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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O FIEL JARDINEIRO - P.2 / John Le Carré
O FIEL JARDINEIRO - P.2 / John Le Carré

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O FIEL JARDINEIRO

Segunda Parte

 

Banhado pelo luar, Justin, o marido enganado, fica imóvel a olhar fixamente o horizonte prateado do mar enquanto aspira a longos haustos o ar gélido da noite. Sente-se como se tivesse inalado uma coisa nauseabunda e precisasse de limpar os pulmões. 0 Sand yfaz da fraqueza força - disseste-me uma vez - 0 Sandy começa por iludir-se a si próprio e ilude-nos a todos nós depois.,. 0 Sandy é um cobarde que precisa do amparo de gestos grandiosos e de palavras grandiosas porque tudo quanto for menos que isso o deixa desprotegido...

 

Então se sabias tudo isso, valha-me Deus, que fizeste tu para atrair sobre ti uma coisa destas? - inquiriu ele do mar, do céu, do áspero vento nocturno. Nada, absolutamente nada - respondeu ela serenamente.- 0 Sandy confundiu as mínhas galanterias com promessas e a tua amabilidade com fraqueza. Apesar disso, como por luxo, Justin deixa-se esmorecer, como ja por vezes no mais fundo do coração lhe aconteceu a respeito de Arnold. A sua memória, contudo, está alvoroçada. Qualquer coisa lida ontem, a noite passada, na de anteontem, talvez... Mas que era? Uma folha de e-mail, de Tessa para Ham. Uma longa mensagem, um pouco íntima demais, à primeira leitura, para o temperamento de Justin, e por isso ele a pusera de parte numa pasta dedicada a «enigmas a resolver quando eu tiver força bastante para enfrentá-los». Voltando ao lagar, extrai da pasta a folha impressa e examina a data.

 

Prova impressa do e-mail de Tessa para Ham, datada exactamente onze horas depois de Woodrow, desrespeitando as regras de serviço sobre o uso do papel de carta oficial, ter declarado a sua paixão pela esposa de um colega no papel de carta azul de Sua Majestade:

 

«Já não sou uma menina, Ham, é já tempo de eu me deixar de criancices, mas que faz uma rapariga, mesmo ainda de trancinhas? E acabei por esbarrar num sedutor de cinco estrelas que bebe os ares por mim. 0 problema é que, finalmente, o Arnold e eu encontrámos oiro - ou melhor, verdadeiro excremento da pior espécie, e precisamos desesperadamente de que o dito sedUtorfale por nós nos corredores do poder, que é a única saída que eu tenho como mulher do Justin e como leal súbdita britânica que, apesar de tudo, desejo ser. Ouço-te dizer que continuo a ser a mesma impiedosa cabra que gosta de trazer os homens à trela, mesmo que sejam super sedutores? Bem, Ham, não digas isso. Mesmo sendo verdade, não digas. Cala-te com isso. Porque eu tenho promessas a respeitar e tu também tens, meu querido. E eu preciso de que te mantenhas do meu lado, como querido e suave amigo que és, e me digas que sou realmente uma boa menina, porque o sou, Senão, dou-te o meu beijo mais lambuzado depois daquele dia em que te empurrei para o Rubicão no teu fatínho à maruja, Muito amor, meu querido. Cião. Tess.

 

  1. - A Ghíta diz que eu sou completamente puta, mas, como não é capaz de pronunciar bem a palavra, sai-lhe puúta, como se uivasse, Muito amor. Tess (puúta).”

 

A acusada está inocente - disse-lhe ele - e eu, como de costume, bem me posso envergonhar.

 

Misticamente tranquilizado, Justin retomou o trabalho do seu confuso dia. Extracto do relatório conjunto de Rob e Lesley ao Superintendente Frank Grtdley, da Divisão de Crimes no Ultramar da Scotland Yard, sobre o seu terceiro encontro com Woodrow, Alexander Henry, Chefe da Chancelaria da Alta Comissão Britânica em Nairobi:

 

0 inquirido repete vigorosamente o que diz ser a opinião de Sir Bernard Pellegrin, Director de Assuntos Africanos do Foreign Office, segundo o qual o prosseguimento das investigações sobre o sugerido no memorandum de Tessa Quayle comprometeria sem necessidade as relações do Governo de Sua Majestade com a República Queniana e prejudicaria os interesses comerciais do Reino Unido...

0 inquirido invoca motivos de segurança para se recusar a divulgar o conteúdo do dito memorandum... 0 inquirido nega ter qualquer conhecimento de um medicamento inovador actualmente comercializado pela Casa das Três Abelhas...

0 inquirido informa-nos de que qualquer pedido para ver o memorandum de Tessa Quayle deve ser enviado directamente a Sir Bernard, na hipótese de esse documento ainda existir, do que o inquirido está pronto a duvidar. 0 inquirido descreve Tessa Quayle como uma mulher cansativa e histérica, mentalmente instável no tocante a assuntos relacionados com o seu trabalho humanitário. Interpretamos isto como um processo cómodo de minimizar o significado do memorandum. Requer-se por este meio que seja enviado ao Foreign Office, logo que possível, um pedido de cópias de todos os documentos enviados ao inquirido pela falecida Tessa Quayle.

 

Nota escrita a vermelho à margem e assinada por E Gridley, Comissário Delegado:

- FALEI COM SIR B. PELLEGRIN. PEDIDO RECUSADO POR MOTIVOS DE SEGURANÇA NACIONAL.

 

Extractos de eruditos jornais de medicina, de obscuridade variável, a enaltecer em termos adequadamente oblíquos os sensacionais benefícios do inovador medicamento Dypraxa, a sua «ausência de mutagenicidade» e a sua «longa sobrevivência nos ratos de laboratório».

 

Extracto do Haití Journal offfialth Sciences, em que são brandamente formuladas algumas reservas sobre o Dypraxa, assinado por um médico paquistanês que efectuou ensaios clínicos do medicamento num hospital haitiano. Sublinhadas a vermelho por Tessa as palavras «potencial de toxicidade» e os perigos de falhas do fígado, hemorragias internas, tonturas e danificação dos nervos ópticos.

 

Extracto do número seguinte do mesmo jornal, no qual uma enfiada de sumidades médicas, com impressionantes postos professorais e muitas iniciais a seguir aos nomes, desfere um fulminante contra-ataque com citações de trezentos relatórios de ensaios. 0 mesmo artigo acusa o pobre paquistanês de «atitude preconcebida» e «irresponsabilidade para com os doentes» e invoca maldições sobre a sua cabeça.

 

(Nota manuscrita de Tessa: «Estes condutores de opinião, livres de preconceitos, estão todos sob contrato da KVH em ’comissões itinerantes’ soberbamente remuneradas a fim de identificar em todo o mundo projectos prometedores no campo da investigação biotécnica.»)

 

Extracto de um livro intitulado Clínical Trials, de Stuart Pocock, copiado à mão por Tessa, como costumava fazer para conservar os assuntos na memória. Em contraste com o sóbrio estilo do autor, alguns trechos estão sublinhados a vermelho:

 

«Os estudantes - e, na verdade, também muitos clínicos - tendem a tratar a literatura médica com um respeito exagerado. Os novos factos médicos apresentados por jornais importantes como The Lancet e o New EnglandJournal of Medicine são considerados indiscutíveis. Essa ingénua fé nos «Evangelhos clínicos» é talvez estimulada pelo estilo dogmático de grande número de autores, de modo que as incertezas inerentes a quaZquerproiecto de investigação não são, em muitos casos, suficientemente sublinhadas ... ”

 

(Nota de Tessa: «As Farmas colocam constantemente artigos, mesmo nos chamados jornais de qualidade.»)

 

” ... No respeitante a intervenções nos encontros científicos e à publicidade campanhas farmacêuticas, é preciso ser ainda mais céptico... as oportunidades de parcialidade são enormes... ”.

 

(Nota de Tessa: «Diz o Arnold que as Farmas gastam milhões de milhões a subsidiar investigadores científicos e médicos que impinjam os seus produtos. A Birgit informa que a K-VH doou recentemente a um grande hospital escolar dos Estados Unidos cinquenta milhões de dólares, mais os salários e as despesas de três clínicos-chefes e seis assistentes de pesquisas. A corrupção do pessoal das universidades é ainda mais fácil: cátedras professorais, laboratórios biotécnicos, fundações de pesquisas, etc. «É cada vez mais difícil encontrar opiniões científicas que não estejam compradas» - Arnold».)

 

Mais de Stuart Pocock:

 

” ... há sempre o risco de que os autores sejam persuadidos a dar aos resultados positivos maior relevo que o realmente Justificado.»

 

(Nota de Tessa: «Ao contrário do resto da imprensa mundial, os jornais das Farmas não gostam de publicar más notícias.»)

 

” ... Mesmo quando efectivamente apresentam algum relatório de experiências com resultados negativos, é mais provável que o façam num obscuro jornal especializado que nos grandes jornais de medicina geral por conseguinte, essa refutação do relatório positivo inicial não-pôde ser posta ao alcance de tão vasto público. ”

 

” ... Muitos ensaios são planeados sem atender a aspectos essenciais e não podem, por isso, proporcionar uma apreciação despreconcebida da terapêutica.»

 

(Nota de Tessa: «São preparados para provar uma tese mas não para discuti-la - isto é, são piores que inúteís.»)

 

«Uma vez por outra, os autores seleccionam delibaradamente os dados para que deles resulte uma prova positiva. ”

 

(Nota de Tessa: «Para baralhar.»)

 

Extracto do Sunday Tímes, de Londres, intitulado «Companhia farmacêutica sujeitou doentes a riscos em ensaios hospitalares». Fortemente marcado e sublinhado por Tessa e presumivelmente copiado ou enviado por fax a Arnold Bluhm, pois tinha ao alto as seguintes palavras manuscritas: «Arme, tu VISTE ISTO?»

 

«Uma das maiores companhias farmacêuticas do mundo sujeitou centenas de doentes a riscos de infecção potencialmente mortal por não ter revelado a seis hospitais informações de importância decisiva no início do ensaio de um medicamento à escala nacional.

 

Umas 650 pessoas foram submetidas na Grã-Bretanha a intervenções cirúrgicas numa experiência organizada pela gigantesca companhia farmacêutica alemã Bayer apesar de esta empresa ter efectuado estudos nos quais se verificou que o seu medicamento reagia desfavoravelmente com outros, reduzindo-lhes seriamente a sua capacidade bactericida.

 

Essa investigação prévia, obtida pelo Sunday Times, não foi revelada aos hospitais no começo do estudo.

 

Como resultado da experiência, cuja deficiência nunca foi revelada aos doentes ou às suas famílias, cerca d metad dos operados num dos centros de ensaio, em Southampton, sofreu diversas infecções com-risco de morte.

 

Alegando que esses dados continuavam confidenciais, a Bayer recusou-se a dar números globais sobre as infecções pós-operatórias e sobre os óbitos verificados.

 

Um porta-voz declarou que o estudo fora aprovado, antes de começar, pela competente autoridade reguladora e pelas comissões de ética locais.

 

Anúncio de página inteira, a cores, rasgado de uma revista popular africana, com a legenda: EU ACREDITO EM MILAGRES! No centro da cena, uma linda e jovem mãe africana, de blusa branca aberta e saia comprida, a sorrir radiante. Escarranchada de lado à cinta da mãe, uma feliz criança estende a mão para o seu seio. Em roda, um cacho de irmãos e irmãs igualmente felizes.

0 simpático pai está de pé atrás do grupo. Todos, incluindo a mãe, contemplam embevecidos a saudável criancinha. No fundo da página, as palavras: TAMBÉM AS TRÊS ABELHAS ACREDITAM Em MILAGRES! Da boca da linda e Jovem mãe sai um balão em que se lê: «Quando me disseram que o menino tinha tuberculose, rezei. Mas o meu clínico geral falou-me do Dypraxa, e compreendi que a minha oração fora ouvida no Céu!»

 

Justin volta à pasta da polícia.

 

Extracto do relatório dos agentes sobre o seu encontro com Pearson, Ghita Janet, empregada local da Chancelaria da Alta Comissão Britânica em Nairobi:

 

Entrevistámos a inquirida por três vezes, durante nove minutos, cinquenta e quatro minutos e noventa minutos, respectivamente. A pedido da inquirida, os nossos encontros decorreram em local neutro (a casa de uma amiga), em circunstâncias discretas. A inquirida tem vinte e quatro anos de idade, é de origem anglo-indiana, recebeu educação em escolas conventuais (católicas romanas) do Reino Unido e é filha adoptiva de um casal de profissionais (direito e medicina), ambos ferventemente católicos. A inquirida é graduada com distinção pela Universidade de Exeter (Estudos anglo-americanos e da Comunidade), mostra inteligência e estava muito nervosa. A nossa impressão a seu respeito é de que, além de perturbada pelo luto, estava muito amedrontada. Por exemplo: fez diversas afirmações que depois retirou («Tessa foi assassinada para não falar»; «Quem se meter com a indústria farmacêutica pode aparecer com a garganta cortada»; «Certas companhias farmacêuticas são negociantes de armas com vestes reluzentes»). Pressionada acerca dessas afirmações, negou-se a concretizá-las e pediu que fossem retiradas da acta. Também rejeitou a hipótese de Bluhm ter podido praticar os assassínios de Turkana. Disse que Blul---im e Quayle não eram «um assunto», mas sim «as duas melhores pessoas do mundo» e que os que os rodeavam «tinham espíritos porcos».

 

Submetida a mais questões, a inquirida começou por declarar que estava sujeita à Lei do Segredo Oficial e depois por um compromisso de segredo à falecida. No nosso terceiro e último encontro, tomámos uma atitude mais hostil para com a inquirida fazendo-lhe notar que, ao reter informações, poderia estar a encobrir os assassinos de Tessa e a impedir as buscas de Bluhm. Juntamos nos Apêndices A e B a transcrição redigida das suas declarações. A inquirida leu esta transcrição mas recusa-se a assiná-la.

 

                   APÊNDICE A

 

P - Alguma vez acompanhou Tessa Quayle em expedições ao campo?

 

R - Aos fins-de-semana e nos meus tempos livres, acompanhei Arnold e Tessa em várias viagens ao bairro de Kibera e ao interior para dar ajuda nas clínicas locais e assistir à administração de medicamentos. É essa a principal função da ONG de Arnold. Verificou-se que, embora ainda pudessem produzir alguns efeitos, diversos medicamentos examinados por Arnold tinham já ultrapassado de longa data o prazo de validade e estavam alterados. Outros eram impróprios para as situações em que se pretendia usá-los. Também pudemos confirmar um fenómeno correntemente experimentado noutros pontos de África, isto é, que as indicações e contra-indicações mencionadas em certas embalagens tinham sido modificadas para o mercado do Terceiro Mundo a fim de ampliar a utilização do medicamento muito para além da que é autorizada nos países desenvolvidos. Por exemplo, um analgésico fortíssimo, usado na Europa ou nos Estados Unidos para alívio das dores em casos de cancro terminal, era oferecido para tratar das dores menstruais e pequenas inflamações articulares. Não eram mencionadas contra-indicações. Também pudemos concluir que os médicos africanos, mesmo quando diagnosticavam correctamente, receitavam sistematicamente tratamentos erróneos porque não dispunham de instruções de uso adequadas.

 

P - Um dos distribuidores implicados era a Três Abelhas?

 

R - Todos sabem que a África é o caixote do lixo farmacêutico do mundo e que a Três Abelhas é um dos principais distribuidores de produtos farmacêuticos em África.

 

P - Então, neste caso, a Três Abelhas estava implicada? R - Em certos casos, o distribuidor era a Três Abelhas. P - 0 distribuidor culposo?

 

R - Exactamente.

 

P - Em quantos casos? Em que proporção? R - (depois de muitas evasivas) Em todos.

 

P - Repita, por favor. Está a dizer que, em todos os casos em que encontraram produtos defeituosos, o distribuidor era a Três Abelhas?

 

R - Acho que devíamos falar deste modo, porque o Arnold ainda pode estar vivo.

 

                   APÊNDICE B

 

P - Havia algum produto que despertasse particular interesse ao Arnold e à Tessa? Lembra-se?

 

R - Isto não está bem. Não pode estar bem.

 

P - Ghita, nós procuramos compreender a causa do assassínio da Tessa e o motivo que a faz pensar que, ao discutir estes assuntos, pomos o Arnold em maior perigo que o que ele já corre.

 

R - Estava por toda a parte.

 

P - Em toda a parte? Porque chora? Ghita!

 

R - Estava a matar gente. Nas aldeias, nos bairros de lata... 0 Arnold estava certo disso. Ele dizia que o medicamento era bom e que, com mais cinco anos de trabalho, conseguiriam de certeza um resultado perfeito. Não se Podia discutir a ideia do fármaco. Era rápido, barato e fácil para os doentes, mas os fabricantes tinham tido muita pressa. As experiências tinham sido planeadas selectivamente, não cobriam todos os efeitos colaterais. Eles tinham feito experiências com ratazanas grávidas, com macacos, com coelhos e com cães, e não tinham surgido problemas. Quando passaram aos seres humanos... pois bem, houve problemas, mas isso há sempre. É essa zona cinzenta que as companhias farmacêuticas exploram; os resultados dependem de estatísticas, mas as estatísticas provam tudo o que nós quisermos provar. Na opinião de Arnold, eles tinham-se empenhado excessivamente em colocar o produto no mercado antes de qualquer concorrente. Há tantas leis e tantos regulamentos que se poderia julgar isso impossível, mas o Arnold dizia que tal acontecia a toda a hora. Quando se está sentado em Genebra num escritório das Nações Unidas, todo forrado a veludo, as coisas têm um aspecto; mas, no local, o aspecto é muito diferente.

 

P - Quem era o fabricante?

 

R - Realmente, não quero adiantar mais neste assunto. P - Como se chamava o remédio?

 

R - Por que é que não fizeram mais experiências? A culpa não é dos quenianos. Quando se é do Terceiro Mundo, não se pode pedir isso. Tem-se de aceitar o que eles dão.

 

P - Era o Dypraxa? R - (inintelígível.)

 

P - Ghita, acalme-se, por favor, e diga-nos como se chama o remédio, para que serve e quem o fabrica.

 

R -A África tem oitenta e cinco por cento dos casos de Sida em todo o mundo, já sabiam? E quantos deles conseguem ser tratados? Um por cento! Isto já não é um problema humano, é um problema económico! Os homens não podem trabalhar, as mulheres não podem trabalhar! A doença é heterossexual, por isso é que há tantos órfãos! 0 povo não pode dar de comer às suas famílias! Não se faz nada! Morrem, e pronto!

 

P - Estamos a falar de um remédio para a Sida?

 

R - Não, não, enquanto o Arnold estiver vivo... Está relacionado. Onde há tuberculose, suspeita-se de Sida... . Nem sempre, mas de costume... É o que dizia o Arnold.

 

P - E a Wanza estava doente por causa deste remédio? R - (íninteligível)

 

P - A Wanza morreu por causa deste remédio?

 

R - Não, não, enquanto o Arnold estiver vivo! Sim, era o Dypraxa. Pronto, vão-se embora.

 

P - Por que é que eles iam à procura do Leakey?

 

R - Não sei! Vão-se embora!

 

P - Que estava por trás daquela viagem a Lokichoggio? Além do seminário de esclarecimento das mulheres?

 

R - Nada! Parem com isso P - Quem é Lorbeer?

 

R - (íninteligível) RECOMENDAÇÃO

 

Que se faça à Alta Comissão um pedido formal no sentido de ser dada protecção à testemunha em troca de um depoimento completo. Devem ser-lhe dadas garantias de que toda e qualquer informação por ela prestada acerca das actividades de Bluhm e da falecida não será utilizada de modo a pôr Bluhm em perigo, supondo que ainda esteja vivo.

 

RECOMENDAÇÃO REJEITADA POR MOTIVOS DE SEGURANÇA.

  1. Gridley (Superintendente)

 

justin olhava para a parede, de queixo apoiado na mão. Recordava Ghita, a segunda mulher mais bonita de Nairobi, discípula voluntária de Tessa, e que apenas sonhava trazer a um mundo cheio de maldade os padrões da vulgar decência. A Ghíta sou eu sem os meus bocadinhos maus, gostava Tessa de dizer.

 

Ghita, a última inocente, tomando chá verde a sós com uma Tessa muito adiantada na gravidez, ambas a resolver os problemas do mundo num jardim de Nairobi onde Justin, o absurdamente feliz futuro pai, vai podando, cortando ervas, aparando, abrindo caminho, de chapéu de palha, entre os canteiros de flores, a atar, a regar, no seu papel de pateta inglês de meia-idade.

 

«Vê onde pões os pés» - diziam-lhe elas, aflitas, prevenindo-o contra as formigas que depois de uma chuvada saíam do chão em colunas cerradas, capazes de matar um cão ou uma criança pequena com a mera força do seu grande número. Nos fins da gravidez, Tessa receava que as formigas confundissem a rega de justin com um aguaceiro intempestivo.

 

Ghita, permanentemente indisposta com tudo e com todos - dos católicos romanos, que se opunham à regulação de nascimentos no Terceiro Mundo e queimavam ostensivamente preservativos no Estádio de Nyayo, às companhias tabaqueiras norte-americanas, que metiam drogas nos cigarros para criar o vício nas crianças, aos mandões de guerra somalís, que lançavam bombas de fragmentação em aldeias indefesas, e às fábricas que faziam essas bombas.

 

- Quem é essa gente, Tessa? - murmurava ela, muito séria. - Que mentalidade é a deles, não me diz? Será este pecado original de que estamos a falar? Se quer que lhe diga, é uma coisa muito pior que isso. Na minha opinião, há no pecado original uma certa noção de inocência; mas hoje, Tessa, onde está a inocência?

 

E se Arnold aparecesse por ali - coisa frequente nos fins-de-semana, - a conversa tomava aspectos mais específicos. As três cabeças aproximavam-se mais, as expressões endureciam e, se Justin viesse por travessura regar mais perto para lhes refrescar o ambiente, punham-se a falar ostensivamente de ninharias enquanto ele não seguisse para um canteiro mais afastado.

 

Relatório dos agentes da Scotland Yard sobre uma reunião com representantes da firma «As Três Abelhas», Nairobi:

 

Tínhamos solicitado uma entrevista a Sír Kenneth Curtiss e foi-nos dado a entender que ele nos receberia. Ao chegarmos à sede das «Três Abelhas», disseram-nos que Sr Kenneth fora convocado para uma audiência pelo Presidente Moi, após o que era obrigado a voar para Basileia a fim de discutir estratégias com a Karel Víta Hudson (KVH). Foi-nos então sugerido que apresentássemos as nossas questões à Directora de Marketing das «3 Abelhas», uma tal Sra. Y Rampuri, embora naquela ocasião a Sra. Rampuri não estivesse disponível por se encontrar a tratar de assuntos de família. Fomos por isso aconselhados a tentar obter, numa data ulterior, uma entrevista com Sir Kenneth ou com a Sra. Rampuri. Quando explicámos as limitações do emprego do tempo, propuseram-nos uma reunião, uma hora mais tarde, com alguns «quadros superiores» e acabámos por ser efectivamente recebidos pela Sra. V. Eber e pelo Sr. D. K. Críck, ambos das Relações com os Consumidores. Igualmente presente o Sr. P R. Oakley que se apresentou como um advogado de Londres que se encontrava de passagem por Nairobí por motivo de outros assuntos».

 

A Sra. Wart Eber é uma africana alta e atraente, de vinte e alguns anos, diplomada em BusinesyAffairs por uma universidade americana.

 

0 Sr. Críck, de Belfast, tem a mesma idade e fala com um ligeiro sotaque da Irlanda do Norte,

 

Investigações posteriores indicaram que o Sr. Oaklcy, o advogado de Londres, é de facto Perey Ranclagh Oakley, QC* da firma de advogados Oadey, Oakley & Farmeloe.

 

Queens Councíi é o grau mais elevado entre os advogados ingleses. (N T)

 

0 Sr. Oakley rem defendido recentemente, com grande sucesso, importantes empresas farmacêuticas em acções de perdas e danos, entre as quais a KVH. Naquela altura ignorávamos esses factos.

 

Ver no Apêndice, a nota sobre D. K. Crick.

 

RELATÓRIO SOBRE A REUNIÃO

 

1 - Apresentação de desculpas pela ausência de Sir Kenneth K. Curtiss e da Sra. Y. Rampurí,

 

2 - Manifestações de pesar por parte das 3 As (Crick) em relação à morte de Tessa Quayle e de preocupação quanto ao destino do Dr. Arnold Bluhm.

 

3 As (Crick): 0 raio deste país está cada vez pior. 0 caso da Sra. Quayle é um horror, Era uma grande senhora que tinha ganho uma enorme reputação em toda a cidade. Como é que os poderemos ajudar, Senhores agentes? Será da maneira que quiserem. 0 chefe manda os seus cumprimentos pessoais e deu-nos ordem para lhes prestar todo e qualquer auxílio. Ele tem uma grande admiração pela polícia inglesa.

 

AGENTE: Nós sabemos que Arnold Bluhm e Tessa Quayle enviaram várias exposições às Três Abelhas a respeito de uma nova cura para a tuberculose que vocês estão a comercializar com o nome de Dypraxa,

 

3 As (Crick),. Ah enviaram? Temos que ver isso. É que a Sra. Eber tem mais a ver com as Relações Públicas e eu, neste momento, estou a apoiar vários serviços enquanto se espera por uma vasta reestruturação da empresa. 0 patrão tem a teoria de que ter um empregado quieto é estar a deitar dinheiro fora.

 

AGENTE: As exposições levaram a uma reunião entre Quayle, Bluhm e funcionários da vossa empresa. Gostaríamos de ver quaisquer notas que se tivessem guardado sobre esse encontro e quaisquer documentos que lhe digam respeito.

 

3 As (Crick),. Com certeza, Rob. Não há problema. Estamos aqui para vos ajudar, Quando diz que fez exposições para as Três Abelhas - sabe porventura qual era o departamento referido? É que nós temos muitas abelhas neste cortiço, Pode crer...

 

AGENTE: A Sra, Quayle dirigiu cartas, e-mails e telefonemas a Sir Kenneth, pessoalmente, ao seu gabinete, à Sra. Rampuri e praticamente a todos os directores da vossa agência em Nairobi. Enviou por fax muitas das cartas e mandou cópias pelo correio, Entregou outras pessoalmente,

 

3 As (Crick): Oprimo. Isso deve dar-nos alguma pista. E vocês têm cópias desta correspondência, não é verdade!

 

AGENTE: De momento, não.

 

3 As (Crick): Mas sabem quem participou na reunião, da nossa parte? AGENTE: Pensámos que vocês soubessem.

 

3 As (Crick). Oh diabo! Então o que é que vocês têm?

 

AGENTE: Testemunhos verbais e escritos de que essas exposições foram feitas. A Sra. Quayle chegou a ir visitar Sir Kenneth à sua quinta na última vez que ele esteve em Nairobi.

 

3 As (Crick): Ah sim? Isso para mim é novidade. Foi uma entrevista marcada? AGENTE: Não,

 

3 As (Crick): Então quem é que a convidou? AGENTE: Ninguém. Ela limitou-se a aparecer.

 

3 As (Críck): Eia! Valente menina! 0 que é que ela conseguiu?

 

AGENTE: Não deve ter sido grande coisa, porque ainda tentou falar com Sir Kenneth, no escritório, mas sem resultado.

 

3 As (Crick): É espantoso! Mas de facto o patrão é uma abelha muito ocupada. Há muita gente que o procura a pedir-lhe favores. Muitos poucos têm sorte. AGENTE: Não eram favores.

 

3 As (Crick): Então o que era?

 

AGENTE: Respostas. Tanto quanto sabemos a Sra. Quay1e também apresentou a Sir Keneth uma série de casos descrevendo os efeitos nocivos do medicamento em doentes devidamente identificados.

 

3 As (Crick): Palavra de honra?! Sim senhor! Eu não sabia que havia efeitos nocivos. Mas ela é uma cientista? Uma médica? Quer dizer, era?

 

AGENTE: Era uma cidadã empenhada, uma advogada, uma defensora dos direitos humanos. E estava profundamente ligada ao trabalho de apoio às populações.

3 As (Crick): Quando disse apresentou queria dizer o quê, precisamente? AGENTE: Entregue por mão própria neste edifício, um dossier com a indicação pessoal para Sir Kenneth.

 

3 As (Crick): Ficou com qualquer recibo? AGENTE: (Mostra-o.)

 

3 As (Crick): Ah, bom, bom. Recebido um pacote. A questão é de saber o que é que lá estava, não é verdade? Com certeza que têm cópias disso. Série de casos concretos. Têm que ter.

 

AGENTE: Esperamos vir a tê-los, mais tarde ou mais cedo.

 

3 As (Crick): Sim? óptimo. óptimo. Teremos muito interesse em lhes deitar uma olhadela, não é verdade, Viv? Dypraxa é, neste momento, a nossa linha prioritária, o que o patrão chama o nosso navio almirante. Há imensas mamãs e papás e meninos a sentirem-se muito melhor graças ao Dypraxa. Por isso, se Tessa descobriu qualquer inconveniente, isso é uma coisa que precisamos saber para tomar medidas imediatas. Se o patrão aqui estivesse seria o primeiro a dizer isto. Mas ele é um daqueles homens que vive na Corrente do Golfo. Mesmo assim espanta-me que ele não a tenha recebido. Não é nada o gênero dele. Embora com todos os problemas que ele tem...

 

3 As (Eber): Sabe Rob, nós temos um procedimento-base quanto a queixas sobre os nossos produtos farmacêuticos. Nós aqui somos apenas os distribuidores. Importamos e distribuímos. Desde que o governo queniano dê luz verde e os centros médicos gostem de utilizar esse medicamento, nós apenas actuamos como intermediários, está a ver? A nossa responsabilidade termina aí. Ouvimos opiniões sobre as condições de armazenamento, asseguramo-nos que as condições de temperatura e humidade sejam as indicadas. Mas basicamente a responsabilidade cabe ao fabricante e ao governo do Quénia.

 

AGENTE: E a respeito de ensaios clínicos?

 

3 As (Crick): Não há ensaios. É pena que não tenha estudado o assunto em casa, Rob. Um tipo com a sua experiência, bem estruturado, por assim dizer... AGENTE: Então estamos a falar de quê?

 

3 As (Crick): Quando um remédio está em distribuição num país como o Quénia, não seria de boa política continuar com ensaios. Uma vez que um remédio está a ser distribuído num determinado país e que nós temos connosco, a cem por cento, os rapazes da autoridade médica local, consideramos isso um caso arrumado.

 

AGENTE: Mas então que testes, que experiências é que vocês fazem, se é que fazem algumas?

 

3 As (Crick): Olhe. Não faça jogos de palavras comigo. Se está a falar de juntar aos registos de um bom remédio como este, alguns elementos que auxiliem o seu lançamento num país muito maior, fora do mercado africano - os Estados Unidos, por exemplo - isso é verdade. É verdade que, duma forma indirecta, podemos chamar experiências ao que aqui estamos a fazer. Mas só nesse sentido. Como preparação para uma situação que está à nossa frente, ou seja o dia em que as Três Abelhas e a KVH façam conjuntamente a sua entrada num novo e fabuloso mercado. Está a seguir a minha ideia?

 

AGENTE: Ainda não. Estou à espera de ouvir a palavra cobaia.

 

3 As (Crick): Tudo o que estou a dizer é que, no interesse de todas as partes, cada doente é, de certa maneira, uma experiência em benefício de um bem maior. Ninguém está a falar de cobaias. Não avance por aí.

 

AGENTE: 0 bem maior quer dizer o mercado americano?

 

3 As (Crick): Vá-se lixar! 0 que eu estou a dizer é que sempre que qualquer resultado é registado em qualquer doente, esses resultados são cuidadosamente guardados e examinados permanentemente em Seattle e Vancouver e Basileia, para futura referência. Para validação futura do produto quando pretendemos registá-lo noutro país. Para estarmos sempre totalmente seguros. E não esqueçam que sempre tivemos conosco os rapazes dos Serviços de Saúde do Quénia.

 

AGENTE: Para fazerem o quê? Enterrarem os cadáveres?

 

R R. OAKLEY, Advogado: Tenho a certeza que não disse essas palavras, Rob, e que nós não as ouvimos. Doug foi extremamente amável e generoso com as suas informações. Talvez generoso demais, não acha, Lesley?

 

AGENTE: Mas então o que é que fazem das queixas? Vão para o cesto dos papéis?

3 As (Crick): Na maior parte, Lesley, mandamo-las directamente para o fabricante, para os Srs. Karel Vira Hudson. E então, ou respondemos ao queixoso segundo as instruções da KVH ou então eles preferem responder directamente.

 

Ao gosto do cliente. Mas as coisas são assim, Rob. Podemos fazer mais qualquer coisa por vocês? Talvez possamos marcar outra reunião para quando vocês arranjarem documentos Para discutirmos?

 

AGENTE: Um momento, se faz favor. Segundo as nossas informações Tessa Quayle e o Dr. Arnold Bluhm vieram aqui pessoalmente em Novembro passado, a convite vosso - convite das Três Abelhas - para discutir os efeitos, positivos ou negativos, do vosso produto Dypraxa. Apresentaram nessa altura aos elementos da vossa direcção cópias das notas que tinham enviado pessoalmente a Sir Kenneth Curtiss. Está a dizer-nos que não têm qualquer registo dessa reunião, nem sequer quem lá esteve por parte das Três Abelhas?

 

3 As (Crick): Sabe a data, Rob?

 

AGENTE: Temos uma agenda que diz que a reunião foi marcada, para as 11 da manhã do dia 18 de Novembro, pelo gabinete da Sra. Rampuri, a vossa directora de marketing, que agora nos dizem não estar disponível.

 

3 As (Crick): Isso para mim é novidade, palavra de honra. E para si, Viv?

3 As (Eber): Também, Doug.

 

3 As (Crick): Oiçam. Querem que eu veja na agenda da Yvonne? AGENTE: Boa ideia. Nós podemos ajudar.

 

3 As (Crick): Espere aí, espere aí. Temos de obter primeiro a autorização dela. Obviamente. Yvonne é uma rapariga do melhor que há. Eu não seria capaz de consultar a agenda dela sem autorização, tal como não seria capaz de consultar a sua, Lesley.

 

AGENTE: Telefone-lhe. Nós pagamos.

3 As (Crick): Não pode ser, Rob. AGENTE: Porque não?

 

3 As (Crick): Veja uma coisa, Rob. Yvonne e o noivo foram a esse tal super-casamento em Mombaça. Quando nós falámos de «assuntos de família», era disso que falávamos, percebe? Uma festa fabulosa, garanto-lhe. Por isso está a ver que antes de segunda-feira nunca poderemos entrar em contacto com ela. Não sei se alguma vez já esteve num casamento em Mombaça, mas garanto-lhe que...

 

AGENTE: Esqueçamos a agenda, pronto. E as notas que eles lhe deixaram?

3 As (Crick): Está a referir-se aos chamados casos clínicos de que já falou? AGENTE: Entre outras coisas.

 

3 As (Crick): Se se trata de verdadeiros casos clínicos - descrição técnica dos sintomas, indicações, doses, efeitos nocivos - então, como já dissemos, mandamo-los sempre para o fabricante. Seja Basileia, seja Seatrie, seja Vancouver. Olha que porra! Estaríamos a ser criminosamente irresponsáveis se não o fizéssemos, não é verdade, Viv, se não mandássemos imediatamente esses casos para avaliação. Não é só a política da casa. Direi mesmo que aqui, nas Três Abelhas, isso é a Palavra das Escrituras, não acha?

 

3 As (Eber): Absolutamente. Sem qualquer dúvida, Doug. 0 patrão insiste nisso. Assim que há qualquer problema telefonamos logo à KVH a pedir socorro.

 

AGENTE: 0 que é que estão a dizer? Para que raio é que serve o papel nesta casa?

3 As (Crick): Estamos a dizer que vos estamos a ouvir com toda a atenção e que vamos montar uma pesquisa para tentar encontrar algum documento. Isto não é uma Repartição Pública, Rob. Nem é a Scotland Yard. Isto é África. Nós não andamos todos em bicha, porra. Temos maneiras melhores de gastar o nosso tempo, porra.

 

  1. R. OAKLEY (Advogado): Parece-me que há aqui duas questões. Talvez três. Vamos vê-las em separado. A primeira é: que certeza têm vocês que o encontro entre a Sra. Quayle, o Dr. Bluhm e os representantes das Três Abelhas teve realmente lugar?

 

AGENTE: já lhes dissémos que temos provas documentais, escritas pelo Dr. Bluhm na sua agenda de que a reunião foi fixada para o dia 18 de Novembro pelo gabinete da Sra. Rampuri.

 

  1. R. OAKLEY (Advogado): Fixada é uma coisa, realizada é outra. Esperemos que a Sra. Rampuri tenha boa memória. Sabe que ela está sempre em reuniões. 0 meu segundo ponto é a questão do tom. Tanto como vocês poderão dizer, as exposições alegadamente apresentadas são feitas em tom hostil? É possível que tenha havido uma leve ameaça de litígio judicial? Ela era advogada, segundo o que vocês dizem. E Dr. Bluhm é praticamente um cão de fila profissional da indústria farmacêutica, segundo ouvi dizer. Não estamos a lidar com gente anónima.

 

AGENTE: E se fossem hostis? Quando um doente morre por causa de um remédio, as pessoas têm direito a ser hostis.

 

  1. R. OAkEY (Advogado): Evidentemente, Rob, se a Sra. Rampuri farejou uma reclamação, ou qualquer coisa ainda pior, ou se foi o patrão que sentiu isso, desde que tenha recebido documentos escritos (o que neste caso é aparentemente discutível), então o primeiro reflexo seria mandá-los para o departamento jurídico. outra hipótese de pesquisa, não é Doug?

 

AGENTE: Eu pensava que o Sr. é que era o departamento jurídico.

 

  1. R. OAKEY (Advogado): (Com humor) Eu sou um último recurso, Rob. Não um primeiro. Sou caro demais para isso.

 

3 As (Crick): Havemos de tornar a ver-nos, Rob. Foi um prazer. Na próxima vez iremos almoçar. Mas não esperem grandes novidades, é a minha opinião. É o que eu lhes disse. Aqui não passamos o dia a preencher papéis. Temos muitas panelas ao lume e, como o patrão gosta de dizer, As Três Abelhas fazem negócios-relâmpago. Foi assim que a nossa empresa se tornou o que ela é.

 

AGENTE: Por favor, Sr. Crick, nós ainda gostaríamos de ocupar mais alguns minutos do vosso tempo. Estamos interessados em falar com um senhor chamado Lorbeer, provavelmente Dr. Lorbeer, alemão, suíço ou talvez holandês. Não sabemos o primeiro nome mas julgamos saber que ele esteve ligado de perto à carreira do Dypraxa aqui em África.

 

3 As (Crick): Ligado como, Lesley? AGENTE: Isso interessa?

 

3 As (Crick): Acho que sim. Se Lorbeer é médico, o que voces parecem pensar que é, é mais natural que trabalhe para os fabricantes do que para nós. A Três Abelhas não é uma instituição médica. Somos leigos que ocupam o mercado. Vendedores. Por isso vão ter que perguntar mais uma vez à KVH. Lamento, Les. AGENTE: Conhecem ou não conhecem Lorbeer? Não estamos em Vancouver ou Seattle ou Basileia. Estamos em África. É o vosso território, o vosso produto. Importam a coisa, fazem propaganda, distribuem-na e vendem-na. 0 que nós dizemos é que Lorbeer esteve ligado ao vosso remédio aqui em África. Ouviram ou não ouviram falar de Lorbeer?

 

  1. R. OAKEY (Advogado): Acho que já demos a nossa resposta, não é verdade, Rob? Dirijam-se aos fabricantes.

 

AGENTE: E uma mulher chamada Kovacs, provavelmente húngara?

3 As (Eber): Médica?

 

AGENTE: 0 nome! Conhecem o nome? 0 título não interessa. Algum dos Srs. ouviu o nome de Kovacs? Uma mulher? Relacionada com o mercado do Dypraxa?

3 As (Crick): Já viram na lista dos telefones? É o que eu faria, Rob.

 

AGENTE: Também gostaríamos de falar com um Dr. ou Dra. Enrich...

 

R R. OAKEY (Advogado): Parece, Srs. agentes, que não acertam uma. Tenho imensa pena de não podermos ser-lhes mais úteis. Fizemos tudo o que pudemos mas parece que não estávamos nos nossos dias.

 

Nota acrescentada uma semana após esta reunião:

 

Apesar das garantias dadas pelas Três Abelhas de que estavam a ser feitas pesquisas, somos informados de que não foram encontrados quaisquer documentos, cartas, casos clínicos, e-mails ou faxes de Tessa Abbott (ou Quayle) ou Arnold Bluhm. KVH nega ter qualquer conhecimento da existência de tais documentos, e o mesmo acontece com o Departamento Jurídico das Três Abelhas em Nairobi. As nossas tentativas para tornar a falar com Crick ou com Eber também não tiveram sucesso. Crick está «a frequentar um curso de reciclagem na África do Sul», Eber foi «transferida para outro departamento». Os substitutos ainda não foram nomeados. A Sra. Rampuri continua indisponível «enquanto se processa a reestruturação da empresa».

 

RECOMENDAÇÃO:

 

Q-e a Scotland Yard faça uma exposição directa a Sir Kenneth K. Curtiss solicitando-lhe um relatório completo sobre as relações da sua empresa com o falecido Dr. Bluhm e que ele dê instruções para que os seus funcionários façam uma pesquisa exaustiva sobre a agenda da Sra. Rampuri e sobre os documentos que desapareceram. A Sra. Rampuri deverá apresentar-se imediatamente para ser entrevistada.

 

(Tem rubrica do Superintendente GridIcy, mas não há registo de terem sido dadas quaisquer ordens no sentido destas instruções.)

 

APÊNDICE

 

Crick, Douglas (Doug) James, nascido em Gibraltar a 10. 10. 70 (segundo o Serviço de Registo Criminal e o Departamento do Procurador-Geral).

 

0 indivíduo citado é filho ilegítimo de Crick, David Angus, Royal Navy (compulsivamente demitido). Crick, David passou onze anos em prisões do Reino Unido, por diversos crimes, incluindo dois homicídios. Vive agora opulentamente em Marbella, Espanha.

 

Douglas James Crick, o investigado, chegou ao Reino Unido vindo de Gibraltar, aos nove anos de idade, com o pai (ver acima) que foi preso ao desembarcar.

0 investigado foi entregue aos cuidados de uma família a troco de um subsídio estatal. Durante esse período o investigado compareceu várias vezes em Tribunais de Menores por várias infracções incluindo tráfico de droga, agressões graves, proxenetismo e conflitos violentos. Foi também suspeito de fazer parte de um gang que matou dois jovens negros em Nottingham (1984), mas não foi formalmente acusado.

 

Em 1989 o investigado afirmou estar regenerado e ofereceu-se como voluntário para prestar serviços à polícia. Foi rejeitado mas parece ter sido utilizado como informador.

 

Em 1990 o investigado conseguiu entrar como voluntário no Exército Britânico, recebeu treino de forças especiais e foi colocado nos Serviços Secretos do Exército, na Irlanda do Norte (devendo trajar à paisana) e promovido a sargento. Serviu três anos na Irlanda antes de ser compulsivamente despromovido ao posto de soldado raso. Não se dispõe de outros registos.

 

Embora D. J, Críck nos fosse apresentado como um funcionário das relações públicas da firma das Três Abelhas, ele era, até há pouco, mais conhecido como orientador dos Serviços de segurança e de protecção pessoal. Consta que goza da confiança pessoal de Sir Kenneth Curtiss, de quem tem sido, por diversas vezes, guarda-costas pessoal, nomeadamente nas visitas de Curtiss ao Golfo, à América Latina, Nigéria e Angola, para referir apenas os últimos doze meses.

 

Importunado na sua quinta, pobre homem, Tím Donohue está a falar à mesa do Monopólio, no jardim da Glória. Telefonemas a horas impróprias. Cartas malcriadas enviadas para o clube. Varra tudo isso para debaixo do tapete, é o nosso conselho.

 

São assassinos.

 

Eles matam, diz Lesley na escuridão da carrinha parada em Chelsea. já deu por isso.

 

Com estas recordações ainda a ecoarem na memória, justin deve ter adormecido à mesa de contagem porque acordara ao som duma batalha aérea na madrugada entre pássaros da terra e gaivotas; uma observação mais atenta mostrou-lhe que era o crepúsculo e não a madrugada. E pouco depois sentiu-se perdido. Tinha lido tudo o que havia para ler e sabia, se é que alguma vez tivera dúvidas, que sem o computador de Tessa só podia ver um canto da tela.

 

 

Guido esperava à porta da sua casa envergando um casaco preto demasiado grande e uma mochila que não encontrava apoio suficiente nos seus magros ombros. Numa das suas mãos, magríssima, segurava uma caixa de lata em que levava os seus remédios e as suas sanduíches. Eram seis da manhã. Os primeiros raios do sol primaveril faziam brilhar as teias de aranha nas ervas da encosta. Justin parou o jipe o mais perto possível da casa; a mãe de Guido espreitava pela janela enquanto Guido, recusando a mão de Justin, se içava para o lugar do passageiro, ficando todo encolhido no seu lado, braços, joelhos, mochila, caixa de lata e abas do casaco, tal como um passarinho no fim do seu primeiro voo.

 

- Há quanto tempo estás à espera? - perguntou Justin, mas a única resposta de Guido foi franzir a cara. Guido é um mestre do autodiagnóstico, dizia Tessa, muito impressionada com uma visita que lhe fizera no hospital pediátrico de Milão. Quando se sente mal, chama a enfermeira. Se está muito mal chama a enfermeira-chefe. E se acha que pode estar a morrer, pede o médico. E não há nenhum deles que não venha logo a correr.

 

- Tenho que estar na escola às nove menos cinco, - disse Guido secamente.

- Não há problema. - Estavam a falar inglês, para grande orgulho de Guido.

- Se vou atrasado, chego à escola sem poder respirar. Se chego muito cedo, tenho que andar por ali e dou nas vistas.

 

- Entendido, - disse justin e olhando pelo espelho viu que Guido estava pálido como cera, a mesma palidez que tinha quando precisava de uma transfusão. - E para o caso de estares a pensar nisso, nós vamos trabalhar para o lagar e não para a casa - acrescentou Justin, tranquilizador.

 

Guido não disse nada mas quando chegaram à estrada sobre o mar, a cor tinha-lhe voltado às faces. Às vezes também não posso suportar a proximidade de Tessa, pensou Justin.

 

A cadeira era baixa demais para Guido e o banco alto demais, por isso Justin foi à casa e trouxe duas almofadas. Mas quando voltou já Guido, de pé, estava calmamente a fazer as ligações do computador portátil de Tessa - as ligações telefónicas para o modem, os transformadores para o computador e a impressora e finalmente o próprio computador que ele manobrava com uma familiaridade desrespeitosa, abrindo-o primeiro com um piparote, ligando depois com uma palmada a ficha do cabo de alimentação, mas - graças a Deus - sem ter ligado tudo à corrente. Com uma confiança insolente Guido pôs de lado o modem, a impressora e tudo aquilo de que não precisava e deixou-se cair nas almofadas que Justin pusera na cadeira,

 

- OK - anunciou ele.

- OK, o quê?

 

- Ligue tudo, - disse Guido em inglês, apontando para a tomada de corrente junto aos pés. - Vamos a isto. - E entregou o cabo a Justin para que o ligasse. A voz do rapaz, ao ouvido hipersensível de Justin, tinha ganho um sotaque americano desagradável.

 

- Pode haver qualquer azar? - perguntou Justin, nervoso.

- Como quê, por exemplo?

 

- Apagar tudo, por engano.

- Ao ligar? Impossível.

 

- Porque não?

 

Num gesto teatral Guido percorreu todo o ecrã com a sua mão esquelética. - Tudo o que aqui está, ela salvou. Se ela não protegeu qualquer coisa é porque não quís e por isso não está cá. É ou não é razoável?

 

Justin sentiu uma nota de hostilidade, como lhe acontecia sempre que lhe falavam em calão de computador.

 

- Então está bem. Se é o que tu dizes vou ligar. - E agachando-se, descontraído, meteu a ficha na tomada. - Está bem?

 

- Ena pá!...

 

Inquieto, Justin levantou-se e não viu absolutamente nada passar-se no ecrã. Sentiu-se tonto e com a boca seca. Estou a meter-me onde não devo. Sou uma besta. Devia ter recorrido a um perito, não a uma criança. Devia ter aprendido a trabalhar com esta porcaria. Mas o ecrã iluminou-se e mostrou-lhe um desfile de crianças africanas, sorrindo e acenando, alinhadas junto a uma clínica com telhado de zinco, seguindo-se uma vista aérea de rectângulo de várias cores espalhados por um fundo azul-cinzento.

 

0 que é isso?

 

É o ambiente de trabalho.

 

Justin espreitou sobre o ombro de Guido e viu: Minha agenda... Vizinhança na rede... Atalho Para ligar. - E agora?

 

- Quer ver pastas? Eu mostro-lhe as pastas. Nós entramos e o Sr. lê.

 

- Eu quero ver o que a Tessa via. Aquilo em que ela estava a trabalhar. Quero seguir as suas pisadas, ler tudo o que aí está. Pensava que já tinha explicado tudo isto.

 

Na sua ansiedade, Justin ressentia-se da presença de Guido. Queria de novo Tessa só para ele, ali na mesa de contagem. Queria que o computador não existisse. Guido dirigiu uma seta para um quadro que ocupava o canto inferior esquerdo do ecrã.

 

0 que é isso em que estás a carregar?

 

É o rato. Estas são as nove últimas pastas que ela abriu. Quer ver as anteriores? Eu mostro-lhas, não há problema.

 

Apareceu um quadro intitulado Pasta aberta. Documentos Tessa. Guido deslocou de novo o rato.

 

- Ela abriu umas vinte e cinco pastas nesta categoria - disse Guido.

- Têm títulos?

 

Guido desviou-se para o lado, convidando Justin a ver por si próprio: Pharma*                     Epidemias                     Experiências

- Geral                     - História                   - Rússia

 

- Poluição                   - Quénia                     - Polónia

- No 3º Mundo               - Tratamentos                 - Quénia

- Cães de Fila               - Novas                       - México

 

- Subornos                   - Velhas                     - Alemanha

 

- Processos                 - Charlatães                 - Mortalidade

- Dinheiro                                                 - Wanza

 

- Protestos

- Hipocrisia

- Experiências

- Fraudes

 

- Coberturas

 

Guido deslocou a seta e clicou outra vez. - Arnold. Quem é este Arnold, que aparece de repente? - perguntou.

 

- Um amigo dela.

 

- Também tem documentos. Eia, tantos documentos!

- Quantos?

 

- Vinte. Mais. - Outro clic. - Bíts and Bobs. Isto é alguma expressão idiomática?

 

- É. Em inglês. Não americano, parece-me, mas puramente inglês. - Respondeu Justin, secamente. - 0 que é isso agora? 0 que é que estás a fazer? Vais muito depressa.

 

* Radical grego (droga, remédio) utilizado por Le Carré para designar a grande indústria farmacêutica. (N. T.)

 

- Não estou nada. Até estou a ir devagar, por sua causa. Hii!... Há uma data de pastas. Pasta uma, pasta duas. E mais outras - clicou outra vez. - 0 linguajar americano do rapaz fazia Justin perder a cabeça. Onde é que ele apanhou isto?! Anda a ver muitos filmes americanos. Vou falar com o director da escola.

- Estás a ver isto? É uma espécie de cesto de papéis. Onde ela põe as coisas que pensa deitar fora.

 

- Mas não deitou, pelos vistos.

 

- Se ’tá aqui é porque não deitou. 0 que não ’tá, deitou fora. - Outro clic.

- 0 que é o AOL? - perguntou Justin.

 

- American On Line. I. S. P Internet Service Provider. Tudo o que ela apanhou da AOL está armazenado neste programa, como os seus velhos e-mails. Mensagens novas, só estando on-líne. Se quiser enviar mensagens tem de estar on-line. Se não está on-line, não há mensagens novas, recebidas ou enviadas.

- Isso já eu sei. É óbvio.

 

- Quer que o ponha on-líne?

 

- Ainda não, Quero ver o que já lá está.

- Tudo?

 

- Sim.

 

- Isso dá p’a dias e dias de leitura, semanas, talvez. É só apontar o rato e clicar. Quer sentar-se aqui?

 

- Tens a certeza absoluta que não pode haver nenhum azar? - insistiu Justin sentando-se enquanto Guido continuava de pé, atrás dele.

 

- 0 que está salvo, está salvo. É como eu digo. Ela pôs o salvo para isso mesmo.

 

- E eu não posso perder nada?

 

- Disparate, meu! Mesmo que clique no «delete», o computador pergunta-lhe se tem a certeza que quer apagar. Se não tem a certeza, diga que não. Carregue no não. Carregar no não quer dizer Não: Não tenho a certeza. Clique. É tudo o que há a fazer.

 

Justin, cautelosamente, vai clicando o seu caminho através do labirinto de Tessa, enquanto Guido, o instrutor, de pé, a seu lado, profere paternalisticamente umas ordens mágicas na sua voz cibernética de além-Atlântico. Quando uma manobra é nova para Justin ou lhe causa confusão, ele pede uma pausa, puxa uma folha de papel e escreve os passos necessários sob o imperioso ditado de Guido. Novas paisagens de informação desenrolam-se ante os seus olhos. Vai para aqui, para ali, volta atrás. Tudo é muito vasto, quiseste ir longe demais, nunca vou conseguir alcançar-te, diz ele a Tessa. Nem que eu trabalhe nisto durante um ano, como saberei se descobri ou não o que tu procuravas?

 

Notícias soltas fornecidas pela Organização Mundial de Saúde.

 

Registos de obscuras conferências médicas realizadas em Genebra, Amsterdão e Heidelberg sob os auspícios de um desconhecido posto avançado do crescente império médico das Nações Unidas.

 

Prospectos de propaganda de impronunciáveis especialidades farmacêuticas e das suas virtudes para melhorar a vida humana.

 

Notas para si própria. Memorandos. Uma chocante citação da Time, emoldurada por pontos de exclamação, escrita em maiúsculas negras. Visíveis do outro lado da sala para quem tenha olhos e não queira desviá-los. Uma generalidade aterradora para estimular a sua pesquisa sobre as particularidades:

 

Em 93 ENSAIOS CLÍNICOS OS INVESTIGADORES ENCONTRARAM 691 REAÇÕES NEGATIVAS MAS SÓ FORAM ASSINALADAS 39 AOS INSTITUTOS DE SAÚDE.

 

Uma ficha inteira consagrada a PW Quem diabo será PW? Como é que os vizinhos lhe chamam? Desespera. Quer voltar para o papel que compreende. Mas quando clica Bits and Bobs lá aparece PW a olhá-lo de frente. Depois de outro clic, tudo se esclarece: PW são as iniciais de PharrnaWatch*, um autodenominado sítio semiclandestino, baseado no Kansas, com «a missão de denunciar os excessos e ilegitimidade da indústria farinacêutica» para não falar da «desumanidade das autodenominadas organizações humanitárias que estão a devastar as nações mais pobres».

 

Notícias sobre as chamadas conferências Off-Broadway planeando marchas sobre Seattle ou Washington a fim de manifestarem a sua hostilidade ao Banco Mundial e ao Fundo Monetário Internacional.

 

Sonoros ataques à «Grande Hidra das Companhias Americanas» e «Um Monstro chamado Capital». Um artigo quase frívolo, vindo não se sabe de onde, intitulado «o Anarquismo Volta a Estar na Moda».

 

Clica de novo para encontrar ataques contra a palavra Humanidade. Descobre que «Humanidade» é uma palavra-chave para Tessa. Sempre que a encontra, diz ela a Bluhm num longo e-mail, Tessa puxa do revólver.

 

Cada vez que oiço um farma justificar os seus actos por razões de Humanidade, Altruísmo, Dever para com o próximo, apetece-me vomitar e não é por estar grávida. É porque, ao mesmo tempo, leio que os farma-gigantes americanos estão a tentar prolongar a duração das suas patentes para poderem conservar o seu monopólio e manter os preços que querem; e servem-se do Departamento de Estado para assustar o Terceiro Mundo e o fazer desistir de fabricar os seus próprios genéricos por uma fracção do preço dos laboratórios. Pois sim, eles lá fizeram um gesto cosmético no que toca aos remédios contra a Sida. Mas no que toca a...

 

Centro de Vigilância sobre a Indústria Farmacêutica. (N. T)

 

já sei isto tudo, pensa ele, e clica para o desktop e daí para Documentos Arnold.

 

- 0 que é isto? - pergunta Justin com brusquidão, levantando as mãos do teclado como para rejeitar qualquer responsabilidade. Pela primeira vez Tessa está a pedir-lhe uma palavra de passe antes de o deixar entrar: a ordem é intermitente: PASSWORD, PASSWORD como a tabuleta de um bordel, acendendo e apagando.

 

- Merda - diz Guido.

 

- Ela deu-te alguma palavra de passe quando te ensinou a trabalhar com esta coisa? - pergunta Justin, ignorando o palavrão do rapaz.

 

Guido leva uma mão à boca, inclina-se para a frente e com a outra mão prime cinco teclas. - Eu -, diz ele com orgulho.

 

Aparecem cinco asteriscos e mais nada.

 

- 0 que é que estás a fazer? - pergunta Justin.

- A escrever o meu nome: GUIDO.

 

- Porquê?

 

- Achei que era essa a palavra de passe, - passando a falar, com o nervoso, num italiano palavroso. - 0 1 não é uma letra. É um um. 0 0 é um zero. A Tessa era maníaca a esse respeito. Uma palavra de passe tem que ter pelo menos um número. Insistia muito nisso.

 

- Então porque é que só vejo estrelinhas?

 

- Para evitar que o Sr. veja «Guido». Senão podia olhar sobre o meu ombro e ver a palavra de passe. Mas isto não dá! «Guido» não é a palavra que ela escolheu! - Enterra o rosto nas mãos.

 

- Então só podemos tentar adivinhar, - sugere Justin para o acalmar.

 

- Adivinhar como? Adivinhar o quê? Sabe quantas tentativas tem? Três!

- Queres dizer que se não acertarmos não podemos entrar? - diz Justin, tentando corajosamente pôr o caso mais claro. - Eh! Guido! Ouve lá!

 

- Claro que não entramos!

 

- Muito bem. Vamos pensar. Que outros números é que são também letras?

- Pode ser um E ao contrário, para fazer três. S pode ser cinco. Há para aí meia dúzia delas. Mais. É horrível... - sempre com a cara escondida nas mãos.

- E o que é que acontece se esgotarmos as três tentativas?

 

- 0 computador fica trancado e não podemos fazer mais nada. Já pensou o que isso é?

 

- Nunca mais?

- Nunca mais!

 

Justin sente a mentira na voz do rapaz e sorri.

- tu pensas que só temos três tiros?

 

- Eu não sou nenhum manual. Nem um dicionário, ouviu? 0 que eu não sei, digo que não sei. Podem ser três, podem ser dez. Agora tenho que ir para a escola. Talvez haja uma linha de socorro.

 

- Pensa bem, Guido. Depois de ti, de que é que ela gostava mais?

 

Guido tira as mãos da cara. - De si. - Quem é que havia de ser? Justin!

- Ela não faria isso.

 

- Porque não?

 

- Porque isto é o reino dela, não o meu.

 

- Isso é uma ideia sua! ffidícula! Experimente JUSTIN. Tenho a certeza que dá certo!

 

- Espera. A seguir a Justin qual seria a coisa de que ela gostava Mais?

- Eu não era marido dela, pois não? 0 senhor é que era!

 

Justin pensa em Arnold, depois em Wanza. Experimenta GHITA, com 1 em vez de 1. Não acontece nada. Dá um gemido para dizer que aquele jogo pueril não tem nada com ele. Mas o seu espírito já corre em todas as direcções e ele não sabe qual seguir. Pensa em Garth, o falecido pai dela e em Garth, o filho morto, e afasta os dois por razões estéticas e emocionais. Pensa em Tessa mas sabe que ela não é egomaníaca. Pensa em Arnold mas ela não seria tão parva que bloqueasse a pasta de Arnold com a palavra Arnold. Pensa em Maria, o nome da mãe dela, depois em Mustafa e Hammond mas nenhum deles lhe parece uma palavra de passe. Olha para a cova de Tessa e vê as frésias amarelas sobre a tampa do caixão que desaparece sob as pasadas de terra vermelha. Vê Mustafa, de pé na cozinha de Woodrow agarrado ao seu cesto de flores. Vê-se a si próprio, de chapéu de palha, a tratar do seu jardim de Nairobi. Escreve a palavra FREEsiA teclando o 1 como 1; aparecem sete asteriscos mas não acontece nada. Escreve outra vez a mesma palavra, com um 5 erri vez de S.

- Achas que ainda aceita? - pergunta baixinho.

 

- Eu tenho doze anos, bolas! Doze! - Acalma-se um pouco. -Talvez ainda tenha uma tentativa. Mas depois acabou, Eu, por mim, desisto. É o computador dela. Agora é seu. Deixem-me fora disto.

 

Justin entra FRE5iA, deixando o S como 5 mas voltando a teclar o 1 e dá por si a olhar para um ensaio polémico e inacabado. Graças às suas frésias amarelas invadiu a pasta Arnold e encontrou um prospecto sobre direitos humanos. Guido está a dançar à volta da sala.

 

- Ganhámos! Eu bem disse! Somos fantásticos! Ela é fantástica!

 

Porque é que os homossexuais africanos não podem assumir-se como tal? Oiçam as palavras de conforto do grande guardião da decência pública, o Presidente Daniel Arap Moi*:

 

«Palavras como lesbianismo e homossexualidade não existem nos idiomas africanos.» - Moi, 1995.

 

«A homossexualidade é contrária às normas e religiões africanas e é até considerada um grave pecado do ponto de vista religioso.» - Moi, 1998.

 

Como seria de esperar, o Código Queniano concorda obedientemente com Moi a cem por cento. As Secções 162-165 impõem uma PENA DE PRISÃO DE CINCO A CATORZE ANOS por «Relações carnais contra a Ordem Natural. E a Lei vai mais longe.

 

- Lei Queniana define qualquer relação entre homens como um ACTO CRIMINOSO.

 

- Nunca se fala de relações sexuais entre mulheres.

 

Quaís são as CONSEQUÊNCIAS sociAis desta atitude antediluviana?

 

- Os homossexuais casam-se ou têm ligações com mulheres para esconder a sua sexualidade.

 

- Vivem infeliZes, bem como as suas mulheres.

 

- Não é fornecida qualquer educação sexual aos homossexuais, mesmo no caso da gravíssima e eternamente desmentida epidemia de Sida no Quénia.

- Extractos da sociedade queniana são obrigados a viver numa situação de

 

mentira e dissimulação. Médicos, advogados, homens de negócios, sacerdotes e mesmo políticos vivem no terror da chantagem e da prisão.

 

- Estabelece-se um ciclo auto-alimentado de opressão e corrupção afundando cada vez mais a nossa sociedade num Pântano.

 

E aqui, o artigo pára abruptamente. Porquê?

 

E por que diabo é que ela mete na pasta de Arnold um artigo sobre gays polémico e incompleto e o tranca com uma palavra de passe?

 

justin dá pela presença de Guido sobre o seu ombro. 0 rapaz acabou as suas peregrinações e está a olhar, espantado, para o ecrã.

 

- É altura de te levar à escola, - diz justin.

 

- Não é preciso ir já! Ainda temos dez minutos! Quem é o Arnold? homossexual? 0 que é que os gays fazem uns com os outros? A minha mãe fica louca quando eu lhe pergunto.

 

- Temos que ir. Podemos ficar bloqueados por um tractor.

 

Ainda em exercício em 2001. (N. T)

 

- Espere. Deixe-me abrir a caixa de correio dela. Deixa? Pode ser que alguém lhe tenha escrito. Talvez o Arnold. Não quer espreitar a caixa de correio? Talvez ela lhe tenha mandado uma mensagem que ainda não leu. Posso abrir a caixa? Posso?

 

Justin, gentilmente, pousa as mãos nos ombros de Guido - Abrimo-la quando voltares da escola. Agora vamos. Vai tudo correr bem. Ninguém se vai rir de ti. Toda a gente falta à escola uma vez por outra. Isso não quer dizer que sejas um inválido. Só que és normal.

 

0 trajecto até à escola de Guido e volta demorou mais de uma hora e durante todo esse tempo Justin não se entregou a quaisquer fantasias ou especulações prematuras. Quando regressou ao lagar não se sentou ao computador mas preferiu dedicar-se à pilha de papéis que Lesley lhe tinha dado na carrinha, em frente do cinema. Com uma confiança muito maior de que a que sentira com o computador, pegou na fotocópia de uma carta toscamente escrita à mão num papel com linhas que tinha atraído a sua atenção no seu primeiro Folhear dos papéis. A carta não tinha data. Segundo uma nota com as iniciais de Rob, ela tinha sido achada entre duas páginas de uma enciclopédia médica que os dois polícias tinham encontrado no chão da cozinha do apartamento de Bluhm, ali abandonada pelos frustrados ladrões. 0 papel era velho. 0 envelope, dirigido à Caixa Postal da ONG de Bluhn. 0 carimbo era o da ilha de Lamu, antiga base dos mercadores árabes de escravos negros.

