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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O FASCÍNIO / Anne e Serge Golon
O FASCÍNIO / Anne e Serge Golon

 

 

                                                                                                                                                

  

 

 

 

 

 

Todos os anos, no início do verão, o governador da Nova França, Sr. de Frontenac, convocava os maiores representantes das Cinco Nações iroquesas para uma reunião de paz. No lugar chamado Cataracuí (atual Kingston, no iago Ontário), que se atingia subindo o no Saint-Laurent, para além de Montreal, eram discutidos os principais pontos de litígio dessa paz franco-iroquesa, sempre precária.

Os iroqueses gostavam de negociar tanto quanto de fazer a guerra. E os representantes da Liga Iroquesa compareciam a essas reuniões de bom grado. Ainda mais que sabiam que, na companhia de Onôncio (a "Alta Montanha", nome dado ao primeiro governador, Montmagny, de estatura imponente), receberiam resentes e realizariam banquetes.

Em pé de guerra, no momento em que Angélica pensava nunca mais separar-se do marido, o Conde Joffrey de Peyrac, os iroqueses foram responsáveis por mais uma separação do casal. E outra vez os inimigos se aproveitam disso...

"Oh! meu querido tesouro", suspira o Conde de Peyrac. "Você tem o dom da felicidade!"

Na proa do navio que descia o rio Saint-Laurent, no Canadá, Angélica perscrutava o horizonte. Dentro em breve, se o vento continuasse favorável, iria encontrar-se novamente com o marido, o Conde Joffrey de Peyrac.

Embalada pelas ondas, deixou seu espírito errar. A traumática experiência em Salem, de onde ressuscitara com os dois filhos gémeos, Raimundo Rogério e Gloriandra, parecia já envolta na aura de irrealidade do esquecimento. Tantas coisas tinham-se metamorfoseado desde aquele verão!

No entanto, sua viagem a Montreal deixara-lhe um pressentimento funesto. Se a Duquesa de Maudribourg não morrera - e disso já não tinha evidências - poderia ainda prejudicá-los? Sua missão não se encerrara com o fim do jesuíta, o Padre d'Orgeval?

Uma pancada surda tirou-a do devaneio. O canhão da frota de Gouldsboro os saudava. Ao ver o marido imponente no comando das naves, uma certeza a dominou: ninguém podia mais atacar seu amor. Ela, no auge de seu fascínio, ainda era amada por Joffrey, um dos grandes nomes da América do Norte.

Ele era seu rei, sua pátria, seu refugio!

Após a estada em Salem, na Nova Inglaterra, onde tiveram os sêmeos Raimundo Rogério e Gloriandra, Angélica e o árido, o Conde Joffrey de Peyrac, estavam de volta a suas rras na Nova França. Em Gouldsboro, ainda a bordo de seu novo navio, o Arc-en-Ciel, eram recepcionados pelos huguenotes liderados por Mestre Gabriel Berne e comandados pelo governador Colin Paturel, amigo de outros tempos de Angélica.

Enquanto os recém-nascidos eram cuidados com desvelo pela jovem Severina Berne e pelas moças de Salem, Ruth, Noémia e Agar, Angélica preocupava-se com seus próximos desafios: enfrentar as damas huguenotes do lugar e as influências nefastas da desaparecida Duquesa Ambrosina de Maudribourg.

 

 

 

 

ESTADA EM GOULDSBORO

CAPITULO I

As Damas de Gouldsboro - No quarto da Diaba

Fazia um dia lindo quando o Arc-en-Ciel lançou âncora diante de Gouldsboro.

Enquanto esperavam a execução das manobras, que consistiam em reunir as bagagens na ponte, descer as chalupas ao mar, ajudar os passageiros a se acomodar - e que passageiros nas pessoas de Raimundo Rogério e Gloriandra de Peyrac! -, os primeiros emissários de Gouldsboro se apresentaram ao navio e subiram pelas escadas de corda ou pelos cordames.

Entre eles, o ativo e empreendedor Marcial Berne, irmão mais velho de Severina, e seu grupo de jovens patrulheiros da baía, ladeado pelo fiel escocês George Crowley, que se gabava de ser o primeiro colono do lugar, e do velho chefe Massaswa com sua flotilha de índios que quase não se via no resto do ano, mas que surgia como por milagre de todas as angras circundantes assim que o pavilhão do Conde de Peyrac era avistado no horizonte.

No fim de um instante, todo mundo estava reunido em volta dos pequenos pacotes brancos carregados por suas amas-de-leite e babás, e a manobra não progredia mais.

Enfim, conseguiram dispersar o ajuntamento, e Angélica obteve, depois de muito insistir, algumas notícias e algumas respostas a suas perguntas.

Todos estavam de acordo. O outono seria longo, e o sol do verão indígena, sempre especialmente quente e imutável, prometia brilhar pelo menos até os últimos dias de outubro, se não até meados de novembro. O que permitia permanecer pelo menos uma ou duas semanas nas praias, sem correr o risco de ser surpreendido pelos primeiros frios durante a viagem de volta para Wapassu, com os pequenos príncipes.

Houve, todavia, um contratempo. O navio Gouldsboro, que deixara o porto de atracação em junho em direção à Europa, como fazia anualmente, ainda não voltara, assim como a embarcação menor, Le Rochelais, encarregado de uma missão especial e secreta no Mediterrâneo. Esse atraso não podia ainda ser considerado inquietante, mas o Gouldsboro e seu Capitão Erikson os habituara a vê-los efetuar ida e volta através do oceano com tanta celeridade e êxito, que acabaram por esquecer que podiam, como os outros, encontrar pela frente tempestades, calmarias ou piratas. Ninguém encarava a possibilidade de um naufrágio. Foram tranquilizados, na hora seguinte, graças a uma mensagem que lhes foi entregue pelo corsário holandês, um amigo que bordejava nas paragens e que os avisava que encontrara a embarcação ancorada num fiorde da ilha Royale, onde esperava o Le Rochelais, mais lento que ele, antes de começarem a contornar juntos a Nova Escócia e chegar ao porto.

Só podiam esperar que eles chegassem antes da partida obrigatória para o Alto Kennebec, pois esses navios seriam carregados de mil objetos, instrumentos e mercadorias preciosas para a in-vernagem, e seria lamentável não poder, encaminhá-las para Wapassu.

Enfim Marcial Berne ia partir para estudar em Harvard. Seu pai não queria vê-lo tornar-se um pirata da baía Francesa. Iria depois para Newport e, em seguida, para Nova York, fazer comércio.

- Fique bravo, fique com raiva, fique! Eu vi tudo isso antes de você! - cantarolou Severina, esfregando um mdicador no outro e apontando-o para ele. - Não lhe contarei nada!

La Rochelle francesa, sua volubilidade, seus maneirismos tradicionais, que não morrem depressa, brilhavam ao sol... E Angélica preparou-se para enfrentar Gouldsboro e suas damas.

Os laços que uniam Angélica à parte majoritária da população, os huguenotes franceses de La Rochelle, eram profundos, indefectíveis, mas ambíguos, e, a priori, continuariam a sê-lo para sempre. Censuravam-na por tê-los obrigado a subir no navio de Joffrey de Peyrac, um pirata, a seus olhos. Ela pedira-lhes misericórdia de joelhos quando se rebelaram contra ele durante a travessia, merecendo por isso a forca.

Em circunstâncias em que toda mulher honesta deveria esconder-se de vergonha, pois ela era acusada de adultério com Barba de Ouro, ela os enfrentara com uma desenvoltura desconcertante.

Sabia que, aos olhos deles, não importava o que fizesse, sua conduta tinha sempre alguma coisa de chocante.

Enquanto o Arc-en-Ciel entrava na enseada, Angélica, com a luneta assestada, viu na primeira fila, num grupo compacto e dominador, identificáveis por suas roupas escuras e suas belas coifas brancas, aquelas que tinham sido as damas de La Rochelle e se tornaram as Damas de Gouldsboro, tão arraia-miúda pareciam, ao lado delas, os outros habitantes do lugar, não menos numerosos.

Angélica, que gostava delas por tudo o que tinham vivido juntas e que desejaria agradar-lhes e receber sua aprovação, suspirava, pois sabia que sempre lhes inspirava, não importava o que fizesse, um sentimento de reprovação. Que ela tivesse se introduzido entre elas em La Rochelle, inicialmente como humilde criada, para se revelar a seguir dama de alta nobreza, isso não mudava nada de nada, explicava de bom grado a autoritária Sra. Manigault. Pois, quer fosse a empregada de Gabriel Berne quer fosse a mulher do pirata ao qual deviam sua salvação e sua instalação no Novo Mundo, ela sempre os havia dirigido com a mesma autoridade e os dominara com a mesma maneira desenvolta, não tendo jamais tido consciência de que estivesse tratando com gente séria e senhora de seu destino, eles, os huguenotes de La Rochelle.

Angélica sabia também que, no fim de alguns dias, após discutirem o assunto, eles se informariam sobre se se poderia mudá-la ou melhorá-la. Reconheceriam, pela enésima vez, que ela possuía uma mentalidade muito diferente da deles para que não houvesse atritos ou mal-entendidos, que ela era uma mulher fantasiosa, se não leviana, em todo caso demasiado independente, para que se incomodassem, mas acabariam por convir que a amavam muito, Dame Angélica de La Rochelle ou de Gouldsboro, tal como ela era, que não a queriam diferente, e que estavam muito contentes por vê-la entre eles.

Mas os reencontros eram sempre difíceis. Era inútil, dar-se ao trabalho de tratar todo mundo com cuidado e não chocar ninguém, ela sentia rapidamente que sua vinda perturbava o equilíbrio de sua existência bem regrada. Acabara por compreender que não dependia dela que as coisas fossem diferentes. Só era responsável pelo lugar importante que, a despeito de si mesmos e a despeito de muitos escândalos, ela ocupava em seus corações sombrios, pouco inclinados à indulgência e a capitular diante da sedução.

"O que foi que fiz ao céu", perguntava-se por vezes Angélica, "para que a afeição que medevotam me traga com tanta frequência desconfortos e perigos? Os homens brigam entre si, por minha causa, as mulheres se sentem frustradas se não dedico a cada uma minha atenção exclusiva..."

Com exceção da sábia e terna Abigail, tinha de resignar-se com as outras, ao vê-las com cara de enterro, os lábios apertados numa censura reprimida e sem se poder determinar a propósito de quê; tinha certeza de que iria, uma vez mais, causar-lhes muitas razões de descontentamento.

De imediato, as damas abominaram Ruth e Noémia. Não porque fossem inglesas, mas elas adivinharam logo o lado suspeito de sua personalidade e o lugar privilegiado que ocupavam no coração de Angélica. Por isso, foram de preferência muito mais solícitas com a parteira irlandesa e suas moças, enquanto as duas jovens babás eram sistematicamente postas de lado.

Na confusão do desembarque, Angélica preocupara-se principalmente em designar o lugar onde ia alojar os pequenos heróis do dia, cujas cestinhas de vime, carregadas cada uma na cabeça de um marinheiro, abordaram na praia num silêncio quase religioso, para ser, em seguida, objeto de alegres clamores, enquanto seus carregadores subiam a praia com orgulho.

Desde que tinham ido, como marido e mulher, a esse ponto do litoral do Maine, Angélica e Joffrey de Peyrac não tiveram nunca a oportunidade de residir por muito tempo ali. Tinham conservado o costume de se alojar em seu forte de madeira, rústico mas sólido, que se erguia na extremidade da ponta rochosa e que fechava a angra, transformada posteriormente em porto.

Edificado sobre as ruínas de antigos fortins pelos primeiros visitantes do lugar, talvez Champlain ou pescadores ingleses surpreendidos pela invernagem, ampliado de um cercado fechado por uma paliçada de estacas, esse forte fora por muito tempo a única habitação digna desse nome. Joffrey de Peyrac, vindo das Caraíbas, onde reunira uma fortuna resgatando os tesouros dos galeões espanhóis, ali se acantonava com sua tripulação e suas levas de mercenários, entre duas explorações na hinterlândia ou de reconhecimentos ao longo das violentas costas de um território, sobre o qual acabara de obter, das autoridades do Massachu-setts, o direito de estabelecimento e explorações das minas de prata.

O forte tinha dois andares e comportava, embaixo, uma grande sala comum que servia também de escritório para o comércio e a troca, ladeada de lojas e entrepostos diversos para os víveres e as armas. Em cima, o andar era ocupado por um amplo quarto e dois outros menores, e era ali que Angélica ia se instalar com suas malas e cofres. O quarto estava mobiliado com um grande leito, mesa e poltronas, e escabelos, com revestimentos e tapeçarias nas paredes para proteger contra o frio e a umidade. Havia também um armário, o que não era frequente nessas regiões. Ali se podiam dispor objetos de toalete, bibelôs, jóias, e depositar as diversas mercadorias trazidas da Europa pelos navios, depois de separá-las e decidir para que outros lugares ou casas deviam ser encaminhadas.

Foi, portanto, naturalmente para o forte que se dirigiram os carregadores dos bercinhos de Raimundo Rogério e Gloriandra. Mas, no momento de fazê-lo subir para o quarto maior, Angélica se lembrou de que a Sra. de Maudribourg, a demoníaca amiga do Padre d'Orgeval, ali se hospedara. E foi tomada de pânico.

Receou, pelos preciosos inocentes que trazia de Salem, que ali permanecessem eflúvios do mal destruidor... Fora nesse quarto que, uma noite, acordando, arrepiada de terror, divisara num canto um "ser"' sombrio. Era em volta desse leito que as pobres Moças do Rei, subjugadas, enfeitiçadas, sofriam a ascendência do demónio súcubo. Nesse aposento tinham começado as mentiras e daí partiram as ordens de morte, a génese dos crimes.

Mandou que o cortejo esperasse na sala de baixo, o que permitiu à multidão contemplar mais de perto os dois bebes, colocados em suas cestas sobre"a mesa de madeira, e que se mantinham tranquilos, não tendo ainda notado que os tinham separado de novo. Fazendo sinal a Ruth e Noémia para que a-seguissem, subiu com elas.

Rapidamente, explicou-lhes o que acontecera naqueles lugares e pediu-lhes que procedessem a um exame das influências nocivas que deviam ali existir e, se possível, à sua anulação.

Agar imediatamente retirou da mochila a varinha de feiticeira e, murmurando fórmulas, entregou-a a Ruth Summers. Depois, sentou-se contra o batente da porta, com seus grandes olhos de cigana à espreita, inspecionando com uma mistura de medo e de intensa curiosidade o conjunto do quarto, enquanto Angélica, permanecendo também na soleira, olhava as idas e vindas das duas silhuetas, uma atrás da outra, das moças de Salem: Ruth, com a varinha entre os dedos, Noémia seguindo-a com gestos de mãos que se erguiam como que para captar não se sabe que correntes invisíveis, sua pequena silhueta frágil girando sobre si mesma, ora à direita, ora à esquerda. Mas, às vezes, uma expressão de dor crispava-lhe o rosto, e ela não concluía o giro. Depois, retomavam sua marcha processional, trocando ideias num tom de conversa banal.

Tendo o sol se deslocado, reinava uma luz pálida, a luz do dia misturada ao reflexo do céu no mar, ao pé do promontório. Uma claridade suave, neutra, transparente, onde as duas mágicas passavam com a discrição de fantasmas acostumados a não serem vistos pelo olhar dos homens.

Depois, voltaram-se para Angélica, e Ruth arrumou sua varinha com gestos precisos de dona de casa no saco què a cigana, que se levantara prontamente, lhe estendia.

— Então? - interrogou Angélica.

— Então nadai - disse Ruth, sacudindo a cabeça.

— Nada! - repetiu Angélica. - E, no entanto, ela viveu aqui! Como explicam isso? Ruth voltou-se para Noémia.

— O gato captou tudo - declarou esta, abrindo as mãos num gesto que significava: é assim.

— O gato?

— Ele não estava aqui?

— Com efeito...

E nesse mesmo dia ele aparecera, o Senhor Gato, que atual-mente passeava, solene e bem nutrido, pelos caminhos de Goulds-boro. Ele não passava então de um miserável gatinho de navio, não maior que a mão do grumete que devia tê-lo jogado na praia, entre as poças d'água.

Subitamente, Angélica, sentada à cabeceira de Ambrosina, o vira ali, contra sua saia, como que surgido do assoalho, tão fraco, héctico e vacilante em suas patas finas, que não tinha forças para miar. Fixava-a com seus olhos dilatados, com uma tal expressão de espera, tão cheia de esperança e de confiança... Ela o pegara no colo para aquecê-lo, cuidar dele...

Senhor Gato! Pequeno génio do Bem. Enviado para captar o Mal...

-        Por que nos olha assim? - perguntou Ruth. - Sabemos tão pouco sobre os mistérios que escoltam os seres humanos... Mais seres do que você imagina vivem com poderes secretos, e muitos mais deveriam sabê-lo. Tantas forças e tantos tesouros que nos foram revelados se perdem, em nossos dias! Mas o papel e o objetivo de Satã é privar o homem de seus dons místicos e afastar dele as ajudas divinas.

CAPITULO II

Os Huguenotes e Bertille Mercelot

E como perguntasse sobre o jovem Laurier Berne, o segundo irmão de Severina e que era para ela um de seus filhos adotivos de La Rochelle, viu-o correr.

-        O gato apareceu em nossa casa em primeiro lugar - gritou. - Venha depressa, Dame Angélica, nós a esperamos para a refeição.

Na casa dos Berne, em volta do diplomata visitante, o Senhor Gato, sobre a mesa, reencontrava Abigail, seu esposo, suas encantadoras filhinhas, uma, Elisabeth, de dois anos, a outra, Apo-lina, de seis meses. Notando uma outra cabeça loura, Angélica perguntou o nome do pequeno vizinho.»

— É o pequeno Carlos Henrique, você sabe... Na ausência de sua madrasta, Bertille, que viajou para acompanhar seu pai, o Sr. Mercelot, à Nova Inglaterra, para ajudá-lo com suas escritas, nós ficamos cuidando dele.

— Ah! sim, Carlos Henrique! - disse ela, entristecida. - Seus avós, os Manigault, não podiam cuidar dele? ou suas filhas, Sara e Débora, que são tias dele, em vez de sempre recorrerem a você, Abigail, que é apenas uma vizinha, carregada de filhos?!

Abigail teve uma expressão dubitativa e acariciou a cabeça da criança, que era bela e desenvolvida para seus três anos, mas que tinha o hábito de manter os grandes olhos sempre arregalados, como se estivessem lhe explicando algo estarrecedor que ela não compreendesse.

Ela respondeu, com mansidão:

-        Você sabe como eles se sentem em relação a este pobrezinho. Ê preciso desculpá-los.

Uma nuvem de tristeza passou pelo rosto das pessoas presentes, enquanto tomavam assento em volta da grande mesa de madeira e mestre Gabriel Berne, depois- de tirar do tonel um pouco do vinho de uma remessa nova, aberta com o próprio facão, o seria nos cálices de estanho, dispostos por Severina.

Para evitar um assunto de preocupação latente na comunidade de Gouldsboro, o desaparecimento da mãe verdadeira de Carlos Henrique, começaram a congratular-se: naquele ano, pelo menos, o verão parecia ter trazido apenas satisfações. Não houvera piratas, corsários atracados nas ilhas para vistoriar os navios que chegavam da Europa com seus carregamentos de provisões, indesejáveis entre esses bacalhoeiros estrangeiros, ingleses em busca de desforra sobre os postos da Acácia Francesa, reides iroqueses ou guerra santa de abenakis contra o herege. Paz, portanto, na baía Francesa.

-        Assim seja - aprovou Severina, impulsiva e ardente, e que, voltando para casa, tinha muitas novidades para contar.

Com um braço em volta dos ombros de seu pai e de sua segunda mãe, de quem gostava muito, continuou:

-        Concordo! Reconheço que o clima de Gouldsboro é um dos mais agradáveis, e que a gente sente o coração leve e cheio de amizade pelo próximo...

Mas, em sua opinião, estava na hora de todas as pessoas de bom senso reconhecerem uma coisa, que saltava aos olhos. Se aquele ano, ali, a atmosfera estava calma, cordial, não era apenas devido aos triunfos do verão - boas colheitas, boas notícias da Europa, boa pesca, bons negócios e comércio, boas chegadas e boas partidas de navios e o feliz nascimento dos gémeos de Peyrac, que coroava tudo, mas também... porque tinham se livrado de Bertille Mercelot.

Sem ousar dizê-lo em voz alta, por medo à Sra. Manigault, sempre muito autoritária, mas alguns ousando cochichá-lo ao ouvido de outros, acabaram por constatar que, sem Bertille Mercelot, todo mundo se entendia melhor em Gouldsboro. E quando Severina contou como a insolente, que ela reencontrara em Salem,

se comportara com a Sra. de Peyrac, nem bem refeita do parto, as línguas de desataram.

Bertille Mercelot, declararam, não parava de fazer o papel de pomo da discórdia, e isso desde que nascera. Os que em La Rochelle a viram crescer contavam que, ainda bem pequena, ela já semeava a cizânia entre os garotos do Bairro das Muralhas, com os quais aprendia a ler a Bíblia na casa de duas moças muito honestas. Depois da passagem de Bertille por suas pequena oficina, onde, sem malícia e dedicadamente, ensinavam às-pequenas hu-guenotes da cidade a se manter eretas e a fazer gentilmente a reverência, curta e modesta, e um pouco de costura e de tricô, elas tiveram de renunciar a prosseguir com seus ensinamentos. Por ser bonita, e mesmo fascinante, filha única e herdeira de uma considerável fortuna, devida a um próspero comércio de papelaria, Bertille Mercelot sempre se julgou irresistível, considerando um insulto à sua pessoa não o reconhecer.

Sendo uma menina inteligente e que aprendia mais depressa que as outras, era difícil negar essa superioridade, que ela afirmava por sua simples e incomparável presença, e suas companheiras de infância acabaram por admitir, do mesmo modo que ela, que Bertille Mercelot nascera para ocupar o primeiro lugar em tudo e para deixar aos outros apenas os restos. Quando chegou à idade de atrair o olhar dos homens, tevê de enfrentar a difícil escolha de atrair todos eles, mas nem por isso recuou em sua ambição de atrelar a seu carro o maior número possível, pelo menos para não abandoná-los às outras.

Era difícil distinguir num primeiro olhar as paixões que dormitavam sob essa água parada. Ela sabia como desviar os espíritos de sua responsabilidade em uma querela, pois, para ousar a linguagem papista, " ter-lhe-iam dado o Bom Deus sem confissão". Tinham pois paciência com ela, fosse por cegueira, fosse por poupar seus pais, que eram as melhores pessoas do mundo e que nunca perceberam que sua filha adorada era uma rameira.

Mas, agora que seu pai tivera a boa ideia de levá-la ém sua visita aos moinhos de papel da Nova Inglaterra, mediam, pelo alívio que isso lhes trouxera, o peso que suas dissimulações exerciam sobre a comunidade.

Com Bertille, a gente sempre se perguntava qual seria o próximo lar que ela ia tentar destruir e, com esses piratas arrependidos do outro lado do porto, papistas, portanto libertinos por natureza, se o bom entendimento estabelecido por Colin Patu-rel tivesse um dia razões para se romper, as imprudentes incursões de Bertille entre eles não seriam estranhas. Com efeito, ela só respeitava Colin, o governador, e Abigail Berne, e mesmo assim, não se sabia se não se deixariam lograr um dia por seus tra-jetos, seus comadrismos, suas palavras ao mesmo tempo doces e avinagradas.

Gabriel Berne servia generosamente o vinho branco da Garon-ne, e Angélica achava repousante, depois de Salem, tagarelar com toda a tranquilidade com os amigos sobre assuntos referentes à vizinhança, que são igualmente importantes e sem importância. Laurier trazia um prato de camarões e de ostras frescas. Tia Ana e a velha Rebeca chegavam, davam-lhes lugar à mesa e recomeçavam a falar em todos os sentidos sobre Bertille Mercelot, enquanto Gabriel Berne abria as ostras com um gesto peremptório.

Tia Ana, que era um pouco distraída, opinou que era preciso casar a perturbadora Bertille. O que provocou a indignação geral.

— Mas ela já é casada, vocês o sabem muito bem!

— Com esse cretino do Joseph Garret, que fica correndo os bosques em vez de vigiar sua mulher!

— Se Jenny Manigault não se tivesse deixado raptar pelos índios...

— Cuidado com o que falam diante do menino!

— É verdade! Tenham cuidado, ele pode compreender.

— Não, ele é pequeno demais.

Beijavam o pobre Carlos Henrique e recomeçavam a falar de -Bertille Mercelot, a fim de encontrar uma solução para o problema.

Era um equívoco habitual sugerir, como Tia Ana, que era preciso arranjar-lhe um bom marido, e muitos insistiam nele até o momento em que observavam que ela já tinha um marido, pois era casada, e isso havia quase dois anos, com Joseph Garret, o genro dos Manigault. Ela sempre sonhara em entrar para a família dos Manigault, uma das mais importantes de La Rochelle e

uma das mais importantes dentre os armadores, mas não se via como, pois essa família de ricos burgueses só tinha um filho homem, um pequeno temporão, Jeremias, nascido depois de quatro filhas, contemporâneas de Bertille. Esta sempre tivera ciúmes de Jenny, a mais velha, e muito mais ainda quando a viu casar-se, antes dela, com o tal Garret, belo rapaz, de bom nascimento, oficial num regimento de Saintonge.

Ora, atualmente, Bertille Mercelot era a esposa de Garret, mas, por quais meandros de que trágicos acasos?

A encantadora Jenny Manigault poderia prever em sua juventude feliz e mimada de La Rochelle que, por ter nascido hugue-note, seria um dia lançada, com sua família, nos caminhos do exílio e que, à sua fuga de proscritos, acrescentaria dois dramáticos privilégios: o de ter posto no mundo a primeira criança de Gouldsboro, nascida nos primeiros dias de seu desembarque, a quem chamaram de Carlos Henrique, e o de ter sido a primeira a pagar seu tributo à cruel América: alguns dias depois de sua festa de purificação, quando se dirigia com os seus para o campo de Champlain, fora raptada por um grupo de índios que andavam por ali, iroqueses ou algonquinos, nunca se soube, e desaparecera para sempre.

Duras primícias a oferecer aos deuses selvagens da América do Norte para obter a graça de sobreviver e" recomeçar ali uma nova vida!

Na casa dos Manigault, por muito tempo entristecidos e revoltados, a ferida começava a cicatrizar-se. Suas outras filhas eram belas e boas. Jeremias crescia, fariam dele um ativo armador do Novo Mundo e, para começar, iria também para Harvard, na Nova Inglaterra. Os negócios iam tomando jeito. Em sua casa não se falava nunca em Jenny, morta sem sepultura onde pudesse ser pranteada. Bertille, seduzindo e desposando desde o primeiro inverno o jovem viúvo desamparado, demonstrara na ocasião mais precipitação do que juízo. Isso não a aproximara em nada dos Manigault, e ela poderia ter pensado que havia uma diferença em se tornar parente dos Manigault de La Rochelle, quando eles moravam em seu suntuoso palácio particular, ou dos semináufragos sob um teto de colmo e cabana de achas ou pranchás de madeira, como foram os imigrantes dos primeiros tempos, todos pioneiros da América, todos na mesma situação, ricos ou pobres de nascimento. Por isso, a nova família Garret nunca deu muito certo. Bertille não gostava do pequeno Carlos Henrique.

Ela o deixava na casa da vizinha Abigail, tendo os avós Mani-gault também se desinteressado desse neto que lhes lembrava um luto cruel e, com efeito, não podiam suportar sua presença. Bertille, por sua vez, se encontrava a maior parte do tempo em casa dos pais, e continuavam a chamá-la de Bertille Mercelot. Algumas vezes voltava para casa, pegando a criança com grandes demonstrações de afeto, para que dissessem que ela era perfeita, tocante, devotada. Suas reaparições coincidiam, observou-se, com a chegada dos navios da Europa, o anúncios de visitantes interessantes à baiáia Francesa, ás vezes com as voltas de Joseph, seu esposo, que por conta de uma companhia meio inglesa, meia holandesa, se associara aos bosslopers ou bushrangers, como eram designados os exploradores de bosques ingleses que iam até os índios comprar ou pegar as peles.

Em suma, todo mundo em Gouldsboro estava aliviado pelo fato de Bertille estar ausente. Nas crónicas futuras, o ambiente que reinava no coração do verão em questão seria julgado idílico e falariam dele com frequência. E, antes de mais nada, comentariam essa volta do Arc-en-Ciel, que entrara na enseada carregado de auriflamas e de "armadouras" escarlates, como um navio real, e a volta do Conde e da Condessa de Peyrac, essas duas personagens que não eram iguais aos outros, que por vezes se pensava odiar, temer ou rejeitar, mas que acabavam por agradar em virtude de seu gosto por festas e sua.sede de viver, e que tinham voltado dessa vez com as duas crianças milagrosas, em vestidos de veludo, belos, uns amores em suas almofadas bordadas. E a existência em Gouldsboro era suficientemente difícil para que virassem as costas ao prazer e se deixassem envenenar por moças maléficas como Bertille. Haveria também a volta do Gouldsboro e do Le Rochelais com seus carregamentos soberbos, e a população se apegava cada vez mais à sua cidade, havia um movimento louco de troca e de comércio, visitas e alianças...

Mas nada era melhor que a ausência de Bertille Mercelot. Acabavam de compreender que não se enganavam ao considerá-la um verdadeiro veneno.

Abigail, sempre caridosa, teve de convir com isso também.

-        Mas o que vai ser desse menino com uma mãe tão ruim?

Angélica continuava a esperar que se tratasse apenas de futilidade, que a jovem se emendasse. Apesar de ter servido de alvo aos maus propósitos de Bertille, considerava-a apenas uma criança um pouco tola. Se lhe construíssem um dia em Gpuldsboro uma casa bonita, tal como as que ela vira na Nova Inglaterra, ela se sentiria bem ali, como em outra parte qualquer. Isso lhe permitiria exibir-se.

Era preciso principalmente conseguir que seu marido voltasse dos bosques. Ele não poderia ser mais útil ali, como antigo oficial do rei, ocupando-se da milícia, formando um destacamento de bons militares, em vez de seguir os bushrangers ingleses para negociar peles, que ali eram negociadas em pequena escala, a fim de não desagradar ao índios?

-        Em compensação - disse ele -, se um dia ela, que é um francês reformado, isto é, herege, acompanhando os oponentes ingleses, der com os franceses do Canadá, que são tão zelosos de seu monopólio e consideram que todas as peles da América do Norte pertencem a eles, não dou muito tempo para sua cabeleira.

Abigail teve um sobressalto e suspirou: "Pobre rapaz!", e depois, " Pobrezinho"! olhando para Carlos Henrique, que já imaginava privado de todo apoio, paterno e materno; Gabriel Berne aprovou Angélica em suas opiniões. Fazendo pouco dos prognósticos demasiado sombrios, os três decidiram que, ao invés de tentar convencer os Manigault a cuidar de seu neto, convenceriam Garret a voltar, criando-lhe obrigações e responsabilidades cívicas que o retivessem em casa, junto à sua jovem mulher e ao filho.

Iam falar com o Governador Paturel.

CAPÍTULO III

Relações acadianas

Gouldsboro tornara-se tão povoada que as pessoas não mais se conheciam, e uma grande parte da população sob a jurisdição de Colin Paturel era agora estranha para Angélica. Não podia ser apresentada a todos e, durante sua permanência, iria sobretudo rever seus amigos e as pessoas conhecidas que vinham a Gouldsboro para encontrá-la.

- Sra. de Peyrac! Sra. de Peyrac!

Angélica, que atravessava a praça correndo, resolveu fazer-se de surda a esses chamados que, vinte vezes por dia, chegavam a ela, assim que punha os pés na rua.

Pelas onomatopéias que eram trocadas quando botes e chalupas traziam os ocupantes de um navio para a praia podia-se saber de que pontos da costa ou de que ilhas chegavam, vozes inglesas ou francesas, ou às vezes cordialmente misturadas quando se tratava da longínqua ilha de Monégan ou dos estabelecimentos da foz do Kennebec, dos quais várias bandeiras guardavam a entrada, até a do mercador holandês Peter Boggen.

Havia anunciado a chegada dos.acadianos de Port-Royal. Angélica, que se atrasara novamente em casa dos Berne, tentava passar sem ser notada, com a preocupação de voltar para o forte a fim de "se arranjar" um pouco, no caso de a Sra. de la Roche-Posay estar entre os que chegavam. Queria também dar uma olhada nos gémeos, censurando-se por haver-se descuidado deles, apesar e talvez por causa do número de pessoas que assumiam sua guarda e cuidados no barco. Um velho marinheiro, de origem circassiana, vendo o enxame.de vasquinhas e de toucas que se debatia em volta dos dois tesouros, advertira-a várias vezes, desferindo-lhe com ar sinistro um provérbio russo, fruto da sabedoria e dã experiência popular: "Uma criança que tem sete babás fica caolha!". .

Estava, pois, andando rapidamente e fez de conta que não escutava a voz fresca e jovem que a chamava: "Sra. de Peyrac!... Sra. de Peyrac!"

Todavia, olhando de lado, viu que se tratava de uma mulher, evidentemente grávida, e que se apressava um pouco pesadamente na areia para encontrá-la. Foi forçada a parar e retroceder.

-        Oh! Sra. de Peyrac, estou feliz por revê-la - disse a jovem, ofegante. - Queria tanto que me desse notícias de minha irmã!

Chegando perto de Angélica, jogou-se espontaneamente em seus braços, e esta não teve outra saída senão abraçá-la.

-        Quem é você, minha cara?

'- Não me reconhece?

A jovem tinha um leve sotaque áspero, talvez inglês. Angélica pensou na jovem Ester Holby, que viajara com ela na barca de Jack Merwin, depois de ter escapado a um massacre perpetrado pelos índios abenakis e em que perdera toda a família, tendo sido recolhida por um de seus tios da ilha Martinicus. Mas Ester era muito mais alta e desenvolvida que esta jovem, pequena e vivaz, mas que, sem sua barriga redonda, passaria por uma menina de doze anos. Tinha na cabeça uma bonita touca de renda e um capuz de lã branca.

-        Verdade? Não me reconhece? Eu, no entanto, estou longe de esquecê-la, você me tirou da água e me carregou como um bebé, no dia do naufrágio. E parece que agora tem dois bebés. E eu também vou ter um! Não é lindo tudo isso?

Sua exuberância não tinha nada de britânico e a palavra "naufrágio" pôs Angélica na pista correia.

— Será que... - disse, hesitando - , será que você é uma das Moças do Rei cujo navio se chocou contra os rochedos diante de Gouldsboro, há dois anos?

— Isso mesmo! Sou eu, a pequena Germana, não se lembra? Germana Maillotin. É verdade que eu era a caçula, e tão pequena que nunca me chamavam pelo nome, e sim diziam: a pequena ou a menina, então isso não lhe chamou a atenção. E depois, com tudo o que acontecia, não é de admirar: o naufrágio, os piratas. Poderia dar-me notícias de minha irmã e da Sra. de Mau-dribourg, nossa Benfeitora?

Angélica, embaraçada, sentiu um frio percorre-lhe a espinha. Os acontecimentos datavam de quase dois anos, mas era sempre desagradável para ela falar a seu respeito. Tomou o braço da jovem.

— Venha, minha cara, acompanhe-me até o forte. Pelo que compreendi, você deixou suas companheiras e sua benfeitora, a Sra. De Maudribourg, em Port-Royal, e desde então não teve mais notícias delas.

— Sim, escondi-me quando o inglês as fez subir, prisioneiras, em seu navio! Eu estava com medo, estava farta de todas aquelas coisas e, depois, conheci em Gouldsboro um marinheiro que me agradava e com quem queria me casar, como nos propôs o Sr. Governador Paturel.

Ela andava enquanto falava e agora, em sua elocução precipitada, despertava um outro sotaque, inconfundível, dos habitantes pobres de Paris.

-        Fui criada na Pitié. Fui ali admitida desde os quatro anos de idade, com minha irmã mais velha, enquanto nossa mãe estava encerrada no Convento das Mulheres Arrependidas. Fui bem educada, acredite, senão o Sr. Colbert não nos teria escolhido para povoar o Canadá. Mas eu estava a mais no comboio. A Sra. de Maudribourg só queria minha irmã, mas tive de continuar, porque minha irmã era tudo o que eu tinha no mundo, e ela insistiu em não me deixar para trás. Agora que estou tão feliz, esqueço todas essas tristezas..., mas gostaria muito de ter notícias dela e de minha pobre irmã.

Tinham chegado ao forte, e, antes de levá-la para ver as crianças, Angélica a fez sentar-se na sala de baixo para servir-lhe uma bebida fresca. Pobre náufraga! Do La Licorne e da vida! A Acádia a recolhera.

Tinha um rostinho astuto, amável, mas, no comboio de jovens imigrantes, nada devia distingui-la do grupo aflito que cercava a Sra. de Maudribourg, sob o.cajado da gorda Petronilha Damourt.

Como ela, havia uma dezena de Moças do Rei que faziam parte da escolta da duquesa, rezando as horas de joelhos ou seguindo-a em grupo eque, dóceis ou aterrorizadas, quase não saíam do anonimato. Angélica tivera bastante dificuldade para se aproximar de algumas e obter suas confidências. Delfina du Rosoy, Maria, a Meiga, que tinha sido assassinada por lhe haver falado, Juliana, a engraçada, que, ao chegar a Gouldsboro, conseguira esquivar-se reunindo-se ao Irmão da Costa, Aristides Beaumarchand, pirata fugitivo que só merecia a forca e que, no entanto, fora o primeiro a contrair com ela legítimas núpcias.

-        Quer dizer então que você não soube que a Sra. de Maudribourg morreu? - disse Angélica.

A jovenzinha, que escapara a tantos contratempos, sobressaltou-se e pulou. Mas era de alegria.

— Morta! Você irá me achar pouco caridosa, Angélica, mas fico contente com isso e... já o esperava. Não faz muito tempo, alguém da costa leste, que vinha vender seu carvão em Port-Royal, falou disso, mas não ousei acreditar. Agora que é você quem o diz, Angélica, e que posso estar segura, vou poder dormir em paz. Ainda que isso não seja um bom sentimento - persignou-se -, mas nunca houve mulher mais malvada que ela no mundo. A mim, que não "servia para nada", como ela dizia, ela não parava de cutucar, e até, às vezes, me queimava com brasas ardentes do seu aquecedorzinho, no navio.

— Pobres crianças! - disse Angélica, com o coração apertado, como acontecia toda vez que evocava a situação daquelas pobres moças e jovens senhoras entregues a um ser tão demoníaco, com a bênção de toda as pessoas de bem, eclesiásticos, religiosos, ministros, benfeitores, que se deixaram enganar pelos belos olhos e a devoção da enviada do Padre d'Orgeval.

Ficou com lágrimas nos olhos e disse a si mesma que o parto a tornara sensível demais. A pequena Germana, que percebera sua emoção, ficou comovida.

-        Oh! Angélica, como você é bondosa! Sempre foi um anjo para nós! Como foi belo chegar a Gouldsboro e, apesar do medo do naufrágio, vê-la na praia correndo para nós e lançando-se à água para me salvar.

E acrescentou, com uma gravidade de órfã prematuramente amadurecida:

-        A bondade de uma mulher compensava a maldade da outra.

Angélica julgou lembrar-se de que, nesse naufrágio, tivera principalmente de tirar para fora da água a enorme Petronilha Da-mourt. Mas, já que a pequena se alegrava por ter sido salva por ela...

— O homem da costa leste dizia também que vocês haviam trazido, o Sr. de Peyrac e você, minhas companheiras para Que-bec, que era o fim de nossa viagem. Então pensei que, se minha irmã estivesse em Quebec, poderia ter tentado me dar notícias e procurar saber o que me acontecera. Receando menos encontrar nossa Benfeitora, vim hoje. E a primeira vez que ouso deixar nosso caro Port-Royal.

— Como se chama sua irmã?

— Henriqueta.

— Pois bem, alegre-se, acontece que posso dar-lhe excelentes notícias dela.

— Ela se casou?

— Não, ainda não. Mas não tardará muito, pois tem muitos pretendentes. Mas ela quer fazer sua escolha. Enquanto isso, empregou-se como camareira em casa da Sra. de Baumont, que está muito contente com seus serviços e com seu génio alegre e impulsivo.

Germana olhou-a com espanto.

— Quer dizer que ela é alegre, feliz, ativa?

— Certamente! Ela tem muito sucesso, ajuda essas senhoras em suas obras, e Quebec inteira elogia seus méritos.

— Ah! como estou contente! Minha irmã tinha tanto apego à Sra. de Maudribourg, que eu receava, ao saber de sua morte, que isso acarretasse o fim de minha irmã, que era como que sua escrava. Ela perdia a voz, servindo-a como uma sombra. Era uma verdadeira doença, e nos últimos tempos, parecia não mais me ver. Em vão, supliquei-lhe: "Fique comigo em Port-Royal". Ela estava pronta a segui-la até o inferno.

— Bom, como você vê, quando uma influência negativa cessa, a vida renasce - disse Angélica, que jamais conhecera a sensata e alegre Henriqueta sob esse prisma.

Subitamente, faltou-lhe coragem. A visão da louca Ambrosina acabava de atravessar seus pensamentos, como um vampiro batendo as asas de sua grande capa preta forrada de cetim vermelho. Empalideceu.

As palavras e considerações da pequena parisiense confirmavam tudo aquilo que acabaram por atribuir à personalidade de Ambrosina, e que algumas vezes receava ter imaginado ou exagerado. E que essa mulher era como um vampiro que enfraquecia suas vítimas e lhes devorava a alma. Fora de sua órbita, elas voltavam à normalidade. A jovem que estava diante dela era ingénua e simples. Falara espontaneamente, e seu julgamento confirmava que não houvera nenhum exagero naquele que haviam feito sobre a Duquesa de Maudribourg.

Para mudar de conversa, Angélica observou a Germana que ela nâo parecia ter desposado seu marinheiro de Gouldsboro, porque ficara em Port-Royal, o que não a impedia de ter um esposo. A moça riu e disse que, com efeito, como não tivera oportunidade de voltar para o outro lado da baía, casara-se com um escocês, daí o seu sotaque, influenciado pelo de seu marido, descendente dos soldados de Sir Alexandre.

A jovem acadiana admirou os bebés, que dormiam em seu quarto, no primeiro andar. Estavam bem guardados pelas filhas da parteira irlandesa, que bordavam e tricotavam à sua cabeceira.

- Como são engraçadinhos! - admirou a pequena Germana Maillotin. - A menina é redondinha e o menino, comprido. Eu também gostaria muito de ter gémeos. As crianças trazem alegria ao lar. Não tenho medo de trabalho. Aprendi a fiar a lã, o linho, e a tecer panos para lençóis e camisas. Quando nosso filho nascer, vamos partir com alguns casais jovens para nos estabelecermos numa outra aldeia onde estão precisando de braços, em Grandpré.

O estabelecimento em questão tinha já três ou quatro anos de fundação. Um colono de Port-Royal tinha ido para lá secar os pântanos, como já se fizera nos arredores do primeiro estabelecimento. Os setores de território protegidos eram raros na costa norte da península de Acádia. Mas as fortes marés tinham-se acumulado nas enseadas das terras finas que os acadianos, depois de protegê-las com pequenos diques, à maneira holandesa, transformaram em pastos e vergéis.

O Sr. de Peyrac prometera ajudá-los, sobretudo para abastecer os pioneiros com ferramentas e produtos manufaturados da Europa, pois, era isso principalmente o que faltava aos franceses, e não coragem, disposição para o trabalho e gosto pelo cultivo da terra e pela criação de animais.

- Venha ver-nos em Port-Royal - insistia a Sra. de La Roche-Posay, antes de tornar a embarcar, no dia seguinte, com todo o seu bando.

Viera de seu feudo com os numerosos filhos e a governanta, a Sita. Radegunda de Ferjac. O Sr. de la Roche-Posay tinha ficado, pois sempre receava incursões de navios ingleses, e era melhor ter cuidado.

A castelã de Port-Royal estava agradecida pelos presentes que lhe foram enviados com os produtos de primeira necessidade, vinho, óleo, chumbo, quinquilharia e tecidos, e que lhes fazia muita falta quando os navios da companhia não chegavam. Então, não se fazia ideia das dificuldades que um governador de estabelecimento tinha para manter seu posto nesses países da América. Felizmente, agora, não longe de Port-Royal, estavam estabelecidos simpáticos e solícitos vizinhos. E a vida para os pobres senhores franceses mudou. As meninas tinham levado suas belas boneca de Salem, uma das maiores alegrias de sua existência de pequenas nobres exiladas.

Mas era preciso pensar, dizia sua mãe, em enviar as mais velhas para a França, a um convento, para aperfeiçoar sua educação, pois, apesar dos bons cuidados de Radegunda de Ferjac e do capelão-preceptor, que cuidavam de ensinar-lhes latim e boas maneiras, toda essa juventude sofria a influência da selvageria local, só pensava em percorrer a floresta ou andar de barco, pescar truta ou salmão, apanhar peles, visitar os índios para fazer com eles grandes festins, depois de participar de uma caçada, e as moças, quando crescessem, não encontrariam bons partidos.

-        Por que não envia suas filhas para as ursulinas de Quebec ou para a casa de Margarida Bourgeoys, em Montreal? - perguntou Angélica.

A Sra. de la Roche-Posay fez uma careta.

-        Nós, da Acádia, não nos entendemos muito bem com essa gente já "de cima" - disse ela com um gesto da mão indicando o norte, onde ficava Quebec, capital da Nova França. - Os funcionários do rei, que só se lembram de nós para cobrar taxas e direitos, supõem que estamos enriquecendo desavergonhadamente e que conspiramos com os ingleses, quando somos periodicamente arruinados por esses imprudentes inimigos e, além disso, abandonados por nossos compatriotas. As grandes famílias do Canadá nos olham do alto, sob o pretexto de que construíram suas casas antes de nós na América do Norte, quando isso é totalmente falso, pois Samuel de Champlain fundou Port-Royal com o Sr. de Monts muito antes de Quebec. E depois, confesso-lhe que gostaria que minhas filhas tivessem uma formação mais refinada, obtendo um cargo de dama de companhia junto a uma princesa de alta classe, na corte... E mais fácil consegui-lo saindo de um convento renomado de Paris do que daqueles de nossas pobres colónias, que são tão desprezados pelas pessoas pretensiosas da sociedade, que só têm valor por borboletearem no círculo do rei. Mas, que se há de fazer? Não podemos mudá-lo, e é preciso passar por isso, se quisermos chegar a Versalhes. Parece que seus filhos e o jovem Castel-Morgeat, apesar de ter vindo da Nova França, estão nesse momento no serviço de armas como corte sãos. Você tem notícias deles?

Sim, tivera, e o Gouldsboro, que estava sendo esperado, certamente traria notícias.

-        Volte a visitar-nos, cara Sra. de Peyrac - suplicou a Sra. de la Roche-Posay. - Todos nós guardamos uma lembrança muito favorável de sua estada aqui, no último verão, em que veio com aquela grande dama benfeitora, que era um pouco estranha, mas muito bela e culta também, a Sra. de Maudribourg, não é? Ela deixou suas Moças do Rei em minhas mãos, sem nenhuma cerimónia. Não nos queixemos! Com isso, ganhamos três noivas para os jovens celibatários de nossa comunidade como essa moça, Germana, que desejava pedir-lhe notícias de sua irmã. Eram todas moças de qualidade. - A mulher continuou: - Houve muitos comentários em Quebec porque elas não foram para lá? Esse contratempo se deu totalmente independente de minha vontade. Elas se escondiam para não ir embora. E hoje, acho que estão felizes conosco, e gostamos muito delas. Enfim, espero que não tenhamos problemas com a administração "lá de cima". Tudo é tão complicado, e os correios tão lentos! Os aborrecimentos nos caem na cabeça, quando já tínhamos até esquecido há muito o que os provocara, e é um nunca acabar de processos e arrazoados!

Ela suspirava, depois convinha em que preferia esse Novo Mundo, que gostava dessa vida e que tinha sido muito feliz com seu marido em seu forte de madeira, dominando a vasta extensão de água da baía de Port-Royal, que se ornamentava com uma tão suave cor malva, ao alvorecer... quando não era invadida pelo nevoeiro.

- Prometa-me que voltará para uma temporada em nossos domínios - insistiu -, com seus filhos, sua criadagem, sua guarda. E também seu esposo, se possível. Pois só o vemos precipitadamente, quando nos vem ajudar a resolver um litígio com os ingleses ou os piratas holandeses ou outros, sempre em pé de guerra, jamais em paz. Mas não perco as esperanças de chegarmos um dia a isso. Prometa-me que voltará.

Angélica prometeu e tornou a prometer, solenemente, enquanto perguntava a si mesma se teria um dia oportunidade de ir navegar do outro lado da baía, por simples prazer.

Mas era sincera ao afirmar que gostaria de rever Port-Royal, um lugar encantador, com suas casas de madeira, de telhados de ripas ou de colmo, suas duas igrejas, seu moinho de rodas, suas grandes campinas ao redor das quais se elevava o mugido dos rebanhos.

Jamais culpou a inocente aldeia acadiana, guarnecida de cerejeiras e de bosquezinhos de tremoços gigantes, pelas agruras que ali atravessara.

CAPITULO IV

As esperanças do escravo Siriki - Os cordeiros e os lobos

Colin Paturel mandara-lhe um recado através de seu escrevente, Marcial Berne.

O rapaz, quando não estava a vagabundear pelo mar, servia-lhe de secretário. O governador precisava pedir-lhe conselho para estatuir sobre a sorte de novos forasteiros.

O antigo pirata, atrás de uma enorme escrivaninha de carvalho coberta de maços de papéis, sentado numa poltrona de espaldar alto, tipo cátedra de bispo, destinada a impressionar os litigantes ou reivindicadores que ele recebia em determinadas horas, estudava e conferia com cuidado a lista de nomes.

Tendo-a convidado a sentar-se, pediu-lhe que o desculpasse por tê-la incomodado. Sem levar em conta a ausência do Sr. de Pey-rac, que inspecionava os canteiros dos estaleiros, ele achava que a opinião de uma mulher o ajudaria a compreender melhor uma decisão que tinha de tomar em relação a pessoas cuja mentalidade e cujas reações não eram muito simples e que não lhe era fácil adivinhar.

Tratava-se do grupo de valões e de valdenses, de que Natanael de Rambourg fazia parte, que pedira aos huguenotes de la Ro-chelle, encontrados em Salem, que lhes dessem oportunidade de se encontrar com seus compatriotas franceses.

Mas , chegando a Gouldsboro, ficaram indignados por ver que ali se encontravam católicos, igrejas, cruzes, que diziam missa, e que se arriscavam a encontrar padres capelães e até jesuítas. Gabriel Berne, que, na ausência de Manigault e de Mercelot, os recebia, esquecendo-se de que fora um dos que mais se insurgira contra isso, dissera-lhes com arrogância:

- Em Gouldsboro é assim! Nós, huguenotes de La Rochelle, que nos equiparamos a vocês na observância da religião, acomodamo-nos a isso. Façam como nós ou voltem para o local de onde vieram!

Então, foram queixar-se ao governador. Iriam realmente impor-lhes ouvir aqueles sinos, ver as procissões e as bandeiras?

O olhar azul de Colin Paturel observara-os, perplexo. Era uma mistura curiosa. Ele, que vira todo tipo de fórmulas entre os filhos de Cristo, sentia dificuldade em situá-los.

Talvez ela soubesse indicar-lhe de onde eles vinham e o que queriam.

Angélica disse-lhe que, à exceção de Natanael, que era amigo de seu filho mais velho e pertencia à Religião Reformada oficial, isto é, aquela nascida depois do Edito de Nantes, não estava mais bem informada do que ele. O denominador comum com a população de Gouldsboro era que eles eram de origem e de língua francesas.

Segundo o que Lorde Cranmer lhe explicara, os valões eram originários dos primeiros reformados calvinistas do norte da França e de Lille, Roubaix, Arras, que fugiram da Inquisição espanhola quando esta se instalara em Flandres, após sua cessão à coroa da Espanha. Refugiados inicialmente nos Países Baixos, na região vala, depois nas Províncias Unidas, em Leyden entre outras, Delft e Amsterdam, tinham se misturado aos dissenters ingleses, exilados como eles, de modo que se encontravam em grande número entre os peregrinos do Mayflower. E fora, pois, um valão, Pedro Minuit, quem comprara para os neerlandeses o terreno da Nova Amsterdam, que se tornou Nova York.

Quanto os valdeuses, descendentes dos "pobres de Lyon", uma seita cristã fundada no século XII por um tal João Valdo, um rebelde que censurava a Igreja por suas riquezas, antes mesmo dos cátaros do Languedoc, era a primeira vez que ela os via. Julgava-os exterminado há muito tempo, pois tinham sido impiedosamente perseguidos até o século XVI. De fato, quando veio a Reforma, misturaram-se a ela, muitos deles deixaram seu refúgio alpino, onde estavam enterrados os últimos sobreviventes. Desde então, tinham seguido as vicissitudes dos calvinistas franceses, sofrendo tréguas, perseguições e exílio.

O que os caracterizava é que eram, mais do que. os outros, voltados para si mesmos, suas tradições e sua língua francesa, porque, estavam habituados a viver entre estrangeiros.

Depois de alguma reflexão, Angélica sugeriu que fossem instalados no acampamento Champlain, onde havia toda uma colónia inglesa, refugiados da Nova Inglaterra-, entre outros. Habituados a ouvir falar inglês à sua volta, talvez se sentissem menos deslocados e mais distantes dos sinos "papistas".

Colin sorriu. Era exatamente isso o que esperava dela. Encontrar para os recém-chegados um modus vivendi que os ajudasse a pacientar, no desconforto de suas andanças. Escreveu um bilhete para ser levado a Gabriel Berne.

Desde sua entrada na sala, Angélica percebeu um detalhe novo, inabitual, e procurava-o com os olhos. Essa sala, que era a de reunião do Conde de Peyrac e às vezes a dos banquetes nos primeiros tempos de sua instalação na costa, a mesma sala onde os dois homens se enfrentaram, tornara-se a casa comum e o-cartório do lugar. E também sala de justiça e gabinete do governador. Foi ao ver Colin Paturel mergulhar sua pena no tinteiro e lançar um olhar para a lista de nomes que copiava, que Angélica soube o que a intrigava, como uma inovação que nunca lhe teria ocorrido ao espírito.

— Oh! Colin... - exclamou. - Você sabe ler?... Sabe escrever?...

— Aprendi a fazê-lo! - disse ele, erguendo os olhos de seu trabalho, e havia como que um ingénuo orgulho em seu olhar por fazer-lhe essa surpresa. Ficaria mal a um governador não poder decifrar e julgar por si mesmo todos os papéis, listas dos navios, petições e contratos que lhe punham sob os olhos e que lhe pediam que assinasse e julgasse! - O pastor Beaucaire teve a paciência de me ensinar, e verificou-se que eu não tinha uma cachola tão dura para aprender. Até então, eu não tivera muita necessidade de ler e escrever. Nos navios, onde eu era o meu próprio mestre, sempre tinha a bordo um imediato, ou o capelão ou o cirurgião, para cuidar da escrita. Devo isso a Gouldsboro. Antes disso, tendo deixado ainda grumete o Havre-de-Grâce, desde os quatorze anos, onde encontraria oportunidade, tempo, gosto e possibilidade de aprender a ler: nas galés de Mulay Ismael? Vagando pelo mar da China e por todos os azimutes? No início, o jovem Marcial Berne me ajudou, -mas com o aumento de minha tarefa, agora ele serve de secretário para classificar os dossiês. Ele vai para o colégio, e preciso encontrar alguém capaz de substituí-lo.

Angélica pensou em Natanael de Rambourg. O cargo lhe conviria. Explicou a Colin que havia "alguma coisa" entre o jovem nobre exilado e a pequena Severina Berne. Ele seria estimulado a ficar, e isso lhes permitiria conheceram-se melhor.

Uma longa e delgada silhueta aparecia na soleira e se esgueirava para o interior. Não era Natanael, mas o velho negro Siriki, o serviçal dos Manigault.

Apertava contra o peito, como uma coisa preciosa, um pacote. Era, parecia, uma peça de casemira fina, De um belo vermelho-amaranto, que Angélica e o Sr. de Peyrac lhe trouxeram de sua viagem, a fim de que pudesse mandar fazer uma nova libré. Pois aquela que estava vestindo quando deixara La Rochelle, e que ele sentiria não poder vestir para servir seus amos à mesa, começava a esgarçar-se.

Ao presente juntaram-se dois galões de fio de ouro, para os bordados dos punhos nas extremidades de uma renda da largura de uma mão. Ele já a amarrara em volta do pescoço, formando um peitinho. Angélica aconselhou-o a pedir ajuda às filhas da parteira irlandesa, peritas em trabalhos de costura.

Entretanto, era evidente que não tinha vindo ao seu encontro na casa do Sr. Paturel apenas para-expressar seu reconhecimento.

Sentou-se na ponta de uma cadeira, com o pacote sobre os joelhos. Seu olhar ia de um para outro com ansiedade, mas mantinha o pescoço muito ereto, com muita dignidade. Era, em toda Gouldsboro, a personagem que apresentava maior distinção e o Porte mais nobre.

- Fale, meu caro Siriki - encorajou-o Angélica. - Você sabe que é com a maior alegria que escutaremos e acederemos a seu pedido, se tiver algum a nos fazer.

Siriki meneou a cabeça. Não duvidava de sua bondade. Mas teve ainda de engolir a saliva várias vezes e verificar a apresentação de seu jabô de renda, antes de se decidir a falar.

Angélica sabia que ele não iria direto ao assunto, que, provavelmente, começaria pelo incidente menos relacionado ao que tinha- na mente.

Falou portanto primeiro de seu jovem mestre, Jeremias Mani-gault, que atingia a idade de onze anos e que os pais pensavam em mandar estudar com os novos ingleses, np-colégio de Har-vard. Depois, fez alusão à triste situação, que lhe era infinitamente penosa, que afastava do lar dos Manigault uma criança de três anos, Carlos Henrique, do qual podia se considerar, ele, Siriki, avô adotivo, pois criara, por assim dizer, sua mãe, a pequena Jenny, assim como os outros filhos dos Manigault.

Essa série de acontecimentos lhe havia inspirada o desejo - baixou as pálpebras a fim de reunir coragem antes de se entregar a uma tal confissão - de garantir para si, um pobre escravo, uma descendência, e esse sonho, que o atormentava havia já algum tempo, subitamente tomara corpo quando avistara, entre os passageiros que desembarcavam do Arc-en-Ciel, a grande mulher negra que o Sr. de Peyrac comprara em Rhode Island.

Alguma coisa nele, surda e terrível, gritara: "Ela é de sua raça. Ela é de sua terra natal".

Abriu novamente os olhos e fixou Colin Paturel:

— Notei que o senhor conversava com ela e conhecia o idioma de sua tribo.

— Com efeito. Era a língua da grande sultana Leila, a primeira mulher de Mulay Ismael, sultão do reino do Marrocos, e desse país vinha também o Grande Eunuco Osman Ferradji. Os dois eram oriundos dessas regiões de Sahel, Sudão, Somália, no centro da África, da orla da floresta ao sul e do deserto ao norte. Os povos de lá são nómades, criadores de búfalos selvagens, e muito altos.

— È isso! Não estou certo - murmurou Siriki. - Prestei atenção em suas palavras, mas nenhuma reminiscência me veio à cabeça. Eu era muito moço quando os mercadores árabes, vindos pelo Nilo, me capturaram. De mercado em mercado, cheguei a La Rochelle, e ali o Sr. Manigault me comprou, de um lote que devia embarcar para as índias Ocidentais. Em todos os lugares ine consideraram negro demais e muito alto para a minha idade e sem nenhuma serventia. Estava doente. Amo Manigault teve piedade de mim. Deus o abençoe!'

Angélica não se surprendia por ouvir o "velho" Siriki falar de si mesmo como de um jovem escravo comprado por um mercador que, com cinquenta anos, parecia mais jovem do que ele. Mas já observara que os negros, desde a puberdade, parecem logo adultos de trinta anos e, também subitamente, ficam de cabelos brancos, antes de atingirem os quarenta anos.

Siriki, e Kuassi-Ba, que havia muito tempo se consideravam "antigos", não tinham provavelmente passado dessa idade.

-        Eu me informei - continuava Siriki. - A jovem negra "marrona" que a senhora comprou também vai logo pôr no mundo uma criança, cujo pai é esse banto africano da floresta que a acompanha. Ela nasceu na Martinica. Não conheço toda a sua história, pois ela se cala, e o outro, o banto da floresta, não conhece senão a linguagem dos grandes macacos.

Colin Paturel o interrompeu.

— Está enganado, Siriki. Ela fala o swahili, que é uma das línguas veiculares da África, das costas do Atlântico às do oceano Índico.

— Perdão, não quis insultar um irmão de infortúnio. E que me importam essas línguas africanas que não compreendo? O que entendi é que seu filho logo vai nascer em Gouldsboro. Então, meu sonho se tornou cada vez mais próximo. Eu lhes dizia de minha tristeza de ver ir-se meu pequeno amo Jeremias. Um lar sem crianças engendra a tristeza. A pobre Sara não resistirá, eu a conheço.

Falava sempre, com uma indulgência protetora, de Sara Manigault, a mãe, considerada uma mulher autoritária e que maltratava as pessoas que a cercavam. Ele, porém, era o único que sabia acalmá-la quando se abandonava a crises de melancolia, pensando em sua bela casa de La Rochelle, que tivera de deixar precipitadamente certa manhã, e no aparelho de faiança de Bernard Palissy, que tivera de abandonar em sua fuga pela charneca, pisoteado e quebrado pelos cavalos dos dragões do rei, lançados em sua perseguição.

