Criar um Site Grátis Fantástico
Translate to English Translate to Spanish Translate to French Translate to German Translate to Italian Translate to Russian Translate to Chinese Translate to Japanese

  

 

Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O FAZEDOR DE CAIXÕES / Nicolai Gogol
O FAZEDOR DE CAIXÕES / Nicolai Gogol

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O FAZEDOR DE CAIXÕES

 

Os últimos trastes do fazedor de caixões Adrian Prokhorov foram aglomerados no coche fúnebre, e a macilenta parelha arrastou-se pela quarta vez da Basmánaia para a Nikítskaia, para onde ele se mudava com tudo o que era seu. Cerrada a loja, pregou no portão um anúncio a informar que a casa estava à venda ou para alugar, e dirigiu-se para o novo domicílio a pé. Ao aproximar-se da casinha amarela, que há tanto tempo lhe dominava os pensamentos e fora adquirida finalmente por uma soma considerável, o velho percebeu surpreendido que o seu coração não se alegrava. Ao transpor o umbral desconhecido e ao encontrar confusão em sua nova morada, suspirou pela velha lojinha, onde durante dezoito anos tudo decorrera na mais simples harmonia. Começou a praguejar contra as duas filhas e a empregada, por causa da sua lentidão, e pôs-se a ajudá-las. A ordem foi restabelecida em pouco tempo; o oratório com os ícones, o armário de louça, a mesa, o divã e a cama ocuparam os lugares designados por ele no quarto dos fundos; na cozinha e na sala de visitas, dispuseram-se as obras do dono da casa: caixões de todas as cores e tamanhos, bem como armários com chapéus de luto, capotes negros e archotes. Por cima do portão, pregou-se uma tabuleta com um Cupido corpulento, tendo na mão um facho virado, com a inscrição: “Aqui vende-se e forram caixões simples e pintados, e também se aluga ou conserta esquifes usados”.

As moças foram para o seu quarto. Adrian percorreu a habitação, sentou-se à janela pequena e mandou preparar o samovar.

O leitor culto sabe que tanto Shakespeare como Walter Scott representaram os seus coveiros como homens animados e brincalhões, a fim de impressionar mais fortemente com o contraste a nossa imaginação. Por respeito à verdade, não podemos seguir o seu exemplo e somos obrigados a confessar que o génio do nosso fazedor de caixões condizia de modo absoluto com o seu lúgubre ofício. Adrian Prokhorov era habitualmente sombrio e calado. Quebrava o mutismo quase exclusivamente para vociferar com as filhas, quando as encontrava inactivas, espiando os transeuntes da janela, ou para pedir pelas suas obras um preço exagerado àqueles que tinham a infelicidade (e às vezes, o prazer) de precisar delas.

Pois bem, sentado à janela e tomando a sétima xícara de chá, Adrian estava imerso como de costume em amarguradas divagações. Pensava na chuva torrencial que, uma semana atrás, caíra no momento em que chegava ao cemitério o funeral de um brigadeiro reformado. Muitos capotes negros encolheram, muitos chapéus se estragaram. Previa despesas inevitáveis, pois as suas já antiquadas reservas de trajes fúnebres eram miseravelmente reduzidas. Esperava cobrir o prejuízo com a velha comerciante Triúkhina, que estava às portas da morte ia quase para um ano. Porém, ela vivia no bairro de Razguliai, e Prokhorov temia que os herdeiros, apesar da promessa feita, tivessem preguiça de mandá-lo chamar tão longe, e acabassem por combinar tudo com a empresa mais próxima.

Essas reflexões foram interrompidas involuntariamente por três pancadas franco-maçónicas na porta.

—Quem é? —perguntou Adrian. Abriu-se a porta, e um homem, em quem, à primeira vista, se poderia reconhecer um artífice alemão, entrou no quarto e aproximou-se, com ar alegre, do dono da casa.

—Desculpe-me, amável vizinho, —disse ele, nesse dialecto russo que nós até hoje não podemos ouvir sem rir —desculpe se o incomodo... eu queria estabelecer relações com o senhor, o quanto antes. Sou sapateiro, meu nome é Gottlieb Schulz, e moro do outro lado da rua, naquela casinha em frente das suas janelas. Festejo amanhã as minhas bodas de prata, e convido-o, a si e às suas filhas para jantar em minha casa como amigos.

