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Series & Trilogias Literarias
A minha mãe conhecia todos os contos que eram narrados em redor das lareiras de Erin, além de muitos mais. As pessoas ficavam em redor da lareira para a ouvir contá-los, após um longo dia de trabalho e ficavam maravilhadas com as tapeçarias brilhantes que ela tecia com as suas palavras. Contava as muitas aventuras do herói Cu Chulainn e falava de Fionn MacCumhaill, que, além de grande guerreiro, era matreiro. Nalgumas casas, tais contos eram apenas para os ouvidos dos homens. Mas não na nossa; pois a minha mãe enfeitiçava-nos a todos com a magia das suas palavras. Contava histórias que faziam toda a gente rir a bandeiras despregadas e contos que faziam os homens fortes ficarem calados. Mas havia uma história que ela nunca contava, a sua própria história. A minha mãe fora a rapariga que salvara os seus irmãos da maldição de uma feiticeira e quase perdera a vida ao fazê-lo. Era a rapariga cujos seis irmãos haviam passado três longos anos como criaturas selvagens e que apenas tinham regressado devido ao seu silêncio e sofrimento. Não havia necessidade de contar e recontar esta história, pois ela estava viva na mente das pessoas. Além disso, em todas as aldeias havia uma ou duas pessoas que tinham visto um dos irmãos, que regressara por pouco tempo, com a asa brilhante de um cisne no lugar do braço esquerdo. Mesmo sem estas provas, todos sabiam que a história era verdadeira e quando viam passar a minha mãe, uma figura minúscula com o seu cesto de bálsamos e poções, cumprimentavam-na com olhares de profundo respeito.
Se eu pedia ao meu pai para me contar uma história, ele ria-se e encolhia os ombros, dizendo que não era hábil com as palavras e, além disso, só conhecia uma história ou duas e já as tinha contado. Então, ele olhava para a minha mãe e ela para ele, daquela maneira que eles tinham, que pareciam falar um com o outro sem palavras e então o meu pai distraía-me com outra coisa qualquer. Ele ensinou-me a esculpir com uma pequena faca, ensinou-me a plantar árvores e ensinou-me a lutar. O meu tio não gostava nada. Aquilo estava bem para o meu irmão Sean, mas para que é que Niamh e eu precisávamos de ser hábeis com os nossos punhos, pés, com um bordão ou um punhal? Por que perder tempo com aquilo quando havia tantas outras coisas para nós aprendermos?
— Nenhuma filha minha irá para além destes bosques sem proteção — dissera o meu pai ao meu tio Liam. — Não se pode confiar nos homens. Não vou transformar as minhas filhas em guerreiras, mas, pelo menos, dar-lhes-ei meios para se poderem defender. Surpreende-me que me perguntes porquê. A tua memória é tão curta?
Não lhe perguntei o que queria ele dizer. Todos tínhamos descoberto, há muito, que não era sensato interferirmos entre ele e Liam nessas ocasiões. Aprendi rapidamente. Seguia a minha mãe pelas aldeias e ela ensinou-me como suturar uma ferida, fazer uma tala e diagnosticar a difteria e a urticária. Observava o meu pai e aprendi a fazer um mocho, um veado e um porco-espinho de um pedaço de carvalho. Pratiquei as artes da guerra com Sean, quando conseguia convencê-lo e aperfeiçoei uma variedade de golpes, que resultavam mesmo quando o opositor era maior e mais forte. Por vezes, parecia que toda a gente em Sevenwaters era maior do que eu. O meu pai fez-me um bordão que era do tamanho exato e deu-me o seu pequeno punhal. Sean ficou aborrecido durante um dia ou dois. Mas não me guardou rancor. Além disso, era rapaz e tinha as suas próprias armas. Quanto à minha irmã Niamh, nunca se sabia em que estava a pensar.
— Lembra-te, minha querida — disse-me o meu pai com ar sério — este punhal pode matar. Espero que nunca tenhas de o usar para tal fim; mas, se tiveres de o fazer, usa-o com habilidade e audácia. Aqui, em Sevenwaters, já viste alguma maldade e espero que nunca tenhas de ferir um homem em legítima defesa, mas um dia, quem sabe, podes vir a precisar dele. Por isso, tens de o manter afiado e limpo e tens de treinar, caso surja esse dia.
Pareceu-me que uma sombra lhe cobriu o rosto e os seus olhos ficaram distantes, como algumas vezes. Acenei com a cabeça silenciosamente e meti a pequena e mortífera arma na bainha.
Aprendi estas coisas com o meu pai, a quem as pessoas chamavam Lubdan, apesar de o seu verdadeiro nome ser diferente. Quem conhecesse as velhas lendas sabia que este nome era uma anedota, que ele aceitava de bom humor. Pois o Lubdan das lendas era um homenzinho que caíra numa tigela de papas, apesar de se ter vingado mais tarde. O meu pai era muito alto e muito forte e tinha o cabelo da cor das folhas de Outono à luz do Sol poente. Era bretão, mas as pessoas esqueceram-se disso. Quando ele arranjou o seu novo nome, tornou-se parte de Sevenwaters e os que não o chamavam por esse nome chamavam-no de Homem Grande.
Gostaria de ser um bocadinho mais alta, mas era pequena, magricela e de cabelo escuro, o tipo de rapariga para quem um homem não olharia duas vezes. Não que me importasse. Tinha muito com que me ocupar, sem pensar a essa distância. Era a Niamh que eles seguiam com os olhos, pois ela era alta, de ombros largos, feita à imagem do nosso pai, tinha uma longa cabeleira brilhante e um corpo cujas curvas generosas estavam todas nos lugares certos. Mesmo sem se aperceber, andava de um modo que atraía os olhos dos homens.
— Aquela vai dar problemas — resmungava Janis, a nossa cozinheira, para os seus potes e escudelas. Quanto a Niamh, era sempre crítica consigo própria.
— Já não chega ser meio bretã — dizia ela zangada — tinha também de o parecer? Estás a ver isto? — Puxava da sua grossa trança e as madeixas, de um dourado-avermelhado, desmanchavam-se, transfor-mando-se numa cortina brilhante. — Quem me tomaria por uma filha de Sevenwaters? Podia passar por saxónica com este cabelo! Quem me dera ser minúscula e graciosa como a mãe!
Estudei-a por uns momentos, enquanto ela escovava ferozmente o cabelo com a escova. Para uma pessoa tão insatisfeita com a sua aparência, passava muito tempo a experimentar novos penteados e a mudar de vestido e fitas.
— Tens vergonha de ser filha de um bretão? — perguntei-lhe. Ela fulminou-me com o olhar.
— É mesmo teu, Liadan. Não tens papas-na-língua, pois não? Para ti está tudo bem, és uma pequena cópia da mãe. Uma cópia perfeita. Não admira que o pai te adore. Para ti, tudo é simples.
Deixei-a falar. Por vezes era assim, como se houvesse demasiados sentimentos dentro dela e tivesse de os despejar. As palavras em si pouco significavam. Esperei. Niamh usava a escova de cabelo como um instrumento de castigo.
— Sean também — disse ela, olhando-se ferozmente no espelho de bronze polido.
— Ouviste o que o pai lhe chamou? Ele disse que ele é o filho que Liam nunca teve. O que é que pensas disso? Sean é a pessoa certa, sabe exatamente para onde vai. Herdeiro de Sevenwaters, filho amado não só de um pai, mas de dois, até tem o porte adequado. Fará tudo como deve ser: casará com Aisling, o que fará toda a gente feliz, chefiará os homens e talvez, até, venha a ser aquele que reconquistará as ilhas. Os seus filhos seguir-lhe-ão as pisadas e assim por diante. Brighid me ajude, é tão entediante! Tão previsível.
— Não podes ter tudo — disse eu. — Ou te integras, ou não. Além disso, nós somos as filhas de Sevenwaters, quer queiras, quer não. Estou certa que Eamonn se sentirá feliz por casar contigo, quando chegar a ocasião, com cabelos dourados, ou não. Ainda não o ouvi reclamar.
— Eamonn? Que horror! — Deslocou-se até ao centro do quarto, onde um feixe de luz tornava douradas as tábuas de carvalho do chão e começou a rodar lentamente, de modo que o seu vestido branco e o brilhante cabelo giravam em seu redor, como uma nuvem. — Não anseias por qualquer coisa de diferente, qualquer coisa excitante e nova, que te leve com ela como se fosse uma grande maré, qualquer coisa que faça com que a tua vida se incendeie e queime, de modo a que toda a gente possa ver? Qualquer coisa que te toque com alegria ou com terror, que te tire do teu caminho seguro para uma grande estrada selvagem cujo fim ninguém conhece? Nunca anseias por isso, Liadan? — Rodava e rodava, com os braços em seu redor, como se fosse o único modo de conter o que sentia.
Eu estava sentada na beira da cama, observando-a silenciosa-mente. Após algum tempo, disse:
— Devias ter cuidado. Tais palavras podem ser uma tentação para as Criaturas Encantadas, para que se metam na tua vida. Acontece. Conheces a história da mãe. Deram-lhe essa oportunidade e ela aceitou-a; e foi por causa da sua coragem e da do pai que ela não morreu. Para sobreviver às brincadeiras delas tem de se ser muito forte. Para ela e para o pai o fim foi bom. Mas a história também teve vencidos. E os seis irmãos dela? Deles, só dois restaram, ou talvez três. O que aconteceu destruiu-os a todos. E houve outros que morreram. Seria melhor se vivesses um dia de cada vez. Para mim há excitação suficiente ao ajudar a nascer um cordeiro, ou a ver os pequenos carvalhos crescerem fortes com as chuvas da Primavera. Em acertar com uma seta no alvo, ou salvar uma criança da difteria. Por que pedir mais, quando o que temos é tão bom?
Niamh abriu os braços e passou uma mão pelo cabelo, desfazendo o trabalho da escova por um instante. Suspirou.
— És tão parecida com o pai a falar que até me enjoas — disse ela. Conhecia bem a minha irmã. Não a deixava irritar-me muitas vezes.
— Nunca entendi como ele teve coragem de o fazer — continuou ela. — Desistir assim de tudo do pé para a mão. Das suas terras, do seu poder, da sua força e da sua família. Abdicou de tudo de mão beijada. Nunca será o senhor de Sevenwaters; essa posição pertence a Liam. O seu filho herdará, sem dúvida; mas Lubdan será sempre o Homem Grande, calmamente plantando as suas árvores, tomando conta dos seus rebanhos e deixando o mundo passar por ele. Como é que um homem a sério pôde deixar fugir assim a vida? Ele nem sequer voltou a Harrowfield.
Sorri para mim própria. Seria ela tão cega que não via como as coisas se passavam entre os dois, Sorcha e Lubdan? Como podia ela viver ali, dia após dia, vê-los a olharem um para o outro e não compreender por que é fizera ele o que fizera? Além disso, Sevenwaters não passaria de uma fortaleza bem guardada se ele não fosse um bom marido. Sob a sua liderança, as nossas terras tinham prosperado. Toda a gente sabia que criávamos o melhor gado e plantávamos a melhor cevada de todo o Ulster. Era o trabalho do meu pai que possibilitava ao meu tio Liam fazer as suas alianças e comandar as suas campanhas. Achava que não havia grande finalidade em explicar aquilo à minha irmã. Se ela não o sabia agora, nunca mais o saberia.
— Ele ama-a — disse eu. — É tão simples como isso. Mas há mais. Ela não o diz, mas as Criaturas Encantadas sempre estiveram presentes na união de ambos e sempre estarão.
Finalmente, Niamh estava a prestar-me atenção. Os seus belos olhos azuis estreitaram-se, enquanto me encarava.
— Agora pareces mesmo ela — disse ela com ar acusador. — Pronta a contar-me uma história. Pronta a dar-me uma lição de moral.
— Isso não — disse eu. — Não estás com disposição para isso. Ia apenas dizer como somos diferentes tu, eu e Sean. Devido ao que as Criaturas Encantadas fizeram, os nossos pais encontraram-se e casaram. Devido a isso, nós os três nascemos. Talvez o seguimento da história sejamos nós.
Niamh estremeceu enquanto se sentava ao meu lado, alisando a saia nos joelhos.
— E porque não somos nem Bretões, nem Irlandeses, mas ambos ao mesmo tempo — disse ela lentamente. — Acreditas que algum de nós possa ser a criança da profecia? A que reconquistará as nossas Ilhas?
— Já ouvi falar disso.
Muito se tinha dito, de fato, agora que Sean era quase homem e no bom caminho para se tornar num bom guerreiro e chefe, como o seu tio Liam. Além disso, as pessoas sentiam-se prontas para entrar em ação. A luta pelas Ilhas tinha acalmado desde os tempos da minha mãe, pois já tinham passado muitos anos desde que os Bretões tinham capturado aqueles locais tão queridos ao nosso povo. O azedume das pessoas era mais intenso, agora que estávamos a recuperar o que nos pertencia por direito. Pois, quando Sean e eu éramos crianças, ainda não tínhamos seis anos, o nosso tio Liam e dois irmãos seus, ajudados por Seamus Redbeard, tinham unido forças numa campanha audaz que atingiu o coração do território em disputa. Tinham chegado perto, dolorosamente perto. Tinham tocado o solo de little Island e tinham acampado secretamente lá. Tinham observado as grandes aves subirem bem alto e sobrevoarem Needle em círculos, aquele árido penhasco vergastado por ventos gélidos e espuma do oceano. Tinham lançado um feroz ataque marítimo contra o acampamento bretão na Greater Island e tinham, finalmente, sido escorraçados.
Nessa batalha morreram dois dos irmãos da minha mãe. Cormack foi derrubado por um golpe de espada direito ao coração e morreu nos braços de Liam. E Diarmid, ao tentar vingar a perda do seu irmão, lutou, como que possesso e foi, finalmente, capturado pelos Bretões. Os homens de Liam encontraram mais tarde o seu corpo a boiar nos baixios quando lançavam à água o seu pequeno barco e fugiam, pouco numerosos, exaustos e tristes. Morrera afogado, mas só depois de o inimigo se ter divertido com ele. Não permitiram que a minha mãe visse o seu corpo quando o trouxeram para casa.
Aqueles Bretões eram o povo do meu pai. Mas Lubdan não tomara parte naquela guerra. Jurara, em tempos, que não pegaria em armas contra a sua própria raça e ele era um homem de palavra. Com Sean era diferente. O meu tio Liam nunca casou e a minha mãe disse que nunca o faria. Houvera uma rapariga, em tempos, que ele amara. Mas o encantamento caiu sobre ele e sobre os seus irmãos. Três anos é muito tempo quando se tem apenas 16. Quando finalmente ele voltou à forma de homem, a sua amada estava casada e já era mãe de um filho. Ela obedecera aos desejos do seu pai, acreditando que Liam morrera. Por isso nunca casou. E não necessitava de um filho, pois amava o sobrinho tão ferozmente como qualquer pai e criou-o, sem o saber, à sua própria imagem. Sean e eu éramos filhos de um nascimento único, tendo ele nascido antes de mim. Mas aos 16 anos ele era 20 centímetros mais alto, quase um homem, de ombros fortes e corpo esguio, e duro. Liam assegurara-se de que ele seria perito nas artes da guerra. Além disso, Sean aprendeu a planear uma campanha, como julgar justamente, como entender o pensamento, tanto do aliado, como do inimigo. Algumas vezes, Liam comentava a impaciência juvenil do seu sobrinho.
Mas Sean era um chefe em embrião; ninguém o punha em dúvida.
Quanto ao nosso pai, sorria e deixava-os continuar. Reconhecia o peso da herança que Sean suportaria um dia. Mas não entregara o filho. Havia alturas em que os dois passeavam, ou andavam a cavalo pelos campos, pelas vacarias e celeiros dos rendeiros; para o ensinar a proteger e cuidar do seu povo e das suas terras. Tinham longas e freqüentes conversas e respeitavam-se mutuamente. Por vezes, eu apanhava a mãe a olhar para Niamh, para Sean e para mim e sabia o que a preocupava. Mais cedo ou mais tarde as Criaturas Encantadas decidiriam que a hora chegara. A hora de se imiscuírem de novo nas nossas vidas, a hora de recomeçar a teia inacabada e tecer mais alguns fios. Qual de nós escolheriam? Algum de nós seria a criança da profecia, a que finalmente conseguiria a paz entre o nosso povo e os Bretões de Northwoods e reconquistar as Ilhas das cavernas místicas e das árvores sagradas? Eu não seria, de certeza. Se se conhecesse as Criaturas Encantadas, saber-se-ia que eram matreiras e subtis. As suas brincadeiras eram complexas e as suas escolhas nunca eram óbvias. Além do mais, que dizer da outra parte da profecia, que as pessoas pareciam ter esquecido propositadamente? Não dizia ela qualquer coisa acerca da marca do corvo? Ninguém sabia ao certo o que isso significava e não parecia encaixar-se em qualquer um de nós. Além disso, deve ter havido muitos mais casamentos desiguais entre bretões errantes e mulheres irlandesas. Dificilmente éramos as únicas crianças a ter o sangue de ambas as raças. Isto pensava eu; e então via os olhos da minha mãe pousados em nós, verdes, visionários, observadores, e um arrepio de maus presságios percorria-me. Senti que chegara a hora. A hora de as coisas mudarem de novo.
Nessa Primavera tivemos visitas. Ali, no coração da grande floresta, os velhos costumes eram fortes, apesar das comunidades de homens e mulheres, que agora se espalhavam pelas nossas terras com as suas cruzes cristãs, símbolos marcantes de uma nova fé. De vez em quando, alguns viajantes traziam do outro lado do mar histórias de grandes maus tratos infligidos a pessoas que se atreviam a defender as velhas tradições. Havia castigos cruéis, até a morte, para aqueles que deixavam uma oferenda para os deuses das colheitas, ou pensavam num feitiço de sorte, ou usavam uma poção para trazer de volta um namorado infiel. Os druidas tinham sido todos chacinados ou banidos. O poder da nova fé era grande. Apoiado por bolsas generosas e forças letais, como poderia falhar?
Mas ali, em Sevenwaters, naquele canto de Erin, éramos uma raça diferente. Os religiosos, quando apareciam, eram, na sua maioria, homens calados e eruditos, que debatiam uma idéia com as mentes abertas e escutavam tanto quanto falavam. Com eles, um rapaz podia aprender a ler o Latim e o Irlandês, a escrever com perfeição, a misturar as cores e a fazer desenhos complicados sobre pergaminho. Entre as irmãs, uma rapariga podia aprender as artes curativas ou como cantar como um anjo. Nas suas casas de contemplação havia lugar para os pobres e os desalojados. Eram boa gente e de bom coração. Mas nenhum dos da nossa casa estava destinado a juntar-se a eles. Quando o meu avô partiu e Liam se tornou senhor de Sevenwaters, com todas as responsabilidades que isso acarretou, muitas pontas soltas se juntaram para fortalecer os laços da nossa casa. Liam reuniu as famílias que viviam perto, construiu uma forte força de combate e transformou-se no chefe de que o nosso povo tanto necessitava. O meu pai tornou as nossas herdades prósperas e os nossos campos mais produtivos do que nunca. Plantou carvalhos onde anteriormente a terra era árida. Deu, também, novo alento aos que tinham estado perto do desespero. A minha mãe era o símbolo do que podia ser ganho pela fé e pela força. Através dela todos respiravam diariamente a verdade de quem eram e de onde vinham; a mensagem curativa do reino do espírito.
Além disso, havia o seu irmão Conor. Conforme se conta, havia seis irmãos. De Liam já falei e dos outros dois, que estavam próximos dele em idade e que morreram na primeira batalha pelas Ilhas. O mais novo, Padriac, era um viajante que regressava raramente. Conor era o quarto irmão e era um druida. À medida que a velha fé desaparecia e perdia a força noutros locais, nós testemunhávamos a sua luz a brilhar cada vez mais na nossa floresta. Era como se cada dia de festa, cada dia que marcava a mudança das estações com canções e rituais, devolvesse um pouco da união que o nosso povo quase perdera. Estávamos cada vez mais próximos da altura certa. Prontos para, de novo, reclamar o que nos fora roubado pelos Bretões há muitas gerações atrás. As Ilhas eram o coração do nosso mistério, o berço da nossa crença. Profecia ou não, as pessoas começaram a acreditar que Liam as reconquistaria, mas, se o não conseguisse, Sean seria, então, o senhor de Sevenwaters, depois dele. O dia aproximava-se cada vez mais e as pessoas aperceberam-se disso quando os sábios saíram da floresta para marcar a mudança da estação. E esse dia aconteceu em Imbolc, num ano que ficou profundamente gravado na minha memória, quando Sean e eu tínhamos 16 anos.
Conor regressou e com ele um bando de homens e mulheres, uns de branco e outros com túnicas simples, tecidas em casa, indicando aqueles que ainda estavam a aprender, para celebrarem a Cerimônia do festival de Brighid nas profundezas dos bosques de Sevenwaters.
Chegaram de tarde e silenciosamente, como de costume. Dois homens muito velhos e uma mulher velha, subindo o carreiro que vinha da floresta com os pés metidos em sandálias simples. Os seus cabelos eram formados por pequenas tranças, feitas com fios coloridos. Havia jovens usando túnicas de tecido caseiro, tanto rapazes como raparigas; e havia homens de meia-idade, dos quais um era o meu tio Conor.
Chegado tarde à aprendizagem dos grandes mistérios, ele era, agora, o seu chefe, um homem pálido, sério, de estatura mediana, de longo cabelo castanho salpicado de cinzento e olhos profundos e serenos. Cumprimentou-nos a todos cortesmente, a minha mãe, a Lubdan, a Liam e, por fim, a nós os três. E os nossos convidados, pois várias casas se tinham ali reunido para as festividades. Seamus Redbeard, um vigoroso velho, cujos cabelos brancos desmentiam o seu nome. A sua nova mulher, uma rapariga amorosa não muito mais velha do que eu. Niamh ficara chocada ao ver aquele casamento.
— Como é que ela pode — murmurou-me ela por trás da mão. — Como é que ela se pode deitar com ele? Ele é velho, tão velho. E gordo. E tem o nariz vermelho. Olha, ela está a sorrir para ele! Eu preferia morrer!
Olhei para ela um pouco irritada.
— É melhor agarrares o Eamonn, e então sentires-te satisfeita com a oferta, se o que queres é um belo rapaz — murmurei-lhe. — Não arranjas melhor. Além disso, é rico.
— Eamonn? Que horror!
Aquela parecia ser a resposta, sempre que eu fazia aquela sugestão. Perguntei a mim mesma, não pela primeira vez, o que quereria Niamh, realmente. Não havia maneira de conseguir ler o que lhe ia na cabeça. O mesmo não se passava com Sean e eu. Talvez fosse devido a sermos gémeos, ou talvez fosse outra coisa qualquer, mas o que é certo é que nós dois nunca tínhamos problemas em falarmos sem palavras.
Tornava-se necessário, até, termos algumas vezes cuidado com os nossos pensamentos, para que o outro não pudesse lê-los. Era, ao mesmo tempo, uma habilidade útil, mas também inconveniente.
Olhei para Eamonn, no local onde ele estava com a sua irmã Aisling, cumprimentando Conor e os restantes membros da procissão. Não conseguia perceber qual era o problema de Niamh. Eamonn tinha a idade certa, apenas um ano ou dois mais velho do que a minha irmã. Era bastante atraente; um pouco sisudo, talvez, mas isso podia remediar-se. Era bem constituído, com brilhantes cabelos castanhos e belos olhos escuros. Tinha bons dentes. Ir para a cama com ele seria — bem, eu percebia pouco de tais coisas —, mas supus que não seria repulsivo. E seria um casamento bem-visto por ambas as famílias. Eamonn herdara muito jovem um vasto domínio rodeado de traiçoeiros pântanos a leste das terras de Seamus Redbeard, rodeando-as até próximo da passagem norte. O pai de Eamonn, que tivera o mesmo nome, fora assassinado anos atrás em circunstâncias bastante misteriosas. O meu tio Liam e o meu pai nem sempre concordavam, mas estavam unidos na sua recusa de discutirem este assunto em particular. A mãe de Eamonn morrera quando Aisling nascera. Por essa razão, Eamonn crescera com uma imensa fortuna e poder e uma superabundância de conselheiros influentes: Seamus, que era seu avô; Liam, que em tempos estivera noivo da sua mãe; o meu pai, que, de qualquer modo, estava ligado a tudo. Talvez fosse surpreendente que Eamonn se tivesse transformado num homem de idéias próprias e que, apesar da sua juventude, controlasse os seus domínios e um não menos considerável exército privado. Isso talvez explicasse a razão porque era um jovem tão solene. Apercebi-me de que o tinha estado a examinar minuciosamente, enquanto ele falava com um dos druidas mais jovens, quando ele olhou para mim. Enviou-me um meio sorriso, como que desafiando o meu exame e eu afastei os olhos, sentindo um rubor subir-me às faces. Niamh era pateta, pensei. Não arranjaria melhor e aos 17 anos tinha de se decidir rapidamente, antes que alguém decidisse por ela. Seria uma união muito forte, mais forte ainda pela ligação familiar com Seamus, que possuía as terras intermédias. Aquele que controlasse tudo aquilo podia dar uma grande machadada nos Bretões quando chegasse a ocasião.
Os druidas dirigiram-se para o fim da fila, terminando as saudações. O Sol começava a pôr-se. No campo por trás do celeiro da nossa casa, em filas ordenadas, os arados, forquilhas e outras ferramentas de trabalho da nova estação estavam a postos.
Descemos por carreiros, ainda escorregadios das chuvas da Primavera, para tomarmos os nossos lugares no grande círculo em redor do campo, as nossas sombras longas à luz do entardecer. Vi Aisling escapar-se de perto do irmão e reaparecer um pouco mais tarde ao lado de Sean, como que por acaso. Se ela pensava ter feito aquilo sem ter sido notada, pensou mal, pois a sua cabeleira ruiva atraía os olhares, por mais que ela tentasse amansar toda aquela exuberância com fitas. Mal chegou ao lado do meu irmão a brisa crescente atirou-lhe com um longo e brilhante anel para o rosto e Sean estendeu a mão para lho colocar de novo, delicadamente, atrás da orelha. Não precisei de os observar mais tempo para sentir a mão dela deslizar para a dele e os dedos do meu irmão apertarem-na possessivamente. Bem, pensei, eis alguém que sabe decidir-se. Talvez não tivesse importância alguma o que Niamh decidisse, pois parecia-me que a aliança seria celebrada de uma maneira ou de outra.
Os druidas formaram um semicírculo em redor das ferramentas e no centro estava Conor, cuja túnica branca era debruada a ouro. Atirara para trás o capuz, revelando o colar em ouro que usava em redor do pescoço, um sinal da sua liderança daquela irmandade mística. Era jovem pelos padrões druídicos, mas o seu rosto era o de um velho; o seu olhar sereno continha nas suas profundezas a sabedoria de mais de uma vida. Fizera uma longa jornada durante aqueles 18 anos na floresta.
Liam deu um passo em frente como chefe da casa e entregou ao seu irmão um cálice de prata do nosso melhor hidromel, feito do mel mais puro e fermentado com a água de uma nascente especial, cujo local exato era um segredo muito bem guardado. Conor acenou gravemente com a cabeça. Caminhou lentamente por entre os arados e foices, as forquilhas, as pesadas pás e as tesouras de tosquiar e aspergiu algumas gotas da potente mistura sobre cada uma delas à medida que ia passando.
Uma bela cria nas entranhas da vaca. Um rio de doce leite das suas tetas. Um casaco quente no dorso das ovelhas. Uma colheita farta devido às chuvas da Primavera. Conor caminhava pausadamente, a sua túnica branca movendo-se e ondulando em seu redor como se tivesse vida própria. Segurava o cálice de prata numa mão, o bordão de vidoeiro na outra. O silêncio pairava sobre todos nós. Até os pássaros pareciam ter cessado os seus chilreios nas árvores em redor. Atrás de mim, uma parelha de cavalos estava debruçada sobre a vedação, os olhos solenes e líquidos, fixos no homem da voz tranqüila.
— A bênção de Brighid para os nossos campos nesta estação. Que a mão de Brighid se estenda sobre as nossas novas culturas. Possa ela trazer a vida; possa a nossa semente florescer. Coração da terra; vida do coração; abençoada seja a nossa terra. — E assim continuou e sobre cada uma das ferramentas caseiras de trabalho estendia a mão e deixava cair um pouco do precioso hidromel. A luz tornou-se dourada à medida que o Sol mergulhava por trás das copas dos carvalhos. A última ferramenta foi o arado puxado por oito bois que os homens tinham construído há muitos anos atrás sob as ordens de Lubdan. Com aquela ferramenta os campos mais pedregosos tinham-se tornado macios e férteis. Tínhamo-lo envolvido com grinaldas de flores amarelas de tanásia e urze fragrante e Conor parou diante dele erguendo o seu bordão.
— Que nenhum mal caia sobre os nossos trabalhos — disse ele. — Que nenhuma praga caia sobre as nossas searas, nenhuma doença sobre os nossos rebanhos. Que o trabalho deste arado e das nossas mãos traga uma boa colheita e uma estação próspera. Demos graças à Terra, que é nossa mãe, pela chuva que traz a vida. Honremos o vento que agita as sementes dos grandes carvalhos; veneremos o Sol que aquece a nova vida. Em tudo te honramos, Brighid, tu que acendes os fogos da Primavera.
O círculo de druidas repetiu a sua última frase, as vozes profundas e sonantes. Conor voltou para junto do irmão, colocou-lhe o cálice nas mãos e Liam comentou que talvez pudessem partilhar o que restava, depois da ceia. A cerimônia estava prestes a terminar.
Conor virou-se e avançou um passo, dois, três. Estendeu a mão direita. Um jovem iniciado, alto, com uma cabeleira de caracóis do vermelho mais escuro jamais visto, avançou rapidamente e pegou no bordão do seu mestre. Colocou-se de lado, observando Conor com um olhar cuja intensidade me causou arrepios. Conor ergueu as mãos.
— Vida nova! Luz nova! Fogo novo! — disse ele e a sua voz já não era calma, mas sim poderosa e clara, soando através da floresta como um sino solene. — Fogo novo!
As suas mãos estavam acima da sua cabeça, tentando alcançar o céu. Viu-se uma luz brilhar difusamente e ouviu-se um estranho zumbido e, repentinamente, sobre as suas mãos, surgiu uma luz, uma chama, um brilho que ofuscou os olhos e chocou os sentidos. O druida baixou os braços lentamente e entre as suas mãos em concha ardia um fogo, um fogo tão real que eu olhei com assombro, à espera de ver a sua pele queimar-se e criar bolhas sob o intenso calor. O jovem iniciado aproximou-se dele com um archote apagado nas mãos. Enquanto olhávamos fixamente, sem palavras, Conor estendeu as mãos e tocou no archote com os dedos. Imediatamente ele se acendeu com uma intensa luz dourada. E quando ele as afastou, as suas mãos eram apenas as mãos de um homem e o fogo misterioso desaparecera delas. O rosto do jovem era um quadro de orgulho e assombro, enquanto transportava o seu precioso archote até à casa, onde as lareiras seriam, de novo, acesas. A cerimônia terminara.
No dia seguinte o trabalho da nova estação recomeçaria. Apanhei fragmentos de conversas enquanto nos dirigíamos para casa, onde os festejos começariam ao pôr do Sol.
— ... terá sido sensato? Havia outros, certamente, que podiam ter sido escolhidos para esta tarefa!
— Era tempo. Ele não pode continuar escondido eternamente.
Eram Liam e o irmão. Em seguida, vi a minha mãe e o meu pai enquanto subiam o carreiro juntos. O seu pé escorregou na lama e ela cambaleou; ele agarrou-a de imediato, quase antes de aquilo acontecer, tão rápido foi. Colocou o braço sobre os seus ombros e ela levantou os olhos para ele. Senti uma sombra sobre ambos e fiquei, repentinamente, pouco à vontade. Sean passou por mim a correr, sorrindo, com Aisling atrás de si. Seguiam o jovem alto que transportava o archote. O meu irmão não falou, mas senti a sua felicidade enquanto passava por mim. Tinha 16 anos, estava apaixonado e tudo lhe corria bem. E eu senti de novo aquele repentino arrepio. Que se passava comigo? Era como se eu estivesse a desejar o mal para a minha família num belo dia de Primavera, quando tudo era belo e vivo. Disse a mim mesma para não ser pateta. Mas a sombra permanecia nos meus pensamentos.
Também a sentes.
Fiquei gelada. Só existia uma pessoa a quem podia falar sem palavras. E essa pessoa era Sean. Mas não era a voz interior do meu irmão que me estava a tocar a mente.
Não te alarmes, Liadam. Não me intrometerei nos teus pensamentos. Se aprendi alguma coisa durante estes longos anos, foi a saber disciplinar esta habilidade. Tu sentes-te infeliz. Pouco à vontade. O que acontecer não será por tua causa. Deves lembrar-te disso. Cada um de nós escolhe o seu próprio caminho.
Continuei a caminhar na direção da casa com a multidão à minha volta conversando e rindo, jovens transportando aos ombros as suas gadanhas, raparigas ajudando a transportar pás e foices. Aqui e ali mãos encontravam-se e agarravam-se e um ou dois, que tinham ficado para trás, desapareceram silenciosamente na floresta. No carreiro, o meu tio caminhava lentamente, o debrum dourado da sua túnica apanhando os últimos raios do Sol poente.
Eu não sei o que sinto, tio. Uma escuridão, algo de terrível, errado. No entanto, é como se a desejasse para nós. Como é possível pensar assim, quando tudo está bem e todos se sentem felizes?
Chegou a hora. O meu tio não mostrou, nem com um ligeiro movimento da cabeça, que estava a falar comigo. Perguntas a ti própria como consigo ler a tua mente! Devias falar com Sorcha, se conseguires que ela te responda. Ela e Finbar é que eram peritos nesta habilidade. Mas pode ser-lhe doloroso evocá-lo.
Disseste que chegou a hora. Hora para quê?
Se havia uma maneira de suspirar sem emitir qualquer som, Conor demonstrou-o.
Chegou a hora de mexer o que está dentro do pote. Chegou a hora de os seus dedos tecerem um pouco mais da teia. Chegou a hora de as suas vozes continuarem a cantar. Não precisas de te sentir culpada, Liadam. Elas servem-se de nós todos e não podemos fazer grande coisa Descobri isso à minha custa. E receio que também tu o vais descobrir.
Que quer dizer?
Descobri-lo-ás em breve. Porque não te divertes e gozas a juventude enquanto é tempo.
E foi tudo. Ele fechou-se e afastou-se de mim rapidamente e de modo seguro, como se um alçapão se tivesse fechado estrondosamente. Mais à frente vi-o fazer uma pausa, esperando pela minha mãe e por Lubdan e os três entraram juntos em casa.
Fiquei confusa e sem saber o que fazer com aquela conversa.
A minha irmã estava muito bela naquela noite. As lareiras da casa estavam acesas e lá fora havia uma fogueira, e dançava-se. O tempo estava fresco. Envolvera-me num xale, mas continuava a tremer. Mas Niamh no seu vestido azul-escuro tinha os ombros nus e o seu cabelo dourado estava artisticamente entrançado com fitas de seda e pequenas violetas prematuras. Enquanto dançava, a sua pele brilhava à luz da fogueira e os seus olhos eram um desafio. Os jovens afastavam os olhos dela com dificuldade enquanto ela rodopiava com um e com outro. Até os jovens druidas tinham dificuldade em evitar que os pés batessem no solo enquanto os seus olhares se mantinham baixos. Seamus trouxera os músicos. Eram bons; um tocador de gaita-de-foles, um violinista e um outro que era bom em todos os instrumentos que tocava, o bodhrán, o assobio ou a flauta. Havia mesas e bancos no pátio e os druidas mais velhos sentavam-se neles com as pessoas da casa, conversando e trocando histórias, enquanto observavam os jovens a divertirem-se.
Havia um que estava à parte, era o jovem druida do cabelo vermelho-escuro, que segurara no archote aceso com o fogo místico. Só ele não comera nem bebera. Não mostrava qualquer sinal de divertimento, enquanto toda a gente se divertia à sua volta. O seu pé não batia ao ritmo de uma velha melodia, a sua voz não se erguia numa canção. Em vez disso, mantinha-se de pé, hirto, silencioso e vigilante, por trás dos anciãos. Pensei que era uma demonstração de bom senso. Era bom haver alguém que não partilhasse da cerveja forte, alguém que estivesse à espreita no caso de surgirem intrusos indesejados e que estivesse à escuta em caso de perigo. Sabia que Liam colocara homens em locais estratégicos em redor da casa, para além das sentinelas habituais e guarda avançada. Um ataque a Sevenwaters naquela noite poderia dizimar, não só os senhores das três famílias mais poderosas do Nordeste, mas também os seus líderes espirituais. Portanto, nada fora deixado ao acaso.
Mas aquele jovem não era nenhum guarda, ou, se o era, não valia grande coisa. Os seus olhos escuros estavam pousados numa única pessoa e essa pessoa era a minha bela e sorridente irmã Niamh, enquanto dançava à luz da fogueira com a sua cortina de cabelos vermelhos-dourados rodopiando à sua volta. Reparei como ele estava estático, como os seus olhos a devoravam e afastei o olhar, dizendo a mim mesma para não ser estúpida. Afinal de contas, ele era um druida; suponho que eles devem sentir desejo como qualquer outro homem, por isso o seu interesse era bastante natural. Lidar com tais coisas fazia parte, sem dúvida, da disciplina que eles aprendiam. E eu não tinha nada a ver com isso. Olhei para a minha irmã e reparei no olhar que ela lhe enviava por baixo das longas e belas pestanas.
Dança com Eamonn, rapariga parva, disse-lhe eu, mas ela nunca fora capaz de ouvir a minha voz interior.
A música mudou de uma dança de roda para um lento e gracioso lamento. Tinha palavras e a multidão já tinha bebido o suficiente para cantar juntamente com o tocador de gaita-de-foles.
— Queres dançar comigo, Liadan?
— Oh. — Eamonn assustara-me, aparecendo ali, subitamente, na escuridão. A luz da fogueira mostrava o seu rosto, tão sério como sempre. Se ele parecia estar a divertir-se com a festa, não o demonstrava. Agora que pensava naquilo, não o tinha visto dançar. — Oh. Se tu... mas talvez devesses convidar a minha irmã. Ela dança muito melhor do que eu. — Aquilo saiu-me desajeitadamente, quase que indelicadamente.
Olhamos ambos para lá do mar de jovens que dançavam, onde Niamh se encontrava, sorrindo, passando uma mão descuidada pelos cabelos, rodeada de admiradores. Uma figura alta, dourada, sob a luz vacilante.
— Estou a convidar-te a ti.
Não havia um sorriso nos lábios de Eamonn. Fiquei satisfeita por saber que ele não me podia ler os pensamentos, como o meu tio Conor. Fora bastante rápida na apreciação que fizera dele ao fim da tarde. Só de pensar nisso senti as faces enrubescerem. Lembrei a mim própria que era filha de Sevenwaters e devia observar certas cortesias. Levantei-me, tirei o xale e Eamonn surpreendeu-me ao tirar-mo das mãos para o dobrar cuidadosamente antes de o colocar sobre uma mesa próxima.
Pegou, então, na minha mão e levou-me para o círculo de dançarinos.
Era uma dança lenta, os pares aproximando-se e afastando-se, rodando costas com costas, tocando as mãos e largando-as. Uma dança adequada ao festival de Brighid que está, afinal de contas, relacionado com vida nova e com o fluxo de sangue que lhe dá forma. Conseguia ver Sean e Aisling movendo-se à roda um do outro, num passo perfeito, como se os dois respirassem o mesmo ar. O encantamento nos seus olhos fez com que o meu coração parasse. Disse para mim própria, silenciosamente, Deixai-os assim. Deixai-os assim para sempre. Mas não sabia a quem pedia aquilo.
— O que é, Liadan? — Eamonn vira a mudança no meu rosto à medida que se aproximava de mim, pegando na minha mão direita e envolvendo-me com o outro braço. — Que se passa?
— Nada — menti eu. — Nada. Acho que estou cansada, é tudo. Levantamo-nos cedo, fomos apanhar flores, preparamos a comida para a festa, as coisas do costume.
Ele acenou com a cabeça, aprovando.
— Liadan — começou a dizer qualquer coisa mas foi interrompido por um casal exuberante que ameaçava atirar-nos ao chão enquanto passavam, rodopiando selvaticamente. Habilmente, o meu par afastou-me do perigo e, por um momento, os seus dois braços rodearam a minha cintura e o meu rosto ficou perto do seu. — Liadan. Preciso de falar contigo. Quero dizer-te uma coisa.
O momento passou; a música continuou a tocar, ele largou-me e voltamos de novo a ser levados para a roda.
— Bem, então, fala — disse eu de modo pouco delicado. Não consegui ver Niamh; de certeza que não se retirara ainda. — Que me queres dizer?
Seguiu-se uma longa pausa. Chegamos ao fim da fila; ele rodeou-me a cintura com o braço, eu pus-lhe uma mão no ombro e executamos algumas voltas, ao mesmo tempo que nos dirigíamos para o fim da fila sob um arco de braços estendidos. De repente, pareceu-me que Eamonn estava farto de dançar. Manteve a minha mão na dele e puxou-me para a beira do círculo.
— Aqui não — disse ele. — Não é a altura nem o lugar. Amanhã. Quero falar contigo a sós.
— Mas...
Senti por breves instantes as mãos dele nos meus ombros, enquanto me envolvia no xale. Estava muito próximo. Algo dentro de mim soou como um alarme; mas ainda não compreendia.
— De manhã — disse ele. — Tu vais trabalhar cedo para o teu jardim, não é verdade? Vou lá ter contigo. Obrigado pela dança, Liadan. Devias deixar ser eu a julgar as tuas capacidades.
Levantei os olhos, tentando perceber o que queria ele dizer, mas o seu rosto não denunciava nada. Então alguém o chamou e ele, com um breve aceno, afastou-se.
No dia seguinte fui trabalhar para o jardim, pois o tempo estava bom, apesar de frio e havia sempre muito a fazer nos canteiros de ervas aromáticas e na ervanária. A minha mãe não saiu para se juntar a mim, o que era invulgar. Talvez, pensei eu, se sentisse cansada depois dos festejos. Arranquei as ervas daninhas, limpei, varri, fiz um chá de unha-de-cavalo para mais tarde levar para a aldeia e fiz um molho de urze em flor para pôr a secar. Foi uma manhã atarefada. Esqueci Eamonn por completo.
Até o meu pai chegar à ervanária, por volta do meio-dia, baixando a cabeça para passar a soleira e sentando-se no largo parapeito da janela com as suas longas pernas esticadas à sua frente. Também ele estivera a trabalhar e ainda não descalçara as suas botas de trabalho, que ainda mostravam vestígios substanciais de terra recentemente arada. Seria fácil varrê-la.
— Um dia atarefado? — perguntou ele, observando os bem ordenados molhos de ervas a secar, os frascos prontos para entrega e as ferramentas do meu ofício ainda espalhadas na bancada de trabalho.
— Bastante — disse eu dobrando-me para lavar as mãos no balde que mantinha ali, ao lado da porta. — Senti a falta da mãe, hoje. Esteve a descansar?
Surgiu-lhe no rosto uma pequena ruga.
— Ela levantou-se cedo. Primeiro, esteve a falar com Conor. Mais tarde, com Liam. Precisa de descansar.
Arrumei as facas, o almofariz, o pilão, as colheres e os fios nas suas prateleiras.
— Não o fará — disse eu. — Sabe isso muito bem. É sempre assim quando o Conor está cá. É como se nunca tivessem tempo suficiente para estar juntos, há sempre muita coisa para dizer. Como se quisessem recuperar os anos perdidos.
O meu pai acenou com a cabeça, mas não disse nada. Peguei na vassoura de giesta e comecei a varrer.
— Mais tarde vou à aldeia — disse-lhe. — Ela não precisa de lá ir. Talvez, se lho disser, ela tente dormir.
Os lábios de Lubdan abriram-se num meio sorriso.
— Eu nunca digo à tua mãe o que deve fazer — disse ele. — Tu sabes isso.
Ri-me para ele.
— Nesse caso, digo-lhe eu. Os druidas vão cá ficar um dia ou dois. Ela tem tempo, mais do que suficiente, para falar com ele.
— Isso faz-me lembrar uma coisa — disse o meu pai, levantando os pés calçados com as pesadas botas, enquanto eu varria o chão por baixo deles. Quando os pousou de novo, caiu uma nova chuva de terra nas lajes. — Tenho um recado para te dar.
— Ah sim?
— Do Eamonn. Ele pediu-me para te dizer que o chamaram de regresso a casa com urgência. Partiu esta manhã muito cedo, demasiado cedo para te vir ver, foi o que ele me disse. Pediu-me para te dizer que falará contigo quando regressar. Faz algum sentido para ti?
— Não muito — disse eu, varrendo os últimos restos de terra para fora da porta e pelos degraus abaixo. — Ele nunca me chegou a dizer do que se tratava. Por que é que o mandaram chamar? Era assim tão urgente? A Aisling também foi?
— A Aisling ainda cá está; fica mais segura sob a nossa proteção. Trata-se de um assunto que exige liderança e decisões rápidas. Levou o avô e os homens que estavam aptos a cavalgar. Creio que houve um novo ataque às suas posições fronteiriças. Por quem, ninguém tem a certeza. Um inimigo que chegou pela calada e matou sem escrúpulos, com tanta eficiência quanto uma ave de rapina, foi a descrição. O homem que trouxe a notícia parecia louco de medo. Suponho que saberemos mais quando Eamonn regressar.
Saímos para o jardim. Naquela época do ano, fria, a Primavera não passava de uma ilusão; pequenos e frágeis rebentos de açafrão emergindo do solo duro, amostras de botões de flores inchando nos ramos do jovem carvalho. Tanásias, florescendo prematuramente, davam uma nota vibrante de amarelo, contrastando com o verde-acinzentado do absinto e da alfazema. O ar estava frio e limpo. Todos os carreiros de pedra estavam varridos, os canteiros de ervas aromáticas impecáveis sob as camas de palha úmida e de folhas.
— Senta-te aqui um bocadinho comigo, Liadan — disse o meu pai. — Ainda não somos precisos. Vai ser bastante difícil convencer a tua mãe e os irmãos dela a virem para dentro para comer e beber. Tenho uma coisa para te perguntar.
— Também tu? — perguntei eu enquanto nos sentávamos juntos no banco de pedra. — Parece que toda a gente tem qualquer coisa para me perguntar.
— A minha pergunta é vulgar. Já pensaste em casar? No teu futuro?
Eu não estava à espera daquilo.
— Na verdade, não. Suponho... esperava, como irmã mais nova, ficar mais uns anos em casa — disse eu, sentindo-me, repentinamente, gelada. — Não tenho pressa de deixar Sevenwaters. Talvez... possa ficar, tomar conta dos meus pais na velhice. Talvez nem sequer me casar. Afinal de contas, tanto Niarnh como Sean farão bons casamentos, alianças fortes. Eu também tenho de me casar?
O meu pai olhou para mim fixamente. Os seus olhos eram de um intenso azul-claro; pensava em quanto do que eu dissera era a sério ou a brincar.
— Sabes que eu gostaria muito que ficasses aqui conosco, querida — disse ele lentamente. — Despedir-me de ti não me será fácil. Mas haverá propostas. Não gostaria que ficasses limitada por nossa causa.
Franzi o sobrolho.
— Talvez não seja necessário falar disso por enquanto. Afinal de contas, Niamh casará primeiro. Certamente, não haverá propostas até essa altura. — A minha mente evocou a imagem da minha irmã, dourada e feliz no seu vestido azul junto da fogueira, atirando os cabelos brilhantes para trás, rodeada de jovens bem-parecidos. — Niamh deve casar primeiro — acrescentei friamente. Parecia-me que aquilo era importante, mas não sabia dizer porquê.
Seguiu-se uma pausa, como se ele estivesse à espera que eu completasse um raciocínio que não entendia muito bem.
— Por que dizes isso? Que ninguém pedirá a tua mão enquanto a tua irmã não casar?
Aquilo estava a tornar-se cada vez mais difícil, pois o meu pai e eu éramos muito chegados e falávamos sempre diretamente e honestamente um com o outro.
— Que homem pediria a minha mão quando pode ter a Niamh? — perguntei eu. Não havia nenhum sentimento de inveja na minha pergunta. Parecia-me tão óbvio, que mal podia acreditar que ele não tivesse pensado nisso.
O meu pai levantou as sobrancelhas.
— Talvez, se Eamonn te pedir em casamento, lhe devas fazer essa pergunta! — disse ele suavemente. Havia um tom de ligeira troça na sua voz.
Fiquei espantada.
— Eamonn? Pedir-me em casamento? Não me parece. Ele não está destinado a Niamh? Tenho a certeza que está enganado.
Mas, na minha mente, o episódio da noite anterior desenrolou-se de novo, o modo como ele me falara, o modo como dançáramos juntos e uma pequena dúvida instalou-se. Abanei a cabeça, não querendo acreditar que fosse possível.
— Não estaria certo, pai. Eamonn deve casar com Niamh. É o que toda a gente espera. E... Niamh precisa de alguém como ele. Um homem que... tenha uma mão firme, mas que também seja justo. É Niamh que deve casar com ele. — Depois, pensei, aliviada, noutra coisa. — Além disso acrescentei — Eamonn nunca pediria tal coisa a uma rapariga sem primeiro pedir autorização ao pai. Esta manhã ele ficou de falar comigo. Devia ser acerca de outra coisa qualquer.
— E se eu te disser — disse Lubdan cuidadosamente — que o teu jovem amigo também planeava encontrar-se comigo esta manhã? Foi-lhe impossível, devido a uma emergência nas fronteiras das suas terras.
Fiquei silenciosa.
— Que tipo de homem escolherias para ti, Liadan? — perguntou-me ele.
— Um que fosse digno de confiança e honesto consigo próprio — respondi eu de imediato. — Um que diga o que pensa sem receio. Que possa ser tão amigo como marido. Ficaria satisfeita com um homem assim.
— Eras capaz de casar com um velho feio, sem dinheiro, se ele respondesse à tua descrição? — perguntou o meu pai, divertido. — Minha filha, és uma rapariga muito pouco vulgar.
— Para dizer a verdade — disse eu retorcidamente — se ele fosse jovem, bem-parecido e rico, não o desdenharia. Mas essas coisas são menos importantes. Se eu tivesse a sorte... se eu fosse suficientemente afortunada para casar por amor, como o pai fez... mas isso é pouco provável, eu sei.
Pensei no meu irmão e em Aisling dançando num círculo encantado, só deles. Era esperar demasiado que o mesmo me acontecesse.
— Traz uma felicidade inigualável — disse Lubdan suavemente. — Ao mesmo tempo, um medo que nos atinge quando menos se espera. Quando se ama assim, fica-se refém da sorte. Com o tempo, torna-se cada vez mais difícil aceitar o que o destino nos traz. Até agora, temos tido sorte.
Concordei. Sabia do que ele estava a falar. Era um assunto do qual não falávamos abertamente; ainda não.
Levantamo-nos e saímos lentamente pelo arco do jardim, ao longo do carreiro que ia dar ao pátio principal. Um pouco mais adiante, abrigada por uma grande sebe de espinheiro-negro, a minha mãe estava sentada no baixo muro de pedra, uma figura pequena e franzina, de feições pálidas emolduradas por cachos de caracóis negros.
Tinha Liam de um lado com um pé em cima do muro, o cotovelo no joelho, explicando qualquer coisa com gestos comedidos. Do outro lado sentava-se Conor, imóvel na sua túnica branca, ouvindo atentamente. Não os incomodamos.
— Suponho que saberás se eu estou certo quando Eamonn regressar — disse o meu pai. — Não há dúvida nenhuma de que ele será um bom partido, para ti ou para a tua irmã. Entretanto, pensa nisso.
Não respondi.
— Deves compreender que nem eu, nem a tua mãe, te forçaremos, Liadan, a tomar uma decisão. Quando escolheres um marido, a escolha será tua. Só te pedimos que penses nisso, que te prepares e consideres quaisquer pedidos que sejam feitos. Sabemos que escolherás sensatamente.
— E Liam? O pai sabe do que ele gostaria. Há as nossas terras a considerar e a força das alianças.
— Tu és minha filha e da tua mãe, não de Liam — disse o meu pai. — Ele ficará muito satisfeito por Sean ter escolhido a mulher que ele mais desejava para o teu irmão. A escolha será apenas tua, minha querida.
Nesse momento tive uma sensação muito estranha. Era como se uma voz silenciosa me murmurasse, Estas palavras voltarão para o atormentar. Uma sensação de frio e mau agouro. Foi-se num instante e quando olhei para o meu pai o seu rosto estava calmo e imperturbável. Fosse o que fosse, passara por ele sem que ele se apercebesse.
Os druidas ficaram em Sevenwaters durante vários dias. Conor tinha longas conversas com a irmã e o irmão e algumas vezes vi-o só com a minha mãe, os dois de pé, ou sentados, num silêncio total. Nessas alturas, eles comunicavam secretamente entre si, telepaticamente e não dava para entender o que se passava entre ambos. Assim falara ela em tempos com Finbar, o irmão de que ela mais gostava, aquele que regressara após anos passados fora, com a asa de um cisne em vez de um braço e com a mente algo desequilibrada. Ela partilhara com ele a mesma ligação que eu partilho com Sean. Sem necessidade de palavras, eu sabia quando o meu irmão sofria ou estava feliz. Conseguia comunicar com ele, por mais longe que estivesse, sem que mais ninguém ouvisse. E assim compreendi como a minha mãe, Sorcha, se sentira, tendo perdido aquele que lhe era tão chegado, como se fizesse parte dela. Porque, segundo a história, Finbar nunca seria, de novo, um homem, na verdadeira acepção da palavra. Parte dele, quando regressou, manteve-se selvagem, sintonizada com as necessidades e instintos de uma criatura da vastidão dos céus e das profundezas insondáveis. E assim, uma noite, caminhou até à margem do lago, de encontro ao abraço frio da água. O seu corpo nunca foi encontrado, mas não há dúvida, dizem as pessoas, que ele morreu afogado naquela noite. Como podia tal criatura nadar com o braço direito de um jovem e a grande asa branca esquerda de um cisne?
Eu compreendia a dor da minha mãe, o vazio que tinha dentro dela, mesmo depois de se terem passado tantos anos, apesar de nunca falar disso, nem mesmo com Lubdan. Mas acreditava que ela o partilhava com Conor durante aqueles longos silêncios. Acreditava que eles usavam o seu dom para darem forças um ao outro, como se, ao partilharem a dor, a pudessem tornar mais fácil de suportar.
Toda a gente da casa se reunia para cear quando o longo dia de trabalho acabava e, após a ceia, para cantar, beber e contar histórias. Na nossa família havia um jeito especial para contar histórias que era sobejamente conhecido e respeitado. De todos nós, a minha mãe era a melhor. O seu dom com as palavras era tal, que, por uns momentos, saíamos deste mundo e entrávamos noutro. Mas os restantes não eram, de modo algum, desajeitados. Conor era um maravilhoso contador de histórias. Até Liam, em certas ocasiões, contribuía com uma história de heróis, com descrições de batalhas e pormenores de combates, armados e desarmados. Os homens, em especial, seguiam aquelas histórias avidamente, Lubdan, como eu já disse, nunca contava histórias, apesar de as escutar atentamente. Nessas ocasiões é que as pessoas se lembravam que ele era bretão, mas ele era muito respeitado pela sua justiça, generosidade e, acima de tudo, pela sua capacidade de trabalho, não o culpando, por isso, pela sua ascendência.
Na noite de Imbolc, contudo, não foi uma pessoa da nossa família que contou a história. Pediram à minha mãe que contasse uma história, mas ela desculpou-se.
— Com uma companhia tão erudita no meio de nós — disse ela docemente — esta noite tenho de recusar. Conor, com o talento que te conhecemos, bem podias contar-nos uma história neste dia de Brighid!
Ao olhar para ela, pensei que ainda parecia cansada, com uma leve sombra em redor dos seus luminosos olhos verdes. Estava sempre pálida, mas naquela noite a sua pele tinha uma transparência que me deixou preocupada. Estava sentada num banco ao lado de Lubdan e a sua pequena mão quase desaparecia na grande mão do marido. O seu outro braço rodeava-lhe os ombros e ela encostava-se a ele. As palavras regressaram de novo à minha mente, Deixai-os assim e senti um sobressalto. Disse para mim própria, severamente, para parar com aquele disparate. Quem julgava eu que era? Uma visionária? Muito provável-mente, era apenas uma rapariga sujeita a histerismos.
— Obrigado — disse Conor gravemente, mas não se levantou. Em vez disso, olhou para o outro lado do grande salão e acenou levemente com a cabeça. E assim foi o jovem druída, aquele que transportara o archote na noite anterior, que acendera as nossas lareiras, que avançou e se preparou para nos entreter. Era, na realidade, um jovem bem proporcionado, bastante alto, de costas direitas, com a disciplina dos da sua espécie, o cabelo encaracolado não do mesmo vermelho-flamejante do do meu pai e de Niamh, mas de um tom mais profundo, da cor do centro de um pôr do Sol de Inverno. E os seus olhos eram escuros, escuros como amoras maduras, e difíceis de ler. Tinha uma pequena fenda no queixo e duas covinhas marotas nas faces, quando sorria. Ainda bem, pensei, que este faz parte da irmandade. Se não, metade das raparigas de Sevenwaters estariam a lutar por ele. E atrevo-me a pensar que ele gostaria disso.
— Que melhor história para este dia de Imbolc — começou o jovem druida — do que a de Aengus Óg e da bela Caer Ibormeith? Uma história de amor, mistério e transformação. Com vossa permissão, vou contá-la esta noite.
Pensei que ele pudesse estar nervoso, mas a sua voz era forte e confiante. Suponho que era resultado de anos e anos de privações e estudo. Leva muito tempo a aprender o que um druida tem de fazer e não há livros para o ajudar. Vi, pelo canto do olho, Liam a olhar para Sorcha, o rosto levemente franzido e uma pergunta nos olhos. Ela acenou levemente, como que a dizer: não te incomodes, deixa-o continuar. Porque aquela história era uma das que não se contavam em Sevenwaters. Era demasiado perigosa. Supunha que aquele jovem sabia pouco sobre a nossa história, ou nunca a teria escolhido. Conor, certamente, não se apercebeu da sua intenção, ou teria sugerido, com tato, uma história diferente. Mas ele estava calmamente sentado ao lado da irmã, aparentemente imperturbável.
— Até um filho de Túatha Dê Danann — começou o jovem — pode adoecer por amor. Foi o que aconteceu a Aengus. Jovem, forte, belo, guerreiro de alguma reputação, ninguém poderia imaginar que quebrasse com tanta facilidade. Mas, uma tarde, enquanto caçava veados, foi repentinamente atingido por um grande cansaço e estendeu-se, para dormir, na erva, à sombra, num bosque de teixos. Adormeceu de imediato e durante o sono sonhou. Oh, como ele sonhou. No seu sonho, lá estava ela: uma mulher tão bela que apagava as estrelas do céu. Uma mulher que despedaçava corações. Ele viu-a a caminhar descalça, numa praia remota, alta e direita, de seios brancos como o luar refletindo-se na neve, túrgidos sob as dobras escuras do vestido, os cabelos como luz nas folhas das faias no Outono, brilhantes, vermelhos-dourados, da cor do cobre polido. Ele viu o modo como ela se movia, a suave tentação do seu corpo e quando acordou soube que tinha de a possuir, ou, certamente, morreria.
Achei que aquilo tinha algo mais para além de um toque pessoal. Mas quando olhei em volta, enquanto o contador recobrava o fôlego, pareceu-me que apenas eu tinha reparado na forma das suas palavras. Eu e mais alguém. Sean mantinha-se ao lado de Aisling, perto da janela e pareciam escutar com tanta atenção como eu, mas eu sabia que os seus pensamentos estavam virados para si próprios, conscientes ambos do modo como a mão dele pousava casualmente na cintura dela e como os dedos da jovem tocavam gentilmente na manga dele. Lubdan olhava para o jovem druida, mas o seu olhar estava abstrato; a minha mãe pousara a cabeça no seu ombro e tinha os olhos fechados. Conor parecia sereno, Liam distante. O resto das pessoas escutava cortesmente. Apenas a minha irmã Niamh parecia hipnotizada, sentada na borda da sua cadeira, as faces coradas e os belos olhos azuis abertos, fascinados. Ele falava para ela, não havia dúvida; seria eu a única a percebê-lo? Era quase como se ele tivesse o poder de comandar as nossas reações com as suas palavras.
— Assim, Aengus sofreu durante um ano e um dia — continuou o jovem. — Ela aparecia-lhe todas as noites, em visões, por vezes ao lado da sua cama, o seu belo corpo vestido simplesmente de branco, tão perto que lhe parecia poder tocá-la com a mão. Quando ela se inclinava para ele, parecia-lhe que sentia, o toque dos seus longos cabelos no seu corpo nu. Mas quando estendia o braço para lhe tocar, espanto! Ela desaparecia num instante. Desejava-a tanto que caiu doente com febre e o seu pai, o Dagda, temeu pela sua vida, ou, pelo menos, pela sua saúde. Quem era ela? Seria uma donzela real, ou seria apenas uma criatura invocada pelo espírito profundo de Aengus, destinada a nunca ser possuída em vida?
“Aengus estava a morrer; o seu corpo ardia, o seu coração batia como um tambor, os seus olhos ardiam de febre. E assim, Dagda solicitou a ajuda do Rei de Munster. Os seus homens procuraram a leste, procuraram a oeste, em todos os caminhos e carreiros de Erin e por fim souberam o nome da donzela. Chamava-se Caer Ibormeith, Yewberry e era a filha de Eathal, um senhor dos Túatha Dê, que morava num lugar do Outro Mundo, na província de Connacht.
“Quando deram esta notícia a Aengus, ele levantou-se da cama e foi em busca dela. Viajou até ao lugar chamado Boca do Dragão, o lago em cujas margens remotas tinha vislumbrado pela primeira vez a sua amada. Esperou ali três dias e três noites, sem comer nem beber e por fim ela apareceu, caminhando ao longo da areia, descalça, como ele a tinha visto na sua visão, os longos cabelos esvoaçando, chicoteados pelo vento, como anéis de fogo. O desejo assaltou-o, mas conseguiu aproximar-se dela polidamente e apresentou-se tão calmamente quanto pôde.
A donzela, Caer Ibormeith, usava em redor do pescoço um colar de prata e ele viu que uma corrente a ligava a outra donzela, e outra, e ao longo da margem três vezes 50 jovens caminhavam, ligadas umas às outras por correntes de prata trabalhada. Mas quando Aengus pediu a Caer que fosse sua, quando lhe falou no seu ardente desejo por ela, ela desapareceu tão silenciosamente como aparecera e as outras donzelas com ela. E de todas, ela era a mais alta e a mais bela. Era, sem dúvida, a mulher do seu coração.
O jovem druida fez uma pausa, mas não olhou para Niamh, para onde ela estava sentada como uma bela estátua, os seus intensos olhos azuis cheios de encantamento. Eu nunca a vira assim sentada, imóvel, por tanto tempo.
— Depois daquilo, Dagda foi ter com o pai de Caer, no local onde ele morava, em Connacht e exigiu a verdade. Como poderia o seu filho Aengus conquistar aquela mulher, porque sem ela ele não conseguiria viver? Como poderia ele conseguir tão estranha criatura? Eathal, a princípio, não quis cooperar; mas depois de alguma pressão, não pôde resistir. A linda Caer, disse o seu pai, escolhera viver, ano sim ano não, como cisne. A partir de Samhain, ela assumiria a sua forma de ave e no dia da transformação seria então que Aengus deveria levá-la com ele, porque nessa ocasião ela estaria mais vulnerável. Mas tinha de estar pronto, avisou Eathal. Conquistá-la teria os seus custos.
“E tudo aconteceu como Eathal dissera. Na véspera de Samhain, Aengus viajou de novo até à Boca do Dragão e ali, na margem, estavam três vezes 50 belos cisnes, cada um com um colar de prata em volta do pescoço. Três vezes 51, porque ele sabia que o cisne com a plumagem mais orgulhosa e o maior e mais gracioso pescoço era a sua amada Caer Ibormeith. Aengus aproximou-se, caiu de joelhos diante dela, ela pousou o pescoço no ombro dele e abriu as suas grandes asas. Nesse momento, ele sentiu que estava a mudar. Um calafrio percorreu-lhe o corpo, da ponta dos dedos dos pés à ponta dos cabelos, do dedo mais pequenino ao mais profundo do seu coração, viu a sua pele a mudar e a tremeluzir, os seus braços a transformarem-se em penas alvas como a neve, a sua visão a tornar-se mais nítida e a alcançar mais longe e soube que também ele era um cisne.
“Voaram três vezes em volta do lago, cantando de alegria, e tão suave era aquela canção que adormeceu toda a gente, num sono tranqüilo, muitas léguas em redor. Depois disso, Caer Ibormeith regressou a casa com Aengus e se foi sob a forma de homem e mulher, ou de dois cisnes, as histórias não o dizem. Mas dizem, na verdade que, se na véspera de Samhain passarmos perto do Loch Béal Dragan e ficarmos muito quietos na margem ao anoitecer, ouviremos o som das suas vozes sobre o lago, chamando na escuridão. Se ouvirmos essa canção, jamais a esqueceremos. Nem que vivamos cem anos.
O silêncio que se seguiu foi um sinal de respeito concedido apenas aos melhores contadores de histórias. Na verdade, o jovem contara a sua história com habilidade; quase tão bem como alguém da nossa família. Não olhei para Niamh; esperava que as suas faces coradas não atraíssem demasiada atenção. Finalmente, a minha mãe falou.
— Aproxima-te, jovem — disse ela docemente enquanto se levantava com a mão ainda na do meu pai. O jovem druida aproximou-se com as faces um pouco mais pálidas do que antes. Talvez, apesar da sua aparente confiança, aquilo tivesse sido uma prova difícil. Era bastante jovem, ainda não devia ter 20 anos, pensei. — Contas as tuas histórias com alma e imaginação. Muito obrigada por nos teres entretido tão bem esta noite. — Ela sorriu para ele bondosamente, mas eu reparei na força com que ela agarrava os dedos de Lubdan, atrás das costas, como que para se equilibrar.
O jovem baixou levemente a cabeça.
— Muito obrigado, minha senhora. Tal louvor, vindo de uma contadora de histórias com a vossa reputação, vale o dobro. Devo a minha habilidade ao melhor dos professores. — Ele olhou de relance para Conor.
— Como te chamas, meu filho? — Era Liam que fazia a pergunta do outro lado da sala, onde estava sentado, entre os seus homens. O rapaz virou-se.
— Ciarán, meu senhor. — Liam acenou com a cabeça.
— Serás bem-vindo a minha casa, Ciarán, sempre que o meu irmão te quiser trazer. Nós damos grande valor às nossas histórias e à nossa música, que em tempos quase desapareceram das casas irlandesas. Dou as boas-vindas a todas as irmandades que nos deram a honra de estar conosco à lareira nesta noite em honra de Brighid. E agora, quem quer tocar harpa, flauta, ou cantar-nos uma bela canção sobre batalhas ganhas ou perdidas?
Pensei que o meu tio estava deliberadamente a levá-los para terreno mais seguro, como grande táctico que era. O jovem Ciarán desapareceu no grupo de figuras vestidas de cinzento tranqüilamente sentadas a um canto e com a passagem de jarros de hidromel e o começo das músicas tocadas pelas gaitas-de-foles e pelas rabecas, a noite continuou em perfeita harmonia.
Após um certo tempo, disse a mim própria que estava a ser pateta. Fora apenas a minha imaginação, demasiado viva. Era natural que Niamh namoriscasse, ela fazia-o sem pensar. Não havia nenhuma segunda intenção naquilo. Lá estava ela, de novo, rindo e brincando com dois jovens guerreiros de Liam. Quanto à história, não era invulgar ser-se inspirado por um herói, uma dama, ou por alguém que se conhecesse.
Um rapaz criado nos bosques sagrados, longe das casas senhoriais, podia não ter muito em que se inspirar quando lhe pediam para falar numa beleza sem par. Não era surpreendente, portanto, que ele tivesse tomado a bela filha da casa como modelo. Inofensivo. Estava a ser estúpida. Os druidas regressariam à floresta, e Eamonn regressaria, casaria com Niamh e tudo voltaria ao normal. Como deve ser. Quase me convenci disso à medida que a meia-noite se aproximava e nos preparávamos para recolher aos nossos aposentos. Quase. Ao chegar aos primeiros degraus, de vela na mão, olhei, por acaso, para o outro lado da sala e encontrei o olhar firme do meu tio Conor. Ele estava de pé, imóvel, no meio de muita gente que falava, ria e acendia as suas velas na lamparina ali colocada. Tão estático estava que parecia de pedra, exceto pelos olhos.
Lembra-te, Liadan. Tudo se está a desenrolar como deve ser. Segue o teu caminho com coragem. Não podemos fazer mais nada.
Mas... mas...
Ele afastara-se e eu já não lhe consegui ler os pensamentos. Mas vi Sean virar a cabeça repentinamente na minha direção, sentindo a minha confusão sem a compreender. Era demasiado. Maus presságios; arrepios súbitos; avisos mentais secretos. Eu queria ir para o meu quarto, beber água e ter uma boa noite de sono. Coisas simples e seguras. Agarrei com força no meu castiçal, segurei nas saias e subi para me ir deitar.
CAPÍTULO DOIS
É bastante difícil fazer tintura de celidónia. O método é bastante simples; o problema está em obter as quantidades necessárias. A minha mãe ensinou-me a fazê-lo de ambas as maneiras, tanto com folhas verdes, como secas, as suas pequenas e hábeis mãos moendo as folhas secas no almofariz, enquanto eu reduzia as recém-apanhadas a tiras, colocando-as depois numa taça funda e cobrindo-as com um pouco da mesma preciosa infusão que Conor utilizara para atrair a bênção de Brighicl sobre os nossos campos nesta estação de sementeiras. Segui as suas instruções, feliz por ser uma das pessoas que não sofria um inchaço doloroso na pele quando pegava naquela erva. As mãos da minha mãe eram macias e brancas apesar da sua labuta diária na ervanária, e delicadamente proporcionadas. O único adorno que ela usava era o anel que o seu marido habilmente lhe esculpira muitos anos antes. Naquele dia usava um vestido antigo, que já fora azul e os seus longos cabelos estavam presos com uma simples tira de linho. Aquele vestido, aquele anel e aquelas mãos possuíam, cada um deles, a sua própria história e o meu pensamento debruçou-se sobre eles enquanto preparava a minha infusão de ervas.
— Muito bem — disse a minha mãe, observando-me. — Quero que aprendas isto como deve ser, para seres capaz de a aplicar com perfeição com outras substâncias. Esta tintura aliviará a maioria das maleitas do estômago, mas cuidado, que é muito forte. Usa-a uma única vez num doente, ou farás mais mal do que bem. Agora põe a musselina sobre a taça e arruma-a cuidadosamente. É tudo. Deixa-a repousar durante 21 noites, escorre-a depois e guarda-a num sítio escuro fortemente rolhada. Esta tintura manterse-á durante muitas luas. Durar-te-á o Inverno todo.
— Por que não se senta um pouco, mãe? — O pote fervia na pequena lareira. Tirei duas taças de barro da prateleira e abri os potes de folhas secas.
— Estás a mimar-me, Liadan — disse ela, sorrindo, mas sentou-se, uma figura franzina no seu velho vestido de trabalho. O Sol entrava a jorros pela janela por trás dela, mostrando quão pálida estava. À luz forte, podiam ver-se vestígios de bordado desbotado no decote e na barra do vestido. Folhas de hera, pequenas flores e, aqui e ali, um pequeno inseto alado. Verti cuidadosamente água quente em cada uma das taças.
— Isso é uma nova poção?
— É — disse eu começando a limpar e a arrumar as facas, as tigelas e os instrumentos que tínhamos estado a usar. — Veja se consegue adivinhar o que está aqui dentro. — O aroma da infusão de ervas espalhava-se pelo ar frio e seco da ervanária.
A minha mãe aspirou delicadamente o ar.
— Tem valeriana... as flores secas, isso tem que ter; tem ficaria, talvez um pouco de erva de São João e... visco dourado?
Encontrei um pote do nosso melhor mel e deitei uma pequena colher em cada taça.
— Não perdeu o seu toque — disse eu — e não precisa de se preocupar. Eu sei como colher esta erva e como utilizá-la.
— Uma combinação poderosa, minha filha.
Olhei para ela e ela devolveu-me o olhar.
— Tu sabes, não é verdade? — perguntou ela suavemente. Acenei com a cabeça, incapaz de proferir uma palavra. Coloquei uma taça no parapeito de pedra a seu lado e outra perto de mim, no sítio onde estava a trabalhar.
— A tua escolha de ervas é adequada. Mas é demasiado tarde para tais curas fazerem outra coisa que não proporcionar um certo alívio. Também sabes isso. — Deu um pequeno gole, fez uma careta e sorriu levemente. — Esta infusão é amarga.
— Muito — disse eu bebendo a minha, que era apenas de hortelã-pimenta. Mal conseguia controlar a voz.
— Vejo que te soubemos ensinar, Liadan — disse a minha mãe, olhando-me de perto.
— Tens o meu dom de curar e a dádiva do teu pai para o amor. Ele junta toda a gente à sua volta, sob a sua sombra protetora, como uma grande árvore da floresta. Vejo a mesma força em ti, minha filha.
Desta vez nem me atrevi a falar.
— Vai ser duro para ele — continuou ela. — Muito duro. Ele não é um dos nossos, apesar de, por vezes, o esquecermos. Não compreende que isto não será uma verdadeira separação, será apenas uma transição.
— A roda gira e volta a girar — disse eu.
A minha mãe sorriu de novo. Pousara a taça quase sem lhe ter tocado.
— Também tens um pouco de Conor — disse ela. — Senta-te aqui um bocadinho, Liadan. Tenho uma coisa para te dizer.
— A mãe, também? — consegui eu dizer com um meio sorriso.
— Sim, o teu pai falou-me de Eamonn.
— E o que é que acha?
Uma pequena ruga apareceu-lhe na testa.
— Não sei — disse ela lentamente. — Não te posso aconselhar. Mas... mas diria que não te deves apressar. Vais ser necessária aqui por mais um tempo.
Não lhe perguntei porquê.
— Já disse ao pai? — perguntei-lhe, finalmente.
A minha mãe suspirou.
— Não. Ele nem se atreve a perguntar-me, já que sabe que lhe respondo com a verdade. Não preciso de lho dizer. A Red, não. Ele já sabe. Nota-se no toque da sua mão, no regresso apressado a casa quando vem do campo, no modo como se senta a meu lado na cama, pensando que estou a dormir e como me aperta a mão enquanto fixa a escuridão. Ele sabe.
Estremeci.
— O que é que me ia dizer?
— Uma coisa que nunca partilhei com ninguém. Mas acho que chegou a altura de ta dizer. Tens andado preocupada ultimamente, tenho-o visto nos teus olhos. Não apenas... não apenas por causa disto, mas por algo mais.
Segurei na taça entre as mãos, aquecendo-as.
— Eu tenho... algumas vezes tenho uma sensação muito estranha. É como se, de repente, tudo ficasse gelado e... e ouço uma voz...
— Continua.
— Eu vejo... sinto como se algo terrível estivesse para acontecer. Olho para uma pessoa e sinto que... que algo de mau está para lhe acontecer. Conor sabe. Ele disse-me para não me sentir culpada. Não achei que isso me ajudasse muito.
A minha mãe acenou com a cabeça.
— O meu irmão tinha mais ou menos a tua idade quando o sentiu pela primeira vez. Estou a falar de Finbar. Conor lembra-se disso. É uma capacidade dolorosa, que nenhum de nós gostaria de ter.
— O que é? — perguntei a tremer. — É o dom da Visão? Nesse caso, por que é que eu não tenho convulsões, não grito e depois fico sem energia como Biddy O’Neill, de Crossing? Ela tem o poder da Visão, previu as grandes inundações há dois Invernos atrás e a morte daquele homem cuja carroça se despenhou em Ferga’s Bluff. Isto é... diferente.
— Diferente, mas igual. O modo como te afeta depende da tua própria força e dos teus próprios dons. E o que vês também te pode induzir em erro. Finbar via muitas vezes a verdade e sentia-se culpado por não poder evitar que as coisas acontecessem. Mas o significado das suas visões não era nada fácil de interpretar. É um dom cruel, Liadan. Com ele vem um outro que ainda não tiveste razão para desenvolver.
— E qual é? — Não tinha a certeza de querer saber qual era. Não era um dom, se se podia chamar àquilo um dom, mais do que suficiente?
— Não te posso explicar, não totalmente. Ele usou-o em mim, uma vez. Ele e eu... ele e eu partilhávamos a mesma ligação que tu tens com Sean, uma proximidade que vos deixa comunicar um com o outro através da mente; que vos une intimamente, profundamente. Finbar tinha mais capacidade do que eu; nos últimos dias até se fechava a mim. Havia ocasiões em que acho que tinha medo de baixar a guarda; sentia uma grande mágoa e não a queria partilhar, nem sequer comigo. Mas ele também tinha a outra capacidade; a de usar o poder da mente para curar. Quando eu fui... fui ferida e pensei que o mundo nunca mais seria o mesmo, ele... ele tocou-me com a mente, afastou todas as coisas más, fez meus os seus pensamentos até o pesadelo acabar. Mais tarde, usou essa mesma capacidade no meu pai, cuja mente ficara profundamente lesionada pelas maquinações de Lady Oonagh, a feiticeira. Ela fez o que quis do meu pai durante três longos anos, enquanto os meus irmãos estiveram sob o seu feitiço. E Lorde Colum não era um homem fraco; lutou contra a sua própria culpa e vergonha sem, no entanto, a renegar. Quando finalmente regressamos a casa ele mal nos reconheceu. Trazê-lo de volta exigiu muitos dias e noites de paciência. Tal poder de cura tem um preço elevado. Mais tarde, Finbar ficou... esgotado. Nem parecia ele. Parecia um homem que passara pelas mais terríveis provas do corpo e do espírito. Só os mais fortes ultrapassam isto.
Olhei para a minha mãe com uma pergunta nos olhos.
— Tu és forte, Liadan. Não te posso dizer se, e quando irás ser chamada a usar esse dom. Talvez nunca. Pelo menos, ficas a saber isso. Ele poderia dizer-te mais.
— Ele? Quer dizer... Finbar? — Agora estávamos a pisar terreno perigoso.
A minha mãe virou-se para olhar pela janela.
— Cresceu tão belo — disse ela. — O pequeno carvalho que Red plantou para mim e que um dia será alto e nobre. O lilás; as ervas que curam. A feiticeira não conseguiu destruir-nos. Juntos éramos demasiado fortes para ela. — Ela olhou de novo para mim. — A magia é poderosa dentro de ti, Liadan. E tens outra coisa a teu favor.
— O que é? — perguntei. As suas palavras eram fascinantes e terríveis.
— Uma vez ele mostrou-me. Finbar. Estive quase a perguntar-lhe o que me traria o futuro. Ele mostrou-me um momento do tempo. Nesse momento aparecia Niamh dançando ao longo de um carreiro da floresta, com os cabelos parecendo um fogo dourado. Uma criança com o dom da felicidade. E Sean a correr, a correr para a apanhar. Vi os nossos filhos, de Red e meus. E... e havia outra criança. Uma criança que estava... de fora. A um canto, de modo que não consegui vê-la bem. Mas essa criança não eras tu, minha filha. Disso, tenho a certeza. Se fosses tu, teria sabido no momento em que nasceste e ficaste nos meus braços.
— Mas... mas por que é que eu não aparecia? Sean e eu somos da mesma idade. Por que é que eu não apareci na sua Visão?
— Eu tive essa mesma Visão antes — disse a minha mãe lentamente. — Quando eu... mas das duas vezes tu não estavas lá. Só aquela outra criança, afastada. Creio que tu, Liadan, estás, de certo modo, fora do contexto. Se assim for, terás um grande poder. Um poder perigoso. Permitir-te-á... alterar as coisas. Nestas visões não estava previsto que o nascimento de Sean trouxesse uma segunda criança. O que te coloca à parte. Acredito, há muito tempo, que as Criaturas Encantadas guiam os teus passos. Que elas fazem os seus grandes planos a contar conosco. Mas tu não entras no esquema delas. Talvez sejas a resposta do problema.
Aquilo era demais para mim. No entanto, não pude deixar de acreditar nela, pois a minha mãe sempre dizia a verdade, nem mais, nem menos.
— E a terceira criança da Visão? — perguntei. — A criança à parte, na sombra?
— Não te sei dizer quem era. Só te posso dizer... que era uma criança que tinha perdido a esperança. O que é uma coisa terrível. Porque é que isto me foi mostrado, não te sei dizer. Talvez com o tempo tu descubras.
Estremeci de novo.
— Não estou certa de o querer descobrir.
A minha mãe sorriu e levantou-se.
— Estas coisas têm o hábito de vir ter conosco, quer queiramos, quer não — disse ela. — Conor tinha razão. Não há necessidade de termos sentimentos de culpa ou de nos preocuparmos com o que possa acontecer. Pôr um pé à frente do outro e seguir caminho. É tudo o que podemos fazer.
— Hum. — Olhei para ela. Parecia que o meu caminho ia ser mais complicado do que eu desejava. Não pedia muito. Só pedia a paz e a segurança de Sevenwaters, a oportunidade de usar os meus dons como deve ser e ser aquecida pelo amor da minha família. Não tinha a certeza de ter a coragem de fazer mais do que isso. Não me estava a ver como alguém que pudesse influenciar o destino. Como Sean se riria se eu lhe contasse.
A estação foi avançando e Eamonn não voltou. Os druidas deixaram-nos de novo, caminhando silenciosamente em direção à floresta, ao crepúsculo. Niamh tornou-se invulgarmente sossegada e passou a ir até ao telhado, olhando por cima das árvores e murmurando suavemente para si própria. Muitas vezes, quando a procurava para me ajudar a coser uma peça de roupa ou a preparar os frutos para secar, não estava em lado algum. À noite nunca queria conversar, preferindo estender-se na cama sorrindo secretamente, até que as pálpebras se fechavam sobre os seus belos olhos e adormecia como uma criança. Eu adormecia com menos facilidade. Ouvíamos histórias de conflitos no norte. Eamonn lutava em duas frentes. Entrara pelo território do seu vizinho. E retirara para a muralha interior. Os atacantes eram nórdicos, atormentando-nos uma costa que julgávamos segura há muito. Tinham colônias longe, a sul, no estuário de um grande rio e procuravam expandir a sua influência ao longo da costa, mesmo até ao coração das nossas terras. Mas eles não eram Nórdicos, nem sequer Bretões; eram uma raça estranha, homens que usavam a sua identidade na pele, num padrão secreto, codificado. Homens com rostos parecidos com aves estranhas, ou com grandes gatos selvagens, ou veados, ou javalis; homens que atacavam em silêncio e matavam sem piedade. Um tinha o rosto tão negro como o céu da noite. Talvez não fossem homens, mas sim guerreiros do Outro Mundo. As suas armas eram tão estranhas como a sua aparência: astuciosos tubos, através dos quais podia ser lançado um dardo envenenado; minúsculas bolas de metal cheias de espigões, que voavam com rapidez e batiam com força. Usavam inteligentemente um pedaço de corda fina. Não usavam espadas ou lanças, nenhuma arma leal.
Não sabíamos em que histórias deste tipo acreditar, se bem que Sean e Liam fossem a favor da teoria de que eram Nórdicos. No fim de contas, tais invasores estavam bem colocados, podendo fazer rápidos ataques e retirarem logo de seguida, porque no mar continuavam sem rival, servindo-se de remos e velas para se deslocarem mais depressa do que o vento sobre as águas. Talvez os seus elmos ornamentados tivessem dado origem àquelas estranhas histórias. Porém, dizia Liam, os Nórdicos lutavam sem qualquer subtileza, com espadas, maças e machados. Nem eram conhecidos pelas suas proezas em terreno firme, preferindo manter-se na costa, em vez de se aventurarem no interior. A teoria não era tão boa como tinham pensado.
Eventualmente, por altura em que o dia e a noite tinham a mesma duração e o meu pai andava ocupado com as sementeiras, Eamonn mandou pedir ajuda e Liam enviou uma força de 30 homens bem armados para o norte. Sean teria gostado de ir, assim como, penso, o meu tio.
Aisling continuava em nossa casa, onde estava a salvo e preocupada com a segurança do irmão. Era o suficiente para manter Sean em casa, pelo menos por agora. E Liam disse que era muito arriscado, já que ainda não conheciam a ameaça no seu todo, para os dois irem para a linha da frente com Eamonn e o avô dele.
Esperariam até que recebessem um relatório do próprio Eamonn, ou de Seamus. E teria de ser um relatório de fatos, não de imaginação. Então decidiriam que passos dar. Reparei, no entanto, que conversavam durante muito tempo, à noite, e estudavam mapas. Lubdan também. O meu pai podia ter jurado que não pegaria em armas se o inimigo pertencesse à sua raça, mas Liam era suficientemente estratégia para reconhecer e fazer uso da habilidade do marido da sua irmã com os mapas e os planos de ataque e defesa. Ouvi-o observar que era uma pena Padriac nunca mais ter regressado, desde que partira em busca de novas terras e aventuras. Ele era um homem que sabia como construir um barco e manejá-lo melhor do que qualquer nórdico. Era um homem capaz de arranjar dez soluções diferentes para qualquer problema. Mas já lá iam três anos desde que Liam vira o seu irmão mais novo.
Ninguém tinha grande esperança num regresso, depois de tanto tempo. Eu lembrava-me muito bem daquele tio. Quem se poderia esquecer dele? Estivera em casa por uns tempos, cheio de histórias maravilhosas e partira de novo em busca de novas aventuras. Vinha queimado do sol, como uma noz, com uma grande trança pelas costas abaixo e usava três anéis numa orelha e um estranho pássaro multicolorido pousado no ombro, que nos perguntava delicadamente se queríamos ir dar uma cambalhota no feno! Eu sabia que a minha mãe não acreditava que ele estava morto, assim como não acreditava na morte de Finbar. Perguntava a mim própria se ela saberia. Perguntei a mim própria se também eu saberia, se Sean fosse para a frente de combate e morresse sob os golpes da espada de um estranho qualquer. Senti-lo-ia no meu coração, esse momento em que o sangue escorre lentamente das veias, a respiração pára e uma névoa cobre os olhos, que olham sem ver a enorme vastidão do céu?
Nunca foi minha intenção espiar Niamh. Não tinha nada a ver com o que a minha irmã fazia nos seus tempos livres. Estava apenas preocupada. Ela agia de uma maneira pouco usual quando ficava silenciosa e passava muito tempo sozinha. Até Aisling o comentou, também preocupada.
— Niamh anda tão calada — comentou ela uma tarde enquanto íamos as duas para os campos, por trás da casa, apanhar chicória para fermentar. Nalgumas casas era considerado pouco apropriado as filhas dos lordes fazerem trabalhos tão baixos, sendo esse trabalho deixado para os que serviam a família. Nunca fora assim em Sevenwaters, pelo menos que eu me lembrasse. Aqui, toda a gente trabalhava. Era verdade que Janis e as suas mulheres faziam as tarefas mais pesadas, erguendo o enorme pote de ferro, lavando o chão e matando galinhas. Mas tanto Niamh, como eu, tínhamos a nossa rotina diária, as nossas tarefas sazonais e sabíamos executá-las na perfeição. Nisto seguíamos o exemplo dos nossos pais, pois Sorcha passava o dia todo entre a ervanária e a aldeia, tratando dos doentes e o meu pai, que em tempos fora o senhor de Harrowfield, não mostrava qualquer relutância em pegar no arado, se necessário fosse. Niamh e eu daríamos boas esposas, bem capazes de governar a parte doméstica das casas dos nossos maridos. Afinal de contas, como se pode ser uma boa patroa, se não percebermos como fazer o trabalho do nosso pessoal? Como Niamh conseguiu adquirir tal capacidade, não sei, visto que ela nunca se dedicou muito tempo a uma tarefa. Mas ela era uma rapariga esperta e se se esquecesse de qualquer coisa, não tinha qualquer problema em seduzir Janis, eu ou qualquer outra pessoa para a ajudar.
No entanto, ela não viera conosco para apanhar a chicória. Aisling escolhia-a cuidadosamente, parando de vez em quando para prender os revoltos e brilhantes caracóis, que se soltavam. Os dias estavam mais quentes e ela já tinha algumas sardas no nariz.
— Assegura-te de que deixas as suficientes para que criem semente — avisei eu.
— Sim, mãe — troçou Aisling, enquanto acrescentava mais uns rebentos dourados aos que já tinha no cesto. Estava sempre pronta a ajudar em tais tarefas. Talvez pensasse que se estava a preparar para ser a mulher certa para Sean. Podia ter-lhe dito que isso não tinha grande importância para Sean. O meu irmão já decidira. — Mas, falando a sério, Liadan, achas que Niamh está bem? Pergunto-me se... bem, se terá alguma coisa a ver com Eamonn.
— Eamonn? — perguntei, espantada.
— Bem — disse Aisling pensativamente — já passou algum tempo e nenhum de nós sabe o que se passa. Não sei bem como estão as coisas entre ambos, mas suponho que é possível que esteja preocupada. Eu sei que estou.
Abracei-a carinhosamente.
— Tenho a certeza de que não precisas de te preocupar. Se há alguém que sabe como cuidar de si, esse alguém é Eamonn. Por estes dias veremos o teu irmão cavalgando até à nossa porta, grande como sempre e, sem dúvida, vitorioso. — E aposto uma moeda de prata contra um fuso, disse a mim mesma, em como não é ele que preocupa a minha irmã. Duvido muito que ela tenha pensado nele, um minuto sequer, desde que ele partiu. Ele deve ter estado mais no meu pensamento do que no dela.
Acabamos a nossa colheita e fizemos a infusão para o vinho da Primavera com mel e jasmim, para contrabalançar a acidez da chicória e pusemo-la a repousar, às escuras, e continuava a não haver sinais de Niamh. Aisling e eu subimos as escadas, fomos lavar as mãos e a cara, penteámo-nos, fizemos tranças uma à outra e despimos os nossos ásperos aventais de trabalho. Eram quase horas da ceia e lá fora o crepúsculo, frio, começava a espalhar-se pelo céu, tornando-o violeta e cinzento-desmaiado.
Finalmente, vi-a da minha estreita janela, atravessando o campo a correr, vinda da orla da floresta, com fugidios olhares para a direita e para a esquerda, tentando ver se alguns olhos curiosos a espiavam. Desapareceu da minha vista. Não muito depois, lá estava ela à porta, ofegante, segurando ainda as saias com uma mão e as faces extremamente coradas. Olhei para ela, assim como Aisling e nenhuma de nós proferiu uma palavra.
— Ainda bem que não estou atrasada. — Dirigiu-se de imediato à arca de carvalho, levantou a tampa e remexeu tudo à procura de um vestido lavado. Depois de encontrar o que queria, começou a desapertar o que trazia vestido e despiu-o, seguido da combinação, sem pedir licença a ninguém. Aisling dirigiu-se tacitamente até à janela e olhou para o exterior; eu fui buscar uma bacia de água e uma escova de cabelo para a minha irmã, enquanto ela se metia dentro da roupa lavada e enfiava o vestido pela cabeça. Voltou-se de costas e eu comecei a apertar-lhe os muitos e pequenos colchetes. Ela ainda arfava, o que não tornava a minha tarefa fácil.
— Ela já está, de novo, apresentável, Aisling — disse eu secamente. — Talvez tu possas dar aqui uma ajuda com a escova de cabelo. Devem ser quase horas da ceia. — Aisling era hábil com as mãos e era capaz de conseguir melhores resultados com os caracóis selvagens, despenteados, da minha irmã, no pouco tempo que nos restava. Ela começou a manejar a escova com penteadelas calmas e certas.
— Onde diabo estiveste, Niamh? — perguntou ela, espantada. — Há palha e folhas nos teus cabelos. E o que são estas pequenas flores azuis?
Continuou a escovar-lhe o cabelo, de rosto tão inocente como sempre.
— Sentimos a tua falta esta tarde — disse eu sem alterar a voz, continuando a apertar-lhe o vestido. — Fizemos o vinho da Primavera sem ti.
— Isso é uma crítica? — perguntou Niamh, agitando-se para que a saia caísse e estremecendo quando a escova de cabelo se prendeu no cabelo emaranhado.
— Foi só uma afirmação, não uma pergunta — disse eu. — Duvido que a tua ausência tivesse sido notada por quem quer que fosse, a não ser por Aisling e por mim. E fizemos tudo bem sem ti. Por isso, não precisas de te sentir culpada.
Ela olhou para mim de frente, mas não se abriria, pelo menos com Aisling presente.
Esta só via o que as pessoas tinham de bom e não fazia ideia do que era o secretismo, ou o subterfúgio. Era tão inocente como um cordeiro, apesar de a comparação ser um pouco injusta. Por muito simples que fosse, não era estúpida.
Enquanto estávamos a cear nessa noite, com toda a família, senti de novo aquele mal-estar. A nossa refeição foi simples. Como a minha mãe nunca comia carne, a nossa alimentação era muito simples, baseando-se, principalmente, nos cereais e legumes cultivados nas nossas terras. Janis tinha imensas receitas de sopas saborosas, pão excelente e isso bastava-nos. Os homens alimentavam-se com uma ou duas aves assadas e um carneiro era abatido de tempos a tempos, pois eles trabalhavam arduamente, quer fosse no campo de batalha ou na labuta da herdade e dos estábulos e nunca ficariam satisfeitos com uma refeição de abóbora, feijões e pão de centeio. Naquela noite fiquei satisfeita por ver que a minha mãe estava a conseguir comer um pouco de sopa e um pedaço ou outro de pão de aveia.
Emagrecera tanto que, se quisesse, o vento norte conseguiria arrebatá-la. Nunca nos fora fácil persuadi-la a comer. Enquanto a observava, senti os olhos de Lubdan pousados em mim. Olhei para ele de relance e afastei rapidamente os olhos, pois não suportei ver a sua expressão. Aquele olhar falava num longo adeus, se bem que ainda não tivesse chegado a hora. Eu não tinha forças para aquilo. Não queria pensar. Mais tarde.
Niamh estava sentada, calada que nem um rato, comendo a sua sopa de olhos em baixo. Não tinha um único cabelo fora do sítio. O rubor comprometedor desaparecera. A sua pele estava suavemente dourada à luz das lamparinas. Sean estava sentado na sua frente, com Aisling ao lado e segredavam um ao outro de mãos dadas por baixo da mesa. Nessa noite, após a ceia, não houve histórias. Em vez disso, sob as instruções de Liam, a família retirou-se para uma pequena sala, onde se podia ter alguma privacidade e o pessoal da casa, homens e mulheres, ficou à lareira da cozinha, cantando e bebendo cerveja.
— Tiveste notícias — disse o meu pai mal nos sentamos. Servi vinho da bilha que estava em cima da mesa, primeiro a minha mãe, depois o meu pai, o meu tio, Sean e, finalmente, as duas outras raparigas.
— Obrigado, Liadan. — Liam acenou com a cabeça, aprovadoramente. — Tenho, realmente, notícias, que calei até agora porque Aisling devia ser a primeira a ouvi-las. Boas notícias, minha filha — acrescentou ele abruptamente, enquanto Aisling, assustada, estremecia, receando o pior. — O teu irmão está bem e virá buscar-te antes de Beltane. Por agora, a ameaça acabou.
— E o inimigo desconhecido? — perguntou Sean ansiosamente. —Que notícias há da batalha?
Liam franziu o sobrolho.
— Muito poucas. Houve algumas perdas. O homem que nos trouxe a mensagem sabia pouco, tendo-a recebido de outro. Sei que Eamonn recuperou de novo as suas fronteiras, mas exatamente como, ou contra quem, parece estar ainda envolto em mistério. Temos que esperar pelo seu regresso. Eu também estou ansioso por saber mais. Isto pode influenciar todo o nosso plano de ação em relação aos Bretões. Seria uma loucura esperar uma vitória numa batalha naval contra os Nórdicos.
— É verdade — disse Sean. — Eu nem sequer me aventuraria, a não ser que tivesse a perícia deles do meu lado. Mas os Nórdicos não têm qualquer interesse nas nossas Ilhas; se precisassem delas como porto seguro já há muito as teriam tomado aos Bretões. As Ilhas são demasiado áridas para cultivo, demasiado remotas para servirem de colônia, um território há muito renegado por todos, exceto pelos Anciãos. Os Bretões só as mantêm como trampolim para as nossas terras.
— E para vos picar — acrescentou Lubdan em voz baixa. — Ouvi dizer, em tempos, que era uma maneira de levar os homens de Erin a ripostar. Começar uma luta roubando o que lhes está mais próximo do coração: os seus cavalos ou as suas mulheres. Começar uma guerra, levando-lhes o que lhes está mais próximo do espírito: a sua herança; os seus mistérios. Talvez seja essa a única razão.
— Na verdade, os seus esforços para estabelecerem uma base terrestre nesta costa não têm sido grandes — disse Liam. — Tal como nós, a sua capacidade de guerra no mar é nula. E, no entanto, agarram-se a estas Ilhas há três gerações, ou mais. Aliados a uma armada forte e com a habilidade dos Noruegueses de se servirem dela, sabe-se lá o que farão.
— Essa aliança é muito pouco provável. — Sean coçou a cabeça pensativamente. — Os bretões da costa ocidental não têm razão para confiar nos Nórdicos. Sofreram perdas ainda maiores do que as nossas com as incursões vickings. Durante dezenas de anos testemunharam a selvajaria desses invasores. Seria, sem dúvida, uma aliança profana.
— Se fosse o nosso velho inimigo Richard de Northwoods a comandar — disse Liam de sobrolho carregado — os Bretões seriam capazes de tudo.
— Devíamos esperar — interrompeu a minha mãe com tato. —Eamonn dir-nos-á mais quando regressar. Ainda bem que sorris de novo, minha filha acrescentou ela, olhando para Aisling.
— A tua preocupação para com o teu irmão só te fica bem — disse Liam. — O rapaz é um verdadeiro chefe, não há dúvida. Espero que as suas perdas não tenham sido grandes. E agora tenho outra notícia. Uma que te vai interessar. Niamh.
— Hum...? O que é? — Estivera ausente, em profundos pensamentos.
— Uma carta — disse o meu tio com ar grave. — De um homem que nunca conheci, mas de quem já ouvi falar muito. Deves conhecê-lo, Lubdan. O seu nome é Fionn, do clã Uí Néill, um ramo que se instalou no noroeste. Estão muito ligados ao Rei Supremo de Tara. Mas os dois ramos dessa família não morrem de amores um pelo outro. Fionn é o filho mais velho do chefe do clã, em Tirconnell. Um homem de grande influência e fortuna considerável.
— Sim, já ouvi falar dele — disse o meu pai. — É muito considerado. Não é nada agradável, estar entre os dois tronos de Uí Néill. Estão todos sequiosos de poder.
— Isso torna tudo ainda mais interessante — disse o meu tio. —Este Fionn e o seu pai querem aliar-se a Sevenwaters. Tem havido contatos para que isso aconteça.
— É essa a tua maneira de nos dizeres que ele quer casar com uma das raparigas desta casa? — A minha mãe tinha uma certa maneira de chamar a atenção do irmão quando ele era demasiado formal. — Ele pediu a mão de alguma delas?
— Pediu. A carta diz que ele ouviu dizer que há uma rapariga de beleza excepcional e de grandes dotes de dona de casa em Sevenwaters, que ele procura uma mulher e que acha que o seu pai veria essa aliança com benefícios para ambas as partes. Faz uma referência velada à nossa guerra com os bretões de Northwoods, salientando que as forças que tem à sua disposição estão convenientemente localizadas perto de nós. Salienta, também, a posição estratégica de Sevenwaters em relação à sua família mais a sul, se se sentisse ameaçado por esse lado. Para uma carta tão curta, diz muito.
— Que tipo de homem é esse Fionn? — intrometeu-se Aisling ousadamente. — É novo, ou velho? Feio ou bem constituído?
— Deve ser de meia-idade — disse Liam. — trinta anos, talvez. Um guerreiro. Não sei qual é o seu aspecto físico.
— Trinta anos? — Aisling sentiu-se chocada por uma de nós poder vir a casar-se com um homem tão velho.
Sean sorriu, trocista.
— Uma rapariga, de beleza excepcional — murmurou. — Deve ser a Niamh. — Olhou para mim de relance, de sobrancelhas erguidas e eu fiz-lhe uma careta.
— O pedido deve ser para Niamh — concordou Liam, fazendo de conta que não se apercebera do meu gesto. — O que dizes, sobrinha?
— Eu... — Niamh parecia incapaz de proferir uma palavra que fosse. O que era muito pouco usual. Repentinamente ficou extremamente pálida. — Eu... — E, no entanto, não devia ter sido um grande choque. Aos 17 anos, era surpreendente que aquele fosse o primeiro pedido formal que ela recebia.
— Isto é demasiado para uma rapariga. Demasiado repentino, Liam — disse a minha mãe. — Niamh precisa de pensar e nós também. Talvez eu lhe possa ler esta carta em privado, se não te opuseres.
— De modo algum — disse Liam.
— Temos de discutir este assunto. — O meu pai mantivera-se calado, mas o seu tom dizia, claramente, que ninguém ia tomar decisões por ele. — Esse Fionn tenciona visitar-nos pessoalmente, ou teremos de pesar as suas qualidades unicamente pela sua carta?
Era em ocasiões como aquela que nos lembrávamos quem o meu pai era na realidade e de onde vinha.
— Primeiro, ele quer saber se estamos de acordo. Se a resposta for favorável, ele virá cá antes do meio do Verão, para se apresentar e gostaria de se casar sem demora, se estivermos de acordo.
— Não há pressa — disse Lubdan calmamente. — Tais assuntos são delicados e devem ser ponderados. O que a princípio parece ser a melhor escolha pode provar não o ser no futuro.
— Mesmo assim — disse Liam — a tua filha já tem quase 18 anos. Já podia ter casado há dois ou três Verões atrás. É preciso eu lembrar-te que com a idade dela Sorcha já era casada e mãe de três filhos? E um pedido destes, vindo de um chefe de tal importância, é raro.
Niamh levantou-se abruptamente e eu pude ver que ela estivera a ouvir e que tremia da cabeça aos pés.
— Importam-se de parar de falar de mim como se eu fosse uma... uma vaca premiada que querem vender com lucro? — disse ela com voz trêmula. — Eu não caso com esse Uí Néill, não posso. É... é assim. Não pode ser. Por que não lhe perguntam se ele quer Liadan, em vez de mim? É a melhor oferta que ela alguma vez há de ter. E agora, se não se importam... — E dirigiu-se para a porta. Pude ver que as lágrimas lhe começavam a rolar pelas faces enquanto caminhava desajeitadamente ao longo do salão, deixando a família num perplexo silêncio.
Ela não falava comigo. Não falava com a mãe. Nem sequer falava com Lubdan, que era o melhor ouvinte que havia. E evitava, também, Liam. As coisas começaram a ficar um pouco tensas à medida que os dias iam passando e a carta de Fionn continuava sem resposta. Não havia sinais de compromisso e o meu tio começou a sentir-se pouco à vontade. Todos reconheciam que a reação de Niamh fora além de todas as expectativas (que eram de choque mas também de surpresa agradável, seguindo-se um espetáculo de tímida relutância e eventualmente uma aceitação, com as faces enrubescidas). O que não compreendiam era porquê. A minha irmã já era, como Liam apontara, bastante velha para continuar solteira e, ainda por cima, sendo tão bela. Por que não saltara de alegria perante tal oferta? Uí Néill! Um futuro chefe de guerra! Dizia-se que era Eamonn que ela queria, na verdade e que esperava o seu regresso. Podia ter-lhes dito que não era assim, mas mantive-me calada. Tinha uma idéia do que lhe ia na cabeça. Suspeitava onde ela fora, naqueles dias em que desaparecia do nascer ao pôr do Sol. Mas os pensamentos da minha irmã eram impenetráveis; só podia tentar adivinhar a verdade e esperar, fervorosamente, que as minhas suspeitas fossem infundadas. Tentei falar com ela, mas não consegui nada. A princípio fui amável e diplomata, porque ela se fartou de chorar deitada na cama, olhando para o teto ou para a janela, com as faces cheias de lágrimas banhadas pelo luar, olhando para a floresta. Quando vi que a gentileza não fazia efeito passei a ser mais direta.
— Não creio que viesses a ser uma boa druida, Niamh — disse-lhe eu uma noite em que estávamos sentadas no nosso quarto com uma vela em cima da arca, entre as nossas duas camas estreitas.
— O quê? — Conseguira chamar-lhe a atenção com aquela frase. —O que é que disseste?
— Ouviste-me bem. Não há cobertores quentes, criados ou vestidos de veludo nos bosques. É uma vida inteira de disciplina, aprendizagem e auto-privação. É uma vida espiritual e não carnal.
— Cala-te! — A sua resposta furiosa disse-me que me aproximara da verdade. — Que sabes tu? Que sabes tu do que quer que seja? A minha irmãzinha sem graça, metida com as suas ervas e poções e as suas tarefazinhas domésticas? Que homem te poderá querer, exceto um fazendeiro de mãos grandes e botas enlameadas? — Atirou-se para cima da cama, tapando o rosto com as mãos e pareceu-me que ela estava a chorar.
Respirei profundamente e contive-me.
— A mãe escolheu um fazendeiro de mãos grandes e botas enlameadas? — perguntei eu suavemente. — Houve muitas mulheres em Sevenwaters que o acharam um bom partido quando ele era novo. Pelo menos, assim o dizem.
Ela não se mexeu nem emitiu qualquer som. Apercebi-me que se sentia profundamente infeliz, o que fizera com que tivesse dito aquelas palavras cruéis.
— Podes falar comigo, Niamh — disse eu. — Tentarei compreender-te. Sabes que esta situação não pode continuar assim. Toda a gente se sente incomodada. Nunca vi a casa tão dividida. Por que não me contas? Talvez te possa ajudar!
Ela levantou a cabeça e olhou para mim. Fiquei chocada com a sua palidez e com as profundas olheiras sob os seus olhos.
— Com que então, agora a culpa é minha? — perguntou ela com a voz estrangulada. — Incomodei toda a gente, não é verdade? Quem é que decidiu casar-me para poderem ganhar uma guerra qualquer? Posso dizer-te que a idéia não foi minha!
— Por vezes, não podemos ter o que queremos — disse eu sem alterar a voz. — Provavelmente, terás de aceitar, por muito difícil que te possa parecer agora. Fionn pode não ser tão mau como tu pensas. Pelo menos, podias encontrar-te com o homem.
— Essa é boa, vinda de ti! Tu serias incapaz de reconhecer um homem a sério só de olhar para ele. Não foste tu que sugeriste Eamonn como escolha possível para mim?
— Eamonn?
— Pareceu-me... possível.
Seguiu-se um longo silêncio. Mantive-me quieta, sentada de pernas cruzadas em cima da cama, na minha simples camisa de noite de linho. Supunha que o que ela dissera de mim era verdade; e perguntei a mim própria, mais uma vez, se o meu pai se teria enganado acerca de Eamonn. Tentei ver-me com os olhos de um homem, mas era muito difícil. Demasiado baixa, demasiado magra. Demasiado pálida, demasiado calada. Podia dizer-se tudo isso acerca de mim. Contudo, não me sentia descontente com o rosto e o corpo que herdara da minha mãe. Sentia-me feliz com o que Niamh desdenhosamente chamava as minhas tarefazinhas caseiras. Não ansiava por aventuras. Um lavrador seria ótimo para mim.
— Por que estás a sorrir? — A minha irmã olhou para mim, do outro lado do quarto, com um ar zangado. A vela tomava a sua sombra imensa e ameaçadora, refletindo-se na parede atrás dela enquanto se levantava, limpando as lágrimas do rosto. O seu rosto deslumbrante ainda ofuscava, apesar de inchado pelo choro.
— Por nada.
— Como é que podes sorrir, Liadan? Não te importas com nada, pois não? Imaginas que eu te ia contar fosse o que fosse? Se tu soubesses, Sean saberia, assim como toda a gente.
— Isso não é justo. Algumas coisas não conto a Sean, assim como ele não me conta a mim.
— Ah sim?
Não respondi e Niamh deitou-se de novo, com o rosto virado para a parede. Quando voltou a falar foi num tom de voz diferente, trêmulo e choroso.
— Liadan? Desculpa.
— Porquê?
— Desculpa ter dito o que disse. Desculpa ter dito que não eras bonita. Foi sem intenção.
Suspirei.
— Não faz mal. — Ela tinha o costume de proferir palavras que magoavam quando estava irritada e de se arrepender mais tarde. Niamh era como um dia de Outono, cheia de surpresas. Chuva e sol, sombra e luz. Até quando as suas palavras eram cruéis era difícil uma pessoa zangar-se com ela, porque não eram intencionais.
— De qualquer modo, não estou à procura de marido — disse-lhe eu. — Por isso, não tem importância.
Ela fungou, cobriu a cabeça com o cobertor e o assunto ficou por ali.
A estação aproximava-se, cada vez mais de Beltane e o trabalho da herdade continuava, com Niamh cada vez mais metida consigo. Havia troca de palavras acesas por trás de portas fechadas. A casa estava totalmente diferente do que era habitual. Quando Eamonn regressou, finalmente, foi recebido com boas-vindas calorosas, porque creio que estávamos todos contentes por termos algo que aliviasse a crescente tensão entre nós. O que ele tinha para nos contar era, na realidade, tão estranho como os rumores tinham sugerido.
Ouvimo-lo na noite da sua chegada, sentados no grande salão depois da ceia. Apesar da estação em que nos encontrávamos, estava frio e Aisling e eu tínhamos ajudado Janis a preparar vinho quente com açúcar. A nossa casa era segura, onde todos eram de confiança, por isso Eamonn contou a sua história abertamente, porque sabia que nos interessávamos pelo que acontecera a ele, a Seamus e à sua força de combate.
Dos 30 da guarnição de Liam, apenas 27 regressaram. As perdas de Eamonn tinham sido superiores, assim como as de Seamus Redbeard. Havia mulheres a chorar em três casas. No entanto, Eamonn regressara vitorioso, mas não como o teria desejado.
Observei-o enquanto contava a sua história, gesticulando de vez em quando para mostrar uma determinada situação, uma madeixa de cabelo castanho caindo-lhe sobre a fronte de quando em quando e que ele puxava para trás com a mão, num gesto automático. Achei que o seu rosto tinha mais rugas do que anteriormente; carregava uma grande responsabilidade sobre os ombros, para um homem tão novo. Não admira que algumas pessoas o achassem um homem sem humor.
— Sabem — disse ele — que perdemos mais homens do que nos podíamos permitir nesta campanha. Posso assegurar-vos que as suas vidas não foram em vão. Estamos a lidar com um inimigo de uma natureza completamente diferente da que conhecemos, os Bretões, os Nórdicos e os chefes hostis da nossa terra. Dos 21 guerreiros que pereceram sob as minhas ordens, nem dois foram mortos pelo mesmo método. Ouviu-se um murmúrio na sala.
— Devem ter ouvido as histórias — continuou Eamonn. — Pode ser que tenham sido espalhadas por eles para aumentar o medo. Mas esses rumores são baseados em fatos, conforme nós próprios descobrimos quando finalmente os enfrentamos.
Contou em seguida a história de um vizinho do norte, com o qual havia uma disputa antiga relacionada com roubo de gado e contra o qual houvera alguns ataques retaliatórios.
— Ele sabia a força que eu tinha. Nunca, no passado, ele teria tentado fazer mais do que afastar algumas cabeças de gado ou provocar um pequeno incêndio demasiado perto das minhas torres de vigia. Ele sabia que não se podia equiparar a mim numa batalha e que qualquer ação que tomasse provocaria uma retaliação rápida e mortal. Mas ele ambiciona possuir uma parcela de terreno que eu tenho, que faz fronteira com as suas terras mais férteis e há muito que planeia adquiri-la. Em tempos, tentou comprar-me essas terras em disputa e eu recusei. Bem, ele encontrou outra maneira de dar uso às suas moedas de prata.
Eamonn bebeu um trago do seu vinho e limpou a boca com a mão. A sua expressão era sombria.
— Começamos a ouvir falar de ataques repentinos efetuados por um inimigo invisível. Não houve danos nas torres de vigia, nem saques às aldeias, ou celeiros incendiados. Apenas mortes. Muito eficientes. Com métodos muito imaginativos. Primeiro, num posto isolado, onde dois homens foram mortos. Depois, uma emboscada mais ousada. Uma força dos meus homens, que patrulhava a margem ocidental dos pântanos, foi totalmente dizimada. Um cenário de pesadelo. Vou poupar as senhoras aos pormenores. — Olhou rapidamente na minha direção, mas desviou o olhar logo a seguir. — Não foram cruéis, não houve torturas. Apenas... extremamente eficientes e... e diferentes. Não havia maneira de sabermos com que gênero de homens estávamos a lidar. Não havia maneira de nos prepararmos. E os meus rendeiros, os meus fazendeiros, viviam sob um terror constante. Pensavam que aqueles criminosos silenciosos eram um fenômeno do Outro Mundo, criaturas que podiam aparecer e desaparecer num abrir e fechar de olhos, uma espécie híbrida de homem e animal, falhos de qualquer sentido do bem ou do mal. — Ele calou-se e creio que os seus olhos viram uma imagem que desejaria apagar da sua mente. — Era de supor — continuou ele finalmente — que no nosso próprio território, apoiados pelos homens de Seamus, não tivéssemos qualquer problema em expulsar qualquer invasor. Os meus homens são disciplinados. Experientes. Conhecem aqueles pântanos como as suas mãos; conhecem todos os carreiros da floresta, todos os lugares de refúgio e todas as armadilhas possíveis. Dividimo-nos em três grupos e tentamos isolar o inimigo numa única área específica, onde acreditávamos que as suas forças estavam concentradas.
A princípio, fomos bem sucedidos. Capturamos muitos homens do nosso vizinho do norte e pensávamos que a ameaça terminara. No entanto, foi estranho; os nossos prisioneiros pareciam nervosos, olhando por cima dos ombros. Suponho que soube, mesmo antes disso, que os ataques não eram efetuados por um inimigo único. A prata do meu vizinho comprara-lhe uma força que ele sozinho nunca teria conseguido reunir. Uma força tal que nenhum de nós, aqui, tem à sua disposição.
— Quem são eles? — perguntou Sean, que bebia todas as suas palavras. Senti a sua excitação; aquilo era um desafio que ele teria desejado para si próprio.
— Só os vi uma única vez — disse Eamonn lentamente. Cavalgávamos através da área mais traiçoeira dos pântanos, de regresso ao nosso acampamento com os corpos dos nossos mortos. Não é possível organizar um ataque naquele lugar. Nunca pensei que fosse possível. Um movimento em falso e a terra treme, abana e engole, e tudo o que se ouve é o borbulhar da água quando suga um homem. É bastante seguro, se se souber o caminho. Éramos dez — continuou ele — cavalgando uns atrás dos outros porque o caminho é estreito. Transportávamos os corpos dos nossos mortos atravessados nas selas. Era quase noite, mas o nevoeiro naqueles lugares faz com que o dia pareça o crepúsculo e o crepúsculo noite. Os cavalos conheciam o caminho e não precisavam ser guiados. Mantínhamo-nos calados para continuarmos vigilantes, mesmo naqueles lugares ermos. Tenho bons ouvidos e olhos penetrantes. Os meus homens tinham sido escolhidos a dedo. Mas não dei por nada. Nenhum de nós deu por nada. O mínimo pio de uma ave dos pântanos; o coaxar de uma rã. Um pequeno barulho, por mais pequeno que fosse, um qualquer sinal; e eles saltaram-nos em cima. Vindos do nada, saltaram sobre nós, tirando os homens dos cavalos e matando-os com precisão e em silêncio, um com uma faca, outro com uma corda e outro com um polegar hábil no pescoço. Quanto a mim, o castigo fora especialmente selecionado. Não conseguia ver o homem que me segurava por trás, apesar de toda a força que fiz para me libertar. Senti a morte por trás de mim. Mas não tinha de ser. Em vez disso, fiquei preso, observando e escutando, enquanto os meus homens morriam à minha frente e nas minhas costas, um após outro e os seus cavalos, em pânico, caíam do carreiro e eram engolidos pelas águas do pântano. A minha própria montada ficou firme e eles deixaram-na. Foi-me permitido regressar a casa. Testemunhei, impotente, a chacina dos meus homens e fui libertado.
— Mas porquê? — murmurou Sean.
— Até hoje, ainda não percebi — disse Eamonn sombriamente. — O homem que me segurava tinha muita força, tinha a faca encostada à minha garganta e, com as mãos, impedia-me de me mexer. Naquela espécie de combate possuía uma habilidade que nunca supus possível. Estava a perder a esperança de me libertar. O meu coração sangrava à medida que via o meu último homem morrer. E... e quase pensei que os aimorés eram verdadeiros quando o nevoeiro levantou e vi, aqui e ali, aqueles que matavam com desprendimento total.
— Eles são, na verdade, meio homens, meio animais? — perguntou Aisling hesitantemente, com receio, sem dúvida, de parecer pateta. Mas ninguém se riu.
— Eram homens — disse Eamonn num tom que dava a entender que tinha algumas dúvidas. — Mas eles usavam capacetes, ou máscaras, que enganavam. Pareciam águias, ou veados; alguns tinham marcas na pele, por cima das sobrancelhas, ou no queixo, que sugeriam uma plumagem, ou o focinho de uma criatura selvagem. Alguns tinham elmos adornados com penas, outros capas de pele de lobo. Os seus olhos... os seus olhos eram vazios. Tão vazios como a morte. Como... como seres sem sentimentos humanos.
— E o homem que te segurava? — perguntou Liam. — Que tipo de homem era?
— Evasivo. Fez tudo para que eu não lhe visse o rosto. Mas eu ouvi a sua voz e jamais a esquecerei; e quando, finalmente, me libertou, vi-lhe o braço quando retirou a faca da minha garganta. Um braço adornado, do ombro às pontas dos dedos, com uma delicada teia de penas, espirais e elos entrelaçados, um complicado desenho, gravado profundamente na pele. Por isso, reconhecerei de novo este assassino quando vingar a morte dos meus homens.
— O que é que ele te disse? — Não consegui manter-me calada, pois aquela era uma história fascinante, se bem que terrível.
— A sua voz era... muito fria. Muito calma. Naquele local de morte, falava como se estivesse a discutir uma transação qualquer. Foi só por um instante. Largou-me e enquanto eu respirava fundo e me virava para o perseguir, ele desapareceu no nevoeiro e disse-me: Aprende, Eamonn. Aprende a lição. Ainda não acabei contigo.
— E eu fiquei só. Só, exceto o meu cavalo trêmulo e os cadáveres dos meus homens.
— Ainda acreditas que são... criaturas do Outro Mundo? —perguntou a minha mãe.
Havia uma hesitação na sua voz, que me preocupou.
— São homens. — O tom de voz de Eamonn era controlado, mas eu pude ouvir a raiva que ele continha. — Homens de uma perícia terrível em combate; perícia que pode ser a inveja de qualquer guerreiro. Apesar da força dos nossos homens, não matamos nem capturamos nenhum deles. Mas não eram imortais. Isso descobri eu outra vez quando tive notícias do seu chefe.
— Mas não disseste que nunca o tinhas visto antes? — perguntou Liam.
— Visto, não. Ele enviou-me uma mensagem. Foi algum tempo depois e não voltamos a encontrar nenhum deles. Os teus reforços tinham chegado e, juntos, escorraçamos o resto da pequena força do meu vizinho e corremos com eles. Os nossos mortos foram honrados e sepultados. As suas viúvas foram compensadas. Os ataques cessaram. A ameaça parecia ter terminado, apesar de as pessoas ainda tremerem de medo ao lembrarem-se do que tinha acontecido. O povo tinha dado um nome àquele assassino. Apelidavam-no de Homem Pintado. Pensei que o seu bando abandonara o meu território. Então, chegou-me uma mensagem.
— Que mensagem?
— Não eram simples palavras de desafio; nada de tão simples daquele pagão. A mensagem era... talvez eu não deva dizer o seu conteúdo aqui. Não é apropriado para os ouvidos das senhoras.
— Talvez seja melhor dizeres — disse eu sem rodeios. — De qualquer modo vamos sabê-lo mais tarde, de uma maneira ou de outra.
Ele olhou de novo para mim.
— Tens razão, claro, Liadan. Mas é... não é agradável. Nada nesta história o é. Recebi... recebi uma bolsa de cabedal que foi deixada num sítio onde os meus homens não podiam deixar de a encontrar. Dentro dessa bolsa estava uma mão. Uma mão cortada com eficácia.
Seguiu-se um silêncio total.
— Pelos anéis nos dedos, soubemos que foi cortada a um dos nossos. Interpreto este gesto como um desafio. Ele diz-me que é forte. Já sei que ele é arrogante. Os seus serviços e os dos homens que ele chefia estão agora à venda nestas paragens. Temos de pensar neles quando planearmos qualquer campanha.
Ficamos temporariamente atordoados. Finalmente, o meu pai disse:
— Achas que esse sujeito se atreveria a oferecer-se a qualquer um de nós depois de ter feito o que fez? A troco de dinheiro?
— Ele sabe quanto vale — disse Liam secamente. — E tem razão. Há muitos chefes cujos escrúpulos não os impedem de aceitar semelhante oferta, tenham eles os recursos para financiar tal oferta. Suponho que esses serviços devem ser caros.
— Ninguém deve levar isso a sério — disse a minha mãe. — Quem teria confiança em tal homem? Parece que ele troca de aliados como quem troca de camisa.
— Um mercenário não tem aliados — disse Eamonn. — Pertence ao homem com a bolsa mais recheada.
— Em todo o caso — Sean falou lentamente, tentando decifrar algo — gostaria de saber se a habilidade deles no mar é equivalente à que demonstraram na emboscada. Tal força, usada conjuntamente com uma bem disciplinada e maior tropa de guerreiros, daria vantagem a qualquer um. Sabes quantos homens ele tem?
— Não estás a pensar, com certeza, em empregar uma ralé como esta? — perguntou Liam, chocado.
— Ralé? Pelo que Eamonn contou, aquilo não é um bando desregrado de imbecis. Eles parecem atacar com o máximo controlo e planeiam os ataques com grande inteligência. — Sean continuava a pensar, concentrado.
— Eles agem com esperteza, mas são piores do que um bando de fianna, porque levam a cabo as missões sem orgulho e sem brio, pensando apenas no pagamento — disse Eamonn. — Este homem julgou-me mal. Quando ele morrer, será às minhas mãos. Pagará com sangue se puser os pés nas minhas terras ou tocar no que é meu. Jurei que assim seria. E certificar-me-ei de que esta minha intenção lhe chegará aos ouvidos. A sua vida não vale nada, se mais alguma vez se atravessar no meu caminho.
Neste momento, Sean achou por bem ficar calado, apesar de eu sentir a excitação que ele tentava reprimir. Eamonn pegou noutra taça de vinho e em breve era rodeado por pessoas que lhe faziam perguntas, ansiosas. Pensei que talvez fosse a última coisa que ele desejava naquele momento, quando a sua história lhe trazia à memória, de novo e persistentemente, as suas perdas. Mas eu não era sua guardiã.
Suponho que aquela noite foi a primeira vez em que vi Eamonn perto de admitir que não tinha a situação controlada. Se alguma qualidade excepcional ele tinha, era a da autoridade e logo a seguir vinha a da entrega total àquilo em que acreditava. Não admirava, portanto, que a precisão e audácia do ataque do Homem Pintado e a arrogância do que se seguiu o tenham perturbado tanto. Era suposto ele escoltar a sua irmã a casa no dia seguinte, porque havia muitos assuntos a tratar lá. Fiquei surpreendida, portanto, quando ele foi ao meu jardim, logo depois de eu ter começado a trabalhar, como se o nosso encontro anterior tivesse sido, simplesmente, adiado.
— Bom dia, Liadan — disse ele polidamente.
— Bom dia — respondi e continuei a cortar as flores secas da minha velha roseira brava. Se a podasse agora, dar-me-ia muitas mais flores à medida que o Verão avançasse. Mais tarde, as bagas poderiam ser usadas para um poderoso tónico de múltiplas aplicações, assim como para uma saborosa geléia.
— Estás ocupada. Não quero interromper o teu trabalho. Mas vamos partir e eu gostava de falar contigo.
Arrisquei um olhar na sua direção. Na verdade estava bastante pálido e extremamente sério. Aquela campanha envelhecera-o anos.
— Suponho que sabes, mais ou menos, o que quero discutir contigo.
— Bem, sim — disse eu, percebendo que não tinha outro remédio senão deixar de fingir que estava a trabalhar e ouvi-lo. Seria útil se eu tivesse uma idéia de como lhe ia responder. — Queres sentar-te aqui por uns instantes?
Fomos até ao banco de pedra e eu sentei-me, de cesto em cima dos joelhos e a faca de podar ainda na mão, mas Eamonn não se sentou. Em vez disso começou a andar de um lado para o outro, as mãos apertadas uma contra a outra. Como pode ele estar nervoso depois daquilo por que passou? Mas estava nervoso, não havia a menor dúvida.
— Tu ouviste a minha história ontem à noite — disse ele. — Aquelas perdas deram-me muito que pensar e sobre muitas coisas. Morte; vingança; sangue. Coisas sombrias. Não sabia que as tinha dentro de mim, que era capaz de odiar assim. Não é um sentimento muito confortável.
— Aquele homem fez-te muito mal, não há dúvida — disse eu lentamente. — Mas talvez devesses atirá-lo para trás das costas e continuar. O ódio pode consumir-te, se o deixares. Pode tomar conta de toda a tua vida.
— Farei com que isso não aconteça — disse ele, virando-se para me enfrentar. — O meu pai fez inimigos terríveis daqueles que deviam ter sido seus aliados; e provocou a sua própria destruição. Eu não desejo ser consumido assim. Mas não posso, simplesmente, esquecer. Esperava que... mas talvez eu deva começar de novo.
Olhei para cima, para ele.
— Preciso de me casar — disse ele em tom neutro. — Depois disto, ainda parece mais importante. É... é uma espécie de equilíbrio para estas coisas sombrias. Estou consciente de que, ao regressar a casa, vou para o pé de uma lareira fria e salas vazias. Quero um filho que assegure o futuro do meu nome. O meu domínio é significativo, como sabes, as minhas herdades livres de perigo, salvo este arrogante e o seu bando de degoladores, dos quais tratarei em breve. Tenho muito para oferecer. Há... há muito tempo que te admiro, mesmo quando eras ainda muito nova, nova demais para poderes tomar parte em semelhante aliança. A tua diligência, a tua aplicação ao trabalho, a tua gentileza, a tua lealdade à tua família. Ligaríamos bem. E não é muito longe; podias vê-la com freqüência. — Chocou-me ao aproximar-se mais de mim e ao cair de joelhos à minha frente. — Queres casar comigo, Liadan?
Como proposta, era... uma espécie de proposta de negócios. Supunha que ele tinha dito o que devia ser dito. Mas senti que faltara qualquer coisa. Talvez eu tivesse ouvido demasiadas histórias.
— Vou-te fazer uma pergunta — disse eu calmamente. — Quando responderes, lembra-te que eu não sou a espécie de mulher que procura lisonja, ou falsos cumprimentos. Quero que me digas a verdade, sempre.
— Terás a verdade.
— Diz-me — disse eu — por que não pediste, em vez de mim, a minha irmã Niamh? Toda a gente estava à espera disso.
Eamonn segurou-me na mão e levou-a aos lábios.
— A tua irmã é, na verdade, muito bonita — disse ele com um esboço de sorriso. — Um homem bem pode sonhar com uma mulher assim. Mas gostaria de ver, na minha almofada, o teu rosto, ao acordar.
Senti-me corar e fiquei sem palavras.
— Desculpa-me se te ofendi — disse ele precipitadamente, mas continuando a segurar-me na mão.
— Oh não, de modo nenhum — consegui eu dizer. — Só... estou surpreendida.
— Falei com o teu pai — disse ele. — Ele não põe objeções ao nosso casamento. Mas disse-me que a decisão é tua. Ele concede-te muita liberdade.
— Desaprovas isso?
— Depende da tua resposta.
Respirei fundo, procurando alguma inspiração.
— Se fosse como nas velhas histórias — disse eu lentamente —pedir-te-ia que realizasses três tarefas, ou que matasses três monstros por mim. Mas não preciso de te testar dessa maneira. No entanto, reconheço que seria uma prova altamente... apropriada.
Eamonn largou a minha mão e olhou para o chão a meus pés, onde continuava ajoelhado.
— Estou a ouvir palavras por dizer — disse ele, franzindo o sobrolho. — Uma certa reserva. Devias dizer-me.
— É muito cedo — disse eu sem cerimónia. — Não me sinto capaz de responder. Ainda não.
— Por que não? Tens 16 anos, és uma mulher. Eu sei o que quero. Tu sabes o que te posso oferecer. Por que não respondes?
Respirei fundo.
— Sabes que a minha mãe esta muito doente. Tão doente que não vai recuperar.
Eamonn olhou para mim fixamente e então sentou-se a meu lado no banco. A tensão entre os dois aligeirou-se um pouco.
— Tenho visto como ela anda pálida e tenho pensado nisso — disse ele, gentilmente. — Não sabia que era assim tão sério. Lamento, Liadan.
— Nós não falamos disso — disse eu. — Nem todos estão conscientes de que contamos cada estação, cada ciclo da Lua, cada dia que passa. É por essa razão que não me comprometo contigo, ou seja com quem for.
— Há outro homem? — A sua voz tornou-se, subitamente, ameaçadora.
— Não, Eamonn — respondi eu, rudemente. — Não precisas de te preocupar com qualquer concorrência. Estou consciente da sorte que tenho por receber uma proposta como a tua.
— Subestimas-te, como sempre.
O silêncio caiu de novo entre os dois. Eamonn olhou para as suas mãos, ao mesmo tempo que franzia o sobrolho.
— Quanto tempo tenho de esperar pela tua resposta? — perguntou ele por fim.
Era-me penoso responder, pois, ao fazê-lo, contava os dias de vida de Sorcha.
— Em atenção à minha mãe, não tomarei qualquer decisão antes de Beltane, no ano que vem — disse eu. — É o suficiente, penso. Nessa altura, dou-te uma resposta.
— É muito tempo — disse ele. — Como pode um homem esperar tanto?
— Eu tenho que estar aqui, Eamonn. Eles vão precisar de mim cada vez mais. Além disso, não sei o que sente o meu coração. Lamento se isso te magoa, mas quero ser honesta contigo, dizendo-te a verdade pura.
— Um ano inteiro — disse ele. — Esperas muito da minha parte.
— É muito tempo. Mas eu não quero que fiques preso a mim durante estas quatro estações. Não tens qualquer obrigação para comigo. Se encontrares alguém durante este período de tempo, se mudares de idéias, és livre de te desligares, de te casares, de fazeres o que te apetecer.
— Não há nenhuma hipótese de que isso possa acontecer — disse ele com uma certeza absoluta. — Nenhuma.
Nesse momento senti uma sombra passar por cima de mim e senti frio. Se foi da intensidade da sua voz, ou do seu olhar, ou de outra coisa qualquer, não sei, mas, por um instante, aquele jardim tranquilo e soalheiro escureceu. Algo, na minha expressão, deve ter mudado.
— O que é? — perguntou ele ansiosamente. — O que se passa?
Abanei a cabeça.
— Nada — disse-lhe. — Não te preocupes. Não é nada.
— Está na hora de me ir embora — disse ele, levantando-se. —Estão à minha espera. Ficaria mais feliz se tivéssemos chegado a um entendimento, a um noivado, talvez, com o casamento adiado até... até tu te sentires pronta. Ou... não gostaria Lady Sorcha de te ver casada, feliz, antes... não gostaria ela de estar na tua festa de casamento?
— Não é assim tão simples, Eamonn. — De repente senti-me terrivelmente cansada. — Não posso concordar com um noivado. Não me quero comprometer. Já te disse que te darei uma resposta e não alterarei essa decisão. Um ano não é assim tanto tempo.
— A mim parece-me uma eternidade. Muita coisa pode mudar num ano.
— Vai-te embora — disse eu. — Aisling está à tua espera. Vai para casa. Resolve os problemas da tua família, faz com que toda a gente se entenda. Eu estarei aqui na véspera do próximo Beltane. Vai para casa, Eamonn.
Pensei que se iria embora sem dizer mais nada, mas ele ficou ali em silêncio, de braços cruzados e cabeça curvada, em profundos pensamentos. E depois disse:
— Será a minha casa quando eu te vir lá à minha espera, à porta, com o meu filho nos braços. Até lá, não. — E foi-se embora, passando o arco na parede, sem um único olhar para trás.
CAPÍTULO TRÊS
A minha mente não ficou muito tempo presa a Eamonn, porque os acontecimentos em breve tomaram conta da nossa casa com uma rapidez tal que quase nos destruíram. Já nos sentíamos infelizes, divididos pela falta de vontade de Niamh em considerar a oferta do seu pretendente e pelo seu total silêncio quanto às razões dessa recusa. Pela ira de Liam e pela frustração do meu pai, na sua incapacidade para fazer a paz entre ambos. A minha mãe sentia-se desolada por ver os homens zangados daquela maneira. Sean tinha saudades de Aisling e irritava-se à mínima coisa. Desesperada, numa tarde quente perto do meio do Verão, fui até à floresta sozinha. Havia um local que nós costumávamos visitar muitas vezes quando éramos crianças, uma profunda lagoa, isolada, orlada de fetos, alimentada por uma queda de água e protegida pela sombra suave de salgueiros-chorões. Os três tínhamos nadado e brincado ali muitas vezes nos dias quentes de Verão, enchendo o ar com os nossos gritos, mergulhos e risos. Agora éramos muito velhos para aquilo, claro. Homens e mulheres, como Eamonn me recordara. Demasiado velhos para nos divertirmos. Mas lembrava-me da erva macia que crescia luxuriante e selvagem perto daquele local, salsa, cerefólio e muito agrião e pensei em fazer uma pequena tarte com ovos e queijo, com que pudesse tentar o apetite cada vez menor da minha mãe. Assim, levei um cesto, atei o meu cabelo e dirigi-me para a floresta, contente por me afastar um pouco da atmosfera carregada de emoção da nossa casa.
O dia estava quente e havia muitas ervas. Colhi-as sem me deter, cantarolando em voz baixa e em breve tinha o cesto cheio. Sentei-me para descansar, encostada a um salgueiro. Os bosques estavam vivos com pequenos sons: o restolhar dos esquilos na vegetação rasteira, a canção de um tordo por cima da minha cabeça e vozes estranhas, subtis sussurros no ar, cujas palavras eu não conseguia perceber. Se havia uma mensagem nelas, dificilmente seria para mim. Deixei-me ficar sentada muito quieta e pensei que talvez as pudesse ver: formas indistintas, etéreas, passando por entre os ramos, um fragmento de véu a esvoaçar, uma asa transparente e frágil, como a de uma libélula, o brilho de uns cabelos com filamentos de ouro e prata. Talvez uma mão delicada, acenando. Um riso, como uma campainha. Pestanejei e olhei de novo. O Sol devia ter estado a brincar comigo, porque já não vi nada. Tinha de voltar para casa, fazer a minha tarte e esperar que a minha família fizesse as pazes.
Estava ali alguém. Entre as sorveiras-bravas, um súbito azul-escuro, desaparecendo tão rapidamente como aparecera. Teria ouvido passos no carreiro macio? Levantei-me, o cesto debaixo do braço e caminhei cuidadosamente. O carreiro descia da elevação na direção da lagoa abrigada, curvando sob as árvores e por entre espessos maciços de arbustos. Não chamei. Não havia maneira de dizer se o que vira era apenas um efeito de luz na folhagem escura ou outra coisa qualquer. Eu aprendera a mover-me nos bosques em silêncio. Era uma necessidade essencial de auto-preservação, dizia o meu pai. Lá estava de novo, mesmo à minha frente, por trás das sorveiras-bravas, uma coisa azul, como que um pedaço de tecido e o vislumbre rápido de uma longa, branca e delicada mão. Desta vez o gesto foi evidente. Vem por aqui, pareceu dizer. Por aqui. Continuei a caminhar cuidadosamente pelo carreiro.
Mais tarde, Niamh nunca acreditou que eu tivesse ido ali sem ser de propósito, para lhe descobrir o segredo. Caminhei cuidadosamente por baixo dos salgueiros, até que avistei a superfície calma das águas da lagoa. Parei, gelada com o choque. Ela ainda não me vira. Nem ele. Apenas tinham olhos um para o outro, mergulhados na água até à cintura, os corpos de ambos espelhados na água sob a copa das árvores, pintalgados pela luz do Sol através das folhas de Verão. Os braços brancos dela rodeavam o pescoço dele; a cabeça castanho-avermelhada dele inclinava-se para beijar o ombro nu dela e as costas dela arquearam-se com uma graça primitiva, respondendo ao toque dos lábios dele. A longa e brilhante cortina de cabelos caiu pelas costas da jovem, fazendo eco com a luz dourada do Sol e revelando que estava nua.
Uma confusão de sentimentos assaltou-me. Choque, sobressalto, um desejo premente de estar noutro lado qualquer, continuando a minha colheita. O saber que tinha, imediatamente, de parar de olhar. A total incapacidade de afastar os olhos.
Porque o que eu estava a ver, se bem que profundamente errado, era, também, extremamente belo. O jogo da luz na água, as sombras nas peles cor de pérola, as sinuosidades dos dois corpos, a maneira como estavam embebidos um no outro era tão maravilhoso como profundamente perturbador. Se era aquilo que eu devia sentir por Eamonn, então tinha feito bem em o fazer esperar. Houve uma altura, quando os braços do jovem druida se moveram ao longo do corpo da minha irmã, a levantaram e puxaram avidamente para ele, em que eu senti que não podia continuar a olhar e recuei silenciosamente para debaixo dos salgueiros, regressando cegamente a casa com a cabeça num torvelinho. Da estranha guia que me levara a descobri-los, nem sinal.