Todas essas preocupações com a família, que ele assumia, persuadiam-no cada vez mais da bem-vinda chegada de seu sonho.

- O que compreendi - explicava - é que nada impedia que, em Gouldsboro, às nossas crianças pequenas que correm pela praia, às nossas crianças da cor branca da lua, às nossas crianças índias cor de ouro, viessem se misturar criancinhas cor da noite, que poderiam ser as minhas.

Tendo afinal dito tudo sobre seu grande sonho, ficou em silêncio.

Depois, retomando seu arrazoado, pedia humildemente a Colin Paturel que falasse por ele com a "nobre dama do Sahel", caso ela estivesse livre para escolher seu destino. Pois ignorava com que intenção o Sr. de Peyrac fizera sua aquisição. Olhou para Angélica com esperança. Mas ela ignorava-o também. O que dissera Severina a propósito de Kuassi-Ba eram apenas suposições, e, se Colin sabia de alguma coisa, não deixou transparecer nada.

Siriki, sentindo que seu caso estava em mãos amigáveis, retirou-se, radiante.

Depois que ele saiu, Colin reconheceu não estar bem a par dessa aquisição de escravos. Angélica, por diversas razões, não tivera tempo de interrogar seu marido.

. Angélica quis se incumbir de levar a missiva para Gabriel Berne, em sua casa. Isso lhe daria o ensejo de passar calmamente alguns momentos com seus amigos.

Peixes dignos das praias evangélicas eram despejados e separados nos tablados do porto, e vendidos em leilão, e as donas deca-sa tinham muito trabalho para preparar as reservas de inverno, que mudariam um pouco quando a tempestade ou o gelo tornassem perigosa a saída dos barcos ao mar.

Abigail, ajudada por Severina, colocava filés de cavala e de arenque em jarras cheias de água e vinagre, fortemente condimentada, pois, felizmente, em Gouldsboro as especiarias não faltavam, como nos outros estabelecimentos franceses. Depois de cozidos em fogo baixo durante alguns minutos e preparados com bem pouco sal, eram escorridos e conservados em covas feitas na própria terra e não caiadas, no mesmo lugar onde também se guardavam tubérculos e raízes, como cenouras,, nabos, batatas.

Depois de ter falado da situação dos valões, dos valdenses e dá passagem de Natanael de Rambourg, o que deixou Severina sonhadora, Angélica despediu-se, pois o tempo passava e ainda tinha de fazer outras visitas. 

- Vou avisar Marcial que já se arranjou alguém para sucedê-lo nas escritas do Sr. Paturel - disse Abigail, acompanhanrfo-a até a porta.

Ela terminou um pouco depressa sua frase, como se o olhar que lançara pela abertura ensolarada da porta lhe houvesse revelado alguma coisa ou alguém cuja visão a surpreendesse.

Olhando por sua vez naquela direção, Angélica viu duas silhuetas escuras de penitentes, Ruth e Noémia, acompanhadas de Agar, que subiam rumo à casa dos Berne. Perguntou a si mesma por que tinham tornado a vestir suas capaz alemãs.

Ficou a porta, esperando-as. Sentiu-se penalizada, se não surpresa, com o movimento de reticência que percebera em Abigail, ao vê-las.

Existia, no entanto, a seus olhos, uma semelhança fraterna entre Abigail e as magas quacres de Salem: a dignidade e o pudor contidos, as mesmas maneiras suaves e comedidas de se deslocar sem agitação, de manter a cabeça bem levantada, modestas mas não sem graça, segundo o aspecto recomendado pela religião calvinista a seus adeptos do sexo feminino, que aumentavam o encanto de sua beleza loura, um pouco virginal.

Como Abigail, francesa de La Rochelle, Ruth e Noémia, inglesas do Massachusetts, tinham esse meio sorriso cheio de modéstia e de bondade acolhedora.

Todavia, Angélica não se iludia sobre a desconfiança que elas inspiravam. Olhando-as vir em sua direção, perguntava-se a que ela se devia e não encontrava explicação para essa rejeição que mesmo as melhores pessoas lhes opunham, não a elas, pobres inocentes, mas ao melancólico instinto do ser abatido, que vê na beleza, na iluminação do coração, na imagem demasiado perfeita da serenidade e da felicidade um reflexo do Paraíso perdido e que renega .tanto mais quanto o inveja. Aquele também que, em sua preguiça de pensamento e em seu modo de ser expulso do rebanho, dirige suas forças de ódio contra os que, por suas palavras ou por seu comportamento, se diferenciam-da lei comum, ao abrigo da qual ele se refugiou.

Que mais se podia censurar-lhes, a elas, cujas mãos abertas e o olhar luminoso só distribuíam caridade?

Ouviu, na parte de trás, os passos de Severina, que procurava deixar a casa pelos fundos. Ela tampouco gostava delas.

Mas Abigail, sempre virtuosa, permaneceu ao lado delas e respondeu em inglês, com sua graça habitual, à sua saudação. Pediu-lhes que entrassem e se sentassem, colocou uma bilha de água e bebidas sobre a mesa, mas as duas moças nada aceitaram. E a própria Angélica permaneceu de pé, assim como Abigail.

Só Agar se ajoelhara na soleira, apoiada ao batente, olhando ora para o horizonte, ora para o interior da casa, onde não parecia preocupada em encontrar senão o olhar do gato, sentado com-pungidamente no canto de um guarda-louça e piscando intermitentemente em sua direção.

Sem uma palavra, Ruth Summers estendeu a Angélica um envelope de pergaminho cujo lacre de cera estava partido.

As palavras em inglês dessa missiva pareceram-lhe muito herméticas, e teve de pedir-lhes, por diversas vezes, explicações, pois se tratava de uma carta do tribunal de Salem, e, em qualquer língua, não existe nada mais absconso que os termos jurídicos empregados num documento oficial de intimação ou de convocação, que emanam de um supremo tribunal reunido para decidir a sorte de simples indivíduos que, com muita frequência, mal sabem ler ou falar... Não era o caso de Ruth e Noémia. Elas eram eruditas. Puderam explicar que essas palavras incongruentes significavam que, se em oito dias não se apresentassem diante do tribunal da cidade, capital do Estado do Massachusetts, suas "casas e bens" seriam queimados, e uma dezena de concidadãos, escolhidos entre seus conhecidos amigos quacres ou outros, seriam convocados, julgados e condenados, em seu lugar, ao degredo ou... ao enforcamento.

-        Mas que bicho os mordeu? - exclamou Angélica. - Do que mais lhes podem acusar e por que crime as condenam?

Ruth sacudiu a cabeça, sem emoção.

-        Eu sei o que se esconde por trás disso. Um dos marinheiros do barco de pesca que me trouxe esta carta contou-me que o velho Sr. Samuel Wexter está muito mal. Lady Cranmer teve muito trabalho para obter dos juízes este documento, a fim de que voltássemos o mais rápido possível para salvá-lo.

Assim vão e vêm os sentimentos dos homens. No infortúnio, Salem, atormentada pelo medo da morte, e as secretas ternuras que os mais rigoristas não podiam deixar de dedicar a seus pais ou filhos, Salem reclamava suas magas quacres. Salem não podia dispensá-las. Mas isso não passava de remissão.

Angélica foi tomada pela angústia. Não apenas ao pensar que essas duas maravilhosa criaturas iam desaparecer de seu horizonte, mas ao pensar na sorte que, cedo ou tarde, sofreriam.

Lá em Salem, naquela Nova Inglaterra de alma tão gelada quanto suas margens, de coração tão árido quanto sua terra, paralisada por um medo constante do inferno e pelo temor a um Deus oni-potente e sem perdão, dirigida por essa ramo do cristianismo atormentado, podado e rasgado até a sensibilidade da madeira descascada, o congregacionalismo, esse credo nascido de Cristo, cuja mensagem de amor ela esquecia cada dia um pouco mais entre aqueles homens de cérebro obsedado por vosões de chamas e que se atormentavam incessantemente com os Mistérios da Palavra, aqueles eruditos e pastores que trabalhavam pela purificação da Igreja, da qual foram encarregados pelo céu e pelo povo, aqueles ministros investidos de poderes desmedidos e que zelavam pelos interesses divinos, com-uma consciência ainda mais feroz e minuciosa do que a que utilizavam em seus interesses monetários, o que os tornava incorruptíveis e deixava entrever muita coisa sobre suas competências e seu furor, entre essas "terríveis pessoas de -bem", elas estavam perdidas.

Se as manifestações da intolerância puritana tinham-se apagado um pouco de sua memória, voltavam-lhes naquele momento. Não podia esquecer que a sentia fortemente, quando as escutava falar de suas vidas.

Em Salem, não podiam sair de sua cabana do fundo dos bosques sem se expor todas as vezes às piores humilhações, às piores sevícias, dentre as quais eram comuns os insultos, escarros; lapidações, prisão, exposição ao pelourinho. A acumulação das acusações contra elas as levaria uma dia ao pé do cadafalso ou a-serem, amarradas a uma cadeira na água do lago, onde seriam mergulhadas seguidamente até que a água, com sua morte, decidisse que não eram culpadas, nem possuídas.

Acusavam-nas ali de, ao passar na frente da cerca-de uma casa, fazer estragar a carne na salgadeira, o queijo no escorredor, de fazer secar no pé as abóboras do jardim, enegrecer o linho que estava fervendo na lixívia, embaciar os espelhos...

Se não as viam no dia em que essas calamidades aconteciam, era porque tinham passado a noite montadas em sua vassoura, quando iam para o sabá.

A realidade das ameaças que as espreitavam não deixava dúvida. Não era uma brincadeira. Sua segurança de cada dia naquele lugar se mantinha por milagre.

Loucos, empurrados "pelo Diabo", podiam se lançar sobre elas e violentá-las, mulheres ciumentas podiam, em nome da moral, assaltá-las em plena praça do mercado e desfigurá-las com unhadas ou com vinagre fervente.

Havia períodos de clemência, como o "que acabavam de atravessar, em que outros acontecimentos tinham desviado os espíritos inquietos de sua maníaca vigilância, mas viria o inverno, que retarda os trabalhos dos campos e os tráficos no mar, levando o homem a se voltar para si mesmo e para seus santos livros, meditações alimentadas pelos sermões cotidianos e o uivar das tempestades do Atlântico, o assobiar das rajadas de neve em volta da casa ou da Meeting House, povoada de seres transidos de frio e de terror sagrado.

- Ruth - disse, em voz alta. - Eu lhes suplico, não voltem para Salem. Esta carta é uma armadilha. Quando vocês subiam a bordo do Arc-en-Ciel, surpreendi a expressão de muitos rostos entre a multidão que nos cercava e fiquei apavorada. A mímica das altas personagens que foram ao porto e que davam ordens aos milicianos de sua escolta para prendê-las não me passou despercebida. Felizmente, os soldados não ousaram intervir, o que não poderiam fazer sem provocar um confusão com os mercenários, que, por diversas razões, procuraram honrar e não insultar gravemente, impediu-os de rête-las à força em terra, graças sobretudo à presença de nossos homens da tripulação, numerosos e bem-armados. Nossos alabardeiros espanhóis as cercavam, e fiquem sabendo que não foi por acaso que meu esposo os dispôs dessa forma. - Angélica continuou: - Se voltarem para lá, nunca mais poderão escapar desses lugares onde a perseguição contra vocês não cessará daí em diante. As curas que vocês operam não serão suficientes para que um dia as consciências se abram e para que lhes façam justiça e as deixem em paz. Seus poderes benéficos as preservaram até aqui, mas podem também voltar-se contra vocês, se deliberarem que eles procedem de Lúcifer. E é menos o bem vocês fazem que os encoraja a serem pacientes com vocês do que a certeza de que, enquanto em Salem, não poderão escapar ao castigo. Este é o motivo pelo qual querem que voltem. Não toleram a ideia de que a mão de sua justiça não possa mais abater-se sobre vocês, que pese em sua consciência a censura divina por ter deixado fugir "criaturas do Diabo", como as designam, sem terem-nas feito pagar por seus crimes. Não é uma loucura que se possa racionalizar, pois ela" é considerada de direito e de razão e está profundamente arraigada neles. - Ela continuou: - O velho Samuel Wexter pode hoje permitir-se uma serena filosofia, mas, durante os anos em que era responsável pelo governo da cidade, vocês sabem, como eu, que mandou enforcar muitos "pecadores" por crimes que não tinham nenhuma relação com os de direito comum: furtos, crimes ou outra violência contra a sociedade, mas por erros como a inobservância dos ofícios, atitudes, refexões incrédulas ou que contrariavam seu poder, e que bastavam para que uma sentença de morte fosse pronunciada. Roger William, que fundou o Estado de Rhode Island, por que ele o abrigou a fugir em pleno inverno para a floresta, senão porque sua vida estava ameaçada? Ele, que era um dos pastores mais ciosos de Salem, cujos sermões atraíam multidões! Mas ele reclamava mais liberdade para as consciências, leis religiosas

menos severas, em suma, mais caridade cristã, para o pobre povo que perde a cabeça. Digam-me, estou enganada? Julguei mal o espírito da Nova Inglaterra, sobretudo o de Boston ou de Salem, tendo John Wintrop rompido com Salem e fundado Boston apenas para proclamar leis ainda mais intolerantes e rígidas? Digam:me: estou enganada?

Elas sacudiram a cabeça negativamente.

- Creiam-me, sempre haverá alguém em seu governo que, no temor de que os mandamentos não sejam respeitados com suficiente rigor, na obsessão de que um relaxamento ou uma indulgência aparentes induziam ao mal as almas fracas, que, percebendo subitamente um momento de graça, como o que conhecemos nessa estada em Salem, se inquietará, lembrará que se deve ficar sempre atento para servir a Deus, que as desgraças que se abatem sobre os justos, como essas guerras indígenas e esses massacres de inocentes nas fronteiras, se devem à negligência culposa, ao esquecimento dos preceitos, e que, para apaziguar a cólera do Senhor, é preciso imolar aqueles pelos quais o escândalo acontece, fazer uma retratação pública, provando por condenações que o torpor perigoso cessou; haverá sempre alguém que quererá ser mais exigente que o outro e que fará um sobrelanço, até que a loucura se apodere deles, pois é uma fatalidade que se abate sobre todo governo coercitivo não ver outfa saída para obter obediência a não ser a perseguição ao bode expiatório. O braço não pode mais parar de golpear, e os juízes, de condenar. - Depois de uma pausa, ela continuou: - Oh! conheço-os muito bem! Parece que os estou ouvindo! Eles têm preciosas qualidades, é verdade, de inteligência, de fé e de coragem, e pela estima que eu tinha por eles, pude adormecer sua desconfiança, apesar de ser mulher. Mas eles despertam, e sua cólera é ainda maior contra vocês. Suplico-lhes, não partam.

Parou, meio sem fôlego, dizendo-se que essa forma de discurso, cara aos ingleses puritanos e aos reformados em geral, parecia influir sobre elas.

Ruth e Noémia escutavam-na numa bela imobilidade de fiéis durante um sermão, e todos, até a menina em seu berço, lhe prestavam a atenção que inspira uma voz patética e convincente. Mas via nos lábios das duas interlocutoras um sorriso resignado, um pouco desiludido, que tinham diante de seu ardor em reclamar justiça e liberdade para elas, e essa expressão de dúvida lançou-a novamente em seu desejo de encorajá-las a ficar e, assim, salvar suas vidas.

-        Suplico-lhes, não voltem. Receio por vocês. Permaneçam aqui em Gouldsboro, onde pensavam que a pequena Agar, se quisesse, estaria em mais segurança. E puderam constatar que tinham razão. As mais diversas pessoas, de nações e de religiões diferentes, se organizaram para viver aqui em bom entendimento. Ninguém é perfeito, mas, sob a jurisdição do Sr. Paturel, todo habitante do lugar pode receber sua proteção. Ninguém pode ameaçá-las de morte, nem de maus-tratos, e menos ainda de prisão arbitrária, e se as pessoas más, os causadores de distúrbios, os ladrões, os libertinos ou os que usam os punhos ou armas brancas, se vêem repreendidos, punidos ou expulsos, é sempre com justiça, e pela paz e a defesa dos cidadãos do lugar. Vocês têm compatriotas e correligionários, a maior parte refugiados, os que saíram ilesos de ataques indígenas e que não puderam voltar para suas aldeias. Estão agrupados num local tranquilo chamado acampamento Champlain. Ali existe uma escola, uma casa de orações. Ali encontrarão, ou lhes construirão, uma casa, e assim poderão zelar por Agar, colocando-a ao abrigo dos perigos que a espreitam através de vocês.

Falava com a esperança de obter sua adesão, mas via o mesmo doce sorriso paciente em seus lábios e compreendia que elas recusariam.

Ruth olhou-a com ternura.

-        Como lhe agradecer, minha irmã? Graças a você, graças a sua generosidade sem limites, pudemos, durante algumas semanas, viver no esquecimento de nossa maldição, crendo que éramos, também nós, livres e felizes e amadas entre os nossos, criaturas humanas entre seus irmãos, à sua imagem, criadas como eles por Deus conforme Sua imagem... Mas, por mais constante que seja seu coração, por mais inabalável e generosa que seja a proteção das armas de seu esposo, por maior que seja o poder que você tenha recebido como apanágio de reter as feras prontas para saltar, e de acalmar por sua simples presença, seu simples olhar, seus humores belicosos, vingativos ou sectários, você o disse:" um dia, eles despertam, e não poderá nos preservar para sempre, aqui... ou em outra parte - disse ela vendo que Angélica estava prestes a gritar: "Então venham conosco até Wa-passau"... - Não, isso não mudaria nada, você sabe disso. Depois de um momento de silêncio, acrescentou:

-        Você é uma mulher única... e esta é sua fraqueza. Pois ainda não chegou o tempo em que haverá outras mulheres como você sobre a terra. Você é única. Como uma estrela. E por isso todo mundo olha para você. Mas pode-se também ficar assustado com a direção que a estrela indica. Mas o Amor a protege... Ficar aqui, diz, nesse estabelecimento que ele e você fundaram? Integrar-se numa dessas comunidades que se esforçam por viver em bom entendimento e o conseguem? Agar, ela, sim, poderia fazê-lo. O Sr. Paturel saberia a quem confiá-la. Não duvido que haja em Gouldsboro famílias ou pessoas de bom coração, com espírito cristão, que, ainda que ela seja uma pobre "cigana", estejam dispostas a acolhê-la. Agar, sim, mas não nós.

Tinham, portanto, sentido crescer a hostilidade à sua volta.

— Pelo menos, Ruth, aproveitem a oportunidade que lhes foi dada de sair ao mar para pedir asilo em outras colónias, aos governos mais liberais. Se voltarem a Salem," essa oportunidade talvez não se renove, e, sozinhas, não poderão fugir pela floresta para alcançar a Providence's Plantation em Rhode Island ou New Haven, no Connecticut, que fora, fundadas como protesto con-tra o rigorismo do Massachusetts...

— Que governo poderia nos acolher, fora de sua proteção mágica? - disse Ruth com um terno sorriso de ironia.

— Ruth e Noémia, escutem-me, talvez exista uma esperança, se tiverem paciência. Durante nossa viagem, encontramos, creio que em Providence ou em Nova York, um jovem quacre de alta posição, o filho do Almirante Penn. Parece que, para o almirante, que conquistou a Jamaica para a coroa da Inglaterra, era desastroso ter um filho que tivera a loucura de se tornar quacre. Mas este não era destituído de audácia, queria fundar uma colónia, um refúgio para os quacres. Seu pai apoiou-o em seus projetos, e o rei, em lembrança aos serviços prestados pelo pai, vai conceder a William Penn uma carta, a fim de criar um território onde todos os quacres possam ficar em casa e não se arriscar a nada. A realização desse projeto não tardará. Tentem reunir-se ao grupo deles.

-        E depois, eles também nos expulsarão. Porque nós amamos e curamos por um poder que se pode supor vindo de Satã! Que governo, diga-me, pode, em nossos dias, absolver esses pecados? E, no entanto, trata-se apenas de Amor e de Caridade.

Ruth Summers colocou os braços em volta dos ombros de Noémia Shiperhall.

-        Às vezes, quando penso nesta cara criatura que me foi confiada, quando considero a sorte de Agar, desta pobre menina selvagem abandonada, que só tem para defendê-la duas mulheres réprobas, elas mesmas em perigo constante, o temor das infelicidades que as espreitam me acabrunha. Não creia, minha irmã, que eu seja insensível a seus apelos à prudência e que eu negue que suas advertências tenham fundamento. A cada dia, a cada noite, os mesmos terrores me torturam, e sinto uma terrível vontade, para protegê-las, de tornar-me "como as outras", de me cobrir novamente com as vestes comuns, de recolocar meu pescoço sob a canga da lei que "eles" exigem, ainda que seja apenas para apaziguar sua terrível cólera de homens justos ou para acalmar o terror imbecil de sua ovelhas, que eles doutrinam e que se mantêm prontas, a um único sinal desses temíveis pastores, a se atirar sobre nós e nos despedaçar, às três. Lembro-me então de que esta sempre foi minha pior tentação e meu único pecado verdadeiro, e que devo expiá-lo. Dias e dias, durante anos, eu recusava, recusava o caminho indicado. Tinha-lhe horror.

Seu olhar pousou com doçura na jovem mulher a seu lado.

-        Ela, Noémia, sempre suportou sem um murmúrio a sorte que lhe era destinada pelo céu. Os dons curativos saíam-lhe das mãos e do olhar, e ela os distribuía. Desde os sete anos de idade, era fustigada em praça pública. Era desonrada, batida, sequestrada, escarnecida, submetida a todo tipo de tormento para que o Diabo saísse dela. Mas não via o mal, nem no que fazia, nem no que eles lhe faziam. Eu, de minha parte, me revoltei. O medo de ser expulsa do rebanho é um medo animal, primitivo, no fundo de cada um de nós, desde os primeiros tempos. Ruth Sonímers baixou as pálpebras e disse, num tom sofrido: - Poderia ter curado minha mãe, eu sei. Sentia forças em mim. Poderia salvar minha mãe quando a levaram, ensanguentada, depois do flagelo. Poderia tê-la ajudado a lutar contra sua febre, ajudar sua própria natureza a triunfar sobre a putrefação que lhe corroía as feridas. Mas receava acrescentar à minha infelicidade de ser quacre a de ser apontada como feiticeira.Estava paralisada pelo medo. Deixei-a morrer. Com essa falta cometida, eu renegava toda a minha educação. Revestia-me deleitosamente da libré comum e me tranquilizava por ter-me tornado uma pessoa igual às outras, ainda que o fogo interior de minha vida se transformasse, pouco a pouco, em cinzas, ao contato com eles. Até o dia em que fui atingida uma segunda vez, e de maneira ainda mais terrível. Fui atingida pelo Amor. O véu rasgou-se, o dique rompeu-se. Então, corri para arrancar Noémia do lago gelado e aceitei o Caminho. Como é doce renunciar a tudo e ser expulsa da barreira dos justos por uma tal luz! Você acredita que São Paulo, tocado, na estrada de Damasco, pela revelação do Amor divino, procurava o ancião Ananias para pedir-lhe apenas que lhe devolvesse a visão? Não. Ele, o fariseu, o guardião da lei, procurava-o para ouvi-lo e sobretudo para falar-lhe desse sentimento desconhecido de amor que lhe fascinara o coração em sua visão. - Depois de uma pausa, ela continuou; - Recolhi Noémia e amei-a, e não lamento de forma alguma esse amor que nenhuma palavra pode descrever. Ele também existia entre aqueles que têm nosso nome na Bíblia. Por mais amargo que sejam às vezes seus frutos, a gente se lembra de que o céu se abriu. Ignoro aonde nos leva o Caminho, mas afirmo apenas uma coisa: éproibido esquecer o êxtase. Se se tiver sido privilegiado por ele uma única vez na vida inteira, ele continua a guiar e iluminar nossas certezas nas trevas. Cara senhora, devemos retornar a Salem. O velho senhor está doente, e não é tanto seu corpo que está doente, mas seu coração humilhado, e Lady Cranmer, sua filha, torce as mãos à sua cabeceira, e eles nos esperam. São filhos, nossos pobres filhos, e todos eles precisam de nós.

-        Mas eles as matarão. Eles as apedrejarão. Eles as enforcarão.

— Um dia, talvez - replicou Ruth, rindo. - Mas, como você

mesma notou, quando sabem que estamos perto deles e estão seguros de que a todo momento poderemos sofrer nosso castigo, podem permitir-se ter mais paciência. E assim, dia após dia, deixando-nos a vida, fazem-nos um presente inestimável. Pois cada hora de felicidade vivida pelo homem constrói a Jerusalém celeste.

Tinham ainda de reunir alguns trastes. O sr. de Peycrac e o Sr. Paturel recorreram ao capitão de um navio que voltava na hora da maré e as levaria a bordo. Depois de avisá-la, elas voltaram para cuidar das bagagens. Rever-se-iam no momento das despedidas.

Deixou-as distanciarem-se. Estivera prestes a pedir-lhes que tirassem suas altas toucas fechadas, a fim de revê-las uma vez mais com seus cabelos dourados nos ombros, a fim de se persuadir de que eram realmente os anjos que tinham vindo, pois as coisas iam-se apagar e perguntariam um dia se não haviam sonhado com elas. Não ousara, por causa da presença de Abigail, cujo pensamento ela ignorava.

Olhou-as descer-o caminho, silhuetas frágeis encapuçadas de preto. Iam, hereges entre hereges, loucas talvez, desarmadas...

Angélica deixou-se cair, esgotada, no banco junto à mesa.

-        Oh! Abigail, eu lhe suplico, diga-me, o que você pensa delas?

Um soluço respondeu-lhe. Levantando os olhos, viu que sua amiga tinha o rosto mergulhado entre as mãos. A jovem rochelesa calvinista levou um certo tempo para dominar sua lágrimas. Enfim, ergueu novamente a cabeça.

-        Que Deus me perdoe. Que Deus me perdoe por tê-las julgado. Eu penso... creio que foi por causa delas que ele escreveu:

Eu os enviarei como cordeiros entre os lobos...".

CAPÍTULO V

As partidas para Salem - A descoberta de Severina Berne

O navio que as conduzia era uma embarcação da Inglaterra que voltava a Londres, e Angélica quis confirmar se fariam escalas em Massachusetts.

Certamente, milady - garantiu o capitão - , nesta estação, todo navio que faz a travessia do Atlântico começa por deter-se em Boston para se abastecer de maçãs. Elas são as mais belas, as maiores e as mais resistentes. Por isso, carregam-se tonéis cheios na coberta, para a saúde da tripulação. Mas as de Salem são tão boas quanto as de lá e nos contentaremos com elas, depois de ter deixado essas damas sãs e salvas em bom porto.

O esquife que as levava ao navio na enseada se afastou, dançando sobre a crista branca das vagas, encapeladas aquele dia. As três mulheres, modestamente sentadas entre as sobrecasacas vermelhas dos oficiais e os tricórnios engalonados, desapareciam de vista.

Eram de espécies tão opostas, que era entre esses rudes homens do mar que as pobres puritanas se encontravam mais seguras. Nunca se ouvira dizer que piratas e flibusteiros tivessem alguma vez molestado as virtuosas mulheres dos primeiros estabelecimentos religiosos da costa norte da América, quando desembarcavam para prover-se de água doce ou comprar víveres frescos. "Éramos mais pobres que os mais pobres", contara-lhe Mrs. Wii-liam, a avó de Rose Ann, "e" esses ferozes bandidos do mar, sempre enfeitados, nos olhavam de longe com nossas golas brancas, nossas roupas escuras. Mas jamais teriam pensado em nos fazer mal, e alguns nos ofereciam pequenas jóias, tal era a piedade que sentiam por nosso despojamento..."

Os tempos tinham mudado, mas ainda existia um contrato de honra de proteção por parte dos flibusteiros em relação aos piedosos deserdados das orlas, assim como em relação às passageiras que um capitão aceitava levar a bordo e que devia defender com um rigor impiedoso.

A chalupa diminuía, apagava-se por trás de um promontório.

Levaram-se os bebés à praia para as despedidas, mas carregaram-nos rapidamente de volta para dentro, pois ventava muito.

E os adultos voltaram em grupo, a passo lentos, em direção às primeiras casas em torno da praça.

Angélica pensava em Samuel Wexter. Ruth tinha razão, julgando-o mais atingido em sua alma que em seu corpo. A cena com o jesuíta o arrasara, e ele fora para a cama no dia seguinte.

Angélica, pouco antes de partir, fora visitá-lo e encontrara-o queimando em febre, repisando as acusações que o irascível interlocutor lhe lançara ao rosto e as que não tivera sangue-frio para devolver-lhe.

— E, no entanto, tínhamos uma língua comum - gemia - e que, certamente, empregaríamos, tanto um como o outro, com mais facilidade do que nossos idiomas mútuos: o latim. Não pensei nisso...

— Não se desole, Sir Samuel, latim ou não, sempre vi as discussões entre teólogos da Reforma e do catolicismo terminarem mal, muito mal. Não existem concessões possíveis.

O que mais afligia o ancião era ter-se deixado levar em sua cólera a lançar uma blasfémia. Cortava-se a língua a um pobre-diabo por menos que isso.

— Esses jesuítas são hábeis em nos tirar do eixo. O governador de Orange vingou-se muito bem de nós, enviando-o para nossos muros. Avisarei Andros. Os holandeses nunca perdem uma oportunidade de nos meter em apuros.

— Os ingleses tomaram-lhes a Nova Amsterdam e os territórios da Nova Holanda.

— Não teriam dado a esses escritórios o progresso que lhe demos.

Mas a discussão reconfortara-a um pouco.

Esperaram o navio singrar em direção ao horizonte, com todas as velas abertas, para deixar a praia. Angélica pensava nas palavras muito importantes que Ruth lhe dissera e sobre as quais precisaria refletir. Mas não naquele momento, mais tarde: quando estivesse em Wapassu.

Ruth dissera-lhe "Você é uma mulher única". Falara dos poderes, dessas forças ocultas que Angélica possuía e que a feiticeira Melusina reconhecera nela, em sua infância. -Mas a infância tem as mãos cheias de tesouros. A vida obriga-nos a selecioná-los, negligenciá-los, abandoná-los. "Minha vida era outra..." Todavia, a dor com que Ruth se expressara ao dizer: "poderia ter curado minha pobre mãe..." despertara o eco que atormentava sua consciência quando pensava no jovem Emanuel: "Eu poderia tê-lo salvo... deveria ter oposto minha força àquela que se erguia diante de mim... muitas coisas acontecem quando não se está ainda pronto, quando não se deseja ver bem claro, quando a cortina ainda não se rasgou. Prefere-se naquilo que está estabelecido"

Voltou a subir a praia, enquanto a multidão se dispersava e grupos de pessoas se dirigiam para o Albergue Sob o Forte, dirigido pelas Sra. Carrere e seus filhos.

Um bando de pássaros passou piando, girando, buscando a maré alta dos pontos para pousar, parou, continuou viagem. Apareciam com frequência e chegavam como a tempestade, obscurecendo o sol, e em seguida fugiam para longe. Angélica observava que sublinhavam, como uma manifestação pessoal, aos acontecimentos ocorridos em Gouldsboro, chegadas, partidas, nascimentos, batalhas. Mas essa era uma ideia dela. As outras pessoas não viam nenhuma coincidência. Estavam habituadas a essas nuvens de pássaros, como estavam habituadas às pescas milagrosas, às peles, trazidas pelos índios, às tempestades...

Angélica olhava os pássaros pensando na confissão de Ambro-sina; "Aprendi a odiar o mar e os pássaros que passam, porque você os amava. Poder-se-ia exprimir mais intensamente a inveja, o ciúme, o ódio por um ser?

Seu pensamento voltou a deter-se nas duas mulheres caridosas que tinham voltado, levando seu segredo de amor e de ternura. Nesta mesma areia, tinham colocado o pé.

O mar impávido se retiraria, até deixar apenas um deserto de algas pardas até o horizonte, depois voltaria, bainha fremente que avançava às escondidas em galope," depois lançaria para o céu, batendo nos rochedos, seus ramalhetes de espuma. E as pessoas continuariam a ir e vir, sob sua guarda e sua dança, e a colocar o pé na areia e a correr, a estender os braços e os punhos, uns trazendo o ódio, outros, o amor.

"Como ovelhas entre os lobos!...

O que iria acontecer-lhes em Salem?

— Ah! eu não poderia viver na Nova Inglaterra - suspirou.

— Oh, sim, poderia perfeitamente - disse alegremente a voz de Joffrey junto dela. - Em que lugar, ao cabo de algumas horas, não encontraria alguns encantos? Não é verdade, Sr. Paturel?

— Certamente - respondeu, no mesmo tom de brincadeira afetuosa, o sólido normando, que igualmente se encontrava perto, à sombra. - Certamente, no fim de algumas horas, esqueceria os incovenientes das intransigências puritanas, para ver apenas a beleza das flores dos jardins...

— ...Ou apreciar as delícias do chá da China.

— Esqueceria o mau humor de Mrs. Cranmer, para se interessar por seus amores atormentados, com o original Lorde Cranmer.

— No próprio inferno, depois de passado o primeiro choque, a Sra. de Peyrac não se poria imediatamente a decidir alguns acertos para tornar a situação menos... abrasiva? - continuou Peyrac. - E o faria, tentando entender-se com algum diabrete um pouco menos mau que os outros, .o que teria discernido ao primeiro olhar. Ela o faria entrever o perdão de sua pena, pois ele só estaria naquele lugar por uma distração de São Pedro...

— Mas todo mundo está contra mim! - disse ela, rindo.

— Conte! Conte o que mais você fará quando estiver no inferno - implorou a pequena Honorina, que andava por ali entre eles.

Joffrey enlaçara-lhe a cintura. Ela sentia seu caloroso sentimento expressar-se através das brincadeiras. Eles a provocavam, mas, na verdade, gostavam de seu amor pela vida, os seres e as coisas, a natureza, tão bela e constante em toda parte!

Ficaram Um bom tempo no albergue, enquanto os irmãos Car-rére acendiam QS candelabros no teto e as lanternas. Os dias começavam a ficar mais curtos. O canto dos grilos e das cigarras nas dunas e junto aos bosques tornava-se menos veemente. Mas podia-se prever a chegada do Gouldsboro para dali a dois dias, e os preparativos para a caravana, exceto algumas encomendas que seriam acrescentadas quando o navio chegasse, já tinham sido feitos.

— Vou ter de arranjar um escriba - observou o Governador Paturel.

— Que quer dizer? - perguntou Angélica.

Foi assim que soube que Natanael de Rambourg tinha voltado com o navio inglês. Ele resolvera voltar para Nova York, a fim de poder discutir com o intendente Molines as possibilidades de entrar na posse de sua herança, composta de terras e fazendas, na província do Poitou, na França.

Avisara ao governador e ao Sr. de Peyrac sobre suas intenções, pedindo-lhes o obséquio de adiantar-lhe uma soma em dinheiro e assinar-lhe algumas letras de câmbio, que lhe permitiriam viver decentemente até chegar a Nova York e pagar sua passagem a bordo dos navios ou das diligências pastais que já circulavam com bastante regularidade entre Boston e as margens de Hudson.

Angélica, com efeito, pareceu ter visto um ou dois chapéus puritanos numa chalupa, mas pensava que se tratasse de valões ou de valdenses decepcionados, que estivessem voltando para lugares menos contaminados, e estava longe de pensar que sua região, o Poitou, lhe pregaria uma peça.

-        Poderia ao menos apresentar-me seus cumprimentos! Que sujeito engraçado esse Natanael!

Do lado de fora, os Berne vagavam, procurando Severina. Ao saber da partida do jovem Rambourg, inquietaram-se, pois não a encontravam em parte alguma. Talvez tivesse ido esconder-se, para dissimular um sofrimento atroz.

-        E se tivesse embarcado com ele?

Foram de casa em casa interrogar os vizinhos e os transeuntes, primeiro com um tom despreocupado, que se tornava, porém, mais nervoso à medida que continuavam as respostas negativas.

Gabriel Berne subitamente quase quebrou sua lanterna, num gesto de fúria. Conteve-se para não jogá-la ao chão, tal era sua cólera contida.

Deu meia-volta e declarou que ia ao porto procurar uma barca, um iate, um navio, qualquer coisa que fizesse vela para o sudoeste. Passaria ali o inverno, se fosse preciso, mas perseguiria aquela ordinariazinha até a Virgínia, o Brasil, a Terra do Fogo. Sempre fora uma cabeça-dura, indisciplinada. Sempre quisera ser menino. Ele lhe ensinaria como uma mulher deve se comportar e ficar em seu lugar. Mas, também, ela tivera maus exemplos...

Angélica acompanhou Abigail, toda trémula, até sua casa.

— Estou transtornada. Receio por Severina. Gabriel é muito bom, mas no fundo é violento e desconhece a força que tem. Pode se tornar muito perigoso, se deixar explodir sua cólera.

— Eu sei como é! Não fique com medo. Vou falar com ele,' e não o deixaremos partir sem chamá-lo à razão. Alguém irá com ele, se for necessário.

Pela porta aberta da casa iluminada, a voz de Severina escapava, cantando os versos do salmo 129, Saepe expugnaverunt me musicado por Cláudio Goudimel:

-        "Desde minha juventude, fizeram-me mil assaltos Mas não puderam vencer-me e me destruir".

A sala comum estava acesa. Severina instalara a pequena Elisabete diante de sua sopa com leite e acalmara a garota com um pedaço de pão. Laurier colocava as tigelas na mesa para o jantar.

Enquanto vocalizava, Severina continuava a fazer as conservas, manejando a concha como .teria feito com uma batuta de maestro, escumando o cozido, depois arranjando os filés de cavalas e de arenques nos potes com vinagre.

— Onde você estava?

— Não muito longe...

— Nós a procuramos por todo lado.

— Por quê?

Enviaram Laurier para avisar Mestre Berne. Angélica saiu mais tranquila.

Ia dar um jeito de interceptar Gabriel Berne no caminho de volta e pedir-lhe que não bancasse o pater familias romano com a filha. Pois, sob o peso do medo e da cólera que havia sentido, era capaz de darjhe uma surra, quando não tinha nada a cei^urar-Ihe. Certamente conseguiria acalmá-lo perguntando-lhe o que quisera dizer ao falar de "maus exemplos recebidos por sua filha"... Ela, Angélica, que levara a jovem a uma viagem de recreio, tinha algo a ver com a alusão?

Um passo leve alcançou-a no caminho. Severina deslizou um braço sobre o seu e ergueu o rosto para ela. Uma lua fina e uma sementeira de estrelas começavam a difundir uma luz suave ao redor e se refletiam nos olhos negros da adolescente.

Disse, com fervor:

— Obrigada.

— Por quê, minha cara?

— Por essa carta sobre o amor que me leu. Pensei novamente em seus termos e sobretudo naqueles do parágrafo sobre o amor dos amantes. O Verdadeiro Amor. Isso me ajudou a compreender o valor do que eu sentia... A não confundir o interesse, o divertimento e o sentimento. A não me perder, nem me deixar assustar por fantasmas...

Tomou-lhe a mão para pousar-lhe os lábios.

-        Obrigada... E tão bom que você exista!

CAPÍTULO VI

Presépio negro - As razões de Joffrey de Peyrac

Ainda não era Natal, e, se o nevoeiro espesso que envolvia a natureza não consentia em fundir-se abruptamente senão para deixar entrever o fantasma de uma silhueta humana tateando com o pé seu caminho ou a girândola de uma pequena bétula subitamente transformada em ouro ou o intenso braseiro de uma cerejeira silvestre que resolveu revestir, antes das outras, sua folhagem vermelha, se o grande manto cinza e vaporoso, que a baía dos Franceses gosta tanto de exibir, bancando a misteriosa e a tímida, quando não existe outra mais ousada e desenvolta, se essas cortinas, velas e echarpes de sonho descorado faziam reinar, naquele dia, uma claridade invernal enganadora, ninguém esquecia que estavam apenas nas primícias do outono.

E, no entanto, com o número de pessoas que se puseram a caminho, cheias de alegria e curiosidade, cada qual querendo se munir de um pequeno presente, com o frágil apelo de um sino abafado pelas brumas, mas que convidava curiosos e trabalhadores a parar suas brincadeiras ou suas tarefas e se dirigir, intrigados e enternecidos, a uma pobre cabana, havia como que uma evocação de Natividade e de Epifania em volta do presépio.

Só que o Menino Jesus era negro.

Por mais discreta que tenha sido a passagem desse nascimento durante a noite, na casa de toras de pinheiro onde se alojaram os escravos comprados em Rhode Island, seu anúncio correra desde a alvorada de uma ponta a outra da região e até no acampamento Champlain, onde o Pastor Beaucaire teve a ideia de tocar o sino de sua capela para avisar seus fiéis. Apesar da neblina, as famílias puseram-se a caminho, a pé, a cavalo ou em carriola, de que já havia três modelos, além dos carros de boi.

Em Gouldsboro, sendo ou tendo sido a maioria gente do mar, navegantes,, mercadores ou habitantes dos portos, não tinham do que se admirar à vista de indivíduos de pele negra. Existiam muitos na França, entre os domésticos dos grandes senhores, e até em Versalhes, para estarem habituados, e a chegada de um pequeno grupo de negros passava quase despercebida, misturada ao desembarque de todas as mercadorias que era preciso descarregar e despachar ao mesmo tempo.

Mas o nascimento de uma criança negra, pela primeira vez entre eles, despertou-lhes o entusiasmo.

De temperamento fogoso e não entediado, estavam sempre prontos a saltar ao menor pretexto de novidade e de júbilo. ' As crianças, principalmente, se agitavam de curiosidade ao pensar em ver como era feito um bebe negro, como se, em seu espírito, os negros adultos que tinham tido a oportunidade de ver tivessem sido pintados dessa cor depois.

Ficaram um pouco decepcionados, pois o recém-nascido que lhes mostraram, encolhido nos braços de sua mãe, era antes de um tom avermelhado bem escuro.

- A mesma cor das nozes de palmeira com as quais fazem seu óleo vermelho na floresta - comentou um antigo flibusteiro que fizera várias expedições ao centro da Africa, aparentemente a serviço de um negreiro.

Os índios presentes achavam-no de sua cor, o que ao mesmo tempo os lisonjeava e inquietava. Mas a maior parte das pessoas avisadas observavam aos presentes as partes genitais do recém-nascido, de um belo violeta-escuro, bem escuro, o que significava que dentro de alguns dias o homenzinho ia se tornar inteiramente negro, como um pedaço de antracita, tanto mais que o pai e a mãe eram muito pretos, sem qualquer traço de mestiçagem.

A jovem negra, estendida no chão, recoberta por um tecido leve com desenhos coloridos, os ombros apoiados em uma almofada de crina, sorria com essa expressão de satisfação e de repouso das mulheres para as quais um parto talvez seja a única ocasião que lhes é concedida, em toda a sua vida, de poder se mostrar em público numa atitude de descanso. E não só sem incorrer em censura, mas para, circunstância também rara, receber felicitações e cumprimentos.

Com uma consciência muito ciará de sua importância e de seu papel, ela aceitava a presteza dos curiosos que se acotovelavam à porta, e havia disputas para passar à frente.

Mas ninguém, entretanto, ousava penetrar no interior para oferecer os presentes preparados. Eram detidos em seu impulso pela presença dos outros ocupantes da casa, que mal se viam na penumbra que a luz do dia, bastante fraca, quase não dissipava, filtrando-se através dos pequenos caixilhos das duas janelas revestidos de pele de peixe seco. Era difícil distinguir os traços e as expressões dos companheiros da jovem parturiente. Viam-se apenas seus olhos brancos, incrustados com uma íris escura e fixa, pupilas que se deslocavam aos pares seguindo seus movimentos: em pé, sentados, à direita, à esquerda. Era impressionante! Um pequeno fogo na terra lançava de tempos em tempos uma luz e modelava um rosto. Descobria-se, de pé, um pouco afastado, um homem de uns trinta anos, vestido com a camisa e as ceroulas de pano branco dos escravos das Antilhas que trabalhavam nas plantações de cana-de-açucar.

Ele segurava seu chapéu de palha trançada diante dele, com as duas mãos, numa atitude de polidez digna, que deviam ter-lhe ensinado, ainda criança, a observar diante do amo. Não era o pai, afirmavam alguns, avisados não se sabe como.

O pai era aquele que estava no fundo do quarto, sentado, imóvel contra a parede, com os braços em volta dos joelhos. Sua face simiesca provocava murmúrios; e o viajante da Africa começou a contar histórias de homens das florestas que eram na realidade grandes macacos muito negros, muito ferozes, avistados entre os ramos, difíceis de matar e, muito mais, de capturar. Ele os vira, mas não de muito perto. A grande mulher sudanesa e seu filho de dez anos inspiravam, por outras razões, desconfiança. Mantendo-se à cabeceira da parturiente, deixava supor que, se assistira sua irmã em escravidão, não fora sem desprezo, pois ela era de outra raça, superior àquela dos bantos da floresta.

A jovem mulher parturiente era a única que parecia à vontade e confiante.JVlantendo a pose graciosamente, e com as pálpebras baixadas sobre o filhinho em seus braços, fazia o possível para que cada visitante pudesse vê-lo e admirá-lo, pois, naquela dia, ele era o herói.

- -Não podiam cobrir essa criança? - perguntavam as donas de casa,

Respondiam-lhes que, se a mãe achava conveniente expô-la assim nua, tinha suas razões. Não se deve contrariar essa gente em seus costumes, e provavelmente ela desejava fazer aos visitantes a delicadeza de avisá-los sobre o sexo da criança, sem que tivessem o trabalho de perguntar.

E, além disso, apesar do nevoeiro, não fazia frio. O tempo estava úmido, morno... A criança não corria o risco de ficar doente.

Tagarelavam muito no nevoeiro, em volta da barraca, quando Angélica chegou, em companhia de Honorina e de algumas criadas. Joffrey de Peyrac e Colin Paturel chegavam no mesmo momento, trazendo ao novo cidadão de Gouldsboro suas homenagens, e Siriki os acompanhava em sua libré amaranto, Carregando um copinho, girando um olhar ansioso, e visivelmente muito emocionado com a oportunidade que lhe permitia, sob o pretexto de entregar um presente da parte dos Manigault, aproximar-se mais da dama de seus pensamentos, a bela Akashi.

Os três visitantes, como eram altos e tocavam o teto, tiveram de se ajoelhar.

Pela manhã, o Conde de Peyrac mandara trazer víveres, frutas, leite e o corte de tecido de chita estampada com a qual ela se cobria. Entregava-lhe agora uma seleção de outros tecidos bem dobrados, floridos também, e outros, de cor viva.

A Sra. Manigault enviara Siriki com algumas bagatelas. Ela achava ridículo deslocar-se pelo nascimento de um negrinho, ela, cujo marido controlava, em outros tempos, o comércio de "madeira de ébano" que transitava por La Rochelle, mas, já que todo mundo o fazia e queria levar seu presente, não ficaria em dívida. Os brincos de argolas, os colares de cornalina, os alfinetes e broches pontilhados de falsos brilhantes, jóias de pacotilha reservadas às tratativas com os reis africanos e das quais ela trouxera - por quê? - alguns saldos, encantaram a jovem mulher, pelos menos tanto quanto a pequena esmeralda de Caracas que Colin Paturel lhe ofereceu, recomendando que a criança a usasse para afastar a má sorte.

Siriki deslizara para junto de Angélica, a fim de lhe pedir conselho. Ela julgava hábil de sua parte aproveitar-se da oportunidade para entregar a Akashi um presente pessoal? Mostrou na concavidade da mão uma pequena máscara triangular esculpida em marfim, fetiche que levava ao pescoço quando o raptaram e do qual jamais se separara.

Colin fez-lhe um sinal, avisando-o de que ainda não iniciara as negociações. Mesmo porque, olhando à volta, não viram mais sinal da grande negra e de seu filho, que haviam se eclipsado com tal celeridade que pareciam ter passado através das paredes.

-        E agora, vai enfim me explicar por que fez a compra desses escravos? - perguntou um pouco mais tarde Angélica, enquanto, apoiada ao braço de seu marido, voltava ao forte.

A neblina dessa vez tornava-se tão densa que não se via mais, segundo uma expressão corrente, "a ponta dos sapatos".

A alguns passos da cabana, o ruído das vozes já se amortecia. Podiam julgar-se num deserto ou nos limbos de um sonho.

Apenas o apelo cavernoso das sirenas de nevoeiro, lançado pelos pescadores que tentavam voltar para a margem sem fazer colidir seus barcos, os alcançava intermitentemente e, pouco antes, as notas longínquas espaçadas da trombeta de caça que o Sr. Tis-sot, o chefe dos garçons, soava do alto da plataforma para anunciar que as refeições estavam na mesa, tinham mesmo assim atingido seus ouvidos.

Joffrey levantou a sobrancelha; surpreso.

— Por que "enfim"?

— Porque não me disse ainda por que os comprou quando passamos por Rhode Island antes de ir para Nova York. E isso já há quase três meses, se não mais...

Não adiantava ser o mais atencioso dos maridos, ainda assim havia coisas que lhe escapavam! Não era normal que ela quisesse ficar a par de suas preocupações, de seus propósitos?... Julgava-a tao tola que não pudesse compreender quais eram seus objetivos, suas intenções para o futuro próximo ou distante? Pensava que ela era indiferente ao que ele fazia?

Subitamente ela caiu em si e deixou a cabeça pousar no ombro dele, num carinhoso movimento de contrição.

-        Oh! meu caro senhor, sim, eu sou tola! Quando penso nas mil tarefas que assume e nos mil planos que trama, sem se desinteressar pelo mínimo detalhe, pelo menor elo da corrente de que necessita para forjar sua vitória e assegurar nosso poderio, sinto vertigens. Certamente, eu não haveria de querer saber tudo, eu me perderia. O que era meu comércio de chocolate em Paris ao lado do que você constrói, do que realiza! E eu só fico me deixando mimar, cumular, censurando-o por não me fazer confidências suficientes. Você me traz todas as felicidades numa bandeja

de ouro, e eu me atormento por ninharias!

Joffrey sorria. Ia uma vez mais zombar dela, e ela bem que merecia.

— O homem demora a entrar na realidade da felicidade - disse ele. - E as mulheres, mais ainda. Luta-se para atingir um sonho, realizar uma proeza e, quando ele se realiza, a gente continua em alerta, em vez de se alegrar. Lembra-se de quando chegamos aqui? Tudo eram ruínas atrás de nós, em nós, e além disso não possuíamos nada. Tudo estava por construir, antes mesmo de se ter plantado uma estaca. O ouro e as armas não bastavam para triunfar. Era preciso, ademais, a coragem para atravessar a prova da sobrevivência. Disse-lhe naquela ocasião: "Temos de vencer um ano..." Eu a vi carregar lenha nas costas, passar fome, enfrentar a fúria iroquesa sem tremer, cuidar dos doentes. Eu a vi enfrentar os perigos, evitar as armadilhas, aceitar ofensas e fadigas sem jamais se queixar, com um constante bom humor e fé em nossa vitória... e franqueamos o ano e ganhamos. Então, hoje, posso realizar meu sonho, que era de cumulá-la, de lhe oferecer enfim essa vida agradável e livre que você sabia tão bem desfrutar, você, que tem o dom da felicidade. Não lhe oculto nada. Só temos de ser felizes. Quanto a essa aquisição de escravos negros em Newport, se minha diligência a intrigava, por que não me questionou no primeiro dia?

— Com efeito, eu estava inquieta, perturbada, quase decepcionada com você, vendo-o movimentar-se como comprador entre os mercadores, com a segurança dos homens que fazem sua escolha e a desenvoltura que esse tipo de comércio confere a eles. Tinha uma espécie de receio...

— Receio de quê, meu anjo?

— De saber...

— De saber o quê, meu coração?

— Sei lá... Que um aspecto de você, que me era desconhecido, ia aparecer e me revelar que você era, nesse ponto, como os outros. O abismo entre nós... Que queria empregar escravos, que estava, por exemplo, comprando a bela mulher somali... talvez.... para si mesmo.

Joffrey de Peyrac inclinou a cabeça para trás numa gargalhada, e ouviu-se, na névoa acima deles, o piar de uma gaivota invisível responder a esse riso.

Ria a ponto de perder o fôlego.

— O que há de tão engraçado? - perguntou Angélica, fingindo-se ofendida. - Não seria a primeira vez... Você possuiu escravos no Mediterrâneo. E o Rescator não ia ao batistan de Cândia para adquirir odaliscas?

— E não se arruinou comprando a mais bela mulher de olhos verdes do mundo e que lhe escapava por entre os dedos?

E punha-se novamente a rir. Os ecos de sua alegria repercutiam no nevoeiro.

Na Nova Inglaterra, vira-o muito seguro, falando um inglês impecável, dobrar-se à disciplina e às horas de seus anfitriões, não querendo contrariar o severo código que regia os dias partilhados entre preces, estudos e trabalho.

Voltando a seus domínios, ele mudava e vivia mais ao sabor de sua fantasia, continuando enquanto isso a tratar de um número infinito de questões pendentes, mas sem rigor.

Assim, por ora, passeava com ela, e isso era de uma importância capital, sobretudo devido a essas ideias tão inesperadas concebidas por ela! Mas ela lhe agradava assim, tão feminina! As pessoas da casa do conde conheciam sua maneira de viver quando ele estava em Gouldsboro. O Sr. Tissot sabia que, quando não o via aparecer, tinha apenas de mandar seus ajudantes para a cozinha para aquecer seus pratos, e sua guarda espanhola parava de andar de lá para cá, de lança em punho.

— O "Mediterrâneo? Você não sente como tudo isso está distante, pequena dama? - disse, com uma voz contida. - Tão distante que me surpreende ter sido eu aquele que atravessou tantos acontecimentos sozinho, sem você. Oh! meu querido tesouro, esses aspectos e esses rostos, revelados e diferentes de nós mesmos, compõem nossa história de amor. Avançamos no caminho, como não tínhamos parado de avançar desde o-dia em que o raio atingiu meu coração, a mim, o Trovador do Languedoc, que julgava saber tudo sobre a Arte de Amar... Continuamos no caminho certo?

— Espero que sim - disse ela com vivacidade.

-        Não! Falo do caminho no qual andamos.

Puseram-se a rir os dois.

-        Seguimos uma trilha, mas não desejo que ela nos leve muito depressa ao forte.

Perguntou-lhe se não estava com frio e jogou uma aba de sua capa sobre os ombros dela.

Ela observou-lhe, entretanto, que ele ainda não lhe contara por que comprara essas pessoas em Rhode Island.

— E se eu lhe dissesse, minha querida, que... não sei. O filósofo Descartes quis tornar os franceses conscientes das razões de seus atos. Receio que tenha apenas conseguido fazê-los ficar insuportáveis, pois não estou certo de que esse método de pensamento e de julgamento possa aplicar-se a todos os nossos impulsos, nossos desejos, nossos medos ocultos e indefiníveis. O "por que" e o "porquê" confundem nosso instinto, que é uma força preciosa em nós. mas sem razão. Por que fui zanzar pelo mercado de escravos em Newport? Por que me pareceu intolerável ver a grande mulher peuhl, que se assemelhava à sultana Leila, naquele estado de humilhação e sem recursos, levada para sempre àquela situação servil à qual seu exílio, longe de seu reino, ia condená-la, privada de seus poderes sobre seu povo, privada de seu povo?

— Procurava uma esposa para Kuassi-Ba?

— A ideia me ocorreu... Nada mais que isso. Kuassi-Ba participou, não só de todas as minhas provações, mas de todos os meus trabalhos. E um perito em minas, e pude confiar-lhe o andamento dos canteiros de extração e de transformação do mineral segundo meus processos químicos. E um sábio... É verdade que a bela Akashi pertence à região dos garimpeiros de ouro de um rio de que não se conhecem todos os meandros.

— O que eles fazem com esse ouro?

— Jóias, e, principalmente, oferecem-no aos deuses... E, já que você necessita de "porquês", vou contar-lhe que a comprei porque o capitão holandês disse que ela era invendável. Os dois plantadores que a compraram, um na ilha de Saint-Eustache, o outro em Saint-Domingue, morreram algumas horas depois. Quando o capitão passou de volta por lá, devolveram-na de graça, com pressa e terror, ela e seu filho feiticeiro.

— O menino?

— Olhe bem para ele da próxima vez que o vir e compreenderá... Em suma, creio que você foi bem sensata para não questionar naquele dia. Pois a verdadeira razão que me levava a procurar alguém no mercado, a procurar, com efeito, uma mulher, mas não daquele tipo, não poderia dizê-la tampouco. Bem, vejo-a novamente abrir os olhos inquietos e vou tentar, ainda assim, dar-lhe uma explicação que agradaria ao Sr. Descartes, ainda que essa razão tenha sido, ela mesma, suscitada em mim por um vago pressentimento que me fazia recear pelo bem-estar da criança que esperávamos. Queria assegurar-me de que, se fosse preciso, uma ama-de-leite poderia substituí-la no aleitamento. Estávamos na América e não em nossas províncias da França, onde se pode encontrá-las facilmente. Notei essa jovem negra "marrona" de Saint-Domingue, que me pareceu preencher todas as condições. Estava familiarizada com a vida dos brancos e me disse que já tinha amamentado um filho de sua ama. Mas seu próprio filho foi vendido logo depois, e ela se revoltou e fugiu para as montanhas com um escravo africano que acabava de chegar. Apanharam-nos três meses mais tarde e os venderam, assim como a um tio ou um irmão da moça que lhes dera guarida. Eis a história que os trouxe a Rhode Island e, depois, para nossa casa. Uma "mercadoria calamitosa", como também me dizia o holandês, que não sabia o que fazer com ela. Acho que fiz com eles um contrato verbal que satisfazia a ambas as partes. Mas, como pudemos constatar, o destino mais uma vez brincou com nossos planos. Você me escutou? - interrogou-a, vendo-a ficar silenciosa.

-        Com toda a minha alma.

"Eu o adoro", diziam os olhos voltados para ele, "só tenho olhos para você nesta terra. Eu o adoro. Só queria uma coisa: pousar os lábios nos seus."

Pararam em seu lento passeio. A névoa molhava seus lábios de sal. Ninguém em torno. Silêncio.

E até o fim do mundo eles se beijaram, se beijaram.

Estavam juntos, juntos.

Olhavam um para outro, e seus lábios tornavam a se juntar.

-        Vamos! - disse ele finalmente. - Você me deixa louco! Por que, por que um beijo não pode ser eterno?

CAPITULO VII

Notícias de Quebec

Um pequeno navio transportava um correio completo de Quebec. Era preciso apressar-se a responder, a fim de aproveitar a embarcação que voltava ao Saint-Laurent e devia atingir a cidade antes que o rio fosse tomado pelos gelos.

Compreendendo que Angélica, apesar do prazer que sentia em receber notícias de seus amigos, não podia ainda sujeitar-se ao esforço de escrever, Joffrey foi ao seu encontro no forte e sentou-se perto dela para ajudá-la a separar as cartas das autoridades, as do Sr. de Frontenac, o governador, do intendente Carlon, todas eivadas de longas queixas sobre as dificuldades de manter o orçamento da colónia, de enfrentar a incompreensão do rei e do Sr. Colbert e de seus serviços indiferentes quanto a sustentar melhor a obra de civilização, de pôr um paradeiro nas discussões com o bispo, que continuava a excomungar os "viajantes", culpados de levar aguardente aos selvagens, sem se preocupar com o comércio das peles com o qual a Nova França seria prejudicada, e enfim sobre a intolerável ingerência dos jesuítas nos negócios de Estado.

Havia também um recado do Sr. Cavaleiro de La Salle, aquele explorador à procura do mar da China ao qual Joffrey de Pey-rac já concedera seu apoio financeiro para uma expedição para lá do lago de Illinois. Mas a expedição mudara bruscamente, e Florimond, que dela fazia parte e que se supunha estar no sul, vira-se no norte, fantasia do jovem louco, solto no mundo, mas da qual trouxera preciosas informações sobre as margens da baía James e da baía de Hudson, ainda mais divididas entre franceses e ingleses. . .

O Sr. de La Salle, em sua carta, avisava que ia para a França a fim de obter subsídios para uma nova viagem ao- Illinois. Primeiramente, lembrava-se de um dos mais generosos associados de sua-comandita, o Sr. de Peyrac, a quem chamavam o Senhor de Wapassu, de Gouldsboro e de outros lugares.

As outras missivas, dirigidas a Angélica, eram de caráter amistoso, de suas relações de Quebec, dando noticiasse reclamando-as, tão detalhadas quando possível, a fim de poder com elas alimentar-se, numa época de tanta penúria para a amizade como a representada pelos seis ou oito meses de inverno, em que sociedade da Nova França ficava isolada do resto do mundo pelo gelo do Saint-Laurent.

Uma carta bastante curta, mas encantadora, vinha do Sr. de Loménie-Chambord, o Cavaleiro de Malta que fora em outros tempos um dos primeiros companheiros do Sr. Maisonneuve, no momento da fundação de Ville-Marie du Mont-Réal, e presentemente assistia o Sr. de Frontenac como membro do Grande Conselho de Quebec. Monge-guerreiro, chamado às armas como o desejava sua ordem, empregava com frequência suas aptidões militares junto à milícia ou nas expedições do exército.

— Ele não estava meio apaixonado por você? - perguntou Joffrey.