 

Meu querido, querido Arni.

 

Nunca esqueci o nosso amor nem as carícias e bondades que tivestes para mim, meu querido amígo. Foi uma grande sorte e uma grande felissidade que tivesses onrado a nossa bela ilha para as tuas férias! Tenho que dizer obrigado mas é a deus que eu agradeço o teuJeneroso amor e prezentes e também a ciência que virá para mim nos meus estudos graças a ti e também à motoreta. Por ti meu querido eu vou trabalhar dia e noite, sempre alegre no meu coração sabendo que o meu amado está comigo em cada paço, amparando-me amando-me.

 

E a assinatura? Tal como Rob fizera, Justin esforçou-se por decífrá-la. 0 estilo da carta, como Rob apontava na sua nota, sugeria uma mão árabe, com a sua letra alongada com os círculos perfeitamente desenhados. A assinatura, feita com floreados, parecia ter uma consoante a cada ponta, separadas por uma vogal. Plp? Pet? Par? Dor? Era inútil dar palpites. Mas em todo o caso podia afirmar-se que era uma assinatura árabe.

 

Mas seria uma mulher ou um homem? Uma mulher de Lamu fatalmente pouco educada, seria capaz de escrever tão corajosamente? Guiaria uma motoreta?

 

Atravessando o lagar até à mesa de pinho, justin parou em frente do computador, mas em vez de escrever Arnold outra vez, sentou-se e olhou fixamente para o ecrã vazio.

 

- Então quem é que Arnold ama, realmente? - pergunta ele com falso desinteresse. Estão estendidos na cama, lado a lado, numa noite quente de domingo em Nairobi. Tessa tinha regressado essa manhã da primeira excursão ao terreno na companhia de Arnold. E declarara a Justin que tinha sido uma das grandes experiências da sua vida.

 

- Arnold ama todo o gênero humano - responde ela, lânguida. - Sem qualquer excepção.

 

E deita-se com todo o gênero humano?

 

É bem possível. Não lhe perguntei. Queres que pergunte?

 

Não, não quero. Estou é a pensar em lhe fazer a pergunta pessoalmente. Não é necessário.

 

De certeza? Absoluta. E beija-o. E volta a beijá-lo. Até conseguir trazê-lo para a vida.

 

- E nunca me faças outra vez essa pergunta, - diz ela, depois de algum tempo, com a face pousada no canto do seu ombro e as pernas entrelaçadas nas dele. - Digamos que Arnold perdeu o coração em Mombaça. - E inclina-se sobre ele, de cabeça baixa e ombros rígidos.

 

Em Mombaça?

 

Ou em Lamu, duzentos quilómetros mais ao norte?

 

Voltando à mesa das contas, justin escolheu desta vez o relatório feito por Lesley sobre «BLUHM, Arnold Moise, médico, vítima desaparecida ou suspeito». Nenhum escândalo, nenhum casamento, nenhuma companhia conhecida, nenhuma ligação registada. Em Argel o Investigado vivera numa residência para médicos de ambos os sexos, ocupando um quarto de solteiro. Nenhuma ligação registada na ONG. 0 familiar mais próximo é a sua meia-irmã adoptiva, uma belga residente em Bruges. Arnold nunca solicitara pagamento de viagens ou estadia para qualquer companheirola e nunca ocupara senão quartos individuais. 0 seu apartamento em Nairobi era descrito por Lesley como «monástico com uma forte sugestão de abstinência. 0 Investigado vivia sozinho e sem criados. Na sua vida privada parece dispensar todo e qualquer conforto, incluindo água quente».

 

- Todo o Muthaiga Club está convencido que o nosso filho foi feito por Arnold. - Justin dá esta informação a Tessa com um ar perfeitamente amável, enquanto ambos comem o seu peixe num restaurante italiano da periferia.

 

- Quem é todo o Muthaiga Club? - pergunta ela.

 

- Elena a Grega, suponho eu, apoiada por Glória que é apoiada por Woodrow, - prossegue Justin jovial. - 0 que é que eu devo fazer a esse respeito, ignoro-o completamente. Levar-te até lá e fazermos amor em cima do bilhar seria uma solução, se estivesses de acordo.

 

- Seria então um pecado duplo. Assente num duplo preconceito.

- Porquê duplo?

 

Tessa não responde, baixa os olhos e abana lentamente a cabeça: - Eles são uma data de sacanas cheios de preconceitos. Fiquemos por aqui.

 

Naquela altura, ele fizera o que ela mandava. Mas agora já não. Porquê duplo? perguntou para si próprio, olhando o ecrã vazio.

 

Pecado simples seria o adultério de Arnold. Mas duplo? Duplo quer dizer o quê? Pela raça? Arnold é discriminado pelo seu duplo adultério e pela sua raça? Daí a sua dupla discriminação?

 

Talvez. A menos que...

 

A menos que estivesse a falar o frio advogado que há nela: o mesmo que decidiu ignorar as ameaças de morte e não abandonar a sua luta pela justiça. A menos que o primeiro pecado conhecido não se referisse a um negro que supostamente dormia com uma branca, mas aos homossexuais em geral, de que Bluhm fazia parte - embora os seus inimigos o não soubessem.

 

E nesse caso o advogado de olhos frios e coração ardente teria raciocinado desta maneira:

 

Primeiro pecado: Arnold é homossexual mas o preconceito local impede-o de o admitir. Se o fizesse não poderia continuar o seu trabalho, já que Moi detesta as ONG tanto como odeia os homossexuais e o menos que aconteceria era Bluhm ser expulso do Quénia.

 

Segundo pecado: Arnold é obrigado a viver na mentira (ver o artigo incompleto). Em vez de declarar a sua sexualidade, adopta a pose dum play-boy, atraindo assim as críticas reservadas para os adúlteros transraciais.

 

Daí o duplo pecado.

 

E, finalmente, por que razão Tessa não revela este segredo ao seu querido marido, em vez de o deixar com as sórdidas suspeitas que ele não quer, não deve, não pode admitir nem sequer para si próprio? perguntou Justin ao ecrã.

 

Lembrou-se do nome do restaurante indiano de que ela gosrava tanto. Haandi.

 

As vagas de ciúme que Justin tinha conseguido travar durante tanto tempo, romperam os diques e submergiram-no. Mas era um ciúme doutro tipo: Tessa e Arnold tinham-lhe ocultado esse segredo juntamente com os outros que partilhavam; tinham-no deliberada-mente excluído do seu precioso círculo de dois, obrigando-o a espreitá-los de longe como um voyeur, sem saber que, realmente, conforme todas as garantias dela, não havia nada para ver nem nunca haveria; que, tal como Ghita tinha tentado explicar a Rob e a Lesley, nunca haveria nenhuma chispa entre eles; que a única relação entre eles era exactamente a relação irmã-irmão que Justin tinha descrito a Ham, sem que, no fundo do coração, acreditasse totalmente nisso.

 

Um homem perfeito, tinha dito Tessa uma vez, falando de Bluhm. Mesmo Justin, o céptico, nunca tinha pensado dele doutra maneira. Um homem que atingia a sensibilidade homoerótica que existe em todos nós, como Justin tinha uma vez dito a Tessa, com toda a inocência. Belo e calmo. Delicado para os amigos e para os estranhos. Belo na sua voz rouca, na sua barba grisalha, nos seus olhos africanos de pálpebras pesadas que nunca se desviavam de nós quando falava ou quando ouvia. Belo nos seus raros e bem medidos gestos que pontuavam as suas inteligentes e lúcidas opiniões, expressas numa bela linguagem. Belo nas suas mãos bem esculpidas, no seu corpo leve e gracioso, delgado e flexível como o de um bailarino e simultaneamente disciplinado e espontâneoo na sua postura. Nunca rude, nunca desastrado, nunca cruel embora em qualquer reunião tivesse de lidar com ocidentais tão ignorantes que Justin ficava embaraçado. Mesmo os membros mais velhos do Muthaiga Club tinham dito: aquele tipo Bluhm, caramba, agora já não se fazem pretos como ele, não admira que a mulherzinha do Justín se tenha apaixonado.

 

Mas então por que diabo não me tiraste da minha aflição? Perguntou a Tessa enfurecido, olhando para o ecrã.

 

Porque tinha confiança em ti e esperava que tu também tivesses. Mas se tinhas confiança em mim, porque é que não me disseste?

 

Porque eu não atraiçoo a confiança dosamigos e exijo que respeit-es isso e me admires. Sem limites e por todo o tempo.

 

Porque sou advogada e no que toca a segredos - como ela costumava dizer

- um túmulo, comparado comigo, é um lugar de mexericos.

 

 

E tuberculose quer dizer muito dinheiro: perguntei à Karel Vira Hudson. Um dia destes as nações mais ricas do mundo enfrentarão um surto de tuberculose e o Dypraxa tornar-se-á a fonte de muitos milhões de dólares que todos os bons accionistas esperam que ele seja. A Praga Branca, a Grande Caçadora, o Capitão da Morte não se confirmará aos danados da Terra. Voltará a fazer o que já fez há cem anos. Paira corno uma imunda nuvem sobre o próprio horizonte do Ocidente, mesmo se as vítimas são, por enquanto, os mais pobres de todos.

 

- Um terço da população mundial está infectada pelo bacilo.

 

Tessa está a falar para o computador, salientando e sublinhando à medida que avança.

 

- Nos Estados Unidos a doença progrediu vinte por cento em sete anos..

- Um doente não tratado transmite a infecção a uma média de entre dez a quinze pessoas por ano.

 

- As autoridades sanitárias da cidade de Nova Yorque assumiram o poder de encarcerar as vítimas de TB que não queiram aceitar o isolamento...

 

- Actualmente, trinta por cento de todos os casos.conhecidos são resistentes aos remédios.

 

A Praga Branca não nasceu entre nós, lê Justin. Foi-nos imposta por contágio pelo ar, más condições de vida, falta de higiene, água imprópria e negligência administrativa. Os países ricos odeiam-na porque é uma nódoa no seu dia-a-dia, os países pobres porque, em muitos deles, é sinónimo de Sida. Alguns países recusam-se a admitir estarem infectados, preferindo viver na mentira do que confessar uma nódoa vergonhosa.

 

E no Quénia, como noutros países africanos, a incidência da tuberculose aumentou quatro vezes desde a aparição do HIV.

 

Um e-mail informal de Arnold dá uma lista das dificuldades práticas em tratar a tuberculose:

 

- Diagnóstico exigente e demorado. Os doentes devem trazer amostras da expectoração em dias consecutivos.

 

- Trabalho de laboratório indispensável, mas microscópios frequentemente danificados ou roubados.

 

- Falta de corante para detectar o bacilo. 0 corante é vendido, bebido, esgotado e não substituído.

 

- 0 tratamento dura oito meses. Os doentes que se sentem melhor ao fim de um mês abandonaram o tratamento ou vendem os remédios. A doença surge então de novo, sob uma forma resistente à medicação.

 

- Os comprimidos antituberculose são vendidos no mercado negro africano como remédios para as doenças venéreas. A Organização Mundial de Saúde insiste em que um doente sujeito a tratamento deve ser vigiado enquanto engole o comprimido. Resultado: no mercado negro um comprimido é vendido «seco» ou «molhado» conforme esteve ou não na boca de alguém.

 

Um post-scriptum confirma:

 

A tuberculose mata mais mães do que qualquer outra doença. Em África as mulheres pagam sempre as favas. Wanza serviu de cobaia e morreu disso. Há aldeias inteiras de Wanzas que servem de cobaia.

 

Extracto de um artigo na página 4 do International Herald Tribune.- «Avisado o Ocidente de que também é vulnerável a surtos de tuberculose

 

resistentes aos medicamentos», por Donald G. McNcil J r., New York Times Service.

 

Algumas passagens sublinhadas por Tessa:

 

AMSTERDÃO: Surtos mortais de tuberculose resistente aos medicamentos estão a aumentar não só nos países pobres, mas também nos países ricos do ocidente, segundo um relatório da Organização Mundial de saúde e outros organismos anti-tuberculose. «É um recado: Atenção, isto é sério!» disse o Dr. marcus espinosa, um dos responsáveis pelo relatório. É uma grave crise potencial para o futuro.

Mas a arma mais poderosa que a comunidade médica internacional dispõe, para conseguir dinheiro, é oespectro de que uma explosão de casos não acompanhados no 3º Mundo, conduza a que surtos divergentes se fundam em qualquer coisa de incurável que venha atacar o Ocidente.          

 

Nota de Tessa, escrita de uma forma misteriosamente restringida, como se ela se não quisesse deixar contagiar pelo sensacionalismo:

 

«Arnold diz que os inigrantes russos nos Estados Unidos, especialmente os que vêm de campos de refugiados, trazem toda a espécie de tuberculoses resistentes aos medicamentos - na verdade até mais numerosos do que no Quénia, onde essa multi-resistência não é sinónimo de HIV positivo. Um amigo dele está a tratar de alguns casos graves na área da Baía de Brooldyn e os números são já assustadores, segundo ele. Ele diz que está a aumentar constantemente a incidência desses casos em todos os Estados Unidos entre grupos minoritários em cidades superpovoadas.»

 

Ou, numa linguagem que as Bolsas de todo o mundo percebem: se o mercado da Tuberculose se desenvolver como previsto, há biliões e biliões de dólares à espera de serem ganhos e quem os vai ganhar é o Dypraxa - desde que as experiências feitas em África não revelem nenhuns efeitos nocivos.

 

É este pensamento que apressa Justin a regressar urgentemente ao Hospital Uhuru, em Nairobi. Vai procurar nas fichas de polícia espalhadas na grande mesa e desenterra seis páginas de fotocópias escritas na letra febril de Tessa que tenta registar a história de Wanza numa linguagem infantil:

 

Wanza é mãe-solteira. Não sabe ler nem escrever.

 

Encontrei-a na sua aldeia e depois no bairro de lata de Kibera. Tinha sido violada por um tio que a engravidou e afirmou que ela o tinha seduzido. É a sua primeira gravidez. Wanza deixou a aldeia para não voltar a ser violada pelo tio e por outro homem que andava atrás dela.

 

Wanza diz que havia muita gente na aldeia doente com tosse má. Muitos dos homens tinham Sida e mulheres também. Duas mulheres grávidas tinham morrído há Pouco tempo. Tal como Wanza tinham ido a um centro de saúde a uns oito quilómetros de distância. Wanza não quis lá voltar. Tinha medo que os comprimidos de lá nãoprestassem. 0 que mostra que Wanza é inteligente porque a maior parte das mulheres nativas tem uma fé cega nos médicos, embora respeitem mais as injecções do que os comprimidos.

 

Em Kibera um homem branco e uma mulher branca vieram vê-la, Tinham batas brancas e ela calculou quefôssem médicos. Sabiam de que aldeia ela tinha vindo. Deram-lhe uns comprimidos, os mesmos do hospital.

 

Wanza diz que o nome do homem era Ló-Ber. Obriguei-a a pronunciá-lo várias vezes. Lor-ber? Lor-beer? Lobrbear?A mulher branca que vinha com ele não disse o nome mas examinou Wanza e colheu amostras de sangue, urina e expectoraÇão.

 

Vieram vê-la mais duas vezes em Kibera. Não estavam interessados em mais ninguém senão nela. Disseram-lhe que tinha que ir ter o bebé ao hospital visto estar doente. Wanzaficou apreensiva. Há muitas mulheres doentes em Kíbera que não vão ter os bebés no hospital.

 

Ló-Ber disse que não teria nada apagar, tudo seria pago. Wanza não perguntou por quem, Diz que o homem e a mulher estavam muito preocupados, embora não fossem da espécie de pessoas que se preocupam com os outros. Ela disse uma graça qualquer a esse respeito mas eles não se riram.

 

No dia seguinte um automóvel veio buscá-la. já estava no termo da gravidez. E era a primeira vez que andava de automóvel. Dois dias mais tarde o seu irmão Kioko veio para o hospital para lhefazer companhia. Tínha ouvido dizer que ela estava no hospital Kioko sabe ler e escrever e é muito inteligente. Os dois irmãos gostam muito um do outro. Wanza tem quinze anos.

 

Kioko díz que quando outra mulher grávida estava a morrer lá na aldeia, esses mesmos brancos apareceram e tiraram amostras como tinham feito com Wanza. Enquanto lá estavam souberam que Wanza tinha fugido para Kibera. Kíoko diz que elesficaram muito curiosos acerca dela, quiseram saber como é que poderiam encontrá-la e tomaram notas num cadernínho. Efoi assim que o casal branco encontrou Wanza em Kibera e a internou no hospital de Uhuru para observação. Wanza foi uma cobaia africana, uma das muitas que não sobreviveram ao Dypraxa.

 

Tessa conversa com ele à mesa do pequeno-almoço. Está no sétimo mês de gravidez. Mustafa está de pé no sítio onde fica sempre, à porta da cozinha mas ouvindo tudo através da porta semiaberta, de modo que sabe exactamente quando deve fazer mais torradas ou servir mais chá. As manhãs são sempre um período de felicidade. E as noites também. Mas de manhã a conversa é mais fácil.

 

- justin.

- Tessa.

 

- Pronto?

 

- Sou todo ouvidos.

 

- Se eu te gritasse Loorbeer - pum, assim de repente - o que é que tu respondias?

 

- Laurel.

 

- E que mais?

 

- Laurel. Coroa de louros. César. Imperador. Atleta. Vencedor.

- Mais.

 

- Coroa de louros - folhas de louro - descansar sobre os louros - vitórias sangrentas - porque é que não te ris?

 

- Então é alemão? - insiste ela.

 

- Alemão. Substantivo. Masculino.

- Soletra a palavra.

 

Ele fá-lo.

 

- Não pode ser holandês?

 

- Talvez. Também. Não tão evidente mas possível. Estás a fazer palavras cruzadas ou quê?

 

- Agora ja não, - responde ela, pensativa. E é tudo, como acontece muitas vezes com Tessa, a advogada. Comparada comigo, uma tumba é um lugar de mexericos.

 

As notas de Tessa continuam: Não estão J, nem G, nem A. Quer ela dizer que nem justin, nem Ghita nem Arnold estão presentes. Tessa está sozinha na enfermaria com Wanza.

 

15.23 - Entra um homem branco com uma cara vermelhusca e uma mulher eslava, alta, ambos de bata, a da mulher aberta no decote. Outros três homens assistem, todos de bata branca. Abelhas napoleónicas bordadas nas algibeiras. Vão até à cabeceira de Wanza, ficam a olhar para ela.

 

Eu: Quem são os senhores? 0 que é que lhe vão fazer? São médicos?

 

Eles não respondem, observam Wanza, a sua respiração, os olhos, auscultam-na, medem-lhe o pulso, a temperatura, chamam ” Wanza!». Ela não responde.

 

Eu: 0 senhor chama-se Lorbeer? Quem são vocês? Como se chamam? Mulher eslava: Não é da sua conta. Saem.

 

A mulher eslava é uma cabra. Cabelo preto pintado, pernas compridas, não pode impedir-se de dar ao rabo.

 

Como um homem culpado de um abuso de confiança, justin entala rapidamente as notas de Tessa sob uma pilha de papéis, põe-se em pé e vira-se, transido de horror, para a porta do lagar. Alguém está a bater furiosamente à porta. A porta estremece ao ritmo das pancadas e, sobrepondo-se ao ruído, ouve a voz estridente, horrivelmente familiar, de um cavalheiro inglês das classes superiores.

 

- Justin! Apareça, homem! Não se esconda! Sabemos que está aí! Somos dois amigos que lhe trazem presentes e conforto!

 

justin, gelado, não consegue reagir.

 

- Está amuado, menino? Está numa de Greta Garbo? Não é preciso! Somos nós! Beth e Adrian, os seus amigos!

 

Justin pega no molho de chaves e como um homem pronto a ser executado, avança cego pelo sol e dá de caras, com Beth e Adrian Túpper, o Maior Duo de Escritores da Nossa Época, os mundialmente famosos Tuppers; da Toscânia.

 

- Beth. Adrian. Que bom! - declara ele fechando a porta atrás de si.

 

Adrian agarra-o pelos ombros e fala com uma voz dramaticamente grave.

- Querido Justin. 0 Amado dos Deuses. Hin? Hin? Coragem. Acima de tudo.

- Fala num tom de confidência, de comiseração. - Está só. Não me diga. Terrivelmente só. - Estrangulado no abraço do outro, Justin vê dois olhinhos que olham cobiçosamente por cima do ombro dele.

 

- Olá, Justin, nós gostávamos tanto dela, - geme Beth, apertando a boquinha numa curva dolorosa e esticando depois os lábios para o beijar.

 

- Onde está o seu Luigi? - pergunta Adrian.

 

- Em Nápoles. Com a noiva. Vão-se casar. Em Junho, - acrescenta Justin, inutilmente.

 

- Devia estar aqui para o apoiar. Que mundo! Não há lealdade. Não há empregados como deve ser.

 

- 0 grande é em memória da querida Tessa e o pequeno para o pobre Garth, ao lado dela, - explica Beth numa vozinha de nada que perdeu o eco. - Pensei que podíamos plantá-las como recordação, não foi Adrian?

 

No pátio está uma furgoneta de caixa aberta com umas anteparas rústicas que os leitores de Adrian devem pensar que foram feitas por ele. Amarradas às tábuas, duas arvorezitas, dois pessegueiros com sacos de plástico à volta das raízes.

 

- Beth tem estas ideias maravilhosas - esclarece Tupper numa voz dorida.

- São vibrações, menino; sempre em sintonia, não é querida? «Temos que lhe levar árvores», disse ela. Ela sabe, percebe? Sabe.

 

- Podemos plantá-los já. já fica feito, não acham? - diz Beth.

- Depois do almoço, - diz Adrian com firmeza.

 

Um piquenique de camponeses, a que Beth chama uma ração de sobrevivência, consistindo num grande pão, azeitonas e uma truta fumada para cada um, do nosso fumeiro, querido, só nós os três, com uma garrafa do seu belo vinho de Manzim.

 

Cortês até à morte, Justin conduz os Tuppers até à casa.

 

- Não se pode ficar de luto toda a vida, menino. Os judeus não ficam. Sete dias e é tudo. Depois é levantarem-se e continuar com entusiasmo. É a lei deles, querida, - explica Adrian à mulher como se ela fosse uma atrasada.

 

Estão sentados na sala, sob os querubins, comendo a truta sobre os joelhos para corresponder à ideia de Beth sobre o que é um piquenique.

 

- Para eles, tudo está escrito. 0 que fazer, quem faz, durante quanto tempo. Não vale a pena ficar abatido, Justin. Um tipo nunca se deixa abater. É muito negativo.

 

- Eu não estou abatido - objecta Justin, já arrependido de ter aberto uma segunda garrafa de vinho.

 

- Então o que é que está aqui a fazer? - pergunta Tupper perfurando Justin com um olhar inquisitorial.

 

- Tessa deixou uma data de coisas por acabar, percebe? - explica Justin sem convicção. - Esta quinta era dela, antes de mais. E a organização que ela fundou, Mais umas coisítas.

 

- Tem computador?

 

Ele viu-o! pensou Justin, irritado. Não pôde! Fui rápido demais para ele, tenho a certeza que fui.

 

- É a maior invenção depois da imprensa, meu caro. Não é, Beth? Não é preciso secretária, nem mulher, nem nada. Qual é que tem? Nós ao princípio resistimos muito, não foi Beth? Foi disparate.

 

- Não tínhamos percebido bem, - explica Beth e bebe uma golada de vinho, grande demais para uma mulher tão pequena.

 

- Eu só aproveitei o que já cá havia, - responde Justin, recuperando a calma. - Os advogados de Tessa deram-me uma data de disquetes. Meti-as no computador lá vou andando com algum esforço.

 

- E já acabou? É altura de ir para casa. Não atrase. Vá. 0 seu país precisa de si.

 

- Na verdade ainda não acabei, Adrian. Ainda tenho uns dias de licença.

- 0 Foreign Office sabe que está aqui?

 

- Acho que sim, - disse Justin. Porque é que ele me está a fazer isto? A meter-se na minha vida pessoal, em coisas que não lhe dizem nenhum respeito, e eu deixo?

 

Segue-se um período em que, para seu grande alívio, Justin é submetido a um relato chatíssimo sobre a maneira como o Maior Casal de Escritores do Mundo se converteu à Internet contra as suas naturais inclinações - um ensaio geral, sem dúvida, para outra dose de Crónicas da Toscânia e mais umas borlas do fabricante.

 

- Você está a fugir, meu caro, - censura-o Adrian severamente enquanto os dois homens desatam os pessegueiros e os levam para a cozinha para Justin os plantar. - A uma coisa chamada dever. Uma palavra fora de moda nos dias de hoje. Quanto mais se atrasar, mais lhe vai custar. Volte para o trabalho. Vão recebê-lo de braços abertos.

 

- Porque é que não os plantamos já? - pergunta Beth.

 

- Seria uma grande emoção, querida. Deixa-o fazer como ele quiser. Felicidades, menino. Estamos na mesma onda. É a coisa mais importante do mundo.

0 que é que aconteceu? Interroga-se Justin enquanto a furgoneta dos

 

Tuppers se afasta: um acaso ou uma conspiração? Apareceram por acaso ou foram empurrados? Foi o cheiro do sangue que os trouxe aqui, ou foi Pellegrin? Em várias fases da sua tão publicitada carreira, Tupper tinha trabalhado para a BBC e para um pasquim de Londres. Mas tinha trabalhado também nas grandes salas mais recônditas dos Serviços de Sua Majestade. justin recorda uma maldosa interrogação de Tessa: o que é que tu pensas que Adrian faz com todo o material que não mete nos seus livros?

 

Regressou a Wanza, só para descobrir que as seis páginas que Tessa consagrara ao diário da doença da sua companheira de enfermaria se desvanecia e terminava duma forma pouco satísfatória, Lorbeer e a sua equipa tinham feito Mais três visitas. Arnold enfrentou-os por duas vezes, mas Tessa não ouviu o que eles disseram. Não é Lorbeer mas a eslava sexy que examina Wanza fisícamente, enquanto Lorbeer e os seus acólitos observam o exame pouco à vontade. 0 que se passa depois, ter-se-á passado de noite, quando Tessa estava a dormir. Ela acorda, grita mas não aparecem enfermeiras. Também elas estão com medo. Só com a maior dificuldade Tessa consegue encontrá-las e obrigá-las a admitir que Wanza morreu e que o seu bebé foi mandado para a aldeia.

 

Justin repõe estas páginas entre os papéis da polícia e dirige-se de novo ao computador. Sente-se mal disposto. Bebeu muito vinho. A sua truta, que deve ter saltado do fumeiro, a meio-tempo, estava ainda às voltas no estômago. Agarrou nas chaves, a pensar em ir a casa beber um litro de água mineral. Mas de repente viu no ecrã uma coisa que o fez gelar de horror. Desviou o olhar, sacudiu a cabeça para ficar mais lúcido, voltou a olhar. Enterrou a cabeça nas mãos para afastar a má disposição. Mas quando olhou mais uma vez, a mensagem continuava lá:

 

ESTE PROGRAMA EFECTUOU UMA OPERAÇÃO ILEGAL. VOCÊ PODE PERDER TODOS OS DADOS NÃO SALVAGUARDADOS EM QUALQUER DAS JANELAS EM FUNCIONAMENTO

 

Na linha por baixo da sentença de morte, uma fila de ícones dispostos como caixões para um funeral colectivo: escolha aquele em que quer ser enterrado. Justin deixou cair os braços ao longo do corpo, olhou em volta e fez escorregar a cadeira para trás, afastando-se do computador.

 

- Sacana do Tupper! - murmurou. - Sacana! Sacana! - Mas o que ele queria dizer era: - Sacana sou eu!

 

Foi qualquer coisa que eu fiz ou me esqueci de fazer, Devia ter posto aquela besta a dormir.

 

Guido. Tragam-me o Guido.

 

Consultou o relógio. A escola acaba dentro de vinte minutos mas Guido recusou-se a que o fossem buscar. Prefere tomar o autocarro da escola como qualquer rapaz normal, muito obrigado, e pedir ao motorista para buzinar quando o deixar no portão - altura em que Justin está generosamente autorizado a trazê-lo no jipe. Não havia nada a fazer senão esperar. Se ele tentasse chegar à escola antes da partida do autocarro, havia grandes probabilidades de não chegar a tempo e de ter que voltar para trás. Deixando o computador amuado, voltou à mesa de contagem numa tentativa de recuperar o ânimo com os papéis de que ele gostava muito mais do que o ecrã.

 

PANA Wite Service (09.24.97)

 

Em 1995, a África sub-sahariana tem o maior número de novos casos de tuberculose do que qualquer outra grande região, bem como uma alta taxa de co-infecção de T13 com HIV, segundo a Organização Mundial de Saúde.

 

já sabia, muito obrigado.

 

As Megacidades tropicais serão verdadeiros infernos.

 

Enquanto o desbaste ilegal das florestas, a poluição do terreno e extracção desordenada de petróleo destroem o ecossistema do Terceiro Mundo, cada vez mais as suas comunidades rurais se verão obrigadas a emigrar para as cidades em busca de trabalho e de sobrevivência. Os peritos preveem o aparecimento de dezenas e talvez centenas de megacidades que atraíram enormes populações de bairros de barracas para trabalhadores mal pagos, com taxas sem precedentes de doenças fatais como a tuberculose...

 

justin ouviu o longínquo claxon do autocarro.

 

- Então leixou tudo, - disse Guido com satisfação, quando Justin o levou ao local do desastre. - Entrou na caixa do correio? - já estava a digitar as teclas.

 

- Claro que não. Sei lá como se faz. 0 que é que estás a fazer?

 

- Introduziu algum material novo e esqueceu-se de o salvaguardar?

 

- De maneira nenhuma, Nem uma coisa nem outra. Não sei fazer isso.

- Então não tem importância. Não perdeu nada, - disse Guido calmamente na sua linguagem informática e, com meia dúzia de suaves pancadinhas, restituiu a saúde à máquina. - Podemos ligar isto agora? Porfavor. - pediu ele.

- Para quê?

 

- Para ver o correio dela, o que é que há-de ser? Há centenas de pessoas que lhe mandam e-mails todos os dias e vai ter que os ler. E as pessoas que lhe querem mandar a si as suas condolências e simpatia? Não quer saber o que elas dizem? Há e-mails, mandados por mim a que ela nunca respondeu! Se calhar, nunca os leu!

 

Guido estava à beira das lágrimas. Agarrando-o gentilmente pelos ombros, Justin sentou-o no banco em frente do teclado.

 

- Diz-me se há algum risco, - disse ele. - 0 que é que pode acontecer de pior?

 

- Não há risco nenhum. Tudo está salvaguardado. Não vai acontecer nada de mal. Vamos fazer as coisas mais simples com o computador. Vou salvaguardar os novos e-mails, Tessa já fez isso com os outros. Não se preocupe,

 

Guido liga o modem e dá a Justin a ponta de um fio. - Desligue o telefone e ponha lá isto na tomada. Fica tudo ligado outra vez.

 

Justin faz o que lhe mandam. Guido acciona as teclas e espera. Justin olha-lhe por cima do ombro. Hieroglifos, uma janela, mais hieroglifos. Uma pausa para oração e contemplação, seguida por uma mensagem a pleno ecrã, aparecendo e desaparecendo como um anúncio luminoso e uma exclamação de desagrado por parte de Guido.

 

Zona Perigosa!

 

ISTO É UM AVISO PARA A SUA SAÚDE. NÃo PROSSIGA PARA LÁ DESTE PONTO. EXPERIÊNCIAS CLÍNICAS JÁ MOSTRARAM QUE A CONTINUAÇÃO DA PESQUISA PODE -ATRAIR EFEITOS FATAIS, PARA SUA SEGURANÇA E CONFORTO 0 SEU DISCO DURO DEVE SER LIMPO DE MATERIAL TÓXICO

 

Durante alguns segundos Justin não sentiu qualquer preocupação. Noutras circunstâncias gOStaria de se sentar à mesa de contagem e escrever uma carta aos fabricantes protestando contra o seu estilo metafórico. Por outro lado, Guido tinha acabado de provar que o ladrar deles era pior que a dentada. E assim estava nessa altura prestes a dizer: - Lá estão eles outra vez. São realmente o máximo - quando viu Guido encolher subitamente a cabeça como se tivesse sido atingido por um soco e deixando pousadas no teclado as mãos abertas como aranhas. A sua cara, tanto quanto Justin podia ver, está de novo doentiamente pálida.

 

- É assim tão mau? - perguntou Justin baixinho.

 

Reunindo as suas forças como um piloto de avião apanhado numa emergência, Guido COMeça a clicar o procedimento em caso de crise. Aparentemente sem resultado porque se endireita de novo, dá uma palmada na testa, fecha os olhos e solta um gemido aterrador,

 

- Díz-me o que se passa - pede Justin. - Não é grave, Guido. Diz lá. E como o rapaz continua: - Desligaste tudo, não foi?

 

Transfigurado, Guido acena que sim.

- E agora estás a desligar o modem.

 

Outro aceno. A mesma expressão de desprezo.

- Estou a re-iniciar o sistema.

 

- 0 que é isso?

 

- Temos que esperar um minuto.

- Porquê?

 

- Talvez dois.

- Para quê?

 

- Temos que lhe dar tempo para esquecer. Assentar. Isto não é normal, Justin. Está fora dos parâmetros. - Guido tinha voltado a falar americano-informático. - Não foi um bando de machos adolescentes socialmente inadaptados a divertirem-se. Foi gente muito mal intencionada que lhe fez isto, tenho a certeza.

 

- A mim ou a Tessa?

 

Guido abana a cabeça. - É como se alguém o odiasse. - Ligou de novo o computador, levanta-se, faz uma longa inspiração, como um suspiro ao contrário. E Justin, deliciado, vê a habitual fila de rapazes negros felizes a acenarem-lhe do ecrã.

 

- Conseguiste! - exclama. - És um gênio, Guido!

 

Mas quando diz isto, os rapazes são substituídos por uma ampulhetazinha atravessada por uma diagonal branca. Depois desaparecem, deixando apenas uma infinidade azul escura.

 

- Destruíram tudo - murmura Guido.

- Como?

 

- Mandaram-lhe um vírus. Disseram ao vírus que apagasse o disco duro e deixaram-lhe uma mensagem a dizer-lhe o que tinham feito.

 

- Então a culpa não é tua, - diz Justin, com firmeza.

- Ela gravou?

 

- Tudo o que ela imprimiu, já li.

 

- Não estou a falar de imprimir. Ela não fez disquetes?

 

- Nunca as encontrámos, Pensamos que ela as terá levado para o norte.

- 0 que é isso? E porque é que ela não as mandou por e-mail? Porque é que ela as levou? Não percebo. Não percebo nada.

 

Justín lembra-se de Ham. 0 computador dele também recebeu um vírus.

- Disseste que ela te mandou imensos e-mails.

 

- Uma vez por semana. Ou duas. Se ela saltava uma semana, mandava dois na outra. - já está a falar italiano. É de novo criança, tão perdido como no dia em que Tessa o encontrou.

 

- já viste o teu e-mail desde que ela morreu?

 

Guido abanou a cabeça em negação vigorosa, Era demais para ele. Não aguentava.

 

- Talvez possas ir até casa e ver o que lá está. Não te Importas? Não me estou a intrometer?

 

Ao conduzir o carro colina acima e por entre as árvores já escuras, Justin não pensava em nada e em ninguém que não fosse Guido. Era um amigo ferido e o único objectivo de Justin, era levá-lo em segurança até à mãe, restabelecer-lhe a calma e fazer com que Guído, daqui em diante, deixasse de sofrer e passasse a ser um geníozínho saudável e arrogante e não a ruína em que se transformara depois da morte de Tessa. E, se como suspeitava, eles - fossem quem fossem tivessem feito ao computador de Guido o mesmo que fizeram aos de Ham e de Tessa, então Guido podia descansar e consolar-se na medida do possível. Era esta a prioridade de Justin, com exclusão de quaisquer outros sentimentos e emoções, porque isso o conduziria à anarquia. Desviá-lo-ía do seu caminho de uma investigação racional, misturando com o desejo de vingança a sua busca sobre o trabalho de Tessa.

 

Parou o carro e com um sentimento de despedida agarrou no braço de Guido que, com certa surpresa sua, não o sacudiu nem se libertou. A mãe tinha feito um guisado e havia pão acabado de fazer em que ela tinha muito orgulho. E assim, por insistência de Justin comeram-no regaladamente só eles, enquanto a mãe assistia. Depois Guido foi buscar o seu computador e, durante algum tempo, não ficaram on-line mas a ler, lado a lado, os relatos de Tessa sobre os leões adormecidos que ela vira nas suas viagens e os elefantes TERRIVELMENTE brincalhões que se teriam sentado em cima do jipe para o esborrachar se ela lhes tivesse dado a mínima chance e as DESDENHOSAS girafas que NUNCA estão contentes se não houver alguém a admirar-lhes os elegantes pescoços.

 

- Quer uma disquete com os e-mails dela? - perguntou Guído, percebendo que Justin naquele momento não aguentava mais.

 

- Isso era óptimo, - disse Justín delicadamente. - E também quero que faças cópias dos teus trabalhos para que eu os possa ler à vontade e escrever-te sobre eles: ensaios, trabalhos para a escola, tudo o que tu gostarias de mostrar a Tessa.

 

Feitos os discos, Guido ligou o modem e viram uma bela manada de gazelas em pleno galope antes de o ecrã ficar escuro. Quando Guido tentou voltar ao teclado, foi obrigado a dizer numa voz ciciada que o seu disco duro tinha sido apagado tal como o de Tessa mas sem aquela mensagem parva sobre experiências clínicas e toxicidade.

 

- Ela não te mandou nada para tu guardares? - perguntou Justin sentindo-se a falar como um funcionário da alfândega.

 

Guido abanou a cabeça.

 

- Nada que devesses passar para alguém, ela não se serviu de ti como caixa de correio ou coisa parecida?

 

Mais acenos negativos.

 

- Então que material é que perdeste e que seja importante para ti?

 

- Só as últimas mensagens dela, - sussurrou Guido.

 

- já somos dois, - Ou três, pensou Justin, se incluirmos Ham. - Portanto, se eu posso suportar essa perda, tu também podes. Porque eu é que era casado com ela. Não é verdade? Talvez houvesse um vírus na máquina dela que infectasse a tua. É possível, isso? Ela apanhou qualquer coisa e passou-a para ti, sem querer. Não é? Não sei porque te falo nisto, estou só a imaginar, A verdade é que nunca saberemos. De maneira que o melhor será dizer «que azar!» e continuarmos com as nossas vidas. Tanto eu como tu. Não é? E tu pede o que entenderes para ficares bom outra vez. Vou dizer ao escritório de Milão que façam tudo o que lhes pedires.

 

Com a esperança razoável de que Guido tivesse recuperado, Justin despediu-se. Quer dizer, guiou pela encosta abaixo até à casa, arrumou o jipe no pátio no sítio onde o encontrara, foi buscar o computador dela ao lagar e levou-o até à beira-mar. Em vários cursos, tinham-lhe dito que há especialistas que conseguem recuperar o que está escrito em discos duros supostamente apagados, Mas esses especialistas estão no lado oficial da vida, lado a que ele já não pertencia. Ainda pensou em contactar Rob e Lesley e pedir-lhes ajuda, mas não queria causar-lhes problemas. Além disso, para ser honesto, havia qualquer coisa de infectado, no computador de Tessa, qualquer coisa de obsceno de que queria livrar-se, no sentido físico do termo.

 

À luz de uma lua meio escondida, avançou pelo velho pontão de madeira, passando por uma tabuleta um tanto histérica que avisava quem passasse mais além o fazia a seu próprio risco. Chegando ao fim do pontão, atirou o computador violado para as profundezas antes de voltar para o lagar onde, até ao nascer do sol, escreveu o que o coração lhe ditava.

 

Querido Ham

 

Aqui vai o que eu penso ser a primeira de uma longa série de cartas para a tua querida tia. Não quero parecer mórbido, mas se eu vier a ser atropelado por um autocarro, gostaria quefizesses o favor de entregares pessoalmente todos os documentos ao mais obstinado e temerário membro da tua profissão e pagar-lhe o que ele pedirpara ele começar a mexer no caso. Desta maneira, ambos estaremos a dar a Tessa uma grande alegria.

 

Como sempre, Justin

 

 

Até ao início da noite, quando o whisky começou a levar a melhor, Sandy Woodrow tinha permanecido firme no seu posto da Alta Comissão, redigindo, corrigindo e afinando a sua intervenção do dia seguinte na reunião da Chancelaria; passando, na sua mente de funcionário, essa prosa para o escalão superior da hierarquia fazendo-a regressar ao escalão de baixo, o qual como um contrapeso o arrastava sem aviso por entre uma multidão de espíritos acusadores, obrigando-o a gritar mais alto do que eles: vocês não existem, são uma série de episódios soltos; não estão de forma alguma ligados à abrupta partida de Peter Coleridge para Londres com mulher e filha com o discutível pretexto de que, sob a pressão do momento, tinham decidido tirar uma licença e procurar uma escola especial para Rosie.

 

E por vezes os seus pensamentos tinham seguido livremente o seu próprio curso, para irem discutir assuntos tão controversos como divórcio por acordo mútuo e se Ghita Pearson ou a nova rapariga da Secção Comercial, Tara Qualquer Coisa, seriam parceiras convenientes para uma nova vida e qual delas os filhos iriam preferir. Ou se, no fim de contas, não seria melhor deixar a sua vida de lobo-solitário sempre a sonhar com aventuras não vivendo nenhuma, vendo o sonho fugir para cada vez mais longe. Contudo, ao voltar para casa, com as portas do carro trancadas e os vidros subidos, via-se a si próprio como o leal ganha-pão da sua família - pois sim, discretamente aberto a sugestões, mas que homem não o seria? - mas, em última análise, o mesmo altivo filho-de-soldado, decente, digno de confiança, aquele por quem Glória se tinha perdidamente apaixonado há tantos anos. Quando entrou em casa, ficou por isso surpreendido, para não dizer magoado, ao descobrir que Glória não tinha telepaticamente adivinhado as suas boas intenções nem tinha ficado à sua espera, mas que o obrigava a ir ao frigorífico à procura de comida. Que diabo, eu sou o Alto- Comissário em exercício. Tenho direito a um mínimo de respeito mesmo na minha casa.

 

- Alguma novidade no noticiário? - gritou ele, pateticamente, comendo o seu rosbife frio numa triste solidão.

 

0 tecto da casa de jantar, uma fina placa de betão, era o chão do quarto deles,

 

- Não ouviram as notícias lá na embaixada? - gritou Glória, por sua vez.

- Nós não passamos o dia a ouvir a rádio, se é isso que queres dizer, - respondeu Woodrow, sugerindo que era isso que Glória fazia. E ficou à espera, com o garfo a meio caminho da boca.

 

- Mataram mais dois lavradores brancos no Zimbabwe, se é que isso é notícia, - anunciou Glória, depois de uma aparente interrupção nas comunicações.

 

- já ouvimos essa notícia muita vez. E o Pellegrin chateou-nos de Londres, durante todo o dia. Porque é que não convencemos Moi a pôr travões ao Mugabe? Pela mesma razão por que não podemos convencer Moi a pôr travões a Moi, é a resposta a essa pergunta. - Ficou à espera de um - Pobre querido!

- mas tudo o que veio foi um silêncio,

 

- Mais nada? - perguntou ele. - Nas notícias. Mais nada?

- 0 que é que podia ser?

 

Raios partam a mulher, apanhou-se ele a pensar enquanto se servia de mais um copo de clarete. Não costumava ser assim. Desde que o seu amado viúvo se escapara para Inglaterra, Glória andava a suspirar pela casa, como uma vaca doente. Não quer beber comigo, nem comer comigo, nem olhar-me nos olhos. E também não quer a outra coisa, embora isso nunca tivesse sido uma prioridade para ela. E já nem se dá ao trabalho de se maquilhar.

 

Em todo o caso, ainda bem que ela não ouvira nenhumas notícias. Ao menos ele sabia uma coisa que ela não sabia por enquanto. Não é frequente Londres ter uma história escaldante a divulgar sem que um idiota qualquer do Departamento de Informação vá espalhar tudo antes do prazo fixado. Se pudessem estar calados até amanhã de manhã, tinha aquilo que tanto pedira a Pellegrin.

 

- É uma questão moral, Bernard, - tinha-o avisado no seu tom mais militar. - Há aqui muita gente que vai receber a notícia muito mal. Sou eu que quero dar-lhes essa notícia. Especialmente com Porter em Londres.

 

Era sempre bom lembrar-lhes que era ele que tinha a responsabilidade. Firmeza e inflexibilidade é o que eles procuram para as chefias. É melhor não insistir pesadamente, mas deixar Londres verificar por si própria como as coisas correm bem em Nairobi quando Porter não anda por lá a sofrer agonias por cada vírgula.

 

Muito cansativa esta espera, esta indecisão, se calhar é o que está a deitar Glória abaixo. Lá está a Residência do Alto Comissário a umas centenas de metros mais acima, com todo o pessoal às ordens, o Dalinler na garagem mas sem bandeira no mastro. 0 nosso Alto Comissário Porter Coleridge está ausente. E sou eu, pobrezinho, a fazer o trabalho dele (aliás bem melhor), esperando dia e noite a notícia de que, já que calcei os seus sapatos, posso finalmente usá-los não como substituto mas sim COMO 0 Seu sucessor oficial, formal e plenamente credenciado com os engodos correspondentes - a saber, a Residência, o Daimler, o gabinete pessoal, Míldren, trinta e cinco mil libras extra para despesas e vários passos mais próximo do título de sir.

 

Mas havia um óbice. 0 Ministério tinha uma relutância tradicional em promover um funcionário enposte. Preferiam trazê-lo para casa e enfiá-lo num novo posto. Havia excepções, claro, mas tão poucas...

 

Os pensamentos levaram-no de novo para Glória. Lady Woodrow: isso punha-a como nova. Insatisfeita, é o que ela é. Para não dizer ociosa. Devia ter-lhe feito mais uns filhos para a manter ocupada. Bom, ociosa é que ela não ficaria com certeza se se instalassem na Residência. Uma noite livre por semana, se tiver sorte. E anda tão conflituosa. Grande briga com Juma na semana passada por qualquer coisa de perfeitamente trivial, tal como limpar a cave a fundo. E na segunda-feira, embora ele nem sonhasse que isso podia acontecer, arranjou uma bronca qualquer com a super-cabra Elena, desconhecendo-se o casus belli.

 

- Não era altura de convidarmos os Els para jantar, querida? - tinha ele sugerido cavalheirescamente. - Há muito tempo que não somos nós a remar o barco.

 

- Se os quiseres ter, convída-os tu, - tinha Glória respondido friamente e ele, portanto, não o tinha feito.

 

Mas depois arrependeu-se. Glória sem uma amiga era como um motor com falhas. 0 facto - extraordinário - de que ela tivesse feito uma espécie de trégua com a Ghita Pearson-olhos-de-gazela não o consolava nada. Ainda há poucos meses Glória tinha classificado Ghita como «nem carne nem peixe»,

- Não suporto dar-me com filha de brâmanes educada em Inglaterra que fala como nós e se veste como um derviche, - tinha ela dito a Elena de forma que o marido ouvisse. - E aquela rapariga, a Tessa Quayle, está a exercer nela uma má influência. - Pois agora Tessa estava morta e Elena tinha sido mandada para Coventry. E Ghita, a tal que se vestia como um derviche, tinha sido designada para levar Glória a uma visita às barracas de Kibera, com a intenção declarada de lhe encontrar um trabalho voluntário numa das agências de auxílio. Isto, ainda por cima, numa altura em que o comportamento de Ghita estava a causar a Woodrow as maiores preocupações.

 

Primeiro, tinha sido a atitude dela durante o funeral. É verdade que não havia regras protocolares para um funeral. No entanto, Woodrow tinha considerado a sua conduta pouco controlada. Tinha havido um período a que ele chamaria de luto agressivo durante o qual ela rondou pela Chancelaria como uma alma penada, recusando-se a olhar para ela, embora ele no passado a tivesse considerado, digamos, como uma candidata. E na sexta-feira, sem a mínima explicação, tinha pedido um dia de folga ainda que, como membro recém-chegado à Chancelaria, ainda não tivesse, tecnicamente, direito a isso. Mas ele, por pura bondade, dissera: - Muito bem, Ghita, acho que sim, mas não desperdice a folga. - Nada de insultuoso, uma gracinha inocente entre um homem casado e mais velho e uma rapariga solteira e bonita, Mas se o olhar dela pudesse matar, ele teria caído redondo aos seus pés,

 

E que tinha ela feito com a folga que ele lhe tinha dado? Tinha voado para o raio do lago Turkana num avião fretado, com uma dúzia de outros membros femininos dum autoconstituído clube de apoiantes de Tessa Quayle e tinham colocado uma coroa de flores no local onde Tessa e Noah tinham sido assassinados! A primeira notícia que Woodrow teve disto foi ao pequeno-almoço de segunda-feira, quando abriu o NairobiNews e viu a fotografia dela bem no centro entre duas enormes mulheres africanas que ele se lembrava vagamente de ter visto no enterro.

 

- Pois muito bem, Gbita Pearson, digo-te que foste apanhada - tinha ele rosnado empurrando o jornal para Glória. - Por amor de Deus, já é altura de enterrar os mortos, não de os desenterrar de dez em dez minutos. Eu sempre disse que ela tinha uma fixação em Justin.

 

- Se nós não tivéssemos cá tido o Embaixador de Itália, eu também tinha ido com elas, - replicou Glória, numa voz a escorrer censura.

 

A luz do quarto estava apagada. Glória fingia que já estava a dormir.

 

- Então sentemo-nos, minhas senhoras e meus senhores.

 

Um berbequim zunia no andar de cima. Woodrow mandou Mildren fazer calar o importuno enquanto ele próprio se ocupava ostensivamente da sua papelada. 0 barulho parou. Sem pressas, Woodrow levantou os olhos para ver que estavam todos, incluindo um ofegante Mildren. Excepcionalmente, Tim Donohue e a sua assistente Sheila tinham sido convocados. Não havendo as reuniões do Alto Comissário para Juntar todo o pessoal diplomático, Woodrow insistia num plenário. Por isso também estavam presentes os Adidos da Defesa e da Imprensa, bem como Barney Long, da Secção Comercial, Mais a pobre Sally Aitken completa, com gaguez e rubores, em representação da Agricultura e Pescas. Ghita, reparou ele, estava no seu canto habitual onde, desde a morte de Tessa, fazia o possível para se tornar invisível. Para irritação dele, Ghita continuava a usar o lenço preto à volta do pescoço, lenço que fazia lembrar a ligadura suja no pescoço de Tessa. Os seus olhares oblíquos seriam de desafio ou de desdém? Com belezas euroasiáticas ninguém pode saber.

 

- Receio que seja uma história um pouco triste. - Barney, não se importa de tratar da porta, como dizemos na América? Não é preciso desmontá-la, basta trancá-la.

 

Risos - mas inquietos.

 

Foi direito ao assunto, tal como tinha planeado. Estilo «o touro pelos cornos» - «somos todos profissionais» - «cirurgia indispensável». Mas também uma conduta tacitamente corajosa, estando apenas em exercício das funções de Alto Comissário: arruma primeiro os papéis, bate-lhes com a cabeça do lápis e endireita os ombros antes de falar às tropas.

 

- Há duas coisas que eu tenho de lhes dizer esta manhã. A primeira ficará em segredo até a ouvirem nos noticiários, ingleses ou quenianos, quem as disser primeiro. Às doze horas de hoje, a polícia queniana vai emitir um mandato de prisão contra o Dr. Arnold Bluhm pelo assassinato de Tessa Quayle e do motorista Noah. Os quenianos já falaram com os belgas e os patrões de Bluhm. serão informados a tempo. Nós estamos metidos nisto devido ao envolvimento da Scotland Yard que deverá passar os seus elementos à Interpol.

 

Mal se ouve o ranger de uma cadeira após aquela bomba. Nenhum protesto, nenhum ruído de espanto. Apenas os enigmáticos olhos de Ghita agora fixos nele, fosse com ódio ou com admiração.

 

- Eu sei que isto é um choque terrível, sobretudo para aqueles que conheciam Arnold e gostavam dele. Se quiserem informar os vossos cônjuges, podem fazê-lo se assim o entenderem. - Uma rápida imagem de Glória, que até à morte de Tessa tinha considerado Bluhm um gigolô, mas que agora se mostrava misteriosamente preocupada com o seu destino. - Não pretendo estar muito satisfeito com a notícia - confessou Woodrow, agindo como mestre consumado do subentendido. - Haverá, sem dúvida, as habituais especulações da imprensa. As relações Tessa-Bluhm vão ser escalpelizadas ad Infinitum. E se alguma vez ele for apanhado, terá um julgamento escandaloso. Do ponto de vista desta Missão, as notícias dificilmente poderiam ser piores. Nesta altura não possuo qualquer informação sobre as provas contra ele. Dizem-me que são conclusivas, mas é o que diriam sempre, não é verdade? - A mesma nota de amargura por baixo do humor. - Perguntas?

 

Aparentemente não havia. A notícia parecia ter deixado imóveis o banco de cada um dos presentes, Mesmo Míldren, que sabia de tudo desde a noite passada, não achou nada de melhor para fazer do que coçar o nariz.

 

- A segunda notícia tem relação com a primeira mas é muito mais delicada. Osnossos parceiros não devem ser informados sem minha prévia autorização.

 

Os outros funcionários serão selectivamente informados, numa base estritamente controlada. Por mim próprio ou pelo Alto Comissário quando voltar. Não por vocês, por favor. Fiz-me entender?

 

Efectivamente. Houve acenos de cabeça desta vez, não só olhares de vaca. Todos tinham os olhos fixos nele e Ghita nunca tinha desviado os seus, Meu Deus, supondo que ela se apaixonava por mim? Como é que eu me vou livrar disso? Continuou a seguir o fio dos seus pensamentos. Claro!Aí está porque ela anda afazer-se com Glória! Primeiro andou atrás doJustin, agora sou eu! Ghíta é uma caçadora de casais, não pára enquanto não embarca também a mulher! Recompôs-se e retomou o seu ar de locutor.

 

- Lamento imenso dizer-lhes que o nosso antigo colega Justin Quayle anda fugido. Talvez saibam que ele recusou todos os apoios que lhe tínhamos preparado em Londres, dizendo que preferia ser ele a remar a sua piroga e coisas assim. Teve uma reunião com o Director do Pessoal assim que chegou, teve um almoço com Pellegrin nesse mesmo dia. Ambos o descrevem como destroçado, sombrio e hostil, coitado. Foi-lhe oferecido descanso e aconselhamento, recusou tanto uma coisa como outra. Entretanto abandonou o barco.

 

Agora era Donohue que Woodrow estava discretamente a favorecer, não Ghita. 0 olhar de Woodrow, evidentemente, não se fixava em ninguém. Oscilava ostensivamente entre o infinito e os seus papéis. Mas na realidade focava-se em Donoluie, convencido como estava que, mais uma vez, Donoluie e a sua Sheila, a magrizela, tinham tido prévio conhecimento da deserção de Justin.

 

- No próprio dia da sua chegada a Inglaterra, mais precisamente nessa mesma noite, Justin mandou ao Director do Pessoal uma carta habilidosa avisando-o de que precisava de uma licença para resolver os assuntos de sua mulher. Serviu-se do correio normal, o que lhe permitiu três dias de avanço para desaparecer. Na altura em que o Pessoal resolveu controlá-lo - para seu próprio bem, devo acrescentar - já ele tinha desaparecido de todos os ecrãs. Há indícios que ele se deu a muito trabalho para ocultar os seus movimentos. Puderam-lhe seguir a pista até à Ilha de Elba, onde Tessa tem propriedades, mas quando o Ministério teve essa informação já ele tinha desaparecido. Não se sabe para onde, mas há umas ideias. Justin, evidentemente, não fez nenhum pedido formal de licença e o Ministério ficou sem saber que fazer para o ajudar a voltar para o seu lugar - encontrar-lhe um nicho onde ele pudesse curar as suas feridas durante um ou dois anos. - Encolheu os ombros, sugerindo que já não há gratidão neste mundo. - Seja lá o que for que ele está a fazer, está a fazê-lo sozinho. E não está certamente a fazê-lo em nosso proveito.

 

Lançou um olhar sombrio sobre a assistência e voltou às suas notas.

 

- Há aqui um aspecto de segurança que obviamente não posso discutir convosco, e por isso o Ministério está especialmente interessado onde é que ele irá aparecer um destes dias. Têm uma natural preocupação com ele, que nós todos partilhamos. Enquanto aqui esteve sempre mostrou um grande autodomínio, mas agora parece tê-lo perdido completamente. - Estava a chegar à parte difícil mas eles estavam bem preparados para isso. - Temos várias hipóteses pensadas pelos nossos analistas e nenhuma delas, lamento dizê-lo, é agradável do nosso ponto de vista.

 

0 filho do general prosseguiu valentemente.

 

- Uma das hipóteses, segundo aqueles sábios que estudam as entranhas destes casos, é que Justin está numa fase de negação, isto é, recusa-se a aceitar que a mulher tenha morrido e anda à sua procura. Isto é muito penoso mas temos que admitir que esta será a lógica duma mente temporariamente afectada. A nossa esperança é que seja temporariamente. Outra hipótese, possível mas improvável é que esteja à procura duma vingança na pessoa de Bluhm. Parece que Pellegrin, com a melhor das intenções, terá deixado entender que Bluhm é suspeito do assassinato de Tessa. Talvez Justin tenha agarrado essa bola e começado a correr com ela. É triste. É mesmo muito triste.

 

Por um momento, numa visão flutuante de si próprio, Woodrow tornou-se a personificação dessa tristeza. Era o rosto decente de um membro preocupado do Serviço Público inglês. Era o Juiz Romano, lento a julgar, mais lento a condenar. Era um homem do seu mundo, sem medo de tomar decisões duras, decidido a seguir os seus melhores instintos. Encorajado pela excelência da sua actuação, sentiu-se livre de improvisar.

 

- Parece que as pessoas no estado em que Justin se encontra seguem um plano de que elas próprias não têm consciência. Vão em piloto automático, à espera de uma desculpa para fazerem aquilo que inconscientemente já tinham planeado fazer. Um pouco como os suicidas. Alguém diz alguma piada e - pum! dão ao gatilho.

 

Estaria a falar demais? De menos? Estaria a afastar-se do ponto importante? Ghita olhava-o como uma sibila zangada e havia qualquer coisa no fundo do olhar amarelento de Donohue que Woodrow não compreendia. Desprezo? Fúria? Ou apenas aquele ar permanente de quem tem outro objectivo, de ter vindo de um sítio diferente e de estar prestes a voltar para lá?

 

- Mas receio que a teoria mais plausível sobre o que se está a passar neste momento na cabeça de justin, aquela que melhor se ajusta aos factos conhecidos e é defendida pelos psiquiatras do Ministério, é que Justin se julga vítima de uma conspiração, o que pode vir a ser grave. Quem não aceita a realidade, começa a sonhar co-n conspirações. Quem não aceita que a mãe morreu de cancro, acusa o médico que a tratou. E o cirurgião. E o anestesista. E as enfermeiras. Todos feitos uns com os outros, evidentemente. E conspirando coletivamente para a liquidarem. Parece ser exactamente isto o que Justin diz a si próprio a propósito de Tessa. Ela não terá sido apenas violada e assassinada. Tessa foi vítima de uma intriga internacional. Não morreu por ser jovem e atraente e ter tido um azar dos diabos, mas porque eles a queriam morta. Sejam eles quem forem... Receio que vocês também estejam metidos na conspiração. Ou o merceeiro ou a senhora do Exército de Salvação que tocou à campainha e lhe impingiu um exemplar da sua Revista. Todos estão metidos naquilo. Todos conspiraram para matar Tessa.

 

Alguns risinhos embaraçados. Teria falado demais, ou eles estavam a fazer troça? Põe-te mais duro. Estás muito compincha.

 

- No caso de Justin, eles podem ser os rapazes de Moi ou os Grandes Negócios ou o nosso Ministério e todos os que aqui estamos. Somos todos seus inimigos. Todos conspiradores. E Justin é a única pessoa que sabe quem eles são, isso faz parte da sua paranóia. A vítima, aos olhos de Justin, não é Tessa mas ele próprio. No caso de justin, os seus inimigos dependem de quem acabou de lhe falar, dos livros e jornais que leu recentemente, dos filmes que viu ou como está o biograma do dia. Além disso, disseram-me que Justin anda a beber de mais, o que acho que não acontecia quando cá estava. Pellegrin diz que o almoço dos dois no clube lhe custou o vencimento de um mês.

 

Outra risadinha nervosa, partilhada por quase toda a gente, excepto Ghita. Continuou o seu percurso, admirando a sua própria patinagem, as figuras que desenha no gelo, as voltas, as derrapagens controladas. Esta é a parte de mim que você mais detesta diz ele a Tessa, ofegante, voltando para ela depois de uma pirueta. Fssa é a voz que arruinou a Inglaterra, diz-me ela risonha enquanto dançamos. Essa é a voz que afundou milhares de navios e todos eram nossos. Muito engraçado. Olha, menina, presta agora atenção à tal voz. Ouve a habilidosa destruição da reputação do teu falecido marido, obra de Pellegrin e dos meus cinco anos de prática no Serviço de Informações do Ministério.

 

Uma náusea assaltou-o e por um momento, odiou as facetas desagradáveis da sua natureza paradoxal. A náusea podia tê-lo feito abandonar a sala de reuniões sob um pretexto qualquer, um telefonema urgente ou uma necessidade natural, só para se afastar de si próprio, ou dirigir-se à sua própria secretária, pegar numa folha de papel timbrado oficial e preencher o vazio que sentia, com solenes declarações de amor pátrio e promessas de incansável dedicação. Quem me fez isso? Pensou ele enquanto continuava a falar. Quem me fez tal como sou? A Inglaterra? 0 meu Pai? As escolas que frequentei? A minha patética e aterrorizada mãe? Ou dezassete anos a mentir pela pátria? - Chegámos a uma idade, Sandy - continuou Tessa - em que a nossa infânciajá não serve de desculpa. 0 problema no seu caso é que a sua idade está perto dos noventa e cinco. Continuou. Sentia-se de novo brilhante.

 

- Com que conspiração, precisamente, sonhava Justin, e como é que nós entramos nela, nós, aqui na Alta Comissão, se estamos conluiados com a Maçonaria, ou os jesuítas ou o Ku-Mux-Klan ou o Banco Mundial, receio não poder esclarecê-los. 0 que lhes posso dizer é que ele anda por aí. já fez algumas insinuações graves, continua muito plausível, muito convincente - sempre o foi, não é verdade? - e é perfeitamente possível que amanhã ou de aqui a três meses, ele venha até nós. - Endireitou-se de novo. - Caso em que todos vós, colectiva e individualmente, ficam instruídos (e isto não é um pedido, lamento, Ghita, mas uma ordem) de que, quaisquer que sejam os vossos sentimentos pessoais em relação a ele (e acreditem que o considero uma pessoa óptima e generosa, como todos vós), isto é uma ordem para que, se ele vos contactar, seja a que horas for, de dia ou de noite, me informem imediatamente. Ou Porter, se ele já tiver voltado. - E olhando Mildren de relance. - Ou Mike Mildren,

- Esteve quase a dizer Miíldren. - Ou, durante a noite, o Oficial de Serviço na Alta Comissão. Imediatamente. Digam-nos a nós antes que a imprensa, ou a polícia ou seja quem for o apanhe.

 

Os olhos de Ghita, furtivamente observados, pareciam mais escuros e langorosos do que nunca, os de Donohue mais olheirentos. Os de Sheila, a escanzelada, estavam duros como diamantes. - Para facilidade de referência, e por razões de segurança, Londres deu a Justin o nome de código de Holandês. Como em «Holandês Voadon». Se por qualquer razão ele cruzar o vosso camínho - Isto é uma hipótese remota mas não nos podemos esquecer que estamos a falar de um homem profundamente perturbado, com imenso dinheiro ao seu dispor - se ele cruzar o vosso caminho, directa ou indirectamente ou só por ouvirem dizer ou ainda se já o fez, então para vosso e nosso bem agarrem no telefone, estejam onde estiverem e digam: - É acerca do Holandês, ele está a fazer isto ou aquilo, recebi uma carta do Holandês, acabou de telefonar ou de mandar um fax, está aqui sentado à minhafrente. - Estamos perfeitamente entendidos? Perguntas? Diga, Barney.

 

- Falou em «insinuações graves». Sobre quem? Insinuou o quê?

