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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O FATOR INVISIVEL
O FATOR INVISIVEL

 

                                                                                                                                             

 

 

 

 

 

Colombo sacudiu vagarosamente um dedo diante de seu nariz.

— Meu amigo — disse ele — Kristatos é Kristatos. Está fazendo o maior jogo dúplice que é possível conceber. Para mantê-lo — para manter a proteção do serviço secreto americano e de seu pessoal de entorpecentes — precisa jogar-lhes uma vítima de vez em quando — algum homem pequeno da orla do grande jogo. Mas com este problema inglês, o caso é diferente. É um tráfico enorme. Para protegê-lo, era necessária uma grande vítima. Eu fui escolhido — por Kristatos ou por seus empregadores. E é verdade que, se tivesse sido vigoroso em suas investigações e tivesse gasto bastante moeda forte para comprar informações, você poderia ter descoberto a história de minhas operações. Mas cada pista na minha direção teria levado você para mais longe da verdade. No final, pois eu não subestimo seu Serviço, eu teria ido para a prisão. Mas a grande raposa que você está procurando ficaria só rindo do barulho da caçada que morreria à distância.

— Por que Kristatos queria que eu o matasse?

A fisionomia de Colombo assumiu uma expressão astuciosa.

— Meu amigo, eu sei coisas demais. Na fraternidade dos contrabandistas, de vez em quando tropeçamos em um canto do negócio de outro homem. Não há muito tempo, neste barco, tive um combate em retirada com uma pequena canhoneira da Albânia. Um disparo providencial incendiou seu combustível. Só houve um sobrevivente, que foi convencido a falar. Fiquei sabendo muito, mas como um tolo resolvi correr o risco com os campos de minas e desembarquei-o na costa norte de Tirana. Foi um erro. Desde então tenho esse bastardo de Kristatos atrás de mim.

Colombo sorriu cruelmente e acrescentou:

— Tenho uma informação de que ele não tem conhecimento. E temos um encontro com essa informação à primeira luz do dia amanhã, em Santa Maria, pequeno porto pesqueiro logo ao norte de Ancona. E lá — concluiu Colombo, com uma risada áspera e cruel — veremos o que houver para ver.

Bond sorriu brandamente e perguntou:

— Qual é seu preço por tudo isso? Você diz que minha missão estará terminada amanhã de manhã. Quanto?

Colombo sacudiu a cabeça. Disse em tom indiferente:

— Nada. Acontece que nossos interesses coincidem. Você vai prometer-me, porém, que tudo quanto eu disse esta noite ficará entre eu e você, e, se necessário, seu chefe em Londres. Nunca deverá voltar à Itália. Está combinado?

— Sim. Concordo com isso.

Colombo levantou-se. Foi até a cômoda e tirou a arma de Bond. Entregou-a a Bond, dizendo:

— Nesse caso, meu amigo, é melhor ficar com isto, porque vai precisar. E é melhor também dormir um pouco. Haverá rum e café para todos às cinco da manhã.

Estendeu a mão. Bond apertou-a. De repente, os dois homens passaram a ser amigos. Bond sentiu isso.

— Está bem, Colombo — disse desajeitadamente, antes de sair da sala e encaminhar-se para sua cabina.

O “Colombina” tinha uma tripulação de doze homens. Eram homens jovens e de aparência decidida. Falavam em voz baixa entre si enquanto canecas de café quente e rum eram servidas por Colombo na sala. Uma lanterna de tempestade era a única luz — pois o navio fora escurecido — e Bond sorriu consigo mesmo diante da atmosfera de Ilha do Tesouro, do ar de excitação e conspiração. Colombo foi de homem em homem fazendo uma inspeção das armas. Todos tinham Lugers, carregadas embaixo da camisa de malha e por dentro do cós da calça, e facas de mola no bolso. Colombo teve uma palavra de aprovação ou de crítica para cada arma. Ocorreu a Bond que Colombo arrumara uma boa vida para si próprio — uma vida de aventura, emoção e risco. Era uma vida criminosa — um combate em retirada com as leis monetárias, o monopólio estatal de tabaco, a Alfândega e a polícia — mas havia no ar um cheiro de travessura adolescente que mudava a cor do crime de preto para branco — ou pelo menos cinzento.

Colombo olhou para seu relógio. Mandou os homens para seus postos. Apagou a lanterna e, sob a luz cinzenta da madrugada, Bond seguiu-o até a ponte. Viu que o navio estava perto de um litoral preto e rochoso, ao longo do qual navegava em velocidade reduzida. Colombo apontou para frente.

— Do outro lado daquele cabo fica a baía. Nossa aproximação não será observada. Na baía, encostado no desembarcadouro, espero encontrar um navio mais ou menos deste tamanho, descarregando inocentes bobinas de papel de imprensa por uma rampa que entra em um armazém. Depois de dar a volta ao cabo, avançaremos a toda velocidade, encostaremos ao lado desse navio e o abordaremos. Haverá resistência. Haverá cabeças quebradas. Espero que não haja tiros. Não atiraremos a menos que eles comecem. Mas será um navio albanês tripulado por albaneses durões. Se houver tiroteio, você deverá atirar com o resto de nós. Essa gente é inimiga de seu país tanto quanto do meu. Se você morrer, morreu. Está bem?

— Está muito bem.

Quando Bond dizia essas palavras, veio um tilintar do telégrafo da casa das máquinas e a coberta começou a tremer sob seus pés. Fazendo dez nós, o pequeno navio deu a volta ao cabo para entrar na baía.

Aconteceu como Colombo havia dito. Encostado no desembarcadouro de pedra, havia um navio, com suas velas trapeando ociosamente. De sua popa uma rampa de tábuas descia em direção à boca escura de um decrépito armazém de ferro corrugado, em cujo interior estavam acesas fracas luzes elétricas. O navio transportava na coberta uma carga que parecia ser bobinas de papel de imprensa. As bobinas estavam sendo baixadas uma por uma sobre a rampa de onde rolavam por seu próprio peso através da boca do armazém. Havia uns vinte homens à vista. Só a surpresa poderia anular essa desvantagem. Agora o barco de Colombo estava a cinquenta metros de distância do outro navio. Um ou dois dos homens pararam de trabalhar e olharam na direção do barco de Colombo. Um homem correu para dentro do armazém. Nesse instante Colombo deu uma ordem rápida. Os motores pararam e começaram a funcionar ao contrário. Um grande holofote foi aceso na ponta e iluminou brilhantemente toda a cena, enquanto o navio se encostava ao lado do pesqueiro albanês. Ao primeiro e violento contato, arpões foram lançados sobre o parapeito do navio albanês, na frente e atrás, e os homens do “Colombina” subiram pelo costado com Colombo à frente.

Bond havia feito seus próprios planos. Assim que seus pés pisaram na coberta inimiga, correu diretamente através do navio, subiu no parapeito do outro lado e saltou. Havia uma distância de uns quatro metros até o desembarcadouro e Bond nele caiu como um gato, sobre as mãos e as pontas dos pés. Ficou imóvel por um momento, agachado, planejando seu movimento seguinte. O tiroteio já começara na coberta. Um dos primeiros tiros apagara o holofote e agora só havia a luz cinzenta e luminosa da aurora. Um corpo, de um inimigo, caiu sobre as pedras à sua frente e ficou tombado de braços abertos, imóvel. Ao mesmo tempo, da boca do armazém, uma metralhadora leve começou a disparar, lançando rajadas curtas com toque altamente profissional. Bond correu em direção a ela na sombra escura do navio. O homem da metralhadora avistou-o e lançou-lhe uma rajada. As balas zuniram em volta de Bond, bateram no casco de ferro do navio e desapareceram na noite. Bond procurou a proteção da rampa de tábuas e mergulhou para a frente de barriga. As balas enterravam-se na madeira acima de sua cabeça. Bond rastejou para a frente no espaço estreito. Quando chegasse o mais perto possível, poderia escolher entre sair para a direita ou para a esquerda das tábuas. Houve uma série de pesadas batidas e o barulho de algo rolando rapidamente em cima de sua cabeça. Um dos homens de Colombo devia ter cortado as cordas, fazendo com que toda a pilha de bobinas de papel rolasse pela rampa. Agora era a oportunidade de Bond. Saltou para fora de seu esconderijo — para a esquerda. Se estivesse esperando por ele, o homem da metralhadora acreditaria que ia aparecer disparando pela direita. O homem da metralhadora lá estava, agachado e encostado à parede do armazém. Bond disparou duas vezes na fração de segundo antes que o cano brilhante da arma inimiga girasse em seu pequeno arco. O dedo do homem morto premiu o gatilho e, enquanto ele caía, a arma disparou uma curta rajada antes de soltar-se de sua mão e cair ao chão.

Bond estava correndo em direção à porta do armazém quando escorregou e caiu de cabeça. Ficou imóvel por um momento, estonteado, com o rosto em uma poça de melaço preto. Praguejou, ergueu-se sobre as mãos e os joelhos, e correu esconder-se atrás de um monte de bobinas de papel que haviam batido na parede do armazém. De uma delas, furada por uma rajada da metralhadora, escorria o melaço preto. Bond limpou o mais que pôde de suas mãos e de seu rosto. Tinha o cheiro adocicado e rançoso que Bond já sentira certa vez no México. Era ópio bruto.

Uma bala enterrou-se na parede do armazém não longe de sua cabeça. Bond limpou pela última vez a mão nos fundimos da calça e saltou para a porta do armazém. Ficou surpreendido em não ser alvejado do interior assim que sua silhueta apareceu na porta. Dentro estava silencioso e fresco. As luzes haviam sido apagadas, mas agora estava ficando mais claro lá fora. As claras bobinas de papel estavam empilhadas em fileiras metódicas, tendo no centro um espaço para servir como corredor. Na outra extremidade do corredor havia uma porta. Todo esse arranjo parecia olhá-lo de soslaio, desafiando-o. Bond sentiu o cheiro da morte. Recuou para a porta e saiu. O tiroteio tornara-se espasmódico. Colombo vinha correndo rapidamente em sua direção, com os pés perto do chão, como correm os homens gordos. Bond disse peremptòriamente:

— Fique nesta porta. Não entre e não deixe nenhum de seus homens entrar. Vou dar a volta por trás.

Sem esperar por resposta, deu a volta correndo no canto do prédio e avançou pelo lado.

O armazém tinha uns quinze metros de comprimento. Bond diminuiu o passo e caminhou silenciosamente até o outro canto. Encostou-se na parede de ferro corrugado e olhou rapidamente pelo canto. Recuou imediatamente. Havia um homem em pé na entrada do fundo. Tinha os olhos em alguma espécie de orifício para espionar dentro do armazém. Na mão tinha um pistão do qual saíam fios que se estendiam por baixo da porta. Um carro, um conversível preto Lancia Granturismo de capota baixada, estava a seu lado, com o motor roncando maciamente. O carro estava voltado para o interior, em uma estrada empoeirada e profundamente trilhada.

O homem era Kristatos.

Bond ajoelhou-se. Segurou a arma com as duas mãos para ter mais firmeza, inclinou-se para fora do canto do prédio e disparou um tiro contra os pés do homem. Errou. Quase no mesmo instante em que viu a poeira levantar-se a centímetros do alvo, houve o barulho estrondeante de uma explosão. A parede de latão atingiu-o e jogou-o longe.

Bond levantou-se cambaleando. O armazém entortara-se doidamente. Agora começava a ruir barulhentamente, como um maço de cartas de latão. Kristatos estava no automóvel. Já estava vinte metros distante, com as rodas traseiras jogando poeira para o alto. Bond assumiu a clássica pose de tiro de pistola e mirou cuidadosamente. A Walther rugiu e escoiceou três vezes. No último tiro, a cinquenta metros, a figura agachada sobre o volante sacudiu-se para trás. As mãos largaram a direção e estenderam-se para os lados. A cabeça espichou momentaneamente para o alto e caiu para a frente. A mão direita continuou estendida para fora, como se o homem morto estivesse fazendo sinal de virar à direita. Bond começou a correr pela estrada, esperando que o carro parasse, mas as rodas estavam presas nos trilhos e, com o peso do pé direito do homem morto ainda sobre o acelerador, o Lancia continuou a correr em sua gritante terceira. Bond parou e ficou observando-o. O carro corria pela estrada plana que atravessava uma planície queimada e a nuvem de poeira branca erguia-se alegremente atrás dele. Bond esperava que a qualquer momento ele saísse da estrada, mas não saiu. Ficou olhando-o até perdê-lo de vista no nevoeiro da manhã que prometia um belo dia.

Bond travou sua arma e enfiou-a na cintura da calça. Quando se virou, viu Colombo aproximando-se. O homem gordo sorria encantado. Chegou até a Bond e, para horror deste, estendeu seus braços abertos, puxou Bond em sua direção e beijou-o em ambas as faces.

— Pelo amor de Deus, Colombo! — disse Bond.

Colombo estourou numa risada.

— Ah, o fleugmático inglês! Nada teme, senão as emoções. Mas eu — disse batendo no próprio peito — eu, Enrico Colombo, gosto deste homem e não tenho vergonha de confessá-lo. Se você não tivesse liquidado o homem da metralhadora, nenhum de nós teria sobrevivido. Perdi dois de meus homens e outros ficaram feridos. Mas só restou em pé meia dúzia de albaneses, que fugiram para a aldeia. Sem dúvida, a polícia os prenderá. E agora você mandou aquele maldito Kristatos de automóvel para o inferno. Que esplêndido fim para ele! Que acontecerá quando o pequeno esquife de corrida chegar à rodovia principal? ele já está fazendo sinal com a mão de que vai virar à direita para entrar na auto-estrada. Espero que se lembre de entrar à direita.

Colombo deu um violento tapa no ombro de Bond.

— Vamos, meu amigo — disse ele. — É tempo de sairmos daqui. As válvulas estão abertas no navio albanês, que logo irá ao fundo. Não há telefone neste lugarzinho. Levaremos uma boa vantagem sobre a polícia. Demorarão algum tempo para conseguir saber alguma coisa dos pescadores. Falei com o chefe. Ninguém aqui gosta de albaneses. Mas precisamos ir embora. Temos uma boa vela ao vento e não há médico em que eu possa confiar deste lado de Veneza.

Chamas estavam começando a aparecer no desmoronado armazém e dele se desprendiam vagalhões de fumaça que cheiravam como legumes doces. Bond e Colombo caminharam contra o vento. O navio albanês encostara-se no fundo e suas cobertas estavam inundadas. Atravessaram o navio andando sobre a água e subiram para bordo do “Colombina”, onde Bond precisou submeter-se a mais apertos de mão e tapas nas costas. Partiram imediatamente e rumaram para o cabo que guardava a baía. Havia um pequeno grupo de pescadores em pé ao lado de seus barcos puxados para a praia abaixo de um amontoado de cabanas de pedra. Causavam uma impressão desagradável, mas quando Colombo acenou com a mão e gritou algo em italiano, a maioria deles ergueu a mão em despedida e um deles gritou em resposta algo que fez a tripulação do “Colombina” rir. Colombo explicou:

— Dizem que nós somos melhores que o cinema de Ancona e devemos voltar de novo.

Bond sentiu desaparecer toda sua excitação. Sentia-se sujo e barbudo. Podia sentir o cheiro de seu próprio suor. Desceu, tomou uma navalha e uma camisa limpa emprestadas de um dos tripulantes, despiu-se em sua cabina e lavou-se. Quando tirou a arma e jogou-a sobre a tarimba, sentiu um cheiro de cordite sair do cano. Isso lhe trouxe de volta o medo, a violência e a morte na madrugada cinzenta. Abriu a vigia. Fora, o mar dançava alegremente e o litoral que recuava, antes negro e misterioso, era agora verde e bonito. Um repentino e delicioso cheiro de toucinho frigindo foi trazido da cozinha pelo vento. Abruptamente, Bond fechou a viga, vestiu-se e foi para a sala.

Sobre um monte de ovos fritos e toucinho defumado, regados por café doce quente misturado com rum. Colombo pôs os pingos nos “ii” e os traços nos “tt”.

— Isso nós conseguimos, meu amigo — disse ele, mastigando torrada. — Era o suprimento de um ano de ópio bruto a caminho da indústria química de Kristatos em Nápoles. É verdade que eu tenho um negócio semelhante em Milão, que serve como conveniente depósito para algumas de minhas mercadorias. Mas não produz coisa alguma mais mortal do que cascara e aspirina. Em toda essa parte da história de Kristatos, onde está escrito Colombo deve-se ler Kristatos. Era ele quem transformava o material em heroína e era ele quem empregava os mensageiros que a levavam para Londres. Aquele enorme carregamento valia talvez um milhão de libras para Kristatos e seus homens. Mas sabe de uma coisa, meu caro James? Não lhe custava um único centavo. Por quê? Porque era presente da Rússia. Presente de um maciço e mortal projétil para ser disparado contra as entranhas da Inglaterra. Os russos podem fornecer quantidades ilimitadas de carga para o projétil. Provém de suas culturas de papoula no Cáucaso e a Albânia é um entreposto conveniente. Mas eles não têm o aparelhamento para disparar o projétil. Kristatos criou o aparelhamento necessário e era ele quem, em nome de seus senhores na Rússia, apertava o gatilho. Hoje, entre nós, destruímos, em meia hora, toda a conspiração. Você pode voltar e dizer a sua gente na Inglaterra que o tráfico cessará. Pode também dizer-lhe a verdade: que a Itália não era a origem dessa terrível arma subterrânea de guerra. Ela provinha de nossos velhos amigos, os russos. Sem dúvida é parte de alguma guerra psicológica de seu aparelhamento de espionagem. Isso posso assegurar-lhe. Talvez, meu caro James — prosseguiu Colombo, sorrindo encorajadoramente — o mandem a Moscou para descobrir isso. Se tal acontecer, esperemos que encontre alguma garota tão encantadora quanto sua amiga Fräulein List Baum para pô-lo no caminho reto da verdade.

— Por que diz “minha amiga”? Ela é sua.

Colombo sacudiu a cabeça.

— Meu caro James, tenho muitos amigos. Você vai passar mais alguns dias na Itália escrevendo seu relatório e sem dúvida — Colombo deu uma risadinha — conferindo algumas das coisas que lhe contei. Talvez passe também uma agradável meia hora explicando as realidades da vida a seus colegas do serviço secreto americano. Entre esses deveres, precisará de companhia — de alguém que lhe mostre as belezas de minha terra adorada. Em países incivilizados, é um costume cortês oferecer uma de suas esposas ao homem que você ama e que deseja homenagear. Eu também sou incivilizado. Não tenho esposas, mas tenho muitas amigas, como Lisl Baum. Ela não precisará receber instruções nessa matéria. Tenho boa razão para acreditar que está esperando seu regresso esta noite.

Colombo enfiou a mão no bolso da calça e tirou algo que deixou cair barulhentamente sobre a mesa em frente de Bond.

— Aqui está a boa razão — disse Colombo, pondo a mão no coração e olhando seriamente para os olhos de Bond. — Dou-a de coração. Talvez venha também do coração dela.

Bond apanhou o objeto. Era uma chave tendo presa a ela uma pesada chapa de metal. Na chapa de metal estava escrito: Albergo Danielli. Quarto 68.


A raridade de Hildebrand

 

 

 

(THE HILDEBRAND RARITY)

 

A arraia tinha uns dois metros de uma extremidade à outra das nadadeiras e talvez três metros de comprimento, desde a ponta rombuda de seu focinho até o fim de sua mortal cauda. Era cinzenta escura com aquele matiz roxo que é muitas vezes um sinal de perigo no mundo submarino. Quando se levantou da areia cor de ouro pálida e nadou por curta distância foi como se uma toalha preta estivesse sendo sacudida dentro da água.

James Bond, com as mãos estendidas ao longo do corpo e nadando apenas com um suave movimento de suas nadadeiras, seguiu a sombra preta através da laguna orlada de palmeiras, esperando oportunidade para um disparo. Raramente matava peixe a não ser para comer, mas havia exceções — as grandes moreias e todos os membros da família do peixe-escorpião. Agora pretendia matar a arraia porque parecia extraordinariamente má.

Eram dez horas da manhã de um dia de abril e a laguna Belle Anse, perto da extremidade sul de Mahe, a maior ilha do arquipélago das Seychelles, estava serena como vidro. A monção noroeste deixara de soprar meses antes e somente em maio começaria a monção sudeste. Agora a temperatura era de 27 graus à sombra e a umidade de noventa. Na laguna, a água fechada estava quase quente. Até os peixes pareciam entorpecidos. Um bodião verde de cinco quilos, mordiscando algas em uma massa de coral, parou apenas para girar os olhos quando Bond passou por cima, e depois voltou à sua refeição. Um cardume de pequenos e chatos peixes cinzentos, nadando rapidamente, abriu-se ao meio com cortesia para dar passagem à sombra de Bond, depois voltou a fechar-se e continuou seu avanço na direção contrária. Uma fileira de seis pequenas lulas, normalmente tão ariscas quanto pássaros, nem sequer tentou modificar sua camuflagem quando Bond passou.

Bond avançava preguiçosamente, conservando a arraia ao alcance da vista. Logo ela se cansaria ou então se tranquilizaria vendo que Bond, o grande peixe à superfície, não atacava. Então pararia em um lugar de areia lisa, mudaria sua camuflagem para o cinzento mais pálido, quase translúcido, e, com suaves ondulações de suas nadadeiras, enterrar-se-ia na areia.

A linha de recifes estava chegando perto e agora havia afloramentos negros de coral e campinas de plantas marinhas. Era como chegar do campo aberto a uma cidade. Por toda parte os coloridos peixes dos recifes resplandeciam e cintilavam. As gigantescas anêmonas do Oceano Indico ardiam como chamas nas sombras. Colônias de espinhosos ouriços do mar formavam manchas em sépia como se alguém tivesse jogado tinta contra as pedras. As brilhantes antenas azuis e amarelas das lagostas agitavam-se para fora de suas fendas como pequenos dragões. De vez em quando, entre as algas marinhas no cintilante leito do mar, avistava-se o brilho sarapintado de um caurim maior que uma bola de golfe — o caurim leopardo e uma vez Bond viu os belos dedos estendidos de uma harpa de Vênus. Mas todas essas coisas já eram comuns para Bond, que continuou nadando firmemente interessado nos recifes apenas como esconderijo através do qual pudesse avançar pelo mar além da arraia e depois persegui-la de volta na direção da praia. A tática deu resultado. Logo a sombra negra e o torpedo marrom que a perseguia estavam voltando através do grande espelho azul. Onde havia uns três metros e meio de água a arraia parou pela centésima vez. Bond parou também, movendo-se suavemente na água. Cautelosamente, ergueu a cabeça e esvaziou a água de seus óculos. Quando tornou a olhar, a arraia havia desaparecido.

Bond tinha uma espingarda de arpão Champion. O arpão tinha na ponta um tridente afiado como agulha — uma arma para curta distância, mas a melhor para operação em recifes. Bond soltou a trava e movimentou-se vagarosamente para a frente, com as nadadeiras oscilando suavemente logo abaixo da superfície para não fazer barulho. Olhou em roda, tentando perscrutar os nebulosos horizontes do grande salão da laguna. Procurava avistar algum corpo volumoso de emboscada. Não seria bom ter um tubarão ou um grande barracuda como testemunha do ataque. Os peixes às vezes gritam quando são feridos e, mesmo quando não gritam, a turbulência e o sangue resultantes de uma luta feroz atraem os limpadores. Mas não havia viva alma à vista e a areia estendia-se para os lados enfumaçados como as tábuas nuas de um palco. Agora Bond podia ver o vago contorno no fundo. Moveu-se até ficar diretamente sobre ele e permaneceu imóvel à superfície, olhando para baixo. Houve um ligeiro movimento na areia. Duas minúsculas fontes de areia dançavam acima dos orifícios semelhantes a narinas nos espiráculos. Atrás dos orifícios estava a ligeira protuberância do corpo. Aquele era o alvo. Dois centímetros e meio atrás dos orifícios. Bond calculou a possível chicotada da cauda para cima, virou vagarosamente a espingarda para baixo e puxou o gatilho.

Embaixo dele houve uma erupção de areia e, por um ansioso momento, Bond nada pôde ver. Depois a linha do arpão ficou esticada e a arraia apareceu, afastando-se dele enquanto sua cauda, em ação reflexa, chicoteava repetidamente sobre o corpo. Na base da cauda, Bond pôde ver os pontudos espinhos de veneno erguendo-se do tronco. Esses eram os espinhos que se supunha terem morto Ulisses, que Plínio dizia ser capaz de destruir uma árvore. No Oceano Indico, onde os venenos do mar são os mais virulentos, um arranhão do ferrão dessa arraia significa morte certa. Cautelosamente, mantendo a arraia em linha esticada, Bond nadou atrás do peixe que lutava ferozmente. Nadou para um lado a fim de desviar a linha da cauda chicoteante que poderia facilmente cortá-la. Essa cauda era o chicote do antigo feitor de escravos do Oceano Indico. Hoje em dia, em Seychelles, é ilegal até mesmo possuir uma cauda dessas, mas elas são transmitidas nas famílias para uso contra esposas infiéis. Quando circula a notícia de que esta ou aquela mulher a eu la crapule, nome provençal da arraia, vale dizer que a mulher não se levantará pelo menos por uma semana. Agora, as chicotadas da cauda estavam-se tornando mais fracas. Bond nadou em volta e por cima da arraia, arrastando-a atrás dele em direção à praia. No raso, a arraia amoleceu e Bond puxou-a para a praia, até um boa distância na água. Mas ainda se conservou longe dela. fez bem. De repente, devido a algum movimento de Bond ou talvez na esperança de apanhar desprevenido seu inimigo, a gigantesca arraia deu um salto para o ar. Bond pulou de lado e arraia caiu de costas. Ficou imóvel com a barriga branca exposta ao sol e a grande e feia boca em forma de foice aspirando e ofegando.

Bond ficou parado olhando para a arraia e pensando o que iria fazer em seguida.

Um homem branco, baixo e gordo, com camisa e calça caquis, saiu debaixo das palmeiras e caminhou em direção a Bond através das plantas marinhas e restos de naufrágios ressecados pelo sol espalhados bem acima da marca da água. Quando estava bastante perto, disse rindo:

— O Velho e o Mar! Quem pescou e quem foi pescado?

Bond virou-se.

— Só poderia ser o único da ilha que não carrega um machete. Fidele, seja bonzinho e chame um de seus homens. Este animal não quer morrer e meu arpão está enterrado nele.

Fidele Barbey, o mais moço dos inúmeros Barbeys que eram donos de quase tudo quanto havia em Seychelles, aproximou-se e ficou olhando para a arraia.

— Essa foi boa. Foi sorte você ter acertado no lugar exato, senão ela o teria arrastado para os recifes e você precisaria largar a espingarda. Demoram como o diabo para morrer. Mas vamos. Preciso levá-lo de volta a Victória. Apareceu uma coisa. Coisa boa. Eu mandarei um de meus homens buscar a espingarda. Você quer a cauda?

Bond sorriu ao responder:

— Eu não sou casado. Mas que acha de uma raie au beurre noir para hoje à noite?

— Hoje à noite, não, meu amigo. Vamos. Onde estão suas roupas?

Enquanto rodavam na perua pela estrada costeira, Fidele disse:

— Já ouviu falar em um americano chamado Milton Krest? Bem, parece que ele é dono dos hotéis Krest e de um negócio chamado Fundação Krest. Uma coisa posso garantir-lhe. ele é dono do melhor iate que se encontra no Oceano Indico. Chegou ontem. O “Wavekrest”. Quase duzentas toneladas. Trinta metros de comprimento. Há de tudo no barco, desde uma bela esposa até um grande gramofone transistorizado sobre balanceiro para que as ondas não sacudam a agulha. Tapetes de três centímetros de grossura de parede a parede. Ar condicionado em toda parte. Os únicos cigarros secos deste lado do continente africano e a melhor garrafa de champanha para depois do desjejum que já provei desde a última vez que vi Paris.

Fidele Barbey riu satisfeito.

— Meu amigo, é um grande barco e se o Sr. Krest é um fanfarrão safado, quem se importa com isso?

— Quem se importa com ele, afinal de contas? Que tem ele a ver com você... ou comigo, para dizer a verdade?

— Só isto, meu amigo. Vamos passar alguns dias navegando com o Sr. Krest... e a Sra. Krest, a bela Sra. Krest. Concordei em levar o navio até Chagrin, a ilha de que já lhe falei. Fica a muitas milhas daqui, ao largo dos African Banks. Minha família nunca encontrou utilidade para ela, a não ser para colecionar ovos de atobá. Fica apenas um metro acima do nível do mar. Faz cinco anos que não vou àquele maldito lugar. Agora, esse Krest quer ir até lá. Está colecionando espécimes marinhos, coisas da sua fundação, e há uns malditos peixinhos que parecem existir apenas ao redor da ilha Chagrin. Pelo menos Krest diz que o único espécime conhecido no mundo veio de lá.

— Parece engraçado. Onde eu entro nessa história?

— Eu sabia que você estava entediado e que ainda tem uma semana antes de partir. Por isso, disse que você era o ás dos pescadores submarinos locais e que logo encontraria o peixe, se existisse. Além disso, tornei claro que não iria sem você. O Sr. Krest concordou. E é só isso. Sabia que você estava em algum lugar aí pelo litoral. Vim rodando até encontrar um pescador que me disse ter visto um homem branco maluco tentando suicidar-se sozinho na Belle Anse. Logo vi que só podia ser você.

Bond riu.

— É extraordinário como esta gente da ilha tem medo do mar. Já era tempo de terem chegado a um acordo com o mar. Dos habitantes de Seychelles são raros os que sabem até mesmo nadar.

— É a Igreja Católica Romana. Não gosta que eles tirem a roupa. Tolice, mas é assim. Quanto a ter medo, não se esqueça que você esteve aqui apenas um mês. Tubarão, barracuda... você não encontrou nenhum deles com fome. E o peixe-pedra? Já viu um homem pisar no peixe-pedra? Com a dor, seu corpo curva-se para trás como um arco. Às vezes, é tão horrível que os olhos literalmente saltam das órbitas. Raros são os que sobrevivem.

Bond disse sem a menor simpatia:

— Deviam usar sapatos ou amarrar os pés quando vão aos recifes. No Pacífico também há desses peixes e o mexilhão gigante ainda por cima. É uma estupidez. Todos se queixam de como são pobres aqui, mas o mar está completamente cheio de peixes. E existem cinquenta variedades de caurim embaixo daquelas pedras. Podiam viver muito bem vendendo isso ao mundo.

Fidele Barbey riu animadamente.

— Bond para Governador! Essa é a chapa. Na primeira oportunidade, vou apresentar a ideia. Você é precisamente o homem para o cargo — longa visão, muitas ideias, abundância de entusiasmo. Caurins! É explêndido. Equilibrarão o orçamento pela primeira vez desde a alta do patchuli depois da guerra. “Vendemos conchas marinhas das Seychelles”. Esse será nosso slogan. Farei com que você colha os louros. Em pouco tempo será Sir James.

— Ganha-se mais dinheiro assim do que tentando cultivar baunilha com prejuízo.

Continuaram a discutir com despreocupada violência até quando as palmeiras cederam lugar às gigantescas árvores sangue-de-drago nos subúrbios da decrépita capital de Mahe.

Quase um mês antes M dissera a Bond que ia mandá-lo às Seychelles.

— O Almirantado está tendo dificuldade com sua nova base nas Maldívias. Comunistas infiltraram-se do Ceilão. Greves, sabotagem... o quadro costumeiro. Talvez tenha de reduzir seus prejuízos e recuar para as Seychelles. Mil e quinhentos quilômetros mais ao sul, mas pelo menos parecem bastante seguras. Mas eles não querem ser apanhados de novo. O Departamento Colonial diz que são seguras como casas. Ainda assim concordei em mandar alguém para oferecer uma opinião independente. Quando Macário lá esteve fechado há alguns anos houve alguns bons sustos em questão de segurança. Barcos pesqueiros japoneses rondando as ilhas, um ou dois trapaceiros refugiados da Inglaterra, fortes ligações com a França. Vá dar uma boa olhada.

Olhando pela janela para a pesada neve de março, M acrescentara:

— Não vá ter insolação.

O relatório de Bond, concluindo que o único risco de segurança concebível nas Seychelles residia na beleza e acessibilidade das seychelloises, fora terminado uma semana antes e depois nada houve a fazer senão esperar o “SS. Kampala” para levá-lo a Mombasa. Estava completamente cheio do calor, das palmeiras, do grito choroso das andorinhas do mar e da interminável conversa sobre copra. A perspectiva de mudança encantava-o.

Bond estava hospedado em sua última semana na casa dos Barbey e, depois de passar por lá a fim de apanhar suas malas, os dois rodaram até o fim do Long Pier e deixaram o carro no barracão da Alfândega. O iate branco e cintilante estava a uns oitocentos metros do ancoradouro. Tomaram uma carona com motor de popa, atravessaram a baía vidrada e passaram pela abertura nos recifes. O “Wavekrest” não era bonito — a largura da boca e o excesso de superestrutura prejudicavam suas linhas — mas Bond pôde ver imediatamente que era um verdadeiro navio, construído para navegar pelo mundo e não apenas pelas Florida Keys. Parecia deserto, mas quando encostaram a seu lado, dois marinheiros de aparência elegante, de camisetas e “shorts” brancos, apareceram e ficaram ao lado da escada com croques prontos para afastar a desprezível canoa da cintilante pintura do barco. Apanharam as duas malas e um deles empurrou uma portinhola de alumínio, fazendo um gesto para que descessem. Um sopro do que pareceu a Bond ser de ar quase gelado atingiu-o quando atravessou a porta e desceu alguns degraus para entrar no saguão.

O saguão estava vazio. Não era uma cabina. Era uma sala de sólida riqueza e conforto sem coisa alguma que a associasse ao interior de um navio. As janelas por trás das persianas semi-cerradas eram de tamanho natural, assim como as fundas poltronas ao redor da mesa central baixa. O tapete era de pelos compridos em azul pálido. As paredes eram cobertas de madeira prateada e o ferro era branco acinzentado. Havia uma mesa com o costumeiro material de escrever e um telefone. Perto do grande gramofone havia um aparador coberto de bebidas. Por cima do aparador via-se o que parecia ser um Renoir extremamente bom — a cabeça e os ombros de uma bela moça de cabelos escuros com uma blusa listrada de preto e branco. A impressão de uma luxuosa sala-de-estar em uma residência de cidade era completada por um grande vaso de jacintos brancos e azuis, sobre a mesa central, e pela bem arrumada prateleira de revistas de um dos lados da mesa.

— Não lhe disse, James?

Bond sacudiu a cabeça com ar de admiração.

— Esta é sem dúvida a maneira de tratar o mar — como se ele não existisse.

Respirou fundo e acrescentou:

— Que alívio ter um bocado de ar fresco. Já tinha quase esquecido seu gosto.

— O negócio lá fora é que é ar fresco, rapaz. Este é enlatado.

O Sr. Milton Krest entrara silenciosamente na sala e estava em pé olhando para eles. Era um homem rijo e coriáceo de pouco mais de cinquenta anos. Parecia forte e sadio. As calças grosseiras de um azul desbotado, o corte militar da camisa e a larga cinta de couro sugeriam que para ele era um fetiche ser assim — parecer durão. Os olhos castanhos pálidos no rosto bronzeado pelo sol eram ligeiramente encobertos e seu olhar era sonolento e desdenhoso. A boca tinha uma curva para baixo que poderia ser humorística ou desdenhosa — provavelmente desdenhosa — e as palavras que lançara na sala, inócuas em si próprias, exceto pelo condescendente “rapaz”, haviam sido jogadas como pequenas moedas a um par de cules. Para Bond a coisa mais estranha no Sr. Krest era a voz. Era um cecear macio e muito atraente através dos dentes. Era exatamente a voz do falecido Humphrey Bogart. Bond correu os olhos pelo homem, desde os esparsos cabelos pretos e grisalhos cortados rente, como fios de ferro espalhados sobre a cabeça redonda, passando pela águia tatuada por cima de uma âncora entoucada no antebraço direito e indo até os pés coriáceos e descalços que assentavam nàuticamente sobre o tapete. Pensou: este homem gosta de considerar-se um herói de Hemingway. Não vou dar-me bem com ele.

O Sr. Krest avançou através do tapete e estendeu a mão.

— O senhor é Bond? Prazer em tê-lo a bordo, Senhor.

Bond estava esperando o aperto de esmagar ossos e enfrentou-o com músculos enrijecidos.

— Mergulho livre ou aqualung?

— Livre e não vou muito fundo. É só passatempo.

— Que faz no resto do tempo.

— Servidor civil.

O Sr. Krest deu uma risada curta e áspera.

— Civilidade e servidão. Vocês, ingleses, são os melhores mordomos e criados de quarto do mundo. Servidor civil, foi o que disse? Acho que provavelmente vamos dar-nos muito bem. Servidores civis é exatamente o que gosto de ter ao meu redor.

O barulho da portinhola da coberta sendo empurrada evitou que Bond perdesse a calma. O Sr. Krest desapareceu de seu espírito quando uma jovem nua e queimada pelo sol desceu os degraus para o salão. Não, ela não estava completamente nua, mas o minúsculo biquíni de cetim marrom pálido tendia a fazer a gente pensar que estava.

— Alô, tesouro. Onde estava escondida? Há muito tempo que não a vejo. Estes são o Sr. Barbey e o Sr. Bond, os rapazes que vão conosco.

O Sr. Krest ergueu a mão na direção da moça e acrescentou:

— Rapazes, esta é a Sra. Krest. A quinta Sra. Krest. E, para que ninguém comece a ter ideias, ela ama o Sr. Krest. Não é, tesouro?

— Ora, não seja tolo, Milt. Você sabe que o amo — disse a Sra. Krest, sorrindo lindamente. — Prazer em conhecê-lo, Sr. Barbey. E Sr. Bond. É um prazer tê-los conosco. Tomam alguma coisa.

— Um minuto, tesouro. Quer deixar que eu cuide das coisas a bordo de meu próprio barco, sim?

A voz do Sr. Krest era suave e agradável. A mulher corou.

— Oh, pois não, Milt, naturalmente.

— Então, okay. Assim ficamos sabendo quem é o capitão a bordo do bom navio “Wavekrcst”.

O sorriso divertido abrangia todos eles.

— Muito bem, Sr. Barbey. A propósito, qual é seu primeiro nome? Fidele, não? É um grande nome. Fiel — disse o Sr. Krest, rindo com bom humor. — Bem, agora, Fido, que tal você e eu subirmos à ponte para pôr em movimento este velho caixãozinho? Talvez seja melhor você levá-lo até o alto mar, depois traçar uma rota e entregar o resto a Fritz. Eu sou o capitão. ele é o imediato e há mais dois homens para a casa das máquinas e a copa. Todos os três são alemães. Os únicos bons marinheiros que restam na Europa. E o Sr. Bond, qual é o primeiro nome? James, não? Bem, Jim, que tal praticar um pouco daquela civilidade e servidão com a Sra. Krest. A propósito, pode chamá-la de Liz. Ajude-a a arrumar os canapés e outras coisas para os drinques antes do almoço. Ela também era inglesa antigamente. Vocês podem bater um papo sobre Piccadilly Circus e as Dooks que ambos conhecem. Okay? Vamos, Fido.

Subiu correndo infantilmente os degraus, ao mesmo tempo que acrescentava:

— Vamos dar o fora daqui rápidos como o diabo. Quando a portinhola se fechou, Bond deixou escapar um fundo suspiro. A Sra. Krest disse em tom de desculpa:

— Por favor, não se aborreça com as piadas dele. É apenas seu senso de humor. E ele é um pouco do contra. Gosta de ver se consegue irritar as pessoas. É muita maldade dele. Mas tudo realmente é brincadeira.

Bond sorriu tranquilizadoramente. Quantas vezes tivera ela de dizer essas mesmas coisas a pessoas, de procurar acalmar pessoas sobre as quais o Sr. Krest praticara seu “senso de humor”?

— Acho que seu marido precisa de uma pequena lição. ele age desse jeito também nos Estados Unidos?

Ela respondeu sem rancor:

— Só comigo. ele adora os americanos. Só é assim quando está no estrangeiro. Seu pai — sabe? — era alemão, realmente prussiano. ele tem essa tola maneira alemã de pensar que os europeus etc. são decadentes, que não prestam mais. Não adianta discutir com ele. ele é assim mesmo.

Então era isso! O velho huno de novo. Sempre a seus pés ou em sua garganta. Senso de humor, realmente! E que não precisaria suportar essa mulher, essa bela moça que ele arrumara para ser sua escrava — sua escrava inglesa? Bond perguntou:

— Há quanto tempo está casada?

— Dois anos. Eu trabalhava como recepcionista em um de seus hotéis. ele é dono do Grupo Krest, sabe? Foi maravilhoso. Como uma história de fadas. Ainda preciso beliscar-me de vez em quando para ter certeza de não estar sonhando. Isto, por exemplo — mostrou com a mão a luxuosa sala — e ele é extraordinariamente bom comigo. Está sempre dando-me presentes. É um homem muito importante nos Estados Unidos, sabe? É bom a gente ser tratada como realeza em todo lugar aonde vai.

— Deve ser. ele gosta dessas coisas, não?

— Oh, sim. — Havia resignação na risada. — Há muito de sultão nele. Fica impaciente quando não obtém o serviço apropriado. Diz que, depois de trabalhar arduamente para chegar ao alto da árvore, a gente tem direito ao melhor fruto que nela cresce.

A Sra. Krest achou que estava falando com excessiva liberdade. Acrescentou rapidamente:

— Mas, realmente, que estou dizendo? Poderiam pensar que nos conhecemos há anos.

Sorriu timidamente.

— Acho que é o ato de encontrar alguém da Inglaterra. Mas preciso mesmo ir vestir um pouco mais de roupa. Eu estava tomando banho de sol no convés.

Um ronco surdo veio do fundo do barco, à meia-nau.

— Pronto. Já partimos. Por que não vai ao convés de ré observar o barco deixar a baía. Irei procurá-lo lá dentro de um minuto. Há tanta coisa que desejo ouvir a respeito de Londres.

Passou ao lado dele e abriu uma porta.

— Para dizer a verdade, se fôr sensato, procurará passar as noites aqui. Há estofados em abundância e as cabinas tendem a ficar um pouco abafadas, apesar do ar condicionado.

Bond agradeceu-lhe, saiu e fechou a porta depois de passar. Era um grande convés com piso de cânhamo e, na popa, um sofá semicircular de espuma de borracha cor de creme. Havia cadeiras de palhinha espalhadas e um bar a um canto. Passou pela ideia de Bond que o Sr. Krest talvez bebesse muito. Seria sua imaginação ou a Sra. Krest estaria aterrorizada por ele? Havia algo de dolorosamente servil em sua atitude com relação a ele. Sem dúvida, tivera de pagar muito caro por sua “história de fadas”. Bond observou as costas verdes de Mahe afastarem-se vagarosamente da popa. Calculou que desenvolviam uma velocidade de uns dez nós. Logo estariam na North Point, rumando para alto mar. Bond ouviu o glutinoso borbulhar do escapamento e pensou ociosamente na bela Sra. Elizabeth Krest.

Ela poderia ter sido modelo — provavelmente o fora antes de tornar-se recepcionista de hotel — aquela respeitável profissão feminina que ainda tem um ar de alto demi-monde — e ainda movia seu belo físico com o desembaraço de quem está acostumada a andar sem nada ou praticamente nada sobre o corpo. Mas nela nada havia da frieza do modelo — era um corpo quente e um rosto amável e confiante. Poderia ter uns trinta anos, não mais certamente, e sua boniteza, pois não passava disso, ainda era imatura. Sua melhor característica era a cabeleira loura acinzentada que caía pesadamente até a base do pescoço, mas ela dava a agradável impressão de não sentir vaidade nisso. Não a sacudia, nem mexia nela. Ocorreu a Bond que realmente não demonstrava o menor sinal de coquetismo. Permanecia quieta, quase dócil, com os grandes olhos azuis claros fixados no marido quase o tempo todo. Não havia batom em seus lábios, nem esmalte nas unhas das mãos e dos pés, e suas sobrancelhas eram naturais. Ordenaria o Sr. Krest que fosse assim — que ela fosse uma filha germânica da natureza? Provavelmente. Bond encolheu os ombros. Formavam sem dúvida um casal curiosamente dessemelhante — o Hemingway de meia-idade com voz de Bogart e a mulher bonita e simples. E havia tensão no ar — na maneira como ela se encolhera quando ele lhe chamara à atenção por ter oferecido bebidas e na forçada masculinidade do homem. Bond brincou ociosamente com a noção de que o homem era impotente e toda a firme e rude representação não passava de exagerada exibição de virilidade. Certamente não ia ser fácil viver com eles durante quatro ou cinco dias. Bond observou a bela ilha Silhouette afastar-se à distância e tomou a decisão de não perder a calma. Como era aquela expressão americana? “Comer corvo”. Seria um interessante exercício mental para ele. Comeria corvo durante cinco dias e não deixaria que esse maldito homem interferisse no que deveria ser um bom passeio.

— Bem, rapaz. Descansando?

O Sr. Krest estava em pé no convés superior, olhando para baixo.

— Que fez com aquela mulher com quem eu vivo? Acho que deixou todo o serviço para ela. Bem e por que não? É para isso que elas servem, não é? Quer dar uma olhada no navio? Fido está cuidando um pouco do leme e eu tenho tempo de sobra.

Sem esperar pela resposta, o Sr. Krest agachou-se e desceu para o convés inferior, deixando-se cair no último metro da altura.

— A Sra. Krest foi vestir roupa. Sim, eu gostaria de ver o navio.

O Sr. Krest fixou em Bond seu olhar duro e desdenhoso.

— Okay. Bem, primeiro os fatos. Foi construído pela Bronson Shipbuilding Corporation. Acontece que eu tenho noventa por cento das ações, de modo que obtenho o que quero. Desenhado por Rosenblatts, os grandes arquitetos navais. Trinta metros de comprimento por seis e meio de largura, com dois metros de calado. Dois motores diesel Superior de quinhentos H.P. Velocidade máxima, quatorze nós. Faz quatro mil quilômetros com oito nós. Ar condicionado em toda parte. Carrier Corporation desenhou duas unidades especiais de cinco toneladas. Transporta alimentos congelados e bebidas suficientes para um mês. Só precisamos de água doce para os banheiros e chuveiros. Certo? Agora vamos até a frente e você verá os alojamentos da tripulação. Depois, viremos para trás. Não precisa preocupar-se com a cabeça. Em todo lugar há um metro e oitenta e cinco de altura.

Bond seguiu o Sr. Krest pelo estreito corredor que se estendia ao longo de todo o barco e, durante meia hora, fez comentários apropriados sobre o que era sem dúvida o iate melhor e mais luxuosamente planejado que já vira. Em todos os pormenores, havia uma margem para conforto adicional. Até mesmo o banheiro e chuveiro da tripulação eram bem espaçosos e a cozinha de aço inoxidável era tão grande quanto o camarote de Krest. O Sr. Krest abriu a porta deste último sem bater. Liz Krest estava diante da penteadeira.

— Oh, tesouro — disse o Sr. Krest com sua voz macia — Pensei que estivesse arrumando a bandeja de bebidas. Você demorou um tempão para vestir-se. Pondo um pouquinho de Ritz extra para Jim, hem?

— Desculpe, Milt. Eu já ia sair. Um ziper ficou preso. A Sra. Krest apanhou apressadamente um estôjo de pó e encaminhou-se para a porta. Dirigiu aos dois um meio-sorriso nervoso e saiu.

— Lambris de bétula de Vermont. Abajures de vidro de Corning. Tapetes mexicanos. Aquela pintura de um veleiro é um genuíno Montague Dawson...

O catálogo do Sr. Krest prosseguiu sem parar. Mas Bond estava olhando algo que pendia quase escondido pela mesa de cabeceira do que era evidentemente o lado do Sr. Krest na enorme cama de casal. Era um fino chicote de cerca de um metro de comprimento com um cabo de tiras de couro. Era o rabo de arraia.

Com ar indiferente, Bond caminhou até o lado da cama e apanhou-o. Correu um dedo por sua superfície espinhenta. Só de fazer isso sentiu doer o dedo. Disse:

— Onde arranjou isto? Estive caçando um destes animais hoje de manhã.

— Em Bahrein. Os árabes usam-nos em suas esposas — respondeu o Sr. Krest, rindo facilmente. — Até agora não precisei dar mais que uma chicotada de cada vez em Liz. Resultados maravilhosos. Chamamo-lo de meu “Corretivo”.

Bond tornou a pôr o objeto no lugar. Olhou duramente para o Sr. Krest e disse:

— É assim? Nas Seychelles, onde os crioulos são bem durões, é ilegal até mesmo possuir um desses, quanto mais usá-lo.

O Sr. Krest encaminhou-se para a porta e disse em tom indiferente:

— Rapaz, acontece que este navio é território dos Estados Unidos. Vamos tomar alguma coisa.

O Sr. Krest tomou três “bullshots” duplos — vodca com consommé gelado — antes do almoço e cerveja com a refeição. Os olhos pálidos escureceram um pouco e adquiriram um brilho aguado, mas a voz sibilante continuou macia e sem ênfase enquanto com absoluto monopólio da conversação, ele explicava o objetivo da viagem.

— O negócio é o seguinte, rapazes. Nos Estados Unidos, temos esse sistema de Fundação para os sujeitos de sorte que ganharam muito dinheiro e não querem entregá-lo ao Tesouro de Tio Sam. Você faz uma Fundação — como esta, a Fundação Krest — para fins de caridade — caridade para qualquer coisa, crianças, doentes, a causa da ciência. Simplesmente dá o dinheiro para qualquer pessoa ou qualquer coisa, menos para você mesmo e seus dependentes. Assim, escapa do imposto. Por isso, empatei coisa de dez milhões de dólares na Fundação Krest e, como gosto de viajar de iate e ver o mundo, comprei este iate com dois milhões do dinheiro e disse à Smithsonian — nossa grande instituição de história natural — que iria a qualquer lugar do mundo buscar espécimes para ela. Isso faz de mim uma expedição científica, entendem? Durante três meses do ano gozo férias maravilhosas que não me custam nada!

O Sr. Krest olhou para seus convidados, esperando aplausos.

— Entenderam? — perguntou.

Fidele Barbey sacudiu a cabeça com ar de dúvida.

— Parece ótimo, Sr. Krest. Mas e esses espécimes raros. É fácil encontrá-los? A Smithsonian pode querer uma panda gigante ou uma concha marinha. Será capaz de conseguir essas coisas quando ela não conseguiu?

O Sr. Krest sacudiu vagarosamente a cabeça. Disse com ar de pena:

— Rapaz, você parece ter nascido ontem. Dinheiro, só é preciso isso. Você quer um panda? Compra-o de algum maldito jardim zoológico que quer ter aquecimento central para sua casa de répteis, deseja construir um novo edifício para seus tigres ou coisa semelhante. A concha marinha? Você descobre um homem que tem uma delas e lhe oferece tanto dinheiro que ele acaba vendendo-a ainda que chore uma semana. Às vezes, a gente tem um pouco de dificuldade com governos. Um maldito animal é protegido ou coisa semelhante. Muito bem. Vou dar-lhes um exemplo. Cheguei ontem à sua ilha. Quero um papagaio preto da ilha Preslin. Quero uma tartaruga gigante de Aldabra. Quero uma coleção completa de seus caurins e quero este peixe que vamos procurar. Os dois primeiros são protegidos por lei. Faço imediatamente uma visita a seu governador depois de realizar certas investigações na cidade. Excelência, digo eu, sei que deseja ter uma piscina pública para ensinar as crianças locais a nadar. Okay. A Fundação Krest contribuirá com o dinheiro. Quanto? Cinco mil, dez mil? Okay, seja dez mil. Aqui está meu cheque. E preencho o cheque na hora. Mais uma coisinha. Excelência, digo eu, segurando o cheque. Acontece que desejo um espécime desse papagaio preto que existe aqui e uma dessas tartarugas de Aldabra. Sei que são protegidos por lei. Faria questão se eu levasse um espécime de cada um para os Estados Unidos, para a Smithsonian? Bem, há um pouco de palavrório, mas, sabendo que é para a Smithsonian e sabendo que ainda estou segurando o cheque, acabamos fechando o negócio, trocamos apertos de mão e todos ficam felizes. Certo? Bem, na volta paro na cidade para combinar com seu encantador Sr. Abendana, aquele negociante, que arranje o papagaio e a tartaruga, e os guarde para mim. E começo a falar sobre os caurins. Bem, acontece que esse Sr. Abendana vem colecionando as malditas coisas desde criança. Mostra-me sua coleção. Maravilhosamente conservada — cada uma delas em seu pedacinho de algodão. Tudo em ótimo estado e várias daquelas Isabella e Mappa que me pediram particularmente para procurar. Sinto muito, diz ele, mas não posso nem pensar em vender. Significam tanto para mim etc. Bolas! Só olho para o Sr. Abendana e pergunto: quanto? Não, não. Não pode sequer pensar nisso. Bolas de novo! Tiro meu talão de cheques, preencho um cheque de cinco mil dólares e ponho embaixo de seu nariz. ele olha o cheque. Cinco mil dólares! Não pode resistir. Dobra o cheque, guarda-o no bolso e depois o maldito maricas desanda a chorar! Acreditam nisso? — perguntou o Sr. Krest, abrindo as mãos num gesto de incredulidade. — Por causa de algumas malditas conchas marinhas. Então, digo-Ihe que tenha calma, apanho as bandejas de conchas e dou o fora antes que o maluco se mate de remorso.

O Sr. Krest recostou-se na cadeira, satisfeito consigo mesmo.

— Bem, que me dizem disso, rapazes? Vinte e quatro horas na ilha e já consegui três quartos de minha lista. Bem esperto, eh, Jim?

Bond respondeu: — O Senhor provavelmente receberá uma medalha quando voltar. E quanto a esse peixe?

O Sr. Krest levantou-se e remexeu em uma gaveta de sua mesa. Trouxe de volta uma folha datilografada.

— Aqui está — disse, passando a ler: — Raridade de Hildebrand. Apanhanda pelo professor Hildebrand, da Universidade de Witwatersrand, em uma rede ao largo da ilha Chagrin no arquipélago das Seychelles. Abril de 1925.

O Sr. Krest ergueu os olhos e explicou:

— Depois há uma porção de palavrório científico. Fiz com que traduzissem para o inglês comum e aqui está a tradução.

Voltou ao papel e continuou a ler:

— Este parece ser um singular membro da família do peixe-esquilo. O único espécime conhecido, chamado “Raridade de Hildebrand” como homenagem a seu descobridor, tem quinze centímetros de comprimento. A cor é rosa brilhante com listras transversais pretas. As nadadeiras anais, ventrais e dorsais são rosadas. A nadadeira da cauda é preta. Olhos grande e azuis escuros. Se encontrado, é preciso cuidado ao lidar com este peixe porque todas as nadadeiras têm espinhos ainda mais afiados do que é habitual no resto da família. O professor Hildebrand registra que encontrou o espécime em um metro de água à beira do recife sudoeste.

O Sr. Krest jogou o papel sobre a mesa e acrescentou:

— Bem, aí está, rapazes. Estamos viajando cerca de mil milhas a um custo de vários milhares de dólares para tentar descobrir um maldito peixe de quinze centímetros. E há dois anos o pessoal do fisco teve o atrevimento de sugerir que minha fundação era uma mistificação!

Liz Krest interveio ansiosamente.

— Mas é precisamente isso, Milt, não é? Desta vez, é realmente importante levar de volta bastante espécimes e outras coisas. Aqueles horríveis fiscais não estavam falando em cancelar os descontos referentes ao iate e às despesas e outras coisas dos últimos cinco anos se não apresentássemos alguma importante realização científica? Não foi isso que disseram?

— Tesouro — disse o Sr. Krest, cuja voz era macia como veludo. — Que tal se você fechasse essa irresponsável boquinha e não falasse em meus negócios particulares. Sim?

A voz era amável, despreocupada.

— Sabe o que você acaba de fazer, tesouro? Você acaba de ganhar um pequeno encontro com o Corretivo hoje à noite. Foi isso o que você fez.

A mulher levou a mão à boca. Seus olhos estavam arregalados. Disse em um sussurro:

— Oh, não, Milt. Oh, não, por favor.

Na madrugada do dia seguinte no mar avistaram a ilha Chagrin. Foi apanhada primeiro pelo radar — uma pequena saliência na linha plana da tela. Depois uma minúscula mancha no grande horizonte curvo cresceu com infinita lentidão até tornar-se um quilômetro de verde orlado de branco. Era extraordinário chegar à terra depois de dois dias nos quais o iate parecera ser a única coisa móvel, a única coisa viva em um mundo vazio. Bond nunca vira, nem sequer imaginara claramente a calmaria. Agora compreendia que perigo terrível deveria ter sido nos dias da navegação a vela — mar de vidro sob um sol de bronze, o ar viciado e pesado, a esteira de pequenas nuvens ao longo da orla do mundo, que nunca chegavam mais perto, nunca traziam vento ou a abençoada chuva. Quantas centenas de marinheiros não teriam abençoado esse minúsculo ponto no Oceano Indico, quando se curvavam sobre os remos que moviam o pesado navio talvez uma milha por dia! Bond ficou em pé na proa e observou os peixe-voadores saltarem de baixo do casco quando o azul-prêto do mar se transformou vagarosamente no marrom, branco e verde do baixio profundo. Como seria maravilhoso poder em breve andar e nadar ao invés de ficar apenas sentado e deitado. Como seria maravilhoso ter algumas horas de solidão — algumas horas longe do Sr. Milton Krest!

Ancoraram para fora do recife em dez braças de água e Fidele Barbey conduziu-os através da abertura na lancha. Em todos os detalhes, Chagrin era o protótipo da ilha de coral.

Eram uns vinte acres de areia, coral morto e vegetação baixa, cercados, depois de cinquenta metros de laguna rasa, por um colar de recifes sobre o qual as ondas calmas e compridas se quebravam com uma suave sibilar. Nuvens de pássaros ergueram-se quando desembarcaram — andorinhas do mar, atobás, fragatas — mas logo pousaram de novo. Havia um forte cheiro amoniacal de guano, que enbranquecia também a vegetação. As únicas outras coisas vivas eram os caranguejos que corriam entre a liane sans fin e os chama-marés que viviam na areia.

O clarão da areia branca era ofuscante e não havia sombra. O Sr. Krest mandou armar uma tenda e sentou-se dentro dela fumando um charuto, enquanto instrumentos de várias espécies eram transportados para terra. A Sra. Krest nadava e apanhava conchas enquanto Bond e Fidele Barbey punham máscaras e, nadando em direções opostas, começavam a examinar sistematicamente os recifes em toda a volta da ilha.

Quando se está procurando determinada espécie embaixo dágua — concha, peixe, alga marinha ou formação de coral — é preciso conservar o cérebro e os olhos focalizados naquele padrão individual. A orgia de cores e movimentos, a incessante variedade de luz e sombra lutam o tempo todo contra a concentração da pessoa. Bond arrastou-se vagarosamente através do país das maravilhas tendo na mente uma única imagem — um peixe rosado de quinze centímetros com listras pretas e olhos grandes — o segundo desses peixes a ser visto pelo homem. “Se avistá-lo”, recomendara o Sr. Krest, “basta soltar um grito e ficar perto dele. Eu tenho na tenda uma coisinha que é o melhor negócio que você já viu para apanhar peixes.”

Bond parou para descansar os olhos. A água estava tão flutuável que podia ficar deitado de bruço na superfície sem se mover. Ociosamente partiu um ouriço do mar com a ponta de sua lança e observou a horda de cintilantes peixes dos recifes investindo sobre os pedaços de carne amarela entre os espinhos pretos afiados como agulhas. Como era infernal o fato de beneficiar apenas o Sr. Krest se encontrasse a Raridade! Deveria ficar quieto se a encontrasse? Seria uma infantilidade e, além disso, estava sob contrato, por assim dizer.

Bond moveu-se devagar, com os olhos reiniciando automaticamente a busca enquanto seu espírito voltava a considerar a mulher. Ela havia passado o dia anterior na cama. O Sr. Krest dissera que era uma dor de cabeça. Não se voltaria contra ele um dia? Não arranjaria uma faca ou um revólver e, certa noite, quando ele estendesse a mão para aquele maldito chicote, não o mataria? Não. Ela era mole demais, maleável demais. O Sr. Krest escolhera bem. Era do mesmo material com que são feitos os escravos. E os ornamentos de sua “história de fadas” eram preciosos demais. Não perceberia ela que um júri certamente a absolveria se aquele chicote de arraia fosse apresentado no tribunal? Ela poderia ficar com os ornamentos sem esse horrível e odioso homem. Deveria Bond dizer-lhe isso? Não seja ridículo! Como poderia expressá-lo? “Oh, Liz, se quiser matar seu marido, está tudo bem.” Bond sorriu dentro de sua máscara. Que fosse para o inferno! Não interfira na vida dos outros. Provavelmente ela gosta disso. É masoquista. Mas Bond sabia que essa era uma resposta fácil demais. Ali estava uma mulher que vivia amedrontada. Talvez também vivesse odiando. Não se podia ler muita coisa naqueles suaves olhos azuis, mas as janelas tinham-se aberto uma ou duas vezes e através delas aparecera um lampejo de algo semelhante a ódio infantil. Teria sido ódio? Provavelmente fora indigestão. Bond tirou os Krests da cabeça e ergueu os olhos para ver até que ponto da ilha já avançara. O schnorkel de Fidele Barbey estava apenas a uns cem metros de distância. Já tinham quase completado o circuito.

Os dois se encontraram, nadaram até a praia e deitaram na areia. Fidele Barbey disse:

— Nada do meu lado da propriedade, exceto todos os peixes do mundo, menos um. Mas tive um golpe de sorte. Encontrei uma grande colônia de caramujos verdes. É a concha almiscarada grande como uma bola de futebol. Vale um monte de dinheiro. Vou mandar um de meus barcos atrás deles qualquer dia destes. Vi um peixe-papagaio azul que devia pesar bem uns quinze quilos. Manso como um cão, do mesmo modo que todos os peixes daqui. Não tive coragem de matá-lo. E se o matasse, poderia ter havido encrenca. Vi dois ou três tubarões-leopardos rondando do outro lado dos recifes. Sangue na água poderia tê-los atraído. Agora, estou pronto para um drinque e alguma comida. Depois, poderemos trocar de lado e fazer outra tentativa.

Levantaram-se e caminharam pela praia até a tenda. O Sr. Krest ouviu suas vozes e saiu para encontrá-los.

— Nada, não? — perguntou, cocando furiosamente uma axila. — Um maldito mosquito me picou. Esta é uma ilha amaldiçoada. Liz não pôde suportar o cheiro. Voltou para o barco. Acho que é melhor fazer mais uma tentativa e depois dar o fora daqui. Comam alguma coisa. Encontrarão cerveja na bolsa de gelo. Deem-me uma dessas máscaras. Como é que se usa essa maldita coisa? Acho que posso dar uma olhada no fundo do mar já que estou aqui.

Sentaram-se na tenda quente, comeram salada de galinha e beberam cerveja. Carrancudamente, observaram o Sr. Krest tateando e esquadrinhando na água rasa. Fidele Barbey disse:

— ele tem razão, naturalmente. Estas pequenas ilhas são lugares horríveis. Nada além de caranguejos e excremento de pássaros com muito mar em roda. São só os pobres e gelados europeus que sonham com ilhas de coral. A leste de Suez, você não encontra um homem de juízo que dê qualquer coisa por elas. Minha família possui umas dez delas — algumas também de tamanho decente, com pequenas aldeias e boa renda de copra e tartaruga. Bem, se quiser pode ficar com todo o maldito lote em troca de um apartamento em Paris ou Londres.

Bond riu.

— Ponha um anúncio em “The Times” e receberá pilhas ... — começou Bond, quando, a cinquenta metros de distância, o Sr. Krest passou a fazer frenéticos sinais.

— Ou o bastardo encontrou-o ou pisou em uma viola — disse Bond, apanhando sua máscara e correndo para o mar.

O Sr. Krest estava com água até a cintura entre os rasos começos dos recifes. Bateu o dedo excitadamente na superfície. Bond nadou suavemente para frente. Um tapete de plantas marinhas terminava em coral e ocasionais afloramentos negros. Uma dúzia de variedades de borboletas e outros peixes de recifes brincava entre as pedras e uma pequena lagosta sondou na direção de Bond com suas antenas. A cabeça de uma grande moreia verde saiu de um buraco, com as mandíbulas meio abertas mostrando fileiras de afiados dentes. Seus olhos dourados observaram Bond cuidadosamente. Bond divertiu-se ao ver que as pernas cabeludas do Sr. Krest, ampliadas para pálidos troncos de árvores pela água vidrada, não estavam a mais de uns trinta centímetros das mandíbulas da moreia. Deu um encorajador empurrão na moreia com seu arpão, mas a enguia limitou-se a morder as pontas de metal e desaparecer de novo. Bond parou e ficou flutuando, com os olhos perscrutando a brilhante selva. Uma mancha vermelha materializou-se no nevoeiro distante e avançou em sua direção. Deu uma volta bem por baixo dele, como se estivesse exibindo-se. Os olhos azuis escuros examinaram-no sem medo. O pequeno peixe ocupou-se quase constrangido com algumas algas na parte de baixo de um afloramento negro, deu uma corrida em direção a algo suspenso na água e, depois, como se deixasse o palco após exibir seus passos, nadou lânguidamente de volta para o nevoeiro.

Bond afastou-se do buraco da moreia e pôs os pés no chão. Tirou a máscara. Dirigindo-se ao Sr. Krest, que o fitava impacientememte através de seus óculos de mergulho, disse:

— Sim, é ele mesmo. É melhor afastar-se silenciosamente daqui. ele não irá embora a menos que se assuste. Esses peixes de recifes conservam-se sempre nos mesmos lugares.

O Sr. Krest tirou sua máscara.

— Diabo, eu o encontrei! — exclamou reverentemente. — Bem, fui eu mesmo.

Seguiu vagarosamente Bond até a praia. Fidele Barbey estava esperando por eles. O Sr. Krest disse impetuosamente:

— Fido, encontrei aquele maldito. Eu. .. Milton Krest. Que acha disso? Depois que vocês dois, malditos especialistas, procuraram a manhã inteira. Peguei aquela sua máscara — e foi a primeira vez que usei uma dessas máscaras, veja bem — entrei na água e encontrei o maldito peixe em quinze minutos. Que diz a isso, eh, Fido?

— Muito bem, Sr. Krest. Ótimo. Como vamos apanhá-lo agora?

— Ah, ah, ah — fez o Sr. Krest, pestanejando vagarosamente. — Eu tenho a solução para isso. Arranjei-a com um químico amigo meu. Um negócio chamado rotenona. Feito de raiz de timbó. É com isso que os nativos pescam no Brasil. Basta derramá-lo na água, onde flutua sobre aquilo que você está procurando e o apanha infalivelmente. Uma espécie de veneno. Constringe os vasos sanguíneos nas guelras dos peixes. Sufoca-os. Não exerce efeito sobre seres humanos porque eles não têm guelras, entendem?

O Sr. Krest virou-se para Bond.

— Escute, Jim. Você vai até lá e fica vigiando. Não deixe o maldito peixe desaparecer. Fido e eu levaremos o material para lá — disse, apontando a área de onde a água corria para o local vital. — Eu soltarei a rotenona quando você disser. Ela será arrastada na sua direção. Certo? Mas, com os diabos, dê o sinal na hora certa. Eu só tenho uma lata de cinco galões desse negócio. Okay?

Bond respondeu “Está bem” e caminhou vagarosamente, entrando na água. Nadou preguiçosamente para onde estivera antes. Sim, todos ainda estavam lá, cuidando de sua vida. A cabeça pontuda da moreia estava de novo na beirada de seu buraco, a lagosta estendeu novamente as antenas em sua direção. Um minuto depois, como se tivesse encontro marcado com Bond, a Raridade de Hildebrand apareceu. Desta vez nadou até bem perto de seu rosto. Olhou através dos óculos para seus olhos e depois, como se tivesse ficado assustada com o que vira, disparou para colocar-se fora de alcance. Brincou entre as pedras por algum tempo e depois entrou no nevoeiro.

Vagarosamente o pequeno mundo submarino dentro da visão de Bond começou a aceitá-lo como coisa natural. Um pequeno octópode que se camuflara como um pedaço de coral revelou sua presença e avançou cuidadosamente na direção da areia. A lagosta azul e amarela saiu de baixo da pedra e deu alguns passos, admirando-o. Alguns peixes muito pequenos, como os barrigudinhos, mordiscaram suas pernas e seus dedos dos pés, fazendo cócega. Bond partiu um ouriço do mar para eles, que avançaram sobre a comida melhor. Bond ergueu a cabeça. O Sr. Krest, segurando a lata, estava vinte metros à sua direita. Logo começaria a derramar, quando Bond desse o sinal, de modo que o líquido se espalhasse bem sobre a superfície.

— Okay? — perguntou o Sr. Krest. Bond sacudiu a cabeça e respondeu:

— Levantarei o polegar quando ele aparecer de novo aqui. Então você terá de derramar depressa.

— Okay, Jim. Você está na mira da bomba.

Bond afundou a cabeça. Lá estava a pequena coletividade, todos cuidando de sua vida. Logo, para apanhar um peixe que alguém desejava vagamente em um museu a oito mil quilômetros de distância, cem, talvez mil pessoazinhas iam morrer. Quando Bond desse o sinal, a sombra da morte desceria sobre a água. Quanto tempo duraria o veneno? Até que ponto avançaria pelos recifes? Talvez não morressem milhares, mas dezenas de milhares.

Um pequeno baiacu apareceu, com suas minúsculas nadadeiras ruflando como hélices. Um par dos inevitáveis beijupirás listrados de preto e amarelo apareceu de repente, atraído pelo cheiro do ouriço do mar partido.

Dentro dos recifes, quem era o predador no mundo dos pequenos peixes? Quem temiam eles? O pequeno barracuda? Um ocasional peixe-agulha? Agora um grande predador, plenamente crescido, um homem chamado Krest, estava parado nos bastidores, esperando. E esse nem sequer tinha fome. Ia simplesmente matar — quase por divertimento.

Duas pernas marrons apareceram no campo de visão de Bond. Este ergueu os olhos. Era Fidele Barbey com um grande cesto amarrado ao peito e uma rede de cabo comprido.

Bond ergueu a máscara e disse:

— Sinto-me como o bombardeador em Nagasaki.

— Peixes têm sangue frio. Nada sentem.

— Como é que você sabe? Ouvi dizer que gritam quando são feridos.

— Não serão capazes de gritar com esse negócio — disse Barbey indiferentemente. — Estrangula-os. Que há com você? São apenas peixes.

— Sei, sei.

Fidele Barbey passara a vida matando animais e peixes. Enquanto ele, Bond, às vezes não hesitara em matar homens. Por que estava agora fazendo barulho? Não se importara em matar a arraia. Sim, mas aquele era um peixe inimigo. Estes aqui embaixo eram pessoas amigas. Pessoas? A patética ilusão.

— Eh! — exclamou a voz do Sr. Krest. — Que está acontecendo aí? Não é hora de conversa mole. Afunde a cabeça n’água, Jim.

Bond puxou a máscara para baixo e deitou-se de novo sobre a superfície. Imediatamente viu a bela sombra vermelha saindo do nevoeiro distante. O peixe nadou rápido em sua direção, como se o considerasse algo muito natural. Ficou embaixo dele, olhando para cima. Bond disse dentro de sua máscara: “Vá-se embora daqui, seu imbecil!” Deu uma cuti-lada rápida em direção ao peixe com seu arpão. O peixe fugiu novamente para o nevoeiro. Bond levantou a cabeça e furiosamente ergueu o polegar. Era um ridículo e mesquinho ato de sabotagem, do qual já se sentia envergonhado. O líquido oleoso marrom escuro estava sendo derramado na superfície da laguna. Ainda havia tempo de fazer o Sr. Krest parar antes que acabasse tudo — tempo de dar-lhe outra oportunidade de apanhar a Raridade de Hildebrand. Bond ficou imóvel olhando, até pingar a última gota. O Sr. Krest que fosse para o inferno!

Agora o negócio estava sendo vagarosamente arrastado pela correnteza — uma mancha brilhante que se espalhava, refletindo o céu azul com um lustre metálico. O Sr. Krest, o segador gigante, estava avançando com a mancha.

— Pronto, rapazes — disse ele, alegremente. — Já está aí com vocês.

Bond enfiou de novo a cabeça dentro da água. Tudo estava como antes na pequena coletividade. Mas depois, com desnorteante instantaneidade, todos ficaram loucos. Foi como se todos tivessem contraído a dança de São Guido. Vários peixes deram cambalhotas malucas e depois caíram como pesadas folhas sobre a areia. A moreia saiu vagarosamente do buraco no coral, com as mandíbulas abertas. Ficou cuidadosamente em pé sobre a cauda e depois caiu delicadamente de lado. A pequena lagosta deu três sacudidelas com a cauda e virou de costas. O octópode desprendeu-se do coral e deixou-se cair para o fundo, de cabeça para baixo. Depois foram arrastados para a arena os cadáveres vindos mais de cima — peixes de barriga branca, camarões, minhocas, caranguejos, moreias mosqueadas e verdes, lagostas de todos os tamanhos. Como soprados por uma ligeira brisa de morte, os corpos desengonçados, com suas cores já desbotando, passaram vagarosamente. Um peixe-agulha de três quilos batia o bico, lutando contra a morte. Mais abaixo, ao longo dos recifes, havia batidas na superfície, onde peixes ainda maiores tentavam fugir para lugar seguro. Um a um, diante dos olhos de Bond, os ouriços do mar caíram das pedras para fazer manchas de tinta preta na areia.

Bond sentiu um toque em seu ombro. Os olhos do Sr. Krest estavam vermelhos do sol e da cintilação. Havia passado nos lábios uma pasta branca contra queimaduras do sol. Gritou impacientemente para a máscara de Bond:

— Onde, diabo, está nosso maldito peixe?

Bond ergueu a máscara.

— Parece que conseguiu afastar-se exatamente antes de descer o negócio. Ainda o estou procurando.

Não esperou para ouvir a resposta do Sr. Krest, mas tornou a afundar rapidamente a cabeça na água. Ainda mais carnificina, ainda mais corpos mortos. Mas agora, certamente, o negócio já havia passado. Certamente a área estava segura, se acaso voltasse o peixe, seu peixe, pois ele o havia salvo. No nevoeiro distante houve um lampejo cor de rosa. ele tinha ido. Agora estava de volta. Preguiçosamente, a Raridade de Hildebrand nadou em direção a Bond através do labirinto de canais entre os postos avançados dos recifes.

Sem importar-se com o Sr. Krest, Bond ergueu a mão livre para fora da água e deixou-se cair com uma forte batida. Ainda assim o peixe continuou vindo. Bond soltou a trave de sua espingarda de arpão e disparou-a na direção do peixe. Não adiantou. Bond baixou os pés e começou a andar em direção ao peixe através da confusão de cadáveres. O belo peixe vermelho e preto pareceu parar e estremecer. Depois disparou diretamente através da água na direção de Bond e mergulhou na areia a seus pés, lá ficando parado. Bond só precisou curvar-se para apanhá-lo. Não houve sequer uma última sacudidela da cauda. Simplesmente encheu a mão de Bond, picando ligeiramente a palma com a espinhenta nadadeira dorsal preta. Bond levou-o embaixo dágua, como para preservar suas cores. Quando chegou perto do Sr. Krest, disse “Aqui está” e entregou-lhe o pequeno peixe. Depois nadou em direção à praia.

Naquela noite, com o “Wavekrest” navegando de volta sob uma enorme lua amarela, o Sr. Krest deu ordem para o que chamava de “wingding”.

— Precisamos comemorar, Liz. Isto é tremendo, um dia tremendo. Atingimos o último objetivo e podemos dar o fora destas malditas Seychelles a fim de voltar para a civilização. Que diz de irmos a Mombasa, depois de termos recebido a bordo a tartaruga e aquele maldito papagaio? Voar para Nairobi e tomar o grande avião para Roma, Veneza, Paris... qualquer lugar que você queira. Que diz, tesouro?

Apertou-lhe o queixo e as faces com sua grande mão, fazendo saltar os lábios. Beijou-os secamente. Bond observava os olhos da mulher. Estavam bem fechados. O Sr. Krest soltou. A moça fez massagem no rosto. Ainda estava branco com as marcas dos dedos.

— Puxa, Milt — disse ela meio rindo — você quase me amassou. Você não conhece a própria força. Mas vamos comemorar. Penso que será muito divertido. E aquela ideia de Paris parece grande. Vamos fazer isso, sim? Que devo encomendar para o jantar?

— Diabo... caviar, naturalmente. — disse o Sr. Krest, estendendo as mãos. — Uma daquelas latas de duas libras de Hammacher Schlemmer e todos os acompanhamentos. E aquele champanha rosado.

Virou-se para Bond e perguntou:

— Isso lhe convém, rapaz?

— Parece uma boa refeição — respondeu Bond, mudando de assunto depois. — Que fez com a prenda.