— Acho que ele ama a nós dois. Foi graças a isso e ao sentimento de simpatia que lhe inspiramos, desde nosso primeiro encontro, que não executou aquele dia a missão de que estava encarregado e que consistia em queimar Katarunk, nosso posto, e nos suprimir na mesma ocasião, ou menos nos fazer prisioneiros.

Dobrou a carta.

-        Caro Cláudio! - murmurou. - Sacrificou por nós seu entendimento profundo com Sebastião d'Orgeval, seu melhor amigo desde a juventude. Não deve ainda estar a par de sua morte. O que será que vai dizer quando o souber? Suponho que sua dor será imensa, pois é um coração sensível e amoroso.

A Sra. Le Bachoys fazia em sua carta a crónica da Cidade Baixa e das aventuras galantes do inverno. Sua filha, casada com o Sr. de Chambly-Montauban, inspetor-geral das estradas da Nova França, acabara de ter um filho. Estava muito feliz por ser avó.

A respeito de seu genro, o inspetor-geral, e embora o caso lhe parecesse mesquinho e estúpido, ela se comprometera a transmitir-lhes de sua parte um processo verbal que emanava do Cartório Real em que lhes reclamavam o "pagamento da multa de dez libras de Tours e cinco sóis por contravenção ao artigo 37 do Regulamento de Polícia estabelecido pelo Conselho Soberano sobre a sugestão do intendente e que estipulava que era proibido deixar vagar pelas ruas em liberdade os animais domésticos, se estes se mostrassem com disposição para prejudicar a população.

Diversas vezes, durante o inverno e principalmente a noite, um animal de sua comitiva, e que sabiam com certeza pertencer a eles, mas que permanecera em Quebec ou nas vizinhanças, causara todo tipo de prejuízo aos particulares. Seguia uma lista de prejuízos: baldes de couro furados, aves roubadas, barreiras demolidas, caldeirões virados etc.

Intrigados, debruçaram-se sobre a papelada em questão e os considerandos que lembravam a Angélica as brigas urbanas e homéricas de Ville-d'Avray com o escrivão de Quebec.

Depois de estudá-los, bastante surpresos, tiveram de reconhecer que o animal incriminado só podia ser o "glutão" domesticado de Cantor, Wolverines. Tinham-lhe dado o nome que designa em inglês essa grande lontra, que tem às vezes o tamanho de um carneiro novo, e que os franceses chamam de glutão e os índios, de carcaju.

E ambos confessaram que nunca tinham se perguntado sobre as decisões tomadas por seu filho caçula, Cantor, acerca de seu fiel companheiro da América. O jovem, antes de embarcar para a França, para onde certamente não podia levá-lo, devia tê-lo devolvido à floresta.

- Ele já estava quase selvagem de novo enquanto estávamos em Quebec - observou Angélica. - Pode ser que seja outro carcaju. Mas o Sr. de Chambly:Montauban sustenta a reclamação do escrivão, pois tinha uma quizília contra nosso Wolverines, que matou .seu horrível e cruel dogue. E que chegou a ponto de expor sua cabeça no galho de uma árvore, como teria feito um mandado de prisão contra um bandido de alta periculosidade...

Mas a Sita. d'Houredanne também falava do glutão. Na longa epístola que acompanhava seu envio de dois livros, A Princesa de Cleves e A regra dos jesuítas, contava que sua criada inglesa, Jessy, que continuava a morar em sua velha casa da Cidade Alta, vira o bicho duas ou três vezes durante o inverno, rondando a casa de Ville-d'Avray. Depois, um dia, ele saltara a mureta que fechava o pomar da Sita. d'Houredanne, avançara até a porta-janela e olhara através dos vidros para a cachorra cananéia, que, curiosamente, não latira. Talvez tenha ficado surpresa ou assustada demais, ou cega, ou... nunca se sabe, com esses bichos, talvez tenha reconhecido nele um velho conhecido.

Por outro lado, era evidente que o bicho, certa noite sem lua, tinha feito muitos estragos na cidade. Todavia, nenhum dos amigos de Peyrac teve queixas contra ele. Os índios temem o carca-ju, cuja inteligência e malícia os confundem. Eles dizem que é possuído pelo Diabo, que é como um ser humano disfarçado. Desde a primavera, não o viram mais..

Desse assunto, a epistolaria passava ab do Marquês de Ville-d'Avray, do qual todos sentiam muita falta. Mandara enviar-lhes um bilhar. Um trambolho! Mais ainda que os teares! Era moda joga bilhar em Versalhes, e o rei comparecia a sua partida quase todas as noites, atravessando o apartamento da Sra. de Maintenon.

A srta. d'Houredanne explicava longamente por que enviava a Angélica a regra dos jesuítas. Parecia-lhe útil iniciar-se nas leis que os regiam. Isso podia evitar os erros desagradáveis como o que cometera o Sr. de Frontenac, que, em sua luta contra esses religiosos, que ele não suportava, denunciara ao rei e ao ministro seu espírito vergonhoso de lucro e que, segundo ele, não convinha a padres vindos para cuidar das almas e nâo para fazer fortuna à custa do próximo. Ele revelara que eles desviavam, em proveito próprio, uma parte das peles dos Grandes Lagos, com dois fortes construídos nas pontas de terra que enquadram o estreito que liga Tracy ao lago Huron: o Forte de Sainte-Marie, feitoria que recolhia tudo o que vinha do norte, e o forte de Missilimakinac, tudo o que vinha do sul. Tinham também um armazém na Cidade Baixa, onde se vendia até carne e também tamancos.

Tinham posto fim a suas indignações apresentando-lhe o texto de uma das prerrogativas papais, de que eram beneficiários os jesuítas, e que estipulava que eles tinham "direito de se dedicar ao comércio e a negócios bancários".

Ninguém em Quebec saía do turbilhão de lancar-lhes ao rosto seus direitos e deveres, cada um combatendo por seus interesses e pela glória de Deus.

"Apenas o Sr. Talon", dizia, "trabalha para o bem da colónia e de sua população. Faço o que posso para assisti-lo e tomei assento no palácio. Eu o ajudo a receber os potentados e a resolver as desavenças. Escrevo para ele muitas notas e libelos. Tinha razão, cara Angélica, nada no mundo vale mais que amar um ser e dedicar-se a ele."

A Sra. Mercourville, mulher do juiz da Cidade Alta e presidenta da Confraria da Sagrada Família, começava falando de sua última filha, a pequena Ermelina, pois sabia que a Sra. de Peyrac tinha por ela um carinho especial. Ermelina continuava esperta, muito gulosa, ria sempre sem que se soubesse por quê, continuava a fugir como uma enguia, ou melhor, como uma borboleta, mas renunciaram a puni-la por sua fugas quando lembraram que fora graças a uma dessas bruscas fantasias da caçulinha que uma parte da família fora salva dos iroqueses, quando estes, subindo o rio a partir de Tadoussac, se apresentaram em Quebec. Quantas lembranças a partilhar com seus caros amigos De Peyrac!

Ermelina era, sem dúvida alguma, dotada de uma inteligência pouco comum. Apresentada às ursulinas, sabia ler correntemente, com menos de quatro anos! Constatação que só se podia fazer porque ela também escrevia, pois não falava. Mas ninguém ainda se preocupava com isso.

Ermelina era uma pequena miraculada de nascença, poder-se-ia dizer, por vocação. E se, até o ano seguinte, não fizesse progressos na elocução, levá-la-iam ao santuário de Sainte-Anne-de-Beaupré. Depois de ter-lhe concedido o milagre de fazê-la andar, a santa avó de Jesus Cristo não seria sovina em relação à palavra.

A Sra. de Mercourville perguntava ao Sr. de Peyrac se, ao passar por seus estabelecimentos do golfo de Saint-Laurent poderia fazer-lhe um carregamento de gesso, que, parece, se encontrava com abundância, ao lado do carvão.

Falou a seguir do caso de Elói Macollet, pelo qual se interessavam, que não teria conserto e que tomava proporções escandalosas. Esse velho explorador de bosques, além do-mãis, escalpelado, que levara a vida mais dissipada e mais vagabunda, casara-se com a nora, Sidónia. Essa união, reprovada pelas pessoas da Igreja como um incesto e que só pudera ser feita graças à ignorância de um monge recoleto ou capuchinho - pois os filhos de São Francisco de Assis professavam que a ignorância era uma virtude, acrescentava a Sra. de Mercourville, que era muito "a favor" dos jesuítas - foi coroada pelo nascimento de dois filhos gémeos - imaginem, ela também! Devia estar feliz, a pobre Sidónia, que sofrera tanto por ser estéril durante sua união com o filho de Macollet, que também morrera como um bravo nas mãos dos iroqueses.

Já não gostavam dela antes, na paróquia de Levis, onde residia. Ninguém daí em diante falava com ela, e prediziam para esses "filho de velho" o mais lamentável destino.

"Gostaria muito de saber como nosso Elói reagiu a esse ostracismo da cidade", interrogou-se Angélica.

A Sra. de Mercourville não lhe ocultava nada. Duplamente excomungado, como explorador de bosques que levava aguardente aos selvagens e como pai incestuoso, ele não se dava conta de nada ou parecia não se dar, pois essa tinha sido sua filosofia durante a vida toda. Ele amava essa jovem, que o amava e sempre o amara, e talvez, agora que ele lhe dera "ocupação" com seus rebentos, ela não o impedisse mais de partir novamente para os Grandes Lagos, para uma pequena viagem, a fim de apanhar alguns castores, pois, apesar do que pensava o Sr. Colbert, o ministro da Marinha e das Colónias, que não estava no lugar dele, Macollet, mas bem sossegado em sua poltrona em Paris, não era arranhando a terra do Canadá que se podia alimentar toda essa família!

Tais eram as declarações que a Sra. de Mercourville recolhera pessoalmente do alegre compadre.

As cartas da Sra. de Mercourville' eram sempre uma interessante mistura de mexericos, de listas de quinquilharias, de proje-tos de negócios, frequentemente bem-inspirados, e de contratos matrimoniais. Foi por ela que Angélica foi informada sobre a situação de suas protegidas, as Moças do Rei da Sra. de Maudribourg, e soubera do casamento da maior parte delas.

Dessa vez, a presidenta da Confraria da Sagrada Família também falava de casamento, mas por uma questão - sublinhou, de chofre - que a tocava de perto, pois tratava-se de sua irmã de leite e escrava negra, Perrina Adélia, que nunca a deixara, que chegara inclusive a segui-la até o frio clima do Canadá, bem diferente do da Martinica, onde nascera, e onde criara todos os seus filhos.

Quando da estada do Conde e da Condessa de Peyrac em Que-bec, Perrina Adélia fora tocada por um terno sentimento por seu negro Kuassi-Ba. Sentimento que, após tê-la feito definhar a ponto de transformá-la numa sombra de si mesma e de ter causado todo tipo de inquietações entre seus amigos, ela acabara por confessar a sua ama.

- Talvez isso resolva nosso caso entre Siriki e Kuassi-Ba, a propósito da grande peuhl - observou o conde.

Levantou-se para ir conversar com Kuassi-Ba e prometeu redigir a carta à Sra. de Mercourville, que precisava ser estudada em vários pontos. Angélica poderia juntar-lhe um bilhete curto, destinado a transmitir muitos beijos a toda a família e especialmente a Ermelina.

Não queria vê-la fatigar-se em redações árduas e absorventes, ela, que, havia apenas alguns dias, se imaginava incapaz de ler ou escrever.

Angélica respondeu apenas à Srta. d'Houredanne. Agradecia-lhe o envio dos livros e fazia-lhe mil recomendações. Leria novamente com um prazer infinito a bela história da Princesa de Cleves, mas, certamente, nada se equipararia ao prazer que tivera ao ouvi-la, lido por sua voz "divina" - palava em moda que Angélica não hesitava em empregar, sabendo que a Sita. d'Houredanne, que frequentara as sabichonas do bairro do Marais, em Paris, seria sensível a ela -, pela voz "divina", portanto, da antiga leitora da rainha.Esta, que agora se restabelecera e não tinha mais de passar os dias no fundo de sua alcova, já não contava, certamente, com a oportunidade de consagrar longas horas à leitura em voz alta, como outrora. Era uma pena para seus amigos. Mas, por outro lado, Angélica alegrava-se por sabê-la tão feliz e podendo gozar da companhia agradável e amorosa do Sr. Car-lon, que bem o merecia.

Agradeceu-lhe também, calorosa e sinceramente, o opúsculo sobre a regra dos jesuítas e a estrutura interna e pouco conhecida de sua ordem. A Srta. d'Houredanne sempre adivinhava suas necessidades e soubera que ela tiraria grande proveito de um conhecimento mais profundo sobre pessoas que tivera de suportar, e sobre cujas intenções a gente podia se enganar, a menos que soubesse e compreendesse a que obrigações estavam submetidas, quais eram os compromissos que não podiam trair, as ordens que não podiam transgredir, os objelivos dos quais era inútil tentar desviá-las.

Sem falar de inimigos, ela reconhecia ser prudente e judicioso informar-se, da maneira mais completa possível, sobre os adversários que reconhecidamente procuram destruí-la por todos os meios possíveis, e essa leitura poderia ajudá-la -"mas não conte muito com isso", disse, inpetto - a encontrar as falhas da couraça, brechas que permitiriam pô-los em desvantagem, ainda que a armadura de defesa do sistema dos jesuítas lhe parecesse solidamente cavilhada em todos os pontos e mais inatacável que o famoso "quadrado" dos mercenários helvéticos, defendido por lanças gigantes, cujo aspecto aterrador lhe fora descrito pelo militar suíço de Wapassu, espigão gigante do campo de batalha.

Não notou a reflexão sobre o quadrado suíço, embora soubesse que, com a Srta. d'Houredanne, podia falar francamente sobre a questão dos jesuítas.

Angélica resumiu as notícias referentes a eles, pois tinha ainda de falar-lhe sobre o caso de sua cativa inglesa., Jessy, e isso a obrigaria a escrever uma, ou até duas, páginas ainda, e já estava começando a ficar cansada de segurar a pena. A Srta. d'Houredanne, que fora casada por tão pouco tempo e que nunca tivera filhos, não era dessas pessoas ávidas por detalhes sobre a beleza e as façanhas de recém-nascidos de menos de um mês. Angélica começou a falar do caso de Jessy, esforçando-se por resumi-lo, sem contudo omitir os argumentos que pudessem dar algumas possibilidades a sua intervenção. Juntava a sua mensagem uma carta de um parente de Jessy, um homem de Salem que desejava comprá-la de novo.

Com efeito, no momento de deixar Salem e de subir a bordo do Arc-en-Ciel, um grupo de homens e de mulheres que os esperava aproximara-se deles, os homens com o chapéu sobre o estômago, numa atitude tímida e deferente de pessoas que têm um pedido importante a fazer.

Era uma delegação de famílias das quais certos parentes tinham sido raptados pelos índios batizados, em reides vindos da Nova França. Vinham de diferentes pontos da Nova Inglaterra, uns pelos recentes raptos do Alto Connecticut, os outros, por terem ouvido dizer que os senhores de Gouldsboro e de Wapassu mantinham boas relações com os governos de Quebec e de Montreal, tendo uma última esperança em sua intervenção para obter notícias dos parentes desaparecidos havia vários anos. Outros ainda, tendo conseguido, interrogando os tratistas de peles ingleses, saber onde se encontravam os desaparecidos, queriam encarregar os visitantes franceses de apresentar e sustentar suas propostas de resgate. Entre eles, o acaso fez com que houvesse parentes da família William, aqueles cativos que passaram por Wapassu numa primavera, conduzidos para o norte por seus raptores abe-nakis. E o cunhado de Jessy, a criada da Srta. d'Houredanne em Quebec, também conseguira descobrir com certeza onde ela residia e suplicava qeu fizessem chegar a ela uma mensagem, que, na verdade, era um pedido de casamento. Sabia que ela era viúva, pois haviam encontrado o cadáver de seu marido na soleira da fazenda de onde fora raptada com outros membros da casa, crianças, irmãs, valetes...

Esse homem, também viúvo e provido de uma numerosa prole e de um honesto comércio de couro curtido em Salem, concebera o projeto de resgatar sua cunhada, a fim de desposá-la. Durante os últimos anos, juntara uma certa soma, que estava disposto a gastar para obter sua libertação. Cada um'se apressava, estendia bolsas recheadas de moedas de ouro. Era o fruto de combinações complicadas, pois o numerário era raro. Eles insistiam:

-        Meu filho está vivo. Uns bushloppers me disseram que ele foi comprado por franceses da ilha de Montreal, no Saint-Laurent. Deve estar hoje com quinze anos.

— A mulher de meu irmão é uma boa mulher, conheço-a bem. Em meus sonhos vejo meu irmão adjurando-me a salvá-la.

-        A família William, a de meu irmão mais velho, se houver um único sobrevivente, estamos prontos a resgatá-lo e a adotá-lo.

O Conde e a Condessa de Peyrac tinham partido, levando sacos cheios de papéis. Recusavam o ouro e prometiam que fariam o possível para estabelecer com seus vizinhos da Nova França negociações em favor das pessoas que lhas foram recomendadas.

Pelo menos em relação a Jessy, Angélica podia tratar imediatamente de seu caso, e, assim, lacrou a missiva da Srta. d' Houre-danne com a satisfação do dever cumprido.

Quanto aos outros cativos, era mais aleatório. Eles continuavam nas mãos de seus amos índios, e as investigações entre as dezenas de tribos dispersas seriam árduas.

Era o mesmo que procurar uma agulha num palheiro. Mas dizia-se que, dos lados de Montreal, franceses caridosos resgatavam ingleses para batizá-los.

Angélica pensou na Sra. de Mercourville, que gostava de manter-se informada sobre tudo e que estava bem a par das coisas. Na parte que ia juntar à carta de seu marido, iria pedir-lhe que refle-tisse sobre as personagens - missionários, viajantes, membros de confrarias de caridade - a quem podia dirigir-se para obter informações sobre o destino de cativos ingleses, aos quais estavam prontos, em Boston, a pagar um resgate.

Não escreveu ao Sr. de Loménie-Chambord, pois sentia-se esgotada e sabia que se sentiria na obrigação de falar-lhe sobre a morte do Padre d'Orgeval.

CAPÍTULO VIII

A carta de Florimond

A carta de Florimond chegara pelo Barão de Saint-Castine, vizinho deles, do Forte Pentagouet.

O Gouldsboro e o LeRochelais deviam estar contornando a Nova Escócia do lado de Port-Mouton. Os ventos e nevoeiros os atrasavam. Ora, Saint-Çastine, ao saber que eles estavam de volta, vinha saudá-los. Não pudera vê-los em julho, quando voltava da França, onde se detivera por muito tempo, em virtude de uma história de herança no Béarn, de onde era originário. Pois esse brilhante oficial era também gascão e, em seu forte, que dominava a embocadura do Penobscot, e acima do qual tremulava a bandeira com a flor-de-lis, ele reinava inconteste como um benevolente potentado.

Pentagouet tinha sido no começo do século um pequeno escritório comercial, construído pelo aventureiro francês, Sieur Cláudio de La Tour. Tomado pelos ingleses, devolvido aos franceses, que haviam construído uma sólida fortaleza de madeira com quatro bastiões, ocupado a seguir pelos holandeses, depois novamente pelos ingleses, finalmente reconquistado pelo Barão de Saint-Castine, em nome do rei, Pentagouet era atualmente considerado a capital da Acádia.

Desse encrave francês, o Barão de Saint-Castine administrava as tribos da região: abenakis, etchemis, tarrantins, suriqueses, ma-lecites, não só como um pai, mas como se fosse um chefe escolhido por eles.

Desposara a bonita princesa índia Matilde e sucederia a seu cunhado Massaswa, quando este morresse. Isolado de sua obra, fora o primeiro a pedir ajuda a Peyrac, a fim de evitar a "seus" índios batizados as guerras santas às quais os empurrava Quebec e, mais ainda, o mestre oculto que era então o fanático jesuíta p'Orgeval, cognominado Hatskon Ontsi, o Homem Negro ou o Casaco Negro.

Estava preocupado sobretudo em enriquecer-se com as peles, em viver com sua família indígena enquanto ajudava, com sua fortuna, as tribos a sobreviver e a evitar o extermínio, que acarretavam para eles guerra e fome, epidemias e alcoolismo. Durante sua ausência, deixara o governo de Pentagouet para sua mulher Matilde, fascinante e inteligente princesa, que se saía muito bem sob a égide de seu pai idoso, mas cuja autoridade de sagamo-re permanecia grande e respeitada.

Ela também estava ali, trajando naquele momento seu vestido de pele franjada.

Usava, com certo atrevimento, roupas curtas que mostravam joelhos encantadores acima de botas de pele bordada. Isso era habitual entre as índias de alta posição, filhas de chefes, que dirigiam o Conselho das Mulheres ou exerciam a função de sacerdotisa, que as colocava acima das outras, dando-lhes por vezes o julgamento de decisão suprema sobre os homens e os chefes.

Suas longas tranças negras davam-lhe um ar infantil.

Saint-Castine trouxera-lhe da França una longa capa de veludo azul-escuro, dentro da qual ela se divertia em revirar-se, envolvendo-a no corpo e abrindo-a alternadamente como asas.

Antes de embarcar para Honfleur, o Sr. de Saint-Castine vira, pela última vez, em Versalhes, os filhos mais velhos dos Peyrac: Florimond e Cantor. Estavam muito bem de saúde.

Tirou do gibão uma carta redigida por Florimond a seus pais e estendeu-a a Angélica, sabendo que ninguém ignora que uma mãe não pode esperar para ler as linhas traçadas pelas mãos de um filho querido, que ela aprecia ser a primeira a fazer a leitura e, se possível, a sós, afastada, como um bilhete de namorado.

— Barão, você conhece muito bem as mulheres - disse-lhe Angélica. - E por isso que elas o amam.

— Sou da Aquitânia, como o Sr. de Peyrac, e ainda não esquecemos os ensinamentos da Arte-de amar. Agradar às damas é nossa divisa. Vá ler sua carta sem se preocupar conosco. O Sr. de Peyrac não ficará privado, pois lhe darei de viva voz outros detalhes sobre seus amáveis rapazes, detalhes que você só conhecerá depois.

Quebrou os lacres de cera e desdobrou as folhas cobertas pela fina e rápida escrita de seu filho mais velho. Ao fazê-lo experimentava um leve sentimento de impaciência, de alegria e de melancolia.

Quando deixaria de sofrer por eles? De inquietar-se? De lamentar havê-los perdido tão depressa?

Saint-Castine tivera razão de dar a carta a Angélica, pois era mais a ela que o jovem se dirigia, aplicando-se em lhe comunicar as notícias da corte.

"O rei me consente tudo, desde que eu faça dançar suas damas e rir seus cortesãos. Antes de minha vinda, a corte estava se tornando séria e entediante. Se o rei me nomear para os exércitos, em seis meses - que estou dizendo? em três - todo mundo aqui aprenderá a dançar. Por isso, ele me mantém a seu lado, embora eu tenha sido nomeado oficial da Casa do Rei dentre os cem fidalgos de alabardas."

Ele continuava, falando de todos e de cada um, como que debicando o que sabia interessá-la. Tinham um código entre si que lhe permitia ser compreendido por ela sem nomear as pessoas conhecidas.

"...O Sr. de Vivonne foge de mim, me sorri. Dá-me a entender que não quer que falemos de um exílio que quer ocultar, e eu lhe faço entender que minha memória sobre esse ponto é nula. Continua a ser almirante da frota real e lançou para os oficiais da Marinha o uso de uma peruca de um louro muito pálido, quase branco, que assenta muito bem à juventude dos rostos que com ela se enfeitam. Os aduladores estão apaixonados por ela, mas, até nova ordem, esse privilégio está reservado aos oficiais da Marinha Real e vai inspirar o desejo de usá-la, assim como o direito de usar saltos vermelhos... Monsieur, o delfim, lembrou-se de mim. Ele está um pouco gordo, mas muito corajoso e atencioso em seu cargo de príncipe. Diga ao Sr. Tissot que ele continua a ter seu pequeno exército de prata..."

Florimond fizera amizade com p Duque d'Antin. Esse encantador adolescente era o filho legítimo que a Sra. de Montespan tivera com seu marido, Luís Pardaillan de Grondin, o Marquês de Montespan. Este acabara, justamente, de baixar o pavilhão em sua luta jurídica movida contra o rei, que lhe roubara a mulher. O soberano suspirava de alívio e podia proceder à legitimação de seus bastardos e dotá-los de títulos principescos.

Angélica sorriu ao saber que a Sra. de Montespan, sua contemporânea, acabava de pôr no mundo, um após outro, em menos de um ano, dois pequenos Bourbon de sangue. O último estava nascendo quando Florimond confiava sua missiva a Saint-Castine.

"Dois quase gémeos, em suma", pensou Angélica, divertida com a coincidência.

Os pequenos bastardos reais tinham sido imediatamente confiados às mãos competentes daquela que criara seus filhos mais velhos, Francisca d'Aubigné, viúva Scarron, que se tornara Marquesa de Maintenon, considerada a favorita em ascensão.

Florimond navegava às mil maravilhas no meio dessas intrigas. Estava consciente de que o círculo mais essencial da corte seria sempre da idade do rei, e analisara com muita justeza que este, apesar de já ter atingido os quarenta anos, sempre seria ávido por festas e por ver-se cercado de uma corte brilhante, que deslumbrasse, por seu modo de vida e sua animação, as embaixadas estrangeiras, e pedia aos jovens nobres, rapazes e moças, que ele entronizava no Santo dos Santos de Versalhes, não imitar, por receio ou deferência, os mais velhos, que infalivelmente tendiam a se mostrar, ou mais acomodados pela idade, ou por demais absorvidos por sua intrigas.de dinheiro e de promoção, mas permanecer como o sangue vivo da corte, com audácia e insolência, se fosse preciso. Ora, poucos desses jovens, desejosos de fazer carreira, o compreendiam. Longe de adular as pessoas de posição e de dobrar-se a seus caprichos ou manias - pois, nesse caso, as pessoas logo adormeceriam -, Florimond sacudia todo mundo. Cercava-se dos sólidos pilares do divertimento entre as alegres damas, que nunca se cansavam das danças, festas, teatro e carnaval, dentre elas a Srta. de Montpensier, a prima do rei, Ana Diana de Frontenac, cognominada "A Divina", e, naturalmente, a Sra. de Montespan. Também ela o reconhecera, quando fora pessoalmente apresentar-lhe sua homenagens.

- Ah! o pequeno pajem insolente - dissera-lhe, acariciando-lhe o rosto com o dedo.

Ele evitara levar consigo o irmão.

Ela lhe lançara aquele olhar agudo que dirigia incessantamen-te a uns e outros, no pânico em que se encontrava de perder o amor do rei. Tinha necessidade de nomear seus amigos e seus inimigos para conduzir o combate que lhe permitisse permanecer a rainha de Versalhes.

Florimond, aspirando o vento da corte, julgava que ali havia muitos maledicentes para afirmar, imprudentemente, que ela estava em pleno desfavor e que o rei se desinteressava dela, asserções que pareciam, ainda assim, desmentidas pelas recentes paternidades reais.

"Eu lhe disse, minha mãe, que o Sr. Príncipe de Conde foi um dos primeiros a vir ao nosso encontro, quando chegamos a Versalhes? Ele foi me procurar, falou-me daíeliz tarefa que me esperava com o cargo de 'mestre dos prazeres do rei', depois deixou de me dar atenção, a partir do instante em que lhe apresentei meu irmão mais novo, Cantor.

"Sonhador, emocionado, pensando em outra coisa, procurava por cortesia fazê-lo falar. Em vão tentava persuadi-lo de que seus esforços eram inúteis, pois, de nós dois, eu sou reconhecidamente o mais falante. O príncipe estava em suas lembranças, e sabíamos perfeitamente que era menos a voz de Cantor que lhe importava que o olhar de seus olhos verdes, fenómeno de transes em que caem certas pessoas que, logo percebemos, tiveram a felicidade de conhecê-la, senhora minha mãe, quando era, como me repete com frequência o Sr. Bontemps, criado de quarto do rei, o ornamento desta corte. Vemo-las mudar de fisionomia, enrubescer, empalidecer, e algumas ficam com lágrimas nos olhos, enquanto outras fogem. Cantor diverte-se com isso e lança uns olhares provocantes com destreza. Diverte-se menos quando se trata do rei, e elaboramos uma dosagem conveniente de sua presença nas paragens de Sua Majestade..."

Ah! Ah! Não estavam indo nada mal os jovens cortesãos! Sua mãe, nos confins de América, não tinha razões para se preocupar.

"Monsieur, o príncipe", continuava Florimond falando de Luís de Conde. "Surge-nos como um tranquilizante exemplo da magnanimidade do rei e da maneira como ele sabe perdoar e esquecer as ofensas.

"A Srta. de Montpensier contou-me que, há quinze anos, o príncipe estava 'acabado', um ancião arrastando lamentavelmente sua gota. Esse grande homem de guerra, afastado dos campos de batalha onde cometera o engano de exercer seus talentos militares contra o jovem soberano durante a Fronda, era pouco tolerado na corte. Conferindo-lhe o comando de um exército no momento da Guerra da Devolução, o rei ressuscitou-o, e a vitória que obtivera sobre a Holanda devolvera-lhe a juventude. Oferece festas soberbas no Castelo de Chantilly, aonde acompanhamos Sua Majestade...

"Meu irmão Cantor frequenta assiduamente o Sr. Lulli. E recebeu deste a autorização de tocar órgão na capela do rei. Poderia ter voltado a seu lugar no coro, no grupo das vozes graves, mas isso nãò seria compatível com sua posição de fidalgo.

"Meu irmão Cantor e eu desempenhamos um papel que ninguém pode preencher, e Ana-Francisco de Castel-Morgeat nos assiste muito bem. A meu conselho, ele segue a Sra. de Montes-pan por toda parte, para evitar que ela mergulhe em melancolia quando duvida do amor do rei, pois a melancolia nesse soberba deusa pode se traduzir da maneira mais perigosa."

Seria preciso esperar, a próxima primavera e uma nova carta de Florimond para saber o que significava a frase sibilina que encerrava sua epístola: "Encontrei o traje de ouro..."

Após essa incursão a Versalhes, era um contraste surpreendente reencontrar a calma do quarto do forte e ouvir as surdas pancadas das vagas que batiam contra os alicerces dos rochedos sobre o qual ele se edificava.

O nevoeiro da véspera dissipara-se. Sucedia-lhe um dia ventoso, caprichoso, durante o qual o mar mostrava bruscas violências.

Sozinha, junto ao berço onde dormiam as duas crianças, Angélica evocava os filhos mais velhos, que tinham sido seus pequenos companheiros dos anos de aflição. Havia, neles alguma coisa de que não pudesse felicitar-se, apesar das indignações do jovem Rambourg contra o "leviano" Florimond? Não tão leviano assim; era antes um filósofo, pensando justamente no que era preciso pensar no momento em que devia pensá-lo, esquecendo em seguida, não duvidando de nada, nem da lembrança imperecível que deixava nos espíritos em toda parte por onde passava.

Sua estima pelos dois filhos acentuara-se desde que estivera na Nova Inglaterra. Agora que conhecia melhor o espírito puritano, perguntava-se o que poderia pensar o jovem Florimond, "o jovem libertino ateu", como o chamava Nathanael, quando se encontrara com seu irmão na universidade fundada em Cambridge, perto de Boston, por John Harvard, para onde os enviara seu pai, enquanto fazia fortuna resgatando o ouro espanhol nas Caraíbas.

Depois de terem se habituado a correr os mares, tinham mergulhado na atmosfera de Harvard, como na água gelada de um batismo de teologia concentrada. Aprenderam o hebraico, aperfeiçoaram o latim e o grego, assimilaram artes e ciências ensinadas: a lógica, a física, a gramática, a prosódia, o caldeu, a aritmética, a geometria, a astronomia, a política, a literatura inglesa de Cyne-wulf a Milton, passando por Bacon e Shakespeare, e muitas matérias mais. Encontrara-os novamente corcoveando no cimo de vagas imensas, seguindo as pistas indígenas. Florimond partira com o Cavaleiro de La Salle para Illinois e trouxera-lhe desse região, onde havia muitas serpentes, ervas que tornavam benignas suas picadas.

Ele explorava as margens da baía de Hudson, voltava pelo Sa-guenay com um bom acervo de informações e de cartas.

Matara um urso cinza a faca, e atualmente desfilava pela corte do rei da França para ali organizar as mais brilhantes festas.

Um pequeno rangido que se renovou, um apelo tímido, sem cólera, para chamar a atenção, a fez levantar-se e dirigir-se para o berço.

O garotinho tinha os olhos abertos e, pela primeira vez, viu como suas pupilas tinham se tornado escuras. Ele teria os olhos negros de Joffrey de Peyrac. Olhava para ela e, após um instante, ela julgou surpreender na pequena boca o esboço de um sorriso. Recusou-se a acreditar: "Ele é ainda muito pequeno".

Pegou-o com cuidado, elevou-o diante dela e segurou-o com as duas mãos, sustentando com uma a pequena cabeça, que vacilava. Ele, no entanto, se esforçava por mantê-la erguida com suas próprias forças, o que lhe dava um ar altivo e vacilante de macaco chinês, acentuado pelo crânio calvo, mal coberto por um penugem loura. Sentia-se quase intimidada por esses olhos de azeviche, que pareciam imensos em seu fino e pálido rosto alongado e que continuavam a fixá-la. Sorriu para ele fazendo pequeno movimentos com a cabeça:

-        Você me vê, meu homenzinho? Você me vê?

De súbito, ele sorriu outra vez. Dessa vez, tinha certeza: ele a via, sua mãe!

-        Você me viu! Você me reconheceu!

E ele já deixava de ser aquela emanação dos deuses, a personagem solene evadida de regiões misteriosas e que tivera tanta dificuldade para se ligar à terra. Tornava-se um bebé.

-        Você viverá, meu homenzinho. Ficará grande, Raimundinho de Peyrac. Meu terceiro filho! - E retificou: - Nosso terceiro filho.

E com um estremecimento, aproximou-o do coração, apertando-o com paixão. Envolvia com os dois braços sua doçura abandonada, pousava a face contra sua cabeça sedosa, respirava o perfume delicado de sua pele fina e tépida.

-        Você é meu, homenzinho, é nosso!

Depois recolocou-o no berço. Ainda não era hora de alimentá-lo, e ele não deu sinais de impaciência. Depois de um instante, seus olhos, ainda há pouco tão brilhantes é interrogativos, se embaciaram de sono.

Angélica, movida por outra curiosidade, observou sua irmã, perto dele. Ela dormia. Dois pequenos punhos como botões de rosa fechados sob o queixo e uma enorme mecha de cabelo negro sobre o travesseiro. Angélica, apesar do desejo de pegá-la também nos braços, não quis acordá-la. Com o dedo, aflorou-lhe a bochecha redonda, ligeiramente dourada. Mais uma menininha! A surpresa! "Gloriandra de Peyrac."

WAPASSU, A FELICIDADE

CAPITULO IX

No caminho da mata - As três amas-de-leite

Do alto da falésia, através dos ramos dos sicômoros, que tinham vestido sua libré de topázio queimado, ainda se via o mar. Uma extensão azul pontilhada de um rebanho de ilhas alongadas que, conforme a estação, pareciam crocodilos verdes ou esqualos escuros.

Profundezas de um fiorde, que eles percorreram em seguida, gritos de gaivotas e de corvos-marinhos revelavam o estuário marinho, cuja água salgada continuava, com suas marés e suas conchas, a subir para o ponto mais distante das terras.

Depois, os últimos aromas salinos do vento se apagaram. Era a floresta, seu silêncio, seus odores de musgos secos, bagas maduras e cogumelos, e o encontro do primeiro lago de esmeralda, gelado, no calor dos ouros rutilantes de um bosque de bétulas.

Todavia, as cores do outono mostravam-se apenas timidamente. Algumas notas de cobre ou de ferrugem, nas folhagens de um verde ácido e o amarelo das bélulas, as primeiras a empalidecer.

Os viajantes seguiam um caminho que fora aberto na floresta ou traçado através de peneplanície, durante os primeiros anos, pelas equipes cantoneiras de Gouldsboro. A primeira parte da viagem devia ser feita a cavalo, através de trilhas. Essa estrada levava, de Gouldsboro, a uma primeira mina de prata que estava sendo explorada, depois a uma outra, um pouco mais acima, continuando para noroeste, e assim, de etapa em etapa, Joffrey de Peyrac, enquanto chegava a Wapassu com sua família, ia poder inspecionar os pequenos postos ocupados cada um por cinco ou seis mineiros, no máximo. Esses homens contratados para seu serviço eram celibatários. Começava-se a pensar em aumentar alguns dos estabelecimentos, instalando ali casais da costa.

Joffrey de Peyrac nâo desejava esse desenvolvimento que levaria forçadamente os mineiros a transformar suas modestas cabanas de pioneiros em postos de trato e de comércio, arriscando-se a atrair-se a atenção, sempre suspeitosa, dos franceses sobre sua presença e sobre seus trabalhos.

Lembrando a aventara de sua primeira caravana, a presença dos cavalos dava a essa viagem um pouco da tensão de uma proeza. O relevo da região não se prestava a isso. Os rios e suas múltiplas ramificações eram as estradas naturais dessa região difícil, escavada por falhas que se elevavam de quedas em cascatas, até os vales altos, aos platâs aplainados, esfolados de rochas, até as montanhas num amontoamento indefinido, como as vagas de um oceano, que era preciso acompanhar pelas linhas das cristas para não se perder no funco de estreitos precipícios.

Joffrey de Peyrac empenhava-se em seu primeiro projeto de fazer penetrar os cavalos no interior, para tornar os deslocamentos no próprio lugar, em Wapassu, e os lavores das terras cultiváveis ao redor mais fáceis, para permitir também alcançar as minas que se encontravam muito distanciadas das vias navegáveis, e que era preciso reabastecer, carregando os víveres nas costas.

Os mulos representavam dessa vez uma inovação. Mandara trazê-los da Suíça por Génova, onde Erikson os apanhara. Montarias comuns das regiões montanhosas, esses animais tinham um casco firme e não se assustavam com as pedras que deslizavam sob seus passos, nem com o barulho das águas numa garganta selvagem.

Nos flancos de uma mula mansa, os bebés foram instalados cada um numa cesta. O animal era guiado por um dos suíços do grupo do Coronel Antine. Mulheres montadas como amazonas sucediam-se para cuidar das crianças.

No fim de alguns dias, a caravana atingiu o Kennebec, atravessando-o pelo vau acima do posto do holandês Peter Boggan, passou ao larga da missão deserta de Norridgewook, que fora, durante vários anos, a do Padre d'Orgeval.

Até então o avanço do outono, que chegava do norte como urn incêndio, não se anunciara senão ao fundo por nuanças rosa e ferrugem no flanco das montanhas. Bruscamente, o incêndio os alcançava. Caminhavam através do musgo escarlate dos aceres, não passando dos sobosques cor de sangue senão para desembocar de catedrais de abóboras púrpura e rosa, atravessadas pela luz do sol e brilhando como os mil fogos de um vitral.

Angélica reencontrou os transportes de admiração que experimentara em sua primeira passagem ali. Suas impressões de então tinham permanecido gravadas, tão vivas em sua memória, que ela reconhecia cada detalhe do caminho.

Pararam à beira do lago onde outrora, extenuada pelo calor, ela se banhara e onde alguém, por trás das árvores, do alto das falésias, a vira "nua, saindo das águas"..

Nessa mesma praia, Honorina esquecera seus sapatos e trocara com o chefe dos metallaks, Mopuntuk, contra uma pele de fuinha ou de marta, o diamante que seu pai lhe dera. A menina lembrou-se orgulhosamente desse episódio. Passaram também não muito longe de Katarunk, o antigo posto incendiado. Reconheceram ou julgaram reconhecer, do outro lado do rio, seu terreno árido, que daí em diante se tornara um santuário, pois ali repousavam os despojos de cinco grandes chefes iroqueses assassinados.

Um pouco depois, encontraram o irlandês 0'Connell, responsável por uma mina ali perto.

Ele era um empregado devotado e diligente, mas jamais se recuperara do choque de ter visto arder sua reserva de peles, e seu temperamento tornara-se acrimonioso. Nada, repetia, será jamais tão belo quanto Katarunk! Seus assistentes deixavam-no e depois voltavam, ou outros ficavam uma estação com ele. Quer fosse bom ou mau o ano, a mina prosperava e era uma das mais rendosas.

Depois alcançaram a angra onde esperavam barcas, chalupas, botes, nos quais iam se acomodar os passageiros e ser colocadas as bagagens, as mercadorias "e uma parte dos animais.

A viagem prosseguia com velas, remos ou pangaios. Apesar da subida do rio, ela seria dali em diante mais rápida e menos cansativa.

Depois, no trecho'interrompido de Mexilak, seria preciso retomar os cavalos. Mas o objetivo estaria próximo.

Pessoas de Wapassu viriam ao seu encontro.

Na história das descobertas de terras novas, de exploração de costas ou de rios, os pioneiros gostavam de nomear os lugares onde ocorrera este ou aquele acontecimento, de modo a que o lugar perpetuasse sua lembrança.

Se essa tradição fora respeitada quanto à enseada onde, naquele outono, as pessoas da caravana do Sr. de Pevrac embarcaram para o Alto Kennebec, teria sido judicioso donominá-la "a enseada das Três Amas-de-Leite".

Foi o velho medecin's man quem abriu o debate.

Enquanto descarregavam as montarias e já se preparavam, para o acampamento da noite, com a intenção de partir novamente no dia seguinte, ao amanhecer, George Shapleigh, que até então os seguira, fora procurar o Conde e a Condessa de Peyrac a fim de avisá-los de que chegara o momento de deixá-los e voltar a seus penates, ao lado de Casco.

Imediatamente justificou-se dizendo que nunca subira tanto para o norte e que não tinha vontade de ir cortar o cabelo "nesses danados franceses canadenses e seus selvagens", e que, já fazia alguns dias, ele sentia na verdade o cheiro deles pairando no ar.

-        Mas você não corre o perigo de encontrar seus compatrio tas puritanos? - perguntou Angélica.

Estava decepcionada, pois tinha esperanças de manter o precioso médico durante todo o inverno junto dela. Com ele, decifraria todos os livros que ele trouxera e ele a ajudaria a cuidar da população de Wapassu, que não parava de aumentar e entre a qual havia cada vez mais crianças.

— Conosco você não tem nada a temer dos franceses, e lembre-se como o trataram no Nova Inglaterra quando foi a Salem! Eles o meteram na prisão e quase mataram sua esposa!

— Ela não é minha esposa - disse Shapleigh tristemente -, mas minha concubina.

— É sua esposa pelo amor que lhe dedica e por sua vida em comum. Você continua a ser muito puritano, George Shapleigh. Venha conosco, longe de seus bosques e de seus atormentadores, que o acusam de encontrar o Diabo.

Mas o velho Shapleigh exibiu seu ar de mocho ranzinza, com seus grandes óculos com aros de tartaruga sob a aba de seu chapéu de fivela.

O problema é que ele gostava de suas trilhas pagãs, esse velho réprobo. Ds fontes do Androscoggin, às margens do Merrimac, não havia uma flor, uma planta, uma raiz que ele não soubesse onde encontrar, em que estação e em que lua colhê-las. Não estava mais em idade para conhecer uma região como a que ele percorrera e explorara havia trinta anos.

Lá em cima, aonde eles iam, não havia as mesmas plantas, a mesma terra, os mesmo musgos, a mesma lua!

E depois, por que não confessava que não podia deixar de ir assustar os trabalhadores ingleses, surgindo à sua soleira com seu bacamarte e sua caçada diabólica?

Era pois preciso encarar a separação da pequena Gloriandra de sua ama-de-leite, começaram a parlamentar.

A jovem índia, que era dócil e de temperamento estável, achou entretanto legítimo marcar seu desprazer fugindo para os bosques com sua própria filha nas costas. Seu marido correu-lhe atrás e a trouxe de volta. Mas ela o fizera compreender que era preciso levar em consideração seus sentimentos e suas inclinações. Pelo menos, discuti-los. Talvez tivesse sonhado em passar o inverno em Wapassu.

Por outro lado, a jovem negra que fazia parte da expedição declarara diversas vezes que tinha reivindicações a fazer. Não era subir montanhas com uma criança nas costas que a contrariava. Não tinham feito outra coisa, ela, seu marido banto e seu irmão mais velho, enquanto os dogues e os guardas de seus amos se lançavam em sua perseguição. Mas ela fizera com o homem que a comprara em Newport um contrato, que não deixara de colocar-lhe um problema na consciência. Depois de alguma reflexão, aceitara-o: amamentar seu filho branco quando tivesse posto o seu no mundo. Ora, acontecia que não podia cumprir seu compromisso, por não ter dado à luz a tempo; por esse motivo, outras tomaram o seu lugar, o que a mortificava.

Num determinado momento, julgara ter chegado a hora, substituindo Iolanda junto ao pequeno Raimundo Rogério.

O casal Iolanda e Ademar não parava de questionar a continuação de seu périplo para o Kennebec. Isso os afastava muito da Nova Inglaterra. Alternadamente, censuravam-se um ao outro por terem feito fracassar um projeto que podia ter-lhes trazido a fortuna.

- ...Ou a corda - dizia Ademar. - Todos sabem o que acontece aos franceses que vão para a Nova Inglaterra!

Com efeito, Iolanda só gostava de viver em casa de sua mãe, Marcelina, a Bela, em sua concessão de Chignecto, no fundo da baía Francesa. Ou então - e quanto a isso ambos concordavam - na esteira e sob a proteção tutelar da Sra. de Peyrac. O que os induzia a prosseguir caminho atrás dela para Kennebec.

O casal de africanos e seu filho recém-nascido e o homem que os acompanhava, que não era o tio, mas o irmão mais velho da jovem mulher e que, por ter dado asilo aos fugitivos, fora separado de sua mulher e de seus filhos, foram também encorajados a tomar parte na viagem. O contrato continuava válido.

A jovem negra marrona chamava-se Eva Granadina, porque o navio que levava seus pais escravos afundara numa das pequenas ilhas do arquipélago das Granadinas. A tripulação e a carga quase foram perdidas ao mesmo tempo. Outorgou-se o nome de Granadina como patronímico familiar a todo o lote de escravos que conseguira salvar-se, entre os quais seus pais, que tinham sido comprados por um plantador huguenote francês da ilha de Saint-Eustache. Era por isso que seu irmão e ela mesma usavam nomes bíblicos, e ela fora observada em Gouldsboro pela sua interpretação dos salmos.

Jeroboão Granadina, seu irmão, continuava, para não ficar separado de tudo o que lhe restava de sua família, na pessoa de sua irmã; e porque fora persuadido a tornàr-se o assistente de Kuassi-Ba em seus trabalhos de química mineral, que absorviam várias horas de seu dia, em Wapassu, junto ao Conde de Peyrac.

Kuassi-Ba abandonara de bom grado, em proveito de seu rival Siriki, suas pretensões matrimoniais quanto à bela Akashi. Aquilo que lhe revelara o Conde de Peyrac acerca da lembrança imorre-dourà que ele tinha deixado no coração de Perrina Adélia, a criada negra da Sra. Mercourville em Quebec, fora a causa de suas hesitações. Não sabia se corresponderia à chama de Perrina, pois às vezes se perguntava se lhe fazia gosto casar-se, mas preferia a afável Perrina à nobre peubh, cuja beleza incontestável não compensava para ele a distância que sentia por não pertencer ela à sua civilização.

Na partida de Gouldsboro, enquanto Angélica montava, Siriki viera segurar o arreio de seu cavalo e aproveitara a oportunidade para pedir-lhe que falasse a seu favor com a Sra. Manigault, para que ela autorizasse seu casamento, mas Angélica o repreendeu.

-        Arranje-se com sua Sra. Manigault, Siriki. Você sabe muito bem que é a única pessoa a quem ela atende e que você consegue tudo o que quer com ela... Ela vai gritar, e depois vai dar sua bênção e um colar para sua noiva...

Ao se endireitar, vira a certa distância a peubl, de pé, toda enrolada numa capa escura, e o vestido e blusa que devia ter aprendido a vestir, pois pertencia aos povos nus. Segurando-o contra o corpo, protegia do vento o filho, que tinha uma silhueta encurvada e pernas disformes, razão pela qual, provavelmente, o chamavam de "feiticeirinho"...

O fato de permanecer em Gouldsboro significava que ele fizera um acordo com a escrava doméstica dos Manigault, mas Angélica sentia vivamente o halo de abandono que cercava essas duas criaturas insólitas que não pareciam não ser de parte alguma.

Colocou sua mão sobre o ombro do velho Siriki.

-        Ame-a bastante, Siriki! Você é de sua raça. Você é tudo o que ela possui no mundo para protegê-la e devolver-lhe um pouco de seu reino... Ame-a bastante. Ame-os muito, aos dois!

Foi preciso ficar um dia mais da etapa em Kennebec, a fim de elucidar as aspirações diversas de cada um e ver ao menos se a cordata gémea de Raimundinho podia passar, sem prejuízo, do seio ambarino da índia ao seio de ébano de Eva Granadina.

lolanda e Ademar reiniciavam suas tergiversações. Prosseguir? Voltar? E viu-se o momento em que a moça ia ficar com três bebés nos braços. Mas lolanda, como último argumento, para se justificar a seus próprios olhos, lembrava que Raimundinho era frágil e que ela o salvara. Um outro leite o mataria.

A questão foi resolvida. Não falariam mais disso, prometeu a Angélica, e faria calar-se Ademar, que protestava que não era ele quem sonhava ser cozinheiro dos ingleses. Ao contrário, sempre vira em sonhos que apenas junto à Sra. de Peyrac estaria em segurança.

CAPÍTULO X

Anjos na neve

Depois de seu reencontro, Wapassu, no coração do Maine, fora para Angélica e seu marido o campo fechado da primeira prova realizada de costa a costa. Aquela do terrível inverno em que o conde, sua família, seus homens e trabalhadores por pouco não morreram de fome, frio e escorbuto, abandonados, desmunicia-dos, ameaçados pelos índios e os franceses do Canadá, separados de seus amigos das margens por quilómetros e quilómetros de deserto gelado.

A partir de então, os lugares foram transformados.

Os soldados, lenhadores, carpinteiros, artesãos e práticos de todo o tipo que o Conde de Peyrac contratara e fizera vir, por sua conta, da Europa ou de diferentes colónias da América, tinham trabalhado muito bem. Abandonaram o primeiro pequeno "fortim" que as nevadas enterravam quase inteiramente, e onde se encerraram como animais, no primeiro inverno, uma vintena de homens, mulheres e algumas crianças, durante intermináveis meses, reunindo suas forças para resistir a todas as armadilhas do inverno: frio, fome, tédio, promiscuidade, doenças...

Não longe, dominando o lago de Prata, elevava-se uma confortável construção de dois andares, com um torreão de madeira, provida de caves e celeiros repletos, com todas as defesas de um forte bem armado e os confortos de uma moradia onde as famílias residentes tinham cada uma seu apartamento. Acrescentavam-se-lhes salas comuns, cozinhas, lojas, entrepostos.

No interior da paliçada, estabelecida num vasto perímetro, encontravam-se as áreas comuns, granjas e - maravilha! - estábulos e estrebarias. Pois, nos dois últimos verões, dez cavalos de lavra e de tiro, seis vacas e seus bezerros, tinham sido conduzidos, de etapa em etapa, até a obra.

Nos quatro cantos da muralha edificara-se um forte bastião com seteiras, tendo por baixo um corpo de guarda que podia servir de alojamento, pois para ali foram levados aquecedores alemães ou helvéticos, e, no andar inferior, havia reservas de víveres. Cada bastião representava por si só uma pequena fortaleza que podia aguentar um duro assalto ou um cerco de algumas semanas.

Sem ficar fora da paliçada, o armazém de pólvora, que é colocado, de preferência, longe das habitações, fora escavado ao abrigo da visão em subterrâneos cujas paredes tinham sido recobertas com uma camada de argila, areia e palha, com excremento bovino misturado a algum outro ingrediente de uma pedra recozida e moída, que conferia dureza e formava um revestimento que absorvia a umidade e mantinha a secura requerida para a prote-ção da preciosa pólvora e das munições.

Vastos galpões permaneciam disponíveis para permitir aos índios visitantes dar uma pitada e fazer livremente suas trocas ou permanecer ali alguns dias quando os levavam feridos ou doentes.

Havia duas pequenas construções para "fazer suadouro". Os índios haviam aprendido com os brancos a excelência desse costume, que consistia em encerrar-se numa cabana hermeticamente fechada, onde pedregulhos super aquecidos, jogados numa cabaça de água, mantinham um vapor sufocante e escaldante. Após terem suado até secar, saíam e rolavam, nus, na neve, ou jogavam-se no lago gelado.

Enfim, sinal da quietude em que se vivia, elevaram-se fazendo-las cercadas de jardins aqui e ali, a alguma distância do forte.

Cada família, tornada autónoma, cuidava de uma vaca e de um porco.

Os habitantes tinham-se multiplicado, e, còTnóem Gouldsbo-ro, Angélica já não podia conhecer pessoalmente todos aqueles que tinham vindo povoar Wapassu, na confluência das estações, e se agrupar sob a bandeira azul com o escudo de prata do Conde de Peyrac.

Começava-se, pois, por se congratular entre amigos de longa data. Os Jonas, os Malaprade, o cavaleiro de Porguani... As longas ausências dos proprietários do feudo poderiam ter acarretado entre eles, que permaneciam no lugar, perturbações e querelas. Mas Wapassu era desses lugares ondcas coisas correm bem por si mesmas, graças não se sabe a que influências benéficas.

As pessoas ali eram levadas a ser pacientes, de humor alegre e constante, os temperamentos mostravam o melhor de si mesmos. Certamente, cada um contribuía com sua parte, e era preciso lidar com pessoas de escol. Mas até então nenhuma Bertille Mercelot aparecera para "misturar sua gota de verdasco e fazer talhar o molho".

O término do inverno, que era uma prova de resistência contra o espírito de sizânia e de intolerância, não apenas encontrava todo mundo vivo, mas em ótimas relações de amizade e estima mútuas.

Em Wapassu, estava-se em território livre. Todas as opiniões eram respeitadas, e isso não pesava a ninguém. Com a preocupação de não desagradar o próximo e não ferir suas convicções, cada um usava de discrição e tato para praticar sua religião. Um oratoriano de uma certa idade fora encarregado de oficiar para os católicos do lugar. Antes de proceder à edificação da capela, debatera com os reformados sobre o lugar onde havia menos risco de serem importunados pelos murmúrios e cânticos do ritual católico.

Mas os reformados de Wapassu estavam habituados a coisas piores. No fortim da primeira invernagem, vivera-se lado a lado com um jesuíta, o Padre Masserat, que dizia missas todas as manhãs!

Elvira, a sobrinha dos Jonas, huguenotes de La Rochelle, desposara Heitor Malaprade, católico. Sua diferença de credo, que deviam mais ao acaso de seus nascimentos que a uma convicção da alma, não lhes parecera um obstáculo suficiente para desdenhar e romper a maravilhosa história de amor que se tecera entre eles, e julgavam-se perfeitamente casados diante de Deus e dos homens para assinar seus nomes no registro oficial de Wapassu, diante do Conde de Peyrac, considerado o capitão e o único mestre a bordo, e receber a benção do Sr. Jonas para Elvira e aquela, fortuita, do Padre Masserat para Heitor, durante um ofício a que haviam asssistido da soleira da porta, de mãos dadas.

Essa era a mentalidade de Wapassu.

As consciências sentiam-se à vontade e em seu direito. Não trabalhavam bastante para o senhor, arrancando, dia após dia, um pedaço de terra pagã à selvageria, e batizando para crianças inocentes um lugar onde não seriam condenadas, antes de nascer, à perseguição, à prisão ou ao banimento? . - -

Após reunir-se em conselho, tinham decidido que, em cada ala da grande cosntrução central, seria arrumado um cómodo, um para celebrar a missa, outro para os reformados, a fim de que pudessem reunir-se e rezar ou cantar seus salmos sob a égide do Sr. Jonas, reconhecido como seu conselheiro e chefe espiritual.

Longe de separar os representantes das duas religiões, a piedade manifestada por seus fiéis tranqiiilizava-os mutuamente. A maioria daqueles que ali estavam tinham sofrido bastante com as intolerâncias sectárias e estéreis, sem esperar ver atenuar-se sua rígida permanência.

Longe dos olhares de outras pessoas que os constrangessem a endurecer sua atitude, concediam-se viver com mais flexibilidade e benignidade.

E quando, na grande sala comum onde se reuniam no inverno após o trabalho, Mestre Jonas, sentado junto ao átrio, abria sua Bíblia, não era raro ver Porguani, o italiano, católico escrupuloso e fervoroso, vir pedir-lhe que lesse em voz alta alguns versículos, que ele escutava com prazer manifesto, fumando seu cachimbo comprido.

Naquele ano, Wapassu ia receber um ministro do culto na pessoa do sobrinho do Pastor Beaucaire, um viúvo de uns trinta anos, acompanhado de um menino de dez. Originário de uma província do Oeste da França, Aunis ou Vendée, devastada por uma "campanha de abjuração", esse jovem pastor perdera sua esposa, violada e depois lançada num poço pelos dragões do rei, os "missionários de botas"... Refugiado com seu filho em La Ro-chelle, seguira em sua fuga para as Américas seu tio, o Pastor Beaucaire e a filha deste, Abigail, sua prima, casada com Gabriel Berne, um vizinho.

Em Gouldsboro, depois de um longo período de luto fechado, enquanto assistia seu tio nos trabalhos da paróquia, acabava de desposar uma das graciosas filhas da Sra. Carrere, e esse casal decidira começar uma nova vida de pioneiros.

Ali, o outono estava mais adiantado.

Os cisnes, patos, gansos brancos, gansos bernachos, passaram, constelando o céu com cruzes de pontas pretas.

As abelhas tinham feito suas casas no alto dos ramos, sinal de que o inverno seria rigoroso.

A Sra. Jonas tinha pressa de mostrar a Angélica em que ponto estavam os trabalhos referentes às provisões de inverno reunidas durante o verão, fruto de colheitas ativas e de cuidados dispensados às primeiras culturas.

Bagas dos bosques, cerejas-silvestres, pequenas peras, nozes, frutos de faias, avelãs, foram juntados, colocados para secar, assim como os diversos cogumelos, enfiados em cordões finos e resistentes e estendidos em enfiada de uma viga a outra dos forros.

Em caso de penúria, raízes de bardana eram cozidas em água salgada e as bolotas podiam ser consumidas depois de se jogar fora a primeira água.

Tonéis de repolho azedo, o Sauerkraut alemão, estavam sendo preparados. Esperava-se a chegada de uma reserva maior de sal para terminá-los e armazená-los nas caves. Esse alimento dos países de clima frio era famoso por evitar o escorbuto.

E, sob os telhados, nos "sótãos", como os chamava a Sra. Jonas, que era do Aunis, havia a suprema reserva de madeira, que podia ser transportada, em cestos suspensos por polias, até os andares e as grandes salas do térreo.

As culturas ainda eram modestas. Um pouco de centeio, e aveia para os cavalos, Aljém dos repolhos, abóboras, rábanos e de raízes, como nabos e cenouras, os agricultores de Wapassu tinham-se dedicado sobretudo a preparar grandes pastos para a criação de animais, secando tanto quanto possível terras das cercanias dos lagos, a fim de poder reunir uma quantidade suficiente de forragem para a sobrevivência dos animais domésticos. Os cântaros de leite colocados nas mesas familiares todas as manhãs representavam o resultado desse trabalho.

E, ápésár de monótono, haveria som mais agradável de se ouvir nos confins da casa que o piar alternado de duas batedeiras para manteiga que trabalhavam ativãmente para transformar esse leite numa bela barra amarelo-clara de manteiga perfumada pelo odor das flores de Wapassu?

A robusta Iolanda não demorou muito a se apresentar como voluntária para se revezar nessa fatigante tarefa, que exige vigor e paciência.

Homens e rapazes tinham voltado da última caçada, que, anualmente, faziam com os índios metallaks. Uma última sessão de retalhamento, corte, defumação seria realizada, depois um último festim, antes que os índios fossem embora, em pequenos grupos, fazer seus quartéis de inverno.

Seu chefe era Mopuntuk, que iniciara Angélica no sabor da água de fonte da região. Ware! Ware! a água! a água!, repetia em al-gonquino, arrastando-a cada vez mais longe. E também dizia: "o alimento é para o corpo... A água, para a alma!"

O festim teve lugar na colina, perto dessas grandes panelas de madeira talhadas em cepos de árvores não desenraizadas e onde os índios do norte faziam cozer suas papas de milho antes que os brancos tivessem trazido da América o caldeirão de ferro ou de cobre.

As aldeias naquele tempo se agrupavam em torno dos recipientes imóveis, onde a água derramada era levada à ebulição por bolas de pedra incandescentes. As tribos então eram talvez menos nómades que agora, quando bastava jogar nas costas as preciosas e indispensáveis caldeiras para deixar as cabanas.

Quartos de grandes abóboras cor de rosicler assavam sobre brasas. Numa das cadeiras dos antigos, cozinhavam feijões, na outra cozinhavam os diferentes pedaços de um alce.

Oferecia-se ao sagamore Mopuntuk os caroços de gordura do intestino do alce que tinham um certo cheiro de tripas e eram comidos crus, prato seleto, insubstituível para manter a energia durante as longas caminhadas ou os longos carretos, e também os pés do animal, grelhados perto da lareira e dourados, sob sua gelatina transparente, regados por caldo de frutas ácidas dos bosques. Totalmente sem sal, para agradar os índios.

Para os estômagos delicados, assavam betardas em espetos.