Azar. Má altura. Ou talvez tivesse sido de propósito, mas a primeira pessoa que encontrei foi o meu irmão. E logo a meio caminho de casa, no meio das pastagens, enquanto a minha mente continuava cheia com as imagens daqueles dois corpos jovens abraçados, como se fossem uma única criatura. Talvez estivesse ali a mão das Criaturas Encantadas, ou talvez, como Niamh disse mais tarde, tivesse sido apenas culpa minha, por os ter espiado. Já disse como as coisas funcionavam entre o meu irmão e eu. Quando éramos mais novos, partilhávamos muitas vezes os nossos pensamentos e segredos diretamente, mente com mente, sem necessidade de palavras. Todos os gêmeos são muito chegados, mas a nossa ligação era mais profunda; éramos capazes de chamar um pelo outro instantaneamente, quase como se partilhássemos uma parte dos nossos espíritos, antes até de nos apercebermos do mundo exterior. Mas mais tarde, num acordo sem palavras, concordamos em desligar essa união. Os segredos de um jovem, que corteja a sua primeira amada, são delicados demais para se partilharem com uma irmã. Quanto a mim, não tinha desejo nenhum de lhe falar dos meus medos por Niamh, ou dos meus pressentimentos acerca do futuro. Mas não podia prever aquilo. Porque é assim, para aqueles que são chegados, como Sean e eu. Quando um sente uma grande angústia, ou uma dor, ou uma intensa alegria, esse sentimento transborda com tanta força que o outro é obrigado a partilhá-lo. Não havia maneira de o manter de fora nessas ocasiões, não conseguia interpor um escudo entre a minha mente e a dele. Não consegui bloquear aquela pequena imagem, cristalina, da minha irmã e do seu druida, espelhados na água tranqüila fechados nos braços um do outro. E aquilo que vi e senti, também o meu irmão viu.
— O que é isto? — exclamou Sean, horrorizado. — Isto aconteceu hoje? Agora?
Acenei com a cabeça, miseravelmente.
— Por Dagda, eu mato esse fulano com as minhas próprias mãos! Como se atreve ele a desonrar assim a minha irmã?
Pareceu-me que ele ia desatar a correr pelos bosques, naquele instante, pronto para o castigo.
— Pára. Pára, Sean. Não chames para aqui a cólera. Pode não ser assim tão mau.
Ele segurou-me pelos ombros, ali no meio da pastagem e fez com que o olhasse de frente. Vi-lhe no rosto o reflexo daquilo que lhe ia na mente choque, ira, ultraje.
— Não acredito nisto — resmungou ele. — Como pôde Niamh fazer uma coisa tão estúpida? Não percebe que está a pôr em risco a aliança? Deuses misericordiosos, como pudemos ser tão cegos? Cegos, todos! Vamos, Liadan, vamos para casa para contar a todos.
— Não! Não lhes digas ainda. Pelo menos, deixa-me falar primeiro com Niamh. Vejo... vejo coisas más. Piores do que imaginas. Sean. Sean, pára.
— É muito tarde. Demasiado tarde. — A decisão de Sean estava tomada, ele já não me ouvia. Virou-se na direção da casa, acenando-me para que o seguisse. — Eles têm de saber e já. Talvez ainda possamos salvar alguma coisa desta trapalhada, se nos mantivermos calados. Por que não me disseste? Há quanto tempo sabes?
Enquanto caminhávamos na direção da casa, Sean de rosto crispado em passos largos e eu seguindo relutantemente no seu encalço, parecia-me que transportávamos conosco uma sombra, uma sombra enorme.
— Eu não sabia. Foi há bocado. Eu já suspeitava; mas não a este ponto. Sean. Tens mesmo de lhes dizer?
— Não tenho escolha. Ela tem de casar com Uí Néill. A nossa sorte depende dessa união. Nem me atrevo a pensar no que isto vai fazer à mãe. Como pôde Niamh fazer semelhante coisa? Não faz sentido nenhum.
O meu pai estava fora, trabalhando numa das suas plantações. A minha mãe estava a descansar. Mas Liam estava presente e assim foi ele o primeiro a receber a notícia. Eu estava preparada para uma desaprovação furiosa, colérica. Fiquei totalmente espantada com o modo como o rosto do meu tio se alterou quando Sean lhe contou o que eu vira. A expressão do seu olhar ficou mais do que chocada. Era uma expressão de repulsa, ou de medo? Certamente que não. Liam, com medo?
Quando o meu tio falou, finalmente, ficou claro que ele estava a tentar manter a voz calma, controlada. No entanto, tremia à medida que falava.
— Sean. Liadan. Tenho de vos pedir que me ajudeis. Este assunto não pode sair da família. É da máxima importância. Sean, quero que me tragas aqui Conor. Vai, mas sozinho. Diz-lhe que é urgente, mas não digas nada a mais ninguém. É melhor ires já. Não te descontroles para bem de toda a gente. Liadan, lamento envolver-te, pois estes assuntos não são para os olhos e ouvidos de uma jovem. Mas tu és da família e estás metida nisto, quer queiras, quer não. Graças aos Deuses, Eamonn e a irmã já não se encontram em Sevenwaters. Agora, quero que vás para baixo e esperes por Niamh; mantém-te atenta à entrada do teu jardim até a veres regressar a casa. Depois, trá-la imediatamente à câmara privada. Volto a dizer, não fales com ninguém. A ninguém, mesmo. Vou mandar chamar o teu pai e eu próprio lhe darei a notícia.
— E a mãe? — Não pude deixar de perguntar.
— Ela tem de saber — disse ele, sombriamente. — Mas não já. Deixa-a ter um pouco mais de paz antes de saber.
Esperei por Niamh e enquanto esperava vi Sean afastar-se a cavalo, sob as árvores, em direção ao local onde os druidas moravam, mesmo no coração da floresta. As patas do seu cavalo atiravam poeira para o ar.
Esperei muito tempo, quase até ao crepúsculo. Tinha frio, doía-me a cabeça e sentia um receio que parecia desproporcionado em relação ao problema. Pensara vezes sem conta no problema. Talvez ela o amasse e ele a ela. Pelo menos, parecia. Talvez ele fosse de boas famílias e talvez não tivesse grande importância, fosse ele druida ou não e então recordei a expressão do rosto de Liam e soube que os meus pensamentos eram totalmente infundados. Havia qualquer coisa que eu não entendia.
Era muito difícil dizer a Niamh. Ela vinha radiosa de felicidade, a sua pele brilhava e os seus olhos cintilavam como estrelas. Trazia nos cabelos brilhantes uma grinalda de flores selvagens e os pés apareciam descalços sob o vestido branco.
— Liadan! Que estás aqui a fazer? É quase noite.
— Eles sabem — disse eu abruptamente, enquanto observava o seu rosto a mudar, ao mesmo tempo que a luz lhe desaparecia dos olhos, tão rapidamente como quando se apaga uma vela. — Eu... eu estava a apanhar ervas, vi-te e...
— Tu contaste? Tu contaste a Sean? Liadan, como pudeste fazer tal coisa? — Agarrou-me nos braços, enterrando os dedos, até eu arfar de dor. — Estragaste tudo! Tudo! Odeio-te!
— Niamh. Pára. Eu não disse nada, juro. Mas tu sabes como são as coisas entre mim e Sean. Não consegui evitar que ele soubesse — disse eu, tristemente.
— Espia! Bisbilhoteira! Usas a tua fala mental, ou lá o que é, como desculpa. Tens é ciúmes, porque não consegues arranjar um homem! Olha, não quero saber. Amo Ciarán, ele ama-me e ninguém nos impedirá de estarmos juntos! Estás a ouvir? Ninguém!
— Liam disse-me para esperar por ti e para te levar até ele imediatamente. — Consegui eu dizer e descobri que tinha de fazer um esforço para não chorar. Engoli as lágrimas. Não ajudariam ninguém. —Ele disse para não falarmos disto a ninguém. Tem que ficar na família.
— Oh sim, a honra da família. Que maravilha. Não podemos pôr em risco uma aliança com Uí Néill, pois não? Não te preocupes, irmã. Agora que envergonhei a família, pode ser que sejas tu a casar com o ilustre Fionn, chefe de guerra de Tirconnell. Pode ser que seja a tua sorte.
A reação de Liam foi profundamente inquietante e um medo assaltou-me, um medo cuja causa eu não compreendia. Tentei ficar calma; forte, pela minha irmã. Mas as palavras de Niamh magoaram-me e descobri que não conseguia reter a ira.
— Por Brighid! — Estalou a minha voz. — Quando é que aprendes que há mais pessoas para além de ti? Tu estás metida em sarilhos, Niamh. A mim parece-me que estás ansiosa por magoar aqueles que te querem ajudar. Vamos embora. Acabemos com isto.
Encaminhei-me para a porta da ervanária. Dali era possível subir as escadas das traseiras até ao quarto onde Liam esperava e, com sorte, passar despercebida. Niamh caíra no silêncio. Virei-me, esperando não ter que a arrastar.
— Vens?
Ouvi o som de cascos de cavalo para lá da parede do jardim, galopando na direção da porta principal. Botas pisando o cascalho ao mesmo tempo que homens desmontavam. Sean não regressara desapercebido da sua incumbência.
— Liadan. — A minha irmã falou em voz muito baixa.
— O que é?
— Promete-me. Promete-me que ficas comigo. Promete-me que falarás por mim.
Voltei para trás e pus-lhe um braço em volta dos ombros. Ela tremia por baixo do vestido ligeiro e uma lágrima brilhava-lhe nas longas pestanas do olho azul.
— Claro que fico contigo, Niamh. Agora, vamos. Eles estão à nossa espera. — Quando chegamos à sala do andar de cima estavam lá todos. Todos menos a minha mãe. Liam, Conor, Sean e o meu pai, os quatro de pé, os rostos ainda mais severos devido à meia luz, porque apenas a luz de uma pequena lamparina brilhava em cima da mesa e no exterior estava escuro. O ar estava espesso, da tensão. Sabia que tinham estado a falar e que se tinham calado quando entramos. Se uma coisa me assustou enquanto permanecia ao lado da minha irmã, foi o rosto de Conor. A expressão do seu rosto era a mesma que eu vira nas feições do seu irmão, pouco antes. Medo, exatamente, não. Antes a memória do medo.
— Fecha a porta, Liadan. — Fiz como Liam me disse e regressei para onde estava a minha irmã, de cabeça erguida, como uma princesa trágica numa velha história. Os seus cabelos eram dourados, à luz da lamparina. Os seus olhos brilhavam, de lágrimas não enxutas.
— Ela é tua filha — disse o meu tio rudemente. — Talvez seja melhor falares tu primeiro.
O meu pai estava a um canto da sala, o rosto na sombra.
— Sabes porque estás aqui, Niamh. — A sua voz era suficientemente audível.
Niamh não disse nada, mas eu vi-a endireitar as costas e erguer um pouco mais a cabeça.
— Sempre desejei que os meus filhos dissessem a verdade e é isso que eu quero, agora, de ti. Tínhamos esperanças num bom casamento para ti. Talvez eu te tenha dado liberdade a mais, contra a opinião de algumas pessoas. Liberdade para fazeres as tuas escolhas. Em troca esperava... honestidade, pelo menos. Bom senso. Discernimento.
Ela continuou sem dizer nada.
— Portanto, é melhor que nos digas a verdade. Entregaste-te a esse homem? Ele iludiu-te?
Senti o tremor que percorria o corpo da minha irmã e sabia que não era de medo, mas sim de ira.
— E se me tivesse entregado? — A voz dela estalou. Seguiu-se um pequeno silêncio e então Liam disse, rudemente:
— Responde à pergunta do teu pai.
Os olhos de Niamh brilhavam de desafio quando olhou para ele.
— O que é que o tio tem com isso? — perguntou ela quase gritando e a sua mão apertou a minha com tanta força que até pensei que ma ia partir. — Eu não sou sua filha, nem nunca fui. Estou-me nas tintas para a honra da sua família e das suas estúpidas alianças. Ciarán é bom homem, ama-me e é só isso que importa. O resto não vos diz respeito e não o vou conspurcar, pondo-o a nu perante uma sala cheia de homens! Onde está a minha mãe? Por que não está ela aqui?
— Oh, Niamh. — Larguei a mão dela e virei-me. Senti um peso enorme no coração, como se fosse uma pedra fria.
Era Sean, que tinha dado um passo em frente e eu nunca vira semelhante fúria nos seus olhos, ou sentira no meu espírito tamanha raiva e desgosto, como aquela que emanava dele naquele momento. Não o poderia, nunca, fazer parar. Nunca.
— Como te atreves? — disse ele numa voz fria, colérica e, levantando a mão, atingiu Niamh no seu belo rosto cheio de lágrimas. Uma mancha vermelha apareceu instantaneamente na pele dourada. — Como te atreves a perguntar isso, como te atreves a supor que ela quer suportar isto? Fazes alguma idéia do que a tua loucura egoísta lhe pode fazer? Não sabes que a nossa mãe está a morrer?
Incrivelmente, percebemos todos que ela não sabia. Durante todo aquele tempo Sean, eu, Lubdan e os irmãos dela víramos Sorcha enfraquecer dia para dia, sentíramos os nossos corações esfriarem à medida que ela se afastava cada vez mais de nós a cada lua que passava. Mas Niamh, alegremente metida no seu mundo, não vira nada. Ficou pálida como um lençol, com exceção da marca vermelha na face e apertou os lábios com força.
— Basta, Sean. — Lubdan parecia um velho quando saiu da sombra e a luz mostrou as rugas de desgosto do seu rosto. Encaminhou-se para o filho e segurou-o por um braço para o afastar da irmã, que ficara hirta no centro da sala. — Basta, filho. Um homem de Sevenwaters não levanta a mão contra uma mulher. Senta-te. — Sentamo-nos todos. O meu pai era um homem forte. Tão forte que, por vezes, nos envergonhava a todos. — É melhor deixares-nos, Liadan. Pelo menos, poupamos-te a isto.
— Não! — A voz de Niamh estava esganiçada de pânico. — Não! Eu quero-a aqui. Eu quero a minha irmã ao pé de mim!
O meu pai olhou para mim e ergueu as sobrancelhas.
— Eu fico — disse eu e a minha voz soou como se pertencesse a uma estranha. — Prometi.
Olhei para Conor, para onde ele estava sentado com o rosto cor de cinza e os lábio uma linha fina. Ele dissera-me para não me sentir culpada perante aquilo que tem de ser. Mas não podia ter previsto aquilo. Olhei para ele de sobrolho carregado.
Não me disse que seria assim!
Não sabia. Se soubesse, teria feito os possíveis para o evitar. No entanto, continua tudo a ser como tem de ser.
— Bem, — disse o meu pai, cansado, depois de estarmos todos sentados, Niamh e eu juntas num banco, porque me agarrara na mão de novo e desta vez não ma largava. — Estou a ver que não tiraremos mais nada de ti esta noite. Também estou a ver qual é a resposta à minha pergunta, apesar de não a dares. E também já percebi que não compreendes a importância do que fizeste. Se isto foi uma mera escapada da juventude, uma cedência à loucura de Imbolc, uma rendição aos desejos do corpo, pode aceitar-se, se não desculpar-se. Tal erro é suficientemente vulgar e pode-se deixar passar, se só acontecer uma vez.
— Mas... — começou Niamh.
— Silêncio, rapariga! — A sua boca estalou ao fechar-se quando ouviu a voz de Liam; mas os seus olhos estavam zangados. — O teu pai fala com sabedoria. Devias ouvir o que Conor tem para dizer. Ele também tem alguma responsabilidade no que aconteceu; foi em parte por um erro de cálculo dele que este mal se abateu sobre nós. Que tens para nos dizer, irmão?
Eu nunca ouvira o meu tio pronunciar uma palavra de crítica contra os seus irmãos ou irmã, em todos aqueles anos, desde a minha meninice. Havia ali uma ferida antiga que eu podia apenas tentar adivinhar.
— É verdade — disse Conor muito calmamente, olhando de frente para Niamh com os seus serenos olhos cinzentos, aqueles olhos que diziam tanto e que tanto escondiam nas suas profundezas. — Fui eu que decidi trazê-lo aqui; acreditei que chegara a hora de ele sair para o mundo e ser visto. Apesar do desgosto de amor que provocou, apesar de ser quem é, Ciarán é um ótimo jovem e tem sido, até agora, uma esperança para a irmandade. É muito capaz. Muito inteligente.
— Que bela peça! — rosnou Sean. — Dão-lhe uma hipótese de se mostrar em público e a primeira coisa que faz é seduzir a filha da casa. Muito inteligente, na verdade.
— Chega, Sean. — Lubdan mantinha o seu tom de voz com alguma dificuldade. — A tua boca faz-te falar imprudentemente. Isto é tanto culpa de Niamh como do jovem. Ele teve uma educação muito protegida e talvez não compreenda bem o significado dos seus atos.
— Ciarán está com a irmandade há muitos anos, se bem que ainda só tenha 21 anos. — Conor continuava a olhar fixamente para Niamh e à luz da lamparina o seu longo e ascético rosto estava tão pálido como o seu manto. — Ele tem sido, como disse, um estudante exemplar. Até agora. Inteligente. Com vontade. Disciplinado. Hábil com as palavras e só agora começava a descobrir outros talentos. Niamh, este jovem não é para ti.
— Ele disse-me — disse Niamh quebrando a voz. — Ele disse-me. Ele ama-me. Eu amo-o.
— Não há nada mais importante do que isso. Nada! — As suas palavras eram desafiadoras, mas por trás delas Niamh estava assustada. Assustada com o que Conor não dissera.
— Não pode haver união entre ti e este jovem. — Liam falou pesadamente, como se um desgosto escondido lhe pesasse. — Casarás convenientemente o mais rapidamente possível e deixarás Sevenwaters. Ninguém deve saber disto!
— O quê? — Niamh ficou escarlate com o ultraje. — Casar com outro homem depois... não pode dizer isso! Não pode! Diz-lhes, Liadan! Não casarei com nenhum outro homem, apenas com Ciarán! E o que é que tem ele ser um druida? Isso não interessa, ele pode casar, ele disse-me...
— Niamh.
Ao ouvir o som da voz do seu pai a torrente de palavras cessou abruptamente, com um soluço.
— Não te casarás com este homem. Não é possível. Talvez te pareça injusto. Talvez te pareça que estamos a tomar uma decisão com demasiada rapidez, sem considerar todos os argumentos. Mas não é assim. Não te podemos explicar as nossas razões porque, acredita-me, só aumentariam a tua dor. Mas Liam tem razão, minha filha. Esta união não pode ter lugar. E agora que cedeste aos teus desejos, deves casar-te o mais rapidamente possível, para que... deves casar-te, para que um mal maior não caia sobre esta casa.
Parecia extremamente cansado e eu achei as palavras dele estranhas. A minha irmã fizera uma tolice, talvez impensável, mas não parecia merecer um tratamento tão desagradável. E o meu pai sempre fora o mais equilibrado dos homens, as suas decisões baseadas numa pesagem cuidadosa de todas as questões relevantes.
— Posso falar? — arrisquei eu com alguma hesitação.
A resposta não foi encorajadora. Sean abriu os olhos; Liam franziu o sobrolho. O meu pai não olhou para mim. Niamh manteve-se hirta, gelada, à exceção das lágrimas, que lhe escorriam pelas faces.
— O que é, Liadan? — perguntou Conor. Tinha descido um escudo sobre os seus pensamentos; não fazia qualquer idéia do que lhe ia na mente, mas senti uma ferida profunda. Mais segredos.
— Não estou a desculpar Niamh ou o jovem druida — disse eu, cuidadosamente. — Mas não estais a julgar com demasiada rispidez? Ciarán parece um homem de aspecto agradável, tem maneiras, é esperto e honesto. Tratou a minha mãe com grande respeito. Não se poderia, pelo menos, considerar a hipótese de uma união? No entanto, logo à partida, puseste-la de lado.
— Não é possível. — Percebi, pelo tom de Liam, que a decisão era final. Continuar a discutir não fazia sentido. — Como disse o teu pai, concordamos que a única coisa a fazer é salvar a situação. O assunto é muito grave; tão grave que as suas implicações não te podem ser explicadas. Isto não pode passar destas quatro paredes. É imperativo que fique em segredo.
Pareceu-me que uma escuridão desceu sobre nós naquela sala. Estava presente na marca vermelha que desfigurava a face da minha irmã. Estava presente na crítica de Liam ao seu sábio irmão. Estava presente nas linhas e sulcos nitidamente gravados no rosto do meu pai. Estava presente nos olhos de Niamh, quando ela se virou para mim, furiosa.
— A culpa é toda tua! — vomitou ela. — Se te tivesses mantido afastada, se não me tivesses seguido, bisbilhotado, nada disto teria acontecido. Ter-nos-íamos ido embora, podíamos ter ficado juntos...
— Tento na língua, Niamh — disse Lubdan num tom que eu nunca o ouvira antes utilizar.
Ela parou com um soluço, enquanto os seus ombros continuavam a agitar-se.
— Eu quero ver a mãe — disse ela em voz baixa.
— Esta noite não — disse o meu pai já muito calmo. — Eu falei-lhe disto enquanto estávamos à espera de Conor e ela sente-se muito infeliz. Concordou em tomar uma infusão para a ajudar a dormir. Ela perguntou por ti, Liadan. Eu disse-lhe que irias lá, antes de te ires deitar. — Parecia terrivelmente cansado.
— Eu quero vê-la — disse Niamh de novo, como uma criança a quem recusam um doce.
— Perdeste o direito de fazer as tuas escolhas. — As palavras do meu pai caíram com um silêncio cruel.
Nunca pensei ouvi-lo dizer tal coisa. Falou com uma dor profunda e o meu coração sangrou por ele. Niamh ficou muda.
— Voltaremos a falar disto mais tarde — continuou o meu pai. —Por agora, vais para o teu quarto e ficas lá até decidirmos o que fazer. Tal decisão deve ser tomada rapidamente e tu deves submeter-te a ela, Niamh. Agora, vai. Por esta noite chega. E não falas disto com ninguém, compreendes? Liam tem razão, isto tem que ficar entre nós, ou o mal ainda será maior.
— E o rapaz? — perguntou Liam.
— Eu falo com ele esta noite — replicou Conor e também ele parecia exausto. — Veremos como ele lida com isto. Servirá para lhe medir o valor.
Fiquei ao pé da minha mãe até que ela caiu num sono irregular. Não falamos do que acontecera, mas pude ver que estivera a chorar. Então fui para o meu quarto, onde Niamh estava sentada na sua cama, direita, olhando para a parede. Não servia de nada tentar falar com ela. Deitei-me e fechei os olhos, mas não conseguia dormir. Senti-me doente e desamparada e, devido às sábias palavras de Conor, não conseguia evitar de pensar que tinha, de algum modo, traído a minha irmã. Havia, de fato, uma escuridão sobre a nossa casa, como se a sombra de um passado diabólico tivesse renascido uma vez mais. Não sabia o que era; mas sentia as suas garras no meu coração e via o seu toque no rosto pálido e cheio de lágrimas da minha irmã.
— Liadan!
Os meus olhos abriram-se ao sussurro urgente de Niamh. Ela estava à janela.
— Ele está aqui! Ciarán. Ele veio buscar-me!
— O quê?
— Olha lá para baixo. Para as árvores.
Estava escuro e eu não conseguia ver grande coisa, mas conseguia ouvir os sons abafados dos cascos de um cavalo aproximando-se rapidamente da orla da floresta.
As patas do cavalo pisaram o cascalho e seguiu-se o silêncio. Ouviram-se pancadas na porta e o clarão de uma lamparina.
— Ele veio — disse a minha irmã de novo, com a voz cheia de esperança.
— Lá se vão as intenções de Liam de manter isto secreto — disse eu, friamente.
— Tenho que ir. Tenho que ir ter com ele...
— Não ouviste nada do que eles disseram? — perguntei-lhe. — Não podes ir ter com ele. Não podes vê-lo. Estás proibida. O pai não te disse para ficares no quarto?
— Mas eu tenho de vê-lo! Liadan, tens de me ajudar! — Ela virou aqueles grandes e suplicantes olhos para mim, como tantas outras vezes o havia feito.
— Não, Niamh. De qualquer maneira, estás enganada. O teu jovem não veio para te levar em segredo. Um amante com essa intenção não vem bater à porta do pai da donzela. Ele veio porque soube da notícia e não compreende. Ele veio porque está magoado e zangado e quer respostas. —Em baixo, o visitante noturno fora admitido e a porta fechou-se atrás dele. O silêncio caiu de novo.
— Tenho de saber — sibilou Niamh, agarrando-me os braços exatamente onde me magoara antes. — Vai lá tu, Liadan. Vai lá abaixo e escuta. Descobre o que se está a passar, diz-me do que estão a falar. Preciso de saber.
— Niamh...
— Por favor. Por favor, Liadan. Tu és minha irmã. Eu não estou a quebrar regras nenhumas. Eu fico aqui, prometo. Por favor.
Apesar de todos os seus pecados, eu amava a minha irmã e tinha sempre dificuldade em dizer-lhe que não. Além disso, tinha de admitir que também eu queria saber o que se dizia por trás de portas fechadas. Não me sentia bem a viver numa casa com segredos. Mas vira o olhar de Liam e ouvira a ira na voz do meu pai. Não tinha vontade nenhuma de ser descoberta onde não devia estar.
— Por favor, Liadan. Tens de me ajudar. Tens de o fazer.
Ela continuou naquela lengalenga por mais algum tempo, chorando e rogando, a voz ficando cada vez mais rouca devido às lágrimas. No fim, venceu.
Coloquei um xale por cima da minha camisa de noite e caminhei de pés descalços ao longo do vestíbulo até ver uma réstia de luz por baixo da porta da sala onde estivéramos antes. Não havia ninguém em redor. Parecia que Liam fora rápido a evitar uma cena pública.
De dentro veio o som de vozes, mas eu não conseguia ouvir as palavras. Parecia que havia quatro homens lá dentro. Liam, conciso e decidido; o tom mais cuidado de Conor. A voz do meu pai era mais profunda e suave. Sean, assim parecia, fora excluído. Talvez pensassem que era demasiado novo e impetuoso para uma reunião daquela espécie. Fiquei a tremer no topo das escadas. Ouvi, então, a voz de Ciarán; palavras indistintas, um tom áspero de desgosto e ultraje. Senti movimentos dentro da sala e quase me fui embora. Mas não fui suficientemente rápida. A porta abriu-se de repente e o jovem druida saiu, o rosto branco como a cal, os olhos dardejando.
Quando a porta se ia a fechar, ouvi Liam dizer:
— Não. Deixa-o ir.
Ciarán parou, olhando para mim ali parada, na minha velha camisa de noite e xale de lã. Achei que ele mal via o que estava à sua frente; os seus olhos estavam cheios de sombras. Mas ele sabia quem eu era.
— Toma — disse ele procurando na bolsa que trazia à cintura. —Diz-lhe que me vou embora. Diz-lhe... dá-lhe isto. — Deixou cair algo pequeno na minha mão e desapareceu sem um som, pelas escadas abaixo, na direção da escuridão.
Quando me vi a salvo no quarto, dei a Niamh o suave seixo com um buraco no meio, disse-lhe o que ele me tinha dito e abracei-a enquanto ela chorava, chorava sem parar. E no fundo da minha alma ouvi o som de cascos, enquanto Ciarán se afastava, cada vez para mais longe, tão longe de Sevenwaters quanto o seu cavalo o pudesse transportar até ao nascer do Sol.
Antes do solstício do Verão a minha irmã desposou Fionn, filho do chefe de guerra de Uí Néill e nesse mesmo dia ele levou-a para Tirconnell. Cavalguei com eles até à aldeia de Littlefolds. Pelo menos era esse o plano. Silenciosa, gelada, impenetrável no seu desgosto, Niamh fizera um único pedido. A minha companhia até chegar à sua nova casa.
— Tem a certeza que não tem importância? — perguntei à minha mãe.
— Nós cá nos arranjamos — sorriu ela, mas havia uma tristeza nos seus olhos. — Tu tens de viver a tua vida, minha filha. Passaremos bem sem ti durante algum tempo.
Pensei em lhe perguntar o que queria aquilo dizer, quando uma guia do Outro Mundo me levou a descobrir o segredo da minha irmã, profetizando-lhe a saída de Sevenwaters e da floresta. Porque não tinha dúvida da mão das Criaturas Encantadas naquilo, mas não conseguia compreender o motivo. Talvez a minha mãe soubesse, porque mais de uma vez estivera frente-a-frente com aqueles poderosos seres e fora guiada pelos seus desejos. Mas não lhe perguntei. A minha mãe já tinha sofrido muito. Além disso, era demasiado tarde. Demasiado tarde para Niamh e demasiado tarde para Ciarán, que se fora embora, ninguém sabia para onde.
O meu pai não estava preparado para me ver ir embora, mas reconhecia as circunstâncias e, relutantemente, concordou.
— Não estejas fora muito tempo, minha querida — disse ele. —Cinco ou seis noites, no máximo. E não vás a lado nenhum que não esteja guardado. Liam mandar-te-á homens armados para te trazerem para casa em segurança.
Antes do casamento teci um fino e forte cordão para a minha irmã usar ao pescoço. Enquanto o tecia contei para mim própria a história de Aengus Óg e da bela Caer Ibormeith e senti o peso de lágrimas não derramadas nos meus olhos. Em redor do cordão teci um fio dourado do manto do meu tio Conor. Teci também fibras de urze e alfazema, celidónia e zimbro; procurava protegê-la o mais possível. Teci fios simples, de linho, do meu vestuário de trabalho e um fio azul do vestido mais antigo e mais amado da minha mãe. A manta de montar de Sean forneceu a lã escura e as tiras de pele que ligavam as pontas foram tiradas de um velho par de botas de trabalho de Lubdan. As botas enlameadas de um fazendeiro. Fiz com tudo aquilo um cordão fino e suave, de maneira a que fosse preciso mais do que a força de um mortal para o quebrar. Não disse nada quando o meti na mão de Niamh e ela também não. Mas ela sabia para o que era. Tirou a pequena pedra da algibeira e meteu o cordão através do pequeno buraco, pondo-o em seguida ao pescoço e eu afastei os pesados, belos e ardentes cabelos para lhe atar as pontas. Quando meteu a pedra dentro do vestido, esta ficou escondida por completo.
Desde essa noite, em que ficou a saber que os homens tomam as decisões e as mulheres devem obedecer-lhes, a minha irmã nunca mais falou de Ciarán. Na verdade, pouco ou nada falava. Derramara as suas últimas lágrimas; o seu último sinal de fraqueza. Vi o amargo ressentimento nos seus olhos quando disse a Liam que desposaria Fionn, como era seu desejo. Vi a dor no seu rosto enquanto tratava dos vestidos, dos sapatos e dos véus, como olhava para as mulheres que lhe costuravam o vestido de casamento, como olhava para fora da janela para os suaves bosques de Verão de Sevenwaters. Quase não falava, mesmo com a minha mãe. O meu pai tentou falar com ela, mas ela apertou os lábios e não ouviu as calmas palavras dele, tentando explicar-lhe que aquilo era melhor para ela; que descobriria, com o tempo, que fizera a escolha certa. Depois disso, o meu pai ficava até mais tarde no campo, de maneira a não falar com nenhum de nós. Sean andava ocupado com os treinos de guerra e evitava as duas irmãs.
Quanto a mim, amava Niamh e queria ajudá-la. Mas ela não deixava. Só uma vez, na noite anterior ao casamento, quando estávamos as duas deitadas, sem sono, partilhando o nosso quarto pela última vez, ela disse suavemente:
— Liadan?
— O que é, Niamh?
— Ele disse que me amava. Mas foi-se embora. Mentiu-me, Liadan. Se ele me amasse de verdade, não me deixava. Não teria desistido com tanta facilidade.
— Não acho que tenha sido fácil — disse eu, lembrando-me do olhar do jovem druida na sombra do vestíbulo e do tom áspero, de dor, da sua voz.
— Ele disse que me amaria para sempre. — A voz da minha irmã era firme e fria. — Os homens são todos uns mentirosos. Eu disse-lhe que seria só dele. Ele não merecia uma promessa assim. Espero que sofra quando souber que casei com outro e fui para longe da floresta. Talvez fique a saber o que custa a traição.
— Oh, Niamh — disse eu — ele ama-te, tenho a certeza. Sem dúvida que teve razão para se ir embora. Há mais coisas que nós não conhecemos; segredos por dizer. Não deves odiar Ciarán pelo que ele fez.
Mas ela virara o rosto para a parede e eu fiquei sem saber se ela me ouvira ou não.
Fionn era um homem de meia-idade, tal como o meu tio dissera, bem-educado, decidido e acompanhado por um séqüito de acordo com um homem da sua posição.
Os seus olhos seguiram a minha irmã e não tentou esconder o desejo que ia neles.
Mas a sua boca era fria. Não gostei dele. O que o resto da minha família pensava era duvidoso, porque tentámos celebrar alegremente e no dia do casamento não faltou a música, as flores e a comida. Os Uí Néill eram uma família cristã e foi um padre cristão que proferiu as palavras e ouviu os votos do casal. Aisling estava presente e com ela Eamonn. Fiquei aliviada por não ter tido oportunidade de falar com ele a sós. Teria lido a infelicidade nos meus olhos e teria perguntado porquê. Conor não estava presente, nem nenhum dos da sua espécie. Por baixo da jovialidade havia um mal-estar glacial e eu não podia fazer absolutamente nada. E então cavalgamos para noroeste, Niamh, o marido, os homens de Tirconnell e os seis homens de armas da nossa casa, comigo no meio, sentindo-me um pouco ridícula.
A aldeia de Littlefolds está encostada a um monte, num acidente de terreno, no meio de uma região densamente arborizada e ondulante. Fica para oeste do domínio de Eamonn e para noroeste da sua fronteira com Seamus Redbeard. A nossa jornada levara-nos, se bem que para longe, através de território familiar e amigável. Chegara a hora de dizer adeus à minha irmã e regressar a casa. Foi no terceiro dia. Tínhamos acampado no caminho e tínhamos sido bem acomodadas. Niamh, eu e a serva que a acompanhava partilhámos uma tenda, enquanto os homens se desenrascavam.
Supunha que Fionn esperaria até chegarem a Tirconnell para consumar o casamento.
Para bem da minha irmã, esperava que assim fosse.
Fizemos as nossas despedidas. Não havia tempo. Não havia privacidade. Fionn estava ansioso por partir. Abracei Niamh e olhei-lhe para os olhos, mas estes estavam vazios, como os olhos de uma bela imagem esculpida na pedra.
— Eu venho ver-te — sussurrei. — Assim que puder. Sê forte, Niamh. Hei de ter-te sempre no meu coração.
— Adeus, Liadan — disse ela em voz firme, baixa. Virou-se para que Fionn pudesse ajudá-la a subir para o seu cavalo e afastaram-se sem uma palavra mais. Não chorei.
As minhas lágrimas não ajudariam ninguém.
Com a partida dos homens de Tirconnell a atmosfera aqueceu um pouco. Os meus seis homens de armas tinham feito, exatamente, o trabalho que lhes encomendara Liam, rodeando-me no caminho, de rostos severos, protegendo-me de um possível ataque; mantendo uma guarda vigilante e bem armada durante todo o tempo. Agora, quando preparavam os cavalos e as bagagens para o regresso a Sevenwaters, um deles disse uma piada e todos os outros se riram, um deles perguntou-me gentilmente se estava tudo bem e se achava bem que partíssemos a meio da manhã. Estava cansada? Seria capaz de cavalgar meio dia antes de pararmos para descansar? Eu disse que sim, porque só queria regressar a casa e começar a remendar a dor daqueles últimos tempos penosos. Sentei-me numa pedra lisa e observei-os enquanto faziam os seus preparativos ordenadamente. O céu estava cheio de nuvens; choveria antes do pôr do Sol.
— Minha senhora! — Era uma das aldeãs, uma jovem de rosto gasto, rugoso, com o cabelo preso atrás com um velho lenço verde. —Minha senhora! — Corria na minha direção com a respiração entrecortada devido à pressa. Os homens de Liam eram bons. Antes de ela se aproximar já dois deles estavam ao pé de mim, as mãos nos punhos das espadas. Levantei-me.
— O que é? O que se passa?
— Oh, minha senhora — arfou ela com a mão apoiada na cintura. — Que bom ainda não terdes partido. Cheguei a tempo. É o meu filho, Dan. Ouvi dizer... dizem que sois a filha de uma grande curandeira. Minha senhora, Danny está cheio de febre, que não há meio de descer. Está sempre a tremer e diz coisas sem nexo e eu tenho medo, tanto medo. Não podeis lá ir para dardes uma vista de olhos, antes de vos irdes embora?
Eu já estava à procura do meu pequeno saco, porque nunca viajava sem os medicamentos básicos de uma curandeira.
— Não creio que seja boa ideia, minha senhora. — O chefe dos homens de armas tinha o sobrolho carregado. — Devíamos partir imediatamente para atingirmos um local de abrigo seguro antes do anoitecer. Liam disse que não queria desvios.
— Não tendes os vossos próprios curandeiros? — perguntou outro homem.
— Nenhum como esta senhora aqui — disse a mulher com uma nota de esperança na voz. — Dizem que ela tem magia nas mãos.
— Não gosto nada disto — disse o chefe.
— Por favor, minha senhora. Ele é o meu único filho e eu ando desvairada, porque não sei o que lhe hei de fazer.
— Eu não me demoro — disse eu aos homens com firmeza, pegando no saco e começando a andar na direção da aldeia. Os homens olharam uns para os outros.
— Vocês dois vão com Lady Liadan — ordenou o chefe. — Um em cada porta e não deixem entrar ou sair ninguém, salvo esta mulher e a senhora. Olhos e ouvidos bem abertos, armas prontas. Tu montas guarda onde possas ver o caminho que passa ao lado da casa. Tu, na parte de lá do caminho. Fergus e eu guardaremos os cavalos. Despachai-vos, minha senhora, por favor. Todo o cuidado é pouco nos dias que correm. Anda muita malandragem por aí.
Estava escuro na casa, que não passava de uma choupana de lama e caniços, sem janelas, com um telhado de colmo todo esfarrapado. Uma vela com proteção ardia junto da esteira do rapaz. Os guardas fizeram como lhes tinham ordenado. Não podia ver o que estava na porta das traseiras; o outro estava na porta da frente, onde podia vigiar ao mesmo tempo a entrada e a minha pessoa. Apalpei a testa do rapaz e tomei-lhe o pulso, onde o sangue pulsava.
— Não está tão doente que um chá de ervas, administrado corretamente, não possa curar — disse eu. — Pega, põe esta mão-cheia em água quente. Deixa-a ferver até ficar com uma cor dourada-escura; depois escorre-a bem e deixa-a arrefecer até lhe poderes tocar. Dá-lhe duas taças duas vezes por dia. Não lhe dês de comer; em breve há de ter fome, quando estiver melhor. Esta febre de Verão é normal. Surpreende-me que tu...
Vi os olhos do rapaz mudarem enquanto ele olhava por cima do meu ombro e vi a mulher recuar silenciosamente com uma desculpa muda no rosto gasto. Tentei levantar-me e virar-me, mas quando o ia fazer uma grande mão segurou-me pelo peito e percebi que tinha sido apanhada numa armadilha. O treino de Lubdan fora suficientemente bom para que eu tivesse, numa ocasião daquelas, alguns recursos. Ferrei os dentes na mão do meu captor, de maneira que o seu aperto abrandou um pouco, o suficiente para eu poder levantar o meu pé, apanhando-o entre as pernas. Se estava à espera que ele me largasse, enganei-me. O homem ficou, apenas, temporariamente sem fôlego; foi tudo. Senti o gosto do sangue dele. Tinha-o marcado. Mas ele permaneceu em silêncio. Não ouvi qualquer praga. Apenas maior força no abraço. Onde estavam os meus guardas? Como entrara ele? A mulher tinha desaparecido. O homem começou a mexer-se, tentando levar-me para a porta das traseiras. Fiz-me pesada; ele teria de carregar comigo para me levar dali. Senti a pressão da minha boca a abrandar, só um pouco, enquanto ele mudava de posição.
Respirei fundo, pronta para gritar por socorro. Um instante depois senti uma pancada na parte de trás da cabeça e tudo ficou escuro.
Doía-me terrivelmente a cabeça. A minha boca estava tão seca como palha num dia de Verão. Não havia nenhuma parte do corpo que não me doesse, porque parecia que me tinham deixado cair no chão, de rosto para baixo, um braço por baixo do corpo. Não estava atada. Talvez, quando percebesse o que tinha acontecido, tivesse uma hipótese de fuga. Tinham-me tirado a pequena faca do cinto. Não fiquei surpreendida.
Permaneci quieta, de olhos fechados. Podia ouvir os pássaros a cantar, muitos pássaros, uma brisa nas folhas e água a correr sobre pedras. Bem longe, portanto, algures na vasta área arborizada para lá da aldeia. Já não era dia claro; quando abri os olhos, apenas um pouco, achei que estava a anoitecer. Quanto tempo demoraria, pensei, até que alguém desse o alarme? Quanto tempo, até que alguém viesse à minha procura? O golpe fora eficiente, calculado para me pôr fora de ação e manter-me em silêncio o tempo suficiente, sem danos sérios. De certo modo, era bom sinal. Mas, tempo suficiente para quê?
— Eles voltam ao pôr do Sol.
— E então?
— Então, quem é que vai dizer ao Chefe? Quem é que vai explicar isto? Eu não, isso é certo.
— É pena que não possamos guardar segredo disto. Fazer com que ele vá para uma missão qualquer, o mais longe possível. Ela da sinais de querer voltar a si?
— Não. De certeza que não a mataste, Dog?
— Quem, eu? Matar uma miúda destas? Com um coração como o meu?
Depois ouviu-se um rugido horrível, como um homem em agonia mortal. Aquilo chocou-me tanto que me esqueci de fingir e sentei-me. Foi um erro. A dor na minha cabeça foi tão grande que uma náusea me atingiu e, por um momento, só vi estrelas.
Levei as mãos às têmporas, de olhos fechados, até que as guinadas começaram a diminuir. O terrível rugido continuou.
— Toma — disse uma voz. Abri os olhos cuidadosamente. Um homem estava agachado à minha frente com uma taça na mão. Essa taça era de metal escuro.
A mão que a segurava ainda era mais escura. Olhei para o rosto do homem e ele fez uma careta, mostrando uma dentadura alva, na qual faltava um ou dois dentes. O seu rosto era negro como a noite. Fiquei a olhar para ele, esquecendo as minhas maneiras.
— Deves ter sede — disse ele. — Toma.
Peguei na taça cheia de água e bebi-a. As coisas começaram, lentamente, a ficar focadas. Estávamos num pedaço de terra plana, junto de um pequeno curso de água, onde os arbustos e as árvores cresciam com menos densidade. Havia grandes rochas cobertas de musgo e espessos maciços de fetos na margem. Estivera a chover, mas nós estávamos protegidos por salgueiros. Havia mais dois homens presentes, ambos de pé, de mãos nas ancas, olhando para mim. Os três eram extraordinários; produtos de uma história fantástica. Um tinha metade do crânio rapado, de modo que o cabelo, na metade intacta, era longo e cheio de nós, escuro, com exceção das têmporas, onde tinha uma risca branca. Em redor do pescoço usava um pedaço de cabedal entrançado por entre grandes garras, pertencentes, talvez, a um lobo. Se bem que aquele deva ter sido o maior que muitos homens alguma vez viram, ou teriam gostado de ver. Este homem tinha o rosto todo marcado por pequenas cicatrizes e uns olhos amarelos, selvagens. O seu queixo tinha algo profundamente gravado, uns losangos cruzados, do lábio à linha do queixo. O segundo tinha marcas em redor dos pulsos, como serpentes entrelaçadas e sobre a túnica usavam um adorno estranho, que parecia ser feito de pele de serpente. Como o outro, a pele do rosto estava gravada e colorida, mas desta vez na testa. Um desenho habilidoso de escamas interligadas e uma língua venenosa, bífida, que lhe descia pela cana do nariz. Era mais novo, talvez ainda nem tivesse 25 anos, mas, tal como os outros, tinha um aspecto duro, com quem apenas um louco se meteria. O mais escuro estava vestido com mais simplicidade e se havia linhas na sua pele cor de tinta não conseguia vê-las.
O seu único adorno era o cabelo encaracolado, que ele usava entrançado até aos ombros. Por trás da orelha esquerda uma pena fazia um ligeiro contraste contra a escuridão da sua pele. Ele reparou que eu estava a olhar para ele.
— Gull — disse ele. — Faz-me lembrar o mar. — Apontou para os outros com a cabeça. — Dog. Snake. São os nossos nomes, aqui.
— Muito bem — disse eu polidamente, satisfeita por a voz me sair razoavelmente calma. Sentia que era importante não permitir que eles se apercebessem de como me sentia assustada. — Nesse caso, não preciso de vos dizer o meu. Qual de vós me provocou esta dor de cabeça?
Dois deles olharam para o que tinha as garras de lobo e a cabeça meio rapada. Dog.
Era um homem muito grande.
— Não estava à espera que lutasses — disse ele, bruscamente. —Temos um trabalho para ti. Não me podia arriscar a que gritasses. As mulheres gritam.
Os gemidos recomeçaram. Vinham dos rochedos por trás de nós.
— Há alguém ferido — disse eu levantando-me cuidadosamente.
— É isso — disse Gull, o negro. — És a curandeira, não és? Aquela que eles disseram que passaria pela aldeia?
— Sei alguma coisa — disse eu cuidadosamente, porque não queria abrir muito o jogo. Se eles eram quem eu pensava, tinha de ter muito cuidado. — O que é que aquele homem tem? Posso vê-lo?
— É para isso que aqui estás — disse Dog. — E é melhor despachares-te. O Chefe está a chegar e precisamos de uma boa resposta para ele, ou este homem não volta a ver o nascer do Sol. — A linguagem que eles usavam era estranha, uma mistura de irlandês e da língua dos Bretões, palavras e frases usadas segundo a sua conveniência. O seu discurso era fluente e com sotaque; Snake talvez fosse do Ulster, mas eu duvidava que os outros tivessem aprendido aquelas línguas à nascença. Eram como eu, que tinha um progenitor de cada origem; conseguia percebê-los se me concentrasse, se bem que aqui e ali dissessem uma palavra cujo significado me era desconhecido, como se uma outra língua emprestasse o seu toque ao seu discurso peculiar.
Eu já tinha visto e tratado muitas feridas, algumas delas graves. Uma facada ulcerada; um acidente horrível com uma forquilha. Mas nunca tinha visto nada como aquilo. O homem estava deitado numa espécie de meia gaita, resguardado da chuva, do vento e do calor do Sol. Tinham tentado mantê-lo confortável numa espécie de esteira e havia a seu lado um banco rústico, água e uns panos malcheirosos. No chão estava um frasco e uma daquelas taças de metal escuro. O homem arfava, virando a cabeça para um lado e para outro, com dores e a sua pele estava pálida e banhada em suor. O seu braço direito estava ligado do ombro à ponta dos dedos e estava todo vermelho, do sangue. Via-se perfeitamente, sem tirar o pano cheio de sangue, que o membro estava mais do que partido. A carne do peito nu e do ombro estava carmesim.
— O que é que lhe deram para a dor? — perguntei secamente enquanto dobrava as mangas do vestido.
— Ele não consegue agüentar nada no estômago — disse Dag. — O frasco tem um vinho muito forte; tentámos isso, mas ele não consegue engoli-lo e, quando consegue, vomita-o antes de contarmos até cinco.
— Nós tratamos de nós próprios e a maior parte das vezes damo-nos bem — disse Gull.
— Mas isto... não somos capazes de lidar com isto. Podes ajudá-lo?
Eu já estava a tirar as ligaduras cheias de sangue, tentando não virar o rosto, devido ao cheiro.
— Quando aconteceu isto? — perguntei.
— Há dois dias. — Snake também ali estava, um olho em mim e no meu paciente e o outro lá fora. No chefe, presumi. — Ele é cuidadoso. Mas desta vez não teve força. Tentava tirar uma carga da carroça, sozinho. Apanhou com um pedaço de ferro e esmagou o braço. Teria morrido se Dog não o tivesse puxado a tempo.
— Não foi a tempo — disse Dog coçando a parte careca da cabeça. Acabei de tirar a ligadura cheia de sangue e malcheirosa, ao mesmo tempo que o homem mordia os lábios e fixava os olhos febris no meu rosto.
Ele estava acordado, mas não absolutamente consciente do que estava a acontecer ou das palavras que eram pronunciadas. Virei o rosto para o lado quando vi os patéticos restos esmigalhados do braço.
— Este homem tem poucas hipóteses — disse eu, calmamente. —Os humores maus já se espalharam pelo corpo. Não lhe posso salvar o braço. Tem dias de agonia pela frente. Posso ajudá-lo. Mas é pouco provável que lhe possa salvar a vida. Mais valia ter morrido. Vejo que fizestes o melhor que sabíeis. Mas isto está para além das capacidades de qualquer curandeiro.
Eles ficaram todos em silêncio. Lá fora, a escuridão aumentava.
— Pelo menos, posso fazer com que se sinta mais confortável —disse eu finalmente. — Espero que tenhais tido o bom senso de me trazer as minhas coisas. — Senti um aperto no coração à idéia de ter de lidar com semelhante ferimento sem as ferramentas e as misturas de ervas adequadas.
— Estão aqui — disse Dog e lá estava o meu saco. Deixou-o cair a meus pés.
— Que aconteceu aos meus guardas? — perguntei enquanto me inclinava para o abrir e procurar aquilo de que necessitava.
— É melhor não saberes — disse Snake do local onde continuava a vigiar o exterior. — Quanto menos souberes, melhor. Se queres regressar a casa.
Levantei-me. Os três observavam-me de perto. Seria intimidante se não estivesse tão absorvida na minha tarefa.
— Tínhamos esperança de que pudesses fazer mais — disse Gull calmamente. — Salvar-lhe a vida, já que não lhe podes salvar o braço. Ele é um bom homem. Forte. Firme.
— Eu não sou nenhuma milagreira. Disse-vos o que pensava. Só posso prometer que lhe torno os últimos dias de vida mais fáceis. Podeis arranjar-me um pouco de água quente? E tendes algum tecido limpo? Levai isto e queimai-o, porque já não se pode lavar. Vou precisar de um cântaro, ou uma coisa do género e uma bacia.
— Agora não — disse Snake bruscamente. O Chefe está a chegar.
— Maldição. — Dog e Snake desapareceram num ápice. Gull ficou à entrada.
— Suponho que esse Chefe não me vai dar as boas-vindas? —perguntei, tentando não mostrar o medo que sentia. — Quebrastes alguma regra ao trazer-me aqui?
— Mais do que uma — disse Gull. — O melhor é manteres a boca fechada. O Chefe não suporta mulheres. Deixa-me ser eu a falar. — E também ele desapareceu. Ouvi o som de vozes afastadas. O meu paciente deixou sair o ar dos pulmões, reteve-o logo a seguir e o seu corpo começou todo a tremer.
— Está tudo bem. Está tudo bem — disse eu, amaldiçoando silenciosamente o isolamento, a falta de condições e ajuda de confiança. Malditos fossem. Pedirem-me para fazer um bom trabalho ali era como... como pedir que um homem lavrasse um terreno com as mãos nuas. Como era possível terem-me feito semelhante coisa? Como era possível fazerem semelhante coisa a um dos deles?
— ... ajuda... ajuda-me... — O ferido estava a olhar para mim e havia uma certa consciência nos seus olhos brilhantes. As suas feições estavam tão secas e brancas que era difícil dizer que espécie de homem era, quantos anos tinha e de onde vinha.
Era alto e fortemente constituído, de acordo com a sua profissão. O braço esquerdo era muito musculado e o grande peito era robusto, como um barril. O que tornava patética a massa de carne e ossos do seu braço direito. Levaria muito tempo a morrer.
— ... senhora... ajuda...
As vozes no exterior aproximaram-se e eu já conseguia perceber as palavras.
— Não tenho a certeza se ouvi bem. Contra a minha vontade, dei-vos dois dias para me provardes que sabeis mais do que eu. Esses dois dias acabaram. Ele não melhorou. Tudo o que fizestes foi protelar o inevitável. E trazeis uma mulher para aqui. Uma rapariga qualquer que raptastes no caminho. Sabe-se lá quem é. Julguei-te mal, Gull. Parece-me bem que não tens lugar na minha equipe.
— Chefe.
— Estou errado? Ele melhorou? Essa mulher fez alguma cura milagrosa?
— Não, Chefe, mas...
— Onde tens a cabeça, Gull! E vós? O que é que vos deu? Sabeis muito bem como isto devia ter acabado, quando ele se feriu. Não devia ter deixado que vos pusésseis de permeio. Se não tendes estômago para decisões destas, o vosso lugar não é aqui.
Já estavam mais próximos das rochas, quase à vista. Segurei na mão do meu paciente e fiz um esforço para respirar devagar e com firmeza.
— Chefe. Este homem não é um homem qualquer. Estamos a falar de Evan.
— E então?
— É um amigo, Chefe. Um grande amigo e um grande homem.
— Além disso — acrescentou Dag — quem é que vai reparar as nossas armas se ele morrer?
— Evan é o melhor ferreiro gaulês nestas paragens. Não podes... —A sua voz morreu lentamente, como se algo lhe tivesse ocorrido. Seguiu-se uma pausa.
— Um ferreiro só com um braço não serve para nada. — O tom era frio, desapaixonado.
— Já pensaste no que ele pode querer?
Chegaram nesse momento às rochas e entraram, indo até onde eu estava, sentada ao lado do homem ferido. Levantei-me, fazendo-me o mais alta que podia, tentando parecer calma e confiante. Não serviu de nada. Os olhos do Chefe passaram por mim despercebidamente e pousaram-se no homem que jazia a meu lado. Podia muito bem nem estar ali. O homem não me prestou a menor atenção. Olhei para ele à medida que se aproximava e tocava na testa do ferreiro. Uma mão tatuada, do punho à ponta dos dedos, com penas, espirais e linhas interligadas, uma coisa tão complexa e fascinante como um quebra-cabeças antigo. Olhei para cima e, por um momento, ele olhou para mim do outro lado da esteira. Fiquei de boca aberta. Nunca tinha visto um rosto como aquele, nem nos meus mais fantásticos sonhos. Um rosto que era, de certo modo, uma obra de arte. Porque era claro e escuro, noite e dia, deste mundo e do Outro Mundo. No lado esquerdo o rosto era o de um jovem, de pele curtida, mas clara, o olho cinzento e límpido, a boca bem-feita, demonstrando inflexibilidade de carater. No lado direito, partindo de um ponto indefinido até exatamente ao centro, um emaranhado de linhas e curvas, como penas, como a máscara de uma feroz ave de rapina. Uma águia? Um açor? Não. Era, penso, um corvo, como sugeriam as curvas em redor do olho e a sugestão de um bico predador em redor da narina. A marca do corvo. Se não fosse tão assustador, teria rido da ironia. A tatuagem estendia-se pelo pescoço até à orla do corpete de couro e da camisa que usava por baixo. A sua cabeça estava completamente rapada e o crânio também estava colorido da mesma maneira, meio homem, meio criatura selvagem; um grande artista, com tintas e agulhas, trabalhara ali muitos dias e supus que a dor devia ter sido considerável. Que espécie de homem precisava de tal decoração para encontrar a sua identidade? Estava espantada. Provavelmente, ele estava habituado. Com dificuldade, afastei o olhar para onde estavam Gull e Dog, mudos, no meio de um grupo de homens. O seu aspecto era variado, de acordo com a descrição de Eamonn; uma pele hirsuta aqui, penas ali, elos de corrente, bocados de pele, correias e fivelas, colares de prata e braceletes e uma quantidade considerável de carne musculada de vários tons. Ocorreu-me, talvez tardiamente, que aquele não era o lugar ideal para uma rapariga entregue a si mesma. Quase conseguia ouvir a voz do meu pai. Não ouves nada do que te digo, Liadan?
O chefe trazia à cintura uma faca presa ao cinto. Uma faca afiada, letal.
— Acabemos com isto — disse ele. — Não me devíeis ter atrasado. Este homem já não tem utilidade. Já não pode contribuir com nada, aqui ou noutro lado qualquer. Só lhe prolongastes o sofrimento desnecessariamente. — Moveu-se sutilmente, de maneira que o ferido não visse os seus gestos e levou a mão ao punho da faca. Os outros permaneceram silenciosos. Ninguém se mexeu. Ninguém disse uma palavra. O homem ergueu a faca.
— Não! — Ergui a minha mão sobre a esteira, protegendo o pescoço do homem ferido.
— Não podes fazer isso! Não podes... acabar com ele, como se não passasse de um coelho apanhado numa armadilha ou um cordeiro para assar. Este homem vive. É um dos teus.
O Chefe ergueu as sobrancelhas, apenas uma fração. A linha fina que era a sua boca não mudou. Os olhos eram frios.
— Tu não darias o golpe se o teu cão, o teu falcão, ou o teu cavalo sofressem de tamanha ferida? Não gostarias que tal agonia não se prolongasse? Mas não, suponho que haveria sempre um homem para te fazer esse trabalho sujo. Que sabe uma mulher dessas coisas? Tira a mão.
— Não tiro — respondi, cada vez mais irada. — Dizes que este homem já não tem utilidade, como se ele fosse... uma mera ferramenta, uma arma. Dizes que já não pode contribuir com nada. Para os teus propósitos, talvez. Mas ele continua vivo. Pode amar uma mulher, ser pai de uma criança. Pode rir e cantar, contar histórias. Pode comer os frutos dos campos e beber uma caneca de cerveja à noite. Pode ver o filho tornar-se ferreiro, como ele. Este homem pode ter uma vida. Ele tem futuro, depois... — olhei em volta, para o círculo de homens de rostos severos —depois disto.
— Onde é que aprendeste a vida? — perguntou o homem-corvo no mais gelado dos tons. — Num conto de fadas? Nós vivemos sob um código. Não temos nomes; nem passado, nem futuro. Temos tarefas a desempenhar e nisso somos os melhores. Não há vida para este homem, nem para nenhum de nós para além disso. Nem pode haver. Afasta-te.
Estava cada vez mais escuro e um dos homens acendera uma pequena lanterna. Sombras loucas caíram das fendidas paredes rochosas, dando ao rosto do chefe uma ameaça que era tão real como a arma que tinha na mão. Podia ver-se como podia facilmente aterrorizar um inimigo, porque à luz da lanterna parecia, na realidade, meio corvo, o seu olho espreitando, brilhante e perigoso, por entre as espirais da figura finamente desenhada.
— Afasta-te — disse ele de novo.
— Não afasto — disse eu. E ele levantou a mão esquerda, como que para me esbofetear.
Com grande esforço consegui não vacilar. Aguentei-lhe o olhar, esperando que não visse como eu tremia. O homem olhou para mim, com um olhar gelado e, lentamente, baixou a mão.
— Chefe, — aventurou-se Gull, o único com coragem suficiente para falar.
— Cala a boca! Estás a ficar mole, Gull. Primeiro, pedes dois dias para um homem que sabes não ter qualquer hipótese de sobrevivência, que não gostaria de viver nestas circunstâncias, mesmo que pudesse. Depois, trazes para aqui uma rapariga maluca. Onde é que a encontraste? Tem muita lábia, lá isso tem. Podemos acabar com isto? Temos que fazer. — Talvez pensasse que me tinha intimidado o suficiente para me manter calada.
— Ele tem uma hipótese — disse eu, aliviada por ele ter decidido não me bater, porque a minha cabeça ainda me doía do choque anterior. — Muito pequena, mas tem uma hipótese. Fica sem o braço. Isso não posso salvar. Mas posso salvar-lhe a vida. Não acredito que ele queira morrer. Ele pediu-me que o ajudasse. Pelo menos, deixa-me tentar.
— Porquê?
— Por que não?
— Porque... maldita sejas, mulher. Não tenho tempo nem feitio para discutir contigo. Não sei de onde vieste ou para onde vais, nem desejo ser esclarecido, mas aqui não passas de um incômodo e de uma inconveniência. Isto não é lugar para uma mulher.
— Acredita que não estou aqui por escolha. Mas já que os teus homens me trouxeram até aqui, deixa-me tentar. Eu digo-te o que vou fazer. Sete dias, oito... os suficientes para tratar do homem como deve ser, dando-lhe hipótese de lutar. Só peço isso. — Olhei para o rosto de Gull, a imagem da surpresa. No fim de contas estava a contradizer, por completo, as minhas palavras anteriores. Talvez fosse louca. Dog tinha a esperança escrita nas feições; os outros olhavam para a parede rochosa, para o chão, para as mãos, para tudo, menos para o seu chefe. Um deles, na retaguarda, emitiu um pequeno assobio, como que a dizer, agora é que vão ser elas
O homem-corvo permaneceu imóvel por um momento, olhando para mim através dos olhos semicerrados e meteu a perigosa faca, indiferentemente, na bainha.
— Sete dias — disse ele. — Achas que chega?
Podia ouvir a respiração difícil do ferreiro e o tom cínico da voz do inquiridor.
— O braço tem que sair — disse eu. — Esta noite, já. Vou precisar de ajuda para isso. Posso dizer-te como fazê-lo, porque não tenho força suficiente para isso. Depois, tratarei dele. Dez dias seria melhor.
— Seis dias — disse ele no mesmo tom. — Daqui a seis dias partimos. Não podemos demorar-nos mais; somos precisos noutro sítio e temos de viajar. Se Evan não nos puder acompanhar, será deixado para trás.
— Estás a pedir o impossível — sussurrei — e sabe-o muito bem.
— Querias tentar. Aí tens a tua tentativa. Agora, se nos dás licença, temos que fazer.
— Tu, Gull e tu — acenou ele com a cabeça para Dog — já que a vossa loucura a trouxe até aqui, podeis ajudá-la. Arranjai o que ela precisa. Fazei o que ela mandar. O resto... — Olhou em volta para o círculo de homens e eles mantiveram-se em silêncio. — A mulher é intocável. Não preciso de vos dizer isso. O primeiro que lhe puser a mão em cima terá extrema dificuldade em pegar na arma no dia seguinte. Ela não sai daqui e quero um homem de guarda lá fora, permanentemente. Se eu ouço seja o que for, pagareis por isso.
CAPÍTULO QUATRO
Mantive um rosto altivo, mas por baixo estava petrificada de medo. Eu, a rapariga que não queria senão ficar em casa a tratar da sua horta de ervas, eu, a rapariga que gostava, acima de tudo, de trocar histórias com a família à noite, à lareira, a ensinar a uns estranhos ferozes como cortar um braço e cauterizar a ferida com ferro em brasa.
Eu, a filha de Sevenwaters, sozinha no covil do Homem Pintado e do seu bando de assassinos ferozes; porque era óbvio que aqueles deviam ser os salteadores descritos por Eamonn. Eu, Liadan, negociando com um homem que... que dissera dele Eamonn? Que levava a cabo as suas missões sem orgulho ou empenho? Não tinha a certeza, agora, que essa descrição fosse exata. Achava que essas qualidades estavam presentes, mas talvez não da maneira como Eamonn as tinha definido. O homem era singularmente desagradável, disso não tinha dúvidas. Mas, por que concordara com o que eu propusera, se me achava tão disparatada?
Ponderei naquilo enquanto dizia a Dog para arranjar uma braseira lá fora, sempre quente. E para ter um punhal afiado, pronto; em brasa, se pudesse ser. Gull arranjou as outras coisas necessárias. Em especial uma pequena bacia de água morna e uma faca muito afiada, com serrilha. Snake arranjou mais lamparinas e colocou-as em volta do abrigo rochoso. Entretanto, eu sentei-me ao lado do ferreiro, Evan, e tentei falar-lhe. Ele ia e vinha de um estado de inconsciência, ora falando sem nexo devido ao estado febril, ora acordando e olhando para mim numa mistura de esperança e terror. Tentei dizer-lhe durante esses breves momentos de lucidez, o que ia acontecer.
— ... o teu braço não tem salvação... para te salvar a vida temos de to cortar... vou-te pôr mais ou menos a dormir, mas, provavelmente, sentirás na mesma. Eu sei o que estou a fazer... — Não sabia se ele me estava a ouvir, ou se acreditava no que lhe estava a dizer. Nem sequer tinha a certeza se acreditava em mim mesma. Lá fora ouviam-se sinais de atividade ordeira, calma. Cavalos a serem tratados. Barulho de cântaros. Armas a serem afiadas. Pouca conversa.
— Estamos prontos — disse Gull.
Tirei uma pequena esponja do fundo do meu saco e molhei-a na pequena bacia, mas não por muito tempo. Gull fungou.
— Isso faz-me recordar algo, há muito tempo. As poções da minha mãe. Coisa poderosa. Amora, meimendro; sumo de lúpulo; mandrágora? Onde é que uma miúda como tu aprendeu a fazer uma bebida dessas? Isso tanto mata um homem como o cura, isso é certo.
— É por isso que pomos vinagre — disse-lhe eu, olhando-o com curiosidade. Um homem sem passado tinha mãe? — As ervas estão secas na esponja. Muito útil quando andamos por fora. Sabes um pouco destas coisas, então?
— A maior parte já as esqueci há muito. Isso é trabalho de mulher.
— Se as aprenderes de novo podem ser-te úteis. Para homens que se arriscam tanto, parece que tendes poucos recursos para tratardes das vossas feridas.
— Não acontece muito — disse Dog. — Nós somos os melhores. A maior parte das vezes saímos ilesos. Isto foi um acidente, puro e simples.
— A culpa foi dele — concordou Gull. — Além disso, ouviste o Chefe. Nós temos a nossa maneira de tratar problemas destes. Não há passageiros na nossa equipe.
Estremeci.
— Já fizestes isto antes? Cortar a garganta a um homem, em vez de o tratar?
Dog estreitou os olhos amarelos na minha direção.
— É um mundo diferente. Não espero que compreendas. Não há lugar na equipe se estamos de tal modo feridos que não podemos fazer o nosso trabalho. Fora da equipe não há lugar. O Chefe tem razão. Pergunta a qualquer um de nós. A todos. Se estivéssemos no lugar de Evan estávamos a pedir uma faca.
Pensei naquilo enquanto forçava o ferreiro a engolir algumas gotas espremidas da pequena esponja.
— Isso não faz sentido — disse eu. — Talvez faça parte do código, seja ele qual for. Mas, nesse caso, porque tentastes salvar a vida deste homem contra as ordens do vosso chefe? Por que não acabastes com ele, como ele teria feito?
Os homens pareceram relutantes em responder. Pressionei a esponja na minha mão e um pouco mais da tóxica mistura caiu para a boca de Evan. Os seus olhos fecharam-se.
Por fim, Gull falou em voz baixa.
— É diferente, sabes? Evan é um ferreiro, não um guerreiro. Tem uma profissão. Tem uma hipótese de vida lá fora, se poupar o suficiente. Mas teria que ser já; na Armórica, na Gália, do outro lado do mar. Ele tem mulher à espera, na Bretanha; pode ir, assim que arranjar a prata necessária para arranjar uma passagem segura. Ele tem a cabeça a premio, como todos nós. No entanto, tem uma hipótese.
— Que o Chefe não saiba disso — disse Snake num murmúrio. —Já foi bastante penoso pedir-lhe um par de dias para ele. Espero que saibas fazer milagres, rapariga curandeira. Vais precisar de um.
— O meu nome é Liadan — disse eu sem pensar. Podeis chamar-me assim, se vos for mais fácil. E agora, seria melhor se começássemos. Quem é que vai cortar?
Gull olhou para Dog, Snake olhou para Dog e Dog olhou para a faca letal, serrilhada.
— Parece que vou ter que ser eu — disse ele.
— O tamanho e a força não querem dizer nada — avisei eu. — Vais precisar, também, de muito controlo. O golpe tem de ser limpo e rápido. E ele vai gritar. Esta poção é forte, mas não tão forte assim.
— Eu faço isso.
Ninguém ouvira chegar o Chefe. Parecia que, por muito bons que fossem os seus homens, ele era melhor. Esperava que ele não tivesse estado a ouvir. Os seus frios olhos cinzentos percorreram a área, aproximou-se e pegou na faca. O rosto de Dog adquiriu uma expressão de alívio.
— Não te safas com essa facilidade — disse-lhe eu. — Parece-me que és o maior, por isso segura-lhe nos ombros. Mantém as mãos longe do local onde a... de onde este homem vai cortar. Tu, segura-lhe nas pernas. Ele pode parecer inconsciente, mas vai sentir a dor e o resultado dela. Quando eu te disser, usa todo o teu peso em cima dele.
Eles puseram-se em posição, preparados para obedecer às ordens.
— Já fizeste isto antes? perguntei ao homem com a faca.
— Isto exatamente, não. Mas tu vais-me dizer como é que se faz, sem dúvida.
Tomei a decisão de não perder a paciência, por mais arrogantes que fossem as suas maneiras.
— Eu digo-te como fazer, passo-a-passo. Quando começarmos, deves fazer como eu digo, rapidamente. Será mais fácil se me disseres o teu nome. Não te vou chamar Chefe.
— Chama-me o que quiseres — disse ele de sobrancelhas erguidas. — Nós, aqui, não temos nomes, salvo aqueles que ouviste.
— Há histórias sobre um homem chamado Bran — disse eu. Esse nome quer dizer corvo.
— Vou usar esse. O punhal já está quente? Deves dar-me rapidamente quando eu te disser, Dog.
— Está pronto.
— Bem. Agora, Bran, vês este ponto perto do ombro, onde o osso ainda está agarrado?
O homem a quem eu dera o nome de um viajante lendário acenou com a cabeça, o rosto crispado de desaprovação.
— Tens de cortar aqui, com limpeza. Não deixes que a faca deslize para este ponto, porque a ferida não sarará se deixarmos fragmentos lá dentro. Concentra-te na tua tarefa. Os outros seguram nele. Eu corto a pele que circunda o osso, primeiro, com a minha faca... onde está a minha faca?
Gull moveu o braço e tirou-a do local onde a tinha metido, na sua bota.
— Obrigada. Vou começar.
Mais tarde, pensei em como fora possível ter-me mantido controlada. Como conseguira parecer calma e capaz, quando o meu coração batia desordenado e os suores frios e o medo me invadiam o corpo. Medo de fracassar. Medo das conseqüências da falha, não apenas pelo infeliz Evan, mas também por mim própria. Ninguém dissera, exatamente, o que aconteceria se eu falhasse, mas eu imaginava.
A primeira parte não correu mal. Cortar com precisão através da carne, puxar a pele até onde alguém atara, de maneira extremamente apertada, uma estreita tira de pano em redor do braço, mesmo acima do cotovelo. Em breve tinha as mãos cheias de sangue até aos punhos. Até ali, tudo bem. O ferreiro torceu-se e estremeceu, mas não acordou.
— Muito bem — disse eu. — Agora, Bran, corta. Aqui. Dog, segura-o bem. Não o deixes mexer-se. Isto tem de ser rápido.
Talvez o melhor assistente, nestas ocasiões, seja um homem que não compreende os sentimentos humanos. Um homem que seja capaz de cortar um osso com tanta precisão e decisão como cortaria um pedaço de madeira. Um homem cujo rosto não mostra nada enquanto a sua vítima se agita convulsivamente, retesando-se contra os braços musculados que o seguram e deixando sair um gemido horrível das profundezas do seu ser.
— Doce Cristo — murmurou Snake, com todo o seu peso sobre as pernas do ferreiro, para o manter imóvel. O som horrível de serra continuou. O corte era tão preciso como um golpe de espada. Do meu lado, Dog tinha um dos seus maciços braços sobre o braço esquerdo do paciente e o outro sobre o seu peito.
— Cuidado, Dog — disse eu. — Ele precisa de respirar.
— Parece-me que ele está a vir a si. — As mãos de Gull seguravam com força o lado direito de Evan. — Estou a ter dificuldade em segurá-lo. Não lhe podes dar mais um bocado de...?
— Não — disse eu. — Não pode tomar mais. Já está quase. Ouviu-se um som horrível quando o último fragmento de osso foi cortado e os últimos pedaços mutilados do braço caíram por terra. Do outro lado da esteira Bran olhou para cima. Tinha sangue até aos cotovelos e a parte da frente da sua camisa estava carmesim. Não detectei qualquer mudança de expressão no seu rosto. As suas sobrancelhas ergueram-se numa pergunta silenciosa.
— Vai buscar o punhal em brasa. — Que Dí ancécht me ajudasse, tinha de fazer sozinha a parte que se seguia. Sabia o que ia acontecer e chamei a mim toda a minha coragem. Bran foi ao exterior e regressou com a arma na mão, o punho embrulhado num pedaço de pano, a lâmina brilhando, como uma espada acabada de forjar. Os seus olhos fizeram uma nova pergunta.
— Não — disse eu. — Dá-me. A tarefa, agora, pertence-me. Desata a última ligadura, ali. Vai sair sangue. Depois, vem para aqui e ajuda Dog a segurá-lo. Ele vai gritar. Segura-o com força. Não o deixes mexer.
A ligadura saiu e seguiu-se um jorro de sangue, mas menor do que eu esperava. O que não era bom sinal, porque podia significar que a carne já estava a morrer. Sem uma palavra, mudei-me para o outro lado e Bran veio para o meu, pronto para segurar no ferreiro assim que eu fizesse o primeiro gesto.
— Agora — disse eu e toquei com o ferro em brasa na ferida aberta. Ouviu-se um chiar desagradável e um aroma doentio de carne assada. O ferreiro gritou. Foi um grito mortal horrível, que ouviríamos muitas vezes nos nossos sonhos, nos anos seguintes.
Todo o seu corpo entrou numa convulsiva agonia, o peito arqueando, os membros agitando-se, a cabeça e os ombros mantidos imóveis pelos esforços conjuntos de Dog e Bran, que o forçavam a manter-se quieto, com os músculos latejando. O grande e feio Dog estava tão branco como um fantasma.
— Doce Jesus — murmurou Snake.
— Lamento mas ainda não acabei — disse eu engolindo as lágrimas, e encostei de novo a arma à ferida com firmeza, para que toda a superfície fosse selada. Forcei-me a mantê-la lá o tempo suficiente, enquanto outro grito horrível enchia o ar do pequeno abrigo. Retirei, finalmente, o ferro em brasa e fiquei ali enquanto a voz do ferreiro morria, transformando-se num asmático e arquejante queixume. Os quatro homens abrandaram o aperto e, lentamente, endireitaram-se. Eu é que não parecia capaz de me mexer. Uns momentos depois Gull tirou-me o punhal das mãos, saiu com ele, Dog começou calmamente a apanhar coisas do chão e a deitá-las numa bacia e Snake, pegando na pequena taça de vinagre e acenando com a cabeça na minha direção, começou a deitar umas gotas, com a esponja, sobre os lábios de Evan.
— Não te vou perguntar onde aprendeste isto — comentou Bran. —Estás feliz por o teres feito passar por esta agonia? Ainda estás convencida de que tens razão?
Olhei para ele. A sua expressão severa e aqueles desenhos estranhos ofuscavam-me os olhos, aquelas penas movendo-se e oscilando à luz da lamparina. Apercebi-me, de repente, de como ele estava cansado.
— Mantenho a minha posição — disse eu debilmente. — O tempo que me deste é muito curto. Mas sei que tenho razão.
— Talvez não tenhas tanta certeza depois de seis dias acampada aqui — disse ele, sinistro. — Quanto tiveres visto um pouco mais do mundo real, talvez aprendas que toda a gente é dispensável. Não há exceções, seja um ferreiro habilidoso, um guerreiro calejado ou uma rapariga curandeira. Sofremos, morremos e somos esquecidos. A vida continua.
Engoli em seco. As paredes rochosas andavam à roda.
— Haverá gente à minha procura — sussurrei. — O meu tio, o meu irmão, o meu... já devem andar à minha procura e eles têm recursos.
— Eles não te encontram. — O seu tom não admitia qualquer dúvida.
— E a escolta que viajava comigo? — Estava a agarrar-me a tudo o que podia, porque suspeitava que estavam todos mortos. — Não devem andar longe. Alguém deve ter visto o que aconteceu... alguém há de seguir...
A minha voz diminuiu de intensidade e estendi o braço em busca de equilíbrio, ao mesmo tempo que a minha visão se enchia de estrelas.
— Peço desculpa — gaguejei eu tolamente, como se me estivesse a desculpar perante uma companhia educada. De repente, senti um aperto firme no braço e fui atirada na direção do banco de madeira, onde fui forçada a sentar-me sem a menor das cerimónias.
— Snake. Deixa isso, por agora. Ele ainda respira, aguenta-se. Arranja roupas limpas à rapariga, se conseguires arranjar alguma coisa para o tamanho dela. Um cobertor e água para ela se lavar. Vai até à fogueira, arranja comida para ti e traz alguma para ela quando voltares. Ela pouca utilidade tem; mas não terá nenhuma se a deixarmos morrer de fome. — Virou-se para mim. — Primeira regra de combate. Só os melhores funcionam com pouca comida e menos sono ainda. O que só acontece com a prática. Se queres levar a cabo a tua tarefa como deve ser, prepara-te para ela convenientemente.
Eu estava demasiado cansada para discutir.
— Esta noite terás dois guardas. Um lá fora e outro para vigiar o paciente enquanto dormes. Não sejas complacente. Foste tu que escolheste a tarefa e depois desta noite ficas por tua conta.
Por fim, ia-se embora. Fechei os olhos, oscilando de exaustão no banco. O ferreiro estava calmo, por agora.
— Ah, outra coisa.
Os meus olhos reabriram-se de repente.
— Isto mereceu-te um certo... respeito. Entre os homens. Trata de que não se transforme noutra coisa qualquer. Qualquer um deles, que quebre o código, sofrerá um castigo severo. Ficarás com muita coisa na consciência, para além disto.
— Que saberá um homem como tu de consciência? — murmurei enquanto ele girava nos calcanhares e se afastava. Se me ouviu, não o demonstrou.
Foi um tempo estranho. Há histórias de homens e mulheres levados pelas Criaturas Encantadas numa noite de luar nos bosques, que viajam até ao Outro Mundo e experimentam uma vida tão diferente que, ao regressarem, mal se apercebem do que é realidade ou fantasia. O Homem Pintado e o seu bando colorido estavam tão distantes dos seres visionários do Outro Mundo quando eu podia imaginar, mas continuava a sentir que tinha sido raptada da minha vida normal: e, por mais que me custe dizê-lo, enquanto estive naquele acampamento escondido, não passei muito tempo a pensar na minha casa, ou nos meus pais, ou até como passaria a minha irmã Niamh, sozinha e partilhando uma cama estranha. Havia momentos em que tremia de medo, recordando a história de Eamonn. Reconhecia que a minha situação era, na verdade, perigosa. Os guardas que Liam mandara comigo tinham sido, certamente, despachados com implacável eficiência. Era a maneira daqueles homens. Quanto ao código, talvez me protegesse, ou talvez não. No fim, talvez a minha sobrevivência dependesse da vida ou da morte do ferreiro. Mas o meu pai disse-me uma vez que o medo não ganha batalhas. Enrolei as mangas e disse para mim própria que não tinha tempo para ataques de histerismo. Estava em jogo a vida de um homem. Além disso, tinha algo para provar e estava determinada a fazê-lo. Naquela primeira noite guardaram-me de tal maneira que era como ter uma sombra grande e bem armada, sempre um passo atrás. Tive, até, que lhes lembrar que uma mulher tem algumas necessidades físicas, que devem ser levadas a cabo em privado.
Então, desenvolvemos um compromisso, no qual eu pude, pelo menos, ficar fora de vista por breves momentos, desde que não me demorasse muito e voltasse imediatamente para onde Dog, Gull, ou Snake me esperavam, de armas na mão.
Ninguém precisou de me apontar a inutilidade de uma tentativa de fuga. Trouxeram-me comida e água e uma bacia de água para que me pudesse lavar. Metida na camisa de um qualquer deles que me descia até abaixo dos joelhos e com uma espécie de túnica larga com úteis algibeiras aqui e ali, entrancei o cabelo atrás com firmeza, para não me atrapalhar e prossegui com o que tinha de ser feito. Cuidadosamente, preparei as gotas para a dor; misturas para serem queimadas na braseira, encorajando os maus humores a saírem do corpo. Pensos para aquela queimadura feia. Compressas para a testa. Mas a maior parte do tempo passei-o simplesmente ao lado da enxerga, segurando na mão de Evan, falando calmamente ou cantando pequenas canções, como se estivesse a tratar de uma criança doente. Na segunda noite, foi-me permitido ir ao exterior, até à fogueira onde cozinhavam. Dog caminhou a meu lado pelo acampamento, onde muitos abrigos temporários tinham sido erguidos entre as árvores e os arbustos, até que chegámos a uma superfície aberta, onde um fogo sem fumo ardia, vivo, entre umas pedras. Em redor dele estava uma série de homens, sentados ou deitados, rapando comida dos pequenos recipientes que muitos viajantes transportam algures, nos seus sacos.
Havia um aroma de coelho assado. Eu tinha fome suficiente para não ser esquisita e aceitei uma tigela que me atiraram para as mãos. A noite estava calma, ouvindo-se apenas os grilos e o murmúrio fraco de um pássaro acomodando-se para passar a noite num dos ramos acima.
— Toma — disse Dog. Deu-me uma pequena colher de osso. Não estava nada limpa. Havia muitos olhos postos em mim na meia escuridão.
— Obrigada — disse eu, percebendo que me tinha sido concedido um grande privilégio. Os outros usavam os dedos para comer, ou talvez um naco de pão duro. Não havia risos e a conversa era pouca. Talvez a minha presença os reprimisse. Mesmo quando serviram a cerveja e as taças foram passando, mal se ouviu um som. Acabei a minha comida e declinei uma segunda dose. Alguém me ofereceu uma taça de cerveja e eu aceitei.
— Fizeste um belo trabalho — disse alguém, concisamente.
— Um belo trabalho — concordou um outro. — Não é nada fácil. Já o vi a ser feito antes. Um homem pode sangrar até à morte mais depressa do que um... quero dizer, é um trabalho que tem de ser feito como deve ser.
— Obrigada — disse eu seriamente. Do local onde estava sentada, perto do fogo, olhei para o círculo de rostos. Todos eles se mantinham a três, quatro passos de mim.
Perguntei a mim mesma se também aquilo fazia parte do código. Faziam parte de um grupo estranho, com a sua bizarra língua poliglota, indicando uma grande diferença de origens e um longo tempo passado em conjunto. De todos eles, pensei, talvez apenas dois ou três tivessem nascido ali, em Erin.
— Tive ajuda — acrescentei. — Não podia ter feito tal tarefa sozinha.
Um homem muito alto estudava-me cuidadosamente, de sobrolho franzido.
— No entanto — disse ele após uns momentos — não teria sido feito de todo sem ti. Certo?
Olhei em volta rapidamente, tentando não meter ninguém em sarilhos.
— Talvez — disse eu pouco à-vontade.
— Ele, agora, tem uma hipótese, não tem? — perguntou o homem alto inclinando-se para a frente, os longos braços magros rodeando os joelhos ossudos. Houve uma pausa expectante.
— Uma hipótese, sim — disse eu, cuidadosamente. — Não mais. Farei o melhor que puder por ele.
Houve alguns acenos de cabeça. Então, alguém fez um som subtil, algo entre um silvo e um assobio e de imediato todos olharam para tudo menos para mim.
— Aqui, Chefe. — Uma tigela cheia foi passada.
— Está tudo muito calmo — observei eu após uns momentos. —Não cantais canções, ou contais histórias depois da ceia?
Alguém emitiu um resmungo, suprimido instantaneamente.
— Histórias? — Dog estava perplexo, coçando a parte calva da cabeça. — Nós não sabemos histórias nenhumas.
— Queres dizer de gigantes, monstros e sereias? — perguntou o tipo muito alto, esgalgado. Pareceu-me detectar um certo brilho nos seus olhos.
— Dessas e de outras — disse eu encorajadora. — Também há histórias de heróis e de grandes batalhas, de viagens a terras distantes e maravilhosas. Muitas histórias.
— Sabes algumas dessas histórias? — perguntou o homem alto.
— Cala a boca, Spider — silvou alguém baixinho.
— As suficientes para contar uma nova todas as noites do ano e faltarem ainda algumas — disse eu. — Querem que conte uma?
Seguiu-se uma longa pausa, durante a qual os homens trocaram olhares e arrastaram os pés.
— Tu estás aqui para executar uma tarefa, não para dares espetáculo. — Não precisei de olhar para saber quem falara. — Estes homens não são crianças.
Interessante. Quando aquele homem se dirigia a mim fazia-o num irlandês perfeito, fluente e quase sem sotaque.
— Contar uma história vai contra o código? — perguntei, calmamente.
— E a personagem desse tal Bran? — perguntou Gull com alguma coragem. — Aposto que há uma história ou duas sobre ele. Gostava de ouvir uma delas.
— É uma história muito grande, para ser contada ao longo de muitas noites — disse eu. — Não vou estar aqui as noites suficientes para a contar. Mas há muitas outras.
— Deixa lá, Chefe — disse Gull. — Não tem mal nenhum.
— Por que é que eu não começo — disse eu e se sentirem que as minhas palavras são perigosas mandam-me parar? Parece-me justo.
— Achas que sim?
Bem, ele não disse que não e formou-se uma atmosfera de expectativa entre o estranho bando reunido em volta da fogueira. Assim, comecei.
— Para um bando de guerreiros como vós — disse eu — que história melhor do que a que fala do maior de todos os guerreiros, Cu Chulainn, campeão do Ulster? A história dele também é longa, feita de muitas histórias. Mas eu conto-vos aquela em que ele aprende a sua perícia e a aperfeiçoa, de maneira que nenhum homem o podia vencer, fosse ele o maior guerreiro da sua tribo. Este Cu Chulainn, sabeis, não era um homem vulgar. Corriam rumores e talvez houvesse alguma verdade por trás deles. Rumores de que ele era filho de Lugh, o deus do Sol e de uma mulher mortal. Ninguém tinha a certeza, mas uma coisa era certa: quando Cu Chulainn se preparava para lutar, operava-se uma mudança nele. Chamavam-lhe riostradb, o frenesim da batalha. Todo o seu corpo tremia e aquecia, o rosto ficava vermelho como o fogo, o seu coração batia-lhe como um grande tambor no peito e o seu cabelo eriçava-se, brilhando, com faíscas. Era como se o seu pai, o deus do Sol, o inspirasse em tais ocasiões, porque aos seus inimigos ele aparecia com uma feroz e terrível luz à sua volta, enquanto se aproximava de espada na mão. E depois da batalha ganha, dizem que eram precisos três barris de água gelada do rio para o arrefecer. Quando o mergulhavam no primeiro, este rebentava as aduelas e desfazia-se. A água, no segundo, fervia; o terceiro fervia, fervia, até que todo o calor lhe saía do corpo e Cu Chulainn voltava a ser ele de novo.
“Ora, este grande guerreiro tinha capacidades excepcionais, mesmo quando era rapaz. Era capaz de pular como um salmão e nadar como uma lontra. Conseguia correr mais depressa do que um veado e ver no escuro como um gato. Mas chegou a altura em que teve de melhorar a sua arte, na mira de conseguir uma bela dama chamada Emer. Quando pediu ao pai dela a sua mão, o velho sugeriu que ele ainda não provara ser um guerreiro e que devia procurar aprender com o melhor. Quanto à dama, teria ficado com ele logo ali, porque quem poderia resistir a um espécime tão viril? Mas ela era boa filha e seguiu as ordens do pai. Assim, Cu Chulainn perguntou, perguntou e, por fim, soube que o melhor dos professores nas artes da guerra era uma mulher, Scáthach, uma criatura estranha, que vivia numa pequeníssima ilha ao largo da costa de Alba.
— Uma mulher? — troçou alguém. — Como pode ser isso?
— Bem, esta mulher não era uma mulher qualquer, como em breve o nosso herói descobriu. Quando chegou à praia selvagem de Alba e olhou através das águas raivosas para a ilha onde ela vivia com as suas mulheres guerreiras, viu que iria ter dificuldades, mesmo antes de pôr pé em terra. Porque a única maneira de chegar lá era através de uma alta e estreita ponte, larga apenas para deixar passar um homem.
E no instante em que ele pôs o pé no tabuleiro, a ponte começou a abanar, a flectir e a oscilar para cima e para baixo, ao longo da sua considerável distância, de maneira que alguém suficientemente louco para se aventurar ao longo dela seria atirado contra as rochas afiadas, ou para as águas revoltas.
— Por que é que ele não utilizou um barco? — perguntou Spiderde sobrancelhas erguidas, perplexo.
— Não ouviste o que Liadan disse? — respondeu Gull, trocista. —Ondas raivosas? Águas revoltas? Aposto que nenhum barco era capaz de atravessar aquele mar.
— Não, na verdade — disse eu, sorrindo para ele. — Muitos tinham tentado e todos tinham perecido, engolidos pelo mar ou pelas enormes criaturas de grandes dentes que nele moravam. Bem, que havia de fazer Cu Chulainn? Ele não era homem para desistir e desejava Emer ardentemente, com um desejo que lhe enchia o corpo todo. Mediu a distância ligada pela ponte com os seus olhos penetrantes, prendeu a respiração, deixou-a sair, prendeu-a de novo e o riostmdh tomou conta dele, até que o seu coração ameaçou saltar-lhe do peito e todas as veias incharam e ficaram como uma corda de cânhamo. Então, Cu Chulainn agachou-se, deu um salto fantástico, como um salmão transpondo uma grande queda-d’água e aterrou no centro da trêmula ponte, precisamente em cima do seu pé esquerdo. A ponte oscilou e vacilou, tentando derrubá-lo, mas ele era demasiado rápido, saltando de novo e dando tal salto que quando aterrou de novo estava na praia da ilha de Scáthach.
“Lá em cima, na muralha da morada de Scáthach, que era uma torre fortificada de sólido granito, a mulher guerreira estava em pé com a sua filha, olhando. “O tipo promete”, murmurou ela. “Já sabe alguns truques. Podia ensinar-lhe umas coisas.”
“Eu também não me importava de lhe ensinar umas coisas”, disse a filha, que tinha uma coisa completamente diferente em mente.
Ouviu-se uma risada geral. Aqueles homens podiam não estar habituados a ouvir histórias, mas pareciam saber como divertir-se com uma. Quanto a mim, estava a aquecer e perguntei a mim mesma, fugidiamente, que diria Niamh se me visse naquele momento. Continuei a contar a história.
“Bem”, disse a mãe, “se o queres, fica com ele. Tens três dias para lhe ensinares as artes do amor. Depois, é meu.”
“E assim, foi a filha de Scáthach que foi dar as boas-vindas ao herói. E que boas-vindas foram, já que após os três dias, pouco havia das necessidades de uma mulher e como satisfazê-la, que ele não soubesse. Que sorte a de Emer. Depois, foi a vez da mãe e quando as lições começaram, Cu Chulainn começou a perceber que Scáthach era, na verdade, o melhor dos professores. Ela ensinou-o durante um ano e um dia e foi por ela que ele aprendeu o seu salto de batalha, com o qual podia voar mais alto do que uma lança atirada pelo seu adversário. Aprendeu a fazer a barba a um homem com rápidos golpes de espada, uma habilidade com pouco uso prático, talvez, mas que aterrorizava um inimigo.
Dog correu nervosamente uma mão pelo lado rapado do seu crânio.
— Cu Chulainn podia cortar o chão sob os pés do inimigo, a sua espada movendo-se com tal rapidez que mal se podia vê-la. Podia saltar por cima do escudo do seu adversário. Aprendeu a manobrar uma carroça com facas nas rodas, de maneira que os seus oponentes não saberiam o que os atingira, até que cairiam, feridos de morte, no campo de batalha. Também aprendeu a arte do malabarismo, manejando facas afiadas, tochas em chamas e bolas de couro. Enquanto esteve naquela ilha, Cu Chulainn viveu com uma mulher guerreira, Aoife, que lhe deu um filho, Conlai, que começou, por sua vez, uma nova história, esta de grande tristeza. Mas Cu Chulainn regressou a casa após um ano e um dia e buscou de novo a mão de Emer.
— E? — perguntou Gull, impaciente, quando fiz uma pausa. Já era tarde. O fogo morrera, transformando-se num pequeno braseiro e uma miríade de estrelas espalhava-se pelo céu. A Lua estava em quarto-minguante.
— Bem, o pai de Emer, Fogall, nunca esperara que o jovem regressasse. Esperara que Scáthach tivesse acabado com ele, se a ponte e o mar não o tivessem feito. Assim, Cu Chulainn encontrou resistência armada. Mas o guerreiro não estudara com a melhor do mundo para nada. Com o seu pequeno bando de guerreiros, todos escolhidos a dedo, destroçou as forças de Fogall sem grande esforço. Perseguiu o próprio Fogall até à beira da falésia e lutou ali homem a homem. Em breve, Fogall, ultrapassado por completo, caía para a morte nas rochas, no fundo do precipício. Então, Cu Chulainn tomou a bela Emer como noiva e devem ter tido muitas alegrias juntos.
— Aposto que ele lhe ensinou umas coisas — disse alguém em voz baixa.
— Chega. — Bran pôs-se em pé por trás de mim, a sua voz impondo silêncio imediato aos seus homens. — A história acabou. Os homens que vão entrar de guarda, mexam-se. O resto, para a cama. Não vai haver repetição.
Eles obedeceram sem uma palavra. Perguntei a mim mesma como seria ter tanto medo de um homem, nunca questionando as suas ordens. Devia haver pouca satisfação em semelhante existência.
— Tu, volta para o teu trabalho.
Levou-me uns momentos a perceber que Bran estava a falar comigo.
— Que devo responder a isso? Sim, Chefe? — Levantei-me. Dog estava mesmo atrás de mim, uma sombra constante.
— E se calasses a boca e fizesses como te mandam? Seria mais fácil para todos.
Lancei-lhe um olhar de desagrado.
— Eu não sou responsável perante ti — disse eu. — Farei o trabalho que estou aqui para fazer. É tudo. Não recebo ordens como um dos teus homens. Se eles escolheram seguir-te como escravos aterrorizados, o problema é deles. Mas eu não posso trabalhar se tiver medo e estiver sempre vigiada. E tu mesmo disseste prepara-te como deve ser, de maneira a fazeres o teu trabalho convenientemente. Algo assim.
Ele não respondeu de imediato. Algo que eu dissera tocou-lhe num nervo, apesar de aquele rosto estranho, de Inverno ou de Verão, mal mover um músculo.
— Também ajudaria se me chamasses pelo meu nome —acrescentei severamente. — O meu nome é Liadan.
— Essas histórias — disse Bran de modo ausente, como se a sua mente estivesse ocupada com outra coisa completamente diferente. — São perigosas. Fazem os homens sonhar com o que não podem ter. Com o que nunca poderá ser. Fazem com que perguntem a si próprios quem são e a que podem aspirar. Essas histórias não são para os meus homens.
Por um momento, não consegui falar.
— Ora, vá lá, Chefe — protestou Dog precipitadamente. — E Cu Chulainn e o filho dele, Conlai? Uma história de grande tristeza, foi o que ela disse. E as sereias, os monstros e os gigantes?
— Falas como uma criança. — O tom de Bran era de despedida. —Isto é um bando de homens calejados, sem tempo para disparates triviais.
— Talvez devesses arranjar — tempo disse eu, determinada a fazer valer o meu ponto de vista. — Se o que pretendes é conseguir uma vitória, não há nada melhor do que uma história de heróis, uma história sobre uma batalha contra forças muito superiores, ganha com perícia e coragem. Se os teus homens se sentem cansados ou com a moral em baixo, não há nada melhor para os animar do que uma história pateta... por exemplo a história de Lubdan, o homenzinho do prato de papas de aveia, ou a do lavrador a quem foram concedidos três desejos e os desperdiçou todos! Haverá coisa melhor, para lhes dar esperança, do que uma história de amor?
— Arriscas-te muito ao falar de amor. Serás tão inocente, ou tão estúpida, que não consegues imaginar o efeito que tais palavras podem provocar neste bando de homens? Ou talvez seja exatamente aquilo que queres. Faz a tua escolha. Um diferente todas as noites. Talvez dois.
Senti-me empalidecer.
— Estás a mostrar-te tal como és, insultando-me assim — disse eu em voz baixa.
— E como é que eu sou?
— Um homem sem sentido do que é certo ou errado. Um homem que não consegue rir e que reina pelo medo. Um... um homem sem respeito pelas mulheres. Mas há homens que procurariam uma vingança terrível, se te ouvissem falar-me assim.
Seguiu-se um momento de silêncio.
— E em que é que te baseias para fazer esse julgamento? —perguntou ele. — Conheces-me há pouco tempo e já pensas que sou uma espécie de monstro. És muito rápida a avaliar o carater de um homem.
— Como tu a avaliar uma mulher — disse eu repetidamente.
— Eu não preciso de te conhecer para saber que espécie de mulher és — disse ele em tom neutro. — Sois todas iguais. Apanhais um homem na vossa rede, exerceis a vossa atração e ele fica sem vontade ou capacidade de decisão. Acontece de maneira tão subtil que ele fica perdido, antes mesmo de reconhecer o perigo. Outros são arrastados depois dele e as trevas espalham-se cada vez mais, até que nem os inocentes escapam. — Ele parou abruptamente, nitidamente arrependido pelas suas palavras.
— Tu — disse ele para Dog, que estivera a ouvir de boca aberta. —Leva-a para onde ela deve ir e depois vai-te deitar. Gull ficará de guarda esta noite.
— Eu posso fazê-lo, Chefe. Sou capaz de fazer outro quarto...
— Gull ficará de guarda.
— Sim, Chefe.
Estávamos no segundo dia. O ferreiro, Evan, agarrava-se à vida, se bem que eu não gostasse nada da maneira como o seu corpo se agitava e tremia, ou do calor da sua testa, que eu não conseguia aliviar, por mais que lhe encostasse a esponja embebida em água fria, à qual juntara chicória e potentilha. Desenrolava-se uma certa competição entre os meus três assistentes. Todos estavam ansiosos por ajudar nos tratamentos e, se bem que lhes faltasse perícia, acolhia de boa vontade a sua força para levantar e virar o paciente.
Os homens de Bran pareciam estar sempre ocupados, treinando para o combate, tratando dos cavalos ou dos arreios, limpando e afiando armas. Eamonn enganara-se num ponto. Eles usavam armas convencionais, tais como a espada, a lança, o arco e o punhal, assim como diversos outros instrumentos cujos nomes e funções não desejei aprender. O acampamento era auto-suficiente e altamente organizado. Fiquei espantada, na terceira manhã, ao ver o meu vestido e a minha combinação, devidamente dobrados em cima de uma rocha no lado de fora do meu abrigo, lavados, secos e quase como novos. Era evidente que havia, pelo menos, um cozinheiro capaz e bastantes caçadores eficientes para fornecerem carne fresca para a panela. De onde vinham as cenouras e as cebolas, não perguntei.
O tempo escoava-se. Seis dias, até se irem embora. O ferreiro sofria e necessitava de ervas soporíferas para controlar esse sofrimento. Porém, se era suposto ele continuar sem mim, devia saber a verdade. Havia alturas em que ele olhava para onde, em tempos, o seu forte braço se juntava ao seu poderoso ombro. Mas os seus olhos febris não demonstravam um reconhecimento real quando eu lhe falava no que acontecera e como seriam as coisas no futuro.
Caminhei pelo acampamento no terceiro dia com Snake perto de mim. As minhas roupas emprestadas precisavam de ser lavadas, porque estavam cheias do sangue do meu paciente e aqui e ali manchadas do vomitado que ele não conseguia guardar no estômago mais do que o tempo que levava a contar até dez.
Quando chegámos à margem da corrente encontrámos o homem alto, Spider e um outro a quem chamavam Otter, lutando na relva. Otter estava a ganhar, porque naquele desporto o tamanho dá pouca vantagem, se o oponente é rápido e esperto.
Houve uma grande pancada na água e lá estava Spider, ensopado até aos ossos, parecendo derrotado. Otter limpou as mãos às suas calças de couro. A parte superior do seu corpo estava nua e ele usava um desenho complexo no peito, muitas linhas formando um círculo tortuoso.
— Bom dia, Snake.
— Bom dia, senhora. Agarra aqui, palerma. Levanta-te. Precisas de praticar mais. — Otter estendeu um braço e puxou o embaraçado Spider para fora da água.
— Loucos — comentou Snake calmamente. — Se o Chefe vos apanha.
Desenrolei a minha trouxa e comecei a esfregar a roupa suja nas pedras macias da água pouco profunda.
— É melhor voltardes para o acampamento, ou lá para onde deveis ir — continuou Snake, O Chefe não ficaria muito satisfeito se vos visse a falar aqui com a senhora.
— Mas tu podes — resmungou Spider, nitidamente envergonhado por ter sido apanhado assim, ensopado e derrotado. — Como é que cumpres as tuas guardas?
— Não tens nada com isso.
— Por que é que têm tanto medo dele? — perguntei, fazendo uma pausa e olhando para os três. Era uma pena não haver saponária a crescer por ali. Tinha de lhes perguntar como tinham limpo o meu vestido.
— Medo? — Spider estava perplexo. Snake franziu o sobrolho.
— Percebeste mal — disse ele. — O Chefe é um homem a respeitar, não a recear.
— O quê? — Sentei-me nos calcanhares, espantada. — Quando todos se calam à mínima palavra dele? Quando ele ameaça com o pior dos castigos se transgredis um código que foi, sem dúvida, inventado por ele? Quando estais ligados a ele numa espécie de irmandade, da qual parece não poderdes escapar? O que é isso, senão governar pelo medo?
— Ehhh — disse Snake, alarmado. — Baixa a voz.
— Estás a ver? — desafiei-o eu, mas em voz mais baixa. — Tu nem te atreves a falar dessas coisas em voz alta, não vá ele ouvir-te e castigar-te.
— Isso é verdade — disse Spider, sentando a sua figura desengonçada numa pedra perto de mim. — Ele sabe como estabelecer as regras e aplicá-las. Mas são regras justas. O código existe para nos proteger. Uns dos outros. De nós próprios. Todos sabem isso. Se o quebrarmos, a escolha é nossa, sofrendo depois as consequências.
— Mas o que é que vos prende aqui, senão o medo dele? —perguntei, perplexa. — Que espécie de vida é essa, matar por dinheiro, não poder entrar no mundo real, não poder... amar, ver os vossos filhos crescer, observar uma árvore plantada por vós para dar sombra à vossa casa, ou lutar numa batalha em que o direito esteja do vosso lado? Isso não é vida.
— Tu não podes compreender — disse Snake acanhadamente.
— Tenta — disse eu.
— Sem o Chefe — era Otter a falar — não seríamos nada. Nada. Mortos, presos ou pior ainda. Escumalha do mundo, todos nós. Não digas que isto não é vida. Ele deu-nos uma vida.
— Otter tem razão — disse Snake. — Pergunta a Dog. Ele que te conte a sua história, ele que te mostre as cicatrizes que tem nas mãos.
— Nós somos homens que ninguém quis — disse Spider. — O Chefe tornou-nos úteis; deu-nos um lugar e um objetivo.
— E Gulft — continuou Snake. — Vem de uma terra estranha, de um lugar longínquo, quente como o inferno e onde só há areia. Terra de gente negra, como ele. Mas adiante, ele passou muito. Viu a sua gente ser retalhada até à morte. Mulher, filhos, anciãos. Tudo o que queria era morrer. O Chefe pegou nele, falou com ele. Foi difícil. Agora, Gull é o melhor de nós todos, com exceção do Chefe.
Tinha-me esquecido por completo da lavagem da minha roupa, que estava em vias de flutuar pela corrente abaixo. Snake estendeu um braço, agarrou nela e entregou-me, recuando, depois, três ou quatro passos.
— Todos os homens, aqui, têm uma história — disse Otter. — E todos tentam esquecê-la.
— Nem passado, nem futuro, apenas presente. É mais fácil. Todos nós fomos votados ao ostracismo. Nenhum pode regressar; com exceção, talvez, do ferreiro. Esta é a nossa existência, aqui nestes bosques ou algures numa missão, sabendo que somos os melhores no que fazemos. Esta é a nossa identidade: somos o bando do Homem Pintado. Ele exige um bom preço e divide-o. Eu prefiro estar aqui com ele do que vestido com o uniforme do exército privado de um fidalgote qualquer.
— Quem é que te queria? — troçou Snake. — És um tipo cheio de manhas. Antes de ouvires a primeira ordem já estavas metido em sarilhos.
— Eu acato as ordens dele todos os dias — replicou Otter seriamente. — O Chefe salvou-me a vida. Mas a minha vida é barata. Devo-lhe algo muito mais valioso. O meu amor-próprio.
— Mas... — Eu estava extremamente confusa. Comecei a torcer a minha roupa. — Mas... não compreendo. Não vês que o que fazes é... monstruoso? Demoníaco? Matar sem escrúpulos, por dinheiro? Como podes chamar a isso uma profissão, como se não houvesse diferença entre isso e... e criar porcos, ou construir barcos?
— As pessoas criam porcos para os comer — disse Otter. — A diferença não é muito grande.
— Oh! — Era como discutir com uma parede de pedra. — Estamos a falar de homens, não de animais criados para a panela. Não te incomoda não fazer mais nada senão matar? Matar onde e quando o teu Chefe determina, se ele conseguir o melhor preço? Hoje recebes instruções de um bretão e amanhã de um senhor de Connacht, ou de um chefe picto. Não faz sentido.
— Isso não é bem assim — disse Spider aparentemente surpreendido. — Nem sempre é assim, sabes? Nós somos todos muito diferentes. Aqui há saxões, pictos, homens do Sul e outros, como Gull, de lugares dos quais nem sabemos o nome. Somos uma manta de retalhos.
— Mas isso não quer dizer que... oh! — Desisti, frustrada.
— E Cu Chulainn? — perguntou Snake. Aquilo era inesperado. —Ele matou o pai da sua amada. Pergunto a mim próprio o que terá ela pensado disso? Os homens dele liquidaram o exército do pai dela. Para quê? Para ele conquistar uma mulher, satisfazer a sua luxúria. Para poder mostrar que era o mais forte. Qual é a diferença entre isso e matar por dinheiro? Não creio que seja diferente.
Fiquei sem resposta. Além disso, eram horas de voltar. Dog não podia ficar encarregue do ferreiro por muito tempo, dadas as suas qualificações.
Mas quando nos aproximámos do abrigo, a voz calma que ouvimos não era a de Dog. Fiz sinal a Snake para se manter calado.
— Um homem, não precisas de saber o nome dele... de Lundenwic, em Wessex, para a Gália... ele arranja maneira de tu atravessares para... não, não digas nada, nós tratamos...
— Chefe. — A resposta de Evan foi fraca, mas soou como se ele tivesse compreendido.
Portanto, estava acordado e a sua mente trabalhava, pelo menos por agora. Snake recuara até à margem e estava ocupado com uma coisa qualquer. Eu esperei, mantendo-me escondida, cheia de curiosidade.
— O que é que o impediu? — perguntou Evan. — Quando viu o estado em que fiquei... o que é que o impediu?
Seguiu-se uma breve pausa.
— Não te vou mentir, Evan — disse Bran calmamente. — Eu tê-lo-ia feito. E não estou convencido, até agora, de que tenhamos agido bem.
Silêncio, de novo. O ferreiro estava a ficar cansado.
— Miúda mandona, não é? — disse ele, esboçando um riso abafado. — Gosta de mandar. Ela falou comigo. Eu não sabia se estava acordado ou a dormir, a maior parte do tempo, mas ouvi-a muito bem. Disse-me diretamente. O braço tem que sair, disse ela. Não é o fim do mundo, disse ela. Disse-me o que eu podia fazer sem ele. Meteu-me umas ideias na cabeça, coisas com que eu nem sequer sonharia. Se fosse ontem, tê-lo-ia amaldiçoado por não ter acabado comigo. Mas, agora, já não tenho tanta certeza.
— É melhor descansares — disse Bran. — Ou vou ser acusado de subverter os planos dela, não tenho dúvida nenhuma.
— Ela tem personalidade. É o seu tipo, Chefe. Agradável à vista, também.
Passou-se um momento até Bran responder àquilo. Quando o fez, já o calor abandonara a sua voz.
— Conheces-me melhor do que isso, ferreiro.
— Hã-hã.
Ele vinha a sair. Subitamente, mostrei-me atarefada, estendendo a roupa a secar na copa dos arbustos vizinhos. Ele estacou à entrada.
— Onde está Dog? — perguntei sem me virar.
— Não está longe. Eu fico aqui até ele voltar.
— Não é preciso — disse eu. — Snake está ali em baixo. Um guarda é suficiente. Podes confiar em mim para esta tarefa. Não a teria aceitado se pensasse em fugir à primeira oportunidade.
Olhei para cima, para ele, que olhava para mim com ar sério e pensei, não pela primeira vez, nas suas duas feições. O desenho intrincado no lado direito dava-lhe ao olho um ar de ameaça, ao nariz uma certa arrogância e à boca uma firmeza severa. No entanto, se se conseguisse olhar para o lado esquerdo, esquecendo por completo o direito, a pele era clara, o nariz direito e o olho de um cinzento límpido, como a água de um lago numa manhã de Inverno. Apenas a boca era a mesma, dura e retraída. Era como se houvesse dois homens no mesmo corpo. Estava a fixá-lo. Fiz um esforço e afastei o olhar.
— Confiar? Essa palavra não tem significado.
— Como queiras — disse eu e fiz tenção de ir para dentro do abrigo.
— Ainda não — disse Bran. — Ouviste, não ouviste? O ferreiro a falar?
— Alguma coisa. Estou satisfeita por ele estar consciente. Parece estar a melhorar.
— Hum. — Não parecia convencido. — Graças a ti, tem alguma esperança no futuro. Pintaste-lho com palavras tuas, imagino, tal como fizeste ontem à noite com os meus homens. Um recomeço cor-de-rosa, cheio de amor, vida e luz do Sol. No entanto, atreves-te a julgar-nos.
— Que queres dizer? — perguntei calmamente. — Eu só lhe disse a verdade. Não lhe escondi os fatos, não lhe escondi a extensão da lesão nem como ela o limitaria. Como te disse antes, a vida dele não acabou. Há muitas outras coisas que ele pode fazer.
— Falsas esperanças — disse ele em tom neutro, franzindo o sobrolho enquanto dava um pontapé na terra com a ponta da bota. — Isso não é vida para um homem activo. À tua maneira suave és mais cruel do que o assassino, que mata a sua vítima com rapidez e eficiência. Tal vítima não sofre muito. Pelo contrário, a tua aprende, durante o resto da vida, que as coisas já não são o que eram.
— Eu não lhe disse que a vida seria a mesma. Seria boa, mas diferente. Foi isso que eu disse. E falei na necessidade de ter uma mente forte e força de vontade, mais do que força física. Força para lutar contra o desespero. Não estás a ser justo comigo. Eu fui justa com ele.
— Não fales de justiça — disse Bran. — O que acontece é que tu julgas que eu sou uma espécie de monstro.
Olhei para ele.
— Nenhum homem é monstro — disse eu. — Os homens fazem coisas monstruosas, isso é certo. E eu não julguei com leveza, como tu. Eu já tinha ouvido falar de ti, antes de ter sido rudemente raptada e trazida para aqui contra a minha vontade. Como deves calcular, a tua fama precede-te.
— O que é que ouviste dizer de mim? E por quem? — Já estava arrependida das minhas palavras.
— Umas coisas, lá em casa — disse eu cuidadosamente. — Boatos de mortes, aparentemente ao acaso, executadas de maneira eficaz e... e fora do vulgar. Histórias de um bando de mercenários, que faz tudo se for bem pago e que não permite que coisas mesquinhas como lealdade, honra ou justiça, se intrometam no seu trabalho. Homens com aparência de animais selvagens ou criaturas do Outro Mundo. Liderados por um chefe sombrio chamado o Homem Pintado. Ouvem-se histórias dessas por toda a parte.
— E que casa é essa, na qual tais boatos chegaram aos teus ouvidos?
Não respondi.
— Responde à minha pergunta — disse ele ainda suavemente. — É tempo de me dizeres quem és e de onde vens. Os meus homens foram estranhamente vagos quando me disseram como te tinham encontrado e quem te acompanhava. Ainda estou à espera de uma explicação adequada da parte deles.
Permaneci calada, de olhos fixos nele.
— Responde, maldita sejas!
— Vais-me bater, desta vez? — perguntei, sem levantar a voz.
— Não me tentes. Como é que te chamas?
— Pensei que aqui não havia nomes.
— Tu não pertences, nem podes pertencer aqui — estalou a voz de Bran. — Posso tirar-te essa informação, se for preciso. Será mais fácil para ambos se me disseres, simplesmente. Espanta-me que não te apercebas do perigo da tua presente situação. Talvez sejas um pouco lenta de espírito.
— Muito bem — disse eu. — Façamos uma troca. Eu digo-te o meu nome e de onde venho, se tu me disseres o teu, o verdadeiro, quero dizer, e onde nasceste. As tuas origens estão na Bretanha, penso, se bem que fales a nossa língua fluentemente. Mas nenhuma mãe dá ao filho o nome de Chefe.
Seguiu-se um breve silêncio. E então ele disse:
— Estás a pisar solo perigoso.
— Deixa-me lembrar-te — repliquei com o coração aos pulos — que não estou aqui de livre vontade. Deve haver homens da minha casa à minha procura, andam armados e sabem lutar. Achas que ia pôr em perigo os seus esforços para me encontrar dizendo-te quem são e de onde vêm? Talvez seja lenta de espírito, mas não tanto assim. Já te disse que o meu nome é Liadan e isso basta, até me dizeres o teu.
— Não consigo imaginar por que se daria alguém ao trabalho de te procurar — disse ele, frustrado. — O teu hábito de morder, qual terrier intrometido, não faz com que os teus se cansem de ti?
— Não — disse eu docemente. — Em minha casa sou conhecida como uma rapariga calma, respeitadora. De boas maneiras, trabalhadora, obediente. Suponho que foste tu que fizeste com que o que há de pior em mim viesse à superfície.
— Hum — disse ele. — Calma, respeitadora. Duvido. É preciso muita imaginação. É mais provável que, de acordo com os da tua espécie, mintas quando te convém. Para uma contadora de histórias como tu, isso deve ser fácil.
— Insultas-me — disse eu, mantendo a voz calma cada vez com maior dificuldade. — Preferia levar uma bofetada. Histórias não são mentiras nem verdades, antes qualquer coisa entre as duas. Podem ser verdadeiras ou falsas, conforme o ouvinte escolhe, ou o contador quer. É sintomático do círculo que desenhaste à tua volta, para manter as outras pessoas de fora, que não compreendas isso. Eu não minto com facilidade e nunca o faria por uma razão superficial.
Ele olhou para mim com aqueles olhos cinzentos, gelados. Pelo menos, conseguira uma espécie de reação.
— Por Deus, mulher, arranjaste uma saída muito velha para essa lógica retorcida! — disse ele, impacientemente. — Basta. Tenho mais que fazer.
— É verdade — disse eu calmamente e virei-me, entrando para continuar a minha tarefa sem olhar para trás.
Evan estava a aguentar-se; já falava conscientemente e dormia melhor. Assegurei-me de que ninguém se apercebesse de como estava surpreendida. Gull ficou de guarda nessa noite e eu perguntei-lhe como iria o paciente ser levado quando chegasse a hora, mas ele foi evasivo. Então, mandei-o ao exterior por um bocado, para que me pudesse lavar e preparar-me para a refeição da noite. O ferreiro estava quase adormecido, os olhos quase fechados e a respiração suficientemente calma após a dolorosa mudança dos pensos. Tomara um pouco de caldo de carne.
— Isto é embaraçoso — disse-lhe eu. — Fecha os olhos, vira a cabeça para lá e não te mexas até eu dizer.
— Quieto como um morto — sussurrou ele com uma certa ironia e fechou os olhos.
Despi-me rapidamente, tremendo enquanto passava a esponja pelo corpo e utilizando o bocado de sabão grosseiro que Dog encontrara para mim. Ao passar a esponja de novo fiquei com pele de galinha, apesar de estarmos no Verão. Virei-me para agarrar na toalha grosseira, procurando vestir-me o mais depressa possível e vi-me a olhar para os profundos olhos castanhos de Evan, deitado de barriga para baixo na enxerga e com um sorriso de orelha a orelha.
— Não tens vergonha? — exclamei, ao mesmo tempo que me subia um rubor pelo corpo nu acima. Não podia fazer outra coisa senão secar-me superficialmente e meter-me, o mais rapidamente que podia, na minha roupa de baixo, combinação e vestido, contente por conseguir apertá-lo sem ajuda. — Um homem da tua idade a agir, como... como um rapaz mal-educado que espia as raparigas. Eu não te disse...?
— Sem ofensa, miúda — disse Evan, o esgar abrandando até se transformar num sorriso que dava às suas feições rudes uma doçura surpreendente. — Foi superior a mim. Que vista agradável, se me é permitido.
— Não, não é permitido — cortei, mas já o tinha desculpado. — Não o voltes a fazer, ouviste? Já é mau ser a única mulher aqui, quanto mais...
De repente, ele ficou sério.
— Estes homens nunca te fariam mal, miúda — disse ele, gentilmente. — Eles não são bárbaros, que violam e pilham por gozo. Se querem uma mulher, não precisam de a forçar. Há muitas por aí e nem todas querem dinheiro, acredita. Além disso, eles sabem muito bem que não te podem tocar.
— Por causa do que ele disse? O Chefe?
— Bem, sim, ele disse-lhes para manterem as mãos afastadas, segundo me disseram. Mas ele podia ter poupado as palavras. Qualquer um com olhos na cara vê que tu és mulher para o leito conjugal, não uma dessas da estrada, para uma rapidinha, se permites que diga. Tens um homem em casa, não tens?
— Não exatamente — disse eu, pouco segura da melhor resposta.
— O que é que isso quer dizer? Ou tens, ou não tens. Marido? Namorado?
— Tenho um... um pretendente, suponho que se lhe pode chamar assim. Mas não concordei em casar com ele. Ainda não.
Evan deu um longo suspiro enquanto eu lhe aconchegava o cobertor e lhe compunha a almofada de emergência.
— Pobre rapaz — disse ele, sonolento. — Não o faças esperar demasiado.
— Da próxima vez que te disser para manteres os olhos fechados, faz o que te digo — disse eu severamente.
Ele resmungou qualquer coisa e preparou-se para descansar, ainda com o sorriso no rosto.
Nessa noite contei-lhes histórias para os fazer rir. Histórias engraçadas. Histórias tolas. Lubdan e o prato de papas de aveia. Ele vingara-se dos homens normais, não havia dúvida. A história do homem que conseguira três desejos das Criaturas Encantadas, para poder ser saudável, rico e feliz. Pobre louco, no fim ficara apenas com uma salsicha. Quando terminei, os homens riam a bandeiras despregadas e pediam mais Todos menos o Chefe, claro. Ignorei-o o melhor que pude.
— Mais uma — disse eu. — Só mais uma. E agora sejamos sérios de novo e meditemos nas fraquezas de todas as criaturas. Contei-vos, ontem à noite, a história de um dos nossos grandes heróis, Cu Chulainn, do Ulster. Lembrais-vos de como ele se deitou com a mulher guerreira Aoife e de como ela lhe deu um filho, muito tempo depois de ele se ter ido embora da ilha. Não que ele a tivesse deixado sem uma lembrança. Deu-lhe um pequeno anel de ouro para o dedo mais pequeno, antes de desaparecer para casar com a sua amada Emer.
— Grande coisa — comentou alguém, secamente.
— Aoife estava habituada. Ela era a sua própria mulher, era forte e não tinha tempo para os egoísmos dos homens. Deu à luz o seu filho e no dia seguinte já estava na rua balançando o seu machado de guerra sobre a cabeça. Deu o nome de Conlai à criança e, como deveis imaginar, ele cresceu perito em todas as artes do combate, de modo que poucos o podiam desafiar. Quando ele fez 12 anos, a mãe, a mulher guerreira, deu-lhe o pequeno anel de ouro, para que o usasse numa corrente em volta do pescoço e disse-lhe o nome do pai.
— Terá sido boa ideia? — arriscou Snake.
— Depende. Um rapaz precisa de saber quem é o pai. Além disso, quem sabe se esta história não teria o mesmo fim se Aoife lhe tivesse escondido tal fato? Era o sangue de Cu Chulainn que lhe corria nas veias, quer usasse o nome dele, quer não. Ele era um jovem destinado a ser um guerreiro, a correr riscos, cheio da impetuosa coragem do seu pai.
“Ela segurou-o o mais que pôde, mas chegou o dia em que Conlai fez 14 anos e, achando-se homem feito, partiu em busca do pai, para lhe mostrar o filho que tinha. Aoife teve um mau pressentimento e quis proteger o rapaz. Ele teria de ter muito cuidado, disse-lhe ela, não poderia dar a saber que era filho do maior herói que o Ulster alguma vez conhecera. Pelo menos até chegar à morada do pai. Ali, estaria a salvo; mas no caminho, poderia encontrar aqueles cujos filhos ou irmãos tinham tido problemas com Cu Chulainn e quem poderia dizer que não se vingariam do pai matando-lhe o filho? Portanto, disse ela a Conlai, não digas a guerreiro nenhum o teu nome. Promete-me. E ele prometeu, porque ela era a sua mãe. Assim, involuntariamente, traçou-lhe o destino, quando queria apenas acautelá-lo.
Seguiu-se um silêncio total, apenas quebrado pela brisa que agitava as árvores sombrias por cima de nós. Era lua nova.
— Conlai atravessou o mar, afastando-se de Alba e percorreu Erin a pé, até chegar ao Ulster e à casa do seu pai, o grande herói Cu Chulainn. Era um rapaz alto e forte e o seu elmo e o seu vestuário de batalha não o distinguiam de um guerreiro experimentado. Aproximou-se dos portões e ergueu a sua espada num desafio; e respondeu Conall, irmão mais novo de Cu Chulainn: “Como é que te chamas, descarado?”, gritou Conall. “Diz-me, para eu saber quem é o pai daquele que jaz a meus pés quando este duelo acabar!”
Mas Conlai não respondeu, porque queria cumprir a promessa que fizera a sua mãe.
Seguiu-se um pequeno e feroz combate, observado com interesse por Cu Chulainn e pelos seus guerreiros do alto da muralha. E não foi o desafiante que ficou estendido no chão, no fim.
Contei-lhes, depois, como o rapaz vencera todos os homens que se aventuraram com espadas, lanças ou punhais, até que o próprio Cu Chulainn decidiu aceitar o desafio, porque gostava da postura dos ombros do jovem e da certeza dos seus passos, vendo nele algo de si próprio, sem dúvida. “Eu vou lá abaixo e trato daquele tipo”, disse ele. “Parece ser um adversário poderoso, se bem que um pouco arrogante. Veremos o que faz ele às capacidades de luta de Cu Chulainn. Se ele for capaz de se aguentar até o Sol desaparecer por trás daqueles ulmeiros além, dou-lhe as boas-vindas a minha casa e ao meu bando de guerreiros, se ele assim quiser.”
“E lá foi ele. Saiu os portões e disse ao rapaz quem era e ao que vinha. Pai, sussurrou Conlai para si próprio, mas não disse uma palavra, porque prometera a sua mãe e não quebraria a promessa. Cu Chulainn sentiu-se ofendido por o desafiante não ter a cortesia de dizer o seu nome e assim começou o combate já irado, o que nunca é bom.
Ouviu-se um murmúrio de concordância entre os homens. Eu observava Bran; não o podia evitar, porque ele estava tranquilamente sentado perto de mim, o rosto iluminado pelo fogo, para o qual olhava com uma expressão bem estranha. Havia algo naquela história que lhe chamara a atenção, ao contrário dos outros e se eu não soubesse que espécie de homem ele era, diria que havia algo parecido com medo na sua expressão. Devia ser um truque da luz, disse eu a mim mesma, e continuei.
— Bem, seguiu-se um combate como raramente se vê: o experimentado e curtido guerreiro contra o rápido e impetuoso rapaz. Lutaram com a espada e o punhal, em círculos, para a frente e para trás, desviaram-se um do outro, mergulhando e serpenteando, saltando e fugindo, de modo que às vezes era difícil saber qual era qual. Um dos homens que observava de cima comentou que em estatura, os dois homens eram igualzinhos. O Sol desceu cada vez mais e tocou no topo do ulmeiro mais alto. Cu Chulainn pensou em dar o combate por terminado, porque, na verdade, ele estava apenas a brincar com aquele desafiante descarado. Ele era muito superior e só pensara testar o outro até o prazo determinado por si terminar, oferecendo-lhe, depois, a mão da amizade.
“Mas Conlai, desesperado por provar a si próprio do que era capaz, deu um elegante golpe súbito com a espada e vede! Ali, na sua mão, estava uma ardente madeixa de cabelo de Cu Chulainn. Por um momento, apenas por um momento, a fúria da batalha apoderou-se de Cu Chulainn e antes de se aperceber do que estava a fazer deu um grande rugido e mergulhou a sua espada no peito do seu oponente.
Ouviu-se um murmúrio à minha volta; alguns, na audiência, já previam o desfecho, mas todos sentiram o peso de tal horror.
— Depois de ter feito aquilo, Cu Chulainn veio a si. Arrancou a arma e o sangue de Conlai começou a escorrer para o chão, carmesim. Os homens de Cu Chulainn desceram, tiraram o elmo ao estranho e lá estava ele, apenas um rapaz, um jovem, cujos olhos já escureciam com a sombra da morte, cujo rosto empalidecia, empalidecia, à medida que o Sol desaparecia por trás dos ulmeiros. Então, Cu Chulainn desapertou as vestes do rapaz, tentando tornar-lhe o fim mais confortável.
E viu o pequeno anel, preso na corrente em volta do pescoço de Conlai. O anel que ele dera a Aoife, quase 15 anos antes.
Bran levou a mão à testa, escondendo os olhos. Imóvel, continuou a olhar para as chamas. Que dissera eu?
— Ele matou o próprio filho — sussurrou alguém.
— O seu filho — disse alguém. — O seu próprio filho.
— Era demasiado tarde — disse eu sobriamente. — Demasiado tarde para poder remediar o desastre. Demasiado tarde para despedidas, porque no momento em que Cu Chulainn tomou consciência do que fizera, o último sopro de vida do seu filho esvaía-se e o espírito de Conlai voava para longe do seu corpo.
— Foi terrível — disse Dog em tom chocado.
— É uma história triste — concordei, tentando perceber se algum deles seria capaz de comparar a história com as suas atividades. — Dizem que Cu Chulainn levou o rapaz para dentro do castelo nos seus próprios braços e que mais tarde o enterrou com toda a cerimônia. Como ele se sentiu e o que disse, a história não nos diz.
— Um homem não poderia fazer tal coisa e atirá-la para trás das costas — disse Gullem, voz muito baixa. — Ficaria para sempre dentro dele, quer quisesse, quer não.
— E a mãe dele? — perguntou Dog. — Que disse ela sobre tudo aquilo?
— Ela era uma mulher — disse eu secamente. — A história não se preocupa mais com ela. Suponho que suportou a perda e continuou como até ali, como mulher que era.
— De certo modo, a culpa foi dela — alguém alvitrou. — Se ele pudesse dizer como se chamava, ter-lhe-iam dado as boas-vindas, em vez de lutarem.
— Foi a mão de um homem que lhe enterrou a espada no peito. Foi o orgulho masculino que levou Cu Chulainn a dar o golpe. Não podes culpar a mãe. Ela apenas procurou proteger o filho, porque sabia como eram os homens.
As minhas palavras foram recebidas em silêncio. Pelo menos, a história fizera-os pensar. Após o anterior divertimento, a disposição era, na verdade, sombria.
— Achais que vos julgo com demasiada severidade? — perguntei, levantando-me.
— Nenhum de nós matou o próprio filho — disse Spider, ultrajado.
— Mas mataste os filhos de outros homens — disse eu, calmamente. — Cada homem que cai sob a tua faca, sob as tuas mãos, ou sob o teu pedaço de corda, é o amor de uma mulher qualquer, o filho de qualquer mulher. Todos.
Nenhum deles disse nada. Achei que os tinha ofendido. Após uns momentos, alguém deu a volta ao círculo enchendo as taças de cerveja e alguém atirou mais lenha para a fogueira, mas ninguém falou. Eu esperava que Bran falasse, talvez para me dizer que fechasse a boca e deixasse de perturbar o seu ótimo bando de guerreiros. Em vez disso levantou-se, girou nos calcanhares e afastou-se sem uma palavra sequer.
Procurei-o com os olhos, mas ele já tinha desaparecido como uma sombra por entre as árvores. A noite estava muito escura. Lentamente, os homens começaram a falar de novo entre eles, em voz baixa.
— Senta-te um bocado, Liadan — disse Gull, amavelmente. — Bebe mais um pouco de cerveja.
Eu sentei-me, lentamente.
— O que é que se passa com ele? — murmurei, olhando para lá do círculo. — O que é que eu disse?
— Quer estar sozinho — resmungou Dog, que tinha ouvido. — Ele fica de guarda esta noite.
— O quê?
— Lua Nova — disse Gull. — Ele fica sempre de guarda, nestas noites. Disse-nos a todos para descansarmos. Deve ter ido render Snake. É razoável. Se vai ficar acordado de qualquer maneira, bem pode dispensá-lo.
— Por que é que ele não dorme? Não me vais dizer que ele se transforma numa espécie de monstro com a mudança da lua, espero; meio homem meio lobo, talvez?
Gull riu-se.
— Não. Apenas, não dorme. Não te sei dizer porquê. Desde que o conheço que é assim.
— Seis, sete anos. Mantém-se acordado até chegar a madrugada.
— Tem medo de dormir?
— Ele? Medo? — Parecia que só a ideia já dava para rir.
Gull foi comigo até ao abrigo e deixou-me lá. Bran estava lá dentro, a mão na testa do ferreiro, falando em voz baixa. Estava uma lamparina acesa e esta espalhava uma luz dourada sobre as paredes rochosas e sobre o homem deitado na esteira. Tocava também as feições desenhadas de Bran, emprestando-lhes luz e sombra, suavizando-lhe a linha dura da boca.
— Ele está acordado — disse ele quando eu entrei. — Há alguma coisa em que te possa ajudar antes de me ir embora?
— Não, obrigada — disse eu. Snake, sob instruções minhas, preparara uma bacia de água com algumas das ervas curativas e eu coloquei-a sobre o banco ao lado da esteira.
— Tu és boa rapariga — disse Evan com voz fraca. — Já to tinha dito, mas digo-to outra vez.
— A lisonja não te leva a lado nenhum — disse eu, desabotoando-lhe a camisa cheia de suor.
— Isso não sei. — Conseguiu mostrar um esgar torcido. — Não é todos os dias que tenho uma mulher bonita como tu a despir-me. Quase que vale a pena ter perdido um braço.
— Deixa-te de disparates! — disse eu, passando-lhe a peça de tecido úmida pelo corpo.
Emagrecera de modo alarmante; sentia-lhe as costelas por baixo da pele e profundos buracos na base do pescoço.
— Estás muito magro para o meu gosto, de qualquer maneira —disse-lhe eu. — Tenho que te engordar. Sabes o que isso quer dizer. Mais caldo de carne antes de dormires.
Os seus olhos estavam tão confiantes como os de um cão fiel, enquanto lhe passava a esponja pela testa.
— Bran, Snake deve ter deixado a tigela do caldo ao lado da braseira pequena. Arranjas-me uma taça?
— Caldo de carne — disse Evan com aversão. — Caldo de carne! Por que não me dás comida a sério?
Mas, na circunstância, já lhe era difícil engolir um gole ou dois. E tive que pedir a Bran que me ajudasse, o braço dele erguendo a cabeça do ferreiro enquanto eu metia com a colher, aos poucos e poucos, a mistura por entre os seus lábios. Evan engasgou-se, apesar dos seus esforços.
— Respira devagar, como eu te disse — disse eu, calmamente. —Tens de tentar guardar isso lá dentro. Mais uma colher.
Em breve estava exausto. E tinha engolido tão pouco. Gotas de suor caíam-lhe da testa. Ia precisar de queimar algumas ervas aromáticas, porque não conseguia fazê-lo engolir a mistura, o que lhe daria um certo alívio. Ele nunca falava da dor, apenas na brincadeira, mas eu sabia que era extrema.
— Importas-te de aproximar mais um pouco a braseira?
Bran não disse nada e cumpriu a minha ordem. Observou-me em silêncio enquanto eu retirava o necessário do meu saco e borrifava as brasas ainda vermelhas. Já pouco restava. Mas três dias não era muito tempo. Não me permiti pensar para além desse ponto. O cheiro picante subiu no ar noturno. Zimbro, pinheiro e folhas de cânhamo.
Se ao menos eu tivesse conseguido que o homem bebesse algum chá, porque meia taça de alfazema e uma infusão de folhas de vidoeiro pode aliviar a dor e dar um sono curativo. Mas não tinha os ingredientes para fazer semelhante bebida, nem Evan teria a energia para a engolir. Além disso, o solstício do Verão já tinha passado. As folhas de vidoeiro só são boas para tal propósito se forem frescas, apanhadas na Primavera. Gostaria que a minha mãe estivesse ali comigo. Saberia o que fazer. O ferreiro ficou mais calmo, de olhos fechados, mas respirava com dificuldade. Torci o pano e comecei a arrumar tudo.
— E se Conlai nunca tivesse sabido o nome do pai? — perguntou Bran subitamente, da entrada. — E se ele tivesse crescido, digamos, numa família de agricultores, ou com monges num mosteiro? Que teria acontecido?
Fiquei tão surpreendida que não disse nada, as minhas mãos ainda ocupadas automaticamente, esvaziando a bacia e limpando-a e desenrolando o meu cobertor no chão duro.
— Tu disseste que era o sangue do pai que lhe corria nas veias, que era a vontade do pai, de ser um guerreiro, que lhe ia na alma. Mas a mãe treinou-o nas artes da guerra, traçou-lhe esse rumo, antes de ele saber quem era Cu Chulainn. Dirias que, fosse qual fosse a sua educação, este rapaz estava destinado a ser outro sob a influência do pai? Como se a sua morte tivesse sido destinada no momento do seu nascimento?
— Oh não! — As palavras dele chocaram-me. — Dizer isso é dizer que não temos nenhuma escolha no nosso destino. Eu não digo isso. Apenas que nós somos feitos pelas nossas mães e pelos nossos pais e que transportamos algo deles dentro de nós, apesar de tudo. Se Conlai tivesse crescido para se tornar um monge, talvez a coragem do seu pai e o seu espírito selvagem, guerreiro, tivessem acordado muito mais tarde. Mas eles estariam lá, de uma maneira ou de outra. Ele era ele e nada poderia mudar isso.
Bran encostou-se à parede de rocha, na sombra.
— E se... — disse ele. — A... essência, a chama, ou lá o que é, a pequena parte do pai que ele transportava em si... podia perder-se, destruída, antes de ele saber que estava lá. Podia... podia ser-lhe tirada.
Senti uma espécie de arrepio e os pêlos do pescoço eriçaram-se-me. Era como se uma sombra se estivesse a estender sobre mim, sobre ambos. E imagens, passando diante dos meus olhos com tanta rapidez que quase não conseguia interpretá-las, antes de desaparecerem.
...escuro, tão escuro. A porta fecha-se. Não consigo respirar. Cala-te, não chores, não emitas um som. A dor aperta, como fogo. Tenho de me mover. Não me atrevo a mover-me, eles ouvem-me... onde estás? Onde estás?... para onde foste? Puxei-me a mim própria para o mundo real, tremendo. O meu coração parecia um tambor.
— O que é? — Bran saiu da sombra, os olhos fixos no meu rosto. —O que é que se passa?
— Nada — sussurrei. — Nada. — E virei-me, porque não queria que ele me olhasse nos olhos.
A Visão, ou fosse o que fosse, viera dele. Por baixo da sua aparência havia águas desconhecidas, profundas; reinos estranhos e perigosos.
— Precisas de dormir — disse ele e quando, por fim, me virei, já ele tinha desaparecido. A braseira continuava acesa. Baixei a chama da lamparina, mas não a apaguei, no caso de o ferreiro acordar e precisar de mim. Só depois me estendi para descansar.
CAPÍTULO CINCO
Algo me acordou. Sentei-me abruptamente com o coração a bater fortemente. O fogo na braseira apagara-se; a lamparina tinha uma chama pequena, formando um círculo de luz fraca. Lá fora, a escuridão era completa. Tudo estava imóvel. Levantei-me e fui até à esteira, de lamparina na mão. Evan dormia. Aconcheguei-lhe o cobertor e virei-me para me deitar de novo. Estava frio, para uma noite de Verão.
E então ouvi-o. Um som parecido com um suspiro sufocado, uma mera inalação.
Seria possível uma coisa daquelas ter-me acordado tão instantaneamente? Saí, hesitante, descalça e metida na camisa emprestada que eu usava para dormir, tremendo ligeiramente e não apenas de frio. A escuridão era total, intensa. Até as aves nocturnas estavam silenciosas. Com a minha pequena e fraca lamparina, senti-me como se fosse a única criatura em movimento naquele mundo negro e impenetrável.
Dei um passo, e outro, e vi Bran sentado, encostado às rochas à entrada do abrigo, olhando em frente, para a escuridão. Talvez também ele tivesse ouvido algo. Abri a boca para lho perguntar, mas ele estendeu um braço e agarrou-me violentamente, sem olhar para mim, sem dizer uma palavra. Abafei um grito de susto e lutei para impedir que a lamparina caísse ao chão. O aperto era de tal maneira que pensei que o meu braço se iria quebrar. Ele continuou sem dizer nada e eu ouvi de novo na minha mente aquela voz, parecida com a de uma criança aterrorizada; a voz de um rapaz que chorava há tanto tempo que já não tinha lágrimas. Não vás. Não te vás embora.
E à luz da lamparina, que continuava perigosamente a oscilar na minha mão livre, vi que Bran não me estava a ver. Segurava-me com força, mas os seus olhos olhavam em frente, desfocados, cegos naquela noite sem Lua.
Senti a dor do aperto pelo meu braço acima. Mas achei que não tinha importância.
Lembrei-me que era, no fim de contas, uma curandeira. Baixei-me cuidadosamente até ao chão, ao lado dele. A sua respiração era rápida e irregular; tremia. Mais parecia um pesadelo.
— Está tudo bem — disse eu em voz baixa, não querendo assustá-lo e piorar as coisas. Pousei a lamparina no chão. — Estou aqui. Está tudo bem. — Percebia muito bem que não era a mim que ele queria. Era aquela criança que eu ouvira chorar por algo há muito perdido. Perguntei a mim mesma quantas noites suportara ele; quantas noites sem dormir, com medo daquelas visões que o submergiam.
Tentei abrandar a pressão daqueles dedos que me mordiam a carne, mas não consegui. De fato, quando toquei naquela mão, ela ainda apertou com mais força, como um homem a afogar-se, que, em pânico, quase leva o seu salvador consigo.
Vieram-me aos olhos lágrimas de dor.
— Bran — disse eu, docemente. — Estás a magoar-me. Já está tudo bem. Podes largar-me.
Mas ele não respondeu, limitando-se a apertar ainda mais, de maneira que, apesar de não querer, chorei de dor. Não queria acordá-lo daquele transe que o mantinha preso.
Tal intervenção não é sensata, porque semelhantes visitações têm um propósito e deve permitir-se que sigam o seu curso. No entanto, ele não precisava de as enfrentar sozinho, se bem que parecesse que era exatamente isso que ele pretendia fazer.
Assim, fiquei ali sentada e forcei-me a respirar lenta e calmamente, dizendo a mim própria o que dissera a outros muitas vezes: respira, Liadan. A dor há-depassar. A noite estava muito calma; a escuridão, como uma criatura viva, rastejava à nossa volta. Senti como o seu corpo estava tenso, senti-lhe o terror e como ele lutava para o conquistar. Não esperava tocar-lhe a mente, nem desejava ver mais aquelas escuras imagens que ela guardava. Mas podia falar e parecia-me que a única ferramenta que tinha, para afastar a escuridão, eram as palavras.