— Formalina. Está lá em cima no convés superior com alguns outros frascos de coisas que recolhemos aqui e acolá... peixes, conchas... Tudo seguro em nosso necrotério doméstico. Foi assim que nos disseram para guardar os espécimes. Remeteremos por via aérea aquele maldito peixe quando voltarmos à civilização. Primeiro darei uma entrevista à imprensa. Deverá sair com grande destaque nos jornais lá da terra. Já dei a notícia pelo rádio à Smithsonian e às agências noticiosas. Meus contadores ficarão muito contentes em ter alguns recortes de jornais para mostrar àqueles malditos rapazes do fisco.

O Sr. Krest ficou muito bêbado naquela noite. Mas não demonstrou muito. A macia voz de Bogart tornou-se mais macia e lenta. A cabeça redonda e pesada virou-se mais deliberadamente sobre os ombros. A chama do isqueiro levou mais tempo para tornar a acender o charuto e um copo foi jogado para longe da mesa. Mas transparecia nas coisas que o Sr. Krest dizia. Havia no homem uma violenta crueldade, um desejo patológico de ferir, bem perto da superfície. Naquela noite, depois do jantar, o primeiro alvo foi James Bond. Teve de ouvir uma explicação em voz mansa sobre as razões pelas quais a Europa, incluindo a Inglaterra e a França, perdia cada vez mais seu valor para o mundo. Hoje em dia, disse o Sr. Krest, só existem três potências: Estados Unidos, Rússia e China. Esse era o grande jogo de pôquer e nenhuma outra nação tinha fichas ou cartas para entrar nele. De vez em quando, algum agradável paisinho — que ele admitia ter sido bastante grande no passado — como a Inglaterra, recebia um pouco de dinheiro emprestado para poder jogar uma mão com os adultos. Mas isso era apenas delicadeza, como a gente às vezes precisa ter — com um amigo do clube que ficou arruinado. Não. A Inglaterra — bela gente, entenda-me, grande espírito esportivo — era um lugar onde se ia para ver edifícios antigos, a Rainha e outras coisas. A França? Só valia pela comida boa e pelas mulheres fáceis. A Itália? Sol e espaguete. Uma espécie de sanatório. A Alemanha? Bem, os alemães ainda tinham um pouco de fibra, mas duas guerras perdidas haviam-lhes tirado o ânimo. O Sr. Krest desfez-se do resto do mundo com alguns chavões semelhantes e depois pediu a opinião de Bond.

Bond estava completamente cansado do Sr. Krest. Disse que achara o ponto de vista do Sr. Krest excessivamente simplificado — ingênuo mesmo, poderia dizer. Acrescentou:

— Seus argumentos fazem-me lembrar um aforisma bastante mordaz que ouvi certa vez a respeito dos Estados Unidos. Quer ouvir?

— Claro, claro.

— É no sentido de que os Estados Unidos progrediram da infância para a senilidade, sem ter passado por um período de maturidade.

O Sr. Krest olhou pensativamente para Bond. Finalmente disse:

— Puxa, Jim, isso é bem direto.

Seus olhos cobriram-se ligeiramente quando os voltou para sua esposa.

— Acho que você concorda com essa observação de Jim, não, tesouro? Lembro-me de tê-la ouvido dizer certa vez que achava que havia algo de bem infantil nos americanos. Lembra-se?

— Oh, Milt — disse Liz Krest, cujos olhos revelavam ansiedade, mostrando que ela soubera ler os sinais. — Como pode trazer isso à baila? Você sabe que foi apenas uma coisa casual que eu disse sobre as histórias em quadrinhos dos jornais. Naturalmente, não concordo com o que James diz. De qualquer maneira, foi apenas uma piada, não foi, James?

— Exatamente — respondeu Bond. — Como o que o Sr. Krest disse da Inglaterra, que nada tem alem de ruínas e uma rainha.

Os olhos do Sr. Krest ainda estavam voltados para a mulher. Disse maciamente:

— Bobagens, tesouro. Por que está parecendo tão nervosa. Naturalmente que foi uma piada.

fez uma pausa e acrescentou:

— Uma piada de que eu me lembrarei, tesouro. De que certamente me lembrarei.

Bond calculou que o Sr. Krest já tinha dentro uma garrafa inteira de várias bebidas alcoólicas, principalmente uísque.

Parecia a Bond que, se ele não perdesse a consciência, não demoraria muito o momento em que teria de acertar o Sr. Krest, só uma vez, mas bem forte, no queixo. Fidele Barbey estava agora recebendo o tratamento.

— Essas suas ilhas, Fido. Quando olhei para elas no mapa pela primeira vez, pensei que fossem apenas algumas sujeiras de mosquitos sobre a página — disse o Sr. Krest, dando uma risadinha. — Tentei mesmo limpá-las com as costas da mão. Depois li um pouco sobre elas e tive a impressão de que minha primeira ideia acertara em cheio. Não prestam para grande coisa, não é, Fido? Admira-me como um rapaz inteligente como você não dá o fora daqui. Mariscar pelas praias não é vida que se leve. Verdade que ouvi dizer que um dos membros de sua família deixou mais de cem filhos ilegítimos. Talvez seja essa a atração, hem, rapaz?

O Sr. Krest sorriu como quem conhece bem as coisas. Fidele Barbey respondeu serenamente:

— Esse foi meu tio Gaston. O resto da família não aprova isso. fez um grande furo na fortuna da família.

— Fortuna da família, hem? — disse o Sr. Krest, piscando para Bond. — Em que estava empregada essa fortuna? Em conchas de caurim?

— Não exatamente. — Fidele Barbey não estava acostumado com o tipo de rudeza do Sr. Krest. Parecia-ligeiramente embaraçado. — Embora tenhamos ganho muito dinheiro com carapaças de tartaruga e madrepérola há uns cem anos quando havia enorme procura dessas coisas. Copra sempre foi nosso principal negócio.

— Usando os bastardos da família como mão-de-obra, suponho eu. Boa ideia. Gostaria de poder arrumar alguma coisa assim em meu círculo doméstico.

O Sr. Krest olhou para sua esposa. Os lábios de borracha viraram-se ainda mais para baixo. Antes da chacota seguinte poder ser proferida, Bond empurrara sua cadeira para trás e saíra para o convés, fechando a porta depois de passar.

Dez minutos depois, Bond ouviu o barulho de pés que desciam a escada do convés superior. Virou-se. Era Liz Krest. Veio ate onde ele estava na popa. Disse com voz tensa:

— Eu disse que ia para a cama. Mas depois pensei em voltar aqui para ver se quer mais alguma coisa. Não sou muito boa dona de casa, acho. Tem certeza que não faz questão de dormir aqui fora?

— Gosto disto. Gosto mais desta espécie de ar que da coisa enlatada lá dentro. E é maravilhoso ter todas essas estrelas para olhar. Nunca tinha visto tantas estrelas.

Ela disse ansiosamente, aproveitando o assunto amistoso:

— Gosto mais da constelação de Orion e do Cruzeiro do Sul. Quando era pequena — sabe? — pensava que as estrelas eram na realidade buracos no céu. Pensava que o mundo era cercado por uma espécie de envoltório grande e preto, fora do qual o universo era cheio de luz brilhante. As estrelas eram apenas buracos no envoltório, que deixavam passar pequenas faíscas de luz. A gente tem ideias terrivelmente tolas quando criança.

Ergueu os olhos para Bond, desejando que ele não a decepcionasse.

— Você provavelmente tem razão — disse Bond. — A gente não deve acreditar em tudo quanto os cientistas dizem. Eles querem tornar tudo monótono. Onde você vivia nessa época?

— Em Ringwood, na New Forest. Era um bom lugar para a gente crescer. Um bom lugar para crianças. Gostaria de voltar lá um dia.

— Você sem dúvida percorreu um longo caminho desde então — disse Bond. — Provavelmente o achou muito monótono.

Ela estendeu a mão e tocou a manga de Bond.

— Por favor, não diga isso. Você não compreende... — havia uma nota de desespero na voz suave. — Não posso suportar o fato de não ter o que outras pessoas têm — pessoas comuns. Quero dizer — disse ela, rindo nervosamente — você não vai acreditar em mim, mas conversar assim durante alguns minutos, ter alguém como você com quem conversar, é coisa de que já quase me esquecera.

De repente, segurou a mão de Bond e apertou-a bem.

— Desculpe. Só queria fazer isto. Agora vou para a cama.

A voz macia veio de trás deles. A fala era pastosa, mas cada palavra era cuidadosamente separada da seguinte.

— Bem, bem. Quem diria? Namorando com o criado submarino!

O Sr. Krest estava enquadrado na portinhola do salão. Firmava-se sobre as pernas bem abertas e tinha os braços estendidos para a padieira em cima de sua cabeça. Com a luz por trás, tinha a silhueta de um cinocéfalo. O ar frio e aprisionado do salão passou por ele e por um momento resfriou o ar quente da noite no convés inferior. O Sr. Krest deu um passo para fora e empurrou delicadamente a porta para trás.

Bond deu um passo em direção a ele, com as mãos caídas dos lados. Mediu a distância que o separava do plexo solar do Sr. Krest.

— Não tire conclusões apressadas, Sr. Krest — disse. — E cuidado com a língua. Teve a sorte de não machucar-se até agora. Não abuse da sorte. O senhor está bêbado. Vá para a cama.

— Ho, ho, ho! Ouçam o atrevido rapaz.

O rosto do Sr. Krest, iluminado pela lua, voltou-se vagarosamente de Bond para sua esposa. fez uma careta desdenhosa. Tirou do bolso um apito de prata e girou-o em sua corrente.

— ele evidentemente não está compreendendo, não acha, tesouro? Você não lhe disse que aqueles hunos estão lá na frente só como enfeite?

Voltou-se de novo para Bond.

— Rapaz, aproxime-se mais e eu soprarei isto... só uma vez. E sabe o que acontecerá? Será o sepultamento do Sr. maldito Bond — disse ele, fazendo um gesto em direção ao mar — pelo costado. Homem ao mar. Uma pena. Voltamos para dar uma busca e sabe o que acontece, rapaz. Por acaso recuamos sobre você com aquelas duas hélices. Parece incrível! Que falta de sorte teve aquele belo rapaz Jim de quem todos nós gostávamos tanto!

O Sr. Krest balançou-se sobre os pés.

— Entendeu, Jim? Okay, então vamos ser amigos de novo e dormir um pouco.

Segurou na padieira da portinhola e virou-se para sua esposa. Ergueu a mão livre e fez um gesto vagaroso com o dedo.

— Ande, tesouro. É hora de ir para a cama.

— Sim, Milt. — Os olhos largos e assustados viraram-se de lado. — Boa-noite, James.

Sem esperar pela resposta, mergulhou por baixo do braço do Sr. Krest e atravessou quase correndo o salão. O Sr. Krest ergueu uma mão.

— Calma, rapaz. Nada de rancores, eh?

Bond nada disse. Continuou olhando duramente para o Sr. Krest.

O Sr. Krest riu hesitantemente. Depois disse:

— Então, okay.

Entrou no salão e fechou a porta. Através da janela, Bond observou-o caminhando vacilante pelo salão e apagando as luzes. Foi para o corredor e houve um clarão momentâneo na porta do camarote particular. Depois a porta também ficou escura.

Bond encolheu os ombros. Santo Deus, que homem! Debruçou-se no peitoril da popa e observou as estrelas e os lampejos de fosforescência na esteira cremosa. Pôs-se então a clarear o espírito e relaxar as tensões de seu corpo.

Meia hora mais tarde, depois de tomar um banho de chuveiro no banheiro da tripulação, Bond estava arrumando uma cama entre as almofadas Dunlopillo empilhadas quando ouviu um angustioso grito. O grito cortou a noite por um instante e depois foi sufocado. Era a mulher. Bond atravessou correndo o salão e desceu pelo corredor. Com a mão na porta do camarote, parou. Podia ouvir os soluços dela e, acima deles, a voz macia e monótona do Sr. Krest. Tirou a mão do trinco. Diabo! Que tinha com isso? Eram marido e mulher. Se ela estava disposta a suportar essa espécie de coisa sem matar seu marido ou abandoná-lo, não adiantava Bond fazer o papel de Sir Galahad. Bond voltou vagarosamente pelo corredor. Quando estava atravessando o salão, o grito, desta vez menos pungente, ecoou de novo. Bond praguejou fluentemente, saiu, deitou-se em sua cama e tentou focalizar seu espírito no suave roncar dos diesels. Como podia uma mulher ter tão pouca coragem? Ou será que as mulheres eram capazes de suportar quase tudo de um homem? Tudo, exceto a indiferença? O espírito de Bond recusava desembaraçar-se. O sono distanciava-se cada vez mais.

Uma hora mais tarde, Bond chegara à beira da inconsciência quando, acima dele no convés superior, o Sr. Krest começou a roncar. Na segunda noite após terem saído de Port Victoria, o Sr. Krest deixara sua cabina no meio da noite e subira para a rede que ficava pendurada para ele entre a lancha e o pequeno bote. Mas naquela noite não havia roncado. Agora estava roncando com aquele barulho profundo e estrondoso que resulta de grandes pílulas azuis de sedativo em cima de álcool em excesso.

Aquilo já era demais. Bond olhou para seu relógio. Uma e meia. Se o ronco não parasse em dez minutos, Bond desceria para a cabina de Fidele Barbey e dormiria no chão, ainda que tivesse de acordar duro e gelado na manhã seguinte.

Bond observou o ponteiro cintilante dar vagarosamente a volta no mostrador. Agora! Levantou-se e estava apanhando sua camisa e seu “short” quando, do convés superior, veio o barulho de uma forte batida. A batida foi seguida imedia-mente por ruídos de luta e um som horrível como de alguém sendo sufocado e gorgolando. Teria o Sr. Krest caído de sua rede? Relutantemente, Bond deixou suas coisas cair de novo no convés e subiu a escada. Quando seus olhos atingiram a altura do convés superior, os sons cessaram. Em seu lugar, houve outro som, ainda mais horrível — o rápido bater de calcanhares. Bond conhecia esse som. Saltou os últimos degraus e correu em direção à figura caída de costas e de braços abertos sob o brilhante luar. Parou e ajoelhou-se devagar, horrorizado. O horror do rosto estrangulado já era bem feio, mas não era a língua do Sr. Krest que saía de sua boca aberta. Era o rabo de um peixe. As cores eram rosa e preto. Era a Raridade de Hildebrand!

O homem estava morto — horrivelmente morto. Quando o peixe fora enfiado em sua boca, ele devia ter estendido a mão e tentado desesperadamente arrancá-lo para fora. Mas os espinhos das nadadeiras dorsais e anais haviam-se prendido por dentro das bochechas e algumas das pontas espinhosas projetavam-se agora através da pele manchada de sangue em roda da boca obscena. Bond estremeceu. A morte devia ter sobrevindo em um minuto. Mas que minuto!

Bond pôs-se em pé vagarosamente. Caminhou até as prateleiras de frascos de vidro e espreitou por baixo do toldo protetor. A tampa de plástico do frasco da ponta estava caída no convés a seu lado. Bond limpou-a cuidadosamente na lona e depois, segurando-a com as pontas das unhas, colocou-a de novo solta sobre a boca do frasco.

Voltou e ficou em pé ao lado do cadáver. Qual dos dois fizera isso? Havia um toque de diabólico ódio no uso da valiosa prenda como arma. Isso sugeria a mulher. Ela certamente tinha suas razões. Mas Fidele Barbey, com seu sangue crioulo, teria tido a crueldade e ao mesmo tempo o macabro senso de humor. “Je lui ai foutu son sacré poisson dans la gueule.” Bond podia ouvi-lo proferindo as palavras. Se, após Bond ter deixado o salão, o Sr. Krest tivesse alfinetado mais um pouquinho os seychellois — particularmente no que se referia à sua família ou suas adoradas ilhas — Fidele Barbey não o teria atacado lá na hora ou usado uma faca. Teria esperado e planejado.

Bond correu os olhos pelo convés. O ronco do homem poderia ter sido um sinal para qualquer dos dois. Havia escadas para o convés superior partindo de ambos os lados das cabinas. O timoneiro na casa do leme nada teria ouvido com o barulho da sala de máquinas. Bastariam segundos para tirar o pequeno peixe de seu banho de formalina e enfiá-lo na boca aberta do Sr. Krest. Bond encolheu os ombros. Quem quer que tivesse feito aquilo não pensara nas consequências — no inevitável inquérito, talvez um julgamento, no qual ele, Bond, seria outro suspeito. Sem dúvida, iam todos meter-se em uma encrenca dos diabos a menos que pudesse arrumar as coisas.

Bond olhou pela beirada do convés superior. Embaixo ficava a faixa de um metro de coberta que se estendia por todo o comprimento do navio. Entre ela e o mar havia um peitoril de uns sessenta centímetros de altura. Supondo-se que a rede tivesse partido e o Sr. Krest tivesse caído, rolado sobre a lancha e pela beirada do convés superior, poderia ter chegado ao mar? Dificilmente, com o mar tão calmo, mas isso é o que ele iria fazer.

Bond pôs-se em ação. Com uma faca de mesa do salão, esfiapou cuidadosamente e depois partiu uma das principais cordas da rede, de modo que esta ficou realisticamente caída no convés. Em seguida, com um pano úmido, limpou as manchas de sangue na madeira e as gotas de formalina que tinham escorrido desde o frasco do peixe. Depois, veio a parte mais difícil — lidar com o cadáver. Cuidadosamente, Bond puxou-o para a beirada do convés, desceu a escada e, erguendo o corpo, segurou-o. O cadáver desceu por cima dele, com um pesado abraço de bêbado. Bond caminhou cambaleante até o peitoril baixo e soltou o cadáver. Houve um último e medonho vislumbre do rosto obscenamente inchado, um enjoativo cheiro de uísque azedo, uma pesada batida e o corpo rolou vagarosamente, levado pelas pequenas ondas da esteira. Bond agachou-se encostado à escotilha do salão, pronto para escorregar por ela se o timoneiro viesse da proa para investigar. Mas não houve movimento na frente do barco e os diesels continuaram roncando firmemente.

Bond suspirou fundo. O “coroner” precisaria ser muito encrenqueiro para pensar em outra coisa além de acidente. Voltou para o convés superior, deu uma última olhada em roda, jogou ao mar a faca e o pano úmido, e desceu a escada para sua cama no convés inferior. Eram duas e quinze. Dez minutos depois, Bond estava dormindo.


Aumentando a velocidade para doze nós, às seis horas da tarde estavam em North Point. Atrás deles, o céu corruscava de raios vermelhos e dourados sobre água-marinha. Os dois homens, com a mulher entre eles, estavam encostados no peitoril do convés inferior e observavam a praia brilhante além do mar, que parecia um espelho de madrepérolas. Liz Krest usava um vestido de linho branco com cinto preto e um lenço preto e branco enrolado no pescoço. As cores da manhã combinavam com a pele dourada. As três pessoas mantinham-se reservadas e quase constrangidas, cada uma delas alimentando seu próprio conhecimento secreto, cada uma delas ansiosa por transmitir às outras duas que seus segredos particulares estavam bem guardados com ela.

Naquela manhã parecia ter havido entre os três uma conspiração para dormir até tarde. Mesmo Bond não fora acordado pelo sol antes das dez horas. Tomou um banho de chuveiro no alojamento da tripulação e conversou com o timoneiro antes de descer para ver o que acontecera com Fidele Barbey. Este ainda estava na cama. Disse que estava de ressaca. Havia sido muito rude com o Sr. Krest? Não conseguia lembrar-se de muita coisa, recordando apenas que o Sr. Krest fora rude com ele.

— Lembra-se do que eu disse sobre ele desde o começo, James? Um fanfarrão safado. Agora concorda comigo? Qualquer dia destes alguém vai tapar para sempre aquela sua feia boca mole.

Inconclusivo. Bond arrumou alguma coisa como desjejum na cozinha e estava comendo quando Liz Krest entrou para fazer o mesmo. Vestia um quimono de xantungue azul pálido até os joelhos. Havia anéis escuros embaixo de seus olhos e ela tomou seu desjejum em pé. Mas parecia perfeitamente calma e à vontade. Segredou com ar de conspiração:

— Desculpe o que aconteceu ontem à noite. Acho que eu também bebi um pouco demais. Mas perdoe Milt. ele é realmente muito amável. Só quando bebe um pouco demais é que fica um tanto difícil. Sempre se arrepende na manhã seguinte. Você vai ver.

Quando já eram onze horas e nenhum dos outros dois mostrava sinais de abrir o jogo, por assim dizer, Bond decidiu forçar a parada. Olhou fixamente para Liz Krest que estava deitada de bruço no convés inferior lendo uma revista e disse:

— A propósito, onde está seu marido? Ainda dormindo?

Ela franziu a testa.

—- Acho que sim. ele foi para sua rede no convés superior. Não tenho ideia que horas eram. Tomei um comprimido de sedativo e dormi até de manhã.

Fidele Barbey tinha uma vara de pesca estendida para fora do barco. Sem voltar os olhos, disse:

— Provavelmente está na casa do leme.

— Se ainda estiver dormindo no convés superior — disse Bond — vai queimar-se como o diabo.

— Oh, pobre Milt! — exclamou Liz Krest. — Eu não havia pensado nisso. Vou lá ver.

Subiu a escada. Quando sua cabeça estava acima do nível do convés superior, parou. Gritou para baixo, ansiosamente:

— Jim. ele não está aqui. E a rede está partida.

— Fidele provavelmente tem razão — respondeu Bond. — Vou olhar lá na frente.

Foi até a casa do leme. Fritz, o imediato, e o mecânico estavam lá. Bond perguntou:

— Alguém viu o Sr. Krest?

Fritz pareceu perplexo.

— Não, senhor. Por quê? Há alguma coisa errada?

Bond assumiu uma expressão de ansiedade.

— ele não está lá atrás. Vamos, deem uma olhada por toda parte. ele estava dormindo no convés superior. Não está lá e sua rede está partida. Estava bem ruim ontem à noite. Vamos! Procurem-no!

Quando se chegou à inevitável conclusão, Liz Krest teve curto, mas convincente acesso de histeria. Bond levou-a para sua cabina e deixou-a lá chorando.

— Está tudo bem, Liz — disse ele. — Fique fora disso. Eu cuidarei de tudo. Teremos de avisar Port Victória pelo rádio e outras coisas. Direi a Fritz para aumentar a velocidade. Acho que não adianta voltar atrás para olhar. Já faz seis horas que nasceu o dia, quando ele não poderia ter caído de bordo sem ser ouvido ou visto. Deve ter sido durante a noite. Acho que umas seis horas nestes mares é o fim.

Ela o fitou, com os olhos muito abertos.

— Quer dizer... quer dizer tubarões e outras coisas?

Bond fez que sim com a cabeça.

— Oh, Milt! Pobre e querido Milt! Oh, por que teria de acontecer isso?

Bond saiu e fechou suavemente a porta.

O iate deu a volta em Cannon Point e diminuiu a velocidade. Conservando-se bem longe dos recifes esparsos, deslizou serenamente através da larga baía, agora cor de limão e cinzenta escura na última luz do dia, em direção ao ancoradouro. A pequena Prefeitura embaixo das montanhas já estava escura com sombras cor de anil nas quais apareciam borrifos de luz amarela. Bond viu a lancha da Alfândega e Imigração sair do Long Pier para encontrá-los. A pequena comunidade já devia estar comentando ativamente a notícia, que devia ter transpirado rapidamente da estação de rádio para o Seychelles Club e de lá, através dos sócios, motoristas e empregados, para a cidade.

Liz Krest virou-se para ele.

— Estou começando a ficar nervosa. Você me ajudará até o fim disto... destas horríveis formalidades e outras coisas?

— Naturalmente.

— Não se preocupem demais — disse Fidele Barbey. — Toda essa gente é minha amiga. E o juiz é meu tio. Todos nós teremos de prestar depoimento. Provavelmente farão a audiência amanhã. Você poderá partir no dia seguinte.

— Pensa mesmo assim? — perguntou Liz Krest, sob cujos olhos o suor parecia orvalho. — O mal é que realmente não sei para onde partir ou que fazer. Suponho — acrescentou, hesitando, sem olhar para Bond — suponho, James, que você não gostaria de ir até Mombasa? Quero dizer, você vai para lá de qualquer jeito e eu poderia levá-lo até lá um dia antes desse seu navio, essa Camp qualquer coisa.

— “Kampala” — esclareceu Bond, acendendo um cigarro para ocultar sua hesitação. Quatro dias em um belo iate com essa mulher? Mas havia o rabo daquele peixe projetando-se da boca! Teria ela feito aquilo? Ou fora Fidele, sabendo que seus tios e primos em Mahe dariam um jeito de nada lhe acontecer de mal? Se pelo menos um deles cometesse uma indiscrição. Bond disse com naturalidade:

— É muita bondade sua, Liz. Naturalmente, eu gostaria de ir.

Fidele Barbey riu baixinho.

— Bravo, meu amigo — disse ele. — E eu gostaria de estar em sua pele, menos por uma coisa. Aquele maldito peixe. É uma grande responsabilidade. Gosto de imaginar vocês dois recebendo torrentes de cabogramas da Smithsonian. Não se esqueçam de que agora vocês dois são curadores de um Koh-i-noor científico. E sabem como são aqueles americanos. Matarão vocês de aborrecimento até terem o bicho nas mãos.

Os olhos de Bond estavam duros como pedra enquanto a observava. Sem dúvida, isso apontava para ela. Agora teria de dar alguma desculpa, para tirar o corpo da viagem. Havia certa coisa naquela maneira particular de matar um homem...

Mas os belos olhos cândidos não vacilaram. Ela ergueu os olhos para o rosto de Fidele Barbey e disse, serenamente, encantadoramente:

— Isso não será problema. Decidi doá-lo ao Museu Britânico.

James Bond notou que agora se juntava orvalho de suor nas têmporas. Mas, afinal de contas, era uma tarde desesperadamente quente...

O ronco dos motores cessou e a corrente da âncora baixou rangendo para a calma baía.

Colombo sacudiu vagarosamente um dedo diante de seu nariz.

— Meu amigo — disse ele — Kristatos é Kristatos. Está fazendo o maior jogo dúplice que é possível conceber. Para mantê-lo — para manter a proteção do serviço secreto americano e de seu pessoal de entorpecentes — precisa jogar-lhes uma vítima de vez em quando — algum homem pequeno da orla do grande jogo. Mas com este problema inglês, o caso é diferente. É um tráfico enorme. Para protegê-lo, era necessária uma grande vítima. Eu fui escolhido — por Kristatos ou por seus empregadores. E é verdade que, se tivesse sido vigoroso em suas investigações e tivesse gasto bastante moeda forte para comprar informações, você poderia ter descoberto a história de minhas operações. Mas cada pista na minha direção teria levado você para mais longe da verdade. No final, pois eu não subestimo seu Serviço, eu teria ido para a prisão. Mas a grande raposa que você está procurando ficaria só rindo do barulho da caçada que morreria à distância.

— Por que Kristatos queria que eu o matasse?

A fisionomia de Colombo assumiu uma expressão astuciosa.

— Meu amigo, eu sei coisas demais. Na fraternidade dos contrabandistas, de vez em quando tropeçamos em um canto do negócio de outro homem. Não há muito tempo, neste barco, tive um combate em retirada com uma pequena canhoneira da Albânia. Um disparo providencial incendiou seu combustível. Só houve um sobrevivente, que foi convencido a falar. Fiquei sabendo muito, mas como um tolo resolvi correr o risco com os campos de minas e desembarquei-o na costa norte de Tirana. Foi um erro. Desde então tenho esse bastardo de Kristatos atrás de mim.

Colombo sorriu cruelmente e acrescentou:

— Tenho uma informação de que ele não tem conhecimento. E temos um encontro com essa informação à primeira luz do dia amanhã, em Santa Maria, pequeno porto pesqueiro logo ao norte de Ancona. E lá — concluiu Colombo, com uma risada áspera e cruel — veremos o que houver para ver.

Bond sorriu brandamente e perguntou:

— Qual é seu preço por tudo isso? Você diz que minha missão estará terminada amanhã de manhã. Quanto?

Colombo sacudiu a cabeça. Disse em tom indiferente:

— Nada. Acontece que nossos interesses coincidem. Você vai prometer-me, porém, que tudo quanto eu disse esta noite ficará entre eu e você, e, se necessário, seu chefe em Londres. Nunca deverá voltar à Itália. Está combinado?

— Sim. Concordo com isso.

Colombo levantou-se. Foi até a cômoda e tirou a arma de Bond. Entregou-a a Bond, dizendo:

— Nesse caso, meu amigo, é melhor ficar com isto, porque vai precisar. E é melhor também dormir um pouco. Haverá rum e café para todos às cinco da manhã.

Estendeu a mão. Bond apertou-a. De repente, os dois homens passaram a ser amigos. Bond sentiu isso.

— Está bem, Colombo — disse desajeitadamente, antes de sair da sala e encaminhar-se para sua cabina.

O “Colombina” tinha uma tripulação de doze homens. Eram homens jovens e de aparência decidida. Falavam em voz baixa entre si enquanto canecas de café quente e rum eram servidas por Colombo na sala. Uma lanterna de tempestade era a única luz — pois o navio fora escurecido — e Bond sorriu consigo mesmo diante da atmosfera de Ilha do Tesouro, do ar de excitação e conspiração. Colombo foi de homem em homem fazendo uma inspeção das armas. Todos tinham Lugers, carregadas embaixo da camisa de malha e por dentro do cós da calça, e facas de mola no bolso. Colombo teve uma palavra de aprovação ou de crítica para cada arma. Ocorreu a Bond que Colombo arrumara uma boa vida para si próprio — uma vida de aventura, emoção e risco. Era uma vida criminosa — um combate em retirada com as leis monetárias, o monopólio estatal de tabaco, a Alfândega e a polícia — mas havia no ar um cheiro de travessura adolescente que mudava a cor do crime de preto para branco — ou pelo menos cinzento.

Colombo olhou para seu relógio. Mandou os homens para seus postos. Apagou a lanterna e, sob a luz cinzenta da madrugada, Bond seguiu-o até a ponte. Viu que o navio estava perto de um litoral preto e rochoso, ao longo do qual navegava em velocidade reduzida. Colombo apontou para frente.

— Do outro lado daquele cabo fica a baía. Nossa aproximação não será observada. Na baía, encostado no desembarcadouro, espero encontrar um navio mais ou menos deste tamanho, descarregando inocentes bobinas de papel de imprensa por uma rampa que entra em um armazém. Depois de dar a volta ao cabo, avançaremos a toda velocidade, encostaremos ao lado desse navio e o abordaremos. Haverá resistência. Haverá cabeças quebradas. Espero que não haja tiros. Não atiraremos a menos que eles comecem. Mas será um navio albanês tripulado por albaneses durões. Se houver tiroteio, você deverá atirar com o resto de nós. Essa gente é inimiga de seu país tanto quanto do meu. Se você morrer, morreu. Está bem?

— Está muito bem.

Quando Bond dizia essas palavras, veio um tilintar do telégrafo da casa das máquinas e a coberta começou a tremer sob seus pés. Fazendo dez nós, o pequeno navio deu a volta ao cabo para entrar na baía.

Aconteceu como Colombo havia dito. Encostado no desembarcadouro de pedra, havia um navio, com suas velas trapeando ociosamente. De sua popa uma rampa de tábuas descia em direção à boca escura de um decrépito armazém de ferro corrugado, em cujo interior estavam acesas fracas luzes elétricas. O navio transportava na coberta uma carga que parecia ser bobinas de papel de imprensa. As bobinas estavam sendo baixadas uma por uma sobre a rampa de onde rolavam por seu próprio peso através da boca do armazém. Havia uns vinte homens à vista. Só a surpresa poderia anular essa desvantagem. Agora o barco de Colombo estava a cinquenta metros de distância do outro navio. Um ou dois dos homens pararam de trabalhar e olharam na direção do barco de Colombo. Um homem correu para dentro do armazém. Nesse instante Colombo deu uma ordem rápida. Os motores pararam e começaram a funcionar ao contrário. Um grande holofote foi aceso na ponta e iluminou brilhantemente toda a cena, enquanto o navio se encostava ao lado do pesqueiro albanês. Ao primeiro e violento contato, arpões foram lançados sobre o parapeito do navio albanês, na frente e atrás, e os homens do “Colombina” subiram pelo costado com Colombo à frente.

Bond havia feito seus próprios planos. Assim que seus pés pisaram na coberta inimiga, correu diretamente através do navio, subiu no parapeito do outro lado e saltou. Havia uma distância de uns quatro metros até o desembarcadouro e Bond nele caiu como um gato, sobre as mãos e as pontas dos pés. Ficou imóvel por um momento, agachado, planejando seu movimento seguinte. O tiroteio já começara na coberta. Um dos primeiros tiros apagara o holofote e agora só havia a luz cinzenta e luminosa da aurora. Um corpo, de um inimigo, caiu sobre as pedras à sua frente e ficou tombado de braços abertos, imóvel. Ao mesmo tempo, da boca do armazém, uma metralhadora leve começou a disparar, lançando rajadas curtas com toque altamente profissional. Bond correu em direção a ela na sombra escura do navio. O homem da metralhadora avistou-o e lançou-lhe uma rajada. As balas zuniram em volta de Bond, bateram no casco de ferro do navio e desapareceram na noite. Bond procurou a proteção da rampa de tábuas e mergulhou para a frente de barriga. As balas enterravam-se na madeira acima de sua cabeça. Bond rastejou para a frente no espaço estreito. Quando chegasse o mais perto possível, poderia escolher entre sair para a direita ou para a esquerda das tábuas. Houve uma série de pesadas batidas e o barulho de algo rolando rapidamente em cima de sua cabeça. Um dos homens de Colombo devia ter cortado as cordas, fazendo com que toda a pilha de bobinas de papel rolasse pela rampa. Agora era a oportunidade de Bond. Saltou para fora de seu esconderijo — para a esquerda. Se estivesse esperando por ele, o homem da metralhadora acreditaria que ia aparecer disparando pela direita. O homem da metralhadora lá estava, agachado e encostado à parede do armazém. Bond disparou duas vezes na fração de segundo antes que o cano brilhante da arma inimiga girasse em seu pequeno arco. O dedo do homem morto premiu o gatilho e, enquanto ele caía, a arma disparou uma curta rajada antes de soltar-se de sua mão e cair ao chão.

Bond estava correndo em direção à porta do armazém quando escorregou e caiu de cabeça. Ficou imóvel por um momento, estonteado, com o rosto em uma poça de melaço preto. Praguejou, ergueu-se sobre as mãos e os joelhos, e correu esconder-se atrás de um monte de bobinas de papel que haviam batido na parede do armazém. De uma delas, furada por uma rajada da metralhadora, escorria o melaço preto. Bond limpou o mais que pôde de suas mãos e de seu rosto. Tinha o cheiro adocicado e rançoso que Bond já sentira certa vez no México. Era ópio bruto.

Uma bala enterrou-se na parede do armazém não longe de sua cabeça. Bond limpou pela última vez a mão nos fundimos da calça e saltou para a porta do armazém. Ficou surpreendido em não ser alvejado do interior assim que sua silhueta apareceu na porta. Dentro estava silencioso e fresco. As luzes haviam sido apagadas, mas agora estava ficando mais claro lá fora. As claras bobinas de papel estavam empilhadas em fileiras metódicas, tendo no centro um espaço para servir como corredor. Na outra extremidade do corredor havia uma porta. Todo esse arranjo parecia olhá-lo de soslaio, desafiando-o. Bond sentiu o cheiro da morte. Recuou para a porta e saiu. O tiroteio tornara-se espasmódico. Colombo vinha correndo rapidamente em sua direção, com os pés perto do chão, como correm os homens gordos. Bond disse peremptòriamente:

— Fique nesta porta. Não entre e não deixe nenhum de seus homens entrar. Vou dar a volta por trás.

Sem esperar por resposta, deu a volta correndo no canto do prédio e avançou pelo lado.

O armazém tinha uns quinze metros de comprimento. Bond diminuiu o passo e caminhou silenciosamente até o outro canto. Encostou-se na parede de ferro corrugado e olhou rapidamente pelo canto. Recuou imediatamente. Havia um homem em pé na entrada do fundo. Tinha os olhos em alguma espécie de orifício para espionar dentro do armazém. Na mão tinha um pistão do qual saíam fios que se estendiam por baixo da porta. Um carro, um conversível preto Lancia Granturismo de capota baixada, estava a seu lado, com o motor roncando maciamente. O carro estava voltado para o interior, em uma estrada empoeirada e profundamente trilhada.

O homem era Kristatos.

Bond ajoelhou-se. Segurou a arma com as duas mãos para ter mais firmeza, inclinou-se para fora do canto do prédio e disparou um tiro contra os pés do homem. Errou. Quase no mesmo instante em que viu a poeira levantar-se a centímetros do alvo, houve o barulho estrondeante de uma explosão. A parede de latão atingiu-o e jogou-o longe.

Bond levantou-se cambaleando. O armazém entortara-se doidamente. Agora começava a ruir barulhentamente, como um maço de cartas de latão. Kristatos estava no automóvel. Já estava vinte metros distante, com as rodas traseiras jogando poeira para o alto. Bond assumiu a clássica pose de tiro de pistola e mirou cuidadosamente. A Walther rugiu e escoiceou três vezes. No último tiro, a cinquenta metros, a figura agachada sobre o volante sacudiu-se para trás. As mãos largaram a direção e estenderam-se para os lados. A cabeça espichou momentaneamente para o alto e caiu para a frente. A mão direita continuou estendida para fora, como se o homem morto estivesse fazendo sinal de virar à direita. Bond começou a correr pela estrada, esperando que o carro parasse, mas as rodas estavam presas nos trilhos e, com o peso do pé direito do homem morto ainda sobre o acelerador, o Lancia continuou a correr em sua gritante terceira. Bond parou e ficou observando-o. O carro corria pela estrada plana que atravessava uma planície queimada e a nuvem de poeira branca erguia-se alegremente atrás dele. Bond esperava que a qualquer momento ele saísse da estrada, mas não saiu. Ficou olhando-o até perdê-lo de vista no nevoeiro da manhã que prometia um belo dia.

Bond travou sua arma e enfiou-a na cintura da calça. Quando se virou, viu Colombo aproximando-se. O homem gordo sorria encantado. Chegou até a Bond e, para horror deste, estendeu seus braços abertos, puxou Bond em sua direção e beijou-o em ambas as faces.

— Pelo amor de Deus, Colombo! — disse Bond.

Colombo estourou numa risada.

— Ah, o fleugmático inglês! Nada teme, senão as emoções. Mas eu — disse batendo no próprio peito — eu, Enrico Colombo, gosto deste homem e não tenho vergonha de confessá-lo. Se você não tivesse liquidado o homem da metralhadora, nenhum de nós teria sobrevivido. Perdi dois de meus homens e outros ficaram feridos. Mas só restou em pé meia dúzia de albaneses, que fugiram para a aldeia. Sem dúvida, a polícia os prenderá. E agora você mandou aquele maldito Kristatos de automóvel para o inferno. Que esplêndido fim para ele! Que acontecerá quando o pequeno esquife de corrida chegar à rodovia principal? ele já está fazendo sinal com a mão de que vai virar à direita para entrar na auto-estrada. Espero que se lembre de entrar à direita.

Colombo deu um violento tapa no ombro de Bond.

— Vamos, meu amigo — disse ele. — É tempo de sairmos daqui. As válvulas estão abertas no navio albanês, que logo irá ao fundo. Não há telefone neste lugarzinho. Levaremos uma boa vantagem sobre a polícia. Demorarão algum tempo para conseguir saber alguma coisa dos pescadores. Falei com o chefe. Ninguém aqui gosta de albaneses. Mas precisamos ir embora. Temos uma boa vela ao vento e não há médico em que eu possa confiar deste lado de Veneza.

Chamas estavam começando a aparecer no desmoronado armazém e dele se desprendiam vagalhões de fumaça que cheiravam como legumes doces. Bond e Colombo caminharam contra o vento. O navio albanês encostara-se no fundo e suas cobertas estavam inundadas. Atravessaram o navio andando sobre a água e subiram para bordo do “Colombina”, onde Bond precisou submeter-se a mais apertos de mão e tapas nas costas. Partiram imediatamente e rumaram para o cabo que guardava a baía. Havia um pequeno grupo de pescadores em pé ao lado de seus barcos puxados para a praia abaixo de um amontoado de cabanas de pedra. Causavam uma impressão desagradável, mas quando Colombo acenou com a mão e gritou algo em italiano, a maioria deles ergueu a mão em despedida e um deles gritou em resposta algo que fez a tripulação do “Colombina” rir. Colombo explicou:

— Dizem que nós somos melhores que o cinema de Ancona e devemos voltar de novo.

Bond sentiu desaparecer toda sua excitação. Sentia-se sujo e barbudo. Podia sentir o cheiro de seu próprio suor. Desceu, tomou uma navalha e uma camisa limpa emprestadas de um dos tripulantes, despiu-se em sua cabina e lavou-se. Quando tirou a arma e jogou-a sobre a tarimba, sentiu um cheiro de cordite sair do cano. Isso lhe trouxe de volta o medo, a violência e a morte na madrugada cinzenta. Abriu a vigia. Fora, o mar dançava alegremente e o litoral que recuava, antes negro e misterioso, era agora verde e bonito. Um repentino e delicioso cheiro de toucinho frigindo foi trazido da cozinha pelo vento. Abruptamente, Bond fechou a viga, vestiu-se e foi para a sala.

Sobre um monte de ovos fritos e toucinho defumado, regados por café doce quente misturado com rum. Colombo pôs os pingos nos “ii” e os traços nos “tt”.

— Isso nós conseguimos, meu amigo — disse ele, mastigando torrada. — Era o suprimento de um ano de ópio bruto a caminho da indústria química de Kristatos em Nápoles. É verdade que eu tenho um negócio semelhante em Milão, que serve como conveniente depósito para algumas de minhas mercadorias. Mas não produz coisa alguma mais mortal do que cascara e aspirina. Em toda essa parte da história de Kristatos, onde está escrito Colombo deve-se ler Kristatos. Era ele quem transformava o material em heroína e era ele quem empregava os mensageiros que a levavam para Londres. Aquele enorme carregamento valia talvez um milhão de libras para Kristatos e seus homens. Mas sabe de uma coisa, meu caro James? Não lhe custava um único centavo. Por quê? Porque era presente da Rússia. Presente de um maciço e mortal projétil para ser disparado contra as entranhas da Inglaterra. Os russos podem fornecer quantidades ilimitadas de carga para o projétil. Provém de suas culturas de papoula no Cáucaso e a Albânia é um entreposto conveniente. Mas eles não têm o aparelhamento para disparar o projétil. Kristatos criou o aparelhamento necessário e era ele quem, em nome de seus senhores na Rússia, apertava o gatilho. Hoje, entre nós, destruímos, em meia hora, toda a conspiração. Você pode voltar e dizer a sua gente na Inglaterra que o tráfico cessará. Pode também dizer-lhe a verdade: que a Itália não era a origem dessa terrível arma subterrânea de guerra. Ela provinha de nossos velhos amigos, os russos. Sem dúvida é parte de alguma guerra psicológica de seu aparelhamento de espionagem. Isso posso assegurar-lhe. Talvez, meu caro James — prosseguiu Colombo, sorrindo encorajadoramente — o mandem a Moscou para descobrir isso. Se tal acontecer, esperemos que encontre alguma garota tão encantadora quanto sua amiga Fräulein List Baum para pô-lo no caminho reto da verdade.

— Por que diz “minha amiga”? Ela é sua.

Colombo sacudiu a cabeça.

— Meu caro James, tenho muitos amigos. Você vai passar mais alguns dias na Itália escrevendo seu relatório e sem dúvida — Colombo deu uma risadinha — conferindo algumas das coisas que lhe contei. Talvez passe também uma agradável meia hora explicando as realidades da vida a seus colegas do serviço secreto americano. Entre esses deveres, precisará de companhia — de alguém que lhe mostre as belezas de minha terra adorada. Em países incivilizados, é um costume cortês oferecer uma de suas esposas ao homem que você ama e que deseja homenagear. Eu também sou incivilizado. Não tenho esposas, mas tenho muitas amigas, como Lisl Baum. Ela não precisará receber instruções nessa matéria. Tenho boa razão para acreditar que está esperando seu regresso esta noite.

Colombo enfiou a mão no bolso da calça e tirou algo que deixou cair barulhentamente sobre a mesa em frente de Bond.

— Aqui está a boa razão — disse Colombo, pondo a mão no coração e olhando seriamente para os olhos de Bond. — Dou-a de coração. Talvez venha também do coração dela.

Bond apanhou o objeto. Era uma chave tendo presa a ela uma pesada chapa de metal. Na chapa de metal estava escrito: Albergo Danielli. Quarto 68.


A raridade de Hildebrand

 

 

 

(THE HILDEBRAND RARITY)

 

A arraia tinha uns dois metros de uma extremidade à outra das nadadeiras e talvez três metros de comprimento, desde a ponta rombuda de seu focinho até o fim de sua mortal cauda. Era cinzenta escura com aquele matiz roxo que é muitas vezes um sinal de perigo no mundo submarino. Quando se levantou da areia cor de ouro pálida e nadou por curta distância foi como se uma toalha preta estivesse sendo sacudida dentro da água.

James Bond, com as mãos estendidas ao longo do corpo e nadando apenas com um suave movimento de suas nadadeiras, seguiu a sombra preta através da laguna orlada de palmeiras, esperando oportunidade para um disparo. Raramente matava peixe a não ser para comer, mas havia exceções — as grandes moreias e todos os membros da família do peixe-escorpião. Agora pretendia matar a arraia porque parecia extraordinariamente má.

Eram dez horas da manhã de um dia de abril e a laguna Belle Anse, perto da extremidade sul de Mahe, a maior ilha do arquipélago das Seychelles, estava serena como vidro. A monção noroeste deixara de soprar meses antes e somente em maio começaria a monção sudeste. Agora a temperatura era de 27 graus à sombra e a umidade de noventa. Na laguna, a água fechada estava quase quente. Até os peixes pareciam entorpecidos. Um bodião verde de cinco quilos, mordiscando algas em uma massa de coral, parou apenas para girar os olhos quando Bond passou por cima, e depois voltou à sua refeição. Um cardume de pequenos e chatos peixes cinzentos, nadando rapidamente, abriu-se ao meio com cortesia para dar passagem à sombra de Bond, depois voltou a fechar-se e continuou seu avanço na direção contrária. Uma fileira de seis pequenas lulas, normalmente tão ariscas quanto pássaros, nem sequer tentou modificar sua camuflagem quando Bond passou.

Bond avançava preguiçosamente, conservando a arraia ao alcance da vista. Logo ela se cansaria ou então se tranquilizaria vendo que Bond, o grande peixe à superfície, não atacava. Então pararia em um lugar de areia lisa, mudaria sua camuflagem para o cinzento mais pálido, quase translúcido, e, com suaves ondulações de suas nadadeiras, enterrar-se-ia na areia.

A linha de recifes estava chegando perto e agora havia afloramentos negros de coral e campinas de plantas marinhas. Era como chegar do campo aberto a uma cidade. Por toda parte os coloridos peixes dos recifes resplandeciam e cintilavam. As gigantescas anêmonas do Oceano Indico ardiam como chamas nas sombras. Colônias de espinhosos ouriços do mar formavam manchas em sépia como se alguém tivesse jogado tinta contra as pedras. As brilhantes antenas azuis e amarelas das lagostas agitavam-se para fora de suas fendas como pequenos dragões. De vez em quando, entre as algas marinhas no cintilante leito do mar, avistava-se o brilho sarapintado de um caurim maior que uma bola de golfe — o caurim leopardo e uma vez Bond viu os belos dedos estendidos de uma harpa de Vênus. Mas todas essas coisas já eram comuns para Bond, que continuou nadando firmemente interessado nos recifes apenas como esconderijo através do qual pudesse avançar pelo mar além da arraia e depois persegui-la de volta na direção da praia. A tática deu resultado. Logo a sombra negra e o torpedo marrom que a perseguia estavam voltando através do grande espelho azul. Onde havia uns três metros e meio de água a arraia parou pela centésima vez. Bond parou também, movendo-se suavemente na água. Cautelosamente, ergueu a cabeça e esvaziou a água de seus óculos. Quando tornou a olhar, a arraia havia desaparecido.

Bond tinha uma espingarda de arpão Champion. O arpão tinha na ponta um tridente afiado como agulha — uma arma para curta distância, mas a melhor para operação em recifes. Bond soltou a trava e movimentou-se vagarosamente para a frente, com as nadadeiras oscilando suavemente logo abaixo da superfície para não fazer barulho. Olhou em roda, tentando perscrutar os nebulosos horizontes do grande salão da laguna. Procurava avistar algum corpo volumoso de emboscada. Não seria bom ter um tubarão ou um grande barracuda como testemunha do ataque. Os peixes às vezes gritam quando são feridos e, mesmo quando não gritam, a turbulência e o sangue resultantes de uma luta feroz atraem os limpadores. Mas não havia viva alma à vista e a areia estendia-se para os lados enfumaçados como as tábuas nuas de um palco. Agora Bond podia ver o vago contorno no fundo. Moveu-se até ficar diretamente sobre ele e permaneceu imóvel à superfície, olhando para baixo. Houve um ligeiro movimento na areia. Duas minúsculas fontes de areia dançavam acima dos orifícios semelhantes a narinas nos espiráculos. Atrás dos orifícios estava a ligeira protuberância do corpo. Aquele era o alvo. Dois centímetros e meio atrás dos orifícios. Bond calculou a possível chicotada da cauda para cima, virou vagarosamente a espingarda para baixo e puxou o gatilho.

Embaixo dele houve uma erupção de areia e, por um ansioso momento, Bond nada pôde ver. Depois a linha do arpão ficou esticada e a arraia apareceu, afastando-se dele enquanto sua cauda, em ação reflexa, chicoteava repetidamente sobre o corpo. Na base da cauda, Bond pôde ver os pontudos espinhos de veneno erguendo-se do tronco. Esses eram os espinhos que se supunha terem morto Ulisses, que Plínio dizia ser capaz de destruir uma árvore. No Oceano Indico, onde os venenos do mar são os mais virulentos, um arranhão do ferrão dessa arraia significa morte certa. Cautelosamente, mantendo a arraia em linha esticada, Bond nadou atrás do peixe que lutava ferozmente. Nadou para um lado a fim de desviar a linha da cauda chicoteante que poderia facilmente cortá-la. Essa cauda era o chicote do antigo feitor de escravos do Oceano Indico. Hoje em dia, em Seychelles, é ilegal até mesmo possuir uma cauda dessas, mas elas são transmitidas nas famílias para uso contra esposas infiéis. Quando circula a notícia de que esta ou aquela mulher a eu la crapule, nome provençal da arraia, vale dizer que a mulher não se levantará pelo menos por uma semana. Agora, as chicotadas da cauda estavam-se tornando mais fracas. Bond nadou em volta e por cima da arraia, arrastando-a atrás dele em direção à praia. No raso, a arraia amoleceu e Bond puxou-a para a praia, até um boa distância na água. Mas ainda se conservou longe dela. fez bem. De repente, devido a algum movimento de Bond ou talvez na esperança de apanhar desprevenido seu inimigo, a gigantesca arraia deu um salto para o ar. Bond pulou de lado e arraia caiu de costas. Ficou imóvel com a barriga branca exposta ao sol e a grande e feia boca em forma de foice aspirando e ofegando.

Bond ficou parado olhando para a arraia e pensando o que iria fazer em seguida.

Um homem branco, baixo e gordo, com camisa e calça caquis, saiu debaixo das palmeiras e caminhou em direção a Bond através das plantas marinhas e restos de naufrágios ressecados pelo sol espalhados bem acima da marca da água. Quando estava bastante perto, disse rindo:

— O Velho e o Mar! Quem pescou e quem foi pescado?

Bond virou-se.

— Só poderia ser o único da ilha que não carrega um machete. Fidele, seja bonzinho e chame um de seus homens. Este animal não quer morrer e meu arpão está enterrado nele.

Fidele Barbey, o mais moço dos inúmeros Barbeys que eram donos de quase tudo quanto havia em Seychelles, aproximou-se e ficou olhando para a arraia.

— Essa foi boa. Foi sorte você ter acertado no lugar exato, senão ela o teria arrastado para os recifes e você precisaria largar a espingarda. Demoram como o diabo para morrer. Mas vamos. Preciso levá-lo de volta a Victória. Apareceu uma coisa. Coisa boa. Eu mandarei um de meus homens buscar a espingarda. Você quer a cauda?

Bond sorriu ao responder:

— Eu não sou casado. Mas que acha de uma raie au beurre noir para hoje à noite?

— Hoje à noite, não, meu amigo. Vamos. Onde estão suas roupas?

Enquanto rodavam na perua pela estrada costeira, Fidele disse:

— Já ouviu falar em um americano chamado Milton Krest? Bem, parece que ele é dono dos hotéis Krest e de um negócio chamado Fundação Krest. Uma coisa posso garantir-lhe. ele é dono do melhor iate que se encontra no Oceano Indico. Chegou ontem. O “Wavekrest”. Quase duzentas toneladas. Trinta metros de comprimento. Há de tudo no barco, desde uma bela esposa até um grande gramofone transistorizado sobre balanceiro para que as ondas não sacudam a agulha. Tapetes de três centímetros de grossura de parede a parede. Ar condicionado em toda parte. Os únicos cigarros secos deste lado do continente africano e a melhor garrafa de champanha para depois do desjejum que já provei desde a última vez que vi Paris.

Fidele Barbey riu satisfeito.

— Meu amigo, é um grande barco e se o Sr. Krest é um fanfarrão safado, quem se importa com isso?

— Quem se importa com ele, afinal de contas? Que tem ele a ver com você... ou comigo, para dizer a verdade?

— Só isto, meu amigo. Vamos passar alguns dias navegando com o Sr. Krest... e a Sra. Krest, a bela Sra. Krest. Concordei em levar o navio até Chagrin, a ilha de que já lhe falei. Fica a muitas milhas daqui, ao largo dos African Banks. Minha família nunca encontrou utilidade para ela, a não ser para colecionar ovos de atobá. Fica apenas um metro acima do nível do mar. Faz cinco anos que não vou àquele maldito lugar. Agora, esse Krest quer ir até lá. Está colecionando espécimes marinhos, coisas da sua fundação, e há uns malditos peixinhos que parecem existir apenas ao redor da ilha Chagrin. Pelo menos Krest diz que o único espécime conhecido no mundo veio de lá.

— Parece engraçado. Onde eu entro nessa história?

— Eu sabia que você estava entediado e que ainda tem uma semana antes de partir. Por isso, disse que você era o ás dos pescadores submarinos locais e que logo encontraria o peixe, se existisse. Além disso, tornei claro que não iria sem você. O Sr. Krest concordou. E é só isso. Sabia que você estava em algum lugar aí pelo litoral. Vim rodando até encontrar um pescador que me disse ter visto um homem branco maluco tentando suicidar-se sozinho na Belle Anse. Logo vi que só podia ser você.

Bond riu.

— É extraordinário como esta gente da ilha tem medo do mar. Já era tempo de terem chegado a um acordo com o mar. Dos habitantes de Seychelles são raros os que sabem até mesmo nadar.

— É a Igreja Católica Romana. Não gosta que eles tirem a roupa. Tolice, mas é assim. Quanto a ter medo, não se esqueça que você esteve aqui apenas um mês. Tubarão, barracuda... você não encontrou nenhum deles com fome. E o peixe-pedra? Já viu um homem pisar no peixe-pedra? Com a dor, seu corpo curva-se para trás como um arco. Às vezes, é tão horrível que os olhos literalmente saltam das órbitas. Raros são os que sobrevivem.

Bond disse sem a menor simpatia:

— Deviam usar sapatos ou amarrar os pés quando vão aos recifes. No Pacífico também há desses peixes e o mexilhão gigante ainda por cima. É uma estupidez. Todos se queixam de como são pobres aqui, mas o mar está completamente cheio de peixes. E existem cinquenta variedades de caurim embaixo daquelas pedras. Podiam viver muito bem vendendo isso ao mundo.

Fidele Barbey riu animadamente.

— Bond para Governador! Essa é a chapa. Na primeira oportunidade, vou apresentar a ideia. Você é precisamente o homem para o cargo — longa visão, muitas ideias, abundância de entusiasmo. Caurins! É explêndido. Equilibrarão o orçamento pela primeira vez desde a alta do patchuli depois da guerra. “Vendemos conchas marinhas das Seychelles”. Esse será nosso slogan. Farei com que você colha os louros. Em pouco tempo será Sir James.

— Ganha-se mais dinheiro assim do que tentando cultivar baunilha com prejuízo.

Continuaram a discutir com despreocupada violência até quando as palmeiras cederam lugar às gigantescas árvores sangue-de-drago nos subúrbios da decrépita capital de Mahe.

Quase um mês antes M dissera a Bond que ia mandá-lo às Seychelles.

— O Almirantado está tendo dificuldade com sua nova base nas Maldívias. Comunistas infiltraram-se do Ceilão. Greves, sabotagem... o quadro costumeiro. Talvez tenha de reduzir seus prejuízos e recuar para as Seychelles. Mil e quinhentos quilômetros mais ao sul, mas pelo menos parecem bastante seguras. Mas eles não querem ser apanhados de novo. O Departamento Colonial diz que são seguras como casas. Ainda assim concordei em mandar alguém para oferecer uma opinião independente. Quando Macário lá esteve fechado há alguns anos houve alguns bons sustos em questão de segurança. Barcos pesqueiros japoneses rondando as ilhas, um ou dois trapaceiros refugiados da Inglaterra, fortes ligações com a França. Vá dar uma boa olhada.

Olhando pela janela para a pesada neve de março, M acrescentara:

— Não vá ter insolação.

O relatório de Bond, concluindo que o único risco de segurança concebível nas Seychelles residia na beleza e acessibilidade das seychelloises, fora terminado uma semana antes e depois nada houve a fazer senão esperar o “SS. Kampala” para levá-lo a Mombasa. Estava completamente cheio do calor, das palmeiras, do grito choroso das andorinhas do mar e da interminável conversa sobre copra. A perspectiva de mudança encantava-o.

Bond estava hospedado em sua última semana na casa dos Barbey e, depois de passar por lá a fim de apanhar suas malas, os dois rodaram até o fim do Long Pier e deixaram o carro no barracão da Alfândega. O iate branco e cintilante estava a uns oitocentos metros do ancoradouro. Tomaram uma carona com motor de popa, atravessaram a baía vidrada e passaram pela abertura nos recifes. O “Wavekrest” não era bonito — a largura da boca e o excesso de superestrutura prejudicavam suas linhas — mas Bond pôde ver imediatamente que era um verdadeiro navio, construído para navegar pelo mundo e não apenas pelas Florida Keys. Parecia deserto, mas quando encostaram a seu lado, dois marinheiros de aparência elegante, de camisetas e “shorts” brancos, apareceram e ficaram ao lado da escada com croques prontos para afastar a desprezível canoa da cintilante pintura do barco. Apanharam as duas malas e um deles empurrou uma portinhola de alumínio, fazendo um gesto para que descessem. Um sopro do que pareceu a Bond ser de ar quase gelado atingiu-o quando atravessou a porta e desceu alguns degraus para entrar no saguão.

O saguão estava vazio. Não era uma cabina. Era uma sala de sólida riqueza e conforto sem coisa alguma que a associasse ao interior de um navio. As janelas por trás das persianas semi-cerradas eram de tamanho natural, assim como as fundas poltronas ao redor da mesa central baixa. O tapete era de pelos compridos em azul pálido. As paredes eram cobertas de madeira prateada e o ferro era branco acinzentado. Havia uma mesa com o costumeiro material de escrever e um telefone. Perto do grande gramofone havia um aparador coberto de bebidas. Por cima do aparador via-se o que parecia ser um Renoir extremamente bom — a cabeça e os ombros de uma bela moça de cabelos escuros com uma blusa listrada de preto e branco. A impressão de uma luxuosa sala-de-estar em uma residência de cidade era completada por um grande vaso de jacintos brancos e azuis, sobre a mesa central, e pela bem arrumada prateleira de revistas de um dos lados da mesa.

— Não lhe disse, James?

Bond sacudiu a cabeça com ar de admiração.

— Esta é sem dúvida a maneira de tratar o mar — como se ele não existisse.

Respirou fundo e acrescentou:

— Que alívio ter um bocado de ar fresco. Já tinha quase esquecido seu gosto.

— O negócio lá fora é que é ar fresco, rapaz. Este é enlatado.

O Sr. Milton Krest entrara silenciosamente na sala e estava em pé olhando para eles. Era um homem rijo e coriáceo de pouco mais de cinquenta anos. Parecia forte e sadio. As calças grosseiras de um azul desbotado, o corte militar da camisa e a larga cinta de couro sugeriam que para ele era um fetiche ser assim — parecer durão. Os olhos castanhos pálidos no rosto bronzeado pelo sol eram ligeiramente encobertos e seu olhar era sonolento e desdenhoso. A boca tinha uma curva para baixo que poderia ser humorística ou desdenhosa — provavelmente desdenhosa — e as palavras que lançara na sala, inócuas em si próprias, exceto pelo condescendente “rapaz”, haviam sido jogadas como pequenas moedas a um par de cules. Para Bond a coisa mais estranha no Sr. Krest era a voz. Era um cecear macio e muito atraente através dos dentes. Era exatamente a voz do falecido Humphrey Bogart. Bond correu os olhos pelo homem, desde os esparsos cabelos pretos e grisalhos cortados rente, como fios de ferro espalhados sobre a cabeça redonda, passando pela águia tatuada por cima de uma âncora entoucada no antebraço direito e indo até os pés coriáceos e descalços que assentavam nàuticamente sobre o tapete. Pensou: este homem gosta de considerar-se um herói de Hemingway. Não vou dar-me bem com ele.

O Sr. Krest avançou através do tapete e estendeu a mão.

— O senhor é Bond? Prazer em tê-lo a bordo, Senhor.

Bond estava esperando o aperto de esmagar ossos e enfrentou-o com músculos enrijecidos.

— Mergulho livre ou aqualung?

— Livre e não vou muito fundo. É só passatempo.

— Que faz no resto do tempo.

— Servidor civil.

O Sr. Krest deu uma risada curta e áspera.

— Civilidade e servidão. Vocês, ingleses, são os melhores mordomos e criados de quarto do mundo. Servidor civil, foi o que disse? Acho que provavelmente vamos dar-nos muito bem. Servidores civis é exatamente o que gosto de ter ao meu redor.

O barulho da portinhola da coberta sendo empurrada evitou que Bond perdesse a calma. O Sr. Krest desapareceu de seu espírito quando uma jovem nua e queimada pelo sol desceu os degraus para o salão. Não, ela não estava completamente nua, mas o minúsculo biquíni de cetim marrom pálido tendia a fazer a gente pensar que estava.

— Alô, tesouro. Onde estava escondida? Há muito tempo que não a vejo. Estes são o Sr. Barbey e o Sr. Bond, os rapazes que vão conosco.

O Sr. Krest ergueu a mão na direção da moça e acrescentou:

— Rapazes, esta é a Sra. Krest. A quinta Sra. Krest. E, para que ninguém comece a ter ideias, ela ama o Sr. Krest. Não é, tesouro?

— Ora, não seja tolo, Milt. Você sabe que o amo — disse a Sra. Krest, sorrindo lindamente. — Prazer em conhecê-lo, Sr. Barbey. E Sr. Bond. É um prazer tê-los conosco. Tomam alguma coisa.

— Um minuto, tesouro. Quer deixar que eu cuide das coisas a bordo de meu próprio barco, sim?

A voz do Sr. Krest era suave e agradável. A mulher corou.

— Oh, pois não, Milt, naturalmente.

— Então, okay. Assim ficamos sabendo quem é o capitão a bordo do bom navio “Wavekrcst”.

O sorriso divertido abrangia todos eles.

— Muito bem, Sr. Barbey. A propósito, qual é seu primeiro nome? Fidele, não? É um grande nome. Fiel — disse o Sr. Krest, rindo com bom humor. — Bem, agora, Fido, que tal você e eu subirmos à ponte para pôr em movimento este velho caixãozinho? Talvez seja melhor você levá-lo até o alto mar, depois traçar uma rota e entregar o resto a Fritz. Eu sou o capitão. ele é o imediato e há mais dois homens para a casa das máquinas e a copa. Todos os três são alemães. Os únicos bons marinheiros que restam na Europa. E o Sr. Bond, qual é o primeiro nome? James, não? Bem, Jim, que tal praticar um pouco daquela civilidade e servidão com a Sra. Krest. A propósito, pode chamá-la de Liz. Ajude-a a arrumar os canapés e outras coisas para os drinques antes do almoço. Ela também era inglesa antigamente. Vocês podem bater um papo sobre Piccadilly Circus e as Dooks que ambos conhecem. Okay? Vamos, Fido.

Subiu correndo infantilmente os degraus, ao mesmo tempo que acrescentava:

— Vamos dar o fora daqui rápidos como o diabo. Quando a portinhola se fechou, Bond deixou escapar um fundo suspiro. A Sra. Krest disse em tom de desculpa:

— Por favor, não se aborreça com as piadas dele. É apenas seu senso de humor. E ele é um pouco do contra. Gosta de ver se consegue irritar as pessoas. É muita maldade dele. Mas tudo realmente é brincadeira.

Bond sorriu tranquilizadoramente. Quantas vezes tivera ela de dizer essas mesmas coisas a pessoas, de procurar acalmar pessoas sobre as quais o Sr. Krest praticara seu “senso de humor”?

— Acho que seu marido precisa de uma pequena lição. ele age desse jeito também nos Estados Unidos?

Ela respondeu sem rancor:

— Só comigo. ele adora os americanos. Só é assim quando está no estrangeiro. Seu pai — sabe? — era alemão, realmente prussiano. ele tem essa tola maneira alemã de pensar que os europeus etc. são decadentes, que não prestam mais. Não adianta discutir com ele. ele é assim mesmo.

Então era isso! O velho huno de novo. Sempre a seus pés ou em sua garganta. Senso de humor, realmente! E que não precisaria suportar essa mulher, essa bela moça que ele arrumara para ser sua escrava — sua escrava inglesa? Bond perguntou:

— Há quanto tempo está casada?

— Dois anos. Eu trabalhava como recepcionista em um de seus hotéis. ele é dono do Grupo Krest, sabe? Foi maravilhoso. Como uma história de fadas. Ainda preciso beliscar-me de vez em quando para ter certeza de não estar sonhando. Isto, por exemplo — mostrou com a mão a luxuosa sala — e ele é extraordinariamente bom comigo. Está sempre dando-me presentes. É um homem muito importante nos Estados Unidos, sabe? É bom a gente ser tratada como realeza em todo lugar aonde vai.

— Deve ser. ele gosta dessas coisas, não?

— Oh, sim. — Havia resignação na risada. — Há muito de sultão nele. Fica impaciente quando não obtém o serviço apropriado. Diz que, depois de trabalhar arduamente para chegar ao alto da árvore, a gente tem direito ao melhor fruto que nela cresce.

A Sra. Krest achou que estava falando com excessiva liberdade. Acrescentou rapidamente:

— Mas, realmente, que estou dizendo? Poderiam pensar que nos conhecemos há anos.

Sorriu timidamente.

— Acho que é o ato de encontrar alguém da Inglaterra. Mas preciso mesmo ir vestir um pouco mais de roupa. Eu estava tomando banho de sol no convés.

Um ronco surdo veio do fundo do barco, à meia-nau.

— Pronto. Já partimos. Por que não vai ao convés de ré observar o barco deixar a baía. Irei procurá-lo lá dentro de um minuto. Há tanta coisa que desejo ouvir a respeito de Londres.

Passou ao lado dele e abriu uma porta.

— Para dizer a verdade, se fôr sensato, procurará passar as noites aqui. Há estofados em abundância e as cabinas tendem a ficar um pouco abafadas, apesar do ar condicionado.

Bond agradeceu-lhe, saiu e fechou a porta depois de passar. Era um grande convés com piso de cânhamo e, na popa, um sofá semicircular de espuma de borracha cor de creme. Havia cadeiras de palhinha espalhadas e um bar a um canto. Passou pela ideia de Bond que o Sr. Krest talvez bebesse muito. Seria sua imaginação ou a Sra. Krest estaria aterrorizada por ele? Havia algo de dolorosamente servil em sua atitude com relação a ele. Sem dúvida, tivera de pagar muito caro por sua “história de fadas”. Bond observou as costas verdes de Mahe afastarem-se vagarosamente da popa. Calculou que desenvolviam uma velocidade de uns dez nós. Logo estariam na North Point, rumando para alto mar. Bond ouviu o glutinoso borbulhar do escapamento e pensou ociosamente na bela Sra. Elizabeth Krest.

Ela poderia ter sido modelo — provavelmente o fora antes de tornar-se recepcionista de hotel — aquela respeitável profissão feminina que ainda tem um ar de alto demi-monde — e ainda movia seu belo físico com o desembaraço de quem está acostumada a andar sem nada ou praticamente nada sobre o corpo. Mas nela nada havia da frieza do modelo — era um corpo quente e um rosto amável e confiante. Poderia ter uns trinta anos, não mais certamente, e sua boniteza, pois não passava disso, ainda era imatura. Sua melhor característica era a cabeleira loura acinzentada que caía pesadamente até a base do pescoço, mas ela dava a agradável impressão de não sentir vaidade nisso. Não a sacudia, nem mexia nela. Ocorreu a Bond que realmente não demonstrava o menor sinal de coquetismo. Permanecia quieta, quase dócil, com os grandes olhos azuis claros fixados no marido quase o tempo todo. Não havia batom em seus lábios, nem esmalte nas unhas das mãos e dos pés, e suas sobrancelhas eram naturais. Ordenaria o Sr. Krest que fosse assim — que ela fosse uma filha germânica da natureza? Provavelmente. Bond encolheu os ombros. Formavam sem dúvida um casal curiosamente dessemelhante — o Hemingway de meia-idade com voz de Bogart e a mulher bonita e simples. E havia tensão no ar — na maneira como ela se encolhera quando ele lhe chamara à atenção por ter oferecido bebidas e na forçada masculinidade do homem. Bond brincou ociosamente com a noção de que o homem era impotente e toda a firme e rude representação não passava de exagerada exibição de virilidade. Certamente não ia ser fácil viver com eles durante quatro ou cinco dias. Bond observou a bela ilha Silhouette afastar-se à distância e tomou a decisão de não perder a calma. Como era aquela expressão americana? “Comer corvo”. Seria um interessante exercício mental para ele. Comeria corvo durante cinco dias e não deixaria que esse maldito homem interferisse no que deveria ser um bom passeio.

— Bem, rapaz. Descansando?

O Sr. Krest estava em pé no convés superior, olhando para baixo.

— Que fez com aquela mulher com quem eu vivo? Acho que deixou todo o serviço para ela. Bem e por que não? É para isso que elas servem, não é? Quer dar uma olhada no navio? Fido está cuidando um pouco do leme e eu tenho tempo de sobra.

Sem esperar pela resposta, o Sr. Krest agachou-se e desceu para o convés inferior, deixando-se cair no último metro da altura.

— A Sra. Krest foi vestir roupa. Sim, eu gostaria de ver o navio.

O Sr. Krest fixou em Bond seu olhar duro e desdenhoso.

— Okay. Bem, primeiro os fatos. Foi construído pela Bronson Shipbuilding Corporation. Acontece que eu tenho noventa por cento das ações, de modo que obtenho o que quero. Desenhado por Rosenblatts, os grandes arquitetos navais. Trinta metros de comprimento por seis e meio de largura, com dois metros de calado. Dois motores diesel Superior de quinhentos H.P. Velocidade máxima, quatorze nós. Faz quatro mil quilômetros com oito nós. Ar condicionado em toda parte. Carrier Corporation desenhou duas unidades especiais de cinco toneladas. Transporta alimentos congelados e bebidas suficientes para um mês. Só precisamos de água doce para os banheiros e chuveiros. Certo? Agora vamos até a frente e você verá os alojamentos da tripulação. Depois, viremos para trás. Não precisa preocupar-se com a cabeça. Em todo lugar há um metro e oitenta e cinco de altura.

Bond seguiu o Sr. Krest pelo estreito corredor que se estendia ao longo de todo o barco e, durante meia hora, fez comentários apropriados sobre o que era sem dúvida o iate melhor e mais luxuosamente planejado que já vira. Em todos os pormenores, havia uma margem para conforto adicional. Até mesmo o banheiro e chuveiro da tripulação eram bem espaçosos e a cozinha de aço inoxidável era tão grande quanto o camarote de Krest. O Sr. Krest abriu a porta deste último sem bater. Liz Krest estava diante da penteadeira.

— Oh, tesouro — disse o Sr. Krest com sua voz macia — Pensei que estivesse arrumando a bandeja de bebidas. Você demorou um tempão para vestir-se. Pondo um pouquinho de Ritz extra para Jim, hem?

— Desculpe, Milt. Eu já ia sair. Um ziper ficou preso. A Sra. Krest apanhou apressadamente um estôjo de pó e encaminhou-se para a porta. Dirigiu aos dois um meio-sorriso nervoso e saiu.

— Lambris de bétula de Vermont. Abajures de vidro de Corning. Tapetes mexicanos. Aquela pintura de um veleiro é um genuíno Montague Dawson...

O catálogo do Sr. Krest prosseguiu sem parar. Mas Bond estava olhando algo que pendia quase escondido pela mesa de cabeceira do que era evidentemente o lado do Sr. Krest na enorme cama de casal. Era um fino chicote de cerca de um metro de comprimento com um cabo de tiras de couro. Era o rabo de arraia.

Com ar indiferente, Bond caminhou até o lado da cama e apanhou-o. Correu um dedo por sua superfície espinhenta. Só de fazer isso sentiu doer o dedo. Disse:

— Onde arranjou isto? Estive caçando um destes animais hoje de manhã.

— Em Bahrein. Os árabes usam-nos em suas esposas — respondeu o Sr. Krest, rindo facilmente. — Até agora não precisei dar mais que uma chicotada de cada vez em Liz. Resultados maravilhosos. Chamamo-lo de meu “Corretivo”.

Bond tornou a pôr o objeto no lugar. Olhou duramente para o Sr. Krest e disse:

— É assim? Nas Seychelles, onde os crioulos são bem durões, é ilegal até mesmo possuir um desses, quanto mais usá-lo.

O Sr. Krest encaminhou-se para a porta e disse em tom indiferente:

— Rapaz, acontece que este navio é território dos Estados Unidos. Vamos tomar alguma coisa.

O Sr. Krest tomou três “bullshots” duplos — vodca com consommé gelado — antes do almoço e cerveja com a refeição. Os olhos pálidos escureceram um pouco e adquiriram um brilho aguado, mas a voz sibilante continuou macia e sem ênfase enquanto com absoluto monopólio da conversação, ele explicava o objetivo da viagem.

— O negócio é o seguinte, rapazes. Nos Estados Unidos, temos esse sistema de Fundação para os sujeitos de sorte que ganharam muito dinheiro e não querem entregá-lo ao Tesouro de Tio Sam. Você faz uma Fundação — como esta, a Fundação Krest — para fins de caridade — caridade para qualquer coisa, crianças, doentes, a causa da ciência. Simplesmente dá o dinheiro para qualquer pessoa ou qualquer coisa, menos para você mesmo e seus dependentes. Assim, escapa do imposto. Por isso, empatei coisa de dez milhões de dólares na Fundação Krest e, como gosto de viajar de iate e ver o mundo, comprei este iate com dois milhões do dinheiro e disse à Smithsonian — nossa grande instituição de história natural — que iria a qualquer lugar do mundo buscar espécimes para ela. Isso faz de mim uma expedição científica, entendem? Durante três meses do ano gozo férias maravilhosas que não me custam nada!

O Sr. Krest olhou para seus convidados, esperando aplausos.

— Entenderam? — perguntou.

Fidele Barbey sacudiu a cabeça com ar de dúvida.

— Parece ótimo, Sr. Krest. Mas e esses espécimes raros. É fácil encontrá-los? A Smithsonian pode querer uma panda gigante ou uma concha marinha. Será capaz de conseguir essas coisas quando ela não conseguiu?