O convite foi aceite com afabilidade. Adrian desafiou o sapateiro a sentar-se e tomar uma xícara de chá, e, graças ao génio franco de Gottlieb Schulz, não demoraram a sustentar uma cordial conversa.

—Como vão os negócios de Vossa Mercê? —perguntou Adrian.

—Eh-he-he, —respondeu Schulz —assim e assim. Não me posso queixar. Mas, naturalmente, a minha mercadoria não é como a sua: um vivo pode passar sem se calçar, mas um morto não vive sem caixão.

—É a genuína verdade, —observou Adrian —mas se um vivo não tem com que comprar um par de botas, então (não te zangues) ele anda descalço, mas um mendigo defunto leva o seu caixão de graça.

Desse modo, a palestra deles prosseguiu mais algum tempo. Finalmente, o sapateiro levantou-se e despediu-se de Adrian, reiterando o convite.

No dia seguinte, ao meio-dia em ponto, Adrian e as filhas saíram do portão da casa recém-comprada e dirigiram-se à residência do vizinho. Afastando-me da norma aceite pelos romancistas actuais, não descreverei o cafetã russo de Adrian Prokhorov, nem os trajes europeus de Akúlina e Dária. Suponho, entretanto, que não será supérfluo observar que ambas as moças puseram chapeuzinhos amarelos e sapatos vermelhos, o que lhes sucedia somente nas ocasiões solenes.

A casinha acanhada do sapateiro estava repleta de convidados, na maioria artífices alemães, com suas esposas e aprendizes. Quanto a funcionários russos, estava lá um vigia, o finlandês Iurko, que soubera merecer, apesar da sua modesta condição, uma benevolência especial do dono da casa. Durante uns vinte e cinco anos, prestara com fidelidade serviços nesse posto, a exemplo do carteiro de Pogoriélski. O incêndio de 1812, ao destruir a capital do Império, aniquilara também a sua guarita amarela. Mas imediatamente após a expulsão do inimigo, no seu lugar apareceu uma guarita nova, cinzenta, de colunas brancas, da ordem dórica, e Iurko passou novamente a caminhar junto a ela, de couraça e cacete de armas. Era conhecido da maioria dos alemães que habitavam próximo ao arco de Nikita: a alguns deles acontecera até pernoitar na guarita de Iurko de domingo para segunda-feira. De inediato, Adrian travou relações com ele, pois era um homem de quem cedo ou tarde se podia vir a precisar. E, quando os convivas se dirigiram para a mesa, eles sentaram-se lado a lado. O senhor e a senhora Schulz e a filha deles, Lotchen, de dezessete anos, jantavam com os convidados e, simultaneamente, ajudavam a cozinheira a servir a mesa. A cerveja corria aos borbotões. Iurko comia por quatro e Adrian não lhe ficava atrás. As filhas queriam manter a linha. A conversa em alemão tornava-se hora a hora mais ruidosa. De repente, o dono da casa exigiu a atenção e, após desarrolhar uma garrafa coberta de espuma, proferiu em voz alta, em russo:

—À saúde de minha boa Luísa!

O vinho transbordou. O dono da casa beijou ternamente o rosto fresco da sua quarentona companheira, e os convivas beberam ruidosamente à saúde da bondosa Luísa.

—À saúde dos meus queridos convidados! —proclamou o dono da casa, abrindo a segunda garrafa, e os convidados agradeceram, esvaziando novamente as taças. Então, os brindes sucederam-se. Bebeu-se à saúde de cada convidado em particular, de Moscovo e de uma dúzia inteira de cidadezinhas germânicas, das corporações em geral e de cada uma particular, e à saúde de artesãos e aprendizes. Adrian bebia com afinco e pôs-se tão alegre que sugeriu um brinde brincalhão. De repente, um dos convivas, um padeiro gordo, ergueu a taça e exclamou:

—À saúde daqueles para quem trabalhamos, unserer Kundleute!

A proposta, como todas as demais, foi aceite entusiasticamente e por unanimidade. Os convivas começaram a saudar-se, o alfaiate inclinou-se para o sapateiro, o sapateiro para o alfaiate; o padeiro para ambos, todos os três para o padeiro, e assim por diante. No meio dessas mútuas saudações, Iurko gritou, dirigindo-se ao seu vizinho:

—E então? Bebe, paizinho, à saúde dos teus defuntos.