Òs mais deliciosos aromas se elevavam, misturavam-se às fumaças das cabanas carboníferas da elevação fronteira, onde se fabricava carvão de lenha para o inverno.

Gritos, risos e sons de flautas e de clarinetas orquestravam as refeições.

Bartolomeu, Tomás e Honorina, e em geral todas as crianças, divertiam-se muito olhando os índios comerem. Esses hóspedes de destaque não tinham, quando comiam, maneiras muitos mais repreensíveis que as suas, filhos de brancos, a quem censuravam com tanta frequência por se comportarem mal à mesa! Agora teriam condições de vir recomendar-lhes que não comessem com os dedos, que enxugassem as mãos, fechassem a boca para mastigar e não arrotassem?

As crianças olhavam suas mães pelo canto dos olhos com triunfo: era tão divertido arrotar como verdadeiros índios! E as mães faziam de conta que não percebiam nada.

Certo! Os índios eram sujos, mas tão alegres, tão convencidos de seu decoro, que não ficavam embaraçados ao vê-los enxugar os dedos em seus mocassinos, ou pegar na escudela uma parte de carne e oferecê-la a eles, após experimentá-la um pouco, a fim de assegurar-se de sua qualidade.

E aquele dia, entre os brancos, houve um concurso para ver quem conseguia comer melhor à moda indígena, isto é, de uma maneira completamente desaconselhada pelo manual A civilidade pueril e honesta.

A palma foi dada a Joffrey de Peyrac.

Este, sem se desfazer de sua dignidade de grande senhor, que, sob qualquer vestimenta, fazia parte de sua natureza, tinha um jeito inimitável dé se agachar junto a um índio, estendendo para a face acobreada seu rosto inteligente, em que se lia uma atenção ao mesmo tempo deferente e fraterna.

Pegava com a ponta dos dedos, da panela, os pedaços, comia-os com a mesma compunção religiosa que seus hóspedes, depois lançava para trás os ossos, com uma negligência que parecia ter praticado a vida inteira.

Ele puxava o cachimbo, passado de boca em boca, sem manifestar a menor hesitação. Na verdade, esses ritos para ele só importavam por reatar os laços de compreensão humana entre as duas raças estrangeiras, e se fosse preciso comer com os dedos e escarrar na própria fornalha do cachimbo, não veria nisso nenhum inconveniente.

Era principalmente sua atitude que encorajava os europeus a se sentirem à vontade. Mistura de indulgência e de consideração.

As crianças conseguiam isso imediatamente. Existe um parentesco espiritual entre as crianças e os selvagens. Elvira dizia que sentia que seus meninos poderiam perfeitamente deixá-la de um dia para o outro, sem virar a cabeça, para seguir os índios em suas wigwams, e conheciam muitas histórias de crianças canadenses, francesas ou inglesas, capturadas durante reides, e que tinham se habituado à convivência com seus raptores, ligando-se mais à tribos de adoção do que jamais o haviam feito com suas famílias brancas.

No fim do ágape, um sujeito, dentre os recém-chegados, que conhecia mal a mentalidade dos índios do interior, propôs, para coroar a festa, distribuir a cada um umapequena "gota", um riquinho de álcool.

Foi um erro. Mopuntuk indignou-se.

A água-de-fogo dos brancos era para os índios fonte de delírio sagrado. Beber apenas um pouquinho, correspondente a um dedal de costura, medida francesa, não lhes provocaria nenhum transe! Beber apenas uma quantidade tão pequena era considerado pelo chefe dos metallaks não apenas um triste desperdício, mas um insulto aos deuses. Quando se servem os deuses, deve-se servi-los sem mesquinharia!

Proibiu a seus guerreiros aceitar a oferta ridícula e mesquinha. Alguns, às escondidas, foram reclamar seu "dedal", com a intenção de acrescentá-lo a suas reservas de várias pintas, pacientemente amealhadas durante o verão, de um comerciante a outro, e que eles conservavam visando à grande bebedeira sagrada a que seus irmãos e eles se entregariam antes do fim do inverno.

Encerrado o incidente, tendo os metallaks comido até ficarem derreados e, depois, tendo feito a digestão durante um longa sesta beata, em meio à fumaça do tabaco da Virgínia, Mopuntuk e os outros chefes pegaram Honorina e seus amigos e os colocaram nos ombros ou nas costas a fim de dar uma voltar a galope pela campina.

Os gritos, os risos e os cantos recomeçaram. As mulheres tinham arrumado os utensílios e limpado as vasilhas.

A sutil claridade do dia se obscureceu.

Quando Angélica olhava à sua volta, não era apenas a chegada do frio que a fazia tremer ligeiramente.

Sob a névoa dourada do sol, a paisagem suntuosa dos últimos dias de outono adquirira uma feição mais despojada.

O sol empalideceu, e os índios caçadores se foram.

Fizeram-lhes sinais do alto da colina, enquanto margeavam mais uma vez a beira do lago, antes de desaparecer sob as árvores cinzentas. Nessa água, que uma fina película de gelo já empanava, o reflexo de suas vivas silhuetas parecia turvo.

Durante toda a estação do verão e até o fim do outono, as sentinelas, do alto dos bastiões e do torreão, não tinham parado de espreitar constantemente, e numerosas patrulhas de soldados mercenários comandados por Marcelo Antine faziam todos os dias reconhecimentos nos arredores.

A vigilância afrouxou um pouco a seguir, quando caiu a primeira nevada. É que a neve, fora da beleza paradisíaca que confere à paisagem por sua brancura rutilante de mil fogos, traz consigo um silêncio e como que uma trégua que não é apenas imaginária.

A neve e o frio garantiam para os humanos a paz.

Dura estação para os animais e para aqueles que não têm alimento e calor suficiente, possuía essa clemência de afastar um flagelo ainda mais destruidor: a guerra.

De tal forma que, já que os mandamentos não bastam, só restam, para erguer uma barreira entre o homem e a execução de seus intentos de violência, as decisões cegas da natureza, que é uma guardiã vigilante. Caprichosa, cáustica, zomba da força de inseto do homem e às vezes se zanga, se se tenta passar além. Se se soubesse compreender os sinais de sua aparente loucura, mais que maldizê-la, dever-se-ia agradecer-lhe pela desenvoltura e o arbítrio com-os quais ela se atravessa diante das resoluções humanas e faz pouco de seus planos e decretos. Por exemplo, a tempestade que afundou a Invencível Armada espanhola diante das costas da Inglaterra aniquilou anos de preparação minuciosa e muito bem-disposta, pôs a perder rios de ouro e mudou o curso da história...

Esta era uma das razões pelas quais Angélica gostava de neve. Nada mais delicioso, quando levantavam, no calor da casa, do que adivinhar, através dos vidros constelados de geada, a claridade baça da neve caída, sem ruído, durante a noite. O dia seria diferente.

Era preciso tomar outras providências: era imperativo fazer um bolo. As crianças entravam em férias.

Num impulso unânime, foram buscar os gémeos para mostrar-lhes a primeira neve. As mulheres tiveram de tirá-los do berço e levá-los para fora. Enrolados em peles, eles piscavam suas pálpebras frágeis sob o brilho do sol dourado que a neve refletià como um espelho. E as crianças, por esse ardor em fazê-los participar de sua alegria, pareciam dizer-lhçs:

"Olhem! Olhem, pequenos príncipes, como o mundo que lhes foi dado é belo!"

Lucas M'botê, o negro banto, olhara sem terror sua primeira neve. Penetrara nesse elemento desconhecido com a impassibilidade de um guerreiro primitivo para quem o mundo, nos limites de sua aldeia, é um reservatório sem fim de armadilhas e de surpresas mágicas que lhe ensinam, desde a mais tenra idade, a preparar-se para descobrir e enfrentar sem terror e sem manifestar espanto pueril.

Em compensação, Eva Granadina, que também via a neve pela primeira vez, mostrara tanto entusiasmo ruidoso e frenesi em se enrolar na vaporosa brancura quanto a juventude do lugar.

Sim, Angélica julgava lembrar-se de que sempre amara a neve e enquanto escolhia suas plantas medicinais para arrumá-las em caixas de casca de bétula, com Honorina sentada a seus pés num tamborete, evocava sua infância no Castelo de Monteloup, o velho castelo poitevin que adquiria um aspecto tão bonito quando suas duas ou três grandes torres redondas se encapuzavam com gorros brancos e pontudos!

Monteloup, explicava à menina, era um pouco como Wapas-su. Longe de tudo, no inverno, ficavam muito sós, esquentando-se todos juntos na grande cozinha! Temiam-se as incursões dos soldados salteadores e pilhantes... Os aldeões dos lugarejos, em perigo, iam procurar refúgio no castelo, e acionava-se a ponte levadiça de correntes enferrujadas. Tinham em casa um mercenário suíço, ou alemão, o velho Guilherme, como Curt Ritz, com uma alabarda duas vezes mais alta que ele.

Havia no Portou uma raça de pequenos burros pretos muito peludos, de grandes orelhas, que pareciam talhados a machado em madeira, tão rústico era seu aspecto. Aqueles que, como os mulos, eram criados por seu pai vinham nos dias de frio refugiar-se também no castelo.

Ouviam os passos de seus pequenos cascos redondos e duros saraivar na madeira da ponte levadiça, depois eles se dispunham em círculos diante da grande porta e esperavam. Se tardavam muito em abri-la, punham-se a zurrar. Que cacofonia!

- Conte! Conte mais sobre os pequenos asnos pretos - suplicava Honorina, que se apaixonara pelas histórias da infância de Angélica.

No ano de sua volta de Quebec, Angélica dera aos Jonas o cão "boboca" que ela salvara da tempestade e de seus torturadores, atendendo às súplicas de Honorina.

"Ele os protegerá do incêndio!"

Dizia-se que esse tipo de cão percebia um início de sinistro em qualquer canto da casa. Avisado por ondas que só ele captava, lançava-se contra as paredes, contra as janelas, como um louco, sem ruído, pois não "latia". Fora isso, não servia para nada. E como, até então, nenhum incêndio - Deus seja louvado - se manifestara em Wapassu, não se podia opinar sobre a excelência de seu faro nesse aspecto. Em contrapartida, perdera-se muitas vezes, tendo quase sido devorado pelos lobos. Mas tornara-se um cão feliz.

Elvira e as crianças gostavam dele, e ele gostava de todas as crianças. Tinha sua utilidade. No inverno, deitava-se sobre as pequenas meias encharcadas para fazê-las secar mais depressa. No verão, a fim de evitar que lhe acontecesse algo de ruim, foram obrigados a acorrentá-lo, o que o deixara triste. Para devolver-lhe o sentimento de seu valor, atrelavam-no a uma pequena'charrete ou, no inverno, a um leve trenó, nos quais ele levava a passear as crianças que ainda não andavam.

Quando caía a neve, era também o momento de imolar um ou dois porcos, e as cerimónias de matança iniciavam a lista das festa e comemorações da estação.

Haveria o Advento e os costumes diversos que o acompanhavam. O Natal, todo feito de devoção, depois a Epifania, onde se trocavam presentes em memória aos reis magos.

A vida se organizava no interior da casa. Angélica achava tempo para escovar longamente, todas as noites, os belos cabelos de Honorina, para passear com ela, vê-la acordar, e seus novos filhos crescerem. Gloriandra, de tez dourada, com cabelos negros que começavam a encaracolar-se, abria os olhos, de um azul profundo e no entanto claro, um azul de centáurea. "Os olhos de minha irmã Maria Inês", pensava Angélica, rememorando aquela que fora uma encantadora dama de honor da rainha, e que depois se fizera religiosa.

"A filha de Joffrey!"

Pegava-a nos braços e passeava com ela, falando-lhe:

- Como você é bela! Como você é delicada!

Mas Gloriandra recebia os cumprimentos com indiferença. Seus olhos azuis continuavam a olhar uma imagem interior, como se, desde o começo, tivesse se refugiado em seu mundo, tivesse seguido um caminho pessoal, pelo fato de ter requerido menos atenção que seu irmão ao vir ao mundo.

Joffrey, que se encantava com sua beleza e lhe fazia muita festa, tampouco tinha êxito. Entretanto, ela sabia ser curiosa, observava em torno dela, mas os humanos, suas vozes, seus gestos, não atraíam sua atenção mais que o reflexo do sol ou o brilho de um objeto. Dir-se-ia que ela não parava de escutar dentro dela o coro dos anjos.

Raramente ficava encolerizada. Mas, quando seu gémeo dava o impulso, ela o seguia logo com uma convição e um vigor que, felizmente, nada tinham de etéreo.

Juntos, ergueram a cabeça para lançar um olhar por cima do berço, juntos se agarraram com uma das mãos e depois se sentaram.

O jovem Raimundinho, uma vez sentado, mantinha-se bem ereto e recusava, com uma força insuspeita, deitar-se novamente. Punha por terra o julgamento popular que gosta de se expressar por opinões categóricas, sem apelação, traduzindo uma opinião geral que ninguém contesta. Diz-se sobre uma criança: "Ela é bonita!" ou "Ela é feia!" Ora, ele oferecia as características de ser, ao mesmo tempo, feio e bonito.

Quando se surpreendia em seu rosto alongado, mas que ele mantinha com um orgulho de infante espanhol, o olhar imperioso de suas pupilas escuras, nem pretas, nem marrons,"cor de café quente cheio de espuma marrom", dizia Honorina, era belo. Não se via senão esse olhar e sua pequena boca bem modelada, e também imperiosa.

Em outros momentos, como se tivesse sido conduzido subitamente à consciência de seu estado frágil de miraculado-ressuscitado, retomava uma aparência sofredora, e, sob seu crânio redondo, sempre pouco guarnecido, seu nariz revelava-se ridiculamente pontudo, seu rosto, ainda mais estreito e pálido. Era feio.

Mas, aos seis meses, decidiram que ele era belo: suas bochechas estavam ficando mais cheias.

Nas noites de muita geada, ouviam-se os lobos, e Honorina mantinha-se acordada.

Desde que Cantor a fizera escutar o concerto dos lobos, sempre ficava condoída pelos uivos dos pobres lobos, que buscavam comida, e amiúde ficava sentada em sua caminha, sonhando em levar-lhes carroças de boa carne. Eles a aguardavam lá fora com esperança, em círculo diante da porta, e olhavam com seus belos olhos oblíquos dourados. Fazia-os entrar no forte.

Quando ficava assim sem conciliar o sono em seu pequeno leito a escutar, ao. longe, o chamado dos lobos, acontecia de ele, seu pai, aparecer subitamente à sua cabeceira. Dizia-lhe:

.- Não se inquiete. Os lobos não são infelizes. E o destino dos lobos não comer todos- os dias acordo com sua fome, procurar pastagens, atravessar o inverno. Para que nunca tivessem fome, seria preciso servi-los. Eles não exigem tanto ser alimentados quanto ser livres. Para os lobos, para os animais, a caça é um jogo. Perseguir e ser perseguidos é um jogo, e se perdem e morrem, isso faz parte do jogo... Não sabem que foram vencidos. Apenas que levaram sua vida de lobos direitinho. Você prefere ter fome a ficar presa, não é? Os lobos não são menos corajosos que os homens...

Sabia que não a consolaria assim, a essa menininha engraçada que se magoava com o sofrimento dos seres inocentes, que tinha em si um senso agudo, incurável, de todos os abandonos, de todos os repúdios. Ela era toda instinto. E seus raciocínios, de uma lógica implacável, ocultavam uma profunda desconfiança em relação às explicações das "pessoas grandes".

Mas, vindo à sua cabeceira, ele colocava um bálsamo momentâneo em suas feridas. Sua atenção a satisfazia, e, para agradar-lhe, ela fingia acreditar nele, acreditar um pouco nele. "Os lobos não eram infelizes", dissera ele. Devia saber, pois ele sabia tudo.

Deixava que ele prendesse as cobertas sob o colchão, o grande senhor que comandava o mar e os iroqueses, e que fazia soar o trovão em feixes vermelhos, brancos e azuis. E que era seu pai.

E fechava os olhos com um ar de sabedoria muito composta e pouco habitual nela, o que o fazia sorrir de ternura.

As alternativas do inverno: dias de tempestade, amortalhamento, volta do sol, que era preciso aproveitar para retirar portas e janelas e cavar trincheiras através do pátio, dias de gelo que faziam doer até os ossos assim que se punha o nariz para fora, depois de novo anúncio das tempestades, ritmavam a vida cotidiana. Os serões ganhavam uma grande importância.

E os livros.

Os navios da Europa traziam, todos os anos, um número considerável de livros, em língua francesa, inglesa, espanhola ou neerlandesa.

Misteriosas encomendas, preparadas antecipadamente, esperavam em Cádiz o navio de Erikson; reunindo produções vindas de Londres ou de Paris, muitas vezes via Amsterdam, que era o centro das edições clandestinas de obras proibidas em seu país de origem, por subversão religiosa ou política.

Florimond pudera começar a enviar-lhes mais abertamente essas múltiplas brochuras, romances em prosa ou em verso, que pareciam e eram vendidos como "pãezinhos" e satisfaziam às aspirações de sonho, fantasia, meditação e fome de saber de uma sociedade que saíra totalmente inculta de cem anos de guerras de religião, mas tomara gosto, através das disputas teológicas, pelos exercícios do espírito.

Na França, editores e livreiros faziam fortuna. Burgueses, pequenos burgueses, artesãos e até os miseráveis, sentiam-se ávidos por se evadir, pela imaginação, das asperezas da vida cotidiana. No Pátio dos Milagres, Angélica vira antigos escribas e professores da Sorbonne, afastados por bebedeira ou outros reveses, ler em voz alta romances que mendigos e màrafonas escutavam chorando.

Honorina pedia com frequência ao Sr. Jonas para ler em sua Bíblia a história de Agar. Interessava-se por ela, em memória à pequena cigana que encontrara em Salem, que se enfeitava com flores e se chamava Agar.

Nesse relato bíblico, a covardia e, para ser explícito, a frouxidão e a mediocridade dos grandes homens da Bíblia, como Abraão, entre outros, que expulsava para dentro de deserto sua criada Agar e se jovem filho porque sua velha esposa tinha ciúme do menino Ismael, não a chocavam muito.

O Sr. Jonas, com sua voz solene e devota, tentava fazer dele um herói admirável, mas a jovem Honorina não se deixava enganar,

O que mais esperar dos adultos?

Mas gostava da cena do deserto, a verdade da narrativa que ela acompanhava etapa por etapa, a angústia da sede, a fadiga da mãe e da criança, a sombra pequena de uma palmeira compassiva, que não podia ser umas salvação por si só, e a humanidade dos sentimentos das mulheres: a morte de seu filho, fugindo, retorcendo os braços sob o sol, a intolerável, insustentável provação de assistir à agonia do belo Ismael querido, injustamente rejeitado e condenado... A intervenção do anjo tornava-a sonhadora.

— Esse anjo poderia ter chegado um pouco mais cedo - dizia.

— Não é o papel dos anjos - explicava o Sr. Jonas.

— Eles sempre chegam tarde demais, já notei...

— In extremis, digamos. Assim, a intervenção do Altíssimo é mais estrepitosa.

In extremis. Honorina guardou na cabeça a expressão. Olhava os gémeos debater-se em seu bercinho e mostrar suas mãozinhas um ao outro, com uma expressão extasiada.

Eles também tiveram anjos que vieram salvá-los in extremis. Lembrava-se de ter ouvido repetidas vezes em Salem, na casa de Mrs. Cranmer, "In extremis! In extremis!"

-        E eu, também tive um anjo que veio quando nasci? - perguntou um dia a Angélica.

Esperava ter sido, uma vez mais, desfavorecida pela sorte, e ficou surpresa ao ouvir sua mãe responder-lhe:

— Sim.

— Como ele era?

Angélica interrompeu o que estava fazendo: colocava num saquinho a tília dourada.

— Ele tinha olhos castanhos muito suaves, olhos como os das corças. Era bonito e jovem. E tinha uma espada na mão.

— Como o Arcanjo São Miguel?

— Sim.

— Como estava vestido?

— Não me lembro muito bem... Parece-me que estava vestido de preto.

Honorina ficou satisfeita. Os anjos dos gémeos também estavam vestidos de preto.

CAPITULO XI

O drama de Jenny Manigault

Do alto do torreão, Angélica e Joffrey olhavam a ondulação lívida da paisagem, onde até os sinais da floresta pareciam desaparecidos.

O céu estava nacarado. Nácar branco tocado por cinza-pérola e por um pouco de verde.

Ao longe, emergindo das nuvens, via-se a crista de um monte, branco como uma hóstia.

Em volta da muralha, só filetes de fumaça se elevavam no ar cristalino, revelando as pinhas ou as intumescências dos tipis, as cabanas indígenas, e a localização das habitações fora dos muros.

O blizzard, vento frio, cruel... Pássaros negros em bandos, soltando gritos sinistros, precediam a chegada das nuvens de neve , espessa trazidas pela fúria dos ventos, como os carros dos demónios polares, e isso podia durar dias.

Ao segundo anúncio de tempestade, aqueles que tinham construído suas casas fora da muralha julgaram mais prudente pedir hospitalidade no forte: Elvira, seu marido, seus filhos. Apertaram-se um pouco. Honorina reencontrava, na mesma intimidade do primeiro inverno de Wapassu, seus companheiros de brinquedos, Bartolomeu e Tomás.

Só o inglês mudo, Lemon White, que tivera a língua cortada pelos puritanos por ter blasfemado, recusou-se a deixar sua toca, um pouco à moda de Elói Macollet, em outros tempos, que permanecia em sua wigwam, afastado, arriscando-se a morrer de fome e de frio, pois levar-lhe um pedaço de pão ou uma tijela de sopa, isto é, sentir-se na obrigação de pôr o nariz fora e distanciar-se alguns passos da casa comportava riscos de morte.

A sorte de Lemon White inspirava menos temor, pois estava equipado para aguentar muito tempo. Ele se àlofava no antigo forte de Wãpassu, o da primeira invernagem. Vivia sozinho, às vezes, no inverno, na companhia de uma índia, que ia novamente embora na primavera quando os seus prosseguiam viagem. Tinha boas reservas de víveres. Ficava para fazer a manutenção do material e da forja das primeiras oficinas de mina de onde haviam tirado lingotes de ouro e de prata. Instalações mais amplas e mais aperfeiçoadas ocupavam agora toda uma ala do grande forte. Lemon White transformara o fortim em oficina de conserto e manutenção das armas. Trabalhava ali da manhã à noite, e toda a comunidade lhe trazia mosquetes, fuzis de pólvora ou de mecha e pistolas. Por ali passavam, numa plataforma de madeira, colubrinas, ralos, pequenos canhões do forte. Tornara-se usual ir à casa dele prover-se de chumbo, sucata e pólvora. Ele fabricava as balas em moldes e as pequenas peças de chumbo. Tinha, permanentemente, no cabide de armas, peças limpas, bem azeitadas, prontas para o uso, assim como pólvora composta segundo a fórmula elaborada pelo conde.

Angélica, que gostava de ir à casa do_ mudo em suas caminhadas, reencontrava-se com prazer na habitação. Sob suas baixas abóbadas enfumaçadas, comprimidos em torno da grande mesa, tinha vivido sua primeira noite de Epifania na América, viram os iroqueses chegar, nus, sob um vento infernal, trazendo feijão para salvá-los. Com o mudo, por meio de sinais, evocavam algumas anedotas.

Havia um cómodo, aquele onde tinham-se alojado os Jonas e as crianças, que ele não utilizava. Pediu-lhe para guardar ali uma parte de suas reservas de símpleces, flores e bagas secas, frascos ou potes de unguentos. Pois isso, sobretudo as raízes eseus rizomas, tomava muito lugar.

Uma coisa que Angélica lamentava na pequeno fortim era o grande leito que Joffrey mandara esculpir e construir, usando para os montantes raízes de árvores, como o de Ulisses, razão pela qual não se podia movê-lo dali.

Notara que o inglês, muito deferente, não o utilizava. O quarto, muito pequeno, por outro lado, onde ela e Joffrey tinham dormido, permanecia fechado, mas sempre limpo e aquecido por uma canaleta de seixos que formava uma chaminé com quatro aberturas, construída à maneira de certos pioneiros da Nova Inglaterra. A cama mantinha-se coberta com peles.

O inglês contentava-se com a grande sala comum, com sua lareira, um quartinho recuado e oficinas que se prolongavam nas galerias de minas, atualmente fechadas por tábuas.

Depois das mais ferozes tempestades, os índios começaram a chegar.

Os abenakis eram nómades e, especialmente no inverno, dispersavam-se em grupos de famílias, vivendo em alguns acampamentos, voltados para si mesmos, como marmotas ou ursos, com o risco de, se a situação se tornasse insustentável, ter de desmontar as cabanas para dirigir-se a outras aldeias menos miseráveis. Desde o mês de março, começavam, sempre em grupos familiares, a caçar castor, apanhar em armadilhas animais de pele e recolher as peles para o comércio.

Outrora, acuados pelo frio e pela fome, procuraram refúgios na missão de Norridgewook. Agora subiam para Wapassu.

Levavam peles de gambás, lontras, lince, da magnífica raposa ruiva, às vezes do castor branco e da raposa bem preta, de valor incalculável. Em contrapartida, esperavam receber o que comer, pois chegavam ao forte quase mortos de fome.

Davam-lhes tabaco, preparavam-lhes no pátio grandes caldeirões de sagamité, um mingau de milho triturado com pedaços de carne ou de peixe seco, condimento de bagas e de rábanos ácidos, e a Sra. Jonas não hesitava em adicionar-lhe três ou quatro velas de sebo para derreter, pois eles apreciavam que sua alimentação fosse bem gordurosa.

Alguns apenas passavam e, uma vez saciados, prosseguiam seu caminho. Mas a maioria não ia embora.

Vinham a cada ano em maior número e mais cedo, no inverno. O fenómeno não deixava de ser inquietante. Isso significava que eram cada vez mais numerosos os nómades que esgotavam suas reservas de inverno bem antes que as perspectivas da primavera pudessem fazê-los esperar o fim da miséria e da possibilidade de reinicia a caça, de colocar e retirar armadilhas.

Era um fenómeno que levara Saint-Castine a pedir a ajuda de Peyrac para evitar que os índios da Acádia fossem inteiramente dizimados pela dupla exigência do comércio de peles e das santas expedições guerreiras.

"A troca desenfreada que é feita em nossas águas durante o verão, com os navios estrangeiros, bacalhoeiros e baleeiros, impede-os de se entregar à caça e à pesca de salmão e aosalevinos, como costumavam fazer na primavera. A febre que os assalta, de levar às praias o maior número possível de peles, não lhes deixa tempo para perfumar e moquear carne e peixe para suas provisões de inverno, e ainda menos para semear abóboras e ervilhas e um pouco de trigo-mourisco.

"Se tiverem de responder ao chamado de uma campanha guerreira entre os hereges, então os primeiros frios os encontrarão desprovidos de tudo, tendo quando muito o álcool trocado nos navios e os escalpos de inimigos à cintura. Eu os reconheço, conduzi-os eu mesmo ao combate mais de uma vez. Mas, depois de vê-los morrer de fome os milhares durante dois invernos, decidi mudar de política."

Entre os que se apresentavam aquele ano, havia alguns que escaparam à guerra do Rei Filipe, sakokis da região de Sako de New-Hampshire e, entre esses, patsuiketts, chamados "os que vieram em fraude", os últimos a fugir de sua área de origem.

Os tipis pontudos, três varas cercadas de pedaços de cascas costuradas, ou as wigwams arredondadas, recobertas por lascas de madeiras, retiradas ao olmo ou à bétula, estavam prestes a erguerem-se como cogumelos em volta do forte. Depois do que, aliviados por terem chegado a uma sombra tutelar, após caminhadas na neve e sob o vento durante as quais tinham perdido os velhos e quase todas as crianças de pouca idade, só se pondo a caminho depois de engolido o último bocado de carne-seca ou de milho, instaiavam-se com a certeza de serem salvos e a garantia de que os armazéns dos brancos estão sempre cheios de víveres, por uma renovação espontânea do milagre da multiplicação dos pães e dos peixes, ensinado pelos Togas Negras.

Foi preciso aproveitar um belo período de janeiro, quando a neve endurecida permitia calçar as raquetes, para fazer com que os chefes de família compreendessem que tinha chegado o momento de voltar à caça, à perseguição de alguns alces, renas canadenses ou então tocaiar o urso adormecido em seu covil, a fim de compensar as perdas de reservas que os submeteriam a todos, mais uma vez no fim do inverno, às agruras da fome e às ameaças do mal-de-terra, o escorbuto.

Quase todas as manhãs, Angélica dirigia-se a uma das salas onde as mulheres com seus filhos se apresentavam, ao mesmo tempo curiosas e desejosas de um pouco de ajuda.

Tinha muito trabalho para acolhê-los, cuidar deles, supervisionar a distribuição de úteres e encorajá-los a voltar o mais depressa possível para as suas wigwams ou para suas aldeias provisórias.

Certa manhã, os kanikas, que ela encontrava a cada estação, vieram dizer-lhe que havia entre eles uma índia "estrangeira" que se juntara à sua caravana nos arredores do lago Umbago e que, pouco falante, não abrira a boca senão para dizer-lhes que tinha de voltar a Wapassu, a fim de falar com a Dama do Lago de Prata. De acordo com o seu dialeto, achavam que ela pertencia a uma tribo dos pema-cooks, algonquinos nómades do sudoeste, que viviam dispersos e que a derrota daquele a quem chamavam o Rei Felipe, esquartejado pelos yennglies de Boston, fizera recuar mais para o norte.

Angélica tomou nota de suas explicações e se dispôs a receber "a estrangeira", com a condição de que lhe arranjassem um intérprete, Sacudiram a cabeça, dizendo que sua linguagem não lhes era familiar e que ela parecia conhecer apenas algumas palavras de seu idioma. Mas o velho chefe, que passava a metade do inverno com eles em Wapassu, advertiu que, tendo conseguindo conversar com a estrangeira, determinara que a língua mais conveniente de ser empregada com ela era o francês. Ela parecia ter um vocabulário bem rico, o que era surpreendente, pois os povos do sul estão mais acostumados a "arranhar" o inglês.

Ele falara com ela e a convencera a não temer os brancos. Receosa, seus companheiros de viagem observaram, que ela hesitava, havia dois dias, em se aproximar do forte, e escoltaram-na até ali, assegurando-lhe não haver perigo.

Angélica dirigiu-se à grande sala de acolhimento. Uma jovem índia, que se .mantinha agachada a um canto, levantou-se ao vê-la e foi ao.seu encontro fitando-a com tanta intensidade que ela teve a impressão de ser "alfinetada" por esse olhar.

No centro da sala, a mulher parou e fez deslizar de suas costas uma criança de três a quatro anos, enrolada numa manta de pele de castor. Apareceu, bastante fraca, em suas vestes e perneiras de camurça, que uma longa viagem tornara desgastadas, sujas e em frangalhos.

Uma faixa de contas cingia-lhe a testa, prendendo-lhe os cabelos. Era sua única vaidade. Suas tranças, untadas com gordura de urso, não comportavam ornamentos e, mal atadas por cordões de vergalho, estavam despenteadas. A tez da mãe e da criança era escura, mas devido à camada de gordura que revestia seu rosto. Como o capuz da criança tinha caído, Angélica julgou adivinhar na ondulação de uma cabeleira crespa, que nada tinha de índia, um reflexo claro.

"Um pequeno inglês cativo", pensou, "que talvez estejam enviando com essa pobre mulher para ser trocado por víveres."

A fixidez dos olhos brilhantes da índia era quase constrangedora. Seus lábios se distenderam nurri* sorriso.

Angélica, assumindo todos os riscos, disse em francês:

-        Eu a saúdo. Como se chama?

Sua interlocutora pareceu surpresa. Seus lábios entreabriram-se, primeiro de espanto, depois articularam num francês um pouco agudo, mas bem enunciado:

-        Dame Angélica! Não me reconhece?

Rememorando todas as índias que a tinham abordado de Quebec a Salem, Angélica perscrutava o fino rosto sob a faixa de contas.

Como não se pronunciasse, uma expressão incrédula e assustada crispou os traços da visitante.

-        Será possível? Então, você também não me reconhece? Oh, Dame Angélica, eu sou Jenny Manigault!

Um silêncio embaraçado pontuou essa revelação inaudita.

— Jenny! Minha pobre Jenny!

Inicialmente atordoada, Angélica abriu espontaneamente os braços, e a jovem índia "estrangeira" lançou-se a eles. E Angélica sentiu, sob as peles miseráveis, aquele corpo magro e tremulo estremecer de pena e de reconhecimento.

-        Oh! Dame Angélica, você pelo menos abriu os braços!

Catástrofes ou bênçãos, as ressurreições, para aqueles que não as esperam mais, são sempre dilacerantes, perturbadoras.

-        Não vamos chorar! - disse Jenny, afastando-se.

Manteve-se diante de Angélica, esforçando-se por sorrir de novo. Não parecia compreender as mudanças ocorridas em sua aparência desde o dia nefasto em que fora raptada por índios desconhecidos e conduzida ao fundo das florestas, onde seu rastro se perdera.

-        Como estou feliz por revê-la, Dame Angélica! É você, realmente! Pensei tanto em você e rezei tanta aos céus para protegê-la dos perigos nesta terra maldita, a fim de que pudesse um dia ter a felicidade de revê-la!

Seu francês voltava-lhe rapidamente, o francês alerta e um pouco cantante das mulheres de La Rochelle.

Um brilho de malícia fez brilhar seus olhos, vendo os de Angélica pousar, involuntariamente, interrogadores, na criança que a acompanhava.

— Pergunta-se de quem é essa criança? Pois bem! Ela é... minha!

— Certamente, mas...

Jenny deu uma gargalhada, como se tivesse acabado de revelar uma farsa. Reencontrava-se a jovem rochelesa impulsiva de outros tempos.

-        Já faz vários anos que você se encontra em terra americana e deve saber, tanto quanto eu, que, para os índios, uma mulher constrangida, seja ela cativa, criada ou esposa, atrai a desgraça para uma wigwam. Eu não teria me recusado, dia após dia, a meu amo Passaconaway, para ousar reaparecer entre os meus munidas do fruto de uma violação que proclamaria minha vergonha! Se digo que este é meu filho, é que ele o é, e que jamais tive ou tro senão... E você mesma ajudou a trazê-lo ao mundo, e escolheu seu nome... É Carlos Henrique, meu pequeno Carlos Henrique...

-        Carlos Henrique!

Olhando-o mais de perto, sim, era o pobre Carlos Henrique, abrindo na sombra do capuz de pele seu habitual olhar inquieto, mas dessa vez, com toda a justiça, era preciso reconhecê-lo, não havia motivo para isso.

— Não estou entendendo nada! De onde você saiu, Jenny?

— Da região dos pemacooks, de onde fugi, e depois, de Gouldsboro.

Sentadas ambas na pedra da lareira, pois Jenny recusava-se a sentar-se numa poltrona ou num escabelo, tendo entre elas a boa chama da cozinha, conversaram confidencialmente, e a filha mais velha dos Manigault fez o relato de suas vicissitudes.

Fora capturada por um chefe dos pemacooks que errava por ali, à frente de um grupo.

O ramo dos wonolancetts, ao qual pertenciam, dispersara-se numa multidão de tribos, desde o fim da confederação dos narra-gasetts. Isso se resumia assim: muitos pobres diabos, refugiados nas montanhas, levavam uma existência nómade, fora do tempo. Um deslocamento os levava para perto de lugares habitados, um reide permitia-lhes obter mercadorias, mas eles se mantinham afastados das correntes estabelecidas, não queriam fazer comércio de peles, nem guerra, contentando-.se em caçar e pescar para comer.

No seio das montanhas verdes onde a tribo atingira seu covil, Jenny Manigault passara os anos de cativeiro sem nenhuma possibilidade de mandar notícias aos seus. Fora confiada à mãe do sagamore Passaconaway, nome que significa "filho de urso". Todas as noites, o chefe Passaconaway ia até a entrada da cabana onde a jovem era obrigada a fazer o papel de criada. Ajoelhava-se e apresentava uma escudela cheia de sementes de abóbora secas. Esse gesto simbolizava a. grande paixão que ela lhe inspirara e a confissão de seu desejo ardente. Se ela pegasse uma semente de sua oferenda, seria a prova de que o aceitava e consentia em entregar-se a ele.

- Aterrorizada, no início, e persuadida de que não poderia escapar a uma horrível sorte, logo compreendi que tudo dependia de mim. Nenhuma violência me seria feita. Minhas recusas não acarretaram sobre mim nenhuma sanção. É surpreendente descobrir que, para os selvagens, a entrega de uma mulher a um homem não tem valor, não tem mesmo nenhum valor, se não for consentida. Nesse domínio, no entanto, a mulher que trabalha rudemente é rainha e senhora, e não se priva de fazer sentir seu poder. Então, tranquilizada, consagrei-me ao pensamento que não cessava de me obsedar: evadir-me, encontrar os meus, meu bebé, meu pequeno Carlos Henrique. Ainda tinha leite nos seios, e as mulheres me cuidaram para fazê-lo secar. Logo percebi que não seria possível fugir. O círculo de montanha em torno de nós parecia deserto, como no início do mundo. Os homens partiam em expedições, mas ninguém vinha até nós. Duas vezes, entretanto, apresentaram-se visitantes.

"Uma primeira vez, um grupo de guerreiros composto de al-gonquinos, abenakis e alguns huronianos passaram por nossa aldeia. Senhores do Canadá os comandavam. Eram muito amáveis e alegres. Ouvindo falar francês, quase me precipitei para eles para pedir-lhes ajuda. Mas lembrei-me de que, na Nova França, a intolerância papista era ainda mais rigorosa, diziam, que na própria França, e que era a esses fanáticos que minha família devia seu exílio, e que se descobrissem que eu era huguenote, me arrastariam, assim como os ingleses, fosse levando-me para Montreal para me batizar, fosse entregando-me a seus abenakis, e minha sina de cativa seria ainda pior.

"Longe de procurar fazer-me reconhecer por eles, eu me escondia.

"Eles recrutaram alguns guerreiros entre os jovens da tribo, prometendo-lhes, se os seguissem em seus reides contra as aldeias inglesas, muitos presentes e vantagens, e até o paraíso. Contavam ir até Boston para acabar com os hereges, diziam.

"Os guerreiros voltaram pouco depois, uma vez que, após diversos assaltos e pilhagens, a campanha abortara.

"Entretanto, Passaconaway notara que, longe de tentar aproximar-me de meus compatriotas franceses, eu fizera tudo para evitá-lo e, não podendo compreender as razões de minha desconfiança, concebera novas esperanças, julgando discernir em minha conduta que ele começava a me agradar. Daí em diante fiquei em liberdade. Continuava a alimentar todos os dias projetos de fuga, com o pensamento voltado para o ponto dessa praia onde deixara meus parentes. Não perdia nenhuma oportunidade para obter informações sobre os caminhos que pudessem levar-me até lá. Nossa aldeia teve de se desfazer, pois a revolta'no sul, de um grande sagamore narrangasett a quem chamavam Rei Filipe e que os franceses apoiavam, obrigava nossas pequenas tribos a tomar partido ou afastar-se do teatro de guerra.

"Compreendi que tínhamos nos deslocado para o leste, aproximando-nos, portanto, das regiões de onde eu fora raptada.

"Passaconaway reconstruiu a aldeia no sítio de um antigo burgo de sua nação que reunira, certa época, duas ou três tribos nómades dos wonolancetts. Os grupos guerreiros abenakis voltaram para ir em socorro do Rei Felipe, que os ingleses cortavam em pedaços, e, dessa vez, Passaconaway foi com eles. Foi durante sua ausência que me evadi..."

Angélica mandara trazer água fresca, pois Jenny recusara qualquer outra bebida e também qualquer alimento.

- Andei, andei! - continuou, após um silêncio. - Não poderia reconstruir a génese de minhas caminhadas, de meus dias e minhas noites durante esse período que foi tão-somente uma série de esforços que eu realizava, levada por um único instinto: sobreviver e chegar... chegar a Gouldsboro, à casa de meus parentes.

"Quando cruzava com índios de outras tribos, escondendo-me de uns, interrogando outros, aproveitando uma canoa, um posto de comércio, um navio enfim que descia o estuário do Kenne-bec e que me deixasse não longe de Mont-Désert, cheguei enfim a meu objetivo tão esperado.

"E atingi Gouldsboro. Penetrei na aldeia, indo de uma casa a outra, e perguntando onde ficava a de José Garret, meu esposo.

"Imagine minha cólera, meu horror, minha decepção mortal, quando, penetrando na casa que me indicaram como a sua, encontrei ali Bertille, instalada como dona. A criança, soube imediatamente que era meu filho, Carlos Henrique. Mas ela estava lá! Fingiu não me reconhecer. Outras pessoas estavam presentes. Riram quando comecei a gritar, e compreendi que estava misturando meu francês com o dialeto índio e que me julgavam uma índia louca e bêbada. Bertille pediu-lhes que fossem buscar ajuda. Quando ficamos a sós, ela se aproximou de mim. Seus olhos brilhavam com uma expressão cruel e furiosa, mas ela se dominava. Não pude deixar de reconhecer que ela se tornara muito bonita. Quando ficou bem perto de mim, disse-me com uma voz baixa e sibilina: 'Você vai partir, Jenny Manigault! Hoje sou eu a mulher de José Garret. Eu! Apenas eu. Ele me desposou, compreende? E você está morta, morta! Compreendeu, índia suja?'"

Jenny interrompeu-se mais uma vez, sacudindo a cabeça com fatalismo.

- Ela sempre foi assim, eu lhe garanto - disse, tomando Angélica como testemunha, num tom de garotas que querem deliberar sobre suas querelas sorrateiras -, insinuando-me maldades, cara a cara, assim que os adultos viravam as costas. Acredita que consegui enfrentá-la naquele dia, mais do que o fazia em outros tempos? Peguei-a pelos cabelos, e sua bela touca logo ficou em frangalhos...

"As pessoas de Gouldsboro que acudiram viram-se diante de duas harpias engalfinhadas, mais ferozes e uivantes que gatas bravas. Foi preciso algum tempo para perceberem que se tratava de Bertille Mercelot, que maltratava uma índia desgrenhada, ensebada, com as vestes de pele esfarrapadas, os pés descalços esfolados, a qual, reerguendo-se finalmente, lhes mostrara seu pobre rosto pintado, onde lampejava um olhar que não lhes pareceu, naquele instante, desconhecido.

"Agarrando o pequeno Carlos Henrique, gritei-lhes:

'"Sou Jenny Manigault, e vocês me tiraram tudo. Meu marido, meu filho. Vocês me traíram. Vou-me embora! Mas não deixarei meu filho a essa vagabunda... essa puta!'"

Com a criança nos braços, ela fugira, levando-o, sem que ninguém tivesse a ideia de se interpor, nem de correr atrás deles.

Angélica deplorou que José Garret, seu esposo, estivesse ausente de Gouldsboro naquele dia.

-        Mas ele estava lá, sim - afirmou Jenny.

Ela o vira, tão aturdido e horrorizado quanto os outros, ajudando Bertille a levantar-se. Imbecil!

Desencantada, ela deu de ombros. Reconhecera-o, seu esposo! Era ele. E não era ele! Um estranho!

O esposo, o lar, a família, nos quais não parara de pensar aqueles anos todos, não mais existiam. Eram fantasmas a seus olhos, como devia ser ela mesma, aos olhos deles.

Depois de um instante de silêncio, prosseguiu a narrativa de sua triste aventura.

De noite, sentada junto a uma fogueira às margens de uma riozinho e assando algumas raízes para saciar a fome da criança uma voz elevou-se por trás das moitas, que o vento do crepúsculo balançava.

"Pequena Jenny, pequena Jenny!"

Viu aparecer o velho Siriki, quase invisível na penumbra, ex-ceto pelos olhos e pelos cabelos brancos.

Foi o único instante, confessou, em que sentira o punho duro que apertava seu coração afrouxar e deixara correr as lágrimas.

-        Ele me lembrava minha infância, aqueles dias felizes em que nos fazia rir e dançar sacudindo seus anéis de ouro. Deslizou para perto de mim, do mesmo modo como vinha outrora, às escondidas, nos consolar quando éramos castigadas, minhas irmãs e eu. Naquele dia, apenas ele se lançara em minha perseguição. Não me levava dessa vez uma guloseima, nem um lenço de batista para enxugar minhas lágrimas. Mas, com aquela mesma voz profunda e grave com que nos aconselhava e encorajava, pôs-se a falar-me de Wapassu.

Jenny explicou que ele desenhara um mapa na areia, à luz do fogo, a fim de que ela pudesse chegar até ali. E ele só a deixara quando recebeu dela a promessa de que iria até lá.para confiar Carlos Henrique a Dame- Angélica.

-        Compreendi sua intenção... Eu ia voltar para as florestas, e o pobre Siriki sabia, também ele, que era a melhor coisa que eu poderia fazer. Mas não podia arrastar meu filho e minha aventura, e ele me indicava uma solução, o caminho da salvação: você Dame Angélica. Então, tomei coragem, e aqui estou!

Ela se levantou e fez levantar-se a criança, que, durante sua narração, mantivera-se bem-comportada, encostada a ela, mastigando uma raiz de jujuba.

-        Você conhece Dame Angélica, não é, Carlos Henrique? Está contente por havê-lo trazido até ela, como lhe prometi durante nossa viagem? Você a conhece, não é?

Acariciava-lhe a bochecha, contemplando-o com admiração e desespero.

O menino ergueu os olhos para Angélica e esboçou um sorriso, pois, com efeito, ele a reconhecia.

-        Oh! ele a ama! - exclamou a pobre mãe. - É a primeira vez que o vejo sorrir! Que felicidade! Vou poder confiá-lo a você. Ei-lo! Entrego-o a seus cuidados. Sei que viver sob sua proteção e cercado de sua afeição é a melhor coisa que lhe pode acontecer.

A primeira ideia que veio à cabeça de Angélica, desconcertada por essa decisão, foi que lhe seria preciso explicar-se como o Sr. Manigault, que não queria cuidar de seu neto, mas não admitiria jamais que ele fosse criado entre papistas.

— JennyL. Você não está pensando... Seu filho nasceu na Religião Reformada. Ele é protestante, e nós somos católicos.

— Que importa? ... A única coisa que peço é que ele seja seu filho.

Subitamente, ficou em transe, gritando, chorando, torcendo as mãos.

-        Por piedade, não me recuse sua ajuda por causa dessas tolices de religião! Suplico-lhe! Pegue-o! Eduque-o! Eduque-o como quiser, mas que ele escape finalmente à danação de ser huguenote. Chega de Bíblia e de intransigência. A Religião Reformada já nos trouxe bastante desgraça. É a ela que devemos tudo: as intrigas e as perseguições que envenenaram nossa juventude, o exílio, e agora... Veja em que me transformei nessa terra da América... Não queria ter deixado La Rochelle...

Pôs o rosto entre as mãos;

— La Rochelle! La Rochelle! - murmurou, num tom de queixa infantil.

— Está bem - disse Angélica, não querendo aumentar a tristeza da pobre criatura -, não abandonaremos Carlos Henrique, eu lhe prometo. Mas, Jenny, e você, que pretende fazer? Quais são suas intenções?...

A jovem lançou-lhe um olhar espantado.

— Vou voltar para lá! Para a minha tribo.

— Para os wonolancetts?

— Sim, para meu amo.

— Jenny, isso é uma loucura. Você fugiu, e quem sabe se seu amo não a punirá cortando-lhe a cabeça?

— Que me mate! Morrerei prazerosamente em suas mãos - sorriu. - Mas não vai matar-me, eu sei.

— Mas, Jenny, é impossível! Como pode pensar, você, nascida na Europa, no reino da França, numa família de maneiras nobres, em passar toda a sua existência no fundo de uma wigwam, cativa ou companheira de um sagamore índio!

— Por que não?

— Mas, Jenny - repetiu Angélica, já sem argumentos - ... eles são tão sujos!

Jenny Manigault lançou um olhar indiferente para seus andrajos de pele, as mãos, os braços, os mocassinos, e até para sua coberta, que exalavam um odor azedo.

-        Oh! é apenas gordura de urso - disse ela. - Isso protege bem dos insetos e dos moscardos, no verão, e no inverno ela aquece e protege contra o frio.

Fechou seus belos olhos de francesa do sul, sobre seu ardor meridional, e suas pálpebras apareceram brancas na máscara bronzeada e coberta da gordura que untava sua pele fina. Deu um lento sorriso que a iluminou toda.

-        Hoje, um outro sonho substituiu aquele que, durante todo esse tempo, pregado a mim como um dente doendo, me impedia de participar da vida, me tornava inconsciente do decorrer dos dias e dos anos, e sobretudo me ocultava a magnificência de uma amor silencioso, constante, indefectível, que não cessava de arder junto a mim, sem que eu o compreendesse. Eu devia a esse amor não apenas estar viva, mas preservada, honrada, mimada, cercada de cuidados, feliz.

"Então, na eira varrida de meu antigo sonho, falso, estéril e destruído, outro sonho o substituiu. Invadindo pouco a pouco meu espírito e meu coração, ele me deu forças para seguir os conselhos de Siriki, de realizar um último esforço, a fim de cumprir meus últimos deveres em relação a essa pobre criança. Andei, como lhe disse, de uma etapa a outra, carregando-a, avançando, apesar do inverno, possuída pelo pensamento de que, uma vez tendo atingido seu forte e entregue a criança a seus cuidados, eu poderia me lançar para a minha recompensa. Aquela que me espera lá longe, no coração da floresta. Enquanto andava, carregando o menino, calçada com raquetes quando a neve caía, devíamos, quando a tempestade se elevava, pedir a hospitalidade a alguma tribo errante, por vários dias, às vezes semanas. Depois, eu retomava a pista, aproveitando uma caravana que se deslocava e que me levava um pouco mais longe. Andando, minha antiga vida se desligava de mim. Eu revia Passaconaway, a constância com a qual vinha, estação após estação, apresentar-me a cabaça de sementes de abóbora que exprimia a febre de seu desejo, sem, nem por isso, zangar-se com minhas recusas e testemunhar-me seu desagrado. Eu o comparava com o outro, o encantador Garret que a sociedade rochelesa me invejava, e surpreendia-me por ter-me convencido de que desposara o melhor partido da cidade, sem querer jamais reconhecer, pois ele era encantador e bom, diziam, que eu o detestava.

"Um bonito militar, cujo porte me seduziu, um marido cheio de atenções, e de cortesia durante o dia, à noite ele se transformava num ser incivilizado, satisfazendo a gula de seu desejo sem preocupar-se com minhas repugnâncias, infligindo-me às vezes sofrimentos e desconfortos.

"E agora esse passado apagou-se totalmente. Nunca existiu. E eu sonho. Sonho com a noite em que minha mão vai estender-se para a tigela oferecida, para satisfazer com esse gesto a longa espera de meu amo Passaconaway. Sonho com esse momento em que, nua sob as cobertas de peles, eu lhe abrirei os braços e verei seu belo corpo dourado se inclinar para o meu, vibrando com sua paixão por tanto tempo contida, e leio a emoção sutil que estremecerá .por trás de seus traços impassíveis."

Abriu os olhos e dirigiu a Angélica um olhar cheio de desafio, mas franco e resoluto.

-        Eu sei õ que você pensa, Dame Angélica, e compreendo suas reticências. Mas há uma coisa de que tenho certeza. É que as entranhas desse selvagem não serão jamais tão bestiais como as desse cretino do Garret!

Nesse momento, Honorina entrou correndo" ha sala e, reconhecendo imediatamente Carlos Henrique, chamouo com uma surpresa alegre. O menino levantou vivamente a cabeça e precipitou-se ao seu encontro.

Jenny olhou-os, de longe, cumprimentar-se sacudindo as mãos, saltar de um pé para o outro e fazer um ao outro caretas provocantes e encantadas.

Seus grandes olhos trágicos voltaram-se para Angélica.

-        Adeus! - gritou. - Adeus, Dame Angélica! Agradeço ao céu por me conceder que a última fisionomia que eu pudesse contemplar, antes de deixar para sempre as praias de meu nascimento, fosse a sua!

Virou-se e evadiu-se da sala sem correr, mas com a presteza e a desenvoltura alada das índias.

Angélica, ainda estupefata, precipitou-se, querendo retê-la, mas não conseguiu alcançá-la. Quando chegou à entrada do forte, viu apenas um grupo de famílias índias que, calçadas com raquetes, se afastavam para a floresta.

Jenny Manigault dever ter-se misturado a elas, mas não conseguiu distingui-la entre as mulheres que, com as costas curvadas, carregando fardos e crianças, seguiam os guerreiros.

CAPÍTULO XII

Sobre as intenções de Honorina

Se Angélica tivesse conseguido alcançar a pobre Jenny, tentaria convencê-la de que era necessária a seu filho, já bem maltratado pela existência.

Voltou lentamente para a sala, que pela primeira vez estava vazia àquela hora, e quase se sobressaltou de surpresa diante da presença da Sra. Jonas e de sua sobrinha Elvira, que se mantinham atrás do canto da lareira, como se estivessem se escondendo. Fixaram em Angélica olhos culposos.

-        Estavam aí? - perguntou. - Por que não apareceram? Viram com quem eu estava conversando?

Menearam a cabeça afirmativamente.

-        Era a pobre Jenny. Vocês, que foram amigas dela em La Rochelle, poderiam, melhor do que eu, convencê-la a ficar

conosco.

Mas, pela expressão delas, Angélica compreendeu que tinham ficado petrificadas de horror, de constrangimento, à visão da moça.

— Agimos mal, não é? - disse corajosamente a Sra. Jonas.

— Sim.

Angélica foi sentar-se no escabelo, com as pernas dobradas.

— Sra. Jonas, a senhora, tão boa! Não entendo.

— Foi mais forte do que eu!

— Eu não teria coragem de abordá-la - murmurou Elvira.

— Sua irmã em religião!

— Ela foi presa de um pagão - gemeu a Sra. Jonas.

— Ainda não - murmurou Angélica.

Como não a tivessem ouvido, renunciou a dar-lhes explicações.

Era preferível que a pobre Jenny, depois da amarga decepção que tivera em Gouldsboro, não as tivesse visto. A Sra. Jonas chorava, com o lenço nas mãos.

-        Eu conheço os Manígauk. Sara não lhe perdoará nunca, e seu pai a matará.

-: Com efeito, ela compreendeu isso. Nunca mais voltará para a casa do pai. A Sra. Jonas continuava a chorar.

— E melhor assim - disse afinal, assoandò:se.

— Sim, tem razão.

Pensava em Jenny Manigault, jovem protestante de La Rochelle, e nas metamorfoses que nela se operaram por culpa dessa tragédia brutal, uma tragédia que espreita todas as mulheres do mundo: o rapto.

i Nascida num lugar protegido, não teria se exposto a isso, não fossem as perseguições religiosas. Sua vida fora sacudida. Houvera uma fuga com a família, para a América. O nascimento de seu filho. Depois, fora raptada por um bando de índios abenakis de passagem por ali e que a confundiram com uma inglesa. Poderia igualmente ter sido raptada por iroqueses, que a teriam confundido com uma francesa. Raptaram-na porque era uma mulher e porque agradara ao chefe.

Desenraizada brutalmente, arrancada a uma forma de vida que lhe parecia perfeita, projetada numa existência assombrosa, onde tudo a assustava, não fora, entretanto, maltratada. E, pouco a pouco, tivera, no fundo das florestas, entre aqueles selvagens que riam, zombavam e viviam ao sabor do tempo, a revelação da paixão amorosa, do desejo, da felicidade do corpo, e, abandonando-se a ele, isso satisfaria sua vida e apagaria o resto.

O selvagem, segundo suas confidências, não poderia mostrar-se mais brutal, nem menos atencioso que seu marido branco, o "encantador" civilizado, e certamente menos exigente.

Os índios, solicitados pelos exercícios permanentes da caça e da guerra, gostavam do amor, mas não o praticavam sem comedimento. Tinham as proibições, costumes que respeitavam e que tornavam seus impulsos mais raros. A concupiscência desenfreada desordenada dos brancos constituída para eles um perpétuo tema de surpresa e de desprezo.

Armaram uma cama com grade no grande quarto onde dormiam os gémeos. Estes eram guardados por uma ou outra das filhas da nutriz irlandesa.

O quarto de Honorina não ficava longe.

Carlos Henrique, cercado por uma numerosa família, ficaria tranquilo com essas presenças afetuosas.

Desencoscorá-lo nào foi tarefa fácil. Não se podia retirar tudo de uma só vez. Desde o outono, perambulava com Jenny de wigwam em wigwam, e todos os cuidados que lhe foram prodigalizados consistiram em untá-lo com gordura de urso para protegê-lo das picadas de insetos e mantê-lo aquecido. Isso acabara por formar como que uma resina sobre a pele. A roupa de baixo e as vestes que usava quando fora arrastado por sua mãe não passavam de farrapos inomináveis. Para vesti-lo, Elvira trouxe as peças que estavam muito justas em seus meninos.

Angélica dobrou as roupas devagar. Eram vestes de droguete, vindas da França, cuidadosamente conservadas, a gola de batista branca, as meias, sapatos. Carlos Henrique vestira obedientemente a longa camisola de dormir branca que lhe emprestaram. Estendia-se na cama com docilidade. Lembrar-se-ia da índia que o levara, que lhe dava para comer raízes cozidas na brasa, à beira da água, e que o apertava em seus braços, chorando? Sentiria sua falta? Será que se perguntava para onde ela fora, ele, que na noite anterior dormira em uma cabana de selvagens e estava novamente em lençóis brancos?

- Estou convencida de que sentiu que ela era sua mãe - disse Angélica a lolanda, que, perto deles, cuidava dos bebés. - As crianças não se enganam sobre as coisas. Estou segura de que está triste. Mas está de tal modo acostumado a que o levem de um lado para outro...

Puxou-lhe o lençol sob o queixo, prendeu as cobertas, contemplando-o.

"Sempre teve coragem", pensava. "Atravessou o Atlântico co-nosco, no ventre de sua mãe.-Foi a primeira criança de Gouldsboro, eu o batizei. Nós o protegeremos, meu menino, e não lhe faltará apoio. Terá suas chances, eu lhe prometo. Não se poderá dizer que lamenta ter vindo ao mundo."

Honorina entendia-se bem com Carlos Henrique. Era mais novo que ela, mas gostavam de brincar um com o outro. Apesar disso, sua instalação no círculo da família, e de uma maneira que, adivinhou, seria definitiva, pareceu despertar nela um tormento latente que a presença dos gémeos suscitara, mas com a qual se acomodara até então.

— Será que eu não lhe bastava? - perguntou a Angélica -, será que você tem realmente necessidade de se cumular de todas essas crianças?

— Minha querida, como podíamos abandonar Carlos Henrique? Essa índia que veio, você se lembra, ia levá-lo para viver entre os selvagens.

— Sorte dele. Gostaria de estar em seu lugar. E agora é ele, são eles todos que tomam meu lugar.

Angélica riu e acariciou a fronte teimosa, murmurando: " Minha querida! Minha querida!", e sob essa mão carinhosa, a pequena emburrada acabou por ceder aos mimos e a se abandonar contra seu ombro, deixando-se embalar com deleite.

— Minha querida, você já existia antes deles.

— Sim, mas agora você só dá atenção a eles. Fala com eles, sempre os pega no colo.

-        Mas eu também falo com você e lhe pego no colo.

Acabaram rindo juntas.

Mas Honorina perdia o ânimo.

Trepada num banquinho, perto do berço dos gémeos, passava longos momentos a escutar com um ar atento os vocalises de Glo-riandra, que, como uma pássaro feliz, afirmava a vida, a presença, o bem-estar de sua personagem.

-        Ela só sabe dizer isso, essa idiota!

Embaraçada pelo timbre dessa voz que ela adivinhava acerbo, o bebe fixava nela seus olhos claros, que, aos seis meses, tinham definido sua cor azul-clara e que, em sua inquietação, se matizavam de malva.

-        Não me olhe assim - intimidava-a Honorina.

Consciente de desagradar, o bebe se voltava para seu gémeo, como para pedir-lhe testemunho ou ajuda.

-        Unem-se contra mim - chorava Honorina.

Procurava pretextos contra a irmãzinha de olhos de anjo.

-        Ela tem um nome que significa "glória" - lamentava com ar triste.

-        E você também tem um nome que significa "honra"!

Honorina julgava que isso criava obrigações mais constrange

doras e menos brilhantes que a glória.

— Ela se chama também Eleonora.

— Então me tomou também o nome.

Subitamente, as noites da criança foram entrecortadas por pesadelos. Honorina começava por ver um rosto de mulher que a olhava com uma expressão tão malvada que a deixava petrificada como uma láparo diante de uma serpente. Essa mulher lhe fazias promessas aterradoras: "Desta vez é a você que atingirei. E o melhor meio de me vingar dela Você-não me escapará, desta vezf

Sua língua pontuda passava-lhe por entre os lábios. Tinha dois olhos que pareciam ouro, mas pálido, apagado, luzindo como uma pedra fria.

Honorina sentia-se inundada de suor, congelada, paralisada!

"Dama lombarda! Dama lombarda, a Envenenadora!"

Urrava em seu sono.

— Eu a vi! Eu a vi! Ela vai pôr fogo em Wapassu... Eles vão incendiar minha casa, meus brinquedos, meu quarto, tudo!...

— Mas quem, quem? - tentava em vão fazê-la responder-lhes, Angélica. Joffrey, as amas-de-leite, Dom Alvarez, cujo apartamento ficava no mesmo andar, e as sentinelas montadas do corpo de guarda correndo, todos reunidos, preocupados, em volta de seu leito.

