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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O FEITICEIRO DO DESERTO / E. M. Hull
O FEITICEIRO DO DESERTO / E. M. Hull

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio "SEBO"

 

 

 

 

   

     Caia a tarde. O sol poente, vivo demais para aquela quadra do ano, aquecia as ladeiras de um pequeno espigão ao sul da Serra do Pequeno Atlas, no norte da África, dando tons avermelhados às manchas de terra nua e às rochas escalvadas, onde vicejavam raquíticas moitas de ervas, de espaço em espaço pela montanha. Os raios mais fortes coavam-se pela folhagem de um bosque de oliveiras da baixada, onde se viam três cavalos amarrados e que preguiçosamente abanavam as moscas importunas com as caudas, escarvando [raspando com os cascos] a terra dura, de vez em quando.

     A dez milhas para o lado do poente, encontra-se a rumorosa Blidah, já com ares de cidade européia, mas ali tudo era profunda quietude e solidão, embora não a mesma de pleno deserto. O silêncio era interrompido apenas pelo arrulhar de pombos e pelo tênue murmúrio de vozes.

     A pequena distância dos cavalos, e bem abrigado dos raios solares, um homem, deitado de costas no chão macio, parecia adormecido, com as mãos cruzadas sobre a cabeça, e o rosto quase escondido pelas abas de um chapéu colonial, do qual emergia um velho cachimbo grotesco e quilotado [enegrecido ou amarelado pelo fumo], seguro firmemente entre os dentes, mesmo durante o sono. Entre os clientes e amigos íntimos de William Chalmers, havia quem dissesse positivamente que esse cachimbo de espuma detestável e antiquado, tesouro de recordações dos dias de interno num hospital, ocupava em sua afeição o segundo lugar, pois o primeiro cabia à adorada esposa, que ali também estava, sentada junto dele. Viva e de aparência juvenil, apesar dos cabelos já grisalhos, ela se reclinava preguiçosa e languidamente numa pedra, conversando animada e gentilmente com um terceiro companheiro, tipo reforçado e de aparência marcial, estendido a fio a seus pés. Havia entre ambos tal semelhança no modo de falar e nos gestos, que logo se adivinhava certo grau de parentesco.

 

 

 

 

     A Sra. Chalmers interrompeu abruptamente uma frase, para afugentar um bando de moscas impertinentes com as luvas de montar.

     — Mesmo assim, acho uma sensaboria que você ainda continue solteiro, Micky, — disse ela enfaticamente, com desenvoltura de prima, dando por finda uma conversa que já durava cerca de meia hora.

       O Major Meredith fez um trejeito jovial.

     — Não tenho tempo para pensar em matrimônio, — replicou vagarosamente. — Ando muito atarefado em vigiar os nossos velhacos irmãos de fronteira. E, além disso, — prosseguiu com olhar provocante para o lado, — o casamento é uma loteria, e nem todos podem ser contemplados com a sorte grande.

     A Sra. Chalmers arrebitou o nariz com enfado.

     — Que chapa! — Chasqueou com finura, não se mostrando sensível ao cumprimento implícito. — Quer dizer simplesmente que você ainda não encontrou mulher que lhe sirva. Contudo, — e riu-se maliciosamente — há ainda muita esperança para você. Um ano na pátria, depois de cerca de dez no exílio, fará com que você mude de pensar, sem dúvida. É pena que você não tivesse arranjado férias mais cedo, porque havia aqui um grupo de encantadoras criaturas no inverno passado. Infelizmente, a amostra deste ano não é nada recomendável. Não há uma só moça bonita no lugar, excetuando, naturalmente, Marny Geradine, que já se casou, a pobrezinha!

     — Por que “pobrezinha?” — perguntou o militar, vendo que a rápida mudança de tom da prima dava azo a algum comentário.

     — Porque — e a Sra. Chalmers parou um tanto carrancuda — sim, porque você não viu Lord Geradine, senão não teria perguntado, — continuou, pausadamente. — Ele esteve fora, numa expedição de caça, desde que você veio para cá, e o ar da Argélia esteve naturalmente mais “puro” — ajuntou com um pequeno estremecimento.

     O Major Meredith recolheu as longas pernas e se sentou afinal..

     — Então foi um caso de “bonde errado”? — sugeriu.

     — Bonde errado? — repetiu ela com desdém. — Aquilo não é bonde errado nem casamento; crime é o que é. O sangue ferve-me só em pensar nisso. E, no entanto, mal os conheço. Ele é um homem impossível, e ela é a mulher mais discreta e reservada que já encontrei na vida. Daria muito para poder ajudá-la. Parece tão sozinha! Seus olhos ressumbram [gotejam, revelam, denotam] tragédia. Mas... não se pode fazer tudo o que se deseja. Ela não é das pessoas que tenham confidentes. Na minha vida tenho-me intrometido em muitas coisas que não eram da minha conta, mas não me aventuraria a falar a Lady Geradine sobre seus aborrecimentos, conquanto tenha bastante idade para ser sua mãe. Uf! Vamos agora conversar sobre outros assuntos menos desagradáveis, — disse apressadamente e numa voz rouca.

     E por minutos quedou-se em silêncio, olhando para o vácuo, distraidamente, com olhos pensativos e lânguidos. Depois, com um dar de ombros e suspirando, voltou-se ansiosamente para o seu interlocutor.

     — Há muita coisa neste mundo que precisa ser corrigida, Micky, — disse com desprezo pela gramática, — mas não vou agora estragar uma tarde tão agradável pregando moral. Aqui é muito bom, não? Pensei logo que você iria gostar deste valezinho. Pouca gente parece conhecê-lo, e não há mesmo nenhum atrativo que traga gente aqui, a não ser a paz e o silêncio, de que a sociedade que vem passar o inverno na Argélia parece não gostar muito. Nós o achamos há algum tempo e temos acampado muitas vezes aqui, quando a vida nos parecia trabalhosa e incerta. Fico triste em pensar que é a nossa última visita e que dentro de poucos dias, teremos de estar sacudindo dos pés a poeira da Argélia. Cinco anos, Micky, faz cinco anos que Bill tem marcado passo neste fim-de-mundo por causa dos meus estúpidos pulmões. Mas eles agora já estão sãos, graças a Deus, e estaremos a caminho da América, logo que nos for possível, para praticar um novo tratamento de moléstias nervosas, no qual Bill se acha muito interessado. E quando ele descobrir algum talento entre os seus confrades de além-Atlântico, voltaremos à pátria, para acabar plàcidamente os dias em Harley Street, num recanto de paz e conforto. E, não é que Londres vai parecer-nos horrível, depois desta temporada ao ar livre e puro das montanhas e desertos? De modo que, você vê, chegou justamente a tempo de nos ver. Se suas férias tivessem demorado mais um dia, não nos teria apanhado aqui, e eu tinha muita vontade de lhe mostrar nossa casa argeliana. Foi uma temporada de regime, mas de que gostei bastante, e creio que lhe mostramos inúmeras vistas de Argel e seus arredores. Lastimo, apenas, uma coisa: queria que você visse nosso “Homem-Mistério”. Ele é bem um dos tipos do lugar. Um inglês que vive como árabe, não precisa fazer careta, Micky. Não quero dizer que ele já se tornasse “nativo”, ou qualquer coisa horrível parecida com isso, não. Ao contrário, tem ar “muito digno”. Mas vive numa espécie de isolamento esplêndido na mais linda vila de Mustapha, com uma comitiva de chefe. Conquanto seja extremamente amigo dos oficiais franceses e de todos os sheiks importantes das redondezas que costumam vir a Argel, evita propositadamente a companhia dos seus patrícios ingleses. E não fala, nem sequer olha para mulher alguma! Usa albornoz árabe quase todo o tempo e passa por nativo onde quer que esteja. Vive meses e meses no deserto e vem a Argel de vez em quando. Apenas se sabe da sua presença quando ele já está na cidade e se deixa ver por acaso, palmilhando as ruas com a cabeça descoberta, ar parecido com o de um camelo soberbo, ou galopando como um furacão à moda árabe. É só isso o que a colônia inglesa sabe dele. Tem evidentemente grande fortuna e uma suntuosa vila. Poderia ser uma grande personalidade no lugar, mas, da maneira que é, torna-se apenas causa de intriguinhas, “embrulhado em mistério”, como a velha Nanie costumava dizer. Não é necessário acrescentar que num lugar pequeno como este, onde todos conversamos sobre a vizinhança, ele é objeto de conversinhas e mais conversinhas. Ninguém, no entanto, sabe nada de positivo a seu respeito.

     Uma leve gargalhada ouviu-se debaixo do largo chapéu colonial do Dr. Chalmers.

     — Tenho muita pena de contrariá-la, Mollie. Mas o que está dizendo não é rigorosamente exato, — disse ele ainda sonolento. Sua esposa voltou-se na cadeira como impelida por uma mola.

     — E quem o sabe? — inquiriu com ar de desafio.

     — Eu, por exemplo, — replicou o Dr. Chalmers friamente.

     — Você sabe mas nunca disse. Que homem! Você é a criatura mais irritante deste mundo. Imagine só! Tendo esta pérola de informação escondida na manga; estou até me confundindo com minhas metáforas, mas não importa; e avaramente escondendo-a da companheira de alegrias e aflições! Eu não a teria passado adiante se fosse uma confidência. Você sabe disso muito bem. Mas, desde que se adiantou agora tanto, você poderia amenizar um pouco o meu aborrecimento, contando um pouco mais do que isso.

     O Dr. Chalmers riu ainda mais e esticou-se preguiçosamente.

     — Não posso, — replicou sucintamente:

     — Por que não? Eu não o diria nem a um peixe, e Micky é apenas ave de arribação, por isso não deverá importar-lhe o que ouvir aqui. Não seja aborrecido, Bill. Conte.

     Mas o Doutor Chalmers abanou a cabeça.

       — Minha querida Mollie, — continuou, pegando com ternura no velho cachimbo, — uma confidência é uma confidência, e não poso passá-la adiante somente para satisfazer à sua curiosidade, por muito natural que seja. E não discutiram ainda bastante a respeito do pobre diabo? Como ele vive, o que ele bem entende fazer no deserto, é, afinal de contas, um assunto que só a ele diz respeito, a mais ninguém.

     — Mas, Bill, contam-se tantas histórias estranhas a seu respeito...

     — Ao diabo as histórias estranhas! minha cara. Este lugar está mas é cheio de uma porção de tagarelas. É o que é. Um bobalhão qualquer dá curso a um boato sem o menor fundamento e, daí a pouco, toda a cidade está cheia dele como de uma verdade evangélica. O modo de vida de Carew, sua antipatia pelas mulheres e a sua possível simpatia pelos árabes fazem-no naturalmente um esquisitão. Justamente porque o pobre não liga muita importância aos encantos do sexo frágil, toda mulher se acha no direito de lhe tesourar a pele. Aposto em como as tais estranhas histórias que você sabe vêm dos chás-dançantes. Não há como mulheres para inventar mistérios!...

       — Mas, Bill, ele “é” misterioso.

     — Tolices, Mollie. Ele apenas prefere fazer amizade com os oficiais franceses e odeia as mulheres, é a soma total dos seus crimes, que eu saiba. É esquisito, concordo, porém nada tem de misterioso, certamente. E quanto à última acusação... — o doutor riu e piscou o olho descaradamente para o Major Meredith — eu, pessoalmente, acho que ele tem muito juízo em se misturar somente com os do seu sexo, de espírito mais aberto e mais cultivado. Uf! — gemeu ele, sentindo o choque do chapéu da esposa sobre o peito.

     — Bill, você é muito irritante. Os homens são tão indiscretos quanto as mulheres.

     O Dr. Chalmers entregou-lhe o chapéu, com um cumprimento irônico.

     — Pode ser, minha cara, — retrucou com gravidade repentina, — mas em Argel não são os homens que falam indiscretamente sobre Carew. E durante o pouco tempo que ainda ficarmos nesta fornalha de intrigas, dar-me-á muito prazer, contradizendo, com minha autorização, todas as tolices que ouvir a respeito dele. É dos meus amigos. Tenho em grande conta a sua amizade e não desejo absolutamente vê-lo discutido hostilmente em minha casa.

     A Sra. Chalmers inclinou a cabeça à tempestade que inesperadamente provocara.

     — Desculpe, meu caro, — disse de modo contrito. — Não sabia que ele era realmente seu amigo. Durante todos estes anos que aqui temos vivido, você apenas lhe fez uma ou outra referência. Creio que os homens são as coisas mais esquisitas, — aduziu, com voz tão enigmática que produziu hilaridade nos dois ouvintes.

     O marido voltou-se e começou a encher o cachimbo.

     — Há ainda outros segredinhos que não contei à esposa de meu coração, — murmurou para atormentá-la, — mas seriamente, Mollie, deixe Carew de lado.

     — Muito bem, meu caro, — respondeu ela com surpreendente suavidade.

     E, por momentos, conservou-se silenciosa, com as sobrancelhas cerradas, espalhando a areia, distraidamente, com o cabo do açoite. Depois, de repente disse:

     — Mas onde há fumaça, há fogueira, Bill. Deve haver qualquer fundamento nas histórias que correm sobre ele. Ele é divorciado, ou tem alguma coisa desagradável assim, não é?

     — Pode ser que seja, — replicou o doutor indiferentemente, amassando o fumo no cachimbo com o polegar. — Não sei, nem me importa saber. Considero as pessoas como são e Gervásio Carew é um dos homens mais puros, sérios e honestos que tenho encontrado.

     O Major Meredith olhou com rápido gesto.

     — Gervásio Carew, — inquiriu de chofre, — Sir Gervásio Carew?

     O doutor encolheu os ombros.

     — Creio que sim, — disse reservadamente. — Conquanto me pareça que ele não tenha emprego algum para esse título. Apareceu aqui na Argélia. E se você tem alguma coisa de mal a dizer sobre ele, prefiro não ouvi-la, — aduziu asperamente, com súbito clarão de zanga nos olhos azuis ainda sonolentos.

     O Major Meredith, porém, não estava evidentemente ouvindo.

     — Desse modo, o seu Homem-Mistério, Mollie, é então Gervásio Carew! Meu Deus! Como este mundo é pequeno! Pobre e velho amigo Gervásio!

     Os olhos da Sra. Chalmers brilharam de excitação. Tocou impacientemente com a mão no ombro do primo e sacudiu-o vigorosamente.

     — Se não me contar alguma coisa mais explicita dentro de um minuto, Micky, terei um ataque de nervos. Não acho a menor graça em estar sentado aí olhando para diante como se tivesse visto algum fantasma e murmurando tragicamente “Pobre e velho amigo Gervásio”! Você tem simplesmente de me explicar toda a história. E se Bill não deseja ouvi-la, poderá ir arrear os cavalos. Já é tempo de darmos uma volta.

       Meredith voltou-se vagarosamente e fitou-a, apertando as pálpebras.

     — Dê a um cachorro um nome ruim e, depois, enforque-o, — proferiu ele com certo desdém na voz. — Pelo que você me diz. Molhe, parece que Argel tem estado a enforcar Gervásio Carew de modo positivo, e como ele foi em tempos o meu melhor amigo, penso que é meu dever explicar o que há. Não precisa ir-se embora, Bill, — ajuntou apressadamente, porquanto o doutor se tinha levantado, sufocando uma leve imprecação. — Você raras vezes se engana nos seus diagnósticos, meu velho amigo, e ainda desta vez não se enganou. Não é uma história muito comprida, nem, infelizmente, uma história fora do comum. Carew e eu fomos camaradas em Rugby, até quando obtive minha comissão e fui para a Índia. Quando ele tinha cerca de vinte e cinco anos de idade, logo depois da morte do pai e da sucessão ao titulo, casou-se. A moça, que era poucos anos mais nova do que ele, era a pior coisa que a sociedade podia produzir, artificial até a raiz dos cabelos. Passei com eles as minhas primeiras férias e detestei-a à primeira vista. Mas o pobre Gervásio estava cegamente apaixonado. Adorava o chão que ela pisava. De fato, era linda como os amores, um desses tipos de compleição pálida, cabelos cor de ouro, que provocam paixões ardorosas e repentinas, mas Gervásio ainda não lhe tinha tocado. Mental e moralmente, ele estava léguas acima dela. Ela era incapaz de apreciar a beleza do caráter dele e ele estava longe de suspeitar toda a falsidade da esposa. O amor dele não a satisfez e, embora bastante esperta para esconder, namorava desavergonhadamente todos os homens que iam à sua casa. Ansiava por ser adulada, requestada. Qualquer um lhe servia. Até comigo tentou, logo no primeiro dia da minha chegada, mas não era à toa que eu tinha o curso de 5 anos na Índia, de modo que acabou por me odiar tão sinceramente quanto eu a desprezava. Nessa época, estalou a guerra sul-africana e eu fiz tudo que pude para seguir para o “front”, mas me mandaram novamente para a fronteira. E Gervásio, que sempre tinha desejado ser soldado, e fora compelido a se contentar com o posto de oficial da guarda do Rei, estava no sétimo céu, pobre amigo! Conduziu para a colônia do Cabo uma tropa, na maioria composta de gente do seu estado. Nove meses depois, voltou inválido para a Inglaterra, para saber que sua esposa tinha achado consolo, durante a sua ausência, num conde austríaco, ilustre desconhecido, e fugira com o pirata, deixando um tenro bebezinho. A criança morreu na mesma noite em que Gervásio chegou a casa. Ouvi toda esta história de um amigo comum. Durante algumas semanas ele ficou apatetado e incapaz de qualquer resolução. Achava-se muito enfraquecido, por causa do ferimento; e o duplo choque da falta de fidelidade da esposa, e a morte do filhinho, o pobre amigo tinha se apegado ao pimpolho, foi muito grande. Depois ficou conformado, porém mudou inteiramente. Divorciou-se para que a mulher pudesse casar com o homem com quem tinha fugido e, seis meses depois, desapareceu. Isto foi há uns dez ou doze anos, e desde então jamais lhe pude saber o paradeiro. Esta a história de Gervásio Carew, Mollie. Não posso naturalmente explicar porque evita os ingleses, e só digo que sempre foi um camarada muito sensível. Penso, porém, que a sua atitude agora para com as mulheres é muito compreensível. Houve uma só mulher no mundo para ele, e essa o abandonou.

     Estabeleceu-se grande silêncio depois que o militar terminou a narrativa. A Sra. Chalmers ficou comovida, limpando sorrateiramente as lágrimas que lhe brotaram dos olhos.

     — Queria ter sabido disto antes, Micky. Sinto-me diminuída aos meus próprios olhos, — disse afinal, fervorosamente, lastimando-se.

     — Pode ser! — resmungou o marido, um tanto secamente. E dirigiu-se para os cavalos.

     O Major Meredith, que se preparava para segui-lo, ficou por um momento ao lado da prima, que também, se levantara.

     — Não é preciso acrescentar, Mollie, que tudo o que contei deverá ficar entre nós. Apenas desejei mostrar a você e a Bill quem é Carew. O que o resto de Argel poderá pensar dele me importa tanto como o ferro velho da oficina de um caldeireiro. Desejava muito ver o meu pobre e velho amigo, porém, como estou de partida amanhã, creio que não me será possível.. Entretanto, sei agora onde está, que é mais do que eu esperava.

     A Sra. Chalmers acompanhou-o, pensativa, para o bosque das oliveiras, onde o doutor, com todo o bom humor que já voltara, estava atarefado, arreando os cavalos.

       Montaram e desceram devagar a vertente da colina, escolhendo cuidadosamente, o caminho por entre as pedras, galhos e moitas de cactos até chegarem a um estreito caminho que volteava, aqui e ali, ao pé da montanha, a poucos pés acima da pequena ravina que a separava do resto da serra.

     A estrada era agora bastante larga para dois cavalos, e o doutor adiantou-se uns passos, deixando a esposa seguir com o primo.

     A Sra. Chalmers não se referiu mais à história que tinha ouvido momentos antes, pensando que Meredith não tocaria no assunto; mas papagueava a respeito das paisagens por onde caminhavam.

     — Estas montanhas são um verdadeiro labirinto — explicou ela com um brusco movimento do chicotinho e que teve o efeito de espantar o cavalo, até então um modelo de comportamento. Refreou-se com dificuldade.

     — Esqueci-me de que não devo fazer isto. O Capitão André me disse uma vez que este cavalo não tolera nem uma chicotada nas orelhas, — disse rindo. Alguns desfiladeiros são mais amplos do que este, e constituem muito bons acampamentos — continuou depois de ter feito uma carícia à sua sensível montaria. — Muitas vezes, em caminho para Argel, um sheik estabelece acampamento aqui. São extraordinariamente interessantes, especialmente os que vêm do extremo sul, selvagens criaturas, com hordas de ferozes prosélitos que parecem pensar apenas em matar só pela graça que isto deve ter. Mas são todos muito amáveis conosco: gostam dos ingleses. Tenho vergonha de dizer que, durante todo esse tempo, aprendi muito pouco da língua árabe mas, quando os encontro, esboço um sorriso e digo “anglaise” [inglesa]. Eles ficam muito satisfeitos, fazem-nos “salaams” [cumprimento árabe: uma reverência profunda colocando a palma direita na testa], caretas e tagarelam como pegas. Depois, voltamos outra vez, andamos a cavalo milhas e milhas e não conseguimos ver nem viva alma.

     — É isto mesmo o que se pensa na fronteira, mas os miseráveis estão ali todo o tempo e andam muito direitos — disse Meredith com um sorriso. — Você vai seguindo por um caminho que pensava ser tão seguro como sua casa, e daqui a pouco, bum! aí ver uma bala roçando-lhe a cabeça. Se eles não fossem tão maus atiradores, eu, por exemplo, já teria embarcado para o outro mundo há muito tempo.

     Riu despreocupadamente; e a Sra. Chalmers relanceou-lhe um olhar de curiosidade, sentindo-se maravilhada, como muitas vezes na última quinzena, pela vida de aventuras que alguns homens levavam ali, e a indiferença fatalista que esse modo de vida produz. Durante sua curta visita, ela tinha ouvido, entre o assombro e a curiosidade, a narração relutante do primo sobre os próprios feitos na fronteira.

     Para Meredith isso era o grande jogo. Agora, quase de repente, ela imaginava o que seria ele capaz de fazer pela mulher com quem se casasse.

     — Não acho, afinal de contas, Micky, que os homens como você devam casar — disse ela pensativamente.

       Meredith riu do tom de lástima da sua voz, porquanto era notório o seu pendor para casamenteira.

       — Disso eu estou certo, — replicou.

     E a Sra. Chalmers foi obrigada a rir, com ele, bem contra a vontade.

     Foi impossível, porém, continuar a conversa. O caminho acidentado, por onde seguiam, tornava-se cada vez mais estreito e menos perceptível até que, abruptamente, desapareceu, e os cavalos desviaram-se e escorregaram em direção ao álveo rochoso do curso de água existente ao fundo do desfiladeiro. O vale levava direito ao sul e o Dr. Chalmers, que caminhava a certa distância na frente, já desaparecera de vista, atrás de um ângulo saliente de rocha, onde a montanha fazia uma volta inesperada. Prosseguindo um atrás do outro, chegaram à curva e depois de contorná-la bem junto à escarpa do rochedo, emergiram num largo vale, menos acidentado e que se espraiava ao longe pelas montanhas acima, até o outro lado, onde havia campo aberto. Cerca de um quarto de milha mais além, à entrada do vale, o Dr. Chalmers os esperava. Trepando pela ribanceira para fora do leito do rio, esporearam os cavalos galopando até perto dele, e quando estavam a chegar, ele lhes acenou vigorosamente.

     — Você está de sorte, Micky — exclamou — eis ali o seu homem.

     Seguindo-lhe a direção do indicador, viram um magote de cavaleiros galopando para as montanhas. O chefe, que cavalgava um pouco adiante da escolta, distinguia-se dos seus sequazes, envoltos em brancas túnicas, por um albornoz de pano azul, bordado, que o envolvia em dobras infladas ao vento. Um pouco agitada, a Sra. Chalmers relanceou a vista para o lado do primo, e pensou decididamente, pela segunda vez naquele dia, que os homens são criaturas bem estranhas. Nunca fazem o que se espera. Menos de uma hora antes, Micky tinha formulado o veemente desejo de se encontrar com o velho amigo de juventude. Agora, que esse desejo podia ser inesperadamente satisfeito, era de se esperar que a sua intenção assumisse forma visível. No entanto, ele ali estava, rígido na sela do cavalo arquejante, franzindo a testa à aproximação dos cavaleiros, mordendo o lábio inferior sob o bigode castanho aparado, num estado de hesitação evidente.

     Foi o Dr. Chalmers quem cavalgou à frente e acenou com a mão, num gesto acompanhado de uma exclamação amigável. E, por um momento, pareceu que a saudação passasse despercebida. Os cavaleiros estavam quase em frente deles, correndo num galope desenfreado e, mais alguns instantes, teriam passado adiante. Então, com um forte tranco que fez o lindo baio estacar e voltear nas pernas traseiras, traçando uma alta pirueta, o chefe sofreou repentinamente a montaria.

     Era entre os árabes uma proeza comum que tinha sido vista pela Sra. Chalmers muitas vezes, mas nunca presenciou tal feito sem sobressalto. Teve um suspiro de alívio quando o cavalo estacou sem os terríveis corcovos que já tinha visto uma vez e temia presenciar de novo. Sentia embaraço na presença do homem cuja misteriosa personalidade tinha tão livremente discutido no círculo de suas relações durante estes últimos cinco anos, mas que, agora, lhe aparecia sob aspecto novo e muito diferente. O seu coração impulsivo e caloroso tinha sido tão afetado pela história de Micky Meredith que uma onda de desconforto a invadiu quando pensou nas histórias absurdas e tolas que corriam a respeito de Carew e a que ela dera guarida. Decidiu-se protelar o inevitável encontro com o tão criticado Homem-Mistério, até que os cumprimentos e explicações entre os dois velhos amigos tivessem terminado. Deixando Meredith adiantar-se só, ficou para trás, sob pretexto de arranjar o vestido e, por minutos, curvou-se sobre a saia, que, aliás, nada tinha de desarranjada, puxando-a e sacudindo-a, enquanto o seu ginete, fatigado, rodopiava e resistia impacientemente à parada forçada. Depois, adiantou-se com desusada desconfiança para se juntar aos três homens que, já desmontados, estavam entretidos em animada conversa. Eles silenciaram quando ela se aproximou; e Meredith fez a apresentação.

      Em resposta ao cumprimento murmurado pela Sra. Chalmers, o homem alto, de aparência tão pitoresca, que se tinha voltado para ela, quase com relutância, respondeu brevemente e curvou-se com uma grave e séria indiferença, que condizia com a vestimenta árabe que trajava. Ela teve a rápida visão de um rosto fino, moreno e barbeado, um par de olhos azuis e sombrios que não se encontraram bem com os dela. A voz benevolente do marido quebrou o silêncio ameaçador:

     — Sir Gervásio está acampado na vizinhança, Mollie. Ele deseja que Micky espere até a chegada do último trem. Teremos de nos apressar, porque prometi chegar a Argel esta tarde. — explicou, preparando-se para tornar a montar. E ajuntou: — Seu trem sai de Blidah às 11 horas, Micky. E, Carew, o cavalo é de André. Trate de levá-lo direitinho para a estrebaria, sim? Está pronta, Mollie? Então tome conta do seu animal, senão teremos de correr-lhe atrás.

     O doutor e Mollie afastaram-se; Meredith acompanhou-os com a vista e uma expressão brejeira. A diplomacia de Bill teria sido digna de melhor causa. Voltou-se, então, para o companheiro.

     — Aquilo é um tipo de primeira! — disse enfaticamente.

     Mantendo silêncio, o seu interlocutor não parecia disposto, na ocasião, a discutir os méritos do Doutor Chalmers. Inclinou a cabeça levemente e fez sinal aos criados para lhe trazerem o fogoso baio, que fora conduzido para junto dos outros cavalos.

     Trotando lado a lado, Meredith tentou descobrir nesse indivíduo grave e taciturno alguns traços daquele Gervásio Carew, tão alegre e feliz outrora. Imaginou que poderia não tê-lo reconhecido, se o encontrasse só. Carew, no entanto, o reconhecera à primeira vista, embora isso lhe fosse relativamente fácil, pois os anos não o tinham transformado muito, ao passo que, para Meredith, o rosto do seu velho amigo se tinha tornado o de um estranho, de linhas duras, quase completamente remodelado e até com contornos que pareciam diferentes. Outras mudanças se foram evidenciando. A impaciência tumultuária, de que muito bem se lembrava Meredith, tinha cedido lugar a uma calma imperturbável, bem mais oriental que européia. A dignidade e firmeza do seu porte atual contrastavam radicalmente com o ar impulsivo e jovem de outros tempos. Nada remanescera do anterior Gervásio Carew e este Gervásio de agora parecia relutar em se deixar identificar. Também os laços da antiga amizade, interrompidos por tanto tempo, tornavam-se difíceis de reatar. Mas Micky Meredith, educado na escola da paciência, alegrou-se, deixando que as coisas seguissem o curso natural. Já era de bom augúrio que o homem houvesse manifestado o desejo da sua companhia; o resto era questão de tempo.

     Durante meia hora de trote rápido, Gervásio Carew descerrou os lábios para falar apenas uma vez. Voltou-se e olhou com ar entendido para a montaria de Meredith.

     — Devemos deixá-los seguir o caminho? — disse vagarosamente, com certa hesitação na voz, como se a língua-mãe já não lhe fosse familiar. — Os cavalos de André têm boa reputação.

     Galopando agora, lado a lado, em direção ao Norte, pela região entrecortada de caminhos que marginavam o sopé das montanhas que estavam contornando, Meredith ficou contente de ver que, pelo menos, um interesse tinha subsistido em meio à derrocada. Carew fora sempre bom ginete, amante de cavalos. Agora parecia sê-lo mais do que nunca. E como o oficial reparasse atentamente no magnífico animal montado pelo companheiro e, volvendo rapidamente um olhar para trás visse toda a escolta galopando-lhe ruidosamente no encalço, decidiu consigo mesmo que não eram só as cavalariças do muito cortês capitão de cavalaria de Blidah que deviam ter alguma reputação na redondeza. Era um dos restantes laços de simpatia, — refletiu ele e, deliberou cavalgar daquela vez como raramente havia feito na vida.

     O cavalo emprestado correspondeu-lhe briosamente ao esforço pedido, mas o galope era demasiado esfalfante. O pêlo acetinado do pescoço do animal já estava se tornando escuro. Lutando para acompanhar a marcha do baio, que não mostrava o menor sinal de cansaço e até parecia mais refreado do que estimulado pelo seu cavaleiro, o suor lhe escorria do corpo todo. Também suando em bicas, Meredith não sentiu desgosto quando, a uma curva inesperada da encosta, apareceu aos seus olhos um pomar deserto onde espraiava o acampamento de Carew por entre laranjeiras.

     A grande tenda dupla do proprietário estava plantada a certa distância, separada das outras do séquito. Estas se achavam em uma clareira onde outrora deviam ter sido construídas as casas da fazenda. E tudo ao redor eram cavalos e camelos, amarrados ou à solta. Um pequeno exército de árabes, languidamente ocupados nos vários afazeres do campo, ou indolentemente acocorados, discutia questões intermináveis.

     A volta do chefe, porém, despertou repentina e espontânea atividade; e Meredith notou, com um sorriso de aprovação, evidentes indícios de disciplina e autoridade. Moços de estrebaria, que vadiavam perto da tenda maior, saltaram para as rédeas dos animais; e o oficial saltou da sela com um pequeno suspiro de alivio, enxugando o rosto com um lenço de seda.

     — Você sempre costuma andar nesse passo? — perguntou, sorrindo.

     Carew, que afagava o majestoso baio, voltou-se.

     — Quase sempre — retrucou; — é mau hábito que se adquire no deserto. Mas é que sempre tive vontade de cotejar Suliman com este cinza de André. Ele o teria batido desde o princípio — ajuntou, com leve sorriso. — Entre e vamos tomar um aperitivo. E encaminhou-se para a entrada da tenda, na qual se penetrava por uma cortina fixada por duas lanças e entrou na semi-obscuridade do interior.

     Meredith lançou rápido olhar ao redor e com certo interesse. O mobiliário custoso e espalhado era quase todo originário da região. Uma mesinha de campanha e uma cadeira espreguiçadeira eram as únicas concessões feitas ao gosto europeu e pareciam desproporcionadas em conjunto com os baixos tamboretes embutidos, com as risonhas esteiras de seda bordadas, confecção puramente árabe. No meio do aposento, via-se um largo divã, amontoado de grandes almofadas cobertas por duas peles de leopardo. Cortinas de seda rendadas e bordadas a ouro pendiam na entrada do cômodo interior, que servia de quarto de dormir.

     A primeira vista, Meredith pensou que a tenda estivesse vazia. Mas à proporção que seus olhos se acostumavam à suave claridade do interior, percebeu, num canto, a esbelta silhueta de uma criança, sentada no chão, balançando-se gentilmente de um lado para outro, com uma bela carinha soerguida em extasiada devoção, escorrendo mansamente por entre os dedinhos morenos as contas de um rosário. Os espessos tapetes que cobriam o chão tinham amortecido o barulho dos passos, de modo que, por momentos, a entrada dos dois homens na tenda passou despercebida. Então Carew deu alguns passos e bateu com o pé num pequeno jarro de bronze que caíra dum tamborete. A esse barulho, o garoto parou de se balançar e permaneceu atento, à escuta, com o rosto ansioso voltado para eles. Com um gritinho de alegria, atirou o rosário para longe e, levantando-se rapidamente, atravessou, correndo, o aposento, com as mãos estiradas para diante. Uma grossa almofada de matizes claros se destacava perfeitamente na tapeçaria escura, bem no caminho; ele tropeçou sem vê-la e caiu de comprido sobre ela, antes que Carew pudesse agarrá-lo. E como Meredith observasse aquele homem alto curvando-se para a figurinha vestida de branco, viu os traços da sua fisionomia se tornarem excessivamente ternos e ouviu o tom gentil dessa voz, murmurando palavras de afeto num árabe rápido e suave. Lembrou-se, então, com desgosto, das “esquisitas histórias” às quais se tinha referido a Sra. Mollie Chalmers. Então, era aquela a solução do longo retiro de Carew no deserto? Para o anglo-indiano, com seus enraizados preconceitos, a suposição era repulsiva. Parecia-lhe uma espécie de crime. No entanto, não havia desculpa? Um súbito sentimento de piedade lutou com a repulsa que ele sentia, ao relembrar a devoção de Carew pelo filhinho, e a tragédia que o roubara ao seu afeto. Teria o ardente desejo de paternidade, outrora tão forte, sobrepujado nele as restrições raciais e a misoginia que lhe eram imputadas agora?

     Meredith sentiu bastante alívio quando esses desencontrados pensamentos foram interrompidos. O rapazinho levantara-se novamente, falando com excitação, mas Carew impôs-lhe silêncio, tocando-lhe o ombro com a mão.

     — Trouxe um hóspede, Saba, — disse em francês, — cumprimente o lorde inglês e vai dizer a Hosein para trazer depressa os refrescos.

     Imediatamente o garoto se tornou reservado e dirigiu-se para a porta, curvando a figurinha flexível em profundo “salaam”. Depois, com ligeiro movimento, levantou o rosto para Meredith, com uma expressão de curiosidade e incerteza. Olhando diretamente para os belos olhinhos escuros que se voltavam aos seus, o soldado viu a razão daquele violento tombo de ainda há pouco e uma exclamação involuntária lhe escapou dos lábios. Dirigiu um olhar interrogativo para o amigo.

     Carew fez leve sinal de cabeça.

     — Sim, é cego, disse em inglês, mas você não precisa ter pena dele. Nunca viu outra coisa a não ser a escuridão, e considera-se verdadeiramente feliz, esse diabinho.

     E, puxando suavemente o garoto para ele, colocou.-lhe o rosto em direção à porta e esperou até que ele achasse o caminho para fora da tenda.

     Depois, empurrando a espreguiçadeira, pôs cigarros ao alcance do hóspede. Entre uma nuvem de fumaça, Meredith falou com evidente constrangimento.

     — Estou sinceramente penalizado — começou desastradamente, e alguma coisa na sua voz fez com que Carew se voltasse de chofre para ele. Por momentos seus olhos sombrios pousaram no rosto embaraçado do militar; depois abanou a cabeça com grave sorriso e um pequeno traço de amargura.

     — Não é o que você pensa, — disse vagamente, — conquanto eu admita o pensamento como muito natural. Ele não é meu... e algumas vezes peço a Deus que assim fosse. É o que se pode chamar “uma coisa perdida”, apanhada no deserto a cinco ou seis milhas para o sul. Achei-o há seis anos, quando estava ajudando uma expedição árabe, debruçado sobre o cadáver da mãe, gemendo como um gatinho desmamado. Não poderia ter mais de um ano de idade. Tomei conta dele desde então, e penso que não poderei passar agora sem esse garotinho. É muito interessante e enche o meu tempo, quando não estou ocupado. E o caso é que me distrai completamente com o seu espírito tão agudo como uma agulha, principalmente quando se apodera dele certa disposição de ânimo que o torna tão esperto na malícia como qualquer rapazinho que tenha o uso perfeito da visão. Mas, agora, falemos de você. Está ainda na fronteira?

     Desejando ansiosamente renovar a antiga amizade, Meredith deixou-se levar e falou, como nunca, da sua vida na fronteira indiana. Mal e aos sobressaltos no começo, sucessivamente mais disposto, discorreu sobre os anos de trabalho estafante que lhe tinham tomado todo tempo e energia, as jornadas perigosas e meses passados em se disfarçar entre as tribos selvagens do Norte; sobre escapadas milagrosas e estranhas experiências, sobre os períodos chamados de férias, mas que para um homem interessado no seu serviço e absorvido nas suas ocupações, apenas significam trabalho sob diferentes formas. Durante uma hora ou mais, ouviu-se essa voz pausada, até que as sombras da noite, cada vez mais profundas, tornaram maior a escuridão da tenda e Carew, sentado à moda árabe sobre o divã, se tornou quase invisível, e somente a ponta faiscante do cigarro lhe revelava a presença. Depois do primeiro ataque, Meredith achou-o curiosamente acessível à palestra e também bastante perspicaz. Por um ou dois comentários, Meredith viu que a vigia da fronteira não lhe era coisa nova, e tal suposição tornou sua própria história mais fácil de ser relatada. Parou, afinal, e apanhou os fósforos que estavam ao seu lado.

     — Isto quase me pôs de lado — disse, acendendo um cigarro.

    Carew levantou-se e, dirigindo-se à porta da tenda, bateu palmas.

     — Você está fazendo um belo trabalho, Micky — disse, voltando-se vagarosamente para a obscuridade. — Você acabará no Conselho Indiano, caso não se oponha, — ajuntou, quase com o tom antigo de caçoada.

     — Se não acabar com uma bala nos miolos, o que é muito provável — retrucou Meredith com uma gargalhada cortante e os olhos ofuscados pelo brilho dos lampiões acesos, que estavam sendo trazidos para a tenda.

     Durante a refeição, que se seguiu, a conversação versou quase toda sobre a Argélia. Mas Carew apenas discorreu sobre a região, suas condições locais, sua gente e as distrações que lhe proporcionavam. Quanto à sua vida privada, nada deixou escapar. Nem também se referiu aos velhos dias, quando a amizade recíproca lhes tinha sido tão cara! O passado lhe era, evidentemente, um livro lacrado, que não tinha absolutamente a intenção de reabrir. Uma observação tentada ao acaso por Meredith não obteve resposta, e foi só mais tarde que, sentados na escuridão, sob o toldo que cobria a porta de entrada, o soldado conseguiu proferir a pergunta que tinha em mente durante toda a tarde. Havia minutos que estavam sentados, fumando em silêncio, o olhar vagueando pela planície enluarada, ouvindo os barulhos atormentadores do acampamento e o rítmico rumor de um tímbale ao longe, entre as laranjeiras. Uma leve brisa ciciante, impregnada de esquisito aroma, bafejava-lhes as faces; e Meredith teve, nessa ocasião, a impressão nítida dos jardins perfumados de Kashmire. Voltou-se na cadeira para ver melhor o céu estrelado, e deixou cair a pergunta que há tanto tempo lhe queimava os lábios.

     — Por que não me escreveu, meu velho?

     Por muito tempo não se ouviu a resposta esperada e, mentalmente, ele se considerou um estúpido de marca maior. Então, a voz profunda de Carew, mais profunda do que usualmente, ouviu-se na escuridão.

     — Não pude. Tentei uma vez... mas pareceu-me que nada tinha a dizer. Esperei, pois, que você tivesse compreendido.

     Meredith moveu-se na cadeira, incomodado.

     — Fiquei... terrivelmente penalizado, — murmurou asperamente.

     Carew acendeu vagarosamente outro cigarro.

     — Não desperdice sua simpatia comigo, Micky, — disse ele, com uma gargalhada cortante e repentina. — Uma vez fiz uma asneira, mas aprendi a lição e muito bem.

     Outro silêncio prolongado. De súbito, Meredith perguntou:

     — E por que escolheu a Argélia?

     Carew encolheu os ombros.

     — Tinha de ir para qualquer parte. Com suas recordações, a minha casa era um verdadeiro inferno que eu não podia suportar. Fiz-me de covarde e fugi para longe. Quando eu era criança e mesmo já rapaz, meus pais costumavam passar o inverno aqui na Argélia. Eu gostava do país. Pareceu-me, pois, que este fosse o lugar naturalmente escolhido para onde eu devia vir de qualquer modo.

     Calou-se. Quando retomou a palavra, foi numa voz inteiramente diferente para Meredith.

     — O deserto, Micky, é um lugar maravilhoso — disse, com ar de quem estava sonhando. — Se você for bastante longe e ficar por muito tempo, ele se apodera, por fim, de você. Já se apoderou de mim. Creio que nunca mais o deixarei. Venho a Argel de vez em quando, mas nunca passo aqui muito tempo. Volto sempre depressa. O deserto me prende como jamais coisa alguma no mundo. O seu mistério, o seu encanto, sempre novo, e nunca o mesmo, varia todos os dias. E os seus aspectos, Micky, Deus do céu! Ora a paz de um céu sem nuvens, ora a fúria infernal de uma tempestade! Belo e horrível, impiedoso e fascinante. E, seja como for, a gente se esquece da crueldade, e só pensa na beleza das coisas, a beleza das suas maravilhosas solidões, das suas assombrosas vastidões!

     — E aí, que faz você?

     Meredith não tencionava absolutamente parecer indiscreto, mas, nestes últimos minutos, tinha tentado, aliás sem êxito, imaginar o velho amigo neste meio que lhe parecia tão incongruente. Gervásio e a solidão! Como lhe parecia incrível tudo isto, ao se recordar das reuniões constantes em Royal Carew, da multidão de homens e mulheres prazenteiras e amantes do esporte, e dos quais o Gervásio dos velhos dias se rodeava, reunindo-os em sua casa! E, no entanto, perguntou de novo com perplexidade crescente:

     — E que faz você? — E admirou-se de que Carew não o mandasse para o diabo. Mas, a resposta que ele apenas esperava não veio claramente.

     — Que faço eu? — repetiu Carew lentamente. — Esta foi a questão que propus a mim mesmo quando cheguei à Argélia, quando me parecia que chegara ao fim de tudo: “que farei?” Minha primeira viagem ao deserto resolveu a questão rapidamente. Sempre tive muito interesse pelos árabes, aprendi sua linguagem ao mesmo tempo que aprendi o francês, mas apenas conhecia os árabes das cidades. De forma que me dirigi para o sul, a fim de ter noção exata do que seria a vida no deserto. Encontrei alguns velhos sheiks que costumavam vir a Argel quando eu era rapaz e ainda se lembravam de meu pai. Isto me facilitou muito a tarefa, e eles conseguiram introduzir-me em regiões onde, de outro modo, nunca poderia ter penetrado. Vi mais coisas do que esperava. Comecei as minhas peregrinações sem outro objetivo além da curiosidade, e um grande desejo de me afastar dos negros pensamentos naquela época. Até então, nunca me ocorrera que tivesse tido vida inútil. Nunca pensei até aquele momento que uma alma neste mundo pudesse sentir-se melhor pelo fato de que eu existisse. Lá longe, porém, no deserto, essa necessidade que clama forçou-me a pensar, pois esse insensato desperdício de vida, esse horrível e desnecessário sofrimento me assombraram. Tinha consciência de que um homem só não poderia fazer muito, apenas alguma coisa. Não levei muito tempo a tomar uma resolução. A vida passada tinha completamente ficado para trás. Eu ansiava por uma nova vida que me desse tempo para pensar, e me proporcionasse uma oportunidade de ajudar, de qualquer maneira, aquela gente que tinha despertado em mim certo interesse. Fui a Paris e estudei medicina, especializando-me em cirurgia. Tirei diploma. Passei, depois, cerca de seis meses na Suíça com um homem, uma espécie de bruto, mas um mágico no bisturi, e voltei para a Argélia. Eis ai o que faço, Micky.

     Meredith suspirou profundamente.

      — E sabe que isso é também uma coisa formidavelmente boa? — disse ele sinceramente. E, estendendo o longo braço, apertou fortemente o ombro do companheiro a ponto de lhe causar uma sensação dolorosa. — De modo que é isso que você faz no deserto quando desaparece por meses de tempos a tempos, não é? — disse gravemente, com

curiosa expressão de alívio na voz e certo sentimento de desgosto por si próprio, ao se recordar das suspeitas a que tinha sido forçado a dar guarida na manhã daquele dia. — E provavelmente anda tudo às mil maravilhas? — sugeriu, depois de pequena pausa.

     — Longe disso, — retrucou Carew — mas depende do distrito, naturalmente. Quase sempre os miseráveis são bastante agradecidos; e me dirijo para onde bem entendo. São, porém, gente de natureza muito desconfiada, e ainda há lugares onde não consegui entrar por preço nenhum. Acreditam que o meu trabalho é apenas um pretexto e que, na realidade, sou espião do Governo.

     — E você o é?

     — Oficialmente não. Mas em certas ocasiões vejo e ouço coisas que o Governo deve saber; este é um país difícil de se administrar e, por vezes, o Governo faz uso das minhas observações e conhecimento. Tenho agido como intermediário em mais de uma negociação com tribos distantes, onde seria impossível enviar um agente acreditado, a não ser com um regimento para garanti-lo, o que sempre termina em luta, que aliás o Governo deseja evitar, já há bastante inquietação no sul para que seja necessário despertar maiores incômodos — ajuntou, voltando-se para falar com um árabe de aparência taciturna, que se tinha aproximado subitamente, proferindo, em voz baixa, uma frase de desculpa.

     O relincho de um puro sangue e o barulho de ferraduras que escarvavam a terra com impaciência deram a entender a Meredith a explicação dessa interrupção.

     — Já é tempo? — perguntou ele com pena, seguindo Carew para dentro da tenda. — Por Júpiter! Como já é tarde; — exclamou, olhando rapidamente para o relógio — poderemos chegar a Blidah às 11 horas?

     — Não pelo caminho por que Chalmers o trouxe — replicou Carew com um leve sorriso, envolvendo-se no pesado albornoz que um criado lhe ajustava aos ombros. A mesma escolta que tinha vindo com eles nessa tarde estava a postos, mas ele a dispensou e, sozinhos, os dois homens cavalgaram pela planície iluminada pelo luar da África.

     Durante certo tempo conservaram-se silenciosos. Carew havia, aparentemente, chegado ao limite das suas confidências e Meredith não demonstrava a menor vontade de interromper esse silêncio. Fora um encontro muito interessante como também a renovação de uma velha amizade, mas apoderara-se do soldado a dúvida penosa sobre se não teria sido melhor que nenhuma lembrança da vida passada tivesse vindo despertar a paz de espírito que aparentemente seu velho amigo tinha conseguido encontrar no deserto. A presença dele já deveria ter sido motivo para despertar na memória de Carew muitas recordações do passado. E por quanto tempo ainda esse passado o perseguiria? Então, ele nunca teria lastimado a sua bela propriedade na Inglaterra, onde tinham vivido diversas gerações dos Carew, desde os dias da Rainha Virgem, cuja visita, durante uma viagem, tinha dado o nome ao castelo. Meredith tinha tais recordações de Royal Carew que a lembrança da majestosa casa, que conhecera tão cheia de vida e felicidade, agora desolada, vazia e esquecida no meio do belo parque, lhe trouxe uma impressão de profunda mágoa.

     — E você não voltará mais, Gervásio? — perguntou involuntariamente.

     — Voltar para onde?

     — Para Royal Carew.

     Carew sacudiu a cabeça.

     — Já lhe disse que acabei de vez com a vida passada — respondeu ele, com ar fatigado. — Royal Carew pertence ao passado e... o passado está morto para sempre. E mesmo que quisesse, eu não poderia voltar agora. Deixei a casa com o meu primo. É meu herdeiro e, de qualquer modo, a propriedade iria parar às suas mãos algum dia. Foi melhor para ele ocupá-la enquanto está moço, pois, assim, poderá gozá-la mais. Além disso, é negócio muito ruim esperar por sapatos de defunto, — resumiu com uma risota.

     Galopavam, agora, por uma região ondulante onde as cristas dos morros estavam tão claras como dia, e os minúsculos vales davam a impressão de charcos de água massa e escura. Chegando ao vértice da mais alta colina que tinha encontrado até aquele momento, Carew refreou a velocidade do cavalo, atirando ao companheiro uma palavra de aviso.

     — Há uma pequena vila deserta neste vale — disse apontando pata a escuridão lá em baixo; — tenha cuidado como anda, é lugar um pouco complicado durante a noite. Se acontecer alguma coisa, fique firme e deixe que eu fale só — ajuntou de modo significativo. Esporeou o baio e Meredith via, a alguns passos, que ele levava a mão sob o

chalé de seda que lhe enfaixava a cintura. Era uma vila deserta e, no entanto, Carew segurava o cabo do revólver.

     Com um trejeito, Meredith segurou firmemente as rédeas do cinza do Capitão André. Já passara por muitas outras vilas desertas, na Índia.

     — Para diante — disse jovialmente; e seguiu o companheiro, de perto, pela longa encosta.

     O vale se apresentava mais profundo do que os outros que tinham atravessado até então, batido aqui e ali por manchas de luar que se coavam através das trevas. Chegaram à vila mais depressa do que Meredith pensava e, ao escolher o caminho por entre as vielas desertas a passo vagaroso, Carew olhava atentamente em redor, com um vago sentimento de agradável excitação. Nem o mais leve ruído, porém, quebrava a quietude da região; e nenhum vulto furtivo apareceu, espiando por entre os casebres arruinados; nada enfim que justificasse o conselho de Carew. Subitamente, o cinza chocou-se com um monte de pedras de alvenaria, abandonadas no meio da rua; até saírem da vila, Meredith prestou toda a atenção ao cavalo emprestado. Mas quando estavam mais uma vez correndo pela planície e as luzes de Blidah já apareciam tremeluzindo à distância, virou-se para Carew, com ar de interrogação.

     — Que podia ter acontecido? — perguntou com curiosidade.

     — Qualquer coisa — o seu assassínio, provavelmente, — se você estivesse só.

     Meredith riu, pelo tom natural com que isto era dito.

     — Muito saudável este lugar para um passeio a cavalo, à meia-noite!

     — Ganham-se três milhas — replicou Carew, calmamente.

     Meredith ergueu a cabeça e riu a bandeiras despregadas.

 

     Já tinham se escoado alguns momentos desde que o trem partira aos solavancos da estação, levando o Major Meredith de volta para Argel, e ainda Carew permanecia absorto na plataforma deserta e pouco iluminada àquela hora. Correspondendo com leve aceno de cabeça ao cumprimento do chefe da estação, um mestiço obsequioso, dirigiu-se vagarosamente para o sítio onde os cavalos o estavam esperando, sob a vigilância de um garoto cabila, que tinha escolhido na malta heterogênea de desocupados, que se costuma ver à porta desses lugares. Fez um sinal ao rapaz para segui-lo com o cavalo do Capitão André, e dirigiu Suliman a trote para a cidade. Entrando pela porta Es-Sebet, tomou a direção do quartel onde se achavam as cavalariças. Apesar da hora adiantada, os numerosos cafés, com os deslumbrantes bicos de gás e com o seu luxo de mau gosto, mostravam grande movimento. Os salões achavam-se literalmente atulhados de uma incessante corrente de humanidade cosmopolita: árabes de aspecto grave, movimentando-se lentamente, judeus servis, de olhar furtivo, dando humildemente passagem a todos os que os acotovelassem, franceses loquazes como papagaios; todos, enfim, a se empurrarem indistintamente. Até mesmo a rua estava invadida por essa multidão: bandos de zuavos [soldados de infantaria argelinos], de braço dado, faziam um sarilho medonho, inconscientes do tráfego, esgoelando com vigor as últimas canções de “music-hall” sem melodia alguma, e dirigindo, em altas vozes, pesados ditos aos transeuntes.

     Naquela noite Blidah parecia estar em festa, mais ruidosa e bramindo mais do que nunca. Para Carew, que viera recentemente do deserto, onde estivera cerca de um ano, tal espetáculo era completamente insípido. Não lhe era novo, porquanto vários anos passados na Argélia o tinham familiarizado com o aspecto noturno das cidades onde se aquartelavam as guarnições, e nem mesmo estava, naquele momento, disposto a se interessar ou divertir com o que via. Nos seus bons tempos, Blidah nunca lhe caíra muito em graça e, além disso, já estivera ali naquele dia.

     Chegando às cavalariças, entregou o cavalo cinza do Capitão André ao criado sonolento que o esperava e, despedindo o garoto cabila, voltou-se com um suspiro de alivio em direção a Bab-el-Rabá. Depois de atravessar a porta, tomou a estrada de leste, tencionando voltar pelo mesmo caminho por onde trouxera o Major Meredith. Fora da cidade, Suliman, de moto próprio, partiu no galope largo a que estava acostumado e, por momentos, Carew deixou-o nesse andar. Bem depressa, porém, puxou-lhe as rédeas, obrigando-o, com relutância, a manter o passo anterior da marcha.

     E como o baio começasse a andar de lado e fizesse piruetas, ora recuando, ora avançando, bufando impacientemente, o amo inclinou-se no selim e acariciou-lhe com a mão o pêlo lustroso do pescoço.

     — Devagar, devagar, querido do meu coração — murmurou na língua que lhe vinha aos lábios mais prontamente do que a sua própria — não há razão para pressa. Amanhã será também outro dia.

     E passo a passo, vagarosamente, continuou o caminho pela noite silenciosa afora. Dispôs-se, então, a encarar as torturantes recordações do passado, que durante tantos anos tinha feito o possível para esquecer, e agora lhe vinham à memória, devido ao inesperado encontro que tivera com o seu velho amigo. Impenetrável como os árabes, entre os quais vivia há anos, não deu mostras exteriores de excitação alguma, mas sob a máscara da impassibilidade, que para ele se tornava uma segunda natureza, a tempestade rugia amarga e feroz, numa revolta infrene contra o destino que lhe tinha atirado Micky Meredith no meio do caminho, para lhe perturbar a paz de espírito, conquistada por todos esses anos de reclusão nas amplidões do deserto. Meredith estava ligado justamente com tudo o que ele desejava esquecer; era a lembrança viva da casa e da felicidade perdidas. A chegada desse velho amigo tinha reaberto no coração de Carew uma ferida que ele supunha cicatrizada para sempre.

     As recordações, como espinhos dolorosos, vinham-lhe nesse momento aos borbotões. A antiga luta contra si mesmo, a amargura de longa data e sobre a qual tinha com tanto esforço conquistado uma vitória custosa, apoderavam-se dele novamente, fazendo-lhe estremecer o coração até o âmago. O passado, que tinha resolvido esquecer, levantava-se como um fantasma, com uma terrível nitidez. Royal Carew e a mulher que ele amara! Com o suor da agonia pingando-lhe pela fronte, reviveu os momentos de horror daquela horrível volta ao lar. Viu outra vez, como se estivessem ali presentes, os aterrados e apiedados rostos dos velhos criados, pelos quais soube a sórdida traição da esposa. Reviveu, mais uma vez as horas de angústia, quando se ajoelhara em muda e miserável contemplação ao pé dum bercinho frágil num dos quartos da luxuosa vivenda, e esperou que a morte, na sua luta pavorosa, viesse arrebatar-lhe o pequenino ser que, mais do que sua mãe, ele amava tão apaixonadamente. Ondas de desespero lhe tinham caído sobre a cabeça nessa noite. Ainda enfraquecido pela ferida que o trouxera de volta à Inglaterra, esmagado pela dupla tragédia, tinha desejado e pedido com fervor que a morte o tirasse do número dos vivos. Afinal, quando tinha encontrado coragem para prosseguir seu destino com o pouco que lhe restava de vida, conseguira mudar completamente de aspecto: era um homem amargurado, endurecido, e que nada tinha de semelhante com o seu “eu” anterior. Tinha-se divorciado da mulher para que ela se pudesse casar com o homem pelo qual o deixara e com severa justiça, pois que se tratava da mãe do seu filho, ainda lhe tinha doado uma fortuna regular. Por ela, pessoalmente, não sentia ódio mas apenas desgosto e piedade. Ela o enganara, e lhe mentira. Tinha-lhe destruído a fé, a confiança. Tinha, por fim, aberto os seus olhos para a própria indignidade, patente para todos, salvo para o marido que a adorava. Tinha-lhe matado o amor e, com ele, o ideal que tinha da mulher, considerada cavalheirescamente no pináculo das coisas; tinha-lhe destruído todos estes sentimentos, tinha-os reduzido ao nada. Por sua causa, tomara aversão ao casamento, vendo em cada mulher aquela que lhe envenenara a vida. A sua lembrança, nesse momento, apenas lhe produzia uma impressão de frio desgosto.

     Mas a memória do filhinho morto era ainda uma força viva dentro dele. Tinha-o acompanhado, durante anos de solidão e desilusão, um pesar tão amargo agora como na primeira noite em que a morte o arrebatou. O seu coração ainda se mortificava, não pela mulher, mas pela criancinha, cujo rostinho estava sempre presente na sua memória; recordava-se até dos frágeis movimentos dos dedos do bebê, que se fechavam convulsivamente, agarrando o seu indicador, nos últimos e terríveis momentos da luta contra a harpia ingente. Era para experimentar e amortecer a dor da memória, para alijá-lo do peso da solidão, que recolhera o pequeno abandonado no deserto. E o ceguinho, no desamparo e na dependência, tinha-lhe de certo modo preenchido o vácuo da vida. Mas, naquela noite, a lembrança da perda do outro entezinho querido era em extremo cruciante. Até com a criança Meredith estava ligado, porque sua última visita a Royal Carew se tinha dado poucos meses depois do nascimento do herdeiro, que viera ao mundo com tão altas esperanças. Juntamente, os dois homens tinham discutido com solenidade a provável carreira daquele dorminhoco e róseo pedaço de homem que até então não mostrara nenhum sinal da fraqueza que se desenvolveria mais tarde.

     E Royal Carew! Pela primeira vez em muitos anos, deixou que o seu pensamento pousasse na bela vivenda que tinha voluntariamente transferido; e mergulhou em uma onda de intensa nostalgia. Recalcou-a com um sentimento de desprezo pela própria fraqueza. Em outro tempo, quando lhe parecia o mais belo lugar neste mundo de Deus, tinha-lhe amor até às ervinhas e às pedrinhas do caminho. Ainda o amava, o seu solar, mas havia com esse amor a lembrança dolorosa que fazia com que fugisse de vê-lo novamente. Sem a crença, perdera para ele o seu encanto. Ainda se o filhinho estivesse vivo... mas morrera, e, afinal, era melhor como estava. Lástimas não tinham utilidade alguma. Nada ganharia em pensar no que poderia ter acontecido.

     Carew apertou os lábios e procurou dar ao pensamento outra direção. Afinal de contas, não tinha sido culpa de Meredith. Carew adivinhara mais ou menos a razão dos modos reservados do soldado no momento do encontro, e a consciência disso havia dado mais calor ao seu próprio cumprimento. O orgulho tinha-o agitado bem como a vaga idéia de experimentar até onde ia o domínio de si mesmo. De vista muito aguçada, tinha reconhecido Meredith mesmo antes do Doutor Chalmers ter lhe acenado com a mão. Tinha até sido tentado a passar sem se dar a reconhecer. Apodando-se a si próprio de covarde, refreou Suliman, com o tranco que tinha feito estremecer a Sra. Chalmers. E agora, estava contente ou triste pela vinda de Meredith? Essa questão ficou sem resposta positiva naquele momento, e sob aquela tensão de nervos. Não desejava, por enquanto, analisar a fundo a natureza dos seus sentimentos. Tinha-se desacostumado a pensar em si. Uma vez apenas, tinha afrouxado o rígido domínio que exercia sobre os próprios pensamentos, e uma vez já era bastante. Durante todos esses anos de trabalho tenaz no deserto, fora bem sucedido em suprimir o seu “eu” de suas cogitações, e com esse trabalho tentara ter algum contentamento, que era tudo o que esperava. Com poderoso esforço de vontade conseguiu colocar de lado os pensamentos sobre Meredith e as lembranças que este lhe tinha despertado; tocando Suliman com os calcanhares, concentrou-se nos resultados da difícil missão pela qual estava voltando a Argel.

     Era um negócio bem delicado, rodeado de muitos perigos, que entretanto não o tinham desviado; uma sutil intriga oriental, e para tratar dela o auxílio de Hosein estava acima de qualquer preço. Esse homem fora criado de quarto e fiel companheiro de Carew, durante os anos em que vivera na Argélia. Filho de um “dragoman” [tradutor, guia] de seu pai, Hosein, um ou dois anos mais velho do que Carew, era empregado nos arredores da vila no Mustapha Superior, onde Carew passara os invernos em sua mocidade; assim, pois, o tinha procurado logo que voltou à Argélia. E nunca se arrependera disso. Devotado e simples no seu serviço, o árabe tinha sido tão bom amigo como bom criado, e leal ajudante nos trabalhos que Carew escolhia. Nômade por instinto, não fora somente na Argélia que Hosein viajara, e a fita verde da peregrinação a Meca, que usava, dava-lhe um prestígio tal, que o tinha tirado e ao amo de muitas situações embaraçosas e perigosas. Não fora só uma vez nem duas, que Carew lhe devera a vida, estando certo de que, se não fosse a constante vigilância de Hosein, não teria voltado vivo da última empresa. O relatório que trazia ao Governador de Argel era tanto devido a Hosein como a ele próprio. E o árabe nada perderia se ele nada conseguisse, pensou com repentino e leve sorriso.

     Imerso em seus pensamentos, prestava pouca atenção aos arredores, e não notara quanto já havia cavalgado voltando para casa. Um relincho estridente de Suliman e uma parada brusca que teria jogado fora da sela outro cavaleiro menos hábil, chamou-o abruptamente ao momento presente e, olhando em volta, com atenção, percebeu que tinha chegado aos arredores da vila abandonada do deserto. Fazendo a montaria parar, perscrutou a paisagem com atenção e, apesar do luar brilhante, nada viu que se movesse. Entretanto, Suliman estava tão acostumado a andar de noite, que não era comum assustar-se com sombras. A vila abandonada tinha péssima reputação nas vizinhanças, porém Carew nunca evitara passar por ela por causa disso, porque também tinha certa reputação e era bastante conhecido.

     Lançou o olhar perfunctoriamente para a direita e para a esquerda, andando a passo pela rua sinuosa, onde a erva crescia alto, porém, sob todos os aspectos, o local parecia tão desabitado como quando por ali passara dantes. Já se acercava do último grupo de cabanas desmoronadas, quando um súbito ruído estrugiu no silêncio da noite, fazendo com que Suliman pulasse alto nos seus talões em furioso protesto. Obrigando-o a abaixar-se, Carew voltou-se na sela, com o ouvido a escutar atentamente. Ouviu-se, de novo, o mesmo som, que agora ecoava de uma pequena viela transversal à rua principal, o som de uma voz de mulher, que em francês gritava desesperadamente por socorro! Uma mulher, em tal lugar e a tal hora! Carew descerrou os lábios, num trejeito de desgosto, e deu uma pequena trégua à sua atenção. Que estaria uma mulher fazendo àquela hora da noite numa aldeia abandonada em meio do deserto e que gozava de tão má reputação? Sem dúvida era alguma doidivanas que tinha tentado uma aventura leviana, e agora estava pagando bem caro a tolice! Que se arranjasse! Provavelmente, metera-se nessa enrascada pela própria vontade; pois que lhe suportasse as conseqüências! De qualquer modo, ele nada tinha que ver com os negócios alheios. E por que deveria ser ele entre tantos, que viesse se meter a ajudar uma mulher no momento em que ela precisava de auxílio? Que significava para ele o sofrimento de uma mulher? Os traços do seu rosto tomaram uma expressão dura e, acariciando o pêlo trescalante de suor do bucéfalo, dispôs-se a prosseguir o caminho interrompido. Logo, porém, que Suliman reiniciou o trote, novo grito ecoou e, desta vez, em palavras que obrigaram Carew a retroceder, puxando as rédeas violentamente, com mão de ferro, e fazendo o cavalo estremecer até as ancas. Claras e distintas chegaram aos seus ouvidos palavras de súplica angustiosa em inglês, que foram mais fortes do que a sua vontade e que ele não esperava ouvir naquele lugar.

     — Socorro, socorro! Oh, meu Deus, quem me socorre?