Os presentes desfizeram-se em gargalhadas, mas Adrian considerou-se ofendido e adquiriu uma expressão sombria. Ninguém se apercebeu, todos continuaram a beber e levantaram-se da mesa quando já tocavam as vésperas.

Os convivas separaram-se tarde, na sua maioria, já um pouco alegres. O gordo padeiro e o encadernador, cujo rosto parecia encadernado com marroquim vermelho, levaram Iurko, amparado pelas axilas, para a sua guarita, seguindo desse modo o provérbio russo “A dívida embeleza-se com o pagamento”.

O fazedor de caixões chegou em casa bêbado e zangado.

—E na verdade, —argumentava ele alto —em que é que o meu ofício não é tão honesto como os demais? Será que o fazedor de caixões é irmão do carrasco? Por que é que riem dele aqueles infiéis? Um fazedor de caixões será algum saltimbanco? Eu gostaria de chamá-los para comemorar a mudança e oferecer-lhes uma festa de verdade. Agora não pode ser! Mas vou chamar aqueles para quem trabalho, os defuntos ortodoxos”.

—O que é isso, paizinho? —perguntou a criada, que lhe estava tirando os sapatos. —Que absurdos são esses? Persigna-te! Convidar defuntos para a festa da mudança! Cruz-credo!” —Juro por Deus que os chamarei —prosseguiu Adrian —e amanhã mesmo. Peço-lhes, meus benfeitores, que venham amanhã à noite para uma festa em minha casa: vou servir-lhes o que Deus me deu.

Dito isso, o empresário fúnebre foi para a cama e pouco depois roncava.

Ainda estava escuro quando acordaram Adrian. A negociante Triúkhina falecera naquela mesma noite, e um empregado enviado pelo seu administrador viera a galope trazer a notícia a Adrian. O fazedor de caixões deu-lhe dez copeques para a vodca, vestiu-se, apressadamente, alugou um coche e fez-se conduzir para o bairro de Razguliai. Havia polícias junto ao portão da casa da defunta, e alguns comerciantes caminhavam pela calçada como corvos que sentem carniça. A defunta estava sobre a mesa, amarela como cera, mas ainda não deformada pela decomposição. Junto a ela, aglomeravam-se parentes, vizinhos e criados. Todas as janelas estavam abertas; ardiam velas; sacerdotes proferiam orações. Adrian acercou-se do sobrinho de Triúkhina, um jovem comerciante de sobrecasaca da última moda, e disse-lhe que o caixão, as velas, a mortalha e os demais objetos funerários seriam imediatamente entregues em perfeito estado. O herdeiro agradeceu-lhe distraído, afirmando que não regatearia e que confiava na consciência de Adrian. O fazedor de caixões jurou por Deus, como era seu costume, que não cobraria mais que o devido; em seguida, trocou um olhar significativo com o administrador e foi providenciar o necessário. Passou o dia todo a ir e a vir entre o arco de Nikita e Razguliai; à noitinha, estava tudo resolvido, e foi para casa a pé, depois de dispensar o cocheiro. Estava um sublime luar. Adrian chegou sem incidentes ao arco de Nikita. Perto da igreja da Assunção, interpelou-o o nosso conhecido Iurko e, reconhecendo o fazedor de caixões, desejou-lhe boa noite. Era tarde. Já estava perto de casa, quando lhe pareceu de repente que alguém se aproximara do seu portão, abrindo-o e escondendo-se atrás dele.

“O que significa isto? —pensou Adrian. —Quem é que precisa de mim novamente? Não será um ladrão? Ou as minhas tontas cachopas andam a receber amantes? Em todo caso, coisa boa não é!”

E Adrian já pensava chamar em seu auxílio o amigo Iurko. Naquele instante, alguém mais aproximou-se do portão e preparava-se para entrar, mas, ao avistar o dono da casa, que corria, parou, tirando o tricórnio. Adrian teve a impressão de conhecer aquele rosto, mas com a pressa não pôde examiná-lo bem.

—Já que o senhor se dignou visitar-me, —disse Adrian ofegante —pois faça o favor de entrar.

—Nada de cerimónia, paizinho, —replicou o outro, com voz abafada —vá na frente e mostre o caminho aos convidados!