— A mulher de olhos amarelos... Ela tem cabelos negros como as serpentes, como serpentes vermelhas por dentro...

"Parece que está descrevendo Ambrosina, a Duquesa de Maudribourg, a Diaba. Mas nunca a viu!" O medo se insinuava. "Será possível que a horrível criatura possa voltar nos sonhos? Que seu espírito venha atormentar minha filha para vingar-se?"

Honorina afirmava que havia um Homem Negro que segurava por trás a mulher de olhos amarelos. Ele não fazia nada. Era como um fantasma, mas ela lhe obedecia... Era um jesuíta!

É o que se ganha por falar diante das crianças, diziam consigo mesmos. Principalmente quando são dotadas de uma imaginação tão desenfreada como a dessa pitoresca garotinha, que ouvia tudo o que se dizia.

Não lhe escapara a história da visionária de Quebec sobre a aparição mítica da Diaba da Acádia. Quantas vezes, falaram e falaram disso, sem prestar atenção à menina, que escutava!

A Diaba da Acádia e o Homem Negro, que se mantinha atrás dela, que para alguns era Joffrey de Peyrac atrás de Angélica, designada como personagem infernal, e para outros, que viram as coisas de perto, Ambrosina de Maudribourg e seu guia e confessor, o Padre d'Orgeval, que os iroqueses chamavam de Hatskon-Ontsi: o Homem Negro.

Era preciso repisar essa história? A visionária, Maria Madalena, reconhecera formalmente Angélica como não sendo a Diaba da Acádia.

Ambrosina estava morta e enterrada. O Padre d'Orgeval também.

A opinião franco-canadense, antes muito exaltada e superexci-tada contra eles, virara como uma luva.,

Assim como o tpuro quando pára de ver agitar-se diante dele o pano vermelho, o distanciamento do jesuíta permitira às pessoas reencontrar seu sangue-frio e um julgamento mais ponderado, e o Conde e a Conde e a Condessa de Peyrac passaram em Quebec uma temporada de inverno cheia de prazeres.

Teria de crer que era apenas remissão? Que nem tudo estava resolvido, concluído, terminado, decidido, julgado?

Eram o joguete de uma ilusão enganadora, de um ainda perigoso milagre, quando, de pé no alto do torreão de Wapassu, nos puros e cristalinos dias de inverno, apertados um contra o outro, contemplavam com uma alegria infinita a região "que lhes fora dada"?

Seus peitos enchiam-se de ar frio e vivificante, como se aspirassem através de uma natureza benfazeja a força invisível do Oranda dos índios, a força do Grande Espírito que faz viver o O sopro da vida. Seu sentimento de vitória e de ter triunfado sobre seus inimigos e sobre os mais difíceis obstáculos era falso?

Não.

Ela experimentou, com certeza, que -as influências maléficas, dos mortos ou dos vivos, não tinham mais poder contra eles, que não poderiam jamais prejudicá-los, nem atingi-los com golpes mortais, ou decisivos, ou destruidores, esses golpes dos quais nunca nos recuperamos ou nos recuperamos mal e que levam muito tempo para se curar.

Os mais negros complôs não podiam mais atingi-los. Doravante, planavam acima deles. Eram os mais fortes. Inatingíveis.

E eram momentos tão perfeitamente estáticos que viviam lá em cima do torreão, mantendo-se apoiados um ao outro na glória do sol...

Enganara-se? Não! Impossível!

Quase censurava a Joffrey que ele não opusesse às interrroga-çòes que fazia em voz alta, veemente, uma barreira de negativas igualmente fortes. Teria preferido vê-lo cair na risada e tratá-la docemente de louca, a propósito dessas aprensões referentes a Ambrosina.

- Responda-me - disse-lhe ela um dia, tomando-o pelos dois braços a fim de poder olhá-lo de frente. - Será que "eles" vão sair do túmulo?

Joffrey segurou-lhe o rosto entre as mãos e beijou-a nos lábios.

Contentou-se em responder que, graças a Deus, não era profeta. O destino encarregara-o de muitas funções, sem acrescentar aquela.

Ela possuía mais inclinação para isso que ele. E era por isso que não era menos atento a seus pressentimentos, nem aos sonhos de Honorina. Não se podia esquecer, por outro lado, que estavam atravessando a fase mais difícil do inverno: os corpos e os espíritos se fatigavam.

Os assobios do vento verrumavam, a longo prazo, a resistência e a paciência, como um incessante lembrete da fragilidade dos homens entregues aos elementos, e a invasão dos índios perturbava a ordem dos trabalhos, os- descansos e até as rezas.

Todos eram batizados, diziam. Queriam participar dos ofícios, confessar-se, comungar. Entravam em toda parte, misturavam-se a tudo. Alguns levavam a mal a descoberta de que estavam sob o mesmo teto que os ingleses ou os "hereges que tinham crucificado Nosso Senhor". Eram prontamente chamados à razão. Alguém dedicava-se a "discutir" com eles os fins últimos em intermináveis conversas, de cachimbo na boca. Desse modo, as provisões de tabaco se esgotavam. Todas as provisões, em suma.

Angélica fez sua filha beber sábias misturas de tisanas calmantes.

Não compartilhava da opinião de que as noites perturbadas de Honorina se deviam à presença de Carlos Henrique, que despertara nela um ciúme oculto em relação aos bebés. Talvez houvesse um pouco disso, mas não era isso.

Angélica, por sua vez, continuava persuadida de que Ambro-sina aparecera a Honorina em sonho. Aproveitando-se de uma falha, de uma fraqueza, de um momento de ciúme infantil, afinal natural, o espírito da Diaba tornara a insinuar-se entre eles e se apoderara de sua filha para confundir tudo e prosseguir em sua vingança. Era bem de seu feitio. Talvez estivesse há muito à espreita e, subitamente, como um vampiro, voltava!

Joffrey de Peyrac também suspeitava disso? Seria por esse motivo que se calava, quando se falava diante dele dos pesadelos de Honorina?

Em todo caso, Angélica sabia que ele partilhava sua opinião de que essas manifestações nervosas não significavam apenas a exteriorização de um ciúme profundo e doentio na criança.

Infelizmente para a menina, e sem que Angélica pudesse intervir claramente e fizesse parar os comentários, falavam disso. Dizia-se: "Ela está com ciúmes! Não gosta do irmãozinho nem da irmãzinha!"

Sem más intenções, para corrigi-la faziam vistas grossas. E preciso ter bom coração... diziam.

Honorina, que parecia ter melhorado, ficou triste... novamente se tranquilizou e pareceu encontrar novamente a alegria de viver.

Obedecia, desaparecia, mas reaparecia nas horas de refeição, após lavar as mãos e o rostinho sem fazer fita. Do mesmo modo, apresentava-se na hora de dormir, sem que fossem obrigados a procurá-la até no celeiro. Em suma, estava bem-comportada como um anjo, o que para as pessoas significava que nâo incomodava ninguém e não dava motivos pára que falassem mais dela. O que deveria, se não tivessem tanta coisa para fazer, ter-lhes despertado a desconfiança e feito observar que não a viam realmente o dia inteiro.

Certa manhã, Angélica ouviu um grito agudo de mulher. Depois outro e um terceiro. Essas exclamações emanavam de vozes diferentes, mas lembravam a mistura de estupor, de terror, de horror do grito de Elvira quando, no primeiro inverno em Wa-passu, descobrira Honorina, que, com a ajuda de seu cúmplice, o pequeno Tomás, fazia para si um penteado à moda iroquesa, após ter cortado os próprios cabelos.

Ele vinha do quarto dos gémeos. Por ter deixado o domínio deles sem vigilância durante um breve instante, as amas-de-leite divisaram da soleira da porta um espetáculo que lhes fez pagar caro sua negligência.

Honorina, mais uma vez, cortara os cabelos. Mas apenas de um lado. Segurando com uma mão a longa mecha sedosa e acobreada e com a outra um pincel de pêlo de marta de que se serviam para diversas caiações, estava empoleirada em seu costumeiro escabelo, a fim de ficar à altura do berço de Gloriandra e de Raimundo Rogério, ambos sentados e atentos à operação.

No chão estava colocado um balde de couro cheio de cola de peixe. Com seu pincel pingando cola, Honorina untava o crânio do bebé Raimundinho e tentava -colar-lhe a mecha avermelhada de seus cabelos sacrificados.

Honorina preferiria que seu obra estivese concluída antes de ver surgir todos esses curiosos. Sua empresa custara-lhe. muito trabalho, mas tinha-a levado até então com êxito. Cortara sozinha seus cabelos. O que explicava que só houvesse um lado cortado.

Fora ela que arranjara o grande balde de cola.

Onde? Quando? Como?

Era segredo e continuaria a ser. Conseguira subir o balde até o quarto sem derrubá-lo.

Era uma cola de peixe muito boa, muito malcheirosa, muito adesiva, mas sem nenhum perigo para o pobre Raimundo Rogério, que estava empapado. Gloriandra tampouco estava isenta dos borrifos.

Depois de ter inspirado estupor, o gracejo do espetáculo provocou risos. Melhor isso que fazer um drama. Todos sentiam que as intenções da menina, desajeitadas e pouco claras', não eram más.

No entanto, o riso feriu-a mais que as censuras, pois tinha consciência de ter trabalhado arduamente durante vários dias a fim de realizar com propriedade uma ideia mirífica e generosa.

Gritou:

-        Quero meu pai! Onde está meu pai?

Joffrey de Peyrac estava dando um giro, fora do forte. Só voltaria à noite. Honorina tinha de se haver com todas aquelas mulheres. E, naturalmente, pensou, a primeira pergunta ia ser: "Por que você fez isso?"

Tomou a dianteira.

-        Por que estão rindo? Raimundo Rogério está muito contente. Ele me agradecerá, quando for maior. Era uma das frases de Severina quando ralhava com ela: "Você me agradecerá, quando for maior! Como ousam deixá-lo com o crânio careca quando sabem muito bem que os iroqueses não gostam de carecas e que lhes quebram a cabeça quando as vêem? Pensei que tinha de usar meus cabelos, pois ele é o "conde ruivo". Meu pai falou. Tem portanto de ter os cabelos ruivos como os meus.

A gente grande não é muito rápida para captar as evidências. Em vez de felicitá-la, estavam agora tentando explicar-lhe que era preciso esperar que Raimundo Rogério tivesse seus próprios cabelos. Os cabelos não podem ser colados. Têm de pertencer à própria pessoa...

-        Não é verdade. Vi muito bem que o Sr: De Ville-d'Avray usava cabelos que ele tirava e punha num cogumelo à noite, e o Sr. de Frontenac, e todos, e até o Sr. Governador Paturel quando recebe o almirante inglês!

— Mas são perucas!

— Pois bem! Eu lhe fiz uma peruca. Por que esperar que Uta-kê venha rachar-lhe o crânio?

Diante do silêncio que acolhia suas palavras, e os risos abafados que espocavam, o desânimo a tomou, e depois a cólera. Ela saltou do tamborete, gritando:

-        Vocês fazem pesar sobre mim uma intolerável servidão.

Aquela devia ser uma citação de um romance de cavalaria.

Angélica segurou-a. Honorina soluçava.

-        Faço tudo para lhes provar... que os amo... e... e nada lhes agrada... não dá certo...

Angélica fez o possível para acalmar seu desespero. Honorina tivera boas intenções. Fabricara uma cola de peixe notável, era pena os cabelos dela, mas eles cresceriam de novo, não era a primeira vez, a gente se habituava. Quando Raimundinho fosse grande, ficaria muito emocionado ao saber o que sua irmã mais velha fizera por ele. Angélica acabara de ter uma ideia: graças à iniciativa de Honorina, ia fabricar uma pomada para esfregar no pequeno crânio de Raimundinho, para que seus cabelos crescessem mais depressa...

Bem , assim, com os cabelos sacrificados de Honorina iriam tentar fazer-lhe uma pequena peruca, enquanto isso.

Aí está! Essa era sua ideia!... Por que, então, tinham ralhado com ela? Por que caçoaram dela?

Depois de limpar as crianças, as jovens mulheres e adolescentes, Iolanda, Elvira, Eva, as amas-secas, filhas da parteira irlandesa, cheias de remorsos, vieram buscá-la para passear e dar uma grande volta de trenó índio.

Na volta, a menina estava calma. O curso dos dias continuou sem choques...

Seus irmãos as chamavam "Honn!" - Florimond algumas vezes, mas Cantor, sempre -, o início de seu nome, fazendo-o soar por muito tempo como uma concha marinha ou uma trompa antiga. Diziam que ela só respondia quando a chamavam assim...

"Mas não é um nome pronunciável, um nome das Escrituras", protestava Elvira. Era na época da primeira estada em Wapassu. Elvira estava ligada a Honorina e devia cuidar da garota, que não parava no lugar e geralmente não estava muito longe, mas em local de difícil localização.

Com frequência, a pobre Elvira apelava a Cantor, que detestava procurar sua meia-irmã, mas, talvez por isso mesmo,- sabia onde ela se encontrava.

"Honorina! Ho-no-ri-na!", continuava á esgoelar-se a jovem padeira de La Rochelle", cuja voz se tornava estridente e enfurecida.

Silêncio.

"Cantor! Can-to-or!", gritava então.

Cantor aparecia, bastante depressa, resmungando.

"Eu não sou ama-seca."

"É sua irmã. Ela sempre corre não sei para onde neste país aterrador, em que atrás de cada árvore há um índio que nos espreita com,sua faca de escalpo."

"Tá-tá-tá. Os índios não são gente ruim, se não se tem medo deles. Ela, sim, Honn, a chama, pode assustá-los com sua cabeleira cor de fogo: jamais tocarão em sua cabeleira. Teriam medo de se queimar. Vá! Você tem cada ideia idiota!"

"Se fossem só os índios", lamentava-se Elvira, "mas há também ursos, tigres..."

"Ora!", dizia Cantor, "simples linces, JIO máximo. O lince caça à noite, estamos em pleno dia. Está vendo como imagina coisas..."

"Tenho tanto medo", confessava Elvira. "Não tenho coragem nem de estender a roupa lá fora. Dame Angélica me recomenda que a estenda longe da casa, para que tome bastante sol e vento. Mas, assim que estou longe da casa, meus cabelos parecem mexer, como se estivessem me escalpelando."

"Se continuar com essas caraminholas na cabeça, isso vai acabar lhe acontecendo. As ideias podem provocar os atos, e mesmo os índios, que não pensariam nisso, podem se sentir obrigados a escalpelá-la."

Elvira soltava um grito de pavor.

"Ela não vai lhe responder", escarnecia Cantor, fingindo acreditar que ela quisera chamar Honorina, Honn. "Você não sabe pronunciar direito o nome dela. Honn, e não 'U-u-u', como um lobo gripado..."

(Honorina rebentava de riso sob as cobertas.)

"Honn", continuava ele, "não é um grito, é um som, compreende? Um som que não é preciso gritar porque ele sozinho alcança longe."

Dizendo isso, levantava sua mão, que segurava um inseto, e o depositava no dorso da outra.

"Senhor! um escorpião!"

"Não grite", dizia mais uma vez Cantor, segurando novamente o inseto. "Felizmente, os insetos não ouvem a voz humana. Mas com seu medo você conseguirá assustá-lo e obrigá-lo a picar-me, quando ele não está com vontade alguma de fazê-lo. Aposto que, quando você estava em La Rochelle, todos os cachorros procuravam mordê-la, ou até a morderam algumas vezes, cara Elvira!"

"Como você sabe?", maravilhava-se a inocente moça. "E bem verdade que seu pai é muito sábio! Você deve ter herdado dele."

"Eu tento. Mas ainda tenho muito que aprender. O que eu sei é que meu pai lhe recomendaria não se assustar a todo instante, senão até os cães índios, que são muito mansos, a morderão também."

"Vou tentar", prometera Elvira, "mas onde devo procurar Honorina?"

"Justamente, em vez de todos esses discursos para explicar que você está paralisada pelo medo, deveria acalmar-se e então saberia, como eu, que ela está lá embaixo, atrás daquela árvore podre. Está tentando pegar um esquilo em sua toca. Isso vai entretê-la durante horas, e assim não há perigo de que ela faça besteiras."

"Ah!", dissera Elvira, incrédula,'olhando naquela direção sem ver nada se mexendo nas folhagens vermelhas e douradas do verão indígena. "Como você pode sabê-lo, se veio pelo outro lado da floresta, que eu vi?"

"Meu espírito pode passear sozinho, enquanto estou ocupado com outra coisa. Eu sabia, sem o saber."

"Mas ela não pode estar lá. Honn!", tentava gritar a jovem, como lhe dissera Cantor.

"Assim não."

O menino colocava as duas mãos formando corneta em volta dos lábios e chamava, sem esforço:

"Hohonn!..."

Honorina surgia, como que atraída por um ímã, de trás de um velho tronco.

"Você não me deixa pegar o esquilo, Cantor! O que foi?"

"Venha! vou lhe mostrar um escorpião, e você poderá acariciá-lo!"

"Não faça isso!", suplicava Elvira.

(Honorina puxava o lençol para cima da cabeça a fim de poder rir à vontade, enquanto suas lembranças desfilavam.)

CAPÍTULO XIII

"Agora, poderei partir livremente"

"Ela foi embora!"

Angélica endireitou-se bruscamente, quase entornando o tinteiro.

Sentada à sua escrivaninha, acrescentava algumas linhas à epístola que começara a escrever para seus filhos e na qual trabalhava em seus momentos de tranquilidade.

Essa quietude acabava de ser atravessada por uma ideia ao mesmo tempo incongruente e terrível:

"Ela foi embora!"

A tempestade erguera-se desde a manhã, unindo suas trevas à obscuridade precoce dos dias. Para calafetar melhor, diminuir as correntes de vento e atenuar os ruídos dementes do exterior, acabavam de colocar todos os batentes diante das janelas.

Podiam preparar-se para um ou dois dias inteiros de retiro no território comum.

Que capricho trespassara-lhe o coração subitamente como um raio? Ouvira, tinha certeza, a voz de Honorina, que a chamava lá fora, através da ventania: "Mamãe! Mamãe!"

Mais tarde, Angélica se lembraria com inquietação de sua impulsividade cega e, não muito bem, da maneira como havia descido as escadas, atravessado as salas sem ver ninguém e sem que ninguém a visse. Enfiara suas botas, lançara uma manta aos ombros, mas esquecera as luvas. Saíra para o pátio da muralha, alcançara com dificuldade uma pequena porta na paliçada e viu que ela estava entreaberta, o que não se justificava, pela tempestade, e aumentava sua convicção de ter um pressentimento cor-reto, mas também, sua inquietação por Honorina.

"Ela passou por aqui! Não posso perder um segundo!..."

Avançava, Suas forças estavam decuplicadas. Avançava, apesar da quase impossibilidade de ali mover-se num universo de turbilhões sufocantes, de passagens furiosas de vento que quase a lançavam ao chão.

Suas saias tornavam-se mais pesadas. Embaraçava-se e caía.

Suas mãos nuas tornavam-se insensíveis. .

Parou, desvairada.

"Que estou fazendo aqui? Não, Honorina não saiu! Não havia nenhum motivo para isso!"

Então, que loucura a invadira, a ela, que escrevia tranquilamente diante de sua mesa? Quem a empurrava para tal loucura?

Foi tomada pelo medo, mais mental do que físico. Não tinha ainda receio de ter-se perdido e não poder voltar atrás, nem o de estar tomada pelo frio e cair sob o choque, como os pássaros, quando caem dos ramos das árvores.

"Reflita, disse a si mesma. "Domine-se!..."

Então, ouviu o chamado, o mesmo, mas dessa vez muito mais real: "Mamãe! Mamãe!" A voz chorava em meio às rajadas de vento. Angélica lançou-se para a frente, correndo com dificuldade. "Honn, HonnL." Não chegava aínalizar o nome pronunciado. Seus lábios gelados recusavam-se a mover-se. Era um grito rouco, inarticulado, que lhe saía da garganta. " Honn! Honn!..."

Quando a encontrou, a criança já estava meio enterrada pelas vagas de neve soprada que, uma vez submerso o obstáculo, iam se reconstituir mais longe.

Com os dedos entorpecidos, retirava-a de seu sudário, tateava, encontrava a cabeça de cabelos eriçados - Honorina estava sem o gorro -, agarrava-se às vestes duras de gelo - vestira-se de menino, como às vezes fazia, roubando as roupas de Tomás Ma-laprade.

Maltratada pelo vento e pela neve fustigante, Angélica apégava-se ao que podia, sem estar certa sobre o que, como num pesadelo indistinto, puxava e apertava contra o coração. Mas era a voz de Honorina que dizia:

-        Só achei um coelho na armadilha, só um coelho!...

Sua voz tremia.

Lágrimas gelavam em sulcos em suas faces. Angélica sentiu a pele congelada do rosto redondo contra a sua... Era pois verdade que saíra, que tivera a ideia insensata de ir desarmar armadilhas com esse tempo!

Agora era preciso voltar para o abrigo antes de ficarem congeladas ali. E dessa vez o medo verdadeiro apoderou-se dela.

Imóvel, na obscuridade zebrada, dilacerada por cruéis flechas geladas, não sabia para que lado ir. Seus rastros já estavam apagados. Em volta delas, a neve subia.

Devia ir para a direita, para a esquerda?

Segurava Honorina na noite sibilante e nas borrascas de neve, como outrora, quando percorria as florestas, perseguida pelos soldados. Sentia-a tiritar, sacudida como ela mesma pelo vento que as gelava até os ossos.

Uma ideia ocorreu-lhe com a lembrança dos enforcados da Pedra das Fadas: o anjo tutelar de Honorina!

-        É tempo de se manifestar, Abade Lesdiguieres! Lesdiguieres! Ajude-me!

Avançou ao acaso, titubeando nos montes de neve, e, depois de alguns passos, chocou-se com uma raiz de árvore. Devia estar junto ao bosquezinho... As raízes nodosas de um abeto meio desenterrado formavam com a extensão de seus ramos baixos recobertos de neve uma abóbada sobre uma espécie de orifício no qual caiu, depois conseguiu deslizar para dentro. Era uma trégua.

Quanto tempo, quantos dias duraria a tempestade? Notariam sua ausência no forte?... Mesmo um destacamento de homens treinados não poderia arriscar-se a sair. E se o fizessem, se perderiam... Joffrey estaria à frente. Ela seria a causa de sua morte!...

Isso já durava dez minutos, uma hora, ou menos?... Angélica não acreditava ter fechado os olhos. Olhando para a entrada do abrigo entre os ramos, viu um céu de prata negro, mas limpo. Honorina fungou:

-        O vento foi embora - disse, com voz espantada.

Angélica arrastou-se para a beira do buraco. A neve desabava sobre ela, gelava-lhe o pescoço, mas isso não era nada.

Não podia acreditar em seus olhos: uma meia-lua de prata brilhante se i-nelinava, parecia vogar um pouco bêbada no lago negro do firmamento agora livre, enquanto, recuando cada vez mais para o horizonte, nuvens tenebrosas, aterrorizadoras, de um negro de tinta, se afastavam.

Angélica e sua filha içaram-se para fora.

Um pouco mais embaixo, percebia-se, no centro dos espaços lívidos, a massa sólida e quadrada do forte de Wapassu em suas muralhas, ilhazinhas de paz e de calor, com luzes filtrando-se aqui e ali.

Os rastros de sua caminhada para o abeto eram visíveis, mal recobertos por um pouco de poeira. Um vento de ressonâncias de harpa eólica continuava a soprar, com o único objetivo, ao que parecia, de varrer essa poeira da superfície endurecida, para permitir que se avançasse mais facilmente.

Agora sabia em que direção ir. Bastava descer rumo ao forte.

Enquanto andava, Angélica sentia que os pedaços de gelo derretiam em seus cabelos e que lhe deslizavam pelo rosto. Pedaços de neve, que tinham se congelado em seus ombros, desprendiam-se e caíam.

Era o calor de seu corpo que os dissolvia. Estava quentes, e a mão que segurava a de Honorina escava escaldante. Suas roupas ficaram subitamente recobertas por pequenas pérolas de vapor, como se tivessem acabado de ser expostas diante de um forno. E as de Honorina também, o gibão e as calças emprestadas de Tomás.

— Como você soube que eu tinha saído? - perguntou Honorina, enquanto caminhava, refeita de suas emoções.

— Soube-o, simplesmente... que importa... Soube-o. Porque estou muito ligada a você. Isso não é motivo para que recomece a me pregar sustos desse tipo. Foi muito ruim o que você fez, Honorina!

A menina baixou o nariz, com ar contrito. Começava a dar-se conta de sua conduta. Mas jamais perdia o rumo quando alguma coisa a intrigava.

-        Quem era o senhor que você chamou na tempestade?

Angélica tinha então gritado tão alto?

— O Abade de Lesdiguieres. O anjo que apareceu quando você nasceu.

— Então existem anjos em toda parte?

— Sim, há anjos em toda parte - aquiesceu Angélica, no limite de suas forças.

Reencontravam o sulco do caminho que levava até a muralha e a pequena porta pela qual ela saíra.

Angélica deslizou para o pátio, que estava cheio de gente, pois todos queriam aproveitar a calmaria, que voltara tão repentinamente, para retomar as tarefas interrompidas pela tempestade.

Angélica não sentia vontade de falar nem de responder a perguntas, e agiu de modo a que não as fizessem.

Viram-na atravessar rapidamente, com ar severo, arrastando atrás de si Hpnorina, vestida de menino e segurando um coelho branco pelas orelhas.

Na casa, lançou um olhar para o relógio de pêndulo, mas ele parecia parado, senão teria indicado que a expedição não durara mais que uma meia hora.

Em seu quarto, sentou-se na poltrona de espaldar alto, com criança nos joelhos. Estava cansada, uma fadiga anormal, que ão podia reparar nem pelo sono, nem pelo repouso. Era preciso esperar.

Acontecera alguma coisa. Mas não podia saber o quê, com cerza, nem felicitar-se. Sabia também que os "milagres" só aconcem quando forças de destruição iguais se desencadeiam.

A batalha invisível ia recomeçar?

Pouco a pouco, esse sentimento de abatimento dissipou-se, e a alegria de apertar Honorina viva em seus braços, de ter conseguido alcançá-la a tempo, de- ter sido avisada a tempo, transportou-a.

-        Que queria fazer com esse coelho?

Honorina hesitou. Como ia saber? Entre várias explicações, escolheu a que possivelmente iria prevalecer.

-        Queria levá-lo a Gloriandra ou a Raimundo Rogério... Mas só achei um... Com eles, sempre é preciso duas coisas. A outra armadilha estava mais longe, e eu não conseguia ver o caminho...

E como Angélica não dizia nada, ela se insurgiu, decepcionada.

— Faço tudo o que posso para lhe provar que os amo, mas você não acredita em mim!

— Eu também faço tudo o que posso para lhe provar que a amo - disse Angélica -, mas você sempre recusará-acreditar-me.

Honorina deslizou com vivacidade de seus joelhos. A tristeza que se-ntira na voz de Angélica a transtornara. Depois de olhá-la bem de frente, pegoú-lhe as duas mãos com a gravidade que assumia quando ensinava alguma coisa aos gémeos.

-        Sim, eu acredito em você, minha pobre mãe'- disse ela -, agora acredito. Você foi buscar-me na tempestade como foi buscar o cão boboca. Se não tivesse ido... eu não conseguiria encontrar o caminho para casa.

Essa confissão custava-lhe.

Pousou sua cabecinha de cabelos hirsutos nos joelhos de Angélica e ficou assim com o rosto escondido durante muito tempo. Lembrava-se de seu orgulho por ter encontrado o coelho. Mas que horrível impressão depois, quando compreendera que a neve ia enterrá-la e que tinha realmente - realmente - cometido uma tolice dessa vez, enquanto se debatia contra as forças desencadeadas da neve e do vento.

Pensara: "Ah! Como minha casa é boa! Queria de toda maneira voltar para casa. Via-a tão quente, e -a você, minha mãe, que me esperava, e eu... nunca mais vou desmontar armadilhas... detesto-as..."

Experimentara a traição de uma natureza da qual julgara até então ser uma aliada... A neve era má, muito má... que alívio, que felicidade, quando ouvira o chamado: "Honn!...", quando avistara, vindo em sua direção, através das borrascas, sua mãe.

Esse devaneio durou muito tempo.

Subitamente, levantou a cabeça e seu rosto expandiu-se num largo sorriso.

— Estou contente - declarou -, pois agora vou poder partir de verdade. Antes, eu não teria coragem,

— O que mais ela nos reserva? - dizia Angélica ao marido, à noite.

Contou-lhe a escapada de Honorina, que deixara o forte para viver uma aventura de explorador de bosques e ir buscar uma pele para Raimundinho e Gloriandra. Enfim, era essa a explicação.

-        Deve ter medido sua coragem - disse ele - e suas forças.

Mudou de tom e dirigiu sua atenção para Angélica. Acrescen

tou com doçura:

-        E o amor de sua mãe.

E agora era ele quem a punha sobre os joelhos, sua bem-amada, sua mulher misteriosa e insubstituível.

Sentia-se muito egoísta por amar tanto sua fraqueza, que a colocava sob seu poder, mais próxima e acessível.

Teria desejado tranquilizá-la, apesar de saber que isso não estava em seu poder.

Angélica dizia-lhe que Honorina prometera, solenemente, que não fugiria novamente. E, no entanto, lançara esta flecha parta: "Agora, poderei partir livremente".

Joffrey apertava Angélica contra si e a embalava, tentando comunicar-lhe, pelo amplexo de seus braços vigorosos, um pouco dessa força masculina que lhe permitia enfrentar os combates, o corpo-a-corpo, a luta, mais como uma prova de seu valor do que como uma dor, sem estar ferido no coração, nem abatido, como elas, as mulheres.

-        O destino, o destino - dizia ele. - Cada qual deve carregá-lo... Essa criança se encarrega do seu. Não podemos cumpri-lo em seu lugar, apenas ajudá-la a cumpri-lo...

Mas, assim como Honorina, sabia que suas palavras eram insuficientes, e não a consolavam...

As mulheres! Onde alcançá-las? Para onde se evadem? Os trovadores não tinham dito tudo, nem ensinado tudo...

Ficaram vários dias na expectativa sobre as intenções de Honorina, e o que se passava em sua cabecinha acabava por suplantar as outras preocupações e acontecimentos da vida do forte.

Uma noite, seu escudeiro foi avisá-los, apertando os lábios para manter-se sério, de que Honorina "pedia-lhes audiência".

-O que mais ela nos reserva? - repetiu Angélica, cheia de apreensão.

Os dois viram-na entrar, grave. Pedira que lhe vestissem seu vestido de festa.

- Quero ir embora - declarou. - Tenho coisas importantes a fazer em outro lugar, e é preciso que me prepare. Quero ir para Montreal, para a casa da Srta. Bourgeoys. Quero aprender a ler e a cantar, e aqui jamais conseguirei isso.

A VIAGEM A MONTREAL

CAPÍTULO XIV

Retorno a Gouldsboro - Notícias de Josselino de Sancé -

O veneno de Bertille Mercelot - O sepulcro da Diaba

Naquela primavera, a caravana se mobilizou assim que os deslocamentos se tornaram possíveis. Teriam de encarar, para o verão, a navegação para o Saint-Laurent, e dessa vez, até Ville-Marie, na ilha de Montreal, para ali deixar Honorina sob os cuidados da instituição mantida por Margarida Bourgeoys.

Em Gouldsboro, uma carta de Molines a Angélica a informava de que a sequência de sua investigação sobre seu irmão, Josselino de Sancé, levava à certeza de que ele se achava instalado, havia muitos anos, na Nova França, aonde chegara pelo rio Hudson e pelo lago Champlain, voltando ao regaço de sua terra natal, a França, e de sua religião, o catolicismo, mas sob um nome falso, o que explicava que não houvesse mais ouvido falar dele, quando fizera sua primeira viagem.

Fora um valão, encontrado em Long Island, que fornecera a Molines a preciosa informação que lhe permitiu seguir esse Jos do Lobo até Sorel e, mais tarde, até seu estabelecimento atual, onde, cercado por sua numerosa família, o designavam comu-mente pelo patronímico meio enigmático de Senhor do Lobo.

Assim, Madre Bourgeoys tinha razão. Sua pequena aluna de olhos verdes, Mariângela do Lobo, tinha alguns motivos para se parecer com a Condessa Angélica de Peyrac, pois era simplesmente sua sobrinha.

A notícia emocionou profundamente Angélica e atenuou a melancolia que se apoderava dela e a entristecia ao pensar em se separar de Honorina.

-        Alegre-se, minha querida, você vai ter uma família em Montreal, que poderá rodeá-la, levar-lhe docinhos nos dias de festa: um tio, uma tia, primos, primas! Encontrei meu irmão mais velho, seu tio Josselino de Sancé.

Honorina franziu o cenho e não demonstrou entusiasmo. Esses reencontros deviam contrariar seus sonhos de autonomia e independência. Não se livrava de uma família - a sua -, sacrifício que não deixava de atormentar seu pequeno coração, senão para recair sob o jugo de outra.

Sonhava em poder lidar apenas com os "outros", pois não há ninguém como "eles" para confiar na gente, pois não nos conhecem. Os que nos conhecem demais julgam-se no direito de nos tornar a vida insustentável, acossando-nos em todos os recônditos de nosso pensamento e de nossas intenções, como aqueles cãezinhos, treinados para a caça pelos índios, que penetram até o mais profundo dos territórios para importunar o pobre coelho. Teria de recair sob esse domínio canibal das pessoas adultas de seu parentesco?

"Pois o homem terá por inimigo as pessoas de sua família", lia solenemente o Sr. Jonas, à noite, em sua Bíblia, ou "as pessoas de sua casa...", mas dava no mesmo.

Molines juntara à sua carta um pequeno pacote destinado a Honorina, com a qual conversara quando de sua passagem por Nova York. Ela encontrou ali uma pequena faca de cabo trabalhado, antes, um canivete para damas, de cutelaria inglesa de Chester-field, da melhor qualidade.

-        Se não fosse Mestre Molines lhe oferecer essa faca! - disse Angélica. - Mas ele é para você como um verdadeiro avô. Eu me pergunto se não estará cuidando de seu estabelecimento como fez para minhas irmãs e para mim.

O coração da menina bateu de alegria. Não era ainda a faca de escalpo de seus sonhos, mas com essa pequena lâmina prometia a si mesma muitos trabalhos difíceis e absorventes. Esqueceu suas inquietações e desânimos.

Levava suas duas caixas de tesouros, sua arca e suas flechas.

Via essa viagem com seus pais à sua frente e considerava-a infindável. Por ora, estavam se preparando, e ela estava no sétimo céu.

Quiseram partir mais cedo para as orlas e tinham chegado demasiado cedo para ter notícias da França e de seus filhos mais velhos. Angélica desejava estar de volta no início do verão para cuidar de algumas colheitas de plantas ou de raízes e rizomas. Lamentava não estar presente a cada ano que passava na época da bela estação em Wapassu e, dessa vez, não queria abandonar os gémeos por muito tempo. Estavam bem de saúde e em boas mãos, mas mudavam tão rapidamente, que cada dia trazia surpresas maravilhosas, era um verdadeiro teatro, era uma pena não poder acompanhar todo o desenrolar dessas metamorfoses.

De comum acordo, deixavam também, em Wapassu, Carlos Henrique, que parecia feliz e começava até a rir algumas vezes, abandonando seu ar estarrecido e interrogador. Angélica ouvira Honorina dizer-lhe: "Confio-lhe meu irmão e minha irmã".

Por precaução, esperariam para desmamar os bebes quando tivessem dobrado o cabo do primeiro ano' de vida, e Angélica prometia estar de volta para esse primeiro e solene aniversário.

Severina tornava-se bela. Bela demais, pensou Angélica, para aquele tolo de Natanael de Rambourg, que não dava notícias. Em sua carta, Molines não falava dele. Angélica, entusiasmada pelo anúncio do reencontro de seu irmão mais velho, não deu atenção às reações da jovem. Seria apenas por causa de Natanael que Severina tinha aquele brilho nos olhos? Angélica só pôde ver sua amiga Abigail rapidamenté,e mais tarde, persuadiu-se de que ela lhe ocultara uma preocupação. Por ocasião de sua visita aos Berne, Abigail estivera a ponto de falar-lhe, mas Gabriel Berne entrara na sala. Ele também mostrara-se frio e distante, o que não provava nada, pois ele tinha às vezes um temperamento muito rude.

O Conde e a Condessa de Peyrac só ficavam o tempo necessário para transferir suas bagagens para o Arc-en-Ciel, já pronto para zarpar. Não se podia acompanhar tudo!...

Antes de deixar Gouldsboro, Angélica viu rapidamente o Sr. e a Sra. Marrigault, os avós do pequeno Carlos Henrique. Tão sucintamente quanto possível e sem os floreios e precauções habituais, que não tinha vontade de dispensar-lhes,'còl"ócou-os a par da visita de sua filha mais velha, Jenny, ao forte de Wapassu e de suá decisão de voltar a viver com os índios raptores. Falou-lhes de seu desejo de confiar a ela, Angélica, o filho Carlos Henrique, que não queria levar consigo, e que seu esposo e ela não apenas aceitavam de bom grado essa tarefa, más também não se furtariam a ela sob nenhum pretexto, pois era a vontade da pobre mulher. Pedia-lhes apenas que refletissem no ato oficial que deveriam redigir e que homologaria seu assentimento, reconhecendo ao mesmo tempo a filiação que os ligava à criança e lhe conferia os mesmos direitos de família que a seus outros descendentes, pois não deviam esquecer que se tratava de uma criança, nascida dentro das leis do casamento de uma honrada linhagem de burgueses huguenotes de La Rochelle, e que não havia, pois, nenhuma razão para que se visse deserdada no futuro.

Na volta, disse-lhes, o Sr. de Peyrac e ela tratariam do assunto com eles. Por ora, Carlos Henrique ficaria em Wapassu durante sua ausência, sob os bons cuidados dos Jonas, dos Malaprade e de todas as pessoas dedicadas que o cercavam de afeto e com as quais eles mesmos tinham deixado seus gémeos ainda bebés, com a maior confiança.

Deixou-os a se debater com sua consciência, sua tristeza real, seu horror profundo pelo destino de sua filha, sua indiferença pela criança, que teriam de bom grado apagado da memória. Nem sequer suscitaram a questão de saber em que religião ela seria criada.

Não tinha nenhuma curiosidade, nem vontade de assistir a suas discussões, que não deixariam de ter alguns aspectos sórdidos e deprimentes para ela, embora reconhecesse nas pessoas de La Rochelle, especialmente nos Manigault, uma competência comercial ímpar, uma notável resistência às provas físicas e morais. Nada detinha sua atividade.

Os Manigault estavam refazendo sua fortuna, assim como a maior parte de seus correligionários e compatriotas de La Rochelle, que para ali tinham ido mais pobres que Jó. Mas, interessados nos negócios de todo tipo do Conde de Peyrac, podiam já pôr em execução suas próprias empresas. Tinham inclusive reatado seus próprios negócios em La Rochelle, via Nova Inglaterra e certas ilhas das Caraíbas, onde os plantadores huguenotes franceses continuavam a ser muito poderosos, poupados porque esquecidos pelos "conversores" do reino. Especialmente, para as transações da "madeira de ébano", os escravos negros.

E era por esse motivo que defendera os direitos a essa fortuna de seu neto, Carlos Henrique Garret.

Siriki desposara a bela Akashi, e, até então, não havia morrido. Parecia, ao contrário, muito feliz.

Angélica conseguiu vê-lo a sós antes de enfrentar os Marrigault e informá-lo sobre a sorte de Jenny e de seu filho.

Colin Paturel estava ausente. Ele quase não interrompia seus giros pela baía Francesa e, assim que as tempestades mais glaciais passassem, recomeçaria a visitar os feudos e postos acadianos ou ingleses. Em sua ausência. O Sr. de Barssempuy, que fora seu imediato na flibusteria, garantia a vigilância do porto, dos mercados e dos canteiros de consertos.

Colin estava ausente, mas não Bertille Mercelot.

Ela deu um jeito de colocar-se no caminho de Angélica, que não tinha intenção de falar com ela. Os avós Manigault bastavam-Ihe. Não podendo evitar Bertille, esperava dela explicações, pois, se a Santinha do Pau-Oco a abordava, devia ter alguma intenção. Mas, se imaginava que a filha do papeleiro Mercelot queria conversar sobre a irrupção da pobre Jenny e sobre o desaparecimento da criança, foi forçada a constatar que era dotada ainda de uma boa dose de ingenuidade.

A jovem, que, certamente, estava cada vez mais deslumbrante, apenas tagarelou sobre banalidades, pedindo-lhe notícias, com uma solicitude enternecida muito bem encenada, sobre os dois encantadores bebés. Deu notícias de seus pais, de seus negócios, falou de projetos de viagem para o verão, mencionou, sem parecer tocá-los, diversos acontecimentos na comunidade: mortes, casamentos, nascimentos, fez um ar indulgente para julgar querelas que, graças a Deus e à sabedoria do governador, haviam terminado bem e chegou até a certificar, com uma franqueza convincente, seu prazer de revê-la e sua admiração por reencontrá-la sempre com tão bom aspecto e aparentando uma saúde a toda prova. "Como você faz, Dame Angélica? Eu a invejo.-Fiquei de cama um mês inteiro por um simples resfriado, e ainda estou me arrastando!"

Enfim, Angélica compreendeu que toda essa exibição de amabilidade tivera o único objetivo de fazê-la saber, entre duas informações aparentemente benévolas sobre as intrigas amorosas em curso - e eram de se esperar casamentos assim <jue o governador voltasse -, que as frequentes ausências deste deviam-se às visitas que ele fazia a uma princesa índia, tarrentina, que reinava em uma das ilhas do estuário de Penobscot, e irmã da esposa de Saint-Castine. "Oh! não é de ontem! Ah! Você não sabia?" . Ademais, acrescentara que ele visitava, com vistas a casar-se, uma das filhas do Marquês de La Roche Posay, em Port-Royal. Angélica deu de ombros, lembrando-se a tempo de que elas eram ainda muito novas, e não caiu na armadilha. Bertille não sabia mais o que inventar para derramar seu fel.

Em compensação, havia provavelmente alguma verdade na-história da princesa índia. Colin Paturel não vivia mais "sozinho". Sorte dele.

-        Obrigada, Bertille, por todas as Informações interessantes que me deu. Mas eu a estimaria mais se, em vez de me dar notícias do senhor governador, me tivesse perguntado sobre seu enteado, o pequeno Garlos Henrique.

Um brilho de fúria enfeou o rosto de Bertille Mercelot.

-        De que você se queixa? Ele é seu agora. Não foi o que sempre quis?

Dava o que pensar o poder das palavras escolhidas e manejadas por certos seres, sobretudo femininos.

Se uma Ambrosina de Maudribourg, inteligente, perversa, luciferiana, conseguia destruir alertamente um destino, derramando veneno, contratando assassinos, se conseguia destruir inteiramente uma alma, corpo e tudo, era, em contrapartida, por causa de alfinetadas insidiosas, como as de Bertille Mercelot, que as sociedades e impérios desmoronavam.

Por mais valorosa que fosse uma obra, e a da edificação e do sucesso de Gouldsboro era uma obra de alto valor, a flutuação medusiana de uma Bertille, através dos pilares de granito das grandes personalidades, não deixava de inspirar, a longo prazo, e inclinar o espírito a uma doutrina pessimista por parte daqueles que professam que o Mal na terra é mais forte que o Bem. A maçã estragada do cesto estraga todas as outras... O verme na fruta apodrece toda a fruta.

Dramatizando, podia-se ver nessa força subterrânea - a da gota d'água amoldando a crosta terrestre - dada a pessoas insignificantes, e mesmo estúpidas, o sinal da maldição humana, merecida pelo primeiro erro. Tendo por punição o fato de que, se se podia lutar contra uma Ambrosina, acabando a vastidão de seus crimes por designá-la à justiça dos homens, ficava-se impotente contra o trabalho de sabotagem de uma Bertille Mercelot, aparentemente anódino.

Após essa constatação, Angélica esqueceu Bertille Mercelot, os Manigault, e dedicou-se a sua viagem para o Canadá e Montreal, que tinha uma outra importância.

Angélica teria convidado de bom grado Severina para acompanhá-los nessa viagem a terras francesas. Via que a adolescente estava decepcionada de que Molines não lhe desse nenhuma notícia de Natanael de Rambourg. Ele parecia ter-se evaporado na natureza, ao vento do oceano. Severina ficava cada vez mais bonita e era cortejada, dissera-lhe Abigail. Mas havia em seu rosto uma certa melancolia. Dedicava muito tempo ao estudo junto a sua tia Ana, e, na época mais rigorosa de inverno, fora morar com ela e sua criada Rebeca, desejando dar uma ajuda às duas velhas, nos rudes trabalhos da estação: cortar madeira, fazer fogo, tarefas que lhes custava assumir, apesar de sua saúde perfeita, seu vigor diligente.

A jovem Severina, mais vigorosa, certamente, quando se tratava de cortar lenha, carregar fardos, parecia mais lânguida do que elas. Discutiu-se a questão dessa viagem que a distrairia. Estava prevista para logo, assim que a clemência do tempo o permitisse, pois Joffrey de Peyrac e Angélica não pretendiam demorar rnais do que alguns dias em Quebec ou em Ville-Marie: o Sr. de Peyrac desejava estar de volta no início de agosto, para encontrar-se ali com enviados do Massachusetts ou ter tempo para encontrá-los em Salem. Severina hesitou, depois sacudiu a cabeça.

— Não, Dame Angélica. Eu pertenço à Religião Reformada, e você sabe como lá em cima nossos compatriotas franceses são obstinados em proibir aos huguenotes penetrar na Nova França.

— Não somos obrigados a anunciá-la como tal. Você fará parte de minha comitiva. Nossas escalas serão curtas, evocê não correrá risco algum descendo em terra em nossa companhia.

Mas Severina não se deixou convencer.

-        Não confio muito. Dizem que eles são muito teimosos, procuram cada huguenote como cães na pista de uma caça e que interpelam toda pessoa nova que suspeitam pertencer à Religião Reformada. Não me sentirei tranquila e não desfrutarei a ocasião de me encontrar um pouco na França.

Angélica não insistiu. Sabia que não havia nenhum exagero no que ela dizia. Em Quebec, ela mesma vira, ao chegarem navios de imigrantes, Garreau d'Entremont, o tenente da polícia, e seus esbirros mais preocupados em detectar os protestantes que os bandidos ou as mulheres de vida fácil que pudessem se infiltrar clandestinamente entre eles. Sua amiga, a Sra. Gonfarel, chamada a Polaca, gerente do belo albergue Ao Navio de França no porto, contava-lhe que ela também tinha faro para descobrir os "mariposas" (os protestantes) entre os forasteiros e, nos impulsos de seu coração generoso, sempre pronto a ajudar os perseguidos, e em sua preocupação de derrotar os "escrevinhadores" da polícia, ela os escondia e os hospedava em seu albergue, chegando a dar-lhes os meios para deixar Quebec, antes que fossem detidos, aprisionados, submetidos a todo tipo de maus-tratos para fazê-los abjurar e, de todo modo, expulsos e reduzidos à miséria.

Se, entre as tripulações que arribavam a Quebec, encontravam marujos reconhecidamente protestantes, eram proibidos de descer a terra, e seu capitão estava sujeito a pesadas multas, se a consigna não fosse respeitada.

-        Gostaria de levá-la, minha pequena Severina. Parece-me que isso lhe faria bem.

- Não se preocupe - respondeu Severina pousando a mão no coração. - Tenho aqui um segredo de amor que me ajuda a sobreviver.

O Arc-en-Ciel zarpou, escoltado por três outros navios de cento e cinquenta a duzentas toneladas, além de um pequeno iate e de um sloop de duas velas.

O contorno da grande península fez-se sem incidente e, depois de ter passado o estreito de Canso, entraram no golfo de Saint-Laurent precedendo o estuário do grande rio. A escala de Tid-magouche, na costa leste, não excedeu a dois dias. Os territórios estavam sob a jurisdição do Conde de Peyrac. A atividade do verão estava em seu auge. Os bacalhoeiros maluínos e bretões reassumiram a posse de suas praias sazonais, os "cadafalsos", para o corte e secagem dos bacalhaus, estavam erguidos, e o penetrante odor de peixe, sal e óleo de fígado de hacalhau, que derretia ao sol para ser recolhido em preciosas garrafinhas, reinava in-conteste.

Nos arredores, pequenos navios cabotavam ocupando-se das tratativas e do transporte de víveres para as tripulações, assim como dos carregamentos de carvão-de-pedra que se extraía de Canso e que encaminhavam para os estabelecimentos da baía Francesa e da Nova Inglaterra.

Odor de bacalhau e de poeira negra que as alcofas cheias de pedaços de antracita espalhavam, não eram lugares onde se quisesse demorar, e o conjunto tinha a cor das lembranças que podiam ocorrer a Angélica. Era a primeira vez que voltava àquele local, desde os dramas que ali se desenrolaram, e, apesar de sua vontade de não evocá-las, não era fácil expulsar todas as imagens.

Um pouco mais alto, na curta falésia, à fímbria dos bosques de pinheiros vermelhos que o calor começava a cobrir de um pó cinzento, jazia a tumba de Ambrosina de Maudribourg, a Benfeitora. Poderia apostar que ninguém devia preocupar-se com ela. Os habitantes permanentes ou ocasionais do rincão, se acontecia de passarem perto dessa pedra gravada com o nome de uma nobre dama, ignoravam a quem ou a que ela se referia.

Quanto a Angélica, nenhuma'atração de curiosidade ou de morbídez, muito menos de caridade cristã, a convenceria a subir até o alto, mesmo-para se certificar de que a perigosa criatura estava bem morta.   

Do forte de quatro torrinhas a meia encosta, descobria-se a longa baía, onde reinavam alternativas de cinza e de amarelo, as brumas dando aos navios ancorados silhuetas longínquas, e quando a luz das marolas, traçadas em longas linhas horizontais superpostas, cintilava, ela via correr ali, fugindo, o Demôiiio Branco, perseguido pelo arpão do baleeiro basco.

Zalil, o cúmplice, o irmão de leite de Ambrosina, o náufrago que empunhava um porrete de chumbo. Delirante, Ambrosina murmurava: "Éramos três crianças malditas, nas florestas do Dau-phiné: Ele, Zalil e eu..."

Atualmente, a terceira das crianças malditas estava morta: Sebastião d'Orgeval, o Homem Brilhante, o padre, de olhar de safira...

A Nova França devia agora ser avisada dessa morte. Supondo-se que o Padre de Marville tivesse se dirigido para a Europa, sem poder transmitir a notícia antes dos gelos, os navios da primavera deviam tê-la levado.

Joffrey não parecia considerar que isso pudesse, no momento, influenciar as boas relações com Quebec. Ele-dizia: "no momento" por prudência, sabendo que os melhores resultados estão à mercê da fragilidade das opiniões humanas e da versatilidade das paixões. As pessoas de Wapassu não eram responsáveis de modo algum por essa morte, mas o entendimento e a neutralidade que estabeleceram com os iroqueses sempre irritaram os franceses e, agora que os iroqueses haviam feito perecer um de seus maiores missionários, isso poderia trazer à tona sentimentos de desconfiança e de rancor em relação àqueles que se pretendiam em paz com os terríveis inimigos da Nova França. Essa viagem, portanto, vinha a propósito para dissipar eventuais divergências.

Durante esses dois dias em Tidmagouche, Angélica pôs tudo em ação para seguir as instruções dadas pelo filósofo Marquês de Ville-d'Avray a respeito da Diaba e de suas torpezas: esqueçamos.

A evocação do pequeno marquês levou-a à alegria, enternecendo-a. Com Joffrey e Honorina, evocaram seu petulante amigo, sua agudeza, sua animação, suas maquinações sobre dinheiro, suas astúcias para obter objetos raros sem pagar, as questões com seu caro Alexandre... Ville-d'Avray fazia muita falta naquelas praias. Esperavam ter notícias dele em Quebec.

Como Honorina, que a acompanhava em seus passeios, adivinhou em quem estava pensando quando se encontrava em Tid-magouche? Curiosamente, com efeito, ela disse:

— Desde que deixei Wapassu, não a vejo em meus sonhos.

— Quem?

— A mulher de olhos amarelos. Angélica apertou mais a mão de Honorina.

— Como era ela?

-        Tinha olhos como os de um animal feroz e cabelos como chamas negras.

— Ela era bela? A criança hesitou.

— Sim, era bela, mas...

Honorina passou-lhe os dedos pela face.

-        ...Seu rosto estava todo machucado, todo arranhado.

Angélica estremeceu violentamente. Precisava parar, censurou-se, de ter reações tão epidérmicas quando se tratava de uma história afinal antiga e que concluía com vantagem para ela, por uma vitória sangrenta mas total.

Não quisera ver o corpo da Duquesa de Maudribourg trazido do bosque onde estava meio presa dos animais selvagens, mas jamais esqueceria a face desfigurada da orgulhosa mulher quando conseguira, com Marcelina e Iolanda, arrancá-la à fúria dos homens encolerizados.

CAPITULO XV

Novas ameaças de ataque iroquês separam Angélica do marido

Aquilo que os esperava em Tadoussac devia estragar um pouco a sequência de uma viagem da qual os três esperavam retirar tanto prazer e que, até ali, se desenrolara da melhor forma possível. O tempo permanecera fresco e o céu, limpo.

Aproximando-se da pequena cidade que, n? margem norte do Saint-Laurent, na embocadura do rio Saguenay, fora o primeiro posto de pele dos franceses, avistaram uma figura familiar e reconheceram Nicolau Perrot, um amigo muito fiel que, depois de iniciar o Conde de Peyrac na língua falada pelos selvagens e nas relações com as tribos da América do Norte, voltara a prestar serviços junto ao governador da Nova França.

Era em nome dele que ali estava, tendo nas mãos um envelope com o sinete do Sr. de Frontenac.

Apesar da alegria de revê-lo, Angélica teve uma má impressão. Alegrava-se com essa escala em Tadoussac e, com Honorina, tencionara rever o Menino Jesus de cera na capela dos jesuítas, vestido com belas roupas bordadas pela Rainha Ana da Áustria. Perguntavam-se se o gato iria se empoleirar na cruz gigante com as armas do rei, o que, em sua primeira viagem, divertira ou escandalizara os habitantes, e se teriam ainda a sorte de ver uma baleia e seu baleote brincando ao sol poente, na foz do Saguenay.

- O Sr. de Frontenac enviou-me a vocês - disse-lhes o célebre explorador dos Grandes Lagos. - Como costuma fazer todos os anos, ele se preparava para deixar a ilha de Montreal e seguir para o Forte Frontenac, no Ontário, onde devia encontrar o chefe das nações iroquesas. Ao voltar, ele os veria, pois sabiam que conduziam sua filha à Instituição Nossa Senhora de Ville-Marie. Eu devia acompanhá-lo como intérprete, mas, subitamente, trouxeram-lhe notícias alarmantes que, embora não confirmadas, não deixaram de colocar uma espada de Dâmocles acima de nossas cabeças. A única maneira de remediá-lo, sem renunciar a ir aos mares Doces, era enviar-me à sua presença, pedir-lhes socorro.

— Socorro?

— Sim, pois a notícia não podia ser divulgada nem confiada a ninguém, e ele não podia renunciar a sua expedição e voltar atrás sem que isso o levasse, pelo menos, se ele se enganasse, a ser ridicularizado, e, se continuasse a avançar, deixar correr na Nova França um perigo mortal. Sabendo de sua vinda iminente, só pôde pensar em você, Sr. de Peyrac, para tirá-lo dessa dificuldade, e me enviou para esperá-lo no ponto ameaçado, Tadous-sac. Leia!

Desde que o Sr. de Frontenac, subindo, alguns anos antes, o Saint-Laurent para lá de Montreal com uma flotilha de quatrocentas canoas, edificara, no lugar chamado Cataracuí, no lago dali em diante chamado lago Frontenac, um forte de trezentas e cinquenta toesas de torre, a que denominou Forte Frontenac, a cada ano, no início do verão, ele realizava um giro por lá, ainda com forças menores, mas ainda impressionantes. Convocava os representantes das Cinco Nações iroquesas a comparecer, a fim de discutir, com os "principais", pontos de litígios e essa paz franco-iroquesa, sempre precária.

Durante o ano, ela era cada vèz mais ou menos rompida, seja por um ataque traiçoeiro dos iroqueses contra as nações aliadas, seja por um massacre dos colonos franceses ou o suplício de um missionário jesuíta.

Mas os iroqueses gostavam de negociar tanto quanto de fazer a guerra. E o Sr. de Frontenac gostava de partir para os Grandes Lagos, a fim de fazer-lhes observações, fumar com eles o acre tabaco de seus campos, passando de mão em mão os cachimbos da paz de pedra vermelha ou branca e festejar em sua companhia. Saía-se muito bem nesses encontros, aos quais os representantes da Liga Iroquesa compareciam de bom grado, porque ele se esmerava em fazê-los rir, soltando seus gritos de guerra com talento e todo tipo de gracejos. Eles sabiam que ali receberiam presentes e realizariam banquetes. Por isso, compareceriam em grande número à reunião em torno de Cataracuí do grande Onôn-cio, a "Alta Moantanha", nome dado ao primeiro governador da Nova França, Montmagny, que era de uma estatura imponente, e que eles conservavam para seus sucessores.

Ora, no momento de deixar Montreal com suas canoas, seus presentes, seus militares, intérpretes, capelães, suas auriflamas com a flor-de-lis, sua escolta de algonquinos e de huronianos, o Sr. de Frontenac dera-se conta de que se suspeitava que um grupo de iroqueses pertencentes às tribos mais ferozes e mais velhacas, os annieronnons ou agniers ou mohawks, se aproveitaria da reunião, que reteria o governador e o grosso de suas tropas, para ir, com toda a impunidade, massacrar os mistassins no norte.

Isso também era uma tradição mais ou menos anual dos iroqueses, havia vinte anos, época em que o Sr. Gualberto de la Mel-loise enviara ao Sr. Colbert um relatório que dizia: "Os iroqueses, depois de expulsar todos os seus vizinhos, entraram no Sague-nay e nas profundezas das terras, onde massacraram os selvagens, as mulheres e seus filhos".

Esse grupo arriscava-se a renovar a surpresa de dois anos antes, de sair pelo Saguenay e dirigir-se para Quebec.

Ora, Frontenac deixara Quebec como uma cidade quase aberta. O mais pobre contingente de iroqueses que ali desembarcasse podia não apenas fazer um massacre, mas reduzi-la a cinzas.

Então, sabendo que o Sr. de Peyrac subia o rio com a intenção de ir até Montreal com sua família, ele, que certamente vinha com embarcações e tripulações bem armadas, pedia-lhe que suspendesse o curso de sua viagem e que montasse guarda na entrada do Saguenay, pelo menos até que ele, Frontenac, pudesse voltar a Montreal e em seguida a Quebec. Enviava-lhe Nicolau Perrot, que o assistiria. O intérprete canadense estava encarregado de avaliar a situação e o fundamento desses rumores. Se um contingente inimigo subia pelo lago Saint-Jean, logo saberiam, pois o medo dos iroqueses atormentava os algonquinos da região, que, pondo-se a caminho para os postos de trato, eram surpreendidos em suas reuniões de verão e massacrados por tribos inteiras.

Considerando os mapas, incíinavam-se a atribuir a vitória do projeto dos iroqueses às prestidigitações de seus feiticeiros.

- Julgar-se-ia que as pessoas desse país voam pelos ares, por cima das florestas - disse Angélica, que não queria acreditar na iminência de sua chegada ao Saguenay, quando as aldeias dos Cinco Lagos se encontravam a centenas de léguas dali.

Nao era a primeira vez que ela sentia, ouvindo falar dos "viajantes" ou dos militares, a realidade de um dom de ubiquidade perturbador que planava sobre aqueles que tinham a ousadia de percorrer essas imensidões.

-- Como eles podem cobrir tais distâncias em tão pouco tempo?

A rapidez com que os iroqueses e quase todos os selvagens se deslocavam em bandos dava vertigem. Um dia aqui, caindo como um raio, depois, dias mais tarde, falava-se deles na Acádia ou no alto do rio Hudson, não muito longe do lago Champlain. Depois, julgavam-nos de volta a seu vale, no centro, mas soava novamente um alerta nas proximidades do lago Nemiskan. Numa região sulcada por rios, ribeirões sem número que se reuniam pelos próprios lagos em cadeias não descontínuas, frequentemente a canoa era o meio de locomoção mais rápido, e suas flotilhas representavam uma força de guerra de uma mobilidade sem igual. Mesmo subindo os riachos e calculando o transporte por terra em certos trechos, podiam fazer de trinta a quarenta léguas por dia. Nem na França se viam carruagens e cavalos andar assim tão depressa.

Joffrey mostrou-lhe no mapa a passagem preferida desses demónios iroqueses que se escondiam tão depressa quanto surgiam. Com seus botes, duas vezes mais longos que os dos algonquinos e feitos de casca de olmo costuradas em pedaços muito grandes, atravessavam o lago Ontário, alcançavam o Alto Utauais, a baía James, o riacho Rupert, o lago Mistassins e, daí, o Saguenay. Tinham, ademais, váriasrotas, todas inacreditáveis.

Quanto aos indígenas do lugar - montanheses, mistassins, crees, maskapis -, disseminados por um vasto território infestado de pernilongos e moscas, tirando da água e da floresta sua ração diária, não tinham tempo nem os meios de se querelar. Os vizinhos, bem distantes, no inverno, às vezes a mais de cem quilómetros, permaneciam pacíficos. O hábito do comércio com os brancos e com os navios do Saint-Laurent, já o tinham dito, acostumara-os, no verão e no outono, a se reagrupar em certos pontos, no lago Piguagami entre outros, batizado como Saint-Jean, a fim de descer em grupos o Saguenay em direção ao Saint-Laurent. Os iroqueses aproveitavam-se disso para surpreendê-los e cortá-los como carne para patê.