O Sr. Krest sacudiu vagarosamente a cabeça. Disse com ar de pena:

— Rapaz, você parece ter nascido ontem. Dinheiro, só é preciso isso. Você quer um panda? Compra-o de algum maldito jardim zoológico que quer ter aquecimento central para sua casa de répteis, deseja construir um novo edifício para seus tigres ou coisa semelhante. A concha marinha? Você descobre um homem que tem uma delas e lhe oferece tanto dinheiro que ele acaba vendendo-a ainda que chore uma semana. Às vezes, a gente tem um pouco de dificuldade com governos. Um maldito animal é protegido ou coisa semelhante. Muito bem. Vou dar-lhes um exemplo. Cheguei ontem à sua ilha. Quero um papagaio preto da ilha Preslin. Quero uma tartaruga gigante de Aldabra. Quero uma coleção completa de seus caurins e quero este peixe que vamos procurar. Os dois primeiros são protegidos por lei. Faço imediatamente uma visita a seu governador depois de realizar certas investigações na cidade. Excelência, digo eu, sei que deseja ter uma piscina pública para ensinar as crianças locais a nadar. Okay. A Fundação Krest contribuirá com o dinheiro. Quanto? Cinco mil, dez mil? Okay, seja dez mil. Aqui está meu cheque. E preencho o cheque na hora. Mais uma coisinha. Excelência, digo eu, segurando o cheque. Acontece que desejo um espécime desse papagaio preto que existe aqui e uma dessas tartarugas de Aldabra. Sei que são protegidos por lei. Faria questão se eu levasse um espécime de cada um para os Estados Unidos, para a Smithsonian? Bem, há um pouco de palavrório, mas, sabendo que é para a Smithsonian e sabendo que ainda estou segurando o cheque, acabamos fechando o negócio, trocamos apertos de mão e todos ficam felizes. Certo? Bem, na volta paro na cidade para combinar com seu encantador Sr. Abendana, aquele negociante, que arranje o papagaio e a tartaruga, e os guarde para mim. E começo a falar sobre os caurins. Bem, acontece que esse Sr. Abendana vem colecionando as malditas coisas desde criança. Mostra-me sua coleção. Maravilhosamente conservada — cada uma delas em seu pedacinho de algodão. Tudo em ótimo estado e várias daquelas Isabella e Mappa que me pediram particularmente para procurar. Sinto muito, diz ele, mas não posso nem pensar em vender. Significam tanto para mim etc. Bolas! Só olho para o Sr. Abendana e pergunto: quanto? Não, não. Não pode sequer pensar nisso. Bolas de novo! Tiro meu talão de cheques, preencho um cheque de cinco mil dólares e ponho embaixo de seu nariz. ele olha o cheque. Cinco mil dólares! Não pode resistir. Dobra o cheque, guarda-o no bolso e depois o maldito maricas desanda a chorar! Acreditam nisso? — perguntou o Sr. Krest, abrindo as mãos num gesto de incredulidade. — Por causa de algumas malditas conchas marinhas. Então, digo-Ihe que tenha calma, apanho as bandejas de conchas e dou o fora antes que o maluco se mate de remorso.

O Sr. Krest recostou-se na cadeira, satisfeito consigo mesmo.

— Bem, que me dizem disso, rapazes? Vinte e quatro horas na ilha e já consegui três quartos de minha lista. Bem esperto, eh, Jim?

Bond respondeu: — O Senhor provavelmente receberá uma medalha quando voltar. E quanto a esse peixe?

O Sr. Krest levantou-se e remexeu em uma gaveta de sua mesa. Trouxe de volta uma folha datilografada.

— Aqui está — disse, passando a ler: — Raridade de Hildebrand. Apanhanda pelo professor Hildebrand, da Universidade de Witwatersrand, em uma rede ao largo da ilha Chagrin no arquipélago das Seychelles. Abril de 1925.

O Sr. Krest ergueu os olhos e explicou:

— Depois há uma porção de palavrório científico. Fiz com que traduzissem para o inglês comum e aqui está a tradução.

Voltou ao papel e continuou a ler:

— Este parece ser um singular membro da família do peixe-esquilo. O único espécime conhecido, chamado “Raridade de Hildebrand” como homenagem a seu descobridor, tem quinze centímetros de comprimento. A cor é rosa brilhante com listras transversais pretas. As nadadeiras anais, ventrais e dorsais são rosadas. A nadadeira da cauda é preta. Olhos grande e azuis escuros. Se encontrado, é preciso cuidado ao lidar com este peixe porque todas as nadadeiras têm espinhos ainda mais afiados do que é habitual no resto da família. O professor Hildebrand registra que encontrou o espécime em um metro de água à beira do recife sudoeste.

O Sr. Krest jogou o papel sobre a mesa e acrescentou:

— Bem, aí está, rapazes. Estamos viajando cerca de mil milhas a um custo de vários milhares de dólares para tentar descobrir um maldito peixe de quinze centímetros. E há dois anos o pessoal do fisco teve o atrevimento de sugerir que minha fundação era uma mistificação!

Liz Krest interveio ansiosamente.

— Mas é precisamente isso, Milt, não é? Desta vez, é realmente importante levar de volta bastante espécimes e outras coisas. Aqueles horríveis fiscais não estavam falando em cancelar os descontos referentes ao iate e às despesas e outras coisas dos últimos cinco anos se não apresentássemos alguma importante realização científica? Não foi isso que disseram?

— Tesouro — disse o Sr. Krest, cuja voz era macia como veludo. — Que tal se você fechasse essa irresponsável boquinha e não falasse em meus negócios particulares. Sim?

A voz era amável, despreocupada.

— Sabe o que você acaba de fazer, tesouro? Você acaba de ganhar um pequeno encontro com o Corretivo hoje à noite. Foi isso o que você fez.

A mulher levou a mão à boca. Seus olhos estavam arregalados. Disse em um sussurro:

— Oh, não, Milt. Oh, não, por favor.

Na madrugada do dia seguinte no mar avistaram a ilha Chagrin. Foi apanhada primeiro pelo radar — uma pequena saliência na linha plana da tela. Depois uma minúscula mancha no grande horizonte curvo cresceu com infinita lentidão até tornar-se um quilômetro de verde orlado de branco. Era extraordinário chegar à terra depois de dois dias nos quais o iate parecera ser a única coisa móvel, a única coisa viva em um mundo vazio. Bond nunca vira, nem sequer imaginara claramente a calmaria. Agora compreendia que perigo terrível deveria ter sido nos dias da navegação a vela — mar de vidro sob um sol de bronze, o ar viciado e pesado, a esteira de pequenas nuvens ao longo da orla do mundo, que nunca chegavam mais perto, nunca traziam vento ou a abençoada chuva. Quantas centenas de marinheiros não teriam abençoado esse minúsculo ponto no Oceano Indico, quando se curvavam sobre os remos que moviam o pesado navio talvez uma milha por dia! Bond ficou em pé na proa e observou os peixe-voadores saltarem de baixo do casco quando o azul-prêto do mar se transformou vagarosamente no marrom, branco e verde do baixio profundo. Como seria maravilhoso poder em breve andar e nadar ao invés de ficar apenas sentado e deitado. Como seria maravilhoso ter algumas horas de solidão — algumas horas longe do Sr. Milton Krest!

Ancoraram para fora do recife em dez braças de água e Fidele Barbey conduziu-os através da abertura na lancha. Em todos os detalhes, Chagrin era o protótipo da ilha de coral.

Eram uns vinte acres de areia, coral morto e vegetação baixa, cercados, depois de cinquenta metros de laguna rasa, por um colar de recifes sobre o qual as ondas calmas e compridas se quebravam com uma suave sibilar. Nuvens de pássaros ergueram-se quando desembarcaram — andorinhas do mar, atobás, fragatas — mas logo pousaram de novo. Havia um forte cheiro amoniacal de guano, que enbranquecia também a vegetação. As únicas outras coisas vivas eram os caranguejos que corriam entre a liane sans fin e os chama-marés que viviam na areia.

O clarão da areia branca era ofuscante e não havia sombra. O Sr. Krest mandou armar uma tenda e sentou-se dentro dela fumando um charuto, enquanto instrumentos de várias espécies eram transportados para terra. A Sra. Krest nadava e apanhava conchas enquanto Bond e Fidele Barbey punham máscaras e, nadando em direções opostas, começavam a examinar sistematicamente os recifes em toda a volta da ilha.

Quando se está procurando determinada espécie embaixo dágua — concha, peixe, alga marinha ou formação de coral — é preciso conservar o cérebro e os olhos focalizados naquele padrão individual. A orgia de cores e movimentos, a incessante variedade de luz e sombra lutam o tempo todo contra a concentração da pessoa. Bond arrastou-se vagarosamente através do país das maravilhas tendo na mente uma única imagem — um peixe rosado de quinze centímetros com listras pretas e olhos grandes — o segundo desses peixes a ser visto pelo homem. “Se avistá-lo”, recomendara o Sr. Krest, “basta soltar um grito e ficar perto dele. Eu tenho na tenda uma coisinha que é o melhor negócio que você já viu para apanhar peixes.”

Bond parou para descansar os olhos. A água estava tão flutuável que podia ficar deitado de bruço na superfície sem se mover. Ociosamente partiu um ouriço do mar com a ponta de sua lança e observou a horda de cintilantes peixes dos recifes investindo sobre os pedaços de carne amarela entre os espinhos pretos afiados como agulhas. Como era infernal o fato de beneficiar apenas o Sr. Krest se encontrasse a Raridade! Deveria ficar quieto se a encontrasse? Seria uma infantilidade e, além disso, estava sob contrato, por assim dizer.

Bond moveu-se devagar, com os olhos reiniciando automaticamente a busca enquanto seu espírito voltava a considerar a mulher. Ela havia passado o dia anterior na cama. O Sr. Krest dissera que era uma dor de cabeça. Não se voltaria contra ele um dia? Não arranjaria uma faca ou um revólver e, certa noite, quando ele estendesse a mão para aquele maldito chicote, não o mataria? Não. Ela era mole demais, maleável demais. O Sr. Krest escolhera bem. Era do mesmo material com que são feitos os escravos. E os ornamentos de sua “história de fadas” eram preciosos demais. Não perceberia ela que um júri certamente a absolveria se aquele chicote de arraia fosse apresentado no tribunal? Ela poderia ficar com os ornamentos sem esse horrível e odioso homem. Deveria Bond dizer-lhe isso? Não seja ridículo! Como poderia expressá-lo? “Oh, Liz, se quiser matar seu marido, está tudo bem.” Bond sorriu dentro de sua máscara. Que fosse para o inferno! Não interfira na vida dos outros. Provavelmente ela gosta disso. É masoquista. Mas Bond sabia que essa era uma resposta fácil demais. Ali estava uma mulher que vivia amedrontada. Talvez também vivesse odiando. Não se podia ler muita coisa naqueles suaves olhos azuis, mas as janelas tinham-se aberto uma ou duas vezes e através delas aparecera um lampejo de algo semelhante a ódio infantil. Teria sido ódio? Provavelmente fora indigestão. Bond tirou os Krests da cabeça e ergueu os olhos para ver até que ponto da ilha já avançara. O schnorkel de Fidele Barbey estava apenas a uns cem metros de distância. Já tinham quase completado o circuito.

Os dois se encontraram, nadaram até a praia e deitaram na areia. Fidele Barbey disse:

— Nada do meu lado da propriedade, exceto todos os peixes do mundo, menos um. Mas tive um golpe de sorte. Encontrei uma grande colônia de caramujos verdes. É a concha almiscarada grande como uma bola de futebol. Vale um monte de dinheiro. Vou mandar um de meus barcos atrás deles qualquer dia destes. Vi um peixe-papagaio azul que devia pesar bem uns quinze quilos. Manso como um cão, do mesmo modo que todos os peixes daqui. Não tive coragem de matá-lo. E se o matasse, poderia ter havido encrenca. Vi dois ou três tubarões-leopardos rondando do outro lado dos recifes. Sangue na água poderia tê-los atraído. Agora, estou pronto para um drinque e alguma comida. Depois, poderemos trocar de lado e fazer outra tentativa.

Levantaram-se e caminharam pela praia até a tenda. O Sr. Krest ouviu suas vozes e saiu para encontrá-los.

— Nada, não? — perguntou, cocando furiosamente uma axila. — Um maldito mosquito me picou. Esta é uma ilha amaldiçoada. Liz não pôde suportar o cheiro. Voltou para o barco. Acho que é melhor fazer mais uma tentativa e depois dar o fora daqui. Comam alguma coisa. Encontrarão cerveja na bolsa de gelo. Deem-me uma dessas máscaras. Como é que se usa essa maldita coisa? Acho que posso dar uma olhada no fundo do mar já que estou aqui.

Sentaram-se na tenda quente, comeram salada de galinha e beberam cerveja. Carrancudamente, observaram o Sr. Krest tateando e esquadrinhando na água rasa. Fidele Barbey disse:

— ele tem razão, naturalmente. Estas pequenas ilhas são lugares horríveis. Nada além de caranguejos e excremento de pássaros com muito mar em roda. São só os pobres e gelados europeus que sonham com ilhas de coral. A leste de Suez, você não encontra um homem de juízo que dê qualquer coisa por elas. Minha família possui umas dez delas — algumas também de tamanho decente, com pequenas aldeias e boa renda de copra e tartaruga. Bem, se quiser pode ficar com todo o maldito lote em troca de um apartamento em Paris ou Londres.

Bond riu.

— Ponha um anúncio em “The Times” e receberá pilhas ... — começou Bond, quando, a cinquenta metros de distância, o Sr. Krest passou a fazer frenéticos sinais.

— Ou o bastardo encontrou-o ou pisou em uma viola — disse Bond, apanhando sua máscara e correndo para o mar.

O Sr. Krest estava com água até a cintura entre os rasos começos dos recifes. Bateu o dedo excitadamente na superfície. Bond nadou suavemente para frente. Um tapete de plantas marinhas terminava em coral e ocasionais afloramentos negros. Uma dúzia de variedades de borboletas e outros peixes de recifes brincava entre as pedras e uma pequena lagosta sondou na direção de Bond com suas antenas. A cabeça de uma grande moreia verde saiu de um buraco, com as mandíbulas meio abertas mostrando fileiras de afiados dentes. Seus olhos dourados observaram Bond cuidadosamente. Bond divertiu-se ao ver que as pernas cabeludas do Sr. Krest, ampliadas para pálidos troncos de árvores pela água vidrada, não estavam a mais de uns trinta centímetros das mandíbulas da moreia. Deu um encorajador empurrão na moreia com seu arpão, mas a enguia limitou-se a morder as pontas de metal e desaparecer de novo. Bond parou e ficou flutuando, com os olhos perscrutando a brilhante selva. Uma mancha vermelha materializou-se no nevoeiro distante e avançou em sua direção. Deu uma volta bem por baixo dele, como se estivesse exibindo-se. Os olhos azuis escuros examinaram-no sem medo. O pequeno peixe ocupou-se quase constrangido com algumas algas na parte de baixo de um afloramento negro, deu uma corrida em direção a algo suspenso na água e, depois, como se deixasse o palco após exibir seus passos, nadou lânguidamente de volta para o nevoeiro.

Bond afastou-se do buraco da moreia e pôs os pés no chão. Tirou a máscara. Dirigindo-se ao Sr. Krest, que o fitava impacientememte através de seus óculos de mergulho, disse:

— Sim, é ele mesmo. É melhor afastar-se silenciosamente daqui. ele não irá embora a menos que se assuste. Esses peixes de recifes conservam-se sempre nos mesmos lugares.

O Sr. Krest tirou sua máscara.

— Diabo, eu o encontrei! — exclamou reverentemente. — Bem, fui eu mesmo.

Seguiu vagarosamente Bond até a praia. Fidele Barbey estava esperando por eles. O Sr. Krest disse impetuosamente:

— Fido, encontrei aquele maldito. Eu. .. Milton Krest. Que acha disso? Depois que vocês dois, malditos especialistas, procuraram a manhã inteira. Peguei aquela sua máscara — e foi a primeira vez que usei uma dessas máscaras, veja bem — entrei na água e encontrei o maldito peixe em quinze minutos. Que diz a isso, eh, Fido?

— Muito bem, Sr. Krest. Ótimo. Como vamos apanhá-lo agora?

— Ah, ah, ah — fez o Sr. Krest, pestanejando vagarosamente. — Eu tenho a solução para isso. Arranjei-a com um químico amigo meu. Um negócio chamado rotenona. Feito de raiz de timbó. É com isso que os nativos pescam no Brasil. Basta derramá-lo na água, onde flutua sobre aquilo que você está procurando e o apanha infalivelmente. Uma espécie de veneno. Constringe os vasos sanguíneos nas guelras dos peixes. Sufoca-os. Não exerce efeito sobre seres humanos porque eles não têm guelras, entendem?

O Sr. Krest virou-se para Bond.

— Escute, Jim. Você vai até lá e fica vigiando. Não deixe o maldito peixe desaparecer. Fido e eu levaremos o material para lá — disse, apontando a área de onde a água corria para o local vital. — Eu soltarei a rotenona quando você disser. Ela será arrastada na sua direção. Certo? Mas, com os diabos, dê o sinal na hora certa. Eu só tenho uma lata de cinco galões desse negócio. Okay?

Bond respondeu “Está bem” e caminhou vagarosamente, entrando na água. Nadou preguiçosamente para onde estivera antes. Sim, todos ainda estavam lá, cuidando de sua vida. A cabeça pontuda da moreia estava de novo na beirada de seu buraco, a lagosta estendeu novamente as antenas em sua direção. Um minuto depois, como se tivesse encontro marcado com Bond, a Raridade de Hildebrand apareceu. Desta vez nadou até bem perto de seu rosto. Olhou através dos óculos para seus olhos e depois, como se tivesse ficado assustada com o que vira, disparou para colocar-se fora de alcance. Brincou entre as pedras por algum tempo e depois entrou no nevoeiro.

Vagarosamente o pequeno mundo submarino dentro da visão de Bond começou a aceitá-lo como coisa natural. Um pequeno octópode que se camuflara como um pedaço de coral revelou sua presença e avançou cuidadosamente na direção da areia. A lagosta azul e amarela saiu de baixo da pedra e deu alguns passos, admirando-o. Alguns peixes muito pequenos, como os barrigudinhos, mordiscaram suas pernas e seus dedos dos pés, fazendo cócega. Bond partiu um ouriço do mar para eles, que avançaram sobre a comida melhor. Bond ergueu a cabeça. O Sr. Krest, segurando a lata, estava vinte metros à sua direita. Logo começaria a derramar, quando Bond desse o sinal, de modo que o líquido se espalhasse bem sobre a superfície.

— Okay? — perguntou o Sr. Krest. Bond sacudiu a cabeça e respondeu:

— Levantarei o polegar quando ele aparecer de novo aqui. Então você terá de derramar depressa.

— Okay, Jim. Você está na mira da bomba.

Bond afundou a cabeça. Lá estava a pequena coletividade, todos cuidando de sua vida. Logo, para apanhar um peixe que alguém desejava vagamente em um museu a oito mil quilômetros de distância, cem, talvez mil pessoazinhas iam morrer. Quando Bond desse o sinal, a sombra da morte desceria sobre a água. Quanto tempo duraria o veneno? Até que ponto avançaria pelos recifes? Talvez não morressem milhares, mas dezenas de milhares.

Um pequeno baiacu apareceu, com suas minúsculas nadadeiras ruflando como hélices. Um par dos inevitáveis beijupirás listrados de preto e amarelo apareceu de repente, atraído pelo cheiro do ouriço do mar partido.

Dentro dos recifes, quem era o predador no mundo dos pequenos peixes? Quem temiam eles? O pequeno barracuda? Um ocasional peixe-agulha? Agora um grande predador, plenamente crescido, um homem chamado Krest, estava parado nos bastidores, esperando. E esse nem sequer tinha fome. Ia simplesmente matar — quase por divertimento.

Duas pernas marrons apareceram no campo de visão de Bond. Este ergueu os olhos. Era Fidele Barbey com um grande cesto amarrado ao peito e uma rede de cabo comprido.

Bond ergueu a máscara e disse:

— Sinto-me como o bombardeador em Nagasaki.

— Peixes têm sangue frio. Nada sentem.

— Como é que você sabe? Ouvi dizer que gritam quando são feridos.

— Não serão capazes de gritar com esse negócio — disse Barbey indiferentemente. — Estrangula-os. Que há com você? São apenas peixes.

— Sei, sei.

Fidele Barbey passara a vida matando animais e peixes. Enquanto ele, Bond, às vezes não hesitara em matar homens. Por que estava agora fazendo barulho? Não se importara em matar a arraia. Sim, mas aquele era um peixe inimigo. Estes aqui embaixo eram pessoas amigas. Pessoas? A patética ilusão.

— Eh! — exclamou a voz do Sr. Krest. — Que está acontecendo aí? Não é hora de conversa mole. Afunde a cabeça n’água, Jim.

Bond puxou a máscara para baixo e deitou-se de novo sobre a superfície. Imediatamente viu a bela sombra vermelha saindo do nevoeiro distante. O peixe nadou rápido em sua direção, como se o considerasse algo muito natural. Ficou embaixo dele, olhando para cima. Bond disse dentro de sua máscara: “Vá-se embora daqui, seu imbecil!” Deu uma cuti-lada rápida em direção ao peixe com seu arpão. O peixe fugiu novamente para o nevoeiro. Bond levantou a cabeça e furiosamente ergueu o polegar. Era um ridículo e mesquinho ato de sabotagem, do qual já se sentia envergonhado. O líquido oleoso marrom escuro estava sendo derramado na superfície da laguna. Ainda havia tempo de fazer o Sr. Krest parar antes que acabasse tudo — tempo de dar-lhe outra oportunidade de apanhar a Raridade de Hildebrand. Bond ficou imóvel olhando, até pingar a última gota. O Sr. Krest que fosse para o inferno!

Agora o negócio estava sendo vagarosamente arrastado pela correnteza — uma mancha brilhante que se espalhava, refletindo o céu azul com um lustre metálico. O Sr. Krest, o segador gigante, estava avançando com a mancha.

— Pronto, rapazes — disse ele, alegremente. — Já está aí com vocês.

Bond enfiou de novo a cabeça dentro da água. Tudo estava como antes na pequena coletividade. Mas depois, com desnorteante instantaneidade, todos ficaram loucos. Foi como se todos tivessem contraído a dança de São Guido. Vários peixes deram cambalhotas malucas e depois caíram como pesadas folhas sobre a areia. A moreia saiu vagarosamente do buraco no coral, com as mandíbulas abertas. Ficou cuidadosamente em pé sobre a cauda e depois caiu delicadamente de lado. A pequena lagosta deu três sacudidelas com a cauda e virou de costas. O octópode desprendeu-se do coral e deixou-se cair para o fundo, de cabeça para baixo. Depois foram arrastados para a arena os cadáveres vindos mais de cima — peixes de barriga branca, camarões, minhocas, caranguejos, moreias mosqueadas e verdes, lagostas de todos os tamanhos. Como soprados por uma ligeira brisa de morte, os corpos desengonçados, com suas cores já desbotando, passaram vagarosamente. Um peixe-agulha de três quilos batia o bico, lutando contra a morte. Mais abaixo, ao longo dos recifes, havia batidas na superfície, onde peixes ainda maiores tentavam fugir para lugar seguro. Um a um, diante dos olhos de Bond, os ouriços do mar caíram das pedras para fazer manchas de tinta preta na areia.

Bond sentiu um toque em seu ombro. Os olhos do Sr. Krest estavam vermelhos do sol e da cintilação. Havia passado nos lábios uma pasta branca contra queimaduras do sol. Gritou impacientemente para a máscara de Bond:

— Onde, diabo, está nosso maldito peixe?

Bond ergueu a máscara.

— Parece que conseguiu afastar-se exatamente antes de descer o negócio. Ainda o estou procurando.

Não esperou para ouvir a resposta do Sr. Krest, mas tornou a afundar rapidamente a cabeça na água. Ainda mais carnificina, ainda mais corpos mortos. Mas agora, certamente, o negócio já havia passado. Certamente a área estava segura, se acaso voltasse o peixe, seu peixe, pois ele o havia salvo. No nevoeiro distante houve um lampejo cor de rosa. ele tinha ido. Agora estava de volta. Preguiçosamente, a Raridade de Hildebrand nadou em direção a Bond através do labirinto de canais entre os postos avançados dos recifes.

Sem importar-se com o Sr. Krest, Bond ergueu a mão livre para fora da água e deixou-se cair com uma forte batida. Ainda assim o peixe continuou vindo. Bond soltou a trave de sua espingarda de arpão e disparou-a na direção do peixe. Não adiantou. Bond baixou os pés e começou a andar em direção ao peixe através da confusão de cadáveres. O belo peixe vermelho e preto pareceu parar e estremecer. Depois disparou diretamente através da água na direção de Bond e mergulhou na areia a seus pés, lá ficando parado. Bond só precisou curvar-se para apanhá-lo. Não houve sequer uma última sacudidela da cauda. Simplesmente encheu a mão de Bond, picando ligeiramente a palma com a espinhenta nadadeira dorsal preta. Bond levou-o embaixo dágua, como para preservar suas cores. Quando chegou perto do Sr. Krest, disse “Aqui está” e entregou-lhe o pequeno peixe. Depois nadou em direção à praia.

Naquela noite, com o “Wavekrest” navegando de volta sob uma enorme lua amarela, o Sr. Krest deu ordem para o que chamava de “wingding”.

— Precisamos comemorar, Liz. Isto é tremendo, um dia tremendo. Atingimos o último objetivo e podemos dar o fora destas malditas Seychelles a fim de voltar para a civilização. Que diz de irmos a Mombasa, depois de termos recebido a bordo a tartaruga e aquele maldito papagaio? Voar para Nairobi e tomar o grande avião para Roma, Veneza, Paris... qualquer lugar que você queira. Que diz, tesouro?

Apertou-lhe o queixo e as faces com sua grande mão, fazendo saltar os lábios. Beijou-os secamente. Bond observava os olhos da mulher. Estavam bem fechados. O Sr. Krest soltou. A moça fez massagem no rosto. Ainda estava branco com as marcas dos dedos.

— Puxa, Milt — disse ela meio rindo — você quase me amassou. Você não conhece a própria força. Mas vamos comemorar. Penso que será muito divertido. E aquela ideia de Paris parece grande. Vamos fazer isso, sim? Que devo encomendar para o jantar?

— Diabo... caviar, naturalmente. — disse o Sr. Krest, estendendo as mãos. — Uma daquelas latas de duas libras de Hammacher Schlemmer e todos os acompanhamentos. E aquele champanha rosado.

Virou-se para Bond e perguntou:

— Isso lhe convém, rapaz?

— Parece uma boa refeição — respondeu Bond, mudando de assunto depois. — Que fez com a prenda.

— Formalina. Está lá em cima no convés superior com alguns outros frascos de coisas que recolhemos aqui e acolá... peixes, conchas... Tudo seguro em nosso necrotério doméstico. Foi assim que nos disseram para guardar os espécimes. Remeteremos por via aérea aquele maldito peixe quando voltarmos à civilização. Primeiro darei uma entrevista à imprensa. Deverá sair com grande destaque nos jornais lá da terra. Já dei a notícia pelo rádio à Smithsonian e às agências noticiosas. Meus contadores ficarão muito contentes em ter alguns recortes de jornais para mostrar àqueles malditos rapazes do fisco.

O Sr. Krest ficou muito bêbado naquela noite. Mas não demonstrou muito. A macia voz de Bogart tornou-se mais macia e lenta. A cabeça redonda e pesada virou-se mais deliberadamente sobre os ombros. A chama do isqueiro levou mais tempo para tornar a acender o charuto e um copo foi jogado para longe da mesa. Mas transparecia nas coisas que o Sr. Krest dizia. Havia no homem uma violenta crueldade, um desejo patológico de ferir, bem perto da superfície. Naquela noite, depois do jantar, o primeiro alvo foi James Bond. Teve de ouvir uma explicação em voz mansa sobre as razões pelas quais a Europa, incluindo a Inglaterra e a França, perdia cada vez mais seu valor para o mundo. Hoje em dia, disse o Sr. Krest, só existem três potências: Estados Unidos, Rússia e China. Esse era o grande jogo de pôquer e nenhuma outra nação tinha fichas ou cartas para entrar nele. De vez em quando, algum agradável paisinho — que ele admitia ter sido bastante grande no passado — como a Inglaterra, recebia um pouco de dinheiro emprestado para poder jogar uma mão com os adultos. Mas isso era apenas delicadeza, como a gente às vezes precisa ter — com um amigo do clube que ficou arruinado. Não. A Inglaterra — bela gente, entenda-me, grande espírito esportivo — era um lugar onde se ia para ver edifícios antigos, a Rainha e outras coisas. A França? Só valia pela comida boa e pelas mulheres fáceis. A Itália? Sol e espaguete. Uma espécie de sanatório. A Alemanha? Bem, os alemães ainda tinham um pouco de fibra, mas duas guerras perdidas haviam-lhes tirado o ânimo. O Sr. Krest desfez-se do resto do mundo com alguns chavões semelhantes e depois pediu a opinião de Bond.

Bond estava completamente cansado do Sr. Krest. Disse que achara o ponto de vista do Sr. Krest excessivamente simplificado — ingênuo mesmo, poderia dizer. Acrescentou:

— Seus argumentos fazem-me lembrar um aforisma bastante mordaz que ouvi certa vez a respeito dos Estados Unidos. Quer ouvir?

— Claro, claro.

— É no sentido de que os Estados Unidos progrediram da infância para a senilidade, sem ter passado por um período de maturidade.

O Sr. Krest olhou pensativamente para Bond. Finalmente disse:

— Puxa, Jim, isso é bem direto.

Seus olhos cobriram-se ligeiramente quando os voltou para sua esposa.

— Acho que você concorda com essa observação de Jim, não, tesouro? Lembro-me de tê-la ouvido dizer certa vez que achava que havia algo de bem infantil nos americanos. Lembra-se?

— Oh, Milt — disse Liz Krest, cujos olhos revelavam ansiedade, mostrando que ela soubera ler os sinais. — Como pode trazer isso à baila? Você sabe que foi apenas uma coisa casual que eu disse sobre as histórias em quadrinhos dos jornais. Naturalmente, não concordo com o que James diz. De qualquer maneira, foi apenas uma piada, não foi, James?

— Exatamente — respondeu Bond. — Como o que o Sr. Krest disse da Inglaterra, que nada tem alem de ruínas e uma rainha.

Os olhos do Sr. Krest ainda estavam voltados para a mulher. Disse maciamente:

— Bobagens, tesouro. Por que está parecendo tão nervosa. Naturalmente que foi uma piada.

fez uma pausa e acrescentou:

— Uma piada de que eu me lembrarei, tesouro. De que certamente me lembrarei.

Bond calculou que o Sr. Krest já tinha dentro uma garrafa inteira de várias bebidas alcoólicas, principalmente uísque.

Parecia a Bond que, se ele não perdesse a consciência, não demoraria muito o momento em que teria de acertar o Sr. Krest, só uma vez, mas bem forte, no queixo. Fidele Barbey estava agora recebendo o tratamento.

— Essas suas ilhas, Fido. Quando olhei para elas no mapa pela primeira vez, pensei que fossem apenas algumas sujeiras de mosquitos sobre a página — disse o Sr. Krest, dando uma risadinha. — Tentei mesmo limpá-las com as costas da mão. Depois li um pouco sobre elas e tive a impressão de que minha primeira ideia acertara em cheio. Não prestam para grande coisa, não é, Fido? Admira-me como um rapaz inteligente como você não dá o fora daqui. Mariscar pelas praias não é vida que se leve. Verdade que ouvi dizer que um dos membros de sua família deixou mais de cem filhos ilegítimos. Talvez seja essa a atração, hem, rapaz?

O Sr. Krest sorriu como quem conhece bem as coisas. Fidele Barbey respondeu serenamente:

— Esse foi meu tio Gaston. O resto da família não aprova isso. fez um grande furo na fortuna da família.

— Fortuna da família, hem? — disse o Sr. Krest, piscando para Bond. — Em que estava empregada essa fortuna? Em conchas de caurim?

— Não exatamente. — Fidele Barbey não estava acostumado com o tipo de rudeza do Sr. Krest. Parecia-ligeiramente embaraçado. — Embora tenhamos ganho muito dinheiro com carapaças de tartaruga e madrepérola há uns cem anos quando havia enorme procura dessas coisas. Copra sempre foi nosso principal negócio.

— Usando os bastardos da família como mão-de-obra, suponho eu. Boa ideia. Gostaria de poder arrumar alguma coisa assim em meu círculo doméstico.

O Sr. Krest olhou para sua esposa. Os lábios de borracha viraram-se ainda mais para baixo. Antes da chacota seguinte poder ser proferida, Bond empurrara sua cadeira para trás e saíra para o convés, fechando a porta depois de passar.

Dez minutos depois, Bond ouviu o barulho de pés que desciam a escada do convés superior. Virou-se. Era Liz Krest. Veio ate onde ele estava na popa. Disse com voz tensa:

— Eu disse que ia para a cama. Mas depois pensei em voltar aqui para ver se quer mais alguma coisa. Não sou muito boa dona de casa, acho. Tem certeza que não faz questão de dormir aqui fora?

— Gosto disto. Gosto mais desta espécie de ar que da coisa enlatada lá dentro. E é maravilhoso ter todas essas estrelas para olhar. Nunca tinha visto tantas estrelas.

Ela disse ansiosamente, aproveitando o assunto amistoso:

— Gosto mais da constelação de Orion e do Cruzeiro do Sul. Quando era pequena — sabe? — pensava que as estrelas eram na realidade buracos no céu. Pensava que o mundo era cercado por uma espécie de envoltório grande e preto, fora do qual o universo era cheio de luz brilhante. As estrelas eram apenas buracos no envoltório, que deixavam passar pequenas faíscas de luz. A gente tem ideias terrivelmente tolas quando criança.

Ergueu os olhos para Bond, desejando que ele não a decepcionasse.

— Você provavelmente tem razão — disse Bond. — A gente não deve acreditar em tudo quanto os cientistas dizem. Eles querem tornar tudo monótono. Onde você vivia nessa época?

— Em Ringwood, na New Forest. Era um bom lugar para a gente crescer. Um bom lugar para crianças. Gostaria de voltar lá um dia.

— Você sem dúvida percorreu um longo caminho desde então — disse Bond. — Provavelmente o achou muito monótono.

Ela estendeu a mão e tocou a manga de Bond.

— Por favor, não diga isso. Você não compreende... — havia uma nota de desespero na voz suave. — Não posso suportar o fato de não ter o que outras pessoas têm — pessoas comuns. Quero dizer — disse ela, rindo nervosamente — você não vai acreditar em mim, mas conversar assim durante alguns minutos, ter alguém como você com quem conversar, é coisa de que já quase me esquecera.

De repente, segurou a mão de Bond e apertou-a bem.

— Desculpe. Só queria fazer isto. Agora vou para a cama.

A voz macia veio de trás deles. A fala era pastosa, mas cada palavra era cuidadosamente separada da seguinte.

— Bem, bem. Quem diria? Namorando com o criado submarino!

O Sr. Krest estava enquadrado na portinhola do salão. Firmava-se sobre as pernas bem abertas e tinha os braços estendidos para a padieira em cima de sua cabeça. Com a luz por trás, tinha a silhueta de um cinocéfalo. O ar frio e aprisionado do salão passou por ele e por um momento resfriou o ar quente da noite no convés inferior. O Sr. Krest deu um passo para fora e empurrou delicadamente a porta para trás.

Bond deu um passo em direção a ele, com as mãos caídas dos lados. Mediu a distância que o separava do plexo solar do Sr. Krest.

— Não tire conclusões apressadas, Sr. Krest — disse. — E cuidado com a língua. Teve a sorte de não machucar-se até agora. Não abuse da sorte. O senhor está bêbado. Vá para a cama.

— Ho, ho, ho! Ouçam o atrevido rapaz.

O rosto do Sr. Krest, iluminado pela lua, voltou-se vagarosamente de Bond para sua esposa. fez uma careta desdenhosa. Tirou do bolso um apito de prata e girou-o em sua corrente.

— ele evidentemente não está compreendendo, não acha, tesouro? Você não lhe disse que aqueles hunos estão lá na frente só como enfeite?

Voltou-se de novo para Bond.

— Rapaz, aproxime-se mais e eu soprarei isto... só uma vez. E sabe o que acontecerá? Será o sepultamento do Sr. maldito Bond — disse ele, fazendo um gesto em direção ao mar — pelo costado. Homem ao mar. Uma pena. Voltamos para dar uma busca e sabe o que acontece, rapaz. Por acaso recuamos sobre você com aquelas duas hélices. Parece incrível! Que falta de sorte teve aquele belo rapaz Jim de quem todos nós gostávamos tanto!

O Sr. Krest balançou-se sobre os pés.

— Entendeu, Jim? Okay, então vamos ser amigos de novo e dormir um pouco.

Segurou na padieira da portinhola e virou-se para sua esposa. Ergueu a mão livre e fez um gesto vagaroso com o dedo.

— Ande, tesouro. É hora de ir para a cama.

— Sim, Milt. — Os olhos largos e assustados viraram-se de lado. — Boa-noite, James.

Sem esperar pela resposta, mergulhou por baixo do braço do Sr. Krest e atravessou quase correndo o salão. O Sr. Krest ergueu uma mão.

— Calma, rapaz. Nada de rancores, eh?

Bond nada disse. Continuou olhando duramente para o Sr. Krest.

O Sr. Krest riu hesitantemente. Depois disse:

— Então, okay.

Entrou no salão e fechou a porta. Através da janela, Bond observou-o caminhando vacilante pelo salão e apagando as luzes. Foi para o corredor e houve um clarão momentâneo na porta do camarote particular. Depois a porta também ficou escura.

Bond encolheu os ombros. Santo Deus, que homem! Debruçou-se no peitoril da popa e observou as estrelas e os lampejos de fosforescência na esteira cremosa. Pôs-se então a clarear o espírito e relaxar as tensões de seu corpo.

Meia hora mais tarde, depois de tomar um banho de chuveiro no banheiro da tripulação, Bond estava arrumando uma cama entre as almofadas Dunlopillo empilhadas quando ouviu um angustioso grito. O grito cortou a noite por um instante e depois foi sufocado. Era a mulher. Bond atravessou correndo o salão e desceu pelo corredor. Com a mão na porta do camarote, parou. Podia ouvir os soluços dela e, acima deles, a voz macia e monótona do Sr. Krest. Tirou a mão do trinco. Diabo! Que tinha com isso? Eram marido e mulher. Se ela estava disposta a suportar essa espécie de coisa sem matar seu marido ou abandoná-lo, não adiantava Bond fazer o papel de Sir Galahad. Bond voltou vagarosamente pelo corredor. Quando estava atravessando o salão, o grito, desta vez menos pungente, ecoou de novo. Bond praguejou fluentemente, saiu, deitou-se em sua cama e tentou focalizar seu espírito no suave roncar dos diesels. Como podia uma mulher ter tão pouca coragem? Ou será que as mulheres eram capazes de suportar quase tudo de um homem? Tudo, exceto a indiferença? O espírito de Bond recusava desembaraçar-se. O sono distanciava-se cada vez mais.

Uma hora mais tarde, Bond chegara à beira da inconsciência quando, acima dele no convés superior, o Sr. Krest começou a roncar. Na segunda noite após terem saído de Port Victoria, o Sr. Krest deixara sua cabina no meio da noite e subira para a rede que ficava pendurada para ele entre a lancha e o pequeno bote. Mas naquela noite não havia roncado. Agora estava roncando com aquele barulho profundo e estrondoso que resulta de grandes pílulas azuis de sedativo em cima de álcool em excesso.

Aquilo já era demais. Bond olhou para seu relógio. Uma e meia. Se o ronco não parasse em dez minutos, Bond desceria para a cabina de Fidele Barbey e dormiria no chão, ainda que tivesse de acordar duro e gelado na manhã seguinte.

Bond observou o ponteiro cintilante dar vagarosamente a volta no mostrador. Agora! Levantou-se e estava apanhando sua camisa e seu “short” quando, do convés superior, veio o barulho de uma forte batida. A batida foi seguida imedia-mente por ruídos de luta e um som horrível como de alguém sendo sufocado e gorgolando. Teria o Sr. Krest caído de sua rede? Relutantemente, Bond deixou suas coisas cair de novo no convés e subiu a escada. Quando seus olhos atingiram a altura do convés superior, os sons cessaram. Em seu lugar, houve outro som, ainda mais horrível — o rápido bater de calcanhares. Bond conhecia esse som. Saltou os últimos degraus e correu em direção à figura caída de costas e de braços abertos sob o brilhante luar. Parou e ajoelhou-se devagar, horrorizado. O horror do rosto estrangulado já era bem feio, mas não era a língua do Sr. Krest que saía de sua boca aberta. Era o rabo de um peixe. As cores eram rosa e preto. Era a Raridade de Hildebrand!

O homem estava morto — horrivelmente morto. Quando o peixe fora enfiado em sua boca, ele devia ter estendido a mão e tentado desesperadamente arrancá-lo para fora. Mas os espinhos das nadadeiras dorsais e anais haviam-se prendido por dentro das bochechas e algumas das pontas espinhosas projetavam-se agora através da pele manchada de sangue em roda da boca obscena. Bond estremeceu. A morte devia ter sobrevindo em um minuto. Mas que minuto!

Bond pôs-se em pé vagarosamente. Caminhou até as prateleiras de frascos de vidro e espreitou por baixo do toldo protetor. A tampa de plástico do frasco da ponta estava caída no convés a seu lado. Bond limpou-a cuidadosamente na lona e depois, segurando-a com as pontas das unhas, colocou-a de novo solta sobre a boca do frasco.

Voltou e ficou em pé ao lado do cadáver. Qual dos dois fizera isso? Havia um toque de diabólico ódio no uso da valiosa prenda como arma. Isso sugeria a mulher. Ela certamente tinha suas razões. Mas Fidele Barbey, com seu sangue crioulo, teria tido a crueldade e ao mesmo tempo o macabro senso de humor. “Je lui ai foutu son sacré poisson dans la gueule.” Bond podia ouvi-lo proferindo as palavras. Se, após Bond ter deixado o salão, o Sr. Krest tivesse alfinetado mais um pouquinho os seychellois — particularmente no que se referia à sua família ou suas adoradas ilhas — Fidele Barbey não o teria atacado lá na hora ou usado uma faca. Teria esperado e planejado.

Bond correu os olhos pelo convés. O ronco do homem poderia ter sido um sinal para qualquer dos dois. Havia escadas para o convés superior partindo de ambos os lados das cabinas. O timoneiro na casa do leme nada teria ouvido com o barulho da sala de máquinas. Bastariam segundos para tirar o pequeno peixe de seu banho de formalina e enfiá-lo na boca aberta do Sr. Krest. Bond encolheu os ombros. Quem quer que tivesse feito aquilo não pensara nas consequências — no inevitável inquérito, talvez um julgamento, no qual ele, Bond, seria outro suspeito. Sem dúvida, iam todos meter-se em uma encrenca dos diabos a menos que pudesse arrumar as coisas.

Bond olhou pela beirada do convés superior. Embaixo ficava a faixa de um metro de coberta que se estendia por todo o comprimento do navio. Entre ela e o mar havia um peitoril de uns sessenta centímetros de altura. Supondo-se que a rede tivesse partido e o Sr. Krest tivesse caído, rolado sobre a lancha e pela beirada do convés superior, poderia ter chegado ao mar? Dificilmente, com o mar tão calmo, mas isso é o que ele iria fazer.

Bond pôs-se em ação. Com uma faca de mesa do salão, esfiapou cuidadosamente e depois partiu uma das principais cordas da rede, de modo que esta ficou realisticamente caída no convés. Em seguida, com um pano úmido, limpou as manchas de sangue na madeira e as gotas de formalina que tinham escorrido desde o frasco do peixe. Depois, veio a parte mais difícil — lidar com o cadáver. Cuidadosamente, Bond puxou-o para a beirada do convés, desceu a escada e, erguendo o corpo, segurou-o. O cadáver desceu por cima dele, com um pesado abraço de bêbado. Bond caminhou cambaleante até o peitoril baixo e soltou o cadáver. Houve um último e medonho vislumbre do rosto obscenamente inchado, um enjoativo cheiro de uísque azedo, uma pesada batida e o corpo rolou vagarosamente, levado pelas pequenas ondas da esteira. Bond agachou-se encostado à escotilha do salão, pronto para escorregar por ela se o timoneiro viesse da proa para investigar. Mas não houve movimento na frente do barco e os diesels continuaram roncando firmemente.

Bond suspirou fundo. O “coroner” precisaria ser muito encrenqueiro para pensar em outra coisa além de acidente. Voltou para o convés superior, deu uma última olhada em roda, jogou ao mar a faca e o pano úmido, e desceu a escada para sua cama no convés inferior. Eram duas e quinze. Dez minutos depois, Bond estava dormindo.


Aumentando a velocidade para doze nós, às seis horas da tarde estavam em North Point. Atrás deles, o céu corruscava de raios vermelhos e dourados sobre água-marinha. Os dois homens, com a mulher entre eles, estavam encostados no peitoril do convés inferior e observavam a praia brilhante além do mar, que parecia um espelho de madrepérolas. Liz Krest usava um vestido de linho branco com cinto preto e um lenço preto e branco enrolado no pescoço. As cores da manhã combinavam com a pele dourada. As três pessoas mantinham-se reservadas e quase constrangidas, cada uma delas alimentando seu próprio conhecimento secreto, cada uma delas ansiosa por transmitir às outras duas que seus segredos particulares estavam bem guardados com ela.

Naquela manhã parecia ter havido entre os três uma conspiração para dormir até tarde. Mesmo Bond não fora acordado pelo sol antes das dez horas. Tomou um banho de chuveiro no alojamento da tripulação e conversou com o timoneiro antes de descer para ver o que acontecera com Fidele Barbey. Este ainda estava na cama. Disse que estava de ressaca. Havia sido muito rude com o Sr. Krest? Não conseguia lembrar-se de muita coisa, recordando apenas que o Sr. Krest fora rude com ele.

— Lembra-se do que eu disse sobre ele desde o começo, James? Um fanfarrão safado. Agora concorda comigo? Qualquer dia destes alguém vai tapar para sempre aquela sua feia boca mole.

Inconclusivo. Bond arrumou alguma coisa como desjejum na cozinha e estava comendo quando Liz Krest entrou para fazer o mesmo. Vestia um quimono de xantungue azul pálido até os joelhos. Havia anéis escuros embaixo de seus olhos e ela tomou seu desjejum em pé. Mas parecia perfeitamente calma e à vontade. Segredou com ar de conspiração:

— Desculpe o que aconteceu ontem à noite. Acho que eu também bebi um pouco demais. Mas perdoe Milt. ele é realmente muito amável. Só quando bebe um pouco demais é que fica um tanto difícil. Sempre se arrepende na manhã seguinte. Você vai ver.

Quando já eram onze horas e nenhum dos outros dois mostrava sinais de abrir o jogo, por assim dizer, Bond decidiu forçar a parada. Olhou fixamente para Liz Krest que estava deitada de bruço no convés inferior lendo uma revista e disse:

— A propósito, onde está seu marido? Ainda dormindo?

Ela franziu a testa.

—- Acho que sim. ele foi para sua rede no convés superior. Não tenho ideia que horas eram. Tomei um comprimido de sedativo e dormi até de manhã.

Fidele Barbey tinha uma vara de pesca estendida para fora do barco. Sem voltar os olhos, disse:

— Provavelmente está na casa do leme.

— Se ainda estiver dormindo no convés superior — disse Bond — vai queimar-se como o diabo.

— Oh, pobre Milt! — exclamou Liz Krest. — Eu não havia pensado nisso. Vou lá ver.

Subiu a escada. Quando sua cabeça estava acima do nível do convés superior, parou. Gritou para baixo, ansiosamente:

— Jim. ele não está aqui. E a rede está partida.

— Fidele provavelmente tem razão — respondeu Bond. — Vou olhar lá na frente.

Foi até a casa do leme. Fritz, o imediato, e o mecânico estavam lá. Bond perguntou:

— Alguém viu o Sr. Krest?

Fritz pareceu perplexo.

— Não, senhor. Por quê? Há alguma coisa errada?

Bond assumiu uma expressão de ansiedade.

— ele não está lá atrás. Vamos, deem uma olhada por toda parte. ele estava dormindo no convés superior. Não está lá e sua rede está partida. Estava bem ruim ontem à noite. Vamos! Procurem-no!

Quando se chegou à inevitável conclusão, Liz Krest teve curto, mas convincente acesso de histeria. Bond levou-a para sua cabina e deixou-a lá chorando.

— Está tudo bem, Liz — disse ele. — Fique fora disso. Eu cuidarei de tudo. Teremos de avisar Port Victória pelo rádio e outras coisas. Direi a Fritz para aumentar a velocidade. Acho que não adianta voltar atrás para olhar. Já faz seis horas que nasceu o dia, quando ele não poderia ter caído de bordo sem ser ouvido ou visto. Deve ter sido durante a noite. Acho que umas seis horas nestes mares é o fim.

Ela o fitou, com os olhos muito abertos.

— Quer dizer... quer dizer tubarões e outras coisas?

Bond fez que sim com a cabeça.

— Oh, Milt! Pobre e querido Milt! Oh, por que teria de acontecer isso?

Bond saiu e fechou suavemente a porta.

O iate deu a volta em Cannon Point e diminuiu a velocidade. Conservando-se bem longe dos recifes esparsos, deslizou serenamente através da larga baía, agora cor de limão e cinzenta escura na última luz do dia, em direção ao ancoradouro. A pequena Prefeitura embaixo das montanhas já estava escura com sombras cor de anil nas quais apareciam borrifos de luz amarela. Bond viu a lancha da Alfândega e Imigração sair do Long Pier para encontrá-los. A pequena comunidade já devia estar comentando ativamente a notícia, que devia ter transpirado rapidamente da estação de rádio para o Seychelles Club e de lá, através dos sócios, motoristas e empregados, para a cidade.

Liz Krest virou-se para ele.

— Estou começando a ficar nervosa. Você me ajudará até o fim disto... destas horríveis formalidades e outras coisas?

— Naturalmente.

— Não se preocupem demais — disse Fidele Barbey. — Toda essa gente é minha amiga. E o juiz é meu tio. Todos nós teremos de prestar depoimento. Provavelmente farão a audiência amanhã. Você poderá partir no dia seguinte.

— Pensa mesmo assim? — perguntou Liz Krest, sob cujos olhos o suor parecia orvalho. — O mal é que realmente não sei para onde partir ou que fazer. Suponho — acrescentou, hesitando, sem olhar para Bond — suponho, James, que você não gostaria de ir até Mombasa? Quero dizer, você vai para lá de qualquer jeito e eu poderia levá-lo até lá um dia antes desse seu navio, essa Camp qualquer coisa.

— “Kampala” — esclareceu Bond, acendendo um cigarro para ocultar sua hesitação. Quatro dias em um belo iate com essa mulher? Mas havia o rabo daquele peixe projetando-se da boca! Teria ela feito aquilo? Ou fora Fidele, sabendo que seus tios e primos em Mahe dariam um jeito de nada lhe acontecer de mal? Se pelo menos um deles cometesse uma indiscrição. Bond disse com naturalidade:

— É muita bondade sua, Liz. Naturalmente, eu gostaria de ir.

Fidele Barbey riu baixinho.

— Bravo, meu amigo — disse ele. — E eu gostaria de estar em sua pele, menos por uma coisa. Aquele maldito peixe. É uma grande responsabilidade. Gosto de imaginar vocês dois recebendo torrentes de cabogramas da Smithsonian. Não se esqueçam de que agora vocês dois são curadores de um Koh-i-noor científico. E sabem como são aqueles americanos. Matarão vocês de aborrecimento até terem o bicho nas mãos.

Os olhos de Bond estavam duros como pedra enquanto a observava. Sem dúvida, isso apontava para ela. Agora teria de dar alguma desculpa, para tirar o corpo da viagem. Havia certa coisa naquela maneira particular de matar um homem...

Mas os belos olhos cândidos não vacilaram. Ela ergueu os olhos para o rosto de Fidele Barbey e disse, serenamente, encantadoramente:

— Isso não será problema. Decidi doá-lo ao Museu Britânico.

James Bond notou que agora se juntava orvalho de suor nas têmporas. Mas, afinal de contas, era uma tarde desesperadamente quente...

O ronco dos motores cessou e a corrente da âncora baixou rangendo para a calma baía.

Colombo sacudiu vagarosamente um dedo diante de seu nariz.

— Meu amigo — disse ele — Kristatos é Kristatos. Está fazendo o maior jogo dúplice que é possível conceber. Para mantê-lo — para manter a proteção do serviço secreto americano e de seu pessoal de entorpecentes — precisa jogar-lhes uma vítima de vez em quando — algum homem pequeno da orla do grande jogo. Mas com este problema inglês, o caso é diferente. É um tráfico enorme. Para protegê-lo, era necessária uma grande vítima. Eu fui escolhido — por Kristatos ou por seus empregadores. E é verdade que, se tivesse sido vigoroso em suas investigações e tivesse gasto bastante moeda forte para comprar informações, você poderia ter descoberto a história de minhas operações. Mas cada pista na minha direção teria levado você para mais longe da verdade. No final, pois eu não subestimo seu Serviço, eu teria ido para a prisão. Mas a grande raposa que você está procurando ficaria só rindo do barulho da caçada que morreria à distância.

— Por que Kristatos queria que eu o matasse?

A fisionomia de Colombo assumiu uma expressão astuciosa.

— Meu amigo, eu sei coisas demais. Na fraternidade dos contrabandistas, de vez em quando tropeçamos em um canto do negócio de outro homem. Não há muito tempo, neste barco, tive um combate em retirada com uma pequena canhoneira da Albânia. Um disparo providencial incendiou seu combustível. Só houve um sobrevivente, que foi convencido a falar. Fiquei sabendo muito, mas como um tolo resolvi correr o risco com os campos de minas e desembarquei-o na costa norte de Tirana. Foi um erro. Desde então tenho esse bastardo de Kristatos atrás de mim.

Colombo sorriu cruelmente e acrescentou:

— Tenho uma informação de que ele não tem conhecimento. E temos um encontro com essa informação à primeira luz do dia amanhã, em Santa Maria, pequeno porto pesqueiro logo ao norte de Ancona. E lá — concluiu Colombo, com uma risada áspera e cruel — veremos o que houver para ver.

Bond sorriu brandamente e perguntou:

— Qual é seu preço por tudo isso? Você diz que minha missão estará terminada amanhã de manhã. Quanto?

Colombo sacudiu a cabeça. Disse em tom indiferente:

— Nada. Acontece que nossos interesses coincidem. Você vai prometer-me, porém, que tudo quanto eu disse esta noite ficará entre eu e você, e, se necessário, seu chefe em Londres. Nunca deverá voltar à Itália. Está combinado?

— Sim. Concordo com isso.

Colombo levantou-se. Foi até a cômoda e tirou a arma de Bond. Entregou-a a Bond, dizendo:

— Nesse caso, meu amigo, é melhor ficar com isto, porque vai precisar. E é melhor também dormir um pouco. Haverá rum e café para todos às cinco da manhã.

Estendeu a mão. Bond apertou-a. De repente, os dois homens passaram a ser amigos. Bond sentiu isso.

— Está bem, Colombo — disse desajeitadamente, antes de sair da sala e encaminhar-se para sua cabina.

O “Colombina” tinha uma tripulação de doze homens. Eram homens jovens e de aparência decidida. Falavam em voz baixa entre si enquanto canecas de café quente e rum eram servidas por Colombo na sala. Uma lanterna de tempestade era a única luz — pois o navio fora escurecido — e Bond sorriu consigo mesmo diante da atmosfera de Ilha do Tesouro, do ar de excitação e conspiração. Colombo foi de homem em homem fazendo uma inspeção das armas. Todos tinham Lugers, carregadas embaixo da camisa de malha e por dentro do cós da calça, e facas de mola no bolso. Colombo teve uma palavra de aprovação ou de crítica para cada arma. Ocorreu a Bond que Colombo arrumara uma boa vida para si próprio — uma vida de aventura, emoção e risco. Era uma vida criminosa — um combate em retirada com as leis monetárias, o monopólio estatal de tabaco, a Alfândega e a polícia — mas havia no ar um cheiro de travessura adolescente que mudava a cor do crime de preto para branco — ou pelo menos cinzento.

Colombo olhou para seu relógio. Mandou os homens para seus postos. Apagou a lanterna e, sob a luz cinzenta da madrugada, Bond seguiu-o até a ponte. Viu que o navio estava perto de um litoral preto e rochoso, ao longo do qual navegava em velocidade reduzida. Colombo apontou para frente.

— Do outro lado daquele cabo fica a baía. Nossa aproximação não será observada. Na baía, encostado no desembarcadouro, espero encontrar um navio mais ou menos deste tamanho, descarregando inocentes bobinas de papel de imprensa por uma rampa que entra em um armazém. Depois de dar a volta ao cabo, avançaremos a toda velocidade, encostaremos ao lado desse navio e o abordaremos. Haverá resistência. Haverá cabeças quebradas. Espero que não haja tiros. Não atiraremos a menos que eles comecem. Mas será um navio albanês tripulado por albaneses durões. Se houver tiroteio, você deverá atirar com o resto de nós. Essa gente é inimiga de seu país tanto quanto do meu. Se você morrer, morreu. Está bem?

— Está muito bem.

Quando Bond dizia essas palavras, veio um tilintar do telégrafo da casa das máquinas e a coberta começou a tremer sob seus pés. Fazendo dez nós, o pequeno navio deu a volta ao cabo para entrar na baía.

Aconteceu como Colombo havia dito. Encostado no desembarcadouro de pedra, havia um navio, com suas velas trapeando ociosamente. De sua popa uma rampa de tábuas descia em direção à boca escura de um decrépito armazém de ferro corrugado, em cujo interior estavam acesas fracas luzes elétricas. O navio transportava na coberta uma carga que parecia ser bobinas de papel de imprensa. As bobinas estavam sendo baixadas uma por uma sobre a rampa de onde rolavam por seu próprio peso através da boca do armazém. Havia uns vinte homens à vista. Só a surpresa poderia anular essa desvantagem. Agora o barco de Colombo estava a cinquenta metros de distância do outro navio. Um ou dois dos homens pararam de trabalhar e olharam na direção do barco de Colombo. Um homem correu para dentro do armazém. Nesse instante Colombo deu uma ordem rápida. Os motores pararam e começaram a funcionar ao contrário. Um grande holofote foi aceso na ponta e iluminou brilhantemente toda a cena, enquanto o navio se encostava ao lado do pesqueiro albanês. Ao primeiro e violento contato, arpões foram lançados sobre o parapeito do navio albanês, na frente e atrás, e os homens do “Colombina” subiram pelo costado com Colombo à frente.

Bond havia feito seus próprios planos. Assim que seus pés pisaram na coberta inimiga, correu diretamente através do navio, subiu no parapeito do outro lado e saltou. Havia uma distância de uns quatro metros até o desembarcadouro e Bond nele caiu como um gato, sobre as mãos e as pontas dos pés. Ficou imóvel por um momento, agachado, planejando seu movimento seguinte. O tiroteio já começara na coberta. Um dos primeiros tiros apagara o holofote e agora só havia a luz cinzenta e luminosa da aurora. Um corpo, de um inimigo, caiu sobre as pedras à sua frente e ficou tombado de braços abertos, imóvel. Ao mesmo tempo, da boca do armazém, uma metralhadora leve começou a disparar, lançando rajadas curtas com toque altamente profissional. Bond correu em direção a ela na sombra escura do navio. O homem da metralhadora avistou-o e lançou-lhe uma rajada. As balas zuniram em volta de Bond, bateram no casco de ferro do navio e desapareceram na noite. Bond procurou a proteção da rampa de tábuas e mergulhou para a frente de barriga. As balas enterravam-se na madeira acima de sua cabeça. Bond rastejou para a frente no espaço estreito. Quando chegasse o mais perto possível, poderia escolher entre sair para a direita ou para a esquerda das tábuas. Houve uma série de pesadas batidas e o barulho de algo rolando rapidamente em cima de sua cabeça. Um dos homens de Colombo devia ter cortado as cordas, fazendo com que toda a pilha de bobinas de papel rolasse pela rampa. Agora era a oportunidade de Bond. Saltou para fora de seu esconderijo — para a esquerda. Se estivesse esperando por ele, o homem da metralhadora acreditaria que ia aparecer disparando pela direita. O homem da metralhadora lá estava, agachado e encostado à parede do armazém. Bond disparou duas vezes na fração de segundo antes que o cano brilhante da arma inimiga girasse em seu pequeno arco. O dedo do homem morto premiu o gatilho e, enquanto ele caía, a arma disparou uma curta rajada antes de soltar-se de sua mão e cair ao chão.

Bond estava correndo em direção à porta do armazém quando escorregou e caiu de cabeça. Ficou imóvel por um momento, estonteado, com o rosto em uma poça de melaço preto. Praguejou, ergueu-se sobre as mãos e os joelhos, e correu esconder-se atrás de um monte de bobinas de papel que haviam batido na parede do armazém. De uma delas, furada por uma rajada da metralhadora, escorria o melaço preto. Bond limpou o mais que pôde de suas mãos e de seu rosto. Tinha o cheiro adocicado e rançoso que Bond já sentira certa vez no México. Era ópio bruto.

Uma bala enterrou-se na parede do armazém não longe de sua cabeça. Bond limpou pela última vez a mão nos fundimos da calça e saltou para a porta do armazém. Ficou surpreendido em não ser alvejado do interior assim que sua silhueta apareceu na porta. Dentro estava silencioso e fresco. As luzes haviam sido apagadas, mas agora estava ficando mais claro lá fora. As claras bobinas de papel estavam empilhadas em fileiras metódicas, tendo no centro um espaço para servir como corredor. Na outra extremidade do corredor havia uma porta. Todo esse arranjo parecia olhá-lo de soslaio, desafiando-o. Bond sentiu o cheiro da morte. Recuou para a porta e saiu. O tiroteio tornara-se espasmódico. Colombo vinha correndo rapidamente em sua direção, com os pés perto do chão, como correm os homens gordos. Bond disse peremptòriamente:

— Fique nesta porta. Não entre e não deixe nenhum de seus homens entrar. Vou dar a volta por trás.

Sem esperar por resposta, deu a volta correndo no canto do prédio e avançou pelo lado.

O armazém tinha uns quinze metros de comprimento. Bond diminuiu o passo e caminhou silenciosamente até o outro canto. Encostou-se na parede de ferro corrugado e olhou rapidamente pelo canto. Recuou imediatamente. Havia um homem em pé na entrada do fundo. Tinha os olhos em alguma espécie de orifício para espionar dentro do armazém. Na mão tinha um pistão do qual saíam fios que se estendiam por baixo da porta. Um carro, um conversível preto Lancia Granturismo de capota baixada, estava a seu lado, com o motor roncando maciamente. O carro estava voltado para o interior, em uma estrada empoeirada e profundamente trilhada.

O homem era Kristatos.

Bond ajoelhou-se. Segurou a arma com as duas mãos para ter mais firmeza, inclinou-se para fora do canto do prédio e disparou um tiro contra os pés do homem. Errou. Quase no mesmo instante em que viu a poeira levantar-se a centímetros do alvo, houve o barulho estrondeante de uma explosão. A parede de latão atingiu-o e jogou-o longe.

Bond levantou-se cambaleando. O armazém entortara-se doidamente. Agora começava a ruir barulhentamente, como um maço de cartas de latão. Kristatos estava no automóvel. Já estava vinte metros distante, com as rodas traseiras jogando poeira para o alto. Bond assumiu a clássica pose de tiro de pistola e mirou cuidadosamente. A Walther rugiu e escoiceou três vezes. No último tiro, a cinquenta metros, a figura agachada sobre o volante sacudiu-se para trás. As mãos largaram a direção e estenderam-se para os lados. A cabeça espichou momentaneamente para o alto e caiu para a frente. A mão direita continuou estendida para fora, como se o homem morto estivesse fazendo sinal de virar à direita. Bond começou a correr pela estrada, esperando que o carro parasse, mas as rodas estavam presas nos trilhos e, com o peso do pé direito do homem morto ainda sobre o acelerador, o Lancia continuou a correr em sua gritante terceira. Bond parou e ficou observando-o. O carro corria pela estrada plana que atravessava uma planície queimada e a nuvem de poeira branca erguia-se alegremente atrás dele. Bond esperava que a qualquer momento ele saísse da estrada, mas não saiu. Ficou olhando-o até perdê-lo de vista no nevoeiro da manhã que prometia um belo dia.

Bond travou sua arma e enfiou-a na cintura da calça. Quando se virou, viu Colombo aproximando-se. O homem gordo sorria encantado. Chegou até a Bond e, para horror deste, estendeu seus braços abertos, puxou Bond em sua direção e beijou-o em ambas as faces.

— Pelo amor de Deus, Colombo! — disse Bond.

Colombo estourou numa risada.

— Ah, o fleugmático inglês! Nada teme, senão as emoções. Mas eu — disse batendo no próprio peito — eu, Enrico Colombo, gosto deste homem e não tenho vergonha de confessá-lo. Se você não tivesse liquidado o homem da metralhadora, nenhum de nós teria sobrevivido. Perdi dois de meus homens e outros ficaram feridos. Mas só restou em pé meia dúzia de albaneses, que fugiram para a aldeia. Sem dúvida, a polícia os prenderá. E agora você mandou aquele maldito Kristatos de automóvel para o inferno. Que esplêndido fim para ele! Que acontecerá quando o pequeno esquife de corrida chegar à rodovia principal? ele já está fazendo sinal com a mão de que vai virar à direita para entrar na auto-estrada. Espero que se lembre de entrar à direita.

Colombo deu um violento tapa no ombro de Bond.

— Vamos, meu amigo — disse ele. — É tempo de sairmos daqui. As válvulas estão abertas no navio albanês, que logo irá ao fundo. Não há telefone neste lugarzinho. Levaremos uma boa vantagem sobre a polícia. Demorarão algum tempo para conseguir saber alguma coisa dos pescadores. Falei com o chefe. Ninguém aqui gosta de albaneses. Mas precisamos ir embora. Temos uma boa vela ao vento e não há médico em que eu possa confiar deste lado de Veneza.

Chamas estavam começando a aparecer no desmoronado armazém e dele se desprendiam vagalhões de fumaça que cheiravam como legumes doces. Bond e Colombo caminharam contra o vento. O navio albanês encostara-se no fundo e suas cobertas estavam inundadas. Atravessaram o navio andando sobre a água e subiram para bordo do “Colombina”, onde Bond precisou submeter-se a mais apertos de mão e tapas nas costas. Partiram imediatamente e rumaram para o cabo que guardava a baía. Havia um pequeno grupo de pescadores em pé ao lado de seus barcos puxados para a praia abaixo de um amontoado de cabanas de pedra. Causavam uma impressão desagradável, mas quando Colombo acenou com a mão e gritou algo em italiano, a maioria deles ergueu a mão em despedida e um deles gritou em resposta algo que fez a tripulação do “Colombina” rir. Colombo explicou:

— Dizem que nós somos melhores que o cinema de Ancona e devemos voltar de novo.

Bond sentiu desaparecer toda sua excitação. Sentia-se sujo e barbudo. Podia sentir o cheiro de seu próprio suor. Desceu, tomou uma navalha e uma camisa limpa emprestadas de um dos tripulantes, despiu-se em sua cabina e lavou-se. Quando tirou a arma e jogou-a sobre a tarimba, sentiu um cheiro de cordite sair do cano. Isso lhe trouxe de volta o medo, a violência e a morte na madrugada cinzenta. Abriu a vigia. Fora, o mar dançava alegremente e o litoral que recuava, antes negro e misterioso, era agora verde e bonito. Um repentino e delicioso cheiro de toucinho frigindo foi trazido da cozinha pelo vento. Abruptamente, Bond fechou a viga, vestiu-se e foi para a sala.

Sobre um monte de ovos fritos e toucinho defumado, regados por café doce quente misturado com rum. Colombo pôs os pingos nos “ii” e os traços nos “tt”.

— Isso nós conseguimos, meu amigo — disse ele, mastigando torrada. — Era o suprimento de um ano de ópio bruto a caminho da indústria química de Kristatos em Nápoles. É verdade que eu tenho um negócio semelhante em Milão, que serve como conveniente depósito para algumas de minhas mercadorias. Mas não produz coisa alguma mais mortal do que cascara e aspirina. Em toda essa parte da história de Kristatos, onde está escrito Colombo deve-se ler Kristatos. Era ele quem transformava o material em heroína e era ele quem empregava os mensageiros que a levavam para Londres. Aquele enorme carregamento valia talvez um milhão de libras para Kristatos e seus homens. Mas sabe de uma coisa, meu caro James? Não lhe custava um único centavo. Por quê? Porque era presente da Rússia. Presente de um maciço e mortal projétil para ser disparado contra as entranhas da Inglaterra. Os russos podem fornecer quantidades ilimitadas de carga para o projétil. Provém de suas culturas de papoula no Cáucaso e a Albânia é um entreposto conveniente. Mas eles não têm o aparelhamento para disparar o projétil. Kristatos criou o aparelhamento necessário e era ele quem, em nome de seus senhores na Rússia, apertava o gatilho. Hoje, entre nós, destruímos, em meia hora, toda a conspiração. Você pode voltar e dizer a sua gente na Inglaterra que o tráfico cessará. Pode também dizer-lhe a verdade: que a Itália não era a origem dessa terrível arma subterrânea de guerra. Ela provinha de nossos velhos amigos, os russos. Sem dúvida é parte de alguma guerra psicológica de seu aparelhamento de espionagem. Isso posso assegurar-lhe. Talvez, meu caro James — prosseguiu Colombo, sorrindo encorajadoramente — o mandem a Moscou para descobrir isso. Se tal acontecer, esperemos que encontre alguma garota tão encantadora quanto sua amiga Fräulein List Baum para pô-lo no caminho reto da verdade.

— Por que diz “minha amiga”? Ela é sua.

Colombo sacudiu a cabeça.

— Meu caro James, tenho muitos amigos. Você vai passar mais alguns dias na Itália escrevendo seu relatório e sem dúvida — Colombo deu uma risadinha — conferindo algumas das coisas que lhe contei. Talvez passe também uma agradável meia hora explicando as realidades da vida a seus colegas do serviço secreto americano. Entre esses deveres, precisará de companhia — de alguém que lhe mostre as belezas de minha terra adorada. Em países incivilizados, é um costume cortês oferecer uma de suas esposas ao homem que você ama e que deseja homenagear. Eu também sou incivilizado. Não tenho esposas, mas tenho muitas amigas, como Lisl Baum. Ela não precisará receber instruções nessa matéria. Tenho boa razão para acreditar que está esperando seu regresso esta noite.

Colombo enfiou a mão no bolso da calça e tirou algo que deixou cair barulhentamente sobre a mesa em frente de Bond.

— Aqui está a boa razão — disse Colombo, pondo a mão no coração e olhando seriamente para os olhos de Bond. — Dou-a de coração. Talvez venha também do coração dela.

Bond apanhou o objeto. Era uma chave tendo presa a ela uma pesada chapa de metal. Na chapa de metal estava escrito: Albergo Danielli. Quarto 68.


A raridade de Hildebrand

 

 

 

(THE HILDEBRAND RARITY)

 

A arraia tinha uns dois metros de uma extremidade à outra das nadadeiras e talvez três metros de comprimento, desde a ponta rombuda de seu focinho até o fim de sua mortal cauda. Era cinzenta escura com aquele matiz roxo que é muitas vezes um sinal de perigo no mundo submarino. Quando se levantou da areia cor de ouro pálida e nadou por curta distância foi como se uma toalha preta estivesse sendo sacudida dentro da água.

James Bond, com as mãos estendidas ao longo do corpo e nadando apenas com um suave movimento de suas nadadeiras, seguiu a sombra preta através da laguna orlada de palmeiras, esperando oportunidade para um disparo. Raramente matava peixe a não ser para comer, mas havia exceções — as grandes moreias e todos os membros da família do peixe-escorpião. Agora pretendia matar a arraia porque parecia extraordinariamente má.

Eram dez horas da manhã de um dia de abril e a laguna Belle Anse, perto da extremidade sul de Mahe, a maior ilha do arquipélago das Seychelles, estava serena como vidro. A monção noroeste deixara de soprar meses antes e somente em maio começaria a monção sudeste. Agora a temperatura era de 27 graus à sombra e a umidade de noventa. Na laguna, a água fechada estava quase quente. Até os peixes pareciam entorpecidos. Um bodião verde de cinco quilos, mordiscando algas em uma massa de coral, parou apenas para girar os olhos quando Bond passou por cima, e depois voltou à sua refeição. Um cardume de pequenos e chatos peixes cinzentos, nadando rapidamente, abriu-se ao meio com cortesia para dar passagem à sombra de Bond, depois voltou a fechar-se e continuou seu avanço na direção contrária. Uma fileira de seis pequenas lulas, normalmente tão ariscas quanto pássaros, nem sequer tentou modificar sua camuflagem quando Bond passou.

Bond avançava preguiçosamente, conservando a arraia ao alcance da vista. Logo ela se cansaria ou então se tranquilizaria vendo que Bond, o grande peixe à superfície, não atacava. Então pararia em um lugar de areia lisa, mudaria sua camuflagem para o cinzento mais pálido, quase translúcido, e, com suaves ondulações de suas nadadeiras, enterrar-se-ia na areia.

A linha de recifes estava chegando perto e agora havia afloramentos negros de coral e campinas de plantas marinhas. Era como chegar do campo aberto a uma cidade. Por toda parte os coloridos peixes dos recifes resplandeciam e cintilavam. As gigantescas anêmonas do Oceano Indico ardiam como chamas nas sombras. Colônias de espinhosos ouriços do mar formavam manchas em sépia como se alguém tivesse jogado tinta contra as pedras. As brilhantes antenas azuis e amarelas das lagostas agitavam-se para fora de suas fendas como pequenos dragões. De vez em quando, entre as algas marinhas no cintilante leito do mar, avistava-se o brilho sarapintado de um caurim maior que uma bola de golfe — o caurim leopardo e uma vez Bond viu os belos dedos estendidos de uma harpa de Vênus. Mas todas essas coisas já eram comuns para Bond, que continuou nadando firmemente interessado nos recifes apenas como esconderijo através do qual pudesse avançar pelo mar além da arraia e depois persegui-la de volta na direção da praia. A tática deu resultado. Logo a sombra negra e o torpedo marrom que a perseguia estavam voltando através do grande espelho azul. Onde havia uns três metros e meio de água a arraia parou pela centésima vez. Bond parou também, movendo-se suavemente na água. Cautelosamente, ergueu a cabeça e esvaziou a água de seus óculos. Quando tornou a olhar, a arraia havia desaparecido.

Bond tinha uma espingarda de arpão Champion. O arpão tinha na ponta um tridente afiado como agulha — uma arma para curta distância, mas a melhor para operação em recifes. Bond soltou a trava e movimentou-se vagarosamente para a frente, com as nadadeiras oscilando suavemente logo abaixo da superfície para não fazer barulho. Olhou em roda, tentando perscrutar os nebulosos horizontes do grande salão da laguna. Procurava avistar algum corpo volumoso de emboscada. Não seria bom ter um tubarão ou um grande barracuda como testemunha do ataque. Os peixes às vezes gritam quando são feridos e, mesmo quando não gritam, a turbulência e o sangue resultantes de uma luta feroz atraem os limpadores. Mas não havia viva alma à vista e a areia estendia-se para os lados enfumaçados como as tábuas nuas de um palco. Agora Bond podia ver o vago contorno no fundo. Moveu-se até ficar diretamente sobre ele e permaneceu imóvel à superfície, olhando para baixo. Houve um ligeiro movimento na areia. Duas minúsculas fontes de areia dançavam acima dos orifícios semelhantes a narinas nos espiráculos. Atrás dos orifícios estava a ligeira protuberância do corpo. Aquele era o alvo. Dois centímetros e meio atrás dos orifícios. Bond calculou a possível chicotada da cauda para cima, virou vagarosamente a espingarda para baixo e puxou o gatilho.

Embaixo dele houve uma erupção de areia e, por um ansioso momento, Bond nada pôde ver. Depois a linha do arpão ficou esticada e a arraia apareceu, afastando-se dele enquanto sua cauda, em ação reflexa, chicoteava repetidamente sobre o corpo. Na base da cauda, Bond pôde ver os pontudos espinhos de veneno erguendo-se do tronco. Esses eram os espinhos que se supunha terem morto Ulisses, que Plínio dizia ser capaz de destruir uma árvore. No Oceano Indico, onde os venenos do mar são os mais virulentos, um arranhão do ferrão dessa arraia significa morte certa. Cautelosamente, mantendo a arraia em linha esticada, Bond nadou atrás do peixe que lutava ferozmente. Nadou para um lado a fim de desviar a linha da cauda chicoteante que poderia facilmente cortá-la. Essa cauda era o chicote do antigo feitor de escravos do Oceano Indico. Hoje em dia, em Seychelles, é ilegal até mesmo possuir uma cauda dessas, mas elas são transmitidas nas famílias para uso contra esposas infiéis. Quando circula a notícia de que esta ou aquela mulher a eu la crapule, nome provençal da arraia, vale dizer que a mulher não se levantará pelo menos por uma semana. Agora, as chicotadas da cauda estavam-se tornando mais fracas. Bond nadou em volta e por cima da arraia, arrastando-a atrás dele em direção à praia. No raso, a arraia amoleceu e Bond puxou-a para a praia, até um boa distância na água. Mas ainda se conservou longe dela. fez bem. De repente, devido a algum movimento de Bond ou talvez na esperança de apanhar desprevenido seu inimigo, a gigantesca arraia deu um salto para o ar. Bond pulou de lado e arraia caiu de costas. Ficou imóvel com a barriga branca exposta ao sol e a grande e feia boca em forma de foice aspirando e ofegando.

Bond ficou parado olhando para a arraia e pensando o que iria fazer em seguida.

