por aquele momento fugidio em um gesto totalmente desprovido de curiosidade ou impaciência.
Quando a tela escureceu pela segunda vez, a signorina Elettra disse:
— Pobre homem! E pensar que ele teve de sentar ali enquanto o maquiavam.
Ela balançou a cabeça, os olhos fechados, como se tivesse acabado de presenciar um ato obsceno.
Brunetti pressionou o botão para rebobinar de novo, e uma vez mais a fita retornou sobre si mesma até parar totalmente. Pressionou então o botão ejetar e a fita saltou para fora do aparelho. O commissario a colocou em sua caixa e pôs a caixa no bolso do paletó.
— Torço para que algo de horrível aconteça a eles — ela disse, num jorro de raiva.
— Pena de morte? — perguntou Brunetti, curvando-se para desligar o televisor e o videocassete.
Ela negou com um meneio.
— Não. Não importa quão horríveis eles sejam, não importa o que as pessoas façam, não podemos conceder a nenhum governo um poder desse tipo.
— Porque não se pode confiar neles?
— E o senhor confiaria nesse governo?
Brunetti balançou a cabeça.
— Aliás, o senhor consegue citar algum governo confiável?
— Para decidir sobre a vida e a morte de um cidadão? — Ele balançou a cabeça e perguntou: — Mas, então, que punição dar aos que fazem esse tipo de coisa?
— Não sei. Quero que eles sejam destruídos, que morram. Estaria mentindo se negasse isso. Mas é perigoso demais conceder tal poder... a quem quer que seja.
Brunetti se lembrou de algo que Paola tinha dito uma vez, embora não lembrasse exatamente o contexto. Sempre que alguém queria argumentar com desonestidade bastava lançar mão de um exemplo de tal forma excessivo que tornasse impossível discordar. Porém, independentemente de quão polêmicos fossem certos casos, ela sempre insistia que a lei dizia respeito a princípios universais. Casos individuais só provam a si mesmos, nada mais. Por estar sempre testemunhando o horror individual que surge na voragem de um crime, Brunetti compreendia muito bem o impulso dos que pediam leis mais rigorosas. E como policial ele sabia que o rigor da lei se aplicava com muito maior frequência aos fracos e aos pobres e que a severidade das leis não era impedimento para o crime. Sim, ele sabia tudo isso como policial, mas como homem e como pai ele ainda esperava que as pessoas que haviam tirado a vida desse jovem fossem punidas e sofressem.
Ele avançou alguns passos e abriu a porta do laboratório para que saíssem, voltando a seus afazeres e a um mundo onde o crime, antes de ser objeto de especulações filosóficas, era algo a ser combatido.
16
O bom senso dizia a Brunetti que seria tolice esperar que um Lorenzoni se dispusesse a falar com ele antes do enterro do rapaz, mas foi seu senso de caridade que o impediu de os procurar para isso. Os jornais informavam que o funeral seria na segunda-feira, na igreja de San Salvador. Antes disso, porém, Brunetti tinha muitas informações a levantar sobre Roberto.
De volta à sua mesa, ele ligou para o consultório do dr. Urbani e perguntou à secretária do dentista se por acaso eles teriam o nome do médico dos Lorenzoni em seus registros. Ela só levou alguns minutos para conferir, e de fato eles tinham o nome anotado na ficha original que tinha sido aberta para Roberto da primeira vez que ele fora ao consultório do dr. Urbani, dez anos antes.
O nome do médico, Luciano de Cal, pareceu familiar a Brunetti. Na sua escola havia um De Cal, chamado Franco, um joalheiro. Quando Brunetti ligou para seu consultório e explicou o motivo da ligação, o médico confirmou que Roberto tinha sido seu paciente pela maior parte de sua vida, desde que o antigo médico dos Lorenzoni havia se aposentado.
Quando Brunetti começou a perguntar sobre a saúde de Roberto nos meses anteriores a seu desaparecimento, o dr. De Cal pediu licença por um momento para apanhar a ficha do rapaz. Roberto tinha passado pelo consultório duas semanas antes do sequestro, disse o médico, reclamando de letargia e de uma constante dor de estômago. Primeiro, o médico julgou se tratar de cólica, da qual Roberto sofreria principalmente nas primeiras semanas do inverno. Mas quando ele não respondeu ao tratamento, De Cal sugeriu que procurasse um gastrenterologista.
— E ele foi, doutor?
— Não sei.
— E por que não?
— Fui para a Tailândia de férias logo depois que lhe indiquei o doutor Montini. Quando voltei, ele tinha sido sequestrado.
— E o senhor chegou por acaso a conversar com esse doutor Montini sobre ele?
— Sobre Roberto?
— Sim.
— Não, nunca. Não nos conhecemos socialmente, trata-se apenas de um colega de profissão.
— Certo. O senhor poderia me dar o número de telefone dele?
De Cal largou o aparelho e foi buscar o número.
— Fica em Pádua — disse ao voltar, e deu o número a Brunetti.
O commissario agradeceu e perguntou:
— O senhor achava que poderia ser cólica, dottore?
Brunetti ouviu o ruído de folhas sendo viradas.
— Bem, talvez fosse — e um novo ruído de páginas sendo viradas ao fundo. — Tenho registrado aqui que ele veio me ver três vezes no espaço de duas semanas. Isso foi em setembro, nos dias dez, dezenove e vinte e três.
A última consulta, então, teria sido cinco dias antes de ele ter sido sequestrado.
— E como ele estava? — perguntou Brunetti.
— Anotei aqui que ele parecia irritado e nervoso, mas não tenho uma recordação muito clara disso.
— Que tipo de rapaz ele lhe parecia ser, doutor? — Brunetti perguntou de súbito.
Passado um momento, De Cal respondeu.
— Bem típico, eu acho.
— Típico como?
— Ah, daquele tipo de família, do círculo social de que fazia parte.
Brunetti lembrou que seu companheiro de escola, Franco, tinha sido um comunista engajado. Era o tipo de coisa que com muita frequência acomete todos os membros da família, o que o levou a perguntar ao médico:
— O senhor quer dizer os ricos e fúteis?
De Cal deu uma sonora risada ao tom de Brunetti.
— Sim, acho que sim. Pobre rapaz, não havia maldade nele. Eu o conhecia desde que tinha dez anos, de modo que havia muito pouco que eu não soubesse sobre ele.
— Por exemplo?
— Bem, ele não era particularmente brilhante. Acho que era uma decepção para o pai que Roberto fosse tão lerdo.
Brunetti achou que o médico não completara totalmente a sentença, de modo que resolveu dar uma deixa:
— Ao contrário do primo?
— Maurizio?
— Sim.
— O senhor o encontrou?
— Uma vez.
— E o que achou dele?
— Não se pode dizer que não seja brilhante.
De Cal riu alto e Brunetti sorriu em resposta.
— Ele também é paciente seu, doutor?
— Não, só o Roberto. Na verdade, sou pediatra, mas Roberto continuou a se consultar comigo mesmo quando ficou mais velho, e eu sempre hesitei em sugerir que ele começasse a ver outro médico.
— Pelo menos não até o doutor Montini — lembrou Brunetti.
— Sim. Mas, fosse o que fosse, não era cólica. Eu achei que podia ser doença de Crohn. Cheguei a anotar na ficha dele. E foi por isso que eu o encaminhei ao Montini, um dos melhores especialistas em Crohn da região.
Brunetti tinha ouvido falar da doença, mas não conseguia lembrar nada sobre ela, então perguntou:
— Quais são os sintomas?
— Dor de estômago, para começar. Seguida de diarreia, sangue nas fezes. É muito dolorosa. Muito grave. Ele tinha todos os sintomas.
— E o senhor chegou a ter o diagnóstico confirmado?
— É como eu lhe disse, commissario. Eu o encaminhei para Montini, mas, quando voltei de férias, Roberto já tinha sido sequestrado, então eu não acompanhei o caso. O senhor pode perguntar a Montini.
— É o que farei, dottore — disse Brunetti, e se despediu do médico com um formal “até logo”.
Em seguida, ligou para o número em Pádua. O dr. Montini estava fazendo sua ronda hospitalar e não voltaria ao consultório até as nove horas da manhã seguinte. Brunetti deu os números de seus telefones do trabalho e de casa, e pediu que o médico ligasse para ele assim que pudesse. Não era caso de urgência, mas o commissario ficou impaciente por não poder saber logo o que estava procurando ou qual era a importância disso, e achou que aquela impaciência serviria ao menos para disfarçar a sua ignorância.
Assim que pôs o telefone no gancho, ele tocou. Era a signorina Elettra, dizendo que havia terminado o arquivo sobre os negócios dos Lorenzoni, tanto na Itália como no exterior, e perguntando se ele queria vê-lo, o que Brunetti confirmou ao descer as escadas para pegá-lo com ela.
O arquivo era da grossura de um maço de cigarros.
— Signorina — ele começou —, como é que conseguiu juntar tanto material assim em tão pouco tempo?
— Foi só falar com alguns amigos que ainda trabalham no banco e perguntar se podiam ver o que conseguiam para mim.
— A senhorita fez tudo isso desde a hora em que eu lhe pedi?
— Não é difícil, senhor. Tudo isso chegou até mim da mesma fonte.
E como já tinha se tornado habitual, ela acenou na direção do computador, cuja tela brilhava às suas costas.
— Em quanto tempo uma pessoa pode aprender a lidar com um desses, signorina?
— O senhor?
— Sim.
— Vai depender de duas coisas; não, de três.
— E que coisas seriam?
— De quão inteligente o senhor é. Do quanto quer aprender. E de quem será seu professor.
A modéstia o impediu de responder à primeira parte da enumeração, e a incerteza o impediu de responder à segunda.
— A senhorita poderia me ensinar?
— Claro.
— Mesmo?
— Certamente. Quando o senhor gostaria de começar?
— Amanhã?
Ela anuiu, depois sorriu.
— E vai levar quanto tempo? — ele perguntou.
— Isso também depende.
— Do quê?
O sorriso dela pareceu crescer ainda mais.
— Das mesmas três coisas.
Ele começou a ler enquanto subia os degraus. Ao voltar à sua mesa, já havia lido listas de empresas que totalizavam bilhões de liras, começando a entender por que os sequestradores haviam escolhido os Lorenzoni. Os papéis naquela pasta não estavam lá muito ordenados, o que levou Brunetti a dispô-los em pilhas, numa correspondência aproximada com a localização delas no mapa da Europa.
Caminhões, aço, fábricas de plástico na Crimeia — havia uma trilha de perpétua expansão em busca de novos mercados, uma verdadeira explosão em direção ao Oriente, e mais e mais investimentos e empresas dos Lorenzoni ficavam para lá da Cortina de Ferro. Em março, duas fábricas de roupa foram fechadas em Vercelli, apenas para serem reabertas dois meses depois em Kiev. Passada meia hora, Brunetti pousou o último papel sobre sua mesa e viu que a maioria deles estava à sua direita, mesmo não sabendo precisar a exata localização da maior parte dos lugares para onde os investimentos dos Lorenzoni estavam se expandindo.
Não demorou muito para que Brunetti começasse a se lembrar das histórias que recentemente tinham ocupado páginas e páginas dos jornais falando sobre a dita máfia russa e os bandos de chechenos que, se essas reportagens fossem verdadeiras, haviam se apoderado da maior parte dos negócios na Rússia, legítimos e ilegítimos. A partir daí não era muito difícil especular que poderiam ser eles os responsáveis pelo sequestro de Roberto. Afinal, os homens que o levaram não haviam sequer falado, tendo simplesmente mostrado suas armas e partido com ele.
Mas como teriam eles acabado naquele terreno depois de Col di Cugnan, um lugar tão pequeno que provavelmente a maioria dos venezianos nem sequer ouvira falar dele? Brunetti pegou de novo a pasta do sequestro e a folheou até encontrar os envelopes de plástico com os bilhetes de resgate. Embora as letras maiúsculas pudessem ter sido impressas por qualquer pessoa, não havia erros de italiano, mas Brunetti admitiu para si próprio que isso não provava nada.
Ele não saberia dizer quais as características de um crime russo, mas todos os seus instintos lhe diziam que o sequestro não fora um. Os que haviam sequestrado Roberto teriam que saber como era a villa e ser capazes de permanecer ali sem ser notados até que ele chegasse. A não ser, claro, anotou mentalmente Brunetti, que eles já soubessem o momento exato em que Roberto passaria por ali. O fato é que essa era outra daquelas questões que não tinham sido levantadas durante a investigação original. Quem tinha conhecimento dos planos de Roberto para a noite e de sua intenção de ir até a villa?
Como sempre acontecia, Brunetti foi tomado de ansiedade enquanto lia os relatórios preparados por outras pessoas, nesse caso de pessoas sem mais nenhum envolvimento com o ocorrido.
Sentindo-se incomodado pela facilidade com que se deixava dominar por esses sentimentos, pegou o telefone e discou o ramal de Vianello. Quando o sargento atendeu, Brunetti disse:
— Vamos lá ver aquele portão.
17
Embora fosse o mais bem acabado exemplo de citadino que se poderia imaginar, não tendo jamais vivido em outro lugar que não numa cidade, Brunetti se deleitava como um camponês frente à abundância da natureza e à menor demonstração de sua beleza. Desde a infância, sua estação predileta era a primavera, pela qual sentia uma paixão indissociável das lembranças do prazer trazido pelos primeiros dias quentes na sucessão do interminável frio do inverno. E havia também o deleite pelo retorno das cores: o amarelo desafiador dos girassóis, o roxo da flor de açafrão e a felicidade verde das novas folhagens. Mesmo da janela do banco de trás do carro, que avançava veloz rumo ao norte pela autostrada, ele podia ver essas cores e ficava feliz com elas. Vianello, sentado no banco da frente, ao lado de Pucetti, que dirigia, discutia com ele o ameno inverno anterior, que não fora suficiente para congelar, e portanto destruir, as algas da laguna, o que implicava portanto que nesse verão as praias estariam repletas delas.
Deixando a autostrada em Treviso, deram meia-volta para pegar a rodovia estatal na direção de Roncade. Poucos quilômetros depois viram um sinal à direita indicando a igreja de Sant’Ubaldo.
— É por aqui, não é? — perguntou Pucetti, que consultara o mapa antes de saírem da Piazzale Roma.
— É — respondeu Vianello —, deve aparecer logo, à esquerda, uns três quilômetros à frente.
— Nunca tinha vindo para esses lados — disse Pucetti. — É bonito.
Vianello concordou com a cabeça, mas não disse nada.
Passados alguns minutos, uma curva na estreitíssima estrada revelou uma torre de pedra um pouco acima à esquerda. Um muro alto se prolongava dos dois lados da torre para logo se perder entre as árvores vizinhas que o envolviam de ambos os lados.
Atendendo ao tapinha de Brunetti em seus ombros, Pucetti reduziu a marcha enquanto se aproximavam do muro, dirigindo ao longo dele por cerca de cem metros. Ao vislumbrar os portões à frente, Brunetti deu outro tapinha nos ombros de Pucetti para que parasse, e ele estacionou sob o grande arco de pedras diante dos portões, deixando o carro de frente para eles. Os três desceram.
A pasta sobre o sequestro informava que a pedra que bloqueara os portões pelo lado de dentro media vinte centímetros no seu lado mais curto, mas a distância entre as barras dos portões, o que Brunetti pôde constatar ao medi-las com a mão, era ligeiramente mais larga que sua palma, medindo não mais do que dez centímetros. Caminhou então para a esquerda, acompanhando o muro, que tinha uma vez e meia sua altura.
— Seria preciso uma escada.
Vianello chamou do ponto em que havia parado, com as mãos nos quadris e a cabeça voltada para cima, olhando para o topo dos portões. Antes que pudesse responder, Brunetti ouviu o som de um carro que se aproximava vindo da esquerda. Um pequeno Fiat branco com dois homens no banco da frente. O carro reduziu a marcha ao se aproximar dos três policiais, e seus ocupantes nem tentaram disfarçar a curiosidade ao ver os homens de uniforme e o carro azul e branco da polícia. Afastaram-se bem devagar, enquanto outro carro, vindo da direita, passava por eles. O outro carro também reduziu a marcha para que seus ocupantes pudessem encarar os policiais na frente da villa dos Lorenzoni.
Uma escada, Brunetti refletiu, implicava uma van. Roberto fora sequestrado no dia vinte e oito de setembro, então a folhagem de outono dos arbustos que ladeavam a estrada teria sido suficiente para encobrir qualquer tipo de veículo, até mesmo uma van.
Brunetti voltou para o portão e ficou de frente para o painel de controle do sistema de alarme chumbado na coluna da esquerda. Em seguida, puxou uma pequena tira de papel de seu bolso e deu uma espiada nos números anotados ali, digitando em seguida o código de cinco algarismos na caixa de controle. A luz vermelha na frente do painel se apagou, e uma verde, mais abaixo, acendeu. Um ruído mecânico veio da parte de trás da coluna e os portões de ferro começaram a se abrir.
— Como é que o senhor sabia? — perguntou Vianello.
— Constava do relatório original — respondeu Brunetti, sem disfarçar certo contentamento por ter pensado em anotar o número. O ruído cessou. Os portões permaneciam totalmente abertos.
— É propriedade privada, não é? — perguntou Vianello, deixando que Brunetti desse o primeiro passo e, com isso, a ordem.
— É, sim — respondeu o commissario, cruzando os portões e começando a caminhar sobre a trilha de cascalho.
Vianello sinalizou a Pucetti para que ficasse do lado de fora e acompanhou Brunetti. A trilha era ladeada por arbustos maciços bem próximos uns dos outros, criando assim sólidos muros de verde entre os passantes e os jardins que por certo estariam por trás dessas fileiras de arbustos. Uns cinquenta metros depois chegava-se a duas aberturas em arco, uma de cada lado. Brunetti entrou pela da direita. Quando Vianello o acompanhou, viu que o chefe tinha parado, com as mãos nos bolsos da calça, o paletó aberto. Brunetti avaliava o território à frente deles, uma série de tapetes florais dispostos no interior de ordenadas trilhas de cascalho.
Sem dizer nenhuma palavra, ele deu meia-volta e passou sob o outro arco, onde parou de novo para observar os arredores. A meticulosa ordenação das trilhas e dos tapetes de flores era repetida aqui, uma imagem idêntica à do jardim do lado oposto. Jacintos, lírios e flores de açafrão banhavam-se ao sol, dando a impressão de que também gostariam de colocar as mãos nos bolsos e passear por aí.
Vianello alcançou Brunetti, ficando a seu lado.
— E então, senhor? — ele perguntou, não compreendendo por que Brunetti não fazia nada além de ficar ali parado observando as flores.
— Nenhuma pedra por aqui, hein, Vianello?
Vianello, que até então não tinha prestado muita atenção aos arredores, respondeu:
— Não, senhor, nenhuma mesmo. Por quê?
— Se considerarmos que o cenário não mudou muito, isso significa que eles teriam que ter trazido a pedra com eles, certo?
— E teriam que carregá-la consigo quando pulavam o muro.
Brunetti assentiu.
— A polícia local fez no mínimo uma busca no interior dos muros, em tudo. Nada foi mexido no solo da parte de dentro. Quanto você acha que aquela pedra pesava, Vianello?
— Quinze quilos? — chutou Vianello. — Dez?
Brunetti concordou. Nenhum deles precisou fazer qualquer comentário sobre a dificuldade de passar algo tão pesado por cima daquele muro.
— Vamos dar uma olhada na villa? — perguntou Brunetti, embora tanto para ele como para Vianello isso não tivesse soado como uma pergunta.
Brunetti voltou passando sob o arco; Vianello o seguiu. Lado a lado eles começaram a subir pela trilha de cascalho, que fazia uma curva à direita. Bem à frente ouviram um pássaro cantando radiosamente, e o rico odor de terra e calor preencheu o ar.
Vianello, que olhava para os pés enquanto caminhava, se deu conta primeiro apenas das pequenas pedras se espalhando por suas ancas, e em seguida do pó caindo sobre seus sapatos. Só depois disso é que seus ouvidos registraram o barulho de um tiro. A este se seguiu outro, e o estilhaço das pedras a um metro às costas do lugar em que Vianello estava demonstrou que esse segundo tiro encontrara seu alvo. Mas, assim que os seixos voaram pelo ar, Vianello já estava deitado do lado direito da trilha, derrubado por Brunetti, cuja força do próprio impulso o fez, ainda correndo, ir parar a poucos metros do sargento derrubado.
Sem pensar, Vianello levantou-se e correu agachado em busca de abrigo. O sólido muro de arbustos não servia de abrigo seguro, sendo apenas um muro verde-escuro contra o qual seu uniforme azul seria menos visível que contra o cascalho branco.
Ouviu-se outro disparo, depois outro.
— Aqui, Vianello — gritou Brunetti. Sem olhar para ver onde estava o chefe, ainda agachado, Vianello correu na direção do som da voz, com a visão escurecida pelo pânico. De repente, alguém o agarrou pelo braço esquerdo e fez com que parasse. Ele viu uma abertura na cerca e se lançou por ela como uma foca encalhada, capaz em seu pânico apenas de arrastar-se para a frente sobre seus cotovelos e joelhos.
Seu avanço desengonçado foi interrompido por algo duro: os joelhos de Brunetti. Vianello rolou para o lado, tomou posição e pegou o revólver. Sua mão tremia.
À sua frente, o commissario estava a postos, de arma em punho, em uma estreita abertura deixada na cerca pela remoção de um dos arbustos. Virando-se, ele perguntou:
— Tudo bem, Vianello?
— Sim — foi tudo o que o homem conseguiu dizer. Mas em seguida completou: — Obrigado, senhor.
Brunetti consentiu, então se agachou e pôs a cabeça para fora por um breve momento, protegido pelos ramos e galhos das árvores.
— Consegue ver algo? — perguntou Vianello.
Brunetti, com um grunhido duplo, respondeu que não. Atrás deles, vindo dos portões, o ruído duplo da sirene policial tomou o ar. Os dois se voltaram para o lugar de onde vinha o som, apurando os ouvidos para identificar se o ruído se aproximava ou não, mas ele parecia fixo. Brunetti se levantou.
— Pucetti? — Vianello perguntou, não achando possível que a polícia local tivesse chegado ali tão rápido.
Por um momento, Brunetti esteve a ponto de ir na direção da villa para procurar quem tinha atirado neles, mas, ao ouvir de novo o som da sirene em sua consciência, o bom senso prevaleceu.
— Vamos voltar — disse, virando-se para a entrada e começando a caminhar na direção dela, pela trilha de tapetes de flores. — Ele deve ter pedido reforços.
Eles se mantiveram colados à cerca, mesmo no ponto em que ela fazia uma curva abrupta para a esquerda, colocando-os fora da linha de tiro que vinha da villa. Nenhum dos dois se atrevia a voltar para a trilha de cascalho. Somente quando conseguiram visualizar o muro de pedra Brunetti sentiu-se seguro para forçar caminho por entre os arbustos, não sem dificuldade, e voltar para a trilha de cascalho.
Os portões estavam fechados, mas a viatura estava agora estacionada bem à sua frente, com a porta do passageiro encostada neles e efetivamente bloqueando a saída.
Quando estavam a uns poucos metros do portão, Brunetti chamou, gritando acima do som da sirene do carro.
— Pucetti?
Uma resposta veio da traseira do carro, mas não havia sinal do jovem policial.
— Pucetti? — chamou Brunetti de novo.
— Mostre sua arma, senhor — disse Pucetti, sua voz vindo de trás do carro.
Entendendo na hora, Brunetti levou seu pulso ao ar, cuidando para mostrar ao parceiro que ainda estava em posse de seu revólver.
Ao ver a arma, Pucetti saiu de trás do carro, de arma em punho, embora apontada para o chão. Tateou pela janela aberta do carro, e o som da buzina cessou. No repentino silêncio que se seguiu, ele disse:
— Só queria ter certeza, senhor.
— Bom — Brunetti respondeu, imaginando se ele teria pensado em eliminar a possibilidade de uma situação com reféns. — Você chamou a polícia local?
— Sim, senhor. Tem um posto de carabinieri fora de Treviso. Eles devem estar chegando. O que aconteceu?
— Alguém começou a atirar em nós enquanto seguíamos pela trilha dos carros.
— Vocês conseguiram ver quem foi?