— A alvorada está a chegar — disse-lhe eu em voz baixa. — A noite pode ser muito escura; mas eu fico contigo até ao nascer do Sol. Essas sombras não te podem tocar enquanto eu estiver contigo. Em breve veremos os primeiros tons cinzentos no céu, a cor das penas de um pombo, depois o pequeno toque dos dedos do Sol e uma ave será suficientemente corajosa para acordar e cantar do alto das grandes árvores, do céu aberto e da liberdade. Em seguida tudo brilhará e a cor espalhar-se-á pela terra e será um novo dia. Ficarei contigo até isso acontecer.
Gradualmente, a pressão dos seus dedos abrandou um pouco e a dor no meu braço tornou-se mais fácil de suportar. Estava cheia de frio, mas não me aproximaria mais dele. Isso devia ser, certamente, contra o código. Ele iria achar tudo aquilo extremamente estranho, de manhã. O tempo passou e eu falei, falei de coisas inofensivas, seguras, de imagens de luz e calor. Teci com as minhas palavras uma teia de proteção, para afastar as sombras.
Por fim, estava tanto frio que eu admiti a derrota e encostei-me ao ombro dele, pousando a minha mão livre nos dedos dele, no local onde continuavam a apertar-me o braço. Dentro do abrigo, Evan não se movera.
Estivemos ali durante muito tempo, eu falando sempre e Bran imóvel, exceto por uma trêmula inalação aqui e ali, ou uma palavra murmurada. Estava admiradíssima. Mal podia acreditar que algures dentro daquele duro fora-da-lei havia uma criança com medo de ficar sozinha no escuro. Queria compreender. Mas nunca lho conseguiria perguntar.
No momento que eu descrevera, quando o céu mostrou os primeiros e fracos tons cinzentos, ele voltou a si abruptamente. O tremor parou, ele ficou completamente imóvel e a sua respiração abrandou deliberadamente. Houve uma determinada altura em que ele deve ter ficado consciente de que não estava só. Deve ter sentido o toque da minha mão na sua, o peso da minha cabeça no seu ombro, o calor do meu corpo contra o seu. A lamparina continuava no chão, ao nosso lado, brilhando fracamente na escuridão que precede a alvorada. Nenhum de nós disse nada durante um bocado.
Nenhum de nós se mexeu. Foi Bran o primeiro a falar.
— Não sei o que pensas que estás a fazer — disse ele ou o que esperas alcançar com isto. Sugiro que te levantes e que voltes lá para dentro, para a tua tarefa e no futuro comporta-te menos como uma pega ordinária e mais como a curandeira que é suposto seres.
Os meus dentes batiam de frio. Não conseguia decidir-me, se rir, se chorar. Teria sido bem satisfatório se eu o esbofeteasse, mas nem sequer isso eu podia fazer.
— Se me largares o braço — disse eu tão polidamente quanto pude e não consegui evitar que a voz me tremesse um pouco — sentir-me-ei muito feliz por te obedecer. Está muito frio aqui fora.
Ele olhou para a mão como se nunca a tivesse visto antes. Então, muito lentamente, abriu os dedos, aliviando a pressão terrível que mantivera sobre mim durante toda a noite. Tinha a garganta arranhada de tanto falar, a mão entorpecida e uma dor percorria-me o braço. Ele não se lembrava de nada? Virou a cabeça para olhar para mim à luz da madrugada, ali sentada de pés descalços, na minha velha camisa, mexendo e flectindo a mão para reativar o sangue. Por Díancécht, doía-me. Pus-me com dificuldade em pé, porque não queria estar nem um momento mais do que o necessário, na sua presença.
— Não, espera — disse ele. E ao mesmo tempo que a primeira ave atirava o seu canto líquido através da fresca manhã, ele levantou-se, tirou a capa e colocou-ma em redor dos ombros. Por um momento, levantei o rosto, olhei-lhe para os olhos e o que vi aterrorizou-me mais do que qualquer dos demónios que eu vira lá escondidos. Virei-me sem um som e entrei, a tempo de ver o ferreiro a acordar. Era mais um dia; o quarto.
Foi uma manhã atarefada. Dog ajudou-me a levantar o ferreiro para lhe lavarmos o corpo de novo, tirar a roupa ensopada em suor e substituí-la por outra lavada. Ambos observaram que eu estava a bocejar muito. Não respondi. O meu braço doía-me. A minha cabeça estava confusa. Tentei imaginar como seria quando finalmente fosse para casa. Se fosse para casa. A rapariga que regressasse a Sevenwaters, pensei, seria diferente da rapariga que de lá saíra não muito tempo antes. Que diriam o meu pai, a minha mãe e Sean quando me vissem? Que diria Eamonn? Tentei imaginar Eamonn, andando nervoso pelo jardim, tentando dizer-me o que sentia. O rosto dele não me aparecia nítido nos meus pensamentos. Era como se me tivesse esquecido das suas feições. A minha mão tremeu; alguma da água entornou-se da bacia que segurava.
— Hei! Oh! — Dog estendeu o braço rapidamente, a sua grande mão dando-me um encontrão ao fazê-lo. Deixei escapar um pequeno arquejo de dor. Evan olhou para mim do sítio onde estava deitado, assim como Dog, enquanto pousava a bacia com cuidado.
— O que é que se passa, miúda? — A voz de Evan era fraca, mas os seus olhos eram extremamente perspicazes.
— Nada. Foi um mau jeito, ou qualquer coisa do género; já passa.
— Um mau jeito — comentou Dog segurando-me delicadamente na manga com os seus grandes dedos e enrolando-a um pouco para pôr à mostra as marcas carmesins no meu braço.
— Quem te fez isso, Liadan? — Ainda bem que o ferreiro não se podia levantar.
— Não é nada — disse eu de novo. — Esquece.
Os dois rostos severos trocaram um olhar idêntico.
— Por favor acrescentei. Foi um acidente. Não houve intenção de magoar.
— Um homem deve ter cuidado para evitar semelhantes... acidentes — resmungou Evan.
—Um homem deve evitar pôr as mãos onde não deve.
— Tem obrigação — concordou Dog, carrancudo. — Uma coisa pequenina como tu, que até um sopro de vento faz levantar do chão. Tem obrigação.
— Eu estou bem, a sério — disse eu. — Esqueçamos o assunto, está bem? Continuemos! Um caldo de carne, talvez, e um bocado ou dois de pão?
Evan revirou os olhos.
— Tenham dó! Ela mata-me com o caldo de carne.
Ele comeu um pouco, voltou a adormecer e eu fiquei a conversar com Dog e improvisei no chão o jogo do galo. Não foi fácil. Arranjamos as pedras mais chatas que conseguimos encontrar, mas que não eram fáceis de equilibrar e acabámos a rir, quase histéricos, ambos péssimos perdedores. Por fim, coloquei as pedras num pequeno monte e apaguei com as mãos o círculo perfeito que desenhara no chão e a sua rede de linhas, que se cruzavam. Quando olhei para cima, Dog estava a olhar para mim, de novo sério.
— Ouvi dizer que tens um homem à espera — disse ele.
— Não exatamente — repliquei cuidadosamente. — Tenho um pretendente. É só.
— Podias pensar noutro. — O seu tom era também cuidadoso, pouco à vontade. — Fiz bastantes economias. Já estou com o Chefe há três, quatro anos. Pus de lado o suficiente para comprar um bom pedaço de terra, algum gado e construir uma casa. Algures, suficientemente longe daqui. Nas ilhas do norte, talvez. Ou um barco, e começar de novo. Nunca encontrei uma mulher como tu. Tomava conta de ti. Posso não ser grande coisa à vista, mas sou forte. Posso trabalhar. Ficarias segura comigo. O que é que achas? Passou uma das grandes manápulas pela nuca, os olhos amarelos hesitantes, enquanto olhava para o meu rosto.
Olhei para ele, espantada. Imaginei-me a regressar a Sevenwaters rebocando Dog.
Imaginei a expressão do meu pai a olhar para a cabeça meio rapada, o queixo tatuado, os olhos ferozes e o rosto marcado das bexigas, o casaco de pele de lobo e o colar bárbaro.
— Estás a rir-te de mim — disse Dog, as rudes feições desanimadas. — Sabia que a resposta seria não, claro. Achei, apenas, que podia perguntar.
— Desculpa — disse eu gentilmente afagando-lhe a mão. — Juro que não me estou a rir. Não quero ofender-te. Aprecio a tua oferta, a sério, porque vejo muito bem que és um homem bom. Mas eu não vou escolher um marido por enquanto, não antes do próximo Verão. Nem tu, nem outro qualquer.
Sob os meus dedos, a palma da mão dele era áspera. Virei-lha para cima e olhei para as terríveis cicatrizes rugosas que a atravessavam.
— Onde é que arranjaste isto? — Alguém me dissera para pedir a Dog que me contasse a sua história. Mal me aventurava a imaginá-la.
— Um barco vicking — disse ele. — Eu sou de Alba, da mesma terra da tua mulher guerreira, Scáthach. Eu e o meu irmão tínhamos um barco para a pesca do arenque e tínhamos uma vida ordenada. Os Nórdicos atacaram-nos a aldeia. Levaram-nos a ambos para os remos, ao verem a nossa força, compreendes? Isso é que foram tempos. — Os seus olhos ficaram sombrios e ele passou uma mão pelo crânio. — Durante muito tempo remámos para eles. Demasiado tempo. A maior parte das vezes utilizam a sua própria tripulação, mas aquele barco tinha pouca gente e tinham seis pares de remadores acorrentados permanentemente. Eu e Dougal estávamos sempre metidos em sarilhos. Mas eles mantiveram-nos vivos; nós éramos os homens mais fortes. Um dia, Dougal abusou e levou com o cabo de um chicote no rosto. Morreu. Talvez tenha sido melhor. Ele viu a mulher e as filhas serem levadas. Estava cheio de ódio. Eu continuei. Demasiado forte para meu bem.
— Como é que escapaste?
— Ah, isso é outra história. Foi o Chefe que me libertou. Pensava que ele era louco, na altura. Estávamos num porto qualquer, a leste, quente como uma fornalha, o ar podia cortar-se com uma faca. Acorrentados aos nossos lugares, como sempre, enquanto a tripulação ia a terra. Podia-se morrer de calor e sede tão facilmente como respirar. E lá estávamos nós, uma noite, dormindo o melhor que podíamos, sentados, a cabeça onde conseguíamos pousá-la, a cama mais desconfortável que eu hei de algum dia encontrar. O local fedia a urina e a suor. Então, ouviu-se um pequeno chocalhar de chaves e lá vinha aquele homem negro, caminhando por entre os bancos, frio, e perguntando quem queria fazer um acordo com eles? Ficamos todos a olhar para ele, à espera do regresso dos Nórdicos, que acabariam com ele; mas nada aconteceu, salvo que o barco começou a ranger e a gemer, como se estivesse a sair do porto. Mas ninguém estava a remar. Não dissemos nada. Alguns dos homens nem percebiam, sequer, o que se estava a passar; falava-se, ali, meia dúzia de línguas.
“Então, o negro (que era Gull, compreendes, com a pena no cabelo e tudo) disse: o Chefe está lá em cima e está pronto para zarpar. Não voltareis a ver os Nórdicos. Podeis escolher. Levais esta bacia até à Gália e quando chegarmos lá haverá um pequeno saco de prata e a liberdade. Remareis sem as correntes, se não provocardes sarilhos. Que tal?
“E eu perguntei-lhe: Qual é a outra escolha? E o outro homem apareceu por trás dele, era o Chefe, mas o rosto dele, na altura, era mais natural. Era novo, pouco mais do que um rapaz e eu pensei, o que é que este frangote quer? Então, o Chefe disse: depende de como achares que te podes aguentar aqui, acorrentado. Os Nórdicos não voltam. Quanto tempo levará até alguém descobrir um ou dois vickings, mortos, a alimentar os peixes por baixo do molhe? Talvez não muito. Talvez algum. É um porto movimentado e ninguém quer saber o que te pode acontecer. A escolha é essa, disse ele. Demonstrou-o com sinais, com as mãos, de modo que todos os homens compreendessem. Remem por mim, disse ele e sereis homens livres antes da próxima lua cheia. E eu pensei, este tipo é maluco. E os atacantes, no caminho? E os Nórdicos vingando os seus? Além disso, eles eram dois e nós éramos 12, com o lugar do meu irmão ocupado por um tipo de rosto comprido, do Ulster. O que nos impediria de os atirar borda fora no momento em que nos tirassem as correntes?
“Todos dissemos que sim, claro. Nada como um cheirinho a liberdade para nos fazer decidir rapidamente. Ele cumpriu a promessa. Tivemos algumas aventuras a caminho da Gália, mas chegámos lá e ele ofereceu-me a hipótese de ficar com ele ou continuar. Estou com ele, desde então.
— Que idade é que ele... que idade tem o Chefe, agora? Disseste que estás com ele há três, quatro anos; mas também disseste que ele era apenas um rapaz quando o conheceste. Como pode ser isso?
Dog contava pelos dedos.
— Deixa-me ver — disse ele. — Vinte e dois, 23 anos. Deve ser isso, mais ou menos. Não deve ser muito mais velho do que tu, miúda.
— Mas... — Eu estava espantada. — Ele parece muito mais velho do que isso. Quero dizer... como é que um homem tão jovem pode ser o que ele é? É como se já tivesse vivido tanto como outro homem qualquer durante uma vida inteira. Ele é muito novo para ser assim, um líder. É demasiado novo para ser tão... amargo.
— Este homem é velho desde criança — disse Dog sobriamente.
Por volta do meio-dia ouviu-se uma agitação invulgar no acampamento. O tilintar de arreios, uma atividade ordeira, mas apressada. Não conseguia ver grande coisa, mas o que vislumbrei provocou-me um arrepio. Os abrigos estavam a ser desmantelados e os alforges atados às selas. Os sinais de ocupação estavam a ser apagados. Estavam de partida. Estavam de partida e ninguém me dissera nada. Ele prometera-me seis dias. E mesmo esses seis dias eram poucos.
— É melhor ires ver o que se passa — disse eu a Dog mantendo o tom calmo, à medida que o medo e a ira começavam a crescer em mim. Voltei para dentro e mantive-me ocupada, enquanto mantinha os ouvidos alerta, esperando pelo regresso dele. Senti os olhos de Evan em mim, ansiosos, mas ele não me perguntou nada. O tempo passou e Dog não voltou. Eu estava ajoelhada no chão, lavando pratos na bacia e tentando concentrar-me na plantação de Outono no meu jardim em Sevenwaters, quando uma voz familiar se ouviu nas minhas costas.
— Houve mudança de planos.
Levantei-me lentamente, de mãos a pingar, as mangas enroladas até aos cotovelos.
— Estou a ver. Também vejo como quebras a tua palavra com facilidade. Este homem não pode viajar, já te tinha dito. Nada mudou, aqui.
Bran olhou para o ferreiro, que estava acordado e a ouvir.
— Ele tem de viajar, ou ficará para trás — disse ele, severamente. — Não tem escolha. É imperativo que saiamos daqui hoje.
— Nós tínhamos um acordo. Seis dias, disseste tu. Suponho que nunca tencionaste cumprir a tua palavra.
— Julgas precipitadamente, como sempre. Eu sou responsável por estes homens. Não lhes vou ordenar que fiquem aqui para serem apanhados, quando posso levá-los antes que outros aqui cheguem. Não vou deixá-los para trás quando há necessidade urgente dos seus serviços noutro lugar. Sacrificar o bando inteiro por causa da vida de um homem seria um ato de pura loucura.
Fiquei silenciosa por uns momentos, pensando naquilo.
— O ferreiro não pode viajar — disse eu, por fim. — Podes muito bem ver como ele está fraco. Mal se consegue sentar. Como é que o podes transportar com segurança? Quem é que olha por ele?
— Isso já não te diz respeito. — Ele olhou por cima do ombro. Leva estas coisas — ordenou ele a Dog, que aparecera por trás dele, ansioso.
— Um momento — disse eu. — Eu fiquei aqui e tratei deste homem porque houve um acordo. Um acordo honesto. Tu quebraste a tua parte. Mas eu sou responsável por ele, como tu por todos os outros. Esta é a minha tarefa. Não permito que dês cabo dela por causa de um... capricho.
Bran parecia nem ouvir. Em vez disso, olhava para o meu braço, onde a manga enrolada revelava as marcas carmesins que os seus dedos fizeram. Zangada, puxei a manga para baixo, para cobrir as marcas. Dog tinha começado a empacotar as coisas, de rosto inexpressivo.
— Senta-te — ordenou Bran. Olhei para ele. — Senta-te — disse ele em voz mais baixa, cruzando os braços e encostando-se à parede de rocha. Sentei-me. — Não é um capricho — disse ele. — Eu não ajo por impulsos; não me posso dar a esse luxo. Não fazia tenção de faltar à minha palavra, por que o faria? Fomos ultrapassados pelos acontecimentos, é tudo. Sabes, eu e os meus homens estamos longe se ser bem-vindos a muitas partes deste país e para lá das suas costas. Fizemos inúmeros inimigos. Assim, mudamo-nos pela calada muitas vezes. Devido ao ferimento do ferreiro e à tua presença entre nós, ficamos aqui mais tempo do que tencionávamos, arriscando-nos. Recebi um relatório sobre uma força considerável de homens armados que se aproxima, limitando-nos o tempo para uma retirada em segurança. Ficar aqui é morte certa. Quanto a mim, far-lhe-ia frente serenamente. Mas não vou arriscar os meus homens por uma razão tão trivial. Além disso, a nossa próxima missão é no norte e aqueles para quem a vamos empreender pediram-nos que apressássemos a nossa partida daqui. Tomei a decisão, que será levada a cabo rapidamente. Ao pôr do Sol não haverá sinais da nossa presença aqui.
Seguiu-se um breve silêncio.
— Trivial — disse eu olhando para ele. — Consideras a vida de Evan e a minha segurança, triviais.
— Como mulher — replicou Bran, cautelosamente — não és capaz de compreender. Neste esquema, uma vida, ou duas, tem pouca importância. Não vou pôr desnecessariamente em risco a vida dos meus homens por ti, ou por ele. Nem porei em risco a sua missão seguinte. Estou a perder tempo, ouvindo sempre os mesmos argumentos da tua parte. Se não fosses tu, já estaríamos a caminho. Nunca devia...
— Chefe. — O ferreiro tentava levantar-se. O seu rosto estava pálido e cheio de suor.
— O que é?
— Eu posso montar. Continuo forte. Sinto-o. Se me atarem atrás de Dog, vou até onde for preciso. Mas, e a rapariga, Chefe?
Silêncio pesado. Dog parou de empacotar e endireitou-se, olhando para o seu chefe com ferocidade.
— Então? — rugiu ele.
Bran continuou a olhar para mim.
— Compreendeste o que te disse? — perguntou ele com uma paciência exagerada. — Esta decisão foi tomada com cuidado, pesando os prós e os contras. Eu não ajo por capricho.
Encolhi os ombros.
— Compreendo que um homem como tu vê os seus guerreiros como unidades que têm um determinado valor, como peças num jogo mortal, dispostas para adquirir a melhor das vantagens. Sei que são as mulheres que esperam até o jogo acabar, para apanhar as peças partidas e tentar salvar algo delas.
— Oh não. — A sua voz era fria. — Isso é só meia verdade e não esperava outra coisa da tua espécie. São as mulheres que infligem os danos maiores; que guiam os seus homens no caminho da destruição. A minha vida foi moldada desse modo. Não me venhas falar nos poderes curativos das mulheres. Tu não sabes nada. Não compreendes nada. — As suas mãos estavam fortemente fechadas, se bem que tivesse os braços cruzados.
— Evan fez-te uma pergunta — disse eu cautelosamente. — O que é que me vai acontecer? Posso ir para casa?
Aqueles olhos frios, avaliadores, olharam de frente para os meus.
— É evidente que não sabes nada acerca do mundo real — observou. — Continuas a não compreender, pois não? Talvez isso explique a tua falta de medo. Diz-lhe, Dog.
— Chefe...
— Diz-lhe.
— É assim — resmungou Dog. — O que o Chefe está a dizer é que ele tem um problema. Não te pode levar; retardar-nos-ias, serias uma distração para os homens, etc. Também não te pode deixar para trás. Não pode haver visitantes nos acampamentos do Homem Pintado. Se um homem vem aqui em negócios, vem vendado. Tu já viste e ouviste demasiado. O problema é esse.
— Mas... — O meu coração começou a bater com toda a força. Eles não queriam dizer... de certeza que não queriam dizer... Grande Dana, ajuda-me, o Chefe tinha razão. Era mesmo estúpida. — Estás a dizer-me — sussurrei — que essa teria sido a solução para Evan, não fora a minha intervenção. A solução da faca afiada, o corte preciso e rápido e pronto? É isso que planeias para mim?
— Só por cima do meu cadáver — grunhiu o ferreiro.
— Podes crer que também pensei nisso — disse Bran suavemente. — Sois ambos um incómodo e estou muito arrependido por ter deixado que isto acontecesse. Mas tu — disse ele acenando com a cabeça para Evan — ganhaste a tua hipótese, conseguindo sobreviver até hoje. Tu vens conosco. Quanto a ti — disse ele olhando para mim — os meus homens colocaram-me numa posição muito delicada. Perguntaram-me se podes ficar conosco, por agora. Creio que uma recusa da minha parte teria levado a uma espécie de motim. Tal é a influência de umas poucas histórias exóticas, contadas por alguém que conhece bem a arte feminina da persuasão, que utiliza o rosto e o corpo, assim como as suas palavras meladas, para fazer com que um homem faça aquilo que não deve.
— Isso é ridículo! — exclamei, zangada, o medo substituído pelo ultraje. — Como te atreves a criticar-me? Não tenho esses motivos básicos, como insinuas! Apenas quis ajudar, em tudo o que fiz aqui. Em tudo. Eu não sou uma... uma sedutora, olha para mim, como é que podes insinuar...? Além disso, tu faltaste à tua palavra. Também tu estás a pisar solo perigoso.
— Oh, não — disse Bran suavemente. — Eu mantenho a minha parte do acordo, o melhor que posso. Ficas e tratas do teu paciente, se ele sobreviver à jornada. Os meus homens não me deram outra alternativa. E, quer acredites, quer não, respeito os desejos deles, quando posso. Um bom chefe tem de estar preparado para isso. No entanto, tens de compreender que terei de tomar uma decisão, mais tarde. Quanto mais tempo estiveres conosco, mais verás e mais impossível será, para mim, mandar-te para trás. É isso que queres?
— Desde quando aquilo que eu quero é importante, aqui? —repliquei furiosa, com os olhos marejados de lágrimas. Pestanejei para as manter presas. Não percebera, até então, como desejava ver a minha mãe de novo. Queria Bran dizer que nunca mais poderia voltar a casa? Imaginei a figura frágil de Sorcha e os seus olhos sombrios; a presença vigilante e resoluta do meu pai. Pensei em Sean e Aisling e nos longos e pacíficos dias passados nas profundezas tranquilas da floresta, ou ocupada com as tarefas domésticas de que tanto gostava: fazendo bolos, cosendo, secando ervas.
Olhei em volta. Aquele acampamento espartano não era a minha casa; aquela existência secreta, perigosa, não era vida. Pela primeira vez o peso que aquilo poderia fazer à minha família atingiu-me e uma lágrima escapou-se para me correr pelo rosto abaixo.
— Não consegues nada com isso — disse Bran. — As mulheres ligam e desligam as lágrimas como se fosse uma bomba. Sou imune a elas.
Mas havia outros, que, pelos vistos, não eram. Senti a grande mão de Dog no meu ombro e Evan disse:
— Não chores, miúda. Quanto isto tudo acabar, voltas rapidamente para tua casa e encontras lá o teu homem à tua espera.
Bran estava a olhar para Dog.
— Tira as mãos de cima dela — disse ele com uma voz terrível, e suave. Dog retirou-a como se tivesse sido chicoteado.
— Estamos a perder tempo — disse eu, secando as lágrimas. —Mostra-me como vais transportar este homem. Pode ser que te possa dar alguns conselhos. Espero que não me faças andar a cavalo de olhos vendados. És capaz de precisar de mim no caminho.
— Sabes andar a cavalo, nesse caso?
— Claro que sei, era o que estava a fazer quando os teus homens me raptaram. Verás que sei algumas coisas.
Ele não respondeu, limitando-se a indicar, com um aceno de cabeça, que eu devia segui-lo até ao exterior. Senti-me tentada, não pela primeira vez, a dizer algo de que mais tarde me arrependeria. Mas engoli a raiva e segui-lhe os enormes passos, enquanto ele atravessava o acampamento. Nada mais interessava, na realidade, além de manter Evan vivo. Eu era uma curandeira e tinha um trabalho a fazer. Talvez mais tarde houvesse tempo para perguntas.
A jornada foi de pesadelo. Mantive a boca fechada e os ouvidos abertos. Estava consciente de que viajávamos de leste para norte, mas não era capaz de medir a distância com exatidão. O passo era implacável e mantínhamo-nos em silêncio, passando por caminhos arborizados e escondidos, utilizando correntes de água e pântanos para escondermos a nossa pista. Havia sempre um homem à frente e outro na retaguarda. Estava cada vez mais escuro, mas continuámos a andar. Doíam-me as costas e sentia a boca ressequida, mas mantíve-me calada e enchi-me de vontade para continuar. O meu desconforto não era nada comparado com o de Evan, atado às largas costas de Dog e oscilando impotentemente sob o rápido passo do cavalo sobre solo irregular, a ferida protegida apenas por um chumaço de tecido aplicado com força antes da nossa partida precipitada.
Esperava que pararíamos no caminho, de maneira a poder ser ajudado. Mas parecia que assim não seria. E não podia perguntar. Os homens seguiam em silêncio, comunicando apenas por meio de gestos subtis quando havia alguma boa razão. Uma vez, quando atravessávamos uma encosta cheia de árvores sobre uma extensão de terreno, avistámos outros homens a cavalo mais abaixo, em fila, bem armados, cavalgando paralelamente a nós, mas em direção oposta. Bran mandou-nos parar com um simples movimento da mão e nós ficamos em silêncio até os cavaleiros terem passado. Eram homens vestidos com túnicas verde-escuras por cima de armaduras, com o desenho de uma torre negra. As cores de Eamonn. Se estavam a olhar para mim, ou para outro lado qualquer, não havia maneira de saber. Recordei o que Eamonn dissera acerca do Homem Pintado e do seu arrogante desafio e soube que pisava solo perigoso.
Por fim, quando estava tão cansada que quase caía da sela e Evan seguia de rosto cinzento e imóvel com as suas ligaduras, parámos. Estávamos por baixo de grandes árvores, à entrada de uma espécie de estrutura, parecendo que tínhamos chegado ao nosso destino, porque foram acesas lamparinas e dadas ordens. Dog desmontou e depositaram a figura cambaleante de Evan num cobertor. Eu queria desmontar, porque eles precisavam da minha ajuda, mas os meus membros cheios de cãibras não me obedeciam. O cavalo esperou pacientemente.
— Eu ajudo-te. — Senti umas mãos firmes segurarem-me pela cintura e fui descida para o chão com tanta facilidade como se fosse uma criança. Ele largou-me quase de imediato e as minhas pernas não me seguraram. Agarrei-me aos arreios do cavalo para me segurar, arquejando de dor.
— Tu choras por outros, mas não por ti — disse Bran. — Pergunto a mim mesmo porque será? Alguém te ensinou autodisciplina.
Respirei profundamente uma vez e depois outra.
— Não serve de nada, pois não? — sussurrei, a boca seca. — Podes dizer-me para onde levam o ferreiro? Vão precisar da minha ajuda.
— Consegues andar?
Tentei dar um passo, mantendo-me agarrada aos arreios com uma mão. O cavalo deu um passo para o lado.
— Não és muito convincente — disse Bran. — Segunda regra de combate. Não finjas, se não tiveres forças. O teu inimigo vê a tua fraqueza a um quilómetro de distância. Se não tens força para lutar, admite-o e retira. Reagrupa; ou usa a inteligência. Se precisas, pede ajuda. Anda cá.
Ele estendeu uma mão e eu vi-me apoiada e levada na direção de uma passagem baixa cujo lintel e suportes eram de lajes maciças de pedra e através de uma velha passagem que parecia ir dar a um monte coberto de erva.
A noite estava cada vez mais estranha. Ouviu-se um mocho e eu olhei para cima. Lá em cima, através da rede de ramos, uma pequena lua estava suspensa do céu negro.
Sentia o peso do olhar de Bran em mim, à medida que me ajudava, mas não disse uma palavra. Atingimos a entrada pela qual os outros tinham desaparecido e algo me fez parar abruptamente.
— Creio que não devíamos estar aqui — disse eu, ao mesmo tempo que sentia um arrepio e uma névoa escura nos envolvia a ambos, ali parados, no lado de fora da porta. — Este local é... isto é muito antigo, pertence aos Anciãos. Não devíamos estar aqui.
Bran franziu o sobrolho.
— Este monte já nos abrigou muitas vezes antes — disse ele pousando uma mão, como que por acaso, no velho lintel, onde minúsculos rostos impenetráveis olhavam para nós por entre os círculos e espirais gravados profundamente na pedra. Se uma mão podia pertencer àquele local, era a dele. — Quem utilizou em tempos este lugar, partiu há muito: agora, é ideal para nós, secreto, seguro, fácil de guardar, com saídas secretas para uma fuga precipitada. É muito seguro.
Mas eu estava apavorada, com um sentimento gelado de mau presságio que não podia explicar, pelo menos a ele.
— Aqui há morte — disse eu. — Vejo-a. Sinto-a.
— Que queres dizer?
Então olhei para ele e, por um momento, em vez do rosto de um duro e viril jovem, meio pintado, vi uma máscara medonha, pálida, a boca aberta num ricto horrível de morte, os límpidos olhos cinzentos olhando sem vida. Ouvi um grito de criança.
Deixa-me, deixa-me... Uma pequena mão estendendo-se, fechando-se desesperadamente, mas eu não conseguia alcançá-la, eles levavam-me, eu não conseguia alcançá-la...
— O que é? O que é que viste? — As mãos dele fincaram-se-me nos ombros; a força do aperto transportou-me de novo para o presente.
— Eu... eu...
— Diz-me. O que é que viste?
Esforcei-me por acalmar a respiração. Tinha trabalho para fazer, não podia deixar que aquilo me dominasse.
— N... nada. Não é nada.
— Não mentes lá muito bem. Diz-me. O que é que te perturba tanto? Olhas para mim e vês... algo que te aterroriza. Diz-me.
— Morte — sussurrei. — Terror. Dor. Tristeza e perda. Não sei dizer se é o passado ou o futuro que vejo, ou ambos.
— O passado de quem? O futuro de quem?
— O teu. O meu. Esta sombra cerca-nos, aos dois. Eu partilho o teu pesadelo. Vejo um caminho destruído, destroçado. Vejo um caminho que vai dar à escuridão.
Ficamos ali em silêncio, com a noite atrás de nós e a porta aberta à nossa frente.
— Este é o nosso único abrigo aqui — disse ele após uns momentos. — Não tens escolha senão entrar.
Acenei com a cabeça.
— Tenho pena — disse eu.
— Não tenhas — disse Bran. — Vejo bem que não estavas à espera disto. Estarás segura conosco. Mas não é isso que te assusta, pois não?
— Segura — repeti eu. — Eu não estou preocupada com a minha segurança.
— Então, com a de quem? Com a minha? Por que te havias tu de preocupar com a minha segurança?
Não pude responder-lhe.
— Viste a minha morte? E isso preocupa-te? Não devia. Eu não a temo. Há alturas em que até a desejo.
— Devias temê-la — disse eu muito docemente. — Morrer, antes de te conheceres a ti próprio, é terrível.
Nunca tinha sentido tanto o peso do meu estranho dom como nessa noite e quando passámos pela passagem na direção da câmara subterrânea fiz um sinal no ar para trás de mim, um que vira Conor fazer e convoquei os espíritos antigos, fossem eles quais fossem, que habitavam no frio reino por baixo de nós. Honramos este espaço e as suas sombras Não pretendemos fazer mal. Não queremos faltar ao respeito ao usar este local, para abrigo. E ouvi, dentro de mim, a voz da minha mãe. Estás fora do sistema, Liadan. Isso pode dar-te grande poder. Pode permitir-te mudar as coisas.
Entrámos através de uma pequena passagem na câmara central, em volta da qual a grande estrutura de pedras em equilíbrio, camada após camada, fora construída.
Estivera vazia. Agora havia esteiras e trouxas amontoadas ordenadamente em volta das paredes. O local estava cheio de uma atividade ordeira, calma, enquanto os homens de Bran se preparavam para a próxima partida. Rações de pão duro, carne seca, água e cerveja eram distribuídos, armas invulgares examinadas uma última vez, um mapa era consultado, palavras trocadas em voz baixa. Eram todos homens experimentados; enquanto eu estava exausta, ao ponto de nem sequer me agüentar nas pernas, eles pareciam na mesma, após a longa cavalgada. Então ouvi o ferreiro gemer ao voltar a si e, subitamente, estava demasiado ocupada para pensar noutra coisa que não na minha tarefa.
Há muito tempo que Evan não dormia tão bem, com a forte infusão que eu lhe dosei. Sentei-me de pernas cruzadas no chão ao lado dele, vigiando-o de perto, passando-lhe a esponja com água, de vez em quando, pelo pálido e doce rosto. A carne em volta do ombro e do peito estava de um vermelho muito feio. Alguns dos homens descansavam, outros haviam sido despachados para montar guarda na entrada, ou na saída. Havia um forte cheiro a cavalo, porque eles tinham trazido as criaturas para dentro; estas estavam presas no canto mais distante da câmara. Otter passou pelo meio delas com uma bacia de água nas mãos.
Dog sentou-se ao meu lado. Os seus pequenos olhos estavam muito sérios e a sua boca invulgarmente severa. Do outro lado da câmara mal iluminada, Gull e Snake estavam ao pé do seu chefe, aparentemente discutindo um ponto qualquer. As mãos escuras de Gull moviam-se em gestos expressivos, rápidos, mas o seu significado não era claro e os três mantinham as vozes baixas. Snake olhou na minha direção e disse qualquer coisa mais a Bran, franzindo o sobrolho. As feições de Bran estavam severas, como sempre.
Vi-o encolher os ombros, como que a dizer: se não gostas, o problema é teu.
— Partimos de manhã cedo — disse Dog em voz baixa. — É provável que não volte a ver-te por uns tempos. Tu ficas aqui, claro. Achas que ele vai conseguir?
Ficamos, por um momento, a ouvir o som áspero e rouco da respiração de Evan.
— Farei o meu melhor para o manter vivo. Mas devo dizer-to já. Ele não está nada bem.
Dog exalou um pesado suspiro.
— A culpa é minha. Vê lá a trapalhada em que te meti. E para nada.
— Ehhh — disse eu, dando-lhe uma palmada na grande mão. —Somos todos responsáveis. Mas ele, mais do que todos. — Olhei para o outro lado da câmara.
— Não podes culpar o Chefe — disse Dog em voz baixa. — Ele não queria partir. Recebeu uma mensagem, alguém andava atrás de nós. Quando isso acontece, fugimos depressa, sem olhar para trás. Teríamos morrido todos, se tivéssemos ficado lá.
— E eu teria sido salva — disse eu, secamente. — Talvez os que andassem atrás de vós me procurassem.
— Talvez sim e talvez não. Não podíamos deixar-te lá sem o sabermos.
A minha lamparina era agora a única a arder naquele espaço subterrâneo. Sob o arco do teto, onde as pedras cuidadosamente sobrepostas se equilibravam miraculosamente, uma série de teias entrelaçadas abrigava inúmeras pequenas criaturas. O chão era de terra, macio. A um dos cantos da câmara estava uma monumental laje de pedra escura, cuja superfície era brilhante, como se polida devido a muito uso. Apenas podia tentar adivinhar para que servira. Sobre aquilo, num ângulo ligeiro, havia uma única abertura estreita entre as pedras, cortada a direito através da cobertura de turfa. Viria o dia no ano em que o Sol entraria por aquela abertura, batendo na pedra em baixo; um dia em que os antigos poderes acordariam. Eles não tinham desaparecido, ainda não. Conseguia senti-los no ar imóvel à minha volta, nas paredes toscamente cortadas, onde aqui e ali um pequeno e subtil sinal estava gravado. Pensei, subitamente, no jovem druida, Ciarán, afastando-se de Sevenwaters na sua dor e fúria. Talvez fosse melhor não sentir demasiado. Não querer demasiado. Nem passado, nem futuro. Apenas hoje. Era mais seguro. Desde que o passado não regressasse sem ser convidado.
— Estás esgotada — disse Dog. — No entanto, nós partimos amanhã. Ia perguntar-te... não, é melhor não.
— O quê? Podes perguntar.
— Tu estás cansada. Foi uma grande cavalgada., para ti. Nós gostávamos muito de ouvir outra história, a última, antes de... mas é pedir muito. Esquece o que eu disse. Não faz mal.
Sorri, abafando um bocejo.
— Posso dormir amanhã, creio. Posso muito bem contar uma última história.
Estranhamente, se bem que tivéssemos estado a falar em voz baixa, todos eles pareceram ter ouvido a resposta. Em breve estava rodeada por homens silenciosos, encostados à parede ou agachados. Alguns sentaram-se de pernas cruzadas, afiando facas ou pontas de lança à luz da lamparina. Spider estendeu um longo braço e colocou-me uma caneca de cerveja nas mãos. Por trás dos outros, Bran e Gull mantinham-se juntos. Na escuridão, Gull era quase invisível, salvo quando a sua boca revelava um clarão de dentes brilhantes. Bran olhava para mim de braços cruzados, sem expressão. Não dava sinais de cansaço. E estava sem dormir decentemente há mais tempo do que nós, como eu bem sabia.
— Tinha pensado — comecei — que na véspera da vossa missão vos devia inspirar com outra história de heróis, talvez sobre sacrifício e coragem no campo de batalha. Mas não tenho ânimo para isso. Pelo que sei, os homens que ides atacar podem muito bem ser da minha espécie. Além disso, tenho ouvido dizer que vós sois os melhores no que fazeis. Penso que não necessitais de encorajamento. Assim, prefiro divertir-vos e vou contar-vos uma história de amor. A de uma mulher que manteve a fé contra tudo e contra todos.
Bebi uma golada de cerveja. Sabia bem, mas pousei a caneca. Se bebesse mais arriscava-me a adormecer mesmo ali, onde estava sentada. Olhei em volta para o círculo de duros e ásperos rostos. Quantos deles voltaria a ver? Quantos estariam ainda vivos por esta hora no dia seguinte?
— Ela era uma rapariga vulgar, a filha de um lavrador e o seu nome era Janet. Mas o namorado chamava-lhe Jenny; era o seu nome especial para ela, que mais ninguém usava. Quando ele a chamava assim, ela sentia-se como a mulher mais bonita do mundo. Pelo menos, assim pensava o seu Tom. Tom era o seu namorado e era ferreiro, como aqui o Evan, um jovem forte, de ombros largos e habilidoso na sua profissão. Não era nem demasiado alto, nem demasiado pequeno. Tinha cabelos castanhos encaracolados e um rosto alegre. Mas o que Jenny gostava mais nele eram os seus profundos olhos cinzentos; olhos confiantes, chamava-lhes ela. Ela sabia que, acontecesse o que acontecesse, Tom nunca a deixaria ficar mal.
“Jenny era uma rapariga calma. Uma boa rapariga. Obediente ao pai, útil à mãe, habilidosa em tudo aquilo que uma boa esposa deve ser. Sabia coser, fazer conservas e fermentar cerveja. Sabia depenar uma galinha, fiar lã e tratar de um cordeiro doente. Tom tinha orgulho nela e tinha dificuldade em esperar até ao dia do casamento, que fora marcado para o solstício de Verão. Ele amava os cabelos louros dela até à cintura, numa trança que ela às vezes desfazia, de maneira que ele visse como eles ondulavam como um campo de trigo ao sol de Verão. Ele amava a altura perfeita dela, de maneira que o seu braço a segurava com precisão pelos ombros quando passeavam sós. Ela fazia com que o seu coração batesse mais depressa e o seu corpo se excitasse e ele cantava na sua forja enquanto batia no ferro quente das forquilhas ou dos arados, esperando pelo dia do solstício de Verão.
“Apesar de ser doce e calma, havia uma coisa que fazia com que Jenny perdesse as estribeiras e isso era quando as outras raparigas olhavam de lado para Tom, ou tentavam namoriscar quando ele passava por elas. “Parai com esses olhares”, dizia ela furiosa, “ou arrepender-vos-eis. Ele é meu.” Tom costumava rir-se dela e dizia-lhe que ela parecia um daqueles pequenos e terríveis terriers, protegendo um osso.
“Ela não sabia que ele não sonhava com nenhuma outra? Não era ela a mulher do seu coração? Ah, mas eles não contaram com as criaturas por baixo do monte. Metediças, que adoram arrebatar um rapaz, ou uma rapariga, por capricho, e os usam a seu belprazer. Algumas, ficam com eles durante um ano e um dia e outros, para sempre. Algumas, cospem-nos quando estão satisfeitas e esses nunca mais voltam a ser o que eram. Uma noite, Tom tinha estado a trabalhar até tarde na forja e apanhou um atalho através dos bosques para a fazenda onde Jenny vivia, pensando em roubar um beijo ou dois antes de ir para casa. Tolo Tom. Pôs um pé em cima de um círculo de cogumelos e, tão depressa como uma batida do coração, lá estavam as Criaturas Encantadas, vestidas com os seus melhores vestidos, com a sua maravilhosa rainha à cabeça, montada no seu cavalo. Um olhar para os olhos dela e ele ficou perdido. A rainha fê-lo montar na sua garupa e lá partiram eles a galope para longe, para muito longe, para além do alcance dos seres mortais. Jenny esperou e esperou nessa noite, com uma vela acesa à janela. Mas Tom não apareceu.
Pensei se eles não achariam aquela história demasiado infantil, ou extravagante; imprópria para homens adultos. Mas o silêncio era de êxtase. Bebi outro gole de cerveja.
— Continua — disse Snake. — Pensei que tinhas dito que ele era de confiança. A mim, parece-me que era bem estúpido. Devia ter ido pela estrada e levado uma lanterna.
— Quando as Criaturas Encantadas decidem que querem alguém, não há nada a fazer — repliquei. — Bem, Jenny não era estúpida. Na manhã seguinte, cedinho, dirigiu-se à forja através dos bosques, viu a erva calcada por cascos de cavalo, o círculo de cogumelos, ou o que restava dele e viu o lenço vermelho que Tom usava, o lenço que ela tinha fiado, tingido e tricotado com as suas próprias mãos. Viu logo quem o tinha levado e decidiu que havia de o ter de volta. Assim, foi ter com a mulher mais velha da aldeia, uma velha tão velha que tinha gengivas em vez de dentes e era deformada, de unhas encurvadas, com tantas rugas como uma maçã seca. Jenny sentou-se com aquela anciã, deu-lhe uma pequena tigela de papas de aveia que fizera especialmente e perguntou-lhe o que havia de fazer.
“A velha mulher teve relutância em falar. Era melhor não falar daquelas coisas. Mas recebera muitas delicadezas de Jenny, presentes e ajuda na casa, de maneira que abriu a boca. Na lua seguinte, disse ela, as Criaturas Encantadas hão-de cavalgar ao longo do vasto caminho que atravessa o coração da floresta e vai dar ao cruzamento dos pântanos. Jenny devia esperar no cruzamento, em silêncio, até à meia-noite. Quando elas passassem, devia agarrar Tom pela mão e segurá-la até de madrugada. Então, o feitiço quebrar-se-ia e ele seria dela de novo. “Isso parece fácil”, disse Jenny. “Eu consigo fazer isso”. A anciã cacarejou, rindo. “Fácil!” troçou ela. “Essa é boa! Será a coisa mais difícil que tu alguma vez farás na tua vida, garota. Precisarás de o querer muito, para conseguires segurá-lo. Prepara-te para algumas surpresas. Tens a certeza que queres fazê-lo?” E Jenny disse, temerosamente: “Ele é meu. Com certeza que quero fazê-lo.”
Snake estendeu um braço e voltou a encher-me a caneca. A língua bifurcada desenhada no seu nariz parecia tremer à luz da lamparina, como se se preparasse para atacar.
— Bem, ela fez como lhe disseram. À meia-noite, numa noite de Lua Cheia, esperou sozinha no cruzamento, vestida com o seu vestido tecido em casa, calçada com umas botas macias e com uma capa escura com capuz, para esconder os seus brilhantes cabelos. Como uma pequena sombra à luz da Lua, esperou. Em volta do pescoço tinha atado o lenço vermelho que fora do seu amado. E elas chegaram; uma longa e brilhante cavalgada, os cavalos todos brancos, os vestidos e túnicas cheios de pérolas e jóias, os cabelos longos e desordenados, com brilhantes gemas e estranhas folhas entrançadas. A rainha maravilhosa cavalgava no meio, alta, sumptuosa, a pele pálida como leite, os cabelos ruivos brilhantes, o vestido curto para mostrar as elegantes curvas do seu corpo. Atrás dela cavalgava Tom, o ferreiro, os olhos cinzentos distantes, o rosto antes alegre transformado numa máscara sem expressão. Usava uma estranha túnica, polainas de prata e umas botas macias, de pele de cabrito. Jenny ficou furiosa, mas manteve-se imóvel e em silêncio, até que a rainha chegou ao centro do cruzamento; até que o seu Tom ficou mesmo ao pé dela, ao seu alcance. Então, rápida como um relâmpago, saltou, agarrou-lhe a mão, puxou com quanta força tinha, ele caiu do cavalo e estatelou-se a seus pés.
“Ouviu-se um silvo de ultraje vindo das Criaturas Encantadas, que num instante rodearam com os seus cavalos Jenny e o pobre Tom, deixando-os sem espaço para fugirem. A voz da rainha maravilhosa era terrível de ouvir, doce e mortal na sua fúria.
“Tu!” cuspiu ela. “Que pensas que estás a fazer? Quem te mandou aqui? Este homem é meu! Tira as tuas imundas mãos mortais dele! Nenhuma mulher me desafia!” Mas Jenny não lhe obedeceu, enquanto Tom continuava sentado a seus pés atordoado, olhou para a bela criatura no cavalo branco e falou, desafiadora, com os olhos. Então a criatura maravilhosa emitiu uma risada medonha e disse: “Bem, vamos divertir-nos um pouco. Vamos lá a ver quanto tempo és capaz de aguentar, camponesa! Achas que és forte? Como vocês, os mortais, são estúpidos”.
A princípio, Jenny não compreendeu bem o que ela queria dizer, porque a mão de Tom permanecia mole e passiva na sua. Então, de repente, os dedos dele transformaram-se em garras afiadas, a carne peluda, áspera e em vez de um homem, ela segurava na perna de um grande lobo com a boca cheia de espuma, que abria as mandíbulas e lhe mostrava os longos e afiados dentes. Jenny vacilou de terror, com o hálito a cheirar a ranço do animal perto do seu rosto e com o seu forte corpo debatendo-se contra o aperto da sua mão. Feriu os dedos nos longos pêlos do lobo, mas aguentou e aguentou, enquanto o animal a arrastava pelo chão. Sentiu o cascalho a rasgar-lhe o vestido e a pele. Ouviu-se um murmúrio vindo do círculo de observadoras; e uma única palavra foi pronunciada numa língua estranha. Então, o pêlo áspero transformou-se numa superfície suave, escorregadia, que quase fez com que ela abrisse a mão, tão forte era o aperto. Sentiu uma dilatação e um serpentear e em vez de um grande lobo viu-se a segurar uma serpente maciça, lisa, com escamas da cor de pedras preciosas das profundezas da terra, um monstro que se contorcia e agitava, procurando rodeá-la com os anéis do seu imenso corpo. Para se manter firme, Jenny era obrigada a abraçar aquela criatura com os braços e unir as mãos, pressionando o rosto contra as escamas frias daquele corpo, enchendo-se de coragem para não desmaiar de terror, enquanto a cabeça do pequeno demónio dardejava contra ela, uma vez e outra, a língua bifurcada, como um chicote, perto dos seus olhos. “Isto é o Tom”, dizia ela para si própria, o coração batendo como um tambor. “Isto é o meu amado. Eu aguento. Tenho de aguentar. Ele é meu.”
“Ouviu-se outra palavra no silêncio, à luz da Lua. A serpente transformou-se numa enorme aranha, numa criatura peluda, de olhos multifacetados e espessas pernas, que se enroscou na desafortunada rapariga. Os seus dentes de víbora avançaram para ela, para a perna a que Jenny se mantinha agarrada, os espinhos perfurando-lhe a carne, até que ela mordeu os lábios para não gritar. Depois da aranha foi a vez de um javali de presas amarelas e olhos pequeninos, estúpidos; e depois do javali foi a vez de uma estranha criatura da qual ela não sabia o nome, de grandes mandíbulas e pele nodosa, cheia de protuberâncias. Mas Jenny continuou a aguentar, apesar de as suas pobres mãos sangrarem e mal lhe obedecerem, tão doridas estavam. Uma vez olhou para cima e pensou ver uma pequena luz no céu noturno. As criaturas em volta estavam silenciosas. Então, a rainha riu de novo. “Não está mal, não está nada mal! Proporcionaste-nos um bom bocado. Mas temos de nos ir embora. Quero o meu rapaz, se não te importas de o libertar”. Fez um gesto imperioso com a mão e Jenny sentiu os ombros como que perfurados por cem facas afiadas, quase largando Tom. Ouviu-se o bater de grandes asas escuras e na sua mão estava a pata de uma ave gigantesca, o seu bico tão grande como a cabeça de um cavalo, as garras flectidas, procurando quebrar-lhe o aperto. A outra pata fechara-se sobre o seu braço e ombros e a monstruosa criatura saltava, batia as asas, piava e feria à direita e à esquerda com o seu bico mortal, tentando desalojá-la. Ouviu-se um riso cristalino. “Este homem é meu”, murmurou Jenny para si própria. “Amo-o. Ela não o há-de ter. Não o largo”. E por mais que a grande ave lutasse, não conseguiu desalojá-la. Então, subitamente, ouviu-se um som sussurrante, um suspiro e o som delicado de muitos cascos e à medida que as primeiras luzes da aurora transformavam o horizonte do mundo em prata, as Criaturas Encantadas desapareceram como farrapos de nevoeiro e nos braços de Jenny ficou o seu amado, como morto, as suas roupas brilhantes ficando cinzentas à medida que o céu clareava. “Tom”, murmurou ela, “Tom”. Não tinha forças para dizer mais nada. Após uns momentos sentiu-o mexer-se, rodear-lhe a cintura com os braços, pousar-lhe a cabeça no peito e murmurar: “Onde estamos? Que aconteceu?” Então, Jenny tirou o lenço vermelho, colocou-o ao pescoço do seu amado e ajudou-o a levantar-se com as mãos feridas, a sangrar. Puseram os braços em redor um do outro e ao mesmo tempo que o Sol se levantava para um dia perfeito, caminharam lentamente para casa. E apesar de a história não o dizer, creio que tiveram uma vida feliz juntos, porque eram duas metades do mesmo todo.
À minha volta houve um respirar colectivo. Ninguém disse nada. Após uns momentos, os homens afastaram-se e prepararam-se para descansar o melhor que podiam no chão duro. Não havia privacidade. Baixei a chama da lamparina o mais que pude e preparei-me, também, para dormir, completamente vestida. Podia ter tirado, ao menos, as botas, mas quando me curvei para as desatar descobri que estava tão cansada que os meus dedos não me obedeciam. Tão cansada, que estava à beira de chorar por tudo e por nada. Malditos fossem. Seria muito mais fácil se os odiasse, tal como Eamonn.
— Eu ajudo-te. — Dog ajoelhou-se ao pé de mim, as suas grandes mãos desfizeram delicadamente os laços e tiraram-me as botas. — Tens uns pés tão pequenos.
Acenei com a cabeça em sinal de agradecimento, consciente dos olhos fixos em nós do outro lado da câmara. A escuridão era quase completa. Ouvi o pequeno som de uma coisa a ser cortada, algo suave e acerado foi-me metido na mão e a figura grande e pesada de Dog retirou-se para as sombras. Ao mesmo tempo que me deitava e sentia um grande cansaço a apoderar-se de mim, meti a garra de lobo na algibeira. Eles eram assassinos contratados. Por que me havia de interessar o destino deles? Por que não podia a vida ser simples, como nas histórias? Por que não podia...
Caí num sono profundo, sem sonhos.
Pestanejei uma, duas vezes. A luz entrava a jorros pela abertura. Era manhã. Sentei-me. A câmara estava vazia, o chão nu, todos os sinais de presença humana tinham desaparecido. Tudo, salvo o meu cobertor, a minha pequena trouxa e os utensílios da minha profissão. E o ferreiro, deitado a dormir perto de mim, respirando com dificuldade.
Olhei em volta. Nada. Tinham-se ido embora, todos. Tinham-me deixado só, com o meu paciente. Não entres em pânico, Liadan, disse eu para mim própria, ao mesmo tempo que o meu coração batia desordenadamente. Dentro de pouco tempo Evan acordaria e precisaria de mim. Assim procurei uma nascente de água. Vi se era possível acender uma fogueira. Para além disso, não podia planear fosse o que fosse.
Havia uma pequena tigela e uma bacia ao lado da minha trouxa. Com elas na mão, saí pela estreita abertura, semicerrando os olhos à medida que emergia para uma manhã gloriosa.
— Há uma corrente de água na parte norte do monte e uma lagoa, onde te podes lavar. — Ele estava de costas para mim, com um arco a tiracolo. Não obstante a cabeça rapada e a pele decorada, reconheci-o imediatamente. O choque e o ressentimento foram quase tão fortes como o alívio e eu falei irrefletidamente.
— Tu! Eras o último homem que eu esperava ver aqui.
— Terias preferido outro? — perguntou ele enquanto se virava para mim. — Um que te adulasse e dissesse palavras doces?
— Não digas disparates! — Estava determinada a não o deixar perceber que acreditara que estava só. Não lhe demonstraria sinais de medo.
— Não prefiro nenhum de vós. Por que não estás com os teus homens? Eles precisam da tua liderança. Do Chefe. Quase um deus. Não compreendo como pudeste mandá-los para uma missão, ficando tu para trás. Qualquer um deles podia ter ficado para me guardar.
Ele semicerrou os olhos. O Sol da manhã dava aos traços carregados das suas feições um certo alívio.
— Não confiaria em nenhum deles para esta missão — disse Bran. — Reparei em como olhavam para ti.
— Não acredito em ti. — Aquilo era um disparate.
— Além disso — acrescentou ele casualmente, colocando o arco numa fenda entre duas rochas — é um bom treino. Devem aprender a lidar com o inesperado, assumir o comando instantaneamente, se necessário e sem o pôr em questão. Devem aprender a estar sempre prontos. Há outros líderes entre eles. Eles aceitam este desafio.
— Quanto... quanto tempo estarão fora?
— Bastante.
Como não encontrei mais nada para lhe dizer, fui em busca da corrente de água para lavar a cara, as mãos e trazer água para o meu paciente. Havia uma lagoa límpida entre as rochas e quando mergulhei a bacia imaginei que via ali a minha irmã, mergulhada até à cintura, fechada nos braços do amante, os cabelos cobrindo-lhe o corpo branco. Pobre e encantadora Niamh. Mal lhe concedera um pensamento, desde que me despedira dela. Devia estar em Tirconnell, aprendendo a sua nova vida entre estranhos. Estremeci. Não conseguia imaginar-me a viver longe de Sevenwaters, longe de tudo o que fazia parte de mim. Talvez, se se gostasse muito de uma pessoa, se pudesse fazer tal coisa sem sentir o coração despedaçado. Mas a floresta prende aqueles que nasceram no seu seio, não os deixando ir para longe sem que desejem regressar. No meu coração temia pela minha irmã. Quanto a Ciarán, não podia dizer que caminho tomara.
O dia foi decorrendo. Evan estava cheio de dores, suado, com vómitos e dizendo coisas sem nexo. Bran aparecia e desaparecia, dizendo pouca coisa, ajudando-me e levantar e virar o ferreiro, aquecendo água, fazendo o que eu lhe pedia. Fui forçada a admitir, de má vontade, que ele era bastante eficiente. Uma ocasião, enquanto Evan permanecia deitado, tranquilo, chamou-me ao exterior, mandou-se sentar e deu-me um prato de guisado, um pão seco e uma caneca de cerveja.
— Não fiques tão surpreendida — disse ele sentando-se à minha frente e começando a sua própria refeição. — Tens de comer. E não há mais ninguém para tratar de ti.
Eu não disse nada.
— Ou pensas que eras capaz de levar a cabo esta tarefa sem ajuda? A pequena curandeira, fazedora de milagres. Pensavas que te íamos deixar aqui sozinha? Pensavas?
Não olhei para ele, concentrando-me antes no guisado, que estava ótimo. O arco devia ser para caçar.
— Pensavas — disse ele, incrédulo. — Que nos tínhamos ido embora e te tínhamos deixado aqui sozinha com um moribundo. Deves achar que somos uns selvagens.
— Não é o que tu queres? — desafiei-o, olhando agora de frente para ele e vislumbrando uma expressão diferente nos seus olhos cinzentos, antes de ele os desviar. — O Homem Pintado, a criatura que inspira o terror e o medo? Um homem que pode e faz quase tudo, desde que lhe paguem bem? Um homem sem consciência? Por que haveria tal homem de pensar duas vezes antes de abandonar uma mulher, especialmente quando parece desprezar tanto o sexo feminino?
Ele abriu a boca, pensou melhor no que ia dizer e voltou a fechá-la.
— Por que é que nos odeias tanto? Qual foi a mulher que te desiludiu tanto, de maneira a tu passares a odiar-nos a todas para o resto da tua vida? Carregas um ressentimento enorme. Consome-te todo, como um cancro. Deves ser louco, para deixares que ele te destrua. Seria uma perda terrível. Que aconteceu, para te tornar tão amargo?
— Não tens nada com isso.
— Tenho, sim — disse eu, firmemente. — Tu é que escolheste ficar aqui e, portanto, vais ouvir. Ouviste a minha história da filha do lavrador, Jenny. Talvez tenha sido verdade e talvez não. Mas há muitas mulheres como ela no mundo, boas, fortes, assim como outras que não o são. Nós somos humanas como tu e todas diferentes. Tu vês o mundo através da sombra da tua dor e não julgas com justiça.
— Isso não é verdade. — As suas feições estavam comprimidas e os olhos distantes.
Comecei a sentir-me arrependida por ter falado tão audaciosamente.
— Foram as artimanhas de uma mulher e o seu poder sobre um homem que me roubaram a família e os direitos de nascença. Foi o egoísmo de uma mulher e a fraqueza de um homem por ela que me lançou neste caminho, que fez de mim a criatura que tu tanto desprezas. As mulheres são manhosas. Os homens deviam ter cuidado e não se aproximarem, para não serem apanhados na rede.
— Mas eu sou uma mulher — disse eu após uns momentos. — Eu não... teço armadilhas, não seduzo, ou cometo atos demoníacos. Falo com a mente, mas isso não tem nada de errado. Recuso-me a ser catalogada como uma... qual foi a palavra? Uma manhosa? A minha mãe foi sempre o meu exemplo. Ela é frágil, mas forte. Só sabe dar. A minha irmã é bela e sem artimanhas nenhumas.
— Estás a chorar.
— Não estou! — Passei uma mão zangada pela face. — O que eu quero dizer é que tu deves ter encontrado muito poucas mulheres, para teres essa visão tão estreita.
— Para mim, és capaz de ser uma exceção — disse ele de má vontade. — Na verdade, não te consigo catalogar com facilidade.
— Achas que sou mais parecida com um homem?
— Ah! — Não consegui perceber se aquele som indicava divertimento ou troça. — Dificilmente. Mas tens algumas qualidades, que eu não esperava. É pena que não consigas manejar um bordão, ou atirar com um arco. Podíamos recrutar-te para o bando.
Foi a minha vez de me rir.
— Acho que não. Mas, de fato, consigo. Manejar um bordão e atirar com um arco, quero dizer.
Ele olhou para mim de olhos esbugalhados.
— Não acredito.
— Eu mostro-te.
Lubdan ensinara-me bem. Aquele arco era maior e mais pesado do que os com que aprendera e não o consegui esticar por completo. Mas dei conta do recado. Bran olhou para mim em silêncio, de sobrancelhas erguidas, com ironia, enquanto eu ajustava a corda.
— Onde é que queres que acerte com este arco?
— Podes tentar aquele grande nó no tronco daquele ulmeiro.
— Até uma criança acertava ali — disse eu com alguma troça. —Insultas-me. Que alvo escolherias para um jovem que quisesses no teu bando de guerreiros?
— Não teria chegado a este ponto sem ter provado, antes, a sua coragem. Mas, se insistes, sugiro aquela macieira, além, entre as rochas. Eu mostro-te.
Tirou-me o arco, esticou-o por completo, de olhos semicerrados devido à luz. Foi rápido. Um som de corda tensa quando ele largou e eu vi uma pequena maçã verde cair no chão, atravessada pela ponta da flecha.
— É a tua vez — disse ele, secamente.
Sean e eu tínhamos praticado aquele jogo vezes sem conta. Estiquei o arco o melhor que pude, disse uma palavra em voz baixa e larguei a corda.
— Sorte de principiante — disse Bran quando uma segunda maçã caiu. — Sorte. Não és capaz de fazer outra.
— Sou capaz — disse eu — mas não me interessa que acredites ou não. Temos trabalho para fazer. Achas que és capaz de me procurar algumas ervas se eu te disser quais? As minhas provisões já quase acabaram e Evan tem cada vez mais dores.
— Diz-me o que precisas.
Ainda bem que eu dormira tão bem na noite anterior, porque não haveria lugar para muito sono nos dias que se iam seguir. O ferreiro estava cada vez mais doente, as feições febrilmente coradas, a carne em redor da ferida pintalgada e azulada. Bran trouxe o que lhe pedi e fiz um chá, que dei a tomar a Evan, gota a gota, até que ele ficou mais calmo.
— Onde estás, Biddy? — murmurou ele, continuando a mover a cabeça, incansavelmente, de um lado para o outro. — Biddy? Mulher? Não te vejo.
— Pronto — disse eu, passando-lhe a esponja pelo rosto a arder. —Estou aqui. Dorme.
Mas ele levou muito tempo a adormecer e, apesar das ervas, não demorou muito tempo até a dor o acordar de novo. Bran estava no exterior e não podia chamá-lo. De que servia? Ele não podia fazer nada. Sentei-me ao lado de Evan, ambos dentro da lagoa de luz formada pela lamparina e segurei-lhe na mão. Disse-lhe que não falasse, mas não havia maneira de o manter calado.
— Ainda aqui estás. Pensei que já tinhas ido para casa.
— Sim, ainda aqui estou, como vês. Não te vês livre de mim com essa facilidade.
— Por um momento, pensei que fosses a Biddy. Parvo. Ela é maior do que tu três vezes, uma grande e boa rapariga, a minha Biddy.
— Ela está à tua espera, não tenhas dúvidas — disse eu.
— Achas que ela ainda me quer? Achas que ela não se importa com... sabes o quê?
Dei-lhe um pequeno apertão na mão.
— Um tipo forte e bonito como tu? É claro que quer. Hão de pôr-se em fila por ti, homem.
— Eu não me quero queixar, sabendo que tu fazes o melhor que sabes. Mas, meu Deus, dói tanto...
— Toma, vê se consegues engolir mais um pouco disto.
— Precisas de ajuda? — Bran entrara silenciosamente, com um pequeno frasco na mão. — Gull deixou-me isto. É uma bebida do país dele, muito forte. Guardada para ocasiões especiais.
— Duvido que ele consiga aguentá-la. Talvez algumas gotas. Deita aqui umas, neste chá; tens razão, chegou a hora das grandes decisões. Consegues levantar-lhe a cabeça e os ombros? Obrigada.
O frasco era prateado, revestido de madeira de teixo e na sua superfície estava gravado um desenho em espiral. A rolha era de âmbar, com a forma de um pequeno gato.
— Não muito. Queremos que o remédio fique no estômago o tempo suficiente.
Pouco a pouco, gole a gole, dei a Evan a potente infusão, enquanto Bran se sentava por trás dele, amparando-o.
— Não confio em si, Chefe — disse o ferreiro em voz fraca. — Vai esperar até eu estar deitado e depois vai-me envenenar. É melhor deixar que a miúda aqui faça o trabalho.
— Na verdade, que estou eu a fazer aqui senão o que ela manda?
— Esse dia ainda não chegou, Chefe...
— Ehhh — disse eu. — Falas demais. Bebe isto e está calado.
— Estás a ouvir? — disse Bran. — Ela gosta de dar ordens. Não admira que os outros se tenham posto a andar.
Os olhos de Evan fecharam-se.
— Eu disse-lhe que ela era das nossas, Chefe — disse ele com voz fraca. Bran absteve-se de comentar.
— Dorme — disse eu pousando a taça do chá de ervas. Estava meio vazia. Conseguira beber mais do que eu esperava. — Descansa. Pensa na tua Biddy. Talvez ela te possa ouvir, do outro lado da água, no lugar onde está. Por vezes, acontece. Diz-lhe que vais para casa em breve. Diz-lhe que não terá de esperar muito.
Após um certo tempo, Bran deixou Evan descair gentilmente, pousando-lhe a cabeça num rolo de cobertores, de maneira que podia respirar mais facilmente.
— Toma — disse ele, oferecendo-me o frasco de prata.
— Talvez não. — Mas aceitei-o, pensando que o seu intrincado desenho parecia percorrer-lhe a mão e subir-lhe pelo braço acima, por baixo da manga da sua camisa cinzenta, enrolada até ao cotovelo. — Devo estar pronta para acordar quando ele fizer o mesmo.
— Também tens que dormir um bocado.
— E tu também.
— Não te preocupes comigo. Bebe um gole, pelo menos. Ajuda-te a descansar.
Levei o frasco aos lábios e engoli. Era forte como o fogo. Tossi e senti um calor a espalhar-se pelo corpo todo.
— Tu também — disse eu, devolvendo-lho.
Ele bebeu um pouco, rolhou o frasco e levantou-se.
— Chama-me quando ele acordar. — Pela primeira vez senti uma espécie de timidez no seu tom. — Não precisas de fazer isto sozinha, ouviste?
Que Brighid me ajude. Subitamente, fui tomada pela maior das tristezas. Arrogância, troça, indiferença, podia bem com elas. Competência calma, era ótimo. Discutir com ele até era quase divertido. As palavras inesperadas de amabilidade é que ameaçavam despedaçar-me. Devia, realmente, estar esgotada. Adormeci com uma visão de Sevenwaters: árvores escuras, sombrias, a luz do Sol por entre as folhas, as águas límpidas do lago. Pequena, perfeita, mas oh, tão distante.
CAPÍTULO SEIS
Caímos numa espécie de rotina. Acostumámo-nos uns aos outros. Quando eu dormia, Bran ficava de guarda e assistia o ferreiro. Quando Bran dormia, o que era raro, dizia-me para ir para dentro e eu fazia o que ele me mandava. Os dias seguiram-se uns atrás dos outros e a febre comeu a carne dos ossos de Evan, secando-lhe lentamente a vida dos olhos. Teria sido fácil para Bran lembrar-me que fora eu que insistira em manter aquele homem vivo o tempo suficiente para sofrer uma morte dolorosa e lenta. Teria sido fácil para mim culpar Bran por ter movido o ferreiro antes de ele ter forças para viajar. Mas não falámos dessas coisas. Nem sequer falávamos muito. Dificilmente parecia necessário. Ele sabia quando eu precisava dele e estava ali, pronto. Comecei a saber quando ele precisava de ficar só e, silenciosamente, retirava-me para o interior da câmara, ou para a lagoa, onde me sentava e forçava a mente a manter-se calma. Havia rochas gravadas no local, antigas, lajes monumentais incrustadas de líquen e cobertas de fetos. Não tinha dúvida de que eram guardiãs da antiga verdade que tivera ali o seu centro e acenei com a cabeça para elas à passagem. A nossa conversa tornou-se diferente, como se já não houvesse necessidade de jogar um jogo de estratégia com as nossas palavras. Evan aguentava-se e eu permiti-me uma ténue esperança de que nem tudo estava perdido. Uma noite tivemos uma pequena pausa, tempo para os dois nos sentarmos no exterior, por baixo de uma lua enorme e de um arco de milhares de estrelas, comendo coelho assado nas brasas com alho selvagem, enquanto os únicos sons à nossa volta provinham do restolho de minúsculas criaturas nocturnas por baixo da vegetação e do pio de um mocho na caça. Era um silêncio sociável. Percebi que acabara por confiar naquele homem, algo que nunca julgara possível.
— Dá-me a tua opinião honesta — disse ele quando acabámos de comer. — Ele tem alguma hipótese?
— Sobrevive até amanhã. Estou a tentar não olhar mais longe.
— Aprendes depressa.
— Algumas coisas. Aqui, o mundo é diferente. As velhas convenções não parecem funcionar aqui.
— Diz-me. Parece que sabes muito acerca de ervas e poções. Aquilo que usaste, quando o puseste a dormir, quando lhe tirámos o braço; era muito forte. Ainda tens um resto?
Não lhe podia ver bem o rosto nas sombras, mas os olhos estavam alerta, fixos.
— Algum. Gull falou nisso. Cheirou um pouco e mencionou quase todos os ingredientes. Isso surpreendeu-me.
— A mãe dele era herbanária. Famosa, no seu país. Houve quem lhe chamasse feiticeira. Foi o que lhe provocou a perseguição e a morte. Isso tem afetado Gull, quase de maneira insuportável.
Não pude resistir a perguntar:
— Pensei que estes homens não tinham passado!
— Aprendem a pô-lo de lado. Para se fazer o que fazemos, um homem tem que viajar com pouca bagagem. Não pode carregar memórias nem esperanças. Para se ser o que somos, temos de pensar unicamente na missão do dia.
— Eu sei a história de Gull.
— Foi ele que ta contou?
— Os outros. Cada um tem a sua história, que não está assim tão profundamente enterrada. Cada um tem a sua esperança. Nenhum homem pode existir sem isso.
— Não?
Decidi que não seria sensato continuar com aquilo
— Nunca te sentiste tentada? — perguntou ele, calmamente. —Quando o teu paciente está com dores e sabes que ele não pode sobreviver? Seria fácil, não seria? Dar-lhe uma dose um pouco mais forte? Assim, em vez de continuar a sofrer, adormeceria para nunca mais acordar?
Eu tivera os mesmos pensamentos.
— É preciso cuidado — disse eu. — Interferir em tais coisas pode ser perigoso e não apenas para a vítima. Todos nós temos o nosso tempo. A deusa assim o quer. Eu apenas agiria dessa maneira se acreditasse que ela me guiava a mão.
— Tu segues a velha fé?
Acenei com a cabeça em sinal de assentimento, relutante em falar sobre a minha família.
— Serás capaz de o fazer? — perguntou ele. — Se ele piorar?
— Nesse caso não seria diferente de ti, com a tua pequena faca. A tua solução conveniente. Eu curo. Eu não mato.
— Creio que o farias. Se tivesse que ser.
— Não quero ofender a deusa, nem darei esse passo, a não ser que tenha a certeza que é o que Evan quer. Suponho que não posso dizer o que farei, a não ser que me veja perante essa escolha.
— Pode ser que tenhas hipótese de o descobrir.
Não repliquei.
— Acreditas — continuou ele após uns momentos — que eu o teria feito? Usado essa solução conveniente, só porque estavas no meu caminho?
— Na altura, sim. Acreditei que era possível. E... o que ouvira acerca de ti dava-me razão.
— Eu nunca teria feito semelhante coisa.
— Agora, sei isso.
— Não me interpretes mal. Eu não sou fraco. A consciência não me perturba. Eu tomo decisões rapidamente e não me permito arrepender-me delas. Mas não sou um destruidor arbitrário de inocentes.
— Nesse caso, por que é que tu... — Era demasiado tarde para engolir as palavras.
— Por que é que eu o quê? — O tom tornara-se, subitamente, perigoso. Apanhara-me na armadilha, com a sua amabilidade.
— Nada.
— Diz-me. Que histórias é que ouviste acerca de mim?
— Eu... — Era claro que o silêncio não ia ser uma opção. E ele saberia se eu mentia.
— Falaram-me de uma ocasião, não há muito tempo, de um grupo de homens, na sua própria terra, que sofreu uma emboscada e foi chacinado enquanto transportavam os corpos dos seus mortos para serem enterrados. Ouvi dizer que o chefe deles foi amarrado e forçado a ver os amigos morrerem, um a um. Por nada. Apenas como demonstração de força. A descrição que ele... a história foi contada de modo a mostrar que tu eras o responsável.
— Hum. Quem te contou essa história? Onde é que a ouviste?
— Quem era o teu pai? Onde nasceste? Troca por troca, lembras-te?
— Sabes muito bem que não te direi.
— Um dia dirás. — Subitamente ficou frio de novo, como se um fantasma tivesse passado e me tivesse tocado com a sua respiração. Não sabia porque dissera aquelas palavras, mas sabia que eram verdadeiras.
— Sentiste? — perguntou Bran com uma voz estranha. Olhei para ele.
— Senti o quê?
— Um... um frio, uma súbita descida de temperatura. Talvez o tempo esteja a mudar.
— Talvez. — Aquilo estava a ficar ridículo. Não apenas partilhava com ele os seus pesadelos, como ele sentia quando a Visão me tocava. Decididamente, chegara a hora de voltar para casa.
— O nome dele é Eamonn — disse ele, lentamente. — Eamonn de Marshes, é assim que lhe chamam. O pai dele tinha má fama e o filho não lhe fica atrás. Os meus homens apanharam-te em Littlefolds, não apanharam? Mesmo na fronteira das terras de Eamonn? Qual é o parentesco dele para contigo? Primo? Irmão? Namorado?
— Nada disso — gaguejei, com o coração aos pulos. Não lhe podia dizer quem era, não podia deixar a minha família vulnerável. — Conheço-o. Ouvi-o contar a história, mais nada.
— Onde?
— Não tens nada com isso.
— Farias bem se não te ligasses a esse homem. A espécie dele é muito perigosa. Não te podes cruzar com esse homem e sair ilesa.
— Falas de ti próprio, certamente, não de Eamonn.
— Saltas muito depressa em defesa dele. Não é ele que te espera ansiosamente, como os meus homens me relataram de maneira tão comovedora?
— Os teus homens têm imaginações hiperativas, devido a pouco entretenimento. Não tenho namorado nenhum à minha espera, em casa. Apenas a minha família. É essa a minha escolha.
— Parece pouco plausível.
— É a verdade.
Mantivemo-nos calados por um bocado. Ele voltou a encher a minha taça e depois a dele. Eu começava a ficar tonta.
— Não foi arbitrário. — Bran falou para o espaço entre os dois. — As mortes. Não foi nenhum massacre de inocentes. Nós somos homens. Fazemos trabalho de homens. Devias perguntar a esse teu Eamonn quantos chacinou ele da mesma maneira. Nós fomos bem pagos para fazer o que fizemos, por um velho e poderoso inimigo dele. O pai dele enganou muita gente, no seu tempo. O filho continua a pagar o preço. Eu só lhe acrescentei um pequeno toque da minha lavra. Ouvi dizer que ele não ficou impressionado.
— A mim pareceu-me uma chacina estúpida. E um gesto arrogante de um homem que se julga intocável.
Estas palavras foram recebidas com um silêncio gelado. Comecei a arrepender-me das minhas palavras, se bem que fossem verdadeiras. Quando ele falou de novo, o tom tinha mudado. Agora era forçado, quase grosseiro:
— Aviso-te para que tenhas cautela. Não deves confiar nesse Eamonn. Se casares com ele, se o transformares no teu amante, ele chupa-te até ficares seca. Não te percas entregando-te a ele. Eu conheço a espécie dele. Esse homem dir-te-á as belas palavras que tu queres; há de embalar-te, de modo a acreditares nele. Essa espécie de homem só sabe receber.
Olhei para ele.
— Não acredito no que estou a ouvir! Tu, a dares-me conselhos sobre como devo viver a minha vida? E já agora, eu alguma vez disse que queria belas palavras?
— Todas as mulheres gostam de ser lisonjeadas — disse ele em tom de despedida.
— Isso não é verdade. Tudo aquilo que eu sempre quis foi honestidade. Palavras de afeição, palavras de... de amor, são palavras doces, que não têm significado se forem ditas para atingir um fim. Eu saberei, se um homem me mentir.
— Tens muita experiência nesses assuntos, suponho. — Não havia maneira de dizer se ele estava a falar seriamente ou não, salvo que eu acreditava-o incapaz de qualquer sentido de humor.
— Saberei. No fundo do meu coração, saberei.
Chegou o dia em que Evan deixou de conseguir guardar fosse o que fosse no estômago. A sua garganta estava cruelmente inchada e a febre fora substituída por uma letargia que significava o fim próximo. Sem as minhas infusões de ervas a sua dor devia ser aguda, mas ele já tinha um pé na recta final e, como homem forte que era, sofria sem se queixar. Não tinha um sono fácil, tornado mais profundo por uma assistência conhecedora, do qual podia passar pacificamente para o outro mundo.
Para ele, não. Sabia que o fim estava próximo e enfrentava-o de olhos abertos.
O dia passou lentamente da manhã para a tarde e pareceu-me que o ar frio, seco, no interior do velho recinto estava cheio de subtis sussurros e restolhares, como se forças antigas acenassem ao ferreiro.
— Diz-me honestamente — disse Evan. — Chegou o fim para mim, não chegou?
Eu estava sentada no chão ao lado dele, segurando-lhe na mão.
— A deusa chama-te. Creio que chegou a tua hora de seguir em frente. Tens-te aguentado corajosamente.
— Tu és boa. Tu és boa rapariga. Deste o teu melhor.
— Tentei. Lamento se não foi o suficiente.
— Oh não. Não, não chores por mim, miúda... — A respiração dele fazia um barulho esquisito. — Seca essas lágrimas. Tu tens a vida pela frente. Não desperdices a tua dor num homem simples como eu.
Aquilo apenas fez com que as minhas lágrimas corressem mais depressa, não apenas pela perda de um bom homem, mas também pela minha mãe, que estava no mesmo caminho, pela pobre Niamh, a quem fora negado o desejo do seu coração e pelo mundo, que exigia que os homens desperdiçassem os melhores anos em prol de uma vida de fuga e morte. Chorei porque não sabia como remediar tal mal. Evan manteve-se quieto durante longo tempo. Mais tarde começou a falar da sua mulher, Biddy. Tinha um par de rapazes, filhos de outro homem. Bons rapazes, ambos. O pai deles fora má rês, habituado a bater-lhes por tudo e por nada. Tivera uma vida dura.
Bem, o tipo morrera. Era melhor não dizer exatamente como. E ela era dele, agora, esperando que ele desistisse da vida que levava e voltasse para ela. Haviam de se mudar para um lugar qualquer, ele, Biddy e os rapazes; montar uma forja numa aldeia, talvez no estrangeiro. Havia sempre trabalho para um homem habilidoso e Biddy ajeitava-se com tudo. Ensinaria uma profissão aos rapazes, dar-lhes-ia um futuro. Uma vez ou duas falou como se fosse Biddy que estava ali a segurar-lhe na mão e eu acenava com a cabeça e sorria-lhe. Houve uma ocasião, mais tarde, para lhe fazer a tal pergunta e eu aproveitei-a.
— Evan, devo falar-te francamente, enquanto me podes compreender.
— O que é, miúda?
— Não te falta muito tempo. Ambos sabemos isso. Estás cheio de dores e elas vão piorar. Eu queria... eu queria oferecer-te uma poção muito forte para dormir, que te permitisse ter um fim suave. Mas tu não serás capaz de a tomar sozinho. Se quiseres... se quiseres abreviar o fim, posso pedir a Bran... posso pedir ao Chefe para... para...
Achei, no fim de contas, que aquelas palavras estavam para além da minha capacidade.
— ... sei o que quero. Chama o Chefe, digo a ambos... não te canses.
E assim tive que ir lá fora chamar o Bran, depois de esfregar as faces com as mãos, numa tentativa de enxugar as lágrimas. Ele não estava longe, encostado à velha pedra tumular, olhando para longe, aparentemente mergulhado em profundos pensamentos. A sua boca era uma linha fina.
— Importas-te... importas-te de ir lá dentro, por favor?
Ele olhou para mim como se eu o tivesse esbofeteado e seguiu-me sem uma palavra.
— Tenho umas coisas para pedir. Sente-se, Chefe. Não me resta muito tempo. Tenho de falar devagar.
— Estou aqui. Estamos ambos aqui.
— Sabe o que ela me perguntou? — Ouvi uma pequenina, minúscula risada.
— Não imagino.
— Perguntou-me se queria que o Chefe acabasse comigo! Já que ela não o consegue fazer. Acredita? Que rapariga.
Olharam ambos para mim com expressões idênticas. Doce Brighid, por que não conseguia eu fazer com que as lágrimas parassem de correr?
— Não quero. Obrigado pela oferta, no entanto. Não é fácil. Quero... quero ir lá para fora. Para debaixo das estrelas. Uma fogueira pequena. O cheiro de pinhas a arder, sentir a brisa da noite no rosto. Uma gota de uma bebida forte, talvez, para manter o frio afastado. Contar uma história. Uma boa, grande... É isso que eu quero.
— Acho que isso podemos fazer. — Mas era para mim que Bran estava a olhar e lá estava aquela expressão de novo, mais fugitiva, desta vez. Os olhos castanhos límpidos, os olhos de um homem de confiança. A boca suavizada pela dor e por outra coisa qualquer. Senti que aquele Bran, sem máscara, era infinitamente mais perigoso para mim do que o Homem Pintado.
— Mais uma coisa — sussurrou Evan. — Chefe. Acerca da minha mulher. Gull sabe onde estão escondidas as minhas coisas. Tenho de pensar nela e nos rapazes. Tenho poupado. Deve haver o suficiente. Gull sabe onde ela está.
Bran acenou com a cabeça sobriamente.
— Não precisas de te preocupar com isso. Farei com que sejam protegidos e que tenham o suficiente. Tenho planos para isso.
Uma careta iluminou as feições sem carnes e cinzentas do ferreiro e ele olhou para mim.
— Bom homem, o Chefe — murmurou ele.
— Eu sei — disse eu.
Bran carregou o ferreiro para o exterior, aparentemente com pouco esforço, apesar da altura e peso superiores de Evan. Eu levei cobertores, água e panos. Chegara o crepúsculo, por fim, após um dia interminável. Havia tempo para instalar Evan, meio sentado de encontro às rochas, o corpo embrulhado, de maneira a estar o mais quente possível. Escolhemos um lugar onde ele ficou bem abrigado, mas podendo sentir os movimentos do ar da noite. Havia no ar um aroma a chuva; esperava que ela não caísse antes da madrugada. Bran acendeu uma pequena fogueira, no interior de um círculo formado por pedras lisas tiradas da corrente de água e depois desapareceu.
Evan estava silencioso. A pequena deslocação levara-lhe a maior parte das forças que lhe restavam.
Imaginei qual seria a história mais conveniente para um moribundo, na sua última noite neste mundo. Uma grande, dissera ele. Suficientemente grande. Rodeei os joelhos com as mãos, ao mesmo tempo que olhava para as chamas da pequena fogueira. Uma história de esperança. Uma história que eu pudesse contar sem chorar.
Bran regressou tão silenciosamente como partira, segurando algo na parte da frente da sua camisa. Deixou cair a carga no chão. Pinhas. Peguei numa ou duas e atirei-as para a fogueira, com uma palavra silenciosa para a deusa. O cheiro trouxe uma promessa de altas montanhas, de neve e grandes aves circulando no céu pálido.
— Chefe.
A voz era esganiçada.
— Estou aqui. — Bran sentou-se no outro lado do ferreiro. Aquilo colocou-o a menos de três ou quatro passos de mim exigidos pelo código.
— A miúda. Prometa-me. Ela tem de ir para casa em segurança, quando isto acabar. Prometa, Chefe.
Bran não respondeu. Estava a olhar para a fogueira.
— Estou a falar a sério, chefe. — Apesar de fraca, a voz do ferreiro exigia uma resposta.
— Pergunto a mim próprio qual é o valor de uma promessa feita por um homem como eu. Mas dou-te a minha palavra, ferreiro.
— Ótimo. E agora, conta a história, miúda.
E assim, sentada muito quieta, comecei. Contei aquela história com tantos prodígios, magia e encantamento quanto sabia. Mas não me esqueci das coisas vulgares; as coisas que são maravilhosas por elas próprias, sem serem, de qualquer maneira, invulgares. O herói daquela história apaixonou-se e casou e teve o seu primeiro filho. Conheceu a amizade e a lealdade dos seus companheiros de armas. Viajou por terras distantes e mares misteriosos e experimentou a alegria do regresso a casa. A maior parte do tempo, enquanto contava a história, olhava para o fogo, mas às vezes olhava para as feições rudes e leais de Evan e para os seus grandes olhos abertos, olhando para as estrelas. Uma vez ou duas Bran pegou no frasco de prata e deixou cair na ponta de um dos seus dedos uma pequena porção, tocando depois com ele nos lábios do ferreiro. Mas após um certo tempo voltou a rolhar o frasco e voltou a metê-lo na algibeira; e ficou ali sentado, a ouvir. A história continuou. Algumas das aventuras pedi-as emprestadas e outras inventei-as à medida que ia andando. A grande Lua ergueu-se e espalhou uma luz difusa por cima de nós e eu continuei a falar. A brisa levantou-se com um aroma marítimo e a noite tornou-se fria. Bran levantou-se e foi buscar o casaco.
— Toma — disse ele, acanhadamente e deixou-mo cair com precisão em cima dos ombros. Outra vez trouxe-me uma taça de água. A história era longa, longa. Podia ter suportado bem aquela situação com a ajuda de Sean, de Niamh, ou de Conor, mas não estava ali nenhum deles. Cuidado: não podia recomeçar a chorar. As estrelas pareciam jóias brilhantes sobre um manto de veludo. Ninguém era capaz de fazer um manto tão maravilhoso.
— Chegou a altura — disse eu por fim — em que a deusa chamou Eoghan a si. Porque chegara o dia para ele seguir em frente; deixar que o seu espírito deixasse esta vida, partindo para a outra. Quando ela nos chama, não podemos recusar. Mas Eoghan, pensando na mulher e no filho que ainda era pequeno, sentou-se nas pedras gravadas onde ouvira o chamamento e perguntou: Como podia deixá-los? Como viveriam sem ele? Quem cortaria a lenha para a sua mulher, quem ensinaria o filho a caçar? Então, a deusa depositou-lhe no coração a sua sabedoria e ele compreendeu. A tua mulher chorará por ti, mas o seu amor dar-lhe-á força. Ela coserá esse amor em todos os pontos dos vestidos que fizer (porque a mulher dele era costureira). O teu filho aprenderá a ser como o pai à medida que for praticando a profissão que lhe ensinaste. Com o tempo, também ele será homem, amará, será feliz e transportará consigo, pela vida afora, a coragem e a força de vontade que aprendeu nos teus joelhos quando lhe contavas as tuas aventuras. Com o tempo, o teu espírito estará de novo com eles; talvez sob a forma de uma grande e frondosa árvore, que dá sombra ao local onde os teus netos brincam. Talvez sob a forma de uma águia de grandes asas que se eleva no ar, olhando enquanto a tua querida estende a roupa sobre os espinheiros-alvar para secar e olha de súbito para o céu, tapando os olhos contra o sol. Tu estarás lá e eles saberão. Eu não sou cruel. Tiro, mas também dou.
Os meus dedos moveram-se na direção do pulso de Evan, sentindo o local onde o sangue pulsava, sob a pele.
— Ainda respira — disse Bran, suavemente. — Mas mal. Não sei se te conseguirá ouvir.
Uma grande história, dissera Evan. O que significava que eu tinha de continuar. Não durante muito mais tempo. Todo o meu corpo estava rígido e sentia-me mal. Estava tão cansada que suspeitava que só estava a dizer disparates.
— Nesse mesmo dia, o filho de Eoghan tinha estado com o rebanho e experimentou regressar a casa pelas pedras gravadas, porque gostava de passar o dedo pelas estranhas formas. Uma longa espiral; uma cadeia de muitos e curiosos elos; o esgar de um cão-lobo; um pequeno e estranho rosto. Mas quando chegou ao local lá estava o seu pai, deitado por terra e com os olhos abertos para o céu. O rapaz ainda não tinha 12 anos, mas era, nitidamente, o filho do seu pai. Assim, cruzou as mãos de Eoghan sobre o peito, fechou-lhe os olhos e correu à aldeia para ir buscar dois homens e uma tábua. Só depois foi calmamente dar a notícia à sua mãe. E foi como dissera a deusa. Choraram, mas continuaram e construíram as suas vidas. O amor de Eoghan fortalecera-os. Envolvera-os como uma capa brilhante, para manter os seus corações quentes e as mentes límpidas e a sua morte apenas os tornara mais fortes. Também permaneceu nos espíritos dos seus amigos verdadeiros, que honraram a sua memória através dos seus atos corajosos e arrojadas jornadas de descoberta. Eoghan seguira em frente, através dos reinos do Outro Mundo, para a sua vida seguinte. Mas aquilo que fizera e o homem que fora permaneceu vivo e verdadeiro durante muitos anos após a sua morte. Tal é o legado de um homem bom.
Ouviu-se uma farfalheira, um som áspero, quando Evan inalou e um espasmo percorreu-lhe o corpo. Bran pôs-lhe um braço por baixo dos ombros, levantando-o ligeiramente.
— Vira-o para este lado — disse eu. — Para oeste. — Era tempo. A minha história durara o tempo suficiente. Levantei-me, olhando para o céu cheio de estrelas. — Manannán mac Lir, filho do mar! Chamei com as forças que me restavam. Leva este homem na sua jornada! Ele trabalhou muito e arduamente e está pronto para a partida. Deixa-o erguer as velas e partir na sua viagem, com ventos favoráveis e mares calmos. — Ergui os braços, estendendo-os para oeste. Uma nuvem passou pela Lua e as folhas agitaram-se à nossa volta. Pareceu-me, enquanto a rajada de vento passava pela abertura no topo da pedra tumular, sentir uma fraca e profunda vibração, quase demasiado baixa para a ouvir, como a nota de um instrumento gigante. Como a antiga voz da própria terra. As minhas mãos fizeram um sinal de proteção na escuridão. Dana olha por nós. A deusa guia os nossos passos.
A meu lado Bran estava a baixar o ferreiro, pousando-o de novo sobre o cobertor. Não precisava de perguntar. Terminara. O dia terminara. Não pensaria no amanhã.
Doíam-me as costas, a minha cabeça estava cheias de lágrimas por derramar e estava tão cansada que pensei que não conseguiria mover-me do local em que estava, ainda a olhar para oeste, sem ver nada. Aquilo de que eu necessitava, era impossível obtêlo ali. Em casa, teria havido alguém perto, que me poria os braços em redor dos ombros e diria, tudo bem, Liadan, está tudo acabado. Fizeste um bom trabalho. Chora, se quiseres. Ali, não havia ninguém. Só ele. E com ele era impensável.
Forcei-me a mexer. Evan jazia tranquilo, braço ao longo do corpo, olhos fechados.
Talvez o espírito ainda estivesse presente, mas partiria de madrugada. Ajoelhei junto dele e inclinei-me para pressionar os meus lábios contra os dele, para lhe tocar nas faces e maravilhar-me com a profunda expressão de paz que se espalhava pelo seu rosto exausto.
— Adeus — sussurrei. — Morreste corajosamente, como viveste. Descansa.
Quando me levantei de novo, as minhas pernas pareciam gelatina e as estrelas andavam à roda no céu. Bran mexeu-se rapidamente para me agarrar, antes que caísse.
— Precisas de descansar. Vai lá para dentro. Leva a lamparina. Eu fico aqui de vigia. Haverá tempo de manhã para fazer o que tem de ser feito.
Abanei a cabeça.
— Não. Eu não vou lá para dentro. Sozinha, não. — A minha voz estava estranha, distante.
— Deita-te aqui. — Uma mão firme guiou-me para o lado mais distante da fogueira. Logo a seguir estava deitada num cobertor com a capa por cima.
— Eu não... acorda-me quando...
— Ehhh. Dorme. Eu acordo-te quando chegar a hora. — Demasiado cansada para chorar, demasiado cansada para pensar, fiz como me disseram e dormi.
Eu não queria chorar mais. Em vez disso sentia-me oca, vazia, como se todo o significado da vida me tivesse sido arrancado e andasse à deriva, como se fosse o esqueleto de uma folha à mercê dos quatro ventos. Já não tinha lágrimas. No meu breve sono fui visitada por sonhos de estranha intensidade, que não conseguiria contar com clareza. Lembro-me de estar de pé no alto de uma falésia, tão alta que tudo o que conseguia ver era um turbilhão de névoa e uma voz que me dizia, Salta. Sabes que podes mudar as coisas. Salta. Senti-me aliviada por acordar, pouco depois da madrugada e atarefei-me a lavar o corpo do ferreiro com água limpa, na qual pusera a flutuar umas folhas de poejo que crescia abundantemente nas margens do riacho. O aroma era fresco e doce. Trabalhei com rapidez, mas com respeito. Em breve o corpo começaria a cheirar mal. Era preciso mudá-lo antes disso. Bran estava ocupado, no fundo da pequena elevação, com uma pá. Não lhe perguntei onde a encontrara, ou o que estava a fazer. Estava a descobrir, agora que a minha tarefa estava quase terminada e tinha tempo para olhar em volta, que as coisas no exterior não eram como eu as imaginara. Um cavalo assustou-me ao sair, tranquilamente, de entre os arbustos, roçando por mim gentilmente enquanto eu estava ajoelhada. Era uma criatura atarracada, com uma grande crina, de pêlo de um cinzento delicado. Tinha um freio rudimentar, mas estava solto. Presumi que era de Bran e que estava bem treinado, para se manter ali. Talvez, nesse caso, fosse possível sairmos dali.
O Sol ergueu-se, mas estava uma brisa cortante e as nuvens eram pesadas.
Conseguia cheirar o mar. Achei que choveria antes de anoitecer. Talvez, por essa altura, já tivesse partido. Terminei o meu trabalho, cobri-o e chamei Bran.
Devíamos sepultá-lo, agora. Teria sido melhor esperar, para ter a certeza. Podia demorar três dias, depois do último suspiro, até o espírito partir. Outro homem qualquer estaria estendido, em paz, numa qualquer divisão na penumbra, com velas à sua volta, enquanto os amigos e a família faziam as despedidas. Mas aquele homem tinha de ser enterrado agora, enquanto o podíamos fazer; e a sua sepultura passaria despercebida. O Homem Pintado não deixaria rasto atrás de si.
Estendemos Evan com a cabeça virada para norte. A sepultura fora preparada com eficiência, o monte de terra pronto para ser recolocado, o comprimento e a profundidade calculados com precisão. Olhei para o meu companheiro. As suas feições estavam calmas, se bem que um pouco pálidas. Supunha que aquilo significava pouco para ele. Era bom naquilo porque já o fizera muitas vezes antes. O que era a vida de mais um homem, num longo jogo com a morte?
As feições rudes de Evan foram tocadas pela luz dourada do Sol. À nossa volta, os arbustos agitaram-se e restolharam.
— Se não tens objeções, gostava de fazer isto como deve ser. Se não te importas.
Bran acenou com a cabeça, de lábios apertados. Andei em círculo em redor da sepultura, lentamente, parando depois virada para leste, sentindo a brisa na pele.
— Seres do ar, honramos a vossa presença. O espírito deste homem voa para fora do seu corpo e viaja através do vosso reino, a caminho do Outro Mundo. Transportai-o nas vossas asas; abrigai-o e dai-lhe velocidade no seu voo, direito e certo como uma flecha.
Movi-me para o outro lado, para ficar de frente para oeste. Uma sombra passou pelo chão. Uma gota solitária de chuva caiu, fazendo um círculo escuro no solo.
— Criaturas das profundezas, criaturas de Manannán, vós que morais nas misteriosas e escuras águas, juntai-vos a nós. Segurai este homem na sua jornada, como um forte e sólido barco de carvalho, que enfrenta as ondas com orgulho e força. Porque ele foi um homem assim, em vida.
Movi-me de novo, ficando de frente para norte, para o monte em volta da enorme sepultura coberta de turfa.
— Vós que morais na terra, cujas canções secretas vibram profundamente na sua memória, vós que estais perto do coração vivo da nossa mãe, ouvi-me. Levai a concha quebrada de um homem bom e usai-a bem. Na morte, que ele possa alimentar a vida. Que ele possa fazer parte do antigo e do novo, que se entrelaçam neste lugar de profundo mistério.
Estava quase. Caminhei até à cabeça da sepultura, de maneira que fiquei ao lado de Bran, de frente para sul.
— Por fim chamo-vos, brilhantes salamandras, espíritos do fogo! Erguei-vos, brilhai e recebei um dos vossos. Porque este homem era um grande ferreiro, o melhor deste lado da Gália e para lá dela, segundo dizem. A sua profissão era o fogo e ele usava-o com habilidade, respeitando o seu poder. Com calor ele forjava armas e ferramentas, trabalhava e suava, dobrando o ferro à sua vontade. Faísca atrás de faísca, chama atrás de chama, deixai que o seu espírito voe para o céu, como o calor sobe de um grande incêndio.
No alto do monte, a nossa pequena fogueira continuava a arder. Conseguia cheirá-la, já que o fumo era transportado por brisas contrárias. Conseguia sentir o cheiro do pó que deitara sobre as brasas, uma pequena porção, mas pungente e pura. Raízes de acónito e cerefólio, moídas até ficarem como poeira, armazenadas nas profundezas da minha trouxa para casos semelhantes. Nunca precisara de o fazer antes e esperava fervorosamente nunca mais voltar a fazê-lo.
Ficamos em silêncio por um momento e depois eu agarrei num bocado de terra e atirei-o para a sepultura. Descobri que, no fim de contas, ainda tinha lágrimas para derramar, mas retive-as e esperei enquanto Bran usava a pá para terminar o trabalho.
Foi rápido e preciso. Nivelar o solo. Espalhar umas folhas por cima, um ramo ou dois. Era como se ninguém ali tivesse estado, nenhuma criatura, salvo um rápido esquilo, ou um rato. O corpo desfazer-se-ia em pó. O espírito voaria. Fizera o que pudera para apressar a jornada.
Estava acabado e eu já não podia deixar de fazer a pergunta. Não podia continuar o dia-a-dia e pretender que o amanhã não interessava. Tinha que falar com ele.
Perguntar-lhe o que vinha a seguir, para os dois!
Mas nenhum de nós falava. Regressámos para o pé da fogueira, eu atei as minhas coisas, ele preparou uma espécie qualquer de refeição, não me lembro do que era, sentámo-nos e comemos em completo silêncio. Depois, ele tirou o frasco de prata da algibeira, tirou-lhe a rolha e bebeu. Passou-o depois para mim e eu dei um gole. Era muito forte. Senti-me ligeiramente melhor. A fogueira tinha apenas brasas, mas o cheiro agudo do acónito ainda se sentia. Passei-lhe o frasco. Não olhámos um para o outro. Não falámos. Talvez estivéssemos ambos à espera que o outro falasse. O tempo passou; o Sol encaminhou-se para oeste e as nuvens aumentaram. O ar estava pesado e húmido. Para casa, pensei vagamente. Preciso de ir para casa. Tenho de lhe perguntar. Mas não perguntei. Havia uma tristeza em mim, um sentimento de ter sido deixada à deriva, ou colocada subitamente num caminho desconhecido, numa terra estranha. Assim, em vez de pensar nisso, fiquei ali sentada aceitando o frasco quando me era oferecido e devolvendo-o, de maneira a partilharmos a bebida. Após um certo tempo ficou vazio e nós continuámos sem ter nada que dizer um ao outro.
A minha cabeça estava ligeiramente ébria; os meus pensamentos andavam à deriva. Como se podia viver sem contato humano? Não era a primeira coisa que aprendíamos quando chegávamos a este mundo e nos punham em cima da barriga da nossa mãe? A mão dela aproximando-se e dando-nos uma pancada nas costas para nos fazer respirar, sorrindo através de lágrimas de exaustão e alegria. Esse toque de amor é a nossa primeira coisa. Mais tarde ela segura-nos nos braços e canta para nós.
Algo simples, algo muito antigo, como... como é que é? Uma canção de embalar, um pequenino fragmento de canção numa língua tão antiga que já ninguém se lembra do significado das palavras. Cantei-a suavemente, em voz baixa. A minha mãe cantara-a tantas vezes para mim e para Sean, que ela estava profundamente dentro de nós. Ali, naquele local de espíritos antigos, senti-me bem ao cantá-la. À medida que a ia cantando, o vento, cada vez mais forte, passou sobre o grande túmulo com a sua abertura escondida e eu ouvi aquele fraco, profundo som de novo, indo e vindo como se fizesse parte da minha canção, como se as minhas palavras viessem das profundezas da terra. Salta, dizia a voz. Salta agora. Uma lágrima correu-me pelo rosto abaixo, ou era uma gota de chuva? Se estava a chorar, não sabia porquê. A canção acabou, mas a voz profunda do vento continuava e as nuvens juntaram-se.
Olhei para Bran, pronta para sugerir que procurássemos um abrigo. O estranho cavalo cinzento já se retirara para debaixo das árvores.
Bran dormia. Não fiquei surpreendida, porque ele não tivera o benefício do breve descanso que eu gozara antes de amanhecer. Ele era uma visão incongruente, com a pele ferozmente desenhada, o ornamentado cinto de pele e a arma ao lado, em desacordo com a sua postura, de joelhos dobrados, a cabeça descansando num braço, o outro encostado à boca. Dormindo daquela maneira, parecia tão vulnerável como uma criança. Havia sombras profundas por baixo dos seus olhos. Mesmo um homem como ele não podia deixar de dormir durante tanto tempo sem ficar marcado.
Levantei-me devagarinho, fui buscar o casaco e pus-lho por cima cuidadosamente.
Não me queria arriscar a acordá-lo, porque sabia que não gostaria de ser visto daquela maneira, com as defesas em baixo. O melhor era deixá-lo só. O melhor, de fato, era levar o cavalo, uma faca afiada e deixá-lo. Ir para casa. Rumo a sul, na direção de Sevenwaters. Era capaz de atingir a estrada antes do escurecer, se cavalgasse depressa.
Mas não fui. Afastei-me apenas o suficiente para que ele tivesse a sua privacidade. Enrolei-me num cobertor contra a possibilidade de chuva, peguei na lamparina para mais tarde, fui para o outro lado do monte, perto da lagoa e deitei-me em cima das rochas suaves, à medida que o céu ia escurecendo e mudava para o violeta do crepúsculo. As nuvens continuavam a passar por cima, cor de metal escuro, cor-de-rosa nas extremidades. Ouviu-se um trovão, ao longe. Cobarde, disse eu para mim própria. Por que é que não foste enquanto pudeste? Queres ir para casa, não queres? Nesse caso, por que não agarraste a oportunidade? Louca. Mas por baixo daquelas palavras havia uma espécie estranha de calma, o sentimento que nos assola quando pisamos o desconhecido, quando tudo está mudado e esperamos que as coisas façam sentido.
Fiquei ali durante muito tempo. Ficou cada vez mais escuro, salvo o pequeno círculo da luz da lamparina espelhado na água negra. Algumas gotas gordas de chuva caíram em cima das rochas. É hora de sair daqui, pensei. Mas não conseguia. Algo me mantinha ali, algo me pedia que ficasse ali, no meio das pedras estranhamente gravadas, que levantavam as cabeças por cima dos fetos, ali, onde a voz da terra me chamava no vento. Talvez ficasse ali de noite e de manhã talvez houvesse mais uma estranha pedra desenhada e Liadan já ali não estivesse...
Estava frio. A tempestade aproximava-se. Em casa a minha mãe devia estar a descansar e o meu pai devia estar ao lado dela, talvez trabalhando nos seus registos da herdade à luz de uma vela, metendo a pena cuidadosamente no tinteiro, olhando para Sorcha deitada, como uma pequena sombra, as mãos pequenas e frágeis, mais brancas do que a colcha. O meu pai não chorava. Pelo menos, nunca o tinha visto a chorar. Guardava a dor dentro de si, profundamente. Só aqueles que lhe eram chegados sabiam como ela lhe despedaçava o coração. Levantei-me, rodeando-me a mim mesma com os braços. Para casa. Tinha de ir para casa. Eles precisavam de mim. Eu precisava deles. Não havia nada para mim ali, eu era estúpida se pensava que... que...
— Liadan. — A voz de Bran era suave. Virei-me lentamente. Ele estava muito próximo, a menos de dois passos. Era a primeira vez que o ouvia dizer o meu nome. — Pensei que te tinhas ido embora — disse ele.
Abanei a cabeça, fungando.
— Estás a chorar — disse ele. — Tu fizeste o teu melhor. Ninguém pode fazer mais do que isso.
— Eu... eu não devia... eu...
— Foi uma boa morte. Tu fizeste com que fosse. Agora podes... agora podes ir para casa.
Eu fiquei ali a olhar para ele, incapaz de falar. Ele respirou profundamente.
— Gostaria... gostaria de poder secar essas lágrimas — disse ele, desastradamente. — Gostaria de poder fazer com que te sentisses melhor. Mas não sei como
Não sei dizer o que me levou a dar o passo seguinte. Talvez fosse a hesitação na sua voz. Sabia o que lhe custava, falar assim. Talvez fosse a recordação do ar dele enquanto dormia. Só sabia, irresistivelmente, que, se não lhe tocasse, me desfaria em pedaços. Salta, gritou o vento. Salta. Fechei os olhos, movi-me na direção dele, os meus braços rodearam-lhe a cintura, encostei a cabeça no seu peito e deixei correr as lágrimas. Pronto, disse a voz dentro de mim. Vês como foi fácil? Bran ficou muito quieto; e então os seus braços rodearam-me com muito cuidado, como se nunca tivessem feito aquilo antes e não tivesse a certeza de como continuar. Ficamos assim um bocado e o sentimento era bom, tão bom, como um regresso a casa depois de grandes sofrimentos. Não sabia a que ponto o desejava até ele me ter tocado. Não sabia, até o tocar, que ele era da altura ideal para me rodear confortavelmente os ombros. Para descansar a testa na cova do seu pescoço, onde o sangue pulsava por baixo da pele. Da altura perfeita.
Não sei dizer em que altura aquele abraço, que começou por ser de simples conforto, se transformou noutra coisa totalmente diferente. Não sei o que começou primeiro, se os lábios dele, movendo-se para me tocarem nas pálpebras, nas têmporas, na ponta do nariz, nos cantos da boca; se as minhas mãos juntas em volta do seu pescoço, os meus dedos deslizando para o interior da sua camisa, acariciando-lhe a pele suave. Ambos reconhecemos o momento de perigo. Uma vez os lábios dele encostados aos meus já não foi possível mantermos as bocas afastadas e aquele beijo não foi um símbolo casto de amizade, antes um encontro de lábios, dentes e línguas desesperado, esfomeado, que nos deixou a tremer e sem respiração.
— Não podemos fazer isto — murmurou Bran, ao mesmo tempo que a sua mão se movia sobre o meu seio, através da velha camisa.
— Pois não — sussurrei, enquanto os meus dedos percorriam as espirais e os remoinhos que cobriam o lado direito da sua cabeça barbeada, suave. — Devíamos... devíamos esquecer que isto aconteceu... e...
— Ehhh — respirou ele encostado à minha face. As suas mãos moveram-se mais profundamente pelo meu corpo e o momento de recuar perdeu-se para sempre. O desejo acendeu-se entre nós, tão violento, súbito e imparável como um grande incêndio que consome tudo o que apanha, uma feroz aproximação que era ao mesmo tempo jubilosa e aterrorizadora, com todo o seu poder. Começou a chover com força e as rochas onde estávamos, fechados nos braços um do outro, escorriam água, nós estávamos ensopados, mas não dávamos por isso, enquanto as mãos exploravam peles suaves, lábios saboreavam lugares secretos e os nossos corpos se moviam ao mesmo tempo, como se fossem duas metades do mesmo todo, junto de novo.
Quando ele me penetrou senti uma dor aguda e latejante e devo ter emitido algum som, porque ele disse:
— O que é? O que é que se passa? — Detive-lhe as palavras com os meus dedos. Então a dor foi esquecida, enquanto eu me sentia transformada em ouro líquido pelo toque dele, e abracei-lhe o corpo com os braços, apertando-o com toda a força. Pensei que nunca mais o largaria, nunca mais. Mas não o disse em voz alta. Aquele homem não sabia o que era a ternura. Nunca fora ensinado a amar. Como dissera antes, não conhecia palavras bonitas. Mas as suas mãos, os seus lábios e o seu corpo duro falavam com suficiente suavidade por ele. Quando rolou para me colocar por cima dele, olhei-lhe para os olhos à luz da lamparina e a mistura de espanto e desejo que vi neles quase me quebrou o coração. Estendi-me em cima dele, tocando-lhe o corpo com os lábios e descobri, algures dentro de mim, um ritmo, como um lento e forte som de tambor, que me atirava contra ele, os músculos apertando e afrouxando, tocando e largando, numa terrível e crescente doçura. Abençoada Brighid, nunca imaginei que o clímax fosse assim. Ele gritou, puxou-me de encontro a ele e eu arfei com o calor que me percorria o corpo. Senti a vibração no mais profundo do meu ser e soube que as coisas nunca mais seriam as mesmas. Sei de histórias acerca de grandes amantes que estão separados, que se desejam e que por fim encontram a alegria juntos. Mas nenhuma história se podia comparar com aquilo. No fim ficamos nos braços um do outro e nenhum de nós encontrou palavras.
Algum tempo mais tarde, levantamo-nos, fomos para dentro, à luz da lamparina tiramos um ao outro as roupas molhadas, secámo-nos um ao outro e ele disse-me, titubeando, que era a coisa mais adorável que ele tinha alguma vez visto. Por uns instantes, acreditei. Ele ajoelhou-se, enxugando-me a chuva do corpo. E disse: Tu estás a sangrar. O que é? Magoei-te. Escondi a surpresa.
— Não é nada — disse eu. — É normal, na primeira vez. Pelo menos, foi o que ouvi.
Ele não replicou, limitou-se a olhar para mim e eu pensei, este homem é diferente, muito diferente do homem que me ameaçou e insultou. No entanto, é o mesmo homem. Passou-me os dedos pela face, muito docemente. As suas palavras, quando vieram, eram hesitantes:
— Não sei que te dizer.
— Nesse caso, não digas nada — disse-lhe eu. — Põe os teus braços à minha volta. Toca-me. Isso basta.
E eu fiz o que há muito desejava. Comecei pelo topo da sua cabeça, onde os intrincados desenhos do seu corpo começavam e segui as linhas com os meus dedos, lentamente, descendo até à ponta do nariz, pelo centro da sua boca severa, pelo queixo, pelo pescoço e pelo peito musculado. Depois, toquei-lhe na pele com os lábios e segui as linhas. Aquele desenho cobria-o por completo, no lado direito do corpo. Era, na verdade, uma obra de arte; não apenas os detalhados e perfeitos desenhos, mas também o homem que adquirira aquela identidade. Não era muito alto nem muito baixo; tinha ombros largos, magros e o seu corpo estava endurecido pela vida que levava; mas a pele do lado esquerdo era clara e jovem.
— Pára, Liadan — disse ele pouco à vontade. — Não... não faças isso, a não ser que...
— A não ser o quê?
— A não ser que queiras que eu te possua outra vez — disse ele levantando-me muito gentilmente.
— Isso seria... aceitável — respondi. — A não ser que estejas cansado?
Ele respirou fundo, rodeou-me com os braços e eu senti o bater rápido do seu coração contra mim.
— Nunca — disse ele ferozmente com os lábios pressionados contra o meu cabelo. — Nunca me cansarei de ti.
Deitámo-nos de novo e desta vez fomos lentos, cuidadosos e foi diferente, mas doce da mesma maneira, à medida que nos tocávamos, saboreávamos e aprendíamos um com o outro.
Não dormimos muito nessa noite. Talvez soubéssemos que o tempo estava a passar com demasiada velocidade; que quando a alvorada chegasse o amanhã seria hoje, as escolhas teriam de ser feitas e teríamos de enfrentar o impensável. Quem desperdiçaria assim uma noite tão preciosa? Assim, tocamo-nos, sussurramos e mexemo-nos juntos na escuridão. O meu coração estava tão cheio que ameaçava rebentar e pensei: Guardarei este sentimento para sempre, aconteça o que acontecer. Mesmo se... mesmo quando...
Quase ao amanhecer ele adormeceu com a cabeça sobre o meu seio e uma vez, durante o sono, gritou palavras que eu não consegui distinguir e moveu o braço violentamente, como se estivesse a empurrar algo.
— Pronto — disse eu com o coração a bater com toda a força. —Pronto, Bran. Eu estou aqui. Estás salvo. Está tudo bem. — Fechei-o no círculo dos meus braços enquanto olhava para o arco, o alto teto e via a claridade a entrar, lentamente, pela estreita abertura. A alvorada não, ainda não, pedi silenciosamente. Por favor, ainda não.
Parara de chover, o Sol estava a nascer e o canto dos pássaros da floresta começou a ouvir-se no ar frio. E, por fim, já não sabia se aquele espaço secreto, escuro, onde nos encontrávamos, era real e se o outro fora um sonho.
Levantamo-nos em silêncio, vestimo-nos e dobrei os cobertores, enquanto ele ia lá fora tratar do cavalo e procurava lenha seca. Que havia para dizer? Quem se atreveria a começar? Quando a fogueira estava acesa e a água aquecia por cima dela, não nos sentámos em frente um do outro como tínhamos sempre feito, antes ao lado um do outro, os corpos tocando-se, as mãos agarradas uma à outra. A luz brilhava em redor de nós. Não havia quaisquer sinais, quaisquer marcas. Estávamos à deriva juntos, naquele local.
— Tu falaste numa troca justa — disse Bran finalmente, parecendo que precisava de agarrar nas palavras para elas saírem. — Pergunta por pergunta, talvez?
— Depende. Quem faz a primeira pergunta?
Ele tocou-me a face com os lábios, muito levemente.
— Tu, Liadan.
Respirei fundo.
— Dizes-me o teu nome, agora? O verdadeiro? Confias-me isso?
— Estou contente com o nome que escolheste para mim.
— Isso não é uma resposta.
— E se eu te disser que o nome que me deram está esquecido? — A sua mão ficou mais tensa na minha. — Que acabei por acreditar que o meu nome era miserável, escória, desprezível, porco, que eu ouvi tantas vezes esses nomes que acreditei que não tinha outro? Um nome é sinal de orgulho; é um lugar. Uma criatura desprezível não tem nome, tem uma blasfémia.
Eu mal conseguia falar.
— É por isso que tu... podes dizer-me quando tu... — Os meus dedos pousaram suavemente no interior do seu pulso, onde havia uma minúscula falha no desenho intrincado. Um pequeno espaço, uma oval nítida; e no centro, um pequeno desenho de um inseto, uma abelha, creio. Desenhada com simplicidade, mas perfeita em cada pormenor, as nervuras das asas, as pernas delicadas, o corpo gordo nitidamente listrado. Era o único lugar nele em que uma imagem era tão clara.
— Tu compreendes quase bem demais — disse ele de modo sinistro. — Eu transporto comigo essas blasfémias há muito tempo. Quando tinha nove anos decidi que era um homem e... afastei-me daquela vida. Segui em frente. A partir dessa altura tenho seguido o meu próprio caminho. Isto — e ele tocou no pequeno inseto — foi o começo. Tinha ouvido falar num artista, que fazia este trabalho por um determinado preço. Ele disse-me que eu era muito novo, muito pequeno. Mas tudo o que eu tinha era este corpo, estas mãos. O passado era passado; apaguei-o. O futuro era inimaginável. Precisava... bem, ele ouviu-me e disse-me, volta quanto tiveres 15 anos e estiveres mais crescido. Nessa altura farei o que me pedes. Mas eu insisti e no fim ele disse, muito bem, um pequeno desenho agora e o resto quando fores homem. Eu sou um homem, disse eu. Pelo menos, ele não se riu de mim. E fez-me isto, muito pequeno, como vês, mas foi o começo. O resto veio mais tarde e durante muito tempo.
— Foste tu que escolheste este desenho? Esta... pequena criatura?
Ele acenou com a cabeça.
— Porquê isto?
— Já são quatro perguntas — disse ele com o esboço de um sorriso. — Não... não tenho a certeza. Talvez me recordasse algo. Não te sei dizer.
Ele levantou-se e tratou da fogueira. Havia comida: pequenas ameixas bravas, quebradiças e amargas; pão duro, que podia ser mastigado se o mergulhássemos em água quente. Rações adequadas para um homem em viagem.
— É a minha vez — disse ele. Acenei com a cabeça, esperando que ele me perguntasse quem eu era e de onde vinha. Mais tarde ou mais cedo teria de lhe dizer. Teria de confiar nele.
— Porquê eu? — perguntou ele olhando para longe. — Porquê eu, de todos os homens que poderias ter escolhido, para ser o primeiro, porquê um... por que escolheste um foragido, um homem cujos atos desprezas? Por que te entregaste a um... a lixo do esgoto?
O silêncio prolongou-se, ao mesmo tempo que as aves se afadigavam nas árvores por cima de nós.
— Tens de responder — disse ele, severamente. — Saberei, se me mentires.
Ele não me estava a tocar, agora, sentando-se ligeiramente à parte, os braços em redor dos joelhos, com uma expressão ameaçadora. Como podia eu responder? Ele não sabia? Não sabia a resposta a partir da maneira como eu o tocava, como olhava para ele? Quem podia reduzir tais pensamentos a palavras?
— Eu... eu não planeei isto — disse eu, debilmente. — Mas... não tive escolha.
— Fizeste isto por piedade? Entregaste-te pensando mudar-me, talvez, para me converteres numa figura mais aceitável para ti? O derradeiro ato da cura?
— Pára! — exclamei violentamente, pondo-me de pé. — Como podes dizer isso? Como podes pensar isso depois desta noite? Eu não te menti, nem em palavras, nem em ações. Escolhi-te de vontade própria, sabendo o que és e o que fazes. Não quero outro. Não terei outro. Não consegues ver isso? Não consegues compreender?
Quando me virei, ele tinha ambas as mãos a tapar o rosto.
— Bran? — disse eu docemente após uns instantes e ajoelhei-me diante dele, afastando-lhe as mãos. Não admira que tivesse escondido os olhos, porque estavam nus de qualquer armadura e o seu cinzento límpido carregava esperança e terror em partes iguais.
— Acreditas-me? — perguntei-lhe.
— Não tens razão para me mentir. Mas eu pensei que... não conseguia acreditar... Fica comigo, Liadan. — As mãos dele agarraram nas minhas e havia na sua voz uma súbita violência, que me fez bater o coração mais depressa.
— Não foi a sugestão mais prática que te ouvi fazer — disse eu, trêmula.
Bran inspirou profundamente e quando falou de novo foi com extrema timidez, a voz controlada, apertada:
— Isto não é vida para uma mulher, eu sei. Não estou à espera disso. Mas eu tenho alguns recursos. Tenho um lugar, do qual penso que gostarias. Posso sustentar-te.
Não olhou para mim quando disse aquilo.
— Não posso — disse eu, rudemente. — Tenho de ir para casa, para Sevenwaters. A minha mãe está muito doente, pouco tempo lhe resta. Ela e os outros precisam de mim. Pelo menos até Beltane, tenho de lá ficar. Depois disso, talvez possa escolher.
Soube, no instante em que disse aquilo, que algo estava terrivelmente errado. O seu rosto mudou tão abruptamente como se uma máscara de teatro lhe tivesse sido colocada no rosto e afastou as suas mãos das minhas lenta e cuidadosamente. Era de novo o Homem Pintado. E a sua voz era sombria, de choque e dor.
— O que é que disseste?
— Eu... disse que tinha de ir para casa. Sou precisa... Bran, o que é? O que é que se passa?
O meu coração parecia um tambor. Os olhos dele estavam tão frios e tão distantes como os de um estranho.
— Para casa, para Sevenwaters. Foi o que disseste, não foi?
— F... foi. É esse o nome da minha casa. Sou uma das filhas da casa.
Os seus olhos semicerraram-se.
— O teu pai... o nome do teu pai é Liam? Senhor de Sevenwaters?
— Conhece-lo?
— Responde à pergunta.
— Liam é meu tio. O nome do meu pai é Lubdan. M... mas o meu irmão é herdeiro de Sevenwaters. Fazemos todos parte da mesma família.
— Diz-me a verdade. Esse homem, Lubdan. É irmão de Liam? Primo?
— O que é que isso interessa? Por que estás tão zangado comigo? Certamente que nada mudou, certamente...
— Não ponhas a mão em cima de mim. Responde à pergunta. Esse homem, esse Lubdan, ele tem outro nome?
— Tem.
— Maldita sejas, Liadan, diz-me!
Todo o meu corpo estava gelado.
— Esse é o único nome que ele usa, agora. O nome foi escolhido por ser semelhante ao que teve em tempos, antes de casar com a minha mãe. O nome dele era Hugh.
— Um bretão. Hugh de Harrowfield. — Ele disse aquele nome como se o seu proprietário fosse a forma de vida mais baixa do universo.
— Ele é o meu pai.
— E a tua mãe é... é...
— O nome dela é Sorcha. — Após o choque, eu começava a sentir as primeiras faíscas de cólera. — Irmã de Liam. Sinto orgulho em ser filha deles, Bran. Eles são boas pessoas. Ótimas pessoas.
— Ah! — Aquela explosão de escárnio, de novo. Pôs-se abruptamente de pé, afastando-se para se pôr a olhar na direção das árvores. Quando voltou a falar, fê-lo suavemente; e não era para mim que falava.
— ... isto nunca podia ser para ti, filho de uma cabra... fraco, és fraco, és um monte de merda, bom para viver apenas nas trevas... como pudeste acreditar por um instante... volta para a tua caverna, mal...
— Bran. — Falei com quanta firmeza tinha, apesar do martelar do meu coração. — O que é isto? Eu continuo a ser a mesma mulher que tiveste nos teus braços esta madrugada. Tens de me dizer o que se passa.
— Ela ensinou-te bem, não ensinou? — disse ele de costas voltadas para mim. — A tua mãe. Como tirar um homem do caminho e enfraquecer-lhe a determinação, vergá-lo à sua vontade. Ela foi perita nisso.
Eu estava sem fala.
— Quando fores para casa, diz-lhe que eu não sou tão fraco como ele, o respeitável Hugh de Harrowfield. Já vi qual é o teu truque, já vi como funcionas. Como fui capaz de acreditar... como pude ser tão louco para acreditar... na realidade, fui muito estúpido. Não voltarei a cometer o mesmo erro outra vez.
Eu não conseguia tirar qualquer sentido daquelas palavras.
— A minha mãe nunca... se a conhecesses, perceberias...
— Oh não, isso não serve — disse ele, voltando para onde eu estava. — Essa mulher e o homem que ela enfeitiçou fizeram de mim a criatura que tu vês: um homem sem consciência, um homem sem nome, que só tem talento para matar, que não tem identidade, senão a que está gravada na sua pele. Eles tiraram-me a família e os meus direitos, tiraram-me o nome. Talvez te tenham contado outra coisa. Mas ela roubou o teu pai do seu lugar. Ele abandonou o seu dever para a seguir. Por causa disso perdi tudo. Por causa deles não... não presto para nada, sou escumalha.
— Mas...
— Que ironia. Parece que alguém me quis pregar uma partida. Logo a mulher que eu... a mulher que quase me fez esquecer... tinhas de ser filha dela. Não pode ser por acaso. Este é o meu castigo, o meu destino, por acreditar que podia haver um futuro.
— Bran...
— Cala-te! Não digas esse nome! Embrulha as tuas coisas e vai, não te quero aqui nem mais um instante.
Uma pedra gelada no lugar do coração. Era assim que me sentia. Não tinha grande coisa para embrulhar. Quando tudo estava feito, desci o monte e fiquei por uns momentos em frente da sepultura de Evan. Quase não consegui perceber onde fora escavada. Em breve todos os sinais desapareceriam.
— Adeus, amigo — sussurrei.
Bran trouxera o cavalo para o exterior e agora ele tinha um cobertor, devidamente preso no seu lugar. Ele atara a minha pequena trouxa logo atrás. Uma garrafa de água. O casaco dele, enrolado e atado com uma corda. Aquilo era um bocado estranho.
— Ele leva-te a casa com segurança — disse ele. Não te preocupes em o devolver. Chama-lhe... pagamento por serviços prestados.
Senti o sangue a fugir-me do rosto. Ergui a mão, atingi-o na face e vi a marca vermelha que lhe ficou na pele. Ele não tentou evitar a bofetada.
— É melhor ires — disse ele, friamente. — Ruma a leste, a estrada vai nessa direção. E depois a sul, na direção de Littlefolds. Não é muito longe.
Depois, as suas mãos rodearam-me a cintura e ele ergueu-me para a sela; mas uma mão continuou apoiada na minha coxa, como se ele não conseguisse largar-me.
— Liadan — disse ele, olhando de propósito para o chão.
— Sim — segredei.
— Não te cases com esse Eamonn. Diz-lhe, se casares com ele, que é um homem morto. — O seu tom era intenso. Aquilo era uma jura.
— Mas...
Então ele deu uma palmada na garupa do cavalo e o obediente animal partiu num galope vivo. E antes de eu conseguir pronunciar qualquer palavra de adeus já ele estava longe da vista e era demasiado tarde.
Não valia a pena ficar zangada. Acabara. Nunca mais veria o Homem Pintado.
Chegara a hora de ir para casa; e antes da lua nova tudo teria desaparecido da memória, como um fantástico sonho. Segredei aquilo à robusta égua, enquanto ela se dirigia para leste, sob as árvores, ao longo de regatos solitários, lagos tranquilos e com cuidado por entre rochedos, na direção da estrada. Não precisei de lhe guiar os passos; ela parecia conhecer o caminho.
Quando o Sol já ia alto no céu, descansámos junto de um riacho. A égua bebeu e pastou na erva. Eu desfiz a minha trouxa e descobri queijo duro e pão seco embrulhados num pano. Para um homem que nunca mais me queria ver, tinha sido surpreendentemente atencioso. Suponho que se limitara a seguir os procedimentos normais em caso de partidas apressadas, em caso de decisões tomadas em fuga. Era a vida dele. Levava uma pancada a seguir à outra, aceitava-as e seguia em frente.
Tentei, com todas as minhas forças, não pensar nele. Para casa. Era para ali que eu devia dirigir os meus pensamentos. Quando estivesse mais perto tentaria usar o poder da mente para enviar uma mensagem ao meu irmão Sean, de maneira a ele vir ter comigo. Mas ainda não, pensei. Se o fizesse cedo demais arriscava-me a que as forças de Sevenwaters caíssem em cima de Bran e dos seus homens. Sentira-o de vez em quando no acampamento, um puxão nos meus pensamentos, uma intrusão na minha mente, o meu irmão chamando-me silenciosamente: Liadan, onde estás? Mas fechara-me a ele. Não trairia o bando do Homem Pintado, nem destruiria a amizade que me ligava a ele.
Continuámos. Estava a ficar cansada; dormira pouco e, apesar de não querer, ouvia, na minha mente, as palavras dessa manhã. Não ponhas a mão em cima de mim. Não te quero aqui nem mais um instante. Chama-lhe pagamento por serviços prestados.
Disse a mim própria para não ser tola. Que esperara eu, que podia mudar a vida dele para sempre, como ele mudara a minha?
Concentrei os meus pensamentos na minha casa e no meu regresso. Que poderia dizer à minha família? Não onde estivera; nada sobre os fora-da-lei que tinham buscado a minha ajuda e que se tinham transformado, contra todas as probabilidades, meus amigos. Certamente nada acerca do homem a quem, arrebatadamente, me entregara. Não repetira eu os erros da minha irmã? Logicamente, então, se a verdade fosse conhecida, podia esperar o mesmo tratamento da pobre Niamh. Um casamento apressado e a expulsão pronta, para longe da família e dos amigos e para longe da floresta. Um arrepio percorreu-me o corpo. Sevenwaters era a minha casa; a sua beleza escura estava alojada no meu espírito. Mas eu mudara as coisas; deitara-me com o Homem Pintado e por mais cruéis que tenham sido as palavras de rejeição, também ele fazia, agora, parte de mim. Queria dizer a verdade; queria perguntar ao meu pai qual era o segredo sombrio do passado que levara aquele homem a odiar-me, a mim e aos meus. Se não a dissesse, nunca saberia por que razão Bran me mandara embora. E, no entanto, não a podia dizer.
Havia rastos de cascos ao longo do caminho, à esquerda e à direita. Pequenos rastos de galope, delicados, de cabriolas. A minha égua estremeceu e revirou as orelhas nervosamente. Olhei em volta. Não havia ninguém. As sombras da tarde agitavam-se sob a brisa de Verão. Pensei ter ouvido uma débil e cristalina risada. Acompanhada por passos, como se umas criaturas invisíveis caminhassem a meu lado. Com o coração a bater apressadamente, puxei as rédeas da égua e esperei, em silêncio. O som cessou.
— Muito bem — disse eu o mais calmamente que pude, tentando lembrar-me de tudo o que Lubdan me ensinara sobre autodefesa. — Onde estais? Quem sois? Saí daí e mostrai-vos! — E tirei do cinto o pequeno punhal que o meu pai me dera, empunhando-o, pronta, mas não sabia para quê.
Seguiu-se uma curta pausa.
— Não vais precisar disso. Ainda não. — No meu lado direito estava um homem em cima de um cavalo. Um quase-homem em cima de um quase-cavalo. Não se materializara naquele instante; era mais como se tivesse estado sempre ali e eu só o via porque ele assim o tinha desejado. O seu cabelo era da mesma cor, improvável, do da sua montada, de um brilhante vermelho-papoila e as suas roupas coloridas, instáveis, como o pôr do Sol. Era extremamente alto.
— Continua a cavalgar — aconselhou uma voz do meu lado esquerdo, e a minha égua continuou sem ser preciso guiá-la. — A distância é grande até à floresta. — A mulher que falou tinha cabelos negros, uma capa azul e era palidamente bela. Às vezes, pensava se algum dia os veria, como a minha mãe tinha visto: a Dama da Floresta e o Senhor de cabelos de fogo, que era o seu consorte. Engoli em seco e consegui falar.
— Que... que quereis de mim? — perguntei, olhando maravilhada para as suas figuras altas e imponentes e para os frágeis quase-cavalos que montavam.
— Obediência — disse o Senhor, fixando-me com os seus olhos demasiado brilhantes.
Olhar para ele era como olhar para o centro de uma grande fogueira. Se olhasse durante muito tempo, queimava os olhos.
— Bom senso — disse a Dama.
— Eu estou a caminho de casa. — Não conseguia imaginar como qualquer atividade minha podia ter algum interesse para semelhantes criaturas. — Tenho uma boa casa para me acolher, roupas quentes e uma arma que sei usar. Amanhã mando vir o meu irmão. Isto não é bom senso?
O Senhor rugiu, rindo-se, um som tão grande que até o próprio chão tremeu. Senti o estremecimento através do corpo da égua, mas esta continuou em frente.
— Não chega. — A voz da Dama era mais suave, mas muito séria. — Queremos uma promessa tua, Liadan.
Não gostei do som daquelas palavras. Uma promessa feita às Criaturas Encantadas era uma promessa para cumprir, se bem que, normalmente, essas promessas não fizessem sentido. As consequências desse não cumprimento eram impensáveis.
Aquelas criaturas possuíam poderes para além da imaginação. Todas as histórias falavam desses poderes.
— Que promessa?
— O destino de Sevenwaters, e destas ilhas, pode estar nas tuas mãos — disse o homem dos cabelos brilhantes.
— O futuro da tua espécie, e da nossa, pode depender de ti —concordou a Dama.
— O que é que isso quer dizer? — Talvez eu parecesse um pouco grosseira. Fora um longo dia.
A Dama suspirou.
— Esperávamos que, das crianças de Sevenwaters, houvesse uma que combinasse a força e a paciência do teu pai com os raros talentos da tua mãe. Uma que pudesse, por fim, completar a nossa grande demanda. Desapontaste-nos. Parece que és de uma espécie grosseira, que compreende pouca coisa para além da luxúria da carne. A tua irmã foi seduzida, de modo a perder-se. A tua escolha foi muito imprudente. Não devias ter dado ouvidos às vozes
— Vozes?
— As vozes da terra, no Lugar Antigo. Não lhes devias ter dado ouvidos.
Eu tremia, dividida entre o medo e a cólera.
— Desculpai-me — disse eu — mas, essas vozes não pertenciam a Criaturas Encantadas, como vós?
Ela abanou a cabeça, as sobrancelhas erguidas, incrédula, face à minha ignorância.
— Uma espécie mais antiga. Primitiva. Foi banida por nós, mas continua a existir. Elas levam-te à perdição, Liadan. Na verdade, já o fizeram. Não podes dar ouvidos às lisonjas delas.
Franzi o sobrolho.
— Sou capaz de fazer as minhas escolhas, sem precisar de nenhumas... lisonjas, como dizeis. Não me arrependo nada do que fiz. Bom, e a profecia? Não se cumprirá, um dia? Mesmo que me tireis a mim e à minha irmã, ainda há outro filho, o meu irmão Sean. Um ótimo rapaz, que nunca deu um passo errado. Por que não me ignorais e me deixais prosseguir com a minha vida?
— Oh não. Não me parece que possamos fazer isso. Por agora, não.
— As profecias não acontecem assim, sabes? Precisam de uma pequena ajuda. — O senhor tinha uma expressão astuta quando me olhou de lado com os seus olhos brilhantes. — Estávamos à espera de crianças. Mas digo-te uma coisa. Não estávamos à tua espera.
Pensei nas palavras da minha mãe, como eu fora uma surpresa para todos, a gêmea inesperada. Como isso me deu o poder de mudar coisas.
— Tenho uma pergunta — disse eu. Eles esperaram.
— Por que é que me deixastes descobrir a minha irmã e... e o amante dela nos bosques? Eles mandaram-na embora e ela ficou amargamente infeliz. Ciarán também. Fez com que na família se culpassem uns aos outros e ficassem todos tristes. Por que fizestes tal coisa?
Seguiu-se um silêncio. Ele olhou para ela e ela olhou para ele.
— O velho demónio está acordado — disse a Dama e havia uma sombra na sua voz.
— Temos de usar toda a força que possuímos para o deter. Aquilo que fizemos foi com a melhor das intenções. O que a tua irmã queria não podia ser. Os homens e as mulheres não têm importância, com as suas desgraças e ofensas mesquinhas. Servem um determinado propósito, é tudo. Só a criança é importante.
— O velho demônio? — perguntei, de dentes cerrados. Talvez ela não se tivesse apercebido de como as suas palavras me tinham encolerizado, com a sua indiferença para com os sofrimentos das pessoas da minha família.
— Regressou — disse ela solenemente com os seus profundos olhos azuis intensamente fixos em mim. — Pensávamos que estava derrotado; enganámo-nos. Agora, enfrentamos todos o fim; estamos cada vez mais pressionados e, sem a criança, não ultrapassaremos isto. Tens de regressar a casa, Liadan. Imediatamente. A brincadeira acabou.
— Eu sei isso — disse eu, aborrecida por sentir lágrimas nos olhos. — Já vos tinha dito. É para onde eu vou.
O Senhor tossiu levemente.
— Há dois jovens que te desejam: aquele que acabas de deixar e aquele para quem regressas. Nenhum deles te convém. Demonstras uma falta de gosto lamentável na tua procura de parceiro. Mas não precisas de te casar. Esquece-os. Regressa para a floresta e fica lá.
Olhei para ele, espantada.
— Agradecia que me explicassem as coisas. Que demónio? Que fim?
— A tua espécie não entende — disse ele em tom de despedida. — O vosso alcance é muito limitado. Tens de aprender a não ligar importância aos desejos da carne e aos anseios do coração. Essas coisas são desprezíveis, transitórias. O que conta é o grande bem.
— Primeiro insultais-me — disse eu — e depois exigis obediência cega.
— E tu perdes tempo que não temos. — O tom do Senhor tinha, agora, um leve tom de ameaça. — Lutas como uma pequena criatura selvagem que foi apanhada numa armadilha. Farias melhor se reconhecesses a tua fraqueza e obedecesses. Nós podemos ajudar-te. Podemos proteger-te. Mas não se seguires esse rumo obstinado.
— Por aí encontras perigos que nem te atreves a imaginar. — Ele levantou a mão, fazendo um grande arco e pareceu-me ver uma sombra a passar; as ervas achataram-se como se se quisessem esconder dela, as árvores estremeceram, os arbustos restolharam. As aves gritaram subitamente e depois tudo ficou em silêncio.
— Enfrentamos de novo um inimigo que nos ameaça há muito —disse a Dama.
— Pensávamos que estava derrotada. Mas ela arranjou maneira de iludir a nossa vigilância; escapou às Criaturas Encantadas e aos humanos e agora agita a sua mão demoníaca sobre o futuro da nossa raça.
Olhei para ela, aterrada.
— Mas... mas eu não passo de uma mulher vulgar, como vedes. Como pode a minha escolha desempenhar um papel nessas coisas grandes e perigosas? Por que é que tenho de prometer que fico em Sevenwaters?
O Senhor suspirou.
— Como já disse, isto está para além da tua compreensão. Não vejo qualquer razão para a tua resistência, a não ser por teimosia. Deves fazer como te dizemos.
Pareceu ficar maior enquanto eu olhava para ele e uma luz vacilante percorreu-lhe o corpo, como se estivesse em chamas. Os seus olhos eram penetrantes; fixou-me implacavelmente e minha cabeça pulsou de dor.
A Dama falou docemente, mas havia um tom de ironia na sua voz.
— Não desobedeças, Liadan. Fazer isso é pôr tudo em perigo, mais do que possas imaginar.
— Promete — disse o Senhor e o seu cabelo pareceu crescer sobre a sua nobre cabeça, como uma coroa de fogo brilhante.
— Promete — ecoou a Dama, com uma tristeza na voz que me apertou o coração.
Apertei os flancos da égua cinzenta com os joelhos e ela avançou; e desta vez eles não me acompanharam, ficando ambos para trás. As suas vozes seguiram-me, ordenando, pedindo. Promete. Promete.
— Não posso — disse eu num pequeno murmúrio que me saiu das profundezas do meu ser. Era muito estranho, porque até ali tencionava fazer como eles desejavam: regressar a Sevenwaters e recomeçar a minha velha vida, fazendo os possíveis para esquecer o Homem Pintado e os seus seguidores. Mas algo mudara. Não obedeceria cegamente a criaturas que não davam importância à angústia dos que me eram queridos, achando-a demasiado mesquinha. Não sei como, sabia que não poderia aceder ao seu pedido. Devo tomar as minhas próprias decisões e seguir o meu próprio rumo disse eu. Por agora, vou para Sevenwaters e não vejo razão para não ficar lá. Mas o futuro é... desconhecido; quem sabe o que acontecerá? Não faço promessas.