     Uma inglesa! Por um segundo lutou consigo mesmo. Súbito, praguejando uma terrível exclamação, puxou com um repelão as rédeas para o lado, e embarafustou desenfreadamente pela ruela abaixo. Era um verdadeiro beco sem saída, e a casa que procurava estava bem no fim, porque só ali um pequeno fio de luz, coado por entre as frestas de uma das janelas carcomidas, dava indício de habitação. Profundas sombras mascaravam a estrada e, a poucos passos, num claro de chão iluminado pelo luar, ele se endireitou na sela e, pulando em terra, correu para o portal escondido nas trevas. Já pisava a soleira desmoronada, quando três vultos se ergueram da escuridão para lhe barrarem a entrada, arremessando-se contra ele. O ataque foi silencioso e silenciosamente também enfrentado. Não havia tempo para puxar do revólver de que se esquecera no momento. Retesando-se, arremessando-se para a frente, dispôs-se a lutar com adversários cujos rostos não podia ver, cujas armas o rodeavam, e cujas mãos calosas tentavam agarrar-lhe o pescoço para estrangulá-lo. Sentiu nesse momento a ponta de uma faca aflorar-lhe a pele e, com cego instinto, aparou o golpe e segurou a mão que a brandia, apertando-a fortemente entre os dedos musculosos, até que sentiu os ossos estalarem, e a arma deslizar para o chão com um leve tilintar. Em boas condições físicas, com músculos de aço, endurecidos por anos de vida ativa e trabalhosa no deserto, tinha certeza de que venceria com facilidade separadamente qualquer um dos três homens que agora o cercavam; contra os três ao mesmo tempo, mesmo a sua grande força seria impotente. Lutando para desvencilhar os braços, recuou, palmo a palmo, porquanto os contendores, sempre em silêncio, apertavam o cerco que se tornava cada vez mais ameaçador. Nem mesmo o homem cuja mão ele estropiara, proferiu qualquer grito além de um rosnar surdo. Ouvia-se apenas o movimento confuso dos pés no chão seco, o arquejar ofegante como grunhidos de animais, dos homens que tentavam agarrá-lo. O fétido de roupas sujas e suadas chegou-lhe às narinas, e um mau hálito quente, conquanto já estivesse acostumado ao fartum dos árabes, provocou-lhe uma impressão de nojo e náusea.

     Finalmente, num tremendo arranco, conseguiu desvencilhar-se. Recuou ziguezagueando, até encontrar-se no sítio iluminado pelo luar, com o coração a saltar-lhe do peito e suando em bicas. Nesse momento, a luz prateada da lua bateu-lhe em cheio no rosto, e os três homens que o tinham seguido até ali recuaram por sua vez espavoridos e indecisos, resmungando entre si. Carew pôde ouvir as palavras “El-Hakim”, apelido que tinha entre as populações do deserto e, antes que pudesse cair em si, já tinham sumido nas sombras, por entre as casas vizinhas. Ficou só. Por um momento tratou de respirar com dificuldade, enxugando a face onde o suor gotejava e, ao mesmo tempo, apalpando no gibão o cabo do revólver. Depois, outro grito estrangulado, partindo da cabana iluminada, estimulou-o para a ação; atirou-se para diante, arremessando dos ombros o pesado albornoz. A porta bichada estalou nos gonzos, despedaçando-se com o empurrão que dera com todo o peso do corpo. Estacou na entrada, de revólver engatilhado, por um segundo apenas. Varrendo com o olhar o pequeno aposento, divisou um gigantesco árabe com cara de demônio que, assustado com a sua presença, tinha jogado ao chão a mulher com quem lutava e voltava-se para encarar o intruso, com o ar ameaçador e feroz de um assassino. Um severo sorriso desenhou-se na face de Carew ao reconhecer o bandido.

     — Tu, cão? — trovejou ele e saltou para agarrá-lo.

     Por um segundo o árabe estacou, e uma faca brilhou-lhe nas mãos. Mas, com gesto rápido e ágil, Carew desviou o golpe temível e segurou-lhe o pulso. Com o revólver encostado à barriga do árabe, forçou-o a recuar lentamente até a parede da cabana, apertando com força entre os dedos a mão daquele, até abri-la. Arremessando para longe, com um pontapé, a faca que caíra, Carew afastou-se alguns passos, continuando a manter o árabe sob a pontaria da arma e, pela primeira vez, prestou atenção à mulher que viera socorrer com tanta relutância. Aparentemente, uma mocinha, de rosto infantil. Empalidecida pela violência do ataque, tinha a custo se levantado e, tremendo dos pés à cabeça, balanceava o corpo, aturdida pelo choque. Ele olhou com uma espécie de deliberação cruel para a delicada e trêmula figura, vestida com uma roupa de montar como um rapazinho, revelando graciosa beleza, que seria a alegria de um artista, mas que a ele dava impressão desagradável. Que loucura, que rematada e descarada loucura! Essa mulher devia ser uma doida varrida, ou mais do que isso, para se expor, desse modo, numa terra de mulheres embuçadas. O seu antagonismo cresceu tanto que observou impassível os sinais da luta terrível que a moça sustentara. Que tinha combatido com desespero era evidente, pelas marcas de apertos violentos, pelo cabelo desgrenhado, que pendia em cachos castanho-fulvos sobre os ombros, pela blusa de seda rasgada em farrapos do pescoço até à cintura, desnudando a brancura dos seios arfantes ao olhar austero que se inclinava para ela tão impiedosamente. Parecia inconsciente da proximidade de Carew. Ofegante, as suas mãos se abriam e fechavam mecanicamente. Estava como um animal acuado na toca, os olhos pasmados e pregados no árabe.

     Carew rompeu o silêncio, com uma pergunta brutal e direta. Falou em francês, que ambos compreendiam, porque tinha resolvido não se dar a conhecer senão como árabe. Àquela voz áspera, ela pareceu tomar consciência da sua presença. Assustou-se violentamente e, procurando-o com os olhos, voltou-se lentamente para ele, como se temesse perder de vista a sinistra figura encostada à parede. Por alguns segundos, encarou-o sem compreender. Suas faces ruborizaram-se de repente, quando conseguiu apreender o sentido das palavras. Estremeceram-lhe os lábios e ela recuou, cobrindo os seios instintivamente, num gesto de pudor, com as madeixas sedosas. Tentou falar, mas as palavras, a princípio, vieram a custo. Então, saiu-lhe dos lábios um pranto de súplica:

     — Tire-me daqui, oh! pelo amor de Deus, tire-me daqui — gritou, escondendo o rosto, banhado em lágrimas, nas mãos convulsivamente trêmulas.

     Carew sacudiu a cabeça com impaciência. A vida que levara nos últimos doze anos o tornara intolerante para com convenções, e não tinha agora absolutamente intenção de modificar a justiça rude e pronta que ia administrar nesse momento. Não havia razão para hesitar. O árabe era um conhecido criminoso, e o rapto de uma visitante inglesa era uma ofensa que o Governo Argelino jamais perdoaria.

     — Levá-la-ei daqui quando tiver respondido à minha pergunta, Madame — disse friamente. — Não é este o momento e lugar para falsas modéstias. Quer que ele se vá embora livremente, ou... — e levantou o cano do revólver num gesto que não deixava dúvidas sobre suas intenções.

     Mas um grito agudo de protesto o conteve e tremendo de novo, ela se afastou ainda para mais longe dele, até apoiar-se contra a parede oposta, à qual se colou, ocultando o rosto, como uma criança medrosa.

     — Não... não... Isso não — suspirou, anelante. — Deixe-o ir-se embora. Chegou a tempo!

     As últimas palavras foram sussurradas. Ouviu-se um febril gemido e ela rolou para o chão, como se a tivesse abandonado o último sopro de vida.

     Indiferente ao seu sofrimento, El-Hakim ocupou-se do assunto mais importante: o árabe.

     — Que vergonha é esta, Abdul? — disse ele severamente, falando agora na língua árabe.

     Todo confuso, o homem relanceou a vista para a porta aberta por trás de Carew, cujo alto vulto a obstruía completamente. Sabia bem que, nos breves minutos de há pouco, estivera tão perto da morte que não lhe era nada agradável lembrá-lo. Não tinha o menor desejo de entrar em minúcias sobre o crime; o seu único anseio era ver-se livre daqueles olhos

acusadores, e tirar-se dali o mais depressa possível. Verdade é que fora concedida uma trégua, mas por quanto tempo? Lembrando-se dos negócios em que se tinha metido com o homem que agora tinha na frente, olhou prudentemente para o revólver que Carew ainda mantinha em desagradável e sugestiva posição.

     — Na verdade, é uma vergonha, ó “Sidi” [Lorde (saidi)], gemeu ele, num “salaam” de lisonja. Eu não sabia que a “lalla” [Lady (leilla)] estava sob tua proteção. Mas não é o meu amo conhecido em toda a Argélia como homem que não se digna baixar os olhos para o rosto de uma mulher?

     Havia astúcia e curiosidade no rápido olhar que se encontrou com o de Carew, e que rapidamente se baixou de novo.

     O rosto do inglês assumiu ar ainda mais ameaçador.

       — E, no entanto, eu devia ter-te matado pelo que praticaste esta noite, — disse brevemente; — fica certo disto, Abdul. Mas a “lalla” concedeu-te a vida. Agradece e vai-te daqui.

     Interrompeu os protestos fingidos do árabe e escorraçou-o para a porta. Aí chegando, porém, o homem parou irresolutamente com outro obsequioso “salaam”.

     — Já servi ao meu amo no passado — murmurou de mau humor. — E por aquele serviço o meu amo não esquecerá esta noite?

     Carew olhou para ele, franzindo as sobrancelhas.

     — Foi para servir aos teus próprios interesses que me prestaste aquele serviço — disse, num tom que não admitia dúvidas; — e aqueles que têm alguma lembrança torturante não se esquecem tão facilmente — ajuntou baixando-se rapidamente e apanhando a faca que tinha ficado no chão. Com um frio sorriso, enfiou-a no colete e voltou para dentro da sala, lentamente. Não prestou a mínima atenção se o homem saía do lugar. Conhecia Abdul el Dhib havia muitos anos, e tal conhecimento o fez confiar em que, naquele momento, pelo menos, estava a salvo de qualquer forma de vingança, que pudesse ser tentada por aquela fera humana, cuja cabeça tinha sido posta a prêmio pelo Governo Argelino. Habitualmente suas proezas se restringiam aos distritos mais remotos. Carew estava surpreendido ao vê-lo tão perto da civilização. Mas não lhe cabia agir como simples espião policial. Além disso, sabia que Abdul tinha confiado no fato de ter ele querido entrar em entendimento em vez de matá-lo imediatamente. Agora o problema que o tornava perplexo era o da mulher que, indesejàvelmente, se lhe tinha intrometido na vida. Ainda estava caída, no chão empoeirado.

     Foi com má vontade que se aproximou dela.

     A pobre criatura estremeceu ao contacto das mãos do homem e levantou-se vacilando e olhando em redor apreensivamente. Com os cabelos caídos em cachos pelo rosto, passou as mãos pelos olhos, como para afastar a lembrança de uma cena horrível. Não demonstrou o menor receio pela alta figura vestida de árabe, que lhe estava perto; um interessante instinto dizia-lhe que o tomava mais como proteção do que como perigo. Mas, também por sua vez, não mostrou muita pressa em explicar as razões por que estava metida naquela história, nem em deixar saber a própria identidade. Atordoada pela horrível prova que tinha passado, parecia apenas ter alguma consciência dos fatos presentes e achava-se incapaz de qualquer iniciativa. Desejoso por ver encerrado o incidente, Carew não estava disposto a rodeios. E abordou diretamente o assunto.

     — Vem de Blidah, Madame?

     Ela olhou-o sem compreender, com os olhos ainda nublados de dor, de modo que o obrigou a repetir a pergunta, mais vagarosa e distintamente.

     — Blidah... — repetiu vagamente, — Blidah? Não... de Argel.

     O rosto de Carew exprimiu desânimo. Argel estava a trinta milhas dali. Poderia reconduzi-la a Blidah com facilidade, mas a Argel, contando apenas com Suliman, que naquele dia já tinha cumprido árdua tarefa? Transportar os dois estava fora de qualquer questão. Levantou a cabeça num gesto de aborrecimento, franzindo a testa com ar pensativo e, mentalmente, amaldiçoou Abdul el Dhib e a mulher que ali se achava.

     — Em Argel, onde? — perguntou brevemente, para ganhar tempo e pensar sobre a situação embaraçosa.

     Mas a mocinha estava incapaz de dar qualquer explicação.

     — Argel — repetiu fracamente; e, cambaleando outra vez, teria caído ao chão se não a amparassem uns braços fortes. Isto pôs fim à situação. Meio desfalecida, incapaz de se explicar, ela em nada poderia ajudá-lo. Assim pensou ele, ao conjeturar que não havia outra saída senão aquela que menos desejava, isto é, levá-la para o acampamento. Para o seu próprio acampamento, bom Deus! O sentimento de prevenção tornou-se verdadeira aversão, ao contemplar a tenra figura de criança que se lhe apoiava contra o peito. Com um resmungo de desgosto, meio carregando-a meio arrastando-a, conduziu-a para fora da cabana.

     Acostumado a esperar, Suliman pastava numa mancha de luar, fazendo saltar com impaciência os estribos. Do pesado albornoz Carew fez uma espécie de almofada macia, colocou-a no pescoço do cavalo, na dianteira da sela. Levantando, depois, a moça, ali a acomodou com cuidado.

     — Segure-se nas crinas! — disse, e montou atrás dela, pensando no que seria o primeiro salto de Suliman já excitado. Mas, com certa graça instintiva, o cavalo se absteve de uma saída brusca e iniciou a marcha, num passo macio e lento, mantido aliás por Carew. Nem o menor sinal de Abdul e do seu bando de assassinos, nenhuma sombra furtiva na vizinhança das casas silenciosas; e, em poucos minutos, a vila ficou para trás.

     Carew cavalgou com as rédeas apertadas, vigiando com o olhar a criaturinha recostada na frente. Ao seu tronco alto e musculoso desenhado sobre a sela, forte e rígido, repugnava a proximidade dela; e as fibras mais íntimas se lhe revoltavam, aos simples contacto daquele corpo de mulher. A sutil tortura que sentia fazia-lhe rilhar os dentes; e começaram a lhe porejar bagas de suor pela fronte. Enraivecia-se pela necessidade que o tinha forçado a um passo que, uma hora antes, ele julgava fora de qualquer possibilidade. E justamente aquela noite entre todas, quando a sensibilidade se lhe reavivara e lhe doía a recordação do passado, que o atormentava imensamente...

     A calma, que tinha conquistado durante anos de disciplina e restrição, fora afastada para longe. Estava horrorizado pela tempestade que lhe rugia na alma, destruindo-lhe todas as barreiras e defesas que com tanto trabalho construíra. O auxílio a uma frágil mocinha tinha feito quebrar uma resolução da qual jurara jamais afastar-se. E, nesse momento, poderia muito bem deixá-la atrás de um maciço de pedras por onde passava agora, e lavar as mãos por todo esse negócio. O fato de ser uma inglesa era a única razão do ato que se surpreendera a cometer. O espírito de raça tinha, em dado momento, provado ser mais forte do que a sua determinação e ojeriza às mulheres. Se não fossem aquelas poucas palavras em inglês, ele teria passado adiante. O apelo, vindo em outra língua, tê-lo-ia deixado completamente impassível, mas repetido na língua materna, que agora lhe era quase estranha, tinha-o sacudido fortemente, mesmo contra a sua inclinação. Mas a voz do sangue, que triunfara sobre ele tão inesperadamente, não lhe mitigava de modo algum o constrangimento que sentia nesse momento. Era uma dificuldade que se tornava, de momento a momento, mais aguda e desagradável. Impacientava-se ante a menor circunstância, que lhe aumentava o mal-estar. Os seus nervos se achavam tão esgotados que se aborreceu com o passo lento em que era obrigado a andar. Era-lhe tão enfadonho como para Suliman que, com as narinas voltadas em direção a casa, se precipitava, por vezes, tentando correr no galope costumeiro. A moça, por si mesma, resolveu o último problema. Curvava-se cada vez mais para o pescoço do animal, agarrando-se instintivamente às crinas com os dedos crispados; mas, nesse momento, sem uma palavra ou gemido, desfaleceu e caiu para trás como morta.

     O rosto de Carew tornara-se de repente terrivelmente pálido. Levantou-a, e tomou-a ao colo, aconchegando-a com o braço e fazendo repousar a cabecinha de encontro ao seu peito. Deus dos céus, ainda mais esta! Praguejando selvagemente, enterrou as esporas nos flancos do cavalo e deu-lhe rédea. E, na desenfreada corrida que se seguiu pela noite fria, tentou esquecer que trazia uma mulher nos braços. Mas o delicado corpinho, quente e apegando-se ao seu, era uma contínua lembrança que impedia poderosamente o esquecimento. Dessa maneira tinha ele carregado uma vez a esposa, por ocasião de um pequeno acidente de caça, e então, como agora, mechas de cabelo perfumado lhe tinham também acariciado a face, cegando-o com a sua macia fragrância. Afastou-as com dedos trêmulos.

     Era-lhe impossível pôr um dique à corrente de recordações. Reprimi-las estava além de suas forças. Mais dolorosas, mais esmagadoras do que antes, elas o invadiam com uma força a qual se achava incapaz de resistir, de forma que não fez mais esforço, entretendo o espírito nas amargas lembranças do passado, enquanto instigava Suliman sem cessar, não se importando que ele ou a moça quebrassem o pescoço. E com uma loucura quase igual à do dono, espicaçado pelas agudas esporas que Carew usava tão raramente, o baio rompeu num galope de corrida, vencendo colinas, despenhando-se pelas suaves descidas como um trovão, pulando rochas e buracos, sem descanso. Quando, por fim, chegaram à planície, voltou-se instintivamente em direção ao acampamento, amainando o galope somente ao chegar à porta da tenda num grande ruído de cascos. Dois criados saltaram para frente, mas a última etapa tinha sido o esforço final, de forma que ele não tentou dispensá-los, conservando-se de pé com a cabeça inclinada e as pernas afastadas, respirando pesadamente, e tremendo, quase exausto.

     Apertando mais a rapariga nos braços, Carew saltou em terra. A Hosein, imperturbável mesmo em face deste espetáculo sem precedentes, atirou uma curta explicação: “Abdul el Dhib” e, ordenando-lhe que trouxessem café, carregou o leve fardo para dentro da tenda.

     Preocupado e cheio de ira, sobrolho franzido, deitou-a entre as almofadas de seda do divã. O fato de tê-la trazido ali, involuntariamente, não contribuía em nada para minorar-lhe a ira ou facilitar-lhe a tarefa. Mas desde o momento em que ela se encontrava ali, sem socorro e dependendo somente dele, o dever de humanidade lhe exigia que fizesse em seu benefício tudo o que estivesse ao seu alcance. Esforçando-se por absorver a natureza de homem na de médico, tentou encará-la apenas como um caso clínico e dispôs-se a combater por todos os meios a síncope prolongada, que parecia significar alguma coisa mais do que um simples colapso, devido ao medo ou à fadiga. O olhar sombrio relutava até em admitir-lhe a evidente beleza de rosto e de formas. Mas a sua beleza nada mais fez do que trazer-lhe um pouco mais de bondade para com ela. A beleza de uma mulher, laço passageiro que atrai os loucos confiantes para desgraçá-los, o que era isso para ele, que tinha sabido como a vileza e a hipocrisia se escondem sob um exterior formoso? Com um dar de ombros que significava desdém, colocou-a nas almofadas.

     Por fim, ela teve um leve estremecimento, ao passo que as madeixas lhe emolduravam a face, como franjas escuras, e esvoaçavam tremulamente. Ao se inclinar para ela, dois olhos de um azul profundo fitaram, subitamente, os seus, a princípio confusamente, depois com rápida compreensão, que posteriormente deu lugar a um reconhecimento nascente.

     Voltaram-lhe as cores lentamente, e ela tentou sentar-se, murmurando uma pergunta muito suavemente. Mas ele forçou-a a calar-se, arranjando-lhe outra almofada sob a cabeça.

     — Fique quieta alguns momentos — disse suavemente. — Teve um desmaio. Tive de trazê-la aqui para o meu acampamento. Está em completa segurança.

     O curioso sentimento de confiança que tinha mostrado anteriormente manifestou-se de novo, porque ela lhe obedeceu sem protesto, enquanto os seus membros fatigados descansavam nas almofadas. A cor das faces, porém, tornou-se mais visível, ao relancear o olhar pelo aposento e notar o aspecto de desordem.

     — Nunca desmaiei em minha vida, penaliza-me ter sido tão tola e lhe ter trazido tanto incomodo — murmurou ela. Depois, num repelão, os seus lábios estremeceram e cruzou as mãos sobre o rosto com um soluço agudo e seco. Mas a explosão de choro feminino que Carew esperava não se deu, e apenas de vez em quando, terríveis espasmos de terror a agitavam.

     O café que Hosein trouxe minutos depois a reconfortou e, quando Carew se virou de novo para ela, depois de ter dado outras ordens ao criado, ela se levantou vacilante, olhando ao redor, meio discreta, meio nervosa.

     — O senhor foi muito bondoso para comigo, e não sei como lhe agradecer — disse apressadamente, — mas não posso abusar da sua hospitalidade por mais tempo. Eu... meu marido... Oh, “preciso” voltar... se... se pudesse emprestar-me um cavalo?... — Mas falando assim, inclinava-se com vertigens e teve de se agarrar ao divã para não cair. Carew olhava-a com atenção.

     — Quando tomou a última refeição? — perguntou abruptamente, fazendo-se desentendido. Os olhinhos apertaram-se com cansaço.

     — Não sei, — tartamudeou — creio que esta manhã. Uma xícara de café... antes de sair de casa. Oh! parece há dez anos passados, — disse, tremendo. Era a simples explicação de sua fraqueza, o que aliás já lhe tinha ocorrido, e para o que ele já tinha dado as necessárias providências. Necessidade de alimento, combinada com a natural reação que se segue a uma experiência torturante; não havia, pois, motivo para se assombrar do seu colapso, refletiu ele.

     — Argel está a trinta milhas daqui — explicou gravemente — e, neste momento, Madame não está em condições de andar a cavalo. Deverá comer, descansar algumas horas, até que possa tentar a volta.

     Ela, porém, abanou a cabeça com veemência.

     — Não poderia comer, — disse ofegante e com desesperado aperto na voz, — não poderia descansar, e “eu não devo” descansar. Tenho de voltar para casa. Oh! não me compreenderá, mas eu devo voltar para Argel.

     Tremia nervosamente e Carew sentia instintivamente que não era dele que ela tinha medo. Conseqüentemente, aquele ou aquilo que lhe inspirava esse temor não era da sua conta; contudo, ao notar o desassossego e o anel de ouro que brilhava no dedinho fino e delicado, não pôde furtar-se a um sentimento de malícia, pensando na causa dessa agitação. Ele apenas tinha a ver com a necessidade do momento.

     — Seja razoável, Madame — disse asperamente, — eu não a detenho aqui para meu divertimento, mas simplesmente porque a senhora não está, neste momento, em condições de cavalgar trinta milhas. Coma o que o meu criado lhe vai trazer e descanse duas horas, depois eu mesmo a levarei para Argel. E si o seu... os seus amigos estão sobressaltados por sua causa, terão de ficá-lo mais algumas horas.

     Falou quase brutalmente, e conquanto ela parecesse não notar esse tom, compreendeu que era necessário submeter-se a essa decisão. A sua fraqueza era, contudo, ainda bem evidente, ele viu claramente que ela lutava por manter-se senhora de si.

     E, de má vontade, concedeu-lhe uma admiração que sempre lhe repugnava dar. A coragem de qualquer espécie sempre lhe tocou o coração mas, cheio de preconceitos mórbidos, agora se achava irritado pela coragem moral que ela mostrava. Como não queria admitir o fato de admirar uma coisa que ele preferia condenar, virou-se, com repentino movimento de raiva, mas sem razão.

     A entrada de Hosein com a refeição que ele mandara vir, pôs fim a esta situação embaraçosa. Quando o homem saiu, Carew seguiu até a entrada da tenda, deixando a moça só, porque lhe parecia que a sua presença era para ela tão desagradável como a dela para ele. Deteve novamente o árabe para lhe dizer o que desejava ainda, e com um bocejo abafado, mergulhou na espreguiçadeira. Como Suliman, tivera um dia de trabalho duro e ainda tinha umas boas trinta milhas para cavalgar antes do nascer do sol. Mas como, inacessível à fadiga, já estava acostumado a transformar a noite em dia, foi mais mental do que físico o cansaço que o fez afundar na cadeira com um profundo suspiro. Apesar dos esforços empregados para dominar os próprios pensamentos, estes se encontravam em ebulição. O cérebro e o corpo estavam em tal estado de tensão nervosa que lhe roubavam as forças e o deixavam à mercê de uma onda poderosa de emoções, já há muito votadas ao esquecimento. O choque do encontro com Micky Meredith o tinha tornado um pouco enfraquecido para encarar os acontecimentos posteriores daquela tarde. Ainda tinha vívida impressão do leve peso do corpo da moça desfalecida nos seus braços e, nesse momento, passou a mão pelo rosto como se afastasse dele as fartas mechas de cabelos sedosos que o estivessem ainda sufocando com sua fragrância. Contrariado consigo mesmo, e irritado com ela, procurou esquecê-la; no entanto, ficou pasmado quando deu consigo pensando quem ela poderia ser. Santo Deus, como se isso lhe importasse! Praguejando, atirou o cigarro para longe e voltou à tenda.

     A rapariga sustentou-lhe o olhar com um sorriso tímido.

     — Afinal de contas, eu estava mesmo com fome — disse, apontando para a bandeja vazia — e tenho tanto sono que mal posso abrir os olhos.

     Determinado, porém, a não ir mais longe do que exigia a delicadeza, concedeu-lhe apenas um leve menear de cabeça a esta tentativa de conversação, e mostrou-lhe o caminho para o quarto interior. Ela parou um momento no limiar, inspecionando curiosamente o pequeno aposento de dormir e voltando-se logo para ele num relance:

     — Não me deixe dormir muito, sim?

     Por um momento os sombrios olhos de Carew perscrutaram a profundeza daqueles olhos azuis que fitavam os seus tão ansiosamente.

     — Os cavalos estarão prontos dentro de duas horas, — disse em tom seco, deixando cair a cortina.

     Por algum tempo ele palmilhou a grande sala da tenda presa de violenta agitação. Praguejou, irado mais uma vez. Em nome de Deus, o que se estava passando com ele? Por que os seus pensamentos, contra a vontade, se dirigiam constantemente para a mulherzinha que se encontrava no aposento?

Mulher! Apenas uma mocinha quase criança apesar da aliança que parecia se ajustar tão mal ao seu dedinho delicado. E mulher ou criança, que lhe importava isso? Quando estivesse em lugar seguro em Argel podia ir para o inferno; era tudo o que ele queria.

     Girando nos calcanhares, atravessou a sala, tirou um livro de medicina duma pequena estante perto da porta e atirou-se no divã, disposto a ler até que soasse o momento de partir. Estava ainda absorto na leitura, quando Hosein voltou, duas horas depois.

     Colocando o livro de lado, sem nenhuma pressa especial, pegou no albornoz branco que o servo lhe estendia e se dirigiu vagarosamente para o quarto interior, franzindo a testa, com ar carrancudo de aborrecimento e desafeição. No entanto, alguém tinha que despertar a moça, e ele não devia dar essa incumbência a Hosein. Com gesto bondoso, afastou as cortinas. Ela ainda dormia a sono solto, deitada numa atitude de graça inconsciente, com o rosto meio oculto pelo emaranhado dos cachos que se espalhavam no travesseiro. Desviando o olhar aborrecido, passeou-o rapidamente pelo quarto como se aquela presença estranha lhe desse outro aspecto; os seus lábios duros se apertaram mais rigidamente quando lhe bateu no ombro. Assustada, a moça se levantou de chofre, com um grito abafado e que logo se transformou em risinho de enleio.

     — Eu estava sonhando... eu... ah! já está na hora? — tartamudeou, bocejando e piscando os olhos como uma criança sonolenta. Evitando falar demasiado, ele estendeu-lhe a manta.

     — A noite está fria — disse brevemente; e voltou-se a tempo de notar o vívido rubor que lhe tingira as faces.

     À porta da tenda, sob a cortina de entrada, esperando-o, achou Hosein que devia acompanhá-los; e, juntos, foram tratar dos três cavalos que Carew escolhera para a jornada e os criados faziam andar de um lado para outro.

     Num espaço de tempo verdadeiramente incrível, a rapariga se reuniu a eles. O albornoz que agora a envolvia estava bem preso ao corpo, ocultando-lhe as vestes esfarrapadas; e ela parecia ter recuperado toda a calma, pois se achava bem à vontade e olhava em torno de si, com viva curiosidade, as tendas esparsas do acampamento e, em seguida, com maior interesse ainda, os cavalos que os esperavam. O puro sangue que Carew devia montar era quase inabordável, de fogoso e selvagem olhar, preso com dificuldade pelos dois homens que o seguravam pelas rédeas. Mas a alimária que escolhera para aquela hóspede indesejável era mais sossegada, parecia mais tratável e a farejou com um ar inquisidor ao se lhe aproximar. Ela agarrou o focinho aveludado com um ligeiro grito de contentamento.

     — Oh! que beleza! — e esfregou o rosto naquele focinho, afagando-o mansamente.

     Então, antes que Carew pudesse ajudá-la, saltou para a sela, recuando para dar lugar ao animal de Carew que demonstrava sua relutância em se deixar montar, empregando para isso todos os meios ao seu alcance. Essa raiva, porém, era completamente inútil, e Carew montou com a rapidez do raio. Durante cinco minutos, Marny Geradine, que sabia montar desde criança, presenciou, com atenção, ofegante, a mais interessante luta que tinha visto em toda a sua vida entre um cavalo e seu cavaleiro. Ficou maravilhada com a infinita paciência do homem que cavalgava aquela fera irrequieta como um centauro, manejando-o perfeitamente sem demonstrar o menor sinal de aborrecimento. Os seus métodos não eram cruéis como aqueles, pensou ela com súbita amargura, que durante cinco anos miseráveis tinha sido obrigada a testemunhar. E, no entanto, esse homem era um árabe, a quem se poderia desculpar a crueldade.

     Então, como Carew rodopiasse à volta dela, afastou os dolorosos pensamentos que tinham se aninhado em seu espírito, e abandonou-se à delícia dessa cavalgada estranha, com aquele não menos estranho companheiro.

     Tudo lhe aparecia como um sonho, fantástico e irreal, mas que lhe deu mais felicidade do que tinha tido nos últimos tempos. A corrida veloz através da noite, a fresca brisa que lhe acariciava as faces, os movimentos graciosos do cavalo que lhe servia de montaria, tudo isso lhe proporcionava uma alegria sem manchas. Não sentia a menor vontade de falar, embora as maneiras do homem taciturno que cavalgava ao seu lado não a forçassem ao silêncio. Nada desejava senão o prazer daquele momento, a beleza daquela cena enluarada e os encantos daquela solidão maravilhosa. Porque, para ela, a Argélia tinha sido apenas e somente Argel. Jamais fora convidada a acompanhar o marido nas suas expedições venatórias, e tinha-se tornado enfarada da cidade e dos seus arredores. Sempre tivera desejo de ir mais longe, internar-se no deserto sem fim, mas nunca se lhe deparara oportunidade para isso. Aprendera, assim, desde muito tempo, a recalcar as inclinações que lhe eram, ao contrário, sempre ridicularizadas e jamais elogiadas. Ansiava pelos espaços abertos e pelos recantos solitários da terra, mas fora sempre obrigada a se confinar dentro das cidades barulhentas, às casas cheias, e forçada a aturar companhias que lhe causavam asco e nojo. Sempre sonhara noites como esta, sempre tivera em mente o desejo de usufruir o silêncio e a paz das florestas virgens, dos campos solitários, onde pudesse dormir um sono sem pesadelos, sob o céu recamado de estrelas radiantes e, no entanto, as noites que tinha passado até ali constituíam o seu maior tormento.

     Mas naquela noite ela poderia retrair-se, abandonar-se a esse sonho convertido em realidade e gozá-lo em toda a sua plenitude, pois talvez isso nunca mais lhe fosse proporcionado. Pagar, e talvez horrorosamente, o que estava acontecendo, para ela não tinha a menor importância e nem se incomodava. Já havia sofrido muito para que lhe parecesse haver sofrimento maior. Sabia-o inevitável e não tencionava envenenar aqueles momentos de raro prazer, pensando em aborrecimentos futuros. Mas, assim lutando consigo mesma, tornou-se pálida ao imaginar as possíveis conseqüências da terrível aventura em que se tinha metido, embora contra a vontade. E se Clyde já tivesse retornado, quando ela chegasse à sua vila em Mustapha! Ele tinha ido para uma expedição de caça que deveria durar mais ou menos 15 dias, e essa temporada findava-se amanhã... hoje, naquele mesmo dia, lembrou-se ela, com súbito estremecimento, fitando o céu apreensiva, aquele céu onde já se denunciavam os róseos albores da manhã. Ele já deveria estar de volta! E se estivesse... qual seria o castigo dela, o que lhe estaria ainda reservado sofrer daquele que conhecia a força que possuía e abusava dela brutalmente, daquele que era tão cruel e implacável por natureza, como se fosse ele também árabe.

     E, ao pensar assim, a sua imaginação se desviou para o homem que a tinha raptado. Quando, no fim de um dia estonteante, tinha sido raptada e levada àquela cabana da vila abandonada do deserto, quando tivera finalmente a idéia dos sinistros propósitos do rapto, o horrível medo que se apossara dela, o imobilizante sentimento de desamparo que experimentara ao lutar contra os braços esmagadores que a apertavam, o horror daquele rosto implacável que vira tão perto do seu, a estrebuchar de luxúria e desejo, nada disso era novo para ela. Assim sentia Clyde; do mesmo modo, ela também recuava e sentia-se desamparada quando ele lhe tocava. Seriam os homens iguais, brutos sensuais, sem coração nem piedade?

     Um, pelo menos, tinha-se mostrado diferente, e esse era um árabe! Voltou-se na sela e fitou-o curiosamente. Ao clarão prateado do luar, estudou aquele rosto magro e queimado, admirando-lhe a grave austeridade. E como o seu olhar recaísse numa cicatriz esbranquiçada, cortando a face diagonalmente, logo acima da maxila, recordou-se subitamente de que aqueles olhos severos e sombrios que tinham fitado os seus eram azuis. Haveria, pois, árabes de olhos azuis, como havia afegãs? Quem era ele? Evidentemente, um personagem de importância, a julgar pelos ricos apetrechos do acampamento aonde fora conduzida. O albornoz bordado, a larga faixa de seda enrolada sobre o “haik” [larga peça de tecido branco enrolado no corpo e na cabeça] que lhe sombreava o rosto, as botas de couro escarlate que usava eram vestimentas de chefe. Talvez um dos poderosos sheiks do sul longínquo e que tivesse vindo a Argel para o baile anual do Governador. Quem quer que fosse, tinha-lhe salvo a honra, salvara-a de uma coisa pior do que a morte. Invadiu-a um rápido e inexplicável desejo de dizer àquele estranho e taciturno árabe a situação em que a tinha encontrado. Dirigiu o cavalo para perto dele.

     — Nunca deveria ter andado a cavalo sozinha — começou afoitamente. Sei disso. Mas estava tão perto de Argel, e parecia-me em segurança... e... e tive uma razão para fazer o que fiz. Às vezes sentimos certa necessidade... de estar sós. Não pensei que houvesse perigo, e aconteceu tudo tão rapidamente... — Interrompeu-se, gelada pelo silêncio do outro, assombrando-se de como tinha encontrado forças para lhe falar, pois que as suas maneiras rígidas não convidavam a confidências. E a breve resposta não foi de natureza a deixá-la mais à vontade.

     — É sempre perigoso para uma senhora andar a cavalo sozinha na Argélia — ele retrucou gravemente; e foi mais o tom dessa resposta do que as próprias palavras que lhe provocou um certo rubor nas faces e a reduziu ao silêncio, que se alongou até chegarem à vista dos arrabaldes de Argel. O dia estava nascendo, as estrelas já empalideciam e morriam uma por uma; e os tons avermelhados do sol levante aqueciam-se para os lados de leste.

     Com um sinal para Hosein, Carew puxou as rédeas.

     — Meu servo vai acompanhá-la, minha senhora. Não posso ir mais longe — disse abruptamente e com o olhar fito na cidade distante.

     Ela permaneceu silenciosa por instante, olhando-o repentinamente, enquanto os lábios lhe tremiam involuntariamente.

     — Não sei o que dizer... como agradecer-lhe...

     Ele interrompeu-a quase rudemente:

     — Não necessito de agradecimentos, minha senhora. Deixe uma coisa pela outra e estaremos quites, e... não julgue os árabes muito asperamente. Eles são como os outros homens, nem melhores nem talvez piores.

     Ela abanou a cabeça com um leve sorriso a pairar-lhe nos lábios, e por um momento pareceu lutar consigo mesma. Depois, estendendo a mãozinha, num gesto de súplica:

     — Se o senhor não me quer deixar agradecer-lhe, far-me-á ainda outro obséquio, pelo qual ainda me considerarei mais agradecida, — disse irresolutamente.

     — Como?

     — O cavalo em que eu vim esta manhã, proferiu vacilando. Eu.... eu... isto é... o meu marido tem-lhe muito afeto. Pode me ajudar a reencontrá-lo e brevemente?

     Surpreendido de que ela lhe pedisse auxílio num caso puramente policial, Carew relanceou um olhar, franzindo a testa e estremecendo, mas o que lhe viu nos olhos fê-lo desviar-se.

     — A senhora recuperará o seu cavalo. Dou-lhe a minha palavra, — disse brevemente.

     Uma expressão de esquisito alívio espalhou-se na ansiosa face dela.

     — Então estou descansada, não me atormentarei mais com isso — disse ela com um riso trêmulo. E, dirigindo o cavalo ainda para mais perto, estendeu-lhe de novo a mão. — E não desejará dizer-me o seu nome? Gostaria de sabê-lo; de relembrá-lo nas... nas... — interrompeu-se num soluço. — Por favor, — murmurou baixinho.

     Ele virou-se para ela lentamente; os olhos da mulher lhe pareciam quase negros na sua intensidade sombria.

     — Tenho muitos nomes, — redargüiu contra a vontade, como se se esforçasse para falar.

     — Então diga-me um deles — implorou ela ansiosamente.

     Ele hesitou ainda um segundo; e depois, com o queixo quadrado obstinadamente para a frente:

     — Chamam-me... El-Hakim, — disse por fim, com relutância. E tocando a testa num “salaam” de cortesia fez rodopiar o fogoso corcel e partiu a galope.

 

     Por momentos ainda, Marny Geradine, lutando por conservar imóvel a montaria, acompanhou com a vista o cavaleiro que se retirava, até que a alta e esguia silhueta ficou empanada pela onda de lágrimas ardentes que lhe marejavam os olhos. Com esforço conseguiu contê-las.

     O alívio do pranto era luxo de que aprendera a privar-se. E, rumando mais uma vez para Argel, prosseguiu a passo lento, tão lento quanto lhe permitia o fogoso animal. Afinal de contas, pensou, com uma espécie de triste fatalismo, por que se devia apressar? Se Clyde já tivesse voltado, deveria ter chegado à noite passada, e, agora, poucos minutos mais ou menos não fariam grande diferença. O mal estava feito. Nada que fizesse agora lhe diminuiria a raiva, nada que dissesse o convenceria. A verdadeira história da sua terrível aventura não encontraria nele o menor crédito. Mesmo por que ela não ousaria dizer-lhe toda a verdade. A última parte da noite aventurosa que vivera nunca seria divulgada. O estranho árabe que a tinha socorrido, a hospitalidade que lhe dera, o respeito e a consideração cavalheiresca que lhe mostrara, jamais seriam compreendidos pelo marido. Este seria incapaz de imaginar um temperamento diferente do seu, acreditaria somente nas conclusões vis que o espírito tacanho lhe concebesse, fossem quais fossem as explicações que ela lhe desse. Nunca poderia contar-lhe tudo. Era bastante que, à sua volta, não a tivesse encontrado, e ela houvesse perdido um cavalo de valor, pelo qual recentemente pagara muito dinheiro. Verdade é que lhe tinham prometido que o recuperaria. E a curiosa fé inexplicável no homem que lhe fizera tal promessa não lhe permitia vacilar, apesar da improbabilidade que via no seu cumprimento. Mas a devolução do cavalo faria com que Clyde lhe esquecesse a perda temporária? Um calafrio de medo percorreu-lhe o corpo e, logo depois, uma onda de ódio e desprezo pela sua própria covardia. Não, não lhe daria nem explicações nem desculpas. Antes guardar silêncio, como sempre, do que mentir para se ver livre das suas objurgatórias [repreensões violentas]. Tudo que fazia era sempre errado, tudo que fizesse para agradar-lhe era tempo perdido. Algumas vezes assombrava-se de como podia achar coragem para prosseguir. Tudo lhe parecia absolutamente vazio, sem finalidade na vida.

     Afastou os cabelos da testa com um amargo suspiro. Não sentia, pensava ela, muita coragem naquela manhã. O contentamento que experimentara pelo galope desenfreado através da noite, já se desvanecera. O ânimo que lhe viera, desaparecera, deixando-a totalmente sem forças e de coração apertado.

     Seria o fim de tantas dificuldades se o árabe que a raptara tivesse usado com vantagem a faca com que a ameaçara no dia anterior. A morte significaria para ela a libertação de uma vida que lhe era insuportável. Não tinha medo de morrer. A morte lhe seria vida, porque a vida que levava era uma morte lenta. Já se haviam finado todos os que amava e todos os que a amavam. Sim, porque a paixão brutal de Clyde não era amor. Todos. Todos, com exceção de Ann, e ainda assim, por quanto tempo poderia contar com a companhia de Ann? Clyde já por vezes ameaçara de mandá-la embora. Por amor de Ann deveria ainda algum tempo tentar e lutar. Mas se lhe tirassem Ann? E o seu belo rostinho tornou-se subitamente frio e rígido como uma imagem de marfim; a delicada figura, que se inclinara, endireitou-se na sela, procurando coordenar os pensamentos. Que aquilo acabasse o mais depressa possível, e ela tomasse o remédio como um homem. Apesar da amargura do momento, recordou-se da inesquecível fórmula que o pai empregava como prelúdio invariável para as corrigendas que lhe administrava. Sorriu. E aquele pai, morto havia tantos anos, que a idolatrava, tanto como ela a ele, nunca a punira sem razão. No entanto, Clyde a punia com ou sem razão. Esse pensamento foi como um aguilhão. Fosse qual fosse o aspecto que a ira de Clyde assumisse, ela não se daria por vencida. Não lhe deixaria perceber o medo físico que sentia e que, apelando para toda a sua coragem, não pudera dominar. Seria, afinal de contas, pior para ela. Sua insensibilidade o enfureceria, mas preferia antes quebrar a torcer, antes de morrer a dobrar-se aos seus pés.

     Evitando a estrada real, próxima, tomou por um atalho que levava, numa subida direta, aos bosques para lá do Mustapha, donde teria fácil acesso à portinha meio escondida pelos arbustos em flor, e que dava para os jardins da vila. A coragem a que se apegava não era tão forte que desse para enfrentar a curiosidade do porteiro da entrada principal. Uma volta do atalho levava à portinha do jardim. Puxou as rédeas e saltou para o chão. Parou um momento junto do cavalo que a conduzira tão mansamente, com o rosto encostado ao pescoço do animal afagando-lhe, com os dedos, o focinho que roçava de leve o seu braço. Depois, voltou-se e entregou as rédeas a Hosein, que esperava impassível.

     — Está é a vila — disse, apontando para baixo. — Dize-o ao teu amo a fim de que saiba para onde mandar o meu cavalo. É a Vila das Sombras. Não irás te esquecer, não?

     Os olhos escuros do árabe seguiram a direção da mão.

     — Meu amo a conhece, — disse gravemente, — é a vila do Visconde de Granier, amigo dele.

     Ela sorriu ante aquela pequena informação gratuita.

     — Vá com Deus — murmurou canhestramente na língua dele. Era uma das poucas frases que aprendera e, ao ouvir-lhe as palavras trôpegas, estampou-se no rosto sombrio do árabe um clarão de alegria. Respondeu-lhe com uma multidão de palavras rápidas e suaves, num árabe que ela não conseguiu compreender.

     Marny esperou que ele tornasse a montar, e, levando pelas rédeas o cavalo que a tinha trazido, se afastasse lentamente. Viu, porém, surpreendida, que ele não voltava na mesma direção em que tinham vindo, mas continuava pelo atalho sinuoso que conduzia ao cimo da colina. As árvores bem depressa lhe interceptaram a vista; e com outro suspiro de cansaço, voltou-se e olhou novamente para a Vila das Sombras.

     Branca e delicada como uma casinha de boneca, construída no meio do belo jardim, rodeada por um alto muro caiado de óca [ocre], o nome parecia singularmente inadequado, mas, fitando-a agora, Marny ficou aturdida pela significação daquele mesmo nome. Para ela, era verdadeiramente uma vila de sombras ameaçadoras e que se aproximavam insensivelmente, enquanto ela hesitava antes de trilhar aquele caminho que os seus pés tantas vezes tinham pisado. Com o coração a bater descompassadamente, ela juntou o que lhe sobrava de coragem e desceu para a portinha do jardim. Espessas frondes de jasmineiros lhe passavam por cima e ela afastava os galhos, procurando a chave. A porta se abriu e Marny entrou. Parou um momento, tendo em frente toda a extensão do jardim até à porta de entrada da vila. Arrepanhou o albornoz, apertando-o ao corpo, e fixou o olhar na casa. O jardim estava deserto, porque era ainda muito cedo para os jardineiros, aos quais se proibia interromper os cochilos matinais do “mylord” inglês, que costumava levantar-se a altas horas do dia com o sol a pino.

     No interior da vila, não havia o menor sinal de vida. Tudo era sossego e quietude, esse chocante silêncio lhe oprimia os nervos esgotados. O perfume capitoso que se espalhava dos arbustos em flor provocou-lhe sensação de náusea, que a sufocou subitamente. Com o coração a saltar, dirigiu-se para a frente, andando vagarosamente de árvore em árvore, sorrateiramente, ocultando-se sob as sombras que ia achando. A princípio, tinha somente vaga consciência do que estava fazendo. Depois, uma onda de cólera lhe passou pelo corpo. Aprumou-se em ar de desafio. Não era um ladrão para arrastar-se sorrateiramente desse modo até à sua própria casa. Por horrível que fosse a suposição de Clyde sobre o que tinha acontecido, nada tinha feito de que se envergonhasse. Com a cabeça erguida e os lábios apertados saiu dentre a folhagem ramalhuda das árvores para o caminho aberto e dirigiu-se firmemente para a casa.

     Era uma vila moderna, construída à francesa, com comunicação entre todos os aposentos. Os quartos de dormir achavam-se na parte traseira e davam para uma varanda que olhava para o jardim. E nesse passo vacilante dirigiu-se para o seu próprio quarto de dormir que ela compartilhava com o bruto que a possuía. Diante da janela de estilo francês que dava acesso ao aposento, estacou, e seus olhos perscrutaram a tênue obscuridade interior, num relance apreensivo. Apoiou-se, enfraquecida, contra o caixilho da janela com um estrangulado suspiro de alívio, tremendo violentamente, tomada, pela primeira vez, de verdadeiro sentimento de lassidão, que parecia arrancar-lhe o último átomo de coragem. O quarto estava aparentemente vazio, e a sólida cama, cujo cortinado de seda pendia de um rodízio fixado ao teto, estava feita e intacta.

     Mas como tornasse a olhar, muito cansada para se mover, viu o que lhe tinha no primeiro momento passado despercebido: a alta figura de uma mulher, vestida de preto, ajoelhada ao lado de uma grande poltrona, com a cabeça apoiada nos braços cruzados. E como Marny se inclinasse, ansiosa, para a frente, chegou-lhe aos ouvidos o suave murmúrio de uma voz que sussurrava, baixinho, uma prece apaixonada.

     Um leve sorriso desenhou-se nos seus lábios.

       — Ann! ciciou. Com um grito abafado, a mulher levantou-se com esforço e, dirigindo-se a ela depressa, agarrou-a nos braços com sofreguidão.

     — Minha querida... minha querida... soluçou; e apertou-a, como se desejasse não mais deixá-la.

     Abandonando-se à fraqueza, que a invadiu, quase feliz daquele momento de sossego ao abrigo dos braços carinhosos que a envolviam, Marny apoiou a cabeça dolorida no ombro da mulher que a criara desde a infância. Mas aquela felicidade transitória bem depressa desapareceu; e, erguendo-se, interrogou com uma simples palavra:

     — Clyde?

     O rosto da velha tomou subitamente uma expressão dura.

     — Mylord ainda não voltou... Graças a Deus! — disse com ar severo.

     Com uma prece interior de agradecimento, Marny deixou-se cair numa cadeira. O alívio era enorme, a tranqüilidade maior do que ousara esperar. Como ele ainda não voltara, não havia possibilidade da sua chegada antes da tarde, quando já teria recuperado forças e coragem para poder enfrentá-lo. Mas uma coisa deveria ser arranjada antes que ele chegasse. Pôs de lado as mãos trêmulas que tateavam as vestes que trajava naquele momento.

     — Tanner, — disse, desfalecidamente, — traga Tanner aqui. Preciso falar-lhe imediatamente.

     A mulher teve um gesto de protesto.

     — Não se incomode com Tanner, minha cara Marny — disse brandamente, — Tanner pode esperar. Deixe-me colocá-la bem a gosto na cama, primeiro, depois eu lhe direi que já está em lugar seguro na sua casa. Ele está aqui perto e não levarei muito tempo para encontrá-lo. Para lhe fazer justiça, devo dizer que ficou tão ansioso quanto eu, para lá e para cá, da casa para as estrebarias, desde a manhã de ontem, e lastimando-se mais por você, minha querida, do que por aquele cavalo viciado e travesso que ele tanto estima — disse ela tentando desapertar de novo o albornoz. Marny compreendeu a angústia de Ann pelos seus dedos, que estavam sem jeito, e sorriu reanimadoramente.

     — Você não pode compreender — disse, insistindo gentilmente. — Preciso vê-lo sem demora. Não faça barulho, Ann, minha cara. Não estou ferida nem machucada de modo algum, estou apenas desesperadamente extenuada. Mas não poderei descansar enquanto não tiver falado com Tanner. Traga-o aqui e, depois, poderá aninhar-me no fundo do seu coração. Mas não sairei desta cadeira enquanto não o tiver visto.

     — Mas, Marny, este é o seu quarto de dormir — exclamou Ann com acento horripilado, — e a senhora, neste traje selvagem, e o seu cabelo e tudo mais...

     — Oh! Não se importe com o meu cabelo, minha velha; Tanner não se irá incomodar por me ver no meu quarto de dormir. Faça como lhe digo, Ann, se me tem amizade, — disse Marny cansada.

     Resmungando, Ann saiu do quarto.

     Voltou quase imediatamente, acompanhada de um homem baixote, de face aguda, que correspondia a todos os indícios do seu nome. Meio jóquei, meio “groom” [encarregado do estábulo] londrino da ponta dos pés à raiz dos cabelos, ele aceitou a situação com o aprumo da sua classe.

     Saudando elegantemente, esperou que Lady Geradine falasse. E Marny, que gostava do homenzinho e confiava nele, não hesitou:

     — Perdi o “Caid”, Tanner — disse sem rodeios. Por um momento a calma abandonou-o.

     — Meu Deus! — suspirou ele; e fitou-a com franco terror. Mas dominou-se rapidamente. — Levou alguma queda, Milady, e a machucou? aquele corrompido demônio... queira me perdoar, Milady. A Sra. Ann e eu ficamos terrivelmente ansiosos, — ajuntou, com um quase temor na voz rouquenha.

       Marny sorriu, abanando a cabeça.

     — Não estou machucada, obrigada, Tanner. O castanho foi roubado. Eu não devia tê-lo levado tão longe de Argel. Esqueci-me de que podia ser reconhecido, e constituir uma tentação para algum árabe que lhe conhecesse o valor, e que uma porção de homens do deserto tinha vindo para a cidade neste momento. De qualquer modo, ele foi-se. Eu não podia fazer nada sozinha. Mas eu... dei informações a respeito e tenho quase certeza de que ele me será devolvido. Assim, você não precisa incomodar-se, Tanner. Tenho certeza de que tudo acabará bem. Foi inteiramente minha culpa e, provavelmente, isto não aconteceria se eu tivesse levado você comigo. Mas não adianta repisar no que já se passou. Explicá-lo-ei a Mylord, e você, Tanner, por favor fique sempre perto das estrebarias, para o caso em que o cavalo volte hoje, — ajuntou apressadamente, esforçando-se por manter a firmeza de voz.

     Por um momento, o homem hesitou; depois com um quieto “Muito bem, Milady”, levou a mão à testa e saiu do quarto na ponta dos pés. Do lado de fora olhou para trás, por cima dos ombros, para a porta fechada; e seu rosto assumiu expressão singular.

     — Sim, você explicará tudo àquele florescente Lord, não é, Milady? Deus Poderoso, todos sabemos o que isto significa! Jamais eu queria ter um negócio destes, com os diabos! — murmurou e saiu, longe de compartilhar o otimismo da patroa sobre o cavalo roubado.

     No quarto de dormir, Marny tinha-se afundado na confortável cadeira, muito extenuada para mover-se, pasmando da sua própria confiança na promessa que lhe tinha sido feita, e pensando também no homem que a fizera e no estranho sentimento de segurança experimentado na sua presença. A voz ansiosa de Ann despertou-a e, levantando-se com esforço, submeteu-se sem outro protesto aos cuidados da sua velha ama, que a despiu das roupas rasgadas com exclamações de horror, à vista das nódoas que lhe manchavam a brancura do corpo delicado.

     Já tinha visto, com o coração angustiado, manchas semelhantes naqueles braços delicados e jovens, e sabia que eram marcas dos dedos de um homem sem coração. Mas não fez nenhum comentário, enquanto banhava os membros doloridos, penteava aquela cabeleira embaraçada, aconchegava aquele leve fardo entre os lençóis, como se ainda fosse criança de berço. E até que ela acabasse de tomar a sopa que lhe trouxe, e fechar as cortinas da janela, privou-se de fazer as perguntas que lhe queimavam os lábios, já havia tanto tempo. Só depois de ter feito quanto podia para assegurar o conforto da ama, foi que se ajoelhou aos pés da cama e tomou-lhe as mãozinhas.

     — Diga-me, minha querida Marny, — implorou, trêmula. — A Sra. não poderá prosseguir guardando mágoas para sempre. Alivie o seu espírito uma vez por todas. Devem ter acontecido muito mais coisas do que contou a Tanner. Chegou em casa esfarrapada, magoada de cortar o coração. Que lhe fizeram, meu amor? Onde esteve todas essas horas estafantes, que quase me fizeram perder o juízo, de temor pelo que lhe tivesse acontecido? Pensei que havia morrido, ou coisa pior. Temia que Mylord voltasse e não a encontrasse em casa...

     Grata pela oportunidade de confiar plenamente uma vez mais na velha ama, que até cinco anos passados lhe tinha compartilhado todos os segredos, Marny contou-lhe tudo. E Ann escutava-a, do mesmo modo que quando criança, havia longos anos, no mesmo silêncio que quando Marny lhe contava francamente as escapadas infantis. Somente o tremor dos lábios finos, a ocasional contração das suas velhas mãos cansadas traiam a agitação que não desejava mostrar. Marny tinha passado bem maus momentos, sofrido bastante num dia, para que ela fosse aumentar-lhe os sofrimentos, fazendo-lhe cenas, agora, que tudo estava acabado. Afastou as mechas de cabelos da fronte aljofrada [orvalhada] de suor e levantou-se, respirando longamente.

     — Foi muito mau o que aconteceu e devemos dar graças a Deus por não ter sido pior, — ponderou, em tom baixo. — Nunca pensei que viesse um dia em que pudesse sentir a menor partícula de gratidão por um árabe, pelas imundas, sonsas e traidoras criaturas que sempre pensei que eles fossem. Aquele homem de Mylord, o tal Malec, sempre que o vejo sinto calafrios. Mas, agora, suponho que há bons e maus entre eles, pelo que a senhora me contou. Um cristão não teria feito mais do que ele, e até há muitos que teriam feito bem menos... Como disse que ele se chama, Marny?

     Com os olhos pesados de sono, Marny voltou-se na cama, aconchegando-se mais confortàvelmente entre as almofadas.

     — Ele não me deu o seu nome verdadeiro, — disse, já cochilando, — apenas me disse que o chamavam de El-Hakim.

     — E o que quer dizer esta palavra?

     — Significa doutor, médico, porém eu não sabia que entre os árabes havia médicos. Talvez ele tenha qualquer ligação com os mais e, como fala o francês muito bem, talvez ele... — e um grande bocejo, interrompeu o fim da frase.

    — Não tenha cuidados a respeito dele agora, minha queridinha. Durma e esqueça tudo o que aconteceu. Que os céus façam com que o homem cumpra fielmente a palavra e nos mande aquele danado cavalo, — disse consigo mesma ansiosamente, saindo do quarto.

    

     O sol já ia alto, quando, com certa relutância, ela foi acordar a moça, levando-lhe uma elegante bandeja, que dispôs ao lado da cama.

     — Já são quatro horas, Marny, e trouxe dois ovos com o chá. Não saio daqui enquanto não a vir comer até o último bocado, — foi logo dizendo alegremente, andando pelo quarto e descerrando as cortinas da janela.

     Lady Geradine espreguiçou-se com volúpia. Depois, sentando-se na cama, esfregou os olhos para afastar o sono.

     — Oh! Ann, que engraçado isto! — proferiu com uma risadinha que há muito tempo a ama não lhe ouvia. — Parece-me os dias de menina. Ponha aqui atrás uma porção de travesseiros e quebre a casca dos ovos. Estou com uma fome terrível.

     Estacou repentinamente, com um pedaço de torrada na mão e o sorriso lhe desapareceu dos lábios.

     — Já trouxeram o Caid?

     Surpreendida pela pergunta, Ann derramou um pouco de chá no pires.

     — Ainda não, queridinha, ainda são quatro horas, e o trem não chega senão às sete, — redargüiu a velha sem pensar.

     Marny compreendeu bem o sentido daquela resposta, um tanto obscura, porém não se deu por achada. Fazia parte do seu plano de vida não confiar certas coisas nem mesmo a Ann, a quem não era também permitido fazer comentário sobre os maus tratos que o marido lhe infligia. Aborrecida consigo mesma pelas palavras que lhe tinham escapado sem intenção, a velha atirou, de soslaio, um olhar arrependido para a moça, que era o seu ídolo. Porém, Marny estava aparentemente entretida a pôr sal nos ovos.

     — Não creio que o pobre animal possa ser trazido de trem, — disse levemente, para mostrar que era o cavalo que tinha em mente.

     Tendo tomado o chá, deslizou da cama e enrolou-se no roupão que Ann lhe estendia. Distendendo os braços, bateu-os suavemente para lá e para cá; depois, levantando-os acima da cabeça, curvou-se até que os dedos tocassem o chão, tomando logo após a posição normal, com uma risada de satisfação.

     — Estou sã como nunca, — disse, — e não tenho os membros doloridos. Agora, vou me vestir para o jantar. Não quero trocar de roupa muitas vezes hoje. Dê-me aquele vestido branco que trouxe de Paris: é folgado e fresco.

     Folgado e fresco demais, pensava Ann, indo com os lábios afetadamente contraídos buscar o diáfano vestidinho, que tinha sido feito por ordem de Lord Geradine, porém ela achava que não ia bem nem era bastante recatado para a sua ama. Aquele vestido, com o seu corte sensual, podia servir muito bem para as mulheres com as quais o Visconde gostava de andar, mas impróprio para a moça inocente com quem ele se casara. E quando os últimos retoques na toalete de Lady Geradine tinham terminado, Ann afastou-se e contemplou o seu trabalho com austera desaprovação.

     Fitando com ar absorto o longo espelho em frente, Marny percebeu a severa impressão dos olhos da velha, que a contemplavam fixamente e se retiraram de súbito com um suspiro abafado, enquanto suas faces se ruborizavam. O vestido era mesmo odioso e ela o aborrecia solenemente, mas nisto, como em tudo o mais, a lealdade para com o marido a conservou de lábios cerrados. Não devia discutir-lhe os gostos. E a discussão não faria com que as coisas melhorassem. Tinha de submeter-se a isso, como ao homem. Não tinha vontade própria. Legalmente, era sua esposa, mas, na realidade, apenas uma escrava, que se devia curvar aos caprichos e tiranias do senhor. Nos primeiros dias de casada, tentara rebelar-se, porém a memória daquelas lutas terríveis e fúteis constituía para ela verdadeiro pesadelo. Os anos, porém, lhe trouxeram sabedoria, prudência, dando-lhe força para suportar justamente aquilo que detestava e a fazia revoltar-se.

     Cingindo um longo colar de esmeraldas, saiu silenciosamente do quarto. O salão em que penetrou, mais inglês do que francês na disposição, era claro e alegre, com estofos da Pérsia coloridos. Ramalhetes de flores, que o enfeitavam em todos os cantos, o perfumavam. Permaneceu alguns momentos junto a uma cesta de rosas gigantes, aspirando-lhes o perfume delicado, acarinhando o rosto com as pétalas frias. Volveu, então, o olhar vagarosamente para um relógio de porcelana, que tiquetaqueava ruidosamente sobre a chaminé. Ainda lhe restava pouco mais de uma hora até que Clyde voltasse, e as suas férias estariam terminadas. Ele raramente a deixava por tanto tempo; e os dias de descanso iam se acabar. Com leve tremor, acendeu um cigarro e começou a passear pelo salão estreito, enquanto o pensamento retrocedia para cinco anos atrás, para o dia em que, com dezessete anos incompletos, uma criança, em todo o sentido da palavra, se tinha tornado mulher, em poucas horas de agonia, cruelmente despertada para aquilo que significava ser a esposa de Clyde Geradine. Ele continuava como começara. O desgosto e a aversão que lhe inspirava, nunca tinham diminuído. Inatamente casta, a brutalidade e franca sensualidade do marido a assombravam. Ainda se ele se houvesse mostrado, ao menos uma vez, movido por sentimentos mais altos, se tivesse mostrado pensamentos mais nobres do que a atração física que sentia por ela, talvez lhe houvesse feito alguma concessão no seu íntimo. Mas para ele, ela era simplesmente um corpo de animal perfeito, do qual esperava, como lhe disse uma vez sem rebuços, obter um herdeiro, no que punha todo o seu coração.

     A nada se apegando, nada esperando, ela sentia somente degradação naquela associação de destinos. Os modos dele eram variáveis e o temperamento muito incerto. Era feito de contradições. Apesar das suas infidelidades, de que ela tinha perfeito conhecimento, da sua preocupação de exibir a beleza da mulher em qualquer lugar e ocasião, era possuído de um ciúme insensato. Infiel ele próprio, não tinha nenhuma confiança na fidelidade da esposa, e suspeitava de qualquer mostra de admiração que lhe dessem. Ela era sua, insistia sempre, tão sua como qualquer cavalo ou cão das estrebarias, sua para usá-la como entendesse. Sua também, parecia-lhe, para torturá-la pelos mais sutis tormentos mentais que a sua natureza cruel pudesse imaginar. E o tormento não era só moral. Agradava-lhe sabê-la sem forças contra a sua força, tinha imenso prazer, quando lhe dava na veneta em sujeitá-la às violências físicas que o seu espírito tacanho concebesse. Comprara-a, tinha-a comprado em corpo e alma, e brutalmente não lhe deixava a menor possibilidade de esquecê-lo.

     Órfã de mãe antes da idade em que pudesse compreender a extensão dessa perda, havia crescido num casarão isolado na costa ocidental da Irlanda. O pai, que adorava, morrera quando tinha doze anos de idade, deixando-a aos cuidados do irmão Diniz, mais velho dez anos. Os vizinhos eram poucos e afastados, e as suas visitas tinham sido havia muito desencorajadas pelo velho solitário, de coração alquebrado, que passara uma vida de reclusão desde a morte da esposa. Sem companhias da sua idade, com raras camaradas de sua classe, tinha passado aquele tempo ao ar livre, montando a cavalo, pescando, contente com a vida limitada que levava. Ann tinha sido a única influência feminina que conhecera; Ann que fora a ama da sua mãe e que agora era a sua.

     E Diniz, um vadio, de gostos e inclinações cuidadosamente refreados durante a vida do pai, ao se apoderar da herança, bem depressa sacudiu a poeira da Irlanda e procurou uma esfera de atividade mais divertida, na qual dissipou rapidamente o patrimônio, e, incidentalmente, caiu sob a influência e o poder de Lord Geradine que, por sua vez, era mestre traquejado de todos os vícios em que o jovem estava imerso.

     Marny jamais soubera toda a verdade da sórdida história. Apenas a conhecera depois de anos de ausência de Diniz, à volta deste, tão mudado que lhe fora difícil reconhecê-lo. Trouxera em sua companhia um desconhecido que passara uns quinze dias na sua casa. Odiara logo à primeira vista aquele inglês alto de ares dominadores, invadira-a um sentimento de repulsa, e desde o princípio as atenções que ele lhe dispensou a horripilavam. Depois, ele se foi embora e, dois meses mais tarde, Diniz reaparecera, mais acabado do que antes. Tinha-lhe contado uma história interminável, cuja maior parte não compreendera, para finalizar com um disparatado apelo para que ela lhe salvasse a honra e a honra da família, que aprendera a reverenciar desde criança.