Brunetti negou balançando a cabeça, Vianello disse que não.
A próxima pergunta do jovem policial foi interrompida pelo som de uma nova sirene, vinda agora da direção de Treviso.
Falando mais alto, Brunetti soletrou o código do portão e Pucetti os digitou. O portão começou a abrir e, antes mesmo que Brunetti pudesse sugerir, Pucetti entrou no carro e manobrou para que sua frente bloqueasse os portões e deixasse espaço suficiente para que eles os atravessassem pelo outro lado.
O jipe que estacionou atrás de sua viatura trazia dois carabinieri. O motorista abaixou o vidro e perguntou aos três o que estava acontecendo. De rosto magro e pálido, ele parecia bem calmo, como se fosse a mais corriqueira das ocorrências atender a um chamado de policiais sob fogo.
— Alguém lá em cima começou a atirar — explicou Brunetti.
— Eles sabem quem são vocês? — perguntou o carabiniere, e dessa vez dava para notar seu sotaque. Sardenho. Talvez ele estivesse mesmo acostumado a responder a chamados desse tipo. Não fez a mínima menção de sair do veículo.
— Não — respondeu Vianello. — Que diferença faz?
— Eles já foram assaltados três vezes. E depois teve aquele sequestro. Então, assim que veem alguém subindo pela estradinha não espanta que comecem a atirar. Eu faria o mesmo.
— Nisso? — Vianello disse, batendo dramaticamente a palma da mão sobre o peito do uniforme policial.
— Naquilo — devolveu o carabiniere, apontando para o revólver que Brunetti ainda segurava.
O commissario os interrompeu.
— Bom, continuamos a ser nós os que sofreram os tiros, policial. — E parou, não dizendo mais nada.
Em vez de responder, o carabiniere pôs a cabeça pra dentro do carro, fechou a janela e pegou um celular. Brunetti viu que ele discava um número e, sem que o outro ouvisse, sussurrou: “Gesù bambino”.
O telefonema foi rápido, e em seguida o carabiniere ligou para outro número. Passado um momento, ele começou a falar, e continuou falando por um bom tempo. Assentiu duas vezes, apertou outra tecla e inclinou-se para a frente a fim de devolver o telefone ao painel. Em seguida, abriu a janela.
— Vocês podem entrar agora — ele disse, apontando o portão com o queixo.
— O quê? — perguntou Vianello.
— Vocês podem entrar. Liguei pra eles, disse quem vocês eram, e eles falaram que vocês podem entrar.
— Com quem você falou? — perguntou Brunetti.
— Com o sobrinho, qual é mesmo o nome dele?
— Maurizio — Brunetti informou.
— Sim, ele está lá em cima e disse que não vai mais atirar agora que sabe quem são vocês.
Como ninguém se moveu, o carabiniere os apressou.
— Vamos. É seguro. Eles não vão mais atirar.
Brunetti e Vianello trocaram olhares. O commissario fez sinal com a mão para que Pucetti permanecesse junto ao carro. Sem dizer nada ao carabiniere, os dois atravessaram o portão e subiram de novo pela estradinha de cascalho. Dessa vez Vianello prestava atenção à sua frente, os olhos vasculhando os dois lados do caminho à medida que se distanciavam do portão.
Eles não falaram enquanto subiam pela estradinha.
Perto da curva acima deles, um homem apareceu. Brunetti o reconheceu na hora como o sobrinho, Maurizio. Ele não estava armado.
A distância entre os três diminuiu.
— Por que vocês não disseram nada? — Maurizio perguntou quando ainda estava a uns dez metros deles. — Nunca ouvi falar de nada tão estúpido. Vocês forçam a entrada pelo portão e começam a subir pela estrada. Por sorte não saíram feridos.
Brunetti sabia reconhecer um ataque de fúria quando diante de um.
— O senhor recebe seus visitantes sempre assim, signor Lorenzoni?
— Quando eles arrombam meus portões, recebo — respondeu o jovem, parando bem à frente deles.
— Nós não arrombamos nada — disse Brunetti.
— A senha foi quebrada — Maurizio gritou. — As únicas pessoas que sabem a senha são os membros da família. E quem quer que tenha invadido a villa.
— E os homens que levaram Roberto — acrescentou Brunetti num tom completamente informal.
Maurizio não teve tempo para disfarçar seu espanto.
— O quê? — ele exigiu.
— Acho que o senhor me ouviu. Os homens que sequestraram Roberto.
— Não estou entendendo o que o senhor quer dizer.
— A pedra — explicou Brunetti.
— Não sei do que o senhor está falando.
— A pedra que bloqueou os portões. Ela pesava mais de dez quilos.
— Continuo não entendendo.
Em vez de explicar, Brunetti perguntou como quem não quer nada:
— O senhor tem porte de arma, signor Lorenzoni?
— Claro que não — ele disse, não fazendo a mínima questão de esconder sua ira sempre crescente. — Mas tenho uma licença de caça.
O que explicava, pensou Brunetti, a chuveirada de pedra que tinha se levantado aos pés de Brunetti.
— Sendo assim, o senhor usa uma espingarda para atirar nas pessoas?
— Para atirar na direção das pessoas — ele corrigiu. — Ninguém se feriu. Além disso, um homem tem o direito de defender sua propriedade.
— E esta villa é sua? — Brunetti perguntou de forma polida.
Enquanto observava, percebeu que Lorenzoni conteve uma resposta arrevesada. Quando por fim respondeu, tudo o que disse foi:
— É do meu tio, como o senhor sabe.
Vindo do lado de fora dos portões eles ouviram o ronco de um motor sendo ligado e em seguida o som de um automóvel se distanciando, sem dúvida o do carabiniere, que, cansado de esperar para ver o que aconteceria, não se importou em deixar tudo por conta da polícia veneziana.
A pausa serviu para que Lorenzoni voltasse ao controle.
— E como o senhor entrou? — ele exigiu.
— Com a senha. Ela consta no inquérito sobre o sequestro do seu primo.
— O senhor não tem o direito de entrar aqui. Não sem um mandado judicial.
— Esse tipo de regra se aplica somente quando a polícia vai ilegalmente em busca de um suspeito, signor Lorenzoni. Não vejo nenhum suspeito aqui. O senhor vê?
O sorriso de Brunetti era completamente natural.
— Posso assumir que sua espingarda está registrada junto à polícia local e que suas taxas de licença foram pagas em dia?
— Não acho que isso seja da sua conta — devolveu Lorenzoni.
— Não me agrada ser alvo de tiros, signor Lorenzoni.
— Eu já lhe falei, não estava atirando no senhor, apenas na sua direção, como um aviso.
Enquanto essa conversa durava, Brunetti pensava qual seria a inevitável reação de Patta se viesse a saber que Brunetti fora pego entrando ilegalmente na propriedade de um rico e influente homem de negócios.
— Talvez nós dois tenhamos errado, signor Lorenzoni — ele disse por fim.
Brunetti percebeu que Lorenzoni não sabia se interpretava isso como um pedido de desculpas ou não. O commissario deu as costas para ele e perguntou a Vianello:
— O que o senhor acha, sargento? Seu espanto foi exagerado?
Mas, antes que o sargento pudesse responder, Lorenzoni deu um passo à frente e pegou Brunetti pelo braço. Seu sorriso o fez parecer muito mais jovem.
— Sinto muito, commissario. Eu estava aqui sozinho, e fiquei com medo quando ouvi os portões se abrirem.
— O senhor não pensou que pudesse ser alguém da família?
— Não podia ser meu tio. Falei com ele ao telefone há vinte minutos. Ele está em Veneza. E é o único que conhece o código agora. — Largando o braço de Brunetti, ele se afastou e acrescentou: — E eu continuo pensando no que aconteceu ao Roberto. Achei que eles tinham voltado, mas dessa vez para me pegar.
O medo tinha suas próprias razões, sabia Brunetti, e portanto era possível que o jovem estivesse dizendo a verdade.
— Pedimos desculpas por tê-lo assustado, signor Lorenzoni. Viemos aqui para dar uma olhada no local em que o sequestro ocorreu.
Vianello, identificando o humor de Brunetti, acrescentou um aceno encorajador ao seu comentário.
— Por quê? — perguntou Lorenzoni.
— Para ver se não deixamos passar nada.
— Como o quê?
— Como o fato de a villa ter sido vítima de três roubos. — Lorenzoni não fez nenhum comentário quanto a isso, então Brunetti perguntou: — Quando foi que eles aconteceram, antes ou depois do sequestro?
— Um antes. Os outros dois depois. O último foi há apenas dois meses.
— E levaram o quê?
— No primeiro levaram a prataria da sala de jantar. Um dos jardineiros viu uma luz e foi ver o que estava acontecendo. Eles passaram por cima do muro.
— E das outras duas vezes?
— O segundo foi durante o sequestro. Quer dizer, depois que Roberto foi levado, mas antes de os bilhetes começarem a chegar. Estávamos todos em Veneza. Quem quer que tenha sido teve que pular o muro, e dessa vez eles levaram alguns quadros. Tem um cofre no chão de um dos quartos, mas eles não o encontraram. E é por isso que eu não acho que fossem profissionais. Talvez uns viciados.
— E da terceira vez?
— Foi há dois meses. Estávamos todos aqui: meu tio, minha tia e eu. Acordei no meio da noite, não sei por que, talvez tenha ouvido alguma coisa. Fui até o topo da escadaria e consegui ouvir algo se mexendo lá embaixo. Então fui até o escritório do meu tio e peguei a arma.
— A mesma que o senhor usou hoje?
— Sim. Não estava carregada, mas eu não sabia disso então. — Lorenzoni sorriu envergonhado com essa confissão, mas prosseguiu. — Fui até o topo da escadaria, acendi as luzes do andar de baixo e gritei para que ouvissem, fosse quem fosse que ali estivesse. Então desci as escadas segurando a arma à minha frente.
— Foi muito corajoso de sua parte — Brunetti disse com sinceridade.
— Eu achei que a arma estivesse carregada.
— E o que aconteceu?
— Nada. Quando cheguei na metade da escadaria, ouvi uma porta bater e depois alguns ruídos do lado de fora, no jardim.
— Que tipo de ruídos?
Lorenzoni começou a responder, parou um pouco, e disse por fim:
— Não sei. Estava tão assustado que não consegui identificar o que ouvi. — Como nem Brunetti nem Vianello demonstraram surpresa ao ouvir isso, ele acrescentou: — Tive que sentar nos degraus de tão assustado que estava.
O sorriso de Brunetti foi amável.
— Acabou sendo bom que o senhor não soubesse que a arma não estava carregada.
Lorenzoni não pareceu entender muito bem o que o commissario quis dizer com isso até que Brunetti lhe pôs a mão no ombro e disse:
— Não são muitos os que teriam a coragem de descer aqueles degraus, pode acreditar.
— Minha tia e meu tio têm sido muito bons para mim — disse Lorenzoni como explicação.
— O senhor chegou a descobrir quem foi? — perguntou Brunetti.
Lorenzoni balançou a cabeça.
— Não. Os carabinieri vieram até aqui para olhar tudo, chegaram a tirar uns moldes de pegadas que encontraram no muro. Mas o senhor sabe como é — ele disse com um lamento. — Não adiantou nada. — E de repente, lembrando-se de com quem estava falando, acrescentou: — Não foi isso que eu quis dizer.
Brunetti, que achava que ele quis dizer aquilo, sim, deixou passar a observação com um aceno, perguntando em seguida:
— O que fez o senhor pensar que pudéssemos ser os sequestradores? Vingança?
Durante todo o tempo em que estiveram conversando, Lorenzoni os conduziu lentamente em direção à villa. Assim que fizeram a última curva da estrada, ela finalmente surgiu, uma construção de três pavimentos com uma grande ala de cada lado. Os blocos de pedra com que fora construída emanavam um brilho rosa suave sob o tímido sol; as altas janelas refletiam o pouco de luz que havia.
Então, lembrando de repente sua posição de anfitrião, Lorenzoni perguntou se poderia lhes oferecer alguma coisa.
Com o canto do olho, Brunetti notou a surpresa mal disfarçada de Vianello. “Primeiro ele tenta nos matar, agora nos oferece uma bebida.”
— É muito gentil de sua parte, mas não. O que eu gostaria é que o senhor me dissesse tudo o que puder sobre seu primo.
— Sobre Roberto?
— Sim.
— Como o quê?
— Que tipo de homem ele era. De que piadas gostava. O que fazia na firma. Coisas assim.
Embora essa lista parecesse estranha ao próprio Brunetti, Lorenzoni não deu sinais de estar surpreso com elas. E começou a responder.
— Ele era... Não estou bem certo de como dizer isso delicadamente. No fundo, ele não era uma pessoa complicada.
E parou. Brunetti esperou, curioso em saber a que outros eufemismos o jovem apelaria.
— Ele era útil para a companhia no sentido de que apresentava sempre una bella figura, de modo que meu tio podia mandá-lo para qualquer lugar representando-o.
— Em negociações? — perguntou Brunetti.
— Ah, não — Lorenzoni respondeu de imediato. — Roberto era melhor em ocasiões sociais, como levar os clientes para jantar ou mostrar-lhes a cidade.
— E o que mais ele fazia?
Lorenzoni refletiu um pouco.
— Meu tio sempre o mandava entregar documentos importantes. Se ele quisesse se assegurar de que um contrato chegaria logo a algum lugar, Roberto o levava.
— E então passava uns dias por lá.
— Sim, às vezes.
— Ele estudava?
— Estava matriculado na facoltà de economia commerciale.
— Onde?
— Aqui, em Cà Foscari.
— E por quanto tempo ele esteve matriculado?
A verdade, se é que Lorenzoni a conhecia, jamais passou pelos seus lábios.
— Não sei. — Essa última pergunta quebrou qualquer laço que Brunetti pudesse ter estabelecido com seu comentário em resposta à confissão de medo de Lorenzoni. — Mas por que o senhor quer saber tudo isso? — ele perguntou.
— Quero ter uma ideia do tipo de pessoa que ele era. — Brunetti respondeu com sinceridade.
— E que diferença isso vai fazer? Depois de todo esse tempo?
Brunetti deu de ombros.
— Não sei mesmo se vai fazer alguma diferença. Mas se eu vou dedicar meus próximos meses a Roberto, então preciso saber algo sobre ele.
— Meses?
— Sim.
— Isso quer dizer que a investigação sobre o sequestro será reaberta?
— Já não se trata mais simplesmente de sequestro. Agora é assassinato.
Lorenzoni assustou-se com a palavra, mas não disse nada.
— Você se lembra de mais alguma coisa sobre ele que possa ser importante?
Lorenzoni balançou a cabeça e tomou a direção dos degraus que conduziam à porta da frente da villa.
— Algo diferente no modo como ele estava se comportando antes de ser sequestrado?
Lorenzoni balançou a cabeça novamente, mas logo parou e se voltou para Brunetti.
— Eu acho que ele estava doente.
— E por que diz isso?
— Ele se cansava o tempo todo e não se sentia bem. Acho que disse que estava com algum problema no estômago, diarreia. E parecia que tinha perdido peso.
— Ele disse mais alguma coisa sobre isso?
— Não, nada. Roberto e eu estávamos um pouco afastados nos últimos anos.
— Desde que o senhor começou a trabalhar para a firma?
O olhar que Lorenzoni dirigiu a Brunetti era tão isento de amabilidade quanto de surpresa.
— O que o senhor quer dizer com isso?
— Para mim seria bastante natural se ele se ressentisse da sua participação nos negócios, especialmente se seu tio desse a impressão de considerá-lo útil ou confiar em seu julgamento.
Brunetti esperava que Lorenzoni fosse responder a isso, mas o jovem o surpreendeu ao se virar silenciosamente e começar a subir os três grandes degraus que conduziam à villa. Às suas costas, Brunetti perguntou:
— Tem mais alguém com quem eu possa falar sobre ele?
No topo da escada, Lorenzoni se virou para eles.
— Não. Ninguém o conhecia. Ninguém pode ajudar.
Ele se virou e entrou na villa, fechando a porta às suas costas.
18
Como o dia seguinte era domingo, Brunetti deu um descanso aos Lorenzoni, voltando a se ocupar deles somente na manhã de segunda, ao comparecer ao funeral de Roberto, ritual a um só tempo solene e soturno. A missa foi celebrada na igreja de San Salvador, localizada logo abaixo de um dos extremos do Campo San Bartolomeo, que por ficar bem próxima ao Rialto atraía um fluxo constante de turistas ao longo do dia e, portanto, durante a missa. Sentado nos fundos da igreja, ciente da chegada invasiva dos turistas, Brunetti entreouvia o zumbido de suas conversas sussurradas sobre como fotografar a Anunciação de Tiziano e a tumba de Caterina Cornaro. Mas durante um funeral? Se pelo menos fizessem isso muito, muito, muito silenciosamente, sem usar o flash.
O padre ignorou aqueles sussurros e prosseguiu com o ritual milenar, falando da natureza transitória de nosso tempo sobre a terra e da tristeza que devia estar envolvendo os pais e parentes desse filho de Deus, levado tão cedo da vida terrena. Mas logo convidou sua audiência a pensar na graça que aguardava os fiéis e os bons, que haviam partido para encontrar seu lar junto do Pai Celestial, a fonte de todo o amor. Somente uma vez o padre foi distraído de seus deveres, pelo barulho de uma cadeira derrubada vindo dos fundos da igreja, seguido de uma imprecação sussurrada em outro idioma que não o italiano.
Com o ritual encerrado pela interrupção, o padre e seus auxiliares caminharam lentamente em torno do caixão fechado, entoando orações e aspergindo água benta sobre ele. Brunetti se perguntou se seria o único a pensar no estado físico do que jazia sob aquela elaborada tampa de mogno. Nenhum dos presentes na igreja o tinha visto de fato: a identificação de Roberto era baseada em não mais que alguns raios X de sua arcada dentária e um anel de ouro, reconhecimento que, como o commissario Barzan contara a Brunetti, reduzira o conde a lamentos soluçados. Apesar de ter estudado o relatório da autópsia, nem Brunetti sabia dizer ao certo quanto da matéria física que um dia fora Roberto Lorenzoni repousava de fato na igreja. Ter vivido apenas vinte e um anos e não ter deixado senão pais marcados pela revolta, uma namorada que já dera à luz o filho de outro homem e um primo que manobrara com desenvoltura para assumir a posição de herdeiro. Tão pouco restara de Roberto, filho de pais terrenos e celestiais. Ele tinha sido um tipo comum, o filho mimado de pais ricos, um rapaz de quem pouco se exigira e de quem menos se esperava. E agora jazia ali, uma pilha de ossos limpos e vestígios de carne num caixão em uma igreja, e nem mesmo o policial encarregado de encontrar seu assassino conseguia reunir um pesar real por sua morte prematura.
As reflexões de Brunetti foram interrompidas pelo fim da cerimônia. Quatro homens de meia-idade carregavam o caixão do altar para os fundos da igreja. Bem próximos a eles seguiam o conde Ludovico e Maurizio, ladeando e amparando a contessa. Francesca Salviati não aparecera. Brunetti sentiu pesar ao perceber que os enlutados que acompanhavam o féretro eram velhos, aparentemente amigos dos pais. Era como se tivessem roubado de Roberto não apenas sua vida futura, mas a passada também, pois não deixara amigos que viessem lhe dar adeus ou rezar por seu espírito que havia muito tinha partido. Que tristeza imensa, ter tido tão pouca importância, ter seu passamento marcado apenas pelas lágrimas de uma mãe. E Brunetti pensou que quando ele próprio morresse não teria nem ao menos isso, pois sua mãe, prisioneira de sua loucura, já deixara havia muito para trás o tempo em que seria capaz de distinguir entre filho e pai, vida e morte. E se o caixão tivesse de abrigar tudo o que houvesse restado de seu próprio filho?
Brunetti entrou de repente na nave da igreja e se juntou ao fluxo de pessoas buscando a saída. Ao chegar à escadaria externa ficou surpreso com os raios de sol e as pessoas caminhando normalmente em direção ao Campo San Luca ou ao Rialto, completamente alheias a qualquer pensamento sobre Roberto Lorenzoni ou sua morte.
Brunetti decidiu não acompanhar o caixão até a linha d’água para vê-lo ser colocado no barco que o conduziria ao cemitério. Em vez disso, retornou pela San Lio para a questura, parando no caminho para um café e um brioche. Tomou todo o café, mas só conseguiu comer um pedaço do brioche, deixando o resto no balcão antes de pagar e sair.
Ao chegar ao gabinete, encontrou um cartão-postal do irmão na mesa. Na frente, uma foto da Fontana di Trevi; no verso, na bela letra de forma de Sergio, a mensagem “Foi um sucesso, somos heróis”, seguida de sua assinatura e de um adendo telegráfico: “Roma uma bagunça, imunda”.
Brunetti tentou ver se o carimbo do selo tinha data. Se tinha, estava agora muito borrada para que ele conseguisse ler. Mesmo assim, admirou-se que o cartão tivesse chegado de Roma em menos de uma semana, pois as cartas que recebia de Turim demoravam três. Talvez os correios priorizassem os postais, talvez os preferissem por serem menores e mais leves. Ele leu o resto da correspondência, algumas importantes, nenhuma interessante.
A signorina Elettra estava perto da mesinha ao lado de sua janela, tratando de arrumar umas flores em um vaso alto recebendo um jorro de luz que se derramava pela mesa e pelo chão. Ela vestia um suéter quase da mesma cor que as flores, tão elegante quanto elas.
— São lindas — ele disse ao entrar.
— São mesmo. Mas nunca entendi por que as flores cultivadas não têm perfume.
— Não?
— Quase nada. Cheire-as. — Ela ficou de lado.
Brunetti se inclinou para a frente. Realmente, elas não tinham cheiro nenhum, a não ser um tímido odor vegetal.
Antes que pudesse fazer algum comentário, uma voz atrás dele perguntou:
— Uma nova técnica investigativa, commissario?
A voz do tenente Scarpa estava repleta de curiosidade. Quando Brunetti se recompôs e o encarou, o rosto de Scarpa assumiu uma expressão de respeitosa atenção.
— Sim, tenente — respondeu Brunetti. — A signorina Elettra acabou de me dizer que por serem tão bonitas é muito difícil dizer quando apodrecem. Então é preciso cheirá-las. Só assim se descobre.
— E essas aí estão podres? — perguntou o tenente Scarpa, fingindo total interesse.
— Ainda não — interrompeu a signorina, passando pela frente do tenente para voltar à mesa. Por um instante ela parou a uma curta distância de Scarpa, examinando seu uniforme com os olhos. — Com as flores, é difícil dizer. — Ela passou por ele e foi até a mesa. Então, com um sorriso tão falso quanto o dele, perguntou: — Em que lhe posso ser útil, tenente?
— O vice-questore me chamou — ele respondeu, com voz cheia de emoção.
— Então não se detenha, entre — ela disse, gesticulando em direção à porta do gabinete de Patta. Sem dizer nada, Scarpa passou por Brunetti, bateu na porta uma vez e entrou sem esperar ser convidado.
Brunetti esperou a porta fechar antes de alertar a moça.
— A senhorita devia tomar cuidado com ele.
— Com ele? — ela perguntou, não se dando ao trabalho de disfarçar seu desprezo.
— Sim, com ele — Brunetti repetiu. — O vice-questore o tem em alta conta.
Ela esticou o braço e apanhou uma agenda marrom.
— E eu tenho o caderninho de visitas do vice-questore. Isso iguala as coisas.
— Eu não estaria tão seguro assim — insistiu o commissario. — Ele pode ser perigoso.
— Sem a arma ele não é diferente de nenhum outro terron maleducato.
Brunetti não tinha certeza se seria certo deixar passar tanto o desrespeito hierárquico pela patente do tenente quanto a referência racista a seu lugar de nascimento. Mas, ao lembrar que era de Scarpa que falavam, resolveu ignorar.
— E a signorina chegou a conversar com o irmão do seu namorado sobre o Roberto Lorenzoni?
— Sim, dottore. Desculpe, esqueci de lhe dizer.
Brunetti achou interessante que ela aparentasse ter ficado mais constrangida com isso que com seus comentários sobre o tenente Scarpa.
— E o que foi que ele disse?
— Não muito. Talvez tenha sido por isso que eu tenha esquecido. Ele só disse que o Roberto era preguiçoso e mimado e que só concluiu os estudos porque colava dos outros alunos.