Um homem branco, baixo e gordo, com camisa e calça caquis, saiu debaixo das palmeiras e caminhou em direção a Bond através das plantas marinhas e restos de naufrágios ressecados pelo sol espalhados bem acima da marca da água. Quando estava bastante perto, disse rindo:

— O Velho e o Mar! Quem pescou e quem foi pescado?

Bond virou-se.

— Só poderia ser o único da ilha que não carrega um machete. Fidele, seja bonzinho e chame um de seus homens. Este animal não quer morrer e meu arpão está enterrado nele.

Fidele Barbey, o mais moço dos inúmeros Barbeys que eram donos de quase tudo quanto havia em Seychelles, aproximou-se e ficou olhando para a arraia.

— Essa foi boa. Foi sorte você ter acertado no lugar exato, senão ela o teria arrastado para os recifes e você precisaria largar a espingarda. Demoram como o diabo para morrer. Mas vamos. Preciso levá-lo de volta a Victória. Apareceu uma coisa. Coisa boa. Eu mandarei um de meus homens buscar a espingarda. Você quer a cauda?

Bond sorriu ao responder:

— Eu não sou casado. Mas que acha de uma raie au beurre noir para hoje à noite?

— Hoje à noite, não, meu amigo. Vamos. Onde estão suas roupas?

Enquanto rodavam na perua pela estrada costeira, Fidele disse:

— Já ouviu falar em um americano chamado Milton Krest? Bem, parece que ele é dono dos hotéis Krest e de um negócio chamado Fundação Krest. Uma coisa posso garantir-lhe. ele é dono do melhor iate que se encontra no Oceano Indico. Chegou ontem. O “Wavekrest”. Quase duzentas toneladas. Trinta metros de comprimento. Há de tudo no barco, desde uma bela esposa até um grande gramofone transistorizado sobre balanceiro para que as ondas não sacudam a agulha. Tapetes de três centímetros de grossura de parede a parede. Ar condicionado em toda parte. Os únicos cigarros secos deste lado do continente africano e a melhor garrafa de champanha para depois do desjejum que já provei desde a última vez que vi Paris.

Fidele Barbey riu satisfeito.

— Meu amigo, é um grande barco e se o Sr. Krest é um fanfarrão safado, quem se importa com isso?

— Quem se importa com ele, afinal de contas? Que tem ele a ver com você... ou comigo, para dizer a verdade?

— Só isto, meu amigo. Vamos passar alguns dias navegando com o Sr. Krest... e a Sra. Krest, a bela Sra. Krest. Concordei em levar o navio até Chagrin, a ilha de que já lhe falei. Fica a muitas milhas daqui, ao largo dos African Banks. Minha família nunca encontrou utilidade para ela, a não ser para colecionar ovos de atobá. Fica apenas um metro acima do nível do mar. Faz cinco anos que não vou àquele maldito lugar. Agora, esse Krest quer ir até lá. Está colecionando espécimes marinhos, coisas da sua fundação, e há uns malditos peixinhos que parecem existir apenas ao redor da ilha Chagrin. Pelo menos Krest diz que o único espécime conhecido no mundo veio de lá.

— Parece engraçado. Onde eu entro nessa história?

— Eu sabia que você estava entediado e que ainda tem uma semana antes de partir. Por isso, disse que você era o ás dos pescadores submarinos locais e que logo encontraria o peixe, se existisse. Além disso, tornei claro que não iria sem você. O Sr. Krest concordou. E é só isso. Sabia que você estava em algum lugar aí pelo litoral. Vim rodando até encontrar um pescador que me disse ter visto um homem branco maluco tentando suicidar-se sozinho na Belle Anse. Logo vi que só podia ser você.

Bond riu.

— É extraordinário como esta gente da ilha tem medo do mar. Já era tempo de terem chegado a um acordo com o mar. Dos habitantes de Seychelles são raros os que sabem até mesmo nadar.

— É a Igreja Católica Romana. Não gosta que eles tirem a roupa. Tolice, mas é assim. Quanto a ter medo, não se esqueça que você esteve aqui apenas um mês. Tubarão, barracuda... você não encontrou nenhum deles com fome. E o peixe-pedra? Já viu um homem pisar no peixe-pedra? Com a dor, seu corpo curva-se para trás como um arco. Às vezes, é tão horrível que os olhos literalmente saltam das órbitas. Raros são os que sobrevivem.

Bond disse sem a menor simpatia:

— Deviam usar sapatos ou amarrar os pés quando vão aos recifes. No Pacífico também há desses peixes e o mexilhão gigante ainda por cima. É uma estupidez. Todos se queixam de como são pobres aqui, mas o mar está completamente cheio de peixes. E existem cinquenta variedades de caurim embaixo daquelas pedras. Podiam viver muito bem vendendo isso ao mundo.

Fidele Barbey riu animadamente.

— Bond para Governador! Essa é a chapa. Na primeira oportunidade, vou apresentar a ideia. Você é precisamente o homem para o cargo — longa visão, muitas ideias, abundância de entusiasmo. Caurins! É explêndido. Equilibrarão o orçamento pela primeira vez desde a alta do patchuli depois da guerra. “Vendemos conchas marinhas das Seychelles”. Esse será nosso slogan. Farei com que você colha os louros. Em pouco tempo será Sir James.

— Ganha-se mais dinheiro assim do que tentando cultivar baunilha com prejuízo.

Continuaram a discutir com despreocupada violência até quando as palmeiras cederam lugar às gigantescas árvores sangue-de-drago nos subúrbios da decrépita capital de Mahe.

Quase um mês antes M dissera a Bond que ia mandá-lo às Seychelles.

— O Almirantado está tendo dificuldade com sua nova base nas Maldívias. Comunistas infiltraram-se do Ceilão. Greves, sabotagem... o quadro costumeiro. Talvez tenha de reduzir seus prejuízos e recuar para as Seychelles. Mil e quinhentos quilômetros mais ao sul, mas pelo menos parecem bastante seguras. Mas eles não querem ser apanhados de novo. O Departamento Colonial diz que são seguras como casas. Ainda assim concordei em mandar alguém para oferecer uma opinião independente. Quando Macário lá esteve fechado há alguns anos houve alguns bons sustos em questão de segurança. Barcos pesqueiros japoneses rondando as ilhas, um ou dois trapaceiros refugiados da Inglaterra, fortes ligações com a França. Vá dar uma boa olhada.

Olhando pela janela para a pesada neve de março, M acrescentara:

— Não vá ter insolação.

O relatório de Bond, concluindo que o único risco de segurança concebível nas Seychelles residia na beleza e acessibilidade das seychelloises, fora terminado uma semana antes e depois nada houve a fazer senão esperar o “SS. Kampala” para levá-lo a Mombasa. Estava completamente cheio do calor, das palmeiras, do grito choroso das andorinhas do mar e da interminável conversa sobre copra. A perspectiva de mudança encantava-o.

Bond estava hospedado em sua última semana na casa dos Barbey e, depois de passar por lá a fim de apanhar suas malas, os dois rodaram até o fim do Long Pier e deixaram o carro no barracão da Alfândega. O iate branco e cintilante estava a uns oitocentos metros do ancoradouro. Tomaram uma carona com motor de popa, atravessaram a baía vidrada e passaram pela abertura nos recifes. O “Wavekrest” não era bonito — a largura da boca e o excesso de superestrutura prejudicavam suas linhas — mas Bond pôde ver imediatamente que era um verdadeiro navio, construído para navegar pelo mundo e não apenas pelas Florida Keys. Parecia deserto, mas quando encostaram a seu lado, dois marinheiros de aparência elegante, de camisetas e “shorts” brancos, apareceram e ficaram ao lado da escada com croques prontos para afastar a desprezível canoa da cintilante pintura do barco. Apanharam as duas malas e um deles empurrou uma portinhola de alumínio, fazendo um gesto para que descessem. Um sopro do que pareceu a Bond ser de ar quase gelado atingiu-o quando atravessou a porta e desceu alguns degraus para entrar no saguão.

O saguão estava vazio. Não era uma cabina. Era uma sala de sólida riqueza e conforto sem coisa alguma que a associasse ao interior de um navio. As janelas por trás das persianas semi-cerradas eram de tamanho natural, assim como as fundas poltronas ao redor da mesa central baixa. O tapete era de pelos compridos em azul pálido. As paredes eram cobertas de madeira prateada e o ferro era branco acinzentado. Havia uma mesa com o costumeiro material de escrever e um telefone. Perto do grande gramofone havia um aparador coberto de bebidas. Por cima do aparador via-se o que parecia ser um Renoir extremamente bom — a cabeça e os ombros de uma bela moça de cabelos escuros com uma blusa listrada de preto e branco. A impressão de uma luxuosa sala-de-estar em uma residência de cidade era completada por um grande vaso de jacintos brancos e azuis, sobre a mesa central, e pela bem arrumada prateleira de revistas de um dos lados da mesa.

— Não lhe disse, James?

Bond sacudiu a cabeça com ar de admiração.

— Esta é sem dúvida a maneira de tratar o mar — como se ele não existisse.

Respirou fundo e acrescentou:

— Que alívio ter um bocado de ar fresco. Já tinha quase esquecido seu gosto.

— O negócio lá fora é que é ar fresco, rapaz. Este é enlatado.

O Sr. Milton Krest entrara silenciosamente na sala e estava em pé olhando para eles. Era um homem rijo e coriáceo de pouco mais de cinquenta anos. Parecia forte e sadio. As calças grosseiras de um azul desbotado, o corte militar da camisa e a larga cinta de couro sugeriam que para ele era um fetiche ser assim — parecer durão. Os olhos castanhos pálidos no rosto bronzeado pelo sol eram ligeiramente encobertos e seu olhar era sonolento e desdenhoso. A boca tinha uma curva para baixo que poderia ser humorística ou desdenhosa — provavelmente desdenhosa — e as palavras que lançara na sala, inócuas em si próprias, exceto pelo condescendente “rapaz”, haviam sido jogadas como pequenas moedas a um par de cules. Para Bond a coisa mais estranha no Sr. Krest era a voz. Era um cecear macio e muito atraente através dos dentes. Era exatamente a voz do falecido Humphrey Bogart. Bond correu os olhos pelo homem, desde os esparsos cabelos pretos e grisalhos cortados rente, como fios de ferro espalhados sobre a cabeça redonda, passando pela águia tatuada por cima de uma âncora entoucada no antebraço direito e indo até os pés coriáceos e descalços que assentavam nàuticamente sobre o tapete. Pensou: este homem gosta de considerar-se um herói de Hemingway. Não vou dar-me bem com ele.

O Sr. Krest avançou através do tapete e estendeu a mão.

— O senhor é Bond? Prazer em tê-lo a bordo, Senhor.

Bond estava esperando o aperto de esmagar ossos e enfrentou-o com músculos enrijecidos.

— Mergulho livre ou aqualung?

— Livre e não vou muito fundo. É só passatempo.

— Que faz no resto do tempo.

— Servidor civil.

O Sr. Krest deu uma risada curta e áspera.

— Civilidade e servidão. Vocês, ingleses, são os melhores mordomos e criados de quarto do mundo. Servidor civil, foi o que disse? Acho que provavelmente vamos dar-nos muito bem. Servidores civis é exatamente o que gosto de ter ao meu redor.

O barulho da portinhola da coberta sendo empurrada evitou que Bond perdesse a calma. O Sr. Krest desapareceu de seu espírito quando uma jovem nua e queimada pelo sol desceu os degraus para o salão. Não, ela não estava completamente nua, mas o minúsculo biquíni de cetim marrom pálido tendia a fazer a gente pensar que estava.

— Alô, tesouro. Onde estava escondida? Há muito tempo que não a vejo. Estes são o Sr. Barbey e o Sr. Bond, os rapazes que vão conosco.

O Sr. Krest ergueu a mão na direção da moça e acrescentou:

— Rapazes, esta é a Sra. Krest. A quinta Sra. Krest. E, para que ninguém comece a ter ideias, ela ama o Sr. Krest. Não é, tesouro?

— Ora, não seja tolo, Milt. Você sabe que o amo — disse a Sra. Krest, sorrindo lindamente. — Prazer em conhecê-lo, Sr. Barbey. E Sr. Bond. É um prazer tê-los conosco. Tomam alguma coisa.

— Um minuto, tesouro. Quer deixar que eu cuide das coisas a bordo de meu próprio barco, sim?

A voz do Sr. Krest era suave e agradável. A mulher corou.

— Oh, pois não, Milt, naturalmente.

— Então, okay. Assim ficamos sabendo quem é o capitão a bordo do bom navio “Wavekrcst”.

O sorriso divertido abrangia todos eles.

— Muito bem, Sr. Barbey. A propósito, qual é seu primeiro nome? Fidele, não? É um grande nome. Fiel — disse o Sr. Krest, rindo com bom humor. — Bem, agora, Fido, que tal você e eu subirmos à ponte para pôr em movimento este velho caixãozinho? Talvez seja melhor você levá-lo até o alto mar, depois traçar uma rota e entregar o resto a Fritz. Eu sou o capitão. ele é o imediato e há mais dois homens para a casa das máquinas e a copa. Todos os três são alemães. Os únicos bons marinheiros que restam na Europa. E o Sr. Bond, qual é o primeiro nome? James, não? Bem, Jim, que tal praticar um pouco daquela civilidade e servidão com a Sra. Krest. A propósito, pode chamá-la de Liz. Ajude-a a arrumar os canapés e outras coisas para os drinques antes do almoço. Ela também era inglesa antigamente. Vocês podem bater um papo sobre Piccadilly Circus e as Dooks que ambos conhecem. Okay? Vamos, Fido.

Subiu correndo infantilmente os degraus, ao mesmo tempo que acrescentava:

— Vamos dar o fora daqui rápidos como o diabo. Quando a portinhola se fechou, Bond deixou escapar um fundo suspiro. A Sra. Krest disse em tom de desculpa:

— Por favor, não se aborreça com as piadas dele. É apenas seu senso de humor. E ele é um pouco do contra. Gosta de ver se consegue irritar as pessoas. É muita maldade dele. Mas tudo realmente é brincadeira.

Bond sorriu tranquilizadoramente. Quantas vezes tivera ela de dizer essas mesmas coisas a pessoas, de procurar acalmar pessoas sobre as quais o Sr. Krest praticara seu “senso de humor”?

— Acho que seu marido precisa de uma pequena lição. ele age desse jeito também nos Estados Unidos?

Ela respondeu sem rancor:

— Só comigo. ele adora os americanos. Só é assim quando está no estrangeiro. Seu pai — sabe? — era alemão, realmente prussiano. ele tem essa tola maneira alemã de pensar que os europeus etc. são decadentes, que não prestam mais. Não adianta discutir com ele. ele é assim mesmo.

Então era isso! O velho huno de novo. Sempre a seus pés ou em sua garganta. Senso de humor, realmente! E que não precisaria suportar essa mulher, essa bela moça que ele arrumara para ser sua escrava — sua escrava inglesa? Bond perguntou:

— Há quanto tempo está casada?

— Dois anos. Eu trabalhava como recepcionista em um de seus hotéis. ele é dono do Grupo Krest, sabe? Foi maravilhoso. Como uma história de fadas. Ainda preciso beliscar-me de vez em quando para ter certeza de não estar sonhando. Isto, por exemplo — mostrou com a mão a luxuosa sala — e ele é extraordinariamente bom comigo. Está sempre dando-me presentes. É um homem muito importante nos Estados Unidos, sabe? É bom a gente ser tratada como realeza em todo lugar aonde vai.

— Deve ser. ele gosta dessas coisas, não?

— Oh, sim. — Havia resignação na risada. — Há muito de sultão nele. Fica impaciente quando não obtém o serviço apropriado. Diz que, depois de trabalhar arduamente para chegar ao alto da árvore, a gente tem direito ao melhor fruto que nela cresce.

A Sra. Krest achou que estava falando com excessiva liberdade. Acrescentou rapidamente:

— Mas, realmente, que estou dizendo? Poderiam pensar que nos conhecemos há anos.

Sorriu timidamente.

— Acho que é o ato de encontrar alguém da Inglaterra. Mas preciso mesmo ir vestir um pouco mais de roupa. Eu estava tomando banho de sol no convés.

Um ronco surdo veio do fundo do barco, à meia-nau.

— Pronto. Já partimos. Por que não vai ao convés de ré observar o barco deixar a baía. Irei procurá-lo lá dentro de um minuto. Há tanta coisa que desejo ouvir a respeito de Londres.

Passou ao lado dele e abriu uma porta.

— Para dizer a verdade, se fôr sensato, procurará passar as noites aqui. Há estofados em abundância e as cabinas tendem a ficar um pouco abafadas, apesar do ar condicionado.

Bond agradeceu-lhe, saiu e fechou a porta depois de passar. Era um grande convés com piso de cânhamo e, na popa, um sofá semicircular de espuma de borracha cor de creme. Havia cadeiras de palhinha espalhadas e um bar a um canto. Passou pela ideia de Bond que o Sr. Krest talvez bebesse muito. Seria sua imaginação ou a Sra. Krest estaria aterrorizada por ele? Havia algo de dolorosamente servil em sua atitude com relação a ele. Sem dúvida, tivera de pagar muito caro por sua “história de fadas”. Bond observou as costas verdes de Mahe afastarem-se vagarosamente da popa. Calculou que desenvolviam uma velocidade de uns dez nós. Logo estariam na North Point, rumando para alto mar. Bond ouviu o glutinoso borbulhar do escapamento e pensou ociosamente na bela Sra. Elizabeth Krest.

Ela poderia ter sido modelo — provavelmente o fora antes de tornar-se recepcionista de hotel — aquela respeitável profissão feminina que ainda tem um ar de alto demi-monde — e ainda movia seu belo físico com o desembaraço de quem está acostumada a andar sem nada ou praticamente nada sobre o corpo. Mas nela nada havia da frieza do modelo — era um corpo quente e um rosto amável e confiante. Poderia ter uns trinta anos, não mais certamente, e sua boniteza, pois não passava disso, ainda era imatura. Sua melhor característica era a cabeleira loura acinzentada que caía pesadamente até a base do pescoço, mas ela dava a agradável impressão de não sentir vaidade nisso. Não a sacudia, nem mexia nela. Ocorreu a Bond que realmente não demonstrava o menor sinal de coquetismo. Permanecia quieta, quase dócil, com os grandes olhos azuis claros fixados no marido quase o tempo todo. Não havia batom em seus lábios, nem esmalte nas unhas das mãos e dos pés, e suas sobrancelhas eram naturais. Ordenaria o Sr. Krest que fosse assim — que ela fosse uma filha germânica da natureza? Provavelmente. Bond encolheu os ombros. Formavam sem dúvida um casal curiosamente dessemelhante — o Hemingway de meia-idade com voz de Bogart e a mulher bonita e simples. E havia tensão no ar — na maneira como ela se encolhera quando ele lhe chamara à atenção por ter oferecido bebidas e na forçada masculinidade do homem. Bond brincou ociosamente com a noção de que o homem era impotente e toda a firme e rude representação não passava de exagerada exibição de virilidade. Certamente não ia ser fácil viver com eles durante quatro ou cinco dias. Bond observou a bela ilha Silhouette afastar-se à distância e tomou a decisão de não perder a calma. Como era aquela expressão americana? “Comer corvo”. Seria um interessante exercício mental para ele. Comeria corvo durante cinco dias e não deixaria que esse maldito homem interferisse no que deveria ser um bom passeio.

— Bem, rapaz. Descansando?

O Sr. Krest estava em pé no convés superior, olhando para baixo.

— Que fez com aquela mulher com quem eu vivo? Acho que deixou todo o serviço para ela. Bem e por que não? É para isso que elas servem, não é? Quer dar uma olhada no navio? Fido está cuidando um pouco do leme e eu tenho tempo de sobra.

Sem esperar pela resposta, o Sr. Krest agachou-se e desceu para o convés inferior, deixando-se cair no último metro da altura.

— A Sra. Krest foi vestir roupa. Sim, eu gostaria de ver o navio.

O Sr. Krest fixou em Bond seu olhar duro e desdenhoso.

— Okay. Bem, primeiro os fatos. Foi construído pela Bronson Shipbuilding Corporation. Acontece que eu tenho noventa por cento das ações, de modo que obtenho o que quero. Desenhado por Rosenblatts, os grandes arquitetos navais. Trinta metros de comprimento por seis e meio de largura, com dois metros de calado. Dois motores diesel Superior de quinhentos H.P. Velocidade máxima, quatorze nós. Faz quatro mil quilômetros com oito nós. Ar condicionado em toda parte. Carrier Corporation desenhou duas unidades especiais de cinco toneladas. Transporta alimentos congelados e bebidas suficientes para um mês. Só precisamos de água doce para os banheiros e chuveiros. Certo? Agora vamos até a frente e você verá os alojamentos da tripulação. Depois, viremos para trás. Não precisa preocupar-se com a cabeça. Em todo lugar há um metro e oitenta e cinco de altura.

Bond seguiu o Sr. Krest pelo estreito corredor que se estendia ao longo de todo o barco e, durante meia hora, fez comentários apropriados sobre o que era sem dúvida o iate melhor e mais luxuosamente planejado que já vira. Em todos os pormenores, havia uma margem para conforto adicional. Até mesmo o banheiro e chuveiro da tripulação eram bem espaçosos e a cozinha de aço inoxidável era tão grande quanto o camarote de Krest. O Sr. Krest abriu a porta deste último sem bater. Liz Krest estava diante da penteadeira.

— Oh, tesouro — disse o Sr. Krest com sua voz macia — Pensei que estivesse arrumando a bandeja de bebidas. Você demorou um tempão para vestir-se. Pondo um pouquinho de Ritz extra para Jim, hem?

— Desculpe, Milt. Eu já ia sair. Um ziper ficou preso. A Sra. Krest apanhou apressadamente um estôjo de pó e encaminhou-se para a porta. Dirigiu aos dois um meio-sorriso nervoso e saiu.

— Lambris de bétula de Vermont. Abajures de vidro de Corning. Tapetes mexicanos. Aquela pintura de um veleiro é um genuíno Montague Dawson...

O catálogo do Sr. Krest prosseguiu sem parar. Mas Bond estava olhando algo que pendia quase escondido pela mesa de cabeceira do que era evidentemente o lado do Sr. Krest na enorme cama de casal. Era um fino chicote de cerca de um metro de comprimento com um cabo de tiras de couro. Era o rabo de arraia.

Com ar indiferente, Bond caminhou até o lado da cama e apanhou-o. Correu um dedo por sua superfície espinhenta. Só de fazer isso sentiu doer o dedo. Disse:

— Onde arranjou isto? Estive caçando um destes animais hoje de manhã.

— Em Bahrein. Os árabes usam-nos em suas esposas — respondeu o Sr. Krest, rindo facilmente. — Até agora não precisei dar mais que uma chicotada de cada vez em Liz. Resultados maravilhosos. Chamamo-lo de meu “Corretivo”.

Bond tornou a pôr o objeto no lugar. Olhou duramente para o Sr. Krest e disse:

— É assim? Nas Seychelles, onde os crioulos são bem durões, é ilegal até mesmo possuir um desses, quanto mais usá-lo.

O Sr. Krest encaminhou-se para a porta e disse em tom indiferente:

— Rapaz, acontece que este navio é território dos Estados Unidos. Vamos tomar alguma coisa.

O Sr. Krest tomou três “bullshots” duplos — vodca com consommé gelado — antes do almoço e cerveja com a refeição. Os olhos pálidos escureceram um pouco e adquiriram um brilho aguado, mas a voz sibilante continuou macia e sem ênfase enquanto com absoluto monopólio da conversação, ele explicava o objetivo da viagem.

— O negócio é o seguinte, rapazes. Nos Estados Unidos, temos esse sistema de Fundação para os sujeitos de sorte que ganharam muito dinheiro e não querem entregá-lo ao Tesouro de Tio Sam. Você faz uma Fundação — como esta, a Fundação Krest — para fins de caridade — caridade para qualquer coisa, crianças, doentes, a causa da ciência. Simplesmente dá o dinheiro para qualquer pessoa ou qualquer coisa, menos para você mesmo e seus dependentes. Assim, escapa do imposto. Por isso, empatei coisa de dez milhões de dólares na Fundação Krest e, como gosto de viajar de iate e ver o mundo, comprei este iate com dois milhões do dinheiro e disse à Smithsonian — nossa grande instituição de história natural — que iria a qualquer lugar do mundo buscar espécimes para ela. Isso faz de mim uma expedição científica, entendem? Durante três meses do ano gozo férias maravilhosas que não me custam nada!

O Sr. Krest olhou para seus convidados, esperando aplausos.

— Entenderam? — perguntou.

Fidele Barbey sacudiu a cabeça com ar de dúvida.

— Parece ótimo, Sr. Krest. Mas e esses espécimes raros. É fácil encontrá-los? A Smithsonian pode querer uma panda gigante ou uma concha marinha. Será capaz de conseguir essas coisas quando ela não conseguiu?

O Sr. Krest sacudiu vagarosamente a cabeça. Disse com ar de pena:

— Rapaz, você parece ter nascido ontem. Dinheiro, só é preciso isso. Você quer um panda? Compra-o de algum maldito jardim zoológico que quer ter aquecimento central para sua casa de répteis, deseja construir um novo edifício para seus tigres ou coisa semelhante. A concha marinha? Você descobre um homem que tem uma delas e lhe oferece tanto dinheiro que ele acaba vendendo-a ainda que chore uma semana. Às vezes, a gente tem um pouco de dificuldade com governos. Um maldito animal é protegido ou coisa semelhante. Muito bem. Vou dar-lhes um exemplo. Cheguei ontem à sua ilha. Quero um papagaio preto da ilha Preslin. Quero uma tartaruga gigante de Aldabra. Quero uma coleção completa de seus caurins e quero este peixe que vamos procurar. Os dois primeiros são protegidos por lei. Faço imediatamente uma visita a seu governador depois de realizar certas investigações na cidade. Excelência, digo eu, sei que deseja ter uma piscina pública para ensinar as crianças locais a nadar. Okay. A Fundação Krest contribuirá com o dinheiro. Quanto? Cinco mil, dez mil? Okay, seja dez mil. Aqui está meu cheque. E preencho o cheque na hora. Mais uma coisinha. Excelência, digo eu, segurando o cheque. Acontece que desejo um espécime desse papagaio preto que existe aqui e uma dessas tartarugas de Aldabra. Sei que são protegidos por lei. Faria questão se eu levasse um espécime de cada um para os Estados Unidos, para a Smithsonian? Bem, há um pouco de palavrório, mas, sabendo que é para a Smithsonian e sabendo que ainda estou segurando o cheque, acabamos fechando o negócio, trocamos apertos de mão e todos ficam felizes. Certo? Bem, na volta paro na cidade para combinar com seu encantador Sr. Abendana, aquele negociante, que arranje o papagaio e a tartaruga, e os guarde para mim. E começo a falar sobre os caurins. Bem, acontece que esse Sr. Abendana vem colecionando as malditas coisas desde criança. Mostra-me sua coleção. Maravilhosamente conservada — cada uma delas em seu pedacinho de algodão. Tudo em ótimo estado e várias daquelas Isabella e Mappa que me pediram particularmente para procurar. Sinto muito, diz ele, mas não posso nem pensar em vender. Significam tanto para mim etc. Bolas! Só olho para o Sr. Abendana e pergunto: quanto? Não, não. Não pode sequer pensar nisso. Bolas de novo! Tiro meu talão de cheques, preencho um cheque de cinco mil dólares e ponho embaixo de seu nariz. ele olha o cheque. Cinco mil dólares! Não pode resistir. Dobra o cheque, guarda-o no bolso e depois o maldito maricas desanda a chorar! Acreditam nisso? — perguntou o Sr. Krest, abrindo as mãos num gesto de incredulidade. — Por causa de algumas malditas conchas marinhas. Então, digo-Ihe que tenha calma, apanho as bandejas de conchas e dou o fora antes que o maluco se mate de remorso.

O Sr. Krest recostou-se na cadeira, satisfeito consigo mesmo.

— Bem, que me dizem disso, rapazes? Vinte e quatro horas na ilha e já consegui três quartos de minha lista. Bem esperto, eh, Jim?

Bond respondeu: — O Senhor provavelmente receberá uma medalha quando voltar. E quanto a esse peixe?

O Sr. Krest levantou-se e remexeu em uma gaveta de sua mesa. Trouxe de volta uma folha datilografada.

— Aqui está — disse, passando a ler: — Raridade de Hildebrand. Apanhanda pelo professor Hildebrand, da Universidade de Witwatersrand, em uma rede ao largo da ilha Chagrin no arquipélago das Seychelles. Abril de 1925.

O Sr. Krest ergueu os olhos e explicou:

— Depois há uma porção de palavrório científico. Fiz com que traduzissem para o inglês comum e aqui está a tradução.

Voltou ao papel e continuou a ler:

— Este parece ser um singular membro da família do peixe-esquilo. O único espécime conhecido, chamado “Raridade de Hildebrand” como homenagem a seu descobridor, tem quinze centímetros de comprimento. A cor é rosa brilhante com listras transversais pretas. As nadadeiras anais, ventrais e dorsais são rosadas. A nadadeira da cauda é preta. Olhos grande e azuis escuros. Se encontrado, é preciso cuidado ao lidar com este peixe porque todas as nadadeiras têm espinhos ainda mais afiados do que é habitual no resto da família. O professor Hildebrand registra que encontrou o espécime em um metro de água à beira do recife sudoeste.

O Sr. Krest jogou o papel sobre a mesa e acrescentou:

— Bem, aí está, rapazes. Estamos viajando cerca de mil milhas a um custo de vários milhares de dólares para tentar descobrir um maldito peixe de quinze centímetros. E há dois anos o pessoal do fisco teve o atrevimento de sugerir que minha fundação era uma mistificação!

Liz Krest interveio ansiosamente.

— Mas é precisamente isso, Milt, não é? Desta vez, é realmente importante levar de volta bastante espécimes e outras coisas. Aqueles horríveis fiscais não estavam falando em cancelar os descontos referentes ao iate e às despesas e outras coisas dos últimos cinco anos se não apresentássemos alguma importante realização científica? Não foi isso que disseram?

— Tesouro — disse o Sr. Krest, cuja voz era macia como veludo. — Que tal se você fechasse essa irresponsável boquinha e não falasse em meus negócios particulares. Sim?

A voz era amável, despreocupada.

— Sabe o que você acaba de fazer, tesouro? Você acaba de ganhar um pequeno encontro com o Corretivo hoje à noite. Foi isso o que você fez.

A mulher levou a mão à boca. Seus olhos estavam arregalados. Disse em um sussurro:

— Oh, não, Milt. Oh, não, por favor.

Na madrugada do dia seguinte no mar avistaram a ilha Chagrin. Foi apanhada primeiro pelo radar — uma pequena saliência na linha plana da tela. Depois uma minúscula mancha no grande horizonte curvo cresceu com infinita lentidão até tornar-se um quilômetro de verde orlado de branco. Era extraordinário chegar à terra depois de dois dias nos quais o iate parecera ser a única coisa móvel, a única coisa viva em um mundo vazio. Bond nunca vira, nem sequer imaginara claramente a calmaria. Agora compreendia que perigo terrível deveria ter sido nos dias da navegação a vela — mar de vidro sob um sol de bronze, o ar viciado e pesado, a esteira de pequenas nuvens ao longo da orla do mundo, que nunca chegavam mais perto, nunca traziam vento ou a abençoada chuva. Quantas centenas de marinheiros não teriam abençoado esse minúsculo ponto no Oceano Indico, quando se curvavam sobre os remos que moviam o pesado navio talvez uma milha por dia! Bond ficou em pé na proa e observou os peixe-voadores saltarem de baixo do casco quando o azul-prêto do mar se transformou vagarosamente no marrom, branco e verde do baixio profundo. Como seria maravilhoso poder em breve andar e nadar ao invés de ficar apenas sentado e deitado. Como seria maravilhoso ter algumas horas de solidão — algumas horas longe do Sr. Milton Krest!

Ancoraram para fora do recife em dez braças de água e Fidele Barbey conduziu-os através da abertura na lancha. Em todos os detalhes, Chagrin era o protótipo da ilha de coral.

Eram uns vinte acres de areia, coral morto e vegetação baixa, cercados, depois de cinquenta metros de laguna rasa, por um colar de recifes sobre o qual as ondas calmas e compridas se quebravam com uma suave sibilar. Nuvens de pássaros ergueram-se quando desembarcaram — andorinhas do mar, atobás, fragatas — mas logo pousaram de novo. Havia um forte cheiro amoniacal de guano, que enbranquecia também a vegetação. As únicas outras coisas vivas eram os caranguejos que corriam entre a liane sans fin e os chama-marés que viviam na areia.

O clarão da areia branca era ofuscante e não havia sombra. O Sr. Krest mandou armar uma tenda e sentou-se dentro dela fumando um charuto, enquanto instrumentos de várias espécies eram transportados para terra. A Sra. Krest nadava e apanhava conchas enquanto Bond e Fidele Barbey punham máscaras e, nadando em direções opostas, começavam a examinar sistematicamente os recifes em toda a volta da ilha.

Quando se está procurando determinada espécie embaixo dágua — concha, peixe, alga marinha ou formação de coral — é preciso conservar o cérebro e os olhos focalizados naquele padrão individual. A orgia de cores e movimentos, a incessante variedade de luz e sombra lutam o tempo todo contra a concentração da pessoa. Bond arrastou-se vagarosamente através do país das maravilhas tendo na mente uma única imagem — um peixe rosado de quinze centímetros com listras pretas e olhos grandes — o segundo desses peixes a ser visto pelo homem. “Se avistá-lo”, recomendara o Sr. Krest, “basta soltar um grito e ficar perto dele. Eu tenho na tenda uma coisinha que é o melhor negócio que você já viu para apanhar peixes.”

Bond parou para descansar os olhos. A água estava tão flutuável que podia ficar deitado de bruço na superfície sem se mover. Ociosamente partiu um ouriço do mar com a ponta de sua lança e observou a horda de cintilantes peixes dos recifes investindo sobre os pedaços de carne amarela entre os espinhos pretos afiados como agulhas. Como era infernal o fato de beneficiar apenas o Sr. Krest se encontrasse a Raridade! Deveria ficar quieto se a encontrasse? Seria uma infantilidade e, além disso, estava sob contrato, por assim dizer.

Bond moveu-se devagar, com os olhos reiniciando automaticamente a busca enquanto seu espírito voltava a considerar a mulher. Ela havia passado o dia anterior na cama. O Sr. Krest dissera que era uma dor de cabeça. Não se voltaria contra ele um dia? Não arranjaria uma faca ou um revólver e, certa noite, quando ele estendesse a mão para aquele maldito chicote, não o mataria? Não. Ela era mole demais, maleável demais. O Sr. Krest escolhera bem. Era do mesmo material com que são feitos os escravos. E os ornamentos de sua “história de fadas” eram preciosos demais. Não perceberia ela que um júri certamente a absolveria se aquele chicote de arraia fosse apresentado no tribunal? Ela poderia ficar com os ornamentos sem esse horrível e odioso homem. Deveria Bond dizer-lhe isso? Não seja ridículo! Como poderia expressá-lo? “Oh, Liz, se quiser matar seu marido, está tudo bem.” Bond sorriu dentro de sua máscara. Que fosse para o inferno! Não interfira na vida dos outros. Provavelmente ela gosta disso. É masoquista. Mas Bond sabia que essa era uma resposta fácil demais. Ali estava uma mulher que vivia amedrontada. Talvez também vivesse odiando. Não se podia ler muita coisa naqueles suaves olhos azuis, mas as janelas tinham-se aberto uma ou duas vezes e através delas aparecera um lampejo de algo semelhante a ódio infantil. Teria sido ódio? Provavelmente fora indigestão. Bond tirou os Krests da cabeça e ergueu os olhos para ver até que ponto da ilha já avançara. O schnorkel de Fidele Barbey estava apenas a uns cem metros de distância. Já tinham quase completado o circuito.

Os dois se encontraram, nadaram até a praia e deitaram na areia. Fidele Barbey disse:

— Nada do meu lado da propriedade, exceto todos os peixes do mundo, menos um. Mas tive um golpe de sorte. Encontrei uma grande colônia de caramujos verdes. É a concha almiscarada grande como uma bola de futebol. Vale um monte de dinheiro. Vou mandar um de meus barcos atrás deles qualquer dia destes. Vi um peixe-papagaio azul que devia pesar bem uns quinze quilos. Manso como um cão, do mesmo modo que todos os peixes daqui. Não tive coragem de matá-lo. E se o matasse, poderia ter havido encrenca. Vi dois ou três tubarões-leopardos rondando do outro lado dos recifes. Sangue na água poderia tê-los atraído. Agora, estou pronto para um drinque e alguma comida. Depois, poderemos trocar de lado e fazer outra tentativa.

Levantaram-se e caminharam pela praia até a tenda. O Sr. Krest ouviu suas vozes e saiu para encontrá-los.

— Nada, não? — perguntou, cocando furiosamente uma axila. — Um maldito mosquito me picou. Esta é uma ilha amaldiçoada. Liz não pôde suportar o cheiro. Voltou para o barco. Acho que é melhor fazer mais uma tentativa e depois dar o fora daqui. Comam alguma coisa. Encontrarão cerveja na bolsa de gelo. Deem-me uma dessas máscaras. Como é que se usa essa maldita coisa? Acho que posso dar uma olhada no fundo do mar já que estou aqui.

Sentaram-se na tenda quente, comeram salada de galinha e beberam cerveja. Carrancudamente, observaram o Sr. Krest tateando e esquadrinhando na água rasa. Fidele Barbey disse:

— ele tem razão, naturalmente. Estas pequenas ilhas são lugares horríveis. Nada além de caranguejos e excremento de pássaros com muito mar em roda. São só os pobres e gelados europeus que sonham com ilhas de coral. A leste de Suez, você não encontra um homem de juízo que dê qualquer coisa por elas. Minha família possui umas dez delas — algumas também de tamanho decente, com pequenas aldeias e boa renda de copra e tartaruga. Bem, se quiser pode ficar com todo o maldito lote em troca de um apartamento em Paris ou Londres.

Bond riu.

— Ponha um anúncio em “The Times” e receberá pilhas ... — começou Bond, quando, a cinquenta metros de distância, o Sr. Krest passou a fazer frenéticos sinais.

— Ou o bastardo encontrou-o ou pisou em uma viola — disse Bond, apanhando sua máscara e correndo para o mar.

O Sr. Krest estava com água até a cintura entre os rasos começos dos recifes. Bateu o dedo excitadamente na superfície. Bond nadou suavemente para frente. Um tapete de plantas marinhas terminava em coral e ocasionais afloramentos negros. Uma dúzia de variedades de borboletas e outros peixes de recifes brincava entre as pedras e uma pequena lagosta sondou na direção de Bond com suas antenas. A cabeça de uma grande moreia verde saiu de um buraco, com as mandíbulas meio abertas mostrando fileiras de afiados dentes. Seus olhos dourados observaram Bond cuidadosamente. Bond divertiu-se ao ver que as pernas cabeludas do Sr. Krest, ampliadas para pálidos troncos de árvores pela água vidrada, não estavam a mais de uns trinta centímetros das mandíbulas da moreia. Deu um encorajador empurrão na moreia com seu arpão, mas a enguia limitou-se a morder as pontas de metal e desaparecer de novo. Bond parou e ficou flutuando, com os olhos perscrutando a brilhante selva. Uma mancha vermelha materializou-se no nevoeiro distante e avançou em sua direção. Deu uma volta bem por baixo dele, como se estivesse exibindo-se. Os olhos azuis escuros examinaram-no sem medo. O pequeno peixe ocupou-se quase constrangido com algumas algas na parte de baixo de um afloramento negro, deu uma corrida em direção a algo suspenso na água e, depois, como se deixasse o palco após exibir seus passos, nadou lânguidamente de volta para o nevoeiro.

Bond afastou-se do buraco da moreia e pôs os pés no chão. Tirou a máscara. Dirigindo-se ao Sr. Krest, que o fitava impacientememte através de seus óculos de mergulho, disse:

— Sim, é ele mesmo. É melhor afastar-se silenciosamente daqui. ele não irá embora a menos que se assuste. Esses peixes de recifes conservam-se sempre nos mesmos lugares.

O Sr. Krest tirou sua máscara.

— Diabo, eu o encontrei! — exclamou reverentemente. — Bem, fui eu mesmo.

Seguiu vagarosamente Bond até a praia. Fidele Barbey estava esperando por eles. O Sr. Krest disse impetuosamente:

— Fido, encontrei aquele maldito. Eu. .. Milton Krest. Que acha disso? Depois que vocês dois, malditos especialistas, procuraram a manhã inteira. Peguei aquela sua máscara — e foi a primeira vez que usei uma dessas máscaras, veja bem — entrei na água e encontrei o maldito peixe em quinze minutos. Que diz a isso, eh, Fido?

— Muito bem, Sr. Krest. Ótimo. Como vamos apanhá-lo agora?

— Ah, ah, ah — fez o Sr. Krest, pestanejando vagarosamente. — Eu tenho a solução para isso. Arranjei-a com um químico amigo meu. Um negócio chamado rotenona. Feito de raiz de timbó. É com isso que os nativos pescam no Brasil. Basta derramá-lo na água, onde flutua sobre aquilo que você está procurando e o apanha infalivelmente. Uma espécie de veneno. Constringe os vasos sanguíneos nas guelras dos peixes. Sufoca-os. Não exerce efeito sobre seres humanos porque eles não têm guelras, entendem?

O Sr. Krest virou-se para Bond.

— Escute, Jim. Você vai até lá e fica vigiando. Não deixe o maldito peixe desaparecer. Fido e eu levaremos o material para lá — disse, apontando a área de onde a água corria para o local vital. — Eu soltarei a rotenona quando você disser. Ela será arrastada na sua direção. Certo? Mas, com os diabos, dê o sinal na hora certa. Eu só tenho uma lata de cinco galões desse negócio. Okay?

Bond respondeu “Está bem” e caminhou vagarosamente, entrando na água. Nadou preguiçosamente para onde estivera antes. Sim, todos ainda estavam lá, cuidando de sua vida. A cabeça pontuda da moreia estava de novo na beirada de seu buraco, a lagosta estendeu novamente as antenas em sua direção. Um minuto depois, como se tivesse encontro marcado com Bond, a Raridade de Hildebrand apareceu. Desta vez nadou até bem perto de seu rosto. Olhou através dos óculos para seus olhos e depois, como se tivesse ficado assustada com o que vira, disparou para colocar-se fora de alcance. Brincou entre as pedras por algum tempo e depois entrou no nevoeiro.

Vagarosamente o pequeno mundo submarino dentro da visão de Bond começou a aceitá-lo como coisa natural. Um pequeno octópode que se camuflara como um pedaço de coral revelou sua presença e avançou cuidadosamente na direção da areia. A lagosta azul e amarela saiu de baixo da pedra e deu alguns passos, admirando-o. Alguns peixes muito pequenos, como os barrigudinhos, mordiscaram suas pernas e seus dedos dos pés, fazendo cócega. Bond partiu um ouriço do mar para eles, que avançaram sobre a comida melhor. Bond ergueu a cabeça. O Sr. Krest, segurando a lata, estava vinte metros à sua direita. Logo começaria a derramar, quando Bond desse o sinal, de modo que o líquido se espalhasse bem sobre a superfície.

— Okay? — perguntou o Sr. Krest. Bond sacudiu a cabeça e respondeu:

— Levantarei o polegar quando ele aparecer de novo aqui. Então você terá de derramar depressa.

— Okay, Jim. Você está na mira da bomba.

Bond afundou a cabeça. Lá estava a pequena coletividade, todos cuidando de sua vida. Logo, para apanhar um peixe que alguém desejava vagamente em um museu a oito mil quilômetros de distância, cem, talvez mil pessoazinhas iam morrer. Quando Bond desse o sinal, a sombra da morte desceria sobre a água. Quanto tempo duraria o veneno? Até que ponto avançaria pelos recifes? Talvez não morressem milhares, mas dezenas de milhares.

Um pequeno baiacu apareceu, com suas minúsculas nadadeiras ruflando como hélices. Um par dos inevitáveis beijupirás listrados de preto e amarelo apareceu de repente, atraído pelo cheiro do ouriço do mar partido.

Dentro dos recifes, quem era o predador no mundo dos pequenos peixes? Quem temiam eles? O pequeno barracuda? Um ocasional peixe-agulha? Agora um grande predador, plenamente crescido, um homem chamado Krest, estava parado nos bastidores, esperando. E esse nem sequer tinha fome. Ia simplesmente matar — quase por divertimento.

Duas pernas marrons apareceram no campo de visão de Bond. Este ergueu os olhos. Era Fidele Barbey com um grande cesto amarrado ao peito e uma rede de cabo comprido.

Bond ergueu a máscara e disse:

— Sinto-me como o bombardeador em Nagasaki.

— Peixes têm sangue frio. Nada sentem.

— Como é que você sabe? Ouvi dizer que gritam quando são feridos.

— Não serão capazes de gritar com esse negócio — disse Barbey indiferentemente. — Estrangula-os. Que há com você? São apenas peixes.

— Sei, sei.

Fidele Barbey passara a vida matando animais e peixes. Enquanto ele, Bond, às vezes não hesitara em matar homens. Por que estava agora fazendo barulho? Não se importara em matar a arraia. Sim, mas aquele era um peixe inimigo. Estes aqui embaixo eram pessoas amigas. Pessoas? A patética ilusão.

— Eh! — exclamou a voz do Sr. Krest. — Que está acontecendo aí? Não é hora de conversa mole. Afunde a cabeça n’água, Jim.

Bond puxou a máscara para baixo e deitou-se de novo sobre a superfície. Imediatamente viu a bela sombra vermelha saindo do nevoeiro distante. O peixe nadou rápido em sua direção, como se o considerasse algo muito natural. Ficou embaixo dele, olhando para cima. Bond disse dentro de sua máscara: “Vá-se embora daqui, seu imbecil!” Deu uma cuti-lada rápida em direção ao peixe com seu arpão. O peixe fugiu novamente para o nevoeiro. Bond levantou a cabeça e furiosamente ergueu o polegar. Era um ridículo e mesquinho ato de sabotagem, do qual já se sentia envergonhado. O líquido oleoso marrom escuro estava sendo derramado na superfície da laguna. Ainda havia tempo de fazer o Sr. Krest parar antes que acabasse tudo — tempo de dar-lhe outra oportunidade de apanhar a Raridade de Hildebrand. Bond ficou imóvel olhando, até pingar a última gota. O Sr. Krest que fosse para o inferno!

Agora o negócio estava sendo vagarosamente arrastado pela correnteza — uma mancha brilhante que se espalhava, refletindo o céu azul com um lustre metálico. O Sr. Krest, o segador gigante, estava avançando com a mancha.

— Pronto, rapazes — disse ele, alegremente. — Já está aí com vocês.

Bond enfiou de novo a cabeça dentro da água. Tudo estava como antes na pequena coletividade. Mas depois, com desnorteante instantaneidade, todos ficaram loucos. Foi como se todos tivessem contraído a dança de São Guido. Vários peixes deram cambalhotas malucas e depois caíram como pesadas folhas sobre a areia. A moreia saiu vagarosamente do buraco no coral, com as mandíbulas abertas. Ficou cuidadosamente em pé sobre a cauda e depois caiu delicadamente de lado. A pequena lagosta deu três sacudidelas com a cauda e virou de costas. O octópode desprendeu-se do coral e deixou-se cair para o fundo, de cabeça para baixo. Depois foram arrastados para a arena os cadáveres vindos mais de cima — peixes de barriga branca, camarões, minhocas, caranguejos, moreias mosqueadas e verdes, lagostas de todos os tamanhos. Como soprados por uma ligeira brisa de morte, os corpos desengonçados, com suas cores já desbotando, passaram vagarosamente. Um peixe-agulha de três quilos batia o bico, lutando contra a morte. Mais abaixo, ao longo dos recifes, havia batidas na superfície, onde peixes ainda maiores tentavam fugir para lugar seguro. Um a um, diante dos olhos de Bond, os ouriços do mar caíram das pedras para fazer manchas de tinta preta na areia.

Bond sentiu um toque em seu ombro. Os olhos do Sr. Krest estavam vermelhos do sol e da cintilação. Havia passado nos lábios uma pasta branca contra queimaduras do sol. Gritou impacientemente para a máscara de Bond:

— Onde, diabo, está nosso maldito peixe?

Bond ergueu a máscara.

— Parece que conseguiu afastar-se exatamente antes de descer o negócio. Ainda o estou procurando.

Não esperou para ouvir a resposta do Sr. Krest, mas tornou a afundar rapidamente a cabeça na água. Ainda mais carnificina, ainda mais corpos mortos. Mas agora, certamente, o negócio já havia passado. Certamente a área estava segura, se acaso voltasse o peixe, seu peixe, pois ele o havia salvo. No nevoeiro distante houve um lampejo cor de rosa. ele tinha ido. Agora estava de volta. Preguiçosamente, a Raridade de Hildebrand nadou em direção a Bond através do labirinto de canais entre os postos avançados dos recifes.

Sem importar-se com o Sr. Krest, Bond ergueu a mão livre para fora da água e deixou-se cair com uma forte batida. Ainda assim o peixe continuou vindo. Bond soltou a trave de sua espingarda de arpão e disparou-a na direção do peixe. Não adiantou. Bond baixou os pés e começou a andar em direção ao peixe através da confusão de cadáveres. O belo peixe vermelho e preto pareceu parar e estremecer. Depois disparou diretamente através da água na direção de Bond e mergulhou na areia a seus pés, lá ficando parado. Bond só precisou curvar-se para apanhá-lo. Não houve sequer uma última sacudidela da cauda. Simplesmente encheu a mão de Bond, picando ligeiramente a palma com a espinhenta nadadeira dorsal preta. Bond levou-o embaixo dágua, como para preservar suas cores. Quando chegou perto do Sr. Krest, disse “Aqui está” e entregou-lhe o pequeno peixe. Depois nadou em direção à praia.

Naquela noite, com o “Wavekrest” navegando de volta sob uma enorme lua amarela, o Sr. Krest deu ordem para o que chamava de “wingding”.

— Precisamos comemorar, Liz. Isto é tremendo, um dia tremendo. Atingimos o último objetivo e podemos dar o fora destas malditas Seychelles a fim de voltar para a civilização. Que diz de irmos a Mombasa, depois de termos recebido a bordo a tartaruga e aquele maldito papagaio? Voar para Nairobi e tomar o grande avião para Roma, Veneza, Paris... qualquer lugar que você queira. Que diz, tesouro?

Apertou-lhe o queixo e as faces com sua grande mão, fazendo saltar os lábios. Beijou-os secamente. Bond observava os olhos da mulher. Estavam bem fechados. O Sr. Krest soltou. A moça fez massagem no rosto. Ainda estava branco com as marcas dos dedos.

— Puxa, Milt — disse ela meio rindo — você quase me amassou. Você não conhece a própria força. Mas vamos comemorar. Penso que será muito divertido. E aquela ideia de Paris parece grande. Vamos fazer isso, sim? Que devo encomendar para o jantar?

— Diabo... caviar, naturalmente. — disse o Sr. Krest, estendendo as mãos. — Uma daquelas latas de duas libras de Hammacher Schlemmer e todos os acompanhamentos. E aquele champanha rosado.

Virou-se para Bond e perguntou:

— Isso lhe convém, rapaz?

— Parece uma boa refeição — respondeu Bond, mudando de assunto depois. — Que fez com a prenda.

— Formalina. Está lá em cima no convés superior com alguns outros frascos de coisas que recolhemos aqui e acolá... peixes, conchas... Tudo seguro em nosso necrotério doméstico. Foi assim que nos disseram para guardar os espécimes. Remeteremos por via aérea aquele maldito peixe quando voltarmos à civilização. Primeiro darei uma entrevista à imprensa. Deverá sair com grande destaque nos jornais lá da terra. Já dei a notícia pelo rádio à Smithsonian e às agências noticiosas. Meus contadores ficarão muito contentes em ter alguns recortes de jornais para mostrar àqueles malditos rapazes do fisco.

O Sr. Krest ficou muito bêbado naquela noite. Mas não demonstrou muito. A macia voz de Bogart tornou-se mais macia e lenta. A cabeça redonda e pesada virou-se mais deliberadamente sobre os ombros. A chama do isqueiro levou mais tempo para tornar a acender o charuto e um copo foi jogado para longe da mesa. Mas transparecia nas coisas que o Sr. Krest dizia. Havia no homem uma violenta crueldade, um desejo patológico de ferir, bem perto da superfície. Naquela noite, depois do jantar, o primeiro alvo foi James Bond. Teve de ouvir uma explicação em voz mansa sobre as razões pelas quais a Europa, incluindo a Inglaterra e a França, perdia cada vez mais seu valor para o mundo. Hoje em dia, disse o Sr. Krest, só existem três potências: Estados Unidos, Rússia e China. Esse era o grande jogo de pôquer e nenhuma outra nação tinha fichas ou cartas para entrar nele. De vez em quando, algum agradável paisinho — que ele admitia ter sido bastante grande no passado — como a Inglaterra, recebia um pouco de dinheiro emprestado para poder jogar uma mão com os adultos. Mas isso era apenas delicadeza, como a gente às vezes precisa ter — com um amigo do clube que ficou arruinado. Não. A Inglaterra — bela gente, entenda-me, grande espírito esportivo — era um lugar onde se ia para ver edifícios antigos, a Rainha e outras coisas. A França? Só valia pela comida boa e pelas mulheres fáceis. A Itália? Sol e espaguete. Uma espécie de sanatório. A Alemanha? Bem, os alemães ainda tinham um pouco de fibra, mas duas guerras perdidas haviam-lhes tirado o ânimo. O Sr. Krest desfez-se do resto do mundo com alguns chavões semelhantes e depois pediu a opinião de Bond.

Bond estava completamente cansado do Sr. Krest. Disse que achara o ponto de vista do Sr. Krest excessivamente simplificado — ingênuo mesmo, poderia dizer. Acrescentou:

— Seus argumentos fazem-me lembrar um aforisma bastante mordaz que ouvi certa vez a respeito dos Estados Unidos. Quer ouvir?

— Claro, claro.

— É no sentido de que os Estados Unidos progrediram da infância para a senilidade, sem ter passado por um período de maturidade.

O Sr. Krest olhou pensativamente para Bond. Finalmente disse:

— Puxa, Jim, isso é bem direto.

Seus olhos cobriram-se ligeiramente quando os voltou para sua esposa.

— Acho que você concorda com essa observação de Jim, não, tesouro? Lembro-me de tê-la ouvido dizer certa vez que achava que havia algo de bem infantil nos americanos. Lembra-se?

— Oh, Milt — disse Liz Krest, cujos olhos revelavam ansiedade, mostrando que ela soubera ler os sinais. — Como pode trazer isso à baila? Você sabe que foi apenas uma coisa casual que eu disse sobre as histórias em quadrinhos dos jornais. Naturalmente, não concordo com o que James diz. De qualquer maneira, foi apenas uma piada, não foi, James?

— Exatamente — respondeu Bond. — Como o que o Sr. Krest disse da Inglaterra, que nada tem alem de ruínas e uma rainha.

Os olhos do Sr. Krest ainda estavam voltados para a mulher. Disse maciamente:

— Bobagens, tesouro. Por que está parecendo tão nervosa. Naturalmente que foi uma piada.

fez uma pausa e acrescentou:

— Uma piada de que eu me lembrarei, tesouro. De que certamente me lembrarei.

Bond calculou que o Sr. Krest já tinha dentro uma garrafa inteira de várias bebidas alcoólicas, principalmente uísque.

Parecia a Bond que, se ele não perdesse a consciência, não demoraria muito o momento em que teria de acertar o Sr. Krest, só uma vez, mas bem forte, no queixo. Fidele Barbey estava agora recebendo o tratamento.

— Essas suas ilhas, Fido. Quando olhei para elas no mapa pela primeira vez, pensei que fossem apenas algumas sujeiras de mosquitos sobre a página — disse o Sr. Krest, dando uma risadinha. — Tentei mesmo limpá-las com as costas da mão. Depois li um pouco sobre elas e tive a impressão de que minha primeira ideia acertara em cheio. Não prestam para grande coisa, não é, Fido? Admira-me como um rapaz inteligente como você não dá o fora daqui. Mariscar pelas praias não é vida que se leve. Verdade que ouvi dizer que um dos membros de sua família deixou mais de cem filhos ilegítimos. Talvez seja essa a atração, hem, rapaz?

O Sr. Krest sorriu como quem conhece bem as coisas. Fidele Barbey respondeu serenamente:

— Esse foi meu tio Gaston. O resto da família não aprova isso. fez um grande furo na fortuna da família.

— Fortuna da família, hem? — disse o Sr. Krest, piscando para Bond. — Em que estava empregada essa fortuna? Em conchas de caurim?

— Não exatamente. — Fidele Barbey não estava acostumado com o tipo de rudeza do Sr. Krest. Parecia-ligeiramente embaraçado. — Embora tenhamos ganho muito dinheiro com carapaças de tartaruga e madrepérola há uns cem anos quando havia enorme procura dessas coisas. Copra sempre foi nosso principal negócio.

— Usando os bastardos da família como mão-de-obra, suponho eu. Boa ideia. Gostaria de poder arrumar alguma coisa assim em meu círculo doméstico.

O Sr. Krest olhou para sua esposa. Os lábios de borracha viraram-se ainda mais para baixo. Antes da chacota seguinte poder ser proferida, Bond empurrara sua cadeira para trás e saíra para o convés, fechando a porta depois de passar.

Dez minutos depois, Bond ouviu o barulho de pés que desciam a escada do convés superior. Virou-se. Era Liz Krest. Veio ate onde ele estava na popa. Disse com voz tensa:

— Eu disse que ia para a cama. Mas depois pensei em voltar aqui para ver se quer mais alguma coisa. Não sou muito boa dona de casa, acho. Tem certeza que não faz questão de dormir aqui fora?

— Gosto disto. Gosto mais desta espécie de ar que da coisa enlatada lá dentro. E é maravilhoso ter todas essas estrelas para olhar. Nunca tinha visto tantas estrelas.

Ela disse ansiosamente, aproveitando o assunto amistoso:

— Gosto mais da constelação de Orion e do Cruzeiro do Sul. Quando era pequena — sabe? — pensava que as estrelas eram na realidade buracos no céu. Pensava que o mundo era cercado por uma espécie de envoltório grande e preto, fora do qual o universo era cheio de luz brilhante. As estrelas eram apenas buracos no envoltório, que deixavam passar pequenas faíscas de luz. A gente tem ideias terrivelmente tolas quando criança.

Ergueu os olhos para Bond, desejando que ele não a decepcionasse.

— Você provavelmente tem razão — disse Bond. — A gente não deve acreditar em tudo quanto os cientistas dizem. Eles querem tornar tudo monótono. Onde você vivia nessa época?

— Em Ringwood, na New Forest. Era um bom lugar para a gente crescer. Um bom lugar para crianças. Gostaria de voltar lá um dia.

— Você sem dúvida percorreu um longo caminho desde então — disse Bond. — Provavelmente o achou muito monótono.

Ela estendeu a mão e tocou a manga de Bond.

— Por favor, não diga isso. Você não compreende... — havia uma nota de desespero na voz suave. — Não posso suportar o fato de não ter o que outras pessoas têm — pessoas comuns. Quero dizer — disse ela, rindo nervosamente — você não vai acreditar em mim, mas conversar assim durante alguns minutos, ter alguém como você com quem conversar, é coisa de que já quase me esquecera.

De repente, segurou a mão de Bond e apertou-a bem.

— Desculpe. Só queria fazer isto. Agora vou para a cama.

A voz macia veio de trás deles. A fala era pastosa, mas cada palavra era cuidadosamente separada da seguinte.

— Bem, bem. Quem diria? Namorando com o criado submarino!

O Sr. Krest estava enquadrado na portinhola do salão. Firmava-se sobre as pernas bem abertas e tinha os braços estendidos para a padieira em cima de sua cabeça. Com a luz por trás, tinha a silhueta de um cinocéfalo. O ar frio e aprisionado do salão passou por ele e por um momento resfriou o ar quente da noite no convés inferior. O Sr. Krest deu um passo para fora e empurrou delicadamente a porta para trás.

Bond deu um passo em direção a ele, com as mãos caídas dos lados. Mediu a distância que o separava do plexo solar do Sr. Krest.

— Não tire conclusões apressadas, Sr. Krest — disse. — E cuidado com a língua. Teve a sorte de não machucar-se até agora. Não abuse da sorte. O senhor está bêbado. Vá para a cama.

— Ho, ho, ho! Ouçam o atrevido rapaz.

O rosto do Sr. Krest, iluminado pela lua, voltou-se vagarosamente de Bond para sua esposa. fez uma careta desdenhosa. Tirou do bolso um apito de prata e girou-o em sua corrente.

— ele evidentemente não está compreendendo, não acha, tesouro? Você não lhe disse que aqueles hunos estão lá na frente só como enfeite?

Voltou-se de novo para Bond.

— Rapaz, aproxime-se mais e eu soprarei isto... só uma vez. E sabe o que acontecerá? Será o sepultamento do Sr. maldito Bond — disse ele, fazendo um gesto em direção ao mar — pelo costado. Homem ao mar. Uma pena. Voltamos para dar uma busca e sabe o que acontece, rapaz. Por acaso recuamos sobre você com aquelas duas hélices. Parece incrível! Que falta de sorte teve aquele belo rapaz Jim de quem todos nós gostávamos tanto!

O Sr. Krest balançou-se sobre os pés.

— Entendeu, Jim? Okay, então vamos ser amigos de novo e dormir um pouco.

Segurou na padieira da portinhola e virou-se para sua esposa. Ergueu a mão livre e fez um gesto vagaroso com o dedo.

— Ande, tesouro. É hora de ir para a cama.

— Sim, Milt. — Os olhos largos e assustados viraram-se de lado. — Boa-noite, James.

Sem esperar pela resposta, mergulhou por baixo do braço do Sr. Krest e atravessou quase correndo o salão. O Sr. Krest ergueu uma mão.

— Calma, rapaz. Nada de rancores, eh?

Bond nada disse. Continuou olhando duramente para o Sr. Krest.

O Sr. Krest riu hesitantemente. Depois disse:

— Então, okay.

Entrou no salão e fechou a porta. Através da janela, Bond observou-o caminhando vacilante pelo salão e apagando as luzes. Foi para o corredor e houve um clarão momentâneo na porta do camarote particular. Depois a porta também ficou escura.

Bond encolheu os ombros. Santo Deus, que homem! Debruçou-se no peitoril da popa e observou as estrelas e os lampejos de fosforescência na esteira cremosa. Pôs-se então a clarear o espírito e relaxar as tensões de seu corpo.

Meia hora mais tarde, depois de tomar um banho de chuveiro no banheiro da tripulação, Bond estava arrumando uma cama entre as almofadas Dunlopillo empilhadas quando ouviu um angustioso grito. O grito cortou a noite por um instante e depois foi sufocado. Era a mulher. Bond atravessou correndo o salão e desceu pelo corredor. Com a mão na porta do camarote, parou. Podia ouvir os soluços dela e, acima deles, a voz macia e monótona do Sr. Krest. Tirou a mão do trinco. Diabo! Que tinha com isso? Eram marido e mulher. Se ela estava disposta a suportar essa espécie de coisa sem matar seu marido ou abandoná-lo, não adiantava Bond fazer o papel de Sir Galahad. Bond voltou vagarosamente pelo corredor. Quando estava atravessando o salão, o grito, desta vez menos pungente, ecoou de novo. Bond praguejou fluentemente, saiu, deitou-se em sua cama e tentou focalizar seu espírito no suave roncar dos diesels. Como podia uma mulher ter tão pouca coragem? Ou será que as mulheres eram capazes de suportar quase tudo de um homem? Tudo, exceto a indiferença? O espírito de Bond recusava desembaraçar-se. O sono distanciava-se cada vez mais.

Uma hora mais tarde, Bond chegara à beira da inconsciência quando, acima dele no convés superior, o Sr. Krest começou a roncar. Na segunda noite após terem saído de Port Victoria, o Sr. Krest deixara sua cabina no meio da noite e subira para a rede que ficava pendurada para ele entre a lancha e o pequeno bote. Mas naquela noite não havia roncado. Agora estava roncando com aquele barulho profundo e estrondoso que resulta de grandes pílulas azuis de sedativo em cima de álcool em excesso.

Aquilo já era demais. Bond olhou para seu relógio. Uma e meia. Se o ronco não parasse em dez minutos, Bond desceria para a cabina de Fidele Barbey e dormiria no chão, ainda que tivesse de acordar duro e gelado na manhã seguinte.

Bond observou o ponteiro cintilante dar vagarosamente a volta no mostrador. Agora! Levantou-se e estava apanhando sua camisa e seu “short” quando, do convés superior, veio o barulho de uma forte batida. A batida foi seguida imedia-mente por ruídos de luta e um som horrível como de alguém sendo sufocado e gorgolando. Teria o Sr. Krest caído de sua rede? Relutantemente, Bond deixou suas coisas cair de novo no convés e subiu a escada. Quando seus olhos atingiram a altura do convés superior, os sons cessaram. Em seu lugar, houve outro som, ainda mais horrível — o rápido bater de calcanhares. Bond conhecia esse som. Saltou os últimos degraus e correu em direção à figura caída de costas e de braços abertos sob o brilhante luar. Parou e ajoelhou-se devagar, horrorizado. O horror do rosto estrangulado já era bem feio, mas não era a língua do Sr. Krest que saía de sua boca aberta. Era o rabo de um peixe. As cores eram rosa e preto. Era a Raridade de Hildebrand!

O homem estava morto — horrivelmente morto. Quando o peixe fora enfiado em sua boca, ele devia ter estendido a mão e tentado desesperadamente arrancá-lo para fora. Mas os espinhos das nadadeiras dorsais e anais haviam-se prendido por dentro das bochechas e algumas das pontas espinhosas projetavam-se agora através da pele manchada de sangue em roda da boca obscena. Bond estremeceu. A morte devia ter sobrevindo em um minuto. Mas que minuto!

Bond pôs-se em pé vagarosamente. Caminhou até as prateleiras de frascos de vidro e espreitou por baixo do toldo protetor. A tampa de plástico do frasco da ponta estava caída no convés a seu lado. Bond limpou-a cuidadosamente na lona e depois, segurando-a com as pontas das unhas, colocou-a de novo solta sobre a boca do frasco.

Voltou e ficou em pé ao lado do cadáver. Qual dos dois fizera isso? Havia um toque de diabólico ódio no uso da valiosa prenda como arma. Isso sugeria a mulher. Ela certamente tinha suas razões. Mas Fidele Barbey, com seu sangue crioulo, teria tido a crueldade e ao mesmo tempo o macabro senso de humor. “Je lui ai foutu son sacré poisson dans la gueule.” Bond podia ouvi-lo proferindo as palavras. Se, após Bond ter deixado o salão, o Sr. Krest tivesse alfinetado mais um pouquinho os seychellois — particularmente no que se referia à sua família ou suas adoradas ilhas — Fidele Barbey não o teria atacado lá na hora ou usado uma faca. Teria esperado e planejado.

Bond correu os olhos pelo convés. O ronco do homem poderia ter sido um sinal para qualquer dos dois. Havia escadas para o convés superior partindo de ambos os lados das cabinas. O timoneiro na casa do leme nada teria ouvido com o barulho da sala de máquinas. Bastariam segundos para tirar o pequeno peixe de seu banho de formalina e enfiá-lo na boca aberta do Sr. Krest. Bond encolheu os ombros. Quem quer que tivesse feito aquilo não pensara nas consequências — no inevitável inquérito, talvez um julgamento, no qual ele, Bond, seria outro suspeito. Sem dúvida, iam todos meter-se em uma encrenca dos diabos a menos que pudesse arrumar as coisas.

Bond olhou pela beirada do convés superior. Embaixo ficava a faixa de um metro de coberta que se estendia por todo o comprimento do navio. Entre ela e o mar havia um peitoril de uns sessenta centímetros de altura. Supondo-se que a rede tivesse partido e o Sr. Krest tivesse caído, rolado sobre a lancha e pela beirada do convés superior, poderia ter chegado ao mar? Dificilmente, com o mar tão calmo, mas isso é o que ele iria fazer.

Bond pôs-se em ação. Com uma faca de mesa do salão, esfiapou cuidadosamente e depois partiu uma das principais cordas da rede, de modo que esta ficou realisticamente caída no convés. Em seguida, com um pano úmido, limpou as manchas de sangue na madeira e as gotas de formalina que tinham escorrido desde o frasco do peixe. Depois, veio a parte mais difícil — lidar com o cadáver. Cuidadosamente, Bond puxou-o para a beirada do convés, desceu a escada e, erguendo o corpo, segurou-o. O cadáver desceu por cima dele, com um pesado abraço de bêbado. Bond caminhou cambaleante até o peitoril baixo e soltou o cadáver. Houve um último e medonho vislumbre do rosto obscenamente inchado, um enjoativo cheiro de uísque azedo, uma pesada batida e o corpo rolou vagarosamente, levado pelas pequenas ondas da esteira. Bond agachou-se encostado à escotilha do salão, pronto para escorregar por ela se o timoneiro viesse da proa para investigar. Mas não houve movimento na frente do barco e os diesels continuaram roncando firmemente.

Bond suspirou fundo. O “coroner” precisaria ser muito encrenqueiro para pensar em outra coisa além de acidente. Voltou para o convés superior, deu uma última olhada em roda, jogou ao mar a faca e o pano úmido, e desceu a escada para sua cama no convés inferior. Eram duas e quinze. Dez minutos depois, Bond estava dormindo.


Aumentando a velocidade para doze nós, às seis horas da tarde estavam em North Point. Atrás deles, o céu corruscava de raios vermelhos e dourados sobre água-marinha. Os dois homens, com a mulher entre eles, estavam encostados no peitoril do convés inferior e observavam a praia brilhante além do mar, que parecia um espelho de madrepérolas. Liz Krest usava um vestido de linho branco com cinto preto e um lenço preto e branco enrolado no pescoço. As cores da manhã combinavam com a pele dourada. As três pessoas mantinham-se reservadas e quase constrangidas, cada uma delas alimentando seu próprio conhecimento secreto, cada uma delas ansiosa por transmitir às outras duas que seus segredos particulares estavam bem guardados com ela.

Naquela manhã parecia ter havido entre os três uma conspiração para dormir até tarde. Mesmo Bond não fora acordado pelo sol antes das dez horas. Tomou um banho de chuveiro no alojamento da tripulação e conversou com o timoneiro antes de descer para ver o que acontecera com Fidele Barbey. Este ainda estava na cama. Disse que estava de ressaca. Havia sido muito rude com o Sr. Krest? Não conseguia lembrar-se de muita coisa, recordando apenas que o Sr. Krest fora rude com ele.

— Lembra-se do que eu disse sobre ele desde o começo, James? Um fanfarrão safado. Agora concorda comigo? Qualquer dia destes alguém vai tapar para sempre aquela sua feia boca mole.

Inconclusivo. Bond arrumou alguma coisa como desjejum na cozinha e estava comendo quando Liz Krest entrou para fazer o mesmo. Vestia um quimono de xantungue azul pálido até os joelhos. Havia anéis escuros embaixo de seus olhos e ela tomou seu desjejum em pé. Mas parecia perfeitamente calma e à vontade. Segredou com ar de conspiração:

— Desculpe o que aconteceu ontem à noite. Acho que eu também bebi um pouco demais. Mas perdoe Milt. ele é realmente muito amável. Só quando bebe um pouco demais é que fica um tanto difícil. Sempre se arrepende na manhã seguinte. Você vai ver.

Quando já eram onze horas e nenhum dos outros dois mostrava sinais de abrir o jogo, por assim dizer, Bond decidiu forçar a parada. Olhou fixamente para Liz Krest que estava deitada de bruço no convés inferior lendo uma revista e disse:

— A propósito, onde está seu marido? Ainda dormindo?

Ela franziu a testa.

—- Acho que sim. ele foi para sua rede no convés superior. Não tenho ideia que horas eram. Tomei um comprimido de sedativo e dormi até de manhã.

Fidele Barbey tinha uma vara de pesca estendida para fora do barco. Sem voltar os olhos, disse:

— Provavelmente está na casa do leme.

— Se ainda estiver dormindo no convés superior — disse Bond — vai queimar-se como o diabo.

— Oh, pobre Milt! — exclamou Liz Krest. — Eu não havia pensado nisso. Vou lá ver.

Subiu a escada. Quando sua cabeça estava acima do nível do convés superior, parou. Gritou para baixo, ansiosamente:

— Jim. ele não está aqui. E a rede está partida.

— Fidele provavelmente tem razão — respondeu Bond. — Vou olhar lá na frente.

Foi até a casa do leme. Fritz, o imediato, e o mecânico estavam lá. Bond perguntou:

— Alguém viu o Sr. Krest?

Fritz pareceu perplexo.

— Não, senhor. Por quê? Há alguma coisa errada?

Bond assumiu uma expressão de ansiedade.

— ele não está lá atrás. Vamos, deem uma olhada por toda parte. ele estava dormindo no convés superior. Não está lá e sua rede está partida. Estava bem ruim ontem à noite. Vamos! Procurem-no!

Quando se chegou à inevitável conclusão, Liz Krest teve curto, mas convincente acesso de histeria. Bond levou-a para sua cabina e deixou-a lá chorando.

— Está tudo bem, Liz — disse ele. — Fique fora disso. Eu cuidarei de tudo. Teremos de avisar Port Victória pelo rádio e outras coisas. Direi a Fritz para aumentar a velocidade. Acho que não adianta voltar atrás para olhar. Já faz seis horas que nasceu o dia, quando ele não poderia ter caído de bordo sem ser ouvido ou visto. Deve ter sido durante a noite. Acho que umas seis horas nestes mares é o fim.

Ela o fitou, com os olhos muito abertos.

— Quer dizer... quer dizer tubarões e outras coisas?

Bond fez que sim com a cabeça.

— Oh, Milt! Pobre e querido Milt! Oh, por que teria de acontecer isso?

Bond saiu e fechou suavemente a porta.

O iate deu a volta em Cannon Point e diminuiu a velocidade. Conservando-se bem longe dos recifes esparsos, deslizou serenamente através da larga baía, agora cor de limão e cinzenta escura na última luz do dia, em direção ao ancoradouro. A pequena Prefeitura embaixo das montanhas já estava escura com sombras cor de anil nas quais apareciam borrifos de luz amarela. Bond viu a lancha da Alfândega e Imigração sair do Long Pier para encontrá-los. A pequena comunidade já devia estar comentando ativamente a notícia, que devia ter transpirado rapidamente da estação de rádio para o Seychelles Club e de lá, através dos sócios, motoristas e empregados, para a cidade.

Liz Krest virou-se para ele.

— Estou começando a ficar nervosa. Você me ajudará até o fim disto... destas horríveis formalidades e outras coisas?

— Naturalmente.

— Não se preocupem demais — disse Fidele Barbey. — Toda essa gente é minha amiga. E o juiz é meu tio. Todos nós teremos de prestar depoimento. Provavelmente farão a audiência amanhã. Você poderá partir no dia seguinte.

— Pensa mesmo assim? — perguntou Liz Krest, sob cujos olhos o suor parecia orvalho. — O mal é que realmente não sei para onde partir ou que fazer. Suponho — acrescentou, hesitando, sem olhar para Bond — suponho, James, que você não gostaria de ir até Mombasa? Quero dizer, você vai para lá de qualquer jeito e eu poderia levá-lo até lá um dia antes desse seu navio, essa Camp qualquer coisa.

— “Kampala” — esclareceu Bond, acendendo um cigarro para ocultar sua hesitação. Quatro dias em um belo iate com essa mulher? Mas havia o rabo daquele peixe projetando-se da boca! Teria ela feito aquilo? Ou fora Fidele, sabendo que seus tios e primos em Mahe dariam um jeito de nada lhe acontecer de mal? Se pelo menos um deles cometesse uma indiscrição. Bond disse com naturalidade:

— É muita bondade sua, Liz. Naturalmente, eu gostaria de ir.

Fidele Barbey riu baixinho.

— Bravo, meu amigo — disse ele. — E eu gostaria de estar em sua pele, menos por uma coisa. Aquele maldito peixe. É uma grande responsabilidade. Gosto de imaginar vocês dois recebendo torrentes de cabogramas da Smithsonian. Não se esqueçam de que agora vocês dois são curadores de um Koh-i-noor científico. E sabem como são aqueles americanos. Matarão vocês de aborrecimento até terem o bicho nas mãos.

Os olhos de Bond estavam duros como pedra enquanto a observava. Sem dúvida, isso apontava para ela. Agora teria de dar alguma desculpa, para tirar o corpo da viagem. Havia certa coisa naquela maneira particular de matar um homem...

Mas os belos olhos cândidos não vacilaram. Ela ergueu os olhos para o rosto de Fidele Barbey e disse, serenamente, encantadoramente:

— Isso não será problema. Decidi doá-lo ao Museu Britânico.

James Bond notou que agora se juntava orvalho de suor nas têmporas. Mas, afinal de contas, era uma tarde desesperadamente quente...

O ronco dos motores cessou e a corrente da âncora baixou rangendo para a calma baía.