Ouvi de novo as suas vozes, poderosas, zangadas, fazendo-me estremecer o corpo.
— Farás como te ordenamos, Liadan. Tem de ser.
Mas eu não repliquei e quando olhei para trás tinham desaparecido.
A tarde estava quase no fim; quase crepúsculo. Eu atingira a estrada e segui-a na direção sul, enquanto o Sol se punha num espetáculo dourado e cor-de-rosa. Como era o ditado? Céu vermelho à noite, alegria para o pastor. Céu vermelho de manhã, perigo para o pastor. Sorri para mim mesma, pensando naquele de quem o tinha ouvido. O meu pai, segurando-me nos braços no alto do monte, rodeado pelos seus jovens carvalhos, mostrando-me como o Sol descaía para oeste, sobre as terras de Tir Na n’Og, para lá do oceano. Todas as noites descia e todas as noites nos dizia como seria o dia seguinte. Aprende a ler os sinais, pequenina, dizia-me ele. As Criaturas Encantadas tinham-no escolhido para ser o pai da criança que elas queriam ver nascer; tinham-no escolhido pela sua força e paciência. Seguramente, então, Bran estava enganado. O Homem Grande, tão tranquilo e profundo, com a sua reverência por todas as coisas que viviam e cresciam, nunca poderia ter cometido um ato demoníaco, manchando a vida de um homem.
A égua gemeu suavemente e, subitamente, parou. Havia uma perturbação à nossa frente, na estrada. Vozes de homens, sons de cascos, de metal contra metal.
Retiramo-nos em silêncio para debaixo do abrigo das árvores e eu desmontei na sombra. Os sons aproximavam-se. Na claridade cada vez mais fraca distingui quatro ou cinco homens vestidos de verde-escuro e outro vestido com um estranho traje de couro e pele de lobo, um homem com a cabeça meio rapada, que lutava como um louco, de tal maneira que por vezes parecia que ele é que vencia os outros, apesar da diferença. Um homem cuja grande altura e constituição maciça lhe dava vantagem, mas que, por fim, foi derrubado do cavalo, desarmado e ficou à mercê dos seus inimigos. Ouviram-se gritos de troça, maldições e palavras de desafio. Ouviram-se rugidos, assobios, pragas, alguém gritou algo como resposta e ouviram-se de novo gritos e maldições, ao mesmo tempo que as armas encontravam o seu alvo. Mas, por fim, seguiu-se um quase silêncio, com exceção dos pontapés e pancadas que choviam sobre o homem que jazia na estrada, com os seus atacantes em redor, num círculo apertado. Eu não podia fazer nada. Como podia avançar e identificar-me, como podia evitar aquele ato de barbaridade sem revelar de onde vinha? Que razões teria uma rapariga como eu para defender um fora-da-lei? Além disso, no meio daquela barafunda, talvez nem dessem por mim e eu podia cair ferida por uma espada ou por um machado. Assim, fiquei ali completamente imóvel, com a égua obedientemente silenciosa a meu lado, até que um deles disse: Chega. Ele que fique para aí. Os homens vestidos de verde montaram, levaram o cavalo do outro homem pelas rédeas e dirigiram-se para sul.
Saí de sob as árvores com toda a precaução. Já não se via grande coisa; encontrei-o mais pelos sons fracos e borbulhantes da sua respiração do que pela vista. Ajoelhei ao pé dele.
— Dog
Ele estava deitado de lado, com o rosto contorcido de agonia. Tinha as duas mãos sobre o estômago e havia algo no chão. Sangue e... Díancécht me ajude, a sua barriga estava aberta, as entranhas de fora e ele esforçava-se por segurá-las.
Ouvi algumas palavras, arquejantes, desesperadas. Mas só percebi uma... faca...
E eu achei que, chegado àquele ponto, na verdade não havia escolha. As minhas mãos tremiam violentamente quando tirei o pequeno e afiado punhal que o meu pai me dera.
— Fecha os olhos — murmurei, a tremer. Ajoelhei junto do seu corpo em convulsão à luz fraca do crepúsculo e toquei com a ponta do punhal, cuidadosamente, na concavidade por trás da sua orelha. Então, fechei os olhos e percorri-lhe o pescoço com a lâmina do punhal, rapidamente, pressionando com todas as minhas forças, enquanto o meu coração batia com toda a força, a minha garganta se comprimia e o meu estômago se agitava, protestando. O sangue quente encheu-me as mãos. A égua agitou-se, pouco à vontade. O corpo de Dog ficou flácido, os seus braços caíram da grande abertura na barriga e... levantei-me abruptamente, recuei e durante muito tempo fiquei encostada a uma árvore, vomitando, arquejando, esvaziando o estômago por completo, os olhos e o nariz escorrendo, a cabeça pulsando violentamente. Não conseguia raciocinar. Apenas uma indignação ardente, uma repulsa enorme. O Homem Pintado. Eamonn de Marshes. Eram todos iguais. Entre eles, tinham-se assegurado de que não haveria um dia seguinte para aquele homem. Seria eu a carregar a cicatriz daquela morte no meu espírito, enquanto eles encolhiam os ombros e continuavam na sua louca e mútua perseguição.
Por fim, a Lua espelhou uma fraca luz prateada sobre aquela desolada estrada e eu senti a égua cutucar-me o ombro, com gentileza, mas com intensidade.
— Já vai — disse eu. — Já vai. Eu sei. — Eram horas de continuar. Mas não podia deixá-lo assim. Não o podia mexer dali; era muito pesado. Sob a luz delicada da Lua, o seu rosto tinha um ar tranquilo, os olhos amarelos fechados, as feições marcadas pela varíola em descanso. Tentei não olhar para a profunda ferida no pescoço.
— Dana, leva este homem para o pé de ti — murmurei, despindo a camisa emprestada que usava sobre o vestido. — Algo brilhou à luz do luar. O pedaço de pele foi cortado com precisão; quando puxei o colar, senti sangue nos dedos. — Feroz como um grande lobo — disse eu quando as lágrimas me começaram a cair. — Forte como um cão feroz, que dá a vida pelo seu dono. Manso como o mais fiel dos cães que alguma vez seguiu os passos de uma mulher. Descansa. — Pousei a camisa sobre o seu rosto e peito. Em seguida consegui montar na égua e continuei a jornada em direção a sul, até que achei que já estava longe. Encontrei um sítio, numa meda de feno abrigada do vento. Desenrolei o casaco de Bran, envolvi-me nele e deitei-me; e a égua deitou-se ao meu lado, como se soubesse que precisava do seu calor para manter afastada a escuridão. Nunca estivera tão perto de desejar adormecer e nunca mais acordar.
Na manhã seguinte continuei a cavalgar para sul e vi alguns camponeses nas suas carroças, um ou dois viajantes e todos eles olharam para mim com curiosidade, mas ninguém disse nada. Calculo que devia ser uma visão bem estranha, com os cabelos a caírem-me pelas costas e as roupas cheias de sangue e vomitado. Quando achei que estava suficientemente perto de Littlefolds, parei e abri, por fim, a mente ao meu irmão. Mostrei-lhe o suficiente, com imagens cuidadosamente escolhidas, de maneira que me pudesse encontrar. Sentei-me debaixo de uma sorveira brava e esperei. Não devia estar muito longe. Antes de o Sol atingir o zénite ouviu-se um enorme som de cascos na estrada e Sean apareceu, fazendo estacar o cavalo, abraçando-me com força e perscrutando-me os olhos. Mas eles estavam tão bem guardados como os meus pensamentos. Chegara até ele; mas não lhe dissera nada. Alguns momentos depois reparei que Eamonn também viera, com alguns dos seus homens. O rosto dele tinha uma expressão estranha; os olhos ardentes e a pele branco-acinzentada. Não me abraçou; não teria sido correto. Mas a sua voz tremia quando me cumprimentou.
— Liadan! Pensámos... estás ferida? Estás magoada?
— Estou bem — disse eu, cansada, enquanto os homens vestidos de verde paravam os cavalos ao pé de mim.
— Não pareces bem — disse Sean, rudemente. — Onde estiveste? Quem te levou? Onde estiveste? — O meu irmão sabia que o estava a manter afastado e estava a usar todos os truques que conhecia, com a mente, para me abrir as defesas.
— Estou bem — disse de novo. — Podemos ir para casa?
Eamonn estava a olhar para a minha égua; e estava a olhar para o grande casaco cinzento que eu trazia vestido, um casaco de homem. Tinha o sobrolho franzido. Sean estava a olhar para o meu rosto e para as minhas mãos cheias de sangue.
— Vamos até Sídhe Dubh — disse ele, sobriamente. — Podes descansar lá.
— Não! — disse eu um pouco veementemente demais. — Não —acrescentei com mais cuidado —, para casa. Quero ir já para casa.
Os dois homens trocaram olhares.
— É melhor ires à frente com os teus homens — disse Sean. —Passa palavra ao Homem Grande. Ele há de querer encontrar-se conosco. Descansaremos no caminho, leva o teu tempo.
Eamonn acenou levemente com a cabeça e afastou-se sem mais uma palavra. Os homens de verde seguiram-no. Ficaram apenas o meu irmão, dois homens de armas e eu.
A caminho de casa, Sean questionou-me. Onde estivera eu? Quem me levara? Por que não lhe dizia? Não compreendia que teria de se vingar se fora ferida, ou magoada? Esquecera que era meu irmão? Mas eu não lhe disse nada. Bran tinha razão. Não se podia confiar. Nem naqueles que nos eram mais chegados.
Assim, cavalguei de regresso a Sevenwaters na égua do Homem Pintado, vestida com o seu casaco, para me aquecer. Com um colar de unhas de lobo na algibeira e sangue nas mãos. Tanto pior para a minha capacidade de mudar as coisas. Tanto pior para as Criaturas Encantadas, as vozes antigas e as vozes da morte. Quem era eu, senão a mulher menos poderosa num mundo irracional de homens? Nada mudara. Nada, talvez apenas nas profundezas da minha alma, que ninguém podia ver.
CAPÍTULO SETE
No dia seguinte ao meu regresso a casa fiz uma vela. Nada de extraordinário; tal trabalho fazia parte do dia-a-dia de uma casa. Mas era suposto eu descansar. A minha mãe inspeccionou o meu quarto, mandou varrer o chão, esticou-me a colcha e foi ter comigo à ervanária, onde eu estava a trabalhar, com o cabelo lavado de fresco e apertado atrás com uma fita. Se viu os meus lábios inchados e pisados, se reconheceu marcas de mordidelas no meu pescoço, não fez qualquer comentário. Em vez disso, observou as minhas mãos enquanto desenhavam num dos lados da cera, metodicamente, um intrincado desenho de curvas, espirais e tracejados. O outro lado ficou liso. Eu não disse nada. Quando acabei, para minha satisfação, coloquei-a num robusto suporte, em volta da base atei a tira de pele com unhas de lobo e uma pequena grinalda que entrançara. Por fim, a minha mãe falou.
— Esse sortilégio é muito poderoso. Cornizo, milefólio e zimbro. Maçã e alfazema. E isso são penas das asas de um corvo? Onde vai esta vela arder, filha?
— Na minha janela.
A minha mãe acenou com a cabeça. Não me fizera nenhuma pergunta.
— Esse teu aviso foi feito com ervas de proteção e de amor. Compreendo o seu propósito. Ainda bem que o teu pai e o teu irmão talvez não o compreendam. E tu fechas-te ao teu irmão. Isso magoa-o.
Olhei para ela. A preocupação estava escrita nas suas feições delicadas, mas os seus olhos, como sempre, estavam profundos e calmos. De todos, só ela me acreditara quando eu lhe disse que estava tudo bem. Os outros viram as pequenas equimoses nos meus pulsos, as mordidelas, as manchas na minha roupa e tiraram conclusões.
Ficaram furiosos
— Não tenho escolha — disse eu.
— Hum. — Sorcha acenou com a cabeça. — E não é a ti própria que estás a proteger. Tens uma grande capacidade para amar, dás-te livremente, filha. E, tal como o teu pai, ofereces-te à dor.
A vela estava acabada. Arderia durante muitas noites. Arderia constantemente durante a Lua Nova, alumiando o caminho para casa.
— Não tenho escolha — disse eu de novo e de saída inclinei-me para beijar a testa da minha mãe. O ombro dela, por baixo dos meus dedos, era tão frágil como o de um passarinho.
Houve muitas perguntas. Liam tinha perguntas.
— Como é que te levaram? Que espécie de homens era? Sabias que três dos meus homens foram degolados enquanto te guardavam? Para onde te levaram? Para norte? Morrigan amaldiçoe a tua teimosia, Liadan! Isto pode ser de importância vital.
Sean também tinha as suas perguntas, mas após um bocado deixou de as fazer. Senti-lhe a dor e a preocupação como se fossem minhas, porque sempre fora assim entre os dois. Mas desta vez eu não podia ajudá-lo.
Quanto ao meu pai, precisei de toda a minha força de vontade para permanecer silenciosa. Ele sentou-se calmamente no jardim, observando-me a trabalhar e disse:
— Durante todo este tempo, não soube se estavas viva ou morta. Já perdi uma filha e a tua mãe caminha nas sombras. Farei tudo o que está ao meu alcance para te manter a salvo, Liadan. Mas vou estar à espera que tu estejas pronta para me dizer, querida. Pode ser que tenha que esperar muito. — Lubdan acenou com a cabeça. — O tempo que for preciso, desde que estejas a salvo, em casa — disse ele, calmamente.
Eamonn veio visitar-nos e eu recusei-me a vê-lo. Talvez fosse falta de cortesia da minha parte, mas ninguém insistiu. A minha fraca disposição, já que precisava de descansar depois da minha experiência, serviu de desculpa. O que Eamonn disse, não sei, mas os homens da casa tinham os lábios cerrados depois da sua partida. Na verdade, eu recuperara rapidamente e em breve estava cheia de energia, comendo bem e dormindo como uma criança, enquanto a minha vela esconjurava as estranhas sombras nas paredes à minha volta. A única coisa que não estava bem, porque era um sentimento novo, era a dor dentro do peito, desejando ser abraçada, a necessidade de tocar, de estar perto e subir de novo ao topo da alegria que não se pode descrever com palavras. É difícil explicar. Não havia dúvida que eu sentia desejo, a necessidade urgente de uma criatura pelo seu par. Mas isso não era tudo.
Eu vira a mão da morte sobre Bran e sobre mim, à entrada do antigo túmulo. Senti que os nossos destinos estavam interligados; estávamos mais próximos do que simples amantes, ou companheiros. Era uma ligação que transcendia a morte; um laço inquebrável. Para mim era claro, uma certeza inquestionável. Não fazia diferença o fato de ele me ter mandado embora. O laço existia e existiria sempre.
Quanto às Criaturas Encantadas, se queriam que eu me comprometesse, teriam de me explicar melhor. Uma concordância inquestionável com os seus desejos não era a minha noção de bom senso.
Ansiava pelo regresso de Niamh. Certas coisas só se podem falar com a nossa irmã.
Queria dizer-lhe que compreendia, agora, porque agira como agira, se bem que na altura me tivesse parecido cega e egoísta. Que sabia como lhe deviam doer os dias sem Ciarán, entregando-se a outro homem, sozinha num mar de estranhos, pensando apenas nele, imaginando onde estaria, se estaria bem, sonhando com as carícias que nunca mais voltaria a sentir.
A vida voltou ao que era. A mesma; no entanto, não era a mesma. Todos tínhamos saudades de Niamh, mas ninguém falava disso. O que estava feito, estava feito; não se podia reescrever o passado. Quanto a mim, parecia que todos estavam um passo à minha frente. Desconfiavam dos meus silêncios, da minha necessidade de estar sozinha com os meus pensamentos. Com a minha mãe era diferente. Ela tinha a sua própria ideia da verdade e impediu Liam de me fazer mais perguntas.
Uma noite, não muito depois de Lugnasad, no frio da mudança da estação, chegou um mensageiro de Tirconnell, com boas notícias. Ia haver uma reunião no sul; os chefes de guerra de muitos clãs tinham sido convocados pelo Rei Supremo e Fionn iria como representante do seu pai. Talvez não houvesse grande amor entre as duas fações do Uí Néill, mas seria loucura desprezar um tal convite. Frequentemente, à medida que as gerações passavam, o título de Ard Ri, ou Rei Supremo, mudara de um ramo para o outro daquela grande família. Liam também deveria ir. Mas a melhor das notícias foi que Fionn traria a sua mulher consigo, pelo menos até Sevenwaters e assim eu ia poder ver de novo a minha irmã.
As roupas de cama foram arejadas e os soalhos varridos; preparou-se a cozinha e os estábulos para um afluxo de visitantes. Eu resolvera tornar-me útil, ajudando Janis e as suas mulheres na salga e no fabrico da cerveja. Mas o cheiro forte desta deu-me volta ao estômago e eu tive que me desculpar e retirar-me para vomitar o pequeno almoço à sombra de uma sorveira-brava. Achei que tinha comido demais. Parecia estar sempre com fome. Mais tarde senti-me melhor e deixei de pensar que tinha uma doença qualquer. Mas quando voltou a acontecer no dia seguinte, e no outro, afastei-me da cozinha da parte da manhã, restringindo a minha atividade à poda, à varredura, à secagem de sementes e ao armazenamento de ervas. Trabalhei arduamente. Estava sempre ocupada. Não concedia a mim própria tempo para pensar.
A lua nova chegou, foi e voltou de novo. Nessas noites não conseguia dormir. Em vez disso sentava-me à janela onde ardia a vela e pensava na pequena criança que me estendera a mão na escuridão, no pesadelo. Não me deixes. Na minha mente pegava naquela criança, que também era um homem e rodeava-a com os braços, apertando-a contra o meu coração, até que as primeiras luzes da alvorada tocavam o céu. E se bem que nunca falasse em voz alta, falava com ele constantemente através das sombras que o rodeavam. Estou aqui. Não tenhas medo. Eu abraço-te. Eu não te deixo. Por fim, chegava a madrugada. O Sol nascia e começava um novo dia. Dizia-lho; e quando havia luz suficiente para ele ver por onde ia, apagava a vela, tocava na pena de corvo gentilmente com a ponta dos dedos e saía, bocejando, para começar um novo dia de trabalho.
Foi um bom ano de colheitas. Lubdan era visto em toda a parte, o seu grande tamanho e o seu cabelo brilhante diferenciando-o dos outros homens da casa, enquanto supervisionava a colheita dos frutos de raiz, a escolha do gado, a matança dos cordeiros para salga e seca, a manutenção dos telhados e paredes, para abrigar os camponeses e o gado dos rigores do Inverno. Sean estava muitas vezes a seu lado, uma figura mais delgada, o cabelo tão negro e selvagem como o da nossa mãe.
Aislíng não estava presente para o distrair, porque as suas próprias colheitas mantinham-na, assim como ao irmão, longe de Sevenwaters e eu sentia-me feliz por isso. Liam preparava-se para a sua viagem para o sul. Enviando e recebendo mensageiros, planeando e aconselhando-se com os seus capitães. Se bem que Sean fosse bem-vindo àquelas reuniões, não viajaria até à reunião com o Rei Supremo. Sempre estrategista, Liam não desejava expô-lo, cedo demais, àquele perigoso círculo de influência. Achava que o meu irmão ainda era muito novo para jogar os sempre perigosos jogos de poder. A seu devido tempo Sean seria o senhor de Sevenwaters.
Devia aprender a estar sempre um passo à frente dos seus vizinhos, porque um vizinho podia passar de aliado a inimigo num instante. Liam era bom professor, dando tempo ao tempo, até Sean perder os arrebatamentos da juventude e provar que era um verdadeiro condutor de homens.
Convinha-me que a casa andasse ocupada, porque as colheitas e o armazenamento desviavam a atenção das pessoas da minha pessoa. Niamh e o marido chegariam em Meán Fómhair, quando as noites ficam iguais aos dias e ficamos à entrada da escuridão. Por essa entrada vem a guardiã dos nascimentos e das mortes. Pode ser uma velha muito velha, mas com a idade vem a sabedoria, que não se mede. Nessa ocasião o seu conselho pode ser solicitado por aqueles que têm coragem para abrir as suas mentes à sua voz. E, oh, eu precisava de sabedoria, precisava de orientação, e depressa. Mas não das Criaturas Encantadas. Sabia muito bem o que diriam e eu começava a ter um pressentimento do que estava por trás. Começava a sentir-me encurralada e não estava a gostar nada.
Cortei a bainha do casaco de Bran, de maneira a poder usá-lo na rua sem apanhar demasiada lama. Depois de limpar o tecido, cortei-o em pequenos quadrados e coloquei-os em cima da pequena arca de carvalho ao lado da minha cama. Já tinha outros bocados prontos. Fragmentos de uma velha camisa do meu pai, macios, devido ao uso. Um bonito bocado de lã cor-de-rosa de um dos vestidos de Niamh.
Eu própria preparara as tintas para ele, há muito tempo. Ela usara-o, radiante, até outro se tornar no seu favorito. Havia também bocados de um vestido prático tecido em casa, parte do meu arruinado traje de montar. Cortados da parte de trás, porque, quando olhava para ele, era a única parte que não se podia salvar, tão manchada estava de sangue, vomitado e outras coisas impensáveis. Depois de ter cortado os bocados, o vestido foi queimado. Não derramei lágrimas por ele. Tentei não pensar nele. Em vez disso, trabalhei. Provavelmente, a ervanária nunca estivera tão bem fornecida, o jardim tão limpo, sem um único rebento indesejado ou uma erva daninha à vista. E então chegou de novo a lua nova e a minha mãe veio ter comigo um dia, quando eu estava a pendurar flores a secar e percebi que estivera a cantar em voz baixa um pequeno fragmento de uma velha, velha canção de embalar.
— Não pares — disse Sorcha, sentando-se à janela, uma figura minúscula com grandes olhos, como a mais pequena e mais delicada das corujas. — Gosto de te ouvir cantar. É assim que sei que estás bem, apesar de tudo. Uma mulher infeliz não canta.
Olhei para ela e regressei às minhas flores. Pendiam da corda como gotas de sangue brilhantes. Onde estava ele? Em que terra distante arriscava agora a vida por um saco de prata? Sob que exótica árvore, em que estranha companhia ficava ele acordado à noite, de arma na mão, esperando silenciosamente a alvorada?
— Liadan.
Virei-me para ela.
— Senta-te, Liadan. Trouxe uma coisa para ti.
Surpreendida, obedeci. Ela agitou o embrulho de tecido que tinha na mão.
— Conheces este vestido, claro. É muito velho. Demasiado velho, agora, para ser usado — A mão dela passou pelo gasto tecido azul; os seus dedos finos tocaram no velho bordado, agora quase invisível. — Pensei que talvez pudesses salvar uma secção aqui e talvez aqui. Terias de coser as pontas com muito cuidado. Mas tu és habilidosa com a agulha. Houve um dia em que o mar e a areia tocaram nestas saias, um dia que só acontece uma vez na vida... e eu voltei a usá-lo num dia de fogo e sangue. Não preciso de guardar o vestido para me lembrar; ambos os dias estão gravados no meu coração. Seja o que for que estejas a fazer para o teu filho, este tecido deve fazer parte.
Seguiu-se um silêncio longo, durante o qual, eventualmente, me levantei, fiz um chá de menta e verti-o em duas taças. Coloquei uma na pedra ao lado da minha mãe e não pude evitar o seu olhar. Ela sorria.
— Ias dizer-me, filha, ou estavas à espera que eu te dissesse?
Engasguei-me com o chá.
— Eu... é claro que lhe ia dizer. Não é de si que tenho medo, mãe.
Ela acenou com a cabeça.
— Só tenho uma pergunta — disse ela. — E não é a que esperas. Gostaria de te perguntar se essa criança foi concebida com alegria?
Olhei-a nos olhos e ela leu a resposta no meu rosto.
— Hum. — Voltou a acenar com a cabeça. — Não esperava menos. O teu andar, os teus meios sorrisos, o teu comportamento não são os de uma mulher magoada, ou assustada. No entanto, ele não ficou contigo? Como pode ser?
Sentei-me em frente dela num banco de três pernas, com a taça de chá quente entre as mãos.
— Ele não sabe da criança. Não podia saber. E pediu-me que ficasse com ele. Eu é que disse que não.
Houve uma pausa. Ela bebeu um pouco de chá, creio que mais para me agradar.
— Pensei que talvez... — disse ela, cuidadosamente — pensei que talvez esta criança fosse filha de um dos... de um daqueles Outros e talvez tivesse sido por isso que tu tivesses desaparecido sem deixar rasto, de maneira que até os maiores esforços de Liam e Eamonn não conseguiram encontrar qualquer sinal de ti. É essa a razão por que escondes tanto esse segredo dentro de ti, Liadan?
Uma criança do Outro Mundo. Quase me senti tentada a dizer que sim; teria sido uma explicação bem cômoda.
— Eu não viajei para lá das margens, mãe, se bem que tenha visto... eu vi as Criaturas Encantadas e elas falaram comigo. O pai desta criança é mortal. E não direi o seu nome.
— Estou a ver — disse ela, lentamente. — Viste-as. Isto, portanto, também faz parte do mesmo padrão. Saberemos, em devido tempo, quem te fez isso? Deixou-te com uma criança e desapareceu como se nunca tivesse existido? O teu pai vai exigir, com certeza, que esse homem preste contas: tanto Sean, como Liam irão, mais longe e procurarão vingança.
Eu não disse nada. Entrava pela janela uma brisa; pedaços de ramos e folhas secas eram atirados contra as paredes. O oblíquo sol daquela manhã de Outono brilhava com uma luz trocista, prometendo um calor que não continuaria.
— Mãe. — Não consegui impedir que a minha voz tremesse um pouco.
— Tudo bem, Liadan. Conta-me, se puderes.
— Isso é parte do problema. Não posso dizer a ninguém, nem sequer a si. Mãe... como posso falar disto ao pai? Não posso... não casarei com um estranho, como a Niamh. Nem darei à luz o meu filho na vergonha e no silêncio. Como posso dizer-lhe? Como posso dizer a Sean e a Liam e... e...
— E a Eamonn? — perguntou ela, gentilmente. Acenei com a cabeça miseravelmente.
— O teu homem regressará para ti algum dia? — perguntou a minha mãe com o rosto ainda tranquilo. — Certamente que um homem, merecedor do teu amor, não pode deixar de o fazer.
— Ele... ele vive uma vida muito arriscada — consegui dizer. — Não há lugar nessa vida para uma mulher e uma criança. E além disso... não, não interessa. Ele não é... o pai acharia que ele não é adequado. É tudo o que posso dizer.
— O teu pai e Liam desejarão que te cases — disse Sorcha, calmamente. — Sabes isso. Não compreenderão que tu queiras ter a criança sozinha.
— Eu tenho uma resposta para isso — disse eu. — As Criaturas Encantadas deram-me instruções rigorosas para que fique aqui em Sevenwaters. Para sempre, creio que foi isso que quiseram dizer. Não preciso de me casar, disseram elas. Nem com Eamonn nem com nenhum outro. Na ocasião não percebi o que elas queriam dizer. Mas agora começo a compreender.
A minha mãe acenou com a cabeça, não parecendo nada surpreendida.
— A criança — disse ela, docemente. — É a criança que deve ficar na floresta. Querem que cries a criança aqui. É isso, Liadan. Depois... depois do que aconteceu a Niamh sentimos um mal que pensávamos desaparecido há muito. Talvez a criança seja uma arma contra isso.
— O velho mal? Era isso que lhe chamavam. Que mal? Que mal é esse, tão terrível, que ameaça até as Criaturas Encantadas?
Sorcha suspirou.
— Não temos a certeza. Quem sabe quais são as formas que tais forças assumem? Devias dar atenção os avisos que te fizeram.
Franzi o sobrolho.
— Não gosto nada disto. Eu disse-lhes. Recusei-me a prometer. Não serei usada como uma ferramenta qualquer para os propósitos delas. Nem o meu filho. — Não tinha dúvidas de que aquela criança seria um rapaz. O seu pai, pensei, era seguramente um homem que só geraria homens.
— Não é sensato descuidar os desejos delas — disse a minha mãe, gravemente. — Nós somos pequeníssimos peões no longo jogo delas. E esse jogo é maior do que imaginamos, Liadan. Talvez, com o tempo, ele se torne mais claro para nós. Preocupa-me que não me digas o nome desse homem. Como é que alguém, que te abandonou, pode ser merecedor de tanta lealdade? Ou é a vergonha que te impede?
Fiquei corada como um tomate.
— Não, mãe — disse eu, firmemente. — É verdade, a princípio fiz os possíveis para o negar a mim própria. Não por vergonha, mas porque sabia quão difícil seria, suponho. Fingi que não reparava nas mudanças do meu corpo, ignorei a passagem da estação, as fases da lua. Mas à medida que o filho dele cresce dentro de mim sinto uma alegria tão grande, um poder tão intenso, que não consigo pensar em nada que se lhe assemelhe. Sinto-me como se... sinto-me como se conseguisse ouvir o coração da terra a bater dentro de mim.
Sorcha manteve-se imóvel por uns instantes.
— Acredita em mim, filha — disse ela, por fim. — Essa criança é tão preciosa para mim como para ti. As tuas palavras alegram-me e assustam-me. Prometo-te uma coisa e acredita que a cumprirei. Prometo-te que ainda estarás aqui na Primavera, para dares à luz o teu bebê pelas minhas mãos. Será aqui, Liadan.
Desatei a chorar, ela pôs os braços em volta de mim, abraçou-me com quanta força tinha e senti de novo como ela se tornara pequena e frágil. Porém, naquele abraço havia uma força que entrou em mim e me atravessou e eu soube que Bran estava enganado, enganado acerca de Sorcha, enganado acerca de Hugh de Harrowfield, o meu pai. Não havia mal nenhum, aqui. Algures, não sei como, a história fora torcida, mudada e eu só desejava endireitá-la. Um dia havia de a endireitar.
— Não chores, filha. Por mim, não.
— Desculpe. — Sequei as lágrimas com a mão.
— É difícil compreender a tua lealdade para com esse homem. Ele ama-te, mas não regressa. Dá-te esta criança e desaparece. E tu fazes tudo para o proteger. Defendê-lo com uma parede impenetrável de silêncio, que te fecha até ao teu irmão. E acreditas que talvez não seja suficiente. Porque há algo que te dá noites sem sono.
Não respondi.
— É amor o que te liga a esse homem? — perguntou-me ela. Havia uma pequena e nítida imagem na minha mente. Eu própria em cima de um pequeno cavalo e Bran a meu lado, carrancudo, olhando ferozmente para o chão, as mãos desmentindo a sua expressão, os dedos tatuados, quentes, pousados na minha coxa, a última carícia. Não te cases com esse Eamonn. Diz-lhe, se casares com ele, que é um homem morto.
— O que é Liadan? — Havia alarme na voz da minha mãe. Só a deusa sabia o que o meu rosto mostrara.
— Ele e eu... nós partilhamos uma ligação. Não é amor, exatamente. É mais do que isso. Ele é meu, tão certo como o Sol seguir-se à Lua através do céu. Meu, mesmo antes de eu saber que ele existia. Meu até à morte e para lá da morte. Ele corre um perigo terrível. Por causa de outros e também por causa dele próprio. Se eu pudesse fazer mais para o proteger, faria. Mas não direi quem é e o que faz. Não posso.
Sorcha acenou com a cabeça, uma expressão sombria no rosto.
— Não posso protelar isto por mais tempo. Tens uns dias difíceis à tua frente. Acho que deves ser tu a dar a notícia a Red.
— Eu... eu não quero que ele me fale como falou a Niamh. Não quero que ele me mande embora sem uma palavra amável, como se fosse um estranho.
Ela suspirou.
— Foi duro para os dois. Ele sempre viu algo dele em Niamh; sentiu-se responsável, penso, pela fraqueza dela. Tentou fazer as pazes com ela; ele queria muito explicar-lhe a sua decisão, mas ela recusou-se a ouvi-lo. Ela fechou-se a nós. O teu pai lamentou imenso não ter podido esperar mais, para explorar outros rumos para Niamh. Conor obrigou-nos ao silêncio, Liadan; não te podíamos contar a verdade toda e continuamos a não poder. Os meus irmãos acreditaram que, se o fizessem, atrairiam coisas más sobre todos vós. Têm boas razões para isso; com o tempo, talvez tudo possa ser conhecido. É devido ao que aconteceu com Niamh e como isso o perturbou que é pouco provável que o teu pai te trate com dureza. Ele vê em ti e em Sean a força da minha família, do povo da floresta. Ele sempre confiou na tua capacidade de julgamento, como confia na minha. Sê honesta com ele e ele fará o melhor para te compreender.
— Mal sei por onde começar. — Ela levantou-se, pronta para sair.
— Não te demores a contar-lhe. Depois, eu contarei a Liam e a Sean. Não precisas de dar a notícia vezes sem conta.
— Obrigada. — Tinha a garganta seca; subitamente, senti-me terrivelmente cansada. — Eu preferia... eu preferia esperar, antes de dar a notícia. Gostava de esperar por Niamh, para lhe dizer a ela primeiro.
Sorcha enrugou ligeiramente a testa.
— O teu pai é capaz de me ler o rosto muito bem, especialmente agora. Eu não lhe vou dizer; mas ele senti-lo-á e por isso é que tu não deves protelar. Nós não temos segredos um para o outro. Além disso, em breve estará à vista de todos.
Nenhuma de nós mencionou Eamonn, mas eu não esquecera o encontro na estrada, os homens vestidos de verde e o amigo cuja garganta cortara na escuridão. Algumas coisas nunca se esquecem.
Os nossos hóspedes eram esperados a qualquer momento. Tudo estava preparado. As noites foram ficando cada vez mais frias e as pessoas da casa bebiam o potente vinho quente de Janis, mas eu bebia água, porque o cheiro forte do vinho continuava a enjoar-me. Janis andava de olho em mim, assim como as mulheres da cozinha, mas ela mantinha os mexericos controlados. Os homens não tinham essa percepção. A sua conversa era toda sobre estratégia e transações e, por vezes, aquecia. Havia uma intranquilidade fervente entre Sean e Liam e uma noite a tampa saltou.
Ardia um fogo na sala pequena onde a família se reunia para conversas particulares.
A minha mãe estava sentada num banco com o braço protetor de Lubdan em redor dela. Ele estava calado, talvez cansado, depois de um longo dia nos campos. Eu ouvia as vozes de Sean e de Liam sem, na realidade, ouvir o que diziam. Estava a coser um cobertor. Era muito pequeno. Um quadrado cinzento aqui, outro cor-de-rosa ali. Um debrum rude. Um fragmento azul-violeta pálido com o rendilhado de um bordado velho, muito velho. Pontos delicados; uma carreira de folhas, um minúsculo inseto. A minha agulha movia-se com precisão, juntando tudo. Os meus pensamentos estavam longe. Então, Sean falou de novo.
— Talvez estejas muito velho — disse ele rudemente, trazendo-me de volta para o lugar em que estava. — Talvez não consigas ver que as tuas precauções afastam este assunto da resolução.
— Sean. — Lubdan falou com suficiente moderação. — Tu ainda não és o senhor desta casa.
— Deixa-o falar — disse Liam de maxilas apertadas.
Sean andava de um lado para o outro de braços cruzados. Eu sentia-lhe a frustração sem perceber a causa.
— Não tentamos já, vezes sem conta e não fomos sempre derrotados? Bons homens perdidos, substituídos por outros e também esses, por sua vez, chacinados? Esta guerra envenena as nossas vidas há gerações. Caímos pela causa, voltamos a cair e continuamos a avançar. Qualquer pessoa de fora chama a isto uma coisa sem sentido.
— Uma pessoa de fora não pode compreender o que as Ilhas significam para a nossa família e para o nosso povo. — A minha mãe falou docemente. — Não pode haver aqui harmonia, equilíbrio, enquanto não forem reconquistadas. São as Criaturas Encantadas que no-lo exigem.
— E a profecia? — perguntei.
— Que se dane a profecia cortou Sean. Alguma vez vimos algum sinal desse misterioso indivíduo que é suposto libertar-nos? Nem de Erin nem da Bretanha, mas de ambos; o sinal do corvo, ou lá o que é. Provavelmente, alguém inventou isso uma noite, depois de muita cerveja. Não, é preciso uma nova aproximação. Temos de desistir da ideia de um assalto frontal. Temos de pensar para lá da noção de que só podemos vencer com um número superior de homens, ou com a estratégia gasta dos nossos avós. Temos de nos preparar para assumir riscos, ultrapassar o bretão no seu próprio jogo. A posição dele é quase inexpugnável; longos anos de falhanços confirmam-no. Para resolver o problema, devemos estar preparados para pensar o impensável; tocar o intocável.
— Nunca. — O tom de Liam era pesado. — Não sabes o que estás a dizer. É a tua juventude e falta de experiência a falar. Já ouvi esse argumento antes e não o acho mais apetecível agora do que então. Esta família nunca utilizou métodos desonrados para ganhar uma luta e sinto-me envergonhado por seres tu, o meu herdeiro, a sugerir tal coisa. Além disso, não estamos sós nesta aventura. E os nossos aliados? E Seamus Redbeard?
— Ele pode ser persuadido. — Não havia uma sombra de dúvida na voz do meu irmão.
— Terás grandes dificuldades.
— Ele pode ser persuadido. Não há nada mais importante do que a reconquista das Ilhas. E estamos determinados, já que Fionn certamente concordará em se juntar à nossa aliança e...
— E Eamonn? O seu apoio é essencial. Ele pensa como eu. Eamonn é irredutível. Não há força no mundo que o faça concordar com isso.
— Eu consigo convencê-lo.
— Eamonn? — Liam deu uma risada amarga. — Não conheces o teu amigo tão bem como eu pensava. Nisto, não mudará. Nunca.
Eu começava a ter um sentimento muito desconfortável acerca daquela conversa.
Exatamente, o que é que Sean está a sugerir? Forcei-me a mim própria a fazer a pergunta, se bem que temesse a resposta. Havia uma sombra na periferia dos meus pensamentos e não queria que ela se aproximasse mais.
— É assim. — Sean aproximou-se da minha cadeira e agachou-se diante de mim. A sua excitação era intensa; a sua energia parecia crepitar no ar. Conservei o escudo baixo, defendendo a minha mente. — Tu não podes vencer só com uma investida, por mais forte que ela seja. Está provado. Dois dos nossos tios caíram na última tentativa e muitos homens corajosos com eles; tantos, que quase nos levou uma geração para nos recompormos. E no entanto as nossas forças eram fortes e bem disciplinadas, os nossos aliados apoiavam-nos; entre as nossas posições e as colónias dos Nórdicos, os Bretões não tinham hipótese de estabelecer uma base nesta costa. Portanto, o que é que falhou? Primeiro, eles têm a vantagem da posse. A sua torre na Greater Island tem um grande alcance. Só há uma aproximação segura e eles têm-na vigiada. Segundo, eles têm aqui uma rede formidável de informadores. Todos nós sabemos quem era um deles, há anos atrás. Talvez tenha sido a traição do pai dele que fez com que Eamonn tenha agora uma atitude inflexível. Em qualquer dos casos, seja qual for a ação que planejemos, os Bretões parecem conhecê-la antecipadamente. Portanto, qual é a lição de moral?
As suas mãos mexeram-se para ilustrar o seu ponto de vista.
— Aprendemos que é inútil seguir um rumo previsível. Aprendemos que não temos segredos para o nosso inimigo. Por mais forte que seja a nossa aliança deste lado do mar, eles vencem-nos. Estão sempre à frente de nós. Nenhum de nós tem a capacidade e os conhecimentos para idealizar uma alternativa de aproximação à Greater Island. Ele respirou profundamente, o olhar intenso. Neste momento estamos particularmente bem posicionados. Seamus tem uma força disciplinada e anos de experiência, podendo avançar. Conhecemos a capacidade de Eamonn. E temos Uí Néill, porque Fionn é da família e pode ser convencido com facilidade a apoiar-nos. Ele precisa da segurança das nossas terras e das de Eamonn, como tampão contra qualquer ataque dos seus familiares do sul. Podemos negociar com Fionn. Portanto, as nossas possibilidades são maiores do que nunca.
— Suficientes, sugiro, para recuperar as Ilhas sem necessidade de truques — disse Liam, severamente.
— Não, tio. Não acreditas nisso mais do que eu. Northwood consegue reunir as forças de que precisa e a sua rede de espiões pode avisá-lo dos nossos planos antes de levantarmos âncora. Precisamos de duas coisas. Primeira, uma boa armada; superior a qualquer outra já vista por estas bandas. Barcos que possam chegar despercebidos e desembarcar pela calada da noite em lugares até agora julgados impossíveis. Homens que se possam infiltrar no acampamento do bretão sem se fazerem notar. Uma força que estará dentro da sua praça forte antes de ele ser capaz de a reconhecer como tal. Um aliado com capacidade para detectar e destruir a rede de informadores do bretão.
— E segunda? — O meu coração parecia um tambor. Sabia o que se ia seguir.
— Para ganhar a primeira temos de fazer a segunda. A segunda é deitar fora os nossos escrúpulos. Temos de contratar os serviços do Homem Pintado, seja ele quem for.
A minha mãe reteve a respiração. Lubdan ficou muito sério. Liam limitou-se a apertar ainda mais as maxilas. Não havia dúvida de que já tinha ouvido aquilo.
— Eu já investiguei — continuou Sean. — Nesse bando de homens há um tipo estranho de pele negra, que sabe o ofício de marinheiro e sabe manobrar um barco muito melhor do que imaginamos. Entre eles há outros, nórdicos, pictos, que, juntos, podem ensinar-nos. Ouvi histórias das proezas deles que até parecem mentira, se não tivesse provas de que aconteceram. O chefe deles é um homem que nos pode ensinar muito. É perito em espionagem. Disseram-me que é capaz de iludir a mais subtil das estratégias. Com este homem do nosso lado acredito que não podemos falhar.
— Ele nunca aceitará. — Falei sem pensar e a minha voz tremia. Quatro pares de olhos viraram-se, curiosos, na minha direção. — Eamonn — disse eu rapidamente, estremecendo ao espetar a agulha num dedo. — Ele nunca aceitará trabalhar com... com o Homem Pintado. Lembra-te do que ele disse. Se esse homem puser os pés de novo nas minhas terras, a sua vida não vale um tostão. Qualquer coisa assim. Nunca conseguirás convencê-lo.
Seguiu-se um breve silêncio.
— Eu compreendo a relutância de Liam — disse Lubdan, calmamente. — É natural que estejas com demasiadas esperanças nesse empreendimento. Eu também ouvi falar desse mercenário com uma mistura de terror e admiração. Pode ser que o que dizem das suas capacidades seja verdadeiro. Mas não podes confiar num homem desses, pela simples razão de que parte do seu valor reside na sua capacidade para iludir, na sua falta de fidelidade. O homem é um trapaceiro, sem qualquer consciência, sem escrúpulos. Tem habilidade para levar a bom porto o teu empreendimento. Ou para o trair. Só saberás, no último momento, para que lado saltou.
Liam acenou com a cabeça.
— Ele é capaz de receber o nosso dinheiro e fugir. Na realidade, pode até sair-nos demasiado caro.
— Para isto — a expressão de Sean era de feroz determinação —seguramente que o preço nunca é exagerado!
Nesse momento apareceu a sombra. A sala dissolveu-se à minha volta e eu vi, em vez dela, dois homens em feroz combate, um contra o outro. Por trás deles vi escuros pilares com uns extravagantes animais gravados, um pequeno dragão, um outro alado e um grifo de garras abertas. O homem vestido de verde tinha as mãos apertadas com força em redor do pescoço do outro, apertando, apertando. Esse homem vestido de verde tinha um queixo quadrado, com um anel de cabelos castanhos rebelde caindo-lhe para os olhos. Era Eamonn. Parecia estar a ganhar o combate. Por que era que, então, procurava respirar, por que estavam as suas feições tão pálidas? A sombra passou por cima dos dois, juntos naquele abraço de morte.
Então, vi o punhal enterrado profundamente na frente da túnica verde, um punhal seguro com firmeza por uma mão cujos nós brancos e nervos tensos tinham um delicado desenho de curvas, espirais e tracejados. Não precisei de olhar para as feições meio estranguladas daquele homem para saber quem era. Mas olhei; e a Visão esfumou-se e mudou e o rosto de um homem tornou-se no rosto do outro, inundados de ódio e eu já não era capaz de dizer qual era qual. Deixei sair uma espécie de grito; e a sombra libertou-me, permitindo-me regressar à sala iluminada pelo fogo. Devo ter caído da cadeira para a frente, talvez desmaiado, porque estava meio deitada no chão com o braço de Sean em volta dos meus ombros. Liam estava a olhar para a minha mãe e ela estava a olhar para ele, como se o que acabavam de ver lhes fosse familiar. O meu pai trouxe-me uma taça de água e eu bebi. E em breve eu estava bem de novo, ou, pelo menos, exteriormente. Mas não lhes diria o que vira.
— Sean defende a causa dele muito bem disse o meu pai — algum tempo depois. — Pelo menos, devemos tê-la em consideração. Talvez ele tenha razão. Talvez se tenha derramado demasiado sangue.
— Achas que o Homem Pintado não derramará mais ainda? —perguntou Liam com as sobrancelhas erguidas em sinal de incredulidade. — As suas mãos estão cheias dele. Tu ouviste a história de Eamonn.
— Todos nós matamos numa ocasião qualquer das nossas vidas. E há muitas histórias.
— Eu não estou a apoiar nenhum de vós. Estou apenas a sugerir que não afastes por completo a ideia de Sean. Apresenta-a aos nossos aliados, quando estiverem todos reunidos aqui. Eu não abordaria semelhante tópico nos salões de Tara. Mas aqui, em Sevenwaters, é seguro. Apresenta-a antes de ires para a assembleia do Rei Supremo. Logo vês a resposta.
Liam ficou silencioso.
— Devias perguntar a Conor — disse a minha mãe. — Ele vem cá amanhã. Pergunta-lhe se acha sensato menosprezar a profecia.
— Conor! — O tom de Liam era frio. — Já não podemos confiar no julgamento de Conor.
— Isso não é justo — disse Lubdan. — Todos nós fomos responsáveis, em parte, pelo que aconteceu com Ciarán. Não podes pôr a culpa toda no teu irmão.
— Eu sei, bretão — cortou o meu tio. — A falta de controlo por parte da tua filha também foi um fator.
O meu pai levantou-se lentamente. Era uma cabeça mais alto do que Liam. A seu lado, Sorcha ergueu a mão para esconder um delicado bocejo.
— É tarde — murmurou ela. — São horas de irmos dormir. Liadan, tu não estás bem. Anda, eu ajudo-te a deitar. Red, importas-te de trazer uma vela, por favor? — Levantou-se e aproximou-se do seu carrancudo irmão. — Boa noite, Liam. — Pôs-se em bicos dos pés e beijou-o em ambas as faces. — Que a deusa te dê bons sonhos e cabeça fresca, amanhã. Boa noite, Sean.
Os três homens ficaram em silêncio, a ira desaparecida dos seus olhos. Só Dana sabia como iriam ficar depois de a minha mãe sair.
Na madrugada do dia seguinte colocámo-nos todos por baixo de um grande carvalho, nas profundezas da floresta, prontos para o ritual de Meán Fómhair. Conor estava presente com vários da sua espécie, mas desta vez nenhum aprendiz de cabelos vermelhos fazia sombra à sua figura imóvel, erecta, vestida de branco.
Levávamos nas mãos os frutos das boas colheitas da estação, um bom exemplo de cada um deles. Uma abóbora-menina dourada, uma couve enorme. Uma mão-cheia de grãos sedosos, um pequeno frasco de hidromel. Sidra, mel e ervas frescas. Os meus dedos seguravam uma bolota na sua brilhante casca protetora, aninhada firmemente na pequena taça. Rodeámos a velha árvore, tremendo de frio sob o ar gelado da aurora. Liam, solene e pálido e a seu lado Sean, uma versão mais nova do mesmo homem. O meu pai, que não acreditava muito naquilo, estava imóvel junto do imenso tronco, com a minha mãe no círculo dos seus braços. Ela estava pesadamente vestida contra o frio. Nenhum de nós conseguira persuadi-la a ficar dentro de casa a descansar. As mulheres da cozinha e os guerreiros permaneciam quietos, o rapaz da cavalariça e o guarda-florestal lado a lado, as pessoas da casa, da herdade e da aldeia. Ainda bem que Fionn e os seus ainda não tinham chegado. Ele sabia, claro, que a nossa família seguia as velhas tradições, mas era melhor não lhe dar a conhecer o quão significativo aquilo era para as nossas vidas, porque não se coadunava com a intensa fé cristã da sua casa. Se queríamos que ele entrasse para a aliança não podíamos dar, sequer, um passo errado.
Conor disse as palavras à medida que a primeira luz da alvorada entrava por entre a copa outonal das árvores e começámos a depositar as nossas oferendas em redor das raízes nodosas e emaranhadas do mais antigo habitante da floresta, tocando no tronco áspero, acenando com a cabeça numa reverência aqui, ou murmurando um agradecimento ali. Desta vez não houve fogo-de-artifício, nem truques de feitiçaria.
O meu tio falou com simplicidade, com a voz do coração.
— A nossa gratidão é demasiado profunda para ser dita por meio de palavras. Damos-lhe a voz que podemos, aqui, sob os carvalhos. Para com o Sol, que faz com que a vida nasça da terra. Para com os guardiões da floresta, que olham pelo que é bom durante o período de crescimento; que olham por todas as coisas desde o nascimento à morte e para lá dela. Em vós está a sabedoria dos tempos; honramos a vossa presença e oferecemo-vos os melhores frutos desta abundante estação. Porque também nós moramos na floresta, também nós somos filhos de Dana, se bem que sejamos mortais; e seguimos os caminhos que abris para nós, desde o primeiro suspiro, até ao último e para lá.
Conor parecia cansado, como se necessitasse de fazer um grande esforço para continuar. Havia um determinado peso nos seus pensamentos, como se carregasse um grande dilema. Senti-o no meu coração, mas não sabia dizer o que era. O seu rosto estava sereno como sempre, os olhos cinzentos profundos e calmos, à luz da aurora.
— Não honramos menos a escuridão que se aproxima. Todas as coisas devem dormir. Todas as coisas devem sonhar e tornar-se sábias. Bem-vinda, rainha e feiticeiras, vós que abris para nós a senda dos segredos. Recolhemos a vossa sabedoria. Ansiamos por ela e tememo-la. Vós fazeis nascer; vós ceifais a morte. Bem-vindo o vosso regresso. Preparemo-nos para o tempo das sombras.
Ficamos ali um bocado, de cabeças inclinadas, enquanto o Sol subia e o mundo cinzento da madrugada passava lentamente para castanho, cinzento e dourado. Lubdan continuava a abrigar a minha mãe nos seus braços e os seus olhos estavam vazios. Conor só dissera a verdade; a morte aproxima-se e não a podemos impedir. O movimento da roda é implacável. Tudo muda; a vida continua. Até um bretão era capaz de compreender aquilo, se vivesse entre nós o tempo suficiente. Mas ele nunca aceitaria a sentença.
Terminado o ritual, as pessoas regressaram ao longo dos carreiros da floresta, com o pensamento num fogo quente e numa tigela de papas de aveia. Ao fim de um certo tempo dei comigo a caminhar ao lado do meu tio Conor e pareceu-me que, de repente, todos os outros tinham desaparecido e só íamos ali os dois, juntos, na tranquilidade imensa da floresta.
— Ainda bem que tens uma capa quente e um bom par de botas —observou o meu tio. — A distância ainda é grande.
Abstive-me de qualquer comentário. Não parecia necessário. Mas depois de termos caminhado um bocado, eu disse:
— O meu pai é capaz de ficar preocupado.
Um pequeno sorriso passou pelas feições calmas de Conor.
— Lubdan sabe que estás comigo. É claro que pode não estar muito descansado por causa disso. Eles já não confiam em mim como antes. E tu pareces ter uma certa capacidade para atrair... complicações.
Os nossos pés pisavam suavemente sobre um tapete de folhas.
— E se Niamh chega hoje? — perguntei-lhe. — Assim não a vejo. Tenho de estar em casa quando a minha irmã chegar.
Ele acenou com a cabeça gravemente.
— Eu compreendo, Liadan. Compreendo melhor do que pensas. Mas, para ti, isto é mais importante. Estaremos de regresso antes do cair da noite.
Ergui as sobrancelhas, mas não respondi. Após uns momentos, o meu tio disse:
— És engenhosa, não és? Nem eu consigo entrar na tua guarda. Onde aprendeste a pôr essa barreira de ferro em frente da tua mente? E porquê? O que é que tens aí? Só vi um controlo assim uma vez, quando Finbar se fechou à tua mãe, há muito tempo. Aquilo magoou-a muito.
— Eu faço o que tenho de fazer. — Ele olhou para mim.
— Hum — foi tudo o que ele disse. E continuámos a andar em silêncio, mantendo um passo vivo, à medida que o dia se iluminava e a floresta acordava para a vida à nossa volta. Caminhámos por entre avenidas de carvalhos, enquanto folhas douradas espiralavam à nossa volta levadas por uma brisa fresca e os esquilos se afadigavam, preparando-se para o tempo escuro. Passámos pelas águas cinzentas do lago e subimos pela corrente do sétimo riacho acima, transformado pelas chuvas outonais numa torrente miniatura. Foi uma subida difícil, por cima de uma confusão de pedras cujas superfícies estavam curiosamente desenhadas, como se uma mão estranha tivesse marcado cada uma com sinais de uma linguagem secreta, cujos códigos existiam apenas na mente de alguém há muito desaparecido. No topo da elevação descansamos e ele apresentou uma refeição frugal de pão seco e fruta seca. Bebemos água do riacho e a água fria fez-me dores de cabeça. Foi uma manhã estranha, mas a companhia era agradável.
— Não me perguntaste onde íamos — disse Conor quando começámos de novo a andar, por um carreiro acima, pelo meio de espessas sorveiras-bravas carregadas de bagas escarlates.
— Não, não perguntei — respondi, suavemente.
Ele sorriu de novo e por um momento consegui ver o rapaz que ele fora em tempos, correndo à desfilada com os cinco irmãos e a pequena irmã pelos vastos espaços da floresta. Mas a serena máscara do astuto druida caiu de novo sobre as suas feições quase imediatamente.
— Eu disse que isto era importante para ti. Esperava poder explicar-to um pouco através da mente. Mas estou a ver que não deixas ninguém entrar. Estás a guardar um grande segredo qualquer. Por isso tenho de utilizar as palavras. Sei de uma nascente e de uma lagoa, tão bem escondidas que poucos sabem da sua existência. Vou-te levar lá. Precisas de compreender os dons que tens e o que podes fazer, ou arriscas-te a ficar cega com um poder que mal conheces. Vou mostrar-te.
— Subestima-me — disse eu, friamente. — Eu não sou uma criança. Sei quais são os perigos de um poder exercido de maneira insensata, sem pensar. — Palavras corajosas, porque eu só vagamente compreendia o que ele queria dizer.
— Talvez — disse ele. Viramos subitamente à esquerda, por entre ramos pendentes de salgueiro e de repente lá estava ela, uma pequena lagoa de águas calmas no meio de pedras cheias de musgo, onde a água fresca nascia do chão. Insignificante, um local que certamente passaria despercebido se não soubéssemos que estava ali.
— Este local não se revela facilmente a um viajante qualquer —disse Conor, fazendo um rápido sinal com a mão à sua frente e parando a dois passos da margem.
— O que é agora? — perguntei-lhe.
— Senta-te nas pedras. Olha para a água. Eu fico por perto. Aqui os segredos ficam bem guardados, Liadan. Estas pedras guardam mil anos de segredos.
Sentei-me e fixei o olhar na superfície lisa da lagoa. Havia uma sensação de abrigo naquele lugar, um sentimento de proteção. Era como se nada tivesse mudado ali, durante muito tempo. Vieram-me palavras silenciosas à mente. Esta rocha é tua mãe. Ela segura-te na palma da mão. O meu tio fora para debaixo dos salgueiros e para fora da vista. Tentei limpar a minha mente de pensamentos e imagens, mas não consegui apagar uma e recusei-me a levantar o escudo. Se alguém conseguisse apanhar o Homem Pintado, não seria por eu o ter traído. Não tinha confiança em ninguém. Nem sequer no astuto druida.
A água movia-se e deslocava-se. Mas ali, naquela pequena clareira fechada, rodeada por árvores e rochas, não havia o menor sopro de vento. A água ondulava. Um momentâneo clarão branco apareceu nas profundezas e depois desapareceu. Forcei-me a permanecer ali, a não desviar o olhar. O ar estava imóvel e pesado, como se estivesse a preparar-se uma tempestade de Verão e, no entanto, o dia era de Outono, frio. A água agitou-se, deslocou-se e ficou de novo imóvel. Alguém estava no outro lado da lagoa e não era o meu tio Conor.
És muito parecida com a tua mãe. Fosse quem fosse, atravessara rapidamente a barreira que eu tinha em frente da minha mente com grande habilidade, maior ainda do que a de Conor. Não tinha esperança de conseguir, um dia, tal força. Igual, mas não a mesma. Fiquei sentada, incapaz de olhar para cima. Não precisas de olhar. Sabes muito bem quem sou. A água ficou opaca e depois reflexa. E lá estava a imagem dele. Podia ser Conor. Quase que podia ser Conor. As roupas eram diferentes, claro. Em lugar do manto branco de neve, aquele homem usava um traje sem formas, de uma cor indefinida, entre o cinzento e o castanho. Os seus pés estavam nus, sobre as pedras. O cabelo de Conor tinha as pequenas tranças dos druidas. Os caracóis escuros daquele homem desciam-lhe até aos ombros. Os olhos de Conor eram cinzentos, serenos e tranquilos. Aquele homem tinha um olhar tão profundo que era insondável e os seus olhos pareciam incolores, como a água onde os via reflectidos. Não consegui olhar para cima. Tu sabes quem sou. Ele mexeu-se ligeiramente e vi de novo aquele clarão branco. Ele usava uma grande capa escura, simples; uma velha capa que lhe caía até ao chão, presa a um dos ombros. Ele mexeu-se de novo e eu reconheci-o. Os meus olhos não me enganaram. Em vez do braço esquerdo, aquele homem tinha a asa de uma grande ave, poderosa e de penas brancas. Ele tapou-a com a capa.
Tio. Se era possível a voz da mente estremecer, era assim que ela soava.
A filha de Sorcha. És tão parecida com ela. Como te chamas?
Liadan. Mas...
Olha para mim, Liadan.
Quase esperei não ver ninguém. Ele mantinha-se tão imóvel que mal o via, como se fizesse parte das próprias pedras, do musgo e dos fetos que cresciam por ali. Um homem que não era novo nem velho, as suas feições à imagem das da minha mãe; mas em lugar dos visionários olhos verdes dela, os dele eram claros e perspicazes, da cor da luz através da água imóvel. O seu reflexo fora verdadeiro. Um homem de estatura mediana, magro, de costas direitas. Um homem que transportava, para sempre, a marca do que acontecera aos seis irmãos e à pequena irmã.
Quem és tu? Um druida?
O meu irmão é que é um druida.
Quem és tu, então? És um dosfilidh?
Eu sou o bater da asa de um cisne no sopro do vento. Eu sou o segredo do coração desta pedra. Eu sou a ilha do mar selvagem. Eu sou o fogo na cabeça do profeta. Não sou do outro mundo nem deste. No entanto, sou um homem. Tenho sangue nas mãos. Amei e perdi. Sinto a tua dor e conheço a tua força.
Olhei para ele, aterrada.
Todos pensam que morreste. Todos. Disseram que te afogaste.
Alguns sabem a verdade. Não posso viver num mundo, ou no outro. Vivo à margem. Tal é o feitiço que me foi lançado.
Hesitei.
A minha mãe... sabes que ela está muito doente?
Ela aproxima-se da hora da sua jornada.
O meu tio parecia extremamente calmo.
Não vais vê-la antes de chegar a hora? Não podes?
Não preciso de lá ir para ela me ver.
Para lá do seu aspecto exterior tranquilo, senti uma profunda tristeza. Muito se perdera por causa da actuação de Lady Oonagh.
Então ela sabe? Sabe onde estás?
Ao princípio não sabia. Agora é diferente. Todos sabem, a minha irmã, os meus irmãos, aqueles que restam. É melhor que outros não saibam. Conor costuma visitar-me, de tempos a tempos.
Deve ser... deve ser muito duro para ti.
Não conseguia imaginar quão duro.
Eu mostro-te. Deixa a tua mente repousar, Liadan. Tranquila e imóvel. Respira fundo. Isso. Espera um pouco. Agora, sente o que eu sinto. Sente os meus pensamentos à medida que eles cobrem os teus. Como eles te envolvem, te abraçam.Sente a minha mente à medida que se une com a tua. Deixa que o que eu sou faça parte de ti, por uns momentos. Vê o que eu vejo.
Fiz como ele me pediu, sem medo, porque percebi, de certa maneira, que não havia perigo naquele lugar. Respirei fundo; senti a mente dele a deslizar para a minha tão subtil e misteriosamente como uma sombra e agarrar-ma, com rapidez. Mas não como a uma prisioneira, porque no interior da capa protetora dos seus pensamentos eu continuava a ser eu, mas ao mesmo tempo era Finbar, na margem do lago, numa manhã fria e nebulosa, olhando para o rosto do mal, sentindo-me mudar, mudar, mudar, de modo que a minha mente passou a compreender apenas o que uma criatura selvagem compreende: O frio, a fome, o perigo. Comer, dormir. Os ovos no ninho, a companheira, com o seu gracioso pescoço arqueado e as suas penas brilhantes. Nascimento, morte. Perda. O frio, a água, o súbito terror da transformação.
Foi assim conosco. É assim comigo.
Ele largou-me gentilmente, deixando-me a tremer e próxima das lágrimas.
— Não compreendo — sussurrei. — Não compreendo porque fui trazida aqui. Por que quiseste revelar-te assim a mim? Eu não sou um druida.
Talvez não. No entanto, tu tens dons. Dons poderosos e perigosos, parecidos com os meus. A Visão. O poder curador da mente, do qual ainda mal te apercebeste. Eu vejo-te em perigo; vejo-te como um elo da cadeia, um elo do qual muita coisa depende. Tens de aprender a sujeitar os teus dons, ou não passarão de um fardo.
Sujeitá-los? As minhas visões vêm sem serem convidadas. Não sei dizer se são verdadeiras ou falsas, passadas ou futuras.
Desta vez ele falou em voz alta e a sua voz crepitou e hesitou, como se não fosse usada há muito.
— Podem ser confusas, secretas e ilusórias. Por vezes, são terrivelmente claras. Aqui, neste lugar de proteção, é fácil manter o controlo. Fora do bosque as sombras aproximam-se. Eu mostro-te. O que é que tu transportas tão profundamente no teu coração? O que é que vês, acima de tudo? Olha para a água. Tranquiliza a tua mente.
Não me pude impedir de olhar em volta, para ver se Conor estava a ver. Depois usei toda a minha força de vontade para me manter absolutamente imóvel. Respirei lenta e profundamente e senti o tempo e o lugar mudarem e ordenarem-se em meu redor. Vi uma luz vacilante, um clarão colorido na água e uma imagem a ficar cada vez mais nítida. A imagem agitou-se e mudou. Ficou tudo escuro, salvo uma pequena lanterna a arder ao abrigo de estranhas e frondosas árvores. Havia dois homens ali, um a dormir, envolto num cobertor, os cabelos entrançados caindo por cima de uns ombros cor de ébano. Talvez tivesse tentado ficar acordado para poder estar ali ao pé do seu amigo durante os dias sombrios, mas a fadiga do combate dominara-o por completo. O outro homem estava sentado de pernas cruzadas, com uma grande faca numa das mãos e uma pedra na outra, afiando a faca com golpes deliberados, um, dois, três. Os seus olhos pareciam seguir o movimento constante da arma, mas não a viam. Por vezes olhava para cima, como se esperasse o aparecimento de uma luz qualquer no céu e depois, resignado, voltava à sua tarefa. A lâmina daquela faca era capaz de atravessar um homem, mesmo com armadura.
A minha mão estendeu-se contra a minha vontade e eu emiti um pequeno som. Nesse instante o homem na água olhou para cima e para mim. A sua expressão atingiu-me no coração. Amargura, ressentimento, desejo; não era capaz de dizer o que lhe estava escrito, de maneira tão rígida, nas feições. Os seus olhos abriram-se com o choque e lentamente, muito lentamente, pousou a faca. Ergueu a mão, estendeu os dedos tatuados na minha direção e eu estendi a minha mão um pouco mais, só um pouco mais...
Não toques na superfície da água.
Mas eu toquei, a ondulação recomeçou e a imagem de Bran desapareceu. Deixei sair a respiração e recuei, com lágrimas nos olhos.
Tens de tomar atenção, Liadan. Tens de aprender, enquanto aqui estás. Tens de aprender rapidamente e praticar as tuas capacidades. Senão, custar-te-á muito, pelo menos por um certo tempo.
Olhei para ele. Como é que ele sabia? Não havia nada secreto?
Os segredos, aqui, ficam bem guardados.
Tu viste, suponho. Viste o que me foi mostrado.
Oh sim. E ele também te viu, não tenhas dúvidas. Mas isso não é novo para ele. A tua imagem está presente nos seus olhos em cada batalha, em cada fuga, em cada golpe subtil da sua faca, em cada longa e escura noite. Tu prendeste-o, com a tua coragem e as tuas histórias. Ele está ligado a ti, agora. Capturaste uma criatura selvagem, quando não tinhas onde a guardar. Ele não te pode escapar, por mais que tente ou deseje.
Estás errado. Ele disse que não me queria. Mandou-me embora. Eu só procuro mantê-lo a salvo, iluminar-lhe o caminho. Não há mais ninguém para o fazer. Não estava a gostar das palavras dele. Faziam-me sentir como uma sedutora, que possui um homem contra a sua vontade.
Dizes a verdade. És responsável. Mas mudaste-lhe o rumo. E agora afastaste-o. E negas-lhe o filho? Finbar estava muito sério, mas não havia julgamento no seu tom. No entanto, senti alguma ira nas suas palavras.
O que é que eu hei de fazer? Nem sequer sei quem ele é. Além disso, ele despreza-me. Nunca virá a Sevenwaters. Ele culpa-nos... ele culpa o meu pai e a minha mãe pela vida que tem. Sugeres que eu devo procurá-lo?
Eu não sugiro nada. Limito-me a mostrar-te o que deve ser visto.
Eu... eu encontrei as Criaturas Encantadas. A Dama da Floresta e um senhor com uns cabelos que pareciam chamas. Eles disseram... disseram-me para desistir deste homem. Queriam que prometesse que ficaria na floresta e que não me casaria. Mas eu não prometi.
Ah!
Não sei o que pensar. Também havia outras vozes, naquele lugar. Vozes antigas, que me disseram... pareciam dizer-me que as minhas escolhas eram certas. Agora não sei o que fazer.
Não chores, filha.
Eu não... eu... Os meus sentimentos ameaçavam submergir-me. Adorara ver Bran, mas vê-lo acordara em mim uma tristeza imensa, porque era impossível.
— Uma vez tive a hipótese de mudar o curso dos acontecimentos, há muito tempo — disse Finbar. — A hipótese de salvar a vida e a liberdade de um homem, com grande risco. Agarrei essa hipótese e estou contente por tê-lo feito, se bem que não possa dizer se a escolha foi certa ou errada. Talvez o que aconteceu mais tarde tenha sido o meu castigo, por acreditar que poderia fazer a diferença. Porque, como vês, estou proibido de fazer parte do mundo real. Fui banido e não pertenço a um, nem a outro.
Por trás do seu olhar de tranquila resignação, do seu tom de calma aceitação, senti uma profunda tristeza.
— Eu sei do que gostava ver-te fazer. Mas não te vou aconselhar a tal. Por agora, vejo que carregas um fardo bem pesado para alguém do teu tamanho. Deixa-me, ao menos, aliviar-to um pouco. Deixa-me mostrar-te, porque precisarás de utilizar essa capacidade, com o tempo. Senta-te quieta. Deixa sair da mente as coisas que te perturbam.
Sutilmente, as imagens começaram a mover-se pelos meus pensamentos: uma lua cheia, erguendo-se por cima do lago, deixando um rasto prateado através da superfície da água. Uma cotovia circulando no céu da manhã, cantando os louvores do dia. O sentimento de estar presa nuns braços fortes, quente e confortável. Eu e Sean correndo ao longo da margem do lago, os corações batendo com toda a força, os cabelos esvoaçando ao vento, rindo e gritando com a emoção de estarmos vivos, sermos jovens e livres. Uma encosta plantada de jovens carvalhos, a luz oblíqua do Sol apanhando-lhes as folhas novas e fazendo-as brilhantemente douradas. O som do riso gorgolejante de um bebê. Mais imagens, todas belas, todas com um significado especial que me recordavam as coisas boas da minha vida, as coisas que faziam com que me sentisse feliz por fazer parte de Sevenwaters e da família que a ela pertencia.
Estava cheia de esperança, cheia de bem-estar. A Visão escureceu momentaneamente e olhei para um par de olhos cinzentos, firmes como uma rocha, uns olhos de confiança. Ouvi uma voz e não era Finbar a dizer Não precisas de fazer isto sozinha, sabes? E então, tão suavemente como tinham vindo, as imagens desvaneceram-se, a minha mente regressou ao seu normal, eu abri os olhos e vi na minha frente as águas calmas da lagoa e a figura do meu tio, olhando tranqüilamente para mim do outro lado da superfície reflectora. Havia tantas perguntas na minha mente que não sabia por onde começar.
— Aprenderás a fazer isto como eu. Requer um esforço de vontade. Tens que te tornar mais forte; suficientemente forte para submeteres os pensamentos dele aos teus.
— Achas que serei chamada para fazer isto? Quando?
— Sei que serás. Mas não te posso dizer quando. Reconhecerás a necessidade. E agora, Liadan, falemos da criança.
Subitamente, o medo atingiu-me.
— A criança é minha — disse eu e o meu tom era feroz. — Serei eu a decidir o seu futuro. Não compete às Criaturas Encantadas, nem às pessoas do mundo, preparar-lhe o caminho.
— Tu o dizes. A criança é tua. E também queres o homem, vi-o nos teus olhos enquanto procuravas a imagem dele. Mas este homem não pode ser domado, Liadan. Não conseguirás levá-lo para Sevenwaters. E a criança deve ficar aqui, para nosso bem. A criança pode ser a chave. Sem dúvida que as Criaturas Encantadas te disseram o mesmo. Já te apercebeste que não podes ter ambos?
— Certamente que não terá de ser assim — disse eu, não gostando nada do rumo que a conversa estava a tomar.
— O teu homem tem a marca do corvo.
— Ele é bretão. Pelo menos, penso que é. Juraria que nem uma gota de sangue irlandês lhe corre nas veias. Ele não pode ser o homem da profecia. Não passa de uma coincidência.
— Respondes depressa demais. — A expressão de Finbar era grave. — Não há dúvida de que isso tem estado nos teus pensamentos. Mas tens razão. O seu rosto está tatuado com a imagem do corvo, suficientemente feroz para afastar toda a gente, menos os mais determinados. No entanto, está de acordo com as palavras da profecia. Nem da Bretanha nem de Erin, mas de ambos ao mesmo tempo. Ele não é o homem; mas o seu filho será.
Fiz um gesto negativo.
— Calma, Liadan. Só te digo isto para te avisar. O filho transporta a marca do pai no sangue e no comportamento. Não há dúvida. O teu filho será o filho do corvo. Ele transportará consigo a linhagem da mãe e do pai. Um bretão e uma mulher de Erin, também ela uma filha das duas raças. Está certo. Chegou a hora. Quando este parentesco for conhecido, todos dirão o mesmo.
Eu estava arrepiada até aos ossos.
— Estás a dizer que é melhor ninguém saber de quem ele é filho?
— Eu não disse isso. É uma coisa terrível um filho não conhecer o seu pai. Um pai não conhecer o seu filho. Pergunta a ti própria porque escolheste as histórias que escolheste enquanto estiveste entre os fíanna. Não procuro influenciar-te, estou para além disso. Tu farás as tuas próprias escolhas e o mesmo fará o homem com a máscara do corvo, que não sabe que é pai. Talvez tu continues a quebrar o padrão. No entanto, seria sensato tomar algumas medidas para proteger a criança. Forças que julgávamos há muito desaparecidas agitam-se. Haverá aqueles que não quererão que esta criança cresça para se tornar num homem. Aqui, na floresta, estará seguro.
— Como é que sabe tudo isso?
— Eu não sei nada. Só digo aquilo que vi.
Franzi as sobrancelhas.
— Toda a gente passa a vida a falar... o tio, a mãe, Conor e até a própria Dama... passam a vida a falar no velho mal. Algo que está de regresso e que precisa de ser combatido. Que mal? Por que é que ninguém me explica?
Ele olhou para mim com uma expressão de pena.
— Ninguém te falou disso?
— Falou de quê?
— Não me pertence a mim, creio, revelar-to. Conor forçou-nos ao silêncio. Talvez, em seu devido tempo, venhas a saber. Entretanto, mantém a tua vela acesa, filha. O teu homem foi para muito longe. E está rodeado de sombras.
— Eu sou forte — disse eu. — Suficientemente forte para me manter ligada a ele e ao meu filho. Hei de ficar com ambos. Não desistirei de nenhum deles. — As minhas palavras surpreenderam-me; não pareciam, de todo, palavras sensatas, mas, no entanto, sabia que eram verdadeiras.
Seguiu-se um breve silêncio e depois o inesperado som de uma gargalhada calma.
— Como pude eu duvidar de ti? — disse Finbar com um sorriso igual ao do seu irmão, incongruente no frágil e sombrio rosto. — Tu és mesmo a filha da tua mãe.
Então, sem um som, Conor apareceu a meu lado, colocando-me uma mão tranquilizadora no ombro.
— Temos de ir — disse ele e se ouvira alguma coisa do que se passara entre mim e o seu irmão, não mo disse. — O teu pai deve estar a roer as unhas. — Na nossa frente, a lagoa estava lisa como vidro.
— Vai para casa agora, Liadan. Eu estarei aqui, se precisares de mim. Pratica a tua arte.
Eu acenei com a cabeça, virei-me e comecei a caminhar por baixo das enormes árvores na direção de casa. Tentei a sorte quando estávamos quase à vista do lago e perguntei a Conor:
— Tio? Sabe o que aconteceu ao jovem druida, Ciarán? Ele regressou ao bosque sagrado?
Houve um longo silêncio e então ele disse calmamente:
— Não, Liadan. Não regressou.
— Para onde foi?
Conor suspirou.
— Para uma longa jornada. Ele escolheu um caminho de grande perigo, em busca do seu passado. Jurou nunca mais voltar à irmandade. Foi uma grande perda. Maior do que ele pensa.
— Tio... isso tem alguma coisa a ver com o mal de que a minha mãe fala, uma sombra regressada do passado?
A boca de Conor apertou-se. Não respondeu.
— Por que não me diz? — perguntei-lhe, exasperada e um pouco receosa. — Por que é que ninguém me diz?
— Porque não se pode dizer — disse Conor severamente e caímos no silêncio.
Já estava escuro quanto atingimos a orla da floresta e atravessamos os campos em direção a casa, onde havia lanternas penduradas do lado de fora da porta e pessoas agitando-se no pátio.
— Estás cansada — observou Conor quando chegámos à entrada de gravilha. — E eu também, um pouco. Mas esta noite não vamos para a cama cedo. Diria que, pelo que vejo, Uí Néill e a tua irmã são esperados hoje. Aguentas?
— Aguento sempre.
— As pessoas já repararam nisso.
Entrámos no salão iluminado. Conor tinha razão. A minha irmã era esperada antes da hora do jantar, durante a nossa ausência tinham chegado convidados e a casa estava cheia de luz, de conversas e do cheiro de boa comida. Lá estava Red Seamus aquecendo a sua generosa barriga em frente da lareira e a sua jovem esposa rindo timidamente enquanto ele lhe segredava ao ouvido. Sean e Aisling de mãos dadas, radiantes de felicidade por estarem de novo juntos. O meu pai, franzindo o sobrolho para Conor. E Eamonn. Eamonn levantando-se à nossa chegada, o rosto branco, os olhos pregados em mim como se tivesse estado à espera daquele preciso momento. Subi as escadas para me mudar. Nunca desejei tanto meter-me debaixo dos cobertores e adormecer imediatamente. A lareira do meu quarto fora acesa, como se Janis soubesse que eu chegaria a qualquer momento e um vestido verde estava em cima da cama. Despi o velho traje e lutei para me meter no novo. A minha barriga estava um pouco mais redonda. Não que se notasse, se não se estivesse a olhar. Mas em breve toda a gente saberia. Apertei o vestido e lavei a cara com água da bacia que ali fora deixada para mim. Inclinei-me para a lareira e cheguei um pau ao coração das chamas até ele pegar fogo. A vela já estava quase no fim. Em breve teria de fazer outra. Acendi o pavio e o aroma das ervas começou a espalhar-se pelo ar noturno.
Ervas de amor, ervas curativas. Aguenta-te, estejas onde estiveres. Aguenta-te.
No salão, não havia maneira de evitar Eamonn. Antes de me envolver numa conversa com Aisling, ou com a jovem esposa de Seamus, já ele estava ao pé de mim, segurando-me num braço para me levar na direção de uma cadeira e transportando uma taça de vinho.
— Só água, por favor.
— Estás muito pálida — disse Eamonn depois de me trazer outra taça. Sentou-se ao meu lado e os seus dedos afagaram os meus quando puseram a taça na minha mão. — Não estás a ter cuidado contigo, Liadan. O que é que se passa? Por que não me queres ver?
Respirei profundamente e não falei.
— Liadan? O que é? — A sua voz era amável, os olhos castanhos preocupados.
— Desculpa, Eamonn. É melhor não falarmos disso. Estou cansada. Fui dar um longo passeio.
Ele franziu o sobrolho.
— Precisas que alguém tome conta de ti como deve ser.
Não tinha resposta para aquilo. No meio de todo aquele riso e agitação, nós éramos uma ilha de silêncio.
— Eu não aceito isto — disse ele, subitamente. — Não me podes fazer isto.
— Fazer o quê? — Doce Brighid, estava tão cansada. O toque da mão dele na minha acordou em mim recordações que mais valia estarem adormecidas.
— Ah... afastares-me. — Eamonn ficou carrancudo, aborrecido consigo próprio. A gaguez da sua meninice há muito que estava controlada. — Deves-me mais do que isso, Liadan. Preciso de falar contigo a sós antes de me ir embora.
Suspendi a respiração. Subitamente, havia lágrimas nos meus olhos. Como podia dizer-lhe? Como havia eu de resolver aquele problema? Falei sem pensar.
— Estou mesmo muito cansada. Tão cansada.
O rosto dele mudou. Olhou em volta rapidamente, certificando-se de que ninguém estava a olhar e então a sua mão moveu-se sutilmente, acariciando-me a face com os dedos apenas uma vez, limpando-me a lágrima que escapara.
— Oh, Liadan.
A intensidade daquela expressão assustou-me. Parecia-me que a linha entre o amor e o ódio, a paixão e a raiva, era muito fina. Fui salva de responder pelo som de cascos de cavalo no exterior e pelo movimento de pessoas junto da porta. Mas quando nos levantámos para os seguir, a mão de Eamonn apoiou-se nas minhas costas, levemente, escudando-me da multidão. Teria de lhe dizer, em breve. Teria de encontrar as palavras, de qualquer maneira.
Barulho de cascos. Archotes fumegando e ardendo na escuridão. Um céu sem estrelas, cheio de nuvens. Entraram no pátio dois a dois, sem sinais de cansaço nas costas direitas e portes altivos, os homens de Uí Néill. Um transportava o estandarte, branco com um símbolo vermelho, uma serpente enrolada, devorando a própria cauda. Depois o próprio Fionn, de ombros largos, boca fechada e a seu lado a minha irmã. Há muito que desejava ver a minha irmã Niamh, que me provocara e atormentara tanto ao longo da minha meninice, que me odiava num momento e no outro me confiava os seus mais secretos segredos. Niamh, dourada e sempre a rir, rodopiando, com um feixe de luz do Sol no seu vestido branco. Não desejas algo que faça com que a tua vida arda e se consuma, de maneira a que toda a gente possa ver? Não desejas isso, Liadan? Tivera imensas saudades dela e mal podia esperar para lhe falar, por mais cansada que estivesse da viagem. Assim, avancei e desci as escadas, colocando-me ao lado de Liam, no lugar onde ele estava para receber os seus convidados e o cavalo da minha irmã parou mesmo à minha frente.
Olhei para ela; e nesse momento soube, por mais coisas que tivesse para lhe dizer, que não lhe contaria o meu segredo. Porque eu estava ali no meu vestido verde, brilhando com a nova vida que me fora concedida; e ela olhou para mim e depois para longe e o seu rosto estava gelado, os grandes olhos vazios de paixões, esperanças e sonhos. Fionn deu a volta ao cavalo para lhe oferecer a mão e ela desmontou com elegância. A sua capa de montar, debruada a pele e as suaves botas de cabrito, eram imaculadas. O seu brilhante cabelo estava velado por um véu de tecido branco como a neve e tinha por cima um capuz de veludo. Ela parecia uma concha exótica liberta do seu habitante por uma súbita tempestade, os restos encantadores de uma criatura há muito desaparecida. Dei um passo em frente e rodeei-a com os braços, abraçando-a com força, como que para negar o que vira e ela afastou-se.
— Liadan — Parecia fazer um grande esforço, até para dizer aquele nome.
— Oh, Niamh. Oh, Niamh, é tão bom ver-te.
Mas não era. Não era nada bom. Olhei para o rosto belo e sem expressão da minha irmã e senti o meu coração gelar, com um mau presságio.
CAPÍTULO OITO
Algo estava terrivelmente errado e eu não conseguia descobrir o que era. Niamh evitava-me, recusava-se a falar, como se negasse a si própria que estava em casa. E no entanto, por mais desprovido de vontade que estivesse o seu rosto, por mais vazios que estivessem os seus olhos, custava-me a acreditar que ela fosse capaz do esforço requerido para uma tal evasão. Mesmo quando os homens se reuniram em redor da grande mesa de carvalho, imersos em estratégias, não conseguia encontrá-la só. Por vezes, nem sequer conseguia encontrá-la.
— Niamh não está bem — observou Aisling com um ligeiro franzir de sobrancelhas. — Pergunto a mim própria se não estará à espera de bebe.
Na terceira noite de visita pedi um favor a Liam.
— Já viu, com certeza, como está Niamh, tio. Ela parece exausta; derrotada. Ela não pode ir para Tara. Certamente que Fionn reconhece isso. Pergunte-lhe se ela pode ficar conosco enquanto os homens continuam.
Liam olhou para mim, severamente.
— Diz-me, sobrinha, por que havia eu de fazer um favor a Niamh?
— É a mim que pergunta? Não vê o que este casamento lhe fez? Não se lembra de como ela era?
— Isso não é justo, Liadan. Uma mulher deve submeter-se ao domínio do seu pai e mais tarde do seu marido. Está certo e é natural. Fionn é um homem de respeito, de posição. Ele é um Uí Néill. Niamh tem de crescer, adaptar-se, se quer contribuir com alguma coisa de valor para esta família. Tem que atirar o passado para trás das costas.
As suas palavras soavam como se estivesse a tentar convencer-se a si próprio, tanto quanto a mim.
— Tio. Por favor, pergunte-lhe.
— Muito bem. Não nego que a ideia é prática. Eamonn já sugeriu que tu e a tua irmã voltem para trás com Aisling, dentro de um dia ou dois. Eu até prefiro esse arranjo. Ficas segura em casa dele, fazes companhia a Aisling enquanto o irmão está fora e a viagem de Niamh para casa não é, assim, tão cansativa. Tens razão; ela não parece bem.
Sean apresentou o seu plano de ação aos aliados na segunda manhã. Estavam reunidos na pequena sala privada, desta vez. Enquanto transportava roupa para o andar de cima, ouvi vozes erguidas, não iradas, mais uma mistura de choque e excitação. Senti o sentido de urgência de Sean e a sua paixão em convencê-los. A refeição do meio-dia ficou fria em cima da mesa enquanto eles continuavam de portas fechadas, debatendo o assunto; e, quando emergiram, Fionn e Sean continuavam numa conversa profunda e Eamonn estava pálido e silencioso, com uma expressão atormentada no rosto. A intensa discussão continuou enquanto comiam e bebiam. Estavam divididos. Fionn estava aberto à ideia. Seamus hesitava. Liam mantinha-se firme; não negociaria com fianna nenhum, não negociaria com mercenários sem rosto, não levaria a cabo uma missão se ele próprio não a pudesse controlar. E toda a gente sabia que ninguém controlava o Homem Pintado. Ele fazia a sua própria lei, se lei era a palavra certa para um fora-da-lei tão evidente e confiar nele era um pouco como meter a cabeça na boca de um dragão. Pura loucura. Além disso, acrescentara Seamus, como começar? O fora-da-lei ia e vinha como lhe apetecia; ninguém sabia onde era o seu quartel-general. Era escorregadio como uma enguia. Como fazer chegar-lhe uma mensagem, dar-lhe a conhecer que estavam interessados? Sean replicou, dizendo que havia várias maneiras, mas não especificou. Eamonn contribuiu com muito pouco. Quando a refeição acabou, não regressou com os outros para continuar o debate e saiu para o exterior, sozinho.
Decidi-me a ir ter com ele. Era melhor do que ele vir ter comigo; dar-lhe-ia a má notícia e pronto. Quanto mais cedo, melhor. Não era o que a minha mãe planeara, mas Eamonn não me dava outra opção.
Encontrei-o nos estábulos. Observava a égua cinzenta que me trouxera para casa, enquanto um dos rapazes a exercitava no pátio. Um, dois, três, quatro, ela pisava com tanta precisão como uma bailarina. O pêlo, a crina prateada e a cauda brilhavam, devido aos cuidados.
Aproximei-me de Eamonn, que observava na sombra.
— Liadan — Havia um certo constrangimento no seu tom.
— Querias falar comigo — disse eu. — Bem, estou aqui.
— Não sei se... esta não é a altura certa. Eu estou... o teu irmão desapontou-me. Fiquei chocado com alguns erros de julgamento dele.
— Eu sei que não é a altura certa, Eamonn. Mas eu tenho uma coisa para te dizer e tem de ser agora, enquanto tenho coragem.
Ele ficou imediatamente atento.
— Tens medo... de me dizer? Tu nunca tiveste medo de mim, Liadan. Tens obrigação de saber que eu nunca magoaria quem me é tão precioso.
As suas palavras não tornaram a minha tarefa mais fácil. Fomos calmamente até um local por trás dos estábulos, onde nos podíamos sentar nuns degraus, ao sol. Tinha sido um bom local para segredos de infância. Ali, ninguém nos podia ver, exceto, talvez, o druida.
— O que é, Liadan? O que é que tens de tão mau para dizer, que até tens medo de o dizer a um amigo? — E prendeu-me ambas as mãos na sua, de maneira que eu não podia fugir. — Diz-me, minha querida.
Que Brighid me ajudasse. Tremia da cabeça aos pés.
— Eamonn. Nós já nos conhecemos há muito tempo. Eu respeito-te e devo dizer-te a verdade o melhor que posso. Tu... tu pediste-me para ser tua mulher e eu disse-te que te responderia antes de Beltane. Mas acho que devo dar a resposta agora.
Seguiu-se uma pausa.
— Estou a ver que te pressionei demasiado — disse ele, cuidadosamente. — Se quiseres, espero o tempo que for preciso. Leva o tempo que quiseres para tomar a tua decisão.
Engoli em seco.
— O problema é esse. Não tenho tempo. E não posso casar contigo, nem agora, nem depois. Estou grávida de outro homem.
Seguiu-se um longo silêncio, durante o qual eu olhei miseravelmente para o chão e ele ficou ali sentado, imóvel, segurando-me ainda nas mãos. Finalmente, falou com uma voz calma e uniforme; a voz de um estranho.
— Creio que percebi mal. O que é que disseste?
— Não percebeste, não. Não me faças dizê-lo outra vez.
Outro silêncio. Ele largou-me as mãos. Não conseguia olhar para ele.
— Quem te fez isso?
— Não te posso dizer, Eamonn. Nem te vou dizer.
Ele mexeu-se e eu senti as suas mãos nos meus ombros, apertando com força.
— Quem te fez isso? Quem é que se apoderou do que me pertence?
— Estás a magoar-me. Disse-te o que devia dizer-te e agora estás livre de mim. Não digo mais nada.
— Não dizes mais nada? Que queres dizer com isso, não dizes mais nada? O que é que eles pensam disso, o teu irmão, o teu pai? Deviam andar à caça do miserável que te fez isso, fazê-lo pagar por este... este ultraje!
— Eamonn...
— Quando te vi, no momento em que Sean e eu te encontrámos, temi que te tivessem feito algum mal. Mas tu não falaste comigo, parecias calma, quase demasiado calma... e eles não voltaram a falar disso, de maneira que pensei... mas eu hei de vingar este ato bárbaro, se eles não o fizerem. Hei de fazê-lo pagar. Esta cri... criança devia ter sido minha.
— Eles não sabiam. — A minha voz tremia. — Sean, Liam, o meu pai. E continuam sem saber. Tu és a segunda pessoa a saber esta notícia, depois da minha mãe.
— Mas porquê? — Ele tinha-se levantado e andava de um lado para o outro, abrindo e fechando as mãos, como se desejasse esmagar alguma coisa. — Por que não lhes disseste? Por que não permites que a tua família tire alguma satisfação da vingança?
Respirei profundamente.
— Porque — disse eu pausadamente, de maneira que ele percebesse bem o que eu queria dizer — porque fui eu que quis. Esta criança foi concebida com amor. Eu sei que isto ainda te vai magoar mais do que se eu tivesse sido violada. Mas é a verdade.
Continuava a não conseguir olhá-lo de frente.
Ele continuava a andar de um lado para o outro. Pelo menos, dissera-lhe a verdade e o seu poderoso sentido de propriedade não lhe daria outra hipótese, senão deixar-me.
Murmuraria uma desculpa e abalaria para Tara, lambendo o orgulho ferido e procurando uma nova mulher.
— Não acredito em ti. — Ele parou diante de mim e, aproximando-se, pegou-me nas mãos e levantou-me. Desta vez fui obrigada a olhar para ele e pude ver, pelo espanto que lhe ia nos olhos, que era sincero. — Eu conheço-te demasiado bem. Tu és incapaz de um ato desses, és a mulher mais sensata e prudente que eu conheço. Recuso-me a acreditar que te tenhas entregado assim, sem estares casada e prometida a outro. Não pode ser verdade.
Se ele tivesse, deliberadamente, dito aquilo de propósito, não teria sido mais difícil para mim.
— É a verdade, Eamonn — disse eu em voz baixa. — Eu amo este homem. Estou grávida do filho dele. Não posso ser mais específica. Além disso, eu não te prometi nada.
— Ele ofereceu-se para casar contigo? Dar ao teu filho um nome?
Abanei a cabeça. Se, ao menos, ele parasse. Se se fosse embora. Cada palavra tornava a dor cada vez mais forte.
— Esse bandido aproveitou-se da tua inocência e agora protege-lo com um sentido errado de lealdade. Eu vou à procura dele e hei de estrangulá-lo com as minhas próprias mãos. Vê-lo morrer dar-me-á uma satisfação intensa.
Por um momento aquela imagem regressou, as mãos a apertarem, a luta pela vida, a faca, o sangue. Então desvaneceu-se de novo e eu voltei para onde estava.
— Liadan... o que é? Anda, senta-te aqui. Deixa-me ajudar-te. Tu não estás bem.
— Por favor, vai-te embora. Por favor. — Pus a cabeça entre as mãos, de maneira que não tinha de ver o seu olhar.
— Tu precisas de ajuda...
— Eu fico bem, daqui a pouco. Preciso de ficar sozinha. Por favor, vai-te embora, Eamonn. — A minha própria crueldade tornava-me cruel.
— Se é isso que queres — A sua voz estava controlada. Virou-se para se ir embora.
— Espera.
Ouvi-o prender a respiração; mas eu não disse o que ele esperava ouvir.
— Tenho de te pedir um favor. Ainda ninguém sabe. Por favor, dá-me tempo para eu dizer ao meu pai, a Sean e ao meu tio. E... e Eamonn. Peço-te perdão por te ter magoado.
Ele não respondeu.
— Eamonn?
— Tu terias dito que sim, não terias? — Ele falou abruptamente, como se as palavras lhe tivessem saído aos trambolhões sem que o pudesse ter evitado. — Em Beltane. Ter-me-ias aceitado, se não fosse isto?
— Oh, Eamonn. De que serve agora responder a essa pergunta? Tudo mudou. Agora vai, por favor. Não serve de nada continuar. Aconteceu; nenhum derramamento de sangue alterará isso.
— Vou precisar de tempo. — Fiquei surpreendida. — Tempo para me acostumar.
— Também os outros — disse eu, secamente. — Ainda não disse a nenhum deles. Peço-te, mais uma vez, que não fales disto até...
— É claro que não falo. Como sempre, mereces-me o maior respeito. — Fez uma pequena e rígida vénia, virou-se nos calcanhares e, finalmente, foi-se embora.
Foi um jantar estranho, cheio de olhares, gestos e palavras por dizer. Niamh usava um vestido modesto de tecido suavemente dourado, de decote subido, longas mangas e estava sentada, muda, ao lado do marido, enquanto ele discutia estratégia com Liam. Comeu pouco. A minha mãe estava ausente, o meu pai abstrato. De vez em quanto apanhava-o a olhar para Niamh e Fionn e havia uma expressão amarga no seu rosto, que fazia eco com os meus pensamentos. Pela primeira vez, desde há algum tempo, não tinha fome. Atravessara apenas a minha primeira ponte. Quanto a Eamonn, fora obrigado a manter as aparências, tal como o meu pai, porque uma ausência poderia ser uma ofensa. Bebeu o seu vinho, a taça foi de novo cheia e ele voltou a beber. Um prato fora-lhe colocado à frente e levado de volta, intato. Havia pensamentos negros nos seus olhos.
O dia seguinte amanheceu bom. Eu levantei-me cedo, vesti um vestido quente de exterior, com o casaco cinzento por cima, uma combinação pouco elegante, mas prática. A água na pequena bacia estava estimulantemente fria. Saí para procurar o meu pai. A maioria dos nossos cordeiros nascera na Primavera, mas algumas ovelhas pariam no Outono e como a estação estava a ser dura, podia ser um problema.
Lubdan estava nas pastagens altas, verificando o rebanho com um velho pastor e dois rapazes, que eram os olhos e os braços do velho. Já havia um cordeiro novo, em pé mas titubeante e eles estavam a discutir se era de levar a cria para o redil, para tentar salvá-la, ou se, por outro lado, era melhor acabar com ela ali mesmo.
— Dê-lhe uma hipótese — disse eu ao aproximar-me por trás deles. — Talvez venha a ser um carneiro premiado dentro de dois anos. Dê-lhe um dia ou dois.
— Na sê. Na sê mesmo. — O velho coçou o queixo, semeado de pêlos brancos. — É tempo perdido, na certa.
— Dê-lhe um dia ou dois — disse eu de novo, enquanto a ovelha virava para mim os olhos leais. Lubdan levantou-se de onde estivera, acocorado ao lado do animal enfezado.
— Rapazes, levai-o para o redil. Sabeis o que fazer.
— Sabemos, pois. Tirar a pele ao cordeiro morto, esfregá-la neste e chegá-lo a outra ovelha. Talvez ela fique com ele. — O rapaz estava morto por demonstrar os seus conhecimentos.
— Bem, nesse caso, toca a andar — disse o meu pai com um sorriso.
— Pai, pode dar-me uns momentos?
— Claro, querida. O que é que se passa?
Os outros três, os novos e o velho, puseram a ovelha em cima de uma tábua e foram pelo monte abaixo, na direção do redil. O velho pastor cheio de rugas seguiu os dois rapazes com o pequeno cordeiro recém-nascido periclitantemente seguro nos braços.
— O que é que te perturba, filha? É a Niamh?
— Estou preocupada com ela, sim. Mas é sobre outra coisa que lhe quero falar, agora. Um assunto muito sério, pai, que não pode esperar mais. Receio que fique... que fique mais do que ofendido.
— Vamos, senta-te aqui, Liadan. Isso parece sério. Tem que ser coisa grande, para me ofender.
Sentámo-nos lado a lado numa pedra. Dali, a floresta espalhava-se, até rodear as severas paredes fortificadas de Sevenwaters. O aspecto da fortaleza era suavizado por uma miríade de carvalhos e faias, sorveiras-bravas e vidoeiros. As folhas voavam e o ar frio estava límpido com exceção das nuvens de fumo que saíam das fogueiras das casas.
— Vai estar uma bela manhã — disse Lubdan.
— A ovelha — disse eu abruptamente, começando pelo meio. —Deu-lhe mais dois dias. Podia tê-la morto. Porquê?
Ele pensou por um momento.
— Normalmente, seguiria o conselho do velho. Ele já era pastor quando eu nasci. Fi-lo porque mo pediste. Talvez a ovelha morra, ou talvez não. Por que perguntas?
— Quando... quando estive fora, matei um homem. Eu... eu cortei-lhe a garganta com uma faca e ele morreu. Nunca o tinha feito antes.
O meu pai não disse uma palavra. Esperou que eu continuasse.
— Era a única coisa a fazer, compreende? Ele estava a morrer, tinha sido deixado para ali, estava numa agonia terrível, não podia fazer outra coisa. O pai disse uma vez que esperava que eu nunca tivesse oportunidade de pôr em prática as coisas que me ensinou, a faca, o arco, o bordão. Bem, usei-as e não me sinto melhor por isso. E no entanto, na altura, foi a única hipótese.
Lubdan acenou com a cabeça.
— Era isso que tinhas para me dizer?
— Apenas uma parte. — A minha garganta ficou, subitamente, apertada. — Houve um outro homem, que eu tentei curar. Como a ovelha. Insisti em mantê-lo vivo e ele sofreu e no fim morreu na mesma. Fiz a escolha errada. Mas na altura não tive a certeza.
O meu pai acenou de novo com a cabeça.
— Fizeste o que devias. Nem sempre as escolhas são acertadas. Mas não podes ter a certeza de que a tua foi má. A tua mãe diria que há forças exteriores que dão uma mão, nestas coisas. Tu és uma curandeira capaz; se alguém podia salvar esse homem, eras tu. Pode ter havido outra razão para a vida desse homem ter sido prolongada.
Eu não disse nada.
— Sabes — disse Lubdan em tom de conversa — se alguma coisa aprendi na convivência com as pessoas de Erin, durante estes anos todos, foi que as histórias não têm apenas dois lados. Têm sempre três. Três desejos; três dragões. Três homens.
Respirei profundamente.
— Pai. O pai disse-me, não há muito tempo, que quando chegasse a altura para eu me casar, poderia escolher. Lembra-se disso?
Ele esperou um momento antes de falar.
— Não estava à espera disto. — O Sol estava cada vez mais alto; a luz da manhã estava a ficar com o mesmo tom vermelho-dourado dos cabelos de Niamh, o tom vermelho do Outono; o tom vermelho das folhas de carvalho. — Mas, sim, é claro que me lembro.
— Eu... — Não conseguia fazer com que as palavras me saíssem da boca. — Pai, eu...
— Encontraste alguém de quem gostas? Talvez o velho e feio pedinte cujo bom caráter discutimos uma vez? — Ele sorria, mas os seus olhos azuis questionavam, intensamente, o meu rosto.
— Devo dizer-lhe já, pai, por mais que lhe doa e isso também me magoa muito, a mim. Eu estou à espera de um filho. Não posso dizer o nome do pai e não casarei com ele, ou com qualquer outro. Ninguém me fez mal, ninguém me violou. Este homem é... é aquele que eu teria escolhido, entre todos. Mas darei à luz e criarei o meu filho sozinha, porque este homem não virá, nunca, para Sevenwaters. Já disse à mãe e a Eamonn. Agora, estou a dizer-lhe a si e tenho medo... porque, acima de tudo, não quero perder o seu respeito. Se perdeu a sua fé em mim, posso começar a duvidar de mim própria. E não me posso dar ao luxo disso. Preciso de todas as minhas forças para o que aí vem.
Ao contrário de Eamonn, o meu pai ficou sentado, imóvel, enquanto absorvia a notícia. Olhou por cima das grandes árvores da floresta sem revelar nada na sua expressão. Não me pediu para repetir. Não andou de um lado para o outro.
Finalmente, perguntou-me:
— O que é que a tua mãe disse?
— Que amaria a criança tanto como eu. Que estaria ao pé de mim para me ajudar a trazê-la ao mundo com as suas próprias mãos, na Primavera.
— Estou a ver — disse ele e havia uma amargura na sua voz e um trejeito no maxilar, que me diziam que ele estava a fazer um grande esforço para conter a ira. — Acho que deves dizer-me. Acho que deves dizer-me o nome desse homem. O amante de Niamh, pelo menos, teve a coragem de me enfrentar e sofrer as consequências. O teu limita-se, parece, a tomar o que lhe agrada e continua em frente, até à próxima oportunidade.
Senti o calor a subir-me ao rosto.
— Está a transformar aquilo que se passou entre nós numa coisa ordinária — disse eu alarmada por estar a discutir com o meu pai, a quem respeitava mais do que qualquer outra pessoa neste mundo. — Não... não foi uma ligação casual, não foi um acasalamento sem importância... foi...
— Já não me recordo. Quanto tempo é que estiveste ausente? —perguntou o meu pai.
— Pare! Isto está tudo errado! Oh, o que é que nos está a acontecer a todos, que nos magoamos uns aos outros e não ouvimos nada?
Houve um pequeno silêncio e ele falou de novo, muito suavemente.
— Muito bem — disse ele. — Eu vi o resultado do erro de Niamh; como ela mudou e como isso me deixa preocupado. Eu ouço-te. Talvez o nome do homem não seja assim tão importante. São as suas ações que eu não consigo compreender muito bem. Disseste que ele nunca viria a Sevenwaters. Por que não? Que homem é esse que não procura uma mulher neste estado, tomando-a como esposa? Que homem é esse que não quer conhecer o próprio filho? A não ser que já seja casado, ou outra coisa qualquer que tu não mereces. Mas o teu julgamento raramente é errado, filha.
— Ele... ele pediu-me que ficasse com ele e eu disse que não. Por causa da mãe; ela precisa de mim aqui. Depois, mais tarde, ele... quando descobriu quem eu era, ficou, de repente, morto por se ver livre de mim. —Subitamente, as lágrimas ficaram prestes a cair.
— Não estou a gostar nada disto. Ele deu alguma razão? — Não tencionara dizer-lhe. Mas aquilo saiu:
— Algo que aconteceu há muito tempo. Quando o pai saiu de Harrowfield. Uma espécie qualquer de erro que terá sido cometido. Ele disse... ele disse que o pai lhe tirou os direitos de nascença. Uma coisa assim. Pai, não pode falar a ninguém disto, compreende?
Ele tinha as sobrancelhas franzidas.
— Isso foi há muito tempo. Quantos anos tem esse teu homem?
— Não é muito velho. Tem mais ou menos a idade de Eamonn. Talvez seja, até, um pouco mais novo.
— E ele é bretão? — Havia uma pergunta no seu tom, mas eu não repliquei, porque não estava preparada para admitir que não sabia a resposta. — Devia ser uma criança quando eu saí de Harrowfield —continuou o meu pai. — Deve ser engano, certamente.
— O pai nunca me falou desses tempos. Houve alguma coisa... aconteceu alguma coisa que possa explicar o que ele disse? Foi feito algum mal a uma criança? Ele carrega sobre os ombros um passado pesado e mau.
Lubdan abanou a cabeça.
— Havia crianças lá, claro, na casa, na aldeia, nas herdades. Mas eu deixei a propriedade em boas mãos. Certifiquei-me de que tudo ficava em ordem, seguro, antes de vir para aqui. O meu povo ficou bem protegido, o futuro assegurado o melhor possível, naqueles tempos perturbados. Talvez, se eu pudesse falar com ele...
— Não — disse eu. — Isso não é possível.
— Tens vergonha dele? Ou de mim?
— Oh não, pai. Não pense isso. Ele não pode vir aqui. Ele leva uma vida de... de perigo e fuga. Não há lugar, na vida dele, para mim ou para esta criança. É melhor eu continuar sozinha.
— E não te casas com Eamonn?
— Se não posso ter este homem, não terei mais nenhum.
— Já disseste a Niamh?
— Como posso dizer-lhe? O pai já viu como ela anda. Mal me falou desde que chegou.
Levantamo-nos e começámos a caminhar lentamente pelo monte abaixo, na direção do redil. Ficamos silenciosos por um bocado e depois ele disse:
— Desde o regresso de Niamh que não consigo falar com ela, Liadan. Ela não quer ver a mãe, que deseja, há tanto tempo, mitigar as feridas infligidas quando foi negado a Niamh o seu amante. É como se fosse outra mulher a regressar em vez da nossa filha; como se algo tivesse transformado aquela rapariga brilhante numa mera sombra. Perdi uma filha e a tua mãe, desde então, percorre um caminho bem escuro. Não te quero perder, também.
Meti o braço no dele.
— Eu sempre quis ficar aqui. Sabe isso muito bem.
— Sei. A minha pequenina, tão habilidosa nas artes domésticas, sempre feliz, com o seu povo à sua volta. Tu és o coração da casa, Liadan. Mas, tens a certeza de que é tudo o que queres?
— Não — repliquei. O meu pai e eu não mentíamos um ao outro.
— E se este homem te aparecesse à porta, amanhã, e te pedisse para ires com ele? O que é que respondias?
Se ele aparecesse amanhã à minha porta, enquanto Eamonn aqui está, teria sorte se conseguisse ir-se embora com o pescoço intato.
— Não sei. Não sei o que faria.
Chegáramos à orla da floresta e vimos as paredes caiadas do redil.
— Tenho uma proposta para te fazer, que seguiremos se a tua mãe concordar. — O meu pai podia ter estado a esboçar um plano para construir uma parede, ou um pomar, mas os seus olhos estavam tudo, menos tranquilos. — Quando Aisling for para casa, tu vais com ela para Sídhe Dubb e ficas lá enquanto Eamonn está em Tara. Leva Niamh contigo e vê se descobres o que se passa com ela. Pressinto uma coisa qualquer grave, maior do que imaginamos, algo profundo e doloroso. Fiz os possíveis para chegar até ela, mas ela vê-me como inimigo e não fala comigo. Já é suficientemente duro a tua mãe suportar a sua própria fraqueza e dor, sem a dor diária de ver a filha assim e ser afastada, sem poder ajudar. A tua mãe disse que, se Niamh falar com alguém, será contigo. Peço-te que faças isso por mim. Até Fionn regressar. Nessa altura, regressarás a casa. Não quererás ficar em casa de Eamonn depois de ele voltar. Disseste que já lhe tinhas dado a notícia. Deve ter sido duro para ele. Eamonn é um homem orgulhoso; não sofre uma perda destas com facilidade.
— Foi horrível.
O meu pai rodeou-me os ombros com um braço.
— Muito bem, então. Que dizes?
— Se é isso que deseja, vou. — Senti-me desanimada ante a perspectiva. Não tinha a certeza de querer saber o que estava por trás dos belos e vazios olhos de Niamh. E sei que não queria visitar a casa de Eamonn na sua ausência.
— Faz isto por mim e pela tua mãe. Quando regressares, arranjarei proteção para ti e para o meu neto. Farei com que Liam tenha conhecimento disto antes de partir para Tara. E depois digo a Sean e a Conor.
— A mãe disse que dizia...
— Eu digo. E fá-lo-ei de maneira a que não haja perguntas nem exigências. Tu és minha filha. Tu e o teu filho estarão sempre em segurança, aqui em Sevenwaters, enquanto quiseres.
— Oh, pai. — Atirei-lhe os braços ao pescoço e abracei-o.
— Não permitirei que entres em desespero, como Niamh. Eu também quebrei as regras para ter o que queria, Liadan. Nunca esqueci o que deixei para trás, quando vim para aqui. Mas nunca acreditei, por um único momento, que o que escolhi fosse errado. Tu és a filha da tua mãe. Não acredito que as tuas escolhas sejam erradas. Certamente que algum bem há de sair disto, no fim. Pronto, querida, chora à vontade, faz-te bem. Daqui a bocado, trata de procurar Aisling e planeai a vossa visita. Talvez devas viajar de carroça; talvez não seja sensato ires a cavalo.
— De carroça? — Parei de chorar de imediato. — Eu não sou uma inválida. Irei bem segura na égua pequena. Ela leva-me com cuidado.
O meu pai foi fiel à sua palavra. Como o conseguiu, não sei, mas na véspera da partida dos homens para Tara a notícia já era conhecida de Liam, de Sean e também de Conor, mas este talvez já a soubesse. Eu estava consciente, constantemente, de como a minha situação era diferente da de Niamh. Porque a minha irmã tivera uma desaprovação fria, uma censura áspera, o ostracismo e um casamento apressado, forçado. A minha situação fora apenas de simples aceitação, como se o meu filho sem pai já fizesse parte da família de Sevenwaters. A minha transgressão quebrara mais regras do que a de Niamh. Continuava a não compreender por que razão a família não considerara Ciarán um par ideal para ela; por que motivo essa razão continuava secreta. Não resultara um filho dessa união. No entanto, Niamh não recebera o amor e o carinho com que me estavam a rodear. Havia uma terrível injustiça naquilo tudo. Eu estava consciente da minha irmã, andando pela casa, hirta, fechada por trás da sua barreira invisível, de olhos sem expressão, abraçando-se a si própria com os braços, ou com as mãos fechadas uma na outra, como se não quisesse baixar a guarda por um só instante, como se acreditasse que éramos todos seus inimigos.
Apesar da injustiça, eu estava imensamente grata ao meu pai por me ter suavizado o caminho de maneira tão miraculosa. As notícias viajam depressa. Desci ao andar de baixo para o jantar e lá estava Janis, certificando-se de que havia tigelas, pratos e facas para toda a gente da casa e para os convidados. Janis era uma mulher sem idade. Fora ama-de-leite da minha mãe; devia ser muito velha, mas os seus olhos escuros ainda brilhavam com um interesse vivo para tudo o que era novo e o seu cabelo, atado atrás num severo carrapito, era tão negro e brilhante como a asa de um corvo. A sua família era nómada, mas Janis instalara-se em Sevenwaters há muito; era a nós que ela pertencia.
— Bem, miúda — disse ela com uma careta. — Já não precisas de guardar o segredo por mais tempo, segundo ouvi.
— O meu pai disse-te?
— Ele deu a notícia à sua maneira. Não que eu já não soubesse. Uma mulher sabe. Sinto-me feliz por estares bem. Vai correr tudo bem, apesar de seres pequenina. — Consegui sorrir.
— Eu ajudo-te, quando chegar a hora — continuou Janis em voz baixa. — A criança pode não ter força. Ela dir-me-á o que fazer. Eu serei as mãos dela. Pronto, nada de lágrimas, miúda. Esta notícia trouxe um sorriso ao rosto da tua mãe. Isso faz o Homem Grande feliz. Não precisas de ter vergonha.
— Não é isso — disse eu pestanejando com força. — Não sinto vergonha. É a minha mãe e Niamh e... e tudo. Está tudo a mudar. Demasiado depressa. Não sei se consigo aguentar.
— Pronto, miúda. — Ela pôs-me os braços à volta dos ombros e abraçou-me com firmeza. — A mudança vem contigo. És uma daquelas pessoas que a convidam. Mas tu és uma rapariga forte. Saberás sempre o que fazer, para ti e para o teu bebê. E para o teu homem.
— Espero que sim — disse eu com sobriedade.
Ao olhar em volta pelo salão, naquela noite, ocorreu-me que talvez aquela fosse a última vez em que estávamos todos juntos. Liam sentou-se na sua cadeira gravada, a sua imagem severa um pouco suavizada pelos jovens cães-lobo que brincavam em volta das suas botas. O meu irmão sentava-se a seu lado, extremamente semelhante, como sempre. Sean tinha o mesmo rosto longo e o mesmo queixo duro; as feições de um chefe em formação. O rosto de Conor também era igual, mas sutilmente diferente, porque estava cheio de uma luz interior, uma serenidade antiga. Niamh estava silenciosamente sentada ao lado do seu marido. Tinha as costas direitas, a cabeça levantada e não olhava para ninguém. Tinha um véu na cabeça e o seu vestido era extremamente simples. Quão depressa, parecia-me, a sua luz se apagara, tão depressa, depois de ter brilhado tanto, quando dançava e deslumbrava na festa de Imbolc. Fionn ignorava-a. Do outro lado da minha irmã sentava-se Aisling, fazendo as despesas da conversa sem qualquer dificuldade. E Eamonn. Sentado nas sombras, de caneca de cerveja na mão. Tentei não olhar para ele.
Pude ver que a minha mãe estava cansada e triste, por ver a sua filha mais velha tão mudada. Via-a olhar na direção de Niamh, depois desviar o olhar e vi a pequena ruga que nunca abandonava a sua testa. Mas sorriu e brincou com Seamus Redbeard e fez os possíveis para que as coisas parecessem o que deviam. O meu pai olhava para ela, sem dizer nada. Quando terminámos a refeição, a minha mãe virou-se para Conor.
— Esta noite precisamos de uma boa história, Conor — disse ela, sorrindo. — Algo inspirador, que dê força a Liam e aos seus aliados a caminho de Tara. Não será a única partida, porque Sean vai escoltar as raparigas para oeste durante um dia ou dois e vamos ficar aqui muito sós, por uns tempos. Escolhe bem a tua história.
— Assim farei.
Conor levantou-se. Não era um homem muito alto, mas havia algo na sua presença que o tornava imponente, quase real, no seu manto branco. O colar dourado em volta do seu pescoço brilhava à luz dos archotes e logo por cima, as suas feições estavam pálidas e tranquilas. Manteve-se calado por uns instantes, como se estivesse à procura da melhor história para aquela noite particular.
— Nesta hora de despedida, de novos empreendimentos, devo contar uma história de coisas que aconteceram, acontecem e acontecerão — começou Conor. — Que cada um ouça e tire desta história o que o vosso coração e espírito quiser, porque cada um poderá interpretar esta teia de palavras com a sua própria visão e a sua própria memória. Seja qual for a vossa fé, seja qual for a vossa crença, deixai que a minha história vos fale; esquecei este mundo por um bocado e permiti que a vossa mente recue alguns anos, até ao tempo em que esta terra não era pisada pela nossa espécie; quando os Tuátha Dê Danann, as Criaturas Encantadas, puseram os pés nas costas de Erin e descobriram uma inesperada oposição daqueles que já cá estavam antes deles.
— Boa história, boa história — rugiu Seamus Redbeard, pousando ruidosamente a sua caneca na mesa.
— Os Túatha Dê eram um povo de grande influência, deuses e deusas, todos eles — disse Conor. — Entre eles havia poderosos curandeiros; guerreiros com uma capacidade extraordinária de regeneração; praticantes de magia que eram capazes de secar um lago, transformar um homem num salmão, ou tirar uma alma do caminho escolhido com um simples estalar dos dedos. Eram fortes e voluntariosos. E, no entanto, não conquistaram Erin sem luta. Porque não eram os primeiros nestas costas. Havia outros que tinham chegado antes deles. Os Fomhóire eram um povo modesto, pessoas com os pés bem assentes no chão. Algumas histórias dizem que eles eram feios e deformados; algumas até dizem que eles eram demoníacos. Assim falam aqueles cuja compreensão se limita às coisas superficiais. Os Fomhóire não eram deuses. Mas tinham as suas próprias capacidades e o seu próprio poder. A sua magia era antiga, uma magia que vinha das entranhas da terra, de cavernas sem fundo, de poços secretos e das misteriosas profundezas dos lagos e dos rios. Era a magia das mesmas pedras que nós utilizamos para os nossos rituais, as marcas solenes do percurso do Sol, da Lua e das estrelas. Era a magia das grandes pedras tumulares e das sepulturas de passagem. Eles eram mais velhos do que o tempo. Não se limitavam a viver na terra de Erin. Eles eram a terra.
“Então chegaram as Criaturas Encantadas e outros depois deles e muitas foram as terríveis batalhas, subtis atos traiçoeiros e simulacros de amizade, até que, por fim se chegou a uma espécie de paz, umas tréguas delicadas, uma divisão da terra, que era tão desigual que os Fomhóire se teriam limitado a rir dela se não estivessem enfraquecidos, não se arriscando a sofrer ainda mais perdas. Assim, concordaram com a paz e retiraram-se para os poucos lugares que mesquinhamente lhes tinham destinado. Os Túatha retomaram posse da terra, ou pensaram que tomaram e governaram aqui até que a chegada da nossa espécie os atirou, por sua vez, para lugares secretos, para os lugares do Outro Mundo, por baixo da terra, para as florestas profundas, para as solitárias cavernas por baixo dos montes, ou de volta para as profundezas do oceano, através do qual tinham viajado até Erin. E assim, ambas as raças de seres mágicos pareceram perdidas para este mundo. O tempo traz a mudança. Um povo segue-se ao outro, domina e depois vem outro, que o conquista para lhe tomar o lugar. Até o nosso povo, no tempo das vidas dos pais dos nossos pais viu isso. A nossa própria fé esteve por um fio, por uns tempos. Até aqui, na grande floresta de Sevenwaters, o seu conhecimento foi quase esquecido. Porque quando esse conhecimento existe apenas como memória na mente de um homem muito velho, fica tão frágil e ténue como a asa delicada de uma borboleta, como a teia de uma aranha. Quase o deixamos fugir por entre os dedos.
Foi por pouco.
Conor inclinou a cabeça. Ouviu-se um sussurro na sala.
— Trouxeste-o de novo à vida, Conor — disse a minha mãe, suavemente. — Tu e a tua espécie são um exemplo brilhante para nós. Nestes tempos conturbados, preservaste as velhas tradições e transformaste a fagulha numa chama.
Olhei para Fionn; ele era cristão, no fim de contas. Talvez aquela história não tivesse sido uma boa escolha. Mas Fionn não parecia estar perturbado. Na verdade, perguntava a mim própria se ele teria estado a ouvir. Tinha os dedos levemente em volta do pulso de Niamh e o polegar acariciava-lhe a pele. Olhava para ela de lado, com uma expressão divertida e com um pequeno sorriso nos lábios. Niamh estava sentada de maneira muito rígida, de costas direitas, os olhos azuis grandes e cegos, como os de uma criatura apanhada numa armadilha, olhando para a luz de uma tocha.
— Por vezes, esquecemos — continuou Conor que estas duas raças, as Criaturas Encantadas e os Fomhóire, viveram aqui muito tempo, o tempo suficiente para deixarem a sua marca em cada canto de Erin. Cada rio, cada poço, cada gruta escondida tem a sua história. Cada monte oco, cada rocha desolada, no mar, tem o seu mágico morador, a sua história e o seu segredo. E há as criaturas mais pequenas, menos poderosas, que têm o seu próprio lugar na teia da vida. As sílfides das copas das árvores, os estranhos habitantes, parecidos com peixes, que vivem nas águas, os selkies do vasto oceano, as pequenas criaturas dos cogumelos e dos troncos das árvores. Todos eles são parte da terra, como os grandes carvalhos e a erva dos campos, os salmões brilhantes e os veados. São uma e a mesma coisa, interligados e entrelaçados e se uma parte falha, se uma é negligenciada, tudo se torna vulnerável. É como o arco de uma porta, no qual cada pedra suporta a outra. Tirai uma e toda a estrutura entra em colapso.
“Já vos disse como a nossa fé enfraqueceu e teve de se esconder. Mas esta não é uma história sobre o Cristianismo e como ele cresceu, em força e influência, por toda a terra. É uma história de custódia e de fé. É uma história que não podereis esquecer, se ides em frente, como aliados de Sevenwaters.
Seguiu-se uma pausa.
— Que grande segredo — murmurou Liam, estendendo um braço para coçar um dos cães atrás da orelha. — Parece que a tua história ainda não começou, irmão.
— Conheces-me bem — respondeu Conor com um meio sorriso.
— Conheço os druidas — disse o irmão, friamente.
Conor estava exatamente onde estivera Ciarán, para contar a história de Aengus Óg e da bela Caer Ibormeith, que ele criara à imagem da minha irmã, com os seus longos cabelos acobreados e a pele leitosa. Olhei para a minha irmã, tentando imaginar se ela estaria a pensar no mesmo e vi os dedos do marido, brincando com a palma da mão dela, acariciando, provocando, beliscando, de maneira que ela estremeceu de súbita dor.
— Senta-te um pouco ao pé de mim, Niamh. — A minha voz ouviu-se com nitidez no meio do silêncio, enquanto Conor ponderava na parte seguinte da sua história — Mal te temos visto. Tenho a certeza que Fionn te pode dispensar por um bocado.
Os lábios de Fionn arquearam-se numa expressão de surpresa.
— Tu tens coragem, irmãzinha — disse ele arqueando as sobrancelhas. — Eu parto amanhã para Tara; vou ficar sem a minha encantadora mulher durante a maior parte da Lua, talvez mais, desde que foi convencida a abandonar-me. E ainda ma queres tirar esta noite? Ela é um... um conforto tão grande para mim.
— Vem, Niamh — disse eu, reprimindo um arrepio quando olhei para os olhos dele e estendendo uma mão na direção da minha irmã. Toda a gente estava a olhar, mas ninguém disse nada.
— Eu... eu gostava... — disse Niamh em voz fraca, mas o seu marido continuava manter-lhe o pulso prisioneiro. Levantei-me, dei a volta à mesa e meti-lhe a mão no outro braço.
— Por favor — disse eu docemente, sorrindo para o marido da minha irmã de uma maneira que eu esperava apaziguadora, se bem que suspeitasse que a mensagem dos meus olhos fosse bastante diferente.
— Oh, está bem, ainda temos a noite — disse ele e os seus dedos libertaram-lhe o pulso.
Estás a falar com Uí Néíll, Liadan. Sean olhava para mim de sobrolho franzido. Não te metas.
Ela é minha irmã. E tua. Como podia ele esquecer? Mas parece que todos a esqueceram quando a mandaram embora.
Niamh sentou-se ao pé de mim, enquanto Conor continuava a sua história. Senti-a respirar profundamente. Mantive a mão dela na minha, mas indolentemente, porque me pareceu que tinha de me mover lentamente, com tanto cuidado como se estivesse a caminhar sobre cascas de ovos, se queria recuperar, de novo, a sua confiança.
— Esta é a história do primeiro homem que pôs os pés em Sevenwaters — disse Conor seriamente. — O seu nome era Fergus e é dele que toda a nossa família descende. Fergus chegou vindo do sul, de Laigin e era o terceiro filho, com poucas hipóteses de reclamar as terras do seu pai. Era um fianna, um daqueles jovens selvagens que vendem as suas espadas a quem dá mais. Bem, numa bela manhã de Verão, Fergus ficou separado dos seus amigos, mesmo na orla de um grande bosque e, por mais que tentasse, não conseguiu encontrar-lhes a pista. E após um certo tempo, encantado com a beleza das grandes árvores, com os carreiros pintalgados de luz e com os raios oblíquos do Sol, embrenhou-se na floresta, pensando, vou até onde este carreiro me levar, para ver se a aventura vem ao meu encontro.
“Cavalgou, cavalgou, cada vez mais profundamente pelo coração da floresta e quanto mais longe Fergus ia, mais aquele lugar lhe entrava no coração, mais ele se maravilhava com a sua beleza e singularidade. Não sentia medo, se bem que já não soubesse onde estava. Em vez disso, sentia-se compelido a ir cada vez mais longe, pelos montes acima coroados de grandes carvalhos, freixos e pinheiros, descendo até aos vales escondidos cheios de sorveiras-bravas e aveleiras, ao longo de riachos franjados de salgueiros e sabugueiros, até que, por fim, atingiu a margem de um lago magnífico, dourado à luz do fim de tarde. Não sabia se aquela jornada tinha durado um dia, se dois, se três. Não se sentia cansado; em vez disso, sentia-se retemperado, renascido, porque algo tinha acordado no seu espírito, algo que ele não sabia estar ali, até então.
“Fergus parou na margem do lago e desmontou do cavalo. Dobrou-se, meteu as mãos em concha na água e bebeu. A água era boa. Avivou-lhe a mente e animou-lhe o coração.
“O que é que mais desejas neste mundo, Fergus?”
“Fergus olhou em volta, chocado. Ali, na sua frente, estava um homem e uma mulher, tão próximos, que ele não percebia como não os vira antes. Ambos eram muito altos; mais altos do que qualquer mortal. O homem tinha os cabelos da cor do fogo, que se enrolavam em volta da testa, como se fossem, na verdade, fogo vivo. A mulher era muito branca, com tranças longas e escuras e olhos azuis, profundos, que ligavam bem com a sua longa capa. Fergus achou que deviam ser criaturas dos Tuátha Dê Danann e que devia responder à sua pergunta. No entanto, foi estranho; a sua resposta foi muito diferente da que teria sido uns dias antes. “Quero ficar aqui e fazer disto a minha casa” disse ele. “Quero fazer parte deste lugar. Quero que os meus filhos cresçam sob estas árvores e provem a água fresca deste lago. Terão uma boa visão e serão ricos de espírito”. Fora preciso pouco tempo para aquele lugar lhe ficar marcado na alma.
“Sabes quem somos?” perguntou a dama. “Tenho... tenho uma ideia, sim”, disse Fergus subitamente desconcertado, porque nunca encontrara antes Criaturas Encantadas. “Não quero parecer presunçoso, minha senhora. Suponho que esta é a vossa terra. Nem me atrevo a reclamá-la. Mas vós perguntastes”.
O homem do cabelo em chamas riu-se.
“É tua, filho. Foi para isso que te trouxemos aqui”.
“Minha?” Fergus estava de boca aberta. “A floresta, o lago... meus?” Era um sonho, certamente.
“Tua para que a guardes, se aceitares a tarefa. Como custódia. Faz a tua casa aqui, perto do lago de Sevenwaters. A floresta é antiga. É um dos últimos lugares seguros habitados pelo nosso povo e por... outros. A floresta guardar-te-á a ti e aos teus e tu terás grande poder e prosperidade, se te mantiveres verdadeiro. Mas deves representar a tua parte, também. As velhas tradições estão a morrer e os lugares secretos já não são seguros; são deixados abertos, pilhados. Tu e os teus herdeiros serão o povo de Sevenwaters e a tua influência no mundo mortal será usada para manter a floresta e os seus habitantes seguros. Todos os seus habitantes. Ainda restam alguns lugares de refúgio na terra de Erin, mas cada vez são menos, a cada volta da roda. Não costumamos buscar ajuda entre os da tua espécie. Mas o mundo muda e nós precisamos de ti e dos teus, Fergus. Queres ser esse guardião? Terás a força necessária para isso?”
Que resposta podia ele dar, senão uma afirmativa? Assim, Fergus construiu a sua fortaleza com grandes pedras e com o tempo reuniu à sua volta alguns dos seus velhos amigos do fianna selvagem, alguns camponeses daquelas partes, abateu algumas árvores, as suficientes para ter espaço para a sua terra de cultivo e para algumas pequenas aldeias. E casou-se. Não com a filha de um fazendeiro, nem com a irmã de um dos seus amigos, como seria de esperar. Não, a sua mulher era de uma outra espécie. Ele encontrou-a um dia, quando patrulhava os montes por cima do lago, procurando um bom lugar para uma torre de vigia. Desembocou numa pequena elevação entre sorveiras-bravas e lá estava ela, sentada sobre as rochas num vestido esfarrapado da cor das folhas do salgueiro, penteando os cabelos e olhando por cima das árvores na direção do lago. Ele olhou-lhe uma vez para os estranhos olhos claros e ficou perdido. Ela nunca lhe disse de onde vinha ou quem era. Era uma coisa pequenina, uma amostra de rapariga; não era um dos Tuátha Dê. Fergus lembrava-se, por vezes, de como a dama misteriosa falara dos outros, mas nunca lhe perguntou.
“O seu nome era Eithne, foi uma boa mulher para ele e deu-lhe três corajosos filhos e três corajosas filhas. Ao primeiro filho ensinou as artes da guerra e ao segundo as artes da boa agricultura, de maneira que juntos pudessem preservar a floresta, o lago de Sevenwaters e mantê-los seguros. O terceiro filho foi reclamado, no dia do seu sétimo aniversário, por um ancião com tranças nos cabelos, que saiu a coxear da floresta, apoiando-se num bordão de carvalho. Esse filho transformou-se num druida e foi assim que as velhas tradições foram reacesas entre o povo de Sevenwaters.
— E as filhas? — Não resisti a interromper, se bem que não fosse um sinal de boas maneiras impedir o desenrolar da história de um druida.
— Ah, as filhas — disse Conor, sorrindo. — Todas as três tinham a pequena estatura da mãe, os seus cabelos escuros, os seus estranhos olhos e muitos foram os pretendentes quando elas se transformaram em mulheres. Fergus era um bom estrategista. A primeira casou-a com o detentor do túath a oeste da floresta. A segunda casou-a com o filho de um outro vizinho, que habitava o coração dos pântanos contíguos à passagem a norte. A terceira filha ficou em casa e tornou-se habilidosa na ciência das ervas e da cura e o povo chamava-lhe o coração de Sevenwaters.
— E as Ilhas? — perguntou Sean, ansioso pelo desenrolar da história.
— Ah, sim. — Conor ficou solene. — As Ilhas. Essa é a parte seguinte da história. Mas talvez a minha audiência fique cansada. A história é longa e talvez seja mais bem contada em duas noites. — Olhou em volta de sobrancelhas erguidas, em tom de interrogação.
— Conta o resto, Conor — disse a minha mãe, suavemente.
— Como já disse, Fergus nunca perguntou à sua mulher Eithne quem era nem de onde vinha. Nunca soube se ela era uma simples mortal ou outra coisa qualquer. Ela envelheceu como qualquer mortal. Mas dizem que se uma mulher do Outro Mundo casar com um homem da nossa espécie perde a imortalidade. Se isso é verdade, Eithne deve ter amado muito o seu marido e talvez seja essa a origem do modo como as pessoas de Sevenwaters têm amado, até hoje. Eithne deu ao marido boas razões para ele acreditar que ela devia ser, na verdade, um dos Antigos. Dizem que os Fomhóire eram um povo do mar, que emergiram das profundezas do mar, há muito tempo, para habitar a terra de Erin. O segredo de Eithne era um segredo do mar. Ela falou a Fergus em três ilhas, três rochas sobre a grande água que separa a nossa terra de Alba e da Bretanha. Ilhas secretas, muito pequenas, muito difíceis de encontrar, salvo por aqueles que sabiam. Sabiam o quê?, perguntou Fergus. Sabiam como encontrá-las, disse Eithne. As Ilhas eram o coração. O coração de tudo, o centro da roda. Fergus devia ir lá e então compreenderia. Quando tudo o resto falhasse, quando tudo estivesse perdido, as Ilhas seriam o Último Lugar. Mais do que o lago, mais do que a floresta, as Ilhas deviam ser mantidas seguras.
“O que Eithne disse fez com que Fergus ficasse pensativo e ele não lhe pediu que lhe explicasse. Mas fez com que os seus homens lhe construíssem um barco robusto com uma pequena vela, seguiu as instruções de Eithne e partiu da costa leste na direção da Ilha de Man. Aquilo foi antes do pior dos ataques; no entanto, não foi uma travessia segura para um barco manobrado por um bando de homens dos bosques e fazendeiros. Eithne não partiu com o marido. Estava à espera de um bebê e além disso, dissera ela, enjoava no mar. Assim, Fergus e os seus homens viajaram para leste e um pouco para sul e quando se aproximaram da costa da ilha de Man aproximou-se uma névoa tão espessa que não se conseguia ver um dedo à frente do nariz. Arriaram a vela e pegaram nos remos, mas o barco continuou a avançar, empurrado por uma corrente invisível, enquanto a tripulação permanecia aterrorizada, as mentes cheias de monstros marinhos e rochas afiadas como facas. E depois de muito tempo a quilha do barco embateu numa praia cheia de conchas e a névoa levantou-se tão repentinamente como tinha descido. Estavam nas costas de uma pequena ilha rochosa, pouco mais do que um ponto no mar, um lugar desolado, certamente habitado apenas por focas e aves selvagens. Os homens ficaram desanimados. Fergus animou-os, se bem que ele próprio não estivesse também muito feliz com a situação. O lugar era estranhamente silencioso, como se alguém lhes vigiasse os movimentos. Ordenou aos seus homens que puxassem o barco para terra e montassem o acampamento ao abrigo das grandes rochas, enquanto ele as trepava para ver até onde ia a terra.
Ao escalar as rochas reparou, com surpresa, que existia uma grande variedade de vida naquele local desolado: plantas rasteiras, arbustos dobrados pelo vento, caranguejos, mariscos e coisas fugidias. E muitas, muitas aves, voando e girando por cima. Fergus chegou ao ponto mais alto da pequena ilha e olhou em volta. Lá estava a Ilha de Man à distância, mas suficientemente perto para que sentisse algum conforto. Para leste, mas mais perto, estava outra ilha rochosa, maior do que aquela onde tinham aportado. Uma ilha com baías e solo liso coberto de erva rústica, transformando-se em falésias na parte sul; um lugar onde se poderia estabelecer uma base, se se encontrasse água doce. E a norte estava a terceira ilha. Fergus soube instantaneamente que aquela era a ilha que Eithne mencionara. Erguia-se sobre o mar como um grande pilar rochoso, escarpada, a pique, a sua base uma massa de rochas afiadas, sobre as quais o mar espumava e fervia. Incrivelmente, havia uma série de degraus talhados na rocha, que ia dar ao topo. E ali havia uma espécie de saliência e árvores. Árvores! Fergus mal podia acreditar, mas um conjunto do que pareciam ser sorveiras-bravas coroava aquele rígido cume e por cima voavam aves em círculo.
Fergus pensou por um momento, desceu para ir ter com os homens, ajudou-os a fazer uma fogueira e prometeu-lhes que voltariam para casa na manhã seguinte. Os homens ficaram aliviados. Aquela viagem fora muito estranha. Mas então, Fergus disse: “Mas primeiro quero que me leveis além. “Onde?,” perguntaram os homens. “Além,” disse Fergus, apontando. Não se via mais do que o topo da terceira ilha, do sítio onde estavam e os homens concordaram. Foi só na manhã seguinte, quando já estavam no barco a remar, que viram as rochas e as vagas espumosas e sentiram o terror apertar-lhes as entranhas. “Remai”, disse Fergus severamente e eles remaram, se bem que contra vontade. Então, a corrente levou-os, eles recolheram os remos e o barco foi puxado para cada vez mais perto das rochas, até que os homens começaram a gritar e a pedir a Manannán mac Lir que os salvasse. E no momento em que iam ser esmagados o barco foi, subitamente, conduzido por entre as rochas até uma espécie de caverna onde a água entrava em torvelinho e num dos lados da caverna havia uma saliência, uma abertura e uns degraus talhados na rocha, que subiam. Antes de alguém ter conseguido falar já Fergus saía do barco e subia para a saliência, atando o barco a um gancho de ferro enterrado entre duas rochas. “Não me demoro”, disse ele, enquanto subia pelos degraus. Os homens ficaram no barco, muito calados. Estava escuro na caverna e a água movia-se de modo estranho contra a quilha, como se houvesse criaturas sob a superfície. O mar entrava por uma abertura e saía por outra, por onde mal se podia passar, mesmo tirando o mastro. Tentaram não pensar em marés. Ninguém falou em quem chefiaria se Fergus não voltasse.
Esperaram durante muito tempo, pelo menos pareceu-lhes, com as águas agitando-se, as sombras mudando e as suas imaginações pregando-lhes partidas. Finalmente, Fergus regressou com um olhar estranho no rosto, como se o que vira estivesse para além dos sonhos mais incríveis, algo que não podia ser posto em palavras. Entrou para o barco, desatou a corda e os homens meteram os remos na água, enquanto a corrente os levava através da pequena abertura e os atirava para o exterior, para longe da água branca e das rochas, vomitando o barco para o mar aberto. Ergueram o mastro e a vela, recolheram os remos e velejaram rapidamente em direção a casa. E nada perguntaram a Fergus até terem aportado mais uma vez, em segurança nas costas de Erin.
“Não falou no que vira. Talvez a Eithne, mas não ao resto da família. Era segredo, disse-lhes ele. Mas o que Eithne lhe contara era verdade: as Ilhas eram o Último Lugar e a mais alta, à qual dera o nome de Needlem, era a mais preciosa. Ali estavam as grutas da verdade, guardadas por sorveiras-bravas sagradas, que cresciam onde nenhuma árvore podia sobreviver. As Ilhas tinham de ser protegidas do mundo exterior. Se fossem perturbadas, se fossem conquistadas, o equilíbrio seria alterado e então, por mais cuidadosa que fosse a manutenção da floresta, por mais seguras que estivessem as terras de Sevenwaters, as coisas começariam a correr mal. Quando Fergus disse isso à sua família, ela acreditou-o, porque havia uma luz nos seus olhos, um temor na sua expressão, que lhes dizia que ele vira, na verdade, algo maravilhoso, que não podia ser posto em palavras.
“A partir dessa altura foi colocada uma guarda nas Ilhas, um acampamento estabelecido na Greater Island e uma vigia para os mares a sul de Man, de maneira a que nem Nórdicos, nem Bretões, nem pescadores curiosos se atrevessem a aproximar-se. Fergus aprendeu rapidamente. O povo de Sevenwaters não era um povo navegador e perdeu alguns bons homens ao longo dos anos, porque as Ilhas estão muito longe, tão perto das costas da Bretanha como das de Erin. Mas a vontade era forte. Até que chegou a ocasião em que os druidas da floresta se aventuraram através do mar até à Needle e ali levaram a cabo o ritual de Samhain, no topo, sob as sorveiras-bravas sagradas. Oh sim respirou Conor, os seus olhos vendo a cerimônia com uma expressão plena de maravilha.