Contra esse flagelo, os infelizes só tinham a ajuda dos franceses.

Ora, parecia que um novo episódio desse tipo se preparava lá em cima, nos rincões nublados dos fiordes de falésias rosadas, e não eram apenas os índios que estavam ameaçados, mas a população de Tadoussac e a de Quebec.

O Conde de Peyrac não podia recusar um serviço de uma importância vital ao governador da Nova França, não apenas um amigo, ao qual deviam sua volta às boas graças do rei Luís XIV, mas também um "conterrâneo", um gascão como ele. A Nova França, provida de um exíguo contingente militar, nesse momento inteiramente agrupado a sudoeste dos Grandes Lagos, não dispunha de qualquer defesa de peso no lagar. Era nessas ocasiões que se percebia que ela sobreviveria à custa de "milagres".

Naquela conjuntura, a chegada de Peyrac e de sua frota foi um desses milagres. Assim o decidiria a história. Era bem assim que o encarava Frontenac e também os habitantes de Tadoussac, que, com inquietude, contavam seus mosquetes. Em cada terreno, era preciso fazer esse jogo.

A decepção era grande para Angélica.

— E Honorina, o que ela vai dizer de não vê-lo acompanhá-la até Ville-Marie?

— Falarei com ela. E também para mim uma decepção, mas ela compreenderá. Se eu guardar a entrada do Saguenay, não acontecerá nada. Senão, arriscamo-nos todos ao perigo.

A situação não podia ser mais bem definida.

A presença de Joffrey e a de Nicolau Perrot dava a segurança de que os soberbos iroqueses se deteriam à vista dele, sem que houvesse derramamento de sangue.

Ademais, quando as expedições se encontrassem, seria necessário consagrar alguns dias a fumar o cachimbo da paz, a trocar oS "ramos de porcelanas" e a resgatar alguns prisioneiros, se ainda estivessem vivos, que não tivessem sido passados na "grelha". Os grupos de guerra deixavam em sua esteira a terra queimada, pois não vinham para pilhar nem para conquistar, mas para aterrorizar e exterminar.

Foi decidido que, enquanto Peyrac e Nicolau Perrot adentrassem o terreno, dois navios ficariam ao largo de Tadoussac para interditar a passagem das flotilhas inimigas. Pequenos canhões foram transportados para terra a fim de reforçar a defesa do fortim.

Nesse ínterim, o Arc-en-Ciel e o Le Rochelais, com o sloop, continuariam até Quebec, depois Montreal. Sob o comando de Bars-sempuy e de Vanneau, Kuassi-Ba e o escudeiro permaneciam junto à Sra. de Peyrac e sua filha, assim como o Sr. Tissot.

Assim que o perigo fosse afastado e que o Sr. de Frontenac, tendo cumprido sua missão, estivesse de volta à capital de seu governo, a guarda dos navios de Peyrac diante do Saguenay poderia ser retirada. Nesse momento, Joffrey julgaria se era melhor continuar em direção a Quebec ou esperar que Angélica, após confiar sua filha aos bons cuidados de Margarida Bourgeoys e ver seu irmão Josselino de Sancé, fosse encontrá-lo.

Pois, nessas regiões do setentrião, os dias de verão são contados e o tempo de navegação, restrito.

CAPITULO XVI

Estada em Quebec

A ausência de Joffrey mudava, para Angélica e sua filha, a cor das coisas. O tempo pôs-se de acordo com a situação. Uma violenta tempestade atrasou a. chegada a Quebec. A cidade apareceu sob uma cortina de chuva. Foi preciso esperar o sol para que decidissem desembarcar. Forrada de verde, Quebec, com seus sinos, torrinhas e campanários de telhados revestidos de chumbo que, molhados, rutilavam ao sol, retomou seu aspecto de relicário lavrado, trabalhado por um joalheiro apaixonado por sua obra. Angélica, ao avistá-la entre as nuvens, flagelada por dois raios de luz oblíquos que desciam sobre ela como que para abençoá-la, não pôde conter um sorriso. Quebec, nccoração da América do Norte, permanecia como uma jóia insólita, uma maravilhosa cidadezinha francesa, e os carrilhões do ângelus, o anúncio dos ofícios, as horas de preces escandidas da Santa Casa ou das ursu-linas, continuavam a desfiar sem parar, mas o que Angélica pressentia demonstrou ser correto.

A cidade de verão era bem diferente da cidade de inverno. No decorrer desses três ou, no máximo, quatro meses de verão, de um calor opressivo, cortados por tempestades rumorosas e muitos dias de folga, a tarefa urgente de colher, armazenar e preparar os campos para as sementeiras de outono esvaziava a cidade. As famílias, as comunidades, iam para os feudos, junto aos senhorios, a fim de ajudar nas colheitas, e, como era também a época das expedições militares, Quebec parecia uma grande casa a que tivessem aberto todas as janelas para arejá-la, mas deixada vazia, com os colchões nas janelas e os móveis no jardim, enquanto a família sai para um piquenique.

Desde a primeira noite, Angélica compreendera que a melhor coisa a fazer era continuar sua viagem para Montreal.

A Cidade Alta, sob suas chuvas de tempestade, pareceu-lhe menos amável. Silhuetas esparsas vagavam por ali sem animação. Não encontrara ninguém em casa. As sólidas construções conventuais - o bispado, o seminário, os jesuítas, as ursulinas, a Santa Casa - que, no inverno, levavam, entre seus muros espessos e sob seus altos telhados de três andares de forros, uma vida intensa e calorosa, pareciam desertas e ainda mais austeras.

Parecia que ali só se podiam tramar lúgubres empresas.

E os porcos domésticos tinham ido pastar em rebanhos para lá das planícies de Abraão, na orla dos bosques.

Em suma, todo mundo estava no campo.

- As cidades, como os homens, têm seu tempo de graça, suas estações abençoadas - observou a Srta. d'Houredanne, que felizmente Angélica encontrou no palácio da intendência. - Ah! cara Angélica, nunca mais haverá em Quebec uma estação como a que ela conheceu quando você estava entre nós!

A fina e encantadora senhora saltitava alegremente, recebia divinamente as "potestades" no palácio, mas Angélica, subindo a Rue de la Petite-Chapelle, depois a Rue de la Closerie, sentira uma pontada no coração diante da residência onde, outrora, nas noites de grande nevada, os vizinhos eram convidados a escutar a leitura que fazia a Srta. d'Houredanne, estendida em seu leito, dos amores da Princesa de Cleves. Cuidando dela, estava ali apenas Jessy, a cativa inglesa, tendo, bem à frente, a casa de Ville-d'Avray, semifechada e, como que cega, com a maior parte de seus postigos fechados.

A criada exclusiva do marquês estava ali sozinha, esperando seu governador, e polindo com energia objetos preciosos que ele apreciava muitíssimo.

Monsenhor Le Lavai estava em viagem pastoral ao longo do rio, em suas paróquias.

Quando se apresentara no arcebispado, Angélica fora recebida pelo coadjutor, que ela não conhecia, mas, seja por esperar uma acolhida mais solícita, considerando-se as boas relações mantidas desde a sua-passagem pela Nova França, seja porque o eclesiástico em questão possuía uma natureza tímida e pouco expansiva, não abrira a boca senão para o estritamente necessário. Sua atitude fria e, quando pensava nela, dificilmente correta lembrara vergonhosamente a Angélica a época em que a cidade se dividia a seu respeito, e quando nunca se sentia segura, abordando alguém, de não dar com um adepto do Padre d'Orgeval. Estando este morto, os velhos rancores continuariam? Mas ninguém disse nada a esse respeito.

Estava contente por tornar a descer à Cidade Baixa, onde a acolhida de Janine Gonfarel, a Polaca, gerente do albergue Ao Navio de França, compensara a decepção experimentada de não encontrar no lugar rostos, amigos, a não ser os dos valetes ou intendentes encarregados de entregar-lhe cartas e recados da parte de seus senhores ausentes.

- Hospede-se em minha casa - disse-lhe sua exuberante amiga, depois de abrir-lhe, do alto do patamar, os braços, soltando grandes exclamações de alegria que ressoaram até o fundo da Place de PAnse-au-Matelot. - O que irá fazer na Cidade Alta? Está vazia e morna como um velho ninho abandonado. No Castelo São Luís, o Sr. de Frontenac deixou apenas alguns mutilados e veteranos que não têm o que fazer a não ser jogar cartas. "Na Cidade Baixa sempre fica gente, e minha casa não se esvazia como de hábito. Mas reservei para você o quarto mais bonito, aquele no qual coloquei o Sr. de Ville-d'Avray quando ele quebrou o tornozelo, lembra? E para seu belo grupo de oficiais tenho quartos também. E para os soldados de sua guarda, deve haver umas enxergas no galpão. Para toda a companhia, o melhor vinho.

Angélica congratulava-se com esse arranjo. Honorina ficou encantada. Sempre gostara de brincar com os moleques do porto na Cidade Baixa, que arrumavam entre as casas recantos de praia para ali chafurdar e fazer flutuar seus barquinhos.

Descendo novamente para essas terras pouco hospitaleiras, Angélica aspirava já os eflúvios do bom guisado da Sra. Gonfarel.

A Polaca observou-lhe que, durante sua ausência, homens do prebostado - "uns escrevinhadores, é assim que os chamo, uns escrevinhadores" - tinham vindo rondar no porto, interrogaram os marinheiros em terra e os mestres, pediram para falar com os capitães. Dizia-se nas altas esferas que o controle de dois navios e do sllop que chegaram no fim daquela manhã não tinha sido feito com bastante rigor.

— Mas nós temos "franquias" assinadas pelo Sr. de Frontenac e o Sr. Carlon, e o representante do prefeito da cidade e do porto veio pessoalmente me cumprimentar e me trazer as homenagens do Sr. d'Avrenson. Este foi com o governador em sua expedição ao lago Frontenac, mas deixou todas as instruções concernentes a nós.

— Não se preocupe - sussurrou-lhe a Polaca -, está tudo em ordem, trata-se apenas de verificar se não há, entre sua tripulação e seus empregados, adeptos da Religião Reformada. Temem-nos mais do que a uma epidemia de peste. Todas as companhias mercantes têm em seu contrato uma cláusula que os proíbe de introduzir na Nova França adeptos de Calvino e de Lutero. Isso está se tornando cada vez mais rígido.

Angélica garantia junto ao responsável que dependia, ao mesmo tempo, do arcebispado, do prebostado, do cartório e do Departamento Viário, pois essas questões interessavam à salubridade do porto comprometida pela introdução de indesejáveis na colónia francesa, e, naturalmente, do escritório dos Negócios Religiosos, delegado peia Administração Real, que não houvesse nenhum adepto da RPR - Religião Pretendida Reformada - a bordo de seus navios. Ela cruzou os dedos por trás das costas, pois isso não era totalmente verdadeiro em relação aos homens da tripulação, mas seu interlocutor pareceu contentar-se com suas declarações, e não falou de inspecionar os navios nem de fazer cada homem declinar seu credo.

Mostrava-se amável, exprimia seu pesar por ter de aplicar as mesmas formalidades a hóspedes tão amados da Nova França, compatriotas, além disso, que o Sr. de Frontenac recomendara calorosamente antes de se afastar. E sabia-se com que amizade o rei da França, Sua Majestade Luís XIV, os honrava.

Mas a lei devia ser a mesma para todos, sobretudo quando se destinava a combater um perigo tão insidioso e mortal quanto o de ver introduzirem-se no seio do feudo católico do Novo Mundo esses portadores dos germes da heresia protestante. A Nova França, dizia ele, não podia esquecer os males Causados por esses trânsfugas, traidores de seu Deus e de sua pátria, os irmãos Kirke, que, em nome da Inglaterra, capturaram Quebec em 1629, expulsaram Champlain, o governador, e ocuparam o lugar durante cinco anos. Angélica não o contradisse. Felicitava-se por não ter levado Severina Berne.

Em sua primeira estada, não tratara com a personagem, pois Joffrey discutira com ela essa questão dos protestantes. Só o conhecia de vista. Ela ganhara importância e perorava:

- Uma vigilância das mais constantes permitiu-nos alcançar um resultado. A Nova França pode considerar-se a única província francesa realmente purificada do flagelo. No início, ela, mais do que as outras, foi ameaçada, uma vez que os huguenotes refratários imaginavam que, por terem atravessado os mares, poderiam professar livremente, em terra francesa, suas doutrinas culpáveis. Poucos não foram detectados, e todas as almas piedosas estavam vigilantes. Quando Madre Catarina de Santo Agostinho soube que, entre os colonos doentes que chegaram e que foram levados à Santa Casa, devia haver inúmeros protestantes disfarçados, foi secretamente procurar uma relíquia de osso do mártir Padre Brébeuf, transformou-a em pó e colocou-a nos alimentos dos supostos protestantes. Pois bem! todos esses homens refratários e dissimulados, no final de quinze dias, tornaram-se doces como anjos, desejando ser intruídos na verdadeira religião, e abjuraram sua heresia publicamente e com um fervor admirável.

Angélica já ouvira falar dessa história do pó de osso, mas fingiu que a ouvira pela primeira vez. Depois das histórias de Salem, as da Nova França pareciam-lhe anódinas.

Acabou por pedir-lhe que se sentasse e mandou oferecer-lhe um quarto de vinho branco, sem saber se ele era sinceramente amigável ou se queria que ela compreendesse que ele não era otário e que continuava a desconfiar dos estrangeiros "independentes" de Gouldsboro que haviam fundado a fortuna de seu estabelecimento na introdução de sessenta huguenotes de La Rochelle em terras da Acádia.

- E se fosse ele o espião do rei - disse a Polaca, olhando o homem afastar-se. - Algumas vezes eu me pergunto. Desde que se fala de revogar o Edito de Nantes, ele fica cada vez mais importante. E sobre isso e sobre toda essa gente que envenena o próximo na corte da França que se fala, e isso constitui o fundo das notícias que nos trazem da França. E durante esse tempo os chapéus se encolhem. Ah! Quando nos devolverão aqueles des chapéus de feltro com abas largas que abrigavam noss< mens da chuva e do sol, dissimulavam seu rosto quando na.. queriam ser vistos demais, nos quais se podiam colocar belas plumas bem eretas ou um penacho de faisão dourado ou de tetraz, em vez de uma torrinha de. cauda de filhotes de avestruz, que mandaram vir dos antípoles a tão alto preço! Ah! esses grandes e belos chapéus que tinham tanta elegância quando eram retirados para uma grande saudação: você se lembra de Rodoguno, o Egípcio, e mesmo de Calembredaine?

Angélica perguntou-se o que escondia a homilia da Polaca em favor dos grandes chapéus.

Conversar com a Polaca continuava a ser um prazer raro para ela. Saía de suas discussões reanimada e mais filosófica. Para não desperdiçar a oportunidade, pouco frequente, que lhes era dada de conversar a sós, Angélica transferiu para dali a dois dias a aparelhagem para Ville-Marie. Era preciso preparar a pequena embarcação Le Rochelais para receber seus passageiros. O Arc-en-Ciel, cujo calado era demasiado grande para subir o rio para lá de Que-bec, permanecia na enseada com o Sr. d'Urville que, bem instalado, via com bons olhos o reencontro com uma cidade onde deixara conhecidos amáveis.

O calor continuava a ser uma provação. A tempestade que se formava durante o dia, nem sempre, porém, eclodia. Transpirava-se e tinha-se muita sede.

Na sala particular da Sra. Gonfarel, ao lado da grande sala onde se sentavam à mesa seus clientes e de onde podia examiná-los através de um postigo, era mais agradável, pois dava para o norte. E ali se retirava de um poço interno uma água muito fresca. A Polaca esvaziava sobre a mesa grandes cestos de feijões e de ervilhas verdes, e elas se sentavam uma diante da- outra para escolhê-los enquanto falavam.

-        Nunca esqueci que os belos legumes são refeições de príncipes - dizia a Polaca."- Os mendigos só tinham direito às raspas, e olhe lá! Isso quer dizer que não conheciam o seu gosto.

Por isso, faço questão de minha horta.

Fazia rolar as ervilhas na palma da mão com prazer.

-        É um belo alimento. Mas as pessoas daqui não o apreciam. Estão habituadas a comer coisas sólidas, que enchem o estômago, para resistir ao frio.

Na cozinha de verão pegada à casa, um guisado de boi ao vinho tinto cozinhava em fogo lento.

— Diga-me, Polaca; e seu garoto, o bochechudo, ainda não o vi...

— Já faz tempo que ele foi para os bosques.

— Tão moço!

— Forte como ele é, não se podia mais retê-lo. As peles são uma doença, uma febre para todos os jovens e... a única maneira de se enriquecer!

Entretanto, finória e tendo adquirido pela posse de bens, que desejava conservar, um certo tino comercial, Janine Gonfarel, chamada a Polaca por aqueles que a conheceram num período esquecido de seu passado, se inquietava. Não pelo garoto, mas pelo mercado desse artigo precioso, a pele. E voltava-se a essa bendita moda dos chapéus redondos, cujas abas ficavam cada vez mais estreitas, e que ia dar um golpe fatal, estimava ela, no comércio tão florescente do castor. Os chapéus de "feltro de castor" eram uma bela moda de outros tempos, que fizera da pele desse animal, por muito tempo desprezada como adorno até pelos índios, uma mercadoria preciosa, e dos "viajantes", que iam recolhê-las entre os selvagens, homens afortunados. Um corajoso rapaz que, na França, nunca tivera um tostão no bolso, ainda que se esfalfasse durante a vida inteira, podia, depois de alguns passeios nas regiões altas, mandar fazer uma casa burguesa em Quebec ou na ilha de Montreal e oferecer à sua futura esposa vestidos de seda e de renda.

— Mas, se a cotação do castor baixar - gemia a Polaca -, que vai nos acontecer no Canadá, onde só contamos com essa riqueza?

— Falam mesmo que a pele vai diminuir? - surpreendeu-se Angélica.

— Ainda não. - Baixando a voz, a Polaca disse que, havia alguns anos, a França enviava seu excedente de peles para os Países Baixos e para a Holanda, mas que, naquele ano, os comerciantes de Liege e de Amsterdam compraram duas vezes menos e avisaram que estavam também saturados. E, principalmente, de castor. Indícios inquietantes. Era preciso admitir que isso se estendia às outras peles, raposas, lontras, visons. - Conseguimos tirar o monopólio da Moscóvia, mas nunca mais haverá tantos pedidos de castor, e o castor é o chapéu. Pequenos chapéus, menos pedidos, bastantes castores no mercado... No fim, a ruína...

— E, no entanto - comentou Angélica, enquanto escolhia os feijões verdes -, os franceses continuam a travar uma luta feroz contra os ingleses para não os deixar traficar a pele em nenhum território que lhes seja acessível.

Os franceses nunca estavam satisfeitos, e sua rispidez era compreensível, pois o orçamento da colónia e sua subsistência, sua razão de ser, repousavam nesse único comércio. A Polaca continuava pessimista:

-        A pele está ameaçada, é preciso buscá-la cada vez mais longe... Enfim, talvez essa seja uma simples ideia minha. Ela pode manter-se ainda por muito tempo. Quando as pessoas não querem que isso mude, encontram todo tipo de argumento, e, talvez, a ruína não se dê tão cedo. Mas é preciso pensar

antecipadamente... Não mais peles! Que faremos? Produz-se um bom trigo, mas não navios para enviá-lo, e, no entanto, o Sr. Carlon, o intendente, se esforçou. Criam problemas para ele. E já se recomeça a encher de cascalho os navios que voltam à França, a fim de lastreá-los, pois há falta de frete.

Que contraste com o trabalho de formigas que haviam visto na Nova Inglaterra! Angélica descreveu a atividade das colónias inglesas, que enviavam à Terra Nova ou às ilhas víveres, animais, madeira aparelhada para cobrir os telhados, e que traziam de volta produtos "franceses, vinhos e perfumes ou melado, açúcar para fabricar o rum que eles exportavam novamente para lá, onde não havia essa bebida.

A Polaca escutava-a com interesse.

- Vamos ver Basílio, ele também tem bom faro... Talvez tenha uma ideia sobre os chapéus.

Se Joffrey estivesse lá, tudo teria sido diferente. Ele arr muita gente atrás de si. Insuflava um tal fermento de vida, que dava vontade de segui-lo. Ele impunha uma coesão na ação.

Com ele ausente, Angélica ficava mais sensível a uma mudança, devida às dispersões do calor. Quando estava em Salem, sentia-se francesa, mas, quando estava em Quebec, sentia-se de outro lugar. E, além disso, fazia tanto calor!

Entretanto, à noite, ouvindo marulhar a maré ao pé das casas da Cidade Baixa, aproveitou bem seu repouso.

No grande e belo quarto onde a Polaca os instalara queimava-se erva-cidreira para afastar os pernilongos. Com Honorina adormecida ao seu lado, Angélica cochilava. A noite estava clara no enquadramento da janela aberta. A lua devia esconder-se por trás da neblina pesada exalada pelo rio e a flcJresta. Os ruídos do porto eram discretos. Sempre gostara dos movimentos da beira do cais, esse dueto de terra e água, parecendo que cada um cochichava ao outro confidências, segredos, comunicando-se os encantos de seus mundos opostos, os navios ancorados, senhores vagabundos, bamboleantes, parecendo impacientes para voltar ao largo, e a fauna díspar dos cais em torno de pequenos fogos, muito vigiados, nem sempre permitidos, mas que constituem o prazer de terra firme.

Era um pouco dessa espécie errante - pela força das circunstâncias -, mas, ainda que isso fosse fruto de um constrangimento, não a impedia de ter adquirido essa faculdade de se sentir, em toda parte, um pouco do lugar por onde passava. Era-o, sem o ser. Ela os segurava por uma ponta e esta se enganchava, era preciso desenrolar a meada numa outra direção. E era esse o papel que tinham de desempenhar para reunir todos esses cantos Jo mundo a que estavam afeiçoados e a que pertenciam por laços de nascimento ou de escolha.

Não mais estavam fora, mas, ao contrário, dentro do inextricável encavalamento: o rei, a Nova Inglaterra, a Nova França, os navios, os exploradores de bosques, o futuro, os sonhos, as ambições, as crianças que crescem, tão devagar e tão depressa, as fortunas que se edificam tão lentamente e desmoronam tão rapidamente, as leis que incham até estourar como um sapo e que ocupam toda a parte anterior da cena, arbitram os medos e outros que se perdem como água na areia. Homens desaparecem, outros se impõem.

O que era fatigante é que, nem bem terminava uma partida, os peões de outra, numa saída incerta, já se dispunham no tabuleiro. E não se podia hesitar. Estavam comprometidos. Joffrey aceitara ajudar Frontenac junto aos iroqueses. Ela pusera no mundo duas crianças, e a única perspectiva de suas vidas que se iniciavam subvertia os dados da deles, tornava mais grave e mais sutil a escolha de suas decisões e das empresas do futuro, mais importante a estabilidade do presente. Florimond e Cantor estavam na corte, na França. A pessoinha que dormia contra seu ombro escolhera ser entregue às mãos da Srta. Bourgeoys para aprender a ler e a cantar.

E eles estavam no meio dessa tela tecida ainda com fios grossos, no Novo Mundo. Sua fortuna repousava nos acordos comerciais com a Nova Inglaterra, em sua generosidade para com a Nova França, na proteção do rei.

A partida nem bem começara, mas tudo estava ainda muito confuso, e o tabuleiro perdia-se nó nevoeiro. A única coisa que sabia é que era preciso continuar, sem esmorecer, o caminho dos-"descobridores", dos exploradores, que nem sempre sabem o que lhes reserva a volta de um rio.

No dia seguinte, uma vez mais, dobrando o cabo Vermelho para Montreal, avançaria para um país desconhecido. Isso não lhe desagradava.

Angélica olhava Honorina dormir. Acariciava sua bela cabeleira. A cada sacrifício que Honorina infligira a ela com suas tesouradas, seus cabelos tornavam a crescer mais belos e com uma coloração -mais pronunciada de cobre vermelho.

Pousou um beijo na testa branca e abaulada de Honorina. "Que vai ser de mim sem você, meu amorzinho?..?

Honorina suspirou em seu sono e murmurou:

-        Oh! Tenho tantas coisas a fazer!...

Não era um queixume desencorajado, mas a exclamação ao mesmo tempo extasiada e um pouco inquieta de quem mede a importância dos trabalhos que lhe são atribuídos e que duvida de que consiga realizá-los com êxito.

E Angélica perguntava-se quais seriam as inúmeras tarefas que a criança estaria avistando em seu sonho, no caminho de sua vida.

Ao saber que Angélica estava de passagem por Quebec, a Sra. de Campvert foi visitá-la. Essa mulher, que tinha má reputação e que fora exilada da corte por ser a mais rematada trapaceira no jogo que se possa imaginar, fez-se carregar numa cadeira assim que soube que Angélica estava no porto. Era-lhe reconhecida e tinha-lhe amizade por ter ela cuidado de seu macaquinho que estava morrendo de uma inflamação dos brônquios e do qual ninguém queria tratar. O macaco estava gozando de plena saúde desde então.

-        Tomo muito cuidado com ele na época de muito frio, como você me recomendou. Ah! quando acabará esse duro exílio? Quando o rei me perdoará? Ele perdoou a você. Você falará por mim quando o vir em Versalhes, não é?

Parecia persuadida de que eles iam voltar para a França dentro em breve. Tinha notícias da corte, de Vivonne. "Talvez seja ele quem se opõe a minha volta. Sei muitas coisas sobre ele... Quando você voltar à corte, interceda por mim..."

-        Mas, eu... - começou Angélica, que queria fazê-la compreender que a volta da qual ela falava era, apesar da autorização do rei, muito problemática.

Ela não teria escutado suas negativas, cujas razões teriam escapado a ela, que se consumia longe de Versalhes.

-        Esses homens do correio real que recebi em minha casa quando chegaram os navios disseram-me que seus filhos são muito apreciados por Sua Majestade. Não sei o que entenderam sobre sua situação no Novo Mundo, mas surpreendiam-se por não encontrá-la em Quebec, assim como o Sr. de Peyrac. Parece que na corte, periodicamente, espalha-se a noticia de que vocês estão de volta à França, que o Sr. de Peyrac e você irão se apresentar em Versalhes. Houve até um boato, certo dia, de que tinham acabado de chegar, que já tinham sido recebidos pelo rei. Cada qual se desolava por seu lado, julgando ter sido o único a ter perdido tudo. Em todo caso, o que se pode dizer é que vocês são esperados por Sua Majestade. É verdade o que contam? Que Sua Majestade, em outros tempos, não foi insensível a seus encantos? Desses falatórios, Angélica retinha um fato. É que a proteção do rei permanecia concedida a eles, e que, enquanto isso durasse, ninguém poderia prejudicá-los na Nova França.

Um militar de uns trinta anos apresentou-se no albergue Ao Navio de França. Ouvira falar da presença da Sra. de Peyrac em Quebec, e queria pedir-lhe que interviesse junto a sua "loura", sabendo que ela a conhecia e poderia talvez convencê-la a desposá-lo, como havia tempo estava suplicando.

- Está falando de uma loura! - exclamou a Polaca.

Tratava-se da Mourisca, a Moça do Rei que chegara com o contingente do La Licorne e que o Sr. e a Sra. de Peyrac conduziram até Quebec, para onde eram enviadas para se casarem com os jovens canadenses.

O termo "loura" era tão familiar aos soldados para designar a noiva ou a namorada que ficara no país, que o bravo rapaz, que não conhecia provavelmente a jovem, não compreendia por que não o usaria para designar aquela que habitava seus sonhos e que era contudo uma negra muito bela, educada em Paris pelas Damas de Saint-Maur.

Ela ainda não arranjara marido, não porque lhe faltassem pretendentes, mas porque tinha posto na cabeça que só se casaria com um oficial ou um fidalgo.

Angélica recolhia assim algumas notícias sobre suas protegidas. Henriqueta tampouco tinha urgência de se casar com um canadense, pois conhecia a vkla dura dos feudos isolados. Continuava a serviço da Sra. de Baumont, que a levara para a França numa viagem que fora obrigada a fazer, a fim de acertar umas questões de "herança. Ambas estariam de volta no ano seguinte, a menos que Henriqueta arranjasse um marido por lá.

- Se ela voltar, avise-a de que sua jovem irmã está bem casada na Acádia, em Port-Royal, na senhoria de La Roche-Posay. Acho que ficará feliz por ser avisada.

Disseram-lhe também que Delfina du Rosoy, que se encarregara de suas companheiras após a morte da Sra. de JVIaudribourg, devia estar na cidade, um pouco sozinha, pois seu marido, alferes, acompanhara o Sr. de Frontenac ao lago Ontário, para o pa-wa dos iroqueses.

Esse casal, muito estimado por todos, era um dos membros mais ativos da Confraria da Sagrada Família e dedicava-se às obras de caridade. Entristeciam-se por ainda não terem filhos.

E, já que falavam de Sagrada Família, Angélica relia a carta da Sra. de Mercourville, uma das primeiras que ela abriu dentre as que lhe foram entregues ao chegar. Desconfiava que ali se falaria dos projetos de núpcias entre Kuassi-Ba e Perrina, sua escrava negra.

Para começar, a Sra. de Mercourville participava-lhe que se encontrava na senhoria da Pointe-aux-Boeufs com todo o seu pessoal, inclusive a noiva de Kuassi-Ba. Sempre obsequiosa, não se esquecia de lhe comunicar alguns nomes e indicações que pudessem lhe ser úteis em sua procura dos cativos ingleses na Nova França, informações que lhe pedira em sua carta do último outono. Recomendava-lhe algumas pessoas em Ville-Marie, conhecidas como zelosos conversores de hereges, e um jesuíta, capelão da missão de Saint-François-du-Lac, no rio Saint-François, onde havia um grande contingente de abenakis batizados, possuidores de ingleses trazidos por eles, como butim de seus reides de represálias nos estabelecimentos da Nova Inglaterra.

Advertia-a amigavelmente que essa questão dos cativos ingleses era uma questão delicada.

Os ingleses eram o butim dos índios aliados, que costumavam utilizar os prisioneiros para substituir, nos trabalhos braçais, os guerreiros que morriam em combate.

Voltando ao projeto Kuassi-Ba-Perrina, tratariam disso quando ela voltasse a Ville-Marie. Se o enlace se desse no início de agosto, a Sra. de Peyrac encontraria muito mais gente em Que-bec, aonde voltavam para preparar as grandes festas marianas e as procissões que percorreriam a cidade de alto a baixo, solenidades que só podiam desenvo!ver-se com tanto aparato na capital, que recebia, ao mesmo tempo, nessa oportunidade, a bênção anual do ostensório, e das quais todos os cidadãos de Quebec queriam participar.

Para o casamento, a Sra. de Mercourville mandara preparar uma minuta de contrato, estabelecido segundo os termos um uso para esse tipo de acordo, que ela pedia ao Sr. e à Sra. de Peyrac a gentileza de estudar, a fim de que pudessem discutir-lhe as modalidades quando de sua passagem na volta, que, julgara lamentavelmente ter compreendido, seria breve.

Angélica leu sem entusiasmo o projeto em questão:

"O Conde de Peyrac, Senhor de Peyrac e de outros lugares, autoriza Armando César, seu negro, a casar-se com Perrina Adélia, a negra da senhora baronesa, viúva dotada de Morne-Ankou, na ilha de Martinica, nascida D'Ambert, casada Mercourville.

"Isso em consideração por trinta anos de serviço - mais ou menos - do dito Armando César e também após a expressão da satisfação, por parte da baronesa, pelo tempo que a dita negra era capaz de servir.

"O abaixo-assinado, Messire Jeammot, cura da paróquia de Pointe-aux-Boeufs, atestará ter considerado as ditas declarações conformes e, por conseguinte, lhes dará a bênção nupcial por eles solicitada.

"Os casados se comprometem a servir ambos durante três anos, depois do que serão declarados livres.

"Assinado: Joana de Mercourville, nascida... etc."

- Mas assim não vai dar certo de modo algum - exclamou Angélica, ainda de pé na sala na qual a Sra. Gonfarel acabava de introduzi-la.

Primeiro, estava chocada por falarem de Kuassi-Ba, o qual, pela primeira vez, lhe diziam chamar-se Armando César, como de um escravo comum. Havia muito tempo que fora liberto. Que pena que Joffrey não estivesse ali! Poderia encarregar-se da melhor maneira possível dessas questões, com muito jnenos dispêndio de energia e de contrariedade. Decididamente, só gostava de Que-bec quando se tratava de cuidar de coisas frívolas, agradáveis e pessoais, diplomáticas, a rigor. Isso sem dúvida se devia ao ar francês que ali se respirava, mesmo em pleno verão, e que desviava os espíritos dos deveres ingratos.

A Polaca encorajou-a nesse sentido.

- Fale sobre isso quando voltar. Deixe isso de lado. O assunto amadurecerá como o vinho na adega...

Angélica não quis mostrar essa minuta de contrato a Kuassi-Ba. Talvez estivesse decepcionado por não ter reencontrado Per-rina, mas não disse nada, e ela o sentia mais preocupado em zelar por ela, Angélica^ e por Honorina. O que vinha para ele em primeiro lugar era poder voltar a Tadoussac após cumprir sua missão: proteger e defender, se fosse preciso, pelas armas, o que ele sabia ser para seu amo, Joffrey de Peyrac, o mais precioso tesouro, a que ele chamava "a Felicidade do Amo". Angélica não duvidava de que, se lhe acontecesse qualquer coisa, Kuassi-Ba estava pronto a suicidar-se no mesmo lugar. Já era bem difícil para ele pensar que iam deixar Honorina era casa de estranhos. Ao contrário dela, o ar da Nova França lhe inspirava uma profunda suspeita. Quando de seu último inverno em Quebec, não deixara um só momento de ostentar uma expressão muito sombria. Andava pelas ruas de Quebec com mais desconfiança que nas de Paris, à noite, antes que o Sr. de La Reynie tivesse mandado colocar as lanternas. Raramente ficava tranquilo, e seus olhos não paravam de espreitar de um lado e outro.

Por isso, durante essa viagem, em que se sentia encarregado de pesadas responsabilidades, ela procurou não lhe causar aborrecimentos, passeando descontraidamente, sem avisá-lo de suas andanças. Em Quebec, ficariam apenas três dias. Não tinha vontade de demorar-se ali.

CAPITULO XVII

No Alto Saint-Laurent

Com efeito, uma vez transpostos os dois promontórios gémeos de Quebec e de Levis e dobrados o cabo Diamant e o cabo Rou-ge, a subida do rio adquiriu um sabor de desconhecido, de coisa nunca vista, com surpresas ocultas que, antes deles, deviam ter experimentado os primeiros brancos, franceses: Cartier, Cham-plain, Dupont-Gravé, cujas naves, sempre para a frente, subiram esse rio-mar ainda imenso e que, no entanto, se encolhia, levando sua esperança de desembocar um dia no mar da China.

Acabaram por atingir um limiar de corredeiras intransponíveis. Ali, na maior dentre um enxame de ilhas que formavam o fim da rota navegável, no cimo de uma pequena montanha, Cartier plantara uma grande cruz com as armas do rei da França e batizara a colina de monte Royal.

Era o fundo da armadilha do Saint-Laurent, no coração da floresta americana - quem ousaria ali voltar? Um século mais tarde, um bravo fidalgo da Champanha, o Sr. de Maisonneuve, e sua equipe de aventureiros de Deus, cujas duas mulheres, Joana Mance e Margarida Bourgeoys, plantavam na mesma ilha uma outra cruz e fundavam Ville-Marie, colónia de povoamento, destinada a levar a palavra sagrada do Evangelho aos infelizes índios nascidos na ignorância do paganismo.

Era uma época já distante e, no entanto, apesar dos esquifes e dos navios com que cruzaram durante o percurso e os ceifeiros avistados nos campos, continuava a reinar uma impressão de selvagem, de barbárie latente. A história das margens desse rio era cheia de emboscadas e de massacres de povos e de nações em guerra, de tribos exterminadas, reprimidas, enquanto outras tomavam seu lugar e eram exterminadas por sua vez.

Época dos colonos vindos da França, por menos numerosos que fossem no início, pobres, dispersos, um punhado de grãos lançados ao vento dos espaços, época pontilhada de ataque dos trabalhadores do campo, de combate a um contra cem, de corridas descabeladas para.o forte e sua paliçada, com uma nuvem de iroqueses urrando no encalço de trabalhadores, de lavradores, de carpinteiros, de serradores de pranchas bruscamente assaltados, escalpelados ou raptados, levados para o fundo das florestas, torturados de uma maneira espantosa, cortados em pedaços e jogados no caldeirão para serem cozidos e comidos.

Fizeram apenas uma breve escala em Trois-Rivieres. Era uma pequena cidade ao mesmo tempo cheia de animação e frequentemente deserta. Aqueles que ali eram encontrados pareciam sempre prestes a partir para esta ou aquela direção que a encruzilhada de água, mais complicada que um delta, lhes propunha. Na confluência do Saint-Maurice com o Saínt-Laurent, atrás de suas muralhas de estacas, tinha deixado de ser, desde o envio do regimento de Carignan-Salliere, a vítima preferida dos iroqueses.

Somente além, a cinquenta quilómetros dali, é que se começava a ver, com mais frequência, na fímbria dos campos onde se agitavam os homens ceifando, as mulheres amarrando feixes de feno ou respigando, homens armados fazendo sentinela.

Se Joffrey de Peyrac estivesse presente e se não houvesse a perspectiva da separação de Honorina, Angélica teria, sem dúvida, encontrado mais encanto nesses horizontes nublados, mais cinzentos que azuis, atravessados por raros clarões de sol pálido.

Tinha pressa de chegar.

Honorina saltava num pé só na coberta do barco. Esquecera, dizia, as brincadeiras que faziam, empurrando com um pé um seixo chato de uma lajota a outra no grande vestíbulo das ursuli-nas. Cantarolava também as canções que ali aprendera, tentando lembrar-se da letra: Rouxinolzinho selvagem, Ama-seca do rei, DameLombarde, Junto de minha loura, como ébom, como ébom... que lhe trouxera à lembrança o namorado da Mourisca.

Ficaria muito orgulhosa de mostrar a Madre Bourgeoys que podia cantar com as outras meninas. Havia nela muito boa vontade. Com a idade, uma menina bem-comportada, que desejava fazer-se amar, suplantava sua natureza primeira, impulsiva e suspicaz.

Uma dessas canções, cujos versos" eram enunciados com ardor pela menininha, chamou a atenção de Angélica:

- "Rouxinolzinho do lindo bosque,

Rouxinolzinho do lindo bosque,

Ensine-me o veneno,

Ensine-me o veneno,

Para envenenar meu marido, que tem ciúme de mim.

Vá lá naquelas encostas,

Lá o encontrará,

A cabeça de uma serpente maldita,

lá a cortará. Entre duas lâminas

de ouro e de prata,

Depois a moerá."

— São essas as canções que ensinam nas Ursulinas? - surpreendeu-se Angélica.

— É a história de Dame Lombarde, a envenenadora - explicou Honorina.

— Mas é uma história trágica! enfim... inquietante.

Angélica viu-se levada a falar com Honorina sobre sua própria infância. Explicava-lhe que, se não estivera no convento quando era mais jovem, era porque eles eram de família nobre, mas pobre. Honorina pôs-se a fazer perguntas precisas: como era ser nobre mas pobre? Foi preciso falar das tapeçarias de Bérgamo nas paredes úmidas, que estavam bem desgastadas. Mas, exceto por esses detalhes sobre as tapeçarias que caíam em frangalhos, não encontrou outros. Se suas irmãs e ela tremiam em sua cama nas noites de inverno, era mais de medo de fantasmas que de frio. Elas se mantinham aquecidas, as três juntas, na cama grande. A mais velha era Hortênsia. - Onde ela estaria naquele momento? - Na França. - Mas onde, na França? - Em Paris, provavelmente. - A outra, a pequena, era Madelon. Madelon morrera. Fora por causa da pobreza que ela morrera? Ou do medo? Angélica tornou a sentir a aguda pontada no coração que frequentemente sentia ao pensar em Madelon. Conservava a impressão de que Madelon morrera porque a defendera mal.

-        Não fique triste! - disse Honorina, colocando a mãozinha

em seu punho. - Não foi por sua culpa.

Como era seu pai? Que fazia sua mãe? Ela cuidava das plantas para as tisanas? Não, mas cuidava dos legumes e das frutas do pomar.

Angélica via passar, num plano inferior, como um sol, o grande chapéu de palha amarrado como uma echarpe, e a silhueta delgada e digna de sua mãe aproximando-se das latadas onde as peras estavam maduras.

Ela, Angélica, a selvagem, estava numa árvore e, agachada num galho, espreitava com seus olhos verdes. Que estaria fazendo naquela árvore? Nada. Espreitava. Atenta para não ser surpreendida. Todavia, sua mãe não diria nada... Angélica, quando criança, gostava de espreitar, olhar. Absorvia o instante a ponto de fixá-lo em todos os detalhes: o zumbido das moscas, o odor delicioso das frutas mornas.

— Graças a ela, nossa mãe, a Baronesa de Sancé, comíamos coisas gostosas.

— Os olhos dela eram como os seus?

Angélica dava-se conta de que não se lembrava mais de quem, seu pai ou sua mãe, tinha olhos claros como ela, olhos de um matiz que, em certas crianças, tinha se tornado mais azul ou mais verde.

Perguntaria a Josselino, seu irmão mais velho. Ainda não acreditava inteiramente nesse reencontro.

Um pouco depois de Trois-Rivieres, o rio se alargava para formar a extensão do lago Saint-Pierre. Era famoso por ser muito batido de vento.

Uma leve tempestade não tardou a sacudir os navios. Do tombadilho do Le Rochelais, avistaram canoas índias que se debatiam entre as vagas. Barssempuy veio dizer que uma delas, na qual julgara distinguir a silhueta de um eclesiástico, parecia estar afundando.

Baixaram à água uma chalupa e-, pouco depois, sob as rajadas de uma chuvinha fustigante, subiam o bordo os dois índios cuja canoa acabava de afundar e seu passageiro, um Toga Negra, que se apresentou sob o nome de Reverendo Padre Abdiniel.

Angélica aprendera então a ficar de atalaia quando tinha de tratar com um jesuíta. Aquele pareceu-lhe neutro, sem hostilidade nem simpatia. Agradeceu-lhe a ajuda que lhe haviam concedido. A canoa de pequeno porte na qual embarcara com dois catecúmenos, que, como ele, se dirigiam a Saint-François-du-Lac, fora desviada do rumo nos rochedos, onde uma insidiosa aresta perfurara o casco feito de cascas de bálsamo que, no entanto, era bem sólido. Depois, antes que seus ocupantes pudessem pular na água e chegar a terra firme, os redemoinhos reconduziram a embarcação para o meio do rio. Mastigando ativamente, para amolecê-lo, seu revestimento de borracha e de resina, os remeiros tentaram tapar a brecha enquanto ele retirava a água. Mas, apesar de seus esforços, não tiveram tempo de se manter na superfície quando lhes chegaram os socorros. Graças a Deus, no Saint-Laurent, nunca faltavam barcos ou navios para vir em auxílio dos navegantes em perigo. Era a grande fraternidade do rio.

Angélica verificou numa olhada à carta da Sra. de Mercourvil-le o nome do jesuíta que ela recomendara a propósito dos prisioneiros ingleses, e viu que o acaso lhe fora favorável. Estava na presença do capelão da missão índia onde alguns deles poderiam estar.

O padre confirmou seu ministério junto aos abenakis naquele vasto acampamento, antigo posto de trocas, onde a maioria dos batizados dessas nações estavam reunidos.

Angélica aproveitou o trajeto necessário para conduzir os sobreviventes à foz do rio Saint-François, onde o resto da flotilha os esperava, para falar-lhes das propostas de resgate que trazia do Massachusetts. Parentes-de cativos levados para a Nova França pediram-lhes que as comunicassem a quem de direito, sabendo que, sendo franceses e católicos, podiam interceder por eles junto a seus .compatriotas.

O Sr. de Peyrac e ela aceitaram interceder, num espírito de caridade.

Seu hóspede, que ela recebia na sala de jogos do castelo de popa e que, embora estivesse encharcado, recusava agasalho e bebida quente, dizendo que, com o calor da estação, não era ruim tomar um banho frio, escutou-a atentamente, depois perguntou-lhe se poderia dar-lhe alguns nomes. Começou fafando-lhe da família William.

Depois de alguns instantes de reflexão, ele declarou que, com efeito, aquelas pessoas não lhe eram desconhecidas. Lembrava-se muito bem de sua chegada ao Forte de Saint-François-du-Lac. Era uma facção de etchemins que os levaram da Nova Inglaterra havia cerca de dois anos. Lembrava-se bem, tanto mais que fora chamado à cabeceira do referido William, que estava com uma ferida arruinada na perna e que morreu pouco depois. Não pudera, infelizmente, apesar de seus esforços, convencê-lo a abjurar de sua heresia antes de se apresentar diante de seu Criador.

Lembrou-se igualmente da mulher, que ficara viúva com duas crianças: um menino de cinco anos e uma menina, nascida na floresta, durante a marcha para a Nova França. Parecia-lhe que a tal menina fora resgatada por pessoas generosas de Ville-Marie-du-Montréal, que a batizaram e adotaram como sua própria filha. O garotinho fora adotado, depois de ser batizado por um chefe abenaki da tribo dos Lagos, seu lugar de origem, como o indicava seu nome "aqueles-que-se-situam-perto-dos-lagos".

Só ficara, portanto, em Saint-François-du-Lac a viúva William. Fora comprada por um homem da tribo dos canibas, seu amo etcbemin Quandequiba, que a capturara, voltando para o sul. mas o jesuíta assegurou que ela ainda estava lá, pois o caniba, um paroquiano muito bom, preferia ficar permanentemente em sua missão. Angélica agradeceu-lhe e encarregou-o de transmitir a notícia de um resgate que a família dos William em Boston estava pronta a oferecer pelos sobreviventes da família, prisioneiros na Nova França.

De sua parte, ela não sabia quantos dias permaneceria na ilha de Montreal. Ficou combinado que, quando tivesse decidido a data de sua partida, enviaria ao Padre Abdiniel um mensageiro para avisá-lo em Saint-François-du-Lac. A fim de não atrasar sua volta para Quebec, ele a esperaria se possível com a cativa na foz do rio Saint-François, que chamavam também de rio dos abe-nakis, pois ele era o caminho natural de volta para seu território de origem, a sudeste, as Regiões da Aurora. Nesse lugar, o missionário e suas ovelhas os deixaram.

Angélica estava satisfeita por ter encontrado tão facilmente a pista dos William. Com razão lhe disseram que, se quisesse saber do paradeiro dos prisioneiros ingleses, seria preciso ir até Montreal. Eram poucos os que estavam em Quebec. A capital não queria ver perambular ingleses pelas ruas, prisioneiros ou não, convertidos ou não, e não ia disputá-los com seus amos huronia-nos ou algonquinos dos acampamentos de Loreto.

Quando de sua breve passagem, a Srta. d'Houredanne lhe dissera que recebera sua carta do outono passado, mas que não tinha entregue a mensagem a sua criada Jessy, julgando inútil perturbar sem necessidade a pobre moça.

- De qualquer modo, "eles" não a soltarão, pois ela não quis ser batizada. Se a questão fosse suscitada, a única coisa que ela ganharia seria ser enviada a seu amo selvagem abenaki. E arrisco-me a atrair a atenção sobre minha fraqueza em convertê-la, e esse não seria o momento a,dequado, pois o Sr. Carlon está à beira do infortúnio. "Eles" não deixaram de lembrar, a esse propósito, que sou jansenista. Um pretexto a mais para prejudicar esse pobre intendente, pois ninguém ignora a grande amizade que nos une...

Para lá de Sorel e do forte construído na embocadura do rio Richelieu, chamado o rio dos iroqueses, pois, com o rio Hud-son e o lago Champlain, ele era o bulevar natural que costumavam tomar de empréstimo para levar a guerra ao Saint-Laurent, e quando se estava realmente próximo do objetivo, uma neblina espessa obrigou a flotilha a margear e lançar âncora. Através do nevoeiro, distinguiu-se um desembarcadouro de madeira e, ao longe, luzes que se projetavam num grande halo que se difundia por trás da muralha de uma paliçada. O piloto que os conduzia desde Trois-Rivieres aconselhou-os a descer e a se apresentar em casa dos senhores do lugar, o Sr. e a Sra de Verrieres. Ele, um alferes do regimento de Carignan-Salliere, viera à Nova França na companhia de seu tio, o Capitão Crevecoeur, e os dois, por ocasião do licenciamento das tropas, resolveram escolher domicílio no Canadá. Casado com uma mulher da ilha de Orléans, tinha já cinco ou seis filhos, e naquele dia festejavam o batismo de uma recém-nascida, junto a um grande número de vizinhos, como o testemunhavam as barcas, batéis, canoas, amarradas ao longo da ribanceira.

O piloto insistia. Na região, não deviam se embaraçar com as boas maneiras como em Quebec, onde todos aqueles funcionários reais se esfalfavam por manter a etiqueta de Versalhes. As redondezas de Ville-Marie de Montreal conservavam a mentalidade dos pioneiros que se ligaram entre vizinhos como uma só família, para serem mutuamente ajudados na construção de suas casas, a ceifar seus campos e, sobretudo, a receber auxílio contra os iroqueses, o inimigo maroto que a todo momento podia surgir dos bosques, empunhando seus tacapes.

Naquela região, era preciso estar constantemente alerta, pronto para se precipitar ao menor chamado, à menor fumaça suspeita que se erguesse acima dos trigais, e muitos solares como aquele eram cercado de muralhas.

Com efeito, a paliçada, ladeada por torrinhas de quatro ângulos, deixava prever uma construção de madeira, um forte, como em Wapassu. Ora, ela era quase um castelo de dois andares, construído de pedras e coberto de ardósias.

Como anunciara o piloto, o aparecimento de visitantes estran-' geiros vindos do rio aumentou a alegria geral. Angélica, sua filha, seus cavaleiros servidores, receberam a mais cordial acolhida e, quando se soube quem ela era, um vivo movimento de curiosidade e de entusiasmo apoderou-se da assembleia. A Sra. de Verrieres não escondeu sua alegria. O dia do batismo de sua recém-nascida pareceu-lhe marcado por um feliz presságio, pela aparição inopinada de uma grande dama de figura legendária, de quem os montrealenses se declararam um pouco sentidos por não haverem ainda recebido a visita.

Assim, graças ao nevoeiro, Verrieres seria o primeiro a ser honrado. Lamentavam que tivessem chegado demasiado tarde para partilhar o banquete, mas iam poder restaurar suas forças com sorvetes e docinhos.

A Sra. de Verrieres fez à orquestra um sinal para que continuasse com a música. Apesar da neblina, casais dançavam no pátio. Mulheres na cozinha de verão, nos flancos da casa, continuavam atarefadas em volta dos caldeirões. Como fazia calor e a tarde estava apenas começando, era o momento das bebidas refrescantes, a zurrapa, o famoso "caldo" dos canadenses, mas também das bebidas alcoólicas, aguardentes e licores, destinados à digestão da pesada refeição do meio-dia.

A Sra. de Verrieres levou Angélica para o salão onde os convidados acabavam de retornar à dança. Parecia que estavam numa das salas do Castelo São Luiz. Era uma vasta sala mobiliada com sofás, vastas poltronas, tamboretes, mesas de centro, móveis de boa qualidade, que deviam ter vindo de Paris. As damas estavam sentadas e, a seus pés, em almofadas, as jovens se misturavam aos mais velhos com uma civilidade afetuosa e alegre que provava que as distâncias e o frio respeito que se concediam aos ancestrais das famílias não erguiam nenhuma barreira entre elas.

Fizeram-na sentar-se. A Sra. de Verrieres saiu para buscar-lhe uma limonada.

Todos os olhos estavam fixos em Angélica, todas as bocas estavam abertas num sorriso alegre e, de tempos em tempos, duas pessoas inclinavam-se uma para a outra cochichando com expressões e meneios de cabeça, ao mesmo tempo estupefatos e aprovadores. A um gesto dela ou a uma expressão, caíam na gargalhada e trocavam sorrisos cúmplices.

Aproveitando-se da chegada do prato de doces e conservas e de uma das novas bebidas, que desviaram a atenção, a dona da casa foi sentar-se junto à sua convidada e falou com ela frente a frente.

- Minha cara, perdoe nossa surpresa e nossa diversão que podem lhe parecer desprovidos de cortesia. Mas sua aparição neste dia será para nós um dos acontecimentos mais emocionantes de nossa vida. Mas há mais que isso. E é o que nos causa nossa emoção. Agora que a vi, admitirei de bom grado que somos, se não parentes, ao menos ligadas por afinidades próximas. Há alguns anos, diziam repetidamente, e até brigavam, que você era a irmã do Sr. do Lobo, cujas terras ficam na ponta dos Olmos, a oeste da ilha de Montreal, por causa da semelhança que existe entre você e uma das suas filhas. Agora, temos certeza, não é possível que a semelhança seja apenas fortuita, tanto mais que correu o boato de que você vinha a Montreal munida de provas desses laços familiares.

-        Pois bem, você me dá também a confirmação de uma notícia sobre a qual não estava ainda certa. No Canadá, elas costumam preceder aquele ou aquela que está encarregado não apenas de levá-las, mas revelar-lhes o conteúdo ou confirmá-lo. Por isso, não me surpreenderei se você estiver já a par desses fatos. Sim, com efeito, embora ainda não tenha visto nem avisado de minha chegada, tenho quase certeza de que o fidalgo de quem você fala é meu irmão mais velho, Josselino de Sancé de Monteloup, que partiu para o Novo Mundo com a idade de dezesseis anos e do qual nunca mais tivemos notícias.

A Sra. de Verrieres abraçou-a efusivamente, com lágrimas nos olhos.

-        Somos então parentes por afinidade. Uma de minhas irmãs é esposa dele!

Houve uma movimentação do lado de fora.

Vieram anunciar que o cura que devia proceder ao batizado, que se atrasara no nevoeiro, acabava de chegar. Era um padre do seminário de Quebec, itinerante no verão, de paróquias em senhorios e concessões uns isolados dos outros. A cerimonia religiosa dar-se-ia, pois, após a festa, mas nem por isso seria menos piedosa.

O Sr. e a Sra. de Verrieres continuavam a ver nesses contratempos o sinal de que a presença da Sra. de Peyrac era de bom augúrio. Após pedír-lhe permissão, mandaram acrescentar à longa lista de nomes de santos protetores da recém-nascida, Maria Madalena, Luísa, Joana, Helena^ o da célebre e bela visitante: Angélica.

Tendo o nevoeiro se dissipado, foi preciso voltar aos navios.

Se não enxergavam melhor do que à chegada, era porque a obscuridade começava a cair. Embriagados por conversas e bebidas, era com dificuldade que se desligavam uns dos outros.

A Sra. de Verrieres falara durante.muito tempo com Angélica sobre a família de seu irmão, e Angélica teve de dar algumas informações sobre os seus, no Poitou, os Sancé, irmãos, irmãs, parentes...

- Até breve...

Honorina, que ficara à vontade para estancar sua- sede e seu apetite esvaziando o fundo dos copos, cálice e escudelas abandonados na mesa, seguindo nisso o exemplo de um bando de crianças ruidosas e ávidas, indiferentes à preocupação de sujar suas belas roupas de festa, raramente usadas, e ao qual ela se misturara com o máximo prazer, desmoronou, vencida pelo sono. Tiveram de levá-la da soleira da casa até sua cama.

Angélica estava também um pouco aturdida, pois fizera as honras, sem prestar-lhes muita atenção, às "boas bebidas" canadenses, e sobretudo suas esposas, eram consideradas mestres no fabrico do "vinho caseiro". Frutas dos pomares e das florestas, centeio, cevada, trigo de frumento ou da índia, seiva de ácer, tudo servia para queimar no alambique, escondido no último ramo de uma árvore quando o funcionário real fazia sua inspeção.

Graças a essa vaga vertigem, começava a sentir-se íntima do habitante do Alto Saint-Laurent, montrealense de gorro azul, de foice ao ombro, um mosquete no outro, nobre, militar, viajante, em suma, uma espécie de habitante das fronteiras à francesa. Aquelas mulheres e homens, em seus feudos paliçados, lembravam-lhe as pessoas de Brunswick Falis. Eram mais agradáveis, mais aturdidos, mas, como aqueles pioneiros ingleses, duros como a rocha e totalmente indisciplinados.

Depois recordou-se também do que soubera sobre a família de seu irmão, e, antes de dormir, refletiu que não lhe faltaram descrições de sua cunhada, seus sobrinhos e sobrinhas, sobretudo sobre a brilhante e temida Mariângela, essa sobrinha que se parecia com ela, mas que, sobre ele, o Sr. do Lobo, que diziam ser seu irmão, ninguém dissera uma palavra.

CAPITULO XVIII

Acolhida em Montreal - Visita a Madre Margarida Bourgeoys

Ali estava, pois, Ville-Marie, a santa, a audaciosa, confins das águas, da terra e da floresta, tendo por trás a frisa estendida, azulada, de seus telhados e de seus campanários, seu pequeno vulcão extinto de nariz achatado, o monte Royal. No porto, o Sr. e a Sra. Le Moyne, o Barão de Longueil e seu cunhado, Le Ber, parentes entre si e de uma das mais ricas e ativas famílias do lugar, o esperavam.

Havia muito tempo, por intermédio de viajantes como Nicolau Perrot, esses grandes nomes de Montreal estavam em negociações com o Conde de Peyrac. Negócios que passavam pelos caminhos do interior, cujo ponto de partida se situava nas cataratas de La Chine, e ele supunha que esse senhores que sustentavam com seus fundos as principais expedições dos exploradores de bosques em busca de peles não estavam descontentes por se beneficiar, graças ao Mestre de Wapassu, de uma pequena reserva de prata pura, talvez de ouro, bem-vinda nessa colónia onde os bônus-papéis substituíam com desvantagem o dinheiro vivo, os quais continuavam inapreciáveis como garantia para qualquer comércio sério, a tratar com a metrópole francesa ou com as potências comerciantes estrangeiras.

Ela foi, portanto, acolhida, assim como Honorina, com amizade e atenção. Lamentou-se a ausência do Sr. de Peyrac, mas, sabendo os serviços que este prestava ao governador e a todos, vigiando no Saguenay a progressão dos iroqueses na região dos

mistassins, preferiam essa solução, que lhes poupava uma campanha de verão contra os intratáveis inimigos.

Reconhecidos e solícitos, puseram à disposição de Angélica e de sua filha um pequeno solar muito,confortável nas proximidades de suas próprias moradias, e as damas, assim como suas filhas, foram ajudar na instalação das visitantes e de seus homens. Garantiram a Angélica que durante toda a sua permanência ela poderia considerar-se em casa, pedir tudo de que precisasse: domésticos, camareiras, um cozinheiro e seus ajudantes, se fosse preciso. Mas as damas de Montreal compreenderam que a última proposta era inútil, vendo chegar o Sr. Tissot com seu cesto de louça, prataria e cristais recobertos por uma toalha branca. A dignidade e os conhecimentos do mordomo impressionaram-nas.

Ele pediu apenas a ajuda, no primeiro dia, de dois valetes que lhe pudessem indicar o melhor lugar para abastecer-se de víveres frescos, aves, carne, legumes, frutos e de patês e tortas de carne ou de caça, se achasse esses últimos de boa qualidade.

Assim que pôde, Angélica, escoltada por Kuassi-Ba e o Sr. de Barssempuy, foi conduzida para a casa que, na direção oeste da cidade, abrigava as irmãs da Congregação de Nossa Senhora e suas jovens alunas e internas.

Uma carrugaem leve conduziu-os até a entrada da concessão, fechada apenas por barreiras de madeira. No fim de uma aléia, entre duas campinas plantadas com árvores frutíferas, avistava-se uma longa casa de pedra, com três janelas de cada lado da porta central, e seu teto coberto de ardósias e perfurado por sete lucarnas.

Ao lado das grandes construções conventuais e habitações senhoriais da capital, ela era modesta mas acolhedora, como uma casa de família. No centro do pátio, crianças cantavam, dançando e batendo as mãos e saltando de um pé para o outro:

- "Nos primeiros dias de maio,

O que darei a minha mãe?

Nos primeiros dias de maio,

O que darei a minha mãe?

Uma perdiz que voa, voa, voa,

Uma perdiz que voa nas florestas..."

Havia um poço no canto do pomar que se prolongava à esquerda por um prado plantado com macieiras e, à direita, por um entreposto que completava o conjunto da área comum, o celeiro onde se guardavam as charretes, a despensa para as frutas, a reserva dos rábanos. Encontraram Madre Margarida Bourgeoys, que estava pagando os serviços feitos no conserto do telhado depois do inverno com pacotes de peles de castor. Ao ver suas visitantes, foi até elas, beijou-as, informou-se sobre sua saúde e pediu-lhes que aguardassem um pouquinho enquanto terminava de acertar suas contas.

Depois de terem examinado e enumerado as peles, pesado em lotes, medido a altura dos pacotes através de meio comprimento de um cano de fuzil, considerada correta para esse tipo de transação, quando o telheiro e o carpinteiro se retiraram com seus bens colocados em um carrinho de mão e seu fuzil-padrão de medida à bandoleira, a Srta. Bourgeoys pôde dedicar-se a elas.