Colombo sacudiu vagarosamente um dedo diante de seu nariz.

— Meu amigo — disse ele — Kristatos é Kristatos. Está fazendo o maior jogo dúplice que é possível conceber. Para mantê-lo — para manter a proteção do serviço secreto americano e de seu pessoal de entorpecentes — precisa jogar-lhes uma vítima de vez em quando — algum homem pequeno da orla do grande jogo. Mas com este problema inglês, o caso é diferente. É um tráfico enorme. Para protegê-lo, era necessária uma grande vítima. Eu fui escolhido — por Kristatos ou por seus empregadores. E é verdade que, se tivesse sido vigoroso em suas investigações e tivesse gasto bastante moeda forte para comprar informações, você poderia ter descoberto a história de minhas operações. Mas cada pista na minha direção teria levado você para mais longe da verdade. No final, pois eu não subestimo seu Serviço, eu teria ido para a prisão. Mas a grande raposa que você está procurando ficaria só rindo do barulho da caçada que morreria à distância.

— Por que Kristatos queria que eu o matasse?

A fisionomia de Colombo assumiu uma expressão astuciosa.

— Meu amigo, eu sei coisas demais. Na fraternidade dos contrabandistas, de vez em quando tropeçamos em um canto do negócio de outro homem. Não há muito tempo, neste barco, tive um combate em retirada com uma pequena canhoneira da Albânia. Um disparo providencial incendiou seu combustível. Só houve um sobrevivente, que foi convencido a falar. Fiquei sabendo muito, mas como um tolo resolvi correr o risco com os campos de minas e desembarquei-o na costa norte de Tirana. Foi um erro. Desde então tenho esse bastardo de Kristatos atrás de mim.

Colombo sorriu cruelmente e acrescentou:

— Tenho uma informação de que ele não tem conhecimento. E temos um encontro com essa informação à primeira luz do dia amanhã, em Santa Maria, pequeno porto pesqueiro logo ao norte de Ancona. E lá — concluiu Colombo, com uma risada áspera e cruel — veremos o que houver para ver.

Bond sorriu brandamente e perguntou:

— Qual é seu preço por tudo isso? Você diz que minha missão estará terminada amanhã de manhã. Quanto?

Colombo sacudiu a cabeça. Disse em tom indiferente:

— Nada. Acontece que nossos interesses coincidem. Você vai prometer-me, porém, que tudo quanto eu disse esta noite ficará entre eu e você, e, se necessário, seu chefe em Londres. Nunca deverá voltar à Itália. Está combinado?

— Sim. Concordo com isso.

Colombo levantou-se. Foi até a cômoda e tirou a arma de Bond. Entregou-a a Bond, dizendo:

— Nesse caso, meu amigo, é melhor ficar com isto, porque vai precisar. E é melhor também dormir um pouco. Haverá rum e café para todos às cinco da manhã.

Estendeu a mão. Bond apertou-a. De repente, os dois homens passaram a ser amigos. Bond sentiu isso.

— Está bem, Colombo — disse desajeitadamente, antes de sair da sala e encaminhar-se para sua cabina.

O “Colombina” tinha uma tripulação de doze homens. Eram homens jovens e de aparência decidida. Falavam em voz baixa entre si enquanto canecas de café quente e rum eram servidas por Colombo na sala. Uma lanterna de tempestade era a única luz — pois o navio fora escurecido — e Bond sorriu consigo mesmo diante da atmosfera de Ilha do Tesouro, do ar de excitação e conspiração. Colombo foi de homem em homem fazendo uma inspeção das armas. Todos tinham Lugers, carregadas embaixo da camisa de malha e por dentro do cós da calça, e facas de mola no bolso. Colombo teve uma palavra de aprovação ou de crítica para cada arma. Ocorreu a Bond que Colombo arrumara uma boa vida para si próprio — uma vida de aventura, emoção e risco. Era uma vida criminosa — um combate em retirada com as leis monetárias, o monopólio estatal de tabaco, a Alfândega e a polícia — mas havia no ar um cheiro de travessura adolescente que mudava a cor do crime de preto para branco — ou pelo menos cinzento.

Colombo olhou para seu relógio. Mandou os homens para seus postos. Apagou a lanterna e, sob a luz cinzenta da madrugada, Bond seguiu-o até a ponte. Viu que o navio estava perto de um litoral preto e rochoso, ao longo do qual navegava em velocidade reduzida. Colombo apontou para frente.

— Do outro lado daquele cabo fica a baía. Nossa aproximação não será observada. Na baía, encostado no desembarcadouro, espero encontrar um navio mais ou menos deste tamanho, descarregando inocentes bobinas de papel de imprensa por uma rampa que entra em um armazém. Depois de dar a volta ao cabo, avançaremos a toda velocidade, encostaremos ao lado desse navio e o abordaremos. Haverá resistência. Haverá cabeças quebradas. Espero que não haja tiros. Não atiraremos a menos que eles comecem. Mas será um navio albanês tripulado por albaneses durões. Se houver tiroteio, você deverá atirar com o resto de nós. Essa gente é inimiga de seu país tanto quanto do meu. Se você morrer, morreu. Está bem?

— Está muito bem.

Quando Bond dizia essas palavras, veio um tilintar do telégrafo da casa das máquinas e a coberta começou a tremer sob seus pés. Fazendo dez nós, o pequeno navio deu a volta ao cabo para entrar na baía.

Aconteceu como Colombo havia dito. Encostado no desembarcadouro de pedra, havia um navio, com suas velas trapeando ociosamente. De sua popa uma rampa de tábuas descia em direção à boca escura de um decrépito armazém de ferro corrugado, em cujo interior estavam acesas fracas luzes elétricas. O navio transportava na coberta uma carga que parecia ser bobinas de papel de imprensa. As bobinas estavam sendo baixadas uma por uma sobre a rampa de onde rolavam por seu próprio peso através da boca do armazém. Havia uns vinte homens à vista. Só a surpresa poderia anular essa desvantagem. Agora o barco de Colombo estava a cinquenta metros de distância do outro navio. Um ou dois dos homens pararam de trabalhar e olharam na direção do barco de Colombo. Um homem correu para dentro do armazém. Nesse instante Colombo deu uma ordem rápida. Os motores pararam e começaram a funcionar ao contrário. Um grande holofote foi aceso na ponta e iluminou brilhantemente toda a cena, enquanto o navio se encostava ao lado do pesqueiro albanês. Ao primeiro e violento contato, arpões foram lançados sobre o parapeito do navio albanês, na frente e atrás, e os homens do “Colombina” subiram pelo costado com Colombo à frente.

Bond havia feito seus próprios planos. Assim que seus pés pisaram na coberta inimiga, correu diretamente através do navio, subiu no parapeito do outro lado e saltou. Havia uma distância de uns quatro metros até o desembarcadouro e Bond nele caiu como um gato, sobre as mãos e as pontas dos pés. Ficou imóvel por um momento, agachado, planejando seu movimento seguinte. O tiroteio já começara na coberta. Um dos primeiros tiros apagara o holofote e agora só havia a luz cinzenta e luminosa da aurora. Um corpo, de um inimigo, caiu sobre as pedras à sua frente e ficou tombado de braços abertos, imóvel. Ao mesmo tempo, da boca do armazém, uma metralhadora leve começou a disparar, lançando rajadas curtas com toque altamente profissional. Bond correu em direção a ela na sombra escura do navio. O homem da metralhadora avistou-o e lançou-lhe uma rajada. As balas zuniram em volta de Bond, bateram no casco de ferro do navio e desapareceram na noite. Bond procurou a proteção da rampa de tábuas e mergulhou para a frente de barriga. As balas enterravam-se na madeira acima de sua cabeça. Bond rastejou para a frente no espaço estreito. Quando chegasse o mais perto possível, poderia escolher entre sair para a direita ou para a esquerda das tábuas. Houve uma série de pesadas batidas e o barulho de algo rolando rapidamente em cima de sua cabeça. Um dos homens de Colombo devia ter cortado as cordas, fazendo com que toda a pilha de bobinas de papel rolasse pela rampa. Agora era a oportunidade de Bond. Saltou para fora de seu esconderijo — para a esquerda. Se estivesse esperando por ele, o homem da metralhadora acreditaria que ia aparecer disparando pela direita. O homem da metralhadora lá estava, agachado e encostado à parede do armazém. Bond disparou duas vezes na fração de segundo antes que o cano brilhante da arma inimiga girasse em seu pequeno arco. O dedo do homem morto premiu o gatilho e, enquanto ele caía, a arma disparou uma curta rajada antes de soltar-se de sua mão e cair ao chão.

Bond estava correndo em direção à porta do armazém quando escorregou e caiu de cabeça. Ficou imóvel por um momento, estonteado, com o rosto em uma poça de melaço preto. Praguejou, ergueu-se sobre as mãos e os joelhos, e correu esconder-se atrás de um monte de bobinas de papel que haviam batido na parede do armazém. De uma delas, furada por uma rajada da metralhadora, escorria o melaço preto. Bond limpou o mais que pôde de suas mãos e de seu rosto. Tinha o cheiro adocicado e rançoso que Bond já sentira certa vez no México. Era ópio bruto.

Uma bala enterrou-se na parede do armazém não longe de sua cabeça. Bond limpou pela última vez a mão nos fundimos da calça e saltou para a porta do armazém. Ficou surpreendido em não ser alvejado do interior assim que sua silhueta apareceu na porta. Dentro estava silencioso e fresco. As luzes haviam sido apagadas, mas agora estava ficando mais claro lá fora. As claras bobinas de papel estavam empilhadas em fileiras metódicas, tendo no centro um espaço para servir como corredor. Na outra extremidade do corredor havia uma porta. Todo esse arranjo parecia olhá-lo de soslaio, desafiando-o. Bond sentiu o cheiro da morte. Recuou para a porta e saiu. O tiroteio tornara-se espasmódico. Colombo vinha correndo rapidamente em sua direção, com os pés perto do chão, como correm os homens gordos. Bond disse peremptòriamente:

— Fique nesta porta. Não entre e não deixe nenhum de seus homens entrar. Vou dar a volta por trás.

Sem esperar por resposta, deu a volta correndo no canto do prédio e avançou pelo lado.

O armazém tinha uns quinze metros de comprimento. Bond diminuiu o passo e caminhou silenciosamente até o outro canto. Encostou-se na parede de ferro corrugado e olhou rapidamente pelo canto. Recuou imediatamente. Havia um homem em pé na entrada do fundo. Tinha os olhos em alguma espécie de orifício para espionar dentro do armazém. Na mão tinha um pistão do qual saíam fios que se estendiam por baixo da porta. Um carro, um conversível preto Lancia Granturismo de capota baixada, estava a seu lado, com o motor roncando maciamente. O carro estava voltado para o interior, em uma estrada empoeirada e profundamente trilhada.

O homem era Kristatos.

Bond ajoelhou-se. Segurou a arma com as duas mãos para ter mais firmeza, inclinou-se para fora do canto do prédio e disparou um tiro contra os pés do homem. Errou. Quase no mesmo instante em que viu a poeira levantar-se a centímetros do alvo, houve o barulho estrondeante de uma explosão. A parede de latão atingiu-o e jogou-o longe.

Bond levantou-se cambaleando. O armazém entortara-se doidamente. Agora começava a ruir barulhentamente, como um maço de cartas de latão. Kristatos estava no automóvel. Já estava vinte metros distante, com as rodas traseiras jogando poeira para o alto. Bond assumiu a clássica pose de tiro de pistola e mirou cuidadosamente. A Walther rugiu e escoiceou três vezes. No último tiro, a cinquenta metros, a figura agachada sobre o volante sacudiu-se para trás. As mãos largaram a direção e estenderam-se para os lados. A cabeça espichou momentaneamente para o alto e caiu para a frente. A mão direita continuou estendida para fora, como se o homem morto estivesse fazendo sinal de virar à direita. Bond começou a correr pela estrada, esperando que o carro parasse, mas as rodas estavam presas nos trilhos e, com o peso do pé direito do homem morto ainda sobre o acelerador, o Lancia continuou a correr em sua gritante terceira. Bond parou e ficou observando-o. O carro corria pela estrada plana que atravessava uma planície queimada e a nuvem de poeira branca erguia-se alegremente atrás dele. Bond esperava que a qualquer momento ele saísse da estrada, mas não saiu. Ficou olhando-o até perdê-lo de vista no nevoeiro da manhã que prometia um belo dia.

Bond travou sua arma e enfiou-a na cintura da calça. Quando se virou, viu Colombo aproximando-se. O homem gordo sorria encantado. Chegou até a Bond e, para horror deste, estendeu seus braços abertos, puxou Bond em sua direção e beijou-o em ambas as faces.

— Pelo amor de Deus, Colombo! — disse Bond.

Colombo estourou numa risada.

— Ah, o fleugmático inglês! Nada teme, senão as emoções. Mas eu — disse batendo no próprio peito — eu, Enrico Colombo, gosto deste homem e não tenho vergonha de confessá-lo. Se você não tivesse liquidado o homem da metralhadora, nenhum de nós teria sobrevivido. Perdi dois de meus homens e outros ficaram feridos. Mas só restou em pé meia dúzia de albaneses, que fugiram para a aldeia. Sem dúvida, a polícia os prenderá. E agora você mandou aquele maldito Kristatos de automóvel para o inferno. Que esplêndido fim para ele! Que acontecerá quando o pequeno esquife de corrida chegar à rodovia principal? ele já está fazendo sinal com a mão de que vai virar à direita para entrar na auto-estrada. Espero que se lembre de entrar à direita.

Colombo deu um violento tapa no ombro de Bond.

— Vamos, meu amigo — disse ele. — É tempo de sairmos daqui. As válvulas estão abertas no navio albanês, que logo irá ao fundo. Não há telefone neste lugarzinho. Levaremos uma boa vantagem sobre a polícia. Demorarão algum tempo para conseguir saber alguma coisa dos pescadores. Falei com o chefe. Ninguém aqui gosta de albaneses. Mas precisamos ir embora. Temos uma boa vela ao vento e não há médico em que eu possa confiar deste lado de Veneza.

Chamas estavam começando a aparecer no desmoronado armazém e dele se desprendiam vagalhões de fumaça que cheiravam como legumes doces. Bond e Colombo caminharam contra o vento. O navio albanês encostara-se no fundo e suas cobertas estavam inundadas. Atravessaram o navio andando sobre a água e subiram para bordo do “Colombina”, onde Bond precisou submeter-se a mais apertos de mão e tapas nas costas. Partiram imediatamente e rumaram para o cabo que guardava a baía. Havia um pequeno grupo de pescadores em pé ao lado de seus barcos puxados para a praia abaixo de um amontoado de cabanas de pedra. Causavam uma impressão desagradável, mas quando Colombo acenou com a mão e gritou algo em italiano, a maioria deles ergueu a mão em despedida e um deles gritou em resposta algo que fez a tripulação do “Colombina” rir. Colombo explicou:

— Dizem que nós somos melhores que o cinema de Ancona e devemos voltar de novo.

Bond sentiu desaparecer toda sua excitação. Sentia-se sujo e barbudo. Podia sentir o cheiro de seu próprio suor. Desceu, tomou uma navalha e uma camisa limpa emprestadas de um dos tripulantes, despiu-se em sua cabina e lavou-se. Quando tirou a arma e jogou-a sobre a tarimba, sentiu um cheiro de cordite sair do cano. Isso lhe trouxe de volta o medo, a violência e a morte na madrugada cinzenta. Abriu a vigia. Fora, o mar dançava alegremente e o litoral que recuava, antes negro e misterioso, era agora verde e bonito. Um repentino e delicioso cheiro de toucinho frigindo foi trazido da cozinha pelo vento. Abruptamente, Bond fechou a viga, vestiu-se e foi para a sala.

Sobre um monte de ovos fritos e toucinho defumado, regados por café doce quente misturado com rum. Colombo pôs os pingos nos “ii” e os traços nos “tt”.

— Isso nós conseguimos, meu amigo — disse ele, mastigando torrada. — Era o suprimento de um ano de ópio bruto a caminho da indústria química de Kristatos em Nápoles. É verdade que eu tenho um negócio semelhante em Milão, que serve como conveniente depósito para algumas de minhas mercadorias. Mas não produz coisa alguma mais mortal do que cascara e aspirina. Em toda essa parte da história de Kristatos, onde está escrito Colombo deve-se ler Kristatos. Era ele quem transformava o material em heroína e era ele quem empregava os mensageiros que a levavam para Londres. Aquele enorme carregamento valia talvez um milhão de libras para Kristatos e seus homens. Mas sabe de uma coisa, meu caro James? Não lhe custava um único centavo. Por quê? Porque era presente da Rússia. Presente de um maciço e mortal projétil para ser disparado contra as entranhas da Inglaterra. Os russos podem fornecer quantidades ilimitadas de carga para o projétil. Provém de suas culturas de papoula no Cáucaso e a Albânia é um entreposto conveniente. Mas eles não têm o aparelhamento para disparar o projétil. Kristatos criou o aparelhamento necessário e era ele quem, em nome de seus senhores na Rússia, apertava o gatilho. Hoje, entre nós, destruímos, em meia hora, toda a conspiração. Você pode voltar e dizer a sua gente na Inglaterra que o tráfico cessará. Pode também dizer-lhe a verdade: que a Itália não era a origem dessa terrível arma subterrânea de guerra. Ela provinha de nossos velhos amigos, os russos. Sem dúvida é parte de alguma guerra psicológica de seu aparelhamento de espionagem. Isso posso assegurar-lhe. Talvez, meu caro James — prosseguiu Colombo, sorrindo encorajadoramente — o mandem a Moscou para descobrir isso. Se tal acontecer, esperemos que encontre alguma garota tão encantadora quanto sua amiga Fräulein List Baum para pô-lo no caminho reto da verdade.

— Por que diz “minha amiga”? Ela é sua.

Colombo sacudiu a cabeça.

— Meu caro James, tenho muitos amigos. Você vai passar mais alguns dias na Itália escrevendo seu relatório e sem dúvida — Colombo deu uma risadinha — conferindo algumas das coisas que lhe contei. Talvez passe também uma agradável meia hora explicando as realidades da vida a seus colegas do serviço secreto americano. Entre esses deveres, precisará de companhia — de alguém que lhe mostre as belezas de minha terra adorada. Em países incivilizados, é um costume cortês oferecer uma de suas esposas ao homem que você ama e que deseja homenagear. Eu também sou incivilizado. Não tenho esposas, mas tenho muitas amigas, como Lisl Baum. Ela não precisará receber instruções nessa matéria. Tenho boa razão para acreditar que está esperando seu regresso esta noite.

Colombo enfiou a mão no bolso da calça e tirou algo que deixou cair barulhentamente sobre a mesa em frente de Bond.

— Aqui está a boa razão — disse Colombo, pondo a mão no coração e olhando seriamente para os olhos de Bond. — Dou-a de coração. Talvez venha também do coração dela.

Bond apanhou o objeto. Era uma chave tendo presa a ela uma pesada chapa de metal. Na chapa de metal estava escrito: Albergo Danielli. Quarto 68.


A raridade de Hildebrand

 

 

 

(THE HILDEBRAND RARITY)

 

A arraia tinha uns dois metros de uma extremidade à outra das nadadeiras e talvez três metros de comprimento, desde a ponta rombuda de seu focinho até o fim de sua mortal cauda. Era cinzenta escura com aquele matiz roxo que é muitas vezes um sinal de perigo no mundo submarino. Quando se levantou da areia cor de ouro pálida e nadou por curta distância foi como se uma toalha preta estivesse sendo sacudida dentro da água.

James Bond, com as mãos estendidas ao longo do corpo e nadando apenas com um suave movimento de suas nadadeiras, seguiu a sombra preta através da laguna orlada de palmeiras, esperando oportunidade para um disparo. Raramente matava peixe a não ser para comer, mas havia exceções — as grandes moreias e todos os membros da família do peixe-escorpião. Agora pretendia matar a arraia porque parecia extraordinariamente má.

Eram dez horas da manhã de um dia de abril e a laguna Belle Anse, perto da extremidade sul de Mahe, a maior ilha do arquipélago das Seychelles, estava serena como vidro. A monção noroeste deixara de soprar meses antes e somente em maio começaria a monção sudeste. Agora a temperatura era de 27 graus à sombra e a umidade de noventa. Na laguna, a água fechada estava quase quente. Até os peixes pareciam entorpecidos. Um bodião verde de cinco quilos, mordiscando algas em uma massa de coral, parou apenas para girar os olhos quando Bond passou por cima, e depois voltou à sua refeição. Um cardume de pequenos e chatos peixes cinzentos, nadando rapidamente, abriu-se ao meio com cortesia para dar passagem à sombra de Bond, depois voltou a fechar-se e continuou seu avanço na direção contrária. Uma fileira de seis pequenas lulas, normalmente tão ariscas quanto pássaros, nem sequer tentou modificar sua camuflagem quando Bond passou.

Bond avançava preguiçosamente, conservando a arraia ao alcance da vista. Logo ela se cansaria ou então se tranquilizaria vendo que Bond, o grande peixe à superfície, não atacava. Então pararia em um lugar de areia lisa, mudaria sua camuflagem para o cinzento mais pálido, quase translúcido, e, com suaves ondulações de suas nadadeiras, enterrar-se-ia na areia.

A linha de recifes estava chegando perto e agora havia afloramentos negros de coral e campinas de plantas marinhas. Era como chegar do campo aberto a uma cidade. Por toda parte os coloridos peixes dos recifes resplandeciam e cintilavam. As gigantescas anêmonas do Oceano Indico ardiam como chamas nas sombras. Colônias de espinhosos ouriços do mar formavam manchas em sépia como se alguém tivesse jogado tinta contra as pedras. As brilhantes antenas azuis e amarelas das lagostas agitavam-se para fora de suas fendas como pequenos dragões. De vez em quando, entre as algas marinhas no cintilante leito do mar, avistava-se o brilho sarapintado de um caurim maior que uma bola de golfe — o caurim leopardo e uma vez Bond viu os belos dedos estendidos de uma harpa de Vênus. Mas todas essas coisas já eram comuns para Bond, que continuou nadando firmemente interessado nos recifes apenas como esconderijo através do qual pudesse avançar pelo mar além da arraia e depois persegui-la de volta na direção da praia. A tática deu resultado. Logo a sombra negra e o torpedo marrom que a perseguia estavam voltando através do grande espelho azul. Onde havia uns três metros e meio de água a arraia parou pela centésima vez. Bond parou também, movendo-se suavemente na água. Cautelosamente, ergueu a cabeça e esvaziou a água de seus óculos. Quando tornou a olhar, a arraia havia desaparecido.

Bond tinha uma espingarda de arpão Champion. O arpão tinha na ponta um tridente afiado como agulha — uma arma para curta distância, mas a melhor para operação em recifes. Bond soltou a trava e movimentou-se vagarosamente para a frente, com as nadadeiras oscilando suavemente logo abaixo da superfície para não fazer barulho. Olhou em roda, tentando perscrutar os nebulosos horizontes do grande salão da laguna. Procurava avistar algum corpo volumoso de emboscada. Não seria bom ter um tubarão ou um grande barracuda como testemunha do ataque. Os peixes às vezes gritam quando são feridos e, mesmo quando não gritam, a turbulência e o sangue resultantes de uma luta feroz atraem os limpadores. Mas não havia viva alma à vista e a areia estendia-se para os lados enfumaçados como as tábuas nuas de um palco. Agora Bond podia ver o vago contorno no fundo. Moveu-se até ficar diretamente sobre ele e permaneceu imóvel à superfície, olhando para baixo. Houve um ligeiro movimento na areia. Duas minúsculas fontes de areia dançavam acima dos orifícios semelhantes a narinas nos espiráculos. Atrás dos orifícios estava a ligeira protuberância do corpo. Aquele era o alvo. Dois centímetros e meio atrás dos orifícios. Bond calculou a possível chicotada da cauda para cima, virou vagarosamente a espingarda para baixo e puxou o gatilho.

Embaixo dele houve uma erupção de areia e, por um ansioso momento, Bond nada pôde ver. Depois a linha do arpão ficou esticada e a arraia apareceu, afastando-se dele enquanto sua cauda, em ação reflexa, chicoteava repetidamente sobre o corpo. Na base da cauda, Bond pôde ver os pontudos espinhos de veneno erguendo-se do tronco. Esses eram os espinhos que se supunha terem morto Ulisses, que Plínio dizia ser capaz de destruir uma árvore. No Oceano Indico, onde os venenos do mar são os mais virulentos, um arranhão do ferrão dessa arraia significa morte certa. Cautelosamente, mantendo a arraia em linha esticada, Bond nadou atrás do peixe que lutava ferozmente. Nadou para um lado a fim de desviar a linha da cauda chicoteante que poderia facilmente cortá-la. Essa cauda era o chicote do antigo feitor de escravos do Oceano Indico. Hoje em dia, em Seychelles, é ilegal até mesmo possuir uma cauda dessas, mas elas são transmitidas nas famílias para uso contra esposas infiéis. Quando circula a notícia de que esta ou aquela mulher a eu la crapule, nome provençal da arraia, vale dizer que a mulher não se levantará pelo menos por uma semana. Agora, as chicotadas da cauda estavam-se tornando mais fracas. Bond nadou em volta e por cima da arraia, arrastando-a atrás dele em direção à praia. No raso, a arraia amoleceu e Bond puxou-a para a praia, até um boa distância na água. Mas ainda se conservou longe dela. fez bem. De repente, devido a algum movimento de Bond ou talvez na esperança de apanhar desprevenido seu inimigo, a gigantesca arraia deu um salto para o ar. Bond pulou de lado e arraia caiu de costas. Ficou imóvel com a barriga branca exposta ao sol e a grande e feia boca em forma de foice aspirando e ofegando.

Bond ficou parado olhando para a arraia e pensando o que iria fazer em seguida.

Um homem branco, baixo e gordo, com camisa e calça caquis, saiu debaixo das palmeiras e caminhou em direção a Bond através das plantas marinhas e restos de naufrágios ressecados pelo sol espalhados bem acima da marca da água. Quando estava bastante perto, disse rindo:

— O Velho e o Mar! Quem pescou e quem foi pescado?

Bond virou-se.

— Só poderia ser o único da ilha que não carrega um machete. Fidele, seja bonzinho e chame um de seus homens. Este animal não quer morrer e meu arpão está enterrado nele.

Fidele Barbey, o mais moço dos inúmeros Barbeys que eram donos de quase tudo quanto havia em Seychelles, aproximou-se e ficou olhando para a arraia.

— Essa foi boa. Foi sorte você ter acertado no lugar exato, senão ela o teria arrastado para os recifes e você precisaria largar a espingarda. Demoram como o diabo para morrer. Mas vamos. Preciso levá-lo de volta a Victória. Apareceu uma coisa. Coisa boa. Eu mandarei um de meus homens buscar a espingarda. Você quer a cauda?

Bond sorriu ao responder:

— Eu não sou casado. Mas que acha de uma raie au beurre noir para hoje à noite?

— Hoje à noite, não, meu amigo. Vamos. Onde estão suas roupas?

Enquanto rodavam na perua pela estrada costeira, Fidele disse:

— Já ouviu falar em um americano chamado Milton Krest? Bem, parece que ele é dono dos hotéis Krest e de um negócio chamado Fundação Krest. Uma coisa posso garantir-lhe. ele é dono do melhor iate que se encontra no Oceano Indico. Chegou ontem. O “Wavekrest”. Quase duzentas toneladas. Trinta metros de comprimento. Há de tudo no barco, desde uma bela esposa até um grande gramofone transistorizado sobre balanceiro para que as ondas não sacudam a agulha. Tapetes de três centímetros de grossura de parede a parede. Ar condicionado em toda parte. Os únicos cigarros secos deste lado do continente africano e a melhor garrafa de champanha para depois do desjejum que já provei desde a última vez que vi Paris.

Fidele Barbey riu satisfeito.

— Meu amigo, é um grande barco e se o Sr. Krest é um fanfarrão safado, quem se importa com isso?

— Quem se importa com ele, afinal de contas? Que tem ele a ver com você... ou comigo, para dizer a verdade?

— Só isto, meu amigo. Vamos passar alguns dias navegando com o Sr. Krest... e a Sra. Krest, a bela Sra. Krest. Concordei em levar o navio até Chagrin, a ilha de que já lhe falei. Fica a muitas milhas daqui, ao largo dos African Banks. Minha família nunca encontrou utilidade para ela, a não ser para colecionar ovos de atobá. Fica apenas um metro acima do nível do mar. Faz cinco anos que não vou àquele maldito lugar. Agora, esse Krest quer ir até lá. Está colecionando espécimes marinhos, coisas da sua fundação, e há uns malditos peixinhos que parecem existir apenas ao redor da ilha Chagrin. Pelo menos Krest diz que o único espécime conhecido no mundo veio de lá.

— Parece engraçado. Onde eu entro nessa história?

— Eu sabia que você estava entediado e que ainda tem uma semana antes de partir. Por isso, disse que você era o ás dos pescadores submarinos locais e que logo encontraria o peixe, se existisse. Além disso, tornei claro que não iria sem você. O Sr. Krest concordou. E é só isso. Sabia que você estava em algum lugar aí pelo litoral. Vim rodando até encontrar um pescador que me disse ter visto um homem branco maluco tentando suicidar-se sozinho na Belle Anse. Logo vi que só podia ser você.

Bond riu.

— É extraordinário como esta gente da ilha tem medo do mar. Já era tempo de terem chegado a um acordo com o mar. Dos habitantes de Seychelles são raros os que sabem até mesmo nadar.

— É a Igreja Católica Romana. Não gosta que eles tirem a roupa. Tolice, mas é assim. Quanto a ter medo, não se esqueça que você esteve aqui apenas um mês. Tubarão, barracuda... você não encontrou nenhum deles com fome. E o peixe-pedra? Já viu um homem pisar no peixe-pedra? Com a dor, seu corpo curva-se para trás como um arco. Às vezes, é tão horrível que os olhos literalmente saltam das órbitas. Raros são os que sobrevivem.

Bond disse sem a menor simpatia:

— Deviam usar sapatos ou amarrar os pés quando vão aos recifes. No Pacífico também há desses peixes e o mexilhão gigante ainda por cima. É uma estupidez. Todos se queixam de como são pobres aqui, mas o mar está completamente cheio de peixes. E existem cinquenta variedades de caurim embaixo daquelas pedras. Podiam viver muito bem vendendo isso ao mundo.

Fidele Barbey riu animadamente.

— Bond para Governador! Essa é a chapa. Na primeira oportunidade, vou apresentar a ideia. Você é precisamente o homem para o cargo — longa visão, muitas ideias, abundância de entusiasmo. Caurins! É explêndido. Equilibrarão o orçamento pela primeira vez desde a alta do patchuli depois da guerra. “Vendemos conchas marinhas das Seychelles”. Esse será nosso slogan. Farei com que você colha os louros. Em pouco tempo será Sir James.

— Ganha-se mais dinheiro assim do que tentando cultivar baunilha com prejuízo.

Continuaram a discutir com despreocupada violência até quando as palmeiras cederam lugar às gigantescas árvores sangue-de-drago nos subúrbios da decrépita capital de Mahe.

Quase um mês antes M dissera a Bond que ia mandá-lo às Seychelles.

— O Almirantado está tendo dificuldade com sua nova base nas Maldívias. Comunistas infiltraram-se do Ceilão. Greves, sabotagem... o quadro costumeiro. Talvez tenha de reduzir seus prejuízos e recuar para as Seychelles. Mil e quinhentos quilômetros mais ao sul, mas pelo menos parecem bastante seguras. Mas eles não querem ser apanhados de novo. O Departamento Colonial diz que são seguras como casas. Ainda assim concordei em mandar alguém para oferecer uma opinião independente. Quando Macário lá esteve fechado há alguns anos houve alguns bons sustos em questão de segurança. Barcos pesqueiros japoneses rondando as ilhas, um ou dois trapaceiros refugiados da Inglaterra, fortes ligações com a França. Vá dar uma boa olhada.

Olhando pela janela para a pesada neve de março, M acrescentara:

— Não vá ter insolação.

O relatório de Bond, concluindo que o único risco de segurança concebível nas Seychelles residia na beleza e acessibilidade das seychelloises, fora terminado uma semana antes e depois nada houve a fazer senão esperar o “SS. Kampala” para levá-lo a Mombasa. Estava completamente cheio do calor, das palmeiras, do grito choroso das andorinhas do mar e da interminável conversa sobre copra. A perspectiva de mudança encantava-o.

Bond estava hospedado em sua última semana na casa dos Barbey e, depois de passar por lá a fim de apanhar suas malas, os dois rodaram até o fim do Long Pier e deixaram o carro no barracão da Alfândega. O iate branco e cintilante estava a uns oitocentos metros do ancoradouro. Tomaram uma carona com motor de popa, atravessaram a baía vidrada e passaram pela abertura nos recifes. O “Wavekrest” não era bonito — a largura da boca e o excesso de superestrutura prejudicavam suas linhas — mas Bond pôde ver imediatamente que era um verdadeiro navio, construído para navegar pelo mundo e não apenas pelas Florida Keys. Parecia deserto, mas quando encostaram a seu lado, dois marinheiros de aparência elegante, de camisetas e “shorts” brancos, apareceram e ficaram ao lado da escada com croques prontos para afastar a desprezível canoa da cintilante pintura do barco. Apanharam as duas malas e um deles empurrou uma portinhola de alumínio, fazendo um gesto para que descessem. Um sopro do que pareceu a Bond ser de ar quase gelado atingiu-o quando atravessou a porta e desceu alguns degraus para entrar no saguão.

O saguão estava vazio. Não era uma cabina. Era uma sala de sólida riqueza e conforto sem coisa alguma que a associasse ao interior de um navio. As janelas por trás das persianas semi-cerradas eram de tamanho natural, assim como as fundas poltronas ao redor da mesa central baixa. O tapete era de pelos compridos em azul pálido. As paredes eram cobertas de madeira prateada e o ferro era branco acinzentado. Havia uma mesa com o costumeiro material de escrever e um telefone. Perto do grande gramofone havia um aparador coberto de bebidas. Por cima do aparador via-se o que parecia ser um Renoir extremamente bom — a cabeça e os ombros de uma bela moça de cabelos escuros com uma blusa listrada de preto e branco. A impressão de uma luxuosa sala-de-estar em uma residência de cidade era completada por um grande vaso de jacintos brancos e azuis, sobre a mesa central, e pela bem arrumada prateleira de revistas de um dos lados da mesa.

— Não lhe disse, James?

Bond sacudiu a cabeça com ar de admiração.

— Esta é sem dúvida a maneira de tratar o mar — como se ele não existisse.

Respirou fundo e acrescentou:

— Que alívio ter um bocado de ar fresco. Já tinha quase esquecido seu gosto.

— O negócio lá fora é que é ar fresco, rapaz. Este é enlatado.

O Sr. Milton Krest entrara silenciosamente na sala e estava em pé olhando para eles. Era um homem rijo e coriáceo de pouco mais de cinquenta anos. Parecia forte e sadio. As calças grosseiras de um azul desbotado, o corte militar da camisa e a larga cinta de couro sugeriam que para ele era um fetiche ser assim — parecer durão. Os olhos castanhos pálidos no rosto bronzeado pelo sol eram ligeiramente encobertos e seu olhar era sonolento e desdenhoso. A boca tinha uma curva para baixo que poderia ser humorística ou desdenhosa — provavelmente desdenhosa — e as palavras que lançara na sala, inócuas em si próprias, exceto pelo condescendente “rapaz”, haviam sido jogadas como pequenas moedas a um par de cules. Para Bond a coisa mais estranha no Sr. Krest era a voz. Era um cecear macio e muito atraente através dos dentes. Era exatamente a voz do falecido Humphrey Bogart. Bond correu os olhos pelo homem, desde os esparsos cabelos pretos e grisalhos cortados rente, como fios de ferro espalhados sobre a cabeça redonda, passando pela águia tatuada por cima de uma âncora entoucada no antebraço direito e indo até os pés coriáceos e descalços que assentavam nàuticamente sobre o tapete. Pensou: este homem gosta de considerar-se um herói de Hemingway. Não vou dar-me bem com ele.

O Sr. Krest avançou através do tapete e estendeu a mão.

— O senhor é Bond? Prazer em tê-lo a bordo, Senhor.

Bond estava esperando o aperto de esmagar ossos e enfrentou-o com músculos enrijecidos.

— Mergulho livre ou aqualung?

— Livre e não vou muito fundo. É só passatempo.

— Que faz no resto do tempo.

— Servidor civil.

O Sr. Krest deu uma risada curta e áspera.

— Civilidade e servidão. Vocês, ingleses, são os melhores mordomos e criados de quarto do mundo. Servidor civil, foi o que disse? Acho que provavelmente vamos dar-nos muito bem. Servidores civis é exatamente o que gosto de ter ao meu redor.

O barulho da portinhola da coberta sendo empurrada evitou que Bond perdesse a calma. O Sr. Krest desapareceu de seu espírito quando uma jovem nua e queimada pelo sol desceu os degraus para o salão. Não, ela não estava completamente nua, mas o minúsculo biquíni de cetim marrom pálido tendia a fazer a gente pensar que estava.

— Alô, tesouro. Onde estava escondida? Há muito tempo que não a vejo. Estes são o Sr. Barbey e o Sr. Bond, os rapazes que vão conosco.

O Sr. Krest ergueu a mão na direção da moça e acrescentou:

— Rapazes, esta é a Sra. Krest. A quinta Sra. Krest. E, para que ninguém comece a ter ideias, ela ama o Sr. Krest. Não é, tesouro?

— Ora, não seja tolo, Milt. Você sabe que o amo — disse a Sra. Krest, sorrindo lindamente. — Prazer em conhecê-lo, Sr. Barbey. E Sr. Bond. É um prazer tê-los conosco. Tomam alguma coisa.

— Um minuto, tesouro. Quer deixar que eu cuide das coisas a bordo de meu próprio barco, sim?

A voz do Sr. Krest era suave e agradável. A mulher corou.

— Oh, pois não, Milt, naturalmente.

— Então, okay. Assim ficamos sabendo quem é o capitão a bordo do bom navio “Wavekrcst”.

O sorriso divertido abrangia todos eles.

— Muito bem, Sr. Barbey. A propósito, qual é seu primeiro nome? Fidele, não? É um grande nome. Fiel — disse o Sr. Krest, rindo com bom humor. — Bem, agora, Fido, que tal você e eu subirmos à ponte para pôr em movimento este velho caixãozinho? Talvez seja melhor você levá-lo até o alto mar, depois traçar uma rota e entregar o resto a Fritz. Eu sou o capitão. ele é o imediato e há mais dois homens para a casa das máquinas e a copa. Todos os três são alemães. Os únicos bons marinheiros que restam na Europa. E o Sr. Bond, qual é o primeiro nome? James, não? Bem, Jim, que tal praticar um pouco daquela civilidade e servidão com a Sra. Krest. A propósito, pode chamá-la de Liz. Ajude-a a arrumar os canapés e outras coisas para os drinques antes do almoço. Ela também era inglesa antigamente. Vocês podem bater um papo sobre Piccadilly Circus e as Dooks que ambos conhecem. Okay? Vamos, Fido.

Subiu correndo infantilmente os degraus, ao mesmo tempo que acrescentava:

— Vamos dar o fora daqui rápidos como o diabo. Quando a portinhola se fechou, Bond deixou escapar um fundo suspiro. A Sra. Krest disse em tom de desculpa:

— Por favor, não se aborreça com as piadas dele. É apenas seu senso de humor. E ele é um pouco do contra. Gosta de ver se consegue irritar as pessoas. É muita maldade dele. Mas tudo realmente é brincadeira.

Bond sorriu tranquilizadoramente. Quantas vezes tivera ela de dizer essas mesmas coisas a pessoas, de procurar acalmar pessoas sobre as quais o Sr. Krest praticara seu “senso de humor”?

— Acho que seu marido precisa de uma pequena lição. ele age desse jeito também nos Estados Unidos?

Ela respondeu sem rancor:

— Só comigo. ele adora os americanos. Só é assim quando está no estrangeiro. Seu pai — sabe? — era alemão, realmente prussiano. ele tem essa tola maneira alemã de pensar que os europeus etc. são decadentes, que não prestam mais. Não adianta discutir com ele. ele é assim mesmo.

Então era isso! O velho huno de novo. Sempre a seus pés ou em sua garganta. Senso de humor, realmente! E que não precisaria suportar essa mulher, essa bela moça que ele arrumara para ser sua escrava — sua escrava inglesa? Bond perguntou:

— Há quanto tempo está casada?

— Dois anos. Eu trabalhava como recepcionista em um de seus hotéis. ele é dono do Grupo Krest, sabe? Foi maravilhoso. Como uma história de fadas. Ainda preciso beliscar-me de vez em quando para ter certeza de não estar sonhando. Isto, por exemplo — mostrou com a mão a luxuosa sala — e ele é extraordinariamente bom comigo. Está sempre dando-me presentes. É um homem muito importante nos Estados Unidos, sabe? É bom a gente ser tratada como realeza em todo lugar aonde vai.

— Deve ser. ele gosta dessas coisas, não?

— Oh, sim. — Havia resignação na risada. — Há muito de sultão nele. Fica impaciente quando não obtém o serviço apropriado. Diz que, depois de trabalhar arduamente para chegar ao alto da árvore, a gente tem direito ao melhor fruto que nela cresce.

A Sra. Krest achou que estava falando com excessiva liberdade. Acrescentou rapidamente:

— Mas, realmente, que estou dizendo? Poderiam pensar que nos conhecemos há anos.

Sorriu timidamente.

— Acho que é o ato de encontrar alguém da Inglaterra. Mas preciso mesmo ir vestir um pouco mais de roupa. Eu estava tomando banho de sol no convés.

Um ronco surdo veio do fundo do barco, à meia-nau.

— Pronto. Já partimos. Por que não vai ao convés de ré observar o barco deixar a baía. Irei procurá-lo lá dentro de um minuto. Há tanta coisa que desejo ouvir a respeito de Londres.

Passou ao lado dele e abriu uma porta.

— Para dizer a verdade, se fôr sensato, procurará passar as noites aqui. Há estofados em abundância e as cabinas tendem a ficar um pouco abafadas, apesar do ar condicionado.

Bond agradeceu-lhe, saiu e fechou a porta depois de passar. Era um grande convés com piso de cânhamo e, na popa, um sofá semicircular de espuma de borracha cor de creme. Havia cadeiras de palhinha espalhadas e um bar a um canto. Passou pela ideia de Bond que o Sr. Krest talvez bebesse muito. Seria sua imaginação ou a Sra. Krest estaria aterrorizada por ele? Havia algo de dolorosamente servil em sua atitude com relação a ele. Sem dúvida, tivera de pagar muito caro por sua “história de fadas”. Bond observou as costas verdes de Mahe afastarem-se vagarosamente da popa. Calculou que desenvolviam uma velocidade de uns dez nós. Logo estariam na North Point, rumando para alto mar. Bond ouviu o glutinoso borbulhar do escapamento e pensou ociosamente na bela Sra. Elizabeth Krest.

Ela poderia ter sido modelo — provavelmente o fora antes de tornar-se recepcionista de hotel — aquela respeitável profissão feminina que ainda tem um ar de alto demi-monde — e ainda movia seu belo físico com o desembaraço de quem está acostumada a andar sem nada ou praticamente nada sobre o corpo. Mas nela nada havia da frieza do modelo — era um corpo quente e um rosto amável e confiante. Poderia ter uns trinta anos, não mais certamente, e sua boniteza, pois não passava disso, ainda era imatura. Sua melhor característica era a cabeleira loura acinzentada que caía pesadamente até a base do pescoço, mas ela dava a agradável impressão de não sentir vaidade nisso. Não a sacudia, nem mexia nela. Ocorreu a Bond que realmente não demonstrava o menor sinal de coquetismo. Permanecia quieta, quase dócil, com os grandes olhos azuis claros fixados no marido quase o tempo todo. Não havia batom em seus lábios, nem esmalte nas unhas das mãos e dos pés, e suas sobrancelhas eram naturais. Ordenaria o Sr. Krest que fosse assim — que ela fosse uma filha germânica da natureza? Provavelmente. Bond encolheu os ombros. Formavam sem dúvida um casal curiosamente dessemelhante — o Hemingway de meia-idade com voz de Bogart e a mulher bonita e simples. E havia tensão no ar — na maneira como ela se encolhera quando ele lhe chamara à atenção por ter oferecido bebidas e na forçada masculinidade do homem. Bond brincou ociosamente com a noção de que o homem era impotente e toda a firme e rude representação não passava de exagerada exibição de virilidade. Certamente não ia ser fácil viver com eles durante quatro ou cinco dias. Bond observou a bela ilha Silhouette afastar-se à distância e tomou a decisão de não perder a calma. Como era aquela expressão americana? “Comer corvo”. Seria um interessante exercício mental para ele. Comeria corvo durante cinco dias e não deixaria que esse maldito homem interferisse no que deveria ser um bom passeio.

— Bem, rapaz. Descansando?

O Sr. Krest estava em pé no convés superior, olhando para baixo.

— Que fez com aquela mulher com quem eu vivo? Acho que deixou todo o serviço para ela. Bem e por que não? É para isso que elas servem, não é? Quer dar uma olhada no navio? Fido está cuidando um pouco do leme e eu tenho tempo de sobra.

Sem esperar pela resposta, o Sr. Krest agachou-se e desceu para o convés inferior, deixando-se cair no último metro da altura.

— A Sra. Krest foi vestir roupa. Sim, eu gostaria de ver o navio.

O Sr. Krest fixou em Bond seu olhar duro e desdenhoso.

— Okay. Bem, primeiro os fatos. Foi construído pela Bronson Shipbuilding Corporation. Acontece que eu tenho noventa por cento das ações, de modo que obtenho o que quero. Desenhado por Rosenblatts, os grandes arquitetos navais. Trinta metros de comprimento por seis e meio de largura, com dois metros de calado. Dois motores diesel Superior de quinhentos H.P. Velocidade máxima, quatorze nós. Faz quatro mil quilômetros com oito nós. Ar condicionado em toda parte. Carrier Corporation desenhou duas unidades especiais de cinco toneladas. Transporta alimentos congelados e bebidas suficientes para um mês. Só precisamos de água doce para os banheiros e chuveiros. Certo? Agora vamos até a frente e você verá os alojamentos da tripulação. Depois, viremos para trás. Não precisa preocupar-se com a cabeça. Em todo lugar há um metro e oitenta e cinco de altura.

Bond seguiu o Sr. Krest pelo estreito corredor que se estendia ao longo de todo o barco e, durante meia hora, fez comentários apropriados sobre o que era sem dúvida o iate melhor e mais luxuosamente planejado que já vira. Em todos os pormenores, havia uma margem para conforto adicional. Até mesmo o banheiro e chuveiro da tripulação eram bem espaçosos e a cozinha de aço inoxidável era tão grande quanto o camarote de Krest. O Sr. Krest abriu a porta deste último sem bater. Liz Krest estava diante da penteadeira.

— Oh, tesouro — disse o Sr. Krest com sua voz macia — Pensei que estivesse arrumando a bandeja de bebidas. Você demorou um tempão para vestir-se. Pondo um pouquinho de Ritz extra para Jim, hem?

— Desculpe, Milt. Eu já ia sair. Um ziper ficou preso. A Sra. Krest apanhou apressadamente um estôjo de pó e encaminhou-se para a porta. Dirigiu aos dois um meio-sorriso nervoso e saiu.

— Lambris de bétula de Vermont. Abajures de vidro de Corning. Tapetes mexicanos. Aquela pintura de um veleiro é um genuíno Montague Dawson...

O catálogo do Sr. Krest prosseguiu sem parar. Mas Bond estava olhando algo que pendia quase escondido pela mesa de cabeceira do que era evidentemente o lado do Sr. Krest na enorme cama de casal. Era um fino chicote de cerca de um metro de comprimento com um cabo de tiras de couro. Era o rabo de arraia.

Com ar indiferente, Bond caminhou até o lado da cama e apanhou-o. Correu um dedo por sua superfície espinhenta. Só de fazer isso sentiu doer o dedo. Disse:

— Onde arranjou isto? Estive caçando um destes animais hoje de manhã.

— Em Bahrein. Os árabes usam-nos em suas esposas — respondeu o Sr. Krest, rindo facilmente. — Até agora não precisei dar mais que uma chicotada de cada vez em Liz. Resultados maravilhosos. Chamamo-lo de meu “Corretivo”.

Bond tornou a pôr o objeto no lugar. Olhou duramente para o Sr. Krest e disse:

— É assim? Nas Seychelles, onde os crioulos são bem durões, é ilegal até mesmo possuir um desses, quanto mais usá-lo.

O Sr. Krest encaminhou-se para a porta e disse em tom indiferente:

— Rapaz, acontece que este navio é território dos Estados Unidos. Vamos tomar alguma coisa.

O Sr. Krest tomou três “bullshots” duplos — vodca com consommé gelado — antes do almoço e cerveja com a refeição. Os olhos pálidos escureceram um pouco e adquiriram um brilho aguado, mas a voz sibilante continuou macia e sem ênfase enquanto com absoluto monopólio da conversação, ele explicava o objetivo da viagem.

— O negócio é o seguinte, rapazes. Nos Estados Unidos, temos esse sistema de Fundação para os sujeitos de sorte que ganharam muito dinheiro e não querem entregá-lo ao Tesouro de Tio Sam. Você faz uma Fundação — como esta, a Fundação Krest — para fins de caridade — caridade para qualquer coisa, crianças, doentes, a causa da ciência. Simplesmente dá o dinheiro para qualquer pessoa ou qualquer coisa, menos para você mesmo e seus dependentes. Assim, escapa do imposto. Por isso, empatei coisa de dez milhões de dólares na Fundação Krest e, como gosto de viajar de iate e ver o mundo, comprei este iate com dois milhões do dinheiro e disse à Smithsonian — nossa grande instituição de história natural — que iria a qualquer lugar do mundo buscar espécimes para ela. Isso faz de mim uma expedição científica, entendem? Durante três meses do ano gozo férias maravilhosas que não me custam nada!

O Sr. Krest olhou para seus convidados, esperando aplausos.

— Entenderam? — perguntou.

Fidele Barbey sacudiu a cabeça com ar de dúvida.

— Parece ótimo, Sr. Krest. Mas e esses espécimes raros. É fácil encontrá-los? A Smithsonian pode querer uma panda gigante ou uma concha marinha. Será capaz de conseguir essas coisas quando ela não conseguiu?

O Sr. Krest sacudiu vagarosamente a cabeça. Disse com ar de pena:

— Rapaz, você parece ter nascido ontem. Dinheiro, só é preciso isso. Você quer um panda? Compra-o de algum maldito jardim zoológico que quer ter aquecimento central para sua casa de répteis, deseja construir um novo edifício para seus tigres ou coisa semelhante. A concha marinha? Você descobre um homem que tem uma delas e lhe oferece tanto dinheiro que ele acaba vendendo-a ainda que chore uma semana. Às vezes, a gente tem um pouco de dificuldade com governos. Um maldito animal é protegido ou coisa semelhante. Muito bem. Vou dar-lhes um exemplo. Cheguei ontem à sua ilha. Quero um papagaio preto da ilha Preslin. Quero uma tartaruga gigante de Aldabra. Quero uma coleção completa de seus caurins e quero este peixe que vamos procurar. Os dois primeiros são protegidos por lei. Faço imediatamente uma visita a seu governador depois de realizar certas investigações na cidade. Excelência, digo eu, sei que deseja ter uma piscina pública para ensinar as crianças locais a nadar. Okay. A Fundação Krest contribuirá com o dinheiro. Quanto? Cinco mil, dez mil? Okay, seja dez mil. Aqui está meu cheque. E preencho o cheque na hora. Mais uma coisinha. Excelência, digo eu, segurando o cheque. Acontece que desejo um espécime desse papagaio preto que existe aqui e uma dessas tartarugas de Aldabra. Sei que são protegidos por lei. Faria questão se eu levasse um espécime de cada um para os Estados Unidos, para a Smithsonian? Bem, há um pouco de palavrório, mas, sabendo que é para a Smithsonian e sabendo que ainda estou segurando o cheque, acabamos fechando o negócio, trocamos apertos de mão e todos ficam felizes. Certo? Bem, na volta paro na cidade para combinar com seu encantador Sr. Abendana, aquele negociante, que arranje o papagaio e a tartaruga, e os guarde para mim. E começo a falar sobre os caurins. Bem, acontece que esse Sr. Abendana vem colecionando as malditas coisas desde criança. Mostra-me sua coleção. Maravilhosamente conservada — cada uma delas em seu pedacinho de algodão. Tudo em ótimo estado e várias daquelas Isabella e Mappa que me pediram particularmente para procurar. Sinto muito, diz ele, mas não posso nem pensar em vender. Significam tanto para mim etc. Bolas! Só olho para o Sr. Abendana e pergunto: quanto? Não, não. Não pode sequer pensar nisso. Bolas de novo! Tiro meu talão de cheques, preencho um cheque de cinco mil dólares e ponho embaixo de seu nariz. ele olha o cheque. Cinco mil dólares! Não pode resistir. Dobra o cheque, guarda-o no bolso e depois o maldito maricas desanda a chorar! Acreditam nisso? — perguntou o Sr. Krest, abrindo as mãos num gesto de incredulidade. — Por causa de algumas malditas conchas marinhas. Então, digo-Ihe que tenha calma, apanho as bandejas de conchas e dou o fora antes que o maluco se mate de remorso.

O Sr. Krest recostou-se na cadeira, satisfeito consigo mesmo.

— Bem, que me dizem disso, rapazes? Vinte e quatro horas na ilha e já consegui três quartos de minha lista. Bem esperto, eh, Jim?

Bond respondeu: — O Senhor provavelmente receberá uma medalha quando voltar. E quanto a esse peixe?

O Sr. Krest levantou-se e remexeu em uma gaveta de sua mesa. Trouxe de volta uma folha datilografada.

— Aqui está — disse, passando a ler: — Raridade de Hildebrand. Apanhanda pelo professor Hildebrand, da Universidade de Witwatersrand, em uma rede ao largo da ilha Chagrin no arquipélago das Seychelles. Abril de 1925.

O Sr. Krest ergueu os olhos e explicou:

— Depois há uma porção de palavrório científico. Fiz com que traduzissem para o inglês comum e aqui está a tradução.

Voltou ao papel e continuou a ler:

— Este parece ser um singular membro da família do peixe-esquilo. O único espécime conhecido, chamado “Raridade de Hildebrand” como homenagem a seu descobridor, tem quinze centímetros de comprimento. A cor é rosa brilhante com listras transversais pretas. As nadadeiras anais, ventrais e dorsais são rosadas. A nadadeira da cauda é preta. Olhos grande e azuis escuros. Se encontrado, é preciso cuidado ao lidar com este peixe porque todas as nadadeiras têm espinhos ainda mais afiados do que é habitual no resto da família. O professor Hildebrand registra que encontrou o espécime em um metro de água à beira do recife sudoeste.

O Sr. Krest jogou o papel sobre a mesa e acrescentou:

— Bem, aí está, rapazes. Estamos viajando cerca de mil milhas a um custo de vários milhares de dólares para tentar descobrir um maldito peixe de quinze centímetros. E há dois anos o pessoal do fisco teve o atrevimento de sugerir que minha fundação era uma mistificação!

Liz Krest interveio ansiosamente.

— Mas é precisamente isso, Milt, não é? Desta vez, é realmente importante levar de volta bastante espécimes e outras coisas. Aqueles horríveis fiscais não estavam falando em cancelar os descontos referentes ao iate e às despesas e outras coisas dos últimos cinco anos se não apresentássemos alguma importante realização científica? Não foi isso que disseram?

— Tesouro — disse o Sr. Krest, cuja voz era macia como veludo. — Que tal se você fechasse essa irresponsável boquinha e não falasse em meus negócios particulares. Sim?

A voz era amável, despreocupada.

— Sabe o que você acaba de fazer, tesouro? Você acaba de ganhar um pequeno encontro com o Corretivo hoje à noite. Foi isso o que você fez.

A mulher levou a mão à boca. Seus olhos estavam arregalados. Disse em um sussurro:

— Oh, não, Milt. Oh, não, por favor.

Na madrugada do dia seguinte no mar avistaram a ilha Chagrin. Foi apanhada primeiro pelo radar — uma pequena saliência na linha plana da tela. Depois uma minúscula mancha no grande horizonte curvo cresceu com infinita lentidão até tornar-se um quilômetro de verde orlado de branco. Era extraordinário chegar à terra depois de dois dias nos quais o iate parecera ser a única coisa móvel, a única coisa viva em um mundo vazio. Bond nunca vira, nem sequer imaginara claramente a calmaria. Agora compreendia que perigo terrível deveria ter sido nos dias da navegação a vela — mar de vidro sob um sol de bronze, o ar viciado e pesado, a esteira de pequenas nuvens ao longo da orla do mundo, que nunca chegavam mais perto, nunca traziam vento ou a abençoada chuva. Quantas centenas de marinheiros não teriam abençoado esse minúsculo ponto no Oceano Indico, quando se curvavam sobre os remos que moviam o pesado navio talvez uma milha por dia! Bond ficou em pé na proa e observou os peixe-voadores saltarem de baixo do casco quando o azul-prêto do mar se transformou vagarosamente no marrom, branco e verde do baixio profundo. Como seria maravilhoso poder em breve andar e nadar ao invés de ficar apenas sentado e deitado. Como seria maravilhoso ter algumas horas de solidão — algumas horas longe do Sr. Milton Krest!

Ancoraram para fora do recife em dez braças de água e Fidele Barbey conduziu-os através da abertura na lancha. Em todos os detalhes, Chagrin era o protótipo da ilha de coral.

Eram uns vinte acres de areia, coral morto e vegetação baixa, cercados, depois de cinquenta metros de laguna rasa, por um colar de recifes sobre o qual as ondas calmas e compridas se quebravam com uma suave sibilar. Nuvens de pássaros ergueram-se quando desembarcaram — andorinhas do mar, atobás, fragatas — mas logo pousaram de novo. Havia um forte cheiro amoniacal de guano, que enbranquecia também a vegetação. As únicas outras coisas vivas eram os caranguejos que corriam entre a liane sans fin e os chama-marés que viviam na areia.

O clarão da areia branca era ofuscante e não havia sombra. O Sr. Krest mandou armar uma tenda e sentou-se dentro dela fumando um charuto, enquanto instrumentos de várias espécies eram transportados para terra. A Sra. Krest nadava e apanhava conchas enquanto Bond e Fidele Barbey punham máscaras e, nadando em direções opostas, começavam a examinar sistematicamente os recifes em toda a volta da ilha.

Quando se está procurando determinada espécie embaixo dágua — concha, peixe, alga marinha ou formação de coral — é preciso conservar o cérebro e os olhos focalizados naquele padrão individual. A orgia de cores e movimentos, a incessante variedade de luz e sombra lutam o tempo todo contra a concentração da pessoa. Bond arrastou-se vagarosamente através do país das maravilhas tendo na mente uma única imagem — um peixe rosado de quinze centímetros com listras pretas e olhos grandes — o segundo desses peixes a ser visto pelo homem. “Se avistá-lo”, recomendara o Sr. Krest, “basta soltar um grito e ficar perto dele. Eu tenho na tenda uma coisinha que é o melhor negócio que você já viu para apanhar peixes.”

Bond parou para descansar os olhos. A água estava tão flutuável que podia ficar deitado de bruço na superfície sem se mover. Ociosamente partiu um ouriço do mar com a ponta de sua lança e observou a horda de cintilantes peixes dos recifes investindo sobre os pedaços de carne amarela entre os espinhos pretos afiados como agulhas. Como era infernal o fato de beneficiar apenas o Sr. Krest se encontrasse a Raridade! Deveria ficar quieto se a encontrasse? Seria uma infantilidade e, além disso, estava sob contrato, por assim dizer.

Bond moveu-se devagar, com os olhos reiniciando automaticamente a busca enquanto seu espírito voltava a considerar a mulher. Ela havia passado o dia anterior na cama. O Sr. Krest dissera que era uma dor de cabeça. Não se voltaria contra ele um dia? Não arranjaria uma faca ou um revólver e, certa noite, quando ele estendesse a mão para aquele maldito chicote, não o mataria? Não. Ela era mole demais, maleável demais. O Sr. Krest escolhera bem. Era do mesmo material com que são feitos os escravos. E os ornamentos de sua “história de fadas” eram preciosos demais. Não perceberia ela que um júri certamente a absolveria se aquele chicote de arraia fosse apresentado no tribunal? Ela poderia ficar com os ornamentos sem esse horrível e odioso homem. Deveria Bond dizer-lhe isso? Não seja ridículo! Como poderia expressá-lo? “Oh, Liz, se quiser matar seu marido, está tudo bem.” Bond sorriu dentro de sua máscara. Que fosse para o inferno! Não interfira na vida dos outros. Provavelmente ela gosta disso. É masoquista. Mas Bond sabia que essa era uma resposta fácil demais. Ali estava uma mulher que vivia amedrontada. Talvez também vivesse odiando. Não se podia ler muita coisa naqueles suaves olhos azuis, mas as janelas tinham-se aberto uma ou duas vezes e através delas aparecera um lampejo de algo semelhante a ódio infantil. Teria sido ódio? Provavelmente fora indigestão. Bond tirou os Krests da cabeça e ergueu os olhos para ver até que ponto da ilha já avançara. O schnorkel de Fidele Barbey estava apenas a uns cem metros de distância. Já tinham quase completado o circuito.

Os dois se encontraram, nadaram até a praia e deitaram na areia. Fidele Barbey disse:

— Nada do meu lado da propriedade, exceto todos os peixes do mundo, menos um. Mas tive um golpe de sorte. Encontrei uma grande colônia de caramujos verdes. É a concha almiscarada grande como uma bola de futebol. Vale um monte de dinheiro. Vou mandar um de meus barcos atrás deles qualquer dia destes. Vi um peixe-papagaio azul que devia pesar bem uns quinze quilos. Manso como um cão, do mesmo modo que todos os peixes daqui. Não tive coragem de matá-lo. E se o matasse, poderia ter havido encrenca. Vi dois ou três tubarões-leopardos rondando do outro lado dos recifes. Sangue na água poderia tê-los atraído. Agora, estou pronto para um drinque e alguma comida. Depois, poderemos trocar de lado e fazer outra tentativa.

Levantaram-se e caminharam pela praia até a tenda. O Sr. Krest ouviu suas vozes e saiu para encontrá-los.

— Nada, não? — perguntou, cocando furiosamente uma axila. — Um maldito mosquito me picou. Esta é uma ilha amaldiçoada. Liz não pôde suportar o cheiro. Voltou para o barco. Acho que é melhor fazer mais uma tentativa e depois dar o fora daqui. Comam alguma coisa. Encontrarão cerveja na bolsa de gelo. Deem-me uma dessas máscaras. Como é que se usa essa maldita coisa? Acho que posso dar uma olhada no fundo do mar já que estou aqui.

Sentaram-se na tenda quente, comeram salada de galinha e beberam cerveja. Carrancudamente, observaram o Sr. Krest tateando e esquadrinhando na água rasa. Fidele Barbey disse:

— ele tem razão, naturalmente. Estas pequenas ilhas são lugares horríveis. Nada além de caranguejos e excremento de pássaros com muito mar em roda. São só os pobres e gelados europeus que sonham com ilhas de coral. A leste de Suez, você não encontra um homem de juízo que dê qualquer coisa por elas. Minha família possui umas dez delas — algumas também de tamanho decente, com pequenas aldeias e boa renda de copra e tartaruga. Bem, se quiser pode ficar com todo o maldito lote em troca de um apartamento em Paris ou Londres.

Bond riu.

— Ponha um anúncio em “The Times” e receberá pilhas ... — começou Bond, quando, a cinquenta metros de distância, o Sr. Krest passou a fazer frenéticos sinais.

— Ou o bastardo encontrou-o ou pisou em uma viola — disse Bond, apanhando sua máscara e correndo para o mar.

O Sr. Krest estava com água até a cintura entre os rasos começos dos recifes. Bateu o dedo excitadamente na superfície. Bond nadou suavemente para frente. Um tapete de plantas marinhas terminava em coral e ocasionais afloramentos negros. Uma dúzia de variedades de borboletas e outros peixes de recifes brincava entre as pedras e uma pequena lagosta sondou na direção de Bond com suas antenas. A cabeça de uma grande moreia verde saiu de um buraco, com as mandíbulas meio abertas mostrando fileiras de afiados dentes. Seus olhos dourados observaram Bond cuidadosamente. Bond divertiu-se ao ver que as pernas cabeludas do Sr. Krest, ampliadas para pálidos troncos de árvores pela água vidrada, não estavam a mais de uns trinta centímetros das mandíbulas da moreia. Deu um encorajador empurrão na moreia com seu arpão, mas a enguia limitou-se a morder as pontas de metal e desaparecer de novo. Bond parou e ficou flutuando, com os olhos perscrutando a brilhante selva. Uma mancha vermelha materializou-se no nevoeiro distante e avançou em sua direção. Deu uma volta bem por baixo dele, como se estivesse exibindo-se. Os olhos azuis escuros examinaram-no sem medo. O pequeno peixe ocupou-se quase constrangido com algumas algas na parte de baixo de um afloramento negro, deu uma corrida em direção a algo suspenso na água e, depois, como se deixasse o palco após exibir seus passos, nadou lânguidamente de volta para o nevoeiro.

Bond afastou-se do buraco da moreia e pôs os pés no chão. Tirou a máscara. Dirigindo-se ao Sr. Krest, que o fitava impacientememte através de seus óculos de mergulho, disse:

— Sim, é ele mesmo. É melhor afastar-se silenciosamente daqui. ele não irá embora a menos que se assuste. Esses peixes de recifes conservam-se sempre nos mesmos lugares.

O Sr. Krest tirou sua máscara.

— Diabo, eu o encontrei! — exclamou reverentemente. — Bem, fui eu mesmo.

Seguiu vagarosamente Bond até a praia. Fidele Barbey estava esperando por eles. O Sr. Krest disse impetuosamente:

— Fido, encontrei aquele maldito. Eu. .. Milton Krest. Que acha disso? Depois que vocês dois, malditos especialistas, procuraram a manhã inteira. Peguei aquela sua máscara — e foi a primeira vez que usei uma dessas máscaras, veja bem — entrei na água e encontrei o maldito peixe em quinze minutos. Que diz a isso, eh, Fido?

— Muito bem, Sr. Krest. Ótimo. Como vamos apanhá-lo agora?

— Ah, ah, ah — fez o Sr. Krest, pestanejando vagarosamente. — Eu tenho a solução para isso. Arranjei-a com um químico amigo meu. Um negócio chamado rotenona. Feito de raiz de timbó. É com isso que os nativos pescam no Brasil. Basta derramá-lo na água, onde flutua sobre aquilo que você está procurando e o apanha infalivelmente. Uma espécie de veneno. Constringe os vasos sanguíneos nas guelras dos peixes. Sufoca-os. Não exerce efeito sobre seres humanos porque eles não têm guelras, entendem?

O Sr. Krest virou-se para Bond.

— Escute, Jim. Você vai até lá e fica vigiando. Não deixe o maldito peixe desaparecer. Fido e eu levaremos o material para lá — disse, apontando a área de onde a água corria para o local vital. — Eu soltarei a rotenona quando você disser. Ela será arrastada na sua direção. Certo? Mas, com os diabos, dê o sinal na hora certa. Eu só tenho uma lata de cinco galões desse negócio. Okay?

Bond respondeu “Está bem” e caminhou vagarosamente, entrando na água. Nadou preguiçosamente para onde estivera antes. Sim, todos ainda estavam lá, cuidando de sua vida. A cabeça pontuda da moreia estava de novo na beirada de seu buraco, a lagosta estendeu novamente as antenas em sua direção. Um minuto depois, como se tivesse encontro marcado com Bond, a Raridade de Hildebrand apareceu. Desta vez nadou até bem perto de seu rosto. Olhou através dos óculos para seus olhos e depois, como se tivesse ficado assustada com o que vira, disparou para colocar-se fora de alcance. Brincou entre as pedras por algum tempo e depois entrou no nevoeiro.

Vagarosamente o pequeno mundo submarino dentro da visão de Bond começou a aceitá-lo como coisa natural. Um pequeno octópode que se camuflara como um pedaço de coral revelou sua presença e avançou cuidadosamente na direção da areia. A lagosta azul e amarela saiu de baixo da pedra e deu alguns passos, admirando-o. Alguns peixes muito pequenos, como os barrigudinhos, mordiscaram suas pernas e seus dedos dos pés, fazendo cócega. Bond partiu um ouriço do mar para eles, que avançaram sobre a comida melhor. Bond ergueu a cabeça. O Sr. Krest, segurando a lata, estava vinte metros à sua direita. Logo começaria a derramar, quando Bond desse o sinal, de modo que o líquido se espalhasse bem sobre a superfície.

— Okay? — perguntou o Sr. Krest. Bond sacudiu a cabeça e respondeu:

— Levantarei o polegar quando ele aparecer de novo aqui. Então você terá de derramar depressa.

— Okay, Jim. Você está na mira da bomba.

Bond afundou a cabeça. Lá estava a pequena coletividade, todos cuidando de sua vida. Logo, para apanhar um peixe que alguém desejava vagamente em um museu a oito mil quilômetros de distância, cem, talvez mil pessoazinhas iam morrer. Quando Bond desse o sinal, a sombra da morte desceria sobre a água. Quanto tempo duraria o veneno? Até que ponto avançaria pelos recifes? Talvez não morressem milhares, mas dezenas de milhares.

Um pequeno baiacu apareceu, com suas minúsculas nadadeiras ruflando como hélices. Um par dos inevitáveis beijupirás listrados de preto e amarelo apareceu de repente, atraído pelo cheiro do ouriço do mar partido.

Dentro dos recifes, quem era o predador no mundo dos pequenos peixes? Quem temiam eles? O pequeno barracuda? Um ocasional peixe-agulha? Agora um grande predador, plenamente crescido, um homem chamado Krest, estava parado nos bastidores, esperando. E esse nem sequer tinha fome. Ia simplesmente matar — quase por divertimento.

Duas pernas marrons apareceram no campo de visão de Bond. Este ergueu os olhos. Era Fidele Barbey com um grande cesto amarrado ao peito e uma rede de cabo comprido.

Bond ergueu a máscara e disse:

— Sinto-me como o bombardeador em Nagasaki.

— Peixes têm sangue frio. Nada sentem.

— Como é que você sabe? Ouvi dizer que gritam quando são feridos.

— Não serão capazes de gritar com esse negócio — disse Barbey indiferentemente. — Estrangula-os. Que há com você? São apenas peixes.

— Sei, sei.

Fidele Barbey passara a vida matando animais e peixes. Enquanto ele, Bond, às vezes não hesitara em matar homens. Por que estava agora fazendo barulho? Não se importara em matar a arraia. Sim, mas aquele era um peixe inimigo. Estes aqui embaixo eram pessoas amigas. Pessoas? A patética ilusão.

— Eh! — exclamou a voz do Sr. Krest. — Que está acontecendo aí? Não é hora de conversa mole. Afunde a cabeça n’água, Jim.

Bond puxou a máscara para baixo e deitou-se de novo sobre a superfície. Imediatamente viu a bela sombra vermelha saindo do nevoeiro distante. O peixe nadou rápido em sua direção, como se o considerasse algo muito natural. Ficou embaixo dele, olhando para cima. Bond disse dentro de sua máscara: “Vá-se embora daqui, seu imbecil!” Deu uma cuti-lada rápida em direção ao peixe com seu arpão. O peixe fugiu novamente para o nevoeiro. Bond levantou a cabeça e furiosamente ergueu o polegar. Era um ridículo e mesquinho ato de sabotagem, do qual já se sentia envergonhado. O líquido oleoso marrom escuro estava sendo derramado na superfície da laguna. Ainda havia tempo de fazer o Sr. Krest parar antes que acabasse tudo — tempo de dar-lhe outra oportunidade de apanhar a Raridade de Hildebrand. Bond ficou imóvel olhando, até pingar a última gota. O Sr. Krest que fosse para o inferno!

Agora o negócio estava sendo vagarosamente arrastado pela correnteza — uma mancha brilhante que se espalhava, refletindo o céu azul com um lustre metálico. O Sr. Krest, o segador gigante, estava avançando com a mancha.

— Pronto, rapazes — disse ele, alegremente. — Já está aí com vocês.

Bond enfiou de novo a cabeça dentro da água. Tudo estava como antes na pequena coletividade. Mas depois, com desnorteante instantaneidade, todos ficaram loucos. Foi como se todos tivessem contraído a dança de São Guido. Vários peixes deram cambalhotas malucas e depois caíram como pesadas folhas sobre a areia. A moreia saiu vagarosamente do buraco no coral, com as mandíbulas abertas. Ficou cuidadosamente em pé sobre a cauda e depois caiu delicadamente de lado. A pequena lagosta deu três sacudidelas com a cauda e virou de costas. O octópode desprendeu-se do coral e deixou-se cair para o fundo, de cabeça para baixo. Depois foram arrastados para a arena os cadáveres vindos mais de cima — peixes de barriga branca, camarões, minhocas, caranguejos, moreias mosqueadas e verdes, lagostas de todos os tamanhos. Como soprados por uma ligeira brisa de morte, os corpos desengonçados, com suas cores já desbotando, passaram vagarosamente. Um peixe-agulha de três quilos batia o bico, lutando contra a morte. Mais abaixo, ao longo dos recifes, havia batidas na superfície, onde peixes ainda maiores tentavam fugir para lugar seguro. Um a um, diante dos olhos de Bond, os ouriços do mar caíram das pedras para fazer manchas de tinta preta na areia.

Bond sentiu um toque em seu ombro. Os olhos do Sr. Krest estavam vermelhos do sol e da cintilação. Havia passado nos lábios uma pasta branca contra queimaduras do sol. Gritou impacientemente para a máscara de Bond:

— Onde, diabo, está nosso maldito peixe?

Bond ergueu a máscara.

— Parece que conseguiu afastar-se exatamente antes de descer o negócio. Ainda o estou procurando.

Não esperou para ouvir a resposta do Sr. Krest, mas tornou a afundar rapidamente a cabeça na água. Ainda mais carnificina, ainda mais corpos mortos. Mas agora, certamente, o negócio já havia passado. Certamente a área estava segura, se acaso voltasse o peixe, seu peixe, pois ele o havia salvo. No nevoeiro distante houve um lampejo cor de rosa. ele tinha ido. Agora estava de volta. Preguiçosamente, a Raridade de Hildebrand nadou em direção a Bond através do labirinto de canais entre os postos avançados dos recifes.

Sem importar-se com o Sr. Krest, Bond ergueu a mão livre para fora da água e deixou-se cair com uma forte batida. Ainda assim o peixe continuou vindo. Bond soltou a trave de sua espingarda de arpão e disparou-a na direção do peixe. Não adiantou. Bond baixou os pés e começou a andar em direção ao peixe através da confusão de cadáveres. O belo peixe vermelho e preto pareceu parar e estremecer. Depois disparou diretamente através da água na direção de Bond e mergulhou na areia a seus pés, lá ficando parado. Bond só precisou curvar-se para apanhá-lo. Não houve sequer uma última sacudidela da cauda. Simplesmente encheu a mão de Bond, picando ligeiramente a palma com a espinhenta nadadeira dorsal preta. Bond levou-o embaixo dágua, como para preservar suas cores. Quando chegou perto do Sr. Krest, disse “Aqui está” e entregou-lhe o pequeno peixe. Depois nadou em direção à praia.

Naquela noite, com o “Wavekrest” navegando de volta sob uma enorme lua amarela, o Sr. Krest deu ordem para o que chamava de “wingding”.

— Precisamos comemorar, Liz. Isto é tremendo, um dia tremendo. Atingimos o último objetivo e podemos dar o fora destas malditas Seychelles a fim de voltar para a civilização. Que diz de irmos a Mombasa, depois de termos recebido a bordo a tartaruga e aquele maldito papagaio? Voar para Nairobi e tomar o grande avião para Roma, Veneza, Paris... qualquer lugar que você queira. Que diz, tesouro?

Apertou-lhe o queixo e as faces com sua grande mão, fazendo saltar os lábios. Beijou-os secamente. Bond observava os olhos da mulher. Estavam bem fechados. O Sr. Krest soltou. A moça fez massagem no rosto. Ainda estava branco com as marcas dos dedos.

— Puxa, Milt — disse ela meio rindo — você quase me amassou. Você não conhece a própria força. Mas vamos comemorar. Penso que será muito divertido. E aquela ideia de Paris parece grande. Vamos fazer isso, sim? Que devo encomendar para o jantar?

— Diabo... caviar, naturalmente. — disse o Sr. Krest, estendendo as mãos. — Uma daquelas latas de duas libras de Hammacher Schlemmer e todos os acompanhamentos. E aquele champanha rosado.

Virou-se para Bond e perguntou:

— Isso lhe convém, rapaz?

— Parece uma boa refeição — respondeu Bond, mudando de assunto depois. — Que fez com a prenda.