 

Era uma zona perigosa. Woodrow tinha discutido longamente o caso com Pellegrin pelo telefone secreto de Porter Coleridge. - As insinuações não são muito claras. Parece estar obcecado com assuntos farmacêuticos. Tanto quanto podemos supor, Justin está convencido de que os fabricantes de um determinado medicamento, e os seus i   inventores, são os responsáveis pela morte de Tessa.

 

- Ele pensa que ela não foi degolada - volta Barney, repugnado. - Ele viu o corpo!

 

- Receio que o caso do medicamento date da infeliz passagem de Tessa pelo hospital de cá. Terá sido o medicamento que lhe matou o filho. Foi esse o primeiro golpe dos conspiradores. Tessa queixou-se aos fabricantes e eles mataram-na também.

 

- Ele é perigoso? - É Sheila, do Donohue, quem fez a pergunta, possivelmente para mostrar aos presentes que não tem nenhuma informação privilegiada.

 

- Pode ser perigoso. É o que Londres pensa. 0 seu alvo principal é a empresa farmacêutica que fabricou o produto. Depois, os cientistas que o inventaram.

Depois, os tipos que o divulgam, o que quer dizer aqui em Nairobi, a empresa que o importa ou seja a Casa das Três Abelhas, o que nos obriga a avisá-los.

- Donohue nem pestanejou. - E deixem-me dizer-vos que estamos a lidar com um diplomata inglês, sério e bem-comportado. Não esperem que vos apareça um lunático com cinza na cabeça e suspensórios amarelos a deitar espuma pela boca. Justin, por fora, continua a ser o tipo porreiro que nós conhecemos e amamos. Suave, bem vestido, com bom aspecto e terrivelmente bem educado. Até que desate a gritar que uma conspiração a escala mundial lhe matou o filho e a mulher. - Pausa. Uma nota pessoal. Tantos recursos tem um homem!

- É trágico. Pior que trágico. Penso que todos nós que estávamos próximos dele, sentimos isso. Mas é exactamente essa a razão por que tenho que fazer este aviso. Nada de sentimentos, por favor. Se o Holandês vos aparecer, temos que o saber imediatamente, Está bem? Muito obrigado. Algum outro assunto, já que aqui estamos? Faça favor, Ghita.

 

Se Woodrow tinha dificuldades em decifrar os sentimentos de Chita, estava no entanto mais perto do seu estado de espírito do que imaginava. Ela levantou-se enquanto todos continuavam sentados, incluindo Woodrow. Ela sabia-o bem, levantava-se para que todos a vissem. Mas estava levantada porque nunca na vida tinha ouvido tantas mentiras maldosas e porque o seu primeiro impulso foi não continuar sentada. E assim levantara-se como protesto, ultrajada, preparando-se para chamar mentiroso a Woodrow na própria cara e porque na sua vida, breve mas agitada, nunca encontrara ninguém melhor do que Tessa, Arnold e Justin.

 

Disso Ghita estava certa. Mas quando olhou através da sala - e sobre as cabeças do Adido Militar, do Adido Comercial e de Mildren, todos virados para ela - para os olhos mentirosos e insinuantes de Sandy Woodrow, ela percebeu que tinha de encontrar um caminho diferente.

 

0 caminho de Tessa, Não por cobardia, mas por táctica.

 

Chamar-lhe mentiroso na cara seria ganhar um minuto de duvidosa glória, a que se seguiria um pesado silêncio e um despedimento garantido. E o que é que ela poderia provar? Nada. As mentiras dele não eram puras invenções. Eram brilhantes distorções que transformavam factos reais em aberrações, mas verosímeis quanto baste.

 

- Sim, querida?...

 

Woodrow tinha a cabeça para trás, as sobrancelhas arqueadas e a boca semiaberta como um regente de coro, como se estivesse pronto a cantar com ela. Ghita desviou rapidamente os olhos. 0 rosto do velho Donohue só tem rugas a puxar para baixo, pensou ela. A irmã Marie, lá no convento, tinha um cão parecido com ele. As bochechas de um cão chamam-se babines, explicara-me Justin. Estive a jogar badminton com Sheila a noite passada e ela também está a olhar para mim. Para seu próprio espanto, Ghita deu por si a dirigir-se ao colectivo.

 

- Talvez não seja uma boa ocasião para sugerir isto, Sandy. Talvez eu devesse deixar passar alguns dias, - começou ela. - Com tantas coisas que estão a acontecer.

 

- Deixar passar o quê, Ghita? Não nos ponha nervosos.

 

- Temos um inquérito em curso através do Programa Alimentar Mundial, Sandy. E eles estão a fazer muito barulho para que nós mandemos um representante para acompanhar a próxima reunião sobre Auto-Sustentabilidade do Consumidor.

 

Era mentira. Uma mentira aceitável e eficaz. Por um milagre de ilusionismo, Ghita tinha desenterrado da sua memória um convite antigo e tinha-o reformulado de modo a parecer um pedido insistente. Se Woodrow tivesse querido ver o dossier, ela não tinha a mínima ideia do que faria. Mas não pediu.

 

- 0 quê do Consumidor, Ghita? - perguntou Woodrow, por entre risos abafados.

 

- Também é conhecido por Continuidade do Auxílio, Sandy - replicou Ghita severamente, recorrendo a outro termo do calão humanitário. - Como é que uma comunidade que recebeu um substancial auxílio alimentar e noções de saúde poderá aguentar-se sozinha quando as agências se retirarem? É esse o tema. Que precauções devem ser tomadas pelos doadores para que as medidas logísticas continuem funcionais e não haja consequências perversas? É um assunto que suscita grandes discussões.

 

- Bom, isso parece bastante razoável. Quanto tempo é que dura esse festiVal?

- Três días completos, Sandy. Terça, quarta e quinta com hipóteses de prolongamento. Mas o nosso problema é que, depois de Justin se ter ido embora, já não temos nenhum representante junto deles.

 

- Está então a pensar em ir em lugar dele, - cortou Woodrow com um risinho de quem conhece os truques das mulheres bonitas. - Onde é que vai ser, Ghita? Na Cidade do Pecado? - Era a alcunha do complexo das Nações Unidas.

- Na realidade, é em Lokichoggio, Sandy, - disse Chita.

 

Querida Ghita.

 

Não tive ocasião para lhe dizer quanto Tessa a amava e recordava o tempo que tinham passado juntas. Mas acho quejá o sabe. Muito obrigado por todas as coisas que lhe deu.

 

Tenho um pedido a fazer-lhe mas é apenas um pedido e não deixe que ele a perturbe, a não ser que seja esse o seu desejo. Seporventura, no decurso das suas viagens, acontecer ir a Lokichoggio, faça ofavor de entrar em contacto com uma sudanesa chamada Sara que era amiga de Tessa. Elafala inglês efoi uma espécie de empregada de umafamília inglesa durante o mandato britânico. Talvez ela possa lançar alguma luz sobre o que na verdade levou Tessa e Arnold a irem a Lokz*. É só um pressentimento masparece-me, agora quepenso nisso, que elespartiram para lá com uma excitação muito maior do que seria justificada por um simples curso de consciência de sexo para mulheres sudanesas! Se isso está certo, a Sara sabe a verdade.

 

Tessa mal dormiu na noite anterior à partida e estava excepcionalmente efusiva, mesmopara Tessa, quando dissemos adeus um ao outro - aquilo a que Ovídio chama «o último adeus» embora presumo que nenhum de nós tivesse consciência disso. Aqui vai uma morada em Itália para onde me pode escrever, se tiver ocasião. Mas, por favor, não se meta em sarilhos. Mais uma vez muito obrigado.

 

Com muita amizade, Justín

 

Não «Holandês». Justin.

 

 

Justin chegou à cidadezinha de Bielefeld, perto de Hanover depois de dois fatigantes dias de comboio. Com o nome de Atkinson tinha-se registado num hotel modesto em frente da estação, fizera um primeiro reconhecimento da cidade e comera uma refeição desinteressante. Depois foi à procura da morada que queria. É o que os espiões fazem constantemente, pensou, enquanto se aproximava de uma casa de esquina, completamente às escuras. So estas as precauções que eles aprendem no berço. Assim é que eles atravessam uma rua escura, vigiam as portas, viram uma esquina. Estarão à minha espera? Já os vi antes em qualquer sítio? Mas assim que pôs a carta na caixa do correio, o seu bom senso dominou-o: esquece os espiões, idiota, podias ter vindo de táxi. E agora, à luz do dia, à medida que avançava pela segunda vez em direcção à tal casa da esquina, castigava-se a si próprio com medos vários: estarão a observar-me? Ter-me-ão visto ontem à noite? Estão a pensar em prender-me assim que eu bater à porta? Terá alguém telefonado para o Telegraph e descoberto que eu não existo?

 

No comboio tinha dormido muito pouco e nada na noite passada no hotel, Viajava agora sem papéis volumosos, sem malas de lona, sem computadores portáteis nem quaisquer ligações. Tudo o que interessava conservar tinha ido para Milão, para a draconiana tia de Ham. 0 que não tinha ido estava a vinte metros de fundo no leito do Mediterrâneo. Liberto da sua carga, Justin movia-se com uma ligeireza simbólica. Uma luz iluminava-lhe o fundo do olhar. E justin sentia-a. Estava compensado pelo facto de a causa de Tessa ser, a partir de agora, a sua própria causa.

 

A casa da esquina era um castelinho alemão com cinco andares, torres e tudo. 0 rés-do-chão estava pintado com umas largas riscas entrecruzadas que à luz do dia se revelavam como sendo cor-de-laranja e verde-papagaio. A noite passada, à luz dos candeeiros de sódio, tinham-lhe parecido chamas pretas e brancas. Num dos andares superiores um mural com crianças de várias raças parecia rir-se para ele, recordando-lhe as sorridentes crianças do computador de Tessa. As suas réplicas ao vivo eram vistas através duma janela do rés-do-chão sentadas à roda de uma professora muito atarefada. Uma instalação na montra ao lado mostrava como o chocolate crescia, e exibia fotografias já encaracoladas de grãos de cacau.

 

Fingindo-se desinteressado, Justin passou em frente do edifício, mas voltou bruscamente para a esquerda e continuou calmamente estudando as placas dos residentes, médicos ou psicólogos. Num país civilizado nunca se sabe. Um carro de polícia passou na rua, com os pneus a chiarem no pavimento molhado. Os seus ocupantes, um dos quais uma mulher, olharam-no sem qualquer expressão. Do outro lado da rua, dois homens de gabardines pretas e chapéus de abas reviradas pareciam estar à espera dum enterro. A janela atrás deles tínha as cortinas corridas. Três mulheres de bicicleta desceram a rua. Grafitis na parede defendiam a causa palestiniana. Voltou ao castelo e parou em frente da porta que tinha pintado um hipopótamo verde. Um outro, mais pequeno, indicava a campainha, Uma varanda envidraçada, como a proa dum barco, espreitava-o de cima, Era ali que ele tinha parado na noite anterior para meter a carta na caixa. Quem teria então olhado para ele? A professora atarefada fez-lhe um sinal para ele se servir de outra porta, mas ela estava trancada.

Justin fez para a professora uma mímica de impotência.

 

- Deviam tê-la deixado aberta, - murmurou ela, inquieta, enquanto corria o ferrolho e puxava a porta para trás.

 

Justin pediu desculpa e avançou por entre as crianças dizendo «grüss Dich» e «guten Tag» mas a sua desconfiança punha limites à sua outrora infinita cortesia. Subiu uns degraus onde havia bicicletas e um carrinho de bebé e entrou num átrio que lhe pareceu reduzido às necessidades mais sumárias: um bebedouro, uma fotocopiadora, prateleiras vazias, muitos livros de referência e caixas de cartão empilhadas no sobrado. Através duma porta entreviu uma mulher jovem, com óculos de tartaruga e uma camisola de gola alta sentada a um computador.

 

- Chamo-me Atkinson - disse-lhe ele em inglês. - Peter Atkinson. Tenho uma entrevista com Birgit, da organização Hippo.

 

- Porque não telefonou?

 

- Cheguei ontem à noite já muito tarde. Pareceu-me melhor deixar-lhe uma carta. Ela pode falar-me

 

- Não sei, Pergunte-lhe.

 

Seguiu-a ao longo dum corredor até uma porta dupla. Ela abriu uma delas,

- Está aqui o teu Jornalista, - anunciou ela em alemão como se jornalista fosse sinónimo de amante clandestino e voltou para o seu posto.

 

Birgit era pequena e viva com faces rosadas e a atitude de um pugilista bem disposto. 0 seu sorriso era fácil e contagioso. 0 seu gabinete estava tão desarrumado como o átrio, com o mesmo aspecto de falta de móveis.

 

- Temos a nossa conferência às dez, - explicou ela um pouco ofegante enquanto lhe apertava a mão. Falava inglês como nos seus e-mails. Ele deixou-a falar. 0 Sr. Atkinson não devia dar nas vistas por saber falar alemão.

 

- Quer chá?

 

- Muito obrigado. Não é preciso.

 

Birgit puxou duas cadeiras para junto de uma mesa baixa e sentou-se. - Se é a propósito do roubo, nós não temos nada de novo a dizer.

 

- Que roubo?

 

- Não tem importância. Levaram algumas coisas. Talvez nós tivéssemos coisas a mais. Agora já não temos.

 

- Quando é que foi?

 

Ela encolheu os ombros. - Há muito tempo. A semana passada.

 

justin tirou um bloco-notas da algibeira, no estilo de Lesley, pousou-o nos joelhos. - É acerca do vosso trabalho aqui - disse. - 0 meu jornal quer fazer uma série de artigos sobre as companhias farmacêuticas e o Terceiro Mundo. Vamos chamar-lhe os Mercadores de Remédios. Explicar como os países do Terceiro Mundo não têm nenhum poder como consumidores, Como grandes doenças num sítio correspondem a grandes lucros noutro. - Tinha-se preparado para falar como um jornalista, mas não tinha a certeza de estar a ser bem sucedido. - Os pobres não podem pagar e por isso morrem. Quanto tempo vai isto durar? Parece que dispomos dos meios mas não da vontade política. Esse tipo de coisas.

 

Para surpresa de Justin, ela estava a sorrir abertamente. - Quer que eu lhe dê uma resposta a essas questões antes das dez horas?

 

- Gostava que me dissesse o que é que a Hippo faz exactamente, quem vos financia, de quem é que dependem, por assim dizer, - disse ele com severidade.

 

Ela falava e ele escrevia no bloco apoiado no joelho. Ela debitava o seu papel, supunha ele, e Justin fingia muito seriamente prestar-lhe a maior atenção. Pensava que aquela mulher fora amiga e aliada de Tessa sem nunca se terem encontrado e se isso tivesse acontecido, ambas se teriam felicitado pela escolha da sua posição. Ele pensava que existem muitas motivações para um roubo e uma delas era fornecer cobertura para a instalação de dispositivos que originam aquilo a que o Ministério chama Produtos Especiais, só para iniciados. Lembrou-se, mais uma vez, do seu curso sobre segurança e a visita que tinham feito a um macabro laboratório instalado numa cave por detrás dos CarIton Gardens, onde os estudantes podiam admirar com os seus próprios olhos os melhores sítios para colocar miniaparelhos de escuta. já não se usavam os vasos de plantas, os candeeiros, as molduras dos quadros: agora usava-se tudo o que se pudesse imaginar desde o agrafador da secretária de Birgit até ao seu casaco pendurado atrás da porta.

 

Ele escrevera o que quisera escrever e ela, aparentemente, dissera o que queria dizer porque estava em pé e de vez em quando pesquisava uma pilha de panfletos, à procura de algumas noções básicas que ele pudesse ler antes da conferência das dez. Enquanto procurava ia falando distraidamente ria Agência Federal Alemã para os medicamentos, chamando-lhe um tigre de papel. E a Organização Mundial de Saúde é paga pelos americanos, o que significa favorecer as grandes multinacionais, adorar o lucro e nunca tomar decisões radicais.

 

- Vá a qualquer assembleia da OMS e o que é que vê? - perguntou Birgit retoricamente, estendendo-lhe um maço de panfletos. - Lobbies. Relações públicas das grandes farmas. Dúzias deles. Por cada grande companhia, três ou quatro. «Venha almoçar. Venha passar o fim-de-semana connosco. já leu este magnífico artigo do professor Fulano-de-Tal?» E o Terceiro Mundo não é sofisticado. Não têm dinheiro nem experiência. Com a sua linguagem diplomática e a sua capacidade de manobra os lobbies facilmente os deixam para trás,

 

Tinha parado de falar e franzia agora o sobrolho. Justin pusera-lhe diante dos olhos o bloco-notas para que ela pudesse ler. Tinha o bloco junto da própria cara para que ela pudesse ver a sua expressão enquanto lia a mensagem; e esperava que essa expressão fosse, ao mesmo tempo, exigente e tranquilizadora. Em apoio, ele tinha levantado o indicador da mão livre como advertência.

 

SOU 0 MARIDO DE TESSA JUStIN, E E NÃO CONFIO NESTAS PAREDES. PODE ENCONTRAR-SE COMIGO ESTA TARDE ÀS CINCO E TRINTA EM FRENTE DA FORTALEZA

 

Ela leu a mensagem, olhou para os olhos dele através do dedo erguido e continuou a olhá-los enquanto Justin enchia o silêncio com a primeira coisa que lhe veio à cabeça.

 

- Está então a dizer que o que nos precisamos é de uma instituição internacional independente que possa meter na ordem as grandes companhias?

 

- Estou - respondeu ela com uma perfeita calma. - Penso que isso seria uma excelente ideia.

 

Justin passou junto da mulher de gola alta e disse-lhe o que lhe pareceu ser a alegre saudação dum jornalista. -Trabalho acabado - garantIU-lhe. - Na hora. Muito obrigado pela sua cooperação. - E assim já ela não precisa de falar para a polícia e dizer-lhes que está aqui um impostor.

 

Atravessou de novo a aula pisando com cuidado e tentou de novo obter um sorriso da atarefada professora. - É a última vez, - prometeu-lhe. Mas os únicos que sorriram foram as crianças.

 

Na rua os dois velhos de gabardina e chapéu preto continuavam à espera do enterro. Na esquina duas enérgicas raparigas sentadas num Audi estudavam um mapa. Voltou para o hotel e perguntou na recepção se tinha correio. Não tinha. Chegado ao quarto, rasgou a primeira página incrimínatória do bloco e também a página seguinte por causa da pressão da esferográfica. Queimou-as no lavatório e ligou o exaustor para se ver livre do fumo. Deitou-se na cama a pensar no que fazem os espiões para matar o tempo. Adormeceu e foi acordado pelo telefone. Levantou o auscultador e lembrou-se de dizer - Atkinson.

- Era a governanta, «a verificar», disse ela. Que a desculpasse, por favor. Verificar o quê, c’os diabos. Mas os espiões não fazem essas perguntas. Não querem dar nas vistas. Os espiões deitam-se na cama e dormem.

 

A velha fortaleza de Bielefeld erguia-se num planalto verde que dominava umas tantas colinas enevoadas. Parques de estacionamento, mesas de piqueníque e jardins municipais estendiam-se entre as muralhas cobertas de hera. Em meses mais quentes era um dos lugares favoritos para os passeios dos habitantes da cidade, que percorriam as avenidas arborizadas, admiravam os canteiros de flores e engoliam almoços regados a cerveja no Restaurante dos Caçadores. Mas nos meses cinzentos o local parecia um recreio vazio no meio da neblina, que era o que aparecia aos olhos de Justin quando se apeou do táxi, com vinte minutos de avanço e fez o que esperava que parecesse uma visita casual ao local do encontro. Dois parques de estacionamento escavados no terreno estavam inundados pela água das chuvas. Nos relvados molhados letreiros recomendavam que os cães fossem controlados. Num banco próximo dois veteranos, de sobretudo e cachecol, sentavam-se muito direitos e observavam-no. Seriam os mesmos homens que, vestidos de preto, tinham passado a manhã à espera dum enterro? Porque é que me olham tão desconfiados? Serei um Judeu? Um polaco? Quanto tempo vai ser preciso para que a Alemanha se transforme em mais um entediante país europeu?

 

Só um caminho conduzia à fortaleza propriamente dita e ele começou a percorrê-lo, bem ao centro, para evitar as bermas, escavadas e cheias de folhas secas. Quando ela chegar, vou esperar que ela estacione antes de lhe falar, decidiu ele. Os carros também têm ouvidos. Mas o carro de Birgit não os tinha, pela boa razão de que era uma bicicleta. À primeira vista parecia uma amazona fantasma obrigando o seu cavalo a avançar com a sua capa de plástico esvoaçando atrás dela. As tiras fosforescentes cruzadas sobre o peito davam-lhe um ar de cruzado, A aparição ganhou lentamente carne e osso e viu-se que ela não era um serafim alado nem um esfalfado mensageiro do campo de batalha, mas uma jovem mãe, com uma capa, pedalando numa bicicleta. Da capa saíam não só uma mas duas cabeças, sendo a segunda do filho, um rapazinho louro, amarrado a uma cadeirinha atrás dela e medindo, segundo os olhos pouco treinados de Justin, cerca de dezoito meses na escala de Richter.

 

A vista dos dois foi-lhe tão agradável e, ao mesmo tempo, tão incongruente e enternecedora que, pela primeira vez depois da morte de Tessa, rompeu numa autêntica gargalhada.

 

- Não consegui arranjar uma baby-sitter, - disse Birgit, chocada com o riso dele.

 

- Nem devia, nem devia! Assim é maravilhoso. Como é que ele se chama?

- Carl. E o senhor?

 

- Carl manda-lhe um beijo... E o elefante que lhe ofereceu põe-o maluco... espero sinceramente que o seu bebé seja tão bonito como Carl.

 

Justin mostrou-lhe o seu passaporte em nome de Quayle. Ela examinou-o com cuidado, nome, idade, fotografia, olhando para ele de vez em quando.

 

- Você disse a Tessa que ela era wagalsig * - disse ele e viu-a a sorrir enquanto tirava e dobrava a capa estendendo-lhe depois a bicicleta para que ele a segurasse e ela pudesse desamarrar o filho. Tendo libertado Carl pousou-o no chão e voltou as costas a Justin para que ele lhe soltasse a mochila onde estava o biberon de Carl, um pequeno pacote de pão preto, uma fralda de reserva e duas sanduíches de queijo e fiambre em baguete envoltas em plástico.

- já comeu hoje, Justin?

 

- Não muito

 

- Bom. Então vamos comer. Estamos nervosos, isto vai acalmar-nos. Carlichen du machst das bitte nicht. ** Podemos é andar. 0 Carl pode andar até ao fim do mundo.

 

Nervosos? Quem é que está nervoso? Fingindo estudar as nuvens ameaçadoras, Justin virou lentamente a cabeça, Ainda lá estavam, as duas sentinelas sentadas em sentido.

 

- Não sei quanto material, exactamente, se perdeu, - queixou-se Justin depois de lhe contar a história do computador de Tessa. - Tenho a impressão de que haveria muita correspondência entre vocês as duas que ela não imprimiu.

 

- Sabe alguma coisa sobre a Enrich?

 

- Só que ela emigrou para o Canadá. Mas que continua a trabalhar para a KVH.

 

Em alemão no texto. Significa «ousado, temerário»,. (N. T)

Carlinhos, por favor não faças isso.,, (N. T)

 

- Não sabe qual é a situação dela, exactamente? Qual foi o problema?

- Sei que se zangou com a Kovacs.

 

- A Kovacs não tem importância. 0 pior é que a Enrich se zangou com a KVH.

 

- Mas a propósito de quê?

 

Do Dypraxa. Ela pensa ter identificado alguns efeitos secundários muito negativos. A KVH pensa que não.

 

- E que medidas tomaram eles acerca disso?

 

Até agora só destruíram a reputação e a carreira de Emrích.

- E mais nada.

 

- Mais nada.

 

Deram alguns passos calados, com Carl a correr à frente apanhando ouriços caídos dos castanheiros e sendo impedido de os meter na boca. 0 nevoeiro do fim da tarde tinha formado um oceano através das colinas, fazendo com que os seus topos parecessem ilhas.

 

- Quando é que isso aconteceu?

 

- Ainda está a acontecer. Foi despedida da KVH e também da Universidade e do Hospital Dawes em Saskatchewan, Tentou publicar um artigo num jornal médico acerca das suas conclusões sobre o Dypraxa, mas o contrato dela com a KVH tinha uma cláusula de confidencialidade, eles puseram-lhe um protesto e ao jornal também, de modo que nenhum exemplar foi posto à venda.

 

Processo. Não é «protesro», é processo. É a mesma coisa.

 

Contou isso a Tessa? Ela deve ter ficado indignada. Claro que contei.

 

Quando? Birgit encolheu os ombros. - Talvez há umas três semanas. Ou duas. A nossa correspondência também desapareceu.

 

- Quer dizer que também assaltaram o seu computador?

 

- Foi roubado. No assalto. Não tinha imprimido os seus e-mails. Perdeu-se tudo.

 

Justín concordou, em silêncio. - Tem alguma ideia de quem fez o assalto?

- Ninguém o fez. Com as grandes empresas, nunca é ninguém. 0 bíg boss fala ao sub boss, o sub boss fala ao director, o director fala ao chefe da segurança que fala ao subchefe que fala aos seus amigos que falam aos amigos deles. É assim que se faz. Não foi o boss nem o director nem o subchefe. Não foi a empresa. Não foi ninguém, na verdade. Mas está feito. Não há nada escrito, não há cheques, não há contratos. Ninguém sabe nada. Mas está feito.

 

- E a polícia?

 

- Ah, a nossa polícia é muito competente. Se perderam um computador, digam ao seguro e comprem outro, não venham chatear a polícia. Conheceu a Wanza?

 

- Só no hospital. já estava muito doente. A Tessa escreveu-lhe acerca dela?

- Disse que ela foi envenenada. Que Lorbeer e Kovacs tinham ido vê-la ao hospital, que o bebé sobrevivera mas Wanza não. 0 medicamento matou-a. Talvez um conjunto de circunstâncias. Talvez fosse magra demais, não tivesse peso suficiente para aguentar o remédio. Talvez se lhe tivessem dado menos ela sobrevivesse. Talvez a KVH vá fixar doses mais rigorosas antes de vender o Dypraxa na América.

 

- Ela disse isso? Tessa?

 

- Disse. Isto é, escreveu. «Wanza foi mais uma cobaia. Eu gostava muito dela e eles mataram-na. Tessa.»

 

Justin protestou. Por amor de Deus, Birgit, então e a Emrich? Se ela, uma das criadoras do medicamento, o declarou suspeito então com certeza que... Birgit interrompeu: - A Emrich está a exagerar. Pergunte à Kovacs.

 

Pergunte à KVH. A contribuição de Lara Enrich para a descoberta da molécula do Dypraxa foi insignificante. A Kovacs é que foi o gênio, a Enrich era a sua assistente de laboratório. Lorbeer foi o mentor de ambas. E como era também amante de Enrich, a importância dela foi exagerada, tida como maior do que na verdade foi.

 

- Onde é que o Lorbeer está agora?

 

- Não se sabe. Emrich não sabe, a KVH não sabe ou diz que não sabe, Nos últimos cinco meses tornou-se completamente invisível. Talvez também o tenham matado.

 

- E a Kovacs?

 

- Anda em viagem. Viaja tanto que a KVH nunca nos pode dizer onde ela está ou vai estar. A semana passada estava no Haiti, parece, há três semanas estava em Buenos Aires ou Tombuctu. Mas onde vai estar amanhã ou na próxima semana é um mistério profundo. 0 seu endereço pessoal é confidencial, evidentemente, e o telefone também.

 

Carl estava com fome. Há um minuto estava entretido a remexer um ramo numa poça, no minuto seguinte estava a berrar com fome. Sentaram-se num banco enquanto Birgit lhe dava o biberão.

 

- Se você não estivesse aqui, ele é que agarrava no biberão, - disse ela, orgulhosa. - Andava por aí aos tombos, como um bêbado, com o biberão na boca. Mas agora tem um tio a olhar para ele e por isso quer que o veja com muito juízo. - Estas palavras fizeram-na lembrar-se do desgosto de Justin.

- Tenho tanta pena, Justin, - murmurou ela. - Como é que hei-de dizer?

 

- Ela falava tão docemente que, por uma vez, Justin não achou necessário dizer «obrigado» ou «foi terrível» ou qualquer outra frase vazia que ele tinha aprendido a proferir quando as pessoas se sentiam obrigadas a dizer o indizível.

 

Iam de novo a andar e Birgit estava a recordar o roubo.

 

- Cheguei ao escritório de manhã (o meu colega Roland tinha ido a Conferência no RÁo) e tudo parecia normal. As portas estavam fechadas à chave, tive que as abrir como de costume. Ao princípio não notei nada. É natural. Porque é que um ladrão fecha a porta à chave quando se vai embora? A polícia também nos fez essa pergunta. Mas as portas estavam realmente fechadas à chave. 0 nosso local não estava muito limpo mas isso é normal. Nós é que fazemos as nossas próprias limpezas. Não podemos pagar um serviço de limpeza e às vezes estamos demasiado ocupados ou demasiado preguiçosos para limpar tudo convenientemente.

 

Três mulheres de bicicleta passaram por eles com solenidade, deram a volta ao parque de estacionamento, e passaram outra vez a caminho da cidade. Justin lembrou-se das três ciclistas dessa manhã.

 

- Fui ver o telefone. Nós temos um gravador lá no Hippo. Um aparelho normal, de cem marcos apesar de tudo, mas ninguém o levou. Temos correspondentes em toda a parte do mundo, precisamos dum gravador. A bobine não estava lá. Que merda! pensei eu. Quem é que tirou o raio da bobine? Fui ao outro gabinete à procura da bobine e vi que o computador não estava lá. Que raio! Quem foi o idiota que mudou o computador de sítio? E para onde? É um computador grande, com dois andares, mas é possível deslocá-lo porque tem rodas. Temos uma nova rapariga, uma advogada estagiária, óptima, na verdade, mas sem experiência. «Beate, minha querida, onde é que está o computador?» E começámos a procurar. 0 computador. As bobines. Disquetes. Papéis. Dossiers. Não estavam lá mas as portas estavam fechadas. Não levaram mais nada de valor. Nem o dinheiro da respectiva caixa, nem a máquina de café ou o rádio nem o gravador vazio nem a televisão. Também não são drogados. Nem ladrões profissionais. Para a polícia nem sequer são criminosos. Porque é que criminosos haviam de fechar portas à chave? Talvez você saiba responder.

 

- Para nos avisar, - respondeu Justin depois de uma longa pausa.

- Como? Para nos avisar de quê? Não percebo.

 

- Também fecharam as portas quando foi da Tessa.

- Explique lá. Quais portas?

 

- As do jipe. Quando a mataram. Trancaram as portas do carro para que as hienas não levassem os corpos.

 

- Porquê?

 

- Estão a meter-nos medo. É essa a mensagem que eles puseram no computador de Tessa. Para ela ou para mim. «Está avisada, Não continue com o que está a fazer.» Também lhe mandaram uma ameaça de morte. Ela nunca me falou nisso.

 

- Ela era muito valente, - disse Birgit.

 

Lembrou-se das sanduíches. Sentaram-se a comê-las noutro banco enquanto Carl roía um biscoito e cantarolava e as duas velhas sentinelas desciam a encosta quase sem se dar por elas.

 

- Houve um critério qualquer para o que eles roubaram? Ou foi ao calhas?

- Foi ao calhas, mas também com um certo critério. Roland diz que não houve critério, mas ele é muito distraído. Está sempre descontraído. É como um atleta, cujo coração bate à metade da velocidade normal e que pode, por isso, correr mais depressa do que qualquer outra pessoa. Mas só quando quer, Quando não há nada a fazer deixa-se ficar na cama.

 

- Qual foi o critério - perguntou ele.

 

Ela franzia a testa da mesma maneira que Tessa. Era a mostra da discrição profissional. Tal como fazia com Tessa, absteve-se de insistir.

 

- Como é que traduz waghalsig? - perguntou ela, por fim,

- Destemido, penso eu. Temerário, talvez. Porquê?

 

- Então também eu fui wagalsig, - disse Birgit.

 

Carl queria colo, o que, segundo a mãe, era invulgar. Justin insistiu em carregá-lo. Foi complicado. Ela desarmou o suporte que levava às costas e entregou-lho. Quando estava plenamente satisfeita quanto à fixação, pegou em Carl, sentou-o lá, e recomendou-lhe que se portasse bem com o seu novo tio.

 

- Eu fui pior que waghalsig. Fui uma idiota chapada. - Mordeu os lábios, detestando ter que dizer o que fizera. - Recebemos uma carta. A semana passada. Quinta-feira. Veio de Nairobi, por um portador, Não uma carta, um documento. Setenta páginas. Sobre o Dypraxa. A sua história, os seus aspectos, os seus efeitos secundários. Positivo e negativo, mas sobretudo negativo, tendo em vista a mortalidade e os efeitos secundários. Era objectivo nos seus aspectos científicos mas um pouco tonto noutros aspectos. Não estava assinado. Endereçado para a Hippo, não para ninguém em particular. Só Hippo. Para os Senhores e Senhoras da Hippo.

 

- Em inglês?

 

- Sim, mas não escrito por um inglês, pareceu-me. Dactilografado, de modo a não conhecermos a letra. Continha muitas referências a Deus. 0 senhor é religioso?

 

- Não.

 

- Mas Lorbeer é.

 

A chuvinha tinha passado a curtos momentos de verdadeira chuva. Bírgit sentou-se num banco. Tinham chegado junto a uns baloiços providos de uma barra de segurança. Carl foi colocado num baloiço e devidamente empurrado. Estava cheio de sono. Uma modorra de gato tinha-se apoderado dele. Tinha os olhos semicerrados e sorria enquanto Justin o empurrava com um cuidado excessivo. Um Mercedes branco com uma matrícula de Hamburgo subiu devagar a colina, passou por eles, deu a volta ao parque de estacionamento e voltou lentamente para trás. Um homem ao volante, um passageiro no banco de trás. Justin lembrou-se das duas mulheres no Audi, esta manhã quando saíra para a rua. 0 Mercedes voltou a descer a encosta.

 

- Tessa disse que você falava todas as línguas, - disse Birgit.

 

- 0 que não quer dizer que tenho sempre coisas para dizer. Porque é que foi waghalsíg?

 

- Diga antes «estúpida».

- Foi estúpida porquê?

 

- Porque quando chegou o portador com o documento de Nairobi, fiquei muito excitada, falei imediatamente para Lara Enrich em Saskarchewan e disse-lhe. «Querida Lara, Oiça, recebemos uma história do Dypraxa, muito longa, anónima, muito mística, muito louca e muito autêntica, sem endereço, sem data e, parece-me, escrita por Markus Lorbeer. Fala das mortes que provocou e é um grande auxílio para a nossa causa.» Fiquei muito contente porque o documento até tinha como título «A Dra. Lara Emrich tem razão».

 

É louco, - disse-lhe eu, - mas é contundente como um manifesto político. também muito polémico, muito religioso e muito destrutivo para Lorbeer. «Então é porque é do próprio Lorbier», diz ela, «Markus está a castigar-se. É normal».

 

- Encontrou Enrich alguma vez? Conhece-a pessoalmente?

 

- Como conheci Tessa. Por e-mail. Somos e-amigas. No tal documento dizia-se que Lorbeer vivera durante seis anos na Rússia, dois no velho Comunísmo, quatro no novo caos. Digo isso a Lara que já sabia. Segundo o documento, Lorbeer foi agente de várias firmas ocidentais, cortejando funcionários russos fígados à saúde, vendendo-lhes medicamentos ocidentais. 0 documento fala de uma piada da época. Quando vou dízê-la a Lara, ela interrompe-me e diz-me exactamente o que eu ia dizer: «Os Ministros russos da Saúde chegam de Lada e saem de Mercedes.» Díz-me que é uma das piadas favoritas de Lorbeer. 0 que nos confirma que é Lorbeer o autor do documento. É uma confissão masoquista. Fico a saber, por Lara, que o pai de Lorbeer era um protestante alemão, muito calvinísta, muito estrito, o que tem a ver com as mórbidas concepções religiosas do filho e com o seu gosto pela confissão. Sabe alguma coisa de medicina? De química? De biologia, talvez?

 

- A minha educação foi demasiado fina para isso, tenho pena.

 

- Lorbeer afirma na sua confissão que quando trabalhava para a KVH conseguiu a validação do Dypraxa graças a lisonjas e subornos. Descreve como comprou funcionários da saúde, conseg -iiu testes sumários, comprou registos farmacêuticos e licenças de importação, untando todas as mãos ao longo da cadeia burocrática. Em Moscovo uma validação por especialistas conceituados pode custar vinte e cinco mil dólares. É o que ele diz. 0 problema é que quando se suborna alguém, é-se obrigado a subornar também pessoas desconhecidas, senão elas estragam tudo, dizendo o mal do medicamento. Na Polónia era a mesma coisa, mas mais barato. Na Alemanha o Jogo era mais subtil mas não muito. Lorbeer recorda uma famosa ocasião quando fretou um avião Jumbo e levou oitenta ilustres médicos alemães à Tailândia para uma viagem educativa. - Birgit sorria enquanto contava aquilo. - A educação foi fornecida durante a viagem sob a forma de vídeos e conferências mas também caviar Beluga e brandíes e wiskíes extremamente velhos. Tudo tinha de ser de qualidade excepcional, porque os bons médicos alemães já estavam habituados ao melhor. Champanhe já não os interessava. Na Tailândia, os convidados estavam livres para fazerem o que quisessem, mas também eram fornecidos divertimemtos a quem os solicitasse, bem como parceiras muito atraentes. Lorbeer organizou pessoalmente um voo de helicóptero para lançar orquídeas sobre uma certa praia onde os médicos e as suas acompanhantes estavam a descansar. Na viagem de regresso já não era necessária qualquer educação. Todos já estavam educados. 0 que tinham que recordar era só o que receitar e de que falar nos seus doutos artigos.

 

Embora Birgit estivesse a rir, sentia-se pouco à vontade com a história e procurou corrigir o seu impacto.

 

- Isto não quer dizer que o Dypraxa seja um mau medicamento. É mesmo bom, embora não tenha ainda completado as devidas experiências. Nem todos os médicos podem ser comprados, nem todas as empresas farmacêuticas são descuidadas e gananciosas.

 

Fez uma pausa, consciente de que estava a falar demais, mas Justín não fez qualquer tentativa para a fazer mudar de conversa.

 

- A moderna indústria farmacêutica só tem sessenta e cinco anos de idade. Tem óptimos homens e óptimas mulheres, já conseguiu fazer milagres humanos e sociais, mas não tem ainda uma consciência colectiva. Lorbeer diz que elas voltaram as costas a Deus. Faz inúmeras referências bíblicas que eu não entendo. Talvez seja porque não entendo Deus.

 

Carl tinha adormecido no baloiço, por isso Justín pegou-lhe ao colo e começou a passeá-lo de um lado para o outro.

 

- Estava a falar-me do seu telefonema para Lara Enrich, - recordou Justin.

- Pois estava, mas distraí-me propositadamente porque fico embaraçada ao ver que fui tão estúpida. Se quiser, eu pego no Carl.

 

- Está muito bem assim.

 

0 Mercedes branco tinha parado no sopé da colina. Os dois homens continuavam lá dentro.

 

- Na Hippo há anos que partimos do princípio que os nossos telefones estão sob escuta e até temos orgulho nisso. De tempos a tempos o correio é censurado. Mandamos cartas a nós próprios e elas chegam tarde e em mau estado. já pensámos em dar informações falsas ao Organy.

 

- Ao quê?

 

- E uma invenção de Lara. É a palavra russa do tempo dos Sovietes. Quer dizer, os órgãos do Estado.

 

- Vou adoptá-la irnedíatamente.

 

- Talvez o Organy nos tenha ouvido rir ao telefone quando prometi a Lara enviar-lhe uma cópia do documento para o Canadá. Lara disse que infelizmente não tem fax porque gastou todo o dinheiro em advogados e, por outro lado, nem sequer pode entrar no hospital. Se ela tivesse um fax talvez hoje não tivéssemos problemas. Ela teria uma cópia das confissões de Lorbeer mesmo se perdêssemos a nossa, Tudo estaria a salvo. Talvez. Neste caso é tudo <,talvez,>. Ninguém tem provas.

 

- E um e-mail?

 

- Ela também já não tem e-mail. 0 computador dela sofreu uma paragem cardíaca no dia seguinte a Lara ter tentado publicar o artigo.

 

Bírgit estava corada de vergonha.

- E depois? - atirou-lhe justin.

 

- Depois não há documento nenhum. Roubaram-no quando levaram o computador, os dossiers e as gravações. 0 telefonema para Lara foi à tarde, cinco horas aqui na Alemanha. A conversa deve ter durado quarenta minutos, Ela estava excitada, muito feliz. «Espere até a Kovacs saber disso», estava sempre a dizer. Falámos durante muito tempo e rimo-nos e eu não me lembrei de fazer uma cópia da confissão de Lorbier antes de me ir embora. Pus o documento no cofre e fechei-o. Não é um cofre enorme mas tem um tamanho razoável. Os ladrões tinham a chave. Tal como fecharam as portas quando se foram embora, também fecharam o cofre depois de roubarem o documento. Quando se pensa nisso, tudo se torna evidente. Antes não se podia prever.

0 que faz um gigante quando quer uma chave? Diz aos anõezitos que descubram a marca do cofre, depois telefona ao gigante que fabricou a chave e pede-lhe para dizer aos seus anõezitos que façam outra chave. No mundo dos gigantes, é perfeitamente normal.

 

0 Mercedes branco continuava parado. Talvez isso também fosse normal.

 

Tinham-se abrigado num telheiro de zinco. Rodeiam-nos filas de cadeiras de lona, acorrentadas como prisioneiros. A chuva tamborila no telheiro e corre em fio aos pés deles. Carl voltou para o colo da mãe, dorme contra o seu seio com a cabeça bem apoiada. Ela abriga-o com um guarda-sol. Justin senta-se um pouco afastado, as mãos postas entre os joelhos, como se rezasse, a cabeça curvada. Foi o que eu senti quando da morte de Garth, que me privou da minha própria educação.

 

- Lorbeer estava a escrever uma novela, - diz ela.

- Um romance.

 

- Uma novela não é um romance?

- São parecidos.

 

- Este romance então tem o happy end ao princípio. Era uma vez duas lindas mulheres, médicas, chamadas Emrich e Kovacs. São internas no Hospital da Universidade de Leipzig, na Alemanha Oriental. Um grande hospital. Trabalham sob a orientação de sábios professores e sonham que um dia hão-de fazer uma grande descoberta que salvará o mundo. Ninguém fala do Deus Lucro, só se pensa no bem da humanidade. Ao hospital de Leipzig chegam muitos russo-alemães vindos da Sibéria com tuberculose. Nos campos soviéticos a taxa de TB é muito alta. Todos os doentes são pobres, doentes sem defesas, muitos deles têm lesões multi-resistentes, muitos estão a morrer. Eles vão assinar seja o que for, submeter-se a todas as experiências sem causar nenhum problema. Por isso é natural que as jovens médicas tentem isolar bactérias e façam experiências com possíveis remédios contra a T13. Já experimentaram em animais, talvez já tenham também experimentado em estudantes de medicina ou outros internos. Os estudantes não têm dinheiro. Hão-de vir a ser médicos, estão interessados no processo. E como responsável pelas suas pesquisas há um Oberarzt...

 

- Um médico-chefe.

 

- A equipa é dirigida por um Oberarzt entusiasta de experiências. Toda a equipa disputa a sua aprovação e por isso todos participam nas experiências.

 

Ninguém é cruel e muito menos criminoso. São jovens sonhadores, têm um assunto de análise muito atraente e os doentes estão desesperados. Porque não?

- Porque não? - murmura Justin.

 

- Kovacs tem um namorado. Kovacs tem sempre um namorado. Muitos namorados. Este é um polaco, bom rapaz. Casado, mas não importa. E tem um laboratório. Um laboratório pequeno, eficiente, inteligente em Laipzig. Por amor a Kovacs, o polaco díz-lhe que ela pode vir trabalhar no laboratório sempre que tiver tempo livre. Pode trazer quem quiser, e ela leva a sua bela colega Emirich, Kovacs e Emirich pesquisam, Kovacs e o polaco fazem amor, toda a gente está feliz, ninguém fala do Deus Lucro. Estes jovens só procuram honras e glória e, certamente, uma promoção. Os seus estudos produzem resultados positivos. Os doentes continuam a morrer, mas de qualquer maneira era o que os esperava. E até há alguns que não morrem. Kovacs e Emrich estão orgulhosas. Escrevem artigos para as revistas médicas. 0 professor escreve artigos a apoiá-las. Outros professores apoiam o professor, toda a gente está contente, todos se felicitam uns aos outros, não há inimigos, por enquanto.

 

Carl agita-se. Ela dá-lhe palmadinhas nas costas e sopra-lhe de mansinho para a orelha. Ele sorri e volta a adormecer.

 

- A Emrich também tem um amante. Tem o marido, de apelido Emirich, mas que não a satisfaz, estamos na Europa Oriental, toda a gente já esteve casada com toda a gente. 0 nome do amante é Markus Lorbeer. Tem nacionalidade sul-africana, um pai alemão e uma mãe holandesa e vive em Moscovo como representante de laboratórios farmacêuticos, por conta própria, mas também como empresário que estuda as possibilidades mais interessantes no campo da biotecnologia e trata de as explorar.

 

- Um caçador de talentos.

 

- É mais velho do que Lara aí uns quinze anos, nadou em todos os oceanos, como se diz, é sonhador como ela. Gosta da medicina mas nunca foi médico. Ama Deus e o mundo inteiro, mas também ama a moeda forte e o Deus Lucro, E por isso, na sua confissão escreve: «o jovem Lorbeer é um crente, adora o Deus dos cristãos, adora as mulheres, mas adora também o Deus Lucro.» É essa a sua fraqueza. Acredita em Deus mas ignora-o. Pessoalmente, rejeito essa atitude mas não interessa. Para um humanista, Deus é uma boa desculpa para não se ser humanista. Seremos humanistas no outro mundo, para já aumentaremos os lucros. Não faz mal. «Lorbeer recebeu de Deus o dom da sabedoria (suponho que se está a referir à molécula do medicamento) e vendeu-o ao Diabo.» Suponho que queira dizer KVH. Escreve depois que quando Tessa veio visitá-lo no deserto, ele revelou-lhe toda a extensão do seu pecado.

 

Justin endireita-se.

 

- Ele diz isso? Que o disse a Tessa? Quando? No hospital? Quando é que ela foi visitá-lo? Qual deserto? Que diabo quer ele dizer com isso?

 

- Como eu lhe disse, o documento é um pouco tresloucado. Chama Abbott * a Tessa. «Quando Abbott veio visitar Lorbeer no deserto, Lorbeer chorou.» Talvez seja um sonho, uma fábula. Lorbeer transformou-se num penitente no deserto. É o profeta Elias ou Jesus Cristo, nem sei. No fundo é repugnante. «Abbott exortou Lorbeer a prestar contas a Deus. E por isso, naquele encontro no deserto Lorbeer explicou a Abbott a natureza íntima dos

 

* Literalmente, Abbott (apelido de solteira de Tessa) é o Abade do Convento. (N. T)

 

seus pecados.» É o que ele escreve. Os seus pecados são muitos, evidentemente. Nem me lembro de todos. Primeiro o pecado da auto-ilusão e o da falsa argumentação. Depois vem o pecado do orgulho, julgo eu. Seguido pelo pecado da cobardia. Por esse pecado não pede nenhuma desculpa, o que na verdade me alegra. Mas provavelmente também ele se sente alegre. Lara diz que ele só é feliz quando se confessa ou quando faz amor.

 

- Ele escreveu tudo isso em inglês?

 

Ela concordou com a cabeça. - Um parágrafo em inglês bíblico, o seguinte com dados extremamente técnicos sobre a má orientação propositada dos ensaios clínicos, as discussões entre Emrich e Kovacs e os problemas do Dypraxa quando combinado com outros medicamentos. Só uma pessoa muito bem informada poderia saber tais detalhes. Prefiro esse Lorbeer ao do Céu e do inferno, tenho que reconhecer.

 

- Abbott com a pequeno?

 

- Grande. «Abbott tomou nota de tudo o que lhe disse.» Mas houve mais um pecado. Ele matou-a.

 

Na expectativa, Justin fixou o olhar em Carl.

 

- Talvez não directamente, ele era ambíguo. «Lorbeer matou-a com a sua traição. Cometeu o pecado de Judas, cortou a garganta dela com as mãos nuas e pregou Bluhm a uma árvore.» Quando eu li estas palavras a Lara, perguntei-lhe: «Lara, ele está a dizer que matou Tessa Quayle?»

 

- 0 que é que ela respondeu?

 

- Que Markus era incapaz de matar até o seu pior inimigo. Diz que é para ele uma agonia: ser um homem mau com uma boa consciência. Mas ela é russa, muito depressiva.

 

- Mas se ele matou Tessa, deixou de ser um homem bom, não é verdade?

- Lara jura que não é possível. Ela tem muitas cartas dele. E só é capaz de amar sem esperança. Ouviu muitas confissões dele, mas nunca essa. Markus tem muito orgulho nos seus pecados, disse ela. Mas é vaidoso e exagera muito. É muito complicado, chega a ser psicopático e é por isso que ela o ama.

 

- E não sabe onde ele está?

- Não.

 

0 olhar de Justin fixa-se, sem ver, na luz dúbia do crepúsculo. -Judas não matou ninguém, - objectou. - Judas traiu.

 

- 0 efeito foi o mesmo. judas matou com a sua traição.

 

Nova e longa contemplação do crepúsculo. - Falta aí uma personagem. Se Lorbeer traiu Tessa, traiu-a junto de quem?

 

- Não se percebe. Talvez às Forças das Trevas. Só tenho isso na memória.

- Forças das Trevas?

 

- Na carta ele falava das Forças das Trevas. Odeio essa terminologia. Quer falar da KVH? Talvez ele conheça outras forças.

 

- 0 documento falava de Arnold?

 

-Abbott tinha um guia. No documento é o Santo. 0 Santo tinha ido falar com Lorbeer ao hospital e tinha-lhe dito que o fármaco Dypraxa era um instrumento de morte. 0 Santo era mais cauteloso do que Abbott porque é médico e mais tolerante por ter maior experiência da maldade dos homens. Mas a verdade mais rigorosa era a de Emrich. Disso, Lorbeer estava certo. Emrich sabe tudo e por isso não a deixam falar. As Forças das Trevas estão decididas a ocultar a verdade. E é por isso que Abbott tem de ser morta e o Santo crucificado.

 

- Crucificado? Arnold?

 

- Na fábula de Lorbeer as Forças das Trevas arrastam Bluhm e pregam-no numa árvore.

 

Ficam ambos calados e um pouco embaraçados.

 

- Lara diz também que Lorbeer bebe como um russo, - acrescenta Birgit, como desculpa, mas Justin não se deixa desviar.

 

- Ele escreve do deserto mas serve-se de uma empresa de distribuição de Nairobi, - objecta ele.

 

- 0 endereço estava escrito à máquina, a guia preenchida à mão, o pacote enviado a partir do Hotel Norfolk, Nairobi. 0 nome do remetente era quase ilegível. Mas penso que seria McKenzíe. Seria escocês? Se o pacote não pudesse ser entregue devia ser destruído e não devolvido para o Quénia.

 

-A guia tinha um número, calculo.

 

- A guia estava colada ao envelope, Quando pus o documento no cofre, pulo primeiro dentro do envelope. E claro que o envelope também desapareceu.

- Voltamos à empresa de distribuição. Deve ter uma cópia da guia,

 

-A empresa não tem nenhum registo do pacote. Nem em Nairobi, nem em Hanover.

 

- Como é que a posso contactar?

- Lara?

 

A chuva batia no telheiro de zinco e as luzes alaranjadas da cidade piscavam no meio da bruma. Birgít rasgou uma folha da sua agenda e escreveu um longo número de telefone.

 

- Ainda tem casa, mas não por muito tempo. Também pode perguntar na Universidade, mas com cuidado porque eles odeiam-na,

 

- Lorbeer também dormia com a Kovacs, além da Emrich?

 

- Para Lorbeer isso não seria nada de extraordinário. Mas acho que a guerra entre as duas mulheres não era a propósito de sexo mas da molécula. - Ela parou, seguindo-lhe o olhar, Justin olhava para longe, onde não havia nada para ver a não ser os cumes das colinas a emergirem do nevoeiro. - Tessa escreveu muitas vezes que estava apaixonada por si, - disse ela calmamente olhando fixamente para ele. - Não directamente, nem era preciso, Dizia que você era um homem de honra e que, quando fosse preciso, saberia mostrá-lo.

 

Birgit preparava-se para se ir embora. Ambos amarraram Carl na sua cadeírinha e arranjaram-lhe a capa de plástico de maneira a que a sua cabecinha ficasse de fora. Ela deixou-se ficar agachada.

 

- Então vai a pé?

- Vou.

 

Ela tirou um envelope duma algibeira interior,

 

- Isto é tudo o que me lembro do romance do Lorbeer. Escrevi-o para si. A minha letra é muito má mas acho que vai conseguir lê-la.

 

- É muito amável. - Guardou o envelope por dentro da gabardina.

- Então, olhe: bom passeio.

 

Ela ia apertar-lhe a mão mas mudou de ideia e beijou-o na boca: um beijo de afecto, firme, decidido e um pouco desastrado. Um beijo de adeus enquanto aguentava a bicicleta. Depois foi Justin que a agarrou enquanto ela apertava o capacete por baixo do queixo, antes de se empoleirar no selim e começar a pedalar pela encosta abaixo.

 

Vou andando.

 

Justin seguia pelo meio do caminho, olhando de lado os ensombrados rododendros de cada lado da estrada, Havia candeeiros de sódio de cinquenta em cinquenta metros. Perscrutava com atenção os espaços escuros entre eles.

0 ar cheirava a maçãs. Chegou ao sopé da colina e aproximou-se do Mercedes parado, passando a uns dez metros de distância. Não havia luz no interior. Dois homens estavam sentados no banco da frente, mas a julgar pelas suas silhuetas imóveis, não pareciam os mesmos que tinham subido a colina e voltado a descê-la. Justin continuou a andar e o carro passou-lhe à frente. Ele fingiu que não viu, mas na sua imaginação os dois homens estavam a prestar-lhe toda a atenção. Justin virou para a direita, em direcção aos clarões da cidade. Apareceu um táxi que lhe ofereceu os seus ser-viços.

 

- Obrigado, obrigado, - respondeu ele efusivamente, - mas prefiro ir a pé.

0 taxista não respondeu. Justin seguia agora pela berma. Passou um cruzamento entrou numa rua brilhantemente iluminada. Rapazes de olhos mortiços e raparigas deitadas nos vãos das portas. Homens de casacos de cabedal estavam parados à esquina falando para os seus telemóveis. Passou mais dois cruzamentos e viu o hotel lá à frente.

 

0 átrio estava na sua habitual e inevitável confusão do fim da tarde. Uma delegação japonesa estava a fazer o seu check-in, máquinas fotográficas disparavam osflashes, os empregados empilhavam malas caras no único elevador.

 

Justín foi para a bicha; tirou a gabardina e dobrou-a no braço, fazendo ver o envelope de Birgit, 0 elevador desceu, Justin recuou para deixar passar as senhoras. Subiu até ao terceiro andar, onde foi o único a sair. 0 corredor esquálido, com a sua iluminação fria, lembrava-lhe o Hospital de Uhuru, Ouviam-se as televisões em todos os quartos. 0 seu quarto era o n.” 311 e a chave era um cartão de plástico com uma seta, 0 barulho das televisões, enfurecia-o e estava disposto a queixar-se a alguém. Como é que eu vou escrever a Ham com todo este chinfrim? Entrou no quarto, pôs a gabardina numa cadeira e viu que a culpada era a sua própria TV, As criadas deviam tê-la ligado enquanto arrumaram o quarto e não se preocuparam em apagá-la quando se foram embora. Avançou para o aparelho que estava a mostrar um tipo de programa que ele detestava particularmente. Uma cantora seminua berrava para um microfone a plenos pulmões, o que fazia as delícias de um público juvenil extasiado, enquanto a neve caía ao longo do ecrã.

 

E foi essa a última coisa que Justin viu antes das luzes se apagarem: jogos de luz a caírem no ecrã. A escuridão caiu sobre ele e sentiu-se simultaneamente agredido e subjugado. Braços de homem manietaram-no, uma bola de pano grosso foi-lhe metida na boca. As pernas também foram agarradas como numa placagem de râguebi e pareceu-lhe que ia ter um ataque de coração. A teoria confirmou-se quando recebeu um soco no estômago que lhe tirou o resto do ar que tinha nos pulmões, porque quando tentou gritar nada aconteceu, não tinha voz nem fôlego e a bola de pano amordaçava-o.

 

Sentiu o pescoço apertado com qualquer coisa que lhe pareceu uma corda e pensou que ia ser enforcado. Teve uma visão clara de Bluhm pregado numa árvore, Chegou-lhe ao nariz o cheiro de uma loção masculina, lembrou-se do cheiro de Woodrow e de ter cheirado a carta de amor mandada a Tessa para ver se tinha o mesmo cheiro, Por um momento, Tessa deixou de lhe ocupar a memória. Estava deitado no chão e quem lhe tinha batido no estômago deu-lhe agora um golpe terrível nos genitais. Estava encapuçado mas ninguém o tinha ainda enforcado e continuava deitado de lado. A mordaça provocava-lhe vómitos, mas o vómito não podia sair e escorria-lhe pela garganta abaixo. Viraram-no de costas, esticaram-lhe os braços com as palmas das mãos voltadas para cima, Vão-me crucificar, como o Arnold. Mas não. Por enquanto não. Torceram-lhe as mãos com brutalidade e a dor foi pior do que podia pensar: braços, peito, pernas e baixo ventre. Por favor, pensou ele. Não me estropiem a mão direita senão não posso escrever ao Ham. Devem ter ouvido o seu pedido porque a dor parou e ele ouviu uma voz de homem, do norte da Alemanha, talvez Berfim, e muito culta. Estava a ordenar que virassem o porco de lado e lhe amarrassem as mãos atrás das costas, 0 que foi feito.

 

- Sr. Quayle, está a ouvir-me?

 

A mesma voz, mas agora em inglês. Justin não respondeu. Mas não era por falta de educação, era porque tinha conseguido finalmente cuspir a mordaça e estava de novo a vomitar, com o vómito agora a escorrer-lhe pelo pescoço e a entrar para o capuz. 0 som da televisão baixou.

 

- já chega, Sr. Quayle. Pare lá com isso, está bem? Ou apanha o mesmo que a sua mulher. Está a ouvir-me? Quer mais castigo, Sr. Quayle?

 

Com este segundo Quayle veio mais um horrendo pontapé nos testículos. -Talvez esteja um pouco surdo. Vamos deixar-lhe um recadinho, Em cima da cama, acha bem? Quando acordar, leia esse recadinho e pense bem. E depois volte para Inglaterra, percebeu? Não faça mais perguntas tontas. Da próxima vez matamo-lo como matámos Bluhm. É um processo muito longo. Está a ouvir?

 

Um outro pontapé na barriga para que ele não se esquecesse da lição. Justin ouviu a porta fechar-se.

 

Estava ali sozinho, deitado na sua própria escuridão e no seu próprio vómito, sobre o lado esquerdo com os joelhos à boca e as mãos atadas atrás das costas. A cabeça estava em fogo, dores que pareciam choques eléctricos dilaceravam-lhe o corpo. Estava numa escura agonia convocando as suas tropas dispersas - pés, canelas, joelhos, genitais, barriga, coração, mãos - e confirmando que estavam todos presentes, ainda que em mau estado. Esticou-se nos seus laços e teve a sensação de estar a rolar sobre carvões ardentes. Deixou-se ficar quieto e um prazer terrível começou a despertar nele, espalhando-se como uma vaga vitoriosa de autoconsiência. Fizeram-me mal mas continuo a ser o que sou. Estou temperado. Estou em forma. Dentro de mim há um homem intacto, Se eles voltarem agora e me torturarem outra vez, nunca atingirão o homem intacto. Passei no exame a que toda a vida me esquivei. Estou diplomado em dor.

 

Mas depois, ou a dor diminuiu ou a natureza veio em seu auxílio, porque adormeceu com a boca bem cerrada e respirando pelo nariz através da total escuridão do seu sujo e malcheiroso capuz. A televisão ainda estava ligada, agora ouvia-a. E devia estar a olhar para ela, se não tivesse perdido o seu sentido de orientação, Mas o capuz devia ser forrado porque não conseguia ver absolutamente nada e quando, com grande prejuízo das suas mãos, se conseguiu voltar de costas, não viu nenhuma cintilação das luzes do tecto embora as tivesse acendido e não se lembrasse de os ter ouvido apagá-las quando se foram embora. Voltou-se outra vez de lado e, por um momento, entrou em pânico enquanto esperava que a parte mais forte de si próprio conseguisse voltar à superfície. Vá lá, homem. Usa a tua estúpida cabeça, é a única coisa que eles deixaram intacta. Porque a deixaram eles intacta? Porque não queriam nenhum escândalo. Ou seja, quem os mandou não queria nenhum escândalo. «Na próxima vez, matamos-te como o Bluhm.» Mas não desta vez, por muita vontade que tivessem. Então vou gritar. É isso? Rebolar-me pelo chão, dar pontapés nos móveis, nas paredes, na televisão e portar-me como um doido furioso até alguém decidir que não se trata de dois amantes apaixonados perdidos nas últimas fronteiras do sado-masoquismo, mas de um cavalheiro inglês agredido e amarrado, com a cabeça metida num saco?

 

0 diplomata experiente anteviu as consequências de tal descoberta. O hotel chama a polícia. A polícia ouve as minhas declarações e liga para o Consulado Britânico mais próximo, neste caso o de Hanover, se ainda lá tivermos um. Chega o Cônsul, furioso por ter sido chateado durante o jantar para acudir a mais um Súbdito Britânico em Apuros e a sua reacção automática será examinar o meu passaporte - tanto faz qual deles. Se for o de Atknson temos um problema porque é falso, Um telefonema para Londres confirma-o. Se for o de Quayle, o problema é diferente mas o resultado é o mesmo: o primeiro avião para Londres, sem qualquer hipótese de escolha e uma desagradável Comissão de Boas Vindas à minha espera no aeroporto.

 

As pernas de Justin não estão amarradas. Até agora não tinha querido separá-las. Agora fá-lo e os testículos e a barriga ficam em fogo, logo seguidos pelas coxas e pelas canelas. Mas acaba por separar as pernas completamente, consegue bater com os calcanhares no chão. Animado por esta descoberta toma uma medida ousada, deita-se de barriga e dá um grito ínvoluntário. Depois aperta bem os lábios para que o grito não se repita.

 

Mas agora está de cara no chão. Pacientemente, preocupado em não perturbar os vizinhos de ambos os lados, começa a tentar desatar os seus laços.

 

 

0 avião era um velho bimotor Beechcraft fretado pela ONU, com um rude comandante de cinquenta anos oriundo de Joanesburgo e um troncudo co-piloto africano de suíças e ainda uma caixa de cartão com um almoço em cada um dos lugares degradados. 0 aeroporto era o de Wilson, perto da campa de Tessa e enquanto o avião esperava suando na pista, ghita tentava ver através da janela o montezinho fúnebre, pensando em quanto tempo seria ainda preciso para que Tessa tivesse a sua lápide. Mas tudo o que viu foi erva prateada e um indígena com uma vestimenta vermelha e um cajado, apoiando-se numa só perna enquanto vigiava as suas cabras, e um bando de gazelas pastando sob as nuvens baixas e escuras. Tinha posto o saco de viagem sob o assento, mas o saco era muito grande e ela tinha que torcer as pernas para se acomodar. Fazia um calor terrível dentro do avião e o comandante já tinha avisado os passageiros de que não haveria ar condicionado até o avião levantar voo. Na bolsa do saco, ghita tinha guardado as suas notas sobre o encontro e as suas credenciais como delegada da Alta Comissão Britânica. No interior do saco, o seu Pijama e uma muda de roupa. Estou a fazer isto por Justin. Estou a seguir os passos de Tessa. Não tenho que me envergonhar da minha inexperiência ou de qualquer duplicidade.

