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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O FEITICEIRO E A SOMBRA / Ursula K. Le Guin
O FEITICEIRO E A SOMBRA / Ursula K. Le Guin

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

 

                                   GUERREIROS NA BRUMA

A ilha de Gont, montanha solitária que ergue o seu cume 1500 metros acima do mar do Nordeste, constantemente assolado por tempestades, é uma terra famosa pelos seus feiticeiros. Das cidades nos seus altos vales e dos portos nas suas estreitas e escuras baías, muitos foram os gontianos que partiram para servir os Senhores do Arquipélago, nas suas capitais, como feiticeiros ou magos, ou que, em busca de aventuras, levaram a sua magia, de ilha em ilha, por toda Terramar. Dizem alguns que, entre estes últimos, o maior feiticeiro, e seguramente o maior viajante, foi o homem a quem chamaram Gavião e que, no seu tempo, veio a ser não só senhor de dragões mas também arquimago. A sua vida vem contada em O Feito de Gued e em muitas canções, mas esta é a história dos tempos antes de a sua fama se espalhar, de as canções serem compostas.

 

 

 

 

Gued nasceu numa aldeia solitária chamada Dez Amieiros, lá para o cimo da montanha, à entrada superior do vale do Norte. Abaixo da aldeia, as pastagens e terras de semeadura do vale vêm descendo, de socalco em socalco, em direção ao mar e outras povoações se erguem nos meandros do rio Ar. Mas, para cima da aldeia, há apenas a floresta, crista atrás de crista até à pedra e à neve das alturas.

Duny, o seu nome em criança, foi-lhe dado pela mãe, sendo isso e a vida tudo o que pudera dar-lhe, pois morreu antes de ele fazer um ano. O pai, homem que trabalhava o bronze na aldeia, era carrancudo e de poucas falas. E como os seis irmãos de Duny eram vários anos mais velhos que ele e, um por um, deixaram a casa para irem trabalhar a terra ou navegar no mar ou trabalhar nas forjas de outras povoações do vale do Norte, não houve ninguém que criasse a criança com afeto. Fez-se bravio, desenvolvendo-se como erva daninha, até se tornar um rapaz alto e enérgico, barulhento e orgulhoso, cheio de vivacidade. Juntamente com as outras, poucas, crianças da aldeia, pastoreava cabras nos íngremes prados acima das nascentes. E quando adquiriu força suficiente para puxar e empurrar os longos braços dos foles, o pai pô-lo a trabalhar na forja como aprendiz, à custa de muitos socos e chicotadas. Não se conseguia obter muito trabalho de Duny. Andava sempre por fora, embrenhando-se na floresta, nadando nos pegos do rio Ar que, como todos os rios de Gont, corre muito rápido e frio, ou trepando pelos penhascos e escarpas até aos altos cumes acima da floresta, de onde avistava o mar, esse vasto oceano setentrional onde, para lá de Perregal, não existem ilhas.

Vivia na aldeia uma irmã da sua falecida mãe que fizera o necessário por ele enquanto bebê mas, tendo coisas suas com que se ocupar, não se importou mais com ele assim que o rapaz pôde cuidar de si próprio. Mas certo dia, quando Duny tinha já sete anos, sem nada ter sabido ou aprendido das artes e poderes que há no mundo, ouviu a tia gritar palavras para uma cabra que saltara para cima do telhado de colmo de uma cabana e não queria descer. Mas assim que a mulher lhe gritou uma certa rima, logo saltou dali para baixo. No dia seguinte, estava ele a guardar as cabras de longo pêlo nos pastos da Cascata Grande, Duny gritou-lhes as palavras que ouvira à tia, embora lhes desconhecesse o uso ou o sentido, ou até que tipo de palavras eram:

Noth hierth malk man Hiolk han merth han!

Bradou a rima bem alto e as cabras chegaram-se a ele. Vieram muito rápidas, todas juntas, sem soltar o mínimo som. E puseram-se a fitá-lo com a fenda escura dos seus olhos amarelos.

Duny riu-se e voltou a gritar as palavras, a rima que lhe dava poder sobre as cabras. Elas aproximaram-se mais, empurrando-se umas às outras e apinhando-se em volta dele. E, de súbito, sentiu medo dos seus cornos densos, estriados de anéis, dos seus olhos estranhos e do seu estranho silêncio. Tentou libertar-se dos animais e fugir, mas as cabras deitaram a correr juntamente com ele, formando como que um nó ao seu redor, e foi assim que finalmente entraram como um furacão na aldeia, com as cabras sempre estreitamente agrupadas, como se tivessem uma corda apertada à sua volta, e o rapaz no meio delas, chorando e berrando. Das casas vieram correndo os aldeões, a praguejar contra as cabras e a rir de Duny. E entre eles vinha a tia, mas essa não se riu. Disse uma palavra às cabras, que se puseram a berrar, a tasquinhar a erva e a andar cada uma para seu lado, livres do esconjuro.

— Anda comigo — disse ela a Duny.

E levou-o para a cabana onde vivia sozinha. Em regra, não deixava lá entrar crianças e estas temiam o sítio. A cabana era baixa e sombria, sem janelas, cheia do aroma das plantas que pendiam, a secar, da viga mestra do telhado: hortelã, alho-mágico e tomilho, milefólio, saramago e junquilho, folha-de-rei, pata-rachada, tanásia e louro. Depois a tia sentou-se junto ao buraco onde ardia o fogo, de pernas cruzadas e, olhando o rapaz de viés, por entre as farripas negras do cabelo, perguntou-lhe o que dissera às cabras e se sabia o que a rima queria dizer. Ao descobrir que ele nada sabia e, mesmo assim, obrigara as cabras a virem junto dele e a seguirem-no pela força do esconjuro, entendeu que o rapaz tinha em si as bases do poder.

Como filho da irmã, Duny nada significara para ela, mas agora via-o com outros olhos. Gabou-o muito e disse-lhe que podia ensinar-lhe rimas que lhe agradassem mais, tais como a palavra que obriga o caracol a deitar a cabeça fora da concha, ou o nome que faz um falcão descer dos céus.

— Sim! Ensina-me esse nome! — pediu ele, ultrapassado já o susto que tivera com as cabras e todo inchado pelo modo como a tia lhe gabara a esperteza.

A bruxa disse:

— Se eu te ensinar essa palavra, nunca a poderás dizer às outras crianças.

— Prometo.

Ela sorriu perante a ignorante prontidão do moço.

— Está muito bem. Mas vou ligar-te à tua promessa. A tua língua ficará paralisada até que eu decida libertá-la, e mesmo então, embora possas falar, não conseguirás dizer a palavra que eu te ensinar onde qualquer outra pessoa possa ouvi-la. Temos de guardar os segredos da nossa arte.

— Ótimo — respondeu o rapaz, porque não tinha desejo algum de ir contar o segredo aos seus companheiros de brincadeiras, gostando como gostava de saber e fazer o que eles não sabiam e não conseguiam fazer.

Deixou-se estar muito quieto, enquanto a tia atava na nuca os cabelos despenteados e apertava o cinto do vestido, voltando a sentar-se com as pernas cruzadas e deitando mãos-cheias de folhas no lume, até que um fumo denso se espalhou e encheu a escuridão da cabana. Ela começou a cantar. A voz mudava, por vezes, tornando-se ora mais aguda, ora mais grave, como se houvesse outra voz a cantar através dela, e o canto foi prosseguindo, prosseguindo, até que o rapaz já não sabia se estava acordado ou a dormir. Durante todo aquele tempo, o velho cão preto da bruxa, que nunca ladrava, permaneceu sentado junto dele, os olhos vermelhos do fumo. E então a bruxa falou a Duny numa língua que ele não entendia e obrigou-o a repetir com ela certas rimas e palavras, até que a encantamento se apoderou dele e o manteve imóvel.

— Fala! — ordenou ela para testar o feitiço.

O rapaz não conseguiu falar, mas riu-se.

E então a tia sentiu algum medo da força do rapaz, porque aquela era um encantamento dos mais fortes que ela sabia usar. Tentara não só obter controle sobre a fala e o silêncio do rapaz, como ainda sujeitá-lo ao seu serviço nas artes da bruxaria. E, no entanto, mesmo quando a encantamento o subjugou, ele rira. A bruxa nada disse. Deitou água limpa sobre o fogo até que o fumo se dissipou e deu água a beber ao rapaz. Depois, quando o ar ficou limpo e Duny pôde voltar a falar, ensinou-lhe o nome verdadeiro do falcão, aquele que obriga a ave a responder ao chamado.

Foi assim o primeiro passo de Duny no caminho que iria seguir toda a sua vida, o caminho da magia, o caminho que, por fim, o levaria a perseguir uma sombra por terra e por mar, até as margens sem luz do reino da morte. Mas, nesses primeiros passos, o caminho parecia ser uma estrada larga e brilhante.

Quando verificou que os falcões selvagens desciam sobre ele abandonando o vento e pousando com um trovejar de asas no seu pulso, como as aves de altanaria de um príncipe, foi tomado pela sede de conhecer mais nomes como aquele e foi ter com a tia, rogando que lhe ensinasse o nome do gavião, do grifo e da águia. Para obter as palavras de poder, fez tudo o que a bruxa lhe pediu e aprendeu tudo que ela lhe soube ensinar, embora nem tudo fosse agradável de aprender ou de saber. Há um provérbio em Gont que diz: Fraco como magia de mulher e outro que reza: Falso como magia de mulher. É certo que a bruxa de Dez Armeiros não se dedicava à magia negra nem nunca se atrevera a abordar a grande arte ou a entender-se com os Antigos Poderes. Porém, sendo uma mulher ignorante entre gente ignorante, muitas vezes usara as suas capacidades para fins idiotas e dúbios. Do equilíbrio e da matriz que o verdadeiro feiticeiro conhece e serve, e que o impedem de usar as suas encantamentos a não ser quando alguma autêntica necessidade o exige, ela nada sabia. Tinha uma encantamento para cada circunstância e estava constantemente a tecer sortilégios. Grande parte do seu saber era tolice e mistificação, e também não sabia distinguir os verdadeiros encantamentos das falsas. Conhecia muitas pragas e, provavelmente, teria mais êxito a provocar doenças que a curá-las. Como qualquer bruxa de aldeia, sabia preparar um elixir de amor, mas havia outras poções, bem menos agradáveis, que preparava ao serviço das invejas e ódios dos homens. No entanto, escondeu essas práticas do seu jovem aprendiz e, na medida em que tal lhe era possível, ensinou-lhe a arte honesta.

A princípio, todo o prazer que o rapaz obtinha das artes mágicas era, infantilmente, o poder que estas lhe davam sobre aves e bichos, e o conhecimento que alcançava acerca destes. E, na verdade, esse prazer permaneceu com ele toda a sua vida. Vendo-o nos altos pastos, freqüentemente com uma ave de rapina a adejar à sua volta, as outras crianças começaram a chamar-lhe Gavião e foi assim que ele recebeu o nome que viria a manter na sua vida posterior, quando o seu nome verdadeiro não era conhecido.

Ouvindo a bruxa falar incessantemente da glória, das riquezas e do grande poder sobre os homens que um mago podia alcançar, o rapaz decidiu obter conhecimentos mais úteis. Era muito rápido a aprender. A bruxa gabava-o e as crianças da aldeia começaram a temê-lo. Quanto a ele próprio, tinha a certeza de que muito em breve se tornaria grande entre os homens. E assim foi progredindo com a bruxa, de palavra em palavra e de encantamento em encantamento, até que chegou aos doze anos, altura em que já aprendera uma grande parte do que ela sabia, o que, não sendo muito, era suficiente para a bruxa de uma pequena aldeia e mais que bastante para um rapaz de doze anos. A tia transmitira-lhe todos os seus conhecimentos em ervas e curas, bem como tudo o que sabia das artes de encontrar, sujeitar, corrigir, desvendar e revelar. Tudo o que conhecia das histórias dos trovadores e dos Grandes Feitos lhe cantara. E todas as palavras da Verdadeira Fala, que aprendera com o mago que a ensinara, ensinou-as ela, por sua vez, a Duny. Com fazedores de tempo e prestidigitadores de passagem, que andavam de cidade em cidade pelo vale do Norte e pela floresta oriental, aprendeu ele vários truques e brincadeiras, encantamentos de ilusão. Foi com uma dessas triviais encantamentos que pela primeira vez deu provas do grande poder que residia nele.

Nessa época, o Império de Kargad era forte. É ele formado por quatro grandes regiões que ficavam entre a Extrema Norte e a Extrema Leste: Karego-At, Atuan, Hur-at-Hur e Atnini. A língua que ali falam não se assemelha a qualquer outra que se fale no Arquipélago ou nas outras Estremas. O seu povo é selvagem, de pele branca e cabelo louro, e de grande ferocidade, gostando da vista do sangue e do cheiro de cidades incendiadas. No ano anterior tinham atacado as Torikles e a ilha fortificada de Torheven, assaltando-as com grandes forças de guerreiros transportados em frotas de navios com velas vermelhas. Novas deste ataque chegaram até Gont, a norte, mas os senhores de Gont estavam muito ocupados com os seus surtos de pirataria e pouca importância davam às atribulações das outras terras. Depois foi a vez de Spevy cair perante a investida dos kargs. Foi saqueada e destruída, o seu povo feito escravo, pelo que, até hoje, é uma ilha em ruínas. Tomados pela febre da conquista, os kargs fizeram-se seguidamente à vela para Gont, chegando ao Porto de Leste com uma força de trinta grandes barcos. Invadiram a povoação, tomaram-na pelas armas, incendiaram-na. Deixando os navios sob guarda na foz do rio Ar, subiram o vale, destruindo e pilhando, trucidando homens e gado. À medida que avançavam, dividiram-se em bandos, e cada um destes pilhava onde lhe apetecia. Gente em fuga veio avisar as aldeias mais elevadas. Em breve o povo de Dez Armeiros via como o fumo ia escurecendo o céu para leste e, nessa noite, aqueles que subiram à Cascata Grande olharam o vale lá em baixo e viram-no enevoado e com traços vermelhos onde os campos, prontos para a ceifa, tinham sido incendiados, os pomares ardiam com os frutos a assar nos ramos em brasa, e celeiros e casas de lavoura, em ruínas, se consumiam lentamente.

Alguns dos aldeões fugiram ravinas acima e foram esconder-se na floresta, alguns prepararam-se para lutar pelas suas vidas, outros não fizeram nem uma coisa nem outra, ficando para ali a lamentarem-se. A bruxa fazia parte dos que fugiram, escondendo-se sozinha numa caverna da Escarpa de Kapperding e selando a entrada com várias encantamentos. O pai de Duny, o bronzeiro, foi um dos que ficaram, por não querer deixar o forno de fundição e a forja onde trabalhara durante cinqüenta anos. Toda a noite ele trabalhou, transformando todo o metal de que dispunha em pontas de lança, e outros trabalharam com ele, atando essas pontas a cabos de enxadas e ancinhos, já que não havia tempo para trabalhar a madeira e a encaixar devidamente. Além de arcos para a caça e facas curtas, não havia armas na aldeia, porque os montanheses de Gont não são aguerridos. A sua fama não vem de serem guerreiros, mas sim ladrões de cabras, piratas e feiticeiros.

Com o nascer do Sol, veio um nevoeiro espesso e branco, como é vulgar suceder em muitas manhãs de Outono, nas partes mais altas da ilha. No meio das suas casas e cabanas, ao longo da rua irregular de Dez Amieiros, os aldeões esperavam com os seus arcos de caça e recém-forjadas lanças, sem saber se os kargs estariam longe ou bem próximos, todos em silêncio, todos perscrutando o nevoeiro que ocultava aos seus olhos formas, distâncias e perigos.

Com eles estava Duny. Toda a noite trabalhara nos foles da forja, empurrando e puxando as duas longas mangas de pele de cabra que alimentavam o fogo com o seu sopro. Agora, daquele esforço, os seus braços doíam-lhe e tremiam de tal modo que não conseguia segurar a lança que escolhera. Não via como poderia lutar ou ser de qualquer utilidade para si ou para os aldeões. Amargurava-lhe o coração pensar que iria morrer, trespassado por uma lança karguiana, sendo ainda e apenas um rapaz, que iria descer à terra sem nunca ter chegado a conhecer o seu próprio nome, o seu nome-verdadeiro, como homem. Olhou para baixo, para os braços magros, molhados com a umidade fria do nevoeiro e sentiu-se tomado de raiva contra a sua fraqueza, porque conhecia a sua força. Havia poder nele, assim soubesse como usá-lo, e buscou entre todos os encantamentos que conhecia, na esperança de encontrar algum expediente que pudesse dar, a si e aos seus companheiros, uma vantagem ou, pelo menos, uma possibilidade. Mas a necessidade, só por si, não é suficiente para desencadear o poder. É preciso também conhecimento.

O nevoeiro começava agora a dissipar-se sob o calor do Sol que brilhava descoberto, lá no alto cume, num céu sem nuvens. À medida que as névoas se moviam e se dividiam em grandes pedaços levados pelo vento e em farrapos semelhantes a fumo, os aldeões puderam ver um bando de guerreiros que subiam a montanha. Vinham protegidos por elmos de bronze, grevas, peitorais de rijo couro e escudos de madeira e bronze, armados de espadas e das longas lanças karguianas. Seguindo os meandros da íngreme margem do rio Ar, ali vinham eles, numa coluna emplumada, tilintante e irregular, já suficientemente próxima para se poder distinguir os seus rostos brancos, ouvir as palavras do seu linguajar, ao gritarem uns para os outros. Neste bando da horda invasora havia cerca de cem homens, o que não é muito, mas na aldeia havia apenas dezoito homens e rapazes.

Mas nesse momento a necessidade fez vir o saber à superfície. Duny, vendo o nevoeiro ondular e desvanecer-se no caminho em frente dos kargs, recordou uma encantamento que lhe podia ser útil. Um velho fazedor de tempo do vale, tentando convencer o rapaz a tornar-se seu aprendiz, ensinara-lhe vários esconjuros. Um desses truques chamava-se tecer-nevoeiro, uma encantamento de prender que reúne as brumas durante algum tempo num só local. Com ele, uma pessoa hábil em ilusão podia dar ao nevoeiro belas formas fantasmagóricas que permaneciam uns instantes, antes de se desvanecerem. O rapaz não possuía essa habilidade, mas a verdade é que a sua intenção era diferente e ele era suficientemente forte para adaptar a encantamento às suas próprias finalidades. Rapidamente e em voz alta, nomeou os lugares e limites da aldeia, e depois pronunciou a encantamento de tecer-nevoeiro, mas entrelaçando nesta as palavras de um encantamento de ocultar e, por fim, gritou a palavra que punha a magia em ação.

Mal acabara de o fazer, o pai veio trás dele e deu-lhe uma pancada violenta num lado da cabeça, deitando-o ao chão.

— Cala-te, doido! Fecha essa boca e, se não podes lutar, esconde-te!

Duny pôs-se de pé. Já ouvia os kargs à entrada da aldeia, tão próximos como o grande teixo no pátio do curtidor. As vozes soavam claramente, ouvia-se o tilintar e ranger das suas armas e proteções, mas era impossível vê-los. O nevoeiro juntara-se e cerrara-se sobre a aldeia, tornando a luz cinzenta, embaciando o mundo até uma pessoa não poder ver a próprias mãos.

— Escondi-nos a todos — disse Duny de modo taciturno, porque lhe doía a cabeça da pancada que o pai lhe dera e o duplo encantamento lhe esgotara as forças. — Vou manter este nevoeiro tanto tempo quanto puder. Diz aos outros que os atraiam até à Cascata Grande.

O bronzeiro arregalou os olhos para o filho que mais parecia um fantasma, no meio daquela bruma sobrenatural e umidamente fria. Ainda levou um minuto a perceber a intenção de Duny mas, assim que o conseguiu, deitou de imediato a correr, sem fazer ruído, conhecendo como conhecia cada vedação e cada esquina da aldeia, para ir ter com os outros e lhes explicar o que havia a fazer. Através da bruma cinzenta, abria-se agora um clarão vermelho do fogo que os kargs tinham lançado ao telhado de colmo de uma casa. No entanto, ainda não foi dessa vez que entraram na aldeia, preferindo esperar até que o nevoeiro se levantasse e os deixasse ver o saque e as presas.

O curtidor, dono da casa que ardia, mandou dois rapazes passar aos pulos mesmo debaixo do nariz dos kargs, escarnecendo deles, gritando e voltando a desaparecer como fumo na bruma. Entretanto, os homens mais velhos, rastejando por trás das cercas e correndo de casa para casa, aproximaram-se pelo outro lado e lançaram uma chuva de setas e lanças contra os guerreiros que permaneciam todos juntos num grupo cerrado. Um karg caiu em contorções, o corpo atravessado por uma lança, ainda quente da forja. Outros sofreram ferimentos de setas e todos ficaram furiosos. Carregaram em frente, decididos a abater os seus fracos atacantes, mas ao seu redor encontraram apenas a bruma, cheia de vozes. E seguiram essas vozes, dirigindo golpes para a frente, para dentro da névoa, com as suas grandes lanças, emplumadas e manchadas de sangue. Vieram a gritar por toda a rua da aldeia acima, sem nunca saberem que a tinham atravessado de uma ponta à outra, pois as cabanas e as casas avolumavam-se num momento para logo voltarem a desaparecer nas volutas da bruma cinzenta.

Os aldeões corriam dispersos, a maioria mantendo-se bem à frente porque conheciam o terreno. Mas alguns, rapazes ou homens mais velhos, eram lentos. Os kargs que tropeçavam neles golpeavam às cegas com as lanças e as espadas, lançando o seu grito de guerra, os nomes dos Irmãos-Deuses Brancos do deus de Atuan:

— Ualuáh! Atuáh!

Alguns do bando pararam ao sentir o terreno tornar-se mais irregular debaixo dos pés, mas os outros prosseguiram caminho, buscando a aldeia fantasma, perseguindo formas imprecisas e vacilantes que se escapavam em frente deles, quase ao seu alcance. Toda a bruma parecera tomar vida com aquelas formas fugidias, que se esquivavam, tremeluziam e se desvaneciam por todos os lados. Um grupo dos kargs perseguiu aqueles fantasmas direto à Cascata Grande, a orla do penhasco sobranceiro às nascentes do Ar, e as formas que perseguiam correram pelo ar e ali se desvaneceram onde o nevoeiro se dissipava, enquanto os perseguidores caíam, gritando através da bruma e da súbita luz do Sol, uma queda de trinta metros a pique sobre os charcos pouco profundos entre as rochas. E aqueles que vinham mais atrás e não caíram pararam à beira do penhasco, escutando.

E então o temor apoderou-se do coração dos kargs e começaram a procurar-se uns aos outros, e não aos aldeões, naquela estranha bruma. E mesmo assim continuava a haver entre eles espectros e formas fantasmagóricas, e ainda outros vultos que corriam e os golpeavam por trás com lanças ou facas e logo desapareciam. Os kargs, todos eles, deitaram a correr encosta abaixo, tropeçando, em silêncio, até que de repente saíram da cega bruma cinzenta e viram o rio e as ravinas abaixo da aldeia, tudo nítido e brilhante à luz do sol matinal. Pararam então, voltando a agrupar-se, e olharam para trás. Atravessando o caminho, uma muralha de um cinzento que vacilava e se contorcia estendia-se, impenetrável, ocultando tudo o que havia para além.

Dela saíram ainda dois ou três retardatários, cambaleando, tropeçando, com as longas lanças balançando sobre os ombros. Nenhum dos kargs voltou a olhar para trás uma só vez. Todos se apressaram a prosseguir caminho, para longe daquele lugar enfeitiçado.

Na parte inferior do vale do Norte, esses guerreiros encontraram um combate à sua medida. As cidades da floresta oriental, desde Ovark até à costa, tinham reunido os seus homens, enviando-os contra os invasores de Gont. Os bandos desceram das colinas um após outro e, nesse dia e no seguinte, os kargs foram rechaçados para as praias a norte do Porto de Leste, onde vieram deparar com os seus navios incendiados. Assim, viram-se forçados a combater, de costas para o mar, até que o último homem de entre eles foi morto e as areias de Foz-do-Ar ficaram castanhas de sangue até vir a maré.

Mas nessa manhã, na aldeia de Dez Amieiros e lá em cima na Cascata Grande, a bruma cinzenta e úmida agarrara-se ainda por algum tempo e depois, subitamente, um sopro de vento levou-a, arrastando-a, e a bruma desfez-se. Um homem, e logo outro, ergueram-se no brilho ventoso da manhã e olharam em redor, tentando entender. Aqui jazia um karg morto, com o seu longo cabelo louro, solto e ensangüentado. Além jazia o curtidor da aldeia, morto em combate, qual um rei.

Lá para a parte baixa da aldeia, a casa a que fora deitado fogo ardia ainda. Correram a apagar o incêndio, dado que a batalha fora ganha. Na rua, perto do grande teixo, encontraram Duny, o filho do bronzeiro, de pé e só, não apresentando qualquer ferimento e estupidificado como alguém assombrado por um raio. Estavam todos perfeitamente cientes do que ele fizera e, assim, conduziram-no a casa do pai e foram em busca da bruxa para que saísse da sua caverna e viesse curar o rapaz que lhes salvara a vida e os haveres, exceto quatro, que haviam sido mortos pelos kargs, e a casa que ardera.

O rapaz não sofrera qualquer ferimento de arma, mas não conseguia falar, nem comer, nem dormir. Também parecia não ouvir o que lhe diziam, nem ver aqueles que o vinham visitar. E não havia naquela parte do mundo ninguém com magia suficiente para curar o que o afligia. A tia afirmava:

— Ele usou mais poder que o que tinha —, mas não possuía arte para o ajudar.

Enquanto ele assim jazia, taciturno e mudo, a história do moço que tecera o nevoeiro e afugentara guerreiros karguianos, assustando-os e confundindo-os com uma série de sombras, ia sendo contada por todo o Vale do Norte e na Floresta Oriental, e mesmo no cume da montanha e, para lá desta, até no Grande Porto de Gont. E assim veio a suceder que, no quinto dia após a chacina de Foz-do-Ar, um estranho veio até à aldeia de Dez Amieiros, um homem nem jovem nem velho, que chegou envolvido num manto e de cabeça descoberta, carregando com aparente facilidade um grande bordão de carvalho, tão alto como ele próprio. Não veio subindo o curso do Ar, como a maioria das pessoas, mas descendo-o, pois saíra da floresta na parte mais alta da encosta. As mães de família da aldeia logo viram que era um feiticeiro e, quando ele lhes disse ser um curandeiro, levaram-no de imediato à casa do bronzeiro. Mandando todos embora à exceção do pai e da tia do rapaz, o estranho inclinou-se sobre o pobre leito onde Duny jazia, de olhos fitos no escuro, e mais não fez que pousar-lhe a mão na testa e tocar-lhe uma só vez nos lábios.

Duny soergueu-se lentamente, olhando ao seu redor. Dentro em pouco falou, logo as forças e a fome lhe começaram a voltar. Deram-lhe alguma coisa de comer e de beber, após o que tornou a recostar-se, sempre a observar o estranho com olhar profundo e interrogativo.

O bronzeiro disse ao estranho:

— Tu não és um homem vulgar.

— Também este rapaz não será um homem vulgar — respondeu o outro. — A história do seu feito com o nevoeiro chegou até Re Albi, onde vivo. Vim até aqui para lhe dar o seu nome se, como se diz, ainda não fez passagem para a idade adulta.

A bruxa sussurrou para o bronzeiro:

— Irmão, este é de certeza o mago de Re Albi, Óguion, o Silencioso, aquele que dominou o tremor de terra...

— Senhor — disse o bronzeiro, não se deixando intimidar por qualquer grande nome —, o meu filho faz treze anos no mês que vem, mas tínhamos pensado em adiar a passagem para a Festa do Regresso-do-Sol neste Inverno.

— Há que lhe dar o nome o mais breve possível — atalhou o mago —, porque ele precisa do nome. Tenho agora outros assuntos a tratar, mas voltarei aqui no dia que escolheres. Se estiveres de acordo, levá-lo-ei depois comigo. E se ele der boas provas, tomá-lo-ei como aprendiz ou providenciarei para que seja ensinado à medida dos dons que tiver. Porque manter na obscuridade a mente daquele que já nasceu mago é coisa muito perigosa.

E as palavras de Óguion, embora suavemente ditas, traziam tal certeza que até o teimoso bronzeiro não pôde deixar de concordar com elas.

No dia em que o rapaz fez treze anos, um dia esplendoroso do início de Outono, quando as folhas brilhantes estão ainda nos ramos, Óguion regressou à aldeia, vindo das suas perambulações pela montanha de Gont, e os ritos da Passagem foram celebrados. A bruxa tomou do rapaz o seu nome de Duny, o nome que a mãe lhe dera quando bebê. Sem nome, nu, entrou na fria nascente do Ar, onde ele surge por entre rochas, sob as altas ravinas. Quando penetrou na água, nuvens atravessaram a face do Sol e grandes sombras deslizaram e confundiram-se sobre a água do pego ao seu redor. O rapaz atravessou para a outra margem, tremendo de frio mas caminhando lento e ereto como era seu dever, por dentro daquela água gelada e viva. No momento em que alcançava a margem, Óguion, que o esperava, estendeu a mão e sussurrou-lhe o seu nome verdadeiro: Gued.

E assim lhe foi dado o seu nome por alguém altamente judicioso nas utilizações do poder.

Estava ainda a festa longe de acabar e todos os aldeões se divertiam, tendo muito que comer e beber, ouvindo um trovador, da zona inferior do Vale, cantar o Feito dos Senhores de Dragões, quando o mago disse a Gued, na sua voz suave:

— Vem, rapaz. Diz adeus à tua gente e deixa-os festejar sozinhos.

Gued pegou no que tinha de levar, que era a boa faca de bronze que o pai forjara para ele, um casaco de couro que a mulher do curtidor lhe cortara à medida e uma vara de amieiro a que a tia deitara um encanto para ele. Era tudo o que tinha no mundo, além da camisa e das bragas. Disse-lhes adeus, a todas as pessoas que conhecia em todo o mundo, e olhou uma só vez em redor, abarcando a aldeia que ali se aninhava, dispersamente, sob as ravinas, acima da nascente do rio. Depois partiu com o seu novo amo, através do chão íngreme das florestas da ilha-montanha, sob as sombras e as folhas brilhantes do Outono.

 

                                       A SOMBRA

Gued pensara que, como aprendiz de um grande mago, teria de imediato acesso ao mistério e domínio do poder. Iria compreender a linguagem dos animais e o discurso das folhas da floresta, pensava, e mandar nos ventos com a sua palavra e aprender a tomar qualquer forma que quisesse. Talvez o seu mestre e ele corressem juntos como veados, ou voassem até Re Albi, por sobre a montanha, na asas das águias.

Mas não foi de modo algum assim. Foram vagueando, primeiro descendo o vale e depois, gradualmente, inflectindo para sul e ocidente, ao redor da montanha, recebendo alojamento em pequenas aldeias ou passando a noite ao relento, nos campos incultos, como pobres bruxos trabalhando à jorna, ou latoeiros, ou mendigos. Não penetraram em qualquer misterioso domínio. Nada acontecia. O bordão de carvalho do mago, que Gued começara por olhar com um temor ávido, não passava afinal de um apoio resistente para a caminhada. Passaram-se três dias e passaram-se quatro e Óguion ainda não formulara uma única encantamento aos ouvidos de Gued, nem lhe ensinara um só nome, ou runa, ou esconjuro.

Embora extremamente calado, era tão brando e calmo que Gued em breve deixou de o temer e, passados mais um ou dois dias, sentiu-se suficientemente arrojado para perguntar:

— Senhor, o meu aprendizado quando começa?

— Já começou — retorquiu Óguion.

Fez-se um silêncio, como se Gued estivesse a conter palavras que precisava de pronunciar. E por fim disse-as:

— Mas se até agora ainda não aprendi nada!

— Porque ainda não descobriste o que te estou a ensinar — replicou o mago, prosseguindo, nas passadas regulares das suas longas pernas, pela estrada que constituía a passagem elevada entre Ovark e Uíss. Era um homem de pele escura, como quase todos os gontianos, de um castanho brônzeo, de cabelo grisalho, magro e rijo como um galgo, incansável. Raramente falava, pouco comia, dormia ainda menos. A sua vista e ouvido eram muito apurados e no seu rosto surgia com freqüência uma expressão de quem escuta atentamente.

Gued não teve resposta para lhe dar. Nem sempre é fácil responder a um feiticeiro.

— Tu queres lançar feitiços — prosseguiu finalmente Óguion, sempre caminhando. — Já tiraste demasiada água desse poço. Espera. Chegar a homem adulto requer paciência. Chegar a mestre requer nove vezes mais paciência. Que erva é aquela, à beira do caminho?

— Centáurea-azul.

— E aquela?

— Não sei.

— Quadrifólio é o nome que lhe dão.

Óguion estacara, com a ponteira de cobre do seu bastão junto à pequena erva, de modo que Gued olhou a planta de perto, arrancou-lhe uma vagem seca e, por fim, já que Óguion se remetera ao silêncio, perguntou:

— E que utilidade tem, Mestre?

— Que eu saiba, nenhuma.

Enquanto seguiam caminho, Gued guardou a vagem durante um bocado, mas acabou por deitá-la fora.

— Quando conheceres o quadrifólio em todas as suas estações, a sua raiz, folha e flores, pela vista, pelo aroma e pela semente, então poderás aprender o seu nome-verdadeiro, conhecendo o seu ser. E esse é bem mais que a sua utilidade. Ao fim e ao cabo, que utilidade tens tu? Ou eu? A Montanha de Gont é útil, ou o Alto-Mar?

Óguion continuou a caminhar durante cerca de um quilômetro e lá acabou por voltar a falar.

— Para ouvir, temos de estar em silêncio.

O rapaz franziu a testa. Não lhe agradava que o fizessem sentir-se idiota. Mas dominou o seu ressentimento, a sua impaciência, e tentou ser obediente na esperança de que Óguion consentisse enfim em lhe ensinar alguma coisa. Porque ele estava sedento de aprender, de alcançar poder. Porém, começou a afigurar-se-lhe que teria aprendido mais se acompanhasse algum herbanário ou bruxo de aldeia e, enquanto davam a volta à montanha pelo oeste e em direção às solitárias florestas para lá de Uíss, ia perguntando cada vez mais freqüentemente a si próprio qual seria a grandeza e a magia daquele grande Mago Óguion. Porque nem mesmo quando choveu Óguion se decidiu a dizer o esconjuro, bem conhecido por todos os fazedores de tempo, para desviar a tempestade. Numa terra onde os feiticeiros são em chusma, como Gont ou as Enlades, podemos ver uma nuvem de chuva a vaguear lentamente de um lado para o outro e de aldeia em aldeia, à medida que cada esconjuro a faz desviar para o seguinte, até que por fim é impelida para o largo, sobre o mar, onde pode chover em paz. Mas Óguion deixou que a chuva caísse onde muito bem lhe parecia. Procurou um abeto bem desenvolvido e deitou-se debaixo. Quanto a Gued, agachou-se entre os arbustos que escorriam água, molhado e macambúzio, pensando o que haveria de bom em ter poder se se era demasiado assisado para o usar e desejando ter ido antes para aprendiz do velho fazedor de tempo do vale, com quem ao menos teria dormido seco. Mas não exprimiu em voz alta nenhum dos seus pensamentos. Aliás, não pronunciou nem uma palavra. O seu mestre sorriu e adormeceu ao som da chuva.

Mais próximo já do Regresso-do-Sol, quando os primeiros grandes nevões começavam a cair no cumes de Gont, chegaram a Re Albi, a terra de Óguion. E uma povoação na orla dos cumes rochosos de Overfell e o seu nome significa Ninho de Falcão. Dali avista-se, muito abaixo, o abrigo profundo e as torres do Porto de Gont, os barcos que entram e saem da baía entre os Braços da Falésia e, mais longe ainda, para ocidente, além do mar, era possível distinguir os montes azulados de Oranéa, a mais oriental das Ilhas Interiores.

A casa do mago, embora grande e totalmente construída em madeira, com lareira e chaminé em vez do buraco no chão para o fogo, era idêntica às cabanas da aldeia de Dez Amieiros, com uma única divisão e um curral de cabras encostado a um dos lados. Na parede oeste da divisão havia uma espécie de alcova onde dormia Gued. Sobre a sua enxerga abria-se uma janela que dava para o mar, mas, na maior parte do tempo, as portadas tinham de ficar fechadas por causa dos fortes ventos que sopravam durante todo o Inverno de ocidente e de norte. Foi na penumbra quente dessa casa que Gued passou o Inverno, ouvindo as arremetidas da chuva e do vento ou o silêncio dos nevões, aprendendo a escrever e a ler as Seis Centenas de Runas de Hardic. E bem contente ficou de adquirir esse conhecimento porque, sem ele, não é o mero aprender de cor de encantamentos e esconjuros que pode dar acesso à verdadeira mestria. A língua Hardic do arquipélago, se bem que não haja nela mais poder mágico que em qualquer outra língua humana, tem as suas raízes na Antiga Fala, essa linguagem em que as coisas são chamadas pelos seus nomes-verdadeiros. E a via para a compreensão dessa língua inicia-se com as Runas, que foram escritas quando as ilhas do mundo pela primeira vez se ergueram do mar.

Mas ainda não houvera nem sinais de maravilhas ou encantamentos. Todo o Inverno nada mais ocorreu para além do voltar das pesadas páginas do Livro das Runas, e da chuva e da neve caindo. Óguion regressava do seu vaguear pelas florestas gélidas, ou de olhar pelas cabras, batia com os pés no chão para sacudir a neve das botas e sentava-se, em silêncio, junto ao fogo. E o longo, o atento silêncio do mago enchia toda a casa, enchia a mente de Gued, até que por vezes parecia ao rapaz que se esquecera de qual era o som das palavras. E quando Óguion finalmente falava, era como se, precisamente nesse instante e pela primeira vez, tivesse inventado a fala. E, no entanto, as palavras que pronunciava não diziam respeito a assuntos de vulto, tendo apenas a ver com coisas mais simples, com o pão e a água, com o tempo e o sono.

Quando, rápida e luminosa, a Primavera chegou, Óguion passou a enviar freqüentemente Gued aos prados acima de Re Albi, a colher ervas. Disse-lhe que demorasse o tempo que lhe apetecesse a tratar da tarefa, dando-lhe assim liberdade para passar todo o dia a caminhar sem destino junto aos rios cheios com a água das chuvas e através dos bosques e pelos campos verdes e úmidos, ao sol. Era sempre com profundo prazer que Gued saía e se deixava ficar por fora até ser noite, mas nunca se esquecia totalmente das ervas. Mantinha-se atento a elas, ao mesmo tempo que trepava, vagueava, passava rios a vau e explorava, trazendo sempre algumas para casa. Certa vez, chegou a um prado entre dois rios onde a flor a que chamam halos-brancos crescia em profusão e, sendo essas flores raras e tidas em alto valor pelos curandeiros, voltou ali no dia seguinte. Alguém lá chegara antes dele, uma rapariga que conhecia de vista, filha do velho Senhor de Re Albi. Por ele não lhe teria falado, mas a rapariga acercou-se e cumprimentou-o com modos agradáveis.

— Conheço-te — disse. — És o Gavião, o discípulo do nosso mago. Quem dera que me falasses de feitiçaria.

O rapaz olhou para as flores que lhe roçavam a saia branca e, a princípio, acanhado e sorumbático, mal lhe respondeu. Porém, ela continuou a falar de um modo aberto, descuidado e veemente que, pouco a pouco, o pôs à vontade. A rapariga era alta, praticamente da idade dele e muito pálida, quase branca. Dizia-se na aldeia que a mãe era de Osskil ou qualquer outra região longínqua. O longo cabelo caía a direito, como uma cascata de água negra. Gued achou-a muito feia, mas sentia o desejo de lhe agradar, de lhe conquistar a admiração, desejo que ia crescendo enquanto falavam. A rapariga levou-o a contar toda a história dos truques com o nevoeiro que tinham derrotado os guerreiros karguianos, ouvindo-o como se o achasse maravilhoso e admirável, mas não teve uma palavra de louvor. E em breve encaminhava a conversa noutro sentido.

— Consegues fazer os animais e as aves vir junto de ti? — perguntou.

— Consigo — respondeu Gued.

Sabia que havia um ninho de falcão nas escarpas acima do prado e invocou a ave, chamando-a pelo seu nome-verdadeiro. O falcão veio mas não lhe pousou no pulso, sem dúvida afugentado pela presença da rapariga. Gritou, bateu o ar com as suas largas asas estriadas e subiu no vento.

— Como chamas a esse tipo de encantamento, essa que fez vir o falcão?

— Um esconjuro de Invocação.

— E também és capaz de invocar os espíritos dos mortos? Pensou que ela estivesse a troçar dele ao fazer aquela pergunta porque o falcão não obedecera totalmente ao seu chamado.

— Seria, se escolhesse fazê-lo — disse em tom calmo.

— Mas não é muito difícil, muito perigoso, invocar um espírito?

— Difícil, sim. Mas perigoso? — Gued encolheu os ombros. Desta vez estava quase certo de que havia admiração nos olhos dela.

— Sabes fazer um sortilégio de amor?

— Isso não é mestria.

— Dizes bem — comentou ela —, qualquer bruxa de aldeia o pode fazer. E podes fazer encantamentos de mudança? Consegues mudar a tua própria forma, como dizem que os feiticeiros fazem?

Uma vez mais, Gued não estava muito seguro de que ela não tivesse feito a pergunta por troça, de modo que, de novo, replicou:

— Conseguia, se escolhesse fazê-lo.

Ela pôs-se então a pedir-lhe que se transformasse em qualquer coisa que lhe apetecesse: um falcão, um touro, um fogo, uma árvore. Desencorajou-a usando frases curtas e reservadas, como o seu mestre costumava fazer, mas não foi capaz de se recusar abertamente quando ela começou a adulá-lo. Além disso, nem sabia se ele próprio acreditava ou não na sua bazófia. Deixou-a com o pretexto de que o seu mestre, o mago, o esperava em casa e, no dia seguinte, não voltou ao prado. Mas no outro dia foi lá, dizendo para consigo que tinha de colher mais daquelas flores, enquanto estavam abertas. A rapariga estava ali e, juntos, passearam de pés descalços pela terra encharcada do prado, colhendo as pesadas flores brancas. Brilhava o sol da Primavera e ela falava-lhe tão alegremente como qualquer pastorita de cabras da sua própria aldeia. Depois, voltou a fazer-lhe perguntas sobre feitiçaria, ouvindo tudo o que ele dizia com olhos abertos de espanto, o que o levou uma vez mais a gabar-se. E então ela pediu-lhe que fizesse um encantamento de Mudança e, quando ele se negou, olhou para ele, desviando do rosto o longo cabelo negro, e disse:

— Tens medo de o fazer?

— Não, não tenho medo.

Ela sorriu algo desdenhosamente e continuou:

— Talvez ainda sejas muito novo.

Isso é que ele não ia permitir. Não falou muito, mas intimamente decidiu que lhe mostraria o seu valor. Disse à rapariga que voltasse ao prado no dia seguinte, se quisesse, e regressou a casa enquanto o mestre andava ainda por fora. Foi direito à prateleira e tirou os dois Livros do Saber, que Óguion nunca abrira ainda na sua presença.

Procurou um encantamento de Automudança, mas, lento como ainda era a ler as runas e pouco entendendo do que lia, não conseguiu encontrar o que pretendia. Aqueles eram uns livros muito antigos. Óguion recebera-os do seu próprio mestre, Heleth, o Longividente, e Heleth do seu mestre, o Mago de Perregal, e sempre assim até aos tempos do mito. A escrita era pequena e estranha, com palavras traçadas por cima ou entre as linhas em muitas letras diferentes, e as mãos que as haviam escrito eram já pó. No entanto, aqui e além, Gued foi conseguindo compreender um pouco do que tentava ler e, sempre com as perguntas e a troça da rapariga a ocuparem-lhe o espírito, parou numa página onde constava um encantamento para invocar os espíritos dos mortos.

Ao lê-la, decifrando, um a um, runas e símbolos, foi tomado de horror. Os seus olhos fixaram-se involuntariamente nas folhas e não conseguiu levantá-los enquanto não acabou de ler o esconjuro inteiro.

Depois, ao levantar a cabeça, viu que fazia escuro na casa. Tinha estado a ler sem a mínima luz, na escuridão. Agora, ao baixar os olhos para o livro, já não conseguia distinguir as runas. Mas, mesmo assim, o horror voltou a crescer dentro dele, parecendo que o deixava preso à cadeira. Sentia-se frio. Olhando por cima do ombro, viu qualquer coisa que se agachava junto à porta fechada, um coágulo informe de sombra, mais escuro que a escuridão. Parecia querer alcançá-lo e segredar e chamá-lo num sussurro, mas não conseguia entender as palavras.

A porta foi aberta de par em par. Um homem entrou e uma luz branca flamejava ao seu redor. Era uma figura luminosa que, de súbito, fez ouvir a sua voz, alta e feroz. E a escuridão e o segredar cessaram e foram dissipados.

O horror abandonou então Gued, mas permanecia mortalmente temeroso, porque era Óguion, o Mago, que ali estava na entrada, com aquela luminosidade ao seu redor, o bordão de carvalho ardendo na sua mão com branco esplendor.

Sem uma palavra, o mago passou por Gued, foi acender a lâmpada e arrumou os livros na prateleira. Depois voltou-se para o rapaz e disse:

— Nunca farás aquele esconjuro, a não ser em perigo do teu poder ou da tua vida. Foi por ele que abriste os livros?

— Não, Mestre — murmurou o rapaz. E, envergonhadamente, contou a Óguion o que quisera procurar e porquê.

— Não te lembraste do que te disse? Que a mãe dessa rapariga, a mulher do Senhor, é uma tecedora de encantamentos?

Na realidade, Óguion dissera-lho certa vez, mas Gued pouca atenção lhe prestara, embora soubesse agora que Óguion nunca lhe dizia nada sem ter uma boa razão para o fazer.

— A própria filha já é meia feiticeira. Pode bem ter sido a mãe quem mandou a rapariga falar contigo. Pode ter sido ela a abrir o livro na página que leste. Os poderes que ela serve não são aqueles que eu sirvo. Não sei o que ela quer, mas sei que não quer o meu bem. Gued, ouve-me agora com atenção. Nunca pensaste que o perigo rodeia forçosamente o poder, tal como a sombra rodeia a luz? A feitiçaria não é um jogo a que nos entreguemos pelo prazer ou pelos louvores. Pensa nisto. Cada palavra e cada ato da nossa Arte é dita e é feito ou para o bem ou para o mal. Antes de falares ou agires, tens de saber qual o preço a pagar!

Impelido pela vergonha que sentia, Gued bradou:

— Mas como hei de eu saber essas coisas se não me ensinas nada? Desde que estou contigo, nunca fiz nada, nunca vi nada...

— Mas agora já viste alguma coisa — interrompeu o mago. — Junto à porta, no escuro, quando eu entrei.

Gued ficou calado.

Óguion ajoelhou-se junto à lareira, preparou a lenha e acendeu-a, porque a casa estava fria. Depois, ainda ajoelhado, disse no seu brando tom de voz:

— Gued, meu jovem falcão, nada te prende a mim ou ao meu serviço. Não foste tu que vieste ao meu encontro, mas eu ao teu. És muito jovem ainda para fazer essa escolha, mas não posso fazê-la por ti. Se assim quiseres, posso mandar-te para a Ilha de Roke, onde se ensinam todas as artes maiores. Qualquer uma a que te queiras dedicar, aprendê-la-ás, pois o teu poder é grande. Maior até, espero eu, que o teu orgulho. Gostaria de manter-te aqui comigo, porque o que eu tenho é o que te falta, mas não o farei contra tua vontade. Agora, escolhe entre Re Albi e Roke.