— Formalina. Está lá em cima no convés superior com alguns outros frascos de coisas que recolhemos aqui e acolá... peixes, conchas... Tudo seguro em nosso necrotério doméstico. Foi assim que nos disseram para guardar os espécimes. Remeteremos por via aérea aquele maldito peixe quando voltarmos à civilização. Primeiro darei uma entrevista à imprensa. Deverá sair com grande destaque nos jornais lá da terra. Já dei a notícia pelo rádio à Smithsonian e às agências noticiosas. Meus contadores ficarão muito contentes em ter alguns recortes de jornais para mostrar àqueles malditos rapazes do fisco.

O Sr. Krest ficou muito bêbado naquela noite. Mas não demonstrou muito. A macia voz de Bogart tornou-se mais macia e lenta. A cabeça redonda e pesada virou-se mais deliberadamente sobre os ombros. A chama do isqueiro levou mais tempo para tornar a acender o charuto e um copo foi jogado para longe da mesa. Mas transparecia nas coisas que o Sr. Krest dizia. Havia no homem uma violenta crueldade, um desejo patológico de ferir, bem perto da superfície. Naquela noite, depois do jantar, o primeiro alvo foi James Bond. Teve de ouvir uma explicação em voz mansa sobre as razões pelas quais a Europa, incluindo a Inglaterra e a França, perdia cada vez mais seu valor para o mundo. Hoje em dia, disse o Sr. Krest, só existem três potências: Estados Unidos, Rússia e China. Esse era o grande jogo de pôquer e nenhuma outra nação tinha fichas ou cartas para entrar nele. De vez em quando, algum agradável paisinho — que ele admitia ter sido bastante grande no passado — como a Inglaterra, recebia um pouco de dinheiro emprestado para poder jogar uma mão com os adultos. Mas isso era apenas delicadeza, como a gente às vezes precisa ter — com um amigo do clube que ficou arruinado. Não. A Inglaterra — bela gente, entenda-me, grande espírito esportivo — era um lugar onde se ia para ver edifícios antigos, a Rainha e outras coisas. A França? Só valia pela comida boa e pelas mulheres fáceis. A Itália? Sol e espaguete. Uma espécie de sanatório. A Alemanha? Bem, os alemães ainda tinham um pouco de fibra, mas duas guerras perdidas haviam-lhes tirado o ânimo. O Sr. Krest desfez-se do resto do mundo com alguns chavões semelhantes e depois pediu a opinião de Bond.

Bond estava completamente cansado do Sr. Krest. Disse que achara o ponto de vista do Sr. Krest excessivamente simplificado — ingênuo mesmo, poderia dizer. Acrescentou:

— Seus argumentos fazem-me lembrar um aforisma bastante mordaz que ouvi certa vez a respeito dos Estados Unidos. Quer ouvir?

— Claro, claro.

— É no sentido de que os Estados Unidos progrediram da infância para a senilidade, sem ter passado por um período de maturidade.

O Sr. Krest olhou pensativamente para Bond. Finalmente disse:

— Puxa, Jim, isso é bem direto.

Seus olhos cobriram-se ligeiramente quando os voltou para sua esposa.

— Acho que você concorda com essa observação de Jim, não, tesouro? Lembro-me de tê-la ouvido dizer certa vez que achava que havia algo de bem infantil nos americanos. Lembra-se?

— Oh, Milt — disse Liz Krest, cujos olhos revelavam ansiedade, mostrando que ela soubera ler os sinais. — Como pode trazer isso à baila? Você sabe que foi apenas uma coisa casual que eu disse sobre as histórias em quadrinhos dos jornais. Naturalmente, não concordo com o que James diz. De qualquer maneira, foi apenas uma piada, não foi, James?

— Exatamente — respondeu Bond. — Como o que o Sr. Krest disse da Inglaterra, que nada tem alem de ruínas e uma rainha.

Os olhos do Sr. Krest ainda estavam voltados para a mulher. Disse maciamente:

— Bobagens, tesouro. Por que está parecendo tão nervosa. Naturalmente que foi uma piada.

fez uma pausa e acrescentou:

— Uma piada de que eu me lembrarei, tesouro. De que certamente me lembrarei.

Bond calculou que o Sr. Krest já tinha dentro uma garrafa inteira de várias bebidas alcoólicas, principalmente uísque.

Parecia a Bond que, se ele não perdesse a consciência, não demoraria muito o momento em que teria de acertar o Sr. Krest, só uma vez, mas bem forte, no queixo. Fidele Barbey estava agora recebendo o tratamento.

— Essas suas ilhas, Fido. Quando olhei para elas no mapa pela primeira vez, pensei que fossem apenas algumas sujeiras de mosquitos sobre a página — disse o Sr. Krest, dando uma risadinha. — Tentei mesmo limpá-las com as costas da mão. Depois li um pouco sobre elas e tive a impressão de que minha primeira ideia acertara em cheio. Não prestam para grande coisa, não é, Fido? Admira-me como um rapaz inteligente como você não dá o fora daqui. Mariscar pelas praias não é vida que se leve. Verdade que ouvi dizer que um dos membros de sua família deixou mais de cem filhos ilegítimos. Talvez seja essa a atração, hem, rapaz?

O Sr. Krest sorriu como quem conhece bem as coisas. Fidele Barbey respondeu serenamente:

— Esse foi meu tio Gaston. O resto da família não aprova isso. fez um grande furo na fortuna da família.

— Fortuna da família, hem? — disse o Sr. Krest, piscando para Bond. — Em que estava empregada essa fortuna? Em conchas de caurim?

— Não exatamente. — Fidele Barbey não estava acostumado com o tipo de rudeza do Sr. Krest. Parecia-ligeiramente embaraçado. — Embora tenhamos ganho muito dinheiro com carapaças de tartaruga e madrepérola há uns cem anos quando havia enorme procura dessas coisas. Copra sempre foi nosso principal negócio.

— Usando os bastardos da família como mão-de-obra, suponho eu. Boa ideia. Gostaria de poder arrumar alguma coisa assim em meu círculo doméstico.

O Sr. Krest olhou para sua esposa. Os lábios de borracha viraram-se ainda mais para baixo. Antes da chacota seguinte poder ser proferida, Bond empurrara sua cadeira para trás e saíra para o convés, fechando a porta depois de passar.

Dez minutos depois, Bond ouviu o barulho de pés que desciam a escada do convés superior. Virou-se. Era Liz Krest. Veio ate onde ele estava na popa. Disse com voz tensa:

— Eu disse que ia para a cama. Mas depois pensei em voltar aqui para ver se quer mais alguma coisa. Não sou muito boa dona de casa, acho. Tem certeza que não faz questão de dormir aqui fora?

— Gosto disto. Gosto mais desta espécie de ar que da coisa enlatada lá dentro. E é maravilhoso ter todas essas estrelas para olhar. Nunca tinha visto tantas estrelas.

Ela disse ansiosamente, aproveitando o assunto amistoso:

— Gosto mais da constelação de Orion e do Cruzeiro do Sul. Quando era pequena — sabe? — pensava que as estrelas eram na realidade buracos no céu. Pensava que o mundo era cercado por uma espécie de envoltório grande e preto, fora do qual o universo era cheio de luz brilhante. As estrelas eram apenas buracos no envoltório, que deixavam passar pequenas faíscas de luz. A gente tem ideias terrivelmente tolas quando criança.

Ergueu os olhos para Bond, desejando que ele não a decepcionasse.

— Você provavelmente tem razão — disse Bond. — A gente não deve acreditar em tudo quanto os cientistas dizem. Eles querem tornar tudo monótono. Onde você vivia nessa época?

— Em Ringwood, na New Forest. Era um bom lugar para a gente crescer. Um bom lugar para crianças. Gostaria de voltar lá um dia.

— Você sem dúvida percorreu um longo caminho desde então — disse Bond. — Provavelmente o achou muito monótono.

Ela estendeu a mão e tocou a manga de Bond.

— Por favor, não diga isso. Você não compreende... — havia uma nota de desespero na voz suave. — Não posso suportar o fato de não ter o que outras pessoas têm — pessoas comuns. Quero dizer — disse ela, rindo nervosamente — você não vai acreditar em mim, mas conversar assim durante alguns minutos, ter alguém como você com quem conversar, é coisa de que já quase me esquecera.

De repente, segurou a mão de Bond e apertou-a bem.

— Desculpe. Só queria fazer isto. Agora vou para a cama.

A voz macia veio de trás deles. A fala era pastosa, mas cada palavra era cuidadosamente separada da seguinte.

— Bem, bem. Quem diria? Namorando com o criado submarino!

O Sr. Krest estava enquadrado na portinhola do salão. Firmava-se sobre as pernas bem abertas e tinha os braços estendidos para a padieira em cima de sua cabeça. Com a luz por trás, tinha a silhueta de um cinocéfalo. O ar frio e aprisionado do salão passou por ele e por um momento resfriou o ar quente da noite no convés inferior. O Sr. Krest deu um passo para fora e empurrou delicadamente a porta para trás.

Bond deu um passo em direção a ele, com as mãos caídas dos lados. Mediu a distância que o separava do plexo solar do Sr. Krest.

— Não tire conclusões apressadas, Sr. Krest — disse. — E cuidado com a língua. Teve a sorte de não machucar-se até agora. Não abuse da sorte. O senhor está bêbado. Vá para a cama.

— Ho, ho, ho! Ouçam o atrevido rapaz.

O rosto do Sr. Krest, iluminado pela lua, voltou-se vagarosamente de Bond para sua esposa. fez uma careta desdenhosa. Tirou do bolso um apito de prata e girou-o em sua corrente.

— ele evidentemente não está compreendendo, não acha, tesouro? Você não lhe disse que aqueles hunos estão lá na frente só como enfeite?

Voltou-se de novo para Bond.

— Rapaz, aproxime-se mais e eu soprarei isto... só uma vez. E sabe o que acontecerá? Será o sepultamento do Sr. maldito Bond — disse ele, fazendo um gesto em direção ao mar — pelo costado. Homem ao mar. Uma pena. Voltamos para dar uma busca e sabe o que acontece, rapaz. Por acaso recuamos sobre você com aquelas duas hélices. Parece incrível! Que falta de sorte teve aquele belo rapaz Jim de quem todos nós gostávamos tanto!

O Sr. Krest balançou-se sobre os pés.

— Entendeu, Jim? Okay, então vamos ser amigos de novo e dormir um pouco.

Segurou na padieira da portinhola e virou-se para sua esposa. Ergueu a mão livre e fez um gesto vagaroso com o dedo.

— Ande, tesouro. É hora de ir para a cama.

— Sim, Milt. — Os olhos largos e assustados viraram-se de lado. — Boa-noite, James.

Sem esperar pela resposta, mergulhou por baixo do braço do Sr. Krest e atravessou quase correndo o salão. O Sr. Krest ergueu uma mão.

— Calma, rapaz. Nada de rancores, eh?

Bond nada disse. Continuou olhando duramente para o Sr. Krest.

O Sr. Krest riu hesitantemente. Depois disse:

— Então, okay.

Entrou no salão e fechou a porta. Através da janela, Bond observou-o caminhando vacilante pelo salão e apagando as luzes. Foi para o corredor e houve um clarão momentâneo na porta do camarote particular. Depois a porta também ficou escura.

Bond encolheu os ombros. Santo Deus, que homem! Debruçou-se no peitoril da popa e observou as estrelas e os lampejos de fosforescência na esteira cremosa. Pôs-se então a clarear o espírito e relaxar as tensões de seu corpo.

Meia hora mais tarde, depois de tomar um banho de chuveiro no banheiro da tripulação, Bond estava arrumando uma cama entre as almofadas Dunlopillo empilhadas quando ouviu um angustioso grito. O grito cortou a noite por um instante e depois foi sufocado. Era a mulher. Bond atravessou correndo o salão e desceu pelo corredor. Com a mão na porta do camarote, parou. Podia ouvir os soluços dela e, acima deles, a voz macia e monótona do Sr. Krest. Tirou a mão do trinco. Diabo! Que tinha com isso? Eram marido e mulher. Se ela estava disposta a suportar essa espécie de coisa sem matar seu marido ou abandoná-lo, não adiantava Bond fazer o papel de Sir Galahad. Bond voltou vagarosamente pelo corredor. Quando estava atravessando o salão, o grito, desta vez menos pungente, ecoou de novo. Bond praguejou fluentemente, saiu, deitou-se em sua cama e tentou focalizar seu espírito no suave roncar dos diesels. Como podia uma mulher ter tão pouca coragem? Ou será que as mulheres eram capazes de suportar quase tudo de um homem? Tudo, exceto a indiferença? O espírito de Bond recusava desembaraçar-se. O sono distanciava-se cada vez mais.

Uma hora mais tarde, Bond chegara à beira da inconsciência quando, acima dele no convés superior, o Sr. Krest começou a roncar. Na segunda noite após terem saído de Port Victoria, o Sr. Krest deixara sua cabina no meio da noite e subira para a rede que ficava pendurada para ele entre a lancha e o pequeno bote. Mas naquela noite não havia roncado. Agora estava roncando com aquele barulho profundo e estrondoso que resulta de grandes pílulas azuis de sedativo em cima de álcool em excesso.

Aquilo já era demais. Bond olhou para seu relógio. Uma e meia. Se o ronco não parasse em dez minutos, Bond desceria para a cabina de Fidele Barbey e dormiria no chão, ainda que tivesse de acordar duro e gelado na manhã seguinte.

Bond observou o ponteiro cintilante dar vagarosamente a volta no mostrador. Agora! Levantou-se e estava apanhando sua camisa e seu “short” quando, do convés superior, veio o barulho de uma forte batida. A batida foi seguida imedia-mente por ruídos de luta e um som horrível como de alguém sendo sufocado e gorgolando. Teria o Sr. Krest caído de sua rede? Relutantemente, Bond deixou suas coisas cair de novo no convés e subiu a escada. Quando seus olhos atingiram a altura do convés superior, os sons cessaram. Em seu lugar, houve outro som, ainda mais horrível — o rápido bater de calcanhares. Bond conhecia esse som. Saltou os últimos degraus e correu em direção à figura caída de costas e de braços abertos sob o brilhante luar. Parou e ajoelhou-se devagar, horrorizado. O horror do rosto estrangulado já era bem feio, mas não era a língua do Sr. Krest que saía de sua boca aberta. Era o rabo de um peixe. As cores eram rosa e preto. Era a Raridade de Hildebrand!

O homem estava morto — horrivelmente morto. Quando o peixe fora enfiado em sua boca, ele devia ter estendido a mão e tentado desesperadamente arrancá-lo para fora. Mas os espinhos das nadadeiras dorsais e anais haviam-se prendido por dentro das bochechas e algumas das pontas espinhosas projetavam-se agora através da pele manchada de sangue em roda da boca obscena. Bond estremeceu. A morte devia ter sobrevindo em um minuto. Mas que minuto!

Bond pôs-se em pé vagarosamente. Caminhou até as prateleiras de frascos de vidro e espreitou por baixo do toldo protetor. A tampa de plástico do frasco da ponta estava caída no convés a seu lado. Bond limpou-a cuidadosamente na lona e depois, segurando-a com as pontas das unhas, colocou-a de novo solta sobre a boca do frasco.

Voltou e ficou em pé ao lado do cadáver. Qual dos dois fizera isso? Havia um toque de diabólico ódio no uso da valiosa prenda como arma. Isso sugeria a mulher. Ela certamente tinha suas razões. Mas Fidele Barbey, com seu sangue crioulo, teria tido a crueldade e ao mesmo tempo o macabro senso de humor. “Je lui ai foutu son sacré poisson dans la gueule.” Bond podia ouvi-lo proferindo as palavras. Se, após Bond ter deixado o salão, o Sr. Krest tivesse alfinetado mais um pouquinho os seychellois — particularmente no que se referia à sua família ou suas adoradas ilhas — Fidele Barbey não o teria atacado lá na hora ou usado uma faca. Teria esperado e planejado.

Bond correu os olhos pelo convés. O ronco do homem poderia ter sido um sinal para qualquer dos dois. Havia escadas para o convés superior partindo de ambos os lados das cabinas. O timoneiro na casa do leme nada teria ouvido com o barulho da sala de máquinas. Bastariam segundos para tirar o pequeno peixe de seu banho de formalina e enfiá-lo na boca aberta do Sr. Krest. Bond encolheu os ombros. Quem quer que tivesse feito aquilo não pensara nas consequências — no inevitável inquérito, talvez um julgamento, no qual ele, Bond, seria outro suspeito. Sem dúvida, iam todos meter-se em uma encrenca dos diabos a menos que pudesse arrumar as coisas.

Bond olhou pela beirada do convés superior. Embaixo ficava a faixa de um metro de coberta que se estendia por todo o comprimento do navio. Entre ela e o mar havia um peitoril de uns sessenta centímetros de altura. Supondo-se que a rede tivesse partido e o Sr. Krest tivesse caído, rolado sobre a lancha e pela beirada do convés superior, poderia ter chegado ao mar? Dificilmente, com o mar tão calmo, mas isso é o que ele iria fazer.

Bond pôs-se em ação. Com uma faca de mesa do salão, esfiapou cuidadosamente e depois partiu uma das principais cordas da rede, de modo que esta ficou realisticamente caída no convés. Em seguida, com um pano úmido, limpou as manchas de sangue na madeira e as gotas de formalina que tinham escorrido desde o frasco do peixe. Depois, veio a parte mais difícil — lidar com o cadáver. Cuidadosamente, Bond puxou-o para a beirada do convés, desceu a escada e, erguendo o corpo, segurou-o. O cadáver desceu por cima dele, com um pesado abraço de bêbado. Bond caminhou cambaleante até o peitoril baixo e soltou o cadáver. Houve um último e medonho vislumbre do rosto obscenamente inchado, um enjoativo cheiro de uísque azedo, uma pesada batida e o corpo rolou vagarosamente, levado pelas pequenas ondas da esteira. Bond agachou-se encostado à escotilha do salão, pronto para escorregar por ela se o timoneiro viesse da proa para investigar. Mas não houve movimento na frente do barco e os diesels continuaram roncando firmemente.

Bond suspirou fundo. O “coroner” precisaria ser muito encrenqueiro para pensar em outra coisa além de acidente. Voltou para o convés superior, deu uma última olhada em roda, jogou ao mar a faca e o pano úmido, e desceu a escada para sua cama no convés inferior. Eram duas e quinze. Dez minutos depois, Bond estava dormindo.


Aumentando a velocidade para doze nós, às seis horas da tarde estavam em North Point. Atrás deles, o céu corruscava de raios vermelhos e dourados sobre água-marinha. Os dois homens, com a mulher entre eles, estavam encostados no peitoril do convés inferior e observavam a praia brilhante além do mar, que parecia um espelho de madrepérolas. Liz Krest usava um vestido de linho branco com cinto preto e um lenço preto e branco enrolado no pescoço. As cores da manhã combinavam com a pele dourada. As três pessoas mantinham-se reservadas e quase constrangidas, cada uma delas alimentando seu próprio conhecimento secreto, cada uma delas ansiosa por transmitir às outras duas que seus segredos particulares estavam bem guardados com ela.

Naquela manhã parecia ter havido entre os três uma conspiração para dormir até tarde. Mesmo Bond não fora acordado pelo sol antes das dez horas. Tomou um banho de chuveiro no alojamento da tripulação e conversou com o timoneiro antes de descer para ver o que acontecera com Fidele Barbey. Este ainda estava na cama. Disse que estava de ressaca. Havia sido muito rude com o Sr. Krest? Não conseguia lembrar-se de muita coisa, recordando apenas que o Sr. Krest fora rude com ele.

— Lembra-se do que eu disse sobre ele desde o começo, James? Um fanfarrão safado. Agora concorda comigo? Qualquer dia destes alguém vai tapar para sempre aquela sua feia boca mole.

Inconclusivo. Bond arrumou alguma coisa como desjejum na cozinha e estava comendo quando Liz Krest entrou para fazer o mesmo. Vestia um quimono de xantungue azul pálido até os joelhos. Havia anéis escuros embaixo de seus olhos e ela tomou seu desjejum em pé. Mas parecia perfeitamente calma e à vontade. Segredou com ar de conspiração:

— Desculpe o que aconteceu ontem à noite. Acho que eu também bebi um pouco demais. Mas perdoe Milt. ele é realmente muito amável. Só quando bebe um pouco demais é que fica um tanto difícil. Sempre se arrepende na manhã seguinte. Você vai ver.

Quando já eram onze horas e nenhum dos outros dois mostrava sinais de abrir o jogo, por assim dizer, Bond decidiu forçar a parada. Olhou fixamente para Liz Krest que estava deitada de bruço no convés inferior lendo uma revista e disse:

— A propósito, onde está seu marido? Ainda dormindo?

Ela franziu a testa.

—- Acho que sim. ele foi para sua rede no convés superior. Não tenho ideia que horas eram. Tomei um comprimido de sedativo e dormi até de manhã.

Fidele Barbey tinha uma vara de pesca estendida para fora do barco. Sem voltar os olhos, disse:

— Provavelmente está na casa do leme.

— Se ainda estiver dormindo no convés superior — disse Bond — vai queimar-se como o diabo.

— Oh, pobre Milt! — exclamou Liz Krest. — Eu não havia pensado nisso. Vou lá ver.

Subiu a escada. Quando sua cabeça estava acima do nível do convés superior, parou. Gritou para baixo, ansiosamente:

— Jim. ele não está aqui. E a rede está partida.

— Fidele provavelmente tem razão — respondeu Bond. — Vou olhar lá na frente.

Foi até a casa do leme. Fritz, o imediato, e o mecânico estavam lá. Bond perguntou:

— Alguém viu o Sr. Krest?

Fritz pareceu perplexo.

— Não, senhor. Por quê? Há alguma coisa errada?

Bond assumiu uma expressão de ansiedade.

— ele não está lá atrás. Vamos, deem uma olhada por toda parte. ele estava dormindo no convés superior. Não está lá e sua rede está partida. Estava bem ruim ontem à noite. Vamos! Procurem-no!

Quando se chegou à inevitável conclusão, Liz Krest teve curto, mas convincente acesso de histeria. Bond levou-a para sua cabina e deixou-a lá chorando.

— Está tudo bem, Liz — disse ele. — Fique fora disso. Eu cuidarei de tudo. Teremos de avisar Port Victória pelo rádio e outras coisas. Direi a Fritz para aumentar a velocidade. Acho que não adianta voltar atrás para olhar. Já faz seis horas que nasceu o dia, quando ele não poderia ter caído de bordo sem ser ouvido ou visto. Deve ter sido durante a noite. Acho que umas seis horas nestes mares é o fim.

Ela o fitou, com os olhos muito abertos.

— Quer dizer... quer dizer tubarões e outras coisas?

Bond fez que sim com a cabeça.

— Oh, Milt! Pobre e querido Milt! Oh, por que teria de acontecer isso?

Bond saiu e fechou suavemente a porta.

O iate deu a volta em Cannon Point e diminuiu a velocidade. Conservando-se bem longe dos recifes esparsos, deslizou serenamente através da larga baía, agora cor de limão e cinzenta escura na última luz do dia, em direção ao ancoradouro. A pequena Prefeitura embaixo das montanhas já estava escura com sombras cor de anil nas quais apareciam borrifos de luz amarela. Bond viu a lancha da Alfândega e Imigração sair do Long Pier para encontrá-los. A pequena comunidade já devia estar comentando ativamente a notícia, que devia ter transpirado rapidamente da estação de rádio para o Seychelles Club e de lá, através dos sócios, motoristas e empregados, para a cidade.

Liz Krest virou-se para ele.

— Estou começando a ficar nervosa. Você me ajudará até o fim disto... destas horríveis formalidades e outras coisas?

— Naturalmente.

— Não se preocupem demais — disse Fidele Barbey. — Toda essa gente é minha amiga. E o juiz é meu tio. Todos nós teremos de prestar depoimento. Provavelmente farão a audiência amanhã. Você poderá partir no dia seguinte.

— Pensa mesmo assim? — perguntou Liz Krest, sob cujos olhos o suor parecia orvalho. — O mal é que realmente não sei para onde partir ou que fazer. Suponho — acrescentou, hesitando, sem olhar para Bond — suponho, James, que você não gostaria de ir até Mombasa? Quero dizer, você vai para lá de qualquer jeito e eu poderia levá-lo até lá um dia antes desse seu navio, essa Camp qualquer coisa.

— “Kampala” — esclareceu Bond, acendendo um cigarro para ocultar sua hesitação. Quatro dias em um belo iate com essa mulher? Mas havia o rabo daquele peixe projetando-se da boca! Teria ela feito aquilo? Ou fora Fidele, sabendo que seus tios e primos em Mahe dariam um jeito de nada lhe acontecer de mal? Se pelo menos um deles cometesse uma indiscrição. Bond disse com naturalidade:

— É muita bondade sua, Liz. Naturalmente, eu gostaria de ir.

Fidele Barbey riu baixinho.

— Bravo, meu amigo — disse ele. — E eu gostaria de estar em sua pele, menos por uma coisa. Aquele maldito peixe. É uma grande responsabilidade. Gosto de imaginar vocês dois recebendo torrentes de cabogramas da Smithsonian. Não se esqueçam de que agora vocês dois são curadores de um Koh-i-noor científico. E sabem como são aqueles americanos. Matarão vocês de aborrecimento até terem o bicho nas mãos.

Os olhos de Bond estavam duros como pedra enquanto a observava. Sem dúvida, isso apontava para ela. Agora teria de dar alguma desculpa, para tirar o corpo da viagem. Havia certa coisa naquela maneira particular de matar um homem...

Mas os belos olhos cândidos não vacilaram. Ela ergueu os olhos para o rosto de Fidele Barbey e disse, serenamente, encantadoramente:

— Isso não será problema. Decidi doá-lo ao Museu Britânico.

James Bond notou que agora se juntava orvalho de suor nas têmporas. Mas, afinal de contas, era uma tarde desesperadamente quente...

O ronco dos motores cessou e a corrente da âncora baixou rangendo para a calma baía.

Colombo sacudiu vagarosamente um dedo diante de seu nariz.

— Meu amigo — disse ele — Kristatos é Kristatos. Está fazendo o maior jogo dúplice que é possível conceber. Para mantê-lo — para manter a proteção do serviço secreto americano e de seu pessoal de entorpecentes — precisa jogar-lhes uma vítima de vez em quando — algum homem pequeno da orla do grande jogo. Mas com este problema inglês, o caso é diferente. É um tráfico enorme. Para protegê-lo, era necessária uma grande vítima. Eu fui escolhido — por Kristatos ou por seus empregadores. E é verdade que, se tivesse sido vigoroso em suas investigações e tivesse gasto bastante moeda forte para comprar informações, você poderia ter descoberto a história de minhas operações. Mas cada pista na minha direção teria levado você para mais longe da verdade. No final, pois eu não subestimo seu Serviço, eu teria ido para a prisão. Mas a grande raposa que você está procurando ficaria só rindo do barulho da caçada que morreria à distância.

— Por que Kristatos queria que eu o matasse?

A fisionomia de Colombo assumiu uma expressão astuciosa.

— Meu amigo, eu sei coisas demais. Na fraternidade dos contrabandistas, de vez em quando tropeçamos em um canto do negócio de outro homem. Não há muito tempo, neste barco, tive um combate em retirada com uma pequena canhoneira da Albânia. Um disparo providencial incendiou seu combustível. Só houve um sobrevivente, que foi convencido a falar. Fiquei sabendo muito, mas como um tolo resolvi correr o risco com os campos de minas e desembarquei-o na costa norte de Tirana. Foi um erro. Desde então tenho esse bastardo de Kristatos atrás de mim.

Colombo sorriu cruelmente e acrescentou:

— Tenho uma informação de que ele não tem conhecimento. E temos um encontro com essa informação à primeira luz do dia amanhã, em Santa Maria, pequeno porto pesqueiro logo ao norte de Ancona. E lá — concluiu Colombo, com uma risada áspera e cruel — veremos o que houver para ver.

Bond sorriu brandamente e perguntou:

— Qual é seu preço por tudo isso? Você diz que minha missão estará terminada amanhã de manhã. Quanto?

Colombo sacudiu a cabeça. Disse em tom indiferente:

— Nada. Acontece que nossos interesses coincidem. Você vai prometer-me, porém, que tudo quanto eu disse esta noite ficará entre eu e você, e, se necessário, seu chefe em Londres. Nunca deverá voltar à Itália. Está combinado?

— Sim. Concordo com isso.

Colombo levantou-se. Foi até a cômoda e tirou a arma de Bond. Entregou-a a Bond, dizendo:

— Nesse caso, meu amigo, é melhor ficar com isto, porque vai precisar. E é melhor também dormir um pouco. Haverá rum e café para todos às cinco da manhã.

Estendeu a mão. Bond apertou-a. De repente, os dois homens passaram a ser amigos. Bond sentiu isso.

— Está bem, Colombo — disse desajeitadamente, antes de sair da sala e encaminhar-se para sua cabina.

O “Colombina” tinha uma tripulação de doze homens. Eram homens jovens e de aparência decidida. Falavam em voz baixa entre si enquanto canecas de café quente e rum eram servidas por Colombo na sala. Uma lanterna de tempestade era a única luz — pois o navio fora escurecido — e Bond sorriu consigo mesmo diante da atmosfera de Ilha do Tesouro, do ar de excitação e conspiração. Colombo foi de homem em homem fazendo uma inspeção das armas. Todos tinham Lugers, carregadas embaixo da camisa de malha e por dentro do cós da calça, e facas de mola no bolso. Colombo teve uma palavra de aprovação ou de crítica para cada arma. Ocorreu a Bond que Colombo arrumara uma boa vida para si próprio — uma vida de aventura, emoção e risco. Era uma vida criminosa — um combate em retirada com as leis monetárias, o monopólio estatal de tabaco, a Alfândega e a polícia — mas havia no ar um cheiro de travessura adolescente que mudava a cor do crime de preto para branco — ou pelo menos cinzento.

Colombo olhou para seu relógio. Mandou os homens para seus postos. Apagou a lanterna e, sob a luz cinzenta da madrugada, Bond seguiu-o até a ponte. Viu que o navio estava perto de um litoral preto e rochoso, ao longo do qual navegava em velocidade reduzida. Colombo apontou para frente.

— Do outro lado daquele cabo fica a baía. Nossa aproximação não será observada. Na baía, encostado no desembarcadouro, espero encontrar um navio mais ou menos deste tamanho, descarregando inocentes bobinas de papel de imprensa por uma rampa que entra em um armazém. Depois de dar a volta ao cabo, avançaremos a toda velocidade, encostaremos ao lado desse navio e o abordaremos. Haverá resistência. Haverá cabeças quebradas. Espero que não haja tiros. Não atiraremos a menos que eles comecem. Mas será um navio albanês tripulado por albaneses durões. Se houver tiroteio, você deverá atirar com o resto de nós. Essa gente é inimiga de seu país tanto quanto do meu. Se você morrer, morreu. Está bem?

— Está muito bem.

Quando Bond dizia essas palavras, veio um tilintar do telégrafo da casa das máquinas e a coberta começou a tremer sob seus pés. Fazendo dez nós, o pequeno navio deu a volta ao cabo para entrar na baía.

Aconteceu como Colombo havia dito. Encostado no desembarcadouro de pedra, havia um navio, com suas velas trapeando ociosamente. De sua popa uma rampa de tábuas descia em direção à boca escura de um decrépito armazém de ferro corrugado, em cujo interior estavam acesas fracas luzes elétricas. O navio transportava na coberta uma carga que parecia ser bobinas de papel de imprensa. As bobinas estavam sendo baixadas uma por uma sobre a rampa de onde rolavam por seu próprio peso através da boca do armazém. Havia uns vinte homens à vista. Só a surpresa poderia anular essa desvantagem. Agora o barco de Colombo estava a cinquenta metros de distância do outro navio. Um ou dois dos homens pararam de trabalhar e olharam na direção do barco de Colombo. Um homem correu para dentro do armazém. Nesse instante Colombo deu uma ordem rápida. Os motores pararam e começaram a funcionar ao contrário. Um grande holofote foi aceso na ponta e iluminou brilhantemente toda a cena, enquanto o navio se encostava ao lado do pesqueiro albanês. Ao primeiro e violento contato, arpões foram lançados sobre o parapeito do navio albanês, na frente e atrás, e os homens do “Colombina” subiram pelo costado com Colombo à frente.

Bond havia feito seus próprios planos. Assim que seus pés pisaram na coberta inimiga, correu diretamente através do navio, subiu no parapeito do outro lado e saltou. Havia uma distância de uns quatro metros até o desembarcadouro e Bond nele caiu como um gato, sobre as mãos e as pontas dos pés. Ficou imóvel por um momento, agachado, planejando seu movimento seguinte. O tiroteio já começara na coberta. Um dos primeiros tiros apagara o holofote e agora só havia a luz cinzenta e luminosa da aurora. Um corpo, de um inimigo, caiu sobre as pedras à sua frente e ficou tombado de braços abertos, imóvel. Ao mesmo tempo, da boca do armazém, uma metralhadora leve começou a disparar, lançando rajadas curtas com toque altamente profissional. Bond correu em direção a ela na sombra escura do navio. O homem da metralhadora avistou-o e lançou-lhe uma rajada. As balas zuniram em volta de Bond, bateram no casco de ferro do navio e desapareceram na noite. Bond procurou a proteção da rampa de tábuas e mergulhou para a frente de barriga. As balas enterravam-se na madeira acima de sua cabeça. Bond rastejou para a frente no espaço estreito. Quando chegasse o mais perto possível, poderia escolher entre sair para a direita ou para a esquerda das tábuas. Houve uma série de pesadas batidas e o barulho de algo rolando rapidamente em cima de sua cabeça. Um dos homens de Colombo devia ter cortado as cordas, fazendo com que toda a pilha de bobinas de papel rolasse pela rampa. Agora era a oportunidade de Bond. Saltou para fora de seu esconderijo — para a esquerda. Se estivesse esperando por ele, o homem da metralhadora acreditaria que ia aparecer disparando pela direita. O homem da metralhadora lá estava, agachado e encostado à parede do armazém. Bond disparou duas vezes na fração de segundo antes que o cano brilhante da arma inimiga girasse em seu pequeno arco. O dedo do homem morto premiu o gatilho e, enquanto ele caía, a arma disparou uma curta rajada antes de soltar-se de sua mão e cair ao chão.

Bond estava correndo em direção à porta do armazém quando escorregou e caiu de cabeça. Ficou imóvel por um momento, estonteado, com o rosto em uma poça de melaço preto. Praguejou, ergueu-se sobre as mãos e os joelhos, e correu esconder-se atrás de um monte de bobinas de papel que haviam batido na parede do armazém. De uma delas, furada por uma rajada da metralhadora, escorria o melaço preto. Bond limpou o mais que pôde de suas mãos e de seu rosto. Tinha o cheiro adocicado e rançoso que Bond já sentira certa vez no México. Era ópio bruto.

Uma bala enterrou-se na parede do armazém não longe de sua cabeça. Bond limpou pela última vez a mão nos fundimos da calça e saltou para a porta do armazém. Ficou surpreendido em não ser alvejado do interior assim que sua silhueta apareceu na porta. Dentro estava silencioso e fresco. As luzes haviam sido apagadas, mas agora estava ficando mais claro lá fora. As claras bobinas de papel estavam empilhadas em fileiras metódicas, tendo no centro um espaço para servir como corredor. Na outra extremidade do corredor havia uma porta. Todo esse arranjo parecia olhá-lo de soslaio, desafiando-o. Bond sentiu o cheiro da morte. Recuou para a porta e saiu. O tiroteio tornara-se espasmódico. Colombo vinha correndo rapidamente em sua direção, com os pés perto do chão, como correm os homens gordos. Bond disse peremptòriamente:

— Fique nesta porta. Não entre e não deixe nenhum de seus homens entrar. Vou dar a volta por trás.

Sem esperar por resposta, deu a volta correndo no canto do prédio e avançou pelo lado.

O armazém tinha uns quinze metros de comprimento. Bond diminuiu o passo e caminhou silenciosamente até o outro canto. Encostou-se na parede de ferro corrugado e olhou rapidamente pelo canto. Recuou imediatamente. Havia um homem em pé na entrada do fundo. Tinha os olhos em alguma espécie de orifício para espionar dentro do armazém. Na mão tinha um pistão do qual saíam fios que se estendiam por baixo da porta. Um carro, um conversível preto Lancia Granturismo de capota baixada, estava a seu lado, com o motor roncando maciamente. O carro estava voltado para o interior, em uma estrada empoeirada e profundamente trilhada.

O homem era Kristatos.

Bond ajoelhou-se. Segurou a arma com as duas mãos para ter mais firmeza, inclinou-se para fora do canto do prédio e disparou um tiro contra os pés do homem. Errou. Quase no mesmo instante em que viu a poeira levantar-se a centímetros do alvo, houve o barulho estrondeante de uma explosão. A parede de latão atingiu-o e jogou-o longe.

Bond levantou-se cambaleando. O armazém entortara-se doidamente. Agora começava a ruir barulhentamente, como um maço de cartas de latão. Kristatos estava no automóvel. Já estava vinte metros distante, com as rodas traseiras jogando poeira para o alto. Bond assumiu a clássica pose de tiro de pistola e mirou cuidadosamente. A Walther rugiu e escoiceou três vezes. No último tiro, a cinquenta metros, a figura agachada sobre o volante sacudiu-se para trás. As mãos largaram a direção e estenderam-se para os lados. A cabeça espichou momentaneamente para o alto e caiu para a frente. A mão direita continuou estendida para fora, como se o homem morto estivesse fazendo sinal de virar à direita. Bond começou a correr pela estrada, esperando que o carro parasse, mas as rodas estavam presas nos trilhos e, com o peso do pé direito do homem morto ainda sobre o acelerador, o Lancia continuou a correr em sua gritante terceira. Bond parou e ficou observando-o. O carro corria pela estrada plana que atravessava uma planície queimada e a nuvem de poeira branca erguia-se alegremente atrás dele. Bond esperava que a qualquer momento ele saísse da estrada, mas não saiu. Ficou olhando-o até perdê-lo de vista no nevoeiro da manhã que prometia um belo dia.

Bond travou sua arma e enfiou-a na cintura da calça. Quando se virou, viu Colombo aproximando-se. O homem gordo sorria encantado. Chegou até a Bond e, para horror deste, estendeu seus braços abertos, puxou Bond em sua direção e beijou-o em ambas as faces.

— Pelo amor de Deus, Colombo! — disse Bond.

Colombo estourou numa risada.

— Ah, o fleugmático inglês! Nada teme, senão as emoções. Mas eu — disse batendo no próprio peito — eu, Enrico Colombo, gosto deste homem e não tenho vergonha de confessá-lo. Se você não tivesse liquidado o homem da metralhadora, nenhum de nós teria sobrevivido. Perdi dois de meus homens e outros ficaram feridos. Mas só restou em pé meia dúzia de albaneses, que fugiram para a aldeia. Sem dúvida, a polícia os prenderá. E agora você mandou aquele maldito Kristatos de automóvel para o inferno. Que esplêndido fim para ele! Que acontecerá quando o pequeno esquife de corrida chegar à rodovia principal? ele já está fazendo sinal com a mão de que vai virar à direita para entrar na auto-estrada. Espero que se lembre de entrar à direita.

Colombo deu um violento tapa no ombro de Bond.

— Vamos, meu amigo — disse ele. — É tempo de sairmos daqui. As válvulas estão abertas no navio albanês, que logo irá ao fundo. Não há telefone neste lugarzinho. Levaremos uma boa vantagem sobre a polícia. Demorarão algum tempo para conseguir saber alguma coisa dos pescadores. Falei com o chefe. Ninguém aqui gosta de albaneses. Mas precisamos ir embora. Temos uma boa vela ao vento e não há médico em que eu possa confiar deste lado de Veneza.

Chamas estavam começando a aparecer no desmoronado armazém e dele se desprendiam vagalhões de fumaça que cheiravam como legumes doces. Bond e Colombo caminharam contra o vento. O navio albanês encostara-se no fundo e suas cobertas estavam inundadas. Atravessaram o navio andando sobre a água e subiram para bordo do “Colombina”, onde Bond precisou submeter-se a mais apertos de mão e tapas nas costas. Partiram imediatamente e rumaram para o cabo que guardava a baía. Havia um pequeno grupo de pescadores em pé ao lado de seus barcos puxados para a praia abaixo de um amontoado de cabanas de pedra. Causavam uma impressão desagradável, mas quando Colombo acenou com a mão e gritou algo em italiano, a maioria deles ergueu a mão em despedida e um deles gritou em resposta algo que fez a tripulação do “Colombina” rir. Colombo explicou:

— Dizem que nós somos melhores que o cinema de Ancona e devemos voltar de novo.

Bond sentiu desaparecer toda sua excitação. Sentia-se sujo e barbudo. Podia sentir o cheiro de seu próprio suor. Desceu, tomou uma navalha e uma camisa limpa emprestadas de um dos tripulantes, despiu-se em sua cabina e lavou-se. Quando tirou a arma e jogou-a sobre a tarimba, sentiu um cheiro de cordite sair do cano. Isso lhe trouxe de volta o medo, a violência e a morte na madrugada cinzenta. Abriu a vigia. Fora, o mar dançava alegremente e o litoral que recuava, antes negro e misterioso, era agora verde e bonito. Um repentino e delicioso cheiro de toucinho frigindo foi trazido da cozinha pelo vento. Abruptamente, Bond fechou a viga, vestiu-se e foi para a sala.

Sobre um monte de ovos fritos e toucinho defumado, regados por café doce quente misturado com rum. Colombo pôs os pingos nos “ii” e os traços nos “tt”.

— Isso nós conseguimos, meu amigo — disse ele, mastigando torrada. — Era o suprimento de um ano de ópio bruto a caminho da indústria química de Kristatos em Nápoles. É verdade que eu tenho um negócio semelhante em Milão, que serve como conveniente depósito para algumas de minhas mercadorias. Mas não produz coisa alguma mais mortal do que cascara e aspirina. Em toda essa parte da história de Kristatos, onde está escrito Colombo deve-se ler Kristatos. Era ele quem transformava o material em heroína e era ele quem empregava os mensageiros que a levavam para Londres. Aquele enorme carregamento valia talvez um milhão de libras para Kristatos e seus homens. Mas sabe de uma coisa, meu caro James? Não lhe custava um único centavo. Por quê? Porque era presente da Rússia. Presente de um maciço e mortal projétil para ser disparado contra as entranhas da Inglaterra. Os russos podem fornecer quantidades ilimitadas de carga para o projétil. Provém de suas culturas de papoula no Cáucaso e a Albânia é um entreposto conveniente. Mas eles não têm o aparelhamento para disparar o projétil. Kristatos criou o aparelhamento necessário e era ele quem, em nome de seus senhores na Rússia, apertava o gatilho. Hoje, entre nós, destruímos, em meia hora, toda a conspiração. Você pode voltar e dizer a sua gente na Inglaterra que o tráfico cessará. Pode também dizer-lhe a verdade: que a Itália não era a origem dessa terrível arma subterrânea de guerra. Ela provinha de nossos velhos amigos, os russos. Sem dúvida é parte de alguma guerra psicológica de seu aparelhamento de espionagem. Isso posso assegurar-lhe. Talvez, meu caro James — prosseguiu Colombo, sorrindo encorajadoramente — o mandem a Moscou para descobrir isso. Se tal acontecer, esperemos que encontre alguma garota tão encantadora quanto sua amiga Fräulein List Baum para pô-lo no caminho reto da verdade.

— Por que diz “minha amiga”? Ela é sua.

Colombo sacudiu a cabeça.

— Meu caro James, tenho muitos amigos. Você vai passar mais alguns dias na Itália escrevendo seu relatório e sem dúvida — Colombo deu uma risadinha — conferindo algumas das coisas que lhe contei. Talvez passe também uma agradável meia hora explicando as realidades da vida a seus colegas do serviço secreto americano. Entre esses deveres, precisará de companhia — de alguém que lhe mostre as belezas de minha terra adorada. Em países incivilizados, é um costume cortês oferecer uma de suas esposas ao homem que você ama e que deseja homenagear. Eu também sou incivilizado. Não tenho esposas, mas tenho muitas amigas, como Lisl Baum. Ela não precisará receber instruções nessa matéria. Tenho boa razão para acreditar que está esperando seu regresso esta noite.

Colombo enfiou a mão no bolso da calça e tirou algo que deixou cair barulhentamente sobre a mesa em frente de Bond.

— Aqui está a boa razão — disse Colombo, pondo a mão no coração e olhando seriamente para os olhos de Bond. — Dou-a de coração. Talvez venha também do coração dela.

Bond apanhou o objeto. Era uma chave tendo presa a ela uma pesada chapa de metal. Na chapa de metal estava escrito: Albergo Danielli. Quarto 68.


A raridade de Hildebrand

 

 

 

(THE HILDEBRAND RARITY)

 

A arraia tinha uns dois metros de uma extremidade à outra das nadadeiras e talvez três metros de comprimento, desde a ponta rombuda de seu focinho até o fim de sua mortal cauda. Era cinzenta escura com aquele matiz roxo que é muitas vezes um sinal de perigo no mundo submarino. Quando se levantou da areia cor de ouro pálida e nadou por curta distância foi como se uma toalha preta estivesse sendo sacudida dentro da água.

James Bond, com as mãos estendidas ao longo do corpo e nadando apenas com um suave movimento de suas nadadeiras, seguiu a sombra preta através da laguna orlada de palmeiras, esperando oportunidade para um disparo. Raramente matava peixe a não ser para comer, mas havia exceções — as grandes moreias e todos os membros da família do peixe-escorpião. Agora pretendia matar a arraia porque parecia extraordinariamente má.

Eram dez horas da manhã de um dia de abril e a laguna Belle Anse, perto da extremidade sul de Mahe, a maior ilha do arquipélago das Seychelles, estava serena como vidro. A monção noroeste deixara de soprar meses antes e somente em maio começaria a monção sudeste. Agora a temperatura era de 27 graus à sombra e a umidade de noventa. Na laguna, a água fechada estava quase quente. Até os peixes pareciam entorpecidos. Um bodião verde de cinco quilos, mordiscando algas em uma massa de coral, parou apenas para girar os olhos quando Bond passou por cima, e depois voltou à sua refeição. Um cardume de pequenos e chatos peixes cinzentos, nadando rapidamente, abriu-se ao meio com cortesia para dar passagem à sombra de Bond, depois voltou a fechar-se e continuou seu avanço na direção contrária. Uma fileira de seis pequenas lulas, normalmente tão ariscas quanto pássaros, nem sequer tentou modificar sua camuflagem quando Bond passou.

Bond avançava preguiçosamente, conservando a arraia ao alcance da vista. Logo ela se cansaria ou então se tranquilizaria vendo que Bond, o grande peixe à superfície, não atacava. Então pararia em um lugar de areia lisa, mudaria sua camuflagem para o cinzento mais pálido, quase translúcido, e, com suaves ondulações de suas nadadeiras, enterrar-se-ia na areia.

A linha de recifes estava chegando perto e agora havia afloramentos negros de coral e campinas de plantas marinhas. Era como chegar do campo aberto a uma cidade. Por toda parte os coloridos peixes dos recifes resplandeciam e cintilavam. As gigantescas anêmonas do Oceano Indico ardiam como chamas nas sombras. Colônias de espinhosos ouriços do mar formavam manchas em sépia como se alguém tivesse jogado tinta contra as pedras. As brilhantes antenas azuis e amarelas das lagostas agitavam-se para fora de suas fendas como pequenos dragões. De vez em quando, entre as algas marinhas no cintilante leito do mar, avistava-se o brilho sarapintado de um caurim maior que uma bola de golfe — o caurim leopardo e uma vez Bond viu os belos dedos estendidos de uma harpa de Vênus. Mas todas essas coisas já eram comuns para Bond, que continuou nadando firmemente interessado nos recifes apenas como esconderijo através do qual pudesse avançar pelo mar além da arraia e depois persegui-la de volta na direção da praia. A tática deu resultado. Logo a sombra negra e o torpedo marrom que a perseguia estavam voltando através do grande espelho azul. Onde havia uns três metros e meio de água a arraia parou pela centésima vez. Bond parou também, movendo-se suavemente na água. Cautelosamente, ergueu a cabeça e esvaziou a água de seus óculos. Quando tornou a olhar, a arraia havia desaparecido.

Bond tinha uma espingarda de arpão Champion. O arpão tinha na ponta um tridente afiado como agulha — uma arma para curta distância, mas a melhor para operação em recifes. Bond soltou a trava e movimentou-se vagarosamente para a frente, com as nadadeiras oscilando suavemente logo abaixo da superfície para não fazer barulho. Olhou em roda, tentando perscrutar os nebulosos horizontes do grande salão da laguna. Procurava avistar algum corpo volumoso de emboscada. Não seria bom ter um tubarão ou um grande barracuda como testemunha do ataque. Os peixes às vezes gritam quando são feridos e, mesmo quando não gritam, a turbulência e o sangue resultantes de uma luta feroz atraem os limpadores. Mas não havia viva alma à vista e a areia estendia-se para os lados enfumaçados como as tábuas nuas de um palco. Agora Bond podia ver o vago contorno no fundo. Moveu-se até ficar diretamente sobre ele e permaneceu imóvel à superfície, olhando para baixo. Houve um ligeiro movimento na areia. Duas minúsculas fontes de areia dançavam acima dos orifícios semelhantes a narinas nos espiráculos. Atrás dos orifícios estava a ligeira protuberância do corpo. Aquele era o alvo. Dois centímetros e meio atrás dos orifícios. Bond calculou a possível chicotada da cauda para cima, virou vagarosamente a espingarda para baixo e puxou o gatilho.

Embaixo dele houve uma erupção de areia e, por um ansioso momento, Bond nada pôde ver. Depois a linha do arpão ficou esticada e a arraia apareceu, afastando-se dele enquanto sua cauda, em ação reflexa, chicoteava repetidamente sobre o corpo. Na base da cauda, Bond pôde ver os pontudos espinhos de veneno erguendo-se do tronco. Esses eram os espinhos que se supunha terem morto Ulisses, que Plínio dizia ser capaz de destruir uma árvore. No Oceano Indico, onde os venenos do mar são os mais virulentos, um arranhão do ferrão dessa arraia significa morte certa. Cautelosamente, mantendo a arraia em linha esticada, Bond nadou atrás do peixe que lutava ferozmente. Nadou para um lado a fim de desviar a linha da cauda chicoteante que poderia facilmente cortá-la. Essa cauda era o chicote do antigo feitor de escravos do Oceano Indico. Hoje em dia, em Seychelles, é ilegal até mesmo possuir uma cauda dessas, mas elas são transmitidas nas famílias para uso contra esposas infiéis. Quando circula a notícia de que esta ou aquela mulher a eu la crapule, nome provençal da arraia, vale dizer que a mulher não se levantará pelo menos por uma semana. Agora, as chicotadas da cauda estavam-se tornando mais fracas. Bond nadou em volta e por cima da arraia, arrastando-a atrás dele em direção à praia. No raso, a arraia amoleceu e Bond puxou-a para a praia, até um boa distância na água. Mas ainda se conservou longe dela. fez bem. De repente, devido a algum movimento de Bond ou talvez na esperança de apanhar desprevenido seu inimigo, a gigantesca arraia deu um salto para o ar. Bond pulou de lado e arraia caiu de costas. Ficou imóvel com a barriga branca exposta ao sol e a grande e feia boca em forma de foice aspirando e ofegando.

Bond ficou parado olhando para a arraia e pensando o que iria fazer em seguida.

Um homem branco, baixo e gordo, com camisa e calça caquis, saiu debaixo das palmeiras e caminhou em direção a Bond através das plantas marinhas e restos de naufrágios ressecados pelo sol espalhados bem acima da marca da água. Quando estava bastante perto, disse rindo:

— O Velho e o Mar! Quem pescou e quem foi pescado?

Bond virou-se.

— Só poderia ser o único da ilha que não carrega um machete. Fidele, seja bonzinho e chame um de seus homens. Este animal não quer morrer e meu arpão está enterrado nele.

Fidele Barbey, o mais moço dos inúmeros Barbeys que eram donos de quase tudo quanto havia em Seychelles, aproximou-se e ficou olhando para a arraia.

— Essa foi boa. Foi sorte você ter acertado no lugar exato, senão ela o teria arrastado para os recifes e você precisaria largar a espingarda. Demoram como o diabo para morrer. Mas vamos. Preciso levá-lo de volta a Victória. Apareceu uma coisa. Coisa boa. Eu mandarei um de meus homens buscar a espingarda. Você quer a cauda?

Bond sorriu ao responder:

— Eu não sou casado. Mas que acha de uma raie au beurre noir para hoje à noite?

— Hoje à noite, não, meu amigo. Vamos. Onde estão suas roupas?

Enquanto rodavam na perua pela estrada costeira, Fidele disse:

— Já ouviu falar em um americano chamado Milton Krest? Bem, parece que ele é dono dos hotéis Krest e de um negócio chamado Fundação Krest. Uma coisa posso garantir-lhe. ele é dono do melhor iate que se encontra no Oceano Indico. Chegou ontem. O “Wavekrest”. Quase duzentas toneladas. Trinta metros de comprimento. Há de tudo no barco, desde uma bela esposa até um grande gramofone transistorizado sobre balanceiro para que as ondas não sacudam a agulha. Tapetes de três centímetros de grossura de parede a parede. Ar condicionado em toda parte. Os únicos cigarros secos deste lado do continente africano e a melhor garrafa de champanha para depois do desjejum que já provei desde a última vez que vi Paris.

Fidele Barbey riu satisfeito.

— Meu amigo, é um grande barco e se o Sr. Krest é um fanfarrão safado, quem se importa com isso?

— Quem se importa com ele, afinal de contas? Que tem ele a ver com você... ou comigo, para dizer a verdade?

— Só isto, meu amigo. Vamos passar alguns dias navegando com o Sr. Krest... e a Sra. Krest, a bela Sra. Krest. Concordei em levar o navio até Chagrin, a ilha de que já lhe falei. Fica a muitas milhas daqui, ao largo dos African Banks. Minha família nunca encontrou utilidade para ela, a não ser para colecionar ovos de atobá. Fica apenas um metro acima do nível do mar. Faz cinco anos que não vou àquele maldito lugar. Agora, esse Krest quer ir até lá. Está colecionando espécimes marinhos, coisas da sua fundação, e há uns malditos peixinhos que parecem existir apenas ao redor da ilha Chagrin. Pelo menos Krest diz que o único espécime conhecido no mundo veio de lá.

— Parece engraçado. Onde eu entro nessa história?

— Eu sabia que você estava entediado e que ainda tem uma semana antes de partir. Por isso, disse que você era o ás dos pescadores submarinos locais e que logo encontraria o peixe, se existisse. Além disso, tornei claro que não iria sem você. O Sr. Krest concordou. E é só isso. Sabia que você estava em algum lugar aí pelo litoral. Vim rodando até encontrar um pescador que me disse ter visto um homem branco maluco tentando suicidar-se sozinho na Belle Anse. Logo vi que só podia ser você.

Bond riu.

— É extraordinário como esta gente da ilha tem medo do mar. Já era tempo de terem chegado a um acordo com o mar. Dos habitantes de Seychelles são raros os que sabem até mesmo nadar.

— É a Igreja Católica Romana. Não gosta que eles tirem a roupa. Tolice, mas é assim. Quanto a ter medo, não se esqueça que você esteve aqui apenas um mês. Tubarão, barracuda... você não encontrou nenhum deles com fome. E o peixe-pedra? Já viu um homem pisar no peixe-pedra? Com a dor, seu corpo curva-se para trás como um arco. Às vezes, é tão horrível que os olhos literalmente saltam das órbitas. Raros são os que sobrevivem.

Bond disse sem a menor simpatia:

— Deviam usar sapatos ou amarrar os pés quando vão aos recifes. No Pacífico também há desses peixes e o mexilhão gigante ainda por cima. É uma estupidez. Todos se queixam de como são pobres aqui, mas o mar está completamente cheio de peixes. E existem cinquenta variedades de caurim embaixo daquelas pedras. Podiam viver muito bem vendendo isso ao mundo.

Fidele Barbey riu animadamente.

— Bond para Governador! Essa é a chapa. Na primeira oportunidade, vou apresentar a ideia. Você é precisamente o homem para o cargo — longa visão, muitas ideias, abundância de entusiasmo. Caurins! É explêndido. Equilibrarão o orçamento pela primeira vez desde a alta do patchuli depois da guerra. “Vendemos conchas marinhas das Seychelles”. Esse será nosso slogan. Farei com que você colha os louros. Em pouco tempo será Sir James.

— Ganha-se mais dinheiro assim do que tentando cultivar baunilha com prejuízo.

Continuaram a discutir com despreocupada violência até quando as palmeiras cederam lugar às gigantescas árvores sangue-de-drago nos subúrbios da decrépita capital de Mahe.

Quase um mês antes M dissera a Bond que ia mandá-lo às Seychelles.

— O Almirantado está tendo dificuldade com sua nova base nas Maldívias. Comunistas infiltraram-se do Ceilão. Greves, sabotagem... o quadro costumeiro. Talvez tenha de reduzir seus prejuízos e recuar para as Seychelles. Mil e quinhentos quilômetros mais ao sul, mas pelo menos parecem bastante seguras. Mas eles não querem ser apanhados de novo. O Departamento Colonial diz que são seguras como casas. Ainda assim concordei em mandar alguém para oferecer uma opinião independente. Quando Macário lá esteve fechado há alguns anos houve alguns bons sustos em questão de segurança. Barcos pesqueiros japoneses rondando as ilhas, um ou dois trapaceiros refugiados da Inglaterra, fortes ligações com a França. Vá dar uma boa olhada.

Olhando pela janela para a pesada neve de março, M acrescentara:

— Não vá ter insolação.

O relatório de Bond, concluindo que o único risco de segurança concebível nas Seychelles residia na beleza e acessibilidade das seychelloises, fora terminado uma semana antes e depois nada houve a fazer senão esperar o “SS. Kampala” para levá-lo a Mombasa. Estava completamente cheio do calor, das palmeiras, do grito choroso das andorinhas do mar e da interminável conversa sobre copra. A perspectiva de mudança encantava-o.

Bond estava hospedado em sua última semana na casa dos Barbey e, depois de passar por lá a fim de apanhar suas malas, os dois rodaram até o fim do Long Pier e deixaram o carro no barracão da Alfândega. O iate branco e cintilante estava a uns oitocentos metros do ancoradouro. Tomaram uma carona com motor de popa, atravessaram a baía vidrada e passaram pela abertura nos recifes. O “Wavekrest” não era bonito — a largura da boca e o excesso de superestrutura prejudicavam suas linhas — mas Bond pôde ver imediatamente que era um verdadeiro navio, construído para navegar pelo mundo e não apenas pelas Florida Keys. Parecia deserto, mas quando encostaram a seu lado, dois marinheiros de aparência elegante, de camisetas e “shorts” brancos, apareceram e ficaram ao lado da escada com croques prontos para afastar a desprezível canoa da cintilante pintura do barco. Apanharam as duas malas e um deles empurrou uma portinhola de alumínio, fazendo um gesto para que descessem. Um sopro do que pareceu a Bond ser de ar quase gelado atingiu-o quando atravessou a porta e desceu alguns degraus para entrar no saguão.

O saguão estava vazio. Não era uma cabina. Era uma sala de sólida riqueza e conforto sem coisa alguma que a associasse ao interior de um navio. As janelas por trás das persianas semi-cerradas eram de tamanho natural, assim como as fundas poltronas ao redor da mesa central baixa. O tapete era de pelos compridos em azul pálido. As paredes eram cobertas de madeira prateada e o ferro era branco acinzentado. Havia uma mesa com o costumeiro material de escrever e um telefone. Perto do grande gramofone havia um aparador coberto de bebidas. Por cima do aparador via-se o que parecia ser um Renoir extremamente bom — a cabeça e os ombros de uma bela moça de cabelos escuros com uma blusa listrada de preto e branco. A impressão de uma luxuosa sala-de-estar em uma residência de cidade era completada por um grande vaso de jacintos brancos e azuis, sobre a mesa central, e pela bem arrumada prateleira de revistas de um dos lados da mesa.

— Não lhe disse, James?

Bond sacudiu a cabeça com ar de admiração.

— Esta é sem dúvida a maneira de tratar o mar — como se ele não existisse.

Respirou fundo e acrescentou:

— Que alívio ter um bocado de ar fresco. Já tinha quase esquecido seu gosto.

— O negócio lá fora é que é ar fresco, rapaz. Este é enlatado.

O Sr. Milton Krest entrara silenciosamente na sala e estava em pé olhando para eles. Era um homem rijo e coriáceo de pouco mais de cinquenta anos. Parecia forte e sadio. As calças grosseiras de um azul desbotado, o corte militar da camisa e a larga cinta de couro sugeriam que para ele era um fetiche ser assim — parecer durão. Os olhos castanhos pálidos no rosto bronzeado pelo sol eram ligeiramente encobertos e seu olhar era sonolento e desdenhoso. A boca tinha uma curva para baixo que poderia ser humorística ou desdenhosa — provavelmente desdenhosa — e as palavras que lançara na sala, inócuas em si próprias, exceto pelo condescendente “rapaz”, haviam sido jogadas como pequenas moedas a um par de cules. Para Bond a coisa mais estranha no Sr. Krest era a voz. Era um cecear macio e muito atraente através dos dentes. Era exatamente a voz do falecido Humphrey Bogart. Bond correu os olhos pelo homem, desde os esparsos cabelos pretos e grisalhos cortados rente, como fios de ferro espalhados sobre a cabeça redonda, passando pela águia tatuada por cima de uma âncora entoucada no antebraço direito e indo até os pés coriáceos e descalços que assentavam nàuticamente sobre o tapete. Pensou: este homem gosta de considerar-se um herói de Hemingway. Não vou dar-me bem com ele.

O Sr. Krest avançou através do tapete e estendeu a mão.

— O senhor é Bond? Prazer em tê-lo a bordo, Senhor.

Bond estava esperando o aperto de esmagar ossos e enfrentou-o com músculos enrijecidos.

— Mergulho livre ou aqualung?

— Livre e não vou muito fundo. É só passatempo.

— Que faz no resto do tempo.

— Servidor civil.

O Sr. Krest deu uma risada curta e áspera.

— Civilidade e servidão. Vocês, ingleses, são os melhores mordomos e criados de quarto do mundo. Servidor civil, foi o que disse? Acho que provavelmente vamos dar-nos muito bem. Servidores civis é exatamente o que gosto de ter ao meu redor.

O barulho da portinhola da coberta sendo empurrada evitou que Bond perdesse a calma. O Sr. Krest desapareceu de seu espírito quando uma jovem nua e queimada pelo sol desceu os degraus para o salão. Não, ela não estava completamente nua, mas o minúsculo biquíni de cetim marrom pálido tendia a fazer a gente pensar que estava.

— Alô, tesouro. Onde estava escondida? Há muito tempo que não a vejo. Estes são o Sr. Barbey e o Sr. Bond, os rapazes que vão conosco.

O Sr. Krest ergueu a mão na direção da moça e acrescentou:

— Rapazes, esta é a Sra. Krest. A quinta Sra. Krest. E, para que ninguém comece a ter ideias, ela ama o Sr. Krest. Não é, tesouro?

— Ora, não seja tolo, Milt. Você sabe que o amo — disse a Sra. Krest, sorrindo lindamente. — Prazer em conhecê-lo, Sr. Barbey. E Sr. Bond. É um prazer tê-los conosco. Tomam alguma coisa.

— Um minuto, tesouro. Quer deixar que eu cuide das coisas a bordo de meu próprio barco, sim?

A voz do Sr. Krest era suave e agradável. A mulher corou.

— Oh, pois não, Milt, naturalmente.

— Então, okay. Assim ficamos sabendo quem é o capitão a bordo do bom navio “Wavekrcst”.

O sorriso divertido abrangia todos eles.

— Muito bem, Sr. Barbey. A propósito, qual é seu primeiro nome? Fidele, não? É um grande nome. Fiel — disse o Sr. Krest, rindo com bom humor. — Bem, agora, Fido, que tal você e eu subirmos à ponte para pôr em movimento este velho caixãozinho? Talvez seja melhor você levá-lo até o alto mar, depois traçar uma rota e entregar o resto a Fritz. Eu sou o capitão. ele é o imediato e há mais dois homens para a casa das máquinas e a copa. Todos os três são alemães. Os únicos bons marinheiros que restam na Europa. E o Sr. Bond, qual é o primeiro nome? James, não? Bem, Jim, que tal praticar um pouco daquela civilidade e servidão com a Sra. Krest. A propósito, pode chamá-la de Liz. Ajude-a a arrumar os canapés e outras coisas para os drinques antes do almoço. Ela também era inglesa antigamente. Vocês podem bater um papo sobre Piccadilly Circus e as Dooks que ambos conhecem. Okay? Vamos, Fido.

Subiu correndo infantilmente os degraus, ao mesmo tempo que acrescentava:

— Vamos dar o fora daqui rápidos como o diabo. Quando a portinhola se fechou, Bond deixou escapar um fundo suspiro. A Sra. Krest disse em tom de desculpa:

— Por favor, não se aborreça com as piadas dele. É apenas seu senso de humor. E ele é um pouco do contra. Gosta de ver se consegue irritar as pessoas. É muita maldade dele. Mas tudo realmente é brincadeira.

Bond sorriu tranquilizadoramente. Quantas vezes tivera ela de dizer essas mesmas coisas a pessoas, de procurar acalmar pessoas sobre as quais o Sr. Krest praticara seu “senso de humor”?

— Acho que seu marido precisa de uma pequena lição. ele age desse jeito também nos Estados Unidos?

Ela respondeu sem rancor:

— Só comigo. ele adora os americanos. Só é assim quando está no estrangeiro. Seu pai — sabe? — era alemão, realmente prussiano. ele tem essa tola maneira alemã de pensar que os europeus etc. são decadentes, que não prestam mais. Não adianta discutir com ele. ele é assim mesmo.

Então era isso! O velho huno de novo. Sempre a seus pés ou em sua garganta. Senso de humor, realmente! E que não precisaria suportar essa mulher, essa bela moça que ele arrumara para ser sua escrava — sua escrava inglesa? Bond perguntou:

— Há quanto tempo está casada?

— Dois anos. Eu trabalhava como recepcionista em um de seus hotéis. ele é dono do Grupo Krest, sabe? Foi maravilhoso. Como uma história de fadas. Ainda preciso beliscar-me de vez em quando para ter certeza de não estar sonhando. Isto, por exemplo — mostrou com a mão a luxuosa sala — e ele é extraordinariamente bom comigo. Está sempre dando-me presentes. É um homem muito importante nos Estados Unidos, sabe? É bom a gente ser tratada como realeza em todo lugar aonde vai.

— Deve ser. ele gosta dessas coisas, não?

— Oh, sim. — Havia resignação na risada. — Há muito de sultão nele. Fica impaciente quando não obtém o serviço apropriado. Diz que, depois de trabalhar arduamente para chegar ao alto da árvore, a gente tem direito ao melhor fruto que nela cresce.

A Sra. Krest achou que estava falando com excessiva liberdade. Acrescentou rapidamente:

— Mas, realmente, que estou dizendo? Poderiam pensar que nos conhecemos há anos.

Sorriu timidamente.

— Acho que é o ato de encontrar alguém da Inglaterra. Mas preciso mesmo ir vestir um pouco mais de roupa. Eu estava tomando banho de sol no convés.

Um ronco surdo veio do fundo do barco, à meia-nau.

— Pronto. Já partimos. Por que não vai ao convés de ré observar o barco deixar a baía. Irei procurá-lo lá dentro de um minuto. Há tanta coisa que desejo ouvir a respeito de Londres.

Passou ao lado dele e abriu uma porta.

— Para dizer a verdade, se fôr sensato, procurará passar as noites aqui. Há estofados em abundância e as cabinas tendem a ficar um pouco abafadas, apesar do ar condicionado.

Bond agradeceu-lhe, saiu e fechou a porta depois de passar. Era um grande convés com piso de cânhamo e, na popa, um sofá semicircular de espuma de borracha cor de creme. Havia cadeiras de palhinha espalhadas e um bar a um canto. Passou pela ideia de Bond que o Sr. Krest talvez bebesse muito. Seria sua imaginação ou a Sra. Krest estaria aterrorizada por ele? Havia algo de dolorosamente servil em sua atitude com relação a ele. Sem dúvida, tivera de pagar muito caro por sua “história de fadas”. Bond observou as costas verdes de Mahe afastarem-se vagarosamente da popa. Calculou que desenvolviam uma velocidade de uns dez nós. Logo estariam na North Point, rumando para alto mar. Bond ouviu o glutinoso borbulhar do escapamento e pensou ociosamente na bela Sra. Elizabeth Krest.

Ela poderia ter sido modelo — provavelmente o fora antes de tornar-se recepcionista de hotel — aquela respeitável profissão feminina que ainda tem um ar de alto demi-monde — e ainda movia seu belo físico com o desembaraço de quem está acostumada a andar sem nada ou praticamente nada sobre o corpo. Mas nela nada havia da frieza do modelo — era um corpo quente e um rosto amável e confiante. Poderia ter uns trinta anos, não mais certamente, e sua boniteza, pois não passava disso, ainda era imatura. Sua melhor característica era a cabeleira loura acinzentada que caía pesadamente até a base do pescoço, mas ela dava a agradável impressão de não sentir vaidade nisso. Não a sacudia, nem mexia nela. Ocorreu a Bond que realmente não demonstrava o menor sinal de coquetismo. Permanecia quieta, quase dócil, com os grandes olhos azuis claros fixados no marido quase o tempo todo. Não havia batom em seus lábios, nem esmalte nas unhas das mãos e dos pés, e suas sobrancelhas eram naturais. Ordenaria o Sr. Krest que fosse assim — que ela fosse uma filha germânica da natureza? Provavelmente. Bond encolheu os ombros. Formavam sem dúvida um casal curiosamente dessemelhante — o Hemingway de meia-idade com voz de Bogart e a mulher bonita e simples. E havia tensão no ar — na maneira como ela se encolhera quando ele lhe chamara à atenção por ter oferecido bebidas e na forçada masculinidade do homem. Bond brincou ociosamente com a noção de que o homem era impotente e toda a firme e rude representação não passava de exagerada exibição de virilidade. Certamente não ia ser fácil viver com eles durante quatro ou cinco dias. Bond observou a bela ilha Silhouette afastar-se à distância e tomou a decisão de não perder a calma. Como era aquela expressão americana? “Comer corvo”. Seria um interessante exercício mental para ele. Comeria corvo durante cinco dias e não deixaria que esse maldito homem interferisse no que deveria ser um bom passeio.

— Bem, rapaz. Descansando?

O Sr. Krest estava em pé no convés superior, olhando para baixo.

— Que fez com aquela mulher com quem eu vivo? Acho que deixou todo o serviço para ela. Bem e por que não? É para isso que elas servem, não é? Quer dar uma olhada no navio? Fido está cuidando um pouco do leme e eu tenho tempo de sobra.

Sem esperar pela resposta, o Sr. Krest agachou-se e desceu para o convés inferior, deixando-se cair no último metro da altura.

— A Sra. Krest foi vestir roupa. Sim, eu gostaria de ver o navio.

O Sr. Krest fixou em Bond seu olhar duro e desdenhoso.

— Okay. Bem, primeiro os fatos. Foi construído pela Bronson Shipbuilding Corporation. Acontece que eu tenho noventa por cento das ações, de modo que obtenho o que quero. Desenhado por Rosenblatts, os grandes arquitetos navais. Trinta metros de comprimento por seis e meio de largura, com dois metros de calado. Dois motores diesel Superior de quinhentos H.P. Velocidade máxima, quatorze nós. Faz quatro mil quilômetros com oito nós. Ar condicionado em toda parte. Carrier Corporation desenhou duas unidades especiais de cinco toneladas. Transporta alimentos congelados e bebidas suficientes para um mês. Só precisamos de água doce para os banheiros e chuveiros. Certo? Agora vamos até a frente e você verá os alojamentos da tripulação. Depois, viremos para trás. Não precisa preocupar-se com a cabeça. Em todo lugar há um metro e oitenta e cinco de altura.

Bond seguiu o Sr. Krest pelo estreito corredor que se estendia ao longo de todo o barco e, durante meia hora, fez comentários apropriados sobre o que era sem dúvida o iate melhor e mais luxuosamente planejado que já vira. Em todos os pormenores, havia uma margem para conforto adicional. Até mesmo o banheiro e chuveiro da tripulação eram bem espaçosos e a cozinha de aço inoxidável era tão grande quanto o camarote de Krest. O Sr. Krest abriu a porta deste último sem bater. Liz Krest estava diante da penteadeira.

— Oh, tesouro — disse o Sr. Krest com sua voz macia — Pensei que estivesse arrumando a bandeja de bebidas. Você demorou um tempão para vestir-se. Pondo um pouquinho de Ritz extra para Jim, hem?

— Desculpe, Milt. Eu já ia sair. Um ziper ficou preso. A Sra. Krest apanhou apressadamente um estôjo de pó e encaminhou-se para a porta. Dirigiu aos dois um meio-sorriso nervoso e saiu.

— Lambris de bétula de Vermont. Abajures de vidro de Corning. Tapetes mexicanos. Aquela pintura de um veleiro é um genuíno Montague Dawson...

O catálogo do Sr. Krest prosseguiu sem parar. Mas Bond estava olhando algo que pendia quase escondido pela mesa de cabeceira do que era evidentemente o lado do Sr. Krest na enorme cama de casal. Era um fino chicote de cerca de um metro de comprimento com um cabo de tiras de couro. Era o rabo de arraia.

Com ar indiferente, Bond caminhou até o lado da cama e apanhou-o. Correu um dedo por sua superfície espinhenta. Só de fazer isso sentiu doer o dedo. Disse:

— Onde arranjou isto? Estive caçando um destes animais hoje de manhã.

— Em Bahrein. Os árabes usam-nos em suas esposas — respondeu o Sr. Krest, rindo facilmente. — Até agora não precisei dar mais que uma chicotada de cada vez em Liz. Resultados maravilhosos. Chamamo-lo de meu “Corretivo”.

Bond tornou a pôr o objeto no lugar. Olhou duramente para o Sr. Krest e disse:

— É assim? Nas Seychelles, onde os crioulos são bem durões, é ilegal até mesmo possuir um desses, quanto mais usá-lo.

O Sr. Krest encaminhou-se para a porta e disse em tom indiferente:

— Rapaz, acontece que este navio é território dos Estados Unidos. Vamos tomar alguma coisa.

O Sr. Krest tomou três “bullshots” duplos — vodca com consommé gelado — antes do almoço e cerveja com a refeição. Os olhos pálidos escureceram um pouco e adquiriram um brilho aguado, mas a voz sibilante continuou macia e sem ênfase enquanto com absoluto monopólio da conversação, ele explicava o objetivo da viagem.

— O negócio é o seguinte, rapazes. Nos Estados Unidos, temos esse sistema de Fundação para os sujeitos de sorte que ganharam muito dinheiro e não querem entregá-lo ao Tesouro de Tio Sam. Você faz uma Fundação — como esta, a Fundação Krest — para fins de caridade — caridade para qualquer coisa, crianças, doentes, a causa da ciência. Simplesmente dá o dinheiro para qualquer pessoa ou qualquer coisa, menos para você mesmo e seus dependentes. Assim, escapa do imposto. Por isso, empatei coisa de dez milhões de dólares na Fundação Krest e, como gosto de viajar de iate e ver o mundo, comprei este iate com dois milhões do dinheiro e disse à Smithsonian — nossa grande instituição de história natural — que iria a qualquer lugar do mundo buscar espécimes para ela. Isso faz de mim uma expedição científica, entendem? Durante três meses do ano gozo férias maravilhosas que não me custam nada!

O Sr. Krest olhou para seus convidados, esperando aplausos.

— Entenderam? — perguntou.

Fidele Barbey sacudiu a cabeça com ar de dúvida.

— Parece ótimo, Sr. Krest. Mas e esses espécimes raros. É fácil encontrá-los? A Smithsonian pode querer uma panda gigante ou uma concha marinha. Será capaz de conseguir essas coisas quando ela não conseguiu?