     Parecia-lhe que somente casando com Lord Geradine poderia evitar o desastre do nome da família. E ignorando o que estava fazendo, levada pela eloqüência de Diniz, apaixonadamente zelosa do nome que durante gerações tinha se conservado imaculado, consentira. Não lhe deram tempo para maiores reflexões e casara quase imediatamente, a despeito dos rogos e demonstrações de Ann horrorizada. Isto fora há cinco anos. E, durante esses cinco anos, padecera uma vida de misérias, no meio de estranhos, desiludida e ofendida. O marido dominara completamente o irmão, um domínio que nunca pudera compreender, nem lhe fora explicado. Esse domínio era o meio de que se serviam para compeli-la à submissão em tudo e por tudo. Havia sempre cumprido o que lhe parecia ser do seu dever, tinha lutado por agradar-lhe em tudo o que era capaz, fora sempre leal a ele, que nunca lhe fora.

     — Cinco anos... Somente cinco anos!

     Com um sorriso amargo, voltou e sentou-se em um largo canapé estofado de veludo da Pérsia. Por muito tempo, deixou-se ficar ali, pensando, quase sonhando, até que, por fim, despertou com um súbito sentimento, chocada pela direção que tomavam seus pensamentos. O árabe que a salvara! Via-lhe distintamente todos os traços da alta e graciosa figura, todas as linhas da face grave e bronzeada. Surpreendeu-se, pensando outra vez na fria austeridade da sua expressão, tão diferente dos olhares de admiração que usualmente lhe dirigiam, e a faziam odiar a beleza que os inspirava. Ele nem mesmo tinha parecido notar que ela era bela. Os olhos sombrios tinham fitado os seus com completa indiferença, e isto lhe era quase evidente, sentia-o com amargura. Sensível ao último ponto, tinha consciência de que o socorro que lhe prestara, a hospitalidade que lhe concedera, tinham sido de má vontade. Lembrava-se da voz cortante e impaciente ao dizer: “Não a conservo aqui para me agradar”, e imaginou por que essa indiferença parecia tê-la afligido. Se não tivesse sido indiferente, se a houvesse olhado como os demais homens qual teria sido sua sorte? Teria escapado de um horrível perigo para cair em outro igual. Havia estado completamente em seu poder, completamente à sua mercê, à mercê de um árabe! Devia a própria honra a um árabe cujo nome nem sabia.

     Por que se haveria ele esquivado à pergunta tão natural, por que escondera a própria identidade sob um apelido? Teria medo de que ela tentasse seguir-lhe a pista, o forçasse a receber qualquer prova da gratidão a que se tinha recusado?

     As faces lhe queimavam. Não havia retribuição possível ao que havia feito por ela. Provavelmente, nunca mais conseguiria vê-lo. Teria de se contentar com a lembrança de um admirável cavalheirismo, que lhe fora uma revelação, e que pensara jamais encontrar. Era como se um poder vivificante a houvesse tocado, um hálito limpo e sadio de brisa purificante tivesse penetrado a atmosfera malsã que a envolvia, abrindo-lhe os olhos para uma nova concepção da atitude dos homens para com as mulheres. Os homens que encontrara até então eram todos iguais ao marido, em gostos e inclinações. Afastava-se desse grupo, como do marido, com invencível vergonha. Compelida a participar de uma vida enfastiadiça, parecia viver à beira de um poço repugnante, mefítico, em plena putrefação, que a levava pouco a pouco a um abismo de trevas, enquanto a sua alma se retraía, buscando fugir à destruição moral que sempre e inevitavelmente vislumbrava à frente. E a Clyde, que lhe importava a sua alma? Apenas queria o seu corpo. E era só admiração pela sua beleza física, o que via também nos olhos dos amigos do marido.

     Ontem, pela primeira vez na vida, encontrara um homem que lhe mostrara ignorar o sexo, cujo olhar não tinha descansado no seu corpo com expressão de desejo carnal, impelindo-a a se lembrar de que era mulher, e cuja proximidade não a fizera sentir desconforto e desassossego, mas, ao contrário, lhe havia proporcionado um sentimento de seguridade e confiança. Com ele via-se segura, tão segura como em sua própria casa. Era interessante. As horas passadas na tenda, a longa corrida a cavalo, a seu lado e através da noite, nunca mais se apagariam da sua memória. Ele lhe proporcionara uma visão mais delicada e elevada da essência humana. Parecia que lhe tinha ressuscitado o sentimento de respeito por si própria que lhe arrancavam ano a ano, dia a dia. E fora um árabe! Um árabe! Murmurou, baixinho, a palavra novamente, permanecendo imóvel no sofá, enquanto seus dedos revolviam sem cessar o colar de esmeraldas. Que lhe importava a nacionalidade? Era o homem em si que tinha importância, o homem que lhe tinha mostrado que nem toda força é cruel, implacável; que nem todos os homens olham as mulheres como presa natural. E, como esse homem do deserto, devia haver muitos outros da sua raça.

     Seus olhos pensativos se obscureceram, em súbita angústia. Atirou-se de bruços, enterrando a cabeça nas macias almofadas de seda, lutando contra a agonia da desgraça e da revolta que a invadia. Por que havia sido fadada de tal sorte? Por que lhe coubera a sina de ser atirada ao meio desses homens cuja tirania, vilania e baixeza despedaçavam a imagem sagrada a cuja semelhança haviam sido feitos? Por que não lhe havia sido dado gozar a felicidade que devia caber às demais mulheres, mais felizes do que ela? E se lhe tivesse sucedido diversamente? Se o seu casamento significasse, não somente a união física, porém a mais alta e santa união de espírito e alma, quão alegremente não se teria entregue a uma paixão santificada pelo amor, a uma posse consagrada pelo coração, e pela consideração! Ah! Pudesse ela amar e respeitar, em vez de somente obedecer e sofrer! Num casamento como o seu era ignóbil, degradante, incrível, horrível. Se soubesse antes o que significaria, teria, acaso, tido coragem para enfrentar a prova? Sentou-se, afastando os bastos cabelos da testa, fitando o espaço com pupilas onde se retratava a dor. Sim, teria enfrentado tudo, a despeito de tudo. Não por amor de Diniz, jamais havia amado aquele irmão que, na infância, a tinha insultado e magoado e, quando moça, esquecido. No limiar da feminilidade, tinha-lhe feito pagar o preço de sua infâmia, mas unicamente por amor do nome da família, que para ela tanto significava! E, por causa disso, porque sua desgraça era o resultado do sacrifício voluntário, deveria prosseguir na luta, como durante esses terríveis cinco anos, batida e sem esperança, forcejando por cumprir a sua parte nas promessas solenes que fizera ao se casar, e que seu marido encarava tão levianamente! Mas, oh! Santo Deus! Nunca imaginara fosse tão dura a prova! E mais dura agora do que nunca.

     Por que seus pensamentos insistiam em pairar constantemente sobre o homem que a tinha salvo? Por que a recordação do seu cavalheirismo e generosidade parecia fazê-la sentir agora mais acerbamente toda a miséria de sua vida? Seria porque aquele árabe era o contraste do homem que esposara? Ocultou o rosto nas mãos, com uma interjeição de temor. Era mais do que isso. De súbito, apreendeu tudo, o sentido claro do que lhe tinha acontecido, toda a significação dos pensamentos que se lhe amontoavam no cérebro. Estremeceu, apertando a cabeça entre as mãos. Por que? Oh! Por que lhe vinha isso agora? Já não era bastante seu sofrimento? E mesmo que não estivesse presa, mesmo que fosse livre, estaria em idêntica situação. Tratava-se de um árabe! Então perdeu o domínio sobre si mesma; e caiu entre as almofadas, os olhos secos de lágrimas, tremendo de emoção.

     — Não devia ter me preocupado, soluçou, não devia ter me preocupado com o que ele é.

     Mas a indiferença desse homem fora completa, e ela era casada!

     Torceu as mãos, numa crise de vergonha e horror. Era casada! Era esposa de Clyde! O simples fato de pensar em outro homem já era pecado! Devia arrancar do coração a imagem que ali se implantara em tão poucas horas.

     — Não devia vê-lo mais, nunca mais...

     Com os lábios trêmulos, proferiu isto baixinho; e agitou-se violentamente ante a desolação que lhe invadira a alma. Uma camaradagem tão rápida, um estranho de passagem, de raça estranha e cujo nome nem sabia, e, no entanto, como lhe parecia agora o mundo vazio!

     Refletiu, envergonhada e vagamente assustada.

     Era porque confiara nele, pensou, tentando justificar-se, e também porque se achava cansada e abatida. Tinha permitido, enervada, que a sua bondade se impressionasse profundamente. Mais tarde, quando lhe tivessem voltado as forças, esqueceria, não a ele, porém a maldade que sentia nessa noite no coração.

     Moveu-se no sofá, mentalmente exausta, extenuada demais para pensar em que o Caid estava faltando na cocheira, que bem depressa o marido poderia chegar e teria de lhe dar uma explicação estropiada, e enfrentar-lhe a inevitável ira. E, uma vez pelo menos, seria por justa causa que ele se encolerizaria. O cavalo era inestimável e ela não tinha direito de levá-lo, sozinha, para tão longe de Argel. Era procurar incômodos numa terra de cavalarianos, que roubam o que não podem comprar e consideram o roubo de um puro sangue notável, que um estrangeiro se propõe a tirar do país, um ato meritório.

     Mas nada adiantaria explicar a Clyde o irresistível desejo de solidão que a arrastara ontem, pela manhã, sem o criado, cuja constante presença lhe tirava todo prazer das cavalgadas e excursões pelos arrabaldes de Argel.

     O relógio da chaminé bateu sete horas. Mal olhou para ele. Se Clyde viesse, o trem já devia estar atrasado. Era sempre assim. E, pelo espaço de quase uma hora, deixou-se ficar ali, quieta, absorta, lutando por concentrar o espírito cansado em trivialidades, entorpecendo-se de sonolência, à proporção que o quarto imergia gradativamente na escuridão da noite próxima.

     Estava quase dormindo, quando o som de uma voz áspera, ecoando no vestíbulo, fê-la erguer-se no sofá, com o coração a saltar do seu peito em pancadas violentas, os olhos fixos apreensivamente na porta. Levantou-se atarantada, no momento em que ele entrou como um furacão, com sua alta estatura e arcabouço possantes, cujo perfil quase enchia o vão da porta. Estacou um momento na entrada, tentando divisá-la na semi-obscuridade do aposento.

     — Por que diabo está você sentada aí no escuro? — O tom truculento deu-lhe imediatamente certeza sobre o estado de espírito em que ele viera e o coração bateu-lhe mais depressa ainda, ao senti-lo tatear as paredes, procurando o interruptor. Súbito, o salão ficou inundado de luz, enquanto ele baixava a mão com gesto impaciente e ela, rindo nervosamente, pestanejava por causa do clarão repentino das lâmpadas acesas.

     Sem esperar resposta, Clyde dirigiu-se para ela e agarrou-a nos braços musculosos, com os rudes trejeitos que lhe eram habituais.

     — Estava dormindo, cansada de esperar-me? Você está me parecendo uma criança com esses cabelos desgrenhados e o rosto colorido, como se tivesse dois anos, — disse, com riso curto de satisfação, atraindo-a mais para perto de si e inclinando-se para beijá-la. O hálito quente, baforado sobre o seu rosto, recendia tanto a álcool, que lhe foi necessária toda a força de vontade e ânimo para sopitar [dominar] um movimento de repugnância. Encarou-lhe os olhos pesados e brilhantes de lubricidade repentina, no momento em que esmagava os lábios contra os seus.

     Quando ele a deixou, ela tremia dos pés à cabeça, mas ele não pareceu notar essa agitação. Riu de novo, fitando-a e examinando-a vagarosamente de cima abaixo, com a franca satisfação de um proprietário.

     — Foi isto o que eu quis! — ponderou complacente. — Uma quinzena é prazo muito grande para passar sem sua companhia, minha querida. Você me acompanhará na próxima vez. E a excursão não valeu a pena. Nenhuma caça que valesse um caracol; nem a vista, nem o cheiro de uma pantera. E aquele burro do Malec estragou todos os apetrechos, como eu esperava. Enfim, houve falta de sorte do começo ao fim. E o trem atrasou de uma hora, como sempre, para chegar a Argel. Ainda tive de esperar um tempo infernal, numa estação qualquer, para que o maldito dum chefe, ou coisa que o valha, embarcasse com toda a sua tribo. Pensei que tivéssemos de passar a noite ali. Não compreendo por que deixam esses miseráveis viajarem de trem. Sinto um calor de todos os diabos e minha goela está em brasas. Quero bebida e banho. Diga ao criado que ponha o jantar em meia hora.

     E, praguejando sobre a ineficiência dos trens argelianos, abalou-se para o quarto, da mesma maneira que entrara no salão.

     Enojada, esfregando com a mão os lábios, que ainda lhe tremiam dos beijos, Marny fez um esforço para se recompor e dominar-se. Mas teve de sair logo depois, inquieta e nervosa, ao ouvir os gritos zangados que partiam do quarto de vestir do marido. Todavia, teve um suspiro de alivio, ao pensar que ele ainda não soubera do desaparecimento de Caid e, portanto, a sua ira era apenas filha do mau resultado da expedição. Se lhe pudesse esconder a notícia até amanhã, talvez o cavalo já tivesse voltado e tudo acabaria pelo melhor.

     Abafou um suspiro e, tocando a campainha, deu ordens para o jantar.

     Os gestos bruscos do marido lhe tinham ainda mais desarranjado os cabelos. Enquanto os alisava e penteava, fitou hostilmente a própria imagem no espelho. Clyde a tornara covarde; torná-la-ia também mentirosa? Mas pelo menos, a si mesma não mentiria. Era simplesmente a covardia que lhe fazia protelar a narração do desastre. Por pura covardia, escolhera o odioso vestido que estava usando aquela noite. Virou-se, com um gesto de desgosto e severidade, e passeou pelo quarto, até que ele veio juntar-se novamente a ela.

     Durante o jantar, enquanto ele se entretinha num longo e detalhado relatório da expedição que lhe saíra às avessas, seu silêncio passou despercebido. Clyde rogou pragas ao país, à sua gente e às facilidades de esporte com igual parcialidade, e com a pujança de linguagem colorida que lhe era peculiar. Interrompia-se, freqüentemente, para censurar os criados que, aliás, estavam cumprindo bem e rapidamente suas obrigações.

     Marny sabia que ele devia ter bebido muito durante o dia, mas a sede do marido parecia insaciável, e, como o visse emborcar copos e mais copos de uísque, imaginou, com terror, a forma inevitável de reação que esses excessos assumiriam. Seus momentos de raiva eram mais fáceis de suportar que os de sentimentalidade embriagada. Contrariamente ao costume habitual, ele a seguiu ao salão, depois do jantar, acendeu um cigarro diante do fogão todo ornamentado de flores, com as mãos no fundo dos bolsos do jaquetão de jantar, examinando a mulher com os olhos apertados, até que lhe trouxeram o café.

     — Você está bonitinha esta noite, Marny, — começou, recebendo a fina xícara que lhe estendiam. — Louvo-me por ter tido a idéia genial de comprar esse vestido!

     De repente, olhou de má vontade para o café que levava aos lábios. Um momento depois, a xícara e o conteúdo foram dar contra os vasos que lhe ficavam atrás.

     — Que porcaria! — exclamou, desgostoso. — Se aquele tipo não sabe fazer um café decente, que se vá embora.

     Mandando o cozinheiro para o inferno, deixou-se cair preguiçosamente numa cadeira e, puxando para perto de si uma mesinha de rodas sobre a qual havia uma bandeja de garrafas, despejou conhaque à larga num copo. Sem responder diretamente à invectiva, Marny colocou a xícara sobre o pires. Não houvera descuido com o café, que estava bem feito e saboroso como sempre. Mas era completamente inútil retrucar às objurgatórias de Clyde naquele estado. Ele, por sua vez não esperava nenhum comentário. Tragando de um gole o conhaque distendeu indolentemente braços e pernas, e atirou-lhe a pergunta que ela esperava desde a sua chegada à tarde.

     — Tanner tem se comportado bem? Os cavalos estão bem? — perguntou com violência, relanceando a vista para o relógio da chaminé. Temendo que, mesmo a essa hora tardia, ele tencionasse visitar as estrebarias, pela primeira vez na vida, ela mentiu, enterrando os delicados dedos nas macias almofadas do sofá, até senti-los endurecidos e dormentes.

     — Tanner tem sido exemplar. Os cavalos estão esplêndidos. — Esta resposta, aparentemente o satisfez, porque ele rosnou uma aprovação, e achegou-se mais confortavelmente na cadeira. Durante algum tempo, conservou-se silencioso, e ela quietinha, lutando por dominar as palpitações desordenadas do coração e sentindo perfeitamente O olhar pesquisador que raramente se desviava do seu rosto. Mas quando a bandeja de café foi retirada, ele estremeceu desassossegadamente.

     — Chegaram cartas?

     Acostumada a fazer o que ele sentia preguiça de fazer, levantou-se e trouxe-lhe uma pilha de correspondência que se tinha acumulado durante sua ausência; e voltando para o sofá, ficou-se a vê-lo abrir as cartas, de uma em uma e atirá-las para o lado. Afinal, não pôde mais e perguntou:

     — Não vai ao Clube hoje?

     Ele sorriu significativamente.

     — Não! — disse, com um olhar que a fez desanimar. — Parece esquecer, minha querida, que estive fora durante quinze dias. A companhia de minha esposa me bastará por esta noite.

     Com tremor involuntário, ela desviou o olhar, voltando a cabeça para que ele não percebesse a aversão estampada no rosto, e com os dedos trêmulos apanhou um livro. Não tinha esperado que ele fosse ao Clube naquela noite, e só o intenso desejo de encurtar o mais possível as horas que devia passar sozinha com ele, lhe sugeriu aquela pergunta. Os lábios tremiam-lhe ao folhear mecanicamente as páginas do livro, não lendo mas ouvindo os comentários irados sobre o conteúdo das cartas que, evidentemente, não lhe estavam agradando. Por fim, atirou a última, com uma espécie de grunhido.

     — Aquele seu encantador irmão está procurando incômodos! Esbanjou de novo a mesada e tem o desplante de me escrever, pedindo para enviar-lhe um cheque pela volta do correio. Prefiro vê-lo despenhar-se no abismo. Avisei-o em tempo de que a sua mesada é suficiente e eu não lhe aumentaria nem um vintém. Parece imaginar que sou feito de dinheiro, — ajuntou, dando um pontapé na carta.

     O livro deslizou das mãos de Marny para o chão e ela ergueu-se de um salto, fitando-o sem compreender.

     — Sua mesada... Diniz?... não compreendo, Clyde, — disse vagarosamente, franzindo a testa, intrigada.

     Ele olhou-a com um sorriso curioso.

     — Nem queira compreender, minha cara, — disse com expressão desagradável. — Nem Diniz, ao que parece. Nenhum irlandês parece dar verdadeiro valor ao dinheiro, e suponho que Diniz está de acordo com esse tipo, quando se esquece do fato de que a mesada anual que lhe concedi tem de durar um ano. Pode rezar por alma do aumento, porque não lho darei.

     — Mas, Clyde, não sei bem o que você está dizendo, — suspirou ela. — A mesada que você lhe concedeu? Por que concedeu você uma mesada a Diniz? Por que não pode ele viver com o seu próprio dinheiro?

     Lord Geradine sorriu de novo.

     — Que dinheiro? — perguntou lentamente.

     Ela levantou a cabeça, vibrando impacientemente.

     — Seu próprio dinheiro, o dinheiro da herança, as rendas do Castelo Fergus. Com aquilo... com que sempre viveu. Por que não pode ele se governar sozinho?

     — Porque as rendas do Castelo Fergus são pagas a mim, — replicou o marido resumidamente.

     Ela fitou-o com ar atoleimado, levando a mão à cabeça como se estivesse desorientada.

     — A você? — gaguejou, — as rendas do Castelo Fergus são pagas a você! Mas por que? O que tem você a ver com o Castelo Fergus? Oh! Clyde, não sei o que quer dizer, verdadeiramente não sei.

     Lord Geradine alçou-se de lado na cadeira e despejou mais uísque num copo, deliberada e vagarosamente.

     — Você sabia que seu irmão se achava no último grau da atrapalhação quando nos casamos, — disse ele por fim e com certa irritação na voz.

     Ela pestanejou, e o sangue invadiu-lhe as faces pálidas.

     — Eu... eu sabia, — retrucou, tremendo, — mas não podia supor que isso tivesse relação com dinheiro. Pensei que fosse alguma coisa horrível que ele houvesse feito, — ajuntou com um arrepio, pois já lhe faltava a voz.

     Geradine esvaziou o copo e afastou-o de si, com uma dura gargalhada.

     — Uma coisa vem sempre atrás da outra, — disse com ar de desprezo, — e foi isso que aconteceu com Diniz. Esbanjou uma bela fortuna em espaço de tempo fora do comum e, depois, cometeu aquela “coisa horrível” como a você agrada chamar-lhe. Sei que eu mesmo não sou modelo de virtudes, porém há coisas de que sou incapaz. Desgraçado seja eu se algum dia sujar minhas mãos, fazendo o que ele fez. E fê-lo por muitas vezes, até que entrei em cena. Encontrava-se numa complicação de todos os diabos e quase foi dar com os costados na cadeia. Mas, por certas razões que me concernem, isso não me agradava; e subiu ao sétimo céu da alegria, ao aceitar as condições que lhe apresentei. Ele queria sua liberdade e dinheiro bastante para gozá-la, e eu... queria a você. Eis aí tudo... — concluiu, com brutal candura.

     Ela sentou-se ereta, olhando-o fixamente, as faces descoradas, tentando apanhar o sentido do que ouvira. Naquele momento, não sabia qual dos dois odiava mais, se o irmão que a vendera, ou o homem que se contentara em concluir tão vergonhoso negócio para conseguir o que desejava.

     — Ele me “vendeu” a você! — disse por fim. E o desdém, que transparecia em sua voz, fez Clyde saltar da cadeira, com uma praga que a encheu de calafrios.

     — Oh! pelo amor de Deus, não faça disto tragédia! — gritou raivosamente. — De qualquer modo, já é coisa passada. Você sabia que Diniz tinha qualquer razão para apressar nosso casamento. Não sei que história fantástica ele lhe contou, nem me importa. O fato é que estamos casados e já não há o que discutir. Não vejo necessidade de discutir tão rudemente agora a respeito. Você não andou tão mal pelo seu lado, minha inocentinha, nem me estou queixando. Não seja doida, Marny. Posso não ser tão santo, mas estou terrivelmente apaixonado por você. Desejei-a logo no primeiro minuto que descansei meus olhos nos seus, e... quase sempre, consigo aquilo que quero, — ajuntou, com uma gargalhada complacente, deixando-se cair no sofá, ao lado dela. Depois, sua voz mudou, ao passar lentamente a mão pelo braço macio e fresco que aparecia sob a larga manga do vestido — Tenho estado a desejá-la durante todos estes quinze dias, — murmurou com voz grossa, e passou-lhe os braços em redor do corpo com súbita violência. Por um momento, ele a susteve, tremente e desamparada, sob esse abraço furioso.

     Ela sentia-lhe o bater violento do coração, ao fitá-la com desejo ardente estampado nos olhos injetados de sangue. Depois, ele riu de novo, com uma risada que bulia com todos os nervos, apaixonadamente revoltados. Afastou-a com brutalidade.

   — Vá, — disse rapidamente, — e não me deixe esperar um século como sempre faz. Diga àquela velha que se retire em dois minutos, se dá algum valor ao emprego que tem aqui.

     Fora da porta, livre, enfim, daqueles olhos vigilantes, a pobre criatura enterrou a face nas mãos, com um soluço de agonia. Por quantos anos mais, ó Deus misericordioso, devia ainda aturar aquela horrível escravidão? Seria possível que jamais se visse livre, que nunca pudesse escapar àquela brutalidade, senão quando a morte viesse libertá-la? E ainda se morresse... mas achava-se tão moça para morrer! A desgraça não matava. Viveria... viveria até que a beleza, que era tudo o que a ele importava, até que sua beleza se estiolasse, até que ele lhe tivesse arrancado toda a força e vitalidade que o haviam atraído. E depois? Para ela não havia depois, não havia esperança, não havia consolo. Somente o presente e com todas as dificuldades, com todos os sofrimentos. O presente! Sobressaltou-se nervosamente. Quanto tempo tinha ficado ali? Com um arrepio convulsivo, atravessou rapidamente a saleta de entrada, imersa em semi-obscuridade.

     Ao passar pelo quarto do marido a porta abriu-se de repente e ela deu de cara com o árabe que era criado de quarto de seu algoz. Não o vira desde a volta de Clyde e, forçando os lábios trêmulos a sorrirem, acenou-lhe de cabeça, num bondoso cumprimento, como fazia com todos os fâmulos da casa. Mas, ao fitar o rosto do criado, as palavras lhe morreram num suspiro inarticulado; estacou abruptamente, horrorizada ante uma terrível cicatriz que, alongando-se da testa ao queixo, lhe desfigurava completamente a face, marca que só poderia ter sido feita por um chicote manejado por mão possante.

     — Malec!... — gritou horrorizada.

     Com um rápido “salaam”, o homem afastou-se, passando adiante dela e desaparecendo na passagem estreita, com os movimentos sutis próprios da sua raça.

     Marny, como que transformada subitamente em estátua de pedra, respirou com dificuldade, apertando a fronte com as mãos, abismada do que acabara de ver.

     — Como pode esse homem!?... Oh! Como ousa esse homem... — perguntou a si mesma.

     Depois, com um olhar de medo e apreensão, correu, tomada de pânico, para a porta do seu quarto de dormir. Mas, ali chegando, com tremendo esforço de vontade retomou o domínio de si mesma, e foi de fisionomia calma, sorrindo com aparente naturalidade, que Ann a encontrou. O rosto da velha estava radiante. Quase corria pelo quarto.

     — Marny, minha querida, tudo direito, — segredou ansiosamente, — Tanner voltou. O cavalo foi devolvido há uma hora e parece estar em belíssimas condições.

     Por um instante, Marny olhou-a estranhamente. Depois, deixando-se cair numa cadeira, com um suspiro de alívio estirou os braços, com as mãos a tremer.

 

     Ao fim de uma tarde quente, cerca de três semanas depois da volta a Argel, Carew estava sentado num aposento particular do Palácio de Inverno do Governador Geral.

     Olhando distraidamente pela janela aberta, com um cigarro esquecido no canto dos lábios, ouvia, sem prestar atenção, os fracos acordes de uma banda de zuavos [soldados de infantaria argelinos], que vinham da Praça dos Governadores. Tamborilava, absorto, na mesa que lhe ficava em frente, literalmente coberta de mapas, planos e relatórios datilografados. Cerca de duas horas estivera a repetir a história de sua última expedição, e de uma concessão que a muito custo obtivera. Era ouvido com maior prazer pelo representante do Ministério do Interior, muito amante de minúcias, que teria de voltar no dia seguinte para Paris, depois de longa excursão a cavalo pelas províncias do norte da Argélia.

     A missão de Carew terminara com êxito e seu relatório fora devidamente entregue na Repartição Central. Agora, desejava descartar-se da incumbência e retornar aos seus penates [lar, família]. Sentia bastante alegria em ser útil à Administração, ansioso, quando se oferecia oportunidade, por ajudar a estabelecer-se melhor entendimento entre os dominadores do país e os chefes nativos, o que para ele constituía apenas um dos menores incidentes de sua vida de homem do deserto. Não tinha a menor intenção de aumentar a importância do que fazia, nem o desejo de ganhos ou vantagens pessoais. Sentia-se contente em prestar seu auxílio quando o solicitavam e deixar que os outros colhessem os louros. Trabalhava somente por amor do país que habitava havia tantos anos e por admiração aos seus administradores. O Governador Geral e o Comandante-Chefe das forças que o guarneciam, ambos trabalhadores tenazes, homens conscienciosos, que governavam com tacto e discrição um país difícil, eram seus amigos pessoais, e ele se consideraria amplamente recompensado se os seus esforços contribuíssem, de qualquer modo, para lhes aliviar o pesado encargo.

     Naquele dia, porém, condescendera em atender ao desejo do General Sanois, que governava a parte do Sahara em questão, desejo tantas vezes expresso, de que as suas valiosas informações fossem mais intimamente conhecidas pelas autoridades locais.

     A entrevista se realizara com êxito. O ilustre visitante mostrara largo conhecimento dos negócios da região, e conseguira minorar a instintiva hostilidade com que os dois homens, primariamente responsáveis pelo bem-estar geral, tinham encarado sua chegada. Ouvira com a máxima atenção a história relatada por Carew, apanhando correta e inteligentemente os pontos de maior importância, e não lhe tinha regateado louvores pelo trabalho efetuado. Com a cortesia e entusiasmo peculiar aos gauleses, tinha-se congratulado com todos os que tomaram parte na expedição, exprimindo a gratidão própria e de sua pátria, aos três homens, aos quais se dirigiu num pequeno discurso de felicitações que deixava entrever o muito que não tinha dito. E, com uma troca final de cumprimentos, tinha se dirigido para a carruagem que o esperava, acompanhado pelo Governador Geral e pelo General Sanois.

     Ficando por momentos na sala fresca e agradável, Carew caíra em profunda meditação, que nada tinha que ver com os fatos ocorridos naquele dia.

     Despertado pelo som de vozes que se aproximavam, voltou-se relutantemente da janela, no momento em que o robusto e sorridente Governador entrava ruidosamente na sala, seguido por seu colega de armas, alto e de rosto grave, e um moço esguio, de aparência delicada, que silenciosamente foi sentar-se a uma mesa num canto.

     Com um gemido, o Governador deixou-se cair numa cadeira, esfregando vigorosamente a testa suada e sorrindo com evidente satisfação a.seus camaradas.

     — Está acabado, — concluiu em tom de alívio. — Eu comumente tenho uma “crise de nervos” depois dessas visitas, porém esta foi melhor que muitas outras, graças a Deus! Algumas delas... ó! lá! lá!

     Interrompeu-se com uma careta cômica, exibindo o grande lenço de seda. Depois, encolhendo os ombros e com uma alegre risada, deu com o dedo leve pancadinha confidencial no joelho de Carew.

     — Tudo vai às mil maravilhas, meu caro Carew. Nosso amigo está encantado com o que viu e me deu o prazer de ser cumprimentado sobre o estado do país. Engoliu todas as extravagantes propostas do nosso bom Sanois, aqui presente, sem se desviar um cabelo. Se recordar-se do que prometeu, se o interesse demonstrado for verdadeiro, bem depressa teremos alterações na administração, que há muito tempo vimos requerendo em vão. Como vê, nossas mãos estiveram atadas por longo tempo. Ele viu a necessidade de desatá-las. Não espero o milagre. Já tenho passado toda a minha vida esperando por tudo, principalmente de políticos, mas agora tenho esperanças. Decididamente, tenho muitas esperanças. Se não fosse exaustivo, eu me permitiria ficar entusiasmado. Mas quando vim para a Argélia, abandonei de vez os entusiasmos que me deprimem os nervos. Fez novamente uma demonstração com o lenço e bateu no peito em largo gesto significativo. — E umas condecoraçõezinhas também virão depois, heim? Não lhes devemos prestar muita atenção, na verdade. Todavia, são bem agradáveis de se receber... Qh! sim, decididamente bem agradáveis ...

     — Quanto a mim, eu me contentaria em receber a bateria extra que pedi! — resmungou o General Sanois.

     O Governador olhou para ele, com expressão de protesto apiedado.

     — Ah! Vocês soldados... Vocês e seus canhões! Força bruta! É só no que pensam! — murmurou, reprovando.

     Depois, sorriu novamente, abanando as mãos, como se quisesse afastar-se da idéia desagradável que lhe tinham sugerido as palavras do colega.

     — Vocês jantarão comigo hoje, — disse alegremente, — ambos vocês. Devemos celebrar condignamente este acontecimento. Depois, talvez por uma ou duas horas, a Ópera? Não é muito divertido, mas... — e encolheu os ombros caprichosamente, oferecendo a cigarreira a Carew.

     Por algum tempo ainda conversaram sobre as possibilidades do novo regime em perspectiva. Então o General se levantou para sair, com uma vaga referência a uma pilha de correspondência que o estava esperando.

     — Vem comigo? — perguntou, virando-se para o inglês. — Carew abanou a cabeça.

     — Tenho um encontro no Casbar, esta tarde, — disse, misturando alguns papéis e metendo-os no bolso do jaquetão.

     Sanois riu com ar carrancudo e desviou os olhos do cinturão que Carew estava afivelando. Havia certa ansiedade nos seus olhos atilados e argutos.

     — Seria indiscreto, suponho, perguntar-lhe com quem? Você conhece mais Casbar do que eu, disse quase de má vontade. Você tem amigos em toda a parte, Carew. E em alguns deles eu gostaria de botar as minhas mãos, — ajuntou, com certa expressão, que significava alguma coisa bem compreensível.

     Carew sorriu levemente.

     — É possível, — disse firmemente, — porém os meus “amigos” são úteis. E até o dia em que me abandonarem, não poderei ajudá-lo muito nas informações que deseja colher sobre eles. Isto foi o combinado, — ajuntou, dando tom de aspereza à sua voz.

     — Palavra de inglês, eh? — redargüiu o General, com um sorriso de severidade, e saiu do salão a passos largos.

     O Governador olhou para a porta que se fechava, enrugando a testa num ar de reprovação.

     — Belo camarada, mas sedento de sangue... muito sedento de sangue mesmo, — continuou, revelando na voz que sentia pena, como se, no intimo, não visse com prazer uma atitude para a qual, na realidade, era obrigado a concorrer.

     Mas os pensamentos de Carew não se dirigiam absolutamente ao homem que acabava de sair. Atravessando o salão para a janela aberta, permaneceu algum tempo sem falar, com as mãos enterradas nos bolsos do paletó e fitando as palmeiras do jardim. Já acostumado a esses freqüentes e prolongados silêncios, seu hospedeiro, um pouco sonolento por causa do calor do dia e das agitações daquela tarde, não tentou forçar a conversação. Estirou-se confortàvelmente numa larga cadeira de braços, tomou, brincando, um cigarro entre os dedos e saboreou o vermute que Carew tinha gentilmente recusado. Estava muito contente de si mesmo e do mundo. A voz de Carew interrompeu-lhe o fio dos pensamentos, que se dirigiam ora para os felizes resultados das entrevistas daquela tarde, ora para as delicias gastronômicas do jantar, cuja hora já se aproximava.

     — Há um compatriota meu, um certo Visconde Geradine, que alugou a vila Granier para este inverno... Podia o senhor dizer-me alguma coisa sobre essa personalidade?

     O seráfico Governador pareceu vagamente embaraçado.

     — Receio que nada de bom tenha a dizer-lhe, — respondeu vagarosamente. — Lamento muito, mas ele não é ornamento da aristocracia inglesa, usualmente tão distinta. Pessoalmente, muito pouco sei a seu respeito. Mas a gente ouve coisas... ouve coisas... — repetiu remexendo-se na cadeira, como se não se sentisse a seu gosto.

     Carew hesitou um momento, depois perguntou enervado:

     — Que espécie de coisas?

     Surpreendido pela pergunta, o francês lançou-lhe um olhar de indissimulado espanto. Não era verossímil que Carew fosse curioso a respeito de quem quer que fosse, e, durante todo o tempo que o conhecera, jamais tivera o Governador ocasião de vê-lo referir-se ou pedir informações a respeito de qualquer membro da colônia inglesa.

     — Patrice deve estar mais informado a esse respeito do que eu, — respondeu, enrolando e acendendo outro cigarro, com delicada precisão. E voltando-se para o jovem pálido, que se achava sentado a uma escrivaninha num dos cantos do salão, aparentemente absorto no seu trabalho de secretário, levantou a voz devagar. — Meu caro Patrice, poderá você dizer-nos alguma coisa sobre aquele inglês, Lord Geradine, que está morando na Vila das Sombras?

     O moço voltou-se rapidamente com uma risada, o que demonstrava não estar tão absorto em seus deveres, como seria de supor.

     — Posso contar-lhe o que aconteceu em casa de “Fátima” a noite passada, meu tio, — replicou prontamente, com um sorriso juvenil e levemente malicioso. Mas o Governador levantou a mão rapidamente, em sinal de horrorizado protesto.

     — Peço-lhe que não! — atalhou apressadamente. — Evitemos os detalhes nojentos, “mon cher”. As generalidades serão suficientes, sim... amplamente suficientes.

     0 sobrinho aquiesceu, encolhendo os ombros.

     — Como quiser, meu tio! — disse. — Mas foi muito divertido... muito divertido, — gesticulou, com a segurança de pessoa privilegiada.

     E, durante cinco minutos, esboçou, com a franqueza de sua raça, o caráter e as faltas do homem que havia conquistado reputação nada invejável, mesmo em uma pequena sociedade como aquela, de laços tão estreitos, e onde todos se conhecem uns aos outros. Foi uma desapontadora revelação que provocou pequenas exclamações de desgosto do Governador, visivelmente enojado. Mas Carew ouvia, com aparente indiferença, a narração das estripulias do compatriota:

     — ...bêbedo e mulherengo, — concluiu o “attaché”, sublinhando o final das acusações, como se as tivesse lançado em processo formal. — E casado, — ajuntou com um ímpeto de indignação, — casado, imagine, com uma belíssima senhora de rosto angélico...

     — Sim, sim, isso mesmo! — interrompeu o tio secamente. Eles quase sempre são casados, esses sujeitos, com belas e jovens senhoras de rosto angélico! Mas, não falemos agora de Lady Geradine, meu caro Patrice. O marido não é de caráter muito agradável, — ajuntou voltando-se para Carew, como se quisesse desculpar-se dos comentários do sobrinho, — mas é rico... imensamente rico, penso eu. Se é sobre o negócio de um cavalo, talvez... — sugeriu, experimentando uma razão provável e que lhe tinha ocorrido subitamente pela pergunta de Carew. Mas este último abanou a cabeça, num gesto sumário de desdém.

       — Dou muito valor aos meus cavalos para vendê-los a um homem dessa espécie! — redargüiu laconicamente. E preparou-se para sair, sem dar maiores explicações de sua curiosidade.

     Fora, na Praça dos Governadores, consultou o relógio de pulso e dirigiu-se em direção do bairro nativo. Era mais tarde do que imaginara. Teria de se apressar para não faltar ao encontro marcado. Depois, ainda seria forçado a voltar à sua vila, para vestir-se para o jantar a que o Governador tão alegremente o convidara. Despreocupado do tráfego intenso, já muito familiarizado com os diversos tipos, nem sequer olhou para a multidão de humanidade cosmopolita em derredor, dirigiu-se a largos passos pelas ruas movimentadas, com a testa franzida, imerso em seus pensamentos. Que diabo o teria obrigado a fazer ao Governador aquela pergunta idiota? Que lhe importava aquele camarada? Se a história do jovem e volúvel “attaché” era verdadeira, e Patrice Lemaire era uma borboleta social que conhecia tudo e todos em Argel, o homem devia ser um refinado patife. E mesmo que fosse, que tinha ele, Carew, a ver com isso? Não lhe fazia a menor diferença que o locatário da vila de Granier fosse um demônio saído do inferno ou um santo caído dos céus. Se a moça se havia casado com um biltre, só a ela importava. Não tinha a menor influência sobre ele. Não tinha interesse algum pelo homem nem pela moça. É verdade, fora forçado a socorrê-la uma vez quando ela precisou dele, mas o caso já estava morto, graças a Deus, e agora, então, completamente terminado no que lhe dizia respeito, porquanto tivera a felicidade de encontrar o cavalo e devolvê-lo mais cedo, aliás, do que esperara. Que bruta sorte ter encontrado pela segunda vez Abdul el Dhib! Sorriu involuntariamente, ao se lembrar das pragas do velhaco ladrão de cavalos, quando fora obrigado a entregar com relutância o cavalo roubado, que tencionava vender por bom preço a um sheik do Sul, acostumado a pagar sem discutir. Mas fora toma lá, dá cá. Se tivesse chegado meia hora mais tarde, não mais o encontraria. E qual o resultado? Subitamente, pareceu-lhe estar fitando um par de olhos azuis, fatigados e sombrios, cheios de terror. Sacudia os ombros para trás com raiva, amaldiçoando a peça que lhe estava pregando a memória, trazendo-lhe ao pensamento com tão viva clareza e tão distintamente o rosto branco da moça. Durante anos, não olhara voluntariamente para nenhuma mulher. Por que o perseguia agora tão insistentemente o rosto daquela? Absolutamente não desejava recordá-la, esperava mesmo jamais tornar a vê-la, mas, nessas três semanas, sua recordação era como um pesadelo. A tranqüilidade de espírito, que conquistara depois de anos de lutas mentais, estava lhe sendo arrancada aos bocados, primeiro, pela vinda de Micky Meredith, e depois, pela circunstância que lhe atirara a infortunada moça no caminho. A quieta vila que lhe fora por tanto tempo calmo retiro, não lhe parecia agora nem sossegada nem solitária. Estava povoada de sombrias figuras que se atropelavam dia e noite nos seus pensamentos, modificando-lhe hábitos que se tinham tornado como a sua segunda natureza, e agitando-o dolorosamente à lembrança das mais remotas emoções de sua vida. Achava-se nas garras de uma tremenda revolta, que lhe atuava igualmente sobre o espírito e o corpo. Pela segunda vez em quarenta anos de existência, parecia-lhe enfrentar uma crise opressiva. Tentou analisar sem paixão a agitação de alma tão forte que lhe invadira o ser, encontrar honestamente a razão da inquietação de que estava possuído. Mas o exame de si mesmo não lhe proporcionou melhor compreensão dos seus sentimentos, não lhe trouxe nenhuma espécie de alívio.

     Na realidade, havia apenas uma solução, ponderou obstinadamente, ao prosseguir o caminho através de ruas estreitas, uma solução que era bem simples, bastante simples na sua consciência, se ele pudesse se apegar a ela. Era, e só podia ser, reagir ao súbito despertar da velha dor, reagir contra as velhas recordações que supusera extintas para sempre. Não havia outro meio de descansar o espírito, e ele nada faria para encontrá-lo. No entanto, que humilhação que o encontro casual com um velho amigo o tivesse agitado tão profundamente, que ele fosse bastante louco, bastante fraco para se permitir evocar um passado que já enterrara havia tanto tempo! Não tinha dominado a covardia moral que, nos primeiros dias de sua desgraça, o havia arrastado a sair da Inglaterra, e o fazia evitar a companhia de seus patrícios, preferindo isso a ter de enfrentar o escândalo que, inevitavelmente, sempre lhe acompanharia o nome de família? Fora, pois, de uma covardia nojenta. E ainda se considerava covarde, muito covarde até, para ser honesto consigo mesmo. As feições lhe assumiram dura expressão, ao sentir uma onda de desgosto por si próprio passar-lhe pelo espírito; e, desviando-se resolutamente da mórbida introspecção a que tinha sido levado, forcejou por dirigir a atenção para o assunto que o interessava naquele momento.

     Ao internar-se mais profundamente no coração de Casbar, pensou, com leve sentimento de diversão, nas palavras do General Sanois ao partir, porquanto o velho e astuto árabe que o esperava era distintamente um daqueles “amigos” que afligiam o General por não poder lançar-lhe as mãos.

     Desviando-se da ladeira que subia, entrou numa escura viela de casas sinistras, esquálidas, de aparência tenebrosa. Andou vagarosamente pela calçada estreita, contando cuidadosamente as portas por que passava. A casa a cuja frente parou, se possível, era ainda mais sinistra e de aparência mais miserável que as outras. As paredes rachadas dessoravam água em lugares ominosos, e estavam salpicadas de manchas que pareciam lepra, onde o reboco caíra. A sacada de ferro retorcido que se projetava a alguns pés acima de sua cabeça, agarrava-se aos muros derruídos da fachada, donde ameaçava despregar-se a qualquer momento. Na porta guarnecida de prego, não havia nenhuma aldrava, e a gradezinha enferrujada estava fechada.

     Mas Carew não tinha, na verdade, esperado ser recebido abertamente, e compreendia muito bem os modos de Casbar, para que anunciasse sua presença por uma demonstração cheia de bulha. Embora a casa estivesse aparentemente deserta, ele sabia muito bem que a vida formigava lá dentro. Toda a rua apresentava o mesmo aspecto desolado e sem moradores, mas ele sabia que olhos ocultos e vigilantes tinham seguido o seu caminho despreocupado, desde o momento em que pôs o pé nas pedras sujas da rua úmida, onde se amontoava toda espécie de lixo. Sabia que era esperado, porém não era seu costume fazer visitas de cerimônia em Casbar e ainda vestido à moda européia. Além disso, como seu tipo não era comum ali, com toda a probabilidade teria de esperar alguns minutos antes que a porta se abrisse para recebê-lo. Provavelmente, sua vinda estava sendo vigiada por trás das gelosias fechadas, que se viam na esquisita sacada de ferro. De modo que ainda andou um pouco mais para diante no meio da rua, a fim de que o vigia oculto pudesse observá-lo e certificar-se da sua identidade. O cigarro já terminara, quando ouviu o ranger de pesadas trancas. Sem pressa alguma, dirigiu-se para a porta que se abriu apenas o necessário para deixá-lo passar, e achou-se numa obscuridade que se tornou completa escuridão, pois a leve réstia de luz fora interrompida pela porta que se fechara atrás dele. Ouviu novamente o som de formidáveis trancas e fechaduras. Sentiu lhe tocarem na manga e percebeu que estava sendo conduzido por uma interminável passagem, que se curvava e entrelaçava tortuosamente. Foi-lhe, por conseguinte, impossível, na escuridão, formar idéia aproximada do caminho que seguia, de modo que, com as freqüentes voltas, perdeu a direção. Sabia apenas que a casa de onde iria sair depois não era, certamente, aquela pela qual entrara. Por vezes, a passagem se alargava em quartos, o que se percebia pela diferença de atmosfera e pelo fato de que, estendendo a mão em diversas ocasiões, não encontrava a parede úmida e sim o vácuo. Mas o guia silencioso movia-se para a frente sem hesitar e com um passo tão seguro que fez Carew subitamente pensar se ele não era cego.

     Era, pelo menos, mudo, parecia-lhe, porque não recebeu nenhuma resposta a uma pergunta que lhe fez. Ao pensamento de um porteiro surdo, mudo e cego, de um misterioso edifício ao qual se tinha acesso por caminhos intrincados e passagens secretas, os lábios de Carew se contraíram divertidamente. Para ele, a situação era suficientemente ridícula, conquanto para alguém menos seguro de sua recepção, menos familiarizado com os modos daquele povo, tal recepção pudesse provocar algo além de simples desagrado. Era tudo tipicamente oriental, tão repleto de intrigas e suspeitas infantis! Por certas razões próprias muito convincentes, o árabe velho e velhaco, que tinha de novo se aventurado a vir a Argel depois de oito anos de ausência, nada deixava ao acaso para evitar uma possível e extemporânea visita das autoridades, que, presumivelmente, não sabiam de sua volta. O fato de ter vindo diretamente do Palácio do Governador, da companhia do General Sanois, era uma caprichosa coincidência que fez Carew sorrir novamente.

     Seus olhos estavam justamente se acostumando à escuridão interior, quando os dedos do guia, apertando-lhe levemente o braço, o fizeram parar subitamente; e ele esperou sem se mover, enquanto mais fechaduras eram desaferrolhadas e uma portinha abriu-se para dentro, deixando ver uma estreita escada em caracol, iluminada apenas por uma lamparina de louça que se achava colocada em um nicho da parede. Visto à luz tênue da lamparina, o guia mostrou ser um negro possante e de altura gigantesca, cego, como ele havia suposto. Sentindo mais do que nunca que se metera num desses episódios das Mil e Uma Noites, Carew subiu pela escada acima, atrás do guia, até estacar defronte a uma porta coberta por um reposteiro de incomparáveis bordados. Foi introduzido em um quarto que, pela suntuosidade dos ornamentos e esplendor bárbaro, jamais vira igual. Os tapetes e os pendentes eram inestimáveis, os divãs e coxins alegres, de cores vivas. As múltiplas lâmpadas de prata batida, já acesas, porque a luz do dia era interceptada por pesadas cortinas, eram ainda mais finas que as de sua vila mourisca. A atmosfera estava abafada com o doce e penetrante aroma do incenso.

     Com os olhos ofuscados pela súbita claridade, hesitou um momento na soleira de entrada, adiantando-se depois ao encontro de um árabe soberanamente vestido, que se levantou depressa de um monte de almofadas, para cumprimentá-lo com as usuais demonstrações e expressões de prazer.

     O último encontro dos dois tinha sido em circunstâncias bem diversas, que tinham ligação com o perpétuo estado de guerra entre as tribos do Sul longínquo. Viajando, certa vez, por um Distrito novo para ele, Carew tinha-se visto envolvido num concurso de supremacia entre dois poderosos chefes e que terminara com a vitória daquele que, nesse momento, o estava saudando com tantas hipérboles floridas, uma vitória que na ocasião lhe pareceu que o vencedor não poderia gozar. No decurso de suas viagens, Carew tinha visto muitos casos pavorosos e curado inúmeros ferimentos que pareciam incuráveis, mas nunca em toda sua vida tentara restaurar um corpo tão mutilado e tão fraturado. Durante semanas, esforçara-se para salvar a vida do chefe e fora principalmente devido ao seu cuidado, se bem que devido também em parte à forte envergadura e desejo veemente de viver, que o sheik finalmente se curou, jurando eterna amizade ao homem que o tinha literalmente arrebatado das garras da morte.

     A troca de cumprimentos formais e votos de felicidade foi seguida pelo indefectível café e doces, depois por cigarros, o que constituía os únicos desvios de estrita ortodoxia que se permitia o sheik, e do que se jactava, com um gesto de reservado motejo. A conversação versou sobre muitos tópicos, e embora já estivesse habituado aos métodos circunloquiais dos orientais quando qualquer assunto particular está em vista, Carew começou a imaginar quando seria abordado o assunto principal, a principal razão de sua visita. Mas, quando, por fim, o sheik abandonou as generalidades e veio com inesperada direitura ao âmago da questão que por tanto tempo havia protelado, Carew ouviu a informação que, vinda de tal fonte, o encheu de espanto.

     O homem não era absolutamente amigo da França, e além disso, mal visto pelo Governador local, porém estava calmamente prestando informes que seriam muito úteis à Administração e, por isso, Carew ficou naquele momento em tanto confuso. Era aquela surpreendente confidência para ele só, para os seus ouvidos apenas, ou poderia ser usada como uma espécie de intermediário para reaproximar um chefe refratário e os dominadores do país? Com a franqueza habitual perguntou:

     — É teu desejo que o Governador saiba disso?

     Os dedos do sheik, carregados de anéis, tocaram levemente primeiro a testa, depois o peito.

     — É meu desejo que o Governo saiba dos fatos “por teu intermédio”, já que eles são tão cegos para vê-los. Desse modo eu, em parte, pago a minha dívida, — respondeu, com súbito clarão no olhar duro.

     Carew assentiu com a cabeça e examinou pensativamente, por momentos, a ponta incandescente do cigarro.

     — E quanto a ti, ó sheik, — disse por fim, — devo eu falar a teu respeito com o Governo? O dia de hoje é propicio. Esta noite vou jantar com Sua Excelência e o General Sanois...

       — Que Allá os queime! — exclamou o velho sheik, com fervor; e cuspiu francamente no custoso tapete. Carew riu.

     — E tuas informações? — perguntou, levantando-se depois de um relance ao relógio de pulso e abotoando o colete com um gesto brusco.

     — Usa-as ou guarda-as, mas não digas nenhuma palavra a meu respeito. Não sou um cão para eles? — replicou o sheik com um clarão de raiva, preparando-se para se despedir do visitante.

     Mas nas suas maneiras havia certo constrangimento, um vislumbre de alguma coisa que ele deixara de contar, que o fazia preocupado ao acompanhar Carew ao patamar da pequena escada de caracol, onde o negro os esperava. E não foi senão quando os complicados adeuses e despedidas já tinham sido trocados e Carew havia começado a descer, que o velho árabe deu, por fim, saída ao que tinha no espírito. Inclinando-se para diante, disse em tom rápido e baixo, sussurrando:

     — Havia um habitante do deserto que tinha um jardim cheio de flores raras, transplantadas de outros jardins de homens melhores do que ele, um jardim florido de doçura e delícias. No entanto, o homem não estava satisfeito, porque os seus olhos pesquisadores tiveram a visão da beleza de uma planta exótica, trazida de uma terra longínqua, e ele queimou-se de desejos para obter aquela planta para o seu jardim. A sorte concedeu-lhe o prêmio que tanto desejara, e a mesma o arrancou novamente dele. Agora, o fogo do desejo está sobrepujado por outro fogo maior: ódio e vingança. Presta atenção a esse jardineiro, meu amigo, — ajuntou com ar significativo.

     E voltou-se com um “salaam” de despedida.

     Carew desceu as escadas com um tênue sorriso pela ambígua maneira oriental com que o sheik tinha velado o conselho dado. Embora nenhum nome fosse pronunciado, ele sabia perfeitamente quem o ameaçava. Nunca pusera obstáculos ao desejo de outro árabe. Mas, ao seguir novamente o negro pela escuridão da passagem, afastou, com um gesto de aborrecimento, a idéia daquele árabe singular. Abdul el Dhib estava intimamente ligado com aquilo que ele desejava esquecer e, por isso, queria desviar seu pensamento dos resultados das ameaças do ladrão de cavalos. Homens ameaçados viviam muito tempo e Abdul tinha bastante inteligência entre os seus. Parecia-lhe não haver necessidade de tomar à risca o conselho do sheik e, além disso, estava muito profundamente imbuído do fatalismo que aprendera no deserto, para temer a espécie de morte que lhe pendia sobre a cabeça, com a vida aventurosa que levava. Tinha sempre dado tão pouco valor à vida que não havia razão para desviar-se agora do caminho, e tomar precauções que julgava desnecessárias. Viveria ou morreria como Allá quisesse, credo confortável que tinha achado muito suficiente.

     Arredando Abdul dos pensamentos, estes se focalizaram sobre o árabe de mãos muito mais limpas que ele tinha há pouco deixado. As informações que o sheik lhe tinha dado deviam, sem dúvida, ser relatadas ao Governo e o mais depressa possível. Talvez essa noite tivesse oportunidade de abordar o General sobre o assunto. Seria dificílimo evitar certas perguntas que o General Sanois lhe faria sobre a fonte dessas informações.

     A volta, através das obscuras passagens e corredores, pareceu-lhe mais curta do que a vinda; e Carew não ficou surpreendido ao se encontrar novamente no mundo exterior como tinha esperado, numa rua completamente diferente daquela onde se achava a casa de aparência sinistra. Mas, como a localidade lhe era perfeitamente conhecida, não levou muito tempo para chegar à rua Aníbal, descendo rapidamente por ela, agora deserta.

     Preocupado, dobrou uma esquina, sem notar o clamor que, de ordinário, o avisaria de algum acontecimento especial, e caiu de chofre sobre uma multidão de garotos e rapazes, que brigavam, se esgoelavam, se atracavam uns aos outros, em volta de qualquer coisa que ele ainda não pudera distinguir. O barulho era agora ensurdecedor e a rua estreita se achava literalmente impedida, de modo que Carew olhou para o relógio com inquietação. Já era bastante tarde e não desejava ser demorado por uma malta de jovens selvagens, provavelmente ocupados no usual divertimento de torturar algum infortunado animal que lhe tivesse caído nas garras. Já estava muito familiarizado com a dura crueldade da ralé árabe, mas nem assim mesmo conseguira perder a natural aversão por essa espécie de passatempo dos jovens nativos. Carregou mais o sobrecenho e procurou passagem através da esquálida plebe, que estava atravancando o caminho. Discutir era-lhe impossível. Os guinchos agudos que enchiam o ar, lhe abafariam a voz. Ação pronta e decisiva era o único expediente. Assim, escolhendo um ponto onde a multidão era menos compacta, agarrou dois dos mais altos mandriões que se achavam engalfinhados num “match” de luta corporal e, apertando-lhes as cabeças uma de encontro à outra, levou-os diante de si, como uma cunha viva para abrir o coração da turba. Esse ataque inesperado tornou-lhe a tarefa relativamente fácil e, aproveitando-se do curto silêncio que se seguiu, injuriou-os torrencialmente com uma exuberância de minúcias além de toda imaginação. Havia alguns que o conheciam de vista, ouviu o seu cognome árabe pronunciado em sinal de aviso.

     Para outros, Carew era o representante da ordem e da lei e cuja chegada punha fim ao divertimento. Antes que acabasse de falar, os mandriões e curiosos foram se retirando e em poucos momentos, achou-se sozinho na rua deserta. Dirigiu, então, o olhar para baixo, oscilando entre vários sentimentos, em direção de uma delgada e juvenil figurinha de moça, agachada a seus pés, entre as pedras sujas. Sem chapéu, com o vestido branco completamente manchado e amarrotado, parecia inconsciente a tudo que não fosse o lastimoso cãozinho cuja cabeça ensangüentada se apoiava no seu colo. Acariciava-o suavemente, alisava-lhe o pêlo, afastando-o dos olhos já amortecidos, amimando-lhe com dedos carinhosos as pernas quebradas e palpitantes.

     Quando terminou a agonia daquela criatura torturada, quando descansou gentilmente sobre o chão a cabeça do animal, ainda permaneceu algum tempo sem se mover, tremendo de tempos em tempos, e tentando limpar as manchas vermelhas dos dedos com um pedaço de pano, que já se tornara um trapo carmesim, de tão embebido de sangue.

      Com um gesto de impaciência, Carew lhe deixara cair no regaço o lenço que trazia, maior e mais adequado.

     — É muito imprudente meter-se com estes mandriões árabes, Lady Geradine, — começou brevemente e num tom de censura.

     Ao som dessa voz, a moça estremeceu violentamente. Por um momento mal parecia respirar. Depois se levantou, fitando-o rapidamente; e Carew pôde ver o súbito transporte que lhe subiu aos olhos, ao examinar dos pés à cabeça a alta figura que estava em frente. Depois procurou o seu rosto novamente, demorando-se a contemplar a cicatriz da face, como para reconhecê-lo e tirar prova de sua identidade.

     — O senhor é inglês! — tartamudeou, com as faces coloridas de leve rubor. Eu... eu pensei... naquela noite... que fosse árabe. — E estendeu-lhe as mãos, com uma exclamação de regozijo. — Oh! Por que não chegou mais cedo? — suspirou. — Foi horrível! O pobre animalzinho... aqueles demônios! O senhor não queira saber o que fizeram... quase fiquei louca... não posso ver um animal sofrer...

     Interrompeu-se, com um arrepio. Por um instante, ele pensou vê-la desfalecer, e agarrou-lhe o braço instintivamente. A moça, porém, retraiu-se e afastou-se ligeiramente dele com um sorriso agradável.

     — Estou bem, muito obrigada. Apenas, uma coisa destas faz a gente ficar... um pouco nervosa, — disse, sacudindo-se, enquanto tratava de compor o cabelo despenteado, e procurava o chapéu, que perdera no tumulto. Descobriu-o afinal, enfiado na grade de uma janela próxima, donde o tirou, com um triste sorriso que terminou num riso nervoso.

     Limpando as manchas de poeira do vestido amarrotado, voltou-se novamente para junto de Carew, que a esperava com o ar de indiferença, que ela lhe conhecia tão bem e tanto a arrepiava, fazendo-lhe sentir que apenas fora obrigado a prestar-lhe outro serviço contra a sua vontade.

     — Parece que estou destinada a sempre lhe causar incômodos! — murmurou timidamente.

     Mas Carew pareceu não entender a referência a seu primeiro encontro.

     — Está só? — inquiriu. — Já é muito tarde da noite para a senhora andar em Casbar sem uma pessoa a acompanhá-la.

     A moça ruborizou-se profundamente a esse tom de indisfarçável reprovação e dispôs-se a defender sua imprudência como se admitisse que ele tinha o direito de censurá-la e não pudesse suportar que pensasse mal dos seus atos.

     — Bem sei, mas não pensei que já fosse tão tarde. Estava fazendo umas compras e, depois que mandei o meu empregado para casa com os embrulhos, lembrei-me de um bordado que desejava. Supus que o achasse facilmente, porém tive de procurá-lo muito tempo. Depois, entretive-me a olhar o povo, andando por aí até que me perdi. Procurava encontrar o caminho de casa, quando vi aquele cãozinho. Foi naturalmente uma tolice tentar fazer alguma coisa por ele, mas eu tinha de fazer qualquer coisa, — concluiu, com súbita veemência.

     Carew deixou transparecer no rosto uma expressão singular, que ela não compreendeu no momento, enquanto dividia o olhar entre ela e o corpo inerte do animal que já começava a endurecer com rigidez cadavérica, sobre as pedras da rua. E, sem acrescentar comentário algum, seguiu para a frente, com um imperceptível encolher de ombros.

     — Vou arranjar-lhe um fiacre [antigo carro de praça puxado a cavalo] na rua Randon, — disse friamente, como se o seu único desejo naquele instante fosse ver-se livre da companheira o mais breve possível.

     Desanimada de novo por esse modo brusco, Marny seguiu silenciosa a seu lado. Achava-se mais alterada pelo incidente do que pensara e, pela primeira vez, começou a imaginar o que teria acontecido se ele não tivesse chegado a tempo. Mas ele viera de novo! E ela lhe devia mais aquele serviço, prestado tão contra a vontade! Por mais tratos que desse à imaginação, não acreditava que Carew estivesse interessado nela e muito menos contente em vê-la de novo. Por que lhe mostrava sempre má-vontade no auxílio voluntário que lhe prestava? E por que lhe deixara ele supor que era árabe? Olhou-o sub-repticiamente, mas depois desse primeiro olhar não hesitou em continuar a examiná-lo, uma vez que ele não parecia notar-lhe as miradas nem estar dando conta de sua companhia. Chegou a essa conclusão com certa impressão de amargura. Por que deveria ele ser diferente do que era realmente? Ela não devia ser para ele mais que uma estranha, que só se lhe intrometia no caminho por atos de deliberada loucura. E, no entanto, não era assim. Fora impensada, de fato. Mas em nenhuma das duas ocasiões fora propositadamente, pelo desejo de procurar excitações ou perigos, que se interpusera no caminho dele.

     Na manhã de sua excursão a cavalo cedera a imperioso desejo de solidão, e deixara Tanner para trás. Mas hoje, a vista daquele cãozinho torturado lhe tirara todos os pensamentos. Não pensara nas possíveis conseqüências de seu ato. Cedera ao horror e à piedade. Tentara impedir a mais infernal crueldade que testemunhara até então.

     Ao encará-lo novamente, sufocou um leve suspiro, sentindo-se segura. A mudança de roupa parecia transformá-lo completamente. No bem talhado terno de sarja azul que se lhe adaptava maravilhosamente à figura musculosa, parecia mais alto, mais fino de corpo, do que tinha suposto. Parecia também um pouco mais velho e a gravidade do rosto e do porte, que seria natural num árabe, impressionou-a ainda mais agora que lhe sabia a verdadeira nacionalidade. O chapéu mole, de feltro, largamente desabado sobre os olhos, lhe sombreava as feições, que agora via serem mais austeras e de traços mais rígidos que quando as vira pela primeira vez. Era uma face de traços fortes, decidiu consigo mesma, muito fortes, muito duros talvez para serem belos, mas o perfil era firme, bronzeado como o dum nativo fino, e respirando saúde. Era, enfim, uma fisionomia que impressionava e forçava a atenção. A força parecia a nota principal de sua constituição. Parecia feito de ossos e músculos. Tinha passo longo e elástico, como de molas, e todo o seu porte era magnífico.

     Outra vez imaginou quem poderia ele ser, desejando perguntar-lhe, temendo, porém, a resistência que nele encontrara antes. Se ao menos soubesse o seu verdadeiro nome! Teria, assim, alguma coisa a que se apegar. A este pensamento, ela virou apressadamente a cabeça com um movimento de desolação aguda, compreendendo claramente que ele lhe tinha enchido o espírito durante todas as longas e infelizes semanas que vivera até então. Lutava consigo mesma, esforçando-se por esquecê-lo, esperando que o tempo se encarregasse de apagar a imagem que lhe tinha tomado todos os minutos de existência. Mas este segundo encontro fortuito tinha desmoronado a resolução que havia corajosamente se imposto. Sempre se lembraria, sempre se afligiria. A recordação dele acompanhá-la-ia durante o resto da vida, a memória desse homem que se lhe mostrara indiferente, memória que a honra lhe exigia desenraizar do coração. Então, o amor vinha sempre assim, tão subitamente, tão irresistivelmente, tão impensadamente? Poderia ela ter dominado esse sentimento, se o tentasse, desde o primeiro momento em que o sentiu? No entanto tentara. Combatera com todas as forças, estremecendo ao que pensava ser um pecado, implorando forças para poder afastá-lo. Mas as súplicas de nada lhe tinham valido, e todos os dias, todas as horas, o amor, que não podia negar, lhe crescera no peito, cada vez mais forte, cada vez mais insistente.