Gued ficou mudo, o coração em tumulto. Acabara por ter amor àquele homem, Óguion, que com um toque da sua mão o curara e em quem não havia ira. Amava-o e não o soubera até àquele momento. Olhou o bordão encostado ao canto da chaminé, recordando o esplendor que libertara e como consumira o mal que viera das trevas. Ansiava por permanecer com Óguion e com ele vaguear através das florestas, por muito tempo e até muito longe, aprendendo a manter o silêncio. Mas havia nele outras ânsias que não podiam ser apaziguadas, o desejo de glória, o desejo de agir. Óguion parecia-lhe uma longa estrada até ao domínio da mestria, um lento caminho secundário por onde seguir, quando ele podia navegar levado pelos ventos marinhos até ao Mar Interior, à ilha dos Sages, onde o próprio ar vibrava de encantamentos e o Arquimago caminhava entre maravilhas.

— Mestre — disse —, irei para Roke.

E assim, poucos dias mais tarde, numa soalheira manhã de Primavera, Óguion percorreu a seu lado a íngreme estrada desde Overfell e ao longo de vinte quilômetros até ao Grande Porto de Gont. Ali, às portas da povoação e entre dragões esculpidos, os guardas da Cidade de Gont, ao verem o mago, ajoelharam apresentando-lhe as espadas nuas e dando-lhe as boas-vindas. Conheciam-no e faziam-lhe honras não só por ordem do Príncipe, mas também por sua própria vontade, pois dez anos antes Óguion salvara a cidade do tremor de terra que teria sacudido e lançado por terra as torres dos ricos e fechado o canal entre os Braços da Falésia com uma terrível avalanche. O mago falara à Montanha de Gont, acalmando-a, e sossegara os (Tementes precipícios de Overfell como quem aquieta um animal assustado. Gued ouvira algo sobre isso e agora, maravilhando-se ao ver aqueles guardas armados ajoelhando perante o seu brando mestre, recordou essa história. Relanceou os olhos, quase com medo, para aquele homem que fizera parar um terremoto. Mas o rosto de Óguion estava tão calmo como sempre.

Desceram depois até às docas, onde o Mestre do Porto se apressou a vir acolher Óguion e inquirir qual o serviço que poderia prestar-lhe. O mago disse-lho logo e ele nomeou um navio com destino ao Mar Interior, a bordo do qual Gued poderia seguir como passageiro.

— Ou poderão acolhê-lo como propiciador de vento — acrescentou —, se possuir a arte. Não têm fazedor de tempo a bordo.

— Ele tem algum domínio sobre brumas e nevoeiros, mas nenhum sobre ventos marinhos — informou o mago, pousando ligeiramente a mão no ombro de Gued. — Não tentes quaisquer truques com o mar e os ventos do mar, Gavião. Ainda és um homem de terra. Mestre do Porto, qual é o nome do navio?

— Sombra, vindo das Andrades e com destino à Cidade de Hort com peles e marfim. É um bom navio, Mestre Óguion.

O rosto do mago toldou-se ao ouvir o nome da embarcação, mas disse:

— Pois seja. Dá esta mensagem ao guardião da escola em Roke, Gavião. Bons ventos te levem. Até um dia!

E não houve mais despedidas. O mago voltou costas e meteu rua acima, em largas passadas, afastando-se das docas. Gued, vendo o mestre afastar-se, sentiu-se desamparado.

— Vem daí, rapaz — disse o Mestre do Porto, e levou-o pela margem até ao pontão onde o Sombra se aprestava para partir.

Poderá parecer estranho que, numa ilha com uma largura de oitenta quilômetros, numa aldeia no sopé de penhascos que desde sempre olham o mar, uma criança possa crescer e fazer-se homem sem nunca ter posto o pé num barco nem molhado os dedos na água salgada, mas é assim. Lavrador, pastor de cabras, ou de vacas, caçador ou artífice, o homem de terra encara o mar como um domínio instável e salgado que não tem absolutamente nada a ver consigo. A aldeia a dois dias de caminho da sua própria aldeia é terra estrangeira, a ilha a um dia de navegação da sua ilha apenas um boato, colinas de neblina que se avistam para lá do mar e não um chão sólido como aquele sobre o qual caminha.

Assim, para Gued, que nunca descera das altas montanhas, o Porto de Gont era um lugar de admiração e maravilha, com as grandes casas e torres de pedra talhada, a margem de pontões e cais e bacias e cabeços de amarração, o grande porto de mar onde meia centena de veleiros e galés balançavam junto ao paredão ou jaziam retirados da água e virados para reparações ou permaneciam ancorados na angra de velas colhidas e as escotilhas dos remos fechadas, os marinheiros gritando em estranhos dialetos e os estivadores correndo com as suas cargas por entre barris, caixotes, rolos de corda e pilhas de remos, os mercadores, barbudos e de vestes guarnecidas de pele, conversando calmamente enquanto prosseguiam caminho ao longo das pedras limosas acima da água, os pescadores descarregando a sua pescaria, os tanoeiros martelando, os calafates pregando, os vendedores de moluscos cantando e os patrões de bordo berrando e, para lá de tudo isto, a baía, silenciosa, brilhante. De olhos, ouvidos e espírito desorientados, Gued seguiu o Mestre do Porto até ao largo pontão onde o Sombra estava amarrado, e o Mestre do Porto levou-o ao mestre do navio.

Sem desperdício de palavras, o mestre concordou em aceitar Gued como passageiro até Roke, dado que fora um mago a pedi-lo, e o Mestre do Porto deixou o rapaz com ele. O mestre do Sombra era um homem grande e gordo, envergando um capote vermelho debruado com pele de pelaui como costumam usar os mercadores das Andrades. Nem sequer olhou para Gued, mas perguntou em voz tonitruante:

— Sabes mudar o tempo, rapaz?

— Sei.

— E trazer o vento?

A isto teve de responder que não, pelo que o mestre lhe disse para procurar um sítio onde não incomodasse ninguém e ficar lá.

Os remadores entravam já a bordo, pois a nave tinha de se deslocar para a angra antes do cair da noite e fazer-se ao mar com a maré vazante, perto da alvorada. Não havia lugar algum no tombadilho onde não se incomodasse ninguém, mas Gued lá trepou conforme pôde para cima da carga enfardada, firmemente amarrada e coberta de couros curtidos à popa do veleiro e, ali seguro, observou tudo o que se passava. Os remadores foram saltando para bordo, homens robustos e de longos braços, enquanto os estivadores faziam rolar barricas de água com grande estrondo do pontão para o barco, arrumando-as debaixo dos bancos dos remadores. O navio, bem construído, deslocava-se com a amurada baixa por causa da carga, mas mesmo assim dançando um pouco na rebentação, pronto a partir. Então o homem do leme ocupou o seu lugar à direita do mastro da popa, olhando em frente para o mestre, que se mantinha sobre um estrado inserido na junção entre a quilha e o talha-mar, trabalhado com as formas da Velha Serpente de Andrad. O mestre rugiu as suas ordens em voz retumbante e o Sombra foi desamarrado e rebocado para lá das docas por dois laboriosos barcos a remos. Então o rugido do mestre soou — «Abrir escotilhas!» — e os grandes remos saíram ruidosamente, quinze de cada lado. Os remadores inclinaram os dorsos poderosos enquanto, acima deles e junto ao mestre, um rapaz batia o ritmo num tambor.

Com a facilidade de uma gaivota que tivesse os remos por asas, o navio tomou enfim velocidade e, subitamente, o ruído e o burburinho da cidade ficaram para trás. Saíram para o silêncio das águas da baía e acima deles erguia-se o pico branco da Montanha, que parecia suspenso sobre o mar. Numa enseada de águas pouco profundas, a sotavento do Braço da Falésia sul, largaram âncora e ali passaram a noite.

Dos setenta homens que formavam a equipagem do navio alguns eram, como Gued, ainda jovens em anos, embora todos tivessem feito a passagem à idade adulta. Esses rapazes chamaram-no para junto deles para compartilhar da comida e bebida, e mostraram-se amigáveis, ainda que fossem gente grosseira, dada a gracejos e zombarias. Como seria de esperar, chamaram-lhe cabreiro por ser gontiano, mas não foram mais longe do que isso. Gued era tão alto e forte como os de quinze anos, e pronto a dar resposta condigna tanto a uma boa palavra como a uma troça, pelo que foi bem acolhido e, logo nessa primeira noite, começou a viver como um deles e a aprender o trabalho que faziam. Isso agradou aos oficiais do navio, porque não tinham lugar a bordo para passageiros desocupados.

Pouco espaço havia para a tripulação e nenhum conforto naquela galera sem convés, apinhada de homens, aprestos e carga. Mas o que era o conforto para Gued? Nessa noite, deitou-se entre couros atados em rolos vindos das ilhas setentrionais, observando as estrelas da Primavera acima das águas do porto de abrigo e as luzinhas amareladas da cidade para o lado da popa, e adormeceu e voltou a acordar cheio de uma funda impressão de prazer. Antes do nascer do Sol, a maré virou. Levantaram ferro e singraram suavemente, à força de remos, em direção ao mar alto, entre os Braços da Falésia. E quando o Sol nascente avermelhou a montanha de Gont, por trás deles, ergueram a vela maior e seguiram velozes para sudoeste, sulcando o Mar de Gont.

Entre Barnisk e Torheven tiveram vento fraco e, no segundo dia, chegaram à vista de Havnor, a Ilha Grande, coração e lar do Arquipélago. Durante três dias permaneceram à vista das verdes colinas de Havnor, enquanto bordejavam a costa leste, mas não foram a terra. E muitos anos decorreram antes que Gued pusesse o pé naquela terra ou visse as alvas torres do Grande Porto de Havnor, no centro do mundo.

Fundearam durante uma noite em Foz-do-Kember, o porto mais a norte da Ilha de Way, e na seguinte, numa pequena cidade à entrada da Baía de Felkway, passando no dia seguinte o cabo norte de O e entrando nos Estreitos de Ebavnor. Ali, baixaram a vela e prosseguiram à força de remos, sempre com terra de ambos os lados, sempre ao alcance de voz de outros navios, grandes e pequenos, mercadores e comerciantes, alguns regressando das Extremas Exteriores com carregamentos estranhos e após uma viagem de anos, outros saltitando como pardais, de ilha em ilha, no Mar Interior. Voltando para sul ao sair dos Estreitos cheios de tráfego, deixaram para trás Havnor e navegaram entre as duas belas ilhas de Ark e Ilien, salpicadas com as torres e os terraços de muitas cidades, e, logo, através da chuva e do vento que se tornava mais forte, iniciaram a travessia do Mar Interior, em direção à Ilha de Roke.

Durante a noite, quando o vento se tornou muito forte, soprando em rajadas, baixaram vela e mastro e, no dia seguinte, durante todo o dia, remaram. O longo navio mantinha-se firme nas ondas e prosseguia valorosamente, mas o timoneiro, ao comprido remo que servia de leme, à popa, perscrutava a chuva que fustigava o mar e nada mais via para além da chuva. Navegaram para sudoeste, guiando-se pela bússola, e sabiam para onde iam mas não através de que águas. Gued ouviu os homens falar dos baixios a norte de Roke e das Rochas Borilosas para leste. Outros contestavam que deviam estar já muito fora da rota, nas águas sem ilhas a sul de Kamery. E sempre o vento a tornar-se mais forte, desfazendo em farrapos de espuma esvoaçante os cumes das grandes vagas, e eles sempre remando para sudoeste, com o vento por trás. Os turnos aos remos foram encurtados porque a tarefa se tornara demasiado árdua. Os mais novos eram colocados a dois por remo e Gued fez os seus turnos com os outros, tal como fizera desde que haviam deixado Gont. Quando não estavam a remar, escoavam a água do barco, pois o mar rebentava violentamente contra o navio. E assim se afadigaram entre as ondas que corriam como montanhas fumegantes sob o vento, enquanto a chuva fria e forte lhes açoitava as costas e o tambor ressoava por entre o ruído da tempestade, como o bater de um coração.

A certa altura, veio um homem tomar o lugar de Gued ao remo, dizendo-lhe que fosse ter com o mestre do navio, à proa.

A chuva escorria da bainha do capote do mestre, mas ele permanecia firme e rotundo como um barril de vinho no seu estrado e, olhando para baixo, para Gued, perguntou:

— És capaz de amainar este vento, rapaz?

— Não, senhor.

— Tens algum poder sobre o ferro?

E com isto pretendia ele saber se Gued era capaz de obrigar a agulha magnética a apontar, não o Norte, mas aquilo que a necessidade exigia, a rota para Roke. Mas esse talento é um segredo dos Mestres do Mar e, uma vez mais, Gued teve de responder que não.

— Bem, então — bramiu o mestre através do vento e da chuva — tens de arranjar algum navio que te leve da cidade de Hort de regresso a Roke. Roke deve estar agora para ocidente de nós e só usando feitiçaria poderíamos lá chegar com um mar assim. Temos de continuar a navegar para sul.

Aquilo não agradou a Gued, pois ouvira os marinheiros falar da cidade de Hort como sendo um lugar sem lei, cheio de um tráfego maléfico, onde os homens eram muitas vezes feitos prisioneiros e vendidos como escravos na Estrema Sul. Regressando à sua tarefa ao remo, lá se foi esforçando juntamente com o seu companheiro, um vigoroso rapaz andradiano, vendo a lanterna suspensa na popa balouçar e tremeluzir ao vento que a agitava, uma réstia atormentada de luz no negrume chicoteado pela chuva. Foi olhando para ocidente tanto quanto pôde sob o pesado ritmo de empurrar e puxar o remo. E quando o navio se ergueu numa onda mais alta, viu por um momento, sobre a água escura e fumegante, uma luz entre nuvens, como que um último raio do Sol poente. Mas aquela era uma luz clara, não avermelhada.

O companheiro ao remo não a vira, mas Gued bradou o aviso. O timoneiro ficou atento, procurando avistar a luz em cada vaga mais alterosa, e viu-a tal como Gued a viu de novo, porém bradou-lhe que era apenas o pôr do Sol. Então Gued gritou a um dos rapazes que escoavam água que o substituísse ao remo por um minuto e voltou a percorrer o caminho até à proa, ao longo da atravancada coxia entre os bancos e, agarrando-se à proa trabalhada para não ser lançado borda fora, gritou para o mestre:

— Senhor! Aquela luz para ocidente é a Ilha de Roke!

— Não vi luz nenhuma — bradou o mestre, mas nesse preciso instante Gued estendeu o braço, apontando, e todos viram o brilho claro da luz a ocidente, para além da agitação da espuma e do tumulto do mar.

Não por atenção para com o seu passageiro, mas para salvar o navio dos perigos da tempestade, o mestre gritou imediatamente ao timoneiro que se dirigisse para oeste, na direção da luz. Mas, a Gued, disse:

— Rapaz, tu falas como um Mestre do Mar, mas só te digo que se nos conduzes mal num tempo como este, deito-te à água e deixo-te ir a nado até Roke!

Agora, em vez de irem impelidos pela tempestade, eram forçados a remar perpendicularmente à direção do vento, e isso era difícil. As ondas, chocando de través contra o navio, constantemente o empurravam para sul do seu novo curso, enchiam-no de água tornando o trabalho de a escoar incessante, faziam-no gingar, e os remadores eram obrigados a redobrar de atenção, não fosse o gingar do navio erguer os remos fora de água quando os puxavam, fazendo-os cair entre os bancos. A escuridão era quase completa sob as nuvens de tempestade, mas de quando em vez lá conseguiam avistar a luz a ocidente, o bastante para poderem orientar a rota, animando-os a prosseguir no esforço. Por fim, o vento amainou um pouco e a luz aumentou em frente deles. Continuando a remar, foi como se atravessassem uma cortina, entre uma remada e outra, saindo da tempestade para um ar límpido, onde a luz que restava do crepúsculo iluminava céu e mar. Por sobre as ondas coroadas de espuma viram, não muito longe, um monte verde, alto e arredondado, e no seu sopé uma cidade erigida numa pequena baía onde havia barcos, todos pacificamente ancorados.

O timoneiro, apoiando-se no seu longo leme, virou a cabeça e bradou:

— Mestre! Isto é terra verdadeira ou alguma feitiçaria?

Mas o mestre de bordo limitou-se a rugir:

— Mantém a rota, seu cabeça de abóbora! Remem, seus filhos de escravos! Ali é a baía de Thwil e o Cabeço de Roke, como qualquer idiota pode ver! Remem!

Assim, ao ritmo do tambor, exaustos, entraram remando na baía. Ali, a calma era tal que conseguiam ouvir as vozes das pessoas lá em cima na cidade, um sino a tocar e, muito ao longe, o silvo e o rugido da tempestade. Para norte, leste e sul, a quilômetro e meio em toda a volta da ilha, pairavam nuvens negras. Mas sobre Roke as estrelas surgiam uma a uma num céu límpido e calmo.

 

                         A ESCOLA DE FEITICEIROS

Gued dormiu ainda essa noite a bordo do Sombra e de manhã cedo despediu-se daqueles seus primeiros camaradas de mar, que alegremente lhe gritavam boa sorte enquanto ele se afastava pelas docas fora. A vila de Thwil não é muito grande, com as suas altas casas a apinharem-se ao longo de umas poucas ruas íngremes e estreitas. Para Gued, porém, parecia uma cidade e, sem saber onde se dirigir, perguntou ao primeiro habitante que encontrou onde poderia encontrar o Guardião da Escola que havia em Roke. O homem olhou-o de viés por um momento e disse:

— O sábio não precisa de perguntar, o tolo pergunta em vão — após o que seguiu o seu caminho.

Gued continuou a subir até que desembocou numa praça, limitada em três lados pelas casas com os seus telhados de ardósia em declive acentuado e, no quarto, pela fachada de um grande edifício, cujas poucas e pequenas janelas ficavam acima do topo das chaminés das casas. O edifício mais parecia uma fortaleza ou castelo, construído com grandes blocos de uma pedra cinzenta. Na praça que dominava estavam armadas as tendas de um mercado e havia muitas idas e vindas de gente. Gued voltou a fazer a sua pergunta a uma velhota com um cesto de mexilhões e logo ela lhe respondeu:

— Nem sempre podes encontrar o Guardião onde ele está, mas por vezes encontrá-lo onde ele não está. — E seguiu caminho, a apregoar os seus mexilhões.

Na parede do grande edifício, perto de uma esquina, havia uma pequena porta de madeira, com muito mau aspecto. Gued dirigiu-se a ela e bateu com força. E disse ao homem idoso que lhe abriu a porta:

— Trago uma carta do Mago Óguion para o Guardião da Escola que há nesta ilha. Quero encontrar o Guardião, mas já não estou para ouvir mais adivinhas nem troças!

— A Escola é aqui — disse o ancião brandamente. — Eu sou o porteiro. Entra, se puderes.

Gued deu um passo em frente. Pareceu-lhe que tinha atravessado a entrada mas afinal permanecia no passeio, onde já antes estava.

Uma vez mais deu um passo em frente e uma vez mais permaneceu do lado de fora da porta. O porteiro, lá de dentro, observava-o benignamente.

Mais do que intrigado, Gued estava furioso, pois aquilo parecia-lhe mais uma maneira de troçar dele. Com a voz e a mão fez o esconjuro de Abrir que já há muito a tia lhe ensinara. Era o mais precioso entre todos os esconjuros que possuía e Gued teceu-o bem naquela ocasião. Porém, não passava de um feitiço de bruxa e o poder que mantinha a porta intransponível nem ao de leve foi abalado.

Quando o esconjuro falhou, Gued permaneceu por longo tempo ali parado, no passeio. Por fim, olhou o ancião que, lá dentro, continuava à espera.

— Não consigo entrar — confessou, embora de má vontade —, a não ser que me ajudes.

A isto o porteiro respondeu:

— Diz o teu nome.

E uma vez mais Gued permaneceu parado e silencioso por algum tempo, porque um homem nunca diz em voz alta o seu próprio nome, a não ser que esteja em causa algo mais que a segurança da sua vida.

Finalmente, disse em voz alta:

— Sou Gued. — E, dando um passo em frente, atravessou a entrada. Porém, embora a luz lhe desse por trás, pareceu-lhe que uma sombra o seguira, colada aos seus calcanhares.

Ao voltar-se, verificou também que a moldura da porta não era de simples madeira, como pensara, mas sim de marfim, sem qualquer junta ou emenda. Soube mais tarde que fora cortada de um dente do Grande Dragão. E a porta que o ancião fechou atrás dele era de corno polido, através do qual a luz do dia transluzia levemente, e na sua face interior via-se, talhada, a Árvore de Mil Folhas.

— Bem-vindo a esta casa, rapaz — disse o porteiro. E, sem mais palavras, conduziu-o através de salas e corredores até um pátio aberto, bem no interior das paredes do edifício. O pátio era parcialmente pavimentado com lajes, mas não tinha telhado e, num pedaço de relvado, uma fonte jorrava água sob árvores jovens e à luz do Sol. Ali se quedou Gued esperando sozinho durante algum tempo. Permaneceu muito quieto, com o coração a bater fortemente, pois parecia-lhe sentir presenças e forças em ação, invisíveis mas reais, ao seu redor, e compreendeu que aquele lugar não era construído apenas com pedra, mas com magia mais forte que a pedra. Encontrava-se na sala mais interior da Casa dos Sages, e ela abria-se para os céus. E subitamente deu pela presença de um homem trajando de branco que o observava através da água que caía da fonte.

Quando os seus olhares se cruzaram, um pássaro cantou alto nos ramos da árvore. Nesse momento, Gued compreendeu o canto da ave e a linguagem da água tombando no tanque da fonte e a forma das nuvens e o início e final do vento que agitava as folhas. Pareceu-lhe que ele próprio era uma palavra dita pela luz do Sol.

E então o momento passou e ele e o mundo ficaram como eram antes, ou quase como antes. Então Gued adiantou-se a ajoelhar perante o Arquimago, estendendo-lhe a carta escrita por Óguion.

O Arquimago Nemmerle, Guardião de Roke, era um homem velho, mais velho, dizia-se, que qualquer homem então em vida. A sua voz trilou como a voz do pássaro quando ele falou, acolhendo Gued bondosamente. O seu cabelo e barba eram brancos, tal como o seu manto, e ao olhá-lo dir-se-ia que tudo o que pudesse ter havido nele de escuro ou de pesado fora retirado pelo lento desgaste dos anos, deixando-o branco e usado como madeira que andasse à deriva na água durante todo um século.

— Os meus olhos estão velhos, rapaz — disse ele na sua voz trêmula —, não consigo ler o que me escreve o teu mestre. Lê-me tu a carta.

Gued decifrou pois e leu em voz alta a escrita, que era em runas da língua Hardic, e não dizia senão isto: Senhor Nemmerle! Envio-vos alguém que, assim o vento sopre de feição, será o maior dos feiticeiros de Gont. A mensagem estava assinada, não com o nome-verdadeiro de Óguion, que Gued nunca aprendera, mas com a runa do mago, a Boca Cerrada.

— Aquele que mantém o tremor de terra à trela foi quem te enviou e por isso és duplamente bem-vindo. O jovem Óguion era-me caro quando, de Gont, veio até nós. E agora fala-me dos mares e dos portentos da tua viagem, rapaz.

— Uma bela viagem, Senhor, não fora pela tempestade de ontem.

— Que navio te trouxe?

— O Sombra, com mercadorias das Andrades.

— Que vontade te enviou aqui?

— A minha.

O Arquimago olhou para Gued, depois desviou a vista e começou a falar numa língua que o rapaz não compreendia, resmungando como é costume em alguém muito, muito velho e cujo siso se vai dispersando por entre os anos e as ilhas. E, no entanto, por entre o resmungo, havia palavras do que o pássaro cantara e do que a água dissera ao cair. Não estava a lançar qualquer encantamento, mas havia um poder na sua voz que perturbou a mente de Gued a tal ponto que o rapaz ficou desnorteado e, por um instante, pareceu-lhe ver-se a si próprio num local estranho, vasto e deserto, sozinho entre sombras. Mas, mesmo assim e durante todo esse tempo, continuava no pátio iluminado pelo sol, ouvindo cair a água da fonte.

Um grande pássaro negro, um corvo de Osskil, veio caminhando pelo terraço empedrado e pela erva. Veio até junto da fímbria do manto do Arquimago e ali ficou, todo negro, com o seu bico semelhante a uma adaga, os seus olhos como seixos polidos, mirando Gued de lado. Por três vezes bicou o bordão branco a que Nemmerle se apoiava e o velho feiticeiro, cessando o seu resmungar, sorriu.

— Vai, rapaz. Corre e brinca — disse finalmente, como se falasse com uma criancinha.

Uma vez mais, Gued dobrou o joelho perante ele. Quando se voltou a erguer, o Arquimago desaparecera. Só o corvo continuava a olhá-lo, estendendo o bico como se quisesse bicar o bordão desaparecido.

Depois falou, no que Gued supôs ser a língua de Osskil.

— Terrenon assbaque! — crocitou. — Terrenon assbaque orrek! — E, tal como viera, assim se foi, no seu andar empertigado. Gued rodou sobre si próprio para abandonar o pátio, perguntando-se para onde ir. Sob o arco da entrada foi abordado por um jovem alto que o acolheu muito cortesmente, com uma inclinação de cabeça.

— Chamam-me Jaspe, filho de Enwit, do domínio de Eolg na Ilha de Havnor. Estou hoje ao teu serviço, para te mostrar a Casa Grande e responder o melhor que puder às tuas perguntas. Como devo chamar-te, Senhor?

E aí afigurou-se a Gued, aldeão montanhês que nunca estivera entre os filhos de nobres e de mercadores ricos, que aquele indivíduo estaria a troçar dele com os seus «serviços» e «senhorias», mais as mesuras e salamaleques. Assim, respondeu secamente:

— Gavião é como me chamam.

O outro aguardou um momento, como se esperasse resposta mais cortês e, não vendo sinais dela, endireitou-se e desviou-se um pouco. Devia ter dois ou três anos mais que Gued, era muito alto, movia-se e comportava-se com rígida elegância, com trejeitos (na opinião de Gued) de bailarino. Envergava um capote cinzento, com o capuz deitado para trás. O primeiro sítio onde levou Gued foi à sala do vestiário, para ali escolher, como aluno da escola, um capote idêntico que lhe ficasse à medida, bem como quaisquer outros artigos de vestuário de que precisasse. Gued envergou o capote cinzento-escuro que escolhera e Jaspe disse:

— Agora és um de nós.

Mas Jaspe tinha uma maneira de falar acompanhada de ligeiro sorriso que levava Gued a tentar descobrir alguma troça oculta nas suas delicadas palavras. Por isso respondeu, carrancudo:

— Serão as roupas que fazem o mago?

— Não — retorquiu o rapaz mais velho. — Embora eu já tenha ouvido dizer que são as maneiras que fazem o homem... Onde queres ir agora?

— Onde tu queiras. Eu não conheço a casa.

Jaspe levou-o consigo pelos corredores da Casa Grande, mostrando-lhe os pátios descobertos e as salas abobadadas, a Sala das Estantes onde eram guardados os livros da antiga ciência e os tomos de runas, o grande Salão da Lareira onde toda a escola se reunia nos dias festivos e, no andar superior, nas torres e sob os telhados, as pequenas celas em que dormiam alunos e Mestres. A de Gued era na Torre Sul, com uma janela que dava para os íngremes telhados da vila de Thwil e, por sobre estes, para o mar.

Tal como as outras celas de dormir, não tinha quaisquer móveis para além de um colchão de palha a um canto.

— Vivemos aqui de uma maneira muito simples — disse Jaspe. — Mas espero que não te incomode.

— Já estou habituado — retorquiu Gued. E depois, tentando mostrar-se à altura daquele jovem tão delicado e desdenhoso, acrescentou: — Suponho que não seria o teu caso, quando para aqui vieste.

Jaspe olhou-o e o seu olhar dizia claramente, sem palavras: «O que poderias tu supor alguma vez acerca daquilo a que eu, filho do Senhor do Domínio de Eolg na Ilha de Havnor, estou ou não habituado?» Mas o que Jaspe disse em voz alta foi apenas:

— Vem por aqui.

Enquanto estavam no andar superior, tinha soado um gongo e desceram ambos para a refeição do meio-dia na Mesa Grande do refeitório, juntamente com uma centena ou mais de rapazes e adolescentes. Cada um servia-se pessoalmente, brincando com os cozinheiros através dos postigos da cozinha que abriam para o refeitório, enchendo o prato de grandes tigelas de comida que fumegavam sobre os peitoris, sentando-se à Mesa Grande nos lugares que mais lhes agradavam.

— Dizem — contou Jaspe a Gued — que, por muitos que se sentem a esta mesa, há sempre lugar.

O certo é que havia espaço, tanto para muitos grupos barulhentos de rapazes que falavam pelos cotovelos e comiam vorazmente, como para indivíduos mais velhos, com os seus mantos cinzentos presos no pescoço com fechos de prata, que se sentavam mais comedidamente aos pares ou sozinhos, de rostos graves e meditativos, como quem tem muito em que pensar.

Jaspe levou Gued a sentar-se junto de um companheiro corpulento chamado Vetch, que pouco falava mas absorvia a comida com um apetite voraz. Tinha o sotaque da Estrema Leste e era muito escuro de pele, não castanho-avermelhado como Gued e Jaspe e a maioria das gentes do Arquipélago, mas castanho-quase-negro. Era simples e pouco delicado de maneiras. Queixou-se do jantar depois de o ter comido, mas em seguida, virando-se para Gued, acrescentou:

— Pelo menos não é uma ilusão, como a maior parte das coisas por aqui. Isto sempre se agarra aos ossos.

Gued não entendeu o que ele poderia querer dizer, mas sentiu uma certa simpatia pelo rapaz e ficou satisfeito por permanecer com eles depois da refeição.

Foram passear pela vila, a fim de Gued aprender a orientar-se por lá. Por poucas e curtas que fossem as ruas de Thwil, viravam e contorciam-se bizarramente por entre as casas de altos telhados e era fácil uma pessoa perder-se nelas. Era uma estranha vila, como estranha era a sua gente, pescadores, trabalhadores e artífices como quaisquer outros, mas tão habituados à feitiçaria, que na Ilha dos Sages está sempre em ação, que eles próprios também já pareciam quase feiticeiros. Falavam (como Gued pudera verificar) por enigmas e nenhum deles piscaria sequer os olhos se visse um rapaz transformar-se em peixe ou uma casa erguer-se de repente nos ares. Tomando tais coisas por brincadeira de estudantes, continuariam a arranjar sapatos ou a desmanchar borregos, como se nada fosse.

Passando pela Porta Traseira e dando a volta pelos jardins da Casa Grande, os três rapazes atravessaram as águas claras do rio, o Thwilburn, por uma ponte de madeira e prosseguiram para norte, por entre bosques e pastagens. O caminho subia, serpenteante. Passaram por carvalhais onde a sombra era densa, mau grado o brilho do sol. Havia um bosque para o lado esquerdo e não muito afastado, mas que Gued nunca conseguia ver perfeitamente. O caminho também nunca lá chegava, embora parecesse estar sempre prestes a fazê-lo. Não era sequer capaz de descortinar de que árvores se tratava. Vetch, reparando em como Gued o fitava, disse suavemente:

— Aquele é o Bosque Imanente. Não podemos lá entrar ainda...

Nas pastagens aquecidas pelo sol, desabrochavam flores amarelas.

— Erva-fagulha — disse Jaspe. — Cresce onde o vento deixou cair as fagulhas do incêndio de Ilien, quando Erreth-Akbe defendeu as Ilhas Interiores contra o Senhor do Fogo.

Soprou uma corola já seca e as sementes, soltando-se, ergueram-se no vento, ao sol, como fagulhas ardentes.

O caminho, sempre subindo, conduziu-os até à base e depois em volta de um grande monte verde, o monte que Gued avistara do navio, ao penetrarem nas águas encantadas da Ilha de Roke. Chegados à encosta, Jaspe deteve-se.

— Na minha terra, em Havnor — disse ele —, ouvi falar muito da feitiçaria gontiana, e sempre bem, por isso durante muito tempo desejei ver como seria. Agora, temos aqui um homem de Gont e estamos na encosta do Cabeço de Roke, cujas raízes se estendem até ao centro da terra. Aqui, todos os encantamentos são fortes. Faz-nos um truque, Gavião. Mostra-nos o teu estilo.

Gued confuso e surpreendido, nada disse.

— De outra vez, Jaspe — interpôs Vetch com o seu modo simples. — Deixa-o sossegado.

— Ora, ele há de ter ou talento ou poder, senão o porteiro não o teria deixado entrar. Por que não havia de o mostrar, agora tanto como de outra vez? Não é verdade, Gavião?

— Tenho os dois, o talento e o poder — disse Gued. — Mostra-me o gênero de coisa de que estás a falar.

— Ilusões, é claro... truques, jogos de aparência. Como este, vê!

Apontando um dedo, Jaspe pronunciou algumas palavras estranhas e no sítio para onde ele apontava, por entre a erva verde da encosta, um fiozinho de água gotejou, cresceu e por fim jorrou uma nascente e a água correu encosta abaixo. Gued meteu a mão na corrente e sentiu-a úmida; bebeu dela e era fresca. E apesar de tudo não matava a sede, pois era apenas ilusão. Com outra palavra, Jaspe fez parar a água e a erva ficou a agitar-se, seca, à luz do Sol.

— Agora é a tua vez, Vetch — disse ele com o seu sorriso insolente.

Vetch coçou a cabeça com ar macambúzio, mas pegou num bocado de terra e começou a cantar desentoadamente sobre ela, enquanto a ia moldando com os seus dedos escuros e apertando-a, esfregando-a, dando-lhe forma. E de súbito o pedacinho de terra tornou-se numa criatura pequena, como um abelhão ou moscardo, que voou zumbindo por sobre o Cabeço de Roke e desapareceu.

Gued quedou-se a olhar, desanimado. Que sabia ele além de simples bruxarias, esconjuros para chamar cabras, curar verrugas, mover cargas pesadas ou consertar bilhas?

— Eu não faço truques como esses — acabou por dizer. Para Vetch, isto fora o suficiente e dispunha-se a seguir caminho. Mas Jaspe perguntou:

— Por que não?

— A feitiçaria não é um jogo. Nós, Gontianos, não a usamos por prazer ou por vaidade — respondeu Gued altivamente.

— Então usam-na porquê...? — inquiriu Jaspe. — Por dinheiro?

— Não...

Mas Gued não conseguia pensar em mais nada que ocultasse a sua ignorância e lhe poupasse o orgulho. Jaspe riu, mas não de modo desagradável. Depois voltou a pôr-se a caminho, conduzindo-os ao redor do Cabeço de Roke. E Gued seguiu-o, taciturno e de coração pesado, sabendo que tinha agido como um tolo e culpando Jaspe por isso.

Nessa noite, enquanto jazia enrolado no seu capote e sobre a enxerga da sua fria cela de pedra sem luz, no extremo silêncio da Casa Grande de Roke, a estranheza do local e todos os esconjuros e encantamentos que ali vira começaram a pesar dolorosamente sobre ele. A escuridão rodeava-o, enchia-o o temor. Só desejava poder estar em qualquer lado que não fosse Roke. Mas Vetch assomou à porta, uma pequena bola azulada de fogo-fátuo a bailar-lhe sobre a cabeça para iluminar o caminho, e perguntou se podia entrar e conversar um bocado. Interrogou Gued sobre Gont e depois falou com carinho das suas próprias ilhas, na Estrema Leste, descrevendo como o fumo das lareiras da aldeia se espalha ao anoitecer por entre as pequena ilhas, com seus nomes pitorescos: Korp, Kopp e Holp, Venway e Vemish, Iffish, Koppish e Sneg. Quando desenhou a forma dessas terras nas pedras do chão com o dedo, para mostrar a Gued como se dispunham, as linhas que ele traçou brilharam muito levemente como se desenhadas com uma varinha de prata, e assim ficaram por um instante antes de se desvanecerem. Vetch estava há três anos na Escola e em breve receberia o título de Mágico. Pensava tanto em praticar as artes menores da magia como um pássaro em voar. Mas havia um talento maior, inato, que ele possuía, a arte da bondade. Nessa noite, e sempre daí em diante, ofereceu e deu a Gued amizade. Uma amizade firme e aberta que Gued não podia deixar de retribuir.

Contudo, Vetch era também amigo de Jaspe, que levara Gued a fazer figura de tolo naquele primeiro dia no Cabeço de Roke. Gued não o conseguia esquecer e, ao que parecia, Jaspe também não, pois falava-lhe sempre com voz delicada e sorriso trocista.

O orgulho de Gued não se deixava abater nem aceitava condescendências. Jurou que havia de provar a Jaspe, e a todos os outros de quem Jaspe era uma espécie de chefe, quão grande o seu poder realmente era — um dia. Porque, com todos os seus belos truques, nenhum deles salvara uma aldeia usando feitiçaria. De nenhum deles Óguion escrevera que havia de ser o maior feiticeiro de Gont.

Assim, reforçando o seu orgulho, aplicou toda a força de vontade ao trabalho que lhe davam, às lições, artes, histórias e talentos ensinados pelos Mestres de Roke com seus mantos cinzentos, os mestres a quem chamavam Os Nove.

Uma parte de cada dia, estudava com o Mestre Chantre, aprendendo os Feitos dos heróis e os Lais de sabedoria, começando com a mais antiga de todas as canções, a Criação de Éa. Depois, com uma dúzia de outros rapazes, praticava com o Mestre Chave-do-Vento as artes do vento e do tempo. Passavam os longos e soalheiros dias da Primavera e início do Verão na baía de Roke, em pequenos barcos, praticando o governar da embarcação pela palavra, o acalmar das vagas, o falar ao vento do mundo e o fazer levantar o vento mágico. Estes são talentos particularmente intrincados e a cabeça de Gued levou não poucas pancadas da barra da vela quando o barco se inclinava contra um vento que de súbito o impelia para trás, ou quando o dele e outro colidiam embora tivessem toda a baía para navegar, ou ainda quando os três rapazes do seu barco iam todos à água, tendo-se a embarcação inundado com uma grande onda involuntariamente formada. Noutros dias, tinham expedições mais calmas em terra, com o Mestre das Ervas, que ensinava as características e as propriedades das coisas que crescem da terra. E havia o Mestre de Mão que ensinava prestidigitação, malabarismo e as artes menores de Mudar.

Gued tinha aptidão para todos estes estudos e, após um mês, passava à frente de rapazes que tinham chegado a Roke um ano antes dele. Em particular, os truques de ilusão eram-lhe tão fáceis que parecia ter nascido já a sabê-los e precisava apenas de ser recordado. O Mestre de Mão era um velhote alegre e simpático, infinitamente encantado com a inteligência e beleza das artes que ensinava. Gued em breve deixou de sentir por ele qualquer temor e continuamente o instava para que lhe ensinasse este esconjuro e mais aquele. E o Mestre sorria sempre e mostrava-lhe o que ele queria. Mas certo dia, com a intenção de finalmente humilhar Jaspe, Gued disse ao Mestre de Mão no Pátio da Aparência:

— Senhor, todas estas encantamentos se parecem muito. Sabendo uma, sabem-se todas. E logo que paramos de tecer o feitiço, a ilusão desvanece-se. Ora, se eu transformar um seixo num diamante — e assim o fez com uma palavra e uma sacudidela do pulso —, o que deverei fazer para que o diamante permaneça um diamante? Como podemos fechar o esconjuro de Mudar e fazer com que dure?

O Mestre de Mão olhou para a jóia que cintilava na mão de Gued, brilhante como a mais preciosa gema no tesouro de um dragão. O velho Mestre murmurou uma palavra, «Tolk», e ali estava de novo o seixo, já não uma preciosidade mas um pedaço grosseiro de pedra cinzenta. O Mestre pegou-lhe e manteve-o na palma da sua própria mão.

— Isto é uma pedra. Tolk na Língua Verdadeira — disse ele, olhando suavemente para Gued. — Um pedaço da pedra de que é feita a Ilha de Roke, um pouco da terra firme em que vivem os homens. É ela própria. Faz parte do mundo. Através da Ilusão-Mudança podes fazer com que pareça um diamante... ou uma flor, uma mosca, um olho, uma labareda... — E a pedra ia mudando de forma para forma, à medida que ele as nomeava, até ser de novo pedra. — Mas isto é mera aparência. A ilusão engana os sentidos do observador, fazendo com que ele veja, ouça e sinta que a coisa mudou. Mas isso não muda a coisa. Para transformares esta pedra num diamante, terás de mudar o seu nome-verdadeiro. E fazer isso, meu filho, mesmo a uma tão ínfima migalha do mundo, significa mudar o mundo. Pode ser feito. Sem dúvida que pode ser feito. Essa é a arte do Mestre da Mudança e há de vir a aprendê-la, quando estiveres pronto a aprendê-la. Mas não deverás mudar uma coisa, seja ela um seixo ou um grão de areia, antes de saberes o bem e o mal que esse ato irá acarretar. O mundo está em harmonia, em Equilíbrio. O poder de Mudar e de Invocar de um feiticeiro pode abalar a harmonia do mundo. E é perigoso, esse poder. É terrivelmente perigoso. Tem de se submeter ao saber e servir a necessidade. Acender uma vela é lançar uma sombra...

Voltou a olhar para o seixo e, falando agora com menos gravidade, acrescentou:

— Uma pedra é também uma coisa boa, sabes? Se as Ilhas de Terramar fossem todas feitas de diamante, bem dura seria a nossa vida aqui. Diverte-te com as ilusões, rapaz, e deixa que as pedras sejam pedras.

Sorriu, mas Gued sentiu-se insatisfeito. Inste-se um mago para que revele os seus segredos e é vê-lo logo a falar, como Óguion, sobre o equilíbrio e o perigo e a escuridão. Mas de certeza que um feiticeiro, um dos que tenham ido além destes truques infantis de ilusão e alcançado as verdadeiras artes de Invocar e Mudar, seria suficientemente poderoso para fazer o que lhe agradasse, equilibrando o mundo como melhor lhe parecesse e afastando as trevas com a sua própria luz.

No corredor, encontrou Jaspe que, desde que as façanhas de Gued tinham começado a ser louvadas em toda a Escola, falava com ele de um modo que parecia mais amigável, mas era mais trocista.

— Pareces taciturno, Gavião — disse-lhe o outro. — Será que te correram mal os truques de malabarismo?

Tentando, como sempre, pôr-se em pé de igualdade com Jaspe, Gued respondeu à pergunta, ignorando o seu tom irônico.

— Estou farto de malabarismos, farto destes truques de ilusão, que só servem para divertir senhores ociosos nos seus castelos e domínios. A única verdadeira magia que até agora me ensinaram aqui em Roke foi fazer fogos-fátuos e algum trabalho com o tempo. O resto não passa de tontice.

— Mas até a tontice é perigosa — retorquiu Jaspe —, nas mãos de um tonto.

Perante isto, Gued voltou-se como se o tivessem esbofeteado e deu um passo na direção de Jaspe. Mas o rapaz mais velho sorriu como se não houvesse qualquer intenção insultuosa nas suas palavras, fez uma inclinação de cabeça à sua rígida e elegante maneira, e foi-se embora.

Ali parado com a raiva a ferver-lhe no coração, vendo Jaspe a afastar-se, Gued jurou a si próprio vencer o seu rival, e não num simples desafio de ilusões, mas num teste de poder. Ali daria as suas provas e humilharia Jaspe. Não ia deixar que aquele indivíduo se ficasse a olhá-lo de cima, elegante, desdenhoso e odiento.

Gued não se deteve a pensar por que seria que Jaspe o podia odiar. Sabia apenas por que odiava Jaspe. Os outros aprendizes cedo tinham percebido que raramente se podiam equiparar a Gued, quer a brincar quer a sério, e diziam dele, uns como louvor e outros por despeito: «É um feiticeiro nato, nunca nos deixará batê-lo.» Só Jaspe nunca o louvara nem evitara, limitando-se simplesmente a olhá-lo de cima, com um ligeiro sorriso. E assim Jaspe era o único que se erguia como seu rival, o único que teria de ser humilhado.

Não via, ou não queria ver, que naquela rivalidade, a que ele se apegava e que alimentava como parte do seu próprio orgulho, houvesse o que quer que fosse do perigo e da escuridão, contra os quais o Mestre de Mão tão brandamente o alertara.

Quando não era a pura raiva que o conduzia, Gued sabia perfeitamente que ainda não estava à altura de Jaspe ou de qualquer dos rapazes mais velhos, e por isso continuou a trabalhar e a comportar-se como de costume. No final do Verão, o trabalho teve um certo decréscimo, pelo que havia mais tempo para diversões, como as corridas de barcos enfeitiçados lá em baixo no porto, demonstrações de ilusão no pátios da Casa Grande e, nas longas noites, nos bosques, loucos jogos de escondidas, em que tanto os que se escondiam como os que procuravam estavam invisíveis e só as vozes se moviam, rindo e gritando, por entre as árvores, seguindo e evitando os rápidos e trêmulos fogos-fátuos. Depois, quando o Outono chegou, entregaram-se de novo às suas tarefas, praticando novas magias. E assim, rápidos, passaram os primeiros meses de Gued em Roke, plenos de paixão e maravilha.

No Inverno foi diferente. Foi enviado com outros sete rapazes através da Ilha de Roke até ao cabo no extremo norte, onde se ergue a Torre Isolada. Ali, sozinho, vivia o Mestre dos Nomes, que era tratado por um nome que não tinha significado em língua alguma, Kurremkarmerruk. Em quilômetros ao redor da torre não havia quintas ou habitações. Soturna, erguia-se sobre as falésias setentrionais, cinzentas rolavam as nuvens sobre o mar invernoso, infindáveis eram as listas, as fileiras, as séries de nomes que os oito pupilos do Mestre dos Nomes tinham de aprender. No meio deles, na ala mais alta da torre, Kurremkarmerruk, sentado num caldeirão alto, ia escrevendo listas de nomes que tinham de ser memorizados antes que a tinta se desvanecesse à meia-noite, deixando de novo o pergaminho em branco. Ali fazia sempre frio, o escuro era muito e o silêncio permanente só era interrompido pelo arranhar da pena do Mestre e, quiçá, pelo suspiro de algum aluno obrigado a aprender, antes da meia-noite, o nome de cada cabo, ponta, baía, estreito, enseada, canal, porto de abrigo, baixios, recifes e rochas das costas de Lossau, uma pequena ilha do Mar de Plen. E se algum estudante se queixava, o Mestre talvez não dissesse nada, limitando-se a aumentar ainda mais a lista, ou poderia dizer: «Aquele que pretende ser Mestre do Mar tem de saber o nome verdadeiro de cada gota de água que há no mar.»

Gued suspirava por vezes, mas nunca se queixava. Via que, naquela poeirenta e infindável questão de aprender o nome-verdadeiro de cada local, coisa e pessoa, se açoitava o poder a que ele aspirava, como uma pedra preciosa no fundo de um poço seco. Porque é nisso que consiste a verdadeira magia, o dar o verdadeiro nome a cada coisa. Assim lhes dissera Kurremkarmerruk, uma vez, na primeira noite que tinham passado na Torre. Não o voltara a repetir, mas Gued recordava cada palavra.