O Sr. Krest sacudiu vagarosamente a cabeça. Disse com ar de pena:

— Rapaz, você parece ter nascido ontem. Dinheiro, só é preciso isso. Você quer um panda? Compra-o de algum maldito jardim zoológico que quer ter aquecimento central para sua casa de répteis, deseja construir um novo edifício para seus tigres ou coisa semelhante. A concha marinha? Você descobre um homem que tem uma delas e lhe oferece tanto dinheiro que ele acaba vendendo-a ainda que chore uma semana. Às vezes, a gente tem um pouco de dificuldade com governos. Um maldito animal é protegido ou coisa semelhante. Muito bem. Vou dar-lhes um exemplo. Cheguei ontem à sua ilha. Quero um papagaio preto da ilha Preslin. Quero uma tartaruga gigante de Aldabra. Quero uma coleção completa de seus caurins e quero este peixe que vamos procurar. Os dois primeiros são protegidos por lei. Faço imediatamente uma visita a seu governador depois de realizar certas investigações na cidade. Excelência, digo eu, sei que deseja ter uma piscina pública para ensinar as crianças locais a nadar. Okay. A Fundação Krest contribuirá com o dinheiro. Quanto? Cinco mil, dez mil? Okay, seja dez mil. Aqui está meu cheque. E preencho o cheque na hora. Mais uma coisinha. Excelência, digo eu, segurando o cheque. Acontece que desejo um espécime desse papagaio preto que existe aqui e uma dessas tartarugas de Aldabra. Sei que são protegidos por lei. Faria questão se eu levasse um espécime de cada um para os Estados Unidos, para a Smithsonian? Bem, há um pouco de palavrório, mas, sabendo que é para a Smithsonian e sabendo que ainda estou segurando o cheque, acabamos fechando o negócio, trocamos apertos de mão e todos ficam felizes. Certo? Bem, na volta paro na cidade para combinar com seu encantador Sr. Abendana, aquele negociante, que arranje o papagaio e a tartaruga, e os guarde para mim. E começo a falar sobre os caurins. Bem, acontece que esse Sr. Abendana vem colecionando as malditas coisas desde criança. Mostra-me sua coleção. Maravilhosamente conservada — cada uma delas em seu pedacinho de algodão. Tudo em ótimo estado e várias daquelas Isabella e Mappa que me pediram particularmente para procurar. Sinto muito, diz ele, mas não posso nem pensar em vender. Significam tanto para mim etc. Bolas! Só olho para o Sr. Abendana e pergunto: quanto? Não, não. Não pode sequer pensar nisso. Bolas de novo! Tiro meu talão de cheques, preencho um cheque de cinco mil dólares e ponho embaixo de seu nariz. ele olha o cheque. Cinco mil dólares! Não pode resistir. Dobra o cheque, guarda-o no bolso e depois o maldito maricas desanda a chorar! Acreditam nisso? — perguntou o Sr. Krest, abrindo as mãos num gesto de incredulidade. — Por causa de algumas malditas conchas marinhas. Então, digo-Ihe que tenha calma, apanho as bandejas de conchas e dou o fora antes que o maluco se mate de remorso.

O Sr. Krest recostou-se na cadeira, satisfeito consigo mesmo.

— Bem, que me dizem disso, rapazes? Vinte e quatro horas na ilha e já consegui três quartos de minha lista. Bem esperto, eh, Jim?

Bond respondeu: — O Senhor provavelmente receberá uma medalha quando voltar. E quanto a esse peixe?

O Sr. Krest levantou-se e remexeu em uma gaveta de sua mesa. Trouxe de volta uma folha datilografada.

— Aqui está — disse, passando a ler: — Raridade de Hildebrand. Apanhanda pelo professor Hildebrand, da Universidade de Witwatersrand, em uma rede ao largo da ilha Chagrin no arquipélago das Seychelles. Abril de 1925.

O Sr. Krest ergueu os olhos e explicou:

— Depois há uma porção de palavrório científico. Fiz com que traduzissem para o inglês comum e aqui está a tradução.

Voltou ao papel e continuou a ler:

— Este parece ser um singular membro da família do peixe-esquilo. O único espécime conhecido, chamado “Raridade de Hildebrand” como homenagem a seu descobridor, tem quinze centímetros de comprimento. A cor é rosa brilhante com listras transversais pretas. As nadadeiras anais, ventrais e dorsais são rosadas. A nadadeira da cauda é preta. Olhos grande e azuis escuros. Se encontrado, é preciso cuidado ao lidar com este peixe porque todas as nadadeiras têm espinhos ainda mais afiados do que é habitual no resto da família. O professor Hildebrand registra que encontrou o espécime em um metro de água à beira do recife sudoeste.

O Sr. Krest jogou o papel sobre a mesa e acrescentou:

— Bem, aí está, rapazes. Estamos viajando cerca de mil milhas a um custo de vários milhares de dólares para tentar descobrir um maldito peixe de quinze centímetros. E há dois anos o pessoal do fisco teve o atrevimento de sugerir que minha fundação era uma mistificação!

Liz Krest interveio ansiosamente.

— Mas é precisamente isso, Milt, não é? Desta vez, é realmente importante levar de volta bastante espécimes e outras coisas. Aqueles horríveis fiscais não estavam falando em cancelar os descontos referentes ao iate e às despesas e outras coisas dos últimos cinco anos se não apresentássemos alguma importante realização científica? Não foi isso que disseram?

— Tesouro — disse o Sr. Krest, cuja voz era macia como veludo. — Que tal se você fechasse essa irresponsável boquinha e não falasse em meus negócios particulares. Sim?

A voz era amável, despreocupada.

— Sabe o que você acaba de fazer, tesouro? Você acaba de ganhar um pequeno encontro com o Corretivo hoje à noite. Foi isso o que você fez.

A mulher levou a mão à boca. Seus olhos estavam arregalados. Disse em um sussurro:

— Oh, não, Milt. Oh, não, por favor.

Na madrugada do dia seguinte no mar avistaram a ilha Chagrin. Foi apanhada primeiro pelo radar — uma pequena saliência na linha plana da tela. Depois uma minúscula mancha no grande horizonte curvo cresceu com infinita lentidão até tornar-se um quilômetro de verde orlado de branco. Era extraordinário chegar à terra depois de dois dias nos quais o iate parecera ser a única coisa móvel, a única coisa viva em um mundo vazio. Bond nunca vira, nem sequer imaginara claramente a calmaria. Agora compreendia que perigo terrível deveria ter sido nos dias da navegação a vela — mar de vidro sob um sol de bronze, o ar viciado e pesado, a esteira de pequenas nuvens ao longo da orla do mundo, que nunca chegavam mais perto, nunca traziam vento ou a abençoada chuva. Quantas centenas de marinheiros não teriam abençoado esse minúsculo ponto no Oceano Indico, quando se curvavam sobre os remos que moviam o pesado navio talvez uma milha por dia! Bond ficou em pé na proa e observou os peixe-voadores saltarem de baixo do casco quando o azul-prêto do mar se transformou vagarosamente no marrom, branco e verde do baixio profundo. Como seria maravilhoso poder em breve andar e nadar ao invés de ficar apenas sentado e deitado. Como seria maravilhoso ter algumas horas de solidão — algumas horas longe do Sr. Milton Krest!

Ancoraram para fora do recife em dez braças de água e Fidele Barbey conduziu-os através da abertura na lancha. Em todos os detalhes, Chagrin era o protótipo da ilha de coral.

Eram uns vinte acres de areia, coral morto e vegetação baixa, cercados, depois de cinquenta metros de laguna rasa, por um colar de recifes sobre o qual as ondas calmas e compridas se quebravam com uma suave sibilar. Nuvens de pássaros ergueram-se quando desembarcaram — andorinhas do mar, atobás, fragatas — mas logo pousaram de novo. Havia um forte cheiro amoniacal de guano, que enbranquecia também a vegetação. As únicas outras coisas vivas eram os caranguejos que corriam entre a liane sans fin e os chama-marés que viviam na areia.

O clarão da areia branca era ofuscante e não havia sombra. O Sr. Krest mandou armar uma tenda e sentou-se dentro dela fumando um charuto, enquanto instrumentos de várias espécies eram transportados para terra. A Sra. Krest nadava e apanhava conchas enquanto Bond e Fidele Barbey punham máscaras e, nadando em direções opostas, começavam a examinar sistematicamente os recifes em toda a volta da ilha.

Quando se está procurando determinada espécie embaixo dágua — concha, peixe, alga marinha ou formação de coral — é preciso conservar o cérebro e os olhos focalizados naquele padrão individual. A orgia de cores e movimentos, a incessante variedade de luz e sombra lutam o tempo todo contra a concentração da pessoa. Bond arrastou-se vagarosamente através do país das maravilhas tendo na mente uma única imagem — um peixe rosado de quinze centímetros com listras pretas e olhos grandes — o segundo desses peixes a ser visto pelo homem. “Se avistá-lo”, recomendara o Sr. Krest, “basta soltar um grito e ficar perto dele. Eu tenho na tenda uma coisinha que é o melhor negócio que você já viu para apanhar peixes.”

Bond parou para descansar os olhos. A água estava tão flutuável que podia ficar deitado de bruço na superfície sem se mover. Ociosamente partiu um ouriço do mar com a ponta de sua lança e observou a horda de cintilantes peixes dos recifes investindo sobre os pedaços de carne amarela entre os espinhos pretos afiados como agulhas. Como era infernal o fato de beneficiar apenas o Sr. Krest se encontrasse a Raridade! Deveria ficar quieto se a encontrasse? Seria uma infantilidade e, além disso, estava sob contrato, por assim dizer.

Bond moveu-se devagar, com os olhos reiniciando automaticamente a busca enquanto seu espírito voltava a considerar a mulher. Ela havia passado o dia anterior na cama. O Sr. Krest dissera que era uma dor de cabeça. Não se voltaria contra ele um dia? Não arranjaria uma faca ou um revólver e, certa noite, quando ele estendesse a mão para aquele maldito chicote, não o mataria? Não. Ela era mole demais, maleável demais. O Sr. Krest escolhera bem. Era do mesmo material com que são feitos os escravos. E os ornamentos de sua “história de fadas” eram preciosos demais. Não perceberia ela que um júri certamente a absolveria se aquele chicote de arraia fosse apresentado no tribunal? Ela poderia ficar com os ornamentos sem esse horrível e odioso homem. Deveria Bond dizer-lhe isso? Não seja ridículo! Como poderia expressá-lo? “Oh, Liz, se quiser matar seu marido, está tudo bem.” Bond sorriu dentro de sua máscara. Que fosse para o inferno! Não interfira na vida dos outros. Provavelmente ela gosta disso. É masoquista. Mas Bond sabia que essa era uma resposta fácil demais. Ali estava uma mulher que vivia amedrontada. Talvez também vivesse odiando. Não se podia ler muita coisa naqueles suaves olhos azuis, mas as janelas tinham-se aberto uma ou duas vezes e através delas aparecera um lampejo de algo semelhante a ódio infantil. Teria sido ódio? Provavelmente fora indigestão. Bond tirou os Krests da cabeça e ergueu os olhos para ver até que ponto da ilha já avançara. O schnorkel de Fidele Barbey estava apenas a uns cem metros de distância. Já tinham quase completado o circuito.

Os dois se encontraram, nadaram até a praia e deitaram na areia. Fidele Barbey disse:

— Nada do meu lado da propriedade, exceto todos os peixes do mundo, menos um. Mas tive um golpe de sorte. Encontrei uma grande colônia de caramujos verdes. É a concha almiscarada grande como uma bola de futebol. Vale um monte de dinheiro. Vou mandar um de meus barcos atrás deles qualquer dia destes. Vi um peixe-papagaio azul que devia pesar bem uns quinze quilos. Manso como um cão, do mesmo modo que todos os peixes daqui. Não tive coragem de matá-lo. E se o matasse, poderia ter havido encrenca. Vi dois ou três tubarões-leopardos rondando do outro lado dos recifes. Sangue na água poderia tê-los atraído. Agora, estou pronto para um drinque e alguma comida. Depois, poderemos trocar de lado e fazer outra tentativa.

Levantaram-se e caminharam pela praia até a tenda. O Sr. Krest ouviu suas vozes e saiu para encontrá-los.

— Nada, não? — perguntou, cocando furiosamente uma axila. — Um maldito mosquito me picou. Esta é uma ilha amaldiçoada. Liz não pôde suportar o cheiro. Voltou para o barco. Acho que é melhor fazer mais uma tentativa e depois dar o fora daqui. Comam alguma coisa. Encontrarão cerveja na bolsa de gelo. Deem-me uma dessas máscaras. Como é que se usa essa maldita coisa? Acho que posso dar uma olhada no fundo do mar já que estou aqui.

Sentaram-se na tenda quente, comeram salada de galinha e beberam cerveja. Carrancudamente, observaram o Sr. Krest tateando e esquadrinhando na água rasa. Fidele Barbey disse:

— ele tem razão, naturalmente. Estas pequenas ilhas são lugares horríveis. Nada além de caranguejos e excremento de pássaros com muito mar em roda. São só os pobres e gelados europeus que sonham com ilhas de coral. A leste de Suez, você não encontra um homem de juízo que dê qualquer coisa por elas. Minha família possui umas dez delas — algumas também de tamanho decente, com pequenas aldeias e boa renda de copra e tartaruga. Bem, se quiser pode ficar com todo o maldito lote em troca de um apartamento em Paris ou Londres.

Bond riu.

— Ponha um anúncio em “The Times” e receberá pilhas ... — começou Bond, quando, a cinquenta metros de distância, o Sr. Krest passou a fazer frenéticos sinais.

— Ou o bastardo encontrou-o ou pisou em uma viola — disse Bond, apanhando sua máscara e correndo para o mar.

O Sr. Krest estava com água até a cintura entre os rasos começos dos recifes. Bateu o dedo excitadamente na superfície. Bond nadou suavemente para frente. Um tapete de plantas marinhas terminava em coral e ocasionais afloramentos negros. Uma dúzia de variedades de borboletas e outros peixes de recifes brincava entre as pedras e uma pequena lagosta sondou na direção de Bond com suas antenas. A cabeça de uma grande moreia verde saiu de um buraco, com as mandíbulas meio abertas mostrando fileiras de afiados dentes. Seus olhos dourados observaram Bond cuidadosamente. Bond divertiu-se ao ver que as pernas cabeludas do Sr. Krest, ampliadas para pálidos troncos de árvores pela água vidrada, não estavam a mais de uns trinta centímetros das mandíbulas da moreia. Deu um encorajador empurrão na moreia com seu arpão, mas a enguia limitou-se a morder as pontas de metal e desaparecer de novo. Bond parou e ficou flutuando, com os olhos perscrutando a brilhante selva. Uma mancha vermelha materializou-se no nevoeiro distante e avançou em sua direção. Deu uma volta bem por baixo dele, como se estivesse exibindo-se. Os olhos azuis escuros examinaram-no sem medo. O pequeno peixe ocupou-se quase constrangido com algumas algas na parte de baixo de um afloramento negro, deu uma corrida em direção a algo suspenso na água e, depois, como se deixasse o palco após exibir seus passos, nadou lânguidamente de volta para o nevoeiro.

Bond afastou-se do buraco da moreia e pôs os pés no chão. Tirou a máscara. Dirigindo-se ao Sr. Krest, que o fitava impacientememte através de seus óculos de mergulho, disse:

— Sim, é ele mesmo. É melhor afastar-se silenciosamente daqui. ele não irá embora a menos que se assuste. Esses peixes de recifes conservam-se sempre nos mesmos lugares.

O Sr. Krest tirou sua máscara.

— Diabo, eu o encontrei! — exclamou reverentemente. — Bem, fui eu mesmo.

Seguiu vagarosamente Bond até a praia. Fidele Barbey estava esperando por eles. O Sr. Krest disse impetuosamente:

— Fido, encontrei aquele maldito. Eu. .. Milton Krest. Que acha disso? Depois que vocês dois, malditos especialistas, procuraram a manhã inteira. Peguei aquela sua máscara — e foi a primeira vez que usei uma dessas máscaras, veja bem — entrei na água e encontrei o maldito peixe em quinze minutos. Que diz a isso, eh, Fido?

— Muito bem, Sr. Krest. Ótimo. Como vamos apanhá-lo agora?

— Ah, ah, ah — fez o Sr. Krest, pestanejando vagarosamente. — Eu tenho a solução para isso. Arranjei-a com um químico amigo meu. Um negócio chamado rotenona. Feito de raiz de timbó. É com isso que os nativos pescam no Brasil. Basta derramá-lo na água, onde flutua sobre aquilo que você está procurando e o apanha infalivelmente. Uma espécie de veneno. Constringe os vasos sanguíneos nas guelras dos peixes. Sufoca-os. Não exerce efeito sobre seres humanos porque eles não têm guelras, entendem?

O Sr. Krest virou-se para Bond.

— Escute, Jim. Você vai até lá e fica vigiando. Não deixe o maldito peixe desaparecer. Fido e eu levaremos o material para lá — disse, apontando a área de onde a água corria para o local vital. — Eu soltarei a rotenona quando você disser. Ela será arrastada na sua direção. Certo? Mas, com os diabos, dê o sinal na hora certa. Eu só tenho uma lata de cinco galões desse negócio. Okay?

Bond respondeu “Está bem” e caminhou vagarosamente, entrando na água. Nadou preguiçosamente para onde estivera antes. Sim, todos ainda estavam lá, cuidando de sua vida. A cabeça pontuda da moreia estava de novo na beirada de seu buraco, a lagosta estendeu novamente as antenas em sua direção. Um minuto depois, como se tivesse encontro marcado com Bond, a Raridade de Hildebrand apareceu. Desta vez nadou até bem perto de seu rosto. Olhou através dos óculos para seus olhos e depois, como se tivesse ficado assustada com o que vira, disparou para colocar-se fora de alcance. Brincou entre as pedras por algum tempo e depois entrou no nevoeiro.

Vagarosamente o pequeno mundo submarino dentro da visão de Bond começou a aceitá-lo como coisa natural. Um pequeno octópode que se camuflara como um pedaço de coral revelou sua presença e avançou cuidadosamente na direção da areia. A lagosta azul e amarela saiu de baixo da pedra e deu alguns passos, admirando-o. Alguns peixes muito pequenos, como os barrigudinhos, mordiscaram suas pernas e seus dedos dos pés, fazendo cócega. Bond partiu um ouriço do mar para eles, que avançaram sobre a comida melhor. Bond ergueu a cabeça. O Sr. Krest, segurando a lata, estava vinte metros à sua direita. Logo começaria a derramar, quando Bond desse o sinal, de modo que o líquido se espalhasse bem sobre a superfície.

— Okay? — perguntou o Sr. Krest. Bond sacudiu a cabeça e respondeu:

— Levantarei o polegar quando ele aparecer de novo aqui. Então você terá de derramar depressa.

— Okay, Jim. Você está na mira da bomba.

Bond afundou a cabeça. Lá estava a pequena coletividade, todos cuidando de sua vida. Logo, para apanhar um peixe que alguém desejava vagamente em um museu a oito mil quilômetros de distância, cem, talvez mil pessoazinhas iam morrer. Quando Bond desse o sinal, a sombra da morte desceria sobre a água. Quanto tempo duraria o veneno? Até que ponto avançaria pelos recifes? Talvez não morressem milhares, mas dezenas de milhares.

Um pequeno baiacu apareceu, com suas minúsculas nadadeiras ruflando como hélices. Um par dos inevitáveis beijupirás listrados de preto e amarelo apareceu de repente, atraído pelo cheiro do ouriço do mar partido.

Dentro dos recifes, quem era o predador no mundo dos pequenos peixes? Quem temiam eles? O pequeno barracuda? Um ocasional peixe-agulha? Agora um grande predador, plenamente crescido, um homem chamado Krest, estava parado nos bastidores, esperando. E esse nem sequer tinha fome. Ia simplesmente matar — quase por divertimento.

Duas pernas marrons apareceram no campo de visão de Bond. Este ergueu os olhos. Era Fidele Barbey com um grande cesto amarrado ao peito e uma rede de cabo comprido.

Bond ergueu a máscara e disse:

— Sinto-me como o bombardeador em Nagasaki.

— Peixes têm sangue frio. Nada sentem.

— Como é que você sabe? Ouvi dizer que gritam quando são feridos.

— Não serão capazes de gritar com esse negócio — disse Barbey indiferentemente. — Estrangula-os. Que há com você? São apenas peixes.

— Sei, sei.

Fidele Barbey passara a vida matando animais e peixes. Enquanto ele, Bond, às vezes não hesitara em matar homens. Por que estava agora fazendo barulho? Não se importara em matar a arraia. Sim, mas aquele era um peixe inimigo. Estes aqui embaixo eram pessoas amigas. Pessoas? A patética ilusão.

— Eh! — exclamou a voz do Sr. Krest. — Que está acontecendo aí? Não é hora de conversa mole. Afunde a cabeça n’água, Jim.

Bond puxou a máscara para baixo e deitou-se de novo sobre a superfície. Imediatamente viu a bela sombra vermelha saindo do nevoeiro distante. O peixe nadou rápido em sua direção, como se o considerasse algo muito natural. Ficou embaixo dele, olhando para cima. Bond disse dentro de sua máscara: “Vá-se embora daqui, seu imbecil!” Deu uma cuti-lada rápida em direção ao peixe com seu arpão. O peixe fugiu novamente para o nevoeiro. Bond levantou a cabeça e furiosamente ergueu o polegar. Era um ridículo e mesquinho ato de sabotagem, do qual já se sentia envergonhado. O líquido oleoso marrom escuro estava sendo derramado na superfície da laguna. Ainda havia tempo de fazer o Sr. Krest parar antes que acabasse tudo — tempo de dar-lhe outra oportunidade de apanhar a Raridade de Hildebrand. Bond ficou imóvel olhando, até pingar a última gota. O Sr. Krest que fosse para o inferno!

Agora o negócio estava sendo vagarosamente arrastado pela correnteza — uma mancha brilhante que se espalhava, refletindo o céu azul com um lustre metálico. O Sr. Krest, o segador gigante, estava avançando com a mancha.

— Pronto, rapazes — disse ele, alegremente. — Já está aí com vocês.

Bond enfiou de novo a cabeça dentro da água. Tudo estava como antes na pequena coletividade. Mas depois, com desnorteante instantaneidade, todos ficaram loucos. Foi como se todos tivessem contraído a dança de São Guido. Vários peixes deram cambalhotas malucas e depois caíram como pesadas folhas sobre a areia. A moreia saiu vagarosamente do buraco no coral, com as mandíbulas abertas. Ficou cuidadosamente em pé sobre a cauda e depois caiu delicadamente de lado. A pequena lagosta deu três sacudidelas com a cauda e virou de costas. O octópode desprendeu-se do coral e deixou-se cair para o fundo, de cabeça para baixo. Depois foram arrastados para a arena os cadáveres vindos mais de cima — peixes de barriga branca, camarões, minhocas, caranguejos, moreias mosqueadas e verdes, lagostas de todos os tamanhos. Como soprados por uma ligeira brisa de morte, os corpos desengonçados, com suas cores já desbotando, passaram vagarosamente. Um peixe-agulha de três quilos batia o bico, lutando contra a morte. Mais abaixo, ao longo dos recifes, havia batidas na superfície, onde peixes ainda maiores tentavam fugir para lugar seguro. Um a um, diante dos olhos de Bond, os ouriços do mar caíram das pedras para fazer manchas de tinta preta na areia.

Bond sentiu um toque em seu ombro. Os olhos do Sr. Krest estavam vermelhos do sol e da cintilação. Havia passado nos lábios uma pasta branca contra queimaduras do sol. Gritou impacientemente para a máscara de Bond:

— Onde, diabo, está nosso maldito peixe?

Bond ergueu a máscara.

— Parece que conseguiu afastar-se exatamente antes de descer o negócio. Ainda o estou procurando.

Não esperou para ouvir a resposta do Sr. Krest, mas tornou a afundar rapidamente a cabeça na água. Ainda mais carnificina, ainda mais corpos mortos. Mas agora, certamente, o negócio já havia passado. Certamente a área estava segura, se acaso voltasse o peixe, seu peixe, pois ele o havia salvo. No nevoeiro distante houve um lampejo cor de rosa. ele tinha ido. Agora estava de volta. Preguiçosamente, a Raridade de Hildebrand nadou em direção a Bond através do labirinto de canais entre os postos avançados dos recifes.

Sem importar-se com o Sr. Krest, Bond ergueu a mão livre para fora da água e deixou-se cair com uma forte batida. Ainda assim o peixe continuou vindo. Bond soltou a trave de sua espingarda de arpão e disparou-a na direção do peixe. Não adiantou. Bond baixou os pés e começou a andar em direção ao peixe através da confusão de cadáveres. O belo peixe vermelho e preto pareceu parar e estremecer. Depois disparou diretamente através da água na direção de Bond e mergulhou na areia a seus pés, lá ficando parado. Bond só precisou curvar-se para apanhá-lo. Não houve sequer uma última sacudidela da cauda. Simplesmente encheu a mão de Bond, picando ligeiramente a palma com a espinhenta nadadeira dorsal preta. Bond levou-o embaixo dágua, como para preservar suas cores. Quando chegou perto do Sr. Krest, disse “Aqui está” e entregou-lhe o pequeno peixe. Depois nadou em direção à praia.

Naquela noite, com o “Wavekrest” navegando de volta sob uma enorme lua amarela, o Sr. Krest deu ordem para o que chamava de “wingding”.

— Precisamos comemorar, Liz. Isto é tremendo, um dia tremendo. Atingimos o último objetivo e podemos dar o fora destas malditas Seychelles a fim de voltar para a civilização. Que diz de irmos a Mombasa, depois de termos recebido a bordo a tartaruga e aquele maldito papagaio? Voar para Nairobi e tomar o grande avião para Roma, Veneza, Paris... qualquer lugar que você queira. Que diz, tesouro?

Apertou-lhe o queixo e as faces com sua grande mão, fazendo saltar os lábios. Beijou-os secamente. Bond observava os olhos da mulher. Estavam bem fechados. O Sr. Krest soltou. A moça fez massagem no rosto. Ainda estava branco com as marcas dos dedos.

— Puxa, Milt — disse ela meio rindo — você quase me amassou. Você não conhece a própria força. Mas vamos comemorar. Penso que será muito divertido. E aquela ideia de Paris parece grande. Vamos fazer isso, sim? Que devo encomendar para o jantar?

— Diabo... caviar, naturalmente. — disse o Sr. Krest, estendendo as mãos. — Uma daquelas latas de duas libras de Hammacher Schlemmer e todos os acompanhamentos. E aquele champanha rosado.

Virou-se para Bond e perguntou:

— Isso lhe convém, rapaz?

— Parece uma boa refeição — respondeu Bond, mudando de assunto depois. — Que fez com a prenda.

— Formalina. Está lá em cima no convés superior com alguns outros frascos de coisas que recolhemos aqui e acolá... peixes, conchas... Tudo seguro em nosso necrotério doméstico. Foi assim que nos disseram para guardar os espécimes. Remeteremos por via aérea aquele maldito peixe quando voltarmos à civilização. Primeiro darei uma entrevista à imprensa. Deverá sair com grande destaque nos jornais lá da terra. Já dei a notícia pelo rádio à Smithsonian e às agências noticiosas. Meus contadores ficarão muito contentes em ter alguns recortes de jornais para mostrar àqueles malditos rapazes do fisco.

O Sr. Krest ficou muito bêbado naquela noite. Mas não demonstrou muito. A macia voz de Bogart tornou-se mais macia e lenta. A cabeça redonda e pesada virou-se mais deliberadamente sobre os ombros. A chama do isqueiro levou mais tempo para tornar a acender o charuto e um copo foi jogado para longe da mesa. Mas transparecia nas coisas que o Sr. Krest dizia. Havia no homem uma violenta crueldade, um desejo patológico de ferir, bem perto da superfície. Naquela noite, depois do jantar, o primeiro alvo foi James Bond. Teve de ouvir uma explicação em voz mansa sobre as razões pelas quais a Europa, incluindo a Inglaterra e a França, perdia cada vez mais seu valor para o mundo. Hoje em dia, disse o Sr. Krest, só existem três potências: Estados Unidos, Rússia e China. Esse era o grande jogo de pôquer e nenhuma outra nação tinha fichas ou cartas para entrar nele. De vez em quando, algum agradável paisinho — que ele admitia ter sido bastante grande no passado — como a Inglaterra, recebia um pouco de dinheiro emprestado para poder jogar uma mão com os adultos. Mas isso era apenas delicadeza, como a gente às vezes precisa ter — com um amigo do clube que ficou arruinado. Não. A Inglaterra — bela gente, entenda-me, grande espírito esportivo — era um lugar onde se ia para ver edifícios antigos, a Rainha e outras coisas. A França? Só valia pela comida boa e pelas mulheres fáceis. A Itália? Sol e espaguete. Uma espécie de sanatório. A Alemanha? Bem, os alemães ainda tinham um pouco de fibra, mas duas guerras perdidas haviam-lhes tirado o ânimo. O Sr. Krest desfez-se do resto do mundo com alguns chavões semelhantes e depois pediu a opinião de Bond.

Bond estava completamente cansado do Sr. Krest. Disse que achara o ponto de vista do Sr. Krest excessivamente simplificado — ingênuo mesmo, poderia dizer. Acrescentou:

— Seus argumentos fazem-me lembrar um aforisma bastante mordaz que ouvi certa vez a respeito dos Estados Unidos. Quer ouvir?

— Claro, claro.

— É no sentido de que os Estados Unidos progrediram da infância para a senilidade, sem ter passado por um período de maturidade.

O Sr. Krest olhou pensativamente para Bond. Finalmente disse:

— Puxa, Jim, isso é bem direto.

Seus olhos cobriram-se ligeiramente quando os voltou para sua esposa.

— Acho que você concorda com essa observação de Jim, não, tesouro? Lembro-me de tê-la ouvido dizer certa vez que achava que havia algo de bem infantil nos americanos. Lembra-se?

— Oh, Milt — disse Liz Krest, cujos olhos revelavam ansiedade, mostrando que ela soubera ler os sinais. — Como pode trazer isso à baila? Você sabe que foi apenas uma coisa casual que eu disse sobre as histórias em quadrinhos dos jornais. Naturalmente, não concordo com o que James diz. De qualquer maneira, foi apenas uma piada, não foi, James?

— Exatamente — respondeu Bond. — Como o que o Sr. Krest disse da Inglaterra, que nada tem alem de ruínas e uma rainha.

Os olhos do Sr. Krest ainda estavam voltados para a mulher. Disse maciamente:

— Bobagens, tesouro. Por que está parecendo tão nervosa. Naturalmente que foi uma piada.

fez uma pausa e acrescentou:

— Uma piada de que eu me lembrarei, tesouro. De que certamente me lembrarei.

Bond calculou que o Sr. Krest já tinha dentro uma garrafa inteira de várias bebidas alcoólicas, principalmente uísque.

Parecia a Bond que, se ele não perdesse a consciência, não demoraria muito o momento em que teria de acertar o Sr. Krest, só uma vez, mas bem forte, no queixo. Fidele Barbey estava agora recebendo o tratamento.

— Essas suas ilhas, Fido. Quando olhei para elas no mapa pela primeira vez, pensei que fossem apenas algumas sujeiras de mosquitos sobre a página — disse o Sr. Krest, dando uma risadinha. — Tentei mesmo limpá-las com as costas da mão. Depois li um pouco sobre elas e tive a impressão de que minha primeira ideia acertara em cheio. Não prestam para grande coisa, não é, Fido? Admira-me como um rapaz inteligente como você não dá o fora daqui. Mariscar pelas praias não é vida que se leve. Verdade que ouvi dizer que um dos membros de sua família deixou mais de cem filhos ilegítimos. Talvez seja essa a atração, hem, rapaz?

O Sr. Krest sorriu como quem conhece bem as coisas. Fidele Barbey respondeu serenamente:

— Esse foi meu tio Gaston. O resto da família não aprova isso. fez um grande furo na fortuna da família.

— Fortuna da família, hem? — disse o Sr. Krest, piscando para Bond. — Em que estava empregada essa fortuna? Em conchas de caurim?

— Não exatamente. — Fidele Barbey não estava acostumado com o tipo de rudeza do Sr. Krest. Parecia-ligeiramente embaraçado. — Embora tenhamos ganho muito dinheiro com carapaças de tartaruga e madrepérola há uns cem anos quando havia enorme procura dessas coisas. Copra sempre foi nosso principal negócio.

— Usando os bastardos da família como mão-de-obra, suponho eu. Boa ideia. Gostaria de poder arrumar alguma coisa assim em meu círculo doméstico.

O Sr. Krest olhou para sua esposa. Os lábios de borracha viraram-se ainda mais para baixo. Antes da chacota seguinte poder ser proferida, Bond empurrara sua cadeira para trás e saíra para o convés, fechando a porta depois de passar.

Dez minutos depois, Bond ouviu o barulho de pés que desciam a escada do convés superior. Virou-se. Era Liz Krest. Veio ate onde ele estava na popa. Disse com voz tensa:

— Eu disse que ia para a cama. Mas depois pensei em voltar aqui para ver se quer mais alguma coisa. Não sou muito boa dona de casa, acho. Tem certeza que não faz questão de dormir aqui fora?

— Gosto disto. Gosto mais desta espécie de ar que da coisa enlatada lá dentro. E é maravilhoso ter todas essas estrelas para olhar. Nunca tinha visto tantas estrelas.

Ela disse ansiosamente, aproveitando o assunto amistoso:

— Gosto mais da constelação de Orion e do Cruzeiro do Sul. Quando era pequena — sabe? — pensava que as estrelas eram na realidade buracos no céu. Pensava que o mundo era cercado por uma espécie de envoltório grande e preto, fora do qual o universo era cheio de luz brilhante. As estrelas eram apenas buracos no envoltório, que deixavam passar pequenas faíscas de luz. A gente tem ideias terrivelmente tolas quando criança.

Ergueu os olhos para Bond, desejando que ele não a decepcionasse.

— Você provavelmente tem razão — disse Bond. — A gente não deve acreditar em tudo quanto os cientistas dizem. Eles querem tornar tudo monótono. Onde você vivia nessa época?

— Em Ringwood, na New Forest. Era um bom lugar para a gente crescer. Um bom lugar para crianças. Gostaria de voltar lá um dia.

— Você sem dúvida percorreu um longo caminho desde então — disse Bond. — Provavelmente o achou muito monótono.

Ela estendeu a mão e tocou a manga de Bond.

— Por favor, não diga isso. Você não compreende... — havia uma nota de desespero na voz suave. — Não posso suportar o fato de não ter o que outras pessoas têm — pessoas comuns. Quero dizer — disse ela, rindo nervosamente — você não vai acreditar em mim, mas conversar assim durante alguns minutos, ter alguém como você com quem conversar, é coisa de que já quase me esquecera.

De repente, segurou a mão de Bond e apertou-a bem.

— Desculpe. Só queria fazer isto. Agora vou para a cama.

A voz macia veio de trás deles. A fala era pastosa, mas cada palavra era cuidadosamente separada da seguinte.

— Bem, bem. Quem diria? Namorando com o criado submarino!

O Sr. Krest estava enquadrado na portinhola do salão. Firmava-se sobre as pernas bem abertas e tinha os braços estendidos para a padieira em cima de sua cabeça. Com a luz por trás, tinha a silhueta de um cinocéfalo. O ar frio e aprisionado do salão passou por ele e por um momento resfriou o ar quente da noite no convés inferior. O Sr. Krest deu um passo para fora e empurrou delicadamente a porta para trás.

Bond deu um passo em direção a ele, com as mãos caídas dos lados. Mediu a distância que o separava do plexo solar do Sr. Krest.

— Não tire conclusões apressadas, Sr. Krest — disse. — E cuidado com a língua. Teve a sorte de não machucar-se até agora. Não abuse da sorte. O senhor está bêbado. Vá para a cama.

— Ho, ho, ho! Ouçam o atrevido rapaz.

O rosto do Sr. Krest, iluminado pela lua, voltou-se vagarosamente de Bond para sua esposa. fez uma careta desdenhosa. Tirou do bolso um apito de prata e girou-o em sua corrente.

— ele evidentemente não está compreendendo, não acha, tesouro? Você não lhe disse que aqueles hunos estão lá na frente só como enfeite?

Voltou-se de novo para Bond.

— Rapaz, aproxime-se mais e eu soprarei isto... só uma vez. E sabe o que acontecerá? Será o sepultamento do Sr. maldito Bond — disse ele, fazendo um gesto em direção ao mar — pelo costado. Homem ao mar. Uma pena. Voltamos para dar uma busca e sabe o que acontece, rapaz. Por acaso recuamos sobre você com aquelas duas hélices. Parece incrível! Que falta de sorte teve aquele belo rapaz Jim de quem todos nós gostávamos tanto!

O Sr. Krest balançou-se sobre os pés.

— Entendeu, Jim? Okay, então vamos ser amigos de novo e dormir um pouco.

Segurou na padieira da portinhola e virou-se para sua esposa. Ergueu a mão livre e fez um gesto vagaroso com o dedo.

— Ande, tesouro. É hora de ir para a cama.

— Sim, Milt. — Os olhos largos e assustados viraram-se de lado. — Boa-noite, James.

Sem esperar pela resposta, mergulhou por baixo do braço do Sr. Krest e atravessou quase correndo o salão. O Sr. Krest ergueu uma mão.

— Calma, rapaz. Nada de rancores, eh?

Bond nada disse. Continuou olhando duramente para o Sr. Krest.

O Sr. Krest riu hesitantemente. Depois disse:

— Então, okay.

Entrou no salão e fechou a porta. Através da janela, Bond observou-o caminhando vacilante pelo salão e apagando as luzes. Foi para o corredor e houve um clarão momentâneo na porta do camarote particular. Depois a porta também ficou escura.

Bond encolheu os ombros. Santo Deus, que homem! Debruçou-se no peitoril da popa e observou as estrelas e os lampejos de fosforescência na esteira cremosa. Pôs-se então a clarear o espírito e relaxar as tensões de seu corpo.

Meia hora mais tarde, depois de tomar um banho de chuveiro no banheiro da tripulação, Bond estava arrumando uma cama entre as almofadas Dunlopillo empilhadas quando ouviu um angustioso grito. O grito cortou a noite por um instante e depois foi sufocado. Era a mulher. Bond atravessou correndo o salão e desceu pelo corredor. Com a mão na porta do camarote, parou. Podia ouvir os soluços dela e, acima deles, a voz macia e monótona do Sr. Krest. Tirou a mão do trinco. Diabo! Que tinha com isso? Eram marido e mulher. Se ela estava disposta a suportar essa espécie de coisa sem matar seu marido ou abandoná-lo, não adiantava Bond fazer o papel de Sir Galahad. Bond voltou vagarosamente pelo corredor. Quando estava atravessando o salão, o grito, desta vez menos pungente, ecoou de novo. Bond praguejou fluentemente, saiu, deitou-se em sua cama e tentou focalizar seu espírito no suave roncar dos diesels. Como podia uma mulher ter tão pouca coragem? Ou será que as mulheres eram capazes de suportar quase tudo de um homem? Tudo, exceto a indiferença? O espírito de Bond recusava desembaraçar-se. O sono distanciava-se cada vez mais.

Uma hora mais tarde, Bond chegara à beira da inconsciência quando, acima dele no convés superior, o Sr. Krest começou a roncar. Na segunda noite após terem saído de Port Victoria, o Sr. Krest deixara sua cabina no meio da noite e subira para a rede que ficava pendurada para ele entre a lancha e o pequeno bote. Mas naquela noite não havia roncado. Agora estava roncando com aquele barulho profundo e estrondoso que resulta de grandes pílulas azuis de sedativo em cima de álcool em excesso.

Aquilo já era demais. Bond olhou para seu relógio. Uma e meia. Se o ronco não parasse em dez minutos, Bond desceria para a cabina de Fidele Barbey e dormiria no chão, ainda que tivesse de acordar duro e gelado na manhã seguinte.

Bond observou o ponteiro cintilante dar vagarosamente a volta no mostrador. Agora! Levantou-se e estava apanhando sua camisa e seu “short” quando, do convés superior, veio o barulho de uma forte batida. A batida foi seguida imedia-mente por ruídos de luta e um som horrível como de alguém sendo sufocado e gorgolando. Teria o Sr. Krest caído de sua rede? Relutantemente, Bond deixou suas coisas cair de novo no convés e subiu a escada. Quando seus olhos atingiram a altura do convés superior, os sons cessaram. Em seu lugar, houve outro som, ainda mais horrível — o rápido bater de calcanhares. Bond conhecia esse som. Saltou os últimos degraus e correu em direção à figura caída de costas e de braços abertos sob o brilhante luar. Parou e ajoelhou-se devagar, horrorizado. O horror do rosto estrangulado já era bem feio, mas não era a língua do Sr. Krest que saía de sua boca aberta. Era o rabo de um peixe. As cores eram rosa e preto. Era a Raridade de Hildebrand!

O homem estava morto — horrivelmente morto. Quando o peixe fora enfiado em sua boca, ele devia ter estendido a mão e tentado desesperadamente arrancá-lo para fora. Mas os espinhos das nadadeiras dorsais e anais haviam-se prendido por dentro das bochechas e algumas das pontas espinhosas projetavam-se agora através da pele manchada de sangue em roda da boca obscena. Bond estremeceu. A morte devia ter sobrevindo em um minuto. Mas que minuto!

Bond pôs-se em pé vagarosamente. Caminhou até as prateleiras de frascos de vidro e espreitou por baixo do toldo protetor. A tampa de plástico do frasco da ponta estava caída no convés a seu lado. Bond limpou-a cuidadosamente na lona e depois, segurando-a com as pontas das unhas, colocou-a de novo solta sobre a boca do frasco.

Voltou e ficou em pé ao lado do cadáver. Qual dos dois fizera isso? Havia um toque de diabólico ódio no uso da valiosa prenda como arma. Isso sugeria a mulher. Ela certamente tinha suas razões. Mas Fidele Barbey, com seu sangue crioulo, teria tido a crueldade e ao mesmo tempo o macabro senso de humor. “Je lui ai foutu son sacré poisson dans la gueule.” Bond podia ouvi-lo proferindo as palavras. Se, após Bond ter deixado o salão, o Sr. Krest tivesse alfinetado mais um pouquinho os seychellois — particularmente no que se referia à sua família ou suas adoradas ilhas — Fidele Barbey não o teria atacado lá na hora ou usado uma faca. Teria esperado e planejado.

Bond correu os olhos pelo convés. O ronco do homem poderia ter sido um sinal para qualquer dos dois. Havia escadas para o convés superior partindo de ambos os lados das cabinas. O timoneiro na casa do leme nada teria ouvido com o barulho da sala de máquinas. Bastariam segundos para tirar o pequeno peixe de seu banho de formalina e enfiá-lo na boca aberta do Sr. Krest. Bond encolheu os ombros. Quem quer que tivesse feito aquilo não pensara nas consequências — no inevitável inquérito, talvez um julgamento, no qual ele, Bond, seria outro suspeito. Sem dúvida, iam todos meter-se em uma encrenca dos diabos a menos que pudesse arrumar as coisas.

Bond olhou pela beirada do convés superior. Embaixo ficava a faixa de um metro de coberta que se estendia por todo o comprimento do navio. Entre ela e o mar havia um peitoril de uns sessenta centímetros de altura. Supondo-se que a rede tivesse partido e o Sr. Krest tivesse caído, rolado sobre a lancha e pela beirada do convés superior, poderia ter chegado ao mar? Dificilmente, com o mar tão calmo, mas isso é o que ele iria fazer.

Bond pôs-se em ação. Com uma faca de mesa do salão, esfiapou cuidadosamente e depois partiu uma das principais cordas da rede, de modo que esta ficou realisticamente caída no convés. Em seguida, com um pano úmido, limpou as manchas de sangue na madeira e as gotas de formalina que tinham escorrido desde o frasco do peixe. Depois, veio a parte mais difícil — lidar com o cadáver. Cuidadosamente, Bond puxou-o para a beirada do convés, desceu a escada e, erguendo o corpo, segurou-o. O cadáver desceu por cima dele, com um pesado abraço de bêbado. Bond caminhou cambaleante até o peitoril baixo e soltou o cadáver. Houve um último e medonho vislumbre do rosto obscenamente inchado, um enjoativo cheiro de uísque azedo, uma pesada batida e o corpo rolou vagarosamente, levado pelas pequenas ondas da esteira. Bond agachou-se encostado à escotilha do salão, pronto para escorregar por ela se o timoneiro viesse da proa para investigar. Mas não houve movimento na frente do barco e os diesels continuaram roncando firmemente.

Bond suspirou fundo. O “coroner” precisaria ser muito encrenqueiro para pensar em outra coisa além de acidente. Voltou para o convés superior, deu uma última olhada em roda, jogou ao mar a faca e o pano úmido, e desceu a escada para sua cama no convés inferior. Eram duas e quinze. Dez minutos depois, Bond estava dormindo.


Aumentando a velocidade para doze nós, às seis horas da tarde estavam em North Point. Atrás deles, o céu corruscava de raios vermelhos e dourados sobre água-marinha. Os dois homens, com a mulher entre eles, estavam encostados no peitoril do convés inferior e observavam a praia brilhante além do mar, que parecia um espelho de madrepérolas. Liz Krest usava um vestido de linho branco com cinto preto e um lenço preto e branco enrolado no pescoço. As cores da manhã combinavam com a pele dourada. As três pessoas mantinham-se reservadas e quase constrangidas, cada uma delas alimentando seu próprio conhecimento secreto, cada uma delas ansiosa por transmitir às outras duas que seus segredos particulares estavam bem guardados com ela.

Naquela manhã parecia ter havido entre os três uma conspiração para dormir até tarde. Mesmo Bond não fora acordado pelo sol antes das dez horas. Tomou um banho de chuveiro no alojamento da tripulação e conversou com o timoneiro antes de descer para ver o que acontecera com Fidele Barbey. Este ainda estava na cama. Disse que estava de ressaca. Havia sido muito rude com o Sr. Krest? Não conseguia lembrar-se de muita coisa, recordando apenas que o Sr. Krest fora rude com ele.

— Lembra-se do que eu disse sobre ele desde o começo, James? Um fanfarrão safado. Agora concorda comigo? Qualquer dia destes alguém vai tapar para sempre aquela sua feia boca mole.

Inconclusivo. Bond arrumou alguma coisa como desjejum na cozinha e estava comendo quando Liz Krest entrou para fazer o mesmo. Vestia um quimono de xantungue azul pálido até os joelhos. Havia anéis escuros embaixo de seus olhos e ela tomou seu desjejum em pé. Mas parecia perfeitamente calma e à vontade. Segredou com ar de conspiração:

— Desculpe o que aconteceu ontem à noite. Acho que eu também bebi um pouco demais. Mas perdoe Milt. ele é realmente muito amável. Só quando bebe um pouco demais é que fica um tanto difícil. Sempre se arrepende na manhã seguinte. Você vai ver.

Quando já eram onze horas e nenhum dos outros dois mostrava sinais de abrir o jogo, por assim dizer, Bond decidiu forçar a parada. Olhou fixamente para Liz Krest que estava deitada de bruço no convés inferior lendo uma revista e disse:

— A propósito, onde está seu marido? Ainda dormindo?

Ela franziu a testa.

—- Acho que sim. ele foi para sua rede no convés superior. Não tenho ideia que horas eram. Tomei um comprimido de sedativo e dormi até de manhã.

Fidele Barbey tinha uma vara de pesca estendida para fora do barco. Sem voltar os olhos, disse:

— Provavelmente está na casa do leme.

— Se ainda estiver dormindo no convés superior — disse Bond — vai queimar-se como o diabo.

— Oh, pobre Milt! — exclamou Liz Krest. — Eu não havia pensado nisso. Vou lá ver.

Subiu a escada. Quando sua cabeça estava acima do nível do convés superior, parou. Gritou para baixo, ansiosamente:

— Jim. ele não está aqui. E a rede está partida.

— Fidele provavelmente tem razão — respondeu Bond. — Vou olhar lá na frente.

Foi até a casa do leme. Fritz, o imediato, e o mecânico estavam lá. Bond perguntou:

— Alguém viu o Sr. Krest?

Fritz pareceu perplexo.

— Não, senhor. Por quê? Há alguma coisa errada?

Bond assumiu uma expressão de ansiedade.

— ele não está lá atrás. Vamos, deem uma olhada por toda parte. ele estava dormindo no convés superior. Não está lá e sua rede está partida. Estava bem ruim ontem à noite. Vamos! Procurem-no!

Quando se chegou à inevitável conclusão, Liz Krest teve curto, mas convincente acesso de histeria. Bond levou-a para sua cabina e deixou-a lá chorando.

— Está tudo bem, Liz — disse ele. — Fique fora disso. Eu cuidarei de tudo. Teremos de avisar Port Victória pelo rádio e outras coisas. Direi a Fritz para aumentar a velocidade. Acho que não adianta voltar atrás para olhar. Já faz seis horas que nasceu o dia, quando ele não poderia ter caído de bordo sem ser ouvido ou visto. Deve ter sido durante a noite. Acho que umas seis horas nestes mares é o fim.

Ela o fitou, com os olhos muito abertos.

— Quer dizer... quer dizer tubarões e outras coisas?

Bond fez que sim com a cabeça.

— Oh, Milt! Pobre e querido Milt! Oh, por que teria de acontecer isso?

Bond saiu e fechou suavemente a porta.

O iate deu a volta em Cannon Point e diminuiu a velocidade. Conservando-se bem longe dos recifes esparsos, deslizou serenamente através da larga baía, agora cor de limão e cinzenta escura na última luz do dia, em direção ao ancoradouro. A pequena Prefeitura embaixo das montanhas já estava escura com sombras cor de anil nas quais apareciam borrifos de luz amarela. Bond viu a lancha da Alfândega e Imigração sair do Long Pier para encontrá-los. A pequena comunidade já devia estar comentando ativamente a notícia, que devia ter transpirado rapidamente da estação de rádio para o Seychelles Club e de lá, através dos sócios, motoristas e empregados, para a cidade.

Liz Krest virou-se para ele.

— Estou começando a ficar nervosa. Você me ajudará até o fim disto... destas horríveis formalidades e outras coisas?

— Naturalmente.

— Não se preocupem demais — disse Fidele Barbey. — Toda essa gente é minha amiga. E o juiz é meu tio. Todos nós teremos de prestar depoimento. Provavelmente farão a audiência amanhã. Você poderá partir no dia seguinte.

— Pensa mesmo assim? — perguntou Liz Krest, sob cujos olhos o suor parecia orvalho. — O mal é que realmente não sei para onde partir ou que fazer. Suponho — acrescentou, hesitando, sem olhar para Bond — suponho, James, que você não gostaria de ir até Mombasa? Quero dizer, você vai para lá de qualquer jeito e eu poderia levá-lo até lá um dia antes desse seu navio, essa Camp qualquer coisa.

— “Kampala” — esclareceu Bond, acendendo um cigarro para ocultar sua hesitação. Quatro dias em um belo iate com essa mulher? Mas havia o rabo daquele peixe projetando-se da boca! Teria ela feito aquilo? Ou fora Fidele, sabendo que seus tios e primos em Mahe dariam um jeito de nada lhe acontecer de mal? Se pelo menos um deles cometesse uma indiscrição. Bond disse com naturalidade:

— É muita bondade sua, Liz. Naturalmente, eu gostaria de ir.

Fidele Barbey riu baixinho.

— Bravo, meu amigo — disse ele. — E eu gostaria de estar em sua pele, menos por uma coisa. Aquele maldito peixe. É uma grande responsabilidade. Gosto de imaginar vocês dois recebendo torrentes de cabogramas da Smithsonian. Não se esqueçam de que agora vocês dois são curadores de um Koh-i-noor científico. E sabem como são aqueles americanos. Matarão vocês de aborrecimento até terem o bicho nas mãos.

Os olhos de Bond estavam duros como pedra enquanto a observava. Sem dúvida, isso apontava para ela. Agora teria de dar alguma desculpa, para tirar o corpo da viagem. Havia certa coisa naquela maneira particular de matar um homem...

Mas os belos olhos cândidos não vacilaram. Ela ergueu os olhos para o rosto de Fidele Barbey e disse, serenamente, encantadoramente:

— Isso não será problema. Decidi doá-lo ao Museu Britânico.

James Bond notou que agora se juntava orvalho de suor nas têmporas. Mas, afinal de contas, era uma tarde desesperadamente quente...

O ronco dos motores cessou e a corrente da âncora baixou rangendo para a calma baía.

Colombo sacudiu vagarosamente um dedo diante de seu nariz.

— Meu amigo — disse ele — Kristatos é Kristatos. Está fazendo o maior jogo dúplice que é possível conceber. Para mantê-lo — para manter a proteção do serviço secreto americano e de seu pessoal de entorpecentes — precisa jogar-lhes uma vítima de vez em quando — algum homem pequeno da orla do grande jogo. Mas com este problema inglês, o caso é diferente. É um tráfico enorme. Para protegê-lo, era necessária uma grande vítima. Eu fui escolhido — por Kristatos ou por seus empregadores. E é verdade que, se tivesse sido vigoroso em suas investigações e tivesse gasto bastante moeda forte para comprar informações, você poderia ter descoberto a história de minhas operações. Mas cada pista na minha direção teria levado você para mais longe da verdade. No final, pois eu não subestimo seu Serviço, eu teria ido para a prisão. Mas a grande raposa que você está procurando ficaria só rindo do barulho da caçada que morreria à distância.

— Por que Kristatos queria que eu o matasse?

A fisionomia de Colombo assumiu uma expressão astuciosa.

— Meu amigo, eu sei coisas demais. Na fraternidade dos contrabandistas, de vez em quando tropeçamos em um canto do negócio de outro homem. Não há muito tempo, neste barco, tive um combate em retirada com uma pequena canhoneira da Albânia. Um disparo providencial incendiou seu combustível. Só houve um sobrevivente, que foi convencido a falar. Fiquei sabendo muito, mas como um tolo resolvi correr o risco com os campos de minas e desembarquei-o na costa norte de Tirana. Foi um erro. Desde então tenho esse bastardo de Kristatos atrás de mim.

Colombo sorriu cruelmente e acrescentou:

— Tenho uma informação de que ele não tem conhecimento. E temos um encontro com essa informação à primeira luz do dia amanhã, em Santa Maria, pequeno porto pesqueiro logo ao norte de Ancona. E lá — concluiu Colombo, com uma risada áspera e cruel — veremos o que houver para ver.

Bond sorriu brandamente e perguntou:

— Qual é seu preço por tudo isso? Você diz que minha missão estará terminada amanhã de manhã. Quanto?

Colombo sacudiu a cabeça. Disse em tom indiferente:

— Nada. Acontece que nossos interesses coincidem. Você vai prometer-me, porém, que tudo quanto eu disse esta noite ficará entre eu e você, e, se necessário, seu chefe em Londres. Nunca deverá voltar à Itália. Está combinado?

— Sim. Concordo com isso.

Colombo levantou-se. Foi até a cômoda e tirou a arma de Bond. Entregou-a a Bond, dizendo:

— Nesse caso, meu amigo, é melhor ficar com isto, porque vai precisar. E é melhor também dormir um pouco. Haverá rum e café para todos às cinco da manhã.

Estendeu a mão. Bond apertou-a. De repente, os dois homens passaram a ser amigos. Bond sentiu isso.

— Está bem, Colombo — disse desajeitadamente, antes de sair da sala e encaminhar-se para sua cabina.

O “Colombina” tinha uma tripulação de doze homens. Eram homens jovens e de aparência decidida. Falavam em voz baixa entre si enquanto canecas de café quente e rum eram servidas por Colombo na sala. Uma lanterna de tempestade era a única luz — pois o navio fora escurecido — e Bond sorriu consigo mesmo diante da atmosfera de Ilha do Tesouro, do ar de excitação e conspiração. Colombo foi de homem em homem fazendo uma inspeção das armas. Todos tinham Lugers, carregadas embaixo da camisa de malha e por dentro do cós da calça, e facas de mola no bolso. Colombo teve uma palavra de aprovação ou de crítica para cada arma. Ocorreu a Bond que Colombo arrumara uma boa vida para si próprio — uma vida de aventura, emoção e risco. Era uma vida criminosa — um combate em retirada com as leis monetárias, o monopólio estatal de tabaco, a Alfândega e a polícia — mas havia no ar um cheiro de travessura adolescente que mudava a cor do crime de preto para branco — ou pelo menos cinzento.

Colombo olhou para seu relógio. Mandou os homens para seus postos. Apagou a lanterna e, sob a luz cinzenta da madrugada, Bond seguiu-o até a ponte. Viu que o navio estava perto de um litoral preto e rochoso, ao longo do qual navegava em velocidade reduzida. Colombo apontou para frente.

— Do outro lado daquele cabo fica a baía. Nossa aproximação não será observada. Na baía, encostado no desembarcadouro, espero encontrar um navio mais ou menos deste tamanho, descarregando inocentes bobinas de papel de imprensa por uma rampa que entra em um armazém. Depois de dar a volta ao cabo, avançaremos a toda velocidade, encostaremos ao lado desse navio e o abordaremos. Haverá resistência. Haverá cabeças quebradas. Espero que não haja tiros. Não atiraremos a menos que eles comecem. Mas será um navio albanês tripulado por albaneses durões. Se houver tiroteio, você deverá atirar com o resto de nós. Essa gente é inimiga de seu país tanto quanto do meu. Se você morrer, morreu. Está bem?

— Está muito bem.

Quando Bond dizia essas palavras, veio um tilintar do telégrafo da casa das máquinas e a coberta começou a tremer sob seus pés. Fazendo dez nós, o pequeno navio deu a volta ao cabo para entrar na baía.

Aconteceu como Colombo havia dito. Encostado no desembarcadouro de pedra, havia um navio, com suas velas trapeando ociosamente. De sua popa uma rampa de tábuas descia em direção à boca escura de um decrépito armazém de ferro corrugado, em cujo interior estavam acesas fracas luzes elétricas. O navio transportava na coberta uma carga que parecia ser bobinas de papel de imprensa. As bobinas estavam sendo baixadas uma por uma sobre a rampa de onde rolavam por seu próprio peso através da boca do armazém. Havia uns vinte homens à vista. Só a surpresa poderia anular essa desvantagem. Agora o barco de Colombo estava a cinquenta metros de distância do outro navio. Um ou dois dos homens pararam de trabalhar e olharam na direção do barco de Colombo. Um homem correu para dentro do armazém. Nesse instante Colombo deu uma ordem rápida. Os motores pararam e começaram a funcionar ao contrário. Um grande holofote foi aceso na ponta e iluminou brilhantemente toda a cena, enquanto o navio se encostava ao lado do pesqueiro albanês. Ao primeiro e violento contato, arpões foram lançados sobre o parapeito do navio albanês, na frente e atrás, e os homens do “Colombina” subiram pelo costado com Colombo à frente.

Bond havia feito seus próprios planos. Assim que seus pés pisaram na coberta inimiga, correu diretamente através do navio, subiu no parapeito do outro lado e saltou. Havia uma distância de uns quatro metros até o desembarcadouro e Bond nele caiu como um gato, sobre as mãos e as pontas dos pés. Ficou imóvel por um momento, agachado, planejando seu movimento seguinte. O tiroteio já começara na coberta. Um dos primeiros tiros apagara o holofote e agora só havia a luz cinzenta e luminosa da aurora. Um corpo, de um inimigo, caiu sobre as pedras à sua frente e ficou tombado de braços abertos, imóvel. Ao mesmo tempo, da boca do armazém, uma metralhadora leve começou a disparar, lançando rajadas curtas com toque altamente profissional. Bond correu em direção a ela na sombra escura do navio. O homem da metralhadora avistou-o e lançou-lhe uma rajada. As balas zuniram em volta de Bond, bateram no casco de ferro do navio e desapareceram na noite. Bond procurou a proteção da rampa de tábuas e mergulhou para a frente de barriga. As balas enterravam-se na madeira acima de sua cabeça. Bond rastejou para a frente no espaço estreito. Quando chegasse o mais perto possível, poderia escolher entre sair para a direita ou para a esquerda das tábuas. Houve uma série de pesadas batidas e o barulho de algo rolando rapidamente em cima de sua cabeça. Um dos homens de Colombo devia ter cortado as cordas, fazendo com que toda a pilha de bobinas de papel rolasse pela rampa. Agora era a oportunidade de Bond. Saltou para fora de seu esconderijo — para a esquerda. Se estivesse esperando por ele, o homem da metralhadora acreditaria que ia aparecer disparando pela direita. O homem da metralhadora lá estava, agachado e encostado à parede do armazém. Bond disparou duas vezes na fração de segundo antes que o cano brilhante da arma inimiga girasse em seu pequeno arco. O dedo do homem morto premiu o gatilho e, enquanto ele caía, a arma disparou uma curta rajada antes de soltar-se de sua mão e cair ao chão.

Bond estava correndo em direção à porta do armazém quando escorregou e caiu de cabeça. Ficou imóvel por um momento, estonteado, com o rosto em uma poça de melaço preto. Praguejou, ergueu-se sobre as mãos e os joelhos, e correu esconder-se atrás de um monte de bobinas de papel que haviam batido na parede do armazém. De uma delas, furada por uma rajada da metralhadora, escorria o melaço preto. Bond limpou o mais que pôde de suas mãos e de seu rosto. Tinha o cheiro adocicado e rançoso que Bond já sentira certa vez no México. Era ópio bruto.

Uma bala enterrou-se na parede do armazém não longe de sua cabeça. Bond limpou pela última vez a mão nos fundimos da calça e saltou para a porta do armazém. Ficou surpreendido em não ser alvejado do interior assim que sua silhueta apareceu na porta. Dentro estava silencioso e fresco. As luzes haviam sido apagadas, mas agora estava ficando mais claro lá fora. As claras bobinas de papel estavam empilhadas em fileiras metódicas, tendo no centro um espaço para servir como corredor. Na outra extremidade do corredor havia uma porta. Todo esse arranjo parecia olhá-lo de soslaio, desafiando-o. Bond sentiu o cheiro da morte. Recuou para a porta e saiu. O tiroteio tornara-se espasmódico. Colombo vinha correndo rapidamente em sua direção, com os pés perto do chão, como correm os homens gordos. Bond disse peremptòriamente:

— Fique nesta porta. Não entre e não deixe nenhum de seus homens entrar. Vou dar a volta por trás.

Sem esperar por resposta, deu a volta correndo no canto do prédio e avançou pelo lado.

O armazém tinha uns quinze metros de comprimento. Bond diminuiu o passo e caminhou silenciosamente até o outro canto. Encostou-se na parede de ferro corrugado e olhou rapidamente pelo canto. Recuou imediatamente. Havia um homem em pé na entrada do fundo. Tinha os olhos em alguma espécie de orifício para espionar dentro do armazém. Na mão tinha um pistão do qual saíam fios que se estendiam por baixo da porta. Um carro, um conversível preto Lancia Granturismo de capota baixada, estava a seu lado, com o motor roncando maciamente. O carro estava voltado para o interior, em uma estrada empoeirada e profundamente trilhada.

O homem era Kristatos.

Bond ajoelhou-se. Segurou a arma com as duas mãos para ter mais firmeza, inclinou-se para fora do canto do prédio e disparou um tiro contra os pés do homem. Errou. Quase no mesmo instante em que viu a poeira levantar-se a centímetros do alvo, houve o barulho estrondeante de uma explosão. A parede de latão atingiu-o e jogou-o longe.

Bond levantou-se cambaleando. O armazém entortara-se doidamente. Agora começava a ruir barulhentamente, como um maço de cartas de latão. Kristatos estava no automóvel. Já estava vinte metros distante, com as rodas traseiras jogando poeira para o alto. Bond assumiu a clássica pose de tiro de pistola e mirou cuidadosamente. A Walther rugiu e escoiceou três vezes. No último tiro, a cinquenta metros, a figura agachada sobre o volante sacudiu-se para trás. As mãos largaram a direção e estenderam-se para os lados. A cabeça espichou momentaneamente para o alto e caiu para a frente. A mão direita continuou estendida para fora, como se o homem morto estivesse fazendo sinal de virar à direita. Bond começou a correr pela estrada, esperando que o carro parasse, mas as rodas estavam presas nos trilhos e, com o peso do pé direito do homem morto ainda sobre o acelerador, o Lancia continuou a correr em sua gritante terceira. Bond parou e ficou observando-o. O carro corria pela estrada plana que atravessava uma planície queimada e a nuvem de poeira branca erguia-se alegremente atrás dele. Bond esperava que a qualquer momento ele saísse da estrada, mas não saiu. Ficou olhando-o até perdê-lo de vista no nevoeiro da manhã que prometia um belo dia.

Bond travou sua arma e enfiou-a na cintura da calça. Quando se virou, viu Colombo aproximando-se. O homem gordo sorria encantado. Chegou até a Bond e, para horror deste, estendeu seus braços abertos, puxou Bond em sua direção e beijou-o em ambas as faces.

— Pelo amor de Deus, Colombo! — disse Bond.

Colombo estourou numa risada.

— Ah, o fleugmático inglês! Nada teme, senão as emoções. Mas eu — disse batendo no próprio peito — eu, Enrico Colombo, gosto deste homem e não tenho vergonha de confessá-lo. Se você não tivesse liquidado o homem da metralhadora, nenhum de nós teria sobrevivido. Perdi dois de meus homens e outros ficaram feridos. Mas só restou em pé meia dúzia de albaneses, que fugiram para a aldeia. Sem dúvida, a polícia os prenderá. E agora você mandou aquele maldito Kristatos de automóvel para o inferno. Que esplêndido fim para ele! Que acontecerá quando o pequeno esquife de corrida chegar à rodovia principal? ele já está fazendo sinal com a mão de que vai virar à direita para entrar na auto-estrada. Espero que se lembre de entrar à direita.

Colombo deu um violento tapa no ombro de Bond.

— Vamos, meu amigo — disse ele. — É tempo de sairmos daqui. As válvulas estão abertas no navio albanês, que logo irá ao fundo. Não há telefone neste lugarzinho. Levaremos uma boa vantagem sobre a polícia. Demorarão algum tempo para conseguir saber alguma coisa dos pescadores. Falei com o chefe. Ninguém aqui gosta de albaneses. Mas precisamos ir embora. Temos uma boa vela ao vento e não há médico em que eu possa confiar deste lado de Veneza.

Chamas estavam começando a aparecer no desmoronado armazém e dele se desprendiam vagalhões de fumaça que cheiravam como legumes doces. Bond e Colombo caminharam contra o vento. O navio albanês encostara-se no fundo e suas cobertas estavam inundadas. Atravessaram o navio andando sobre a água e subiram para bordo do “Colombina”, onde Bond precisou submeter-se a mais apertos de mão e tapas nas costas. Partiram imediatamente e rumaram para o cabo que guardava a baía. Havia um pequeno grupo de pescadores em pé ao lado de seus barcos puxados para a praia abaixo de um amontoado de cabanas de pedra. Causavam uma impressão desagradável, mas quando Colombo acenou com a mão e gritou algo em italiano, a maioria deles ergueu a mão em despedida e um deles gritou em resposta algo que fez a tripulação do “Colombina” rir. Colombo explicou:

— Dizem que nós somos melhores que o cinema de Ancona e devemos voltar de novo.

Bond sentiu desaparecer toda sua excitação. Sentia-se sujo e barbudo. Podia sentir o cheiro de seu próprio suor. Desceu, tomou uma navalha e uma camisa limpa emprestadas de um dos tripulantes, despiu-se em sua cabina e lavou-se. Quando tirou a arma e jogou-a sobre a tarimba, sentiu um cheiro de cordite sair do cano. Isso lhe trouxe de volta o medo, a violência e a morte na madrugada cinzenta. Abriu a vigia. Fora, o mar dançava alegremente e o litoral que recuava, antes negro e misterioso, era agora verde e bonito. Um repentino e delicioso cheiro de toucinho frigindo foi trazido da cozinha pelo vento. Abruptamente, Bond fechou a viga, vestiu-se e foi para a sala.

Sobre um monte de ovos fritos e toucinho defumado, regados por café doce quente misturado com rum. Colombo pôs os pingos nos “ii” e os traços nos “tt”.

— Isso nós conseguimos, meu amigo — disse ele, mastigando torrada. — Era o suprimento de um ano de ópio bruto a caminho da indústria química de Kristatos em Nápoles. É verdade que eu tenho um negócio semelhante em Milão, que serve como conveniente depósito para algumas de minhas mercadorias. Mas não produz coisa alguma mais mortal do que cascara e aspirina. Em toda essa parte da história de Kristatos, onde está escrito Colombo deve-se ler Kristatos. Era ele quem transformava o material em heroína e era ele quem empregava os mensageiros que a levavam para Londres. Aquele enorme carregamento valia talvez um milhão de libras para Kristatos e seus homens. Mas sabe de uma coisa, meu caro James? Não lhe custava um único centavo. Por quê? Porque era presente da Rússia. Presente de um maciço e mortal projétil para ser disparado contra as entranhas da Inglaterra. Os russos podem fornecer quantidades ilimitadas de carga para o projétil. Provém de suas culturas de papoula no Cáucaso e a Albânia é um entreposto conveniente. Mas eles não têm o aparelhamento para disparar o projétil. Kristatos criou o aparelhamento necessário e era ele quem, em nome de seus senhores na Rússia, apertava o gatilho. Hoje, entre nós, destruímos, em meia hora, toda a conspiração. Você pode voltar e dizer a sua gente na Inglaterra que o tráfico cessará. Pode também dizer-lhe a verdade: que a Itália não era a origem dessa terrível arma subterrânea de guerra. Ela provinha de nossos velhos amigos, os russos. Sem dúvida é parte de alguma guerra psicológica de seu aparelhamento de espionagem. Isso posso assegurar-lhe. Talvez, meu caro James — prosseguiu Colombo, sorrindo encorajadoramente — o mandem a Moscou para descobrir isso. Se tal acontecer, esperemos que encontre alguma garota tão encantadora quanto sua amiga Fräulein List Baum para pô-lo no caminho reto da verdade.

— Por que diz “minha amiga”? Ela é sua.

Colombo sacudiu a cabeça.

— Meu caro James, tenho muitos amigos. Você vai passar mais alguns dias na Itália escrevendo seu relatório e sem dúvida — Colombo deu uma risadinha — conferindo algumas das coisas que lhe contei. Talvez passe também uma agradável meia hora explicando as realidades da vida a seus colegas do serviço secreto americano. Entre esses deveres, precisará de companhia — de alguém que lhe mostre as belezas de minha terra adorada. Em países incivilizados, é um costume cortês oferecer uma de suas esposas ao homem que você ama e que deseja homenagear. Eu também sou incivilizado. Não tenho esposas, mas tenho muitas amigas, como Lisl Baum. Ela não precisará receber instruções nessa matéria. Tenho boa razão para acreditar que está esperando seu regresso esta noite.

Colombo enfiou a mão no bolso da calça e tirou algo que deixou cair barulhentamente sobre a mesa em frente de Bond.

— Aqui está a boa razão — disse Colombo, pondo a mão no coração e olhando seriamente para os olhos de Bond. — Dou-a de coração. Talvez venha também do coração dela.

Bond apanhou o objeto. Era uma chave tendo presa a ela uma pesada chapa de metal. Na chapa de metal estava escrito: Albergo Danielli. Quarto 68.


A raridade de Hildebrand

 

 

 

(THE HILDEBRAND RARITY)

 

A arraia tinha uns dois metros de uma extremidade à outra das nadadeiras e talvez três metros de comprimento, desde a ponta rombuda de seu focinho até o fim de sua mortal cauda. Era cinzenta escura com aquele matiz roxo que é muitas vezes um sinal de perigo no mundo submarino. Quando se levantou da areia cor de ouro pálida e nadou por curta distância foi como se uma toalha preta estivesse sendo sacudida dentro da água.

James Bond, com as mãos estendidas ao longo do corpo e nadando apenas com um suave movimento de suas nadadeiras, seguiu a sombra preta através da laguna orlada de palmeiras, esperando oportunidade para um disparo. Raramente matava peixe a não ser para comer, mas havia exceções — as grandes moreias e todos os membros da família do peixe-escorpião. Agora pretendia matar a arraia porque parecia extraordinariamente má.

Eram dez horas da manhã de um dia de abril e a laguna Belle Anse, perto da extremidade sul de Mahe, a maior ilha do arquipélago das Seychelles, estava serena como vidro. A monção noroeste deixara de soprar meses antes e somente em maio começaria a monção sudeste. Agora a temperatura era de 27 graus à sombra e a umidade de noventa. Na laguna, a água fechada estava quase quente. Até os peixes pareciam entorpecidos. Um bodião verde de cinco quilos, mordiscando algas em uma massa de coral, parou apenas para girar os olhos quando Bond passou por cima, e depois voltou à sua refeição. Um cardume de pequenos e chatos peixes cinzentos, nadando rapidamente, abriu-se ao meio com cortesia para dar passagem à sombra de Bond, depois voltou a fechar-se e continuou seu avanço na direção contrária. Uma fileira de seis pequenas lulas, normalmente tão ariscas quanto pássaros, nem sequer tentou modificar sua camuflagem quando Bond passou.

Bond avançava preguiçosamente, conservando a arraia ao alcance da vista. Logo ela se cansaria ou então se tranquilizaria vendo que Bond, o grande peixe à superfície, não atacava. Então pararia em um lugar de areia lisa, mudaria sua camuflagem para o cinzento mais pálido, quase translúcido, e, com suaves ondulações de suas nadadeiras, enterrar-se-ia na areia.

A linha de recifes estava chegando perto e agora havia afloramentos negros de coral e campinas de plantas marinhas. Era como chegar do campo aberto a uma cidade. Por toda parte os coloridos peixes dos recifes resplandeciam e cintilavam. As gigantescas anêmonas do Oceano Indico ardiam como chamas nas sombras. Colônias de espinhosos ouriços do mar formavam manchas em sépia como se alguém tivesse jogado tinta contra as pedras. As brilhantes antenas azuis e amarelas das lagostas agitavam-se para fora de suas fendas como pequenos dragões. De vez em quando, entre as algas marinhas no cintilante leito do mar, avistava-se o brilho sarapintado de um caurim maior que uma bola de golfe — o caurim leopardo e uma vez Bond viu os belos dedos estendidos de uma harpa de Vênus. Mas todas essas coisas já eram comuns para Bond, que continuou nadando firmemente interessado nos recifes apenas como esconderijo através do qual pudesse avançar pelo mar além da arraia e depois persegui-la de volta na direção da praia. A tática deu resultado. Logo a sombra negra e o torpedo marrom que a perseguia estavam voltando através do grande espelho azul. Onde havia uns três metros e meio de água a arraia parou pela centésima vez. Bond parou também, movendo-se suavemente na água. Cautelosamente, ergueu a cabeça e esvaziou a água de seus óculos. Quando tornou a olhar, a arraia havia desaparecido.

Bond tinha uma espingarda de arpão Champion. O arpão tinha na ponta um tridente afiado como agulha — uma arma para curta distância, mas a melhor para operação em recifes. Bond soltou a trava e movimentou-se vagarosamente para a frente, com as nadadeiras oscilando suavemente logo abaixo da superfície para não fazer barulho. Olhou em roda, tentando perscrutar os nebulosos horizontes do grande salão da laguna. Procurava avistar algum corpo volumoso de emboscada. Não seria bom ter um tubarão ou um grande barracuda como testemunha do ataque. Os peixes às vezes gritam quando são feridos e, mesmo quando não gritam, a turbulência e o sangue resultantes de uma luta feroz atraem os limpadores. Mas não havia viva alma à vista e a areia estendia-se para os lados enfumaçados como as tábuas nuas de um palco. Agora Bond podia ver o vago contorno no fundo. Moveu-se até ficar diretamente sobre ele e permaneceu imóvel à superfície, olhando para baixo. Houve um ligeiro movimento na areia. Duas minúsculas fontes de areia dançavam acima dos orifícios semelhantes a narinas nos espiráculos. Atrás dos orifícios estava a ligeira protuberância do corpo. Aquele era o alvo. Dois centímetros e meio atrás dos orifícios. Bond calculou a possível chicotada da cauda para cima, virou vagarosamente a espingarda para baixo e puxou o gatilho.

Embaixo dele houve uma erupção de areia e, por um ansioso momento, Bond nada pôde ver. Depois a linha do arpão ficou esticada e a arraia apareceu, afastando-se dele enquanto sua cauda, em ação reflexa, chicoteava repetidamente sobre o corpo. Na base da cauda, Bond pôde ver os pontudos espinhos de veneno erguendo-se do tronco. Esses eram os espinhos que se supunha terem morto Ulisses, que Plínio dizia ser capaz de destruir uma árvore. No Oceano Indico, onde os venenos do mar são os mais virulentos, um arranhão do ferrão dessa arraia significa morte certa. Cautelosamente, mantendo a arraia em linha esticada, Bond nadou atrás do peixe que lutava ferozmente. Nadou para um lado a fim de desviar a linha da cauda chicoteante que poderia facilmente cortá-la. Essa cauda era o chicote do antigo feitor de escravos do Oceano Indico. Hoje em dia, em Seychelles, é ilegal até mesmo possuir uma cauda dessas, mas elas são transmitidas nas famílias para uso contra esposas infiéis. Quando circula a notícia de que esta ou aquela mulher a eu la crapule, nome provençal da arraia, vale dizer que a mulher não se levantará pelo menos por uma semana. Agora, as chicotadas da cauda estavam-se tornando mais fracas. Bond nadou em volta e por cima da arraia, arrastando-a atrás dele em direção à praia. No raso, a arraia amoleceu e Bond puxou-a para a praia, até um boa distância na água. Mas ainda se conservou longe dela. fez bem. De repente, devido a algum movimento de Bond ou talvez na esperança de apanhar desprevenido seu inimigo, a gigantesca arraia deu um salto para o ar. Bond pulou de lado e arraia caiu de costas. Ficou imóvel com a barriga branca exposta ao sol e a grande e feia boca em forma de foice aspirando e ofegando.

Bond ficou parado olhando para a arraia e pensando o que iria fazer em seguida.