— Nada mais?
— Edoardo me disse que Roberto estava sempre arrumando confusão porque ficava se intrometendo nos assuntos dos outros. O senhor sabe como é, ele abria gavetas dos amigos na residência de estudantes para xeretar as coisas deles. Edoardo contou essas coisas com uma ponta de orgulho. Disse que certa vez Roberto deu um jeito de ficar trancado na escola ao fim do dia e vasculhar todas as mesas dos professores.
— E por que ele fazia isso? Ele roubava coisas?
— Não, só queria ver o que eles tinham.
— E os dois ainda mantinham contato quando Roberto foi sequestrado?
— Não, na verdade não. Edoardo estava servindo no Exército. Em Modena. Ele disse que já fazia um ano que não se viam quando tudo aconteceu. Mas disse que gostava dele.
Brunetti não sabia o que fazer com essas informações, mas agradeceu à signorina por elas, evitou alertá-la novamente sobre o tenente Scarpa e voltou para seu gabinete.
O commissario examinou por alto as cartas e relatórios em sua mesa e os deixou de lado. Sentou, abriu a gaveta de baixo com o dedão do pé direito e cruzou os pés por cima dela. Cruzando os braços sobre o peito, ele voltou os olhos para o espaço acima do armário de madeira encostado em uma das paredes. Tentou despertar algum sentimento por Roberto, e foi ao pensar nele trancado na escola vasculhando as mesas de seus professores que Brunetti começou finalmente a ter alguma impressão real desse pobre rapaz. Não precisou muito mais que isso, a consciência de sua inexplicável humanidade, e Brunetti viu-se por fim tomado daquela terrível compaixão pelos mortos que com muita frequência inundava sua vida. Pensou nas coisas que poderiam ter acontecido na vida de Roberto. Ele poderia ter encontrado um emprego de que gostasse, uma mulher que amasse, poderia ter tido um filho.
A família morrera com ele; pelo menos a linha de sucessão do conde Ludovico. Brunetti sabia que os Lorenzoni podiam remontar suas origens até os obscuros séculos em que mito e história se tornavam uma coisa só, e ele se perguntava como seria ver isso chegar ao fim. Lembrou que Antígona dizia que a consequência mais terrível da morte de seus irmãos foi o fato de que seus pais não podiam mais ter filhos, e portanto toda a família morreu com aqueles corpos apodrecendo sob as muralhas de Tebas.
Voltou a pensar em Maurizio, agora herdeiro do império Lorenzoni. Apesar de os jovens terem sido criados juntos, não havia evidência nenhuma de qualquer tipo de afeição ou amor entre eles. A devoção de Maurizio parecia voltada totalmente a seus tios. Isso tornava improvável que fosse ele a desferir um golpe tão terrível neles quanto o de roubá-los seu único filho. Mas Brunetti já ouvira um sem-fim de desculpas de criminosos para saber que não seria preciso mais que um instante para Maurizio convencer a si próprio de que seria um ato de caridade e amor provê-los com um diligente, devotado e dedicado herdeiro, alguém que preencheria completamente as expectativas deles quanto ao que um filho deveria ser, e que a perda de Roberto logo deixaria de atormentá-los. Sim, Brunetti já tinha visto coisas piores.
Ligou para a signorina Elettra perguntando se ela havia encontrado o nome da garota de quem Maurizio quebrara a mão. Ela respondeu que o nome estava em uma página avulsa ao final da lista das empresas financeiras dos Lorenzoni. Brunetti folheou as páginas finais. Maria Teresa Bonamini, com um endereço em Castello.
Ligou para o número de telefone indicado e pediu para falar com a signorina Bonamini. A mulher que atendeu disse que Maria estava no trabalho e, sem se interessar em saber quem estava falando, informou, quando Brunetti perguntou, que ela trabalhava como vendedora na Coin, no setor de roupas femininas.
Brunetti resolveu falar pessoalmente com ela, e assim, sem dizer a ninguém aonde estava indo, saiu da questura e se encaminhou até a loja de departamentos.
Desde o incêndio de dez anos antes, ele achava difícil entrar na loja. A filha de um amigo seu fora uma das vítimas do incêndio causado pelo descuido de um trabalhador que pôs fogo em folhas de plástico que, em questão de minutos, tornaram o edifício inteiro um inferno esfumaçado. Na época, o fato de que a garota tinha morrido sufocada pela inalação da fumaça, e não pelo fogo, tinha servido de algum tipo de consolo. Passados os anos, só a morte permanecia.
Brunetti pegou o elevador até o segundo piso e se viu cercado de marrom, a cor escolhida pela Coin para a coleção de verão: blusas, saias, vestidos, chapéus — tudo combinado em um torvelinho de tons terrosos. As vendedoras, para seu próprio azar, tinham decidido, ou sido orientadas a, vestir as mesmas cores, e assim se confundiam com esse mar de ferrugem, chocolate, mogno e castanho, ao ponto de uma quase invisibilidade. Por sorte, uma delas veio em sua direção, distinguindo-se do mostruário de vestidos à frente dos quais estivera até então.
— A senhorita poderia me dizer onde posso encontrar Teresa Bonamini? — Brunetti perguntou.
A moça se virou e apontou para os fundos da loja.
— Na seção de peles — ela disse, e em seguida foi na direção de uma mulher de jaqueta que acenou para ela.
Brunetti seguiu a sua indicação e começou a se deslocar por entre prateleiras de casacos de pele e jaquetas, uma hecatombe da fauna, cujas vendas aparentemente não tinham sido afetadas pela estação. Havia os de pele de raposa, de visom, e um de couro particularmente grosso que ele não conseguiu identificar. Anos antes, uma onda de consciência social tinha tomado de assalto a indústria italiana da moda, e por uma estação as mulheres aderiram à compra de la pelliccia ecologica, peles com estampas silvestres e coloridas que não se esforçavam nem um pouco para esconder que eram artificiais. Mas, não importando quão criativo era o corte ou alto o preço, não dava para fazê-las custar tanto quanto as peles de verdade, e o apelo da vaidade não chegou jamais a ser completamente satisfeito. Elas eram símbolos de princípio, não de status, e logo saíram de moda, sendo dadas para as empregadas domésticas ou enviadas para as refugiadas da Bósnia. Pior, acabaram se tornando um pesadelo ecológico, imensos dejetos de plástico não biodegradável. E assim as peles de verdade voltaram às prateleiras.
— Sì, signore? — a vendedora perguntou, aproximando-se de Brunetti e afastando-o das reflexões sobre a vaidade dos desejos humanos. Ela era loira, de olhos azuis e quase tão alta quanto ele.
— Signorina Bonamini?
— Sim — ela respondeu, oferecendo a Brunetti um olhar avaliador em vez de um sorriso.
— Eu gostaria de conversar sobre Maurizio Lorenzoni, signorina — Brunetti explicou.
A transformação em seu rosto foi imediata. Da curiosidade passiva para a irritação instantânea e alarmada.
— Tudo já foi acertado. O senhor pode procurar meu advogado.
Brunetti recuou um pouco e sorriu polidamente.
— Me desculpe, signorina, eu devia ter me apresentado. — Tirou a carteira do bolso e a segurou à sua frente permitindo a ela ver sua foto. — Sou o commissario Guido Brunetti e gostaria de ter uma conversa com a senhorita sobre Maurizio. Não há necessidade de um advogado. Quero apenas fazer algumas perguntas sobre ele.
— Que tipo de perguntas? — ela indagou, a voz ainda alarmada.
— Sobre o tipo de homem que ele é, que tipo de caráter tem.
— E por que o senhor quer saber?
— Como a senhorita já deve estar sabendo, o corpo do primo dele foi encontrado, o que nos fez reabrir a investigação do sequestro. Então, temos que começar tudo de novo, juntando informação sobre a família.
— Então não é sobre a minha mão?
— Não, signorina. Estou a par do incidente, mas não estou aqui para conversar sobre isso.
— Nunca fiz una denuncia, como o senhor deve saber. Foi um acidente.
— Mas sua mão foi quebrada, não? — Brunetti perguntou, resistindo ao impulso de baixar os olhos para as mãos dela, penduradas ao longo do corpo.
Respondendo a pergunta que Brunetti não fez, ela levantou a mão esquerda e acenou com ela à frente do commissario, abrindo e fechando seus dedos.
— Está boa, não está?
— Está mesmo. Fico feliz em saber — disse Brunetti, sorrindo novamente. — Mas por que a senhorita falou em advogado?
— É porque assinei um acordo, depois do ocorrido, afirmando que nunca faria uma queixa ou o processaria. Foi um acidente mesmo, sabe — ela acrescentou, tranquila. — Eu estava saindo do carro pelo lado do motorista e ele fechou a porta antes de perceber que eu estava lá.
— Então, se foi um acidente, por que a senhorita teve que assinar esse acordo?
Ela deu de ombros.
— Sei lá. Foi o advogado dele que disse que eu devia assinar.
— A senhorita recebeu algum pagamento?
A afabilidade dela desapareceu com essa pergunta.
— Não é ilegal — ela insistiu, com a autoridade de alguém que tivesse ouvido isso de mais de um advogado.
— Sei disso, signorina. Estava apenas curioso. Não tem nada a ver com o que eu gostaria de saber sobre Maurizio.
De repente, vinda de trás de Brunetti, uma voz se dirigiu à Bonamini.
— Vocês têm casaco de pele de raposa no tamanho quarenta?
Um sorriso brotou no rosto da moça.
— Não, signora. Foram todos vendidos. Mas ainda temos alguns quarenta e quatro.
— Não, não — disse a mulher vagamente, e tomou o rumo da seção de saias e blusas.
— A senhorita conheceu o primo de Maurizio? — Brunetti perguntou quando a signorina Bonamini voltou sua atenção para ele.
— Roberto?
— Sim.
— Não, nunca o encontrei, mas Maurizio falava nele de vez em quando.
— E o que Maurizio dizia sobre ele? Consegue se lembrar?
Ela pensou um pouco.
— Não, nada específico.
— Então a senhorita poderia me dizer, pelo jeito que Maurizio falava de Roberto, se eles pareciam gostar um do outro?
— Eles eram primos — ela disse, como se isso bastasse.
— Sei disso, signorina, o que eu quero saber é se consegue se lembrar de algo que Maurizio tenha dito sobre Roberto ou se a senhorita tinha alguma ideia, e não me interessa saber como chegou a ela, do que Maurizio pensava do primo — e, ao dizer isso, Brunetti ensaiou outro sorriso.
Distraidamente, ela esticou os braços para arrumar uma jaqueta de visom.
— Bem — ela disse, fazendo uma pequena pausa antes de continuar —, se eu tivesse que dizer algo, então diria que Maurizio não tinha muita paciência com o primo.
Brunetti sabia muito bem que agora não era hora de interromper.
— Teve uma vez em que o mandaram, Roberto, claro, a Paris. Acho que era Paris. Seja como for, para uma grande cidade em que os Lorenzoni estavam negociando alguma coisa. Nunca entendi o que aconteceu, mas Roberto abriu um pacote ou algo semelhante, ou deu uma espiada em um contrato e depois falou disso para quem não devia. Bem, o fato é que o contrato foi cancelado.
Ela encarou Brunetti, percebendo o ar de desapontamento em seu rosto.
— É, eu sei que não parece ser nada grave, mas Maurizio ficou realmente uma fera quando isso aconteceu. — Ela pesou seu próximo comentário, mas resolveu dizer assim mesmo. — E ele tinha um gênio terrível, o Maurizio.
— Sua mão? — Brunetti perguntou.
— Não — ela respondeu na hora. — Aquilo foi realmente um acidente. Ele não fez de propósito. Acredite, se tivesse sido assim eu teria ido até a chefatura dos carabinieri na manhã seguinte, assim que saí do hospital. — Ela usou a mão em questão para ajeitar outra pele. — Só que ele simplesmente costumava ficar uma pilha e começava a gritar. Eu nunca soube que ele tivesse feito algo. Mas era melhor não falar com ele quando estava daquele jeito. Era como se virasse outra pessoa.
— E como ele é quando está sendo ele mesmo?
— Ah, muito sério. E foi por isso que parei de sair com ele. Maurizio sempre ligava para desmarcar nossos encontros e dizer que tinha que continuar trabalhando, ou então, quando saíamos, era para levar outras pessoas para jantar, a negócios. E então aconteceu isso — ela disse, balançando a mão novamente —, e eu disse que não queria mais vê-lo.
— E como foi que ele encarou?
— Acho que ficou aliviado, especialmente depois que eu disse a ele que ainda assim assinaria o papel para os advogados.
— E depois disso vocês tiveram algum tipo de contato?
— Não. Eu o encontro na rua às vezes, por acaso, e nos cumprimentamos. Mas não conversamos, apenas trocamos um “Oi, como vai?” ou algo do tipo.
Brunetti pegou de novo sua carteira e deu um de seus cartões a ela.
— Se a signorina se lembrar de mais alguma coisa, por favor, ligue para mim na questura.
Ela pegou o cartão e colocou-o no bolso da jaqueta marrom que estava vestindo.
— Claro — ela disse, num tom neutro que o fez duvidar que aquele cartão sobreviveria àquela tarde.
Brunetti estendeu a mão, apertou a dela e foi em direção à saída, atravessando os cabides de casacos de pele até as escadas. Enquanto caminhava, ficou imaginando quantos milhões não declarados ela tinha recebido em troca de sua assinatura naquele documento. Mas, como ele não cansava de lembrar a si mesmo, sonegação não era de sua alçada.
19
Ao voltar ao trabalho depois do almoço, Brunetti foi informado pelo guarda da entrada principal de que o vice-questore Patta queria falar com ele. Temendo que isso já fosse em razão do comportamento da signorina Elettra com o tenente Scarpa, ele foi logo ver do que se tratava.
Se o tenente Scarpa tinha dito algo, no entanto, não dava para perceber, pois Brunetti deparou com um Patta amigável, o que não era comum e o levou automaticamente a levantar a guarda.
— Algum progresso na investigação do assassinato do garoto Lorenzoni, Brunetti? — Patta perguntou assim que o commissario se sentou de frente para a mesa do vice-questore.
— Nada ainda, senhor, mas já temos algumas pistas interessantes.
Brunetti julgou que essa mentira deferente sugeriria que havia o suficiente para mantê-lo no caso, e ao mesmo tempo nada tão promissor para incentivar Patta a pedir detalhes.
— Bom, bom — o vice-questore murmurou, o que bastou para Brunetti concluir que ele não estava nem um pouco interessado nos Lorenzoni. Sabendo de longa experiência que Patta preferia que as pessoas lhe perguntassem as novidades em vez de ele mesmo as dizer sem rodeios, Brunetti decidiu que não o ajudaria perguntando.
— Chamei-o aqui para falar sobre esse programa, Brunetti — disse Patta finalmente.
— Que programa, senhor? — Brunetti perguntou com educação.
— O que a RAI está fazendo sobre a polícia.
Brunetti lembrou qualquer coisa com relação a um programa sobre a polícia a ser produzido e editado em um estúdio de cinema em Pádua. Ele recebera uma carta algumas semanas antes, perguntando se poderia servir de consultor, ou seria de comentarista? O commissario jogara a carta no cesto de lixo e esquecera o assunto.
— E então, senhor? — Brunetti, prosseguiu, com mais educação ainda.
— Eles querem você.
— Não entendi, senhor.
— Você, eles querem que você sirva de consultor e conceda uma grande entrevista sobre o funcionamento do sistema policial.
Brunetti considerou o trabalho que o aguardava, depois pensou na investigação Lorenzoni.
— Mas isso é um absurdo.
— Foi o que eu disse a eles — Patta concordou. — Disse que precisavam de alguém com mais experiência, alguém que tivesse uma visão mais abrangente do trabalho policial, que conseguisse enxergá-lo como um todo e não como uma série de casos e crimes individuais.
Uma das coisas que Brunetti mais detestava em Patta era o fato de que o melodrama barato de sua vida tinha sempre o pior dos roteiros.
— E o que eles responderam quando sugeriu isso, senhor?
— Eles ficaram de ligar para Roma. Foi de lá que veio a sugestão original. E ficaram de me responder amanhã de manhã.
O tom de Patta deu a essa afirmação um tom interrogativo, que demandava uma resposta.
— Não consigo imaginar quem poderia ter sugerido meu nome para esse tipo de coisa, senhor. Não é nada de que eu goste nem com que eu queira me envolver.
— Foi o que eu disse a eles — garantiu Patta, mas, quando percebeu a expressão de surpresa de Brunetti, acrescentou: — Eu sabia que você não ia querer ser afastado do caso Lorenzoni, não depois de ter acabado de reabri-lo.
— E? — Brunetti perguntou.
— Então sugeri que eles escolhessem outra pessoa.
— Alguém com uma experiência mais abrangente?
— Sim.
— Quem? — Brunetti perguntou sem rodeios.
— Eu mesmo, claro — disse Patta, em tom monocórdio e professoral, como se estivesse explicando o ponto de ebulição da água.
Embora não tivesse de fato o mínimo interesse em participar de um programa de televisão, Brunetti sentiu uma raiva imensa frente à tranquila assunção de Patta de que simplesmente poderia falar por ele.
— Foi a TelePadova, não foi? — Brunetti perguntou.
— Sim. O que isso tem a ver? — Patta perguntou. Para o vice-questore, televisão era televisão.
Tomado de repentina maldade, Brunetti respondeu:
— Então é provável que o programa seja direcionado ao público do Vêneto, e devem preferir alguém do local. O senhor sabe, alguém que fale o dialeto, ou que pelo menos soe como se tivesse nascido no Vêneto.
Todo o calor desapareceu da voz e dos gestos de Patta.
— Não consigo ver que diferença isso faria. O crime é um problema nacional, devendo portanto ser tratado nacionalmente, não dividido de província em província, como parece que o senhor acha que deve ser. — Ele cerrou os olhos e perguntou: — O senhor não é por acaso filiado a essa tal de Lega Nord, certo? Ou será que é?
Brunetti, que não era, não acreditava que Patta tivesse o direito de fazer essa pergunta nem de receber uma resposta para ela.
— Eu não tinha percebido que o senhor tinha me chamado para discutir política, senhor.
Não foi sem dificuldade que Patta, com o luminoso prêmio de uma aparição televisiva dançando diante de seus olhos, controlou sua raiva.
— Não, e eu só fiz menção a isso para lhe apontar os perigos desse tipo de pensamento. — Ele abriu um folheto no topo de sua mesa para perguntar, com voz tão calma como se estivesse acabando de apresentar o tema: — Mas e então? O que podemos fazer quanto a essa coisa da televisão?
Brunetti, sempre receptivo à sedução da linguagem, ficou encantado com o uso que Patta fez do plural, assim como da pouca importância que deu ao programa ao chamá-lo de “essa coisa da televisão”. Ele devia estar querendo isso desesperadamente.
— Quando ligarem de volta, diga que não estou interessado.
— E então o quê? — Patta perguntou, esperando para ver o que Brunetti lhe pediria em troca.
— Então sugira o que o senhor achar melhor.
A expressão de Patta deixou claro que ele não acreditava em uma palavra do que Brunetti estava dizendo. No passado ele tivera prova o bastante da instabilidade de seu subordinado, que certa vez se dirigira a um Canaletto que a mulher tinha pendurado na cozinha; Brunetti chegara a recusar uma promoção para trabalhar diretamente para o ministro do Interior em Roma; e agora isso, prova irrefutável de loucura rematada, algo nunca antes visto por Patta, a recusa pura e simples de uma chance de aparecer na televisão.
— Muito bem. Se é assim que você se sente quanto a isso, Brunetti, direi a eles. — E, como era seu costume, Patta moveu alguns papéis de lá para cá sobre a mesa, oferecendo com isso prova de seus afazeres. — Agora, me diga como vão as coisas com os Lorenzoni.
— Eu falei com o sobrinho e com algumas pessoas que o conhecem.
— Por quê? — Patta perguntou, surpreso.
— Porque ele passou a ser o herdeiro. — Brunetti não sabia se isso era verdade, mas, na ausência de outro Lorenzoni do sexo masculino, ele achava que era uma afirmação segura.
— Você está sugerindo que é ele o responsável pela morte do primo? — Patta perguntou.
— Não, senhor, estou sugerindo que ele parece ter sido o principal beneficiado pela morte do primo, daí eu achar que merece ser investigado.
Patta não respondeu a isso, e Brunetti se pôs a pensar se estava absorto em contemplar a interessante nova teoria de que o ganho pessoal pode servir de motivo para um crime e ver se isso poderia ser útil de alguma forma no trabalho policial.
— E o que mais?
— Muito pouco — respondeu Brunetti. — Falta ainda falar com algumas pessoas, e depois eu gostaria de conversar com os pais novamente.
— Com os pais de Roberto?
Brunetti se segurou para não responder que seria difícil falar com os pais de Maurizio, já que o pai estava morto e a mãe estava desaparecida.
— Sim.
— Você sabe quem ele é, naturalmente? — Patta perguntou.
— Lorenzoni?
— Conde Lorenzoni — corrigiu Patta automaticamente. Embora o governo italiano tivesse deixado de usar os títulos de nobreza havia décadas, o vice-questore contava-se entre aqueles que sempre amariam um lorde. Brunetti porém deixou passar.
— Gostaria de falar com ele novamente. E com sua mulher.
Patta começou a objetar, mas, lembrando-se talvez da TelePadova, disse apenas:
— Trate-os bem.
— Sim, senhor — disse Brunetti, e acalentou por um momento a ideia de trazer à baila novamente a promoção de Montisi, mas não disse nada, levantando-se. Patta voltou sua atenção para os papéis em sua mesa e ignorou a saída de Brunetti.
A signorina Elettra ainda não tinha voltado à sua mesa, por isso Brunetti desceu até a sala dos oficiais, em busca de Vianello. Ao encontrar o sargento em sua mesa, Brunetti disse a ele que havia chegado a hora de irem bater um papo com os rapazes que tinham roubado o carro de Roberto.
Vianello sorriu e indicou com a cabeça alguns papéis em sua mesa. Reconhecendo a impressão característica da impressora laser, Brunetti perguntou:
— Elettra?
— Não, senhor. Pensei em ligar para aquela garota que estava saindo com ele. Ela reclamou de assédio policial e disse que já tinha dito tudo para o senhor, mas mesmo assim eu perguntei a ela, obtive os nomes e depois descobri os endereços.
Brunetti apontou para o papel, bem diferente dos rabiscos dos relatórios de Vianello.
— Ela está me ensinando a usar o computador — disse com orgulho que não fez questão de disfarçar.
Brunetti apanhou o papel, mantendo-o suspenso à distância de um braço para conseguir ler as letras menores.
— Vianello, aqui só tem dois nomes e dois endereços. Você precisa de um computador para conseguir isso?
— Senhor, se olhar para os endereços, verá que um deles está em Gênova, servindo o Exército. Foi o computador quem me disse isso.
— Ah! — disse Brunetti, olhando o papel mais de perto. — E o outro?
— Está aqui em Veneza, e eu já falei com ele — respondeu Vianello, amuado.
— Bom trabalho — disse Brunetti, o único jeito que conseguiu pensar de amenizar o amor-próprio ferido de Vianello. — E o que ele disse sobre o carro? E sobre Roberto?
Vianello encarou Brunetti; agora sem mau humor.
— Apenas o que todos estão comentando. Que ele era um figlio di papà com muito dinheiro e nada para fazer. Perguntei sobre o carro, e no início ele negou tudo. Mas eu disse que não aconteceria nada, que nós simplesmente queríamos saber o que tinha acontecido. Então ele me disse que Roberto pediu a eles para fazer aquilo a fim de chamar a atenção do pai. Bem, não foi Roberto quem disse isso, mas o rapaz. Na verdade, ele parecia triste por ele, por Roberto.
Quando viu que Brunetti ia começar a falar, Vianello esclareceu seu comentário.
— Não, não por ele estar morto, ou não apenas por ele estar morto. Me pareceu que ele lamentava que Roberto tivesse de apelar àquele tipo de coisa para chamar a atenção do pai, que ele fosse tão solitário ou tão desorientado.
Brunetti grunhiu em assentimento, e Vianello prosseguiu.
— Eles dirigiram o carro até Verona e o deixaram em um estacionamento, então pegaram o trem de volta pra casa. Roberto deu a eles o dinheiro necessário para tudo, e chegou a levá-los para jantar depois.