— Muitos magos de grande poder — dissera o Mestre — passaram toda a sua vida na tentativa de descobrir o nome de uma única coisa, um único nome, oculto ou perdido. E mesmo assim as listas não estão completas. Nem o estarão, até ao fim do mundo. Escutem e verão porquê. No mundo sob o Sol e no outro mundo onde não existe Sol, muito há que nada tem a ver com o homem nem com a fala do homem, e há poderes para além do nosso poder. Mas a magia, a verdadeira magia, só é realizada por aqueles seres que falam a língua Hardic de Terramar, ou a Antiga Fala de que ela derivou. Essa é a língua que os dragões falam, a língua falada por Segoy que fez as ilhas do mundo, a língua dos nossos lais e canções, dos nossos esconjuros, encantamentos e invocações. As suas palavras jazem ocultas e modificadas entre as nossas palavras Hardic. Nós chamamos à espuma das ondas sukien. Essa palavra é formada por duas palavras da Antiga Fala, suk, pena, e inien, o mar. Vós tendes de usar o seu nome-verdadeiro na Antiga Fala, que é essa. Qualquer bruxa conhece algumas dessas palavras da Antiga Fala, um mago conhece muitas. Mas há muitas mais, e algumas perderam-se ao longo das idades, e outras foram ocultas, e outras ainda só são conhecidas dos dragões e dos Antigos Poderes da Terra, e algumas há que não são conhecidas por criatura viva alguma. E nenhum homem as pôde aprender a todas, pois, para essa língua, não existe fim. E a razão é esta. O nome do mar é inien, tudo bem. Mas o que nós chamamos Mar Interior tem também o seu próprio nome na Antiga Fala. Dado que nada pode ter dois nomes verdadeiros, inien não pode deixar de significar «todo o mar à exceção do Mar Interior». E, claro, nem sequer significa isso, porque há mares, baías e estreitos sem conta, cada um com o seu próprio nome. Assim, se um Mago-Senhor-do-Mar fosse suficientemente louco para lançar um feitiço de tempestade ou calmaria sobre todo o oceano, esse feitiço teria de conter, não só a palavra inien, mas também o nome de cada extensão, pedaço e parte do mar através de todo o Arquipélago e todas as Estremas exteriores e para além destas até onde os nomes deixam de existir. Deste modo, é precisamente aquilo que nos confere o poder para operar a magia que estabelece os limites desse poder. Um mago só pode controlar o que lhe está próximo, o que ele pode nomear exata e completamente. E é bom que assim seja. Se assim não fora, a maldade dos poderosos ou a loucura dos sábios já há muito teria tentado mudar o que não pode ser mudado, e a Harmonia perder-se-ia. O mar, sem equilíbrio, devastaria as ilhas onde nós tão perigosamente habitamos e, no velho silêncio, todas as vozes e todos os nomes se perderiam.

Gued meditou longamente nestas palavras e elas calaram fundo na sua compreensão. Contudo, a majestade da tarefa não era suficiente para tornar menos árduo e árido o trabalho daquele longo ano na Torre. E, chegado o fim desse ano, Kurremkarmerruk disse-lhe: «Tiveste um bom começo.» E mais nada.

Os feiticeiros falam verdade e era verdade que toda a mestria de Nomes que Gued esforçadamente adquirira naquele ano era meramente o começo do que ele teria de continuar a aprender durante toda a vida. Foi-lhe permitido deixar a Torre Isolada mais cedo que os que tinham vindo com ele, porque aprendera mais depressa. Mas foi esse todo o louvor que recebeu.

Caminhou sozinho para sul, através da ilha, no início do Inverno e ao longo de estradas que não passavam por vila ou aldeia alguma e não eram percorridas por ninguém. Ao chegar a noite, choveu. Não disse qualquer encantamento para afastar de si a chuva porque o tempo de Roke estava na mãos do Mestre Chave-do-Vento e não era permitido nele interferir. Abrigou-se sob um grande salgueiro-chorão e ali, embrulhado no seu capote, pensou no velho mestre Óguion, que provavelmente estaria ainda entregue às suas perambulações outonais sobre os cumes de Gont, dormindo ao relento e com ramos despidos por único teto, a chuva caindo por únicas paredes. E isto fez Gued sorrir, porque pensar em Óguion lhe servia sempre de conforto. Adormeceu com o coração em paz, naquela fria escuridão cheia do murmúrio da água. Acordando com o raiar do sol, ergueu a cabeça. A chuva cessara. Viu, abrigado nas dobras do capote, um animalzinho enroscado a dormir, que ali se metera em busca de calor. Admirou-se ao vê-lo porque era um animal estranho e muito raro, um otaque.

Estas criaturas encontram-se apenas em quatro das ilhas meridionais do Arquipélago — Roke, Ensmer, Pody e Uothort. São pequenos e macios, com caras largas, pêlo castanho-escuro ou malhado e grandes olhos brilhantes. Têm dentes aguçados e um temperamento feroz, pelo que não é hábito tê-los como animais de estimação. Não emitem qualquer chamado ou grito, pois não têm voz alguma. Gued acariciou o bicho que acordou e bocejou, mostrando a pequena língua castanha e os dentes brancos, mas não deu sinais de medo.

— Otaque — pronunciou Gued e logo, recordando os milhares de nomes de animais que aprendera na torre, chamou-o pelo seu nome-verdadeiro na Antiga Fala. — Hoeg! Queres vir comigo?

O otaque sentou-se na palma da sua mão e começou a lavar a pelagem.

Pô-lo sobre o ombro, nas pregas do capuz, e foi aí que o animal viajou. Por vezes, durante o dia, saltava para o solo e escapava-se como uma seta para os bosques, mas voltava sempre para junto de Gued, uma das vezes com um rato do campo que caçara. Gued riu-se e disse-lhe que comesse o rato, porque ele estava a jejuar, sendo aquela a noite do Festival do Regresso-do-Sol. E foi assim que ele passou, no crepúsculo molhado, o Cabeço de Roke e viu brilhantes fogos-fátuos movendo-se rápidos sob a chuva acima dos telhados da Casa Grande, onde finalmente entrou e foi acolhido pelos seus Mestres e companheiros, no grande salão iluminado pelo fogo.

Foi como um regresso ao lar para Gued, que não tinha um lar onde alguma vez regressar. Sentiu-se feliz ao ver tantos rostos seus conhecidos, mais feliz ainda quando Vetch se adiantou para o acolher, com um grande sorriso no rosto escuro. Durante aquele ano, sentira a falta do amigo como só agora se dava conta. Vetch recebera nesse Outono o título de Mágico e não era já um aprendiz, mas isso não ergueu qualquer barreira entre eles. Puseram-se de imediato a conversar e pareceu a Gued ter dito mais a Vetch nessa primeira hora que tudo o que dissera durante todo o longo ano na Torre Isolada.

O otaque continuava empoleirado no seu ombro, aninhando-se na dobra do capuz, quando se sentaram a jantar nas longas mesas postas para o festival no Salão da Lareira. Vetch maravilhou-se com a criaturinha e chegou a estender a mão para a acariciar, mas o otaque, com um estalido dos dentes afiados, tentou mordê-lo. Vetch riu-se.

— Costuma dizer-se, Gavião, que aquele a quem um animal selvagem se afeiçoa é um homem para o qual os Velhos Poderes da pedra e da nascente falarão com voz humana.

— E diz-se que os feiticeiros gontianos mantêm muitas vezes familiares[1] — acrescentou Jaspe, que estava sentado do outro lado de Vetch. — O Senhor Nemmerle tem o seu corvo e dizem as canções que o Mago Vermelho de Ark trazia um javali preso por uma corrente de ouro. Mas nunca ouvi falar de nenhum feiticeiro que andasse com um rato no capuz!

Perante isto, todos riram e Gued riu com os outros. Era uma noite jovial e ele estava contente de ali se encontrar, no calor e na diversão, observando o festival com os seus companheiros. Porém, como tudo o que Jaspe lhe dizia, a facécia fê-lo ranger os dentes.

Nessa noite, o Senhor de O era convidado da escola, sendo ele próprio um mágico de renome. Fora pupilo do Arquimago e voltava por vezes a Roke por ocasião do Festival de Inverno ou, no Verão, para a Longa Dança. Com ele vinha a sua dama, elegante e jovem, brilhante como uma moeda acabada de cunhar, o seu cabelo negro coroado de opalas. Era muito raro que qualquer mulher tomasse assento nas salas da Casa Grande e alguns dos Mestres mais velhos olhavam-na de lado, desaprovadoramente. Mas os homens mais jovens escancaravam os olhos para ela.

— Para uma mulher assim — segredou Vetch para Gued — bem eu teceria vastas encantamentos...

Depois suspirou e riu-se.

— Não passa de uma mulher — replicou Gued.

— A princesa Elfarran não passava de uma mulher — contrapôs Vetch —, e por ela toda a Enlad foi devastada, o Herói-Mago de Havnor morreu e a Ilha de Soléa afundou-se nos mares.

— Histórias velhas — disse Gued. Mas então também ele começou a olhar a Senhora de O, perguntando-se se aquela seria, realmente, essa mortal beleza de que o velhos contos falam.

O Mestre Chantre cantara o Feito do Jovem Rei e todos juntos tinham cantado a Loa do Inverno. Então, quando se fez uma breve pausa antes que todos se levantassem das mesas, Jaspe ergueu-se, dirigiu-se à mesa mais próxima da lareira, onde tinham lugar o Arquimago, os convidados e os Mestres, e falou à Senhora de O. Jaspe não era já um rapaz mas um homem na flor da idade, alto e donairoso, e o seu manto era afivelado a prata junto ao pescoço, pois também ele passara a Mágico nesse ano e o símbolo disso era a fivela de prata. A dama sorriu perante o que ele lhe dizia e as opalas brilharam mais no seu cabelo negro. Então, tendo os Mestres assentido com uma benévola inclinação de cabeça, Jaspe teceu para ela um encanto-ilusão. Feita por ele, uma árvore branca brotou do chão de pedra. Os seus ramos ergueram-se a tocar as altas vigas do teto e em cada rebento de cada ramo brilhou uma maçã dourada, cada uma um sol porque era a Arvore do Ano. Subitamente, um pássaro esvoaçou por entre os ramos, todo branco e com uma cauda que era como neve a cair, e as maçãs, extinguindo-se, transformaram-se em sementes, cada um uma gota de cristal. E quando estas caíram da árvore com um som semelhante ao da chuva, uma doce e inesperada fragrância se espalhou, enquanto a árvore, balouçando levemente, soltava folhas de um fogo róseo e flores brancas, como estrelas. E assim terminou a ilusão. A Senhora de O exprimiu em voz alta o seu prazer e inclinou a cabeça na direção do jovem feiticeiro, em louvor pela sua mestria.

— Vem conosco, vem viver conosco em O-tokne... Não podemos levá-lo, meu Senhor? — perguntou, infantilmente, ao seu severo esposo. Mas Jaspe disse apenas:

— Quando eu tiver aprendido talentos dignos dos meus Mestres nesta escola e dignos do vosso louvor, Senhora, então irei de boa vontade e de boa vontade vos servirei.

E foi assim que Jaspe agradou a todos que ali estavam, à exceção de Gued. Juntou a sua às vozes que exprimiam louvores, mas não o seu coração. Para si próprio, com amarga inveja, disse: «Eu teria feito melhor.» E, depois disso, toda a alegria da festa ficou ensombrada para ele.

 

                                   A LIBERTAÇÃO DA SOMBRA

Nessa Primavera, Gued poucas vezes viu Vetch ou Jaspe, pois estes, como feiticeiros que eram, estudavam agora com o Mestre das Configurações no segredo do Bosque Imanente, em que nenhum aprendiz podia pôr o pé. Gued permaneceu na Casa Grande, trabalhando com os Mestres em todos os talentos praticados pelos mágicos, aqueles que fazem magia mas não trazem bordão: erguer o vento, fazer o tempo, encontrar e ligar, e as artes dos que trabalham feitiços e dos que criam feitiços, e dos contadores, dos chantres, dos curandeiros e dos herbanários. A noite, sozinho na sua cela de dormir, com uma pequena bola de fogo-fátuo a arder sobre o livro, fazendo as vezes de uma candeia ou vela, estudava as Runas Adiantadas e as Runas de Éa que se utilizam nas Grandes Encantamentos. Todas estas artes lhe eram fáceis de aprender e corria entre os estudantes o rumor de que este mestre ou aquele teriam dito que o rapaz gontiano era o aluno mais vivo que alguma vez estivera em Roke e começaram a ouvir-se histórias a respeito do otaque, do qual se dizia ser um espírito disfarçado que segredava sabedoria ao ouvido de Gued, e havia até quem afirmasse que o corvo do Arquimago acolhera Gued à sua chegada como o «futuro Arquimago». Acreditando ou não nessas histórias, gostando ou não de Gued, o certo é que, na maioria, os companheiros admiravam-no e estavam sempre ansiosos por segui-lo nas raras ocasiões em que ele se animava e se juntava a eles para conduzir os seus jogos nas noites cada vez mais longas da Primavera. Porém, na maior parte do tempo, todo ele era trabalho, orgulho e severidade, mantendo-se à parte dos outros. Entre todos eles, e na ausência de Vetch, não tinha amigo algum e nunca sentira que lhe faltasse um.

Tinha quinze anos, muito novo ainda para aprender qualquer das Grandes Artes do feiticeiro ou mago, aquele que traz bordão. Mas era tão rápido a aprender todas as artes de ilusão que o Mestre da Mudança, ele próprio ainda muito jovem, em breve começou a ensiná-lo separadamente dos outros discípulos e a falar-lhe dos verdadeiros Encantamentos de Dar Forma. Explicou que, para uma coisa ser realmente transformada noutra, deve receber novo nome durante tanto tempo quanto a duração do encantamento, e contou-lhe como isso afeta os nomes e a natureza das coisas que rodeiam a coisa transformada. Referiu os perigos da mudança, sobretudo quando o feiticeiro muda a sua própria forma e é susceptível de se ver aprisionado no seu próprio encantamento. Pouco a pouco, levado pela segura compreensão do rapaz, o jovem Mestre começou a fazer mais do que meramente lhe falar destes mistérios. Primeiro uma, logo outra, foi-lhe ensinando os Grandes Encantamentos de Mudança e deu-lhe a estudar o Livro de Dar Forma. Isto foi feito sem conhecimento do Arquimago, e insensatamente, se bem que o Mestre não tivesse má intenção.

Gued trabalhava agora também com o Mestre da Invocação, mas este era um homem austero, idoso e endurecido pela profunda e sombria feitiçaria que ensinava. Nada tinha a ver com ilusão, mas apenas com verdadeira magia, a invocação de energias como a luz e o calor, e a força que atrai o íman, bem como as forças que o homem conhece como peso, forma, cor e som. Poderes reais, extraídos das imensas, incalculáveis energias do universo, que nenhum encantamento ou uso humano poderia alguma vez exaurir ou desequilibrar. O império que fazedores de tempo e mestres do mar exercem sobre o vento e a água eram artes já conhecidas para os seus alunos, mas foi ele que lhes fez ver por que razão o verdadeiro mago só usa tais encantamentos se for absolutamente necessário, dado que invocar essas forças terrenas equivale a alterar a terra de que fazem parte.

— A chuva em Roke pode corresponder a uma seca em Osskil — disse ele —, e uma calmaria na Estrema Leste pode ser tempestade e destruição no Ocidente, se não soubermos o que estamos a fazer.

Quanto a chamar coisas reais e pessoas vivas, bem como fazer erguer os espíritos dos mortos e as invocações do Oculto, encantamentos essas que são o auge da arte do Invocador e do poder do mago, quase nem se referiu a elas. Por uma ou duas vezes, Gued tentou levá-lo a falar um pouco de tais mistérios, mas o Mestre permaneceu silencioso, olhando-o longa e lugubremente, até que Gued se sentiu pouco à vontade e parou de insistir.

Na verdade, por vezes sentia-se inquieto mesmo ao trabalhar encantamentos tão singelos como as que o Invocador lhe ensinava. Havia certas runas em certas páginas do Livro do Saber que lhe pareciam familiares, embora não se lembrasse em que livro as vira antes. Havia certas frases que era forçoso dizer em determinados encantamentos de Invocação, mas que ele não gostava de pronunciar. Por um instante, faziam-no pensar em sombras numa sala escura, numa porta fechada e sombras a tentarem alcançá-lo do canto onde se açoitavam, junto à porta. Apressava-se a afastar de si tais pensamentos ou memórias e prosseguia. Dizia para si próprio que esses momentos de temor e escuridão mais não eram que as meras sombras da sua ignorância. Quanto mais aprendesse, menos teria a temer, até que, finalmente, investido de todo o seu poder como Feiticeiro, já nada precisaria de temer no mundo, absolutamente nada.

No segundo mês daquele Verão, toda a escola se voltou a reunir na Casa Grande a fim de celebrar a Noite da Lua e a Longa Dança, que nesse ano calharam juntas como um só festival de duas noites, o que acontece apenas uma vez em cada cinqüenta e dois anos. Durante toda a primeira noite, a mais curta de lua cheia do ano, ouviram-se flautas tocando nos campos e as estreitas ruas de Thwil estavam cheias de tambores e archotes, com o som das canções a espalhar-se para o largo, por sobre as águas enluaradas da Baía de Roke. Ao nascer do Sol, na manhã seguinte, os Chantres de Roke começaram a cantar o longo Feito de Erreth-Akbe, que conta como foram construídas as torres brancas de Havnor e descreve as viagens de Erreth-Akbe, desde a Velha Ilha, Éa, através de todo o Arquipélago e das Estremas, até que finalmente, na mais longínqua Estrema Oeste, na orla do Mar Aberto, se lhe deparou o dragão Orm. E os seus ossos na armadura despedaçada jazem entre os ossos do dragão nas costas da solitária Selidor, mas a sua espada, erguida sobre a torre mais alta de Havnor, continua ainda a rutilar ao crepúsculo, acima do Mar Interior. Quando o cântico acabou, teve início a Longa Dança. A gente da vila, Mestres, estudantes e camponeses todos juntos, homens e mulheres, dançaram na poeira quente, na luz crepuscular, descendo todas as ruas de Roke até às praias, ao ritmo de tambores, ao som de pífaros e flautas. E dançando penetraram no próprio mar, sob a Lua que na véspera fora cheia, com a música a perder-se no som da rebentação. Quando a oriente começou a clarear, voltaram a subir as praias e as ruas, os tambores agora silenciosos e apenas as flautas tocando suavemente, tremulamente. E assim se fez nessa noite em todas as ilhas do Arquipélago. Uma única dança, uma única música, a ligar entre si as terras divididas pelo mar.

Acabada a Longa Dança, a maioria das pessoas dormiu durante todo o dia seguinte, juntando-se todos ao anoitecer para comer e beber. Havia um grupo de jovens, aprendizes e mágicos, que trouxera o jantar do refeitório a fim de fazer um festim privado num dos pátios da Casa Grande. Vetch, Jaspe e Gued faziam parte do grupo, mais outros seis ou sete, e ainda alguns rapazes libertos por um breve tempo da Torre Isolada, pois este festival até conseguira atrair Kurremkarmerruk. Estavam todos a comer, a rir e, por simples diversão, a fazer tais truques que teriam maravilhado a corte de qualquer rei. Um dos rapazes iluminara o pátio com uma centena de estrelas de fogo-fátuo, coloridas como pedras preciosas, que iam balançando, entrelaçadas numa lenta progressão, entre eles e as estrelas reais. Um par de jovens jogava bowling com bolas de chama verde e pinos que saltavam e se afastavam aos pulos de cada vez que as bolas se aproximavam. E durante todo esse tempo, Vetch estava sentado, de pernas cruzadas, comendo galinha assada, suspenso no ar. Um dos rapazes mais novos tentou puxá-lo para o solo, mas Vetch limitou-se a subir um pouco mais, para fora de alcance, e ali ficou, no ar, sorrindo calmamente. De vez em quando deitava fora um osso de galinha que logo se transformava em mocho e voava piando por entre as estrelas de luz. Gued lançava setas de miolo de pão aos mochos e abatia-os, mas quando tocavam o chão, ali ficavam, osso e miolo, desvanecida toda a ilusão. Gued tentou também juntar-se a Vetch lá no alto mas, faltando-lhe o elemento-chave da encantamento, tinha de bater o braços para se manter acima do chão, de modo que todos se riam com o seu esvoaçar, esbracejar e cair. Gued continuou naquele disparate para animar os risos, rindo com eles, pois após aquelas duas longas noites de dança e luar, de música e magia, estava numa disposição de espírito travessa e insensata, pronto para o que desse e viesse.

Finalmente, veio aterrar lentamente e de pé mesmo ao lado de Jaspe e este, que nunca se rira abertamente, afastou-se, dizendo:

— O Gavião que não consegue voar...

— Será o jaspe uma pedra preciosa? — retorquiu Gued, arreganhando os dentes. — Ó Jóia entre os feiticeiros, ó Gema de Havnor, derrama o teu brilho sobre nós!

O rapaz que pusera as luzes a dançar fez descer uma delas e pô-la a dançar e a brilhar ao redor da cabeça de Jaspe. Com bem menos fleuma que o habitual, enrugando a testa, Jaspe afastou a luz e, com um gesto, apagou-a.

— Estou farto de rapazes e barulho e idiotices — disse.

— Estás a entrar na meia-idade, homem — comentou Vetch lá do alto.

— Se o que queres é silêncio e sombra — acrescentou um dos rapazes mais jovens —, podes sempre optar pela Torre.

E Gued perguntou-lhe:

— O que é então que queres, Jaspe?

— Quero a companhia dos meus iguais — disse Jaspe. — Anda daí, Vetch. Deixa os aprendizes com os seus brinquedos.

Gued voltou-se para encarar Jaspe.

— E o que têm os mágicos que os aprendizes não tenham? — inquiriu. A sua voz era tranqüila, mas todos os outros rapazes ficaram subitamente muito quietos porque, no tom em que falara, tal como no de Jaspe, o despeito entre eles soava evidente e claro como a lâmina de uma espada ao sair da bainha.

— Poder — disse Jaspe.

— Sou capaz de igualar o teu poder, ato por ato.

— Estás a desafiar-me?

— Estou a desafiar-te.

Vetch deixara-se cair até ao solo e veio interpor-se entre ambos, de rosto severo.

— Duelos de magia estão nos interditos, como muito bem sabem. Paremos com isto!

Tanto Gued como Jaspe guardaram o silêncio, pois era verdade que conheciam a lei de Roke. E sabiam também que Vetch era movido por amor, e eles próprios por ódio. E no entanto, a sua ira fora contrariada, mas não acalmada. E por fim, desviando-se um pouco para o lado como se pretendesse ser ouvido apenas por Vetch, Jaspe falou, arvorando o seu frio sorriso:

— Acho preferível recordares melhor ao teu amigo cabreiro a lei que o protege. Ele parece estar amuado. Será que acreditou mesmo que eu ia aceitar um desafio dele? De um tipo que cheira a cabras, um aprendiz que nem conhece a Primeira Mudança?

— Jaspe — disse Gued —, que sabes tu daquilo que eu sei? Durante um instante, sem que alguém tivesse dito alguma palavra, Gued desapareceu-lhes da vista e, onde ele estivera, planou um grande falcão, abrindo o bico adunco para gritar. Isto durou apenas um instante e logo Gued voltou a surgir à luz trêmula dos archotes, fitando Jaspe sombriamente.

Jaspe, atônito, dera um passo atrás. Mas logo encolheu os ombros e pronunciou uma só palavra:

— Ilusão.

Os outros sussurraram entre si, mas Vetch disse em voz alta:

— Aquilo não foi ilusão alguma. Foi mudança legítima. E basta. Jaspe, escuta...

— O bastante para mostrar que ele deitou uma olhadela ao Livro das Formas às escondidas do Mestre. E então? Continua, Cabreiro. Estou a divertir-me com essa ratoeira que estás a construir para ti próprio. Quanto mais tentas mostrar-te meu igual, tanto mais demonstras o que realmente és.

Perante isto, Vetch desviou-se de Jaspe e, muito suavemente, disse para Gued:

— Gavião, serás capaz de ser um homem e deitar isto para trás das costas? Anda comigo.

Gued olhou para o amigo e sorriu, mas o que respondeu foi:

— Guarda o Hoeg contigo por um bocado, sim?

E pôs o pequeno otaque, que como de costume tinha estado no seu ombro, nas mãos de Vetch. O animal nunca deixara mais ninguém tocar-lhe, mas desta vez passou para a mão de Vetch e, subindo-lhe pelo braço, foi aninhar-se no seu ombro, os grandes olhos brilhantes sempre a fitar o dono.

— E agora — disse Gued para Jaspe, tão calmo como antes —, que vais fazer para provar que me és superior, Jaspe?

— Eu não tenho de fazer nada, Cabreiro. E, no entanto, vou fazer. Vou dar-te uma oportunidade. A inveja rói-te por dentro como a lagarta na maçã. Deixemos sair a lagarta. Uma vez, junto ao Cabeço de Roke, gabaste-te de que os feiticeiros de Gont não usam a magia para brincar. Vem agora até ao Cabeço de Roke e mostra-nos para o que a usam então. E, depois, talvez eu te mostre um pouco de magia.

— Sim, bem gostaria de ver isso — retorquiu Gued. Os rapazes mais novos, habituados a vê-lo dar largas ao seu mau humor perante o mínimo indício de desprezo ou insulto, maravilhavam-se agora com a sua calma. Vetch observava-o também, não com admiração, mas com crescente temor. Tentou de novo intervir, mas Jaspe disse:

— Vá lá, Vetch, mantém-te fora disto. E o que vais fazer com a oportunidade que te dou, Cabreiro? Vais mostrar-nos uma ilusão, uma bola de fogo, um sortilégio para curar a sarna das cabras?

— Que gostarias tu que eu fizesse, Jaspe?

O outro encolheu os ombros.

— Cá por mim, podes invocar um espírito dos mortos!

— Fá-lo-ei.

— Não fazes.

E Jaspe fitou-o, olhos nos olhos, a raiva a sobrepor-se como uma chama ao seu desdém.

— Não fazes — repetiu. — Não consegues. Não fazes senão largar fanfarronadas...

— Pelo meu nome, fá-lo-ei!

Por um momento, todos ficaram rigidamente imóveis.

Libertando-se de Vetch, que pretendia impedi-lo à força, Gued saiu do pátio em largas passadas e sem olhar para trás. As luzinhas lá em cima apagaram-se, caíram. Jaspe hesitou por um segundo, mas logo seguiu os passos de Gued. E os outros vieram logo atrás, em silêncio, cheios de curiosidade e temor.

As encostas do Cabeço de Roke erguiam-se, escuras, penetrando o escuro da noite de Verão antes do nascer da Lua. A presença daquela colina onde tantas maravilhas tinham sido operadas era pesada, como um ar mais denso ao redor deles. Ao enveredarem pelo lado da colina iam pensando como as suas raízes eram profundas, mais profundas que o mar, até atingirem os velhos fogos, ocultos e secretos, no âmago do mundo. Pararam na vertente leste. As estrelas pareciam suspensas sobre a erva negra, acima deles, no cume da colina. Não soprava uma aragem.

Gued avançou mais alguns passos pela encosta acima, destacando-se dos outros. Depois voltou-se e, em voz clara, perguntou:

— Jaspe, queres que chame o espírito de quem?

— Chama quem quiseres. Nenhum te ouvirá. — E a voz de Jaspe tremia um pouco, de ira talvez.

Num tom suave, trocista, Gued retorquiu:

— Estarás com medo?

Mas nem deu ouvidos à resposta de Jaspe, se é que houve alguma. Deixara de se importar com Jaspe. Agora que estavam ali, sobre o Cabeço de Roke, o ódio e a raiva tinham-se dissipado, substituídos pela mais absoluta certeza. Não precisava já de invejar fosse quem fosse. Sabia que o seu poder, nessa noite, naquele escuro solo encantado, era maior do que alguma vez fora, preenchendo-o até o fazer vibrar com a sensação de uma força dificilmente mantida sob controlo. Sabia agora que Jaspe estava muito abaixo dele, que fora talvez enviado apenas para o trazer ali naquela noite, já não um rival mas um mero servo do destino de Gued. Sob os seus pés sentia as raízes da colina estendendo-se cada vez mais fundo para o seio da escuridão, sobre a sua cabeça via o fogo seco e longínquo das estrelas. Entre uma coisa e outra, todas as coisas eram suas para as determinar, para as comandar. Encontrava-se no centro do mundo.

— Não temas — disse com um sorriso. — Chamarei um espírito de mulher, a bela dama do Feito de Enlad.

— Mas ela morreu há mil anos atrás, os seus ossos jazem sob o mar de Éa, e talvez nem nunca tenha existido tal mulher.

— Será que os anos e a distância têm importância para os mortos? Será que as Canções mentem? — disse Gued, no mesmo tom de leve troça. E logo acrescentou: — Observem o ar entre as minhas mãos. — Voltou costas aos outros e imobilizou-se.

Com um movimento amplo e demorado, estendeu os braços no gesto de acolhimento que inicia uma invocação. Começou a falar.

Lera as runas desta Encantamento de Invocação no livro de Óguion há mais de dois anos e, desde então, não as voltara a ver. Fora na escuridão que as lera. E agora, naquela escuridão, era como se de novo as lesse, na página aberta perante ele em plena noite. Porém, agora compreendia o que lia, repetindo em voz alta as palavras, uma após outra, e discernia as diretivas de como a encantamento devia ser tecida com o som da voz e o mover de corpo e mão.

Os outros rapazes observavam, sem falar, sem se moverem para lá de algum arrepio, porque a grande encantamento começava a surtir efeito. A voz de Gued ainda suave, mas mudada, com uma profunda ressonância, e as palavras que dizia eram-lhes desconhecidas. Depois remeteu-se ao silêncio. De súbito, o vento ergueu-se, rugindo entre a erva. Gued deixou-se cair de joelhos e lançou um brado em voz alta. A seguir tombou para a frente como se quisesse abraçar a terra com os seus braços abertos e, ao voltar a erguer-se, segurava algo escuro nas mãos tensas, nos braços tensos, algo tão pesado que todo ele tremia no esforço para se pôr de pé. O vento quente soava lamentoso na erva da colina, negra e agitada. Se as estrelas continuavam a brilhar, ninguém as via.

As palavras da Encantamento sibilaram e murmuraram nos lábios de Gued e depois ele bradou, alta e claramente:

— Elfarran!

E uma vez mais bradou o nome: — Elfarran!

E pela terceira vez: — Elfarran!

A massa informe de escuridão que ele erguera do solo fendeu-se. Abriu-se e uma nesga de pálida luz brilhou entre os seus braços abertos, uma estreita oval erguendo-se do solo até à altura das suas mãos erguidas. Por um momento, na oval de luz, moveu-se uma forma, um vulto humano, uma mulher que olhava por sobre o ombro esquerdo. O seu rosto era belo, dolorido, cheio de temor.

Apenas por um momento brilhou o espírito. Depois a estreita oval entre os braços de Gued tornou-se mais nítida. Alargou e espalhou-se, uma fenda no escuro da terra e da noite, uma abertura rasgada no tecido do mundo. Através dela flamejou um terrível clarão. E através daquela brilhante e disforme brecha trepou algo de semelhante a um borrão de sombra negra, célere e hediondo, que se lançou diretamente sobre o rosto de Gued.

Recuando a cambalear sob o peso daquela coisa, Gued lançou um grito breve e rouco. O pequeno otaque que assistia a tudo empoleirado sobre o ombro de Vetch, o animal que não possuía voz, gritou também com força e saltou como que para atacar.

Gued tombou, debatendo-se e contorcendo-se, enquanto o brilhante rasgão na escuridão do mundo, acima dele, se alargava e estendia. Os rapazes que observavam a cena fugiram e Jaspe dobrou-se para o solo, a defender os olhos da terrível luz. Só Vetch correu em frente, para junto do amigo. Por isso foi ele o único a ver como o pedaço de sombra que se agarrara a Gued lhe rasgava a carne. Era como um animal negro, do tamanho de uma criança pequena, embora tão depressa parecesse inchar como encolher. E não tinha cabeça nem rosto, apenas as quatro patas armadas de garras com que agarrava e rasgava. Vetch soltou um soluço horrorizado, mas mesmo assim estendeu as mãos, numa tentativa para afastar de Gued aquela coisa. Mas antes que lhe tocasse, ficou como tolhido, incapaz de se mover.

O brilho intolerável empalideceu e, lentamente, os lados da fenda rasgada no mundo fecharam-se. Próximo, uma voz falava, tão suave como o sussurro de uma árvore, o murmúrio de uma fonte.

A luz das estrelas voltou de novo a brilhar e a erva da encosta tornou-se esbranquiçada sob a Lua acabada de nascer. A noite estava de novo sã. Restaurara-se e firmara-se o equilíbrio entre luz e sombra. A fera-de-sombra desaparecera. Gued jazia caído de costas, os braços abertos em cruz como se mantivesse ainda o gesto largo de boas-vindas e invocação. Tinha o rosto enegrecido de sangue e grandes manchas negras na camisa. Agachado no seu ombro, o pequeno otaque tremia. E acima dele erguia-se o vulto de um velho cuja capa reluzia palidamente sob o luar. O Arquimago Nemmerle.

A ponta do bordão de Nemmerle, argêntea, oscilava por sobre o peito de Gued. Baixou uma vez a tocá-lo suavemente sobre o coração, outra nos lábios, enquanto Nemmerle continuava a murmurar. Gued moveu-se, os seus lábios abriram-se, arquejando por ar. E então o velho Arquimago ergueu o bordão e apoiou-se nele pesadamente, a cabeça pendendo, como se mal tivesse energia para se manter em pé.

Vetch verificou que podia de novo mover-se. Olhando em redor, viu que já outros ali estavam, os Mestres da Invocação e da Mudança. Um ato de grande feitiçaria não se leva a cabo sem despertar a atenção de tais homens, e tinham processos para se aproximarem bem rapidamente quando a necessidade chamava, embora nenhum tivesse sido tão célere como o Arquimago. E mandaram então vir reforços, e alguns dos que vieram partiram levando o Arquimago, enquanto outros, com Vetch entre eles, transportavam Gued para os aposentos do Mestre das Ervas.

Durante toda a noite permaneceu o Mestre da Invocação sobre o Cabeço de Roke, de vigia. Mas ali, sobre a encosta onde a matéria do mundo fora rasgada, nada se movia. Nenhuma sombra veio rastejando através do luar em busca da fenda por onde regressar de novo ao seu próprio domínio. Fugira de Nemmerle, e das poderosas muralhas de magia que rodeavam e protegiam a Ilha de Roke, mas estava agora no mundo. Em qualquer parte desse mundo, ocultava-se. Se Gued tivesse morrido nessa noite, poderia ter tentado encontrar a portada que ele abrira e segui-lo até ao reino da morte, ou escapar-se para o ignoto lugar de onde viera. E por isso o Mestre da Invocação esperava no Cabeço de Roke. Mas Gued continuou vivo.

Tinham-no posto sobre um leito no aposento da cura e o Mestre das Ervas tratara as feridas que ele tinha no rosto, no pescoço e nos ombros. Eram feridas profundas, irregulares e malignas. O sangue negro que delas brotava não se estancava, escapando-se mesmo através dos sortilégios e das folhas de perriótea envolvidas em teias de aranha, apostas sobre elas. Cego e mudo, Gued permanecia mergulhado em febre como um graveto num fogo lento, e não havia encantamento que refrescasse o que o queimava.

Não muito longe, no pátio descoberto onde jorrava a fonte, também o Arquimago permanecia deitado e imóvel, mas frio, tão frio. Só os seus olhos viviam, observando o cair da água enluarada e o frêmito das enluaradas folhas. Os que estavam com ele não teciam encantamentos nem tentavam curas. Calmamente, falavam entre si de tempos a tempos e logo voltavam a observar o seu Senhor. E ele permanecia imóvel, o nariz adunco, a testa alta e o cabelo branco tornado ainda mais branco pelo luar, tudo com a cor do osso. Para dominar o encantamento incontrolado e afastar de Gued a sombra, Nemmerle esgotara todo o seu poder e com ele se perdera também a força do seu corpo. Estava a morrer. Mas a morte de um grande mago, que durante a sua vida muitas vezes caminhou pelas secas e abruptas encostas do reino da morte, é estranha coisa. Porque o homem moribundo não parte às cegas, mas com segurança, conhecendo o caminho.

E quando Nemmerle ergueu o olhar através das folhas da árvore, aqueles que estavam com ele não sabiam se ele observava as estrelas de Verão que o dia nascente ia empalidecendo, se essas outras estrelas que nunca se põem, acima das colinas que nunca vêem o amanhecer.

O corvo de Osskil, que fora o seu animal de estimação durante trinta anos, desaparecera. Ninguém vira para onde. «Voa à frente dele», disse o Mestre das Configurações que, com os outros, estava de vigília.

Quente e claro, o dia nasceu. A Casa Grande e as ruas de Thwil mantinham-se em silêncio. Nenhuma voz se ergueu até que, perto já do meio-dia, os sinos de ferro ergueram as suas vozes na Torre do Chantre, dobrando asperamente.

No dia seguinte, os Nove Mestres de Roke reuniram-se num local em algum lado sob as escuras árvores do Bosque Imanente. E mesmo aí ergueram ao seu redor nove muralhas de silêncio, para que nada, pessoa ou potência, pudesse falar-lhes ou ouvi-los enquanto escolhiam de entre os magos de toda Terramar aquele que seria o novo Arquimago. Guencher de Way foi o escolhido. De imediato se enviou um navio, através do mar Interior e até à Ilha de Way, para trazer o Arquimago de volta a Roke. O Mestre Chave-do-Vento, permanecendo de pé à popa, fez erguer o vento mágico a impelir a vela e rapidamente o navio se fez ao largo e desapareceu das vistas.

Destes acontecimentos, Gued nada soube. Durante quatro semanas desse Verão tão quente permaneceu prostrado, cego, surdo e mudo, embora por vezes gemesse e soltasse gritos como um animal. Por fim, com as pacientes artes do Mestre das Ervas a determinarem a cura, as feridas começaram a fechar e a febre abandonou-o. Pouco a pouco, pareceu voltar a ouvir, embora continuasse sem falar. Num claro dia de Outono, o Mestre das Ervas abriu os taipais da divisão onde Gued se encontrava. Desde a escuridão daquela noite no Cabeço de Roke, só escuridão conhecera. Mas então viu a luz do dia, o Sol que brilhava. E, escondendo nas mãos o rosto marcado de cicatrizes, chorou.

Mas quando chegou o Inverno ainda só conseguia falar com voz titubeante e o Mestre das Ervas manteve-o ali no aposento da cura, tentando restituir-lhe gradualmente as forças do corpo e da mente. Estava-se no início da Primavera quando finalmente o Mestre o deixou partir, enviando-o em primeiro lugar a apresentar o seu preito de fidelidade ao Arquimago Guencher, já que não pudera juntar-se a todos os outros da Escola nesse dever, quando Guencher chegara a Roke.

Nenhum dos seus companheiros tivera permissão para o visitar durante os meses da sua doença e agora, ao verem-no passar, alguns perguntavam entre si:

— Quem é aquele?

Gued fora ágil, flexível e forte. Agora, diminuído pela dor, caminhava com hesitação e não erguia o rosto, cujo lado esquerdo ficara branco de cicatrizes. Evitando tanto os que o conheciam como os que não, encaminhou-se diretamente para o pátio da Fonte. Aí, onde certa vez o esperara Nemmerle, esperava-o agora Guencher.

Tal como o velho Arquimago, o novo vestia de branco, mas, como a maioria dos homens de Way e da Estrema Leste, Guencher tinha a pele negra e negros eram os seus olhos, sob espessas sobrancelhas.

Gued ajoelhou-se, oferecendo-lhe a sua fidelidade e obediência. Guencher permaneceu em silêncio por algum tempo.

— Sei o que fizeste — disse por fim —, mas não o que és. Não posso aceitar o teu preito.

Gued ergueu-se e apoiou a mão no tronco da jovem árvore ao lado da fonte para se equilibrar. Era-lhe ainda difícil encontrar as palavras.

— Deverei deixar Roke, meu senhor?

— Queres deixar Roke?

— Não.

— Então que queres?

— Ficar. Aprender. Anular... o mal...

— Nem o próprio Nemmerle o conseguiu. Mas não, não quero deixar que partas de Roke. Nada te protege, a não ser o poder dos Mestres aqui existente e as defesas tecidas sobre esta ilha que mantêm afastadas as criaturas maléficas. Se partisses agora, essa coisa que libertaste encontrar-te-ia de imediato, entraria em ti, possuir-te-ia. Deixarias de ser homem para te tomares um gebbeth, uma marionete sujeita à vontade dessa sombra maléfica que trouxeste para a luz do Sol. Deves permanecer aqui até que obtenhas a força e a sabedoria necessárias para dela te defenderes... se alguma vez o conseguires. Mesmo agora ela espera por ti. Seguramente que espera por ti. Voltaste a vê-la desde aquela noite?

— Em sonhos, Senhor. — E, após uma pausa, Gued prosseguiu, com dor e vergonha na voz. — Meu Senhor Guencher, não sei o que aquilo era... a coisa que saiu da encantamento e se agarrou a mim...

— Nem eu o sei. Não tem nome. Há em ti um grande poder que nasceu contigo, e usaste esse poder erradamente ao teceres um encantamento sobre a qual não tinhas controle, e sem saberes como esse encantamento afeta o equilíbrio entre luz e sombra, vida e morte, bem e mal. E foste levado a fazê-lo por orgulho e ódio. Será de admirar que o resultado tenha sido ruinoso? Invocaste um espírito dos mortos, mas com ele veio um dos Poderes da não-vida. Sem que o chamassem, veio de um lugar onde não existem nomes. Maléfico, o seu desejo é praticar malefícios através de ti. O poder que tiveste para o chamar dá-lhe poder sobre ti. Estais ligados. É a sombra da tua arrogância, a sombra da tua ignorância, a sombra que projetas. Terá uma sombra nome?

Gued permaneceu em silêncio, débil e macilento. Por fim, disse:

— Mais me valera ter morrido.

— E quem és tu para ajuizar de tal coisa, tu por quem Nemmerle deu a vida?... Aqui estás a salvo. Aqui viverás e continuarás a tua aprendizagem. Dizem-me que és hábil. Vai e faz o teu trabalho. Faça-o bem. É tudo o que podes fazer.

E assim terminou Guencher, desaparecendo instantaneamente, como é costume dos magos. A fonte jorrava à luz do Sol e Gued ficou-se a olhá-la por algum tempo, ouvindo a sua voz, pensando em Nemmerle. Certa vez, naquele pátio, ele sentira ser uma palavra dita pela luz do Sol. Agora também a escuridão falara. Uma palavra que não podia ser abolida.

Deixou o pátio e dirigiu-se para o seu antigo quarto na Torre Sul, que tinham mantido vazio para ele. Ali permaneceu sozinho. Quando o gongo soou para a ceia obedeceu ao chamado, mas mal falou com os outros rapazes à Mesa Grande, nem para eles ergueu o rosto, mesmo os que o acolhiam mais gentilmente. Assim, passado um ou dois dias, acabaram por deixá-lo só. E estar só era o que desejava, pois temia o mal que poderia fazer ou dizer involuntariamente.

Nem Vetch nem Jaspe ali estavam e Gued não perguntou por eles. Os rapazes que ele encabeçara e comandara estavam agora muito à sua frente por causa dos meses que perdera, pelo que na Primavera e no Verão desse ano estudou com rapazes mais jovens que ele. E também não brilhou entre esses porque as palavras de qualquer encantamento, nem que fosse o mais simples sortilégio de ilusão, saíam-lhe hesitantes da boca e as suas mãos vacilavam nos movimentos da arte.

No Outono deveria ir mais uma vez para a Torre Isolada, a estudar com o Mestre dos Nomes. Essa tarefa, que em tempos abominara, agradava-lhe agora, porque o silêncio era o que buscava, bem como a longa aprendizagem em que não havia encantamentos a tecer e onde o poder que ele sabia residir ainda em si não seria chamado a exercer-se.

Na noite anterior à sua partida para a Torre, veio ao seu quarto um visitante, alguém que envergava um manto de viagem castanho e trazia um bordão com ponteira de ferro. Gued pôs-se de pé à vista do bordão do feiticeiro.

— Gavião...

Ao som daquela voz, Gued ergueu os olhos. Era Vetch quem ali estava, tão solidamente inabalável como sempre, o rosto negro e rude mais velho agora, mas com o mesmo imutável sorriso. No seu ombro aninhava-se um animalzinho, de pêlo malhado e olhos brilhantes.

— Ele ficou comigo durante a tua doença e agora tenho pena de me separar dele. E ainda mais de me separar de ti, Gavião. Mas vou voltar para casa. Vá lá, Hoeg, volta para o teu verdadeiro dono!

Vetch deu uma palmadinha no otaque e colocou-o no chão. O animal dirigiu-se para o catre de Gued, onde se sentou, começando a lavar o pêlo com a sua língua castanha, semelhante a uma pequena folha seca. Vetch riu, mas Gued não conseguiu sequer sorrir. Inclinou-se para ocultar o rosto, fazendo festas ao otaque.

— Julguei que não quererias ver-me, Vetch — disse ele. Com isto não pretendia fazer qualquer censura, mas Vetch respondeu:

— Não podia vir ver-te. O Mestre das Ervas proibiu-me. E desde o Inverno que tenho estado com o Mestre no Bosque, também eu fechado. Não era livre, até que tivesse merecido o meu bordão. Ouve. Quando tu também fores livre, vem até à Estrema Leste. Ficarei à tua espera. As vilazinhas são acolhedoras e os feiticeiros bem recebidos.

— Livre... — murmurou Gued, e encolheu ligeiramente os ombros, tentando sorrir.

Vetch olhou-o, não precisamente como costumara olhar, mas com igual amor e, talvez, mais como feiticeiro. Suavemente, disse:

— Não ficarás para sempre preso a Roke.

— Bem... Pensei que talvez pudesse trabalhar com o Mestre na Torre, ser um daqueles que procuram nos livros e nas estrelas os nomes perdidos e, desse modo, não... não fazer mais nenhum mal, mesmo sem fazer muito bem...

— Talvez — respondeu Vetch. — Não sou vidente, mas à tua frente vejo, não salas e livros, mas mares longínquos, e o fogo de dragões, e as torres de cidades, e todas essas coisas que um falcão vê quando voa longe e alto.

— E atrás de mim... O que vês atrás de mim? — perguntou Gued, ao mesmo tempo que se erguia, fazendo com que a luz que brilhava por cima e no meio deles lançasse a sua sombra sobre a parede e o chão atrás dele. Depois, voltando o rosto para um lado e com voz titubeante, acrescentou: — Mas diz-me para onde vais, e o que irás fazer.

— Como te disse, vou de volta a casa, para ver os meus irmãos e a irmã de quem me ouviste falar. Quando a deixei era uma criancinha e agora em breve receberá o seu Nome... É estranho pensar nisso! E então vou arranjar trabalho como feiticeiro lá pelas ilhas pequenas. Ah, bem gostaria de ficar a conversar contigo, mas não posso, o meu navio parte esta noite e a maré já está a mudar. Gavião, se alguma vez o teu caminho for para leste, vem ter comigo. E se alguma vez precisares de mim, manda-me buscar, chama-me pelo meu nome: Estarriol.

Perante isto, Gued ergueu o rosto marcado pelas cicatrizes, cruzando o olhar com o do amigo.

— Estarriol — disse —, o meu nome é Gued.

Depois, calmamente, despediram-se um do outro e Vetch, voltando costas, desceu as escadas, percorreu a entrada de pedra e deixou Roke.

Por um momento, Gued quedou-se imóvel, como alguém que acabou de receber importantes notícias e tem de abrir o espírito para melhor as acolher. Grande oferta lhe fizera Vetch, o conhecimento do seu verdadeiro nome.

Ninguém conhece o nome-verdadeiro de um homem, para além dele próprio e daquele que lho conferiu. Poderá eventualmente decidir dizê-lo a um irmão, à mulher, a um amigo, mas mesmo esses poucos nunca o usarão onde qualquer terceira pessoa o possa ouvir. Em frente de outras pessoas, chamá-lo-ão, tal como essas outras pessoas, pelo seu nome-de-usar, a sua alcunha — um nome como Gavião ou Vetch. Ou Óguion, que significa «pinha de abeto». Se os homens simples ocultam o seu nome-verdadeiro de toda a gente menos uns poucos que amam e em quem totalmente confiam, muito mais o farão os feiticeiros, porque mais perigosos e perigando mais. Quem sabe o nome de um homem tem a vida desse homem a seu cuidado. Assim, a Gued, que perdera a fé em si próprio, Vetch fizera essa oferta que só um amigo pode fazer, a prova de uma confiança inabalada e inabalável.