 

A parte de trás da fuselagem estava atravancada com sacos de preciosa miraa, uma planta suavemente entorpecente, substância legalizada e muito apreciada pelas tribos do norte. 0 seu perfume espalhava-se gradualmente por todo o avião. À frente de Ghita sentavam-se quatro endurecidos funcionários do Auxílio Humanitário, dois homens, duas mulheres. Talvez a miraa fosse deles. Ela invejou o seu ar descontraído, as suas roupas usadas e a sua genuína dedicação. E verificou, com um aperto de consciência, que eles deviam ter a sua idade. Ela bem gostaria de quebrar os seus hábitos de humildade aprendida que a levava a juntar os calcanhares quando apertava a mão a superiores, uma prática que lhe fora instilada pelas freiras. Espreitou para a sua caixa e viu duas sanduíches de pepino, uma maçã, uma tablete de chocolate e um pacote de sumo de maracujá, Tinha dormido muito pouco e estava cheia de fome, mas o seu sentido de decoro proíbia-a de comer uma sanduíche antes de levantar voo. A noite passada o seu telefone tinha tocado constantemente: todos os seus amigos, um por um, comunicavam-lhe a sua indignação e a sua recusa em acreditar que Arnold pudesse ser perseguido pela polícia. A posição de Ghita na Alta Comissão obrigava-a a representar o papel de um diplomata mais velho do que eles. À meia-noite embora estivesse cheia de fadiga, tentou uma díligência que se sentia obrigada a fazer; uma diligência que, se tivesse sido bem sucedída, a teria resgatado daquela terra-de-ninguém onde se tinha escondido como um fugitivo durante as últimas três semanas. Tinha procurado no vaso de latão onde acumulava pequenas coisas e encontrara um papelinho que lá escondera. É para aqui que deve telefonar se quiser tornar a falar connosco. Se não estivermos, deixe uma mensagem e um de nós irá contactá-la o mais cedo possível, prometo-lhe. Respondeu-lhe uma voz africana, masculina e agressiva e Ghita teve esperança de se ter enganado no número.

 

- Queria falar com Rob ou Lesley, por favor.

- Qual é o seu nome?

 

- Queria falar com Rob ou Lesley. Está aí um deles?

 

- Quem é a senhora? Dê-me imediatamente o seu nome e diga de que assunto se trata.

 

- Queria falar com Rob ou Lesley, por favor.

 

Quando lhe desligaram o telefone, GhIta aceitou sem grandes dramas que, tal como suspeitava, estava sozinha. Dali em diante nem Tessa, nem Arnold, nem Rob ou Lesley, da Scotland Yard, podiam partilhar com ela a responsabilidade dos seus actos. Os seus pais, embora ela os admirasse, não eram solução.

0 pai, advogado, ouviria o seu testemunho e declararia que se, por um lado, isto, por outro lado aquilo e perguntar-lhe-ia se tinha provas objectivas de tão graves acusações. A mãe, médica, dir-lhe-ia: «apanhaste muito sol, querida, o melhor é vires para casa e apanhares um pouco de R e R*. Com estes pensamentos a povoarem-lhe a cabeça cansada, abriu o seu computador que, sem dúvida, estaria congestionado de mensagens de dor e de indignação a propósito de Arnold. Mal tinha entrado em linha, o ecrã deu um estalo e apagou-se. Em vão utilizou os processos de emergência. Telefonou a vários amigos, só para comprovar que os aparelhos deles não tinham sido afectados.

 

- Diabo, Ghita, talvez tenhas apanhado um daqueles vírus das Filipinas ou essas ciber-doenças que andam por aí! - gritou-lhe um dos amigos COM inveja, como se Ghita tivesse sido particularmente distinguida.

 

* Ern inglês, abreviatura de «Rest and Recreation», Descanso e Divertimento. (N. T)

 

Talvez, realmente, o tivesse sido e dormiu mal por causa dos e-mails que tinha perdido, das conversínhas que tivera e que nunca tinha imprimido, porque preferia relê-las no ecrã, eram mais vivas, mais Tessa,

 

0 Beechcraft ainda não tinha descolado e por isso Ghita, como era seu hábito, entregou-se às grandes questões da vida, evitando a mais séria de todas, que era saber o que é que eu estou aqui a fazer e porquê? Uns anos atrás em Inglaterra - no que ela secretamente chamava a sua Era-antes-de-Tessa - tinha sofrido muito com as ofensas, reais e imaginárias, que sofrera por ser anglo-indiana. Viu-se a si própria como um híbrido condenado a desaparecer, metade rapariga negra à procura de Deus, metade mulher branca superior a outras classes inferiores. A dormir ou acordada, tinha-se perguntado qual era o seu lugar no mundo dos brancos, onde deveria investir as suas ambições e se deveria continuar a estudar dança e música na universidade londrina para onde tinha entrado depois de sair do colégio de Exeter ou se, seguindo o exemplo dos pais adoptivos, devia seguir a sua outra estrela e optar por uma das profissões tradicionais.

 

0 que explica que se tenha achado uma manhã, quase por impulso, a prestar um exame para o Ministério dos Negócios Estrangeiros de Sua Majestade. Chumbou sem surpresa, uma vez que nunca se tinha interessado por política, mas com a recomendação de que deveria apresentar-se de novo a exame daí a dois anos. E de certa maneira a própria decisão de se ter apresentado a exame, embora sem sucesso, despoletou o raciocínio de que se sentia mais à vontade aderindo ao Sistema do que ficando de fora dele, não ganhando mais do que a satisfação parcial das suas inclinações artísticas.

 

E foi nesta altura, numa visita aos pais na Tanzânia, que ela decidiu, outra vez por impulso, concorrer a um emprego local na Alta Comissão Britânica e procurar seguir carreira se fosse aceite. Se não tivesse feito isso, jamais teria conhecido Tessa. Nunca, pensou ela agora, se teria colocado na linha de fogo onde estava decidida a permanecer, lutando pelas coisas a que estava decidida a continuar leal, coisas que eram, no fundo, muito simples: verdade, tolerância, justiça, um sentido da beleza da vida e uma quase-violenta rejeição dos seus opostos. Acima de tudo a uma crença herdada dos pais e reforçada por Tessa de que o Sistema deve ser obrigado a reflectir essas virtudes, ou a deixar de existir. 0 que a trazia de volta a maior de todas as questões. Tinha amado Tessa, tinha amado Bluhm, continuava a amar Justin, um pouco mais do que seria conveniente ou adequado ou lá que palavra era. E o facto de trabalhar para o Sistema não a obrigava a aceitar as suas mentiras, como as que tinha ouvido ainda ontem da boca de Woodrow. Pelo contrário, era obrigada a repudiá-las e recolocar o Sistema onde ele devia estar, que era ao lado da verdade. 0 que explicava a satisfação total de Ghita sobre o que estava ali a fazer e porquê. «É melhor estar dentro do Sistema e combatê-lo», dizia o seu pai, um iconoclasta noutros assuntos, «do que fora do Sistema e barregar contra ele».

 

E Tessa, o que foi maravilhoso, tinha dito exactamente a mesma coisa.

 

0 Becchcraft abanou-se como um cão velho e saltou para a frente tentando laboriosamente subir no ar. Através da sua minúscula janela viu a África toda espraiar-se lá em baixo: bairros de lata, manadas de zebras a galope, as culturas de flores do Lago Naivasha, os Aberdares, o Monte Quénia muito esbatido no horizonte longínquo. E juntando tudo isto, como um oceano, a infinita extensão de mato castanho, salpicada aqui e além de manchas de verde. 0 avião entrou numa nuvem de chuva, um nevoeiro castanho invadiu a cabine. Um sol escaldante substituiu-o e foi acompanhado de uma poderosa explosão algures a esquerda de Ghita. Sem aviso, o avião inclinou-se para esse lado. As caixas do almoço, as mochilas e o saco de viagem de Ghita escorregaram ao longo da coxia, acompanhados por um coro de sirenes e relâmpagos de luzes vermelhas de aviso. Ninguém disse nada a não ser um velho africano que deu uma gargalhada e berrou «Amamos-te, Senhor, não Te esqueças disso» para alívio e divertimento dos outros passageiros. 0 aparelho continuava inclinado

o barulho do motor transformou-se num murmúrio. 0 co-piloto africano de, suíças tinha pegado num manual e consultava uma lista de verificações que Ghita tentava ler sobre o ombro do homem. 0 rústico comandante voltou-se no assento para se dirigir aos seus aterrorizados passageiros. A sua boca enrugada acompanhava a inclinação do aparelho.

 

- Como já devem ter notado, senhoras e senhores, um dos motores rebentou, - disse ele com secura. - 0 que quer dizer que temos de voltar para Wilson e tomar outra destas coisas.

 

Não tenho medo, notou Ghita com satisfação. Até à morte de Tessa, as coisas deste gênero só aconteciam aos outros. Agora estão a acontecer-me a mim e eu estou à altura da situação.

 

Quatro horas depois estava na pista de Lokichoggio.

 

- És a Ghita? - gritou-lhe uma rapariga australiana por cima do barulho dos motores e da gritaria das pessoas a cumprimentarem-se. - Sou a Judith. Olá!

 

Era alta e corada e alegre e tinha uma t-shirt de propaganda aos United Tea Services de Ceilão. Beijaram-se, amigas instantâneas num lugar selvagem. Aviões de carga da ONU aterravam e descolavam constantemente, camiões brancos faziam manobras muito barulhentas, o sol era uma fornalha e o seu calor ricocheteava na pista enquanto os fumos dos motores faziam arder-lhe os olhos e a enjoavam. Com Judith a conduzi-la, subiu para um jipe atulhado de sacos de correio e sentou-se ao lado de um chinês suado e com colarinho de padre e um fato preto. jipes passavam velozes na direcção oposta, seguidos de um comboio de camiões brancos que se dirigiam para os aviões de carga.

 

- Era uma mulher fabulosa! - gritou-lhe Judith do lugar do passageiro, à sua frente. - De uma enorme dedicação. - Estava obviamente a falar de Tessa.

- Porque é que alguém há-de querer prender Arnold? É uma estupidez. Arnold não matava uma mosca. Vais estar aqui três noites, não vais? Vamos ter UM grupo de nutricionistas vindos do Uganda!

 

Judith está aqui para alimentar os vivos e não os mortos, pensou Ghita enquanto o jipe chocolatava ao longo do caminho que ia dar à estrada. Passaram ao longo de um bairro de barracas cheio de bares e bancas com um letreiro jocoso a dizer ”Picadilly Por Aqui”, Colinas castanhas erguiam-se, tranquilas, lá à frente. Ghita disse que gostaria de passear por ali. Judith respondeu que se o fizesse nunca mais voltaria.

 

- Feras?

- Pessoas.

 

Chegaram ao campo de refugiados. Num terreno poeirento e vermelho crianças brincavam ao basquete com um saco de plástico pregado num sarrafo. Judith levou Chita à recepção para lhe dar o passe. Ao assinar o livro, Ghita virou distraidamente a página para trás e apareceu-lhe algo que ela fingiu não ver.

 

Tessa Abbott, Caixa Postal, Nairobi, Tukul 28. Arnold Bluhm, Médecins de l’Univers, Tukul 29. E a mesma data.

 

- Os tipos da imprensa tinham sido gozados - estava Judith a dizer com entusiasmo. - Reuben levava-lhes cinquenta dólares por cada foto. Oitocentos dólares de receita total. Oitocentos estojos de lápis de cor e oitocentos livros para pintar. Reuben diz que vão sair dois Van Goghs sudaneses, dois Rembrancits e um Andy Warhol sudanês.

 

Reuben, o lendário organizador de campos de refugiados, lembrou-se Ghita. Congolês. Amigo de Arnold.

 

Estavam a descer uma larga avenida de tulipeiros com as suas orgulhosas trompetes vermelhas brilhando contra os tztkuls pintados de branco e com telhados de colmo. Um magro cavalheiro inglês, com ar de mestre-escola, pedalou lentamente por elas numa velha bicicleta de polícia. Ao ver Judith tocou a campainha e fez-lhe um aceno afectuoso.

 

- Chuveiros e penicos do outro lado da rua, primeira reunião amanhã as oito em ponto, encontro à porta da cabana trinta e dois, - anunciou judith enquanto mostrava a Ghita as suas instalações. - Repelente de mosquitos na mesinha de cabeceira mas será melhor pôr a rede. Queres aparecer no clube ao pôr-do-sol para uma cerveja antes do jantar?

 

Ghita disse que queria.

 

- Muito bem, tem cuidado contigo. Os rapazes vêm cheios de fome quando regressam do terreno.

 

Ghita fingiu-se desinteressada:     verdade, há aí uma mulher chamada Sarah - disse ela. - Era uma espécie de amiga de Tessa. Se ela estiver por aí gostava de lhe falar.

 

Arrumou as suas coisas e, armada de esponja, sabonete e toalha atravessou valentemente a avenida. A chuva tinha ensopado o aeródromo. As colinas perigosas estavam pretas e verde-escuro. 0 ar cheirava a gasolina e a especiarias. Tomou duche, voltou para o seu tukul e sentou-se a uma mesa desengonçada com as suas notas de trabalho e, transpirando abundantemente, perdeu-se nos labirintos do Auxílio Auto-Suficiente.

 

0 Clube de Loki consistia numa grande árvore com um tecto de colmo por baixo, um bar com um mural de animais da selva e um aparelho de vídeo que projectava numa parede branca imagens desfocadas de um velhíssimo desafio de futebol com um fundo sonoro de música africana. Gritos de feliz reencontro atravessavam o ar do fim da tarde quando trabalhadores dos serviços de auxílio se reconheciam entre si em línguas diferentes, abraçavam-se, faziam-se festas e davam os braços. Este devia ser o meu povo espiritual, pensou, sonhadora. Este é o meu povo arco-íris. Ausência de fronteiras de classe e de raças, este entusiasmo, esta juventude são os meus. Alistem-se em Loki e atinjam a santidade! Voem em aviões duvidosos, gozem a vossa imagem romântica e a adrenalina do perigo! Libertem o vosso sexo numa vida de nómadas que vos mantenha longe de compromissos. Não à vida chata do escritório e sempre um pouco de erva para fumar ao longo do caminho! Glória e rapazes quando venho do terreno, dinheiro e mais rapazes quando chegar a altura do Descanso e Divertimento! Quem quer mais?

 

Eu. Preciso de compreender porque foi necessária toda esta confusão. E porque continua a sê-lo. Tenho de ter a coragem de dizer como Tessa, quando ela protestava: - Loki é uma merda. Não tem mais direito de existir do que o Muro de Berlim. É um monumento ao fracasso da diplomacia. Para que raio serve um serviço Rolls-Royce de ambulâncias se os nossos políticos nada fazem para prevenir os acidentes?

 

A noite caiu em poucos segundos. Lâmpadas amarelas substituíram o Sol, os pássaros pararam de chilrear e recomeçaram as suas conversas num nível sonoro mais aceitável. Ghita estava sentada a uma longa mesa e Judith sentava-se em frente com o braço à volta de um antropólogo sueco. Ghita sentia-se como uma aluna recém-chegada ao colégio de freiras, só que num colégio de freiras não se bebe cerveja e não se tem à mesa meia dúzia de rapazes bem parecidos de todas as partes do mundo, nem uma dúzia de olhos masculinos avaliando o nosso peso sexual e a nossa disponibilidade. Estava a ouvir histórias de lugares de que nunca tinha ouvido falar, de façanhas tão arrepiantes que ela achava que nunca seria capaz de as partilhar e estava a fazer o possível por parecer familiarizada e distante. 0 mais falador era um yankee de New Jersey, muito seguro de si a quem chamavam Hank-The-Hawk. Segundo Judith, ele fora em tempos pugilista e agiota e só tinha abraçado a carreira do Auxílio Internacional como alternativa a uma vida de crime. Estava preopinando acerca das diferentes facções guerreiras da região do Nilo: como o SPLE anda a lamber o cu do SPLM; como o SSIM anda a limpar o sebo aos outros grupos de letras, matando os seus homens, roubando as mulheres e o gado e contribuindo para os milhões de mortos já confirmados nas absurdas guerras civis do Sudão. E Ghita estava a sorver a sua cerveja e a fazer o possível por sorrir para Hank-the-Hawk, já que o seu monólogo parecia ser-lhe exclusivamente dirigido como recém-chegada e próxima conquista. Sentiu-se por isso grata a uma mulher africana, gordinha e de idade indeterminada, com shorts e alpergatas e um chapéu de vendedor de hortaliças londrino, que saiu da sombra, lhe bateu no ombro e berrou: - Eu sou a Sarah do Sudão, querida, e você tem que ser a Ghita. Ninguém me disse que era tão bonita. Venha tomar chá, minha linda. - E, sem cerímónias, levou-a por um labirinto de escritórios até um tukul igual a uma casa de praia sobre estacas, com uma cama única, um frigorífico e uma estante com uma colecção de Literatura Inglesa, de Chaucer a James Joyce.

 

No exterior uma pequena varanda com duas cadeiras para se sentarem à luz das estrelas e afugentar os insectos assim que a chaleira ferveu.

 

- Ouvi dizer que agora querem prender o Arnold, - disse Sarah do Sudão mais descansada depois de terem lamentado devidamente a morte de Tessa.

- É o que eles querem. Se já decidiram esconder a verdade, a primeira coisa a seguir é dar às pessoas uma verdade diferente para as manter sossegadas. Senão, elas começam a pensar se a verdade real não estará escondida nalgum outro lado e isso não lhes convém nada,

 

Uma professora ou uma preceptora, decidiu Ghita. Habituada a explicar as suas ideias e a repeti-las perante crianças desatentas.

 

- A seguir ao crime vem a cobertura - confirmou Sarah no mesmo ritmo calmo. - Não devemos esquecer-nos de que uma boa cobertura é mais difícil de organizar do que um mau assassinato. Um crime pode passar impune. Mas uma má cobertura pode mandar uma pessoa para a prisão a qualquer momento,

 

- Explicava o problema com as suas grandes mãos. - Tapa-se este bocado e aquele fica destapado. E então tapa-se o segundo e o primeiro volta a aparecer. E daí a pouco um terceiro bocado começa a deitar de fora da areia o dedo grande do pé, tão certo como Caim matou Abel. E então o que é que quer que eu lhe diga, querida? Tenho a sensação de não estarmos a falar daquilo que gostaria que eu falasse.

 

Ghita começou com cuidado. Justin, disse ela, estava a tentar traçar o quadro completo dos últimos dias de Tessa. Gostaria de ter a certeza de que a sua última visita a Loki tinha sido feliz e produtiva. Qual tinha sido a contribuição de Tessa para o seminário sobre consciência do sexo, Sarah poderia dizer alguma coisa? Tessa talvez tivesse entregue uma comunicação sobre os seus conhecimentos jurídicos ou sobre a sua experiência com as mulheres do Quénia? Haveria qualquer episódio ou momento feliz relacionado com Tessa que Justin gostasse de ouvir?

 

Sarah ouvia calmamente, com os olhos a piscar sob a aba do seu estranho chapéu enquanto sorvia o chá e dava vastas palmadas contra os mosquitos, sem nunca deixar de sorrir a quem passava: - Olá, Jeanne querida, estás a portar-te muito mal! Que andas a fazer com aquele vadio? Vai escrever a Justin sobre a nossa conversa?

 

A pergunta perturbou Ghita. Seria bom ou mau que ela se propusesse escrever a Justin? Haveria ali alguma insinuação? Para a Alta Comissão, Justin era como se não existisse. Seria aqui a mesma coisa?

 

- Bem, tenho a certeza de que Justin gostaria que eu lhe escrevesse, - admitiu ela, pouco à vontade. - Mas só o farei se puder dizer-lhe coisas que lhe sosseguem o espírito, se for possível. Quer dizer, nunca lhe direi nada que o possa magoar - protestou ela, um pouco desnorteada. - Justin sabia que Tessa e Arnold viajavam juntos. Toda a gente já o sabe. Seja o que for que tenha havido entre eles, Justin aceita-o.

 

- Olhi, não havia coisa nenhuma entre eles, querida, acredite, - disse Sarah com uma gargalhada. - Isso é tudo conversa de jornal. Não era possível. Tenho a certeza absoluta. Olá, Abby, que tal vai isso? É a minha irmã. já casou umas quatro vezes.

 

0 significado destas duas frases, se houvesse algum, escapou a Ghita. Estava demasiado ocupada em esconder o que lhe parecia cada vez mais uma invenção estúpida. - Justin quer preencher os espaços vazios, - continuou valent emente. - Pôr todos os detalhes em ordem de parada no seu espírito. De modo a poder reconstituir tudo o que ela fez e pensou nos últimos dias. É evidente que, se me contar qualquer coisa que o possa fazer sofrer, não me passa pela cabeça dizer-lho. É evidente.

 

- Em ordem de parada*, - repetiu Sarah, abanando a cabeça e sorrindo para si própria. - É por isso que eu gosto da língua inglesa. Ordem de parada aplica-se bem àquela extraordinária mulher. 0 que é que você pensa que eles fizeram quando cá estiveram, querida? Passear por aí como recém-casados? Não era nada o gênero deles.

 

- Claro que vieram participar no seminário. A Sarah também foi? Se calhar até o dirigiu. Nunca lhe perguntei qual é a sua função aqui. Desculpe.

 

- Não peça desculpa, querida. Só está um pouco desnorteada. Não está em ordem deparada. - Riu-se. - Claro que fui ao seminário. Talvez o tenha dirigido. Fazemos esse trabalho à vez. Era um bom grupo, disso lembro-me. Duas mulheres da tribo Dhiak, uma médica viúva de Aweil, um pouco pretenciosa talvez, mas muito receptiva e um grupo de estagiários de direito vindos não sei de onde. Uma boa equipa, já disse. Mas o que é que aquelas mulheres vão fazer quando voltarem para o Sudão não faço ideia. Só podemos coçar a cabeça e pensar nisso à vontade.

 

- Talvez Tessa tivesse algo a ver com os estagiários, - disse Ghita, esperançada.

 

- Talvez sim, querida. Mas muitas daquelas mulheres nunca tinham andado de avião. Muitas delas enjoaram e ficaram cheias de medo e portanto fomos obrigados a animá-las antes de elas poderem falar e ouvir, que era o objectivo da viagem. Algumas delas tiveram tanto medo que nunca disseram uma palavra a quem quer que fosse, só queriam voltar para casa, para a sua condição de indignidade. Nunca se meta nestes trabalhos, querida, se tiver algum medo de falhar, é o que eu costumo dizer. Façam a conta aos vossos sucessos, é o conselho da Sarah do Sudão e nem sequer se lembrem das vezes em que falharam. Ainda me quer perguntar alguma coisa sobre o tal seminário?

 

A confusão de Ghita aumentou: - E ela? Fez boa figura? Gostou do que fez?

- Isso não sei, querida. Como é que poderia saber?

 

- Deve haver alguma coisa de que se lembre que ela disse ou fez. Ninguém se esquece de Tessa. - Pareceu-lhe estar a ser malcriada, o que não queria.

- Nem do Arnold.

 

- Eu não vou dizer que ela contribuiu para a discussão, porque não contribuiu. Tessa não participou. Disso tenho a certeza.

 

- E Arnold?

 

- Também não.

 

- Nem sequer leu uma comunicação ou coisa assim?

- Nada, querida. Nenhum deles.

 

- Quer dizer que se limitaram a sentar-se ali, calados? Os dois? Não é nada o género da Tessa, ficar calada. Nem Arnold, aliás. Quanto tempo durou o curso?

 

- Cinco dias. Mas Tessa e Arnold não ficaram aqui cinco dias. Quase ninguém fica. Todos os que aqui vêm gostam de sentir que vão a outro sítio qualquer. Tessa e Arnold não eram diferentes dos outros. - Parou e olhou para Ghita, como que a avaliar a sua disponibilidade. - Sabe de que é que estou a falar, querida?

 

- Não. Receio que não.

 

- Talvez então saiba de que é que não estou a falar.

- Também não.

 

- Então o que é que quer?

 

- Quero descobrir o que eles fizeram nos seus últimos dias. Justin escreveu-me a pedir isso mesmo.

 

- Tem por acaso aí essa carta?

 

Ghita tirou-a com uma mão trémula de um saco novo que ela tinha comprado para a viagem. Sarah levou-a para dentro para a poder ler ao pé da lâmpada e deixou-se ficar parada por uns momentos antes de voltar para a varanda e se sentar onde estava com um ar de grande perplexidade moral.

 

- Vai-me responder a uma pergunta, querida?

- Se puder.

 

- Tessa disse-lhe com a sua própria voz que ela e Arnold vinham para Loki para um seminário sobre a questão feminina?

 

- Foi o que eles nos disseram a todos.

- E acreditou?

 

- Claro. Todos acreditámos. Justin também. E continuamos a acreditar.

- E Tessa era uma grande amiga sua? Como uma irmã, disseram-me. E mesmo assim nunca lhe disse que tinha outras razões para cá vir? Ou que o seminário é um bom pretexto, uma desculpa, como a Auto-Sustentabilidade é um bom pretexto para sí, suponho eu?

 

- No início da nossa amizade Tessa contou-me umas certas coisas. Mas depois começou a ficar inquieta por mim. Pensou que me tinha contado coisas demais. Não estava certo estar a dar-me essa responsabilidade. Sou uma funcionária temporária, uma empregada local. Ela sabia que eu queria concorrer a um posto permanente. Fazer outros exames.

 

- E continua a pensar nisso, querida?

 

- Continuo. Mas isso não quer dizer que não me possam contar a verdade. Sarah deu um sorvo no chá, arranjou a borda do seu capuz e sentou-se mais confortavelmente. - Segundo creio, vai cá passar três noites.

 

- Sim, volto para Nairobi na quinta-feira.

 

- Isso é óptimo. E vai ter um bom seminário. Judith é uma mulher muito prática que não se deixa levar por ninguém. Um pouco impaciente para com os lentos de entendimento, mas sem nunca ser deliberadamente desagradável.

 

E amanhã à noite vou apresentá-la ao meu amigo Comandante McKenzie. já ouviu falar nele?

 

- Não.

 

- Tessa ou Arnold nunca lhe falaram nele?

- Não.

 

- É um piloto que está aqui connosco em Loki. Foi hoje para Nairobi, calculo que se tenham cruzado nos ares. Tinha que ir buscar mantimentos e tratar duns negócios. Vai gostar muito do Comandante McKenzie. É um homem de boas maneiras e tem mais coração do que muitas outras pessoas têm corpo. Pouco do que aqui se passa escapa ao conhecimento do Comandante McKenzie e mutíssimo menos lhe escapa da boca para fora. Andou metido em muitas guerras desagradáveis, mas agora é um dedicado homem de paz e é por isso que está aqui em Loki, para alimentar os meus esfomeados.

 

- Ele conheceu bem Tessa? - perguntou Ghita, a medo.

 

- Conhecia-a e achava-a uma senhora excepcional e isso é tudo. 0 Comandante nunca pensaria em levantar os olhos para uma mulher casada, tal como Arnold também não. Mas conhecia Arnold melhor do que Tessa. E acha que a polícia de Nairobi está louca em andar atrás de Arnold e quer dizer-lhes isso. Direi mesmo que essa foi uma das razões da sua ida hoje a Nairobi. E eles não vão gostar do que McKenzie lhes vai dizer, porque ele não tem papas na língua, pode acreditar.

 

- 0 Comandante McKenzie estava aqui em Loki quando a Tessa e Arnold cá vieram?

 

- Estava. E esteve com Tessa muito mais tempo do que eu, querida. - Parou por um bocado e sorriu para as estrelas. Ghita ficou com a impressão de que ela estava a procurar decidir-se se havia de falar ou de guardar os seus segredos para ela, questão que Ghita se pusera a si própria durante as últimas semanas.

 

- Bom, querida, - continuou Sarah por fim. - Tenho estado a observá-la e a pensar em si e a preocupar-me consigo. E cheguei à conclusão de que você tem uma boa cabeça e que é, além disso, uma pessoa boa e decente com um grande sentido da responsabilidade, que é uma qualidade que eu muito aprecio. Mas se me enganei e você não é a pessoa que eu penso, podemos meter o Comandante McKenzie em grandes sarilhos. É um saber muito perigoso aquele que estou prestes a transmitir-lhe e, depois de o fazer, não há maneira de voltar para trás. Por isso lhe peço me diga se eu a valorizei excessivamente e se não me enganei. Porque as pessoas que falam demais não têm emenda. Aí está uma coisa que eu aprendi, Podem jurar pela Bíblia num dia e, no dia seguinte, lá estão como dantes, a falar demais. A Bíblia não tem qualquer importância para eles.

 

- Estou a ver, - disse Ghita.

 

- Vai então avisar-me que interpretei mal o que vi, que ouvi e pensei de si? Ou devo dizer-lhe o que tenho na cabeça e você aguentará o peso dessa responsabilidade para sempre?

 

Por favor confie em mim.

 

É o que eu pensei que você ia dizer. Vou falar baixinho, por isso, chegue-se um pouco mais para cá. - Sarah empurrou a aba do chapéu para que Ghita a visse melhor. - Ora bem. Talvez os ralos nos façam o favor de fazer mais barulho, espero. Tessa nunca cá veio ao seminário, nem Arnold. Assim que puderam, Tessa e Arnold saltaram para o jipe do meu amigo McKenzie e foram calma e discretamente até ao aeródromo. 0 Comandante, assim que pôde, fê-los subir para o seu avião Búffalo e levou-os para o Norte, sem passaportes ou vistos ou qualquer das formalidades impostas pelos rebeldes sudaneses que não param de lutar uns contra os outros e não têm o bom senso ou a ínteligência de se unirem contra os maus árabes do Norte que parecem pensar que Alá lhes perdoará seja o que for, mesmo que o seu Profeta não o faça.

 

Ghita pensou que Sarah tinha acabado e preparava-se para falar, mas a outra tinha apenas começado.

 

- Uma outra complicação é que o Sr. Moi, que não conseguiria dirigir um circo de pulgas sem o auxílio de todo o seu governo, mesmo que tenha dinheiro a ganhar com isso, meteu na cabeça que tinha de dirigir o aeródromo de Loki, como já deve ter reparado. 0 Sr. Moi tem uma afeição muito limitada pelas Organizações Não Governamentais, mas um grande apetite pelas taxas de importação. E o Dr. Arnold estava muito desejoso de que o Sr. Moi e a sua gente não tomassem conhecimento do sítio onde desejavam ir.

 

- E onde é que eles foram? - murmurou Ghita, mas Sarah continuou em frente.

 

- Nunca perguntei onde era o sítio, porque o que eu não sei não o poderei dizer nem sequer a dormir, Também não há ninguém que me queira ouvir nos nossos dias. Estou velha demais. Mas o Comandante sabe, como é óbvio. Ele trouxe-os de volta na manhã do dia seguinte, fosse lá donde fosse, discretamente como na partida, E o Dr. Arnold disse-me: «Sarah, nós nunca fomos a lado nenhum, estivemos sempre aqui em Loki. Acompanhámos o vosso seminário vinte e quatro horas por dia. Tessa e eu ficamos-lhe muito gratos se não esquecer esse importante facto.» Mas Tessa está morta e já não tem ocasião de ficar grata a Sara do Sudão nem a ninguém, E o Dr. Arnold, se bem percebo, antes estivesse morto. Porque Moi tem os seus homens em toda a parte e eles roubam e matam à sua vontade, o que significa muitíssimos mortos. E quando fazem prisioneiros com a intenção de extrair deles algumas verdades, abandonam qualquer compaixão, e é bom que não esqueça isso, querida, porque está a nadar em águas muito profundas. É por isso que eu decidi que era essencial ter essa conversa com o Comandante McKenzie, porque ele sabe coisas que eu prefiro não saber. E como Justin é um homem bom, segundo ouvi a toda a gente, ele precisa de todas as informações que puder ter sobre a mulher e o Dr. Arnold. Estarei a pensar bem, ou haverá outra ideia melhor?

 

- Está a pensar bem, - disse Ghita.

 

- Muito bem. - Sarah bebeu o resto do chá e pousou a chávena. - Então vá já jantar e ganhar forças enquanto eu fico aqui mais um bocado, porque este lugar é só conversa, conversa, como já deve ter verificado. Não toque no caril de cabrito, por muito que aprecie. Porque aquele jovem cozinheiro somali, que é um rapaz dotado e irá ser um óptimo advogado, é uma nulidade no que toca ao caril de cabrito.

 

Ghita nunca soube bem como tinha passado o primeiro dia consagrado à Auto-Sustentabilidade, mas quando a campainha tocou às cinco horas - embora só tocasse na sua cabeça - teve a satisfação de ver que não tinha feito nada má figura, não tinha falado de mais nem de menos, tinha ouvido com humildade os participantes mais velhos e mais experientes, e tinha tomado imensas notas para um relatório à EADEC que nunca ninguém leria.

 

- Contente de ter vindo? - perguntou-lhe Judith alegremente, agarrando-lhe o braço quando a reunião acabou. - Vemo-nos no clube, até logo.

 

- Isto é para si, querida, - disse Sarah, saindo de uma cabana-escritórío com uma envelope na mão. - Divirta-se esta noite.

 

- Igualmente.

 

A letra de Sarah estava numa página rasgada de um caderno escolar: Querida Ghita. 0 Comandante McKenzíe ocupa o tulcul Entebbe, que é o número 14 ao lado da pista de aterragem. Terá muito prazer em recebê-la às nove horas da noite, depois do seujantar. Ele é um cavalheiro, não tenha qualquer receio. Dê-lhe, porfavor, esta nota para que eu fique com a certeza de que ela chegou onde era preciso. Tenha cuidado consigo; lembre-se das suas responsabilidades no que toca a discrição.

 

Sarah

 

Os nomes dos tukuls pareceram a Ghita os de batalhas gravadas pelo regimento local na igreja junto ao seu colégio de freiras em Inglaterra. A porta da frente do «Entebbe» estava aberta, mas a rede antimosquitos estava bem fechada.

 

Lá dentro estava acesa uma lâmpada azulada e o ”Comandante estava sentado de forma que Ghíta só via a sua silhueta, curvada sobre a secretária enquanto ele escrevia como um frade copista. E como as primeiras impressões é que contavam muito para Ghita, ela deixou-se ficar por um momento observando o seu aspecto rude e a sua extrema imobilidade, que deixavam antever um estrito temperamento militar. Estava quase a bater na rede, mas o Comandante ouviu-a, viu-a ou sentiu-a, pôs-se de pé como uma mola, deu duas atléticas passadas até à rede e abriu-a.

 

- Ghita, sou o Rick McKenzie. Mesmo à hora. Tem um papel para mim? Nova Zelândia, pensou ela e soube logo que tinha razão. Ás vezes esquecia-se do seu talento para distinguir sotaques britânicos, mas desta vez não. Nova Zelândia e, vendo melhor, mais perto dos cinquenta do que dos trinta, mas isso só se via nas finíssimas rugas que lhe sulcavam as faces e nas pontas prateadas dos seus cabelos negros bem cortados. Entregou-lhe a nota de Sarah e seguiu-o com o olhar enquanto ele lhe virava as costas e aproximava o papel da lâmpada. Em volta havia um quarto austero e asseado com uma tábua de engomar, uns sapatos castanhos bem polidos e uma cama de soldado feita da mesma maneira que ela aprendera a fazer a sua no colégio, com o lençol rebatido sobre o cobertor e dobrado em bico de forma a fazer um triângulo equilátero.

 

- Porque é que não se senta? - perguntou ele, indicando-lhe uma cadeira de cozinha. Enquanto ela se dirigia à cadeira, a lâmpada foi deslocada para o chão, à entrada da porta. - Assim ninguem consegue ver ca para dentro, - explicou ele. - Temos por cá uns observadores-de-tukul a tempo inteiro. Quer uma Coca? - estendeu-lha com o braço esticado. - Sarah diz que posso confiar em si, Ghita. Para mim chega. Tessa e Arnold não confiavam em ninguém, a não ser um no outro. E em mim porque tinham que confiar. É assim que eu gosto de trabalhar. Disseram-me que veio cá por causa de um paleio sobre Auto-Sustentabilidade. - Era uma pergunta.

 

- Era só um pretexto. Justin escreveu-me a pedir que averiguasse o que Tessa e Arnold vieram fazer a Loki nos últimos dias antes de ela morrer. Não acreditou na história do seminário sobre sexo.

 

- Tinha toda a razão. Tem essa carta?

 

0 meu bilhete de identidade, pensou ela. A minha prova de boa-fé como mensageira de Justin. Passou-lhe a carta e ele puxou de uns austeros óculos de aros de aço e aproximou-se da lâmpada, mantendo-se fora do alcance da luz. Estendeu-lhe de volta a carta: - Então ouça lá.

 

Mas primeiro ligou o rádio, desejoso de estabelecer o que ele pomposamente chamou de aceitável nível sonoro.

 

- Ghita estava na cama, coberta só com o lençol. A noite não estava mais fresca do que o dia. Através do mosquiteiro que a rodeava via o clarão vermelho do electrocutor de insectos. Tinha cor-rído as cortinas mas elas eram demasiado finas. Passos e vozes continuavam a fazer-se ouvir através da janela e de cada vez ela tinha vontade de saltar da cama e de gritar «Olá!». Os seus pensamentos vogaram para Glória que, para seu espanto, uma semana atrás, a tinha convidado para jogar ténis no clube.

 

Diga-me, querida, - perguntara-lhe Glória, depois de lhe ter ganho três partidas por 6-2. Seguiam de braço dado em direcção ao edifício do clube. - Tessa teve algum amorico por Sandy, ou foi o contrário?

 

Ao que Ghita, apesar da sua dependência para com a verdade, mentiu descaradamente na cara de Glória sem sequer corar. - Tenho a certeza de que não houve nada disso por parte de nenhum deles - disse ela, muito inocente. - 0 que é que a leva a pensar isso, Glória?

 

- Nada, querida. Absolutamente nada. Achei esquisita a maneira como ele se portou durante o funeral.

 

Depois de Glória, voltou ao Comandante McKenzie.

 

- Há aquele boer maluco que dirige um posto de abastecimento a poucos quilómetros a oeste duma povoação chamada Mayan, - disse ele, mantendo a voz um pouco abaixo da de Pavarotti - um a espécie de maluco.

 

 

0 seu rosto estava sombrio, as rugas mais marcadas. A luz branca do céu de Saskatchewan não conseguia penetrar nas sombras. A povoação era uma cidade perdida, a três horas de comboio de Winnipeg no meio de uma planície gelada de milhares de quilómetros e justin atravessava-a com determinação, evitando o olhar dos raros passantes. 0 vento que constantemente soprava do Yukon ou do Alto Ártico e que varria durante todo o ano a grande planície, gelando a neve, dobrando o trigo, balouçando as tabuletas ou os cabos aéreos, não lhe rosava as faces cavadas. 0 frio glacial - vinte e tal abaixo de zero - só parecia empurrar-lhe o corpo para a frente. Em Winnipeg, antes de tomar o comboio, tinha comprado um barrete e umas luvas de pele e um casaco acolchoado. A fúria tinha-se transformado num espinho. Um rectângulo de papel guardado na carteira dizia: VAI PARA CASA E DEIXA-TE ESTAR QUIETO OU VAIS TER COM A TUA MULHER.

 

Mas tinha sido a sua mulher que ali o tinha levado. Tinha-lhe desatado as mãos e tirado o capuz da cabeça, Tinha-o obrigado a pôr-se de joelhos e a arrastar-se até à casa de banho. Animado por ela, conseguira pôr-se de pé apoiando-se na banheira, tinha molhado a cara, a frente da camisa e a gola do casaco já que ela o tinha avisado de que se ele se despisse não conseguiria vestir-se de novo. A camisa estava imunda, o casaco sujo de vomitado, mas ele lá conseguiu limpá-los. Queria voltar para a cama, mas ela não o tinha deixado. Tentou pentear-se mas os braços não chegavam lá. Tinha uma barba de vinte e quatro horas mas tinha que ficar assim. 0 estar em pé fazia-lhe andar a cabeça à roda e teve sorte de conseguir chegar ao pé da cama antes de se deixar cair nela. Foi a conselho de Tessa que, caído numa sedutora modorra, se recusou a telefonar para a porteira ou a pedir os cuidados médicos da Dra. Birgit. Não confies em ninguém, tinha ela dito, e ele obedeceu. Esperou que o mundo se endireitasse de novo, levantou-se e girou pelo quarto, contente por ele ser tão pequeno.

 

Tinha atirado a gabardina para uma cadeira. Com grande surpresa sua ainda lá estava o envelope de Birgit. Abriu o guarda-fatos, 0 cofre-forte estava embutido no fundo, a porta bem fechada. Digitou a data do seu casamento, quase desmaiando de dor a cada movimento. A porta abriu-se sobre o passaporte de Peter Atkinson calmamente adormecido. As mãos doíam-lhe muito mas pareciam não estar partidas e ele agarrou no passaporte e guardou-o no bolso do casaco. Com muito custo conseguiu vestir a gabardina e abotoar o botão de cima e depois o da cintura. Como tinha decidido viajar com pouca bagagem, só tinha um saco de tiracolo. 0 dinheiro ainda lá estava. Arrumou as suas coisas de barbear, tirou as camisas e a roupa interior das gavetas da cómoda e meteu tudo no saco. Pôs o envelope de Bírgit por cima e fechou o fecho de correr. Pôs a alça ao ombro e ganiu como um cão ferido. 0 relógio marcava cinco da manhã e parecia estar a trabalhar. Saiu para o corredor e arrastou-se ao longo da parede até ao elevador. No salão de entrada duas mulheres vestidas à turca manobravam um aspirador de tamanho industrial. Um porteiro velhote dormitava atrás do seu balcão. Sem saber como, Justin disse o número do quarto e pediu a conta. Conseguiu tirar um maço de notas do bolso de trás, separou umas tantas e acrescentou-lhes uma gorda gorjeta, «por conta do Natal».

 

- Importa-se que eu leve um destes? - perguntou numa voz que não lhe pareceu a sua, apontando para um molho de guarda-chuvas de porteiro, apertados num pote de cerâmica.

 

- Todos os que quiser, - disse o velho porteiro.

 

0 guarda-chuva tinha um cabo de madeira que lhe chegava à cintura. Com o seu auxílio atravessou a praça vazia até à estação. Ao chegar aos degraus que levavam ao átrio parou para descansar e viu, espantado, que o velho porteiro estava ao seu lado. Chegara a pensar que era Tessa.

 

- Consegue? - perguntou, solícito, o velhote.

- Consigo.

 

- Quer que eu lhe compre o bilhete?

 

Justin voltou-se e entregou dinheiro ao homem. - Zurique, - disse ele.

- Só ida.

 

- Primeira classe?

- Absolutamente.

 

A Suíça era um sonho de criança. Há quarenta anos, os pais tinham-no levado para umas férias de passeios a Engadine e tinham-se instalado num grande hotel situado numa franja de floresta entre dois lagos. Nada mudara. Nem o parqué polido nem os vitrais nem a impassível governanta que o levou ao quarto. Deitado numa espreguiçadeira do seu terraço, viu os Mesmos lagos a brilharem ao sol da tarde, os mesmos pescadores a remarem nos SEUS barcos no meio da neblina. Os dias passaram sem contar, pontuados por idas às termas e o toque fúnebre do gong convocando-o para as suas refeições solitárias no meio de velhos casais que cochichavam. Numa ruazinha de chalés, um médico muito pálido e a sua assistente, trataram-lhe das feridas. - Um desastre de automóvel - explicou Justin. 0 médico franziu os olhos por detrás dos seus óculos. A jovem assistente riu-se.

 

À noite, o seu mundo interior absorvia-o, como acontecera todas as noites desde a morte de Tessa. Trabalhando na escrivaninha de embutidos situada num canto envidraçado, escrevendo custosamente a Ham com a sua mão direita tão maltratada, lendo e relendo o que Birgit escrevera sobre a confissão de Lorbeer e voltando à escrita para Ham, Justin tomava consciência do sentido da sua própria integridade. Se Lorbeer era o penitente purgando no deserto os seus pecados, comendo gafanhotos e mel selvagem, Justín também estava sozinho com o seu destino. Mas estava decidido. E, de uma maneira obscura, purificado. Nunca pensara que a sua pesquisa teria um fim feliz. Nunca lhe tinha ocorrido que pudesse ter um fim. Continuar a missão de Tessa - empunhando a sua bandeira e assumindo a sua coragem - era para ele suficiente. Ela tinha testemunhado uma monstruosa injustiça e começado a combatê-la. Agora ele era também testemunha. A luta dela era a sua luta,

 

Mas quando se lembrava da escuridão eterna do capuz e do cheiro do seu próprio vomitado, quando observava as sistemáticas contusões do seu corpo, as manchas ovais amarelas e azuis, que se alinhavam como notas de música ao longo do tronco, das costas e das pernas, sentia uma afinidade de outra espécie. Sou um de vós. já não trato das rosas enquanto vocês: cochicham curvados sobre as vossas chávenas. Não precisam de baixar a voz quando me aproximo. Também eu estou sentado à mesa, também eu digo sim.

 

Sete dias mais tarde, Justin pagou a conta e quase sem dizer a si próprio o que estava a fazer, apanhou um comboio para Basileia para aquele tão falado troço inicial do Vale do Reno onde os gigantes das farmacêuticas têm os seus castelos. E aí, de um palácio cheio de frescos, enviou para Milão, para o velho dragão de Ham, um grossíssimo envelope.

 

Depois foi passear a pé. Com custo, mas foi. Primeiro uma ladeira grosseiramente empedrada até à cidade medieval, com os seus campanários, as casas dos ricos comerciantes, as estátuas de livre-pensadores e de mártires da opressão.

 

E, quando se sentiu impregnado desta herança, voltou a descer até à margem do rio e, a partir de um parque infantil, olhou para cima sem quase querer acreditar, para as gigantescas torres de betão dos bilionários das farmas, para aqueles quartéis sem rosto, alinhados ombro a ombro contra o inimigo individual. Gruas cor-de-laranja agitavam-se incessantemente à sua volta. Chaminés brancas, tais minaretes emudecidos, algumas com os topos aos quadrados, outras às riscas ou vistosamente pintadas por causa dos aviões, lançavam os seus gases invisíveis num céu acastanhado. E aos seus pés, redes ferroviárias, gares de despacho, parques de camionagem, cada um deles protegido pelo seu próprio Muro de Berlim, com os respectivos arames farpados e graffiti.

 

Movido por uma força que já não tentava definir, justin atravessou a ponte e, como num sonho, vagueou por uma terra de ninguém com agências imobiliárias, lojas de roupa usada e camponeses imigrados de olhos cavados. Gradualmente, por uma espécie de atracção magnética, deu por si naquilo que à primeira vista parecia uma agradável avenida bordada de árvores que conduzia a um portal acolhedor, tão intensamente coberto por trepadeiras que mal se viam as grandes portas de carvalho com o seu botão de campainha bem polido e a sua caixa de correio em latão. Foi só quando justin levantou os olhos cada vez mais para cima até ao céu que descobriu a grandeza de três torres ligadas por passadiços. As fachadas de pedra estavam impecavelmente limpas, as janelas eram de vidro acobreado. E por trás de cada monstruoso bloco erguia-se uma chaminé branca, fina como um lápis espetado no céu. E em cada chaminé as letras KVH, em metal dourado e dispostas verticalmente, pareciam sorri-lhe como velhos amigos.

 

Quanto tempo ali ficou, sozinho, como um insecto apanhado numa armadilha, nunca o soube dizer. Às vezes parecia-lhe que as alas do edifício iam apertá-lo e esmagá-lo. Outras vezes iam cair-lhe em cima. Os joelhos cederam e Justin achou-se sentado num banco, num espaço bem cuidado onde várias mulheres passeavam os seus cães. Sentiu um cheiro fraco mas insistente e, por momentos, regressou à morgue de Nairobí. Quanto tempo terei de viver aqui, pensou ele, antes de já não dar pelo cheiro? Deve ter caído a tarde porque as janelas iluminaram-se. Passaram a ver-se algumas silhuetas a deslocarem-se e uns pontos azulados correspondentes a ecrãs de computador. Porque é que estou aqui sentado? - perguntou-lhe a ela. Em que é que estou a pensar a não ser em ti?

 

Ela estava sentada ao seu lado mas, por uma vez, não tinha uma resposta pronta. Estou a pensar na tua coragem, continuou ele. Estou a pensar que foste tu e Arnold contra todo o resto, enquanto o querido Justin se preocupava com que os seus canteiros estivessem em boas condições para as tuas frésias amarelas. Estou a pensar que deixei de acreditar em mim e em tudo o que eu representava. Que houve uma altura em que, tal como as pessoas destes edifícios, o teu justin sentiu orgulho em se submeter ao juízo mais severo duma vontade colectiva - que ele então designava por Pátria ou a Doutrina do Homem Racional ou, com alguma confusão, a Causa Suprema. Houve uma altura em que eu acreditei que era admíssível que um homem

- ou uma mulher - tivesse de morrer para benefício de muitos. Chamava-lhe sacrifício, ou dever, ou necessidade. Houve uma altura em que eu podia postar-me à noite em frente do Foreign Office, olhar para as janelas iluminadas e pensar: boa noite, aqui está o vosso humilde servidor, Justin. Sou uma peça desta grande e sábia máquina e tenho muito orgulho nisso. Sirvo, logo sinto. Mas o que eu agora sinto é., eram vocês contra toda aquela quadrilha e, como é natural, foram eles que ganharam.

 

Na Rua Principal da cidadezinha, Justin virou à esquerda, ou seja, para noroeste até ao Boulevard Dawes, apanhando com toda a fúria do vento das pradarias na face enquanto examinava o cenário. Os seus três anos como Adido Comercial na Embaixada de Ottawa não tinham sido em vão. Embora nunca tivesse estado naquele lugar em toda a sua vida, tudo o que via lhe era familiar. Neve desde Outubro até à Páscoa, lembrava-se ele. Plantem na primeira lua de Junho e colham antes dos primeiros frios de Setembro. Passadas algumas Semanas, alguns tímidos crocus emergiriam dos tufos de erva queimada na planície nua. Do outro lado da rua estava a sinagoga, alegre e funcional, construída pelos primeiros colonos despejados na estação do comboio com as suas más recordações, suas malas de cartão e promessas de terra à borla. Cem metros adiante erguia-se a igreja Ucraniana e a seguír os Católicos, os Presbiterianos, as Testemunhas de Jeová e os Baptistas, Os seus parques de estacionamento estavam electrificados para que os motores dos fiéis pudessem ser aquecidos enquanto os donos rezavam. Uma frase de Montesquieu veio-lhe à cabeça: nunca houve tantas guerras civis como no Reino de Cristo,

 

Por detrás das casas do Senhor estavam as casas de Mammon; o sector industrial da cidade. 0 preço da carne de vaca deve estar baixo senão porque estaria ele a ver a fábrica novinha em folha das Charcutarías Delícia? E o trigo não estaria melhor, senão que faria ali a Companhia do óleo de Girassol? E aqueles tímidos habitantes que se juntavam ao pé da estação eram com certeza siOUX OU CrOWS. 0 caminho de sirga fez uma curva e dirigiu-o para o norte atravessando um pequeno túnel. À saída viu-se num mundo diferente de garagens para barcos e de mansões à beíra-río. Aqui, decidiu ele, é onde os ricos anglo-saxões aparam os seus relvados, lavam os seus carros, envernizam os seus barcos e praguejam contra os judeus, os russos e os malandros dos índios que não fazem nenhum e vivem da assistência social. E no cimo da colina, ou daquilo que por estas partes passa por colina, lá está a sua meta, o orgulho da cidade, a jóia do Saskatchewan oriental, o seu paraíso académico, a Universidade de Dawes, uma mescla bem organizada de cantaria medieval, tijolo colonial e cúpulas de vidro. Chegando a uma bifurcação do caminho, justin escolheu o trilho mais inclinado e, através dum Ponte Vecchio em estilo anos vinte, chegou a um portão incrustado numa parede com ameias onde luzia um escudo de armas. Através do vão, Justin pôde admirar o campus imaculado e a estátua em bronze do fundador, George Eamon Dawes Junior em Pessoa, dono de minas, barão dos caminhos-de-ferro, libertino, ladrão-de-terras, matador-de-índios, e orago local, resplandecente no seu plinto de granito.

 

Continuou a andar. Tinha estudado o guia. 0 caminho alargou-se e transformou-se num terreno de parada. 0 vento levantava uma poeira granulosa. Do lado de lá via-se um pavilhão coberto de hera e, rodeando-o, três blocos de aço e betão especialmente construídos. Largas janelas iluminadas a néon cortavam os blocos em fatias. Um letreiro em verde e ouro - as cores favoritas da Sra. Dawes, explicava o guia, - anunciava em inglês e francês o Hospital Universitário para Pesquisas Clínicas. Um letreiro mais pequeno dizia Doentes Externos. Justin seguiu a seta e chegou a umas portas de mola que estavam debaixo de uma pala de cimento e eram vigiadas por duas mulheres corpulentas em batas verdes. Deu-lhes as boas-tardes e recebeu em troca uma alegre saudação. Com a face gelada e o corpo dorido da marcha, com cobras escaldantes a subirem-lhe pelas coxas e pelas costas deitou um olhar sub-reptício para trás e subiu os degraus da entrada.

 

0 átrio era de mármore, grande e fúnebre. Um horroroso e gigantesco retrato de George Eamon Dawes junior em trajo de caça fez-lhe lembrar o átrio do Ministério dos Negócios Estrangeiros. 0 balcão da recepção estava ocupado por homens e mulheres de cabelos prateados e túnicas verdes e corria ao longo de toda uma parede. Daí a pouco vão chamar-me «Senhor Quayle, por favor» e dizerem-me que Tessa era uma senhora excepcional. Passou por um minicentro comercial. 0 Banco Dawes Saskatchewan. Uma estação de correios. Uma tabacaria Dawes. Mc Donald’S, Pizza. Paradise, Café Starbuck, uma boutíque Dawes que vendia lingerie, fatos de grávida e lisenses. Chegou a uma encruzilhada cheia do estrupido dos carrinhos de carga, o zumbido dos elevadores, o eco dos tacões agulha e o piar dos telemóveis. Visitantes apreensivos estavam sentados ou andavam de um lado para o outro. Pessoal em trapos verdes desaparecia por uma porta e aparecia por outra. Nenhum tinha abelhas bordadas no bolso.

 

Um grande quadro de avisos estava ao lado de uma porta marcada Médicos Exclusivamente. Com as mãos atrás das costas para denotar autoridade, Justin examinou os anúncios. Babysitters, barcos e automóveis, compram-se e vendem-se. Quartos para alugar. 0 Dawes Club de canto Coral, a Sociedade Dawes para o Estado da Bíblia, a Sociedade Dawes de Ética, o Grupo Dawes de danças Escocesas. Um anestesista quer comprar um bom cão castanho de tamanho médio, com um mínimo de três anos e que seja «um campeão de marcha». Esquema Dawes para Empréstimos. Esquema Dawes para Pagamentos a Prestações. Um serviço religioso terá lugar na Capela Dawes em acção de graças pela vida da Dra. Maria Kowaiski - alguém sabe o género de música de que ela gostava? Listas de Médicos Disponíveis. Médicos de Férias, Médicos de Serviço. E um alegre poster anunciando que esta semana as pizzas grátis para os estudantes de medicina são oferecidas pela Karel Vira Hudson de Vancouver - e porque não vêm ao nosso Brunch de Domingo e passagem de filmes KVH na discoteca Haybarn, já agora? Basta preencher o formulário Por Favor Convide-me, disponível com a sua pizza e terá um bilhete grátis para a experiência da sua vida!

 

Mas nem uma palavra sobre a Dra. Lara Emrich, até há pouco tempo a estrela do Corpo Docente, especialista em surtos de tuberculose multi-resistentes, professora apoiada pela KVH e co-Inventora da droga-maravilha Dypraxa. Não estava de férias nem estava disponível. 0 seu nome não constava da vistosa lista de telefones internos pendente dum cordão junto ao quadro dos avisos. Não andava à procura de um cão castanho de tamanho médio. A única referência a ela seria talvez um aviso manuscrito, relegado para o extremo do quadro e praticamente fora de vista lamentando que «por ordem do Excelentíssimo Reitor» a reunião da Associação dos Médicos de Saskatchewan para a Integridade Profissional não se realizaria nas instalações da Universidade. A data e o local seriam oportunamente divulgados.

 

Com o corpo a gritar de dor e de cansaço, Justin acaba por tomar um táxi para regressar ao seu incaracterístico hotel. Desta vez tinha sido inteligente. Numa folha do caderno de Lesley, Justin tinha mandado a sua carta através de uma florista, juntamente com um generoso ramo de rosas.

 

Sou um jornalista inglês amigo da Birgit do Hippo. Estou a investigar a morte de Tessa Quayle. Poderia fazer o favor de me telefonar para o Saskatchewan Man Motel, quarto dezoito, depois das sete da tarde. Sugiro que se sirva de uma cabine telefónica a boa distância da sua casa.

 

Peter Atkinson

 

Mais tarde digo-lhe quem sou, tinha ele decidido. Não a quero assustar. Quero escolher a altura e o lugar. É melhor. 0 seu disfarce não valia grande coisa mas era o único que tinha. Tinha sido Atkinson no hotel na Alemanha e Atkínson quando lhe bateram. Embora o tenham tratado por Quayle. E fora como Atkinson que voara de Zurique para Toronto, se instalara numa pensãozeca em tijolo junto à estação e, soubera, pelo seu pequeno rádio, com uma surrealista indiferença, que começara a perseguição à escala mundial do Dr. Arnold Bluhm, procurado em relação ao assassinato de Tessa Quayle. Sou uma espécie de Oswald*, Justin... Arnold Bluhm perdeu a cabeça e matou Tessa... E foi anonimamente que tomou o comboio para Winnipeg, esperou durante um dia inteiro e tomou outro comboio para esta cidade. Mesmo assim, não se iludia. Na melhor hipótese tinha uns dias de avanço. Mas, num país civilizado, nunca se pode saber.

 

- Peter?

 

Justin acordou sobressaltado e olhou para o relógio. Nove da noite. Tinha deixado um bloco e uma caneta ao lado do telefone.

 

- Sou, sou o Peter.

 

- Sou a Lara. - Parecia um queixume.

 

- Boa noite, Onde podemos encontrar-nos?

 

Um suspiro. Um suspiro triste, irremediavelmente cansado, para corresponder à triste voz eslava. - Isso não é possível,

 

- Porque não?

 

- Está um carro em frente da minha casa. Ás vezes é uma carrinha. Estão a vigiar-me constantemente. Não será possível encontrarmo-nos discretamente.

- Onde está agora neste momento?

 

- Numa cabine. - Falava como se não fosse sair dali viva.

- Alguém está agora a vigiá-la?

 

- Ninguém que se veja. Mas é noite. Obrigado pelas rosas.

 

- Posso encontrá-la em qualquer sítio que lhe convenha. Em casa de um amigo. Ou no campo se preferir. Como quiser.

 

-Tem carro?

- Não.

 

- Porque não? - Era uma censura e um desafio.

 

- Não tenho comigo os documentos indispensáveis,

- Você quem é?

 

- já lhe disse. Um amigo de Birgit. Um jornalista inglês. Falaremos disso quando nos encontrarmos.

 

Ela já tinha desligado. Justin tinha o estômago às voltas, precisava de ir à casa de banho, mas lá não havia telefone. Aguentou enquanto pôde e acabou por ir a correr. Quando já estava sentado ouviu o telefone tocar. Tocou três

 

* Alusão a Lee Harvey Oswald, pretenso assassino do Presidente Kennedy. (N. T)

 

vezes e quando conseguiu lá chegar já se tinha calado. Com as mãos na cabeça, sentou-se na beira da cama. Não tenho jeito para isto. Como é que os espiões fazem? 0 que é que o velho Donohue teria feíto? Com uma heroína de Ibsen do outro lado da linha? 0 mesmo que eu fiz, ou pior ainda. Olhou de novo para o relógio com medo de ter perdido a noção do tempo. Tirou-o do pulso e pô-lo ao lado do bloco. Quinze minutos. Vinte. Trinta. Que raio lhe terá acontecido? Tornou a pôr o relógio, perdendo a calma e não conseguindo apertar a fivela.

 

- Peter?

 

- Onde é que podemos encontrar-nos? Em qualquer sítio que diga.

- Birgit diz que você é o marido.

 

Meu Deus! Sente a terra a abanar.

- Bírgít disse-lhe ísso ao telefone?

 

- Não falou em nomes. «É o marido.» Só isto. Foi discreta. Por que não me disse que era o marido dela? Assim já eu não pensaria que era uma provocação.

 

Ia dizer-lho quando nos encontrássemos.

 

Vou falar a uma amiga, Não devia ter-me mandado as rosas. É um exagero. Quem é a amiga? Tenha cuidado com o que lhe vai dizer. 0 meu nome é Peter Atkinson, Sou jornalista. Ainda está na cabine?

 

- Ainda.

 

- Na mesma?

 

- Não estou a ser vigiada. No Inverno só me vigiam de carro. São preguiçosos. Não há nenhum carro à vista.

 

- Tem moedas que cheguem?

- Tenho um cartão.

 

- Não use o cartão. Use moedas. Usou o cartão quando falou à Birgit?

- Isso não tem importância.

 

Eram dez e meia quando ela falou outra vez. - A minha amiga está de assistência a uma operação, - explicou ela, sem pedir desculpa. - Uma operação complicada. Falei a outra amiga. Está de acordo. Se tem medo, tome um táxi até Eaton e vá a pé o resto do caminho.

 

- Não tenho medo, tenho cuidado.

 

Olha que esta!, pensou ele, ao tomar nota da morada. Nunca a vi, mandei-lhe exageradamente duas dúzias de rosas e já estamos a ter um arrufo de namorados.

 

Havia duas maneiras de sair do seu motel: pela porta da frente e o parque de estacionamento ou pela porta de trás até à recepção, através dos corredores.

 

Justin apagou as luzes e espreitou pela janela para o parque de estacionamento. Sob a lua cheia cada carro tinha um halo prateado de geada. Dos vinte e tal lugares do parque só um estava ocupado. Estava uma mulher ao volante e ao seu lado um homem. Estavam a discutir. A propósito de rosas? Ou do Deus Lucro? A mulher gesticulava, o homem abanava a cabeça. 0 homem saiu, ladrou-lhe uma palavra final, uma praga certamente, bateu com a porta, meteu-se noutro carro e foi-se embora. A mulher deixou-se ficar onde estava. Torceu as mãos em desespero e pousou os punhos no volante. Pôs a cabeça nas mãos e começou a soluçar, sacudindo convulsivamente os ombros. Dominando um desejo absurdo de a confortar, Justin apressou-se a ir para a recepção e mandou vir um táxi.

 

A casa fazia parte de um conjunto edificado numa rua vitoriana. Cada casa estava implantada em ângulo, como uma linha de proas de barco entrando num velho porto. Cada uma delas tinha uma cave com a respectiva escada exterior e uma porta de entrada acima do nível da rua à qual se acedia por degraus de pedra e que tinha como puxadores umas ferraduras de bronze que não batiam. Observado por um gordo gato cinzento que se instalara entre as cortinas e uma janela do nº 7, Justin subiu os degraus do nº 6 e tocou à campainha. Trazia consigo tudo o que possuía: um saco de viagem, dinheiro e, apesar das recomendações de Lesley, os seus dois passaportes. Tinha pago o motel adiantado. Se voltasse para lá seria por sua vontade e não por necessidade. Eram dez horas duma noite gelada e clara. Havia carros estacionados atrás uns dos outros à beira do passeio deserto. A porta foi aberta por uma mulher alta que ficou em silhueta.

 

- Você é o Peter - disse-lhe ela, acusadoramente.

- É a Lara?

 

- Naturalmente.

 

Fechou a porta atrás dele.

 

Alguém a seguiu até aqui? - perguntou-lhe ele. É possível. E a si?

 

Olharam um para o outro, agora ambos iluminados. Birgit tinha razão: Lara Emrich era bela. Bela na altiva inteligência do seu olhar; no seu desprendimento gélido, científico, que logo à primeira vista o fez recuar; na maneira como ela afastou para trás com o pulso o cabelo que começava a acizentar e depois, ainda com o cotovelo erguido e o pulso junto da testa, continuou a examiná-lo severamente com um olhar a um tempo arrogante e inconsolável. Estava vestida de preto. Calças pretas, túnica preta, sem maquilhagem. A voz, ouvida ao perto, era ainda mais sombria do que ao telefone.

 

- Tenho muita pena de si, - disse ela, - É terrível. Que tristeza.

- Muito obrigado.

 

- Foi assassinada pelo Dypraxa.

- Penso que sim. Indirectament.

 

- Muita gente foi assassinada pelo Dypraxa,

- Mas nem todos foram traídos por Lorbeer.

 

Do andar de cima veio uma revoada de aplausos televisivos.

 

- Arny é minha amiga, - disse ela, como se a amizade fosse um pecado.

- É contabilista no Hospital Dawes. Infelizmente assinou uma petição a meu favor e ajudou a fundar a Associação dos Médicos de Saskatchewan para a integridade profissional. E por isso andam à procura de um pretexto para a despedirem.

 

Justin ia perguntar-lhe se Arny o conhecia como Quayle ou Atkinson quando uma mulher de voz forte se dirigiu a ele do andar de cima e uns chinelos de pele apareceram no alto das escadas.

 

-Trá-lo cá para cima, Lara. Ele precisa de uma bebida.

 

Arny era gorda e de meia idade, uma dessas mulheres sérias que resolveram conduzir-se como actrizes cómicas. Trazia um quimono escarlate e um brinco de pirata. Os chinelos tinham uns olhos de vidro. Mas tinha fundas olheiras e rugas de cansaço aos cantos da boca.

 

- Os homens que mataram a sua mulher deviam ser enforcados, - disse ela. - Scotch, bourbon ou Vinho? Este é o Ralph.