— Eles ainda eram amigos na época do desaparecimento, não eram?
— Aparentemente, sim, embora esse com quem falei, Niccolò Pertusi, cujo tio, que conheço, afirma ser um bom rapaz, bem, esse Niccolò disse que Roberto parecia outra pessoa nas semanas que antecederam o sequestro. Cansado, sem propor novas brincadeiras, sempre reclamando estar muito doente e falando dos médicos que estava frequentando.
— Ele tinha apenas vinte e um anos — disse Brunetti.
— Eu sei. Estranho, não é? Eu me pergunto se ele estava doente de fato — riu Vianello. — Minha tia Lucia diria que era um aviso. Somente ela diria que era — e nesse ponto Vianello acrescentou um tom mórbido de ênfase — “um aviso”.
— Não — disse Brunetti. — A mim parece que ele estava doente de fato.
Nenhum dos dois precisava dizer isso. Brunetti balançou a cabeça e foi para seu gabinete fazer a ligação.
Como sempre, ele perdeu dez minutos apenas explicando às várias secretárias e enfermeiras quem ele era e o que queria, seguidos de outros cinco garantindo ao especialista em Pádua, o dr. Giovanni Montini, que precisava mesmo da informação sobre Roberto Lorenzoni. E aguardou ainda mais algum tempo enquanto o médico esperava que uma enfermeira lhe trouxesse o prontuário de Roberto.
Quando por fim o teve em mãos, o médico disse a Brunetti o que o commissario tinha ouvido quando ele próprio começara a sentir os mesmos sintomas: lassidão, enxaqueca e mal-estar generalizado.
— E o senhor chegou a identificar o que estava causando tudo isso, doutor? Afinal de contas, com certeza não é muito comum para um homem no vigor da juventude apresentar esses sintomas, certo?
— Talvez fosse depressão — sugeriu o médico.
— Roberto Lorenzoni não me parecia o tipo depressivo, doutor.
— Não, talvez não — o médico concordou. Brunetti podia ouvir ao fundo o som de páginas sendo viradas. — Não, eu não tenho ideia de qual era o problema — disse o médico por fim. — Os resultados dos exames médicos poderiam ter esclarecido.
— Exames médicos? — Brunetti perguntou.
— Sim, ele era um paciente particular, de modo que podia pagar por eles. Pedi uma bateria completa de testes. — Brunetti podia ter questionado se um paciente com os mesmos sintomas, mas que dependesse do sistema público de saúde, não teria sido submetido aos mesmos testes, mas em vez disso perguntou: — “Poderiam ter esclarecido”, doutor?
— Sim. É que eles não estão no prontuário.
— E por que não?
— Como ele jamais telefonou para marcar o retorno, acho que não chegamos a solicitar os resultados para o laboratório.
— E seria possível fazer isso agora, doutor?
A relutância do médico foi sonora.
— É um tanto irregular.
— Mas o senhor acha que consegue obter os resultados, doutor?
— Não vejo como isso possa ajudar.
— Doutor, a essa altura, qualquer informação que tivermos sobre o garoto poderia nos ajudar a encontrar as pessoas que o assassinaram.
Os anos de experiência de Brunetti o ensinaram que, independentemente de quanto pudessem ficar incomodados frente à palavra “morte”, todos respondiam do mesmo modo à palavra “assassinato”.
Após uma longa pausa, o médico perguntou se ele não poderia requisitar os exames legalmente.
— Posso — respondeu Brunetti —, mas é um processo vagaroso e complicado. Doutor, o senhor poderia economizar muito tempo e papelada se requisitasse.
— É, acho que sim — disse o dr. Montini, novamente com uma relutância audível.
— Obrigado, doutor — disse Brunetti, e deu ao médico o número do fax da questura.
Tendo sido manipulado a enviar o fax, o homem se vingou do único jeito que podia.
— No fim de semana, então — disse, desligando antes que Brunetti pudesse dizer algo.
20
Lembrando-se da recomendação de Patta para tratar bem os Lorenzoni — fosse lá o que isso quisesse dizer —, Brunetti ligou para o celular de Maurizio e perguntou se poderia falar com a família ainda naquela noite.
— Não creio que minha tia esteja em condições de receber ninguém — disse Maurizio, falando em meio ao barulho do que parecia ser o tráfego da rua.
— Então eu preciso falar com o senhor e com seu tio — disse Brunetti.
— Já falamos com o senhor, falamos com todo o tipo de policiais, durante quase dois anos, e aonde isso nos levou? — perguntou o jovem, com palavras que seguiram o roteiro do sarcasmo, mas que foram pronunciadas em tons de pesar.
— Entender seu sentimento — disse Brunetti, consciente de que mentia —, mas preciso de mais informação do seu tio e do senhor.
— Que tipo de informação?
— Sobre os amigos de Roberto. Sobre uma série de coisas. Sobre os negócios da família, por exemplo.
— O que tem a ver os negócios? — Maurizio perguntou, dessa vez tendo que elevar a voz para se fazer ouvir sobre o barulho de fundo. Tudo o que ele disse a seguir foi abafado pela voz de um homem falando de algo que parecia um sistema de informações ao público.
— Onde é que o senhor está? — perguntou Brunetti.
— Na oitenta e dois, chegando no Rialto — respondeu Maurizio, e repetiu sua pergunta. — O que tem a ver os negócios?
— O sequestro pode ter relação com eles.
— Que absurdo! — Maurizio disse em voz alterada, suas próximas palavras sendo engolfadas pela repetição de um aviso informando que a próxima parada era o Rialto.
— A que horas esta noite eu posso passar em sua casa para falarmos? — Brunetti fez a pergunta como se Maurizio não tivesse levantado nenhuma objeção.
Seguiu-se uma pausa em que os dois ouviram apenas o sistema de informações, que agora falava em inglês, então Maurizio disse “Sete” e desligou.
A ideia de que os negócios dos Lorenzoni pudessem ter algo a ver com o sequestro podia ser tudo, menos absurda. Ao contrário, os negócios eram a fonte da riqueza que fez do garoto um alvo. Do que tinha ouvido sobre Roberto, era pouco provável que alguém o tivesse sequestrado pelo prazer de sua companhia ou pelos deleites propiciados por suas conversas. O pensamento viera livremente, mas Brunetti ficou envergonhado por ter seguido com ele mesmo por aquele instante. Deus do céu, o garoto tinha apenas vinte e um anos e foi assassinado com uma bala na cabeça.
Uma curiosa associação de ideias em sua mente fez Brunetti lembrar algo que Paola disse certa ocasião, alguns anos antes, quando ele lhe falou sobre como Alvise, o mais burro dos policiais da força, tinha de repente sido transformado pelo amor, não parando de falar sobre os muitos encantos de sua namorada ou mulher — Brunetti já não lembrava mais o que ela era. Ele se lembrou de si mesmo rindo só de pensar em Alvise apaixonado, gargalhando, até Paola dizer, em tom cortante: “O fato de sermos mais espertos que outras pessoas não significa que nossos sentimentos sejam mais refinados, Guido”.
Sem graça, ele tentou defender seu ponto de vista, mas ela fora, como sempre quando o assunto era a verdade intelectual, ao mesmo tempo rigorosa e implacável. “Para nós é cômodo pensar que os maus sentimentos, como ódio e raiva, possam ser parte das classes baixas, como se elas os possuíssem por direito, o que nos deixaria, veja você, livres para nos arrogar o direito ao amor e ao prazer e a todas aquelas coisas reservadas aos altos espíritos.” Ele tentou protestar, mas ela o cortou com um gesto. “Eles amam, os estúpidos, os burros e os grossos, tão intensamente como nós. Apenas não podem revestir suas emoções em palavras bonitas como nós fazemos.”
Parte dele sabia que ela estava certa, mas ele levou alguns dias para admiti-lo. E agora pensava naquilo de novo: não importava quão arrogante fosse o conde ou quão mimada fosse a condessa, eles eram pais cujo filho único fora assassinado. O fato de seu sangue e modos serem nobres não excluía o fato de que sua dor também o fosse.
Ele chegou às sete, e dessa vez foi recebido por uma criada que o conduziu ao interior do lar dos Lorenzoni. Ela o levou até o mesmo aposento da última vez, para junto das mesmas pessoas de quando estivera ali antes. Só que dessa vez já não eram os mesmos. O rosto do conde estava mais afundado nos ossos da face, o nariz mais afilado e aquilino que antes. Maurizio tinha perdido qualquer vislumbre de saúde ou, antes, de juventude que apresentara na última vez, e parecia estar vestindo roupas bem maiores que seu manequim.
Mas a pior era a condessa. Ela estava sentada no mesmo lugar, mas dava agora a impressão de que a cadeira a estava devorando, tão pouco de seu corpo parecia restar entre os braços do móvel que a envolviam. Brunetti a encarou e ficou chocado à visão dos vazios à frente de suas orelhas, e dos tendões e ossos aparentes nas mãos que se apegavam às contas de um rosário.
Nenhum deles deu mostras de tomar conhecimento de sua entrada no recinto, apesar de a criada ter anunciado seu nome quando o deixou entrar. Repentinamente inseguro sobre como agir, Brunetti falou em direção a um ponto situado entre o conde e seu sobrinho.
— Sei que isso é muito difícil para os senhores, para todos, mas eu preciso saber mais sobre as razões pelas quais Roberto foi levado e descobrir quem pode ter feito isso.
A condessa disse algo tão suavemente que Brunetti não a ouviu. Ele a encarou, mas os olhos dela permaneceram fixos em suas mãos e nas contas que deslizavam entre os dedos.
— Não consigo entender o porquê disso tudo — disse o conde, não fazendo a mínima tentativa de disfarçar sua raiva.
— Agora que sabemos o que aconteceu — começou Brunetti —, continuaremos nossa investigação.
— E para quê? — perguntou o conde.
— Para descobrir os responsáveis por isso.
— E que diferença vai fazer?
— Talvez possamos evitar que aconteça novamente.
— Eles não podem sequestrar meu filho novamente. Não podem matá-lo de novo.
Brunetti olhou de novo para a condessa para ver se ela acompanhava o que estava sendo dito, mas ela não deu nenhum sinal de estar ouvindo.
— Eles podem ser impedidos de fazer isso com outra pessoa, ou com o filho de outra pessoa.
— Isso não tem a mínima importância para nós — disse o conde, e Brunetti percebeu que foi isso mesmo que ele quis dizer.
— Então para garantir que eles sejam punidos? — Brunetti sugeriu. A vingança costumava ser atraente para as vítimas de um crime.
O conde deu de ombros e virou-se para o sobrinho. Por ter a visão do rosto do jovem bloqueada pelo mais velho, Brunetti não soube o que se passou entre eles, mas quando o conde se voltou novamente para ele, perguntou:
— Que tipo de coisa o senhor quer saber?
— Se o senhor alguma vez fez negócios com... — e aqui Brunetti hesitou, não sabendo que eufemismo utilizar. — Se o senhor alguma vez fez negócios com firmas, ou pessoas, que depois descobriu serem criminosos.
— O senhor quer dizer a Máfia?
— Sim.
— Então por que o senhor não diz logo, por Deus?
À explosão do tio, Maurizio se aproximou dele, uma das mãos à altura da cintura, mas a um olhar do conde ele parou, abaixou a mão e recuou.
— A Máfia, que seja — disse Brunetti. — O senhor alguma vez fez negócios com a Máfia?
— Não que eu saiba — respondeu o conde.
— E as firmas com quem o senhor fez negócios, alguma delas esteve envolvida com atividades criminosas?
— Em que mundo o senhor vive? Na Lua? — perguntou o conde de repente, o rosto vermelho de raiva. — É claro que eu faço negócios com companhias envolvidas em atividades criminosas. Estamos na Itália. Não existe outra maneira de fazer negócios aqui.
— O senhor poderia ser mais específico?
O conde moveu as mãos em um gesto que parecia de desprezo pela ignorância de Brunetti.
— Compro matéria-prima de uma empresa que foi multada por despejar mercúrio no rio Volga. O presidente de uma das minhas fornecedoras está na cadeia em Cingapura, por empregar crianças de dez anos de idade e fazê-las cumprir uma jornada de catorze horas por dia. O vice-presidente de uma refinaria na Polônia foi preso sob a acusação de tráfico de drogas. — Enquanto falava, o conde caminhava para a frente e para trás ao longo de uma lareira vazia. Então ele parou em frente de Brunetti e perguntou: — O senhor quer mais?
— Todas elas parecem estar muito longe — disse Brunetti, com calma.
— Muito longe?
— Muito longe daqui. Eu pensava em algo mais perto, talvez na Itália.
O conde pareceu não saber como interpretar o que Brunetti havia dito, ou se respondia com raiva ou com informação. Foi aí que Maurizio decidiu interromper.
— Tivemos alguns problemas há uns três anos com um fornecedor de Nápoles. — Brunetti o olhou interrogativamente, e ele continuou. — Ele fornecia peças para nossos caminhões, mas descobrimos que elas tinham sido roubadas de cargas que haviam passado pelo porto de Nápoles.
— O que aconteceu?
— Trocamos de fornecedor.
— Era um contrato grande?
— Grande o bastante — interrompeu o conde.
— Quão grande? — perguntou Brunetti.
— Cerca de cinquenta milhões de liras por mês.
— As coisas ficaram ruins? Houve ameaças?
O conde deu de ombros.
— Palavras, mas não ameaças.
— Por quê?
O conde levou tanto tempo para responder que Brunetti achou melhor repetir.
— Por quê?
— Eu o indiquei a outra transportadora.
— Uma firma rival?
— Toda firma é rival — disse o conde.
— Houve outro problema? Com um empregado, talvez? Algum deles podia ter ligações com a Máfia?
— Não — interrompeu Maurizio antes que o tio pudesse responder.
Brunetti encarava o conde ao lhe fazer a pergunta e percebeu a surpresa em seus olhos à resposta do sobrinho.
Ele repetiu a pergunta ao conde com calma.
— O senhor sabia do envolvimento de algum de seus empregados com o crime organizado?
O conde balançou a cabeça.
— Não. Não.
Antes que Brunetti pudesse fazer outra pergunta, a condessa falou.
— Ele era o meu bebê. Eu o amava tanto.
Quando Brunetti olhou em sua direção, ela já tinha parado de falar e estava de novo passando as contas por entre os dedos.
O conde se agachou e acariciou sua fina bochecha, mas ela não pareceu perceber seu toque, ou sua presença.
— Acho que isso já foi longe demais — ele disse, levantando-se.
Havia ainda uma coisa que Brunetti queria saber.
— O senhor ainda tem o passaporte?
Como o conde pareceu não entender, Maurizio perguntou:
— O de Roberto? — E quando Brunetti confirmou: — Claro.
— Está aqui?
— Sim, está no quarto dele. Eu o vi lá quando estávamos... Quando limpamos o quarto.
— O senhor poderia pegá-lo para mim?
Maurizio lançou um olhar confuso para o conde, que permaneceu imóvel e calado. Então, o sobrinho pediu licença e por três longos minutos os dois homens ficaram ouvindo a condessa sussurrando ave-marias, as palavras sendo repetidas e repetidas enquanto as contas se chocavam.
Maurizio voltou e entregou o passaporte a Brunetti.
— O senhor poderia me fornecer um recibo por isso? — ele pediu.
O conde abdicou da sugestão com um gesto e Brunetti pôs o passaporte no bolso de seu paletó sem se importar em conferi-lo.
De repente, a voz sussurrada da condessa cresceu em volume.
— Demos tudo a ele. Ele era tudo pra mim — ela disse, e seguiram-se as palavras da ave-maria.
— Acho que isso já foi mais do que o suficiente para minha mulher — disse o conde, voltando a encará-la com olhos cerrados de dor, a primeira demonstração de emoção que Brunetti viu no homem.
— Certo — concordou o commissario, e se voltou para partir.
— Eu o acompanho até a saída — dispôs-se o conde. Com o canto do olho, Brunetti viu que Maurizio dirigiu ao conde um olhar enviesado, mas o homem pareceu não ter notado e dirigiu-se até a porta, que abriu para a passagem de Brunetti.
— Obrigado — disse o commissario, dirigindo o cumprimento a todos no aposento, embora ele duvidasse que um deles tivesse sabido de sua presença ali.
O conde o conduziu até o saguão e abriu a porta da frente do apartamento.
— Será que o senhor consegue pensar em algo mais, signor conte? Qualquer coisa que possa nos ajudar?
— Não, nada mais pode nos ajudar — ele respondeu, quase como se falasse consigo.
— Se o senhor pensar em algo ou lembrar de alguma coisa, eu gostaria que ligasse para mim.
— Não há nada para lembrar — ele respondeu, fechando a porta antes que Brunetti pudesse dizer mais alguma coisa.
Brunetti deixou para examinar o passaporte de Roberto depois do jantar. A primeira coisa que ele notou foi sua grossura: uma folha desdobrável estava colada na parte de trás e dobrada para dentro da capa. Brunetti abriu-a, esticando-a na extensão do braço, e pôs-se a examinar os diversos vistos, os diferentes idiomas e formatos. Virou-a e descobriu mais selos na parte de trás. Dobrou a folha de volta e abriu o passaporte na primeira página.
Emitido havia seis anos e renovado todo ano até o sumiço de Roberto, o passaporte registrava sua data de nascimento, sua altura, seu peso e seu endereço. Brunetti folheou as primeiras páginas do passaporte: não havia, claro, nenhum carimbo dos países membros da Comunidade Europeia, mas havia carimbos dos Estados Unidos, do México, da Colômbia e da Argentina. Depois, em sequência imediatamente cronológica, Polônia, Bulgária e Romênia. Então, a ordem cronológica era interrompida, como se os agentes alfandegários simplesmente carimbassem o documento na primeira página em que abrissem.
Brunetti foi até a cozinha para pegar papel e caneta, passando então a relacionar as viagens de Roberto em rigorosa ordem cronológica. Após uns quinze minutos ele obteve duas folhas de papel cheias de colunas de lugares e datas, todas um pouco confusas devido às muitas inserções que ele teve de fazer quando encontrava carimbos feitos ao acaso.
Após anotar os lugares e as datas de todos os carimbos, ele recopiou a lista de um modo mais ordenado, o que exigiu agora três folhas de papel. O último lugar visitado por Roberto, dez dias antes de seu sequestro, foi a Polônia, onde ele entrou pelo aeroporto de Varsóvia. O carimbo de saída indicava que ele passou apenas um dia lá. Antes disso, três semanas antes do sequestro, ele viajou a dois países cujos nomes estavam registrados em alfabeto cirílico, que Brunetti concluiu serem Belarus e Tadjiquistão.
Então ele foi pelo corredor até a porta do escritório de Paola, que olhou para o marido por cima dos óculos.
— Sim?
— Como é que anda o seu russo?
— Você quer dizer meu namorado ou o idioma? — ela perguntou, pousando sua caneta e tirando os óculos.
— Não, o que você faz com seu namorado é assunto seu — ele disse com um sorriso. — O idioma.
— Em algum ponto entre Púchkin e sinais de trânsito, acho.
— Nomes de cidades?
Ela estendeu as mãos para pegar o passaporte que ele estava segurando. Ele se aproximou da mesa, passou o passaporte e ficou atrás dela, puxando distraidamente um fio solto nos ombros do suéter.
Pegando o passaporte, ela perguntou.
— Qual?
— Atrás, na página extra.
Abrindo o passaporte, ela abriu a página em toda a sua extensão.
— Brest.
— Onde fica?
— Belarus.
— Nós temos um atlas?
— No quarto de Chiara, acho.
Quando ele voltou, ela já tinha copiado os nomes das cidades e dos países em um pedaço de papel. Depois que Brunetti pôs o atlas do lado dela, Paola disse:
— Antes de procurar é melhor ver em que ano ele foi impresso.
— Por quê?
— Muitos nomes foram mudados. Não apenas de países, mas de cidades também.
Ela pegou o livro e abriu na página de rosto.
— Acho que vai servir. É do ano passado. — Foi até o índice, procurou por Belarus e abriu o mapa.
Por um momento, eles estudaram o mapa do pequeno país situado entre a Polônia e a Rússia.
— É um daqueles que são chamados agora de “repúblicas libertadas”.
— É uma pena que somente os russos tenham conseguido se libertar — disse Brunetti, imaginando a glória que seria para o norte da Itália livrar-se de Roma.
Paola, acostumada a isso, ignorou-o, colocou de novo os óculos e se inclinou sobre o mapa, colocando um dedo sobre um nome.
— Eis aqui o primeiro. Na fronteira com a Polônia.
Mantendo o dedo ali, Paola continuou a estudar o mapa. Após alguns momentos, ela usou a outra mão para apontar outro lugar.
— E aqui está o segundo. Parece que fica a não mais que cem quilômetros do primeiro.
Brunetti pôs a página aberta do passaporte ao lado dela e olhou de novo para os carimbos. Os números e datas estavam grafados no estilo ocidental.
— Os dois no mesmo dia — ele disse.
— E o que isso quer dizer?
— Que ele foi por terra da Polônia até Belarus e ficou lá apenas um dia, talvez menos, antes de voltar.
— E por que isso é estranho? Você mesmo disse que ele era um tipo de garoto de recados nos negócios. Talvez ele tenha ido levar um contrato ou buscar uma encomenda.
— Hum — concordou Brunetti, esticando-se para pegar o atlas e começar a virar suas páginas.
— O que você está procurando?
— Gostaria de saber que rota ele pegou para chegar aqui — ele respondeu, analisando o mapa da Europa Oriental e deslocando seu dedo ao longo da rota mais provável. — Talvez pela Polônia e depois pela Romênia, se foi de carro.
Paola o interrompeu.
— Roberto não parece do tipo que viajaria de ônibus.
Brunetti assentiu, o dedo ainda sobre o mapa.
— E depois, Áustria, descendo por Tarvisio e Udine.
— Você acha que isso tem alguma importância?
Brunetti deu de ombros.
Perdendo o interesse, Paola dobrou a grande página de volta para o passaporte e o devolveu a ele.
— Se é importante, então eu lamento que você jamais venha a saber, já que ele nunca vai poder lhe dizer — ela disse, e voltou a se concentrar no livro que continuava aberto à sua frente.
— Há mais coisas entre o céu e a terra do que sonha a nossa vã filosofia, Horácio — Brunetti respondeu, a mesma frase que ela já tinha usado com ele mais de uma vez.
— E o que isso significa? — ela perguntou, sorrindo para ele, feliz porque Brunetti vencera um assalto.
— Que estamos na era do plástico.
— Plástico? — ela repetiu, sem entender.
— E computadores.
Quando nem assim ela entendeu, ele sorriu e disse, arremedando perfeitamente o tom de um locutor televisivo.
— Jamais saia de casa sem seu cartão de crédito American Express. — E, vendo que ela começava a entender, acrescentou: — Pois assim posso seguir seus passos no... — e Paola, entendendo tudo afinal, se juntou a ele para terminar a oração — ... computador da signorina Elettra.
21
— Claro que se pode pagar prostitutas com cartão de crédito — insistia a signorina Elettra a um admirado Brunetti, de pé em frente à mesa dela, dois dias depois, segurando uma fatura de quatro páginas com os lançamentos feitos nos três cartões de crédito de Roberto nos dois meses anteriores ao sequestro.
Sob quaisquer padrões, seus gastos eram enormes, superando cinquenta milhões de liras, mais do que a maioria das pessoas ganhava em um ano. As despesas tinham sido convertidas para lira a partir de um leque de moedas, algumas familiares, outras nem tanto: libras, dólares, marcos, lev, zlótis, rublos.
Brunetti estava na terceira página, avaliando as despesas de um hotel em São Petersburgo. Em dois dias, Roberto torrara mais de quatro milhões de liras em serviço de quarto. Dava a impressão de que ele não saíra do quarto nem por um instante, recebendo ali todas as refeições e bebendo apenas champanhe, não fosse pelo fato de a fatura listar também enormes despesas em restaurantes e no que pareciam discotecas ou boates: Pink Flamingo, Can Can e Elvis.
— Só pode ser isso — insistiu a signorina.
— Mas Visa? — perguntou Brunetti, incapaz de acreditar naquilo que parecia saltar aos seus olhos.