Gued sentou-se no seu catre e deixou que o globo de fogo-fátuo se extinguisse, libertando ao apagar-se um tênue cheiro a gás dos pântanos. Acariciou o otaque, que se espreguiçou e estendeu confortavelmente, adormecendo-lhe em cima do joelho como se nunca tivesse dormido noutro lugar. A Casa Grande estava em silêncio. Veio ao espírito de Gued a recordação de que aquela era a véspera da sua própria Passagem, o dia em que Óguion lhe dera o seu nome. Desde então quatro anos se tinham passado. Recordou o frio da nascente de montanha através da qual caminhara nu e sem nome. Daí veio a recordar outros pegos brilhantes do Rio Ar, onde costumava nadar; e a aldeia de Dez Amieiros na base das grandes florestas da montanha; e as sombras matinais ao longo da poeirenta rua da aldeia, o fogo a altear-se ao sopro dos foles na forja do bronzeiro, numa tarde de Inverno, a cabana escura e fragrante da bruxa onde o ar era pesado de fumo e sortilégios. Há quanto tempo não pensava em nada disso. E agora tudo voltava ao seu espírito, naquela noite em que fazia dezessete anos de vida. Todos os anos e lugares da sua breve e fragmentada vida chegaram ao alcance da sua mente e de novo se conjugaram num todo. E finalmente, após aquele longo, amargo e desperdiçado tempo, soube uma vez mais quem era e onde estava.

Mas onde deveria ir nos anos seguintes, isso não podia ele distinguir. E temia vê-lo.

Na manhã seguinte partiu para a travessia da ilha, com o otaque uma vez mais aninhado no seu ombro como costumava. Desta vez demorou três dias, e não dois, a caminhada até à Torre Isolada e os próprios ossos lhe doíam quando chegou à vista da Torre, erguendo-se acima dos mares que ferviam e silvavam no cabo setentrional. Lá dentro, era tão escuro como ele recordava, frio como ele recordava, e Kurremkarmerruk estava, como sempre, na sua alta cadeira, escrevendo listas de nomes. Lançou um olhar a Gued e disse sem quaisquer boas-vindas, como se o rapaz nunca se tivesse ausentado:

— Vai para a cama. Estar cansado é estúpido. Amanhã podes abrir o Livro dos Empreendimentos dos Criadores e aprender os nomes que lá se encontram.

No fim do Inverno, regressou à Casa Grande. Foi enfim feito Mágico e, desta vez, o Arquimago Guencher aceitou-lhe o preito de fidelidade. Passou então a estudar as grandes artes e encantamentos, transitando das artes da ilusão para os trabalhos de verdadeira magia, aprendendo o que precisava de saber para obter o seu bordão de feiticeiro. Os problemas que sentira para pronunciar as palavras dos encantamentos desapareceram com o passar dos meses e as suas mãos recuperaram a perícia. Contudo, nunca voltou a ser tão rápido a aprender como antes fora, dada a longa e dura lição que o temor lhe ensinara. Mas nunca houve portentos ou encontros malfazejos na seqüência mesmo das Grandes Encantamentos de Criar e Formar, que são as mais perigosas. Chegou a perguntar-se por vezes se a sombra que libertara não teria enfraquecido, ou fugido para algum lugar fora do mundo, pois não voltou a surgir nos seus sonhos. Mas, no mais íntimo do seu ser, sabia que essa esperança era loucura.

Com os Mestres e nos antigos livros do antigo saber Gued aprendeu tudo o que pôde sobre criaturas como aquela sombra que ele libertara, mas pouco havia a aprender. Nenhuma criatura assim era descrita ou referida diretamente. No máximo, havia aqui e ali, nos velhos livros, alusões veladas a coisas que poderiam ser como a sombra-fera. Não era um fantasma de ser humano, nem qualquer criatura dos Antigos Poderes da Terra, e, no entanto, dir-se-ia haver alguma ligação com estes últimos. No Em Matéria de Dragões, que Gued lera com grande atenção, havia a história de um antigo Senhor de Dragões que ficara sob o império de um dos Antigos Poderes, uma pedra falante que existia numa longínqua terra lá para norte. «A ordem da Pedra», dizia o livro, «ele falou realmente para erguer um espírito do reino dos mortos, mas tendo a sua magia sido desviada de sentido pela vontade da Pedra, veio com o espírito morto uma coisa que não fora invocada e o devorou de dentro para fora e sob a sua forma caminhou sobre a terra, destruindo homens.» Mas o livro não dizia o que a coisa era nem contava o fim da história. E os Mestres não sabiam de onde viria uma tal sombra. Da não-vida, dissera o Arquimago. Do lado errado do mundo, adiantou o Mestre da Mudança. E o mestre da Invocação disse: «Não sei.» Este último Mestre viera muitas vezes sentar-se junto de Gued durante a doença deste. Era, como sempre, soturno e grave, mas Gued sabia-o compassivo e tinha-lhe grande amizade.

— Não sei — prosseguiu o Mestre. — Dessa sombra apenas sei isto: que só um grande poder poderia ter invocado semelhante coisa, talvez mesmo só um único poder, uma única voz, a tua. Mas o que, por sua vez, isso significa, não sei. Descobri-lo-ás. Tens de o descobrir ou morrer, ou pior que morrer... O Mestre falava suavemente e os seus olhos estavam sombrios ao fitar Gued. — Em rapaz, pensaste que um mago é alguém que pode fazer toda e qualquer coisa. Também eu assim pensei, em tempos. E a verdade é que, à medida que o poder real de um homem aumenta e se alarga o seu conhecimento, tanto mais se vai estreitando o caminho que lhe é possível seguir. Até que, finalmente, ele nada escolhe, mas faz apenas, e na sua totalidade, o que tem de fazer.

O Arquimago, após o décimo oitavo aniversário de Gued, mandou-o trabalhar com o Mestre das Configurações. O que se aprende no Bosque Imanente não é muito comentado fora dele. Diz-se que ali não se tecem encantamentos e, no entanto, o próprio lugar é um encantamento. Por vezes vêem-se as árvores daquele bosque, e por vezes não, e nem sempre se encontram no mesmo local e parte da Ilha de Roke. Diz-se que as árvores do bosque são, elas próprias, sábias. Diz-se que o Mestre das Configurações aprende a sua suprema magia ali, dentro do Bosque, e que se alguma vez as árvores viessem a morrer, também a sua sabedoria morreria com elas, e que nesses dias as águas se ergueriam a afogar as ilhas de Terramar que Segoy ergueu das profundas no tempo anterior ao mito, todas as terras onde habitam os homens e os dragões.

Mas tudo isto é o que consta. Os feiticeiros recusam-se a falar do assunto.

Os meses foram passando e, por fim, Gued regressou à Casa Grande, sem fazer idéia do que dele seria seguidamente exigido. A porta que abre para o caminho que atravessa os campos até ao Cabeço de Roke, um velho veio ao seu encontro, esperando-o sob o portal. A princípio Gued não soube quem era, mas depois, forçando a mente, recordou-o como aquele que o deixara entrar na Escola no dia em que ali chegara, cinco anos antes.

O velho sorriu, saudando-o pelo nome, e perguntou:

— Sabes quem sou?

Ora, já antes Gued pensara no que se costumava sempre dizer, ou seja, os Nove Mestres de Roke, embora ele conhecesse apenas oito: Chave-do-Vento, Mão, Ervas, Chantre, Mudança, Invocação, Nomes, Configurações. Dir-se-ia que as pessoas encaravam o Arquimago como o nono. Porém, quando um novo Arquimago era escolhido, eram nove os mestres que se reuniam para o escolher.

— Penso que sejas o Mestre Porteiro — disse Gued.

— Sou. Gued, obtiveste a entrada em Roke ao dizeres o teu nome. Agora poderás obter a tua liberdade se disseres o meu.

Assim falou o sorridente velho e depois esperou. Gued permaneceu mudo.

Claro que ele conhecia mil e uma maneiras e artifícios e formas para descobrir nomes de coisas e de homens. Essa arte era parte de tudo o que ele aprendera em Roke pois, sem isso, pouca magia útil se poderia fazer. Mas descobrir o nome de um Mago e Mestre era coisa muito diferente. O nome de um mago está mais bem escondido que uma sardinha no mar, melhor guardado que o covil de um dragão. Um sortilégio de perscrutar será contrariado por outro mais forte, expedientes subtis fracassarão, ínvios inquéritos serão inviamente frustrados e a força será rui-nosamente voltada contra si própria.

— Estreita é a porta que guardas, Mestre — disse por fim Gued. — Vou ter de me sentar aqui fora, nos campos, e jejuar, creio, até ficar suficientemente delgado para poder atravessá-la.

— Todo o tempo que queiras — disse o Porteiro, sempre sorrindo.

De modo que Gued se afastou um pouco, indo sentar-se debaixo de um amieiro na margem do Thwilburn, deixando que o seu otaque corresse até ao rio para brincar e caçar caranguejos da vasa na margem lamacenta. O Sol pôs-se, tardio e brilhante, pois a Primavera ia adiantada. Luzes de lanternas e fogos-fátuos brilharam nas janelas da Casa Grande e, colina abaixo, as ruas da vila de Thwil encheram-se de penumbra. Os mochos piaram por sobre os telhados, morcegos esvoaçaram pelo ar nevoento acima do rio, e Gued permanecia sentado a pensar como poderia, pela força, a astúcia ou a magia, aprender o nome do Porteiro. Quanto mais ponderava, menos via, entre todas as artes de bruxaria que aprendera em Roke durante aqueles cinco anos, alguma que servisse para arrancar tal segredo a um tal mago.

Estendeu-se no campo e dormiu sob as estrelas, com o otaque aninhado no seu bolso. Depois de o Sol nascer, sempre em jejum, foi até junto da porta da Casa e bateu. O Mestre-Porteiro abriu.

— Mestre — disse-lhe Gued —, não posso arrancar de ti o teu nome, pois não sou suficientemente forte, e não posso iludir-te para o obter, pois não sou suficientemente sábio. Assim, contentar-me-ei em ficar aqui, e aprender ou servir, como te aprouver. A não ser que, por um acaso, estejas disposto a responder a uma minha pergunta.

— Faz a pergunta.

— Qual é o teu nome?

O porteiro sorriu e disse o seu nome. E Gued, repetindo-o, entrou pela última vez naquela Casa.

Quando dela voltou a sair, trajava um pesado manto azul-escuro, oferta da administração de Baixo Torning, para onde ele se dirigia, dado que precisavam ali de um feiticeiro. Levava também um bordão tão alto como ele, talhado em madeira de teixo e com ponteira de bronze. O Mestre-Porteiro desejou-lhe boa viagem, abrindo para ele a porta traseira da Casa Grande, a porta de corno e marfim, e ele desceu as ruas de Thwil até um navio que o esperava sobre as águas, brilhando na manhã.

 

                           O DRAGÃO DE PENDOR

A ocidente de Roke, agrupadas entre as duas grandes extensões de terra de Hosk e Ensmer, ficam as Noventa Ilhas. A mais próxima de Roke é Serd e a mais afastada Seppish, ficando esta última quase no Mar de Pelnish. E se o seu número é realmente noventa é uma questão que nunca se resolveu, porque se só contarmos as ilhas com nascentes de água fresca teremos setenta, ao passo que se formos contar cada rochedo isolado teremos uma centena antes de chegar ao fim, e então mudaria a maré. Os canais são estreitos entre as ilhotas, pelo que ali as moderadas marés do Mar Interior, comprimidas e confusas, correm alto e caem baixo; assim, quando na maré alta podemos encontrar três ilhas num sítio, na maré baixa poderá haver só uma. No entanto, com todo o perigo representado pela maré, cada criança que já sabe andar também sabe remar e tem o seu pequeno bote. As donas-de-casa remam através do canal para irem beber uma chávena de chá de ervas com a vizinha. Os bufarinheiros apregoam as mercadorias ao compasso das remadas. Ali, todas as estradas são de água salgada, interrompidas apenas pelas redes estendidas de casa para casa, destinadas a apanhar os pequenos peixes chamados túrbios e cujo óleo constitui a riqueza das Noventa Ilhas. Há poucas pontes e nenhuma grande cidade. Cada pequena ilha está densamente povoada por quintas e casas de pescadores, reunindo-se estas em administrações, cada uma compreendendo entre dez e vinte ilhas. Uma delas era a de Baixo Torning, a mais ocidental, não dando para o Mar Interior mas para fora, para o oceano vazio, esse solitário canto do Arquipélago onde apenas se ergue Pendor, a ilha assolada por dragões, e para além dela as águas da Estrema ocidental, despovoadas.

Havia uma casa preparada para receber o novo feiticeiro da administração. Erguia-se sobre uma colina, entre verdes campos de cevada, defendida do vento oeste por um bosque de árvores pendick, agora vermelhas de flores. Da porta via-se outros telhados de colmo e bosques e hortas, e outras ilhas com os seus telhados e campos e colinas, e por entre todas elas os muitos e serpenteantes canais do mar. Era uma casa pobre, sem janelas, um chão de terra batida, mas mesmo assim era melhor que aquela em que Gued nascera. Os Ilhéus de Baixo Torning, algo temerosos no seu respeito pelo feiticeiro de Roke, pediram perdão pela humildade da habitação.

— Não temos pedra com que construir — disse um.

— Nenhum de nós é rico, se bem que ninguém morra de fome — disse outro.

— Pelo menos é seca — acrescentou um terceiro —, porque eu próprio tratei do telhado, senhor.

Para Gued era tão boa como um palácio. Agradeceu aos chefes da administração com toda a franqueza, de modo que todos os dezoito voltaram para casa, cada um no seu barco a remos e em direção à sua ilha, para irem dizer aos pescadores e às donas-de-casa que o novo feiticeiro era um tipo novo, estranho e carrancudo, que era de poucas mas de boas falas, e não era orgulhoso.

Havia talvez poucos motivos de orgulho neste primeiro magistério de Gued. Os feiticeiros treinados em Roke iam geralmente para cidades ou castelos, ao serviço de grandes senhores que os tinham em alta estima. No curso normal das coisas, aqueles pescadores de Baixo Torning não teriam tido entre eles mais que uma bruxa ou um simples mágico, para encantar as redes de pesca, cantar sobre os barcos novos e curar animais e homens dos seus padecimentos. Mas nos últimos anos o velho Dragão de Pendor tivera crias. Segundo se dizia, nove dragões tinham agora o seu covil nas torres em ruínas dos Senhores do Mar de Pendor, arrastando os ventres cobertos de escamas para cima e para baixo nas escadarias de mármore e através das portas arrombadas. Na falta de alimento naquela ilha morta, iriam levantar vôo dali em qualquer dos próximos anos, quando já estivessem grandes e a fome os acicatasse. Já se avistara um bando de quatro por sobre as costas do Sudoeste de Hosk, sem pousarem mas espiando do alto redis, celeiros e aldeias. A fome de um dragão é lenta a despertar mas difícil de saciar. Por isso os Ilhéus de Baixo Torning tinham enviado mensageiros a Roke pedindo um feiticeiro que protegesse a sua gente da ameaça que se perfilava no horizonte ocidental e o Arquimago considerara que o seu medo tinha razão de ser.

— É lugar onde não há conforto — dissera o Arquimago a Gued no dia em que lhe conferira o título de feiticeiro —, nem fama, nem riqueza, talvez nem sequer risco. Mesmo assim, irás?

— Irei — respondera Gued. E não fora só por obediência. Desde a noite no Cabeço de Roke, o seu anseio afastara-se tanto das idéias de fama e ostentação como em tempos delas se aproximara. Agora duvidava constantemente da sua força e temia ver o seu poder posto à prova. Contudo, a referência a dragões despertava-lhe fortemente a curiosidade. Em Gont, há muitas centenas de anos que não existem dragões. E dragão algum iria alguma vez voar suficientemente perto de Roke para ver a ilha ou lhe sentir o cheiro e os encantamentos que a protegiam. E por isso eram ali apenas assunto de contos e canções, coisas de que se falava mas não se viam. Gued aprendera tudo o que lhe fora possível sobre dragões na Escola, mas uma coisa é ler acerca de dragões e outra muito diferente encontrá-los face a face. A oportunidade brilhava agora à sua frente e por isso foi de todo o coração que respondeu «Irei».

O Arquimago Guencher acenara com a cabeça, mas a sua expressão era sombria.

— Diz-me — inquiriu por fim —, temes deixar Roke? Ou estás ansioso por partir?

— Uma coisa e a outra, meu Senhor.

Uma vez mais, Guencher acenou com a cabeça.

— Não sei se faço bem em te afastar da segurança em que estás aqui — disse muito lentamente. — Não consigo descortinar o teu caminho. Está todo envolto em trevas. E há um poder no Norte, algo que desejaria destruir-te, mas o que é e onde está, se no teu passado ou no teu caminho em frente, não o posso dizer. É tudo sombra. Quando os homens de Baixo Torning apareceram, pensei de imediato em ti, por me parecer um lugar seguro e remoto, onde poderias ter tempo para recobrar a tua força. Mas não sei se há algum lugar seguro para ti nem para onde te leva o teu caminho. Não queria enviar-te para a escuridão...

A princípio, a casa sob as árvores em flor pareceu a Gued um lugar animador. Ali viveu, observando freqüentemente o céu ocidental, mantendo o seu ouvido de feiticeiro atento ao som de asas cobertas de escamas. Mas não surgiu dragão algum. Gued pescava no seu pontão e cuidava da pequena horta. Passava dias inteiros a ponderar uma página ou uma linha ou uma palavra nos Livros do Saber que trouxera de Roke, sentado à sombra das árvores pendick, no Verão, enquanto o otaque dormia ao seu lado ou partia a caçar ratos nas florestas de erva e margaridas. E servia o povo de Baixo Torning como curandeiro e fazedor de tempo sempre que lhe pediam. Não lhe passava sequer pela cabeça que um feiticeiro pudesse envergonhar-se de praticar artes tão simples, porque ele fora um feiticeiro-criança entre gente mais pobre que esta. Porém, pouco recorriam a ele, olhando-o com um respeito temeroso, em parte por ele ser um feiticeiro vindo da Ilha dos Sages, em parte pelo seu silêncio e o seu rosto marcado por cicatrizes. Porque havia nele, embora jovem como era, algo que punha as pessoas pouco à vontade. Mesmo assim, fez um amigo, um construtor de barcos que habitava na ilha mais próxima para leste. O seu nome era Petchvarri. Tinham-se encontrado pela primeira vez no pontão deste último, onde Gued parara a vê-lo colocar o mastro de uma pequena embarcação. O homem olhara para o feiticeiro com um sorriso e dissera:

— Ora aqui está quase acabado o trabalho de um mês inteiro. Imagino que o poderias ter feito num minuto e apenas com uma palavra, não é, Senhor?

— Talvez pudesse — retorquiu Gued —, mas provavelmente afundar-se-ia no minuto seguinte, a não ser que eu mantivesse os sortilégios constantemente. Mas, se quiseres...

E interrompeu-se.

— E então, Senhor?

— Então temos aí uma pequena e bela obra. Nada lhe falta. Mas, se quiseres, posso lançar-lhe um feitiço de união para ajudá-lo a manter-se em boas condições, ou um de encontrar para o ajudar a voltar a casa, vindo do mar.

Gued falara de modo hesitante, não querendo ofender o artífice, mas o rosto de Petchvarri iluminou-se.

— O barco é para o meu filho, Senhor, e se pudesses lançar esses encantamentos sobre ele seria uma grande bondade e uma ação amiga.

E logo ali subiu ao pontão para apertar a mão de Gued e lhe agradecer.

Depois disso, aconteceu freqüentemente trabalharem em conjunto, com Gued a entretecer os seus encantamentos com o trabalho de Petchvarri nos barcos que este construía ou consertava e, em troca, aprendendo com o artífice como um barco era construído e também como era governado sem auxílio da magia, porque o ensino da simples arte de navegar fora um pouco deixado de lado em Roke. Gued e Petchvarri, com o filho pequeno deste, Aioeth, saíam muitas vezes pelos canais e lagoas, navegando à vela ou a remos neste ou naquele barco, até que Gued se tornou um muito razoável marinheiro e a amizade entre ele e Petchvarri se tornou ponto assente.

Ia já o Outono quase no fim, quando o filho do construtor de barcos adoeceu. A mãe mandou chamar a bruxa da Ilha de Tesk, que tinha bastante habilidade para curar, e tudo pareceu correr bem durante um dia ou dois. Porém, a meio de uma noite tempestuosa, Petchvarri veio bater desesperadamente à porta de Gued pedindo-lhe que fosse salvar a criança. Gued e ele correram para o barco e remaram a toda a pressa através da treva e da chuva até à casa de Petchvarri. Ali deparou Gued com a criança jazendo na sua cama grosseira, a mãe acocoradada ao lado, em silêncio, e a bruxa fazendo uma defumação com raiz de córlia e entoando o Cântico de Naguian, que eram os melhores artifícios de cura que ela possuía. Mas sussurrou para Gued:

— Senhor Feiticeiro, penso que esta febre seja a febre vermelha e a criança morrerá dela esta noite.

Quando Gued ajoelhou e apôs as mãos sobre a criança, pensou o mesmo e recolheu-se por um momento. Nos últimos meses da sua longa doença, o Mestre das Ervas ensinara-lhe muito da ciência de curar, e a primeira e última lição dessa ciência fora esta: Sara a ferida e cura a doença, mas deixa partir o espírito moribundo.

A mãe viu-lhe o movimento e o que este significava e lamentou-se em altas vozes, desesperada. Mas Petchvarri, inclinando-se para ela, disse:

— O Senhor Gavião vai salvá-lo, mulher. Não há por que gritar! Ele agora está aqui e pode fazê-lo.

Ouvindo os lamentos da mãe e vendo a confiança que Petchvarri nele depositava, Gued sentiu que não podia desapontá-los.

Desconfiando do seu próprio parecer, pensou que talvez fosse possível salvar a criança se se conseguisse baixar a febre. E disse:

— Farei o melhor que souber, Petchvarri.

Começou a banhar o rapazinho com água da chuva, fria, que lhe trouxeram de fora da casa, acabada de cair, e a dizer um dos encantamentos de acalmar a febre. Mas o encantamento não agarrou nem se conjugou num todo e, subitamente, Gued teve a percepção de que a criança lhe estava a morrer nos braços.

Invocando todo o seu poder num só instante e sem pensar em si próprio, enviou o seu espírito atrás do espírito da criança para o trazer de volta a casa. E chamou-a pelo nome: «Aioeth!» Julgando ter ouvido fracamente uma resposta no seu ouvido interior, prosseguiu, chamando uma vez mais. Viu então o rapazinho a correr, longe e rápido, por uma escura encosta abaixo, no flanco de algum vasto monte. Não havia som. As estrelas por sobre o monte não eram estrelas que os seus olhos alguma vez tivessem visto. E, no entanto, sabia o nome das constelações: o Feixe, a Porta, Aquela Que Gira, a Árvore. Eram aquelas estrelas que nunca se põem, que não empalidecem com o nascer de dia algum. Seguira longe de mais a criança moribunda.

Ciente disto, viu-se sozinho na escura encosta. Era difícil voltar atrás, muito difícil.

Voltou-se lentamente. Lentamente avançou um pé para diante para subir de volta o monte, depois o outro. Passo a passo avançou, cada passo um esforço da sua vontade e cada um mais difícil que o anterior.

As estrelas permaneciam imóveis. Sobre o solo íngreme e seco não corria o sopro do vento. Em todo o vasto reino das trevas apenas ele se movia, lentamente, subindo. Chegou ao cume do monte e ali deparou com um muro baixo, de pedras. Mas do lado de lá do muro, em frente dele, havia uma sombra.

A sombra não tinha a forma de homem nem de fera. Era informe, dificilmente visível, mas segredava-lhe, embora sem palavras no seu segredar, e estendia-se para ele. E erguia-se do lado dos vivos enquanto ele permanecia do lado dos mortos.

Só tinha duas alternativas. Descer o monte em direção às terras desertas e às cidades sem luz dos mortos. Ou atravessar o muro, de regresso à vida, onde aquela coisa informe e maléfica esperava por ele.

Tinha nas mãos o seu bordão de espírito e ergueu-o bem alto. Com esse movimento, recobrou forças. E, ao mover-se para saltar o muro de pedras direito à sombra, o bordão soltou uma súbita chama branca, uma luz ofuscante naquele lugar sombrio. Saltou, sentiu-se cair e perdeu a visão.

Mas o que Petchvarri, a sua mulher e a bruxa viram foi isto: o jovem feiticeiro interrompera-se a meio da sua encantamento e, imóvel, permanecera por momentos com a criança nos braços. Depois depositara suavemente o pequeno Aioeth sobre a enxerga, endireitara-se e ficara em silêncio, o bordão na mão. De repente, erguera o bordão bem alto e este flamejara qual fogo branco, como se ele segurasse o raio no seu punho, e todas as coisas da cabana se destacaram, estranhas e nítidas, naquele clarão momentâneo. Quando os seus olhos recuperaram daquele ligamento, viram o jovem feiticeiro enrodilhado no chão de terra, junto à enxerga onde a criança jazia morta.

A Petchvarri parecera que também o feiticeiro estava morto. A mulher chorava, mas ele estava totalmente confuso. Contudo, a bruxa tinha algum conhecimento, por ouvir dizer, do que era a magia e dos modos como um verdadeiro feiticeiro pode deixar a vida, pelo que teve o cuidado de fazer com que Gued, por mais inanimado e frio que estivesse, não fosse tratado como um morto, mas como alguém doente ou em transe. Levaram-no para casa e deixaram uma velha a tomar conta dele e a verificar se dormia para despertar ou se iria dormir para sempre.

O pequeno otaque ocultava-se nas traves da casa, como era seu costume quando apareciam estranhos. Ali se quedou enquanto a chuva açoitava as paredes, o fogo esmorecia e a noite passava lentamente, deixando a velhota a cabecear ao lado do buraco do fogo. O otaque desceu então sorrateiramente e veio até onde Gued jazia, estendido e rígido, sobre a cama. Começou a lamber-lhe as mãos e os pulsos, longa e pacientemente, com a sua língua de um castanho de folha seca. Agachando-se junto à sua cabeça, lambeu-lhe a têmpora, a face marcada por cicatrizes e, suavemente, os olhos cerrados. E, muito lentamente, sob aquele toque suave, Gued voltou a si. Acordou, sem saber onde estivera, nem onde estava, nem o que era a tênue luz cinzenta esparsa no ar à sua volta, e que mais não era que a luz da aurora derramando-se sobre o mundo. Nessa altura, o otaque enroscou-se como de costume perto do seu ombro e deixou-se dormir.

Mais tarde, quando Gued reviu aquela noite em pensamento, compreendeu que se ninguém lhe tivesse tocado enquanto jazia assim com o espírito ausente, se ninguém o tivesse chamado de uma ou de outra forma, poderia ter ficado perdido para sempre. Fora apenas a sabedoria instintiva e irracional do animal que lambe o companheiro ferido para o confortar e, contudo, nessa sabedoria Gued descortinou algo de semelhante ao seu próprio poder, algo cujas raízes mergulhavam tão profundamente como as da feitiçaria. Daí em diante passou a acreditar que o homem sábio é aquele que nunca se coloca à parte das outras coisas vivas, sejam elas dotadas ou não de palavra, e em anos subseqüentes esforçou-se longamente por aprender o que pode ser aprendido, em silêncio, nos olhos dos animais, no vôo das aves, nos lentos e vastos gestos das árvores.

Agora já fizera, ileso e pela primeira vez, esse ir e voltar que só um feiticeiro pode fazer de olhos abertos e que nem o maior mago realiza sem perigo. Mas regressara para a dor e para o temor. A dor era pelo seu amigo Petchvarri, o temor por si próprio. Sabia agora por que motivo o Arquimago temera enviá-lo para longe de Roke, conhecia aquilo que escurecera e nublara a previsão que o mago fizera do seu futuro. Porque fora a própria escuridão que o esperava, a coisa inominada, o ser que não fazia parte do mundo, a sombra que ele libertara ou criara. Em espírito, acoitando-se no muro da fronteira entre a morte e a vida, esperara por ele todos esses longos anos. E ali o encontrara finalmente. Agora, seguir-lhe-ia o rasto, procurando aproximar-se dele, apoderar-se da sua força, sugar-lhe a vida e revestir-se da sua carne.

Pouco depois, sonhou com a coisa como se fosse um urso sem cabeça nem rosto. Viu-a andar às cegas, apalpando as paredes da casa, buscando a entrada. Nunca voltara a sonhar aquele sonho desde que se curara das feridas que a coisa lhe infligira. Ao acordar sentiu-se fraco e frio, e as cicatrizes no seu rosto e no seu ombro tinham voltado a repuxar e a doer.

Começou então um mau período. Quando sonhava com a sombra ou simplesmente pensava nela, sentia sempre aquele mesmo temor gelado. A percepção e o poder escorriam dele, deixando-o estúpido e desnorteado. Irritava-se com a sua covardia, mas isso não servia de nada. Procurou proteção, mas não havia nenhuma porque a coisa não era de carne e osso, nem viva, nem espírito, nem recebera nome, tendo por ser apenas o que ele próprio lhe dera — um poder terrível exterior às leis do mundo iluminado pelo Sol. Tudo o que dela sabia era que a coisa era atraída para ele, e tentaria, porque era a sua criatura, fazer através dele a sua vontade. Mas sob que forma poderia surgir, não tendo ainda uma forma real que lhe fosse própria, e como surgiria, e quando, isso não sabia ele.

Teceu barreiras de magia, todas as que pôde, em volta da sua casa e da ilha em que vivia. Mas essas muralhas de sortilégio têm de ser constantemente renovadas e em breve viu que, se esgotasse todas as suas forças nessas defesas, não teria qualquer préstimo para as gentes das ilhas. Que poderia fazer, entre dois inimigos, se de Pendor viesse um dragão?

Sonhou uma vez mais, mas desta vez, no sonho a coisa estava dentro da casa, ao lado da porta, adiantando-se para ele através do escuro e segredando palavras que ele não entendia. Acordou aterrorizado e mandou o fogo-fátuo a flamejar pelo ar, iluminando cada recesso da pequena casa até se assegurar de que não havia sombra alguma. Depois lançou lenha sobre as brasas na cova do lume e ali se sentou à luz da fogueira, ouvindo o vento de Outono dedilhando o colmo do telhado e uivando nas grandes árvores nuas, por cima da casa. E por muito tempo se quedou a pensar. Uma cólera antiga despertara no seu coração. Não iria suportar aquela espera desamparada, aquele ficar-se ali, encurralado numa ilhota, resmungando inúteis encantamentos de fechar e defender. Mas também não podia simplesmente fugir da ratoeira, pois para isso era necessário faltar à palavra dada aos ilhéus e deixá-los, sem defesa, perante a ameaça iminente do dragão. Só havia um caminho a seguir.

Na manhã seguinte, desceu até junto dos pescadores, na principal atracação de Baixo Torning e, encontrando ali o Chefe dos Ilhéus, disse-lhe:

— Tenho de abandonar este lugar. Estou em perigo e ponho-vos também em perigo. Devo partir. Por isso peço a tua permissão para sair a dar fim à ameaça dos dragões, em Pendor, para que a minha tarefa para vós fique terminada e eu possa partir livremente. Ou, se falhar, falharia também quando eles viessem aqui, o que é preferível saber agora do que mais tarde.

O Ilhéu-Mor olhava-o de boca aberta.

— Senhor Gavião — disse por fim —, são nove os dragões que há na ilha!

— Segundo se diz, oito ainda são novos.

— Mas o mais velho...

— Disse-te e repito, tenho de sair daqui. Peço-te permissão para vos livrar primeiro da ameaça dos dragões, se o conseguir.

— Como queiras, Senhor — retorquiu sombriamente o Ilhéu-Mor. E todos os que ali estavam e o ouviram pensaram que aquilo era loucura ou coragem desesperada do seu jovem feiticeiro, e foi com semblantes carregados que o viram partir, não esperando voltar a receber notícias dele. Alguns deram a entender que ele apenas pretendia navegar de volta ao Mar Interior, passando por Hosk, e deixá-los abandonados à sua sorte. Outros, entre eles Petchvarri, tinham como certo que enlouquecera e ia em busca da morte.

Ao longo de quatro gerações de homens, todos os navios tinham traçado as suas rotas de modo a manterem-se longe da costa da Ilha de Pendor. Nenhum mago viera alguma vez a travar ali combate com o dragão, pois que a ilha não ficava em qualquer habitual rota marítima, e os seus senhores tinham sido piratas, escravizadores, fomentadores de guerras e odiados por todos os que habitavam as regiões sudoeste de Terramar. Por tudo isto, ninguém pensara em vingar o Senhor de Pendor, depois de o dragão ter vindo subitamente de oeste, lançando-se sobre ele e os seus homens quando estavam reunidos na torre, banqueteando-se, e os queimara com o fogo da sua boca, e afugentara todos os habitantes da vila, em grande gritaria, para o mar. Sem desagravo, Pendor fora abandonada ao dragão, com todos os seus ossos, torres e jóias, estas roubadas a príncipes, de há muito mortos, das costas de Paln e Hosk.

Tudo isto o sabia bem Gued, e mais ainda, pois desde que chegara a Baixo Torning que mantinha em mente e ponderava tudo o que alguma vez aprendera sobre dragões. Enquanto conduzia o seu pequeno barco para oeste — de momento sem remar nem usar da perícia em marinharia que Petchvarri lhe transmitira, mas navegando à vela por feitiço, com o vento mágico na vela e um encantamento lançada sobre a proa e a quilha para manter o barco na boa direção — mantinha-se atento para ver a ilha morta a erguer-se na beira do mar. Rapidez era o que pretendia e por isso usara o vento mágico, pois temia mais o que deixava atrás de si do que o que estava para diante. Porém, à medida que o dia ia passando, a sua impaciência trocou o temor por uma espécie de ferocidade jovial. Pelo menos, este era um perigo que procurava de moto próprio. E quanto mais se avizinhava dele, tanto mais seguro estava de que, pelo menos por aquela vez, naquela hora, talvez a última antes da sua morte, era livre. A sombra não se atrevia a segui-lo para dentro das fauces de um dragão. As ondas corriam emplumadas de branco pelo mar cinzento e cinzentas nuvens deslizavam acima dele, levadas pelo vento norte. Prosseguiu para oeste levado pelo rápido vento mágico a soprar na sua vela e chegou à vista dos rochedos de Pendor, das ruas quietas da vila e das torres esventradas, tombando em ruínas.

A entrada do porto, uma baía pouco funda em forma de crescente, deixou que se desfizesse o sortilégio do vento e fez parar o pequeno barco que ficou a balançar nas vagas. E então convocou o dragão:

— Usurpador de Pendor, vem defender o teu tesouro!

A sua voz não pôde sobrepor-se ao som das ondas rebentando nas praias cor de cinza, mas os dragões têm ouvidos apurados. Logo um deles se ergueu no ar, saindo de uma das ruínas sem telhado da vila, semelhante a um enorme morcego negro, de asas finas e dorso eriçado de picos, e, rondando a tomar o vento norte, veio voando direito a Gued. O coração do feiticeiro dilatou-se ao ver a criatura que era um mito para o seu povo e riu e bradou:

— Vai dizer ao Mais Velho que aqui venha, ó verme do vento!

Porque aquele era um dos dragões jovens, ali chocados anos atrás por um dragão-fêmea vindo da Estrema Oeste, que fizera a sua postura de grandes ovos coriáceos, como se diz que os dragões-fêmeas fazem, nalguma das salas arrombadas e soalheiras da torre e de novo voara para longe, deixando a cargo do Velho Dragão de Pendor olhar pelas crias, quando rastejassem como lagartos peçonhentos para fora das cascas.

O jovem dragão não deu resposta. Não era de uma espécie grande, talvez com o comprimento de uma galera de quarenta remos, e era delgado como um verme, apesar da envergadura das suas negras asas membranosas. Ainda não estava totalmente desenvolvido, nem de posse da sua voz ou da astúcia habitual em dragões. Veio direito a Gued, de pé no seu pequeno barco balouçante, abrindo as longas mandíbulas cheias de dentes ao despencar dos ares como uma flecha. Assim, tudo o que Gued teve de fazer foi sujeitar-lhe as asas e os membros com um esconjuro firme e assim o lançar violentamente para o lado, como uma pedra a cair no mar. E o mar cinzento fechou-se sobre ele.

Da base da torre mais alta, ergueram-se dois dragões idênticos ao primeiro. Tal como o primeiro, lançaram-se ambos a direito sobre Gued, e mesmo assim ele assenhorou-se de ambos, deitou-os abaixo e afogou-os. E ainda nem sequer erguera o seu bordão de feiticeiro.

Pouco tempo depois, vieram outros três a atacá-lo do lado da ilha. Um era muito maior e o fogo saía, encurvando-se, da sua goela. Dois voaram direitos a ele, com as asas a vibrar, mas o maior aproximou-se por trás, voando em círculos, muito rápido, para queimar Gued e o seu barco com o fogo da sua respiração. Não havia esconjuro de sujeitar que abarcasse todos os três porque dois vinham de norte e um de sul. No instante em que se deu conta disto, Gued teceu um esconjuro de mudança e, entre uma respiração e outra, ergueu-se do barco a voar, em forma de dragão.

Abrindo as vastas asas e estendendo as garras para a frente, atacou frontalmente os dois dragões, fulminando-os com fogo, e logo se virou para o terceiro, que era maior que ele e igualmente armado com fogo. Ao sabor do vento por sobre as ondas cinzentas, ziguezaguearam, morderam, atacaram, mergulharam, até que o fumo turvou o ar em seu redor, avermelhado pelo clarão das suas bocas flamejantes. Subitamente, Gued voou para cima com o outro a persegui-lo logo abaixo. A meio do vôo, o dragão-Gued ergueu as asas, parou e caiu, como cai o falcão sobre a presa, com as garras esticadas para baixo, ferindo e forçando o outro a descer, atacando-o no pescoço e no flanco. As asas negras agitaram-se em vão, o negro sangue do dragão gotejou grosso no mar. E o dragão de Pendor arrancou-se à prisão e, voando baixo e com dificuldade, voltou para a ilha, para se ir ocultar, rastejando, em qualquer poço ou caverna da cidade em ruínas.

Gued retomou de imediato a sua forma e o lugar no barco, pois era perigoso em extremo manter aquela forma de dragão por mais tempo que o determinado pela necessidade. Tinha as mãos negras com o escaldante sangue da serpe alada e o fogo chamuscara-o na cabeça, mas isso agora não importava. Esperou apenas o tempo necessário para recobrar o fôlego e logo bradou:

— Seis vi eu, cinco morreram, fala-se em nove. Saiam daí, vermes.

Nenhuma criatura se moveu, nenhuma voz se ouviu, em toda a ilha e por longo tempo. Apenas as ondas batiam estrondosamente contra a costa. Então Gued notou que a torre mais alta estava a mudar lentamente de forma, inchando de um dos lados como se lhe estivesse a crescer um braço. Ele temia a magia de dragão, porque os dragões velhos são muito poderosos e versados numa feitiçaria que é, ao mesmo tempo, semelhante e diferente da do homem. Mas, decorrido apenas mais um momento, viu que não se tratava de nenhum truque do dragão e sim dos seus próprios olhos. O que ele julgara ser uma parte da torre era o ombro do Dragão de Pendor que desenroscava agora toda a massa do seu corpo e se erguia lentamente.

Ao ficar totalmente de pé, a sua cabeça escamosa, coroada de picos e com três línguas, ultrapassava em altura a torre arruinada e as suas patas da frente, armadas de enormes garras, repousavam nos restos de alvenaria cá em baixo. As suas escamas eram de um negro-acinzentado e captavam a luz do Sol como pedras quebradas. Era esguio como um galgo e grande como um monte. Gued fitava-o, com receosa admiração. Não havia canção nem história que pudesse preparar o espírito para uma visão assim. Esteve quase a fitar o dragão nos olhos e a ficar agarrado, pois não se pode olhar para os olhos de um dragão. Afastou a vista do olhar verde e gorduroso que o observava e ergueu à sua frente o bordão que mais parecia agora uma esquírola de madeira, uma frágil erva.

— Oito filhos eu tinha, pequeno feiticeiro — pronunciou a retumbante e seca voz do dragão — e cinco morreram, e um vai morrer. Basta. Não conquistarás o meu tesouro, matando-os.

— Não é o teu tesouro que pretendo.

Um fumo amarelo saiu silvando das narinas do dragão. Era o seu riso.

— Não gostarias de desembarcar e vir vê-lo, pequeno feiticeiro? Olha que é digno de admiração.

— Não, dragão.

A afinidade dos dragões é com o vento e o fogo, e não é de boa vontade que combatem sobre o mar. Essa fora a vantagem de Gued até aí e manteve-a. Só que a tira de mar entre ele e as grandes garras cinzentas não parecia já uma grande vantagem.

Era difícil não fitar aqueles olhos verdes e atentos.

— És um feiticeiro muito jovem — prosseguiu o dragão. — Não sabia que os homens podiam atingir tão cedo o seu poder.

Falava, tal como Gued, usando a Antiga Fala, pois essa é ainda a língua dos dragões. Embora o uso da Antiga Fala obrigue os homens a falar a verdade, tal não se passa com os dragões. É a sua própria língua e nela podem mentir, torcendo as palavras verdadeiras para fins falsos, apanhando o ouvinte incauto num labirinto de palavras-espelhos, em que cada uma reflete a verdade e nenhuma conduz a parte alguma. Contra isto fora Gued muitas vezes alertado e, quando o dragão falava, escutava-o com ouvido desconfiado, todas as suas dúvidas alerta. Mas as palavras pareciam simples e claras:

— Foi para me pedires auxílio que vieste aqui, pequeno feiticeiro?

— Não, dragão.

— E, no entanto, eu podia ajudar-te. Em breve irás precisar de auxílio, contra aquilo que te persegue na treva.

Gued ficou emudecido.

— O que é isso que te persegue? Diz-me qual o seu nome.

— Se eu pudesse dizer o seu nome... — e Gued interrompeu-se.

Fumo amarelo ergueu-se em espiral acima da longa cabeça do dragão, saindo das suas narinas que pareciam dois buracos de fogo redondos.

— Se pudesses dizer o seu nome, poderias dominá-lo, quem sabe, pequeno feiticeiro. Talvez eu pudesse dizer-te qual o seu nome, quando o vir por perto. E virá por perto se esperares na minha ilha. Irá sempre onde tu fores. Se não quiseres que se aproxime, terás de fugir, e fugir e continuar a fugir-lhe. E mesmo assim te seguirá. Gostarias de saber o seu nome?

Gued permaneceu de novo em silêncio. Como sabia o dragão da sombra que ele libertara, não o podia adivinhar, nem como poderia saber o nome da sombra. O Arquimago dissera que a sombra não tinha nome. No entanto, os dragões têm a sua própria sabedoria e são uma raça mais antiga que o homem. Poucos homens são capazes de adivinhar o que um dragão sabe, e como o sabe, e esses poucos são os Senhores de Dragões. Para Gued, só uma coisa era certa. E era que, embora o dragão pudesse muito bem estar a dizer a verdade, embora ele pudesse realmente informar Gued da natureza e nome da coisa-sombra e assim lhe conferir poder sobre ela — mesmo assim, mesmo que ele falasse verdade, fá-lo-ia exclusivamente para atingir os seus próprios fins.

— É muito raro — disse por fim o jovem — que dragões peçam para fazer favores aos homens.

— Mas é muito comum — retorquiu o dragão — que os gatos brinquem com os ratos antes de os matarem.

— Mas eu não vim aqui para brincar, nem para que brinquem comigo. Vim fazer um trato contigo.

Como uma espada pelo aguçada que era, mas cinco vezes mais comprida que qualquer espada, a ponta da cauda do dragão ergueu-se em arco, como a de um escorpião, por sobre o seu dorso couraçado, acima da torre. Secamente, disse:

— Não faço tratos. Tomo o que quero. O que tens tu para me oferecer que eu não possa tirar de ti quando me aprouver?

— Segurança. A tua segurança. Jura que nunca voarás para oriente de Pendor, e eu juro que te deixarei incólume.

Um ranger desagradável saiu da garganta do dragão, semelhante ao ruído de uma avalanche longínqua, de pedras rolando entre montanhas. Dançaram-lhe chamas ao longo da língua trifurcada. Ergueu-se ainda mais, agigantando-se por sobre as ruínas.

— Tu? Tu ofereceres-me segurança? Tu ameaçares-me? E com quê?

— Com o teu nome, Yevaud.

A voz de Gued tremeu ao pronunciar o nome, mas não deixou de o fazer alta e claramente. Ao ouvi-lo, o dragão ficou imóvel, totalmente imóvel. Um minuto passou, depois outro.

E então Gued, de pé sobre a balouçante casquinha de noz que era o seu barco, sorriu. Apostara aquele empreendimento e a sua própria vida no que calculara a partir de velhas histórias que estudara em Roke sobre dragões. E o que ele calculara fora que aquele Dragão de Pendor era o mesmo que assolara a área ocidental de Osskil nos tempos de Elfarran e Morred, e que fora afugentado de Osskil por um feiticeiro, Elt, versado em nomes. O cálculo resultara.

— Estamos em igualdade, Yevaud. Tu tens a tua força. Eu tenho o teu nome. Estás agora disposto a fazer o trato?

Mas ainda não houve resposta.

Há muitos anos já que o dragão se espojava naquela ilha, onde couraças de ouro e esmeraldas se espalhavam entre pó, tijolos e ossos. Vira a sua ninhada de lagartos negros brincar entre as casas em ruínas e ensaiar o vôo lançando-se das colinas. Dormira longamente ao sol, sem que voz ou vela o viesse despertar. E fora envelhecendo. Agora era difícil agitar-se, enfrentar aquele jovem feiticeiro, aquele frágil inimigo, à vista de cujo bordão Yevaud, o velho dragão, se retraía.

— Podes escolher nove pedras do meu tesouro — propôs finalmente, com a voz silvando e gemendo nas suas longas fauces. — As melhores. A tua escolha. Depois, vai-te!

— Não quero as tuas pedras, Yevaud.

— Ter-se-á perdido a cobiça dos homens? Outrora, no Norte, os homens adoravam as pedras brilhantes... Mas eu sei o que tu queres, feiticeiro. Também eu posso oferecer-te segurança, pois sei o que pode salvar-te. Sei qual é a única coisa que pode salvar-te. Há um horror que te persegue. Dir-te-ei o seu nome.

O coração de Gued alvoroçou-se no peito e ele apertou o bordão no punho e quedou-se tão imóvel como se quedara o dragão. Por momentos teve de combater uma esperança súbita e inesperada.

Não fora pela sua própria vida que ele viera fazer aquele trato. Um domínio, e apenas um, era o que ele podia exercer sobre o dragão. Pôs de lado a esperança e fez o que tinha de fazer.

— Não é isso que peço de ti, Yevaud.

Ao dizer o nome do dragão, foi como se mantivesse aquele enorme ser preso por uma trela delgada e segura, apertando-lha à volta do pescoço. Podia sentir a antiga malícia e experiência no trato com homens no olhar que o dragão pousava sobre ele, podia ver as garras de aço, cada uma tão longa como o antebraço de um homem, e o couro rijo como pedra, e o fogo fulminante que espreitava na goela do dragão. E, no entanto, a trela ia-se apertando, apertando.

De novo ergueu a voz:

— Yevaud! Jura pelo teu nome que tu e os teus filhos nunca se aproximarão do Arquipélago.

Súbitas chamas brotaram, brilhantes e ruidosas, das fauces do dragão e ele disse:

— Pelo meu nome o juro!

O silêncio estendeu-se então sobre a ilha e Yevaud baixou a enorme cabeça.

Quando voltou a erguê-la e olhou, o feiticeiro partira e a vela do barco não passava de um salpico branco sobre as ondas, a oriente, singrando em direção às férteis ilhas, quais pedras preciosas espalhadas pelos mares interiores. Então, enraivecido, o velho dragão de Pendor ergueu-se, quebrando a torre com o movimento serpenteante do seu corpo e batendo as asas, cuja envergadura abarcava toda a extensão da povoação em ruínas. Mas o seu juramento atava-lhe a vontade e não voou, nem então nem nunca, até ao Arquipélago.