 

Estavam numa sala grande, amansardada, forrada de pinho. Ao fundo havia um bar. Uma enorme televisão transmitia hóquei no gelo. Ralph era um velho de cabelo ralo, de roupão. Sentava-se numa poltrona de falso cabedal com um banquinho idêntico para descansar os pés. Ao ouvir o seu nome, levantou uma mão com manchas hepáticas mas não tirou os olhos do jogo.

 

- Bem vindo a Saskatchewan. Arranje aí uma bebida, - disse ele, com um sotaque da Europa Central.

 

- Quem está a ganhar? - perguntou Justin, amistosamente.

- Os Canucks.

 

- Ralph é advogado, - disse Arny. - Não és, querido?

 

- Agora já não sou nada. A maldita parkinson está a puxar-me para a cova. Os tipos da Universidade portaram-se como uns cavalos. É por isso que veio?

- Sobretudo por isso.

 

-Abafar a livre expressão, interpor-se entre o médico e o doente, já é altura de que os homens e mulheres civilizados tenham tomates para dizer a verdade e não se agacharem na retrete como uns cobardolas.

 

- Sem dúvida, - disse Justin, polidamente, pegando no copo de vinho branco que Arny lhe estendia.

 

- A Karel Vita toca a música e Dawes dança. Vinte e cinco milhões de dólares para começar e mais cinquenta milhões prometidos para um novo edifício de Biotecnologia. Isto não são trocos, mesmo para os desmiolados nababos da Karel Vita. E se toda a gente se portar bem, vem aí muito mais dinheiro. Como é que se pode resistir a uma pressão destas?

 

- Temos de tentar, - disse Arny. - Senão estamos fodidos.

 

- Fodidos se não tentarmos, fodidos se tentarmos. Se abres a boca, tiram-te o salário, despedem-te e expulsam-te da cidade. A livre expressão custa muito caro nesta cidade, Sr. Quayle, muito mais do que nos podemos permitir. Qual é o seu primeiro nome?

 

- Justin.

 

- Isto é uma terra de colheita única, Justin, quando se trata de livre expressão. Tudo muito bem enquanto uma puta russa não se lembra de publicar uns artigos disparatados na imprensa médica dizendo mal de uma pílulazinha inteligente que ela própria inventou e que vale biliões de dólares para a Casa de Karel Vita, que Alá conserve. Onde é que pensas instalá-los, Arny?

 

- No escritório.

 

- Lembra-te de desligar o telefone para eles não serem incomodados. Cá em casa, Arny é que é a técnica, Eu sou um velho chato. Tudo o que precisar peça à Lara, Conhece a casa melhor do que nós, o que é um desperdício, já que vamos serdespejados daqui dentro de uns meses.

 

E voltou para os seus vitoriosos Canucks.

 

Ela já não o vê, ainda que tenha posto uns óculos grossos que podiam ser de homem. A russa que há neta trouxe um saco de fim-de-semana entreaberto a seus pés, atafulhado de papéis que ela conhece de cor: cartas de ameaça escritas por advogados, cartas da faculdade despedindo-a, uma cópia do seu artigo não-publicado e finalmente cartas dos seus próprios advogados, mas não muitas porque, explica ela, não tem dinheiro e, além disso, o seu advogado gosta mais de defender os direitos dos Sioux do que travar batalha contra os ilimitado recursos dos Srs. Karel Vita Hudson, de Vancouver. Estão sentados como dois jogadores de xadrez sem tabuleiro, um em frente do outro, os joelhos quase a tocarem-se. A recordação de algumas gravuras orientais lembra a Justin que não deve apontar os seus pés para ela, razão por que se senta de lado, posição pouco confortável para o seu corpo dolorido. Há já uns minutos que ela tem estado a falar para um ponto acima do ombro dele e Justin mal a tem interrompido. Lara está totalmente absorvida em si própria, a sua voz didáctica, às vezes desanimada. Vive apenas para a monstruosidade do seu caso e da sua desesperada falta de solução. Tudo se lhe refere. Às vezes - muitas vezes, suspeita ele - chega a esquecer-se de que ele está ali. Ou então a situação é outra qualquer: uma confusa reunião da faculdade, uma tímida convocatória dos colegas da universidade, um professor vacilante, um advogado pouco à vontade. É só quando ele pronuncia o nome de Lorbeer que ela lhe presta atenção, franze o rosto e prefere dar uma volta ao assunto: Markus é demasiado romântico, é tão fraco, todos os homens fazem coisas mal feitas e as mulheres também. E não, não sabe por onde ele anda.

 

- Anda escondido. É muito instável. Muda de direcção todos os dias,

- explica ela com persistente melancolia.

 

- Quando elefala num deserto, é mesmo um deserto verdadeiro?

- Será um lugar muito desagradável. Também isso é típico.

 

Para defender a sua causa, Lara emprega frases que ele nunca lhe atribuiria.

- Aqui dou um salto... A KVH não faz prisioneiros... - Chega a falar dos «meus doentes no corredor da morte». E quando lhe entrega uma carta do advogado, ela vai repetindo enquanto ele lê, não vá ele perder as partes mais ofensivas:

 

Mais uma vez lhe recordo que a cláusula de confidencialidade do seu contrato expressamente a proíbe de dar informações controversas aos seus doentes... Fica formalmente advertida contra qualquer futura disseminação, seja verbal ou por quaisquer outros meios, dessas grosseiras e mal intencionadas opiniões baseadas na falsa interpretação dos dados que obteve quando estava sob contrato da Karel Vita Hudson...

 

Isto é seguido de um remate soberbamente arrogante: os nossos clientes negam terminantemente que tenham tentado de alguma forma suprimir ou influenciar qualquer legítimo debate científico.»

 

- Mas porque é que assinou aquele maldito contrato? - interrompe Justin com rudeza.

 

Satisfeita com a fúria dele, Lara dá uma triste risada. - Porque confiava neles. Fui completamente parva.

 

- Você é tudo menos parva, Lara. É uma mulher altamente inteligente, c’os diabos! - exclama justin.

 

Insultada, ela refugía-se num silêncio ofendido.

 

Os primeiros anos a seguir à Karel Víta ter comprado, por intermédio de Lorbeer, a molécula Emrich-Kovacs, díz-lhe ela, foram uns anos de ouro. As primeiras experiências de curto prazo foram excelentes, as estatísticas melhoraram-nas, a associação Emrich-Kovacs era o assunto preferido de conversa da comunidade científica internacional. A KVH forneceu laboratórios de pesquisa, equipas de técnicos, experiências clínicas em todo o Terceiro Mundo, viagens em primeira classe, hotéis de luxo, respeito e dinheiro a rodos.

 

- Para a frívola Kovacs foi a concretização dos seus sonhos. Iria conduzir Rolls-Royces, iria ganhar o Prêmio Nobel, seria rica e famosa, teria muitos e muitos amantes. E para a séria Lara, as experiências clínicas seriam científicas e responsáveis. 0 medicamento seria experimentado em todas as comunidades étnicas e sociais vulneráveis à doença. Muitas vidas seriam melhoradas e outras salvas. Tudo seria muitíssimo satisfatório.

 

- E para Lorbeer?

 

Um olhar irritado, uma careta de reprovação.

 

- Markus deseja ser um santo rico. É a favor dos Rolls-Royces mas também de salvar vidas.

 

- Por Deus e por Lucro, então, - sugere Justin com ligeireza, mas a única resposta foi um olhar repreensivo.

 

- Dois anos mais tarde fiz uma descoberta terrível. Os ensaios KVH eram uma aldrabice. Não tinham sido feitos cientificamente. Só tinham como objectivo lançar o medicamento no mercado o mais cedo possível. Alguns efeitos colaterais eram deliberadamente ignorados. Quando havia algum desses efeitos, o ensaio era refeito de modo a que não se repetissem.

 

- Que efeitos eram esses?

 

Ela retomou a sua voz de conferência, mordente e arrogante: - Na altura dos ensaios não-científicos poucos efeitos foram observados. 0 que se deveu ao excessivo entusiasmo de Kovacs e Lorbeer e à determinação dos centros clínicos do Terceiro Mundo para que os ensaios tivessem bons resultados. E por isso os ensaios eram favoravelmente divulgados nas revistas médicas mais importantes por distintos especialistas que escondiam as suas lucrativas ligações com a KVH. Na realidade, tais artigos eram escritos em Vancouver ou Basileia e apenas assinados pelos distintos especialistas. Constatou-se que o medicamento não convinha a uma insignificante proporção de mulheres em idade de ter filhos. Algumas ficavam com defeitos de visão. Houve algumas mortes, mas a manipulação das datas fez com que esses casos não figurassem no período em estudo,

 

- Ninguém se queixou?

 

A pergunta fá-la zangar-se. - Quem é que se iria queixar? Os médicos e técnicos do Terceiro Mundo que estão a ganhar dinheiro com os ensaios?

0 distribuidor que está a ganhar dinheiro com a comercialização e não quer perder os lucros provenientes dos outros fármacos da KVH, ou mesmo ser afastado do negócio?

 

- E os doentes?

 

A opinião dela sobre Justin bateu no fundo, - A maior parte das doentes eram de países não democráticos com sistemas de saúde completamente corruptos. Teoricamente deram a autorização para o tratamento. Quer dizer, as suas assinaturas estão no fim dos formulários, mesmo que elas não soubessem ler o que lá estava escrito, A lei impede-as de receber uma verba pré-determinada mas eram generosamente recompensadas pela viagem e pela perda de ganhos e tinham comida de graça, o que eles muito apreciavam. E, além disso, tinham medo.

 

- Das empresas?

 

- De todos. Se se queixassem eram ameaçadas. Disseram-lhe que os filhos não receberiam mais remédios da América e que os seus homens iriam para a cadeia.

 

- Mas você queixou-se.

 

- Não. Não me queixei. Protestei vigorosamente. Quando descobri que o Dypraxa estava a ser promovido como medicamento seguro e não como estando em ensaios, dei uma conferência numa reunião científica da Universidade e considerei isso uma conduta imoral por parte da KVH. Isto não foi bem acolhido. Dypraxa é um bom medicamento. Isso não está em causa. 0 problema tem três aspectos - levantou três dedos. - Ponto um: os efeitos colaterais estão a ser deliberadamente escondidos por razões de lucro. Ponto dois: as comunidades mais pobres do mundo estão a ser usadas como cobaias pelas riquíssimas companhias. Ponto três: o debate científico sobre o caso está a ser abafado pelas companhias,

 

Os dedos encolhem-se enquanto com a outra mão retira do saco um brilhante prospecto azul com o cabeçalho: BOAS NOTÍCIAS DA KM.

 

Dypraxa é um substituto altamente eficaz, seguro e económico dos tratamentos até agora conhecidos para a tuberculose. Provou ser uma enorme vantagem para os paises em desenvolvimento.

 

Lara retoma o prospecto e avança com uma carta muito manuseada dos advogados da KVH. Um dos parágrafos está sublinhado.

 

0 estudo do Dypraxa foi concebido e executado de uma maneira inteiramente ética, abrange um determinado número de anos com o consentimento expresso de todos os doentes. Nos seus ensaios, a KVH não faz qualquer distinção entre países ricos e pobres. Apenas se preocupa em escolher condições apropriadas ao projecto em estudo. A KVH é muito justamente conhecida pela qualidade dos seus produtos.

 

- E qual é a posição da Kovacs?

 

- Está inteiramente ao lado da companhia. Ela não tem a mínima integridade. Foi com o seu auxílio que muitos dados clínicos foram distorcidos ou suprimidos.

 

- E Lorbeer?

 

- Markus está dividido. 0 que é normal nele. Auto-nomeou-se Director do Dypraxa para toda a África. Mas também está assustado e envergonhado. Foi por isso que escreveu a confissão.

 

Ele é funcionário das Três Abelhas ou da KVH?

 

É capaz de ser das duas. É um homem complicado.

 

Então como diabo é que a KVH a instalou aqui em Dawes?

 

Porque eu fui parva, - repete Lara, orgulhosamente, rebatendo a anterior afirmação dele em sentido contrário. - Se não fosse parva não tinha aceitado assinar o contrato. A KVH foi muito cortês, muito charmosa, muito compreensiva, muito inteligente. Eu estava em Basileia quando lá apareceram dois rapazes vindos de Vancouver para falarem comigo. Fiquei lisonjeada. Tal como você, eles mandaram-me rosas. Dísse-lhes que os ensaios eram uma merda. Eles concordaram. Disse-lhes que não deviam vender o Dypraxa como medicamento seguro. Eles concordaram. Disse-lhes que muitos efeitos colaterais nunca tinham sido devidamente avaliados. Louvaram a minha coragem. Um deles era um russo, de Novgorod. «Venha almoçar connosco, Lara. Vamos discutir este assunto até ao fim.» E disseram que me queriam levar para Dawes para dirigir os meus próprios ensaios sobre o Dypraxa. Eram muito razoáveis, ao contrário dos seus superiores. Aceitaram que não tínhamos feito suficientes experiências cientificamente correctas. Aqui poderíamos fazê-las. Era o meu medicamento. Tinha orgulho nisso, e eles também. A Universidade tinha orgulho. Fizemos um acordo harmonioso. Dawes dava-me as boas-vindas, a KVH pagava-me. Dawes está idealmente localizada para as experiências. Temos índios nas reservas que são susceptíveis à velha tuberculose. Temos casos multirresistentes na comunidade híppy de Vancouver, Para o Dypraxa, é uma combinação perfeita. Foi na base deste acordo que eu assinei o contrato e aceitei a cláusula de confidencialidade. Fui uma parva, - repetiu com uma fungadela que significava «como se queria derrionstrar».

 

- E a KVH tem escritórios em Vancouver.

 

- Grandes escritórios. É a sua terceira maior instalação depois de Basileia e de Seartle. Por isso podiam vigiar-me. Que era a ideia deles., por-me um açaimo e controlar-me. Assinei aquele estúpido contrato e fui trabalhar com grande entusiasmo. No ano passado acabei o meu estudo. Era extremamente negativo, Achei necessário informar os meus doentes da minha opinião sobre os efeitos colaterais do Dypraxa. Como médica tenho um dever sagrado. E também decidi que a comunidade médica mundial devia ser informada através da sua publicação numa revista importante. Mas essas revistas não publicam opiniões negativas. Já o sabia. Sabia também que ela ia convidar três distintos cientistas a comentarem os meus resultados. 0 que eu não sabia era que os distintos cientistas tinham acabado de assinar com a KVH de Seattle ricos contratos para pesquisar tratamentos biotécnicos de outras doenças. Rapidamente informaram Seattle das minhas intenções e Seattle, por sua vez, informou logo Basileia e Vancouver.

 

Ela estende a Justin uma folha de papel dobrada em quatro. Ele abre-a com um sobressalto do já conhecido.

 

PUTA COMUNISTA. TIRA AS TUAS MÃOS COBERTAS DE MERDA DA NOSSA UNIVERSIDADE. VOLTA PARA A TUA POCILGA BOLCHEVISTA. BASTA DE ENVENENARES

AS VIDAS DE PESSOAS DECENTES COM AS TUAS CORRUPTAS TEORIAS

 

Grandes maiúsculas de computador. Nenhum erro de ortografia. Uso adequado dos adjectivos. 0 mesmo Clube, pensa Justin.

 

- Foi acordado que a Universidade de Dawes participará dos lucros mundiais do Dypraxa, - continua ela, tirando-lhe a carta das mãos. - As pessoas que forem leais para com as companhias receberão bónus especiais. As que não forem, receberão cartas anónimas. É mais importante ser leal para com o Hospital de que para com os doentes. E é ainda mais importante ser leal para com a KM.

 

- Foi a Halliday que escreveu isso, - diz Arny irrompendo no escritório com um tabuleiro de café e bolachas. - Ela é o cão de fila da máfia médica de Dawes. Toda a gente lá na Faculdade tem que lhe lamber as botas ou morrer. Excepto eu e Lara e mais uns tantos idiotas.

 

- Como é que sabe que foi ela? - pergunta Justin.

 

- Fiz-lhe uma análise ao DNA. Retirei o selo do envelope e analisei o cuspo. Ela gosta de ir ao ginásio do Hospital. Eu e Lara tirámos um cabelo da sua escova cor-de-rosa e fizemos a comparação.

 

- Alguém a acusou? - pergunta Justin.

 

- Claro. Todos os professores. E a vaca confessou. Excesso de zelo no cumprimento dos seus deveres que consistem, acima de tudo, em proteger os melhores interesses da Universidade. Desculpou-se humildemente, invocou uma grande fadiga emocional, que é como ela chama a sua inveja sexual. Caso arquivado, vaca felicitada. Entretanto liquidaram a Lara. E eu venho a seguir.

 

- Lara Emrich é comunista, - explica Lara divertida com a ironia. - É russa, cresceu em Petersburgo quando era ainda Leninegrado, andou em universidades soviéticas e é, por isso, comunista e anticapitalista. Vem mesmo a calhar.

 

- Emrích não inventou o Dypraxa, pois não, querida? - recorda-lhe Arny.

- Foi a Kovacs - concorda Lara, com amargura. - Ela é que foi o gênio. Eu era só a sua promíscua assistente de laboratório. Lorbeer era meu amante e por isso reclamou a glória para mim.

 

- E foi por isso que eles deixaram de te pagar, não foi, querida?

 

- Não. A razão é outra. Não respeitei a cláusula da confidencialidade e por isso rompi o meu contrato. É lógico.

 

- E a Lara é também puta, não é, querida? Foi para a cama com os dois belos rapazes vindos de Vancouver, só que não foi. Ninguém fode, aqui em Dawes. E somos todos cristãos, excepto os judeus.

 

- Já que o remédio está a matar doentes, eu bem gostava de não o ter inventado, - diz Lara baixinho, fingindo que não ouviu a alfinetada de Arny.

- Quando é que viu Lorbeer pela última vez? - perguntou Justin quando ficaram outra vez sós.

 

0 tom dela era agora mais brando.

- Quando ele esteve em África.

 

- Há quanto tempo?

- Há um ano.

 

- Menos de um ano, - corrigiu-a Justin. - A minha mulher falou com ele no Hospital Uhuru há seis meses. A sua confissão, ou lá o que é, foi enviada de Nairobi há poucos dias. Onde é que ele está agora?

 

Ser corrigida não era coisa de que Lara Emrich gostasse. - Perguntou-me quando o vi pela última vez, - replicou ela, desabrida. - Foi há um ano. Em África.

 

- África onde?

 

- No Quénia. Mandou-me chamar. A acumulação das provas tornara-se insuportável. «Lara, preciso de ti. É essencial e muito urgente. Não digas a ninguém. Pago tudo. Vem.» Fiquei impressionada com o seu apelo. Disse à Universidade que a minha mãe estava doente e voei para Nairobi. Cheguei numa sexta-feira. Markus esperava-me no aeroporto, No carro, perguntou-me: «Lara, é possível que o nosso medicamento aumente a pressão no cérebro e afecte o nervo óptico?» Lembrei-lhe que tudo era possível, uma vez que não tinham sido reunidos dados científicos. Levou-me até uma aldeia e mostrou-me uma mulher que não se aguentava em pé. Tinha umas dores de cabeça terríveis. Estava a morrer. Levou-me a outra aldeia onde uma mulher não conseguia focar os olhos. Quando saía da sua cubata, o mundo ficava completamente escuro. E falou-me de outros casos. Os técnicos da assistência médica tinham relutância em nos falar francamente. Também eles tinham medo. As Três Abelhas castigam qualquer espécie de críticas, diz-me Markus. E ele também estava assustado. Com medo das Três Abelhas, da KVH, das mulheres doentes, de Deus. «O que é que eu devo fazer, Lara, o que é que devo fazer?» Falara com a Kovacs, para Basileia, ela dissera-lhe que era uma parvoíce entrar em pânico. Isso não são efeitos colaterais do Dypraxa, disse ela, são os efeitos de uma má combinação com outro medicamento. Típico da Kovacs que entretanto se casara com um rico Vigarista sérvio e passa mais tempo na ópera do que no laboratório.

 

- E então o que é que ele devia fazer? - perguntou Justin.

 

- Eu dísse-lhe a verdade. 0 que ele está a ver em África é o mesmo que eu vejo no Hospital Dawcs, em Saskatchewan. «Markus, esses são os mesmos efeitos que eu estou a divulgar no meu relatório para Vancouver, baseado em experiências clínicas objectivas sobre seiscentos casos.» Mas ele continua a gritar-me: «O que é que eu devo fazer, Lara, qual é o meu dever?» «Markus, disse-lhe eu, tens de ser corajoso, tens que fazer unilateralmente o que as companhias, colectivamente, se recusam a fazer, tens que retirar o medicamento do mercado até ele ser exaustivamente testado.» Ele começou a soluçar. Foi a nossa última noite como amantes. Eu também chorei.

 

Um instinto selvagem apoderou-se de Justin, um ressentimento fundo que não conseguia definir. Queria mal àquela mulher por ela ter sobreviVido? Ressentia-se do facto de ela ter dormido com o traidor confesso de Tessa e ainda agora falar dele com ternura? Estaria ofendido por ela se sentar ali diante dele, bela e viva e obcecada por si própria enquanto Tessa jazia morta ao lado do filho deles? Sentir-se-ia insultado por Lara mostrar tão pouca preocupação por Tessa e tanta por si própria?

 

- Lorbeer falou-lhe alguma vez de Tessa?

- Não durante a minha visita.

 

- Então quando?

 

- Escreveu-me uma vez que havia uma mulher, casada com um diplomata britânico, que estava a pressionar as Três Abelhas no que tocava ao Dypraxa, escrevendo cartas e fazendo visitas não desejadas. Era apoiada por um médico de uma das agências de auxílio humanitário. Não mencionou o nome do médico.

 

- Quando é que ele escreveu isso?

 

- No dia dos meus anos. Markus lembra-se sempre da data e foi quando me falou na mulher inglesa e do seu amante, o médico africano.

 

- Sugeriu o que fazer com eles?

 

- Receava por ela. Disse que ela era muito bela e trágica. Acho que se sentia atraído por ela.

 

Justin foi assaltado Pela inverosímil ideia de que Lara tinha ciúmes de Tessa.

- E o médico?

 

- Markus admira todos os médicos.

- Donde era essa carta?

 

- Da Cidade do Cabo. Estava a estudar as actividades das Três Abelhas na África do Sul, comparando-as pessoalmente com a sua experiência no Quénia. Tinha muito respeito pela sua mulher. A coragem não é a especialidade de Markus. Tem que lhe ser ensinada.

 

- Disse onde é que a encontrara?

 

- No Hospital de Nairobi. Ela tinha-o enfrentado. E ele sentiu-se embaraçado.

 

- Porquê?

 

- Era obrigado a ignorá-la. Markus pensa que se ele ignorar uma pessoa, ela sente-se infeliz, sobretudo se for uma mulher.

 

- Mas acabou por traí-la.

 

- Markus nem sempre é prático. É um artista. Se ele diz que a traiu, pode muito bem ser uma imagem.

 

- Respondeu a essa carta?

- Respondo sempre.

 

- Para onde desta vez?

 

- Para uma caixa postal em Nairobi.

 

- Ele falou-lhe numa mulher chamada Wanza? Estava na mesma enfermaria que a minha mulher no Hospital Uhuru. Morreu por causa do Dypraxa.

- Não conheço esse caso.

 

- Não me espanta. Todos os vestígios de Wanza foram suprimidos. É natural. Markus falou-me desse tipo de coisas.

 

Quando Lorbeer visitou a enfermaria de minha mulher estava acompanhado pela Kovacs. 0 que é que ela estava a fazer em Nairobi?

 

- Markus queria que eu voltasse a Nairobi outra vez, mas as minhas relações com a KVH e o Hospital já eram muito más. Tinham ouvido falar da minha primeira visita e já me tinham ameaçado de expulsão por ter mentido acerca da minha mãe. Por isso Markus telefonou a Kovacs para Basileia e convenceu-a a vir a Nairobi como minha substituta e estudar com ele a situação. Tinha esperança que ela o poupasse a tomar qualquer atitude e intimasse as Três Abelhas a retirar o fármaco. A KVH de Basileia começou por não autorizar a ida de Kovacs a Nairobi e só consentiu com a condição de a viagem ser secreta.

 

- Mesmo para as Três Abelhas.

 

- Isso não seria possível. Estavam muito dentro do assunto e Markus era seu consultor. Kovacs esteve em Nairobi durante quatro dias em grande segredo, e depois voltou para o seu escroque sérvio e para mais uma ópera em Basileia.

- Fez algum relatório?

 

- Um relatório muito fraco. A minha formação é científica e aquilo não tinha nada de científico. Era só polémico.

 

- Lara.

 

- 0 que é? - olhava-o em desafio.

 

- Birgit leu-lhe a carta de Lorbeer pelo telefone. A confissão. A sua desculpa. Seja lá o que ele lhe chamou,

 

- E então?

 

- 0 que é que a carta significou para si?

 

- A ideia de que ele não pode ter redenção.

- Redenção de quê?

 

- Ele é um homem fraco que anda à procura de força nos sítios errados. Infelizmente a sua fraqueza destrói a força dos outros. Talvez ele tenha feito uma coisa horrível. Às vezes fica muito apaixonado pelos seus próprios pecados.

- Se tivesse que o encontrar, onde é que o procurava?

 

- Não tenho que o encontrar. - Justin ficou à espera. - Só tenho o número de uma caixa postal em Nairobi.

 

- Posso saber qual é?

 

A depressão de Lara agudizou-se. - Eu escrevo-lho. - Escreveu num bloco, arrancou a folha e deu-lha. - Se eu estivesse à procura, iria ver entre aqueles a quem ele fez mal, - disse ela.

 

- No deserto.

 

- Talvez seja uma imagem. - A sua voz perdera o tom agreste, como acontecera também à de Justin. - Markus é uma criança, - explicou, com simplicidade. - Age por impulsos e reage às consequências. - Chegou a sorrir e o sorriso era lindo. - Fica frequentemente muito espantado.

 

- Quem é que o impulsiona?

- Noutros tempos era eu.

 

Ele pôs-se em pé com demasiada rapidez, começou a dobrar os papéis que ela lhe trouxera. A cabeça andava-lhe à roda, sentia-se enjoado. Apoiou-se à parede para não cair e viu que a médica, profissionalmente, o agarrava por um braço.

 

- Que é que se passa? - perguntou ela com aspereza e continuou a ampará-lo até o sentar de novo.

 

De vez em quando sinto tonturas.

 

Porquê? Tem a tensão alta? Não devia usar gravata. Desaperte o colarinho. Assim está ridículo.

 

Passou-lhe a mão na testa. Justin sentia-se tão fraco como um inválido e desesperadamente cansado. Lara foi buscar um copo de água. Ele bebeu um pouco e estendeu-lhe o copo. Os gestos dela eram firmes mas ternos. Ele sentiu o olhar dela sobre si.

 

- Está com febre, - dísse ela, acusadoramente.

- Talvez.

 

- Não é talvez. Está com febre. Vou levá-lo ao hotel.

 

Justin sentia-se naquela fase em relação à qual o seu instrutor o tinha prevenido que punha em perigo a sua segurança: o momento em que nos sentimos muito maçados, muito preguiçosos ou apenas muito cansados; quando não pensamos em mais nada senão voltarmos para o nosso horroroso motel, dormir a noite toda e na manhã seguinte, com a cabeça fresca, mandar um gordo envelope para a tia de Ham com tudo o que a Dra, Lara Emrich nos disse, incluindo uma cópia do seu artigo não-publicado sofre os efeitos colaterais nocivos do Dypraxa, tais como perturbações da visão, hemorragias, cegueira e morte. E ainda uma nota para a caixa postal de Lorbeer em Nairobi e outra descrevendo o que pretendemos fazer a seguir, para o caso de sermos impedidos por forças fora do nosso controlo. É um momento de lapso consciente e culposo quando a presença duma mulher bonita, uma pária como nós próprios, que nos ampara, nos toma o pulso com os seus dedos macios, não pode ser desculpa para deixarmos de observar os princípios da segurança operacional.

 

- Não, você não pode ser vista comigo, - protesta ele com tristeza. - Eles sabem que eu ando por aqui, Só a vai prejudicar.

 

- Nada me pode prejudicar, - replica ela. - A minha situação é absolutamente negativa.

 

- Onde está o seu carro?

 

- A uns cinco minutos. Acha que pode andar?

 

É também o momento em que Justin, no estado de cansaço em que se encontra, recupera felizmente as boas maneiras e o cavalheirismo que lhe foram instilados em Eton. Uma mulher sozinha tem de ser acompanhada até ao seu carro de noite, não pode estar sujeita a encontros com vagabundos, malfeitores e salteadores de estrada. Justin levanta-se. Ela agarra-o pelo cotovelo e ambos atravessam a sala em bicos de pés até à escada.

 

- Boa noite, filhos - diz Arny do outro lado de uma porta fechada. - Divirtam-se.

 

- Foi muito amável, - responde Justin.

 

 

Ao descer a escada em direcção à porta, Lara vai à frente de Justin, levando o saco russo numa mão e agarrando o corrimão com a outra, enquanto olha para trás para vigiar o companheiro. No átrio tira o casaco dele do cabide e ajuda-o a vesti-lo. Põe o seu próprio casaco e um gorro de pele à Ana Karenína e faz menção de pendurar o saco de Justin ao ombro. Mas o cavalheirismo etoniano proíbe tal coisa e ela observa-o com o seu olhar castanho e firme, o olhar de Tessa sem o brilho da malícia, enquanto ele ajusta a correia ao ombro e, como inglês estóico, evita o mínimo sinal de dor. «Sir» Justin abre a porta da rua e manifesta a sua surpresa quando o ar gelado o trespassa cruelmente, ignorando o casaco forrado e as botas de pele. Cá fora, a Dra. Lara agarra-lhe o braço esquerdo com a mão esquerda e estende o braço direito por trás das costas dele para o amparar firmemente. Mas desta vez nem mesmo o estóico etoniano consegue abafar uma exclamação de dor quando os nervos das costas rompem num coro uníssono. Ela não diz nada, os olhares encontram-se quando ele torce a cabeça para fugir à dor. Os olhos dela, sob as peles de Ana Karenina recordam-lhe assustadoramente outros olhos. A mão que estava estendida por trás das costas dele juntou-se àquela que lhe agarra o braço esquerdo. Ela abrandou o passo para acompanhar o dele. Anca contra anca, marcham solenemente pelo pavimento gelado, até que ela pára bruscamente e, apertando-lhe o braço., olha fixamente para o outro lado da rua.

 

- 0 que é aquilo?

 

- Nada. Era previsível.

 

Estão na praça principal. Um pequeno carro cinzento, de marca indeterminada, está parado sob um candeeiro que dá uma luz alaranjada, Está muito sujo, apesar do gelo. Tem um cabide de arame a fazer de antena. Tem qualquer coisa de estranho e de vulnerável. Parece um carro pronto a explodir.

 

- É seu? - pergunta Justin.

 

- É. Mas não está bem.

 

0 grande espião vê agora o que Lara já tinha visto.

 

- Não se preocupe. Vamos mudar a roda, - diz Justín animosamente, esquecendo por um momento o frio feroz, o seu corpo dorido e toda e qualquer consideração relativa à segurança operacional.

 

- Não vamos sair daqui - replica ela em tom adequadamente sombrio.

 

- Vamos, sim senhor. Ligamos o motor. Você senta-se lá dentro e aquece-se. - Tem roda sobressalente e macaco, não tem?

 

Mas agora ele já pode ver o que ela tinha antecipado: o outro pneu da frente também está em baixo. Levado por uma necessidade de acção, Justin consegue libertar-se mas ela agarra-o e ele percebe que não é o frio que a faz tremer.

- Isto acontece muitas vezes? - pergunta ele.

 

- Acontece.

 

- Conhece alguma garagem?

 

- À noite não vêm. Vou de táxi para casa. Amanhã de manhã já tenho uma multa de estacionamento. E talvez outra pelo mau estado do carro. Às vezes rebocam-no e tenho que o ir buscar a sítios horrorosos. Às vezes não há táxis, mas hoje temos sorte.

 

Ele segue-lhe o olhar e vê com surpresa um táxi parado num canto afastado da praça, com as luzes acesas, o motor ligado e um vulto curvado sobre o volante. Acompanha-a durante alguns passos, mas depois pára, com os seus alarmes internos a tocar.

 

É normal os táxis estarem parados a esta hora? Não tem importância.

 

-Tem, tem. E muita.

 

Afastando-se um pouco, Justín vê que há um segundo táxi que vem encostar-se ao primeiro. Lara também o vê.

 

- Não seja ridículo. Olhe, agora temos dois táxis. Cada um toma o seu. Ou tomamos o mesmo e eu levo-o primeiro ao hotel. Logo se vê. Não tem importância. - E esquecendo-se do estado dele ou perdendo simplesmente a paciência, puxa-o pelo braço mas ele troca o passo e passa-lhe à frente bloqueando-lhe o caminho.

 

- Não - diz ele.

 

Querendo dizer não aceito. já vi a falta de lógica desta situação. já tenho sido descuidado, mas desta vez não vou ser, nem vou deixar que você seja. São demasiadas coincidências. Estamos na praça deserta de uma cidadezinha perdida na tundra, numa noite gelada de Março, quando até o único cavalo da cidade já está a dormir. 0 seu carro foi deliberadamente danificado. Há um táxi praticamente à nossa espera e um segundo vem juntar-se-lhe. Por quem é que os táxis esperam senão por nós? Não é lógico pensar que as pessoas que lhe avariaram o carro são as mesmas que querem que tomemos os táxis?

 

Mas Lara não é sensível a este argumento. Faz sinal ao primeiro táxi e dá um passo na sua direcção. Justin agarra-a pelo braço e puxa-a para trás. Isto enfurece-a tanto quanto o magoa a ele. já está farta de ser empurrada.

 

- Largue-me! Vá-se embora! Dê cá isso!

 

Ele tinha-lhe tirado o saco russo. 0 primeiro táxi está a avançar para eles, com o segundo atrás. Só para ver? Em apoio do outro? Num país civilizado nunca se sabe.

 

- Volte para o carro, - ordena ele.

 

- Qual carro? Para quê? Você está maluco!

 

Ela puxa pelo saco mas ele já o abriu e está a revolvê-lo, afastando os papéis e tudo o que dificulta a sua busca. - Dê-me as chaves do carro, Lara, porfavor! Encontrou a bolsa dela e abriu-a. Tem agora as chaves na mão - um grande

 

molho, dava para entrar em Fort Knox. Porque é que uma mulher em maus lençóis precisa de tantas chaves? Ele está quase a chegar ao carro, mexendo nas chaves e gritando «Qual é? Qual é?» e arrastando-a com ele, mantendo o saco longe dela, aproximando-se do candeeiro a cuja luz ela lhe pode indicar a chave, coisa que ela faz protestando, insultando-o, estendendo-lha e desafiando-o.

 

- Aqui tem a chave de um carro com pneus em baixo! Está contente? Sente-se um grande homem?

 

Seria assim que ela tratava o Lorbeer?

 

Os dois táxis vêm na direcção deles, um colado ao outro. Não estarão ainda agressivos, mas sim desconfiados. Têm más intenções, é o que Justin pensa: ameaçadores e deliberados.

 

- Tem fecho centralizado? - está ele a berrar. - Esta chave abre todas as portas?

 

Ela não sabe ou está demasiado furiosa para lhe responder. Ele está ajoelhado, com o saco debaixo do braço, tentando meter a chave na porta do passageiro. Esfrega o gelo com as pontas dos dedos e a pele fica-lhe agarrada à fechadura. Os músculos gritam tão alto como as vozes dentro da sua cabeça. Ela está a puxar o saco e a gritar contra ele. A porta abre-se e ele agarra-a.

 

- Lara! Por amor de Deus! Cale-se porfavor e entre já para o carro!

 

0 uso da fórmula de cortesia foi bem pensado. Ela olha para ele, incrédula. Ele atira o saco para dentro do carro. Ela atira-se atrás do saco, aterra no lugar do passageiro e bate com a porta atrás de si. Justin volta para o asfalto e rodeia o carro. Nessa altura o segundo táxi ultrapassa o primeiro e acelera na direcção de Justin, obrigando-o a saltar para a valeta. 0 guarda-lamas do carro roça na aba do seu casaco quando passa por ele. Lara, do outro lado, abre a porta do condutor. Ambos os táxis param no meio da rua, uns quarenta metros atrás deles. Justín roda a chave da ignição. Os limpa pára-brisas estão bloqueados pelo gelo mas o vidro de trás está limpo. 0 motor tosse como um burro velho.

 

A esta hora da noite? - diz ele. Nesta temperatura? EÚ? Justin gira outra vez a chave.

 

- Esta coisa tem gasolina?

 

pelo retrovisor, justin vê que dois homens saem de cada carro. Os do segundo par estavam com certeza agachados no chão dos carros. Um dos homens traz um taco de basebol, outro um objecto que Justin identifica sucessivamente como uma garrafa, uma granada de mão, uma matraca. Os quatro homens dirigem-se rapidamente para o carro. Por um milagre, o motor pega. Justin solta o travão. Mas tem mudanças automáticas e Justin, por mais que se esforce, não se lembra como é que aquilo funciona. Vai acelerando e travando com o pé até que o carro dá um salto para a frente, estremecendo e protestando. 0 volante está imobilizado. No retrovisor os homens começam a trotar. Justin agora acelera com cuidado, as rodas chiam mas o carro, seja lá como for, começa a andar e a ganhar velocidade. Alarmados, os homens deixam o trote e passam ao galope. Estão vestidos para a ocasião, repara Justin, em fatos de treino e botas de corrida. Um deles, o do taco de basebol, traz um barrete de lã com um pompom. Os outros têm gorros de pele. Justin olha para Lara. Tem uma mão na boca, os dedos apertados entre os dentes. A outra mão está crispada no tablier. Tem os olhos fechados e está a falar baixinho, talvez a rezar. 0 que Justin acha estranho, já que até agora a tinha considerado ateia, em contraste com o seu amante Lorbeer. Já deixaram a praça e, aos pulos e aos peidos, seguem por uma rua mal iluminada com vivendas a cair aos bocados.

 

- Onde é a parte mais iluminada desta cidade? Aquela com mais gente?

- pergunta-lhe ele.

 

Lara abana a cabeça.

- Onde é a estação?

 

- Muito longe. E não tenho dinheiro.

 

Parece pensar que os dois vão fugir juntos. Fumo ou vapor está a sair do capô e um horrível cheiro a borracha queimada recorda-lhe os motins de estudantes em Nairobi, mas ele continua a acelerar enquanto, no espelho, vai vigiando os homens que continuam a correr e pensa como eles são estúpidos e que mal eles fizeram tudo aquilo; devem ter sido muito mal treinados, E que uma equipa bem comandada nunca teria deixado os carros lá atrás. E que o que deviam fazer era dois deles irem já buscar os carros a correr, mas não mostram qualquer intenção de o fazer, talvez porque estão realmente a aproximar-se e tudo depende do que vai ceder primeiro, se o carro, se os homens. Um letreiro em francês e inglês avisa-o de que estão a chegar a um cruzamento. Como filólogo amador, põe-se a comparar as duas línguas.

 

- Onde é o hospital? - pergunta ele.

 

Ela tira os dedos da boca: - A Dra. Lara Emrich não está autorizada a entrar nas instalações do Hospital, - recita ela.

 

Ele ri-se, por ela, decidido a fazê-la calar. - Oh diabo, então não podemos lá ir, pois não? Se é proibido... Vá lá. Onde é que é?

 

- Para a esquerda.

- Muito longe?

 

- Em condições normais seria um instante.

- Quanto tempo?

 

- Cinco minutos. Menos, se não há trânsito.

 

Não havia trânsito, mas há muito fumo ou vapor a sair do capô, a estrada gelada é escorregadia, o conta-quilómetros marca, cheio de optimismo, vinte à hora, os homens no retrovisor não mostram sinais de cansaço, não há barulho a não ser o chiar dos limpa pára-brisas, como se fossem mil unhas a rasparem um quadro preto. De repente, para espanto de justin, a estrada abre-se num terreno de parada, completamente gelado. Avista-se o portão ameado e o escudo de armas da Universidade de Dawes muito iluminado e, para a esquerda, o pavilhão coberto de hera e os três blocos feitos de aço e vidro, como icebergues. Consegue virar o volante para a esquerda e carrega mais no acelerador, sem qualquer resultado. 0 conta-quilómetros marca zero, o que é ridículo porque o carro continua a andar.

 

- Quem é que você conhece? - grita-lhe ele. Lara deve ter estado a pensar no mesmo: - Phil.

- Quem é?

 

- Um russo. Motorista de ambulâncias. Agora velho demais.

 

Procura o seu saco no banco de trás, tira um maço de cigarros - não Sportsmans - acende um e estende-o a Justin, que o ignora.

 

- Os homens desistiram, - diz ela, pondo o cigarro na boca.

 

Tal como um cavalo fiel que correu até ao fim, o carro morre debaixo deles.

0 eixo da frente parte-se, um fumo negro anuncia que o carro chegou à Sua derradeira morada, bem no centro do grande terreno.

 

Observados por um par de índios drogados, em casacos acolchoados, Justin e Lara saem do carro.

 

As instalações de Phil consistiam numa cabine de madeira branca ao pé do parque de estacionamento das ambulâncias. Havia um banco, um telefone, uma luz vermelha rotativa, um aquecedor eléctrico para café, bastante sujo, e um calendário que estava permanentemente aberto em Dezembro, um mês em que uma Pai Natal, muito despida, mostrava as nádegas a um grupo de cantores, todos homens. Phil estava sentado no banco, falando ao telefone, com um boné de cabedal na cabeça, com abas para as orelhas. A sua cara também era de cabedal, polida mas cheia de rugas e com uma barba de três dias cor de prata. Quando ouviu Lara falar-lhe em russo, fez aquilo que fazem os antigos prisioneiros: manteve a cabeça imóvel e com os olhos fixos na sua frente, enquanto esperava para ter a prova de que lhe tinham dirigido a palavra. Só quando teve a certeza é que olhou para ela e se tornou naquilo em que os russos do seu tempo se tornam na presença de uma mulher bonita e mais nova: um pouco místico, um pouco tímido, um pouco brusco. Phil e Lara conversaram durante o que Justin pareceu uma desnecessária eternidade, ela na moldura da porta, Justin na sombra como se fosse um amante meio escondído e Phil no seu banco e as suas mãos nodosas enclavinhadas no colo. Perguntaram pelas respectivas famílias, ou a Justin assim lhe pareceu, como estava o Tio Fulano ou o Primo Cicrano. Até que finalmente Lara se afastou para deixar sair o velho, que não deixou de a apertar pela cintura quando passou por ela e desceu pela rampa do parque subterrâneo.

 

- Ele sabe que você não pode entrar? - perguntou Justin.

- Não tem importância.

 

- Onde é que ele foi?

 

Ela não respondeu mas também não foi preciso. Uma ambulância a brilhar de nova estava mesmo ao pé deles e ao volante estava Phil com o seu boné.

 

A casa dela era nova e rica, integrada numa urbanização à beira do lago, feita para alojar os filhos e filhas favoritos dos Senhores Karel Vira Hudson, de Basileia, Vancouver e Seattle. Ela serviu-lhe um whisky e para ela um vodca, mostrou-lhe o jacuzi, fez funcionar o sistema de alta-fidelidade, o supermicroondas multifuncional e, com displicência, indicou-lhe o sítio onde a polícia parava o carro quando vinha vigiá-la, o que acontecia vários dias por semana, disse ela, geralmente desde as oito da manhã, dependendo do tempo, até ao cair da noite, a menos que houvesse um grande jogo de hóquei, caso em que se iam embora mais cedo. Lara mostrou-lhe o absurdo céu estrelado do seu quarto de cama, uma cúpula com luzinhas minúsculas que imitavam as estrelas e o botão que as acendia e apagava conforme o desejo dos ocupantes da enorme cama redonda, E houve um momento que os dois viram chegar e desaparecer, em que parecia possível que eles se tornassem seus ocupantes - dois fora-da-lei excluídos pelo Sistema consolando-se um ao outro; o que poderia haver de mais razoável? Mas a sombra de Tessa interpôs-se e o momento passou sem que nenhum deles falasse nisso. Em seu lugar, Justin falou dos ícones. Lara tinha meia dúzia deles: Pedro e Paulo, Simão e André, João e a própria Virgem Mãe, com auréolas de estanho e as mãos em oração ou levantadas para dar a bênção ou representar a Santíssima Trindade.

 

- Calculo que Markus lhos tenha dado, - disse Justin, um pouco espantado de ver mais uma mostra de uma improvável religiosidade.

 

Lara sorriu sombriamente.

 

- É uma posição meramente científica. Se Deus existe, ficará sensibilizado. Se não, não tem qualquer importância. - E corou quando ele riu e depois riu também.

 

0 quarto de hóspedes ficava na cave. Com a sua janela gradeada dando para o jardim recordou-lhe o quarto em casa de Glória. Dormiu até as cinco, escreveu à tia de Ham durante uma hora, vestiu-se e subiu a escada com a ideia de deixar uma nota para Lara e arriscar-se a pedir uma boleia até à cidade. Ela estava à janela, a fumar um cigarro e com a mesma roupa que vestira a noite passada. Um cinzeiro ao seu lado estava cheio de beatas.

 

- Pode apanhar um autocarro para a estação no cimo da rua, - disse ela.

- Passa daqui a uma hora.

 

Fez-lhe café e ele tomou-o sentado à mesa da cozinha. Nenhum deles parecia disposto a discutir os acontecimentos da noite anterior.

 

- Talvez fossem só uns assaltantes um pouco malucos, - chegou ele a dizer, mas ela continuou mergulhada na sua meditação.

 

Mais tarde ele perguntou-lhe quais eram os seus planos. - Quanto tempo ainda vai poder ficar nesta casa?

 

Uns dias, respondeu ela, distraída. Talvez uma semana.

- E o que vai fazer?

 

Depende, disse ela. Não tem importância. Não iria morrer de fome.

 

- Está quase na hora, - disse ela subitamente. - É melhor esperar na paragem do autocarro.

 

Quando ele saiu, ela manteve-se de costas para ele, com a cabeça crispada para a frente, como se ouvisse um som suspeito.

 

- Tenha pena do Lorbeer, - disse-lhe ela.

 

Justin não percebeu se era um pedido se uma ordem.

 

 

- Que merda é que o vosso homem Quayle pensa que anda a fazer, Tim?

- perguntou Curtiss, fazendo girar o seu corpanzil sobre um calcanhar para enfrentar Donohue através da enorme e ressoante sala. 0 tamanho podia ser o de uma capela, com postes de teca a sustentar o tecto e escudos tribais nas paredes de toros.

 

- Ele não é nosso homem, Kenny. Nunca foi, - replicou Donohue pacientemente. - É puro Foreign Office.

 

- Puro? 0 que é que ele tem de puro? É o cabrão mais tortuoso que eu encontrei na vida. Porque é que ele não veio ter comigo se estava preocupado com o meu Dypraxa? A minha porta está sempre aberta. E eu não sou um monstro, pois não? 0 que é que ele quer? Dinheiro?

 

- Não, Kenny. Não acho nada. Não é com certeza o dinheiro que o faz mexer.

 

Raio de voz, pensou Donohue, enquanto esperava que o outro lhe dissesse para que é que o tinha chamado. Nunca me vejo livre dele. É uma praga. Mentiroso e cheio de autocompaixão. Ser um tirano é a sua forma de vida. Nunca se limpou completamente. A sombra da sua viela no Lancashire continua a ver-se, para desespero dos professores de fala que ele só à noite recebia.

- Mas então o que é que o aflige? Você conhece-o, eu não.

 

- A mulher, Kenny. Teve um acidente. Lembra-se?

 

Curtiss virou-se outra vez para a grande janela panorâmica e levantou as mãos, palmas para cima, apelando ao horizonte africano para que fosse razoável. Para lá do vidro à prova de bala estendiam-se grandes relvados e, lá no fim, um lago. As luzes tremeluziam nas colinas. Algumas estrelas atravessavam a névoa azul escura do anoitecer.

 

-- Então a mulher levou o que estava a pedir, - admitiu Curtiss no mesmo tom de voz queixoso. - Uma data de malandros deram cabo dela. 0 seu gosto pelo preto lixou-a, não foi? Era o que estava a pedir. Aquilo era o Turcana, não a merda do Surrey. Mas tenho pena, claro. Muita pena até.

 

Não tanta como devias ter, pensou Donohue.

 

Curtiss tinha casas desde Mónaco ao México e Donohue detestava-as todas. Detestava o seu cheiro a iodo, os seus criados rastejantes, os ruidosos sobrados de madeira. Detestava os seus bares espelhados, as suas flores sem cheiro que olhavam para nós como as putas cansadas de que Curtiss sempre se rodeava. No espírito de Donohue, elas juntavam-se aos Rolls-Royces, ao «Gulfstream», ao iate, como parte de um conjunto de mau gosto que se estendia por meia dúzia de países. Mas, acima de tudo, detestava aquela quinta fortificada encravada na margem do Lago Naivasha com o seu arame farpado e os seus seguranças, as suas almofadas de zebra, o seu chão de tijoleira, o seu armário-bar com espelhos cor-de-rosa, os tapetes de leopardo e os sofás em antílope, a televisão digital, os telefones-satélite, os sensores de movimento, os botões de alarme, os rádios sempre à mão, porque era para esta casa, para esta sala e para aquele sofá de antílope que ele tinha sido chamado nos últimos cinco anos, de chapéu na mão, à ordem de Curtiss para receber quaisquer restos que o grande Sír Kenneth K, na sua errática magnimidade entendesse próprios do Serviço Secreto inglês. E era para este lugar que ele tinha sido mais uma vez chamado esta noite, por razões que ainda não sabia, justamente na altura em que estava a abrir uma garrafa de vinho branco sul-africano, antes de fazer as honras, com a sua querida esposa Maud, a um prato de salmão fumado.

 

É essa, Caro Tim, a nossa opinião para o que der e vier, era o que dizia uma mensagem ultrapessoal escrita naquele estilo um tanto P G.Wodehouse do seu director em Londres.

 

Como face visível deve manter o contacto amistoso que convém à imagem pública que você criou nos últimos cinco anos. Golfe, os copos do costume, os almoços, etc., sabe melhor do que eu. Na face oculta deve continuar a agir com naturalidade e manter as suas actividades, já que as alternativas - corte de relações e consequente reacção hostil do indivíduo - são demasiado medonhas para poderem ser consideradas no actual estado de crise. Para sua informação pessoal, aqui em Londres reina o inferno nas duas margens do rio, e a situação muda todos os dias mas sempre para pior.                                             Roger

 

- Por que raio veio de carro? - perguntou Curtiss zangado, enquanto contemplava, lá fora, os seus domínios africanos. - Podia ter tido o Beechcraft, se o tivesse pedido. Doug Crick tinha um piloto às suas ordens. Está a tentar fazer-me sentir mal, ou quê?

 

- já sabe como eu sou, chefe. - Às vezes, quando agredido, Donohue chamava-lhe Chefe, título reservado até à eternidade para o chefe do seu Serviço. - Eu sou um automobilista. Abrir a janela do carro, soprar o pó. Nada de que eu mais goste.

 

- Nas putas destas estradas? Não está bom da cabeça. já falei nisso ao Homem. Ontem. Minto, domingo. «Qual é a primeira merda que um turista vê quando chega aqui à terra do Kenyatta e entra para o autocarro do safari?» perguntei-lhe eu. «Não são os cabrões dos leões nem as girafas. São as vossas estradas, Sr. Presidente. São essas horrorosas estradas.» 0 Homem só vê o que quer ver, esse é o problema. E além disso balda-se sempre que pode. «O mesmo com os comboios», disse-lhe eu. «Sirva-se dos seus prisioneiros. Tem que sobrem. Ponha os gajos a arranjar as linhas e dê uma oportunidade aos comboios.» «Fale com o Jomo», disse ele. «Qual deles?» perguntei eu. «O meu novo Ministro dos Transportes», diz ele. «Desde quando?» digo eu. «Desde este momento», diz ele. Que se foda.

 

- Que se foda, na verdade - diz Donohue devotamente e sorriu como costumava fazer quando não havia nada de que sorrir: com a sua longa cabeça inclinada para o lado, como uma cabra, os olhos amarelados a piscar e cofiando o bigode.

 

Um silêncio sem precedentes encheu a grande sala. Os criados africanos tinham ido para as suas aldeias. Os guarda-costas israelitas que não estavam a patrulhar a quinta estavam na casa do portão a verem um filme de kung-fu. Donohue tinha sido completamente ignorado enquanto esperava autorização para passar. Os secretários particulares e o criado de quarto, um somaliano, tinham sido mandados para as instalações do pessoal, do outro lado da quinta. Pela primeira vez na minha vida não se ouvia um único telefone a tocar em casa de Curtiss. Há um mês Donohue teria que lutar para poder colocar uma palavra e ameaçar ir-se embora se Curtiss não lhe desse uns minutos a sós. Esta noite ele teria bem gostado de ouvir os toques do telefone interno ou o zumbido do terminal do satélite que esperava, soturno, no seu carrinho ao lado da secretária monumental.

 

Com as suas costas de judoca ainda viradas para Donohue, Curtiss adoptara o que nele era uma pose de reflexão. Vestia a roupa que usava sempre em África: camisa branca com botões de punho de ouro das Três Abelhas, calças azul-escuras, sapatos de verniz com palas aos lados e um relógio de ouro fino como uma moeda à volta do pulso cabeludo. Mas foi o cinto preto, de crocodilo, que chamou a atenção de Tim Donohue. Com outros homens gordos que conhecia, o cinto baixava à frente e a barriga descaía por cima. Mas com Curtiss o cinto estava perfeitamente nivelado como uma linha traçada no perímetro de um ovo, o que lhe dava o aspecto dum gigantesco Humpty Dumpty.

 

O seu cabelo tingido de preto estava penteado para trás, no estilo eslavo, descobrindo-lhe a vasta fronte e fazendo caracóis na nuca. Estava a fumar um charuto e franzia a cara sempre que puxava uma fumaça. Quando o charuto o chateava, pousava-o sobre qualquer móvel que estivesse à mão por mais precioso que fosse. Quando não o encontrava, acusava os criados de o terem roubado.

 

- Sabe o que é que o cabrão quer? - perguntou.

- Moi?

 

- Quayle.

 

- Não, não sei. Devia saber?

 

- Eles não lhe dizem? Ou não se ralam?

 

- Talvez não saibam, Kenny. Tudo o que me disseram foi que ele aderiu à causa da mulher, seja ela qual for, e está fora do alcance dos patrões e a trabalhar a solo. Sabemos que a mulher tinha uma propriedade em Itália e há a teoria de que ele pode lá estar.

 

- Então e a merda da Alemanha? - interrompeu Curtiss.

 

- Então e a merda da Alemanha? - repetiu Donohue, imitando um tipo de discurso que detestava.

 

- Ele esteve na Alemanha a semana passada. A conspirar com uns activistas cabeludos para dar umas facadas na KVH. Se não fosse por eu ser brando, ele nesta altura já não figurava nos cadernos eleitorais. Os seus amigos lá de Londres não sabiam, pois não? Estão-se nas tintas. Têm coisas melhores em que gastar o tempo. Estou afalar consigO, Donohue!

 

Curtiss tinha-se voltado para o olhar de frente. 0 seu grande tronco estava todo curvado, o queixo vermelhusco atirado para a frente. Tinha uma mão enfiada na algibeira das calças, vastas como uma tenda. Com a outra agarrava o charuto, fingindo martelar com ele a cabeça de Donohue.

 

- Acho que sabe mais do que eu, Kenny, - replicou Donohue calmamente.

- Pergunta se os meus serviços estão a seguir Quayle. Não faço ideia. Será que o interesse nacional está em perigo? Duvido. Será que Sir Kenneth Curtiss, nossa valiosa fonte, precisa de protecção? Nunca prometemos protegê-lo comercialmente, Kenny. Nem penso que haja no mundo nenhuma instituição que o queira fazer, do ponto de vista financeiro ou outro,

 

- Vá-se foder!- Curtiss tinha apoiado as palmas das mãos na grande mesa do refeitório e deslocando-se ao longo dela como um gorila, avançou para Donohue. Mas este sorriu com os seus dentes aguçados e manteve o seu território. - Posso liquidar a merda do seu Serviço com uma mão só, sabe isso não sabe? - gritou Curtiss.

 

- Nunca o duvidei, meu caro amigo.

 

- Estou farto de pagar almoços a quem lhe paga o ordenado. Ofereço-lhes cruzeiros na merda do meu iate. Meninas. Caviar. Champanhe. Em tempo de eleições sou eu que lhes pago as campanhas. Carros, dinheiro, secretárias com boas mamas. Faço negócios com empresas que têm lucros dez vezes maiores do que o vosso orçamento. Se eu lhes dissesse o que sei, você passava à história. Por isso, vá-se foder, Donohue!

 

- Você também, Curtiss, você também, - murmurou Donohue fatigado, como um homem que já ouviu aquilo tudo, o que era verdade.

 

Apesar de tudo, no fundo da sua cabeça operacional, estava a pensar muito a sério aonde conduziria toda aquela fita. Curtiss já tinha armado antes enormes barracas, graças a Deus. Donohue já nem podia contar as vezes que tinha ali estado à espera que passasse uma tempestade ou, no caso de os insultos serem demasiado reles para serem ouvidos, organizar uma retirada estratégica até que Kenny decidisse que era altura de o chamar e lhe pedir desculpa, às vezes com acompanhamento de uma ou duas lágrimas de crocodilo. Mas naquela noite Donohuie tinha o sentimento de estar numa casa armadilhada. Lembrou-se do olhar intenso que Doug Crick lhe lançara no portão, da excessiva deferência: «Muito boa noite, Sr. Donohue, sir. Vou já anunciá-lo imediatamente.» Vinha ouvindo com crescente desconforto, o silêncio mortal que se seguiu às explosões verbais de Curtiss.

 

Na grande janela dois israelitas passaram lentamente, em calões, conduzindo ferozes cães de guarda. Grandes acácias amarelas salpicavam os relvados. Os macacos andavam ali aos saltos fazendo os cães perder a cabeça. Regado pelas águas do lago, o relvado estava luxuriante.

 

- A sua quadrilha é que paga o Quayle. - Curtiss acusou-o subitamente, levantando uma mão e baixando o tom, para maior efeito. - Ele é dos vossos! Não é? Agindo sob ordens vossas Para me lixarem! Não é verdade?

 

Donohue sorriu calmamente, - A verdade absoluta, Kenny - disse ele para o acalmar. - Completamente louco e cornudo mas um grande operacional.

- Porque é que me estão a fazer isto? Tenho o direito de saber! Sou

 

Sir Kenneth Curtiss, caraças! Ofereci só no ano passado, meio milhão de libras para os fundos do partido, porra! Ofereci à merda dos vossos Serviços Secretos pepitas de ouro puro! Prestei-lhes voluntariamente alguns serviços muito especiais! Fui eu...

 

- Kenny, - interrompeu-o Donohue calmamente. - Esteja calado. Não em frente do pessoal, está bem? Agora oiça-me. Porque é que nós teríamos o mais pequeno interesse em encorajar o Quayle a persegui-lo? Por que razão os meus Serviços - sob uma enorme pressão do Governo, como de costume haviam de dar um tiro no pé e alienar a valiosa colaboração de Kenny K.?

 

- Porque sabotaram tudo o que puderam na merda da minha vida, é por isso! Foram vocês que disseram aos Bancos para me pressionarem. Há dezenas de milhar de empregos ingleses em risco, mas o que é que isso interessa se me puderem pôr a bota em cima! Foram voces que avisaram os vossos amigos políticos para lavarem as mãos de mim, antes de me mandarem pelo cano abaixo! Foram ou não foram? Eu pergunteiforam ou nãoforam, porra!

 

Donohue estava ocupado em separar a informação da interrogação. Os Bancos da City pressionaram-no? Londres sabe isso? E se sabem porque raio é que Roger não me avisou?

 

- Lamento o que se passou, Kenny. Quando é que os Bancos lhe falaram?

- Que merda é que interessa quando? Foi hoje. Esta tarde. Por telefone e por fax. Por telefone para me dizerem, por fax no caso de não ter ouvido bem, e por e-mail no caso de não ter lido o fax.

 

Então Londres sabe, pensou Donohue. Mas se sabem porque é que me deixaram a abanar? Para resolver mais tarde. - Os bancos deram-lhe alguma razão, Kenny? - perguntou, solícito.

 

- Dizem que as suas preocupações éticas quanto a certas práticas comerciais são da maior importância. Que putas de práticas? Que merda de ética? A ideia deles sobre ética é a de uma aldeia fora de Londres. Falaram também da perda de confiança do mercado. Quem foi o cabrão que levantou isso? Foram eles! Boatos alarmistas é uma coisa. Que se fodam! Já tenho passado por isso!

 

- E quem são os nossos amigos políticos que estão agora a lavar as mãos, aqueles que nós não avisámos?

 

- Um telefonema dum maricas do Número dez, com uma batata metida no cu. Falando em nome de, etc., etc. Estão muito agradecidos, etc., etc., mas no actual clima em que se tem que ser mais santo do que o Santo Padre, resolveram devolver as minhas generosas contribuições para os fundos do partido, e, por favor, para onde devem mandar o dinheiro, para que as verbas desapareçam dos livros, quanto mais cedo melhor, para podermos garantir que nunca houve nada? Sabe onde é que ele está? E onde estava há duas noites, a dar a sua bela queca?

 

Donohue levou algum tempo a perceber que Curtiss já não estava a falar do maricas do Número dez, mas sim de Justin Quayle.

 

- Canadá. Na porra de Saskatchewan, - respondeu Curtiss a si próprio.

- Espero que já tenha o cu congelado.

 

- A fazer o quê? - perguntou Donohue, intrigado não tanto pelo facto de Justin estar no Canadá mas sim pela facilidade com que Curtiss estava informado.

 

- Há lá uma universidade. Há lá uma mulher. Uma puta duma cientista. Meteu-se-lhe na cabeça andar por aí a dizer a toda a gente, em violação do seu contrato, que o medicamento provoca mortes. 0 Quayle pôs-se nela. Um mês depois da morte da mulher. - 0 tom da voz subiu, ameaçando nova tempestade. - Arranjou um passaporte, caraças! Quem é que lho deu? Foram vocês. Paga tudo em dinheiro. Quem é que lho manda? Vocês, meus cabrões! Esgueira-se sempre da rede como uma enguia. Quem é que lhe ensinou essa habilidade? Vocês todos!

 

- Não, Kenny. Não fomos nós. Nenhum de nós. - A rede deles, pensou Donohue, não a nossa.

 

Curtiss estava a preparar-se para nova gritaria. - Poderão então informar-me, por amabilidade, o que é que o cabrão do Sr. Porter Coleridge anda a fazer, dando Informações falsas e difamatórias ao Ministério, referentes à minha companhia e ao meu medicamento, que merda é que ele anda a fazer, ameaçando ir para os jornais se os nossos senhores e donos lá em Bruxelas não lhe garantirem um inquérito exaustivo e imparcial. E por que é que os punheteiros da porra do vosso Serviço o deixam fazer isso ou, pior ainda, encorajam o filho da mãe?

 

Como é que ele sabe tudo isto? Donohue fica silenciosamente maravilhado. Como raio é que um homem, mesmo tão poderoso e dúplice como Curtiss, consegue pôr as patas numa peça de informação secreta e codificada, oito horas apenas depois de lhe ter sido enviada pessoalmente através da rede exclusiva do Serviço. E tendo feito a si próprio esta pergunta, Donohue, bom conhecedor do seu ofício, resolveu conseguir uma resposta. Arvorou o seu radioso sorriso, mas desta vez realmente satisfeito, espelhando o seu honesto prazer em que algumas coisas deste mundo ainda possam ser decentemente feitas entre amigos.

 

- Claro, - disse ele, - foi o velho Bernard Pellegrin que lhe deu essas dicas. Foi decente. E mesmo a tempo. Eu teria feito o mesmo. Sempre tive um fraquinho pelo Bernard.

 

0 seu olhar sorridente fixava-se nas feições congestionadas de Curtiss e Donohue observava-as enquanto elas hesitavam e acabavam por se transformar num esgar de desprezo.

 

- Esse larilas de merda? Nunca o deixaria levar o cão a mijar no meu parque. Estive a guardar-lhe um bom lugar para a reforma e o cabrão não levantou um dedo para me proteger. Quer? - perguntou Curtiss mostrando-lhe um frasco de brandy.

 

- Não posso, filho. Ordens do Lecch.

 

- já lhe disse. Vá ao meu médico. 0 Doug dá-lhe a morada. É na cidade do Cabo, Vá de avião. 0 Gulfstream leva-o.

 

É tarde para mudar de cavalo, obrigado, Kenny. Nunca é tarde - retorquiu Curtiss.

 

Então foi o Pellegrin, pensou Donohue, confirmando uma velha suspeita enquanto via Curtiss servir-se de uma nova dose letal de brandy. Há coisas que são previsíveis a respeito de Curtiss e uma delas é que ele nunca aprendeu a mentir.