Um homem branco, baixo e gordo, com camisa e calça caquis, saiu debaixo das palmeiras e caminhou em direção a Bond através das plantas marinhas e restos de naufrágios ressecados pelo sol espalhados bem acima da marca da água. Quando estava bastante perto, disse rindo:

— O Velho e o Mar! Quem pescou e quem foi pescado?

Bond virou-se.

— Só poderia ser o único da ilha que não carrega um machete. Fidele, seja bonzinho e chame um de seus homens. Este animal não quer morrer e meu arpão está enterrado nele.

Fidele Barbey, o mais moço dos inúmeros Barbeys que eram donos de quase tudo quanto havia em Seychelles, aproximou-se e ficou olhando para a arraia.

— Essa foi boa. Foi sorte você ter acertado no lugar exato, senão ela o teria arrastado para os recifes e você precisaria largar a espingarda. Demoram como o diabo para morrer. Mas vamos. Preciso levá-lo de volta a Victória. Apareceu uma coisa. Coisa boa. Eu mandarei um de meus homens buscar a espingarda. Você quer a cauda?

Bond sorriu ao responder:

— Eu não sou casado. Mas que acha de uma raie au beurre noir para hoje à noite?

— Hoje à noite, não, meu amigo. Vamos. Onde estão suas roupas?

Enquanto rodavam na perua pela estrada costeira, Fidele disse:

— Já ouviu falar em um americano chamado Milton Krest? Bem, parece que ele é dono dos hotéis Krest e de um negócio chamado Fundação Krest. Uma coisa posso garantir-lhe. ele é dono do melhor iate que se encontra no Oceano Indico. Chegou ontem. O “Wavekrest”. Quase duzentas toneladas. Trinta metros de comprimento. Há de tudo no barco, desde uma bela esposa até um grande gramofone transistorizado sobre balanceiro para que as ondas não sacudam a agulha. Tapetes de três centímetros de grossura de parede a parede. Ar condicionado em toda parte. Os únicos cigarros secos deste lado do continente africano e a melhor garrafa de champanha para depois do desjejum que já provei desde a última vez que vi Paris.

Fidele Barbey riu satisfeito.

— Meu amigo, é um grande barco e se o Sr. Krest é um fanfarrão safado, quem se importa com isso?

— Quem se importa com ele, afinal de contas? Que tem ele a ver com você... ou comigo, para dizer a verdade?

— Só isto, meu amigo. Vamos passar alguns dias navegando com o Sr. Krest... e a Sra. Krest, a bela Sra. Krest. Concordei em levar o navio até Chagrin, a ilha de que já lhe falei. Fica a muitas milhas daqui, ao largo dos African Banks. Minha família nunca encontrou utilidade para ela, a não ser para colecionar ovos de atobá. Fica apenas um metro acima do nível do mar. Faz cinco anos que não vou àquele maldito lugar. Agora, esse Krest quer ir até lá. Está colecionando espécimes marinhos, coisas da sua fundação, e há uns malditos peixinhos que parecem existir apenas ao redor da ilha Chagrin. Pelo menos Krest diz que o único espécime conhecido no mundo veio de lá.

— Parece engraçado. Onde eu entro nessa história?

— Eu sabia que você estava entediado e que ainda tem uma semana antes de partir. Por isso, disse que você era o ás dos pescadores submarinos locais e que logo encontraria o peixe, se existisse. Além disso, tornei claro que não iria sem você. O Sr. Krest concordou. E é só isso. Sabia que você estava em algum lugar aí pelo litoral. Vim rodando até encontrar um pescador que me disse ter visto um homem branco maluco tentando suicidar-se sozinho na Belle Anse. Logo vi que só podia ser você.

Bond riu.

— É extraordinário como esta gente da ilha tem medo do mar. Já era tempo de terem chegado a um acordo com o mar. Dos habitantes de Seychelles são raros os que sabem até mesmo nadar.

— É a Igreja Católica Romana. Não gosta que eles tirem a roupa. Tolice, mas é assim. Quanto a ter medo, não se esqueça que você esteve aqui apenas um mês. Tubarão, barracuda... você não encontrou nenhum deles com fome. E o peixe-pedra? Já viu um homem pisar no peixe-pedra? Com a dor, seu corpo curva-se para trás como um arco. Às vezes, é tão horrível que os olhos literalmente saltam das órbitas. Raros são os que sobrevivem.

Bond disse sem a menor simpatia:

— Deviam usar sapatos ou amarrar os pés quando vão aos recifes. No Pacífico também há desses peixes e o mexilhão gigante ainda por cima. É uma estupidez. Todos se queixam de como são pobres aqui, mas o mar está completamente cheio de peixes. E existem cinquenta variedades de caurim embaixo daquelas pedras. Podiam viver muito bem vendendo isso ao mundo.

Fidele Barbey riu animadamente.

— Bond para Governador! Essa é a chapa. Na primeira oportunidade, vou apresentar a ideia. Você é precisamente o homem para o cargo — longa visão, muitas ideias, abundância de entusiasmo. Caurins! É explêndido. Equilibrarão o orçamento pela primeira vez desde a alta do patchuli depois da guerra. “Vendemos conchas marinhas das Seychelles”. Esse será nosso slogan. Farei com que você colha os louros. Em pouco tempo será Sir James.

— Ganha-se mais dinheiro assim do que tentando cultivar baunilha com prejuízo.

Continuaram a discutir com despreocupada violência até quando as palmeiras cederam lugar às gigantescas árvores sangue-de-drago nos subúrbios da decrépita capital de Mahe.

Quase um mês antes M dissera a Bond que ia mandá-lo às Seychelles.

— O Almirantado está tendo dificuldade com sua nova base nas Maldívias. Comunistas infiltraram-se do Ceilão. Greves, sabotagem... o quadro costumeiro. Talvez tenha de reduzir seus prejuízos e recuar para as Seychelles. Mil e quinhentos quilômetros mais ao sul, mas pelo menos parecem bastante seguras. Mas eles não querem ser apanhados de novo. O Departamento Colonial diz que são seguras como casas. Ainda assim concordei em mandar alguém para oferecer uma opinião independente. Quando Macário lá esteve fechado há alguns anos houve alguns bons sustos em questão de segurança. Barcos pesqueiros japoneses rondando as ilhas, um ou dois trapaceiros refugiados da Inglaterra, fortes ligações com a França. Vá dar uma boa olhada.

Olhando pela janela para a pesada neve de março, M acrescentara:

— Não vá ter insolação.

O relatório de Bond, concluindo que o único risco de segurança concebível nas Seychelles residia na beleza e acessibilidade das seychelloises, fora terminado uma semana antes e depois nada houve a fazer senão esperar o “SS. Kampala” para levá-lo a Mombasa. Estava completamente cheio do calor, das palmeiras, do grito choroso das andorinhas do mar e da interminável conversa sobre copra. A perspectiva de mudança encantava-o.

Bond estava hospedado em sua última semana na casa dos Barbey e, depois de passar por lá a fim de apanhar suas malas, os dois rodaram até o fim do Long Pier e deixaram o carro no barracão da Alfândega. O iate branco e cintilante estava a uns oitocentos metros do ancoradouro. Tomaram uma carona com motor de popa, atravessaram a baía vidrada e passaram pela abertura nos recifes. O “Wavekrest” não era bonito — a largura da boca e o excesso de superestrutura prejudicavam suas linhas — mas Bond pôde ver imediatamente que era um verdadeiro navio, construído para navegar pelo mundo e não apenas pelas Florida Keys. Parecia deserto, mas quando encostaram a seu lado, dois marinheiros de aparência elegante, de camisetas e “shorts” brancos, apareceram e ficaram ao lado da escada com croques prontos para afastar a desprezível canoa da cintilante pintura do barco. Apanharam as duas malas e um deles empurrou uma portinhola de alumínio, fazendo um gesto para que descessem. Um sopro do que pareceu a Bond ser de ar quase gelado atingiu-o quando atravessou a porta e desceu alguns degraus para entrar no saguão.

O saguão estava vazio. Não era uma cabina. Era uma sala de sólida riqueza e conforto sem coisa alguma que a associasse ao interior de um navio. As janelas por trás das persianas semi-cerradas eram de tamanho natural, assim como as fundas poltronas ao redor da mesa central baixa. O tapete era de pelos compridos em azul pálido. As paredes eram cobertas de madeira prateada e o ferro era branco acinzentado. Havia uma mesa com o costumeiro material de escrever e um telefone. Perto do grande gramofone havia um aparador coberto de bebidas. Por cima do aparador via-se o que parecia ser um Renoir extremamente bom — a cabeça e os ombros de uma bela moça de cabelos escuros com uma blusa listrada de preto e branco. A impressão de uma luxuosa sala-de-estar em uma residência de cidade era completada por um grande vaso de jacintos brancos e azuis, sobre a mesa central, e pela bem arrumada prateleira de revistas de um dos lados da mesa.

— Não lhe disse, James?

Bond sacudiu a cabeça com ar de admiração.

— Esta é sem dúvida a maneira de tratar o mar — como se ele não existisse.

Respirou fundo e acrescentou:

— Que alívio ter um bocado de ar fresco. Já tinha quase esquecido seu gosto.

— O negócio lá fora é que é ar fresco, rapaz. Este é enlatado.

O Sr. Milton Krest entrara silenciosamente na sala e estava em pé olhando para eles. Era um homem rijo e coriáceo de pouco mais de cinquenta anos. Parecia forte e sadio. As calças grosseiras de um azul desbotado, o corte militar da camisa e a larga cinta de couro sugeriam que para ele era um fetiche ser assim — parecer durão. Os olhos castanhos pálidos no rosto bronzeado pelo sol eram ligeiramente encobertos e seu olhar era sonolento e desdenhoso. A boca tinha uma curva para baixo que poderia ser humorística ou desdenhosa — provavelmente desdenhosa — e as palavras que lançara na sala, inócuas em si próprias, exceto pelo condescendente “rapaz”, haviam sido jogadas como pequenas moedas a um par de cules. Para Bond a coisa mais estranha no Sr. Krest era a voz. Era um cecear macio e muito atraente através dos dentes. Era exatamente a voz do falecido Humphrey Bogart. Bond correu os olhos pelo homem, desde os esparsos cabelos pretos e grisalhos cortados rente, como fios de ferro espalhados sobre a cabeça redonda, passando pela águia tatuada por cima de uma âncora entoucada no antebraço direito e indo até os pés coriáceos e descalços que assentavam nàuticamente sobre o tapete. Pensou: este homem gosta de considerar-se um herói de Hemingway. Não vou dar-me bem com ele.

O Sr. Krest avançou através do tapete e estendeu a mão.

— O senhor é Bond? Prazer em tê-lo a bordo, Senhor.

Bond estava esperando o aperto de esmagar ossos e enfrentou-o com músculos enrijecidos.

— Mergulho livre ou aqualung?

— Livre e não vou muito fundo. É só passatempo.

— Que faz no resto do tempo.

— Servidor civil.

O Sr. Krest deu uma risada curta e áspera.

— Civilidade e servidão. Vocês, ingleses, são os melhores mordomos e criados de quarto do mundo. Servidor civil, foi o que disse? Acho que provavelmente vamos dar-nos muito bem. Servidores civis é exatamente o que gosto de ter ao meu redor.

O barulho da portinhola da coberta sendo empurrada evitou que Bond perdesse a calma. O Sr. Krest desapareceu de seu espírito quando uma jovem nua e queimada pelo sol desceu os degraus para o salão. Não, ela não estava completamente nua, mas o minúsculo biquíni de cetim marrom pálido tendia a fazer a gente pensar que estava.

— Alô, tesouro. Onde estava escondida? Há muito tempo que não a vejo. Estes são o Sr. Barbey e o Sr. Bond, os rapazes que vão conosco.

O Sr. Krest ergueu a mão na direção da moça e acrescentou:

— Rapazes, esta é a Sra. Krest. A quinta Sra. Krest. E, para que ninguém comece a ter ideias, ela ama o Sr. Krest. Não é, tesouro?

— Ora, não seja tolo, Milt. Você sabe que o amo — disse a Sra. Krest, sorrindo lindamente. — Prazer em conhecê-lo, Sr. Barbey. E Sr. Bond. É um prazer tê-los conosco. Tomam alguma coisa.

— Um minuto, tesouro. Quer deixar que eu cuide das coisas a bordo de meu próprio barco, sim?

A voz do Sr. Krest era suave e agradável. A mulher corou.

— Oh, pois não, Milt, naturalmente.

— Então, okay. Assim ficamos sabendo quem é o capitão a bordo do bom navio “Wavekrcst”.

O sorriso divertido abrangia todos eles.

— Muito bem, Sr. Barbey. A propósito, qual é seu primeiro nome? Fidele, não? É um grande nome. Fiel — disse o Sr. Krest, rindo com bom humor. — Bem, agora, Fido, que tal você e eu subirmos à ponte para pôr em movimento este velho caixãozinho? Talvez seja melhor você levá-lo até o alto mar, depois traçar uma rota e entregar o resto a Fritz. Eu sou o capitão. ele é o imediato e há mais dois homens para a casa das máquinas e a copa. Todos os três são alemães. Os únicos bons marinheiros que restam na Europa. E o Sr. Bond, qual é o primeiro nome? James, não? Bem, Jim, que tal praticar um pouco daquela civilidade e servidão com a Sra. Krest. A propósito, pode chamá-la de Liz. Ajude-a a arrumar os canapés e outras coisas para os drinques antes do almoço. Ela também era inglesa antigamente. Vocês podem bater um papo sobre Piccadilly Circus e as Dooks que ambos conhecem. Okay? Vamos, Fido.

Subiu correndo infantilmente os degraus, ao mesmo tempo que acrescentava:

— Vamos dar o fora daqui rápidos como o diabo. Quando a portinhola se fechou, Bond deixou escapar um fundo suspiro. A Sra. Krest disse em tom de desculpa:

— Por favor, não se aborreça com as piadas dele. É apenas seu senso de humor. E ele é um pouco do contra. Gosta de ver se consegue irritar as pessoas. É muita maldade dele. Mas tudo realmente é brincadeira.

Bond sorriu tranquilizadoramente. Quantas vezes tivera ela de dizer essas mesmas coisas a pessoas, de procurar acalmar pessoas sobre as quais o Sr. Krest praticara seu “senso de humor”?

— Acho que seu marido precisa de uma pequena lição. ele age desse jeito também nos Estados Unidos?

Ela respondeu sem rancor:

— Só comigo. ele adora os americanos. Só é assim quando está no estrangeiro. Seu pai — sabe? — era alemão, realmente prussiano. ele tem essa tola maneira alemã de pensar que os europeus etc. são decadentes, que não prestam mais. Não adianta discutir com ele. ele é assim mesmo.

Então era isso! O velho huno de novo. Sempre a seus pés ou em sua garganta. Senso de humor, realmente! E que não precisaria suportar essa mulher, essa bela moça que ele arrumara para ser sua escrava — sua escrava inglesa? Bond perguntou:

— Há quanto tempo está casada?

— Dois anos. Eu trabalhava como recepcionista em um de seus hotéis. ele é dono do Grupo Krest, sabe? Foi maravilhoso. Como uma história de fadas. Ainda preciso beliscar-me de vez em quando para ter certeza de não estar sonhando. Isto, por exemplo — mostrou com a mão a luxuosa sala — e ele é extraordinariamente bom comigo. Está sempre dando-me presentes. É um homem muito importante nos Estados Unidos, sabe? É bom a gente ser tratada como realeza em todo lugar aonde vai.

— Deve ser. ele gosta dessas coisas, não?

— Oh, sim. — Havia resignação na risada. — Há muito de sultão nele. Fica impaciente quando não obtém o serviço apropriado. Diz que, depois de trabalhar arduamente para chegar ao alto da árvore, a gente tem direito ao melhor fruto que nela cresce.

A Sra. Krest achou que estava falando com excessiva liberdade. Acrescentou rapidamente:

— Mas, realmente, que estou dizendo? Poderiam pensar que nos conhecemos há anos.

Sorriu timidamente.

— Acho que é o ato de encontrar alguém da Inglaterra. Mas preciso mesmo ir vestir um pouco mais de roupa. Eu estava tomando banho de sol no convés.

Um ronco surdo veio do fundo do barco, à meia-nau.

— Pronto. Já partimos. Por que não vai ao convés de ré observar o barco deixar a baía. Irei procurá-lo lá dentro de um minuto. Há tanta coisa que desejo ouvir a respeito de Londres.

Passou ao lado dele e abriu uma porta.

— Para dizer a verdade, se fôr sensato, procurará passar as noites aqui. Há estofados em abundância e as cabinas tendem a ficar um pouco abafadas, apesar do ar condicionado.

Bond agradeceu-lhe, saiu e fechou a porta depois de passar. Era um grande convés com piso de cânhamo e, na popa, um sofá semicircular de espuma de borracha cor de creme. Havia cadeiras de palhinha espalhadas e um bar a um canto. Passou pela ideia de Bond que o Sr. Krest talvez bebesse muito. Seria sua imaginação ou a Sra. Krest estaria aterrorizada por ele? Havia algo de dolorosamente servil em sua atitude com relação a ele. Sem dúvida, tivera de pagar muito caro por sua “história de fadas”. Bond observou as costas verdes de Mahe afastarem-se vagarosamente da popa. Calculou que desenvolviam uma velocidade de uns dez nós. Logo estariam na North Point, rumando para alto mar. Bond ouviu o glutinoso borbulhar do escapamento e pensou ociosamente na bela Sra. Elizabeth Krest.

Ela poderia ter sido modelo — provavelmente o fora antes de tornar-se recepcionista de hotel — aquela respeitável profissão feminina que ainda tem um ar de alto demi-monde — e ainda movia seu belo físico com o desembaraço de quem está acostumada a andar sem nada ou praticamente nada sobre o corpo. Mas nela nada havia da frieza do modelo — era um corpo quente e um rosto amável e confiante. Poderia ter uns trinta anos, não mais certamente, e sua boniteza, pois não passava disso, ainda era imatura. Sua melhor característica era a cabeleira loura acinzentada que caía pesadamente até a base do pescoço, mas ela dava a agradável impressão de não sentir vaidade nisso. Não a sacudia, nem mexia nela. Ocorreu a Bond que realmente não demonstrava o menor sinal de coquetismo. Permanecia quieta, quase dócil, com os grandes olhos azuis claros fixados no marido quase o tempo todo. Não havia batom em seus lábios, nem esmalte nas unhas das mãos e dos pés, e suas sobrancelhas eram naturais. Ordenaria o Sr. Krest que fosse assim — que ela fosse uma filha germânica da natureza? Provavelmente. Bond encolheu os ombros. Formavam sem dúvida um casal curiosamente dessemelhante — o Hemingway de meia-idade com voz de Bogart e a mulher bonita e simples. E havia tensão no ar — na maneira como ela se encolhera quando ele lhe chamara à atenção por ter oferecido bebidas e na forçada masculinidade do homem. Bond brincou ociosamente com a noção de que o homem era impotente e toda a firme e rude representação não passava de exagerada exibição de virilidade. Certamente não ia ser fácil viver com eles durante quatro ou cinco dias. Bond observou a bela ilha Silhouette afastar-se à distância e tomou a decisão de não perder a calma. Como era aquela expressão americana? “Comer corvo”. Seria um interessante exercício mental para ele. Comeria corvo durante cinco dias e não deixaria que esse maldito homem interferisse no que deveria ser um bom passeio.

— Bem, rapaz. Descansando?

O Sr. Krest estava em pé no convés superior, olhando para baixo.

— Que fez com aquela mulher com quem eu vivo? Acho que deixou todo o serviço para ela. Bem e por que não? É para isso que elas servem, não é? Quer dar uma olhada no navio? Fido está cuidando um pouco do leme e eu tenho tempo de sobra.

Sem esperar pela resposta, o Sr. Krest agachou-se e desceu para o convés inferior, deixando-se cair no último metro da altura.

— A Sra. Krest foi vestir roupa. Sim, eu gostaria de ver o navio.

O Sr. Krest fixou em Bond seu olhar duro e desdenhoso.

— Okay. Bem, primeiro os fatos. Foi construído pela Bronson Shipbuilding Corporation. Acontece que eu tenho noventa por cento das ações, de modo que obtenho o que quero. Desenhado por Rosenblatts, os grandes arquitetos navais. Trinta metros de comprimento por seis e meio de largura, com dois metros de calado. Dois motores diesel Superior de quinhentos H.P. Velocidade máxima, quatorze nós. Faz quatro mil quilômetros com oito nós. Ar condicionado em toda parte. Carrier Corporation desenhou duas unidades especiais de cinco toneladas. Transporta alimentos congelados e bebidas suficientes para um mês. Só precisamos de água doce para os banheiros e chuveiros. Certo? Agora vamos até a frente e você verá os alojamentos da tripulação. Depois, viremos para trás. Não precisa preocupar-se com a cabeça. Em todo lugar há um metro e oitenta e cinco de altura.

Bond seguiu o Sr. Krest pelo estreito corredor que se estendia ao longo de todo o barco e, durante meia hora, fez comentários apropriados sobre o que era sem dúvida o iate melhor e mais luxuosamente planejado que já vira. Em todos os pormenores, havia uma margem para conforto adicional. Até mesmo o banheiro e chuveiro da tripulação eram bem espaçosos e a cozinha de aço inoxidável era tão grande quanto o camarote de Krest. O Sr. Krest abriu a porta deste último sem bater. Liz Krest estava diante da penteadeira.

— Oh, tesouro — disse o Sr. Krest com sua voz macia — Pensei que estivesse arrumando a bandeja de bebidas. Você demorou um tempão para vestir-se. Pondo um pouquinho de Ritz extra para Jim, hem?

— Desculpe, Milt. Eu já ia sair. Um ziper ficou preso. A Sra. Krest apanhou apressadamente um estôjo de pó e encaminhou-se para a porta. Dirigiu aos dois um meio-sorriso nervoso e saiu.

— Lambris de bétula de Vermont. Abajures de vidro de Corning. Tapetes mexicanos. Aquela pintura de um veleiro é um genuíno Montague Dawson...

O catálogo do Sr. Krest prosseguiu sem parar. Mas Bond estava olhando algo que pendia quase escondido pela mesa de cabeceira do que era evidentemente o lado do Sr. Krest na enorme cama de casal. Era um fino chicote de cerca de um metro de comprimento com um cabo de tiras de couro. Era o rabo de arraia.

Com ar indiferente, Bond caminhou até o lado da cama e apanhou-o. Correu um dedo por sua superfície espinhenta. Só de fazer isso sentiu doer o dedo. Disse:

— Onde arranjou isto? Estive caçando um destes animais hoje de manhã.

— Em Bahrein. Os árabes usam-nos em suas esposas — respondeu o Sr. Krest, rindo facilmente. — Até agora não precisei dar mais que uma chicotada de cada vez em Liz. Resultados maravilhosos. Chamamo-lo de meu “Corretivo”.

Bond tornou a pôr o objeto no lugar. Olhou duramente para o Sr. Krest e disse:

— É assim? Nas Seychelles, onde os crioulos são bem durões, é ilegal até mesmo possuir um desses, quanto mais usá-lo.

O Sr. Krest encaminhou-se para a porta e disse em tom indiferente:

— Rapaz, acontece que este navio é território dos Estados Unidos. Vamos tomar alguma coisa.

O Sr. Krest tomou três “bullshots” duplos — vodca com consommé gelado — antes do almoço e cerveja com a refeição. Os olhos pálidos escureceram um pouco e adquiriram um brilho aguado, mas a voz sibilante continuou macia e sem ênfase enquanto com absoluto monopólio da conversação, ele explicava o objetivo da viagem.

— O negócio é o seguinte, rapazes. Nos Estados Unidos, temos esse sistema de Fundação para os sujeitos de sorte que ganharam muito dinheiro e não querem entregá-lo ao Tesouro de Tio Sam. Você faz uma Fundação — como esta, a Fundação Krest — para fins de caridade — caridade para qualquer coisa, crianças, doentes, a causa da ciência. Simplesmente dá o dinheiro para qualquer pessoa ou qualquer coisa, menos para você mesmo e seus dependentes. Assim, escapa do imposto. Por isso, empatei coisa de dez milhões de dólares na Fundação Krest e, como gosto de viajar de iate e ver o mundo, comprei este iate com dois milhões do dinheiro e disse à Smithsonian — nossa grande instituição de história natural — que iria a qualquer lugar do mundo buscar espécimes para ela. Isso faz de mim uma expedição científica, entendem? Durante três meses do ano gozo férias maravilhosas que não me custam nada!

O Sr. Krest olhou para seus convidados, esperando aplausos.

— Entenderam? — perguntou.

Fidele Barbey sacudiu a cabeça com ar de dúvida.

— Parece ótimo, Sr. Krest. Mas e esses espécimes raros. É fácil encontrá-los? A Smithsonian pode querer uma panda gigante ou uma concha marinha. Será capaz de conseguir essas coisas quando ela não conseguiu?

O Sr. Krest sacudiu vagarosamente a cabeça. Disse com ar de pena:

— Rapaz, você parece ter nascido ontem. Dinheiro, só é preciso isso. Você quer um panda? Compra-o de algum maldito jardim zoológico que quer ter aquecimento central para sua casa de répteis, deseja construir um novo edifício para seus tigres ou coisa semelhante. A concha marinha? Você descobre um homem que tem uma delas e lhe oferece tanto dinheiro que ele acaba vendendo-a ainda que chore uma semana. Às vezes, a gente tem um pouco de dificuldade com governos. Um maldito animal é protegido ou coisa semelhante. Muito bem. Vou dar-lhes um exemplo. Cheguei ontem à sua ilha. Quero um papagaio preto da ilha Preslin. Quero uma tartaruga gigante de Aldabra. Quero uma coleção completa de seus caurins e quero este peixe que vamos procurar. Os dois primeiros são protegidos por lei. Faço imediatamente uma visita a seu governador depois de realizar certas investigações na cidade. Excelência, digo eu, sei que deseja ter uma piscina pública para ensinar as crianças locais a nadar. Okay. A Fundação Krest contribuirá com o dinheiro. Quanto? Cinco mil, dez mil? Okay, seja dez mil. Aqui está meu cheque. E preencho o cheque na hora. Mais uma coisinha. Excelência, digo eu, segurando o cheque. Acontece que desejo um espécime desse papagaio preto que existe aqui e uma dessas tartarugas de Aldabra. Sei que são protegidos por lei. Faria questão se eu levasse um espécime de cada um para os Estados Unidos, para a Smithsonian? Bem, há um pouco de palavrório, mas, sabendo que é para a Smithsonian e sabendo que ainda estou segurando o cheque, acabamos fechando o negócio, trocamos apertos de mão e todos ficam felizes. Certo? Bem, na volta paro na cidade para combinar com seu encantador Sr. Abendana, aquele negociante, que arranje o papagaio e a tartaruga, e os guarde para mim. E começo a falar sobre os caurins. Bem, acontece que esse Sr. Abendana vem colecionando as malditas coisas desde criança. Mostra-me sua coleção. Maravilhosamente conservada — cada uma delas em seu pedacinho de algodão. Tudo em ótimo estado e várias daquelas Isabella e Mappa que me pediram particularmente para procurar. Sinto muito, diz ele, mas não posso nem pensar em vender. Significam tanto para mim etc. Bolas! Só olho para o Sr. Abendana e pergunto: quanto? Não, não. Não pode sequer pensar nisso. Bolas de novo! Tiro meu talão de cheques, preencho um cheque de cinco mil dólares e ponho embaixo de seu nariz. ele olha o cheque. Cinco mil dólares! Não pode resistir. Dobra o cheque, guarda-o no bolso e depois o maldito maricas desanda a chorar! Acreditam nisso? — perguntou o Sr. Krest, abrindo as mãos num gesto de incredulidade. — Por causa de algumas malditas conchas marinhas. Então, digo-Ihe que tenha calma, apanho as bandejas de conchas e dou o fora antes que o maluco se mate de remorso.

O Sr. Krest recostou-se na cadeira, satisfeito consigo mesmo.

— Bem, que me dizem disso, rapazes? Vinte e quatro horas na ilha e já consegui três quartos de minha lista. Bem esperto, eh, Jim?

Bond respondeu: — O Senhor provavelmente receberá uma medalha quando voltar. E quanto a esse peixe?

O Sr. Krest levantou-se e remexeu em uma gaveta de sua mesa. Trouxe de volta uma folha datilografada.

— Aqui está — disse, passando a ler: — Raridade de Hildebrand. Apanhanda pelo professor Hildebrand, da Universidade de Witwatersrand, em uma rede ao largo da ilha Chagrin no arquipélago das Seychelles. Abril de 1925.

O Sr. Krest ergueu os olhos e explicou:

— Depois há uma porção de palavrório científico. Fiz com que traduzissem para o inglês comum e aqui está a tradução.

Voltou ao papel e continuou a ler:

— Este parece ser um singular membro da família do peixe-esquilo. O único espécime conhecido, chamado “Raridade de Hildebrand” como homenagem a seu descobridor, tem quinze centímetros de comprimento. A cor é rosa brilhante com listras transversais pretas. As nadadeiras anais, ventrais e dorsais são rosadas. A nadadeira da cauda é preta. Olhos grande e azuis escuros. Se encontrado, é preciso cuidado ao lidar com este peixe porque todas as nadadeiras têm espinhos ainda mais afiados do que é habitual no resto da família. O professor Hildebrand registra que encontrou o espécime em um metro de água à beira do recife sudoeste.

O Sr. Krest jogou o papel sobre a mesa e acrescentou:

— Bem, aí está, rapazes. Estamos viajando cerca de mil milhas a um custo de vários milhares de dólares para tentar descobrir um maldito peixe de quinze centímetros. E há dois anos o pessoal do fisco teve o atrevimento de sugerir que minha fundação era uma mistificação!

Liz Krest interveio ansiosamente.

— Mas é precisamente isso, Milt, não é? Desta vez, é realmente importante levar de volta bastante espécimes e outras coisas. Aqueles horríveis fiscais não estavam falando em cancelar os descontos referentes ao iate e às despesas e outras coisas dos últimos cinco anos se não apresentássemos alguma importante realização científica? Não foi isso que disseram?

— Tesouro — disse o Sr. Krest, cuja voz era macia como veludo. — Que tal se você fechasse essa irresponsável boquinha e não falasse em meus negócios particulares. Sim?

A voz era amável, despreocupada.

— Sabe o que você acaba de fazer, tesouro? Você acaba de ganhar um pequeno encontro com o Corretivo hoje à noite. Foi isso o que você fez.

A mulher levou a mão à boca. Seus olhos estavam arregalados. Disse em um sussurro:

— Oh, não, Milt. Oh, não, por favor.

Na madrugada do dia seguinte no mar avistaram a ilha Chagrin. Foi apanhada primeiro pelo radar — uma pequena saliência na linha plana da tela. Depois uma minúscula mancha no grande horizonte curvo cresceu com infinita lentidão até tornar-se um quilômetro de verde orlado de branco. Era extraordinário chegar à terra depois de dois dias nos quais o iate parecera ser a única coisa móvel, a única coisa viva em um mundo vazio. Bond nunca vira, nem sequer imaginara claramente a calmaria. Agora compreendia que perigo terrível deveria ter sido nos dias da navegação a vela — mar de vidro sob um sol de bronze, o ar viciado e pesado, a esteira de pequenas nuvens ao longo da orla do mundo, que nunca chegavam mais perto, nunca traziam vento ou a abençoada chuva. Quantas centenas de marinheiros não teriam abençoado esse minúsculo ponto no Oceano Indico, quando se curvavam sobre os remos que moviam o pesado navio talvez uma milha por dia! Bond ficou em pé na proa e observou os peixe-voadores saltarem de baixo do casco quando o azul-prêto do mar se transformou vagarosamente no marrom, branco e verde do baixio profundo. Como seria maravilhoso poder em breve andar e nadar ao invés de ficar apenas sentado e deitado. Como seria maravilhoso ter algumas horas de solidão — algumas horas longe do Sr. Milton Krest!

Ancoraram para fora do recife em dez braças de água e Fidele Barbey conduziu-os através da abertura na lancha. Em todos os detalhes, Chagrin era o protótipo da ilha de coral.

Eram uns vinte acres de areia, coral morto e vegetação baixa, cercados, depois de cinquenta metros de laguna rasa, por um colar de recifes sobre o qual as ondas calmas e compridas se quebravam com uma suave sibilar. Nuvens de pássaros ergueram-se quando desembarcaram — andorinhas do mar, atobás, fragatas — mas logo pousaram de novo. Havia um forte cheiro amoniacal de guano, que enbranquecia também a vegetação. As únicas outras coisas vivas eram os caranguejos que corriam entre a liane sans fin e os chama-marés que viviam na areia.

O clarão da areia branca era ofuscante e não havia sombra. O Sr. Krest mandou armar uma tenda e sentou-se dentro dela fumando um charuto, enquanto instrumentos de várias espécies eram transportados para terra. A Sra. Krest nadava e apanhava conchas enquanto Bond e Fidele Barbey punham máscaras e, nadando em direções opostas, começavam a examinar sistematicamente os recifes em toda a volta da ilha.

Quando se está procurando determinada espécie embaixo dágua — concha, peixe, alga marinha ou formação de coral — é preciso conservar o cérebro e os olhos focalizados naquele padrão individual. A orgia de cores e movimentos, a incessante variedade de luz e sombra lutam o tempo todo contra a concentração da pessoa. Bond arrastou-se vagarosamente através do país das maravilhas tendo na mente uma única imagem — um peixe rosado de quinze centímetros com listras pretas e olhos grandes — o segundo desses peixes a ser visto pelo homem. “Se avistá-lo”, recomendara o Sr. Krest, “basta soltar um grito e ficar perto dele. Eu tenho na tenda uma coisinha que é o melhor negócio que você já viu para apanhar peixes.”

Bond parou para descansar os olhos. A água estava tão flutuável que podia ficar deitado de bruço na superfície sem se mover. Ociosamente partiu um ouriço do mar com a ponta de sua lança e observou a horda de cintilantes peixes dos recifes investindo sobre os pedaços de carne amarela entre os espinhos pretos afiados como agulhas. Como era infernal o fato de beneficiar apenas o Sr. Krest se encontrasse a Raridade! Deveria ficar quieto se a encontrasse? Seria uma infantilidade e, além disso, estava sob contrato, por assim dizer.

Bond moveu-se devagar, com os olhos reiniciando automaticamente a busca enquanto seu espírito voltava a considerar a mulher. Ela havia passado o dia anterior na cama. O Sr. Krest dissera que era uma dor de cabeça. Não se voltaria contra ele um dia? Não arranjaria uma faca ou um revólver e, certa noite, quando ele estendesse a mão para aquele maldito chicote, não o mataria? Não. Ela era mole demais, maleável demais. O Sr. Krest escolhera bem. Era do mesmo material com que são feitos os escravos. E os ornamentos de sua “história de fadas” eram preciosos demais. Não perceberia ela que um júri certamente a absolveria se aquele chicote de arraia fosse apresentado no tribunal? Ela poderia ficar com os ornamentos sem esse horrível e odioso homem. Deveria Bond dizer-lhe isso? Não seja ridículo! Como poderia expressá-lo? “Oh, Liz, se quiser matar seu marido, está tudo bem.” Bond sorriu dentro de sua máscara. Que fosse para o inferno! Não interfira na vida dos outros. Provavelmente ela gosta disso. É masoquista. Mas Bond sabia que essa era uma resposta fácil demais. Ali estava uma mulher que vivia amedrontada. Talvez também vivesse odiando. Não se podia ler muita coisa naqueles suaves olhos azuis, mas as janelas tinham-se aberto uma ou duas vezes e através delas aparecera um lampejo de algo semelhante a ódio infantil. Teria sido ódio? Provavelmente fora indigestão. Bond tirou os Krests da cabeça e ergueu os olhos para ver até que ponto da ilha já avançara. O schnorkel de Fidele Barbey estava apenas a uns cem metros de distância. Já tinham quase completado o circuito.

Os dois se encontraram, nadaram até a praia e deitaram na areia. Fidele Barbey disse:

— Nada do meu lado da propriedade, exceto todos os peixes do mundo, menos um. Mas tive um golpe de sorte. Encontrei uma grande colônia de caramujos verdes. É a concha almiscarada grande como uma bola de futebol. Vale um monte de dinheiro. Vou mandar um de meus barcos atrás deles qualquer dia destes. Vi um peixe-papagaio azul que devia pesar bem uns quinze quilos. Manso como um cão, do mesmo modo que todos os peixes daqui. Não tive coragem de matá-lo. E se o matasse, poderia ter havido encrenca. Vi dois ou três tubarões-leopardos rondando do outro lado dos recifes. Sangue na água poderia tê-los atraído. Agora, estou pronto para um drinque e alguma comida. Depois, poderemos trocar de lado e fazer outra tentativa.

Levantaram-se e caminharam pela praia até a tenda. O Sr. Krest ouviu suas vozes e saiu para encontrá-los.

— Nada, não? — perguntou, cocando furiosamente uma axila. — Um maldito mosquito me picou. Esta é uma ilha amaldiçoada. Liz não pôde suportar o cheiro. Voltou para o barco. Acho que é melhor fazer mais uma tentativa e depois dar o fora daqui. Comam alguma coisa. Encontrarão cerveja na bolsa de gelo. Deem-me uma dessas máscaras. Como é que se usa essa maldita coisa? Acho que posso dar uma olhada no fundo do mar já que estou aqui.

Sentaram-se na tenda quente, comeram salada de galinha e beberam cerveja. Carrancudamente, observaram o Sr. Krest tateando e esquadrinhando na água rasa. Fidele Barbey disse:

— ele tem razão, naturalmente. Estas pequenas ilhas são lugares horríveis. Nada além de caranguejos e excremento de pássaros com muito mar em roda. São só os pobres e gelados europeus que sonham com ilhas de coral. A leste de Suez, você não encontra um homem de juízo que dê qualquer coisa por elas. Minha família possui umas dez delas — algumas também de tamanho decente, com pequenas aldeias e boa renda de copra e tartaruga. Bem, se quiser pode ficar com todo o maldito lote em troca de um apartamento em Paris ou Londres.

Bond riu.

— Ponha um anúncio em “The Times” e receberá pilhas ... — começou Bond, quando, a cinquenta metros de distância, o Sr. Krest passou a fazer frenéticos sinais.

— Ou o bastardo encontrou-o ou pisou em uma viola — disse Bond, apanhando sua máscara e correndo para o mar.

O Sr. Krest estava com água até a cintura entre os rasos começos dos recifes. Bateu o dedo excitadamente na superfície. Bond nadou suavemente para frente. Um tapete de plantas marinhas terminava em coral e ocasionais afloramentos negros. Uma dúzia de variedades de borboletas e outros peixes de recifes brincava entre as pedras e uma pequena lagosta sondou na direção de Bond com suas antenas. A cabeça de uma grande moreia verde saiu de um buraco, com as mandíbulas meio abertas mostrando fileiras de afiados dentes. Seus olhos dourados observaram Bond cuidadosamente. Bond divertiu-se ao ver que as pernas cabeludas do Sr. Krest, ampliadas para pálidos troncos de árvores pela água vidrada, não estavam a mais de uns trinta centímetros das mandíbulas da moreia. Deu um encorajador empurrão na moreia com seu arpão, mas a enguia limitou-se a morder as pontas de metal e desaparecer de novo. Bond parou e ficou flutuando, com os olhos perscrutando a brilhante selva. Uma mancha vermelha materializou-se no nevoeiro distante e avançou em sua direção. Deu uma volta bem por baixo dele, como se estivesse exibindo-se. Os olhos azuis escuros examinaram-no sem medo. O pequeno peixe ocupou-se quase constrangido com algumas algas na parte de baixo de um afloramento negro, deu uma corrida em direção a algo suspenso na água e, depois, como se deixasse o palco após exibir seus passos, nadou lânguidamente de volta para o nevoeiro.

Bond afastou-se do buraco da moreia e pôs os pés no chão. Tirou a máscara. Dirigindo-se ao Sr. Krest, que o fitava impacientememte através de seus óculos de mergulho, disse:

— Sim, é ele mesmo. É melhor afastar-se silenciosamente daqui. ele não irá embora a menos que se assuste. Esses peixes de recifes conservam-se sempre nos mesmos lugares.

O Sr. Krest tirou sua máscara.

— Diabo, eu o encontrei! — exclamou reverentemente. — Bem, fui eu mesmo.

Seguiu vagarosamente Bond até a praia. Fidele Barbey estava esperando por eles. O Sr. Krest disse impetuosamente:

— Fido, encontrei aquele maldito. Eu. .. Milton Krest. Que acha disso? Depois que vocês dois, malditos especialistas, procuraram a manhã inteira. Peguei aquela sua máscara — e foi a primeira vez que usei uma dessas máscaras, veja bem — entrei na água e encontrei o maldito peixe em quinze minutos. Que diz a isso, eh, Fido?

— Muito bem, Sr. Krest. Ótimo. Como vamos apanhá-lo agora?

— Ah, ah, ah — fez o Sr. Krest, pestanejando vagarosamente. — Eu tenho a solução para isso. Arranjei-a com um químico amigo meu. Um negócio chamado rotenona. Feito de raiz de timbó. É com isso que os nativos pescam no Brasil. Basta derramá-lo na água, onde flutua sobre aquilo que você está procurando e o apanha infalivelmente. Uma espécie de veneno. Constringe os vasos sanguíneos nas guelras dos peixes. Sufoca-os. Não exerce efeito sobre seres humanos porque eles não têm guelras, entendem?

O Sr. Krest virou-se para Bond.

— Escute, Jim. Você vai até lá e fica vigiando. Não deixe o maldito peixe desaparecer. Fido e eu levaremos o material para lá — disse, apontando a área de onde a água corria para o local vital. — Eu soltarei a rotenona quando você disser. Ela será arrastada na sua direção. Certo? Mas, com os diabos, dê o sinal na hora certa. Eu só tenho uma lata de cinco galões desse negócio. Okay?

Bond respondeu “Está bem” e caminhou vagarosamente, entrando na água. Nadou preguiçosamente para onde estivera antes. Sim, todos ainda estavam lá, cuidando de sua vida. A cabeça pontuda da moreia estava de novo na beirada de seu buraco, a lagosta estendeu novamente as antenas em sua direção. Um minuto depois, como se tivesse encontro marcado com Bond, a Raridade de Hildebrand apareceu. Desta vez nadou até bem perto de seu rosto. Olhou através dos óculos para seus olhos e depois, como se tivesse ficado assustada com o que vira, disparou para colocar-se fora de alcance. Brincou entre as pedras por algum tempo e depois entrou no nevoeiro.

Vagarosamente o pequeno mundo submarino dentro da visão de Bond começou a aceitá-lo como coisa natural. Um pequeno octópode que se camuflara como um pedaço de coral revelou sua presença e avançou cuidadosamente na direção da areia. A lagosta azul e amarela saiu de baixo da pedra e deu alguns passos, admirando-o. Alguns peixes muito pequenos, como os barrigudinhos, mordiscaram suas pernas e seus dedos dos pés, fazendo cócega. Bond partiu um ouriço do mar para eles, que avançaram sobre a comida melhor. Bond ergueu a cabeça. O Sr. Krest, segurando a lata, estava vinte metros à sua direita. Logo começaria a derramar, quando Bond desse o sinal, de modo que o líquido se espalhasse bem sobre a superfície.

— Okay? — perguntou o Sr. Krest. Bond sacudiu a cabeça e respondeu:

— Levantarei o polegar quando ele aparecer de novo aqui. Então você terá de derramar depressa.

— Okay, Jim. Você está na mira da bomba.

Bond afundou a cabeça. Lá estava a pequena coletividade, todos cuidando de sua vida. Logo, para apanhar um peixe que alguém desejava vagamente em um museu a oito mil quilômetros de distância, cem, talvez mil pessoazinhas iam morrer. Quando Bond desse o sinal, a sombra da morte desceria sobre a água. Quanto tempo duraria o veneno? Até que ponto avançaria pelos recifes? Talvez não morressem milhares, mas dezenas de milhares.

Um pequeno baiacu apareceu, com suas minúsculas nadadeiras ruflando como hélices. Um par dos inevitáveis beijupirás listrados de preto e amarelo apareceu de repente, atraído pelo cheiro do ouriço do mar partido.

Dentro dos recifes, quem era o predador no mundo dos pequenos peixes? Quem temiam eles? O pequeno barracuda? Um ocasional peixe-agulha? Agora um grande predador, plenamente crescido, um homem chamado Krest, estava parado nos bastidores, esperando. E esse nem sequer tinha fome. Ia simplesmente matar — quase por divertimento.

Duas pernas marrons apareceram no campo de visão de Bond. Este ergueu os olhos. Era Fidele Barbey com um grande cesto amarrado ao peito e uma rede de cabo comprido.

Bond ergueu a máscara e disse:

— Sinto-me como o bombardeador em Nagasaki.

— Peixes têm sangue frio. Nada sentem.

— Como é que você sabe? Ouvi dizer que gritam quando são feridos.

— Não serão capazes de gritar com esse negócio — disse Barbey indiferentemente. — Estrangula-os. Que há com você? São apenas peixes.

— Sei, sei.

Fidele Barbey passara a vida matando animais e peixes. Enquanto ele, Bond, às vezes não hesitara em matar homens. Por que estava agora fazendo barulho? Não se importara em matar a arraia. Sim, mas aquele era um peixe inimigo. Estes aqui embaixo eram pessoas amigas. Pessoas? A patética ilusão.

— Eh! — exclamou a voz do Sr. Krest. — Que está acontecendo aí? Não é hora de conversa mole. Afunde a cabeça n’água, Jim.

Bond puxou a máscara para baixo e deitou-se de novo sobre a superfície. Imediatamente viu a bela sombra vermelha saindo do nevoeiro distante. O peixe nadou rápido em sua direção, como se o considerasse algo muito natural. Ficou embaixo dele, olhando para cima. Bond disse dentro de sua máscara: “Vá-se embora daqui, seu imbecil!” Deu uma cuti-lada rápida em direção ao peixe com seu arpão. O peixe fugiu novamente para o nevoeiro. Bond levantou a cabeça e furiosamente ergueu o polegar. Era um ridículo e mesquinho ato de sabotagem, do qual já se sentia envergonhado. O líquido oleoso marrom escuro estava sendo derramado na superfície da laguna. Ainda havia tempo de fazer o Sr. Krest parar antes que acabasse tudo — tempo de dar-lhe outra oportunidade de apanhar a Raridade de Hildebrand. Bond ficou imóvel olhando, até pingar a última gota. O Sr. Krest que fosse para o inferno!

Agora o negócio estava sendo vagarosamente arrastado pela correnteza — uma mancha brilhante que se espalhava, refletindo o céu azul com um lustre metálico. O Sr. Krest, o segador gigante, estava avançando com a mancha.

— Pronto, rapazes — disse ele, alegremente. — Já está aí com vocês.

Bond enfiou de novo a cabeça dentro da água. Tudo estava como antes na pequena coletividade. Mas depois, com desnorteante instantaneidade, todos ficaram loucos. Foi como se todos tivessem contraído a dança de São Guido. Vários peixes deram cambalhotas malucas e depois caíram como pesadas folhas sobre a areia. A moreia saiu vagarosamente do buraco no coral, com as mandíbulas abertas. Ficou cuidadosamente em pé sobre a cauda e depois caiu delicadamente de lado. A pequena lagosta deu três sacudidelas com a cauda e virou de costas. O octópode desprendeu-se do coral e deixou-se cair para o fundo, de cabeça para baixo. Depois foram arrastados para a arena os cadáveres vindos mais de cima — peixes de barriga branca, camarões, minhocas, caranguejos, moreias mosqueadas e verdes, lagostas de todos os tamanhos. Como soprados por uma ligeira brisa de morte, os corpos desengonçados, com suas cores já desbotando, passaram vagarosamente. Um peixe-agulha de três quilos batia o bico, lutando contra a morte. Mais abaixo, ao longo dos recifes, havia batidas na superfície, onde peixes ainda maiores tentavam fugir para lugar seguro. Um a um, diante dos olhos de Bond, os ouriços do mar caíram das pedras para fazer manchas de tinta preta na areia.

Bond sentiu um toque em seu ombro. Os olhos do Sr. Krest estavam vermelhos do sol e da cintilação. Havia passado nos lábios uma pasta branca contra queimaduras do sol. Gritou impacientemente para a máscara de Bond:

— Onde, diabo, está nosso maldito peixe?

Bond ergueu a máscara.

— Parece que conseguiu afastar-se exatamente antes de descer o negócio. Ainda o estou procurando.

Não esperou para ouvir a resposta do Sr. Krest, mas tornou a afundar rapidamente a cabeça na água. Ainda mais carnificina, ainda mais corpos mortos. Mas agora, certamente, o negócio já havia passado. Certamente a área estava segura, se acaso voltasse o peixe, seu peixe, pois ele o havia salvo. No nevoeiro distante houve um lampejo cor de rosa. ele tinha ido. Agora estava de volta. Preguiçosamente, a Raridade de Hildebrand nadou em direção a Bond através do labirinto de canais entre os postos avançados dos recifes.

Sem importar-se com o Sr. Krest, Bond ergueu a mão livre para fora da água e deixou-se cair com uma forte batida. Ainda assim o peixe continuou vindo. Bond soltou a trave de sua espingarda de arpão e disparou-a na direção do peixe. Não adiantou. Bond baixou os pés e começou a andar em direção ao peixe através da confusão de cadáveres. O belo peixe vermelho e preto pareceu parar e estremecer. Depois disparou diretamente através da água na direção de Bond e mergulhou na areia a seus pés, lá ficando parado. Bond só precisou curvar-se para apanhá-lo. Não houve sequer uma última sacudidela da cauda. Simplesmente encheu a mão de Bond, picando ligeiramente a palma com a espinhenta nadadeira dorsal preta. Bond levou-o embaixo dágua, como para preservar suas cores. Quando chegou perto do Sr. Krest, disse “Aqui está” e entregou-lhe o pequeno peixe. Depois nadou em direção à praia.

Naquela noite, com o “Wavekrest” navegando de volta sob uma enorme lua amarela, o Sr. Krest deu ordem para o que chamava de “wingding”.

— Precisamos comemorar, Liz. Isto é tremendo, um dia tremendo. Atingimos o último objetivo e podemos dar o fora destas malditas Seychelles a fim de voltar para a civilização. Que diz de irmos a Mombasa, depois de termos recebido a bordo a tartaruga e aquele maldito papagaio? Voar para Nairobi e tomar o grande avião para Roma, Veneza, Paris... qualquer lugar que você queira. Que diz, tesouro?

Apertou-lhe o queixo e as faces com sua grande mão, fazendo saltar os lábios. Beijou-os secamente. Bond observava os olhos da mulher. Estavam bem fechados. O Sr. Krest soltou. A moça fez massagem no rosto. Ainda estava branco com as marcas dos dedos.

— Puxa, Milt — disse ela meio rindo — você quase me amassou. Você não conhece a própria força. Mas vamos comemorar. Penso que será muito divertido. E aquela ideia de Paris parece grande. Vamos fazer isso, sim? Que devo encomendar para o jantar?

— Diabo... caviar, naturalmente. — disse o Sr. Krest, estendendo as mãos. — Uma daquelas latas de duas libras de Hammacher Schlemmer e todos os acompanhamentos. E aquele champanha rosado.

Virou-se para Bond e perguntou:

— Isso lhe convém, rapaz?

— Parece uma boa refeição — respondeu Bond, mudando de assunto depois. — Que fez com a prenda.

— Formalina. Está lá em cima no convés superior com alguns outros frascos de coisas que recolhemos aqui e acolá... peixes, conchas... Tudo seguro em nosso necrotério doméstico. Foi assim que nos disseram para guardar os espécimes. Remeteremos por via aérea aquele maldito peixe quando voltarmos à civilização. Primeiro darei uma entrevista à imprensa. Deverá sair com grande destaque nos jornais lá da terra. Já dei a notícia pelo rádio à Smithsonian e às agências noticiosas. Meus contadores ficarão muito contentes em ter alguns recortes de jornais para mostrar àqueles malditos rapazes do fisco.

O Sr. Krest ficou muito bêbado naquela noite. Mas não demonstrou muito. A macia voz de Bogart tornou-se mais macia e lenta. A cabeça redonda e pesada virou-se mais deliberadamente sobre os ombros. A chama do isqueiro levou mais tempo para tornar a acender o charuto e um copo foi jogado para longe da mesa. Mas transparecia nas coisas que o Sr. Krest dizia. Havia no homem uma violenta crueldade, um desejo patológico de ferir, bem perto da superfície. Naquela noite, depois do jantar, o primeiro alvo foi James Bond. Teve de ouvir uma explicação em voz mansa sobre as razões pelas quais a Europa, incluindo a Inglaterra e a França, perdia cada vez mais seu valor para o mundo. Hoje em dia, disse o Sr. Krest, só existem três potências: Estados Unidos, Rússia e China. Esse era o grande jogo de pôquer e nenhuma outra nação tinha fichas ou cartas para entrar nele. De vez em quando, algum agradável paisinho — que ele admitia ter sido bastante grande no passado — como a Inglaterra, recebia um pouco de dinheiro emprestado para poder jogar uma mão com os adultos. Mas isso era apenas delicadeza, como a gente às vezes precisa ter — com um amigo do clube que ficou arruinado. Não. A Inglaterra — bela gente, entenda-me, grande espírito esportivo — era um lugar onde se ia para ver edifícios antigos, a Rainha e outras coisas. A França? Só valia pela comida boa e pelas mulheres fáceis. A Itália? Sol e espaguete. Uma espécie de sanatório. A Alemanha? Bem, os alemães ainda tinham um pouco de fibra, mas duas guerras perdidas haviam-lhes tirado o ânimo. O Sr. Krest desfez-se do resto do mundo com alguns chavões semelhantes e depois pediu a opinião de Bond.

Bond estava completamente cansado do Sr. Krest. Disse que achara o ponto de vista do Sr. Krest excessivamente simplificado — ingênuo mesmo, poderia dizer. Acrescentou:

— Seus argumentos fazem-me lembrar um aforisma bastante mordaz que ouvi certa vez a respeito dos Estados Unidos. Quer ouvir?

— Claro, claro.

— É no sentido de que os Estados Unidos progrediram da infância para a senilidade, sem ter passado por um período de maturidade.

O Sr. Krest olhou pensativamente para Bond. Finalmente disse:

— Puxa, Jim, isso é bem direto.

Seus olhos cobriram-se ligeiramente quando os voltou para sua esposa.

— Acho que você concorda com essa observação de Jim, não, tesouro? Lembro-me de tê-la ouvido dizer certa vez que achava que havia algo de bem infantil nos americanos. Lembra-se?

— Oh, Milt — disse Liz Krest, cujos olhos revelavam ansiedade, mostrando que ela soubera ler os sinais. — Como pode trazer isso à baila? Você sabe que foi apenas uma coisa casual que eu disse sobre as histórias em quadrinhos dos jornais. Naturalmente, não concordo com o que James diz. De qualquer maneira, foi apenas uma piada, não foi, James?

— Exatamente — respondeu Bond. — Como o que o Sr. Krest disse da Inglaterra, que nada tem alem de ruínas e uma rainha.

Os olhos do Sr. Krest ainda estavam voltados para a mulher. Disse maciamente:

— Bobagens, tesouro. Por que está parecendo tão nervosa. Naturalmente que foi uma piada.

fez uma pausa e acrescentou:

— Uma piada de que eu me lembrarei, tesouro. De que certamente me lembrarei.

Bond calculou que o Sr. Krest já tinha dentro uma garrafa inteira de várias bebidas alcoólicas, principalmente uísque.

Parecia a Bond que, se ele não perdesse a consciência, não demoraria muito o momento em que teria de acertar o Sr. Krest, só uma vez, mas bem forte, no queixo. Fidele Barbey estava agora recebendo o tratamento.

— Essas suas ilhas, Fido. Quando olhei para elas no mapa pela primeira vez, pensei que fossem apenas algumas sujeiras de mosquitos sobre a página — disse o Sr. Krest, dando uma risadinha. — Tentei mesmo limpá-las com as costas da mão. Depois li um pouco sobre elas e tive a impressão de que minha primeira ideia acertara em cheio. Não prestam para grande coisa, não é, Fido? Admira-me como um rapaz inteligente como você não dá o fora daqui. Mariscar pelas praias não é vida que se leve. Verdade que ouvi dizer que um dos membros de sua família deixou mais de cem filhos ilegítimos. Talvez seja essa a atração, hem, rapaz?

O Sr. Krest sorriu como quem conhece bem as coisas. Fidele Barbey respondeu serenamente:

— Esse foi meu tio Gaston. O resto da família não aprova isso. fez um grande furo na fortuna da família.

— Fortuna da família, hem? — disse o Sr. Krest, piscando para Bond. — Em que estava empregada essa fortuna? Em conchas de caurim?

— Não exatamente. — Fidele Barbey não estava acostumado com o tipo de rudeza do Sr. Krest. Parecia-ligeiramente embaraçado. — Embora tenhamos ganho muito dinheiro com carapaças de tartaruga e madrepérola há uns cem anos quando havia enorme procura dessas coisas. Copra sempre foi nosso principal negócio.

— Usando os bastardos da família como mão-de-obra, suponho eu. Boa ideia. Gostaria de poder arrumar alguma coisa assim em meu círculo doméstico.

O Sr. Krest olhou para sua esposa. Os lábios de borracha viraram-se ainda mais para baixo. Antes da chacota seguinte poder ser proferida, Bond empurrara sua cadeira para trás e saíra para o convés, fechando a porta depois de passar.

Dez minutos depois, Bond ouviu o barulho de pés que desciam a escada do convés superior. Virou-se. Era Liz Krest. Veio ate onde ele estava na popa. Disse com voz tensa:

— Eu disse que ia para a cama. Mas depois pensei em voltar aqui para ver se quer mais alguma coisa. Não sou muito boa dona de casa, acho. Tem certeza que não faz questão de dormir aqui fora?

— Gosto disto. Gosto mais desta espécie de ar que da coisa enlatada lá dentro. E é maravilhoso ter todas essas estrelas para olhar. Nunca tinha visto tantas estrelas.

Ela disse ansiosamente, aproveitando o assunto amistoso:

— Gosto mais da constelação de Orion e do Cruzeiro do Sul. Quando era pequena — sabe? — pensava que as estrelas eram na realidade buracos no céu. Pensava que o mundo era cercado por uma espécie de envoltório grande e preto, fora do qual o universo era cheio de luz brilhante. As estrelas eram apenas buracos no envoltório, que deixavam passar pequenas faíscas de luz. A gente tem ideias terrivelmente tolas quando criança.

Ergueu os olhos para Bond, desejando que ele não a decepcionasse.

— Você provavelmente tem razão — disse Bond. — A gente não deve acreditar em tudo quanto os cientistas dizem. Eles querem tornar tudo monótono. Onde você vivia nessa época?

— Em Ringwood, na New Forest. Era um bom lugar para a gente crescer. Um bom lugar para crianças. Gostaria de voltar lá um dia.

— Você sem dúvida percorreu um longo caminho desde então — disse Bond. — Provavelmente o achou muito monótono.

Ela estendeu a mão e tocou a manga de Bond.

— Por favor, não diga isso. Você não compreende... — havia uma nota de desespero na voz suave. — Não posso suportar o fato de não ter o que outras pessoas têm — pessoas comuns. Quero dizer — disse ela, rindo nervosamente — você não vai acreditar em mim, mas conversar assim durante alguns minutos, ter alguém como você com quem conversar, é coisa de que já quase me esquecera.

De repente, segurou a mão de Bond e apertou-a bem.

— Desculpe. Só queria fazer isto. Agora vou para a cama.

A voz macia veio de trás deles. A fala era pastosa, mas cada palavra era cuidadosamente separada da seguinte.

— Bem, bem. Quem diria? Namorando com o criado submarino!

O Sr. Krest estava enquadrado na portinhola do salão. Firmava-se sobre as pernas bem abertas e tinha os braços estendidos para a padieira em cima de sua cabeça. Com a luz por trás, tinha a silhueta de um cinocéfalo. O ar frio e aprisionado do salão passou por ele e por um momento resfriou o ar quente da noite no convés inferior. O Sr. Krest deu um passo para fora e empurrou delicadamente a porta para trás.

Bond deu um passo em direção a ele, com as mãos caídas dos lados. Mediu a distância que o separava do plexo solar do Sr. Krest.

— Não tire conclusões apressadas, Sr. Krest — disse. — E cuidado com a língua. Teve a sorte de não machucar-se até agora. Não abuse da sorte. O senhor está bêbado. Vá para a cama.

— Ho, ho, ho! Ouçam o atrevido rapaz.

O rosto do Sr. Krest, iluminado pela lua, voltou-se vagarosamente de Bond para sua esposa. fez uma careta desdenhosa. Tirou do bolso um apito de prata e girou-o em sua corrente.

— ele evidentemente não está compreendendo, não acha, tesouro? Você não lhe disse que aqueles hunos estão lá na frente só como enfeite?

Voltou-se de novo para Bond.

— Rapaz, aproxime-se mais e eu soprarei isto... só uma vez. E sabe o que acontecerá? Será o sepultamento do Sr. maldito Bond — disse ele, fazendo um gesto em direção ao mar — pelo costado. Homem ao mar. Uma pena. Voltamos para dar uma busca e sabe o que acontece, rapaz. Por acaso recuamos sobre você com aquelas duas hélices. Parece incrível! Que falta de sorte teve aquele belo rapaz Jim de quem todos nós gostávamos tanto!

O Sr. Krest balançou-se sobre os pés.

— Entendeu, Jim? Okay, então vamos ser amigos de novo e dormir um pouco.

Segurou na padieira da portinhola e virou-se para sua esposa. Ergueu a mão livre e fez um gesto vagaroso com o dedo.

— Ande, tesouro. É hora de ir para a cama.

— Sim, Milt. — Os olhos largos e assustados viraram-se de lado. — Boa-noite, James.

Sem esperar pela resposta, mergulhou por baixo do braço do Sr. Krest e atravessou quase correndo o salão. O Sr. Krest ergueu uma mão.

— Calma, rapaz. Nada de rancores, eh?

Bond nada disse. Continuou olhando duramente para o Sr. Krest.

O Sr. Krest riu hesitantemente. Depois disse:

— Então, okay.

Entrou no salão e fechou a porta. Através da janela, Bond observou-o caminhando vacilante pelo salão e apagando as luzes. Foi para o corredor e houve um clarão momentâneo na porta do camarote particular. Depois a porta também ficou escura.

Bond encolheu os ombros. Santo Deus, que homem! Debruçou-se no peitoril da popa e observou as estrelas e os lampejos de fosforescência na esteira cremosa. Pôs-se então a clarear o espírito e relaxar as tensões de seu corpo.

Meia hora mais tarde, depois de tomar um banho de chuveiro no banheiro da tripulação, Bond estava arrumando uma cama entre as almofadas Dunlopillo empilhadas quando ouviu um angustioso grito. O grito cortou a noite por um instante e depois foi sufocado. Era a mulher. Bond atravessou correndo o salão e desceu pelo corredor. Com a mão na porta do camarote, parou. Podia ouvir os soluços dela e, acima deles, a voz macia e monótona do Sr. Krest. Tirou a mão do trinco. Diabo! Que tinha com isso? Eram marido e mulher. Se ela estava disposta a suportar essa espécie de coisa sem matar seu marido ou abandoná-lo, não adiantava Bond fazer o papel de Sir Galahad. Bond voltou vagarosamente pelo corredor. Quando estava atravessando o salão, o grito, desta vez menos pungente, ecoou de novo. Bond praguejou fluentemente, saiu, deitou-se em sua cama e tentou focalizar seu espírito no suave roncar dos diesels. Como podia uma mulher ter tão pouca coragem? Ou será que as mulheres eram capazes de suportar quase tudo de um homem? Tudo, exceto a indiferença? O espírito de Bond recusava desembaraçar-se. O sono distanciava-se cada vez mais.

Uma hora mais tarde, Bond chegara à beira da inconsciência quando, acima dele no convés superior, o Sr. Krest começou a roncar. Na segunda noite após terem saído de Port Victoria, o Sr. Krest deixara sua cabina no meio da noite e subira para a rede que ficava pendurada para ele entre a lancha e o pequeno bote. Mas naquela noite não havia roncado. Agora estava roncando com aquele barulho profundo e estrondoso que resulta de grandes pílulas azuis de sedativo em cima de álcool em excesso.

Aquilo já era demais. Bond olhou para seu relógio. Uma e meia. Se o ronco não parasse em dez minutos, Bond desceria para a cabina de Fidele Barbey e dormiria no chão, ainda que tivesse de acordar duro e gelado na manhã seguinte.

Bond observou o ponteiro cintilante dar vagarosamente a volta no mostrador. Agora! Levantou-se e estava apanhando sua camisa e seu “short” quando, do convés superior, veio o barulho de uma forte batida. A batida foi seguida imedia-mente por ruídos de luta e um som horrível como de alguém sendo sufocado e gorgolando. Teria o Sr. Krest caído de sua rede? Relutantemente, Bond deixou suas coisas cair de novo no convés e subiu a escada. Quando seus olhos atingiram a altura do convés superior, os sons cessaram. Em seu lugar, houve outro som, ainda mais horrível — o rápido bater de calcanhares. Bond conhecia esse som. Saltou os últimos degraus e correu em direção à figura caída de costas e de braços abertos sob o brilhante luar. Parou e ajoelhou-se devagar, horrorizado. O horror do rosto estrangulado já era bem feio, mas não era a língua do Sr. Krest que saía de sua boca aberta. Era o rabo de um peixe. As cores eram rosa e preto. Era a Raridade de Hildebrand!

O homem estava morto — horrivelmente morto. Quando o peixe fora enfiado em sua boca, ele devia ter estendido a mão e tentado desesperadamente arrancá-lo para fora. Mas os espinhos das nadadeiras dorsais e anais haviam-se prendido por dentro das bochechas e algumas das pontas espinhosas projetavam-se agora através da pele manchada de sangue em roda da boca obscena. Bond estremeceu. A morte devia ter sobrevindo em um minuto. Mas que minuto!

Bond pôs-se em pé vagarosamente. Caminhou até as prateleiras de frascos de vidro e espreitou por baixo do toldo protetor. A tampa de plástico do frasco da ponta estava caída no convés a seu lado. Bond limpou-a cuidadosamente na lona e depois, segurando-a com as pontas das unhas, colocou-a de novo solta sobre a boca do frasco.

Voltou e ficou em pé ao lado do cadáver. Qual dos dois fizera isso? Havia um toque de diabólico ódio no uso da valiosa prenda como arma. Isso sugeria a mulher. Ela certamente tinha suas razões. Mas Fidele Barbey, com seu sangue crioulo, teria tido a crueldade e ao mesmo tempo o macabro senso de humor. “Je lui ai foutu son sacré poisson dans la gueule.” Bond podia ouvi-lo proferindo as palavras. Se, após Bond ter deixado o salão, o Sr. Krest tivesse alfinetado mais um pouquinho os seychellois — particularmente no que se referia à sua família ou suas adoradas ilhas — Fidele Barbey não o teria atacado lá na hora ou usado uma faca. Teria esperado e planejado.

Bond correu os olhos pelo convés. O ronco do homem poderia ter sido um sinal para qualquer dos dois. Havia escadas para o convés superior partindo de ambos os lados das cabinas. O timoneiro na casa do leme nada teria ouvido com o barulho da sala de máquinas. Bastariam segundos para tirar o pequeno peixe de seu banho de formalina e enfiá-lo na boca aberta do Sr. Krest. Bond encolheu os ombros. Quem quer que tivesse feito aquilo não pensara nas consequências — no inevitável inquérito, talvez um julgamento, no qual ele, Bond, seria outro suspeito. Sem dúvida, iam todos meter-se em uma encrenca dos diabos a menos que pudesse arrumar as coisas.

Bond olhou pela beirada do convés superior. Embaixo ficava a faixa de um metro de coberta que se estendia por todo o comprimento do navio. Entre ela e o mar havia um peitoril de uns sessenta centímetros de altura. Supondo-se que a rede tivesse partido e o Sr. Krest tivesse caído, rolado sobre a lancha e pela beirada do convés superior, poderia ter chegado ao mar? Dificilmente, com o mar tão calmo, mas isso é o que ele iria fazer.

Bond pôs-se em ação. Com uma faca de mesa do salão, esfiapou cuidadosamente e depois partiu uma das principais cordas da rede, de modo que esta ficou realisticamente caída no convés. Em seguida, com um pano úmido, limpou as manchas de sangue na madeira e as gotas de formalina que tinham escorrido desde o frasco do peixe. Depois, veio a parte mais difícil — lidar com o cadáver. Cuidadosamente, Bond puxou-o para a beirada do convés, desceu a escada e, erguendo o corpo, segurou-o. O cadáver desceu por cima dele, com um pesado abraço de bêbado. Bond caminhou cambaleante até o peitoril baixo e soltou o cadáver. Houve um último e medonho vislumbre do rosto obscenamente inchado, um enjoativo cheiro de uísque azedo, uma pesada batida e o corpo rolou vagarosamente, levado pelas pequenas ondas da esteira. Bond agachou-se encostado à escotilha do salão, pronto para escorregar por ela se o timoneiro viesse da proa para investigar. Mas não houve movimento na frente do barco e os diesels continuaram roncando firmemente.

Bond suspirou fundo. O “coroner” precisaria ser muito encrenqueiro para pensar em outra coisa além de acidente. Voltou para o convés superior, deu uma última olhada em roda, jogou ao mar a faca e o pano úmido, e desceu a escada para sua cama no convés inferior. Eram duas e quinze. Dez minutos depois, Bond estava dormindo.


Aumentando a velocidade para doze nós, às seis horas da tarde estavam em North Point. Atrás deles, o céu corruscava de raios vermelhos e dourados sobre água-marinha. Os dois homens, com a mulher entre eles, estavam encostados no peitoril do convés inferior e observavam a praia brilhante além do mar, que parecia um espelho de madrepérolas. Liz Krest usava um vestido de linho branco com cinto preto e um lenço preto e branco enrolado no pescoço. As cores da manhã combinavam com a pele dourada. As três pessoas mantinham-se reservadas e quase constrangidas, cada uma delas alimentando seu próprio conhecimento secreto, cada uma delas ansiosa por transmitir às outras duas que seus segredos particulares estavam bem guardados com ela.

Naquela manhã parecia ter havido entre os três uma conspiração para dormir até tarde. Mesmo Bond não fora acordado pelo sol antes das dez horas. Tomou um banho de chuveiro no alojamento da tripulação e conversou com o timoneiro antes de descer para ver o que acontecera com Fidele Barbey. Este ainda estava na cama. Disse que estava de ressaca. Havia sido muito rude com o Sr. Krest? Não conseguia lembrar-se de muita coisa, recordando apenas que o Sr. Krest fora rude com ele.

— Lembra-se do que eu disse sobre ele desde o começo, James? Um fanfarrão safado. Agora concorda comigo? Qualquer dia destes alguém vai tapar para sempre aquela sua feia boca mole.

Inconclusivo. Bond arrumou alguma coisa como desjejum na cozinha e estava comendo quando Liz Krest entrou para fazer o mesmo. Vestia um quimono de xantungue azul pálido até os joelhos. Havia anéis escuros embaixo de seus olhos e ela tomou seu desjejum em pé. Mas parecia perfeitamente calma e à vontade. Segredou com ar de conspiração:

— Desculpe o que aconteceu ontem à noite. Acho que eu também bebi um pouco demais. Mas perdoe Milt. ele é realmente muito amável. Só quando bebe um pouco demais é que fica um tanto difícil. Sempre se arrepende na manhã seguinte. Você vai ver.

Quando já eram onze horas e nenhum dos outros dois mostrava sinais de abrir o jogo, por assim dizer, Bond decidiu forçar a parada. Olhou fixamente para Liz Krest que estava deitada de bruço no convés inferior lendo uma revista e disse:

— A propósito, onde está seu marido? Ainda dormindo?

Ela franziu a testa.

—- Acho que sim. ele foi para sua rede no convés superior. Não tenho ideia que horas eram. Tomei um comprimido de sedativo e dormi até de manhã.

Fidele Barbey tinha uma vara de pesca estendida para fora do barco. Sem voltar os olhos, disse:

— Provavelmente está na casa do leme.

— Se ainda estiver dormindo no convés superior — disse Bond — vai queimar-se como o diabo.

— Oh, pobre Milt! — exclamou Liz Krest. — Eu não havia pensado nisso. Vou lá ver.

Subiu a escada. Quando sua cabeça estava acima do nível do convés superior, parou. Gritou para baixo, ansiosamente:

— Jim. ele não está aqui. E a rede está partida.

— Fidele provavelmente tem razão — respondeu Bond. — Vou olhar lá na frente.

Foi até a casa do leme. Fritz, o imediato, e o mecânico estavam lá. Bond perguntou:

— Alguém viu o Sr. Krest?

Fritz pareceu perplexo.

— Não, senhor. Por quê? Há alguma coisa errada?

Bond assumiu uma expressão de ansiedade.

— ele não está lá atrás. Vamos, deem uma olhada por toda parte. ele estava dormindo no convés superior. Não está lá e sua rede está partida. Estava bem ruim ontem à noite. Vamos! Procurem-no!

Quando se chegou à inevitável conclusão, Liz Krest teve curto, mas convincente acesso de histeria. Bond levou-a para sua cabina e deixou-a lá chorando.

— Está tudo bem, Liz — disse ele. — Fique fora disso. Eu cuidarei de tudo. Teremos de avisar Port Victória pelo rádio e outras coisas. Direi a Fritz para aumentar a velocidade. Acho que não adianta voltar atrás para olhar. Já faz seis horas que nasceu o dia, quando ele não poderia ter caído de bordo sem ser ouvido ou visto. Deve ter sido durante a noite. Acho que umas seis horas nestes mares é o fim.

Ela o fitou, com os olhos muito abertos.

— Quer dizer... quer dizer tubarões e outras coisas?

Bond fez que sim com a cabeça.

— Oh, Milt! Pobre e querido Milt! Oh, por que teria de acontecer isso?

Bond saiu e fechou suavemente a porta.

O iate deu a volta em Cannon Point e diminuiu a velocidade. Conservando-se bem longe dos recifes esparsos, deslizou serenamente através da larga baía, agora cor de limão e cinzenta escura na última luz do dia, em direção ao ancoradouro. A pequena Prefeitura embaixo das montanhas já estava escura com sombras cor de anil nas quais apareciam borrifos de luz amarela. Bond viu a lancha da Alfândega e Imigração sair do Long Pier para encontrá-los. A pequena comunidade já devia estar comentando ativamente a notícia, que devia ter transpirado rapidamente da estação de rádio para o Seychelles Club e de lá, através dos sócios, motoristas e empregados, para a cidade.

Liz Krest virou-se para ele.

— Estou começando a ficar nervosa. Você me ajudará até o fim disto... destas horríveis formalidades e outras coisas?

— Naturalmente.

— Não se preocupem demais — disse Fidele Barbey. — Toda essa gente é minha amiga. E o juiz é meu tio. Todos nós teremos de prestar depoimento. Provavelmente farão a audiência amanhã. Você poderá partir no dia seguinte.

— Pensa mesmo assim? — perguntou Liz Krest, sob cujos olhos o suor parecia orvalho. — O mal é que realmente não sei para onde partir ou que fazer. Suponho — acrescentou, hesitando, sem olhar para Bond — suponho, James, que você não gostaria de ir até Mombasa? Quero dizer, você vai para lá de qualquer jeito e eu poderia levá-lo até lá um dia antes desse seu navio, essa Camp qualquer coisa.

— “Kampala” — esclareceu Bond, acendendo um cigarro para ocultar sua hesitação. Quatro dias em um belo iate com essa mulher? Mas havia o rabo daquele peixe projetando-se da boca! Teria ela feito aquilo? Ou fora Fidele, sabendo que seus tios e primos em Mahe dariam um jeito de nada lhe acontecer de mal? Se pelo menos um deles cometesse uma indiscrição. Bond disse com naturalidade:

— É muita bondade sua, Liz. Naturalmente, eu gostaria de ir.

Fidele Barbey riu baixinho.

— Bravo, meu amigo — disse ele. — E eu gostaria de estar em sua pele, menos por uma coisa. Aquele maldito peixe. É uma grande responsabilidade. Gosto de imaginar vocês dois recebendo torrentes de cabogramas da Smithsonian. Não se esqueçam de que agora vocês dois são curadores de um Koh-i-noor científico. E sabem como são aqueles americanos. Matarão vocês de aborrecimento até terem o bicho nas mãos.

Os olhos de Bond estavam duros como pedra enquanto a observava. Sem dúvida, isso apontava para ela. Agora teria de dar alguma desculpa, para tirar o corpo da viagem. Havia certa coisa naquela maneira particular de matar um homem...

Mas os belos olhos cândidos não vacilaram. Ela ergueu os olhos para o rosto de Fidele Barbey e disse, serenamente, encantadoramente:

— Isso não será problema. Decidi doá-lo ao Museu Britânico.

James Bond notou que agora se juntava orvalho de suor nas têmporas. Mas, afinal de contas, era uma tarde desesperadamente quente...

O ronco dos motores cessou e a corrente da âncora baixou rangendo para a calma baía.

 

 

                                                                                                    Ian Fleming

 

 

 

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