— Os homens do banco em que eu trabalhava faziam isso sempre — ela disse. — Em quase todos os países do Leste é possível fazer isso agora. Aparece na fatura como serviço de quarto, lavanderia ou manobrista, dependendo apenas de como o hotel escolheu lançar a despesa. Mas isso é apenas um jeito de eles receberem a comissão. E de controlar quem entra e quem sai dos hotéis. — Percebendo que tinha apanhado Brunetti, ela continuou: — Os saguões estão repletos delas. Vestidas como nós. Quer dizer, do jeito ocidental. Armani, Gucci, Gap, e muito bonitas. Um dos vice-presidentes me disse que ele foi abordado por uma delas, em inglês. Isso foi há uns quatro anos. Um inglês perfeito, de uma professora em Oxford. E ela era mesmo professora, mas da universidade local, não de Oxford. Recebia menos de cinquenta mil liras por mês ensinando poesia inglesa, o que a levou a procurar um rendimento extra.
— E aperfeiçoar seu inglês?
— Nesse caso, acho que o italiano, senhor.
Brunetti olhou de novo para os papéis. Sua imaginação sobrepunha à informação neles contida o mapa da Europa Oriental que ele e Paola tinham estudado duas noites antes. Ele seguiu a rota oriental de Roberto, localizando a compra de gasolina bem na fronteira com a Tchecoslováquia; um novo pneu, absurdamente caro, em algum ponto da Polônia, e mais gasolina na cidade em que ele obtivera seu visto de entrada em Belarus. Havia uma despesa de estadia em um hotel em Minsk, muito mais caro que os de Roma ou de Milão, e um jantar também muito caro. Três garrafas de vinho da Borgonha constavam na fatura — a única palavra ali que Brunetti conseguiu entender —, então devia ter sido um jantar para mais de uma pessoa, talvez um daqueles jantares de negócio pelos quais ele recebia o suficiente para partilhar com os clientes. Mas em Minsk?
Como essa lista estava em ordem cronológica, Brunetti podia também identificar os movimentos de Roberto enquanto ele cruzava o continente, seguindo bem de perto o caminho que tinha traçado para ele: Polônia, Tchecoslováquia, Áustria, e depois de volta para a Itália, onde ele colocou mais cinquenta mil liras de gasolina em Tarvisio. Então, uns três dias antes do sequestro, os lançamentos acabaram, logo depois de ele gastar mais de trezentas mil liras em uma farmácia perto de sua casa.
— O que a senhorita acha?
— Acho que eu não teria gostado muito dele — disse Elettra com frieza.
— E por que não?
— Não costumo gostar de quem não paga as próprias contas.
— E ele não pagava?
Ela folheou o relatório de volta para a primeira página e apontou para a terceira linha, que fornecia o nome do destinatário da fatura: “Indústrias Lorenzoni”.
— Era o cartão corporativo dele, ora.
— Para despesas de trabalho?
Brunetti balançou a cabeça.
— É o que me parece.
— Então o que é isto? — ela perguntou, indicando uma despesa de dois milhões e setecentas mil liras de um alfaiate em Milão. — Ou isto? — Desta vez ela destacou um recibo de setecentas mil liras por uma bolsa da Bottega Veneta.
— A companhia é do pai dele — Brunetti argumentou.
Ela deu de ombros.
Brunetti achou estranho que a signorina Elettra, uma mulher da qual se acostumara a não esperar esse tipo de moralismo convencional, achasse o comportamento de Roberto tão reprovável.
— A senhora não gosta dos ricos? — ele perguntou finalmente. — É isso?
Ela negou, balançando a cabeça.
— Não, não se trata disso. Talvez eu simplesmente não goste de jovens mimados que gastam o dinheiro dos pais com prostitutas. — E com isso ela empurrou os papéis na direção de Brunetti e voltou a seu computador.
— Mesmo ele estando morto? — Brunetti perguntou.
— Isso não muda nada, dottore.
Sem tentar esconder seu espanto, talvez até mesmo seu desapontamento, Brunetti pegou os papéis e saiu.
Da farmácia, ele soube que as receitas eram do médico da família de Roberto, sem dúvida parte da tentativa dele de tratar os sintomas de mal-estar e fadiga generalizada. Nenhum dos funcionários da farmácia se lembrava de Roberto, e menos ainda de haver fornecido os remédios receitados.
Sentindo-se em um beco sem saída, com nada mais que uma sensação de que havia algo de brutalmente errado tanto com o sequestro quanto com os Lorenzoni, Brunetti decidiu se aproveitar da família para a qual tinha entrado pelo casamento e ligou para o número do conde. Dessa vez foi seu sogro que atendeu.
— Sou eu — disse Brunetti.
— Sim? — perguntou o conde.
— Queria saber se o senhor soube de mais alguma coisa sobre os Lorenzoni desde a última vez que nos falamos.
— Falei com algumas pessoas que disseram que a mãe está um trapo. — Dito por qualquer outra pessoa, isso soaria como um convite à fofoca, não uma simples afirmação de um fato.
— É, eu a vi.
— Lamento — disse o conde, e então acrescentou: — Ela era uma mulher adorável. Conheci-a há anos, antes de ela se casar. Era vibrante, divertida, muito bonita.
Surpreso consigo por não ter indagado sobre a história da família, concluindo apenas que eles eram ricos o bastante, Brunetti perguntou:
— O senhor também o conhecia?
— Não, só o conheci depois do casamento.
— Mas eu pensava que os Lorenzoni fossem bastante conhecidos.
O conde suspirou.
— Que foi? — perguntou Brunetti.
— Foi o pai de Ludovico que entregou os judeus para os alemães.
— Sim, eu sei disso.
— Todo mundo sabe, mas nunca se provou, então nada aconteceu com eles com o fim da guerra. Mas nenhum de nós voltaria a falar com ele. Nem mesmo seus irmãos mantinham relações com o homem.
— E Ludovico?
— Ele passou a guerra na Suíça, com parentes. Era apenas um bebê na época.
— E depois da guerra?
— O pai não viveu muito. Ludovico não voltou a vê-lo, voltando para Veneza apenas depois de sua morte. Não havia muito para herdar, apenas o título e o palazzo, nada mais. Ele voltou e fez as pazes com os tios e as tias. Mas, mesmo então, parecia que ele só conseguia pensar em tornar o nome da família tão célebre que todos se esqueceriam do pai.
— Aparentemente, ele foi bem-sucedido nisso.
— Sim, de fato.
Brunetti conhecia o suficiente dos negócios do sogro para saber que muitos deles coincidiam, e talvez até mesmo rivalizassem, com os dos Lorenzoni, e assim aceitou a avaliação do conde sobre o outro.
— E agora? — Brunetti perguntou.
— E agora? Agora, tudo o que ele tem é um sobrinho.
Brunetti percebeu que os dois caminhavam sobre ovos aqui. O próprio conde Orazio não tinha nenhum filho para carregar o nome da família, nem um sobrinho para cuidar dos negócios. Em vez disso, tinha uma filha, que se casara não com um homem de seu mesmo nível hierárquico, mas com um policial que parecia fadado a jamais ir além do posto de commissario. A mesma guerra que havia levado o pai de Ludovico a cometer crimes contra a humanidade fizera do pai de Brunetti o capitão de um regimento de infantaria que tinha entrado na Rússia em botas com solado de papel para lutar contra os inimigos da Itália. Eles tiveram que lutar uma batalha perdida contra o inverno russo, e os poucos que sobreviveram, como o pai de Brunetti, ficaram desaparecidos por anos nos gulags de Stálin. O homem de cabelos brancos que voltou para Veneza em 1949 ainda era um capitão e viveu o resto de seus anos com uma pensão de capitão, mas com o peso dos crimes que haviam sido cometidos contra seu espírito, e Brunetti, um menino, raramente viu em seu pai algum traço do homem alegre e brincalhão com o qual sua mãe havia se casado.
Libertando-se das tenazes da memória e do seu envolvimento com os Lorenzoni, Brunetti disse:
— Tentei falar com Paola.
— Tentou?
— Não é fácil.
— Dizer a uma pessoa que a ama?
Espantado em ouvir algo tão passional vindo do conde, Brunetti não disse nada.
— Guido?
— Sim?
Brunetti se preparou para ouvir uma reprimenda do conde, mas em vez disso ouviu um longo silêncio, tão longo quanto o seu próprio havia sido.
— Eu compreendo. Não foi minha intenção ser rude.
O conde não disse mais nada, e Brunetti preferiu considerar aquilo um pedido de desculpas. Por vinte anos ele e o conde negaram o fato de que, embora o casamento os tivesse tornado parentes, não tivera sucesso em torná-los amigos, e apesar disso o conde estava ali, aparentemente oferecendo isso mesmo.
Outro silêncio se impôs. Finalmente, o conde o rompeu.
— Tome cuidado com essa gente, Guido.
— Com os Lorenzoni?
— Não. Com quem quer que tenha sequestrado o rapaz. Ele não parece ter sido torturado. E o Lorenzoni pode ter dado a eles o dinheiro. Isso também foi algo que eu ouvi por aí.
— O quê?
— Um amigo me disse que ele ouviu um boato de que alguém teria oferecido um empréstimo ao conde.
— Toda a quantia?
— Sim, o que ele precisasse. Claro que os juros seriam proporcionais ao momento, mas a oferta foi feita.
— Quem?
— Isso não importa.
— E o senhor acredita nisso?
— Sim, é verdade. Mas mesmo assim eles o mataram. Lorenzoni poderia ter dado um jeito de entregar o dinheiro a eles, disso não restam dúvidas. Mas o mataram antes mesmo que o conde tivesse a chance de fazer o dinheiro chegar a eles.
— E como teria feito isso? Ele estava sendo monitorado pela polícia.
O arquivo sobre o sequestro demonstrava quão de perto os Lorenzoni e seus bens estavam sendo vigiados.
— Pessoas são sequestradas o tempo todo, Guido, e os resgates são pagos sem a polícia ser informada. Não é nada difícil de ser arranjado.
Brunetti sabia que isso era verdade.
— E ele ou a pessoa que emprestaria o dinheiro entrou em contato com os sequestradores?
— Não. Não aconteceu mais nada depois do segundo bilhete, e portanto ele não teve que pegar o empréstimo.
Pelo arquivo, Brunetti sabia que a polícia não tinha nenhuma pista do crime. Nada, nem rumores de sua rede de informantes. O garoto tinha sumido no vácuo, e todos os traços tinham sido perdidos até o momento em que o que restara dele apareceu em uma vala.
— É por isso que eu estou lhe dizendo para tomar cuidado, Guido. Se eles mataram o garoto mesmo sabendo que seria fácil conseguir o dinheiro, é sinal de que são perigosos.
— Tomarei cuidado — disse Brunetti, espantado com o número de vezes em que repetira essas mesmas palavras para a filha desse homem. — E obrigado.
— Não tem de quê. Ligo para você se souber de algo mais. — E com isso o conde desligou.
“Por que sequestrar alguém e não pegar o resgate?”, Brunetti se perguntou. As descrições do estado de saúde de Roberto nas semanas anteriores ao sequestro eram um claro indicativo de que ele dificilmente teria oferecido qualquer resistência ou tentado escapar de seus sequestradores. De modo que eles tinham consigo alguém que seria fácil manter em cativeiro. E mesmo assim o mataram.
E o dinheiro. Apesar dos esforços do governo, a quantia foi prontamente posta à disposição do conde, um homem que era sem dúvida nenhuma esperto e bem relacionado o suficiente para descobrir um modo de entregar o dinheiro aos sequestradores.
E, apesar disso, o terceiro bilhete não veio. Brunetti remexeu a pilha de papéis sobre sua mesa até encontrar o primeiro relatório feito pela polícia de Belluno, lendo de novo os primeiros parágrafos. O corpo, dizia-se, foi encontrado coberto em parte por apenas alguns centímetros de terra, um dos motivos pelos quais tinha sido tão danificado pela ação dos animais. Folheando a pasta até o fim, ele abriu o envelope que continha as várias fotos que haviam sido feitas do corpo. Tirou daí as que foram registradas no local original e as espalhou sobre a mesa.
Sim, os ossos estavam bem ali, próximos da superfície. Em algumas das fotos dava para ver o que pareciam fragmentos despontando pela grama ao lado do sulco, na parte do terreno que ainda não tinha sido arada. O enterro de Roberto tinha sido um evento apressado e descuidado, como se seus assassinos não se importassem se o corpo fosse descoberto.
E o anel. O anel. Talvez, como a namorada, Roberto tivesse tentado escondê-lo no começo, quando podia ainda estar pensando que se tratava apenas de um roubo, enfiando-o no bolso, e tivesse se esquecido dele. Como a maior parte das coisas relativas ao sequestro de Roberto, não dava para saber o que tinha acontecido.
As reflexões de Brunetti foram interrompidas por Vianello, que entrou em seu gabinete, resfolegando pesadamente por ter subido correndo as escadas.
— O que foi?
— Lorenzoni — o sargento balbuciou.
— O quê?
— Ele matou o sobrinho.
22
Vianello parecia arrasado com a notícia. Mal conseguiu falar por alguns momentos e teve que apoiar um braço na porta, a cabeça pendendo enquanto respirava fundo. Finalmente, ao recuperar o fôlego, prosseguiu.
— Acabamos de receber o telefonema.
— Quem ligou?
— Ele. Lorenzoni.
— O que aconteceu?
— Não sei. Foi Orsoni que atendeu, e o conde disse a ele que o garoto o atacou e que houve uma luta.
— Algo mais? — perguntou Brunetti, passando por Vianello em direção ao corredor. Juntos, dirigiram-se à porta da frente, rumo às lanchas da polícia. Brunetti levantou um braço para chamar a atenção do guarda.
— Cadê o Montisi? — ele gritou. Várias cabeças se voltaram pelo tom de urgência de sua voz.
— Está fora, senhor.
— E já o chamei — disse Vianello, chegando atrás.
— Conte-me o resto — disse Brunetti, empurrando a pesada porta de vidro.
Com um aceno para Montisi, Brunetti saltou para dentro da lancha e se voltou para puxar Vianello para o barco que já se movia.
— E o que mais?
— Nada, senhor. Isso é tudo o que ele disse.
— E como é que ele o atacou? Com o quê? — Brunetti elevou a voz devido ao rugido do motor em aceleração do barco.
— Não sei, senhor.
— Orsoni não perguntou? — Brunetti indagou, dirigindo sua raiva contra Vianello.
— Ele disse que o conde desligou. Contou o que tinha feito e desligou.
Brunetti bateu a palma de sua mão contra a murada do barco e, como se tivesse sido movido pelo golpe, o barco zarpou rumo ao trecho marítimo do Bacino, atravessando o rastro espumoso de um táxi para se chocar com a água num baque sonoro. Montisi ligou a sirene, e seu uivo intermitente os precedeu por todo o Grand Canal até eles estacionarem na doca privativa do palazzo Lorenzoni.
O portão aquático estava aberto, mas não havia ninguém por ali para recebê-los. Vianello foi o primeiro a descer do barco, mas deu um passo em falso, errando o degrau mais elevado e pisando no inferior; caiu direto na água, que cobriu seu tornozelo, o que ele quase não percebeu, voltando-se para a um só tempo puxar e apoiar Brunetti enquanto ele dava um longo salto para o degrau mais alto. Depois correram juntos pelo escuro corredor de entrada, cruzando uma porta à direita que conduzia a uma escada iluminada. No topo dessa escada os aguardava a criada que havia deixado Brunetti entrar da última vez. O rosto da mulher estava pálido e ela apertava os braços em torno de si mesma, como se tivesse recebido um forte soco no estômago.
— Onde é que ele está? — Brunetti perguntou.
Liberando um braço, ela apontou para outra escada no fim do corredor, repetindo o gesto uma, duas vezes com a mão estendida.
Os dois foram até a escada e se lançaram rápido para cima. Chegando ao primeiro andar, pararam, tentando escutar algo, mas não ouviram nada, continuando então até o próximo. Ao se aproximarem do topo, o que era um som discreto, de uma única voz masculina, ficou ainda menos audível. Ele vinha de uma porta aberta à esquerda dos policiais.
Brunetti foi direto para o quarto. O conde Lorenzoni estava sentado ao lado da mulher, segurando uma das mãos dela entre as suas, falando baixinho com ela. Quem quer que visse aquela cena julgaria tratar-se de um retrato de domesticidade e ordem: um homem entrado em anos, sentado, conversando em voz baixa com a mulher, a mão dela gentilmente abrigada entre as dele. Isso pelo menos até olharem para baixo e perceberem que a metade inferior das calças do homem e seus sapatos estavam banhados em sangue, cujos respingos salpicavam suas mãos e seus punhos.
— Gesù bambino — Vianello sussurrou.
O conde olhou para eles, depois olhou de novo para a mulher.
— Não se preocupe, querida, está tudo bem agora. Estou bem. Não aconteceu nada.
Sob o olhar de Brunetti, o conde soltou a mão da mulher, e o commissario pôde ouvir um som quase inaudível de sucção enquanto suas mãos cobertas de sangue largavam as dela. O conde ficou de pé e se afastou da mulher. Brunetti não percebeu nenhum sinal de que a condessa tivesse percebido que o marido tinha conversado com ela ou de que se afastara.
— Por aqui — disse o conde, conduzindo-os para fora do quarto, voltando até a escada para o piso inferior. Lá, foi pelo corredor até o cômodo em que Brunetti conversara com ele duas vezes. O conde empurrou a porta, mas não fez menção alguma de entrar. Não disse nada, apenas balançando a cabeça quando Brunetti o conduziu com um gesto para o interior do aposento.
Brunetti entrou, seguido de perto por Vianello. O que viu lá dentro fez com que entendesse a recusa do conde. A pior parte era o cimo das cortinas das janelas externas, que haviam absorvido tudo o que tinha restado da força dos fragmentos do disparo. Elas também tinham se impregnado de toda a maçaroca de miolos e sangue que fora expelida do crânio de Maurizio. O corpo do jovem jazia curvado ao pé das cortinas, empurrado, ou colapsado, em posição fetal. O rosto de Maurizio tinha escapado à força do disparo; a parte de trás de sua cabeça não existia mais. O cano devia ter ficado bem embaixo de seu queixo quando o tiro foi dado. Brunetti percebeu tudo isso antes de se virar.
Ele voltou até o corredor pensando no que devia fazer, imaginando se alguém, na sequência de sua partida repentina da questura, teria cogitado mandar para o palazzo o pessoal da perícia.
O conde não estava mais por ali. Vianello saiu logo depois de Brunetti, respirando com tanta dificuldade e esforço quanto quando tinha entrado havia pouco no gabinete de Brunetti.
— Será que você podia ligar para eles e ver se já mandaram a perícia? — pediu Brunetti.
Vianello tinha começado a dizer algo, mas parou, anuindo.
— Deve haver outro telefone — disse Brunetti. — Tente um dos quartos.
Vianello assentiu.
— E o senhor?
Brunetti apontou as escadas com o queixo.
— Vou até lá falar com eles.
— Eles?
— Ele.
Dessa vez, o aceno de Vianello indicava que ele estava novamente no controle. Virou-se, caminhando pelo corredor sem olhar para o quarto onde jazia o corpo de Maurizio.
Brunetti se forçou a voltar até a porta do quarto e olhou para dentro. A espingarda estava jogada à direita do corpo, o cano brilhante a apenas um centímetro da poça de sangue que escorria em sua direção. Dois pequenos tapetes estavam jogados um sobre o outro, amarrotados, testemunhas silenciosas da luta que ocorreu sobre eles. Uma jaqueta masculina estava caída do lado de dentro formando um monte; Brunetti percebeu que a parte da frente estava coberta de sangue.
Ele se voltou, fechando a porta atrás de si, e foi até as escadas. Encontrou o conde e a condessa do jeito que os havia deixado, embora as mãos dele já não tivessem mais sangue. Quando entrou, o conde o encarou novamente.
— Posso falar com o senhor? — Brunetti perguntou, ao que o conde assentiu, uma vez mais soltando as mãos da mulher.
No corredor, Brunetti disse:
— Onde podemos falar?
— Aqui é um lugar tão bom quanto qualquer outro — respondeu o conde. — Quero ficar perto dela.
— Ela sabe o que aconteceu?
— Ela ouviu o tiro.
— Daqui de cima?
— Sim. Sim. E depois foi para baixo.
— Até aquele quarto? — Brunetti perguntou, não conseguindo disfarçar seu horror.
O conde assentiu.
— E ela o... viu?
Dessa vez, o conde deu de ombros.
— Quando ouvi seus chinelos no corredor e percebi que ela se aproximava, fui até a porta. Pensei que ela me veria e que eu poderia bloquear sua visão.
Brunetti, lembrando-se da jaqueta do lado de dentro da porta no andar de baixo, perguntou-se que diferença isso poderia ter feito.
De repente, o conde se virou.
— Talvez seja melhor descermos — ele disse, guiando Brunetti até o próximo aposento, em que havia uma mesa, uma cadeira e uma prateleira cheia de livros contábeis.
O conde sentou-se bem perto da porta, acomodando-se em uma poltrona acolchoada. Repousou a cabeça no encosto, fechou os olhos por um momento e em seguida os abriu, encarando Brunetti. Mas não disse nada.
— O senhor pode me dizer o que aconteceu?
— Ontem, tarde da noite, depois que minha mulher foi dormir, perguntei a Maurizio se podíamos conversar. Ele estava nervoso. Eu também. Disse a ele que tinha começado a repensar tudo sobre o sequestro, como tinha acontecido e como os criminosos deviam saber muito sobre a nossa família e a rotina de Roberto. Para esperarem por ele na villa, deviam saber que iria para lá naquela noite.
O conde mordeu o lábio, olhando para a esquerda.
— Eu disse a ele, a Maurizio, que não acreditava mais que tinha sido um sequestro, que alguém queria dinheiro em troca de Roberto.
O conde se calou aqui, até Brunetti provocá-lo.
— E o que foi que ele disse?
— Ele pareceu não entender. Disse que havia os bilhetes de resgate, que tinha que ter sido um sequestro. — O conde afastou a cabeça do encosto e sentou-se ereto. — Ele viveu comigo a maior parte da vida. Maurizio e Roberto cresceram juntos. Ele era meu herdeiro.
Ao pronunciar essa palavra, os olhos do conde se encheram de lágrimas.
— Foi por isso — ele disse em uma voz de repente tão baixa que Brunetti teve que fazer esforço para ouvi-lo. E não disse mais nada.
— O que mais aconteceu na noite passada? — perguntou Brunetti.
— Eu disse a ele que queria que ele me contasse o que tinha feito quando Roberto desapareceu.
— O inquérito diz que ele estava aqui, com o senhor.
— E estava. Mas eu me lembro que ele cancelou um encontro naquela noite, um jantar de negócios. Era como se quisesse estar aqui, conosco, naquela noite.
— Então não pode ter sido ele — disse Brunetti.
— Mas ele pode ter pago alguém para fazê-lo — disse o conde, e Brunetti não duvidou de que ele acreditava nisso.
— O senhor disse isso para ele?
O conde negou.
— Disse a ele que daria um tempo para que pensasse sobre isso, sobre a minha suspeita. Disse que ele mesmo podia procurar a polícia. — O conde sentou-se ereto. — Ou então fazer o que era digno.
— Digno?
— Digno — repetiu o conde, sem se dar ao trabalho de explicar.
— E?
— Ele permaneceu fora todo o dia de ontem. Não permaneceu no escritório, porque eu liguei para lá e perguntei. Então, ontem à noite, depois que minha mulher já havia se retirado, ele veio até o quarto, ele deve ter ido até a villa para pegá-la, ele veio até o quarto com a espingarda. E disse... Ele disse... que eu estava certo. Contou coisas horríveis sobre Roberto, coisas que não eram verdade. — Então o conde não pôde mais conter as lágrimas, que jorraram pelo seu rosto, sem que no entanto ele se preocupasse em secá-las.
— Ele disse que Roberto não valia nada, que era um playboy mimado, e que ele, Maurizio, era o único que entendia dos negócios, o único que era bom o bastante para herdar tudo. — O conde olhou para Brunetti para ver se ele podia compreender o horror que sentia por ter criado esse monstro.
— Então veio em minha direção com a espingarda. No começo eu não conseguia acreditar, não conseguia acreditar em tudo o que ele tinha dito. Mas então ele disse que faria parecer que fora eu que tinha feito tudo, abalado pela morte de Roberto. E foi então que eu percebi que ele falava sério.