Era um grande dia, disse ela, aquele em que se acolhia uma nova interna e principalmente vinda de tão longe. Tratariam dela com todo o carinho. Adivinhando que estavam com sede, pois essa era a doença da região, começou por oferecer-lhes um grande copo de água fresca tirada do poço. Ali, tanto no verão como no inverno, esse copo de água era o prjmeiro gesto de hospitalidade. Depois, propôs a Honorina irem ver uma ovelha no prado e seus dois cordeirinhos, um preto e o outro, branco.

Voltaram em seguida para a bela casa baixa. As salas eram amplas, com grandes lareiras, e seguiam-se alinhadas, separadas no centro por um corredor que atravessava a casa de um lado a outro e se abria, nos fundos, sobre outro pátio, outros jardins e grandes colinas que desciam até o rio.

Num lado desse corredor, havia o parlatório, o refeitório, as salas de estudos. No outro, uma grande cozinha, provida de duas salinhas secundárias, a capela onde a imagem de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro e o belo crucifixo oferecido pelo Sr. de Fan-camp, um de seus primeiros benfeitores, estavam adornadas com buques de flores frescas, que as crianças colhiam nos prados.

Angélica notou que, durante toda a sua visita, Madre Bourgeoys não largou a mão de Honorina, fazendo-lhe, mais do que a Angélica, as honras dos lugares.

Que adorável educadora!

No andar superior, viram os dormitórios. Camas de madeira simples, guarnecidas de uma enxerga de palha e cobertas xadrez azuis e cinza, que eram cercadas por uma grade de madeira.

-        No inverno, colocamos cortinas de sarja verde, a fim de que nossas crianças fiquem bem protegidas durante a noite do frio intenso e das correntes de ar.

No verão, preocupavam-se principalmente em evitar as picadas dos pernilongos e dos mosquitos. Suspendiam às guardas das camas bolas feitas com noz-moscada, cravos-da-índia e toda uma série de ingredientes de cheiro forte. Essas bolas, chamadas "maçãs podres" ou "olha-podrida", tinham a propriedade de afastar os insetos.

-        Sabe fazer essas "olhas-podridas"? - perguntou Madre Bourgeoys a Honorina.

Honorina sacudiu a cabeça negativamente.

— Que sabe fazer, minha criança? Diga-me - pediu a religiosa, com afeição.

— Não sei fazer nada - respondeu Honorina com ar compungido. - Sou muito desajeitada.

— Pois bem! nós a ajudaremos a ser menos desajeitada e lhe ensinaremos muitas coisas - respondeu a diretora, com ar jovial, e sem contrariar-se com a declaração de Honorina.

Em toda parte da casa reinava um delicioso aroma de melões e de frutas. Sendo o clima mais ameno do que em Quebec, colhiam-se ali muitas ameixas e maçãs que já vergavam seus galhos no pomar e, no fundo dele, perto do rio, numa areia cinza, brotavam pequenos melões, que eram o regalo da bela estação e que preparavam como conserva em pequenos cubos que ofereciam aos doentes e às crianças no inverno.

No refeitório, uma irmã e uma noviça tinham preparado uma merenda e, em cada prato, melões cortados em fatias aromatizavam o ambiente.

Enquanto degustavam a polpa delicada com colheres de prata dourada - doação de uma. "Benfeitora" -, Angélica não podia deixar de fazer perguntas sobre os primeiros tempos da pioneira de Montreal, e Margarida Bourgeoys aquiesceu de bom grado a responder-Jhe, pois gostava de lembrar-se do dia em que, depois de oito anos durante os quais nenhuma criança conseguira atingir a idade de aprender a ler, vira chegarem ao estábulo, colocado à sua disposição para servi-lhes de escola, a primeira menina e o primeiro menino de quatro anos e meio.

A congregação só aceitava como internos as meninas, mas os meninos da cidade, de quatro a sete anos, continuavam a ser recebidos para o primeiros anos, como em outros tempos.

Interrogando-a, Angélica percebera a inteligente atividade que essa modesta champanhense, que deixara tão ousadamente sua cidade natal, Troyes,' França, desenvolvia não sem despertar controvérsia, pois era inovadora em todos os sentidos. Fundara a primeira ordem religiosa para mulheres não enclausuradas e conseguira autorização para que a roupa usada por ela e suas companheiras fosse apenas a roupa comum de uma dona de casa de condição modesta. "Sem véu nem escapulário", para não se diferenciarem daqueles que as cercavam e que tinham vindo servir. . Inaugurara também uma sala de lavor, desde os primeiros tempos da colónia, a fim de que as jovens imigrantes que chegassem, quase sempre totalmente ignorantes dos mínimos rudimentos de cozinha ou de costura, não sabendo fazer uma sopa ou remendar uma peça - a ponto de às vezes perguntar-se, disse ela, como tinham até então se alimentado na França -, pudessem aprender os rudimentos dessa bela e honrosa tarefa que requer boa vontade e amor, mas também sérias e múltiplas competências: administrar uma casa.

Em toda parte que podia, dispondo de um contingente bastante pequeno de religiosas, ela abria pequenas escolas para os habitantes distantes da ilha, na ponta Saint-Charles, em La Chine... E eis que vinham procurá-ias para abrir escolas em Champlain, em Quebec, na Cidade Baixa, na Sagrada Família e na ilha de Orléans.

Fazia questão também que a escola fosse gratuita, para atingir a maioria das crianças canadenses.

E, a fim de poder instruir gratuitamente, as irmãs deviam contentar-se com pouca coisa para si mesmas. A comunidade ganhava a vida com trabalhos externos e vivendo de sua fazendola e da criação, como todos os habitantes da Nova França.

No final dessa primeira visita, a Srta: Bourgeoys fez a Angélica uma proposta que levava em consideração a dificuldade que iriam ter mãe e filha de se separar e que serviria para desatar sem brutalidade laços bem naturais entre corações sensíveis.

Aconselhava à Sra. de Peyrac que mantivesse Honorina junto dela até que pudesse ir à casa de seu irmão, a fim de apresentar a criança a seus parentes.

Na volta, deixaria na Congregação de Nossa Senhora a menina, que então começaria sua vida de interna. Margarida Bourgeoys supunha que a Sra. de Peyrac ficaria ainda alguns dias na ilha de Montreal. Assim, poderia sentir-se próxima da criança, obter as notícias que lhe dariam e, quando chegasse o dia de embarcar e afastar-se, Madre Bourgeoys esperava que estivesse completamente tranquila acerca do destino de sua filha e já acostumada, ainda que fosse um pouco apenas, à separação.

Para distraí-la desse pensamento, Madre Bourgeoys insistia em que uma multidão de pessoas desejava encontrar a Sra. de Peyrac, e o novo governador da cidade tinha a intenção de dar uma recepção em sua homenagem, convidando as pessoas mais importantes e mais destacadas da cidade, isto é, quase todo mando, a fim de apresentá-la. ' Ademais, ouvira dizer que o Cavaleiro de Loménie-Chambord se encontrava presente, e o rosto de Angélica iluminou-se e em seguida entristeceu-se, pois Madre Bourgeoys julgava que sua volta se devia a um ferimento que réceberanuma escaramuça estúpida com os utauais, o que o obrigara a abandonar o Sr. de Frontenac e o exército a caminho dos Grandes Lagos. O ferimento era de pouca gravidade. Estava sendo cuidado na Santa Casa de Joana Mance.

A religiosa coordenou o providencial reencontro de Angélica com seu irmão, que se verificou ser positivamente o Sr. do Lobo. Asseguraram-lhe secretamente.... Ela lhe garantiu que a mulher do Sr. do Lobo, sua cunhada, Brígida Luce de Pierrefond, era uma mulher da elite. Uma das filhas mais velhas casara-se recentemente. Mariângela, que ficara na Congregação de Nossa Senhora até-os doze anos, tinha atualmente quase dezesseis anos, mas não parecia ter pressa em constituir um lar, o que surpreendia, num país onde se contraíam núpcias desde a idade de catorze anos e considerando-se sua evidente beleza.

- Eis o que lhes sugiro, minhas queridas crianças, e penso que gostarão de seguir meu pequeno percurso. Voltem à casa para onde desceram, tomem uma refeição leve e vão para a cama cedo. Quando nos habituamos à navegação, a primeira noite em terra é sempre difícil. Amanhã bem cedo, será colocada à sua disposição uma carruagem - quem teria acreditado, há apenas quinze anos, que um dia veriam carruagens em Ville-Marie? Mas nossa ilha é grande, quase quinze léguas de comprimento, e o domínio do seu irmão fica na extremidade oeste. Chega-se mais depressa de canoa, mas é preciso fazer baldeação em La Chine. Tomem, pois, o Caminho do Rei.

CAPITULO XIX

Josselino, o irmão mais velho

Depois de galgar cinco degraus de um patamar de pedra, Angélica, com Honorina a seu lado, hesitava em erguer a aldrava de bronze, que, ao cair, iria romper um silêncio de quase trinta anos.

Nào se sentiria surpresa de ver surgir toda aquela família que lhe haviam descrito tão profusa e completamente, que ela já a conhecia de longa data.

Podia também reconhecer, do alto desses degraus que precediam a grande porta de carvalho com motivos em pontas de diamantes, a paisagem do domínio, grandes campos onde pastavam ao fundo vacas, o brilho de um lago ou de um braço de rio, a casa a que chamavam "a castelania", uma bela habitação que evocava mais os solares do oeste da França, o Poitou, a Vendée, a Bretanha, do que a casa de tipo normando do lado de Quebec.

Mas, até o último momento, desconfiava que, atrás daquela porta, encontraria um homem com seus quarenta anos que fora aquele menino de sapatos grossos, seu irmão mais velho, Josselino de Sancé de Monteloup.

O som da aldrava ressoou durante muito tempo. A porta se abriu pouco depois. Viram brilhar uma cabeleira loura; um olho claro as examinava.

"Se for esta a sobrinha Mariângela, ela não se parece tanto assim comigo", pensou Angélica.

— Você é Mariângela do Lobo? - perguntou.

— Sim, sou eu.

A adolescente deu uma gargalhada.

-        E você é a fada Melusina. Aquela que se transforma em corça nas noites de sábado? A fada que zela pelas colheitas, constrói castelos e protege as crianças das doenças. É isso?

Angélica aprovou com um meneio de cabeça.

Impulsiva, Mariângela deslizou o braço sob o de Angélica.

-        Nosso pai disse que você viria.

Atravessaram um vestíbulo cujas paredes estavam revestidas de quadros e de troféus de alces e de veados. Uma larga escada de pedra levava ao andar superior, no qual uma galeria de balaústres de ferro forjado contornava a habitação.

Angélica sentiu-se feliz em pensar que seu irmão, pois agora a evocação de Melusina afastava as últimas dúvidas, recriara em torno dele uma casa de bom tom. Devia ser muito rico.

No salão em que entraram, avistou um homem, que lia sentado em uma poltrona de estilo antigo.

Levantou-se ao vê-la. Era grande, robusto, mas sem corpulência. Poderia tê-lo cruzado na rua ou no cais de um porto sem ter sequer suspeitado que fosse seu irmão. Eles se olharam, hesitaram, decidiram ao mesmo tempo abraçar-se, e Josselino designou-lhe uma poltrona, sentou-se novamente, cruzou as longas pernas, afastou seu livro, meio a custo.

Não se parecia com seu pai. Muito menos que Dionísio. Todavia, aqueles lábios, que tinham dificuldade para sorrir, eram os dos rapazes De Sancé? Cantor, às vezes, tinha a mesma expressão. Olhos castanhos, cabelos castanhos meio compridos. Um ar cheio de si, desajeitado e ao mesmo tempo ousado, pois era o irmão mais velho. Reconhecia-o.

Com saltos de libélula, a jovem saíra, provavelmente para ir avisar os outros membros da família.

-        Diga-me, Josselino...

O tratamento direto viera-lhe espontaneamente. E igualmente natural foi o sentimento de exigir que aquele estranho respondesse a suas perguntas, como em outros tempos.

— Diga-me, Josselino, qual de nossos pais tinha os olhos claros?

— Nossa mãe - respondeu.

Levantou-se, foi a uma escrivaninha e pegou duas plaquetas de madeira, que colocou sob os olhos de Angélica. Eram os retratos do Barão e da Baronesa de Sancé.

-        Gontran os pintou. Trouxe-os comigo.

Colocou-os numa mesa baixa diante dele, apoiados a um vaso de flores. Essas pequenas pinturas eram de uma semelhança espantosa. O Barão Armando, com seu grande chapéu de feltro um pouco amassado, a baronesa e sua capelina de palha. Angélica confessou que não se lembrava do primeiro nome de sua mãe.

Josselino franziu o sobrolho, hesitando.

— Adel ina - anunciou a pequena voz de Honorina, que permanecia plantada no meio do salão.

— Adelina! Isso mesmo! A menina tem razão.

— Ouvi o Sr. Molines dizê-lo, quando foi visitar-nos em Quebec.

Ouviam-se passos e exclamações no vestíbulo.

A mulher de Josselino parecia-se com sua irmã, a Sra. de Verriere. Como ela, era uma dessas belas, sólidas e espirituais filhas do Canadá, da melhor geração, acostumada a partilhar com o homem os perigos e a vitória. Era uma mulher inteligente, sob seus ares divertidos. Angélica logo compreendeu, enquanto visitavam o domínio, que ela controlava tudo. E provavelmente não tinha escolha, pois seu marido parecia pouco interessado nas questões de gestão e de comércio. Brígida Luce pousava nele um olhar de adoração e parecia considerá-lo uma dessas crianças que, entre os quatro e vinte anos, pareciam ter herdado mais de seu temperamento agradável e petulante do que do de seu pai.

-        Você podia pelo menos ter-nos escrito! - disse-lhe Angélica, ao ficarem novamente face a face no grande salão.

A mãe de família afastara-se pára preparar o quarto e dar um giro pelas cozinhas, pois insistira em que Angélica e Honorina ficassem pelo menos aquela noite.

-        Escrever? A quem? - perguntou Josselino. - Não tinha vontade de confessar meus fracassos. E tinha esquecido que sabia escrever, quase que sabia falar. Para manter-se na Virgínia ou em Maryland, era preciso não ser francês e, em todos os Estados ingleses em geral, era preciso realmente ser protestante. Ora, eu não era nada. Estava apenas com os protestantes, de seu lado, um rapaz que queria ver o país. Mas que não servia para nada. Não era bom em nada. Meus estudos? Tornar-me escrivão público? notário? escrevente? quem procuraria um notário francês? Eu era um estrangeiro em toda parte. Senti-rne entre estranhos e, pouco a pouco, entre inimigos. Aprendi o inglês, mas irritava-me, pois meu sotaque era motivo de riso. Ao sair de uma taverna, um francês me disse: "Mas, já que você não é sequer hugue-note, vá viver na Nova França, você, que pode fazê-ío". Decidi subir até Albany-Orange, o antigo forte holandês. Nem mesmo um bom aventureiro eu era, nem um bom explorador de bosques. Os selvagens riam-se de mim.

— Os rapazes De Sancé sempre foram muito suscetíveis.

— Pela mesma razão. Porque não éramos nada, nem aldeões, nem nobres, e sim pobres considerados ricos, teríamos de ter mantido nossa posição, e pelo fato de nosso pai ocupar-se, para nos manter, da criação de mulos e de jumentos, desprezavam-nos.

Angélica disse a si mesma que Joffrey, na Aquitânia, soubera romper com soberba o círculo que paralisava a nobreza... "Mas, seja como for, pagou por isso também, e pagou caro", conveio consigo mesma.

— As mulheres de Sancé tinham talvez um temperamento mais forte do que nós porque tinham mais possibilidades.

— Não, Josselino. Lembro-me de suas últimas palavras. Elas procuravam advertir-me de que não aceitasse o destino que me esperava: ser vendida a algum velho rico ou a algum fidalgote grosseiro e obtuso das redondezas.

— É verdade, eu achava isso pior ainda que a sorte que esperava as mulheres de minha família, minhas irmãs, nessas fidalguias perdidas: enterrar-se ou vender-se.

Encontrava novamente naquele momento aquele rapaz que lhe dissera: Tome cuidado. O mesmo que ela podia seguir em seu périplo solitário, através das colónias inglesas, deixando em cada etapa um pouco de sua indumentária de pequeno nobre papista, mudando de nome, recusando-se a falar essas línguas estrangeiras e, portanto, pouco a pouco, a sua, que o colocava por vezes em perigo, abandonando também, pelas mesmas razões, a prática de sua religião, pela qual nunca fora muito entusiasmado e devido à qual o colégio dos jesuítas lhe inspirara repugnância, mas não concedendo à dos reformados senão uma atenção prudente, apenas o suficiente para não ser notado como "súdito de Roma", pois introduzir-se nos meandros de suas crenças luteranas ou calvinistas revoltava-o antecipadamente. Nunca teria podido, primeiro porque isso lhe parecia pelo menos tão tedioso quanto a religião que se lhe deparava, se não mais, depois porque a lembrança do irmão de seu pai que se convertera à Religião Reformada, e a quem as imprecações e queixumes do avô de barba quadrada no Castelo de Monteloup não ces de evocar: "Ah!... Ah!... aquela criança que eu amava tanto! criança que eu amava!", assombrava seus anos de juventude e o colocava diante de uma barreira intransponível, quando se ralava em conversão.

- Oh! sim, é verdade! - disse Angélica. - Nosso pobre avô com suas lamentações!

Daquilo que aprendera nos colégios da França, como bom gentil-homem, debruçado sobre um pergaminho, mergulhando a pena em seu tinteiro de chifre, podia jogar tudo fora. Nesse país de selvagens para onde havia ido, estes não conheciam nem a escrita, e as plumas não tinham importância a não ser aquelas que os índios podiam espetar em seus birotes oleosos ou em sua cimeira de escalpo.

Era um bom cavaleiro, mas nada de cavalos. O manejo da espada? Que fazer com ela nesse país onde se falava por meio de mosquetes, quando não de facões, de machados ou de cacetes?

Assim, chegara às margens do lago de Saint-Sacrement, onde os exploradores de bosques ingleses e franceses eram às vezes encontrados. Nessas paragens, onde a fronteira entre a Nova Inglaterra e a Nova França era mais que indistinta, contestada, e não existia de fato nem para uns nem para outros, conseguira passar insensivelmente de seus companheiros ingleses reformados a seus compatriotas franceses católicos, do lago Saint-Sacrement ao lago Champlain.

No Forte Sainte-Anhe, anunciara-se sob outro nome, Jos do Lobo. Bebera uma última pinta de cerveja com seu amigo, um francês huguenote do norte; o valão que informaria Molines e que se lembraria do nome falso dado por ele ao comandante do posto. Foi a última vez que abriu a boca por muito tempo.

-        Naquele momento - disse Josselino -, eu me tornara completamente mudo. 

Invernara no Forte Sainte-Anne, ajudando a transportar madeira, contar fardos de pele, conservar as armas, as raquetes para neve.

Na primavera, partiu novamente, desembocou no Saint-Laurent, sob Sorel, e atingiu Montreal. Foi-ali que encontrou Bii la Luce e a desposou.

— E como você fez fortuna?

— Não fiz absolutamente nada. Nem fortuna, nem seja o que for. O que posso fazer, já lhe disse, com o que me ensinaram? Caçar? O quê? Aqui, não se caça, vai-se recolher a pele junto aos índios caçadores. Em minha juventude, no Poitou, tive a oportunidade de caçar lobo e javali com nosso pai. Montreal está bem provida de carne. Não se alimentam mais de caça, como nos postos afastados. Nem cavalos nem matilha. Quanto a tocar o corno, talento no qual me exercitei com nosso vizinho Isaac de Ram-bourg, para que isso haveria de me servir, diga-me, nas florestas do Novo Mundo, onde fazer estalar um galhinho sob o pé. pode nos custar a cabeleira!

Puseram-se a rir, contentes por descobrir que a vida os iniciara quase nas mesmas palhaçadas com as quais se divertiam, por uma maneira de ver as coisas devido a sua educação comum.

Angélica viu sua cunhada parar na soleira da porta, estupefata e arregalando os olhos.

— Não é mais o mesmo homem! - exclamou. Josselino estendeu a mão para sua mulher.

— Foi ela que me salvou - disse ele.

Brígida Luce foi sentar-se ao lado deles e confessou que nem se lembrava mais de quando ouvira pela primeira vez o som da voz de Jos do Lobo, que surgira subitamente em Montreal, tão taciturno, e sobre o qual ninguém sabia coisa alguma.

-        Em todo caso, nós-já nos conhecíamos havia várias semanas. Estávamos, creio, noivos. Mas apurei o ouvido antes de me aproximar e nunca o tinha ouvido falar durante tanto tempo. Quanto a rir...!

Concordaram em que o apego fraterno é como uma rede de passarinheiro, que, ignorando aqueles que ela mesma capturou, guarda para sempre em sua malhas'invisíveis os irmãos e as irmãs. Indagaram-se sobre a natureza desse elo misterioso, que nunca imaginaram ser tão sólido.

Angélica e seu irmão conheciam-se tão pouco! Os mais velhos iam para o colégio e os mais jovens só os viam nas férias. Não era tampouco resultado de um temperamento semelhante, pois eram muito diferentes. Não havia entre eles nenhuma lembrança de cumplicidade, pois nunca tinham brincado juntos. Seria por terem o mesmo nome? Talvez. Por terem o mesmo sangue? Não. O apego fraterno é outra coisa. Independe do fato de se ter saído do mesmo seio e da mesma semente, pois, por vezes, ao contrário, isso separa.

-        Confesso que me desagradou durante muito tempo - confessou Josselino - que minha mãe, que me idolatrava em meus primeiros anos, fosse também sua mãe. Achava impudente a pretensão da parte de todos esses abelhudos que ela também fosse mãe deles...

Concordaram em que o que mais ligava os membros de uma família talvez fosse a vida comum que os reunia nos primeiros anos de sua existência em torno da mesma, sob o mesmo teto, onde nos tornamos o que somos, na vasta terra hostil, o lugar onde nossa fraqueza de criança, lançada no frio e na noite desde a expulsão do Éden, tem o direito de ser.

— E para onde sonhamos voltar...

— Não - disse Josselino -, jamais sonhei em voltar para o velho castelo em ruínas, e congratulo-me por ter saído de lá. Não é isso o que nos une, Angélica. Então?...

— A propósito - disse Angélica -, tenho comigo papéis para que você assine.

E procurou em sua bolsa o envelope contendo os documentos que o "velho" Molines lhe enviara pedindo-lhe que os desse a seu irmão para que os assinasse, quando o revisse, a fim de que o antigo intendente dos Plessis-Bellieres pudesse continuar, de Nova York, a dirigir os negócios de sucessão ou outros dos "jovens" Sancé de Monteloup, como fizera até então.

Brígida Luce estendeu a mão. Estava acostumada ao desinteresse total que seu marido manifestava por esse tipo de questão. Encarregava-se de examinar as folhas e pediu a Angélica que se dignasse a explicar-íhe o conteúdo. Sendo ele o mais velho e ainda vivo, era preciso que ele. transferisse seu título de herdeiro para seu irmão Dionísio, que retomara o domínio e ali vivia com sua numerosa família, tendo renunciado a sua carreira,de- oficial para repovoar a velha fortaleza de Monteloup.

-        Dionísio?

Não se lembrava do irmão. Era o último. Brígida Luce sacudiu a cabeça com uma mímica que significava que, apesar de sua indulgência, havia mesmo assim coisas que ela não compreendia.

— Até um dia desses, quando ele me anunciou que uma de suas irmãs viria visitar-nos, eu ignorava tudo sobre seu passado. Nem sabia de onde ele vinha. Quanto a irmãos e irmãs, ei-nos aqui maravilhados por descobri-los tão numerosos... mas é uma-surpresa.

— Ele não falava, não contava nada - disse Angélica. - Eu me pergunto de que maneira acabaram se casando!

Era evidente que havia entre eles uma história sem palavras, a força do amor inexpresso. Mas uma coisa aisda...

-        Emana dele um tal encanto! - murmurou Brígida Luce, desfalecente.

Angélica nunca teria pensado em imaginá-lo sob esse ângulo. Sempre o achara tão resmungão! Mas a opinião de uma jovem sobre seu irmão mais velho, de quinze anos, não é o que existe de mais limitado e de mais arbitrário na questão de apreciação sobre o valor potencial e fundamentei do indivíduo que ele será um dia?

Ela fez essa observação, e eles convieram em que nada era mais difícil de arrancar do espírito do que as reaçôes ou opiniões da infância. Uma verdadeira erva daninha. Sua observação exterior é as vezes justa, aguda, mas a criança não sabe nada, faltam-lhe elementos, não pode comparar. Ela julga por uma intuição animal, mas no momento e em relação a seu único mundo, daí essas lembranças vagas e sem matizes, essas imagens ou retratos fixos e cuja cor pouco variará, por mais que façamos, por mais que vivamos.

Assim, reconheceram, encantados por estar de acordo, eles, os filhos de Sancé de Monteloup, que Molines sempre fora velho e Hortênsia, uma megera, Raimundo, um pedante, a ama-de-leite Fantina, uma criatura prodigiosa, mas inquietante, mas também o bastião do castelo e sem qual nada de sua vida teria subsistido entre aquelas velhas paredes. Em todo caso, soubera persuadi-los a todos. Gontran era um intratável esquisito que abandonavam a seus pedaços de carvão de lenha ou suas cochinilhas moídas, Maria Inês, da qual ele pouco se lembrava, em seu berço, mas cujo estranho olhar azul não esquecera, uma pequena manhosa sorrateira.

— Ela é abadessa...

— Não!

Maria Inês era da mesma espécie ousada e dissimulada daquele micróbio do Alberto, um garoto doentio, que parecia um verme branco e tinha sempre ranho no nariz.

-        Ele é prior!

A esse altura todos riram com vontade.

— Creia-me - disse Brígida Luce, com os olhos brilhantes -, é a primeira vez que o vejo rir assim. Obrigada, minhas irmã, a quem devo esse milagre.

— E eu, o que eu era a seus olhos? - perguntou Angélica -, eu, que fazia chorar tia Pulquéria por minha indisciplina e minha fantasias?

— Você, você era Angélica. Hesitava-se em decidir se você era a mais desavergonhada ou a mais encantadora. Não se ousava falar a respeito disso, pois a ama-de-leite Fantina nos avisara, a nós, os três mais velhos, Raimundo, Hortênsia e eu, quando de seu nascimento. Lembro-me de seu ar solene, quase ameaçador: "Ela é diferente! E uma fada! Nasceu de uma estrela!..." E nunca conseguimos nos desvencilhar disso, até Raimundo, poderia apostar! Você está aqui diante de mim e eu penso: Atenção, cuidado, esta que aí está é uma fada. Ela é diferente, nasceu de uma estrela. E quanto mais olho para você, quanto mais observo aquela em que você se tranformou, aquela que o destino fez de você, mais sinto despertarem minhas antigas certezas.

Sacudiu a cabeça, apertando os lábios em torno do longo cabo de seu cachimbo para reter um sorriso...

— A ama-de-leite tinha razão.

— Compreendo-a - disse um pouco mais tarde Angélica a sua cunhada. - Pode alguém exprimir de modo mais encantador, a uma irmã encontrada após trinta anos, que ele guardou dela uma lembrança lisonjeira, e que, apesar de todos esses anos, ele a revê tal como desejaria que ela fosse? Note que eu nunca o acharia capaz de tanta finura. Mas, com efeito, o que soube eu dele, meu irmão de quinze anos?

Elas riram mais uma vez, felizes por se sentirem livres, num entendimento já fraterno, como se fossem velhas conhecidas. Pressentiam que se criariam entre elas laços que seriam menos devidos à obrigação familiar do que a um parentesco de alma.

Tinham ainda muitas coisas a dizer, não apenas para contar histórias uma a outra, mas todo tipo de troca de ideias.

O tempo, entretanto, passava depressa demais. Angélica ficou apenas uma noite com Honorina no Solar das Faias. Despediram-se. Reiteraram a certeza de um próximo reencontro.

-        Eu lhe escreverei - prometeu Brígida Luce.

CAPITULO XX

A despedida de Honorina

— Dir-se-ia que essa Mariângela é sua filha - disse Honorina, com um ar descontente. - Mas sou eu que sou sua filha.

— Certamente, minha queridinha, isso não se discute. Mariângela é apenas minha sobrinha. Parece-se comigo pelo acaso de nosso parentesco. Se é evidente que Florimond se parece muito com seu pai, em compensação, Cantor teria muito mais de seu tio Josselino.

— E eu, com quem me pareço? - perguntou Honorina.

Subiam a aléia que conduzia à casa de Margarida Bourgeoys, e Angélica gostaria de deter seus passos, não chegar nunca.

— Com quem me pareço? - insistia Honorina.

— Pois bem!... Creio que você tem alguma coisa de minha irmã Hortênsia.

- Ela era bela? - perguntou Honorina.

-        Não sei. Quando a gente é criança, não pensa nisso. Mas lembro-me de que diziam que tinha nobreza, um porte de rainha, isto é, uma bonita maneira de andar, uma bela presença, que ela mantinha a cabeça ereta, e você sempre foi assim, mesmo quando era bebé.

Honorina calou-se, aparentemente satisfeita.

Angélica trapaceara um pouco com relação às convenções estabelecidas pela Srta. Bourgeoys. Voltando da casa de seu irmão bastante tarde, não levou imediatamente Honorina para sua nova residência. A noite é um mau período para ultrapassar certas etapas. De manhã, as forças estão renovadas.

Fazia um lindo dia. Não havia ameaças de tempestade, e os pássaros cantavam desatinadamente no pomar.

A pequena mala de Honorina tinha sido entregue, assim como um grande saco no qual Honorina quisera levar diferentes objetos a que estava apegada, entre outros, suas duas caixas de tesouros, o arco e as flechas dadas pelo Sr. de Loménie, e livros, dentre os quais à lenda do Rei Artur e a Paixão de Santa Perpétua, em latim. Objetivava talvez poder decifrar rapidamente esse texto, a fim de surpreender o jovem Marcelino,, sobrinho de L'Aubignieres, que o lia muito bem.

— Por que no outro dia você declarou a Madre Bourgeoys que não sabia fazer nada? - perguntou Angélica. - Você sabe cantar muito bem.

— Mas você disse que minhas canções eram... inquietantes - retorquiu Honorina.

— Apenas a canção da envenenadora.

— ...Eu não a vejo mais - murmurou Honorina para si mesma.

Angélica retinha seus passos, como teria desejado reter esse momento em que levava sua filha para uma nova vida e que era um momento que jamais voltaria. Por muito tempo, não teria mais oportunidade de dialogar com Honorina, enquanto ela ainda conservava o privilégio de sua tenra idade: o de exprimir ingenuamente seu pensamento e sua visão, infantis, novos.

Quando a revisse, teria aprendido a se guiar pelos raciocínios comuns. Era por isso que a entregava às mãos de educadores. Teria aprendido o que é preciso fazer, pensar, dizer, e sobretudo, não dizer, e seria uma pena, pois algumas vezes era tão engraçado o que ela exprimia! Quando a visse novamente e falasse com ela, a criança receberia suas palavras com outro entendimento, diferente do daquele momento.

Parou e ajoelhou-se diante dela para ficar no nível de seu olhar.

— Sabe que houve um tempo em que você estava sozinha comigo? Eu só tinha a você. Felizmente você estava ao meu lado. Se eu não tivesse sua companhia para me consolar, o que teria sido de mim?

— Onde estava meu pai?

— Muito longe. Tínhamos sido separados.

— O que os separou?

— A guerra!

Percebia que Honorina iria refletir sobre isso. Sabia já que a guerra separa as pessoas. A gente vai com o arco e as flechas ou o fuzil e depois... o caminho de volta nunca é fácil. Algumas vezes, não se volta.

— Era muito difícil reencontrá-lo e, durante muito tempo, com você, eu o procurei. Um dia, reencontramo-nos e ele lhe disse: "Sou seu pai".

— Eu me lembro.

— Como você vê, acontecem coisas boas.

Honorina meneou a cabeça. Estava totalmente convencida disso,

— Então, por que está triste? - perguntou, enquanto reiniciavam a caminhada para a casa.

— Porque penso que, se alguma vez você estiver em perigo, se tiver necessidade de mim, estarei tão longe...

— Se eu precisar de você, eu a chamarei - disse Honorina. - Como no dia da tempestade, quando a neve quase me afogou. Eu a chamarei e você virá.

CAPITULO XXI

Uma dúvida aterradora

Nos dois dias seguintes, Angélica, um pouco mais livre, procurou encontrar o Cavaleiro de Loménie-Chambord.

Apresentou-se à Santa Casa de Joana Mance, e lhe disseram que o oficial, que se restabelecera de seu ferimento, estava alojado na casa dos senhores de São Sulpício. Enviou-lhe uma mensagem, mas não obteve resposta e começou a compreender.

"Ele me evita!..."

E a causa dessa frieza:

"Deve ter recebido a notícia da morte do Padre d'Orgeval, seu melhor amigo. E julga-me responsável por ela..."

Tivera desde o primeiro instante a intuição de que a morte do jesuíta lhe seria mais prejudicial do que sua sobrevivência. Não desejava mais ficar em Ville-Marie. Seduzir os montrealenses exigia mais tempo e persistência do que dispunha.

Eram pessoas muito seguras de si mesmas. A ilha de Montreal sempre pertencera às sociedades independentes e de credo religioso, a de Nossa Senhora de Montreal primeiramente, formada por devotos leigos, depois a do Seminário de São Sulpício de Paris.

Os sulpicianos eram os senhores, isto é, os proprietários, o que explicava por que os jesuítas foram mantidos afastados. Estavam se instalando naquele momento, mas como convidados. Os habitantes tinham o direito de nomear seu governador, sem se preocupar com a opinião <k> -governador-geral. Bastavam-se a si mesmos, e a acolhida que reservavam aos estrangeiros na ilha, viessem da França, de Quebec ou de Trois-Rivieres, era comedida.

Por muito tempo e ainda agora mantiveram-se nas primeiras linhas do terror iroquês, vivendo na ponta do mosquete. Isso os persuadira de que, em todas as coisas, davam mostra de mais heroísmo, abnegação, piedade, caridade cristã e virtude que os outros. E, por causa dessa opinião' acerca de si mesmos, não apreciavam intromissão em seus negócios. Muitos zelosos bati-zadores de hereges em Montreal haviam resgatado prisioneiros ingleses, sobretudo crianças, mas Angélica não conseguiu localizar o menor fio que conduzisse àqueles que pudessem ser devolvidos a suas famílias na Nova Inglaterra.

As pessoas pareciam muito empenhadas em satisfazê-la, mas trocavam olhares umas com as outras, e logo ela compreendeu que as contrariava com sua insistência. Tinham sua própria consciência, tendo ganho almas para a verdadeira religião e gasto seus escudos para essa santa obra. No final das contas, sua obstinação em querer lançar novamente nas trevas de sua incredulidade os convertidos seria julgada ímpia.

A Srta. Bourgeoys enviou-lhe um recado aconselhando-a a fixar a data de sua partida de Montreal a fim de decidir sobre o dia em que iria abraçar uma última vez sua filha. A criança não reclamava a presença da mãe e estavam totalmente satisfeitas com ela.

O Tenente Barssempuy declarou-se pronto para a aparelhagem. Na manhã da partida, dirigiu-se à casa das religiosas.

Honorina chegou correndo ao parlatório.

-        Faça suas despedidas a sua mãe - disse-lhe a Srta. Bourgeoys. - Eu a avisei de que ela podia transmitir a seu pai nossa opinião de que você é uma criança muito boa.

Angélica apertou a menina nos braços.

-        Pensaremos em você todos os dias.

Honorina preparara-se para aquele momento. Recuou um passo e colocou a mão sobre o coração, imitando Severina.

-        Não tema nada - disse. - Tenho aqui um segredo de amor que me ajudará a viver e a sobreviver.

Voltou para o espaço ensolarado, e Angélica, retendo ao mesmo tempo o riso e as lágrimas, eclipsou-se guardando a visão da pequena Honorina na beleza de seus sete anos, cantando entre suas companheiras, brincando de roda.

"Nos primeiros dias de maio,

O que darei a minha mãe?"

"Nos primeiros dias de maio, eu me porei a caminho para revela, meu amorzinho", prometeu a si mesma Angélica.

Madre Bourgeoys apertou-lhe a mão por diversas vezes, sem dizer nada. No limite da propriedade, Angélica teve a surpresa de encontrar toda a família de seu irmão, que a esperava. O próprio Sr. do Lobo tinha se deslocado até lá.

Essa escolta alegre, expansiva, e o círculo de alguns amigos que se reuniram para acompanhá-la até o embarcadouro evitaram-lhe os pensamentos melancólicos, passíveis de assaltá-la.

Reencontrou-se no Le Rochelais, no meio do rio, agitando sua echarpe para outras echarpes e lenços que, alinhados na praia, asseguravam-na de presenças caras a seu coração até naquele canto do mundo, na ilha sulpiciana de Montreal.

Não pudera falar com o Sr. de Loménie-Chambord nem visitar a Sra. d'Arreboust, a reclusa, como prometera ao barão. Restava-lhe mais uma boa ação a cumprir. Por um índio do Sr. Le Moyne, mandara avisar o Padre Abdiniel da data de sua volta.

Chuviscava, e a luz estava cinzenta quando os navios chegaram ao local do encontro. Perto do velho forte, na entrada do rio Richelieu, um grupo de pessoas, formado pelo jesuíta, dois selvagens e uma mulher, estava de pé junto à água.

O Le Rochelais lançou âncora. Angélica fez-se conduzir à praia. Era realmente Mrs. William, mas totalmente amorfa e abatida, e não evidenciou nenhum interesse em revê-la. Mantinha os olhos abaixados, muito magra, seus cabelos grisalhos trançados à maneira índia e presos numa faixa de lã colorida. Sua roupa era uma mistura de seus antigos trajes já esfarrapados e de uma capa e um colete de peles. Vestia-se como as índias com uma daquelas cobertas conseguidas nos postos de trocas. Tinha, entretanto, sapatos franceses nos pés, uma caridade de alguma pessoa das obras. Angélica deu-se a conhecer, dirigindo-se a ela em inglês. Ela falou-lhe das pessoas de sua família que vira em Salem e que, vindas de Portland e Boston, estavam desejosas de resgatá-la.

-        Duvido que seu amo aceite - disse o jesuíta -, ele não desdenharia o resgate, mas seu orgulho está ferido, pois essa mulher recusa obstinadamente o batismo e a boa palavra.

Desde que lhe haviam tirado seus filhos e principalmente o menor, de cinco anos, ela adotara um atitude passiva, como se fosse surda e muda. E é bem desagradável, concluiu, que tendo recebido a graça, por sua provação, de se aproximar da verdadeira luz da Fé, ela continue a opor a essa sinal da afeição de Deus por ela uma tal recusa.

Angélica tentou mais uma vez tirá-la de sua apatia, a repetindo-Ihe que queriam resgatá-la e que sua filha Rose-Ann estava bem. A inglesa não deu qualquer sinal de compreensão. Angélica voltou-se para o jesuíta.

— Terá perdido o uso de sua língua natal? Não existe ninguém no campo dos abenakis entre outros cativos ingleses com os quais pudesse conversar?

— Sim, existe - reconheceu o diretor da missão -, temos um homem chamado Daugherty, um bom trabalhador, adotado por uma viúva, que está muito satisfeita. Ele pede algumas vezes e obtém autorização para visitar a prisioneira, e eu observo de longe que ela fala e chora com ele.

Daugherty devia ser o "engajado" dos fazendeiros ingleses que tinha sido resgatado e adotado por uma família piedosa de Ville-Marie, ou por um grande chefe do interior que o transformaria num hábil guerreiro. Angélica deixou com o padre os endereços e nomes dos parentes de Mrs. William, caso ela viesse a se interessar por sua proposta e seu amo selvagem o consentisse.

Despediu-se, apertou a mão inerte e magra da pobre puritana e partiu, sem querer voltar-se.

Era um alívio estar de novo a bordo do pequeno iate, descendo, livre, a corrente, sob a proteção da bandeira independente, azul com escudo de prata, de-seu feudo, sentir-se cercada por amigos sinceros e devotados como Barssempuy, o Sr. Tissot, Kuassi-Ba, que se esmeravam em agradar-lhe, em tornar-lhe menos penosos esses" primeiros dias de separação de sua filha.

A ausência de Honorina pareceu-lhe insuportável no início. Depois de ter visto a pobre Mrs. William, acreditou não ter motivos para condoer-se de sua própria sorte. Pelo menos, sabia em que mãos se encontrava sua filha e logo reencontraria seu esposo.

O comportamento do padre jesuíta, não mau, mas totalmente insensível e incapaz de compreender o que uma mulher que perdera seu marido e à qual privaram de seus filhos podia sofrer, deixara-a gelada.

Em Quebec, que lhe lembrava sua última escala com Honorina, a Polaca a sacudiu.

-        E o que direi eu, cujo filho corre os piores perigos entre esses selvagens que a qualquer momento podem escalpelá-lo ou assá-lo na grelha?! Principalmente porque ele é rechonchudo... E é meu filho único.

Angélica gostaria de explicar-lhe esse laço que se criara com sua filha, vindo do tempo em que os esbirros do reino, lançados em sua perseguição, passavam uns aos outros a indicação: "Uma mulher de olhos verdes carregando um bebe de cabelos ruivos".

-        Tá-tá-tá - dizia a Polaca. - Somos todas iguais! Enrascadas numa armadilha nesse particular também. E cabe a cada uma de nós nos livrarmos dela. Mas deixe-me dizer-lhe uma coisa: para mulheres como nós, a vida não oferece tempo para lamúrias. Isso não quer dizer que não estejamos prontas a defender nossos filhos, quando é preciso. O coração de uma gata furiosa, eis o que é, num momento desses, o coração de uma mãe! Você se lembra, quando fomos arrancar seu Cantor das mãos dos ciganos? Que corrida, meus amigos, descalços na lama gelada no caminho de Charenton! A gente quase voava, tínhamos asas...

Em sua lembrança, no decorrer daqueles anos, fora ela quem fizera tudo, quem retomara, à força, Cantor dos ciganos.

-        Não sonhe! - disse a Polaca, peremptoriamente. - Isso está longe! Eles estão grandes, estão vivos. Que mais você quer? É preciso olhar à nossa frente, sobretudo agora que as abas dos chapéus estão encolhendo e que a ruína nos ameaça. As crianças são apenas mais um laço na trança de nossa vida. Um laço de amor, seja nada mais que um laço. E a trança é complicada, não se esqueça! Mais do que os cintos dos índios....

O lirismo de Polaca, solidamente sustentado por "boas bebidas" encerradas em sua adega, tinha virtudes terapêuticas inigualáveis, e Angélica começou a arquitetar o projeto de ir buscar os gémeos e voltar para passar o inverno em Quebec.

D'Urville e Barssempuy pediram alguns dias para fazer a ins-peção dos navios, reunir as tripulações e proceder ao carregamento das mercadorias.

Haviam comprado do intendente Carlon uma grande parte de seu trigo excedente e reservas de enguias defumadas do Saint-Laurent, que eram tão abundantes que, mesmo no fim do inverno, preferiam mascar couro a comê-las. Em sua passagem, Angélica estabelecera as condições de entrega, mas, com a debandada do verão, nem sacos, nem tonéis tinham ainda sido levados para o porto.

Esse contratempo não lhe pareceu de bom augúrio. Não por causa da incúria dos serviços portuários, já trivial, a ausência das pessoas responsáveis e o hábito, muito usual no temperamento francês, de só fazer as coisas no último momento, deixando à contra-ordem apenas o tempo para chegar, sendo únicos nisso.

Não era o fato de ser obrigada a andar de lá para cá no porto que lhe dava a sensação de que as horas se arrastavam e que aumentava sua impaciência de sair de Quebec. Seria uma sensação de perigo? Não, nem isso. Era mais o desconforto, acentuado pelo calor forte. A tempestade acumulava-se, ribombando surdamente, explodindo amiúde em chuvas quase tropicais, e mergulhava a cidade numa baforada de ar quente de serra, com nuvens de vapor que se elevavam das ruelas, flutuando sobre o navio.

Angélica sabia que não tinha nenhum motivo para se enervar. Não estavam atrasados. Tinham chegado antes das últimas datas previstas para a volta ao Maine. Por pouco, Joffrey poderia ainda reunir-se a ela ali e avistar-se com Carlon.

Mas nenhuma notícia nesse sentido chegava à jusante do rio. Tudo o que sabiam era que os navios do Sr. de Peyrac continuavam a montar guarda na entrada do Saguenay, que ele e Nicolau Perrot haviam-se metido no interior e que, ao que se soubesse, nenhum iroquês surgira no horizonte. Havia, pois, poucas possibilidades de que, voltando a Tadoussac, ele pensasse em retomar a subida do rio. Como fora combinado, ele a esperaria lá embaixo.

E, por ora, não tinha nada melhor a fazer do que deixar os oficiais e os mestres terminarem suas tarefas em Quebec, a fim de que a viagem de volta pudesse prosseguir com a satisfação de ter resolvido os negócios importantes, como estava previsto.

Todavia, se não houvesse a sala dos fundos do albergue Ao Navio da França para esperar, Angélica não teria hesitado, a fim de deixar mais rapidamente a cidade, em adquirir sua passagem numa das grandes barcas fluviais que o Sr. Topin pilotava e que desciam diariamente o Saint-Laurent, depositando seus passageiros à mercê dos feudos ou das aldeias escalonadas ao longo do litoral.

Antes tivesse feito isso.

Ter-se-ia poupado um encontro bem desagradável, do qual surgiria a ameaça de uma dúvida aterradora.

CAPITULO XXII

Novo interrogatório com o policial d'Entremont - O destino das Moças do Rei

Angélica, lindamente ornada com um vestido branco leve e uma capa de seda com gola em leque, na última moda, saía da casa da Sra. de Campvert, que a convidara para um jogo de cartas em torno de um bufe de carnes frias e de saladas, quando se viu cercada por quatro arqueiros do prebostado, o que a levou de volta a uma Quebec mais familiar. Sobretudo quando um sargento fardado de alabardeiro pediu-lhe, entregando-lhe uma missiva da parte do senhor tenente de polícia Garreau d'Entremont, que se dignasse segui-lo até a senescalia, onde este desejava falar urgentemente com ela.

Angélica aquiesceu ao pedido que o bilhete confirmava em termos corteses, mas que não permitiriam adiamentos.

Na Cidade Alta, a invasão do verde exuberante dava um ar de mistério às casas e às paredes de pedra cinzenta dos conventos.

O prédio do prebostado, enquadrado e como que guardado por grandes árvores - olmos, aceres e carvalhos -, cujo cimo ultrapassava seu telhado pontudo e suas torrezinhas, tinha um aspecto ainda mais sinistro. No interior, não se enxergava nada. Mas, como estavam no verão e no meio do dia, ninguém pensava em acender velas.

Garreau d'Entremont, no fundo de seu gabinete de trabalho revestido de couro escuro, parecia mais que nunca um javali agachado na parte mais escura do mato.

Teve a impressão, ao penetrar ali, vestida de branco e ornada de jóias, em toda aquela obscuridade, de estar levando para la a luz, e ele também deve ter sentido isso, pois sua voz ríspida marcou uma alegria sincera ao saudá-la.

-        Estou muito feliz em revê-la, senhora.

Pelo que podia julgar, ele não mudara muito. Sempre tão empertigado, robusto, os mesmos olhos redondos, sem expressão, mas às vezes vivos, e muitos documentos espalhados diante dele. Ela não sentia necessidade de sentar-se e, como que preocupada possivelmente por aquilo que ele iria dizer-lhe, permaneceu de pé diante dele.

— Eu sabia que sua estada entre nós seria breve, por isso, não hesitei...

— Fez bem.

E, provavelmente embaraçado pela providência que lhe impunha, ele disse de chofre que precisava terminar com a investigação sobre o La Licome, a embarcação que afundara completamente ao largo de Gouldsboro. Ele fora fretado em grande parte às custas da coroa da França e sustentado, nas despesas de estabelecimento, por uma socieade beneficente intitulada Companhia de Nossa Senhora de Saint-Laurent. Sem notícias, sem informações válidas, sem, é claro, nenhum balanço que permitisse estimar as perdas sofridas, os cornanditários impacientavam-se, querendo reaver o que tinham desembolsado.

Garreau atacava. Sentia-se que estava decidido a resolver o problema.

O relatório, disse ele, que lhe fora enviado e que tinha diante dele, fazia menção a vinte e sete Moças do Rei que tinham embarcado, havia quase três anos, no La Licome. Julgava lembrar-se de que haviam repetido, com insistência, que tinham todas sido salvas, por milagre, mas o número das que chegaram a Que-bec não passava de quinze ou dezesseis.

— Onde estão as outras?

— Algumas ficaram em nossos estabelecimentos da baía Francesa.

Garreau indicou sua satisfação com meneios de cabeça. Fora bem inspirado, declarou, quando pensara que, por ela, conseguiriam deslindar esse imbróglio.

O requisitório era urgente, repetiu, apoiado por pessoas importantes, e entendera que devia agora enviar à França informações precisas em vez de "chover no molhado", como fora obrigado a fazer durante anos, por não poder obter as tais informações por parte daqueles que estavam envolvidos no caso do naufrágio do La Licorne, e cuja dispersão por um território, pelo menos tão grande quanto a Europa e de milhares de quilómetros de litoral, não tornava a tarefa fácil para ele. O acaso da passagem dos navios do Sr. e da Sra. de Peyrac por uebec iria fazê-lo ganhar vários meses, se não um ano. Estendeu-lhe bruscamente um maço de papéis.

-        Aqui está, enviada de Paris, a lista completa dessas vinte e sete jovens, com sobrenomes, nomes, idade, lugar de origem etc. Tenha a bondade de escrever em cada um deles, em relação a cada nome, o que aconteceu.

Angélica insurgiu-se.

— Não sou escrivão do tribunal, nem tenho nenhuma vontade de me entregar a esse trabalho de amanuense. Já não basta tê-las salvo, cuidado delas, escoltado até aqui, na maioria dos casos?

— Precisamente. Há também em Quebec moças a quem a senhora dotou para que pudessem casar-se. Terá de pedir para reaver seus fundos.

— Isso não tem importância. O Conde de Peyrac e eu mesma preferimos cem vezes assumir essa despesa a nos envolver mais com essa história.

— Impossível!

— Como assim, impossível?

— Ninguém vai admitir que não procurem recobrar sua dívida quando a administração francesa lhes propõe isso... ou prepara-se para fazê-lo. Isso pareceria suspeito.

— Em que sentido?

— Vão querer saber as razões que os levam a não querer prestar contas nem dar explicações mais detalhadas.

Ele lembrou-lhe que a falta de informações sobre acontecimentos ocorridos nas costas da província da Acádia, considerada parte integrante da Nova França, as dificuldades que tinham para obter um relato coerente das testemunhas tinham várias vezes levado uns ou outros da administração colonial ou metropolitana a se perguntar se não estariam procurando ocultar-lhes sabe lá quais exações, manobras ou fraudes que teriam sido perpetradas nessas regiões distantes.

Os habitantes da província da Acádia tinham fama de negligentes no cumprimento de suas obrigações, pagando mal o dízimo, traficando com os ingleses, ciosos de sua independência, e usava-se à socapa, referindo-se a eles, a palavra "náufragos".

— Ora - prosseguiu -, a Sociedade Nossa Senhora de Saint-Laurent pretende igualmente que não houve apenas um navio perdido nessa expedição, o que já agravava seriamente seu orçamento, mas três navios.

— Três? Isso é novidade. Posso lhe afirmar, de minha parte, que apenas o La Licorne naufragou em nossas costas, e quero que confesse se perder-se dessa maneira e vir naufragar na baía Francesa quando se pretende atingir Quebec não poderia também parecer suspeito.

— Ninguém o nega.

Ele consultou suas anotações.

-        Entretanto, a companhia é formal. Ela afirma ter fretado no início dois outros navios. E que estes teriam sido confiscados por vocês, gente de Gouldsboro, ato julgado de pirataria... Não se trataria dessas duas embarcações, unia das quais o Sr. Ville-d'Avray se adjudicou o direito como "presa de guerra"? Tenho as minutas da reunião em que seu destino foi estatuído.

Angélica sentiu queimarem suas orelhas. Agora esses barcos piratas, cúmplices de Ambrosina, e que Zalil levava, aquele demónio branco, o homem que usava uma maça de chumbo, confessavam-se abertamente como membros da expedição organizada pela Duquesa de Maudribourg com o apoio de Colbert e de outras pessoas de bem desejosas de ganhar o céu.

-        As pretensões dessa sociedade piedosa me parecem bem estranhas. Minha opinião é que o senhor está diante de uns grandessíssimos trapaceiros, em intenção, mais rapinantes de destroços do que os que o senhor acusa. Os dois navios? O senhor sabe muito bem que se tratava de foras-da-lei, esses, sim, verdadeiros "náufragos", que infestavam a baía Francesa. O Sr. Carlon, o intendente, foi testemunha ds combates que tivemos de travar com eles para que não causassem mais prejuízos.

— Eu sei! Eu sei! Infelizmente, o Sr. Carlon está atualmente numa posição delicada que não lhe permite ajudar muito, se não quiser cair em desgraça.

— Isso não lança descrédito e suspeita sobre todos os propósitos que ele tinha durante os anos precedentes, quando foi considerado um dos mais brilhantes intendentes da Nova França. Escute meu conselho e interrogue-o. Está mais credenciado que eu a lhe responder.

— Duvido.

Ela sacudiu a cabeça, fingindo desencorajamento.

— Não compreendo. Senhor tenente de polícia, que quer o senhor de mim?

— Esclarecer muitos e muitos pontos que permanecem obscuros. De todo lado que me vêm apelos e reclamações, seu nome é pronunciado, senhora. Assim, nesta correspondência, dão-me a entender que a Duquesa de Maudribourg não se afogou no naufrágio... e que, tendo escapado com vida, só mais tarde teria sido... assassinada, quando ainda se encontrava em Gouldsboro... o que a tornaria responsável por sua morte!

— Eu riria, se o assunto não fosse tão lúgubre - disse Angélica, após fazer uma breve pausa. - Poderia dizer-me quem propagou essa infâmia?

— São boatos que correm...

— Oh! O senhor, caro Sr. Garreau, com seus boatos que correm... Sei o que valem. Confesso que não compreendo como o senhor, tão galante, não pára de querer responsabilizar-me por todos os pecados de Israel... De que signo é o senhor? Signo astrológico - especificou Angélica, vendo-o franzir o sobrolho.

— O Centauro, Sagitário - resmungou, de má vontade.

— Então, agora compreendo por que continuo a ter estima pelo senhor, apesar de sua conduta, pois esse também é meu signo.

Ele pareceu fazer uma trégua e forçou um sorriso.

-        O sagitariano tem tenacidade. Agarramo-nos com os quatro cascos ao chão.

-       E levantamos os olhos para o céu quando o peso da lentidão humana, nos aflige.

O Sr. Garreau d'Entremont baixava os seus para a carta que tinha em mãos e permanecia pensativo.

-        Foi o Reverendo Padre d'Orgeval - disse ele bruscamente -, o grande jesuíta que morreu como mártir dos iroqueses, quem, naquela época, fez essa acusação contra a senhora. Contra a senhora sobretudo - precisou, designando-a com seu grande dedo gordo. - Sempre pareceu conceder menos importância às anexações territoriais do Sr. de Peyrac, que lhe disputava seu domínio missionário da Acádia, que a sua influência e sua presença junto a ele.

Indignada, ela protestou.

— Mas isso é uma loucura! Como poderia ele estar a par do naufrágio do La Licorne? Nós trazíamos a notícia, vindos da baía Francesa e da costa leste, e quando chegamos a Quebec, ele já fora para os lados dos iroqueses.

— Enviou de lá essas informações, que, encaminhadas aos cuidados dos "dados", ou missionários devotados à sua pessoa, devem ter chegado ao Reverendo Padre Duval de Paris, que é coadjutor- geral dos jesuítas, o Reverendo Padre Marquez, e superior dos jesuítas da França, encarregado por estes, recomendava ele, de elucidar a questão, seguindo as diretivas ulteriores que ele lhes comunicaria.

— Em que mais ele estava metido?

— Pelo que pude compreender, a Duquesa de Maudribourg era meio aparentada com ele.

"Eu sei", esteve Angélica a ponto de dizer. Sua irmã de leite! "Éramos três crianças malditas", contava Ambrosina, "ele, Za-lil e eu, nas montanhas do Dauphiné."

Angélica receava que seus sentimentos transparecessem em seu rosto. Voltou-se um pouco de lado, olhando para a janela, onde bruxuleava uma luz glauca através das árvores copadas do verão.

-        Eu lhe reitero minha pergunta, Sr. d'Entremont. Como podia ele saber disso, tão depressa e estando tão longe? Para lá dos Grandes Lagos! E impossível! Teria ele o dom da visão dupla?

O chefe da polícia hesitou.

-        Ainda que não seja de uma tão grande impossibilidade es tar a par de tudo, mesmo estando além dos Grandes Lagos, por esses lados, acrescentaria, todavia, o seguinte: Sebastião d'Orgeval, que conheci muito bem, era uma natureza de elite, e sua grande virtude parecia ter-lhe merecido dons geralmente pouco acessíveis à natureza humana: levitação, dom de vidência, e talvez dom de ubiquidade. Um fato é certo. Ele sempre sabia tudo, e nunca pude infirmar como inexato um fato de que ele me houvesse avisado antes.

A voz de Angélica adquiriu uma conotação zombeteira:

— Não me diga que o senhor, que eu julgava adepto da filosofia de Descartes, que prega a razão, e que dizia não dar fé senão a provas materiais concretas, segundo as recomendações imperativas feitas à nova polícia, pratica os métodos de nossos pais, denunciados atualmente como caducos e perigosamente sujeitos a erro! É verdade, lembra-me agora que o senhor lançou contra mim a acusação de que matei o Conde de Varange, um discípulo de Satã, informação que vinha do feiticeiro da Cidade Baixa, o Velhaco Vermelho, e de outro discípulo de Satã, amigo de Varange, o Conde de Saint-Edme.

— Que também desapareceu sem deixar vestígio - insinuou Garreau d'Entremont. - Mais um processo que permanece aberto e sobre o qual me importunam até que eu possa fornecer as provas e as circunstâncias de sua morte.

— Desaparecimento e morte pelos quais sou também responsável? - indagou, não sem um certo sarcasmo.

— Com efeito. O Padre d'Orgeval afirmava que era a senhora a responsável, numa última correspondência que confiou ao Padre de Marville, horas antes de seu suplício.

— Ele! Mais uma vez, ele!

Ele percebeu sua emoção e sua cólera. Mas ela continuava virada. Só podia ver-lhe o perfil que a claridade vinda da janela orlava de um traço um pouco vaporoso, evanescente, de luz prateada, e de onde se destacava a ponta negra dos cílios que, por instantes, palpitava.

O resto, bochechas, têmporas, cabelos, estava na sombra, mas no ponto em que se cruzavam a linha do pescoço e o ângulo do rosto, na ponta da orelha, o grande brinco de diamante colocava como que uma estrela cintilante, cujo brilho puro fascinava.

Pensava no Padre de Marville, que tinham encontrado em Salem, de olhar brilhante e vingativo, e que dissera:

"Trago suas últimas vontades, suas últimas reivindicações, suas últimas adjurações. Trago sua mensagem e nela a senhora está condenada".

— Até a beira da "morte - murmurou -, até a beira do suplício, ele me acusou. Não acha algo de inexplicável nessa sanha de perseguir e caluniar uma pessoa que ele nunca viu?

— Ou perfeitamente explicável! Caso o Reverendo Padre d'Or-geval soubesse, de fonte segura, tudo sobre seus atos e julgasse de seu dever revelá-los a mim e pedir justiça.

— São as visões devidas a seu dom de vidência que o senhor batiza como fontes seguras, senhor tenente de polícia? - ironizou ela.

— Claro que não!

Pegou uma caixinha da mesa e, depois de apresentá-la de longe a Angélica, que não lhe concedeu atenção, fechou-a numa pequena escrivaninha e retirou a chave.

— Não é a essas cartas, cujas cópias me foram enviadas pelo Reverendo Padre Duval, que recorrerei diante de um tribunal secular, menos ainda sobre as quais basearei as peças de acusação de um processo, é evidente.

— Mas é nelas que baseia suas convicções?

— Sim.

Ela continuou a olhar pela janela.

No fundo, não lhe queria mal. Ele constatava que ela mentia. E que mais poderia fazer senão mentir-lhe? Sabia que ela mentia. Podia censurá-lo por ser um excelente policial?

Uma vez mais, pisava em falso, sendo acusada por seres dos quais, no fundo, estava próxima. Pois eles não eram inimigos. O Mal não vinha nem de uns, nem de outros. Eles se pareciam, tinham o mesmo desejo de justiça, de ver triunfar o Bem, a mensagem de Paz de Deus, pelo menos a de Cristo, e, no entanto, diante deles, Angélica representava não sabia que perigo. Ela lhes aparecia como culpada e, de fato, para Garreau, ela o era, se se colocasse como postulado que uma pessoa que ele convocava à sua presença para saber a verdade e que lhe mentia era culpada.

— Que pena! - murmurou.

— Que quer dizer?

— Eu me alegrava por rever meus poucos amigos de Quebec. Sabia que a brevidade de nossa viagem e as atividades da estação não nos permitiriam senão reencontros breves, mas não me ocorreria que o senhor só se preocupava em me ver para colocar-me de novo sob acusação. Não pode ignorar a ajuda que meu marido está dando neste momento ao Sr. de Frontenac no rio Sague-nay. Tive de separar-me dele, continuar sozinha minha viagem para ir confiar a educação de nossa filha à Srta. Bourgeoys. Estou sozinha, triste, inquieta, e é esse o apoio e a amizade que encontro junto ao senhor?