     Somente no decurso das últimas três semanas, se convencera de que seu coração estivera faminto de amor. O amor verdadeiro movera-o muito poucas vezes na vida. Amara muito o pai, porém era apenas uma criança quando ele morreu e, desde sua morte, não encontrou mais a quem dedicar a afeição que lhe jazia no íntimo, em estado latente. Passara a vida ao ar livre, vida mais de rapaz que de moça, encontrando felicidade e contentamento nos esportes e nas ocupações de campo. Não alimentara nenhum dos sonhos da juventude, jamais sonhara com o possível namorado que lhe viesse algum dia conquistar o coração amante, não povoara a imaginação, nem para isso teria oportunidade, com os devaneios feminis do sentimento do amor. Durante as longas tardes de inverno, naquela casa solitária da Irlanda, lera muito, mas restringia-se aos livros da biblioteca do pai, narrações de viagens e histórias de muitos países. Crescera singularmente inocente, e se conservara singularmente criança. Depois se casara e esse casamento lhe trouxe, não alegria e admiração pelo devotamento de um homem, mas aversão pela posse desse homem. Conhecera, transida e estupefata, tudo que havia de brutal, sórdido e degradante em tal união. Forçada a ocultar a revolta que a enchia, forçada a um modo de vida que não se coadunava com o sentimento de decência, enrijara-se como aço para poder aturar essa vida, até que se considerasse uma imagem de pedra, sem coração, um autômato sem alma. A esperança de um filho, que seria a salvação de outra mulher qualquer, nunca a movera. Estremecia, aborrecida, ao pensamento de uma possível maternidade. Seria a última gota na taça de sua amarga existência. Apesar da contrariedade e raiva do marido, que nunca cessava de censurá-la por não lhe dar o herdeiro que tanto desejava, rogava fervorosamente a Deus que lhe poupasse a vergonha de trazer à luz do mundo o filho de tal homem. Que os seus vícios pudessem ser perpetuados por ela, era temor que nunca a abandonava, temor que a torturava como uma obsessão, à proporção que os anos se passavam e lhe conhecia mais a fundo o caráter e a inata corrupção. E agora, o pavor que a pungia continuamente se tornara mais agudo, muito mais lancinante, em conseqüência de estranha emoção que a oprimia, da emoção que a transformara, naquela espantosa noite três semanas atrás. O amor que nunca imaginara conhecer, chegara, e tarde demais. Se fosse livre, poderia tê-lo amado, mesmo que não lhe desse atenção. Ligada como estava, até o simples fato de pensar nele constituía deslealdade para com o homem que tinha o direito de reivindicar sua afeição. O direito de reivindicar... Mas quando seu marido tinha, uma só vez que fosse, reclamado essa afeição? Quando lhe havia ao menos demonstrado desejá-la? Seus sentimentos nada eram para ele. Obedecia. Era tudo o que lhe exigia, submissão de escrava à sua dominação. Entrega absoluta à sua vontade, aos seus caprichos, à sua desordenada paixão. O orgulho de sua beleza era o mesmo que tinha de qualquer outro animal que pudesse adquirir com os seus haveres, simples orgulho arrogante de proprietário. Como tratava os bichos, assim a tratava. Como eles se abaixavam a ele, do mesmo modo ela retraía sua alma à simples aproximação daquele homem. As últimas três semanas, então; tinham sido verdadeiro purgatório. Tornara-se mais intolerante, mais duro de satisfazer, mais insistente que nunca nas suas exigências egoístas. Estivera bebendo mais que de costume, com desastrosos resultados, que foram percebidos até pela criadagem. Malec, o criado árabe, com a cicatriz da face, palpitante recordação da mão pesada do amo, apenas curada, tornara-se intratável, fazia o serviço com ódio nos olhos meio velados. Tanner estava em franca rebelião.

     Naquela tarde, pela primeira vez depois de sua volta, Clyde lhe permitira sair e afastar-se de sua vista. Concedera-lhe autorização para fazer algumas compras no Casbar. Por duas horas ficara livre daqueles olhos suspeitosos que a espiavam a todo o momento, livre dos odiosos carinhos que lhe fazia, quando embriagado. Estremecia ao pensamento de voltar para junto dele. Com um movimento inconsciente, aproximou-se do homem que caminhava a seu lado, de novo espantada do sentimento de segurança que a companhia dele lhe proporcionava, espantada de sentir-se tão pouco surpreendida por tê-lo encontrado outra vez. Parecia-lhe perfeitamente natural que ele viesse mais uma vez em seu socorro. Se fosse Clyde em vez dele... A este simples pensamento, um espasmo dolorido se debuxou nas suas feições. Clyde apenas teria se divertido. Cerrou as mãos, tentando represar a onda de amargura que a invadia. Por que se torturava, fazendo comparações? O contraste entre os dois homens era bastante desagradável para que ela insistisse nessa idéia. E não tinha o menor direito de fazê-lo, de estabelecer comparações. Era esposa de Clyde! Os punhos, cerrados, se apertaram até que as unhas se enterraram na sua palma macia. Tornou-se impossível manter silêncio. Precisava falar, mesmo que fosse somente para desviar o curso dos pensamentos.

     — Ainda não lhe agradeci por ter mandado o Caid! — disse nervosamente, procurando dar firmeza à voz.

     Desciam agora uma ruela estreita, onde árabes de rosto grave, absortos, aparentemente em contemplação muda, fumavam, sentados na soleira de suas lojas, olhando os transeuntes com descuidada prudência, ostensivamente desdenhosos de vendas possíveis, mas atilados bastante para notar todos os que iam e vinham. Observando-os, Marny viu, com crescente espanto, os freqüentes e profundos “salaams” que saudavam o companheiro na passagem.

     No momento em que lhe dirigia aquela frase de agradecimento, ele estacara para corresponder à saudação de uma venerável barba grisalha, que aparecia, indolente, entre os finos tapetes, coleções heterogêneas de quinquilharias e armas antigas que formavam o seu comércio. Por um momento, Carew parou para pegar na afiada adaga mourisca que lhe era oferecida com um murmúrio apenas inteligível, depois abanou a cabeça, sorrindo, ao devolver a arma com um pequeno encolher de ombros de indiferença a uma resposta igualmente proferida em voz baixa.

     Com a mesma indiferença, o velho árabe repôs a adaga no lugar e tomou outra vez o cachimbo. Carew voltou-se para Marny com um gesto de delicada desculpa.

     — Recomendo-lhe o velho Ibraim, se a senhora tem algum interesse em bordados, Lady Geradine. Seus artigos, na maioria, são genuínos, e como a viu agora em minha companhia, não terá a ousadia de lhe roubar sem piedade, — disse, com o primeiro sorriso que lhe concedia desde o primeiro encontro. — Logrei a fortuna de lhe encontrar o cavalo roubado, — continuou levantando a mão para afastar a cabeça de um camelo, carregado, que se desviou com um grunhido de mau humor, — mas se me permitir dizer-lhe, recomendo-lhe insistentemente não montá-lo de novo sem ser acompanhada. O valor daquele animal e o seu “pedigree” são assaz conhecidos e, tanto em Argel como na redondezas, há certo número de árabes que não vêem com bons olhos a saída de puros sangues vendidos para o estrangeiro. E é muito natural se a senhora se colocar no seu lugar. Eu também lhes compartilharia o ponto de vista, se fosse árabe.

     — E o senhor se parece muito com eles! — Estas palavras lhe escaparam involuntariamente, e relanceou-lhe um rápido olhar, com medo de ser julgada impertinente. Ele porém, pareceu não se ressentir da comparação, de modo que, tomando mais coragem, se aventurou a externar o desejo que lhe vinha no momento, de saber mais alguma coisa sobre o homem que tão estranhamente se interpusera em sua vida. E o senhor tem vivido muito tempo entre eles? — inquiriu a medo.

     O assentimento curto com que ele respondeu não abria ensejo a outras perguntas. Mas um interesse embevecido lhe sobrepujou a reserva.

     — No deserto... no deserto real? — continuou ansiosamente.

     — Sim, no deserto real, — respondeu ele, de modo peremptório, encrespando levemente as feições. E como que se penitenciando da involuntária falta cometida para com a sua primitiva rigidez de maneiras, pareceu retrair-se uma vez mais, frio e inabordável como a principio. Corando sensivelmente, Marny deixou-se conduzir em silêncio até que chegaram à rua Randon. Uma vitória de aluguel que passava rechinou [guinchou] com as ferragens em resposta ao sinal de Carew, que colocou a moça na almofada antes que ela pudesse imaginar que já se encontravam fora de Casbar.

     Ela inclinou-se por um momento, fitando-o sem falar, de cabeça descoberta e de pé. Depois, estendeu-lhe as mãos com um gesto brusco de rapaz.

     — Muito obrigada... por tudo o que tem feito por mim, — disse, tremendo ligeiramente, com os lábios contraídos, a despeito dos esforços para os conservar firmes.

     Durante uma fração de segundo Carew hesitou, fitando tristemente as mãos que se lhe estendiam. Depois, desempenou subitamente a alta estatura e, afastando-se com profunda saudação, que não era inglesa, acenou ao cocheiro árabe que seguisse.

 

     Sem se dignar dirigir um olhar, mesmo de relance, para a carruagem ou para a passageira, Carew desabou abruptamente o chapéu sobre os olhos e saltou em outro “cab” [carro de aluguel, que se tinha aproximado à espera de freguês.

     Recostou-se nas almofadas poeirentas e cruzou os braços, carregando o sobrolho, irritado com as ruas movimentadas. Não vira a expressão de mágoa e desapontamento que faiscara por um momento nos olhos da moça, ao ver que ele não reparara na mão que lhe estendia. Tinha apenas consciência do tumulto de seus próprios pensamentos, da raiva intolerante que lhe invadira a alma, a esse segundo encontro, absolutamente indesejado. Fizera ingentes esforços para se mostrar cortês, se na verdade o fora, do que duvidava. Era bem da natureza feminina esquecer um perigo para cortejar e procurar inconsideradamente outro! Seria que a lição de três semanas atrás lhe causasse tão pouca impressão? Doidivanas! Imaginava, por acaso, que Argel estava cheia de cavaleiros errantes à cata de mulheres formosas em apuros! Os seus lábios se contraíram desdenhosamente. Acendeu um cigarro e, franzindo a testa, olhou para o relógio. Embora fizesse pouco caso das próprias refeições, procurava não desgostar a outrem. O alegre Governador era um gastrônomo para quem um jantar fora de horas tomava as proporções de verdadeira catástrofe. Nesse momento, ele, Carew, já deveria estar saindo de casa para o Palácio, em vez de estar ali, atrapalhado, pela estrada de Mustapha acima, conduzido por dois sendeiros [cavalo velho e ruim] árabes, cansados e famintos. De nada lhe valeria apressar o cocheiro, porque a ladeira era íngreme e as miseráveis alimárias estavam fazendo tudo o que podiam.

     Distendendo as longas pernas para se colocar mais à vontade, desabando o chapéu mais para os olhos, resolveu-se a esperar, enquanto o espírito vagueava pelo deserto, donde viera recentemente, mas para onde seus pensamentos o levavam de novo. Era só o tempo de completar os arranjos para outra viagem prolongada, e de restaurar o estoque de remédios já desfalcado. Então poderia abandonar essa maldita cidade para retomar a vida que preferia, vida de riscos e perigos, porém a única que valia a pena viver. Além, muito longe das vastidões arenosas onde os raios solares abrasavam os pequeninos oásis e os chacais uivavam num coro noturno, sob o brilho maravilhoso de estrelas orientais, além estava o “réquiem” [repouso, em latim] do deserto, a paz, o sossego.

     O deserto! Respirou profundamente, antecipando o prazer que já sentia. Ele o atraía agora mais que nunca, reavivando-lhe recordações das longas cavalgadas sob um sol ardente, das irradiações de prata das noites enluaradas, e da perene glória das madrugadas. Sorriu do próprio entusiasmo. Todavia nem tudo ali era paz, beleza e silêncio maravilhosos. Também havia batalhas, assassínios, mortes repentinas, crueldades inconcebíveis, sofrimentos que lhe faziam rilhar os dentes ao pensar nas longas agonias que testemunhara e ao avaliar suas recordações. Mas, apesar dessa selvageria, ali esperava morrer. Mesmo as lembranças amargas o deliciavam no seu presente humor. E, sonhando com o deserto infindável, esqueceu-se do aborrecimento daquela tarde, esqueceu-se de tudo, para só se recordar do seu encanto.

     Por fim, chegou à vila, ao passo que os cavalos, suando em bica, davam a última reserva de suas forças num arranco final e arremessavam-se desabaladamente nos últimos cinqüenta metros de terreno plano, sob uma tempestade de imprecações do cocheiro árabe, que estacou diante de uma porta guarnecida de pregos, embutida na parede fronteira, com um riso de satisfação que ia de uma orelha à outra ao receber a paga liberal que lhe atiraram. Ao som das rodas que se aproximavam, a porta se abrira silenciosamente, de forma que Carew passou por ela e se dirigiu rapidamente por entre a ramagem florida de uma alameda que conduzia à porta da entrada da casa. A construção, de um só pavimento, era a mais bela do Mustapha Superior. Construída quarenta anos antes para o delicado gosto da mãe de Carew, era um palácio em miniatura e se achava no meio de um jardim que podia rivalizar com o da Vila das Sombras. Mas, sentindo-se preocupado, esta noite Carew não tivera sequer um olhar para a casa ou para o jardim em flor; e não se demorou, como de costume, antes de entrar no vestíbulo espaçoso de estilo mourisco, onde Hosein estava esperando pelo amo num estado de visível agitação, completamente estranho ao seu usual modo de proceder, de ordinário tão impassível.

     — Graças sejam dadas a Allá pela volta de meu amo! — murmurou, enquanto os seus olhos velados se acendiam com evidente alívio. Intrigado, Carew olhou-o fixamente por um momento, depois sorriu, franzindo a testa. Hosein também! Isto já estava se tornando monótono! Estava bem a par da rapidez com que os boatos correm numa terra de rumor e de intriga como aquela, mas Abdul, que nada tinha de propensões ortodoxas, devia ter bebido bastante para se gabar tanto de suas intenções e tão abertamente.

     — Graças sejam dadas a Allá! — respondeu convencionalmente. Depois riu e encolheu os ombros com indiferença. — “O chacal uiva quando não pode matar”, — citou, ajuntando por cima dos ombros, ao prosseguir o caminho: — Telefone ao Palácio, dizendo que fui retido e que peço a Sua Excelência para não me esperar. Irei logo que estiver pronto.

     Atravessou o pátio em torno do qual a casa estava construída e entrou em seu quarto de dormir, passando para o quarto de vestir contíguo. Ali encontrou o ceguinho sentado no chão, com as mãos cruzadas no colo e o rosto voltado para a porta, com uma expressão de excessiva atenção. Ao ouvir a porta que se abria, saltou para diante impetuosamente. Com uma palavra de aviso, Carew agarrou-o e levantou-o nos braços.

     — Que travessura tem a confessar, ó filho da maldade, — chacoteou ele, ao sentir que os delicados membros da criança tremiam de encontro aos seus.

     Mas a pergunta costumeira não provocou o estrépito de gargalhada que esperava. Em vez disso, o rostinho do pequeno estava grave e com uma expressão estranha; e Carew fê-lo voltar ao chão com uma carícia rápida.

     — Quem o aborreceu, Saba? — inquiriu sossegadamente, movendo-se pelo quarto para esvaziar os bolsos e mudar de roupa. O pequeno seguiu-o, com as mãos tateando para a frente.

     — Ninguém me aborreceu, — respondeu vagarosamente, — mas, meu amo, meu coração está doente. Tive um sonho, um sonho diabólico... E, mesmo desperto, o sonho ainda me persegue. Há um perigo, meu amo, que o ameaça. Em meu sonho vi claramente... mas agora não posso ver... não vejo... — Interrompeu-se com um pequeno gemido de angústia.

     Uma expressão estranha estampou-se nas feições de Carew, e suas mãos apertaram meigamente os dedos agitados do menino. Não era a primeira vez que Saba mostrava sensibilidade exagerada quando a segurança do homem que adorava estava em jogo. Embora fosse uma criança feliz, de espírito sadio, tinha singulares traços de misticismo, que terminavam quase sempre com resultados bem interessantes. Em duas ocasiões anteriores, tivera o presságio de perigos que ameaçavam seu protetor, e os fatos subseqüentes vieram justificá-lo plenamente. Achando-se já muito familiarizado com o ocultismo do Oriente para ser cético, Carew não diminuía de modo algum a importância de um aviso em tudo idêntico às insinuações mais claras e mais substanciais que recebera essa tarde, porém não sentia agora disposição para tratar com muita seriedade do assunto, ou dar muito crédito às palavras do pequeno, cujos olhos, voltados para cima, estavam literalmente cheios de lágrimas. Acariciou-o com a ternura de sempre.

     — Você já sonhou antes, — disse gentilmente, — e o perigo passou. Assim também este há de passar...

     — Se Allá quiser. — A voz da criança transformou-se num soluço convulsivo, e Carew aceitou os protestos de convicção com um leve sorriso.

     — Todas as coisas estão com Allá, — respondeu, — e está escrito: “Não procureis descobrir o que está oculto porque, vede bem, quando o dia vier, tudo será revelado”. E depois: “Nenhum acidente acontece na Terra, nem com vossas pessoas, mas todos estão lançados no livro de nosso destino”.

     O pequeno suspirou profundamente, e apertou os lábios contra aquelas mãos fortes que estavam seguras nas suas.

     — Assim está escrito: se o senhor morrer eu morrerei, — exclamou apaixonadamente.

     Com grande suavidade, Carew se desvencilhou dele.

     — Será tempo de pensar nisso quando eu morrer, — disse, gracejando. — Por enquanto, estou vivendo e o jantar do lorde francês está esfriando, enquanto tagarelo aqui com um sonhador, — ajuntou, voltando-se para o toucador.

     Mudou rapidamente de roupa e, arremessando uma capa sobre o traje de jantar, parou, indeciso, com a mão no revólver que jazia sobre a mesa. Não tinha o hábito de usar armas de fogo numa cidade como Argel, porém nessa noite lhe parecia haver certa justificativa para isso. Podia duvidar da veracidade dos avisos que recebera, mas seria louco se os tentasse ignorar inteiramente.

     Enfiando a arma no bolso traseiro, saiu do quarto com uma palavra de animação para Saba, que se sentara lugubremente entre as roupas espalhadas pelo chão, e saltou para a carruagem que o esperava.

     Durante o tempo em que os fogosos animais o levavam pela noite afora, seus pensamentos se focalizaram na patética figurinha que deixara desconsolada no seu quarto de vestir. Se lhe acontecesse alguma desgraça, qual seria o destino daquele menino cego, cuja vida estava tão intimamente ligada à sua? Era um problema que muitas vezes o incomodava. Já tinha tomado providências para acautelar o futuro de seu protegido e Hosein, enquanto ele vivesse, servi-lo-ia fielmente. Mas Saba, com sua cegueira, seu temperamento místico, extremamente sensível, necessitava mais do que cuidados físicos e serviço fiel. Precisava do que aparentemente só Carew lhe dava. Sem Carew, ele mirraria e feneceria, como delicada planta arrancada da raiz principal de que lhe vem a seiva.

     Por amor de Saba, então, convinha tomar todas as precauções que de outra maneira ele teria desprezado. A cidade estava mais quieta que de tarde, e o cocheiro de Carew, que era um chicote conhecido, aproveitou-se das ruas vazias, guiando com a costumeira negligência árabe, mas manejando magnificamente os excitados cavalos, até que, com um floreado, os estacou, porejando suor, diante da porta do Palácio do Governo.

     O Governador, como Carew supusera, atendera ao recado. O jantar já estava bem adiantado quando Carew entrou, com as desculpas do estilo pela demora involuntária, e tomou o lugar que lhe estava reservado.

     Era, atendendo à conhecida esquisitice de Carew, uma reunião estritamente de solteirões, animada pela presença de Patrice Lemaire e outro “attaché”, igualmente elegante. O Governador, hospitaleiro até a raiz dos cabelos, e ainda agradavelmente excitado pelos bons sucessos daquele dia de trabalho, transbordava de bom humor. Até o General Sanois, por vezes, dera trégua à sua usual gravidade e condescendência com explosões de facécias. Mas via-se que estava evidentemente distraído; suas tentativas esporádicas de conversação eram pontuadas de longos silêncios, durante os quais seus olhos erravam para os de Carew, que sentara justamente defronte. E, pelo fim do jantar, quando os criados árabes já se tinham retirado, inclinou-se para a frente, com uma súbita observação que queria dizer muito mais que as palavras.

     — Parece-me que seus amigos de Casbar foram exigentes.

     Mas Carew, que o conhecia, não desejava ser apanhado. O General Sanois geralmente sabia mais coisas do que deixava entrever, e as aparentes frases inócuas eram muitas vezes baseadas num plano positivo, e raramente ingênuas como pareciam. Esta noite a sua curiosidade meio velada encontrou pouco êxito.

     Carew não tencionava dizer mais que desejava ou fornecer alguma informação que preferisse guardar para si. Enfrentou, pois, a contemplação atenta do General com um sorriso tolerante.

     — Não queria tagarelar sobre meus amigos, “mon géneral”, — retrucou. — Como lhe disse hoje à tarde, eles são úteis. Eles o servem por meu intermédio e sabem disto... a maior parte deles. Mas consegui esta tarde uma informação que vai lhe interessar muito...

     — Amanhã, amanhã, — interrompeu apressadamente o Governador, — amanhã, meu caro Carew. — Se o nosso bom Sanois começar a falar sobre os seus eternos negócios, tomará todo tempo que tivermos de Ópera, e terei de me comportar muito mal. Sim, muito mal, aviso-os. Eu...

     E o fim do protesto perdeu-se no meio de um alarido de gargalhadas de seu irreprimível sobrinho.

     — Olhem as últimas notícias da Argélia! — gritou Lemaire, no tom agudo e nasal dos vendedores de jornais. — Lastimável cena ocorrida na Ópera a noite passada. Barulho no camarote do Governador Geral. Sua Excelência e o Comandante-Chefe empenhados em luta mortal na presença de uma assistência agitada. O Governador em estado gravíssimo. O General Sanois fugiu para o deserto e proclamou-se “Imperador do Sahara”. Meu caro General, ofereço-lhe os meus serviços como ajudante de campo. Já estou extremamente aborrecido de escrever os despachos do tio Henri, — ajuntou, com um cumprimento irônico, desviando-se do guardanapo que o Governador lhe atirara à cabeça e, na risada geral que se seguiu, levantaram-se da mesa.

     Chegaram tarde à Ópera, e o primeiro ato já estava bem adiantado, quando o Governador, grande amante de música, penetrou, pé ante pé, no seu camarote, e dispôs-se a ouvir com a maior atenção uma partitura que já ouvira inúmeras vezes.

     Sentando-se à sua esquerda, Carew puxou a cadeira para a sombra da pesada cortina lateral, recostou-se, para prosseguir nos seus pensamentos pessoais, que não eram distraídos pela medíocre companhia no palco. A casa estava cheia. Apenas um camarote estava vazio, justamente aquele que ficava em frente ao do Governador. A atenção de Carew dirigiu-se para os lugares ocupados; com indiferença. Já havia mais de dois anos que tinha vindo pela última vez àquele pomposo teatrinho.

     Provavelmente, passariam outros dois anos antes que voltasse novamente ali, refletiu, enquanto o seu espírito se entregava à preocupação absorvente da nova expedição que planejava. E, agora, parecia-lhe possível que o plano encontrasse algum obstáculo inesperado. A informação que prometera ao General Sanois no jantar, e havia respingado nessa tarde durante a entrevista com o velho chefe no Casbar, tinha em certo ponto modificado seus cálculos originais. Podia mesmo significar total mudança de plano. As necessidades do Governo não tinham sido previstas na sua próxima viagem. Projetara uma expedição que seria exclusivamente devotada ao seu próprio trabalho e via com certo aborrecimento a possibilidade de atividade adicional sobre assuntos políticos. Ele era, de fato, independente. Podia aceitar ou rejeitar qualquer trabalho que lhe oferecessem, porém justamente o simples fato dessa liberdade lhe parecia tornar maior a obrigação moral. Teria de ir, caso se tornasse realmente necessário, mas esperava devotadamente que essa necessidade não ocorresse. Já estava enfarado de maquinações e negociações intermináveis sobre assuntos políticos. Desejava ardentemente prosseguir, sem empecilhos, na sua vocação e viajar por onde lhe desse na veneta. Era muito melhor do que seguir um caminho definido na realização de planos do Governo.

       Havia um distrito, muito longe, no Sudoeste, que sempre desejara visitar. Um distrito habitado por uma tribo da qual muito tinha ouvido, mas com quem nunca entrara em contacto direto. Seus planos das últimas três semanas se centralizaram cada vez mais nessa localidade desconhecida, que parecia prometer-lhe o que desejava no sentido de trabalho e aventura. Era habitada por um povo estranho e hostil, que guardava com ciumenta atividade o segredo de sua segurança no deserto, e ressentia ferozmente não só o advento de estrangeiros como a usurpação das tribos limítrofes. As histórias que ouvira a respeito da inexpugnável cidade murada, uma sobrevivência da Idade Média, a dar-se crédito a todas as histórias que corriam a seu respeito, lhe haviam acendido o desejo de penetrar os ocultos mistérios e ganhar alguma preponderância entre essa população cheia de preconceitos. O nome por que era conhecido tinha provado ser um passaporte tão infalível para outras tribos que se consideravam inóspitas, que ele contava confiantemente com esse nome para obter a entrada na secreta Cidade das Pedras, nome pelo qual ela era conhecida dos nômades, que lhe evitavam até mesmo as vizinhanças. Esse simples pensamento abalou-o profundamente. Seguramente havia trabalho para ele dentro daquelas fortalezas rochosas, caso pudesse transpor as portas, nem que fosse por uma vez. O apelo lhe parecia imperativo: o chamado de uma humanidade ignorante e sofredora, cuja miséria desejava aliviar de qualquer modo. A carência devia ser grande, e sozinho, apenas poderia fazer muito pouco. Ainda assim, esse pouco valeria a possível tentativa, a experiência arriscada. Só podia experimentar, mas só experimentando é que venceria ou seria vencido.

     Ao meditar nas probabilidades do êxito que esperava, o teatrinho com os seus lugares completamente ocupados se desvanecia dos seus olhos. Em vez da cena que estavam representando, viu uma vastidão sem fim, tostada pelo sol, escaldante ao calor ardente, e uma caravana que serpeava em linha tortuosa pelos ondulosos trilhos feitos na areia pelas rajadas de vento, afanando-se para a frente, em direção aos contrafortes da cidade secreta, que apresentava severas torres à irradiação do céu ocidental. A miragem era estranhamente clara, singularmente real. Os sombrios pilares se apresentavam à sua visão mental com uma nitidez quase fotográfica e, ao fitá-la, imaginando-a, parecia-lhe sentir entre os joelhos os ágeis movimentos de seu puro sangue baio, ouvir as vozes dos homens que cavalgavam atrás dele, os grunhidos de protestos dos camelos sôfregos, o ranger de selas e o murmúrio da areia ondulante. O cheiro do deserto se tornara pungente às suas narinas, e os globos oculares lhe doíam à luz intensa...

     A explosão de um aplauso, que saudava o descer do pano, despertou-o bruscamente da sua abstração, e voltou-se, confuso por um momento, para juntar-se à conversação geral que se seguia. Quando declinava do convite do Governador para fumarem um cigarro no corredor, ele imaginava se chegaria realmente tão perto da cidade misteriosa como lhe tinha parecido, em imaginação, cinco minutos antes? Ainda ponderava sobre o problema, quando, deixado só, se levantou para estirar as pernas, dormentes pela posição forçada. De pé na frente do camarote, atraia a atenção geral. Mas com a simplicidade de maneiras que era um dos seus traços característicos, não percebia o interesse que estava despertando. Não sentia ele mesmo curiosidade a respeito dos outros, e reservado mesmo com seus amigos íntimos, não tinha conhecimento dos extravagantes relatos sobre a sua pessoa que circulavam há anos, nem da sensação causada pela sua presença esta noite na Ópera. Que fosse objeto de intermináveis conversações, que fosse a personagem mais discutida de Argel, nunca lhe tinha entrado nas cogitações. E agora, absorvido nos pensamentos próprios, esquecia-se totalmente dos binóculos e “lorgnettes” [binóculos de teatro] assestados em sua direção.

     Porém, a sua atenção foi despertada naquele momento pela entrada de espectadores tardios no camarote fronteiro, um homem que parou na porta de entrada para discutir com o porteiro do teatro em tom barulhento e uma elegante moça vestida de branco, que se adiantou vagarosamente para a frente do camarote, ignorando a tempestuosa altercação. Ficou olhando para baixo, para as cadeiras literalmente ocupadas, com ar de abandono, como se os pensamentos lhe estivessem muito longe. Brincava nervosamente com as longas plumas do seu leque de avestruz, enquanto o pesado manto lhe deslizava dos ombros. E, com a mesma estranha irritação, com a mesma desarrazoada raiva que sentira antes, Carew achou-se fitando o pálido rosto da mulher de quem se separara poucas horas antes. Então nunca mais se veria livre dela? Nunca mais se livraria daqueles olhos que o perseguiam e que lutara por afastar de si durante aquelas três semanas? O pouco da paz de espírito que lhe restava seria, então, destruído pela contínua recordação daquela mulher de quem fazia tudo por esquecer? Sem dúvida, a maior razão para ele esquecê-la era o sexo. Odiava as mulheres. E na intolerante aversão que o invadiu, sentiu que, acima de todas as outras, odiava ainda mais aquela, aquela que o forçara a renegar as próprias opiniões e quebrar o juramento feito havia tantos anos. Jovem e bela, era a encarnação de tudo em que menos confiava e de tudo o que mais desprezava.

     Suas feições ensombraram-se e fez um movimento para voltar ao seu lugar. Mas alguma coisa mais forte que o ódio fixou-o naquela posição. Contra a vontade, o olhar fixou-se na fina figura da moça. E naquele momento, ela, como impulsionada por alguma sutil influência telepática, pareceu ter noção do olhar que lhe era dirigido e levantou a cabeça devagar. Por um segundo, através do teatro, os olhos de ambos se encontraram. Mas, embora o sangue lhe subisse imediatamente às faces, não deu nenhum sinal de reconhecimento e virou-se para o homem que a acompanhava, que Carew presumiu ser o marido a quem ela aludira tão brevemente e com evidente constrangimento naquela noite do primeiro encontro. O marido sem dúvida alguma nada sabia sobre as horas que ela havia passado no seu acampamento, e, provavelmente, também nada sabia a respeito do incidente daquela tarde na rua Aníbal.

     Os lábios de Carew se contraíram num sorriso de desprezo; e dirigiu o olhar com cínico divertimento para examinar a pesada figura que se sentara ao lado dela. Mas o sorriso feneceu subitamente, e o divertimento que sentira deu lugar a uma multidão de sentimentos que não compreendeu a princípio, porquanto seus olhos percorriam as feições grosseiras e duras de Geradine e sua estrutura maciça que mais lhe parecia a de um símio. Uma singular expressão varreu-lhe o rosto e aspirou o ar com violência. Pela primeira vez em doze anos, sentiu piedade de uma mulher. Mas não teve tempo de ponderar sobre isso. Todo o pensamento acerca da moça estava obliterado pela onda de estranha e terrível emoção que se abatia sobre ele com impetuosidade que jamais experimentara, uma súbita e opressiva emoção de hostilidade que tinha tomado corpo dentro dele, à simples vista do homem do camarote oposto, um ódio feroz e instintivo como jamais pudera conceber. Ao ter noção clara desse sentimento, cambaleou, aturdido. Não havia razão para isso, disse de si para si raivosamente. Era irracional, absurdo.

     Ouvira falar do ódio à primeira vista e tinha rido. Mas agora não riu, e tirou com dificuldade os olhos do rosto do homem que sentia já odiar com todas as forças da alma. Estava agora muito longe de rir. Em vez disso, ao contrário, sentia certo medo, medo de si mesmo, medo das conseqüências que poderiam advir da tempestade que subitamente tinha se desencadeado dentro dele.

     Até aquele momento acreditava que tinha perfeita compreensão de seu temperamento. Agora duvidava que algum dia tivesse sabido alguma coisa a respeito de si próprio, que tivesse conhecido o seu íntimo. Nada o teria levado a pensar que um dia, sem causa ou razão plausível, pudesse considerar a destruição de um ente que lhe era de todo estranho.

     Porque era nisto que se resumia o violento impulso que atuava nele com um apaixonado desejo de matar. Deus dos céus! Que lhe estava acontecendo?

     Seria possível que sua natureza tivesse sofrido terrível e repentina metamorfose; seria que a vida selvagem que levava no deserto o estivesse influenciando inconscientemente; seria que, finalmente, tinha sucumbido à pressão do ambiente selvagem e sem leis dos povos entre os quais vivia há tanto tempo? Que demônio o subjugava naquele momento? Sua missão era poupar, salvar vidas, e não destruí-las. Verdade é que, errando pelo deserto, encontrara-se às vezes em situação de tirar a vida de certos indivíduos. Mas isto era totalmente diferente. Tinha então matado em defesa própria ou de outros, como sem hesitar mataria de novo se fosse necessário, como, por exemplo, teria matado, sem o menor arrependimento, aquele Abdul el Dhib, caso se tornasse preciso, na vila abandonada do deserto, havia três semanas. Mas havia uma distância enorme entre o homicídio justificável e o assassínio. O assassínio! Um suor gelado lhe porejou da face, apenas balbuciara a palavra. Estaria ficando doido? Tinha consciência de que nunca se sentira tão bem de saúde. Não era loucura o que sentia no momento, e sim inexplicável sentimento de inimizade mortal, cujo ímpeto o subjugava.

     A atmosfera do teatro tornou-se subitamente abafadiça. O sangue latejava-lhe nos ouvidos e, com a sensação de que ia sufocar, esfregou os olhos, tentando afastar a nuvem que se levantara entre ambos e encobrindo a platéia e a orquestra. Ficar para o resto da ópera parecia-lhe impossível; ceder ao impulso do momento e sair, como um fraco, era igualmente impossível. Concentrando-se, então, dispôs-se a voltar para o seu lugar. Mas quando se movia para ali, o agarraram pelo braço e Patrice Lemaire, com sua voz ardorosa, murmurou-lhe ao ouvido:

     — Olhe, “monsieur”, no camarote oposto. O compatriota de quem o senhor falou: Lord Geradine e a esposa. A bela e a fera, heim? “Oh! la, la! quelle brute”!

     Por um momento, Carew permaneceu imóvel; depois, com tremendo esforço sobre si, constrangeu-se a olhar, como se fosse naturalmente, na direção indicada pelo interessado “attaché”. Aquele olhar foi o mais breve que podia ser. Livrando-se da garra nervosa do impressionável jovem francês, que teria muito mais a dizer, caso o ouvinte fosse outro, Carew recuou com um dar de ombros de fingida indiferença.

     — Como o senhor diz bem, um verdadeiro bruto. — respondeu friamente. — O resto, o senhor é mais competente do que eu para julgar.

     — Cada doido com a sua mania, “monsieur”. Para o senhor, cavalos, e para mim, moças, — redargüiu Lemaire alegremente; e continuou a fitar, com indisfarçável admiração, a lourinha que ocupava um camarote fronteiro, até que a entrada do tio e do General Sanois o levou ao seu lugar, para desenvolver planos com um simpático camarada “attaché”, a fim de obter uma apresentação para a bela inglesa, que, naquele momento, reinava sobre o seu coração suscetível e volúvel.

     Para Carew, o tempo se arrastava com um vagar de enlouquecer. Chegou a invejar Sanois que, abrigado também pela cortina do outro lado, aplaudia francamente. Todo o corpo lhe palpitava ainda sob a influência da onda de extraordinária raiva que o invadira, a cabeça lhe doía pelo esforço que fizera para compreender os próprios sentimentos, para encontrar uma razão sã e lógica do desarranjo mental que se apoderara dele com a rapidez de um cataclismo. Aquilo tudo lhe era completamente inexplicável, tão inexplicável como a agitação de espírito que sofria havia três semanas. Haveria alguma relação entre aquele casal e as suas impressões, seriam estas conseqüência dessa relação? Este pensamento espantoso quase lhe trouxe uma exclamação aos lábios e, cerrando os dentes, seus olhos voaram involuntariamente para o camarote fronteiro. Que possível relação havia, que tinha ele a ver com qualquer dos dois personagens tão estranhamente unidos, e que o tinham, cada um por sua vez, impressionado tão poderosamente? Em que direção o estava levando o destino? Teve uma impressão de desamparo. Desde o dia da chegada inesperada de Micky Meredith, revivendo-lhe memórias de um amargo passado, tudo lhe parecia ter mudado. Parecia-lhe que não era mais dono de si mesmo. Parecia-lhe ter mergulhado num “maelstrom” [vórtice, redemoinho] de circunstâncias sobre as quais não tinha o mínimo domínio, e cujo fim não percebia. A sensação de impotência contra o destino o estava mortificando; e ele a repudiou raivosamente. Seria maldito se fosse agora submeter-se a qualquer força ocasional que o levasse contra suas próprias inclinações. Seria igualmente maldito se fugisse daquela dificuldade. Já uma vez na vida passara por covarde e fugira de uma situação que não se sentira bastante forte para enfrentar. Jamais procederia outra vez assim, se quisesse conservar o último vestígio de respeito por si mesmo. E, afinal de contas, do que tentava ele fugir agora? Dos problemáticos resultados de um ódio subitamente concebido por um estranho, da constante recordação de um rosto de mulher, pelo qual ficara obcecado, ele que odiava mulheres!? Deus de misericórdia, que loucura! E, reduzido ao nível do raciocínio sem paixão, como tudo lhe parecia fútil! Já era mesmo tempo de voltar ao deserto, se esse era o resultado da civilização sobre seu caráter.

     Encolhendo os ombros com desprezo por si mesmo, voltou a atenção para o palco que, até aquele momento, lhe fora indiferente. E, até o fim do ato, focalizou sua atenção na peça que estava sendo representada, e, aliás, lhe parecia pouco mais fantástica e irreal do que os próprios pensamentos que o agitavam.

     Aplaudiu com grande satisfação a decisão do Governador de se irem no intervalo seguinte e, quando terminou o ato, abandonou o camarote, com um suspiro de alívio.

     No “foyer” [sala de espera nos teatros], Sua Excelência se demorou alguns momentos tagarelando com o diretor da Ópera com sua habitual cortesia, e o General Sanois, cuja política era bater o ferro enquanto está quente, aproveitou a oportunidade para levar Carew a um canto e, sem mais preâmbulos, pedir-lhe a informação prometida durante o jantar. Conversavam ainda animadamente, quando se dirigiram para as carruagens que os esperavam. O Governador parou uns momentos no degrau da sua vitória [tipo de carruagem inglesa] e irradiou um olhar de afeição sobre os dois homens que o ladeavam e o sobrepujavam em altura.

     — Talvez os senhores queiram ir para o Clube, para um joguinho de “bridge”, não? — inquiriu alegremente.

     — Para o Clube, sim, para o “bridge” não, — replicou o General claramente. — Carew e eu temos alguns negócios sobre que conversar.

     O Governador levantou os olhos para o céu.

     — Negócios, a esta hora da noite... “grand Dieu”? — exclamou. — Ainda cartas, poderia compreender, mas negócios... — e abanou a cabeça com ar desesperado. — O senhor é incorrigível e este bom Carew que ainda o está animando! Pois vão e tratem dos seus negócios, “pardieu”! [por Deus!] Por mim, já tive um dia muito exaustivo... muito exaustivo mesmo. Depois, irei para casa dormir, pelo menos uma vez na vida. Foi uma tarde encantadora, uma tarde encantadora mesmo.

     E, sorrindo e cumprimentando com largos gestos, pavoneou-se dentro da vitória, dando ordem de seguir.

     Quando a carruagem de Carew se moveu para o lugar onde estavam, o General Sanois, que aceitara o convite para se deixar conduzir ao Clube, notou, com certa surpresa, os dois cavaleiros árabes que a acompanhavam de perto.

     — O senhor anda esta noite com um séqüito de príncipe, meu amigo, — disse, sorrindo com curiosidade.

     E Carew, que somente nesse momento notara os dois homens, encolheu os ombros, meio divertido, meio aborrecido. Nunca lhe ocorrera a idéia de uma escolta, mas Hosein tinha evidentemente resolvido que seu amo não corresse naquela noite nenhum risco que pudesse ser evitado.

     — Assim parece, — disse brevemente, — mas o senhor deverá censurar a Hosein e não a mim, por esta absurda montagem teatral.

     O General acomodou o corpo anguloso a um canto da carruagem e ajeitou a espada entre os joelhos. “Provavelmente ele tem suas razões”, disse, como se falasse consigo, com um sorriso velhaco, que deixou Carew intrigado sobre o que ele poderia saber do assunto e sobre as informações que lhe poderiam ter sido fornecidas pela polícia secreta, cuja atividade se estendia a distritos mais distantes do que se poderia imaginar. Mas deixou o comentário passar despercebido. O General era bom amigo, se bem que essa amizade fosse também um pouco interesseira por causa das necessidades políticas da região, e até seus agentes de mais confiança eram também espionados, o que constituía uma das partes de um plano bem elaborado e um sistema bem organizado. O General passava por cima de tudo para obter uma informação que desejasse, e tinha a opinião de que os fins justificam os meios. Era evidente que estava intrigado com a visita de Carew ao Casbar naquele dia, mas evitava demonstrar essa curiosidade conforme o acordo há muito estabelecido entre os dois. Embora soubesse, e tinha boas razões para sabê-lo, que Carew era devotado de coração à terra de sua adoção, sabia também que o inglês obedecia a certos escrúpulos que o impediam de transpor os limites de cortesia e da discrição. Esta noite Carew estava convicto de que o General estava na pista de outra coisa além da informação que lhe havia prometido e, pela sua parte, estava firmemente resolvido a não deixar escapar nada além do assunto em vista. Apesar do seu hospedeiro daquela tarde ser culpado de algumas indiscrições que o tinham tornado mal visto pelo Governo, sua própria vista ao Casbar constituía negócio puramente pessoal, e assim deveria ficar.

     O Clube Militar estava cheio de sócios, quando chegaram e passou-se ainda algum tempo até que os dois homens pudessem encontrar um quieto recanto onde lhes fosse permitido continuar a conversação que iniciaram no “foyer” da Ópera.

     Pedindo café, o General sacou de um mapa, que parecia viver eternamente no bolso interno da túnica e desdobrou-o sobre a mesa. Por mais de uma hora conversaram sem interrupção, e quando, por fim, o General Sanois empurrou a cadeira para traz dando mostras de satisfação, o Clube só continha reduzido número de jogadores inveterados, cujas vozes ecoavam, alternando-se da sala contígua.

     — Então está combinado que o senhor agirá por nossa conta se assim for necessário, — disse, dobrando o mapa cuidadosamente.

     — Se tornar-se necessário, sim, — disse Carew, indo buscar o capote, — mas eu preferia que o senhor resolvesse esse negócio sem meu auxílio. Tenho um plano meu em mão e estou ansioso para voltar ao trabalho.

     — O senhor poderá fazer seu trabalho e o nosso ao mesmo tempo.

     Carew abanou a cabeça.

     — Não conscienciosamente, — disse, levantando-se para sair; — e além disso, o senhor quer que eu vá para o Sul, e eu quero ir para o Oeste.

     Com repentino interesse, o General desviou os olhos de algumas notas que estava rabiscando, num grosso caderno de bolso.

     — À Cidade das Pedras, — sugeriu, dando um ar de riso à voz.

     — Sim, à Cidade das Pedras, — confirmou o outro lentamente; — e como soube?

     O General riu.

     — Eu não sabia. Supunha. É empresa suficientemente impossível, que naturalmente despertaria seu desejo. Tenho estado a imaginar por que não tentou ainda.

     Carew teve um gesto de divergência.

     — Não penso que seja impossível.

     — Não, o senhor não pensa, — disse secamente, — mas é impossível por todas as razões. Muita gente já tem tentado penetrar naquela enigmática e misteriosa cidade, e disseram-me que seus encantadores habitantes usam os ossos dessa gente como adornos pitorescos para embelezar seteiras e muros.

     Carew arremessou o pesado capote aos ombros.

     — Que sejam bem-vindos aos meus ossos, — disse numa risada, — pois que a alternativa provável são os chacais.

     — E seus homens... e o pequeno Saba? — balbuciou Sanois, desenhando modelos com o lápis sobre o mármore da mesa.

     Carew olhou-o com leve sorriso. A solicitude de Sanois era tocante, mas não convincente.

     — Quanto dá por meus homens e por Saba, e quanto dá pelos seus planos, General? — redargüiu ele.

     O general riu, mostrando os dentes, ao levantar-se a custo.

     — Muito obrigado, — exclamou, curvando-se levemente, — mas meus planos são muito menos loucos que os seus, meu amigo. Entretanto, poderemos contar com o senhor?

     — Só no caso de se tornar absolutamente necessário, — replicou Carew rapidamente.

     E não desejando arriscar uma recusa peremptória com argumentos prematuros, Sanois reservou-os para outra ocasião.

     — Poderemos conversar sobre isso outra vez, — disse com ar agradável; e apertou-lhe as mãos com maior cordialidade do que usava comumente.

     Para Carew o ar frio da noite foi um alívio bem-vindo depois da abafada atmosfera do Clube. A brisa fresca que soprava contra o seu rosto parecia purificar-lhe o cérebro e o habilitava a pensar mais calmamente nos desordenados incidentes daquele dia. Mas a calma reflexão não elucidou a raiva extraordinária e violenta que o tinha invadido. Tanto ia além da sua compreensão como ignorá-la estava além da sua força. Parecia queimá-lo. E a moça... E praguejou raivosamente. E que tinha ele que ver com aquela mulher... ou com outra qualquer... Ele que amaldiçoara as mulheres? Então não tinha nenhuma força de vontade? Escarneceu de si mesmo, enquanto a carruagem parava no portão da vila.

     Cansado de si próprio e do tumulto dos pensamentos, andou até a porta da entrada, imaginando o que iria fazer durante o resto da noite. Dormir naquele estado de alma era coisa fora de discussão. Não era de descanso corporal que precisava, mas, ao contrário, de exercício físico, de modo que, com o corpo fatigado, pudesse esquecer a tempestade mental que o tinha assaltado durante as últimas três semanas de relativa inatividade. Parou no patamar da escada que subia para a varanda e fitou o céu estrelado. O aroma forte das laranjeiras em flor fê-lo pensar, com tristeza, no acampamento que deixara entre as colinas perto de Blidah. Que bela noite para uma corrida de cavalo! Se partisse agora, poderia estar lá por volta da madrugada. Alguns minutos entreteve essa idéia; depois abandonou-a com relutância. Apesar da forte propensão, alguma coisa parecia estar atraindo-o para ficar ali, alguma coisa que lhe tornava impossível deixar Argel.

     E, com profundo suspiro, entrou vagarosamente em casa.

 

     Durante os dias subseqüentes, tornou-se cada vez mais claro para Carew que o sonho, tão acalentado, de visitar a misteriosa Cidade das Pedras, estava condenado, senão a um fracasso, pelo menos a uma protelação indefinida. O General Sanois, que se tinha entregado de corpo e alma ao novo plano, para o qual a informação de Carew preparara caminho, trabalhava arduamente e fazia pressão sobre Carew para que aceitasse a missão que lhe fora oferecida. Os sucessos anteriores de Carew tinham tornado o General ansioso por ver em que daria a embaixada ora proposta. Estava um tanto desapontado com a falta de entusiasmo do inglês pela aventura, que apresentava muito menos dificuldades que outras em que já se metera, sendo que esta, além do mais, prometia aumentar o prestígio do Governador Militar do Sahara. Apresentava e discutia propostas, demonstrando todas as possibilidades que induzissem seu agente voluntário a dar-lhe sua cooperação, não abandonando nenhuma oportunidade para incitá-lo com pedidos insistentes. A cada objeção levantada por Carew, respondia com desusada abundância de retórica, que era desperdiçada com o silencioso e determinado ouvinte, cujo desejo de retornar ao seu próprio trabalho punha de lado, como secundárias, as tramóias políticas do país. Correios montados chegavam de minuto a minuto à vila, e a Carew parecia-lhe que o telefone jamais cessaria de chamá-lo. Desesperado, por fim, de poder obter paz de espírito e quietude, que tanto almejava, levara Hosein consigo e escapuliu por uns dias para o acampamento de Blidah. Mas mesmo ali, a solidão que procurava lhe fora negada. A cerca de uma milha do acampamento, encontrou a tenda de um sheik do deserto, que se dirigia despreocupadamente para Argel, a fim de comparecer à reunião anual dos chefes.

     O árabe era um velho conhecido seu, cuja hospitalidade gozara diversas vezes; uma troca de visitas se tornou necessária e vantajosa. Mas não era para ouvir as efusões do chefe, eternamente queixoso, que fugira às importunações do General Sanois. Frustrando seus próprios desígnios, saíra de madrugada, e voltara para Argel, mandando que Hosein o seguisse, depois de terminar alguns arranjos do acampamento, quando rompesse o dia.

     Mas a despeito das tediosas interrupções que os pedidos do velho sheik lhe tinham ocasionado na folga, esses dois dias lhe foram benéficos. Longe de Argel, pudera de certo modo dominar a agitação de espírito que o invadira desde a noite em que salvara Lady Geradine das garras de Abdul el Dhib.

     E era justamente sobre o malogrado ladrão de cavalos e a sua ameaça até aqui não cumprida que estava pensando, quando fez Suliman parar, subitamente, no cimo de uma colina a poucas milhas fora da cidade, para admirar o glorioso levantar do sol que sempre lhe causava prazer intensíssimo.

     Até então, Abdul não levara a efeito nenhuma tentativa de executar seus projetos homicidas. Cético a respeito dos avisos que recebera, Carew jamais lhe teria consagrado atenção se não notasse os modos de seus criados, cuja contínua e evidente vigilância era uma constante lembrança da ameaça que pendia sobre sua vida. Hosein ainda se conservava ansioso, seria difícil persuadi-lo a ficar no acampamento naquela manhã, tanta aversão tinha ele em deixar o amo andar sozinho, e Saba ainda estava inquieto, Saba, patética figurinha sofredora, que se apegava ao protetor, recusando qualquer outro conforto. E, diariamente, sentia incomodá-lo o revólver que usava habitualmente enfiado no colete da túnica árabe. Riu dessa precaução. Vestido à maneira européia nesses dois dias, esquecera que costumava carregar a arma daquele modo. Mas ao relancear agora o olhar em torno do morro onde estava, encontrou o revólver na faixa de seda bordada que lhe cingia a cintura.

     O local lhe despertava muitas reminiscências. Fora ali que, depois de ter deixado Lady Geradine nos arrabaldes de Argel, encontrara Abdul e o obrigara a revelar-lhe o esconderijo do cavalo roubado. Mas o seu sorriso foi-se depressa e a sua face se anuviou, ao passar do pensamento do cavalo recuperado para a lembrança da moça. Desde aquela noite da Ópera não a vira mais, mas ela estava sempre presente na sua memória. Já se havia desvanecido a raiva intolerante que sua presença lhe despertara a princípio. Achava-se agora em apuros para definir claramente seus sentimentos atuais a respeito dela. Não era interesse, disse consigo mesmo, quase zangado. Não tinha o menor interesse por ela, nenhum desejo de pensar nela. E, no entanto, não fazia outra coisa senão lutar contra aquela constante lembrança. Incapaz de resistir ao que lhe parecia verdadeira obsessão, ressentia-se da profunda impressão que sofrera, vexava-se com o enfraquecimento humilhante da própria vontade, que tanto tinha feito para dobrar. Mais do que nunca, estava determinado a abandonar Argel à primeira oportunidade. Chegara ao ponto de odiar a cidade e as perturbadoras associações de idéias que se lhe relacionavam. A atração do deserto e a legendária Cidade das Pedras o estimulavam poderosamente naquele momento em que, deixando o cavalo com a rédea solta, olhava embevecido o levantar do sol de tons dourados e amaldiçoava a meia promessa que já fizera ao General Sanois. Mas já tinha prometido, ou quase prometera. E, encarando sem evasivas essa decisão, resolveu consigo mesmo que a Cidade das Pedras teria de esperar. Com um leve suspiro de pesar, procurou nas dobras do albornoz um cigarro, olhando para o disco do sol que subia cada vez mais alto num céu salpicado de manchas carminadas, até que a luz bateu de chofre sobre a cidade distante, que lhe aparecia agora bem distinta em todos os detalhes. Franziu a testa com súbita irritação e, refreando Suliman, fê-lo voltar-se na direção de Birmandreis. Era ainda muito cedo. A não ser um cabreiro caminhando, grave, à frente de seu rebanho, não viu o mínimo sinal de vida humana, desde o momento em que deixou o caminho que vinha do acampamento pela estrada real que conduzia à aldeia.

     Era cedo demais, pensou, para voltar à sua vila. Cavalgou vagarosamente pela estrada bem conservada, prestando atenção ao agudo clipe-clópe das ferraduras do cavalo, aspirando com delícia a fragrância do ar fresco da manhã que lhe soprava contra o rosto. Não havia necessidade de apressar-se. Haveria tempo bastante durante o dia para ver Sanois e dar-lhe sua tão demorada resposta. Até lá poderia esquecer o assunto.

     Birmandreis já estava desperta e movimentada, quando ele entrou a passo lento pela praça em miniatura e tomou a direção de El-Biar. A pequena distância além da aldeia, abandonou a estrada real e tomou por um atalho, à procura de um cafezinho árabe que conhecia. A pitoresca casinha, quase escondida pela frondosa ramagem de uma figueira, estava silenciosa àquela hora da manhã, e aparentemente deserta. Mas, ao barulho das ferraduras de Suliman, ao grito de Carew chamando por alguém, um sonolento albergueiro apareceu, bocejando, mas prontamente se desfez em atividade obsequiosa à vista de seu madrugador freguês.

     Após haver amarrado as rédeas do animal a uma argola da parede, Carew sentou-se num banco, à sombra da figueira, esperando o bom café árabe que dera fama àquele lugar. Trouxe-o, por fim, o albergueiro mestiço, que começou a andar à roda com veemente loquacidade. Soubera que Sua Excelência voltara do deserto, e esperava vê-lo mais cedo no Café Medusa. Esperava que a longa excursão de Sua Excelência tivesse sido de bons proveitos. “Monsieur” estava contente por ter voltado à civilização? “Monsieur” não estava? “Helas!” Mas Argel estava bem alegre esta estação, mais cheia de gente que por muitos anos antes. O comércio estava bom. Pela sua parte, nada tinha do que se queixar, o café prosperava e os visitantes, principalmente os visitantes ingleses, eram bons pagadores, graças a Allá!

     Sem desanimar ante as respostas monossilábicas de Carew, o albergueiro divagava, metade em francês, metade em árabe, discorrendo sobre o distrito, as colheitas, os impostos lançados ultimamente pelo governo, tudo com bela imparcialidade, mas com a devida atenção a seu interlocutor, vastamente conhecido pelas íntimas relações que mantinha com as autoridades locais. Mas, debaixo daquela aparência de maneiras descuidadas, havia alguma coisa de desassossego no homem. Andava sem parar, falando, relanceando, de tempos a tempos, olhares furtivos em derredor e, por uma ou duas vezes, pareceu a ponto de dar uma informação, que hesitava em dar e lhe morria ambiguamente nos lábios, toda a vez que a isso se resolvia.

     Quando, porém, Carew pagou a modesta conta, e já se achava de novo sobre a sela, o homem pareceu tomar súbita decisão. Chegando-se bem perto e colando-se ao fogoso animal, fingiu que apertava uma correia solta, enquanto com os dedos apalpava nervosamente as tiras de couro escarlate dos arreios.

     — A dentada do chacal é venenosa, ó Sidi — murmurou agitadamente em puro árabe; e afastou-se com pressa, como já arrependido, mau grado seu, das palavras que havia proferido. E Carew, fitando aquela face contraída, sabia que seria inútil perguntar-lhe mais alguma coisa. Não fez nenhum sinal de que ouvira e compreendera. Com um aceno descuidado e um perfunctório “Fique com Deus”, deu rédeas ao cavalo, dirigindo-se para o atalho da volta e susteve-o, de freio curto, num passo macio e descuidado, até que a primeira volta da estrada o escondesse dos olhares curiosos que, sem dúvida alguma, o estavam espiando por trás da densa ramagem da figueira. Então soltou as rédeas a Suliman, refletindo, enquanto o fogoso corcel disparava num galope desabrido, em quão perto de um atentado estivera naquela última meia hora. Era fora de dúvida que Abdul el Dhib, esperando uma oportunidade com a pertinácia oriental, estava perto dali, emboscado em qualquer esconderijo. Mas Carew se via em apuros para adivinhar porque arriscava ele o vil pescoço tão perto de Argel ou quais as suas relações com o mestiço proprietário do Café. Bastava-lhe, porém, ter sido avisado uma vez mais, e por um aviso dado sob a impressão de indizível temor. Que aquele árabe tivesse tido a coragem de dizer o que lhe dissera, esclarecia-o tanto como volumes inteiros.

     Com uma palavra de impaciência, apenas balbuciada, Carew correu a mão sobre o macio pêlo do animal.

     Abdul el Dhib estava se tornando incomodo e agora desejava que a contenda entre ambos se houvesse liquidado, de uma vez por todas, no Café Medusa, nessa manhã. Sentiu-se quase tentado a voltar sobre os passos, e forçar a imediata conclusão daquele negócio. Puxou com ímpeto as rédeas, virando-se na sela para esquadrinhar o caminho atrás. Mas... que lhe adiantaria? Abdul tivera uma oportunidade e a deixara passar, naturalmente por motivos particulares. Nada ganharia, pois, e arriscaria muito se colocando pela segunda vez no caminho do patife. Afinal de contas, a questão era de Abdul, e não sua. Que Abdul jogasse o primeiro lance, se de fato pretendia mesmo jogá-lo. Parecia-lhe que o inimigo dera demais com a língua nos dentes, para ser realmente perigoso. Os tagarelas raramente agem, refletiu. E afastando da mente a idéia do bandido, continuou a viagem, deixando a estrada e tomando por outro atalho, pelo qual rodearia El-Biar e chegaria a Bouzaréa, donde tencionava voltar para Mustapha.

     A brisa fresca da manhã já se fora, e o dia prometia ser estafante, mais do que costumavam ser os dias daquela quadra do ano. Mas para ele, afeito de tão longa data ao sol ardente do deserto, o calor era sempre bem-vindo. Mais senhor de si do que no decurso das últimas três semanas, foi prestando toda atenção ao distrito por onde estava passando, zona que conhecia desde os tempos de rapaz, mas que há muito não visitava.

     Os anos passados pareciam desvanecer-se, ao notar que reconhecia todos os aspectos do terreno. Haviam mudado tão pouco os bosques e as moitas por entre as quais seguia agora, que se deixou mergulhar numa espécie de sonho, deixando também que Suliman tomasse o passo que bem entendesse por todo o caminho pedregoso.

     Influenciado pelas várias impressões que lhe traziam os lugares por onde passava, deixou-se dominar por recordações; recordações do pai, inteligência brilhante, que renunciara a uma grande carreira política para se dedicar exclusivamente à esposa que era o seu ídolo; recordações da mãe, bela e frágil, cuja influência, caso ainda vivesse, tanto lhe teria modificado a vida. Consagrara-lhe toda a adoração de sua alma juvenil, e a sua simples evocação tornou-o mais indulgente para com a própria esposa, que lhe tinha pago o amor com a traição. Mas o trágico fim de sua curta vida de casado lhe fechara tanto o coração às suaves influências da saudade que, na sala de visitas de sua vila, aposento em que nunca entrava, o retrato de sua mãe estava velado por uma pesada cortina que não fora descerrada sequer uma vez durante os últimos doze anos. Doze anos! Doze anos de solidão e exílio voluntário! A princípio, tinha-lhe parecido o inferno: houvera mesmo ocasiões em que a tentação de acabar com tudo de uma vez quase o dominara; ocasiões em que só um milagre de energia o afastara do suicídio. Agora, porém, podia pensar calmamente em tudo isso, exceto numa recordação dolorosa que nunca o abandonava. Apesar de tudo, seus pensamentos se voltavam constantemente para o filho perdido, para o filhinho sobre o qual concentrara tantas esperanças. E uma onda de saudosa desolação o invadiu. Ainda se o tivesse!... Uma expressão de dor intensa lhe transfigurou as feições, e os lábios firmes lhe tremeram ao tentar fazer idéia do que seria o menino agora, um rapazote de quatorze anos, no limiar da virilidade. Seu filho! Oh! Deus! Como ainda o desejava! E do filho de seu corpo, que estava perdido para sempre, seus pensamentos saltaram, com súbita compaixão, para o outro filho de adoção, o pequeno árabe perdido no deserto e que salvara da morte para mitigar a própria solidão em que vivia, e que tanto dependia de sua assistência pela cegueira e desamparo. O pobre pequeno sonhador de sonhos curiosos, assediando Allá horas e horas com orações e rogos pela vida do amado protetor, que era o seu mundo, também estava saudoso do deserto, daquela vida livre e selvagem para a qual nascera.

     A imaginação de Carew deu um salto para a próxima entrevista com o General Sanois. Depois de dar-lhe sua palavra, moveria céu e terra para apressar os arranjos de modo a sair de Argel o mais depressa possível. Uma partida rápida e breve seria a condição “sine qua” [indispensável] para aceitar a incumbência que lhe propunham.

     Com leve sorriso, inclinou-se para diante para facilitar o peso a Suliman, e o cavalo começou a subir a colina que levava aos bosques traseiros de Bouzaréa. Aquele caminho de tropa era muito pouco usado, semeado de seixos e, em certos lugares, os cactos tinham crescido tanto que invadiam o caminho. O cavalo se dirigia com cuidadosa precisão, oriunda da experiência. Carew deixou-o marchar à vontade, soltando-lhe a rédea. O grande baio, lutando e resfolegando pela encosta, venceu os últimos cem metros da subida íngreme, com os poderosos músculos trepidando contra os joelhos do cavaleiro. Com um esforço final, fazendo voar os seixos debaixo das ferraduras, chegou ao vértice e parou, respirando profundamente, relinchando em resposta à carícia que o dono lhe fazia, passando a mão pelo pescoço banhado de suor.

       Depois, continuou para diante em descida, com as orelhas em pé e o passo nervoso pela estrada que acabava num caminho apenas perceptível. Filho do deserto e nele criado, para Suliman a floresta densa e silenciosa era um lugar de emboscadas, de desconhecido terror, ao qual nunca se acostumara e agora mostrava claramente sua antipatia por um caminho que lhe era sumamente desagradável.

     Mas, absorto em seus pensamentos, e já acostumado aos modos do cavalo, Carew não lhe prestava atenção ao desassossego. Como o distrito que atravessara há pouco, esta floresta lhe reavivava as recordações do passado. Fora um retiro favorito na sua infância. Por ali uma vez vagabundeara durante horas, juntamente com Hosein, então seu companheiro de travessuras. Depois, a floresta se tornara um sítio de mistério e encanto, povoado de “djins” [espíritos, gênios] maldosos, de aparições de que o criado árabe estava cheio, e sobre as quais Hosein falava com a fluência e imaginação próprias da raça, contos a que o rapazinho inglês, já meio imbuído pelo espírito do país, ouvia meio crédulo, meio descrente, mas sempre interessado, inundado de alegria, mesmo quando os seus cabelos se arrepiavam na cabeça, ao imaginar as profundezas dos enormes subterrâneos, as monstruosas formas e ferozes olhos a que a eloqüência de Hosein dava existência real.

     Carew olhou em derredor com um sorriso. Perto dali havia uma clareira pequenina, de que se lembrava bem por causa de uma história de anões e magos da floresta, história que era a obra prima de Hosein, um conto de nigromantes [feiticeiros que invocam os mortos] e demônios e de uma beldade seqüestrada, e as extravagantes aventuras de um filho de sultão, cujos feitos heróicos transcendiam todas as possibilidades humanas. Como se divertia com tudo aquilo, ouvindo boquiaberto e de ouvido alerta, absorto, as frases de Hosein proferidas com diferentes entonações! Aqui, contava a história, a triste princesa, escapando das garras de um dragão que a tinha cativa, encontrara um cavaleiro errante que o destino lhe enviara para socorrê-la; aqui, mais bela ainda do que as “houris” [mulheres lindas e voluptuosas do paraíso islâmico] do paraíso, sentada pacientemente no chão e velada pelo cabelo sedoso da cor da noite, havia esperado o bem amado.

     Ainda estava pensando na velha história quando uma rápida curva do caminho o fez desembocar na pequena clareira. Parecia-lhe menor do que quando a tinha visto com os olhos de rapaz, havia tantos anos. Perdera agora aquele mistério de que a cercavam as histórias de Hosein. A seus olhos de homem, nesse momento, ela não passava de uma simples clareira de bosque vulgar.

     Mas não foi a clareira de sua recordação que lhe chamou a atenção. Seu olhar achou-se de repente fixado num vulto sentado, justamente como a princesa da história, ao pé de um tronco nodoso de carvalho. Não enfaixada nas abundantes sedas orientais, nem velada por uma cortina de espessos cabelos escuros, mas em traje de montar, como uma amazona, traje que se ajustava ao seu corpo e lhe dava um ar de rapaz, e no qual ele a tinha visto na primeira vez. Encostada ao tronco da árvore secular, com a cabeça descoberta e apoiada na casca esburacada, os braços em torno dos joelhos dobrados, assobiava suavemente para um pequeno lagarto verde, que se agitava no musgo, rente aos pés. O bichinho com a boca aberta, o papo cheio e um langoroso balancear de cabeça, ouvia, fascinado, o claro e suave trilo que o encantava até torná-lo imóvel. Como os pés ágeis de Suliman nenhum ruído fizessem no chão atapetado de folhagem, a moça não reparara que sua assistência tinha sido aumentada de outros ouvintes. Fazer recuar o cavalo e desaparecer dali, antes que ela notasse sua presença, foi o primeiro impulso de Carew. Mas sentia instintivamente que alguma coisa o retinha, apesar das suas intenções, e o retinha na hesitação. Tendo deixado passar a primeira oportunidade, não teve segunda. Acicatado pelo forte puxão do freio e sentindo súbito o aperto dos joelhos do cavaleiro nas ilhargas, Suliman, com desusada ostentação de temperamento, levantou-se nas patas traseiras, relinchando de indignação. Submetendo-se ao inevitável, com a melhor cara que poderia fazer naquela ocasião, Carew forçou-o à posição normal, saltou ao chão, e levando a mão à cabeça numa graciosa saudação, cumprimentou a moça à moda árabe de acordo com a vestimenta que estava usando.