“Durante gerações, a família de Sevenwaters cumpriu a promessa, cuidou da floresta e dos seus habitantes, olhou pelas Ilhas e em troca a floresta agradeceu-lhe e certificou-se de que os seus inimigos ficavam afastados. Em cada geração houve um druida, e um ou dois que chefiou a casa, manteve o povo alimentado e o gado saudável e se certificou de que o povo se podia defender. Em cada geração houve uma curandeira. No lado de fora da floresta a fé cristã espalhou-se, por vezes aliada à violência, mas mais frequentemente subtil e tranquilamente. O lado de fora da floresta viu chegarem os Nórdicos e outros assaltantes e nada estava seguro, nenhuma aldeia, nenhuma fortaleza do rei, nenhuma casa de oração isolada. O povo deixou de acreditar nos Túatha Dê e nas manifestações do Outro Mundo, porque no seu terror apenas via o bárbaro com o seu machado, derramando o sangue dos seus entes queridos. Mas Sevenwaters estava a salvo, assim como as terras que a circundavam, aliadas por casamentos e longas associações, unidas contra qualquer inimigo. Inevitavelmente, chegou a altura em que a família se tornou complacente. Houve uma geração que não deu nenhum elemento aos sábios. As filhas casaram longe e morreram cedo. Um chefe dispersou-se e os seus camponeses criaram maus hábitos. Depois de as coisas começarem a deslizar, pioraram rapidamente. À medida que iam perdendo a firmeza, os seus inimigos sentiam o cheiro do sangue. Em particular o bretão, Northwoods de Cumbria, que desejava estender o seu controlo para lá do mar e que em tempos negros para Sevenwaters chegou com uma armada de barcos, manobrados por guerreiros de pele curtida e conquistou as Ilhas. A guarda afrouxara, a guarnição autorizada a deixar o local. Foi demasiado fácil para Northwoods. Então, passou a haver barcos bretões ancorados na Greater Island, botas bretãs pisando o solo dos lugares sagrados e vozes bretãs ecoando pelas cavernas da verdade. Deitaram abaixo as velhas sorveiras-bravas para alimentar as suas fogueiras. E foi como predissera Eithne. A partir desse momento as coisas começaram a correr mal em Sevenwaters. Os filhos morreram em luta com os Bretões. As filhas morreram à nascença. As árvores eram abatidas e havia fogos e inundações. Os aliados viraram-lhe as costas. As colheitas falharam e os rebanhos apanharam a peste. E assim continuou. A família lutou para manter o controlo.
“Atacaram, atacaram e voltaram a atacar, mas Northwoods aguentou-se, assim como os seus descendentes depois dele. Foi só mais tarde, muito mais tarde, no tempo do avô do meu pai, cujo nome era Cormack. O meu irmão tinha o mesmo nome, outro que deu a sua vida pela causa e ao contar esta história estou a honrá-lo.
O tom de Conor manteve-se calmo, mas havia uma sombra nas suas feições ao dizer aquilo. Cormack fora seu irmão gêmeo. Podia muito bem imaginar como lhe devia custar a sua perda.
— O Cormack desta história era um homem bom e forte, parecido com o seu antepassado Fergus. Ele lutou e trabalhou, viu-se a recuar cada vez mais e um dia aventurou-se nas profundezas da floresta, em busca da ajuda de um dos druidas mais velhos, um homem tão velho que o seu rosto era uma rede de rugas e os seus olhos transparentes e cegos. Cormack perguntou-lhe: “Como posso salvar o meu povo? Como pode a floresta ser preservada e os seus habitantes com ela? Eu não desisto, sou o guardião destas terras e de tudo o que aqui vive. Eu sou o senhor de Sevenwaters. Tem de haver uma maneira”. O velho druida olhou para o fogo e permaneceu silencioso durante muito tempo. Cormack acabou por perguntar a si próprio se ele também seria surdo. O fumo subiu e enrolou-se e o fogo encheu-se de cores estranhas, verde, dourado e púrpura.
“Há uma maneira”, disse o ancião e a sua voz era profunda e forte. “Não para ti, mas para os filhos dos teus filhos, ou para os filhos dos filhos deles. O equilíbrio deve ser restabelecido, ou tudo estará perdido”.
“Como?”, perguntou Cormack, avidamente.
“Muitos cairão”, continuou o druida. “Muitos morrerão pela causa. Isso nada tem de novo. Os que têm o mal terão cada vez mais força. Sevenwaters ficará a um cabelo de perder tudo, família e floresta, coração e espírito. Mas pode recompor-se”.
“Quando?”
“Não no teu tempo. Virá aquele que não será da Bretanha nem de Erin, antes de ambos. Essa criança terá a marca do corvo e será através da sua intervenção que as Ilhas serão salvas e o equilíbrio restabelecido”.
“Que posso eu fazer?”
“Aguenta. Aguenta até chegar a altura. É tudo o que podes fazer”. Conor ficou silencioso. Era uma maneira estranha de acabar uma história, mas o fim era inequívoco. Não se ouvia um som no salão.
A minha mãe pegou num frasco de vinho de pastinaga e verteu um pouco para uma taça.
— Liadan? Passa isto ao teu tio Conor. Ele trabalhou arduamente para nós, esta noite.
Larguei a mão de Niamh, que estava mole e fria na minha e levei o vinho ao meu tio.
— Obrigado — disse ele com um aceno de cabeça. — Diz-me, Liadan, para ti, que quer dizer esta história? Se quisesses tirar dela uma verdade, qual seria?
Olhei-o nos olhos.
— Que até um fianna, um mercenário sem fidelidade, pode ser um homem bom e de confiança, se lhe derem hipótese — disse eu. — Não devíamos julgar apenas pelas aparências, porque descendemos todos de um homem desses.
Conor riu, abafadamente.
— É verdade. E tu, Sean? Que verdade tiras da minha história?
Sean estava carrancudo.
— Não há dúvida que pretende dizer-me que não devo ignorar a profecia — disse ele.
— Ah! — Conor sentou-se com a taça entre as suas longas mãos. —Uma história não pretende dizer nada. Diz o que o ouvinte quer ouvir.
— A mim — diz-me disse a minha mãe. — Diz-me que chegou a hora. Ou muito brevemente. Sinto-o.
— Tens razão. — Liam tinha um dos cachorros a dormir sobre os joelhos e o outro deitado em cima dos pés. Apesar disso, a sua estatura permitia-lhe continuar a parecer digno. — Conor escolheu bem a sua história para esta noite. Quando estivermos em Tara não podemos perder de vista o nosso objetivo. Espero que não sejamos convencidos a dar o nosso apoio a outros empreendimentos. Não nos podemos esquecer de qual é a nossa verdadeira demanda.
— E na verdade, se Sorcha tem razão, devemos considerar todas as opções para a conseguir rapidamente. — Pensava que Seamus Redbeard estava a dormir, mas ele estivera a ouvir, semideitado confortavelmente na sua cadeira.
— Eu não aceito muito bem — disse Fionn com um meio sorriso —a maneira como vós confundis a fantasia com a realidade. É uma maneira diferente de ver o mundo. Seja como for, há razões práticas para o vosso empreendimento. As Ilhas são há muito um porto seguro para Northwoods. Tirai-lhe isso e a sua influência enfraquecerá muito. Quanto às vossas terras, estão bem guardadas de novo e Liam é altamente respeitado por todo o Ulster e para lá dele. Só um louco desejaria ser outra coisa que não aliado de Sevenwaters.
— No entanto — disse o meu pai, calmamente — como a história diz, gerações de homens bons morreram pela causa e não apenas gente de Erin. Há muitas viúvas e crianças sem pai em ambos os lados do mar. Pode ser que valha a pena pensar nas palavras da profecia com mais atenção, se não queremos perder mais do que aquilo que podemos. Não fala em qualquer batalha.
Fionn ergueu as sobrancelhas.
— Tu és parente de Northwoods, não és? Isso cria uma complicação interessante. É inevitável que vejas a situação de modo diferente.
— O homem que usa esse nome é meu parente, sim — disse o meu pai. — Um primo afastado. Reclamou e conseguiu a propriedade quando o meu tio Richard morreu. Não faço segredo dos meus laços com essa família. E desde que casaste com a minha filha, também tu podes reclamar um laço de parentesco.
Conor pôs-se de pé, bocejando.
— Está a fazer-se tarde — disse ele.
— É verdade — disse Liam, levantando-se e atirando com os cachorros para o chão com pouca cerimónia. — São horas de ir para a cama. Vamos partir cedo, amanhã e nem todos são novos.
— Vem, Niamh. — Fionn estendeu uma mão na direção da minha irmã, mas os seus olhos estavam fixos em mim, desafiadores. Ela foi ter com ele sem uma palavra, ele rodeou-lhe a cintura com um braço e subiram as escadas. Virei-me para pegar na minha vela e lá estava Eamonn diante de mim, acendendo-a no archote mais próximo e colocando-a na minha mão.
— Não te verei por uns tempos — disse ele. A chama da vela desenhava-lhe sombras estranhas no rosto. Estava muito pálido.
— Desejo que tenhas uma boa viagem até Tara — consegui eu dizer, tentando perceber porque se dava ao trabalho de me falar, depois do que lhe dissera. — E... lamento.
— N... não te preocupes comigo. Cuida-te até eu voltar, Liadan. —Os seus dedos roçaram pelos meus quando peguei na vela, e foi-se embora.
CAPÍTULO NOVE
A casa de Eamonn tinha um nome a sério, daqueles que se põem nos mapas.
Significava fortaleza negra. Mas toda a gente lhe chamava Sídhe Dubh, como se fosse um forte de fadas e não a casa de um chefe de guerra do Ulster. A história dizia que uma vez, há muito tempo, o monte misterioso que se erguia, envolto em névoa, dos pântanos circundantes, fora, na verdade, uma residência do Outro Mundo, habitada pelas Criaturas Encantadas, ou, mais provavelmente, pelo povo mais antigo, antes delas. Duendes, talvez, ou clurichauns. Todos tinham desaparecido, escorraçados pela chegada dos antepassados de Eamonn, que tomaram posse daquele incrível domínio. Mas as coisas estranhas continuavam.
Havia pequenas turfeiras na nossa propriedade, assim como na de Redbeard, que forneciam boa turfa para os nossos fogões. Na terra de Eamonn era diferente. Ali, os pântanos eram imensos, assustadores, imersos em misteriosas névoas, salpicados aqui e ali por maciços de árvores estranhamente deformadas, cujas raízes se pareciam com minúsculas ilhas no meio de um oceano de lama negra e perigosa. Em alguns lugares havia trechos de água, mas era uma água que não se via em mais lado nenhum, escura mesmo quando o Sol brilhava, coberta por um brilho oleoso.
Naquela paisagem tão inóspita havia poucos lugares onde as habitações podiam ser construídas com segurança. Algumas aldeias estavam edificadas em pequenas e isoladas elevações de terreno, com um celeiro ou um armazém no meio e as pessoas viviam em habitações lacustres, construídas sobre o lodaçal. Aquelas pequenas ilhas, feitas de pedras e ramos de árvores, com rudes paliçadas de madeira para manter os intrusos afastados, estavam ligadas à terra firme por precários passadiços. Com o tempo quente, nuvens de insetos juntavam-se e o ar ficava cheio de um cheiro doce, podre. No entanto, as pessoas viviam ali, como os seus pais e os pais dos seus pais antes deles. Eamonn era um grande chefe e o seu povo era-lhe leal. Além disso, não conhecia outra vida.
Para norte, Eamonn tinha terras de pastagem, campos de searas e outros projetos de diferentes espécies. No entanto, escolhera viver, tal como os seus antepassados, exatamente no centro dos pântanos. Havia uma única aproximação, através de uma passagem, suficientemente larga para passarem três cavalos lado a lado, ou uma pesada carroça puxada por bois. À sua maneira, Sídhe Dubh era ainda mais segura do que Sevenwaters, porque aquela entrada podia ser guardada com facilidade e nenhum invasor humano seria tão louco que tentasse uma investida pelos pântanos.
Porque aquilo não era um mero campo de turfa. Era uma terra manhosa e traiçoeira.
Um homem podia sair para apanhar turfa, carregar a sua carreta e regressar a casa ao pôr do Sol. Ou dar um simples passo para a direita, ou para a esquerda e ser chupado antes de ter tempo de encomendar a sua alma a Dagda. Como Eamonn dissera, era extremamente segura, se se conhecesse o caminho.
Desde que o Homem Pintado surpreendera os guerreiros de Eamonn, as defesas tinham sido nitidamente reforçadas. Não era a minha primeira visita, mas não me lembrava dos sete postos de sentinela entre as fronteiras das terras de Eamonn e o princípio da passagem. Não me lembrava dos portões aferrolhados, que fechavam a entrada e necessitavam de três chaves para abrirem. Ainda bem que viajávamos com Aisling, que era a dona daquela casa tão severa, e com Sean, senão Niamh e eu teríamos voltado para trás.
Sídhe Dubh era um fortim circular, que poucas mudanças sofrera desde que fora construído. Primeiro aparecia como um monte baixo, rochoso, em forma de escudo, que se elevava da escuridão da paisagem nebulosa. Cavalgando ao longo da passagem, tentando não fazer caso dos estranhos rangidos, chapinhares e gorgolejos que vinham da água cor de tinta do outro lado, um viajante descobriria que o monte era coroado por um poderoso e impenetrável muro de pedra escura, escondendo tudo o que se encontrava no seu interior. Depois, veria que as rochas no monte estavam cuidadosamente colocadas, uma parede de pontas aguçadas, dispostas com grande habilidade e a toda a volta. Um cavalo não seria capaz de trepar aquele monte. Um homem que tentasse subi-lo, seria trespassado por muitas setas, antes de ter conseguido estender um braço para tentar passar para o outro lado do círculo de pedras. A única entrada através daquela barreira cheia de dentes era uma pesada porta chapeada a ferro, que parecia abrir-se para o monte e era guardada por dois homens muito grandes com machados e dois grandes cães pretos, presos por correntes curtas, apertadas. Quando nos aproximámos, os cães começaram a ladrar e a rosnar, mostrando os dentes. Aisling desceu do seu cavalo e caminhou descuidadamente até eles, estendendo uma mão fina e branca para dar uma pancadinha na cabeça redonda e abrutalhada de um deles. A grande criatura abanou o rabo, deliciada e a outra ganiu.
— Bom trabalho — disse ela aos guardas. — Agora abri e deixai-nos passar. O meu irmão deu ordem para que os nossos hóspedes se sintam bem aqui até ao seu regresso. E mantende a vossa vigilância. Ele quer que eles se sintam aqui seguros. Ele pergunta se tem havido mais sinais dos fianna? Do Homem Pintado e do seu bando?
— Não, minha senhora. Nem vestígios. Dizem que o tipo partiu pelo mar, para fazer um trabalho para um rei qualquer, no estrangeiro. É o que dizem.
— De qualquer maneira, mantende a guarda. O meu irmão não me perdoaria se acontecesse algum mal aos nossos hóspedes.
Pensei em Aisling enquanto percorríamos a longa e escura passagem coberta que descia e depois subia, contornando o monte. Era tão doce e complacente em Sevenwaters, mas aqui era completamente diferente. Na ausência do seu irmão assumiu instantaneamente o controlo e todos lhe obedeciam, apesar de ser uma coisa bem pequena. À luz de archotes presos em anéis nas paredes de pedra, vi Sean sorrir enquanto ela dava ordens. Quanto a Niamh, não dissera uma única palavra desde que deixáramos Sevenwaters. Despedira-se dos pais com um simples adeus e eu vira como a minha mãe retivera as lágrimas e como o meu pai tivera dificuldade em permanecer calmo diante de toda a família. Vira de novo como os segredos estavam a dividir a nossa família, como nos começávamos a magoar uns aos outros e pensei na história de Conor e no que ela queria dizer. Tentei não pensar no que Finbar me dissera. Talvez não possas ter ambos.
A via subterrânea subia sempre, com passagens escuras para a direita e para a esquerda, cheias de cantos escuros e inesperadas ilusões, provocadas pela luz dos archotes. Senti-me contente por emergir no pátio, onde desmontámos, à entrada do edifício principal. O grande e circular muro de pedra, que nos impedia a vista da paisagem vizinha, tinha no topo um carreiro pontuado por postos de vigia e muitos homens vestidos de verde, vigiando, prontos. No interior da muralha da fortaleza havia uma aldeia inteira. Forja, estábulos, armazéns, um moinho e uma destilaria.
Era uma verdadeira comunidade, atarefada nos seus negócios de maneira ordeira, como se viver ali fechada fosse a coisa mais normal deste mundo. Dei por mim a pensar por momentos que, não fora certos acontecimentos que me tinham impedido de aceitar a oferta de casamento de Eamonn, eu teria sido a dona da casa daquele lugar no espaço de um ano, se tanto. Teria necessitado de um grande incentivo para conseguir viver assim, incapaz de olhar por cima das árvores e da água, impedida de vaguear pelos carreiros da floresta em busca de bagas, ou subindo o monte à sombra dos jovens carvalhos. Teria que o amar muito, para concordar com semelhante vida.
Mas, Niamh não quisera Fionn. Não quisera ir-se embora da floresta para viver em Tirconnell, mas fora embora. A minha irmã não tivera o luxo de escolher. Instalámo-nos. Niamh saiu da sua letargia o tempo suficiente para protestar por partilhar o quarto comigo, apesar de o ter feito durante 16 anos sem uma única queixa. Aisling não vacilou; tudo estava organizado, disse ela, e não havia mais quarto nenhum, exceto o seu, claro, que Niamh podia partilhar, se quisesse. Niamh olhou para mim, esperando que eu sugerisse que partilharia, com alegria, o quarto com Aisling, permitindo-lhe ficar com o meu. Mas eu não disse nada, e assim Niamh calou-se de novo, franzindo a testa e torcendo os dedos.
— Talvez o quarto de um Uí Néill seja demasiado grande para o meu gosto — disse eu, tentando sorrir sem muito sucesso, enquanto subíamos as escadas a caminho dos nossos quartos. Este era espaçoso, se bem que escuro, com a única e estreita janela dando para baixo, para o pátio. Havia duas camas feitas, com lençóis cor de neve e cobertores escuros, de lã. Havia uma mesa com um jarro de água, uma bacia e toalhas macias em cima. Tudo estava imaculadamente arrumado e escrupulosamente limpo. Reparara nos guardas vestidos de verde ao fundo das escadas e no andar de cima.
— Talvez vos queirais lavar e descansar até à hora do jantar —sugeriu Aisling, pairando atrás de nós. — Eu disse-lhes para vos arranjarem água quente. Peço desculpa por causa dos guardas, mas Eamonn insistiu.
Agradeci-lhe e ela saiu. Sean continuava no pátio em profunda discussão com um dos nossos homens. Não ficaria conosco muito tempo, porque na ausência de Liam ele era o responsável por Sevenwaters e tinha de voltar para casa, para desempenhar os seus deveres. O meu pai podia desempenhá-los na perfeição, mas, se bem que o pessoal gostasse e confiasse no Homem Grande, não conseguiam esquecer, por completo, que ele era um bretão, não podendo, portanto, substituir Liam, apesar de ser capaz de o fazer. De certo modo era uma perda, porque se havia um homem nascido para mandar, esse homem era Hugh de Harrowfield. No entanto, fora ele que escolhera o seu caminho.
Uma vez a porta fechada, despi o meu vestuário de viagem e tirei as botas. Deitei um pouco de água na bacia e lavei a cara, os braços e as mãos, contente por poder tirar alguma da poeira e suor da jornada. Vasculhei a minha bagagem em busca de um pente e de um espelho.
— É a tua vez — disse eu, enquanto me sentava na cama e começava a desembaraçar os meus caracóis. Mas a minha irmã limitou-se a tirar as botas de montar. Deitou-se na cama completamente vestida e fechou os olhos.
— Devias ao menos lavar a cara — disse eu — e deixar que eu te penteie os cabelos. E dormirás mais confortavelmente se tirares o vestido. Niamh?
— Dormir? — disse ela sem graça e sem abrir os olhos. — Quem falou em dormir?
O meu cabelo estava um desastre. Teria sorte se conseguisse desfazer os nós todos antes da hora do jantar. Passei o pente de osso por ele, madeixa por madeixa, começando pelas extremidades e continuando, dolorosamente, até à raiz. Na verdade, era ótimo uma cabeça rapada, se se vivia ao ar livre. Niamh mantinha-se deitada de costas, imóvel, respirando lentamente, mas não estava a dormir. As suas mãos estavam fechadas e o corpo tenso.
— Por que é que não falas comigo? — perguntei calmamente. — Sou tua irmã, Niamh. Vejo muito bem que algo está errado, qualquer coisa pior do que... do que estar casada e longe de casa. Talvez ajudasse se falasses comigo.
Tudo o que ela fez foi afastar-se um pouco mais de mim. Continuei a pentear o cabelo. Até nós vinham sons do pátio, movimento de cavalos, homens falando, um machado fendendo madeira, craque, craque. Na minha mente formava-se uma terrível suspeita, à qual mal me atrevia a dar crédito. Não lhe podia perguntar. Fechei os olhos, ali sentada e imaginei que era a minha irmã, deitada muito quieta num quarto escuro, de pedra. Senti a suavidade do cobertor por baixo de mim, o cansaço do meu corpo devido à cavalgada, os pesados cabelos na minha cabeça sob o véu que os escondia. Deixei-me ir à deriva na quietude do quarto. Tornei-me na minha irmã.
Sinto-me só, agora que já não faço parte de Sevenwaters, agora que a minha mãe, o meu pai, os meus tios e até a minha irmã e o meu irmão me atiraram fora, como um bocado de lixo. Eu não presto para nada. Senão, porque é que Ciarán, que disse que me amaria para sempre, se foi embora e me deixou? O que Fionn disse é verdade eu sou um perfeito desapontamento, sem qualquer competência como esposa e sem aptidão como amante. Pouco cortês com os hóspedes, disse ele. Incompetente em casa. Sem imaginação na cama, apesar de todos os seus esforços para me tocar. Um falhanço completo. Ainda bem que eu era quem era, ou não teria valido a pena. Pelo menos, disse o meu marido, havia a aliança. Sinto dores por todo o corpo, dores que não me permitem montar a cavalo durante muito tempo, dores que eu tenho de ter o cuidado de não mostrar, ou ainda será pior. Não posso permitir que eles saibam que eu falhei, até nisto. Se não se perceber nada, talvez até eu consiga com que as coisas más pareçam menos reais. Se não se perceber nada, talvez consiga aguentar um pouco mais.
Recuei bruscamente, sentindo o suor pelo corpo todo. O meu coração batia com toda a força. Niamh continuava imóvel. Desconhecia, por completo, que eu lhe estivera a ler os pensamentos. Eu tremia, devido à ofensa. Maldito fosse o meu tio Finbar!
Preferia não saber que era capaz de fazer aquilo, devolveria de bom grado este dom a quem quer que mo concedeu, preferindo ter uma habilidade prática, como, por exemplo, a habilidade de pescar, ou acrescentar números à minha cabeça. Isto não, a arte de ler os pensamentos mais íntimos das pessoas, a capacidade de sentir as suas dores mais secretas, não. Ninguém devia ter um dom tão perigoso.
Ao fim de pouco tempo admiti que não estava a ser justa para com o meu tio. Ele fora inteligente ao avisar-me. Além disso, esta não era a primeira vez. E naquela noite, quando Bran estremecera e me agarrara no braço, com tanta força que quase o quebrou e eu ouvira o grito de uma criança, para que não a abandonassem?
Também partilhara a dor dele e tentara ajudá-lo. Mesmo depois de ele me ter rejeitado acendi a minha vela, mantive a minha vigília na estação das trevas e transportei a sua imagem nos meus pensamentos. Se eu possuía aquele dom para ver as feridas profundas, escondidas nas profundezas do espírito, então devia ter a capacidade de as curar. Os dois completavam-se; isso fora-me dito pela minha mãe e por Finbar. Daria muita coisa para não saber as outras coisas que Niamh tinha na cabeça, por trás daquela expressão vazia, fechada; a minha imaginação evocava imagens que me faziam estremecer. Mas precisava de saber, se queria ajudá-la. Um passo de cada vez. Passos leves, como uma carriça, que quase não faz barulho nas folhas da espessa aveleira. Passos suaves, disse para mim própria, ou ela desfaz-se em bocados e será demasiado tarde. Tinha tempo; uma lua, talvez, até Fionn regressar com Eamonn e levar Niamh de novo. Era tempo suficiente para... para quê? Não conseguia imaginar, mas para qualquer coisa. Primeiro, descobriria a verdade e depois traçaria um plano. Mas não tão depressa que corresse o risco de atirar a minha irmã por um precipício abaixo. Assim, quando ela se desculpou logo a seguir ao jantar e subiu as escadas, dei-lhe algum tempo para estar sozinha. Uma pessoa só aguenta até um certo ponto, quando esticada como Niamh estava a ser. O peso de tudo aquilo era terrível e os meus pensamentos estavam longe quando Sean falou comigo. Aisling fora até à cozinha e o meu irmão e eu sentámo-nos a beber um pouco de cerveja, a alguma distância dos homens e mulheres da casa.
— Eu parto de manhã, Liadan — disse Sean, calmamente. —Liadan?
— Desculpa. Não estava a ouvir.
— Hum. Dizem que as mulheres ficam assim quando estão grávidas. Distraídas.
Era a primeira vez que ele falava no assunto e o seu tom era ligeiro, se bem que os seus olhos fossem interrogadores.
— Vais ser tio — disse eu, gravemente. — Tio Sean. Soa a velho, não soa?
Ele sorriu e ficou subitamente sério.
— Não me sinto lá muito feliz. Acho que mereço a verdade. Mas tenho ordens para não te fazer perguntas e não as farei. Liadan, sigo para norte, amanhã. Não vou já para casa. Digo-te isto porque sei que não dirás nada. E alguém tem de saber para onde vou, caso não regresse.
— Norte — disse eu em tom neutro. — Para onde, para norte?
— Vou fazer uma proposta a um homem e ouvir o que ele tem para dizer. Creio que és capaz de adivinhar o resto da história.
— Hã-hã — disse eu, sentindo-me gelar. — Não é boa ideia, Sean. Corres um grande risco, se a resposta for não.
Os olhos de Sean fixaram-se nos meus.
— Pareces estar muito segura da resposta. Como podes saber?
— Se fores, ficarás em grande perigo — disse eu, rudemente. Sean coçou a cabeça.
— Um guerreiro está sempre em perigo.
— Manda alguém, se estás determinado a contactar esse homem. É loucura ires tu e ainda por cima sozinho.
— Pelo que ouvi dizer, talvez esta seja a única maneira de o encontrar. Caminhar a direito na direção da caverna do dragão, por assim dizer.
Estremeci.
— A tua jornada será uma perda de tempo. Ele dirá não. Descobrirás que tenho razão.
— Um mercenário só diz não, se o preço não for suficientemente alto, Liadan. Eu sei negociar. Eu quero as Ilhas de volta. Este homem é capaz de mas conquistar.
Abanei a cabeça.
— Isto não é uma mera transação, uma simples troca de serviços. Isto é muito diferente. Há morte e perdas nisto, Sean. Já vi.
— Talvez sim e talvez não. Pelo menos, deixa-me testar a minha teoria. E, Liadan, isto é segredo, não vale a pena dizer-to. Até Aisling pensa que eu vou para casa. Deixa ficar assim, a não ser que... tu sabes.
— Sean... — Hesitei, pouco segura do que devia dizer.
— O que é? — Sean franziu a testa.
— Eu guardo-te o segredo, claro. E devo perguntar-te... devo perguntar se, quando encontrares esse homem que procuras, falarás apenas na tua proposta e não noutras... coisas.
Ele ficou extremamente carrancudo, de olhos ferozes.
— Por favor, Sean, eu sou tua irmã. Por favor. E não... não tires conclusões.
Parecia que ele queria pegar em mim e abanar-me até me tirar a verdade. Mas Aisling estava de volta e ele acenou relutantemente com a cabeça.
— Não posso evitar tirar conclusões, mas também penso que podem não ser as corretas. São demasiado chocantes.
No dia seguinte, Sean partiu e eu não disse nada, mas temia por ele, sabendo que ia em busca do Homem Pintado e do seu bando, para comprar os seus serviços. Depois de me ter rejeitado e a tudo o que me era mais querido, a minha mãe e o meu pai, o meu nome, custava-me a acreditar que desse ouvidos a Sean. Provavelmente, o meu irmão ia cair numa espécie de armadilha. Ainda mais provável, nunca conseguiria encontrá-los. Fosse ele onde fosse, eles estariam sempre um passo à frente. Além disso, os homens de verde não tinham dito que Bran estava no estrangeiro, no outro lado do mar? Na minha Visão vira-o num lugar distante, à sombra de umas árvores estranhas. Provavelmente tinham-se ido todos embora, Gull, Snake, Spider, todo aquele bando heterogéneo de guerreiros. Se era o caso, era bom. Isso queria dizer, pelo menos, que o meu irmão regressaria a casa salvo, se bem que desapontado.
Entretanto, havia Niamh. Não sabia como dizer-lhe o que vira nos seus pensamentos, mas acabou por não ter importância, porque a verdade acabou por saber-se uns dias depois, apesar dos seus esforços para a esconder. Faltava pouco para o crepúsculo e eu andava inquieta, achando o recinto fechado de Sídhe Dubh opressivo, desejando o ar livre, as árvores e a água. Deixara Niamh com os seus pensamentos e subira até ao carreiro fortemente guardado, em volta da muralha circular da fortaleza, bem acima dos pântanos e aldeias, suficientemente alto para poder olhar em direção a leste, de maneira que conseguia vislumbrar a orla da floresta de Sevenwaters, uma sombra cinzento-azulada, no horizonte. Lentamente, fui andando em volta, fazendo uma pausa aqui e ali para olhar através das estreitas fendas na muralha, meras seteiras, de onde uma seta podia ser lançada sem que o arqueiro ficasse exposto a um tiro de resposta. Não era suficientemente alta para olhar por cima do parapeito; fora desenhado para proteger um homem de pé e eu sou pequena, mesmo para uma mulher. Os postos de vigia, instalados mais acima, aos quais iam dar uns degraus, também eles bem fortificados, permitiam uma vista em redor. Insinuei-me no que dava para norte e foi-me permitido subir e dar uma vista de olhos. O homem de sentinela resmungou qualquer coisa acerca de Lorde Eamonn e das regras, mas eu sorri docemente e disse que eles deviam ser muito corajosos, quão arriscada devia ser a sua missão e como tinha a certeza de que Eamonn não se importaria se eles me deixassem ver a vista, só aquela vez. Mas se eles estavam preocupados, bem, eu não lhe diria nada, se eles também não dissessem. Os três guardas sorriram e prepararam-se para me ensinarem o que era o quê.
— Olhai para norte, minha senhora. Não estão muito longe aquelas terras secas, quer dizer, com alguma cobertura. Mas não se pode atravessá-la, é muito traiçoeira. A lama chupa-nos, sabeis? É um verdadeiro pesadelo.
— O que quer dizer que tem que se dar a volta — disse o segundo homem. — De volta até ao sítio por onde entrastes, para leste até ao cruzamento, depois para norte de novo e outra vez para trás. Leva meio dia, a pé, para chegar à passagem. É claro que há uma passagem direta. Rápida.
O primeiro homem deu uma risada desconsolada.
— É rápida, sim senhor. Se puserdes um pé em falso. Eu não tentaria essa passagem. Não se a minha vida dependesse disso.
O terceiro guarda era um pouco mais novo, pouco mais do que um rapaz e falava de modo acanhado.
— Ide para ali à noite e ouvireis as fadas a chamarem através dos pântanos. Gela-se-nos o sangue no corpo. Prevendo outra morte. Outra alma, em quem a demoníaca pôs a mão.
— Mas, há uma passagem a direito? — perguntei, olhando para o que parecia ser uma contínua extensão pantanosa, até à linha distante de uns montes pequenos, a norte.
— Hã-hã. A direito e secreta. Lorde Eamonn usa-a e alguns dos homens. Só um punhado deles a conhece. Passo a passo, em fila e têm de se lembrar de tudo, dois passos para a esquerda, um para a direita, etc. Senão, adeus.
— Foi num lugar como esse que aquele mercenário, sabeis quem é, o Homem Pintado!..
— Onde ele apanhou os nossos homens e os chacinou como coelhos? Não foi ali, minha senhora, foi noutro parecido. Como ele conhecia o caminho, só Morrigan sabe.
— Maldita seja aquela escumalha assassina.
— Mas apanhámos um deles — disse o primeiro homem. —Apanhámos um dos carniceiros, mais tarde. Vomitou as tripas.
— Eu não fico satisfeito enquanto não estiverem todos mortos e enterrados — disse o outro. — Só o cemitério é bom para eles. Especialmente aquele a quem eles chamam Chefe. Tem o coração negro, esse homem, mau até dizer chega. Digo-vos uma coisa, é louco se se atreve a pôr os pés outra vez nas terras do meu senhor. Sentença de morte.
— Desculpai-me. — Deslizei por entre eles e desci as escadas até ao carreiro.
— Desculpai, minha senhora. Espero que não vos tenhamos afligido. Nós, homens, falamos assim, sabeis?
— Não, não, não faz mal. Obrigada pela explicação.
— Tende cuidado a andar, minha senhora. As pedras são um pouco irregulares, aqui e ali. Isto aqui não é lugar para uma senhora.
Quando regressei ao quarto a porta estava fechada. Empurrei-a, mas algo a estava a bloquear. Empurrei com mais força e ela abriu-se um pouco, desalojando uma pequena arca que fora ali colocada para a manter fechada. As criadas tinham trazido uma grande bacia com água, para podermos tomar banho. Niamh ouviu-me e agarrou numa peça de roupa para se tapar, mas era tarde para se esconder. Eu vira. Entrei tranquilamente e fechei a porta. Fiquei ali a olhar para as nódoas negras que cobriam todas as partes do corpo da minha irmã. Vi como as suas formas, antigamente roliças, tinham diminuído e encolhido, de maneira que as suas costelas apareciam e os ossos das ancas sobressaíam dos lados do estômago chupado, como se passasse fome. Vi como os seus cabelos, que antigamente caíam em cascata, vestindo-lhe as generosas curvas femininas, estavam agora cortados cruelmente ao nível do rosto, as pontas desiguais, como se tivessem sido cortados de qualquer maneira, com golpes irados de faca. Era a primeira vez que a via sem o véu, desde que voltara de Tirconnell.
Sem uma palavra, aproximei-me dela e, tirando-lhe a peça de roupa das mãos trêmulas, coloquei-lha por cima dos ombros, escondendo aquele pobre corpo ferido da luz. Agarrei-lhe na mão, ajudei-a a sair do banho e sentei-a em cima da cama, onde ela começou a chorar, primeiro docemente e depois com grandes soluços, como uma criança. Não tentei abraçá-la; ainda não estava pronta para isso. Encontrei roupa de baixo lavada e um vestido simples e vesti-lho. Ela ainda chorava quando acabámos e eu peguei num pente e comecei a passá-lo cuidadosamente pelos restos esfarrapados dos belos cabelos da minha irmã.
Após um certo tempo os soluços diminuíram, as suas palavras tornaram-se mais coerentes e ela disse:
— Não digas nada! Promete-me, Liadan. Não digas nada à família, nem sequer ao pai e à mãe. Nem a Sean. Especialmente aos tios. — Ela agarrou-me no pulso com tanta força que eu quase deixei cair o pente. —Promete-me, Liadan!
Olhei para os seus grandes olhos azuis, brilhantes, das lágrimas. O seu rosto estava cinzento e a expressão era de medo.
— Foi o teu marido que fez isto, Liadan? — perguntei em voz baixa.
— Por que é que dizes isso? — cortou ela, imediatamente.
— Alguém o fez. Se não foi Fionn, quem foi? Porque, certamente, o teu marido devia ter-te protegido de semelhantes maus tratos.
Niamh teve um arrepio.
— A culpa é minha — murmurou ela. — Errei em tudo. É um castigo.
Olhei para ela.
— Mas, Niamh, que razões poderia ter Fionn para te fazer tal coisa? Por que magoar-te de maneira tão terrível? Por que cortar-te os cabelos, os teus lindos cabelos? O homem deve ser louco.
Niamh encolheu os ombros. Estava tão magra, os ombros ossudos e frágeis, como os da minha mãe, por baixo do azul-suave do vestido.
— Eu mereço. Cometi erros atrás de erros. Sou tão... tão desastrada e estúpida. Sou um desapontamento para ele, um falhanço. Não admira que Ciarán... — A voz dela parecia a de uma cana rachada. Não admira que Ciarán se tenha ido embora e não tenha voltado para mim. Nunca prestei para nada.
O disparate era tão grande que me senti tentada a falar-lhe bruscamente, como teria feito em tempos, para lhe dizer que não fosse tola e desse graças por ser quem era. Mas desta vez ela acreditava no que dizia; tinha nódoas negras e cicatrizes, não apenas na carne tenra do corpo, mas também no espírito e nenhumas palavras rápidas curariam aquelas feridas.
— Por que é que ele te cortou os cabelos? — perguntei de novo. Ela ergueu a mão para a passar pelos anéis esfarrapados, como se não conseguisse acreditar que aquele peso sedoso e dourado tivesse desaparecido.
— Não foi ele — disse ela. — Fui eu.
Olhei para ela.
— Mas, porquê? — perguntei, incrédula. Niamh sempre cuidara dos seus cabelos, sabendo, sem qualquer vaidade, que era uma das suas maiores belezas e apesar de se queixar, por vezes, de ter sido feita à semelhança do seu pai, nitidamente bretão, gostava da maneira como as suas longas tranças brilhavam ao sol e esvoaçavam, enquanto dançava e atraía os olhares dos homens. Lavava-os com camomila e atava-os com flores e fitas de seda.
— Não te posso dizer — disse a minha irmã em voz muito baixa.
— Eu quero ajudar-te — disse-lhe. Não tinha esquecido o que me fora dado ver antes, quando os seus pensamentos me tinham sido revelados. No entanto, era melhor que ela me dissesse de sua própria vontade. Já uma vez ela me chamara espia. — Mas não te posso ajudar se não me disseres o que se passa. O teu marido descobriu alguma coisa acerca de Ciarán? Foi isso? Ele ficou furioso por tu teres feito amor com outro homem antes do casamento?
Ela abanou a cabeça miseravelmente.
— O que foi, então? Niamh, um homem não pode bater na sua mulher assim e ficar sem castigo. À face da lei podes pedir o divórcio. Liam é capaz de matar por causa disto. O pai vai ficar furioso. Temos de lhes dizer.
— Não! Eles não podem saber! — Toda ela tremia.
— Isto é uma loucura, Niamh. Tens de deixar que a tua família te ajude.
— Por que me haviam de ajudar? Odeiam-me. Até o pai. Ouviste o que ele me disse. O Sean bateu-me. Mandaram-me embora.
Depois de a crise de choro lhe passar, ficamos ambas em silêncio por um bocado.
Esperei; ela torcia os dedos, amarfanhava o tecido do vestido e mordia os lábios.
Quando falou, por fim, o seu tom era insípido e final.
— Eu conto-te. Mas, primeiro, tens de me prometer que não contas ao pai, ou ao Liam, ou a mais alguém da família. Nem sequer a Eamonn e a Aisling. Eles são quase da família. Promete-me, Liadan.
— Como é que eu posso prometer uma coisa dessas?
— Tens de prometer. Porque eu errei em tudo e, se contares, quebras a aliança e depois também terei errado nisso, desapontando-os a todos outra vez e todos me desprezarão ainda mais do que agora e não valerá a pena continuar, não valerá, mais vale eu cortar os pulsos com uma faca e acabar com tudo e faço-o se tu contares. Faço mesmo, Liadan. Promete-me. Jura!
Ela estava a falar a sério. Ao mesmo tempo que as palavras lhe saíam da boca, havia um terror nos seus olhos, que era real e arrepiante.
— Prometo — murmurei, percebendo que esta promessa me deixava isolada, afastada da hipótese de a poder ajudar. — Diz-me, Niamh. O que é que correu mal?
— Pensei — disse ela respirando com dificuldade — pensei que no fim tudo acabaria bem. Até ao último momento, não sei como, pensei que Ciarán voltaria para mim. Parecia-me impossível que não o fizesse; que permitisse que eu me casasse e fosse para longe sem tentar intervir. Estava tão certa. Tão certa de que ele me amava tanto como eu o amava a ele. Mas ele não veio. Nunca mais voltou. Por isso pensei...pensei...
— Não tenhas pressa — disse eu, gentilmente.
— O pai ficou tão zangado comigo — disse ela com um fio de voz. —O pai, que nunca levanta a voz para ninguém. Quando eu era pequena ele estava sempre ali, sabes, para me levantar quando eu caía, fazendo-nos sentir-nos seguros e felizes. Quando eu ficava perturbada com qualquer coisa, ia sempre ter com ele para um abraço ou uma palavra amável. Quando as coisas corriam mal, ele tornava-as sempre melhores. Mas desta vez, não. Ele foi tão frio, Liadan. Nem sequer me deixou falar, nem a Ciarán. Só disse não, sem dar uma razão. Mandou-me embora para sempre. Como se nunca mais me quisesse ver. Como foi possível?
— Não estás a ser justa — disse eu calmamente. — Ele está muito preocupado contigo, assim como a mãe. Se parece zangado, talvez seja porque quer protegê-la de coisas como esta. E estás enganada quanto a eles ouvirem ou não. Eles ouviram Ciarán, pelo menos. Conor disse que foi ele que preferiu sair da floresta. Disse que ia fazer uma... uma jornada, em busca do passado.
Niamh fungou.
— De que serve o passado se deitamos fora o futuro? — disse ela, tristemente.
— Portanto, ficaste magoada com o que o pai fez e depois foste para Tirconnell. E depois?
— Eu... eu não consegui. Fiz os possíveis; pensei, pior para Ciarán, se não me amava o suficiente para voltar para mim, casaria com outro homem e faria uma nova vida e ele havia de ver que eu não me ralava. Havia de lhe mostrar que era capaz sem ele. Mas não fui capaz, Liadan.
Esperei. E ela contou-me; contou-me tudo com tanta nitidez como se eu os estivesse a ver. Niamh e o marido, no quarto, juntos. Muitas cenas, desde que tinham casado.
Quando ela descobriu que não era capaz de fingir.
Fionn nu, olhando para a minha irmã enquanto ela escovava os longos cabelos, cuidadosamente, gesto após gesto. Sentia-lhe o medo, o bater do seu coração, o arrepio que lhe percorria o corpo. Usava uma camisa de noite de cambraia sem mangas e as nódoas negras, novas e velhas, eram claramente visíveis. Fionn olhava para ela e tinha a mão entre as pernas, excitando-se e disse:
— Despacha-te, vá lá! Um homem não pode esperar toda a vida.
— Eu... — disse Niamh, parecendo um animal encurralado. — Eu... eu... não quero... não me apetece...
— Hum. — Fionn aproximou-se, não escondendo o desejo que lhe endurecia o membro.
Colocou-se junto dela e acariciou-lhe os longos cabelos vermelho-dourados.
— Temos que fazer alguma coisa, não temos? Uma esposa tem que ter vontade, Niamh, pelo menos algumas vezes. Seria diferente se estivesse grávida, terias uma desculpa. Mas parece que nem isso és capaz de fazer por mim. É o suficiente para que um homem olhe para o lado. E não é que não haja para aí montes de ofertas. Há muitas miúdas nesta casa que me sentiram dentro delas antes de tu vires para aqui e que se sentiram gratas por isso. Mas tu... — Ele puxou-lhe os cabelos com força, de maneira que a cabeça dela foi atirada para trás e ela arquejou de dor e medo. — Tu, parece que não queres saber, pois não? Parece que não és capaz de me excitar. — Ele puxou de novo e ela reprimiu um grito. Depois, ele largou-lhe os cabelos e as suas mãos pousaram-se nela, puxando-lhe a camisa de noite pelo corpo acima com rudeza, pressionando o corpo dela contra o seu, tentando possuí-la por trás com um grande impulso e desta vez ela não pôde evitar um grito de dor e afronta.
— Rapariga má — disse Fionn, gozando com cruel eficiência. — Para que serve uma mulher, senão para satisfazer o marido? Se bem que mal se possa chamar a isto satisfação. É como se estivesse a fazer isto a um cadáver. Um mero... escape... para as... necessidades do... corpo... aahhh — disse ele, saindo dela com um arrepio, procurando de imediato um pano para se limpar. — Talvez precises de prática, minha querida. Tenho alguns amigos que eram capazes de gostar de te oferecer umas... variedades. Talvez ensinarem-te um truque ou dois. Talvez pudesses tentar, uma noite destas. Eu ficaria a ver.
Niamh estava de costas para ele, olhando em frente, como se ele nem sequer estivesse ali.
— O quê, não tens nada para me dizer? — Ele agarrou-lhe outra vez nos cabelos, segurando-os junto ao pescoço e fê-la virar-se, para o enfrentar. — Por Deus, se eu soubesse que ia ficar com um peixe frio nas mãos nunca teria concordado com este casamento, com aliança ou não! Devia ter ficado com a tua irmã. Uma magricela, mas pelo menos tem alguma vida dentro dela. Tu, tu nem sequer tens chama suficiente para me responderes. Tudo bem, veste-te lá. Faz-te bonita, se não é pedir o impossível. Tenho hóspedes para o jantar e, ao menos, podes mostrar-te civilizada com eles.
Depois de ele sair, Niamh sentou-se por algum tempo, olhando para o seu reflexo no espelho de bronze pendurado na parede, de olhos vazios. Então, a sua mão pegou de novo no pente e passou-o pelos cabelos apenas uma vez, desde o alto da cabeça até onde eles acabavam, junto das ancas. Olhou em volta do quarto, para onde a capa do marido estava, pendurada num prego e para o cinto com um punhal enfiado numa bainha de pele. Levantou-se, como um autómato, dirigiu-se ao lugar onde estava o cinto, tirou o punhal e cortou, cortou, cortou, até que os seus belos e brilhantes cabelos ficaram espalhados nas lajes do chão, à sua volta, como uma estranha colheita de Outono. Voltou a enfiar o punhal na bainha e depois vestiu, cuidadosamente, um vestido de decote subido até ao pescoço e mangas até aos pulsos, um vestido que não deixava ver qualquer nódoa negra. Sobre os cabelos cortados colocou um lenço de lã fina, apertado em volta das têmporas e do pescoço, de maneira que o seu cabelo podia ser de uma cor qualquer, de um tamanho qualquer.
— Pensei, sabes, pensei que já não valia a pena — disse Niamh. —Tudo tem que ter uma razão, ou então mais vale morrer. Por que estava eu a ser punida, se não merecia? Se me dói, é porque não presto para nada. Para quê fingir? Para quê tentar ser bonita? As pessoas costumavam dizer-me que eu era bonita, mas é mentira. Amo Ciarán mais do que qualquer outra pessoa neste mundo. E ele virou-me as costas. A minha própria família expulsou-me. Eu não mereço ser feliz, Liadan. Nunca mereci.
Eu estava furiosa. Se tivesse uma faca nas mãos e se Fionn Uí Néill estivesse à minha frente, nada me teria impedido de lha mergulhar no coração e de lhe dar uma boa torcidela. Ou se tivesse um mercenário ou dois, e um saco de prata para lhes pagar o trabalho, sentiria a maior das satisfações em ordenar a sua execução. Mas eu estava em Sídhe Dubh e Fionn era aliado do meu irmão e de Liam. Estava ali com a minha irmã, de olhos abertos e virando para mim o rosto tão infeliz, tão desamparado e frágil e percebi que não servia de nada ficar furiosa, pelo menos para já. Apetecia-me segurá-la pelos ombros, abaná-la e dizer: Porque é que não te defendes? Por que é que não lhe cuspiste na cara arrogante e não lhe deste um bom pontapé, para ele aprender? Ou, se não eras capaz, por que é que não fugiste?
Porque sabia que, se estivesse no lugar dela, tê-lo-ia feito. Preferia ser uma pedinte na beira da estrada a deixar-me tratar daquele modo. Mas, de algum modo, tudo estava virado do avesso na cabeça de Niamh. Levara uma lavagem ao cérebro, fazendo com que acreditasse em tudo o que Fionn lhe dizia. O marido dizia que a culpa era toda dela e ela achava que devia ser verdade. Niamh estava mergulhada na fealdade de tudo o que lhe tinham feito. E todos nós tínhamos culpa. Os homens da nossa família selaram-lhe o destino quando a mandaram embora de Sevenwaters.
Até eu era culpada. Devia ter lutado contra a sua expulsão e não o fiz.
— Deita-te, Niamh — disse eu, gentilmente. — Quero que descanses, mesmo que não consigas dormir. Aqui estás segura. Este lugar é tão bem guardado que nem o Homem Pintado seria capaz de cá entrar. E prometo-te que não vais voltar para o pé do teu marido. Hei de salvar-te. Prometo-te, Niamh.
— Como... como é que podes prometer uma coisa dessas? —murmurou ela, resistindo às minhas mãos enquanto eu tentava com que repousasse a cabeça na almofada. — Sou mulher dele, devo satisfazer-lhe os desejos. A aliança... Liam... não há hipótese... Liadan, tu disseste que não contavas...
— Ehhh — disse eu. — Hei de arranjar uma maneira. Confia em mim. Agora, descansa.
— Não posso — disse ela toda trêmula, mas deitou-se, a face pálida sobre uma mão delicada. — Assim que fecho os olhos, regressa tudo. Não posso fechá-los.
— Eu fico ao pé de ti. — Estava com dificuldade em conseguir reter as lágrimas. — Conto-te uma história, ou falo de qualquer coisa, o que tu quiseres. Canto uma canção, se quiseres.
— Não me parece — disse a minha irmã com uma sombra da sua velha aspereza.
— Então, falo sobre qualquer coisa. Quero ouvir a minha voz e pensar nas palavras que digo. Pensar apenas nas palavras, naquilo que digo. Dá cá a tua mão, para eu segurar nela. Assim está melhor. Estamos na floresta, tu, eu e Sean. Lembras-te do carreiro largo por baixo das faias, onde parecia que podíamos correr e correr para sempre? Tu ias sempre à frente, eras sempre a mais rápida. Sean fazia os possíveis por te apanhar, mas nunca conseguia, até que tu decidiste que já eras muito velha para aquelas coisas. Eu ia em último, porque estava sempre a parar à procura de bagas, para apanhar o esqueleto de uma folha, ou para ouvir os ouriços cacheiros no meio dos fetos, ou para tentar ouvir as vozes do povo das árvores, lá no alto.
— Tu e o teu povo das árvores — fungou ela, descrente, mas, pelo menos, estava a escutar.
— Tu corrias de pés descalços, sentindo a brisa nos cabelos, as macias folhas secas sob os pés, correndo pelo meio dos raios de sol que apareciam por entre os ramos, onde ele apanha o verde e o dourado das últimas folhas de Outono, quase a caírem. E de súbito atinges a margem do lago. Estás cheia de calor por teres vindo a correr e caminhas para a água, sentindo a sua frialdade em redor dos tornozelos, a lama macia sob os pés. Mais tarde, deitas-te em cima das rochas comigo e com Sean, metemos as mãos na água e vemos os peixes passarem, os corpos prateados meio escondidos pelo brilho do Sol na superfície do lago. Esperamos que os cisnes cheguem, um à frente, os outros seguindo-o, deslizando pela luz dourada do fim da tarde e pousando na água, suich, suich, as asas brancas recolhidas assim que a água os recebe. Flutuam como grandes fantasmas na pequena ondulação, enquanto o crepúsculo se espalha pelo céu.
Continuei durante um certo tempo, enquanto Niamh permanecia deitada, mas sem dormir e penetrei-lhe o suficiente na mente para perceber que o desespero nunca estava muito longe da superfície.
— Liadan — disse ela quando eu fiz uma pausa para respirar. Os seus olhos abriram-se e estavam tudo menos calmos.
— O que é, Niamh?
— Tu falas de tempos passados; de quando tudo era bom e simples. Esses tempos nunca mais voltam. Oh, Liadan, tenho tanta vergonha. Sinto-me tão... tão suja, tão sem préstimo. Fiz tudo mal.
— Não acreditas nisso a sério, pois não?
Ela enroscou-se, um braço em volta do corpo e um punho na boca.
— É verdade — murmurou ela. — Tenho de acreditar.
Alguém bateu à porta. Era Aisling, que vinha ver se tudo estava bem, porque eram quase horas de jantar e ainda não tínhamos aparecido. Falei com ela em voz baixa, dizendo-lhe que Niamh estava muito cansada e pedindo-lhe um pouco de comida e bebida num tabuleiro, se não fosse muito inconveniente. Pouco depois uma criada trouxe pão, carne e cerveja, eu agradeci-lhe e fechei a porta.
Niamh não quis comer nem beber, mas eu quis. Estava com fome; a criança estava a crescer. Conseguia ver perfeitamente a minha barriga ligeiramente maior e sentia o peso cada vez maior dos meus seios. Em breve as mudanças seriam visíveis para toda a gente. Mas Niamh não sabia; talvez ninguém tivesse pensado em lhe dizer.
— Liadan? — disse ela com uma voz tão fraca que eu mal pude ouvi-la.
— Hum?
— Eu fiz mal à mãe. Magoei-a quando ela... quando ela... e eu nem sequer sabia. Oh, Liadan, como é que eu não vi...
— Ehhh — disse eu, lutando para não chorar. — A mãe ama-te, Niamh. Ela sempre nos amará a todos, aconteça o que acontecer.
— Eu... eu quis falar com ela, a sério, mas não consegui. Não consegui ir ter com ela. O pai foi tão duro, odiou-me por tê-la afligido e...
— Ehhh. No fim, há de ficar tudo bem. Vais ver se não tenho razão.
Que confidência tão estúpida. Como é que havia de ficar tudo bem se aqueles, até ali tão fortes, pareciam à deriva, como folhas desamparada-mente sopradas pelo vento teimoso de Meán Fómhaitf. Talvez aquilo fizesse parte do velho mal de que todos falavam, algo tão mau e poderoso que atirava tudo de pantanas. Mas sosseguei-a e por fim ela ficou quieta de novo, mas com os punhos ainda fechados. Lembrei-me do que Finbar me mostrara, como ele me enchera a mente com imagens felizes e pensamentos tranquilos, para me fazer sentir melhor. Ele dissera que eu tinha de aprender a usar o dom de curar. Talvez fosse aquilo: facilitar o descanso da minha irmã. Assim, fiz o que já tinha feito antes; imaginei que era Niamh, ali deitada na cama, rígida, tentando desligar-me do mundo. Deixei a minha mente deslizar para a dela, mas desta vez de maneira controlada, de modo que continuei a ser Liadan, capaz de descobrir respostas, capaz de curar.
Não foi como naquela noite, quando Bran me agarrou no braço e quase mo partiu e quando a sua mente gritou como uma criança assustada. Mas vi coisas que daria tudo para não ter visto. Com a minha irmã senti degradação, ridículo, violência. Antes de casarem, Fionn vira a sua beleza e ouvira falar das suas virtudes. Na verdade, ela possuía ambas com abundância. Mas ele não contara com Ciarán, nem com o fato de que o coração de Niamh e o seu corpo já tinham sido dados a outro, antes do casamento. Com um pouco de estratégia, com um pouco de namorico e brincadeira, talvez ela tivesse podido começar com o pé direito. Podia ter sido capaz de agradar ao marido. É uma crueldade uma mulher ter que fingir para se proteger. Mas muitas o fizeram, sem dúvida, fazendo assim com que a sua existência fosse mais tolerável. Mas a minha irmã, não. Ela não fora capaz de fingir o suficiente para poder sobreviver. E Fionn não era um homem paciente. Senti a força da mão dele e do seu cinto, tal como ela. Senti a indignidade de ser usada sem querer e conheci a sua vergonha, se bem que a culpa não fosse sua.
Após um certo tempo, comecei a tornar a minha presença notada nos seus confusos pensamentos. Mostrei-lhe uma Niamh mais nova: a rapariga de cabelos cor de fogo que girara no seu vestido branco e desejara uma vida de loucas aventuras. Mostrei-lhe a criança, correndo como um veado sobre um tapete de folhas caídas. Mostrei-lhe uns olhos azuis como o céu e o calor do sol de Verão nos cabelos. E o rosto de Ciarán, quando ele me deu a pequena pedra branca e disse: Diz-lhe... dá-lhe isto. Ele amava-a. Fora-se embora, mas amava-a. Disso tinha eu a certeza. Não lhe podia mostrar o futuro, porque nem eu era capaz de o ver. Mas dei-lhe um banho de amor, luz e calor e a sua mão relaxou na minha, enquanto a vela ia ficando cada vez mais pequena.
Ela adormeceu, ressonando gentilmente, descontraída como uma criança.
Lentamente, com muito cuidado, retirei a minha mão da dela, aconcheguei-lhe o cobertor em redor dos ombros ossudos e fiquei ali em pé, tensa, sentindo a suprema exaustão em todas as partes do meu corpo. Finbar dissera a verdade; não se podia fazer uma coisa daquelas sem pagar um determinado preço. Caminhei hesitantemente na direção da estreita janela e olhei para fora, para o pátio, pensando que tinha de me certificar de que o mundo real continuava ali, porque a minha mente estava cheia de imagens diabólicas e pensamentos confusos. Não tinha energia quase nenhuma e estava muito perto das lágrimas.
A Lua brilhava, um pequeno quarto-crescente num céu escuro, cheio de nuvens correndo. No pátio havia archotes a arder e eu podia ver as formas indistintas das sempre presentes sentinelas em patrulha, tanto em baixo, como no alto da muralha.
Mantiveram a guarda durante toda a noite. Era o suficiente para me fazer sentir prisioneira e eu imaginei como conseguia Aisling e o resto das pessoas da casa aguentar aquilo. Olhei para o céu noturno e a minha mente passou para lá das muralhas de pedra, da fortaleza, para lá dos pântanos, para lá das terras a norte.
Sentia-me cansada, tão cansada, que desejava que alguém me rodeasse os ombros com os braços, me abraçasse e dissesse que fizera o que pudera e que tudo iria dar certo. Devia, na verdade, estar exausta, para me permitir semelhante fraqueza. Olhei para a escuridão e a minha mente mostrou-me aqueles homens em redor da fogueira, ouvindo, encantados, a história de Cu Chulainn e do seu filho Conlai, uma história de grande tristeza. E pensei que, apesar de serem fianna, preferia estar com eles do que ali. Pelo menos, sabia isso. Fechei os olhos e senti umas lágrimas quentes a escorrerem-me pelas faces e antes de ter tempo de dizer alto! a mim mesma, a minha voz interior gritou: Onde estás? Preciso de ti. Creio que não consigo sem ti. E nesse preciso momento senti a criança mexer-se pela primeira vez dentro de mim, uma pequenina agitação, como se estivesse a nadar, ou a dançar, ou ambas as coisas.
Coloquei uma mão gentilmente no local onde ele se dera a conhecer, sorrindo. Nós vamo-nos embora daqui, meu filho, disse-lhe, eu silenciosamente. Mas, primeiro, vamos ajudar Niamh. Não sei como, mas eu prometi e devo fazê-lo. Estou farta destas muralhas, destes portões, desta prisão.
Palavras arrojadas. Não que eu achasse que Niamh voltaria a si com facilidade, ou com rapidez. Mas, se se perde a esperança, o futuro deixa de valer a pena. Ainda bem que eu sentia o meu filho no ventre e a sua vontade de viver em cada um dos seus palpitantes movimentos, senão também me sentiria afogada no mesmo desespero.
Os dias passaram e aproximava-se a data do regresso de Eamonn e Fionn a Sídhe Dubh e do meu a casa. Niamh continuava irreal como um fantasma, comendo e bebendo apenas o suficiente para sobreviver, falando apenas quando as leis da cortesia o exigiam. Mas eu conseguia ver nela alguns sinais de mudança. Conseguia dormir, agora, desde que eu me sentasse à beira da cama dela, segurando-lhe na mão até ela adormecer e essas horas de quase inconsciência foram as melhores para deslizar até à sua mente e empurrar-lhe os pensamentos, gentilmente, na direção da luz.
Ela não ia passear comigo no alto da muralha, onde estavam os guardas, mas descia até ao pátio, coberta com um vestido de mangas compridas e um véu matronal e caminhava comigo por entre o depósito de armas, pelo armazém de grão, pela forja e pelos estábulos. Caminhava muito calada. Sair e andar por entre as pessoas era uma prova difícil para ela. Li nos seus pensamentos como se sentia suja, como acreditava que todos a observavam e a achavam uma prostituta e ainda por cima feia. Como murmuravam entre eles ainda bem, no fim de contas, que Lorde Eamonn não tinha casado com ela, como eles pensavam que faria. Mas caminhava comigo e olhava quando eu cumprimentava este ou aquele, dando a minha opinião sobre os padecimentos de cada um e o exercício trouxe às suas faces pálidas um pouco mais de cor. Nos dias de chuva explorávamos o interior da fortaleza. Por vezes, Aisling ia conosco, mas mais frequentemente andava ocupada com a cozinha, com os armazéns, ou em combinações com os criados da casa, ou com o homem das contas. Seria uma boa mulher para Sean, um complemento equilibrado, metódico, para a sua grande energia.
Na verdade, Sídhe Dubh era uma morada estranha. Pensei muito no carater do antepassado de Eamonn, que escolhera instalar-se ali, bem no centro de uns pântanos inóspitos. Fora, com certeza, um homem de imaginação e subtileza, talvez um pouco excêntrico, porque o local tinha muitas excentricidades. Havia uns pilares gravados no salão principal, com uns animais extravagantes mostrando os dentes, pequenos dragões, serpentes marinhas e unicórnios. E a construção da própria fortaleza, com a sua passagem coberta até ao portão e a casa familiar de dois andares construída contra a muralha interior. Nunca vira uma casa com tantas passagens, que se cruzavam, aberturas escondidas e saídas falsas, tantos alçapões e passagens secretas e súbitos poços traiçoeiros. Tive oportunidade de descobrir lugares que nunca tinha visto antes, porque ainda era uma criança quando visitara a casa de Eamonn pela última vez e fora proibida de me afastar. No meu desejo de manter Niamh ativa, porque sabia que o corpo tem de estar saudável para a mente sarar, levei a minha irmã pela grande passagem coberta que dava a volta ao monte a partir do portão principal, serpenteando por baixo da muralha e das paredes de pedra, até emergir no pátio. Todo aquele caminho estava sempre iluminado por archotes e cheio de sombras, com muitos cruzamentos, que iam para um e outro lado. Alguns estavam revestidos de madeira e outros de pedra. Niamh sentiu relutância em explorar esses, mas a minha curiosidade fora desperta e eu voltei mais tarde, quando ela estava a dormir. Foi necessário usar alguns truques ensinados pelo meu pai, que era passar despercebida pelos guardas, o que consegui. Pensei que era melhor ninguém saber do meu súbito interesse por possíveis saídas da fortaleza, tornando assim proibidas tais expedições. Levei uma lamparina e segui os ramais, até descobrir um armazém de queijo e manteiga, como as caves que nós usávamos para esse fim em nossa casa. Descobri uma pequena sala que, simplesmente, não tinha chão; em vez disso, um profundo buraco e quando lancei nele uma pedra contei até cinco, antes de ouvir o som dela no fundo. E mais à frente, na mesma direção, havia celas sem luz, cada uma delas com um banco e argolas de ferro fixas na parede. Não havia lá prisioneiros. O local estava cheio de teias de aranha, sinal de que não era utilizado há muitos anos. Talvez Eamonn não fizesse prisioneiros. Ainda bem que não trouxera Niamh, porque as próprias paredes gritavam de desespero; havia uma falta de esperança no local que me gelava a alma. Fugi dali, prometendo a mim própria refrear a minha curiosidade na próxima vez. Quando cheguei à passagem principal ouvi um pequeno som atrás de mim e um gato passou a correr, embrenhando-se ainda mais naquela escura e sombria passagem com as suas celas fora de uso, um gato preto, correndo tão depressa que quase não reparei na grande ratazana que levava na boca. Portanto, havia uma saída para o exterior. Uma saída estreita, demasiado estreita, talvez, para uma pessoa. Mas, de qualquer maneira, uma saída.
Senti-me tentada a voltar para trás para investigar, mas eram quase horas de jantar e eu não queria atrair as atenções.
Um dia destes, meu filho, disse eu silenciosamente, sentindo que ele me compreendia. Um dia destes havemos de ir lá abaixo e talvez possamos sair daqui por algum tempo. Encontrar um pouco de espaço. Se tivermos sorte, talvez vejamos um pássaro, ou uma rã. Preciso de respirar. Preciso de ver para além destas paredes.
Já tinha perguntado a Aisling, o mais polidamente que pudera e recebera a resposta que esperava.
— Nunca sais daqui? — perguntei. — Não ficas maluca, aqui fechada o tempo todo?
Aisling ergueu as sobrancelhas.
— As pessoas saem — disse ela, confusa. — Isto não é uma prisão. Há carroças que trazem mantimentos e os homens entram e saem a cavalo, em patrulha. Mas há mais movimento quando Eamonn está em casa.
— E suponho que todas as carroças são revistadas de alto a baixo, quando entram e saem — disse eu secamente.
— Bem, sim. Não fazeis o mesmo em Sevenwaters?
— Não, se as pessoas são conhecidas.
— Eamonn diz que é melhor. Nos dias que correm, nunca se é demasiado cuidadoso. Além disso, ele disse...
Fez uma pausa.
— O quê? — perguntei, olhando-a nos olhos.
Ela ergueu uma mão para prender uns caracóis vermelhos atrás da orelha, parecendo ligeiramente desconcertada.
— Bem, Liadan, se queres saber, ele disse que preferia que tu e Niamh não saíssem, enquanto cá estão. Não há razão nenhuma para te aventurares para lá dos muros. Nós, aqui, temos tudo aquilo de que possas precisar.
— Hum. — Não gostava de pensar em Eamonn decretando regras para mim, especialmente agora, que não havia qualquer hipótese de casamento entre nós. Talvez, depois do que me acontecera, ele pensasse que eu era incapaz de me manter longe de sarilhos. — Não me leves a mal, Aisling — disse eu. — A tua hospitalidade não está em causa. Mas eu tenho saudades de Sevenwaters. Tenho saudades da floresta e dos espaços abertos. Não consigo perceber como tu e Eamonn são capazes de viver aqui.
— É a nossa casa — disse ela simplesmente.
E lembrei-me de Eamonn, uma vez, dizer: Não me sentirei em casa enquanto não te vir à entrada com o meu filho nos braços.
Senti um arrepio. Pedi às deusas que houvesse em Tara chefes de guerra com filhas casadoiras e que Eamonn desse a conhecer as suas intenções. Devia haver muitas raparigas que não teriam qualquer relutância em lhe aquecer a cama e dar-lhe um herdeiro, uma vez passada a palavra de que ele andava à procura.
Muitos dias se passaram e a Lua encolheu, parecendo uma lasca de luz. Quando regressasse a casa teria de me dedicar à agulha, porque os meus vestidos estavam a ficar desconfortavelmente apertados nos seios. Passava o tempo junto de Niamh, mas ela não parecia ter reparado em nada, ainda. Não lhe podia dizer nada. Como arranjaria eu palavras, quando ela transportava na sua pobre e confusa mente a culpa de não ter concebido um filho para Fionn após três luas, nem de ter o mais básico sucesso como esposa? Eu disse-lhe que ainda era cedo, que nem todas as mulheres engravidavam logo. Além disso, agora que ela não ia voltar para Tirconnell, era melhor, certamente, não estar grávida do filho ou filha de Fionn.
— Eu queria era estar grávida de Ciarán — disse ela docemente. —Mais do que tudo. Mas as deusas não quiseram.
— Ainda bem — retorqui, fazendo os possíveis para não perder a paciência com ela. — Havia de ser lindo, com os Uí Néill.
— Não brinques, Liadan. Não podes compreender o que é amar um homem mais do que tudo no mundo, mais do que a própria vida. Como seria maravilhoso transportar o filho desse homem no meu ventre, mesmo se esse homem está... está perdido para mim. Ela começou a chorar, muito baixinho. — Como podes compreender uma coisa dessas?
Na verdade resmunguei, passando-lhe um lenço lavado.
— Liadan? — chamou ela após uns momentos.
— Hum?
— Estás sempre a dizer que eu não preciso de voltar para Fionn, que não preciso de voltar para Tirconnell. Mas, para onde hei de ir?
— Ainda não sei. Mas hei de arranjar qualquer coisa, prometo-te. Confia em mim.
— Sim, Liadan. — Ela disse aquilo com uma docilidade que me aterrorizou. Porque o tempo começava a fugir. Os homens não ficariam no sul por muito mais tempo, com o Inverno a aproximar-se e as suas próprias terras para cuidar. Quando a Lua ficasse cheia de novo eles estariam de volta e, na verdade, eu tinha pouco tempo para arranjar um plano. Niamh, muito simplesmente, não podia voltar para casa sem uma explicação. Assim, teria de ir para outro sítio qualquer, antes que Fionn regressasse. Tinha de se esconder, pelo menos por algum tempo. Mais tarde, talvez, a verdade seria conhecida e ela poderia regressar a Sevenwaters. Um convento cristão seria o lugar ideal, talvez no sudoeste, algures longe da costa e a salvo dos ataques dos Nórdicos. Um lugar onde o nome de Sevenwaters não fosse conhecido. Não havia lugar nenhum onde o nome Uí Néill não fosse conhecido, mas talvez isso pudesse ficar escondido. Se alguém lhe desse asilo por algum tempo, se Fionn se convencesse que ela tinha desaparecido para sempre, se... Perdi a paciência comigo mesma rapidamente, sabendo que não estava a chegar a lado nenhum, percebendo que, se não arranjasse um plano rapidamente, ficaríamos sem tempo. Era óbvio que não poderia fazer aquilo sozinha.
Uma promessa era uma promessa e não podia ser quebrada. Achei que Niamh estava errada. Como podia a aliança ser mais importante para Liam, para Conor, ou para o meu pai, do que a felicidade dela? Certamente que o seu corpo cheio de nódoas negras e os olhos cheios de olheiras era um preço demasiado alto a pagar pelo futuro apoio do Uí Néill, da sua riqueza e do seu grande bando de homens armados? Mas eu dera-lhe a minha palavra. Além disso, não era só a aliança. Era também o segredo que todos eles calavam. Havia qualquer coisa mais por trás daquilo, que nós não compreendíamos; qualquer coisa tão terrível que me obrigava a agir com a maior das precauções, a não ser que quisesse acordar o mal de que eles falavam em voz baixa e olhos obcecados.
Uma coisa era clara. Tinha de tirar Niamh dali antes de os homens regressarem e não havia ninguém na casa que me pudesse ajudar. Eram todos homens e mulheres de Eamonn e de Aisling e não guardariam qualquer segredo do seu senhor e senhora. Além disso, não eram as carroças todas revistadas? Pensei em disfarces, mas abandonei a ideia, conhecedora da estreita vigilância a todo o tráfego que entrava e saía, o que queria dizer que seríamos detectadas de imediato. A minha mente arquitectava planos atrás de planos, cada um mais improvável do que o anterior.
Quando chegou a lua nova não pude acender a minha vela, porque ela continuava no meu quarto de Sevenwaters. Mas depois de Niamh adormecer acendi outra, coloquei-a perto da janela e sentei-me ao pé dela, durante toda a noite. E então, ao imaginar Bran, ele já não estava à sombra das estranhas árvores, com uma lanterna lançando sombras sobre as paredes habilidosamente construídas, o teto abobadado e a velha pedra ritual do grande túmulo que nos abrigara, pareceu-me ter sido há tanto tempo. Havia outros homens com ele, disputando algo e ele estava impaciente. Senti o seu sentido de urgência, a ansiedade que lhe provocava uma ruga entre as sobrancelhas escuras e a tensão nas mãos. Mas não lhes conseguia ouvir as palavras.
Fiz o que sempre fazia nessas noites, quando sabia que ele tentava, acima de tudo, ficar acordado. Estendi a minha mente para tocar na dele, para lhe dar a saber que nunca estaria sozinho; para lhe lembrar que, mesmo para um fora-da-leí sem passado nem futuro, cada dia merecia ser vivido. Mas naquela noite os meus pensamentos negros intervieram, a minha preocupação com a minha irmã, o meu crescente pânico devido à falta de solução para o meu problema, com o tempo a escassear. Todas aquelas coisas se puseram de permeio e não pude dizer se lhe fiz algum bem ou não. Fiquei acordada toda a noite. Pelo menos, podia fazer isso por ele. Não era possível ter a sua imagem na minha mente o tempo todo, antes indo e vindo, saindo do túmulo com grandes passos e deixando os amigos para trás; de pé na escuridão, olhando para as mãos fortemente apertadas. Mais tarde, sentado de pernas cruzadas, não longe do sítio onde fizemos a nossa pequena fogueira com pinhas, quando Evan estava a morrer e eu lhe contei a última história. Sentado com a cabeça rapada entre as mãos e uma minúscula lamparina para afastar a escuridão. Estou aqui, disse-lhe. Não estou assim tão longe. Espera um pouco mais e a madrugada virá. Mas eu tinha de fazer muita força para calar aquela outra voz dentro de mim, a voz que clamava: Socorro! Preciso de ti! Ninguém me podia ajudar, ali em Sídhe Dubh. Parecia não haver uma saída. A não ser... a não ser que fôssemos gatos, talvez. Valia a pena tentar, disse eu para mim mesma enquanto entrava cuidadosamente na passagem, na madrugada do dia seguinte. As coisas que aprendera na floresta de Sevenwaters foram-me extremamente úteis. Achei que tinha passado pelos guardas sem ser vista. Precisava da lanterna, porque o túnel lateral era estreito e o chão uma mistura irregular de pedras partidas. Passei pelas celas vazias, sentindo de novo o sopro frio do medo que se agarrava aos cantos sombrios. Aventurei-me mais além e o túnel ficou mais estreito e íngreme, com água a escorrer pelas paredes, de modo que eu avançava no meio de um regato. E então, abruptamente, a água começou a gorgolejar, desapareceu por baixo da terra e o túnel pareceu acabar; na minha frente estava uma parede intacta, se bem que a luz continuasse a infiltrar-se, vinda de algures. Um beco sem saída. Mas o gato entrara. Pousei a lanterna e avancei, tocando na parede com os dedos. A minha sombra apareceu à minha frente, enorme, à luz da lanterna. E então ouvi-as: vozes familiares, baixas, profundas, tão profundas que quase não se ouviam. Palavras pronunciadas com uma lentidão que parecia antiga, como se viessem das próprias pedras. Afinal, não tinham fugido com a chegada do homem; tinham, simplesmente, descido ainda mais para as profundezas, esperando a sua hora. Fiquei muito quieta, à escuta, esperando o convite.
Em baixo.
Procurei no chão tentando imaginar o que procurar, o que sentir. Um alçapão? Uma passagem secreta? Um sinal qualquer?
Em baixo.
Pensa, Liadan, disse para mim própria, tremendo. Andei ao longo do chão cheio de pedras, seguindo a base da parede com a mão, procurando um sinal qualquer, uma pista, que me dissesse o que fazer.
Ótimo. Ótimo.
A minha mão tocou em algo, um objeto de metal, que estava encaixado por baixo de uma pedra protuberante. Os meus dedos rodearam-no.
Era uma chave, grande, pesada, de ferro forjado. Levantei-me. A luz da lanterna mostrou-me a mesma extensão inviolada de rocha, as mesmas paredes incaracterísticas, de ambos os lados. Não havia qualquer sinal de porta. Levantei a lanterna, baixei-a, examinando todas as superfícies. Não conseguia encontrar o menor sinal de uma abertura, uma greta, uma fenda, na qual pudesse ser inserida.
Senti-me desfalecer.
Volta para trás, disseram as vozes. Para trás.
Que estavam elas a dizer-me, pensei sinistramente, enquanto percorria relutantemente, em sentido contrário, a passagem subterrânea e regressava à casa.
Que eu devia ficar em Sídhe Dubh e deixar o destino seguir o seu curso? Fora esse o conselho que me haviam dado no grande túmulo, e era ver onde isso me levara.
Fossem eles antepassados ou não, comecei a pensar se saberiam, na realidade, o que estavam a fazer. As Criaturas encantadas tinham-me dito para não escutar aquelas vozes antigas. Que podiam ser perigosas. No entanto, os Antepassados tinham-me dado aquela chave. E uma chave era, pelo menos, um começo.
Nessa noite Aisling disse-me, muito polidamente, que era melhor eu não descer mais àquelas partes subterrâneas da fortaleza.
— O meu mestre-de-armas está preocupado com a tua segurança — disse ela muito formalmente. Podia ver que ela estava embaraçada por ter que obrigar uma amiga a seguir determinadas regras. As coisas tinham sido fáceis entre nós, em Sevenwaters. Na verdade, por vezes até parecíamos mais irmãs do que Niamh e eu. Mas ali ela era a dona da casa e eu senti que não valia a pena discutir. Fiquei chocada por ela saber das minhas explorações; fora tão cuidadosa.
— Sinto dificuldade em viver assim tão... tão engaiolada — disse eu.
— No entanto, essas velhas passagens e câmaras não são seguras — replicou Aisling firmemente. — Sei que Eamonn não gostaria nada que corresses algum risco. Por favor, não voltes lá abaixo.
Aquilo era uma ordem, expressa amavelmente e eu percebi que tinha de a acatar. As minhas opções pareciam estar a diminuir rapidamente, à medida que o tempo passava. Cada vez nos aproximávamos mais do dia em que Eamonn e Fionn regressariam de Tara e eu não tinha, sequer, o esboço de um plano prático. Na verdade, começava a duvidar de que conseguisse cumprir a promessa feita a Niamh. Mas eu era irmã dela. Não podia permitir que ela regressasse a Tirconnell, para um marido que lhe dava tão pouco valor. Vira o olhar dela. Sabia que dizia a verdade, que preferia matar-se a continuar. Tinha de a tirar dali antes que regressassem. Fosse como fosse, tinha de arranjar uma saída.
Não soube, no fim, se a solução foi descoberta por mim, ou se os Antepassados me empurraram na direção certa. Talvez pensássemos da mesma maneira, já que éramos da mesma linhagem. Foi de manhã cedo, logo depois da alvorada e Niamh dormia, enroscada por baixo dos cobertores de lã, os brilhantes cabelos cor de cobre sobre a almofada. As minhas noites eram cada vez mais insones. Ficava acordada, buscando soluções, todas elas impraticáveis. Ficava de olhos abertos, ponderando os riscos de dizer a verdade a Sean, ao meu pai ou a Conor, decidindo, depois, que não o podia fazer. O meu pai ensinara-me que uma promessa é para ser cumprida. Além disso, não tinha a certeza do que eles fariam. Havia uma possibilidade de acreditarem que a aliança era mais importante do que Niamh. Não me podia arriscar a dizer-lhes e descobrir que o valor da estratégia de Fionn ultrapassava o menosprezo dele para com a minha irmã. Assim, tinha de descobrir outra solução. Mas não via qualquer saída. Que esperavam os Antepassados que eu fizesse? Voar?
De madrugada levantei-me e vesti-me, seleccionando um dos meus vestidos largos e pensando até que ponto iria a minha barriga crescer até Niamh notar a mudança na minha aparência. As nossas roupas estavam guardadas numa antiga arca de madeira, colocada num recanto do quarto que partilhávamos, separado deste por uma tapeçaria para reduzir a corrente de ar. Procurei um xale na arca, porque a manhã estava fria e quando me levantei, para o colocar em volta dos ombros, senti-me desfalecer. Estendi a mão para a parede de madeira do recanto, para me amparar. Os meus dedos tocaram em algo. Havia uma falha na parede, uma fenda minúscula na superfície de madeira. Estava demasiado escuro para ver o que era. Fui buscar uma vela e olhei mais de perto. Uma tapeçaria para reduzir a corrente de ar, pensei. Onde há uma corrente de ar deve haver uma abertura. A minha mão seguiu a fenda a toda a volta, um quadrado do tamanho de um homem pequeno, ou de uma mulher, dobrado. Uma porta. Estava coberta a toda a volta, na cercadura, de minúsculos sinais gravados, sinais ogham, como os que o meu tio Finbar usava em redor do pescoço, como um amuleto. Mas o antepassado de Eamonn não fora, certamente, um druida. Aqueles sinais secretos de proteção teriam sido feitos a seu pedido, ou gravados por uma espécie mais antiga, que teria habitado a fortaleza muito antes de os humanos terem aparecido e reclamado para si o que não lhes pertencia? Os lugares subterrâneos pertenciam aos Antepassados. Nenhum chefe de guerra arrogante, com um saco de moedas de prata e algumas carradas de pedra para construção podia mudar isso, por mais que tentasse impor a sua imagem na paisagem. Havia um buraco para meter uma chave. Trêmula, fui buscar a velha chave onde a tinha escondido e meti-a no buraco, sabendo que funcionaria. Senti uma inevitabilidade; sabia que estava a ser conduzida. Senti mais receio do que alívio. A pequena porta abriu-se, revelando um íngreme lanço de degraus de pedra que, descia em caracol para a escuridão. Não havia outra coisa a fazer senão segurar nas saias com uma mão, pegar na vela com a outra e descer, esperando que Niamh não acordasse antes do meu regresso.
A descida era tão íngreme e estreita que apenas podia ver a pouca distância. Era uma obra-prima de construção, mergulhando nas profundezas do monte, até que achei que devia estar por baixo do andar mais baixo da casa, por baixo do pátio e até por baixo do local onde as rochas afiadas circundavam o monte, por baixo das muralhas da fortaleza. E, por fim, vi luz à minha frente, uma luz que não partia apenas da fraca claridade emitida pela minha vacilante vela, mas sim uma claridade crescente e que era, indubitavelmente, proveniente dos primeiros raios de sol através da névoa dos pântanos. Desci os últimos degraus em caracol e na minha frente, a menos de cinco passos, no fim do estreito túnel escavado na rocha, estava uma abertura para o Sol da manhã. Encontrara uma saída.
Pouco mais era do que uma fenda, suficientemente grande para uma rapariga do meu tamanho passar, mas demasiado estreita para um homem armado. Na verdade, ainda bem que o meu filho ainda mal começara a crescer, porque, senão, não conseguiria passar. Que estranho, pensei, uma abertura no escudo impregnável de Sídhe Dubh e sem guarda. Olhei em volta e comecei a compreender. O local onde eu emergira estava mesmo por baixo do círculo de rochas afiadas que circundava o monte. Por trás e por cima de mim, as sentinelas passavam para um lado e para outro, no topo dos altos muros, aparentemente desconhecedoras da minha presença no exterior.
Olhei em frente, para norte e vi a linha dos montes distantes que vira da muralha. A extensão de terreno plano à minha frente era um lodaçal, um local tão perigoso que, tentar atravessá-lo podia significar a morte, salvo para aqueles, poucos, que conheciam o caminho. Portanto, podíamos fugir até ali, mas para mais longe, não.
Acocorei-me, muito quieta, junto das rochas, esperando que os guardas não me vissem. Não tinha a certeza se eles se incomodariam a identificar um intruso antes de gastarem as setas que tinham. Atrás de mim, a abertura por onde viera era invisível, uma mera irregularidade na face rochosa da encosta do monte. Talvez estivesse escondida por artes mágicas. Contara os passos cuidadosamente e a direção com precisão, porque não queria ser apanhada ali sozinha, sem explicação.
Fiquei ali sentada por um bocado, sabendo que tinha apenas meia solução e incapaz de resolver a outra meia. A manhã estava fria, com nuvens que sugeriam chuva, mais tarde. Em baixo, junto da água, havia animais, grandes pássaros dos pântanos, de pernas compridas, espetando os seus bicos em estranhos insetos saltitantes.
Observei-os e senti o meu filho a flectir os seus minúsculos membros. Gostava que pudesses ver estes pássaros, disse-lhe. Hás de ver muitos pássaros, quando voltarmos para Sevenwaters. Há um que se chama carriça. É o mais pequeno e é mágico. Encontrá-lo-ás em muitas histórias. Verás um mocho, um corvo e uma cotovia, cujo canto te fará chorar, quando o ouvires. Verás a grande águia planando sobre a floresta e o cisne a descer sobre o lago, quando formos, finalmente, para casa. Ao olhar para aquela extensão pantanosa, pensei na fragilidade de Niamh. Mesmo que a conseguisse trazer até ali sem ser detectada, mesmo que ela estivesse disposta, o que aconteceria depois? Eu não sabia como atravessar aquilo. De barco, talvez. Mas não havia ali nenhum barco e os espaços de água eram poucos e afastados entre si. E não poderíamos ir de dia, porque seríamos vistas e trazidas de volta. Até naquele momento, ali sozinha, não percebia como os guardas ainda não me tinham visto. As suas patrulhas continuavam sempre, lá no alto, passando de um lado para o outro. Após mais uns momentos, regressei e emergi no nosso quarto quase sem fôlego, com as pernas a doerem-me e com a mente ainda sem ter encontrado qualquer resposta. Fechei a porta, escondi a chave e recoloquei a tapeçaria no seu lugar. Niamh continuava a dormir, sem ter dado por nada.
Na manhã seguinte, desci de novo. Era muito cedo. Uma névoa fria cobria o pântano e as nuvens tapavam os primeiros raios de sol. Arbustos atrofiados e tufos de erva varridos pelo vento espetavam dedos irregulares através do manto de vapor e ouvia-se uma chiadeira estranha no lodaçal, sons subtis que não eram feitos por rãs. Estremeci enquanto me sentava sob as rochas e aconcheguei melhor o xale de lã em volta dos ombros. Tinha um quebra-cabeças para resolver e tinha a maioria das peças, mas por mais que tentasse não conseguia juntá-las, nem tirar qualquer sentido de tudo aquilo. Os Antepassados tinham-me guiado até ali. Havia uma saída. E sabia a que hora do dia seria mais fácil fugir. Não conseguia ver a mais de três passos de distância, porque a névoa em torvelinho obscurecia tudo, salvo as poucas plantas protuberantes que, de qualquer modo, sobreviviam naquele lugar inóspito. Com um tempo daqueles, uma perseguição seria impossível. No entanto, quem se aventuraria por aqueles pântanos sem um guia que conhecesse o caminho? Tentá-lo sozinha seria uma loucura. Se as coisas tivessem sido diferentes, talvez me tivesse arriscado de boa vontade, pela minha irmã. Poderia segurar-lhe na mão e atravessar o lodaçal, confiando nas forças antigas para nos guiarem e esperando encontrar asilo antes que os homens nos descobrissem a pista. Mas agora, não. Teria arriscado a minha própria vida e a de Niamh. Mas não a do meu filho.
Era estranho como o tempo parecia mudar. Os dias passavam agora a correr e pela sua confiança cega na minha capacidade para fazer tudo certo, Niamh parecia nos limites. Murmurando para si própria durante o dia e acordando abruptamente de noite, tremendo e chorando devido a um pesadelo qualquer, do qual não falava. E então, com a Lua a ficar cada vez maior, Aisling recebeu uma mensagem. Quando estávamos sentadas a jantar cordeiro assado em molho de rosmaninho, ela anunciou-a.
— Boas notícias — disse ela alegremente. — De Eamonn. Chegou hoje um homem com uma mensagem. Já deixaram Tara e estão agora aquartelados perto de Knowth, onde têm um encontro com os chefes de guerra do distrito. Voltam a parar em Sevenwaters e devem chegar aqui dentro de quatro dias.
Niamh empalideceu. Foi um choque e eu lutei para encontrar as palavras certas.
— Vais gostar de ver Eamonn de novo. — Pelo menos, aquilo era verdade.
— Vou, de certeza — concordou Aisling com um sorriso torcido. —Não posso dizer que não tem sido difícil com ele longe. Temos aqui gente de confiança e capaz, claro, mas o meu irmão é muito esquisito e tenho de os manter debaixo de olho. Além disso, estou preocupada com Eamonn. Ele não estava... ele não estava bem nos últimos dias, antes de partirem. Espero que venha mais bem-disposto.
Não consegui encontrar uma resposta para aquilo e fiquei em silêncio. Mas as palavras de Niamh caíram como passos descuidados num terreno cheio de armadilhas.
— Quatro dias! Não pode ser. É muito cedo. Quatro dias não chegam...
— Não te preocupes, Niamh — disse eu franzindo o sobrolho para os enormes e expressivos olhos azuis da minha irmã, que falavam claramente da traição e desgraça iminentes. — Está tudo bem. — Virei-me para Aisling. — Niamh não tem andado bem. Acho que é melhor retirarmo-nos. Ela precisa de dormir.
O pequeno rosto cheio de sardas de Aisling ficou muito sério. Os seus olhos pousaram-se em Niamh, medindo a aparência da minha irmã e as suas palavras.
— Devias dizer-me, Liadan — disse ela cuidadosamente. — Devias dar-me a saber, se há algum problema. Talvez eu possa ajudar. Eamonn ajudar-te-ia, de certeza.
Eu duvidava muito.
— Obrigada, Aisling. Não precisas de te preocupar.
Quatro dias. Que a deusa nos ajudasse, só quatro dias. Passei a noite em claro, pensando em várias e impossíveis alternativas e não gostando de nenhuma delas.
Assim que o céu começou a ficar levemente cinzento, anunciando a madrugada, levantei-me, contente por estar a pé, calcei as minhas botas grosseiras e um vestido quente com uma pesada capa por cima, desesperada por sair e afastar-me dos muros de pedra, que pareciam encurralar-me e ao meu dilema, um quebra-cabeças insolúvel numa caixa inquebrável. Antes de amanhecer por completo deslizei pela porta secreta no recanto, desci as escadas em caracol e saí para a encosta do monte, por cima do pântano. Fiquei ali a olhar para norte. O meu estômago agitava-se, com os nervos, a ansiedade fazia-me doer a cabeça e eu estava quase a chorar de puro medo, pensando no que havia de fazer. Porque me parecia que a única opção era pegar na minha irmã pela mão e avançar pelo pântano, num ato de fé insana.
Uma mão fechou-me eficientemente a boca e um braço rodeou-me o peito, com força. Uma voz disse por trás de mim, muito suavemente: Só te estou a avisar, no caso de te sentires tentada a fazer barulho. Os guardas não nos podem ver, mas podem ouvir-nos. Mantém-te calada. Está bem?
A pressão do braço abrandou. A mão delicadamente tatuada afastou-se. Não precisava de a ver para identificar o seu dono. Fiel à sua reputação, o Homem Pintado penetrara nas defesas de Sídhe Dubh com tanta facilidade como uma sombra.
— O quê, não levei uma pancada na cabeça, desta vez? — perguntei num murmúrio, sem virar a cabeça. O meu coração batia-me com toda a força no peito.
— Senta-te. — Aquelas palavras, apesar de ditas em voz baixa, eram, indubitavelmente, uma ordem. — Estamos num ângulo morto, mas é limitado. Não vale a pena sairmos e atrairmos as atenções.
Sentei-me e Bran apareceu, colocando-se a coberto das rochas e a três passos de mim. Trazia uma túnica velha e umas calças de uma cor indefinida e as solas das suas botas macias tinham uma camada de lama negra. O seu rosto estava pálido e os olhos sérios. O seu aspecto era maravilhoso. Olhou para mim em silêncio e eu olhei para ele, sentindo as faces corar. Uma pequena ruga apareceu-lhe na testa.
— O que é que tu estás a fazer aqui? — perguntei-lhe, enquanto a minha mente trabalhava vertiginosamente, em busca de possibilidades.
Ele levou tempo a responder e quando o fez falou com precaução.
— É estranho — disse ele. — Pensava que teria as respostas prontas para tudo o que dissesses. Mas tudo me fugiu, tudo, agora que estás aí sentada à minha frente.
— É muito perigoso para ti estares aqui sozinho e desarmado — disse eu com a voz a tremer. Os seus olhos estavam pregados em mim com uma expressão que eu não esperara ver de novo. — Por que estás aqui? A tua cabeça está a prémio, sabes muito bem.
— Isso preocupa-te? — Parecia genuinamente surpreendido.
— Tu é que mudaste as coisas entre nós, não eu. — Tinha as mãos fortemente apertadas uma na outra, no caso de não conseguir evitar aproximar-me dele. — Se pensas que não me preocupo com a tua segurança, então não me conheces de todo. E agora responde à minha pergunta.
— Estava de passagem e pensei que podias estar em sarilhos.
— Não me parece que isso seja verdade. Como podias saber onde eu estava? Além disso, acho que o acaso não tem muito a ver com a tua existência, nem com a dos homens que lideras.
A expressão de Bran era sombria.
— Eu podia dizer-te a verdade. Mas tu não me acreditarias — disse ele simplesmente.
— Tenta. Não tens nada a perder.
— Achas que não?
— Brighicl nos ajude, Bran, tu estás no coração do território inimigo! Por que correr semelhante risco?
— Ehhh, mais baixo. Não estou sozinho nem desarmado. Vim aqui para te dizer que vás para casa. Não te quero aqui em Sídhe Dubh. As coisas vão entrar em ruptura entre mim e este homem, em seu devido tempo. Não quero que sejas apanhada no meio.
A minha boca abriu-se e fechou-se de novo, sem uma palavra.
— Foi o que eu disse. Não me acreditas.
— Mas...
— Eu ouvi um... um grito, um pedido de socorro. Pelo menos, foi o que me pareceu; um grito que chegou até mim quando estava muito longe daqui. Descobri que não conseguia ignorá-lo, regressei e soube que estavas aqui, nos domínios deste homem. Nós temos a fortaleza vigiada, Liadan. Tenho-te visto chegar aqui de madrugada e olhar em volta, como se desejasses voar para longe. As coisas chegaram a tal ponto que eu achei que te devia avisar.
— No entanto — disse eu cuidadosamente — depois... depois das últimas palavras que dissemos um ao outro, espanta-me que me procures. Espanta-me mais ainda que tu me peças para voltar para Sevenwaters, quando repudias tanto todos aqueles que lá moram.
— Estamos a discutir a tua segurança, não o carater do teu pai. Desprezo-o. Mas isso é irrelevante. O domínio do teu tio está bem guardado e eu quero que tu voltes para lá. Deves fazer o que te digo, Liadan. Vai para casa. O mais depressa que puderes. Aqui, não estás em segurança.
— E tu ainda menos. Não te esqueças que Eamonn jurou matar-te se pusesses outra vez, os pés nas suas terras, ou ameaçasses o que lhe pertence. Estes guardas não hesitarão em disparar as suas setas no momento em que te virem. Os homens de verde são rápidos e cruéis. Não quero que tenhas o mesmo destino de Dog. Nenhum homem deveria ter um fim daqueles.
Percebi, enquanto falava, que tinha ido longe demais. Os olhos de Bran semicerraram-se, enquanto ele se aproximava.
— Como é que tu sabes o que aconteceu a Dog? — silvou ele. — Como é que sabes isso?
Um arrepio percorreu-me enquanto as imagens me voltavam à mente. A escuridão da beima do caminho, o som abafado dos golpes, o tilintar dos arreios enquanto eles se afastavam. A voz de Dog, chiando-lhe no peito: Faca...
— Sei porque estava lá — disse eu num fio de voz. — Sei porque vi, da sombra e não os pude impedir. Sei porque... porque... — a minha voz vacilou perigosamente.
— Porque o quê, Liadan? — perguntou Bran suavemente.
— Porque ele suplicou por uma faca, no fim e não estava ali mais ninguém, senão eu.
— Suplicou para que tu acabasses com ele, mas a mão que lhe cortou a garganta, com a faca, foi a minha.
Ouvi-o soltar a respiração e depois ficamos em silêncio durante algum tempo.
Consegui conter as lágrimas. Consegui não estender a mão para lhe tocar.
— Pensava que era forte — disse ele por fim, não olhando para mim, mas sim para um ponto qualquer do outro lado do pântano nebuloso. — Pensava que era capaz. Mas é preciso uma força de vontade que eu não tenho.
Aquilo não estava a fazer sentido. E o tempo estava a acabar.
— Estás a pedir-me que vá para casa. Tenciono ir. Só estou aqui de visita, até Eamonn regressar de Tara. Em breve; eles são esperados dentro de quatro dias. Nessa ocasião, irei para Sevenwaters. Mas não posso ir antes. Estou com a minha irmã.
— O que é que as impede de ir hoje? Por que esperar que o homem regresse? Se tens problemas por causa de uma escolta, eu dou-ta. Discreta. Uma presença efetiva, mas invisível.
— Não percebo por que é que hás de fazer parte dessa decisão. — Respirei fundo. — Além disso, não é assim tão fácil. Eu tenho um... problema. Um problema muito sério. E não sei para quem me hei de virar. Não sei a quem pedir ajuda.
Houve um breve silêncio.
— Podes pedir-me a mim — disse ele com extrema timidez. E depois, esperou.
— Na verdade, é uma missão para o Homem Pintado — disse eu. — Mas duvido que possa pagar o preço.
— Estás a ofender-me — cortou ele, mas sempre em voz baixa, porque, no fim de contas, era um profissional.
— Não percebo porquê. — disse eu. — Tu és um mercenário, não és? Um homem sem consciência? Não é costume discutir os termos com um homem assim, quando se contratam os seus serviços?
— Talvez fosse melhor falares-me da missão, primeiro. Falamos dos termos depois. — O seu tom era frio.
— Eu própria não sei bem. Mas vou tentar explicar-te a situação o melhor que puder, porque tenho pouco tempo; a minha ausência em breve será notada. A minha irmã casou-se no solstício de Verão. O marido dela é um homem de influência.
— Um Uí Néill.
— Sabias?
— Mantenho-me informado. Continua.
— Ela não queria casar. O seu coração pertencia a outro homem. Mas foi para Tirconnell. Foi um modo de nos aliarmos ao Uí Néill do norte, com todas as vantagens estratégicas que daí advêm.
Bran acenou com a cabeça em sinal de compreensão. Tinha um ar feroz, com o sobrolho carregado e com aquela máscara de corvo, aumentando-lhe o aspecto intimidante.
— O marido dela tem-na... tem-na magoado. Tem-na tratado com crueldade. Niamh está muito mudada, uma sombra do que era. Mas não diz nada. Eu é que descobri por acaso e ela fez-me jurar que não diria nada a ninguém da família. Não posso permitir que o marido a leve de volta para Tirconnell. Será o fim dela. Ela prefere cortar os pulsos com uma faca a submeter-se de novo a ele. Eu sei que será assim. Eu... eu prometi-lhe que não voltaria para lá.
— Estou a ver. E agora tens quatro dias para conseguir o impossível.
— É o que parece — disse eu em voz baixa, apercebendo-me da extensão da minha loucura.
— Qual é o teu plano? — perguntou Bran.
— Meio plano, foi tudo o que consegui. Trazer Niamh até aqui abaixo, de manhã cedo, quando a névoa ainda é muito espessa. Atravessar o pântano para norte. Pedir uma boleia a uma carroça que passe; e levá-la, de qualquer modo, até um lugar seguro.
Ele olhou para mim.
— Nesse caso, ainda bem que eu estou aqui — disse ele. — Para onde é que a levas? Por quanto tempo? Que história é que inventas para justificar o desaparecimento dela?
O meu coração batia de novo com toda a força.
— Um convento seria o ideal. No sul, pensei, talvez em Munster. Num lugar qualquer seguro, onde a minha família não seja conhecida. Suponho que não tens contatos nenhuns...
— Ficarias surpreendida. O que é que vais dizer a Uí Néill? E à tua família?
— O melhor era Fionn acreditar que ela morreu. Nesse caso não a procuraria e arranjaria outra mulher. Desse modo, a aliança não precisaria de ser quebrada. Certamente, não serei capaz de esconder a verdade à minha família. Creio que terei de lhes dizer a verdade, no fim.
Bran abanou a cabeça.
— Queres que ela desapareça, de maneira a que não a persigam. A melhor maneira é esconder a verdade de todos, exceto daqueles que têm necessidade de saber. E muito poucos têm essa necessidade. Devias contar a mesma história a todos. Por qualquer razão, podes inventar uma, a tua irmã vagueou pelos pântanos e escorregou. Tu viste-a desaparecer. Ficaste meio louca; o marido fica triste, a família chora-a. A tua irmã salva-se e vai para o convento e fica lá o tempo que quiser. Talvez para sempre. E esse tal homem, aquele que lhe ficou com o coração? Ele tem algum papel nisto tudo?
— Não. Foi-se embora. A minha família proibiu a união.
— Qual é o nome dele?
— Ciarán. Ele é um druida. Por que é que precisas de saber?
— Quando me compram os meus serviços sou eu que dito as regras e faço as perguntas. A tua irmã vem de livre vontade?
— Creio que sim. Ela está... ferida, frágil. Com a mente confusa. Mas, acima de tudo, quer escapar ao marido. O casamento entre eles é terrível, quase a levou à destruição.
— E quando esse Uí Néill começar a procurar uma substituta, tens a certeza que não serás tu a escolhida? — O tom dele era severo.
Abafei um riso nervoso.
— Certeza absoluta — disse eu, ao mesmo tempo que o meu filho me dava um pontapé na barriga.
— Mas seria lógico. Se a tua família, à qual te manténs fiel como um cão, forçou a tua irmã a uma aliança tão monstruosa, por que razão não faria o mesmo contigo?
— Preferia ir pedir para a estrada a aliar-me a um homem daqueles — disse-lhe. — Não acontecerá.
Ele esboçou um sorriso.
— Tu sabes defender-te, não é?
— Sei e defender-me-ei.
— Não duvido.
— Bran.
— Sim?
— A minha mãe está muito doente. Já te tinha dito. Está a morrer. Seria muito cruel dizer-lhe que Niamh morreu sem ser verdade. Preferia não fazer uma coisa dessas.
— Quanto a isso, só te posso dar um conselho. Tu é que lhe deves dizer. Pergunta a ti própria, queres mesmo pôr a tua irmã em segurança? Se é assim, tens de estar preparada para tudo.
Acenei com a cabeça, engolindo com dificuldade.
— Qual é o teu preço para esta missão? — perguntei-lhe.
— Acreditas que sou capaz de fazer isto por ti?
Aquela pergunta apanhou-me desprevenida e eu respondi sem pensar.
— Claro que acredito. Confiava-te a minha própria vida, Bran. Não pediria a mais ninguém para me fazer isto.
— Nesse caso, o preço é esse.
— Que preço? — perguntei, confusa.
— Confiança. É o preço da missão. — Aquela conversa estava cheia de armadilhas.
— Pensava que não acreditavas em confiança. Disseste-me isso, uma vez.
— E continuo a não acreditar. A tua confiança é que é o preço da missão. Como vês, pagas adiantado.
— Quando começas? — perguntei, trêmula, sentindo as lágrimas no canto dos olhos, perigosamente perto.
— Preciso de dois dias para fazer certos preparativos. Não posso agir sem mais nem menos. Tens a certeza que não preferes que esse Uí Néill seja simplesmente removido da paisagem? Definitivamente? Isso pode ser conseguido com facilidade e mais ou menos imediatamente. Nunca mais regressaria, simplesmente.
Senti um arrepio.
— Não, obrigada. Não me sinto capaz de carregar um assassínio na consciência, se bem que tenha pensado nisso, devo confessar. Além disso, tu já tens inimigos que cheguem. Preferia não acrescentar mais nenhum.
Seguiu-se um breve silêncio.
— É melhor regressares. — O tom de Bran era de negócios.
— Não compreendo — disse eu pouco à-vontade. — Não compreendo por que razão nos ajudas, quando nos odeias tanto. Por quê essas trevas todas nos teus olhos quando ouves o nome do meu pai? O que é que ele fez para inspirar tamanha aversão? Ele é um homem bom.
O queixo de Bran retesou-se.
— Não quero falar — disso disse ele. E levantou-se, olhando para cima, para as sentinelas.
— Sim, eu sei. É melhor voltar para cima. — Mas não me mexi.
— Apertamos as mãos para selar o acordo? — perguntou ele timidamente.
Estendi a mão e ele segurou-ma na dele. Mas não me olhou nos olhos. Quanto a mim, senti a sua mão em todos os cantos do meu corpo e lutei muito comigo mesma para não lhe atirar os braços ao pescoço ali mesmo e naquele instante, ou dizer qualquer coisa que lhe revelaria quão precário era o meu domínio e os meus sentimentos. Recordei a mim própria que ele tinha um código, para o ajudar a controlar-se. E usava-o bem; aquilo bem podia ter sido uma transação entre aliados.
Largou-me a mão.
— Traz a tua irmã aqui antes do amanhecer, depois de amanhã. Estaremos prontos. Não corras riscos desnecessários, Liadan. Não te quero em perigo. Não te arrisques.
— A ti, diria o mesmo, se achasse que me ouvias — disse eu, virando-me antes que ele pudesse ver que eu estava a chorar. Como podia dizer-lhe que estava grávida do filho dele, do neto do odiado Hugh de Harrowfield? Como podia eu sobrecarregá-lo?
No entanto, essas palavras estiveram bem perto da minha boca. Só quando já ia a caminho da segurança do meu quarto é que me lembrei que não lhe tinha perguntado nada acerca de Sean, da sua jornada para norte e se lhe tinha feito alguma proposta.
CAPÍTULO DEZ
Depois daquele encontro, o meu comportamento foi exemplar. Não fiz mais viagens secretas ao exterior das muralhas, nenhuma sentinela me viu aventurar a sítios invulgares da fortaleza. Ajudei Aisling a fazer uma inspeção completa à destilaria e aconselhei a herbanária da casa no modo como devia guardar as ervas e poções nas prateleiras, para o Inverno. Não disse exatamente a Niamh o que ia acontecer, ou quando, porque não tinha a certeza de que ficaria calada. Em vez disso, disse-lhe que estava tudo arranjado e ela ficou contente. Exteriormente, eu estava calma e pronta. Por dentro, estava tão tensa como a corda de um arco.
Recordei o que Bran me dissera e não dissera, vezes sem conta. Admiti para mim mesma que fora a ajuda dele que eu sempre esperara. Tentei não pensar nas coisas que desejaria ter-lhe dito e que não tivera coragem para dizer. Coisas impossíveis, como: Fica comigo; e, Vais ter um filho, antes de Beltane. Afastando tais pensamentos o melhor que podia da minha mente, agradeci com simplicidade aos Antepassados, do fundo do meu coração, por o terem trazido em minha ajuda, quando julgara toda a esperança perdida; por, de algum modo, mo terem enviado quando eu acreditava que ele tinha atirado comigo para trás das costas para sempre, juntamente com os meus. O que provocara uma tal mudança era um mistério para mim. Não era suficientemente tola para pensar que algum dia o teria nos meus braços de novo, ouvindo-o pronunciar palavras de amor. Esses pensamentos pertenciam a uma rapariga romântica, tola, disse eu a mim própria, severamente.
Mas virei-me para o nosso filho e disse-lhe: Ele é o teu pai. Um homem que é o melhor naquilo que faz, sempre. Um homem a quem podes confiar a tua vida.
Na noite anterior àquela em que ele devia vir ter conosco, contei a Niamh o que ela necessitava de saber. Que deveria levantar-se em silêncio quando eu a acordasse antes do amanhecer e vestir as roupas quentes e escuras que eu teria preparadas para ela. Que deveríamos, depois, sair depressa e em silêncio, atravessando passagens secretas até à orla do pântano. Que um homem estaria ali para nos guiar e para a levar, depois, para um lugar onde ela ficaria em segurança. Que talvez passasse muito tempo até ela me poder ver de novo.
— Um homem? — Ela pestanejou, sentada em cima da cama, com a camisa de noite vestida e a testa ligeiramente franzida de incompreensão. — Que homem?
— Um amigo meu — disse eu. — Não te alarmes com a aparência dele. É o melhor protetor que te poderíamos ter arranjado.
— Como é que tu... como é que tu conseguiste... — As suas palavras diminuíram de intensidade, mas pude ler a verdadeira mensagem nos seus pensamentos confusos, porque ela não conhecia a arte de esconder os pensamentos. Estava a tentar imaginar como podia eu, uma coisa ridícula, conhecer a espécie de homem capaz de nos ser útil.
— Não tem importância — disse eu. — Precisas é de te lembrar que deves ficar calada e fazer o que eu te mandar, aconteça o que acontecer. Vidas dependem disso, Niamh. Depois, quando lá chegarmos, segue as ordens dele. Faz isso e estarás longe daqui e escondida em segurança antes de o teu marido regressar com Eamonn.
— Liadan? — O seu tom era o de uma criança.
— O que é?
— Não podes ir comigo?
— Não, Niamh. Tu ficas bem, acredita-me. Eu não posso ir, porque se desaparecermos ambas, seremos perseguidas. Se tal acontecesse, Eamonn seguiria todas as pistas até ao fim. Devo ficar e contar-lhe uma história, para cobrir a tua fuga. Depois, vou para casa.
— Uma história? Que história?
— Não interessa. Agora, deves dormir. Vais precisar de todas as tuas forças, amanhã.
A coisa começou bem. Depois de uma noite sem sono, acordei Niamh antes de amanhecer e vestimo-nos à luz de uma única vela. Ela foi penosamente lenta e fui eu que fiz a maior parte do trabalho, apertando-lhe o vestido, penteando-lhe os cabelos, colocando-lhe a capa cinzenta por cima dos ombros e dizendo-lhe para tapar a cabeça com o capuz uma vez fora de portas, porque não ia usar o lenço e o brilho do seu cabelo devia manter-se escondido. Mostrei-lhe a porta escondida e expliquei-lhe, uma vez mais, onde ia dar. A minha irmã acenou com a cabeça gravemente, com uma coisa parecida com compreensão nos olhos.
— Estou pronta — disse ela. — E... obrigada, Liadan.
— Não penses nisso — repliquei, pouco à vontade. — Agradece-me e aos meus... amigos quando estiveres a salvo no convento das santas irmãs. E agora...
Nesse momento viu-se um ruído no pátio e o brilho de archotes a arder. Movi-me silenciosamente para me pôr em cima de um banco e olhei pela estreita janela. Vi uns cavaleiros a entrarem pela porta principal, homens vestidos de verde e homens com o emblema do Uí Néill bordado nas túnicas, vermelho e branco, a serpente devorando-se a si própria. Ouvi o som de cascos de cavalos, de vozes de homens e o abrir de portas, à medida que a casa ia acordando. Vislumbrei Eamonn, pálido e sério como sempre, descendo do seu cavalo e começando a dar ordens ríspidas. Vi a rígida e autoritária figura de Fionn Uí Néill, no meio dos seus homens. Era óbvio que não tinham parado em Sevenwaters. Tinham cavalgado até ali e estavam dois dias adiantados.
Bran! Foi o meu primeiro pensamento, enquanto apressava, em pânico, a minha irmã por baixo da tapeçaria e através da estreita passagem. Bran está aqui e Eamonn está de volta. Se Eamonn o mata, a culpa será minha. Terríveis possibilidades atravessaram-me a mente enquanto descíamos a escada de caracol, eu atrás de Niamh, guiando-a, enquanto ela se lamentava, em pânico:
— Liadan! Liadan, creio que não sou capaz! Está muito escuro e isto é tão estreito!
— Cala-te! — sibilei e agarrei-lhe a mão com força. — Cumpre a tua promessa e faz o que eu te digo. — Ela parecia desconhecer o que se passava no pátio e eu não a esclareci; ela já estava quase paralisada de medo e a jornada ainda mal tinha começado. Valia mais não saber que a perseguição poderia começar a qualquer momento.
Progredíamos muito lentamente.
— Depressa, depressa, Niamh.
Por fim, atingimos o fim e começámos a caminhar ao longo da pequena passagem.
— Cuidado aí — sussurrei. — O chão está molhado. Não escorregues. Com alguma sorte, ninguém nos procuraria tão cedo. Os homens deviam querer comer e descansar, primeiro. Talvez ainda houvesse tempo.
Lá fora estava tudo calmo. Não se ouviam quaisquer vozes, salvo as dos pássaros dos pântanos chamando, à medida que o dia ia começando. Um manto de névoa, doentiamente amarelo-acinzentado, pairava sobre o pantano, chegando até à margem rochosa. Poder-se-ia pensar que nem o Homem Pintado seria capaz de encontrar o caminho através daquele véu tão pesado. Alcançámos o local seguro por baixo do friso de rochas pontiagudas. Muito acima de nós, na muralha, as sentinelas continuavam a patrulhar, para a frente e para trás. Então, Niamh emitiu um grito áspero e eu tapei-lhe a boca com a mão.
— Ehhh — sibilei. — Queres que nos matem? Estes homens estão aqui para nos ajudar.
— Oh... mas... mas...
— Vê se a calas, está bem?
Os olhos assustados da minha irmã olharam primeiro para o homem que falara, o homem que aparecera subitamente diante dela com a sua cabeça rapada e pele tatuada; e depois para o homem por trás dele, cuja pele era negra como a noite e cujos dentes brancos ostentavam uma careta feroz, enquanto me cumprimentava com um aceno de cabeça. Era claro que Niamh não conseguia decidir qual deles era o mais temível.
— Bran. — Puxei-o ligeiramente para um lado, falando em voz baixa. — Eamonn regressou, há pouco, com o marido da minha irmã. O local está cheio de homens armados.
— Eu sei.
— É melhor ires já e tem cuidado. Eamonn jurou destruir-te e é capaz de o fazer sem qualquer desculpa. Por favor, despacha-te.
Ele franziu o sobrolho para mim.
— Não te preocupes comigo. Eu não valho isso. Além disso, já tens muito com que te preocupar.
— Eu preocupo-me contigo. Por que é que não ouves um conselho, ao menos uma vez na vida?
— Vamos — chamou Gull suavemente. Segurara na mão de Niamh e já a conduzia, com gentileza suficiente, através do solo exposto da orla do pântano, onde o nevoeiro os esconderia.
— Tu achas que eu sou um mercenário sem consciência, um homem sem sentimentos humanos — sussurrou Bran e os seus dedos encostaram-se à minha face, quentes e vivos. — No entanto, não queres que eu corra perigo. Isso não é consistente.
— Tens fraca opinião das mulheres e desprezas a minha família — repliquei, com lágrimas nos olhos, porque o toque dos seus dedos tinha acordado em mim uma profunda dor, que era, ao mesmo tempo, de alegria. — No entanto, arriscas a tua vida ao vir aqui, só para me dizeres para ir para casa. E arrisca-la de novo para salvar a minha irmã. Outra mulher. Isso também não é nada consistente.
Olhámos um para o outro e, contra a minha vontade, uma lágrima caiu-me pela face abaixo.
— Não. Não — disse Bran ferozmente e o seu polegar percorreu-me a pele, como que para deter o fluxo.
— Obrigada por teres vindo — sussurrei. — Não sei o que teria feito sem ti.
Ele não disse nada, mas quando olhei para ele vi-lhe os olhos sem escudo. Profundos, cinzentos. Neles estavam as palavras que ele não se permitia dizer. Cobri a mão dele com a minha.
Ouviu-se um grito lá no alto, o som de uma corda tensa e uma flecha passou sobre as nossas cabeças e foi espetar-se mesmo ao lado de Gull, enquanto ele continuava a guiar a hesitante Niamh na direção do encobrimento do nevoeiro. Gull proferiu uma praga e Niamh um pequeno grito; e então ela pareceu ficar gelada de medo e recusou-se a continuar.
— Brighid nos ajude — murmurei e segurei nas saias com as mãos, pronta para correr e empurrar aquela rapariga estúpida. A voz de Bran fez-me parar.
— Não — disse ele. — Fica aqui, onde eles não te podem ver. Adeus, Liadan.
Então ele virou-se e correu na direção das flechas, um alvo perfeito, para os afastar da minha irmã; e eu fiquei ali a vê-lo, porque tinha prometido. Tinha comprado os seus serviços e isso queria dizer que era ele que ditava as regras. Lá em cima ouviam-se gritos e eu ouvi a voz de Eamonn. As flechas começaram a cair com rapidez e todas elas tinham um alvo; mas o homem a correr era hábil e esperto, esquivando-se e serpenteando, virando-se para fazer um rápido e ordinário gesto de desafio na direção dos seus atacantes. Podia ter coberto a distância em metade do tempo; mas assegurou-se de que tanto Gull, como a esforçada e aterrorizada Niamh, cujo capuz escuro caíra para trás revelando os seus anéis de cabelo cor de cobre, desapareciam, por completo, no meio do persistente manto de nevoeiro, antes de correr, como uma flecha, atrás deles. O vapor engoliu-os e eles desapareceram.
Várias coisas aconteceram rapidamente. Foram dadas ordens, lá em cima. Então, alguns homens, com espadas e punhais, lanças e machados, apareceram por baixo das muralhas, correndo e depois parando na orla do pântano, perto do sítio onde eu estava, imóvel, mesmo por baixo da barreira rochosa. Eamonn estava entre eles e foi ele o primeiro a virar-se e a ver-me. Não havia necessidade de fingir: imagino que já tinha um ar convincente de choque e medo.
— Liadan! Graças à deusa estás salva. — Podia ver a fúria nos olhos de Eamonn, apesar do alívio e preocupação. — Pensei... que aconteceu, Liadan? Diz-me, depressa, temos de ir atrás daqueles homens imediatamente.
— Eu... eu...
— Está tudo bem, estás salva. Respira fundo e tenta dizer-me.
Ele agarrou-me pelos ombros, com força, as suas mãos comunicando-me a urgência de perseguir, castigar e destruir.
— Niamh... Niamh foi-se embora — arquejei. — Foi-se embora.
— Para onde?
— Não... não sei. — Até ali não tinha mentido. Eu não era muito boa a mentir. E Eamonn conhecia-me melhor do que muitas pessoas. Esperava que a sua fúria o cegasse face a algumas deficiências da minha história. Uma história que teria de ser contada de maneira bastante diferente, visto que, tanto Niamh, como Gull e Bran, tinham sido vistos a fugir. — Atravessaram o pântano, para norte. Não sei para onde nem porquê.
Eamonn estava zangado.
— Conta-me tudo o que sabes, Liadan. O mais rapidamente que puderes. Cada momento conta. Como é que tu e Niamh vieram ter aqui sem os meus guardas vos verem?
— Há uma passagem secreta. Não sabias? Uma escada de caracol e uma porta oculta. Na alcova.
Ele praguejou.
— Queres dizer... mas essa passagem está selada desde que eu me lembro. Não há chave. Como é que entraste?
A minha mão tocou na chave, dentro da algibeira. Tornou-se necessário mentir.
— Não sei. Acordei cedo, esta manhã e Niamh tinha desaparecido. A porta secreta estava aberta e eu segui-a. Quando cheguei aqui ela ia... ela ia...
— Está bem, Liadan — disse ele com grande amabilidade. — Não precisas de contar essa parte. Quantos homens viste? Só dois?
Acenei com a cabeça.
— Sabes o que eram, suponho? — Acenei com a cabeça novamente.
— Porquê é o que eu pergunto a mim mesmo — murmurou Eamonn, andando de um lado para o outro com impaciência. — Por que é que ele a levou, a não ser por um ato de desafio insana? Que espera ganhar ele com isto? Não havia razão nenhuma para isto.
Engoli com dificuldade.
— Achas... achas que consegues persegui-los e trazê-la de volta? — Parecia-me que o nevoeiro começava a dissipar-se, à medida que o Sol subia no horizonte; conseguia ver uma pequena passagem através do pântano, a lama movediça escura, pontuada aqui e ali por pequenos maciços de vegetação. Estavam muito separados uns dos outros, para que um homem pudesse saltar de uns para os outros. Mais tarde ou mais cedo ele poria um pé naquela superfície negra-acastanhada esponjosa e teria de confiar que ela lhe suportasse o peso. Um homem desconfiado só poderia atravessar aqueles pântanos sabendo o caminho na perfeição. No entanto, eles eram os melhores. Se tinham dito que eram capazes de levar Niamh até ao outro lado, é porque eram.
— Eamonn. Por amor de Deus, o que é que aconteceu? Dizem que Niamh... — Fionn apareceu a correr, pisando com as botas a encosta do monte. As suas feições duras estavam ameaçadoras e o seu rosto estava branco.
— Lamento muito — disse Eamonn com formalidade e eu percebi que aquele deslize na sua segurança, mesmo à entrada da porta, mesmo debaixo do nariz, iria, na verdade, reduzir o seu estatuto entre os seus aliados. Não admira que o Homem Pintado tivesse a reputação que tinha, de puro descaramento. — Parece que ela foi raptada e não há dúvida de quem é o responsável. Os meus guardas viram-nos perfeitamente. Um homem de pele negra como o carvão e outro que tinha uma nítida tatuagem no rosto e no braço. Eram os mesmos fianna que chacinaram os meus guerreiros diante dos meus olhos. Foi uma sorte os meus arqueiros terem-nos afugentado antes de levarem também Liadan.
— Para que lado foram? — perguntou Fionn e a sua expressão recordou-me que ele era um Uí Néill e um condutor de homens. — Hei de arrancar-lhe os membros do corpo quando o encontrar! Para que lado?
— Não podes ir — disse Eamonn rudemente. — Esta tarefa pertence-me e a alguns dos meus homens, que sabem como atravessar em segurança e rapidez. Farei os possíveis para trazer a tua mulher de volta e juro que não descanso enquanto os autores deste ultraje não forem entregues à justiça. E agora tenho que ir e depressa.
— Justiça? — O tom de Fionn era de raiva. — A justiça é demasiado boa para eles. Dá-me um momento a sós com essa escumalha e um machado na mão e eu desenho-lhes mais algumas linhas naqueles couros de foras-da-lei. Não me fales de justiça, ou à irmã de Niamh, aqui presente.
— Vai para dentro, Liadan. — Eamonn já se encaminhava para a orla do pântano. Dois dos seus homens esperavam, as túnicas verdes substituídas por trajes cor de lama, castanhos, e as botas de montar por outras mais flexíveis. Levavam as cabeças cobertas por capuzes e punhais e facas de lançamento nos cintos. Esperaram enquanto Eamonn se despia e envergava um traje igual. Cada um dos homens levava um robusto bordão, mais alto do que eles próprios.
— Muito bem — disse Eamonn. — Eu vou à frente; ficai perto e prontos a atacar ao menor aviso. Eles não levam um grande avanço e podemos apanhá-los antes de chegarem a solo seco. A dama há de atrasá-los. Oran, a tua missão é trazê-la de volta. Assim que os apanharmos, regressas imediatamente com ela. Vai com cuidado, que ela deve estar assustada. Conn, tu ficas com o negro. O outro é para mim.
Não admira que as mulheres tenham fama de ser pacientes, coisa que não acontece com os homens. Nós passamos a maior parte do tempo à espera. À espera que uma criança nasça. À espera que um homem regresse a casa dos campos, do mar, da batalha. À espera, indefinidamente, de notícias. E pode ainda ser pior se o medo nos morde o coração e o aperta com dedos gelados. A mente é capaz de imaginar coisas terríveis, enquanto esperamos.
Aisling era uma rapariga amável e eu apercebi-me disso ao longo daquele interminável dia. Era impossível entreter-me fosse com o que fosse. Ela ofereceu-me hidromel, frutos com especiarias e um canto confortável, privado, junto de um fogo de freixo; e palavras de simpatia. Eu não precisava de fingir angústia.
— Senta-te, Liadan — disse Aisling com ansiedade, os seus olhos redondos preocupados. — Anda lá, senta-te ao pé de mim. Tenho a certeza que Niamh há de voltar salva. Eamonn conhece aqueles carreiros como a palma das mãos. Ele é muito competente. Se alguém é capaz de a encontrar, é ele.
Ela não sabia como as suas palavras me afligiam.
— Não consigo evitar — disse eu. — É tão fácil dar um passo em falso no nevoeiro, dizem, ao tentar avançar depressa... eles podem sair do caminho com tanta facilidade, Aisling. Quanto tempo, quanto tempo é que vamos esperar por notícias?
As minhas mãos tremiam e eu fechei-as uma na outra.
— Pode demorar algum tempo — disse Aisling gentilmente. — Fionn enviou os seus homens pela estrada, para lhes cortar a passagem no outro lado. Eamonn vai com cuidado; não se pode errar naqueles carreiros. De uma maneira ou de outra, os fora-da-lei serão apanhados.
Enquanto esperávamos, Fionn andava de um lado para o outro, de rosto fechado e silencioso. Optara por ficar em Sídhe Dubh à espera das primeiras notícias, em vez de montar a cavalo e ir com os seus homens. Agora, parecia uma fera enjaulada, os olhos a arder de fúria, de punhos fechados. Imaginei se ele sentiria medo pela sua mulher, se o seu espírito lhe doía por ela como o meu doía por Bran, sabendo que os homens de verde estavam perto dele com a morte nos olhos. Ou estava Fionn simplesmente furioso com o roubo descarado de um objeto estimado, se bem que maltratado?
O tempo passou e não recebemos notícias nenhumas. Fartei-me de estar ali sentada e pedi para regressar ao meu quarto por algum tempo. Quando passei por Fionn ele pôs-me a mão no ombro.
— Tem fé — disse ele em voz baixa. — Ainda é cedo.
Olhei para ele, acenei com a cabeça e afastei-me. Não havia nada no seu rosto, senão o olhar aflito de um marido que espera ansiosamente para saber se a sua mulher está viva ou morta. Não fora as nódoas negras, que desapareciam pouco a pouco e não haveria provas do que Niamh sofrera. Nada, senão o testemunho da mente e esse eu estava proibida de partilhar. Que Dana nos ajudasse a todos; e se eles não conseguissem escapar? E se o Homem Pintado não era o melhor e Eamonn o apanhasse? Era impensável. Se isso acontecesse, não poderia fazer outra coisa senão quebrar a promessa que fizera à minha irmã e contar a verdade.
Confiança. É esse o preço. Podia ouvir a voz de Bran na minha cabeça enquanto me dirigia para o meu quarto e fechava a porta. Não podia ter dúvidas. Tinha de ter fé nele. Eu tinha fé nele. Então, por que é que o meu coração batia com tanta força, por que é que tinha a pele toda suada e gelada, por que é que me sentia oca e seca, como se tivesse perdido uma parte de mim própria?
Deitei-me na cama, olhando para o nada e à medida que me fui acalmando comecei a sentir os pequenos movimentos da criança dentro de mim. Serás pai antes de Beltane. Não dissera a Bran. Como podia dizer-lhe? Para ele ficar com mais um fardo? Um homem não pode ser pai se não tiver passado nem futuro. Um homem não pode reconhecer um filho que transporta o sangue de uma família que ele despreza em absoluto. Era melhor que não soubesse. Era melhor que ninguém soubesse de quem era filho. Filho do corvo. A criança da profecia. Não ficaria atada a isso, nem ele. Mas havia Sean. Não se pode manter um segredo para sempre em relação a um gémeo. Ele suspeitava. Em breve saberia. E agora ainda era mais complicado. Porque, fosse qual fosse o resultado da caçada através dos pântanos, a reputação do Homem Pintado pioraria, se sobrevivesse. Acontecesse o que acontecesse, os acontecimentos afastariam totalmente aquele homem da minha família e os homens da aliança nunca aceitariam negociar de novo com o Homem Pintado. A não ser que eu contasse a verdade. Mas eu prometera o meu silêncio a Niamh.
Pobre Niamh. Devia estar tão assustada. Devia sentir-se tão só. E se ela saísse da passagem, cheia de pânico como, certamente, estaria? E se ficasse novamente gelada de terror e não conseguissem fazê-la avançar? Fiz os possíveis por respirar mais devagar. A minha mente estendeu-se, muito cuidadosamente.
Sean?
Não houve resposta. Talvez tivesse sido cuidadosa demais.
Sean? Responde-me, preciso de ti, Sean.
Nada. Esperei durante muito tempo, com a mente aberta a uma resposta. Comecei a pensar no impensável, sabendo onde ele estivera, sabendo com quem estivera. Senti a dúvida a subir-me pela mente. Confiança, disse para mim própria firmemente. O preço é a confiança.
Liadan? O que é que se passa?
Respirei apressadamente.
Sean! Onde estás?
Em casa. Onde é que havia de estar? O que é que se passa?
Não posso dizer. Mas é uma coisa má e não posso lidar com ela sozinha. Tens de vir a Sídhe Dubh. Agora, Sean Traz uma escolta. Eu... nós, depois, voltamos para casa contigo.
É melhor dizeres-me, Liadan. Aconteceu alguma coisa a Niamh?
Por que perguntas isso?
A sua resposta, quando chegou, foi cuidadosa.
Eu não sou cego, por mais que penses. Não me podes dizer o que aconteceu? Levo o pai comigo, ou Liam?
Eu tremia toda, ali sentada e não conseguia manter o medo afastado dele. Todos os meus pensamentos estavam cheios dele.
Não, não os tragas. Só tu e alguns homens. Não quero que os homens de Eamonn nos acompanhem. Vem depressa, Sean.
Vou-me pôr já a caminho.
Misericordiosamente, não fez mais perguntas. E quando chegasse já tudo estaria acabado, de uma maneira ou de outra.
Já estava a anoitecer quando Eamonn regressou. Estávamos no salão, perto do maciço fogão, cuja lenha crepitante enviava uma luz dourada para os pilares estranhamente gravados. Os olhos das estranhas criaturas pareciam pestanejar e brilhar, enquanto olhavam sinistramente para nós. Ouviram-se sons em surdina quando criados e criadas trouxeram comida e bebida e a levaram de novo, intocada.
Aisling deu ordens em voz baixa. Parecia pálida e cansada. Fionn estava sentado à mesa com a cabeça entre as mãos. Quando, por fim, ouvimos rebuliço no exterior, as sentinelas nos postos altos chamando e depois vozes no pátio, ninguém saltou e correu para a janela, para ver. Em vez disso, ficamos os três sentados, gelados, incapazes, depois de tantas horas, de acreditar que as notícias poderiam ser boas e não querendo abreviar o momento inevitável, quando nos dissessem o pior.
Eamonn era um homem que não perdia o controlo com facilidade. Era preciso conhecê-lo bem para reconhecer quando estava zangado ou preocupado. Até a sua proposta de casamento fora um modelo de autodomínio. Mas agora, enquanto entrava calmamente no salão e com um ligeiro gesto despedia o pessoal, era evidente que estava verdadeiramente exausto. O seu rosto estava branco e o seu olhar abalado e velho. Aisling levantou-se para lhe segurar no braço e conduzi-lo até à cadeira junto do fogo, mas ele afastou-a com um violento movimento do braço. Aquilo era um indício de como ele estava tenso. Uma lama escura cobria-lhe as botas e subia-lhe até às roupas.
— É melhor dizeres-nos — disse eu severamente.
Eamonn colocou-se em frente do fogo, de costas para nós, olhando para as chamas.
— Não trouxeste a minha mulher contigo — Fionn controlava mal a voz; as suas mãos estavam cerradas. Aisling viera sentar-se ao pé de mim e mantinha a boca fechada.
Eamonn levou uma mão aos olhos, uma mão que tremia, e disse em voz baixa:
— Que a deusa me ajude. Como eu gostaria que fosse outro a trazer a notícia.
Levantei-me, aproximei-me dele e segurei-lhe na mão. Ele não me afastou e não teve outro remédio senão olhar para mim.
— Muito bem, Eamonn — disse eu olhando para ele o mais fixamente que pude, se bem que o olhar dos seus profundos olhos castanhos me inquietasse. Fionn está à espera de notícias da mulher e eu da minha irmã. Já vimos que o que tens para nos dizer não pode ser bom, mas tens de nos dizer.
— Oh, Liadan. Oh, Liadan, daria tudo para não te trazer notícias tão más.
— Diz-nos, Eamonn.
Ele estremeceu e respirou profundamente.
— São as piores, receio. A tua irmã morreu. Afogada nos pântanos.
— Mas... mas...
Aisling levantou-se rapidamente e rodeou-me os ombros com um braço.
— Senta-te, Liadan. Anda, senta-te.
Eu tremia. Já não era possível dizer o que era verdade ou o que era fantasia. Tinha montado uma armadilha a mim mesma.
— O quê? — Fionn pôs-se de pé muito lentamente. — O que é que nos estás a dizer? Como é que pudeste permitir que isso acontecesse? Nas tuas próprias terras!
— Fizemos tudo. Enviámos homens armados de volta, pela estrada, os teus e os meus, para lhes bloquear a passagem. Seguimo-los pelo pantano, movendo-nos o mais depressa que podíamos. O nevoeiro era muito espesso e isso atrasou-nos; mas eu sabia que eles também eram afetados por ele. E Niamh deveria caminhar lentamente, metida num vestido comprido e sem saber o caminho. Eles teriam que a levar passo a passo. E tinha razão. Apanhámo-los, mas muito mais longe do que eu esperava. Aquele homem maldito é competente. Estávamos mais perto da margem de lá do que da de cá quando o nevoeiro levantou ligeiramente e lá estava ele. O Homem Pintado olhando por cima do ombro, enquanto passava de um pé para o outro. Ele conhece o caminho. Nunca o vi olhar para o chão. Nem uma única vez. Não conseguia ver até muito longe, mas vislumbrei os cabelos brilhantes de Niamh e a sua capa cinzenta através do nevoeiro. Não consegui ver o homem que a guiava. Alertei os meus companheiros e, tirando a minha faca de lançamento do cinto, apressei o passo, até ficar a uns sete passos deles. Ele seguia silencioso; movia-se suavemente, como um veado. Mas mais à frente ouvi a voz de Niamh a fazer uma pergunta e a voz de um homem a responder. Sopesei a faca na mão, calculando a distância e visando um determinado ponto, entre as costelas do homem. Tinha de ser ele o primeiro.
— Diz-me. Por piedade, diz-me. — Cerrei os dentes.
— Eu estava a aproximar-me rapidamente. O Homem Pintado tinha uma faca no cinto, mas não fez tenção de pegar nela. Era como se estivesse à espera que eu atirasse. Ergui a faca, firmei-me para a atirar e, rápido como um raio, ele virou-se, fez um movimento subtil com a mão e algo pequeno e brilhante passou por mim. Ouvi o homem por trás de mim emitir um pequeno grunhido e ouvi um chapinhar quando ele caiu. Quando voltei a olhar, o Homem Pintado tinha desaparecido. A fúria fez com que me descuidasse, avancei e quase caí na lama. Gritei para ele: “Assassino! Escumalha da terra! Hei de pôr um fim à tua vida de destruição e devastação! Tenho a tua marca na minha faca, fora-da-lei!” Ouvi-o rir, um som vazio, sem alma, e então Niamh gritou. Ela ouvira-me a voz e lutava para se libertar, sabendo que a ajuda estava perto.
As palavras dele gelaram-me o coração. Conseguia ver a cena, como se estivesse diante dos meus olhos: Niamh, ouvindo a voz do seu perseguidor e desesperada, ao ver que, no fim de contas, não escaparia. Niamh em pânico, no pântano traiçoeiro.
— Continua, Eamonn — disse eu com a voz trêmula.
— Não sei que mais te hei de dizer.
— É melhor dizeres-me tudo. Para teu bem, assim como, também, para o nosso. Despeja tudo, homem! — Fionn ainda estava mais impaciente do que eu.
— Muito bem. Niamh gritou: “Não” e ouvi o som de luta, à minha frente. O nevoeiro continuava baixo; só levantava a espaços, aqui e ali e eu não podia ver com clareza.
Corri o mais depressa que podia, mas com cuidado, para não cair na lama. Con, que era o último de nós os três, vinha logo atrás. Mas, apesar disso, não fomos suficientemente rápidos para salvar a tua irmã. Ouviu-se o grito de um homem e depois a voz de Niamh, de novo: “Socorro! Socorro!” Por um momento, vi a mão do homem, negra como carvão, estendendo-se, um clarão vermelho do cabelo de Niamh, deslizando para fora do carreiro e ouvi o som da... não, não vou contar essa parte. Vi muito pouco, Liadan. Quando cheguei ao local onde aquilo aconteceu, não havia sinal dela, só a marca no tufo de erva, onde os pés dela tinham escorregado e... e uma mancha na superfície da lama, onde ela desapareceu. E isto.
Segurava um pequeno cordão de algodão entrançado, cinzento, rosa e azul, as pontas atadas com pedaços de couro. Nele estava pendurada uma pequena pedra branca com um buraco no meio. Aquele cordão era obra minha e quando o vi senti o sangue fugir-me do rosto. Porque Niamh não teria, de certeza, deixado aquilo para trás voluntariamente. Nunca, fosse para onde fosse, fossem quais fossem as ordens que lhe dessem. Aquele pequeno talismã era tudo o que lhe restava do amor da sua família e de Ciarán.
— On... onde estava isso, Eamonn? — perguntei eu a muito custo.
— A flutuar à superfície, numa pequena mancha de água. O cordão estava preso nuns caniços. Lamento, Liadan. Não imaginas quanto lamento.
Fionn tossiu para clarear a voz.
— E depois? E os fianna? Foram capturados? — Eamonn olhou de novo para o fogo.
— Não demorou muito até o homem se desmascarar. Fomos em perseguição dele para norte e eu ouvia-o a rir, insultando-me enquanto fugia. “Ficaste surpreendido, não ficaste?” Uma gargalhada trocista. “Usa a cabeça, Eamonn Dubh”, disse ele. “Os meus atos não são comandados pelas tuas noções de correcção e honradez. Eu só jogo para ganhar e emprego a estratégia que for preciso. Para me apanhares, tens de aprender que eu não sou igual aos outros homens. Só raptei a mulher para te demonstrar a fraqueza das tuas defesas. Agora que te chamei a atenção, acho que vais rapidamente remediar a situação. Sabes, no fim de contas, fiz-te um favor”. Continuou com esta lengalenga, conseguindo estar sempre à minha frente, por mais que eu acelerasse. Aproximávamo-nos do local em que poríamos pé em terra firme, para nos encontrarmos com os homens de Fionn. Mas o nevoeiro continuava espesso e subitamente perdi-os de vista. Então, ouviu-se um som à esquerda do carreiro, como o coaxar de uma rã; e outro som à direita, em resposta. Desatei a correr o mais depressa que podia. Quando cheguei a solo firme, o nevoeiro levantou um pouco. Lá estavam os homens de Fionn na estrada, à espera, silenciosos. Mas do Homem Pintado e do seu companheiro de pele negra, nem sinal. Tinham saído do lodaçal de qualquer maneira, mas nunca passaram por onde a emboscada estava preparada. Como o fizeram, não sei, porque não há outra saída. Desculpem-me.
Fionn rodou abruptamente nos calcanhares e saiu do salão. O seu rosto estava cinzento. Podia ter sentido um pouco de simpatia por ele, mas não me esquecia das nódoas negras da minha irmã. Merecia tê-la perdido.
— Lamento — disse Eamonn de novo. — Não tenho palavras que cheguem, Liadan. Fica descansada que procurarei estes homens e certificar-me-ei de que serão punidos severamente. Mas isso é uma pequena consolação para a perda que acabas de sofrer.
Aisling chorava.
— Oh, pobre Niamh. Que maneira horrível de morrer! Até me custa acreditar. É melhor avisarmos Sevenwaters. Vou arranjar um mensageiro..
— Não é preciso — A minha voz tremia. Respirei fundo e fiz um esforço para me controlar. — Sean já vem a caminho; eu tinha-lhe pedido que viesse.
Irmão e irmã olharam para mim e um para o outro, mas não disseram nada. Era do conhecimento geral que Sean e eu não precisávamos de palavras para comunicarmos um com o outro, mas tal capacidade deixava as pessoas pouco à vontade.
— Ele chega amanhã — acrescentei. — Eamonn, preciso de te fazer uma pergunta. Tens a certeza que Niamh... que ela... tens a certeza? No fim de contas, não viste... não terá ela atingido o outro lado? Poderás estar enganado?
Eamonn abanou a cabeça gravemente.
— Receio que não. Não há pistas laterais nestes pântanos. Só há uma passagem. Ela não podia ter escapado aqueles homens e sobreviver, Liadan. São notícias terríveis para a tua mãe.
Acenei com a cabeça. Terríveis, na verdade; ainda por cima porque não sabia se era verdade ou mentira. Era provável que se passasse muito tempo antes de o saber. Entretanto, as verdades que sabia tinham de permanecer escondidas e teria de contar uma história cruel, que podia ser falsa. Porque, caso Eamonn estivesse enganado, caso o Homem Pintado tivesse conseguido o impossível e salvado a minha irmã, tinha que cumprir a minha parte do acordo. Confiança, disse para mim própria, uma vez e outra. Confiança para lá de qualquer lógica. É esse o preço. Devo estar louca.