 

                                             PERSEGUIDO

Logo que Pendor se afundou abaixo da linha do horizonte atrás de si, Gued, rumando para leste, sentiu de novo o medo da sombra a entrar-lhe no coração. E era difícil passar do perigo nítido do dragão para aquele horror sem forma e sem esperança. Deixou que o vento mágico parasse de soprar e passou a navegar com o vento do mundo, pois não havia agora nele qualquer desejo de celeridade. Não tinha qualquer plano, nem sequer para o que deveria fazer. Tinha de fugir, como o dragão dissera. Mas para onde? Para Roke, pensou, dado que ao menos ali estaria protegido e poderia obter conselhos entre os Sages.

Contudo, primeiro tinha de ir uma vez mais a Baixo Torning, para fazer o seu relato aos Ilhéus.

Quando se soube que ele regressara, cinco dias depois de partir, os Ilhéus e metade das gentes da administração vieram, remando e correndo, para se reunirem ao seu redor, olhando-o e escutando-o. Contou a sua história e um dos homens disse:

— Mas quem viu essa maravilha de dragões mortos e dragões enganados? Então e se ele...

— Cala-te! — ordenou o Chefe dos Ilhéus, pois sabia, tal como a maioria de entre eles, que um feiticeiro pode ter maneiras subtis de dizer a verdade, pode mesmo guardar a verdade para si próprio, mas se diz alguma coisa, a coisa é como ele diz. Porque essa é a condição da sua mestria. E assim maravilharam-se e começaram a sentir que o medo se retirava deles, e logo começaram a regozijar-se. Comprimiram-se ao redor do seu jovem feiticeiro e pediram que voltasse a contar tudo o que se passara. Vieram mais ilhéus e pediram o mesmo. Ao cair da noite, já não era preciso que fosse ele a contar. Os ilhéus podiam fazê-lo por ele, e melhor. Já os chantres da aldeia tinham adaptado a narrativa a uma antiga melodia e começado a cantar a Canção do Gavião. Havia fogueiras acesas não apenas em Baixo Torning, mas também nas administrações para sul e leste. Os pescadores gritavam as novas de embarcação para embarcação, de ilha em ilha as novas iam correndo: «O mal foi evitado, os dragões nunca virão de Pendor!»

Essa noite, essa única noite, foi alegre para Gued. Não havia sombra que se pudesse aproximar dele através do brilho de todas aquelas fogueiras de agradecimento, ardendo em cada cume e em cada praia, ou através dos círculos de risonhos dançarmos que o cercavam, cantando em seu louvor, agitando os seus archotes no vento da noite outonal, fazendo cora que as fagulhas subissem, múltiplas, brilhantes e breves, levadas pela aragem.

No dia seguinte encontrou Petchvarri que lhe disse:

— Não te sabia tão poderoso, meu Senhor!

Havia temor nas suas palavras, porque se atrevera a encarar Gued como amigo, mas nelas havia também uma censura. Gued não salvara uma criancinha, embora fosse capaz de matar dragões. Depois disso, Gued voltou a sentir o mesmo mal-estar e a mesma impaciência que o haviam impelido para Pendor e o impeliam agora a abandonar Baixo Torning. No dia seguinte, se bem que todos o tivessem querido manter ali até ao fim da sua vida, para o louvarem e se gabarem dele, abandonou a casa na colina, sem mais bagagem que os seus livros, o bordão e o otaque aninhado sobre o ombro.

Partiu num barco a remos com um par de jovens pescadores de Baixo Torning, que pretendiam a honra de serem seus barqueiros. E sempre, enquanto remavam por entre a flotilha que pejava os canais orientais das Noventa Ilhas, sob as janelas e varandas de casas que se inclinam por sobre a água, para lá dos desembarcadouros de Nesh, das pastagens fustigadas pela chuva de Dromgan, dos pestilentos armazéns de óleo de Gueath, novas do seu feito tinham chegado antes dele. Ao vê-lo passar, assobiavam a Canção do Gavião, rivalizavam entre si para o receber durante a noite e o ouvirem contar o seu conto do dragão. Quando finalmente atingiu Serd, o mestre do navio a quem ele pediu passagem até Roke respondeu com uma vênia:

— Será um privilégio para mim, Senhor Feiticeiro, e uma honra para o meu navio!

E assim foi que Gued voltou costas às Noventa Ilhas. Mas, logo que o navio abandonou o Porto Interior de Serd e içou as velas, ergueu-se contra ele um violento vento de leste. Era estranho, pois o céu invernoso estava claro e o tempo nessa manhã parecera calmo e estável. Roke distava de Serd apenas trinta milhas e puseram-se a navegar. E quando o vento se levantou ainda mais, mesmo assim prosseguiram. O pequeno navio, como a maioria dos que fazem comércio no Mar Interior, ostentava a alta vela longitudinal que pode ser voltada para apanhar vento de popa, e o mestre era um marinheiro competente, orgulhoso da sua perícia. Assim, velejando ora para norte, ora para sul, foram progredindo para leste. Depois o vento trouxe nuvens e chuva, ao mesmo tempo que mudava de direção e soprava em rajadas tão violentas que havia um perigo considerável de o navio perder o rumo.

— Senhor Gavião — disse o mestre para o jovem que mantivera a seu lado, no lugar de honra, à popa, se bem que pouca dignidade se pudesse manter debaixo de um vento e de uma chuva que os encharcava a todos até os deixar com mísero aspecto nas suas capas ensopadas. — Senhor Gavião, podias talvez dizer uma palavra a este vento, não?

— Estamos já perto de Roke?

— A mais de meio caminho. Mas não conseguimos avançar nada nesta última hora, Senhor.

Gued falou ao vento. Soprou com menos força e, por algum tempo, progrediram razoavelmente. Depois, inesperadamente, vieram silvando do Sul fortes rajadas e, perante elas, de novo se viram desviados para ocidente. As nuvens desfaziam-se e referviam no céu e o mestre do navio rugiu raivosamente:

— Esta ventania de doidos sopra de todos os lados ao mesmo tempo! Só um vento mágico nos pode valer com este tempo, Senhor.

Gued encarou sombriamente o pedido, mas o navio e os seus homens estavam em perigo por causa dele, de modo que mandou erguer o vento mágico e dirigiu-o para a vela. O navio começou de imediato a sulcar as águas em direção a leste e o mestre começou a ficar novamente de bom humor. Mas pouco a pouco, e embora Gued continuasse a manter a encantamento, o vento mágico abrandou, tornando-se cada vez mais fraco, até que o navio pareceu ficar imóvel sobre as vagas por um minuto, com a vela pendente, no meio de todo aquele tumulto da chuva e da ventania. E então, com um estrondo de trovão, a retranca veio rodando e o navio mudou o rumo e saltou para norte como um gato assustado.

Gued deitou a mão a uma escora, pois o navio ficara quase deitado sobre o flanco, e bradou:

— Regressa a Serd, mestre!

Mas o mestre praguejou e gritou que não faria tal.

— Com um feiticeiro a bordo, eu sendo o melhor marinheiro no mister e este o mais obediente navio em que jamais naveguei... voltar atrás?

Nesse momento, o navio voltou a girar, como se um remoinho lhe tivesse aprisionado a quilha, obrigando também o mestre a agarrar-se ao mastro da popa para se manter a bordo, e Gued disse:

— Deixa-me em Serd e navega para onde te aprouver. Não é contra o teu navio que este vento sopra, é contra mim.

— Contra ti, um feiticeiro de Roke?

— Nunca ouviste falar do vento de Roke, mestre?

— Sim, aquele que mantém os poderes maléficos longe da Ilha dos Sages. Mas que tem isso a ver contigo, um domador de dragões?

— Isso é entre mim e a minha sombra — respondeu Gued laconicamente, como é hábito nos feiticeiros. E nada mais disse enquanto navegavam rapidamente, sob vento constante e céus que se aclaravam, por sobre o mar de volta a Serd.

Ao afastar-se dos embarcadouros de Serd, sentiu o coração oprimido. Os dias iam encurtando, com a aproximação do Inverno, e em breve fazia escuro. Ao crepúsculo, o mal-estar de Gued aumentava sempre e, agora, o virar de cada rua parecia-lhe conter uma ameaça. Além disso, tinha de se conter para não olhar constantemente por cima do ombro, tentando ver o que podia vir atrás de si. Dirigiu-se à Casa do Mar de Serd, onde viajantes e mercadores comiam juntos da boa alimentação fornecida pela administração, podendo ainda dormir na longa sala de teto travejado. Pois tal é a hospitalidade das prósperas ilhas do Mar Interior.

Guardou um pouco da carne do jantar e, junto à cova do lume, atraiu o otaque para fora da dobra do seu capuz, onde se açoitara durante o dia, e tentou convencê-lo a comer, fazendo-lhe festas e sussurrando:

— Hoeg, Hoeg, meu pequenino, meu caladinho...

Mas o animalzinho não quis comer e foi-se esconder no bolso. Por aí, pela sua própria embotada incerteza, pelo próprio aspecto da escuridão nos cantos da grande sala, percebeu que a sombra não estava longe dele.

Naquele lugar, ninguém o conhecia. Eram viajantes, vindos de outras ilhas, que não tinham ouvido a Canção do Gavião. Ninguém lhe dirigiu a palavra. Por fim, escolheu uma enxerga e deitou-se. Mas durante toda a noite ali ficou de olhos abertos, sob o travejamento da sala, no meio do sono de estranhos. Toda a noite forcejou por escolher o seu caminho, por planear onde deveria dirigir-se, o que deveria fazer. Mas cada escolha, cada plano, logo eram bloqueados por um mau presságio de desgraça. Atravessada em cada caminho que ele pudesse tomar estava a sombra. Só Roke permanecia livre dela. E para Roke não podia ir, impedido pelos enormes, emaranhados e antigos sortilégios que mantinham em segurança a perigosa ilha. E o fato de o vento de Roke se ter erguido contra ele era uma prova segura de que a coisa que o perseguia devia estar já bem próxima dele.

Essa coisa era informe e sem corpo, cega para o brilho do Sol, uma criatura de uma região sem luz, sem lugar, sem tempo. Tinha de o procurar tateando, através dos dias e dos mares do mundo que o Sol ilumina, e apenas em sonhos e nas trevas lhe era possível tomar forma visível. Não tinha ainda substância ou ser sobre o qual pudesse brilhar a luz do sol. E é assim que no Feito de Hode se canta: «O raiar do dia faz toda a terra e todo o mar, da sombra gera a forma, afugentando o sonho para o reino da treva.» Mas se alguma vez a sombra conseguisse alcançar Gued, poderia retirar dele todo o poder, e tomar o próprio peso e calor da vida do seu corpo e a vontade que o fazia mover.

Esse era o desastre que ele via perante si em cada estrada. E sabia que podia ser atraído para esse desastre. Porque a sombra, tornando-se mais forte de cada vez que dele se aproximava, podia agora mesmo ter já força suficiente para pôr a seu uso poderes maléficos ou homens maldosos — mostrando-lhe falsos portentos ou falando-lhe com a voz de um estranho. Pois, tanto quanto ele sabia, num desses homens que dormia neste ou naquele canto da sala de teco travejado da Casa do Mar nessa noite, podia acoitar-se a coisa de negrume, encontrando apoio numa alma tenebrosa e ali esperando, observando Gued, alimentando-se, naquele preciso momento, da sua fraqueza, da sua incerteza, do seu medo.

Deixara de ser suportável. Tinha de confiar no acaso e ir para onde o acaso levasse. A primeira fria sugestão da alvorada, levantou-se e, sob a luz das estrelas que ia empalidecendo, apressou-se a descer até aos embarcadouros de Serd, com a única resolução de tomar o primeiro navio prestes a partir que o quisesse levar. Uma galera carregava óleo de túrbio. Iria levantar ferro ao nascer do Sol, em direção ao Grande Porto de Havnor. Gued pediu passagem ao mestre. Na maioria dos navios, um bordão de feiticeiro é passaporte e pagamento suficientes. De boa vontade o tomaram a bordo e, antes de decorrida uma hora, o navio partia. A disposição de espírito de Gued melhorou com o primeiro erguer dos quarenta longos remos e o rufo do tambor que marcava o ritmo era para ele como um hino de coragem.

Contudo, não sabia o que faria em Havnor ou para onde fugiria a partir daí. A direção para norte era tão boa como qualquer outra. Ele próprio era um homem do Norte. Talvez encontrasse em Havnor um navio que o levasse a Gont, onde poderia voltar a ver Óguion. Ou encontrar algum que o levasse para bem longe, até às Estremas, tão longe que a sombra o perdesse e desistisse da caçada. Para lá de idéias tão vagas como estas, não tinha em mente qualquer plano e não via rumo algum que devesse seguir com certeza. Só sabia que tinha de fugir...

Aqueles quarenta remos levaram o navio por sobre cento e cinqüenta milhas do mar de Inverno antes do pôr do Sol do segundo dia a partir de Serd. Chegaram assim a um porto em Orrimi, na costa leste do grande território de Hosk, dado que estas galeras que fazem comércio no Mar Interior se mantêm junto às costas e fundeiam durante a noite ao abrigo sempre que podem. Como ainda houvesse luz do dia, Gued foi a terra e vagueou pelas ruas íngremes da vila, sem destino e imerso nos seus pensamentos.

Orrimi é uma velha vila, pesadamente construída em pedra e tijolo, defendida por muralhas contra os senhores sem lei do interior da Ilha de Hosk. Os armazéns das docas são como fortes e as casas dos mercadores têm torres e são fortificadas. Contudo, para Gued, ao caminhar sem destino ao longo das ruas, aquelas poderosas mansões mais lhe pareciam véus, atrás dos quais se estendesse uma escuridão vazia. E as pessoas que passavam junto dele, entregues aos seus afazeres, não lhe pareciam seres humanos reais, mas apenas sombras de homens, sem voz. Com o pôr do Sol, regressou aos embarcadouros e, mesmo aí, na forte luz avermelhada e sob o vento do final do dia, mar e terra lhe pareceram igualmente esbatidos e silenciosos.

— Para onde vais, Senhor Feiticeiro?

Foi assim que alguém o saudou subitamente, atrás dele. Voltando-se, viu um homem vestido de cinzento que trazia um bordão de uma madeira pesada, mas que não era um bordão de feiticeiro. O rosto do estranho estava oculto da luz vermelha pelo capuz, porém Gued sentiu os olhos invisíveis cruzarem-se com os seus. Recuando em sobressalto, ergueu o seu próprio bordão de teixo entre ambos.

Suavemente, o homem perguntou:

— O que temes?

— O que segue atrás de mim.

— Seja. Mas eu não sou a tua sombra.

Gued permaneceu silencioso. Sabia que, na verdade, aquele homem, fosse ele quem fosse, não era o que temia. Não era sombra, nem fantasma, nem criatura gebbeth. No meio do seco silêncio e da sombra que viera sobre o mundo, mantinha inclusive uma voz e alguma solidez. E então deitou o capuz para trás. Tinha uma cabeça estranha, calva e com costuras, um rosto vincado de rugas. Embora a idade não tivesse transparecido na sua voz, tinha o aspecto de um velho.

— Não te conheço — disse o homem de cinzento — e, no entanto, julgo que talvez não nos tenhamos encontrado por acaso. Ouvi em tempos a história de um jovem, um homem com cicatrizes no rosto, que pela treva veio a alcançar grande domínio, mesmo a realeza. Não sei se será essa a tua história. Mas dir-te-ei o seguinte: se precisas de uma espada com que combater sombras, vai até à Corte da Terrenon. Um bordão de teixo não chega para o que necessitas.

Enquanto escutava, a esperança e a desconfiança lutavam no espírito de Gued. Um homem versado em feitiçaria em breve aprende que, na verdade, muito poucos dos seus encontros são por acaso, seja isso para bem ou para mal.

— Em que ilha fica a Corte da Terrenon?

— Em Osskil.

Ao ouvir aquele nome, e por um artifício da memória, Gued viu por um momento um corvo negro sobre erva verde, um corvo que o olhava de lado com um olho que era como uma pedra polida e que falava. Mas as palavras estavam esquecidas.

— Há algo de tenebroso no nome dessa terra — disse Gued, sempre olhando o homem de cinzento, tentando ajuizar que tipo de homem seria. Tinha uns certos modos que deixavam suspeitar que fosse bruxo, talvez até feiticeiro. E, no entanto, apesar de falar atrevidamente com Gued, havia nele um estranho aspecto de pessoa vencida, quase o aspecto de um doente, ou de um prisioneiro, ou de um escravo.

— Tu és de Roke — foi a resposta dele. — Os feiticeiros de Roke dão um mau nome a escolas de feitiçaria que não sejam a sua.

— Que homem és tu?

— Um viajante. Um agente de comércio de Osskil. Estou aqui em negócios — disse o homem de cinzento. E como Gued nada mais lhe perguntasse, desejou calmamente boa noite ao jovem e foi-se, subindo a estreita rua com degraus, acima do cais.

Gued voltou-se, inseguro se devia atender àquele sinal ou não, e olhou para norte. A luz vermelha estava a desaparecer rapidamente das colinas e do mar encapelado pelo vento. Chegava o lusco-fusco cinzento e, nos seus calcanhares, a noite.

Levado por súbita decisão, Gued apressou os passos ao longo do cais até junto de um pescador que dobrava as redes para dentro do seu bote e perguntou-lhe:

— Sabes de algum barco neste porto que esteja de partida para norte, para Semel ou para as Enlades?

— Aquele navio comprido, ali adiante, é de Osskil. É possível que faça escala nas Enlades.

Sempre apressado, Gued dirigiu-se ao grande navio que o pescador lhe indicara, uma embarcação alongada de sessenta remos, esguia como uma serpente, com a curva e alta proa esculpida e embutida com discos de concha de loto, as coberturas dos orifícios para os remos pintadas de vermelho e com a runa Sifl pintada a preto em cada uma. O seu aspecto dava uma idéia de ameaça e rapidez, e estava preparado para partir, já com toda a tripulação a bordo. Gued procurou o mestre do navio e pediu passagem para Osskil.

— Podes pagar?

— Tenho alguma perícia com ventos.

— Também eu sou um fazedor de tempo. Não tens nada para dar? Dinheiro?

Em Baixo Torning, os Ilhéus tinham pago Gued o melhor que podiam com as moedas de marfim usadas pelos que mercadejavam no Arquipélago. Embora lhe quisessem dar mais, apenas aceitara dez moedas. Ofereceu então essas moedas ao osskiliano, mas este abanou a cabeça.

— Nós não usamos essas fichas de jogo. Se não tens nada com que pagar, não posso tomar-te a bordo.

— Precisas de braços? Já remei numa galera.

— Sim, temos falta de dois homens. Procura então o teu banco — disse o mestre do navio. E não lhe prestou mais atenção.

Assim, pousando o bordão e o saco dos livros debaixo do banco dos remadores, Gued tornou-se durante dez amargos dias um remador a bordo daquele navio do Norte. Largaram de Orrimi ao romper do Sol e, durante esse dia, Gued pensou que não iria ser capaz de dar conta do seu trabalho. Tinha o braço esquerdo um pouco enfraquecido por causa das velhas feridas no ombro e, por muito que tivesse remado nos canais de Baixo Torning, isso não o preparara para puxar, puxar, puxar sem descanso pelo longo remo da galera, ao ritmo do tambor. Cada turno aos remos era de duas ou três horas, após o que um segundo grupo de remadores vinha ocupar os bancos, mas o tempo de repouso só parecia ser suficientemente longo para todos os músculos de Gued ficarem rígidos e logo chegava o momento de voltar aos remos. E o segundo dia foi ainda pior. Mas, depois, o corpo habituou-se ao labor e tudo passou a correr melhor.

Naquele navio não havia camaradagem entre os tripulantes como ele encontrara a bordo do Sombra, quando da sua primeira viagem para Roke. As tripulações dos navios das Andrades e de Gont são parceiros no negócio, trabalhando em conjunto para um proveito comum, ao passo que os mercadores de Osskil usam escravos e servos ou contratam homens para remar, pagando-lhes com pequenas moedas de ouro. O ouro é coisa de grande importância em Osskil. Mas não é origem de boa camaradagem, nem aí nem entre os dragões, que também altamente o prezam. Dado que metade daquela tripulação era formada por servos, forçados a trabalhar, os oficiais do navio eram condutores de escravos, e dos mais duros. Nunca assentavam o chicote nas costas de um remador que trabalhasse a soldo ou para pagar a passagem, mas não pode haver grande amizade numa tripulação em que alguns são chicoteados e outros não. Os companheiros de Gued poucas palavras trocavam entre si e ainda menos com ele. Eram na maioria homens de Osskil, que não falavam a língua Hardic do Arquipélago mas um dialeto próprio e eram homens rígidos, de pele pálida, longos bigodes pretos e cabelo liso. Kelub, o vermelho, era o nome que, entre eles, davam a Gued. Embora soubessem que era um feiticeiro, não tinham por ele qualquer consideração, antes uma espécie de desprezo cauteloso. E o próprio Gued não estava na disposição de travar amizades. Mesmo no seu banco, preso ao poderoso ritmo das remadas, um remador entre sessenta num navio que corria sobre os mares cinzentos e despovoados, ainda assim se sentia exposto, indefeso. Quando chegavam a portos estrangeiros, ao cair da noite, e ele se enrolava no seu manto para dormir, por muito cansado que estivesse sonhava, acordava, voltava a sonhar. Sonhos maléficos de que não era capaz de se recordar quando acordava, mas que pareciam suspensos sobre o navio e os homens do navio, fazendo-o desconfiar de todos eles.

Todos os homens livres de Osskil traziam uma faca comprida à anca e certo dia, quando o seu turno de remadores compartilhava a refeição do meio-dia, um desses homens perguntou-lhe:

— És escravo ou perjuro, Kelub?

— Nem uma coisa nem outra.

— Então por que motivo não tens faca? Tens medo de lutar? — continuou o homem, Skiorh, trocista.

— Não.

— Ou é o teu cachorro que luta por ti?

— Otaque — disse um outro que escutava a troca de palavras. — Cão, não. Aquilo é um otaque — e acrescentou qualquer coisa na língua de Osskil que fez Skiorh franzir o olho e voltar as costas. E, precisamente quando se virou, Gued deu por uma mudança no seu rosto, as feições a ondularem e a tornarem-se indistintas como se, por um instante, algo o tivesse modificado, utilizado, para lançar, através dos seus olhos, um relance de esguelha a Gued. Porém, no instante seguinte, Gued viu-lhe todo o rosto e estava como de costume, pelo que Gued disse para si próprio que o que vira fora o seu próprio receio, o seu próprio temor refletido nos olhos do outro. Mas nessa noite voltou a sonhar e Skiorh caminhou no seu sonho. A partir daí, evitou aquele homem o mais que pôde e dir-se-ia que também Skiorh se mantinha longe dele, pelo que não houve mais palavras trocadas entre ambos.

As montanhas coroadas de neve de Havnor afundaram-se atrás deles no horizonte, para sul, tornadas indistintas pelas névoas de princípio de Inverno. Continuaram remando para lá da entrada do Mar de Éa onde, há tanto tempo, Elfarran fora afogado e ainda para além das Enlades. Aportaram por dois dias a Berila, a Cidade do Marfim, branca acima da sua baía na parte ocidental da Enlad dos muitos mitos. Em todos os portos a que chegavam, os homens eram mantidos a bordo do navio e não podiam pôr pé em terra firme. Depois, sob um Sol que nascia vermelho, entraram no Mar de Osskil, sob os ventos de nordeste que sopram sem obstáculo que os quebre, vindos da vastidão despida de ilhas da Estrema Norte. Através desse mar cruel levaram a sua carga a bom porto, chegando no segundo dia, a partir de Berila, aos cais de Neshum, a cidade comercial de Osskil-Leste.

O que se deparou a Gued foi uma costa baixa açoitada pelo vento e pela chuva, uma vila cinzenta agachada por trás dos longos quebra-mares que formavam o seu porto e, nas costas da vila, montes despidos de árvores sob um céu escurecido por nuvens carregadas de neve. Estavam muito longe da luz brilhante do Mar Interior.

Estivadores da Guilda do Mar de Neshum vieram a bordo fazer a descarga — ouro, prata, pedrarias, sedas finas e tapeçarias do Sul, as coisas preciosas que os senhores de Osskil entesouram — e os homens livres da tripulação foram dispensados. Gued interpelou um deles, para lhe perguntar o caminho. Até aí, a desconfiança que sentia por todos eles impedira-o de dizer para onde se dirigia, mas agora, a pé e sozinho numa terra estranha, forçoso era que pedisse indicações. O homem seguiu caminho impacientemente, dizendo que não sabia, mas Skiorh, que os ouvira, disse:

— A Corte da Terrenon? Nas charnecas de Keksemt. É esse o meu caminho.

Skiorh não era a companhia que Gued escolheria, mas, sem conhecer nem a língua nem o caminho, pouca escolha havia. E de qualquer forma, pensou, não tinha grande importância. Ele também não escolhera vir até ali. Fora conduzido e agora continuava a sê-lo. Puxou o capuz para cima da cabeça, pegou no bordão e no saco e seguiu o osskiliano através das ruas da cidade e depois para cima, em direção aos montes nevados. O pequeno otaque não quis viajar ao ombro, preferindo esconder-se no bolso da sua túnica de pele de carneiro, debaixo do manto, como era seu costume com tempo frio. Os montes deram lugar a charnecas ermas e ondulantes, estendendo-se até onde a vista podia alcançar. Caminhavam em silêncio e o silêncio do Inverno pesava sobre toda aquela terra.

— Quanto falta? — perguntou Gued depois de terem percorrido algumas milhas, não vendo quaisquer vestígios de aldeia ou herdade para onde quer que olhasse e pensando que não traziam alimentos consigo. Skiorh voltou momentaneamente a cabeça para ele, levantando o capuz, e respondeu:

— Pouco.

Era uma cara repulsiva, pálida, grosseira e cruel, mas Gued não temia homem algum, embora pudesse temer o lugar onde esse homem o poderia conduzir. Acenou que sim e prosseguiram. A estrada por onde seguiam não era mais que uma fina cicatriz através da vastidão de neve e arbustos sem folhas. De tempos a tempos, outros trilhos a atravessavam ou derivavam dela. Agora que o fumo das chaminés de Neshum se ocultara por trás dos montes na tarde cada vez mais escura, não havia sinal algum que indicasse por que caminho deveriam seguir, ou tinham seguido. Só o vento soprava constantemente de leste. E depois de terem caminhado por várias horas, Gued julgou avistar, lá longe nos montes, a noroeste, para onde tendia o rumo que seguiam, como que um pequeno rasgão contra o céu, semelhante a um dente, branco. Mas a luz daquele dia curto ia esmorecendo e, quando a estrada voltou a subir mais adiante, não conseguiu discernir melhor aquela coisa, torre, árvore ou o que quer que fosse.

— Vamos para ali? — perguntou, apontando.

Skiorh não deu resposta e seguiu caminho, embiocado na sua capa grosseira, o capuz osskiliano, bicudo e forrado a pele, na cabeça. Gued foi palmilhando atrás dele. Tinham andado muito e ele estava sonolento com as passadas uniformes da marcha e o longo cansaço dos duros dias e noites passados a bordo. Começou a parecer-lhe que vinha a andar desde sempre e continuaria para sempre a andar, junto daquele ser silencioso, através de uma terra silenciosa e cada vez mais escura. Cuidado e vontade tinham-se entorpecido nele. Caminhava como num sonho longo, longo, que não o levava a lado algum.

O otaque agitou-se no bolso, e um ligeiro e vago temor acordou e agitou-se também no seu espírito. Obrigou-se a falar:

— A escuridão está a chegar, e a neve também. Quanto falta ainda, Skiorh?

Após uma pausa, sem se voltar, o outro respondeu:

— Não muito.

Mas a sua voz não soou como voz de homem, antes como a de uma fera, rouca e sem lábios, que tentasse falar.

Gued estacou. Em toda a volta, na luz tardia e fosca, estendiam-se os montes vazios. Uma neve esparsa revoluteava um pouco, caindo.

— Skiorh! — disse. E o outro fez alto e voltou-se. Sob o capuz em bico não havia rosto algum.

E antes que Gued pudesse pronunciar um esconjuro ou invocar o seu poder, o gebbeth falou, dizendo na sua voz rouca:

— Gued!

E então o jovem viu-se impedido de conseguir qualquer transformação, ficando fechado no seu verdadeiro ser e obrigado a enfrentar assim indefeso o gebbeth. Nem podia invocar qualquer auxílio nesta terra estrangeira, onde nada nem ninguém era dele conhecido ou responderia ao seu chamado. Estava só, sem nada entre ele e o seu inimigo a não ser o bordão de teixo na mão direita.

A coisa que devorara a mente de Skiorh e lhe possuíra a carne fez o corpo dar um passo em direção a Gued e os braços acompanharam o movimento, erguendo-se tateantes para ele. Urna raiva toda feita de horror apoderou-se de Gued e ele ergueu e logo fez descer silvando o bordão sobre o capuz que ocultava o rosto de sombra. Capuz e capa desabaram quase até ao chão sob aquela pancada feroz, como se dentro deles nada mais houvesse que vento, mas logo, drapejando e ondulando, se voltaram a erguer. O corpo de um gebbeth foi despojado de verdadeira substância e é algo de semelhante a uma concha ou a um vapor sob a forma de um homem, uma carne irreal servindo de roupagem à sombra que é real. Assim, aos sacões, ondulando, como se soprada por algum vento, a sombra alargou os braços e dirigiu-se a Gued, tentando agarrá-lo como já o agarrara no Cabeço de Roke. E se o fizesse, lançaria fora a casca de Skiorh e entraria em Gued, devorando-o a partir de dentro, apoderando-se dele, como era seu único desejo. Gued atingiu de novo o gebbeth com o seu pesado e fumegante bordão, afastando-o a pancadas, mas aquilo voltou de novo e de novo o golpeou e depois deixou cair o bordão que se inflamara e ardera, queimando-lhe a mão. Recuou e logo, num repente, voltou costas e fugiu.

Corria e o gebbeth seguia-o, a um passo apenas de distância, incapaz de o ultrapassar mas também sem se deixar ficar para trás. Gued nunca se voltou para olhar. Corria, corria, através daquela vasta terra crepuscular, onde não havia sítio para se ocultar. Uma vez, o gebbeth chamou-o na sua voz rouca e sibilada, chamou-o pelo nome-verdadeiro uma vez mais, mas, embora se tivesse assim apoderado do seu poder de feiticeiro, não tinha domínio sobre a força do seu corpo e não conseguiu fazê-lo parar. Gued continuou a correr.

A noite espessou-se em redor de caçador e presa, a neve caía finalmente sobre o caminho que Gued já não conseguia ver. Sentia nos olhos o acelerado do coração, a respiração queimava-lhe a garganta e ele não conseguia agora correr verdadeiramente, seguia apenas em frente tropeçando e cambaleando. Mas nem mesmo assim o perseguidor parecia capaz de o apanhar, vindo sempre mesmo atrás dele. Começara a falar-lhe, segredando e murmurando, chamando-o, e Gued sentia que em toda a sua vida aquele segredar estivera nos seus ouvidos, logo abaixo do limiar da audição, mas agora conseguia ouvi-lo e tinha de ceder, de desistir, de parar. E, contudo prosseguiu ainda naquele esforço, lutando por subir uma ladeira longa e indistinta. Pensou que houvesse uma luz algures na sua frente, julgou ouvir uma voz adiante e acima dele chamando-o: «Vem! Vem!»

Tentou responder mas faltou-lhe a voz. A pálida luz tornou-se mais nítida, brilhando através de uma entrada mesmo à sua frente. Não conseguia ver as paredes, mas viu a porta e, ao vê-la, estacou. Logo o gebbeth lhe tentou agarrar o manto, as mãos tateando desajeitadamente os flancos, tentando assenhorear-se dele por trás. Com as últimas forças que lhe restavam, Gued lançou-se através daquela porta que brilhava levemente. Tentou voltar-se para a fechar atrás de si, travando o gebbeth, mas as suas pernas já não conseguiam mantê-lo. Cambaleou, procurando um apoio. Luzes dançaram e relampejaram em frente dos seus olhos. Sentiu que caía e sentiu que algo o segurava ao cair. Mas a sua mente, totalmente exausta, deslizou para dentro da escuridão.

 

                                     O VÔO DO FALCÃO

Gued acordou e, por muito tempo, teve apenas a percepção de que era agradável acordar, pois não esperara voltar a fazê-lo, e era muito agradável ver a luz do dia, a vasta e simples luz do dia a toda a sua volta. Sentiu-se como se estivesse a flutuar nessa luz ou fosse à deriva num barco sobre águas tranqüilas. Por fim, concluiu que estava numa cama, mas nada tinha a ver com qualquer outra em que alguma vez tivesse dormido. Estava feita sobre uma estrutura que se apoiava em quatro pernas altas e trabalhadas e os colchões eram grandes sacos de seda cheios de penas, o que explicava a sensação que tivera de flutuar, e por cima de tudo um dossel carmesim destinado a impedir as correntes de ar. Em dois lados, a cortina estava levantada e presa, permitindo que Gued visse um quarto com paredes e chão de pedra. Através de três janelas altas, avistou a charneca, castanha e nua, com um trecho de neve aqui e além, envolta na tênue luz do Inverno. O quarto devia situar-se bem acima do solo, pois avistava-se uma grande extensão do terreno em volta.

Quando Gued se sentou, uma coberta de cetim também recheada de penas deslizou para o lado e ele viu que envergava uma túnica de seda e passamanaria de prata, como um senhor. Numa cadeira ao lado da cama estavam preparados para ele botas de pelica e um manto debruado a pele de pellauí. Deixou-se ficar sentado por uns momentos, calmo e entorpecido, como alguém presa de um sortilégio, e depois levantou-se, estendendo a mão para pegar no bordão. Mas não tinha bordão.

A sua mão direita, embora tivesse sido tratada e ligada, estava queimada na palma e nos dedos. E nesse momento sentiu a dor que havia nela e o cansaço dorido de todo o corpo.

Uma vez mais, quedou-se sem fazer qualquer movimento. Depois sibilou, não muito alto, não muito esperançoso:

— Hoeg... Hoeg...

Porque também aquela criaturinha feroz e leal, a pequena alma silenciosa que já uma vez o arrancara ao domínio da morte, desaparecera. Estaria ainda com ele na noite passada, quando fugira? E teria sido na noite anterior ou muitas noites atrás? Não sabia. Tudo na sua mente era vago e obscuro, o gebbeth, o bordão em chamas, a fuga, o sussurro, a porta. De nada conseguia lembrar-se claramente. E, mesmo agora, nada era claro. Sussurrou uma vez mais o nome do seu animalzinho, mas sem esperança de obter resposta, e as lágrimas assomaram-lhe aos olhos.

Nalgum lado, longinquamente, soou uma campainha. E uma segunda produziu um tilintar muito doce, mesmo fora do quarto. Uma porta abriu-se atrás dele, do outro lado do quarto, e entrou uma mulher.

— Bem-vindo sejas, Gavião.

Era jovem e alta, vestida de branco e prata, com uma rede de prata a encimar-lhe a cabeleira que caía a direito como uma cascata de água negra.

Rapidamente, Gued inclinou a cabeça.

— Julgo que não te lembras de mim.

— Lembrar-me de ti, Senhora?

Nunca vira uma mulher bonita vestida de modo a fazer justiça à sua beleza senão uma única vez na sua vida. Aquela Senhora de O que viera com o seu Senhor ao Festival do Regresso-do-Sol em Roke. Vira-a como a chama de uma vela, brilhante e esguia, mas esta mulher era como a brancura da lua nova.

— Logo vi que não — prosseguiu ela, sorrindo. — Mas, por muito esquecido que sejas, és aqui acolhido como um velho amigo.

— Que lugar é este? — perguntou Gued, sentindo-se rígido ainda e lento de fala. Verificou que era difícil falar com ela, difícil desviar dela os olhos. As roupas principescas que envergava eram-lhe estranhas, as pedras sobre as quais se erguia não eram familiares e estrangeiro era o próprio ar que respirava. Não era ele próprio, não era o ser que fora.

— Esta fortaleza tem o nome de Corte da Terrenon. O meu Senhor, a quem chamam Benderesk, é soberano desta terra desde o limite das Charnecas de Keksemt até ao Norte, às Montanhas de Os, e guardião da pedra preciosa chamada Terrenon. Quanto a mim, aqui em Osskil chamam-me Serret, prata na língua deles. Quanto a ti, já sei, chamam-te por vezes Gavião e ascendeste a feiticeiro na Ilha dos Sages.

Gued olhou para baixo, para a sua mão queimada, e acabou por dizer:

— Não sei o que sou. Tive poder, em tempos. Perdi-o, penso.

— Não! Tu não o perdeste, ou então foi para o recuperares dez vezes mais forte. Aqui estás a salvo do que te perseguia, meu amigo. Há muralhas poderosas ao redor desta torre e nem todas são de pedra. Aqui poderás repousar e recuperar as tuas forças. E aqui poderás encontrar uma força diferente e um bordão que não se faça em cinzas na tua mão. Afinal, um mau caminho pode conduzir a bom fim. E agora vem comigo, deixa-me mostrar-te o resto do nosso domínio.

E falava com tal doçura que Gued mal lhe ouvia as palavras, tocado apenas pela promessa que havia na sua voz. Seguiu-a.

O quarto ficava realmente muito alto na torre que se erguia como um dente afiado acima do topo da colina. Descendo escadas de mármore em espiral, Gued seguiu Serret, através de ricas salas e salões, passando por janelas que abriam para norte, oeste, sul e leste, por sobre as baixas colinas castanhas que se sucediam, sem casas, sem árvores, sem mudança, claras sob o desbotado céu de Inverno. Só muito longe para norte se erguiam pequenos picos brancos a destacarem-se nitidamente contra o azul, enquanto para sul se adivinhava o brilho do mar.

Servos abriram portas e desviaram-se para o lado perante Gued e a dama, todos eles pálidos e frios osskilianos. Também a pele dela era clara, mas, ao contrário deles, falava bem a língua Hardic e mesmo, pareceu a Gued, com o sotaque de Gont. Mais tarde, nesse mesmo dia, ela levou-o perante o marido, Benderesk, Senhor da Terrenon. Com três vezes a sua idade, branco como um osso e como um osso magro, de olhar turvo, o Senhor Benderesk acolheu Gued com uma fria e severa cortesia, convidando-o a permanecer como hóspede durante o tempo que lhe aprouvesse. Depois pouco mais teve para dizer, nada perguntando a Gued das suas viagens ou do inimigo que o perseguira até ali. E também a Dama Serret nada lhe perguntara de tais coisas.

Se isto era estranho, era apenas parte da estranheza daquele sítio e da sua própria presença nele. A mente de Gued nunca pareceu aclarar-se. Não conseguia ver as coisas distintamente. Viera até esta torre-fortaleza por acaso e, no entanto, todo o acaso era desígnio. Ou viera por desígnio e, contudo, todo o desígnio apenas se devera ao acaso. Dirigira-se para norte. Um estranho em Orrimi dissera-lhe que procurasse ajuda ali. Um navio osskiliano estivera à espera dele. Skiorh guiara-o. Quanto de tudo isto seria obra da sombra que o perseguia? Ou não seria nada? Teriam sido ambos, ele e o seu perseguidor, atraídos ali por algum poder, ele seguindo esse chamariz e a sombra seguindo-o a ele, apoderando-se de Skiorh como sua arma ao surgir a ocasião? Devia ser isso, pois certamente a sombra estava, como dissera Serret, impedida de penetrar na Corte da Terrenon. Desde que acordara na torre, não voltara a sentir sinal ou ameaça da sua abominável presença. Mas então o que o trouxera ali? Porque aquele não era lugar onde se viesse por acaso. Mesmo na lentidão dos seus pensamentos, começava a ver isso. Nenhum outro estranho se acercava daquelas portas. A torre erguia-se, isolada e remota, de costas voltadas para o caminho de Neshum, que era a cidade mais próxima. Ninguém vinha até à fortaleza, ninguém dela saía. Das suas janelas só se avistava a desolação. E dessas janelas olhava Gued, permanecendo sozinho no seu alto quarto, dia após dia, lento de idéias, dorido de coração e frio. Fazia sempre frio na torre, apesar de todos os tapetes e tapeçarias e rico vestuário forrado a pele e vastas lareiras de mármore que ali havia. Era um frio que penetrava até aos ossos, até à medula, e não se deixava desalojar. E, no coração de Gued, também uma vergonha fria penetrou e não se deixava desalojar, à medida que ele ia constantemente pensando no modo como enfrentara o seu inimigo e fora derrotado e fugira. No seu espírito, reuniram-se todos os Mestres de Roke, com Guencher, o Arquimago, franzindo o cenho no meio deles, e juntou-se ainda Nemmerle, e Óguion, e até a bruxa que lhe ensinara o seu primeiro conjuro. Todos o olhavam e ele sabia que tinha desiludido a confiança que nele depositavam. Argumentava, dizendo: «Se não fosse eu fugir, a sombra ter-me-ia possuído. Tinha já toda a força de Skiorh, parte da minha, e eu não podia combatê-la. Sabia o meu nome. Tive de fugir. Um feiticeiro-gebbeth teria sido um terrível poder para o mal e para a ruína. Tive de fugir.» Mas nenhum dos que o escutavam no seu espírito lhe respondia. E ele observava a neve a cair, fina e incessante, sobre as terras desoladas por baixo da janela, sentindo o frio entorpecedor a crescer dentro dele, até lhe parecer que nenhuma sensação lhe restava, a não ser uma espécie de lassidão.

E assim, por pura angústia, manteve-se isolado durante muitos dias. Mesmo quando saía do quarto, permanecia silencioso e rígido. A beleza da Dama da Fortaleza confundia-lhe o espírito e nesta estranha Corte, rica, decorosa, ordenada, sentia-se um pastor de cabras, nado e criado como tal.

Deixavam-no sozinho quando queria estar sozinho e, quando não podia já suportar os seus pensamentos nem olhar a neve que caía, Serret ia freqüentemente ao seu encontro num dos salões arredondados, com tapeçarias nas paredes e iluminados pelo lume da lareira, nas zonas mais baixas da torre, e ali falavam. Não havia alegria na Dama da Fortaleza — nunca ria, embora sorrisse algumas vezes. No entanto, conseguia pôr Gued à vontade, quase bastando um sorriso. Com ela, começou a deixar para trás a sua rigidez, a sua vergonha. Em breve começaram a encontrar-se diariamente para conversar, longa, calma e ociosamente, um pouco à parte das servas que acompanhavam sempre Serret, junto à lareira ou à janela dos altos quartos da torre.

O velho senhor permanecia quase sempre nos seus próprios aposentos, deles saindo de manhã para ir caminhar de um lado para o outro nos pátios interiores, cobertos de neve, do castelo, como um velho mágico que tivesse passado a noite a tecer esconjuros. Quando se juntava a Gued e a Serret para cear, permanecia silencioso, fitando por vezes a jovem esposa com um olhar duro e ávido. Então Gued sentia pena dela. Era como uma corça branca aprisionada, como uma ave branca de asas presas, como um anel de prata no dedo de um velho. Era uma peça no tesouro de Benderesk. E quando o senhor da fortaleza os deixava, Gued ficava com ela, tentando animar-lhe a solidão como ela animava a dele.

— Que jóia é essa que dá o nome à tua fortaleza? — perguntou-lhe ele certa vez em que estavam a conversar, por sobre os seus pratos de ouro vazios, das suas taças de ouro vazias, na sala de jantar, iluminada a velas, grande como uma caverna.

— Nunca ouviste falar dela? É coisa famosa.

— Não. Sei apenas que os senhores de Osskil têm famosos tesouros.

— Ah, mas esta jóia empalidece todas as outras. Diz, gostavas de vê-la?

E Serret sorriu, com uma expressão de zombaria e temeridade, como se estivesse um pouco assustada com o que ia fazer, e conduziu o jovem para fora da sala, através dos estreitos corredores da base da torre e escadas subterrâneas abaixo, até a uma porta fechada que ele nunca antes vira. Abriu-a com uma chave de prata, erguendo a vista para Gued com o mesmo sorriso, como se o desafiasse a segui-la. Para lá da porta havia uma curta passagem e uma segunda porta, que ela abriu com uma chave de ouro, e para além dessa ainda uma terceira porta, que ela abriu com uma das Grandes Palavras de desligar. Para lá dessa última porta, a luz da vela revelou uma pequena sala, semelhante a uma cela de prisão. Chão, paredes, teto, tudo de pedra por trabalhar, sem qualquer peça de mobília, tudo nu.

— Estás a vê-la? — perguntou Serret.

Enquanto Gued olhava em volta, o seu olhar de feiticeiro isolou uma das pedras que formavam o chão. Era grosseira, úmida e fria como as restantes, apenas mais uma laje pesada e sem forma, e no entanto ele sentiu-lhe o poder como se a pedra lhe tivesse falado em voz alta. A respiração ficou-lhe presa no peito e, por um momento, foi tomado por uma náusea. Aquela era a pedra fundamental da torre. Aquele era o seu ponto central e era frio, frio de gelo. Nada poderia alguma vez aquecer a pequena sala. Era uma coisa muito, muito antiga. Um espírito velho e terrível estava aprisionado naquele bloco de pedra. Não respondeu sim nem não a Serret, permanecendo imóvel. Então, lançando-lhe um rápido e curioso olhar, ela apontou-lhe a pedra.

— Eis a Terrenon. Admiras-te por mantermos uma jóia tão preciosa fechada na nossa mais profunda sala de tesouro?

Mas Gued continuou a não dar resposta, permanecendo mudo e desconfiado. Ela poderia estar a testá-lo, mas achava que não devia ter noção de qual fosse a natureza da pedra, para falar dela com tanta ligeireza. Não sabia o suficiente sobre ela para a temer.

— Fala-me dos seus poderes — disse ele por fim.

— Foi feita antes que Segoy erguesse as ilhas do mundo do Alto Mar. Foi feita quando foi feito o próprio mundo e durará até ao fim do mundo. Para ela, o tempo nada é. Se colocares a tua mão sobre ela e lhe fizeres uma pergunta, ela responderá, de acordo com o poder que houver em ti. Tem voz, se a souberes escutar. Falará de coisas que foram, que são e que hão de ser. Falou da tua vinda, muito antes que chegasses a estas terras. E agora, queres fazer-lhe uma pergunta?

— Não.

— Ela responde-te.

— Não existe pergunta que eu queira fazer-lhe.

— Poderia dizer-te — insistiu Serret na sua voz mais doce — como derrotar o teu inimigo.

Gued permaneceu em silêncio.

— Temes a pedra? — perguntou ela como se não pudesse acreditar em tal, mas Gued respondeu:

— Temo.

No frio mortal e no silêncio da sala rodeada por parede sobre parede de encantamentos e de pedra, à luz da vela que segurava, Serret, de olhos brilhantes, voltou a fitá-lo.

— Gavião — disse —, tu não tens medo.

— Mas não falarei com aquele espírito — retorquiu Gued e, olhando diretamente para ela, falou com grave ousadia: — Senhora, aquele espírito está selado numa pedra, e a pedra está fechada com encantamentos de ligar e de cegar e esconjuro de fechar e sob guarda e com uma fortaleza de tripla muralha à sua volta, no meio de uma terra estéril, não por ser preciosa, mas porque pode trazer grande mal. Não sei o que dela te terão dito quando aqui chegaste. Mas tu, que és jovem e meiga de coração, nunca deverias tocá-la ou sequer olhá-la. Nada de bom te poderá trazer.

— Mas já lhe toquei. Falei-lhe e ouvi-a falar. Não me faz mal algum.

Voltou costas e saíram dali, voltando a atravessar as portas e as passagens, até que, chegados à larga escadaria iluminada por archotes, ela apagou a vela. Despediram-se com poucas palavras.

Nessa noite, Gued pouco dormiu. Não foi a recordação da sombra que o manteve acordado. Pelo contrário, esse pensamento fora quase eliminado da sua mente pela imagem, a que constantemente regressava, da Pedra sobre a qual aquela torre fora fundada e do rosto de Serret, a um tempo brilhante e ensombrado pela luz da vela, voltado para ele. Uma vez e outra sentiu o seu olhar sobre si, e tentava decidir que expressão se desenhara nele quando se recusara a tocar a pedra, se fora desdém ou dor. Quando finalmente se acomodou para dormir, os lençóis de seda da cama estavam frios como gelo e, no escuro da noite, Gued acordava constantemente pensando na Pedra e nos olhos de Serret. No dia seguinte encontrou-a no salão arredondado de mármore cinzento, iluminado agora pelo sol que declinava para ocidente e onde ela passava freqüentemente as tardes, jogando ou tecendo com as suas aias. Gued disse-lhe:

— Dama Serret, ofendi-te. Lamento-o.