Ela percebeu que ele fechava os punhos e parecia tremer de uma raiva impotente.

— Quando de minha primeira passagem para Montreal, informei-me sobre o senhor, Sr. Garreau, e disseram-me que estava no campo.

— Mas... eu estava no campo!- exclamou ele, num tom quase desesperado. - Em minha senhoria. Foi preciso que meu escrivão fosse me importunar com um correio tão urgente e ameaçador que acabava de chegar por um navio da França para que eu retornasse imediatamente, receando não encontrá-la mais.

— Quem pode apressá-lo assim por um negócio de tão pouca importância? De onde emanam essas ameaças, esse correio?

Ele fez um gesto de exasperação que dispersou os papéis, rolos e dossiês que atravancavam sua.mesa.

— Serviços do Sr. Colbert, como sempre, mas isso implica tantas ramificações, intrigas e tráficos de influência que não se consegue saber nunca qual é a verdadeira instância que se acha por trás das ordens com que eles nos bombardeiam...

— Uma coisa é certa, Sr. d'Entremont. O rei continua a dispensar-nos sua amizade. Temos muitasprovas disso. Se o Sr. Colbert se encontra por trás dessas demandas excessivas e ridículas, agiu sem discutir corrrSua Majestade, e duvido muito que esse ministro, que é ponderado e não se imiscui em superfluidades desse tipo, esteja a par disso.

— Eu não sei quem "eles" têm ao seu dispor.

— Não seria razoável pensar que apenas as declarações do Padre de Marville, que não gosta de nós e talvez procure animar os espíritos devotos contra nós, bastem. Os jesuítas são pessoas sérias. Duvido que façam pressão doravante contra nós junto a Sua Majestade.

O tenente de polícia parecia atormentado.

-        Certamente, a morte e o martírio do Padre d-Orgeval autorizam ainda mais o valor de seus últimos escritos, de seus últimos anátemas. Não é apenas para ser-lhe desagradável que não lhe oculto nada sobre o que me foi comunicado, mas para que, uma vez prevenida, a senhora possa precaver-se.

"Aí está, estou perdendo completamente a cabeça. Estou prevenindo-a, fazendo-me cúmplice, quando sei perfeitamente que está mentindo impudentemente, que foi ela quem matou Varan-ge e que todo esse bando, inclusive Carlon e Ville-d'Avray, oculta-me não sei que história sinistra sobre o La Licome e sobre essa Sra. de Maudribourg, na qual certamente encontrarei cadáveres suficientes para prender todo mundo", pensou ele.

Apesar disso, continuava:

— A senhora imagina, com razão, que a opinião pública lhe é favorável na Nova França. Mas ela pode sofrer uma reviravolta. Certas línguas que se calam para lhe ser agradáveis podem se destravar. Sua graça e suas generosidades obtiveram para si mesma muitos amigos. Mas o mundo tem memória curta! Ora, a senhora não é tão virtuosa! E não creio em sua inocência.

— O senhor já disse isso.

— Mas repito-o. Não creio em sua inocência.

— Compreendo-o perfeitamente, senhor tenente de polícia, e não lhe quero mal por isso. .

E subitamente ela dedicou-lhe um sorriso tão cheio de doçura e de amizade, que ele ficou desconcertado.

Levantou-se e pôs-se a andar de lá para cá para acalmar sua tensão interior.

-        Escute-me, estou numa situação muito difícil, e que lamento muito, diante da senhora e do Sr. de Peyrac. Peço-lhe, senhora, procure fazer-me essa lista das moças, para que se possa saber o que aconteceu com aquelas que, dizem, teriam embarcado na França. É uma simples formalidade. Isso não a compromete em nada e me permitirá ganhar tempo e descobrir quem se interessa com uma obstinação inexplicável por essa questão de ressarcimento de fundos. Talvez, com efeito, exista por trás disso uma intriga montada por hábeis escroques... Algumas pessoas, para manter sua posição na corte, aproveitam qualquer oportunidade e chegam até a subornar clérigos ou funcionários de ministérios para estar a par dos litígios em pendência de que possam se apoderar.

-        Está bem - disse ela, resignada -, se me pede desta forma, eu me curvo, vou procurar fazer essa lista da melhor forma possível. Dê-me esses maços de papéis. Creio que sei a quem me dirigir para preencher certos vazios de seu questionário concernente ao naufrágio do La Licorne e ao estabelecimento das Moças do Rei. Mas não lhe prometo nada mais que isso.

Deixou-o com o mesmo sorriso terno e condescendente que perdoava.

Não quis deixar para mais tarde a visita que planejava fazer, e foi soar a campainha da casa de Delfina du Rosoy, casada com o simpático Gildas de Majéres.

O sorriso feliz da jovem mulher ao vê-la apagou-se quando ela soube do objetivo da visita.

— Vamos, por que empalideceu desse modo? - perguntou Angélica, querendo minimizar as coisas.

— Falar novamente daqueles dias. terríveis? Isso nunca - protestou a pobre Delfina, quase fechando-lhe a porta no nariz.

Angélica procurou convencê-la.

— Isso tampouco me diverte, mas Garreau está enfurecido. Parece que, da França, quase o ameaçam. Trata-se apenas de dizer qual a situação atual de cada uma das Moças do Rei que embarcaram com você no La Licorne, e não posso fazê-lo sem seu auxílio. Vamos, Delfina, coragem.

— Mãos à obra - continuou Angélica, sentando-se diante de uma mesa, a fim de ali colocar os papéis. - O Sr. d'Entremont não é um mau sujeito, mas não estaria encarregado dessas duras e sinistras funções se não tivesse uma propensão natural para colocar o próximo em maus lençóis. Pode-se acrescentar a isso um gosto certo, ainda que não muito consciente, de querer saber tudo sobre os motivos íntimos do indivíduo, e fazer um infeliz confessar deve ser uma de suas inconfessadas, e inconfessáveis, volúpias. Ademais, é sua maneira de servir ao rei e a Deus, vindo aquele depois do último, evidentemente, e nisso ele está em perfeito acordo com seu modelo São Miguel, que aniquila o dragão do Mal. Terei de observar-lhe isso um dia, más por ora não estou em condições favoráveis, e as digressões mundanas não nos trariam nada de positivo. O javali fossador está em nosso encalço e vejo-o seguir obstinadamente um caminho que poderia levá-lo mais longe do que desejaríamos. Por isso, o melhor a fazer é aceder a seu pedido de informações precisas. Um funcionário que possa apresentar nas altas esferas peças bem completas e inatacáveis não deseja, por vezes, muito mais que isso.

Ela fazia o possível para divertir e tranquilizar Delfina, que tremia como uma folha.

— Mas, também, por que esse súbito interesse por nossa sorte?

— Já lhe disse: as companhias e sociedades financiadoras de sua expedição para a Nova França, e os funcionários responsáveis pela distribuição dos créditos concedidos pelo "Estado do Rei" para seu estabelecimento aqui, estão desejosos de saber o que foi feito de seus adiantamentos, e a que ou a quem serviu o fruto de suas generosidades. É aceitável como exigência e não c assim tão repentino, se considerarmos que a administração, por princípio, nunca se mostra rápida em seus intercâmbios, e que as cartas e respostas necessitam, no caso da Nova França, a travessia do oceano várias vezes, e o lapso de três ou quatro anos para a conclusão de uma investigação como essa nada tem de tão surpreendente.

Mas a jovem esposa do alferes não se deixava convencer.

-        Não compreendo por que a Sociedade de Nossa Senhora do Saínt-Laurent, ou outra associação qualquer, se julga no direito de reclamar seja lá o que for. A expedição foi quase inteiramente financiada pela fortuna da Duquesa de Maudribourg, e as associações e sociedades só foram constituídas para obter certas autorizações recusadas a particulares. Deveriam julgar-se mais devedores do que reclamantes da Sra. de Maudribourg.

— Então, serão seus herdeiros?

— Ela não tinha herdeiros. Quanto ao Estado do Rei - continuou Delfina -, não acho que tenha sido tão lesado por esse caso, e isso também pede um exame atento. Creio que me lembro, senhora, de que foi a senhora e o Sr. de Peyrac que nos adiantaram nosso dotes, e ficaria surpresa se estivessem pedindo esclarecimentos com a intenção de reembolsá-los.

— Com efeito!

— O resto, a senhora se lembra, roupas, aviamentos, louça, foi produto da caridade da parte dessas senhoras da Sagrada Família...

— Eu me lembro... Delfina, seu espírito de sagacidade não se deixa enganar. Vou transmitir suas observações ao Sr. Garreau, que também tem certas desconfianças. Mas, segundo ele, nosso desejo de não reclamar nada de nossas despesas parecerá suspeito.

— Seja como for, qualquer que seja nossa defesa, se a suspeita quer cavar e minar mais fundo, cedo ou tarde acabará nos atingindo... Estamos perdidas.

— Delfina, não pinte a situação com cores tão trágicas! Não se declare vencida de antemão! Vencida por quem? Vamos começar a fazer esta lista, que não nos compromete de maneira alguma. É um dever enfadonho, concordo com você. Mas vai ser por pouco tempo, e, depois, poderemos dizer-nos que fizemos o que era preciso para pôr fim a essas lembranças ruins.

— Será que algum dia poderemos pôr fim a elas? - murmurou tristemente Delfina. - Essa é exatamente a maneira que eles . utilizam para preparar armadilhas e. pegar com elas pessoas de bem. Por cortesia, para agradar, coloca-se o dedo nelas... por boa vontade e porque isso parece anódino ou por sermos convencidos a isso, e um dia percebe-se que ela nos devorou até o osso, até a alma.

Devia estar revivendo em pensamento o insidioso processo que a fizera cair, ela, uma jovem ingénua e sem defesa, sob o jugo da sutil Benfeitora.

Angélica renunciou a tirá-la, por palavras, de seu marasmo, e, colocando-lhe sob o nariz os papéis, pediu-lhe que verificasse se a lista organizada pelas diferentes companhias estava correta e de acordo com a cifra de vinte e sete Moças do Rei embarcadas no La Licorne em tal data, de tal ano... a fim de realizar o povoamento das colónias de Sua Majestade.

-        Era realmente este o número de nosso contingente quando embarcamos em Dieppe - conveio Delfina, que, estimulada, pegou uma pena de ganso e começou a apará-la -, mas só chegaram dezesseis, sob sua égide, a Quebec.

Pôs-se a conferir certos nomes e copiou-os em seguida numa outra folha, acrescentando a cada um algumas palavras que notificavam o que havia acontecido às jovens em questão, aquelas que Quebec havia tomado a seu cargo.

Angélica seguia com os olhos sua redação, contente, apesar de tudo, de constatar que aquelas pobres deserdadas, que tinham recolhido em Gouldsboro e levado a salvo para a Nova França, conheciam, enfim, em sua maioria, um destino mais favorável.

Joana Michaud casara-se com um morador de Beauport e dera um irmão e uma irmã a seu pequeno Pedro, o órfão. Henriqueta estava na Europa com a Sra. de Baumont, que garantia seu futuro. Catarina de la Motthe residia em Trois-Riviéres e fora saudá-los com sua pequena família quando de sua passagem em dire-ção a Montreal.

Todas bem-educadas, o mais das vezes, pelos cuidados das religiosas do Hospital Geral, e se, no caso de algumas, o nome de família traía a origem de crianças recolhidas na soleira das portas pelos êmulos do generoso Sr. Vicente de Paulo, como Pedri-na Delarue, Margarida Trouvée, Rolanda Dupanier, tinham sido escolhidas por sua bela aparência e seu caráter agradável, e sua vida de pioneiras corajosas testemunhava que o rei tivera razão em lhes dar uma oportunidade.

— Quem é esta Lucira d'Ivry? - surpreendeu-se Angélica.

— É a Mourisca. Sabemos o que aconteceu com ela. Ela espera ser pedida em casamento por um duque ou um príncipe. Vou designá-la como intendente da Sra. Haubourg de Longhcamps e noiva de um oficial da milícia... é o que dizem. É o que vai acontecer, cedo ou tarde.

No final da lista, Delfina nomeou-se e acrescentou, desenhando as letras com amor, os nomes, títulos e qualificações de seu esposo.

-        Sem filhos... - suspirou.

Era a única, entre suas companheiras casadas, que ainda não segurava nos braços um bebe.

— Isso a afeta muito? - perguntou Angélica.

— Certamente! E principalmente a Gildas, meu marido. Angélica deixou para mais tarde uma conversa com ela a esse

respeito.

Delfina escrevia os nomes de onze ausentes com uma mágoa contida. Estava quase tremendo.

— Maria Joana Delille, morta - disse ela, parando nesse nome. E, diante da expressão interrogativa de Angélica, esclareceu:

— Aquela que chamávamos de Maria, a Meiga.

— O grande amor de Barssempuy.

— Poderia tê-lo desposado. Era solteira, como eu, órfã, mas de uma boa família burguesa. Tem talvez tios, tias, irmãos e irmãs que querem saber de seu paradeiro. O que vou escrever?

— Morte acidental durante uma escala. Isso nos fará ganhar algum tempo. Duvido muito que alguém se preocupe com ela mais adiante. Mas sempre se poderá indicar o lugar de seu túmulo, em Tidmagouche. Vejo aqui Juliana Denis, esposa de Aristides Beaumarchand.

Deram ambas um sorriso meio indulgente, meio desencorajado.

-        Inscrevamos Aristides como auxiliar de boticário da Santa Casa de Quebec. Isso parecerá respeitável. Mas é preciso que eu volte em pensamento ao momento em que deixamos Gouldsboro durante aquele funesto verão. Éramos então realmente vinte e sete,, menos Juliana, que se casou com aquele Beaumarchand. Em Port-Royal, três de nossas companheiras conseguiram esconder-se em casa da Sra. de la Roche-Posay, no momento da partida com o inglês que nos fez prisioneiras. Elas puseram na cabeça a ideia de voltar para Gouldsboro, onde tinham seus prometidos. Falaram anteriormente com o senhor governador, que lhes garantiu que mandaria buscá-las em Port-Royal, se elas não aparecessem. Estando a Sra. de Maudribourg em mãos dos ingleses, não pôde mandar buscá-las, como pretendia. Estava furiosa, e todas nós tivemos de suportar seu mau humor.

— Finalmente, ficaram em Port-Royal e estão atualmente nas Minas de Beaubassiri - informou Angélica. - Germana Maillotin, Luísa Perrier, Antonieta Trouchu. Posso dar-lhe o nome de seus esposos. Em compensação, temos três em Gouldsboro, mas de onde vêm estas aqui?

— Já vamos ver isso.

Delfina levantou-se para acender uma vela. Tinha as têmporas úmidas. O esforço de memória, acrescentado ao desagrado de evocar esses dias penosos, deixava-a encharcada de suor.

— Uma dentre nós morreu durante essa viagem para Boston e vejo seu nome aqui: Aline Charmette. Febres ou enjoos, não me lembro. Ou foi em La Héve, onde o Comandante Phipps nos desembarcou. Não, foi no navio. Agora me lembro. Esse inglês horroroso mandou jogar seu corpo no mar.

— Sete.

— O Sr. de Peyrac, tendo nos socorrido em La Héve, levou-nos em seguida até Tidmagouche. Não vou falar de Maria, a Meiga, que foi morta ali, pois já a contamos. Mas houve, antes de nossa partida para o Saint-Laurent, essa decisão que a senhora tomou em relação a três de nossas companheiras de autorizá-las a voltar a Gouldsboro.

— Confesso que não me lembro - disse Angélica.

Essa época de Tidmagouche, depois dos dramas que acabavam de ali ocorrer, provocava-lhe uma impressão confusa. Pensando melhor, começou a lembrar-se de ter, com efeito, discutido esse projeto.

-        Elas lamentavam tanto não ter podido se esconder também em casa da Sra. de la Roche-Posay! - insistiu Delfina. - O Sr. de Peyrac deu-lhes autorização para retornar para lá com o SansPeur, sob a proteção do Sr. e da Sra. Malaprade, que tinham levado Honorina. Confiou-lhes uma carta ao Sr. Paturel sobre elas. Sei que ele lhes ordenava que cuidasse de seus casamentos e lhes conferisse roupas e dote, pois estavam desprovidas de tudo. Perdêramos nossas caixinhas reais no naufrágio do La Licorne. Estávamos sem dote... Suspirou...

— Como lamentei ter deixado Gouldsboro... Era um lugar um pouco assustador no início, com aqueles hereges e piratas, mas logo nos sentimos seduzidas pelo calor humano que ali reinava. O Sr. Governador Paturel é tão bom! Ele foi um pai para nós.

— Sim, sim! - disse Angélica, que se lembrou de que Delfina, pelo que dizia Henriqueta, nutria por Colin Paturel um sentimento de ternura. Não queria deixá-la exaltar-se. - Aqui estão pois mais três, que sabemos estarem casadas. Esta, Maria Paula Navarin, ficou na costa leste, não é?, pois um acadiano, um dos filhos de Marcelina, a Bela, pediu-lhe a mão...

Começavam a ver a coisa mais claramente, e o chefe de polícia poderia mostrar-se satisfeito.

— Contou Petronilha Damourt, sua aia, entre essas vinte e sete que citou no início? - perguntou Angélica.

— Não. Falava apenas de nosso grupo de moças e mulheres enviadas pelo Sr. Colbert para os celibatários do Canadá.

— Então, parece-me que, mesmo que inscrevêssemos entre elas Juliana, que viajou por sua conta, isso daria apenas dez, entre as onze, mortas e vivas, que não foram recenseadas em Quebec. Falta uma.

— Sim! Falta Henriqueta Maillotin - disse Delfina, com uma voz átona.

— Mas você não disse que ela voltou para a França com a Sra. de Baumont?

— Eu lhe falei de Henriqueta Goubay, que a senhora conhece, e não de Henriqueta Maillotin, a irmã de Germana... E esta... não sei o que aconteceu com ela...

CAPÍTULO XXIII

As duas Henriquetas

Então, havia duas Henriquetas.

Angélica verificou-o com uma olhada e compreendeu por que não conseguira ao mesmo tempo tranquilizar e induzir em erro a pequena Germana de Port-Royal.

-        Mas, então, o que aconteceu com a outra Henriqueta, a irmã de Germana Maillotin?

Delfina lançou-lhe um olhar em que, no espaço de um relâmpago, brilhou a expressão de pânico que a caracterizara por tanto tempo.

— Já lhe disse, ignoro. Tudo o que sei é que estava conosco ainda em Tidmagouche. Posso ainda lembrar-me de que discutimos no momento daqueles terríveis acontecimentos. Era muito ligada à Sra. de Maudribourg e não suportava que a condenassem, nem admitia que nossa benfeitora confessara ela mesma seus crimes, lançando-se sobre o corpo de seu irmão Zalil. Ela dizia que a duquesa era vítima de um complô, que a tinham deixado enlouquecer por maldade. Ela mesma estava como que louca, e tive de arrastá-la à força para protegê-la no forte, no momento em que os índios chegaram. Mas todos nós estávamos meio loucos naquele momento.

— E depois?

— Percebi que ela não estava em nosso grupo, que seguia para Quebec, quando já estávamos no mar e vogávamos através do golfo de Saint-Laureqt.

-        Por que você não me falou disso então?

Delfina passou a mão pela testa.

-        Não sei. Estávamos tão abaladas... Devo ter pensado que ela também fora com os Malaprade para Gouldsboro... E depois palavra de honra, não houve oportunidade. Em Quebec recensearam-nos como sendo dezesseis Moças do Rei, e esse número já lhes parecia alto. Por meu'lado, esforçava-me ao máximo por esquecer todos esses horrores.

Contemplou sonhadoramente as páginas cobertas por uma escrita cerrada, em seu jargão administrativo.

-        Como é estranho! - murmurou -, e como tenho medo de repente!

Depois, suplantando seu tom desesperado, disse Angélica:

— Você tem certeza de que Henriqueta Maillotin não podia estar entre as casadas de Port-Royal?

— Nesse caso, sua irmã não teria vindo informar-se sobre ela.

— Exato. E não teria se casado com um acadiano na costa leste?

— Teríamos sabido através de Marcelina ou de Maria Paula Navarin. Os brancos da costa leste e da baía Francesa, como da Acádia, são pouco numerosos e muito dispersos, mas, por causa disso, cada um sabe tudo acerca de seu vizinho, mesmo afastado.

Calaram-se novamente, e Angélica, inclinada sobre a lista que acabavam de fazer, esforçava-se por colocar diante de cada nome um rosto, reencontrava sem dificuldade a lembrança de um gentil casal, de uma pequena família dali em diante acadiana, bem conhecida na baía Francesa. Não era por esse lado que se devia procurar.

— Em que circunstâncias você teve a impressão de tê-la visto pela última vez?

— Como vou me lembrar, depois de tantos anos? - suspirou Delfina. - Do que tenho certeza é que ela se encontrava entre nós no forte onde o Sr. Nicolau Parys nos pediu que nos refugiássemos quando os índios chegaram para escalpelar todo mundo. Eles saíram da floresta! Ela se debatia e queria correr para ajudar a Sra. de Maudribourg. Arrastaram-na à força para o abrigo. Ela urrava, e tive de esbofeteá-la para deter aquela histeria. Então, ela desmaiou, e lembro-me de que o Sr. Parys interessou-se por ela, por seu estado, e mandou buscar-lhe um cordial... Fora, ouviam-se gritos horríveisr Os índios escalpelavam todos aqueles que não tinham se escondido. Todas nós tremíamos e julgávamos, uma vez mais, que nossa hora tinha chegado... Entretanto, posso afirmar que não deixei, então, a cabeceira de Henriqueta, cujo estado me preocupava, e posso pois testemunhar que estava conosco, quando, depois de passado o perigo, nos avisaram que podíamos sair e nos arriscar para fora da muralha. Essa horas ficaram gravadas em minha memória.

Durante esse massacre, Angélica mantinha-se com Iolanda e Marcelina, a bela, diante da porta da casa onde repousava a Diaba, ferida, e Piksarett, com os escalpos gotejando sangue da cintura, parara diante dela, soberbo em sua ironia protetora.

"Eu sei quem está atrás dessa porta, mas deixo-lhe sua vida, pois é seu direito decidir sobre ela!", declarara. E, antes de se afastar e prosseguir sua colheita macabra, lançara-lhe:

"Ela era sua inimiga! Sua cabeleira lhe pertence".

Durante a noite a duquesa conseguira fugir, mas, ferida, não pudera ir muito longe, e, no dia seguinte, encontraram seu corpo meio devorado pelos animais selvagens.

Entretanto, na praia, organizaram-se as partidas que ambas acabavam de evocar.

Naquela confusão, teriam esquecido a jovem Henriqueta Maillotin?

— Teria sido raptada pelos índios? - disse Delfina.

— Não! Ficaríamos sabendo. Os índios malecitas e mic-macs são convertidos pelos missionários, há dezenas de anos, e muito amigos dos franceses. Tive uma ideia. Você assinalou que o velho Nicolau Parys parecia interessar-se por ela. E possível que a tenha encorajado a acompanhá-lo à Europa.

— Ora!

— Isso seria bem próprio dele.

— Mas não de Henriqueta! A menos que estivesse aniquilada, drogada, embriagada.

— No entanto, isso explicaria a presente investigação. Tendo uma de suas companheiras ascendido a uma situação elevada, graças ao apoio do velho Parys, desejaria atribuir importância a uma expedição da qual ela participou...

Delfina sacudiu a cabeça.

— Não me parece que Henriqueta tomaria tal tipo de iniciativa, a menos que tenha mudado muito. Não era muito inteligente, apesar de dotada de encanto e propósito. Era antes passiva, influenciável, voluptuosa, uma pasta mole nas mãos da Sra. de Maudribourg.

— E por que não se deixaria influenciar pelo velho Parys? Num certo sentido, preferiria essa explicação e sabê-la viva a afrontar esse mistério que pesa sobre sua desaparição e que esconderia...

-        O pior - murmurou Delfina, com um arrepio.

Angélica observou-a e lamentou achar-lhe as faces encovadas, o olhar vazio. Adivinhou em que ela pensava.

-        Não deixe sua imaginação desnortear-se. Vamos, por ora, inscrever essa segunda Henriqueta na lista, como residente em

Gouldsboro. Quando eu voltar, interrogarei o Sr. Paturel. Pode ser que possa dar-me informações que não pensamos em pedir-lhe quando voltamos, depois de ter passado um inverno em Quebec, isto é, depois de uma ausência de quase um ano. Quem sabe, talvez tenha se casado com um pirata do Sans-Peur e esteja vogando pelos mares quentes das Caraíbas.

Delfina esboçou um pálido sorriso.

— Deus a ouça.

— Não se atormente. Daqui a pouco, vamos ser tranquilizadas.

— Tenho certeza que sim, senhora - respondeu a jovem com uma voz não muito convencida.

Mas, quando Angélica saía com seus papéis, Delfina a deteve, num salto.

-        Oh! Senhora, é preciso que eu lhe diga toda a verdade... Creio que não devo lhe ocultar um detalhe, ainda que ele não se refira a nenhum fato preciso, nem mesmo real. Trata-se mais de um sonho, de um pesadelo que tenho com frequência, que volta sem cessar. Atormentada pelo fim trágico da duquesa, vejo-a correndo por entre as árvores das florestas, avisto entre os troncos e os ramos o faiscar de seus trajes, o azul de seu manto, o amarelo de seu corpete, o vermelho de sua saia, a senhora se lembra, ela gostava às vezes de se vestir de modo espalhafatoso, e, em sua fuga alucinada, ela parece um pássaro brilhante das ilhas que se choca com as grades de uma gaiola. Sei que a morte está no seu encalço e evito chamá-la. No fim, não consigo controlar-me, e dou um grito. Então, ela vira para mim seu rosto e eu percebo... que não é ela... E uma outra! Não consigo discernir quem seja essa mulher-que foge através da floresta, mas sei de fonte segura e sem remissão que não é ela, que é outra pessoal Outra! Entendeu?. Que vestiu as roupas da Sra. de Maudribourg... E que vai morrer... em seu lugarl Deixou-se cair numa cadeira, esgotada.

-        É apenas um sonho, sim, eu sei, um pesadelo, e, no entanto, senhora - não me julgue uma louca -, cada vez que o esquecimento misericordioso se instalava em mim, que eu desfrutava das doçuras de uma vida pacífica ao lado de um ser amado, entre amigos escolhidos, cada vez que uma espécie de tímida felicidade começava a florir em mim, esse pesadelo voltava e eu acordava tremendo, menos transtornada pelas reminiscências do passado que por uma certeza aterradora: outra tomou o seu lugar, outra pessoa morreu em seu lugar! Em vão, meu esposo apertava-me com perguntas, encorajando-me a explicar a natureza desse sonho cuja constância provava perfeitamente que tinha em mim raízes tenazes que era preciso arrancar. Mas eu não conseguia dizer nada e soluçava em seu ombro. Ficava depois vários dias presa de uma ansiedade profunda. Sentia uma vontade malsã de encontrar minhas antigas companheiras, interrogá-las, confrontar nossas lembranças. Proibia-me de fazer isso, sabendo, ademais, que nenhuma delas, mesmo Henriqueta Goubay, que era uma moça muito boa, não tinha desejo de falar do passado. Sei agora o que eu receava descobrir, interrogando-as. O que, afinal e forçosamente, seremos obrigadas a estabelecer hoje. E que uma delas desapareceu, que é impossível a quem quer que seja dizer o que aconteceu com ela, que meu sonho apenas nos manda um sinal e nos adverte sobre a verdade.

-        É muito pouco um sonho - opôs-se Angélica, enfaticamente.

Voltara a sentar-se no pequeno sofá e obrigara Delfina a sentar-se ao seu lado. Além do mais, uma chuva fina e cortante fustigava as vidraças. A penumbra não contribuía muito para dar à sua conversação um aspecto menos opressivo. Angélica esforçou-se por falar com calma.

— Não é de admirar que, depois das provações que você atravessou junto àquela mulher, esses pesadelos em que ela aparece a persigam. Mas por que dar-lhes essa interpretação?

— Porque é a única explicação lógica para o desaparecimento da filha mais velha dos Maillotin.,

— Você não acha, ao contrário, que tudo se mistura em suas lembranças? Seu sonho lhe mostrou a duquesa fugindo com suas roupas, cujas cores vistosas nos surpreenderam a todos, quando ela desembarcou em Gouldsboro. Mas será que as usava naquele dia em Tidmagouche em que foi desmascarada?

— Sim! Eu mesma ajudei-a a vesti-las, sob sua grande capa negra forrada de vermelho. Ela as queria como um símbolo, disse-nos ela. Não era, com efeito, o dia de seu triunfo, o dia em que decidira fazê-la morrer e que, antes do pôr-do-sol, iriam levar-lhe seus olhos...

— Não vamos mais longe!

Angélica não queria, não queria tornara mergulhar nessas histórias de loucos.

Não queria tampouco ouvir mais falar que houvera uma Am-brosina, com seus modos de sereia sedutora, bela, erudita, enter-necedora, que perambulava vertendo seu veneno um pouco em toda a parte, e que a hierarquia dos anjos seguia suas pegadas - pois os anjos da guarda não bastavam mais -, salvando in extre-mis uns e outros, por esse milagre que os homens ingratos chamavam "acasos felizes", mas cujas rememorações punham todos de cabelo em pé.

Delfina confessava ter-se já entregue à contabilidade que acabavam de fazer, recenseando uma depois da outra, em sua memória, as Moças do Rei da Sra. de Maudribourg, e, a cada vez, tropeçava com o nome de Henriqueta Maillotin, revia a silhueta vaga e meio apagada dessa antiga companheira da qual ninguém mais falava, da qual parecia ser a única a lembrar-se. Uma apreensão que vinha alimentar o pesadelo familiar a impedia de evocá-la na presença das outras, de fazer perguntas sobre sua sorte às pessoas que a cercavam, de procurar saber.

— Eu sempre soube.

— O quê?

— Que o desaparecimento de Henriqueta estava ligado ao da Sra. de Maudriboug. Foi ela quem a ajudou a fugir da cabana onde era guardada por Marcelina.

Esta julgava ter visto quem a golpeara na meio da noite e, na semi-obscuridade, uma outra presença poderia passar despercebida!

— Suponho que elas tenham se evadido dessa maneira e tenham conseguido chegar à floresta, onde poderiam se refugiar sem ser logo encontradas?

— Cúmplices, nos arredores, homens de tripulações sobreviventes, ou da região, mesmo índios... Mulheres como ela encontram seus cúmplices.

— Encontraram o corpo da duquesa.

— Desfigurado. Só a reconheceram pelas vestes.

A voz de Delfina estava surda, convincente. Afirmou:

-        Foi assim que as coisas ocorreram: eles mataram Henriqueta e; depois de a deixarem irreconhecível, a abandonaram aos animais selvagens da floresta, vestida com as roupas da duquesa, para que a julgassem morta.

O túmulo que lá está em Tidmagouche seria então da pobre moça assassinada? Não. Impossível. Pois isso implicaria que Am-brosina podia estar viva em algum lugar do globo.

— E ela, o que teria acontecido com ela?

— Fugiu. Deixou a América.

— Em que navio?

— No de Nicolau Parys.

Angélica sentiu um calafrio percorrer-lhe o corpo dos pés à cabeça e eriçar-lhe a raiz dos cabelos.

Tudo se ligava.

Revia o velho Nicolau Parys pronto para embarcar, impaciente e rabugento, e que o Marquês de Ville-d'Avray segurava pelo pei-tinho, exigindo dele, num tom de conciliábulo, que lhe entregasse a receita de leitão laqueado, à moda índia. O navio esperava na enseada enevoada para levantar âncora. Em seus contatos, ocultava-se Ambrosina, a Diaba, que julgavam morta e enterrada.

Se Delfina adivinhou corretamente, isso implica que, já que Ambrosina não estava morta, estava viva. Mas, se estivesse viva, ter-se-ia manifestado mais cedo...

— Não acho. Acho, ao contrário, que esses anos bem curtos, suficientes apenas para trazer a paz e um pouco de esquecimento ao coração das vítimas amedrontadas, concederam-lhe exata-mente o tempo necessário para renascer de suas cinzas... reencontrar, quem sabe?, sua saúde alterada, sua beleza destruída. Estabelecer, sob um nome falso, uma nova personalidade, uma situação que permitiria recomeçar suas armadilhas e puxar os cordões de suas vinganças...

— Acalme-se! Você se exalta inutilmente.

— Não! Eu a conheço bem! Conheço-a muito bem!

— Duvido que esteja viva. Ainda não voltou.

— Mas ainda pode voltar.

Angélica zangava-se por ouvir Delfina falar da duquesa no presente, assim como algumas vezes fizera Madre Madalena, das Ursinhas, a visionária que falava também no futuro, evocando "o Arcanjo que se ergueria um dia e intimidaria a testa imunda a destruir a Diaba..." Angélica observara-lhe: "Você se exprime como se ela ainda estivesse por aí nesta terra e não houvesse terminado sua missão infernal junto a nós!" E a pequena religiosa lançara-lhe um olhar de medo por trás de seus óculos redondos.

— Precisamente, o despertar do caso do La Licorne talvez seja seu primeiro sinal - sugeriu Delfina.

— Isso me surpreenderia! Nada, nas palavras do Sr. d'Entre-mont, permite supor que haja, por trás dessas investigações e interrogatórios, uma pessoa desse tipo. Em minha opinião, isso é apenas a conclusão de uma longa e enfadonha investigação administrativa, e os funcionários e escrivães que se encarregam de coletar as peças ririam muito se soubessem os dramas que estamos fazendo em torno de suas garatujas.

Calou-se sobre a alusão que o tenente de polícia fizera aos dois navios dos piratas, homologados pelas sociedades benfeitoras como fazendo parte da expedição da Duquesa de Maudribourg. Nunca ficara bem clara a questão das "presas de guerra" do Conde de Peyrac, das quais o Marquês de Ville-d'Avray adjudicara uma delas como compensação pela perda de seu L'Asmodée.

E se fosse Tardieu de La Vaudiera, que se encontrava na corte do ministro da Marinha, quem tivera a ideia de recolocar isso "nos bastidores do poder"? Convenceu-se de que isso era bem próprio do obstinado procurador. Deveria ter pensado antes nisso.

— Que riam, todos eles! - murmurou Delfina. - Eu o abraçarei quando tornar a vê-lo. Tudo o que peço à misericórdia de Deus é que meus pressentimentos estejam errados!

— Eles estão, você verá. - Voltou-se para a janela: - Continua a chover. Delfina, você tem entre sua criadagem algum valete ou um moleque que possamos encarregar de levar papéis à senescalia? Apesar de minha amizade e estima pelo Sr. Garreau d'Entremont, não quero ter de penetrar novamente em seu antro.

Juntou ao pacote, devidamente embrulhado num pedaço de algodão engomado, uma missiva amável, mas redigida de maneira a fazer compreender ao tenente de polícia civil e criminal que ela julgava ter-se dedicado muito, por ele, e que doravante não poderia fazer mais nada para ajudá-lo.

CAPITULO XXIV

Novo milagre da menina Ermelina - Adeus a Quebec

Angélica saiu da casa de Delfina.

Esperaram que a chuva parasse, colocando de lado aquele assunto obsedante. Tomaram a decisão de não mais falar a seu respeito.

-        Se a interrogarem, envie os curiosos ao intendente Carlon. Ele tem uma carreira a defender. Saberá resistir. Quanto a você, preocupe-se com sua felicidade e com sua saúde. Como se explica que ainda não seja mãe de família? Não quer filhos?

Delfina protestou: um filho!

Era seu sonho mais dileto, o que resgataria sua triste vida órfã. Mas também nesse ponto a maldição pesava sobre eles. Ela e Gil-das, todavia, se amavam.

Angélica deu-lhe o nome de algumas plantas que ela poderia obter com o boticário e explicou-lhe como misturá-las e prepará-las.

Delfina pediu-lhe em seguida que- falasse dos gémeos.

Angélica lançou-se pois à descrição de Gloriandra e Raimundo Rogério, depois falou de seus progressos, suas proezas, e, certamente, o assunto era inesgotável. '

Finalmente se separaram.

-        Não pense mais no passado - insistiu Angélica -, é por medo e por causa de sua lembrança que você se inflige, involuntariamente, uma punição. Ela odiava tanto a felicidade! Derrote-a, tendo seu filho! Beba as tisanas que lhe recomendei e a poção de Eufrosina Delpech. Dizem que é excelente para estimular os ardores do amor. Você conceberá e será feliz. A jovem mulher acabou por sorrir.

-        Vocês, curandeiros, têm em suas mãos a Vida e a Morte, a saúde ou a doença, a felicidade no Amor ou seu fracasso, a concepção ou a esterilidade. Compreendo que sejam temidos por aqueles que querem ter "poder absoluto sobre os homens e suas consciências!

O sol reapareceria entre as nuvens, o sol ardente do verão, e as folhagens resplandeciam como uma faiança envernizada.

Enxurradas de água corriam da praça para a catedral, descendo sinuosamente para a Cidade Baixa. Angélica, antes de começar a descida pelo Caminho da Montanha, olhava aquele horizonte que lhe era caro, que ela tornara seu em sua vontade de não se deixar afastar da França, pois não havia razão para isso.

A grande superfície do rio descobria-se como um lago dourado, com velas e botes como sombras negras atravessando-o em toda a sua extensão. Tudo estava tranquilo. Nada ameaçava. Mas Angélica sentia-se indecisa, como se seu coração tivesse sido condenado a não poder lançar âncora em parte alguma...

Passos ligeiros corriam atrás dela...

Só teve tempo de vê-la chegar, voando em seu vestido branco.

-        Ermelina! O bebezinho guloso!

Não era mais um bebé. Tinha crescido, era uma adolescente agora.

-        Oh! minha querida criança, meu pequeno tesouro, não perca jamais seu segredo! Continua muito gulosa?

"É verdade! a mãe dela me escreveu que ela ainda não falava..." Muda, mas maravilhada, Ermelina parecia estar bem de saúde. Mais feliz que uma borboleta nos prados, a tez rósea e animada, mostrava todos os seus dentinhos redondos num riso que parecia inspirado por um espetáculo ou uma visão das mais aprazíveis. Uma chama maliciosa brilhava-lhe nos olhos, que estavam tão crepitantes de faíscas de alegria que era difícil definír-lhe a cor: a água de um lago ao sol.

-        Você não mudou!... Que felicidade! Ermelina, estou desolada, não tenho docinhos... Mas estou tão contente por vê-la! E a abraço bem forte!

Seu discurso continuava a divertir enormemente Ermelina, que ria com um riso cristalino.

"Gostaria tanto de dar-lhe uns docinhos!", censurava-se Angélica. Pensou numa reflexão do Cavaleiro de Loménie-Chambord, quando oferecera a Honorina o pequeno arco e as flechas. "Gostamos de mimar a inocência. Apenas ela o merece."

O que faria agora com esse fogo-fátuo?

Não era a primeira vez em Quebec que se via com Ermelina nos braços, depois que ela fugia. Como naquele dia de tempestade em que a garota por pouco não voara, as saias enfunadas pelo vento.

Eis que a ama-de-leite Perrina, preocupada da mesma maneira, chegava à penumbra das cerejeiras.

E Angélica, como outrora, entregava-lhe a trânsfuga.

— Toda a família Mercourville já voltou para casa - disse a ama-de-leite negra.

— Vou partir amanhã, mas vou mandar-lhe Kuassi-Ba para que você possa falar um pouco com ele, Perrina. Adeus, Ermelina, minha querida! Não escape mais assim - disse Angélica, que teve de afastar-se, mais contente por tê-la visto do que se toda a cidade lhe desse acolhida.

"As crianças são estranhas", dizia-se começando a distanciar-se, "mas são tão maravilhosas! Durante muito tempo permanecem habitadas pelo mistério, envolvidas com o desconhecido. É por isso que as amo e que me fascinam..."

Uma voz suave gritava atrás dela:

-        Até logo! Até logo, Sol...

Voltou-se: Ermelina, nos braços de Perrina, repetia, rindo:

-        Até logo! Até logo, Sol...

E enviava-lhe beijos com as duas mãos.

Ao lado disso, o que eram os Garreau d'Entremont, as Ambrosinas e suas escuras carroças de medos e de ódio? Tinham eles poder contra os efeitos desse encanto?

-        Oh!, cara amiga, estava pensando em você, e vejo-a como uma aparição.

Era a Sra. Le Bachoys.

— Encontro-a mandando beijinhos ao céu.

— Não. Estava apenas dando adeus à garotinha dos Mer-courville.

Seja porque se anunciava a festa de Santa Ana, que trazia de volta os citadinos, seja-porque no momento de sua partida um sobressalto sacudia a cidade entorpecida, Quebec despertava.

E, nos últimos momentos da manhã, todo mundo invadia o albergue Ao Navio de França e o cais à beira do qual as chalupas esperavam.

Angélica acabava de aprontar suas malas enquanto ouvia da melhor maneira possível o que cada um tinha a dizer-lhe, o que criava um verdadeiro tumulto, como se acabassem de saber que não a tornariam a ver por muito tempo para vir-lhe explicar problemas espinhosos.

E a Polaca, nisso, batia o recorde, ela, que a tivera à sua disposição cotidianamente.

— ... Se um dia - dizia a Polaca - o Sr. e a Sra. de Peyrac passarem pela França, deveriam pensar em levar os pequenos sa-boianos... sim, você sabe, os do cartório, que Carbonnel manda descer pelas chaminés para verificar se as.ordenações foram respeitadas, porque essas crianças são limpa-thaminés de nascença. Vieram como pequenos valetes com o Sr. de Varange, aquele que desapareceu.

— Sim! E daí?

Estavam definhando, pobrezinhos. Não tardariam a morrer. A Sra. Gonfarel, de bom coração, interessava-se por eles porque sabia o nome de sua doença. Era a doença dos montanheses. No exército, dizia ela, inventaram um nome erudito para essa doença pela qual só eram atingidos os homens vindos das regiões de montanhas: a nostalgia, das palavras gregas nostos, volta, e al-gia, dor. O único remédio para isso era mandá-los de volta para casa.

-        Você compreende, sentem falta de suas marmotas, seus vales altos e fechados, o silêncio dos picos que olham para eles, e subir e descer sempre como camelos, senão... Sei do que estou falando. Sou da Auvergne. Toda branca no inverno, toda preta no verão, pão de centeio e queijo. A fome, o silêncio. Posso me lembrar desse tempo antes que minha mãe me vendesse a um recrutador de escravas que passava por lá e procurava moças para os soldados.

— Mas você nunca ficou doente de nostalgia que eu saiba, não?

— Com as mulheres, é diferente.

— Isso é hora de me falar disso, Polaca? Não posso encarregar-me assim dessas crianças, sem ter falado com Car-bonnel.

— Ei-lo que chega.

— Por piedade, Polaca! Não há mais tempo, estou lhe dizendo. De qualquer maneira, não voltaremos para a França. Escute, vou mandar-lhe uma bolsa. Trate de arranjar-lhes uma passagem num navio e confie as crianças a um eclesiástico caridoso que as encaminhe para sua Sabóia natal... Vá também levar algumas guloseimas às crianças do batistério que estão no seminário ou no Convento das Ursulinas, e não deixe de dar minhas boas lembranças a Madre Madalena.

E o escudeiro se aproximava, a fim de saber se podia subir até as ursulinas para tentar encontrar ou, pelo menos, deixar uma mensagem, com toda a distinção, a uma jovem que não lhe desagradara quando a vira em Gouldsboro, e que chamavam de Mourisca, ainda que sua graça e beleza lhe merecessem um nome mais cristão.

-        Por que não me falou isso mais cedo?

Ele acabara de saber que ela não tinha encontrado marido.

-        A Mourisca é ambiciosa.

Repetiu-lhe o que lhe haviam dito a Sra. de Mercourville e Delfina.

-        Ela se chama Lucila d'Ivry...

Na noite anterior, Kuassi-Ba vira Perrina Adélia. Era preciso decidir-se depressa, e era isso que nem ele nem ela conseguiam fazer, cada um não podendo separar-se sem mais daqueles junto aos quais tinham vivido até então. Para Kuassi-Ba, nem se discutia. O Sr. de Peyrac o esperava e tinha de ficar ao lado da Sra. de Peyrac até que ela encontrasse o marido. E o que aconteceria a Ermelina e às outras crianças, e à própria Sra. de Mercourville, sem Perrina Adélia?

Era uma pena tratar com tanta pressa essas questões de coração, mas não havia mais tempo.

Depois, a Sra. de Mercourville foi ao porto. Era evidente, dizia ela, que as coisas tinham acontecido como da primeira vez... Que primeira vez? Para quem? Para Ermelina. A primeira vez que vira Angélica, começara a andar. Dessa vez, tinha começado a falar!

Iriam de qualquer maneira agradecer a Santa Ana de Beaupré. Com a condição de que não houvesse nenhuma flotilha de iro-queses descendo o Tadoussac.

- É justamente sobre isso que tenho de me informar - disse Angélica. - Meu esposo está lá, no Saguenay, o que me privou de sua companhia. Você compreende como estou impaciente por reencontrá-lo e saber como tudo terminou.

Essa agitação tinha a vantagem de aturdi-la, sem que precisasse fazê-lo voluntariamente.

A contrariedade de se sentir de novo mantida à distância por seus amigos franceses - fosse por causa dos prisioneiros ingleses ou por causa do fim do Padre d'Orgeval.... - suplantara o desgosto pela separação de Honorina, um pouco atenuada pelo reencontro com seu irmão, e a carga do "javali" da prefeitura de Quebec colocara-a lindamente refeita, reconduzindo-a ao imbróglio do La Licorne, que tinha origem em Paris, nos escritórios do Sr. Colbert, ministro da Marinha e das Colónias de sua Majestade, o rei da França, Luís XIV, mas que, apesar das aparências, só prometia complicações judiciárias. Preocupações lancinantes, varridas por aquele súbito retorno da chama da afeição de Quebec por ela.

Os cais estavam repletos de gente, como no dia em que aparecera pela primeira vez em vestido azul-gelo e seu manto de pele branca, tal como a fada do setentrião, uma estrela de diamante brilhando em seus cabelos.

Uma emoção contida propagou-se de uns para outros enquanto ela subia na chalupa, escoltada pelo grande Kuassi-Ba, negro protetor junto à sua lourice, com o turbante de penacho que tremulava acima das cabeças e o sabre curvo que fazia parte de sua libré.

— Volte! Volte!

O calor estava abafado. Nenhum sopro de ar. Sob o efeito de relâmpagos silenciosos, o céu plúmbeo no horizonte piscava, iluminando intermitentemente a multidão ali reunida, com seus clarões pálidos.

Angélica avistou o rosto rubicundo da Sra. le Bachoys crispado de angústia, ela, geralmente tão jovial. Brandia seu grande leque de plumas de peru selvagem num último sinal de adeus, como se a visse afastar-se pela última vez.

"Por quê? Por quê?"

Sobre a extensão das águas, oleosas de tão calmas que estavam, os navios tiveram de bordejar por um tempo infinito. O piloto garantia que a tempestade não iria cair e que se distanciaria, levada por esses ventos que os impeliriam para a frente e lhes permitiriam entrar pelo canal em direção ao norte.

Enquanto iam e voltavam sob Quebec, a costa, por trás do nevoeiro de calor que a azulava como sob uma chuva de cinza fina, se insinuava, e Angélica detalhava-lhe os contornos não sem uma certa melancolia. A ilha de Orléans lá embaixo, seu domo quase perfeito de grande esqualo adormecido, a brancura de suas habitações espaçadas a meia encosta ou agrupadas nos ancoradouros, a ilha onde reinava Guilhermina, a feiticeira, a ponta resplandecente do pequeno campanário de Beauport onde morava uma das Moças do Rei, a de Levis, que abrigava Sidónia Macol-let, a incestuosa, e seus "filhos de velho", estando o velho nos Grandes Lagos, com certeza. E de novo Quebec e os florões de sua coroa de prata pura, de seus finos sinos e campânulas, depois o nariz do cabo Tourmente ao longe, e, mais perto, a pequena capela da boa Santa Ana dos Milagres...

O RIO

CAPITULO XXV

A volta do círculo

Depois, foi a descida do rio que se alargava, até revestir o anonimato do mar.

Angélica mantinha-se de preferência na proa do navio, voltada para aquele horizonte onde, enfim, dentro de alguns dias, se o vento continuasse a soprar favoravelmente, iria encontrar-se novamente perto de seu marido.

O vento fresco e macio começava a ter gosto de sal em seus lábios.

Embalada pela onda, deixava seu espírito errar. Tentava lembrar-se do que dizia o último "arcano", aquele em que aparecera o Louco com um cinto dourado, quando Ruth Summers, em Salem, colocara diante dela os tarôs. O que dizia o último arcano, a terceira estrela-de-davi? Apelava inutilmente à sua memória.

Como fora estúpida por não querer saber o fim que talvez lhe revelasse o que ocorreria em seu destino, do Homem Brilhante e da Papisa, por ora, "dominados". Das duas primeiras estrelas, tinha alguns vislumbres. Amor triunfante! Amor triunfante! Fora o que repetira a vidente... Muitos homens: o amor a protege. E o Sol: um homem que adorou como signo o Sol.

Isso significava que o rei continuava a estender sobre eles a sua proteçao.

E a mão de Ruth Summers virava as grandes lâminas de coloridos simbólicos, rosa para a carne, azul para o espírito.

Desejou reencontrar-se na intimidade do quarto dos espelhos, assustou-se por ter esquecido e- como que querido apagar momentos que se inscreviam entre os mais extravagantes, mas também os mais determinantes de sua vida, e que afastara por uma espécie de receio, como se fosse preciso escondê-los do olhar de Deus.

Quando voltará para seu clima da Nova França, Gouldsboro, Wapassu, inclinara-se para esquecer Salem e seus prodígios.

Não era o esquecimento, mas uma impressão de irrealidade permanecia ligada àquelas duas silhuetas, às duas cabeleiras louras que se misturaram aos instantes perturbados e extáticos de sua. "morte". Vira-as em sonho... Dizia fazer um esforço para trazê-las à superfície da vida...

Nos nevoeiros que se fechavam amiúde sobre o rio, elas se tornaram presentes, dois fantasmas em suas capas negras de leprosas.

"Nem sequer sou uma amiga fiel para vocês, minhas pobres magas. Sou a ingrata francesa papista que, constrangida por sua singularidade, tenta não se lembrar muito do que ela deve a criaturas tão estranhas e repreensíveis. Mas nunca duvidei... Eu as encontrei. Não era um sonho. E não foi o acaso que nossos dois filhos da felicidade tivessem nascido em Salem e ressuscitassem por suas mãos!"

Estava fechado o círculo.

Não! o que se passara na Nova Inglaterra, e que lhe permitira compreender melhor o que havia padecido seu irmão Josselino, nada tinha de etéreo. Eram persongens de carne e osso que construíam um mundo numa febre mística. Entre elas, Ruth e Noémia tinham também seu lugar. Quando, cuidando dela, elas lhe contavam suas existências patéticas, eram menos os deslocamentos dos pequenos grupos importunados, humilhados, indo de pelourinhos a enforcamentos, que tinham despertado sua revolta, do que essa espécie de tranquilidade na imensidão. Havia como que uma espécie de banalidade na crueza que conseguia torná-la natural, se não desejável.

Ruth e Noémia não sentiam revolta. Falavam dessas perseguições, intrigas e sevícias que lhes eram infligidas quase como originárias de um mal necessário que engendrasse a dor de viver e de crescer nas costas da América.

Depois de multiplicar suas curas, morriam enforcadas, amaldiçoadas, desonradas.

Ambrosiana, a Papisa, a Piedosa, a Benfeitora, esta não assustava ninguém.

O mundo não é cego.

Ele é apenas fraco e não tem um desejo verdadeiro de justiça e de amor.

Quando Angélica, à proa de seu navio, fizera em pensamento a volta do círculo, a impaciência de reencontrar Joffrey intensificou-se ainda mais.

Ele assemelhava-se a ela. Podia dizer-lhe tudo. Contar-lhe-ia suas apreensões a respeito de Ambrosina. Via-o sorrir, reconfortante. E provavelmente lhe faria os mesmos discursos que dirigia a si mesma.

Se a Duquesa de Maudribourg estava viva - e alternativamente, Angélica estava convencida disso e julgava a coisa inverossí-mil -, de que possibilidades disporia atualmente para prejudicá-los? Sua missão não se encerrara com o fim do jesuíta, seu irmão de infância? E, com ele e essa missão, devia ter-se extinto a chama diabólica.

Alternadamente, via a Papisa e o Homem de Brilhante, reduzidos às rasas dimensões dos seres comuns, como os grandes generais que, depois de conhecerem horas de glória, vêem-se na banalidade mesquinha de sua falta de ocupação.

Tantas coisas tinham-se metamorfoseado desde aquelas semanas de verão maldito!

Ninguém podia mais atacar seu amor naquele momento. O próprio país tomara um novo aspecto. Os estrangeiros de Goulds-boro, no início fracos e vulneráveis, tinham-se instalado, tinham construído e tinham mudado, elevando-se, o equilíbrio das forças adversárias.

Em alguns anos, a situação desenvolvera-se de tal maneira que Joffrey de Peyrac estava se tornando o árbitro entre os povos da América do Norte: franceses, ingleses e nações indígenas, fossem de origem iroquesa ou algonquina.

Já em Salem, Angélica tivera uma visão de sua influência quando vira os novos-ingleses considerá-lo um dos seus, podendo perfilar-se honrosamente ao lado dos Estados coloniais semi-independentes da coroa britânica: "Você é quase como nós". E tivera a confirmação de sua importância por essa ajuda que o Governador Fron-tenac, da Nova França, lhe pedira como um aliado e como um irmão no qual tivesse-toda confiança.

E mandava-o para os iroqueses com a certeza de que somente ele podia deter sua fúria selvagem.

Tinha tanta pressa de revê-lo, ouvi-lo, tocá-lo, assegurar-se de que voltava são e salvo!

Todos os dias, esperava que, através da grande extensão cinzenta do rio margeado de franjas de névoas, uma embarcação viesse à sua frente, trazendo Joffrey ao seu encontro, mas a cada dia sua esperança era frustrada.

E quando se anunciou que, no fim daquela manhã, Tadoussac estaria à vista, foi tomada pelo pânico.

"E se ele não estiver lá? E se lhe tiver acontecido alguma desgraça com os iroqueses? Se Utakê o matou?"

Via-se já sentada eternamente nas praias de Tadoussac, esperando sua volta, como a Angélica de Orlando furioso, de Arios-to, acorrentada a seu rochedo.

As altas falésias rosadas, abrindo o fiorde negro e gelado do Saguenay, apareceram, com a cabeça entre as nuvens, depois, para lá de um cabo, as casas, o campanário pontudo e a grande cruz de Tadoussac descobriram-se tendo, ao largo, na enseada, navios ancorados.

-        Ele está lá?

Angélica não conseguia manter a objetiva de sua luneta diante do olho. Enfim, a imagem definiu-se. Ele estava lá.

— É ele! Não, não é ele!

— Quem queria que fosse? - disse o Sr. d'Urville, tomando-lhe o instrumento. - Estou vendo perfeitamente o Sr. de Pey-rac e, um pouco mais longe, parece-me reconhecer o Sieur Per-rot. Os soldados, os marinheiros vão e vêm para a terra ou no tombadilho dos navios. Todo mundo parece tranquilo. Estou começando a perceber um certo tumulto, parece:me alegre. É provavelmente porque já nos viram e estão se preparando para recebê-la. No mesmo instante, uma pancada surda alcançou-os.

— Como vê, alguma coisa está acontecendo!

— Reconheceram-nos, e a frota nos saúda. Vou mandar responder de nosso bordo.

Um pouco mais tarde, duas salvas de canhão do Arc-en-Ciel ecoaram o sinal de reconhecimento.

Mais algumas bordadas e manobras sob o vento, destinadas a aproximar os navios da margem, e a dúvida não foi mais possível.

Com o olho colado à luneta, ela o via destacar-se do grupo, dar alguns passos. E seu coração disparou.

A dúvida não era mais possível.

Era ele, seu rei, sua pátria, seu refúgio.

Durante toda essa viagem, sozinha, para Montreal, não deixara um momento de estar presa de temores tão informes quanto injustificados. E por quê? Porque, longe dele, ela respirava pela metade.

E ali, mais uma vez, no momento de reencontrá-lo, em vez de rejubilar-se, a mão da impaciência a oprimia como se um ca-taclisma súbito - a aparição de um monstro adormecido sob as águas do Saguenay, por exemplo - pudesse retardar o instante de estar junto dele e de constatar, mais uma vez, que ele estava bem vivo.

Assim que a chalupa do Arc-en-Ciel abordou, ela correu para ele e jogou-lhe os braços em volta do pescoço, sem preocupar-se com os espectadores que os cercavam.

So uma coisa era importante: garantir-se de sua presença pela sensação do corpo dele contra o seu, de seu calor vivo, de sua realidade, pela força de seu abraço que se fechava sobre ela e a aprisionava, da rudeza da pele de seu rosto bronzeado e da doçura de seus lábios, que ela tão bem conhecia! Um corpo vivo! Um homem vivo!

A cada instante em que o encontrava, seu sentimento de alívio e de júbilo crescia.

Ah!, não, dessa vez, jurava: não o deixaria mais separar-se dela, nem por algumas semanas! 

Ele a afastou para melhor contemplar seu rosto iluminado por uma tão. ingénua e sincera alegria! Em seus olhos escuros faiscava aquele brilho alegre, um pouco caçoísta, que vira iluminar os de Raimundo Rogério na primeira vez em que ele gargalhara.

- Deus seja louvado! Estamos na Nova França é não na Nova Inglaterra. Senão, já teríamos merecido umas boas.duas horas no pelourinho!

Adorava seu sorriso, o sorriso do Conde de Toulouse...

O que importava se ela não se comportava com a compustura de uma grande dama francesa! Tadoussac, velho posto de peles, a dois passos de um rio que conduzia às regiões mais selvagens

do mundo, era exatamente o último lugar em que teria de se preocupar com a etiqueta. E quem naquele lugar, entre os seus, ou entre os independentes franceses de Tadoussac, podia se escandalizar com seu entusiasmo? O amor que sentiam um pelo outro, se era algumas vezes motivo de surpresa em seu meio, talvez de urn pouco de inveja, era também para seus familiares e todos aqueles que, em grande número, se colocaram sob a sua égide, uma garantia de segurança, uma garantia de perenidade e de vitória.

Desconfiados de início, como costumam ser os homens de mar ou de guerra em relação a uma mulher, pouco a pouco adquiriram o hábito de considerá-los, juntos, um amuleto.

Daqueles que acompanharam o Conde de Peyrac ao Sangue-nay, muitos, durante essa campanha, sentiram-se ansiosos, pouco à vontade, intranqúilos, sabe-se lá! Não são coisas confessáveis. Mas, agora que "eles" estavam de novo juntos, que "ela" voltara, fiel ao encontro, a Dama do Lago de Prata, e que os dois passavam, apoiados um ao outro, sorrindo em meio aos vivas e hurras lançados pelas tripulações e os habitantes de Tadoussac que haviam acorrido, as coisas estavam melhores!

— E os iroqueses?

— Estavam lá. Utakê à frente, descendo pelo lago Mistassini... Parecia que me esperava: "Entre nós, Teconderoga, existe um fio invisível que nunca se rompe, e que viaja através dos rios, dos desertos e das montanhas".

Houve confabulações, inúmeros cachimbos trocados, e Utakê entregara ao Conde de Peyrac um wampum que dizia: "Este colar contém minha palavra: não farei guerra aos franceses. Enquanto eles permanecerem fiéis ao homem branco de Wapassu, aquele-que-faz-troar-o-trovão, Teconderoga, meu amigo".

Assim, a esperança que Angélica depositara no Novo Mundo, de poder recomeçar uma vida nova, de ver apagar aquilo que quebrara a antiga, de encontrar um clima propício ao cumprimento de suas personalidades, não se mostrara ilusória.

A volta deles, os pássaros da infelicidade, se afastavam...

Só permaneciam na liça sombrios espíritos de dois seres de que a morte se apoderara.

Pelo menos, suas mortes eram admiradas pelos vivos...

E - paradoxalmente - Angélica nunca deixara de temer que esses mortos continuassem o combate contra ela com mais força do que se estivessem vivos!

Não seria isso um pouco de "superstição poitevine" de sua parte, como teria dito Joffrey que, se lhe contasse a intervenção de Gar-reau e os receios que tinha tido de que a Diaba não tivesse mordido em Tidmagouche, sorriria e zombaria gentilmente dela.

Certamente falaria disso com ele - nem que fosse apenas para desfrutar o prazer de ser confortada em seus braços -, mas mais tarde.

Os pássaros das trevas adejavam em volta do halo de luz de sua vida. As negras asas debatiam-se contra o brilho dessa luz que subia como um sol levante.

Apenas ela os via. Eles confirmavam seu pressentimento de que nem tudo estava resolvido, que haveria outras provas a atravessar, mas esses dois adversários irredutíveis, encarniçados contra eles, mortos ou vivos, realmente jamais poderiam triunfar.

Pois ela e Joffrey tinham atingido as praias da serenidade interior e da esperança, de onde não se pode mais ser expulso, e sabia também-que, por muito tempo ainda, acontecesse o que acontecesse, haveria para eles muitas horas de felicidade a serem vividas.

 

 

                                                                                                    Anne e Serge Golon

 

 

 

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