     — Bom dia, lady Geradine.

     Assustado, o lagarto fugiu, porém Marny não se moveu nem alterou a posição. Respondeu ao cumprimento sorrindo, enquanto o examinava dos pés à cabeça. De pé, ele tinha a aparência de uma pitoresca figura de comandante, apoiando-se contra o cavalo, cujo focinho encostava à mão do cavaleiro.

     — Bom dia, homem do deserto!

     Houve uma brevíssima pausa antes que pronunciasse as três últimas palavras e Carew denotou na face bronzeada uma impressão de enfado.

     — Meu nome é Carew, — disse, com um laivo de aspereza.

     Ela acenou com a cabeça, assentindo, olhando-o com olhos graves e muito abertos e chegando os joelhos para mais perto do queixo.

     — Já sabia, — disse simplesmente. — A Sra. Chalmers me disse antes de sair de Argel. O Sr. é Gervásio Carew, e odeia as mulheres... Por que fez aquilo então?

     — Aquilo o que? — respondeu, não conseguindo apanhar o sentido da pergunta.

     — Por que se incomodou em interferir no meu caso naquela noite, perto de Blidah? — inquiriu ela tranqüilamente. Ao falar, porém, o sangue inundou-lhe as faces.

     Carew ficou silencioso por alguns instantes. Depois com um leve encolher de ombros:

     — Porque a senhora é inglesa, — respondeu polidamente.

     A moça abanou a cabeça, sorrindo com ar divertido.

     — Mas não sou. A verdade é que sou irlandesa, graças a Deus.

     — Dá no mesmo, — retorquiu com indiferença.

     A moça protestou com um gesto de mão e que denotava desdém.

     — Não para nós, irlandeses, — respondeu rindo.

     Retomou o ar grave, olhando-o com interesse indisfarçável.

      — Tem certeza? — perguntou. — Quer dizer então que, se eu fosse árabe ou francesa, o senhor nada teria feito... nada mesmo...

     Carew assentiu com a cabeça.

     — E porque sou inglesa, ou porque supôs na ocasião que o era, o senhor pôs de lado seu preconceito e fez o que fez, simplesmente para satisfazer o “esprit de race”? [espírito de raça]

     — Sim, — foi a resposta lacônica.

     Marny desviou o olhar dele e um sorriso singular lhe aflorou os lábios.

     — Como é lisonjeiro!

     Carew franziu a testa, ao perceber o tom de ironia que lhe transparecia na voz.

     — Como assim?— perguntou obstinadamente.

     A moça, porém, limitou-se a sorrir de novo e abanou a cabeça, recusando-se a esclarecê-lo com outras palavras. Depois, mudando subitamente de modos, fitou seu interlocutor, encarando-o quase embevecida.

     — Recusou-se a apertar-me a mão por duas vezes, Sir Gervásio, — disse lentamente; e tênue rubor lhe subiu às faces. — E, por minha vez, eu o pus de lado naquela noite na Ópera. Estaremos quites, só por hoje, seu preconceito contra minha rudeza, quer assim? Não poderá o senhor esquecer, uma vez ao menos, que está falando com uma pessoa do sexo que despreza, pois não posso deixar de ser mulher e muito pelo contrário preferiria ter nascido homem, e contar-me tantas coisas que o senhor sabe tão bem, coisas com que as pessoas que tenho encontrado em Argel parecem não se incomodar, coisas a respeito dos árabes, do deserto, e de todo este país maravilhoso? Não do deserto a que vão os turistas, mas do deserto real, muito longe, lá para as bandas do sul, — acrescentou vivamente, ajoelhando-se de repente, para apontar a direção a que se referia.

     Os olhos de Carew seguiram mecanicamente aquela mão estendida. Naquele momento tentava compreender a própria e estranha hesitação. Ser-lhe-ia fácil desculpar-se, alegando qualquer pretexto plausível, e voltar como tinha vindo, deixando-a na solidão que interrompera. Mas não queria ir embora. Como um raio que fende ao meio um carvalho secular, a verdade se irradiou no seu espírito com um clarão ofuscante, e os seus lábios se comprimiram numa curva de desprezo por si mesmo. Que espécie de louco era ele, que intenções alimentava ele que, professando ódio às mulheres, se entregava, no entanto, ao encanto dessa jovem? E onde estava esse encanto, que admitia com relutância? Na sua beleza? Riu mais amargamente que antes. Conhecera bem a inutilidade de beleza exterior. Ou seria então a sua diversidade de maneiras? Olhou-a de soslaio, e ela, encostada ao velho tronco, não mostrava prestar atenção ao seu silêncio, com os olhos fixos não nele, mas nas pontas das belas botas de montar e assobiando como antes para o lagarto. Era uma figura graciosa de efebo [rapaz púbere], que respirava vida e saúde e não tinha, nessa manhã, a menor semelhança com a moça de face pálida e desmaiada que carregara nos braços. Não se parecia também com a orgulhosa senhora que tinha visto no camarote da Ópera. Qual então a mulher real? E qual o motivo das perguntas que lhe fazia? Seria verdadeiramente um desejo desinteressado e genuíno de saber alguma coisa sobre a vida real do país e do deserto, o que a tinha levado a detê-lo a seu lado, ou quereria simplesmente divertir-se à sua custa, lisonjeada por ter conseguido prender a atenção de um homem conhecido como refratário às mulheres? Suas feições se sombrearam, e uma recusa formal aflorou-lhe aos lábios. Mas as palavras morreram, antes de pronunciadas. Fugir corresponderia a uma fraqueza, contra o que seu orgulho se rebelava. Se ela estava brincando com ele, tanto pior para ela. Se, de outro lado, fosse sincera no pedido que lhe havia feito...

     Dando de ombros, voltou-se e levou o cavalo para a extremidade da clareira, amarrando-o a um galho de árvore, sem demonstrar a menor pressa. Os olhos de Marny Geradine o seguiram com expressão de tristeza; e um profundo suspiro, que era quase um soluço, escapou do seu peito. Que fizera? Que direito tinha de se meter com ele? Por que aumentar a própria infelicidade, prolongando uma entrevista que só lhe traria mais amarguras? A alegria de vê-lo, de falar-lhe, não lhe traria senão maior desgraça e pesar. Mas a tentação fora mais forte do que pudera suportar. Amava-o tanto... E que mal poderia haver se a sua indiferença para com ela era tão grande? Por que odiaria as mulheres? A informação da senhora Chalmers não tinha ido além do simples fato de que ele odiava as mulheres, e, excessivamente reservada, não tentara saber a razão do seu ódio. Afinal de contas, que lhe importava? Os segredos do passado dele, se alguns havia, não eram de sua conta. Era-lhe suficiente que fosse um homem que devotara a vida a aliviar os sofrimentos do povo do deserto, entre o qual vivia há tanto tempo. Pela esposa do Dr. Chalmers soubera o significado do apelido pelo qual ele se designara naquela noite de terrível memória. Tomá-lo-ia, ideal que guardaria como tesouro dentro do coração, como um homem magnífico de força, magnífico na singularidade de seus desígnios.

     Carew voltou-se para ela vagarosamente, com feições tão impenetráveis como as da gente cuja vestimenta usava, e sentou-se à moda árabe no chão perto dela. Tomando-a literalmente pela palavra e estimulado por suas ansiosas perguntas, achou, depois de certo tempo, que as palavras lhe eram mais fáceis do que tinha imaginado a princípio. Era um assunto sobre o qual estava apto a falar, que lhe tocava o coração, e, gradualmente, a atitude de hostilidade indisfarçada se desvaneceu. Falou e discorreu como, algumas semanas antes, falara e discorrera em sua tenda com Micky Meredith. Nem o mais leve toque, porém, sobre si mesmo ou sobre seu trabalho. Mudo nesse ponto, falou somente do deserto, e seus nômades, do encanto e da crueldade das vastas regiões arenosas, das guerrilhas e rixas que rugiam perpetuamente entre as tribos selvagens e beligerantes. Sua voz grave e igual feria suavemente, não apresentando nenhum quadro fantástico, porém relatando fielmente as coisas na realidade, as coisas que tinha visto, a vida que levava. Embora demorasse em descrever o deslumbramento e fascinação do deserto, nada lhe escondeu da sordidez e da desgraça, e dos horríveis sofrimentos intimamente ligados com as cenas que pintava.

     Ela o ouvia, apaixonadamente feliz com a sua proximidade, enlevada com as histórias que ele tão vivamente relatava. Os olhos presos àquele rosto queimado pelo sol, e que tão persistentemente se desviava dela, imaginou não estar mais na pequena clareira, ou mesmo perto de Argel, que tanto a desapontara. Sentia-se agora muito longe, no Sul comburente, cavalgando a seu lado nas dunas intermináveis, nas areias ondulantes, acampando sob o manto salpicado de luz prateada das estrelas, vivendo, enfim, a vida que tinha sempre sonhado, vida de violência selvagem e primitiva, que era, no entanto, mais limpa do que aquela a que se via condenada. Estar com ele ali, longe da existência artificial que a molestava, viver sua vida própria ao lado dele, auxiliando-o no trabalho sobre o qual ele não queria falar e servindo-o com toda a força de um amor que a consumia. Ante essa miragem cerrou os punhos dolorosamente. Era um sonho que nunca poderia ser realizado! Não havia lugar para o amor de uma mulher na vida que ele levava. Só, sempre só, ele seguiria o caminho que se impusera, solitário morador das solidões sem fim, gastando as forças e a vida na luta contra a dor e sofrimento que procurava amenizar. E amarrada e presa como estava, qual não seria seu isolamento quando ele se fosse pela última vez, quando lhe desaparecesse da vida, deixando-a entregue a uma desgraça que seria até maior que a sofrida antes?

     Um soluço escapou do seu peito e, revoltada com a falta de domínio que tinha mostrado sem querer, escondeu o rosto nas mãos. Mas, para Carew, essa agitação parecia natural conseqüência das terríveis histórias sobre a desumana ferocidade dos árabes, que ele estava justamente concluindo.

     — É cruel, de fato, — disse ele com gesto vagaroso, — mas a vida em todas as partes do mundo é a mesma, os fortes apresando os fracos, a eterna luta pela existência, e o endurecimento que nasce da necessidade. E os árabes são pequenas crianças, pelo coração, como todos os homens, batendo-se pelo que precisam e muitas vezes, por mera perversidade, pelo que não precisam.

     A moça assentiu com um aceno de cabeça, não confiando na voz para responder-lhe e limpando furtivamente as lágrimas de que parecia envergonhar-se. Ele também volveu ao silêncio, brincando absortamente com um galho de trepadeira, que enrolava e desenrolava entre os dedos fortes e longos, pensando no interesse que ela demonstrara e espantado da volubilidade com que lhe tinha falado.

     Por fim, no meio do silêncio que nenhum dos dois parecia querer interromper, soou um barulho de ferraduras. Carew levantou o olhar sobressaltado e pôs-se de pé com um pulo, a mão dirigindo-se instintivamente para o revólver que se achava enfiado no colete. Consigo não se incomodava, mas se Abdul o tivesse seguido até ali, que aconteceria à moça que lhe estava ao lado? Sozinho, teria ficado contente de dar ao inimigo essa oportunidade para resolverem a questão de uma vez. Mas por causa dela, não deveria absolutamente arriscar-se. Seria obrigado a atirar à primeira vista, ou, então, seria alvejado. Deu um passo rápido, colocando-se de modo a cobri-la com o corpo e puxou a pesada arma da cinta. Mas, logo, a repôs no lugar, com uma exclamação abafada de alívio. Não era Abdul el Dhib que aparecera na volta do atalho estreito, mas um homenzinho de tipo nitidamente inglês, trotando a moda de um jóquei entre dois cavalos que conduzia. Somente quando se voltou para ver que Marny já estava de pé a seu lado, foi que Carew notou que ficara com o rosto coberto de suor. Com um gesto de impaciência, passou a mão pela testa, porém não deu nenhuma explicação. Marny devia ter visto o revólver na sua mão. Mas as explicações podiam esperar por outra ocasião.

     E, tranqüila, de pé ao lado dele, a moça não pareceu ter pressa de lhe perguntar qualquer coisa, mas ficou silenciosa até a chegada do “groom” [cavalariço]. O homenzinho estacou os cavalos sem o menor ar de surpresa à vista do alto árabe, cuja estatura excedia de muito à de sua patroa.

     — Nove horas, milady, — anunciou plàcidamente, colocando-lhe o cavalo em posição de montar.

     Marny sorriu ao colocar o pé no estribo que Carew sustinha.

     — Tanner é meu cronômetro, — explicou, saltando àgilmente na sela. — Tem sempre um relógio à mão, e sempre perco o meu logo depois de comprá-lo, — ajuntou, segurando as rédeas, e acomodando-se.

     Sem responder, Carew acariciou o pescoço do cavalo por um momento; depois olhou para cima e, à vista daquelas feições graves, a moça recalcou o sorriso que começara a esboçar.

     — Tenha seu homem sempre à vista, quando entrar novamente no bosque, Lady Geradine, — disse ele gravemente.

     Ela interrogou-o com o olhar.

     — Que quer dizer?... Seriamente... pensei que tão perto de Argel...

     — A senhora também estava perto de Argel naquela noite. Eu não a avisaria se não tivesse certeza, — interrompeu, em tom levemente irritado na voz, dando um passo atrás, e cumprimentando-a com um “salaam”, que ela sentiu ser um gesto de despedida.

     E, sem esperar que ela iniciasse a marcha, dirigiu-se para o outro lado da clareira, onde estava o seu cavalo. Não tinha intenção de acompanhá-la na volta para Argel, já havia infringido bastante seus princípios por uma manhã inteira, dizia de si para si, com um sorriso pouco jovial. Nem mesmo se sentia inclinado a voltar para a sua vila naquela ocasião, pois, durante essas últimas semanas, lhe tomara alguma raiva. Iria a Bouzaréa, telefonaria a Sanois, passaria o resto do dia no pequeno subúrbio em companhia de um médico francês de suas relações. Talvez no laboratório de Morel conseguisse esquecer o desassossego que o encontro dessa manhã lhe tinha feito reviver tão pungentemente.

     Já era tarde quando entrou em Argel, a fim de ir ao encontro marcado pelo telefone naquela manhã.

     O General Sanois estava residindo no Quartel, e Carew encontrou-o nos aposentos privados, sentado diante de uma larga mesa, completamente atulhada de pilhas de papéis. À sua entrada, o General levantou-se e estendeu-lhe a mão em sinal de boas vindas.

     — “Bien”, — começou ansiosamente, — já decidiu? — E deixou-se cair de novo na cadeira, com uma exclamação de contentamento ao ver que Carew fazia um aceno afirmativo de cabeça. — O senhor me tira de uma grande dificuldade, “mon chér”, — continuou o General, afastando para um lado os papéis e o telefone, para abrir lugar ao indefectível mapa, que desdobrou sobre a mesa com afetuoso cuidado. — Já esgotara toda a minha habilidade para lhe encontrar substituto. Meus homens não me são de utilidade alguma: um oficial jamais atravessaria a fronteira, e o mesmo se pode dizer dos agentes especiais, isto é, dos que tenho à disposição. Resta-me, portanto, apenas, o senhor. E penso que não errarei dizendo que o senhor não me faltará, — ajuntou confiantemente.

     Carew sorriu cortesmente a esse cumprimento subentendido, que sabia não ser vão, mas a genuína opinião de seu amigo.

     — Farei o melhor que puder, — disse brevemente, com pequeno gesto de embaraço.E ajuntou: — Mas não sou infalível, e se eu falhar...

     — Terá, pelo menos, tido oportunidade de uma encantadora excursão, — cortou a voz risonha de Sanois. — Terá desbravado novas terras. Achará provavelmente nova moléstia e teremos de enviar uma dispendiosa missão médica para prosseguir em sua descoberta, e o senhor acabará custando-nos os olhos da cara. Mas esse não é o meu caso, — ajuntou, batendo nos galões dourados da manga com ar significativo. E volveu novamente para o grande mapa, que desenrolara sobre a mesa.

     Carew colheu as abas do pesado albornoz e puxou uma cadeira para perto.

     — Estou pronto a partir imediatamente. Minhas providências particulares poderão ficar completas dentro de uma semana. Estou ansioso por deixar Argel o mais depressa possível, e se o senhor vai-me fazer esperar indefinidamente... bem... então não poderei assegurar-lhe que, quando precisar de mim, me encontre com facilidade.

     Sorriu, ao ouvir o assobio de espanto de Sanois, porque houvera um tom de resolução em sua voz que o General reconhecera.

     — Uma semana? — perguntou, como duvidando. — O senhor não nos dá muito tempo, meu amigo. Levará mais de uma semana para resolver toda esta atrapalhada. Mas, pela minha parte, farei o possível. E agora vamos ao negócio.

     Quando os mínimos detalhes da expedição tinham sido discutidos em todas as suas particularidades, e Carew por fim se levantou para sair, a noite já tinha caído. Recusou com delicadeza o convite do General para jantar no quartel e achou-se obrigado a repetir essa recusa por diversas vezes, antes de chegar ao pátio do quartel. Costumava sempre aceitar com prazer a hospitalidade dos oficiais, de quem era hóspede freqüente e muito querido, mas essa noite queria ficar só.

     Enquanto percorria as ruas movimentadas, Suliman ocupou-lhe a atenção exclusivamente. Mas quando a cidade ficou para trás e começou a subir a ladeira de Mustapha, deixou que seus pensamentos volteassem à roda dos acontecimentos da jornada que se aproximava. Com pesar, pôs de lado a tentação da Cidade das Pedras, que teria de esperar para a próxima ocasião. Considerava-se agora empenhado a Sanois que, por sua vez, estava também ligado a uma promessa. Agora tinha, portanto, alguma coisa definida que tratar. Não que precisasse de muitos arranjos pessoais. A mudança de rumo exigia apenas uma pequena alteração nas providências que já tomara para uma longa expedição no deserto. E o rapazinho iria em qualquer dos casos. Despendera a maior parte da juventude sobre uma sela, e seu corpinho, aparentemente frágil, era capaz de uma resistência espantosa. Deixá-lo seria fazê-lo sofrer, e Carew não podia passar sem o pequeno.

     O ar estava estranhamente suave, impregnado de um aroma forte de flores, e um silêncio que era como a reminiscência do solene sossego do deserto, parecia ter caído como um lençol sobre toda a natureza. Nem uma árvore se movia, nem um cão ladrava, e Carew teve a estranha impressão de estar caminhando num lugar de mortos. Entre os árabes, isso era presságio de morte, e um seguro e certo sinal de que as asas de Azraél estavam se abatendo das paragens dos abençoados sobre alguma alma humana para levá-la. Seria sobre a sua? Encolhendo os ombros, filosoficamente, voltou-se na sela para contemplar a lua nascente, o crescente de prata que se destacava no escuro do céu. Nesse momento, estugou o passo de Suliman, que partiu a galope para a vila.

     A porta do muro estava aberta, e quando Carew desmontou, Hosein emergiu das sombras da entrada, como um fantasma nas suas vestes muito alvas e pegou as rédeas do cavalo em silêncio, evidentemente alimentando ainda os pesares daquela manhã; e meio divertido, meio aborrecido pela tácita mostra de desaprovação, Carew rodou nos calcanhares e entrou em casa.

     No “hall” de estilo mourisco, brilhantemente iluminado por três lâmpadas pendentes, de prata batida, Saba o estava esperando. Como seus ouvidos sensíveis apanhassem o quase imperceptível ruído dos sapatos de couro macio sobre o pavimento de mármore, atirou-se para a frente, com um grito de alegria, e caiu, rindo e soluçando ao mesmo tempo, nos braços que se estenderam para agarrá-lo. Carregando-o no ombro, Carew levou-o brincando, através da área perfumada de jasmim, até o quarto de dormir na parte traseira da casa, para continuar ali com a onda de intermináveis perguntas. De pé ao lado do toalete, mexendo nos apetrechos de toucador, o garoto ainda estava falando, quando Carew voltou do banho. Depois as perguntas deram lugar à detalhada descrição de tudo que fizera durante aqueles três dias; e assim continuou discursando, enquanto Carew mudava de roupa. O menino levava o ouvinte através de intermináveis aventuras imaginárias, concluindo com a grave notícia de que Derar, o gordo despenseiro, tinha seguramente incorrido nas iras de Allá, porque sua esposa o presenteara essa manhã com outra mal-vinda filha, que, como o senhor sabia, era a quinta, ajuntou com ar de desdém.

     E contente porque, no momento pelo menos, o rapaz parecia ter esquecido seus temores, Carew deixou-o falar e, finalmente, carregou-o para a sala de jantar, onde, encarapitado com as pernas cruzadas sobre uma almofada a seu lado, e feliz com o prato de frutas e doces, continuou a tagarelice durante o jantar, que era servido por Derar, de triste aspecto, e por Hosein, que recobrara a habitual serenidade.

     Embora preferisse a simplicidade da vida do campo, Carew, em sua casa da cidade, seguia as velhas tradições e mantinha certo aparato e cerimônia. Muitos de seus criados eram velhos remanescentes e Derar fora despenseiro do falecido Sir Mark Carew. O velho servidor, conservador até a medula dos ossos, e altamente dotado de sentimento da própria importância, era o maior responsável pela continuação dos antigos costumes na vila. Assim era que, mesmo quando estava só, Carew jantava na sala grande, onde a mesa parecia uma ilhota perdida em meio de um mar de mármore. Mas, essa noite, ele tinha relanceado a vista ao redor uma ou duas vezes, durante a demorada refeição, com uma expressão intrigada nos olhos sombrios. Que fazia aquela sala parecer tão vazia, fria e sem vida? Não era a ausência de convivas que o incomodava, acostumara-se a estar sempre só, mas a estranha tristeza de alguma coisa que não conseguia definir. Seria o aviso da idade madura, provocando-lhe a lembrança de seus quarenta anos, que o tinha levado ao desacostumado sentimento de lassidão e melancolia que parecia ter tomado conta dele? Quase riu a essa conjectura. Talvez fosse começo de um gradual declínio de força e atividade. Era simplesmente Argel, disse consigo mesmo, ao contemplar a xícara de café puro e doce que se tornara indispensável a ele como aos naturais do país. Era mesmo Argel, e a consciência de intenso e profundo enjoamento da cidade. Devia ser assim. Graças a Deus, isso não iria demorar muito agora. A vida nas fronteiras era demasiado árdua para perder tempo com aborrecimentos.

     Chamando Saba, dirigiu-se ao gabinete contíguo ao quarto de dormir e dali saiu para a varanda, que dava para o jardim.

     Durante algum tempo fumou, mergulhado num silêncio que era interrompido a intervalos pelas extravagantes observações do ceguinho, às quais respondia brevemente e sem prestar atenção, o que foi notado por seu companheiro, pois este pouco a pouco ficou em silêncio.

     A noite estava tranqüila. Bem em frente à varanda, um rasgo de luar, derramando-se como uma mancha prateada até o muro que circundava o jardim, tornava ainda mais negras as trevas dos espaços sombreados, e, na escuridão, as árvores e arbustos em flor pareciam grandes e fantásticas figuras. O forte aroma das flores quase oprimia, langoroso e entorpecente como incenso. E o sossego que Carew tinha notado mais cedo nessa noite lhe parecia agora mais penetrante e intenso. Havia no ar qualquer coisa sobrenatural, uma sensação sufocante de expectativa, como a profunda calma que precede uma tempestade. Se estivesse no deserto, Carew sabia o que isso queria dizer. Mas ali, em Argel, não podia atinar com a razão. Seria sua própria imaginação que estava transformando a quietude de uma noite comum em algo que se aproximava do sobrenatural? Não era dado a imaginações fantásticas. O caso, porém, é que não podia livrar-se da impressão de calamidade próxima, que o fazia ficar a cada momento mais alerta.

     E com o sentimento de expectativa veio-lhe novamente aquela impressão de melancolia que experimentara durante o jantar! Como a casa lhe parecia vazia e solitária! Nunca o notara antes. E por que estava notando agora? Ao procurar explicá-lo, parecia levantar-se diante dele uma figura, de pé, num rasgo brilhante do luar, graciosa figura em trajes de montaria, um semblante que não lhe provocava mais aquele intolerante desgosto que costumava sentir. Por um instante e quase a medo, fitou aquele delicado rosto oval, que lhe aparecia agora tão perto do seu, mergulhando o olhar bem dentro daqueles olhos cheios de uma dor que parecia arrancar-lhe o coração. Depois, com uma terrível praga que lhe estourou dos lábios, ao pensamento tormentoso que o invadia, quebrou com raiva o devaneio, amaldiçoando o dia em que a tinha visto. Não! Nem ela, nem outra mulher qualquer, assim o ajudasse Deus!

     Uma queixa apenas ciciada e uma pequena mão trêmula que procurava a sua o fizeram pensar na exclamação encolerizada que tinha pronunciado a contragosto. Tomou o rapazinho nos braços e acariciou-o com meiguice cheia de remorsos.

     — Zangado com você... quando é que fico zangado com você, bobinho? — murmurou com doçura em resposta a uma pergunta desolada que lhe partiu das dobras do casaco onde Saba enterrara a cabeça. Contente com essa resposta, o menino ficou tranqüilo. E a pressão de seus dedos e o morno aconchego do seu corpinho delicado trouxeram uma espécie de consolo ao homem solitário.

     Por muito tempo, Carew ficou sentado, imóvel, olhando absorto para o jardim cheio de sombras. A não ser o chiar de uma cigarra nas frondes, além, nada interrompia o profundo silêncio. Mas logo depois, mesmo o inseto cessou repentinamente seu canto monótono e tudo caiu em absoluta quietude.

     Carew se levantara de madrugada e, embalado pela intensa tranqüilidade da noite, começou a sentir o sono que pouco a pouco o invadia. Estava quase dormindo, quando a vaga impressão de um som distante, de coisa que se arrasta e que terminou num baque surdo, lhe despertou o espírito meio adormecido e fê-lo levantar-se de repente. O barulho parecia vindo dum canto distante do muro do jardim. Quem lhe ousava pular o muro a essa hora da noite? Ao fixar o olhar agudo na escuridão, o cérebro começou a trabalhar rapidamente. Pensara que a criança estava dormindo, mas, a um leve movimento dos bracinhos, viu que Saba estava tão desperto quanto ele, escutando atentamente. Afastar o rapaz dali antes que ocorresse o que lhe parecia inevitável foi seu primeiro cuidado. Sem se mexer da posição em que estava, afastou-o gentilmente para trás da cadeira, ordenando-lhe, em voz baixa, que fosse dormir. Mas com um apaixonado gesto de recusa, Saba agarrou-se a ele, de modo que Carew foi obrigado involuntariamente a empregar força para se desvencilhar dos dedos do menino, que se crisparam desesperadamente nas dobras do grosso albornoz.

     — Vá! — murmurou, ordenando de modo decisivo. O rapazinho deslizou vagarosa e silenciosamente e saiu. Carew inclinou-se na cadeira novamente, esperando, com os músculos retesados e os ouvidos à escuta, outro ruído qualquer, que pudesse revelar o esconderijo do visitante noturno. Mas os poucos momentos de atenção concedidos a Saba tinham sido aproveitados com vantagem por alguém mais.

     O ataque despenhou-se com inesperada e silenciosa rapidez, de onde menos o esperava. Somente o apurado olfato que possuía o salvou. Sentindo aproximar-se das suas narinas o fartum que exala o homem do deserto, Carew deu um salto da cadeira e virou-se, desviando o corpo. Esse rápido movimento instintivo salvou-lhe a vida, porque a facada que lhe dirigiam visava o coração e, tendo falhado o alvo, passou além, não sem fazer-lhe uma profunda incisão no braço. Com um rugido de ódio, Abdul desfechou-lhe novo golpe. Com a mão direita por um momento entorpecida, impossibilitado de sacar o revólver que seus dedos ensangüentados tentavam nervosamente desvencilhar das dobras do albornoz, Carew agarrou-lhe o braço levantado com a mão esquerda e arremessou todo o peso do corpo sobre o adversário. Caíram ambos com estrondo, o árabe por baixo. Na escuridão, engalfinharam-se numa luta desesperada, torcendo-se palpitantes, com os músculos retesados e a respiração ofegante.

     Estropiado como estava, a princípio Carew não pôde senão conter o bandido, mas como a dormência do braço direito estivesse cedendo aos poucos, num esforço inaudito conseguiu saltar por cima, até que, com os joelhos, lhe esmagou o peito e o braço armado. Inclinando-se, arrancou a faca dos dedos que a seguravam tenazmente. Mas esta manobra custou-lhe a vantagem que obtivera sobre o inimigo. Com flexível movimento de pantera, por sua vez o árabe conseguiu sobrepor-lhe o corpo endurecido e calejado e grudar-lhe as duas mãos à garganta, estrangulando-o. Mas, certo de que essa luta era de vida ou morte, Carew empregou toda a força para resistir ao inimigo, que sabia tão forte quanto ele. Fundidos num abraço mortal, que deixava antever só um fim, lutaram com ódio terrível, torcendo-se aqui, rebolando-se lá, no assoalho da varanda, até que um empuxo mais forte os levou para a beira, e rolaram, ainda agarrados ferozmente, para o chão do jardim abaixo. A queda foi pequena, mas, ao cair, Carew bateu com a cabeça no patamar de mármore da escada e ficou aturdido por um instante. Abdul, que caira sobre ele, não teve tempo de concluir a sua obra assassina. A vila já estava de luzes acesas, precisava fugir. Sem poder recuperar a faca perdida, ergueu-se, com uma praga horrível, procurando abrigo nas sombras das árvores do jardim e correu, agachado como uma lebre, evitando os trechos enluarados. Ainda tonto do choque que sofrera na cabeça, Carew cambaleou e ficou olhando estupidamente para o fugitivo, balançando-se e procurando coligir as idéias. Mas no momento que o fugitivo quase atingia a escuridão sob a folhagem que lhe protegeria a fuga, a nuvem momentânea esvaiu-se do cérebro de Carew que pôde, então, sacar do revólver. No entanto, com o dedo no gatilho, estacou indeciso. Não! Não! Um homem desarmado e pelas costas! Seria um assassínio, pouco importava a causa. Abafando uma exclamação, baixou a arma. Mas o sibilar de uma bala lhe raspou a cabeça e um pequeno estalido que ouviu atrás de si lhe provaram que Hosein não estava imbuído dos mesmos escrúpulos.

     Foi com indescritível mescla de sentimento que viu Abdul el Dhib ser prostrado no momento em que se julgava salvo, caindo de bruços e retorcendo-se nas vascas da agonia. Quando Carew chegou ao seu lado e levantou-lhe a cabeça, com as suas mãos experientes de médico, coloccando-a sobre os joelhos, os olhos do moribundo rolaram nas órbitas, fitaram a face grave que se inclinava para ele, e suas feições contorcidas se relaxaram num trejeito de infernal ironia.

     — Estava escrito, senhor, — regougou com dificuldade, com espuma escarlate a lhe brotar dos lábios. — Tu ou eu! E Allá escolheu! Graças lhe sejam dadas! — ajuntou, motejando. E exalou o último suspiro numa golfada vermelha.

 

     Reinava novamente silêncio sobre o pequeno oásis que uma hora antes fora teatro de tanto bulício e atividade.

     Espalhados entre as palmeiras e árvores decepadas, os restos de um acampamento mostravam que uma caravana passara por ali; e três ou quatro milhas distantes a linha de camelos bamboleantes, com sua escolta de árabes montados, era ainda visível, movendo-se com firmeza sobre a vastidão oscilante, em direção ao Sul. Sentado, de pernas cruzadas no chão quente, apanhando e deixando cair punhados de areia por entre os dedos amorenados, Carew olhava com inveja para aquela fila de homens e bestas. Anelava pelo momento em que poderia também conduzir sua caravana em direção ao grande deserto, para o qual lhe volvia de continuo o pensamento.

     Não fosse a promessa feita ao General Sanois, e ele já teria a muito deixado Argel. A pequena atração que a cidade tivera em tempos para ele já se desvanecera completamente, no desarranjo mental que o dominara nessas poucas semanas. E as providências de Sanois se arrastavam interminàvelmente. Todos os dias Carew tentava pôr em execução a ameaça que fizera sorrindo, de deixar de lado a empresa para seguir por conta própria. Mas as constantes demoras não eram culpa do General, que lutava nervosamente e com energia para completar seus arranjos. E, além disso, Carew lhe havia dado sua palavra. Não lhe restava, pois, senão esperar com toda a paciência.

     Desgostoso de si mesmo e de tudo que o rodeava, fora procurar distração em Biskra, onde assistira às corridas anuais, durante três dias movimentados, e conseguira esquecer o estranho desassossego que o havia perseguido. Mas só parcialmente. Como a cidadezinha do deserto, cheia a não poder mais por causa do grande acontecimento do ano, fosse lugar muito pequeno para evitar encontros casuais com amigos e conhecidos, ele vira algumas vezes Lord Geradine, tão turbulento e insuportável ali como em Argel. Mas conservando-se o mais possível junto ao círculo de suas relações, Carew escapara de entrar em contacto com o homem contra o qual concebera inexplicável ódio. E em Biskra, além das corridas, outros interesses deviam ocupar-lhe a atenção.

     Encontrara muitos e velhos amigos entre os chefes árabes que refluíam para a cidade, vindos de longínquas paragens. E em resposta ao caloroso pedido de um deles, o mais estranho árabe que conhecera até então, Carew deixara Biskra cedo no dia anterior, para acompanhá-lo na partida de uma viagem cuja conclusão tomaria ao sheik muitas semanas.

     Havia muito que não se encontravam, e nos anos passados sem se verem haviam ocorrido interessantes e imprevistas mudanças na vida desse homem, de quem Carew se lembrava como um despreocupado capitão de spahis, pelos gostos e inclinações mais franceses do que árabes.

     Carew contemplava o chefe, que se estendera no chão, ao seu lado. Enrolado no albornoz, com o rosto escondido sob os braços, dormia ou parecia dormir, durante toda a hora da sesta, a despeito do estrépito e barulho ocasionado pela caravana que partia. Carew observara o abandono do acampamento, com mais interesse que de ordinário. Um capataz tinha dado as ordens com disciplina e decisão de cunho militar bem pouco comum entre os árabes viajantes. E a escolta, da qual uma dúzia ficara de lado com Hosein, se compunha de homens de combate, perfeitamente disciplinados e comandados.

     Continuando ainda mal visto pela administração do país, porque dez anos antes expulsara violentamente uma tribo limítrofe, para o que Said Ibn Zarrarah [Said = título honorífico dos descendentes de Maomé], ex-capitão de spahis [soldados árabes da cavalaria do exército francês] e chefe soberano de um grande distrito, tinha não somente fomentado os instintos guerreiros de um povo já por si de tradições belicosas, como também trazido para ali a tática européia, que aprendera com os dominadores de seu país? Sobre essa questão intrincada, meditara Carew todo o tempo que seu amigo se entregara ao sono. Outrora, a França não contara mais devotado admirador do que o ardoroso e jovem spahi. Teria ele agora alguma intenção oculta para encorajar o militarismo de seu povo, ou estaria simplesmente buscando meio de proporcionar alguma distração ao espírito e amenizar uma vida que Carew sabia monótona e sem derivativos?

     Filho mais moço, sem nenhuma perspectiva de suceder ao pai na chefia da tribo, com aspirações ambiciosas que nunca lograria satisfazer no deserto, ele tinha, ao se alistar no regimento, transformado sua natureza de modo a se afrancesar totalmente, passando os períodos de férias e licenças em Paris. Contrariamente a seus compatriotas, semi-educados, assimilara o melhor da educação e cultura ocidentais. Sem se deixar estragar pela lisonja e atenções com que o cumulavam, muito conhecido pelo evidente descaso que votava às mulheres, vivera para o seu regimento e para as coudelarias que tinha em França.

     A morte do irmão mais velho, ocorrida durante a expedição que o colocara fora dos favores do Governo, o arrancara da vida que amava para assumir as rédeas e os deveres que lhe impunha a governança de sua tribo, o que, aliás, nunca desejara. Ressentido com as pesadas censuras das autoridades locais, a propósito de uma ação relatada de modo tendencioso, orgulhoso demais para explicar a necessidade que o levara a cometer tal ato, ele cortara todas as ligações com o passado, e retirara-se para as vastidões longínquas do deserto, a fim de afastar as suspeitas dos mais velhos da tribo, que não confiavam nele, devido à sua falta de zelo religioso e à amizade que mostrava pelo povo que dominava o país natal, embora estivesse em más relações com ele.

     A ironia dessa situação não lhe tinha passado despercebida, e foi com certa satisfação que assumiu a chefia de seu povo, a fim de provar a lealdade aos princípios que herdara da família.

     O Governador que lhe condenara a ação fora substituído pouco tempo depois. Mas o chefe Ibn Zarrarah ignorava a mudança, e não fez esforço algum para se reconciliar com os administradores do país. Seu coração se voltava continuamente para a França, que conhecera e amara, mas conservava-se afastado dos velhos amigos, dedicando-se estritamente à terra que lhe dera o berço e absorvendo-se nos negócios de sua tribo. Conseguira dominar e destruir a falta de confiança dos mais conservadores entre seus compatriotas, conformando-se exteriormente com uma ortodoxia severa, que, apesar de tudo, não lhe trazia nenhum consolo interior.

     Nesse ano, pela primeira vez em dez anos de reclusão no deserto, cedera ao desejo longamente recalcado de visitar novamente o lugar em que usufruíra tantos prazeres em outros tempos. No passado, fora figura notória nas reuniões anuais de corridas de Biskra. Árabes e franceses conheciam suas coudelarias, cheias de excelentes cavalos. A visita agora concluída fora efetuada em circunstâncias bem diversas. Desconhecido e quase estranho agora, conservara-se a maior parte do tempo junto dos compatrícios, tornando-se mero espectador onde já fora figura de relevo social.

     A experiência lhe trouxera mais sofrimentos do que prazeres. Era bastante humano para sentir a diferença com toda a agudeza de espírito, e filósofo bastante para condescender com a própria amargura. Mas toda a filosofia de que dispunha não podia curar a dor que lhe ia na alma, nem amenizar a saudade acentuada pelo som da linguagem suave e musical que falara durante anos, de preferência à própria língua.

     E agora, quando Carew, inclinando-se, lhe bateu no ombro com uma breve risada e um “Olá, sonhador!” na língua de seus antepassados, levantou-se de um salto, revelando certa melancolia nos olhos, que aliás não estavam entorpecidos de sono, mas duros e brilhantes denunciando pensamentos concentrados.

     — Pelo amor de Deus! Fale-me em francês! — explodiu. — Oh! Sei bem que sou doido, — continuou com um toque meio provocante na voz, — e doido muito maior do que muita gente. Sempre fui! Fui doido em esquecer que era árabe, em tentar imaginar-me francês. Fui doido, quando meu irmão Omair ficou sem filhos, em não imaginar que eu poderia, em qualquer tempo, ser obrigado a abandonar tudo o que a vida me oferecia de agradável. E ainda quando ele morreu fui também doido por fazer o que fiz. Sabe você o que aconteceu? Fui a Argel, a fim de apresentar minha “amende honorable” [emenda honrosa] por ter quebrado a paz na fronteira, e o Governador, aquele velho e gordo Faidherbe, sempre temendo pela integridade da pele, não esperou explicações. Perdendo as estribeiras, insultou-me. Segundo ele, eu era um ingrato que deveria ser visto com todas as suspeitas. Eu era “um chefe turbulento e, ao mesmo tempo, uma ameaça para o país”. Eu era tudo o que há de vil, desastrado e desonroso. Perdi também a calma e insultei-o por minha vez. Não sei como deixei o Palácio sem ser preso. Saí de Argel dentro de uma hora, e Faidherbe representou contra mim; e relatou o fato tendenciosamente ao Ministro do Interior, de modo que fui considerado suspeito desde aquela data. Mas que poderia eu fazer? Tinha de lutar. Eu amava Omair. Quando chegou a ocasião da dificuldade verifiquei que meu amor por ele era maior do que o amor pela França. Combati para lhe defender a honra, e o que fiz mais tarde, fi-lo para vingar sua morte. Você me censura por isto?

     Seus olhos inquietos se elevaram como que em severa pergunta; e um momentâneo clarão os acendeu quando Carew abaixou a cabeça.

     — Não! Mas a França me censura e essa censura me causa dor, uma dor terrível. França! — e sua voz amaciou-se subitamente, — o que em tempos ela significou para mim! Eu a amava, e ainda a amo, mais doido ainda sou! Ela é para mim como uma mulher volúvel, em que não se pode confiar, cortejando-nos hoje e esporeando-nos amanhã. Mas não posso odiá-la como às mulheres, embora ela me haja magoado tanto como as mulheres. Mulheres! Amaldiçoadas de Deus! — exclamou violentamente. — Sempre as detestei, sempre as evitei, mas, apesar disso, fizeram-me sofrer horrivelmente. Por amor de uma mulher, Omair morreu. O amor de uma mulher afastou-me de meu melhor amigo, inglês como você, justamente quando eu mais precisava dele. “Bon Dieu!” Como tenho aversão pelas mulheres!

     E atirou-se novamente ao chão, com uma gargalhada rude.

     A confidência que Carew estivera esperando desde que tinha saído de Biskra, chegava como uma rajada. Ele já conhecia grande parte da história. Um complicado relatório sobre os supostos delitos do chefe já lhe fora apresentado, anos atrás em Argel. De muitos outros soubera por seus inúmeros amigos árabes. Era evidente que havia falta de ambos os lados, mas era claramente um caso em que um pouco de condescendência poderia ter sido concedida a um chefe que fora dos maiores admiradores da França. Fora o último desatino de um Governador fraco e inescrupuloso, cuja fé de ofício era ponteada de uma série de acontecimentos infaustos. A fim de se insinuar no ânimo das autoridades da metrópole, ele ocultara a própria agitação e exagerara as culpas do chefe nativo, esquecendo-se de que este bode expiatório poderia vingar-se de modo que custaria muito caro à França. A tribo de Ibn Zarrarah era grande e poderosa e sua esfera de influência ia muito longe. Entusiasmados, como estavam naquele momento, com a vitória, uma revolta de proporções maiores do que uma simples insurreição poderia ter ocorrido. Enquanto seu chefe fervia de revolta sob a ação de uma injustiça, uma coisinha de nada poderia provocar verdadeira rebelião, e as guerras de extermínio eram sempre muito dispendiosas. Carew sempre pensara, não no que fizera Said Ibn Zarrarah, mas naquilo que poderia ter feito. Mas naquele momento, sentado, quieto, esgravatando a areia solta com os dedos, pensava mais nas palavras finais do chefe do que em suas queixas contra o governo francês.

     Olhou de novo para a caravana distante, agora, simples ponto enfumaçado no horizonte. Passara um dia e uma noite com o árabe e sua escolta, e tinha razões para acreditar que um daqueles vagarosos camelos levava no dorso, bem protegida e bem segura, a liteira de viagem da esposa do homem que há pouco amaldiçoara as mulheres de todo o coração e tão apaixonadamente como ele próprio sempre fizera.

     — Você odeia as mulheres, e no entanto é casado! — disse Carew lentamente, sem voltar a cabeça ou alterar a direção de sua contemplação.

     O chefe voltou-se, com uma espécie de rugido de ira e impaciência.

     — Por causa da tribo, — sibilou. — Você pensa por um instante que o fiz por meu agrado? Eu faço hoje alguma coisa que possa me deleitar? Protelei o mais que pude, mas meu povo tornou-se insistente: a casa de Zarrarah necessitava de herdeiro.

     — E sua esposa?... — A pergunta involuntária surpreendeu mais a Carew do que ao seu interlocutor. Para um árabe comum, tal pergunta teria ido além dos limites da etiqueta e da convenção; para Said Ibn Zarrarah, de idéias ocidentais, mesmo para com o sexo que desprezava, era apenas curiosa, principalmente por vir do homem de que vinha.

     — É feliz com o filho que tem, — disse Said com um gesto de indiferença; e procurou um cigarro nas dobras do albornoz. Apesar, porém, da mostra exterior de despreocupação, a Carew pareceu que essa resposta não era satisfatória nem para ele, porquanto as sobrancelhas escuras se lhe apertaram severamente, dando-lhe aspecto sombrio. Sentou-se, em silêncio, fumando, com os olhos melancólicos fixos no espaço interminável, que se desdobrava defronte. — E por que não seria ela feliz? — explodiu, por fim. — Tem tudo o que pede e o que me espanta é que peça tão pouco. Tem mais liberdade do que é permitida à média das mulheres árabes, e, note-se, ela é árabe rígida de costumes para exorbitar do uso dessa liberdade. Está só no meu harém, não tem rival que torne a vida miserável, e já deu um filho à casa Zarrarah.

       Dera à luz um filho, sonho dourado da mulher oriental.

     Uma sombra empanou as feições de Carew, que se voltou fitando o companheiro com ar curioso.

     — E isso já não é compensação para você, Sheik? Homens há que lhe invejariam o filho, — disse, com um laivo de amargura na voz.

     Mas como a sua pergunta ficasse sem resposta, mudou de conversa subitamente.

     — Você não pensou bem em deixar fechada a questão com Faidherbe, — disse amigavelmente. — Você sabia quem era ele, e qual a atitude que, naturalmente, tomaria com você. E depois você teve oportunidade com a mudança da Administração. Seu sucessor é tipo muito diferente, que ao menos teria ouvido as suas explicações de espírito livre e condescendente. Tê-las-ia ouvido mesmo agora, se você resolvesse apresentá-las. Mas a iniciativa deverá caber a você e não a ele. Você não deverá esperar que o Governador dê os primeiros passos com uma pessoa considerada suspeita. Contaram-me a história naquela época, naturalmente a versão que Faidherbe lhe dava, mas eu então nada podia fazer. Era novo no país e não estava... não era...

     — Você ainda não era El-Hakim, o olho da França — interpôs o chefe com breve sorriso.

     Carew riu.

     — E é assim que me chamam? Um olho cego, Sheik, quando meus amigos estão na berlinda.

     O chefe acenou aprovativamente a cabeça.

     — Isso também já ouvi. Eis a razão porque você é considerado de confiança, de mais confiança do que muitos homens em toda a Argélia, — aduziu gravemente.

     Durante certo tempo caíram em silêncio. Carew esperou que ele retomasse a iniciativa da conversa. De fato, tinha agora alguma influência no Governo, e poderia desbastar o caminho que conduzisse a uma reconciliação, se Said Ibn Zarrarah realmente a desejasse. Mas ele a desejava mesmo? Pelo que dissera, era claro que, apesar do ressentimento muito natural, o chefe não nutria nenhum plano de vingança, e nenhum desejo de voltar as grandes forças sob seu comando contra o país que ainda admirava. Mas, ferido como se achava, em suas mais profundas sensibilidades, e amargurado por anos de solitárias cogitações, permitir-lhe-ia o amor próprio que fosse agora fazer propostas humilhantes? Sua atual situação era de força e, à parte a injúria a seus sentimentos pessoais, muito pouco teria naquele momento para ganhar ou perder.

     Esse o mesmo problema que o chefe teria de resolver por si mesmo. Durante os anos que Carew trabalhara no país, aprendera a ser prudente.

     Nunca se intrometera na vida alheia, nem dera conselhos espontâneos. Era mesmo muito relutante quando tinha de dá-los a pedido. Adquirira profundo conhecimento do espírito nativo e há muito descobrira o valor da neutralidade. Seu papel de intermediário somente seria exeqüível enquanto contasse simpatias de ambos os lados, entre aquele povo e seus administradores estrangeiros.

     Agora esperaria que Said Ibn Zarrarah falasse. Esperou tanto tempo que mais de uma vez olhou sub-repticiamente para o relógio de pulso. Já era tempo, e mais do que tempo, que o chefe partisse a fim de se juntar à sua caravana, que agora não se podia mais distinguir ao longe. Por sua vez ele devia também pôr-se a caminho, dadas as cinqüenta milhas que teria de cavalgar para chegar a Biskra. Viajando sem apetrechos de acampamento que o embaraçassem, calculara passar a noite num vilarejo seu conhecido, a meio-caminho, onde faria um pouso muito conveniente. Teria de galopar, se quisesse atingir o pequenino aglomerado de casinholas de barro e palha antes que a noite caísse por completo e a luz se extinguisse. Não que ele ou Hosein se incomodassem por passar uma noite sem ceia, sob o céu estrelado. Mas havia que pensar nos cavalos. Havia também no ar certa aparência singular que só agora notava. O calor, que durante o dia fora muito intenso, se tornara sufocante. E, ao levantar a mão para limpar do rosto grossas bagas de suor que lhe porejavam da fronte, veio-lhe à mente que durante uma hora repetira esse mesmo gesto. Instintivamente, seus olhos varreram o horizonte. Nada havia que quebrasse a placidez da perspectiva ininterrupta. Vista através da névoa brilhante que se emanava da superfície, a enorme vastidão de areia assemelhava-se a ondas escapeladas de um vasto mar de chumbo, mar zangado e de aspecto truculento, que parecia levantar-se e torcer-se, como se lutasse para deixar à solta as tremendas forças que lhe dormiam nas profundezas insondáveis. E longe, muito longe, para o sudoeste, onde o céu e a areia se encontram, uma tênue linha escura como fio de tinta, lhe despertou a atenção e fê-lo levantar-se com uma exclamação repentina.

     — Você estaria melhor junto de sua gente, Sheik!

     Ao ouvir essas palavras, o chefe olhou-o sobressaltado e uma súbita ansiedade lhe irradiou dos olhos, ao seguir a direção que o interlocutor lhe apontava com o dedo. Depois, fitou longamente os lados do sul. Por momentos, ficou contemplando atentamente o horizonte, como se tentasse discernir ao longe algum sinal da caravana, que havia muito já desaparecera da vista. Sem se mover, deu uma ordem em voz alta a seus homens. Mal acabavam de ser ditas essas palavras, o cavalo lhe foi apresentado e ele saltou na sela.

     Inclinando-se, agarrou a mão que Carew lhe estendia, num aperto que significava mais do que queriam dizer as palavras.

     — Um dia talvez lhe peça que fale por mim! — murmurou apressadamente. E foi-se, num redemoinho de areia e pó.

     Por um ou dois minutos, Carew permaneceu no mesmo lugar, a olhar aquele vulto que se afastava. Depois, assentiu com a cabeça.

     — Meu amo já viu? — perguntou baixinho Hosein.

     Carew virando-se para Hosein, que lhe trazia os cavalos, mostrou-lhe com a cabeça o lado leste.

     — Talvez passe! — disse, correndo os dedos carinhosamente pelo pescoço de Suliman, antes de segurar as rédeas. Mas Hosein abanou a cabeça negativamente.

       — Não. Essa tem de vir, — disse de modo positivo. — Eles o sabem. — ajuntou, apontando os cavalos, cuja nervosa agitação e cujos arreios, completamente encharcados de suor, denotavam claramente desassossego.

     — Então, em nome de Deus, deixemo-la vir! — retorquiu Carew, sorrindo. — Seremos crianças para temer uma tempestade de areia? As feições de Hosein se relaxaram, de severas que estavam, em careta que significava resposta afirmativa, ao apresentar ao amo o estribo para que montasse.

     Ao iniciarem a marcha, o ar parecia menos paralisado, mas o calor aumentava a cada momento, e a profunda quietude do deserto era inda mais silenciosa do que de costume. Os cavalos corriam a bom galope, incitados pelo instinto, e verdadeiras nuvens de espuma branca, que se desprendiam da boca de Suliman, salpicavam o albornoz escuro de Carew, como flocos de neve.

     Mas a lembrança de Said Ibn Zarrarah, muito mais do que a tempestade de areia que se aproximava, dominou seu espírito, ao passo que se curvava sobre o dorso do animal para lhe facilitar de qualquer modo a corrida e aliviar-lhe a carga. O caso de Said era um entre milhares, refletia. Quer para o oriente, quer para o ocidente, os problemas vitais eram em tudo semelhantes. Os pontos de vista poderiam diferir, mas o fundo do problema ficava sempre o mesmo. A eterna luta entre o dever e as inclinações não se confinava somente às chamadas raças civilizadas, mas rugia ferozmente tanto aqui, sob o céu escaldante das planícies africanas, como em outras regiões de clima mais temperado e ameno. E Said Ibn Zarrarah, educado desde a juventude na escola do despotismo e da indulgência para consigo mesmo, mostrara mais coragem moral do que ele próprio. Entregando-se a um sentimento de obrigação moral, o árabe volvera à vida que detestava e assumira deveres para ele intoleráveis, ao passo que ele, Carew, por causa de uma desgraça particular, se furtara às responsabilidades que lhe cabiam por herança. Era, na verdade, um fato humilhante, mas indiscutível.

     E saltando de Said Ibn Zarrarah, seus pensamentos dirigiram-se para a jovem esposa que esperava a chegada do marido e com quem se casara somente para satisfazer aos desejos de seu povo. Era um casamento singular, mesmo para uma mulher árabe. Apesar de tratada, evidentemente, com uma consideração fora do comum, a sua vida deveria ser assaz difícil. Rigidamente ortodoxa (todas as razões eram para supor que o fosse), as tendências ocidentais de seu senhor e a liberdade que lhe outorgava bastariam para sua perplexidade e transtorno de espírito. E sozinha num harém, que devia ser provavelmente uma maravilha de suntuosidade oriental, rodeada de tudo o que uma mulher pode desejar, sem desejo que não fosse imediatamente satisfeito, não almejaria ela ardentemente alguma coisa, além dos frios e vagos símbolos de uma extravagante generosidade, alguma coisa inspirada por um sentimento daquilo que devia ser seu pelo fato de ser esposa de um poderoso sheik? “Ela tem tudo o que pede, e é de admirar que peça tão pouco”. Sem ser amada, e talvez ansiando tristemente pelo amor que lhe negavam, seriam seus desejos tão insignificantes, pelo fato de que o único desejo insatisfeito fizesse com que os demais lhe fossem indiferentes? Said, com seu magnífico porte e feições distintas, era figura atraente de homem que prenderia a atenção de qualquer mulher, e especialmente da que não tivesse tido muitas oportunidades de ver outros homens e, por conseguinte, de estabelecer comparações. Nada, pois, de assombrar que a noiva se tivesse apaixonado por seu valente e belo marido. E ele? Seria o amor que já alvorecia, apesar do ódio que professava pelas mulheres, já seria a mãe de seu filho alguma coisa mais para ele do que ele próprio imaginava? Pelas palavras que deixara escapar, era bem claro não ser totalmente indiferente ao bem estar da esposa. Sabia de seus hábitos sem necessidade, somente para lhe proporcionar contentamento. Isto já era muito significativo. E a expressão que lhe raiara nos olhos quando Carew lhe chamou a atenção para a tempestade ameaçadora, não era evidente sinal de ansiedade por ele só.

    O que os anos vindouros reservariam a ele e à mulher com quem casara? A mulher... e com um sorriso amargo, Carew cortou de um golpe seus pensamentos errantes. Que tinha ele a ver com as mulheres e com o amor das mulheres?

     Erguendo a cabeça, com um gesto brusco, fez sinal a Hosein para que chegasse mais perto. E, ao voltar-se na sela, um pé de vento repentino, tão escorchante [muito acima do normal] como a golfada da boca de um forno, chicoteou-lhe o rosto, e um forte e prolongado ribombo de trovão quebrou a intensa quietude do deserto, ecoando ao longe pelas dunas, como troar longínquo de artilharia. Por um instante, os cavalos vacilaram, aterrorizados, tremendo e relinchando. Depois, saltaram para a frente numa corrida desenfreada, cabeça a cabeça; e os dois homens lançaram rápido olhar para trás. O fio de tinta do horizonte estava agora mais escuro e carregado do que momentos antes, e estendia-se de um lado a outro como enorme muralha impenetrável.

     Pela primeira vez Carew teve noção exata daquela obscuridade enevoada que até ali lhe tinha passado despercebida. Parecia-lhe agora não haver mais possibilidade de escapar à tempestade, que pensara passar mais longe, ao sul, sem apanhá-los. As perspectivas sobre a noite não eram lá muito animadoras, caso passassem ao largo do vilarejo que desejavam atingir. Mas tudo isso estava compreendido em seu dia de trabalho, e ele já se achava acostumado às bruscas mudanças do deserto. Na próxima luta contra os elementos em fúria, alguma coisa havia que lhe estimulava o sangue e o fazia quase dar as boas vindas ao desconforto físico que dali se seguiria. Era, ao menos, algo de palpável que se apresentava para a luta, alguma coisa que ele poderia fazer e, fazendo-o, talvez esquecesse por algumas horas a impressão que o dominava poderosamente nesses últimos tempos.

     Uma faísca coruscante, seguida do ribombar do trovão, represou-lhe a corrente dos pensamentos e o fez concentrar toda a atenção na montaria. A flor de suas estrebarias (era o mais veloz cavalo que Carew já montara em sua vida), hoje estava mais veloz do que nunca, graças ao temor que sentia. Era difícil conter o galope desenfreado que ameaçava distanciá-lo muito do companheiro. Apertando as rédeas, Carew inclinou-se para a frente, acariciando o animal com a voz e as mãos. O cavalo estava verdadeiramente terrificado. A nebulosidade aumentava, as lufadas de vento escaldante eram agora mais freqüentes, mais longas, trazendo consigo picantes chicotadas de areia volante. Ouvia-se um ruído distante como de ondas encapeladas chocando-se contra uma costa rochosa. Subitamente, o sol desapareceu oculto por pesadas nuvens que loucamente varriam o céu de norte a sul. Nesse momento com um estrondo sibilante, irrompeu furiosa tempestade.

     Vacilando sob o violento impulso do vendaval, que fazia ziguezaguear até os cavalos a galope, cegos pela areia redemoinhante, os dois homens, agachados sobre as selas, arrepanhando as dobras flutuantes dos albornozes, que apertavam de encontro aos corpos, lutavam para se conservarem perto um do outro, ao passo que as vozes se perdiam em meio ao rugido da tempestade. A região circundante estava completamente escondida pelas nuvens de areia, que se levantavam furiosamente do chão e uma semi-obscuridade os envolveu. Entre os joelhos, Carew sentia que o grande baio tremia e se assustava, mas a tensão foi de certo modo suavizada, pois, compreendendo a necessidade de companhia naquele transe, o animal se aproximou mais do cavalo de Hosein, porque a escuridão e as nuvens de areia rodopiantes apagavam e os desviavam de todos os sinais do terreno que lhe guiavam os passos. Mas não era um problema que o incomodasse muito. Já atravessara muitas tempestades de areia, mais ferozes e prolongadas do que aquela prometia ser. E era para notar ainda que apenas tinham sido apanhados pela margem dela. Mais longe, ao sul, Said, com os seus camelos vagarosos e o encargo das mulheres, estaria provavelmente em muito piores condições e teria de passar uma noite ainda mais incômoda do que eles. Encolhendo mais os ombros, expeliu violentamente uma porção de areia que lhe invadira a boca, e puxou o pesado albornoz mais para cima, a fim de resguardar o rosto. As partículas volantes o picavam como um chuveiro de vidro moído; e ele sentia as rédeas se tornarem ásperas e arenosas entre os dedos molhados de suor. De tempos a tempos, sacudia a areia que se acumulava, mas bem depressa ela o invadia, de novo, filtrando-se através das suas mangas largas e penetrando por entre as roupas grossas até que todo o corpo já lhe coçava como aferroado por formigas. Mas, apesar desse desconforto, sentia-se mais feliz do que durante as últimas semanas. O instinto de combate despertou-lhe forças para enfrentar a fúria da tempestade. Não tinha tempo de pensar. Vivia apenas para aquele momento, os nervos distendidos ao último ponto, olhos sombrios, irradiando singular expressão de prazer, joelhos apertados contra os flancos do animal, todos os membros retesados para resistir às violentas rajadas que ameaçavam arrancá-lo da sela. O furioso ulular do vento e a selvagem dureza da cena o encheram de estranha excitação, fazendo-o exultar pela força física que o habilitara a prosseguir na vida trabalhosa e estrênua que escolhera. E era a natureza, caprichosa e mutável, como ele aprendera a conhecê-la, a natureza para a qual voltaria ainda mais uma vez, com prazer e a confiança sempre crescentes. Áspera amante, muitas vezes cruel, mas sedutora e atraente pelos seus próprios caprichos.

     A tempestade ainda rugiu por algum tempo antes que caísse a chuva, verdadeira manga d'água tropical, tão inesperada quanto de pouca duração e que encharcava as pesadas e grossas mantas dos dois homens, ensopando a areia acumulada sobre o pêlo dos cavalos. Passou rapidamente e, com sua ida, a escuridão diminuiu um pouco e a violência do vento decresceu. Mas Carew não confiava absolutamente nessa estiada temporária. Viria mais tarde, a não ser que se enganasse, e com redobrada violência. No entanto, era uma oportunidade para se adiantarem e aumentarem a corrida dos cavalos, cujo galope doido havia gradualmente diminuído, quando a tempestade chegara ao apogeu. Eram somente a nervosidade e a força do vento que lhes diminuíam a marcha. Aqueles animais eram capazes de esforços maiores ainda do que os que tinham feito para vencer a tempestade. Agora já não estavam em corrida cega, mas ainda era impossível saber onde se achavam. Galopavam e poderiam passar facilmente pela pequena vila a qual se dirigiam, a uma distância irrisória, sem que a pudessem reconhecer. E a noite estava chegando rapidamente. Nada havia a fazer senão continuar para diante, confiando na boa estrela.

     Cavalgaram assim, resolutamente, durante uma boa hora, embuçados nas mantas encharcadas, silenciosos, como de costume, quando viajavam juntos. Mesmo para homens mais comunicativos do que Carew e seu taciturno servo, o momento não convidava à conversação. O ar ainda estava carregado de areia volante que se lhes intrometia pela boca e pelas narinas, apesar das abas das mantas puxadas até em cima, e o vento tornava muito difícil o uso da fala. Além disso, Carew parecia sucumbir ao peso do sono que crescia de momento a momento. Não dormira durante a hora da sesta no oásis e estivera de pé, acordado, a maior parte da noite precedente, atendendo, com seus serviços médicos, a um homem do séqüito de Said, que levara séria queda de um camelo que tropeçara. Dominado o pânico que o atemorizava, Suliman voltara ao galope macio e costumeiro e os seus ágeis e suaves movimentos eram verdadeiramente entorpecentes. Mais de uma vez, Carew notou que os seus olhos cobertos de areia se fechavam contra a vontade. Foi Hosein quem primeiro notou que a sorte os favorecia, com a primeira indicação de que estavam no bom caminho para a pequena vila que já não contavam encontrar: um amontoado de palmeiras secas, empilhadas de encontro à parede desmoronada de um poço, abandonado e seco havia alguns anos. Com tristeza, Carew reconheceu aquele pontozinho no deserto e, já meio dormindo e com certa despreocupação, acenou cochilando em resposta à exclamação do servo. Foi também Hosein quem fez nova descoberta, ocasionando-lhe nova exclamação, que teve por efeito afastar do amo toda a sonolência que o invadia.

     Quase escondidos pelas velhas palmeiras secas e pela parede desmoronada do poço, dois cavalos sem cavaleiros estavam de pé, com as cabeças inclinadas quase tocando o chão, com aparência miserável, tendo presumivelmente galopado a ponto de se esfalfarem até que foram obrigados a parar, porque, apesar do relincho raivoso de Suliman, não pareciam dar conta disso, nem nada lhes atraiu a atenção. Imóveis como estátuas de bronze, com as ancas voltadas para a areia rodopiante, as barrigueiras oscilando ao vento, havia singular abandono naquela atitude. Ao vê-los, Carew franziu a testa, com momentânea indecisão. Não nutria o menor desejo de se deixar estorvar na viagem por dois cavalos esfalfados. Mas, numa noite daquelas, não tinha coragem de deixar ao abandono mesmo dois animais. Com uma palavra rápida a Hosein, dirigiu Suliman para o pequeno e morto oásis. As alimárias exaustas não deram o mínimo sinal de terem notado sua aproximação, nem mesmo se moveram quando Suliman estacou perto delas. Relanceando rapidamente a vista em redor, Carew saltou célere da sela. Ali perto, jazia um árabe com o rosto voltado para o chão e, alguns passos adiante, um robusto europeu estava sentado, as costas apoiadas contra a parede desmoronada do poço, um grosso chicote de montaria entre os joelhos. A cabeça lhe pendia sobre os ombros e as abas largas de um chapéu colonial, repuxado sobre a testa, lhe ocultavam o rosto. Encharcado de chuva e todo rebocado de lama e areia, incrustadas no couro das botas outrora imaculadas, e agarradas à áspera superfície do paletó de lona, o homem apresentava triste aspecto. Mas seu estado não lhe tinha evidentemente cerceado o sentido da fala, porque lhe irrompeu dos lábios um violento e ininterrupto forro de blasfêmias, que soavam singularmente naquele lugar e àquela hora.