Adrian nem teve tempo de fazer cerimónia. O portão estava aberto, e ele encaminhou-se para a escada, seguido pelo outro. Pareceu-lhe que havia gente a caminhar nos quartos.

“Com mil diabos!” —pensou, apressando-se a entrar...

mas, nesse momento, as suas pernas dobraram-se. O quarto estava repleto de defuntos. A lua iluminava pelas janelas os seus rostos amarelos e azuis, as bocas encovadas, os olhos turvos, cerrados e os narizes pendidos... Adrian reconheceu neles horrorizado as pessoas enterradas graças aos seus cuidados, e no hóspede que entrara com ele, um brigadeiro sepultado durante uma chuva torrencial. Todos eles, damas e cavalheiros, rodearam o fazedor de caixões em saudações e mesuras, com excepção de um pobretão, enterrado recentemente de graça, e que, envergonhado dos seus farrapos, não se aproximava, permanecendo humildemente num canto. Os demais trajavam, decentemente: as defuntas com toucas e fitas, os mortos funcionários de uniforme, mas de barba por fazer, os comerciantes de cafetã de dia feriado.

—Sabes, Prokhorov? —disse o brigadeiro, em nome de toda a honesta confraria. —Levantamo-nos todos para atender ao teu convite: ficaram em casa apenas aqueles que já não podem andar, os que estão completamente derruídos, e aqueles que só têm ossos sem pele, mas até entre esses houve um que não se conteve, tamanha era a vontade de vir à tua casa...

Naquele instante, um pequeno esqueleto esgueirou-se através da multidão e aproximou-se de Adrian. A sua caveira sorria afavelmente. Frangalhos de casemira verde-clara e vermelha e de um brim vetusto pendiam dele aqui e ali, como num espeto, e os ossos das suas pernas debatiam-se dentro de grandes polainas, como um pilão num almofariz.

—Não me reconheceste, Prokhorov? —perguntou o esqueleto. —Estás lembrado do sargento da guarda reformado, Piotr Pietróvitch Kurílkin, aquele mesmo a quem vendeste, em 1799, o teu primeiro caixão, e forneceste pinho em lugar de carvalho?

Dito isso, o defunto alongou na sua direção os ossos, para um abraço. Mas, reunindo todas as forças, Adrian soltou um grito e repeliu-o. Piotr Pietróvitch cambaleou, caiu e desfez-se em pó. Um murmúrio de indignação levantou-se entre os defuntos; todos se empenharam em defender a honra do companheiro, assediaram Adrian com censuras e ameaças, e o pobre dono da casa, ensurdecido pelos seus gritos, quase esmagado, perdeu a presença de espírito, caiu sobre os ossos do sargento da guarda reformado e desmaiou.

Há muito que o sol iluminava a cama em que estava deitado o fazedor de caixões. Finalmente, abriu os olhos e viu diante de si a criada que soprava no samovar. Adrian recordou horrorizado todos os acontecimentos da véspera. Triúkhina, o brigadeiro e o sargento Kurílkin apresentaram-se confusamente à sua imaginação. Esperou em silêncio que a criada puxasse conversa e lhe falasse sobre as conseqüências daquelas aventuras nocturnas.

—Como dormiste, paizinho Adrian Prokhórovitch —indagou Aksínia, passando-lhe o roupão. —O vizinho alfaiate veio visitar-te, e o guarda passou para dizer que hoje faz anos, mas tu estavas a dormir e não quisemos acordar-te.

—E veio alguém da casa da falecida Triúkhina?

—Falecida? Mas ela morreu?

—Que parlapatona! Não foste tu que me avisaste ontem para providenciar o enterro dela?

—Que é isso, paizinho? Perdeste o juízo, ou ainda não te passou a bebedeira de ontem? Que enterro houve ontem? Passaste o dia todo na festança do alemão, voltaste bêbado, caíste na cama e dormiste até agora, quando já tocaram para a missa.

—Será possível?! —questionou com alegria o fazedor de caixões.

—É isso mesmo —respondeu a criada.

—Se é assim, serve depressa o chá e vai chamar as filhas.

 

                                                                                 Nicolai Gogol  

 

                      

O melhor da literatura para todos os gostos e idades

 

 

           Voltar à Página do Autor