Brunetti esperou.
O conde engoliu e enxugou o rosto com a manga da camisa, manchando suas bochechas com o sangue de Maurizio.
— Ele veio pra cima de mim, segurando a arma e pressionando-a contra meu peito. Então a colocou debaixo do meu queixo, dizendo que havia pensado sobre isso, e que tinha de ser feito desse jeito. — O conde fez uma pausa, lembrando-se do terror da cena.
— Quando ele disse isso eu devo ter ficado louco. Não, não porque ele ia me matar, mas porque ele fora tão frio, porque planejara tudo. E pelo que tinha feito a Roberto.
O conde parou de falar, a mente se afastando com essa lembrança. Brunetti arriscou uma pergunta.
— O que aconteceu?
O conde balançou a cabeça.
— Não sei. Acho que dei um chute nele ou o empurrei. A única coisa de que me lembro é de encostar a arma nele apoiando-a no meu ombro. Eu queria jogá-lo no chão. Mas então a arma disparou e eu senti tudo sobre mim, seu sangue. Outras coisas. — Ele parou de falar e esfregou o peito violentamente, pego pela lembrança daquela violenta cachoeira.
Ele olhou para suas mãos, agora limpas.
— E foi então que ouvi minha mulher vindo pelo corredor, chegando até o quarto, chamando por mim. Lembro que a vi na porta, lembro-me de ir até ela. Mas não lembro de mais nada, pelo menos não com exatidão.
— Lembra-se de ter ligado para nós?
O conde assentiu.
— Sim, acho que sim. E então vocês chegaram.
— Como foi que o senhor e sua mulher voltaram para o andar de cima?
O conde balançou a cabeça.
— Não me lembro. Na verdade, eu não me lembro de muita coisa entre o momento em que a vi à porta e o momento em que vocês chegaram.
Brunetti olhou para o conde, enxergando-o pela primeira vez despido de todas as camadas de riqueza e posição, e o que viu era um homem alto, magro, velho, o rosto coberto de lágrimas e muco, sua camisa ensopada de sangue humano.
— Se o senhor quiser se limpar — sugeriu Brunetti, a única coisa que conseguiu pensar em dizer. E enquanto falava, sabia que era totalmente antiprofissional dizer o que disse, e que o conde devia continuar naquelas roupas até que o pessoal da perícia o fotografasse nelas, mas aquilo revoltava Brunetti, e ele repetiu: — Talvez o senhor queira se trocar.
A princípio, o conde pareceu confuso pela sugestão de Brunetti, e foi então que olhou para baixo, para si próprio, e Brunetti viu seus lábios tremerem de nojo à sua visão.
— Meu Deus — ele murmurou levantando-se, apoiando-se nos braços da poltrona. Permaneceu meio bambo, os braços distantes do corpo, como se temeroso que suas mãos entrassem em contato com a roupa empapada.
Viu que Brunetti o observava e se voltou. O commissario o acompanhou para fora do quarto e o viu parar uma vez e cambalear de encontro à parede, mas, antes que Brunetti pudesse chegar até ele, o conde conseguiu se apoiar nela esticando a mão. Afastando-se da parede no fim do corredor, o conde foi até o quarto à direita, não se importando em fechar a porta às suas costas. Brunetti continuou pelo corredor e parou à porta. Ao ouvir o ruído de água corrente, ele olhou para dentro e viu a trilha deixada pelas roupas que o conde largara pelo chão enquanto se dirigia à porta do que devia ser um banheiro de hóspedes.
Brunetti esperou por uns cinco minutos, mas o som da água continuou a ser a única coisa que ele ouvia. Estava ainda ouvindo, não sabendo se entrava para ver se o conde estava bem, quando o barulho parou. Foi então, no silêncio que se expandiu em sua direção, que ele ouviu os outros sons vindos de baixo, as batidas e ruídos familiares de metal que diziam a Brunetti que a perícia tinha chegado. Abandonando seu papel de protetor do conde, o commissario foi até lá embaixo, voltando para o quarto onde o segundo herdeiro dos Lorenzoni encontrara sua morte cruel.
23
Brunetti passou as horas seguintes em um estado semelhante ao das vítimas de um acidente que se lembram da chegada da ambulância e de como foram levadas até o pronto-socorro, talvez até mesmo do momento em que desceu sobre elas a máscara com a bendita anestesia. Ele permaneceu no quarto em que Maurizio tinha morrido, dizendo às pessoas o que deviam fazer, respondendo e fazendo perguntas, mas em todo esse tempo tinha a estranha sensação de não estar totalmente presente.
Lembrou-se dos fotógrafos, lembrou-se até mesmo do palavrão cabeludo que um deles soltou quando seu tripé perdeu o prumo e a câmera chocou-se contra o solo. Lembrou-se ainda de ter pensado quão ridículo era ficar ofendido pela má educação do fotógrafo, naquele lugar, em meio ao que estava sendo fotografado. Recordou-se da chegada do advogado dos Lorenzoni e em seguida de uma enfermeira particular para cuidar da condessa. Brunetti conversou com o advogado, que conhecia de longa data, explicando a ele que o corpo de Maurizio demoraria alguns dias para ser liberado, após a realização da autópsia.
E, ao explicar isso, apanhou-se pensando no absurdo do que dizia. As evidências do que havia acontecido estavam bem ali, todas elas confinadas a um canto do quarto: nas cortinas, nos tapetes, já tendo se infiltrado pelos estreitos espaços entre os tacos de madeira, do mesmo modo como tinham estado nas roupas sórdidas que o conde havia abandonado a caminho do chuveiro. Brunetti tinha levado os peritos até essas roupas, dizendo a eles que as juntassem e identificassem, assim como lhes dissera para testar as mãos do conde para quaisquer vestígios de grafite que pudessem ter restado. E as de Maurizio.
O commissario tinha conversado com a condessa, ou tentado conversar com ela, mas a resposta dela a todas as suas perguntas era dizer o nome de um dos mistérios do rosário. Ele perguntou se ela tinha ouvido alguma coisa, ela respondeu “Cristo aceita a cruz”. Ele perguntou se ela tinha conversado com Maurizio, ela respondeu: “Jesus está em sua tumba”. Desistindo, ele a deixou aos cuidados de sua enfermeira e de seu deus.
Alguém tivera o cuidado de levar um gravador, e ele o utilizou enquanto conduzia o conde lentamente a recordar os eventos do dia anterior e daquela noite. O conde tinha se livrado apenas das marcas físicas do que havia acontecido, mas seus olhos ainda registravam o custo moral do que havia feito, do que Maurizio havia tentado fazer. Ele contou tudo uma vez, hesitante e com interrupções prolongadas, durante as quais dava a impressão de ter perdido o fio da história que contava. A cada vez, Brunetti o lembrava gentilmente de onde estavam e perguntava-lhe o que tinha acontecido depois.
Quando terminaram, por volta das nove, não havia mais nenhuma razão para continuarem no palazzo. Brunetti liberou o pessoal da perícia e os fotógrafos para voltarem para a questura e também foi saindo. O conde se despediu, mas não parecia mais lembrar que as pessoas trocam apertos de mão ao se despedirem.
Vianello acompanhou Brunetti, e juntos eles entraram no primeiro bar que encontraram. Cada um pediu um copo grande de água mineral, e depois outro. Nenhum deles queria álcool e os dois desviaram o olhar dos sanduíches amanhecidos que estavam em uma vitrine em um dos lados do bar.
— Pode ir pra casa, Lorenzo — Brunetti disse por fim. — Não há nada mais que possamos fazer. Não esta noite.
— Pobre homem — disse Vianello enquanto apanhava no bolso algumas liras para pôr no balcão. — E a mulher... Quantos anos ela tem? Não muito mais do que cinquenta. Mas parece ter setenta. Mais. Isso vai matá-la.
Brunetti concordou com tristeza.
— Talvez ele consiga fazer algo.
— Quem? Lorenzoni?
Brunetti anuiu, mas sem dizer nada.
Saíram do bar juntos, nenhum deles se incomodando em retribuir o “até logo” do barman. No Rialto, Vianello se despediu e foi pegar o barco que o levaria até Castello e dali para casa. O traghetto tinha encerrado às sete, deixando a Brunetti somente a opção de atravessar a ponte e depois voltar para casa a pé, pela outra margem do Grand Canal.
A imagem do corpo de Maurizio e a terrível evidência do modo que morrera, espalhada por toda a parede atrás dele, acompanhou Brunetti por toda a calle que levava até sua casa e pelas escadas até sua porta. Ao entrar, ouviu o som do televisor: sua família estava reunida assistindo a uma série policial que acompanhavam toda semana, normalmente com ele, sentado em sua poltrona a apontar os furos e equívocos.
Dois ciao papà soaram em uníssono, e ele foi obrigado a responder carinhosamente.
A cabeça de Chiara apareceu na porta da sala de estar.
— O senhor já comeu, papà?
— Sim, meu anjo — ele mentiu, pendurando seu paletó e tratando de ficar de costas para ela.
Ela ficou ali por um momento, então voltou a se enfurnar no quarto. Pouco depois, Paola apareceu na porta, a mão estendida para ele.
— Que foi, Guido? — ela perguntou, a voz transparecendo medo.
Ele permaneceu ao lado do paletó, remexendo em seu bolso, como se procurando alguma coisa. Ela passou um braço em torno de sua cintura.
— O que foi que Chiara disse? — ele conseguiu perguntar.
— Que algo terrível aconteceu com você. — Paola tirou as mãos dele do bolso do paletó, ocupadas com uma frenética busca. — O que foi? — ela perguntou, levando uma das mãos dele até seus lábios e beijando-a.
— Não posso falar sobre isso agora — ele disse.
Ela assentiu. Ainda segurando as mãos dele, levou-o até os fundos do apartamento, até o quarto deles.
— Venha para a cama, Guido. Deite-se enquanto eu faço uma tisana pra você.
— Não posso falar sobre isso, Paola — ele insistiu.
O rosto dela permanecia solene.
— Não estou lhe pedindo isso, Guido. Quero apenas que você vá para a cama, tome algo quente e durma.
— Sim — ele disse, e caiu de novo naquela estranha sensação de irrealidade. Depois, já trocado e sob as cobertas, ele bebeu a tisana — acompanhada de mel — e segurou a mão de Paola, ou ela segurou a dele, até pegar no sono.
Ele dormiu bem, acordando apenas duas vezes, e só para se descobrir envolvido pelos braços de Paola, com a cabeça nos ombros dela. Nas duas ocasiões ele não chegou a despertar completamente, voltando a dormir pelos beijos que ela deu em sua testa e pela sensação da presença dela ali, cuidando dele.
Na manhã seguinte, após as crianças saírem para a escola, ele contou a ela uma parte do que tinha acontecido. Paola deixou que ele lhe contasse a versão editada do caso, não perguntando nada, tomando seu café e observando seu rosto enquanto ele falava.
Quando ele terminou, ela perguntou:
— Acabou, então?
Brunetti balançou a cabeça.
— Não sei. Ainda restam os sequestradores.
— Mas se foi o sobrinho que os mandou, então é ele o verdadeiro responsável.
— Aí é que está — disse Brunetti.
— Aí é que está o quê? — Paola perguntou, sem entender.
— Se foi ele que os mandou.
Ela o conhecia o bastante para desperdiçar palavras ou tempo perguntando-lhe o que estava querendo dizer, então fez apenas um “Hum”, concordou e tomou um gole de seu café, esperando que ele continuasse.
— Simplesmente não se encaixa — ele disse por fim. — O sobrinho, ele não me pareceu capaz disso.
— “Um homem pode sorrir e sorrir e mesmo assim ser um vilão” — disse Paola no tom que usava para as citações, mas Brunetti estava muito distraído para perguntar de quem era.
— Ele parecia gostar mesmo de Roberto, era quase protetor. — Brunetti balançou a cabeça. — Não, eu não estou convencido.
— Então quem? — Paola perguntou. — As pessoas não matam seus filhos assim sem mais nem menos; homens não matam seus filhos únicos.
— Eu sei, eu sei — disse Brunetti, admitindo o impensável.
— Então, quem?
— É esse o problema. Não há outra possibilidade.
— E você não pode estar enganado quanto ao sobrinho?
— Claro que posso — Brunetti admitiu. — Posso estar errado sobre tudo. Não tenho ideia do que aconteceu. Ou por quê.
— Pelo dinheiro. Não é essa a razão da maioria dos sequestros?
— Não estou certo de ter sido um sequestro. Não mais.
— Mas você acabou de falar dos sequestradores.
— Ah, sim, ele foi levado. E alguém mandou os bilhetes de sequestro. Mas eu acho que jamais houve a intenção de pegar o dinheiro.
Ele contou a ela sobre a oferta de dinheiro que fizeram ao conde Lorenzoni.
— E como é que você soube disso?
— Seu pai me contou.
Pela primeira vez, ela sorriu.
— Acho legal que você mantenha tudo isso em família. Quando é que você falou com ele?
— Há uma semana, e ontem.
— Sobre isso?
— Sim, entre outras coisas.
— Que outras coisas? — ela perguntou, repentinamente desconfiada.
— Ele disse que você não estava feliz.
Brunetti esperou para ver como Paola reagiria a isso; pareceu-lhe a maneira mais honesta de fazer com que ela falasse sobre o que quer que pudesse estar errado.
Paola não disse nada por um longo tempo, então se levantou e serviu mais café para os dois, acrescentando leite quente e açúcar, sentando-se em seguida de frente para ele.
— A psicologia barata — ela disse — chama isso de projeção.
Brunetti bebericou seu café, pôs mais açúcar e a encarou.
— Você tem ideia de como as pessoas estão sempre enxergando seus próprios problemas nos que são próximos a elas?
— E ele está triste por quê? — Brunetti perguntou.
— Qual a razão que ele deu para a sua tristeza?
— Nosso casamento.
— Bem, é isso — ela disse, simplesmente.
— Sua mãe comentou algo?
Ela balançou a cabeça.
— Você não parece surpresa — disse Brunetti.
— Ele está envelhecendo, Guido. E está começando a se dar conta disso. Eu acho que ele está começando a avaliar o que é e o que não é importante para ele.
— E o casamento não é?
— Pelo contrário. Acho que ele está começando a perceber quão importante ele é, e como ignorou esse fato por anos, décadas.
Eles nunca tinham discutido o casamento dos pais dela, embora Brunetti sempre tivesse ouvido boatos acerca da predileção do conde por mulheres bonitas. Embora tivesse sido fácil para ele descobrir o que havia de verdadeiro por trás desses rumores, o commissario nunca fez as perguntas certas.
Italiano até a medula, Brunetti não duvidou nem por um instante que um homem pudesse ser apaixonadamente devotado à mulher que traía com outras mulheres. Em sua mente não havia dúvidas quanto ao amor que o conde dedicava à condessa e, passando de um título a outro, Brunetti percebeu que o mesmo se aplicava intensamente ao conde Lorenzoni: a única coisa que parecia humanizá-lo totalmente era o amor que ele tinha pela condessa.
— Não sei — ele disse, deixando que aquela confissão de incerteza servisse para os dois condes.
Ela inclinou-se sobre a mesa e beijou suas bochechas.
— Enquanto estiver com você não há como eu ser infeliz.
Brunetti abaixou a cabeça, corando.
24
Brunetti poderia ter sido o autor do roteiro. Patta estava louco para falar naquela manhã, fazendo declarações soturnas sobre a dupla tragédia que tinha se abatido sobre aquela nobre família, sobre o terrível desprezo pelo mais sagrado dos laços de humanidade, sobre o enfraquecimento do tecido da sociedade cristã, e foi seguindo nessa toada sem fim, falando sobre as mudanças nos lares, nos corações, nas famílias. Ele poderia ter registrado a pompa flatulenta de cada palavra de Patta, a naturalidade forçada de cada um de seus gestos, até mesmo destacando em pequenos parênteses os pontos em que ele interromperia o próprio discurso para cobrir seus olhos com a mão enquanto falava sobre esse crime que não ousava nomear.
E poderia, com a mesma facilidade, ter sido o autor das manchetes que por certo berrariam de cada banca de jornal da cidade: Delitto in famiglia; Caìno e Abèle; Figlio addotivo-assassino. Querendo evitar as duas provações, ligou para a questura para avisar que só iria para lá depois do almoço e fez questão de não olhar os jornais que Paola tinha trazido para casa enquanto ele dormia. Percebendo que Brunetti tinha dito tudo o que ele queria dizer sobre os Lorenzoni, Paola não tocou mais no assunto e o deixou sozinho, saindo para comprar peixe no Rialto. O commissario, percebendo que pela primeira vez no que pareciam ter sido semanas não tinha nada para fazer, resolveu impor a seus livros a ordem que ele obviamente era incapaz de impor aos acontecimentos, e assim foi até a sala e ficou de frente para a estante que ia até o teto. Havia alguns anos, existia uma espécie de ordenação feita com base no idioma, mas, quando isso não deu certo, ele tentou impor uma ordem cronológica. Mas a curiosidade dos filhos logo poria um fim a isso também, e assim Petrônio estava agora ao lado de são João Crisóstomo, e Abelardo ao lado de Emily Dickinson. Ele estudou as encadernações enfileiradas, puxou uma, depois outras duas, e depois ainda outro par. Mas então, tão rápido quanto começou, perdeu todo o interesse na atividade, pegou os cinco livros e os colocou desordenadamente em um espaço na prateleira inferior.
Pegou seu exemplar de On the good life, abrindo na seção dos deveres, em que Cícero escreve sobre as divisões do bem moral. “A primeira é a capacidade de distinguir a verdade da falsidade, bem como entender a relação entre um fenômeno e outro e as causas e consequências de cada um. A segunda categoria é a capacidade de refrear as paixões. A terceira é se comportar de forma respeitosa e atenta em nossas relações com as outras pessoas.”
Ele fechou o livro e o devolveu ao lugar onde as divagações e caprichos dos Brunetti acharam por bem colocá-lo: entre John Donne, à direita, e Karl Marx, à esquerda. “Entender a relação entre um fenômeno e outro e as causas e consequências de cada um”, ele disse em voz alta, assustando a si mesmo com o som de sua própria voz. Daí foi até a cozinha, escreveu um bilhete para Paola e saiu do apartamento para a questura.
Quando chegou lá, bem depois das onze, a imprensa já tinha vindo, fartado-se e partido, de modo que pelo menos ele não teve que ouvir as declarações de Patta. Brunetti subiu até seu gabinete pelas escadas dos fundos, fechou a porta e sentou à sua mesa. Abriu a pasta Lorenzoni e leu tudo, página após página. Começando pelo sequestro, dois anos atrás, Brunetti fez uma lista cronológica completa de tudo o que sabia sobre o caso. Precisou de quatro páginas para relacionar tudo, terminando com a morte de Maurizio.
Depois espalhou as quatro folhas à sua frente, cartas de tarô repletas de morte. “Para distinguir a verdade da falsidade, bem como entender a relação entre um fenômeno e outro e as causas e consequências de cada um.” Se Maurizio tivesse sido o mentor do sequestro, então todos os fenômenos estariam explicados, todas as relações e consequências estariam esclarecidas. Desejo de riqueza e poder, talvez até mesmo ciúmes, teriam conduzido ao sequestro. E isso teria levado à tentativa de ataque ao tio. E assim, à sua própria morte violenta, o sangue na jaqueta, os restos de cérebro nas cortinas.
Mas, se não fosse Maurizio o culpado, não haveria conexão entre os fenômenos. Os tios até podem matar seus sobrinhos, mas pais não matam seus filhos, não daquele modo particularmente desapiedado.
Brunetti ergueu os olhos, encarando a janela do seu gabinete. Em um dos lados da balança sua vaga sensação de que Maurizio não tinha o perfil de um assassino, nem o de um mandante de assassinos. Do outro, restava um cenário em que o conde Ludovico eliminara o sobrinho e, sendo essa a verdade, o conde teria mesmo assassinado o próprio filho.
Brunetti já errara antes em suas conclusões sobre pessoas e suas razões. Ele não tinha se enganado a respeito do sogro? Com que facilidade ele se dispôs a admitir a infelicidade de sua própria mulher, quão prontamente acreditou que era seu casamento que estava em risco, quando a solução real dependeu apenas da resposta a uma única pergunta, a verdade repousando na simples afirmação de amor de Paola.
Não importava como ele ordenava ou valorizava os fatos e as possibilidades de um lado para o outro dessas terríveis balanças, o peso da evidência pendia fortemente para Maurizio como o culpado. E, mesmo assim, Brunetti não se convencia.
Ele pensou em como Paola o incomodou por anos por sua enorme relutância em se livrar de uma peça de roupa — jaqueta, suéter, até mesmo um par de meias — que ele achasse especialmente confortável. Não tinha nada a ver com dinheiro ou com o gasto para repor a roupa velha, mas com a sua certeza de que nada novo podia ser remotamente confortável, pelo menos tão confortável quanto o velho. E sua presente situação, ele percebeu, era provocada pelo mesmo tipo de relutância em recusar o confortável em favor do novo.
Ele apanhou suas anotações e foi até o gabinete de Patta, para uma última tentativa, mas isso acabou sendo exatamente como se ele tivesse escrito o roteiro, com Patta rejeitando de primeira a “sugestão ofensivamente fantasiosa” de que o conde pudesse, de algum modo, ter algo a ver com o que tinha acontecido. Patta não chegou ao ponto de ordenar a Brunetti que se desculpasse com o conde; afinal, Brunetti não fizera senão especular, mas mesmo a especulação tinha o dom de ofender algo profundo e atávico em Patta, e não foi sem dificuldade que ele conteve sua ira em relação a Brunetti, embora não tenha se refreado em expulsar o commissario de seu gabinete.
De volta para cima, Brunetti colocou as quatro folhas de papel no arquivo e o pôs na gaveta que ele costumava abrir para apoiar os pés. Fechou-a com um pontapé e voltou sua atenção para uma nova pasta, que tinha sido colocada em sua mesa enquanto ele estava no gabinete de Patta: quatro motores tinham sido roubados de seus respectivos barcos enquanto os proprietários jantavam na trattoria da ilhota de Vignole.
O telefone veio resgatá-lo da contemplação da imensa trivialidade desse relatório.
— Ciao, Guido — saudou a voz de seu irmão. — Acabamos de chegar.
— Mas vocês não iam ficar mais tempo? — perguntou Brunetti.
Sergio riu a essa pergunta.
— Sim, mas o pessoal da Nova Zelândia foi embora logo depois de dar sua conferência, então eu decidi voltar também.
— E como foi?
— Se você prometer não rir, eu diria que foi um triunfo.
A ocasião é realmente tudo. Se ele tivesse recebido esse telefonema em outra tarde, até mesmo se tivesse sido despertado por ele de um sono profundo às três da manhã, Brunetti não se incomodaria em ouvir a história do irmão sobre o congresso em Roma, ansioso por acompanhar sua explicação do conteúdo do trabalho e de como ele fora recebido. Em vez disso, enquanto Sergio falava sobre Roentgens e traços residuais disso e daquilo, Brunetti não conseguia tirar os olhos dos números de série dos quatro motores externos. Sergio falava de fígados deteriorados e Brunetti considerava o alcance do número de cavalos. Sergio repetia uma pergunta que alguém tinha feito sobre o baço e Brunetti aprendia que somente um dos motores tinha seguro contra roubo e mesmo assim cobria apenas a metade do valor.
— Guido, você está ouvindo? — Sergio perguntou.
— Sim, sim, estou — Brunetti insistiu, com ênfase desnecessária. — Estou achando muito interessante.
Sergio deu uma gargalhada ao ouvir isso, mas resistiu ao impulso de pedir ao irmão para repetir as duas últimas coisas que ele havia dito. Em vez disso, perguntou:
— Como vai Paola? E as crianças?
— Todos bem.
— Raffi ainda está saindo com aquela garota?
— Sim. E todos gostamos dela.
— Logo vai chegar a vez da Chiara.
— De quê? — perguntou Brunetti, sem entender.
— De namorar.
Sim. Brunetti não sabia o que dizer.
No silêncio que aumentava, Sergio perguntou:
— Por que vocês não passam por aqui, todos vocês, sexta à noite?
Brunetti estava prestes a aceitar, mas então disse:
— Vou falar com Paola para ver se as crianças não têm nada marcado.