 

Há cinco anos, impelido por um desejo de fazer qualquer coisa de útil, o casal Donohue, sem filhos, tinha saído da cidade e tinha-se instalado junto de um pobre agricultor africano que, nos seus tempos livres, tinha criado uma rede de equipas infantis de futebol. 0 problema era o dinheiro: dinheiro para uma camioneta que levasse os miúdos para os desafios, dinheiro para os equipamentos e outros preciosos símbolos de dignidade. Maud tinha beneficiado recentemente de uma pequena herança e Donohue tinha feito uma apólice de um seguro de vida. Quando chegou a altura de regressarem a Nairobi, tinham investido as suas poupanças em rendimentos a receber nos próximos cinco anos e Donohue nunca se sentira mais feliz. A sua única mágoa, ao olhar para o passado, era terem gasto tão pouco tempo das suas vidas com futebol infantil e tanto tempo com espiões. Por qualquer razão esse pensamento veio-lhe ao espírito ao ver Curtiss baixar o seu espesso vulto para se sentar numa poltrona de teca, fazendo caretas como um avô bem-amado. Lá vem o conhecido charme, pensou Donohue, que me deixa tão indiferente.

 

- Há dias dei um salto a Harare - confessou Curtiss habilidosamente, pousando as mãos nos joelhos e inclinando-se para a frente numa atitude de grande confiança. - Aquele estúpido pavão do Mugabe nomeou um novo Ministro dos Projectos Nacionais. Um tipo com futuro, parece-me. Já leu alguma coisa a respeito dele, Tim?

 

- já sim senhor.

 

- Um puro. Vai gostar dele. Está a ajudar-nos num pequeno esquema que lá montámos. Gosta muito de subsídios. Acha-os um estímulo. Espero que aprecie esta informação. Sempre colaborámos bem, não foi? Um tipo que aceita um subsídio de Kenny K, não vai dizer que não a um subsídio de Sua Majestade. Não acha?

 

- Acho, pois. Obrigado. Boa ideia. Vou passar a informação.

 

Mais caretas de satisfação acompanhadas de um generoso golo de brandy.

- Conhece aquele arranha-céus que eu construí junto à auto-estrada de Uhuru?

- É lindo, Kenny.

 

- Vendi-o a um russo a semana passada. Um patrão da máfia, segundo Dotig. Um dos grandes, pelos vistos, não um desses pequenotes que têm aparecido por cá. Parece que está metido num grande negócio de droga com os coreanos.

 

- Sentou-se para trás e observou Donohue com a grande preocupação de um grande amigo. - 0 que é, Tim? 0 que é que tem? Parece cansado.

 

Estou óptimo. Às vezes pareço cansado.

 

É a quimioterapia, é o que é. já lhe disse para ir ao meu médico. Como está a Maud?

 

- Está óptima, muito obrigado.

 

- Vão para o meu iate. Façam umas férias, só vocês os dois. Fale com o Doug.

 

- Mais uma vez obrigado, Kenny, Mas isso seria demais, não acha? Outra variação de temperamento aproximava-se enquanto Kenny soltava um Profundo suspiro e deixava cair os seus enormes braços. Ninguém ficava mais furioso do que ele quando lhe rejeitavam a generosidade. - Olhe lá, não se vai juntar à brigada dos anti-Kenny, pois não? Não vai voltar-me as costas como os cabrões dos bancos?

 

- Claro que não.

 

- É melhor não. Só se ia prejudicar. Aquele russo de que lhe falei, sabe o que é que ele pôs de lado para os dias de chuva? 0 que mostrou ao Doug?

- Sou todo ouvidos, Kenny.

 

- 0 arranha-céus tem uma grande cave. Não é costume por aqui, mas eu resolvi fazer um grande parque de estacionamento. Custou-me um braço e uma perna, mas eu sou assim. Quatrocentos lugares para duzentos apartamentos. E o tal russo, de que lhe vou já dizer o nome, tem grandes camiões brancos, pintados com UN, no lugar dos automóveis. Por estrear, disse ele ao Doug. Estavam num cargueiro a caminho da Somália. Quer vendê-los. - Levantou os braços, encantado com a história. - Que grande golpada! A máfia russa a vender camiões das Nações Unidas! A mim. Sabe o que ele quer que o Doug faça?

 

- Diga lá.

 

- Que os importe. De Nairobi para Nairobi. Vai repintá-los para nós e tudo o que temos que fazer é untar os tipos da as

alfândega e pormos os camiões a pouco e pouco nos nossos livros, Se isto não é crime organizado, então o que é? Um vigarista russo a roubar as Nações Unidas aqui em Nairobi à luz do dia, é o que se chama anarquia. E eu não gosto da anarquia. Portanto, você pode utilizar esta informação. De borla e tudo. Com os cumprimentos de Kenny K. Diga-lhes que é um brinde. A minha custa.

 

- Vão ficar encantados.

 

- Mas quero que ele pare, Tim. Já. No ponto exacto em que está.

- Coleridge ou Quayle?

 

- Ambos. Quero o Coleridge calado. E quero que se extravie a merda do relatório dessa Quayle...

 

Meu Deus, ele também sabe disso, pensou Donohe. - Pensei que Pellegrin, já o tivesse posto ao corrente - queixou-se ele com aquela careta que os velhos costumam fazer quando a memória lhes falha.

 

- Não meta o Bernard nisto! Não é meu amigo nem nunca o será. Quero é que digam ao vosso Sr. Quayle que se ele continuar a chatear-me, arranjarei maneira de o foder porque é o mundo que ele quer castigar, não sou só eu! Percebeu? Já o teriam liquidado na Alemanha, se eu não me tivesse posto de joelhos em seu favor! Está bem?

 

- Estou a ouvir, Kenny. Vou passar a mensagem. É tudo o que posso prometer.

 

Com a agilidade de um urso, Curtiss saltou da cadeira e rebolou-se pela sala,

- Sou um patriota, - gritou ele. - Confirme isso! Sou um patriota do caraças!

- Claro que é, Kenny.

 

- Diga lá outra vez que eu sou um patriota!

 

- Você é um patriota. Você é o John Bull. Winston Churchill. Que mais quer que eu diga?

 

- Dê-me um exemplo do meu patriotismo. Um entre dúzias, 0 melhor que conseguir lembrar-se. Ejá!

 

Onde é que aquilo iria parar? Mas Donohue sempre deu um exemplo.

- Que tal o trabalhinho que fizemos o ano passado na Serra Leoa?

 

- Diga lá. Vá. Díga-me!

 

- Um cliente nosso queria armas e munições mas sem falar em nomes.

- E então?

 

- Nós comprámos as armas...

- Eu é que as comprei!

 

- Você comprou-as com o nosso dinheiro, fornecemos-lhe um destinatário e um certificado a dizer que as armas eram para Singapura.

 

- Está a esquecer-se da porra do barco!

 

- As Três Abelhas fretaram um cargueiro de quarenta mil toneladas e meteram lá as armas, 0 navio perdeu-se no nevoeiro...

 

Fingiu que se perdeu!

 

--- e foi parar a um portozinho perto de Freetown, onde o nosso cliente e os seus homens já o esperavam para descarregar as armas.

 

- E eu não era obrigado a prestar-lhes esse serviço, pois não? Podia ter-me encolhido. Podia ter-lhe dito: «Enganaram-se na porta. Experimentem ao lado. ” Mas não o fiz. Não o fiz por amor à merda da minha pátria. Porque sou um patriota! - Baixou a voz, num tom conspirativo. - Muito bem. Oiça bem. Aqui está o que o Serviço vai fazer. - Começou a percorrer a sala de um lado para o outro enquanto dava as suas ordens em frases breves. - 0 seu Serviço, não o Ministério dos Negócios Estrangeiros, esses são um batido de panascas, o seu Serviço, vocês irão pessoalmente aos bancos. E devem identificar em cada banco um verdadeiro inglês. Ou inglesa. Oiça bem porque você vai passar tudo isto para o Serviço quando esta noite for para casa. - Falava com a sua voz de visionário. Tons agudos, um pouco trémulos, o milionário do povo.

 

- Estou a ouvir, - garantiu-lhe Donohue.

 

- óptimo. junta-os todos. Esses bons e autênticos ingleses. Ou inglesas. Numa bela sala apainelada em qualquer parte da CIt) Vocês conhecem esses sítios. E dizem-lhes, na vossa qualidade de membros dos Serviços Secretos, dízem-lhes o seguinte: «Meus senhores. Minhas senhoras. Deixem Kenny K em paz. Não lhes diremos porque. Apenas diremos: deixem-no em paz, em nome da Rainha. Kenny K tem feito um grande trabalho pelo seu país, não lhes podemos dizer o quê e ainda não acabou. Vão-lhes dar uma moratória de três meses nas suas dívidas e farão, pela vossa pátria, o mesmo que Kenny K tem feito.» E eles vão fazê-lo. Se um disser que sim os outros vão atrás, como carneiros. E os outros bancos também, porque são tão carneiros como os outros.

 

Donohue nunca pensara que iria ter pena de Curtiss. Mas agora é a altura de ter pena.

 

- Vou pedir-lhes isso, Kenny. 0 problema é que não temos poder, Se tivéssemos, os bancos arranjariam maneira de dar cabo de nós.

 

0 efeito destas palavras foi muito mais drástico do que ele tinha receado. Curtiss estava a lançar rugidos que ecoavam pela sala. Tinha levantado os seus braços vestidos de branco acima da cabeça, como um padre. A sala ressoava com o trovão da voz do tirano.

 

- Você passou à história, Donohue. Você ainda pensa que são os países que governam a merda do mundo. Volte para a instrução primária, porra! 0 hino agora é «God save our multinational.»* E há outra coisa que você pode dizer aos seus amigos, o Sr. Coleridge e o Sr. Quayle e a todos os que vocês estão a mobilizar contra mim. Kenny K ama a África, - e foi recostar o grande corpanzil contra a grande janela e contra o lago banhado pelo luar - está-lhe na porra do sangue! E Kenny K ama o seu remédio! E Kenny K foi posto na terra para levar o seu remédio a todos os africanos, homens, mulheres e crianças, que precisem dele. E se alguém se atravessar no caminho da ciência só pode queixar-se de si próprio. Porque eu já não posso travar os meus rapazes, nem você pode. Porque esse medicamento tem sido experimentado e testado de toda a maneira pelas melhores cabeças que se podem contratar. E nem uma única delas - e a voz iniciou um crescendo de histérica ameaça - nem uma única delas encontrou a mínima coisa a dizer contra ele. Nem vai encontrar! E agora ponha-se na rua.

 

- 0 hino britânico, como é sabido, diz «God save our gracious King,». (N. T)

 

Enquanto Donohue fazia o que lhe mandavam, uma surda cacofonia estalou à sua volta. Sombras passaram, rápidas, nos corredores, cães ladraram e um coro de telefones rompeu o silêncio.

 

Chegado ao ar livre, Donohue parou e deixou que os cheiros e sons da noite africana o deixassem limpo por dentro. Como de costume, não ia armado. Uns farrapos de nuvens escondiam as estrelas. À luz dos projectores de segurança, as acácias eram de um amarelo brilhante. Ouviu-se o canto dos noítibós e o relincho das zebras. Olhou cuidadosamente à sua volta, demorando o olhar nos recantos mais sombrios. A casa erguia-se num alto, por trás estava o lago e pela frente um grande terreiro que, à luz do luar, parecia uma enorme cratera. 0 carro estava mesmo no meio. Como era seu hábito tínha-o estacionado longe de qualquer arbusto, Parecendo-lhe ter visto uma sombra a mover-se, deixou-se ficar imóvel. Estava, estranhamente, a pensar em justin. Pensava que se Curtiss tinha razão e se Justin tinha passado, em rápida sucessão, pela Itália, Alemanha e Canadá, viajando com passaporte falso, então já não era o Justin que ele conhecera, mas um novo que recentemente começara a suspeitar que existisse: Justin o solitário, não recebendo ordens de ninguém a não ser de si próprio; Justin o impetuoso, trilhando o caminho da guerra e determinado a denunciar aquilo que, na sua vida anterior, talvez tivesse ajudado a ocultar. E se fosse esse o Justin destes dias e se fosse essa a tarefa que ele tinha distribuido a si próprio, que melhor sítio para visitar do que a residência de Sir Keneth Curtiss, importador e distribuidor do «meu remédio»?

 

Donohue começou a dirigir-se para o seu carro e ao ouvir um som muito próximo de si, pousou um pé no chão, muito, muito lentamente. Estamos a brincar a quê, Justin? Às estátuas? Ou foi só um macaco? Outro som atrás de si, desta vez uma passada nítida, Homem ou bicho? Donohue levantou o cotovelo direito como defesa e, dominando o desejo de murmurar o nome de Justin, voltou-se e viu Doug Crick a um metro de distância, banhado pelo luar com os braços pendentes numa manifestação de paz. Era um tipo grande, tão alto como Donohue mas com metade da sua idade, pálido e de cabelo claro e com um sorriso atraente ainda que efeminado.

 

- Olá, Doug, - disse Donohue. - Como está?

 

- Bem, muito obrigado, Sir e espero que possa dizer o mesmo de si.

- Posso fazer alguma coisa por si?

 

Os dois falavam muito calmamente.

 

- Pode sim, Sir. Pode apanhar ali a estrada principal, virar para Nairobi, ir até ao cruzamento para o Parque Nacional de Hell’s Gate que já fechou há uma hora. É uma estrada de terra batida, sem luzes. Daqui a dez minutos vou lá ter consigo.

 

Donohue guiou ao longo de uma ália de gravíleas até ao portão, deixou que o guarda lhe apontasse uma lanterna, espreitasse depois o carro, não fosse ele ter roubado alguma pele de leopardo. 0 programa de Kung-fu dera lugar a uma pornografia desfocada. Seguiu lentamente pela estrada principal, tendo cuidado com animais e transeuntes. Nativos encapuçados acocoravam-se ao longo das bermas. Caminhantes solitários, apoiados em paus, faziam-lhe sinais pouco convencidos ou saltavam-lhe para a frente do carro, em jeito de brincadeira. Continuou em frente e até ver uma tabuleta a indicar o National Park. Parou, apagou todas as luzes e ficou à espera. Um carro parou atrás do seu. Donohue abrira a sua porta do lugar do passageiro o que acendeu uma luz no interior. Não havia nuvens nem luar. Através do pára-brisas as estrelas brilhavam a dobrar. Donohue localizou o Touro e os Gémeos e, depois, o Caranguejo. Crick instalou-se no lugar do passageiro e fechou a porta, o que os deixou às escuras.

 

- 0 chefe está desesperado, Sir. Nunca o vi assim, nunca. - Disse Crick.

- Penso realmente que não, Doilg.

 

- Está a ficar francamente chanfrado.

 

- Deve estar esgotado, - disse Donohue com simpatia.

 

- Tenho passado os dias na sala das comunicações, passando-lhe as chamadas. Os bancos de Londres, Basileia, outra vez os bancos, companhias financeiras de que ele nunca ouviu falar oferecendo-lhe créditos mensais a quarenta por cento de juros, depois aquilo a que ele chama as ratazanas, os polícias. Não pude impedir-me de ouvir os recados, não acha?

 

Uma mãe com o seu filho ao colo estava a bater timidamente no pára-brisas com uma mão muito emagrecida. Donohue baixou o vidro e deu-lhe uma nota de vinte xelins.

 

- Hipotecou as suas casas de Paris, Roma e Londres e está a pensar em fazer o mesmo para a casa de Nova Yorque, em Sutton Place. Está a tentar arranjar quem lhe compre a sua estúpida equipa de futebol, embora só um cego e surdo pudesse querer comprá-la. Hoje pediu a um grande amigo que tem no Crédit Suisse um crédito de vinte e cinco milhões de dólares, a pagar trinta milhões na segunda-feira. E a KVH anda atrás dele para receber o que lhe é devido. Se ele não tiver dinheiro, ficam-lhe com as Três Abelhas.

 

Uma família de três apareceu à janela, refugiados não se sabe donde, indo para parte nenhuma.

 

- Quer que eu lhes trate da saúde, Sir? - perguntou Crick, preparando-se para abrir a porta.

 

- Não, não faça uma coisa dessas, - ordenou Donohue asperamente. Ligou o motor e começou a andar lentamente enquanto Crick continuava a falar.

 

- Ele grita com eles, é tudo o que faz. A KVH não quer dinheiro, quer as Três Abelhas, está-se mesmo a ver menos ele. Não faço ideia até onde é que irão as ondas de choque.

 

-Tenho muita pena em ouvir isso, Doug. Sempre pensei que vocês os dois se davam muito bem.

 

-Também eu, Sír. Confesso que foi preciso muita coisa para chegar a este ponto. Mas não sou homem de duas caras, pois não?

 

Um bando de gazelas estava na estrada i vê-os passar.

 

- 0 que é que você quer, Doug? - perguntou Donohue.

 

- Estava a pensar se haveria algum trabalho para mim. Alguém que quisessem que eu fosse visitar ou, pelo menos, vigiar. Alguns documentos especiais que lhe fizessem jeito. - Donohue esperava, impassível. - Além disso tenho aquele amigo. Do tempo da Irlanda. Vive em Harare, que não é o meu território.

 

- E então?

 

- Ele foi contactado, sabe? É umfree-lancer.

- Contactado para quê?

 

- Uns certos europeus que eram amigos duns amigos contactaram-no. Ofereceram-lhe uma pipa de massa para pacificar uma mulher branca e o seu namorado negro nas margens do Turkana, Era para aquela própria altura. Hoje vai-se embora.

 

Donohue encostou à berma, parou o carro. - Quando foi?

- Dois dias antes que Tessa Quayle fosse assassinada.

 

- Mas ele aceitou o contrato?

- Claro que não, Sir,

 

- Porque não?

 

- Porque não é desses. Primeiro, nunca faria mal a uma mulher. Já fez o Ruanda, já fez o Congo. Nunca mais tocará numa mulher.

 

- E o que é que ele fez?

 

- Aconselhou-os a falar com certos tipos que ele conhecia e que não eram tão esquisitos.

 

- Quem?

 

- Ele não diz. E se quisesse dizer, eu não deixava. Há coisas que são muito perigosas de saber.

 

- A oferta era muito alta?

 

- Bom, ele está habituado a falar dentro dos parâmetros mais vastos, se está a compreender.

 

- Não, não estou. Eu compro nomes, datas e lugares, A retalho. Em dinheiro. Não compro parâmetros.

 

- Eu penso, Sir, que o que ele queria dizer, pondo de lado esta linguagem fantasista era o seguinte: quer comprar o que aconteceu ao Dr. Bluhm, com referências concretas no mapa? Mas só por escrito, já que ele escreveu um relatório sobre o que aconteceu em Turcana no que diz respeito ao doutor, relatório baseado no que os amigos lhe contaram. Em exclusivo para si, se achar o preço razoável.

 

Um outro grupo de viajantes nocturnos tínha-se reunido à volta do carro, dirigido por um velho com um chapéu de senhora enfeitado por um laço.

- Parece-me aldrabíce, - disse Donohue.

 

- Não é não, Sir. É autêntico. Eu sei que é.

 

Donohue teve um arrepio. Ele sabe? Como é que sabe? Ou será que o amigo da Irlanda é um nome de código para Doug Crick?

 

- Onde é que ele está? Esse relatório?

 

- Está ao alcance da mão, Sír. Deixe-me pôr o caso assim.

 

- Amanhã ao meio-dia estarei no bar do Hotel Serena durante vinte minutos.

 

- Ele está a pensar em Cinquenta, Sr. Donohue.

 

- Eu digo em que é que ele pode pensar depois de ter visto o relatório. Donohuie guiou durante uma hora, evitando os buracos, abrandando muito pouco. Um chacal atravessou a estrada à luz dos faróis, na direcção do parque. Um grupo de mulheres duma plantação de flores fez-lhe sinal a pedir boleia mas, por uma vez, ele não parou. Mesmo ao passar em frente da própria casa não afrouxou e seguiu directamente para a Alta Comissão. 0 salmão teria que esperar pelo dia seguinte.

 

 

-Sandy Woodrow, anunciou Glória com uma severidade fingída, pondo as mãos nas ancas e apresentando-se diante do marido no seu roupão novo, - já é altura de hastearmos a nossa bandeira.

 

Glória tinha-se levantado cedo e escovado o cabelo enquanto o marido fazia a barba. Tinha despachado os miúdos para a escola com o motorista, tínha-lhe feito toucinho com ovos, o que não lhe era permitido, mas uma vez por outra uma rapariga tem o direito de apaparicar o seu homem. Estava a imitar o prefeito dum colégio, usando a sua voz de comando, apesar de o marido, aparentemente, não ter reparado nessas manobras enquanto desbastava a pilha dos jornais de Nairobi.

 

-A bandeira é hasteada na segunda-feira, querida, - respondeu Woodrow distraído, mastigando o seu toucinho. - Mildren esteve no Departamento do Protocolo. Tessa vai ter a bandeira a meia-haste durante mais tempo que um príncipe de sangue.

 

- Não estou a falar dessa bandeira, pateta, - afastando os jornais para fora do seu alcance e arrumando-os numa mesinha junto às suas aguarelas. - Estás bem sentado? Então ouve. Estou a falar em darmos uma superfesta absolutamente fantástica para nos animar a todos, incluindo tu. já é altura, Sandy, Olha que é. já é altura de dizermos todos uns aos outros: «Fizemos isto. Estivemos naquilo. Temos imensa pena, mas a vida tem de continuar.» Tessa sentiria exactamente a mesma coisa. Uma questão vital, querido. Quando é que os Porters regressam? Qual é a história escondida? - OsBorters, tal como os Sandys ou os Elenas que é como falamos dos casais quando estamos de bem.

 

Woodrow pôs um pedaço do seu ovo estrelado em cima da fatia de pão frito. - «O Sr. e a Sra. Porter Coleridge estão a gozar um longo período de licença em Inglaterra para instalar a sua filha Rosie no colégio», entoou Sandy citando um porta-voz imaginário. - Esta é a história escondida, a história oficial, a única história que há.

 

Mas era uma história que preocupava Woodrow, por mais que fingisse estar à vontade. 0 que é que se passava com Coleridge? Porquê todo este silêncio? Sim senhor, estava de licença. Bom proveito. Mas os Chefes de Missão quando vão de licença deixam telefones, e-mails e moradas. Sofrem o síndroma da ausência, telefonam para os seus substitutos ou para os secretários particulares ao mais pequeno pretexto, querendo saber dos criados, cães, jardins e como é que essa maquinaria funciona sem mim. E ficam lixados quando lhes sugerem que a maquinaria funciona melhor quando eles lá não estão. Mas da parte de Coleridge, depois da sua brusca partida, nem um assobio. E quando Woodrow ligava para Londres com o objectivo de lhe fazer algumas perguntas perfeitamente inocentes - e, ao mesmo tempo, levá-lo a revelar as suas intenções - só encontrava paredes brancas. Coleridge estava «numa pequena reunião no Ministério», dizia um desconhecido do Departamento África. Ou estava a «participar numa sessão de um grupo de trabalho», segundo um burocrata do gabinete do Subsecretário Permanente.

 

E Bernard Pellegrin, quando Woodrow conseguiu finalmente contactá-lo através do telefone digital de Coleridge, mostrou-se tão vago como os outros. «Uma daquelas merdas do Serviço de Pessoal.» «O Primeiro-Minístro quer um briefing, por isso o Secretário de Estado quer um, todos querem um. Todos querem um pouco de África. Então que há de novo?»

 

- Mas o Porter volta ou não volta, Bernard? É que isto é muito perturbador. Para todos nós.

 

- Eu serei o último a sabê-lo, meu filho. - Breve pausa. - Está só?

- Estou.

 

- Esse cabrãozinho do Mildren não está a ouvir pela fechadura? Woodrow olhou para a porta do gabinete e baixou a voz: - Não.

 

- Lembra-se daqueles papelinhos que me mandou no outro dia? Vinte e tal páginas. Escritas por uma mulher.

 

0 estômago de Woodrow deu um salto. Os dispositivos antiescuta podem ser eficazes contra estranhos. Mas contra nós próprios?

 

- 0 que é que têm?

 

- Na minha opinião, a melhor maneira seria... resolvia tudo... que eles nunca cá tivessem chegado. Perdidos no correio. Concorda?

 

- Você está a falar por si, Bernard. Eu não posso falar por si, Se vocês não receberam, o problema é vosso. Mas eu mandei-os. Essa é a verdade.

 

- Mas suponha que não mandou, meu filho, Suponha que nada disto aconteceu. Nunca escritos, nunca enviados. Isto é viável, aí do seu lado?

- A voz estava perfeitamente à vontade.

 

- Não. É ímpossível. Não é viável, Bernard.

 

- Porque não? - Interessado mas nem minimamente inquieto.

 

- Mandei-lhos pelo correio diplomático. Fez-se um registo. Iam pessoalmente para si. 0 mensageiro oficial assinou o recibo. já o disse à - ia dizer «Scotland Yard» mas mudou de opinião a tempo. - já o disse às pessoas que vieram cá investigar. Tinha que o fazer. Eles já sabiam quase tudo quando falaram comigo, - 0 medo fê-lo zangar-se. - Eu já lhe contei isto tudo! Melhor dito, avisei-o! Bernard, está a passar-se alguma coisa? Está-me a pôr nervoso. Pensava ouvi-lo dizer que o assunto estava perfeitamente resolvido,

 

- Nada disso, meu filho. Mas acalme-se. Estas coisas acontecem de vez em quando. Há um pouco da pasta de dentes que sai do tubo e é preciso pô-la lá outra vez. As pessoas dizem que isso não é possível. Mas acontece todos os dias. A mulher está bem?

 

- Está óptima.

- Os putos?

 

- óptimos.

 

- Dê-lhes beijos e abraços.

 

- Por ísso é que eu decidi que tinha mesmo de ser uma superfesta. Com dança, claro, - Glória falava com entusiasmo.

 

- óptimo, esplêndido, - disse Woodrow, e dando a si próprio tempo para retomar o fio da conversa e servindo-se dos remédios que ela o fazia engolir todas as manhãs: três comprimidos de fibras, um de fígado de bacalhau, uma aspirina.

 

- Eu sei que não gostas de dançar, mas a culpa não é tua, é da tua mãe,

- continuou Glória com doçura. - Não vou deixar a Elena meter-se nisto, não depois daquela festinha pirosa que ela deu no outro dia. Vou só mantê-la informada.

 

- Ah! Então pelos vistos já fizeram as pazes e deram muitos beijinhos. Acho que ainda não sabia a novidade. Muitos parabéns.

 

Glória mordeu os lábios. As recordações da dança da Elena tinham-se momentaneamente desvanecido. - Eu tenho amigas, Sandy - disse ela, um pouco desamparada. - E preciso delas, para falar com franqueza. É muito chato passar o dia inteiro à espera que voltes para casa. As amigas riem-se, tagarelam, fazem favores umas às outras. Ás vezes zangam-se. Mas depois ficam outra vez amigas. É o que fazem as amigas. Só gostava que tu também tivesses alguns amigos. Não era bom?

 

- Tenho-te a ti, querida, - disse Woodrow com galanteria enquanto lhe dava o beijo de despedida.

 

Glória pôs-se ao trabalho com toda a energia e eficiência que tinha dedicado ao funeral de Tessa. Formou um grupo de trabalho com outras esposas e membros da Embaixada demasiado subalternos para se furtarem a isso.

 

A primeira entre eles foi Ghita, uma escolha muito significativa porque tinha sido ela a causa involuntária da zanga com Elena da cena horrorosa que se seguiu. Glória iria lembrar-se disso durante o resto dos seus dias.

 

Elena tinha dado a sua festa e ela tinha sido, até certo ponto, e por assim dizer, um sucesso. E Sandy, como era sabido, era um grande entusiasta da separação dos casais durante as festas, do aproveitamento de todos os recantos, como costumava dizer. As festas, dizia ele, é onde eu faço a minha melhor diplomacia. Para isso é que servíam. Por isso, durante a noite, ele e Glória pouco se tinham visto a não ser um sorriso e um aceno do outro lado da sala.

0 que era perfeitamente normal, embora Glória tivesse gostado de dançar com ele uma vez nem que fosse um fox-trot para Sandy poder apanhar o ritmo. À parte isso, Glória tinha muito pouco a dizer da festa excepto que Elena, na sua idade, podia tapar-se um pouco mais e não fazer com que o busto parecesse querer saltar cá para fora. E desejar que o Embaixador do Brasil não tivesse insistido em lhe pousar as mãos no rabo durante o samba, embora Sandy diga que é assim que os latinos dançam.

 

Por isso foi mesmo como um raio num céu azul que na manhã seguinte à dança - durante a qual Glória não tinha notado nada de inconveniente embora se considerasse boa observadora - no decorrer de um café de balanço no Clube Muthaiga, Elena tivesse deixado escapar, duma maneira perfeitamente casual, como se fosse apenas um mexerico e não uma bomba total que lhe destruiu a vida, que Sandy se tinha metido pesadamente com Ghita (palavras literais de Elena) o que tinha levado a rapariga a alegar uma dor de cabeça e a ir-se embora, o que Elena considerava inconveniente, porque se toda a gente fizesse o mesmo não valia a pena dar festa nenhuma.

 

Glória começou por ficar sem fala. Depois recusou-se terminantemente a acreditar numa única palavra. 0 que é que Elena queria dizer com «metido pesadamente»? Como é que foi, EI? Sê mais clara, por favor. Estou muito aflita, querida. Não, tudo bem, vá lá, continua. já que falaste nisso, vai até ao fim.

 

Para começar, apalpando-a, replicou Elena com deliberada grosseria, irritada pelo puritanismo de Glória. Apalpando-lhe as mamas. Encostando-lhe o pau à barriga. 0 que é que esperas que um homem faça quando está todo embeiçado por uma mulher? Deves ser a única rapariga da cidade que não sabe que Sandy é o maior busca-conas neste negócio, Lembra-te de como ele andava atrás de Tessa de língua de fora quando ela já tinha uma barriga de oito meses!

 

A referência a Tessa foi a gota de água. Glória tínha há muito aceitado que Sandy tivera uma coisa inofensiva relativamente a Tessa, embora fosse suficientemente esperto para não perder o controlo dos seus sentimentos. Para sua vergonha, tinha interrogado Ghita a esse respeito e recebido uma negativa satisfatória. Agora Elena não só reabria a ferida e ainda por cima lhe deitava vinagre. Incrédula, chocada, humilhada e furiosa, Glória foi para casa, mandou embora os criados, pôs os rapazes a fazer os trabalhos de casa, fechou à chave o armário das bebidas e ficou, carrancuda, à espera que Sandy voltasse.

0 que ele acabou por fazer às oito da noite, queixando-se do muito trabalho, como de costume, mas tanto quanto ela podia dizer no seu estado de exaltação, sóbrio. Não querendo que os rapazes ouvissem a discussão, agarrou-o por um braço e empurrou-o para a escada que ia para a cave.

 

- Que raio é que se passa? - queixou-se ele. - Preciso de um whisky.

 

- Passa-se o que tu fizeste, - Respondeu Glória com ferocidade. - Não quero evasivas, por favor. Nem conversa diplomática, muito obrigado. Nem cerimónias. Somos ambos crescidos. Tiveste ou não tiveste um caso com Tessa Quayle? Aviso-te, Sandy. Conheço-te muitíssimo bem. Fico logo a saber se estás a mentir.

 

- Não - disse Woodrow com simplicidade. - Não tive. Mais perguntas?

- Apaixonaste-te por ela?

 

- Não.

 

Estóico debaixo de fogo, como o seu pai. Sem mexer uma pálpebra. 0 Sandy de quem ela gostava, tinha de confessar. 0 homem com quem se sabe onde estamos. Nunca mais falo com Elena.

 

- Atiraste-te à Ghita quando dançaste com ela na festa da Elena?

- Não.

 

- A Elena diz que sim.

 

- Está a mentir. É o costume.

 

- Ela diz que a Ghita saiu mais cedo porque tu a apalpaste.

 

- Então presumo que a Elena se sentiu fornicada porque não a apalpei a ela. Glória não estava à espera duma negativa tão firme, inequívoca, tão radical. Teria passado bem sem o «fornicada» e teria suspendido a semanada ao filho se ele se tivesse descuidado, mas para Sandy estava bem. - Não apalpaste a Ghita, não te encostaste a ela? Diz-me! - gritou Glória e rompeu num dilúvio de lágrimas.

 

- Não, - repetiu Woodrow e deu um passo em sua direcção, mas ela parou-o.

 

- Não me toques! Deixa-me em paz. Quiseste ou não quiseste ter um caso com ela?

 

- Com Ghita ou com Tessa?

 

- Qualquer delas! Ou ambas! Que importância tem?

- Queres que eu fale primeiro da Tessa?

 

- Faz como quiseres.

 

- Se entendes por «caso» ir para a cama com ela, claro que essa ideia me veio à cabeça, como aconteceu com a maioria dos homens com preferências heterossexuais. Ghita, acho-a menos apetitosa, mas a juventude tem os seus atractivos, portanto também falo dela. Como é a fórmula do Jimmy Carter, «Cometi adultério no meu coração». Pronto. já confessei. Queres o divórcio ou posso beber o meu whisky?

 

Nesta altura já Glória estava vencida, soluçando de vergonha e de ódio contra si mesma, pedindo perdão a Sandy. Era-lhe horrivelmente evidente que o que ela tinha feito era acusá-lo a ele de tudo o que ela se acusava a si própria de ter feito desde que Justin tinha aparecido lá em casa com as suas malas. Tinha, no fundo, dado vazão ao seu remorso. Mortificada, abraçou-se a si própria e foi chorando, «Tão arrependida, Sandy!» e «Oh Sandy. por favor!» e «Desculpa, Sandy, fui horrorosa!» e tentou libertar-se do abraço dele. Mas Sandy, agora, passara-lhe um braço pelos ombros e estava a ajudá-la a subir a escada, como o bom médico que ele podia ter sido. Quando chegaram à sala, ela entregou-lhe a chave do armário das bebidas e ele serviu uma dose dupla para cada um.

 

0 processo curativo, no entanto, durou o seu tempo. Suspeitas tão monstruosas não se desfazem num dia, sobretudo se são o eco de outras suspeitas enterradas nas brumas do passado. Glória tomou uma certa distância e depois aumentou-a. A memória dela tinha uma maneira própria de se ligar e desligar e insistia em incidentes que o tempo tinha apagado. No fim de contas, Sandy era um homem atraente. Claro que as mulheres se atiravam a ele. Era sempre o homem mais distinto em qualquer sítio. E um pouco de namoro inocente nunca fez nenhum mal. Mas a memória voltava a picá-la e fazia-a pensar. Mulheres de postos anteriores vieram-lhe ao espírito: parceiras de ténis, baby-sitters, jovens esposas com maridos susceptíveis de promoção. Pôs-se a recordar piqueniques, festas em piscinas e até - estremeceu involuntariamente uma festa um tanto alcoolizada de banhos nus na piscina do Embaixador de França em Aman, onde ninguém olhou verdadeiramente e todas corremos aos gritos para as toalhas, mas que na verdade...

 

Foram precisos vários dias para que Glória desculpasse Elena e, de certa maneira, nunca chegou a desculpá-la. Mas Elena parecia tão infeliz, pensava Glória com o seu lado generoso. Como é que ela não se sentiria, casada com aquele grego horroroso, e tentando ignorá-lo metendo-se em casos escandalosos, uns a seguir aos outros?

 

0 que agora preocupava Glória é que o que, precisamente, a sua festa iria celebrar? Tinha que ser, obviamente, um Dia: 0 Dia da Independência, ou o Dia da Primavera. E tinha que ser rápido senão os Porters podiam voltar entretanto, o que Glória não queria de maneira nenhuma. Queria que Sandy ocupasse a ribalta. 0 Dia da Commonwealth seria bom mas era muito longe.

 

Com certa habilidade podia fazer-se um Pré-Dia da Commonwealth, que seria antes de qualquer outro, o que revelava iniciativa. Glória teria gostado do Dia de S. Jorge, com morte do Dragão e tudo! Ou o Dia de Dunquerque e «vamos combatê-los nas praias!». Ou Dia de Waterloo, ou de Trafalgar ou de Azincourt, tudo grandes vitórias britânicas mas que, como Elena tinha logo observado, eram vitórias sobre os franceses, que era quem tinha os melhores cozinheiros da cidade. Como nenhum destes Dias convinha iria ser o Dia da Commonwialth.

 

Glória decidiu então que era altura de activar o seu Plano Global, para o que precisava da bênção do Gabinete do Alto Comissário. Mike Mildren era um homem instável. Tendo partilhado o seu apartamento com uma neozelandesa feiosa durante seis meses, tinha-a trocado de um momento para o outro por um rapaz italiano bem-parecido que, segundo se dizia, passava os dias à beira da piscina do Hotel Norfolk. Escolhendo o período a seguir ao almoço que parecia ser a altura em que Mildren estava mais receptivo, telefonou-lhe do Muthaiga Clube usando todo o seu charme e jurando a si própria nunca lhe chamar Mildren por engano.

 

- Mike? É a Glória. Como está? Tem um minuto? Ou mesmo dois?

 

0 que, da sua parte era gentil e modesto porque, no fim de contas, era a mulher do Alto Comissário em exercício. Sim, Mildren tinha um minuto.

 

- óptimo, Mike, como já deve ter ouvido falar, eu e um núcleo duro estamos a planear um grande bailarico no pré-Dia da Commonwealth. Uma espécie de estímulo para as outras embaixadas. Sandy já lhe falou nisso, com certeza.

- Ainda não, Glória, mas vai falar certamente.

 

Sandy, tão inútil como de costume. Esquecendo-se de tudo o que ela lhe dizia, assim que saía porta fora. E quando voltava, começava a beber até se deitar.

- Seja como for, aquilo em que estamos a pensar é numa tenda gigantesca.

 

A maior que encontrarmos, com uma cozinha ao lado. Vamos ter um superbufete quente e uma orquestra que seja realmente boa. Não um disc-jockey como na Elena, nem tão pouco salmão frio. Sandy oferece um generoso quinhão dos seus queridos subsídios de representação e os adidos da Alta Comissão estão a rapar o fundo dos seus mealheiros, o que me parece ser um bom começo. Ainda aí está?

 

- Claro que estou, Glória.

 

Rapazinho tão pomposo. Sempre a macaquear os ares e as graças dos chefes.

0 Sandy vai metê-lo na ordem na primeira ocasião.

 

- Portanto, duas questões, Mike. Ambas são um tanto delicadas, mas paciência. Vou-me atirar de cabeça. Um: com Porter ausente em parte incerta e sem qualquer despesa para os frais de Sua Excelência, por assim dizer, haverá, bem, um fundo disponível, ou poderá Porter ser convencido, por assim dizer, a participar no negócio?

 

- Dois?

 

É realmente insuportável.

 

- Dois, Mike, é onde. Dada a dimensão do evento (e a sua gigantesca tenda) a sua importância para a Comunidade Britânica nestes tempos tão difíceis e o cachet que queremos dar-lhe, nós estávamos a pensar (eu, o Sandy está obviamente preocupado com outras coisas) que o melhor sítio para um baile de cinco estrelas no Dia da Commonwealth seria, se todos estiverem de acordo, o jardim do Alto Comissário. Mike? - Ela tinha a estranha sensação de que ele tinha desaparecido num mergulho e se afastava debaixo de água.

 

- Estou a ouvir, Gloria.

 

- E então? Não é da minha opinião? Para estacionamento e tudo. Claro que ninguém precisa de entrar na casa. A casa é dos Porters. A não ser, obviamente, para encostar às boxes. Não podemos pôr WCs desmontáveis nos jardins de Sua Excelência, pois não? - Estava a ficar encalhada no assunto da casa e dos WCs e por isso continuou. - Quer dizer o pessoal da casa continua ao serviço não é verdade? Criados, carros, seguranças, etc? - Apressou-se a emendar a mão.

- 0 que eu quero dizer é que estão ao serviço de Porter e de Veronica, percebe? Não ao nosso serviço. Sandy e eu só defendemos o forte até eles voltarem. Não se trata de uma tomada de poder, nem nada disso. Ainda aí está, Mike? Tenho a sensação de estar a falar sozinha.

 

E estava. A nega veio nessa tarde, sob a forma de uma nota, dactilografada e entregue em mão, uma nota de que Mildren devia ter guardado cópia. Ela não o viu entregá-la. Tudo o que viu foi um descapotável com Mildren no lugar do passageiro a afastar-se com o amiguinho ao volante. 0 Departamento do Protocolo era categórico, dizia ele pomposamente. A Residência do Alto Comissário e os seus jardins eram um sítio inapropriado para qualquer tipo de festejos. Isso significaria «uma assumpção defacto do estatuto do Alto Comissário» terminava a nota, cruelmente, Uma carta formal do Ministério já vinha a caminho.

 

Woodrow ficou furioso. Nunca se tinha zangado tanto com ela. - Nunca devias ter posto a questão, - ralhava ele andando na sala de um lado para o outro. - Passou-te pela cabeça que eu poderia vir a ocupar o lugar de Porter, começando por ir acampar na merda do seu jardim?

 

- Era apenas uma sondagem, - protestou ela pateticamente enquanto ele bufava de fúria. - É perfeitamente natural que eu queira que venhas a ser «Sir» um destes dias. Não ando à procura de uma glória usurpada, Só quero que sejas feliz.

 

Mas continuou com o seu projecto, teimosamente: - Vamos ter que fazer a festa aqui, - disse ela olhando para o jardim.

 

Chegou por fim o Baile do Dia da Commonwealth.

 

Todas as cansativas preparações tinham dado bom resultado, os convidados já tinham chegado, a orquestra estava a tocar, as bebidas corriam, casais conversavam, os jacarandás estavam em flor, a vida era realmente maravilhosa. A tenda desta vez era óptima, os guardanapos não eram de papel, as facas e os garfos não eram de plástico, as decorações eram azuis e douradas. Um gerador que zurrava como uma mula doente fora substituído por um outro que apenas borbulhava como uma frigideira. 0 espaço em frente da casa já não parecia um estaleiro de obras e uns telefonemas de última hora feitos por Sandy tinham feito aparecer alguns criados africanos de bom aspecto, incluindo pessoal do próprio Moi. Em vez de confiar em criados sem prática, como Elena tivera a má ideia de fazer, Glória tinha também recorrido ao pessoal das suas amigas. Um dos novos recrutas era Mustafa, ponta de lança de Tessa, como ela lhe chamava, que tinha tido um desgosto tão grande que não procurara outro emprego. Mas Glória tinha mandado Juma falar-lhe e ele finalmente lá estava, atento às mesas do outro lado da pista, um pouco triste, e ainda bem, mas contente de se terem lembrado dele, que era o que contava. Os polícias, miraculosamente, tinham chegado a tempo e o problema era, como de costume, mantê-los longe das bebidas mas Glória tinha-lhes feito um sermão e agora só restava ter esperança. A orquestra era maravilhosa, realmente selvática, com um ritmo marcadíssimo para o caso de Sandy ter de dançar. E estava simplesmente esplêndido no seu novo smoki’ng que Glória lhe tinha oferecido como presente de «desculpa lá ... ”. Que esplêndido cavaleiro de parada havia de ser um dia! 0 bufete quente, tanto quanto ela tinha provado, muito bom. Não sensacional, não se podia esperar isso em Nairobi, havia um limite para o que se podia comprar, por mais dinheiro que houvesse. Mas milhas à frente do que o de Elena, ainda que Glória não se sentisse minimamente competitiva. E a querida Ghita, divina no seu sari dourado.

 

Woodrow também tinha inúmeras razões para se felicitar. Vendo os pares girar ao som da música que ele detestava, sorvendo metodicamente o seu quarto whisky, sente-se como o marinheiro curtido pelas tempestades que contra todas as probabilidades, regressou ao porto. Não, Glória, nunca me atirei a ela

- seja ela quem for. Não a nada de nada. Não, não te vou dar os meios para me destruíres. Nem a ti, nem à supercabra Elena nem a Ghita, aquela puritanazinha calculista, Sou um homem do statu quo, como Tessa justamente dizia. Pelo canto do olho, Woodrow via Ghita encostando estreitamente o seu corpo ao de um belo africano que ela provavelmente nunca tinha visto antes. Uma beleza como a tua é um pecado, diz-lhe ele em pensamento. Era um pecado COM Tessa, é um pecado contigo. Como é que uma mulher pode ter um corpo como o teu e não partilhar o desejo que desperta num homem? Mas quando te digo isto (sem qualquer grosseria, só como confidência) os teus olhos lançam chamas e tu silvas contra mim que não lhe ponha as mãos em cima. E depois foges para casa, furiosa, observada de perto pela supercabra Elena... As divagações de Woodrow foram interrompidas por um homem pálido e meio calvo que parecia ter perdido o seu caminho e que era acompanhado por uma amazona de um metro e oitenta, de franja.

 

- Olá, Senhor Embaixador, que bom ter podido vir! - Esquecera-se do nome mas com o cagarim da orquestra ninguém percebia. Fez um sinal a Glória para que se juntasse a eles. - Querida, apresento-te o novo Embaixador da Suíça, que está cá há uma semana. Veio amavelmente apresentar os seus cumprimentos ao Porter. E, coitado, só me encontrou a mim! A esposa há-de cá vir ter daqui a umas semanas, não é, Embaixador? Por isso, esta noite, anda à solta, ha! ha! É óptimo vê-lo por cá! Agora desculpe-me, temos que ir dar as nossas voltas. Chao!

 

0 chefe da orquestra estava agora a cantar, se é que se podia aplicar a palavra a uns miados de gata com cio. Apertava o microfone com uma mão e com a outra acariciava-lhe a ponta. Oscilava as ancas num êxtase copulativo.

 

- Querido, não estás um bocadinho entornado? - sussurrou-lhe Glória enquanto rodopiava nos braços do Embaixador indiano. - Eu estou.

 

Um tabuleiro de bebidas passou por perto. Woodrow, rapidamente, pousou lá o copo vazio e retirou um cheio. Glória estava a ser arrastada para a pista de dança por Morrison M’Guimbo, um queniano jovial e descaradamente corrupto, conhecido como o Ministro dos Almoços. Woodrow olhou sombriamente em volta à procura de alguém com um corpo suficientemente decente para dançar. Era aquela parte do não-dançar que o irritava. 0 passear de um lado para o outro, exibindo os dotes físicos. Fazia-o sentir o mais desastrado, o mais inútil dos amantes que qualquer mulher já tivesse encontrado. 0 que evocou todos os faz-isto-não-faças-aquilo e os por amor de deus, Woodrow que vinha ouvindo desde os cinco anos.

 

- É verdade, tenho estado a fugir de mim próprio toda a minha vida, - gritava ele para a cara perplexa do seu par, uma dinamarquesa peituda do Auxílio Humanitário, chamada Fitt ou Flitt. - Sempre soube de que é que fugia mas nunca tive a mínima ideia para onde queria ir. E você? Eu disse «e você?» Ela riu e abanou a cabeça. - Está a pensar que eu sou louco ou estou bêbado, não está? - gritou ele. Ela concordou. - Pois engana-se. Estou as duas coisas.

- Amiga de Arnold Bluhm, lembrou-se ele. Caramba, que confusão! Quando é que acaba o espectáculo? Deve ter pensado isto em voz alta acima do borroroso barulho da música porque viu os olhos dela baixarem-se e ouviu-a dizer.

- Talvez nunca, - com a unção que os bons católicos reservam para o Papa.

 

De novo só, Woodrow subiu a corrente até às mesas de refugiados ensurdecídos, amontoados como grupos de vítimas de guerra. É tempo de comer alguma coisa. Desapertou o laço e deixou-o pendente.

 

- Um verdadeiro gentleman, - explicou ele a uma perplexa Vénus africana

- é aquele que sabe atar o seu próprio laço, como dizia o meu pai.

 

Ghita tinha ocupado um canto da pista, onde ela e mais duas belas negras do British Couricil oscilavam as ancas ritmicamente. Outras raparigas juntaram-se a elas, formando um círculo de feiticeiras e a orquestra inteira tinha-se chegado para a beira do estrado e gritava-lhes yeh, yeh, yeb! As raparigas batiam palmas umas com as outras, depois voltavam-se e batiam nas parceiras com as nádegas. Só Deus sabe o que estariam os vizinhos a dizer, já que Glória não os tinha convidado a todos, para que a tenda não fosse invadida por pistoleiros e traficantes de droga - uma piada que Woodrow deve ter partilhado com uma parelha de enormes tipos em trajes africanos que se partiram de riso e foram repeti-la às suas mulheres que também se escangalharam a rir.

 

Ghita. Qual seria a ideia dela? É como na reunião das segundas-feiras, na Chancelaria. Sempre que olho para ela, ela foge com o olhar. Quando olho para outro sítio, ela olha para mim. É a coisa mais lixada que eu tenho visto. E mais uma vez Woodrow deve ter manifestado os seus sentimentos em voz alta porque um chato do Muthaiga Clube, chamado Meadower, concordou imediatamente com ele, dizendo que se os jovens tinham resolvido dançar daquela maneira, porque é que não fodiam, pura e simplesmente, na pista de dança e não se pensava mais nisso? 0 que coincidia com a opinião de Woodrow. Estava a berrar isso mesmo ao ouvido de Meadower quando Mustafa, o anjo negro, parou na sua frente como para lhe travar o passo, só que Woodrow não tencionava dirigir-se a sítio nenhum. Reparou que Mustafa não trazia nada na mão, o que lhe pareceu impertinente. Se Glória, por uma bondade de coração, tinha contratado o pobre homem para levar e trazer coisas, por que diabo não está a fazer isso? Porque é que ele está ali parado, como se fosse a minha má consciência, de mãos vazias a não ser um papelinho dobrado numa das mãos e articulando palavras ínaudíveis, como um peixe de aquário?

 

- 0 homem diz que tem um recado para si, - gritou Meadower.

- 0 quê?

 

- Um recado pessoal, muito urgente. Deve ser alguma miúda que se apaixonou por si.

 

- Mustafa disse isso?

- 0 quê?

 

- Mustafa disse isso?

 

- Não vai ver quem ela é? Talvez seja a sua mulher, - gritou Medows e desatou a rir histericamente.

 

Ou Ghita, pensou Woodrow, com um sobressalto absurdo de esperança. Afastou-se um passo, mas Mustafa pôs-se-lhe de lado, ombro com ombro.

 

Woodrow estendeu a palma da mão e Mustafa, respeitosamente, pôs lá o papel. Era uma folha A4 dobrada várias vezes.

 

- Obrigado, Mustafa, - gritou Woodrow, significando «põe-te a andar». Mas Mustafa não se mexeu, ordenando com os olhos a Woodrow que lesse o papel. Está bem, vai-te lixar, deixa-te estar. De qualquer maneira, não sabes ler inglês. Nem falar. Desdobrou o papel. Escrito em computador.

 

Caro Senhor

 

Tenho em meu poder uma cópia da carta que escreveu à Sra. Tessa Quayle convidando-a a fugir consigo. Mustafa conduzi-lo-á até mim, Não diga nada a ninguém, por favor, e venha imediatamente, senão terei de tomar outras medidas.

 

Sem assinatura.

 

Como se tivesse sido atingido pelo canhão de água da polícia, Woodrow sentiu-se encharcado, frio e sóbrio. Um homem a caminho do cadafalso pensa em muitas coisas ao mesmo tempo e Woodrow, ainda que cheio de whísky isento de impostos, não era excepção. Suspeitava que as suas manobras com Mustafa não tivessem escapado a Glória e tinha toda a razão: numa festa, ela nunca o perdia de vista. Por isso fez-lhe um aceno tranquilizador através da pista, pronunciou «não há problema» e submeteu-se à condução de Mustafa. Ao fazê-lo apanhou em cheio o olhar de Ghita, pela primeira vez essa noite e achou-o calculista.

 

Entretanto pensava arduamente quem seria o chantagista e associou-o à presença dos polícias. 0 seu raciocínio era o seguinte: a polícia tinha revistado a casa dos Quayles e descoberto o que ele próprio não conseguira encontrar. Um deles tinha guardado a carta na algibeira até encontrar a melhor oportunidade de a explorar. E essa oportunidade era agora.

 

Ocorreu-lhe quase simultaneamente uma segunda possibilidade que era a de Rob, ou Lesley, ou ambos, afastados contra vontade de um importante caso de homicídio, tivessem decidido obter um proveito material. Mas por que diabo neste preciso momento? Em qualquer ponto desta salgalhada Woodrow inclui Tim Donohue, mas só porque o considera como um céptico activo, ainda que senil. Durante a noite, sentado com a mulher, a gorda Maud, no canto mais escuro da tenda, Donohue, na opinião de Woodrow, tinha mantido uma presença perversa e maligna.

 

Entretanto Woodrow ia tomando nota dos aspectos físicos das coisas à sua volta, da mesma maneira que procuraria as saídas de emergência se fosse num avião que se encontrasse numa zona de turbulência: as estacas mal enterradas, as cordas frouxas - a mais leve brisa poderia mandar tudo pelos ares! - a passadeira de sizal completamente enlameada - alguém poderia escorregar e por-me um processo - a porta aberta e não guardada para o andar de baixo - os ladrões podiam ter esvaziado a casa sem darmos por isso.

 

Ao passar junto à tenda da cozinha ficou desconcentrado com o grande número de penetras que se tinham juntado à espera das sobras do bufete e que se sentavam como num quadro de Rembrandt, à luz de um petromax. Deviam ser uma dúzia deles, pensou ele, indignado, além das vinte crianças a dormir no chão. Bem, seis pelo menos. Ficou igualmente perturbado pela vista dos polícias cheios de sono e de copos, sentados à mesa da cozinha com os casacos e as pistolas arrumados nas costas das cadeiras. 0 seu estado, contudo, convenceu-o de que não seriam eles os autores da carta que ainda tinha na mão.

 

Saindo da cozinha pela escada das traseiras, Mustafa iluminou o caminho com uma lanterna eléctrica até ao átrio e daí até à porta da frente. Os rapazes! lembrou-se Woodrow com um terror súbito. Deus me livre se eles me vêem assim! E se virem? Vêem o pai de smoking com o lacinho desatado à volta do pescoço. Porque haveriam de pensar que ele ia a caminho da forca? Além disso

- lembrou-se agora - Glória tinha despachado os rapazes para casa de amigos. já tinha visto muitos filhos de diplomatas nas festas e não queria isso para Philip e Harry.

 

Mustafa segurava aberta a porta da frente, agitando a lanterna lá para fora. Woodrow saíu de casa. Escuro de breu. Para um efeito romântico Glória tinha apagado as luzes do exterior, contando apenas com filas e filas de velas a maior parte das quais, misteriosamente, se tinha apagado. Estava uma noite linda mas Woodrow não estava com disposição para olhar para as estrelas. Mustafa deslizava para o portão como um fogo-fátuo, acenando-lhe com a lanterna.

0 porteiro baluhya abriu os portões enquanto a numerosa família observava Woodrow com a intensa curiosidade habitual. Havia carros estacionados nos dois lados da estrada, com os motoristas a dormitar ou a conversar uns com os outros. Mercedes com motoristas, Mercedes sem eles, Mercedes com lobos de Alsácia, a habitual multidão de nativos sem nada para fazer a não ser ver a vida a passar-lhes ao lado. 0 barulho da orquestra era aqui tão terrível como dentro da tenda. Woodrow não se espantaria se recebesse no dia seguinte alguma queixa formal. Os belgas do número 12 mandam-nos a polícia se um dos nossos cães se peidar no seu espaço aéreo.

 

Mustafa parara junto ao carro de Ghita. Woodrow conhecia-o bem. Tinha-o observado muitas vezes, bem protegido pela janela do seu gabinete, geralmente com um copo na mão. Era um carrinho ppones tão apertado que quando ela escorregava lá para dentro ele imaginava-a a vestir o fato de banho. Porque é que paramos aqui, interrogava Mustafa com o olhar. 0 que é que o carro de Ghita tem a ver com eu estar a ser chantageado? Começou a pensar quanto dinheiro conseguiria reunir. Eles queriam centenas? Ou milhares? Dezenas de milhar? Vou ter que pedir dinheiro emprestado a Glória, mas que raio de desculpa irei inventar? No fundo, era só uma questão de dinheiro. 0 carro de Ghita estava estacionado o mais longe possível dum candeeiro. As lâmpadas estavam apagadas mas nunca se sabia quando voltariam. Woodrow calculou que teria consigo umas oitenta libras em xelins quenianos. Quanto silêncio poderia comprar com esse dinheiro? Começou a pensar em termos de negociação. Que garantias poderia ter de que o tipo não voltaria à carga dentro de seis meses, ou de seis anos? Fala com o Pellegrin, pensou num rasgo de humor negro: pede ao velho Bernard que torne a pôr a pasta de dentes no tubo.

 

A menos que...

 

Prestes a afogar-se, Woodrow agarrou-se, para se salvar, à mais parva de todas as palhas.

 

Ghita! Ghita roubou a carta! Ou, mais provavelmente, Tessa deu-lha a guardar. Ghita mandou Mustafa sacar-me da festa e agora vai castigar-me pelo que eu fiz na festa da Elena. E lá está ela! Sentada ao volante, à minha espera. Deu a volta à casa e lá está no seu carro, a minha subordinada, à minha espera para me chantagear!

 

Ficou mais animado, ainda que por segundos. Se for a Ghita, podemos chegar a acordo. Posso sempre dar-lhe a volta. Pode ser mais do que um acordo.

0 seu desejo de me destruir é só o reverso de outros desejos, mais construtivos.

 

Mas não era Ghita. Quem quer que fosse era, sem qualquer dúvida, um homem. 0 motorista de Ghita? 0 seu namorado que veio buscá-la à festa para que ninguém a pudesse levar? A porta do passageiro estava aberta. Sob o olhar impassível de Mustafa, Woodrow instalou-se no carro. Não como se estivesse a pôr o fato de fato. Mais como a entrar num carrinho de choques, no parque de atracções, com o seu filho Phillip. Mustafa fechou-lhe a porta. 0 carro abanou, o homem ao volante não fez qualquer movimento. Estava vestido como se vestem alguns citadinos africanos, em estilo Sr. Moritz, mau grado o calor, com um anorak escuro e um barrete de lã enterrado até aos olhos. Seria preto ou branco? Woodrow aspirou o ar, mas não lhe chegou nenhum doce perfume africano.

 

- Linda música, Sandy - disse Justin calmamente, enquanto estendia o braço para pôr o motor em marcha.

 

 

Woodrow estava sentado numa cadeira de teca lavrada com uma etiqueta de 5000 dólares. Estava um pouco de lado com o cotovelo num mata-borrão emoldurado em prata, um pouco menos valioso. A chama de uma única vela iluminava o seu rosto suado e brilhante. Do tecto pendiam estalactites de cristal que reflectiam a chama da vela até ao infinito. Justin estava de pé, na escuridão do outro lado da sala, encostado à ombreira da porta, tal como Woodrow se tinha encostado à porta do gabinete de Justin no dia em que lhe dera a notícia da morte de Tessa. Tinha as mãos atrás das costas, para evitar que elas fizessem qualquer gesto. Woodrow observava as sombras projectadas pela vela numa das paredes da sala. Podia imaginar elefantes, girafas, gazelas, rinocerontes rampantes, rinocerontes passantes. As sombras de outra parede eram só pássaros: pássaros no ninho, aves aquáticas de longos pescoços, aves de rapina segurando nas garras pássaros mais pequenos, pássaros gigantes empoleirados em troncos com caixas de música, preços variáveis. A casa era numa ruazinha arborizada. Não passava ninguém. Ninguém espreitaria à janela para ver um branco meio-bêbado de smokíng, com o laço desatado a falar para uma vela na loja de Arte Africana e Oriental do Sr. Ahmad Khan, a cinco minutos de carro do Muthaiga Clube, à meia-noite e meia hora.

 

- Khan é seu amigo? Sem resposta.

 

- Onde arranjou a chave disto? Ele é amigo da Ghita, não é? Sem resposta.

 

- Amigo da família, se calhar. Da família da Ghita, claro. - Tirou um lenço de seda da algibeira superior do smoking e limpou superficialmente as lágrimas que tinha nas faces. Mal as tinha limpo, novas lágrimas apareceram e ele teve também de as limpar. - 0 que é que eu lhes digo quando voltar? Se é que vou voltar.

 

- Hás-de ter uma ideia qualquer.

 

- Geralmente tenho, - admitiu Woodrow para o seu lenço.

- Tenho a certeza que vais ter, - disse Justin.

 

Assustado, Woodrow voltou a cabeça para olhar para ele, mas Justin continuava junto à porta, as mãos prudentemente entrelaçadas atrás das costas.

- Quem te disse para fazer desaparecer o relatório, Sandy? - perguntou justin.

 

- Pellegrin, quem é que havia de ser? «Queime tudo, Sandy, todas as cópias.» Ordens do trono. Só tinha ficado com uma. Mas nessa altura queimei-a. Não demorou muito. - Fungou, resistindo ao impulso de voltar a chorar. - Porto-me muito bem, como vês. Preocupo-me com a segurança. Não confio nos contínuos. Levei-o nas minhas brancas mãos para a casa da caldeira. Atirei-o para as chamas. Bem treinado. 0 melhor da turma.

 

- 0 Porter soube o que tu fizeste?

 

- Acho que sim. E não gostou. Como não gosta do Bernard. Guerra aberta entre os dois. Aberta segundo os códigos do Ministério. Porter costumava dizer uma piada a esse respeito. Achámo-la muito engraçada naquela altura: Pellegrin and bear ít *.

 

E pelos vistos ainda achava porque deu uma gargalhada que acabou em mais lágrimas.

 

- 0 Pellegrin disse-te porque é que tinhas que o queimar? Queimar todos os exemplares?

 

- Meu Deus! - murmurou Woodrow.

 

Grande silêncio durante o qual Woodrow parecia hipnotizado pela luz da vela.

 

- 0 que é? - perguntou Justin.

 

- A tua voz, meu rapaz. Só isso. Envelheceu. - Woodrow passou a mão pelos lábios e olhou depois para a ponta dos dedos. - Era suposto teres atingido o máximo da voz.

 

Justin repetiu a pergunta, mas deu-lhe uma volta como se estivesse a falar para um estrangeiro ou uma criança. - Pensaste em perguntar a Pellegrin porque é que o relatório tinha de ser destruído?

 

- Era um pau de dois bicos, segundo Bernard. Para começar, punha em risco os interesses britânicos. Tínhamos que os proteger.

 

- Acreditaste nele? - perguntou Justin e teve, de novo, de esperar que Woodrow secasse outro surto de lágrimas.

 

- Acreditei que se tratava das Três Abelhas. Claro que acreditei. Ponta de lança dos empreendimentos britânicos em África. A jóia da Coroa. Curtiss, o querido dos líderes africanos, distribuindo dinheiro à esquerda, à direita e ao

 

Range os dentes para o Pelle e aguenta. (N. T)

 

centro, um grande trunfo nacional. E além disso, anda de língua na boca com metade dos Ministros de Sua Majestade, o que não o prejudica em nada.

 

- E qual era o outro bico?

 

- A K-VH. Os rapazes de Basileia andam há tempos a mandar uns sinais de amor a respeito de abrirem uma grande fábrica de medicamentos no sul do País de Gales. Depois uma outra na Cornualha. E finalmente uma terceira na Irlanda do Norte. Trazendo riqueza e prosperidade para as nossas regiões menos favorecidas. Mas se atacarmos o Dypraxa, retiram todos os projectos.

- Atacar?

 

- 0 medicamento estava ainda em fase de testes. E, teoricamente, ainda está. Se ele envenena umas tantas pessoas que em qualquer caso iriam morrer, qual é o problema? 0 Dypraxa ainda não está autorizado no Reino Unido, portanto não interessa. - Tinha-lhe voltado a truculência. Apelava para um colega profissional. - Caramba, Justin. Os remédios têm que ser testados em alguém, não têm? Quer dizer, quem diabo é que vamos escolher? Alunos de Harvard? - Espantado de não ter o apoio de Justin para este argumento, Woodrow avançou outro. - Quer dizer, gaita! 0 Ministério não está vocacionado para julgar da segurança de medicamentos estrangeiros, pois não? É suposto lubrificar os mecanismos da indústria britânica, não certamente a dizer a toda a gente que uma empresa britânica está a envenenar os seus clientes. Sabes a regra do jogo. Não somos pagos para termos um coração sofredor. Não estamos a matar gente que, doutra maneira, continuaria viva. Quer dizer, caramba, pensa na taxa de mortalidade destas terras. A morte deste ou daquele não conta.

 

Justin tomou algum tempo para analisar estes belos argumentos. - Mas tu tinhas um coração sofredor, Sandy, - objectou ele, por fim. - Estavas apaixonado por ela. Lembras-te? Como é que pudeste queimar-lhe o relatório, se estavas tão apaixonado? - A voz não parecia capaz de dominar a fúria. - Como é que pudeste mentir-lhe quando ela confiou em ti?

 

- Bernard disse que ela tinha de ser detida, - balbuciou Woodrow olhando furtivamente para as sombras para confirmar que Justin continuava no seu posto, junto à porta.

 

- Lá isso, foi mesmo detida!

 

- Por amor de Deus, Quayle! - murmurou Woodrow. - Não foi nada disso. Foram outros tipos. Não do meu mundo. Nem do teu.