— Não — disse ela, meditativamente. E repetiu: — Não... — Mandou embora as servas que estavam com ela e, quando ficaram sós, voltou-se para Gued.

— Meu hóspede, meu amigo — disse —, tens uma visão muito clara, mas talvez não vejas tudo o que há a ver. Em Gont e em Roke ensinam-se feitiçarias. Mas não todas as feitiçarias. Aqui é Osskil, Terra-do-Corvo. Não é uma terra Hardic e nela os magos não dominam, nem têm dela muito conhecimento. Há coisas que acontecem aqui que escapam aos sábios do Sul, coisas que não são nomeadas nas listas do Mestre dos Nomes. Aquilo que não se conhece, teme-se. Mas tu não tens nada a temer aqui na Corte da Terrenon. Alguém mais fraco que tu teria, sem dúvida. Tu não. Tu és alguém que nasceu com o poder de controlar aquilo que está na sala selada. Isso eu sei. E é por isso que aqui estás.

— Não compreendo.

— Isso é porque o meu senhor Benderesk não foi inteiramente franco contigo. Mas eu sê-lo-ei. Vem sentar-te ao pé de mim.

E Gued sentou-se junto dela, no fundo banco almofadado da janela. A luz do poente entrava a direito pela janela, envolvendo-os num brilho em que não havia calor. Na charneca, lá em baixo, mergulhando já nas sombras, a neve da noite anterior permanecia intacta, como um pálio de um branco sujo, amorta-lhando o mundo. Serret falou suavemente.

— Benderesk é Senhor e Herdeiro da Pedra Terrenon, mas não pode usá-la, não consegue forçá-la a cumprir totalmente os seus desígnios. Nem eu o consigo, sozinha ou com ele. Nem ele nem eu temos a mestria ou o poder. Tu tens ambos.

— Como sabes isso?

— Pela própria Pedra! Eu disse-te que ela falou da tua vinda. Ela conhece o seu senhor. Tem esperado a tua chegada. Ainda antes que nascesses já ela te esperava, aquele que a podia dominar. E aquele que pode obrigar Terrenon a responder ao que ele pergunta, fazer o que ele deseja, terá poder sobre o seu próprio destino, força para esmagar qualquer inimigo, mortal ou do outro mundo. Terá visão do futuro, saber, riqueza, domínio e feitiçaria às suas ordens capazes de se sobrepor ao próprio Arquimago! De tudo isto, tanto ou tão pouco que queiras é teu. Basta pedires. Uma vez mais, Serret ergueu para ele o estranho brilho dos seus olhos e esse olhar trespassou-o de tal modo que ele estremeceu como de frio. E, no entanto, havia um temor no rosto dela, como se ansiasse por auxílio mas fosse demasiado orgulhosa para lho pedir. Gued sentia-se desnorteado. Ao falar, ela pousara a mão na sua. O seu toque era suave, a sua mão parecia estreita e clara na mão dele, escura, forte. Quase numa súplica, disse:

— Serret! Não tenho tanto poder como crês. Aquele que tive lancei-o fora. Não posso ajudar-te, não tenho utilidade alguma para ti. Mas uma coisa sei. Os Velhos Poderes da terra não são para uso dos homens. Nunca foram depostos nas nossas mãos e, nas nossas mãos, só podem trazer ruína. Maus meios, maus fins. Não fui atraído aqui, mas sim conduzido, e a força que me conduziu pretende a minha perda. Não posso ajudar-te.

— Aquele que lança fora o seu poder recebe por vezes um poder infinitamente superior — retorquiu ela sorrindo, como se os seus temores e escrúpulos fossem pueris. — Talvez saiba mais que tu acerca do que aqui te trouxe. Não houve um homem que se dirigiu a ti nas ruas de Orrimi? Era um mensageiro, um servo de Terrenon. Em tempos, ele próprio foi um feiticeiro, mas lançou fora o bordão para servir um poder maior que o de qualquer mago. E tu vieste a Osskil, mas, na charneca, tentaste defrontar uma sombra com o teu bordão de madeira. Quase não pudemos salvar-te porque essa coisa que te segue é mais astuciosa do que julgamos e já extraíra muita força de ti... Só a sombra pode defrontar a sombra. Só a escuridão pode derrotar a treva. Ouve, Gavião! Que precisas tu então para derrotares essa sombra que espera por ti fora destas muralhas?

— Preciso daquilo que não posso saber. O seu nome.

— A Pedra Terrenon, que sabe de todos os nascimentos e falecimentos e de todos os seres antes e depois da morte, dos que não nasceram e dos que não morrem, do mundo da luz e do mundo das trevas, dir-te-á esse nome.

— E o preço a pagar?

— Não há preço a pagar. Digo-te que te obedecerá, que te servirá como um escravo.

Vacilante e angustiado, Gued não respondeu. Então ela segurou-lhe a mão entre as suas, perscrutando-lhe o rosto. O Sol mergulhara na névoa que escurecia o horizonte e também o ar se tornara pesado, mas o rosto dela animou-se numa expressão de louvor e triunfo, ao observá-lo e verificar que a vontade do jovem fora abalada dentro dele. Suavemente, sussurrou:

— Serás mais poderoso que todos os homens, um rei entre eles. Reinarás e eu reinarei contigo...

Subitamente, Gued ergueu-se e um passo em frente levou-o onde pôde ver, logo após a curva da parede da longa sala, o Senhor da Terrenon que escutava, com um ligeiro sorriso.

Os olhos de Gued clarearam e também a sua mente. Baixou a vista para Serret.

— A luz é que derrota as trevas — disse, com a voz presa —, a luz.

E ao mesmo tempo que falava viu, tão claramente como se as suas palavras fossem a luz que lhe iluminava a visão, como na realidade fora conduzido ali, ali levado ao engano, como tinham usado o seu temor para o guiar e como, uma vez que se tivessem assenhoreado dele, o manteriam ali. Tinham-no salvo da sombra, realmente, porque não queriam que a sombra o possuísse antes de se tornar escravo da Pedra. Mas logo que a sua vontade tivesse sido aprisionada pela Pedra, então deixariam que a sombra penetrasse nas muralhas, porque um gebbeth seria ainda melhor escravo que um homem. Se alguma vez tivesse tocado a Pedra, ou se lhe tivesse falado, estaria totalmente perdido. Porém, tal como a sombra não fora capaz, embora por pouco, de o alcançar e prender, também a Pedra não fora capaz de o usar... por pouco. Quase cedera, mas, por pouco, não chegara a ceder. Ele não aquiescera. E é muito difícil para o mal apoderar-se da alma que não aquiesce.

E estava agora entre aqueles dois que tinham cedido, que tinham aquiescido, olhando de um para o outro, enquanto Benderesk se aproximava.

— Eu avisei-te — disse o Senhor da Terrenon à sua dama, secamente — de que ele se esgueiraria das tuas mãos, Serret. São uns idiotas ladinos, esses teus feiticeiros de Gont. E idiota és tu também, mulher de Gont, quando pensaste em enganar tanto a ele como a mim, e em os governar a ambos pela tua beleza, e em usar a Pedra da Terrenon para os teus próprios fins. Mas eu sou o Senhor da Pedra, eu, e isto é o que faço à esposa desleal. Ekavroe ai oeluantar...

Era um esconjuro de Mudança e as longas mãos de Benderesk erguiam-se a dar à mulher que se encolhia perante ele a forma de qualquer coisa hedionda — porca, cadela ou velha abjeta.

Gued deu um passo em frente e golpeou a mão do senhor, com a sua, forçando-a a baixar, ao mesmo tempo que pronunciava uma única e curta palavra. E embora não tivesse bordão, e estivesse em terreno alheio e maléfico, domínio de um poder tenebroso, mesmo assim a sua vontade prevaleceu. Benderesk imobilizou-se, os olhos enevoados fixos, cheios de ódio e cegos, sobre Serret.

— Vem — disse ela em voz que tremia —, vem, Gavião, depressa, antes que ele consiga invocar os Servos da Pedra...

Como um eco, um sussurro correu através da torre, por dentro das pedras de paredes e chão, um murmúrio tremente e seco, como se a própria terra pudesse falar.

Agarrando na mão de Gued, Serret fugiu com ele ao longo de corredores e salas, pelas altas escadas em espiral abaixo. Saíram por fim para o pátio, onde um resto de luz prateada do dia permanecia ainda sobre a neve pisada e suja. Três dos servos do castelo lhes barraram o caminho, com expressão sombria e interrogativa, como se suspeitassem de alguma conspiração entre aqueles dois contra o seu amo.

— Está a escurecer, Senhora — disse um deles. E logo outro: — Não podes sair agora.

— Saiam do meu caminho, vermes! — bradou Serret, e disse algumas palavras na sibilante língua de Osskil. Os homens afastaram-se dela, dobraram-se até ao chão, aos estremeções, e um deles gritou alto.

— Temos de ir pela porta grande, não há mais nenhuma saída. Consegues vê-la? Consegues encontrá-la, Gavião?

Puxou-lhe a mão, mas Gued hesitava ainda.

— Que esconjuro lhes lançaste? — quis saber.

— Fiz-lhes correr chumbo derretido pelo tutano dos ossos e disso vão morrer. Depressa, digo-te eu, ou ele lançará sobre nós os Servos da Pedra. E eu não consigo encontrar a porta... Há um grande sortilégio sobre ela. Depressa!

Gued não entendia o que ela queria dizer porque, para ele, a porta encantada era tão obviamente visível como as pedras da passagem em abóbada que a ela conduziam a partir do pátio e através da qual a via. Conduziu Serret através da passagem, por sobre a neve virgem de pegadas da entrada para o pátio e logo, tendo pronunciado uma palavra de Abrir, atravessaram ambos a porta da muralha de sortilégios.

Ao passarem através daquela entrada para fora do crepúsculo prateado da Corte da Terrenon, Serret modificou-se. Não que fosse menos bela à luz triste da charneca, mas havia na sua beleza um ar feroz de feiticeira. E Gued reconheceu-a por fim. Era a filha do Senhor de Re Albi, filha de uma mágica de Osskil, a que troçara dele nos verdes prados acima da casa de Óguion, havia tanto tempo, e o levara a ler aquele esconjuro que libertara a sombra. Mas pouco demorou os pensamentos nisso, porque olhava agora em seu redor com todos os sentidos em alerta, procurando esse inimigo, a sombra, que estaria à sua espera nalgum lado, fora das paredes mágicas. Poderia ser ainda um gebbeth, revestido com a morte de Skiorh, ou poderia ocultar-se na escuridão crescente, esperando para o agarrar e fundir o seu vulto informe com o corpo vivo de Gued. Sentia-lhe a proximidade e, no entanto, não o via. Mas, ao perscrutar o espaço em volta, deu com uma coisa pequena e escura meia mergulhada na neve, a poucos passos da porta. Baixou-se e depois, muito suavemente, levantou-a em ambas as mãos. Era o otaque, o pêlo fino e curto todo pegajoso de sangue, o pequeno corpo leve, hirto e frio nas suas mãos.

— Transforma-te! Transforma-te depressa, eles vêm aí! — gritou agudamente Serret, agarrando-lhe o braço e apontando para a torre, erguendo-se atrás deles como um grande dente branco no escuro crepuscular. Das seteiras próximas da base saíam escuras criaturas, abrindo longas asas, batendo-as lentamente e erguendo-se era espiral por sobre as muralhas e em direção a Gued e Serret, sós e desprotegidos na encosta do monte. O sussurro estrepitoso que tinham ouvido dentro da fortaleza aumentara, soando agora como um tremor e um gemer dentro da terra, sob os seus pés.

A ira ergueu-se como uma vaga no coração de Gued, uma cólera ardente contra todas as coisas cruéis e mortíferas que o tinham iludido, armando-lhe laços, perseguindo-o sem descanso.

— Transforma-te! — bradou-lhe uma vez mais Serret e, com um esconjuro dito rapidamente e em voz ofegante, ela própria se transformou numa gaivota cinzenta e levantou vôo. Mas Gued inclinou-se para o chão e arrancou uma folha de erva bravia que saía, seca e frágil, da neve onde o otaque jazera morto. Ergueu essa folha e, enquanto lhe falava em voz alta na Fala Verdadeira, ela cresceu, espessou-se e, quando Gued acabou, segurava na mão um grande bordão, um bordão de feiticeiro. Nenhum fogo de maldição o percorreu com a sua cor vermelha quando as criaturas negras e adejantes da Corte da Terrenon picaram sobre ele e lhes golpeou as asas. Flamejou apenas com o branco fogo mágico que não queima mas afugenta a escuridão.

As criaturas voltaram ao ataque. Bestas feras, aleijões vindos de eras anteriores aos pássaros, aos dragões, aos homens, há muito esquecidas pela luz do dia, mas de novo invocadas pelo poder antigo, maligno, o poder que nada esquecia, da Pedra. Sem lhe dar tréguas, caíam sobre Gued e ele sentia o silvo das suas garras como foices ao redor dele, o nauseante cheiro a morte que delas se desprendia. Ferozmente, aparava os golpes e devolvia-os, mantendo-os à distância com o bordão flamejante, feito da sua cólera e de um fio de erva brava. E, subitamente, todas as criaturas se ergueram no ar como corvos afugentados de cima de algum cadáver decomposto e rondaram para longe, batendo as asas, silenciosas, na direção que Serret tomara na sua forma de gaivota. As suas vastas asas pareciam lentas, mas voavam rapidamente, porque cada impulso as fazia avançar poderosamente através do ar. Não havia gaivota que pudesse escapar por muito tempo àquela pesada velocidade.

Tão rápido como já uma vez o fizera em Roke, Gued tomou a forma de um grande falcão. Não da pequena ave rapace por cujo nome o tratavam, Gavião, mas do Falcão-Peregrino que voa como uma flecha, como o pensamento. E com as suas asas listradas, cortantes e potentes, perseguindo os perseguidores, voou célere. Os ares iam escurecendo e, por entre as nuvens, o brilho das estrelas ia-se tornando mais nítido. Lá à frente, avistou o bando negro e irregular das criaturas que se lançavam sobre um único ponto pairando no ar. Para além daquele borrão negro, estendia-se o mar, palidamente iluminado pela derradeira e acinzentada claridade do dia. Veloz e em linha reta, o falcão-Gued lançou-se contra as criaturas da Pedra que se dispersaram quando penetrou no meio delas, como se dispersam as gotas da água ferida por uma pedra. Mas tinham alcançado a sua presa. Via-se sangue no bico de uma, penas brancas estavam presas às garras de outra e não havia qualquer gaivota a pairar para além delas, sobre a extensão pálida do mar.

Já as criaturas se voltavam de novo contra Gued, rápida e pesadamente, os bicos de aço a abrirem-se, a estenderem-se para ele. E Gued, rondando uma só vez por sobre elas, lançou o grito do falcão, o grito de raiva e desafio, antes de atravessar célere por sobre as praias baixas de Osskil e, ultrapassando os recifes, voar para o mar largo.

As criaturas da Pedra voaram por algum tempo em círculos, crocitando, para depois, uma a uma, regressarem no seu vôo poderoso ao interior da ilha, por sobre a charneca. Os Velhos Poderes não atravessam o mar, pois cada um está ligado a uma ilha, a um determinado lugar, gruta ou pedra ou nascente. E assim voltaram as negras emanações à fortaleza, onde o Senhor da Terrenon, Benderesk, terá talvez chorado ao seu regresso, ou talvez rido. Mas Gued prosseguiu, com suas asas de falcão, sua fúria de falcão, tal flecha que não mais caísse, tal pensamento que não mais esquecesse, sobrevoando o Mar de Osskil e, para leste, integrando-se no vento do Inverno e na noite.

Óguion, o Silencioso, voltara tarde à sua casa em Re Albi, do seu vaguear outonal. Com o passar dos anos, tornara-se mais silencioso, mais solitário do que nunca. O novo Senhor de Gont, que habitava a cidade lá em baixo, nunca conseguira arrancar-lhe uma palavra, embora tivesse trepado até mesmo ao cimo do Ninho de Falcão, a rogar o auxílio do mago num certo empreendimento de pirataria para o lado das Andrades. Óguion, que falava com as aranhas nas suas teias e já fora visto a cumprimentar árvores com toda a cortesia, não disse uma única palavra ao Senhor da Ilha, que acabou por partir, descontente. Haveria também talvez algum descontentamento ou inquietação no espírito de Óguion, pois passara todo o Verão e todo o Outono sozinho, no alto da montanha, e só agora, perto do Regresso-do-Sol, voltara ao seu lar. Na manhã seguinte ao seu regresso, levantou-se tarde e, apetecendo-lhe uma chávena de chá de junquilho, saiu a buscar água à fonte que brotava um pouco abaixo na encosta. As margens da pequena lagoa que rodeava a nascente estavam geladas e o musgo entre as pedras salpicado com flores de geada. Era dia claro, mas o Sol só passaria o poderoso rebordo da montanha dentro de uma hora. Toda a parte ocidental de Gont, desde a costa até ao cume, se apresentava sem sol, silenciosa e límpida naquela manhã de Inverno. Estava o mago junto à nascente, espraiando o olhar por sobre as terras em declive e o porto e a distância cinzenta do mar, quando ouviu acima dele um bater de asas. Olhou para cima, erguendo um pouco o braço direito. Um grande falcão veio descendo com um bater ruidoso de asas e pousou-lhe no pulso. Ali se aquietou como ave treinada para a caça, mas não ostentava trela quebrada, nem venda ou sino. As garras apertavam com força o pulso de Óguion, as asas listradas estremeciam e o olho, redondo e dourado, era vago e bravio.

— És mensageiro ou mensagem? — perguntou Óguion suavemente ao falcão. — Vem daí comigo...

Ao falar-lhe, o falcão olhou-o. Óguion ficou por um momento em silêncio.

— Em tempos dei-te o nome, creio eu — disse o mago. Depois encaminhou-se para casa e entrou, continuando a manter a ave no pulso. Colocou o falcão a um canto da lareira, ao calor, e ofereceu-lhe água. Mas a ave não bebeu. Então Óguion começou a lançar um encantamento, muito calmamente, formando a teia de magia, mais com as suas mãos do que com palavras. Quando o sortilégio ficou completo e bem tecido, disse suavemente «Gued», sem olhar o falcão. Esperou mais um pouco, depois voltou-se, ergueu-se e dirigiu-se ao jovem que estava de pé, tremendo e de olhar vago, diante do fogo.

Gued envergava roupas ricas e exóticas, de peles, seda e prata, mas apresentavam-se cheias de rasgões e rígidas cora sal do mar, e ele próprio permanecia desolado e de costas curvadas, o cabelo a cair-lhe, corredio, pelos lados do rosto marcado de cicatrizes.

Óguion tirou-lhe dos ombros o manto manchado e principesco, conduziu-o até à alcova onde em tempos o seu aprendiz dormira, obrigando-o a deitar-se na enxerga, e deixou-o, depois de murmurar uma encantamento de dormir. Não lhe dirigira a palavra, pois sabia que não havia agora em Gued discurso humano.

Em rapaz, como todos os rapazes, Óguion pensara como devia ser agradável brincadeira tomar, por artes mágicas, qualquer forma que uma pessoa quisesse, homem ou animal, árvore ou nuvem, e brincar assim a ser mil coisas diferentes. Mas, como feiticeiro, aprendera o preço de tal jogo e que é o perigo de perder o próprio ser, perdendo a verdade nesse jogo. Quanto mais tempo um homem permanece sob uma forma que não é a sua, tanto maior é esse perigo. Todo o aprendiz de feiticeiro aprende a história do feiticeiro Bordger de Way que adorava tomar a forma de urso, e foi-o fazendo cada vez com mais freqüência, até que o urso cresceu nele, o homem foi desaparecendo e por fim tornou-se um urso e, encontrando na floresta o seu próprio filho, ainda criança, matou-o, pelo que foi perseguido e abatido. E ninguém sabe quantos dos golfinhos que saltam nas águas do Mar Interior foram em tempos homens, homens sábios, que esqueceram a sua sabedoria e o seu nome na alegria do mar irrequieto.

Gued tomara a forma de falcão cheio de aflição e raiva. Ao voar para longe de Osskil, um único pensamento ocupara o seu espírito: afastar-se tanto da Pedra como da sombra, escapar àquelas terras gélidas e traiçoeiras, voltar a casa. A ira e a selvajaria do falcão eram como as suas e suas se tinham tornado, o seu desejo de fuga tornara-se o desejo do falcão. E assim ele passara sobre Enlad, descendo para beber numa lagoa isolada da floresta, mas logo erguendo vôo de novo, impelido pelo medo da sombra que vinha atrás dele. Atravessara, pois, a grande extensão de mar a que chamam as Fauces de Enlad e continuara sempre em frente, na direção de sudeste, com os montes indistintos de Oranéa para a sua direita e, mais indistintos ainda, os de Andrad para a esquerda e, em frente dele, apenas o mar. Até que por fim, na sua frente, se ergueu das ondas uma outra onda que não se modificava, erguendo-se cada vez mais alto — o branco pico de Gont. Em todos os momentos, iluminados de sol ou escurecidos de noite, daquele vasto vôo, ele usara as asas do falcão, olhara através dos olhos do falcão e, esquecendo os seus próprios pensamentos, ficara por fim a conhecer apenas aquilo que o falcão conhece, a fome, o vento, o modo como voa.

E voou para o abrigo certo. Poucos havia em Roke, e apenas um em Gont, capazes de o tornar de novo um homem.

Ao acordar, permaneceu bravio e silencioso. Óguion não tentou falar-lhe, mas deu-lhe carne e água e deixou-o sentar-se, Corcovado, junto ao lume, soturno como um grande falcão, exausto e enfadado. Vinda a noite, dormiu. Na terceira manhã, veio até junto do fogo, onde o mago estava sentado, fitando as chamas, e disse:

— Mestre...

— Sê bem-vindo, rapaz — disse Óguion.

— Volto para junto de ti tal como parti, um tolo — disse o jovem, a voz rouca e empastada.

O mago sorriu ligeiramente e indicou a Gued que se sentasse do outro lado do lume, dedicando-se depois à tarefa de fazer chá para ambos.

A neve caía, a primeira do Inverno, nas encostas inferiores de Gont. As janelas de Óguion estavam firmemente cerradas, mas mesmo assim ouviam a neve úmida cair suavemente no telhado e sentiam a profunda quietude da neve que rodeava a casa. Por longo tempo permaneceram sentados junto ao fogo e Gued narrou ao seu velho mestre a história dos anos decorridos desde que ele deixara Gont a bordo do navio chamado Sombra. Óguion não fez quaisquer perguntas e, quando Gued terminou, manteve ainda por longo tempo o silêncio, calmo, ponderando. Depois ergueu-se, colocou pão, queijo e vinho sobre a mesa, e comeram juntos. Acabada a refeição e arrumada a sala, Óguion falou:

— São bem amargas essas cicatrizes que trazes, rapaz.

— Não tenho força que prevaleça contra aquela coisa — respondeu Gued.

Óguion sacudiu a cabeça, mas nada mais disse durante algum tempo. Por fim, voltou a quebrar o silêncio.

— Estranho — disse. — Tiveste força suficiente para sobrepor os teus sortilégios aos de um bruxo, no seu próprio domínio, lá em Osskil. Tiveste força suficiente para resistir às tentações e desviar o ataque dos servos de um Velho Poder da Terra. E em Pendor tiveste força suficiente para enfrentar um dragão.

— O que tive em Osskil foi sorte, não força — retorquiu Gued, estremecendo de novo ao recordar o frio entorpecedor, mortal, da Corte da Terrenon. — Quanto ao dragão, sabia-lhe o nome. A coisa maléfica, a sombra que me persegue, não tem nome.

— Todas as coisas têm um nome — disse Óguion, com tanta certeza que Gued não se atreveu a repetir o que o Arquimago Guencher lhe dissera, que essas forças maléficas como a que ele libertara não tinham nomes. É certo que o Dragão de Pendor se oferecera para lhe dizer o nome da sombra, mas ele pouca fé punha na verdade de tal oferta, assim como não acreditava na promessa feita por Serret de que a pedra lhe diria o que ele necessitava saber.

— Se a sombra tiver um nome — disse por fim —, não creio que vá parar e dizer-me...

— Não — respondeu Óguion. — Tal como tu não paraste nem lhe disseste o teu. E, no entanto, ela sabia-o. Na charneca de Osskil ela chamou-te pelo teu nome, pelo nome que eu te dei. É estranho, muito estranho...

E remeteu-se uma vez mais ao seu pensativo silêncio. Por fim, Gued disse:

— Vim aqui em busca de conselho e não de refúgio, Mestre. Não atrairei esta sombra sobre ti e em breve aqui estará se eu ficar. Já uma vez a expulsaste desta mesma sala...

— Não, essa era apenas o seu presságio, a sombra de uma sombra. Não a conseguiria expulsar agora. Só tu o poderias fazer.

— Mas eu sou impotente perante ela. Haverá algum lugar... Mas a voz faltou-lhe antes que terminasse a pergunta.

— Não há lugar seguro algum — disse Óguion suavemente. — Não te voltes a transformar Gued. A sombra pretende destruir o teu ser verdadeiro. Quase o conseguiu, levando-te a tomar o ser do falcão. Não, não sei onde deverás dirigir-te. Porém, tenho uma idéia do que deves fazer. É uma coisa difícil de te dizer.

O silêncio de Gued exigia a verdade e, por fim, Óguion falou de novo:

— Deves voltar-te para trás.

— Voltar-me para trás?

— Sim. Se seguires em frente, se continuares a fugir, para onde quer que corras encontrarás o perigo e o mal, porque são eles que te conduzem, que escolhem o caminho que segues. Tens de ser tu a escolher. Tens de buscar o que te busca. Tens de caçar o caçador.

Gued nada disse.

— Na fonte do rio Ar te dei o nome — prosseguiu o mago —, uma corrente que desce da montanha até ao mar. Um homem deveria saber a que fim se destina, mas nunca o saberá se não voltar atrás, regressando ao seu início e guardando esse início no seu ser. Se não quiser ser como um madeiro mergulhado e arrastado na corrente, terá de ser a própria corrente, toda ela, desde a nascente até mergulhar no mar. Tu regressaste a Gont, regressaste para junto de mim, Gued. Volta-te agora decididamente para trás, busca a tua própria nascente e o que jaz para trás dela. Aí reside a esperança de encontrares forças.

— Aí, mestre? — disse Gued, o terror presente na sua voz. — Onde?

Óguion não respondeu.

— Se me voltar — disse Gued, decorrido algum tempo —, se, como dizes, der caça ao caçador, penso que a caçada não durará muito. Tudo o que a sombra deseja é encontrar-me frente a frente. E já por duas vezes o fez, e por duas vezes me venceu.

— Às três é de vez — fez notar Óguion.

Gued pôs-se a caminhar na sala de um lado para o outro, da lareira até à porta, da porta até à lareira.

— E se ela me derrotar totalmente — disse, argumentando talvez com Óguion, talvez consigo próprio —, apoderar-se-á do meu saber e da minha força para os usar. Agora é apenas a mim que ameaça. Mas se entrar em mim e me possuir, será grande o mal que poderá realizar através de mim.

— Isso é verdade. Se te derrotar.

— No entanto, se eu voltar a fugir, é mais seguro que voltará a encontrar-me... E toda a minha resistência se terá gasto na fuga.

Durante algum tempo ainda continuou Gued a andar de um lado para o outro. Depois, subitamente, estacou, virou-se e, ajoelhando perante o mago, disse:

— Acompanhei com grandes feiticeiros e vivi na Ilha dos Sages, mas tu, Óguion, és o meu verdadeiro Mestre.

— Falara com amor e uma jovialidade sombria.

— Bom — disse Óguion. — Agora já o sabes. E antes tarde que nunca. Mas, no fim, serás tu o meu Mestre.

Levantou-se, espevitou o lume até obter uma boa chama e pendurou a chaleira sobre ele para ferver água. Depois, vestindo o seu casaco de pele de ovelha, disse:

— Tenho de ir tratar das minhas cabras. Toma tu conta da chaleira por mim, rapaz.

Ao voltar, a neve sobre ele como um pó branco e batendo os pés para retirar mais neve ainda das suas botas de couro de cabra, trazia uma haste, comprida e rugosa, de teixo. Durante todo o final da curta tarde e ainda depois da ceia, esteve a trabalhar a madeira à luz da candeia, com faca, pedra-pomes e artes de encantamento. Muitas vezes passou as mãos ao longo da madeira, como se procurasse algum defeito. Muitas vezes, enquanto trabalhava, se pôs a cantar suavemente. Gued, ainda fatigado, ouvia-o e, à medida que ia ficando ensonado, via-se como criança na cabana da bruxa, na aldeia de Dez Amieiros, numa noite de neve, no escuro cortado pelo luzir do fogo, o ar pesado do aroma das ervas e do fumo, e a sua mente vogando ao sabor de sonhos, enquanto escutava o longo e suave canto em que se entrecruzavam sortilégios e feitos de heróis que lutaram contra os poderes da treva e venceram, ou foram derrotados, em ilhas distantes, muito tempo atrás.

— Pronto — disse Óguion, entregando-lhe o bordão acabado. — O Arquimago deu-te madeira de teixo, uma boa escolha, e eu ative-me a ela. Trouxe a haste a pensar em fazer um arco, mas assim é melhor. Boa noite, meu filho.

E enquanto Gued, que não encontrara palavras para lhe agradecer, se encaminhava para a sua alcova, Óguion ficou a observá-lo e, demasiado baixo para que Gued o pudesse ouvir, murmurou:

— Voa bem, ó meu jovem falcão!

No frio do amanhecer, quando Óguion acordou, Gued partira. Mas deixara, à maneira dos feiticeiros, uma mensagem em runas prateadas, riscadas na pedra do lar, mensagem que se desvaneceu ao ser lida e que dizia: «Mestre, vou à caça.»

 

                                 A CAÇADA

Gued partira de Re Albi, estrada abaixo, no escuro invernal antes da madrugada e, não era ainda meio-dia, alcançou o Porto de Gont. Óguion fornecera-o com decentes roupas de Gont, polainas, camisa e veste de couro e linho, para substituir os luxos osskilianos, mas Gued mantivera, para a sua jornada de Inverno, o senhoril manto forrado com pele de pellauí. Assim ataviado, de mãos vazias salvo o escuro bordão que o igualava em altura, chegou às Portas da Cidade, e os soldados, que se recostavam contra os dragões nela esculpidos, não precisaram de olhar mais que uma vez para reconhecerem nele o feiticeiro. Desviaram as suas lanças e deixaram-no passar sem qualquer pergunta, olhando-o enquanto ele seguia rua abaixo.

Nos cais e na Casa da Guilda do Mar, informou-se sobre navios que pudessem estar de partida para norte ou ocidente, para Enlad, Andrad, Oranéa. Todos lhe responderam que nenhum iria partir do Porto de Gont naquela altura, tão perto do Regresso-do-Sol, e na Guilda do Mar disseram-lhe que nem sequer os barcos de pesca sairiam pelos Braços da Falésia com tempo tão pouco de fiar.

Ofereceram-lhe de jantar ali mesmo, na despensa da Guilda do Mar. É muito raro que um feiticeiro tenha de pedir que o alimentem. Sentou-se durante algum tempo junto daqueles estivadores, carpinteiros e fazedores de tempo, tirando prazer da sua lenta e esparsa conversação, a sua resmungante fala gontiana. Havia nele um grande desejo de permanecer ali, em Gont, renunciando a todas as feitiçarias e aventuras, esquecendo todo o poder e todo o horror, para viver em paz como outro homem qualquer, no querido chão da sua terra natal. Era esse o seu desejo, mas outra a sua vontade. Não se demorou muito na Guilda do Mar, nem na cidade, depois de se certificar de que não iriam sair navios do porto. Iniciou uma caminhada ao longo da costa da baía até chegar à primeira das pequenas aldeias a norte da Cidade de Gont e ali foi interrogando os pescadores até encontrar um que tinha um barco para vender.

O pescador era um velho obstinado. O barco, com pouco mais de três metros e construído com tábuas sobrepostas, estava tão empenado e cheio de fendas que mal poderia fazer-se ao mar, o que não o impediu de pedir por ele elevado preço, ou seja, a encantamento de segurança no mar lançada sobre o seu barco, ele próprio e o filho. Porque os pescadores gontianos nada temem, nem sequer feiticeiros, mas apenas o mar.

Esse encantamento de segurança no mar, muito valorizada no Arquipélago Setentrional, nunca salvou homem algum do vento ou das vagas da tormenta, mas, lançada por alguém que conheça os mares locais, a manobra de um barco e a perícia do marinheiro, tece ao redor do pescador alguma segurança para o seu dia-a-dia. Gued teceu o encantamento bem e com honestidade, trabalhando nela toda essa noite e o dia seguinte, nada omitindo, seguro e paciente, embora durante todo esse tempo o seu espírito estivesse sob o império do medo e os seus pensamentos percorressem escuros caminhos, procurando imaginar como lhe iria aparecer a sombra da próxima vez, e quando, e onde. Quando a encantamento ficou pronta e foi lançada, estava muito fatigado. Dormiu essa noite na cabana do pescador, numa cama suspensa feita de tripa de baleia, e acordou de manhã a cheirar a peixe seco. Dirigiu-se então para a angra sob o Monte de Cortanorte onde se encontrava o seu novo barco.

Empurrou-o para as águas calmas junto ao embarcadouro e logo começou a entrar-lhe água, lenta e suavemente. Saltando para o barco, ágil como um gato, Gued pôs-se a endireitar as tábuas empenadas e cavilhas apodrecidas, trabalhando tanto com ferramentas como com sortilégios, tal como costumava fazer com Petchvarri em Baixo Torning. A gente da aldeia agrupou-se em silêncio, não muito perto, observando a rapidez das suas mãos, ouvindo a suavidade da sua voz. Também este trabalho ele fez bem e pacientemente, até ficar acabado e o barco selado e seguro. Depois colocou o bordão que Óguion lhe dera a servir de mastro, deu-lhe firmeza com encantamentos e, no topo, colocou ao atravessado um metro de boa madeira. A partir dessa madeira e para baixo, teceu no tear do vento uma vela de sortilégios, uma vela quadrada, branca como a neve no pico de Gont, acima dele.

Perante isto, as mulheres que o observavam suspiraram de inveja. Depois, de pé junto ao mastro, Gued ergueu levemente o vento mágico. O barco avançou por sobre a água, rodando em direção aos Braços da Falésia, através da grande baía. Quando os silenciosos e atentos pescadores viram aquele barquinho esburacado deslizar com a sua vela tão rápido e direito como um maçarico alçando vôo, ergueram na praia um grande clamor, aplaudindo, rindo, batendo os pés. E Gued, olhando para trás por um momento, pôde vê-los aclamando-o, sob a massa denteada do Monte de Cortanorte, sobre o qual se erguiam até às nuvens os alvos campos da Montanha.

Navegou através da baía e, por entre os Braços da Falésia, saiu para o mar de Gont, fixando aí a sua rota no sentido noroeste para passar a norte de Oranéa, invertendo o caminho por onde viera. Não tinha outro plano ou estratégia para além de voltar atrás na sua rota. Seguindo o seu vôo como falcão através dos dias e ventos de Osskil, a sombra tanto podia vaguear como vir a direito, era impossível sabê-lo. Porém, a não ser que se tivesse retirado uma vez mais e completamente para o reino dos sonhos, não deixaria de ver Gued aproximando-se abertamente, pelo mar aberto, ao seu encontro.

E no mar desejava encontrá-la, se tinha mesmo de ser. Não saberia dizer exatamente por que era assim, mas assolava-o um terror de voltar a enfrentar aquela coisa em terra firme. Do mar erguem-se tempestades e monstros, mas não poderes maléficos. O mal é da terra. E não há mar, nem corrente de rio, nem nascente, no tenebroso domínio onde Gued em tempos estivera. A morte é o lugar seco. Embora o mar em si fosse para ele um perigo, no tempo tormentoso da estação, tal perigo e alteração e instabilidade afiguravam-se uma defesa e uma oportunidade. E quando viesse a encontrar a sombra, naquele extremo final da sua loucura, pensava, talvez pudesse pelo menos agarrar a coisa no momento em que ela o agarrasse, arrastando-a com o peso do seu corpo e o peso da sua própria morte para a profunda escuridão do profundo mar, de onde, assim presa, não pudesse voltar a erguer-se. Desse modo, pelo menos, a sua morte poria fim ao mal que, vivo, ele libertara.

Navegou pois por um mar alteroso, sobre o qual as nuvens pendiam e se amontoavam em vastos e lúgubres véus. Não fez erguer vento de magia algum, antes se servindo do vento do mundo, que soprava penetrantemente de noroeste. E enquanto manteve a substância da sua vela tecida de sortilégios, a maior parte das vezes com uma única palavra sussurrada, a própria vela se virava a apanhar o vento. Não tivera ele usado essa rangia e ter-se-ia visto em dificuldades para manter o instável barquinho numa tal rota e em mar tão encapelado. E lá prosseguiu, mantendo-se vivamente atento para todas as direções. A mulher do pescador dera-lhe dois pães grandes e uma bilha de água e, algumas horas decorridas, quando chegou à vista do Rochedo de Kameber, a única ilha entre Gont e Oranéa, comeu, bebeu e dirigiu gratamente o pensamento para a silenciosa mulher de Gont que lhe dera o alimento. E ainda para além do tênue vislumbre de terra continuou navegando, alterando agora o rumo mais para oeste, sob o frio e a umidade de um chuvisco que, em terra, seria talvez um ligeiro nevão. Não se ouvia qualquer som, a não ser o ranger fraco da embarcação e o leve marulhar das ondas contra o costado. Nem barco nem ave passou por ele. Nada se movia para além do incessante mover das ondas e o derivar das nuvens, as nuvens que Gued recordava vagamente fluindo ao seu redor quando ele, como falcão, voara para leste, seguindo o mesmo rumo que agora percorria para oeste. E então olhara para baixo, para o mar cinzento, tal como olhava agora para cima, para o céu cinzento.

Olhava para diante e adiante nada via. Ergueu-se, enregelado, cansado daquele olhar e espreitar para a névoa vazia.

— Vem de uma vez — murmurou —, vem, Sombra, de que estás à espera?

Mas não houve resposta, não houve um mover mais sombrio entre as sombrias névoas e ondas. E no entanto estava cada vez mais seguro de que a coisa não estava longe, procurando-o às cegas, seguindo-lhe o rasto frio. E de repente lançou um grande brado:

— Estou aqui, eu, Gued, o Gavião, e invoco a minha sombra! O barco rangeu, as ondas murmurejaram, o vento silvou um pouco na vela branca. Os momentos seguiram-se aos momentos. E Gued esperava ainda, a mão direita apoiada no mastro de teixo do seu barco, os olhos fitos no chuvisco gélido que caía lentamente em cordas irregulares através do mar, vindo de norte. E os momentos seguiam-se aos momentos. Depois, muito longe, no meio da chuva e por sobre a água, viu aproximar-se a sombra.

Abandonara o corpo de Skiorh, o remador osskiliano, e não era já como gebbeth que o seguia através dos ventos e por cima do mar. E também não assumia aquela forma de sombra-fera com que a vira no Cabeço de Roke e nos seus sonhos. No entanto, e mesmo sob a luz do dia, tinha agora uma forma. Ao perseguir Gued e na luta com ele na charneca, dele retirara poder, aspirando-o para dentro de si própria. E pode suceder ainda que o fato de a ter invocado, em voz alta e à luz do dia, lhe tivesse conferido ou forçado a adquirir uma certa forma e aparência. Sem dúvida havia agora nela alguma semelhança com um homem, embora, sendo sombra, não projetasse sombra. E assim foi chegando sobre o mar, saindo das Fauces de Enlad na direção de Gont, uma coisa indistinta e mal formada caminhando dificilmente nas ondas, espreitando por entre o vento conforme se aproximava. E a chuva fria passava através dela.

Porque estava meio cega pela luz do dia e porque ele próprio a chamara, Gued viu-a antes que ela o visse. Conhecia-a, tal como ela o conhecia, entre todos os seres, todas as sombras.

Na terrível solidão do mar de Inverno, Gued viu a coisa que temia. O sopro do vento parecia afastá-la do barco, e as ondas corriam sob este perturbando-lhe a visão, e a cada momento parecia estar mais perto. Não saberia dizer se se movia ou não. Mas agora já o vira. Embora nada houvesse na sua mente para além do horror e medo do seu toque, a dor fria e negra que ia exaurindo a sua vida, mesmo assim Gued esperou, imóvel. E de súbito, erguendo fortemente a voz, chamou o vento mágico forte e inesperado a enfunar-lhe a vela branca e o seu barco galgou as ondas cinzentas direito àquela coisa aterrorizante suspensa no vento.

No silêncio mais total, a sombra, vacilando, voltou-se e fugiu.

Para norte, de onde o vento soprava, se dirigiu. E para de onde o vento soprava seguiu o barco de Gued, a rapidez da sombra contra a arte mágica, a chuva e a ventania contra ambas. E o jovem bradou ordens ao seu barco, à vela e ao vento e às ondas na sua frente, tal como o caçador grita aos seus cães quando o lobo corre visivelmente à sua frente, e trouxe àquela vela tecida de sortilégios um vento que teria despedaçado qualquer vela de pano e levou o seu barco por sobre o mar como se fora um pedaço de espuma, cada vez mais perto da coisa que fugia.

Então a sombra rodou descrevendo um semicírculo e, logo parecendo mais frouxa e indistinta, menos semelhante a um homem e mais como mero fumo levado pelo vento, voltou para trás e correu com as rajadas, como se se dirigisse a Gont.

Usando a mão e a magia, Gued inverteu o rumo e o barco saltou como um golfinho fora da água, balouçando com aquela rápida reviravolta. Mais rápido que antes prosseguiu, mas a sombra era cada vez mais indistinta ao olhar de Gued. A Chuva, envolta com saraiva e neve, açoitou-lhe furiosamente as costas e a face esquerda, não o deixando ver mais que a uns cem metros para a frente. Dentro em breve, com a tempestade a engrossar, deixou de avistar a sombra. No entanto, Gued estava seguro do rumo que ela seguia, como se fosse o de um animal em vez do rasto de um espectro fugindo sobre a água. Embora o vento soprasse agora de feição, manteve o cantante vento mágico na vela, e flocos de espuma saltavam da proa do barco, que ia batendo o mar no seu progresso.

Durante muito tempo caça e caçador mantiveram o seu célere e estranho curso, e o dia ia escurecendo rapidamente. Gued sabia que, à grande velocidade a que navegara durante as últimas horas, devia estar agora a sul de Gont, dirigindo-se para além da ilha para Spevy ou Torheven, ou quiçá ainda para além dessas ilhas pelo mar aberto da Estrema. Não o saberia dizer. Nem lhe dava cuidado. Caçava, seguia o rasto, o medo corria na sua frente.

De súbito, avistou por um momento a sombra, não muito longe dele. O vento do mundo tinha vindo a abrandar e a neve e a chuva da tempestade tinham dado lugar a ura nevoeiro frio, esparso e que se ia tornando mais espesso. Foi através desse nevoeiro que teve um vislumbre da sombra, fugindo agora um pouco para a direita do seu rumo. Falou ao vento e à vela, moveu a cana do leme e prosseguiu no que, mais uma vez, era uma perseguição às cegas. O nevoeiro adensava-se rápido, como que fervendo e rasgando-se quando encontrava o vento mágico, fechando-se em toda a volta do barco, uma palidez informe que amortecia a luz e a vista. Exatamente quando Gued pronunciava a primeira palavra de um encantamento de clarear, viu de novo a sombra, ainda para a direita do seu curso, mas muito próxima e avançando lentamente. O nevoeiro atravessava-lhe a cabeça vaga e sem feições, no entanto com o feitio da de um homem, só que deformada e em mudança constante, como a sombra desse homem. Uma vez mais Gued fez guinar o barco, pensando que teria dado com o inimigo em terra. Mas nesse mesmo instante a sombra desvaneceu-se e foi o seu barco que deu em terra, despedaçando-se de encontro aos baixios que o nevoeiro lhe ocultara da vista. Quase foi lançado borda fora, mas antes conseguiu agarrar-se ao bordão que lhe servia de mastro, antes que nova onda rebentasse sobre ele. E foi uma grande vaga que arrancou o barco da água e deu com ele em cima de um rochedo, do mesmo modo que um homem poderia erguer e esmagar uma concha de caracol.

Forte e cheio de magia era o bordão que Óguion afeiçoara. Não se quebrou e, boiando como um madeiro seco, cavalgou as águas. Continuando a segurá-lo, Gued foi puxado para trás quando a rebentação escorreu do baixio, de modo que ficou em água profunda e, até que viesse a onda seguinte, a salvo de embater nas rochas. Os olhos cegos do sal, sufocando, tentou manter a cabeça fora de água e lutar contra a tremenda força de sucção do mar. Um pouco para o lado dos rochedos havia uma praia de areia que ele entreviu uma ou duas vezes enquanto tentava nadar para se libertar do encher da próxima onda. Com toda a sua força e o poder do bordão a ajudá-lo esforçou-se por alcançar a praia. Não conseguiu aproximar-se. O ir e vir da rebentação lançavam-no de um lado para o outro como um trapo e a frialdade do mar profundo rapidamente lhe roubou o calor do corpo, enfraquecendo-o até ele já não poder mover os braços. Perdera de vista tanto os rochedos como a praia e nem sabia para que lado estava virado. Em seu redor havia apenas o tumultuar da água, e por baixo e por cima dele, cegando-o, estrangulando-o, afogando-o.

Uma onda, enchendo ao aproximar-se de terra sob o nevoeiro esparso, pegou nele, fez rolar uma e outra vez, acabando por lançá-lo como um pau à deriva para cima da areia.

E ali se quedou prostrado. Agarrava ainda com ambas as mãos o bordão de teixo. Ondas menores arrastaram-se até ele, tentando trazê-lo de novo praia abaixo ao retirarem-se. A névoa abria para logo voltar a fechar sobre ele. Mais tarde, açoitou-o uma bátega de neve derretida.

Passado muito tempo, moveu-se. Ergueu-se sobre as mãos e os joelhos e começou lentamente a rastejar pela praia acima, afastando-se da beira do mar. Fazia agora noite escura, mas ele dirigiu um sussurro ao bordão e uma tênue luz de fogo-fátuo brilhou, envolvendo-o. Tendo a luz para se guiar, esforçou-se por avançar, a pouco e pouco, subindo em direção às dunas. Estava tão moído, quebrado e enregelado que aquele rastejar através da areia molhada, no escuro cheio do assobiar do vento, do estrondear do oceano, foi a empresa mais árdua que até aí tivera de empreender. Por uma ou duas vezes lhe pareceu que o grande ruído do mar e do vento morria, que a areia molhada se tornava em pó seco debaixo das suas mãos, e sentiu o brilho imóvel de estranhos astros sobre o seu dorso. Mas não ergueu a cabeça, continuou a gatinhar e, pouco depois, voltou a ouvir a sua própria e ofegante respiração, voltou a sentir o vento áspero lançando-lhe a chuva contra o rosto.

O movimento trouxe de novo, e finalmente, um pouco de calor ao seu corpo e, depois de ter rastejado até ao cimo das dunas, onde as rajadas de vento e chuva eram menos fortes, conseguiu pôr-se de pé. Com a palavra obteve do bordão uma luz mais forte, porque o mundo era de um negrume total, e depois prosseguiu apoiando-se ao bordão, vacilando, parando aqui e ali, durante meia milha para o interior. Depois, no cimo de uma duna, voltou a ouvir o mar, um som novamente forte e não atrás de si, mas em frente. As dunas voltavam a descer para uma outra costa. Aquilo não era uma ilha, mas sim um mero banco de areia no meio do oceano.