Com a voz repentinamente séria, Sergio disse:
— Quem diria que chegaríamos a esse ponto, hein, Guido?
— A que ponto?
— Ter de pedir autorização a nossas mulheres, verificar se nossos filhos não têm outros planos. É a meia-idade, Guido.
— É, acho que sim. — Além de Paola, Sergio era a única pessoa a quem ele podia perguntar: — Você se incomoda?
— Não estou muito certo se faz alguma diferença eu me incomodar ou não; não podemos fazer nada para evitar isso. Mas por que você está tão sério hoje?
Para explicar, Brunetti perguntou ao irmão:
— Você leu os jornais de hoje?
— Sim, no trem, voltando pra casa. Você está falando daquela coisa com os Lorenzoni?
— Sim.
— É um dos seus?
— Sim — respondeu Brunetti, sem dizer mais nada.
— Terrível. Coitados. Primeiro o filho e agora o sobrinho. É difícil saber o que foi pior.
Mas era claro que Sergio, recém-chegado de Roma e ainda entusiasmado pelo sucesso profissional alcançado, não queria falar dessas coisas, de modo que Brunetti o interrompeu.
— Vou perguntar a Paola. Depois ela liga para Maria Grazia.
25
Pode-se dizer que a ambiguidade é a característica que melhor define a justiça italiana — um conceito ilusório —, ou o sistema judiciário que o Estado italiano criou para a proteção de seus cidadãos. Para muitos, a impressão é de que quando não está trabalhando para levar os criminosos diante dos juízes no tribunal, a polícia está prendendo ou investigando esses mesmos juízes. As punições dificilmente acontecem e com frequência são revertidas na apelação; assassinos fazem acordos e são libertados; parricidas aprisionados recebem cartas de fãs; o funcionalismo e a máfia dançam de mãos dadas pela ruína do Estado — na verdade, pela ruína do próprio conceito de Estado. O dr. Bartolo, de Rossini, devia ter em mente as apelações da justiça italiana quando cantava “Qualche garbuglio si troverà”.
Nos três dias que se seguiram, Brunetti, relegado às trevas do espírito por uma impressão sombria de que seus esforços foram inúteis, refletiu sobre a natureza da justiça, e, com Cícero como a voz que se recusava a abandoná-lo, sobre a natureza do bem moral. Tudo lhe pareceu sem sentido algum.
À semelhança do ogro à espreita sob a ponte numa história para crianças que ele lera décadas antes, a lista que fez espreitava da gaveta de sua mesa, em silêncio, não esquecida.
Ele foi ao funeral de Maurizio, sentindo-se mais nauseado com as hordas de carniceiros com câmeras que ao pensar no que jazia naquele pesado esquife com bordas revestidas de chumbo como proteção contra a umidade do mausoléu da família Lorenzoni. A condessa não fora, embora o conde, com os olhos vermelhos e apoiando-se no braço de um jovem, acompanhou, desde a igreja, o cortejo do corpo do homem que havia assassinado. Sua presença e a nobreza de seu luto lançaram a Itália em um paroxismo de admiração sentimental que não era visto desde que os pais de um garoto americano assassinado doaram os órgãos do filho para que jovens italianos, crianças do país daqueles que o haviam assassinado, pudessem viver. Brunetti interrompeu a leitura dos papéis, mas não antes do trecho em que se informava que o juiz relator tinha decidido tratar a morte de Maurizio como um caso de legítima defesa.
Brunetti se dedicou, como alguém que insiste em explorar o dente dolorido com a própria língua, aos motores. Em um mundo privado de sentido, motores são tão vitais quanto a vida, portanto, por que não encontrá-los? E para seu azar isso acabou sendo extremamente fácil, pois eles foram logo achados na casa de um pescador em Burano, cujos vizinhos ficaram tão desconfiados ao vê-lo trazendo-os, um depois do outro, de seu barco, que ligaram para a polícia para denunciá-lo.
Nesse mesmo dia do triunfo, mais tarde, a signorina Elettra foi até a porta do seu gabinete.
— Buon giorno, dottore — ela disse ao entrar, a voz abafada e o rosto coberto pelo imenso buquê de gladíolos que trazia em seus braços.
— Mas o que é isso, signorina? — ele perguntou, levantando-se de sua cadeira para tirar do caminho a que estava entre ela e a mesa dele.
— Flores extra — ela respondeu. — O senhor tem um vaso?
Ela pôs o buquê sobre a mesa, ladeando-o com um maço de papéis que já havia penado com seu abraço e com a água dos caules das flores.
— Acho que tem um no armário — ele respondeu, sem entender por que ela estava levando as flores para ele. E extra? As flores dela eram normalmente entregues nas segundas e nas quintas. Era quarta.
Ela abriu a porta do armário, vasculhou entre os objetos da parte de baixo, mas não encontrou nada. Fez um gesto de mão em sua direção e saiu pela porta sem dizer nada.
Brunetti olhou para as flores e para os papéis a seu lado, um fax do dr. Montini, de Pádua. Os resultados dos exames laboratoriais de Roberto, afinal. Ele os espalhou de novo pela mesa. As flores exalavam vida, possibilidade e alegria; ele não queria ter mais nada a ver com o rapaz morto e seus sentimentos funéreos sobre ele e sua família.
A signorina Elettra não demorou a voltar, trazendo com ela um vaso Barouvier que Brunetti sempre admirava quando o via na mesa dela.
— Acho que este será perfeito para elas — disse, colocando o vaso cheio d’água ao lado das flores e começando a pegá-las, uma a uma, e colocá-las ali.
— E por que elas são extra, signorina? — Brunetti perguntou e sorriu, a única resposta adequada à conjunção de signorina Elettra e flores frescas.
— Fechei as despesas mensais do vice-questore hoje, dottore, e percebi que tinham sobrado quinhentas mil liras.
— Do quê?
— Do que ele tinha autorizado para os gastos com os materiais de escritório de todo mês — ela respondeu, ajeitando uma flor vermelha entre duas brancas. — Então, como ainda faltava um dia para acabar o mês, eu achei que devia pedir algumas flores.
— Para mim?
— Sim, e para o sargento Vianello, e algumas para Pucetti, e então algumas rosas para os homens lá de baixo, na sala dos guardas.
— E para as mulheres do Ufficio Stranieri? — ele perguntou, imaginando se a signorina Elettra era do tipo que dava flores apenas para homens.
— Não — ela disse. Elas já recebem as delas duas vezes por semana, com o pedido normal, há dois meses. — A signorina terminou com as flores e se virou para ele.
— Onde o senhor gostaria de colocá-las? — ela perguntou, colocando-as no canto de sua mesa. — Aqui?
— Não, talvez no peitoril da janela.
Obediente, ela as pegou e colocou na frente da janela central.
— Aqui? — ela perguntou, virando-se de modo a ver a expressão de Brunetti.
— Sim — ele disse, relaxando o rosto com um sorriso. — Estão perfeitas. Obrigado, signorina.
— Fico feliz que o senhor tenha gostado delas, dottore — o sorriso dela era uma resposta ao dele.
Ele voltou para a sua mesa, pensando em colocar os papéis no arquivo de documentos não lidos, mas então aproximou todos eles com o lado da mão e começou a ler. E podia ter poupado seu tempo, porque não havia nada ali além de uma lista de nomes e números. Os nomes não significavam nada para ele, embora tenha concluído que deviam ser os vários testes que o médico tinha prescrito para o esgotado jovem. Os números podiam tanto ser de resultados de críquete quanto dos preços na bolsa de Tóquio; não lhe diziam nada. Frente a esse último obstáculo, sua fúria irrompeu, desaparecendo tão rápido quanto veio. Por um momento, Brunetti pensou em deixar os papéis de lado, mas resolveu pegar o telefone e ligar para a casa do irmão, Sergio.
Depois de trocar os cumprimentos de praxe com a cunhada e prometer a ela que passariam por lá para o jantar de sexta-feira à noite, ele pediu para falar com o irmão, que já estava em casa depois de chegar do laboratório. Cansado da troca de mesuras, Brunetti disse sem introdução:
— Sergio, você entende o bastante de testes de laboratório para me explicar os resultados?
Percebendo a urgência na voz do irmão, Sergio não perguntou nada.
— Na maioria dos casos, sim.
— Glicose, setenta e quatro.
— É para diabetes. Nada de errado aí.
— Triglicérides. Dois por cinquenta, eu acho.
— Colesterol. Um pouco alto, mas nada com que se preocupar.
— Glóbulos brancos, mil.
— O quê?
Brunetti repetiu o número.
— Você tem certeza? — Sergio perguntou.
Brunetti olhou os números datilografados mais de perto.
— Sim, mil.
— Hum. Não dá para acreditar. Você está se sentindo bem? Está com tonturas? — A preocupação de Sergio era audível.
— O quê?
— Quando você fez esses testes? — Sergio perguntou.
— Não, não. Eles não são meus. São de outra pessoa.
— Ah. Bom. — Sergio fez uma pausa para pensar no resultado, então perguntou. — E o que mais?
— O que isso quer dizer? — insistiu Brunetti, confuso com as perguntas do irmão.
— Não dá para afirmar com certeza, não sem ouvir os outros resultados.
Brunetti leu para ele o resto da relação de testes e números à direita deles.
— É tudo.
— Mais nada?
— Na parte de baixo tem uma nota que diz que a função do baço parece reduzida. E algo sobre... — Brunetti fez uma pausa e examinou mais de perto os garranchos do médico — ... algo que parece ser “membranas” alguma coisa, “hialinas”, acho.
Depois de uma longa pausa, Sergio perguntou:
— Quantos anos tinha essa pessoa?
— Vinte e um — e então, quando registrou o que Sergio tinha dito, perguntou: — Por que é que você disse “tinha”?
— Porque ninguém sobrevive com níveis como esses.
— Níveis do quê? — Brunetti perguntou.
Mas, em vez de responder, Sergio perguntou:
— Ele fumava?
Brunetti lembrou que Francesca Salviati tinha dito que Roberto era pior que um americano pelo modo como reclamava dos fumantes.
— Não.
— Bebia?
— Todo mundo bebe, Sergio.
De repente, a voz de Sergio ganhou um tom de impaciência.
— Não seja tolo, Guido. Você sabe do que eu estou falando. Ele bebia muito?
— Provavelmente mais que o normal.
— Problemas de saúde?
— Não que eu soubesse. Ele tinha uma saúde perfeita, muito boa mesmo, até duas semanas antes de morrer.
— E do que ele morreu?
— Levou um tiro.
— E ele estava vivo quando levou o tiro? — Sergio perguntou.
— Claro que... — Brunetti começou a dizer, mas parou de repente. Ele não sabia. — Nós concluímos que sim.
— Eu confirmaria — disse Sergio.
— Não acho que possamos fazê-lo.
— Por quê? Vocês não têm o corpo?
— Na verdade, não sobrou muito dele.
— O garoto Lorenzoni?
— É — respondeu Brunetti, e, após um silêncio, perguntou por fim: — O que significa tudo isso, os números desses testes que eu te passei?
— Você sabe que não sou médico — Sergio começou, mas Brunetti não lhe deu essa chance.
— Sergio, você não está em um tribunal. Eu só preciso saber. É para mim mesmo. O que dizem esses testes?
— Acho que eles indicam contaminação radioativa — disse Sergio. E como Brunetti não respondeu, ele explicou. — O baço. Não tinha como estar tão danificado se ele não tinha nenhuma doença orgânica. E a quantidade de glóbulos vermelhos é muito baixa. O mesmo para a capacidade pulmonar. O que sobrou dos pulmões?
Brunetti lembrou que o médico havia dito que os pulmões pareciam de um fumante inveterado, de um homem mais velho que Roberto, que fumara por décadas. Na ocasião, Brunetti não estranhou ou percebeu a contradição entre isso e o fato de que Roberto não fumava. Ele explicou isso para o irmão e perguntou:
— E o que mais?
— Todo o resto — o fígado, o sangue, os pulmões.
— Tem certeza, Sergio? — ele perguntou, esquecendo-se de que falava com seu irmão mais velho, que acabava de voltar de um triunfo em um congresso internacional sobre as contaminações radioativas em Chernobyl.
— Tenho.
O pensamento de Brunetti estava bem longe de Veneza, seguindo a trilha dos cartões de crédito de Roberto através do continente europeu. Da Europa Oriental. Até as repúblicas libertas da antiga União Soviética, ricas em recursos naturais que jaziam sob seu solo e em armamentos que os apressados russos que partiam tinham deixado para trás enquanto fugiam antes de seu império em colapso.
— Madre di Dio — ele sussurrou, com medo do que acabava de concluir.
— Que foi, Guido?
— Como é que eles transportam aquele troço?
— Que troço?
— Aquelas coisas radioativas. Material, seja lá como chamam.
— Isso depende.
— Do quê?
— Da quantidade e do tipo.
— Dê-me um exemplo — pediu Brunetti, e então, ao ouvir a insistência na própria voz, acrescentou: — É muito importante.
— Se for do tipo que a gente usa, na radioterapia, é transportado em contêineres individuais.
— De que tamanho?
— Do tamanho de uma maleta. Talvez até menor, caso seja para uma máquina pequena ou uma dose menor.
— E sobre o outro tipo, você sabe alguma coisa?
— Tem uma porção de outros tipos, Guido.
— O tipo usado para fazer bombas. Ele esteve em Belarus.
Nenhum som veio pelo telefone, apenas o silêncio conseguido pela nova rede de cabos de fibra ótica da companhia telefônica, mas Brunetti achou que podia ouvir as engrenagens se movimentando no cérebro do irmão.
— Ah — foi tudo o que Sergio disse. E depois: — Se o contêiner estiver bem vedado com chumbo, pode ser pequeno. Uma pasta ou maleta. Seria pesado, mas pode ser pequeno.
Dessa vez foram os lábios de Brunetti que deixaram escapar um suspiro.
— E isso seria o bastante?
— Não sei muito bem o que você tem em mente, Guido, mas se quer saber se seria o bastante para fazer uma bomba, então, sim, seria mais do que o suficiente.
E com isso sobrava muito pouco mais para eles continuarem essa conversa. Depois de uma longa pausa, Sergio sugeriu:
— Eu poderia examinar o lugar onde ele foi encontrado com um contador Geiger. E o corpo.
— Isso é possível? — Brunetti perguntou, sem precisar explicar o que queria dizer.
— Sim, acho que sim — disse Sergio num tom que misturava a certeza do especialista e a tristeza do homem.
— Os russos não deixaram mais nada para eles venderem.
— Então que Deus nos ajude — disse Brunetti.
26
O trabalho de Brunetti o acostumara ao horror e às várias indignidades que os homens infligem uns aos outros — na verdade, a qualquer coisa próxima deles —, mas nada em seus anos de experiência o tinha preparado para isso. Refletir sobre o que seu telefonema a Sergio tinha revelado era refletir sobre o impensável. Não era difícil para Brunetti conceber o tráfico de armas na escala em que fosse; na verdade, ele podia aceitar tranquilamente que armas seriam vendidas mesmo para aqueles que os vendedores sabiam ser assassinos. Mas, se suas suspeitas — ou temores — se revelassem verdadeiras, isso superaria qualquer potencial para o mal que ele havia testemunhado anteriormente.
Brunetti não duvidou nem por um instante que os Lorenzoni tinham se envolvido com o transporte ilegal de material nuclear, e do mesmo modo não duvidou que o material fosse usado para a feitura de armamentos, já que não existe tal coisa como uma máquina de raios X ilegal. Além disso, era impossível para ele acreditar que tivesse sido Roberto a organizar tudo. O que ele tinha descoberto sobre o rapaz revelava suas limitações e falta de iniciativa, nada que indicasse ser ele o tipo que pudesse organizar um esquema de tráfico de material nuclear.
Quem melhor para fazer isso do que Maurizio, o brilhante jovem sobrinho, a melhor escolha para herdeiro? Ele era ambicioso, um jovem que buscava as oportunidades comerciais do próximo milênio, que buscava os novos e amplos mercados e fornecedores do Leste. O único obstáculo para que liderasse os negócios e a fortuna dos Lorenzoni era seu primo tolo, Roberto, o rapaz que podia ser enviado para buscar e trazer, assim como o cãozinho amigável de qualquer família.
A única dúvida de Brunetti era sobre a extensão do envolvimento do conde nisso. Algo dessa magnitude, uma empreitada que poderia ter colocado todo o império dos Lorenzoni em risco, dificilmente poderia ser levado avante sem seu conhecimento e autorização. Teria sido ele a escolher mandar o filho para Belarus para trazer de volta o perigoso material? Quem seria mais adequado e mais invisível que o playboy com suas prostitutas que aceitavam cartão de crédito? Se ele bebesse muito champanhe, quem iria se incomodar com o que tinha em sua maleta? Quem revistaria a bagagem de um tolo?
Brunetti duvidava que Roberto sequer soubesse o que carregava. O retrato que fez do garoto não admitia essa possibilidade. Como, então, teria sido exposto à emanação mortal dos materiais?
O commissario tentou imaginar esse rapaz que ele nunca tinha visto, visualizando-o em algum hotel luxuoso, depois das prostitutas terem ido embora, sozinho em seu quarto com a maleta que tinha que levar de volta para o Ocidente. Se a maleta tivesse algum vazamento ele não teria como saber, e teria levado consigo não mais que os estranhos sintomas de mal-estar que o tinham levado a passar de médico em médico.
Ele teria conversado não com o pai, mas com seu primo, o rapaz com quem tinha partilhado a juventude e a inocência. E Maurizio com certeza teria rapidamente desconfiado o que eram os sintomas que Roberto lhe descrevia, ou seja, a sentença de morte do primo.
Por um longo tempo Brunetti permaneceu sentado à mesa olhando para a porta de seu gabinete, pensando sobre a moral e começando a entender as relações entre um fenômeno e outro e as consequências de cada um. O que ele não entendia, ainda não, era como o conde tinha sabido disso.
Cícero recomendava que as paixões fossem controladas. Se alguém matasse Raffi, seu próprio filho, a sangue-frio, Brunetti sabia que não conseguiria controlar suas paixões, que ele se tornaria um selvagem, implacável, imperdoável, renegando totalmente seu papel de policial, sendo apenas um pai, apanhando e destruindo todos eles. Ele buscaria se vingar a qualquer preço. Cícero não permitia nenhuma exceção a suas regras relativas à bondade moral, mas com certeza um crime como esse libertaria um pai da injunção de se comportar de forma considerada e compreensível e lhe daria o direito humano de buscar vingança.
Brunetti refletia sobre tudo isso enquanto o sol se punha, levando com ele qualquer nesga de luz que havia se infiltrado em seu gabinete. Quando a escuridão era quase total no aposento, o commissario acendeu a lâmpada, voltou para sua mesa, retirou a pasta da última gaveta e a leu mais uma vez, bem devagar. Não tomou nenhuma nota, embora às vezes levantasse os olhos dos papéis e olhasse através das janelas agora escuras, como se nelas pudesse ver refletidas as novas formas e padrões que sua leitura ia conjurando. Precisou de meia hora para ler tudo novamente. Ao terminar, devolveu a pasta à gaveta, fechando-a suavemente com a mão, não com o pé. Então deixou a questura, pegando o caminho do Rialto e do palazzo Lorenzoni.
A criada que o atendeu à porta disse que o conde não estava recebendo ninguém, mas Brunetti insistiu para que ela o anunciasse. Quando a mulher retornou, com o rosto amarrado de irritação pela intromissão no luto da família, disse que o conde havia repetido suas ordens: ele não estava recebendo ninguém.
Brunetti solicitou, então, mudando de ideia, que a criada levasse ao conde a mensagem de que trazia com ele uma informação importante a respeito do assassinato de Roberto e que queria falar com o conde antes de reabrir a investigação oficial de sua morte, o que, caso o conde se recusasse a falar com ele, começaria na manhã seguinte.
Como ele esperava, ao retornar dessa vez a criada pediu que o commissario a acompanhasse, e o levou, como uma Ariadne sem o fio, pelas escadas e através dos corredores a uma nova parte do palazzo, que Brunetti ainda não tinha conhecido.
O conde estava sozinho no interior do que devia ter sido um escritório, talvez o de Maurizio, já que tinha alguns computadores, uma fotocopiadora e quatro telefones. As mesas de plástico em que todas essas máquinas estavam pareciam deslocadas ao lado das cortinas de veludo e à vista das janelas ogivais e dos telhados do outro lado.
O conde estava sentado atrás de uma dessas mesas, com um computador à sua esquerda. Olhou na direção de Brunetti quando este entrou, perguntando-lhe do que se tratava, sem se dar ao trabalho de oferecer um assento ao commissario.
— Passei por aqui para discutir uma nova informação com o senhor — respondeu Brunetti.
O conde ficou rijo, as mãos diante de si.
— Não há informação nova. Meu filho está morto. Meu sobrinho o matou. E agora ele está morto. Depois disso, não aconteceu mais nada. Não há mais nada que eu queira saber.
Brunetti o encarou longamente, não fazendo questão de disfarçar seu ceticismo ao que acabara de ouvir.
— A informação que tenho pode lançar alguma luz sobre o motivo de tudo isso ter acontecido.
— Não quero saber por que aconteceu — o conde respondeu. — Para mim e para minha mulher basta saber que aconteceu. Não quero mais nada com isso.
— Temo não seja mais possível.
— O que o senhor quer dizer com isso?
— Surgiu uma evidência de que algo mais complicado que o sequestro aconteceu.
Lembrando-se de repente de seus deveres de anfitrião, o conde convidou Brunetti a sentar com um aceno e desligou o computador, livrando-os de seu suave barulho. Em seguida, perguntou:
— E que informação é essa?
— Sua empresa, ou empresas, tem muitos negócios com a Europa Oriental.
— Isso é uma afirmação ou uma pergunta?
— Acho que os dois. Sei que o senhor tem negócios lá, mas não conheço a extensão deles. — Brunetti esperou um pouco, até o momento em que o conde ia começar a falar, então acrescentou: — Ou simplesmente que tipo de negócio poderia ser.
— Signor... Desculpe, esqueci seu nome — começou o conde.
— Brunetti.
— Signor Brunetti, a polícia vem investigando minha família por quase dois anos. Um tempo por certo suficiente para eles, mesmo sendo a polícia italiana, terem descoberto tudo sobre a natureza e a extensão dos meus contratos com a Europa Oriental. — Como Brunetti não respondeu a essa provocação, o conde perguntou: — Não é verdade?
— Sim, descobrimos muitas coisas sobre seus negócios lá, mas eu descobri algo mais, algo que nunca foi mencionado em quaisquer das informações que o senhor e seu sobrinho nos forneceram.
— E o que seria? — perguntou o conde, fazendo pouco caso com seu tom do que o policial pudesse ter a dizer.
— Tráfico de armas nucleares — disse Brunetti com calma, e foi somente ao ouvir essas palavras de sua própria boca que ele percebeu como era frágil sua evidência e intempestiva a pressa com que ele cruzou metade da cidade para confrontar aquele homem. Sergio não era médico, Brunetti não tinha se dado ao trabalho de analisar os restos mortais de Roberto ou o lugar onde ele fora encontrado em busca de traços de contaminação nuclear, nem tinha buscado saber mais sobre o envolvimento dos Lorenzoni com a Europa Oriental. Não, ele tinha se entusiasmado, como uma criança ao ouvir os sinos do carrinho de sorvete na rua, e tinha atravessado a cidade todo agitado para posar e brincar de policial à frente desse homem.
A bochecha do conde tremeu, seus lábios se apertaram e ele começou a falar, mas então seus olhos se desviaram dos de Brunetti, em direção à esquerda, para a porta onde sua mulher tinha aparecido de repente, em silêncio. Ele se levantou e foi até ela; Brunetti também se levantou em reconhecimento de sua presença. Mas, ao observar mais de perto a mulher que permanecia à porta, ele não teve certeza se era mesmo a condessa aquela velha encarquilhada, curvada e frágil, apoiando-se em uma bengala de madeira que segurava com uma mão que parecia uma pata ou uma garra. Brunetti pôde ver que os olhos dela tinham ficado enevoados, como se o repentino massacre de dor tivesse jogado fumaça neles.
— Ludovico? — ela disse com voz trêmula.
— Sim, querida? — ele respondeu, pegando-a por um braço e conduzindo-a para dentro do quarto.