     Carew não era nenhum puritano, mas a desnecessária baixeza dos palavrões que ouvira lhe ocasionou profundo sentimento de náusea. Virou-se abruptamente para o árabe prostrado, que lhe parecia necessitar muito mais de imediata atenção. Mas assim que o tocou, o homem se esgueirou das suas mãos e recuou cambaleando com a mão levantada, como para evitar uma bofetada. Tinha os olhos esgazeados. Mas uma expressão de ódio profundo, misturado à dor que sentia, e uma boca lacerada e sanguinolenta contavam tàcitamente sua história. O homem do poço sem dúvida alguma era um carrasco feroz, além de brutal blasfemador. Aquelas duras e contorcidas feições eram vagamente familiares a Carew, a quem se tornou evidente que ele próprio fora reconhecido, quando, depois de alguns momentos, o árabe volveu a si o suficiente para proferir algumas palavras. Mas não podia no momento identificá-lo, e o nome muitas vezes repetido de nada lhe adiantou: conhecia dúzias de árabes com o mesmo nome. Qualquer que fosse sua opinião sobre o assunto, nada tinha que se intrometer entre servo e amo. Mas sua expressão não era nada agradável e sentia inconscientemente a presença de uma raiva que se levantara dentro dele, no momento em que se voltou para se dirigir para o poço. Não chegou até lá. Cerrando vagarosamente os punhos, estacou no lugar, encarando o homem que lhe vinha despreocupadamente ao encontro, o mesmo que tentava evitar desde a noite da ópera, havia algumas semanas. O chapéu colonial enlameado estava agora batido para trás, revelando claramente, mesmo à semi-claridade, as feições do rosto dissoluto e marcado de cicatrizes, que lhe inspirara tão estranhamente ódio mortal. E, nesse momento, ao ver-se tão perto do mesmo rosto, aquele estranho ódio parecia crescer mil vezes. Carew mal podia conter-se, mal podia mostrar semblante impassível e esconder todo o ódio que lhe ia na alma. Nunca na vida sentira tal impressão. Como naquela noite em Argel, a onda de raiva o invadia além de toda a razão, de qualquer explicação. Não podia explicá-la, nem dominá-la. A custo esperava conseguir um pouco de domínio sobre si mesmo. Mas sentia que esse domínio estava a ponto de abandoná-lo, ante o mesmo pavoroso desejo de matar, que se estava apoderando de todo o seu ser. Irado ao sentir esse horrível impulso, ao qual lhe era quase impossível resistir, cruzou as mãos nas costas, a fim de afastá-lo da arma que guardava entre as dobras da túnica. Completamente alheio à tempestade de ódio que sua presença provocara, Geradine marchou para ele com ar de fanfarrão e os trejeitos dominadores que o caracterizavam e ele acentuava sempre que tratava com qualquer nativo, sem lhe olhar a categoria. Para ele, nativo era uma criatura inferior, apenas pouco acima dos animais da floresta, que deviam ser dominados pelo medo e conservados em seu lugar de inferioridade. Ficou de pé, com as pernas afastadas, açoitando as botas com o chicote, e examinando Carew com ar indolente, de olhos meio fechados.

     — Olhe aqui! — começou, num tom misto de truculência e condescendência arrogantes. — Estou numa enrascada de todos os diabos! Vim de Biskra para acampar um ou dois dias, e desviei-me de minha gente nesta infernal tempestade de areia, tudo por culpa daquele maluco que ali está. O que quer você para me tirar desta sepultura dos diabos? Meus cavalos estão esfalfados e os seus parecem bem frescos. Diga o preço e, com mil bombas, apresse-se, ou... oh! diabo!... — interrompeu-se com um gesto de aborrecimento, ao notar que Carew continuava a fitá-lo plàcidamente e com fisionomia impassível, que nem deixava transparecer aprovação nem recusa.

     Por momentos, imaginando que não era compreendido, Geradine lançou irados olhares de indignação ao suposto árabe, favorecendo-o com uma torrente de epítetos pessoais que nada tinham de corteses. Com desdenhosa indiferença, Carew deixou-o praguejar. Se Geradine o havia tomado por árabe, ficaria sendo árabe para ele, mas não um árabe para ser batido nem comprado. Naquele momento não se sentia tentado a facilitar as coisas àquele fanfarrão tagarela, que se deixava dominar por uma raiva infantil. Que mudasse de tom, se precisava de auxílio. Nem mesmo estava muito certo de que então o auxiliaria. Por que se desviar de seu caminho para ajudar um homem a quem odiava? Continuar naquela situação seria salutar, poderia ter efeito benéfico sobre um espírito desacostumado a qualquer espécie de oposição ou discordância. Algumas privações que não lhe fariam mal algum. E se morresse no deserto, o que não era nada provável, essa morte seria talvez mais uma fonte de alívio do que de desgosto para os amigos e outras relações. Subitamente, Carew pensou na esposa do homem que lhe estava na frente. Se todos os fatos que lhe imputavam eram verdadeiros, ela certamente não teria motivos para lamentar um marido que evidentemente a aterrorizava. Mas, que importava isso tudo a ele? Uma onda de raiva o invadiu, quando levantou os olhos para encontrar os do homem que o fitava insolentemente. O bruto de boca suja! Deus! Como o odiava! Quase inconscientemente, deu um passo à frente e havia algo de ameaçador em sua expressão, porque Geradine conteve o refluxo de imprecações que já lhe aflorava aos lábios.

     Com um pouco mais de civilidade na voz e nas maneiras, começou a repetir suas propostas em um francês hesitante e apenas compreensível. Com a despreocupação típica dos árabes, Carew esperou que ele acabasse as explicações vacilantes. Mas não foi por causa dele que o ouviu. Somente a situação em que se encontravam o desgraçado servo e os dois cavalos esfalfados conseguia abalá-lo e movê-lo a relutante decisão.

     Com uma fria palavra de assentimento e um gesto rápido que teve o efeito de levar o sangue à face do outro, voltou-se altivamente, como se falasse a um inferior, e caminhou para junto dos cavalos, deixando Geradine embasbacado atrás dele, fumegando de raiva, agitando e dobrando o chicote maleável entre as mãos, hesitando se devia ou não segui-lo, “Amaldiçoado negro com sua cara infernal!” E olhava para Carew com ar de nojo e raiva. Era um pouco mais alto do que ele, aquele indivíduo! Nisto é que dava tratar os nativos como os franceses tratavam: igualdade, fraternidade. Que país podre! Com quem pensava aquele orgulhoso maltrapilho que estava falando? Por ventura julgava-o um turista estúpido e que se deixasse impressionar pelos seus ares de superioridade? Que o enforcassem se aturasse a mínima insolência de qualquer árabe! Pensava o livre filho do deserto que o cavalgaria? Aquele canalha podia ir para o inferno com seus cavalos, se quisesse. Não se sujeitaria a um reles filho de... Mas uma lufada fresca de vento, carregada de areia, chicoteou-lhe o rosto, dando-lhe uma sugestão pouca animadora, cortando-lhe subitamente as imprecações murmuradas a meia voz e anulando-lhe completamente a intenção, já tomada, de revogar os pedidos feitos, para ajudá-lo a sair de uma situação da qual não poderia sair sozinho, de uma situação penosíssima que, estava plenamente convencido, só devia à cabeça de lama de seu criado. Amaldiçoado maluco! Saia-se mal e porcamente em tudo quanto fazia! E fora-lhe recomendado por sua capacidade, por Deus! Um perito criado de quarto e um “dragoman” eficiente?! Ele? Ficaria um pouco mais perito e mais eficiente quando o despedisse. Havia um só jeito de lidar com gado daquela espécie; Malec não seria o primeiro negro que já esbofeteara, e por muito menos. Mas Malec podia esperar, ajustaria contas com ele mais tarde.

     Roncando ameaças ao infeliz criado, Geradine dirigiu-se, sem pressa, para o grupo de homens e cavalos um pouco além do poço.

     Carew já estava montado, lutando com Suliman, que recuava e relinchava impacientemente. Desviou-se para o lado, quando o Visconde se aproximou.

     — Pode montar o cavalo do meu servo, — Carew disse-lhe em francês; — os seus só conseguem se manter de pé. Os homens terão de ir a pé.

     Com um grunhido descortês, Geradine tomou as rédeas que Hosein lhe estendia, e pulou duro na sela. Completamente encharcado, e ressentindo do tom autoritário em que se lhe dirigiam, nada o levava a melhorar de gênio ou de educação. Deu vazão ao mau-humor sobre o objeto que lhe ficava mais próximo. O cavalo que lhe fora emprestado saltava, em furioso protesto contra as esporas que lhe enterravam dolorosamente nos flancos, usadas com desnecessária violência. O cavaleiro, perdendo a cabeça, açoitou-o selvagemente, metendo-lhe o pesado chicote na cabeça graciosa. Duas vezes o pesado chicote levantou-se e caiu sobre o focinho do pobre animal. Eis senão quando uma mão, verdadeira garra de aço, lhe segurou o pulso, arrancando-lhe a vergasta. Virando-se com uma praga, Geradine encontrou-se frente a frente com um par de olhos faiscantes, nos quais não leu apenas raiva, mas um ódio totalmente inesperado, que o fez experimentar estranha sensação de frio, que lhe correu pela espinha dorsal. Inclinou-se involuntariamente, levando o cavalo para o lado, cônscio, pela primeira vez na vida, de um sentimento de medo. Mas a estranha expressão que o tinha espantado fora-se como um raio, e o rosto de Carew se apresentou de novo impassível, ao puxar-lhe as rédeas do cavalo.

     — Desculpe, “Monsieur”, ele não está acostumado a chicote, — disse friamente; e atirou o instrumento de suplício, que rodopiou, à boca do poço, onde caiu e desapareceu.

     Mudo de fúria, Geradine lançou-lhe olhares terríveis e depois, como seu francês fosse muito limitado para se expressar adequadamente, deixou sair na língua materna uma torrente de pragas e insultos que lhe teriam dado mais prazer, se soubesse que estava sendo compreendido. Mas estava com as mãos por demais ocupadas com a sua montaria raivosa e fogosa e Carew já tinha começado a andar.

     O vento soprava agora, outra vez. Seguro do lugar onde se encontrava, Carew tomava firmemente a direção de leste, e a areia rodopiante lhes vinha diretamente ao encontro. Embuçado no albornoz, com o rosto resguardado pelo “haik” bem repuxado, sentia menos do que Geradine a influência do vento. Mas não tinha nenhuma simpatia para malbaratar com o tipo inqualificável que lhe cavalgava ao lado. Reservava-a para os dois pobres homens que se estafavam atrás deles, com os cavalos cansados. Por causa deles, estava contente que o vilarejo ficasse só a três milhas dali. E mesmo três milhas, sobre um terreno acidentado e contra um vento cortante daqueles, já constituíam suficiente caminhada para homens que não estavam acostumados a andar a pé e, além disso, estorvados por dois cavalos esfalfados e que necessitavam de constantes gritos de encorajamento para marchar. Por essa razão, progrediram muito vagarosamente e mais de uma vez Geradine, impaciente com o passo de lesma em que estava trotando, deu de rédeas à montaria agitada e adiantou-se até certa distância. Mas ignorante do caminho que devia seguir, e não lhe agradando muito a perspectiva de perder de vista os companheiros na escuridão que crescia a todo o momento, era forçado todas as vezes a dominar-se e esperar que os outros se aproximassem.

     Durante certo tempo conservou-se silencioso, mas, por fim, o aborrecimento de que estava possuído achou saída.

     — Olhe aqui, — explodiu zangado, no momento em que Carew pela quinta vez lhe chegava ao lado, sem parecer notar a temporária separação. — Isto não é funeral, ora bolas. Pelos céus, apresse-se um bocado!

     E ao voltar-se Carew para ele, com um indiferente: “Plait-il”? perdeu completamente as estribeiras.

     — “Plus vite”, seu estúpido, seu burro! — imprecou. — “Pás un cortège, n'est-ce pas”? Vá para o inferno!

     Por um momento Carew hesitou, e sua raiva aumentou perigosamente. Depois, levantando os ombros e apontando para os homens que os seguiam, disse laconicamente, — Os homens estão a pé, — pensando quanto tempo se passaria até que fosse obrigado a tomar uma desforra. Era fácil mostrar ignorância da língua-mãe, porém aturar uma tempestade de insultos e epítetos, era coisa um pouco mais difícil. Mas, desde que Geradine o tomara por árabe, resolvera consigo mesmo ficar como árabe. Confessar sua nacionalidade era-lhe impossível agora. Geradine pensaria que o tinham tomado por imbecil, e isso o levaria a discutir, o que poderia acabar de modo desastroso. Naquela situação, a simples presença do Visconde já por si era bem difícil de aturar. Até aquele momento, conseguira manter o autodomínio, mas sabia que um bocadinho mais seria o bastante para fender a parede da represa. Traçara uma linha de conduta e continuaria naquele caminho, mesmo que não fosse senão em benefício do infeliz árabe. Deixados sós, ao abandono, Geradine despejaria toda a sua ira sobre o desgraçado servo, a quem já suficientemente maltratara. E ainda uma vez Carew torturou a memória, para se lembrar onde já teria visto aquele homem. Raramente esquecia as fisionomias e agora em falta de qualquer coisa melhor para lhe prender a atenção, dispôs-se a descobrir porque aquelas feições vagamente lembradas lhe eram familiares. Dentro em pouco, por fim, a lembrança lhe raiou. Ah! Era o criado do Visconde de Granier, que provavelmente fora alugado juntamente com a vila, o pobre diabo. Relativamente novo entre a criadagem do francês, Malec não conseguira fazer impressão definida sobre o hóspede ao qual servira apenas uma vez. Mas, tendo-se identificado e recolhendo suas informações, Carew se lembrava de que Granier falara dele como caráter curioso, correspondendo com respeito à bondade com que o tratavam, mas tornando-se sombrio quando o corrigiam e sendo de espírito muito melindroso.

     A mudança do serviço do educado francês para o de um bruto como Geradine, deveria ter sido muito chocante para o criado. E Carew pôs-se a pensar no que o teria induzido a ficar sob as ordens de um patrão que evidentemente odiava. Bom salário, ou um projeto mais sinistro? Conteve-se abruptamente. Que diabo! Se os seus pensamentos seguissem aquele caminho, muito breve estaria cometendo assassínios por precaução, ou então, pelo menos, por prazer nisso. Seu ódio já era bastante incompreensível para se estar incomodando com agruras alheias, com queixas dos outros. E para ele nem mesmo havia a desculpa de uma queixa. Sem nenhuma razão ou causa, odiara Geradine logo à primeira vista. Com um encolhimento de ombros que denotava perplexidade, puxou mais a manta e sacudiu a areia aderente às rédeas.

     A todo instante, o vento aumentava de força e a luz se extinguia rapidamente. Se acabasse inteiramente e não atingissem a pequena vila, se não a pudessem encontrar na escuridão, não haveria outro abrigo por ali; e Carew não via com bons olhos uma noite passada ao relento em tal companhia. Naquele passo, a distância parecia de mais de trinta milhas em vez de três. Mas não havia meio algum de apressar a marcha. Mesmo a passo, os cavalos se tinham adiantado tanto aos homens que estes já estavam a certa distância. Surdo às imprecações de protesto de Geradine, Carew refreou o cavalo e esperou que Hosein chegasse a seu lado. E no momento em que o homem tocou o estribo, a tempestade irrompeu de novo com redobrada fúria, e uma rajada cortante os envolveu numa nuvem de areia que cegava. Durante alguns momentos, os cavalos se tornaram quase irrefreáveis, rodopiando para traz ao embate da tempestade, e juntando-se num mesmo monte. Por fim, foram separados e a pequena tropa prosseguiu lutando contra a violência do vento, estacando freqüentemente em virtude da areia que lhes cortava os rostos e arregalando a custo os olhos para poderem ver na escuridão.

     Esta caíra completamente antes que houvessem atingido o pequeno amontoado de casebres de barro que constituía a vila, que, a princípio, parecia sem moradores, pois nenhum raio de luz se filtrava através das fendas das janelas trancadas e cobertas de trapos para protegê-las da areia. Mas Hosein, mandado à procura do capataz da localidade, voltou daí a pouco com um árabe velho vestido de roupas andrajosas, que se desfez em obsequiosos “salaams”, respondendo à pergunta que Carew lhe fizera e levou-os a uma pequena cabana a pouca distância dali.

     Era apenas uma choça, mas abrigava uma família assombrosamente grande, figuras de sombras, sem sexo distinto, enroladas estreitamente em cobertas e que recuaram à aproximação dos estrangeiros e deslizaram furtivamente pela noite afora, com as cabeças inclinadas para o chão e os ombros levantados contra o vento que tudo varria, quando o capataz os expulsou sem cerimônia para dar lugar aos visitantes inesperados. Havia somente um aposento, sendo que a parte dos fundos, destinada ao uso das mulheres da família, estava oculta por uma cortina; todo o aposento tinha o aspecto indescritivelmente sujo e desconfortável. Aliás, isto não era novidade para Carew que se tinha acostumado a ver muito maiores imundícies. Mas o nojo de Geradine era evidente, porque lançou olhares à roda, com os lábios contraídos, e cuspiu a areia que se lhe acumulava na boca, sacudindo-a da roupa enlameada. Molhado e raivoso, com modos de quem não queria mais ser aborrecido e incomodado, à vista dos cavalos que eram empurrados vigorosamente para dentro da choça pela entrada estreita, prorrompeu numa série ininterrupta de pragas e imprecações. Mudando freqüentemente do francês para o inglês, em frases entrecortadas de insultos, tratou de mostrar sua completa desaprovação ao abrigo que lhe proporcionavam, que descreveu como impróprio até para porcos; e iradamente anunciou sua intenção de não admitir que se partilhasse a limitada acomodação com “aqueles brutos danados”, cavalos e criados compreendidos nessa denominação. Os cavalos dele ficaram de pé, tremendo e indiferentes, porém Suliman e o cavalo de Hosein se mostravam muito agitados por se encontrar em ambiente tão restrito, e durante algum tempo reinou ali certa barafunda, o que fez passarem despercebidas as censuras do Visconde. Quando pôde ser ouvido, reiterou novamente os pedidos em voz alta. Mas Carew, que se abaixara para desapertar a barrigueira de Suliman, fez um gesto, abanando a mão com indiferença e, indicando a porta, declarou peremptòriamente que se Geradine preferia a tempestade de areia, tinha toda a liberdade de sair, mas que ele, Carew, os homens e os cavalos ficariam ali até que o tempo melhorasse.

     Desacostumado a sofrer oposição e demasiado egoísta para pensar em outra coisa além do conforto próprio, a clara recusa foi o bastante para fazer com que a raiva de Geradine então se transformasse em verdadeira fúria. Uma expressão feroz sombreou-lhe a face já carrancuda e adiantou-se com um gesto ameaçador. Por instantes, pareceu que a contenda aberta, até ali evitada por Carew, se tornasse inevitável. Cansado e exasperado, provocado pela insolência e maneiras dominadoras do outro, levado pelo próprio ódio, nada lhe teria dado maior prazer naquele momento do que responder convenientemente àquela provocação. Todos os instintos o incitavam a se desagravar. Fizera tudo o que humanamente possível se poderia esperar dele, durante duas horas aturara pacientemente insultos e imprecações. Já tinha feito bastante e agora sua paciência chegava ao extremo. E era Geradine, não ele, quem forçara a contenda! Então, por que não dar a lição que merecia e que estava procurando? Por todos os meios ao seu alcance evitara encontrar-se com o Visconde, e o destino os tinha lançado sob mesmo teto. O coração de Carew começou a palpitar violentamente e a saltar-lhe do peito, e o ar ambiente daquele momento pareceu ficar eletrizado, prenhe de paixões desenfreadas. Os dois homens fitaram um ao outro. Atrás deles, os árabes vigiavam atentamente, sentindo a tensão nervosa que os contendores experimentavam, e Hosein aproximava-se furtivamente para o lado do amo, enquanto com a mão segurava o cabo da faca enfiada na cintura. Então, com tremendo esforço, Carew conseguiu afastar para longe as tentações a que estivera a ponto de sucumbir, e rodou nos calcanhares, voltando-se sem uma palavra para o seu cavalo. Forçado a parar, mau grado seu, por um silêncio que não compreendia, Geradine não proferiu mais protesto algum e recuou, com um rugido desarticulado. Atravessou a sala e deixou-se cair pesadamente no ponto mais limpo que pôde encontrar, o mais longe possível do grupo de homens e cavalos. Acendendo um cigarro com dificuldade, porquanto os fósforos estavam completamente molhados, fumou, zangado, até que os cavalos ficassem desarreados. Depois, procurando nos bolsos do paletó encharcado, tirou de lá um grande frasco e, bebendo em grandes goles o conteúdo restante, gritou para o árabe de rosto sombrio, que se encostava tristemente à parede, ao lado dos cavalos, fumando, que lhe trouxesse mais aguardente. Mecanicamente o homem desapertou os coldres da sela do patrão. Seguindo-o com a vista, Carew notou o formidável pontapé que lhe deu Geradine, ao receber de suas mãos o frasco. Aos odores diversos e incongruentes que enchiam o pequeno aposento, juntou-se o cheiro ativo de conhaque, porque o Visconde, cujas mãos estavam trêmulas, entornou uma porção igual à que bebeu, e salpicava por todos os lados o conhaque puro com que tentava satisfazer uma sede insaciável. Mesmo assim, juntando ao que já tinha engolido, a golada foi bastante grande. Mas, além de avivar ainda mais as cores de sua face já congestionada, e aumentar o desagrado por tudo que o rodeava, aquela porção enorme de álcool lhe parecia indiferente, porque praguejou mais fluentemente e de modo mais inteligível do que antes, enquanto se aconchegava mais, tremendo, no canto onde estava sentado, numa vã tentativa de se livrar das lufadas sibilantes que assobiavam pelas fendas das paredes de barro rachadas. Com aversão e ódio crescentes, Carew foi obrigado a ouvir o fluxo ininterrupto de linguagem porca, desejando ardentemente que a mão de Geradine ficasse mais firme. Completamente bêbado, ficaria pelo menos silencioso. Meio ébrio e meio insolente, era simplesmente intolerável. E era isto que a pobre moça tinha de aturar todos os dias e todas as noites? Carew arremessou sua pesada manta para trás, com um gesto raivoso, franzindo o sobrolho a este súbito pensamento. Não era de sua conta, nem mesmo lhe importava, murmurou teimosamente, procurando um cigarro nos bolsos do casaco. Não era de sua conta, mas a lembrança estimulada era mais fácil do que o esquecimento e, durante muito tempo, deixou-se ali ficar, olhando sombriamente as nuvens retorcidas de fumaça azulada que, evolando-se para o teto em fantásticas espirais, lhe pareciam emoldurar o oval delicado de uma face pálida. Quando, por fim, num esforço de vontade, conseguiu trazer o espírito para a situação presente, as queixas de Geradine tinham cessado e ele parecia enfim dormir profundamente. Os homens também estavam cochilando, embora a mão de Hosein se movesse mecanicamente todas as vezes que Suliman batia com as patas no chão. A sala tornara-se imperceptivelmente mais escura e, procurando a causa, Carew notou que uma das lâmpadas de louça que a família expulsa deixara ali queimara até o fim, e a outra flamejava muito fracamente como se já lhe faltasse azeite. Imaginou que também ele tivesse dormido. Depois, prestando ouvido às lufadas que antes faziam estremecer a vacilante construção, concluiu que a tempestade havia cessado. Dentro da sala, a atmosfera era sufocante. Por isso dirigiu-se à porta, que abriu de par em par, e saiu para a escuridão da noite. A mudança ali fora quase mágica. Completamente limpo, o céu faiscava de estrelas e o deserto se apresentava calmo e tranqüilo, à suave claridade da lua nova, cujos raios oblíquos brilhavam como réstias de prata na areia molhada. O silêncio era imponente. Para Carew, ainda com o sangue escaldando do ódio que há pouco quase o invadira, a beleza maravilhosa daquela noite era como o toque de mão benigna que cura todas as dores e feridas. E admirando a placidez da região, esqueceu-se de Geradine por algum tempo.

     Para trás, o estranho amontoado de cabanas se derramava escuro e misterioso à sombra de uma rocha nua áspera e solitária, erguendo-se da planície a alguma distância da cadeia de montanhas a que pertencia. Mas ele não prestava atenção à vilazinha adormecida. Era o deserto que o atraia, o deserto que, com sua voz silenciosa, lhe murmurava ao ouvido, o seduzia, o atraia com o brilho dos seus segredos ocultos. Seus olhos carinhosos percorreram a planície inundada de luar. Estava integrado no deserto, seria nômade para toda a vida. Mais do que a imponente casa da Inglaterra, mais do que o palácio em miniatura de Argel, o deserto seria uma verdadeira casa. Durante dez anos vivera ali. Durante dez anos procurara curar a própria dor, tentara trazer aos outros algum alívio, lutando contra a miséria e a moléstia, espantado pela magnitude de sua empresa, e parecendo-lhe ter feito tão pouco! Mas mesmo aquele pouco valia a pena. Mesmo aquele pouco lhe era pago. Suas fadigas não tinham sido em vão. Ante a profunda quietude da noite oriental, sentia o sentimento da Divina Providência bem perto; e, humildemente, Carew rogou aos céus, de todo o coração, que lhe dessem forças para continuar no trabalho que se tornara o escopo de sua vida.

     Ao se levantar sacudindo a areia dos joelhos, Hosein chegou-se para ele, ansioso pela sua ausência e como portador involuntário de um recado.

     — O Lord inglês está com fome! — anunciou brevemente, mostrando patente desprezo na voz, o que Carew simulou não compreender.

     A situação já era de si bem complicada para ainda censurar o servo por falta inteiramente devida ao péssimo comportamento do próprio Geradine.

     Com um último olhar para as estrelas que tremeluziam, dispôs-se a voltar para a cabana.

     Quase oculto por uma névoa de fumaça e despertando agressivamente, Geradine não mostrou, no entanto, mais civilidade em suas maneiras que antes.

     — Ponha daqui para fora aqueles amaldiçoados bichos! — gritou truculentamente. Não posso dormir numa estrebaria danada como esta! E arranje-me qualquer coisa para comer. Alguma coisa... para... comer. “Quelque chose à manger, comprenez?” maluco do inferno! — ajuntou, fazendo gestos violentos. O sangue invadiu as faces de Carew em ondas sombrias, mas, resolvido a conservar a calma, engoliu a resposta que lhe aflorava aos lábios e deu as ordens necessárias com aparente indiferença. No entanto, sorriu sorrateiramente, ao notar o modo com que os homens conduziam os cavalos para fora. Era muito duvidoso que pudessem encontrar alimento de qualquer espécie a tal hora da noite, e mesmo que as providências de Hosein dessem resultado satisfatório, não seria de estranhar que Geradine não apreciasse muito os rústicos manjares em voga na pobre vila. Estava também convencido de que a porção de tâmaras que trazia consigo não seria muito apreciada pelo Visconde.

     E quando, finalmente, Hosein voltou trazendo uma tigela com leite coalhado de camelo, não se surpreendeu que o Visconde, depois de relancear os olhos com desânimo e repugnância, a rejeitasse, bem como uma pequena mesa de frutas, coberta de areia, que lhe provocou uma exclamação de desgosto.

     — Oh! Senhor, que porcaria! — imprecou; e retirou-se para o canto, com a fome insaciada, praguejando para poder dormir.

     Ainda dormia pesadamente, quando Carew despertou com a alvorada, saindo da cabana para já encontrar Hosein junto aos cavalos, e providenciar a volta de Geradine para Biskra. Não tinha a menor intenção de viajar com aquele tipo. Seu único desejo era ir-se embora o mais depressa possível, e afastar-se do homem que odiava com mais veemência do que nunca.

     A noite passada conseguira dominar-se por um esforço sobre-humano. Naquela manhã, sentia bem que não confiava no domínio de si mesmo. Para escapar à despedida que de outro modo seria inevitável, não voltou à cabana quando, uma hora mais tarde, se viu pronto para retomar o caminho, depois de concluídas as conversações com Malec e o capataz da vila.

     Quando, porém, já se achava com o pé no estribo, Geradine apareceu, bocejando com sono, e agitando os braços para lhes tirar a dormência. Tendo, pelo menos uma vez, despertado sem a costumeira dor de cabeça, estava naquela ocasião de melhor temperamento que habitualmente. Esquecendo aparentemente a incivilidade da noite anterior, dirigiu-se para diante vagarosamente, com ar de condescendência generosa, procurando meios de se fazer mais agradável. Cumprimentando em altas vozes, terminou numa forte gargalhada, ao notar que Carew já estava barbeado e limpo, como Hosein resolvera que sempre ele estivesse; depois lhe olhou para as vestes.

     — Você está bem decente, por Deus! — exclamou segurando o queixo; — onde diabo encontrou você água e navalha neste buraco imundo? E já se vai tão cedo, por que tanta pressa? Ah! Diabo! Esqueci-me que não fala inglês. Bem, não se incomode. Você é um camaradão, seja como for. Teria ficado numa enrascada terrível se você não chegasse a tempo. Muito obrigado... toque, quero dizer: “très obligé, mille remerciments...” e todo o resto disto, não sabe? — E, com outra gargalhada, estendeu a mão.

     Incitado, porém, pela pressão suave das botas de Carew, Suliman rodopiou violentamente e disparou a galope, deixando Geradine com o braço ainda estendido, meio aborrecido, meio divertido pela partida brusca de Carew. O patife sabe montar, refletiu ele, ao ficar olhando para os homens que galopavam para o deserto; o homem que lhe servia de criado valia uma dúzia dos que ele trazia. E, bocejando novamente, voltou para a cabana, gritando por Malec.

 

     No seu quarto de dormir da Vila das Sombras, Marny Geradine estava de pé, diante da janela aberta, fitando a escuridão da noite. Com as faces descoradas e imóveis como máscara de mármore, tinha as mãos bem juntas e apertadas atrás das costas. Somente o tempestuoso arfar dos seios lhe denotava a tumultuosa tempestade interior. Cinco minutos antes havia afastado a sua criada grave, uma Ann de rosto empalidecido e choroso, e agora, sozinha, enfrentava uma decisão que resolvera tomar e para a qual necessitava de toda a sua força de vontade.

     Era a noite do baile anual do Governador. A essas horas, já deveria estar vestida. Mas aquele vestido maravilhoso, suprema criação de Paris, que Geradine mandara fazer especialmente para a ocasião, ainda se desdobrava, brilhando, sobre os braços de uma poltrona, e Marny não mudara o simples vestido de casa com o qual jantara.

     Não iria ao baile. Não se submeteria outra vez à vergonha e humilhação que fora o seu fadário [vida difícil] durante a vida de casada, e que tinha culminado de horror nas últimas semanas. A intemperança infrene do marido, as conhecidas infidelidades, o desrespeito atrevido a tudo que não lhe agradasse, tinham-na afinal levado a rebelar-se. Chegara ao fim de suas provações. Sabia bem que em casa deveria continuar a sofrer o tratamento que o marido lhe impunha, porém resolvera não mais aparecer em público com ele. Como receberia ele tal decisão? Como dominaria sua raiva? Porque pensava ela somente em sua força bruta, na voz de fanfarrão ameaçador, nas mãos impiedosas, que a faziam recuar com terrível medo físico? Intolerante como era à menor oposição, que lhe faria ele? Um estremecimento de terror percorreu-lhe o corpo. Ainda se ele viesse já, como era certo que viria, pedir explicação pela demora... Esperar era uma tortura.

     Ainda assim, quando a porta se abriu violentamente e se fechou com estrondo, e ela lhe escutou os pesados passos, o terror que sentira antes desapareceu comparado ao medo paralisante que agora a invadia, roubando-lhe toda a força para se movimentar. Poderia ter gritado, quando suas mãos ásperas e brutas a apertaram, esmagando-lhe os delicados ombros e ele segurou com força no seu rostinho oval, virando-se para fitá-la. Mas conseguiu dominar-se e enfrentar corajosamente os olhos furiosos. Geradine estava naquele estado de espírito e de semi-intoxicação que se lhe tornara habitual nos últimos tempos, bêbado bastante para ser cruel e vingativo, não tanto para deixar de ser perigoso.

     — Ainda não se vestiu! Que diabo tem feito durante todo esse tempo? Está terrivelmente atrasada.

     Marny já se acostumara a ser injuriada, e já chegara a sentir que nada do que ele lhe pudesse dizer a magoaria demais, e nessa noite não se parecia incomodar demasiado com aquilo que ele dissesse. Forçou uma resposta.

     — Não vou ao baile, hoje, Clyde.

     Ele estacou, sem poder falar de raiva, soltando os ombros dela, com a face dum vermelho escuro, que se tornou mais profundo, e as veias da testa salientes como as cordas de um açoite.

     — Vamos ver se não vai. E por que, posso perguntar? - vociferou.

     Tomada de pânico, resistindo à tentação de fugir às conseqüências de sua decisão, e ao covarde impulso de alegar doença para amenizar de qualquer modo aquela ira, era mais do que podia suportar. Mas sopitou as palavras que lhe subiam aos lábios e voltou-se com vago gesto sem esperança.

   — Você sabe porque, — disse a meia voz.

     — Diabos me levem, se sei!

     Ela virou-se repentinamente e retorquiu:

     — Você sabe, Clyde, — continuou firmemente, — você sabe muito bem porque sempre tenho medo de sair com você desde que nos casamos.

     Sei que você é uma doida, — respondeu ele, furioso. — Olhe, Marny, já aturei bastante esta história. Você irá a esse baile dos diabos, quer queira quer não, do mesmo modo que irá sempre a qualquer parte, quando e como eu bem entender. Dou-lhe dez minutos para se aprontar, nem um segundo mais. Não estou para ouvir sermões de quem quer que seja, e muito menos de você. Preste bem atenção, e não me faça esperar muito tempo. Dez minutos é o seu limite, — gritou-lhe, e dispôs-se a sair do quarto.

     Ela estremeceu, e o rosto pálido se tornou ainda mais pálido que antes, mas sua resolução era agora mais forte do que o medo que sentia.

     — Não adianta insistir, Clyde, não vou, — disse vagarosamente. E, pela primeira vez, ele percebeu uma espécie de obstinação naquela voz. Voltou-se repentinamente para ela, fitando-a por um momento com ar incrédulo, bamboleando-se ligeiramente, enquanto as mãos se retorciam nas costas, como no auge de uma ira pavorosa.

     — Está falando seriamente? — perguntou com voz grossa.

Os lábios de Marny, secos como estavam, quase se recusaram a falar.

     — Sim, — murmurou fracamente.

     — Então deliberadamente você me desobedece? — Ela torceu as mãos numa súbita agonia.

     — Sempre lhe obedeci, Clyde, sempre acedi a todos os seus desejos, mas a este... Oh, não posso. Não posso.

     Ele se aproximou ainda mais com a sua alta estatura, os olhos sanguinolentos a lhe saltarem das órbitas.

     — Não pode? — gritou. — Pois penso que pode e há de querer. Há uma única pessoa nesta casa que tem o direito de dizer “não posso” e essa pessoa sou eu. Vai fazer o

que lhe digo, agora e sempre. Vista aquele vestido e Deus a livre se me fizer esperar muito tempo.

     Ela levantou o rosto, tremendo num apelo desesperado.

     — Clyde... Eu... Clyde... — E sua voz desapareceu num grito terrível de angústia, no momento que ele lhe deu, com todo o peso do punho robusto, uma bofetada que a fez rodopiar em toda a extensão do quarto, para ir tombar do outro lado, com um barulho surdo sobre o mármore da escada.

     Ele olhou-a insensível, enquanto o rosto sangüíneo se contorcia e todo o corpo lhe tremia de ímpeto raivoso. Depois, andou vagarosamente pelo quarto, sentou-se pesadamente na cama, com os olhos apertados e fixos como se sentisse satisfação cruel pelo que tinha feito à pobre criatura que ali jazia prostrada e imóvel. Não sentia o menor remorso do que fizera. Ela era sua, e se ainda não sabia quem era o amo, já era tempo que o soubesse agora, e de uma vez por todas. Tinha-se enganado, se pensava que iria agora opôr-se às suas ordens com pretextos absurdos. Ele lho demonstraria e muito bem nessa noite. Não admitiria a menor desobediência nem discussões sobre os seus hábitos, ou obstáculos aos seus desejos. Aquela puritanazinha danada, que se afastava dos seus braços como noviça violentada, em vez de ser, como era de fato, uma jovem normal e atlética, saudável e de sangue vermelho nas suas veias! Ele queria nos braços uma parceira em tudo e não uma bela peça estatuária sem vida, e cuja reserva e frialdade o enfureciam. Que diabo, ela era sua esposa e era muito feliz em sê-lo. Poderia ter ficado na rua se não fosse ele. Se não estava satisfeita... bem... ele tinha uma razão de queixa, se algum dia lhe dissesse. Estavam casados havia cinco anos e por que diabo não lhe dera ela o herdeiro que ele tanto queria e desejava? E entregando-se a uma raiva maior, não fazia o menor esforço para ajudá-la a se levantar; ali ficaria até que ela recuperasse a consciência. Por fim, ela estremeceu, gemendo de dor, o corpo delicado convulsionado por terríveis calafrios. Arrastando-se aos poucos, conseguiu levantar-se e manter-se em pé, vacilando entontecida, com as mãos apertando as frontes palpitantes, os olhos com a expressão indecisa, divagando o olhar ao redor, sem consciência, até que encontraram a figura maciça de Geradine e, repentinamente, irradiaram um temor horrível, ao começar a lembrar-se o que tinha acontecido. Com um grito apenas sufocado, voltou-se, cambaleando alguns passos, e deixou-se cair numa cadeira diante do toucador, enterrando a cabeça nos braços, entre os ornamentos custosos que se estendiam sobre as almofadas, enquanto os ombros se levantavam e abaixavam, impulsionados por soluços sem lágrimas.

     B do mesmo modo que Geradine a tinha olhado insensível antes, assim a olhava agora, impiedoso e imóvel. Não queria saber de meias medidas. Se ela devia aprender uma lição, que a aprendesse bem e de modo categórico. Levantou-se e adiantou-se para ela, estacou a seu lado com os braços cruzados sobre o peito, e o pé batendo com raivosa impaciência no assoalho.

     — Quanto tempo mais vai me fazer esperar?

     Essas palavras ásperas eram verdadeiras pontadas de dor e, sentindo-se fraca e desfalecida, ela levantou os olhos suplicantes para ele. Um só olhar convenceu-a de sua resolução. Bem sabia que ele estava falando sério, oh! ela bem sabia. Estonteada, alquebrada para continuar a lhe opor qualquer resistência, ela se convencia de que teria de obedecer-lhe, e custasse o que lhe custasse teria de se vestir e ir com ele ao baile. Com um sufocado murmúrio de dor, levantou-se dificilmente, o cérebro às voltas, afastando as grossas madeixas de cabelo sedoso da testa com os seus dedos trêmulos, e sentindo a vista escura.

     — Se você me fizer o favor de ir, chamarei minha criada, — murmurou ela quase imperceptivelmente, contendo a custo os soluços que lhe vinham à garganta.

     Irei embora quando bem entender, e não chamará nenhuma criada, — disse ele asperamente. — Poderá vestir-se muito mais depressa comigo aqui no quarto. Não será esta a primeira vez que a tenho ajudado a se vestir, e não será a última, estou apostando. E que me enforquem se eu permitir que aquela harpia de face rugosa ponha o bedelho onde não é chamada. E o caso é que já estou completamente enjoado dela. Ela não é a espécie de mulher que eu desejo que a sirva. Irá embora e, quanto mais cedo, melhor. Pode pagar-lhe o ordenado amanhã e dizer-lhe que se vá no primeiro navio que sair daqui.

     — Clyde! — Esse grito agudo foi-lhe arrancado das entranhas. E esquecendo-se da dor, do medo, de tudo o que sofria naquele momento, só para se lembrar repentinamente daquela ordem impiedosa que lhe era dirigida, adiantou-se para ele, agarrando-o com mãos trêmulas, com a face convulsionada, suplicando como não suplicaria por si própria. — Clyde! Clyde, você não está falando seriamente! Oh! Você não quer dizer isso... Você não deverá mandá-la embora, não acredito que faça isso, não é tão cruel assim. Ela já é velha, e eu sou tudo que ela tem neste mundo. Morreria, se fosse obrigada a me deixar. E você me prometeu fielmente que eu a poderia ter sempre comigo. Sei muito bem que é para me punir, mas não queira punir-me desse modo, sacrificando a pobre velha. Oh! Clyde, seja generoso. Faça o que eu lhe peço, só por esta vez. Se você a deixar comigo, nunca mais me oporei a você. Farei tudo o que. você quiser... Serei tudo o que você quiser...

     Uma expressão de zombaria e triunfo passou pela face dele, quando a afastou com as mãos.

     — A senhora fará o que eu quiser sem condição alguma, minha senhora, — disse de modo significativo. — Já lhe dei as minhas ordens e não é preciso falar mais nisso. Está acabado. E devo lembrá-la de que os cavalos já estão esperando há bem uma hora.

     Era isso o que aparentemente lhe importava naquele momento. Ela era para ele de menor valor que os animais de raça que criava. A aflição de espírito, a dôr, o cansaço, o corpo alquebrado e dolorido, não entravam em consideração. Um torpor a invadiu, uma espécie de álgida apatia que parecia transformá-la em ser autômato, sem vontade, e, sem uma palavra, voltou-se para cumprir as ordens que lhe tinham sido dadas. Naquele momento, teve a curiosa impressão de que a mulher de face pálida e fatigada que o espelho refletia era outra, muito diferente dela, e de que assistia, completamente separada de seu próprio corpo, ao sofrimento de uma estranha. E, ao vestir-se com uma pressa mecânica, de uma única coisa conservara consciência clara, dos olhos ameaçadores que a acompanhavam em todos os seus movimentos até que a sua flama se lhe tornou um verdadeiro tormento. Mas, durante todo o tempo que durou sua “toilette” ele falou apenas uma vez:

     — Ponha um pouco de “rouge” nesse rostinho. Está branca como um fantasma.

     — Não tenho nenhum, — disse ela com voz sumida.

     — Não tem nenhum? Santo Deus! — explodiu ele, e caiu novamente em silêncio.

     Mas quando ela já estava vestida, ele se aproximou e, com olhar crítico, examinou-a vagarosamente dos pés à cabeça; ao contemplar a figurinha delicada, o franzido carrancudo da testa se suavisou e as feições tomaram aquela expressão de proprietário admirado, expressão que se lhe refletia nos olhos embaciados. Com a rápida mudança de gênio que o caracterizava, ele tomou-a nos braços com súbita paixão.

     — Com os diabos, Marny, por que me faz perder sempre a calma? — disse com petulância. — Dê-me um beijo e não seja doidinha outra vez.

     Cheia de aversão, mas sem poder resistir àquela força, contrafeita, levantou o rosto para ele. Não satisfeito, ele riu com desdém e raiva.

     — E chama a isto de beijo? Céus! Ainda tem muito que aprender, — disse mofando; e apertou a boca uma vez mais contra aqueles lábios trementes. Depois deixou-a,

pavoneando-se com o sentimento de sua magnanimidade e apressando-se com pesadas invectivas que acreditava serem jocosas, para tomarem a carruagem que os esperava. Para acalmar o mau humor, fumou em silêncio durante o pequeno percurso.

     Aconchegada na vasta vitória, Marny recostou-se e descançou a cabeça dolorida contra as almofadas, com os olhos fixos em frente, mas sem ver coisa alguma.

     Durante os cinco anos que constituíam para ela um martírio mental e físico, sofrera muito nas mãos do marido. Nas raivas furiosas a que ele se entregava sempre, muitas vezes a magoara cruelmente, mas até aquela noite nunca ousara bater-lhe. Mas não era sobre a brutalidade do marido que a esposa de Geradine pensava agora, ao rodar célere da carruagem na estrada deserta. Seu espírito preocupava-se inteiramente com um só pensamento. Ann! Como lhe diria o que sucedera? Como anunciar à velhinha o fato de que o seu serviço de uma vida inteira seria tão abruptamente terminado, tão estupidamente recompensado? E para onde iria ela, o que faria? Enfrentar o mundo novamente aos setenta anos! As mãos de Marny se retorceram em súbita angústia. Poderia ela ajudá-la, caso lhe fosse possível e houvesse necessidade? Ela própria não tinha consigo nem um vintém. O Castelo Fergus tinha passado para as mãos de Geradine e ela dependia agora dele até para a pequena esmola que jogava aos miseráveis árabes que lhe rodeavam a carruagem, quando saia. Depois dessa noite, como poderia fazer ao marido novo apelo? E ainda assim por amor de Ann, ela sabia que teria de fazer de qualquer modo esse apelo, e arriscar não só uma recusa certa, como incorrer na ira conseqüente que seguramente daí resultaria para si mesma. Por que era tão covarde, por que pensava somente na sua infelicidade, nos seus sofrimentos, quando se tratava de Ann e só de Ann?

     A voz impaciente do marido despertou-a, avisando que a carruagem tinha parado. Nessa noite, a noite anual de gala, o palácio do Governador estava cheio a mais não poder, cena de vivida animação, magnífica de brilho oriental, resplendente de cores e reboante numa confusão de vozes que riam e tagarelavam em diferentes línguas. Os espaçosos salões, flamejantes de luz e decorados com enorme profusão de flores, estavam atulhados de gente, um matizado ajuntamento de quase todas as raças e credos, movendo-se numa corrente nervosa e sinuosa ao som de uma estonteante banda militar.

     Os pomposos costumes dos sheiks do deserto, os albornozes escarlates dos caids de rosto grave, os uniformes berrantes e pitorescos dos spahis e zuavos davam à brilhante assembléia distinção tal que chegava a eclipsar mesmo os radiantes matizes das maravilhosas “toilettes” das senhoras francesas e inglesas.

     Deslumbrada pelas luzes e ensurdecida pela algazarra, Marny sentia-se como se houvesse entrado de repente num pandemônio, e pelo menos uma vez alegrou-se com a proximidade do marido, cuja figura jactanciosa era uma espécie de barreira eficiente contra a pressão que os rodeava, ao se dirigirem para o estrado onde o Governador, acalorado e cansado com tantos cumprimentos e apertos de mão, mas radiante de felicidade e hospitalidade, conversava num grupo de altos oficiais e cônsules europeus. A seu lado, o General Sanois, mostrando não estar satisfeito com a festa, entretinha-se muito interessado numa conversação com um alto caid de aparência venerável. Alguns sheiks do Sul longínquo se agrupavam ao pé do estrado, lançando olhares contemplativos em volta, com calma e despreocupação, mas atentos ao menor detalhe ou circunstâncias que ocorressem na festa.

     Olhares curiosos e línguas ansiosas discutiam o aparecimento tardio do casal, que atravessou vagarosamente toda a extensão da sala, e o Governador, cujos olhos pestanejantes percorriam constantemente a multidão à procura de convidados, muito escrupuloso em matéria de etiqueta, saltou do estrado e adiantou-se para cumprimentá-los, com a deferência devida à categoria de Lord Geradine e à beleza da esposa. Mas, ao responder à galante e feliz saudação de boas vindas, a voz de Marny vacilou e a face pálida ruborizou-se de uma onda rósea, porque bem perto, no meio do grupo de homens do deserto junto do estrado, viu Carew vestido como eles, de trajes nativos com diferença do manto azul que trazia. E Geradine, cujo francês era tão precário como o inglês do Governador, conquanto respondendo atrapalhado aos cumprimentos do anfitrião, tinha também reparado naquele indivíduo alto, vestido à árabe e esperava ansiosamente pelo ensejo de cortar de uma vez uma conversação que sobremaneira o entediava.

     — Que me enforquem, se não é meu companheiro da tempestade de areia! — exclamou, partindo em direção a Carew que, não querendo chamar mais atenção do que já

chamara, adiantou-se com relutância e submeteu-se a um

tumultuoso acolhimento.

     Com um sorriso amarelo, Geradine volveu outra vez ao Governador atônito.

     — Parece um tipo decente, — disse com condescendência. — Tirou-me de um poço sem fundo no deserto há cerca

de uma ou duas semanas. Quer fazer-me o obséquio de

o apresentar à minha esposa? Ela se interessa muito pelos filhos da terra. E, Marny, — ajuntou virando-se para a esposa, porque o seu próprio interesse já estava evaporando, — você que fala melhor do que eu essa algaravia, diga alguma coisa decente àquele camarada. Somente, pelo amor de Deus, lembre-se de que ele é maometano, e não se meta a perguntar pela esposa e pela família. E quando se cansar dele, Sua Excelência aqui presente achará outros companheiros e pares para o caso de você querer dançar. Vou tomar um aperitivo. — E, com um gesto descuidado, voltou-se nos calcanhares, à procura do mais próximo “buffet”.

     Essa incivilidade desgraciosa não era pior do que as muitas que Marny já fora obrigada a aturar, mas, nessa noite, a rusticidade de maneiras do marido era mais do que podia suportar. Seu engano com relação a Carew, embora lastimável, era perfeitamente natural, mas o modo como se dirigiu ao Governador, tão cortês e delicado de maneiras, era imperdoável. Ruborizada de vergonha e confusa, não conseguia encontrar de imediato palavras que puzessem fim ao silêncio embaraçoso que se seguiu. Mas o Governador, cujo espírito de bom-humor tolerante era evidentemente maior que seus melindres, enfrentou nobremente a dificuldade e soube tirar partido da situação em que se encontrava.

     — Minha senhora, — gaguejou ele, com os lábios um tanto contrafeitos, — tenho a honra de lhe apresentar o senhor Carew, um compatriota seu. — E retirou-se, para gozar sozinho o prazer de um contratempo que achara mais divertido. Carew, inimigo acérrimo das mulheres, era justamente apresentado à mulher mais bela de Argel. “Bon Dieu! Quelle comédie”! Para Marny, porém, aquilo não era nenhuma comédia. Desesperada, sem saber o que dissesse, ainda estonteada de dor, tentou em vão recobrar a calma, dominar-se, a fim de poder formular uma desculpa conveniente, que encobrisse de certo modo o desatino do marido, amenisar o ressentimento que, ela sabia com certeza, o homem que lhe era apresentado deveria experimentar, por ser forçado em público a uma ação totalmente contrária a seus princípios conhecidos em toda parte. Censurá-la-ia por ter sido ela a causa, embora inconscientemente, de sua presente situação? Deixá-la-ia também sozinha naquela sala atulhada, como ponto de referência de todos os olhares?

     Deixaria que ela se dirigisse sozinha para o grupo de viúvas e solteironas inglesas, com quem mantinha vagas relações? Muito sensível e inatamente altiva, sentia-se estremecer só ao pensar nisso. Os rápidos momentos que se passaram desde a saída apressada do Governador lhe pareceram horas intermináveis. Zangada consigo mesma pelo embaraço, já se resolvera a dar uma explicação para o caso, quando os melodiosos compassos de uma valsa, elevando-se sobre o zunzum das palestras, produziu uma afluência de pares e, na relativa tranqüilidade e silêncio que se seguiram, ouviu a voz profunda e suave que se lhe tinha tornado tão querida, falando-lhe baixo e com a hesitação que já notara anteriormente.

     — A senhora está muito abatida, Lady Geradine. Quer que a leve para fora desta Babel?

     E, antes de ter noção do que estava fazendo, Marny, atravessava ao lado dele toda a extensão da espaçosa sala do baile, habilmente guiada por entre os pares que já enchiam literalmente todo o salão. Uma ou duas vezes Carew se deteve, correspondendo ao cumprimento de um oficial ou de um grupo de árabes, interrupções apenas notadas por ela, e chegaram por fim ao vestíbulo, agora completamente abandonado. Atravessando-o, conduziu-a por um corredor que dava para um pequenino jardim de inverno, com cadeiras baixas e tufos de plantas tropicais. Naquela ocasião, o lugar estava deserto. Quieto e apenas iluminado por uma fraca luz, pareceu a Marny um éden de refúgio, em comparação com a claridade e bulha dos salões de baile. Com verdadeira sensação de alívio, ela o seguiu até um canto coberto de trepadeiras no jardim de inverno, e deixou-se cair em um banco, descalçando as luvas e fechando os olhos lânguidamente. Volvendo o olhar para ela, Carew notou que aquele rosto estava convulso num espasmo de dor.

     Carew ainda se achava encolerizado pelo incidente de minutos antes, ainda sob a impressão do intenso ódio que se apoderara dele, ainda mais agravado pela maneira descortês de Geradine e seus modos inferiores, ódio que parecia esta noite ter chegado ao cúmulo. Havia pouco no salão, se dominara a custo. Mas alguma coisa o contivera, sim, alguma coisa ainda mais forte do que o desejo de evitar uma colisão que poderia ter acabado em escândalo, algo que se levantara dentro dele à vista daquele rosto de moça tão convulsivamente abatido. E ao fitá-la agora com o sobrecenho carregado, imaginava e revolvia os pensamentos sobre o impulso que sentira em protegê-la, ainda tentando em vão compreender o motivo que o levara a trazê-la para ali. O que o movia? Seria raiva, prazer ou simplesmente piedade, ao fitar de novo aquela figurinha inclinada em sua frente? Uma expressão singular lhe anuviou os olhos sombrios. Parecia uma criança; que rosto cansado e pálido!

     — A senhora devia estar em casa e na cama, — disse quase rudemente. — Posso trazer-lhe alguma coisa para se refrescar, champanha, ou uma chícara de café?

     Marny teve um sobressalto, lançando olhares espantados em torno de si.

     — Não, muito obrigada, não é nada. Apenas uma leve dor de cabeça, — tartamudeou. — Não posso compreender o que sinto esta noite, — ajuntou com um sorriso trêmulo — não sou dada a dores de cabeça. Sou até muito forte.

     Mas, ao proferir essa gabolice, a voz tremia e foi obrigada a desviar o olhar, torcendo e retorcendo as luvas entre as mãos nervosas. Carew via bem que ela estava lutando para mostrar-se calma, mas não fez esforços para apressar as explicações que sabia estarem a ponto de lhe serem dadas; e esperou, sempre de pé, que ela começasse de novo a falar. Finalmente, ela voltou-se, evitando fitá-lo de frente, fingindo que examinava os detalhes das suas vestimentas árabes.

     — Sir Gervásio, desculpe... aquela indiscrição sem modos... — disse a meia voz. Então seus olhos se encontraram e as palavras lhe vieram repentinamente em uma torrente incontida, quase sufocante. — Mas o senhor esteve com ele no deserto naquela noite e deixou-o na suposição de que era um árabe. Naturalmente, ele não sabia que o senhor era inglês, que tinha compreendido tudo...

     — Então a senhora pensa que me incomodo que me tomem por árabe? — interrompeu ele, apertando a pesada manta e sentando-se ao lado dela. — Foi engano perfeitamente natural e, se nem vale um momento de consideração, muito menos um par de luvas, — ajuntou, sorrindo. E, se aproximando dela, tirou-lhe as luvas gentilmente das mãos trêmulas. Sua voz era, naquele momento, extremamente suave, mas se revestia de tal intonação que tornava impossível outra qualquer desculpa. Marny suspirou e ficou em silêncio.

     Durante certo tempo observou Carew, que alizava as pregas das luvas amarrotadas e admirava-se da inesperada aparição.

     — Pensei que o senhor não estivesse aqui hoje, — disse, por fim. — Não gosta muito, não? — ajuntou, indicando vagamente o salão de baile.

     — Nem um pouco, — retorquiu ele prontamente, voltando-se para fitá-la e aconchegando-se melhor no canto do sofá. — Mas faço questão de vir especialmente a Argel. Tenho, assim, ocasião de me encontrar com velhos amigos.

     — Amigos do deserto?

     Ele concordou, com um gesto de cabeça.

     — É por isso, então, que usa vestimentas árabes?

     — Em parte — e deu de ombros. — Porque eles dificilmente me reconheceriam se estivesse vestido à européia. Mas, principalmente, porque são as que prefiro.

     — Do mesmo modo que também fala árabe ou francês,

de preferência ao inglês? — arriscou ela.

       — Como sabe?

       Marny corou sob o olhar do interlocutor e desviou o rosto, esboçando um sorriso.

     — Quando o senhor conversa, pára algumas vezes, como se estivesse procurando as palavras, — disse, hesitando, — e, contudo, no outro dia, na floresta de Bouzaréa, falou francês a metade do tempo.

     — Tenho falado o inglês muito pouco durante doze anos, — comentou ele de modo breve. Depois, como se tentasse disfarçar a pequena informação que deixara escapar, aduziu: — agora não há mais razão para restringir as suas excursões a cavalo, Lady Geradine. As florestas estão sossegadas e seguras.

     Ela voltou-se para ele subitamente.

     — O que quer dizer? — inquiriu, ofegante.

     Ao ouvir a história simples e rápida do fim de Abdul el Dhib, o rubor que lhe invadira pouco a pouco as faces desapareceu como por encanto, deixando-a descorada e de lábios frios. Tremia, quando terminou, e suas mãos se abriam e fechavam sobre o colo.

     — E foi por minha causa! por causa do que fêz por mim aquela noite! — prorrompeu apaixonadamente. — Oh! nunca pensei, nunca poderia pensar no risco que o senhor estava correndo. E o senhor o conhecia! Era a ele que se referia quando me avisou que não andasse sozinha a cavalo. Era ele que o senhor pensava que vinha naquela manhã na floresta, quando Tanner trouxe os cavalos... e naquela mesma noite... oh! se ele o matasse, teria sido por “minha” culpa! E eu... eu...

     Conteve-se de chôfre, horrorizada pelo som da própria voz, ante a confissão que quase lhe escapara do coração. Uma onda escaldante lhe inflamou as faces. Envergonhada, relanceou apressadamente, velando os olhos com os cílios espessos e escuros que se abaixaram escondendo as suas pupilas, mas não com tanta rapidez que impedisse Carew de lhes tomar a expressão, expressão que encachoeirou tempestuosamente o sangue nas veias dele, fazendo-lhe saltar o coração. Por um momento, ficou atônito, atarantado pela compreensão inesperada, ao passo que as mãos, que seguravam os joelhos, os apertaram com mais força, até que as juntas lhe ficassem brancas através da pele tostada pelo sol. Depois, com tremendo esforço, conseguiu dominar-se.

     — A culpa não foi de ninguém, senão minha, penso eu, — disse, com indiferença forçada. — Conhecia o homem com quem lidava. Tenho bons amigos em Argel, que me fizeram muitos avisos e, justamente porque não lhes dei importância, o que aconteceu foi apenas devido à minha falta de cuidado.

     — Não é razão para diminuir a minha dívida de gratidão — disse ela com voz sufocada.

     No entanto, o tom em que ele lhe falava e a maneira imperturbável bem depressa lhes restauravam o domínio sobre si. Indiferente como parecia, teria notado a causa de sua agitação? Talvez o que parecia a ela tão chocante, houvesse escapado a ele. Talvez só houvesse visto em sua exclamação o sentimento natural de uma mulher ao saber que o homem que lhe tinha salvo a vida, arriscando a dele, passara por esse perigo tão grande! E a cortesia formalística das palavras seguintes lhe deu mais segurança disso.

     — Nunca houve dívida de gratidão alguma, — disse serenamente. Eu simplesmente fiz o que qualquer outro teria feito nas mesmas circunstâncias. E, abruptamente, mudou de conversa para as últimas corridas anuais que se tinham realizado em Biskra.

     Convencida de que ele não lhe adivinhara o segredo, o sentimento de reserva foi desaparecendo pouco a pouco, ficando-lhe apenas a alegria de se achar junto dele, de estar em sua companhia. Tiraria daí tudo o que pudesse, viveria apenas para aqueles momentos, para aquela transitória felicidade, e deixaria para o futuro a desgraça e a solidão que agora seria muito mais dura de sofrer do que fora antes. Bastava-lhe ele estar ali, amá-lo, amá-lo tanto como nunca pensara, com amor que lhe desse em segredo toda força para viver os amargos anos que ainda lhe restavam de vida.

     Estabeleceu-se novo silêncio entre eles. E, contente por esperar que ele se dignasse falar de novo, deixou-se ficar ali a seu lado, muito tranqüila, observando-o sorrateiramente, vendo-o recostado com as mãos atrás da cabeça, olhando em frente corno se visse mais alguma coisa além dos arbustos e luzes que tremeluziam entre a folhagem. Nessa noite seu rosto lhe parecia mais grave, mais austero do que lhe notara antes. Parecia-lhe uma face trágica, um rosto que trazia traços indeléveis de tristeza e desapontamento profundos. E ela imaginou, com dor surda a lhe sangrar o coração, qual poderia ter sido a tragédia que o tinha levado a se exilar nas vastidões sem fim do deserto. Nada sabia de sua história, de seu nome, e o trabalho que exercia entre os árabes era tudo o que a senhora Chalmers lhe tinha confiado; nem via meio de saber mais algum dia. Um ser completamente à parte, um tipo que fora uma revelação, desapareceria de sua vida tão bruscamente como viera, para esquecê-la, ofuscado pelos interesses mais nobres da profissão que escolhera. Era estranho pensar que ele era doutor, médico, levando vida de estrênuas lutas e terríveis riscos. A que selvagens e solitários lugares ele iria sempre, para combater a dor e o sofrimento que procurava aliviar? “El-Hakim”, o médico, “o curandeiro do deserto”! E ela, ela que o amava, não tinha nenhum meio de saber de seus feitos, nunca saberia do acontecimento final que terminasse aquela vida de nobre e voluntário sacrifício pelo bem alheio. Durante os anos impiedosos que se estendiam infecundos diante dela, apenas teria uma lembrança a se apegar, lembrança que seria ao mesmo tempo consolação e causa de dor.

     Naqueles olhos ternos e contemplativos que se fixavam nele, havia uma expressão de altivez e angústia. Ele nunca saberia, graças a Deus! Nunca o saberia! Mas se

ele se afligira, se ela lhe causara tristeza... então... e ela espantou-se ao ver que mordia o lábio trêmulo e começou a procurar desajeitadamente as luvas que ele colocara no

sofá, no meio de ambos.

     — Não acha que deveríamos voltar para o outro salão?

     Carew voltou lentamente a cabeça.

     — Temos muito tempo, ainda estão dançando.

     — Mas seus amigos do deserto...

     — Poderão esperar, — disse de modo decidido.

     Detestando o salão barulhento, cansadíssima e pouco disposta naquele momento para cuidar se estava ultrapassando as regras de civilidade, Marny não insistiu.

     O tranqüilo caramanchão, o sossego e a coragem que parecia haurir da simples presença daquele homem a seu lado lhe davam forças para suportar a prova que se lhe apresentava em perspectiva, a horrorosa cena que invariavelmente terminava as noites chamadas de divertimento por Geradine. Hoje teria de acontecer o que acontecia todas as vezes, e ao que ela estava condenada a aturar sempre e sempre. Por quantos anos ainda? Procurou afastar esse pensamento e voltou-se, de novo, para Carew. Mas antes que pudesse falar, o pequeno jardim de inverno foi invadido, não por um par dançante que procurasse um ponto solitário para continuar algum namoro começado no salão, mas por dois homens que, supondo o lugar abandonado, não se incomodaram por baixar as vozes, ao tomarem lugar em cadeiras de vime a poucos pés do sofá do caramanchão.

     — E essa “soi-disant” condessa... essa deusa de cabelos acobreados pela qual você está encantado?... — As palavras eram pronunciadas em francês corrente, mas com leve sotaque eslavo.

     — “Soi-disant”! — Ouvi dos próprios lábios dela, interrompeu uma voz que Carew reconheceu pertencer a Patrice Lemaire.

     — É possível, — foi a cáustica resposta, — mas isso não quer dizer que sua informação seja verdadeira.. Uma austríaca, diz você, e de Viena? A esposa de um tal Conde Sach, que exercia um lugar na corte, que abusou dela infinitamente, e agora... desde sua morte, uma senhora rica, independente, que viaja pela Europa a fim de esquecer um passado infeliz?

     — Isto é o que eu lhe disse. Você duvida?

     — De sua palavra, não. Mas da palavra da Condessa, sim.

     — Por que?

     — Você se esquece, meu amigo, de que eu também sou de Viena. Não tenho a menor lembrança de um Conde Sach, que tivesse algum lugar na corte. Nem da senhora que se diz chamar Condessa Sach. E ela é tanto austríaca como você, Lemaire. Pelo seu sotaque eu a julgaria antes inglesa.

     — Inglesa? Bah! Ela não fala patavina de inglês.

     — Pois olhe, estava falando e muito corretamente há cerca de meia hora com aquele “grand anglais” que está enchendo o pandulho de “grogs” e “cock-tails”.

     — Com Geradine... aquela besta! “Mon Dieu!” E ela que me disse que só a vista dele a enjoava!

     — Ela provavelmente achará o conteúdo de sua carteira menos revoltante, meu crédulo e jovem amigo, é o que ela é.