 

Justin deve ter ficado alarmado com a sua própria explosão, porque quando voltou a falar foi no tom civilizado de um colega desiludido.

 

- Como é que tu a poderias deter, como dizes, se a adoravas tanto, Sandy? Como lhe escreveste, ela era a tua salvação de tudo isto. - Justin deve ter-se esquecido de onde estava porque fez um gesto largo que abrangia não só os esquemas que aprisionavam Sandy, mas também manadas e manadas de animais esculpidos em madeira, alinhados nas suas prateleiras de vidro. - Ela era a tua fuga de tudo, o teu caminho para a felicidade e a liberdade, como tu lhe disseste. Porque é que não apoiaste a causa dela?

 

- Desculpa, - murmurou Woodrow e baixou os olhos enquanto Justin escolhia outra pergunta.

 

- 0 que é que tu queimaste, exactamente? Porque é que o documento era tão ameaçador para ti e para Bernard Pellegrin?

 

- Era um ultimato.

- A quem?

 

- Ao governo britânico.

 

- Tessa fez um ultimato ao governo britânico? Ao nosso governo?

 

- Intimando-o a agir. Sentia-se ligada a nós. A ti. Era mulher dum diplomata britânico e estava decidida a proceder de acordo com as normas diplomáticas britânicas. «O caminho mais fácil é ultrapassar o Sistema e ir para os jornais. 0 caminho difícil é obrigar o Sistema a funcionar bem. Prefiro o difícil.» Foi o que ela disse. Tinha a patética noção de que os britânicos tinham mais

integridade - mais virtude na governação - do que qualquer outro povo. Uma ideia que o pai aparentemente lhe tinha metido na cabeça. Disse que Bluhm, concordara em que os britânicos podiam fazer avançar o caso, se fizessem jogo limpo. Se eles têm interesses em jogo, deixemo-los lidar com as Três Abelhas e com a KVH. Nada de confrontos. Nada de hostilidades. Persuadi-los apenas a retirar o medicamento do mercado até ele estar afinado. Se o não fizessem...

- Ela pôs-lhes um limite de tempo?

 

- Aceitou que o prazo fosse diferente de zona para zona. América do Sul, Médio Oriente, Rússia, índia. Mas a primeira preocupação seria em África. Queria provas de que, nos próximos três meses o remédio estava a desaparecen Depois disso, a merda atingiria a ventoinha. Não foi assim que ela disse, mas quase.

 

- E foi isso que mandaste dizer para Londres?

- Foi.

 

- E o que é que Londres fez?

 

- Foi Pellegrin quem respondeu.

- 0 quê?

 

- Disse que tudo aquilo era uma ingénua trapalhada. Disse que só o que faltava é que a política do Ministério lhe fosse ditada por uma dona-de-casa inglesa e pelo seu amante preto. E meteu-se num avião para Basileia. Almoçou com a malta da KVH. Perguntou-lhe se eles podiam, temporariamente, pôr no mastro a bandeira vermelha. Responderam-lhe que a bandeira vermelha não bastava e que não havia nenhuma maneira discreta de retirar da circulação um medicamento. Os accionistas nunca aprovariam. Não que lhes perguntassem qualquer coisa, mas se perguntassem, não deixavam. Logo, a Administração também não. Os remédios não são receitas de cozinha. Não é possível tirar um ingrediente, um átomo ou o que for, juntar qualquer coisa e tentar de novo. A única coisa que se pode fazer é afinar as doses, mas não alterar a fórmula. Se quiserem modificar qualquer coisa, é preciso voltar à estaca zero, foi o que lhe disseram, e que ninguém ia fazer isso nesta altura do processo. Depois ameaçaram suprimir os investimentos em Inglaterra e aumentar o número de desempregados de Sua Majestade.

 

- E as Três Abelhas?

 

- Isso foi outro almoço. Caviar e champanhe no avião de Kenny K. Bernard e Kenny concordaram que haveria uma tempestade em África se fosse divulgada a história de que as Três Abelhas andavam a envenenar pessoas. A única coisa a fazer era cerrar fileiras enquanto os cientistas da KVH poliam a fórmula e afinavam as doses. Bernard já só tem mais dois ou três anos. Tem chances de ir para a Administração das Três Abelhas. A KVH também o aceita. E dois Conselhos é melhor que um.

 

- Quais foram as provas que a KVH contestou?

 

A pergunta pareceu provocar um arrepio de sofrimento no corpo de Woodrow. Inclinou-se para a frente, agarrou a cabeça com ambas as mãos e acabou por esfregar energicamente o couro cabeludo com a ponta dos dedos. Inclinou-se ainda mais e murmurou: - Chiça!

 

- Vem beber água, - sugeriu Justin e conduziu-o ao longo do corredor até um lavatório e deixou-se ficar ao seu lado tal como ficara ao pé dele quando Woodrow vomitara na morgue. Woodrow pôs as mãos sob o jacto da torneira e salpicou a cara com água.

 

- As provas eram impressionantes - murmurou Woodrow, voltando para o seu lugar. - Bluhm e Tessa tinham andado de aldeia em clínica falando aos doentes, às famílias, aos amigos. Curtiss soube disso e desencadeou uma contra-operação. Disse ao Crick que organizasse tudo. Mas Tessa e Bluhm também souberam disso. Voltaram atrás, procuraram as pessoas com quem tinham falado. Não conseguiram encontrá-las. E escreveram no relatório que as Três Abelhas não só andavam a envenenar pessoas como também a destruir todas as provas. - «Essa testemunha desapareceu desde então. Aquela outra foi acusada de crimes. Aquela aldeia foi esvaziada dos seus habitantes.» Fizeram um grande trabalho. Podes estar orgulhoso dela.

 

- Aquela mulher, Wanza, figura no relatório?

 

- Era praticamente a estrela. Mas fizeram calar definitivamente o irmão dela.

- Como?

 

- Prenderam-no. Extraíram-lhe uma confissão. Foi a tribunal a semana passada. dez anos por ter assaltado um turista branco no Parque Nacional de Tsavo. 0 turista nunca veio testemunhar, mas uma data de africanos, mortos de medo, viram o rapaz fazer o que a polícia disse. 0 juiz condenou-o a trabalhos forçados e vinte bastonadas, para aprender.

 

Justin fechou os olhos. Viu o rosto engelhado de Kioko, acocorado no chão, junto à irmã. Sentiu a mão crispada de Kioko agarrando na sua, quando do funeral de Tessa.

 

- E mesmo assim não sentiste nenhuma obrigação, quando leste o relatório e sabias que era tudo verdade, de dizeres alguma coisa aos quenianos? De novo a truculência: - Por amor de Deus, Quayle! Quando é que tu vestiste o teu melhor fato e foste ao Comando da Polícia para os acusar de terem montado uma encenação e receberem as libras de Kenny K. pelo seu trabalho? Essa não é a maneira de fazer amigos e de influenciar as pessoas aqui em Nairobi.

 

Justin afastou-se da porta, respirou fundo e retomou a distância que se tinha imposto a si mesmo: - Creio que havia também provas clínicas.

 

- Havia o quê?

 

- Estou a falar das provas clínicas incluídas no relatório de Arnold Bluhm e Tessa Quayle e destruído por TI! A pedido de Bernard Pellegrin! E no entanto foi fornecida uma cópia à KVH que o folheou durante o almoço!

 

0 eco desta explosão fez estremecer as prateleiras de vidro. Woodrow esperou que o barulho cessasse.

 

- As provas clínicas eram da responsabilidade de Bluhm. Estavam num anexo. Foi ela que assim quis. Fez o mesmo que tu costumavas fazer. Tu és um homem de anexos. Ou foste. Ela também.

 

- 0 que é que diziam as provas clínicas?

 

- Casos precisos. Trinta e sete. Nomes, direcções, tratamentos, lugar e data do enterro. Os mesmos sintomas de cada vez. Sonolência, cegueira, hemorragias, colapso do fígado, fim.

 

- Fim quer dizer morte?

 

- Sim, pode-se dizer que é isso. Acho que sim.

- E a KVH contestou essas provas?

 

- Não-científicas, subjectivas, preconceituosas, tendenciosas, emocionalizadas. Essa nunca tinha ouvido: Emocionalizada, Quer dizer que tu queres tanto ser acreditado que perdes a credibilidade. Eu sou precisamente o contrário. Desemocionalizado. Indemocionalizado. Menos sentes, menos gritas. Maior o vazio que tens de preencher. Não tu, eu.

 

- Quem é Lorbeer?

- A sua «bête noire».

- Porquê?

 

- A força que está por trás do medicamento. 0 paladino. Convenceu a KVH a críá-lo e evangelizou as Três Abelhas. Segundo ela, o maior dos cabrões,

 

- Ela disse que ele a traiu?

 

- Porque é que havia de dizer? Todos nós a traímos. - Estava a chorar descontroladam ente. - Também tu, todo descansado e a cultivar flores, enquanto ela se conduzia como uma santa.

 

- Onde está o Lorbeer?

 

- Nenhuma ideia. Ninguém soube. Sentiu de onde soprava o vento, mergulhou e desapareceu. As Três Abelhas andaram à procura dele e depois deixaram cair o assunto. Tessa e Bluhm foram à caça dele. Queriam-no como principal testemunha. E encontraram-no.

 

- E a Emrich?

 

- É uma das inventoras do Dypraxa. Veio cá uma vez. Tentou lixar a KVH. E eles deram cabo dela.

 

- A Kovacs?

 

- 0 terceiro membro da quadrilha. Completamente por conta da KVH. Uma puta, ao que parece. Nunca a vi. Acho que vi Lorbeer, uma vez. Um boer gordo. Olhos de peixe. Ruivo.

 

Deu um sobressalto, aterrorizado. Justin estava mesmo ao lado. Tinha pousado uma folha de papel à frente de Woodrow e estendía-lhe uma esferográfica, a cabeça na sua direcção, como fazem as pessoas bem educadas quando passam coisas umas às outras.

 

- É um salvo-conduto, - explicou Justin. - Um dos vossos. - Leu o texto alto para que Woodrow ouvisse. - «O portador é um cidadão britânico, viaJando por conta da Alta Comissão Britânica em Nairobi.» Assina.

 

Woodrow examinou o papel aproximando-o da vela. - Peter Paul Atkinson. Quem é?

 

- 0 que o papel diz. Um jornalista britânico. Escreve no Telegraph. Se alguém contactar a Alta Comissão para confirmação, ela dirá que ele é um jornalista honesto de grande reputação. Vais-te lembrar disso?

 

- Para que diabo é que ele quer ir a Loki. É o olho do cu do mundo. Ghita foi lá outro dia. É suposto isto ter uma fotografia, não é?

 

- Há-de ter. - Woodrow assinou o papel, Justin dobrou-o, guardou-o no bolso e dirigiu-se rapidamente para a porta. Uma fila de relógios de cuco, «made in Taiwan» anunciou que era uma hora da manhã.

 

Mustafa estava à espera no passeio com a sua lanterna quando Justin apareceu ao volante do carrinho de Ghita. Devia tê-lo ouvido chegar. Woodrow, sem perceber que tinha sido reconduzido a casa, continuava sentado com as mãos crispadas no colo e olhando pelo pára-brisas. Justin inclinou-se e falou com Mustafa através da janela do lugar do passageiro. Falou em inglês com algumas palavras de swahili de cozinha, o único que conhecia.

 

- 0 Sr. Woodrow não se sente bem, Mustafa. Tu trouxeste-o cá fora para ele apanhar ar e vomitar. Agora tem que ir para o seu quarto e deitar-se até que a Sra. Woodrow possa ocupar-se dele. Diz a Miss Ghita, por favor, que estou pronto para me ir embora.

 

Woodrow começou a sair do carro e depois voltou-se para Justin. - Não vais contar nada disto à Glória, pois não? Não ganhavas nada com ISSO, agora que já sabes tudo. E ela não tem a tua sofisticação. Nós é que fomos colegas e tudo isso. Não é verdade?

 

Como alguém que tivesse de transportar um fardo que lhe metia nojo, embora não quisesse mostrá-lo, Mustafa sacou Woodrow de dentro do carro e conduziu-o à porta de entrada. Justin tinha tornado a pôr o anorak e o barrete de lã. Clarões de várias cores saíam da tenda. A orquestra tocava um rap infindável. Sentado no carro, justin olhou para a esquerda e pareceu-lhe ver a sombra de um homem alto junto aos rododendros do canto do Jardim, mas quando olhou melhor já não viu nada. No entanto continuou a olhar, prímeíro para os arbustos, depois para os carros estacionados. Ouvindo passos, voltou-se e viu um vulto a apressar-se na sua direcção, e era Ghita com um xaile sobre os ombros, sapatos de baile numa das mãos e uma lanterna eléctrica na outra. Sentou-se no lugar do passageiro e justin arrancou com o carro.

- Andam todos sem saber onde ele está, - disse ela.

 

- Donohuie estava na festa?

 

- Não me parece. Não tenho a certeza. Mas não o vi.

 

Ele começou a fazer uma pergunta, mas depois achou que era melhor não. justin conduzia devagar, observando os carros estacionados, olhando muitas vezes para o retrovisor. Passou em frente da sua própria casa mas mal olhou para ela. Um cão amarelo atirou-se ao carro, tentanto abocanhar as rodas. justin afastou-se devagar, sempre a olhar para o espelho. Enormes buracos apareciam-lhe à luz dos faróis como se fossem pequenos lagos negros. Ghita voltou-se para olhar pela janela de trás. A estrada estava em escuridão total.

 

- Vá olhando para a frente, - ordenou-lhe ele. - Não sei muito bem o caminho. Vá-me dizendo esquerdas e direitas.

 

Guiava agora mais depressa, manobrando entre os buracos, saltando sobre as bossas do asfalto, procurando o centro da estrada, por desconfiar das bermas, Ghita ia murmurando: aqui à esquerda, outra vez à esquerda, grande buraco em frente. Justin afrouxou subitamente, e um carro ultrapassou-os, seguido de outro.

 

- Viu alguém conhecido? - perguntou ele.

- Não.

 

Entraram numa avenida bordada de árvores. Uma velha tabuleta dizendo AJUDEM OS VOLUNTÁRIOS barrava o caminho. Uma fila de rapazes emagrecidos empunhando paus e um carrinho de mão sem roda ocupavam a largura da estrada.

 

- Eles estão sempre aqui?

 

- De dia e de noite, - disse Ghita. - Tiram pedras de um buraco e põe-nas num outro. E assim nunca acabam o trabalho.

 

Carregou no travão. 0 carro parou mesmo junto à tabuleta. Os rapazes rodearam o carro dando palmadas no tejadilho do carro. justin baixou o vidro quando uma luz varreu o interior do automóvel. Apareceu o porta-voz de olho esperto e largo sorriso. Teria 16 anos, quando muito.

 

- Boa noite, Bwana, - gritou ele num tom de grande cerimônia. - Eu sou o Sr. Simba.

 

- Boa noite, Sr. Simba, - disse justin.

 

- Quer contribuir para esta bela estrada que estamos a fazer, amigo? justin, através da janela, passou-lhe uma nota de cem xelins. 0 rapaz afastou-se a dançar, triunfante, acenando com a nota por cima da cabeça.

 

- Qual é a tarifa habitual? - perguntou Justin a Ghita enquanto continuavam.

 

- Um décimo daquilo.

 

Outro carro ultrapassou-os e justin olhou de novo intensamente os seus ocupantes, mas pareceu não encontrar quem procurava. Chegaram ao centro da cidade. Montras iluminadas, cafés, muita gente na rua. Autocarros matutu passando a atroar música. Do lado esquerdo, o ruído de uma colisão, seguido de gritos e buzinadelas. Ghita continuava a dirigí-lo: é aqui, entre o portão. Justin subiu uma rampa e foi dar ao pátio de um edifício de três andares, em mau estado. Escritas na parede, as palavras: VEM ATÉ JESUS!

 

- Isto é uma igreja?

 

- Era uma clínica dentária adventista, - explicou Ghita. - Agora são apartamentos.

 

0 parque de estacionamento era um terreno rodeado de arame farpado. Se Ghita estivesse sozinha nunca teria dirigido o carro para ali, mas ele já estava a descer uma rampa. Parou o carro e ela observou-o enquanto ele, de ouvido atento, olhava para a rampa que tinham descido.

 

- Está à espera de quem? - murmurou ela.

 

Ele ajudou-a a atravessar grupos de crianças sorridentes e a entrar no vestíbulo. Um papel escrito à mão dizia SERVIÇO DE ELEVADOR SUSPENSO. Atravessaram até uma escada cinzenta iluminada por uma lâmpada muito fraca. justin subiu atrás dela até chegarem ao último andar, completamente às escuras. Tirando da algibeira uma pequena lanterna eléctrica justin iluminou o caminho. Música oriental e aromas de cozinha asiática passavam através das portas fechadas. Entregando-lhe a lanterna, justin voltou à escada enquanto Ghita abria uma corrente que prendia uma grade e dava três voltas à chave. Assim que entrou no apartamento, o telefone tocou. Procurou Justin com o olhar e descobriu que ele estava a seu lado.

 

- Olá Ghita, minha querida - disse uma voz masculina que ela não reconheceu imediatamente. - Estava linda, esta noite. Daqui fala o Tim Donohue. Estava a pensar se poderia dar aí um salto e tomar café com vocês a olhar para as estrelas.

 

0 apartamento de Ghita era pequeno, só três divisões, todas elas dando para o mesmo armazém e para uma rua muito movimentada, cheia de anúncios de néon quebrados, carros barulhentos e intrépidos pedintes que se atravessavam no caminho dos carros e só se desviavam no último momento. Uma janela gradeada dava para uma escada metálica exterior que era suposta ser uma escada de salvação mas à qual os inquilinos, por razões de segurança, tinham serrado o lanço inferior. Mas os outros lanços estavam intactos e Ghita, nas noites de calor, podia subir até ao telhado e instalar-se junto ao depósito da água e estudar para o exame do Foreign Office que ela tinha decidido passar no ano seguinte. Ali ouvia os ruídos dos seus amigos asiáticos que enchiam o prédio de alto a baixo, partilhar das suas músicas, as suas discussões e os gritos das crianças e quase se convencia de que estava entre o seu povo.

 

E embora essa ilusão se desvanecesse mal passava os portões da Alta Comissão e punha a sua outra pele, o seu telhado com os gatos e as galinhas e a roupa a secar e as antenas de televisão era um dos poucos sítios onde ela se sentia à-vontade, o que talvez explique a sua falta de surpresa quando Donohue propôs que fossem para lá tomar café, sob a luz das estrelas. Como é que ele sabia que ela tinha um telhado era um mistério para ela, porque, se ela soubesse, ele nunca tinha posto os pés no seu apartamento. Mas sabia. Sob o olhar desconfiado de Justin, Donohue apareceu à porta e, pondo um dedo nos lábios, atravessou a sala e passou o seu corpo desengonçado pela janela fazendo-lhes sinal para o seguirem. Justin foi a seguir e Ghita foi depois ter com eles levando o tabuleiro do café. Donohue estava sentado num caixote, com os joelhos ao nível das orelhas. Mas Justin não conseguia estar sentado fosse onde fosse. Num momento estava postado como uma sentinela contra os anúncios do outro lado da rua, logo a seguir acocorado ao lado dela, cabeça baixa como um homem que estivesse a escrever na areia com um dedo.

 

- Como é que o meu amigo conseguiu atravessar as linhas inimigas? - perguntou Donohue sobrepondo-se ao ruído do trânsito, enquanto sorvia o café.

- Um passarinho disse-me que você esteve em Saskatchewan há poucos dias.

- Uma excursão-safari, - disse Justin.

 

- Via Londres?

- Amsterdão.

 

- Um grupo grande?

 

- 0 maior que encontrei.

- Com o nome de Quayle?

- Mais ou menos.

 

- E quando é que saltou do barco?

 

- Em Nairobi. Assim que passámos a alfândega e a imigração.

 

- Esperto menino. Julguei-o mal. Pensei que ia seguir um caminho por terra. Que viesse da Tanzânia ou um sítio desses.

 

- Ele não deixou que o fosse buscar ao aeroporto, - disse Ghita com ar protector. - Chegou cá à noite, de táxi.

 

- 0 que é que você quer? - perguntou Justin, de dentro da escuridão.

 

- Quero uma vida tranquila, se o amigo não se importa. já tenho idade para isso. Não quero mais escândalos. Não quero levantar mais pedras. Não quero mais tipos a esticar o pescoço e a tentar ver o que já não existe.

 

A sua angulosa silhueta voltou-se para GhIta: - 0 que é que foi fazer a Loki, querida?

 

- Foi lá a meu pedido, - cortou Justin antes que ela pudesse pensar numa resposta.

 

- Era a obrigação dela - disse Donohue, concordando. - E em relação a Tessa também, claro. Ghita é uma rapariga admirável... - E outra vez para Ghita, com mais intenção. - E encontrou o que procurava, querida? Missão cumprida? Estou certo que sim.

 

Justín de novo, ainda mais rápido: - Pedi-lhe para averiguar como foram os últimos dias de Tessa em Loki. Para ter a certeza que fizeram o que disseram que tinham ido fazer: participar num seminário sobre a condição feminina em África.

 

- E confirmou a versão deles, não foi, querida? - perguntou Donohue dirigindo-se a Ghita.

 

- Confirmei.

 

- Ainda bem - observou Donohue e sorveu mais um golo. - Vamos falar de negócios? - sugeriu ele, para Justin.

 

- Pensei que era isso que estávamos a fazer.

- Acerca dos seus planos.

 

- Quais planos?

 

- Os planos precisos. Por exemplo, se está na sua ideia trocar umas palavrinhas com Kenny K. CurtISS, está a perder o seu tempo. Dou-lhe esta opinião e não lhe levo nada.

 

- Porquê?

 

- Os rapazes dele estão à sua espera, primeira razão. A segunda é que ele está liquidado, está completamente fora do jogo se é que alguma vez esteve dentro. Os bancos tiraram-lhe os brinquedos. Os interesses farmacêuticos das Três Abelhas vão voltar para de onde vieram: KVH.

 

Nenhuma reacção.

 

- 0 que eu quero dizer, Justin, é que não se tem uma grande satisfação em dar tiros em alguém que já está morto. Se é de satisfação que anda à procura. Ou não é?

 

Nenhuma resposta.

 

- Quanto ao assassinato de sua mulher, por muito que custe dizer-lhe isto, Kenny K não teve qualquer autoria moral, como se diz nos tribunais. Nem o seu factotum, o Sr. Crick, embora não tenha dúvidas que ele teria saltado sobre a oportunidade, se ela lhe tivesse sido oferecida. Crick tinha instruções para assinalar à KVH todos os movimentos de Arnold e de Tessa. Para isso utilizou largamente os recursos locais de Kenny K, nomeadamente a polícia queniana, para os ter sempre debaixo de olho. Mas não teve mais «autoria moral» do que Kenny K. Uma vigilância apertada não é um assassinato,

 

- Quem é que Crick informava? - perguntou a voz de Justin.

 

- Crick informava um gravador no Luxemburgo que foi, entretanto, desligado. Daí a mensagem fatal era passada para os interessados por um circuito que nem eu nem você poderemos jamais estabelecer. Até que chegaram aos ouvidos dos delicados cavalheiros que assassinaram a sua esposa.

 

- Marsabit, - disse Justin, muito próximo.

 

- É verdade. Os célebres Dois de Marsabit. Na sua carrinha verde dos safaris. Juntaram-se-lhe quatro africanos, caçadores como eles. 0 prémio para o trabalho era de um milhão de dólares a ser dividido segundo o critério do chefe deles, conhecido por Coronel Elvis, Tudo de que podemos ter a certeza é que o nome dele não é Elvis e que nunca chegou a coronel, nem nada que se aproximasse.

 

- Crick informou Luxemburgo que Tessa e Arnold iam para Turkana?

- Essa, meu filho, é uma pergunta fora do nosso alcance.

 

- Porquê?

 

- Porque Crick não quer responder. Tem medo. Como eu queria que voce tivesse. Crick tem medo de ser muito liberal com as suas informações e com as informações que recebe (e transmite) de alguns amigos dele. Tem medo de que lhe cortem a língua para dar espaço para os testículos. E é capaz de ter razão.

 

- 0 que é que você quer? - repetiu Justin. Estava acocorado junto de Donohue, fixando os seus olhos batidos.

 

- Quero dissuadi-lo de fazer aquilo que você quer fazer, filho. Dizer-lhe que seja o que for que quer descobrir, nunca o descobrirá, o que não o impedirá de ser assassinado. Há um contrato para o liquidar assim que puser os pés em África, o que, pelos vistos, já aconteceu. Qualquer mercenário renegado ou qualquer chefe de quadrilha só pensa em descobrir onde você está. Meio milhão para o matarem, um milhão para que essa morte pareça um suicídio, a solução preferida. Pode pagar toda a protecção que quiser, não lhe vai servir rigorosamente de nada. Você irá muito provavelmente contratar os tipos que desejam matá-lo.

 

- Porque é que o seu Serviço se preocupa se eu morro ou não morro?

 

- Em termos profissionais, não há qualquer preocupação. Em termos pessoais, não gostaria que vencessem os maus. - Respirou fundo. - A propósito, devo dizer-lhe que Arnold está tão morto como uma múmia e isto há duas semanas. Portanto se você anda por aí para o salvar, receio que, mais uma vez, não haja nada para salvar.

 

- Prove-o, - ordenou Justin com rudeza, enquanto Ghita lhes voltava as costas em silêncio e enterrava o rosto no antebraço.

 

- Eu estou velho, próximo da morte e estou a revelar-lhe coisas que fariam com que os meus chefes me fizessem fuzilar ao amanhecer. É a única prova que lhe posso dar. Bluhm foi agredido até perder os sentidos, metido na carrinha-safari e levado para o deserto. Sem água, sem sombra, sem comida. Torturaram-no durante uns dias na esperança de descobrir se Tessa e ele teriam feito cópias das disquetes que apareceram no carro deles. Tenho muita pena, Ghita. Bluhm disse que não, que não tinham feito nenhumas cópias, mas eles não aceitaram o «não» como resposta. E por isso torturaram-no até à morte para sua salvaguarda, mas também porque isso lhes dava prazer, E depois abandonaram o corpo às hienas. Receio bem que tudo isto seja a verdade.

 

- Oh meu Deus.

 

Era Ghita a falar para as mãos em concha.

 

- Pode, por isso, riscar Bluhm da sua lista, assim como Kenny K Curtiss. Nenhum deles já vale a viagem. - E continuou, imperioso: - E entretanto oiça isto. Porter Coleridge está a combater por si, lá em Londres. E isto não é top-secret. Toda a gente sabe.

 

Justin tinha desaparecido do campo visual de Ghita. Ela procurou melhor e encontrou-o atrás dela.

 

- Porter reclama que o caso de Tessa seja re-atribuído aos agentes policiais que o tinham investigado e que a cabeça de Gridley seja colocada num tabuleiro ao lado da de Pellegrin. Quer que as relações entre CurtiSS, KVH e governo britânico sejam exaustivamente analisadas e, já agora, anda a espicaçar com uma picareta os pés de barro de Sandy Woodrow. Quer que o Dypraxa seja investigado por uma equipa de cientistas independente, se ainda houver alguns no mundo. Descobriu que há uma coisa chamada Comissão Ética de Ensaios Clínicos, ligada à Organização Mundial de Saúde, que poderá fazer qualquer coisa. Se for já para Londres, poderá fazer pender a balança em seu favor. Por isso aqui vim, - terminou Donohue, feliz, bebendo o último golo de café e pondo-se de pé. - Fazer pessoas sair de alguns países, é uma das coisas que ainda sabemos fazer, Justin. Por isso, se prefere ser retirado do Quénia sem qualquer desconforto e sem ter de enfrentar mais uma vez os bandidos do Aeroporto Keniatta e os rapazes do Moi e os seus espiões, peça a Ghita que nos dê o recado.

 

- Foi muito simpático - disse Justin, dirigindo-se para a porta,

- Era isso que eu receava que você dissesse. Boa noite.

 

Ghita estava deitada na cama com a porta aberta. Olhava para o tecto sem saber se havia de chorar ou de rezar. Ela tinha sempre pensado que Bluhm. estava morto, mas o horror da sua morte era pior do que qualquer coisa que tivesse receado. Desejou regressar às coisas simples do seu colégio de freiras e recuperar a crença de que era por vontade de Deus que o homem podia subir tão alto e descer tão baixo. Do outro lado da parede, Justin estava sentado à secretária, escrevendo com caneta porque era disso que ele gostava mais embora Ghita lhe tivesse proposto o seu computador portátil.

 

0 avião para Loki devia sair do aeroporto de Wilson às sete o que significava que ele devia ter de se ir embora daí a uma hora. Ghita gostaria de poder passar com ele o resto da sua estadia, mas sabia que ninguém o poderia fazer. Ela tinha-se oferecido para o levar ao aeroporto, mas ele tinha preferido mandar vir um táxi do Hotel Serena.

 

- Ghita?

 

Justin dava uns toquezitos na porta. Ela disse: - Pode entrar, - e pôs-se de pé.

 

- Gostava que metesse isto no correio, Ghita, - disse Justin estendendo-lhe um grosso envelope dirigido a uma mulher em Milão. - Não é minha namorada, se sente alguma curiosidade. É a tia do meu advogado (sorriso fugaz); e aqui tem outra carta para Porter Coleridge, endereçada para o Clube dele. Não utilize os nossos serviços de correio, se não se importa. Nem nenhum serviço privado de entrega de mercadorias. 0 correio queniano normal é perfeitamente adequado. E muito e muito obrigado pela enormíssima ajuda que me prestou.

 

Neste ponto, ela não conseguiu dominar-se, deitou-lhe os braços ao pescoço, apertou-se contra o corpo dele e agarrou-o com desespero, como se agarrasse a própria vida, até que ele se pôde libertar.

 

 

0 Comandante McKenzie e o seu co-piloto Ecisard estavam no cockpit do seu Búffalo, que não passava duma plataforma no nariz da fuselagem do avião, sem quaisquer portas que protegessem a tripulação do carregamento, ou vice-versa. E um degrau abaixo da plataforma, uma alma caridosa tinha colocado uma poltrona vitoriana cor de ferrugem do estilo que um velho mordomo de uma família poderia levar para junto do fogão da cozinha nas noites de Inverno, com os pés cravados no chão por uma espécie de ferraduras improvisadas. É onde instalaram Justin com um par de auscultadores e a barriga cruzada por umas largas tiras de nylon que fazem lembrar o arreio para crianças que aprendem a andar. De vez em quando recebe frases sábias do Comandante e de Edsard ou retira os auscultadores para ouvir perguntas que lhe são feitas por uma rapariga branca do Zimbabwe chamada Jamie que tinha conseguido sentar-se no meio de uma montanha oscilante de caixas de cartão. Justin tentara oferecer-lhe a sua poltrona mas McKenzie fizera-o parar com uma firme declaração: «Você fica aqui.» Na cauda da fuselagem, seis mulheres sudanesas de túnicas compridas, acocoram-se em várias atitudes desde o estoicismo até ao terror mais absoluto. Uma delas vomita para um balde de plástico destinado a esse fim. Painéis acolchoados de um cinzento brilhante cobriam o tecto do avião. Umas precintas de lançamento, de cor vermelha, pendem de um cabo junto ao tecto e as suas pontas metalizadas oscilam ao som poderoso dos motores. A fuselagem dá estalidos e gemidos como uma velha locomotiva prestes a entrar em acção. Não havia sinais de ar condicionado nem de pára-quedas. Uma cruz vermelha pintada num armário indicava material de prontos-socorros. Por baixo uma enfiada de jerricans marcados «Kerosene» e atados entre si. Esta é a viagem que Tessa e Arnoldfizeram e este é o homem que os levou. Foia última viagem antes da última viagem.

 

- Então você é amigo de Ghita, - observara McKenzie quando a Sara do Sudão levou Justin até ao tukul do Comandante em Loki, e os deixou sós.

 

- Pois sou.

 

- Sara disse-me que você tinha um salvo conduto passado pelo consulado sudanês em Nairobi mas que o perdeu. É verdade?

 

É? Importa-se que eu veja o seu passaporte?

 

Não me importo nada, - disse Justin estendendo-lhe o passaporte Atkinson,

- E o que faz, Sr. Atkinson?

 

- Sou jornalista. Para o Telegraph de Londres. Estou a escrever um trabalho sobre a operação da ONU conhecida por «Linha de vida para o Sudão».

 

- Essa operação precisa de toda a publicidade que puder conseguir. É pena que um papelinho possa vir a atrapalhar. Sabe onde é que o perdeu?

 

- Receio bem que não.

 

- Hoje estamos a transportar embalagens de óleo de soja. Mais uns pacotes para os rapazes e raparigas que trabalham no terreno. É a nossa habitual ronda do leiteiro, se isso o interessa.

 

- Interessa muito.

 

- Tem alguma objecção a ir sentado no chão de um jipe, por uma hora ou duas com um monte de cobertores por cima?

 

- Nenhuma objecção,

 

- Então acho que fechamos o negócio, Sr. Affinson.

 

A partir de aí McKenzie agarrara-se firmemente a esta ficção. No avião, como faria com qualquer outro jornalista, descreve os trabalhos daquilo a que orgulhosamente chama a mais cara operação antifome jamais montada na história da humanidade. As suas informações chegam em arrancos metálicos que nem sempre ultrapassam o ruído dos motores,

 

- No Sudão do Sul, no que respeita a calorias, temos populações ricas, médias, pobres e completamente destituídas, Sr, Atkinson. 0 trabalho de Loki é o de estabelecer com rigor as zonas de fome, Cada tonelada que lançamos custa à ONU mil e trezentos dólares. Nas guerras civis, os mais ricos são os primeiros a morrer. Isso porque se alguém lhes roubar o gado, não são capazes de se adaptarem. Os pobres ficam exactamente na mesma. Para que um grupo possa sobreviver, precisa de terra que possa cultivar tranquílamente, Infelizmente não há por lá um único sítio onde se possa plantar com segurança. Estou a ir depressa demais?

 

- Está a explicar tudo muito bem, obrigado.

 

- Por isso Loki tem de vigiar as colheitas e ver onde é que vai haver zonas de fome. Neste momento estamos à beira de um fenómeno desses. Mas é indispensável ter um bom plano de operações. Lançar-lhes comida quando devem ir fazer a colheita, é perturbar a sua economia. Se lançarmos tarde demais, já haverá muitas mortes. A propósito, o ar é a única via possível; se fizermos o transporte por estrada, o camião será assaltado, muitas vezes pelo próprio motorista.

 

- Estou a ver. Perfeitamente.

- Não quer tomar notas?

 

Se és mesmo jornalista, porta-te como tal, quer McKenzie dizer. Justin abre o seu bloco e Ecisard retoma a conferência. 0 assunto é agora a segurança.

 

- Temos quatro níveis de segurança nos postos de abastecimento, Sr. Atkmson. Nível quatro quer dizer voltem para trás. Nível três é alerta vermelho, nível dois é tudo normal. No Sudão do Sul não há zonas de risco zero. Ok?

- Ok. Compreendido.

 

McKenzie regressa. - 0 monitor dir-nos-á quando estivermos a chegar qual é hoje o nível de segurança. Se houver uma emergência, faça o que ele lhe disser. 0 posto que vai visitar está num território tecnicamente controlado pelo general Garang, o que lhe deu o salvo-conduto que você perdeu. Mas está constantemente a ser atacado pelas tropas do norte, assim como pelas tribos rivais. Não pense que se trata só de uma guerra norte-sul. A posição das tribos muda de um dia para o outro e preferem combater-se entre si do que enfrentar os muçulmanos. Continua a seguir-me?

 

- Perfeitamente.

 

- 0 Sudão, como país, é basicamente uma fantasia do cartógrafo colonial. No sul temos a África, campos verdes, petróleo e cristãos animistas. No norte temos a Arábia e areia e um bando de fundamentalistas islâmicos decididos a impor a lei shariah. Sabe o que é?

 

- Mais ou menos, - diz Justin que, numa outra vida, tinha escrito relatórios sobre o assunto.

 

- 0 resultado é que temos tudo o que é preciso para uma situação de fome permanente. 0 que as secas não destroem, fá-lo a guerra civil e vice-versa. Mas Kartum é ainda o governo legal. Ao fim e ao cabo sejam quais forem os acordos que a ONU consegue no sul do país, ainda tem que pagar um tanto a Kartum. 0 que nós aqui temos, Sr. Atkinson, é um estranho pacto triangular entre a ONU, os rapazes de Kartum e os rebeldes que eles perseguem até à morte. Está a perceber?

 

- Você vai para o Campo Sete! - grita aos ouvidos de Justin Jamie, a rapariga branca do Zimbabwe, agachando-se ao lado dele com o seu conjunto e chapéu em jeans e fazendo um megafone com as mãos.

 

Justin acena que sim.

 

- 0 sete é agora o mais perigoso! Uma amiga minha, há umas semanas foi apanhada por uma emergência de grau quatro. Teve de andar durante seis horas através dos pântanos e esperar outras seis, sem calças, pela chegada do avião de socorro!

 

- 0 que é que aconteceu às calças? - grita-lhe Justin.

 

- Temos que as tirar! Rapazes e raparigas! Por causa do roçar. Duríssimas! Quentíssimas! Insuportáveis! - Descansa um pouco e volta a falar-lhe ao ouvido com a mão em concha. - Quando ouvir gado a sair de uma aldeia, fuja! Se as mulheres vão atrás, fuja mais depressa! Temos um tipo que uma vez correu durante catorze horas sem uma gota de água! Perdeu quatro quilos. Carabino ia atrás dele.

 

- Carabino?

 

- Carabino era um tipo porreiro até se juntar aos nortistas. Agora, já pediu desculpa e voltou para nós. Toda a gente ficou encantada. Ninguém lhe perguntou o que tinha andado a fazer. É a sua primeira vez?

 

Outro aceno de acordo.

 

- Oiça. Estatisticamente, tecnicamente, você devia estar perfeitamente seguro. Não se preocupe. E o Brandt é uma personagem extraordinária.

 

- Quem é o Brandt?

 

- 0 monitor de alimentos do campo sete. Um tipo porreiro. Toda a gente o adora. Doido varrido. Um homem que é um Deus.

 

- Donde é que ele vem?

 

Ela encolhe os ombros. - Diz que é um cão vadio como todos nós. Aqui ninguém tem passado. É uma regra.

 

- Há quanto tempo cá está ele? - grita Justin e tem que repetir.

 

- Seis meses, acho eu. Seis meses no terreno, em regime de ium-stop, parece uma vida inteira, Venha para Loki nem que seja por uns dias para um pouco de D e D*! - acaba ela estafada de tanto gritar.

 

Justin desaperta o cinto e vai até à janela. Esta é a viagem quefizeste. A conversa que te impingiram. A paisagem que viste. Lá em baixo estende-se o puritano verde do Nilo, nublado pelo calor, salpicado de pequenos lagos negros, em forma de peças de puzzle. Nas pequenas elevações os redis para o gado estão repletos.

 

- Os gajos das tribos nunca dizem quanto gado têm! - Jame está ao seu lado, berrando-lhe às orelhas. - 0 trabalho do «monitor de alimentos» é descobrir a verdade. As cabras e as ovelhas estão no centro do redil, as vacas à volta, as vitelas junto das mães. Os cães ficam junto às vacas. À noite, os tipos queimam estrume de vaca nas suas casinhotas à volta do redil. Afasta os predadores, aquece as vacas e dá-lhes tosses pavorosas. Às vezes põem também lá dentro as mulheres e as crianças. As raparigas no Sudão têm boa comida.

 

* Descanso e Divertimento. Eni inglês R and R, (por <Rest and Recreation>). (N T)

 

Se estão bem alimentadas atingem um preço de casamento mais elevado. - Dá umas pancadinhas no estômago. - Um homem tem tantas mulheres quantas as que pode pagar. Fazem uma dança inacreditável, palavra de honra, só vendo, - exclama ela e põe a mão na boca quando rebenta de riso.

 

- Você é monitora de alimentos?

- Assistente.

 

- Como é que conseguiu o trabalho?

 

- Estava na boa discoteca de Nairobi. Quer ouvir um enigma?

- Claro.

 

- Nós lançamos cereais aqui, não é? É.

 

Por causa da guerra norte-sul, não é?

- Continue.

 

- Grande parte do cereal que lançamos aqui é cultivado no Sudão-Norte. Isso passa-se quando os cerealeiros norte-americanos não nos mandam uma parte suficiente dos seus excedentes. E agora veja. 0 dinheiro das Agências Humanitárias serve para comprar o cereal de Kartum. E Kartum serve-se desse dinheiro para comprar armas para fazer a sua guerra contra o Sudão-Sul. Os aviões que levam o cereal para Loki utilizam o mesmo aeroporto que os bombardeiros de Kartum usam para ir atacar as aldeias do Sudão-Sul.

 

- Qual é o enigma?

 

- Qual é a razão pela qual as Nações Unidas financiam os bombardeamentos ao Sudão-Sul e, ao mesmo tempo, alimentam as vítimas?

 

- Passo.

 

- Volta para Loki quando sair daqui? Justin abana a cabeça.

 

- É pena - diz ela e pisca-lhe o olho.

 

Jamie volta para o seu lugar no meio das caixas de óleo de soja. Justin continua junto à janela, observando o reflexo do avião nos pântanos tremeluzentes. Não há horizonte. A partir de certa distância, as cores do terreno misturam-se numa neblina que tinge a janela de tons lilases cada vez mais escuros. «Podemos voar durante toda a vida sem nunca atingir a borda da terra. ” - disse ele a Tessa. Sem qualquer aviso o Búffalo começa a sua lenta descida. 0 pântano torna-se castanho, o terreno firme eleva-se acima da água. Aparecem algumas árvores isoladas como couves-flores verdes sobre as quais passa o reflexo do avião. Edsard retomou os comandos. 0 Comandante McKenzie está a estudar um catálogo de material de campismo. Volta-se para Justin e faz-lhe um sinal de polegar para cima. Justin volta a sentar-se, aperta o cinto e olha para o relógio. Há três horas que estão a voar. Edsard inclina o avião bruscamente. Caixas de papel higiénico, de aerossóis antimoscas e de tabletes de chocolate escorregam pelo chão de aço e embatem no degrau do cockpit mesmo aos pés de Justin. Um grupo de cubatas de telhados de colmo aparece na ponta duma asa. Os auscultadores de Justin estão cheios de interferências, como se fosse música clássica passada a má velocidade. Por cima da cacofonia, Justin distingue uma áspera voz germânica dando pormenores sobre o estado da pista. Percebe as palavras «firme e fácil». 0 avião começa a vibrar loucamente. Elevando-se o máximo que o cinto lhe permite, Justin vê, através da janela do cockpít uma faixa de terra vermelha atravessando um campo verde. Filas de sacas brancas marcam os limites. Mais sacas estão espalhadas pelos cantos da pista. 0 aparelho endireita-se e um raio de sol atinge a nuca de Justin como um jacto de água a ferver. Deixa-se cair sentado. A voz germânica soa mais alto e mais clara.

 

- Desce cá para baixo, Edsard. Não faças caso das sacas. Hoje temos um guisado de cabrito porreiro para o almoço. Tens aí o molengão do McKenzie? Edsard não se deixa cativar facilmente. - 0 que é que estão a fazer aquelas

 

sacas ali ao canto, Brandt? Alguém fez um lançamento recentemente? Vamos ter que dividir o espaço com outro aparelho?

 

- São só sacas vazias, Edsard. Não faças caso e vem cá para baixo, estás a ouvir? Tens aí contigo o tal jornalista-vedeta?

 

McKenzie tomou a palavra, laconicamente: - Temos sim, Brandt.

- E quem mais?

 

- Eu! - grita Jamie alegremente por cima do barulho dos motores.

 

- Um jornalista, uma ninfomaníaca, seis delegadas de volta, - anuncia Mckenzie com a maior das calmas.

 

- Como é que ele é? 0 figurão?

 

- já me vais dizer, - responde McKenzie.

 

Grandes gargalhadas no cockpit, acompanhadas pela voz sem rosto que vem do chão.

 

- Porque é que ele está nervoso? - pergunta Justin.

 

- Lá em baixo, todos estão nervosos. Isto é o fim da viagem. Quando chegarmos a terra, Sr. Atickinson, faça o favor de ficar comigo. 0 protocolo requer que eu o apresente ao Comissário antes de qualquer outra pessoa.

 

A pista parece um campo de ténis mais alongado. Cães e aldeões saem da floresta e vão na sua direcção. As cubatas são cónicas e cobertas de colmo. Edsard faz um voo rasante enquanto McKenzie examina o bosque de um lado e do outro.

 

- Não há bandidos? - pergunta Edsard.

- Não, não há, - confirma McKenzie.

 

0 Búfalo desce, endireita-se e acelera. A pista atinge-o como um rocket. Nuvens de pó vermelho rutilante tapam as janelas. A fuselagem vira para a esquerda mais ainda e a carga guincha nas suas amarras. Os motores berram, o avião estremece, passa sobre qualquer coisa, geme e sacode-se. Os motores calam-se. 0 pó cai. Chegaram. Justin está a olhar, através do pó que cai, para uma delegação de dignitários africanos que se aproximam, com crianças e duas mulheres brancas em Jeans muito sujos, penteados afro e multas pulseiras. No meio do grupo com um chapéu de aba revirada, velhos calções de caqui e sapatos de camurça em último estado, vem a figura radiosa, inchada, gingona e inegavelmente majestosa de Markus Lorbeer, desta vez sem estetoscópio.

 

As mulheres sudanesas saltam do avião e juntam-se imediatamente a um grupo de conterrâneos. jame está a abraçar os seus amigos com gritos de prazer e admiração mútuos. Abraça também Lorbeer, afaga-lhe a face, tira-lhe o chapéu, alisa-lhe o cabelo enquanto Lorbeer sorri deliciado e lhe dá palmadinhas no rabo casquinando como uma criança que faz anos. Carregadores de raça Dirika juntam-se na traseira da fuselagem e descarregam o avião segundo as instruções de Edsard. Mas Justin tem de ficar no seu lugar até que o Comandante McKenzie o convida a descer a escada e o dirige, atravessando a pista até a uma pequena elevação onde um grupo de anciãos Dirika, de calças pretas e camisas brancas se sentam num semicírculo de bancos de cozinha debaixo da sombra de uma árvore. No centro senta-se Arthur, o Comissário, um homem grisalho e enrugado com um rosto bem talhado e uns olhos sagazes e intensos. Tem um boné de basebol vermelho com a palavra Paris bordada a ouro.

 

- Então o senhor é um homem de letras, Sr. Atkinson, - diz Arthur num impecável inglês arcaico, assim que McKenzie fez as apresentações.

 

- Exactamente, sir.

 

- Que jornal ou que publicação, se me permite a pergunta tão directa, tem a sorte de o ter ao seu serviço?

 

- 0 Telegraph de Londres.

- 0 Sunday Telegraph?

 

- Sobretudo o diário.

 

- São ambos excelentes, - declara Arthur.

 

- Arthur foi sargento do Exército Sudanês durante o mandato britânico,

- explicou McKenzie.

 

- Diga-me uma coisa, por favor. Será correcto dizer que o senhor está aqui para alimentar o seu espírito?

 

- E também o espírito dos meus leitores, espero eu, - diz Justin, com tacto diplomático, enquanto pelo canto do olho vê Lorbeer e a sua delegação avançando através da pista.

 

- Nesse caso, sir, peço-lhe que alimente também o espírito do meu povo mandando-nos livros ingleses. As Nações Unidas alimentam-nos o corpo mas raramente o nosso espírito. Os nossos autores preferidos são os grandes contadores de histórias da Inglaterra do século XIX. Talvez o seu jornal possa auxiliar uma tal iniciativa.

 

- Não deixarei de a apoiar, - diz Justin. Sobre o seu ombro direito, Lorbeer e o seu grupo aproximam-se da elevação.

 

- Muito obrigado, sir. Durante quanto tempo teremos o prazer da sua distinta companhia?

 

McKenzie responde em nome de Justin. Lá em baixo, Lorbeer e o seu grupo tinham parado e esperavam que Justin e McKenzie descessem.

 

- Até amanhã, por esta hora, Arthur, - disse McKenzie.

 

- Mas não mais tarde, por favor, - disse Arthur com um olhar de lado para os seus cortesãos. - Não se esqueça de nós quando se for embora, Sr. Atkinson. Ficamos à espera dos seus livros.

 

- Está um dia quente, - observa McKenzie enquanto descem a colina. - Vai subir acima dos quarenta e dois. Mesmo assim, parece o Jardim do Eden, para si. Amanhã, à mesma hora, está bem? Olá, Brandt. Aqui tens a tua vedeta.

 

Justin não estava à espera de encontrar um tipo tão caloroso. Os olhos amarelados que no Hospital Uhuru se tinham furtado aos seus irradiavam agora um prazer espontâneo. A cara de bebé, escaldada pelo sol e um largo e contagioso sorriso. A voz gutural que murmurava nervosamente na enfermaria de Tessa é agora vibrante e autoritária. Os dois homens apertam as mãos enquanto Lorbeer fala e agarra com as duas a mão direita de Justin.

 

- Explicaram-lhe as coisas lá em Loki ou deixaram todo o trabalho para mim?

 

- Receio que não tenha havido muito tempo para explicações, - replica Justin, devolvendo o sorriso.

 

- Porque é que os jornalistas têm sempre tanta pressa, Sr. Atkinson? - queixa-se jovialmente Lorbeer, soltando a mão de Justin só para lhe dar uma palmada nas costas enquanto o leva de novo para a pista. - Será que a verdade, nos nossos dias, muda assim tão depressa? 0 meu pai sempre me ensinou que a verdade é eterna.

 

- Gostava que ele tivesse dito isso ao meu director, - diz Justin.

 

- Talvez o seu director não acredite na eternidade, - avisa Lorbeer, rodeando Justin e apontando-lhe um dedo ao rosto.

 

- Talvez não, - concede Justin.

 

- E o senhor? - Lorbeer levanta as sobrancelhas de palhaço num esgar inquisitivo.

 

0 cérebro de Justin, por um momento, fica obscurecido, Afinal quem é que eu finjo que sou? Este é Markus Lorbeer o traidor.

 

- Penso que ainda tenho que viver uns tempos antes de poder responder a isso, - responde ele pouco à vontade, enquanto Lorbeer lança uma honesta e sonora gargalhada.

 

- Não demore muito, homem! Senão é a eternidade que acaba por apanhá-lo! já viu algum lançamento de comida? - Baixou um pouco a voz enquanto segura o braço de Justin.

 

- Acho que não.

 

- Então vou-lhe mostrar um. E prometo-lhe que vai passar a acreditar na eternidade. Temos aqui quatro lançamentos por dia e cada um deles é um milagre de Deus.

 

- É muito amável.

 

Lorbeer está pronto a debitar um discurso já ensaiado. Justin, o diplomata, sente-o chegar.

 

- Nós aqui, Sr. AtkInson, tentamos ser eficientes. Tentamos fazer chegar a comida às bocas certas. Talvez exageremos. Mas se os clientes estão a morrer, isso não me parece um crime. Talvez nos mintam um bocado, sobre quantos são ou quantos estão a morrer. Talvez estejamos a fazer alguns milionários do mercado negro em Aweil. É pena, digo eu. OK?

 

- OK.

 

Jame aparece atrás de Lorbeer, acompanhada por um grupo de mulheres africanas com as suas pranchetas.

 

- Talvez os vendedores ambulantes não gostem de nós por lhes lixarmos o negócio. Talvez os feiticeiros da floresta se queixem da nossa concorrência com remédios ocidentais. Talvez que os nossos lançamentos estejam a criar dependentes. OK?

 

- OK.

 

Um gigantesco sorriso afasta todas estas imperfeições. - Oiça, Sr. Atkinson. Diga isto aos seus leitores. Diga-o aos gordos burocratas da ONU de Genebra e de Nairobi. De cada vez que o meu posto põe uma colher de papa na boca de uma criança esfomeada, acho que fiz o meu trabalho. E nessa noite durmo no colo de Deus. Mereci a razão de ter nascido. Vai dizer-lhes isso?

 

- Vou tentar.

 

- Tem um primeiro nome?

- Peter.

 

- Brandt.

 

Voltam a apertar as mãos, mais longamente do que antes.

 

- Peça-me tudo o que quiser, Peter, está bem? Não tenho segredos perante Deus. Há qualquer coisa de especial que queira perguntar-me?

 

- Ainda não. Talvez mais tarde quando estiver a apanhar as coisas.

- óptimo. Não tenha pressa. A verdade é eterna. OK?

 

- OK.

 

É tempo de ração.

 

Tempo da Sagrada Comunhão. Tempo de milagres.

 

Tempo de partilhar a hóstia com toda a humanidade.

 

Ou pelo menos é o que Lorbeer diz e Justin finge escrever no seu bloco, num esforço vão para fugir à opressiva boa vontade do seu guia. É tempo de observar «o mistério da humanidade, o mistério do homem corrigindo efeitos da maldade do homem» que é mais uma desconcertante sentença, proferida enquanto levanta devotamente ao céu escaldante os seus olhos de ruivo e um largo sorriso regista a bênção de Deus, enquanto Justin sente o ombro do traidor de Tessa afectuosamente encostado ao seu. Forma-se uma fila de espectadores. Jamie, a zambeziana e Arthur, o Comissário e os seus cortesãos são os que estão mais próximos. Cães, nativos com as suas longas túnicas vermelhas e mais uma multidão de crianças nuas agrupam-se na borda da pista.

 

- Hoje damos alimentos a quatrocentas e dezasseis famílias, Peter. Por cada família pode contar seis bocas. Ali ao Comissário, dou-lhe cinco por cento de tudo o que lançamos. Isto não é para você escrever. Você é um tipo decente e só por isso é que lho digo. Se ouvir o Comissário, fica a pensar que a população do Sudão chega aos cem milhões. Outro problema é o dos boatos. Aparece alguém a dizer que viu um cavaleiro com uma espingarda e dez mil pessoas desatam a fugir como loucas, abandonando as colheitas e as aldeias.

 

Cala-se, subitamente. A seu lado, Jame aponta um braço para o céu e com a outra mão aperta discretamente a de Lorbeer. 0 Comissário e a comitiva ouviram também qualquer coisa e reagem levantando as cabeças, semicerrando os olhos e franzindo as bocas num sorriso tenso. Justin ouve também o ruido e localiza-o num ponto negro perdido no céu em fogo. Lentamente, o ponto negro transforma-se num segundo Búfalo igual ao que o trouxe ali, branco, audaz e solitário como um cavaleiro de Deus, roçando arrepiantemente as copas das árvores, oscilando as asas enquanto procura o seu rumo a maior altura. Depois desaparece para não mais voltar. Mas o grupo de Lorbeer não perde a fé, As cabeças continuam levantadas, esperando o regresso do avião. E lá vem ele outra vez, voando baixo e com uma direcção bem definida. Justin sente um nó na garganta e lágrimas chegam-lhe aos olhos quando a primeira chuva de sacas de comida, como se fossem flocos a cair, sai da cauda do avião.

 

Primeiro descem como que a brincar, depois ganham velocidade e espalham-se pela zona de lançamento com um som de abafadas rajadas de metralhadoras.

0 avião faz um círculo para repetir a operação.

 

- Está a ver isto? - sussurra Lorbeer. Também tem lágrimas nos olhos. Será que ele chora quatro vezes por dia ou só quando tem público?

 

- Estou, - confirma Justin. Como tu viste também e, como eu, te tornaste membro instantâneo desta igreja.

 

- Oiça uma coisa. Precisamos de mais pistas de aviação. Escreva isso no seu artigo. Mais pistas e mais perto das aldeias. As populações têm de andar muito, o que é muito perigoso. As mulheres são violadas e degoladas. As crianças são-lhes raptadas enquanto vêm a caminho. E quando cá chegam, descobrem que estão lixadas. Aquele dia não era para aquela aldeia. Por isso voltam para trás, sem perceberem nada. Uma data delas morre nessa confusão. As crianças também. Vai escrever isto?

 

- Vou tentar.

 

- Loki diz que mais pistas de aviação significam mais monitores. Eu digo: muito bem, arranjamos mais monitores. Loki pergunta: onde está o dinheiro? Eu digo: gastem-no primeiro, arranjem-no depois. Qual é o problema?

 

Um silêncio diferente cai sobre a pista. Um silêncio de apreensão. Será que há bandidos emboscados, à espera de roubar as ofertas de Deus e desaparecer? A grossa mão de Lorbeer está de novo a agarrar o braço de Justin.

 

- Nós aqui não temos armas, - explica ele em resposta à pergunta não formulada por Justin. - Nas aldeias eles têm boas Kalashmkovs e Armalites. Arthur, o Comissário, compra-as com os seus cinco por cento e dá-as à sua gente. Mas aqui no posto de abastecimento só temos rádio e orações.

 

Parece que o momento crítico já passou. Os primeiros carregadores avançam timidamente para começarem a carregar as sacas. Com a prancheta na mão, Jame e as outras assistentes ocupam os seus lugares um para cada monte. Algumas das sacas rebentaram. Mulheres com vassouras juntam cuidadosamente os grãos que se espalharam. Lorbeer segura o braço de Justin enquanto o põe ao corrente da «cultura da saca de comida». Depois de Deus ter inventado o lançamento das sacas, diz ele rindo ruidosamente, inventou a saca de comida. Rebentadas ou inteiras, aquelas sacas brancas de fibra sintética marcadas com as iniciais do Programa Mundial de Alimentação tornaram-se num material tão útil aqui no Sudão como a comida que vem nelas.

 

- Vê aquela manga de vento? Vê os chinelos daquele tipo? Vê o seu lenço de cabeça? Digo-lhe uma coisa: se algum dia me casar, visto a minha noiva com sacas de comida!

 

Do sítio onde está Jamie lança uma gargalhada que é rapidamente acompanhada pelas mulheres que estão com ela. 0 riso ainda dura quando três colunas de mulheres saem das árvores, do outro lado da pista. Todas são altíssimas, na raça Dinka, um metro e oitenta é normal. Têm o passo majestoso das mulheres africanas, sonho impossível de qualquer dos modelos de passerelle. A maior parte têm os seios nus, outras têm uns panos de algodão firmemente enrolados à volta do peito. 0 seu olhar impassível está fixado nos sacos à sua frente. Falam baixo e só entre elas. Cada coluna tem o seu destino. Cada assistente tem os seus fregueses. Justin lança um olhar a Lorbeer enquanto cada mulher dá o seu nome, agarra numa saca, levanta-a ao ar e pousa-a delicadamente sobre a cabeça. E vê que o olhar de Lorbeer está cheio de um trágico desencanto como se ele fosse o autor dos sofrimentos das mulheres e não da sua salvação.

- Há algum problema? - pergunta Justin.

 

- As mulheres são a única esperança da África, - responde Lorbeer num murmúrio enquanto continua a olhar para elas. Será que ele vê Wanza no meio delas? E todas as outras Wanzas? Os seus olhos pálidos espreitam cheios de culpa por baixo da aba revirada do seu chapéu. - Escreva isso, homem. Nós só damos comida às mulheres. Quanto aos homens nem confiamos nesses idiotas para atravessar uma estrada. De maneira nenhuma. Vendem a nossa farinha no mercado. Ou obrigam as mulheres a fazer bebidas alcoólicas a partir da farinha. Depois compram cigarros, armas, raparigas. Os homens são umas bestas. As mulheres fazem os lares, os homens as guerras. A África inteira é uma gigantesca guerra dos sexos. Só as mulheres fazem aqui a tarefa de Deus. Escreva isso.

 

Justin, obediente, faz o que lhe é pedido. Nem era preciso pedir-lhe porque ele ouviu essa mensagem da boca de Tessa todos os dias. As mulheres regressam silenciosamente para as árvores. Cães com má consciência lambem os grãos que não foram apanhados.

 

Jamie e as assistentes foram-se embora. Apoiando-se num bastão comprido, Lorbeer, no seu chapéu castanho de aba revirada, tem a autoridade de um mentor espiritual enquanto conduz Justin através da pista, afastando-se dos tukuls em direcção à linha azul da floresta. Uma dúzia de crianças atropelam-se umas às outras para ficarem mais junto dele. Agarram-se à mão do grande homem. Cada uma agarra um dedo e sacode-o lançando grande gritos e dando saltos graciosos como elfos a dançar.

 

- Estes miúdos pensam que são leões, - segreda Lorbeer a Justin com indulgência, enquanto eles rugem e puxam por ele. - No domingo passado, na Escola de Catequese, os leões engoliram Daniel tão rapidamente que Deus não teve nenhuma chance de o salvar. Eu disse-lhes: não, não, têm que deixar Deus salvar Daniel. É o que está na Bíblia. Mas eles responderam que os leões têm fome demais para poderem esperar. É melhor deixá-los comer Daniel primeiro e depois então que Deus faça o seu milagre. Se não for assim, os leões morrem.

 

Estão a chegar a uma fila de abrigos rectangulares. Em cada abrigo uma vedação rudimentar quase como um redil. Em cada abrigo um Inferno em miniatura de doentes sem esperança, os paralíticos, os desidratados. Mulheres acocoradas debruçam-se estoicamente sobre eles, num tormento silencioso. Bebés cobertos de moscas, demasiado fracos para chorar. Velhos em estado de coma cobertos de vómito e de fezes. Médicos e enfermeiros cansados da guerra fazem o que podem para os animar e consolar, deslocando-se ao longo de uma linha mal ordenada. Raparigas nervosas formam uma bicha, trocando segredos e risinhos. Adolescentes imobilizados em posição de combate são fustigados com uma vara por um rapaz mais velho.

 

Seguido a certa distância por Arthur e a sua comitiva, Lorbeer e Justin chegam a uma enfermaria com telhado de colmo que parece um pavilhão de críquete na província inglesa. Abrindo delicadamente caminho por entre doentes vociferantes, Lorbeer conduz Justin até uma porta metálica guardada por homenzarrões africanos com t-shirts dos Médecins Sans Frontières. Abrem-lhes a porta, Lorbeer passa primeiro, tira o chapéu e faz Justin avançar. Uma enfermeira branca e três ajudantes estão a fazer misturas e dosagens do outro lado de um balcão em madeira. A atmosfera é a de uma emergência controlada. Ao ver Lorbeer, a enfermeira levanta rapidamente os olhos e faz-lhe uma careta.

 

- Olá, Brandt. Quem é esse simpático amigo? - pergunta ela com um áspero sotaque escocês.

 

- Helen, este é o Peter. É jornalista e está pronto a dizer ao mundo que vocês são um bando de preguiçosos.

 

- Olá, Peter.

- olá.

 

- Helen é enfermeira, de Glasgow.

 

Nas prateleiras, caixas de todas as cores e frascos de vidro estão empilhados até ao tecto. Justin examina-as fingindo uma curiosidade generalizada, mas procurando na verdade as familiares caixas encarnadas e pretas com o alegre logotipo das Três Abelhas e não encontrando nenhuma, Lorbeer colocou-se à frente das prateleiras, assumindo mais uma vez o papel de guia. A enfermeira e os assistentes trocam sorrisos. Lá vamos nós outra vez. Lorbeer está a mostrar um frasco cheio de comprimidos verdes.

 

- Peter, - proclama com voz grave. - Agora vou mostrar-lhe um outro aspecto de África.

 

Ele dirá aquilo todos os dias? A todos os visitantes? É o seu acto de contrição diário? Terá também feito o discurso a Tessa?

 

- A África tem oitenta por cento dos doentes de Sida de todo o mundo. uma conta por baixo. Três quartos deles não recebem nenhuma medicação. E, por esse facto, devemos agradecer às grandes companhias farmacêuticas e aos seus servidores e ao Departamento de Estado dos Estados Unidos que ameaçam com sanções qualquer país que se atreva a produzir a sua versão mais barata dos medicamentos com patentes registadas em todo o mundo. Ok? Escreveu o que eu disse?

 

Justin faz a Lorbeer um aceno tranquilizador. - Continue.

 

- As cápsulas deste frasco custam vinte dólares cada uma em Nairobi, seis em Nova lorque, dezoito em Manila. Um dia destes, a índia vai fabricar uma versão genérica deste medicamento, em que cada cápsula custará sessenta cêntimos. Não me fale de despesas de pesquisas e aperfeiçoamento. Os rapazes dos laboratórios já liquidaram essas contas há muitos anos e uma data dos lucros vem em primeiro lugar de governos, de modo que essa conversa não pega. 0 que nós aqui temos é um monopólio imoral que todos os dias custa inúmeras vidas humanas. Ok?

 

Lorbeer conhece tão bem aquele material que nem tem que andar à procura dele. Põe lá o frasco e agarra numa grande caixa preta e branca.

 

- Esses sacanas andam a vender este mesmo produto há para aí uns trinta anos. É contra quê? Malária. Sabe porquê estes trinta anos, Peter? Se, por acaso, houver meia dúzia de pessoas em Nova Yorque que apanhem malária, você verá se eles não lhe arranjam um produto melhor em pouco tempo! - Escolhe outra caixa. As mãos, tal como a voz, treMeM-lhe de indignação. - Este gigantesco e filantrópico laboratório de New Jersey fez uma dádiva deste produto às pobres nações esfomeadas do mundo, Ok? As grandes farmacêuticas precisam de ser amadas. Se não são, ficam tristes e assustadas.