Estava demasiado esgotado para desesperar, mas soltou uma espécie de soluço e ficou para ali, desnorteado, apoiado ao seu bordão, durante longo tempo. Depois, persistentemente, voltou para a esquerda de modo a pelo menos ter o vento pelas costas e arrastou os pés pela alta duna abaixo, procurando alguma depressão por entre as ervas esgarçadas, dobradas pelo vento e debruadas de gelo, onde pudesse conseguir algum abrigo. Ao erguer o bordão para ver o que tinha diante de si, entreviu uma débil claridade no extremo do círculo de luz do fogo-fátuo, uma parede de madeira molhada pela chuva.

Era uma cabana ou telheiro, uma construção pequena e insegura como se tivesse sido feita por uma criança. Gued bateu na porta baixa com o seu bordão. Permaneceu fechada. Abriu-a com um empurrão e entrou, quase precisando de se dobrar em dois para o fazer. Mesmo dentro da cabana, não lhe foi possível endireitar-se. Carvões acesos libertavam o seu brilho vermelho no buraco do fogo e, ao seu tênue clarão, Gued viu um homem de longo cabelo branco, que se agachava aterrorizado de encontro à parede do fundo, e mais alguém, não saberia dizer se homem ou mulher, que o espreitava de dentro de um montão de farrapos ou peles, caído no chão.

— Não vos vou fazer mal — murmurou Gued.

Não responderam. Olhou para um e para outro. O medo esvaziara-lhes os olhos de expressão. Quando pousou o bordão, aquele que estava sobre o monte de trapos escondeu-se, gemendo. Gued tirou o manto, pesado de água e gelo, despiu-se e pôs a roupa em monte por sobre o buraco do lume.

— Dêem-me qualquer coisa para me embrulhar — pediu. Estava rouco e mal podia falar, de tal maneira lhe batiam os dentes e o sacudiam longos arrepios. Se é que o ouviram, nenhum dos velhos respondeu. Estendeu o braço e apanhou um trapo do monte em cima da cama. Em tempos, teria sido uma pele de cabra, mas agora era apenas uma coisa esfarrapada e cheia de gordura preta. A pessoa que estava debaixo do montão de farrapos gemeu de medo, mas Gued não lhe prestou atenção. Esfregou-se até ficar seco e depois sussurrou:

— Não têm lenha? Ateia um bocado o lume, velho. Vim ter contigo por necessidade, não vos quero fazer mal.

Mas o velho não se moveu, olhando-o numa espécie de transe de medo.

— Percebes o que digo? Não falas Hardic? — E depois de uma pausa, pronunciou: — Kargad?

A essa palavra, o velho acenou de imediato que sim, uma só vez, como uma velha e triste marionete. Mas como aquela era a única palavra que Gued conhecia da língua karguiana, a conversa ficou por ali. Descobriu lenha empilhada de encontro a uma parede, ateou ele próprio o lume, e depois, por gestos, pediu água, pois a água do mar que engolira deixara-o agoniado e tinha a boca seca de sede. Sempre encolhido de medo, o velho apontou uma grande concha que continha água e empurrou para perto do lume uma outra em que se via tiras de peixe secas ao fumeiro. E assim, de pernas cruzadas e bem junto ao fogo, Gued bebeu, comeu um pouco e, à medida que as forças e o raciocínio lhe voltavam, começou a interrogar-se onde estaria. Mesmo com o vento mágico, não lhe teria sido possível ter navegado toda a distância até às Terras de Kargad. Aquela ilhota devia ficar ao largo, na Estrema, a leste de Gont, mas ainda a oeste de Karego-At. Parecia-lhe estranho que houvesse gente a habitar um local tão pequeno e desolado, uma mera tira de areia. Seriam talvez náufragos. Mas, de momento, estava demasiado cansado para se pôr a pensar nisso.

Ia voltando o manto para o calor e a pele de pellauí secava depressa. Logo que a lã do forro ficou pelo menos quente, se não totalmente seca, enrolou-se no manto e estendeu-se junto ao fogo.

— Durmam, durmam, pobre gente — disse ele aos seus silenciosos anfitriões e, deitando a cabeça no chão de areia, deixou-se dormir.

Três noites passou ele naquela ilhota sem nome, porque na primeira manhã, ao acordar, não havia músculo que não lhe doesse, estava febril e sentia-se mal. Todo aquele dia e a noite que se lhe seguiu permaneceu deitado junto ao fogo como um toro levado pelas ondas. No outro dia acordou, ainda entorpecido e dorido, mas recuperado. Voltou a envergar as suas roupas encrustadas de sal, pois não havia água doce suficiente para as lavar, e, saindo para a manhã cinzenta e ventosa, observou aquele lugar para onde a sombra o arrastara ao engano.

Era uma faixa de areia e rochedos, com uma milha de largura máxima e um pouco maior no sentido do comprimento, debruada em toda a volta de baixios e rochedos. Sobre ela não crescia qualquer árvore ou arbusto, nem plantas para além das ervas esgarçadas, dobradas pelo vento. A cabana erguia-se numa depressão das dunas e o velho e a mulher viviam ali sozinhos, na extrema desolação do mar vazio. A cabana fora construída, melhor dizendo, empilhada com tábuas e ramos trazidos pelo mar. Tiravam a água, salobra, de um pequeno poço ao lado da cabana. Por alimento tinham peixes e moluscos, crus ou secos, e algas dos rochedos. As peles em farrapos da cabana e uma pequena provisão de agulhas de osso e anzóis, bem como os tendões para linhas de pesca e para rodar o pau de fazer fogo, não vinham de cabras como Gued pensara a princípio, mas de focas malhadas. E na realidade aquele era o tipo de lugar onde as focas se dirigem para criar os seus filhotes no Verão. Mas mais ninguém demanda um tal lugar. Os velhos temiam Gued não porque o julgassem um espírito, não por se tratar de um feiticeiro, mas simplesmente porque era um homem. Tinham esquecido que havia outras pessoas no mundo.

O temor taciturno do velho nunca esmoreceu. Quando pensava que Gued se iria aproximar o suficiente para o tocar, logo se afastava manquejando, olhando para trás com um franzir de sobrancelhas por baixo das farripas da sua cabeleira de um branco sujo. A princípio, a mulher soltara queixumes e escondera-se debaixo do seu montão de farrapos sempre que Gued se movia. Mas, quando ele ficara estendido e num quase sono febril na escura cabana, vira-a agachar-se para o olhar com uma expressão estranha, parada e andante. E, mais tarde ainda, dera-lhe água a beber. Mas quando ele se sentou para receber a concha das suas mãos, assustara-se e deixara-a cair, entornando toda a água, e depois chorou e limpou os olhos ao seu longo cabelo de um branco-acinzentado.

Agora observava-o, enquanto ele trabalhava lá em baixo na praia, afeiçoando madeira dada à costa e pranchas do seu próprio barco, que as ondas tinham também trazido, para fazer um novo barco, usando a grosseira enxó de pedra do velho e um encantamento de prender. Não se tratava de uma reparação nem de construir um barco, pois não dispunha de madeira capaz que chegasse, e tinha de prover todas as suas necessidades com pura feitiçaria. Contudo, a velha observava não tanto o seu maravilhoso trabalho, mas mais a ele próprio, e sempre com aquela mesma expressão ansiosa nos olhos. Passado um bocado, afastou-se e depois regressou com uma oferta, uma mão-cheia de mexilhões que apanhara nas rochas. Gued comeu-os tal como ela lhos dera, molhados de água do mar e crus, e agradeceu-lhe. Parecendo ganhar coragem, a velha foi até a cabana e voltou trazendo de novo alguma coisa nas mãos, desta feita um volume embrulhado num farrapo. Timidamente, sempre com os olhos postos no seu rosto, desembrulhou o que trazia e ergueu-o para que ele o visse.

Era um vestido de bebê, de brocado de seda, avolumado por um sem-fim de minúsculas pérolas, manchado de sal, amarelecido pelos anos. No pequeno corpete as pérolas estavam dispostas numa forma que Gued conhecia. A dupla flecha dos Irmãos-Deuses do Império de Kargad, encimada por uma coroa de rei.

A anciã, enrugada e suja, coberta por uma espécie de saco mal cosido de pele de foca, apontou para o pequeno vestido de seda e depois para si própria, e sorriu. Um sorriso doce e sem sentido, como o de uma criança. De qualquer esconderijo cosido à saia do vestido, retirou um pequeno objeto e estendeu-o para Gued. Era um pedaço de metal escurecido, talvez um bocado de alguma jóia quebrada, o semicírculo de um anel partido. Gued olhou-o, mas ela fez-lhe um gesto para que o tomasse e não desistiu enquanto ele não lhe fez a vontade. Depois acenou a cabeça e voltou a sorrir. Dera-lhe um presente. Mas quanto ao vestido, embrulhou-o cuidadosamente no mesmo farrapo gordurento e dirigiu-se manquejando para a choupana, a guardar a bela peça de roupa.

Gued colocou o anel quebrado no bolso da sua túnica quase com o mesmo cuidado, porque o seu coração estava pleno de dó. Adivinhava agora que aqueles dois deviam ser filhos de alguma casa real do Império de Kargad. Um tirano ou usurpador, temendo verter sangue real, enviara-os para serem abandonados numa ilha que não viesse nos mapas, longe de Karego-At, para lá viverem ou morrerem. Um teria sido talvez um rapaz de oito ou dez anos e o outro uma bebê saudável e forte, com um vestido de seda e pérolas. E ali tinham vivido e continuado a viver, sozinhos, durante quarenta anos, cinqüenta anos, num rochedo no meio do oceano, o príncipe e a princesa da Desolação.

Mas se era verdade ou não o que julgava adivinhar, só o veio a saber quando, anos mais tarde, a busca do anel de Erreth-Akbe o levou até às Terras de Kargad e aos Túmulos de Atuan.

A sua terceira noite na ilha terminou com um calmo e pálido nascer do Sol. Era o dia do Regresso-do-Sol, o dia mais curto do ano. O seu pequeno barco de madeira e magia, de restos e sortilégios, estava pronto. Tentara dizer aos anciãos que os levaria para qualquer terra, Gont ou Spevy ou as Torikles. Tê-los-ia mesmo deixado nalguma costa solitária de Karego-At, se lho tivessem pedido, embora as águas karguianas não fossem lugar seguro onde um natural do Arquipélago se devesse aventurar. Mas por nada deixariam a sua estéril ilha. A velha parecia não entender o que ele pretendia significar com os seus gestos, as suas calmas palavras. O velho compreendia, mas recusava. Toda a memória que tinha de outras terras e de outros homens era um pesadelo infantil de sangue, de gigantes, de gritos de dor. Gued discernia isso no seu rosto, enquanto o ancião sacudia e voltava a sacudir a cabeça.

E assim, nessa manhã, Gued encheu uma bolsa de pele de foca com água do poço e, dado que não podia agradecer aos velhos o fogo e o alimento, nem tinha um presente que pudesse dar à anciã como desejaria, fez o que lhe foi possível e lançou um encantamento sobre aquela fonte salgada e pouco de fiar. E a água subiu através da areia, tão doce e clara como a de qualquer nascente de montanha nos cumes de Gont, e nunca voltou a faltar. E é por isso que esse lugar vem hoje nos mapas e ostenta um nome, Ilha da Água de Nascente, que os marinheiros lhe deram. Mas a cabana desapareceu e as tempestades de muitos Invernos não deixaram sinal dos dois que ali viveram as suas vidas solitárias e solitariamente ali morreram.

Mantiveram-se escondidos na choupana, como se tivessem medo de o observar, quando Gued avançou com o barco, partindo do arenoso extremo sul da ilhota. Deixou que o vento do mundo, soprando firmemente de norte, enchesse a sua vela tecida de sortilégios e singrou rápido por sobre o mar.

Ora esta busca de Gued era estranha empresa, pois, como muito bem sabia, ele era um caçador que tanto desconhecia o que seria a coisa que caçava, como onde poderia estar em toda Terramar. Tinha de a perseguir por cálculo, por palpite, à sorte, tal como ela o perseguira. Ambos estavam cegos para o ser do outro, com Gued tão desorientado por sombras impalpáveis como a sombra se desorientava com a luz do dia e as coisas sólidas. Para Gued havia apenas uma certeza, a de que era agora verdadeiramente o caçador e não a presa. Porque a sombra, depois de o ter iludido, lançando-o contra as rochas, poderia tê-lo tido à sua mercê durante todo o tempo em que ele permanecera meio morto estendido na costa e, depois, quando errara no meio da escuridão sobre as dunas varridas pela tempestade. Mas a sombra não esperara para aproveitar a oportunidade. Enganara-o e logo se pusera em fuga, sem se atrever já a enfrentá-lo. E por aqui via que Óguion tinha tido razão. A sombra não podia sugar-lhe poder enquanto ele permanecesse de frente para ela. Portanto, ele tinha de continuar a afrontá-la, a persegui-la, por muito que o seu rastro estivesse frio ao longo daqueles vastos mares e nada tivesse para o guiar senão o acaso afortunado do vento do mundo soprando para sul e uma tênue noção ou palpite no seu espírito de que sul ou leste era a direção certa a seguir.

Antes de cair a noite, avistou ao longe, à sua esquerda, a longa e imprecisa linha costeira de um grande território que deveria ser Karego-At. Encontrava-se precisamente nas rotas marítimas daquela gente bárbara, de pele branca. Manteve-se vivamente atento à presença de qualquer navio longo ou galé karguianos, ao mesmo tempo que recordava, enquanto ia navegando no avermelhado do entardecer, aquela manhã da sua adolescência na aldeia de Dez Amieiros, os guerreiros emplumados, o fogo, a bruma. E ao pensar naquele dia viu de repente, com um baque no coração, como a sombra o iludira com a sua própria ilusão, trazendo aquela bruma a rodeá-lo no mar como se a trouxesse do seu próprio passado, cegando-o para o perigo e impelindo-o enganosamente para a morte.

Manteve a sua rota para sudeste e a terra foi-lhe desaparecendo da vista à medida que a noite se estendia sobre a orla oriental do mundo. Os côncavos das ondas estavam cheios de escuridão enquanto as cristas brilhavam ainda no reflexo rosa-claro vindo de ocidente. Gued cantou em voz alta a Loa do Inverno e todos os cantos que conseguiu recordar do Feito do Jovem Rei, pois eram cantados no Festival do Regresso-do-Sol. A sua voz era clara, mas quase nada no vasto silêncio do mar. O escuro da noite chegou rápido e, com ele, as estrelas de Inverno.

Durante toda aquela noite, a mais longa do ano, ele permaneceu acordado, observando as estrelas a nascerem à sua esquerda, a girarem sobre a sua cabeça, a afundarem-se nas longínquas e negras águas à direita, e sempre com o longo vento do Inverno a levá-lo para sul sobre um mar invisível. Só por um momento, de vez em quando, lhe foi possível adormecer, mas para logo acordar com um estremeção. Aquele barco em que navegava não era, a bem dizer, um verdadeiro barco, mas uma coisa mais que por metade formada de encantamentos e feitiçaria, não passando o resto de meras pranchas e madeira levada pelo mar que, se ele deixasse abrandar os encantamentos de dar forma e de prender que lançara sobre elas, em breve se iriam soltar e espalhar, partindo à deriva como um pequeno conjunto de destroços sobre as ondas. E também a vela, toda ela tecida de magia e ar, pouco tempo suportaria o vento se ele adormecesse, antes se tornaria ela própria um breve sopro de vento. Os encantamentos de Gued eram eficazes e poderosas, mas quando a matéria sobre a qual agem tais sortilégios é escassa, o poder que os mantém ativos tem de ser renovado a cada momento. E assim Gued não dormiu naquela noite. Teria progredido com mais facilidade e rapidez sob a forma de falcão ou golfinho, mas Óguion aconselhara-o a não mudar de forma e ele conhecia o valor dos conselhos de Óguion. Portanto, continuou a navegar para sul e a longa noite passou lentamente, até que o raiar do primeiro dia do novo ano veio iluminar todo o mar.

Pouco depois do nascer do Sol, avistou terra à sua frente, mas só muito devagar se aproximava dela. Com a madrugada, o vento do mundo amainara. Ergueu um pouco de vento mágico para a sua vela, a fim de o levar até àquela terra. A sua vista, o temor entrara de novo nele, o medo penetrante que o impelia a voltar costas, a fugir. E seguiu esse mesmo medo como um caçador segue os sinais, as pegadas largas, arredondadas, com garras, do urso que, a qualquer momento, podia saltar sobre ele de dentro dos maciços de arbustos. Porque estava agora perto. Sabia-o.

Era uma terra de aspecto estranho a que se ia erguendo do mar à medida que ele se aproximava mais e mais. O que de longe parecera ser uma única montanha escarpada dividia-se afinal em várias arestas longas e íngremes, talvez ilhas separadas, entre as quais o mar passava em estreitos braços ou canais. Gued debruçara-se sobre muitas cartas e mapas na torre do Mestre dos Nomes em Roke, mas respeitavam na sua maior parte ao Arquipélago e aos mares interiores. Mas agora estava na Estrema Oriental e não sabia que ilha poderia ser aquela. Nem isso lhe dava muito que pensar. Medo era o que havia à sua frente, o que se açoitava escondendo-se dele ou esperando por ele nas encostas e florestas da ilha, e direito a esse medo dirigiu o barco.

Já os montes coroados de árvores, escuros, ensombravam da sua enorme altura o barco cá em baixo. A espuma das vagas que se quebravam contra as falésias rochosas era soprada em borrifos de encontro à vela, ao mesmo tempo que o vento mágico o levava, entre dois grandes cabos, para um braço de mar, como uma rua marítima que se desenrolava em frente dele, penetrando fundo na ilha, com uma largura que não excedia o comprimento de duas galés. O mar, confinado, encapelava-se e batia contra as íngremes falésias. Não havia praias, pois os montes mergulhavam diretamente na água que o frio reflexo dos seus cumes escurecia. Ali não havia vento, mas um grande silêncio.

A sombra conduzira-o ao engano, primeiro para a charneca de Osskil, depois, no meio do nevoeiro, de encontro às rochas. Haveria agora um terceiro embuste? Fora ele que impelira a coisa até ali, ou fora ela que ali o atraíra, para uma armadilha? Não o sabia. Sabia apenas que sentia o tormento do temor, e que tinha de seguir em frente e fazer o que se dispusera a fazer, perseguir o mal, seguir o seu próprio terror até à fonte de onde brotara. Comandou o barco com grande cuidado, olhando atentamente para a frente e para trás, para cima e para baixo dos montes em ambos os lados. Deixara a luz do Sol do novo dia atrás de si, no mar aberto. Aqui tudo era escuridão. A abertura entre as paredes rochosas parecia-lhe, ao olhar para trás, uma porta longínqua e fulgurante. Acima dele, os montes erguiam-se altos, cada vez mais altos, à medida que ele se aproximava da base da montanha de onde nasciam e que a rua de água se ia estreitando. Apurou a vista para diante, para a escura fenda, e para a direita e a esquerda, até ao cimo das grandes encostas, esburacadas de cavernas, inçadas de penedos, a que se apegavam árvores com as raízes meias no ar. Nada se movia. E agora estava a alcançar o fim da enseada, uma massa de rocha elevada, nua e rugosa, de encontro à qual, reduzidas até à largura de uma pequena angra, as últimas ondas marinhas batiam debilmente. Penedos tombados, troncos apodrecidos e as raízes de árvores nodosas deixavam apenas uma estreita passagem por onde conduzir o barco. Uma armadilha, uma escura armadilha sob a base da montanha silenciosa, e ele estava dentro dessa armadilha. Nada se movia em frente ou acima dele. Reinava uma quietude de morte. E não podia avançar mais.

Fez virar o barco, conduzindo-o cuidadosamente com encantamento e o seu remo de recurso, não fosse ele embater nas rochas submersas ou ficar enredado nas raízes e ramos estendidos sob a água, até ficar de novo de frente para o exterior. E estava prestes a erguer um vento que o levasse de volta para de onde viera, quando subitamente as palavras do esconjuro se gelaram nos seus lábios e sentiu o coração arrefecer dentro de si. Olhou para trás, por cima do ombro. A sombra estava atrás dele, dentro do barco.

Tivesse ele perdido um só instante e estaria perdido. Mas estava pronto e lançou-se a agarrar e manter a coisa que vacilava e tremia ali, ao alcance dos seus braços. Não havia feitiço que o ajudasse agora, mas apenas a sua própria carne, a sua própria vida, contra a não-vida. Sem pronunciar uma só palavra, atacou e o barco mergulhou e oscilou com o seu súbito virar-se e lançar-se em frente. Uma dor correu-lhe pelos braços acima, atingiu-lhe o peito, tirando-lhe a respiração, um frio gélido encheu-o todo e os seus olhos cegaram. Mas nas suas mãos que tinham agarrado a sombra nada havia — trevas, ar.

Cambaleou para a frente, agarrando-se ao mastro a impedir a queda, e a luz voltou aos seus olhos. Viu a sombra afastar-se arrepiadamente dele, diminuir de volume e logo expandir-se enormemente acima dele, acima da vela, por um instante. Depois, como fumo no vento, recuou e fugiu, informe, ao longo da água e em direção à entrada clara, entre as falésias.

Gued caiu de joelhos. O barquinho, remendado a sortilégios, mergulhou de novo a proa, reergueu-se, balouçou até se equilibrar e derivar por sobre as ondas inquietas. O feiticeiro acocorou-se dentro dele, dormente, vazio de pensamentos, lutando por respirar, até que por fim o frio da água, crescendo sob as suas mãos, o avisou de que tinha de cuidar do barco, pois os encantamentos que o mantinham inteiro estavam a enfraquecer. Ergueu-se, agarrando-se ao bordão que lhe servia de mastro, e refez a encantamento de prender o melhor que lhe foi possível. Estava gelado e exausto. As mãos e os braços doíam-lhe cruelmente e não havia poder nele. Desejou deitar-se ali, naquele sítio escuro onde montanha e mar se encontravam, e dormir, dormir, sobre o incansável ondular da água.

Não saberia dizer se aquele cansaço era um bruxedo lançado sobre ele pela sombra, ao fugir, ou se seria fruto da amarga frialdade do seu toque, ou meramente da fome, da falta de dormir e do dispêndio de forças. Mas lutou contra esse cansaço, forçando-se a erguer um ligeiro vento mágico para a vela e a seguir pelo escuro braço do mar, para onde a sombra fugira.

Todo o terror se fora. Toda a alegria se fora. Não se tratava já de uma caçada. Agora não era presa nem caçador. Pela terceira vez se tinham encontrado e tocado. Por sua própria vontade, voltara-se para a sombra, tentando agarrá-la com as suas mãos vivas. Não a mantivera presa, mas forjara entre ambos um laço, um elo sem qualquer ponto de ruptura. Não havia necessidade de perseguir a coisa, de lhe procurar o rasto, nem a sua fuga lhe serviria de nada. Nenhum deles podia escapar. Quando alcançassem o tempo e o local para o seu último encontro, encontrar-se-iam.

Mas até esse tempo, e em qualquer outro lugar que não esse, não mais voltaria a haver repouso ou paz para Gued, de noite ou de dia, em terra ou no mar. Sabia agora, e era duro sabê-lo, que a sua tarefa não era desfazer o que fizera, mas acabar o que começara.

Saiu velejando de entre as escuras falésias e sobre o mar era manhã alta e brilhante, com um brando vento a soprar de norte.

Bebeu a água que restava na bolsa de pele de foca e dirigiu o barco ao redor da ponta mais ocidental da ilha, chegando a uma vasta passagem entre aquela e uma segunda ilha que ficava para oeste. Reconheceu então o lugar, trazendo à memória cartas marítimas da Estrema Oriental. Eram as Mãos, um par de isoladas ilhas que estendem os seus dedos montanhosos para norte, na direção das Terras de Kargad. Navegou entre ambas e, enquanto a tarde se ensombrava com nuvens de tempestade vindas de norte, alcançou a costa no lado meridional da ilha mais a ocidente. Vira que ali existia uma pequena aldeia, acima da praia, onde um rio se despenhava em direção ao mar, e pouco se lhe dava o acolhimento que pudesse ter, desde que conseguisse água, o calor do lume e sono.

Os aldeões eram gente rude e tímida, atemorizados pelo bordão de feiticeiro, desconfiados de um rosto estranho, mas hospitaleiros para alguém que chegava sozinho, por sobre o mar, à frente de uma tempestade. Deram-lhe água e carne em abundância, o conforto do lume aceso e o conforto de vozes humanas falando a sua própria língua Hardic. E por fim, e ainda melhor, deram-lhe água quente, para lavar de si o frio e o sal do mar, e uma cama onde pôde enfim dormir.

 

                                       IFFISH

Gued passou três dias naquela aldeia da Mão Ocidental, a recuperar e aprontando um barco construído agora não já de encantamentos e despojos do mar, mas de boa madeira, bem pregada e calafetada, com o seu próprio mastro e vela, para lhe permitir navegar facilmente e dormir quando precisasse. Como a maioria dos barcos do Norte e das Estremas, era construído com tábuas sobrepostas e presas umas às outras com cavilhas para o fortalecer contra a fúria do mar alto. Era robusto e bem estruturado em todas as suas partes. Gued reforçou-lhe a madeira com encantamentos profundamente tecidas, pois pensava que talvez tivesse de ir longe naquele barco. Fora concebido para levar a bordo dois ou três homens e o velho que fora seu dono afirmou que ele e os seus irmãos tinham atravessado com ele mar alto e mau tempo e a embarcação sempre se comportara galhardamente.

Ao contrário do arguto pescador de Gont, este velho, por temor e respeito pelos seus poderes mágicos, teria dado o barco a Gued. Mas este pagou-lhe à boa maneira de feiticeiro, curando-lhe os olhos das cataratas que estavam prestes a cegá-lo. Então o velho, regozijando-se, disse-lhe:

— Demos ao barco o nome de Maçarico, mas chama-lhe tu Vê-longe, pinta-lhe olhos aos lados da proa e a minha gratidão irá olhando por ti dessa madeira cega, livrando-te de rochedos e recifes. Porque eu já esquecera quanta luz há no mundo até que tua mão deste de novo.

Gued fez ainda outros trabalhos nesses dias passados na aldeia, sob as íngremes florestas da Mão, à medida que o poder voltava a ele. Esta gente era parecida com a que ele conhecera em rapaz, no Vale do Norte de Gont, embora mais pobres ainda que esses. Entre eles sentia-se em casa, como nunca se sentiria nos palácios dos abastados, e conhecia-lhes as amargas necessidades sem precisar de perguntar. Assim, lançou encantamentos de curar e defender sobre crianças aleijadas ou doentes, e de crescer e prosperar sobre os rebanhos dos aldeões, rebanhos de cabras e ovelhas só pele e osso. Apôs a runa Simn em fusos e teares, em remos de barcos, em utensílios de bronze e de pedra que lhe trouxeram, para que cumprissem bem a sua tarefa. E inscreveu na trave-mestra das cabanas a runa Pirr que protege a casa e quem lá vive contra o fogo, o vento e a loucura.

Quando o seu barco, Vê-longe, ficou pronto e bem fornecido de água e peixe seco, permaneceu ainda mais um dia na ilha para ensinar ao seu jovem chantre o Feito de Morred e o Lai Havnoriano. É muito raro que algum navio do Arquipélago faça escala nas Mãos, pelo que canções compostas cem anos antes eram novidades para aqueles aldeões e ansiavam por ouvir cantos acerca de heróis. Estivesse Gued livre do que se lhe impusera e alegremente ali teria ficado durante uma semana ou um mês a cantar-lhes o que sabia, para que os grandes cantos fossem conhecidos numa nova ilha. Mas não era livre de o fazer e, na manhã seguinte, fez-se às ondas, dirigindo-se diretamente para sul, por sobre os vastos mares da Estrema. Porque para sul se dirigira a sombra. Para o saber não necessitava de lançar nenhum sortilégio de achar. Sabia-o apenas, tão seguramente como se houvesse um fino cordão a desenrolar-se entre ambos e a mantê-los ligados, por mais milhas e mares e terras que entre eles houvesse. Por isso seguiu seguro, sem pressa e sem esperança, no caminho que lhe era forçoso seguir, e o vento de Inverno impelia-o para sul.

Um dia e uma noite navegou pelo mar solitário e, no segundo dia, chegou a uma pequena ilha que lhe disseram chamar-se Vemish. As gentes no pequeno porto olhavam-no de soslaio e em breve o seu bruxo acorreu apressadamente. Olhou atentamente para Gued e logo, com uma vênia, disse numa voz a um tempo pomposa e aduladora:

— Senhor Feiticeiro! Perdoa a minha temeridade e faz a honra de aceitar de nós tudo o que necessites para a tua viagem: alimentos, bebida, pano de velas, corda. A minha filha está neste preciso momento a levar para o teu barco um par de galinhas acabadas de assar. Porém, acho prudente que prossigas o teu caminho e partas daqui tão depressa quanto aches conveniente. As pessoas estão algo consternadas e temerosas. É que não há muito, no dia antes de ontem foi avistada uma pessoa que atravessava a nossa humilde ilha, a pé, de norte para sul, e não se vira barco algum que a trouxesse a bordo, nem se viu barco algum que com ela partisse, e não se via que ela projetasse sombra. E aqueles que se cruzaram com essa pessoa dizem-me que tinha algumas semelhanças contigo.

Perante isto, Gued fez também uma vênia e, voltando costas, regressou às docas de Vemish e logo se fez ao mar, sem sequer olhar para trás. Não ganharia nada em assustar os ilhéus nem em fazer do seu mágico um inimigo. Preferia voltar a dormir em pleno mar e refletir sobre as notícias que o mágico lhe dera e o tinham deixado não pouco perplexo.

O dia chegou ao fim e a noite passou, com uma chuva fria a sussurrar sobre as ondas, e passou também o cinzento amanhecer. O suave vento norte continuava a impelir o Vê-longe. De tarde, a chuva e a névoa foram levadas pelo vento e o Sol pôde brilhar de quando em quando. E, já perto do fim do dia, Gued viu, mesmo a atravessar-se no seu rumo, os baixos montes azulados de uma grande ilha, clara sob a luz de Inverno que ia esmorecendo. O fumo das lareiras, azul, pegava-se aos telhados de lousa das pequenas vilas que se estendiam entre os montes, um cenário bem agradável depois da vastidão sempre igual do mar.

Gued seguiu uma frota de pesca que regressava ao porto e, subindo as ruas da vila no entardecer dourado do Inverno, foi dar com uma estalagem chamada O Harrekki, onde a luz do lume, a cerveja leve e as costeletas de carneiro grelhadas lhe aqueceram o corpo e a alma. Sentados à mesa da estalagem havia alguns outros viajantes, comerciantes da Estrema Leste, mas a maioria dos homens presentes eram habitantes da vila que ali tinham vindo em busca de cerveja, novidades e conversa. Não eram gente rude e tímida como os pescadores das Mãos, mas verdadeiros vilões, vivos e ponderados. Certamente perceberam que Gued era um feiticeiro, mas nada se disse a esse respeito, a não ser a referência feita pelo estalajadeira em conversa (e se ele era conversador) ao fato de que aquela vila, Ismay, tinha a sorte de compartilhar com outras vilas da ilha um inestimável tesouro, um grande feiticeiro treinado na Escola de Roke, que recebera o seu bordão das próprias mãos do Arquimago e que, embora ausente da vila naquele momento, vivia na sua casa ancestral, ali mesmo em Ismay, que, por conseguinte, não tinha necessidade de qualquer outro praticante das Grandes Artes.

— Como se costuma dizer, dois bordões na mesma vila ainda acabam à bordoada, pois não é assim, Senhor? — acrescentou ainda o estalajadeira, sorridente e bonacheirão.

Gued ficou assim a saber que como feiticeiro andante, dos que pretendem usar a magia como meio de vida, não era ali desejado. Tivera, pois, a rejeição sem rodeios em Vemish e agora aquela, mais branda, em Ismay, e perguntava-se onde estariam os modos gentis da Estrema Leste, de que lhe tinham falado. A ilha onde estava era Iffish, e nela nascera o seu amigo Vetch. Mas não lhe parecia um lugar tão hospitaleiro como Vetch o descrevera.

E no entanto bem via como os rostos eram, na verdade, amigáveis. O que se passava era que aquela gente pressentia o que ele sabia ser verdade. Que ele estava posto à parte deles, desligado deles à força, que levava sobre si uma maldição e tinha de seguir uma coisa de treva. Ele era como um vento frio perpassando através da sala iluminada pelo lume, uma ave negra trazida de terras estranhas por uma tempestade. Quanto mais depressa voltasse a partir, levando consigo o seu destino maléfico, tanto melhor para aquela gente.

— Vou numa demanda. — disse ao estalajadeira. — Ficarei apenas uma ou duas noites. — Havia tristeza no seu tom de voz.

O estalajadeira, lançando um olhar ao grande bordão de teixo encostado a um canto, nada disse desta feita, mas encheu a tigela de Gued com cerveja castanha até a espuma escorrer para fora.

Gued sabia que devia passar apenas aquela noite em Ismay. Não era bem vindo ali, nem em parte alguma. Tinha de seguir para onde estava obrigado a ir. Mas estava farto do mar gélido e vazio, sem uma voz que lhe falasse. Disse a si próprio que passaria aquele dia em Ismay e que de manhã partiria. Dormiu, pois, até tarde. Ao acordar, caía uma neve fina. Vagueou ociosamente pelas ruelas e congostas da vila, só para ver as pessoas entregues aos seus afazeres. Viu crianças embrulhadas em capas de peles, brincando aos castelos de neve e fazendo bonecos de neve. Ouviu bisbilhoteiras tagarelando pelas portas abertas, de um lado para o outro da rua. Observou o bronzeiro no seu trabalho e um rapazinho de cara avermelhada a suar no esforço de bombear ar para as mangas do fole. Através de janelas, por onde se coava uma claridade esbatida entre dourado e vermelho, enquanto o curto dia ia escurecendo, viu mulheres a fiar, voltando-se de vez em quando para falarem ou sorrirem ao marido, a um filho, no doce calor dentro de casa. Gued viu todas essas coisas de fora e separado delas, sozinho, e o coração pesava-lhe no peito, embora não quisesse admitir para si próprio que estava triste. Ao cair da noite, permaneceu ainda nas ruas, relutante em regressar à estalagem. Ouviu um homem e uma rapariga a falarem jovialmente um com o outro, ao passarem por ele rua abaixo em direção à praça principal, e de súbito voltou-se, porque reconhecera a voz do homem.

Seguiu-os e alcançou-os, pondo-se ao lado deles na luz de fim de crepúsculo, avivada apenas pelo brilho distante de lanternas acesas. A rapariga deu um passo atrás, mas o homem olhou-o de frente e depois ergueu de repelão o bordão que trazia, colocando-o entre eles como uma barreira a afastar a ameaça de um ato maldoso. E isso era mais do que Gued podia suportar. A sua voz tremeu ao dizer:

— Pensei que me reconhecerias, Vetch.

Mesmo então, Vetch hesitou ainda por um momento.

— É claro que te conheço — disse. E, baixando o bordão, apertou a mão de Gued e rodeou-lhe os ombros com um abraço. — É claro que te conheço! Bem-vindo, meu amigo, bem-vindo! Que modo tão triste de te acolher, como se fosses um fantasma a surgir-me por trás... e eu que tenho esperado por ti, que te tenho procurado...

— Então és tu o feiticeiro de que tanto se gabam em Ismay? Calculei...

— Ah, sim, sou o feiticeiro deles. Mas escuta-me, deixa-me dizer por que foi que não te reconheci, rapaz. Talvez te tenha procurado com demasiado afinco. Há três dias atrás... Estavas aqui, em Iffish, há três dias atrás?

— Cheguei ontem.

— Há três dias, numa rua de Quor, a aldeia que fica ali em cima nos montes, vi-te. Quer dizer, vi uma representação de ti, ou uma imitação de ti, ou simplesmente um homem que se parece contigo. Ia à minha frente, a sair da povoação, e precisamente quando o notei, virou uma curva do caminho. Chamei mas não tive resposta, segui-o e não encontrei ninguém. Nem rastos, mas o chão estava gelado, duro. Foi uma coisa muito estranha e agora, ao ver-te sair assim das sombras, pensei que estava outra vez a enganar-me. Perdoa-me, Gued...

Pronunciara o nome-verdadeiro de Gued muito suavemente, de modo a que a rapariga, que estava à espera a pequena distância atrás dele, o não ouvisse.

Gued falou igualmente em voz baixa para usar o nome-verdadeiro do amigo:

— Não tem importância, Estarriol. Mas este sou eu e estou muito contente por te ver...

Vetch terá talvez ouvido mais que satisfação na voz de Gued. Ainda não tirara o braço dos ombros de Gued e disse-lhe então, na Verdadeira Fala:

— Vens da escuridão e perturbado, Gued, mas mesmo assim a tua vinda alegra-me.

Depois prosseguiu em Hardic, com o seu sotaque da Estrema:

— Anda, vem para casa conosco, pois para casa vamos, é tempo de sair do escuro! Esta é a minha irmã, a mais nova da família, mais bonita que eu, como se vê, mas muito menos esperta. Mil-em-rama lhe chamam, como a planta. Mil-em-rama, este é o Gavião, o melhor de todos nós e meu amigo.

— Senhor Feiticeiro — cumprimentou-o a rapariga e, cora muito decoro, fez pequenas reverências com a cabeça e tapou os olhos com as mãos em sinal de respeito, como é costume das mulheres na Extrema Leste. Quando não estavam ocultos, os seus olhos eram límpidos, tímidos e curiosos. Teria talvez catorze anos de idade e era escura de pele como o irmão, mas muito delgada e esbelta. Agarrado à sua manga, com duas asas e garras, trazia um dragão que não seria maior que a mão dela.

Seguiram juntos pela rua escura e Gued comentou enquanto caminhavam:

— Em Gont diz-se que as mulheres gontianas são corajosas, mas nunca ali vi nenhuma donzela que usasse um dragão como pulseira.

A isto, Mil-em-rama riu-se e logo retorquiu:

— Isto é só um harrekki. Não há harrekkis em Gont?

Depois ficou envergonhada por momentos e voltou a tapar os olhos.

— Não, nem dragões. Então essa criatura não é um dragão?

— Um pequenino, que vive nos carvalhos e se alimenta de vespas, minhocas e ovos de pardal. Não cresce mais que isto. Oh, Senhor, o meu irmão falou-me tantas vezes do bicho que tinhas, aquele selvagem, o otaque... Ainda o tens?

— Não. Já não.

Vetch voltou-se para ele como para fazer uma pergunta, mas reteve-se e nada perguntou até muito mais tarde, quando ambos se encontraram sozinhos, à beira do buraco do lume, em pedra, da casa de Vetch.

Se bem que fosse o feiticeiro principal de toda a ilha de Iffish, Vetch escolhera para seu lar Ismay, a pequena vila onde nascera, vivendo com o irmão e a irmã mais novos. O pai vivera do comércio marítimo e fora pessoa de alguns meios, sendo a casa espaçosa e bem construída, com grande abundância de louças, tecidos finos e vasilhas de bronze e latão em prateleiras e armários trabalhados. A um canto da sala principal encontrava-se uma grande harpa taoniana, a outro, um tear para tapeçaria de Yarrow, com a armação embutida de marfim. Ali, Vetch, apesar das suas calmas e simples maneiras, era não só um poderoso feiticeiro, mas ainda um senhor na sua própria casa. Havia um par de velhos servidores, prosperando com a fortuna da casa, o irmão, um moço jovial, e Mil-em-rama, rápida e silenciosa como um peixinho, que serviu a ceia aos dois amigos, comeu com eles, ouvindo-os falar, e depois se retirou discretamente para o seu quarto. Ali, todas as coisas tinham boas fundações, eram pacíficas e seguras. E Gued, olhando em redor de si para a sala iluminada pelo fogo, disse:

— É assim que um homem deve viver. E suspirou.

— Bom, é uma maneira — disse Vetch. — Há outras. Agora, rapaz, diz-me, se podes, que coisas se aproximaram de ti e de ti se afastaram desde a última vez que falamos, há dois anos. E diz-me em que jornada vais, pois bem vejo que, desta vez, não irás ficar muito tempo conosco.

Gued disse-lhe e, quando ele acabou, Vetch ficou por longo tempo silencioso, a ponderar o que ouvira. Depois disse:

— Irei contigo, Gued.

— Não.

— Acho que sim.

— Não, Estarriol. Isto não é tarefa nem desgraça que te incumba. Sozinho comecei este percurso maléfico, sozinho lhe darei fim. Não quero que mais ninguém tenha de sofrer por isso e tu menos que qualquer outro, tu que tentaste travar a minha mão e impedir-me a ação maléfica logo no início de tudo isto, Estarriol...

— O orgulho foi sempre dono do teu espírito — disse-lhe o amigo sorrindo, como se falassem de algum assunto de somenos importância para ambos. — Agora, pensa. É a tua demanda, certamente, mas se a demanda não for a bom fim, não deveria haver um outro contigo que trouxesse aviso para o Arquipélago? Porque, então, a sombra teria um poderio terrível. E se derrotares a coisa, não deveria estar outro contigo que viesse relatar tudo ao Arquipélago, para que o Feito fosse conhecido e celebrado em canto? Sei que não posso ser de qualquer utilidade para ti. Mas, mesmo assim, penso que devia ir contigo.

Instado desta maneira, era impossível a Gued recusar o amigo, mas disse:

— Não devia ter ficado aqui hoje. Sabia-o, mas fiquei.

— Os feiticeiros não se encontram por acaso, rapaz — disse Vetch. — E afinal, como há pouco disseste, eu estava contigo no princípio da tua jornada. Está, pois, certo que a acompanhe até ao final.

Lançou mais lenha no lume e, durante algum tempo, deixaram-se ficar a olhar para o fogo. Por fim, Gued quebrou o silêncio para dizer:

— Há alguém de quem não voltei a ouvir falar desde aquela noite no Cabeço de Roke e, na Escola, não tive coragem para perguntar por ele. Por Jaspe, quero dizer.

— Nunca chegou a receber o seu bordão. Deixou Roke nesse mesmo Verão e foi para a Ilha de O, para ser mágico na casa do Senhor, em Otokne. Para além disso, não sei mais nada acerca dele.

Voltaram a ficar em silêncio, olhando o fogo e gozando (já que a noite era agreste) o calor nas pernas e no rosto, sentados no rebordo largo da cova do fogo, com os pés quase dentro das brasas.

Por fim, em voz muito baixa, Gued disse:

— Há uma coisa que temo, Estarriol. E temo-a mais se fores comigo quando eu partir. Lá, nas Mãos, no fundo da calheta voltei-me contra a sombra, que estava ao alcance das minhas mãos, e agarrei-a... tentei agarrá-la. E não havia nada que eu pudesse segurar. Não foi possível derrotá-la. Fugiu, segui-a. Mas isso pode acontecer e voltar a acontecer outra vez. Não tenho poder sobre a coisa. Não haverá talvez morte nem triunfo no final desta demanda, nada para ser cantado, nenhum fim. Pode acontecer que eu tenha de passar a minha vida a correr de mar em mar e de terra em terra, numa infindável e vã empresa, a sombra de uma demanda.

— Arreda! — exclamou Vetch, ao mesmo tempo que voltava a mão esquerda no gesto que afasta a má possibilidade de que se falou. Apesar de todos os seus sombrios pensamentos, aquilo trouxe um sorriso aos lábios de Gued, pois é um encantamento mais própria de crianças que de um feiticeiro. Em Vetch continuava a haver aquela grande inocência de camponês. E, no entanto, ele era também penetrante, sagaz, com a capacidade de ir direito ao cerne de qualquer questão. E Vetch voltou a falar. — Esse é um pensamento soturno e, espero bem, falso. Julgo, pelo contrário, que aquilo que vi começar, posso ver acabar. De alguma maneira, aprenderás a sua natureza, o seu ser, o que aquilo é, e assim o chegarás a agarrar, a sujeitar, a vencer. Se bem que essa seja uma bem difícil questão, o que aquilo poderá ser... Aí está uma coisa que me preocupa, não conseguir percebê-la. Ao que parece, a sombra tomou agora a tua forma, ou pelo menos uma espécie de semelhança contigo, tal como a viram em Vemish e como eu a vi aqui em Iffish. Como pode isso ser? E porquê? E por que é que nunca aconteceu no Arquipélago?

— Costuma dizer-se: «As regras não são as mesmas, nas Estremas.»

— Pois dizem e é bem verdade, posso afirmá-lo. Há bons encantamentos que eu aprendi em Roke e que aqui não têm poder ou saem todas ao contrário. E há outras que resultam aqui e de que nem ouvi falar em Roke. Cada terra tem os seus próprios poderes e quanto mais nos afastamos das Terras Interiores, tanto menos podemos avaliar esses poderes e como dominá-los. Mas não penso que tenha sido só isso a produzir esta mudança na sombra.

— Nem eu. Penso que, quando deixei de fugir e me voltei contra ela, essa ação da minha vontade sobre ela deu-lhe forma, embora essa mesma ação a impedisse de se apoderar da minha força. Todas as minhas ações encontram eco nela. É a minha criatura.

— Em Osskil disse o teu nome e assim impediu qualquer feitiçaria que pudesses ter usado contra ela. Mas então, nas Mãos, por que não voltou a fazer o mesmo?

— Não sei. Talvez seja só da minha fraqueza que ela consegue a força para falar. E é quase com a minha língua que fala, pois senão como teria sabido o meu nome? Sim, como teria sabido o meu nome? Tenho dado voltas à cabeça com isto, por todos os mares que naveguei desde que saí de Gont e não encontro resposta. Talvez ela não consiga falar de todo, na sua própria forma ou ausência dela, mas só com uma língua de empréstimo, como um gebbeth. Não sei.

— Então terás de redobrar de cuidado se a voltares a encontrar em forma de gebbeth.

— Creio... — retorquiu Gued, estendendo as mãos para o lume como se um frio interior o tivesse percorrido — creio que não. Está agora ligada a mim como eu a ela. Não pode libertar-se de mim o suficiente para aprisionar qualquer outro homem e esvaziá-lo de vontade e de ser, como fez a Skiorh. Pode possuir-me. Se alguma vez eu voltar a enfraquecer e a tentar escapar-lhe, se se quebrar o elo entre nós, possuir-me-á. E, no entanto, quando a segurei com toda a força que tinha, tornou-se um mero vapor e escapou-me... Portanto, voltará a fazê-lo e, contudo, não poderá realmente escapar, pois posso sempre voltar a encontrá-la. Estou ligado àquela coisa imunda e cruel e sempre o estarei, a não ser que consiga aprender a palavra que a domina, o seu nome.

Cismando, o amigo perguntou:

— Mas há nomes no reino das sombras?

— Guencher, o Arquimago, disse-me que não. Mas a opinião do meu mestre Óguion é diferente.

— «Infindáveis são as discussões dos magos» — citou Vetch, com um sorriso que tinha muito de esgar.

— Aquela que servia o Antigo Poder em Osskil jurou que a Pedra me diria o nome da sombra, mas a isso dou pouca fé.

No entanto, houve também um dragão que se ofereceu para trocar esse nome pelo seu, para se livrar de mim. E tem-me passado pela cabeça que, onde os magos discutem, talvez os dragões sejam sábios.

— Sábios, sim, mas cruéis. Mas que dragão vem a ser esse? Não me disseste que tinhas andado a falar com dragões desde a última vez que nos vimos.

Ficaram a conversar até tarde, nessa noite, e embora voltassem sempre ao amargo assunto do que Gued tinha pela frente, o prazer de estarem juntos a tudo se sobrepôs, porque o afeto entre ambos era forte e inabalável, e nem o tempo nem o acaso poderiam alterá-lo.

De manhã, Gued acordou sob o teto do amigo e, ainda ensonado, sentiu um grande bem-estar, como se se encontrasse num lugar totalmente defendido de perigos e males. Durante todo o dia, um pouco dessa paz sonhada permaneceu colado aos seus pensamentos e encarou-o, não como um bom prenúncio, mas como uma oferta. Parecia-lhe quase evidente que, ao deixar aquela casa, iria também deixar o último abrigo que lhe era dado conhecer e assim, enquanto aquele pequeno sonho durasse, seria feliz nele.