     E, ouvindo a gargalhada cínica que se seguiu, Marny pensou, amargamente, que maiores vergonhas e humilhações ainda lhe estariam reservadas no futuro. À primeira menção do nome do marido, tinha tido um sobressalto involuntário, mas um braço firme e forte a segurou, aquietando-a, e uns dedos frios se fecharam sobre as suas mãos geladas. Lutando contra o infortúnio, ela apenas teve vaga consciência dos protestos furiosos de Lemaire e da tempestuosa altercação que se seguia, de modo que quando, por fim, o som das vozes zangadas dos dois homens se extinguiu por terem levado a discussão para outro lugar, passou-se ainda algum tempo antes que ela pudesse notar que suas próprias mãos estavam firmemente apertadas pelas de Carew. Silenciosamente, desprendeu-as. Nada havia a dizer, nada que um dos dois pudesse comentar. Tinham ouvido o que não era para ouvirem. E as insinuações do austríaco pareciam muito verdadeiras sob todos os sentidos. Geradine já lhe falara mais de uma vez sobre a bela vienense, que recentemente aparecera em Argel, introduzindo-se na sociedade, sem nenhuma apresentação, mas com uma audácia que lhe tinha feito as vezes de outras credenciais. Que esse conhecimento houvesse degenerado em intimidades estreitas, não constituía nenhuma surpresa para a esposa, pois já se achava a par de constantes e flagrantes infidelidades. Era apenas mais um insulto somado às muitas indignidades que ele lhe atirava, mais uma humilhação a suportar... e... a ignorar.

     Mas se ela queria manter algum domínio sobre si, teria de acabar de vez com aquela camaradagem tão breve, e que lhe dera tanta felicidade. A proximidade de Carew, o sentimento de inconfessada simpatia, a consciência repentina que a invadiu de um apelo sensual em tudo o que a rodeava, a tênue claridade, o aroma langoroso das flores do jardim, enchiam-na de um grande temor de si mesma. Não ousava ficar mais tempo ali com ele, não tinha também ânimo de abandonar a emoção que, crescendo cada vez mais, lhe parecia tirar toda a força sobre si mesma. O sentimento exaltado que antes a fizera julgar que seria a única a sofrer, se transformava no desejo humano e natural de um amor que nunca seria seu. Ainda se ela pudesse confessar-lhe, se pudesse, ao menos, sentir o amplexo de seus braços em torno do corpo, o contacto de seus lábios?... Estremeceu... Em que estava pensando?... Em que coisa vergonhosa se havia transformado? E, tremendo como louca ante os próprios pensamentos, levantou-se de um salto, subitamente, com a face impassivelmente fria e a voz com indiferença disfarçada.

     — Já me acho bastante descansada, Sir Gervásio. Vamos voltar para o salão de baile?

     Afastou-se, ao pronunciar estas palavras, a fim de não lhe dar nenhuma oportunidade senão a de segui-la. A chegada de muitas pessoas pôs fim a qualquer conversação que não fosse estritamente trivial e sem importância.

     No salão central, tão cheio que era quase impossível atravessá-lo, um coronel de artilharia agarrou no braço de Carew, ao passar por ele.

     — Quando tiver tempo, “mon cher”, — disse apressadamente. — Sua Excelência o está procurando. Ele está no Salão Branco com Sanois e o chefe de Ben-Ezra.

     Constrangida, Marny relanceou o olhar para o seu companheiro. Quanto tempo se passara desde que tinham saido do salão, desde que a tinha tirado da confusão do baile? E quanto tempo lhe teria ela ocupado a atenção?

     — Temo havê-lo monopolisado egoisticamente por muito tempo, — murmurou com tristeza. — O senhor deve ter tantos amigos!

     Mas aquela voz, apenas ciciada em meio ao vozerio geral, pareceu-lhe não ser ouvida, porque ele não respondeu, preocupado em conduzi-la por entre a multidão que se lhes apertava em redor. Cinco minutos mais tarde ele a deixava em companhia da esposa do Cônsul inglês, e ia atender ao chamado que recebera para a conferência no Salão Branco.

     Não volveu mais aos salões, e o fim do sarau encontrou-o ainda sentado no gabinete particular do Governador, com Sanois e alguns dos chefes mais amigos da França. Ainda depois que os chefes se retiraram, continuou tagarelando com o General, protelando o mais que podia o momento em que deveria enfrentar sozinho a consciência do sentimento que lhe viera.

     O badalar de um relógio lembrou-lhe o tardio da hora; levantava-se com relutância para sair, quando Patrice Lemaire irrompeu pelo gabinete adentro. O rosto do rapaz, de costume tão sorridente, estava vermelho de raiva, e jogou-se numa cadeira com uma explosão de ira que não facilitava muito compreender as frases entrecortadas que pronunciava. Que alguém se fora embora cedo e lhe tinha faltado com danças prometidas; que alguém mais, cujo nome não pronunciava, era um vil caluniador; que houvera uma cena estúpida, que não desejava detalhar. E era tudo o que confessava naquele momento. Incapazes de lhe arrancarem informação mais definida, os mais velhos o deixaram só no aposento, desabafando queixas e tristezas.

     Ainda havia alguns hóspedes retardatários errando pelo salão de baile, esperando pelas carruagens que se demoravam, e um atarantado “attaché” pegou no braço de Carew para lhe pedir que desse condução a um velhote francês, que considerava com tristeza a perspectiva de uma estafante viagem a pé até Mustapha, onde ficava seu hotel.

     Somente depois que deixou à porta do hotel o companheiro, que era um tagarela de marca, Carew pôde entregar-se a seus pensamentos. Quando chegou à vila, passou pelo caminho atapetado tão absorto em suas divagações que não notou as réstias de luz que se filtravam pelas venezianas do salão da frente, que, embora sempre conservado na maior ordem e limpeza, nunca fora usado desde a morte de sua mãe.

     Entrou pelo vestíbulo mourisco, e dirigia-se vagarosamente ao aposento de domir, quando Hosein, emergindo de um canto sombrio, se postou em sua frente, interceptando-lhe os passos.

     — A “lalla”, — murmurou hesitante, levando as mãos à

testa em rápido “salaam”.

     Carew fitou-o surpreso.

     — “A lalla”?... — repetiu ele vivamente.

     O grande árabe acenou com a cabeça.

     — “A lalla”, que espera meu amo, — disse em voz baixa.

     Por um momento o coração de Carew pareceu tornar-se imóvel e, sob o profundo moreno, seu rosto tornou-se pavorosamente branco. “Ela” tinha vindo para ele... Deus dos céus! “Ela” tinha vindo para ele! A alta silhueta de Hosein balançava-se diante dele. Forçou uma pergunta, em voz que não reconheceu ser sua.

     — Onde?

     — No salão grande, meu amo, — replicou Hosein, deixando-o passar com outro profundo “salaam”. Já o roçagar de suas vestes árabes tinham morrido ao longe e Carew ainda não se movera.

     “No salão”. Estremeceu violentamente. Ela viera para ele... ele... E seu rosto tomou um aspecto rígido, ao dirigir-se para a porta pintada que cedeu à sua pressão facilmente e fechou-se sem ruído, sem o menor barulho, tão suavemente que não foi ouvida por ela que, no canto mais afastado do salão, estava de pé diante de um retrato cuja cortina afastara, a mesma cortina que o velava durante tantos anos. Trauteava baixinho uma cantiga indecente de “boulevard” com a cabeça de cabelos acobreados atirada para trás e as espáduas balanceando-se de tempos a tempos com um movimento de petulante impaciência.

     E atrás dela, encostado à maçaneta da porta, sobre a qual as suas mãos se contraiam, Carew permanecia de pé, como transformado em estátua de pedra, fitando... fitando... não aquela figurinha delicada de moça que esperava ver e que temia, no entanto, ver ali, mas a alta e sinuosamente graciosa silhueta da mulher que fora sua esposa. Sua esposa, aquela sem-vergonha, meio nua num vestido cuja audácia o revoltava! Doido, doido que fora em imaginar possível o seu doido desejo, ter pensado que “ela”... e afastou violentamente os pensamentos. E a outra? Por que não o tinha logo suposto? Por que nada percebera quando ouvira a conversa no jardim de inverno, quando escutara os raivosos protestos de Patrice Lemaire e os cáusticos comentários do austríaco que “também era de Viena”? Mas, como poderia ter ele pensado, como poderia ter imaginado que ela ainda ousasse intrometer-se na vida dele? E por que teria vindo? Para enganá-lo mais uma vez, para experimentar fazer dele novamente aquele idiota que a tinha amado com o ardor cego da primeira paixão? Aquele amor estava morto e bem morto pela sua própria duplicidade. Entre eles havia um abismo intransponível, e a memória de uma frágil criancinha abandonada com horrível indiferença. Uma onda de raiva fria o invadiu e, com os olhos faiscantes, atravessou o salão em direção a ela.

     Seus sapatos de sola macia não fizeram o mínimo ruído no grosso tapete, e, ainda inconsciente de sua presença, a mulher interrompeu o canto com um bocejo e uma chacota endereçada ao retrato. Ao voltar-se deu de cara com ele.

     Por um momento que lhes pareceu um século, fitaram-se, os olhos dela um pouco abaixo dos dele, depois, com singular suspiro que podia parecer soluço ou risada, ela se voltou novamente para o meio do salão.

     — Porque está aqui? — E essa voz profunda parecia dura como aço.

     Ela levantou a cabeça vagarosamente, com uma contemplação na qual se notavam, curiosamente misturados, admiração latente, espanto, e uma subentendida intenção de astúcia.

     — Eu o vi no baile. Disseram-me que ia voltar para o deserto. Eu... precisava vir. — gaguejou.

     — Por que? — E seu rosto parecia destituido de toda expressão, ao atirar-lhe aquela simples palavra.

     Com um movimento quase felino daquele gracioso corpo, indisfarçavelmente atraente, ela, flexível e meneando os quadris, chegou-se para perto dele, com um langoroso apelo nos olhos, as mãos estendidas.

     — Vim, porque não resisti mais tempo, porque não pude mais estar longe de você, — murmurou, dando à voz uma expressão de carícia suave. -... porque... oh!

Gervásio, não compreende? Eu... tinha de vir... por que... eu... o amo, porque sempre o amei, apesar do que fiz. Eu não sabia o que estava fazendo... não pensei, não imaginei, e tudo aquilo tirou-me a razão... arrebatou-me. E depois, quando já era muito tarde... quando era muito tarde... — e seus braços lhe rodearam o pescoço, seus membros palpitantes muito juntos aos dele. — Não pode imaginar o que sofri, não pode sequer fazer uma idéia do que foi minha vida! Gervásio, você me amou uma vez, por amor daquele amor, perdoe-me agora... perdoe-me...

     Durante toda aquela espantosa declaração, ele se conservara imóvel como uma rocha, com o rosto voltado. Mas quando a voz dela expirou num murmúrio trêmulo, ele voltou a cabeça subitamente, rapidamente mesmo demais para os interesses da mulher que se lhe agarrava com apaixonado fervor. Naqueles olhos que se abaixaram instintivamente sob o império dos seus, Carew não pôde distinguir o amor e a contrição que as palavras significavam, mas uma expressão de dura e ansiosa cupidez, a expressão do jogador que espera o resultado da última e desesperada parada. Não era desejo tardio de perdão, mas certamente outro motivo qualquer, que ele não compreendera no momento, o que a levara a procurar reconciliação com o homem que já lhe fora um dia um boneco nas mãos. Embora o coração dele estivesse completamente morto para ela, quase teve pena; quase acreditou nas suas palavras melodiosas. O soluçar da voz súplice e o abandono absoluto com que se lhe tinha entregado foram uma peça maravilhosa de teatro, uma cena estupenda.

     Representara o seu papel com habilidade e eloqüência tais que, se não fosse o último desvio fatal daquele olhar, o teria convencido. Mas foi ela mesma quem ficou convicta do que realmente era, uma consumada mestra de impostura, uma mentirosa em todo o sentido da palavra, mesmo nas menores afeições. Com quantos outros não teria jogado a mesma cartada e armado a mesma arapuca?

     A quantos outros não teria atirado como chamariz os encantos, agora tão pròdigamente exibidos? Esse pensamento odioso lhe salteou infrene o espírito ao fitá-la com uma espécie de horror, desdenhoso e cônscio dos seus desregramentos tão visíveis naquele momento. O rosto que lhe estava perto era formoso, ele o sentia, mas pareceu-lhe vê-la com outros olhos, ver a face de uma mulher que perdera qualquer sentimento moral. Em que abismos não teria ela caído durante todos esses anos, desde que o deixara? O que se teria tornado ela, que fora sua esposa e mãe de seu querido filhinho? “Une femme de moeurs legères”! A voz sarcástica do austríaco parecia ecoar-lhe odiosamente no salão silencioso e, com um rude estremecimento, desvencilhou-se de seus dedos, afastando-a.

     — Eu poderia ter-lhe perdoado... tudo, — disse, vagarosamente, menos a criança... — A voz falhou-lhe subitamente apesar do domínio sobre si; e o rosto assumiu um aspecto sombrio de amarga dor. — A criança que você deixou morrer sozinha! E você sabia que ela estava morrendo, que estava moribunda...

     — É mentira, — disse ela com voz aguda, — eu não sabia.

     Ele levantou a mão num gesto que a fez calar num momento.

     — É verdade, — retorquiu com severidade acusadora. - Pensa que não houve quem me contasse? O doutor, as amas, todos, menos você, que era sua mãe, sabiam que ele não poderia viver! E você o abandonou! Meu Deus! Abandonou-o!

     Ela atirou-lhe um olhar de raiva furiosa.

     Sentindo-se sufocado, ele nem tentou refutar o que ela própria sabia ser mentira. O salão, que se achava impregnado de lembranças da nobre senhora que ali vivera, lhe parecera repentinamente conspurcado e contaminado. De coração sangrando e emocionado pela cena que fora obrigado a presenciar e ser ator ao mesmo tempo, dirigiu-se a uma janela e, abrindo as persianas de par em par, debruçou-se no caixilho, olhando sem ver a escuridão da noite, lutando consigo mesmo para se dominar e reconquistar o domínio de si mesmo, que estivera a ponto de perder. Sentia-se como em pleno oceano, tentando por todos os meios resolver o problema da mulher que se encontrava soluçando no sofá atrás dele. Que a vida que ela escolhera tinha terminado num desastre, era fora de dúvida. O que ela se tornara era evidente, para se enganar. Estava escrito sobre sua face para que todos pudessem ver. Mas o que a tinha levado a dar tal passo, o que a induzira à queda moral tão aparente? Que ventos a tinham conduzido para o rumo que tomara essa noite? Não era, certamente, por amor dele que ela tomara tal providência, ném muito menos pelo desejo de conquistá-lo novamente. Que lhe quereria ela, que viera como qualquer cortezã comum, procurando atrai-lo pelos seus encantos físicos, a fim de reconquistar a antiga ascendência sobre êle? Parecia-lhe haver somente uma resposta plausível. E, no entanto, lembrando-se da concessão liberal que lhe fizera, pensou como mesmo isso seria possível. Com um profundo suspiro, recolheu-se e voltou-se vagarosamente para ela.

     — Por que veio ver-me esta noite, Olivia?

     Ela ainda jazia curvada sobre as almofadas de seda, mas, ao som daquela voz, ergueu-se tremendo, como se o salão se tivesse tornado repentinamente gelado; e amarfanhava com as mãos as macias almofadas do sofá.

     — Já lhe disse, — respondeu teimosamente.

     — Oh! pelo amor de Deus, deixe-se dessas mentiras, — disse aborrecido. — Você nunca se importou comigo, e muito menos agora. Diga-me a verdade. Porque somente a verdade nos ajudará a chegarmos a um resultado hoje. Por que veio aqui?

     Por um segundo seus olhos se encontraram com os dele, depois olhou para o lado; e uma onda quente e colorida lhe invadiu o suave carmim e branco de suas faces pintadas.

     — Porque estou no fim de meus recursos, porque... estou arruinada, — disse ela, com uma gargalhada resoluta que o fez pestanejar.

     — E o dinheiro que lhe dei? — perguntou ele vagarosamente, contra a vontade, pela necessidade que o forçava a tocar no assunto.

     — Foi-se... há muito. Pensou que eu poderia viver com aquilo? — inquiriu ela desdenhosamente.

     Com esforço ele se conteve. Que adiantava mostrar-lhe que aquilo que ela tomava como ninharia daria para sustentar uma família inteira com luxo?

     — Assim, o que você quer é dinheiro, e... simplesmente dinheiro? — disse ele, com voz tão desdenhosa quanto a dela.

     — Preciso viver, — retorquiu ela.

     — E como tem vivido até agora? — perguntou ele, asperamente.

     A cor subiu-lhe às faces novamente.

     — Que lhe interessa saber? — murmurou ela.

     — Nada, até certo ponto. E tudo... se eu fôr de novo sustentá-la, — disse incisivamente. — Mas preciso de pormenores. Sem eles nada farei. Parou, por um minuto, aborrecido dessa situação. — Você está dando o nome de Condessa Sach. Não é o nome do homem pelo qual me deixou. Já morreu?

     — Não sei. Abandonei-o, — respondeu ela muito baixinho.

     — Por que?

     — Brigamos. Abandonei-o, — repetiu teimosamente.

     — Ele se casou com você?

     — Não. Já lhe disse... Brigamos. — E havia um tom de dureza na sua voz impertinente.

     — E ele queria casar com você? A rutura foi por culpa sua ou dele?

     Durante longo tempo não se ouviu resposta; depois:

     — Minha, — disse num murmúrio quase inaudível.

     — E o Conde Sach?

     — Não existe nenhum Conde Sach.

     Ele se voltou com um encolher de ombros de perplexidade. Querer arrancar-lhe a história daqueles sórdidos anos era tarefa que o desagradaria imensamente. Nada adiantaria a ambos. Ela desejara por vontade própria seguir a estrada da vida que leva à destruição, e tinha-lhe provado novamente nessa noite sua completa desvalia. Sem coração nem pudor, nada queria dele senão meios para continuar aquela vida que deliberadamente escolhera. Já uma vez ele a tinha provido de recursos, embora não houvesse nenhuma consideração ou raciocínio que o levasse a proceder assim. De nenhum modo era ele responsável por ela. Em nenhum sentido? Com as sobrancelhas cerradas e num gesto carrancudo, que lhe era tão característico, pôs-se a andar na sala, de um lado para outro, lutando consigo mesmo. E no sofá, onde se achava imóvel, a mulher espiava o passar e o repassar daquela alta figura, com os olhos lampejantes de dúvida e medo. Que faria ele? E, gradualmente, veio-lhe ao pensamento que, se algum dia ela pudesse ter amado alguém, seria aquele homem o escolhido. Não como ele fora em outros tempos, em Royal Carew, mas como era agora. Como havia mudado! E ao fitar aquela face austera, tão diferente da de que se lembrava, um súbito sentimento de medo a invadiu. Ainda se ele falasse, ainda se parasse aquele monótono passear pelo salão, ainda se ele fizesse qualquer coisa para terminar essa horrível espera!

     Por fim, ele se dirigiu para ela, que se levantou como pôde para enfrentá-lo.

     Carew falou-lhe rapidamente, com voz que soava asperamente. Nada lhe daria diretamente. Mas como havia sido sua esposa, a mãe de seu filho, far-lhe-ia uma mesada que lhe seria paga trimestralmente pelos seus procuradores. Não exigia condições, mas avisava-a de que, de modo nenhum, a mesada seria aumentada, de um vintém que fosse.

Com a cabeça pendida ao peito e os lábios contraídos, ela o ouviu em silêncio, e quando ele acabou de falar, não fez nenhum comentário, nem lhe exprimiu o menor agradecimento. E nenhuma outra palavra foi proferida entre eles, até que ela deixou a vila em sua carruagem, conduzida por Hosein, em cuja discrição podia confiar plenamente. Quando morreu o último som das rodas que se afastavam, Carew voltou para dentro de casa. Sua face estava fechada e pálida e o passo, usualmente elástico, arrastava-o vagarosamente através das salas vazias e o pátio interior, até que chegou ao aposento de dormir, na parte traseira da casa. Entrou e passou para a varanda. Por um instante, deixou-se ficar imóvel ali, com os olhos levantados para o céu recamado de estrelas, que faiscavam como pequenas lâmpadas a se extinguirem. Depois, com um gemido que lhe estalava o coração, caiu numa cadeira e escondeu o rosto nas mãos.

 

     Os primeiros albores da madrugada já empalideciam o firmamento, quando Carew estremeceu despertando na cadeira em que se deixara cair duas horas antes, para meditar sobre a idéia que o assaltara no jardim de inverno do Governador, em companhia de Marny. Tão aturdido pela compreensão súbita daquele novo sentimento como abatido pela dolorosa cena que ocorrera no regresso à vila, a princípio lhe foi totalmente impossível coligir as idéias. Toda a capacidade de querer e poder, todo o seu ser físico e moral pareciam esmagados sob o peso de uma tristeza infinita que, no momento, lhe obscurecia a razão. Sentia-se entorpecido, apenas consciente do sofrimento que, desordenando seu cérebro, reagia sobre o resto do corpo, tornando-o inerte e inanimado.

     Mas pouco a pouco, as idéias foram-se esclarecendo e conseguiu pensar mais calmamente. Amava-a! Pela segunda vez na vida, amava! E no entanto parecia-lhe que só agora conhecia o âmago de seu coração, somente agora compreendia o que significava a verdadeira devoção do amor. O amor da juventude, o amor que, em tempos, consagrara à mulher que fora sua esposa, não se comparava com este que sentia no momento, paixão dominadora que o assaltara na idade viril. Se houvesse amado outrora como amava agora, nem mesmo a tragédia de sua vida durante os doze anos passados teria podido exterminar aquele fogo sagrado. E a maior, a mais profunda, a mais maravilhosa emoção que só agora experimentava, sabia-lhe amarga como fel. Nenhuma alegria, nenhuma esperança nesse novo amor. Cinicamente lhe tocaria a dor da renúncia e a amarga convicção de que ocasionara tristeza àquela por quem daria a vida, para a mulher por quem morreria com o sorriso nos lábios, somente para não vê-la sofrer. Que ela também o amava, era para ele questão fora de dúvida. Tinha-o lido em seus olhos, ouvira-o no tom angustioso daquela voz, quando a sensação do perigo, que ele correra por ela, a levara a se trair, ao ouvir a história da morte de Abdul el Dhib. A dor que sentia, ela também devia experimentar. Esse pensamento lhe era um tormento. Já não bastava aturar o marido, ela devia sofrer ainda a aflição de um amor que nunca poderia ser satisfeito, que lhe traria somente dores e a lembrança torturante do que poderia ter sido? Que importância tinha seu sofrimento anterior comparado com o que, por causa dele, ainda teria de experimentar? Teria sido melhor, muito melhor, que ele jamais houvesse voltado da última expedição, que terminara com aquele encontro perto de Blidah. Ainda assim, em sua crença fatalista, aquele encontro lhe parecia predestinado. Se não chegasse a tempo, ela teria sofrido um destino que lhe parecia mais terrível. Era como se tivesse sido guiado na escolha do caminho que tomara para junto dela por algum desígnio impenetrável da Providência. E embora naquele momento houvesse odiado a obrigação de socorrê-la, e sua alma se revoltasse ante a ação que cometera, voluntariamente e forçado pelas circunstâncias, agora sabia que era o amor que lhe assaltara o coração quando a carregava a cavalo para o acampamento, que era o amor que aflorava à sua consciência, que lhe causara a desgraça e o naufrágio moral das últimas semanas. Mas só agora tinha noção clara da realidade, somente agora compreendia completamente a maior mudança que jamais se operara em seu ser. Como e quando, no decorrer de seus fugazes encontros, ela começou a lhe querer não o sabia, e talvez jamais o soubesse. Sabia apenas que, por uma inexplicável razão, ela lhe consagrara também seu amor, e que, ainda que nunca pudesse ser sua, ele passaria toda a vida com a sua lembrança. E esta convicção humilhou-o. Por que teria ela gostado dele? Que teria visto nele, homem com quase o dobro de sua idade, que até aquela noite a tratava apenas com a necessária cortesia, para lhe consagrar o precioso tesouro de seu amor? Mas que importava isso? Era-lhe bastante que ela o amasse e teria de se contentar com esse simples fato. Contente! Bom Deus! Seria contentamento a dor intolerável que o invadia, o desejo louco que o assaltava? Nunca mais estaria contente na vida. A simples certeza do amor de ambos não era bastante. Ele a queria, a desejava, acima de tudo, acima do reino dos céus a desejava ardentemente. As barreiras que levantara em torno de sua vida haviam, por fim, derruído. Aquele coração que pulsara frio e inanimado por tantos anos, estava agora mais uma vez ardendo, palpitando de vida intensa. Arrebatado pela paixão e fremente de ciúme, não fez o menor esforço para represar a onda que parecia ter-se desencadeado, ululando dentro de si. Durante certo tempo, somente o homem primitivo viveu nele, acendendo seu desejo; e até mesmo a idéia de matar lhe pareceu justificável, contanto que a obtivesse para ele só, o assassínio do homem que se interpunha entre ele e o objeto de seu amor. Geradine! Seus dedos se dobravam e apertaram como se estivessem apertando a garganta do homem que odiava com toda a força de suas entranhas, e agora mais do que nunca. Aquele ódio estranho que sentira à primeira vista, não era agora tão incompreensível, e o pensamento que tanto o tinha espantado naquela noite da Ópera se tornava claro, nesse momento, e podia ser examinado fria e imparcialmente. Que valia a vida de um bruto como aquele, comparada com a felicidade e o bem-estar dela? Seria assassínio livrar a terra de um rebotalho, livrar sua bem amada da tirania que lhe exterminava lentamente alma e corpo? Assassínio! Um ricto terrível se lhe desenhou nos lábios. Por amor dela até isso cometeria. Nada lhe importava senão o sossego do ente adorado. Além disso, a justiça, a honra, as leis humanas da sociedade, pareciam desvanecer-se numa insignificância total. E as leis de Deus!? Deveria tripudiar sobre elas da mesma maneira? Se fosse preciso arriscaria até a alma, para livrar de maiores sofrimentos aquela mulher.

     Mas haveria mesmo necessidade de medida tão radical? Não haveria outra saída? Não restaria ainda o caminho que os outros tinham tomado, o caminho que a libertasse de uma vida de escravidão, que lhe satisfizesse inteiramente o desejo do coração? Que escrúpulo se interpunha entre eles? Tinham uma só vida para viver, e ela o amava. Ela viria para ele, “se” ele lhe pedisse. E, por amor dela, em seu benefício, ele lhe pediria, obrigá-la-ia. Por ela... ou pelo desejo em que ardia?

     “Mas em verdade vos digo que aquele que olha para mulher de outrem com concupiscência, já cometeu adultério no coração.”

     Levantou-se de um salto com um gemido surdo.

     Era como se tivesse visto em letras de fogo, escritas em sua frente, uma candente acusação diante dos olhos cansados. Um calafrio percorreu-lhe a medula, como se alguma coisa se despedaçasse dentro de si, afastando-lhe a loucura dos últimos minutos, para deixá-lo espantado ante o horror de seus pensamentos. Ela não deveria ser objeto de desejos vis. Não tinha o direito de amá-la, nenhum direito de pensar nela como pensara agora, de afligir-se por ela, de desejá-la com a força da sua animalidade. Força! Mas que forças lhe restavam a ele que se tinha degradado voluntariamente, a ele que se desgarrara dos sublimes ideais a que se entregara, que se deixara arrastar por uma paixão ignóbil? Com a tempestade na alma, viu-se como era na realidade, despido da forma humana, e precipitado do pináculo de sua sublime exaltação. Era a repetição da história cujos papéis estavam invertidos. Não era melhor que o homem que acusara havia doze anos passados. O pecado de que então o acusara era agora seu pecado. Desejava a esposa de outro homem, e com desejo tão intenso, que quase obliterava o sentido do bem e do mal. E ela? Um rubor triste lhe percorreu a face tostada de sol. No íntimo ele a degradara, vilipendiara, e a arrastara para o lodaçal de seus desejos carnais. Seria seu amor tão vil que só a desejasse para isso? Seria a posse física o fator dominante deste amor? Os anos passados no deserto, os anos de abstinência voluntária, tê-lo-iam tão completamente embrutecido que o tornassem incapaz de sentimentos mais elevados e mais puros? Significaria ela tão pouco para ele? Entretanto, bem no âmago do coração, sabia que ela não lhe era só isso, sabia bem que esse amor era bem mais que desejo animal, coisa bem mais digna. Fora somente um impulso apaixonado do momento, o senso esmagador de abnegação que o enfraquecia e que o fazia querê-la como a queria agora, para si só, para essa comunhão maravilhosa de corpo e alma que teria sido a sua. Tirá-la da vida que detestava para outra vida mais livre, mais chegada à natureza, para a vida que era a dele; sabê-la tranqüila e feliz com seu amor; espiar o despertar de novas esperanças e bem-estar, que afastariam a trágica tristeza de seus olhos; ser para ela o mesmo que ela seria para ele: companheiro e protetor, amante e amigo; uma união perfeita e baseada no amor. Era isto o que poderia ter acontecido. Mas, agora, eles só podiam ter um sonho de felicidade inatingível, a visão de um céu que se tornava mais anelado pela impossibilidade de alcançar, e, que, por isso mesmo, era como uma antecipação do inferno. Deus! Quanto tempo a tinha desejado! Marny! Marny! Com um soluço estrangulado, escondeu o rosto entre as mãos...

     Passou-se muito tempo até que ele despertasse. Levantou-se lentamente da cadeira, com as pernas dormentes e a cabeça dolorida, e, andando até o corrimão da varanda, onde se encostou, cansado, ao pilar que suportava o telhado de telhas verdes, fitou com olhos vazios o jardim, por onde se coavam os raios de uma aurora nascente, uma aurora, que por sua vez não lhe dava nenhum prazer.

     Fora-se aquele sonho de felicidade que nunca existiria para ele. Havia somente um caminho a seguir: a estrada solitária da vida que, durante tantos anos, constituiu a uma única razão de ser, e mais deserta agora, mais solitária, mais desolada que nunca. Por ela e pelo pouco de honra que ele ainda possuía, devia ir-se embora. Devia voltar imediatamente para o deserto, para a vida que escolhera voluntariamente. E deveria ir já, sem vê-la de novo. Nem mesmo ousaria tornar a vê-la. A confiança em si o abandonara. E... no entanto, como poderia ir-se, como poderia deixá-la, sabendo qual era a sua vida, sabendo que ela ainda teria de sofrer nas mãos daquele bêbado fanfarrão que a possuía, Geradine, cujo nome era um estribilho, cuja brutalidade e vícios eram discutidos em todo Argel, cujas maus tratos à esposa eram insinuados por todos? Deveria deixá-la à mercê de tal homem? Sim, mesmo isso deveria fazer. Ela não era sua, era a esposa de Geradine! Esposa de Geradine! Que Deus a ajudasse! E tormento contínuo, diário, ser-lhe-ia saber disso, dessas atrocidades. Longe dela, sem poder socorrê-la, teria de viver com o pensamento de sua agonia constante e constante tristeza. Deus de misericórdia! Teria ele forças para suportar essa provação?

     Quase materializado pelo desejo, teve a impressão de que a estava vendo, como já uma vez a vira num raio de lua, e estendeu os braços ansiosamente, murmurando-lhe baixinho o nome, de lábios trêmulos, até que a imagem se desvaneceu ao longe. Cobriu a face com o grosso albornoz, entregando-se à maior agonia, à maior dor que jamais sentira em toda a vida. O céu estava agora em chamas e o jardim ressoava com o trilo matinal da passarada, quando por fim conseguiu dominar-se. Mas achava-se cego e surdo à beleza e harmonia da natureza que o rodeava. Permaneceu alguns momentos empenhado em recompor alguma coisa no caos de seus pensamentos. Voltaria para o acampamento perto de Blidah, um acampamento que lhe seria agora pungentemente doloroso, pelas lembranças que ali lhe amargurariam a existência; vê-la-ia em cada canto, em cada volta da estrada, e a grande tenda, que a tinha abrigado, seria uma perpétua recordação, cheia de lembranças de sua presença, até mesmo a localidade lhe seria odiosa, mas era-lhe impossível ir mais longe, enquanto não terminassem os preparativos de Sanois. Não havia outra alternativa, outro meio pelo qual pudesse evitar novo encontro com ela. Com um leve estremecimento, voltou-se e entrou vagarosamente em casa. O gabinete estava impregnado da fumaça das lâmpadas, que ficaram acesas durante toda a noite. Passou rapidamente para o quarto de dormir.

     A porta do outro lado do quarto abriu-se e Hosein entrou com o passo habitualmente silencioso. Não deu nenhuma explicação de sua chegada matinal, tão fora do costume, e Carew também nada perguntou; mas conhecendo o homem, sabia muito bem que o grande árabe, voltando para a vila, passara o resto da noite no quarto contíguo, vigiando e esperando a volta do amo. Embora nada dissesse, e o rosto estivesse ainda mais sombrio que de costume, sua mera presença era uma espécie de alívio e a impassibilidade usual com que recebeu as ordens inesperadas tornou mais fácil essa tarefa. Somente um serviço mais rápido, uma arrumação mais cuidadosa das roupas que lhe eram entregues, denotaram que a compreensão de tudo aquilo por parte do servo era mais profunda do que Carew imaginara. Embrulhava a roupa, emalava as caixas, os apetrechos de “toilette”, com habilidade metódica, quando Carew voltou do banho. Treinado por anos de experiência, Hosein sabia, mais que o amo, o que era necessário levar para uma longa viagem no deserto, para ele muito preferível àquela vida em Argel. Consagrou ao trabalho um orgulho que nessa manhã se tornou mais patente. Seu rosto estava radiante e mostrava grande alegria em preparar tudo para a próxima jornada. Sem dúvida, Hosein estava bem a par da importância política dessa expedição, sabia também que o General Sanois era o único responsável pela demora que os tinha retido em Argel por tanto tempo. Vendo-o movimentar-se rápida e silenciosamente pelo quarto, Carew pensou se o servo poderia ter ligado essa partida apressada ao episódio da noite anterior. Por desagradável que fosse tal suposição, seria melhor que nem mesmo Hosein tivesse a menor idéia sobre aquele assunto, nem suspeitasse da verdade.

     O criado de quarto já comunicara ao resto da criadagem as mudanças de preparativos. No gabinete, ao lado da mesa onde o café e os bolos o esperavam, Carew achou Derar, cheio de importância, e vergado ao peso de uma porção de livros de contas e notas, arcando com a responsabilidade inevitável que lhe sobrecarregaria a próxima ausência do patrão. Enquanto comia, Carew discutia com o velho servidor questões intermináveis e reiterados pedidos de instruções, com a paciência e calma que adquirira no trato com os nativos. Nada adiantaria relembrar a Derar que as ordens dadas agora eram em tudo semelhantes às que já lhe ministrara por diversas vezes, em ocasiões anteriores, isto é, que a vila deveria ser dirigida da mesmíssima maneira que sempre, até sua volta, e tudo o mais daí decorrente, etc, etc...

     De natureza pessimista, Derar, choroso como sempre, preparou-se para o pior. E Carew, assinando cheques, dando diversas ordens sentado na escrivaninha, viu-se constrangido a sorrir às tristes antecipações que lhe eram apresentadas com melancólico fervor, entrelaçadas de longas passagens do Alcorão. Ouviu com paciência tranqüila as loquazes efusões do velho criado, nas quais as lamentações pela sua partida e invocações pelo seu bem-estar e felicidade eram inextrincàvelmente misturadas com questões domésticas e pedidos de mais instruções.

     Mas a tensão de seus nervos já exaustos era maior do que supusera, de forma que, quando, finalmente, Derar, ainda lamuriando, mas armado de todos os poderes que o faziam estufar de orgulho, deixou o quarto com um profundo “salaam”, Carew rabiscou umas linhas para o General Sanois, e encostou-se na cadeira, experimentando uma sensação de esgotamento moral e físico. Tendo resolvido deixar Argel, os dias que decorreriam até sua partida para o deserto se alongavam irritantemente. Olhou para o relógio da escrivaninha. Ainda se passaria uma boa meia hora até que seus homens estivessem prontos. E cansado e abatido como se achava, os minutos lhe pareciam séculos de espera angustiosa.

     Para aliviar de certo modo o tédio que sentia na ocasião, dirigiu-se para o jardim. Não longe da casa, num pequeno bosque de laranjeiras, encontrou Saba vestido apenas com uma “gandhera” listada e um “fez” encarapitado obliquamente na sua cabecinha penteada e luzidia, e que tagarelava incessantemente com um macaquinho trepado em seu ombro. Profundamente entretido com o bichinho, recentemente adquirido, não notou a aproximação silenciosa de Carew. Foi somente o guincho agudo do macaco alarmado que o fez notar que não estava mais sozinho. Levantou-se, os olhos voltados indecisamente para o lado de Carew, até que este, chamando pelo seu nome, fê-lo arremessar-se como uma flecha para a frente, deixando cair o macaco que fugiu desapontado para o galho de uma árvore próxima.

     Como confidente de todos os criados, o menino já se achava completamente a par das novas ordens de Carew e, antes que este pudesse proferir uma palavra, foi assaltado por uma torrente de perguntas ansiosas, que se faziam acompanhar de exclamações de alegria e cabriolas. A alegria da criança era tão patente que Carew quase revogou a decisão de deixá-lo na vila com Hosein, que deveria, por sua vez ficar alguns dias ali para completar certas providências que deviam ser tomadas antes que se internassem no deserto, nessa longa viagem. Mas a necessidade premente de solidão fazia com que nem mesmo pudesse suportar a companhia de Saba e muito gentilmente explicou essa decisão ao menino, cuja face radiante se anuviou ao ouvir aquela explicação. Mas, educado na escola da obediência, não demonstrou desapontamento e começou a rir novamente, ansioso como uma criança à perspectiva da viagem, e calculando o número provável de dias que Hosein precisaria para completar as providências. Ao fim de meia hora Carew o deixou contente, brincando com o macaquinho, novamente apanhado do galho da árvore, e feliz com a promessa formal de que a separação seria por poucos dias apenas.

     A vintena de homens, que Carew trouxera do acampamento para Argel, já se achava pronta e reunida, esperando a voz de marcha quando ele reentrou em casa e viu que a estrada estreita que passava atrás da vila estava completamente bloqueada de cavalos, cujos cavaleiros, ainda a pé, entrelinham uma conversa volúvel com o pequeno exército de criados agrupados para assistir à partida. De pé e um pouco afastado do barulhento tropel, reservado e taciturno, como de costume, Hosein segurava as rédeas de Suliman, sofreando com dificuldade o fogoso animal, que manifestava certa impaciência por se ver imobilizado por tanto tempo.

     A chegada de Carew causou súbito silêncio respeitoso entre os do seu séqüito, e a escolta saltou para a sela dos respectivos cavalos, enquanto ele montava com menos pressa e permanecia alguns momentos dando a Hosein as últimas instruções. Agora que o momento da partida tinha chegado, ele teria dado tudo o que possuía para ficar na cidade que tanto desejara abandonar desde algumas semanas. Foi-lhe preciso toda a força de vontade para perseverar no caminho que se tinha determinado seguir, e dar a seus homens o sinal de partida, que eles aliás esperavam com impaciência. Cavalgava à frente da pequena tropa, com desusado vagar e sentindo uma relutância que crescia a todo momento, tornando-se cada vez maior a cada passo do grande baio, que o levava gradualmente para mais longe da vila. Agora ele tinha perfeita noção do que precisava aquela casa, porque lhe parecera tão vazia e desolada, e essa convicção foi mais um transe aduzido à amargura que experimentava. Se seu sonho fosse realizável; se ele a tivesse visto em realidade, como a vira em espírito, dona de sua casa, trazendo vida e felicidade aos aposentos frios e metódicos, que seriam aquecidos e embelezados com a sua presença; se o fim da jornada que ele iniciava significasse a volta para ela... Era força ou fraqueza o que agora o afastava dela? Lutou de novo contra a tentação de algumas horas atrás, tentação que era mais cruel e opressiva que antes. O lastimável desamparo em que ela ficava parecia tornar sua fuga o ato de um covarde. De que lhe valiam seus recursos e forças físicas se não podiam tirá-la daquela vida de desgraça e miséria moral a que estava condenada? A falta de respeito de Geradine e os endemoninhados paroxismos de raiva que resultavam de sua intemperança, eram assuntos comuns de conversação. Grossas bagas de suor lhe porejavam da fronte, ao se lembrar da figura maciça daquele homem abrutalhado, e ao imaginá-la presa daquelas mãos grosseiras, que mais pareciam as de um orangotango. Até que ponto de violências teriam chegado com ela no passado, que torturas infernais teriam elas infligido àquele corpo franzino e delicado, que tanto desejava apertar nos braços? O rosto se lhe obscureceu à agonia que o invadiu, e limpou o suor frio que lhe inundava a fronte.

     A estrada que seguia passava além da vila de Granier e corria paralela aos densos bosques que sombreavam seus terrenos. Veio-lhe um súbito impulso de olhar para a casa da mulher amada, impulso como uma tortura sutil, mesmo para ele incompreensível e ao qual se entregou com um sentimento de desdém. Puxando as rédeas de Suliman saltou ao chão e, atirando-as ao árabe que chamou à frente para segurá-las, ordenou à escolta que continuasse a marcha e o esperasse além da vila. De pé onde havia desmontado, esperou que passassem. Só depois que o último par de cavaleiros já estava a boa distância, foi que se voltou para a colina, que se escalava por um atalho estreito entre as árvores em pleno viço. Depois de subir íngreme por alguns minutos, o atalho se curvava bruscamente para a esquerda, de onde continuava em terreno plano na mesma direção da estrada, cerca de cinqüenta ou sessenta pés abaixo. Diminuiu o passo ao se aproximar do caminho que levava até a porteirinha da entrada da Vila das Sombras e, numa revolta de sentimento, amaldiçoou a fraqueza que o trouxera até ali. Tendo, porém, vindo até tão longe, não desejava voltar para trás. Arremessando os ombros à frente num gesto resoluto e impaciente, adiantou-se vagarosamente, em passo silencioso, pelo caminho ondulante que se curvava e recurvava, rodeando os grossos troncos de árvores seculares. Grandes ramagens só lhe deixavam ver um pedaço do caminho.

     Era ainda muito cedo. A não ser o chilrear da passarada no arvoredo, e as longas trilhas de formigas que, uma atrás da outra, caminhavam no chão nu, reinava na colina completo silêncio. Mas, ao rodear o tronco de uma árvore excepcionalmente grande, cujas raízes volumosas e salientes lhe faziam a volta mais longa que o necessário, estacou, subitamente, sofreando a respiração, quase com um gemido, com uma indizível exclamação de espanto. Pálido, com os punhos cerrados e o coração saltando, fitou o vulto da moça que jazia a seus pés, meio escondido nas ervas rasteiras. Seu rosto estava oculto e o corpo não dava o menor sinal de vida e tão imóvel que um terrível pressentimento lhe assaltou o espírito. Contraiu os lábios, e a pele tostada pelo sol africano descorou. Tentou murmurar o nome querido, mas nenhum som lhe pôde sair dos lábios paralisados. Incapaz de falar, incapaz de mover-se, perdeu a noção do tempo, enquanto lutava contra o medo aterrador que o mantinha ali como estátua.

     Nunca soube quanto tempo se passou até que estremeceu, até que o eco de um soluço abafado lhe acalmou o temor que o imobilizara, afrouxou o aperto que sentia na garganta, estrangulando-o. Mas, ainda assim, não pôde mover-se. Não se iria dali. Arriscara-se naquele jogo, e esse mesmo jogo se voltara contra ele. De nada lhe valera a luta consigo mesmo. Desafiara o destino e justamente o encontro que procurava evitar era agora inevitável. O fato de vê-la prostrada num abandono aflitivo lhe destruía toda força de vontade. Não podia deixá-la assim ali. Não confiando muito em si se lhe tocasse, esperou, com o coração a saltar do peito, que ela lhe notasse a presença. E, como certa noite na ópera, agora ela parecia voltar a si e gradualmente notar o olhar que a fixava. Com um suspiro Marny sentou-se vagarosamente, volvendo a cabeça para ele. E a palidez mortal de seu rosto, a expressão de desgraça estampada em seus olhos tragicamente bistrados [escurecidos] pelas olheiras fundas, o enfureceram com uma onda de ira tão selvagem que quase o sufocou. Deus! Que devia ela ter sofrido para ficar assim!? Procurou palavras, mas a emoção lhe embargou a voz.

     Foi ela quem falou primeiro. Olhou-o quase inconsciente. Depois, uma onda de rubor lhe coloriu as faces pálidas, sumindo-se incontinenti, deixando-as mais brancas que antes. Levantando-se a custo, ficou de pé, por momentos, vacilando como um caniço açoitado pelo vento, tentando firmar-se, a fim de retomar a posição normal e dominar-se, procurando com esforço uma fórmula convencional de cumprimento, que seus lábios se recusavam a proferir.

     — Sir Gervásio...

     Ele adivinhou, mais do que ouviu, aquele nome apenas murmurado num leve cicio.

     Mas antes que pudesse responder, antes que conseguisse arredar-se da contemplação daqueles olhos, tão cheios de intensa dor, que se dilatavam diante dos seus, viu-a tornar-se rígida e recuar subitamente alguns passos, lançando olhares aterrorizados para trás, como se temesse ser perseguida.

     — Que é isso?... quem?... perguntou baixinho, atarantada.

     Escutando também, ouviu, como ela ouvira, o murmúrio de vozes masculinas que se elevavam em acalorada discussão e subiam pela colina acima, como se estivessem a pequena distância, um pouco abaixo e mais além da estrada. Eram as vozes de seus homens, ele o sabia. Mas que pensara ela? E a raiva e o ódio que se revolveram dentro dele em labaredas, incendiaram-se de novo com fúria irrefreável, quando notou que ela se apoiava com os lábios descorados ao tronco maciço da velha e gigantesca árvore secular. Imaginou quanto tempo ainda decorreria até que aquele organismo delicado e aquele sistema nervoso sensível sucumbissem ao tratamento brutal e infame, que a estava reduzindo pouco a pouco a um destroço físico e moral. Seus punhos cerravam-se com a dor horrível de seu desamparo, de seu abandono. Mas, com supremo esforço, conseguiu dominar-se, sufocando as palavras que lhe afloravam aos lábios. Dando tom natural à voz para não se mostrar excitado, respondeu-lhe tentando animá-la:

     — São apenas meus homens. Altercando e barulhentos como sempre, os demônios.

     Ela o encarou, surpreendida.

     — Seus homens?... perguntou, estranhamente.

     E dando certa firmeza no andar, dirigiu-se para a ribanceira a passos vacilantes. Por entre os troncos das árvores, pôde vê-los agrupados no sopé da colina. Seus homens!... felizardos que tinham a sorte de compartilhar de sua vida! Um sentimento de inveja amarga lhe assaltou o espírito, ao contemplá-los através duma nuvem de lágrimas. Aqueles eram homens escolhidos pela sua lealdade e resistência física. Altivos filhos do deserto, tão diferentes, mesmo a seus olhos inexperientes, dos outros árabes que vira em Argel. Montados naqueles magníficos cavalos, tinham o aspecto soberbo de uma escolta digna do homem que a comandava. Que queria dizer esse séqüito? Em Argel, porque ela o vira muito mais vezes que ele supunha, sempre andava só. Seria este o fim, o dia que ela esperava com terror, o dia em que ele desapareceria de sua vida? Os seus lábios estremeceram. Seria mesmo verdade que nunca mais o veria, que nunca mais ouviria aquela voz querida, cujos tons suaves lhe soariam nos ouvidos enquanto tivesse um sopro de vida, que nunca mais experimentaria aquela sensação de confiança e força que sua presença lhe proporcionava? Como poderia ela suportar, ó Deus dos céus! como poderia suportar a desolação e a desgraça em que ficaria? Levou as mãos trêmulas aos seios, cerrando os punhos convulsamente sobre o coração que lhe doía e saltava dentro de sua prisão, causando-lhe uma dor intolerável. Precisava saber de tudo, mesmo que a consciência lhe trouxesse a agonia da morte.

     Com calafrios, voltou-se lentamente para ele. Com um cigarro entre os lábios, encostado ao tronco da árvore onde ela se apoiara antes, o rosto dele era uma máscara impassível, que a desconcertou. O rápido vislumbre de uma expressão totalmente diversa, que lhe parecera ver nos olhos dele momentos antes, seria apenas o efeito de sua imaginação exaltada? Seria tão louca que tivesse pensado, por um momento sequer, numa doce felicidade, que tivesse admitido que seu amor e desejo pudessem também conquistar o amor dele? Sua indiferença lhe parecia agora completa. Evidentemente, sua separação não lhe doía. E como poderia ser de outro modo? Era somente ela que o amava, era somente o seu coração que sangrava, somente ela ficaria no abandono e na desolação.

    O constrangimento que se impôs fez com que a sua voz se tornasse fria e dura, quando proferiu a pergunta que ansiava por fazer-lhe.

     — O senhor vai-se embora?

     — Sim.

     A despeito de si mesma, não pôde deixar de cambalear a esta breve sílaba de assentimento, dita num tom frio e duro como o dela.

     — Volta para o deserto?

     — Sim.

     — De vez?

     — De vez, — foi a resposta firme.

     Ela voltou-se rapidamente, para esconder as lágrimas que a cegavam. Mas um soluço quase estrangulado, que não pôde dominar, traiu-a. Por imperceptível que fosse, ele ouviu.

     — Marny!

     Aquele grito irrompeu-lhe do fundo do coração. E, logo após, ela estava nos braços dele, se agarrando a ele desesperadamente, soluçando como ele nunca acreditara que uma mulher pudesse soluçar Desnorteado, ante seu súbito enfraquecimento, gelado ante os terríveis soluços que pareciam despedaçar aquele corpo delicado, ele a apertou apaixonadamente entre os braços.

     — Marny, Marny querida, não chores assim... pelo

amor de Deus, não chores assim... tuas lágrimas me torturam.

     Mas, cônscia apenas de que estava em abrigo seguro, muito fraca para lutar contra os sentimentos que por tanto tempo refreara no âmago do coração, a moça se achava naquele momento incapaz de dominar a tempestuosa emoção que a subjugava. Deixando-se ficar inerte naqueles braços, com o rosto escondido nas dobras de suas vestimentas árabes, soluçou e chorou, desafogando o coração, até que, apavorado pela violência da crise, ele a chegou mais perto, mais para si, curvando sua alta estatura até que, murmurando palavras de amor e súplica, os lábios lhe tocaram os cabelos revoltos.

     — Tem piedade de mim, criança! Estás me partindo o coração. Pensas que posso suportar a dor de ver-te chorar?... Marny, meu amor, meu amor...

     Ela passou-lhe o braço em torno do pescoço.

     — Oh! Deixa-me chorar! — gemeu. — Durante cinco anos tenho sido uma estátua de pedra. Se não chorar agora, enlouquecerei.

     Um espasmo correu a face dele. Ouviu-a com os olhos marejados, esperando pacientemente que a tempestade de lágrimas tivesse fim. Pouco a pouco, ela cessou de chorar e conseguiu dominar-se um pouco. Exausta e envergonhada, não ousou fitar-lhe os olhos, quase temendo o som de sua voz. Agarrava-se a ele em silêncio, desejando apaixonadamente que a sua vida acabasse assim, nos braços dele.

     E para Carew o contacto de seus membros trêmulos era um arrebatamento de prazer e de dor que se transformava em verdadeira agonia. Com o rosto enterrado na fragrância daqueles cabelos macios, rogou a Deus que lhe desse forças para poder deixá-la, forças para enfrentar o momento da partida, que agora se apresentava inevitável.

     Ainda junto à ela levantou-lhe a loura cabeça com suavidade. Aqueles olhos cerrados, as madeixas bastas caindo-lhe pelas faces banhadas de lágrimas, provocaram nele irresistível desejo de tocar-lhe com os lábios frementes.

     — Não me queres olhar, Marny? Nunca mais verei teus queridos olhos? — murmurou roucamente.

     Um tremor agitou o corpo da moça que, por um momento, não respondeu. Depois, afastando lentamente as madeixas, descerrou as pálpebras. Por muito tempo se olharam, como querendo fitar a alma um do outro. Ela sentia contra o seio o palpitar violento do coração de Carew.

     Um suspiro profundo escapou-lhe do peito.

     — Gervásio... Oh! Gervásio, Gervásio! — balbuciou, erguendo o rosto.

     A infinda tristeza daqueles olhos aprofundou-se e os lábios dele tremeram, quando abanou a cabeça.

     — Não devo beijar-te, minha querida. Teus lábios são dele... e não meus. Que Deus me ajude! Não tenho nem mesmo o direito de tocá-los. Sou um réprobo, só por ter-te em meus braços como agora. Mas não posso deixar-te ir, não posso, minha adorada Marny!

     Sua voz interrompeu-se e, insensivelmente, ele apertou-a ainda mais nos braços, com uma força de que não tinha consciência. Marny voltou a cabeça, com um soluço indizível.

     — Como poderia eu supor isto, como poderíamos saber que nos amaríamos algum dia? — soluçou. — Nunca pude pensar que me amasses. Pensei que era somente eu quem... quem...

     Apertou os dentes nos lábios, para conter os soluços que a estrangulavam e lhe subiam até a garganta.

     — Oh! Por que foste justamente tu, quem veio aquela noite perto de Blidah? — irrompeu apaixonadamente. — Que importava a minha vida? E eu... eu... que preferia morrer por ti, trouxe-te infelicidade, trouxe-te aflições. Gervásio, por que não me odeias agora?

     — Pensei um dia que te odiasse, — respondeu, com um sorriso triste; e ternamente alisou-lhe os fulvos cabelos.

     A dor física fora esquecida, obliterada pela agonia mental que se apossou dela, mas agora, recordando-se, tentou detê-la. Mas não teve tempo, porque ele viu a ferida que lhe sangrava nas sobrancelhas e se tornava mais visível na sua pele alva. Uma aguda exclamação saiu-lhe do peito:

     — Meu Deus, que fizeste, Marny? Meu Deus, foi ele que ousou tocar-te?

     Seu rosto assumiu aspecto terrível e a expressão de seus olhos abrasados a atemorizaram. Receando as conseqüências de sua raiva, temendo não sabia o que, ela mentiu, para proteger o marido que a tinha espancado.

     — Não... não... arquejou. Escorreguei, escorreguei no quarto a noite passada.

     O amor e a intuição lhe disseram que ela estava mentindo. Afastou-a de si, com um gemido de desânimo. Não tendo mais o apoio de seus braços, ela deslizou para o chão, porque as pernas lhe tremiam. Ele sentou-se perto dela, fitando sombriamente o espaço, imaginando o que faria para não deixá-la, torturado com o que tinha visto, e amaldiçoando o homem que mais que nunca ansiava por matar.

     Os olhos tristes de Marny não abandonaram aquela face austera e rígida. Por fim, não pôde por mais tempo suportar o silêncio que reinava entre ambos. Sua mão avançou timidamente e tocou a dele.

     — Que vamos fazer? — Esperou muito pela resposta, tanto mesmo que duvidou que ele lhe tivesse ouvido a pergunta. Seus dedos trêmulos apertaram os dele com mais força. — Gervásio, fala-me! — suplicou.

     — Que tenho eu a dizer? — respondeu ele, em tom áspero, como se o esforço para falar lhe custasse muito. — Nada há a fazer senão aquilo que devemos fazer, por muito duro que seja. Devemos esquecer para sempre que esta manhã existiu em nossa vida. Devemos esquecer tudo, salvo que estás ligada por laços indissolúveis, e que não és livre para vir a mim. Se houvesse outro meio, se eu pudesse levar-te... — Tirou os olhos dela e pôs-se de pé. — Mas não há nenhum, gritou com súbita violência. Não posso levar-te. Tens de esquecer e me perdoar... se te for possível.

     Ela escondeu o rosto nas mãos.

     — Esquecer! — gemeu. — E tu te esquecerás?

     — Nem nesta nem na outra vida! — murmurou.

     Com um soluço que lhe arrancava o coração, estendeu-lhe os braços suplicantes.

     — Não posso suportar, Gervásio! Não poderei viver sem ti.

     Ele agarrou as mãos que se lhe estendiam e levantou-a docemente.

     — Não me queiras fazer sofrer mais, minha querida. Deus já sabe o quanto tenho sofrido e o quanto sofro, — disse, hesitando. — Eu te amo. Eu te quero mais do que a tudo no céu e na terra, quero-te muito, mas tenho de deixar-te. Ajuda-me a cumprir meu dever, Marny. Ajuda-me a ir-me embora, enquanto tenho forças.

     Mas, com um grito angustioso, ela se agarrou a ele, com os olhos suplicantes.

     — Não posso! Não posso! Não sou tão forte como tu. Não posso deixar-te ir ainda! Não vás agora... não posso deixar-te ir para o deserto. Fica... fica até que nos vamos daqui, — implorou ela. — Não levará muito tempo, somente poucas semanas...

     — Minha adorada, que te adiantará que eu fique por mais tempo? — disse, sentindo-se cansado e prestes a capitular. — Será apenas para sofrermos mais.

     Mas sem atendê-lo, ela implorou novamente.

     — Oh! por favor, por favor! — suplicou. — Oh! Não posso explicar... não sei o que sinto... alguma coisa terrível parece que me vai acontecer... que se aproxima, e eu... estou com medo... com muito medo... Se eu ao menos soubesse que estavas em Argel, sentiria alivio... não me sentiria tão só... tão só... Gervásio, se me amas como dizes, fica até que partamos daqui.

     Se a amava! Ele fechou as mãos como para evitar agarrá-la e virou-se, com um suspiro profundo.

     — Preciso provar-te meu amor? — perguntou tristemente.

     Um soluço arquejou-lhe no peito. Pensaria ele que ela duvidava? Por que era tão covarde para pedir-lhe uma coisa dessas? Humildemente pediu-lhe perdão, mas um rápido gesto dele a imobilizou.

     — Nada tenho que te perdoar! — disse gentilmente.

Não pode haver enganos nem mal-entendidos possíveis entre nós, minha querida. Se minha ermanência em Argelte pode ser útil de qualquer maneira, se te faz a vida maissuave, então eu ficarei, até que te vás embora com teu marido. Mais, porém, não poderei fazer. Este tem de ser

o fim de tudo, minha Marny. Temos de nos dizer adeus. Não devo ver-te de novo, nem ousarei ver-te novamente.

     Um desfalecimento mortal a invadiu. Como entorpecida, ela sentiu que ele lhe tomava as mãos e lhas apertava de encontro às faces. Depois ouviu-lhe a voz, já longe e abafada, como se viesse de grande distância.

     — Minha querida, meu amor... Deus te guie, agora e sempre!

     Só então convenceu-se de que ele partira.

     Tentou mover-se, levantar-se, vencer a inércia que parecia chumbá-la ao solo. Somente para vê-lo mais uma vez... para lançar-lhe o último olhar. As lágrimas lhe corriam pelas faces quando chegou à beira da estrada, na ribanceira e, coberta pelas árvores, olhou para baixo, para a estrada larga. Comprimindo os lábios para conter os soluços angustiosos que a sufocavam, viu-o de pé, junto a seus homens, até que a pequena tropa desapareceu numa nuvem de pó, ao longe, na estrada de Blidah. Carew, uma vez sozinho, saltou sobre a sela, e tomou a direção oposta, a galope. Então, foi-se estendendo em torno dela uma penumbra suave até que caiu sem sentidos.

     Seguiu-se uma semana que, para Carew, foi um período de ininterrupto sofrimento, sofrimento que parecia aumentar, e se tornava mais insuportável cada dia que se escoava. Sem a mínima coisa para se entreter, sem nenhuma esperança de aliviar a carga de sua amargura e solidão, com a acre consciência de que, a menos de meia milha, na casa que lhe servia de prisão, ela também estava sofrendo, ele passou todos aqueles dias e noites em lutas infindáveis que lhe eram verdadeiros tormentos.

     Procurando distrair-se com qualquer coisa que lhe quebrasse a inatividade forçada e desviasse o rumo tios pensamentos, ele resolveu oferecer seus serviços a Morel. Encerrado no laboratório, tentava trabalhar desesperadamente para amortecer a dor que nunca o abandonava. Durante as longas horas de labor voluntário, lutava por banir do espírito a idéia da mulher querida e concentrar-se unicamente nas experiências que, em outro tempo, lhe teriam absorvido toda a atenção. Mas a lembrança dela vinha continuamente. Enquanto obedecia às instruções de Morel com mecânica precisão, parecia-lhe sentir a presença dela, via-a claramente diante dos olhos, contemplava aquela face lacrimosa que sempre o perseguiria e, na tranqüilidade do aposento silencioso onde trabalhava, quase chegava a ouvir seus soluços e sua voz agoniada. “Gervásio, não poderei viver sem ti!” E ele a tinha abandonado e deixado à mercê de Geradine. Se levado pela tremenda paixão que lhe viera sem saber como, e tão estranhamente, procurasse raptá-la a um marido que se importasse com ela, ou a qualquer outro, que a tratasse com a decência e o respeito que lhe eram devidos, deveria considerar insuportável sua ação. Mas, acorrentada, como estava, a uma fera como Geradine, cujas marcas de brutalidade vira sobre sua face querida, não havia, por certo, desculpa para seu amor, para a tentação que lhe rugia na alma, de tomá-la, de arrebatá-la a uma vida de martírio, de dar-lhe a felicidade que sua juventude exigia? Como era possível que ela se tivesse tornado a esposa de um bêbado daqueles, dum homem sem coração? Que série de fatos a haviam levado a ligar-se a tal indivíduo? Era impossível que algum dia o tivesse amado. Certamente, não fora a força bruta do homem que a tinha atraído, induzindo-a a um passo de que se arrependeria bem cedo. Havia cinco anos, dissera ela. Havia cinco anos deveria ser ainda criança; pouco mais que isso era ainda agora. Que circunstância ou que tragédia teria jogado uma menina apenas adolescente nos braços de tal devasso? E o que teriam significado esses cinco anos para ela? Ao se passarem os dias, e ao se entregar ao trabalho ao qual se esforçava, concentrava toda sua atenção em resolver esse problema, para ele sem solução aparente, atormentando-se ante a idéia do que ela deveria ter sofrido e ainda estava para sofrer.

     Mas eram as noites que lhe causavam maior temor. Despertando muitas vezes de um sono interrompido, cheio de pesadelos, que não lhe proporcionava nenhum descanso, ficava de olhos abertos na escuridão, murmurando baixinho o nome querido, desejando-a ardentemente, até que a dor desse sentimento o impelia para o jardim, onde passeava entre as fileiras dos canteiros, cercados de árvores e arbustos em flor, à luz das estrelas, sobre o relvado, até que o corpo lhe esmorecia de fadiga e o conduzia de novo para dentro de casa, para se arremessar novamente na cama, sem sono, e esperar o alvorecer, quando então saía para um passeio matinal a cavalo. Era nessas ocasiões que sentia uma espécie de alívio. Mas, nas suas horas solitárias, em meio à escuridão da noite, o seu sofrimento se tornava insuportável, pensando nos horrores pelos quais a sua querida devia estar passando. Era então que seu espírito conturbado, sem o menor consolo na solidão, se tornava presa de terríveis pensamentos, até que, sentindo-se quase ensandecer, chegava a entregar-se àquela voz que o incitava insidiosamente a desprezar a honra e tomar com suas próprias mãos a felicidade que tinha sacrificado. Deveria ficar indiferente ao definhamento da juventude e da saúde dela? Deveria fazê-la vítima de seu escrúpulo? “Ela teria ido contigo. Ela ter-te-ia seguido aquela manhã”, dizia-lhe a voz. E noites após noites, aquela voz escarninha lhe soava aos ouvidos, e noites após noites ele lutava desesperadamente, a angústia na alma, contra as insinuações do coração.

     Veio o dia em que um recado de Morel, chamado urgente a Paris, pôs fim ao trabalho no laboratório, e deixou-o em presença de uma inatividade que ele encarava com desânimo. De modo nenhum desejando a companhia do General Sanois ou dos oficiais do quartel, resolvido peremptoriamente a não se arriscar a outro encontro com a mulher que deliberara não ver nunca mais, passava horas e horas, durante a manhã, sentado na varanda, com um livro de medicina entre as mãos, livro que aliás não lia; ou em passeios intermináveis e erradios pelo jardim, outrora tão lindo, mas agora sem a menor beleza para ele, o que não lhe causava a menor impressão.

     Totalmente cansado de si mesmo, pela primeira vez em muitos dias desejou a companhia de Saba; e tê-la-ia tido com prazer. Mas o ceguinho estava no acampamento perto de Blidah, para onde fora enviado quando Carew decidira ficar mais algum tempo em Argel.

     O dia lhe parecia interminável.

     Extenuado por noites de insônia, dormira a maior parte da tarde e fora com dificuldade que Hosein o acordou para o jantar, que lhe parecia não ter fim. Depois, pedindo o café, palmilhou silenciosamente os vestíbulos e os aposentos vazios contíguos à varanda, onde passara a maior parte do dia.

     A noite estava singularmente escura, mas essa escuridão condizia bem com seus pensamentos sombrios, de modo que, depois de tomado o café, apagou a lâmpada que ficava na mesa perto dele e sentou-se, contemplando fixamente as trevas.

     Por fim, a inação se tornou intolerável. Estava sentado cerca de duas horas e suas pernas já se tornavam dormentes. A cabeça já lhe exigia qualquer exercício físico. Se parasse ali mais duas horas, estouraria os miolos, refletiu, com uma risada lúgubre. Dirigindo-se ao quarto, vestiu o albornoz e saiu de casa sem ser visto.

     Fora da porta estacou, hesitando e estremecendo. Depois, com um dar de ombros e uma imprecação murmurada a meia voz, voltou-se em direção à vila de Granier. Torturar-se contemplando a casa onde morava ela, não era vê-la, argumentou consigo mesmo. Não havia razão para se dizer que quebrara a resolução que tinha tomado. A estrada era tão livre para ele como para qualquer outro. Além disso, que probabilidade havia de vê-la àquela hora da noite? Atirando para trás o pesado manto, parou um momento para acender um cigarro, e andou com o passo vagaroso a que o tinham acostumado as vestimentas árabes.