— Ludovico? — ela repetiu.
— O que é, querida? — ele perguntou, abaixando-se na direção dela, abaixando-se ainda mais agora que ela parecia ter diminuído tanto.
Ela parou, apoiou as duas mãos na parte de cima da bengala e o encarou. Desviou o olhar e voltou a encará-lo.
— Eu esqueci — ela disse, começando a sorrir, mas então também se esqueceu disso.
Então, sua expressão se alterou, e ela olhou para o marido como se ele fosse uma presença estranha e ameaçadora no quarto. Levantou um braço à sua frente, a palma aberta na direção dele como para se proteger de um golpe. Então pareceu se esquecer daquilo também, deu meia-volta e, com a bengala encontrando o caminho para ela, deixou o aposento. Os dois ouviram as batidas da bengala enquanto ela desaparecia pelo corredor. Uma porta se fechou, e eles perceberam que estavam a sós novamente.
O conde voltou para seu lugar à mesa, mas ao se sentar e olhar para Brunetti parecia que a condessa o havia de algum modo contaminado com seu envelhecimento, pois seus olhos tinham inchado e sua boca tinha perdido a firmeza que apresentava antes de ela ter entrado.
— Ela sabe — disse o conde, soturnamente. — Mas como é que o senhor descobriu? — ele perguntou com uma voz tão cansada como a que haviam acabado de ouvir de sua mulher.
Brunetti sentou-se novamente e evitou a questão com um movimento da mão.
— Não importa.
— Foi o que eu lhe disse — disse o conde, e, ao perceber que Brunetti não entendera, completou: — Nada mais importa.
— Importa saber por que Roberto morreu — disse Brunetti, obtendo como única resposta a isso um rápido dar de ombros, o que não o impediu de continuar. — A razão pela qual ele morreu importa porque então poderemos encontrar aqueles que o mataram.
— O senhor sabe quem o matou — disse o conde.
— Sim, eu sei quem os mandou. Nós dois sabemos. Mas eu quero encontrá-los — disse Brunetti, fazendo menção de levantar de sua cadeira e espantando a si próprio pelo modo apaixonado como falava, mas ao mesmo tempo incapaz de se conter. — Quero os nomes deles. — De novo em tom candente. Voltou a se encostar em sua cadeira e olhou para baixo, constrangido por sua própria raiva.
— Paolo Frasetti e Elvio Mascarini — disse o conde, simplesmente.
Por um momento, Brunetti não conseguiu entender o que tinha acabado de ouvir, e então, quando entendeu, não acreditou; quando por fim acreditou, todo o padrão dos assassinatos dos dois Lorenzoni que começara a se formar com a descoberta daqueles restos consumidos em uma vala deu outra reviravolta e apresentou-se sob um novo e estranho foco, bem mais grotesco e horrível que aqueles fragmentos apodrecidos de Roberto. Brunetti reagiu no ato, mas, em vez de olhar com espanto para o conde, tirou seu bloco de notas do bolso interno do paletó e anotou ali os nomes.
— E onde é que eles podem ser encontrados?
Ele conseguiu manter a voz calma, totalmente casual, enquanto sua mente buscava com toda a velocidade as perguntas que tinha de fazer antes que o conde percebesse o engano fatal que cometera.
— Frasetti mora perto de Santa Marta. O outro, eu não sei.
Brunetti mantinha suficiente controle sobre suas emoções e expressões, de modo que olhou para cima e encarou o conde.
— E como foi que o senhor os encontrou?
— Eles fizeram um trabalho para mim há uns anos. Eu os usei novamente.
Não era hora de perguntar que outro trabalho tinha sido aquele, Brunetti tinha apenas que descobrir tudo sobre o sequestro, sobre Roberto.
— E quando foi que o senhor soube do contágio? — O motivo tinha que ser esse.
— Logo depois que ele voltou de Belarus.
— E como foi que aconteceu?
O conde esticou as mãos à sua frente e as observou.
— Num hotel. Estava chovendo, Roberto não queria sair. Ele não podia entender o que passava na tevê, já que era tudo falado em russo ou alemão. E o hotel em que ele estava não conseguia — ou não queria — encontrar uma mulher para ele. Então, sem nada pra fazer, ele começou a pensar sobre o que o tínhamos mandado fazer.
O conde encarou Brunetti.
— Preciso lhe dizer tudo isso?
— Acho que eu preciso saber de tudo — respondeu Brunetti.
O conde assentiu, mas não por concordar com o que Brunetti dissera. Pigarreando, continuou:
— Roberto disse, a Maurizio, depois, que ficou curioso, imaginando por que o tínhamos mandado cruzar metade da Europa para trazer de volta uma maleta, e disse que quis ver o que tinha dentro dela. Ele achou que podia ser ouro ou pedras preciosas, já que era tão pesada. — O conde parou, então disse: — Ela era forrada com chumbo. — Parou de novo, e Brunetti pensou no que poderia fazê-lo continuar.
— Será que ele queria roubá-los? — Brunetti perguntou.
O conde o encarou.
— Ah, não, Roberto jamais roubaria algo, e certamente não de mim.
— Por quê, então?
— Ele era curioso. E acho que tinha ciúmes, pensando que eu diria a Maurizio o que tinha na maleta, mas não diria a ele.
— E então ele a abriu?
O conde confirmou com a cabeça.
— Ele disse que usou um abridor de latas antigo que tinha no hotel, o senhor sabe, daqueles com ponta triangular, do tipo que se usa para abrir latas de cerveja.
Brunetti assentiu.
— Se não tivesse um no quarto, ele não teria conseguido abrir a maleta, e então nada disso teria acontecido. Mas ele estava em Belarus, e eles ainda têm esse tipo de abridor por lá. Então ele forçou a fechadura e abriu a maleta.
— E o que tinha dentro?
O conde olhou para Brunetti, surpreso.
— O senhor acabou de me dizer o que havia lá dentro.
— Eu sei, mas o que eu quero saber é como estava sendo transportado. Em que forma estava?
— Em pequenas pastilhas azuis. Pareciam cocô de coelho, só que menores. — O conde aproximou os dois primeiros dedos de sua mão direita para mostrar o tamanho exato a Brunetti, repetindo: — Cocôs de coelho.
O commissario não disse nada; a experiência lhe havia ensinado que chegava um momento em que as pessoas tinham de ser deixadas falar por si sós para que seguissem avante, no próprio ritmo, ou simplesmente parariam.
Eventualmente, o conde continuou:
— Ele fechou a maleta de novo depois disso, mas ela tinha ficado aberta tempo suficiente.
O conde não precisou explicar o suficiente para quê. Brunetti havia lido o que tal exposição tinha feito ao rapaz.
— Quando foi que o senhor descobriu que ele tinha aberto a maleta?
— Quando nosso comprador recebeu o material. Ele ligou para informar que o cadeado tinha sido arrombado. Mas isso quase duas semanas depois, pois a maleta tinha viajado de navio.
Brunetti deixou isso para lá por um momento.
— E quando foi que ele começou a ter o problema?
— Problema?
— Os sintomas.
O conde balançou a cabeça.
— Ah! — depois de uma pausa, ele continuou. — Cerca de uma semana depois. A princípio eu pensei que fosse influenza ou algo do gênero. O comprador ainda não tinha ligado para nós. Mas então ele foi piorando. E então eu descobri que a maleta tinha sido aberta. Era a única coisa que explicava o que estava acontecendo.
— O senhor chegou a confrontá-lo?
— Não, não. Não foi preciso.
— E ele contou a alguém?
— Sim, ao Maurizio, mas só quando ele piorou muito.
— E então?
O conde olhou para baixo, para as próprias mãos, medindo uma pequena distância com os dedos da mão direita, como se novamente demonstrando o tamanho das pastilhas que tinham matado seu filho, ou que haviam sido a causa do seu assassinato. Ele olhou para cima.
— E foi então que eu decidi o que tinha que fazer.
— Tinha que fazer? — Brunetti perguntou sem poder evitar.
— Sim. — A princípio, ele pensou que o conde não fosse explicar nada, mas ele continuou. — Se aquilo viesse à tona, o que estava errado com ele, então todo o resto seria revelado, também, sobre os carregamentos.
— Entendo — disse Brunetti, assentindo.
— Isso teria nos arruinado e desgraçado. Eu não podia deixar que acontecesse. Não depois de todos aqueles anos. De todos esses séculos.
— Ah, bom — sussurrou Brunetti.
— De modo que eu decidi o que tinha que ser feito, e falei com aqueles homens, Frasetti e Mascarini.
— De quem foi a ideia sobre como seria feito?
O conde achou que isso não tinha importância.
— Eu disse a eles o que fazer. Mas o importante era que minha mulher não sofresse. Se ela soubesse o que Roberto estava fazendo, o que tinha provocado sua morte... Eu não sei o que teria acontecido a ela. — Ele olhou para Brunetti, depois de novo para suas mãos. — Mas agora ela sabe.
— Como?
— Ela me viu com Maurizio.
Brunetti pensou na mulher encarquilhada como um passarinho, suas minúsculas mãos agarradas em torno do apoio da bengala. O conde queria poupar-lhe do sofrimento, preservá-la da vergonha. Pois é.
— E o sequestro? Por que eles não mandaram um terceiro bilhete?
— Ele morreu — disse o conde, com voz estéril.
— Roberto? Ele morreu?
— Foi o que me disseram.
Brunetti assentiu, como se compreendesse e estivesse acompanhando solidariamente o tortuoso caminho pelo qual o conde o conduzia.
— E então? — Brunetti perguntou.
— E então eu disse a eles que deviam atirar nele, para fazer parecer que morrera daquele jeito.
À medida que o conde ia explicando como tudo tinha acontecido, Brunetti começava a entender que o homem estava convencido da lógica interior a respeito de tudo o que havia feito, da correção de seus atos. Não havia dúvida naquela voz, nenhuma incerteza.
— Mas por que eles o enterraram lá, perto de Belluno?
— Um deles tinha uma casinha na floresta, para a estação de caça. Eles mantinham Roberto lá, e quando ele morreu eu pedi que o enterrassem por ali mesmo. — A expressão no rosto do conde suavizou-se momentaneamente. — Mas eu pedi que o enterrassem em uma cova rasa. Com o anel. — Percebendo que Brunetti parecia confuso, ele explicou: — Para que fosse encontrado. Pela mãe. Ela teria que saber. Eu não podia conceber que ela não soubesse, que permanecesse sem jamais saber se ele estava vivo ou morto. Isso a teria matado.
— É, posso entender — Brunetti murmurou, e de algum modo lunático entendia. — E Maurizio?
O conde virou a cabeça para o outro lado, evocando talvez aquele outro jovem, também morto agora.
— Ele não sabia de nada. Mas assim que tudo começou de novo, quando o senhor começou com suas perguntas... Bem, ele também começou a perguntar sobre Roberto e o sequestro. Ele queria ir à polícia contar o que tinha acontecido. — O conde balançou a cabeça em reprovação à fraqueza e tolice do jovem. — Mas então minha mulher saberia. Se ele procurasse a polícia, ela saberia o que tinha acontecido, o que estava acontecendo.
— E o senhor não podia permitir que isso acontecesse? — perguntou Brunetti no mesmo tom.
— Não, claro que não. Teria sido muito para ela.
— Entendo.
O conde estendeu uma mão na direção de Brunetti, a mesma mão que tinha demonstrado o tamanho daquelas pequenas pastilhas de rádio, plutônio ou urânio.
Se ele tivesse girado um seletor para ajustar a luminosidade da tela de um televisor ou repentinamente eliminar algum tipo de interferência estática em uma transmissão radiofônica, a mudança não teria sido mais aparente, pois foi naquele ponto que o conde começou a mentir. Não houve alteração em sua voz quando ela passou incólume de sua agitação frente ao pensamento da dor de sua mulher ao que ele começou a explicar na sequência, mas foi audível e evidente para Brunetti, como se o conde de repente tivesse pulado em cima da mesa e começado a tirar a roupa.
— Ele me procurou naquela noite e disse que entendia o que eu tinha feito. Ele me ameaçou. Com a espingarda.
O conde não conseguia deixar de encarar Brunetti para ver como ele recebia o que ele lhe contava, mas o commissario não deixava transparecer que sabia muito bem o que estava acontecendo.
— Ele veio com a espingarda — continuou o conde —, apontando-a para mim e dizendo que iria até a polícia. Eu tentei chamá-lo à razão, mas então ele chegou mais perto e encostou o cano em meu rosto. E eu acho que perdi o controle por um instante, pois não me lembro o que aconteceu. Lembro apenas que a arma disparou.
Brunetti assentiu, mas apenas à sua própria certeza de que tudo que o conde dissesse daqui para a frente era uma mentira.
— E o seu cliente? O que comprou os materiais?
A hesitação do conde foi quase imperceptível.
— Maurizio era o único que o conhecia. Foi ele que arranjou tudo.
Brunetti se levantou.
— Acho que é o bastante, signore. Se desejar, pode chamar seu advogado, mas eu gostaria agora que me acompanhasse até a questura.
A surpresa do conde era transparente.
— Por quê?
— Porque estou prendendo o senhor, Ludovico Lorenzoni, pelos assassinatos de seu filho e de seu sobrinho.
O espanto no rosto do conde não tinha como ser mais real.
— Mas eu acabei de lhe dizer. Roberto morreu de causas naturais. E Maurizio tentou me matar.
Ele se forçou a ficar de pé, mas permaneceu atrás da mesa. Aproximando-se dela, passou um papel de um lado para o outro e moveu o teclado do computador um pouco mais para a esquerda. Mas não conseguiu pensar em mais nada para dizer.
— Como eu lhe disse, o senhor pode chamar seu advogado, mas depois terá que me acompanhar.
Ele percebeu que o conde tinha sucumbido, uma alteração tão sutil quanto aquela que marcara o começo de suas mentiras, embora Brunetti soubesse que daqui para a frente elas não cessariam.
— Será que posso me despedir de minha mulher?
— Sim, claro.
Calado, o conde contornou a mesa, passou por Brunetti e saiu do aposento.
O commissario foi até a janela atrás da mesa e olhou para além dos telhados. Ele esperava que o conde fizesse o que era digno. Ele o deixou sair sem saber se havia outras armas na casa. O conde fora presa de sua própria confissão, sua mulher sabia que ele era um assassino, sua reputação e a de sua família logo estariam em ruínas e podia haver uma arma em algum lugar da casa. Se ele fosse um homem honrado, o conde faria o que era digno.
Mas Brunetti sabia que ele não o faria.
27
— Mas que diferença faz se ele for condenado ou não? — Paola perguntou a ele três noites depois, após o frenesi com que a imprensa tinha coberto a prisão do conde ter arrefecido. — O filho dele está morto. O sobrinho também. A mulher sabe que foi ele que os matou. Sua reputação está arruinada. Ele é um velho e morrerá na prisão. — Ela sentou na beira da cama, vestindo um dos antigos roupões de banho de Brunetti e um grosso suéter por cima. — O que mais você quer que aconteça com ele?
Brunetti estava sentado na cama, as cobertas até o peito, e, até a entrada dela no quarto levando-lhe uma xícara grande de chá forte com mel, lia um livro. Ela lhe entregou a xícara, confirmou com um aceno que sim, tinha se lembrado de acrescentar conhaque e limão, e sentou-se a seu lado.
Assim que ele tomou o primeiro gole, ela empurrou os jornais que estavam espalhados no chão ao lado da cama. O rosto do conde os encarava na página quatro, à qual fora jogado após um assassinato da Máfia em Palermo, o primeiro em semanas. Desde a prisão do conde, Brunetti não falava dele, e Paola tinha respeitado seu silêncio. Mas agora ela queria que ele falasse, não porque lhe agradasse discutir sobre um pai que matou o filho, mas porque ela sabia de longa experiência que isso ajudaria o marido a se ver livre da dor causada pelo caso.
Paola perguntou ao marido o que achava que aconteceria com o conde, e, enquanto ele respondia, ela pegava a xícara dele e bebericava de vez em quando da bebida quente à medida que Brunetti explicava as manobras dos advogados do conde, que agora eram três, e sua impressão geral sobre o que era mais provável de acontecer. Era-lhe impossível esconder, principalmente de Paola, seu desgosto ao pensar que era bem provável que os dois assassinatos não fossem punidos e que o conde fosse para a cadeia apenas pelo transporte de substâncias ilegais, já que agora ele declarava que fora Maurizio o mentor do sequestro.
O poder da imprensa comprada já tinha sido posto em ação, e toda primeira página do país, isso sem falar daquilo que aparecia nas colunas de opinião italianas, estampava histórias que lamentavam o triste destino desse membro da nobreza, desse nobre homem, por ter sido tão iludido por alguém de seu próprio sangue, e que destino poderia ter sido mais cruel que o de ter criado essa víbora no seio da família por mais de uma década, somente para vê-la atacar e morder, direto no coração. Pouco a pouco o sentimento popular acompanhou a maré prevalente das palavras. O assunto do tráfico de armamentos nucleares evaporou, sufocado sob o peso do eufemismo que transmutara o crime para “tráfico de substâncias ilegais”, como se aquelas pastilhas letais, fortes o bastante para vaporizar uma cidade, fossem o mesmo que, digamos, caviar iraniano ou estatuetas de marfim. A cova temporária de Roberto foi examinada por um grupo de homens munidos de contadores Geiger, que não encontraram nenhum vestígio de contaminação.
Os livros e registros das empresas Lorenzoni foram apreendidos, e uma equipe de contadores da polícia e especialistas em computação os analisaram durante dias, tentando localizar a embarcação que teria levado o conteúdo da maleta para o cliente que o conde ainda dizia não saber de quem se tratava. O único carregamento que encontraram que parecia suspeito foi um de dez mil seringas descartáveis enviadas de Veneza a Istambul, por navio, duas semanas antes do desaparecimento de Roberto. A polícia turca respondeu dizendo que a empresa que recebera a carga em Istambul tinha registros que mostravam que as seringas haviam sido encaminhadas de caminhão para Teerã, onde a trilha acabava.
— Foi ele — Brunetti insistiu, com voz e sentimentos não menos incisivos que quando conduzira o conde à questura. Mas, desde o começo, ele também tinha sido manipulado, pois o conde insistira que mandassem uma lancha para buscá-lo; afinal, os Lorenzoni não caminham, nem mesmo para a prisão. Quando Brunetti se recusou, o conde chamou um táxi aquático, e ele e o policial que o prendera chegaram à questura meia hora depois. Quando chegaram, a imprensa já estava a postos. Ninguém descobriu quem tinha feito o telefonema.
Desde o primeiro momento, o caso todo foi apresentado de modo a apelar às paixões, repleto daquele tipo de sentimentalismo vazio que Brunetti tanto detestava em seus conterrâneos. Fotos tinham surgido do nada, convocadas pelas mãos mágicas das emoções baratas: Roberto em sua festa de dezoito anos, sentado com a mão no ombro do pai; uma foto de uma década atrás, da condessa dançando nos braços do marido, ambos esguios e irradiando juventude e riqueza; e até mesmo o pobre Maurizio conseguiu ter seu rosto mostrado, numa caminhada ao longo da Riva degli Schiavoni, a três dolorosos passos do primo Roberto.
Frasetti e Mascarini se apresentaram à questura dois dias depois da prisão de Lorenzoni, acompanhados por dois dos advogados do conde. Sim, tinha sido Maurizio que os contratara, o mesmo Maurizio que planejara o sequestro e lhes dissera o que fazer. Eles insistiram em dizer que Roberto morrera de causas naturais; fora Maurizio que lhes ordenara que atirassem na cabeça do primo já morto para disfarçar assim a causa da morte. E os dois insistiram que fizeram exames médicos completos para verificar se haviam sofrido contaminação durante o tempo que passaram com a vítima. Os testes deram negativo.
— Foi ele — Brunetti repetiu, pegando a xícara de volta e tomando o resto do chá. Virando-se de lado, esticou-se para pôr a xícara na mesa ao lado da cama, mas Paola tomou-a dele e envolveu-a ainda quente em suas mãos.
— E ele vai para a cadeia — ela disse.
— Eu não ligo para isso — ele disse.
— Então, para o que é que você liga?
Brunetti se afundou na cama e puxou os cobertores até a altura do queixo.
— Você riria se eu dissesse que me importo com a verdade?
Ela balançou a cabeça.
— Não, claro que não. Mas o que importa isso?
Ele tirou uma de suas mãos de debaixo da coberta, pegou a xícara dela e a colocou na mesa, então envolveu as mãos dela com as dele.
— Importa para mim, acho.
— Por quê? — ela perguntou, embora provavelmente soubesse.
— Porque eu detesto ver pessoas como essas, pessoas como ele, passarem pela vida sem jamais terem que pagar pelo que fizeram.
— E você não acha que as mortes do filho e do sobrinho já são sofrimento o bastante?
— Paola, ele mandou os homens sequestrarem o garoto, sequestrar e depois matar. E ele matou o próprio sobrinho a sangue-frio.
— Você não tem certeza disso — ela respondeu.
Ele balançou a cabeça.
— Provar eu não posso, e acho que jamais provarei. Mas eu tenho certeza disso como se tivesse estado lá.
Paola não respondeu a isso, e a conversa deles parou por um ou dois minutos. Finalmente, Brunetti disse:
— O garoto ia morrer. Mas acho que o que se passou com ele antes disso, o terror, a incerteza sobre o que aconteceria consigo. É isso que eu jamais perdoarei.
— Não é seu papel perdoar, é, Guido? — ela perguntou, mas em um tom afável.
Ao ouvir isso ele sorriu e balançou a cabeça.
— Não, não é. Mas você sabe o que eu quero dizer. — E como ela não respondeu, ele perguntou: — Não sabe?
Ela concordou e apertou sua mão.
— Sim. — E de novo. — Sim.
— O que você faria? — ele perguntou abruptamente.
Paola largou a mão dele para afastar uma mecha de cabelo que tinha caído sobre seus olhos.
— Como assim? Se eu fosse uma juíza? Se eu fosse a mãe de Roberto? Ou se eu fosse você?
Ele sorriu novamente.
— Com isso você parece estar me dizendo para deixar para lá, certo?
Paola se levantou e depois se abaixou para pegar os jornais. Ela os dobrou e empilhou, e só então voltou para a cama.
— Estive pensando na Bíblia ultimamente — ela disse, para surpresa de Brunetti, que sabia que a mulher não era nada religiosa.
— Naquela parte do olho por olho — ela continuou. Brunetti balançou a cabeça e Paola continuou: — No passado, eu sempre considerei essa passagem uma das piores coisas que um deus desagradável tinha a dizer, clamando por vingança, sedento de sangue. — Ela puxou os papéis para junto do peito e desviou o olhar dele, pensando em como diria o que ia dizer.
Então olhou para ele.
— Mas recentemente me ocorreu que o que ele poderia nos estar mandando fazer é exatamente o oposto.
— Não entendi — ele disse.
— Que a passagem não está pedindo um olho e um dente, mas simplesmente nos dizendo que existem limites; que, se perdermos um olho, não podemos pedir nada mais que um olho, e, se perdermos um dente, então tudo o que teremos é um dente, não uma mão ou — e aqui ela fez nova pausa — um coração.
Ela sorriu novamente, abaixou-se e beijou-o na bochecha, amassando os jornais.
Ao ficar de pé, ela disse:
— Vou amarrar estes juntos. O barbante está na cozinha?
— Sim, está — ele respondeu.
Ela balançou a cabeça e saiu do quarto.
Brunetti pegou seus óculos e seu exemplar de Cícero e voltou a ler. Quando já havia passado mais de uma hora, o telefone tocou, mas alguém o atendeu antes que ele pudesse pegar o aparelho do quarto.
Ele esperou por um minuto, mas Paola não o chamou, então voltou a se concentrar no seu Cícero, já que não havia ninguém que pudesse ter ligado com quem ele quisesse falar.
Alguns minutos mais tarde, Paola voltou ao quarto.
— Guido — ela disse —, era Vianello.
Brunetti pôs o livro nas cobertas e olhou para ela por sobre os óculos.
— O quê? — ele perguntou.
— A condessa Lorenzoni — Paola começou, mas então fechou seus olhos e parou.
— O quê?
— Ela se enforcou.
Sem pensar muito, Brunetti sussurrou:
— Ah, o pobre homem.
Donna Leon
O melhor da literatura para todos os gostos e idades