Tendo assuntos a tratar antes de partir de Iffish, Vetch dirigiu-se a outras aldeias da ilha com o rapaz que o servia como aprendiz de feiticeiro. Gued ficou com Mil-em-rama e o irmão desta, chamado Marre, nome que ali se dá à torda-mergulheira, e que em idade ficava entre ela e Vetch. Não parecia ser muito mais que um rapazinho, porque não havia nele qualquer dom ou sinal de poder mágico e nunca estivera em lado algum, a não ser Iffish, Tok e Holp, levando uma vida fácil e sem problemas. Gued observava-o com espanto e alguma inveja, tal como o rapaz observava Gued. Tanto para este como para Marre parecia muito estranho que o outro, sendo tão diferente, tivesse, no entanto, a mesma idade, dezenove anos. Gued maravilhava-se com o fato de alguém que já vivera dezenove anos poder ser tão descuidado. Ao admirar o rosto agradável e jovial de Marre, sentia-se pessoalmente esgalgado e desagradável à vista, sem adivinhar sequer que Marre lhe invejava até as cicatrizes que lhe marcavam o rosto, pensando que seriam os vestígios das garras de um dragão e a verdadeira runa e sinal de um herói.

Os dois jovens eram, pois algo tímidos um com o outro mas, quanto a Mil-em-rama, em breve perdeu o temor respeitoso que sentira por Gued, na medida em que estava na sua própria casa e como senhora dela. Gued era muito simpático para com ela e muitas foram as perguntas que ela lhe fez, porque Vetch, lamentava-se ela, nunca lhe contava nada. Manteve-se muito atarefada durante aqueles dois dias, fazendo bolos secos de trigo para os viajantes levarem, embrulhando peixe e carne secos e outras vitualhas do mesmo gênero para aprovisionarem o barco, até que Gued lhe disse que parasse, pois não estava nos seus planos navegar sem paragem até Selidor.

— Onde fica Selidor?

— Muito longe daqui, na Estrema Oeste, onde os dragões são tão comuns como ratos.

— Então o melhor é ficar na Estrema Leste, onde os dragões são pequenos como ratos. Então aí tens a tua carne. Tens a certeza de que chega? Escuta, eu não percebo. Tu e o meu irmão são dois grandes feiticeiros. Acenam com a mão, resmungam umas palavras e a coisa aparece feita. Então por que é que ficam com fome? No mar, quando chega a hora da ceia, por que é que não dizem «Empada de carne!» e a empada aparece e vocês comem-na?

— Bem, podíamos fazer isso. Mas não temos grande vontade de comer as palavras, como se costuma dizer. «Empada de carne!» não é mais que palavras, no fim de contas... Podemos torná-la bem cheirosa, saborosa e até capaz de nos encher, mas continua a ser palavras. Engana o estômago e não dá forças a quem tem fome.

— Então os feiticeiros não são cozinheiros — interpôs Marre, que estava sentado do outro lado da lareira da cozinha, a gravar a tampa de uma caixa de madeira preciosa. Era, de seu ofício, entalhador, se bem que não muito zeloso.

— Nem os cozinheiros são feiticeiros, ai de mim — disse Mil-em-rama, pondo-se de joelhos a ver se a última fornada de bolos que coziam nos tijolos da lareira já estaria a tomar cor. — Mas ainda não percebo, Gavião. Já vi o meu irmão, e até o aprendiz, a iluminar um sítio escuro só por pronunciarem uma palavra. E a luz resplandece, é brilhante, não é uma palavra mas uma luz autêntica que nos pode alumiar os passos.

— Sim — respondeu Gued. — A luz é um poder. Um grande poder pelo qual existimos, mas que existe para além das nossas necessidades, em si própria. A luz do Sol e a luz das estrelas são tempo e tempo é luz. Sob a luz do Sol, nos dias e nos anos, a vida existe. Num lugar escuro, a vida pode invocar a luz, dizendo o seu nome. Mas, geralmente, quando vês um feiticeiro invocar ou chamar pelo nome alguma coisa, algum objeto que faz aparecer, isso já não é o mesmo. Não está a invocar um poder maior que ele próprio, e o que aparece é apenas uma ilusão. Invocar uma coisa que não se encontra de modo algum ali, chamá-la dizendo o seu nome-verdadeiro, isso é grande mestria e não se usa levianamente. Nem meramente por causa da fome. Mil-em-rama, o teu dragãozinho roubou um bolo.

Mil-em-rama estivera tão atenta a ouvir, com os olhos pregados em Gued enquanto ele falava, que não vira o seu harrekki descer sorrateiramente do seu quente poleiro na pega da chaleira suspensa em cima do fogo e deitar as garras a um bolo de trigo maior que ele próprio. A rapariga agarrou na criaturinha coberta de escamas, colocou-a num joelho e começou a dar-lhe pedacinhos de bolo, enquanto ponderava o que Gued lhe dissera.

— Portanto, tu nunca irias invocar uma empada de carne verdadeira, não fosses perturbar aquilo de que o meu irmão está sempre a falar... esqueço-me do nome...

— Equilíbrio — replicou Gued sobriamente, pois bem via que ela estava a tratar o assunto muito a sério.

— Sim, mas quando naufragaste, saíste daquele lugar num barco que era quase todo feito de encantamentos e ele não metia água. Também era uma ilusão?

— Bem, em parte era uma ilusão porque não me sinto seguro vendo o mar através de grandes buracos no meu barco, de maneira que os remendei tendo em vista o aspecto da coisa. Mas a robustez do barco não era ilusão nem invocação. Era antes feita com outro gênero de arte, um encantamento de prender. A madeira estava presa num todo, numa coisa inteira, um barco. O que é um barco senão uma coisa que não deixa entrar água?

— Já tive de tirar água de alguns que deixavam — disse Marre.

— Pois, e o meu também deixava, a não ser que eu estivesse constantemente a refazer a encantamento.

Debruçou-se do seu lugar ao canto, tirou um bolo de cima dos tijolos e o fez saltar nas mãos.

— Agora também eu roubei um bolo.

— Então queimaste os dedos. E quando estiveres morto de fome nessas águas ermas, entre as ilhas lá de longe, vais pensar nesse bolo e dizer: «Ah se eu não tivesse roubado aquele bolo, bem o podia comer agora, ai de mim!» E eu vou comer o do meu irmão que é para ele ficar a morrer de fome contigo.

— E assim se mantém o Equilíbrio — fez notar Gued enquanto pegava num bolo quente e meio cozido e se punha a mastigá-lo, o que a fez soltar uma risada e engasgar-se. Mas logo, pondo-se de novo muito séria, disse:

— Só queria perceber realmente o que me dizes. Sou muito estúpida.

— Irmãzinha — disse Gued —, eu é que não tenho jeito para explicar. Se tivéssemos mais tempo...

— Vamos ter mais tempo — retorquiu Mil-em-rama. — Quando o meu irmão voltar para casa, voltarás com ele e ficas cá pelo menos durante algum tempo, não ficas?

— Se puder — respondeu ele mansamente.

Houve uma pequena pausa. Depois Mil-em-rama perguntou, olhando o harrekki que trepava de regresso ao seu poleiro:

— Diz-me só uma coisa, se não for um segredo. Que outros grandes poderes existem, além da luz?

— Não é segredo. Todo o poder é apenas um na sua fonte e no seu final, creio eu. Anos e distâncias, estrelas e candeias, água e vento e feitiçaria, a perícia na mão de um homem e a sabedoria na raiz de uma árvore, todos surgem em conjunto. O meu nome, o teu e o nome-verdadeiro do Sol, ou uma nascente de água, ou unia criança que não nasceu ainda, tudo são sílabas da grande palavra que está a ser muito lentamente pronunciada pelo brilho das estrelas. Não há outro poder. Não há outro nome.

Parando o movimento da faca sobre a madeira que estava a trabalhar, Marre perguntou:

— Então e a morte?

A rapariga escutava atentamente, o negro cabelo a brilhar na cabeça inclinada.

— Para que uma palavra seja pronunciada — respondeu Gued lentamente — é necessário que haja silêncio. Antes e depois. — E logo, levantando-se, acrescentou: — Mas eu não tenho o direito de falar destas coisas. A palavra que por direito me cabia dizer, disse-a mal. Melhor é que me reduza ao silêncio. Não voltarei a falar. Talvez não haja verdadeiro poder senão a treva.

E, deixando o lugar junto ao lume e o calor da cozinha, envergou o manto e saiu sozinho para as ruas, sob o chuvisco frio do Inverno.

— Há uma maldição sobre ele — disse Marre, a vê-lo sair, com uma expressão algo temerosa no rosto.

— Julgo que esta viagem que ele vai empreender o pode conduzir à morte — disse a rapariga —, e ele teme isso, mas no entanto vai.

Ergueu a cabeça como se observasse, através das chamas vermelhas do lume, o percurso de um barco que chegara sozinho sobre os mares de Inverno e partira de novo, singrando os mares solitários. Depois, por um momento, os seus olhos encheram-se de lágrimas, mas nada mais disse.

Vetch regressou a casa no dia seguinte e foi apresentar as suas despedidas aos notáveis de Ismay, que não tinham o mínimo desejo de o ver partir para o mar no meio do Inverno, numa demanda mortal que nem sequer era sua. Mas por muito que o censurassem, não havia absolutamente nada que pudessem fazer para o impedir. Já farto daqueles anciãos que o importunavam com as suas críticas, Vetch disse-lhes:

— Sou vosso, pela origem, pelos costumes e pelas obrigações a que me comprometi perante vós. Sou o vosso feiticeiro. Mas já é tempo que recordeis que, embora eu seja um servidor, não sou o vosso servo. Quando estiver livre para voltar, voltarei. Até lá, adeus.

Ao nascer do dia, com a luz acinzentada a erguer-se do mar para leste, os dois jovens partiram no Vê-longe do porto de abrigo de Ismay, erguendo sob o vento norte uma vela castanha de um tecido bem forte. No cais, Mil-em-rama ficou a vê-los partir, tal como as esposas e as irmãs ficam em todas as costas de Terramar, vendo os seus homens partir para o mar, e não acenam com as mãos, nem erguem a voz em adeus, mas ficam de pé, recolhidas nos seus mantos com capuz, cinzentos ou castanhos, nessas costas que, vistas do barco, se vão tornando cada vez mais pequenas, enquanto cresce a extensão de água entre este e aquelas.

 

                                       O ALTO MAR

Já o porto lhes desaparecera da vista e os olhos pintados na proa do Vê-longe, molhados pelas vagas, abriam-se sobre mares cada vez mais vastos e desolados. Em dois dias e duas noites os companheiros fizeram a travessia entre Iffish e a Ilha de Soders, percorrendo cem milhas de mau tempo e ventos contrários. Só por breve tempo ali aportaram, o suficiente para voltar a encher um odre de água e comprar um tecido alcatroado que protegesse alguns dos seus haveres, reunidos no fundo do barco sem tombadilho, da água salgada e da chuva. Não tinham tratado antes disso porque, em geral, um feiticeiro ocupa-se desses pequenos pormenores por meio de sortilégios, o gênero mais inferior e comum de sortilégios. Na realidade, pouca mais magia é precisa para tornar doce a água do mar e assim evitar a maçada de transportar água potável. Mas Gued parecia muito pouco inclinado a usar a sua arte ou a deixar que Vetch o fizesse. Limitou-se a dizer «É melhor não», e o amigo não discutiu nem fez perguntas. Porque, enquanto o vento lhes enfunava a vela, ambos tinham sentido um muito mau prenúncio, frio como a invernia. Porto de abrigo, cais, paz, segurança, tudo isso ficara para trás. Tinham-lhe voltado as costas. Seguiam agora uma via em que todos os acontecimentos eram perigosos e nenhum ato era destituído de significado. Na rota que tinham tomado, pronunciar a menor dos encantamentos poderia mudar o acaso, abalar o equilíbrio do poder e dos fados, pois dirigiam-se agora para o próprio centro desse equilíbrio, para o lugar onde luz e treva se encontram. E aqueles que assim viajam não pronunciam uma única palavra imponderadamente.

Fazendo-se de novo ao mar e rodeando as costas de Soders, onde campos brancos de neve se perdiam ao longe nos montes enevoados, Gued dirigiu o barco de novo para sul e entraram em águas onde os grandes comerciantes do Arquipélago nunca vinham, a orla mais longínqua da Estrema.

Vetch não fez qualquer pergunta acerca da rota que seguiam, sabendo que Gued não a escolhia, seguindo apenas para onde tinha de seguir. Com a Ilha de Soders a tornar-se pequena e indistinta atrás deles, as ondas silvando e batendo sob a proa e a grande planície cinzenta da água a rodeá-los totalmente até ao horizonte, Gued perguntou:

— Que terras ficam para a frente, seguindo este rumo?

— Mesmo na direção sul, não há quaisquer terras. Para sudeste, percorre-se um longo caminho e pouco se encontra. Pelimer, Kornay, Gosk e Astowell, a que também chamam Última Terra. Para além disso, é o Alto Mar.

— E para sudoeste?

— Rolameny, que é uma das nossas ilhas da Estrema Leste, e algumas ilhotas em redor. Depois nada até chegarmos à Estrema Sul e aí tens Rud e Tume, mais a Ilha da Orelha onde os homens não vão.

— Nós, talvez — disse Gued, amargamente.

— Preferia que não — contrapôs Vetch. — Dizem que é uma bem desagradável parte do mundo, cheia de ossadas e portentos. Os marinheiros afirmam que das águas junto às ilhas da Orelha e de Além-Sorr se vêem estrelas que não podem ser vistas em mais lado nenhum e a que nunca foram dados nomes.

— Sim, havia um marinheiro no barco que me levou a Roke pela primeira vez que falava disso. E contava histórias do Povo das Jangadas nas zonas mais afastadas da Estrema Sul que só vão a terra uma vez por ano, cortar grandes toros para as suas jangadas, e no resto do ano, todos os seus meses e dias, vogam à deriva nas correntes do oceano, fora da vista de qualquer terra. Gostaria de ver essas aldeias de jangadas.

— Pois eu não — retorquiu Vetch, arreganhando os dentes. — Dá-me antes terra e gente de terra. O mar no seu leito e eu no meu...

— Quem me dera ter podido ver todas as cidades do Arquipélago — disse Gued, segurando o cabo de comandar a vela, olhando as ermas vastidões cinzentas à frente deles. — Havnor, no coração do mundo, e Éa, onde os mitos nasceram, e Shelieth das Fontes, em Way. Todas as cidades e as grandes terras. E as pequenas, as estranhas terras das Estremas Exteriores, também essas.

Navegar direto pelo Passo do Dragão, lá longe, para oeste. Ou para norte, até às massas flutuantes de gelo e daí para a Terra de Hogen. Dizem alguns que é uma terra maior que todo o Arquipélago, outros que se trata apenas de meros recifes e rochedos com gelo entre eles. Ninguém sabe. Gostaria de ver as baleias nos mares setentrionais... Mas não posso. Tenho de ir para onde sou obrigado a ir e voltar as costas às margens brilhantes. Tive demasiada pressa, agora já não me resta tempo. Troquei toda a luz do Sol e as cidades e as terras distantes por uma mão-cheia de poder, por uma sombra, pela treva.

E assim, como é próprio dos magos, transformou Gued o seu temor e mágoa em canção, num breve lamento, semicantado, que não era apenas para ele. E o amigo, em resposta, citou as palavras do herói do Feito de Erreth-Akbe:

— Ah, possa eu ver uma vez mais o claro lar do mundo, as brancas torres de Havnor...

E assim foram navegando na sua estrita rota, sobre as vastas e ermas águas. O mais que viram nesse dia foi um cardume de pequenos peixes prateados a nadarem para sul. Mas nunca um golfinho a saltar, nem o vôo de gaivota ou andorinha-do-mar riscando o ar cinzento. À medida que o leste escurecia e o oeste se avermelhava, Vetch serviu comida, dividindo-a entre eles, e disse:

— Temos aqui o resto da cerveja. Lembro quem pôs o barril a bordo para homens sedentos em tempo frio, a minha irmã Mil-em-rama.

Perante estas palavras, Gued abandonou os seus sombrios pensamentos e a contemplação do mar, e fez também ele uma saúde a Mil-em-rama, talvez mais sentida que a do irmão. Pensar nela trouxe-lhe à mente o sentido da sua doçura infantil e judiciosa. Ela era diferente de qualquer outra pessoa que ele tivesse conhecido. (E que rapariga tinha ele conhecido alguma vez? Mas isso nem lhe passou pela cabeça.)

— Ela é como um pequenino peixe, um vairão, que nada numa enseada de águas límpidas — disse ele. — Parece indefesa e, no entanto, não consegues agarrá-la.

Ouvindo-o, Vetch olhou-o de frente e sorriu.

— És verdadeiramente um mago nato — disse ele. — O nome-verdadeiro dela é Kest.

Na Antiga Fala, como Gued bem sabia, kest é vairão, e isto confortou-lhe o coração. Mas, pouco depois, disse em voz baixa:

— Se calhar não me devias ter dito o nome dela.

Mas Vetch, que não o fizera impensadamente, respondeu:

— O nome dela está tão seguro contigo como comigo. E, além disso, tu soubeste-o antes de eu o dizer...

A oeste, o vermelho tornou-se cinza, e o cinzento reduziu-se a negro. Céu e mar estavam totalmente escuros. Gued estendeu-se para dormir no fundo do barco, enrolado no seu manto de lã e peles. Vetch, segurando o cabo da vela, cantou suavemente trechos do Feito de Enlad, onde se conta como o mago Morred, o Branco, deixou Havnor no seu navio longo sem remos e, chegado à Ilha de Soléa, viu Elfarran nos pomares, na Primavera. Gued deixou-se dormir antes que a canção chegasse ao triste fim dos seus amores. A morte de Morred, a ruína de Enlad, as ondas marinhas, alterosas e amargas, submergindo os pomares de Soléa. Perto da meia-noite acordou e voltou a vigiar, enquanto Vetch dormia. O pequeno barco avançava célere sobre o mar agitado, fugindo ao vento que lhe impelia a vela, correndo às cegas pela noite fora. Mas as nuvens tinham-se dissipado a espaços e, antes da madrugada, uma Lua delgada, espreitando entre nuvens de contornos acastanhados, lançava uma luz pálida sobre o mar.

— A Lua empalidece perante a sua escuridão — murmurou Vetch, acordado pelo amanhecer, num momento em que o vento frio abrandou. Gued ergueu os olhos para o meio anel branco sobre as águas que, a leste, empalideciam, mas nada disse. A lua nova que se segue ao Regresso-do-Sol tem o nome de Pousios e é o pólo contrário dos dias da Lua e da Longa Dança do Verão. É uma altura desafortunada para os viajantes e os doentes. Durante os Pousios não se dão nomes às crianças, não se cantam Feitos, não se afia espadas nem instrumentos de corte e não se fazem juramentos. E o eixo negro do ano, quando todas as coisas que se fazem saem mal.

Por três dias navegaram a partir de Soders, seguindo aves marinhas e algas da costa até Pelimer, uma pequena ilha que se ergue como uma corcunda bem alto acima dos mares cinzentos. As gentes falavam Hardic mas à sua própria maneira, estranha mesmo para os ouvidos de Vetch. Ali desceram os jovens a terra para obterem água e algum descanso do mar e, a princípio, foram bem recebidos, com espanto e comoção. Havia um bruxo na principal vila da ilha, mas era louco. Só falava da grande serpente que ia devorando as fundações de Pelimer, pelo que em breve a ilha partiria à deriva, como um barco com as amarras cortadas, e deslizaria até cair da beira do mundo. Começou por acolher cortesmente os jovens feiticeiros mas, enquanto falava da serpente, começou a olhar de revés para Gued. E depois passou a injuriá-los, ali no meio da rua, acusando-os de serem espiões e servos da Serpente-do-Mar. A partir daí, os pelimerianos passaram a olhá-los friamente porque, embora louco, sempre era o seu feiticeiro. E assim Gued e Vetch não prolongaram a sua estadia, mas antes partiram de novo antes de cair a noite, rumando mais uma vez para sul e leste.

Naqueles dias e noites de navegação, Gued nunca falou da sombra, nem diretamente da sua demanda. E o mais perto que Vetch esteve de lhe dirigir qualquer pergunta foi (ao seguirem o mesmo curso, cada vez mais longe e ao largo das terras conhecidas de Terramar) «Tens a certeza?», ao que Gued respondeu apenas:

— Terá o ferro a certeza de onde está o íman?

Vetch acenou que sim com a cabeça e prosseguiram, sem que mais nada fosse dito por qualquer um deles. Mas, de tempos a tempos, falavam dos artifícios e expedientes que os magos de antigamente tinham usado para descobrir o nome oculto de poderes e seres maléficos. Como Nereger de Paln aprendera o nome do Mago Negro ao escutar uma conversa entre dragões e como Morred vira o nome do seu inimigo escrito pelas gotas de chuva que caíam sobre a poeira, no campo de batalha das Planícies de Enlad. Falaram dos encantamentos de encontrar e daquelas Questões Respondíveis que só o mestre das Configurações de Roke pode pôr. Mas quase sempre Gued acabava por murmurar as palavras que Óguion lhe dissera nas encostas da Montanha de Gont, num Outono já longínquo: «Para ouvir, temos de ficar em silêncio...» E em silêncio ficava e meditava, durante horas a fio, sempre com os olhos fitos no mar, para a frente do rumo do barco. Por vezes parecia a Vetch que o amigo via, para além das ondas e das milhas e dos cinzentos dias que se avizinhavam, a coisa que seguiam e o negro fim da sua viagem.

Passaram entre Kornay e Gosk com péssimo tempo, não avistando qualquer das ilhas no meio do nevoeiro e da chuva, e só sabendo que por elas tinham passado, no dia seguinte, quando viram à sua frente uma ilha de falésias em pináculos, acima dos quais grandes bandos de gaivotas voavam em círculos e cujos gritos semelhantes a mios se ouviam de muito longe, no mar. Vetch disse:

— Pelo aspecto, aquela ilha deve ser Astowell. Última Terra. Para leste e para sul dela, as cartas estão vazias.

— E, no entanto, aqueles que vivem aqui devem saber de terras ainda mais longínquas — retorquiu Gued.

— Por que dizes tu isso? — perguntou Vetch, pois bem vira como Gued falara constrangidamente. E, uma vez mais, a sua resposta foi entrecortada e estranha.

— Não ali — disse, olhando em frente para Astowell e para além dela, ou através dela. — Não ali. Não no mar. Não no mar, mas em terra firme... que terra? Frente às fontes do alto mar, além das nascentes, atrás das portas da luz do dia...

Depois ficou em silêncio e, quando voltou a falar, foi num tom normal de voz, como se se tivesse libertado de um sortilégio ou de uma visão, mas sem clara memória disso.

O porto de Astowell, uma enseada entre altas rochas, ficava na costa norte da ilha e todas as cabanas da vila estavam de frente para norte ou oeste. Era como se a ilha voltasse o seu rosto, embora de tão longe, sempre para Terramar, para a humanidade.

Grande excitação e receio esperavam aquela chegada de estranhos, numa altura do ano em que barco algum desafiava os mares em volta de Astowell. Todas as mulheres se deixaram ficar dentro das cabanas de caniços, espreitando pela porta, escondendo os filhos atrás das saias, recuando atemorizadas para o escuro do interior ao verem os estrangeiros a subir da praia. Os homens, homens magros e com roupas que os defendiam mal do frio, reuniram-se num círculo solene ao redor de Vetch e de Gued, e cada um segurava um machado de pedra ou uma faca de concha. Porém, uma vez perdido o medo, deram aos estranhos um ótimo acolhimento e nunca mais paravam de lhes fazer perguntas. Era raro que algum navio ali aproasse, mesmo de Soders ou Rolameny, já que eles nada tinham para trocar por bronze ou mercadorias finas. Nem sequer madeira. Os seus barcos eram pequenos e feitos de vime entretecido, e bem corajoso marinheiro teria de ser quem se aventurasse até tão longe como Gosk ou Kornay em tal embarcação. Viviam pois sozinhos, ali, na borda de todos os mapas. Não tinham bruxa nem mágico e pareceram não reconhecer os bordões dos dois jovens feiticeiros pelo que eram, antes os admirando pelo material precioso de que eram feitos, madeira. O chefe, ou Ilhéu-Mor, era muito velho e, entre o seu povo, o único a ter alguma vez visto um homem nascido no Arquipélago. Gued era, por conseguinte, para eles, uma coisa de maravilhar. Os homens foram buscar os filhos para olharem para o arquipelaguiano e assim se recordarem dele quando fossem velhos. Nunca tinham ouvido falar de Gont, só de Havnor e Éa, e tomaram-no por um Senhor de Havnor. Gued fez o possível para lhes responder às perguntas sobre a cidade branca que nunca vira. Mas à medida que a tarde foi passando, começou a ficar inquieto e por fim perguntou aos homens da aldeia, apinhados em volta do buraco do fogo na casa comum, envolvidos pelo calor fedorento do esterco de cabra e ramos de giesta, que era tudo o que tinham como combustível:

— O que fica para leste da vossa terra? Permaneceram em silêncio, uns arreganhando os dentes num sorriso, outros com ar carrancudo. Mas o velho Ilhéu-Mor respondeu:

— O mar.

— E não há terra para além do mar?

— Aqui é a Última Terra. Não há outra para além desta. Nada a não ser água até à beira do mundo.

— Estes são homens sábios, pai — disse um homem mais novo —, navegadores, viajantes. Talvez eles saibam de alguma terra de que nós não ouvimos falar.

— Não há terra nenhuma a leste desta terra — insistiu o velho. Depois olhou longamente para Gued e não voltou a dirigir-lhe a palavra.

Os dois companheiros dormiram essa noite no calor fumarento da casa comum. Antes da aurora, Gued acordou o amigo, sussurrando:

— Acorda, Estarriol. Não podemos ficar, temos de seguir.

— Porquê tão cedo? — perguntou Vetch, ainda cheio de sono.

— Não é cedo... é tarde. Tenho vindo muito devagar. Aquilo encontrou maneira de me escapar e, assim, me condenar. Não me pode fugir, porque tenho de a seguir por mais longe que vá. Se a perco, estou perdido.

— E para onde a seguimos?

— Para leste. Vem. Já enchi os odres.

E assim deixaram a casa comum antes que mais alguém da aldeia acordasse, à exceção de um bebê que choramingou um pouco no escuro de alguma cabana, mas logo se calou. A vaga claridade das estrelas, percorreram o caminho que descia até à boca da enseada, desataram o Vê-longe do pilar de pedra a que ficara amarrado e impeliram-no para a água negra do exterior. E assim partiram para leste, de Astowell para o Alto Mar, no primeiro dia dos Pousios, antes de nascer o Sol.

Nesse dia o céu esteve limpo. O vento do mundo era frio e desabrido, de nordeste, mas Gued erguera o vento mágico, o primeiro ato de magia que fazia desde que deixara a Ilha das Mãos. Navegaram muito rapidamente em direção a leste. O barco estremecia sob as grandes ondas, fumegantes, iluminadas pelo sol, que o golpeavam de lado, mas prosseguiu galhardamente, tal como o seu construtor prometera, reagindo ao vento mágico tão bem como qualquer navio de Roke, enovelado de sortilégios.

Gued não falou uma única vez durante toda aquela manhã, a não ser para renovar o encantamento do vento ou para manter um sortilégio de resistência na vela, e Vetch acabou o seu sono interrompido, embora agitadamente, na popa do barco. Ao meio-dia comeram. Gued dividiu os quinhões frugalmente, e o mau agouro que havia nisso era evidente, mas ambos mastigaram o seu pedaço de peixe salgado e de bolo de trigo, sem que qualquer deles dissesse uma palavra.

Toda a tarde continuaram a singrar para leste, sem um desvio, sem nunca abrandarem. Uma única vez quebrou Gued o silêncio para dizer:

— Estás de acordo com aqueles que dizem que o mundo para lá das Estremas Exteriores é todo ele mar sem terra, ou com aqueles que imaginam outros Arquipélagos ou vastas terras por descobrir, no outro lado do mundo?

— Nesta altura — respondeu Vetch —, vou pelos que pensam que o mundo tem apenas uma face e que aquele que navegar até muito longe cairá da beira dessa face.

Gued não sorriu. Nele já não havia regozijo possível.

— Quem sabe o que um homem poderá encontrar, além? Não nós, que nos mantemos sempre junto às nossas costas e praias.

— Alguns o tentaram descobrir e não regressaram. E nunca veio navio algum de terras que desconhecemos.

Gued não replicou.

Durante todo esse dia e essa noite continuaram a ser levados pelo poderoso vento da magia sobre as alterosas e largas ondas do oceano, sempre para leste. Gued manteve-se de vigia desde o crepúsculo até ao amanhecer, porque na escuridão a força que o impelia ou por ele puxava tornava-se mais forte ainda. E a sua vigilância dirigia-se sempre para a frente, embora os seus olhos, naquela noite sem lua, não pudessem ver mais que os olhos pintados nos lados da proa cega do barco. Ao romper o dia o seu rosto escuro estava cinzento de fadiga e tinha o corpo de tal modo tolhido pelo frio que mal pôde estender-se para descansar. Num murmúrio, disse:

— Mantém o vento mágico de oeste, Estarriol. E adormeceu então.

Não houve aurora e a chuva começou a cair, açoitando a proa de lado, vinda de nordeste. Não era uma tempestade, mas apenas os longos, frios, ventos e chuvas do Inverno. Em breve todas as coisas no barco estavam encharcadas, apesar da cobertura de lona alcatroada que tinham comprado. E Vetch sentia-se como se ele próprio estivesse também empapado em água até aos ossos. E Gued tiritava no seu sono. Cheio de pena do amigo, quiçá também de si próprio, Vetch tentou fazer rodar por um pouco aquele vento rude e incessante que trazia chuva. Mas embora, seguindo a vontade de Gued, conseguisse manter o vento mágico forte e estável, o seu saber em feitura de tempo pouco poder tinha ali, tão longe da terra, e o vento do Alto Mar não escutou a sua voz.

Perante isto, um certo temor se apoderou de Vetch, ao começar a calcular quanto poder de feitiçaria restaria a Gued e a ele próprio, se continuassem assim, sempre em frente, para longe das terras onde cabe aos homens viver.

Gued voltou a estar de vigia nessa noite e durante toda ela manteve o barco rumo a leste. Quando o dia chegou, o vento do mundo abrandou algum tempo e o Sol foi brilhando intermitentemente. Mas as largas ondas erguiam-se tão alto que Vê-longe tinha de se inclinar e de as subir, como se fossem colinas, e ficar suspenso na crista e mergulhar subitamente, para de novo trepar a seguinte, e a seguinte, e a seguinte, infindavelmente.

Ao entardecer desse dia, Vetch quebrou o longo silêncio.

— Meu amigo — disse. — Falaste certa vez como se estivesses certo de que, por fim, alcançaríamos terra. Não quereria questionar a tua visão, se não fosse por isto. Pode tratar-se de um truque, uma ilusão criada por isso que persegues, para te arrastar até mais longe do que um homem pode ir sobre o mar. Porque o nosso poder pode mudar e enfraquecer em mares estranhos. E uma sombra não se cansa, nem morre de fome, nem se afoga.

Estavam sentados lado a lado no banco do timoneiro, mas nesse momento Gued olhou para ele como se fosse de uma grande distância, por sobre um abismo. Havia uma perturbação nos seus olhos e demorou a responder. Mas finalmente disse:

— Estarriol, estamos a chegar próximo.

Ao ouvir aquelas palavras, o amigo soube que era verdade. E então teve medo. Mas colocou a mão sobre o ombro de Gued e disse apenas:

— Então, bom. Isso é bom.

E uma vez mais, nessa noite, voltou Gued a vigiar, pois não conseguia dormir no escuro. E também não pôde adormecer quando o dia veio, o terceiro. Continuaram a navegar com aquela mesma incessante, ligeira e terrível velocidade por sobre o mar e Vetch maravilhava-se perante o poder de Gued, que conseguia manter tão forte um vento mágico hora após hora, ali, no Alto Mar, onde Vetch sentia o seu próprio poder enfraquecido e desnorteado.

E seguiram sempre, sempre, até que pareceu a Vetch que aquilo que Gued dissera se ia verificar, que eles iam para além das nascentes do mar e para leste, atrás das portas da luz do dia. Gued permanecia na frente do barco, como sempre olhando em frente. Mas não observava agora o oceano, ou pelo menos não o oceano que Vetch via, uma vastidão de água até à orla do céu. Aos olhos de Gued havia uma visão tenebrosa, que se sobrepunha e velava o céu cinzento e o cinzento mar, e a treva crescia, o véu adensava-se. Nada disto era visível para Vetch, exceto quando fitava o rosto do amigo, e então também ele, por um momento, via a escuridão. E continuavam, continuavam. E era como se, embora um vento os levasse num barco, Vetch fosse para leste por sobre o mar do mundo, enquanto Gued prosseguia sozinho em direção a um domínio onde não havia leste nem oeste, nem nascer ou pôr do Sol, das estrelas.

Gued ergueu-se subitamente na proa e falou alto. O vento mágico cessou. O Vê-longe perdeu a direção, erguendo-se e caindo nas vastas ondas como um pedacinho de madeira. Embora o vento do mundo continuasse a soprar tão forte como sempre, agora diretamente de norte, a vela pendia frouxa, imóvel. E assim o barco permanecia preso às vagas, balouçado pelo seu grande e lento ondular, mas sem avançar em direção alguma. Gued disse:

— Arria a vela.

Vetch apressou-se a fazê-lo, enquanto Gued desatava os remos, os colocava nos toletes e vergava as costas, começando a remar.

Vetch, vendo apenas as ondas erguendo-se e baixando-se até onde o seu olhar alcançava, não conseguia compreender por que motivo tinham de avançar agora à força de remos. Mas esperou e, em breve, tomou consciência de que o vento do mundo ia amainando e as ondas diminuíam de altura. O subir e descer do barco foi-se tornando cada vez menor até que, por fim, pareceu avançar sob as enérgicas remadas de Gued por uma água quase parada, como se numa baía abraçada pela terra. E embora Vetch não pudesse ver o que Gued via, quando entre remadas olhava de vez em quando para trás, por cima do ombro, e ainda que não pudesse ver as escuras encostas sob estrelas imóveis, começou a aperceber-se, com a sua visão de feiticeiro, de uma escuridão que irrompia no cavado das ondas que rodeavam o barco, e viu as ondas diminuírem e tornarem-se lentas à medida que se enchiam de areia.

Se aquilo era um sortilégio de ilusão, era poderoso para além do crível, fazer com que o Alto Mar parecesse terra. Tentando recuperar a sua agudeza de espírito e a sua coragem, Vetch pronunciou o Sortilégio de Revelação, verificando entre cada palavra, cuidadosamente silabada, se descortinava mudança ou frêmito de ilusão naquele estranho fenômeno de um oceano que ia secando, perdendo toda a profundidade. Mas nada encontrou. Talvez o sortilégio, embora devesse afetar apenas a sua própria visão e não a magia que atuava ao redor deles, não tivesse poder ali. Ou talvez não se tratasse de ilusão alguma e tivessem chegado ao fim do mundo.

Sem atentar no amigo, Gued remava cada vez mais devagar, olhando por cima do ombro, escolhendo um caminho por entre canais, baixios e bancos de areia que só ele podia ver. O barco estremeceu, a quilha a arrastar. Sob essa quilha aprofundava-se o abismo do mar, e no entanto tinham encalhado. Gued ergueu os remos que rangeram nos seus toletes e aquele ruído era horrível, porque não se ouvia qualquer outro som. Todos os sons, de água, vento, madeira, vela, tinham emudecido, perdidos num silêncio de uma profundidade imensa que parecia destinado a não se quebrar para sempre. O barco jazia imóvel. Não corria uma aragem. O mar transformara-se em areia, sombria, impassível. Nada se movia no céu escurecido nem naquele chão seco e irreal que se ia alongando cada vez mais, a perder-se na escuridão crescente, em toda a volta do barco e até onde a vista podia alcançar.

Gued ergueu-se, pegou no seu bordão e saltou ligeiro por sobre a amurada. Vetch pensou que o iria ver cair e mergulhar nas profundezas do mar, esse mar que estava certamente ali, por detrás daquele seco e indistinto véu que ocultava água, céu e luz. Mas já não existia mar algum. Gued caminhou, afastando-se do barco. A areia escura deixava ver as suas pegadas e sussurrava um pouco sob os seus pés.

O bordão de Gued começou a brilhar, não com fogo-fátuo, mas com um límpido clarão branco, que em breve se tornava tão brilhante que lhe avermelhava os dedos no ponto em que agarravam a madeira resplandecente.

Seguiu em frente, afastando-se do barco, mas sem direção. Ali não existiam direções, nem norte nem sul, nem leste nem oeste, só para além e para longe.

Para Vetch, que observava, a luz que ele transportava mais parecia uma grande e lenta estrela, movendo-se através da escuridão. E a escuridão ao seu redor tornou-se mais espessa, enegreceu, concentrou-se. Tudo isto também Gued viu, a sua atenção sempre voltada para a frente, através da luz. Após alguns momentos viu, na orla exterior da luz, onde esta já enfraquecia, uma sombra que caminhava para ele, sobre a areia.

A princípio era informe mas, ao aproximar-se, tomou a aparência de um homem. Um velho, ao que parecia, cinzento e taciturno, dirigindo-se para Gued. Mas ao mesmo tempo que reconhecia o pai, o bronzeiro, naquela imagem, viu que não se tratava de um velho mas de um jovem. Era Jaspe. O belo, jovem e insolente rosto de Jaspe, o seu manto cinzento afivelado a prata, o seu modo hirto de caminhar. E era odiento o olhar que lançou a Gued através da extensão de ar que os separava. Gued não parou, mas abrandou o passo e, ao adiantar-se, ergueu um pouco mais o seu bordão. A luz avivou-se e, à sua claridade, a aparência de Jaspe desapareceu do vulto que se aproximava e este tornou-se em Petchvarri. Mas o rosto de Petchvarri estava inchado e pálido, como o de um afogado, e estendeu-lhe a mão de modo estranho, como que a chamá-lo. E ainda assim Gued não parou, antes continuou em frente, embora houvesse agora apenas uns poucos metros entre eles. E então a coisa que o enfrentava transformou-se total e tremendamente, estendendo-se para ambos os lados como se abrisse enormes e delgadas asas, contorcendo-se, inchando, encolhendo de novo. Por um instante, Gued viu nela o rosto branco de Skiorh e logo um par de olhos turvos, espantados, e depois, subitamente, um rosto terrível que ele não conhecia, de homem ou monstro, com lábios que se retorciam e olhos que eram como poços afundando-se num vazio negro.

Perante isto, Gued ergueu bem alto o bordão e o seu clarão alteou-se, brilhando intoleravelmente com uma luz tão branca e forte que abalou e atormentou mesmo aquela tão antiga escuridão. A essa luz, tudo o que era forma de homem se soltou da coisa que se avizinhava de Gued. Mais uma vez se concentrou, se reduziu, enegrecendo mais, caminhando agora sobre quatro pernas armadas de garras, marcando o rasto na areia. Mas continuava ainda a avançar, erguendo para ele uma espécie de tromba cega e informe, sem lábios, orelhas ou olhos. E quando ficaram mesmo juntos, a coisa tornou-se impossivelmente negra no clarão mágico que ardia branco ao seu redor e ergueu-se sobre as pernas traseiras. Em silêncio, homem e sombra enfrentaram-se, cara a cara, e imobilizaram-se.

Alta e claramente, quebrando aquele velho silêncio, Gued pronunciou o nome da sombra e, nesse mesmo momento, a sombra falou sem lábios nem voz, dizendo a mesma palavra: «Gued.» E as duas vozes eram uma única voz.

Gued estendeu os braços, deixando cair o bordão, e apoderou-se da sua sombra, daquele seu outro e negro eu que se estendia para ele. Luz e treva encontraram-se, uniram-se e tornaram-se um.

Mas para Vetch, que observava aterrorizado através do escuro crepúsculo e de lá de longe na extensão de areia, pareceu-lhe que Gued fora derrotado, pois viu o branco clarão enfraquecer, tornar-se indistinto. A raiva e o desespero cresceram dentro dele e saltou para a areia decidido a ajudar o amigo ou a com ele perecer, correu em direção àquele mínimo vislumbre de luz que emurchecia na obscuridade vazia daquela terra erma. Mas, enquanto corria, a areia abatia-se sob os seus pés, e ele debateu-se nela como se fosse movediça, como se atravessasse um grande curso de água. Até que, com um som que era um rugido sob a gloriosa luz do dia, com o frio amargo do Inverno e o amargo sabor do sal, o mundo foi-lhe restituído e ele afundou-se no súbito, real e vivo mar.

Bem perto, o barco, vazio, balouçava sobre as ondas cinzentas. Vetch não conseguia avistar mais nada sobre a água, com o cume das ondas revoltas a encherem-lhe os olhos de espuma, a cegá-lo. Não sendo grande nadador, debateu-se o melhor que pôde até alcançar o barco e, com esforço, entrou nele. Tossindo e tentando limpar a água que lhe escorria do cabelo, olhou desesperadamente em volta, sem saber para que lado olhar. E por fim distinguiu algo escuro entre as vagas, muito longe dali, para além do que fora areia e agora era água embravecida. Lançou-se então sobre os remos, remou poderosamente em direção ao amigo e, agarrando em Gued pelos braços, puxando e ajudando, conseguiu passá-lo por cima da borda.

Gued estava aturdido e os seus olhos abriam-se vagamente como se nada visse, mas não havia nele qualquer ferimento visível. O seu bordão, negra madeira de teixo, todo o brilho desaparecido, estava firmemente seguro na sua mão direita e não o queria largar. Não pronunciou palavra. Exausto, ensopado, tremendo, ficou-se enrodilhado junto ao mastro, sem nunca olhar para Vetch, que ergueu a vela e virou de bordo para apanhar o vento de nordeste. E nada viu do mundo até que, precisamente na direção que seguiam, num céu que escurecia onde o Sol se pusera, entre longas nuvens e como que numa baía de clara luz azul, a luz nova surgiu, um anel de marfim, um aro de corno, refletindo a luz do Sol, espalhando o seu brilho através do oceano de treva.

Gued ergueu o rosto e fitou aquele remoto crescente luminoso a ocidente.

Esteve assim olhando a Lua por muito tempo. Depois ergueu-se, segurando o bordão a mãos ambas, tal como um guerreiro ergue o seu montante. Olhou em volta o céu, o mar, a panda vela castanha acima de si, o rosto do amigo.

— Estarriol — disse —, vê, está feito. Acabou. — E riu. — A ferida está sarada — continuou. — Eis-me inteiro. Eis-me livre.

Depois inclinou-se para a frente e escondeu o rosto nas mãos, chorando como uma criança.

Até àquele momento, Vetch observara-o com um temor ansioso, porque não estava seguro do que teria acontecido na terra das trevas. Nem sabia se aquele que estava com ele no barco era verdadeiramente Gued e a sua mão estivera durante horas pronta a pegar na âncora para arrombar as pranchas do fundo do barco e afundá-lo ali em pleno mar, pois antes queria isso do que levar de volta aos portos de Terramar a coisa maléfica que, temia ele, podia ter assumido o rosto e a forma de Gued. Mas agora, ao ver e ouvir o amigo, as suas dúvidas varreram-se. E começou a aperceber-se da verdade, que Gued não saíra derrotado nem vitorioso, mas, ao dar à sombra da sua morte o seu próprio nome, tornara-se inteiro, um homem. Alguém que, conhecendo a totalidade do seu ser verdadeiro, não pode ser usado nem possuído por qualquer outro poder senão ele próprio, cuja vida é pois vivida por amor da vida e nunca ao serviço da ruína, da dor, do ódio ou da treva. Na Criação de Éa, que é o mais antigo de todos os cânticos, diz-se: «Só no silêncio a palavra, só na escuridão a luz, só na morte a vida: nítido o vôo do falcão no céu vazio.» E esse foi o canto que Vetch entoou bem alto, enquanto mantinha o barco rumo a oeste, correndo em frente do frio vento da noite de Inverno que lhes soprava pelas costas, vindo das vastidões do Alto Mar.

Durante oito dias, e depois mais oito, navegaram eles, antes de chegarem à vista de terra. Muitas vezes tiveram de voltar a encher o odre com água do mar tornada doce à força de encantamentos. E também pescaram, mas mesmo quando utilizaram sortilégios de pescador pouco apanharam, porque os peixes do Alto Mar não conhecem os seus próprios nomes e pouca atenção dão à magia. Quando já nada mais tinham para comer além de uns poucos restos de carne fumada, Gued recordou o que Mil-em-rama havia dito ao vê-lo roubar um bolo da lareira, que havia de se arrepender de o ter feito quando sentisse fome em pleno mar. Mas, por muito esfomeado que estivesse, aquela recordação foi-lhe agradável. Porque ela também dissera que ele, com o seu irmão, haviam de voltar a casa.

O vento mágico só durante três dias os levara para leste e no entanto, para regressar, navegaram para oeste durante dezesseis. Nenhum homem voltara jamais de tão longe no Alto Mar como os jovens feiticeiros Estarriol e Gued, nos Pousios do Inverno, a bordo do seu barco de pesca. Não se lhes depararam quaisquer grandes tempestades e mantiveram-se num rumo bastante constante, guiando-se pela bússola e pela estrela Tolbegren, tomando uma rota mais a norte do que na viagem de ida. Assim, não voltaram a Astowell e, tendo passado por Além-Toly e Sneg sem sequer as terem avistado, viram terra firme pela primeira vez ao largo do cabo mais meridional de Koppish. Acima das vagas, surgiram-lhes falésias de pedra que se erguiam como as muralhas de uma grande fortaleza. Aves marinhas lançavam os seus gritos voando em círculos sobre a rebentação e o fumo das lareiras das pequenas aldeias vogava azul ao sabor do vento.

Daí até Iffish a viagem não era longa. Chegaram ao porto de Ismay num entardecer escuro e tranqüilo, com a neve prestes a cair. Amarraram o barco Vê-longe que os levara até às costas do reino da morte e de lá os trouxera, e subiram pelas ruas estreitas até à casa do feiticeiro. Sentiam os corações muito leves ao penetrarem na luz do fogo e no calor, sob aqueles tetos. E Mil-em-rama correu ao encontro deles, com lágrimas de alegria nos olhos.

Se Estarriol de Iffish manteve a sua palavra e compôs uma canção daquele primeiro grande feito de Gued, ela perdeu-se. Na Estrema Leste conta-se a história de um barco que veio dar à terra, vindo de uma viagem de muitos dias e de costa alguma, sobre o abismo do oceano. Em Iffish dizem que era Estarriol quem governava esse barco, mas em Tok afirmam que eram dois pescadores que uma tempestade arrastara muito para o largo, para o Alto Mar, enquanto em Holp a história fala de um pescador holpiano que não conseguiu libertar o barco de areias invisíveis onde encalhara, e ainda por lá vagueia. É assim que, da canção da Sombra, restam apenas alguns farrapos de lenda, levados como pedaços de madeira à deriva de ilha para ilha, ao longo de longos anos. Mas no Feito de Gued nada se diz dessa viagem, nem do encontro de Gued com a sombra, antes mesmo de ter navegado incólume pelo Passo do Dragão, ou trazido para Havnor o Anel de Erreth-Akbe que foi resgatar aos Túmulos de Atuan, ou regressado por fim e uma vez mais a Roke, como Arquimago de todas as ilhas do mundo.

 

 

[1] Em feitiçaria e demonologia, o familiar é um animal — recorde-se o tradicional gato preto, ou o corvo, das bruxas — em que encarna um espírito sobrenatural (um demônio?) que auxilia o mago a fazer magia. Aqui, o familiar assume antes o caráter de companheiro e amigo, não sendo o animal possuído por espírito algum, mas tendo sido «acordado» para uma relação especial com o mago, na medida em que este o chamou pelo seu nome-verdadeiro. (NT)

 

 

                                                                  Ursula K. Le Guin

 

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