No dia seguinte chegou Sean e nós dissemos-lhe. Ele recebeu a notícia calmamente, talvez já esperando o pior. Comuniquei-lhe o meu desejo de regressar imediatamente a Sevenwaters e já estava pronta e tinha tudo empacotado logo depois do amanhecer do dia seguinte. Sean recusou a oferta de uma escolta por parte de Eamonn, porque, disse ele, os cinco homens que trouxera com ele deviam ser suficientes.
— É na segurança de Liadan que estou a pensar — disse Eamonn pesadamente. — Este homem não recua perante nada. Sentir-me-ia melhor se fosses mais bem protegido, pelo menos até ao limite das minhas terras.
Sean olhou para mim, de sobrancelhas erguidas.
— Obrigada, Eamonn — disse eu. — Mas creio que não precisas de te preocupar. Certamente, o Homem Pintado não voltará a atacar tão cedo. Ele deve saber que estás alerta. Tenho a certeza que chegaremos a casa sãos e salvos.
As mãos de Eamonn moviam-se, inquietas, como se quisessem pegar numa arma para a usar.
— A tua confiança surpreende-me, Liadan, depois do que aconteceu aqui. Eu próprio vou convosco, pelo menos até à última aldeia.
Não podíamos recusar. Despedimo-nos de Aisling e afastámo-nos de Sídhe Dubh sob um céu cinzento. Quando chegou a hora de voltar para trás, puxou-me de lado, enquanto Sean falava com os seus homens.
— Esperava que pudesses ficar mais tempo — disse Eamonn em voz baixa. — Ou que me deixasses regressar contigo a Sevenwaters. Sinto culpas no que aconteceu. Eu... devia ter a responsabilidade de dizer aos teus pais, de lhes explicar...
— Oh, não. — disse eu. — Tu não tens culpa nenhuma, Eamonn. Não acrescentes isso aos fardos da tua vida. Volta para tua casa, deita isso para trás das costas. A vida continua. — Não estava a gostar nada da luz intensa, quase febril, dos seus olhos.
— Tu és muito forte — comentou ele, franzindo o sobrolho. — Sempre foste. Sempre admirei isso em ti. Poucas mulheres teriam falado com tanta coragem, tão pouco tempo depois de perderem uma irmã.
Pareceu-me mais seguro não responder.
— Portanto, despeço-me — disse ele. — Por favor, diz aos teus pais que desejaria... desejaria tanto...
— Eu digo-lhes — disse eu com firmeza. — Adeus, Eamonn.
Estava à espera de sentir um certo alívio quando finalmente saímos de Sídhe Dubh e dos seus pântanos nebulosos, a caminho de casa. Mas quando me virei na garupa e vi a figura solitária de Eamonn, cavalgando na direção do seu território estranho e inóspito, tive antes um forte sentimento de que, de algum modo, o estava a abandonar. Como se o estivesse a mandar de volta para o seu sombrio lugar. Tentei não pensar naquilo, por me parecer fantasia, mas a imagem permanecia na minha mente enquanto continuávamos o nosso caminho e o terreno ia ficando cada vez mais arborizado, erguendo-se por entre rochedos pontiagudos, na direção da orla da floresta. Subitamente, Sean deteve o seu cavalo e fez sinal aos seus homens para fazerem o mesmo.
— O que é que... — arrisquei.
— Ehhh! — Sean ergueu uma mão em sinal de aviso. Ficamos todos em silêncio. Eu não ouvia mais nada senão o som do canto dos pássaros e o cair de algumas gotas de chuva. Após uns momentos, Sean incitou de novo o seu cavalo, mas lentamente, manifestamente esperando por mim.
— O que é? — perguntei, suspeitando que já sabia.
— Tenho a certeza que ouvi uma coisa qualquer — disse ele com um olhar de esguelha para mim. — Já há um bom bocado. Mas, quando parámos, deixei de ouvir. Os teus ouvidos são bons. Não ouviste nada?
— Só os pássaros. Não pode haver ninguém aqui. Teríamos visto.
— Teríamos? Talvez eu devesse ter ignorado os teus argumentos e aceite a escolta de Eamonn. Somos poucos; uma emboscada seria um problema.
— Por que razão havíamos de sofrer uma emboscada? — perguntei, evitando-lhe o olhar.
— Por que é que raptaram Niamh? — perguntou Sean. — Não havia razão nenhuma. Por que razão, depois de ele...
Seguiu-se uma pausa.
— Depois de ele o quê? Não me estás a dizer que ele aceitou trabalhar contigo?
— Não exatamente — disse Sean cuidadosamente. — Mas disse que ia pensar; ele pondera todas as propostas. Disse que depois me diria, quando decidisse o preço.
Fiquei sem fala. Que jogo tortuoso planeava Bran? Seguramente que o meu irmão, o filho do odiado Hugh de Harrowfield, era a última pessoa com quem ele gostaria de negociar. Uma tal aliança seria cheia de perigos para ambos. O fato de terem pensado nisso alarmava-me.
— Será o ponto de viragem — disse Sean. — O fator decisivo, para mudar o curso da nossa guerra com os Bretões. Ele podia ter dito um preço qualquer; eu teria aceite. Portanto, por quê estragar semelhante hipótese? O homem será louco ao ponto de fazer isto à minha irmã por um... por um capricho?
— Ele nunca age por capricho. — Falei sem pensar. Sean esperou antes de replicar.
— Liadan.
— Hum?
— Não haverá nenhuma emboscada?
— Creio que é muito pouco provável — disse eu com precaução.
— Liadan, a nossa irmã está morta. Foi vista a ser levada através dos pântanos. Houve várias testemunhas. Manténs a tua história, protegendo assim o assassino de Niamh?
— Não, Sean.
— Diz-me, Liadan. Diz-me a verdade. Estás a brincar com coisas mais perigosas do que imaginas.
Mas eu mantive o meu escudo subido e não lhe disse nada. Uma vez, quando passávamos ao longo de um carreiro da floresta cheio de folhas de Outono apodrecidas, senti a presença a meu lado, se bem de desta vez não ouvisse o som dos cascos do cavalo. Ouvi a voz da Dama, baixa e solene e vi, sem virar a cabeça, os seus olhos profundos e sérios.
— Agiste precipitadamente. Deixaste que eles te guiassem de novo. Não podes cometer mais erros, Liadan.
— Não me pareceu que tenha sido um erro salvar a minha irmã de uma vida de abuso.
Estava zangada. Não havia nada mais importante para as Criaturas Encantadas senão os seus grandes esquemas, que nós mal compreendíamos? À minha volta, o meu irmão e os seus homens continuavam a cavalgar, absortos. Olhei para Sean e depois para a Dama.
— O teu irmão não nos ouve. Tornei-o surdo a isto. E agora, ouve-me. Foste muito tola. Se conseguisses perceber o que pode advir disto, saberias como estás errada. Puseste o teu filho em risco. — Os olhos dela eram frios. — Puseste o futuro em risco.
— Que risco? Eu nunca estive em perigo. E estou de regresso a Sevenwaters. O meu filho nascerá lá. Não era isso que querias?
— Talvez a tua irmã esteja morta. — Ela falou friamente, como se aquilo não tivesse significado nenhum. — Afogada. Talvez tenhas arriscado tudo, para nada.
— Ela está salva. Eu sei. O homem que a raptou é de confiança
— Ele? Ele não é nada. Não passa de uma mera ferramenta. O papel dele nisto tudo acabou, Liadan. Apenas duas coisas te devem preocupar. Não podes pôr em risco a aliança. Sem a aliança, o teu tio não tem força suficiente para triunfar. Sem o Uí Néill não pode reconquistar as Ilhas. A tua loucura quase lhe custou essa hipótese. E deves proteger a criança. Ele é a nossa esperança. Mais erros, não. Tens de parar de agir por conta própria Não me voltes a desobedecer. Se ela souber do teu filho, procurará destruir-te. O teu filho tem de ficar na floresta, onde pode ser protegido como deve ser.
— Ela? Ela quem?
Mas a Dama da Floresta limitou-se a abanar a cabeça, como se o nome não pudesse ser dito por meio de palavras e desvaneceu-se lentamente, até que deixei de a ver. E, por fim, chegámos a Sevenwaters com a nossa terrível notícia.
Era para ser um grande segredo, guardado durante tempos difíceis.. Tempos que puseram à prova, até ao mais alto grau, a minha força, enquanto via as feições da minha mãe a definharem e os seus olhos a ficarem cada vez mais sombrios, ao mesmo tempo que suportava os longos silêncios do meu pai, de lábios apertados.
Veio o Inverno e ficamos todos engaiolados, mais do que desejaríamos, impotentes para mitigar as dores uns dos outros, sentindo o tecido da nossa família esticar e rasgar, sem sabermos por onde começar para reparar tais estragos. Sean e Liam discutiam por trás de portas fechadas. Liam falava de vingança; Sean, agora, aconselhava prudência. A nossa força devia ficar de reserva, dizia ele, para quando os aliados se juntassem para um ataque final às posições de Northwoods. Talvez no Verão seguinte; ou então, no Outono. Por que desperdiçar bons homens e armas na perseguição ao Homem Pintado! Além disso, ele já estava fora de alcance, segundo parecia. Na Gália, ou mais longe ainda. Niamh estava perdida; nenhum derramamento de sangue a traria de volta. Foi uma argumentação invulgar por parte do meu irmão, mas, por fim, Liam ficou persuadido. Tínhamos poucas notícias de Eamonn, mas sabíamos que não poria de lado a busca de vingança. Eu vira-lhe o olhar; estava da cor do sangue. Havia morte naquele olhar, pelo menos para um deles.
Desejava regressar à lagoa secreta da floresta, que Conor me mostrara. Talvez eu encontrasse, naquelas águas calmas, as respostas de que necessitava desesperadamente. Queria falar com Finbar, que parecia saber tanta coisa, que não julgava, como se fosse uma criatura de instintos, imperturbável a noções de bem e de mal. Porque o meu segredo pesava-me. Eu tinha de proteger a minha irmã; nunca trairia Bran. Mas o fato de eu não poder dizer o que acreditava ser verdade provocava nos que amava uma grande tristeza e tinha de viver todos os dias com ela.
O poder da Visão é, ao mesmo tempo, um dom e uma maldição. E era em tempos difíceis como os que estávamos a passar que ele me era mais necessário. Mas ele vai e vem como lhe apetece e não pode ser chamado com um esforço da vontade. Tentei; tentei ver Niamh, onde estava, como estava, com quem estava. Tentei tocar em Bran com a mente, mas ele estava muito longe e só conseguia sentir a sua presença durante a lua nova. E estava esbatido, uma mera sombra da força que tinha entre Sean e eu, que estivera ao meu lado, durante dez luas, no útero da nossa mãe. Pensei que Sean devia saber. Não o dizia; o conhecimento estava no seu comportamento. Por que outra razão convencera o seu tio a abandonar o desejo de vingança? Por que outra razão não anunciara a todos, em várias ocasiões, a minha ligação ao Homem Pintado! Ele sabia, ou suspeitava, e entendia a minha necessidade de guardar segredo, mesmo em relação a ele. Mas também via o desgosto dos meus pais e creio que sentia dificuldade em não me culpar.
Havia uma razão para me sentir feliz e continuar. Andava toda a gente inquieta, à medida que o meu tempo se aproximava e o meu filho crescia. Sean brincava com a minha barriga cada vez maior, mas estava sempre presente quando eu precisava de ajuda para subir um lanço de escadas, ou percorrer o caminho difícil que ia dar à aldeia. Apesar do seu estado de fraqueza, a minha mãe observava-me com os seus olhos perspicazes de curandeira, prescrevendo doses de vários chás acres e insistindo no meu descanso na parte da tarde, à medida que o tempo ia ficando mais quente, com a aproximação da Primavera e as primeiras folhas delicadas desabrochavam nas faias. O meu pai era o pior de todos, vigiando-me, para ter a certeza de que comia tudo o que me punham à frente, perguntando-me se dormia bem, escoltando-me sempre que eu saía para um pequeno passeio, para o caso de eu me cansar. A minha mãe ria-se dele, com aqueles modos gentis dela, dizendo que com ela tinha sido o mesmo, das duas vezes. Depois, ficava em silêncio, sem dúvida recordando a primeira filha de cabelos cor de cobre, a bela rapariga que dançara pelos bosques no seu vestido branco.
Sevenwaters era uma comunidade muito fechada, apesar da extensão das nossas terras, e era difícil evitar os mexericos. Achei alarmante o que descobri. Quando ia à aldeia visitar os doentes, coisa que fiz praticamente até ao fim, havia sempre alguém que estendia uma mão para me tocar na barriga, sorrindo timidamente.
— Para dar sorte, minha senhora — murmuravam, ou — Abençoada, minha senhora.
Ao princípio não fazia ideia do que queriam dizer com aquilo. Mas, por acaso, ouvi a história que andavam a inventar; uma história muito mais estranha do que a verdade.
A história explicava porque desaparecera eu tão inexplicavelmente e regressara com uma criança na barriga. Explicava por que razão o meu pai e o meu tio não me tinham expulso, deixando-me antes ficar em casa, para dar à luz o meu filho no santuário da grande floresta. A história dizia que as Criaturas Encantadas tinham decidido criar aquela criança, para que, por fim, a profecia se cumprisse e as Ilhas pudessem ser salvas. E então, também o lago e a floresta se salvariam. Não era eu como a rapariga da velha história, a filha a quem chamavam o coração de Sevenwaters? Quem melhor do que o meu filho poderia levar a cabo a profecia dos Anciãos? E não admirava que eu não dissesse o nome do pai, porque aquela criança era filha do Outro Mundo, meio mortal, apenas. Quem sabia que poderes teria? Era o que diziam. Podia ter-lhes dito umas tantas verdades, que teriam destruído todas aquelas mentes mirabolantes, mas não disse. Quem acreditaria que a filha protegida de Sevenwaters, que lhes tratara das doenças com toda a devoção, a sólida e civilizada Liadan, se deitara com um fora-da-lei e voltara para casa com o filho dele na barriga? Quem acreditaria que ela construíra uma teia de mentiras para proteger o homem que talvez tivesse sido, ou não, responsável pela morte da sua irmã? É assustador como uma pequena mentira pode ser o começo de uma mentira maior, que pode não mais ter fim.
As estações passaram e eu não tinha notícias de Niamh. Não tinha notícias nenhumas. A minha mãe ensinou a Janis o ofício de parteira. Ossuda, cheia de ângulos, Janis parecia não ter idade. Parecia impossível que um dia a tivessem chamado Janis Gorda, mas tanto a minha mãe, como Liam, me tinham assegurado que assim fora. Os Invernos rigorosos dos tempos da feiticeira tinham cobrado os seus direitos. Mas Janis tinha mãos carinhosas e eu sabia que podia confiar nela. O bebê parecia determinado a continuar com a cabeça virada para cima; a minha mãe dizia que não havia perigo, que ainda tinha muito tempo para se virar, antes do fim.
Eu era muito pequena e um parto naquelas condições não era muito recomendável.
Cansava-me com facilidade e passava a maior parte dos dias cada vez mais quentes sentada no banco de pedra cheio de musgo do jardim, absorvendo o sol da Primavera e falando silenciosamente com o meu filho.
Pódes gostar deste jardim, dizia-lhe eu. Cheira bem; e há muitas coisas pequeninas. As abelhas são as que têm riscas e asas. Tens de ter cuidado com elas. Quando ficar mais quente, vêm os gafanhotos. Escaravelhos, de todos os tamanhos e cores, que comem as folhas todas, se não tiveres cuidado. É por isso que criamos alho ao pé das couves. Quando chegar Meán Fómhair outra vez, poderás sentar-te na erva e observares tudo.
Às vezes, falava-lhe no pai. Só às vezes, porque não lhe queria dar falsas esperanças. Ele é muito forte. Um corpo forte; uma mente forte; uma vontade forte. Mas algures, durante a vida, perdeu o rumo. Dei-lhe o mesmo nome de Bran, o Viajante e foi o mais adequado que encontrei. Porque Bran Mac Feabhail, o herói da velha história, nunca mais regressou a casa da sua longa e estranha jornada. Quando navegou de regresso à costa de Tirconnell e um dos seus tripulantes saltou do barco para a praia, definhou imediatamente, como se estivesse morto há muito tempo.
Talvez aquela viagem mágica tivesse durado centenas de anos, se bem que Bran e os seus marinheiros pensassem que tinham estado ausentes apenas durante um ano.
Assim, Bran contou a sua história, de pé no costado do seu navio acostado e depois ergueu as velas de novo, afastando-se e nunca mais pôs os pés no seu país. Nunca teve os braços de uma mulher para lhe darás boas-vindas, nem a alegria de ver um filho crescer. A criança deu-me um pontapé a propósito; já tinha pouco espaço para se mexer. Talvez me estivesse a dizer algo da única maneira que sabia. Está bem, disse-lhe eu, mexendo-me no banco de pedra, desconfortável. Se a jornada dele tiver um fim, havemos de o descobrir, para to poder contar. Mas ele não no-lo há-de agradecer. E tu vais ter de ajudar. Eu, sozinha, não sou capaz.
O tempo estava quase a chegar ao fim. Sentia-me pronta; as flores da Primavera tinham emergido, pálidos narcisos, maravilhosas campainhas, campânulas-brancas e havia um calor definitivo no ar, apesar da chuva persistente. As cerejeiras estavam cobertas por um manto delicado de flores. Parecia-me uma ocasião ótima. A minha atenção virou-se para dentro de mim mesma; estava sintonizada com qualquer pequena mudança no meu corpo e pouco atenta ao que se passava fora dele. Sabia que Sean estava ausente. Não me dissera onde fora.
Viraram-me a criança; já era quase demasiado tarde para isso e o processo foi desconfortável, mas necessário, para um parto mais fácil e mais seguro. Depois, disse-lhes para me deixarem só, porque me parecia que chegara a hora de me colocar nas mãos da deusa.
Uns dias mais tarde, eu estava sentada no meu quarto numa noite de lua nova, olhando para a chama da minha vela. Vigiara a vida de muitas delas; cada uma tinha a sua pequena grinalda de ervas poderosas e o colar de unhas de lobo, com a única pena negra metida na fita de pele. Talvez o tivessem protegido e talvez não. Naquela noite estava particularmente cansada; as pálpebras teimavam em cair-me sobre os olhos e eu acordava com um sobressalto, porque não queria que ele velasse sozinho na escuridão. Mas o meu corpo levou a melhor sobre a mente e adormeci profundamente na cadeira em que estava sentada.
Uma dor aguda acordou-me e quando me levantei havia um fluxo de líquido no chão, entre as pernas. A partir dali, foi só dor, confusão e o maior esforço que alguma vez tinha feito na minha vida. Ainda bem que Janis estava presente, porque a minha mãe estava muito fraca e só podia sentar-se a meu lado, agarrando-me na mão e passando-me panos húmidos pelo rosto. Mas, por mais fraco que o seu corpo estivesse, a sua mente continuava perspicaz como sempre e ela comandou Janis e as outras mulheres com confiança e precisão. Talvez com mais confiança do que a que sentia, porque me disse, em voz baixa, que parecia que a criança se virara de novo durante os últimos dias, estando agora firmemente alojada numa posição, determinada a nascer de costas. Não tinha de me preocupar, disse-me ela firmemente. Eu era jovem e saudável e a criança não parecia ser muito grande. Eu ia conseguir.
Tenho de conseguir, dizia eu a mim mesma. Porque, se não conseguir fazer força para o por cá fora, morro e ele também. Tenho de conseguir. Oxalá o cordão não esteja enrolado em volta do pescoço.
Demorou tempo. A vela continuou a arder até a madrugada cor-de-rosa e laranja, entrar pela janela estreita do quarto que eu em tempos partilhara com a minha irmã.
Uma das mulheres fez tenção de a apagar, mas eu falei-lhe asperamente, obrigando-a a deixá-la acesa. Daquele modo, algo do pai do meu filho estaria dentro daquele quarto, testemunhando o seu nascimento. A luz aumentou, assim como a atividade à minha volta e eu conseguia ouvir vozes de homens no exterior. A determinada altura a minha mãe saiu, provavelmente para tranquilizar o Homem Grande, porque eu podia imaginá-lo a andar de um lado para o outro, inquieto, esperando que tudo acabasse, sentindo-se desconfortável por, pela primeira vez, não poder fazer nada para ajudar.
— Podes gritar à vontade, miúda — disse Janis um pouco mais tarde. — Este trabalho é cruel; não esperamos que o leves até ao fim em silêncio. Pragueja e chora o que te apetecer.
Mas, a mim, parecia-me que o silêncio significava controlo; e também pensava, no intervalo daqueles espasmos e dores agudas, como Evan, o ferreiro, fora estóico, suportando uma agonia seguramente maior do que aquela. Porque, não era verdade que as mulheres aguentavam aquilo há mais anos do que estrelas havia no céu? Eu tinha um trabalho para fazer e tinha de o desempenhar. Até que me pareceu ouvir uma pequena voz a dizer: Ótimo. É assim mesmo.
Mais tarde, quando a luz esmorecia lá fora até ficar de um violeta acinzentado e até Janis parecia exausta, a minha mãe mandou-as fazer outro chá e quando o cheirei, ergui as sobrancelhas, porque, além de dictamno e hissopo, havia calaminta naquele chá e um outro aroma, muito acentuado, que não reconheci.
— Eu não preciso disso — disse eu, zangada. — Posso muito bem fazer isto por mim própria.
A minha mãe sorriu e, se estava preocupada, conseguiu escondê-lo bem. Não havia sinais de cansaço nas suas feições pequenas, agradáveis. Estava pálida; mas, naqueles dias, andava sempre pálida.
— O crepúsculo seria uma boa hora para esta criança nascer — disse ela docemente. — A hora certa, creio. Não te esqueças que eu é que sou a curandeira, filha.
Olhei para ela, carrancuda e bebi, sentindo outra guinada a subir-me pelo corpo e, desta vez, não consegui calar-me. Aquela era diferente, mais forte, mais violenta e senti uma necessidade de fazer força, uma necessidade que não podia ser negada.
Depois disso, foi fácil; quase demasiado fácil. Fiz mais barulho do que queria; a minha mãe disse-me para parar de fazer força, mas eu não pude; alguém me segurava nos ombros e Janis dizia, isso, isso, é isso, miúda; e fiz um último, súbito e impossível esforço e, de repente, silêncio.
Depressa ouvi Janis dizer e houve uma série de movimentos apressados.
— Vira-o de cabeça para baixo, isso, assim. Limpa-lhe a boca. Assim. Agora...
Eu estava deitada, completamente esgotada; mas quando ouvi o primeiro grito de protesto do meu filho sentei-me de imediato, as lágrimas caindo-me pelas faces, ao mesmo tempo que estendia os braços para ele. Oh, ele era perfeito. Tão pequenino, todo enrugado e o rosto vermelho, mas já com um chapeuzinho de caracóis castanhos, colados ao pequeno crânio devido aos resíduos de sangue do parto. Era o meu filho e de Bran. Oh. Oh, como gostaria que estivesses aqui para o ver. Para veres a criança maravilhosa que fizemos.
— Estás a chorar, miúda — disse Janis, esfregando furtivamente as suas próprias faces.
— Não é altura para lágrimas. Tens aí um ótimo rapazinho. Pequenino, mas forte. E grita que se farta. Um pequeno lutador, esse aí.
Seguiu-se uma série de limpezas, como em todos os partos. Elas afadigaram-se todas à vinha volta, enquanto o meu filho permanecia, docemente quente, em cima do meu peito. Calara-se, a sua pequena boca preparando-se já para mamar, os dedos minúsculos agarrados a um dos meus. Não me largues.
A minha mãe estivera estranhamente calada. Achei que ela estava exausta da longa noite e do dia, mas quando olhei para ela, continuava sentada na beira da cama, de olhar muito pensativo, fixo no bebê. As mulheres terminaram o seu trabalho, foram para uma refeição bem merecida e a minha mãe disse a Janis para ir, também, comer qualquer coisa e beber um pouco de cerveja, acrescentando que levasse o tempo que quisesse.
— E, Janis? Diz ao Homem Grande que pode vir cá acima, está bem? Só por um bocadinho.
Depois de todas elas saírem e o quarto ficar vazio, ela falou de novo.
— Liadan.
— Hum? — Eu estava quase a adormecer. O pequeno fogo aquecia o quarto e um aroma agradável a lavanda espalhava-se pelo ar; aquelas flores secas estavam a ser queimadas pelas suas propriedades curativas.
— Não sei bem como te hei de dizer isto. Mas tenho de to dizer. Liadan, acho que devias dar a esta criança o nome do pai.
— O quê?
— Ehhh, Ehhh. Deita-te, ou ainda o assustas. Pode ser que esteja enganada. É melhor esperarmos até o teu pai chegar. Há umas parecenças muito grandes. E Red disse-me... ele disse-me que, de algum modo, o teu homem está ligado a Harrowfield. Se não fosse isso, talvez me tivesse passado despercebido.
Ouvimos o som de botas a subirem os degraus, três a três, a percorrerem o salão e, de repente, a porta abriu-se de rompante.
— Liadan! — O meu pai atravessou o quarto com dois enormes passos. — Minha querida, estás bem? — E então ele viu o bebê em cima do meu peito e a sua boca abriu-se num grande, doce e maravilhoso sorriso. Há muito tempo que não o via sorrir.
— Pode pegar nele, se quiser, avô — disse eu.
E foi então que a minha mãe contou a história, enquanto o meu pai se plantava em frente da lareira com o neto nos braços e eu encostava a cabeça a um braço e bebia uma taça de vinho com ervas que a minha mãe me colocara na mão.
— Este parto — disse Sorcha suavemente — este parto foi tão parecido com um outro a que eu assisti há muito tempo, que não pode ser coincidência. Poderia ser, se esta criança não fosse a imagem da outra, o rapaz que eu ajudei a nascer na noite de Meãn Geimhrídh, em Harrowfield.
O meu pai olhou para ela vivamente.
— Como é possível? — perguntou ele. — Além disso — e ele olhou para a criança embrulhada, tão pequena, nas suas grandes mãos — os bebês não são todos iguais?
— Creio que tenho razão — disse a minha mãe. — E creio que concordarás comigo. O trabalho de parto e o nascimento foram iguais; a criança determinada a nascer de costas, o trabalho de parto demorado, a dificuldade do nascimento. Liadan é mais nova, mais forte do que Margery e mais determinada e, por isso, precisou de menos ajuda. Mas foi igual.
— Todos os nascimentos de costas são difíceis — disse eu com o coração a bater com força. — Quem era essa criança?
Mas a minha mãe não me respondeu.
— Olha para o bebê — disse ela para Lubdan. — Olha para o cabelo encaracolado dele, para os olhos cinzentos. Olha para o queixo e o formato da testa. A semente do rosto de John está-lhe nas feições, apesar de vermelhas e enrugadas. Não me digas que não és capaz de ver, Red.
O meu pai aproximou-se da vela, olhando intensamente para o rosto do bebê e eu ouvi um súbito gemido de protesto.
— Pronto — disse eu pousando a taça e o meu filho regressou para os meus braços. Dei-lhe umas pancadinhas nas costas e comecei a cantar-lhe, em voz baixa, uma antiga canção de embalar, que, curiosamente, adormecera, uma vez, o pai dele.
— Red?
O meu pai acenou com a cabeça.
— Estou a ver, Jenny. — Assim a chamava ele desde que se tinham conhecido, quando ela não tinha voz para dizer o seu verdadeiro nome. — E coincide com o que me disseste, Liadan. Que o pai desta criança viveu, em tempos, em Harrowfield. O rapaz devia ter menos de um ano quando Jenny de lá saiu.
— Quem... quem era ele? — Perguntei cuidadosamente, fazendo contas de cabeça, rapidamente, tentando perceber se Bran poderia ter menos de 21 anos. Que dissera ele? Quanto eu tinha nove anos, decidi que era um homem. Talvez fosse verdade.
— O nome dele era John, como o pai. Mas chamavam-lhe Johnny.
Ele, agora, não responde a esse nome. Mas um nome muda-se.
— O teu homem tem olhos cinzentos?
— Tem.
— E o cabelo? Este tinha cabelos castanhos encaracolados, tal como os do teu filho.
Senti um rubor a subir-me lentamente pelas faces e agradeci à deusa por eles não me poderem ler os pensamentos.
— São iguais — disse eu após um momento.
— Ele é bretão? — perguntou o meu pai. — Se é, posso aceitar a tua relutância em revelar a sua identidade. Mas não te esqueças das minhas origens. Tenho-me dado bem por aqui.
— Não sei dizer. Mas é possível. Pode contar-me a história, por favor?
O meu pai franziu ligeiramente o sobrolho.
A tua mãe está muito cansada.
— Então, conte o pai. Por favor.
Ele sentou-se no outro lado da cama. Lá fora já estava escuro.
— Eu tinha dois amigos leais em Harrowfield. Ben, meu irmão-de-leite, um homem rápido com a espada, mas mais rápido ainda com o chicote. E John. John era um parente muito chegado, meu guia e conselheiro, meu companheiro em todos os esforços. Era um homem a quem se podia contar qualquer segredo. Era um homem a quem se podia confiar a própria vida. John casou com uma rapariga do sul, Margery, era esse o seu nome. Havia um profundo amor entre os dois. Perderam um primeiro filho e quase perderam este, também. Mas a tua mãe estava lá e assim, depois de uma longa noite, também ele nasceu, são e salvo.
— Nunca houve uma criança tão amada e querida como Johnny. — A minha mãe continuou a história. — Margery tinha tanto orgulho nele. Via-se em tudo o que ela fazia. Andava sempre com ele ao colo, falava-lhe, cantava-lhe. Fazia-lhe as camisinhas mais encantadoras, todas bordadas com flores, folhas muito pequeninas e criaturas aladas. John era um homem reservado. Mas era muito devotado a ambos.
— Aconteceu... aconteceu alguma coisa? — Não estou a ver como uma criança tão acarinhada se podia ter transformado no homem que me fez o meu filho. — Ele não é... ele não é um homem criado com amor. Isso sei eu.
— John morreu — disse o meu pai pesadamente. — Foi morto; esmagado contra uma rocha enquanto vigiava Jenny. Foi um trabalho de Northwoods. Foi uma coisa terrível e Margery suportou mal a perda. Mas quando eu saí de Harrowfields ela fazia os possíveis para criar sozinha o filho. Ficaram bem protegidos sob o teto do meu irmão.
— O filho de John deve ter-se transformado num ótimo homem — disse Sorcha, fixando-me intensamente. — Um homem bom e saudável.
Acenei com a cabeça, sentindo lágrimas nos cantos dos olhos. O meu pai levantou-se.
— Estamos a cansar-te — disse ele. — Precisas de dormir; precisais as duas, de dormir. Fizestes ambas um bom trabalho. As minhas duas grandes mulheres. — E quando se ia a virar, para se ir embora, disse-me calmamente — Se o meu neto também é neto de John, sinto-me feliz, filha. John também se sentiria. Gostaria muito de conhecer o pai do teu filho. Espero vir a conhecê-lo, um dia.
Mas eu limitei-me a acenar com a cabeça e então Janis regressou com comida e eu descobri que estava cheia de fome.
— Espera até te vir o leite — disse Janis secamente, sentando-se perto do fogo com a sua caneca de cerveja. — Vais comer como um cavalo.
Mais tarde adormeci com o bebê a mamar; e à janela a vela continuava a arder, pronta para outra noite.
CAPÍTULO ONZE
Os tios reuniram-se. Pressenti que não era apenas para inspecionar o recém-nascido, mas também para um propósito mais profundo, mais solene. Porque a minha mãe estava a enfraquecer rapidamente, como se tivesse estado apenas à espera do nascimento, antes de se despedir de Sevenwaters.
Eu era possessiva com o meu filho. Não havia necessidade de arranjar uma ama-de-leite. Eu alimentava-o e tratava-o, andava com ele ao colo e cantava para ele. Tinha uma rapariga para me ajudar, porque o meu pai insistira, mas ela fazia pouca coisa.
Antes de o meu filho ter atravessado uma lua neste mundo já ouvira a história completa de Bran, o Viajante. Quanto dela terá compreendido, não sabia.
A minha mãe passava a maior parte dos dias deitada na cama, ou numa esteira colocada no jardim, onde podia descansar quando o tempo estava bom e cheirar as ervas curativas. Gostava de ter Johnny a seu lado, de maneira a poder afagar-lhe os caracóis suaves e os sons que fazia, murmurando-lhe histórias. O meu pai andava de um lado para o outro, de rosto severo, velando as suas noites e os seus dias. Liam mandou chamar Sean, que viajara para norte em negócios não especificados. Conor foi o primeiro a chegar com mais alguns da sua espécie, de mantos brancos e silenciosos, pisando suavemente, como criaturas da floresta. Instalaram-se calmamente, como se para uma estadia prolongada. Conor foi imediatamente ver a minha mãe, passando algum tempo à sua cabeceira, os dois sozinhos. Depois, foi ver-me e inspecionar o bebê.
— Ouvi dizer — observou ele, observando-me enquanto dava banho ao meu filho numa bacia de cobre pouco profunda — que as mulheres quase declararam guerra umas às outras para decidir quem te assistiria no parto. Tem-se falado muito desta criança. Estavam todas mortas por ajudá-la a entrar neste mundo.
— A sério? — disse eu, erguendo a figura toda molhada do meu filho e embrulhando-a num pano que tinha pendurado, para aquecer, em frente do fogo.
— Achas que é conversa a mais? — Os olhos do meu tio estavam mais sérios do que o seu tom de voz.
— As histórias delas servem para explicar o que não podem, ou não querem compreender — disse eu, chegando a mim Johnny, metido no seu casulo. — As verdades são difíceis de aceitar.
— É assim, em muitas histórias — concordou Conor. — Mas não em todas, certamente.
— Na verdade, não. É como o tio me disse uma vez. As grandes histórias, bem contadas, acordam os medos e os desejos dos ouvintes. Cada homem ouve uma história diferente. Cada um é tocado por ela segundo a sua própria maneira de ser. As palavras vão direitas aos ouvidos, mas a verdadeira mensagem vai direita ao espírito.
O meu tio acenou gravemente com a cabeça. Depois, disse casualmente.
— Por que razão deste ao teu filho um nome bretão?
Eu estava cansada de mentir. De qualquer modo, o meu pai havia de lhe dizer. Certamente, não haveria razão para estabelecer uma ligação.
— Tem o mesmo nome do pai — disse eu, afagando os caracóis do meu filho e esperando que Conor saísse antes de eu ter de o amamentar.
— Estou a ver. — Aparentemente, continuava imperturbável.
— Com o devido respeito — repliquei — nem um grande druida consegue ver tudo. Mas o nome é esse.
— Quais são os teus planos para o futuro, Liadan?
— Planos?
— Tencionas envelhecer aqui, olhando pelo teu pai e por Liam na velhice de ambos? É teu desejo tomares o lugar dela?
Olhei para ele. Havia uma seriedade nas suas feições tranquilas; a conversa estava a tomar um rumo que eu mal compreendia.
— Ninguém pode tomar o lugar dela — disse eu calmamente. — Todos nós sabemos isso.
— Mas tu aproximas-te muito — replicou Conor. — As pessoas respeitar-te-iam por isso. Já veneram o teu filho e tu sempre foste a filha favorita desta casa.
— Favorita. Sim, eu sei. Fostes muito cruéis para com Niamh, quando a mandastes embora. Cruéis e injustos.
— A nossa decisão deve ter-te parecido assim — disse Conor, sempre calmo. — Mas, acredita-me, não havia outra hipótese. Alguns segredos nunca devem ser revelados; algumas verdades são terríveis demais. Agora, ela morreu e tu desejas culpar alguém pelo seu trágico destino. Mas o seu casamento não foi a causa; e não é justo, creio, acusar o teu pai, Liam, ou eu próprio. Houve outras coisas, antigas, de permeio.
Eu estava furiosa, mas não lhe podia responder, ligada como estava à minha promessa de silêncio. Tornou-se difícil manter os meus pensamentos escudados. E ele estava a tentar ler-mos, não tinha dúvidas. Subtil e penetrantemente, sentia-o.
— Desculpe-me — disse eu, virando-lhe as costas. — Preciso de amamentar o meu filho. Talvez nos vejamos de novo ao jantar, tio.
— Ele pode esperar mais um pouco, creio. Parece estar mais interessado nos dedos. Tu és uma rapariga forte, Liadan. Escondes os teus pensamentos com grande habilidade. Poucos conseguem resistir-me.
— Tenho praticado.
— É difícil, não é, guardar muitos segredos? Tenho uma sugestão para ti, algo para tu ponderares.
Eu não disse nada.
— As tuas capacidades são muito... significativas. Já possuis um avançado controlo mental e uma excelente capacidade de lógica e argumentação. Além dos teus outros dons, que mal começaste a exercitar. Espera até o rapaz ser um pouco mais crescido, até deixar de mamar, talvez, até saber andar. Um ano, talvez. Nessa altura, vai juntar-te a nós no bosque sagrado e leva-o contigo. Podemos usar e desenvolver as tuas capacidades. Neste ambiente doméstico, perdes-te, capaz como és. E Johnny... quem sabe no que se tornará, com o treino adequado? O que dizem dele pode ser verdadeiro.
Virei-me para o enfrentar, olhando-o nos olhos profundos, sábios.
— O tio escolheu por Niamh e errou. Errou mais do que alguma vez há de perceber. Talvez queira substituir Ciarán. Um aluno modelo. Uma grande perda para si, imagino. Mas não comandará o meu futuro como fez com o da minha irmã. Johnny e eu faremos as nossas próprias escolhas. Não precisamos de orientação nenhuma.
Ele não pareceu ficar ofendido apesar do meu brusco discurso, como se estivesse, exatamente, à espera dele.
— Não decidas já — disse ele. — A oferta mantém-se aberta. A criança deve ficar na floresta. Decidas o que decidires, não esqueças isso.
Uns dias mais tarde chegou outro tio, com um estilo muito próprio. Apesar da ave palradora que trazia ao ombro, dos três marinheiros que o acompanhavam e da bela jovem a seu lado, Padriac aproximou-se da orla da aldeia sem as sentinelas de Liam lhe detectarem a presença. Este ficou aborrecido, mas a alegria por se verem juntos depois de tanto tempo apagou quaisquer outros sentimentos. A pele crestada de Padriac e os olhos azuis cintilantes, o seu sorriso com covinhas e a longa trança de cabelos castanhos, descolorados pelo sol, atraíram os olhares das mulheres, apesar dos seus 36 anos. A sua companhia feminina fazia as sobrancelhas erguerem-se e as línguas soltarem-se. Porque ela era mais nova do que ele e a sua pele era de um delicado castanho-dourado, da cor do chá de hortelã-pimenta e os seus cabelos negros eram ondulados como a lã de um cordeiro e entrançados habilidosamente.
Usava neles contas coloridas de vidro, brancas, verdes e vermelhas e os seus pés escuros andavam nus por baixo de um vestido às riscas. Padriac apresentou-a como sendo Samara, mas não esclareceu se era sua mulher, sua namorada, ou, simplesmente, camarada de bordo. Samara não falava. Mostrava os seus dentes brancos num sorriso que me lembrava, dolorosamente, o de Gull. Porque continuava a não saber de nada. A minha irmã desaparecera e os seus salvadores com ela, como se tivessem saído deste mundo.
Só havia uma pessoa que talvez me pudesse ajudar e era o tio que não estava ali. Não sabia se viria, nem sequer para se despedir, uma última vez, da irmã. Finbar era uma criatura marginal, delicadamente pousada entre um mundo e o outro. Nem uma só vez, naqueles anos todos, depois de ter abandonado Sevenwaters para mergulhar nas trevas, regressara. Nem para os funerais rituais dos seus dois irmãos, Diarmid e Cormack, ambos mortos na grande batalha pelas Ilhas, nem para o meu nascimento e de Sean, nem para o de Niamh. Nem sequer no dia em que o seu pai morreu e Liam se tornou no senhor de Sevenwaters. Provavelmente, também não viria agora, porque podia ver Sorcha e falar-lhe sem estar ao pé dela. Tal era a sua ligação com a irmã. Mas eu desejava que ele viesse, porque tinha muitas perguntas para lhe fazer. Se eu pudesse saber se Niamh e Bran estavam a salvo, talvez, então, pudesse despedir-me da minha mãe com um peso menor na minha consciência. Porque, se as minhas mentiras não tinham conseguido a liberdade da minha irmã, se o meu silêncio não protegera o homem que arriscara a vida para me ajudar, então talvez tivesse sido melhor ter dito a verdade e acabar com tudo de uma vez.
A casa estava cheia e, no entanto, havia uma atmosfera de grande tranqüilidade sobre Sevenwaters, como se as criaturas da floresta calassem as suas vozes, esperando a partida da minha mãe. Ao almoço, as coisas eram um pouco mais vivas. Éramos uma companhia estranha, pouco feliz, os druidas calmos e dignos, falando em voz baixa e comendo pouco; os homens do mar, demonstrando uma capacidade saudável para a nossa boa comida e, particularmente, para a nossa ótima cerveja, ao mesmo tempo que tinham sempre um piropo na boca, o que fazia com que as criadas corassem e dessem pequenas risadinhas, enquanto trabalhavam.
À cabeceira da mesa sentavam-se os tios: Liam, sério como sempre, com um cansaço no rosto que era algo novo; Conor à sua direita, pensativo, no seu manto branco; e à esquerda o irresistível Padriac e a sua adorável e silenciosa companheira. Padriac fazia as despesas da conversa; tinha muitas aventuras para contar e nós ouvíamos apreciadoramente, porque as suas histórias de terras distantes e as estranhas pessoas que viviam nelas libertavam as nossas mentes da tristeza que caíra sobre a nossa casa. Sean ainda não regressara.
O meu pai já não nos acompanhava às refeições. Creio que temia perder um único momento do tempo que restava à minha mãe. Quanto a Sorcha, há muito que aceitara que aquela Primavera seria a última da sua vida. Mas eu sabia que ela não se sentia muito bem; havia um fardo que ela não conseguia pousar. Lutei comigo mesma em silêncio, à sua cabeceira, uma tarde, com a mão dela na minha e o meu pai na sombra, observando-a.
— Red. — A sua voz era muito doce; poupava as forças que lhe restavam, usando os seus conhecimentos de curandeira para comprar um pouco mais de tempo precioso.
— Estou aqui, Jenny.
— Já não falta muito. — As suas palavras eram pouco mais do que um suspiro. — Estão cá todos?
O meu pai estava incapaz de falar.
— Sean ainda não regressou, mãe. — A minha voz oscilava perigosamente. — Os seus irmãos todos estão cá, com exceção de...
— De Finbar? Ele virá. Sean tem que estar cá amanhã, ao crepúsculo. Diz-lhe, Liadan.
Havia uma certeza nas suas palavras que me silenciou. Não valia a pena dizer que podia durar mais tempo. Ela sabia. O meu pai aproximou-se e ajoelhou ao lado da cama, colocando as suas grandes mãos sobre as dela. Nunca o vira chorar, mas agora havia vestígios de lágrimas no seu vigoroso rosto.
— Meu amor querido — disse Sorcha olhando para ele, os seus olhos verdes enormes naquele rosto tão pequeno, tão sombrio. — Não é para sempre. Continuarei aqui, algures na floresta. E seja qual for a forma do meu corpo, estarei sempre perto de ti. — Fiz tenção de me levantar para os deixar sós, mas a minha mãe disse — Ainda não, Liadan. Preciso de falar com ambos. Não demora muito.
Ela estava muito cansada; a sua pele tinha um brilho pálido e respirava com dificuldade. Nenhum de nós lhe pediu que poupasse o fôlego e descansasse. Nunca ninguém, na família, dissera a Sorcha o que devia fazer.
— Tem havido muitos segredos — disse ela, fechando os olhos por um momento. — A velha magia voltou, a velha feitiçaria que fechou sobre nós, uma vez, as suas mãos. Tenta dividir-nos, destruir o que há muito é bem guardado aqui, em Sevenwaters. Talvez nem todos os segredos possam ser revelados. Mas quero dizer-te, filha, que, aconteça o que acontecer, confiamos em ti. Serás tu, sempre, a escolher o teu próprio caminho e, para alguns, essa escolha parecerá errada. Mas eu sei que seguirás o caminho da antiga verdade, vás para onde fores. Vejo isso em ti, assim como em Sean. Tenho fé em ti, Liadan. — Ela olhou de novo para o meu pai. — Ambos temos fé em ti.
Lubdan esperou um pouco antes de falar e eu pensei se, pela primeira vez na sua vida, ela o terá julgado mal. Mas o que ele disse, foi:
— A tua mãe tem razão, minha querida. Por que outra razão haveria eu de te deixar fazer as tuas próprias escolhas, como deixei?
— E agora vai, Liadan — sussurrou a minha mãe. — Tenta falar com Sean. Ele que se apresse.
Caminhei ao longo dos campos até à orla da floresta, porque a casa estava cheia de tristeza e eu precisava das árvores e do ar livre. Queria a cabeça límpida e a mente ordenada, não apenas para tentar alcançar o meu irmão, mas também para tomar uma decisão difícil. Sorcha estava a morrer. Ela merecia a verdade. Se lha dissesse, teria também de a dizer ao meu pai. Eles tinham dito que confiavam nas minhas escolhas; mas certamente que até eles recuariam, horrorizados, com o que eu fizera, desta vez. Se o meu pai contasse a Liam, então as minhas mentiras não teriam servido para nada. Se ainda estava viva, a minha irmã podia ser descoberta e trazida para casa.
Talvez tentassem devolvê-la ao seu respeitável marido. Então, toda a verdade viria ao de cima e a aliança seria rasgada. Quanto ao Homem Pintado, Eamonn caçá-lo-ia e exterminá-lo-ia como uma fera selvagem qualquer e, sem ele, os seus homens regressariam à vida de fuga e sem norte que conheciam antes de ele lhes dar nomes, um objetivo e a dádiva do amor-próprio. O meu filho nunca conheceria o pai, salvo nas histórias, como uma espécie de monstro. E então a nossa família seria, sem dúvida, destruída. Essa perspectiva fez-me gelar o sangue. Além disso, havia as Criaturas Encantadas. Não podes pôr em risco a aliança, dissera-me a Dama. Não podia pôr de lado semelhante aviso. Mas a minha mãe merecia a verdade e à sua maneira pedira-me que lha dissesse. A questão não era se eles confiavam em mim, mas se eu confiava neles. Bran dissera, uma vez, que a confiança era um conceito sem qualquer significado. Mas, se não podíamos confiar, ficávamos sós, porque nem a amizade, nem a sociedade, nem a família, nem a aliança, podiam existir sem confiança. Sem ela ficávamos dispersos, à mercê dos quatro ventos, sem nada a que nos agarrarmos.
Na orla da floresta, sentei-me em cima do muro de pedra que circundava a maior parte da pastagem e acalmei a mente. O que era difícil, porque os meus pensamentos estavam perturbados.
Preciso de um sinal, uma pista. Por que é que Finbar não está aqui? A ele podia perguntar, sem medo.
Forcei a minha respiração a acalmar e deixei que os pequenos sons da floresta e da herdade me enchessem a mente. O restolho provocado pelas folhas primaveris nas faias e nos vidoeiros; o canto dos pássaros; o ranger da roda do moinho e o gentil chapinhar da água no ribeiro. As vozes queixosas das ovelhas. Um rapaz chamando o seu bando de gansos, levantai-vos, criaturas teimosas, ou dou-vos o que mereceis; e a resposta grasnada dos gansos. O som da água do lago batendo na margem; o suspiro do vento nos grandes carvalhos: Vozes sussurrantes lá em cima, que pareciam dizer: Sorcha, Sorcha. Oh, irmãzinha.
Só consegui chegar à mente do meu irmão depois de a minha estar tranquila.
Sean?
Estou a ouvir-te, Liadan. Estou de regresso. Como está a nossa mãe?
Ainda estás longe?
Não muito. Vou chegar tarde?
Tens que estar cá antes do crepúsculo de amanhã. Até a voz da mente pode chorar. Consegues chegar?
Conseguimos. Na sua mente colocou os braços em redor de mim e abraçou-me e eu enviei-lhe uma imagem semelhante. Foi tudo.
Liadan?
Não era a voz da minha mãe.
Tio? O meu coração bateu com força. Onde estava ele?
Estou aqui, criança. Vira-te.
Lentamente, levantei-me no muro e virei-me para olhar para o carreiro que ia dar à floresta. Via-o com dificuldade; não um homem, mas sim uma parte do mesmo padrão de luz e sombra, do cinzento, verde e castanho dos troncos, das folhas, do musgo e das pedras. Mas ele estava ali, de pés descalços sobre o solo macio, metido no seu manto esfarrapado e na capa envolvente. Os seus caracóis negros em frente do rosto branco como a cal. Os seus olhos estavam claros, sem cor, mas cheios de luz.
Sinto-me contente por ter vindo. Ela perguntou por si
Eu sei. E eu vim. Mas creio que vou necessitar da tua ajuda.
Senti-lhe o medo e a coragem de que necessitara para vir até ali.
Eu levo-o. De que precisa?
Tenho medo que me... toquem. Tenho medo de ficar... confinado, fechado. E há cães. Se me puderes ajudar, posso ficar o tempo suficiente. Até amanhã, ao crepúsculo.
— Sinto-me honrada com a sua confiança — disse eu em voz alta. — Não será fácil.
A minha fraqueza envergonha-me. Na verdade, a maldição que a feiticeira lançou sobre mim foi grande. Tem as suas compensações. Mas eu não gostaria de expor as minhas fragilidades perante a minha irmã, ou os meus irmãos. Não procuro piedade. Apenas uma mera assistência, para ser suficientemente forte para ela.
— O tio é muito forte — disse eu em voz baixa. — Outro homem qualquer não teria sobrevivido tanto tempo. Não teria aguentado.
Também tu és forte. Por que é que não me perguntas o que tens em mente?
Porque me parece... egoísta.
Nós somos egoístas. Está-nos na natureza. Mas tu és generosa, Liadan. Tu manténs a salvo aqueles que amas, por todos os meios ao teu alcance. Mais tarde, mostrar-te-ei o que desejas saber. Agora, creio que é melhor entrarmos.
— Tio — disse eu em voz alta, de modo bastante tímido.
O que é?
— Por que razão me revela os seus medos, quando os esconde até dos seus irmãos?
Nenhum homem deseja mostrar que é fraco. Se bem que a minha fraqueza seja, também, uma dádiva. O que é vulgar num mundo pode ser uma fonte de terror no outro. Uma porta fechada, o ladrar de um cão. E, no entanto, o que é um mistério num determinado lugar, torna-se claro num outro. É imagem e reflexo, realidade e Visão. Este Mundo e o Outro Mundo. Mostro-te os meus medos porque podes entendê-los. Não tens um fardo como eu, mas o teu espírito reconhece a dor e a força que tal conhecimento traz. Tu conheces o poder dos Antigos, como ainda funciona entre nós.
Esta dádiva... a Visão, a mente curativa... vem deles, dos nossos antepassados? Vem da mulher fomhóire, Eithne? Reconheci aquele pensamento como verdadeiro no instante em que ele me passou pela mente.
É muito antiga. Muito profunda. Tão profunda como um poço sem fundo; tão profunda como as profundezas mais profundas do oceano. E, tal como eles, espera a sua hora.
Estremeci.
— Anda — disse Finbar, experimentando a voz, que, nitidamente, tinha pouco uso. — Sejamos corajosos e demo-nos a conhecer.
E atravessamos a seara a caminho de casa.
Seguiu-se um momento esquisito, quando o pessoal da cozinha e dos estábulos saiu para olhar e um cão ladrou e a mente do meu tio comunicou imediatamente com a minha, sem um som, numa agitação enorme, o coração descontrolado, um terror mental, um instinto paralisado de querer voar. Enviei-lhe um chamamento silencioso, rápido.
Conor? Tio, nós precisamos de si.
As pessoas murmuravam e sussurravam à medida que nos aproximávamos. Um homem segurava o cão pela coleira, mas ele rosnava e abocanhava, como se uma coisa selvagem se aproximasse das suas mandíbulas. Eu não sabia como acalmar o cão com a mente. A meu lado, Finbar ficou hirto de medo.
— Olha! É o homem da asa de cisne! — disse uma criança, clara e inocentemente. — O homem da história!
— Esse mesmo, o meu irmão. — Uma voz calma e autoritária falou da entrada da cozinha e o meu tio Conor apareceu, como se aquilo fosse uma ocorrência de todos os dias. — Toca a andar para os vossos afazeres. Teremos mais visitantes antes do anoitecer de amanhã; Lorde Liam ficaria muito zangado se vos visse a todos aqui, sem fazer nada.
A multidão dispersou; o cão foi levado, puxando sempre a trela que o prendia à coleira. O momento passara. Sentia a respiração de Finbar no meu próprio peito, à medida que ia acalmando; e o seu coração também, à medida que abrandava. A noite e o dia seguinte iriam ser para ele, na verdade, uma provação.
— Vem — disse Conor calmamente. — Vais querer vê-la imediatamente. Eu levo-te lá.
— Eu vou falar com Liam — disse eu. — Temos que fazer certos arranjos. E depois vou ter com o meu filho. Deve estar cheio de fome. Vou tratar dos cães. Fica bem?
— Obrigado, Liadan. Mais tarde, talvez me possas mostrar o teu filho.
Liam foi surpreendentemente compreensivo, principalmente depois de eu ter interrompido uma reunião com os seus capitães para lhe falar. Foram dadas, imediatamente, ordens para que todos os cães fossem fechados nos canis, ou mantidos na área dos estábulos pelo menos durante a noite e dia seguinte e para que o pessoal tratasse da sua vida e deixasse a família em paz. Os próprios cães-lobo de Liam foram acorrentados enquanto ele falava e levados para cativeiro temporário, com olhadelas reprovadoras para o dono.
— És boa rapariga, Liadan — disse Liam enquanto se virava para continuar com a reunião. Vindo dele, aquilo era um cumprimento raro. Ele não era um homem muito dado a expressões de aprovação. Perguntei a mim mesma o que pensaria ele de mim se eu dissesse a verdade.
— Obrigada, tio.
Estava a fazer-se tarde, quase crepúsculo. Só faltava um dia e só desejava estar ao lado da minha mãe, partilhando com ela as horas que faltavam. Mas, à medida que a roda gira e a vida se esvai, também a vida nova dá a conhecer a sua presença, mostrando-se, procurando reconhecimento, desejosa de avançar. O meu filho não podia esperar. Estava acordado e com fome, mandei a rapariga jantar e sentei-me, para lhe dar de mamar. A bacia de cobre estava pronta, meio cheia de água morna, mas a rapariga não lhe tinha dado banho, sabendo como eu gostava de executar essa tarefa. Abri o vestido, ofereci-lhe o seio, ele abocanhou-o e sugou-o com vigor, o pequenino punho batendo-me gentilmente na carne, enquanto os seus solenes olhos cinzentos me olhavam com intensidade. Cantarolei em voz baixa, sentindo uma calma estranha enquanto o leite fluía, como se um poder interior me intimasse a ficar quieta, enquanto a criança mamava. Mais tarde, levaria Johnny para que a minha mãe o visse, se ainda estivesse acordada. Por agora, era a sua hora com Finbar e era melhor ficarem sozinhos. Ela tinha muitas despedidas a fazer, mas aquela devia ser a mais difícil, salvo outra.
Após um bocado, mudei Johnny para o outro seio. Ele começou a protestar, abocanhou o mamilo e recomeçou a mamar. Para um bebê tão pequeno, tinha um apetite enorme. Pensei na sugestão de Conor, para que eu fosse para o bosque sagrado. Que tanto eu, como a seu devido tempo o meu filho, nos juntássemos aos sábios. Pensei nas instruções das Criaturas Encantadas. Não podes continuar por tua conta, o rapaz deve ficar na floresta. Em nenhuma visão do futuro havia lugar para o pai do meu filho.
Johnny dormia. Não haveria banho esta noite. De qualquer maneira, Janis dizia que eu lhe dava banho a mais; não era natural uma criança andar tão limpa, ou passar tanto tempo na água. Era ele, brincava ela, um filho de Manannán mac Lir, o deus do mar? Mas eu ria-me dos comentários dela. Porque Johnny adorava a água, adorava flutuar, entregar-se àquele apoio morno, mover os pequenos membros naquela superfície maleável, que estava sempre a mudar. Não lhe podia negar aquele pequeno prazer e prometi-lhe que, no Verão, iria nadar no lago. Quando fosse mais velho, ensiná-lo-ia a saltar das rochas e a nadar para a margem, como eu fizera há muito tempo com Sean e Niamh. Mostrar-lhe-ia como ficar deitado com o Sol a aquecer-lhe as costas e a velha rocha segurando-o, enquanto meteria as mãos na água límpida, enquanto os peixes prateados passavam por baixo. Hás de gostar.
Apertei o vestido e levantei-me, pensando em pôr o bebê no berço. Mas quando ia a passar pela bacia da água já fria, algo se reflectiu na sua superfície, evanescente como um arco-íris, desaparecendo de seguida. Teria visto algo? Aproximei-me com Johnny relaxado e quente nos meus braços e olhei para a água imóvel. Fiquei quieta como uma pedra, mais calada do que um pensamento profundo.
A água agitava-se, ondulando, como se estivesse quase a ferver, mas não estava quente. Senti a porta a abrir-se e a fechar-se silenciosamente, mas não me virei.
Ótimo. Afinal, não precisaste de mim.
Sabia que Finbar estava ali, na sombra, mas continuei imóvel.
A água começou a rodopiar, como se estivesse a correr atrás de si própria. Senti a cabeça a andar à roda. Depois, tão abruptamente como começara, o movimento parou. Fiquei a olhar para a bacia.
A imagem era pequena, mas nítida. As mãos de uma criança, desenhando na areia. A imagem ficou maior. A criança estava numa gruta, com a luz filtrando-se através dela, vinda de cima, colorindo a cena com muitas tonalidades de cinzento e azul. Uma gruta à beira-mar; um lugar onde a água entrava e saía suavemente e onde se ouviam os gritos das gaivotas. Um lugar secreto. No interior da gruta havia um pequeno areal onde a criança estava sentada a brincar, sossegada, enquanto uma mulher a vigiava. Não sabia dizer se aquela criança era um rapaz ou uma rapariga.
Tinha, talvez, dois anos, cabelos ruivos encaracolados e uma pele leitosa. A mulher disse algo e quando a criança olhou para cima vi-lhe os olhos, que eram profundos e escuros como amoras maduras. A mulher era tão delgada que se lhe viam os ossos através da pele. Era tão leve e frágil como um vidoeiro no Inverno. Os seus cabelos eram de um vermelho-dourado desmaiado, descendo-lhe pelas costas. Vigiava de perto a criança, para que não se aventurasse muito perto da água. Após um bocado, sentou-se na areia perto da criança e começou a acrescentar os seus próprios desenhos aos que já estavam gravados na areia com tanto cuidado. Os seus olhos azuis tinham profundas olheiras, mas ao observar aquela coisinha a seu cargo, as suas feições cansadas mostravam uma expressão tão grande de alegria e orgulho, que eu senti lágrimas a correrem-me pelas faces abaixo. A mulher era a minha irmã Niamh.
Então, subitamente, algo mais apareceu. Uma força; um poder como eu nunca vira até ali. Mulher e criança continuaram a brincar, distraídos. Mas algo me pressionava, como se uma forte mão estivesse a fazer pressão nos meus pensamentos, como se uma barreira tivesse sido lançada, para me bloquear a visão. Não, disse uma voz. Afasta-te. E com aquilo a imagem desapareceu e eu fiquei ali a olhar, tolamente, para a água do banho do meu bebê.
Trêmula, decidi que, afinal, não queria deitar o meu filho, afastei-me da bacia de cobre e sentei-me na minha cadeira, embalando Johnny no colo enquanto ele dormia.
Ele fungava ligeiramente, como que para me tranquilizar. Do outro lado do quarto, Finbar olhava para mim.
— Viu? — perguntei-lhe.
— Não como tu viste. Mas tu mantiveste a tua mente aberta para mim e eu testemunhei a tua Visão. — Ele não usou a voz interior, falando em voz alta à sua maneira suave, hesitante, como se precisasse de praticar aquela habilidade pouco usada, agora que estava de novo entre os homens.
— O que foi aquilo? Parecia um punho de ferro, afastando-me. Como uma barreira, colocada por um... por um feiticeiro, para manter os olhares afastados dos seus segredos. As velhas histórias falam de paredes invisíveis semelhantes.
— É verdade. Talvez seja melhor esconder esta Visão de Conor. Eu pensava que querias ver uma outra. Não a tua irmã.
— As duas estão ligadas. O que vejo numa, fala-me da outra. Mas esta Visão não pertence ao presente. Não pode ser. Aquele era o filho dela, li-o nos seus olhos. Deve ser uma visão do futuro.
— Ou uma visão do que gostarias de ver.
— Isso é cruel — disse eu, reprimindo as lágrimas.
— A Visão é cruel. Isso já tu sabes. Queres ver de novo?
— Não... não sei. Não sei se quero ver.
— Não és muito boa a mentir.
Assim, deitei Johnny no berço, cobri-o com a colcha multicor que lhe fiz e fui ver mais uma vez. Finbar não fez menção de me conduzir, mas a sua presença silenciosa deu-me força.
Por um momento, pensei que não veria nada. A água pareceu enevoar-se e escurecer, mas não houve movimento. Permaneceu imóvel.
Confiança. Verdade. Pronunciei aquelas palavras na minha mente e tentei afastar todas as outras. Verdade. Confiança.
Fechei os olhos; e quando os abri lá estava outra imagem na superfície suave da água.
Minúsculas imagens, sempre a mudar. Homens lutando numa terra estranha, sob um sol ardente. Bran fazendo uma careta, esquivando-se, ao mesmo tempo que um machado lhe voava por cima da cabeça. Num barco, navegando rapidamente em mares cruéis. Gull ao leme, mostrando os dentes à espuma salgada e a vela estalando ao vento. Bran inclinado sobre um homem deitado no convés, um homem cujo pescoço e ombros estão pesadamente envoltos com um pano cheio de sangue.
— Não consegues ir mais depressa? — gritou Bran.
— Se queres terminar esta viagem no fundo do oceano, talvez consiga — retorquiu Gull. — Gostavas de viver entre monstros marinhos?
A seguir, numa praia, cavando um buraco sob as árvores. Introduzindo nele uma forma flexível. Outros homens em redor, silenciosos. Depois, tapando o buraco e alisando o terreno eficientemente.
— Devíamos ter deixado que a Liadan ficasse conosco — disse um deles. — Ela teria sabido o que fazer. Ela tê-lo-ia salvo.
Ouviu-se o som de uma pancada e a voz de Bran, em tom selvagem.
— Cala a boca!
A água escureceu de novo e eu pensei que era tudo. Mas ainda havia uma imagem.
Estavam outra vez naquele local, o local dos anciãos, e os dois estavam no exterior, numa noite quente de Primavera, de vigia, enquanto os outros dormiam no abrigo da sepultura. Talvez estivesse a acontecer naquele momento. A Lua estava cheia e eu podia ver os dois rostos com nitidez, um escuro e o outro claro.
— Não foste justo. — Gull falou sem ênfase. — O que Otterdisse não passou da verdade. Nunca a devias ter deixado ir embora.
— Não te atrevas a dar-me conselhos — estalou a voz de Bran. — Pelo menos, não a silenciei com a faca. Sabes tão bem como eu que aqui não há lugar para uma mulher.
— Esta é diferente. Não é?
— Como pode ser? Como poderia ela viver como nós? Além disso, ela é filha de Sevenwaters. O pai dela virou as costas às suas terras e ao seu povo. Por razões egoístas, não ficou para o proteger. É irónico, não é? É a ele que eu devo a impossibilidade de poder casar com a filha. Não sabia o que fazia quando saiu de Harrowfield.
— Portanto, não queres saber dela, é isso?
— Não preciso de lições — disse Bran, cansado.
— E foi por isso que foste a correr quando pensaste que ela estava em perigo?
Não houve resposta.
— Então? — Gull não ia desistir.
— Presumes muita coisa. Havia um trabalho a fazer e nós fizemo-lo. Foi tudo.
— Hum-hum. E o trabalho que o irmão dela quer que tu faças? És louco se concordas. É uma missão suicida.
— É um grande desafio. E está ao meu alcance. — Permaneceram calados por uns momentos.
— Estás a enganar-te a ti próprio, se pensas que consegues atirá-la para trás das costas — disse Gull.
— Não quero falar mais disso — disse Bran de modo repressivo. — Não houve nada entre mim e... e essa rapariga. Ela era uma metediça de língua afiada e eu fiquei satisfeito por vê-la pelas costas.
Gull não disse nada, mas eu vi o brilho dos dentes dele na escuridão e logo a seguir a imagem desapareceu.
Senti as pernas fracas e deixei-me cair na cadeira, sabendo que estava a chorar e não me preocupando por o meu tio me estar a ver.
— Tal como eu disse. Não conseguirás que este homem venha para Sevenwaters. No entanto, planeias um futuro aqui com o teu filho, sem te aperceberes. Vês Johnny com o avô, aprendendo a plantar árvores. Vês-te a ti própria ensinando o teu filho a nadar no lago de Sevenwaters. Vês a criança escapando-se para a cozinha, à procura de um dos bolos de mel da Janis, tal como nós fazíamos quando éramos pequenos e o mundo estava tão cheio de aventuras que não tínhamos tempo de as viver todas num dia. Vês Conor, mostrando ao rapaz sinais Ogham na pedra de uma caverna. A criança é a chave. Tu reconheces isso nos teus pensamentos. No futuro dele não há lugar para esse homem.
— Como pode dizer isso? É o pai dele.
— Esse homem serviu um determinado propósito. Tenho a certeza que Conor diria o mesmo.
Não fui capaz de responder. Prestes a rebentar de ultraje e injustiça, fui forçada, no entanto, a reconhecer a terrível sabedoria das suas palavras.
— Foi o que as Criaturas Encantadas me disseram. Mas, o que é que o tio diz?
— Ah. Apenas que chegará a ocasião em que terás de escolher. E essa escolha será só tua. Não penses que não tenho coração, Liadan. Vejo mais do que pensas. Vejo a ligação que há entre esse homem e tu. Vejo que ele é o teu homem. Como podes escolher sem despedaçares o teu coração?
A minha mãe não utilizou o tempo da sua última noite a dormir. Em vez disso, mandou Liam levar-lhe os homens e as mulheres da casa, para lhes agradecer e despedir-se deles. Muitas lágrimas foram derramadas; muitos ramos pequenos de Primaveras, ou simples narcisos silvestres, brancos e dourados, foram depositados a seus pés, ou ao lado da almofada. Ela mandara que a transportassem para um quarto no andar inferior e em volta ardiam muitas velas, de maneira que o espaço estava cheio de uma luz quente. Deitada na esteira, imóvel, pequena, encontrou uma palavra amável para cada um dos solenes visitantes.
A dor devia ser terrível. Tanto Janis como eu sabíamos das doses que Sorcha necessitara de ingerir, durante a última estação, para não gritar de dor, enquanto o cancro lhe ia corroendo as entranhas. Mas agora queria ficar acordada, pronta a ouvir e, assim, não tomara nada. Era, na verdade, uma mulher forte e disfarçava os espasmos tão bem que poucos se apercebiam do seu sofrimento. O meu pai sabia. O seu rosto transformara-se numa máscara sem expressão, salvo quando olhava para ela; e mantinha-se calado, sem falar comigo, com Liam, ou com outra pessoa qualquer, apenas com ela, se necessário. Eu sabia que ele desejava que saíssem todos e os deixassem sós; mas seguia a vontade dela.
Por fim, as longas despedidas terminaram e a casa adormeceu. Eu sentei-me junto do fogo com Johnny nos braços; o meu pai sentou-se num banco ao lado da cama, as longas pernas afastadas para os lados. Molhava o rosto da minha mãe com um pano húmido. Os olhos dela estavam fechados; podia estar adormecida, mas o ligeiro torção de uma das mãos dizia-nos que a dor estava a atacar com força.
Podias dizer-lhes agora. Se te sentes pronta.
Olhei para Finbar, para o local onde ele estava, imóvel, a mão direita apoiada na parede ao lado da janela, de costas viradas para mim e olhando para o jardim iluminado pela Lua. Não tinha dúvidas sobre o que ele queria dizer.
Estou pronta. Não podia haver melhor ocasião do que aquela.
— Sean já chegou? — sussurrou a minha mãe.
— Eu vou ver se há novidades — disse Liam em voz baixa. — Vinde, irmãos, vamos deixar esta pequena família só, por um bocado.
Tinham estado agrupados, de pé, junto da porta, podendo entrar e sair sem fazer muito barulho. Liam saiu levando Conor e Padriac, mas Finbar ficou para trás. Para ele não havia um quarto fechado e uma cama com um cobertor. Para ele não havia o esquecimento temporário da cerveja forte. Não o vira tocar em comida nem em bebida, desde que chegara.
— Mãe. Pai. Tenho uma coisa para vos dizer. — Sorcha abriu os olhos e conseguiu sorrir.
— Isso é ótimo, filha. Deixa-me... deixa-me...
Respirava com dificuldade, mas eu sabia o que ela queria. Arranjei espaço para Johnny por baixo da colcha e aconcheguei-o ao lado dela. O meu pai ajudou-a a pôr a mão em concha em volta do corpo quente do bebê. Os olhos de Johnny estavam abertos; os olhos cinzentos do pai. Estava a crescer muito depressa e eu podia vê-lo a tentar perceber o sentido das sombras e formas do quarto iluminado pelas velas.
Junto da janela, Finbar não se mexia. Achei que não me devia sentar. Fiquei ao lado da cama com as mãos enclavinhadas uma na outra.
— Não vos vou insultar pedindo-vos a vossa confiança — comecei. — Resta pouco tempo para isso. Dissestes que tínheis confiança em mim e eu devo acreditar. Mas tenho de vos dizer que menti e espero que me possais ouvir enquanto explico porquê. O assunto é muito profundo, muito secreto. Uma tristeza que ultrapassa as lágrimas, mas que talvez termine melhor do que esperávamos. A vossa confiança pode atingir o limite, tal como a minha tem atingido.
O meu pai observava-me intensamente, os seus olhos azuis perspicazes e frios. A minha mãe continuava deitada tranquilamente, velando o bebê.
— Continua, Liadan. — O tom de Lubdan era cuidadosamente neutro.
— Niamh — disse eu. — Niamh... Coragem, Liadan.
— Todos nós sentimos que algo estava errado quando ela veio cá a casa. O pai até me pediu que tentasse descobrir o que se passava. Mas ninguém imaginava quão errado. Quando estivemos em Sídhe Dubh, descobri a verdade: o... o marido dela bate-lhe e abusa dela de uma maneira incrível. Ainda por cima, ela já andava desolada pelo que acontecera aqui: acreditava que todos aqueles que amava a tinham rejeitado. Esperava começar de novo com este casamento. A crueldade do marido pôs termo a essa esperança. Mas ela fez-me jurar que não diria nada. Fez-me prometer que a família nunca saberia de nada. Niamh tinha o coração despedaçado, devido ao fato de Ciarán não ter ficado com ela. Ela ficou destroçada quando a mandaram embora. Para dizer a verdade, acreditava que não prestava para nada. Não me deixou denunciar os abusos de Fionn, provocando a quebra da aliança, porque isso seria outro falhanço.
Seguiu-se um silêncio de espanto. Então, o meu pai disse:
— Se isso é verdade, e eu sei que é, porque tu não me mentirias, devias ter-nos dito. Uma promessa dessas não deve ser cumprida.
— Tive medo de que... não tinha a certeza de que ajudaria. No fim de contas, insistiu para que ela casasse com Fionn. Mandou-a para Tirconnell. As suas palavras para com ela foram de intransigência. Sean bateu-lhe. E havia Liam e a aliança. Nunca percebi porque não pôde ela casar com Ciarán; por que razão nem sequer ponderou essa hipótese. Nem é costume seu agir assim, sem pesar as opções, sem avaliar os argumentos. Não é costume seu esconder a verdade. Como não compreendi as suas razões, não me arrisquei a dizer-lhe.
O meu pai ficou a olhar para mim, com a dor escrita nos olhos.
— Como é que pudeste acreditar que eu perdoaria tal coisa? Permitir que abusem da minha filha?
— Ehhh — sussurrou a minha mãe. — Deixa Liadan acabar a história.
— Eu... então eu...
Palavra a palavra. Como se fosse uma história qualquer. Conta-a lentamente.
— Eu não sabia o que fazer, ou a quem pedir ajuda. O tempo era escasso. Mas sabia que não podia permitir que ela voltasse para Tirconnell. Temia que ela atentasse contra a vida. Por isso, pedi a um... a um amigo... que a raptasse. E que a levasse em segurança para um santuário.
De novo um silêncio pesado.
— Creio que não estou a perceber — disse Lubdan cuidadosamente. — A tua irmã não foi raptada pelos fianna e não se afogou? Não foi ela mais uma vítima das suas demonstrações arrogantes de barbaridade sem sentido?
— Não, pai. — A minha voz estava reduzida a um fio. — Os homens que a levaram através dos pântanos fizeram-no a meu pedido. Foram a Sídhe Dubh a meu pedido. Deviam guiar Niamh até um lugar seguro e entregá-la a uma casa cristã de oração, onde poderia ficar escondida. Onde poderia ficar longe da crueldade dos homens.
Quando o meu pai conseguiu falar de novo, disse, com os maxilares apertados:
— Parece que escolhes mal os teus amigos. É evidente que falharam no empreendimento, já que a perderam antes de ela atingir solo firme. Espero que não lhes tenhas pago muito dinheiro.
Foi como se ele me tivesse batido; e desta vez Finbar falou em voz alta.
— A história ainda não acabou; o enredo é complicado, com muitos fios. As tuas palavras ferem a tua filha. Foi-lhe necessária toda a sua coragem para te falar. E não foi ela a única a esconder a verdade. Devias deixá-la terminar a história em paz.
— Conta-nos, Liadan. — A voz da minha mãe era calma.
— Eu tenho... contatos... de que não falei nunca. Amigos, chamar-lhes-ia. Um desses amigos é o homem que raptou Niamh de Sídhe Dubh e a levou para lugar seguro, onde ela não será ferida, onde será tratada com respeito, onde não será o brinquedo de Uí Néill. Para um lugar onde a sua família não a forçará a um casamento sem amor, em prol de uma aliança estratégica. Não lhe posso provar que está salva. Não lhe posso dizer onde está, nem diria, se soubesse. Mas vi-a, numa visão e acredito que o meu amigo fez o que lhe pedi. O afogamento, a perda no nevoeiro... foi simulado, uma representação, para convencer Eamonn e mais tarde outros, de que ela estava morta, uma fraude, para desviar a atenção dos perseguidores. A coberto dessa mentira, levaram a minha irmã para um lugar seguro.
Uma ligeira corrente de ar fez tremer a chama das velas. Após uns momentos, a minha mãe disse, muito calmamente:
— Tu sabias que a tua irmã estava viva e não nos disseste?
— Peço desculpa — disse eu miseravelmente. — Quando se pede a este homem que desempenhe uma missão, temos de seguir as suas regras. Ele disse que ela estaria mais segura se ninguém, ou praticamente ninguém, soubesse a verdade. Achei que era melhor. E... e na verdade, eu não sei ao certo. Acredito que ela está viva. Acredito no homem que nos ajudou, quando não havia mais ninguém.
— Como já disse — a expressão do meu pai era de profundo desagrado — a tua escolha de amigos parece profundamente defeituosa. Como é que sabes se esse homem diz a verdade, ou não? A mentira é o seu modo de vida. Tudo o que ouvimos sobre ele nos diz que é um vira-casacas, um homem que muda conforme lhe apetece. E é extremamente violento. Um demónio, que actua segundo caprichos insanos. Não posso acreditar que tenhas entregado a vida da tua irmã nas mãos de semelhante homem. Deves ter enlouquecido. E agora tens a audácia de dar falsas esperanças à tua mãe, agora, esta noite, quando... — Caiu em silêncio, talvez ciente de que os olhos sombrios da minha mãe estavam virados para ele.
— Não, Red — disse ela. — Não te zangues. Não temos tempo para isso. Deves ouvir o que Liadan tem para dizer.
Respirei fundo, sentindo a força de Finbar enquanto ele concentrava a sua mente na minha, não pensando por mim, mas emprestando-me a sua coragem.
— Como já disse, eu vi-a. Vi-a viva, feliz, com uma criança que, certamente, lhe pertence. Uma visão do futuro, alegre. Mas, mesmo sem isso, acredito que está salva. Sei-o no meu coração, porque sei que posso confiar no homem que é o pai do meu filho. Um e outro são o mesmo homem. O pai olhou para o rosto do meu filho e disse-me que ele tinha os olhos de John. Olhos dignos de confiança. O pai do meu filho tem os mesmos olhos, num rosto com a marca do corvo, corajoso, temível e ameaçador. Ele é o líder dos fianna, aquele a quem chamam o Homem Pintado. Cometeu muitos atos maus na sua vida, não posso negá-lo. Mas também é capaz de atos de grande coragem, força e lealdade. Faz poucas promessas, mas, as que faz, cumpre-as. Como a história de Conor mostrou, até um fora-da-lei, se lhe for dado escolher, pode ser um homem bom e de confiança. Este homem salvou a sua filha. Este homem é o pai do seu neto. O meu coração é dele e sempre será; nunca me entregarei a outro. Disse-lhe a verdade, tudo o que sei e confiei em si; porque isto, ouvido pela pessoa errada, pode pôr em risco muitas vidas.
— Muito bem, Liadan. — Finbar acenou com a cabeça. Os meus pais ficaram a olhar para mim.
— Não tenho palavras — disse Lubdan.
A minha mãe ergueu uma mão para afagar os caracóis castanhos de Johnny.
— Portanto, Niamh está salva. Esta notícia é um presente maravilhoso, Liadan. Na verdade, sempre me custou acreditar que ela tivesse desaparecido... Creio que, de qualquer maneira, sempre soube.
— Desculpa — disse o meu pai abruptamente. — Falaste com sinceridade e eu respeito isso. Fui muito rude, talvez. Mas isto causou-nos uma grande dor. Não esperava isso de ti, Liadan.
— Também peço desculpa, pai. — Queria abraçá-lo para lhe dizer que estava tudo bem, mas algo nos seus olhos me disse que não. Ainda não. — Eu tinha de proteger duas vidas; e ambas continuam em risco.
— Mal consigo acreditar que tenhas escolhido esse homem.
— Consegue acreditar que eu pudesse ter escolhido o filho do seu amigo John?
— John não era um fora-da-lei. John não era um assassino a soldo.
— Tem as faltas do Homem Pintado muito bem registadas no seu catálogo, pai. No entanto, ele descreve-o, a si, como a causa, pelo abandono das suas responsabilidades em Harrowfield, do seu falhanço em se tornar um homem digno da sua filha.
O meu pai não replicou.
— Red.
— O que é, Jenny?
— É isso que deves fazer a seguir. Regressar. Regressar a casa.
O meu pai limitou-se a olhar para ela.
— Quer dizer, regressar a Harrowfield?
Fiz a pergunta que não devia fazer.
A minha mãe acenou com a cabeça. Continuou a olhar para o meu pai, segurando-o com o olhar.
— É uma missão — disse a minha mãe. — Regressar e descobrir o que aconteceu. Descobrir o que aconteceu a Margery e ao filho. Descobrir como é que o filho de John se transformou neste... neste jovem tão infeliz.
O meu pai levantou-se, virando-nos as costas.
— Assim, achas que o meu tempo aqui chegou ao fim, é isso? Que uma vez... que quando... que depois disto não há lugar para um bretão em Sevenwaters? Suponho que consigo compreender isso. Suponho que acabo por compreender.
Finbar, que se mantivera quieto e silencioso, com exceção da sua voz na minha mente, foi rápido. Num instante, assim me pareceu, estava ao lado da minha mãe, falando em voz alta.
— Usas as tuas palavras para magoar Sorcha, ainda por cima esta noite? — perguntou ele.
— Não fales com aspereza, apesar da tua dor. Ela dá-te esta missão para ter a certeza que não te perdes, depois de ela se ir. — O meu tio, era claro, não tinha medo de falar abertamente. — Ela pede-te que vás, para bem da tua filha e do teu neto. Procura a verdade e trá-la para casa, para eles. As feridas que aqui existem têm que sarar; e algumas delas são tuas.
— E... — Sorcha falou muito docemente e o meu pai foi forçado a virar-se para a ouvir.
Nunca o vira tão angustiado e reprimi as lágrimas com dificuldade, porque a minha história atingira um homem que já sofria muito.
— E... devias ir ter com o teu irmão. Terás que lhe dizer que eu parti. Ele deve saber, Red...
Ele ajoelhou-se ao pé dela e ela estendeu uma mão para lhe tocar na face. Ele colocou os seus dedos sobre os dela e manteve-os ali.
— Promete-me murmurou ela. Promete-me que o farás e regressarás são e salvo.
Ele acenou rigidamente com a cabeça.
— Promete.
— Prometo.
Ela suspirou.
— É tarde. Liadan, devias ir dormir. O Sean já chegou?
— Não sei, mãe. Quer que vá ver?
— Pega — disse ela. — É melhor levares o teu filho. Ele pode sentir a tua falta. — Os seus dedos afagaram gentilmente a orelha do bebê, o seu cabelo suave, eu peguei nele e vi nos olhos de Sorcha que era a última vez que tocava no neto.
— Liadan. Falaste a Sean nisto?
— Não, mãe. Mas ele adivinhou. Uma parte, pelo menos. Manteve a fé; não disse nada a Liam, a Fionn, ou a Eamonn. Nem sequer disse a Aisling.
— Não gosto de segredos. Detesto mentiras — disse o meu pai severamente. — Devíamos ter tornado tudo muito claro, no início. Mas é claro que a verdade deve permanecer escondida durante algum tempo. E Conor? Ele sabe alguma coisa disto tudo?
— A única maneira de conseguir uma resposta é perguntares-lhe — disse Finbar. Mesmo assim, pode ser que não descubras o que queres saber.
— Nesse caso, espero saber a resposta depois de regressar de Harrowfield — disse o meu pai. — Assim, uma mentira leva a outra e deixamos de confiar uns nos outros.
— Deixamos de confiar uns nos outros quando Niamh se casou com Uí Néill e a mandámos embora daqui — respondi, asperamente. — Esta história começou há muito tempo.
— Há muito mais tempo — disse Finbar calmamente. — Oh, há muito mais.
Senti que não ia ser capaz de dormir. Provavelmente, nenhum de nós dormiria, com exceção de Johnny, cujos sonhos infantis não eram perturbados pela sombra da partida. Transportei o meu filho nos braços ao longo do grande salão, mas era com o pai que eu falava, na minha mente.
Preciso de ti. Quero-te aqui. Os teus braços em volta de mim, o teu corpo quente contra o meu, para afastar a tristeza. Faria diferença, se pudesses ouvir as palavras deles? Se os pudesses ouvir dizer “ele cumpriu o seu propósito” lutarias por nós? Ou terias medo do que uma tal luta significaria? Talvez te limitasses a virar as costas e ires-te embora.
Então, ao entrar no salão, pus uma cortina por cima dos meus pensamentos. Sean estava ali, aparentemente recém-chegado, depois de uma dura cavalgada durante a noite, porque estava, de algum modo, sujo da viagem e eu senti-lhe um profundo cansaço.
— Liadan! Eu ia lá agora mesmo. Como está a nossa mãe?
Por um momento, pensei por que razão estava ele a falar em voz alta e com tanta formalidade e então vi Aisling com ele, desapertando a capa, esfregando as costas, o rosto branco de exaustão. Avancei, disfarçando a minha surpresa.
— Aisling, deves estar cansadíssima. Anda, senta-te aqui, enquanto te vou buscar um pouco de vinho...
As minhas palavras e os meus pés pararam abruptamente.
— Suponho que não nos esperavas, Liadan — disse Eamonn saindo da sombra, de junto da janela. — Peço desculpa pela inconveniência.
— Oh. — Fiquei a olhar estupidamente, completamente apanhada de surpresa. — Não... eu...
— Estive no norte — disse Sean suavemente. Apesar do cansaço, percebeu-me perfeita e rapidamente. — Regressei por Sídhe Dubb. Aisling e Eamonn estavam ansiosos por prestar as suas homenagens, sabedores da gravidade da doença da mãe. Mas, agora, vou ter com ela.
— Ela tem perguntado por ti. Vai ficar muito feliz por teres regressado a tempo. Eu vou contigo...
— Não, não te dês ao trabalho. Fica aqui a descansar, estás com um ar cansado. Por que não pousas o bebê e tomas, também, um pouco de vinho?
— Eu... — Não havia uma maneira polida de recusar a sugestão sensata do meu irmão. O que eu não esperava era que Sean pegasse na mão de Aisling e a levasse com ele, deixando-me sozinha com Eamonn. Os homens que os tinham acompanhado na viagem já deviam estar na cozinha e de lá para um merecido descanso. Ficamos os dois sozinhos, com exceção do bebê a dormir. Conseguia pensar em muitas coisas que gostaria de estar a fazer, em vez de ficar ali a conversar com Eamonn, naquele preciso momento. Mas ele era um hóspede; não tinha escolha.
— Pareces muito cansada, Liadan — disse ele com gravidade. — Anda, senta-te aqui.
Deitei Johnny em cima de umas almofadas perto da lareira e sentei-me. Foi Eamonn que encheu duas taças com vinho de um jarro e me entregou uma. Ficou ao lado da minha cadeira, olhando para a figura imóvel do meu filho.
— Com que então, este é que é o teu filho. Parece... saudável. E, no fim de contas, um filho não escolhe o pai.
Um arrepio gelado percorreu-me a espinha. Que quereria ele dizer?
— Obrigada — murmurei. — É pequeno, mas forte.
— Espero poder ter uma palavra com a tua mãe, antes de... espero poder falar com ela amanhã de manhã. E com o teu pai. Se houver tempo.
Acenei com a cabeça, com um nó na garganta.
— Quero apresentar as minhas desculpas pessoalmente e expressar os meus sentimentos pelo que... aconteceu à tua irmã. Não posso remediar nada, reconheço. Mas espero, pelo menos, dar-lhes a saber que tenciono levar o assunto até às últimas consequências.
— Eamonn...
— O que é, Liadan?
— Talvez seja melhor expressares simplesmente as tuas simpatias para com a sua perda e deixar tudo como está. O meu pai está angustiado e a minha mãe muito fraca. Eles estão conformados com o... acidente de Niamh. Não é a altura indicada para votos de vingança. Não estamos em tempos de ira.
— Qualquer altura é a altura indicada, até eu apagar aquela escumalha da face da terra — disse Eamonn, tenso.
Eu não queria ouvi-lo. Visões obscuras aproximavam-se. Saberia ele que o meu filho era filho de Bran? Como seria possível? Não queria ser arrastada para uma conversa perigosa. Além disso, estávamos a meio da noite e eu estava demasiado cansada para ter a certeza dos meus pensamentos, ou das minhas palavras. Mas não queria ir dormir, visto que a minha mãe podia precisar de mim. Levantei-me da cadeira para me estender sobre as almofadas no chão, perto da lareira. Ali, podia pôr uma mão no pequeno corpo do meu filho e sentir-lhe o calor. Ali podia olhar para as chamas e sonhar, porque há alturas em que os sonhos são mais seguros do que o mundo real.
Eamonn olhava para mim intensamente. Senti-o, se bem que os meus olhos olhassem noutra direção.
— Teria vindo mais cedo — disse ele em voz baixa. — Ver os teus pais; falar contigo. Tenho estado... ausente. Uma busca infrutífera, ao fim e ao cabo. O homem é difícil de seguir, é evasivo e esperto. De qualquer maneira, faz mal se me subestima. A minha rede de informadores é grande. As notícias que me trazem são espantosas, por vezes; espantosas e... repulsivas. — Ele olhou para o bebê a dormir, franzindo o sobrolho. — Com tempo, hei de descobrir este fora-da-lei. Todos os homens têm a sua fraqueza. É só descobri-la e usá-la para o apanhar. Hei de descobri-lo e ele há de pagar pelos seus atos de selvajaria. Há de pagar com sangue aquilo que roubou e humilhou. Não tenhas dúvidas.
Eu não disse nada, limitando-me a afagar as costas do meu filho e a beber outro gole de vinho. Da última vez em que estivera cansada e partilhara uma bebida forte com um homem, as consequências tinham sido graves. Não podia dar a entender que compreendia as insinuações de Eamonn.
— Desculpa, Liadan — disse ele. — Não vim aqui para falar disto.
— Eu sei, Eamonn. Vieste aqui para prestar as tuas homenagens à minha mãe.
Houve uma pausa.
— Não exatamente. Era suposto eu visitar-te por esta altura. Faltam poucos dias para Beltane.
O meu coração gelou. Não disse nada.
— Certamente não te esqueceste?
— Eu... não, Eamonn, não me esqueço com tanta facilidade. Pensei que esse assunto estava resolvido, da última vez que falei dele, antes de ires para Tara. Certamente que não há mais nada a dizer entre nós, sobre esse assunto?
Eamonn começou a andar de um lado para o outro, como parecia que sempre fazia quando tentava encontrar as palavras certas.
— Foi isso que pensaste? Imaginavas que eu atirava com tudo para trás das costas, talvez regressar do sul noivo de uma parente qualquer do Rei Supremo? Pensas, então, que desisto de ti com essa facilidade?
Olhei para ele.
— Não sei o que pensas — disse eu lentamente. Era como se ele dissesse... mas não, não podia ser. Johnny deu um suspiro e voltou a dormir.
Eamonn deixou de andar de um lado para o outro e ajoelhou-se diante de mim, desastradamente. Uma madeixa de cabelos caiu-lhe para os olhos e eu quase lha penteei para trás.
— Eu não quero outra mulher, Liadan. Só te quero a ti. Com criança ou sem criança. Não quero outra.
— Não digas... — comecei.
— Não — disse Eamonn firmemente. — Escuta-me. Ficaste aqui para tratar da tua mãe e isso é admirável. Preferiste criar o teu filho sozinha. Isso demonstra coragem. Serás a melhor das mães, tenho a certeza. Não percebo é por que razão proteges, com o teu silêncio, o pai dele. É a vergonha, talvez, que te impede de falar. Mas isso pouco importa, agora. Ele há de prestar contas. Mas, perdoa-me, eu sei que a tua mãe vai falecer e que pouco tempo lhe resta neste mundo. Niamh morreu. Sean e Aisling casarão em breve e uma nova família virá para esta casa. Tu estarás só e vulnerável, Liadan. Não te deves tornar na irmã que nunca casou, a escrava que vive a vida dos outros. Tu já te esgotas, tentando fazer tudo. Precisas de um homem bom, que cuide de ti e te proteja. Precisas de uma casa tua, um lugar onde possas ver a tua própria família crescer. Casa comigo e tudo isso será teu.
Passaram-se alguns momentos, antes de eu conseguir falar.
— Como é que tu... como é que tu me fazes uma oferta dessas, quando eu tenho um filho de outro homem? Como podes tu assumir a responsabilidade por um... por um...
— Infelizmente, a criança é um rapaz. Se tivesses tido uma rapariga, poderia criá-la como minha. O teu filho não pode herdar, é evidente. Mas haverá um lugar para ele na minha casa. Como já disse, um rapaz não pode escolher o seu pai. Hei de fazer alguma coisa dele. — Olhou para Johnny a dormir, franzindo o sobrolho. — Será um... desafio interessante. — O olhar dele assustou-me.
— Dir-se-ia que és louco, para me fazeres semelhante oferta — consegui eu dizer, tentando encontrar as palavras para lhe responder. — Podes muito bem encontrar uma jovem que te convenha. Deves esquecer-me e continuar. Devias tê-lo feito quando eu te disse.
Ele estava sentado muito perto de mim, no chão, em frente do fogo. Eamonn sempre seguira as formalidades. Preferia fazer as coisas como deve ser. Mas aquilo estava para além de quaisquer regras. Assim, aproximou-se de mim e de Johnny e os seus olhos castanhos tinham um olhar que estava muito próximo do desespero.
— Quando te vejo assim — a sua voz não era mais do que um murmúrio — com a luz do fogo nos cabelos e a tua mão, tão suave, no bebê, sei que ainda tenho uma hipótese. Direi o que tenho a dizer o mais simplesmente que sei e espero que as minhas palavras não te ofendam. Eu quero-te em minha casa, à minha espera, para me pores os braços à roda do pescoço quando venho cansado de uma batalha. Quero-te na minha cama. Quero-te como minha mulher, minha amante e minha companheira. Quero-te prenhe dos meus fi... filhos. Não teria medo de envelhecer, contigo a meu lado. Não há mais nenhuma mulher no mundo para mim. O que fizeste, esse teu erro, podemos... podemos esquecê-lo. Ofereço-te proteção, segurança, a minha riqueza e o meu nome. Ofereço-te legitimidade para o teu filho. Não me recuses, Liadan.
Tentei formar as palavras adequadas, mas não me vinha nenhuma.
— Estás a hesitar. É claro que procurarei, de novo, a aprovação do teu pai. Mas não creio que ponha alguma objecção, dadas as circunstâncias.
— Eu... eu não posso...
Eamon olhou para as suas mãos unidas.
— Disseram-me que te sentias... inquieta... em Sídhe Dubh. Que achaste os seus limites difíceis, depois da liberdade que gozas em Sevenwaters. Demasiada liberdade, talvez. Mas eu não te manterei enjaulada, como um pássaro, contra a tua vontade. Tenho muitas terras no norte. Se não te quiseres instalar em Sídhe Dubh, construo-te uma casa nova, mais a teu gosto. Árvores, um jardim, tudo o que quiseres. Com a devida segurança, é evidente.
— Tens a certeza — disse eu cuidadosamente — que isso não é um gesto para apaziguar a minha família pelo que tu pensas ter sido uma falha tua na segurança em relação à minha irmã? Continuo a não acreditar que um homem da tua posição queira dar um passo destes.
Aquelas palavras foram um erro. As suas sobrancelhas estreitaram-se e o seu rosto ficou com uma expressão feroz.
— É preciso eu mostrar-te?
E antes de eu perceber, a sua mão estava na parte de trás da minha cabeça, os dedos apanhando-me os cabelos e a sua boca estava na minha e não foi o beijo polido de um homem que gosta de fazer as coisas segundo as regras. Quando acabou, o meu lábio sangrava.
— Desculpa — disse ele, conciso. — Esperei muito tempo por ti. Prometeste-me uma resposta por ocasião de Beltane. Quero a tua resposta, Liadan.
Que Brighid me ajudasse. Por que não regressava Sean? Respirei fundo e olhei para os olhos dele. Ele soube, creio, um instante antes de eu o dizer.
— Não posso, Eamonn. É uma proposta extremamente generosa. Mas vou ser honesta contigo. Não sinto o mesmo por ti.
— Que queres dizer? O mesmo o quê, exatamente? — Aquilo ainda ia ser mais difícil do que eu imaginava.
— Conhecemo-nos há muito tempo. Respeito-te; desejo-te o melhor, como amigo. Desejo que sejas feliz na tua vida. Mas não posso pensar em ti como... — Não consegui dizer a palavra amante. — Como marido.
— O meu contato é assim tão desagradável? Tão repugnante?
— Não, Eamonn. Tu és um homem bonito e muitas outras mulheres adorarão casar contigo, um dia. Não duvido disso. Mas conosco seria errado. Errado para ti, errado para mim. Terrivelmente errado para o meu filho e para o pai dele.
— Como podes dizer uma coisa dessas? — Ele levantou-se e recomeçou a andar de um lado para o outro, como se necessitasse de distrair os seus sentimentos com alguma ação, ou então estes dilacerá-lo-iam. — Como podes manter-te fiel a esse... esse selvagem, quando tudo o que fez foi fazer-te um filho, desaparecendo depois para emprenhar outra inocente qualquer? Ele nunca regressará para ti; um homem daqueles não tem a noção do dever, ou da responsabilidade. Só ficas bem se te livrares dele.
— Pára, Eamonn. Não tornes a situação pior ainda.
— Tens que me ouvir, Liadan. Essa tua decisão é tola e eu pergunto-me se estás no teu perfeito juízo. Porque tu tens razão, esta é, provavelmente, a única proposta que terás, solteira e com um filho sem pai. Talvez eu venha a ser desprezado devido à minha escolha; por não ter escolhido a filha de um chefe de guerra do sul, com antecedentes impecáveis e garantia de virgindade. Estou-me nas tintas para isso. No que te diz respeito, não tenho orgulho. Para mim, tu és a única escolha. Liadan, pensa na tua família. Liam gostaria que tu te casasses bem, assim como o teu pai. E a tua mãe? Não gostaria de saber a boa notícia antes...
— Pára! Chega!
— Leva um pouco mais de tempo, se quiseres. Tu estás cansada e desgostosa com a perda que vem aí. Eu fico cá uns dias; os suficientes para que tu possas discutir o assunto com a tua família. Talvez vejas melhor as coisas quando...
— Eu estou a ver muito bem — disse calmamente, pegando no meu filho e levantando-me das almofadas. — Custa-me muito magoar um amigo tão bom; mas vejo que não tenho outra solução. Devo recusar a tua oferta. Eu e o meu filho, nós... nós pertencemos a outro homem, Eamonn. A tua opinião sobre ele não muda nada. Nem agora, nem nunca. Agir contra essa ligação seria loucura e seria perigoso. Tal escolha só levaria à cólera, à mágoa e à amargura. Prefiro ficar só o resto da minha vida a tomar tal decisão. Lamento. A tua oferta é prova da tua grande generosidade e sinto-me honrada com ela.
— Tu não podes recusar — disse ele e a luta para tentar controlar-se era evidente na sua voz. — Há muito que está decidido que tu e eu... está certo se casares comigo, Liadan. Eu sei que Liam me apoiará...
— Acabou, Eamonn. — A minha voz tremia. — Ninguém tem nada com isto, senão tu e eu. E eu disse que não. Tens de continuar sem mim. Dá-me a tua palavra em como não voltarás a falar disto.
Ele recuou, para longe da luz e do fogo, ficando meio na sombra.
— Não ta posso dar — disse ele numa voz tensa.
— Nesse caso, não te verei mais, senão na companhia de outras pessoas — disse eu, encontrando a força suficiente para impedir que as lágrimas me caíssem pelas faces. Ele deu um passo na minha direção e o seu rosto estava branco como a cal.
— Não faças isso, Liadan. — Era mais um aviso do que um pedido.
— Boa noite, Eamonn. — Virei-me, dirigi-me para as escadas, enquanto Johnny acordava e começava a chorar e, sem olhar para trás, fui para o meu quarto. Ali acendi a minha vela e mudei as fraldas ao meu filho. Enquanto amamentava a criança, deitada na cama, deixei cair as lágrimas que conseguira reprimir antes e ao mesmo tempo que a vela, com as suas volutas e espirais ardia com uma pequenina chama contra o céu noturno, vi de novo a imagem dos dois juntos, numa luta final; as mãos de Eamonn em redor do pescoço de Bran, agarrando, apertando, tentando cortar-lhe a respiração; e a faca de Bran entre as costelas de Eamonn, torcendo cada vez mais, enquanto o sangue escorria, escarlate, pela túnica verde. Como pudera eu pensar que algum dia, apesar de tudo, Bran e eu nos poderíamos juntar? Que ele poderia ser mais do que uma... uma mera ferramenta, como lhe tinham chamado as Criaturas Encantadas; um mercenário de passagem, que se limitou a fazer um filho e que se afastou da história, a sua parte apagada, a sua importância cessada! Ele não podia regressar. Aproximar-se de mim significaria a morte. Era melhor que nunca mais me visse, porque só lhe traria perigo e sofrimento. E agora a sombra não se estendia apenas sobre ele, mas também sobre o meu filho. Via-o nos olhos de Eamonn. Tinha de fazer como me haviam dito as Criaturas Encantadas e ir para a floresta. Tinha de esquecer Bran. Para nosso bem, tinha de o esquecer.
Chorei, chorei, até a cabeça me doer e o nariz pingar, molhando-me a almofada toda. Mas Johnny continuava a mamar, a pequenina mão batendo-me na pele, o corpo quente e descontraído contra o meu, a imagem da confiança. E enquanto olhava para ele soube que em todas as noites escuras uma pequena luz ardia, algures, e que nunca poderia ser apagada.
CAPÍTULO DOZE
Na manhã seguinte, a minha mãe ora estava consciente, ora não. A família reuniu-se em volta da cama dela; o pessoal da casa e da aldeia amontoava-se no salão e na cozinha, falando em voz baixa. O trabalho não se fazia, salvo os preparativos para a despedida e isso decorria calmamente no exterior. De vez em quando, Liam, ou Conor, ou Padriac, desapareciam por uns instantes, regressando depois tão discretamente como tinham saído. Dentro do quarto a atmosfera era tranquila. Uma brisa fria, vinda de oeste, entrava pela janela, trazendo o perfume dos lilases. Eu colocara uma bacia em cima da pequena mesa, com raminhos frescos de mangericão e mangerona, porque essas duas ervas têm a propriedade de dar ânimo em tempos de sofrimento.
— Ainda bem que ela está à deriva, no seu último sono — disse Janis em voz baixa quando passámos pela porta. — A dor é muito forte, demasiado forte para ser suportada em silêncio. E ele — acenou-lhe com a cabeça na direção do meu pai, sentado ao lado da cama — ele sente com ela cada espasmo. Vai ser muito duro para ele.
— Ela pediu-lhe que regressasse a Harrowfield. Para ver a família. Fê-lo prometer.
— É verdade. Ela sempre foi uma rapariga sensata, a minha Sorcha. Sabe que ele precisa de um objetivo, depois de partir. Ela foi o objetivo dele desde que pôs os pés nesta casa, há muitos anos. Os sapatos dela nunca hão de entrar nos pés de outra. Ela olhou para mim de perto, os olhos brilhantes. — Magoaste-te no lábio, miúda? É melhor pores aí um pouco de pomada, o tomilho é bom para diminuir o inchaço. Mas tu não precisas que te diga isso.
— Não é nada — disse eu e entrei no quarto.
Não me vou demorar a descrever aquelas últimas horas. A minha mãe já não se apercebia da maior parte das coisas, porque já tinha um pé no seu novo caminho.
Não via o olhar gelado no rosto do meu pai, como se, nem mesmo então, ele não conseguisse acreditar que ia perdê-la. Não ouvia como Conor entoava cânticos em voz baixa aos pés da cama, ou como Finbar olhava pela janela em silêncio, o rosto tão pálido como a asa que tinha em lugar do braço. Não via as rugas de sofrimento nas feições fortes de Liam, ou as lágrimas nos olhos de Padriac. Janis entrava e saía, assim como a ágil mulher de pele escura, Samara. Esta era tão silenciosa e graciosa como uma gazela e as suas mãos eram gentis quando a ajudava com as almofadas, as bacias e os panos, quando acendia velas e borrifava o ambiente com gotas de chá de ervas.
Sean estava sentado no lado oposto ao meu pai, com a mão da minha mãe na dele. E Aisling estava ao pé dele, com os cabelos selvagens presos atrás com uma fita e as feições miúdas muito solenes. De vez em quanto passava uma mão tranqüilizadora pelos ombros de Sean e ele olhava para ela com um pequeno sorriso. Mas Eamonn não estava presente. Eamonn já não estava em Sevenwaters. As homenagens ficaram por prestar, assim como as desculpas aos meus pais pelo que acontecera a Niamh. Só ficara o tempo suficiente para um pequeno descanso e mudar de montada, disseram os rapazes da estrebaria, regressando, depois, diretamente a Sídhe Dubh, deixando os seus homens para trás. Nem parecia dele, disseram as pessoas. Quase descortês. Devia ter recebido más notícias. Abstive-me de comentar. O meu lábio doía-me, o inchaço via-se bem e tive o pressentimento de que nunca mais o veria.
Quando o Sol já estava alto no céu, a minha mãe acordou. Tossiu cruelmente, quase sufocou tentando respirar e lutou para reprimir os arquejos de dor. Foi Finbar que a acalmou, não a tocando, permitindo antes que os seus pensamentos fluíssem para os dela, tapando-lhe o sofrimento com recordações de coisas boas, das inocentes e brilhantes coisas da infância; e com maravilhosas visões do que estava para vir. Não era por acidente que a sua mente estava aberta para mim, o suficiente para eu poder testemunhar, de novo, o modo como ele utilizava a sua capacidade de aliviar e curar. Não lhe podia amenizar as dores, mas podia dar-lhe os meios para as suportar. Era a mesma capacidade que eu usara para ajudar Niamh, mas Finbar era um mestre e eu fiquei ali, com um temor respeitoso, enquanto ele lhe tecia uma tapeçaria brilhante de imagens, demonstrando-lhe o seu amor e anunciando a sua partida.
Por fim ela acalmou, com a cabeça na almofada, respirando com mais facilidade.
— Está tudo pronto? — murmurou ela. — Fizeste tudo, conforme planejamos?
— Está tudo preparado — disse Conor com gravidade.
— Ótimo. É importante. As pessoas precisam de se despedir. É uma coisa que os Bretões nem sempre compreendem. — Ela olhou para o meu pai. — Red?
Ele tossiu levemente, incapaz de falar.
— Conta-me uma história — disse ela suavemente, como uma brisa de Primavera.
O meu pai lançou um olhar angustiado para os tios silenciosos, para Janis, para Samara, que alimentava calmamente o fogo, para mim, para Sean e para Aisling.
— Eu... eu creio que...
— Vem — disse Sorcha e podiam muito bem estar só os dois no quarto calmo, cheio do aroma das ervas. — Senta-te aqui na cama. Põe os teus braços em redor de mim. Que bom, meu amor. Lembras-te do dia em que partilhámos, sozinhos numa praia selvagem, salvo as gaivotas e as focas, as vagas e o vento de oeste? Contaste-me uma história maravilhosa, nesse dia. É a minha história predileta.
Percebi então, como nunca antes, quão forte o meu pai era. Ele sabia, ao sentar-se com Sorcha nos braços e ao contar-lhe a sua história com as lágrimas a escorrerem-lhe pelas faces abaixo, que a cada palavra que pronunciasse ela deslizaria um pouco mais para o outro mundo. Que, quando terminasse a história, ela já não estaria com ele. Ele sabia que devia partilhar aquela despedida tão privada com todos nós. E a sua voz calma, contando a história, era tão forte e firme como os grandes carvalhos da floresta e a sua mão, afastando os cabelos da minha mãe das têmporas, moviam-se com tanta regularidade como o percurso do Sol através do céu.
Era, na verdade, uma bela história. A história de um homem solitário que casa com uma sereia; como ele a atrai com a música do seu assobio, até que ela abandona o oceano para o seguir. Durante três anos fica com ele e dá-lhe três bonitas filhas. Mas as saudades do mundo por baixo das vagas são demasiado grandes e no fim ele liberta-a, porque a ama.
Houve uma altura, durante a história, em que a voz do meu pai falhou. Sorcha deu um pequeno suspiro, os seus olhos fecharam-se e os seus dedos, que tinham estado agarrados a uma prega da túnica do meu pai, enquanto ele a mantinha apertada contra o peito, soltaram-se e a sua mão caiu em cima do joelho dele. O silêncio foi total. Foi como se o quarto, a casa e as coisas selvagens do lago e da floresta tivessem deixado de respirar naquele instante. Então, o meu pai recomeçou a história.
— As filhas de Toby cresceram e transformaram-se em lindas mulheres, com o tempo casaram-se e hoje há muitas pessoas, por aquelas bandas, com cabelos escuros emaranhados, como as algas, com olhos perspicazes e talento para nadar. Mas isso é outra história.
Ele hesitou de novo, olhando em frente, abstrato; e eu vi a mão dele apertar, com força, o ombro da minha mãe.
— Quanto a Toby — disse eu, percebendo que tinha de terminar a história por ele — pensou que a sua vida tinha terminado, quando a perdeu. E assim foi, de certa maneira. Mas a roda continua a girar, a girar e quando uma coisa morre, outra nasce. Foi assim com ele.
— Ele ia todos os dias sentar-se nas rochas e olhar para oeste, por cima das águas — Conor continuou a narrativa com a sua voz suave, expressiva — e às vezes, mas só às vezes, tirava o assobio da algibeira e tocava algumas notas, o fragmento de um reelm, ou o refrão de uma velha balada.
Padriac estava de pé atrás do irmão; tinha o braço em volta de Samara.
— Ele olhava, olhava em busca dela — disse Padriac — mas os seres do mar raramente se mostram à humanidade. No entanto, por vezes, ao crepúsculo, na água, ele acreditava ver umas formas graciosas nadando ao lusco-fusco, braços brancos, longos cabelos e caudas brilhantes, com escamas parecidas com jóias, batendo nas águas. Sonhava que elas olhavam para ele com olhos queixosos e líquidos, como os das suas filhas, olhos com um olhar tão vasto como o oceano.
— Então, regressava a casa — disse Liam, que se mudara para o outro lado, para o pé de Sean — e quando entrava, em vez de acender a sua pequena lanterna, deixava a porta aberta e deixava que o luar entrasse na pequena choupana onde vivia, na ponta rochosa. E, por vezes, sentava-se nos degraus, à entrada e olhava para aquele brilhante rasto de luz, tentando imaginar como seria viver nas profundezas do grande oceano, filho de Manannán mac Lir.
— Ninguém soube o que lhe aconteceu, no fim. — Percebi que Sean estivera a chorar; mas, tal como os restantes, manteve a voz firme o melhor que pôde. Pareceu-me que ele crescera rapidamente, durante aquela última estação. — As pessoas diziam que o tinham visto a vaguear pela praia, na escuridão da noite. Outras diziam que o tinham visto nadar para o alto-mar, para longe, para lá das ondas, dirigindo-se, firmemente, para oeste. As suas filhas estavam com a avó. A choupana estava limpa e tudo nos seus devidos lugares. Mas, um dia, simplesmente, ele já lá não estava.
— E dizem que, se visitarmos aquelas bandas — Finbar falou de onde estava, junto da janela, de costas viradas para nós — podemos vê-lo, por volta da meia-noite, quando a Lua está cheia. Se formos devagarinho até à praia e se ficarmos sentados nas pedras, ouviremos um chapinhar e um agitar da água e veremos as formas dos seres marinhos, nadando e brincando perto da costa. O povo diz que Toby anda no meio delas, o seu corpo branco com laivos prateados à luz do luar e a água passando por ele com tanta facilidade como se acariciasse as escamas de um peixe. Mas se ele é um homem, ou uma criatura das profundezas, ninguém sabe.
Ela já partira. Todos o sabíamos. Mas ninguém se mexia. Ninguém falava. O meu pai continuava a segurá-la nos braços, como se quisesse preservar aquele último momento de vida, se se mantivesse imóvel. Os seus lábios estavam encostados aos cabelos dela e os seus olhos estavam fechados.
Lá fora a brisa soprou, enviando uma lufada de ar frio através da janela, levantando os cabelos escuros da testa de Finbar e agitando as penas da sua asa. E então, nas árvores, os pássaros recomeçaram a cantar, as suas vozes subindo e misturando-se, saudando e despedindo-se, solenes e chorosas, a voz da floresta, saudando o momento da passagem de Sorcha.
Não durara até ao crepúsculo. Talvez tivesse sido deliberado, porque quando finalmente nos movemos, quando conseguimos mover-nos, aproximámo-nos todos à vez e beijamos-lhe as faces, tocámos-lhe os cabelos e saímos silenciosamente do quarto, isolados ou aos pares, deixando o meu pai só, com ela. Ainda havia tempo, antes de o Sol descer no horizonte. Tempo para eu ir buscar Johnny e amamentá-lo uma vez mais, sem saber quantas lágrimas era capaz de derramar antes que elas secassem por completo. Tempo para Sean e Aisling desaparecerem tranquilamente e procurarem conforto nos braços um do outro. Tempo para os meus tios se retirarem para a sala privada da família e partilharem uma caneca ou duas de cerveja forte, contarem histórias da infância que tinham partilhado na floresta de Sevenwaters, os seis irmãos e a sua pequena irmã. Agora, só restavam quatro.
Foi como ela tinha pedido. Ao crepúsculo juntámo-nos na margem do lago, onde crescia um belo vidoeiro. Havia archotes em volta, espetados em estacas, derramando uma luz brilhante sobre os rostos dos meus tios, dispostos em círculo em redor da árvore. Liam acenou com a cabeça na direção de Sean e o meu irmão juntou-se-lhes.
Vem, Liadan. Duas vozes silenciosas chamaram-me. A de Conor e a de Finbar. Coloquei-me entre ambos. O círculo estava quase completo. Junto da água, onde o lago batia gentilmente na margem, estava ancorado um pequeno barco. O meu tio Padriac, que era perito naquelas coisas, tinha-o construído com um cuidado meticuloso. Era suficientemente grande para servir o seu propósito.
À proa estava um archote à espera de ser aceso e ao longo de todo o seu comprimento havia flores, folhas, penas e muitas outras pequenas oferendas da floresta para a acompanharem. A minha mãe estava pronta dentro do barco, pálida e imóvel no seu vestido branco, numa cama de macias almofadas. Samara tecera uma pequena grinalda de campainhas-do-monte e espinheiro-alvar, trevo e mal-me-queres e Sorcha usava-a nos cabelos escuros e encaracolados. Não parecia ter mais de 16 anos.
O meu pai estava na margem, sozinho, olhando para as águas cada vez mais escuras do lago.
— Lubdan — disse Liam em voz baixa. Não houve resposta.
— Lubdan, chegou a hora. — A voz de Padriac era mais alta. — És necessário aqui.
Mas o meu pai ignorou-os e os seus ombros tinham um aspecto ameaçador. No entanto, Liam não era o senhor de Sevenwaters por ser. Saiu do círculo solene e caminhou até ao Homem Grande, colocando-lhe uma mão no ombro. O meu pai moveu-se ligeiramente e a mão caiu.
— Vem Lubdan. Chegou a hora de ela ir. O Sol já está a esconder-se por trás das árvores.
Então, o meu pai virou-se, os olhos cheios de angústia. Já ia longe o controlo que demonstrara ao contar-lhe a última história.
— Fazei-o sem mim — disse ele com uma amargura que eu nunca lhe ouvira na voz. — Não há aqui lugar para mim. Acabou. Não sou um dos vossos, nem nunca serei.
Liam estendeu a mão de novo, deliberadamente, agarrou o meu pai pelo ombro e desta vez não permitiu que o Homem Grande o sacudisse.
— Tu és nosso irmão — disse ele em voz baixa. — Precisamos da tua ajuda. Vem.
E assim o círculo ficou completo e nós fizemos as nossas despedidas, de acordo com as velhas tradições. Num círculo exterior estavam os druidas e os homens e mulheres da nossa casa e de vez em quando faziam eco das palavras solenes de Conor. Por vezes, ouviam-se outras vozes, vozes estranhas, sussurrantes, vindas do vento das árvores, murmurantes, das ondulações do lago e cantantes das rochas e cavernas da própria terra. E uma vez, quando olhei na direção do local onde o relvado acabava e começavam as grandes e misteriosas formas dos carvalhos, dos freixos e das faias, complexas e sombrias na meia luz aveludada, vi figuras de pé, meio escondidas por baixo dos ramos que se estendiam. Uma mulher alta, de rosto branco, com uma capa azul e uma cortina de cabelos escuros. Um homem coroado de chamas brilhantes, mais alto do que qualquer mortal. E outros, cheios de jóias, alados, meio escondidos no meio do rendilhado de folhas e gravetos.
Quando o ritual se completou, Conor caminhou à frente na direção da margem do lago, pôs as mãos em concha, soprou nelas gentilmente e uma chama brilhou subitamente, dourada, na palma das suas mãos. Caminhou até à água sem se preocupar com o manto comprido e encostou as mãos ao archote, que estava fixo na proa do pequeno barco de Sorcha. O archote flamejou e um rasto brilhante apareceu diante da pequena nave, cintilando na superfície negra do lago. Mais longe, no extremo do relvado, um tocador de gaita-de-foles estava pronto. Senti um arrepio percorrer-me a espinha quando a voz da gaita atingiu as árvores silenciosas e a água imóvel, subindo sempre na noite.
— Chegou a hora — disse Conor tranquilamente. Então, cada um de nós colocou uma mão no casco da pequena nave e o meu pai estava entre Liam e Conor. Empurramos ligeiramente, mas quase não houve necessidade, porque a água já ondulava por baixo da proa, como se o barco estivesse ansioso por começar a sua jornada e enquanto ele se afastava da margem e a corrente o levava, pude ver longas e pálidas mãos que se estendiam de baixo, guiando o barco da minha mãe na sua viagem. E vozes líquidas, cantando o seu nome: Sorcha, Sorcha.
— Vai em paz, pequena coruja — disse Conor numa voz que eu mal reconheci.
Finbar atirou a capa para trás e abriu a sua asa, para que a gloriosa envergadura, de penas brilhantes, cintilasse, laranja e dourada à luz do archote, como um estandarte de despedida. Mas o meu pai permaneceu imóvel e silencioso, gelado pela perda, enquanto o lamento da gaita se espalhava pela floresta.
Semicerrei os olhos, tentando segui-la o mais possível, porque também eu chorava, apesar de saber que a minha mãe não tinha morrido, tendo ido apenas para outra vida, para uma outra rotação da roda. Ela quisera-o assim. Por que não descansar no coração da floresta, onde pertences? perguntara Conor. Por que não ficar em Sevenwaters, perguntara Liam, já que tu és a filha da floresta? Mas Padriac dissera, deixai Sorcha escolher. E o que ela mais desejava era percorrer o caminho daquele rio, ser levada ao longo da sua corrente, para longe do lago, como ela fizera uma vez, há muito tempo. Porque, dissera ela, sorrindo, aquela água não a depositara, por acaso, nas mãos do bretão de cabelos vermelhos e não se tornara ele o seu grande amor e a delícia do seu coração? Portanto, escolheria de novo esse caminho, para ver onde ele a levava. Fiquei ali a olhar para a escuridão enquanto a música chorava e uma coruja gritava na noite. As pessoas começaram a dispersar, regressando a casa. O meu pai, de cabeça curvada, seguia junto dos meus tios, qual cordeiro. Sean de mão dada com Aisling. Janis e as suas assistentes mais depressa para fazerem os últimos preparativos para a festa, já que uma boa festa, com música, é uma parte essencial de uma despedida. Fui agradecer ao tocador. Era, seguramente, um homem de talento quase mágico, porque o lamento ecoara nos meus pensamentos mais íntimos; a sua melodia cadenciada conjurara a coragem de Sorcha, a sua força de espírito e o seu profundo amor pela floresta e respectivo povo. O tocador estava a arrumar o seu instrumento num saco de pele de cabra. Era um homem magro, de barba escura, com um pequeno brinco na orelha. O seu assistente, mais alto, encapuçado, segurava no saco. O tocador acenou-me com a cabeça, polidamente.
— Quero agradecer-te — disse eu. — Não sei quem te convidou para vires tocar, mas foi boa ideia. A tua música vem do coração.
— Obrigado, minha senhora. Uma grande contadora de histórias como a vossa mãe merecia uma despedida apropriada.
Já tinha metido a gaita no saco e levantou-o, colocando-o ao ombro.
— És bem-vindo, se quiseres vir até à nossa casa para comeres e beberes um pouco de cerveja — disse-lhe eu. — Estás longe de casa?
O homem mostrou um sorriso torcido.
— Um grande bocado — disse ele. — A cerveja vinha a calhar. Mas... — Ele olhou para o seu silencioso companheiro. Foi só então que reparei, na quase escuridão, no grande pássaro negro empoleirado no ombro do homem, as garras bem presas, os pequenos olhos fixos em mim, avaliadores. Um corvo. — Parece-me — disse o tocador, começando a andar na direção da casa como se as coisas tivessem sido decididas entre os dois sem necessidade de palavras — que uma bebida ou duas não nos farão mal nenhum. E tenho que visitar a minha velha tia. Não posso vir para estas bandas sem lá ir. Ela nunca me perdoaria.
— Tia? — perguntei eu, tendo de apressar o passo para o acompanhar. Atrás de nós, o homem encapuçado caminhava em silêncio. Percebi, enquanto caminhávamos através da floresta, que o tocador de gaita-de-foles era um dos da vasta tribo de nômades de Janis. Um viajante, Danny Walker, assim lhe chamavam. Mas era estranho. Não dissera ela uma vez que Dan era de Kerry? Era, certamente, muito longe.
Chegámos ao carreiro que ia dar à porta principal da herdade. De lá vinha o som de muitas vozes e lanternas ardiam no exterior, para indicar o caminho.
— O teu amigo também é bem-vindo — disse eu para o tocador e olhei por cima do ombro. O homem encapuçado, de pássaro escuro ao ombro, parara uns passos atrás. Era claro que não tencionava seguir-nos até ao interior da casa. — Vens? — perguntei-lhe eu polidamente.
— Não me parece.
Fiquei gelada. Já tinha ouvido aquela voz antes. No entanto, se assim era, tinha mudado terrivelmente. Antes, fora jovem, apaixonada e cheia de dor. Agora, parecia a voz de um homem muito mais velho e fria, de constrangimento.
O homem falou de novo.
— Entra, Dan. Aproveita esta noite para visitar os teus e descansa. Eu falo com a senhora amanhã de manhã.
E depois de dizer aquilo virou-se e desapareceu pelo carreiro, para lá da cerca.
— Ele não vem — disse Dan, simplesmente. Pestanejei. Talvez tivesse imaginado tudo. Ele estava a falar de mim? perguntei hesitantemente.
— Ele disse a senhora. Era comigo?
— Quanto a isso — disse Dan — teríeis de lho perguntar a ele. Se fosse a vós, levantava-me cedo, amanhã. Ele não fica por aqui muito tempo. Não gosta de a deixar sozinha, percebeis?
Não tive oportunidade de lhe perguntar mais nada. Eu tinha deveres, como dona da casa; devia tentar consolar todos aqueles que choravam, partilhar as canções e histórias, com as quais acompanhávamos a minha mãe, com honra e amor. Havia cerveja, hidromel e bolos com especiarias; música, conversação e amizade. Havia sorrisos e lágrimas. Por fim, fui para a cama, pensando que o estranho encapuçado se iria embora na manhã seguinte e que tudo podia ser explicado, simplesmente, como uma partida da Visão.
No entanto, levantei-me cedo e fui para o jardim, sabendo que seria difícil aquele primeiro dia sem a minha mãe; tinha de me compenetrar, ali, no meio das suas coisas tão especiais, no meio do seu tranquilo domínio, que a vida continuava sem a sua presença amorosa e a sua mão gentil, orientadora. Deixara Johnny com a criada; estava muito frio para ele estar fora de portas. Caminhei ao longo do carreiro, arrancando uma pequena erva aqui e ali, sabendo muito bem do que estava à espera.
Ainda mal amanhecera.
Pressenti-o antes mesmo de o ver. Um arrepio subiu-me pela espinha e virei-me na direção do arco. Ele estava imóvel, na sombra; uma figura alta, com a capa e o capuz sobre a cabeça. O pássaro continuava empoleirado nos seus ombros, como uma criatura esculpida em pedra negra.
— Não entras? — perguntei-lhe, duvidando ainda da fidelidade da minha memória. Então, ele deu um passo em frente e tirou o capuz, revelando um rosto pálido e intenso, uns olhos extremamente escuros e uma cabeça com uns cabelos da cor de um pôr do Sol de Inverno.
— Ciarán — disse eu sem conseguir respirar. — És tu. Por que não te mostraste? Conor está aqui, gostaria de te ver... não entras, para lhe falares?
— Não. — A frieza final do seu tom silenciou-me. O grande pássaro estendeu o bico, parecido com a faca de um talhante, para ajustar a plumagem. O seu olhar era feroz.
— Não vim para isso. Para este espetáculo de espírito familiar. Não sou suficientemente louco para acreditar que o abismo pode ser transposto. Estou aqui para entregar uma mensagem.
— Que mensagem? — perguntei calmamente.
— Uma mensagem para a tua mãe — disse ele. — Niamh queria dizer amo-te, perdoa-me. Mas eu cheguei demasiado tarde.
Fiquei sem fala.
— Vai ficar muito triste por eu não ter chegado a tempo — disse Ciarán suavemente.
— A minha mãe há de saber. Não interessa se será agora... ou depois... ela há de saber. Niamh... ela está bem? Ela está melhor, está salva... como é que tu...?
— Está mais ou menos. Muito mudada. — O seu tom de voz era calmo, mas eu senti por trás dele uma tristeza profunda, um fardo que nenhum homem novo deveria suportar. Não conseguia ler o que lhe ia nos olhos. — A rapariga risonha que nos deslumbrou a todos no dia de Imbolc já não existe. Ainda não encontrou o seu caminho. Mas está salva.
— Onde? Salva, onde? Como é que tu...
— Salva. Onde não interessa.
Ele parecia um druida, com as suas respostas.
— Contigo? — perguntei.
Ciarán fez uma espécie de aceno com a cabeça.
— Ela precisa de proteção. Eu falhei em tudo o mais. Mas, ao menos isso, posso dar-lhe.
Ficamos em silêncio, por uns momentos. Os pequenos pássaros começavam a cantar; mensageiros de uma nova aurora, de uma nova estação.
— Eu sou irmã de Niamh — disse eu, finalmente. — Gostaria de saber, pelo menos, onde está e se regressará, quando a verdade for conhecida. Eu disse ao meu pai. Ele compreende, agora, o erro que cometeram todos quando lhe escolheram o marido. Será possível... não podes trazê-la para aqui e...
O riso dele espantou-me. Era um som amargo, escuro.
— Trazê-la para aqui? Como?
Eu não disse nada, não percebendo a sua resposta. Não haveria esperança de que, finalmente, as coisas pudessem compor-se? Não acreditava que todos os meus esforços, e os de Bran, tivessem sido inúteis.
— Eles nunca te disseram? — perguntou Ciarán friamente.
— Nunca me disseram o quê? — Aquele pressentimento surgiu de novo, um terror, um frio no corpo, como o toque de um passado escuro, ou a chegada de um qualquer mal.
— A verdade. Por que razão me proibiram de casar com Niamh e nos mandaram, aos dois, embora. Por que razão não podemos regressar, nem desejamos. Como fomos amaldiçoados, duplamente amaldiçoados, por causa de um segredo. Eles não te disseram. Suponho que foi por isso que nos ajudaste, quando mais ninguém o fez. Se tivesses sabido a verdade, também nos terias repelido.
Recuei ante o tom cínico da sua voz, tão diferente da ardente e calorosa esperança com que contara a sua história de amor.
— Será melhor dizeres-me tudo — disse eu. — Os meus amigos arriscaram-se muito para a ajudar. Diz-me a verdade, Ciarán. Fala-se de um velho mal, de novo vivo, de acontecimentos que nos podem fazer muito mal. O que é? Diz-me. — Fui sentar-me no velho banco de pedra, que estava entre uns maciços penugentos de absinto e camomila e ele aproximou-se. O pássaro grasnou e voou, subindo para o lilás, onde ficou empoleirado, precariamente, num ramo delgado.
— Foi muito cruel — disse Ciarán em voz baixa. À luz da madrugada, o seu rosto estava branco como o de um fantasma. — Foi muito cruel terem-lhe escondido a verdade. Não admira que se tivesse julgado abandonada, porque não percebeu por que razão fugi; o que me levou a fugir. Ela não soube que a nossa união estava... amaldiçoada.
— Amaldiçoada? — repeti eu estupidamente, não percebendo o que ele queria dizer.
— Proibida. Proibida por razões de sangue. Só naquela noite, quando vim a Sevenwaters com o coração a bater como um tambor, preparado para lutar pela minha dama, se fosse preciso, é que Conor se dignou dizer-me, finalmente, quem eu era. Durante todos aqueles anos escondeu-mo, um segredo para nunca ser revelado. Eu pensava que era uma criança enjeitada, cheia de sorte, por ter sido recolhido pelos sábios e criado no paraíso da floresta. Não sonhava com mais nada, senão seguir os passos de Conor, dedicar-me à irmandade. Mas, depois, conheci Niamh. E devia ter sido nessa altura que o segredo devia ter sido contado.
Nos recônditos da minha mente, algures, as coisas começavam a fazer sentido. Um sentido terrível, retorcido, inevitável.
— Conor disse-te quem eras?
— Disse. Que eu nunca poderia casar com Niamh. Que o que fizéramos era vergonhoso e errado, o quebrar das leis naturais, uma aberração, se bem que feito com a maior das inocências. A nossa união nunca poderia ser sancionada. Porque eu sou filho de Colum de Sevenwaters e da sua segunda mulher, Lady Oonagh. Sou meio-irmão de Conor e de Liam. Meio-irmão da mãe de Niamh e logo teu tio. A mulher que me pariu era a feiticeira que quase destruiu esta família e tudo o que lhe era querido. Assim, com um sopro, Conor tirou-me o meu amor, o meu futuro, a minha esperança de felicidade e o objetivo da minha vida. Não só me foi proibido ficar com Niamh, como também fui expulso da irmandade, posto à deriva, sem uma estrela para me guiar. Todas se apagaram, todas.
— Não foi isso que Conor disse...
— Ah! O filho de uma feiticeira nunca pode ser um druida. Transporto o sangue de uma linhagem maldita. De tal maneira que não posso aspirar às mais altas artes dos sábios, ao reino da luz, à inspiração do puro espírito. Isso está para além de mim e sempre estará. Agora, sei isso. Se sou filho dela, então sou um filho das sombras, condenado a caminhar nas trevas. Como me pôde ele criar durante aqueles anos todos sem me dizer, é que eu nunca hei de compreender. Essa mentira nunca lha hei de perdoar.
— O filho de Lady Oonagh — balbuciei eu. — Nunca se falou nele, na história.
— Simplesmente, desapareceu de Sevenwaters, quando ela fugiu. Quando o encantamento foi quebrado. Conveniente — O tom de Ciaran era amargo. — O meu pai encontrou-me e trouxe-me de volta. Vivi no bosque sagrado durante 18 anos, Liadan. Nunca me imaginei outra coisa senão druida. Podes imaginar o que as revelações daquela noite me fizeram. Fechei-me na minha própria culpa. Fugi. Abandonei Niamh ao desespero e ao abuso. Vivo cada dia com esse fardo. Por mais cuidadoso que seja com ela, por mais forte que seja o escudo com que a guardo, não posso esquecer o que aconteceu naquela noite, porque esse legado está alojado, profundamente, dentro de ambos.
Um escudo. Um guarda. Perguntei cuidadosamente:
— Para onde foste, quando saíste de Sevenwaters nessa noite? Conor disse que foste à procura do teu passado. Foste... foste à procura da tua mãe? Ela está...? — Algumas coisas, parecia-me, eram demasiado perigosas para serem ditas em voz alta.
— Eu disse-lhe. — Havia uma escuridão na voz de Ciarán. — Eu disse a Conor. Disse-lhe que um homem não pode escapar ao sangue que lhe corre nas veias. Não importa se o descobre na infância, ou mais tarde, quando pensa que é uma criatura completamente diferente, talvez alguém que possa aspirar a uma grande nobreza de pensamento, a uma grande bondade. Não interessa, porque, mais tarde ou mais cedo, a semente que está em nós floresce, a herança que carregamos começa a comandar-nos. Talvez, se não me tivessem dito, pudesse envelhecer, antes que o sangue mau que transporto se desse a conhecer e me fizesse virar as costas à luz. Mas agora sei, disse-lhe eu e hei de descobrir quais são os poderes dessa herança e como os poderei dominar. Talvez nessa altura não estejas tão disposto a chamar-me irmão. E fui-me embora, em corpo e em espírito. Uma jornada perigosa. A minha mãe conhece muito bem a arte do disfarce. Não queria ser encontrada, ainda não. Mas eu encontrei-a. Tinha aprendido a atravessar a margem para o reino onde ela, agora, se esconde; onde espera.
— Como? Como é que fizeste tal coisa?
— Faz parte do treino de um druida, aprender a ir lá e a regressar. Um teste por meio do fogo e da água, da terra e do ar. Já o tinha experimentado antes, mas desta vez foi diferente. — A sua voz tremia. Naquele momento reconheci que ele não era, no fim de contas, um homem velho, empedernido, mas sim um jovem, pouco mais velho do que eu.
— Disseste que ela espera. Espera... o quê?
Ciarán cruzou os braços e olhou para longe, para o céu da manhã.
— Fazes muitas perguntas — disse ele.
— Foi muito tempo sem notícias — disse eu em voz baixa. — Eu também tenho uma mensagem para entregar. Ou antes, tenho algo para devolver à minha irmã. Tenho-o aqui. Creio que ela vai precisar disto. — Procurei na bolsa do meu cinto e tirei o colar que fizera para Niamh, o cordão, no qual estava tecido o amor da sua família. Um talismã de força inquebrável. Ciarán pegou no objeto e os seus longos e ossudos dedos tocaram na pequena pedra branca, que continuava enfiada nele. Por um momento fugaz, sorriu; e eu vi, de novo, o jovem daquele dia de Imbolc, cujo olhar de alegria e orgulho brilhara nas suas feições intensas, ao acender as lareiras da Primavera.
— Ela pensava que isto se tinha perdido para sempre — disse ele. — Mas tu guardaste-o. Obrigado.
— Nós amamo-la. — Eu estava quase a chorar. — Parece que não compreendes isso. Tens que a manter afastada de nós? Isolá-la, como uma princesa de uma história qualquer, demasiado preciosa para ser vista pelas pessoas normais? Nunca mais a veremos? Nunca verei o filho dela, senão em visões?
Foi como se o tempo tivesse parado; como se tivesse ficado sem respiração, por um momento, e depois continuasse.
— Filho?
Havia qualquer coisa naquela palavra que me agarrou o coração, como nada antes fizera.
— Eu tenho o dom de ver certas coisas, de vez em quando — disse-lhe eu, pensando que não tinha escolha. — O que será, ou pode vir a ser. Vi Niamh com uma criança pequena, um rapazinho de caracóis vermelhos, como os teus, e olhos da cor de amoras maduras. Na areia, numa gruta. A mim, parece-me que há um caminho, para vós. Não o caminho que o meu tio, ou o meu pai, teriam escolhido para ti; não a via que Conor te teria feito seguir, porque ele queria que regressasses ao bosque sagrado, por mais que penses. Não consigo acreditar que talvez nunca mais volte a ver a minha irmã, ou...
— Há perigos que tu nem imaginas. — O seu tom era abafado, irritado. — Um caminho que fui... forçado a seguir. Um caminho que ela... A minha mãe... deseja que eu siga. Ela está à espera da minha resposta. Ela ofereceu-me muito. Um poder que nenhum homem é capaz de compreender. Capacidades muito para além da mais completa arte de um grande druida, artes para além da última página do mais espesso dos alfarrábios do mais antigo dos magos. Posso aprender com ela e vou aprender. Hei de mostrar ao meu irmão o que posso fazer e o que posso ser.
— Isso é uma... uma ameaça? Continuar o que Lady Ooangh não conseguiu? — Eu tremia e não me parecia que ia conseguir parar. Na minha mente vi uma pequena imagem da minha irmã, afastando-se e encolhendo.
— Quanto a isso, será o que tiver de ser. Niamh e eu... tu tens de compreender, o passado não pode ser refeito, por maiores que sejam os nossos sonhos. Algumas maldades não podem ser remediadas. Apesar disso, quando lhe contei a verdade, ela abriu-me os braços, como se não houvesse nada para perdoar. Cuspo nas leis dos homens, que não querem saber do que sentimos, ou não, um pelo outro. Nesta teia toda de sofrimento e trevas, a ligação entre nós é constituída por um único fio brilhante, demasiado forte para ser quebrado. Eu mantenho-a a salvo; é essa a minha missão, protegê-la. Isso está em primeiro lugar, acima de tudo. Mais, não posso dizer, porque o meu caminho ainda me é desconhecido, ainda não foi feito. Quanto à família dela e minha, não quero saber; trataram-nos com desprezo. Perderam qualquer direito que tinham sobre ela quando a expulsaram de Sevenwaters. Porém, contigo é diferente. Estamos em dívida para contigo. Para contigo e para com o homem que a tirou daquele lugar e fez com que eu soubesse. Por essa razão, trago-te um presente.
— Que presente... — comecei eu, mas, enquanto falava, Ciarán olhou de leve para o grande pássaro, na árvore por cima de nós e o corvo, com um ligeiro movimento das asas e um breve e intenso movimento, voou e empoleirou-se no meu ombro, um peso considerável. O seu bico ficou perigosamente perto do meu olho e eu senti as suas garras através da capa, do xale e do vestido.
— Oh — disse eu e não encontrei mais palavras.
— Um mensageiro — disse Ciarán. — Um empréstimo, mais do que um presente. Podes vir a precisar dele. Mas lembra-te. Uma criatura destas só deve ser utilizada em ocasiões extremas. Só quando tudo o mais falhar, tu estiveres sem qualquer ajuda e o teu corpo e o teu espírito atingirem o limite das suas forças, é que a deves enviar. Um mensageiro destes não deve ser enviado de ânimo leve.
— Estou a ver — disse eu, não vendo, na realidade, absolutamente nada. Que criatura era aquela, uma espécie qualquer de parente da feiticeira? Tinha tantas perguntas para fazer; tantas.
— Chegou a hora da partida. — Ciarán pareceu, subitamente, inquieto, como se a sua mente já tivesse partido para um qualquer local distante. — Não posso estar ausente durante muito tempo.
— No entanto, a viagem ainda é grande até Kerry — disse eu cautelosamente. — De uma lua nova à outra, ou talvez mais, não?
— Esse é o caminho que Dan deve preferir, a cavalo ou a pé — disse Ciarán. — Mas há outros caminhos.
— Estou a ver — disse eu de novo, com a mente cheia de histórias de druidas e feiticeiros.
Gostaria de saber quanto aprendera ele naqueles 18 anos e quanto mais ainda desde que o vira pela última vez.
— Adeus, então — disse ele muito sério.
— Eu teria ajudado na mesma, sabes? — disse eu de repente, necessitando que ele soubesse, assim como a minha irmã, que eu tinha bom coração, ao contrário do que eles pensavam. — Mesmo que me tivessem dito quem eras e por que razão é proibido, tê-la-ia ajudado na mesma. Eu amo-a. Se ela está contigo, apesar de tudo, talvez seja porque assim deve ser. Talvez, de qualquer modo, deva ser assim. Com lei, ou sem lei.
Ciarán acenou com a cabeça.
— De uma maneira ou de outra, será revelado — disse ele, parecendo, de novo, um druida. E, como se tivesse sido chamado, se bem que eu não tivesse ouvido nada, Dan Walker apareceu no arco do jardim, assobiando e com o saco de pele de cabra ao ombro.
— Vamos, então? — perguntou ele, a propósito. E antes que eu pudesse acrescentar uma só palavra, Ciarán moveu-se como uma sombra e os dois foram-se embora. Eu segui-os, sentindo o peso do inesperado presente no ombro e o aperto das suas garras na carne. Saí para o carreiro e olhei para lá das sebes que orlavam a floresta. Mas não vi ninguém.