     Durante certo tempo, pareceu-lhe que nenhum outro transeunte notívago estava fora de casa. Mas, ao aproximar-se do alto muro que circundava a Vila das Sombras, seu ouvido apurado percebeu o ruído de passos rápidos e vacilantes, bem como uma entonação rouquenha de voz que lhe era conhecida. Instintivamente, recuou para uma sombra mais densa, encostando-se à parede exterior, quando Tanner, o “groom” inglês de Geradine, lhe passou, ziguezagueando, pela frente, proferindo palavras que lhe congelaram o sangue nas veias.

     — Aquele porco, aquele porco... aquele porco amaldiçoado. Ele acabará com ela, Deus do céu! sim, ele a matará, por Cristo! E como ela gritava, a coitadinha... e a maldita porta fechada a chave, de modo que não pude entrar!... E completamente bêbado, a besta... Meu Deus, meu Deus! Que posso fazer? Ouvirei aqueles gritos até morrer...

     Soluçando e blasfemando numa raiva impotente, o homem afastou-se e desapareceu na escuridão da noite.

     Carew correra em direção à casa donde tinha fugido o “groom”; um pavor lhe fazia saltar o coração. O portão estava aberto de par em par. Tomado de pânico, Carew precipitou-se pela entrada dos carros para as escadas da vila, atirando-se de encontro à porta que, por não estar trancada interiormente, lhe cedeu ao impulso. No vestíbulo de entrada, fracamente iluminado por uma pequena lâmpada, quase caiu ao chão, tropeçando no corpo de um árabe estendido, gemendo e retorcendo-se no pavimento de mármore. Indiferente a tudo, menos ao temor que o obcecara, Carew desvencilhou-se das dobras que lhe entrelaçavam os pés nas vestes do árabe e sacudiu-o rudemente. Mas a furiosa pergunta que ia dirigir àquele indivíduo ali estendido morreu-lhe nos lábios, ao ouvir um grito penetrante que reboou por toda a casa silenciosa. Um grito seguido de outros, tão terríveis e tão angustiosos que, por um momento, ele vacilou sob o horror que sentia. E misturados aos gritos lhe vinham outros sons enfurecidos e mais fortes de voz de homem, que levaram Carew ao cúmulo da loucura. Com um rugido, saltou para a porta do quarto onde se achava a mulher que amava. Mas a porta, aferrolhada por dentro, resistiu a seus furiosos embates. Conhecendo, porém, a vila tão bem como a sua, sabia que forçá-la seria impossível. Sacudiu desesperadamente a maçaneta. Depois, de súbito, uma idéia lhe veio à mente e o fez correr pelo corredor afora. Havia uma portinha que, dando para a sala de visitas, e completamente oculta por algumas cortinas, talvez não fosse conhecida dos atuais moradores da casa. Chegando à antecâmara, com a qual se comunicava o quarto e rasgando de alto a baixo as cortinas que pendiam dos caixilhos, jogou todo o peso de seu robusto corpo contra o frágil tabique, arremessando-se violentamente no quarto. Um simples olhar foi-lhe suficiente. Desviando a custo a vista de um corpo abatido no soalho, quase a seus pés, agachou-se um momento, com as feições de um louco, como uma fera preparando-se para saltar.

     Estarrecido pela súbita aparição, cego de paixão para reconhecer o homem que o acompanhara durante a tempestade de areia, Geradine viu somente naquela alta estatura que o enfrentava um árabe desconhecido que se atrevera a uma entrada violenta em sua casa. Saltou para a frente com um rugido de cólera, brandindo a pesada chibata de caça com que tinha flagelado a esposa até a insensibilidade.

     — Mas você, negro amaldiçoado, vociferou, como diabo...

    Ao som dessa voz, Carew deu um salto de pantera, e o seu punho cerrado bateu em cheio na boca do outro. Por um momento Geradine cambaleou. Depois, com outro rugido de dor e fúria, levantou a chibata para o rosto de Carew. Mas o golpe não atingiu o alvo e dois braços formidáveis se fecharam ao redor do seu corpo. Conquanto muito forte, acima do normal, a vida de intemperança que levara o tinha desabituado para uma longa luta corporal e, nessa noite, ainda mais esgotado pela explosão de selvageria e bêbado demais para saber como usar as forças que lhe restavam, o bruto se achava sem defesa entre garras que lhe pareciam estar arrancando lentamente a vida e esmagando-lhe os ossos. Sufocado com aquele abraço estrangulador que lhe tirava o fôlego, sentiu, quase inconscientemente, uma mão de ferro que lhe agarrava o braço e o apertava de tal modo que foi obrigado a ajoelhar-se.

     Com o chicote ainda úmido de sangue de sua adorada, Carew vingou a mulher que jazia ali, quase morta no chão. Desvairado ao pensar no sofrimento dela, Carew vergastou Geradine até que o paletó e a camisa lhe ficassem em farrapos ensangüentados e pegajosos, até que os seus gemidos se tornaram cada vez mais flébeis e indistintos e, finalmente, morreram em um sopro, até que o braço lhe pendesse de cansaço. Somente então atirou fora a chibata. Sem mesmo relancear a vista para a figura inerte que se estendia no chão com o rosto voltado para baixo, sem se importar se o tinha matado ou não, volveu-se para a figurinha dolorosa. Apenas consciente do que estava fazendo, arrancou o albornoz dos ombros e, envolvendo-a nele, levantou-a nos braços e levou-a para fora.

     O vestíbulo continuava deserto quando passou por ele. Não prestava atenção ao resto da casa, aparentemente desabitada. Não pensava senão no leve fardo que carregava sofregamente. E como num sonho, com o raciocínio a lhe fugir, seguiu mecanicamente a estrada que tinha andado meia hora antes. Só quando chegou à sua vila, só quando, levado pelo instinto, se achou com o seu fardo no quarto de dormir, aquela sensação de sonho se desvaneceu e ele despertou para a realidade, começando a refletir no que fizera. Mas, nesse momento, até isso poderia esperar. Naquele momento só ela lhe importava.

     Deitando-se na cama, destacou com o maior cuidado as tiras ensangüentadas que lhe aderiam aos ombros dilacerados. Ficou estarrecido de amargura ao ver como o pano se apegava àquela pele delicada e malferida, que os seus lábios trementes cobriam de ardentes beijos. Mas, era médico e amante e, tentando dar firmeza a seus dedos, lavou as cruéis feridas com carinhosa habilidade, fazendo tudo que lhe era possível para lhe dar conforto, antes que caísse de joelhos para esperar que ela recobrasse a consciência. Quando, por fim, a moça estremeceu, ainda se passaram alguns momentos, até que o reconhecimento da pessoa que estava a seu lado lhe alvorecesse nos olhos esgazeados e aterrorizados. Aqueles olhos o fitavam sem compreender. Mas a súbita alegria que os invadiu, esmoreceu bem depressa, dando lugar a uma expressão de terrível medo.

     Com um grito que o fez empalidecer, ela se atirou nos braços dele.

     — Não o deixes agarrar-me! Não... deixes... que ele... me agarre! — gritou, até que o horror daqueles gritos se lhe tornaram insuportáveis. Então, apertando suavemente o rosto adorado contra o peito, conseguiu abafar aqueles gritos que, bem sabia, ouviria por toda a vida.

     — “Hush”, “Hush”, — murmurou-lhe ao ouvido. — Já acabou... já acabou. Nunca mais ele te tocará. Não precisas mais vê-lo. Fica quietinha e descansa. Não há ninguém senão eu que saiba que estás aqui.

     Mesmo no extremo do terror, a voz dele tinha o poder de acariciá-la, e ela deixou-se ficar em seus braços, com um soluço de alívio. Por muito tempo, ele conseguiu manter-se em silêncio, sustentando a maior batalha de sua vida, tentando eliminar-se a si próprio, para só pensar nela. Mas seu contacto tornava impossível coordenar os pensamentos e, desesperado, tentou levantar-se. Ela se agarrou a ele com um murmúrio de súplica.

     — Deixe-me ir, minha adorada! — ciciou-lhe aos ouvidos. — Tenho que pensar... tenho que pensar sobre o que de melhor deveremos fazer. — E, ternamente, conseguiu afastar-lhe as mãos trêmulas.

     O medo voltou aos olhos dela, ao vê-lo atravessar o quarto; dirigindo-se para a janela aberta. Levantando-se da cama, esperou por um tempo que lhe pareceu um século, num abismo de fraqueza, temendo perguntar-lhe qualquer coisa, amedrontada por causa dele próprio.

     Quando, por fim, ele falou, numa voz que lhe era quase irreconhecível, ela não pôde encará-lo.

     — Posso levar-te para fora de Argel, é fácil. Mas

a quem te entregarei? Onde mora tua família?

     Por um momento, a pobre moça estacou, incrédula. Depois, com um triste soluço, aproximou-se dele e, olhando-o bem de frente:

     — Gervásio, tu não me amas? Não me queres? — disse.

     A face dele estava angustiosamente convulsa, quando se voltou para ela.

     — Querer-te? Meu Deus! — gemeu ele. — Mas não é o que quero que importa agora. É só em ti que penso. És a esposa de Geradine, e... eu... não posso tomar-te. Não posso desonrar-te... Não posso te arrastar pela lama...

     — Lama! — ecoou ela com um riso terrível, — por que lama pior poderias me arrastar do que aquela que me tem sufocado durante cinco anos? Gervásio! Gervásio! Cheguei ao fim. Não posso lutar mais. Não posso suportar mais esta vida. Não tenho ninguém para quem me voltar, não tenho família... nenhum amigo... Não há ninguém neste mundo que me possa ajudar, senão tu. Se não me salvares, eu me matarei... Juro-o... Oh! Gervásio! Tem piedade! Só estarei segura contigo. Serei tua criada... tua escrava... tudo o que quiseres... mas salva-me... salva-me! Se eu o vir de novo, ficarei louca... louca! “louca!”...

     Atirou-se aos pés dele, com a face voltada para cima, convulsionada por um terror selvagem, indescritível.

     E, ao levantá-la nos braços, com um protesto amoroso, ao fitar-lhe os olhos desvairados, Carew teve a intuição de que ela se achava muito perto da loucura. Mas ainda hesitou alguns segundos.

     — Sabes o que acontecerá se te levar para o deserto? Sabes o que significará?

     — Sei, sei... — soluçou ela. — Significará o céu, o sossego, a alegria e a felicidade indefiníveis. E eu... que tenho vivido no “inferno”... Oh! Gervásio, dá-me a oportunidade de ser feliz algum dia.

     Não era isso o que ele queria dizer. Mas compreendeu que ela se achava inacessível a qualquer raciocínio. Somente conservando-a, poderia desviar a catástrofe mental que se anunciava e estava iminente. Para salvar-lhe a razão, deveria fazer aquilo que o coração lhe pedia, mas os ditames de sua honra haviam resolvido que nunca fizesse.

     À luz que lhe flamejou involuntariamente nos olhos, Marny leu a resposta, mesmo antes que ele baixasse os lábios para encontrar sua boca.

 

     Muito cedinho, na hora silenciosa que precede a alvorada, Marny Geradine saía de Argel a cavalo, sob o disfarce de um rapazinho árabe, com sua figura delicada e esguia dissimulada num largo albornoz branco. O rosto quase que escondido pelo “haik” que lhe cobria até a parte superior do nariz, tinha apenas os olhos a descoberto. A seu lado, cavalgava Hosein, atento para o seu corcel, pronto para segurar-lhe as rédeas a qualquer momento, caso o fogoso animal a incomodasse, ou qualquer desfalecimento lhe ameaçasse o frágil corpo. A poucos passos na frente, silencioso, Carew marchava ao trote de Suliman, envolvido no seu escuro albornoz e quase indistinguível na escuridão.

     Tremendo de fraqueza física e do medo que não a abandonava e não conseguia dominar, Marny abria bem os olhos para não perdê-lo de vista. Somente perto dele se sentia em segurança. Dependia dele e de sua força, porque não lhe restava confiança em si mesma. A coragem, que tanto tempo a sustentara, lhe fugira de vez, e, exausta de corpo e espírito, todas as suas esperanças se concentravam apenas no bem amado. Carew lhe jurara que estava salva, que ele conseguira passar sem ser reconhecido pela Vila das Sombras, que a conseguira levar para a casa sem que ninguém notasse. Mas as palavras que a tinham acalmado tanto, quando ele a tivera nos braços, pareciam desvanecer-se, logo que ele se afastara.

     Fora obrigado a deixá-la quase imediatamente. O sabor do seu primeiro beijo ainda permanecia nos lábios dela, quando ele a deixou para providenciar a partida, o que tinha de ser feito em pouco tempo. É verdade que ele lhe pedira que descansasse, mas, com os nervos exaustos, completamente esgotada física e moralmente, o descanso lhe fora impossível. Ficara acordada e atenta ao menor barulho que ocorresse naquela casa desconhecida. Como criancinha aterrorizada que pede constantemente animação, desejava ouvir aquela voz, anelava pelo conforto que sentia quando se encontrava sob a proteção dos braços dele.

     E agora, cavalgando pelas ruas desertas do subúrbio adormecido, ao medo próprio se misturava fundo temor pelo homem que amava. Ainda não sabia do que se passara na Vila das Sombras, depois que perdera os sentidos.

     Estava obcecada pelo temor do marido. Aterrorizada, divisava-o na escuridão da noite, em cada sombra do caminho; e até o barulho das ferraduras parecia à sua imaginação excitada um andar perseguidor e apressado. Chegava a ter ódio de si própria pela falta de coragem que sentia no momento. No fundo, sentia que sua confiança em Carew era cabal, e somente os nervos esgotados a faziam tremer cada vez que o cavalo apressava o passo ou se espantava diante de algum objeto que só ele via.

     Tentou lutar contra a fraqueza, acreditar que o disfarce em que estava era completo, irreconhecível.

     Mas tinha a impressão de que só teria sossego quando a cidade ficasse bem longe para trás, quando, ao alcançar o campo aberto, a planície, pudesse abandonar o papel de criadinho e cavalgar ao lado do homem a quem confiara seu destino, ganhando, pela sua proximidade, novas forças e coragem. E de tempos a tempos, procurava inconscientemente encurtar a distância que os separava, refreando o cavalo com um suspiro, quando ouvia a voz de Hosein: “Doucement, doucement” [docemente, em francês], repetida cautelosamente.

     O caminho lhe parecia interminável. .

     Foi necessário fazerem grande rodeio para não passar perto da Vila das Sombras; e Marny começou a pensar que nunca mais se veriam livres das avenidas arborizadas e daquelas vilas silenciosas que marginavam as ruas por onde passavam e que pareciam estender-se indefinidamente.

     Nessa hora matinal, havia muito pouca gente fora de casa, mas qualquer transeunte a fazia encolher-se dentro de seu albornoz, com os olhos esgazeados e apreensivos, quase desfalecendo, ao sentir as palpitações do coração, que batia assustadoramente.

     De uma feita, o trepidar das ferraduras de um cavalo a galope quase lhe tirou o pouco de coragem que lhe restava e, com um grito sufocado, dirigiu o animal para perto de Hosein, agarrando-se freneticamente ao braço dele, e quase caindo da sela. Era apenas um árabe, indistinto nas trevas e ocupado com seus negócios, correndo a todo galope, cavalgando um castanho que relinchou num desafio, quando se adiantou aos demais cavalos. Recobrou ânimo prontamente, sentindo vergonha da própria pusilanimidade, duvidando se algum dia poderia ainda recuperar a força e a coragem de cinco anos passados, anos de esmagadora experiência, que a tinham lentamente abatido. Por muito tempo não soubera o que fosse cansaço e medo. Esgotamento e dor eram para ela apenas palavras, sem o menor sentido, sem a mínima significação. Mas naqueles cinco anos de torturas morais e físicas, aprendera uma lição bem amarga. Sofrera física e mentalmente, até que aquele sofrimento se tornara o fator dominante de sua existência, até que imaginara quanto tempo ainda poderia suportar aquela vida de torturas, quanto tempo se passaria ainda até que o fardo da vida se tornasse mais pesado do que poderia suportar. E agora, ainda estonteada pelo horror do que tinha acontecido durante as últimas horas, mal podia acreditar que estivesse livre. Teria mesmo acabado seu triste fadário? Teria mesmo terminado aquela vida de dores, que a tinham transformado da criança feliz e descuidada em triste e desiludida mulher, que só contava com a morte, pedida a todos os instantes, para aliviá-la de uma escravidão que lhe tornava a vida insuportável? E a morte lhe estivera tão próxima a noite passada! Disso estava certa quando, tentando evitar aquilo que sabia ser uma injustiça clamorosa, interveio entre o marido e o pobre criado de Geradine que, louco de bebedeira e de raiva, volvera toda sua ira contra ela, infligindo-lhe o mesmo castigo que dera ao pobre árabe. O rosto de Clyde parecia-lhe o de um demônio, convulsionado a ponto de ficar irreconhecível e, em seus olhos injetados, ela lera o destino que a esperava. Temporariamente louco, perdera a noção do que estava fazendo. Completamente desamparada, à mercê da força bruta, compreendera agora que, se não fosse a chegada de Carew no momento preciso, a cena teria terminado numa tragédia, em que a sua mente ou seu corpo teria sucumbido à fúria do marido.

     Nunca mais, enquanto vivesse, poderia esquecer aqueles terríveis momentos. Parecia-lhe estar vendo aquela face bestial, aqueles olhos sanguinolentos, fitando-a com ferocidade. As espáduas retalhadas ainda lhe doíam tanto como no momento em que recebera as chicotadas que lhe haviam feito perder os sentidos. Ali a brutalidade de todos aqueles cinco anos tinha chegado ao auge, quando, com insultos que lhe rasgavam a alma, tivera a audácia de espancá-la como a um cão. E não fora outra coisa durante todo aquele tempo! Sim. Fora seu cão, acariciado ou batido, conforme seu estado de ânimo; uma coisa sem importância; uma escrava, vendida como num mercado oriental, comprada por ele meramente para lhe satisfazer os bestiais desejos.

     Com um estremecimento, tentou arredar esse pensamento, pô-lo fora de cogitação. Mas o cérebro extenuado não lhe obedecia à vontade, e continuou a reviver aqueles anos de crueldade, de tortura, de sofrimento, até que seus nervos exasperados chegaram ao auge da tensão em todo o corpo dolorido.

     Tremendo dos pés à cabeça e banhada de suor, pensou que essa idéia terrível nunca a abandonaria, que esse pensamento seria um pesadelo eterno durante o resto de sua vida.

     Desfalecendo de fadiga com as rédeas a lhe escorregarem das mãos úmidas, que as seguravam mecanicamente, rogava desesperadamente a Deus que a fizesse chegar sem demora ao campo, fora da cidade, o que significaria a liberdade, a felicidade. E gradualmente entregando-se, rendendo-se ao cansaço e à dor que se apoderavam involuntariamente de todo o seu ser, não teve mais noção dos lugares por onde passavam. Já se tornara quase inconsciente a tudo, quando o som da voz querida lhe despertou a atenção para o fato de já estarem longe da cidade. Levantou vagarosamente a cabeça para encontrar aqueles olhos graves que fitavam os dela. À vista daquele rosto pálido, Carew aproximou-se, e ela sentiu-lhe os dedos que lhe tateavam o pulso.

     — Podes ter um pouco mais de paciência, minha querida? Estamos ainda perto de Argel, — disse ele.

     E a terna ansiedade dessa voz a fez sufocar um soluço que lhe subia à garganta, comovida com aquela consideração a que não estava acostumada. Endireitou-se na sela para se mostrar firme, e sorriu.

     — Estou bem, — murmurou num suspiro, — e estarei melhor... se puder cavalgar a seu lado, — ajuntou levemente.

     Seus lábios se contraíram ao olhá-la. Então, sem responder, Carew virou-se para o lado do Sul.

     Os movimentos do cavalo de Marny eram macios, e, fora das ruas calçadas de cascalho, o passo vagaroso em que seguiam era menos agitado. Mas foi-lhe preciso toda a força de vontade para se firmar na sela, de modo a esconder dele a fraqueza que a invadia. A força nervosa que a tinha sustentado até ali, abandonava-a agora que se sentia segura contra a perseguição imediata. Nessa reação de alívio, temia o colapso que a todo momento a ameaçava. Suspendeu mais o “haik” para o rosto, de forma que ele não percebesse o suor que lhe inundava as faces e cavalgou, os lábios contraídos, lutando contra a vertigem que lhe fazia ver ondular a paisagem.

     A aurora rompia. Já estava bastante claro para se poder enxergar, e Marny olhava com interesse, para se distrair, o lugar completamente desconhecido para ela.

     Por algum tempo ainda, o caminho que seguiam serpenteava por entre fazendas e pomares, mas havia poucos sinais de vida humana. Os camponeses e pastores que se achavam absorvidos em seus afazeres quotidianos e não prestavam atenção em quem passasse, ou, quando muito, lhes endereçavam o perfunctório “salaam” do estilo, devido principalmente à aparência importante de Carew. Parecia um chefe, ela pensou, com uma sensação de orgulho. Vendo-o assim, era difícil pensar que fosse inglês. Para ela, seria sempre árabe, homem da planície, habitante do deserto. E nas vastidões arenosas das planícies sem fim, para as quais o seu pensamento se voltara sempre com tanto desejo, viveria a vida de liberdade, vida de seus sonhos, vida árdua e cheia de perigos, mas que lhe seria doce, embelezada pelo amor e pela companhia. Ah! se não tivesse vindo a ele da maneira como viera!... Se ele a tivesse encontrado em sua adolescência livre e despreocupada, quando teria podido tomá-la sem mancha nem desonra!... Mas acima do seu amor pairava agora a sombra da desgraça. Era por sua causa que ele fizera o que seria considerado coisa reprovável. Era por ela... E Carew ouviu o soluço estrangulado que ela tentara sufocar, e estremeceu, perscrutando o horizonte com impaciência. Sabia que ela chegara ao limite da resistência física e os braços dele estavam ansiosos por carregá-la, por suavizar a dor daquele corpinho extenuado de encontro a seu peito forte e musculoso. Mas enquanto atravessassem as herdades e pomares, não ousaria arriscar-se a ser notado pelos transeuntes. Nem também, por causa da fraqueza dela, ousava apressar o passo dos cavalos, um passo desacostumado, contra o que Suliman protestava com relinchos e corcovos, escabreando-se, quando tentava entregar-se ao galope do costume.

     Por fim, passaram os últimos quintais das casas e, ocultos pelo terreno acidentado das colinas adjacentes, das quais já se aproximavam, não precisavam maior precaução. Com um suspiro de alívio, Carew dirigiu seu animal para perto do dela, até chegar bem junto, e, inclinando-se de lado, levantou-a facilmente da sela. Ela sujeitou-se sem protesto, descansando o corpo contra o dele, com um gemido de completa exaustão. Carew percebeu que ela estava chorando, mas as lágrimas que tanto o torturavam eram necessárias, para aliviar aquele cérebro agitado que estivera tão perto do naufrágio, de modo que não tentou evitá-las.

     Apertando-a mais contra o corpo, deu de rédeas a Suliman. Relinchando de prazer, o grande baio saltou livre para a frente, enfim, para galopar sua marcha normal, correndo como correra uma vez com aquela dupla carga. A lembrança daquela corrida à meia-noite assaltou Carew, ao baixar a vista para o corpo da moça que segurava bem junto ao seu. Quão diferentes as emoções que sentira naquele momento! Como se revoltara com a sua proximidade, odiando até a vista daquele fardo que agora lhe era tão precioso! Então, cada minuto lhe parecia uma tortura. Agora, no êxtase que o enchia, que se apoderava de todo o seu ser, desejava ardentemente que o caminho fosse mais longo, que nunca chegasse o momento de despertar daquele quase inacreditável sonho e de enfrentar as duras realidades que lhes prometia o futuro.

       Por um instante, seus olhos sombrios se tornaram ainda mais severos, e afastou para longe esse pensamento. Havia bastante tempo para pensar no futuro. Agora devia concentrar o pensamento somente nela. Seu rosto adoçou-se, cheio de piedade, ao fitá-la. Pobre criança extenuada, alquebrada e esmagada por incrível fatalidade. Poderia seu amor, mesmo grande como era, compensar o sofrimento que quase lhe destruíra a vida tão curta? Tudo o que havia de bom em seu íntimo irrompeu, ao aconchegá-la mais ao peito, com um murmúrio de amor apenas sussurrado. Que nunca lhe falasse, que Marny nunca se arrependesse do passo que dera, que nunca abalasse a fé que nele depositara; esta era a súplica mais sincera, mais fervorosa que jamais proferira na vida.

     Mas enquanto o grande baio galopava num passo que era uma verdadeira perfeição, Carew em nada mais quis pensar do que na alegria que sentia naquele momento.

     Depois da estada forçada numa cidade que abominava, depois dos dias de tédio, de relativa inatividade, tão odiosos pela luta mental a que se entregara, sentia-se como um prisioneiro recém-saído do cárcere. Tudo o que desejava esquecer ficara para traz. Adiante estava a vida nova, vida de felicidades, de esperanças. Tinha vaga noção do que isso significava. Não ficaria mais só. Tinha alguma coisa mais do que seu trabalho para se dedicar. Encarava o mundo agora com outros olhos, um mundo de novas maravilhas, transformado e embelezado. Examinou ansiosamente o céu que clareava. Já rompera a alvorada, uma alvorada para ele singularmente simbólica.

     Exultou. A corrida desenfreada ao ar livre da manhã, a brisa fresca que lhe açoitava o rosto sempre lhe eram inebriantes, mas agora o exaltavam como nunca. Não estreitava naquele momento entre os braços o desejo perene de seu coração, não era sua, finalmente sua, a mulher que tanto desejava? Com um sorriso de triunfo, apertou os joelhos contra os flancos de Suliman e incitou-o a subir a colina. O cavalo correspondeu lepidamente ao apelo e atacou a íngreme subida. Mas esta era tão abrupta que, gradualmente, o galope diminuiu, até que esmoreceu, descendo a um passo de marcha. Suliman escolhia cuidadosamente o caminho entre a sebe e os seixos que semeavam a estrada. Subiu assim, laboriosamente, a ladeira sinuosa que enveredava até o cume, e parou, com os flancos arfando, respirando forte pelas narinas.

     Nessa ocasião o sol se levantou em todo seu esplendor, atravessando o amontoado de nuvens e iluminando com luz intensa e sangüínea o firmamento; e o dia nasceu em súbita irradiação, revelando a selvagem beleza das colinas desoladas. Era uma cena de grandeza estupenda. Pelo menos assim parecia ao homem cujo coração não cabia no peito, exultante de uma paixão que o assombrava, e cuja alma sensível estremecia e correspondia à radiante glória de um nascer de sol mais maravilhoso que até então presenciara. Atrás deles, Hosein cumpria seus deveres religiosos, ajoelhado, absorto em extática devoção, de modo que Carew, sozinho com ela, encarava o advento daquele novo dia, daquela nova vida que iriam viver juntos.

     As rédeas soltas caíram das suas mãos sobre o pescoço de Suliman quando ele a levantou nos braços, até que seus lábios se encontraram. Aqueles olhos tristonhos fecharam-se sob o calor desse beijo ardente, um beijo profundamente apaixonado, que traduzia a posse completa, e o sentimento de ter se entregado totalmente a ele despertou-lhe a consciência do passo que dera.

     Tremia quando ele a descansou sobre o solo e sua face empalidecida enrubesceu de pejo.

     Tentou desvencilhar-se dele.

     — Deixa-me ir embora, — gemeu. — Eu não tinha o direito de pedir-te que fizesses isso, não tinha o mínimo direito de tornar-te tudo difícil.

     Mas nos olhos tristes e lastimosos, ele viu o desespero que a levava a mentir naquelas palavras proferidas entre soluços.

     — Tu “queres” ir embora... para ele?... perguntou vagarosamente. A resposta foi um agudo grito que lhe saiu do peito bruscamente, aconchegando-se mais a ele, agarrando-se a ele com toda a força. Com um sorriso de triunfo, beijou-a de novo e virou-se na sela para gritar a Hosein, que já terminara suas orações matinais e esperava discretamente um pouco distante, não mostrando, na face imperturbável, o espanto que lhe ia na alma. Seu amo, que venerava, fora subitamente atacado de loucura inexplicável. Era a única explicação da abjuração dos princípios arraigados, com os quais tinha se familiarizado durante anos de serviço. Perspicaz e observador, refletira muito sobre a mudança gradual que se operara em Carew desde a noite em que escandalizou seu séqüito por trazer uma mulher para o acampamento, donde as mulheres sempre haviam sido escrupulosamente excluídas. E, agora, aquela mesma mulher estava em sua sela, cativa voluntária do homem que inclinava um rosto completamente transfigurado sobre o dela. Que seu amo não tivesse direitos sobre ela, que fosse a esposa do “Sidi” estrangeiro de quem se falava tanto em Argel, eram assuntos que não importavam de modo algum a Hosein. Não eram de sua conta. Se seu amo encontrara afinal a felicidade... quem era ele para julgá-lo? Uma vez também já fora assaltado pela mesma loucura.

     Quando Hosein se colocou ao lado deles, segurando o cavalo livre, Marny tentou levantar-se.

     — Estou descansada agora, deixa-me montar! - murmurou.

     Mas Carew notou-lhe a face contraída da dor causada pelo esforço que fizera, e abanou a cabeça.

     — Não estás em condições de montar. Recosta-te e sossega, disse de modo decisivo.

     — Mas não poderás me carregar toda a viagem, sou tão pesada... — ela objetou fracamente.

     — Pesada! — exclamou rindo, — tão pesada como um coldre a mais. — E, seguindo rápido relancear de seus olhos, ela notou pela primeira vez a pequena maleta de couro pendurada do outro lado da sela.

     A vista daquele objeto lembrou-lhe a vida aventurosa que seria a dela e a fez rebelar-se contra a fraqueza que lhe parecia torná-la companheira tão imprópria para ele.

     — Deixa-me tentar, — insistiu, suplicando. Mas ele abanou a cabeça novamente.

     — Faze o que te digo, minha querida, — disse com um sorriso que amenizou a rispidez da voz. — Estás exausta, e terás febre se não ficares como estás. Não posso te deixar cair de fadiga no deserto. Precisarás de toda força indo para onde vais.

     E ela conjecturou para onde iriam, com indiferença. Nada sabia de seus planos. Iria contente para onde ele a levasse. Confiaria a vida à sua guarda e ele poderia dispor dela como bem entendesse. Com um suspiro deixou pender a cabeça sobre o seu peito, agradecida ao amparo daquele braço forte que a cingia, entregando-se àquela força tão estranhamente suave e gentil.

     Uma sonolência a que não tentou resistir a invadiu, ao se aninhar de olhos fechados, ouvindo o murmúrio das vozes dos dois homens. Falavam árabe. Não compreendia, mas parecia-lhe que Carew estava dando ordens a que seu servo respondia com a usual concisão. Depois, foi o silêncio. Compreendeu que Hosein os deixara e eles se encontraram sozinhos no cume da colina, agora completamente inundada pelo sol da manhã. Morta de sono, sentia os braços de Carew a apertarem mais de encontro ao corpo. Ouviu, sem compreender bem, as explicações que ele lhe dava, de ter mandado o árabe na frente para preparar o acampamento. E adormeceu no momento em que os lábios de Carew afloravam os seus.

     Despertou dia alto. A princípio, ainda estremunhada e tonta de sono, teve apenas a sensação de conforto físico. Seus membros lassos haviam repousado. Reclinara-se sobre várias almofadas macias, que lhe suavizavam a dor das espáduas retalhadas. Com um suspiro de contentamento, aninhou-se mais confortavelmente entre os travesseiros de seda, aspirando, com delícia, o leve perfume oriental que exalavam. Imaginava vagamente que Ann viria despertá-la. Ann? Ann nunca mais viria despertá-la! Ann se fora, vítima de uma tirania mesquinha! E ela... Com um grito estrangulado levantou-se precipitadamente, tremendo, passeando a vista em redor, como se estivesse prestes a perder a razão. Depois, lembrou-se bem de tudo. Soluçando, caiu sobre as almofadas do largo divã, onde por uma vez dormira tranqüila e confiante.

     Maravilhada, olhou pela primeira vez para o aposento, para os móveis árabes simples mas valiosos, para a panóplia cheia de armas que ficava próxima ao leito, para a caixa de objetos masculinos que, como uma sugestão de intimidade, lhe revelava, mais claramente que antes, a significação do que havia feito. O quarto dele! O sangue subiu às suas faces e ela escondeu o rosto nos travesseiros, sussurrando o nome dele, estremecendo ao mesmo tempo de temor e alegria, desejando que ele viesse e, no entanto, assustando-se só ao pensamento de sua vinda. Quanto tempo se passara, desde que a trouxera para ali? Quanto tempo se passara desde que adormecera em seus braços, no cume da colina banhada de sol? O quarto estava sensivelmente mais escuro, quando levantou a cabeça e se sentou, com o ouvido à escuta de algum som que lhe pudesse assegurar que ele estava perto. Mas apenas distinguiu o ruído distante do acampamento, o relincho agudo de um puro sangue, o dolente zurrar de um burro, e, mais perto, o ranger monótono de uma peça de qualquer mecanismo, de cujo uso não fazia idéia; ruídos estranhos, que lhe pareciam familiares, como ecos desvanecidos de outra vida há muito esquecida, ruídos que lhe recordavam o tempo longínquo em que vivera e amara, com a proximidade de sons que agora a agitavam com uma vaga sensação de espanto.

     O amor morreria algum dia? Seria esta paixão, que tão subitamente a dominara, a ressurreição de outro amor que já sentira em outra encarnação? Ela já teria amado aquele homem? Teria ele já também vivido nalguma idade remota, que parecia agora lutar pela volta à consciência? Teriam suas almas erradias, por muito tempo desoladas e solitárias, triunfado sobre a barreira que as separava para se juntarem novamente e gozarem a ventura passageira da felicidade terrestre?

    Com um sorriso, saltou do leito e dirigiu-se vagarosamente para a pequena mesa de toucador, no canto do aposento. Mirou-se curiosamente no espelho fronteiro, estremecendo, de tão cansada e empalidecida, ante a própria fisionomia.

     Tirara o apertado “haik” e os cabelos sedosos lhe caíam pelos ombros em ondas brilhantes. A cor veio novamente às suas faces, ao tentar arranjá-los. No momento em que lidava com os grampos que achara, duas mãos lhe tocaram suavemente os ombros, assustando-a.

     — Vais escondê-los? Estavas tão linda assim!

     Havia uma nova entonação na voz de Carew, um tom de intimidade em suas maneiras, quando desapertou calmamente os macios cachos que ela atara apressadamente. Puxou-a para si. Marny, porém, não ousou encará-lo de frente e, rendendo-se ao abraço, escondeu o rosto timidamente.

     Com uma palavra carinhosa, Carew tomou-lhe do queixo e levantou-lhe o rosto. Seu amor ardente bradava por uma expressão, mas a expressão dos olhos queridos lhe paralisou as palavras apaixonadas que lhe rugiam nos lábios. De que valeria o amor, se o egoísmo viesse antes da consideração? Inclinou o rosto para a bem-amada.

     — Pensas que não compreendo? — murmurou, — pensas que não imagino como tudo isto é... estranho? Mas não te intimides, minha querida. Lembra-te somente que te amo, que daria a vida para que fosses feliz. Tudo farei para te ver satisfeita e contente, para fazer com que tudo te pareça alegre...

     Mas, ao falar, a reserva que se impusera pareceu fugir-lhe por um momento, e apertou-a convulsivamente.

     — Criança! Criança! se soubesses como tenho te desejado! Se soubesses o que significa para mim apertar-te nos braços... aqui!... Saber que és minha, inteiramente minha. Marny!...

     Sofreou-se, com um gesto contrito, com as mãos pendentes.

     — Perdoa-me, querida! — disse gentilmente. — Não pretendi ser rude contigo. Por nada deste mundo eu te magoaria.

     Lágrimas prestes a borbulhar anuviaram os olhos de Marny, que o fitou estranhamente, e perguntou:

     — Rude? Sabes lá o que é rudeza? Acaso tu poderias magoar-me mesmo que o quisesses?

     Então, com o rosto contraído, estendeu-lhe as mãos num gesto de apelo.

     — Não me faças lembrar! — gritou, — ajuda-me a esquecer o passado! Nem mesmo te posso contar. Quero esquecer... tudo... tudo... menos teu amor. Oh! meu Curandeiro do Deserto, tu que curas os outros, cura-me a mim também! Faze-me forte de novo! Forte e capaz de compartilhar tua vida, de ser tua companheira. Não me deixes pensar no que passou. Oh! Gervásio, não me deixes pensar!...

     Voltara aos olhos dela a expressão que ele temera ver de novo, e todo o corpo dela tremia agarrando-se a ele, esquecida de toda timidez na agitação que a fazia procurar unicamente sua proteção e consolo. Com ternura quase feminina, ele a acariciou, abraçando-a, até que a comoção passou e ela ficou nos seus braços.

     — Já passou, — disse afinal, — já passou e está tudo acabado. É uma nova vida que começa para nós,minha querida, nova vida que te dará saúde, força e, se Deus

me ajudar, a maior alegria que tenhamos sentido em toda a vida. O deserto te curará, minha Marny idolatrada, como me curou há tantos anos passados. Fecha teu espírito ao passado. Pensa somente no futuro e... em nossa felicidade.

     Um soluço amargo escapou-se do seio arfante.

     — Não temos nenhum direito de ser felizes! — gemeu.

     Carew não respondeu, mas ela sentiu que ele se inteiriçava subitamente, e seus olhos mergulharam nos dele, amedrontada.

      — Gervásio... — suspirou, — que vais fazer... se ele não se divorciar de mim? Oh! não o conheces como eu, não sabes do que é capaz. Recusaria o divórcio somente para

ter certeza de que ainda tem poder sobre minha pessoa, somente para me conservar ligada a ele, somente para nos magoar. Gervásio, se eu nunca puder ser livre, se eu nunca puder ser tua esposa... o que será então?

     Uma sombra inundou o rosto dele.

     — Será o preço de nossa felicidade muito grande para que não o possas pagar, Marny? Ou duvidas de mim — perguntou vagarosamente.

     — Gervásio...

     Os beijos ardentes dele lhe interromperam os protestos e em seus olhos só havia amor e carinho, quando a abraçou com mais força.

     — Será sempre minha esposa... como agora. Nada o poderá impedir. Nada se interporá entre nós. Deus sabe quanto tens sofrido! Quando chegar o tempo, Ele poderá julgar-me pelo que fiz. Mas enquanto eu viver, serás minha e nenhum poder na terra poderá tirar-te de mim.

     Sua voz profunda vibrava de paixão e, por um momento, a pressão de seus braços foi-lhe dolorosa. Então, como envergonhado por ter demonstrado o sentimento que o possuía, Carew afastou-a suavemente.

     — Sou um bruto! — exclamou com remorso. — Vem comer, pobre criança. Não tive coragem de te acordar antes! Estavas num sono tão profundo!

     Quando passou para o quarto contíguo, Marny se deixara dominar pela primitiva timidez. E, durante toda a refeição, que se seguiu, conservou-se silenciosa. Comia mecanicamente, evitando o olhar de Carew e, de tempos a tempos, com furtiva curiosidade, relanceava a vista ao redor da grande tenda.

     O coração de Carew doía-lhe intensamente ao observá-la com um cuidado que tratava de esconder. Desejava ajudá-la, desejava tornar-lhe mais amena a situação que sabia só agora ser compreendida claramente por ela, temendo aumentar-lhe o constrangimento por qualquer palavra ou gesto que lhe sublinhassem as novas relações entre ambos. O amor lhe facilitava adivinhar os pensamentos dela. Com sutil intuição, percebeu perfeitamente a luta que a completa noção daquela situação deveria ter despertado nela. Embora o amasse e se tivesse entregue a ele de corpo e alma, compreendia que ela deveria estar medindo bem as conseqüências de seu próprio ato. Seus braços lhe haviam sido refúgio seguro, quando precisou de socorro. Mas eram os braços do homem que amava, e aí, em sua tenda, ela deveria enfrentar o duro fato de sua obrigação para com ele, enfrentar o pagamento da sua libertação, um... pagamento que só o amor de ambos poderia tornar suportável. Mais que nunca, Carew pensava que seu amor exigia outro modo de expressão. Continha-se resolutamente, fazendo o papel de hospedeiro impassível, quase com fria cortesia ao servi-la e mantendo a conversação dentro dos limites da estrita trivialidade. E conversação trivial não era fácil naquele momento. Sabiam tão pouco um do outro! ele ainda não lhe conhecia os gostos, não sabia seus desejos, suas predileções. Para todos os fins, apesar do amor que os tinha arrebatado a ambos, eram ainda estranhos um ao outro. E, ainda mais embaraçado por sua timidez e reserva, era-lhe muito difícil encontrar um assunto de palestra.

     Mas quando o breve crepúsculo deu lugar à noite e acenderam as lâmpadas na tenda, quando Hosein se foi embora de vez, deixando-os sós, ele achou impossível continuar a manter aquela atitude de desprendimento que, adotada, tornaria impossível tocarem em certos assuntos que tinham necessidade de discutir entre ambos. O sentimento da mútua solidão ali na tenda do deserto e a intimidade do momento o agitavam profundamente. E a vista daquela criatura adorada deitada entre a pilha de almofadas do divã, mais bela do que jamais a tinha visto, infinitamente enternecedora como lhe parecia na completa dependência dele, era uma tentação muito forte para resistir; e o coração saltava-lhe no peito furiosamente, ao dirigir-se para ela.

     Não menos agitada que ele, Marny respirava apressadamente e seus olhos tímidos encontraram os dele por um breve minuto, quando se afastou para lhe dar lugar a seu lado. Sentando-se, ele pegou-lhe na mão e beijou-a. Depois, sustentando-a firmemente, jogou-se contra a barreira de frieza que se levantara entre ambos, e falou francamente, sem reservas, sobre o futuro e a vida que compartilhariam dali por diante. Depois ainda, porque estava firmemente convencido que o amor só poderia ser aperfeiçoado pelas confidências mútuas e pela confiança, falou-lhe de sua vida, contou-lhe a história daqueles anos passados no deserto, da tragédia que lhe destruíra a juventude e o levara a um exílio voluntário, e do consolo que encontrara no trabalho, que se lhe tornara, por fim, tão caro!

     Terminadas as próprias confidências, conseguiu tirar dela, ponto por ponto, a história de sua juventude feminina e daquele casamento lastimável. Mas quanto aos sofrimentos que aturara das mãos daquele bruto, a quem fora vendida pelo irmão, nada lhe ouviu.

     — Tu o sabes, — murmurou com os lábios trêmulos. — Viste na manhã seguinte ao baile do Governador. Não devo falar disso. Magoa-me.

     Por um momento, ele a segurou bem apertada contra o peito, os olhos brilhando como ela já os vira uma vez. Depois, levantou-se bruscamente, atravessando o quarto em toda a extensão a passos largos, afastou a cortina da entrada e estacou na porta, contemplando a noite.

     Marny inclinou-se no divã para observá-lo, imaginando a associação de pensamentos que suas palavras tinham produzido no espírito dele e receou havê-lo melindrado com suas reticências. Mas ele não lhe deu explicação alguma de seu movimento súbito. Depois de curto lapso, voltou para junto dela, impassível e inescrutável como sempre, e acomodou-se à moda árabe sobre uma pilha de almofadas. Acendendo um cigarro, conversou animadamente durante muito tempo, pontuando as breves observações com longos silêncios que ela não interrompia. À proporção que a noite passava, tornava-se cada vez mais distraído, até que finalmente cessou completamente de falar, e ficou imóvel, com os olhos fixos no tapete, fumando cigarro sobre cigarro.

     Marny sabia que já era muito tarde. Os tantãs e outros ruídos característicos do acampamento e que ouvira de tarde há muito que haviam expirado. Sentindo um silêncio que quase lhe doía, apurou os ouvidos buscando distinguir qualquer ruído que quebrasse aquela quietude profunda, que lhe lembrava noites de há muito passadas na Irlanda. Os próprios cavalos estavam tranqüilos e nem um uivo de chacal interrompia a intensa tranqüilidade do deserto. Parecia-lhe que todo o mundo dormia e somente ela estava acordada; ela e o homem a quem deveria dar muito breve a prova final de seu amor e entregar-se. Levou as mãos ao rosto em brasas e deixou-se cair entre as almofadas de seda do divã, tremendo irreprimivelmente, dilacerada pelo conflito que ia na sua alma.

     Amava-o, amava-o muito, com toda a força de seu ser, loucamente, inteiramente. Dar-lhe tudo o que ele pedisse seria sua maior alegria, além de toda a expressão, mas... oh Deus de bondade! por que deveria seu amor, o amor dele, ser manchado pelo pecado? A noite anterior ele a amara o bastante para deixá-la ir. Mas seu corpo covarde lhe suplicava o contrário até tornar a renúncia impossível a ele. Ela, só ela era responsável. O pecado era dela, não dele. Então, fosse a única a pagar. Orou apaixonadamente, cerrando os dentes para sufocar os gemidos de agonia que lhe subiam à garganta. Enfraquecida pela emoção, vagamente assustada com o prolongado silêncio dele, ardia pelo amplexo de seus braços fortes, faminta de seus beijos, desejando imensamente o conforto e o sossego de sua voz. Em que estaria ele pensando, imóvel, franzindo pesadamente as sobrancelhas, fitando o espaço, já nem fumando? Seria a lembrança das tristezas passadas que lhe narrara, o que lhe transfigurava as feições agora tão austeras e tristes? Um acesso de ciúme a arrepiou. Mas conseguiu recalcá-lo, enquanto os olhos sonhadores e ternos se lhe inundavam de lágrimas. Por que teria ciúmes? O passado já era passado, e o amor dele era agora seu. Provara-o, fora de qualquer dúvida. E já havia mesmo feito tanto, que seria loucura esperar que lhe concedesse todos os momentos de sua vida. Tinha outros assuntos, além dela, que lhe prendiam a atenção, assuntos que, por sua causa mesmo, se tornariam agora necessariamente mais complexos. Seria pois, muito natural que ficasse preocupado e em silêncio por algum tempo. Ela deveria ficar contente e esperar. A seu tempo, ele lhe volveria de novo.

     Quando, por fim, Carew se levantou com rapidez silenciosa, ela estava tão quieta que parecia dormir. Inclinado sobre ela, estendeu as mãos para aquele corpinho deitado e tranqüilo. As pernas lhe tremiam ante a feroz onda de emoção que o invadia, e tinha os olhos esbraseados de amor e desejo. Ansiosamente, contemplou a mulher de que se apossara. Por que hesitava? Não era ela sua, por vontade própria, sua para lhe dar o que quisesse? Por que sofrear-se, conter-se? Quem, depois do que fizera, acreditaria que ele a respeitara? Se seus temores eram justificados, se ela não conseguisse a separação do marido, que ganharia qualquer dos dois? Se não fosse naquela noite... então seria mais cedo ou mais tarde... porque ele nunca mais a deixaria ir embora. Esposa ou amante, o que quer que fosse, ele a conservaria até o último suspiro. Cada vez mais baixo, inclinou-se sobre a criatura querida.

     A quente exalação de seu corpo, o leve perfume inebriante do cabelo sedoso, atiçando-lhe o desejo desesperado, lhe arrancaram o último resquício de domínio. Arrebatou-a nos braços, apertando-a contra o peito arquejante, beijando-lhe os lábios, os olhos, o pescoço, até que cansada, exausta daquele abraço, Marny deixou-lhe pender a cabeça sobre o ombro e ele a levou com os lábios descorados para o quarto interior. Mas, ao enfrentar as cortinas que barravam a porta, seu ímpeto esmoreceu. Estacou. Cobriu-lhe o rosto uma dolorida expressão de incerteza e amargura. Fitou, com tristeza, aqueles olhos cheios de espanto. Depois, com um soluço estrangulado, depondo-a gentilmente de pé, afastou suavemente as cortinas de seda.

     — Entra, pelo amor de Deus, entra! — tartamudeou, colocando as cortinas no lugar.

     Não! ainda não! Não, enquanto lhe restasse uma oportunidade de possuí-la sem desonrá-la! Aquilo que o mundo não acreditaria, ainda era possível para ele que a amava. Antes de se certificar, fora de qualquer dúvida, de que ela nunca poderia ser legalmente livre para casar com ele, a conservaria isenta de qualquer mancha causada pela sua paixão. Mas, Deus misericordioso, quanto tempo ainda se passaria? Quanto tempo seria ele capaz de resistir? Estava comprometido com Sanois e jurara levá-la consigo. Seria bastante forte para resistir à tentação durante tantos meses que passariam juntos, numa proximidade arrebatadora e apaixonada, cavalgando dia após dia a seu lado, sob o sol escaldante do deserto, dormindo noite após noite apenas separados por uma frágil cortina? Não sabia... Sabia apenas que esta noite as forças o haviam abandonado e não ousara permanecer a seu lado por muito tempo. A calma irradiação do céu estrelado, a profunda tranqüilidade da noite como que zombavam dele, que fugiu da tenda sem olhar para trás, amedrontado. A noite era duma beleza mística, exalando suaves odores orientais, langorosa e impregnada de emanações, noite que convidava ao amor.

     Com um gemido surdo, passou as mãos pelos olhos, como se para afastar uma agonia que se tornava insuportável, amaldiçoando o escrúpulo que o fizera deixá-la naquele momento, e amaldiçoando ainda mais o homem que se interpunha entre eles. O sangue lhe rugia nos ouvidos e tinha o cérebro em brasas, ao passear, cambaleando, pela escuridão do pequeno vale que circundava o acampamento, lutando com todas as forças para dominar o desejo que o possuía, para banir o torturante pensamento da proximidade da mulher adorada. Cego ao caminho que seguia, somente via em frente aquele rosto pálido e meigo, que se ruborizara ao contacto de seus beijos ardentes. Via somente a beleza tentadora daquele corpo delicado e esbelto. Estaria ela dormindo? E rogava de todo o coração que estivesse. Ou estaria acordada, desejando-o como ele a desejava, sofrendo como ele sofria? Ainda há pouco, tremera nos braços dele e um temor lhe subira aos olhos agitados. Mas não fizera o mínimo esforço para repeli-lo, não lhe rogara que a deixasse. Ao contrário, se agarrara a ele com toda a força. Parecia-lhe ainda sentir o contacto de seus dedos macios e esguios, frios e trêmulos contra os seus, sentir-lhe o rápido bater do coração amante, o arfar tumultuoso dos seios, quando a carregava pela tenda. Ela tinha querido naquele momento... e ele... Estendeu as mãos para diante com um grito amargo e caiu como uma tora, pesadamente, escondendo o rosto entre as mãos. Muitas horas ficou imóvel sobre a areia quente, arrebatado de paixão para poder dormir, até que, finalmente, a febre que o consumia diminuiu de intensidade e teve, então, a consciência nítida de que, pelo menos durante algum tempo, a vitória sobre si era completa.

     Mas não poderia conquistar tão facilmente a paz de espírito. Ainda tinha que tomar outra decisão, antes que as estrelas desaparecessem e o sol anunciasse a alvorada de outro dia, uma decisão que já havia tomado no âmago do coração. Para aquiescer à delirante súplica da mulher que amava, no empenho de poupar-lhe mais e maiores sofrimentos, fizera uma coisa imperdoável. Isso não o afligia. Não lastimava, nunca lastimaria. A felicidade da mulher amada estava acima de qualquer outra consideração. Na noite anterior, a única coisa em que pensara fora ir em seu socorro. Louca de medo, ela lhe suplicara que a tirasse de Argel, e ele consentira, temendo as conseqüências funestas de uma recusa. Mas esta noite os pensamentos dele estavam concentrados no marido, de quem a tinha tirado. Este nunca a deixaria, sim... nunca a deixaria. Mas também... nunca roubaria secretamente a mulher de outro.

     Por isso voltaria para Argel, voltaria para enfrentar o homem a quem causara dano. E qual seria o resultado dessa entrevista? Pouco importava o que Geradine fizera. Marny nem por isso deixava de ser sua esposa. Pouco importava o que Marny sofrera em suas mãos. Clyde nem por isso deixava de ser seu marido. Nenhuma circunstância atenuante poderia tornar aquele ato menos indiscutível, nem diminuir a culpabilidade dele, Carew.

     E que faria Geradine?

     Levantou-se deliberadamente com um triste, acerbo sorriso. Sabia bem o que faria se as situações de ambos estivessem invertidas, o que teria feito há doze anos passados, caso encontrasse uma oportunidade. Se Geradine o matasse como a um cão, como merecia, que seria da moça que se confiara inteiramente a ele? Ficando, conspurcaria o respeito por si próprio. Indo, sabia que talvez não voltasse. Oh! céus, que dilema! Mas não havia outra saída possível. Estava resolvido, e o resto seria com Geradine. Aquele bandido, que não hesitara em bater numa mulher, seria capaz de combater para reavê-la, capaz de vingar a própria honra? Ah! se ao menos o fosse, por Deus! se ao menos o fosse!... a respiração sibilou-lhe por entre os dentes cerrados, e os punhos se cerraram numa feroz antecipação ao pensar no encontro próximo Manifestou-se nele o homem primitivo, ao imaginar com prazer singular as formidáveis proporções e os músculos poderosos de Geradine. É verdade que o tinha derrubado a chicotadas a noite passada, mas o homem estava bêbedo. Prouvesse aos céus que não o estivesse daquela vez!

     Com um estranho sorriso, girou nos calcanhares e tomou a direção do acampamento adormecido.

     Mas, ao aproximar-se da tenda, seus olhos velaram-se de dor e tristeza, ante a cortina que barrava a entrada do aposento vazio. Como poderia deixá-la só, a esperar que voltasse, se acaso... voltasse! Qual o efeito das longas horas de espera sobre o organismo e o cérebro daquele ente já tão agitado e perigosamente exausto? Os lábios lhe tremeram ao afastar as cortinas e dirigir-se para o leito baixo, apenas visível na semi-obscuridade.

     Ao leve murmúrio de sua voz, respondeu um soluço abafado e, da escuridão, saíram dois braços macios que lhe enlaçaram o pescoço e lhe puxaram a cabeça para um travesseiro úmido de lágrimas. A moça chorara amargamente. Era evidente. Agitado como se encontrava, quase abandonou a resolução anteriormente tomada. Mas dominou a momentânea fraqueza.

     — Minha querida, minha adorada, — murmurou roucamente. — Já te fiz chorar tão cedo? Será que te faltei justamente na noite, no momento em que tinhas mais necessidade de mim? Pensas que não me afligi... que não te quis... que não te desejei ardentemente...? Pensas que me foi fácil sair do céu de teus braços para um inferno de solidão sob aquelas amaldiçoadas estrelas!? Só Deus sabe quanto me foi duro.. . tão duro quanto o que tenho a te dizer agora.

     E, com a franqueza que o caracterizava, disse-lhe claramente seus planos e a resolução que tomara.

     A princípio ela pareceu não compreender, mas depois, apanhando o sentido de suas palavras, explodiu num grito de terror.

     — Oh! não deves ir, não podes ir... não podes!... Oh! Gervásio, fica comigo... não me abandones! Se fores, nunca mais voltarás e eu... — estremeceu horrivelmente, num espasmo frenético e a sua voz se tornou um simples sussurro agoniado. — Clyde te matará. Gervásio, ele te matará! Oh, meu Deus!

     — Pede a Deus que eu não o mate! — retorquiu ele surdamente. E com uma firmeza gentil, desvencilhou-se daqueles braços que lhe rodeavam o pescoço ansiosa e nervosamente. — Tenho de ir, minha querida, — disse positivamente, — porque é a única coisa que me resta fazer.

     E, incapaz de suportar por mais tempo aquele pranto ardente, levantou-se para sair.

     Mas ela se pôs de pé com um gemido angustioso, tentando retê-lo com todas as forças.

     — Gervásio, Gervásio, não me deixes assim!... Dize-me que me amas, dize-me que voltarás para mim...!

     Por um momento, os lábios dele se colaram aos da moça. Depois, deitou-a no leito.

     — Bem sabes que te amo, Marny, que te adoro! — respondeu. — E é justamente porque te amo muito que devo voltar a Argel.

     Havia tal entonação de tristeza em sua voz que Marny apenas pôde mergulhar o rosto nos travesseiros para abafar os soluços que a sufocavam. Mas havia naquelas palavras uma expressão de decisão, que outra súplica qualquer era impossível. Nada que dissesse o demoveria. Sua vontade era mais forte do que a dela. Sabia que, a despeito do amor e da consideração que tornariam agora a posse tão diferente, sabia bem que somente mudara de um senhor para outro.

     Quando levantou a cabeça, achava-se só, e inteiriçou-se, tremendo mortalmente, com o ouvido à escuta, até senti-lo dolorido, para poder ouvir o último som de sua voz. Mas no quarto contíguo só havia silêncio e, levada por um desejo irresistível, atravessou as cortinas que separavam os dois aposentos. O reposteiro da entrada principal estava meio afastado e, abrindo bem os olhos, deixou-se ali ficar por algum tempo, a fim de ainda tentar vê-lo pela última vez, rogando fervorosamente pela sua volta. Quando ele passou, teve apenas uma visão rápida, uma vaga impressão de duas sombras de cavalos, que passaram rapidamente defronte da tenda para se sumirem na escuridão da noite. Soluçando e cambaleando, voltou para o quarto interior e atirou-se ao leito, entre as almofadas ainda úmidas das lágrimas que tinha vertido durante todas aquelas horas solitárias e agora lhe vinham novamente, em torrente apaixonada. Não podia objetar a resolução dele. Era bastante que tivesse resolvido para que fosse o melhor que tinha a fazer. Não havia nenhuma amargura em seu pesar, em sua aflição. Não sendo egoísta, não pensava em si. Era somente nele que pensava, somente por ele que se afligia. A força bruta que conhecia por experiência própria, a selvagem e desenfreada natureza que conhecera tão bem, o que fariam? Que tragédia horrível resultaria do encontro daqueles dois homens tão estranhamente opostos e tão estranhamente ligados por um mesmo desejo?

     Torturada por cogitações horríveis, louca de terror, contorcia-se numa angústia que lhe tirava todo poder de raciocínio, e, agitando-se, rolando sobre as fofas almofadas do leito onde se achava, e que não lhe proporcionavam nenhum sossego aos doloridos membros, chorou, até que as suas lágrimas secaram, até que completamente exausta dormiu profundamente.

     Era meio-dia quando acordou.

     O quarto estava inundado de luz, e aquecido pelos raios verticais do sol escaldante sobre o teto da tenda. Saltou da cama e permaneceu um momento de pé, apertando com as mãos a garganta dolorida de soluçar. Depois dirigiu-se para o “toilette”. No canto mais distante do aposento, encontrou um banheiro, mobiliado à moda espartana, mas contendo tudo o que era necessário. Meia hora depois, banhada e fresca, voltou para o salão maior da tenda. Ao entrar, Hosein, que se encontrava acocorado sobre os calcanhares, levantou-se diligentemente e fez-lhe um respeitoso “salaam”. E ao ouvir aquela voz baixa, inquirindo se desejava comer naquele momento, imaginou quanto tempo ele estivera ali esperando, vigiando. Imaginou o que poderia existir atrás da fisionomia impenetrável daquela criatura de maneiras tão atenciosas. Na noite anterior, soubera, por Carew, da devoção do servo árabe e da confiança que existia entre eles. Por isso agora a sua presença deu-lhe uma impressão de segurança e sossego. Sabia, sem que lhe dissessem, que Carew a tinha naturalmente confiado à guarda do fiel criado. Sabia também que Hosein devia estar a par do motivo da ausência do amo, de forma que o seu porte calmo e a imóvel expressão do seu rosto insensivelmente pareciam trazer-lhe uma calma completa ao espírito conturbado. Porém quando terminou a refeição, que surgira quase magicamente, quando Hosein se foi e ela ficou de novo só, mais uma vez a sua coragem anterior desapareceu e outros pensamentos de dúvida e temores, oprimindo-a mais do que antes, assaltaram-na de novo. Como poderia descansar? Como passaria, como suportaria aquelas horas de espera angustiosa, de uma espera que talvez fosse interminável? E à agonia do presente, se juntou a agonia do passado de sofrimentos. Por que a sua vida fora tão difícil? Que fim teria a desgraça que suportara até ali? Seria que só pela desgraça e pela dor poderia atingir à perfeição eterna? Os seus lábios tremeram. A meta parecia-lhe muito distante para que a pudesse atingir. A sua fé não fora bastante forte para confiar somente no Divino Consolador. No seu desespero voltara-se para a consolação terrena, e o clamor do seu coração faminto de amor a havia levado a se entregar aos braços do homem que a amava. E sendo ele o mais forte, fora ele que lutara para salvá-la das conseqüências da sua fraqueza. Tentara-o, tentara-o com o seu modo, tentara-o com a ameaça de suicídio. Por que ele não a odiara como a uma vil coisa desprezível? Gervásio! Gervásio! Fria e trêmula, torturada pela sensação de incerteza, sem consciência das horas que se escoavam, atirou-se no divã, esperando, desesperando, até que lhe foi impossível pensar, até que todos os seus sentidos pareceram concentrar-se numa única percepção, imobilizando-se à espera de ouvir o macio galope de Suliman.

     Afinal de contas não foi um ruído que a despertou, mas uma instintiva intuição, qualquer coisa indefinida que lhe penetrava no cérebro, e que a fez levantar-se sobressaltada e dirigir-se correndo, o coração na mão, para a porta aberta.

     O sol descambava no ocidente e desenhava nitidamente todos os acidentes da planície que se estendia em frente a perder de vista. Mas seus olhos dilatados e ansiosos não viam nada da beleza da paisagem que a rodeava, apreensiva pelo momento que decidiria sua sorte. O acampamento estava silencioso. Não havia o menor sinal de vida, nada que se lhe interpusesse diante da vista, nada a não ser a singular nuvem que por intervalos lhe empanava os olhos. Nunca soube quanto tempo permaneceu assim. Um único pensamento a fazia imóvel e atenta, uma pergunta somente se repetia monotonamente nos seus lábios. Qual deles voltaria? Qual?

     Subitamente, “soube”. “Soube”, mesmo antes que três figuras de cavalos se desenhassem ao longe, por trás de uma volta brusca de uma rocha saliente, emoldurada à entrada do pequeno vale.

     Desfalecendo com o choque de alívio que sentira, agarrou-se às cortinas para não cair, espiando o galope dos animais que se dirigiam a toda a brida para a tenda como se todas as forças infernais lhe viessem atrás. Por que eram três? Somente um criado fora com ele. E o cavaleiro que corria tão perto dele não era nenhum árabe. O coração pareceu-lhe parar de bater, ao reconhecer a esbelta e pequenina figura, cujo modo de montar lhe era tão familiar.

     Oh! Deus! Que teria acontecido? Por que vinha Tanner com ele?

     Mas não teve tempo de refletir. Viu o cavalo completamente coberto de espuma e arquejante, mas ainda fogoso e arisco, apesar da estafante corrida a que se tinha submetido, disparar em direção à entrada da tenda; viu o cavaleiro refreá-lo com dificuldade até conseguir imobilizá-lo. Depois, no momento em que Carew saltava em terra, um pânico dominador apossou-se dela e correu a recolher-se dentro da tenda, com os olhos dilatados e tremendo.

     Carew entrou pela porta principal, vagarosamente, com passo vacilante, e tomou-a nos braços sem uma palavra. Estava cinzento de pó e de fadiga. Havia certa estranheza em suas maneiras, o que forçou Marny a romper o silêncio:

     — Geradine...

     Essa palavra de tão medrosamente murmurada, foi-lhe apenas perceptível. Mas ele a ouviu, todavia, e apertou mais o braço com que a estreitava num movimento convulsivo.

     — Morto! — disse com os nervos distendidos.

     Ela não o repeliu, mas o seu rosto tornou-se cadavérico e um terrível estremecimento agitou-lhe todo o corpo.

     — Não foste tu... Gervásio. Oh! dize-me, não foste tu, não é? — suplicou.

     Carew embebeu-lhe os olhos nas pupilas, com infinita ternura e infinita compreensão.

     — Não! Graças a Deus! Não fui eu! — respondeu, — Malec matou-o. Mataram-se um ao outro. Tanner encontrou-os mortos quando voltou para casa na manhã seguinte. Os outros criados tinham fugido, a casa estava abandonada. Não te posso dizer mais nada, minha querida. É horrível demais.

     Marny aconchegou-se mais a ele, enfraquecida, o rosto escondido entre as dobras do pesado albornoz, tremendo dos pés à cabeça. Quando ele se interrompeu subitamente, ela chegou-se mais ainda para bem juntinho, agarrando-lhe o albornoz com os dedos nervosos.

     — Foi por minha culpa... foi por “nossa” culpa? — perguntou num soluço angustiado.

     — Não! — respondeu ele, quase violentamente. — Foi por culpa dele mesmo. Foi ele próprio o único culpado de sua morte. Agora está morto, pobre diabo, e Deus sabe que não me arrogo o direito de julgá-lo.

     Fitou-a silenciosamente por um momento, depois as suas feições, de excessivamente rígidas que estavam, se transfiguraram, e uma alegria enorme lhe alvoreceu nos olhos.

     Inclinou a alta figura sobre os cabelos sedosos e macios que se espalhavam pelo seu peito.

     — Marny, — murmurou impulsivamente. — Marny, minha esposa!

     Com um grito, que significava amor, confiança e alegria indescritível, Marny levantou o rosto, banhado de lágrimas e os lábios de ambos se reuniram num beijo.

 

                                                                               E. M. Hull 

 

 

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