 

E perigosas, acrescenta Justin, mas não em voz alta.

 

- Porque é que o laboratório doou este produto? Vou-lho dizer, Porque inventaram um melhor. Não faz sentido ter o velho em armazém. Por isso dão-no a África, com um período de validade de seis meses e ganham uns tantos milhões de dólares em isenções fiscais devido à sua generosidade. E ainda poupam mais uns milhões em custos de armazenamento e em custos de destruição de velhos produtos que já ninguém compra. E, ainda por cima, as pessoas dizem: olhem para eles, como são generosos. Até os accionistas. - Vira a caixa de pernas para o ar e olha desdenhosamente para o que lá está escrito: - Este lote ficou durante três meses num armazém da alfândega enquanto os rapazes de lá esperavam que os fossem gratificar. Há uns anos a esta parte, a mesma empresa farmacêutica mandou para África loção para o cabelo, fármacos contra o tabaco e cura para a obesidade e conseguiu uma isenção fiscal de muitos milhões de dólares como recompensa desse gesto filantrópico. Esses sacanas não têm quaisquer sentimentos que não sejam a favor do gordo deus Lucro, isso é que é a verdade.

 

Mas a maior fúria da sua legítima indignação está reservada para os seus próprios chefes - esses preguiçosos fig’urões do programa humanitário de Genebra que estão ao serviço das grandes empresas farmacêuticas.

 

- Esses tipos intitulam-se humanitaristas - protesta ele entre caretas de repulsa dos assistentes e inconscientemente, evoca o ódio de Tessa à palavra com H grande. - Com os seus empregos seguros e os seus ordenados livres de impostos, belos carros, escolas internacionais gratuitas para os filhos! Sempre em viagem, de tal modo que nem conseguem gastar o dinheiro que ganham. Eu conheço-os bem, vi-os nos melhores restaurantes suíços, saboreando pratos caros na companhia dos representantes das grandes empresas farmacêuticas. Porque é que se hão-de ralar com a humanidade? Genebra tem uns biliões de dólares para gastar? óptimo! Gastem-nos com os grandes laboratórios e mantenham a América feliz!

 

Na pausa que se segue a esta explosão, Justin arrisca uma pergunta.

- Em que qualidade, exactamente, é que você os conheceu, Brandt? Levantam-se cabeças. Todas menos a de Justin. Ninguém, ao que parece, tinha ainda ousado questionar o profeta no seu deserro. Os olhos claros de Lorbeer abrem-se, a testa vermelbusca franze-se em rugas.

 

- Eu ví-os, homem! Com estes olhos!

 

- Pessoalmente, não duvido que os tenha visto, Brandt. Mas os meus leitores podem ter dúvidas. Podem perguntar a si próprios ”o que era o Brandt quando os viu?” Você estava na ONU? Estava a jantar nos tais restaurantes? - Um pequeno riso para sublinhar o absurdo da pergunta: - Ou estará a trabalhar para as Forças das Trevas?

 

Será que Lorbeer pressente a presença de um inimigo? A expressão Forças das Trevas ser-lhe-á ameaçadoramente familiar? Será que a vaguíssima recordação de Justin no hospital é agora menos vaga... A sua cara agora mete dó!

0 brilho infantil desaparece, sobeja um homem velho sem chapéu. Não me faças isto, é o que o seu rosto diz. Tu és meu amigo. Mas o consciencioso jornalista está demasiado ocupado a tomar notas para que lhe possa valer.

 

- Se queres voltar-te para Deus, tens que pecar primeiro - diz Lorbeer em tom sombrio. -Toda a gente daqui está convertida à piedade de Deus, pode crer. Mas a perturbação não abandonara o rosto de Lorbeer. Nem a falta de à vontade. Pousara sobre ele como o anúncio das más notícias que ele tentava não ouvir. No caminho de regresso através da pista de aviação, prefere ostensivamente a companhia de Arthur, o Comissário. Os dois homens marcham em estilo Dirika, de mãos dadas, o enorme Lorbeer no seu chapéu de aba revirada e Arthur, o esquelético espantalho com o boné de Paris na cabeça.

 

Uma paliçada de madeira com um portal de grandes troncos define os limites do domínio de Brandt, o Monitor, e dos seus assistentes. As crianças não entram. Só Arthur e Lorbeer acompanham o ilustre visitante na visita obrigatória às instalações. 0 improvisado cubículo do chuveiro tem um balde pendurado que se pode inclinar puxando uma corda. Uma cisterna está equipada com uma bomba da idade da pedra ligada a um gerador da mesma época. Tudo invenções do grande Brandt.

 

- Ainda hei-de pedir a patente deste engenho! - diz Lorbeer com uma pesada piscadela de olhos que Arthur, obediente, devolve.

 

Um painel solar está pousado no chão, no centro de uma capoeira. As galinhas servem-se dele como poleiro.

 

- Dá energia a todo este complexo só com a luz do sol, - berra Lorbeer, mas o entusiasmo desapareceu do seu monólogo.

 

As latrinas estão no extremo da paliçada, uma para homens, outra para mulheres. Lorbeer bate à porta dos homens e depois abre-a para trás, descobrindo um buraco nauseabundo no chão.

 

- As moscas de cá desenvolvem resistências a todos os desinfectantes que lhes deitamos, - queixa-se Lorbeer.

 

- Moscas multi-resistentes? - sugere Justin sorrindo e Lorbeer lança-lhe um olhar zangado antes de conseguir um sorriso forçado.

 

Atravessam o complexo, parando de vez em quando para espreitar uma cova recém-cavada de uns quatro metros por um. Uma família de cobras verdes e amarelas jaz lá no fundo coberto de lama.

 

- Isto é o nosso abrigo antiaéreo: As cobras deste posto matam mais do que as bombas, - protesta Lorbeer continuando os seus lamentos contra a injustiça da natureza,

 

Não provocando qualquer reacção em Justin, volta-se para partilhar a graça com Arthur. Mas o Comissário já voltou para junto dos seus. Como um homem carente de amizade, Lorbeer passa um braço pelos ombros de Justin e mantém-no lá enquanto o dirige a passo de infantaria até ao tukul central.

 

- Agora vai provar o nosso guisado de cabra - anuncia com determinação.

- Aquele velho cozinheiro faz guisado melhor que os restaurantes de Genebra. Ouça, você é boa pessoa, Peter, OK? É meu amigo!

 

Quem é que tu viste na cova, no meio das cobras? Wanza mais uma vez? Ou foi a mão fria de Tessa que saiu de lá e te tocou?

 

0 espaço interior do tukul não tem mais de cinco metros de diâmetro. Fez-se uma mesa familiar com pranchas de madeira. Os assentos são caixas de cerveja ou de óleo de cozinha por abrir. Uma precária ventoinha eléctrica gira inutilmente no tecto, o ar cheira a soja e a aerossol antimosquitos. Só Lorbeer, à cabeceira da mesa, tem direito a uma cadeira que foi retirada do seu lugar junto à aparelhagem de rádio, composta por diferentes unidades empilhadas sob um guarda-sol junto ao fogão. Lorbeer senta-se muito direito, de chapéu na cabeça, com Justin a seu lado e Jamie do outro, com ar de ter direito a ele. Ao lado de Justin senta-se um jovem médico de Florença, com um rabo-de-cavalo; a seguir, a escocesa Helen, do dispensário e em frente uma enfermeira nigeriana chamada Salvation.

 

Os outros membros da extensa família de Lorbeer não perdem tempo. Servem-se do guisado e comem-no mesmo de pé ou sentam-se apenas para o engolir e vão-se embora. Lorbeer devora vorazmente o seu guisado, olhando para todos os pontos da mesa enquanto vai falando, falando, falando. E ainda que de vez em quando pareça estar a dirigir-se a uma pessoa em particular, ninguém duvida que o principal destinatário da sua sabedoria é o jornalista de Londres. 0 principal assunto da palestra de Lorbeer é a guerra. Não as escaramuças tribais que pululam à volta deles mas a «maldita grande guerra» que lavra nos campos petrolíferos de Bentiu e que cada dia avança para o sul.

 

- Aqueles malandros de Kartum têm tanques e canhoneiras que nunca mais acabam, Peter. Estão a fazer em pedaços os pobres africanos. Vá lá, veja com os seus próprios olhos. Se os bombardeamentos não são suficientes, arranjam tropas terrestres para fazerem o trabalhinho e para esses não há problemas. Essas tropas violam e assassinam com o coração cheio de alegria. E quem é que os ajuda? Quem é que os aplaude da bancada? As grandes multinacionais petrolíferas.

 

A sua voz indignada ocupa todo o espaço, As conversas à volta da mesa ou entram em competição de decibéis ou morrem, que é o que lhes acontece.

- As multis adoram Kartum! E dizem: «Filhos, nós respeitamos os vossos belos princípios fundamentalistas. Umas tantas chicotadas em público, umas tantas mãos cortadas, nós admiramos isso. Queremos ajudá-los de toda a maneira que pudermos. Queremos que vocês se sirvam das nossas estradas e dos nossos aeródromos enquanto quiserem. Não deixem aqueles preguiçosos pacóvios africanos das cidades e aldeias atravessarem-se no caminho do Grande Deus Lucro. Queremos esses palermas africanos tão etnicamente limpos da circulação como vocês aí em Kartum querem fazer! Portanto, filhos, aqui têm a vossa parte dos lucros do petróleo. Comprem armas à vossa vontade!» Está a ouvir isto, Salvation? Está a tomar notas, Peter?

 

- Sem falhar uma palavra, obrigado, Brandt, - diz Justin falando calmamente para o seu bloco.

 

- As multis fazem o trabalho do Diabo. Ainda hão-de acabar no Inferno que e onde devem estar, podem crer! - Faz um pouco de teatro encolhendo-se e cobrindo o rosto com as suas enormes mãos. Está a representar o papel do Homem da Multinacional enfrentando o seu Criador no Dia do Juízo Final.

- «Não fui eu, Senhor. Só obedeci a ordens, Dadas pelo Grande Deus Lucro!» Aquele Homem da Multinacional é o mesmo que vos vicia em cigarros e depois vos vende a cura para o cancro que vós não podeis pagar!

 

É o mesmo que também nos vende remédios não-testados. É o mesmo que passa por cima dos testes médicos e usa os míseros da terra como cobaias.

 

- Quer café?

 

- Quero sim. Muito obrigado.

 

Lorbeer põe-se em pé de um salto, agarra na tijela de sopa de justin, passa-a por água quente de um termos como preparativo para vir a enchê-la de café. A camisa de Lorbeer está colada às costas, revelando pregas de carne flácida. Mas não pára de falar. Tem horror ao silêncio.

 

- Os rapazes de Loki falaram-lhe no comboio, Peter? - grita ele enquanto limpa a tijela com um bocado de guardanapo de papel tirado de um saco de lixo. - Aquele velho e horroroso comboio que vem para o sul umas três vezes por ano à velocidade de um caracol?

 

- Acho que não.

 

- Vem pela velha linha férrea que vocês, OS ingleses, construíram, Ok? É como nos velhos filmes. É protegido por bandidos a cavalo vindos do norte.

0 comboio traz mantimentos para todas as guarnições de Kartum espalhadas ao longo da linha, de norte a sul, Ok?

 

- Ok.

 

Porque é que ele transpira tanto? Porque é que o seu olhar está tão inquieto? Que secreta comparação estará ele afazer entre o comboio dos árabes e os seus próprios pecados?

 

- Ah homem! Que comboio! Neste momento está encravado entre Ariath e Aweil, a dois dias de caminho daqui. Temos que rezar para que o rio continue em cheia e que os cabrões não possam vir para aqui. A qualquer sítio onde vão, desencadeiam o Armageddon. Matam toda a gente. Ninguém os pára. São fortes demais.

 

- Quem são exactamente esses cabrões de que está a falar, Brandt?, - pergunta justin, sacudindo o seu bloco-notas. - Agora perdi-me por um momento.

- Os cabrões são os bandidos a cavalo, homem. Pensa que eles são pagos

 

para proteger o tal comboio? Nem por sombras. Fazem-no de borla, só por bondade dos seus corações. A recompensa são os assassinatos e as violações que vão fazendo pelas aldeias. São os incêndios que eles ateiam. São os raptos de rapazes e raparigas que eles levam para o norte quando o comboio fica vazio. É roubar tudo o que não queimam.

 

- Estou a ver.

 

Mas o comboio não basta para Lorbeer. Nada lhe basta se existir qualquer ameaça de se vir a estabelecer um silêncio durante o qual lhe façam perguntas que ele não quer ouvir. Os seus olhos aflitos já estão desesperadamente à procura de mais conversa.

 

- E falaram-lhe ao menos do avião? Do avião russo, mais antigo do que a Arca de Noé, o avião que eles mantêm em Juba? É uma história espantosa.

- Nem do comboio, nem do avião, receio eu. Acho que não tiveram tempo de me falarem fosse do que fosse.

 

E Justin fica mais uma vez à espera, com a caneta na mão, pronto para que lhe falem do tal avião russo que eles mantêm em Juba.

 

- Esses loucos muçulmanos de juba fazem umas bombas que parecem balas de canhão. Depois levam-nas até à fuselagem do avião e lançam-nas sobre aldeias cristãs. «Tomem lá, Cristãos! Aqui vão as cartas de amor dos vossos irmãos muçulmanos!» E é que o raio das bombas são mesmo eficazes, garanto-lhe Peter! Aqueles malandros aperfeiçoaram a arte de acertar nos alvos. E as bombas são tão pouco fiáveis que os tipos lançam-nas todas antes de voltar a aterrar o seu chaveco voador.

 

Debaixo do guarda-sol, o rádio de campanha anuncia a chegada de outro Buffalo. Primeiro a voz lacónica de Loíci, depois o comandante em voo pedindo contacto. Debruçada sobre os aparelhos, Jame anuncia bom tempo, chão firme e nenhum problema de segurança. Os comensais dispersam rapidamente mas Lorbeer fica no seu lugar. Justin fecha o seu bloco-notas e, sob o olhar de Lorbeer, guarda-o na algibeira juntamente com as canetas e os óculos.

 

- Pois muito bem, Brandt. Optimo guisado. Eu tenho uma pergunta que gostaria de lhe fazer. Haverá aí um sítio onde nos possamos sentar durante uma hora sem sermos interrompidos?

 

Como um condenado que se dirige ao local da execução, Lorbeer conduz Justin através dum troço de erva semeado de tendas e de linhas de roupa a secar. Uma tenda em forma de sino está armada um pouco à parte. De chapéu na mão Lorbeer levanta o pano de entrada para Justin passar e consegue fazer um hediondo sorriso de servilismo quando o convida a entrar. Justin curva-se e os olhos de ambos encontram-se e Justin vê no outro aquilo que já tinha visto quando estavam no tukul, mas agora mais claramente: um homem aterrado por coisas que deliberadamente decidiu não ver.

 

 

0 ar dentro da tenda é compacto, acre e muito quente, os cheiros são de erva podre e roupa suja que nunca ficará limpa por mais que se lave. Existe uma cadeira de pau e, para a libertar, Lorbeer tem de retirar uma Bíblia Luterana, um volume de versos de Heine, um fato de dormir em pano turco, estilo baby-grow, um estojo de emergência de monitor com rádio e uma antena telescópica. Só depois oferece a cadeira a Justin, antes de se acocorar na borda de uma cama de campanha a dez centímetros do chão, a cabeça ruiva entre as mãos, o dorso curvado enquanto espera que justin fale.

 

- 0 meu jornal está interessado num novo e controverso medicamento para a cura da tuberculose chamado Dypraxa, fabricado pela Karel Vita Hudson e distribuído em África pela Casa das Três Abelhas. Reparei que não o tem nas suas prateleiras. 0 meu jornal pensa que o seu verdadeiro nome é Markus Lorbeer e que foi o senhor que lançou o Dypraxa no mercado, - explica Justin enquanto abre mais uma vez o bloco-notas.

 

Nada se altera na atitude de Lorbeer, o dorso curvado, a cabeça ruiva, os ombros abatidos, tudo se mantém imóvel depois do choque das palavras de Justin.

 

- Há um clamor crescente sobre os efeitos colaterais do Dypraxa. Tenho a certeza que sabe disso, - continua Justin, virando uma página do bloco e consultando-a. - A KVH e as Três Abelhas não vão poder continuar com o dedo a tapar o buraco do dique para todo o sempre. Seria sensato serem vocês os primeiros a dizer o que realmente se passa.

 

Ambos transpiram abundantemente, duas vítimas da mesma doença. 0 calor da tenda é tão soporífero que, no espírito de Justin, surge o risco de que ambos sucumbam e tombem, lado a lado, numa sonolência doentia. Lorbeer levanta-se e começa a circular pelo perímetro da tenda, como um bicho enjaulado.

 

É como eu fazia quando estava na cave de Glória, pensa Justin enquanto observa o seu prisioneiro parar e mirar-se num pequeno espelho ou examinar uma cruz de madeira presa na lona por cima da cabeceira da cama.

 

- Espantoso, homem! Como é que me descobriu?

- Falei com várias pessoas. Tive sorte.

 

- Não me lixe, criatura! Qual sorte, qual quê! Quem é que lhe paga? Continua a andar. Abana a cabeça para sacudir o suor. Voltando-se de repente, como se esperasse encontrar Justin nos seus calcanhares. Olhando para ele com desconfiança e censura.

 

- Trabalho por minha conta, - diz Justin.

 

- Por sua conta uma gaita! Jornalistas como você, eu compro-os. Conheço todas as vossas quadrilhas! Quem é que o comprou?

 

- Ninguém.

 

- A KVH? 0 Curtiss? Eu é que os fiz ganhar rios de dinheiro, caramba!

 

- E eles também o fizeram ganhar a si, não fizeram? Segundo o nosso jornal, você tem um terço de quarenta e nove por cento das companhias que detêm a patente da molécula.

 

- Renunciei a isso, homem! E Lara também. Era dinheiro de sangue. «Fiquem com ele», disse-lhes eu. «É todo vosso. E no Dia do Juizo Final que Deus tenha piedade de vós!» Foram estas as minhas palavras, Peter.

 

- Ditas a quem, exactamente? - pergunta Justin, tomando notas, - Curtiss? Alguém da KVH? - 0 rosto de Lorbeer é uma máscara de terror. - Ou o Crick, talvez. Estou a ver. Crick era a sua ligação com as Três Abelhas.

 

E escreve Crick no seu bloco, letra por letra, porque a mão pinga de suor.

- Mas o Dypraxa não era um mau medicamento, pois não? 0 meu jornal pensa que é um bom medicamento, lançado cedo demais.

 

- Cedo? - A palavra irrita-o e diverte-o. - Cedo, homem? Aqueles rapazes da KVH queriam testes tão rápidos que nem podiam esperar pelo pequeno-almoço de amanhã.

 

Uma ensurdecedora explosão faz parar o mundo. Primeiro é o avião russo de Kartum, baseado em juba a lançar uma das suas bombas. Depois são os bandidos a cavalo do Norte. Depois é a dura batalha pelos campos de petróleo de Bentiu que chegou às portas dos postos de mantimentos. A tenda abana terrivelmente, depois sossega, pronta para novo ataque. As amarras da tenda gemem enquanto lençóis de água se despenham sobre a lona do tecto. No entanto, Lorbeer parece não ter reparado no ataque. Está de pé, no centro da tenda, com uma mão na testa como se se tivesse esquecido de alguma coisa. Justin afasta a cortina de entrada e, através dos lençóis de água conta três tendas desabadas e outras duas a desabar diante dos seus olhos. A água escorre da roupa que estava a secar. Formou um lago na relva e começa a bater nas paredes de madeira do tukul. Cai em cortinas opacas sobre o tecto do abrigo antiaéreo. De repente pára tão subitamente como começou.

 

- Bom, Markus, - propõe Justin, como se a tempestade também tivesse limpado o ar no interior da tenda. - Fale-me daquela rapariga, Wanza. 0 caso dela foi um ponto de ruptura na sua vida? 0 meu jornal pensa que sim.

 

Os olhos esbugalhados de Lorbeer continuam fixos em Justin. Tenta falar mas as palavras não lhe chegam.

 

- Wanza, de uma aldeia ao norte de Nairobi. Wanza, que se mudou para as barracas de Kibera. E foi levada para o hospital de Uhuru para ter o seu bebé. Ela morreu mas o bebé não. 0 meu jornal pensa que ela partilhou uma enfermaria com Tessa Quayle. Será possível? Ou Tessa Abbott, o nome que ela utilizava às vezes.

 

Mesmo agora a voz de Justin continua calma e fria como compete a um jornalista objectivo. E essa frieza é, de certo modo, real, já que ele não aceita facilmente o facto de ter um homem à sua mercê. A responsabilidade é maior do que ele desejaria. 0 seu instinto de vingança é muito fraco. Um avião aproxima-se da zona de lançamento. Nos olhos de Lorbeer surge uma débil esperança. Vieram para me salvar! Não! Vieram para salvar o Sudão!

 

- Quem é você?

 

Foi-lhe precisa muita coragem para fazer essa pergunta. Mas Justin ignora-a.

- Wanza morreu, E Tessa também. E Arnold Bluhm, um médico belga e grande amigo dela. 0 meu jornal pensa que Tessa e Arnold vieram aqui para falar consigo dois dias antes de serem mortos. E pensa também que você lhes confessou a sua participação no caso Dypraxa e que - e isto é apenas uma suposição - você, assim que eles se foram embora, os traiu perante os seus antigos patrões para se pôr a salvo do escândalo. Talvez mandando uma mensagem rádio ao seu amigo Sr. Crick. Isto diz-lhe alguma coisa?

 

- Meu Deus, homem! Meu Deus todo poderoso!

 

Markus Lorbeer está a ser queimado vivo. Abraçou-se ao poste central da tenda, encostou-lhe a cabeça e aperta-o com força para se proteger das mortíferas e impiedosas perguntas de Justin. Levanta os olhos ao céu, em agonia, murmura e implora coisas inaudíveis. Justin levanta-se, arrasta a cadeira para junto de Lorbeer, agarra-o por um braço e obriga-o, a sentar-se.

 

- 0 que é que Tessa e Arnold procuravam quando vieram cá? - pergunta Justin. As suas perguntas são formuladas com uma deliberada indiferença. Não quer mais confissões soluçantes nem mais apelos a Deus.

 

- Procuravam a minha culpa, homem, a minha vergonhosa história, o meu pecado de orgulho, - murmura Lorbeer em resposta, enxugando o rosto com um farrapo tirado da algibeira dos calções.

 

- E encontraram?

 

- Tudo, homem. Até ao último bocado. juro.

- Com um gravador?

 

- Com dois, homem! Aquela mulher não confiava em mim. - Com um sorriso interior, Justin reconhece a competência forense de Tessa. - Abandonei-me todo perante eles. Dei-lhes a verdade nua, juro por Deus. Não havia outra saída. Eu era o último elo da cadeia das suas investigações.

 

- Disseram-lhe o que é que tencionavam fazer com a informação que lhes deu?

 

Os olhos de Lorbeer abriram-se muito, mas os lábios continuaram cerrados e o corpo tão imóvel que, por segundos, Justin imaginou que ele tinha sido fulminado por uma morte misericordiosa, mas estava apenas a recordar. E de repente, começou a falar muito alto, chegando a gritar à medida que se libertava das palavras.

 

- Iam apresentar tudo ao único homem em que confiavam aqui no Quénia. Iam apresentar a história toda a Leakey. 0 Quénia tem que resolver os seus próprios problemas, disse ela. E Leakey era a pessoa indicada. Ela acreditava nisso. E avisaram-me. Ela disse-me: «É melhor você esconder-se, Markus. Este lugar já não é seguro para si. Vai ter que encontrar um buraco bem fundo, de contrário eles fazem-no em estilhas por os ter atraiçoado perante nós.»

 

É difícil para Justin recriar as palavras autênticas a partir da voz estrangulada de Lorbeer, mas procura fazê-lo. E não tem qualquer dúvida sobre o sentido geral dessas palavras, porque a primeira preocupação de Tessa seria para com Lorbeer e não com ela própria. E fazem-no em estilhas» era uma das suas expressões usuais.

 

- E o que é que Bluhm lhe disse?

 

- Ele era muito directo. Disse-me que eu era um charlatão e um traidor às minhas responsabilidades.

 

- E isso deve tê-lo ajudado a si a atraiçoá-los a eles, - sugere Justin gentilmente, mas a sua gentileza é inútil porque o choro de Lorbeer ainda é pior que o de Woodrow - uivos e lágrimas furiosas enquanto pede piedade para si próprio. Ele adora aquele medicamento! Não merece ser publicamente condenado! Mais uns anos e tomará o seu lugar entre as grandes descobertas clínicas da nossa época! Tudo o que temos que fazer é estudar os níveis máximos de toxicidade e controlar as doses que os nossos corpos podem tolerar. E já estão a trabalhar nisso, homem! Quando chegar ao mercado norte-americano, todos esses inconvenientes já terão sido eliminados e não haverá qualquer problema! Lorbeer ama África, ama a Humanidade, não nasceu para suportar esta culpa! Mesmo quando argumenta, quando geme e grita, consegue elevar-se misteriosamente acima da derrota. Senta-se mais aprumado. Endireita os ombros e um sorriso tolo de superioridade substitui a sua dor de penitente.

 

- E além disso, pense nas relações entre eles, - protesta numa insinuação muito directa. - Reparem no seu comportamento ético. Pergunto a mim mesmo de cujos pecados estamos precisamente a falar.

 

- Acho que não estou a percebê-lo bem, - diz Justin suavemente, enquanto uma barreira mental de segurança começa a formar-se dentro da sua cabeça.

- Leia os jornais, homem. Oiça a rádio. Faça um juízo independente e responda-me. 0 que anda a fazer aquela mulher branca, bonita e casada viajando com o seu constante companheiro, o belo médico negro? Porque é que ela usa o nome de solteira e não o do seu honesto marido? Porque é que ela se exibe ao lado do seu amante para aqui, para esta mesma tenda, uma adúltera e hipócrita, interrogando Markus Lorbeer sobre a sua moralidade pessoal?

 

Mas a barreira de segurança deve ter-se entreaberto, porque Lorbeer está a olhar fixamente para Justin como se o próprio anjo da morte tivesse vindo submetê-lo àquele juízo que ele tanto receia.

 

- Meu Deus, homem! Você é ele. 0 marido. Quayle.

 

0 último lançamento de alimentos do dia esvaziou a paliçada de todos os que lá trabalhavam. Deixando Lorbeer a soluçar, sozinho, na tenda, Justin senta-se junto a um abrigo antiaéreo para gozar o espectáculo do cair da noite: primeiro as garças negras voando em círculos anunciando o pôr-do-sol. Depois os relâmpagos afastando as trevas em descargas longas e trementes, depois a neblina elevando-se como um véu branco. E finalmente as estrelas, suficientemente próximas para lhes tocarmos.

 

 

Para além das subtis contra-informações fornecidas pelo governo ou pela maioria parlamentar; para além das repetidas arengas da televisão ou das suas esmagadoras imagens; para além das mentes preguiçosas de jornalistas cujo dever de informar não ultrapassa o próximo prazo ou o próximo almoço de borla, uma série de eventos foi acrescentado à história menor da humanidade.

 

A promoção formal en poste* - contrariamente à prática estabelecida - do Sr. Alexander Woodrow ao cargo de Alto Comissário Britânico em Nairobi, gerou ondas de satisfação entre a comunidade branca de Nairobi e foi bem acolhida pela imprensa africana local. «Um passo decidido para a compreensão» era a manchete da página três do Standard de Nairobi, enquanto Glória era considerada como «um sopro de ar fresco que iria varrer as últimas teias de aranha do colonialismo britânico».

 

Muito pouco foi dito mas muito foi sugado pela súbita desaparição de Porter Coleridge nas catacumbas governamentais. 0 predecessor de Woodrow teria estado «fora do contacto com o Quénia moderno». Tinha hostilizado ministros muito diligentes com os seus sermões contra a corrupção. Havia mesmo a sugestão, inteligentemente abafada, de que ele teria eventualmente sucumbido ao vício que ele tanto condenava em público.

 

Boatos de que Coleridge tinha sido trazido perante uma «comissão disciplinar ministerial» e convidado a «explicar algumas questões embaraçosas que tinham surgido durante o seu consulado» foram considerados como especulação gratuita mas não desmentidas pelo porta-voz da Alta Comissão que os tinha posto a correr. «Porter é um homem muito culto e de rígidos princípios. Seria injusto negar as suas muitas virtudes», foi a informação dada por Mildren a

 

Nos Ministérios dos Negócios Estrangeiros, as promoções ocorrem quando o diplomata passa de um para outro posto. (N. T)

 

jornalistas de confiança numa declaração off-the-record; e eles souberam ler nas entrelinhas.

 

«O Czar do Foreign Office em África, Sir Bernard Pellegrin», foi comunicado a um público pouco interessado, preferiu uma reforma antecipada a fim de ocupar um posto de primeira linha na administração da Karel Vira Hudson, de Basileia, Seattle, Vancouver e agora Londres, onde os reconhecidos dotes de Pellegrin «para trabalhar num conjunto de empresas» poderiam ser de grande auxílio. A um banquete de despedida em honra de Sir Bernard compareceu uma luzida assembleia de Altos Comissários Africanos na Corte de Sr. James e suas esposas. Um discurso muito espirituoso do delegado da África do Sul fez notar que Sir Bernard e sua Lady não terão ganho o Torneio de WImbledon mas ganharam sem dúvida o coração de muitos africanos.

 

A espectacular ressurreição das próprias cinzas por parte desse «moderno Houdini da City», Sir Kenneth Curtiss, foi saudada tanto por amigos como por inimigos. Só que a ascensão de Kenny era pura ilusão e a reestruturação da Casa das Três Abelhas não era mais do que uma manobra dilatória para atrasar a queda. Estas sinistras previsões não impediram a entrada do financeiro na Câmara dos Lordes onde lhe foi atribuído o título de Lord Curtiss de Nairobi e Spennymoor, sendo esta última a terra humilde onde o financeiro nascera. Até os seus muito críticos de Flect Strect concordaram em que o velho diabo merecia o manto de arminho.

 

A secção «Diário dos londrinos» do Evening Standard fez comentários cáusticos sobre a reforma, tão longamente esperada, do incorruptível Superintendente Frank Gridley, da Scotland Yard, grande perseguidor de criminosos que afectuosamente lhe chamavam «Old Gridiron»*. Na realidade, a reforma era a última coisa que ele desejava. Uma das maiores empresas de serviços de segurança da Inglaterra estava pronta a recebê-lo assim que ele terminasse umas férias em Maiorca, há muito prometidas à sua mulher.

 

A saída de Rob e Lesley da Polícia, em contrapartida, não recebeu nenhuma publicidade, embora os observadores internos notassem que um dos últimos actos de Gridley foi fazer pressão para o afastamento daquilo a que chamou «uma nova geração de carreiristas sem currículo» que estavam a dar má reputação à Força Pública.

 

Ghita Pearson, outra presumível carreirista, não foi bem sucedida no seu concurso para funcionária britânica no estrangeiro. Embora os resultados das suas provas fossem entre «bom» e «excelente», houve relatórios confidenciais da Alta Comissão em Nairobi que causaram inquietação. Decidindo que ela era «facilmente dominada pelos seus sentimentos pessoais», o Departamento

 

* «Velha Grelha>,. Sugerido pela semelhança entre Griclley e Gridiron. (N. T)

 

do Pessoal do Foreign Office aconselhou-a a esperar mais uns anos e a recandidatar-se. Foi então sublinhado que o factor racial não fora de forma alguma considerado.

 

Também não subsistia qualquer dúvida sobre o infeliz falecimento de Justin Quayle. Perturbado pelo desgosto e pelo desespero, tinha posto termo à vida no mesmo local onde sua mulher Tessa fora assassinada poucas semanas antes. A rápida perda do seu equilíbrio mental era um segredo aberto, bem conhecido por todos os que com ele se preocupavam. Os seus superiores em Londres tinham feito praticamente tudo para o salvarem de si próprio, menos encarcerarem-no. A notícia de que o seu bom amigo Arnold Bluhm era o assassino de sua mulher fora o golpe fatal. Os vestígios de agressões sistemáticas no baixo ventre tinham levado o pequeno grupo dos verdadeiros bons conhecedores do caso a concluir que, nos dias que precederam a sua morte, Justin se tinha infligido uma dura autoflagelação. A maneira como ele obtivera a arma fatal - uma pistola de calibre 38 de cano curto em óptimo estado e com cinco balas especiais ainda no carregador - era um mistério que nunca seria resolvido. Um homem rico e desesperado, decidido a proceder à sua própria destruição encontra sem dificuldade a solução infalível. A sua morada final, no cemitério de Langata, tinha-o reunido à mulher e ao filho.

 

0 governo inglês, com os seus ministros transitórios que parecem dedicar-se a uma dança de cadeiras, tinha, mais uma vez, cumprido o seu dever: excepto, é verdade, num ponto menor mas irritante. Ao que parece, Justin tinha reunido nas últimas semanas de vida um «livro mágico» destinado a provar que Tessa e Bluhm tinham sido assassinados por saberem demais acerca da nefasta actividade de uma das mais prestigiosas multinacionais farmacêuticas, a qual conseguira até agora manter o anonimato. Um advogado de origem italiana - um conhecido da mulher assassinada, que certamente o teria desaprovado - tinha surgido bruscamente e, fazendo uso arbitrário do dinheiro da sua cliente, contratou os serviços de um agitador que se ocultava sob a máscara de Agente de Relações Públicas. 0 mesmo advogado duvidoso tinha-se aliado a uma firma de advogados da City, sempre ocupados e famosos pela sua combatividade. A firma Oakey, Oakey & Farmeloc, representando a desconhecida multinacional, contestou o uso de fundos da cliente para pagar as actividades do advogado mas sem sucesso. A firma teve de contentar-se com ameaçar legalmente todo e qualquer jornal que se atrevesse a divulgar a história do «livro negro».

 

Mas alguns fizeram-no e os rumores alargaram-se. A Scotland Yard, convidada a examinar o material, declarou publicamente que o «livro» não tinha fundamento, era «lamentável» e recusou-se a pedir a intervenção da Acusação Pública. Mas os advogados do casal, longe de desistirem, recorreram ao Parlamento. Um deputado escocês, também advogado, foi subornado e levantou uma questão parlamentar, solicitando ao Ministro dos Estrangeiros esclarecimentos sobre o estado da saúde pública em África. 0 Ministro enfrentou a questão com a sua desenvoltura habitual, mas foi confrontado com uma questão complementar que pretendia atingi-lo na veia jugular:

 

P: 0 Ministro recebeu no último ano algum relatório da parte da Sra. Tessa Quayle, tragicamente assassinada?

 

R: Não tenho notícia de tal facto. P: Estou a ouvir um «não»?

 

R: Não tenho conhecimento de qualquer relatório apresentado durante a vida dessa senhora.

 

P: Ter-lhe-á ela escrito postumamente? (Risos)

 

Nas discussões verbais e escritas que se seguiram, o Ministro começou por negar qualquer conhecimento desses relatórios e acabou por declarar que quaisquer documentos referentes ao caso estariam em segredo de justiça, uma vez haver acções legais pendentes. Depois de «pesquisas posteriores e muito extensas», acabou por admitir que tinha «descoberto» esses documentos, mas concluíra que eles tinham recebido toda a atenção que mereciam, então como agora, «tendo em conta o perturbado estado mental de quem o escreveu». Acrescentou, imprudentemente, que os documentos tinham sido considerados confidenciais.

 

P: Será que o Ministério dos Negócios Estrangeiros costuma considerar confidenciais os documentos escritos por pessoas mentalmente perturbadas? (Risos)

 

R: Sim, nos casos em que tais documentos possam ser embaraçosos para pessoas inocentes.

 

P: Ou para o Ministério talvez?

 

R: Estou a pensar em sofrimentos desnecessários que poderiam ser infligidos os parentes próximos dos falecidos.

 

P: Pode então estar descansado. A Sra. Quayle não tinha quaisquer parentes próximos.

 

R: Não são apenas esses os interesses que o Ministério deve proteger.

 

P: Muito obrigado. Acho que acabo de ouvir a resposta que já esperava.

 

No dia seguinte foi apresentado ao Ministério dos Negócios Estrangeiros o pedido formal para apresentação dos «documentos Quayle» reforçado por um requerimento ao Supremo Tribunal. Simultaneamente, e não, por coincidência, foi organizada em Bruxelas uma iniciativa paralela por parte dos advogados dos amigos e da família do falecido Dr. Arnold Bluhm. Durante a audiência preliminar, uma multidão multirracial de provocadores, deliberadamente vestidos de branco, desfilou em frente do Palácio de Justiça de Bruxelas e perante as câmaras de televisão, empunhando cartazes que diziam «Nous Accusons». Este acontecimento negativo foi rapidamente superado.

 

Uma chuva de petições apresentadas por advogados belgas garantiu que o caso não fosse resolvido nos próximos anos. No entanto, passou a ser do conhecimento geral que a multinacional visada era nada menos que a Karel Vita Hudson.

 

- Lá à frente é a cordilheira de Lokomonnyang. - Informa o Comandante McKenzie pelo intercomunicador. Justin espreita. - Oiro, e petróleo. 0 Quénia e o Sudão estão em luta por ela há uns cem anos. Os velhos mapas dão-na ao Sudão, os novos ao Quénia. Acho que alguém deu dinheiro aos cartógrafos.

 

0 Comandante McKenzie é um daqueles homens cheios de tacto que sabe exactamente quando podem ser irrelevantes. 0 avião que escolheu desta vez é um bimotor Becch Baron. Justin está sentado ao seu lado, no lugar do co-piloto ouvindo, sem prestar atenção ora o Comandante McKenzie ora a algazarra dos outros pilotos das vizinhanças. - Como é que vamos hoje, Mac? Estamos acima ou abaixo do nível das nuvens? - Onde diabo estás tu, homem?

- Uma milha para a tua direita e mil pés abaixo. 0 que é que aconteceu ao teu golpe de vista? Estão a voar sobre grandes rochas chatas que vão escurecendo em azul. As nuvens são espessas, acima deles. Manchas vermelho vivo aparecem nos sítios onde o sol rompe as nuvens e bate nas rochas. As colinas à frente deles parecem ralas e abandonadas. Aparece uma estrada, como uma veia no meio dos músculos de rocha.

 

- Do Cabo ao Cairo, - diz McKenzie, lacónico. - Nunca a experimente.

- Não senhor, - promete Justin, obediente.

 

McKenzie inclina o avião e começa a descer, aproximando-se da estrada. Ela aparece como uma estrada de vale, serpenteando ao longo de escarpas e colinas.

 

- Aquela estrada para a direita é a estrada que Tessa e Arnold seguiram, de Lokí para Lodwar. É óptima se não se importa com bandidos. Completamente desperto, Justin olha com intensidade a neblina pálida lá

 

à frente e vê Arnold e Tessa no seu jipe com os rostos cheios de pó e a caixa dos discos entre eles no banco de trás. Um rio juntou-se à estrada do Cairo. Chama-se TagUa, diz McKenzie, e a sua nascente é nas montanhas Tagua, a três mil metros de altitude. Justin, polidamente, regista essa informação. 0 sol aparece, as colinas tornam-se azul-escuras, separadas e ameaçadoras, Tessa e Arnold desaparecem. A paisagem fica outra vez sem alma, nenhum homem ou animal no horizonte.

 

- As tribos sudanesas descem a cordilheira de Mogila, - diz McKenzie.

- Lá na selva andam nus. Descendo para o sul, ficam com vergonha, põem uns bocadinhos de pano. E, caramba, como eles correm!

 

Justin faz um sorriso polido enquanto montanhas castanhas e escalvadas se elevam todas tortas e meio-enterradas na terra cor de caqui. Para lá delas, vê-se o halo azul dum lago.

 

- Aquele é o lago Turkana?

 

- Não nade lá. A menos que seja campeão. Água doce. Grandes ametistas. Crocodilos simpáticos.

 

Rebanhos de cabras e ovelhas aparecem lá em baixo, depois uma aldeia e um complexo.

 

- Tribos do Turkana, - diz McKenzie. - Grandes tiroteios o ano passado, roubos de gado, Melhor não se aproximar deles.

 

- Assim farei, - promete Justin.

 

McKenzie olha fixamente para ele, um olhar longo e interrogativo. - Não são as únicas pessoas que deve evitar, ao que me dizem.

 

- Pois não, - concorda justin.

 

- Estamos a poucas horas de Nairobi. Justin abana a cabeça.

 

- Quer que eu faça um desvio e o leve, por cima da fronteira, até Kampala? Temos combustível.

 

- É muito amável.

 

Reaparece a estrada, arenosa e deserta. 0 avião reage violentamente, fugindo para a esquerda e para a direita como um cavalo bravo, como se a natureza o mandasse voltar para trás.

 

- Os piores ventos num raio de muitos quilómetros, - diz McKenzie,

- a região é famosa por eles.

 

A cidade de Lodwar fica-lhes por baixo, apertada entre colinas pretas e cónicas, não mais altas que uns quinhentos metros. Parece limpa e activa, com telhados de zinco, uma pista de aviação e uma escola.

 

- Não há indústria, - diz McKenzie. - É um grande mercado para vacas, burros e camelos se estiver interessado em comprar.

 

- Não estou, - sorri justin.

 

- Um hospital, uma escola, muitos soldados. Lowdar é o centro de segurança da região. Os soldados passam a maior parte do tempo a caçar bandidos nas colinas Apoi, sem grandes resultados. Bandidos do Sudão, bandidos do Uganda, bandidos da Somália. Um belo sítio de reunião para bandidos. Roubo de gado é o desporto local, - recita McKenzie retomando o papel de guia turístico. - Os Mandango roubam gado, dançam durante duas semanas até que outra tribo lho roube a eles.

 

- Que distância vai de Lodwar até ao lago?

 

- Cinquenta quilómetros, mais ou menos. Pergunte por um barqueiro chamado Mickie. Tem um filho chamado Abraão. 0 rapaz é porreiro quando está com Mickie, um horror quando está sozinho.

 

- Obrigado.

 

Acaba a conversa. McKenzie sobrevoa a pista e oscila as asas para manifestar a sua intenção de aterrar. Sobe de novo e volta. De repente já estão no solo. Não há nada a dizer senão, mais uma vez, obrigado.

 

- Se precisar de mim, procure alguém que me possa contactar pela rádio,

- diz McKenzie quando ambos já estão de pé na pista. - Se não me encontrar, há um tipo chamado Martin que dirige a Escola de Voo de Nairobi. Voa há trinta anos. Treinado em Perth e em Oxford. Diga que vai da minha parte.

 

Obrigado, diz Justin outra vez e, na sua ansiedade de ser cortês, escreve tudo no seu bloco.

 

- Quer que eu lhe empreste o meu saco de voo? - diz McKenzie fazendo um gesto com uma bolsa preta que tem na mão direita. - Pistola de tiro ao alvo de cano comprido, se estiver interessado. A quarenta metros tem umas chances.

 

- Eu, nem a dez metros acerto, - exclama Justin com uma espécie de riso de autodepreciação que data dos seus tempos de antes de Tessa.

 

- E este é o juiz, - diz McKenzie, apresentando um filósofo grisalho numa velha t-shirt cinzenta e sandálias verdes, aparecido não se sabe como. - 0 juiz é o seu motorista. Justin, apresento-lhe o juiz. juiz, apresento-lhe Justin.

0 juiz tem um senhor chamado Ezra que faz equipa com ele. Posso fazer mais alguma coisa por si?

 

Justin tira um grosso envelope da algibeira do blusão. - Gostaria que metesse isto no correio quando estivesse perto de Nairobi. Correio normal será óptimo. Não é para a minha namorada. É para a tia do meu advogado.

 

- Esta noite está bem?

- Está óptimo.

 

- Então tenha cuidado, - diz McKenzie, metendo o envelope no seu saco. -Tenho, com certeza, - diz Justin e, desta vez consegue não dizer a McKenzie que foi muito amável.

 

0 lago era branco, cinzento e prateado e o sol a pique fazia listas pretas e brancas no barco de pesca de Mickie, preta na sombra do toldo, branca e impiedosa onde o sol batia livremente nas pranchas de madeira, branca à flor da água doce que borbulhava por vezes quando os peixes se aproximavam, branca nas montanhas enevoadas e cinzentas que arqueavam o dorso sob o calor do sol, branca onde batia nos rostos negros de Mickie e do seu jovem companheiro, o jovem Abraão, um rapaz retorcido e secretamente zangado (McKenzie tinha toda a razão) e que, por uma misteriosa razão, falava alemão e não inglês, o que fazia com que a conversa tivesse três lados: alemão com Abraão, inglês com o velho Mickie e uma versão pessoal de ki-swahili entre eles. Branca ainda sempre que Justin via Tessa, o que acontecia muitas vezes, encavalitada como um rapaz na proa do barco onde teimava em sentar-se apesar dos crocodilos, com uma mão a agarrar o barco, como o pai lhe ensinara e com Justin mesmo ao pé, para o caso de escorregar. Na rádio de bordo, um programa de cozinha em inglês louvava as virtudes do tomate seco ao sol.

 

Ao princípio Justin tivera dificuldade em explicar o seu destino, em qualquer das línguas. Parecia nunca terem ouvido falar em Allia Bay, que não lhes dizia nada. 0 velho Mickie queria levá-lo para sudoeste, para o Oasis de Wolfgang onde ele vivia e o venenoso Abraão tinha calorosamente apoiado essa ideia: o Oasis era onde estava o Wazungu, o primeiro hotel da região, famoso pelas suas vedetas de cinema e rock e pelos seus milionários; era sem dúvida o Oasis o destino de Justin, quer ele o soubesse ou não. Foi só quando Justin tirou da carteira uma pequena foto de Tessa, uma foto tipo passe que nunca fora divulgada pelos jornais, que o objectivo da missão de Justin se lhes tornou claro e eles ficaram calados e um pouco inquietos. Então Justin queria visitar o sítio onde Noah e a mulher Mzungu foram assassinados? - perguntou Abraão.

 

Sim, por favor.

 

Justin sabia - perguntou Abraão - que muitos polícias e jornalistas tinham visitado o local, que tudo o que havia para encontrar já fora encontrado e ainda que a polícia de Lodwar e a brigada móvel de Nairobi tinham decretado, conjuntamente, que o local era proibido aos turistas, visitantes, caçadores de troféus e todos os que não tivessem razões oficiais para lá ir? insistiu Abraão.

 

Justin não sabia, mas continuava com a mesma intenção e estava pronto a pagar generosamente para a realizar.

 

Sabia que o lugar estava amaldiçoado, e isso já antes dos assassinatos? continuou Abraão mas já muito menos convictamente, uma vez que o aspecto financeiro estava resolvido.

 

Justin afirmou que não tinha medo de fantasmas.

 

Ao princípio, por deferência para com o carácter sombrio da tarefa, o velho e o seu assistente tinham adoptado uma pose melancólica e foi precisa toda a boa disposição de Tessa para os tirar desse estado de espírito. Como de costume, com a ajuda de alguns comentários espirituosos vindos da proa, acabou por ser bem sucedida. A presença de outros barcos de pesca foi também uma ajuda. Ela gritou-lhes «o que é que apanharam?» e eles responderam «Tantos peixes vermelhos, tantos azuis, tantos de várias cores». E o seu entusiasmo era tão contagioso que Justin não tardou em convencer Mickie e Abraão que lançassem também uma linha, o que teve o mérito de desviar as suas atenções para caminhos mais produtivos.

 

- Sente-se bem, sír? - perguntou Old Mickie, muito próximo, olhando-o nos olhos como um médico.

 

- Estou óptimo. Óptmo.

 

- Penso que está com febre, sir. Porque é que não vai descansar para o toldo e trago-lhe uma bebida fresca.

 

- óptimo. Vamos os dois, então.

 

- Muito obrigado, sir. Mas tenho que me ocupar do barco.

 

Justin senta-se sob o toldo, servindo-se do gelo do seu copo para refrescar o pescoço e a testa enquanto se deixa levar pelo movimento do barco. Tem que admitir que são uns estranhos convidados os que trouxeram, mas Tessa é absolutamente louca no que toca a alargar o número de convidados, não há nada a fazer senão boa cara e contar com o dobro dos que se tinha pensado primeiro. Ainda bem que veio, Porter, e você também, Veronica, e o vosso bebé, a Rosie, é sempre um prazer, não, essa agora, não tenho objecções. E Tessa consegue obter sempre de Rosíe um pouco mais do que qualquer outra pessoa. Mas Bernard e Celly Pellegrin foi um completo disparate, querida, e como é absolutamente típico do Bernard ter trazido três raquetes de ténis em vez de uma. Quanto aos Woodrow, a sério que já é altura de que tu ultrapasses essa louvável mas mal aplicada convicção de que mesmo os menos promissores de todos nós têm corações de oiro e que lhes vais provar isso mesmo. E por amor de deus deixa de me dar beijinhos como se estivesses pronta a ir para a cama comigo. Sandy está a ficar maluco só de olhar para a abertura da tua blusa.

 

- 0 que é? - pergunta Justin, com aspereza.

 

Ao princípio, pensou que era Mustafa. Mas pouco a pouco percebeu que Old Mickie o tinha agarrado pelo ombro da camisa e estava a sacudi-lo para o acordar.

 

- Chegámos, sir. Chegámos à margem oriental. Estamos perto do sítio da tragédia.

 

- A que distância?

 

- A pé, dez minutos. Nós vamos acompanhá-lo, sir.

- Não é necessário.

 

- É absolutamente necessário, sir.

 

- Was felt dir? * - pergunta Abraão, por cima do ombro de Mickie.

- Nichts. Nada. Estou óptimo. Têm sido ambos muito amáveis.

 

- Beba mais água, sir, - disse Mickie, estendendo-lhe um novo copo. Formaram uma coluna, trepando pelos socalcos de lava, ali, no berço da civilização. - Nunca pensei que havia gente civilizada neste sítio, - diz ele a

 

’ 0 que sentes? (N. T)

 

Tessa, fazendo o seu número de pateta inglês e Tessa ri-se para ele, o riso silencioso que é o dela enquanto sorri deliciada e estremece e faz tudo o que deve fazer mas sem qualquer som. Glória abre a marcha, enfim, é natural. Com aquela forma de andar própria da realeza e com aqueles cotovelos, marchar é com ela. Pellegrin vai dizendo maldades, o que também é normal. A mulher, Cecily, dizendo que não suporta o calor, qual é a novidade? Rosie Coleridge, às cavalitas do pai, está a cantar uma canção em honra de Tessa - como diabo é que toda aquela gente coube no barco?

 

Mickie parou, com uma mão levemente pousada no braço de Justin. Abraão está parado junto a ele.

 

- Este é o lugar onde sua mulher faleceu, sir, - diz Mickie suavemente. Mas não tinha que se preocupar com isso, porque Justin já o sabia, embora não perceba como Mickie deduziu que era o marido de Tessa, mas talvez Justin lhe tenha dado essa informação falando alto enquanto dormia. Justin já tinha visto o local em fotografias, tinha-o imaginado na sombria prisão da cave de Glória, tinha-o visitado nos seus pesadelos. Aqui passava o que parecia ser o leito de um rio seco. Mais além o triste monte de pedras erigido por Ghita e os seus amigos. À volta, e em todas as direcções, infelizmente, o lixo que nos nossos dias é inseparável de qualquer acontecimento largamente publicitado: embalagens de cassetes, maços de cigarros, garrafas de plástico e pratos de papel. Mais acima, uns trinta metros ao longo da encosta de rocha branca, passava a estrada poeirenta onde a grande carrinha de safari tinha abalroado o jipe de Tessa e imobilizado a tiro o volante, fazendo o jipe despenhar-se por esta mesma encosta, com os assassinos de Tessa em sua perseguição. Com as suas catanas e pistolas e outras coisas que levassem consigo. E ali, Mickie apontava-os silenciosamente com o seu dedo encurvado, estavam os riscos azuis da tinta do jipe do Oasis deixados na rocha quando o carro resvalou por ali abaixo. E essa rocha, ao contrário da rocha negra e vulcânica que a rodeava, era tão branca como a pedra de um túmulo. Talvez aquelas manchas castanhas fossem realmente de sangue, como Mickie sugeria. Mas quando as examinou, Justin chegou à conclusão de que também podiam ser líquens. Além disso, pouco havia que pudesse interessar o jardineiro e botânico, para além do capim amarelado e uma fila de jovens palmeiras que, como habitualmente, pareciam plantadas pela municipalidade. Uns tantos arbustos de eufórbia, levando, naturalmente, uma vida precária entre as lages de basalto. E uma commiphora de um branco espectral (alguma vez aquelas árvores teriam folhas?) com os seus ramos esqueléticos estendidos para lados opostos, como as asas de uma traça. Escolheu um penedo de basalto e sentou-se. Tinha a cabeça um pouco vaga, mas lúcida. Mickie estendeu-lhe um cantil e Justin bebeu um gole, tornou a atarrachar a tampa e pousou-o aos seus pés.

 

- Gostava de ficar sozinho por uns momentos, Mickie, - disse ele. - Porque é que você e o Abraão não vão pescar e eu depois chamo-os da margem, quando quiser ir-me embora?

 

- Preferimos esperar no barco, sir.

- Por que não pescar?

 

- Do que nós gostávamos era de ficar aqui consigo. 0 senhor está com febre.

 

- já está a passar. Só mais umas horas, - Olhou para o relógio. Eram quatro da tarde. - Quando é que é o pôr-do-sol?

 

- Às sete, sir.

 

- Óptimo. Podem vir cá buscar-me nessa altura. Se eu precisar de alguma coisa, chamo-os. - E com mais firmeza: - Quero ficar só, Mickie. Foi para isso que cá vim.

 

- Muito bem, sir.

 

Justin não os ouviu afastarem-se. Durante algum tempo não ouviu qualquer ruído, a não ser o das ondas do lago e o motor longínquo de um barco de pesca. Ouviu o uivo dum chacal e a tagarelice de uma família de abutres que tinham ocupado uma palmeira para os lados do lago. E ouviu Tessa dizer-lhe que se tivesse de fazer tudo outra vez, era a] i que queria morrer, em África, a conduzir a luta contra uma grande injustiça. Bebeu mais água, levantou-se, espreguiçou-se e foi até aos riscos de tinta porque era aí que ele tinha a certeza de estar mais próximo dela. Não era difícil. Se ele pusesse as mãos nos riscos estaria a uns vinte centímetros dela, descontando a espessura da porta do carro. Ou talvez o dobro, se imaginássemos Arnold junto à porta. Chegou até a rir-se com ela, porque tivera sempre a maior dificuldade em convencê-la a por o cinto de segurança. Nas esburacadas estradas africanas, tinha ela argumentado com a sua habitual teimosia, era melhor estar livre: assim podia ao menos ir mudando ligeiramente de lugar, em vez de ser atirada como um saco de batatas para dentro de todas aquelas malditas crateras. E a partir dos riscos de tinta, ele fez todo o caminho até ao fim da ravina e, de mãos nas algibeíras no leito do rio seco, olhar para trás, para o sítio onde o jipe tinha parado e imaginar o pobre Arnold a ser de lá retirado sem sentidos para ser conduzido ao lugar da sua terrível e prolongada execução.

 

Depois, como homem metódico, voltou para o degrau que tinha escolhido, sentou-se de novo e dedicou-se ao estudo de uma florzinha azul parecida com a flor que tinha plantado no jardim da frente da casa de Nairobi. Mas o problema é que ele não tinha a certeza se a flor estava mesmo ali onde ele estava a vê-la ou se não a teria transplantado em espírito do jardim de Nairobi, ou, já agora, dos prados que rodeavam o seu hotel em Engadine. 0 seu interesse pela flora estava agora muito por baixo. já não cultivava a imagem de um tipo simpático, incapaz de qualquer interesse apaixonado a não ser por ásteres, frésias e gardénias. E estava ainda a reflectir sobre esta mudança da sua natureza quando ouviu o som de um motor vindo da direcção do lago, primeiro a pequena explosão do arranque, depois o tap-tap da sua marcha firme que se ia apagando na distância. Pensou que Mickie afinal sempre tinha decidido ir pescar; para um verdadeiro pescador, a pesca ao fim da tarde é uma tentação irresistível. E depois lembrou-se das suas tentativas de convencer Tessa a ir pescar com ele, tentativas que, invariavelmente, acabavam sem pesca nenhuma mas com uma tarde de amor indecoroso que era talvez a razão por que ele se empenhava tanto em convencê-la a ir pescar. E estava ainda bem-humoradamente a recordar as dificuldades logísticas de fazer amor no fundo dum barco pequeno, quando lhe veio uma ideia diferente sobre a suposta ida à pesca de Mickie, nomeadamente a de que não se tratava nada disso.

 

Mickie não brincava em serviço, nem mudara de ideias, nem era dado a caprichos.

 

Isso não era nada do Mickie.

 

0 que se passava com Mickie, e isso via-se logo que lhe púnhamos os olhos em cima (e Tessa dissera o mesmo) é que ele era um fiel servidor nato, e era essa a razão pela qual tinha sido possível confundi-lo com Mustafa. Então Mickie não tinha ido pescar.

 

Mas fora-se embora. Se tinha ou não levado com ele o venenoso Abraão era irrelevante. Mas Mickie fora-se e o barco também. De regresso ao outro lado do lago, por isso o som do motor se tinha afastado até desaparecer.

 

Por que razão se teria ido embora? Quem lhe dissera que o fizesse? Quem lhe pagara? Ameaçara, se não obedecesse? Que recado teria Mickie recebido na rádio de bordo ou pessoalmente, por meio de outro barco ou por outra pessoa na praia e o convencera, contra as linhas naturais do seu rosto bondoso, a abandonar um trabalho que ainda não estava terminado? Teria Markus Lorbeer, Judas compulsivo, recebido novas garantias dos seus patrões na indústria? Estava ainda a reflectir sobre esta possibilidade, quando ouviu o ruído de outro motor, desta vez do lado da estrada. 0 crepúsculo, estava a cair rapidamente, a luz já a esmorecer, pelo que seria de esperar que um carro de passagem tivesse acendido os mínimos, pelo menos. A razão pela qual este carro (ou lá o que era) não o fizera era um mistério para Justin.

 

Um dos pensamentos que lhe ocorreram, provavelmente porque o carro se deslocava a passo de caracol, era que Ham, guiando à sua habitual velocidade de dez quilómetros abaixo do limite legal, tinha vindo anunciar-lhe que as cartas de Justin para a sua ferocíssima tia tinham sido bem recebidas e que a grande injustiça de Tessa seria em breve corrigida, dentro das linhas da sua firme convicção de que o Sistema deve ser obrigado, por dentro, a corrigir os seus erros. Depois pensou: não é nada um carro, ouvi mal. É uma avioneta.

 

Depois o som cessou, o que quase convenceu Justin de que tudo fora uma ilusão e que estava mas é a ouvir o jipe de Tessa e que, de um momento para o outro, ele ia aparecer lá em cima na estrada e ela ia saltar do carro com as suas botas Mephisto e descer a encosta para me felicitar e retomar o trabalho onde o deixara. Mas não era o jipe de Tessa, não era nenhum carro que ele conhecesse. 0 que ele estava agora a ver era a forma ambígua de um jipe todo o terreno - não, uma carrinha de safari-azul-escura ou verde-escura (com a luz a esvair-se tão depressa era difícil dizer), que parou exactamente no ponto onde ele tinha estado a observar Tessa. E embora estivesse à espera de qualquer coisa do gênero desde que voltara a Nairobi - e mesmo, de certa maneira, desejando que isso acontecesse, o que tornava supérfluo o aviso que Donohue lhe fizera - Justin saudou aquela chegada com um extraordinário sentido de euforia, para não dizer jubilação. Encontrara os traidores de Tessa, é verdade - Pellegrin, Woodrow, Lorbeer. Re-escrevera o relatório dela, escandalosamente ignorado, numa forma mais desligada, mas isso era inevitável. E agora, ao que parecia, estava prestes a partilhar com ela o derradeiro segredo.

 

Uma segunda carrinha tinha encostado à primeira. Ouviu uns passos leves e vislumbrou os vultos de homens atléticos em trajos volumosos, movendo-se rapidamente e agrupando-se à beira da estrada. Ouviu um homem ou uma mulher dar um assobio e receber um assobio em resposta, vindo das suas costas. Imaginou, e talvez fosse verdade, sentir o cheiro do fumo dum cigarro Sportsman. A escuridão fez-se subitamente mais profunda, e surgiram luzes à sua volta: a mais brilhante apanhou-o no seu foco e aí o manteve.

 

Ouviu então o som de pés a escorregarem pela rocha abaixo.

 

 

Nota do Autor

Deixem que eu me apresse a defender a Alta Comissão Britânica em Nairobi. Não é como eu descrevi, porque nunca lá entrei. As pessoas que lá trabalham não são a gente que eu retratei, porque nunca as conheci nem falei com nenhuma delas. Conheci o Alto Comissário há uns anos atrás, tomámos juntos um

ginger beer na varanda do Hotel NorfoIk - e mais nada. Não tem a menor semelhança, nem física nem psicológica, com o meu Porter Coleridge. Quanto ao pobre Sandy Woodrow - bom, se houvesse um Chefe de Chancelaria na Alta Comissão Britânica de Nairobi, como eu inventei, podem estar certos de que seria um homem, ou uma mulher, diligente e digno que nunca cobiçou esposa de um colega’ou destruiu documentos embaraçosos. Mas não há. Os chefes de Chancelaria em Nairobi, como em tantas outras missões britânicas, foram derrubados pelo machado dos tempos.

Nestes dias desgraçados em que os advogados é que governam o universo, tenho de insistir nestes actos de repúdio, que se baseiam, de resto, na pura verdade. Com uma única excepção, nesta história ninguém nem nenhuma organização ou companhia, graças a Deus, se baseia numa pessoa ou organização reais, quer estejamos a pensar em Woodrow, em Pellegrin, Landsbury, Crick, Curtiss e a sua temível Casa das Três Abelhas, quer nos Srs. Karel Vira Hudson, também chamados KVH. A excepção é o grande e esplêndido Wolfgang do Pavilhão Oasis, cuja personalidade fica a tal ponto impressa na memória de quem o visita que seria ridículo tentar criar um equivalente fictício. No estado soberano que domina, não levantou nenhuma objecção a que eu utilizasse o seu nome e a sua maneira de falar.

Não existe o Dypraxa, nunca existiu nem há-de existir. Não conheço nenhuma cura milagrosa para a tuberculose que tenha sido lançada no mercado africano ou noutro qualquer - ou esteja para ser. Assim, com um bocado de sorte, não passarei o resto da vida nos tribunais, ou em sítios piores, embora hoje em dia não se possa ter a certeza de nada. Mas posso dizer uma coisa.

Contaram com elegância os meus ataques à sua profissão, tal como o hospitaleiro Peter, que prefere ficar modestamente na sombra.

Recebi ajuda de várias personalidades das Nações Unidas. Nenhuma delas suspeitava o que eu andava a fazer; em todo o caso, penso que será mais diplomático não revelar os seus nomes.

Foi com desgosto que tomei a decisão de não nomear pessoas no Quénia que me deram uma assistência generosa. No momento em que escrevo, chegam-me notícias da morte de John Kaiser, um padre americano do Minnesota que trabalhou no Quénia durante os últimos trinta e seis anos. 0 corpo foi encontrado em Naivasha, setenta e cinco quilómetros a noroeste de Nairobi, com um tiro na cabeça. Perto dali foi encontrada uma caçadeira. 0 Sr. Kaiser era há muito tempo um crítico sem papas na língua da política do Governo queniano acerca dos direitos humanos, ou da falta dela. Acidentes destes podem acontecer de novo.

Para descrever as atribulações de Lara no capítulo décimo-oitavo, servi-me de vários casos passados sobretudo na América do Norte, onde investigadores médicos altamente qualificados ousaram discordar dos seus patrões farmacêuticos e vieram a sofrer calúnias e perseguições. A questão não está em saber se as suas conclusões inoportunas eram correctas. Está no evidente conflito entre a consciência individual e a ganância corporativa. Está no direito elementar dos médicos a expressão de opiniões médicas independentes e é seu dever informar os doentes dos riscos que, na sua opinião, incorrem devido aos tratamentos receitados.

E por fim, se alguma vez tiverem a oportunidade de passar pela ilha de Elba, por favor não deixem de visitar a bela propriedade que eu atribuí a Tessa e aos seus antepassados italianos. Chama-se La Chiusa di Magazzini e é propriedade da família Foresi. Os Foresi produzem vinho branco, tinto e rosé e licores das suas próprias vinhas e um azeite imaculado do seu próprio olival. Têm algumas casas de veraneio que se podem alugar. Existe até um lagar onde aqueles que procuram resposta para os grandes mistérios da vida podem encontrar um isolamento temporário.

 

                                                                                 John Le Carré  

 

                      

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