Com o tempo, as pessoas habituaram-se ao corvo.
— É melhor teres cuidado com esse pássaro quando estiveres ao pé do pequenino — avisou-me Janis, sentindo alguma responsabilidade, talvez, já que o seu sobrinho fora, também, causa da sua chegada. — Não se pode confiar numa criatura com um bico desses. E sabes muito bem o que se diz dos corvos.
Mas, por acaso, enganou-se por completo. No que dizia respeito ao bebê, o pássaro era um modelo de bom comportamento. Enquanto Johnny dormia, ele empoleirava-se nas vizinhanças, mantendo-se vigilante e calado. Quando estava acordado e a chorar por comida, o corvo tinha tendência para se lhe juntar, juntando a sua poderosa voz à dele, assegurando, assim, uma atenção rápida. Quando eu passeava junto do lago para admirar os cisnes novos, ou pela floresta, sob os ramos estendidos das faias, com o meu filho nos braços, o corvo acompanhava-me, passando como uma sombra de um ramo para outro, nunca longe de mim e do bebê. Comecei a habituar-me à sua presença constante. Era como um cão de guarda treinado, alertando-me para a aproximação de um porco selvagem, ou de um grupo de homens do bosque, com um grito áspero de aviso. Apelidei-o de Fiacha, que queria dizer “pequeno corvo”.
Quanto a saber como utilizar os seus serviços, não fazia ideia. Uma vez, ou duas, tentei falar com a criatura com a mente, mas fiquei exausta e sem qualquer resultado.
Talvez, quando chegasse a ocasião, soubesse como o fazer. Se a ocasião chegasse.
Havia tantos rumores, maus presságios e meias teorias, que era difícil desenredar a verdade, ou arriscar adivinhar o que o futuro nos reservava. Aqueles que tinham tocado a minha barriga em busca de sorte e que pensavam que Johnny era filho de um ser qualquer do Outro Mundo, olhavam para Fiacha de lado, para mim timidamente e murmuravam sobre a profecia. Era um sinal, diziam. A minha família não fez nada para contradizer tais fantasias. Se as pessoas acreditavam que eu fora o par ocasional de um dos Túatha Dê, ainda bem, porque isso evitava muitas explicações.
Já ouvira muitas histórias na minha vida e já contara outras tantas. E se elas me ensinaram alguma coisa, foi que há alguns acontecimentos que mudam o curso das coisas, que as alteram, muito para além da sua aparente magnitude. É como atirar uma minúscula pedra para um lago, como ela provoca círculos de ondas cada vez maiores, espalhando-se pela superfície da água. Essa pedra minúscula era uma mentira, ou antes, uma verdade escondida. A mentira de Conor e de Liam. Até os meus pais sabiam daquele irmão secreto. A mentira da família, para com um dos seus. E ninguém dissera nada, porque era tão perigosa, tão terrível, e eu não compreendia muito bem por que razão Niamh, cuja vida fora destruída pelo seu efeito, não tivera o direito de saber a verdade. Achei que, depois daquilo, não podia continuar a confiar em nenhum deles. Aquela mentira originara tudo: o verdadeiro amor, esperanças perdidas, a crueldade, o abuso e a fuga, e para Ciarán a descida a uma espécie de trevas, que pareciam ameaçar a nossa própria existência. Para mim e para a minha família trouxe a perda da compreensão e da confiança. Despedidas tardias. Separações definitivas. A mentira acordara o velho mal e agora parecia que as coisas, umas a seguir às outras, se afastavam do seu verdadeiro caminho. Finbar não ficou muito mais tempo depois de termos depositado Sorcha no lago. Na manhã seguinte, muito cedo, foi-se embora, caminhando sossegadamente na direção da floresta, apenas com a minha pessoa para se despedir dele.
Tu sabes onde eu estou disse ele. Pode ser que precises da minha ajuda. Chama-me.
Obrigada Fiacha moveu-se no meu ombro, a cabeça ligeiramente inclinada, observando o meu tio enquanto ele caminhava pelo carreiro, sob as árvores. Tio?
O que é, Liadan?
Preciso de lhe dizer uma coisa. Preciso de lhe dizer que descobri a verdade acerca de Ciarán; quem ele é e por que razão se foi embora. E quero perguntar-lhe uma coisa. Se eu quisesse saber alguma coisa sobre o velho mal e o que isso quer dizer... dizia-me? Alguém me pode dizer? Já tive tantos avisos e ouço vozes que me empurram numa direção e depois noutra e ninguém me explica. Se é verdade que vivemos sob uma ameaça qualquer, como combatê-la, se não a compreendemos?
Finbar olhou para mim.
Tu devias ter sido minha filha, creio, porque ouço as minhas próprias palavras a saírem da tua boca. Ter-te-ia dito isso tudo há muito tempo: mas Conor pediu-nos que guardássemos silêncio. Será melhor perguntares-lhe a ele. Creio que ele te dirá muita coisa, agora que a nossa irmã se foi. Com o nosso silêncio, procuramos protegê-la de dores ainda maiores; de ver renascer uma coisa tenebrosa, que destruiria as vidas dos teus filhos e filhas, como destruiu as nossas. Quando fez frente à feiticeira, Sorcha acreditou que o mal desaparecera para sempre; mas nós não a derrotámos, demos apenas a nós próprios um descanso de alguns anos. Fala com Conor. Fala-lhe nas tuas dúvidas e pede-lhe que te diga a verdade.
Assim farei. Obrigada, tio. O tio fala sempre com simplicidade e eu agradeço-lhe por isso.
Adeus, Liadan, Mantém a tua luz acesa.
E desapareceu. Mais tarde, nessa manhã, libertaram os cães.
O meu pai partiu nessa mesma manhã, apanhando-nos a todos de surpresa. Eu sabia que ele cumpriria a sua promessa, porque sempre foi um homem de palavra. Mas ninguém esperava uma partida tão precipitada, especialmente por causa dos riscos de uma jornada daquelas. Podia ser bretão, mas vivera entre o povo de Erin durante 18 anos, ou mais e não havia qualquer garantia de que o seu próprio povo o receberia bem. Além disso, primeiro tinha que chegar lá, através de uma linha de costa enxameada de Nórdicos, um mar cheio de corsários, piratas e golpes de vento. Porque, para o Homem Grande partir sozinho para uma tal aventura, era porque a razão estava muito para além da simples dor e perda. Mas Sean dizia que fazia sentido, ou quase.
— É provável que ele consiga atravessar sem ser visto e que vá retomando contatos, à medida que avança — disse o meu irmão. — Houve uma altura, há muito tempo, em que isso era pão com manteiga para ele. Agora, só o faz porque deu a sua palavra. Mas continua a ter as mesmas capacidades.
Havia uma nota de orgulho na sua voz. Quanto a mim, não duvidava das capacidades do meu pai para aquela tarefa. E sabia que Janis tinha razão. Vira-lhe o vazio nos seus olhos e compreendia que, sem aquela missão, morreria de desgosto.
O meu pai despediu-se de Sean e de mim no pequeno jardim, onde o jovem carvalho, que ele plantou para a minha mãe no Outono em que Niamh nasceu, florescia, para dar sombra a gerações de tenras plantas. Estava vestido com simplicidade e levava a tiracolo um pequeno saco, apenas com o essencial.
— Vou a pé — disse-nos ele. — Tenho um pequeno assunto a tratar, em caminho; tem de ser feito discretamente. É melhor viajar sem ser visto a maior parte da viagem. Quanto a Harrowfield, sempre tivemos poucas notícias. Não sei o que me espera lá.
— Pai? — Fiz um esforço para manter o meu tom de voz firme; para ser forte por ele. Mas a nossa perda era recente e a minha voz vacilou.
— Sim, minha querida?
— O pai... volta, não volta?
— Que tolice, dizeres isso — cortou Sean. Mas ele também estava quase a chorar.
— O teu irmão tem razão, Liadan — disse o meu pai pondo-me um braço em redor dos ombros e tentando sorrir. — Não precisas de me fazer essa pergunta. É claro que volto. Há trabalho para mim, aqui; a família e o povo. Pelo menos, é o que Liam me diz. Vou, porque a tua mãe me pediu; porque prometi.
— Não se preocupe, pai. Eu trato de tudo. — A tentativa de Sean para parecer confiante não foi muito convincente.
— Obrigado, filho. E agora, despeço-me de vós pelos tempos mais próximos. Sei que sereis fortes e corajosos. Sei que sereis dignos filhos da vossa mãe.
Deu-me um abraço e eu chorei; apertou o ombro de Sean e deixou-nos.
Pouco tempo depois, Padriac reuniu a sua equipagem e partiu para oeste, para prestar as suas homenagens a Seamus Redbeard. Depois disso, quem sabe? Havia sempre horizontes novos para procurar, novas aventuras para viver. Até se podia, dizia ele, viver uma vida inteira assim e, no entanto, deixar muita coisa para os filhos e os netos terem que contar.
— E as filhas — acrescentei, secamente.
O meu tio sorriu, mostrando as covinhas do rosto.
— E as filhas — concordou ele. — Ouvi dizer que és capaz de atirar com um arco e com uma faca e que és rápida de pés com um bordão nas mãos. Na próxima visita, talvez te ensine a arte de velejar. Nunca se sabe se virás a precisar.
Esperei um pouco, escolhendo a ocasião com cuidado. A casa estava triste pela perda da minha mãe, intensamente sentida, e pela partida perturbadora do meu pai, porque sem a sua presença constante, tranquilizadora, as pessoas sentiam-se um pouco perdidas, como se o trabalho da herdade, da floresta e da aldeia não pudesse ser feito sem energia e espírito, a não ser que a sua alta figura pudesse ser vista entre elas, ajudando a reparar um telhado de colmo, a construir uma meda de feno ou a ajudar uma cria a nascer. Conor e o seu bando de druidas não dava mostras de se ir embora. Achava que Liam andava muito silencioso e que a morte de Sorcha atingira o seu irmão mais velho de uma maneira que ninguém esperava. Parecia-me que Conor tinha ficado mais tempo em atenção ao irmão. Mas também suspeitava de outro motivo. O grande druida estava muitas vezes presente quando eu trabalhava no meu jardim, ou quando brincava com Johnny na relva. Ia comigo à aldeia, aconselhava o povo e abençoava-o, enquanto eu lhes tratava das doenças e os alimentava. Achava que não era a mim que ele vigiava, mas sim Johnny. Sempre confiara naquele tio, tão sábio, tão equilibrado, tão serenamente seguro. Agora, não conseguia olhar para ele sem ver os olhos sombrios de Ciarán e as nódoas negras da minha irmã. Pensei em confiança e quão perigosa se pode tornar, se estamos enganados. Pensei em como se pode tornar perigosa uma escolha baseada na confiança, baseada naquilo que os outros nos dizem. Para mim, era claro o que Conor desejava para mim e para o meu filho. O mesmo que as Criaturas Encantadas. Na verdade, até fazia sentido. Talvez a floresta fosse o único lugar onde o meu filho podia viver em segurança. Mas não tinha a certeza. Só podia ter a certeza das minhas escolhas.
Sentamo-nos no jardim, enquanto Johnny dormia sobre o cobertor, à sombra das árvores. Não havia ninguém em volta. Eu estava a coser, porque Johnny estava a crescer e estava sempre a precisar de camisas e túnicas. Conor estava sentado a meu lado, olhando na direção do lago.
— Tio — disse eu cautelosamente. — Não sei muito bem como lhe perguntar isto. Tenho ouvido muitas alusões a um velho mal. Algo que o tio pensou ter desaparecido há muito, mas que, de algum modo, parece ter acordado de novo. Tenho pensado muito nisso, especialmente desde a partida da minha mãe. Lembro-me da sua história; aquela acerca de Fergus e Eithne. Nessa história as Criaturas Encantadas dizem que as coisas correrão mal em Sevenwaters até as Ilhas serem reconquistadas e o equilíbrio restabelecido. A mim, parece-me que as coisas já correm mal. O que aconteceu com Niamh foi terrivelmente errado. Devo dizer-lhe que descobri a razão pela qual proibiram o casamento entre ambos. Já sei a identidade de Ciarán. Mas não compreendo por que razão não lhes disse a verdade. Escondeu-a duplamente; primeiro do próprio Ciarán, deixando-o crescer ignorante de quem era; e depois, permitiu que Niamh acreditasse que ele a tinha abandonado, dizendo-lhe apenas que a sua união era proibida, sem lhe explicar porquê. Isso foi muito cruel. E não compreendo por que razão tinha de esconder a verdade. Não é essa a nossa maneira de ver as coisas, em Sevenwaters.
— Foi Finbar que te contou? — A voz de Conor era calma, como sempre, mas as suas mãos estavam inquietas, torcendo um graveto de aveleira entre os dedos.
— Falei com ele sobre estas coisas, sim. — Não lhe podia dizer que Ciarán tinha regressado. Não podia saber que Niamh estava viva, se bem que me custasse não lho dar a saber. Ao escolher ser protetor de Niamh, Ciarán afastara a minha irmã da família. — Mas Finbar não quebrou promessa nenhuma, tio. Ele disse-me que o tio os obrigou ao silêncio, neste assunto. Eu é que juntei os bocadinhos, de visões que tive e... e de outras coisas.
— Estou a ver.
— Agora, desejaria uma explicação da sua parte, se ma quiser dar. Porque o tio disse-me para não afastar o meu filho da floresta, como se fosse, na verdade, a criança da profecia, aquela que vai pôr tudo nos seus devidos lugares. E porque me parece que há coisas más que se aproximam cada vez mais de nós; temos tido muitas perdas, para não falar da perda de confiança. Compreendo o que as Criaturas Encantadas me disseram, que Johnny pode ser a chave. Mas ele é tão pequenino. — Olhei para Johnny, que arquejava de esforço, tentando segurar os dedos dos pés com os dedos das mãos. — Se o que elas dizem é verdade, nesse caso o meu filho pode ter um... um papel importante a desempenhar nisto tudo. Mas eu sou a mãe dele. Como posso tomar decisões se não me dizem a verdade toda?
Conor olhou para mim.
— Disseste-me a verdade toda? — perguntou ele gravemente. Senti as faces corar.
— Não, tio. Mas não procuro esconder nenhuma coisa má, procuro apenas proteger os que amo. E disse a verdade à minha mãe, antes do fim.
Ele acenou com a cabeça, aparentemente satisfeito.
— Também eu procuro apenas proteger aqueles que amo, Liadan. Mas cometi um erro terrível. Pensei que era suficientemente forte para desfazer um grande mal; contra atacando com a minha própria estratégia. Mas eu sou apenas um ser humano, no fim de contas; um mero peão neste jogo. Ela está acima disso: uma criatura com um poder maior do que nós imaginamos, tortuoso e imaginativo. Pensávamos que ela tinha desaparecido para sempre. Mas enganamo-nos.
— Ela? Está a falar de Lady Oonagh, não está? A mesma feiticeira que vos transformou em cisnes e que teria ficado com Sevenwaters para si, se a minha mãe não tivesse quebrado o feitiço?
Conor suspirou.
— Dizes que ela teria ficado com Sevenwaters para si. Mas não era assim tão simples. Era para o seu filho que ela queria o domínio; era através dele que ela ambicionava poder e influência. O seu filho transportava nas veias o seu sangue infectado, o sangue de uma linhagem de feiticeiros; mas era, também, filho de Colum de Sevenwaters e tinha direitos sobre o túath. Conosco fora do caminho, seria o herdeiro. Com ele como penhor e com os seus poderes de feitiçaria, podia ter alterado os destinos de reis, Liadan.
— Eu sei que o criou no bosque sagrado — disse eu. — O seu pai encontrou-o, tirou-o à mãe e o tio educou-o para vir a ser um druida. Percebo isso; mas, por que não lhe disse a verdade? Por que esperar, até que se tornou tarde demais, quase destruindo-o?
— O meu pai fez sua a demanda de encontrar Ciarán e trazê-lo para casa — disse Conor calmamente. — Uma grande demanda, já que Lady Oonagh gosta pouco de crianças de tenra idade; ela pretendia, suponho, esperar até ele ter idade suficiente para ser ensinado e fazer dele, então, um feiticeiro. Assim, entregou o rapaz a umas pessoas que ela achava inofensivas; um casal sem filhos, no sul, que tomou conta do rapaz em troca de umas moedas de prata. A casa desse casal era remota, escondida num vale arborizado. A feiticeira pensou que ele ficaria ali a salvo por uns tempos. Mas não contou com a determinação do meu pai. Assim, Ciarán foi encontrado e trazido de volta, para a floresta. O rapaz cresceu no meio da ciência; na paz e disciplina do bosque. Aqui, Lorde Colum viveu, também, os últimos anos da sua existência em contemplação e estudo e teve uma boa morte. Ciarán era como um filho para mim, Liadan; um ótimo rapaz, profundo, sensato, perceptivo, rápido a aprender e forte, auto disciplinado. Possuía todas as qualidades de um futuro líder da nossa espécie. Eu estava seguro disso. Tinha a certeza que conseguiria desfazer o que ela fizera, transformando aquela criança num homem que seguiria o caminho da luz, firme nos seus propósitos, seguro na sua fé, fiel na sua dedicação aos mistérios. Não dissemos a ninguém quem ele era. Além de mim próprio e do meu pai, apenas a minha irmã e os meus irmãos sabiam da sua existência. Preferi não lhe revelar as suas origens. Nenhum rapaz poderia crescer com uma verdade negra como aquela. Em vez disso, passou a ser, simplesmente, um dos nossos. Pertencia, em tudo, aos sábios.
— E, no entanto, não pertencia — disse eu. Pude ver a tristeza nos olhos de Conor, se bem que a sua voz continuasse, como sempre, profunda e segura. — Porque, na verdade, o filho de uma feiticeira não pode tornar-se um druida.
Conor estava muito pálido.
— Cometi um erro terrível. O rapaz transporta o sangue da mãe e, a seu tempo, este deu-se a conhecer. Pensei que o poderia controlar. Trouxe-o para Sevenwaters. Ele desejava ver o mundo fora do bosque sagrado e provou ser merecedor de me assistir na cerimônia do dia de Imbolc. Está seguro, dizia eu a mim próprio, nunca pensei que se sentisse tentado... Nunca pensei... mas fui eu que trouxe o mal, de novo, até nós. Bastou ele pôr os olhos em Niamh e a mão de Lady Oonagh começou a moldar, de novo, as nossas vidas. Através do seu filho, começou, mais uma vez, a manobrar, com a sua vontade, a família e aqueles que guardamos e protegemos. Não havia escolha, Liadan. Naquela noite, nós conversamos; Liam, eu e o teu pai. E eu tomei uma decisão. Fi-los prometer que não falariam. Vimos como Sorcha foi atingida no coração; como ela temeu pelos filhos, que, por sua vez, poderiam ter de enfrentar a influência maligna da feiticeira. Escondemo-lo de ti. Pensamos que seria melhor Niamh não saber a verdade total do pecado que cometera. Sem esse fardo de culpa, pensamos, talvez pudesse atirar com tudo para trás das costas e recomeçar de novo. Ela fez um bom casamento; foi para longe, a salvo de qualquer mal. Quanto a Sean, ninguém queria vê-lo de espada na mão, em busca de uma reparação qualquer da parte de Ciarán. É suposto Sean tornar-se um líder, equilibrado e sábio, como o tio e como o pai. Era melhor se também ele não soubesse. E, se era suposto não saber, não lhe podíamos dizer.
— E Ciarán? — perguntei severamente. — Por que me parece que ele é que foi mais maltratado. Toda a sua vida tem sido uma mentira.
— Dissemos-lhe a verdade, nessa noite. — Conor parecia um velho, cansado e triste. — Não podia fazer outra coisa. O que ele e Niamh fizeram é uma abominação, contra as leis naturais.
— Eles agiram inocentemente. — A minha voz tremia.
— Eu sei isso — disse ele gravemente. — No entanto, continua a ser proibido e não podia ser sancionado. Foi melhor para Niamh; casar-se e recomeçar. Quanto a Ciarán, ele escolheu o seu próprio caminho. Nisso vi a influência da mãe, estendendo os braços na nossa direção, uma vez mais.
Olhei para Fiacha, que estava empoleirado no topo de uma sebe de espinheiro-alvar, limpando as penas. Finalmente, o meu tio dissera-me a verdade. Mas era evidente que eu não ia poder retribuir o favor. Não por agora e talvez nunca.
— Sabe para onde foi Ciarán, quando fugiu de Sevenwaters? — perguntei casualmente. — Acredita que Lady Oonagh ainda é viva e que ele a foi procurar?
— Algumas coisas parecem terríveis demais para serem ditas em voz alta. É possível, sim. Quanto às probabilidades de a encontrar, são várias. Ciarán é muito inteligente; é muito bem capaz de ter tentado uma tal jornada por conta própria, se bem que isso seja pouco sensato. Nunca mais soube nada dele desde que saiu daqui, Liadan.
— Mandou-o embora, sabendo que ele podia tentar uma tal coisa?
— Eu não o mandei embora. Ele podia ter ficado conosco. Ele era... ele era um estudante extraordinário, capaz de grandes coisas; extremamente habilidoso em todas as artes da mente e no manuseamento da magia. Não havia necessidade de nos deixar. Na verdade, a ameaça da sua progenitora podia muito bem ser controlada dentro dos limites do círculo sagrado e dentro da nossa comunidade. Mas ele preferiu partir. Preferiu atirar tudo o que aprendera para trás das costas. Falhei, Liadan. Abandonei-o e, no fim, abandonei também a minha família.
— Uma vez disse-me — disse eu — para não me sentir culpada, porque as coisas têm que seguir o seu curso. Foi há muito tempo; mesmo no começo disto tudo. Agora, ouço-o dizer que tudo isto é, um pouco, por sua culpa. Talvez esteja enganado. Talvez tudo isto faça parte de um padrão, um padrão tão grande, que talvez não possamos ver senão a minúscula parte a que pertencemos. Foi o que as Criaturas Encantadas me disseram. Que não podíamos compreender e que, assim, as escolhas não podiam ser perfeitas. Parece que, por vezes, não somos mais do que bonecos, que elas nos manuseiam para sua conveniência. Mas eu penso que nós temos um poder superior ao que elas estão preparadas para reconhecer, ou então, por que razão havia de ser tão importante o fato de eu escolher determinado caminho? Por que razão hão de preocupar-se tanto com a segurança de Johnny? Na verdade, talvez seja por intermédio de pessoas normais, como nós, que a profecia se venha a cumprir, apesar do que elas nos dizem.
— E no fim de contas — disse Conor em voz baixa — foi por intermédio da força e pertinácia humanas que o encantamento de Lady Oonagh foi desfeito e não por uma intervenção dos Túatha Dê. Estás a dizer, portanto, que posso estar errado acerca de Ciarán?
— Por aquilo que me diz, ele não é, nem fraco, nem ignorante. Apesar da sua cólera, é um jovem que, certamente, pesará as suas hipóteses cuidadosamente e com alguma habilidade. Não acredito que, por ser filho dela, tenha de ser inevitavelmente demoníaco na vida. Dizer isso é dizer que não temos qualquer escolha no que fazemos e na maneira como conduzimos a nossa vida. Não acredito, tio. Talvez alcancemos pouca coisa neste mundo, como dizem as Criaturas Encantadas; talvez o nosso campo de ação seja, de certo modo, limitado. Mas dentro desses limites temos o poder de mudar as coisas; o poder de escolher e ir onde devemos ir. Se aprendi alguma coisa comigo própria, é que não serei uma ferramenta de um Lorde ou uma Lady qualquer, nem dançar ao som da sua música. Não, se o meu coração me chamar para outro caminho. O tio educou Ciarán no sentido do equilíbrio e da sabedoria. Ele transporta isso consigo, do mesmo modo que transporta o sangue da feiticeira. Aquilo que lhe incutiu com tanto amor, ao longo de longos anos de treino, transformou-o num homem forte. Talvez mais forte do que o tio imagina.
Não voltamos a falar daquilo e por fim, quando o Verão se encaminhou na direção do Outono e Johnny já era capaz de se sentar sozinho e mexer-se de um lado para o outro de modo esquisito, meio a nadar, meio a rastejar, Conor partiu, com os seus silenciosos irmãos vestidos de branco atrás. Tudo o que ele me disse, foi: Mantém-no a salvo, Liadan. Por todos nós, mantém-no a salvo.
CAPÍTULO TREZE
Não tive quaisquer notícias de Eamonn, salvo por intermédio de uma escolta que ele enviou para levar a irmã para casa. Senti-me extremamente grata por isso, porque a última conversa entre os dois estava-me profundamente gravada na mente, juntamente com a recordação do seu beijo. Quando chegou o Outono pude dizer a mim própria, com razoável convicção, que ele, por fim, tinha aceitado o não como resposta e decidira continuar com a sua vida. Lamentava se a minha decisão tinha dificultado as coisas a Sean, ou a Liam, cujos laços com Eamonn eram vitais, não apenas para unirem as suas defesas, mas também para o sucesso de qualquer empreendimento contra Northwoods. Ambos tinham comentado o silêncio de Eamonn. Porém, ainda era cedo. Com o tempo, a aliança seria mais forte do que nunca, porque não ia Aisling casar com o meu irmão na Primavera seguinte? Isso curaria muitas feridas.
Uma tarde quente, perto de Meán Fómhair, quando as colheitas estavam quase todas feitas e as maçãs pendiam, maduras e brilhantes no pomar, levei o meu filho a um determinado local da margem do lago. Ali, os ramos dos salgueiros chegavam quase à superfície da água e a curva da linha de costa assegurava um bom abrigo e privacidade. Estava um dia dourado; a superfície do lago brilhava de luz, a floresta começava a vestir as suas roupas de Outono, um pouco de laranja, escarlate e amarelo em volta do verde sombrio dos pinheiros que coroavam as cristas. Quando crianças, tínhamos passado dias felizes ali, nadando e mergulhando, subindo às árvores e inventando inúmeros jogos de aventura. Agora, o meu filho andava nu pela areia, onde criava desenhos padrões com a sua nova maneira de andar, meio a nadar. Mais tarde, também eu tirei o vestido, ficando apenas em combinação, e levei-o até à água, confiando que o trabalho das colheitas me permitiria não ser incomodada. Johnny ria de alegria, revelando os seus dois novos dentes, ao sentir a água fria na pele. Mergulhei-o gentilmente várias vezes, chapinhando ligeiramente.
— Por esta altura, no ano que vem, ensino-te a nadar como deve ser — disse-lhe. — Hás de ser como um salmão, ou talvez uma foca. Nessa altura, começarão todos a dizer que o teu pai era um tritão, ou um selkie.
Brincamos e brincamos até nos cansarmos e depois depositei-o no pequeno cobertor colorido, à sombra dos salgueiros. Ainda não estava a dormir, mas parecia gostar de estar ali deitado, olhando para o padrão intrincado de luz e sombras fabricado pelas grandes folhas e falando sozinho numa língua infantil que eu não compreendia.
Fiacha estava empoleirado nas vizinhanças, vigilante. Estivera ansioso enquanto estávamos na água, batendo as asas com gritos ásperos de preocupação, ou indo até à beira da água, onde as suas pequenas e nítidas pegadas ainda estavam impressas, na areia. Mas agora estava calado. Regressei à água e nadei, olhando de vez em quando para ver se Johnny estava bem, antes de mergulhar a cabeça, para deixar que a frialdade da água me lavasse a cara e depois atirando a cabeça para trás, fazendo com que o meu cabelo lançasse para o ar uma chuvada de gotas de água. Era um sentimento ótimo, como se, sob o forte apoio envolvente da água, pudesse, por uns breves momentos, esquecer as complicações da minha vida, as decisões que tinha pela frente, os segredos, a duplicidade e os riscos, gozando, de novo, a liberdade inocente da infância.
Por fim, fiquei com frio e comecei a nadar na direção da praia. No pequeno cobertor, Johnny dormia. Em breve teria fome. Ajoelhei-me, escorrendo a água dos cabelos. Não se ouvia um som, nem havia qualquer movimento. Mas algo me fez olhar para cima. Os pêlos do meu pescoço eriçaram-se e eu soube que estava a ser observada.
Sob os salgueiros, tão imóvel como se fizesse parte da floresta, estava um homem. Se não o conhecesse, diria que o complexo padrão que lhe marcava as feições era apenas um truque de luz, uma partida do Sol através dos ramos dos salgueiros. Estava vestido com grande simplicidade, de cinzento e castanho, cores ideais para um homem que deseja passar por uma terra arborizada sem ser visto. Se usava uma arma, não a via. Parecia que o Homem Pintado achava que a mítica floresta de Sevenwaters não passava de um desafio, igual aos pântanos de Sídhe Dubh. Ou talvez lhe tivesse sido permitido entrar.
Ele não se mexeu. Era claro que eu teria de emergir da água vestida apenas com a minha combinação ensopada e, de qualquer modo, pensando nas palavras certas. Caminhei para a margem com a maior dignidade possível, mas é difícil mantermo-nos dignas quando temos de dobrar-nos para espremermos a água do vestuário, quando os nossos braços e ombros estão expostos e metade do peito à mostra, os pés cobertos de areia e sem um espelho à vista. Atingi o local onde estavam o meu vestido e o meu xale, na relva acima da pequena praia, mas ele chegou lá antes de mim. Atrás de nós, no outro lado, sob os salgueiros, o bebê não se mexera. Bran tinha o meu xale nas mãos e estendeu os braços para mo colocar sobre os ombros. E lá se foram as palavras certas. Eu mal conseguia respirar, quanto mais dizer fosse o que fosse que fizesse sentido. O xale caiu ao chão e os braços dele rodearam-me, os meus rodearam-no a ele e eu senti os seus lábios nos meus, tocando gentilmente, num beijo tão doce que quase me fez chorar. Ele segurou-me o rosto com as duas mãos, os polegares movendo-se lentamente sobre a pele das têmporas e das faces, como se tivesse dificuldade em acreditar que me tinha nos braços. A fome nos seus olhos traía o constrangimento dos seus gestos.
— Oh, Liadan — disse ele em voz baixa. — Oh, Liadan.
— Estás salvo — consegui eu dizer, enquanto os meus dedos se moviam suavemente na parte de trás do pescoço dele e o meu coração batia como um tambor, muito depressa. — Eu não esperava... mas tu não podes estar aqui, Bran. Os homens de Liam estão de guarda. E ele ainda acredita... eu não lhe disse a verdade acerca da minha irmã e de como tu a ajudaste. Devo-te muito, pelo que fizeste.
— Não é bem assim — disse ele calmamente. — Tu pagaste, lembras-te? E agora anda, observemos o código por um bocado, antes que percamos o controlo. Senta-te aqui ao pé de mim.
Ele dobrou-se para apanhar o xale e colocou-mo sobre os ombros.
— E agora — disse ele respirando fundo — sentemo-nos a três passos de distância um do outro, para eu te dar as notícias.
— Eu sei que a minha irmã está salva — disse eu, sentando-me como ele me mandara. Ele sentou-se na relva, a uns passos de mim. — Um... um mensageiro veio cá, no dia em que a minha mãe morreu.
— Estou a ver. A tua mãe... isto deve ter-te provocado muita tristeza.
Acenei com a cabeça, incapaz, ainda, de falar, respirar e comandar os meus sentidos.
— Tenho outras notícias, que te vão interessar — continuou Bran. — Notícias que soube no caminho para cá, que talvez ainda não tenham chegado aos ouvidos do teu tio, ou do teu irmão. Uí Néill morreu. Estrangulado enquanto dormia, quando acampava perto da passagem do norte. Isso ocorreu há já algum tempo, antes do solstício de Verão, segundo me disseram. Ainda ninguém sabe; há razões estratégicas para isso. O atacante não foi identificado. Desapareceu na noite e o corpo só foi encontrado no dia seguinte, ao amanhecer. Devia ser um homem de mãos fortes, que sabia como deslocar-se pelos bosques.
A minha mente trabalhava a toda a velocidade, multiplicando possibilidades que me aterrorizavam.
— Estou a ver — disse eu num sussurro.
— Poderá ter sido um dos teus parentes, que sabia a verdade? Um que não tivesse medo de administrar o devido castigo pelo que ele fez à tua irmã?
— Penso que Sean adivinhou a verdade — disse eu lentamente. — Mas ele esteve sempre aqui, em Sevenwaters, desde que a minha mãe morreu.
— Não disseste a ninguém?
— Pareces surpreendido. Tu foste o primeiro a sugeri-lo. Estás espantado, por uma mulher ter demonstrado tanta força de vontade?
— Claro que não. Estou a chegar à conclusão de que não te posso classificar simplesmente como uma mulher. Em todas as coisas, tu és tu.
— No entanto, acabei por dizer a verdade. Ao meu pai e a Sorcha. Não podia deixar que ela morresse acreditando que Niamh tinha perecido. Contei-lhes o que tu fizeste por mim.
Ficamos ali sentados em silêncio e eu ponderei na espantosa possibilidade de que o Homem Grande, protetor das coisas que crescem, árbitro de todas as disputas, pudesse ter posto as suas grandes mãos em redor do pescoço de Fionn Uí Néill e lhe tivesse tirado a vida.
— Se fosse a ti, não me preocupava — disse Bran sem ênfase. — Tal como muitos outros assassínios, provavelmente também este será atribuído ao bando do Homem Pintado. Com tantos males a nosso crédito, que diferença faz mais um? Mas, pelo menos, o teu pai deu um passo, para compensar as suas fraquezas passadas.
Olhei para ele, zangada.
— É preciso um homem matar e mutilar para merecer o teu respeito?
Ele olhou para mim sem expressão.
— Um homem, ou uma mulher, deve, pelo menos, ser capaz de tomar decisões sérias e viver, depois, com elas. Se um homem tem responsabilidades, não deve abandoná-las por capricho. Se escolhe o caminho da terra, da família e da comunidade, deve carregar esse fardo durante toda a vida e não pô-lo de lado, para seguir uma mulher qualquer que olha para ele à passagem.
Suspirei.
— Gostaria que tivesses conhecido a minha mãe. Bastava falares apenas uma vez com ela, para mudares, por completo, de opinião. Quanto ao meu pai, ele fez uma escolha difícil quando veio para aqui, para estar com ela. Ele não fugiu às responsabilidades; trocou, simplesmente, de fardo, como tu dizes. Ela precisava dele, Bran. Ela precisava dele como... — A minha voz quebrou e eu reprimi as palavras. Como eu preciso de ti. Mas não o diria.
Ficamos ali sentados por um bocado, em silêncio e depois ele disse:
— Não posso ficar muito tempo. Preciso de ver o teu irmão, porque a minha missão só está meio cumprida. Há outros homens perto, ou tu estás aqui completamente sozinha?
— É pouco provável que sejamos perturbados. Por que perguntas?
— Eu... eu disse a mim mesmo que me conteria quando te visse outra vez, mas eu... — As suas palavras perderam-se, porque subitamente os nossos braços estavam em volta um do outro, os nossos corpos pressionados um contra o outro e a maré de desejo reprimida subiu por nós acima, porque já não podia ser contida. E foi tão bom, sentir a dureza do seu corpo contra o meu, o urgente toque das suas mãos através do tecido ensopado da minha camisa. Tudo desapareceu, menos aquela sensação. Era como se não estivesse ali nenhum homem, nenhuma mulher, na praia por baixo dos salgueiros, nenhum Bran, nenhuma Liadan, apenas duas metades de algo separado, que tinham, por fim e inevitavelmente, de se completar. Suspirei e puxei-o contra mim. Ele sussurrou qualquer coisa, moveu-se sutilmente e eu arquejei. Então, ouviu-se um choro, vindo do outro lado da enseada e um grasnar do ramo por cima e ambos ficamos imóveis. O choro cresceu de intensidade e nós separamo-nos, levantamo-nos e eu corri para pegar o meu filho nos braços, enquanto Bran ficava imóvel, na relva, de rosto muito pálido.
— Desculpa — disse eu ridiculamente. — Eles, nesta idade, não esperam pela hora do jantar. — Porque o meu filho estava com fome e zangado e eu não tinha outra solução senão sentar-me ali, puxar a camisa para baixo e dar-lhe de mamar. Os protestos cessaram instantaneamente quando ele começou a sugar e o corvo calou-se, empoleirado por cima de nós. Fiacha não me avisara da chegada de Bran. Foi um lapso estranho, para um “cão de guarda” tão eficiente.
Bran não se mexeu. Ficou a olhar, de olhar chocado, a expressão distante, como uma máscara.
— Não há dúvida que não perdeste tempo — observou ele. — Por que não me disseste?
— Qual é a tua ideia?
Vieram-me à memória recordações dolorosas de uma conversa semelhante e algumas lágrimas de dor picaram-me os olhos.
— Que queres dizer com isso, não perdi tempo? — sussurrei, zangada.
— Geralmente, os meus informadores fazem um trabalho melhor. Ninguém me disse que te tinhas casado e que tinhas um filho. Fui parvo em ter vindo aqui.
Fiquei dividida entre o riso insano e as lágrimas de afronta. Como podia um homem com reputação de sucesso nas mais difíceis missões ser tão estúpido?
— Pensei que tinhas vindo ver o meu irmão — disse eu, insegura.
— E é verdade. Não te menti. Mas também pensei... esperava... na verdade, pensei mal. Que tu... Não posso acreditar que me tenha deixado enganar pela segunda vez.
— A sério? — disse eu. — Estás muito enganado, se pensas isso de mim. Achas que sou uma dessas da beira da estrada que se entrega a um homem qualquer?
Contra a sua própria vontade, ele aproximou-se e espreitou, parecendo incapaz de afastar o olhar da imagem do bebê a mamar.
— Suponho que te arranjaram um marido adequado, como fizeram com a tua irmã — disse ele friamente. — Pelo menos não te casaste com aquele homem, Eamonn Dubh. Eu ando de olho nele; se tivesse sido ele, teria sabido. Que filho de chefe de guerra é que a tua família te escolheu, Liadan? Descobriste, depois de teres feito amor comigo, que gostavas muito e não pudeste esperar pela noite de casamento?
— Se não fosse por causa do bebê, ficavas com a minha mão marcada na cara — disse eu, mudando o meu filho para o outro seio. — É evidente que ainda não aprendeste a confiar.
— Como é que podia, depois disto? — murmurou ele.
— Os teus preconceitos cegam-te — disse eu tão calmamente quanto pude. — Já te perguntaste por que razão estou aqui em Sevenwaters, em vez de estar com o meu marido?
— Não me atrevo a perguntar — disse ele friamente. — A tua família parece seguir regras muito próprias.
— Isso é maravilhoso, vindo de ti. — Maldito homem, que não merecia que lhe dissesse a verdade. Como era possível ele não perceber?
— É melhor dizeres-me, Liadan. Quem é ele? Quem é o teu marido?
Respirei profundamente.
— Eu fiquei aqui porque não tenho marido. Não que não tenha tido propostas. Na verdade, tive oportunidade de me casar, mas recusei. Não ia dar ao teu filho o nome de outro homem.
Seguiu-se um silêncio total, salvo pelos pequenos sons que a criança fazia enquanto mamava e engolia. O meu filho era de bom alimento e em breve estava cheio, tentando escapar-me dos braços para ir, de novo, em exploração. Nadou erraticamente na direção de Bran, pousando uma pequena estrela-do-mar em cima dos longos e tatuados dedos, examinando-os, aparentemente fascinado.
— O que é que tu disseste? — Bran estava sentado, completamente imóvel, como se receasse mexer-se, não fosse o mundo desmoronar-se à sua volta.
— Creio que ouviste muito bem. Ele é teu, Bran. Eu disse-te, uma vez, que nunca tinha feito amor com outro homem e não te menti, nem mentirei.
— Tens a certeza?
— Tenho. Só fiz amor com um homem e apenas uma vez. É por isso que tenho a certeza. Ou já te esqueceste do que se passou entre nós?
— Não, Liadan. — Ele moveu ligeiramente os dedos sobre a relva e Johnny, subitamente, sentou-se, com um pequeno som de surpresa. Olhou para o pai, os seus olhos cinzentos refletindo a apreensão fascinada de Bran. — Não me esqueci. Aquela noite e aquela manhã permanecem gravadas na minha mente, profundamente, aconteça o que acontecer. Mas isto... não acredito nisto. Devo estar a sonhar. Deve ser uma partida da minha imaginação.
— A mim não me pareceu imaginação nenhuma quando ele estava a nascer — disse eu secamente.
Ele olhou para mim com uma expressão extremamente severa.
— Por que é que não me disseste? Como foste capaz de não me dizer?
— Estive mesmo para te dizer, quando te vi em Sídhe Dubh. Mas a ocasião não era a melhor e, além disso, parece-me que tu já carregas um fardo bem pesado. Não te quis acrescentar outro. E, no entanto, desejei que estivesses aqui. Desejei tanto partilhar contigo aquele momento de alegria, quando o nosso filho entrou neste mundo.
Seguiu-se outro silêncio. Johnny cansou-se da mão e afastou-se nadando, para a praia arenosa. Bran olhou para mim e o seu olhar derreteu-me o coração. Mas quando falou, por fim, a sua voz já estava, de novo, sob firme controlo.
— Tu sabes quem sou. Sabes a vida que levo. Não fui feito para ser pai, ou marido. Como tu própria disseste, a minha profissão é matar. Não gostaria que o meu filho se tornasse num homem igual ao pai. Ele fica melhor sem mim, assim como tu. Não espero ter a compreensão dos teus, mas sei que, apesar dos erros do teu pai, o teu irmão é bom homem, capaz de te proteger e sustentar. Acho que isto é uma despedida entre nós, Liadan. Não me posso transformar no homem de que tu precisas. Eu estou... infectado, sou deficiente. É melhor esta criança não saber, nunca, quem foi o seu pai.
Até me custou falar.
— Nesse caso repetes a história de Cu Chulainn e Conlai, é isso?
— Uma história muito triste — disse ele suavemente. — Parece-me que é isso, exatamente.
Ficamos ali sentados, imóveis, observando o bebê enquanto ele se impulsionava pela areia, com uma determinação nem sempre conseguida. Balouçava em cima das mãos e dos pés e caía para o lado, levantando-se de novo.
— Eu estava errado — disse Bran após uns momentos. — Quando chamei a isto um fardo. Isto não é um fardo, é uma dádiva sem preço. Tal dádiva não devia ser desperdiçada num homem como eu.
— Ah — disse eu suavemente. — Mas as dádivas são espontâneas. Cada um de nós aceitou uma, quando nos deitamos juntos. O teu filho não te julga e eu também não. Para ele és uma página em branco, onde tudo pode ser escrito, a partir deste dia. Quanto a mim, nunca te pedi que mudasses. Tu és tu. Eu tenho mãos fortes, Bran. Durante as noites mais escuras tenho velado por ti. Durante a lua nova, a minha vela tem ardido, para te iluminar o caminho. Podes rejeitar esta dádiva, mas eu não desisto com essa facilidade. Transporto-te no meu coração, quer queiras, quer não.
Ele acenou com a cabeça.
— Eu senti isso, sem o compreender. Houve ocasiões em que acreditei que te estava a ver, na escuridão. Mas rejeitava-o, como uma fraqueza da mente. Liadan, não devias ligar-te assim. Tu mereces melhor, muito melhor. Uma vida de respeito e propósito, um homem que possa caminhar a teu lado sem vergonha. O meu mundo é de perigo e fuga, de sombras e dissimulação. E não mudará. Seria incapaz de te infligir uma tal existência, ou ao... ou ao meu filho.
— Se não és capaz de ver um futuro onde estejamos os três juntos, por que é que me vieste ver? Uma vez, pediste-me para fugir contigo. Talvez te tenhas esquecido. Mudaste de ideias quando soubeste o meu nome. E, no entanto, permites que o meu irmão te pague. Qual é o preço dessa missão? Por que razão trabalhas para o filho de Sevenwaters, quando rejeitaste a filha? Não faz sentido.
— Suponho — disse ele, cansado — que é como a rede que a tua mãe lançou sobre Hugh de Harrowfield, enfraquecendo-o pelo desejo, levando-o a abandonar o seu dever para a seguir. Basta pensar em ti e faço logo coisas, e digo coisas, que me espantam. O meu desejo por ti tira-me a capacidade de raciocínio. Uma vez disse-te que contar histórias era perigoso, porque faz os homens desejarem coisas que não podem ter. Eu sou atormentado por visões, desde que te conheci, acerca de uma existência diferente, na qual não estou só. Mas um homem como eu deve ficar só. Viver com um tal homem, entregares-te a um tal homem, significa uma sentença de morte, mais tarde ou mais cedo. Tens de continuar sem mim, Liadan.
Senti uma dor terrível no coração, mas mantive o tom de voz claro.
— Nesse caso, achas que devia ter casado com Eamonn quando ele me pediu? — perguntei, de sobrancelhas levantadas. — Ele pediu-me, várias vezes. Mesmo depois de a criança ter nascido, pediu-me para ser mulher dele e teve relutância em aceitar um não como resposta.
— O quê? — Ele levantou-se de repente, ultrajado. Esse homem queria levar a minha mulher e o meu filho? Um homem cujo pai foi um traidor da pior espécie? Pelos poderes do inferno, devia ter-lhe cortado a garganta quando tive hipótese. — O seu tom mudou abruptamente. — Ele pode comer aquilo? — perguntou, olhando para a criança.
O bebê tinha descoberto na areia um inseto gordo, que se retorcia, fazendo tenção de o levar à boca.
— Não, Johnny! — gritei e corri para libertar a criatura da mão dele, aproveitando para a limpar também da lama, enquanto o inseto escapava.
Atrás de nós, Bran ficara, subitamente, muito calado. E então, perguntou:
— O que é que tu lhe chamaste?
E eu percebi que, mais uma vez, a intuição da minha mãe fora acertada.
— Chamei-o pelo nome dele.
— Por que é que deste esse nome à criança?
A sua voz era hesitante.
— Porque é o nome do pai dele e do pai do pai dele, um homem de grande integridade — disse eu calmamente com as mãos ainda ocupadas, construindo um pequeno castelo na areia molhada. Quando acabei, Johnny estendeu a mão e demoliu a minha construção.
— Mas... como é que sabes isso? Esse nome... esse nome não é dito há muitos anos e eu quase o esqueci. — Havia uma dor tão grande na sua voz que até me arrepiei.
— Em Sevenwaters o nome de John nunca foi esquecido — disse eu, muito séria. — O teu pai era o maior amigo do meu pai. Cresceram juntos. O meu pai disse-me que se sentia muito feliz por o seu neto ser, também, neto de John.
— Mas, como é que ele soube? Eu não uso o nome do meu pai. Ele já morreu. Morreu antes de o poder conhecer, morto em defesa da tua mãe, quando ela se foi meter nos assuntos de Harrowfield e afastou Lorde Hugh das suas responsabilidades. Talvez o meu pai tenha sido um homem bom, como dizes. Mas eu nunca tive oportunidade de o descobrir.
Suspirei.
— Não há dúvida, quem te contou essa história tinha um interesse qualquer. Talvez fosses demasiado novo para perceber que talvez não fosse verdadeira. Quem é que ta contou?
As suas feições ficaram, subitamente, sem expressão.
— Não quero falar disso.
— Talvez fosse melhor para ti, se falasses — disse eu cuidadosamente. — A mim, podes falar.
— Certas coisas devem ficar enterradas. Não posso partilhar este fardo.
— Talvez, se o partilhares, possas tirá-lo dos ombros.
— Não posso, Liadan.
Após uns momentos, disse:
— Eu não respondi à tua pergunta. Vou contar-te um pouco mais da tua história, a única parte que conheço. Estás a ver aquele cobertor, ali, sob as árvores, onde Johnny estava a dormir? Vai buscá-lo.
Os dedos de Bran moveram-se ao longo da superfície do tecido que eu fizera, tocando num remendo e depois noutro.
— Isto é...
Acenei com a cabeça.
— Tomei a liberdade de fazer alguns ajustamentos ao teu casaco, para poder usá-lo. Neste cobertor estão os corações da família de Johnny, que o aquecem com amor, quando dorme. O vestido cor-de-rosa da minha irmã Niamh; o meu vestido de montar; a velha camisa do meu pai, suja dos trabalhos dele na herdade. O teu casaco, que me cobriu quando eu dormi por baixo das árvores. E...
Os seus dedos pararam e ficaram pousados num remendo azul-desmaiado, no qual um bordado antigo percorria delicadamente o tecido. Uma videira, uma folha e um minúsculo inseto alado. Então, ele virou o braço e ali, tatuado com agulha e tinta, na parte de dentro do pulso, estava a mesma criatura. O primeiro desenho que ele mandara fazer, quanto tinha nove anos e dissera que era um homem.
— Este tecido pertencia a um vestido que a minha mãe adorava — disse eu. — Ela tinha uma amiga em Harrowfield, a mulher de John, Margery. Foi Margery que fez este vestido; ela era muito habilidosa com a agulha. Foi um presente que ela deu à minha mãe, um presente de amor. Porque quando o filho de Margery nasceu, só a competência da minha mãe, como parteira, lhe salvou a vida. Quando o meu Johnny nasceu, a minha mãe disse que os dois partos tinham sido iguais e que o bebê era tão parecido com o outro que não podia ser coincidência. Ela disse que eu devia dar ao bebê o mesmo nome do pai. Lubdan Lorde Hugh concordou. Eu desejava dar ao meu filho o mesmo nome do pai. E quis dar-te, de novo, o teu nome. Os teus pais não gostariam que tu odiasses, Bran. Eles tinham uma dívida de gratidão para com a minha mãe e ela para com eles. Eles acolheram-na e amaram-na.
— Tu não sabes nada. — O seu tom era frio.
— Deixa-me dizer-te uma coisa. Tu disseste que o meu irmão é um homem bom. Creio que também não pensas mal de mim, apesar dessa conversa toda de redes de encantamento, nem da minha irmã, que ajudaste com considerável risco da tua vida. Mas nós somos filhos do meu pai, Bran e da minha mãe. Talvez devas ter em consideração a possibilidade de Hugh de Harrowfield ter agido por amor e sentido do dever, quando veio para Sevenwaters. Ele não se limitou a fugir. Antes de vir para aqui tomou as devidas providências para que o seu povo ficasse bem entregue.
— Tu não podes compreender. E além de não poderes compreender, não sabes.
— Que aconteceu à tua mãe? Que aconteceu a Margery?
Silêncio. A dor, fosse ela qual fosse, era demasiado profunda para poder ser revelada. Estava bem fechada.
— Vou fazer-te só mais uma pergunta e depois deixo-te em paz. E se eu fosse para um local perigoso e se tu me arranjasses um guarda, por exemplo Gull, ou Snakéf. E se houvesse um ataque e esse guarda fosse morto? Considerarias que tinhas agido irrefletidamente ao pedir-lhe que aceitasse essa missão?
— Ele não seria morto. Os meus homens são os melhores. Além disso, isso não aconteceria assim. Se tu e... e Johnny estivessem em perigo, eu próprio vos guardaria. Não daria essa missão a mais ninguém. A pergunta não é apropriada. Certificar-me-ia de que uma situação dessas nunca aconteceria. Se eu fosse... responsável por ti, nunca irias para um local perigoso..
— Mas, se isso acontecesse?
— Os meus homens arriscam a vida todos os dias — disse ele relutantemente. — Perdem-se vidas e o nosso trabalho continua. É por essa razão que não temos mulheres, nem filhos.
— Hum — disse eu. — Bem, quebraste o código, pelo menos duas vezes. Vais dizer-lhes, quando voltares?
Houve uma pausa.
— Não volto enquanto esta missão não estiver completa. — disse ele. — E eu disse a verdade quando disse que tinha vindo aqui para ver o teu irmão. Está a fazer-se tarde; vou ter com ele e depois parto.
Levantou-se, com o pequeno cobertor ainda nas mãos. Johnny estava absorto nas suas brincadeiras, as mãos cheias de areia. Pus-me de pé.
— Não vale a pena, suponho, pedir-te que voltes para mim — disse eu, esforçando-me por manter a voz calma. — Talvez nem valha a pena pedir-te, sequer, que voltes. Mas eu hei de manter a minha vela a arder, enquanto estiveres longe. Por favor, tem cuidado.
— Tenho de ir, Liadan. Não te preocupes com a minha segurança. Tanto o teu irmão, como eu, estamos cientes dos riscos. Tenho... tenho de te dizer adeus, agora. Dava tudo — disse ele subitamente, apertando-me nos braços de novo — para passar esta noite contigo. Vês como o meu raciocínio desaparece quando... — E beijou-me de novo, mas desta vez o beijo foi mais longo, mais duro. Pareceu-me que era o último; o beijo de um guerreiro a caminho da batalha, sabendo que não regressará. Devia ser simples afastar-me e deixá-lo ir. Mas os meus braços pareciam ter força própria; e os dele eram tão quentes, enquanto me apertavam.
— Ainda achas que isto é uma espécie de feitiço de mulher que te lancei contra a tua própria vontade? — sussurrei.
— Como posso eu pensar de outro modo? Um mero toque da tua mão é suficiente para eu esquecer quem sou, o que sou e o que não sou.
— Isso é um fenômeno conhecido — disse eu, tentando sorrir. — Quando um homem e uma mulher estão juntos e os seus corpos falam um com o outro...
— Não, isto é diferente.
Não o contradisse, porque achava que as suas palavras eram verdadeiras. Os desejos da carne eram uma coisa, se bem que poderosos, como eu muito bem sabia. Mas o que havia entre nós era infinitamente mais forte do que isso: era uma coisa antiga, uma união secreta. Não me esquecera das vozes que me chamavam, no local do grande túmulo. Salta.
— Liadan — disse ele com os lábios encostados ao meu cabelo.
— O que é?
— Diz-me o que desejas de mim.
Respirei entrecortadamente e afastei-me o suficiente para lhe olhar para o rosto. Sob as marcas do corvo ele parecia muito sério e, pela primeira vez, muito jovem; não mais de 21 anos, achei eu, com dificuldade.
— Que as feridas do teu espírito sarem todas — disse eu docemente. — Que possas ver o teu caminho. É isso que desejo.
Por um momento, ele pareceu ficar sem palavras e a sua testa franziu-se, ligeiramente, de perplexidade.
— Não era essa a resposta que esperava. Tens sempre uma resposta que me silencia.
Os meus dedos estenderam-se para lhe tocar nos desenhos do rosto, que lhe rodeavam o olho cinzento, que definiam a linha da face e a vigorosa linha do queixo.
— Já me disseram isso, uma vez — disse eu. — O meu tio Conor. Ele convidou-me para ir para o bosque sagrado e tornar-me numa druida, juntamente com o meu filho.
— Não vás. — A sua resposta foi instantânea, um eco daquela criança que eu ouvira na minha mente, gritando na escuridão. Os seus braços apertaram-me mais ainda e eu quase não consegui respirar. — Não o leves.
O meu coração batia com toda a força. Ele assustara-me.
— Está tudo bem — disse eu em voz baixa. — Eu deixo ficar a minha vela a arder para ti. Já to disse e eu não te minto, nunca. — Descansei a testa no peito dele, tentando compreender como iria suportar o momento em que ele abriria os braços e desapareceria na floresta.
— Tu disseste-me — disse ele em voz muito baixa — o que desejavas de mim. — Mas, e o que desejas para ti?
Olhei-lhe para os olhos, porque achei que ele seria capaz de ler a resposta no meu rosto. Não lha diria por palavras; agora, não.
— Digo-te quando voltares — disse eu com a voz a vacilar perigosamente. — Ainda não estás pronto para ouvir a resposta. Agora, é melhor ires, antes que eu te dê outra desculpa para o teu argumento, o de que as mulheres desatam a chorar quando lhes apetece, só para dar nas vistas.
Foi muito duro separarmo-nos. Mas separamo-nos e Bran ajoelhou junto do filho, na areia molhada da pequena praia. Johnny olhou para cima e disse qualquer coisa na sua língua infantil incompreensível.
— É verdade — replicou Bran muito sério. — Ainda bem, creio, que acordaste quando acordaste, há bocado. Ou teríamos feito outro filho, ou filha, para nascer neste mundo de sombras e incertezas. — Os seus longos dedos tocaram gentilmente nos caracóis castanhos do filho e depois levantou-se.
— Não tenho respostas para ti — disse ele e a sua expressão era sombria. Agora, mantinha os três passos de distância, como se fosse demasiado perigoso aproximar-se de novo.
Cada vez me era mais difícil conter as lágrimas.
— Não estou à espera delas — disse-lhe. — Desejos e esperança para nós os três, é tudo.
— Adeus, Liadan. — Pegou no seu pequeno saco e afastou-se de mim, subindo pelo relvado na direção da sombra dos salgueiros. Ali, fez uma pausa e virou-se, olhando primeiro para Johnny e depois para mim; e pareceu-me que a sombra estava nos seus olhos, à sua volta.
— Adeus, meu amor — sussurrei e dobrei-me para pegar no bebê todo molhado, cheio de areia, porque eram horas de regressarmos a casa. Mas Bran continuou ali a olhar para nós e a sua expressão tirou-me a respiração, tal a mistura de amor e dor. Então, ele virou-nos as costas e desapareceu.
Depois daquilo, a Visão visitou-me sem ser convidada, como vingança. Eu achava-me uma pessoa forte, mas foi uma provação nunca experimentada antes.
Compreendia a natureza caprichosa, enganadora, daquele dom, como nem sempre mostrava a verdade pura, como o passado, o presente e o futuro, como o que foi, o que será e o que deve ser se misturavam ao acaso. Ainda bem que era assim, porque sem esse conhecimento eu teria enlouquecido, como outras pessoas com o mesmo dom. Agarrou-se a mim quase sem avisar; e todas as imagens eram de trevas. E até, quando estavam ausentes, eu não conseguia escapar a um pressentimento de que estava a ser observada; que, de algum modo, tudo o que fazia estava a ser escrutinado, julgado.
Por vezes, era pequena. Eu ia a andar de regresso da aldeia, o cesto debaixo do braço, sentia uma pequena fraqueza e então, mesmo à minha frente, via os animais esculpidos nos pilares, o rosto de Eamonn, branco de raiva e as suas mãos em redor do pescoço de Bran, apertando. Mas desta vez a faca de Bran caía no chão, ao mesmo tempo que os dedos tatuados abrandavam o aperto e as suas feições ficavam escarlates e distorcidas, sentia no meu próprio peito a luta frenética para respirar e via com os meus próprios olhos a escuridão a subir, para me levar. Ou estava sentada em casa, à lareira, enquanto Johnny brincava no chão com uns animais de madeira que o meu pai tinha feito, um dia, para Niamh. Não esquecera a minha habilidade com a faca e ao lado desses animais estava um carneiro gordo, uma vaca com cornos e uma galinha com os seus pintos. Um cão-lobo, forte e feroz. Uma serpente enroscada. Uma lontra lustrosa. Não havia necessidade de um corvo: tínhamos Fiacha, uma presença constante, vigilante. Observava o meu filho enquanto ele se sentava nos meus pés e subitamente aquelas criaturas estavam vivas e uma delas era um cavalo e sobre ele um cavaleiro, que usava na sua túnica o emblema de Sevenwaters, dois colares interligados. Era o meu tio Liam, algures para lá da floresta, atravessando uma passagem estreita entre rochas inclinadas. E havia um som sibilante e uma pancada e, com um olhar de surpresa no rosto, o meu tio caía silenciosamente da montada para ficar imóvel por terra, com uma seta de penas vermelhas espetada no peito. A visão desvanecia-se antes de eu poder ver a conclusão e via-me de novo na sala tranqüila.
— Hooo — enunciou Johnny, praticando.
— Certo; é um cão — respondi-lhe eu, trêmula. Liam estava em casa e de boa saúde. Esse era um dos problemas com a Visão. Podia falar do que via e avisar as pessoas. Mas não havia garantia nenhuma de que isso alteraria o decurso dos acontecimentos. Podia não dizer nada, para evitar preocupar as pessoas. E então, as coisas podiam acontecer e haveria um terrível sentimento de culpa.
Se ao menos lhes tivesse dito, se ao menos os tivesse avisado...
Guardei a Visão para mim. E não perguntei a Sean qual era a missão que o Homem Pintado estava a cumprir para ele, ou qual seria o preço por tal serviço. Sabia que não mo diria. Mas nós andávamos desconfiados um com o outro e isso era desconfortável. Era como se o que cada um de nós sabia acerca de Bran nos tornasse cautelosos, como se o nosso conhecimento separado e depois junto, fosse, de algum modo, perigoso. Do meu pai não havia notícias, à medida que o Outono se encaminhava para o Inverno e as colheitas tinham acabado. Era tempo de separar o gado, armazenar as culturas de raiz e afastar a manteiga e o queijo do tempo frio. Havia um certo nervosismo na casa e na aldeia as pessoas começaram a aparecer com uma tosse áspera, violenta.
— Onde é que está Lubdan, agora que preciso tanto dele? — ouvi Liam murmurar enquanto andava pela herdade, com um grupo de trabalhadores a fazer perguntas, todos ao mesmo tempo.
A Lua percorreu o seu círculo uma, duas vezes e as noites tornaram-se mais frias.
Acendi a minha vela, observei o meu filho a crescer e senti uma frialdade no ar, que não se devia, unicamente, à chegada do Inverno. Pensei no Homem Pintado, algures para lá da floresta, talvez para lá das margens de Erin, levando a cabo uma missão desesperada qualquer, perigosa. Uma missão suicida. O meu irmão andava invulgarmente taciturno e eu podia ver-lhe a ansiedade no rosto. Ele e Liam tinham longas conversas juntos e uma vez com Red Redbeard, que veio e foi embora no espaço de dois dias. Passava-se qualquer coisa, mas eles não diziam nada. Ninguém falou da morte de Fionn. Mantive a boca fechada. Mas temia por Bran e disse a mim própria que, se tivesse oportunidade, na próxima vez perguntar-lhe-ia abertamente.
Era horrível passar a vida à espera; passar uns breves momentos juntos, dizendo adeus. Teria que lhe dar a escolher. Mudar de vida, aplicar as suas capacidades noutra coisa qualquer, ou virar-me as costas para sempre. Mas sabia qual seria a resposta e temia ouvi-lo dizê-la.
Então chegou a noite em que as visões eram demasiadas e escuras e eu fui forçada a partilhá-las. Talvez estivesse a dormir, a princípio; mas aquilo era mais do que um simples pesadelo. Eram fragmentadas, como se a minha mente juntasse muitas ocasiões e lugares, as girasse e as atirasse de novo contra mim, como farpas envenenadas. Vi um homem muito velho, vagueando sozinho pelas salas vazias de Sevenwaters, os seus dedos enrugados segurando um bordão de teixo, para se segurar. Murmurava para si próprio: Foram-se todos embora... nem filhos, nem filhas... como pode a floresta estar segura se não há crianças em Sevenwaters? E vi que aquele ancião decrépito era o meu irmão Sean. A imagem mudou abruptamente, tudo ficou escuro por um instante, eu estava num pequeno espaço, os membros encolhidos e cruzados, não podia respirar, estava muito quente, muito quente e apertado e estava alguém a gritar, mas era muito difícil respirar e o grito era apenas um murmúrio: Onde estás?
Os meus olhos abriram-se abruptamente e eu arquejava e tremia, deitada na minha cama, em Sevenwaters, e quando o terror se desvaneceu reconheci que não estava completamente escuro, porque a pequena chama da vela continuava a brilhar. O meu coração batia e senti um suor frio na pele. Mas ainda não tinha acabado, porque naquele quarto tranqüilo vi outra visão: duas pessoas a discutir, Aisling e o irmão.
Por trás deles, as criaturas esculpidas no salão de Sídhe Dubh pareciam sinistramente vivas. Não podes fazer isso!, gritava Aisling, os olhos inchados de tanto chorar. Já deste o teu consentimento! Deste a tua palavra! O rosto de Eamonn era frio, como o de um juiz julgando e proferindo a sentença. A aliança já não existe, dizia ele. A decisão está tomada. Aisling proferiu um pequeno som sem palavras, o seu rosto ficou mortalmente pálido e a Visão mudou. Ela estava na torre de vigia e os homens estavam de costas viradas para ela. Ela estava no parapeito no seu vestido branco e alguém gritou Não! Ela deu um passo no espaço e caiu como uma pedra, sem um som, em cima das rochas pontiagudas, lá em baixo. A Visão não me poupou a um único pormenor. Gritei de horror, Johnny acordou, começou também a chorar e Fiacha juntou a sua voz à comoção geral.
A resposta foi rápida. Primeiro veio a rapariga, bocejando, para pegar na criança e embalá-la com palavras carinhosas. E depois Janis, carrancuda, com uma lanterna; e Sean, avaliando a situação imediatamente, afastando o terror da minha mente, porque em tais ocasiões ficava totalmente aberta. Mandou as outras para a cama, eu abracei o meu filho até nos sentirmos, ambos, consolados e bebi a taça de vinho que o meu irmão me deu. Na janela, a minha vela continuava a arder, porque agora eu acendia-a todas as noites, estivesse em quarto, lua cheia, ou o céu escuro como breu.
— Melhor? — perguntou Sean após uns momentos. Respirei profundamente.
— Eu... oh, Sean... eu vi...
— Devagarinho — aconselhou-me o meu irmão em voz baixa, parecendo o meu pai. — Queres falar?
— Eu... eu não sei. Foi... foi terrível, não só isto, mas... Sean, não creio que possa falar disto. — A imagem continuava na minha mente, os ossos deformados, os olhos sem vida, os cabelos brilhantes, o sangue brilhante e... outras coisas. Ergui uma barreira, de modo a que ele não visse o que ia nos meus pensamentos.
— Estou preocupado contigo, Liadan. — Sean segurava a sua taça de vinho nas mãos e olhava para a chama da vela. Havia uma gravidade nova nas suas feições; a ausência do nosso pai tinha alterado o equilíbrio da nossa casa, mais do que todos esperávamos. — Eu sei que essas visões te andam a perturbar já há algum tempo. Talvez devesses falar com Conor. Se o mandarmos chamar, ele vem.
— Não — disse eu abruptamente, pensando: Johnny está mais velho. Conor vai-me pedir de novo que vá para a floresta com ele e eu terei de arranjar uma razão para lhe dizer que não. — Sean, preciso de te dizer o que está a acontecer. Eu sei que é segredo; mas a Visão parece avisar-me de um desastre e eu temo por... por todos os que me são chegados e não sei como hei de avisar as pessoas. Qual é a missão que o Homem Pintado está a levar a cabo para ti? Quem mais sabe dela? E Eamonn? — Não disse o nome de Aisling, porque mal me ouvisse pronunciá-lo, saberia que tivera uma Visão dela e quereria saber a verdade; uma verdade que poderia vir, ou não, a acontecer. Mas ele sentir-se-ia obrigado a agir e poderia precipitar o desastre. Os lábios de Sean cerraram-se.
— Não precisas de saber nada sobre o assunto.
— Preciso sim, Sean. Há vidas em perigo e mais do que vidas. Acredita-me.
— Liadan? — perguntou o meu irmão.
— O que é? — Sabia o que vinha a seguir.
— A criança é dele, não é?
Não valia a pena contestar, agora que ele, finalmente, dava voz às suas suspeitas. No entanto, não podia saber toda a verdade. Não podia saber a outra parte da história, de Niamh e do seu druida e uma estranha viagem a Kerry. Limitei-me a acenar com a cabeça.
— A semelhança é assim tão grande? — perguntei, esboçando um sorriso.
— Será maior, com o tempo. — O franzir de sobrancelhas de Sean era igual ao de Liam. — É demasiado tarde para destacar a loucura dos teus atos e dos dele; demasiado tarde para te explicar que isso foi um ato de auto-indulgência irrefletida. E Eamonn? Ele sabe?
— Eu não lhe disse — disse eu, desejando que a sua censura não tivesse o poder de me magoar tanto. — Mas ele sabe, sim. Ele... recorreu a espiões, para descobrir.
— Ele tem agido de maneira estranha — disse ele com alguma hesitação, depois de ver se a porta estava bem fechada. — Marcaram-se reuniões, às quais ele devia ir e não foi. Enviei-lhe mensagens e não recebi qualquer resposta. Preocupa-me. Até Seamus teve dificuldade em conseguir falar com o neto.
— Agiste em conformidade com os teus aliados, quando encarregaste o Homem Pintado dessa missão? — Johnny adormecera nos meus braços e pesava-me, mas o seu calor era bem-vindo e eu continuei a embalá-lo.
— O que é que achas?
— Suspeito que foi uma combinação apenas entre vós os dois. Pessoal e secreta.
— Suspeitas bem. Uma oportunidade para ele provar quem é. Uma missão muito útil para mim, na qual não há nada a perder.
— Que queres dizer? — perguntei, sentindo um frio repentino.
— A combinação foi que, se ele fosse capturado, eu não teria qualquer responsabilidade. O risco é unicamente dele. O homem não parece preocupado com a própria existência, ou então tem uma notável autoconfiança.
— Ele é o melhor. Mas tens razão, não parece muito preocupado com a sua segurança. O que faz dele um utensílio muito útil para ti, suponho.
— Isso parece-me uma crítica, Liadan. Não te esqueças que nós somos homens e que estamos em guerra e que tais acordos são feitos todos os dias. Seria louco se deixasse passar a oportunidade. Se ele tiver sucesso, pago-lhe e haverá mais trabalho para ele.
— Se ele morrer, como é que te justificas perante mim e o meu filho? — perguntei, com a voz a tremer.
— Se ele morrer, será porque ele acreditou que a missão estava para além das suas capacidades — respondeu o meu irmão calmamente. — Ele aceitou-a de livre vontade e segundo as suas próprias condições.
— Sean, por favor. Diz-me de que se trata. Diz-me o que tu, Liam e Seamus andam a fazer. Estou farta de segredos. Preciso de saber.
Creio que, por fim, ele reconheceu o meu desespero. Não havia dúvida que as sombras das minhas terríveis visões ainda me assombravam os olhos.
— Muito bem. A missão liga dois elementos, os quais serviram bem a aliança, até agora. Há um ano estávamos em boa posição para que um ataque por mar, para expulsar Northwoods das Ilhas, pudesse ser considerado. Seria a adição das forças de Fionn que o tornariam possível. Mas Fionn morreu.
— Eu sei.
— Sabes? Como?
— Bra... o Homem Pintado... disse-me. Já o sei há algum tempo. Achei que era melhor não dizer nada antes de Liam saber e de a notícia se tornar oficial.
— Por que razão te disse ele?
— Não há segredos entre nós, Sean. — O meu irmão ficou a olhar para mim. — Este homem ajudou-me no passado. O nosso encontro não foi casual. O futuro dele está ligado ao meu, assim como ao teu. Talvez não tenhas reparado que, quando lhe compraste os serviços, mais ninguém estava preparado para o fazer. Qual é o teu pagamento?
— Posso continuar? Fionn morreu e quanto menos falarmos dele, melhor. A morte dele foi atribuída ao teu amigo e ninguém se preocupou em arranjar outras teorias alternativas. Fomos, imediatamente, confrontados com um problema. O apoio de Fionn era crucial para o sucesso no campo de batalha. Além disso, os Uí Néill de Tirconnell continuam zangados com os seus parentes do sul. O Rei Supremo e o pai de Fionn odeiam-se. E Sevenwaters, assim como os seus aliados, está, estrategicamente, colocada entre os dois. As gentes de Fionn esconderam a morte dele durante muito tempo. Ele morreu antes do solstício de Verão, menos de uma lua depois da partida abrupta do pai. — Acenei com a cabeça, sem comentar. — Portanto, por um lado, é vital renovar a aliança com os Uí Néill do norte, mas com subtileza, sem enfurecer o Rei Supremo. Estas alianças ficam mais fortes se forem feitas através do casamento; mas Niamh morreu e nós não podemos oferecer uma rapariga com um filho sem pai, seja qual for a sua linhagem, como noiva para um nobre chefe de guerra. Porém, temos outro trunfo: podemos providenciar apoio armado, um baluarte contra um ataque vindo de sul. No futuro, poderemos oferecer... serviços especializados. A espécie de serviços em que o Homem Pintado é especialista. Espionagem; subterfúgio; entradas e saídas secretas. Arte de marinharia; o manejo magistral de armas. Assim, o teu amigo e eu podemos ajudar-nos um ao outro. Mas isso é o futuro; por agora, Liam, Seamus e eu preparamos um encontro com os Uí Néill num local secreto. Estamos confiantes na sua cooperação. A ausência de Eamonn é preocupante, como já disse, mas Seamus ter-lhe-á falado nesta parte do plano e ele vai apoiá-la, por agora. Seria louco se não o fizesse, situado, como está, mesmo na passagem para norte, em linha entre nós e Tirconnell.
— Só me disseste metade. — Levantei-me para pousar Johnny na pequena cama e cobri-lo com o cobertor multicor.
— Ah. A missão. A princípio, tentei perceber como é que homens, tão pouco discretos a nível pessoal, podiam ter tanto sucesso em missões secretas, de espionagem e infiltração. Queria enviar um observador ao coração do quartel-general de Northwoods. E mesmo a Greater Island, que me trouxesse planos detalhados das fortificações, identificasse os pontos fracos, pormenores do número e movimento de homens e informações acerca dos navios que eles têm disponíveis. Mas acreditava que não era possível, porque o bretão tem uma boa rede de espionagem. Certamente que um homem pintado daquela maneira não tinha hipótese de sucesso. Mas fiz-lhe a proposta, conhecedor da sua reputação. E, como adivinhaste, fi-lo por conta própria. Nenhum dos aliados tem conhecimento desta missão, se bem que Seamus soubesse que eu tinha um tal plano em mente. Se tiver êxito, digo-lhe.
— Disseste que o teu plano tinha dois elementos — disse eu, muito séria. — Qual é o outro?
— Eu queria a informação, mas também queria uma certa distração. Algo que desviasse a atenção de Northwoods do que andávamos a fazer. O nosso homem deve, quase por acidente, dar a conhecer as notícias da morte de Fionn; deve deixar que o inimigo acredite que a nossa aliança com os Uí Néill foi quebrada. Alimentá-lo com notícias de que a nossa capacidade de ataque está muito fraca. Depois, no Outono, atacaremos o bretão de surpresa, de maneira a que ele não possa recuperar, conseguindo, por fim, reconquistar as Ilhas.
— E Bran concordou?
— A princípio, não. Ouviu-me e disse que iria pensar. Quando voltou a falar comigo, o plano tinha mudado. Como sabes, a sua reputação é amplamente conhecida e, como tal, não pode ir a parte nenhuma incógnito. Disse que faria a Northwoods uma oferta que ele não poderia recusar. Fornecer-lhe-ia informações acerca de Sevenwaters e da aliança, informações essas que fortaleceriam a sua posição nas Ilhas e oportunidades para nos atacar. A informação seria falsa, claro. Mas enganaria Northwoods durante o tempo suficiente para que o Homem Pintado reunisse as informações de que necessito e mas trouxesse antes de o bretão descobrir a verdade. O teu amigo é conhecido por mudar de patrão como quem muda de camisa. Talvez consiga. Se lhes der informações credíveis, não há razão para que não acreditem nele. A última vez que tive notícias, tinha conseguido estabelecer contato e estavam a ser feitos preparativos para que um pequeno barco o levasse, em segredo. E enquanto Northwoods anda distraído com o seu visitante e com a riqueza de informações fascinantes, nós vamos preparando a nossa aliança e o assalto final.
— E por que é que os Bretões hão de acreditar nele? — murmurei, olhando para a vela, brilhante e vacilante sob a corrente de ar.
— Nós demos-lhe informações suficientes e genuínas — disse Sean, franzindo o sobrolho. — As informações falsas viriam depois. Mas não te vou mentir que estou a ficar ansioso. Já devia ter recebido um relatório. Mas não há meio de receber notícias.
— Sean, eu também ando preocupada. Já que estamos a ser honestos um com o outro, acho que devias convidar Aisling para vir passar uns dias aqui. Ou ir vê-la, talvez. — Tentei manter um tom de voz frívolo, mas é difícil esquecer determinadas coisas de um gêmeo.
— O que foi? O que é que viste? — Ele ficou, subitamente, muito pálido.
— Não te vou dizer, Sean. Mas é sério. Devias ir buscá-la, se puderes.
— Não posso — disse ele, muito sério. — Agora, não. Liam partiu esta noite para ir discutir os termos, em segredo, com os Uí Néill. O encontro está marcado para depois de amanhã, num local escondido, a norte da floresta. Seamus estará lá; mas eu tenho de ficar em Sevenwaters na ausência dele. Liadan? Liadan, o que é?
— Tens de detê-lo. — As minhas palavras saíram num sussurro estrangulado. — Tens de deter Liam. Manda alguém atrás dele para o trazer de volta.
Mas eu tinha ouvido o som da morte nas palavras do meu irmão e no fundo do meu coração soube que não tínhamos poder para a impedir, já era demasiado tarde.
Foi terrível. De rosto muito sério, Sean enviou o mestre-de-armas de Liam, Felan, de noite, a toda a velocidade. Consegui ler a mensagem de amargura na mente do meu irmão, que ele não disse em voz alta. Devias ter-me avisado.
Quando Felan regressou, não houve tempo para tristezas. Ele deu a notícia em privado e quando Sean reuniu as pessoas da casa, pouco depois, as suas feições estavam calmas e pálidas, a imagem do autodomínio. Ainda antes de fazer 18 anos, o meu irmão ia assumir o controlo do maior túath a norte de Tara, com os seus rebanhos e manadas, o seu exército, as suas defesas e alianças e o povo que nele vivia. E como senhor de Sevenwaters, era agora o guardião da floresta. Liam planeara que assim aconteceria a seu devido tempo, depois de cuidadosa preparação.
Mas não tão cedo.
— Tenho notícias muito más — disse Sean e o silêncio era completo no grande salão, onde estavam reunidos homens de armas, criadas, criados e aldeões, para o ouvir. As portas estavam fechadas. — Lorde Liam morreu. Foi atingido pela seta de um bretão, ainda não há dois dias, enquanto ia a caminho de uma reunião secreta. O meu tio foi traído e eu não descansarei enquanto o traidor não for identificado e punido.
Um arrepio de horror percorreu o salão. Tão pouco tempo depois da morte da minha mãe e da abrupta partida do meu pai, aquilo parecia um golpe fatal; um golpe de que Sevenwaters talvez não conseguisse recuperar.
— Eu sei que tenho o vosso apoio e o apoio dos nossos aliados — continuou Sean, mantendo um tom forte e confiante. Todos lamentamos esta perda e talvez tenhamos dificuldade em meter mãos à obra, quer seja nas colheitas, no trabalho da casa ou na guerra. Mas o meu tio quereria que continuássemos, que mantivéssemos as nossas defesas fortes, que protegêssemos a floresta e os seus habitantes, como é missão da nossa família há muito tempo e prosseguíssemos a nossa demanda de reconquistar o que os Bretões nos tiraram. A campanha será suspensa, mas não para sempre. Havemos de recuperar. Não podemos chorar Lorde Liam como desejaríamos; não podemos despedir-nos dele com o cerimonial que um líder merece, porque os tempos não o permitem e as notícias deste ato traiçoeiro devem ficar entre nós, por agora. Por essa razão, traremos o seu corpo para casa em segredo, para que repouse dentro destas paredes durante um dia e uma noite e sepultá-lo-emos sob os carvalhos. Em devido tempo, prestar-lhe-emos as devidas homenagens, despedindo-nos dele convenientemente. Por agora, guardai a sua imagem nos vossos corações e nos vossos pensamentos e mantende as bocas fechadas. Compreendido?
— Sim, meu senhor. — Muitas vozes disseram aquelas palavras ao mesmo tempo e depois de expressarem o seu choque e desgosto ao meu irmão e a mim todos voltaram, de imediato, ao trabalho. As colheitas continuaram; as mulheres voltaram às suas tarefas de secagem e preparação dos frutos, ou à lavagem da roupa e Felan foi enviado com três homens vestidos de negro e um cavalo extra.
O meu irmão começara bem. Perante o pessoal da casa manteve a voz firme e os seus modos uma imitação credível dos de Liam, firmemente autoritários. Mas mais tarde, depois de o corpo do nosso tio ter regressado, de o termos preparado para o funeral e o termos depositado no salão, rodeado de velas, foi diferente. No andar inferior, o pessoal entrou para passar defronte do cadáver do seu senhor, para lhe olhar para as feições severas, pouco suavizadas pelo sono da morte. O seu corpo estava praticamente intato. Quem atirara a seta fora habilidoso. Os cães-lobo de Liam não abandonavam o dono; permaneciam, um à cabeça e o outro aos pés, estranhamente silenciosos enquanto os homens e as mulheres passavam, de rostos pálidos, murmurando: “Ide em paz, meu senhor”, ou “Boa jornada, Lorde Liam”.
— Quem havia de imaginar? — disse Janis severamente enquanto enchia canecas de cerveja para o pessoal e enxugava as faces, furtivamente, com as costas da mão. — Primeiro Sorcha e depois ele, sem qualquer razão. Não está certo. Há qualquer coisa que não está certa. Quando é que o Homem Grande volta para casa?
Johnny estava com a ama e Sean e eu estávamos sentados na sala privada, no andar de cima, onde Niamh tentara desafiar os homens da casa e fora esmagada. Sean estava muito calado e quando olhei para ele vi que finalmente, após um longo dia de contenção, chorava.
— Lamento — disse eu inadequadamente. — Sei que ele era como um pai para ti. Mas tu portaste-te muito bem, Sean. Ele ficaria muito orgulhoso de ti.
— Devias ter-me dito antes. Devias ter-me avisado, ou a ele. Podias ter evitado isto, Liadan. — O seu tom de voz estava cheio de desgosto e as suas palavras feriram-me profundamente. — Por que razão não o evitaste? Há aqui alguma conspiração que eu não consiga compreender? Porque alguém o traiu. Alguém disse aos Bretões onde ele estaria, quando e que estaria só.
— Pára, Sean. — A minha voz era tudo menos segura. — Isso é um disparate e tu sabe-lo.
— Disparate? Nesse caso, diz-me: Quem tinha conhecimento do encontro de Liam, senão os nossos aliados e o Homem Pintado? Ele foi informado, precisamente, para que a atenção de Northwoods fosse desviada do local e do objetivo da reunião. Era suposto ele ter informado os Bretões do contrário. Como é que eu, agora, posso continuar a acreditar no teu amigo? Este assassínio é a demonstração da sua reputação traiçoeira, um homem que muda de campo conforme lhe convém. Foi a minha confiança nesse homem que matou o meu tio.
— Por que faria Bran uma coisa dessas? — Os lábios de Sean arreganharam-se.
— Talvez Edwin de Northwoods lhe pague mais do que eu. A oportunidade de riscar o meu tio da paisagem e ao mesmo tempo desfazer as nossas negociações com os Uí Néill deve ter rendido bom dinheiro, imagino.
— Bran não faria uma coisa dessas, Sean. A missão dele era para contigo. Ele falou de ti com muito respeito. Isto não é obra dele e eu tenho a certeza disso.
— Não se pode confiar num homem destes. — Sean falou como se quisesse arrumar o assunto. — Fui louco em fazer o que fiz; e tu ainda mais, por te deixares levar pelas palavras dele. Agora, o nosso tio está morto e a aliança em perigo. Não percebes que isto pode ter atrasado a nossa campanha uma série de anos? Tu tens uma parte da culpa, Liadan. Não consigo acreditar como pudeste não me dizer.
Fiquei silenciosa enquanto as suas palavras caíam em cima de mim como uma chuva maldita. O que Janis dissera era verdade. Não estava certo. Nada estava certo.
— Preciso de Aisling — disse Sean abruptamente, não conseguindo controlar a voz. — Preciso de Aisling aqui. Mas ela não responde às minhas mensagens e eu não posso ir buscá-la, não posso abandonar Sevenwaters enquanto o nosso povo não recuperar deste golpe. O que é que a tua visão te mostrou, Liadan? Qual era o perigo que Aisling corre?
Mas eu não lhe respondi, porque estava profundamente magoada com as suas palavras.
Liadan. Diz-me.
— Não digo. E só me defendo para dizer que falas assim por causa do desgosto e as tuas palavras magoam-me, porque também eu sofri muito com a morte de Liam. Eu também o amava e confiava na sua força. Não preciso de te dizer que a Visão, por vezes, não me mostra imagens verdadeiras do futuro. Se eu avisasse sempre que tenho uma Visão, criaria uma perturbação tal, que mal poderíamos viver as nossas vidas de todos os dias, porque estaríamos sempre a olhar por cima dos ombros. E estás errado quanto a Bran. Ele é um homem de confiança, não fez isto. Ele é muito meu amigo e não prejudicaria o filho, traindo a nossa família. Não foi o Homem Pintado que revelou o segredo da viagem de Liam.
— A tua fé nele desafia a lógica. Baseia-se, talvez, mais nos desejos da carne do que em qualquer coisa parecida com senso comum. Terias feito melhor se tivesses casado com Eamonn, que te teria dado maior estabilidade, em vez de te ligares a um fora-da-lei, que, nitidamente, não te respeita a ti, ou ao filho.
— Eu nunca me casaria com Eamonn. Creio que nunca me casarei com ninguém. Quanto aos teus argumentos, não devias culpar ninguém sem provas e devias ter mais cuidado com a tua segurança, porque parece que há uma falha algures. Não posso negar o fato de que alguém traiu um segredo e que isso causou a morte do nosso tio. Mas não foi Bran; sei-o, Sean e deves acreditar em mim. Tens de encontrar o traidor noutro lado.
— Liadan. — A sua voz baixara, como por vezes a do nosso pai.
— O que é? — perguntei, cansada.
— Fazes uma coisa por mim?
Brighid nos ajude. Que esperava o rapaz, depois de despejar a sua amargura em mim e de me gelar o coração com as suas palavras de reprovação?
— O que é?
— Eu não posso ir ter com Aisling. E quando envio mensageiros ao irmão, não são recebidos. Eamonn não fala com eles. Mas, a ti, não fará isso. Podias fazer com que ele ouvisse. Vais a Sídhe Dubh falar com ele? Falas com Aisling e tentas trazê-la para cá?
O meu coração tremeu.
— Acho que...
— Até podias remediar algumas coisas — disse o meu irmão.
— Não há nada para remediar — cortei. — E Eamonn é a última pessoa que quero ver, agora. Não me apetece voltar a Sídhe Dubh nunca mais, Sean. Há um... há um sentimento negativo entre Eamonn e eu. Custar-me-ia muito. Além disso, eu também sou precisa aqui. As pessoas confiam em mim para tratar delas. E Johnny?
— Por favor, Liadan. — Por um momento, pareceu Niamh, a maneira como ela tentava seduzir-me, para conseguir um favor.
— Não sei. Parece que perdeste confiança na minha opinião, assim como, até, na tua. Talvez devas enviar outra pessoa qualquer. Se acreditas que Bran é capaz de te trair, também acreditas que eu posso fazer o mesmo.
— Ainda tens fé nele, nesse caso. — O seu tom era insípido.
— Ele seria incapaz de nos trair assim, Sean. Fazê-lo, seria falhar na sua missão. Se ainda não regressou, é porque... porque... — Tive um súbito relâmpago da Visão e era escuro, tão escuro que, a princípio, não consegui perceber se a imagem estava a direito ou de pernas para o ar e se as paredes estavam longe ou perto de mim, mantendo-me de joelhos encolhidos, encostados ao queixo e os braços em volta da cabeça. Tentei mexer-me e as paredes estavam logo ali, tão perto, tão junto de mim e eu não conseguia respirar, de tão abafado que estava. Não poderia emitir qualquer som, nem um queixume, ou, quando me deixassem sair, far-me-iam pagar. Assim, a voz gritava silenciosamente na minha cabeça, enquanto as lágrimas me caíam pelas faces, quentes e violentas, o meu nariz escorria e eu nem me atrevia a fungar, com medo que me ouvissem. Onde estás? Por que me abandonaste?
— Liadan — disse Sean suavemente. — Liadan! — E eu voltei a mim, tremendo. — Estás a chorar — disse ele.
— Eu não pedi o dom da Visão — disse-lhe eu, trêmula. — Acredita-me, daria tudo para poder ter evitado a morte de Liam. Mas não é assim que as coisas funcionam. Podia tê-lo avisado e ele podia ter tomado outro caminho e morrido na mesma. Não há maneira de saber.
Sean acenou com a cabeça, gravemente.
— Desculpa. É difícil não te culpar. Por vezes, penso se a tua ligação ao Homem Pintado não te terá alterado a capacidade de raciocínio.
Suspirei.
— Tu estás ansioso por causa de Aisling e com razão. Eu sinto mesmo por Bran. Parece que não consegues perceber que eu posso amar tanto como tu.
— Podias, talvez, ter escolhido mais sensatamente. Esse homem nunca poderá fazer parte de Sevenwaters. Ele é... selvagem.
— Eu sei. Mas a minha escolha está feita. Ao passo que tu manda-lo para uma missão de grande perigo para tua conveniência, acusa-lo de traição e a mim de fraqueza. E pedes-me um favor.
Seguiu-se uma pausa.
— Tu sabes o que viste. E o que viste sobre Aisling leva-te a acreditar que ela está em perigo?
Acenei com a cabeça relutantemente. Sean ficou muito pálido.
— Eu não posso ir lá, Liadan. O meu povo precisa de mim. Por favor, vai tu, por mim e por ela. Eamonn não se recusará a receber-te; não te pode recusar seja o que for. Levas uma boa escolta; podias partir amanhã de manhã. Leva Johnny contigo e a ama, se quiseres.
— Vou pensar nisso — disse eu, com o coração a gelar-me ante a perspectiva das muralhas de Sídhe Dubh à minha volta outra vez e mais ainda ante o pensamento de ter de pedir a Eamonn fosse o que fosse. — Mas não posso ir amanhã. Preciso de mais tempo, por causa de Johnny.
— Tem que ser muito em breve.
— Eu sei.
Quando eu me apressava a regressar ao meu quarto, ele usou a voz da mente:
Desculpa, Liadan. Liam tinha razão. Eu não estou pronto para isto. Mas tem de ser. Tenho que guardar isto para mim e ser forte por todos. Tu és minha irmã e estarei sempre presente para ti, sejam quais forem as escolhas que faças.
Eu sei.
Virei-me para trás, mas ele não estava a olhar para mim. Estava inclinado para a frente e tinha a cabeça entre as mãos.
Hás de ser um chefe forte e sábio, Sean. Os teus filhos, e os de Aisling, hão de encher outra vez estas paredes de riso.
Com aquelas palavras comprometi-me a fazer o que ele me pedia. Mas temia fazer aquela viagem. Achara que tinha medo de pouca coisa; mas reconhecia que tinha medo de Eamonn, da sua estranha fortaleza nos pântanos e das meias visões sobre coisas maldosas passadas dentro da suas muralhas. Preferia ficar em casa com Johnny, a ajudar as mulheres na cozinha, tratando dos aldeões doentes, segura, no coração da floresta. As Criaturas Encantadas tinham-me avisado. Conor tinha-me avisado. Era perigoso sair.
Finalmente, não foi a ansiedade de Sean que me persuadiu, mas algo muito mais terrível. A Lua começava a diminuir e naquela noite a sua luz estava velada por nuvens pesadas. Um vento forte, vindo de sul, trazia o som dos ramos das árvores a dobrarem-se e o restolhar das folhas para dentro do meu quarto, enquanto me preparava para me deitar. Já era muito tarde. A ama já fora descansar, tendo deixado Johnny deitado e aconchegado por baixo do cobertor multicor. Quando acordou para mamar, levei-o para a minha cama, porque a sua presença, pequena e quente, era uma barreira bem-vinda contra os pensamentos maus que ameaçavam submergir-me.
Fiacha estava empoleirado nas costas de uma cadeira e, se dormia ou estava acordado, não sabia. Tenho de ser forte, disse para mim própria, enquanto acendia um graveto nas brasas da lareira e acendia a minha vela especial. Muito forte, porque desta força depende a segurança de muitos.
A vela vacilou e apagou-se. Protegi-a com a mão em concha, por causa da corrente de ar e cheguei-lhe de novo o graveto. O pavio vacilou por breves segundos e apagou-se de novo. Um sentimento, como que uma mão fria, percorreu-me o pescoço e desceu-me pelas costas. Deliberadamente, peguei na vela pela sua base e afastei-me da janela, para a colocar em cima da arca de carvalho, ao lado da cama.
Sombras estranhas, provenientes da chama do graveto, dançaram pelas paredes.
Ali não havia corrente de ar. Mas a vela gravada não havia meio de se acender.
Inspecionei o pavio e tentei de novo. E de novo, à medida que um medo terrível me assolava. O pavio estava limpo; o graveto ardia perfeitamente na minha mão. Mas, quando o afastava, a vela flamejava por instantes e morria. Disse a mim própria que estava a ser tola, desejando, simplesmente, que aquilo acontecesse, tomada de pânico. Respirei fundo e tentei outra vez. Fiquei ali imenso tempo, tentando acendê-la, até que as minhas mãos começaram a tremer e a vista se me enevoou, com o esforço. Lá fora estava escuro; espessas nuvens continuavam a esconder a Lua. E não conseguia que a vela se acendesse. A sua chama não brilharia na escuridão, naquela noite.
Sentei-me na cama, a tremer, com o cobertor em redor dos ombros, mas não dormi durante toda a noite. Johnny acordou duas vezes, peguei nele, dei-lhe de mamar e fiquei grata pela sua companhia. Mas naquela noite eu queria a Visão e ela não vinha. Nem sequer ouvia aquela criança a gritar, na escuridão. Em vez disso, era eu que gritava, mentalmente. Onde estás? Mostra-me. Mostra-me. Mas não surgiu nada, enquanto esperava, cheia de frio e de maus pressentimentos, até que as primeiras luzes da aurora tocaram no céu.
Disse à ama de olhos ramelosos que ia sair e levaria Johnny comigo. Disse-lhe que explicasse, se alguém perguntasse, que levara uma escolta, que fora fazer uma visita e que estaria de regresso a tempo das cerimônias do funeral do meu tio Liam. Não desejava ficar em casa naquele dia. Tinha coisas a fazer.
Tinha aperfeiçoado um método de transportar Johnny nas minhas viagens pela floresta. Assim, pu-lo às costas, metido num saco, cujas pontas atei em redor do pescoço e da cintura. Ele gostava de viajar daquela maneira, que o mantinha junto do meu corpo quente, mas que lhe permitia ver as rochas, o céu e as muitas cores e desenhos dos carvalhos, dos freixos, dos vidoeiros e das aveleiras. Quando fosse homem, pensei enquanto descia pelo caminho macio, cheio de folhas, que o meu tio Conor me mostrara, teria aquelas formas e cores gravadas na memória e, como todos os filhos de Sevenwaters, teria dificuldade em afastar-se da floresta.
Caminhei rapidamente. Se a Visão não queria nada comigo, agora que tanto precisava dela, tinha de procurar informação por outro lado, de qualquer maneira. E agora que a minha mãe tinha morrido, só havia uma pessoa que me podia ajudar, sem tentar julgar-me; sem me dizer o que devia, ou não, fazer.
Começou a chuviscar, mas os grandes carvalhos abrigaram-nos e quando comecei a subir as margens do sétimo ribeiro, que corria pelas rochas abaixo na direção do lago, as nuvens abriram-se um pouco para deixarem passar um pouco da luz do Sol. Fiacha voava com vôos curtos, à nossa frente, ou atrás, mantendo-se vigilante. Não havia hipótese de ter frio, caminhando daquela maneira com Johnny às costas e em breve descobri que tinha de parar freqüentes vezes para recuperar o fôlego. Talvez as visitas da Visão me tivessem enfraquecido, ou talvez o meu corpo ainda não tivesse recuperado, depois do nascimento do meu filho. Sê forte, Liadan. Tens que ser forte.
Por fim, cheguei ao maciço de sorveiras-bravas, de novo cheias de frutos outonais e deslizei por baixo dos salgueiros. Ali, à minha frente, estava a nascente secreta e a pequena e redonda lagoa, rodeada de pedras redondas, um local perfeitamente tranqüilo. Desfiz os nós do saco que prendiam o meu filho às minhas costas. Johnny adormecera e pousei-o cuidadosamente em cima de uns fetos, à sombra das árvores.
Ele nem sequer se mexeu. Fiacha empoleirou-se num ramo próximo.
Tio? A minha mente já se estendia, enquanto me sentava nas pedras, perto da água.
Preciso da sua ajuda.
Estou aqui, Liadan. E estava; de pé, no outro lado, o rosto pálido, os cabelos escuros emaranhados, as roupas que vestia sem qualquer forma, escondendo com dificuldade as penas brancas da asa. A sua expressão era calma, os olhos límpidos.
O meu tio Liam morreu. Trespassado por uma seta bretã.
Eu sei. Conor já vai a caminho de Sevenwaters. Mas eu não vou. Desta vez, não.
Tio. Eu tive umas Visões terríveis. Vi a morte de Liam e só os avisei quando já era tarde. O meu irmão disse... ele disse...
Eu sei. É duro. Não há maneira de fugir a esse sentimento de culpa, minha filha. Eu próprio vivi com ela durante anos. O teu irmão há de aprender, assim como aprenderam os meus, que a Visão não pode ser controlada. Que tais avisos, quando vêm, podem ser mais amargos do que os acontecimentos que seguem o seu curso. O teu irmão é jovem. Com o tempo será tão forte como Liam. Talvez mais forte.
Acenei com a cabeça.
Eu também acho e disse-lho. Mas vi um outro futuro, no qual Sean era um velho só. Um futuro em que Sevenwaters estava vazia. Desolada. Para mudar esse padrão, terei que arriscar muito. Terei que desafiar os que nos moldam o destino, por mais fortes que sejam.
Finbar deu uma grande risada, espantando-me.
Oh, Liadan. Se o meu rumo tivesse sido diferente e tivesse sido abençoado com uma filha, teria desejado uma como tu. Não desafiamos nós os rumos das nossas vidas, a cada volta da roda? Mas, tu desejas orientação, porque uma visão te mostrou a verdade. Leio-o nos teus olhos e leio neles a tua urgência. Estiveste a chorar e acho que sei porquê.
A minha vela, a minha pequena chama na escuridão... não consegui acendê-la, se bem que tenha tentado, vezes sem conta. E não vi nada. Apenas um silêncio terrível. As visões cessaram e eu não posso vê-lo, não lhe posso ouvir a voz. E vi Aisling, vi...
Eu ajudo-te. Se a verdade te deve ser mostrada, será aqui, no meio destas pedras antigas. O teu filho dorme profundamente. Há tempo. Vem, abre a tua mente à minha e olhemos os dois para a água.
Sentamo-nos nas pedras e sentimo-nos seguros, como se estivéssemos nos braços das nossas mães. Finbar num lado da lagoa e eu no outro. Desci os escudos da mente, ele fez o mesmo e os nossos pensamentos misturaram-se, tranquilamente. O tempo passou, talvez muito tempo, talvez não tanto como isso e os únicos sons eram o restolhar dos pequenos insetos no solo, o canto dos pássaros no alto e o vento suspirando nos salgueiros.
A superfície da água agitou-se e mudou. Algo brilhante, flamejando no escuro.
Suspendi a respiração. Um frasco de beber, delicado, com desenhos enrolados em toda a sua superfície, a tampa de âmbar, com a forma de um pequeno gato. Um recipiente que partilhara com o Homem Pintado num dia de morte e renascimento. Uma mão, estendendo-se para pegar no frasco e tirar a tampa. O homem leva-o à boca, para beber e esse homem é Eamonn. A lagoa escureceu de novo.
Respira lentamente, Liadan. Mantém-te calma. O meu tio enviou-me uma imagem de águas calmas, de folhas de faia à luz do Sol da Primavera, de uma criança a dormir. Forcei o meu coração a abrandar e a minha mente a pôr o medo de lado. Olhei de novo para a água.
Desta vez as imagens mudaram e eu achei que eram atuais. Aisling, deitada de borco na cama, chorando, chorando até não ter mais lágrimas. Uma criada entrando no quarto com um tabuleiro de comida e bebida; levando outro tabuleiro igual, intocado. Fechando a porta. Fechando a minha amiga no quarto. Depois, abruptamente, o grande salão de Sídhe Dubh. É noite, porque há archotes a arder nas paredes e os animais de pedra parecem ferozes, à medida que a luz vacila e brinca na suas minúsculas e malignas feições. Olhos fixos, garras abertas, dentes aguçados, línguas ardentes. Dois homens presentes: Eamonn, sentado numa cadeira de carvalho esculpida, os seus brilhantes cabelos castanhos penteados sobre os ombros, as feições tranqüilas. Apenas os seus olhos traem a sua excitação. E Bran, o lado do seu rosto sem tatuagens uma massa de carne inchada, um golpe profundo sobre o olho e uma lívida e púrpura marca em redor do pescoço, como se tivesse estado perto da morte por estrangulamento. Um brilho de triunfo nos olhos castanhos de Eamonn.
— Sabedor da tua inclinação pela separação das extremidades — observou ele suavemente — decidi começar pelo dedo mais pequeno e continuar, gradualmente. É interessante ver quanta dor um homem é capaz de suportar. Mas talvez um homem negro não sinta como nós.
A voz de Bran era calma e controlada.
— Eu não negocio a segurança dele, assim como ele não negocia a minha.
Eamonn emitiu uma risada irônica.
— Não tenciono dar lugar a quaisquer negociações. Tu também não, quando degolaste os meus homens diante de mim. Só estava a pensar manter-te informado sobre os progressos do teu amigo. Vais precisar de algo para ocupar a tua mente, no sítio para onde vais. Oh sim, tenho planos para ti. Vós dois ides proporcionar-me um bom entretenimento, antes do fim. Ouvi dizer que não gostas muito de locais fechados, nem de falta de luz. Quem diria? O Homem Pintado com medo do escuro?
Seguiu-se um breve silêncio.
— Tenho pena de ti — disse Bran. — És um traidor, tal como o teu pai. Não traiu ele os seus aliados, como tu? Dizem que foi desprezado e insultado em ambos os lados do mar. Não admira que Liam tenha tratado da morte dele antes que provocasse mais danos. Ouviste essa história, não ouviste? É um segredo conhecido de todos. Até o teu avô tomou parte, assim como o duvidoso Hugh de Harrowfield. Pensavam que tu serias diferente do teu pai. Esperança vã, como estamos a ver. Qual foi o preço que pagaste por nós os dois, Eamonn Dubh?
— Não uses esse nome. — Eamonn levantou-se e avançou na direção do seu prisioneiro.
Mexeu-se com precaução, como se estivesse, de algum modo, ferido. Havia, talvez, uma ligadura em volta das suas costelas, escondida pela camisa. A sua mão ergueu-se e desferiu um soco no rosto de Bran. Vi que as mãos de Bran estavam fortemente manietadas, assim como as pernas e que, apesar do seu aparente controlo, aquele golpe fê-lo oscilar. — Liam está morto — continuou Eamonn. Há um novo senhor em Sevenwaters, que é novo e ingênuo. A posição deles está enfraquecida.
— Morto. Como? — Os olhos de Bran semicerraram-se. Era evidente que desconhecia.
— Isso não te diz respeito, porque nunca mais sairás daqui, fora-da-lei. Vou-me divertir contigo e com o selvagem negro a quem tu chamas amigo e depois sereis... removidos. Desaparecereis, simplesmente, sem deixar rasto. O povo diz que tu entregaste Sevenwaters aos Bretões. Mais tarde, dirão que os homens de Liam avançaram rapidamente para vingar a sua morte e que te mataram. Não te atrevas a julgar as minhas ações. Que sabe um homem como tu de alianças e lealdade? Certamente não sabes, sequer, o significado de tais palavras.
— Se não devo fidelidade a ninguém — disse Bran sem desviar os olhos de Eamonn — não posso trair ninguém. — Parecia fazer um grande esforço para pensar, tentando resolver um quebra-cabeças.
Eamonn tossiu levemente.
— O que ocorreu foi... desafortunado. Mas pode trazer-me vantagens. E se o meu avô e os Uí Néill souberem que o jovem Sean fez um acordo com o Homem Pintado? E se eles souberem que a irmã dele se deitou com um fora-da-lei, lhe abriu as pernas sob os arbustos, enquanto acampavam na beira do caminho? Talvez a reputação de Sevenwaters não recupere disso.
Bran manteve a voz tranqüila.
— Com o tempo, arrepender-te-ás dessas palavras. Podes manter-me aqui, cativo, e acreditar que estou indefeso. Mas cada palavra estúpida que pronuncias acerca dela aproxima-te um pouco mais da morte.
— És louco, se não percebes por que razão paguei um preço tão alto por ti. Desde que mataste os meus homens que estás marcado por mim para morrer. Mas quando soube que foste tu que me roubaste Liadan, que foram as tuas mãos sujas que a tocaram, paguei um resgate de rei. Penso no que terá pensado a mãe dela, no leito de morte, quando soube que a filha se tinha atirado para os braços de um monte de estrume como tu? Quando eu soube a verdade, passou a ser, apenas, uma questão de tempo, para ti. Teria pago fosse o que fosse, para ter a satisfação de te ver sofrer e morrer. Sentes-te um pouco fatigado? O teu amigo vai passar a noite cheio de dores. O toque do ferro em brasa numa ferida aberta dói. Mas ele não gritou. Nem uma única vez. Que força moral fantástica.
Não houve resposta. Os olhos de Bran estavam longe, como se se tivesse distanciado, de algum modo, do local onde estava e do que ouvia. Eamonn andava de um lado para o outro.
— Não gostas de ouvir falar de Liadan e da criança, pois não? É estranho, se pensarmos no modo como a trataste.
— Escolhe as tuas palavras com cuidado.
— Ah! Tu estás aí, atado como um frango assado, incapaz de dar um passo sem cair. Um homem que não consegue passar uma noite de lua nova sem uma lanterna ao lado; um homem que teme os seus próprios sonhos. As tuas ameaças divertem-me, mestiço.
— Estou a avisar-te. Pisas gelo fino, quando falas dela diante de mim.
— Eu digo o que me apetece, miserável. Estou em minha casa, no meu salão e tu és meu prisioneiro. Vou dizer-te aquilo que desejo há muito dizer-te. Pensas que tens algum direito sobre a filha de Sevenwaters, porque a corrompeste; porque te aproveitaste da sua inocência e a viraste contra mim. Mas ela não é tua e nunca foi. Se te disse isso, mentiu-te. As mulheres só dizem a verdade quando lhes convém. Liadan está-me prometida há muito, quando ainda éramos crianças. E ela é uma rapariga generosa. Eu conheci o corpo todo dela, cada espaço suave, doce, muito antes de tu lhe teres posto as mãos sujas em cima. — Fez uma pausa para avaliar o efeito. — É engraçado, não é? Não há maneira de dizer se o filho é teu, ou meu.
Seguiu-se um silêncio total e Bran não conseguiu evitar a fúria nos olhos, ou na respiração enraivecida.
— Não. Oh, não — sussurrei e ouvi o aviso silencioso de Finbar. Calma, Liadan, se não queres perder a imagem.
— Estás a mentir — disse Bran. A sua voz perdera o tom tranqüilo.
— Estou? Acho que não o poderás provar, de uma maneira ou de outra. Onde estão as tuas provas?
Bran respirou fundo e fez uma tentativa para endireitar os ombros. Pareceu-me que havia outras feridas, invisíveis. Olhou Eamonn nos olhos.
— Eu não preciso de provas — disse ele em voz baixa, tentando, ao máximo, controlar a voz. — Liadan não me mentiria. Era capaz de lhe confiar a minha vida. Tu não consegues envenenar o que há entre nós com as tuas palavras loucas. Ela é a minha luz na escuridão e Johnny é o meu guia.
As lágrimas escorriam-me pelo rosto abaixo enquanto via Eamonn chamar os guardas e Bran a ser arrastado do salão.
— Tirai este mestiço da minha vista. — A voz de Eamonn era fria. — Metei-o no escuro, que é onde merece estar. Ele que apodreça lá.
Depois, Eamonn ficou só e o seu rosto estava tudo menos calmo. Encheu uma caneca de cerveja e bebeu-a de um trago, atirando-a depois através da sala com tal violência que o metal se partiu nas pedras da lareira.
— Hás de engolir essas palavras, antes de acabar contigo — murmurou ele. A escuridão espalhou-se pela superfície da lagoa.
Respira fundo, Liadan. Senti o conforto dos pensamentos de Finbar, enquanto ele envolvia a minha mente com a sua, mostrando-me uma luz na água, o brilho dos carvalhos vestidos com as cores do Outono, o archote do pequeno barco da minha mãe, uma vela a arder; os raios do Sol da tarde sobre a figura do meu filho a dormir tranquilamente sob os salgueiros.
Muito bem. Melhor? Foi muito duro. O que vais fazer?
— Não posso escolher — disse eu em voz alta, esfregando as faces molhadas com a manga do vestido. — Sean pediu-me que fosse lá, por causa de Aisling. Tenho de partir imediatamente e quando chegar lá tenho de... — A minha mente retesou-se ante a perspectiva. Não podia dizer a Sean o que acabara de ver. Podia ouvir a sua voz: Não se pode confiar num homem daqueles... quem é que estava em melhor posição do que ele, para passar a informação aos Bretões? Quem acreditaria na palavra do Homem Pintado contra a de Eamonn de Marshes? Quem aceitaria as imagens sombrias da Visão, como prova? Sean dissera: Tu tens uma parte da culpa, Liadan.
Não podia dizer a Sean. Gostava tanto que o meu pai estivesse em casa. Ele saberia o que fazer. Mas o meu pai não regressara de Harrowfield, não havia notícias dele e eu não tinha tempo. Não buscaria a ajuda de Conor. Sabia o que ele diria: Esse homem serviu o seu propósito. Não gastes as tuas energias com ele. A criança é a chave.
Que vais fazer? O olhar límpido de Finbar era de compaixão Não me deu qualquer conselho.
— Por agora — disse eu — amamentar o meu filho, mudá-lo e regressar a Sevenwaters. Amanhã de manhã, partir para Sídhe Dubh. E ter esperança, quando lá chegar, de saber o que fazer a seguir.
Finbar acenou com a cabeça.
Fiquei a pensar disse ele fiquei a pensar... há muito tempo que não pertenço a um mundo de alianças, estratégias e traições. Mas pareceu-me que houve ali qualquer coisa por dizer.
Uma coisa de que eu posso tirar vantagem, se for bem-feita.
Exatamente. Tivemos, ambos, o mesmo pensamento.
— Custa a acreditar que Eamonn seja capaz de uma tal traição — disse eu, mas nos recônditos da minha mente vi o olhar de Eamonn, quando recusei a sua proposta de casamento; o olhar de um homem que vê apenas o que quer ver; um homem que não suporta ser derrotado.
É melhor ires com cuidado disse Finbar. Se pudesse, ajudava-te mais. Mas tu já tens um mensageiro do Outro Mundo. Ele olhou para Fiacha, empoleirado num ramo baixo de uma sorveira-brava, perto do local onde Johnny já se agitava, sobre os fetos.
Tenho um mensageiro, sim. Inclinei-me para mudar as fraldas de Johnny. Ele estava acordado, mas calado, pela primeira vez sem fome. Era como se o secretismo e a serenidade daquele local tivesse marcado até a sua consciência infantil.
E bem poderoso. Não preciso de te perguntar quem to enviou.
Ele apareceu em Sevenwaters disse eu, sabendo que Finbar era a única pessoa a quem podia falar livremente sobre aquilo. Ciarán. Na noite em que a mãe morreu. Deixou o pássaro e disse-me a verdade sobre quem era. Tio...
O que é que te perturba, Liadan?
Foi uma coisa terrível, não nos dizerem a verdade, quando souberam que a minha irmã e Ciarán se amavam. Pelo menos, se o tivessem feito, Niamh teria compreendido que Ciarán não a abandonava por acaso. Podia ter-se agarrado a isso, nos tempos negros que se seguiram. E eu podia ter sabido mais cedo da ameaça que pende sobre o meu filho.
É Ciarán que temes, apesar de ele te ter dado esse presente?
Não sei. Não sei se ele é amigo ou inimigo. Ciarán disse... disse que a mãe dele lhe ofereceu poder. Que estava à espera que ele fizesse uma escolha. Ele estava muito zangado Estremeci. Zangado e amargurado.
Finbar acenou com a cabeça, lentamente.
Ele ainda é novo. Mas os seus anos de disciplina devem ter servido de alguma coisa.
Conor diria que tudo se desenrolará como deve.
Foi isso o que Ciarán disse.
Tal pai, tal filho. Mas é pena. Havia uma boa razão para o nosso silêncio, Liadan, tanto então como mais cedo, quando a criança foi trazida para a floresta. Nenhum de nós queria ver o nosso meio-irmão criado por Lady Oonagh, transformado numa arma para nos destruir. Conor procurou defender o rapaz dessas influências. Mas o velho mal é muito forte. Oonagh não passa de uma das suas ferramentas; talvez haja trevas no espírito de Ciarán, que acabarão por aparecer, apesar de ele, eventualmente, não o querer, para destruir os inimigos da sua mãe. O que aconteceu não foi, apenas, obra do acaso. Cada um de nós reconheceu que aquilo que pensávamos ter destruído estava vivo de novo, no meio de nós e duvidávamos da nossa força para combater o seu poder. Cada um de nós sentiu o mesmo terror, o acordar de um medo como há muito não sentíamos. Para muitas pessoas, a coisa malvada que Oonagh fez aos filhos de Sevenwaters transformou-se numa lenda, uma coisa estranha de uma história mágica muito antiga; no entanto, basta-me fechar os olhos para a ver diante de mim, rindo-se na minha cara, os cabelos escuros flamejando, os olhos parecidos com amoras envenenadas; sentindo-me transformar; tremendo de terror à medida que a minha consciência humana se afastava de mim. Nunca mais serei o mesmo; o caminho que vi, uma vez, à minha frente, foi-me fechado para sempre. No que aconteceu a Niamh e a Ciarán vi, de novo, a crueldade de Lady Oonagh e a dor da minha irmã. A feitiçaria daquele dia ficou para a vida inteira; o medo, a culpa, a dor, ficaram conosco para o resto dos nossos dias. Como poderíamos partilhar esse fardo com um filho, ou uma filha? Como pode uma pessoa suportar a dor de ver os seus filhos saudáveis mirrarem? Talvez tenhamos negado a verdade até a nós próprios.
O tio viu a minha Visão; se eu não o ajudar, Bran morrerá, além de outros e isso será um triunfo para os poderes do mal. Mas eu tenho medo. Não por mim, mas por Johnny. As Criaturas Encantadas avisaram-me de que não deveria levar Johnny daqui. E há a profecia. A mãe não gostaria que eu fosse contra ela.
Tu és forte. Mas tudo aquilo que tentares será perigoso, não tenhas dúvidas.
Não me sinto forte, neste momento. Cheguei o meu filho ao seio e fiz um esforço para controlar a respiração. Sinto-me sem forças e com medo. Receio que seja tarde demais.
Houve um silêncio e depois a voz mental de Finbar, invulgarmente sugestiva:
Creio que não te verei por uns tempos, Liadan. Não te esqueças de mim. Porque o meu futuro está ligado a essa criança. Sei, porque já o vi. É importante, minha querida. Não esqueças. Haverá muitas distrações.
Não me esqueço. E agradeço a sua ajuda. A sua habilidade é grande, ao manter estas Visões sob controlo. Em manter os terrores da mente em cheque.
A tua habilidade também é considerável. E estás a aprender a dominá-la. És, na verdade, uma jovem notável. O teu homem disse a verdade quando te chamou a sua luz na escuridão. Ah. Choras, outra vez. Mas é melhor chorares agora, porque depois de hoje não terás tempo para chorar.
CAPÍTULO CATORZE
Ia ser uma longa cavalgada. Sean já percorrera, uma vez, aquela distância em menos de um dia, acelerando através da noite para responder ao meu pedido de socorro.
Mas com um bebê haveria necessidade de paragens ao longo do caminho, para o alimentar e deixá-lo descansar e eu cansar-me-ia rapidamente com ele às costas, enquanto conduzia a montada. Uma carroça era impensável, demasiado lenta, custosa de manobrar e de proteger nos caminhos estreitos.
Sepultáramos Liam ao crepúsculo, sob os grandes carvalhos de Sevenwaters.
Enviáramos-lhe mensagens discretas; Conor vinha a caminho, mas como tinha estado fora, não chegou a tempo. Padriac já partira da casa de Seamus Redbeard, em Glencarnagh; talvez já tivesse, até, embarcado numa nova viagem até terras distantes. As suas visitas eram raras; nunca quisera uma parte na tutela das terras e da comunidade. Mas era triste que nenhum irmão, ou irmã, estivesse presente, ao anoitecer, sob as velhas árvores, para desejar àquele chefe de guerra uma boa viagem.
Fizemos uma fogueira e queimamos acônito e agulhas de pinheiro. Sean falou da força e coragem do nosso tio e eu da sua dedicação à família e ao túath. O pessoal da casa e os camponeses assistiram, em silêncio. Foi uma partida bem sombria para um homem tão grande; com o tempo, talvez pudéssemos comemorar a sua vida e a sua morte, reunindo o povo e fazendo a festa com a música que ele merecia. Mas, por agora, não. Vivíamos tempos perigosos e a notícia da sua morte súbita não podia ser espalhada indiscriminadamente.
A seguir, bebemos uma caneca de cerveja na cozinha, em redor do fogão. Lá fora, através do ar da noite, ouviu-se um som terrível, um uivo de dor e abandono, que ecoou nos nossos corações. Aquele lamento continuou e continuou, até que eu não pude mais e desatei a chorar. Então, Sean levantou-se, foi até à porta e, olhando para a escuridão, chamou:
— Neossa! Broc! Basta! Para dentro, os dois!
E após uns momentos o uivo cessou e os dois cães-lobo do meu tio apareceram da escuridão, as cabeças peludas baixas e as caudas entre as pernas. Sean sentou-se de novo, os cães foram ter com ele e sentaram-se ambos, um à esquerda e outro à direita. Foi nesse momento, penso, que o meu irmão se tornou no senhor de Sevenwaters.
Johnny e eu estávamos prontos ao amanhecer e Sean ficou nos degraus da entrada para se despedir de nós. Eu montava a estranha e pequena égua que um dia pertenceu ao Homem Pintado e pareceu-me que ela estava ansiosa por partir, não apenas pela necessidade de exercício e ar fresco. Fiacha esperava num poste próximo, com a cabeça de lado. Ao verem-no, os cavalos escarvaram o solo, nervosos.
— Fico-te agradecido por isto, Liadan — disse o meu irmão bruscamente. — Traga-a, se puderes. E diz a Eamonn que eu preciso de falar com ele. Terás que lhe dar a notícia da morte de Liam. Depois disso, ele certamente verá a necessidade urgente de promover outra reunião. A aliança deve reagrupar-se, rapidamente. Eu devo estabelecer o meu próprio lugar; tornar claro quem sou e o que pretendo. Pergunta-lhe se me vem ver. Mas, primeiro, assegura-te de que Aisling está sã e salva.
— Farei o que puder. Agora, tenho de ir. A jornada é longa. Adeus, Sean. Que a deusa ilumine o teu caminho.
— Boa jornada, Liadan.
A viagem demorou um dia, uma noite e parte da manhã do dia seguinte, e eu só desejava que o passo fosse mais rápido, ao mesmo tempo que rangia os dentes cada vez que o meu filho acordava e chorava e tínhamos de parar para lhe satisfazer as necessidades. Reprimia palavras de frustração quando os meus homens de armas me diziam que Lorde Sean insistira em que parássemos para dormir, ao menos por um bocado e que me preparassem uma refeição como deve ser. Não se podia esperar que uma senhora viajasse rudemente, como um guerreiro. Assim, promoveram um pequeno abrigo para mim e para a criança e montaram guarda enquanto eu me deitava, de olhos abertos na noite, vendo pequenas nuvens a atravessar a Lua em quarto-minguante. E na manhã do segundo dia atravessamos a passagem pelo meio da água que ia dar a Sídhe Dubh, com Fiacha voando, de asas negras, por cima de nós.
Passamos os postos de guarda avançada sem grande dificuldade. Os homens conheciam-me e reconheceram os meus homens de armas, que usavam a túnica branca de Sevenwaters com o seu símbolo de dois colares interligados. Deixaram-nos passar sem outra coisa que não uns olhares de sobrancelhas levantadas para Fiacha, que circulava, grasnando.
Não nos mandaram de volta para a passagem, mas um dos guardas abanou a cabeça em ar de dúvida e disse:
— Não sereis admitida. Ele não está a deixar passar ninguém e não fará exceções, nem sequer a uma senhora. — Havia algo no tom de voz dele que sugeria que não se sentia nada confortável com a situação. Mas tinha ordens a cumprir.
Assim, chegamos à porta interior, a entrada para a longa passagem subterrânea, que ia dar ao pátio com a sua muralha circular. Tal como da última vez, havia dois corpulentos guardas de machados nas mãos e dois cães maciços, rosnando.
— Identificai-vos!
Os guardas avançaram e os cães retesaram as correntes.
— A senhora Liadan, de Sevenwaters, vem visitar a filha da casa — disse o líder da minha escolta. Nós pertencemos à sua casa e estou espantado por não nos reconheceres, Garbhan, se ainda há menos de uma estação partilhamos uma caneca de cerveja neste mesmo sítio. Abre as portas. A senhora percorreu um longo caminho e está cansada.
— Ninguém pode entrar. Não há exceções.
— Estou certo que compreendes o que estou a dizer. — A voz do meu homem era confiante; a sua mão ficou suspensa por cima dos copos da espada. — A senhora veio visitar a sua amiga. Ela tem um bebê com ela, como vês. Ela é a irmã de Sean de Sevenwaters. Se tens alguma dúvida, por favor manda chamar Lady Aisling. Estou certo que ela nos dará as boas-vindas.
— Não há exceções. Ordens de Lorde Eamonn. E agora dai meia volta, antes que eu solte os cães.
Os cães pareciam desejosos de ser soltos, quando Fiacha começou a mergulhar na direção deles, fora do alcance das suas mandíbulas, voltando a subir para repetir a manobra, acompanhada de irônicos grasnares de desafio. Johnny acordou e começou a chorar.
Incitei o meu cavalo a avançar uns passos.
— Deixai isto comigo — disse eu aos meus homens. Tentei o tom de voz que Liam teria empregado. — Ide buscar Lorde Eamonn — disse eu. — Ele, a mim, recebe-me. Diz-lhe que Liadan está aqui e que devo falar com ele. Diz-lhe que tenho informações para ele, que são importantes e que não aceitarei um não como resposta.
— Olhai que não sei, minha senhora. Lorde Eamonn não deve ser incomodado e ele disse que não haveria exceções.
Fiacha fez um vôo rasante, tão perto do rosto do homem que o bico letal quase lhe levou um olho.
— Diz-lhe.
— Sim, minha senhora.
Esperamos. Eamonn não desceu, mas após um certo tempo o guarda regressou, a corrente foi desaferrolhada e os portões abertos e nós passamos pelos cães babados, percorrendo a longa curva ascendente, até ao pátio. Havia muitos, muitos guardas ao longo do caminho. Guardas suficientes, pensei, sinistramente, para guardar o mais difícil dos prisioneiros. No meu coração, sabia que Bran devia estar ali, algures.
Ainda devia estar vivo e pronto para tentar uma fuga, ou então, para quê a presença de tantos homens armados? Quando emergimos para a luz, o pátio enxameava deles e à entrada da casa lá estava Eamonn, parecendo sombrio e distante. Avançou para me ajudar a desmontar. Johnny estava a chorar e o pássaro acrescentava a sua voz muito particular ao barulho.
— Liadan, — franziu Eamonn a testa. — Que estás aqui a fazer?
— Que boas-vindas a uma amiga são estas? — perguntei-lhe. — Estamos cansados e eu preciso de tratar da criança.
— Que vieste aqui fazer?
Os meus homens de armas tinham desmontado e estavam a ouvir.
— Tenho notícias para ti, Eamonn. Notícias muito importantes, que têm de ser passadas com muita cautela. E preciso de ver Aisling. Talvez possas dar alguma cerveja aos meus homens e a mim um local tranqüilo para eu alimentar a criança. Depois, quando for conveniente, gostaria de falar contigo.
Ao mesmo tempo que ele se virava para dar ordens e afastar a pequena multidão que se juntara, vi que se movia, na verdade, com alguma dificuldade, como um homem ainda mal refeito de um ferimento, como, por exemplo, uma facada. Uma criada apareceu para me levar para o interior e indicar-me um canto tranqüilo para mudar e alimentar o meu filho. Comida e bebida foram trazidas num tabuleiro. Não havia sinal de Aisling e eu não perguntei por ela.
O tempo passou. Johnny teve a sua refeição, ficou quieto e o Sol percorreu o espaço no lado de fora das janelas estreitas. A criada regressou com duas outras, rindo e admirando o bebê e oferecendo-se para tomar conta dele por um bocado, de maneira a eu poder descansar.
— Gostaria de ver Aisling — disse eu. — Ela está cá?
— A minha senhora não está bem. Creio que ela não quer ver ninguém — disse a mais velha das mulheres, que segurava Johnny nos braços.
— Talvez eu possa ajudar — arrisquei. — Conheço a arte de curar. Qual é o problema?
— Será melhor perguntardes a Lorde Eamonn.
— Mas...
— Perguntai-lhe a ele.
Relutantemente, deixei-as levar o bebê até às cozinhas, porque ele parecia gostar da companhia e eu estava mesmo cansada, mas fiquei com um sentimento de perda.
Fiacha voou atrás, para alarme das mulheres. Com um guarda daqueles, achei que o meu filho estaria seguro. Olhei pela janela, para o pátio, em busca de qualquer coisa fora do vulgar, qualquer coisa que sugerisse que havia, na verdade, prisioneiros especiais naquela fortaleza. Mas, à parte a presença de tantos homens armados, tudo parecia normal.
Por fim, Eamonn mandou-me chamar. Estava no salão, sentado na sua cadeira de carvalho e, uma vez a criada despedida, ficamos sós.
— Bem, Liadan. Senta-te, por favor. Uma taça de vinho, talvez? Este vem da Armórica. É muito fino. Não esperava nenhuma visita. A ocasião não é apropriada.
— Esta notícia não tem ocasião apropriada. O meu tio Liam morreu. Morto pelos Bretões, quando ia ao encontro dos Uí Néill, para uma reunião. Alguém nos traiu e a aliança ficou enfraquecida. Sean pediu-me que te trouxesse eu própria esta notícia e que te perguntasse se posso levar Aisling comigo, porque ele precisa do apoio dela. E quer falar contigo urgentemente.
— Estou a ver. — O seu olhar, preocupado e chocado, parecia genuíno. — Isto é muito grave, na verdade. Quando é que isso aconteceu?
— Há alguns dias. Sean quer que isto fique secreto, por enquanto, por razões óbvias. Já mandamos dizer ao teu avô e eu vim dizer-te, a ti. Para além de nós, mais ninguém sabe, mas se Northwoods quiser dar o golpe, os inimigos da aliança poderão querer avançar contra nós.
Ele ergueu as sobrancelhas.
— Não te sabia tão conhecedora de estratégias e acordos, Liadan.
— Estou a aprender depressa — disse eu.
— Aisling não pode ir a Sevenwaters. Ela está... indisposta.
— Posso vê-la? Se ela está doente, posso ajudá-la.
— Desta vez, não. Receio que não possas vê-la e ela, certamente, não pode viajar.
— Nesse caso, deve estar muito doente. Eu sou curandeira, Eamonn. Devias deixar-me tratá-la. Aisling é minha amiga e prometida do meu irmão. Devias deixar-me ajudá-la, se puder.
— Não ficarás aqui o tempo suficiente para a ajudar. Não posso ter hóspedes nesta casa. Aisling há de recuperar sem a tua assistência. Ela tem sido apenas... obstinada e adoeceu. Não podes vê-la.
Não repliquei. A conversa parecia uma espécie de jogo. Um pequeno risco aqui, uma pequena vitória ali. Era difícil fazer movimentos estratégicos quando não se conhecia as regras.
— Diz a Sean que Aisling não pode fazer a viagem — disse ele. — Dá-lhe os meus sentimentos pela perda. — Levantou-se como se fosse sair e houve outro silêncio estranho. — Vais precisar de uma noite de descanso, suponho, antes de voltares para casa. Estou surpreendido por teres trazido o teu filho contigo, Liadan. No entanto, parece ter-se saído bem.
— Descobrirás que a escumalha tem uma surpreendente força interior — disse eu calmamente. — Uma capacidade de resistência fora do normal.
Ele levou um momento a reagir.
— O que é que disseste?
— Estou aqui para negociar contigo, Eamonn. Vim comprar-te os teus prisioneiros.
Pensava que ele estava pálido, mas ao ouvir as minhas palavras ficou branco como um cadáver.
— Estou... estou a ver — disse ele cuidadosamente. — O teu irmão sabe desta escapada?
— Sean não está a par das minhas intenções — disse eu, com o coração a bater desordenadamente. — Mas sabe que estou aqui e espera o meu regresso em breve, com ou sem Aisling.
— E, exatamente, quais são os prisioneiros que tens em mente?
— Não brinques comigo, Eamonn. Tenho em mente o Homem Pintado e um outro do seu bando, que tu manténs cativo. Estou aqui para negociar contigo, para que nos entregues e nos deixes sair, sãos e salvos, de Sídhe Dubh.
— Negociar? Negociar o quê?
— Um acordo. Estou certa que já fizeste muitos.
Ele levantou-se e começou a andar de um lado para o outro.
— Espantas-me, Liadan. Mesmo depois do que aconteceu, mesmo depois de tudo o que se passou entre nós, continuei a acreditar que serias capaz de raciocinar. Este homem é o diabo, uma praga. Não deveria, nunca, ser um homem livre. E nunca mais será. Mas, diz-me — e parou mesmo à minha frente, pondo as mãos nos meus ombros e eu respirei profundamente, fazendo um esforço para não me afastar — como é que sabias que ele estava aqui? Como descobriste? Ninguém sabia.
— Pelo menos, não finges que não é teu prisioneiro. Suponho que é o teu orgulho que to impede. Mas, pelo menos outro membro da família de Sevenwaters sabe o mesmo que eu e, se me acontecer alguma coisa, dirá o que sabe.
— Se te acontecer alguma coisa? Por que razão te havia de acontecer alguma coisa? Tu não és uma ameaça para mim e, além disso... não, evitemos os sentimentalismos. Sejamos claros, Liadan. Ninguém quer saber se este homem vive ou morre. Podes dizer ao mundo que eu o tenho aqui prisioneiro, que o torturei e lhe bati, que pretendo executá-lo. Nenhuma alma levantará um dedo para o ajudar. Ele é um proscrito, não tem remédio.
— Estás errado — disse eu suavemente. — Estás muito errado. Esse homem inspira grande lealdade e hás de descobri-lo à tua custa.
— Ah! A lealdade de outros miseráveis como ele e de raparigas mal orientadas, que encontram uma excitação perversa nos braços de um monstro depravado. Não consigo acreditar que te tenhas entregado a ele, quando podias...
— Quando podia ter-te tido a ti? Lamento que não acredites, Eamonn, porque isso encheu-te de amargura, de tal maneira que não vês o que fazes, ou porquê. Esse ódio consome-te, fazendo com que firas a tua própria família e os teus amigos, lançando uma maldição sobre o teu futuro. Ainda não é demasiado tarde para te retratares. Ainda não é.
— Se me tivesses aceitado, o meu caminho teria sido diferente — disse ele tristemente. — Se te desagrada a pessoa em que me tornei, a culpa é tua.
— As tuas ações só a ti pertencem — disse eu, reprimindo a cólera. — As tuas escolhas são apenas tuas. Cada um de nós carrega um fardo de culpas, por decisões tomadas, ou não. — Vi uma pequena imagem do meu tio Liam, por terra com uma seta no peito. — Podes permitir que essa regra regule a tua vida, ou podes atirá-la para trás das costas e continuar. Só um louco deixa que o ciúme determine o rumo da sua existência. Só um homem fraco culpa os outros dos seus próprios erros. E agora, negocias comigo?
— Não consigo imaginar o que tu pensas que me podes oferecer — disse ele rigidamente. — Mas suponho que uma mulher tem um serviço que pode sempre oferecer a um homem. E houve um tempo, não muito distante, em que podia ter pagado muito para possuir o teu corpo. Teria pago com o meu orgulho, a minha reputação e com tudo o que possuo. Mas agora, não. Agora, que o tenho em meu poder, não. Vê-lo sofrer vale infinitamente mais do que uma noite na tua cama. Se bem que seria interessante fazê-lo, só para o ver contorcer-se. Infelizmente, ele já passou esse estádio.
— Que queres dizer? — Não pude impedir que a minha voz tremesse e achei que ele sentiu esse alarme.
— Sabias que o teu fora-da-lei tem medo do escuro? Sabias que ele se derrete todo se fica fechado durante muito tempo? Descobri isso. Levei muito tempo a descobrir. Ele guarda bem os seus segredos. Não vais encontrá-lo tal qual o deixaste, receio bem. Quanto ao outro, está em muito mau estado.
Respira, Liadan.
— Receio que não tenhas percebido o que eu queria dizer quando falei em acordo — disse-lhe eu, bebendo um pouco de vinho, apenas para as minhas mãos terem alguma coisa para fazer, de tal maneira tremiam. — Não é bem uma questão do que eu tenho para oferecer, em troca da liberdade deles. É mais uma questão do que tu tens para dar, de maneira a comprar o meu silêncio.
— Silêncio? Que silêncio? Que queres dizer?
— Eu sei uma coisa que te pode prejudicar muito, Eamonn. Uma coisa que, se chegar aos ouvidos do meu irmão, ou de Seamus, tirar-te-á da aliança e fará com que fiques a olhar por cima do ombro, em busca de um homem com uma faca, para o resto da tua vida. Uma coisa que, se for conhecida dos Uí Néill, fará com que nunca mais te sentes numa mesa de concelho com eles. E as tuas terras estão num sítio esquisito. Mesmo no centro da estrada que sai de Tirconnell. Devias ouvir-me.
— Não acredito no que estou a ouvir. — Ele sentou-se de novo, olhando para mim. — Como poderás tu saber uma coisa que o teu irmão não saiba? Uma rapariga, em casa com uma criança, fechada no coração da floresta? Isso não passa de blefe.
— Blefe! Muito bem, tentemos um pormenor. E não te esqueças, o bando do Homem Pintado sabe muitos segredos e tem orelhas em muitos sítios. As minhas fontes podem ser diferentes das de Sean, mas são exatas.
— Continua — disse ele com uma voz gelada. Naquele momento, entrou um homem com um tabuleiro, no qual havia outro frasco de vinho e um prato com pão, queijo e fatias de carne. Pousou-o em cima de uma mesa e Eamonn despediu-o com um aceno de cabeça. Depois de o homem sair, foi até à porta e fechou-a à chave.
— Muito bem — disse ele. — Qual é a coisa?
O Sol entrava pelas janelas. Já passava do meio-dia; dois dias inteiros, desde que vira aquela visão de Bran a ser arrastado daquele mesmo salão, desde que ouvira Eamonn dizer: Mete o mestiço no escuro. Chegara o momento de arriscar tudo: tinha esperança de que Finbar e eu tivéssemos tropeçado na verdade.
— Eu sei qual foi o preço que pagaste a Northwoods — disse eu com firmeza esforçada. — Sei que foi a informação que deste ao inimigo que provocou a morte do meu tio. Traíste a aliança, Eamonn. Sacrificaste Liam pelo teu desejo retorcido de vingança. Por causa de uma raiva ciumenta. E direi a Sean e a Seamus, a não ser que me dês o que quero.
— Isto é incrível! — A sua voz vibrava de fúria. — Não podes provar nada. Nem consigo imaginar onde foste arranjar essa história, ou quem te acreditaria, se lho dissesses.
— Tenho provas. Uma testemunha de grande credibilidade, que sabe qual é o objetivo da minha visita aqui. Se recusares o que quero, o teu segredo em breve será conhecido, quer eu regresse sã e salva a casa, quer não. Estás acabado, Eamonn.
Ele ficou silencioso por um bocado.
— Que garantias me dás de que essa informação não será pública, mesmo que eu concorde com esse pedido ridículo? — perguntou ele e uma pequena chama de esperança começou a arder dentro de mim. — Podes muito bem conseguir o que queres e abrir a boca na mesma. Que contrapartida me dás, de que outros guardarão segredo?
— Conheces-me melhor do que isso — disse eu. — Uma vez, não há muito tempo, disseste-me que eu era a única mulher que alguma vez quererias para esposa, ou uma coisa assim parecida. Creio que, na ocasião, foste sincero. Agora, vejo que perdeste qualquer respeito que tinhas por mim. Mas, então, éramos amigos. Se te dou a minha palavra, cumpro-a. E certifico-me do silêncio dos outros. Mas não arriscarei a vida do meu irmão. Manter-me-ei em silêncio, desde que tu honres o nosso acordo.
— Não acredito nisto. É como se te tivesses transformado num... num monstro, como o homem que proteges. É melhor dizeres-me quais são as tuas condições.
Ah, não, pensei. Tu é que te transformaste num monstro, um homem que trai, tortura e assassina, unicamente por uma obsessão ciumenta. Tu, com quem eu, um dia, podia ter casado
— Muito bem — disse eu. — Respeitarás a aliança. Honrarás o teu compromisso para com o meu irmão no futuro, serás honesto com ele e partilharás as tuas defesas, assim como fizeste com Liam.
— E?
— Esse é o acordo a longo prazo. No momento em que o quebrares, dir-lhes-ei.
— E a curto prazo?
— Primeiro, trazes Aisling aqui. Os meus homens de armas levá-la-ão para Sevenwaters agora, esta tarde. Ficará lá até à Primavera, até ela e Sean casarem. Não regressará aqui. Irás ao casamento, sorrirás e dar-lhes-ás a tua bênção.
— Aisling não está bem. Não pode viajar.
— Eu serei juíza disso. Penso que ela quererá ir. Os meus homens sabem como conduzir uma senhora através dos campos e olhar por ela.
— Falas como se não fizesses tenção de a acompanhar. Qual é o resto do acordo demoníaco, Liadan?
— Ficarei aqui até que Aisling esteja a salvo, longe de Sídhe Dubh. Não deve demorar muito. Então, libertarás os teus dois prisioneiros. E providenciarás, aos três, e ao meu filho, um salvo-conduto até às tuas fronteiras.
Ele deu uma grande risada.
— Deves pensar que eu sou mesmo muito fraco.
— Penso que ainda deves ter suficiente bom senso para perceber que estás encurralado — disse eu cuidadosamente. — Farás o que eu digo?
— Não me dás possibilidade de escolha. Mas ainda tenho algum orgulho, se bem que estejas a procurar humilhar-me. Vou deixar Aisling ir. Seria louco se não concordasse, ou recusasse a primeira parte do acordo. Pergunto-me se não te cansarás de me observar, ano após ano, a ver se tropeço? Pode tornar-se aborrecido.
— Eu sou filha de Sevenwaters. O meu irmão merece a minha lealdade e o meu apoio e tê-los-á. A nossa família compreende a importância disso, se bem que a tua não.
— Talvez devesses ter tento na língua. Ainda não concordei com as outras partes do negócio.
— É tudo ou nada. Se não libertares os prisioneiros, não subscrevo o acordo.
— Preciso de tempo.
— Tempo é coisa que não tens. Se eu quiser, posso informar o meu irmão agora mesmo, enquanto estás a olhar para mim. Posso abrir a minha mente e contar-lhe tudo. Se tentares fazer-me mal, saberá imediatamente. Não hesitarei.
— Maldita sejas, Liadan! Malditas sejam as tuas feitiçarias.
— Libertas aqueles homens? — Cada vez me era mais difícil manter-me sob controlo.
— Muito bem — disse ele subitamente. — Leva o teu amante miserável e o seu bizarro companheiro. Vê para que te servem, depois da estadia breve e fértil em acontecimentos em minha casa. Mas não haverá salvo-conduto. Não há um único homem na minha guarnição, ou nas minhas terras, que seja capaz de escoltar o Homem Pintado até à fronteira sem lhe espetar uma faca nas costas. Uma vez fora das muralhas, ficas por tua conta.
— Estás a dizer que nos deixas sair para que os teus arqueiros nos abatam antes de pormos os pés na estrada? Nem penses. Tens de fazer melhor do que isso. Queres que fale com o meu irmão? Chamo-o?
— Não. Vamos brincar um bocadinho. Depois da partida de Aisling, se ela estiver em condições de ir, vamos brincar às escondidas. Primeiro, tens de descobrir o teu fora-da-lei. Depois, tens de o fazer sair daqui. Nós ajudamos, senão levas a noite inteira. E não haverá “estrada”. Ele que vá por onde veio, pelos pântanos. Não dizem que ele é capaz de todas as missões? Deve ser fácil, portanto, com uma mulher, uma criança e um homem que não pode utilizar as mãos. Simples, acho eu. Verás que espécie de herói ele é, então. Vamos dar-te um certo tempo para isso. Tens de ir ao anoitecer. Depois disso, nós sairemos com archotes e começaremos a disparar. Os meus homens têm tido pouca ação, ultimamente.
— Isso é... demoníaco — murmurei, olhando para ele. Aquele homem era o mesmo com quem eu dançara no dia de Imbolc, o homem que eu considerava como uma boa escolha para marido se conseguisse ensiná-lo a sorrir? Ou fora eu que o transformara ao dizer-lhe simplesmente que não? O meu coração gelou. — O acordo não é segundo as minhas condições?
— Não exatamente. Tu podes decidir dizer o teu segredo agora, tentar convencer o teu irmão do que sabes, à distância. Podes fazer isso e destróis a minha vida. Mas, se deres esse passo, o Homem Pintado morre. Assim, não o salvas. E o teu irmão está-se nas tintas para o fora-da-lei. Não passa de mais uma peça do tabuleiro, para ser ganha ou perdida.
Passei a língua pelos lábios, subitamente secos.
— Muito bem. Chegamos a acordo. Agora, manda chamar Aisling.
— Não dirás nada à minha irmã acerca disto. Que fique claro.
— Fica claro, Eamonn. Agora, manda chamá-la, assim como os meus homens de armas.
Aisling parecia doente e infeliz. O seu rosto pequeno e sardento estava branco como a cal e eu podia ver-lhe os ossos por baixo da pele. Os seus olhos estavam vermelhos e inchados e os cabelos vermelhos encaracolados todos despenteados.
— Liadan — murmurou ela, sem prestar atenção aos olhares severos do irmão e aos seis homens de armas que esperavam no salão. — Oh, Liadan, vieste! Onde está Sean?
— À tua espera, em Sevenwaters — disse eu calmamente, se bem que me apetecesse chorar ao ver o aspecto da minha amiga. — O teu irmão deu autorização. Estes homens levam-te. Pedi às mulheres que te arranjassem alguma bagagem e o teu cavalo está pronto. Partes imediatamente.
— Oh, Liadan, obrigada. Obrigada, Eamonn!
Ainda bem, pensei, que ela estava num estado de extrema angústia e exaustão, não se lembrando de fazer qualquer pergunta. Não tinha dúvidas de que, mais tarde, as faria, quando já estivesse a caminho.
— Minha senhora... — O líder dos meus guardas franzia o sobrolho, preocupado.
— Estas são as minhas ordens — disse eu firmemente. — Parte imediatamente. Regressa a Sevenwaters o mais rapidamente que puderes, mas lembra-te que Lady Aisling tem estado doente e precisará de descansar, tal como eu. Diz ao meu irmão que irei mais tarde.
— As nossas ordens são para vos guardarmos. — Ele parecia duvidoso. — Se nós partirmos agora, vós não tereis salvo-conduto.
— Lorde Eamonn providenciará a proteção de que preciso — disse eu. — Ficarei aqui mais algum tempo. Diz ao meu irmão que Lorde Eamonn se manterá em contato com ele. Agora, vai e chegarás a Sevenwaters amanhã ao anoitecer.
— Muito bem, minha senhora.
Subi os degraus até ao local onde estavam as sentinelas. Olhei por cima da passagem, para o longo carreiro a direito, que era a única saída segura de Sídhe Dubh. Fiquei ali até que os cabelos vermelhos de Aisling e os capacetes de couro dos homens de armas se desvaneceram no horizonte. Depois, fui à cozinha, reclamei o meu filho e amamentei-o. Coloquei-o às costas outra vez, pronta para a viagem. Lá fora, no pátio, Eamonn esperava.
— Pensei em assistir ao jogo — disse ele. — Mas creio que não tenho estômago. Não te preocupes, os meus guardas têm instruções para te deixarem por aí. Se precisares de chaves, ou de um homem forte para abrir um ferrolho ou dois, pede e eles ajudam-te. Tu estás a gostar disto, não estás, Liadan? Disseram-me que deambulaste por aqui, como um gato com cio, durante a tua última estadia aqui. Toca a andar, então. Não falta muito para o anoitecer, no fim de contas. Oh, e faz qualquer coisa quanto àquele teu pássaro, está bem? Se ele volta a mergulhar sobre os meus homens, uma só vez que seja, a próxima aparição dele será à mesa do jantar, recheado.
Caminhávamos através do pátio enquanto ele falava e Fiacha voou sobre as nossas cabeças, para pousar nos taipais de uma carroça vazia.
— Toca a andar, então — repetiu Eamonn, como se estivesse a despachar uma criança turbulenta.
— Eu sabia onde teria de procurar e temia o que iria ver. Tomei uma decisão rápida.
Olhei para o olho brilhante de Fiacha: Vai, disse-lhe. Vai buscar ajuda. Agora. Preciso de ajuda antes que anoiteça.
Ele levantou vôo, rápido como uma flecha, um ponto negro subindo no céu e apontando para sul, sempre para sul. De seguida, segurei nas minhas saias e desci pela passagem subterrânea, a caminho da escuridão.
Creio que foi difícil para os guardas. Eles tinham as suas ordens e obedecer-lhes-iam.
No entanto, olhavam um para o outro e murmuravam entre si, enquanto eu vasculhava o seu domínio subterrâneo, cela após cela, rangendo os dentes e reprimindo as lágrimas, tentando acalmar o coração e a respiração, enquanto entrava numa sala vazia e depois noutra.
— Onde estão eles? — ordenei. — Dizei-me! — Mas eles arrastaram as botas pelo chão e mantiveram as bocas fechadas. O Homem Pintado não poderia esperar nada dos homens de Eamonn, senão medo e aversão.
Eu já sabia que por trás das pequenas celas havia uma porta de ferro, com ferrolhos.
Pedi ajuda a um homem enorme, de cabelos cinzentos, com músculos que pareciam nós de cordas, avançou para ma abrir. Havia uns degraus toscos, que desciam.
Preciso de uma lanterna. Johnny contorcia-se nas minhas costas, cansado dos movimentos presos. Tendo aprendido a mexer-se sozinho, estava desejoso de explorações e novas aventuras. Não queria pensar nele e na passagem pelo meio dos pântanos. Pensaria apenas no que vinha a seguir, já a seguir.
— Lorde Eamonn não falou em lanternas.
— Eu preciso de uma luz. Está escuro como breu, ali em baixo. Posso cair e partir o pescoço da criança. Queres contar essa história à tua mulher, logo à noite?
Ninguém se mexeu. De rosto fechado, segurei nas saias e comecei a descer os degraus. Um. Dois. Estava tão escuro que nem conseguia ver a minha mão.
— Pronto, minha senhora.
Uma luz oscilou nas paredes de pedra. O guarda de cabelos grisalhos estava no degrau acima, com uma pequena lanterna na mão. Estendi o braço para pegar nela.
— Eu levo-a. Tende cuidado com a criança. Estes degraus são muito velhos e escorregadios.
Eram dez, os degraus, através de uma passagem estreita para as profundezas da terra.
Estava tudo silencioso. Se havia ali ratos, ou escaravelhos, não havia sinais deles. A luz fraca revelou anéis de ferro, incrustados nas paredes cheias de teias de aranha. No fim da passagem, outra porta, que mais parecia uma grade, fechada com grossas correntes. O local não tinha quase nenhum ar, era sufocante.
— Minha senhora. — O guarda falou em voz baixa, acanhadamente. — Estes homens são foras-da-lei, nem merecem que os atirem para o estrume. Deixai-os, salvai-vos mais a criança. Nunca conseguireis passar os pântanos. Morrereis e o vosso bebê convosco. Desisti. Nós escoltamos-vos a casa. Nenhum de nós quer isto na consciência.
— Dá-me a chave — disse eu. Ele colocou-ma na mão, sem outra palavra.
Para lá da porta engradada havia outro pequeno espaço e ali estava Gull. Ouvi a sua respiração antes de a luz lhe iluminar as feições escuras, agora de um cinzento doentio, os olhos brilhantes de febre, as roupas rasgadas e sujas. Os seus pulsos estavam presos em anéis de ferro por cima da sua cabeça, de modo que ele não se podia mexer de onde estava, pendurado. Uns panos sujos e cheios de sangue envolviam-lhe as mãos.
Avancei, cerrando os dentes.
— Libertai as mãos deste homem, já!
— Liadan — conseguiu dizer Gull, enquanto o guarda estendia os braços para os anéis.
Então, o negro suspendeu a respiração quando os pulsos ficaram livres e os braços caíram, como se não tivessem vida.
— Vais ter muitas dores quando o sangue recomeçar a circular — disse eu, enquanto ele caía no chão com um arquejo de agonia. — Mas não temos tempo. Temos de sair daqui. Onde está Bran? Onde está o Chefe?
Gull moveu a cabeça de um lado para o outro, debilmente, indicando que não sabia.
— Tens de saber! Alguém tem de saber! Só temos até ao anoitecer para sair daqui!
— Eu posso... andar. Posso... ir. — Gull conseguiu pôr-se de quatro, depois de joelhos e depois de pé, oscilando. — Pronto... para ir.
— Muito bem, Gull. Muito bem. Vê se consegues pôr o teu braço em redor dos meus ombros, tem cuidado com o bebê, isso. Eu ajudo-te. — Virei-me para o guarda. — Diz-me onde ele está. Por favor, diz-me. Queres que morramos todos, antes do pôr do Sol?
Mas o homem ficou silencioso, os olhos frios pousados nos esforços vacilantes, trêmulos, que Gull fazia para andar. O ar era espesso e fechado à nossa volta e cada respiração era uma luta. Johnny choramingou. Se fôssemos agora, ainda haveria alguma luz do dia. Se fôssemos agora, teríamos uma hipótese de estar longe antes do crepúsculo. Mas eu podia ficar ali à procura eternamente, seria tarde demais e, mesmo assim, não o encontrar. Mete o mestiço no escuro, onde ele pertence.
— É melhor voltar para trás — murmurou o guarda.
— Ainda não — disse eu. — Ficai quietos. Calados. Porque eu ouvi; um pequeno grito na escuridão, um sentimento de medo, um chamamento de força de vontade que estava para além de qualquer capacidade de resistência. Onde estás? Não sabia se era a minha imaginação que ouvia aquele grito, ou se estava mesmo a ouvir aquela criança perdida que me assombrava os pensamentos desde que começara a conhecer a verdade sobre o Homem Pintado.
A voz na minha mente sussurrou na escuridão. Estou aqui. Estende a mão.
Silêncio. Um silêncio desesperado, arrepiante.
Estende a tua mão para mim, Johnny. Eu ajudo-te. Mostra-me onde estás. Não era com o meu filho que falava, o meu filho abençoadamente silencioso, quente e seguro, preso a mim. Gull estava pendurado no meu ombro e eu senti o esforço que ele fazia para se manter de pé, para acalmar a respiração, de maneira que eu pudesse ouvir. Onde estás? Dá-me a tua mão. Estende-a um pouco mais.
Não ouvi um único som. Nem no mundo exterior, nem no reino sombrio da mente.
Mas eu soube. Subitamente, soube. Atravessei a porta engradada com Gull tropeçando a meu lado e o guarda logo a seguir, com a lanterna e uma expressão muito séria no rosto. A meio da sombria passagem subterrânea, parei.
— Guardas. Pegai neste homem e levai-o. E não o magoeis. Ele já sofreu o suficiente. Levai-nos lá para fora.
— Suficiente? Nada é suficiente para tipos como ele — grunhiu o segundo guarda e eles foram tudo menos cuidadosos quando levantaram o corpo desamparado de Bran e o levaram pelos degraus acima. Eu segui-os, amparando Gull e segurando na lanterna e, por fim, emergimos de novo na passagem subterrânea, onde os archotes ardiam, brilhantes, tão brilhantes que me feriram os olhos e Gull escondeu o rosto com uma mão ferida, enquanto alguns homens silenciosos nos observavam.
— As nossas ordens são para vos levar até à saída, mais nada.
— Então, é melhor despachardes-vos — disse-lhes eu.
O corpo de Bran estava mole como um saco de grão, suspenso entre o guarda que o segurava pelos ombros e o que o segurava pelas pernas. A cabeça ia descaída para um lado. Os ferimentos eram mais que muitos; nenhuma parte do corpo parecia ilesa.
O que lhe restava das roupas estava cheio de sangue e porcaria. Divertido com as luzes e as vozes, Johnny pairava alegremente.
— Vamos — disse eu para Gull. — Por aqui. Tu sabes o caminho. Depois, ficamos por nossa conta.
— Conta — ecoou ele e eu tentei perceber se ele tinha percebido alguma coisa, com a febre e a agonia das mãos torturadas. Perdera dedos em ambas; quantos restavam, as ligaduras não o deixavam ver. — Atravessar — disse ele. — O outro lado.
Enquanto prosseguíamos aos tropeções pela passagem subterrânea, passávamos pelos cães sempre a rosnar e éramos conduzidos em volta do monte por um carreiro estreito não longe da água, tentei considerar as possibilidades. Se Bran voltasse a si e pudesse andar... Se Gull conseguisse encontrar o caminho e se a febre não lhe dificultasse o raciocínio... se Johnny se mantivesse quieto e calado e não nos distraísse... se a ajuda chegasse antes de escurecer; então talvez sobrevivêssemos, em vez de sermos abatidos como foragidos da justiça. Se... eram muitos ses. Ocorreu-me, quando paramos no lado norte do monte, com o Sol já baixo no horizonte e a luz do dia a enfraquecer, que aquilo era a realidade da vida de Bran e de Gull; que as suas existências eram feitas de movimentos como aqueles, quando as probabilidades pareciam impossíveis e tinham de ser os melhores, encontrar soluções para os problemas mais difíceis e descobrir dentro de si próprios uma força quase do Outro Mundo, de maneira a poderem, simplesmente, sobreviver.
— Tendes a certeza? — Tinham depositado Bran com pouca cerimônia a meus pés, o grande guarda dera um passo atrás e falara calmamente. Lá em cima, na muralha da fortaleza, havia um aglomerado de homens, observando. — Ainda não é tarde. Deixai estas coisas imundas e ide para casa com o vosso bebê.
— É melhor ires. — Ajoelhei e pousei a cabeça de Bran no regaço. — Lorde Eamonn vai querer, certamente, ouvir o teu relatório.
— Pelo menos, salvai a criança. Não sobrevivereis à travessia. Este mestiço está praticamente morto e o outro nem consegue andar a direito. Se tentardes atravessar, morrereis. Deixai o rapaz. Há pessoas aqui que podem tomar conta dele e mandá-lo, depois, para casa.
Algo brilhou, subitamente, na minha memória: a voz do meu tio Finbar, há muito tempo, dizendo-me: A criança é tua. E também queres o homem... já te ocorreu que talvez não possas ter os dois?
— Nós vamos juntos — disse eu quase para mim própria, a minha mão acariciando gentilmente a cabeça de Bran, onde o cabelo novo suavizava as tatuagens ferozes em forma de corvo. — Todos juntos.
O guarda não disse mais nada; e em breve os homens de Eamonn retiravam-se para dentro das muralhas da fortaleza, com exceção dos dois homens com os cães, que continuavam a patrulhar ali perto. Fôramos deixados na margem da lama escura, movediça; Bran estava estatelado em cima das pedras, sem forças. Eu estava sentada ao lado dele com o meu filho sempre às costas e Gull de pé, olhando através dos pântanos para os distantes montes, a norte. Oscilava ligeiramente.
— Snake — murmurou ele. — Otter. Outros. Outro lado.
— Achas que eles estarão lá, se conseguirmos atravessar?
— Outros. Atravessar. — Vacilou num pé, depois noutro e, subitamente, sentou-se.
— Cabeça. Desculpa. Mãos.
— Eu tratava delas, se pudesse. Quando chegarmos... quando chegarmos a um local seguro, hei de aliviar-te a dor e dar-te um chá que faça descer a febre. Mandei pedir ajuda; mas não tenho a certeza de que essa ajuda venha, Gull. Compreendes?
— Compreendo — ecoou ele debilmente.
— Só temos até ao anoitecer para atravessar. Assim que o Sol se puser, os arqueiros de Eamonn começarão a atirar e virão cá abaixo com archotes. Só temos um caminho a seguir. Se Bran... se o Chefe não voltar a si, não sei o que faremos.
Naquele momento, Johnny resolveu dar a conhecer a sua presença e não tive outra solução senão tirá-lo do dorso, abrir o vestido e amamentá-lo. Pareceu-me que Gull não estava completamente aturdido pela febre, porque se mexeu com rapidez suficiente para segurar na cabeça e nos ombros de Bran com os joelhos, enquanto eu tratava da criança. E finalmente, com Johnny a mamar e a luz diminuindo progressivamente, ganhando a tonalidade delicada das flores frescas da alfazema e sem qualquer som, com exceção dos gritos ásperos das garças no meio do pântano; com Bran deitado muito quieto e distante, como um guerreiro esculpido numa tumba, descobri que não conseguia agüentar mais as lágrimas. Que fizera eu? Como pude imaginar que era capaz de ignorar os avisos das Criaturas Encantadas?
Acreditara, de algum modo, que era capaz de salvar aqueles homens, conseguir-lhes um futuro, assim como para mim. Agora, parecia que íamos morrer todos e Johnny conosco. Podia tê-lo protegido, não fora o meu orgulho miserável.
— Morrer — disse Gull tristemente. — Pancada na cabeça. Não acorda. Se pudesse, pedia uma faca.
— Mas não pode — disse eu asperamente, já esquecida das lágrimas. — A decisão não lhe pertence. Ele não pode morrer. Não lho permito.
A sombra de uma pequena risada.
— Quebrastes o código, ambos. Espera até eu dizer a Snake... — As suas palavras foram abafadas por um arquejo de dor.
— Gull. Vamos ter de tentar.
— Compreendo. Andar. Carregar. Ainda tenho forças.
— Não duvido. E tu sabes o caminho, porque guiaste a minha irmã. Mas estás ferido, exausto e ele não te pode ajudar.
— Forças. Carregar.
— Nesse caso, temos de ir já, assim que a criança acabar de comer. A noite aproxima-se e parece que a ajuda não vai chegar a tempo.
Gull emitiu uma espécie de grunhido e rolou o corpo de Bran para um lado.
— Pronto — disse ele. — Tu ajudas. As mãos não estão boas.
Por agora. Porque, na verdade, não era possível pegar no braço de um homem, ou numa prega do seu vestuário, e pô-lo às costas com as mãos no estado em que estavam as de Gull. O menor toque fazia-o estremecer de dor.
Passo a passo. Era a única maneira. Por pequenas etapas e sem pensar, porque isso faria com que os nossos corações falhassem e os últimos vestígios de coragem morressem. Colocar, de novo, Johnny às costas e apertá-lo o mais possível. Por agora, estava calado. Depois, inclinar-me para erguer os ombros de Bran do solo, tentar ajudar Gull a colocar-se por baixo e erguer aquele corpo desamparado. As mãos de Gull eram completamente inúteis. Ele podia segurá-lo com um braço, rodeando-o e impelindo os joelhos com força, mas não podia agarrar, ou segurar.
Mordi as palavras. Como é que o vais carregar? E se ele escorrega? Deixa-mo-lo cair três vezes, antes de, com muito esforço, Gull conseguir pôr-se de joelhos e depois, precariamente, de pé, com o amigo equilibrado em cima dos ombros, a cabeça para o lado esquerdo, as pernas para o direito e os braços oscilando. Gull mantinha os braços erguidos, sustentando o corpo, cruzados, as mãos laceradas apontando, rígidas, para o céu, envoltas nos trapos ensangüentados. Das ameias por cima de nós veio uma série de aplausos trocistas.
— Bem — disse eu encorajadoramente. — Muito bem, mesmo, Gull. Vamos embora.
Os pássaros cantavam, naquele ermo, empoleirados, aos bandos, num canto qualquer daquela inóspita terra a que chamavam casa. O Sol, a pôr-se, tornava a água das poças vermelha como sangue.
— Embora — disse Gull e depois de olharmos um para o outro olhamos para o outro lado.
Eu vi a verdade nos seus olhos, brilhantes de febre. Por aquele lado era a morte.
— Havemos de beber uma bebida bem forte quando chegarmos ao outro lado — disse eu. As minhas palavras eram confiantes; o tremor da minha voz é que me traía.
Então, Gull deu o primeiro passo na superfície lamacenta, com muito cuidado, os pés nus movendo-se de um tufo de erva para o seguinte, para a direita, depois para a direita de novo, depois para a esquerda. E eu seguia-lhe na pegada, as saias metidas no cinto, a criança misericordiosamente silenciosa. Sentia um suor frio pelo corpo todo; ouvia o rápido e estranho som da minha respiração, sentia o ruído surdo do meu coração. Um passo; outro. Avançávamos lentamente, tão lentamente que não me atrevia a olhar para trás, para calcular a distância a que um arqueiro poderia atirar com precisão, com o alvo iluminado pelos archotes. E então chegamos a um lugar em que os tufos de vegetação estavam mais afastados uns dos outros, um passo para um homem, ou para uma mulher de pernas altas, como a minha irmã Niamh. Para mim, um salto. Hesitei, enquanto Gull continuava. Não podia dizer: Espera, não fosse assustá-lo e ele dar um passo em falso. Depressa, Liadan, disse para mim própria. Ou perde-lo de vista e então... Saltei, aterrando de modo esquisito, a minha bota escorregando na folhagem molhada. Afastei os braços para me equilibrar e, balouçando, recuperei o equilíbrio. À minha volta, na escuridão castanha da lama do pântano, ouvia pequenos sons de sucção, sons esfomeados. O progresso de Gull era constante, se bem que demasiado lento. Um passo; pausa; outro passo. Ele ia dobrado sob o peso morto do corpo de Bran; devia ser difícil, para ele, ver o caminho.
— Liadan? — A sua voz chegou até mim, estranhamente separada dele, naquele vazio.
— Estou aqui.
— Quase noite.
— Eu sei. — Mais tarde, se as nuvens recuassem, haveria um pouco de luz. Mas a Lua estava a diminuir, estaria demasiado pequena e nasceria muito tarde. — Temos de continuar o melhor que pudermos.
Ele não respondeu, limitando-se a continuar e eu pude ver os seus pés nus balançando na superfície imprevisível, os dedos encaracolando-se, o pé ajustando-se ao peso do corpo. Pude ver como, apesar das mãos inúteis, continuava a conseguir controlar o fardo que carregava, inclinando-se para a direita e para a esquerda, para a frente ou mais para a direita, para manter uma posição segura. Depois de escurecer por completo, deixaria de poder descobrir o caminho. Então, deixaria de ter importância a sua força, ou habilidade.
À medida que a luz ia desaparecendo, comecei a sentir pequenas picadas nas mãos, nos tornozelos, no rosto e no pescoço. E havia um pequeno som, agudo e monótono, que ia e vinha. Ondas de mosquitos emergiam da terra pantanosa, contentes, sem dúvida, por descobrirem uma refeição abundante e suculenta. Johnny começou subitamente a chorar, um agudo lamento de angústia. Não podia fazer nada para o ajudar e a sua pequena voz, em pânico, soou, sem qualquer resposta, sobre o pântano. E, à distância, pareceu-me ouvir um outro grito; profundo, que não era deste mundo, qualquer coisa entre um grito e uma canção. Talvez aquela voz predissesse mais uma morte, como um jovem guerreiro me disse, um dia. Disse a mim própria para não ser tola. Mas o som continuava, tocando na minha cabeça, vibrando no ar doentio do pântano, profundo, à luz púrpura do crepúsculo, à minha volta. O lamento das fadas. Johnny começou a gritar de protesto. Era a primeira vez, na sua curta vida, que chorava a sério e ninguém vinha em seu auxílio para o ajudar no que quer que fosse; roupas secas, uns braços acolhedores, umas palavras carinhosas, uma loção de absinto e camomila para afastar os pequenos insetos zumbidores que o picavam, picavam sempre, sem parar.
— Pronto, Johnny — murmurei, enquanto procurava equilibrar-me sobre um pedaço ridículo de terra seca. Certamente que Gull não estava à espera que eu saltasse dali para além? Era muito longe; não era justo. Eu não podia saltar aquilo com a criança às costas. Se, ao menos, Johnny deixasse de chorar; se ele parasse... Olhei com atenção para a frente, à luz cada vez mais fraca. No outro lado daquela vasta extensão de lama negra, Gull parara de andar. Estava muito quieto e pressenti que tinha os olhos fechados. Estava a dizer qualquer coisa, mas eu não lhe conseguia ouvir as palavras. Era demasiado longe. Aterraria na lama a meio caminho, o pântano engolir-me-ia juntamente com o meu filho e estaria tudo terminado. A minha garganta estava seca, o meu corpo encharcado de suor. A minha cabeça latejava. Não consigo... não consigo... Então, Gull falou de novo e eu ouvi-o.
— Liadan? Ainda aí?
— Estou aqui. Mas acho que não consigo...
— Preciso ajuda. Mãos. Não consigo segurar.
Dana me dê forças. Ele não podia deixá-lo cair, não podia. Certamente que não tínhamos chegado tão longe para nada.
— Estou a chegar — disse eu e saltei, forçando o meu corpo a atravessar aquele espaço impossível. Aterrei ligeiramente antes da ilhota seca onde Gull estava, os meus pés afundando-se na lama mole, o meu corpo estatelando-se para a frente, no solo coberto de erva. Agarrei-me desesperadamente à folhagem, enquanto sentia as garras vorazes da lama em redor das pernas, puxando-me. Johnny soluçava, contando-me a sua pequena história angustiada, como o mundo ficara subitamente diferente e como queria que eu o tornasse melhor, agora, já, por favor. O meu rosto contraiu-se de esforço quando as minhas mãos agarraram e despedaçaram as folhas molhadas e então, com um som decididamente desagradável, a lama possessiva largou-me.
Esbracejei, afastei-me da margem e pus-me de pé diante de Gull. A luz quase desaparecera; mal via o rosto que estava à minha frente.
— Levanta as mãos — sussurrou ele e a sua voz traía a dor que eu já não lhe podia ver nas feições, na escuridão. — Segura-o por mim. Só um bocado. Descanso. Mãos.
Coloquei-me por trás dele e estendi os braços para cima, encostando as mãos ao corpo morto de Bran. Então, Gull tentou desenganchar os braços da situação em que estavam, segurando o amigo sobre os ombros, mas as cãibras eram tantas que ele mal podia movê-los. Estoicamente, abafou um grito de dor, enquanto baixava lentamente as mãos ligadas. Quando estávamos ali os três, imóveis, Johnny pareceu querer dar voz ao sofrimento do negro e a sua voz subiu de tom, insistente.
Gull cambaleou para o lado, mas conseguiu equilibrar-se. Tudo o que eu podia fazer era evitar que Bran caísse do sítio onde se mantinha equilibrado; nunca mais o conseguiríamos levantar de novo, porque um erro naquele pequeno pedaço de terra firme atiraria com ele para a lama movediça.
— Não podemos continuar, pois não? — perguntei a Gull, rudemente.
— Continuar. — Ele tentou flectir os dedos e suspendeu a respiração. Dobrou os cotovelos experimentalmente, com um gemido. — Continuar... tem de ser. Não há escolha.
— Não conseguimos ver o caminho. E não podes carregá-lo eternamente.
— Não podemos ficar. Homens. Archotes. Vamos... outro lado. — Mas estava escuro e não podíamos continuar.
— Talvez fosse melhor pousá-lo. — Senti o coração gelar-me, mas forcei-me, a mim própria, a dizê-lo, se bem que fosse o mesmo que dizer que falháramos. Continuar não valia a pena. Se Gull entrasse em colapso, que era o mais provável, os dois homens morreriam. E isso seria o fim para Johnny e para mim. Sem Gull para nos guiar, não podíamos avançar ou recuar.
— Não posso pousar. Nunca... para cima outra vez.
— Está bem. Deixa-me pensar. Talvez haja uma resposta.
— Homens... archotes — repetiu Gull com uma voz quase inaudível.
— Eles não vêm atrás de nós no escuro. — Eamonn dissera: Acenderemos archotes e dispararemos. Não falara em vir atrás de nós. — Vêm?
— Escuta — disse Gull. E então, por entre os soluços de Johnny, por entre o som estranho e gorgolejante do pântano, do estridente coaxar das rãs e do zumbido permanente dos mosquitos, ouvi vozes de homens, distantes, mas aproximando-se. Perscrutando a escuridão, pensei ver luzes, movendo-se lentamente na nossa direção sobre a superfície escura como tinta.
— Pousa-o — disse eu pesadamente — porque não podemos continuar. — Pelo menos, se morrêssemos, seria com os braços em redor de ambos, de Johnny e do pai e junto do meu melhor amigo. Lá estava ele de novo, um estranho contraponto aos pequenos sons da noite: um lamento distante, melancólico, que gelava o espírito.
— Força — sussurrou Gull. — Força. De pé. Carregar — E levantou os braços de novo, esticando-os para suportar, de novo, o corpo do outro homem. Nas minhas costas, Johnny ficou, subitamente, silencioso
— Desculpa — disse eu, sufocada. — É claro que não desisto. Como pude pensar semelhante coisa? A nossa missão ainda só vai em metade.
Então, de repente, ouvi outro som, um grito áspero e desta vez vinha do outro lado, à nossa frente. Uma espécie de grasnido rouco. A voz de um corvo. O meu coração teve um sobressalto.
— Talvez a ajuda esteja a chegar — disse eu com os lábios secos. — Talvez a ajuda esteja a chegar, finalmente.
Agora podíamos ver, a norte, através do pântano, uma pequena luz a dançar, uma chama oscilante que parecia voar rapidamente na nossa direção e chamando pela voz de Fiacha à medida que se aproximava. Cada vez mais perto, por cima da superfície negra, aquela aparição movia-se e à medida que se aproximava eu ouvia um restolhar e um chiar, como se o próprio pântano se afastasse para ela passar. Gull permanecia a meu lado, mudo. Quanto a Johnny, estava silencioso, mas os seus punhos apertavam-me os cabelos com força. Aquelas pequenas mãos estavam a dizer-me que houvera, até ali, demasiados saltos e solavancos e que era melhor que não se repetissem.
Gull exclamou suavemente numa língua estrangeira e eu orei em voz baixa. Dana, mãe da terra, protege-nos. Porque, enquanto olhávamos, vimos que a luz provinha de um archote com a forma de um corvo a voar, mas não tanto um pássaro, antes um fogo do Outro Mundo, parecido com um pássaro. E à medida que aquela luz voava sobre o pântano, estranhas plantas erguiam-se da lama, com ramos longos e hastes fortes, enleando-se uns nos outros para formar uma passagem estreita sobre a superfície; uma passagem que se estendia à nossa frente, na direção norte, a direito na direção dos montes baixos e da segurança. A luz, que poderia ser, ou não, Fiacha, pairava por cima, mostrando-nos o caminho. Tossi para aclarar a voz.
— Ainda bem que não o pousaste — disse eu. — Vamos.
— Vamos — disse Gull e deu o primeiro passo naquela folhagem delicada enleada, que mal tinha dois palmos de largura. Eu segui-o e Johnny emitiu um som de protesto.
Comecei a cantar para ele, gentilmente, de maneira a não distrair Gull, que necessitava de continuar a andar com grande precaução, porque a distância ainda era grande e o caminho, estreito. Cantei-lhe uma velha canção de embalar, uma canção tão antiga que ninguém sabia o que as palavras queriam dizer. Aquela linguagem devia ser conhecida algures: talvez entre aquelas pedras antigas com as suas marcas críticas, que nos observaram em silêncio, enquanto Bran e eu gerávamos o nosso filho, à chuva. Talvez nos corações dos velhos carvalhos, que cresciam nas profundezas secretas da floresta de Sevenwaters. Cantei, Johnny calou-se e continuamos a caminhar firmemente para norte. A luz voava de um lado para o outro, por vezes atrás de nós, por vezes à frente, mantendo-se sempre por perto. Era mesmo Fiacha. Uma vez olhei para trás, porque as vozes dos homens de Eamonn continuavam a ouvir-se algures, na escuridão. E vi que no local por onde acabávamos de passar, aquele carreiro estreito, de plantas retorcidas, já não existia, substituído por uma linha de bolhas na superfície da lama. E com o tempo as vozes atrás de nós desvaneceram-se, as luzes desapareceram e ficamos sós na noite com o nosso estranho guia.
A ajuda chegara, como me haviam dito que chegaria, quando estivéssemos desesperados, quando as nossas forças estivessem esgotadas e já não tivéssemos soluções. Eu estava completamente exausta e a cabeça latejava-me, mas agora já conseguia que a minha mente trabalhasse e pensasse no que faríamos quando atingíssemos terreno seco.
Gull dissera que Bran já estava demasiado longe para acordar. Dissera que o Chefe teria pedido uma faca, se pudesse. Se lha ia recusar, tinha que ter uma boa razão para o fazer. Fizera-o de modo errado com Evan e prolongara-lhe o sofrimento. Desta vez, se dissera que o podia curar, tinha de o fazer. Tinha de o trazer de volta.
— Outro lado — disse Gull à minha frente. A bola de luz, grasnando e batendo as asas, estava na frente dele e a sua silhueta aparecia, recortada; dobrado para a frente, as pobres mãos inúteis apontadas para o alto e o homem inconsciente firmemente pousado nos seus ombros, seguro pelos braços levantados. Aqueles homens tinham uma tal força, uma tal resistência, que não admirava que as pessoas normais acreditassem que eles eram mais do que simples mortais. Partilhavam laços de irmandade e lealdade, que significavam que a vida de cada um era de pouca conseqüência quando um camarada estava em dificuldades. E faziam-no por instinto, sem se aperceberem.
— É verdade — repliquei. — Temos de continuar até chegarmos ao outro lado. E esperar que tenhamos ajuda quando lá chegarmos, porque os homens de Eamonn podem vir pela estrada.
— Não — disse Gull. — Outro lado. Olha.
Espantada, olhei para cima e para a frente e senti os lábios arreganharem-se num sorriso e os olhos cheios de lágrimas. Uns meros dez passos à nossa frente vimos um talude, no topo uma linha de arbustos enfezados e uma pessoa à nossa espera, com uma lanterna. Chegáramos ao outro lado, os quatro. Conseguíramos.
CAPÍTULO QUINZE
Foi difícil, por fim, manter o andamento cuidadoso ao longo da estreita e misteriosa passagem; foi difícil não ceder à súbita exaltação que nos percorria o corpo e o espírito e correr, rindo de alegria. Gull continuou a caminhar, calculando cada passo com precisão e eu segui-o, um passo depois do outro, porque os nossos fardos eram preciosos e não podíamos pousá-los até termos a certeza, a certeza absoluta, de que era seguro.
A silhueta com a lanterna continuava imóvel. Um homem alto, com um manto escuro e a cabeça encapuçada. Depois do que Gull dissera, esperara que alguns deles estivessem ali por perto: Otter, ou Snake, ou Spider, com sorte, alguns deles, e com cavalos. Percorremos o último pedaço de pântano e eu ouvi a passagem, feita de ramos entrançados, desaparecer sob a lama, à medida que avançávamos. Nunca mais seria utilizada. E por fim vi Gull pisar solo seco, dar alguns passos e dobrar o dorso, para deixar cair Bran no solo; eu caminhei atrás dele até ficar a seu lado e olhei para cima.
Fiacha voou, uma brilhante bola de chamas, descendo sobre os ombros da figura alta e encapuçada e no momento em que pousou a luz desapareceu, transformando-se, de novo, num vulgar corvo, se os corvos podem ser considerados vulgares.
— Bem — disse Ciarán gravemente. — Tu estás aqui e ele ainda vive. Foi um ato muito corajoso. — Ele olhou para Gull e de novo para mim. — Tens ajuda, aqui perto.
— Ob... obrigada — gaguejei, os meus dedos tocando na testa de Bran, sentindo como estava frio, pressentindo quão pouco tempo lhe restava. — Portanto, Fiacha encontrou-te. Não esperava que viesses em pessoa. Devemos-te as nossas vidas, nós os quatro.
— A Fiacha. É mais apropriado.
— Por que nos ajudaste? — perguntei-lhe. Por que fizeste isto? Não vai contra o que ela... a tua mãe quereria?
Ele olhou para mim com um olhar algo parecido com o do meu tio Conor.
— Nós temos uma dívida para contigo, Niamh e eu. Ficou parcialmente paga, pelo menos. Quanto à ave, eu sou o seu guardião; mas ela faz a suas próprias escolhas.
— Não me respondeste.
— Vamos buscar ajuda. Esse homem está quase a morrer. Tens que o tirar daqui, antes que seja tarde. — Deu um assobio curto e penetrante e Fiacha respondeu com um grasnido. — Tens que te despachar, se o queres salvar.
— Eu sei. Como é que fizeste isto? Como é que...? — Fiz um gesto na direção do pântano, onde não havia qualquer vestígio da passagem.
— As capacidades de um druida residem na manipulação do que já existe — disse Ciarán. — O vento, a chuva, a terra, o fogo. Residem na compreensão da fronteira entre este e o Outro Mundo; residem na sabedoria de saber fazer crescer as coisas. O que eu fiz esta noite não é grande coisa. Truques que aprendi no bosque sagrado, mais nada. Não houve grande magia, aqui. Mas eu já não sou um druida; e Conor há de perceber, um dia, que os seus ensinamentos foram apenas o princípio, para mim. Há de descobrir, com o tempo, aquilo de que sou capaz.
— Tu és irmão dele — murmurei.
— Se ele me tivesse dito isso, quando começou a ensinar-me, talvez as coisas tivessem sido diferentes. Agora, não quer dizer nada.
— Estás a dizer-me que vais seguir as pisadas de Lady Oonagh? Viras-te para o mal, só pelo seu poder? No entanto, guardas Niamh como um tesouro; salvaste-me e... e também salvaste o meu filho.
As suas feições severas suavizaram-se com um leve sorriso. No alto do talude ouviram-se vozes de homens e viu-se o clarão de um archote.
— A minha mãe acha que eu sou um bom instrumento para os seus propósitos — disse ele em voz baixa. — E ainda tem muito para me ensinar. O próprio Conor instilou em mim a sede do saber. Além disso, o que é isto senão um grande jogo de estratégia? Mas agora os teus homens chegaram e eu tenho de me ir embora. Niamh não pode ficar muito tempo sozinha.
Senti um nó na garganta. Ele era a minha última ligação com a minha irmã e eu senti naquelas palavras um longo adeus.
— Desejo-te o melhor — disse eu. — Todas as alegrias do mundo. E... e que não escolhas o caminho das trevas.
— A minha missão é guardar a tua irmã, antes de tudo.
— Diz a Niamh que a guardo no meu coração — disse eu suavemente, pouco segura de que ele lhe diria, até, que estivera ali, ou que me vira e ao meu filho.
A voz de Ciarán era muito séria. Achei que falava quase contra a sua própria opinião.
— Hesito em dizê-lo — disse ele — mas se queres salvar o teu filho, acho que deves levá-lo para longe. Para muito longe. Há gente que dará tudo para que ele não se transforme num homem, num líder. Mas, parece que não te faltam protetores.
Enquanto falávamos, apareceu dos arbustos um grupo de homens; homens com exóticas e estranhas tatuagens nos rostos, nos membros e nos corpos, homens vestidos de peles de lobo, penas e metal, com elmos que os faziam parecer criaturas do Outro Mundo, meio humanas, meio animais. Senti uma careta de alívio espalhar-me pelo rosto, ali sentada com a cabeça de Bran no regaço e Gull estendido a meu lado, no chão. E quando olhei de novo na direção de Ciarán, ele tinha desaparecido.
— Doce Jesus! — Era Snake, o da pele de lobo e tatuagens nos pulsos e na testa. — Que lhe aconteceu? — Ajoelhou-se junto de Bran, os seus dedos estendendo-se para tocar na crosta da ferida. — Golpe profundo; já tem muitos dias. Sabes muito bem o que ele diria.
Ouviu-se um murmúrio entre os homens em círculo, na escuridão.
— Pergunta-lhe — disse Gull em voz muito fraca. — Pergunta a Liadan.
Snake virou o olhar feroz, brilhante, na minha direção.
— Achas que podes salvá-lo? — perguntou. Os homens estavam silenciosos.
Agora que estava sentada, sentia-me extremamente fraca e terrivelmente cansada. A voz de Snake parecia vir de muito longe e a minha pareceu-me estranha.
— É claro que posso — disse eu, com um tom de certeza fingido. — Mas temos de nos apressar. Temos de o pôr a salvo, primeiro. Longe das mãos de Eamonn. Quero ir para aquele lugar onde estivemos acampados, a primeira vez. Sabes o que quero dizer. O lugar das pedras eretas. Onde há um subterrâneo.
Snake acenou com a cabeça.
— Ainda é longe — disse ele.
— Eu sei. Mas temos de ir para lá. E Gull também precisa de ajuda. Tem as mãos muito feridas. E...
Johnny começou outra vez a chorar, suavemente desta vez, como que a dizer: Por que é que ninguém me ouve? Estou cansado, molhado e faminto e já não é a primeira vez que o digo.
Ouviu-se outro murmúrio de vozes e alguém deixou sair um pequeno assobio.
— Uma criança! — exclamou Snake, em voz baixa. — É tua? Atravessaste aquilo com uma criança às costas?
— É o meu filho. — Outro assobio.
— Onde é que está o pai dele, então? — perguntou alguém ousadamente na parte de trás do grupo.
— Não tens nada com isso — disse uma voz cortante e eu reconheci-a como pertencendo a Spider.
— Este é o pai dele — disse-lhes, achando que era melhor saberem já a verdade, para evitar complicações. — E que é capaz de morrer, se não lhe acudirmos já. Temos pouco tempo. É melhor pordes o Chefe às costas de um dos vossos homens mais fortes, para que não balance muito. Há um cavalo para mim?
Por um momento, nenhum deles se mexeu. Tinha-os espantado. Então, Snake começou a dar ordens. Spider, com os seus dedos longos, aproximou-se para tocar na pequena cabeça do bebê e ofereceu-se para o levar.
— Obrigada — disse eu mas ele está habituado a mim, está cansado e assustado. — Talvez mais tarde.
Pensei que ainda tinhas forças suficientes para poder montar. Mas quando os dois homens se aproximaram para erguer Bran, com muito cuidado e Otter estendeu a mão para me ajudar a pôr-me de pé, os meus joelhos cederam, a minha cabeça começou a andar à roda e centenas de estrelas começaram a dançar diante dos meus olhos. Então, seguiu-se uma pequena discussão quanto a quem me levaria, juntamente com o bebê, até que Snake, que parecia ser o que comandava, denominou Spider e este, sorrindo, ergueu-nos para cima do seu grande cavalo, montando logo a seguir e segurando-nos.
Foi uma jornada longa e cansativa. Paramos duas vezes em locais escondidos, por trás de rochas e depois de um algum descanso, comida e montes de atenção, Johnny acalmou-se, como se a nossa perigosa aventura não passasse de uma ligeira variação da sua rotina diária. É um digno filho do pai, pensei com alguma amargura e recordei a história de Cu Chulainn e Conlai. Caber-me-ia, a mim, assegurar que a nossa história não seguiria esse padrão.
Bran cavalgava atrás de Otter, atado às suas costas, como fizéramos, antes, com Evan, o ferreiro. Quando parávamos, dizia-lhes que o encostassem a um tronco de árvore, que enchessem uma taça de água e que tentassem fazer com que ele bebesse alguma. Tinha vontade de chorar ao vê-lo assim, desamparado. Sabia muito bem o que ele diria, se pudesse ver a si próprio. Este homem já não tem utilidade, diria.
Observei o olhar feroz de Snake, enquanto afastava cuidadosamente o sangue coagulado da profunda ferida na cabeça e o duro Otter a passar um pano molhado em volta dos membros afastados do Chefe e dirigi uma prece silenciosa a Díancécht, a grande curandeira dos Tuátha Dê Danann. Dá-me forças para levar a cabo esta tarefa. Dá-me a habilidade. Eu não o posso perder. Não vou perdê-lo.
Gull não podia montar. Ia atrás de um grande e silencioso homem a quem chamavam Wolf num grande e silencioso cavalo negro. Quando fazíamos uma pausa, para descansar, examinava-lhe as mãos. Não podia fazer grande coisa sem o meu saco, as minhas ervas, os meus ungüentos e os meus instrumentos, sem ligaduras limpas e tempo. Mas informei Snake, em voz baixa, do que necessitaria quando chegássemos ao nosso destino e ele replicou que havia de encontrar tudo o que eu precisasse, de uma maneira ou de outra. Achei melhor não perguntar o que queria aquilo dizer.
Gull perdera três dedos de uma mão e dois da outra. As feridas estavam cauterizadas e limpas; mas o meu coração gelava quando pensava que aquilo fora obra de Eamonn, do homem com quem quase me casara. Não interessava se fora ele a dar o golpe, ou outro qualquer. Fora a mente dele que concebera aquele castigo cruel.
— Bárbaro — murmurei enquanto envolvia, com uma tira de pano tirada da minha camisa, a mão de Gull. Um ato de vingança insana. Na minha mente ouvi a voz de Eamonn, fria como o Inverno: Não gostas daquilo em que me tornei? A culpa é só tua. Senti um arrepio percorrer-me o corpo todo.
— Estou a lembrar-me do ferreiro — disse Gull. — Quando o Chefe lhe cortou o braço e tu lhe fechaste a ferida com o ferro em brasa. Quase desmaiei. Agora, é a mesma coisa.
— Tu sofreste muito por ele.
— E tu? Tu és uma mulher excepcional, Liadan. Não admira que ele tenha quebrado o código por tua causa.
— Ele deve ter quebrado essa regra antes. Não acredito que um homem da idade dele nunca o tenha feito — observei, apertando as pontas da ligadura.
— Conheço-o praticamente desde miúdo. Nunca o vi ir com uma mulher. Nem uma única vez. Autocontrole. Muito importante, para ele. Talvez demasiado importante. Contigo foi diferente. Tu fizeste-lhe frente. Quando ele te viu pela primeira vez, passou a ser apenas uma questão de tempo.
Não repliquei, mas fiquei a pensar, com o coração aos pulos. Seria possível que aquela noite de encantamento também tivesse sido a primeira de Bran? Certamente que não. As coisas eram diferentes para os homens. Os homens não pensavam da mesma maneira que as mulheres e, além disso, um homem como ele não teria, seguramente, falta de oportunidades. Descobri que estava a corar e virei o rosto, para que Gull não visse.
— Liadan? — A sua voz era suave. — Nós estamos todos contigo, miúda. Não nos podemos dar ao luxo de perder o Chefe. Sem ele, não somos nada.
— Tu foste bem forte. — A minha voz traía o meu cansaço. — Sem ti, teria desistido.
— Sabes muito bem que não. — O seu tom mudara, subitamente. — Quero que me digas.
— Dizer-te o quê? — Mas eu sabia o que ele ia dizer.
— Quais são as minhas hipóteses? O que é que isto me vai fazer? Só sei lutar, sabes? Se não puder lutar, se não puder sair desta situação, estou acabado. Diz-me a verdade.
— Que te parece? Por que razão estavas com ele, já agora? Pensei que a missão dele era de um homem só.
— Sabias isso? Sim, ele partiu sozinho e não nos deu qualquer informação, o louco. Quase me pareceu que ele queria que Northwoods acabasse com ele. Mais tarde, soubemos que ele estava de regresso a Erin num pequeno barco governado por homens vestidos de verde. Pressentimos que aquilo não devia fazer parte do plano. Tentei ser um herói. Tentei salvá-lo. Ainda fui mais louco do que ele. Mas quase consegui. Eamonn é que foi muito esperto, atirou-nos um contra o outro. O resultado foi este. Mas agora, diz-me.
— Hás de ser capaz de disparar um arco com a mão esquerda. Vais ter de aprender. Hás de poder montar, se conseguires ir exercitando as mãos enquanto elas saram. Não hás de poder manejar uma espada, ou escalar paredes muito íngremes, ou usar as mãos para estrangular um homem. Mas hás de poder ensinar a outros a arte de combater. E podes aprender a ser um curandeiro. Eu própria te ensinarei. Este bando precisa de um.
— Pensei que talvez tu... — começou ele, mas depois ficou silencioso.
— Isso depende — disse eu. — Depende dele. Do que ele quiser. — Gull ficou calado por uns momentos, olhando para as mãos ligadas.
— Que dirá o Chefe? Como avaliará ele as minhas capacidades?
— Vai dizer que ainda és valioso, calculo. Especialmente depois de eu lhe dizer como me salvaste, a mim e ao meu filho. E como o carregaste às costas através do pântano.
Gull olhou para mim a direito.
— Foste tu que nos salvaste — disse ele suavemente. — Se não fosse a tua coragem, teríamos morrido nos calabouços de Eamonn. Tens a certeza? Tens a certeza de que consegues salvá-lo?
— Foste tu que não me deixaste perder a esperança — sussurrei.
Percorremos caminhos escondidos, tal como antes e se de vez em quando um homem ou dois se afastavam, para se juntarem mais tarde ao grupo com um pequeno saco, ou uma trouxa que não tinham antes, ninguém fazia perguntas. Era quase madrugada quando atingimos o local do grande túmulo e desmontamos sob as grandes faias que abrigavam a sua entrada baixa. Sfríder ajudou-me a desmontar.
Johnny percorrera a última parte da jornada às costas de um jovem a quem eles chamavam Rat, mas não parecera muito incomodado com isso, os olhos cinzentos fixos em todas as formas e cores, tentando tirar algum sentido de tudo aquilo.
— Muito bem — disse Snake enquanto os homens partiam em todas as direções, sem necessidade de ordens, tratando dos cavalos, montando guardas e fazendo uma fogueira. — Onde queres o Chefe? Lá dentro, para ficar abrigado?
— Não — disse eu, olhando para os rostos minúsculos e estranhos no lintel da antiga porta. — Lá dentro, não. Tu sabes como ele... é melhor usar o interior do túmulo para os teus homens, porque podem dormir lá dentro em segurança e secos. Será possível fazer um pequeno abrigo por baixo das árvores para nós, talvez no outro lado, perto da água? Seco e escondido, mas onde ele possa ver o céu quando acordar? Vou precisar de uma pequena fogueira e lanternas, mais tarde; e suponho que alguém de guarda. Vou precisar de um homem para me ajudar.
— Faremos turnos. — Estavam a desatar Bran, descendo-o gentilmente das costas de Otter, ao mesmo tempo que este flectia os membros e distendia o dorso, desmontando com a mesma precaução.
— Plantas — disse eu. — Preciso que alguém mas apanhe. Tenho de fazer um ungüento para a ferida na cabeça e um chá. Servirão, também, para Gull. Vou precisar de balsamina. E erva da graça, que ainda está em flor e que eu sei que cresce aqui. Se conseguirdes encontrar tomilho bravo e calaminta, esmago as folhas numa taça e coloco-a perto dele. Essas ervas ajudam a afastar a tristeza; temos de o fazer recordar as coisas boas, caso ele se recuse a regressar para nós.
Snake acenou com a cabeça. Deu ordens rápidas, os homens transferiram Bran para uma tábua e transportaram-no para o outro lado do túmulo. Os cavalos foram afastados e as provisões desempacotadas. Aparentemente, tudo ficou calmo e ordeiro, à medida que os homens se iam ocupando, nas suas tarefas. Ouvi a voz de Johnny, afastada, feita de palavras incompreensíveis e num tom confiante.
— Preciso de tratar do meu filho — disse eu, esperando que aquele que tomava conta dele soubesse o que os bebês podem, ou não comer e onde podem estar em segurança. — As mordidas de mosquitos... Pode-se lavar-lhe o rosto com erva de ficaria...
— Ele trata dele como deve ser — sorriu Snake. — Rat vem de uma família numerosa; será uma boa ama. Eu digo-lhe acerca da erva de ficaria. Vai e pede o que precisas para o Chefe. Depois, é melhor descansares e a criança contigo. Foi uma longa cavalgada, para uma rapariga.
— Foi. Parece-me que se passou uma vida, desde que deixei Sevenwaters. Devemos-te muito. Como soubeste quando ir e onde, Snake?
— Eu sabia onde estavam, ele e Gull. Nós vigiamos aquele local, Sídhe Dubh, vigiamo-lo constantemente, desde que Eamonn virou as costas a um amigo, há algum tempo. Ele tinha um aliado no norte, conhecido do Chefe, um homem que nos fazia alguns favores de vez em quando, dando-nos abrigo e passagem, quando mais ninguém o fazia. Esse tipo tinha um acordo sólido com Eamonn acerca de um pedaço de terra, ou pensava que tinha. Fora pago com bom gado e o acordo selado. Então, uma noite, os homens vestidos de verde foram até ao posto de vigília dele e queimaram-no, com os guardas lá dentro. Pior ainda, um deles tinha lá a família inteira, a mulher e as filhas pequenas, que o tinham ido visitar. Morreram todas queimadas. Quando o Chefe soube, disse que aquilo só demonstrava que os filhos saem aos pais, sempre. O velho Eamonn, pai deste, traiu os seus aliados, a favor dos Bretões.
— Eu sei.
— É claro que sabes. De qualquer maneira, o tal vizinho de Eamonn pediu-nos ajuda e nós respondemos à chamada. Ele recrutou-nos para o assustarmos. O Chefe não resistiu e introduziu um toque pessoal, uma mão decepada e outras coisas. Pertencentes a um homem morto há muito, compreendes? Eficiente, se bem que não muito bonito. À maneira do Chefe.
— Mas não pude deixar de dizer as histórias que contam de vós, do Chefe e do bando do Homem Pintado... atribuem-vos atos de crueldade semelhantes a esse. Como é que podes julgar Eamonn se tu fazes o mesmo?
Snake franziu o sobrolho.
— Nós somos profissionais — disse ele. — Não matamos mulheres e crianças. Não cometemos erros, queimando inocentes juntamente com o inimigo. Além disso, não deves acreditar nessas histórias. Se fôssemos responsáveis por tudo o que dizem, teríamos de estar em 50 sítios ao mesmo tempo. Pergunta a Rat que pensa ele de Eamonn Dubh. Foi a mãe dele e as irmãs que morreram naquele incêndio.
Olhei para o local onde a fogueira enviava uma coluna de fogo para o ar da manhã, um pouco abaixo. Rat estava sentado com Johnny nos joelhos, as mãos ocupadas num jogo qualquer, que fazia com que o meu filho desse saltos de contentamento. A pele pálida da criança tinha marcas cor-de-rosa, sinal das picadelas dos mosquitos; o jogo de Rat evitava que as pequenas mãos coçassem aquelas marcas, piorando a comichão. Percebi por que razão aquele jovem recebera a alcunha. Os seus olhos eram muito juntos por cima de um longo nariz e os dentes eram salientes, numa boca larga e sorridente.
— É bom rapaz, o Rat — disse Snake. — Aprende com rapidez, apesar do aspecto. Agora, vai ter com o Chefe e deixa o pequeno Johnny conosco durante um bocado. Chamamos-te quando o pequeno-almoço estiver pronto.
— Não respondeste à pergunta. Como é que soubeste?
— Recebi uma mensagem. Um tipo de cabelos vermelhos: com um olhar muito estranho. Nós já estávamos perto, sabendo que eles estavam lá, mas não sabíamos como salvá-los, porque Eamonn tinha reforçado as defesas. Esse tipo disse-nos para irmos até à beira do carreiro e esperar por um sinal. Pouco tempo depois, aparecestes vós. Como que por magia.
— É verdade — concordei e forcei o meu corpo cansado a mover-se, deslocando-me até ao outro lado do túmulo, onde as rochas macias dominavam a calma lagoa. Onde as pedras eretas, gravadas com sinais tão velhos que nem um druida seria capaz de os interpretar, eram guardiãs mudas dos profundos mistérios da terra. E enquanto passava por elas pensei ouvir uma voz dizer: Bem. Muito bem. Aquele lugar não pertencia aos Túatha Dê, com os seus deuses e deusas, a sua beleza deslumbrante e terríveis poderes. Era um lugar muito mais antigo e misterioso. Um lugar pertencente aos Antigos, meus antepassados, a acreditar na história do fora-da-lei Fergus e da sua noiva fomhóire. Eu acreditava. Senti-o quando toquei nas pedras do grande túmulo. Senti uma pequena vibração, vinda das profundezas da terra e que repetiu: Bem.
Tão pouco tempo. Tão pouco tempo para o trazer de volta, antes que ele morresse dos seus ferimentos, ou de desespero, ou de sede. Bran não conseguia beber. Os homens tinham feito um abrigo perto das rochas, uma lona estendida para fazer um telhado e a parte da frente aberta, de modo que se podia olhar para a lagoa serena, ou para a pequena fogueira que ardia no meio de algumas pedras. Ele jazia, imóvel, numa esteira ao nível do chão.
— Tens de ter em atenção a criança, com aquela fogueira — avisou um homem. — Fizemo-la grande, para o caso de ser necessário.
Mas eu não precisava de me preocupar com Johnny. Trouxeram-mo para eu o amamentar e dormir; e eu deitei-o na cama de fetos que me fizeram e cobri-o com uma pele de raposa. O pequeno cobertor dele, tecido com tanto amor, ficara para trás, em Sídhe Dubh. Quanto ao tempo em que estivesse acordado, depositaria o meu filho nos braços de uma ou de outra daquelas amas vestidas de peles, ou talvez numa daquelas camas de rede, ou em cima de uns grandes ombros, ou sentado ao lado de Rat no chão cheio de folhas, segurando numa das mãos uma côdea de pão, para exercitar os dentes novos. As picadas de mosquito continuavam; alguém encontrara erva de ficaria. Rat informou-me que a criança estava muito avançada para a idade e eu concordei com ele. Aceitei que Johnny tivesse adquirido, subitamente, mais tios do que qualquer rapaz necessitaria, se bem que com algum desgosto. Ele era tão pequeno e tão corajoso.
Quanto a Bran, não me atrevia a que os outros percebessem como me sentia assustada. Tinha aplicado um cataplasma na ferida, de maneira que ele usava uma ligadura a toda a volta da cabeça, por cima dos caracóis que cresciam rapidamente.
Era Gull que me ajudava, recusando afastar-se e descansar; Snake também andava sempre por perto. Sentamos Bran e seguramos-lhe a cabeça, chegando-lhe uma esponja úmida aos lábios. Mas o líquido escorreu-lhe pelo queixo, indo cair no cobertor, como se ele tivesse desistido de se ajudar a si próprio.
— Quanto tempo é que ele consegue agüentar sem água? — perguntou Gull.
— Talvez mais um dia. — Tentei disfarçar a angústia, mas a minha voz trêmula traiu-me.
Via como a cor desaparecera do rosto de Bran, deixando os ossos à vista, proeminentes, sob a pele tatuada. Sentia os seus dedos esqueléticos, os seus pulsos frágeis, onde a pequena imagem de um inseto voador estava desenhada, na pele seca, pálida. Ouvia a sua respiração fraca e lenta, com um som desagradável. Quanto tempo ficara Bran naquela tumba subterrânea, Gull não sabia, porque perdera a noção do tempo enquanto estivera em Sídhe Dubh.
— Preciso que me faças uma coisa — disse eu a Snake, que estava aos pés da esteira.
— Tudo o que quiseres.
— Quero que mandes alguém à procura do meu pai. Ele chama-se Lubdan de Sevenwaters, mas já se chamou Hugh de Harrowfield, um bretão. Ele é um homem muito alto, bem constituído, de cabelos ruivos. Vê-se à légua. Ele viajou pelo mar, no último solstício de Verão e já devia ter regressado a Sevenwaters. Talvez esteja a caminho; deve estar, se recebeu notícias de casa. Eu sei que os teus homens são capazes de o encontrar. Mas têm de ser rápidos.
— Considera-o encontrado.
— Obrigada — disse eu. — Daqui a bocado quero os homens todos reunidos aqui. Temos... temos de tentar trazer de volta o Chefe. De alguma maneira, temos de fazê-lo compreender que ainda não se pode ir embora; que precisamos dele.
— Eu vou buscá-los. Se precisares de ajuda, chama-nos, Liadan. Não te deves esgotar. Deixa-nos ser fortes por ti.
Toquei-lhe gentilmente no pulso, onde a pulseira de serpentes tatuadas serpenteava pelo braço musculoso acima.
— Tu já és, Snake. Tu e todos eles.
Deixei as minhas dúvidas para mim própria. Não duvidava de que esta era a tarefa de que Finbar me falara, uma tentativa curativa, que levaria as minhas capacidades ao limite. Mas Bran parecia sem vida, já longe, como se a sua vontade tivesse ficado naquela minúscula e sombria prisão, onde Eamonn o confinara. Quase como se acreditasse que era lá o seu lugar. À medida que o Sol foi percorrendo o céu, soube que ele me estava a fugir. Ele dissera de si próprio, uma vez: Só sirvo para viver na escuridão, e, Volta para o teu canto, cão. Portanto, no fim de contas, fora exatamente o que ele fizera. Fechara-se dentro de si próprio e trancara a porta. Para a abrir de novo, tinha de descobrir o caminho para as suas memórias, para os segredos que ele me dissera um dia estarem melhor se ficassem enterrados.
No entanto, não estava só. Talvez devêssemos reunir forças para o trazer de volta, todos aqueles que o amávamos. Esse seria o primeiro passo. Quanto ao segundo, não o poderia fazer sem orientação, porque era uma tarefa que faria vacilar o mais forte dos corações.
Snake fora-se embora; Gull mantinha-se vigilante ao lado de Bran. Fui sentar-me nas rochas acima da lagoa, onde uma vez Bran e eu havíamos estado nos braços um do outro, apesar da chuva. Olhei para a água escura com um sentimento de certeza crescente e chamei, silenciosamente, o meu tio Finbar.
Tio? Estou aqui e tenho uma coisa para lhe perguntar.
Ali, sob as pedras eretas, a resposta foi instantânea, se bem que fraca; uma imagem quase invisível na superfície, dificilmente a figura de um homem, antes um efeito de luz, que dava a entender que talvez estivesse ali alguém.
Liadan. Estás salva, então.
Estou bem. Mas ele não, ainda não. Virou-se para dentro e eu preciso de saber se tenho razão, se posso trazê-lo de volta. Creio que esta é a tarefa de que o tio me falou e eu quero fazê-la. Mas assusta-me, tio. Tenho medo do que possa descobrir.
O homem na água acenou com a cabeça, gravemente.
Ficas avisada, filha. Ele utilizará todas as suas forças contra ti, que são formidáveis. Lutará contigo o tempo todo. Será uma tarefa cruel, porque terás de lhe abrir o coração, deixando-o nu. Há uma grande dor naquele coração; uma dor que ele não quer partilhar contigo. Uma criança infeliz, que se esconde numa prisão de sonhos perdidos. Encontra-o; segura-o pela mão e tira-o desse lugar sombrio.
Sentia-me gelada até aos ossos. Ele falava com uma voz do outro mundo.
Fá-lo-ei.
Eu ajudava-te, minha filha, se pudesse. Mas a tarefa é tua. E deves começá-la já. Quanto mais tarde, mais ele se afasta de ti e menos probabilidades terás de o trazer de volta.
A água agitou-se e ele desapareceu.
Chamei Snake e ele juntou-se a mim ao lado de Gull, no abrigo.
— Muito bem — disse-lhes eu. — Acho que vamos ter duas partes. A primeira será o chamamento, para o fazer sair do sítio onde se esconde. Depois, virá a cura; as duas complementam-se, para que ele fique entre nós. A primeira parte será feita em conjunto. A segunda, faço-a sozinha.
— Não temos muito tempo — comentou Gull em voz baixa.
— Eu sei. Terá de estar tudo acabado antes do alvorecer, ou ele escapa-nos. Chama os homens, para eu lhes explicar.
— Liadan — disse Snake acanhadamente. — Sabes que ele odiaria isto.
— Que queres tu que eu faça? Que o deixe morrer de sede, sozinho e vagueando num lugar qualquer que não podemos ver? Ou que o ajude com a ajuda de uma faca afiada? É isso que achas que devíamos fazer?
— Nenhum homem aqui diria isso. Exceto o próprio Chefe. Se ele pudesse sair de dentro de si próprio e ver isto, seria o primeiro a cortar a garganta. Nós estamos todos contigo, Liadan. Nenhum de nós quer ser o primeiro a explicar-lhe quando ele vier a si, é tudo.
— Eu explico-lhe. E agora, vai buscar os homens.
Sentamo-nos ao lado de Bran, à espera. Ele não se mexera; o seu rosto estava pálido e calmo, como se estivesse a dormir. Não dava sinais de vida, com exceção do leve e lento erguer e baixar do peito, à medida que respirava. Os seus dedos estavam flácidos e frios e eu tapei-os com o cobertor, continuando a segurar-lhe na mão. Pensei se algures, lá no fundo, ele teria sentido que eu não o largara.
Os homens chegaram isolados ou aos pares, com pezinhos-de-lã, apesar das pesadas botas. A maioria estava armada. Todos usavam o distintivo da sua alcunha, as peles, as penas e as decorações, que eram o seu orgulho e identidade. Todos tinham um ar solene. Juntaram-se em volta da esteira, sentados, agachados, em pé, silenciosos. Mas não estavam todos presentes; mesmo numa ocasião daquelas, tinha que haver sentinelas.
— Muito bem — disse eu. — Ele pode ouvir-nos, não tenhais dúvidas. Tem uma ferida muito feia na cabeça, mas já muitos homens recuperaram de piores ferimentos e ele é muito forte, sabeis muito bem. Mas não consegue engolir e um homem não dura muito tempo sem água. Temos de o acordar do seu sono.
— E se ele não acordar? — Era o tipo grande de barba escura, Wolf. Nunca o ouvira falar antes; a sua voz era gutural, pesadamente acentuada.
— É isso, precisamente — disse eu. — Ele pensa que não vale a pena regressar para nós. Temos de o persuadir do contrário. Ele precisa de saber como nós o apreciamos; ele tem de ser recordado das coisas boas que fez por vós e o que isso significa para todos. Ele tem de ser recordado do que deu e pode ainda dar. Só vós o podeis fazer.
Eles olharam todos uns para os outros e mexeram-se, pouco à vontade.
— Nós somos combatentes — disse Rat, que continuava com Johnny ao colo e lhe dava pancadinhas nas costas. — Não somos bardos, ou estudiosos.
Outro homem falou de modo apologético.
— Nem sei o que hei de dizer.
— Lembrais-vos das histórias que vos contei? — Houve acenos de cabeça e meios sorrisos.
— Muito bem, é uma coisa parecida, só que mais curta. Cada um de vós conta uma pequena história; uma história sobre o Homem Pintado. E com essas histórias chamamo-lo de volta. É simples, na realidade. — Apanhei o olhar zombeteiro de Gull e suspeitei que ele sabia que a minha confiança total era fingida. Por dentro, estava gelada, com medo de falhar. Os rostos deles começaram a iluminar-se de esperança.
— Muito bem disse um homem, admirado. — Bem imaginado. Tu és única. Posso ser eu o primeiro?
— Claro.
As histórias foram muitas e variadas. Umas pungentes, outras engraçadas e outras parecidas com grandes tragédias. Uma contava como Bran salvara Dog dos grandes navios e como, disse Snake, apesar de o pobre Dog estar morto, certamente retribuiria o favor, porque se Dog não me tivesse batido na cabeça naquele dia em Littlefolds, eu nunca teria conhecido o Homem Pintado, nem teria tido Johnny. E, acrescentou Snake, agora que o Chefe me tinha a mim e mais o bebê, era completamente louco se não queria acordar. Houve histórias do sul e histórias do norte, histórias de Cymru, Bretanha e Armórica. Houve histórias contadas por nórdicos, por homens do Ulster e da Gália. Toda a espécie de histórias. Mas todas tinham uma coisa em comum. Em todas, o Homem Pintado estendera a mão a um proscrito, a um homem sem lugar para onde ir e recebera-o num bando de camaradas, com um código e um objetivo. Gull murmurou a sua, uma história de sangue e perdas, de angústia e desespero.
— Tu chamaste-me de novo para a vida quando eu pensava que tinha acabado tudo. Foi a tua mão que ficou na minha, quando eu já estava a caminho das trevas. Agora, estou eu no teu caminho. Peço-te que pares e que regresses para nós. O teu trabalho ainda não acabou. Nós precisamos de ti, amigo. Agora, é a minha vez de te pedir que regresses.
Tecemos a nossa rede de palavras durante toda a tarde. Era uma rede boa, forte, como os homens que a tinham tecido. E agora o crepúsculo estava a chegar.
— Ouve o que Gull diz — disse eu, reprimindo as lágrimas. — Ouve-nos a todos.
Eu dissera-lhes que Bran podia ouvir-nos. Mas, agora, duvidava, porque, por mais que tentasse, não sentia a mínima faísca de pensamento nele, o mais fraco fragmento de visão na sua mente. Se não tinha partido já, tinha erguido barreiras bem poderosas.
— Bran — disse eu docemente, os meus dedos movendo-se pelas suas faces cavadas. — Nós amamos-te. Somos teus amigos. Somos a tua família. Regressa. Regressa das trevas. Sai das sombras, meu querido.
Gull fez um pequeno movimento com a mão ligada e, um a um, os homens aproximaram-se para tocar no braço de Bran, ou apertar-lhe o ombro e aqui e ali vi um afugentar sub-reptício de lágrimas.
Quando todos se foram embora, menos Gull e Rat, peguei em Johnny, fui até à fogueira para o amamentar e permiti-me chorar. Fiquei ali sentada, Snake regressou com Wolf, mudaram as roupas de Bran e passaram-lhe uma esponja pelo corpo. Enquanto trabalhavam, conversavam, animados, numa conversa prática acerca de um armeiro no norte que desenvolvera um novo processo de temperar o ferro, do tipo preciso de espada que ele fazia e qual seria o preço que ele pediria por uma arma daquelas. Eu sabia que a conversa deles era para o Chefe e fiquei-lhes grata pelo esforço. Mas sentia-me cansada, tão cansada, quase doente, mais triste do que a noite e fechei os olhos. Então, sem mais nem menos, comecei a ter um pesadelo, com paredes a aproximarem-se, uma escuridão terrível, sem qualquer noção de tempo ou espaço, sem um som, salvo o do bater do coração, a respiração acelerada e tive medo, tive medo que o tio me batesse outra vez, ainda sentia a dor aguda nas costas e nas pernas da última vez, ainda sentia a dor nos braços, da última vez em que ele me tinha obrigado a segurar a rocha por cima da cabeça... Eu fora fraco e deixara-a cair e se o cinto me fazia doer a culpa era minha, porque só somos castigados se não formos suficientemente fortes... o meu nariz escorria e eu fungava sem pensar e o meu coração batia com toda a força... nenhum som, era essa a regra, nenhum som, ou estava metido em sarilhos... custava não chorar quando fazíamos pelas pernas abaixo e tínhamos calor e sede e tínhamos medo e não aparecia ninguém... quando tudo o que podemos fazer é contar até dez, uma vez e outra... quando esperamos e esperamos que ela regresse, porque talvez, se formos suficientemente corajosos, talvez ela venha, mesmo assim...
Recobrei a consciência abruptamente, a cabeça a latejar e o coração a bater como um tambor. O terror era real, como se eu própria estivesse naquele pequeno espaço escuro. Pestanejei e fiz um esforço para respirar lentamente; fiz um esforço para que os meus olhos olhassem para a água calma da lagoa e para os suaves salgueiros verde-azulados à luz do crepúsculo. Senti o peso morno do bebê nos meus braços.
— Liadan? — Gull estava ali, ao meu lado, as suas feições quase invisíveis na claridade cada vez menor. — Tudo bem?
Acenei com a cabeça.
— Sim. Ele não está longe, Gull. Logo abaixo da superfície e muito assustado, ou, de qualquer maneira, cheio de vergonha de sair. Mas sei que nos ouviu.
— Como é que sabes? — perguntou Gull com admiração na voz.
— Eu... eu ouço-lhe os pensamentos. Partilho as recordações e os sentimentos dele, quando ele me deixa. É ao mesmo tempo um dom e uma maldição. Pode ajudar-me a chegar até ele, ajudar-me a abrir a barreira, seja ela qual for, que ele ergueu à volta de si próprio. Mas também preciso de saber. Preciso de compreender o que é que o faz esconder-se assim. Creio... creio que lhe aconteceu algo, há muito tempo, quando era muito novo. Ele alguma vez te disse alguma coisa...?
— Nunca. Ele vive pelo código. Sem passado, sem futuro. Nunca disse nada. Até chego a pensar que o homem já nasceu velho. Gostava muito de te poder ajudar.
— Deixa lá — disse eu, completamente desanimada. — Eu é que tenho de fazer os possíveis para chegar até ele. Vou precisar de ficar só, esta noite. Vou deitar o Johnny no abrigo e depois tenho de ficar a sós com ele.
— Eu fico de guarda.
— Oh, Gull. Com essas mãos devias estar numa enfermaria, em boas mãos. Exiges muito de ti próprio. Pelo menos, tenta dormir um pouco.
— E tu? Tu não podes continuar assim. — Ele rodeou-me os ombros com um braço. Nós tomamos conta de ti, sabes? Se ele... nós tomamos conta de ti e do rapaz.
— Pára! — A minha voz soou áspera. — Não digas isso! — Ele há de viver. Não admito palavras de derrota, aqui.
Seguiu-se um breve silêncio. Então, Gull disse:
— Fostes feitos um para o outro. Incapazes de falhar, os dois. Não tenho dúvidas de que o rapaz se há de transformar num grande líder. Como seria possível de outra maneira? Vou-te arranjar alguma coisa para comer e depois faremos como dizes. Mas tenho de deixar aqui um guarda. Não faz diferença, porque nenhum de nós vai dormir, esta noite.
Pensara mandá-los, a todos, para o túmulo, de maneira a podermos ficar sós no local do nosso destino, junto da lagoa escura, sob o céu sem Lua. Coisas antigas agitavam-se; sentia-lhes a presença nas sombras e sabia que a noite seria de mudança.
Acreditava que na escuridão Bran tentaria chegar até mim, como antes, e eu poderia segurar-lhe na mão até de madrugada.
Mas aquele não era um lugar para atos isolados de desespero; era um lugar de camaradagem. Snake trouxe comida e cerveja e insistiu para que eu ficasse à fogueira para comer. E quando me sentei numa pedra lisa, com uma escudela de guisado nos joelhos, apareceram outros vindos da noite para me rodearem, em silêncio. Olhei de novo para o jovem Rat, desde que o ouvira contar a sua história. O incêndio ateado pelos homens de Eamonn causara-lhe uma grande dor. Spider e Otter não estavam presentes; tinham estado ausentes durante todo o dia.
— Tenho uma coisa para te perguntar — disse Snake hesitantemente.
— O que é?
— Imagina que a tua tarefa resulta e ele volta a si. Acorda subitamente, perguntando: onde estou eu? Como é que achas que ele viverá depois do que aconteceu? E tu e a criança? Ele deseja-te. Tu deseja-lo. Mas ele nunca concordará que fiques no meio de nós; isto não é vida para uma mulher, ou para um bebê. Nunca porá a tua vida em risco desta maneira. E nunca desistirá. É a única coisa que ele sabe; só assim poderá continuar. Estás a planear curá-lo e voltar para casa? Seria um fim bem cruel para ambas as partes.
— Estás a falar a sério?
— Talvez não. Não te estou a ver fazer uma coisa dessas. Mas sabes como ele é. Não te vai deixar ficar. Manda-te para casa e depois vai deixar-se matar o mais rapidamente possível. É essa a minha previsão.
Seguiu-se um silêncio. Gull olhou para mim, para Snake e pareceu-me que ia dizer qualquer coisa, mas calou-se.
— O que é, Gull? — perguntei-lhe.
— Tenho estado a pensar — disse ele cuidadosamente.
— Diz lá, deita cá para fora. — A atenção de Snake despertou de imediato. — Se tens um plano, ouçamo-lo. Não temos muito tempo.
— Um plano. Não se pode chamar um plano. É uma ideia, apenas. Anda-me na cabeça há que tempos, desde aquele maldito pântano. Quando pensei nela a primeira vez, ficou cá dentro e foi crescendo. Sei que não podemos regressar ao mundo normal e viver nele como camponeses, pescadores, etc. Mas nós temos as nossas capacidades. Alguns de nós são marinheiros, somos capazes de seguir rastos pela calada, sabemos todas as técnicas de combate. Sabemos como planear um ataque e executá-lo sem falhas. Somos capazes de ir onde mais ninguém consegue. Temos os nossos métodos de resolver problemas e arranjar informações. Há muitos chefes de guerra, tanto nesta terra, como no outro lado do mar, que pagariam com bom gado e moedas de prata para que os seus homens fossem ensinados.
Mais uma vez, Gull surpreendera-me. Wolf ouvia de olhos esbugalhados.
— Onde? — perguntou Snake rudemente. — Não há um único canto em todo o Erin onde sejamos bem-vindos por mais de uma noite, ou duas. Experimenta ficar mais tempo e antes de dares por isso aparece um fidalgote qualquer, a quem ofendemos, e com um grupo de homens incendeia-te o acampamento e chacina-te os homens todos, durante a noite. Temos de estar, sempre, dois passos à frente. Sempre em movimento. Nem sequer este lugar é seguro; não por muito tempo.
Tossi para aclarar a garganta.
— Bran disse-me uma vez... — disse-me que tinha recursos. Que tinha um lugar. Onde é esse lugar?
— Não sei nada disso — respondeu Snake. — O nosso chefe não é do tipo sedentário. — Ele e Wolf olharam para Gull.
— Não vale a pena guardar segredos. Liadan é dos nossos — disse Gull calmamente.
Após um momento, Snake acenou com a cabeça e Wolf deu um grunhido de assentimento. Gull virou-se para mim.
— O Chefe disse-te, então — disse ele, olhando para o homem deitado, imóvel, no abrigo.
— Disse. Há muito tempo. Que lugar é esse, Gull?
— Uma ilha. A norte. É um lugar selvagem, inóspito. Fácil de guardar. Difícil de alcançar. Lindo, à sua maneira. Podia-se construir um campo, lá. Podia-se ensinar lá os homens.
— Como aquela ilha, na história — disse Snake de modo ausente, a mente correndo, nitidamente, à frente das palavras. — A ilha daquela mulher guerreira, lembras-te? Qual era o nome dela? E tu poderias viver lá, com o teu filho. Como na história.
— Digo-vos já que não faço tenção de imitar os feitos de Scáthach, nem os da filha — disse eu secamente. — Mas tendes razão. Aconteça o que acontecer, tenciono ficar ao pé dele.
— Haverá algum chefe de guerra que pague uma mão-cheia de prata por tipos como nós? — perguntou Rat. — E a nossa reputação? Esses senhores têm que ser muito cuidadosos com as alianças que fazem. Nenhum deles entraria, de bom grado, num empreendimento desses. — Apesar das suas palavras, os seus olhos brilhavam de esperança.
— Quanto a isso — disse eu lentamente — creio que é possível essa ideia ser aceite, com o tempo. Tudo o que precisais é de começar. Com o patrocínio de um líder altamente respeitado. Talvez com alguns recursos adicionais; isso podia ser discutido. O meu irmão podia dar-vos ambos.
— O teu irmão? — Gull ergueu as sobrancelhas. — O senhor de Sevenwaters? Ele seria capaz de negociar abertamente conosco?
Acenei com a cabeça.
— Acredito que sim. O meu irmão falou, uma vez, nisso. Ele compreende o valor daquilo que tendes para oferecer. Foi numa missão para o meu irmão que Bran foi feito prisioneiro, desta vez. Sean deve-me um favor por causa disso e por outra... transação que levei a cabo para ele. Acho que concordará.
Snake emitiu um ligeiro assobio.
— Devíeis começar a alargar os vossos horizontes — continuei. A minha mente estava a começar a alimentar a ideia. — Um exército precisa de cirurgiões e curandeiros, astrólogos e navegadores, tanto como guerreiros. E os homens devem aprender que a vida não é só matar e destruir. Não quero ser a única mulher nessa ilha.
— Mulheres? — O tom de Wolf era receoso. — Haverá mulheres na ilha?
— Não vejo por que não — disse eu. — Metade do mundo é formado por mulheres.
Os homens olharam para Bran e depois uns para os outros.
— Há trabalho para fazer — disse Snake, pondo-se de pé. — Pensar. Planear. Vou expor o assunto aos outros. Que reviravolta. Mas, quem é que lhe vai falar nisto, a ele?
— Tirai à sorte — disse eu.
Os homens já iam em profundo debate a caminho do acampamento principal, deixando-me sozinha com Gull. O entusiasmo desapareceu abruptamente; antes de contemplarmos o futuro, tínhamos que ganhar uma batalha.
— Gull — disse eu. — É noite de lua nova.
Ele acenou com a cabeça sem responder.
— Se eu não conseguir entrar nele esta noite, é o fim. É melhor deixares-me sozinha. Sem luzes. Deixa a fogueira morrer.
— Tens a certeza?
— Tenho. Prometo que te chamo, se precisar de ti. Mantém os outros afastados. Não quero interrupções, senão arrisco-me a perdê-lo.
Ele pegou na lanterna e afastou-se, deixando-me na escuridão. Johnny dormia.
Rodeei Bran com um braço e encostei a minha cabeça à dele, junto da esteira, o meu rosto perto do dele. A sua respiração era muito leve, com uma pausa interminável entre cada movimento. A cada uma dessas pausas algo o levava a um novo esforço de vontade. Fechei os olhos e diminuí a respiração, de maneira a que ele partilhasse o para dentro... para fora... para dentro... para fora... vida... morte... e eu voltei atrás no tempo, através dos atalhos secretos e caminhos retorcidos da memória. Procurei, com todas as forças da minha mente, encontrá-lo naquele labirinto tortuoso. E por fim, no meio de todos aqueles véus sombrios, no meio de toda aquela escuridão, ele começou a deixar-me passar.
Falta-me o ar, não consigo respirar, o meu coração bate com demasiada força, o sangue corre muito depressa, sem controlo... uma, duas e três, quatro cinco e seis... quanto tempo, quanto tempo antes da próxima vez... quanto tempo, antes, outra vez da luz... não procures encontrar este homem aqui, neste buraco, na escuridão... há muito que se foi embora... há muito...
Os pensamentos diminuíram e perderam-se. Procurei mais longe, mais profundamente, nas sombras.
Conta-me. Conta-me. Era como se a minha mente deslizasse para dentro da dele e passasse a fazer parte dela, ao mesmo tempo que o meu corpo se transformava numa concha, vazia. Mostra-me.
Uma história. Conta-me uma história. Uma história grande, muitas noites. Era uma vez um rapaz que enveredou por caminhos maus... ele pensava que sabia por onde ia... quatro, cinco, seis... mas perdeu-se na escuridão e ninguém apareceu... e ele vagueou e acabou por cair... cair...
Eu seguro-te na mão, vás para onde fores, sejas tu quem fores, disse-lhe eu. Nunca abandonarei aquilo que amo, nunca, até ao fim dos tempos e para lá. Olha para cima, meu amor. Olha para cima e segue a luz. Vem até mim.
Dog, com as tripas de fora. Evan, tão forte e, no fim, tão desamparado. Gull, fechado naquele lugar com um carniceiro. Estes homens seguiram-no e a sua recompensa foi o sofrimento e a morte. Seguiram-no na direção das sombras... perderam-se tantos... um fardo tão pesado... contá-los... contar as pedras de Sídhe Dubh, uma escuridão tenebrosa sobre a sua cabeça, empurrando-o para baixo... escumalha, indigna de esperança... fugi dele, porque o seu toque significa a morte... o seu amor é maldito...
Se queres contar, conta as estrelas, meu amor. Quantas estrelas há no céu, olhando para nós enquanto estamos nos braços um do outro e saboreamos o prazer?
Quantos peixes prateados há no lago onde mergulho o nosso filho e ouço os seus guinchos de alegria no ar límpido? Fizeste um belo pequeno salmão, naquela noite, à chuva. Quantas vezes bate o coração, qual é a velocidade do sangue quando, por fim, nos acariciamos e voltamos a acariciar e respiramos ao mesmo tempo, desesperadamente, de desejo? Conta essas coisas, porque elas é que são a vida e a esperança.
Esperança... este homem está proibido de ter esperança. Toca neste homem e ele arrasta-te para o canto com ele, nas trevas. As palavras passam, como folhas secas, sussurrando no vazio... ele não pode ouvi-las.
Ele estava, de novo, a fugir-me, escapando ao meu abraço, descendo por aquele caminho abaixo, para o seu esconderijo, nas profundezas do seu espírito. Como podia eu segui-lo? Como podia encontrá-lo, depois de as sombras o esconderem de novo? Apelei a todas as minhas forças e procurei-o.
A história. Conta-ma. Um rapaz. Um homem. Ele partiu numa jornada. Conta-me a história dele.
Quando veio, era, na verdade, um pequeno fio de pensamento. Mas era uma história: a sua própria história.
Contar... contar a história... era uma vez um homem e eles tinham acabado de lhe bater e alguém vestido de verde mete-o num buraco no chão e fecha a porta. Está escuro. Está muito escuro e há pouco espaço. Mas ele tem de continuar, porque... porque... ele não consegue saber porquê, mas tem de continuar. Ele sabe como continuar, porque já o fez antes. Já o fez antes vezes sem conta. Contar, para manter as outras coisas longe do pensamento, contar, um, dois, três... Era uma vez uma criança, para baixo e para cima nos braços dela, mas a criança não gosta. Ela chora e corre, o que faz a criança chorar também. Então, ela diz: Tudo bem, Johnny. Mas agora fica aqui quieto e calado. É só por pouco tempo, querido. Eu volto para te vir buscar assim que puder. Não tenhas medo; fica, apenas, muito quieto e calado, ouças o que ouvires.” Ela mete-o num buraco, no chão e fecha a porta. De dedo na boca e uma mão por cima da cabeça, os joelhos para cima e o coração a bater como um tambor. Um, dois, três, conta ele enquanto ouve os gritos e o barulho lá fora, enquanto cheira o odor do fogo e do sangue. Quatro, cinco, seis. Vezes sem conta repete os números, um talismã de proteção. Um, dois, três... um, dois, três... Tão escuro. Tão longe. Tão longe. E então... e então...
Os pensamentos adejaram e desapareceram. Sentia-me tão cansada, como se tivesse estado numa batalha; a cabeça latejava-me, as mãos tremiam-me e os meus olhos estavam cheios de lágrimas. Levei a mão fria de Bran aos lábios.
— Muito bem — sussurrei eu, trêmula. — Já é um começo. — Mas eu tirara pouco sentido daquilo. A mãe abandonara-o, há muitos anos? A Margery de que a minha mãe falara com tanto amor e respeito? Como era possível?
Mostra-me mais, pedi eu com a voz da mente e tentei com que ele sentisse, sem palavras, que, fosse qual fosse o seu passado, amávamo-lo e precisávamos dele agora. Teria enviado uma mensagem daquelas a Sean, a Conor, ou a Finbar com a rapidez do relâmpago. Podia ter chegado a alguém como o meu pai, ou Niamh, ou até Gull com um pouco mais de dificuldade, se bem que eles a teriam sentido como uma espécie de desanuviamento do tempo, um sentimento de bem-estar, e não teriam sabido o que eu fizera. Fizera aquilo com a minha irmã em Sídhe Dubh, quando o desespero quase a submergira. Mas, por mais ferido que estivesse, Bran era um homem com uma extraordinária força de vontade e estava a lutar contra mim, como predissera Finbar. E eu já estava exausta, devido aos meus esforços.
Sai!
O meu coração bateu com força. Os Antigos vinham em minha ajuda. As suas vozes clamavam das profundezas da terra, suaves e fortes.
Sai das trevas. És capaz de deixar o teu filho sem pai, a tua mulher só e a chorar?
És capaz de deixar os teus homens à deriva, sem um objetivo? Sai e responde a este desafio.
— Não lhes dês atenção.
Endireitei-me, apertando a mão de Bran convulsivamente. Aquela voz era diferente e a sua possuidora estava ali, fantástica, aos pés da esteira. Era a Dama da Floresta, o seu rosto brilhante na escuridão, a sua capa da cor da meia-noite, com exceção dos reflexos azuis. O Senhor dos cabelos em chamas estava ao lado dela, a sua luz brilhante, terrível. As suas expressões eram severas, os olhos, frios. Tremi ao vê-los, recordando a sua fúria quando eu me recusara a fazer o que eles me ordenavam.
Bran jazia ali, ao pé de mim, desamparado e o meu filho ali ao lado, dependendo apenas de mim para o defender.
— Não ouças essas vozes — disse a Dama de novo. — Elas desencaminham-te. São velhas e confusas. De um povo antigo, tortuoso, das rochas e dos poços. As suas palavras não têm significado.
— Desculpai-me — disse eu, trêmula. — Creio que são os meus antepassados, porque a família de Sevenwaters descende de um mortal e de uma mulher dos Fomhóire. Aqueles a quem chamas tortuosos querem, apenas, ajudar-me na minha tarefa. O tempo é curto. Se não viestes para ajudar, devo pedir-vos que nos deixeis sós.
As sobrancelhas do Senhor ergueram-se de modo extravagante. Fez menção de que ia falar, mas ela impediu-o.
— Liadan — disse ela e havia uma tristeza na sua voz. — Esse homem está a morrer. Não o chames. É cruel mantê-lo assim. Deixa-o ir. Ele anseia por ser libertado. O homem está ferido e quebrado, não serve para uma filha de Sevenwaters. Não pode proteger a criança. Deixa-o ir e traz o rapaz de volta para a floresta.
Cerrei os dentes e mantive-me em silêncio.
— Ouve-nos, rapariga. — À medida que o Senhor falava, pequenas faíscas saíam-lhe dos cabelos e do manto, formando um halo em redor do seu corpo. Aquele halo deu às feições pálidas de Bran uma leve aparência de saúde. — As forças das trevas estendem-se na direção do teu filho. Há aqueles que dariam tudo para evitar a sua sobrevivência. Nós podemos salvá-lo. Nós podemos assegurar que crescerá forte de corpo e espírito, pronto para a tarefa que o espera. Tens de o trazer de volta. Ou... — Vi a semente de uma ideia naqueles olhos que estavam sempre a mudar e, rapidamente, como um relâmpago, corri e retirei o adormecido Johnny do seu leito de fetos, para o segurar nos braços.
— Não o levareis! — disse eu violentamente, ao mesmo tempo que o alarme e a fúria se apoderavam de mim. — Criaturas Encantadas, ou não, não me roubareis o meu filho, substituindo-o por outro! E também não levareis o pai dele. Eles são meus, os dois e eu vou ficar com eles. Eu não sou louca. Sei muito bem os perigos que corro. Sei tudo acerca de Lady Oonagh e... e...
Voltei para o pé da esteira, onde podia proteger a minha pequena família com os braços, erguendo um muro forte de amor, para nos proteger.
— Ficaremos seguros. Guardar-nos-emos uns aos outros — disse eu desafiadoramente. — Sei que será assim. Temos muitos protetores aqui. Quanto à profecia, se tiver de se cumprir, cumprir-se-á, por mais que eu faça. O que for, será.
Enquanto falava, o ar ficou mais rarefeito e a noite ficou ainda mais escura. Um frio percorreu-me, mais frio do que nunca; um frio gelado, que se me agarrou aos ossos.
Estava ali mais alguém; alguém que se mantinha ao lado da esteira, olhando. Na escuridão, pensei ver um manto flutuante e um grande capuz e no interior desse capuz, onde devia estar um rosto, nada mais do que uma caveira, com uns buracos no lugar dos olhos.
— Podes desafiar-nos — disse a Dama gravemente. — Mas não podes desafiá-la, a ela. Se ela o vem buscar, ele tem de ir. Chegou a hora dele. Ela vai tirar-to, por mais que o abraces. Deixa-o, Liadan. Liberta esse espírito das grilhetas da vida. Isso não é amor, é crueldade egoísta, retê-lo assim. Ela está à espera. Ela dar-lhe-á o descanso por que ele anseia.
Cerrei os dentes e reprimi as lágrimas. A minha voz, quando consegui falar, não passava de um tênue murmúrio.
— Isso não é verdade. Ele não pode ir. Nós precisamos dele, aqui. Eu consigo retê-lo. Consigo.
A figura sombria moveu-se e eu vislumbrei uma mão a estender-se, uma mão que não passava de ossos e tendões.
— Ide embora — disse eu em voz baixa. — Todos vós. Saí deste lugar. Não me interessa quem sois e o que sois. Desafio os vossos poderes e as vossas ordens. Eu sou uma curandeira; a minha mãe ensinou-me a sua profissão com amor e disciplina. Este homem não morrerá, enquanto o tiver nos meus braços. Enquanto lhe aquecer o coração com o meu, não me deixará. Não o podeis levar. Ele é meu.
E como a encapuçada não se afastou, permanecendo ali e acenando com os seus dedos esqueléticos, comecei a cantar. Cantei docemente, como se estivesse a adormecer uma criança. Murmurei a minha pequena canção de embalar, vezes sem conta, os meus dedos acariciaram o cabelo novo sobre o crânio tatuado do meu guerreiro ferido, olhei para a escuridão e os meus olhos cansados diziam, desafiadoramente: Ele é meu. Não o podeis levar.
— Rapariga louca — murmurou o Senhor dos cabelos brilhantes. — Mortal miserável. Eles que se encarreguem dela.
Mas a Dama olhou para mim, pensativa. Perguntei a mim própria por que razão não usavam eles os poderes mágicos para me obrigarem a entregar o meu filho, ou roubarem o último fôlego a Bran, ou expulsarem os Bretões das Ilhas, se era o que queriam. Johnny tossiu levemente no sono e suspirou.
— É tal como dizes, minha filha — disse a Dama. — O que for, será. A tua escolha é que pode determinar se será à custa de muito sangue e trevas. A tua Visão é tão curta, não podes ver em quem podes confiar e assim as tuas decisões não são perfeitas. Mas é a tua escolha, não a nossa. O nosso tempo está quase a chegar ao fim; será a tua espécie que conduzirá os acontecimentos e que influenciará a maré. Aconteça o que acontecer, desapareceremos e esconder-nos-emos, tal como fizeram os Antigos. Pouco mais seremos do que uma recordação, para os filhos e filhas dos filhos dos teus filhos. O caminho que empreendes será longo, Liadan. Não podemos escolher por ti.
Acorda. A voz da terra chamou, cantou, rugiu profundamente, com o peso de eras.
Acorda agora, guerreiro.
Os meus olhos ficaram marejados de lágrimas e murmurei a minha resposta.
— Eu acordo-o. Confiai em mim. — Virei-me para os seres altíssimos que estavam diante de mim, na escuridão. — Para mim, só há uma escolha — disse eu, firmemente.
— O sangue do teu filho está nas tuas mãos. — A voz terrível do Senhor tremeu com uma fúria para além da raiva humana, um som que mais parecia um trovão; no entanto, o bebê adormecido nem sequer estremeceu. — Tu queres demasiado. Queres mais do que aquilo que podes ter. — E desvaneceu-se, até que a única coisa que conseguia ver dele era um débil contorno de pequenas faíscas.
— É uma longa história — disse a Dama da Floresta. — Pensamos que seria mais simples. Mas o padrão tem ramificações. Não pensamos que a criança poderia sair da floresta. A tua irmã foi corrompida. E tu és, simplesmente, teimosa. Há muito do teu pai em ti. Assim, teremos de esperar mais do que pensávamos. Mas tu verás o desenrolar, Liadan. Verás o que forjaste aqui, esta noite.
Chorei enquanto ela se desvanecia, chorei porque sabia o que fazer e porque as suas palavras davam voz a um medo terrível e a uma culpa torturante, que eu tentava ignorar desde que saíra de Sídhe Dubh; desde que pressentira que Bran estava em perigo e precisava de mim. E se eu estivesse errada? E se a minha teimosia de burro provocasse a morte do meu filho e soltasse o mal sobre Sevenwaters uma vez mais?
Quem era eu para desafiar os avisos das Criaturas Encantadas?
Senti algo. Uma pequeníssima carícia na mão, um toque, os dedos de Bran tentando, debilmente, apertar os meus. Seria imaginação? A sua mão estava flácida e imóvel. Talvez tivesse sido Johnny a agitar-se, aconchegado contra o pai, na esteira. Mas eu tinha a certeza, tinha quase a certeza de que sentira qualquer coisa. Não podia desistir. Não ia desistir. Tinha de começar de novo, agora mesmo, porque o tempo corria e eu achava a respiração de Bran cada vez mais fraca; a respiração de um homem que caminha, firmemente, para o fim. A encapuçada retirara, mas eu sentia que ela continuava à espera, algures, na escuridão. Talvez se pudesse dar ao luxo de ser paciente, porque, no fim de contas, não nos levaria a todos?
— Ajudai-me — sussurrei e as vozes regressaram, profundas e seguras.
Sai das sombras, guerreiro. Espera-te uma missão. Caminha para fora das trevas.
Fechei os olhos uma vez mais.
Contar... contar a história... era uma vez um rapaz, já maior. Tem muitas fendas, de lhe baterem. Porque ele não presta, é escumalha, tem de ser castigado. O tio assim o diz. Quando o tio se zanga a sério, fecha o rapaz numa caixa. Na caixa está escuro. E é pequena, cada vez mais pequena à medida que ele cresce. Ele aprende a ficar quieto. Conta, mentalmente. Aprende a não chorar, a não fungar, a não se mexer, até que a tampa se abre e a luz entra, terrível e cegante. Eles arrastam-no para fora, cheio de cãibras e a cheirar mal, para mais castigos.
Era uma vez uma mulher. O homem também lhe bate e eles fazem aquilo, os grunhidos, os empurrões, aquela coisa cheia de suor. O tio faz com que ele veja. O tio faz com que ele veja uma data de coisas. O rapaz diz a si próprio que nunca fará aquilo. É uma coisa sombria, estúpida, animal; tão sombria como o terror da caixa.
Faz aquilo e serás como o próprio tio.
Era uma vez um cão, por algum tempo. O cão aparece uma noite e decide ficar.
Está sujo, esquelético, de olhar selvagem. O rapaz dorme quente, naquele Inverno, enroscado no cão, na palha do alpendre. Durante o dia o cão segue-o, caminhando, calmamente, na sua sombra.
Uma bela manhã de Primavera o tio bate no cão por ter morto umas galinhas e o rapaz segura nele enquanto morre. Quando o rapaz enterra o cão, faz um juramento. Quando for homem, jura ele, no próximo Inverno, ou no outro, farei o que devo fazer e partirei. Partirei e nunca olharei para trás.
Senti as lágrimas a escorrerem-me pelas faces, caindo no cobertor, entre a cabeça de Bran e a minha.
Aguenta-te, meu amor. Conseguiria ele ouvir a voz da minha mente, por entre as sombras que o retinham? Estou aqui a teu lado, com o meu braço em redor de ti.
Precisamos de ti, Bran. Regressa para nós. Esse pesadelo terminou.
E debilmente, muito debilmente, senti uma resposta, como um suspiro, um fôlego, um fragmento de pensamento.
... Liadan... não vás...
Então surgiu uma luz súbita, vinda da fogueira quase apagada, o som de passos e Bran desapareceu, a sua voz interior silenciada, o tênue laço instantaneamente quebrado. Levantei-me, furiosa e cambaleei para o exterior do abrigo, só então me apercebendo de como os meus esforços me tinham esgotado e sem saber quanto tempo estivera no interior, imóvel. Já devia ser bastante tarde. Como se atreviam a perturbar-nos? Eu dera instruções precisas. Como se atreviam a fazer aquilo?
— Eu disse-te! — atirei eu severamente a Gull, quando ele se aproximou de mim. — Disse-te que não viesses aqui esta noite. Que estão esses homens a fazer?
— Desculpa — disse Gull rudemente. Havia algo na sua voz que me fez esperar pela continuação. — Pensei que quisesses ser interrompida por causa disto.
Junto dos restos da fogueira estavam quatro homens, de pé. Um deles era Snake, o outro, seguramente, Spider, pelo que podia ver das suas longas e finas pernas e pela maneira acanhada como gesticulava com as mãos, Otter, com os seus ombros largos e peito em forma de barril e um homem alto, de cabelos vermelhos como um pôr do Sol de Outono. Quando avancei, esse homem virou-se para mim e era o meu pai.
Corri para ele, Lubdan abraçou-me com força e eu encharquei-lhe a frente da camisa com as minhas lágrimas, enquanto os outros homens nos observavam em silêncio, até que Gull disse, timidamente:
— Nós vamo-nos embora, se quiseres.
— Talvez seja melhor funguei eu. A... agradeço-vos por terdes acedido ao meu pedido tão depressa e com tanto sucesso. Não estava à espera...
— Não foi muito difícil — disse Otter rudemente. — Aqui, o Lubdan, já estava de regresso. Limitamo-nos a fazer-lhe uma emboscada, foi tudo. Tem a mão pesada com o bordão, o teu pai, se me é permitido dizer. — E esfregou com cuidado a parte de trás da cabeça.
— Preciso de falar a sós contigo, Liadan — disse o meu pai. — Já sabes, suponho, que Liam morreu. Temos de regressar a Sevenwaters logo de manhã.
— Que quer dizer temos? — perguntou Snake impetuosamente.
— Liadan não pode ir. — O tom de Gull era neutro. — Precisamos dela aqui.
— Com o devido respeito — disse o meu pai muito calmamente, no tom que os homens tinham aprendido a temer — isso é com a minha filha e comigo. Espero que tenhais a cortesia de nos deixardes sós por um bocado.
— O Chefe está a morrer — disse Snake de olhos semicerrados, medindo o meu pai de alto a baixo, comparando, talvez, o seu peso com a idade do meu pai. — Ele precisa dela. Ela não pode ir.
Coloquei-me entre os dois e segurei nas mangas de ambos.
— Chega — disse eu com a firmeza de que fui capaz. — Preciso do meu pai aqui, para me ajudar. Quanto ao resto, dou-vos a resposta de madrugada. E agora, ide.
— Tens a certeza? — perguntou Snake em voz baixa.
— Ouviste Liadan — disse Gull. — Embora. Faz o que ela disse.
No espaço de segundos, o meu pai e eu estávamos sós.
— Bem — disse Lubdan, baixando a sua grande figura para se sentar nas rochas e estendendo diante de mim as pernas calçadas com botas. — Não esperava encontrar-te aqui. Que vou eu fazer contigo, Liadan? Parece que desenvolveste um gosto especial para desobedecer às regras e fazer pouco das convenções. Não te apercebes do perigo que corres aqui?
— Esqueça isso, por agora — repliquei, sobriamente. — Há outro assunto muito mais importante a tratar.
— Que pode haver de mais importante do que regressar a Sevenwaters, com Liam assassinado e Sean sozinho, com os nossos vizinhos a juntarem-se e a empurrarem-se uns aos outros, procurando vantagem? Devíamos estar lá e não aqui com esta ralé.
— Eu sei que o pai tem de regressar a casa — disse eu calmamente. — Sean precisa mais de si do que pensa. Ele enfrenta um grande desafio e deve ser apoiado. E... e precisa de cabeças sensatas, homens com experiência, que consigam distinguir um aliado de confiança de um vigarista. Tem de ir depressa. Mas eu tenho aqui uma tarefa terrível, pai e também preciso da sua ajuda. Snake disse a verdade. Bran está a morrer. Já quase perdeu a esperança, porque acredita que não vale nada. Está preso por um fio. Preciso da sua ajuda para manter esse fio preso, até conseguir agarrar-lhe na mão e trazê-lo de volta. A mãe mandou-o ao outro lado do mar para descobrir a verdade. Preciso dessa verdade que o pai descobriu. Preciso que ma diga agora, rapidamente.
— Compreendo a tua urgência, Liadan; reconheço os laços que te ligam a este homem e a confiança que depositas nele. E sei que o teu juízo é correto. No entanto, tens demasiada fé em mim, filha. Não são estes os mesmos foras-da-lei que raptaram a tua irmã e quase a perderam? É verdade, trataram-me com cortesia inesperada. Ao ouvi-los falar de ti, dir-se-ia que, para eles, tu és meio rainha, meio deusa. Mas, por que razão não me dizem eles nada sobre a tua vinda para aqui, tão longe de casa e logo a seguir à morte do teu tio? Como será possível eu não temer pela tua segurança?
— Estes homens dariam as suas vidas por mim e pelo meu filho, todos eles. O pai está em segurança, aqui.
— O teu filho? Johnny também está aqui? Mas...
— Por favor, pai. Por favor, diga-me o que descobriu. Preciso de saber o que aconteceu a Bran; o que aconteceu à mãe dele. Soube alguma coisa acerca de Margery?
— Soube, filha. Uma história bem triste. Persegui-a por todas as aldeias de Harrowfield, até há 18 anos atrás. Não ta posso contar toda, mas na aldeia de Elvington, que fica para lá dos montes de Harrowfield, descobri uma coisa escondida há muito.
— Conte-me o que sabe. Não, melhor ainda, venha sentar-se comigo ao pé dele e conte-nos, aos dois. Ele... ele acredita que a mãe o abandonou. É uma ferida profunda, que ele carrega há longos anos. Mas a minha mãe disse-me que Margery amava o filho; não acredito que o tenha abandonado de livre vontade.
— Contar aos dois? — O meu pai parecia perplexo, enquanto nos encaminhávamos para a figura imóvel, de rosto cinzento, dentro do abrigo. — Como é que ele nos pode ouvir? Este homem não tem consciência do mundo que o rodeia. Já não tem salvação. O teu amor é que faz com que esperes milagres. Mas os milagres são raros, minha querida. Já vi homens neste estado...
— Pare! — gritei. — Pare! Se só vem falar de derrota e morte, mais valia não ter vindo! Eu preciso da sua ajuda, não das suas palavras derrotistas. E agora, conte-nos a história.
Segurei na mão tatuada de Bran e levei-a ao rosto.
O meu pai ficou a olhar para mim, os seus olhos azuis muito brilhantes.
— Já reparei — disse ele — na maneira como os homens, neste acampamento de fora-da-lei, te obedecem sem discutir. Na verdade, pronunciam o teu nome com um respeito quase reverente. No entanto, a situação deixa-me perplexo. Nenhum homem gosta de ver a sua filha em semelhantes circunstâncias. Peço-te desculpa pelas minhas palavras. Se falo assim, é porque odeio ver-te magoada. O juízo da tua mãe não tinha falhas. Eu nunca lhe disse o que devia fazer. Mas tenho... dificuldade em aceitar as tuas escolhas. Mas, fiz-te uma promessa e pretendo cumpri-la, se bem que me custe muito ver-te assim.
— Conte-nos a história.
— Muito bem. É uma história de pouca sorte e de oportunidades perdidas; uma história que dá força ao argumento deste homem, de que eu tenho alguma responsabilidade pelo que lhe aconteceu. Quanto a isso, posso indenizá-lo. Mas não posso alterar o passado; já está escrito. Começou no ano em que o filho de Margery tinha três anos e ela viajou com amigos até à feira de Inverno de Elvington.
Escutei a sua voz, calma, pausada. Lá fora, Gull regressara para montar guarda junto da fogueira, uma figura escura na escuridão da noite sem luar. Para lá do círculo de luz, as sombras reuniam-se sob as grandes faias, entre as velhas pedras e através da superfície serena da lagoa escura. Algures, uma presença encapuçada esperava, silenciosa e imóvel, como se não passasse de mais uma sombra.
— Tu sabes — disse o meu pai — como o meu amigo e parente John foi morto ao meu serviço. Esmagado por uma queda de rochas, enquanto estava de guarda à tua mãe. Fui eu que lhe dei essa tarefa; mas foi Richard de Northwoods que ordenou o assassínio. Margery aceitou com muita dificuldade a morte do marido. Eram muito devotados um ao outro. Terem-lhe roubado o marido quando o filho ainda não passava de um bebê fora uma crueldade. Tornou-se esquiva e calada e apenas o seu filho Johnny lhe dava forças para continuar. Nele, ela via o futuro que fora negado a John; nele via o seu próprio objetivo.
“Durante algum tempo, o seu filho foi o alvo de todas as atenções, enquanto a dor da sua perda ainda estava fresca. Como sabes, deixei Harrowfield mais ou menos um ano depois da morte de John, quando Margery ainda estava de luto. Com o tempo, ela foi persuadida pelos amigos a sair um pouco, a dar-se com pessoas. Assim, no Inverno em que Johnny fez três anos, viajou com alguns amigos de Harrowfield para Elvington, para a feira de Yuletide. A viagem não era longa. Pode ser feita facilmente num dia, ou mais gradualmente, com uma paragem para passar a noite. Foi o que fizeram, já que a criança viajava com eles e cansava-se mais.
“É aqui que a história começa a ficar confusa. O meu irmão disse-me que o grupo sofreu uma emboscada algures, nos montes, sobre Elvington. Quem os atacantes eram, ou o que desejavam, permanece um mistério. Homens de uma tribo qualquer de Pictos do outro lado da fronteira, talvez, em busca de cordeiros; quando um grupo de viajantes bem-vestidos se lhes atravessou no caminho, deve ter-lhes parecido uma oportunidade demasiado boa para desperdiçar. Mais tarde, nesse dia, um pastor encontrou os corpos dos viajantes na estrada, perto de uma cabana isolada; todos os homens e todas as mulheres tinham sido degolados. Mas a criança, não. Johnny não estava entre eles, por mais que procurassem. O que era estranho. A ideia de que os Pictos pudessem tê-lo levado, como escravo ou refém, em breve foi descartada. Era demasiado novo, demasiado incomodo, para homens em movimento. Mas não foi encontrado nenhum corpo pequeno. Cães selvagens, disseram as pessoas, eventualmente. Cães selvagens tê-lo-iam levado, como se fosse um coelho, ou uma corça. Não valia a pena continuar a procurar. O meu irmão recebeu a notícia com tristeza, mas aceitou-a. Era um fim triste para Margery, que chegara a Harrowfield como noiva, cheia de esperança.
Podia ter sido o fim da história. Passaram-se seis anos. Os nomes de John e Margery desvaneceram-se na história de Harrowfield, assim como o meu: Lorde Hugh, que fora, um dia, senhor daquele domínio, que os abandonara pelos olhos verdes de uma feiticeira do outro lado do mar, uma bruxa, cujos irmãos eram meio homens, meio animais. Assim, os anos foram passando. O meu irmão casou-se. O trabalho de Harrowfield continuou. Edwin reclamou Northwoods e aumentou a sua força.
E então, na primeira assembléia do novo ano, pouco depois do solstício de Inverno, o meu irmão Simon foi confrontado com um caso bizarro. A princípio, não havia razão para acreditar que fizesse parte da mesma história. Um homem fora assassinado numa cabana isolada, nos montes por cima de Elvington; um tipo cruel e depravado, detestado e temido pelos vizinhos e aldeões. Fora como que uma execução, feita com limpeza, um golpe preciso, mesmo no coração, com uma delgada faca dentada, um instrumento vulgarmente utilizado no desossamento de galinhas. Passou-se algum tempo até o corpo ser descoberto. Ninguém gostava de se aproximar do local. Rory era capaz de se transformar num monstro quando bebia umas cervejas, dado a acessos violentos de raiva e que olhava demasiado para as raparigas. Quando Simon me disse o nome do homem, lembrei-me logo dele. Tinha vindo à minha presença, acusado de uma coisa muito séria; de violar a filha de um moleiro e de tê-la engravidado. Não ficou impressionado com o castigo que lhe impus; nunca ouvi tantas ameaças e pragas. Ordenei que indenizasse devidamente a família da rapariga e bani-o das minhas terras por cinco anos. Parece que regressou, mal soube que eu me tinha ido embora. E agora, estava morto. Não tinha mulher; pelo menos, na ocasião. Ela desaparecera e as pessoas diziam que não se admiravam nada. Costumava bater-lhe e a teoria era que, uma vez fora demasiado longe e tivera de se desfazer dela discretamente. Ninguém fez perguntas. Ninguém se atreveu.
— Portanto, quem o matara? Quem se atrevera a semelhante coisa, ainda por cima daquela maneira, tão eficiente? Muitos desejavam-no morto, mas todos temiam fazê-lo.
Todos. Todos, menos o rapaz. Devia ter adivinhado que aquela era a parte seguinte da história, porque o próprio Bran ma contara. Farei o que tem de ser feito e continuarei.
— Fale-me do rapaz — disse eu.
— Havia um rapaz — disse o meu pai. Alguns aldeões diziam que era filho de Rory e outros diziam que era um enjeitado, um bastardo, um fedelho que ninguém queria, que aparecera por ali e a quem fora permitido ficar. Um par de mãos extra. Ninguém se lembrava de quando ele aparecera. Não se lembravam da mulher de Rory com um bebê, olha quem. Lembravam-se de ver aquele miúdo magricela, sempre cheio de nódoas negras. Era como um fantasma, mas não era nenhum fracalhote. Os miúdos provocavam-no e ele virava-se a eles como um animal selvagem e, com o tempo, aprenderam a temê-lo e a deixá-lo em paz.
“Assim, ali estava Rory com uma facada no coração e o rapaz desaparecido, sem deixar rasto. O povo de Elvington apresentou o caso ao meu irmão, formalmente, na assembléia. Que fazer? Devia perseguir-se o criminoso? E a cabana de Rory, e as galinhas? Quem ficaria com esses pertences?
Simon ordenou um inquérito. Ele nunca fora muito chegado a John e mal conhecera Margery. Mas eram parentes e se o rapaz estava vivo, devia ser encontrado. Não era apenas uma questão de o levar perante a justiça, porque a perda de Rory fora uma bênção para o povo de Elvington. Era mais uma questão de procurar a verdade e emendar erros passados. Houve uma busca e a cabana e os anexos de Rory foram virados do avesso. Não havia grande coisa. O homem bebia o pouco lucro que fazia com as galinhas. Mas encontraram uma coisa esquisita, o que começou a despertar recordações entre os locais. Por baixo do soalho de um dos anexos havia um pequeno alçapão, escavado no solo e rusticamente tapado com tábuas. E quando alguns dos aldeões viram aquilo, começaram a recordar-se de coisas que ouviam quando iam até lá para comprar feno, ou alguns ovos.
Acenei com a cabeça.
— Costumava metê-lo lá dentro, de castigo — disse eu. O meu pai olhou para mim.
— Como é que sabias?
— Foi ele que me disse. Não por palavras. Mas mostrou-me. O pai disse que ele não tinha consciência do mundo. Está enganado. A mente dele continua a trabalhar. E está inundada de recordações terríveis. Esteve prisioneiro, não há muito tempo, num pequeno espaço escuro. E ficará lá fechado para sempre, se eu não o conseguir fazer sair. Tenho utilizado as minhas capacidades para ver o que ele vê; para ligar os meus pensamentos aos dele. Dessa maneira espero chegar até ele antes que seja tarde. Diga-me, o que é que as pessoas disseram dessa descoberta?
— Tiras-me a respiração, Liadan. Esse dom é, certamente, maior do que tudo o que eu imaginava. Um dom perigoso.
— Diga-me, pai.
— Começaram a lembrar-se. Das vezes em que o rapaz não era visto em lugar nenhum e Rory lhes dizia que um bastardo estava bem era numa caixa, até aprender a obedecer. Das vezes em que ouviam pequenos sons que vinham do subsolo, pequenos movimentos, uns arranhares. Uma ratazana, dizia Rory. Um deles tinha visto; tinha visto a mulher de Rory a tirar o rapaz de lá, a tremer, a tremer, silencioso, as roupas cheias de sujidade e excrementos. Porco sujo, dizia ela, batendo-lhe no rosto. O que era estranho era que ele não dizia uma única palavra. Nem chorava. Nem tentava proteger-se. Ficava ali e esperava que ela acabasse. Aquilo punha-a furiosa e ainda lhe batia com mais força. As pessoas não gostavam de ir até lá; não gostavam do que viam. Mas ninguém protestava. Tinham um medo terrível de Rory. Além disso, diziam, ninguém tem nada com o que se passa em casa alheia.
— Como é que descobriram quem era o rapaz?
— Ah. Foi a busca que provocou a descoberta. Escondida dentro da cabana estava uma coisa que tornou tudo claro. — O meu pai meteu a mão na algibeira e tirou algo pequeno e macio, feito de tecido forte, bom, com um remate em seda. Desdobrou-o sobre o cobertor, entre os dois, de maneira que ficou em cima do coração de Bran. A luz não era muita, mas eu pude ver que era um bordado de folhas, flores, pequenos insetos alados. Não houve dúvidas quanto à pessoa que tinha feito isto — disse o meu pai. — Margery tinha mãos de fada. Deves ter visto um bordado parecido com este no vestido que a tua mãe usava... — A sua voz calou-se, porque a ferida ainda estava aberta.
— É verdade — disse eu suavemente.
— A família de Margery era apicultora, no sul — disse ele. — Isto era uma pequena bolsa que ela tinha, onde guardava as coisas de valor. Tinha lá dentro umas moedas de prata, para a feira. Isso desapareceu, claro; Rory abarbatava tudo o que lhe passava pelas mãos. Não podia vender isto, nem o que estava lá dentro; era um sinal evidente da identidade dela e toda a gente sabia que ela morrera perto dali. É inacreditável que Rory, sabendo quem o rapaz era, tenha ficado com ele em segredo. Deve ter sabido logo que as buscas tiveram lugar; talvez, até, se tenha juntado a elas, ao lado dos homens do meu irmão. Por que é que não mostrou o rapaz, para que o levassem para Harrowfield? Mas Rory preferiu que eles acreditassem na história dos cães selvagens. Por qualquer razão, decidiu ficar com o rapaz. Homens como ele saboreiam o poder que têm. Suponho que achou aquele pequeno escravo divertido. Rory sabia que o rapaz era meu parente e odiava-me, depois do que eu lhe tinha feito. Sem dúvida que essa é a fonte da amargura deste homem para comigo. Deve ter crescido a ouvir o pior acerca de mim.
— O que é que estava na bolsa? — perguntei-lhe.
O meu pai passou-me um pequeno objeto de metal, enfiado numa fina corrente.
Segurei-o na mão, sentindo, mais do que vendo, a tampa, de prata, pensei, gravada com um padrão delicado em volta de um centro de esmalte.
— O que é que tem dentro?
— Duas mechas de cabelo. Uma encaracolada e castanha e a outra loira e lisa. A primeira é de John; a segunda pertencia à primeira filha deles, que morreu pouco depois de nascer. Esta caixa foi um presente de John, quando souberam que ela estava grávida pela primeira vez. Um presente de esperança. Margery usava-a sempre. Mal imaginavam que se tornaria num símbolo de morte e perda. Como chegou à cabana de Rory, ninguém sabe.
— Ah — disse eu. — Mas ele lembra-se e, assim, eu sei.
— Como é que ele pode lembrar-se? Ainda só tinha três anos.
— A voz dela. As mãos dela. Ela escondeu-o no alçapão. Suponho que estavam perto da cabana, que está isolada no meio dos montes, quando foram atacados. Entrar e tentar esconder-se, seria inútil; os Pictos não respeitam a propriedade e tê-los-iam expulso por meio de fogo, ou, simplesmente, teriam entrado. Mas ela podia esconder a criança durante o tempo suficiente. Pediu-lhe que ficasse quieto e calado, enquanto o descia para aquele espaço minúsculo, por baixo do chão. Ele fez o que ela lhe disse, se bem que não gostasse do escuro, ou dos sons estranhos que vinham de cima. Suponho que ela lhe juntou algumas coisas de que gostava a bolsa, as moedas de prata e a caixa, onde guardava o amor dos que perdera. Então, saiu e correu, para desviar a atenção, da mesma maneira que uma ave flutua e mergulha, afastando o animal predador do ninho onde as suas crias estão, indefesas. Assim, morreu e a criança permaneceu calada. Manteve a fé, apesar de o tempo se prolongar indefinidamente. Ele esperou, esperou e, por fim, a sua pequena prisão foi aberta. Mas as mãos que desceram para o libertar não eram da sua mãe. Eram as mãos de um monstro; e foi então que a verdadeira escuridão se abateu sobre ele.
O meu pai acenou gravemente com a cabeça.
— Não posso deixar de acreditar em ti, porque encaixa tudo na história contada pelos aldeões. Perguntei ao meu irmão por que razão as pessoas não tinham feito perguntas acerca do aparecimento tão súbito da criança, quando outra tinha desaparecido. Mas não encontrou respostas em Elvington. Parece que a criança foi mantida escondida durante um tempo considerável. As pessoas ouviam chorar, por vezes. Em vez de despertar a sua curiosidade, aquilo teve o efeito oposto. Aquela gente é supersticiosa. Disseram que era um fantasma, o fantasma da criança levada pelos animais selvagens. O que manteve as pessoas afastadas. Mais tarde, quando o rapaz começou a ser visto em volta da cabana e na aldeia, ninguém pensou que pudesse ser o mesmo. Disseram que aquele bastardo não parecia nada filho de fidalgos. Deixaram que lhe batessem e abusassem dele durante todos aqueles anos e ninguém fez nada. É preciso muita coragem para interferir nos assuntos de um homem como Rory. Grande, forte e depravado. Um homem de má reputação. Todos o temiam. Simon não sabia nada disso, na ocasião. Se soubesse, talvez tivesse interferido. Mas ele tinha os seus próprios problemas. Tenho responsabilidades nisto, Liadan, sinto-as, pesadas. Que o filho de John tenha sido sujeito a tamanha crueldade tão perto de casa, é imperdoável. Portanto, como vês, o teu homem tinha razão, quando me culpava. Se se tornou num foragido, a culpa é minha. Eu não podia ter previsto a morte da mãe dele. Mas podia tê-lo protegido.
— O passado não pode ser reescrito, pai.
— Isso é verdade. Mas o futuro pode ser mudado. Se ele sobreviver.
— Ele há de sobreviver. Só precisa de reconhecer que foi amado, em tempos, que foi o filho de um homem e de uma mulher de grande integridade, que teriam dado tudo para o ver crescer seguro e feliz e teriam feito tudo para lhe dar uma boa vida. Só precisa de ver isso e será libertado.
— Não acredito que nos tenha ouvido.
— Vai ter de lho dizer outra vez. Vai ter de lhe dizer o que isto significa para si. Talvez o ouça. Pelo menos, as nossas palavras encherão o silêncio. E a parte seguinte da história?
— Rory foi morto. Ninguém chorou por ele. Tudo o que as pessoas queriam era a cabana dele e as galinhas. Foi o rapaz que o matou?
— Foi o rapaz que administrou o castigo. Com eficiência, como tudo o que ele faz. Esperou até ser homem, matou-o e afastou-se do pesadelo. Mas o pesadelo continua, colado ao seu espírito.
— Até ser homem? Mas, ele não tinha nove anos, na ocasião?
Acenei com a cabeça.
— Tinha idade suficiente para seguir o seu próprio caminho. Por que é que o seu irmão não conseguiu descobrir o que lhe aconteceu, depois disso?
— Ele tentou; mas os seus recursos eram limitados. Simon tinha imensas dificuldades. Edwin governava Northwoods com mão de ferro e a guerra recomeçara. A minha deserção, segundo eles, não tinha contribuído nada para a posição neutral de Harrowfield. E Simon não estava treinado para governar o domínio, como eu. Mas tinha de aprender depressa. Elaine ajudou-o muito; ela é muito mais sensata do que ele. Mas as pessoas não esquecem. Eu não fui perdoado pelo que fiz e as responsabilidades do meu irmão eram pesadas. Mesmo agora, ao fim de tantos anos, o seu caminho é tudo menos suave.
— Que quer dizer?
— Ele recebeu a notícia da morte de Sorcha com muita dificuldade. Se bem que tenha uma esposa e o respeito do seu povo, o seu coração sempre pertenceu à tua mãe. A história deles nunca foi contada por completo, nem nunca será. Ele ficou próximo do desespero. Pediu-me para ficar, mas não era possível. Tenho medo por ele, Liadan. Harrowfield não tem herdeiros e Edwin de Northwoods está atento.
— Não tem herdeiros?
— Eles não têm filhos. O parente mais próximo que têm sou eu e Sean. E... este homem. — O meu pai olhou para o rosto de faces encovadas de Bran.
— As suas palavras perturbam-me, pai. Vai voltar? Vai reclamar Harrowfield outra vez?
— O meu irmão precisa de ajuda. Precisa de alguém com mão forte e cabeça limpa; alguém que possa reconstruir as defesas do domínio e faça ver a Northwoods que Harrowfield não está a saque. Se Liam ainda fosse vivo, seria mais fácil para mim. Mas não posso deixar que Sean trate dos negócios de Sevenwaters sozinho. Ainda é novo, demasiado impulsivo. Com o tempo tornar-se-á num ótimo líder, mas, por agora, precisa da minha ajuda para reforçar as alianças e marcar a sua posição. Temos de começar tudo de novo com os Uí Néill. O meu primeiro dever é para com o meu filho. E não me esqueci das minhas filhas. Quero ver-te segura e estável. E Niamh; não procedi bem com ela e tenho de ter a certeza de que o futuro dela está em boas mãos.
— Mas, e o seu irmão? Harrowfield não se perderá, se esperar? Se Edwin avança sobre Simon, a nossa campanha pelas Ilhas estará condenada.
— É verdade. É um dilema, porque seria loucura da minha parte, ou de Sean, possuir domínios em ambos os lados do mar. Mas há outra possibilidade.
Ele olhou, de novo, para o homem inconsciente.
— Bran? — sussurrei, chocada. — Isso... isso é impensável, certamente.
— Suspeito que — disse Lubdan calmamente — para um homem como este nada é impensável, ou impossível. Não é o que dizem dele?
— É, mas...
— Este homem é filho de um parente meu; nasceu no vale. E é, no fim de contas, forte e cheio de recursos, se bem que um pouco disparatado. Pode argumentar-se que Harrowfield é o seu destino, Liadan; e o teu.
— Ainda falta muito; ele não pode ser confrontado com isso, para já. Ainda não.
— Achas que ele não teria coragem para regressar ao local do seu pesadelo? Isso não condiz com o líder de quem os seus homens falam com tanto respeito, um homem que se levanta contra cada desafio.
Engoli em seco. As suas palavras aterravam-me, mas, ao mesmo tempo, encantavam-me. Aquilo era uma missão: um futuro brilhante. Mas, primeiro, as grilhetas do passado tinham de ser quebradas.
— Pai — disse eu — preciso de ficar sozinha, agora; sozinha com Bran. Gull arranja-lhe um sítio para descansar. Mas, diga-me só mais uma coisa.
— O que é, filha?
— Desenhe-me rapidamente uma imagem de John e Margery, antes que estes horrores o cubram por completo. Como era entre eles e o filho.
— John achava que Margery era a coisa melhor do mundo. A mais preciosa. Viu-a na propriedade do pai, a recolher mel. E levou-a para norte com ele. O amor entre os dois brilhou, desde o primeiro dia. Ele era um homem de poucas palavras; algumas pessoas achavam-no taciturno. Mas, quando ele olhava para ela, o amor estava nos olhos dele. O mesmo acontecia quando se tocavam um ao outro. Ela perdeu o primeiro filho logo após o nascimento e choraram-no muito, juntos. Depois, nasceu Johnny, que sobreviveu. John estava tão orgulhoso. Não tinha vergonha de brincar com ele, atirava-o ao ar e apanhava-o com aquelas mãos fortes e a criança guinchava de excitação. Houve um incêndio na casa, uma vez e eu nunca hei de esquecer a expressão de John ao subir pelas escadas acima para salvá-lo, nem o olhar de Margery, quando os dois desceram sãos e salvos. Margery criava-o e amava-o. As pessoas diziam que ele aprendia com muita facilidade. Aprendeu a rastejar muito cedo, a andar muito cedo e a pronunciar as primeiras palavras muito cedo. Margery estava a ensiná-lo a contar. Punha uma fila de pedrinhas brancas no chão e jogava um jogo. Um, dois, três. Nunca vi uma criança ser criada com tanto amor, Liadan.
— Obrigada, pai — disse eu. — Talvez tenham sido essas coisas que o guiaram através das sombras, até agora. Esta noite, vou falar-lhe delas. E agora, vá.
— Na verdade, este homem tem sorte, tal como eu — disse o meu pai em voz baixa. — Ter o amor de uma mulher assim é um bem precioso. Espero que ele lhe dê valor.
— Ambos recebemos esse bem, ele e eu — disse eu.
— Tenho mais uma pequena história para te contar e depois farei o que me pedes. Houve uma coisa que Margery me disse, antes de eu deixar Harrowfield. O filho dela nasceu no solstício de Inverno, pouco antes da alvorada. Tenho boas razões para me lembrar disso. Ela disse que uma criança que nasça no solstício de Inverno vem ao mundo no dia mais curto do ano. A partir daí, os dias aumentam. Assim, a criança que nasce no solstício de Inverno caminha na direção da luz. Durante toda a vida. Ela tinha a criança nos braços, quando me disse isso. Lembra-te, Johnny, disse ela para o filho. Sorcha também era filha do solstício de Inverno e para ela essa pequena profecia foi verdadeira. Mas parece que este homem a esqueceu, já que procura apenas as trevas.
— Assim parece. Mas isso é só à superfície. Lá dentro, há uma pequena chama que continua a brilhar. Esta noite, vou descobri-la.
— Estás muito segura disso.
— Terceira regra de combate. Nunca duvides de ti próprio. E agora, toca a andar, porque o tempo escasseia.
— Liadan.
— Sim?
— Tu fazes isto parecer extraordinariamente simples.
— O mundo é simples, acho eu, na sua essência. Vida, morte. Amor, ódio. Desejo, satisfação. Magia. Essa é que é, talvez, a parte mais complicada.
Ele franziu as sobrancelhas.
— Tu procuras curar-lhe as feridas. Chegar até ele e, de algum modo, mudar-lhe a visão do passado. Mas isso é perigoso, Liadan. Além disso, não disseste que o passado não pode ser reescrito?
— Eu sei os perigos que corro. Estou armada contra eles. E a minha arma é o amor, pai. Não procuro fazer com que estas feridas desapareçam, como se nunca tivessem existido. Sei muito bem que ele há de sempre, transportar as cicatrizes. Não posso fazer com que o seu caminho passe a ser amplo e direito. Há de haver sempre curvas, e lombadas, e dificuldades. Mas posso segurar-lhe na mão e caminhar a seu lado.
CAPÍTULO DEZESSEIS
Gull apagara a fogueira e acendera uma lanterna. Suspeitei que, tanto ele como o meu pai, montariam guarda não muito longe, na escuridão. Tremendo ao ar de Outono, tirei as botas, o vestido, a combinação e a roupa interior. Então, deslizei para debaixo dos cobertores, ao pé de Bran. No outro lado, Johnny continuava a dormir, uma presença quente, pequena, encostada ao pai. A escuridão era profunda, apagando todos os outros sinais. Em cima, em baixo, à esquerda e à direita, tudo tinha desaparecido. Não se podia dizer se as paredes estavam longe ou mesmo ali, fechando-nos.
Mais perto, sopraram as vozes antigas. Mais perto. Assim, encostei-me mais a Bran, carne nua contra carne nua e envolvi-o com os braços. Sentia-lhe o coração a bater contra o meu e respirava ao mesmo ritmo dele. Assim é melhor, pareciam as vozes murmurar. Deixa-te ficar assim. Não o largues. Esta noite ele não tem qualquer luz, senão a tua presença.
E desta vez ouvi-o logo, como se estivesse à minha espera.
... escuro... muito escuro... um, dois, três... muito escuro... Hoje é noite de lua nova. Tiveste muitas noites assim. Mas esta é diferente. Eu estou aqui contigo.
... muito escuro... não posso... ir longe...
Ela disse que voltava para ti. Mas não pôde voltar, Johnny. Não pôde, se bem que tivesse querido, mais do que tudo. Em vez dela, vim eu. Já te perguntaste alguma vez por que razão ela não veio?
O coração dele começou a bater com mais força e eu fiz-lhe pressão na pele com os meus dedos, fazendo um esforço para que ambos continuássemos calmos. A mente dele estava cheia de imagens de escuridão, de dor, física e moral; imagens meio completas, distorcidas, misturadas. Uma faca; sangue; gritos; mãos a afastarem-se.
Morte. Perda.
... ela nunca mais voltou... ela nunca mais...
Ela amava-te. Mas deu a vida, para que tu te pudesses salvar. Ela não te abandonou, Johnny.
escumalha... bastardo desleixado... a minha própria mãe não me quis... nem para estrume sirvo...
Isso é mentira. Eu mostro-te. Leva-me de volta, Bran. Leva-me ao passado.
Não há passado. Ela deixou-me. Fica muito quieto, Johnny... quieto como um rato, meu amor, por mais que ouças... espera por mim... eu venho buscar-te assim que puder... as mãos dela, descendo-me, para a escuridão. As mãos dela a abandonarem-me. Fechando a porta. Nunca mais voltou. É tudo. Não há mais nada.
Ah. Mas vim eu ter contigo. Ela não pôde, mas amava-te e queria salvar-te. Agarra na minha mão, Bran. Eu estou aqui. Estende a tua mão para mim.
No exterior do abrigo, em redor da lagoa, as árvores restolharam. Mas não havia vento.
... está escuro. Não te consigo ver...
Leva-me agora ao passado. Agora, Bran. Agora.
Já te disse que não há passado, antes daquilo. As mãos dela, abandonando-me... nada mais.
Quem é que te ensinou a contar, um, dois, três, até dez? Um rapaz inteligente. Sedento de conhecimento e aventura. Quem colocou as pedras brancas e te ensinou os algarismos?
... um, dois, três, quatro... os dedos dela a apontarem, as unhas curtas, limpas, as mãos pequenas e delicadas... eu chego aos dez e ela bate palmas. Eu olho para cima, contente comigo próprio e ela sorri. O cabelo dela é como a luz do Sol, os olhos brilhantes. Muito bem, Johnny, muito bem. Que menino esperto! Vamos contar outra vez? Vamos pôr os nossos porquinhos em duas filas, assim mesmo.
Agora, o fazendeiro vai contá-los, metade para o mercado e a outra metade para engordar, para o Inverno. Quantos nesta fila... um, dois, três... mas ela foi-se embora... ela deixou-me...
Ela nunca te deixaria de boa vontade. Ela escondeu-te e depois deu a vida por ti.
Não ouviste a história que o meu pai contou? A tua mãe era a mais corajosa das mulheres. Ela queria uma vida de alegria e futuro para o seu pequeno filho do solstício de Inverno; ela queria que ele caminhasse na direção da luz. Quanto ao teu pai, o seu orgulho brilhava-lhe no rosto quando te segurava nos seus braços fortes... vais subir, vais subir até ao céu... subindo sempre, sabendo que aquelas mãos te apanharão sempre.
...Eu não posso... eu...
Ele apanhava-te sempre. Sempre. Os olhos dele eram cinzentos como os teus e também tão sinceros. Regressa, Bran. Regressa ao passado.
Para cima, para cima e para baixo. Para cima, para cima e para baixo. Voando no céu. Caindo nas mãos dele. Ele sorri. Cabelos encaracolados, rosto curtido. Olhos a brilharem de orgulho. Eu guincho de excitação. Mais não, filho, sorri ele, cansas-me.
Só mais uma vez, para cima, para cima e para baixo. E depois, os braços à minha volta, quentes, fortes. Eu pouso a cabeça no ombro dele, de dedo na boca.
Que bom. Seguro.
Senti uma gota de água no rosto, quente, na frialdade da noite. Mas não era eu que estava a chorar. Não me atrevi a levantar a cabeça para ver. Não me atrevi a mexer-me de onde estava, encostada a ele, com medo de destruir algo tão frágil como um simples fio de teia de aranha. Respirei profundamente e senti uma grande exaustão, que quase me submergiu. À nossa volta, todo o bosque se agitava, a folhagem restolhando, os gravetos estalando, a água sussurrando; até as pedras pareciam gritar na escuridão da noite.
— Ajudai-me — murmurei na escuridão. E cantei em voz baixa um pouco da velha canção, apenas o refrão, com o seu pequeno arco de melodia. O estranho vento soprou sobre o topo do abrigo, soltando uma voz poderosa, um som profundo, que se sobrepunha aos sons normais, um grito mais antigo do que a memória da humanidade. Vindo do grande túmulo, soando das profundezas da terra, vibrando das pedras eretas, um chamamento que não podia ser ignorado.
Sai, guerreiro! Tens uma missão à tua frente, uma missão para toda a vida, com enormes desafios, cujas recompensas não se podem contar. Avança e mostra-nos a tua verdadeira coragem. Mostra-nos a tua força de espírito, como fizeste uma vez, há muitos anos. Porque a força da criança é a força do homem. A criança e o homem são a mesma pessoa.
O grito cessou e o restolhar morreu lentamente, até se tornar numa calma, num silêncio profundo de antecipação. Esperava-se qualquer coisa da minha parte, sentia-o, qualquer coisa mais. Bran continuava imóvel. Aparentemente, nada mudara, à exceção das lágrimas que lhe caíam do rosto para o meu, partilhando a mesma dor pelas vidas ceifadas de tanta gente boa; a mesma tristeza por oportunidades perdidas.
Tinha de fazer algo, mas estava cansada, tão cansada, que era capaz de dormir para sempre, aconchegada contra o meu homem e o meu filho, o sono profundo, inocente, de uma criança... mas não, não podia ceder. Era quase madrugada e ainda não o tinha, ainda não. O silêncio era completo, à exceção do ligeiro sussurro na minha mente. Agora. Mas o quê? O quê? Se ele não tinha acordado face àquele toque de clarim, que podia eu dizer mais, que fosse mais convincente? Fizera tudo e ele continuava a nem sequer se mexer. O meu pai dissera que eu achava aquilo muito simples. Mas não era, era a coisa mais difícil que alguma vez fizera... e, no entanto, talvez, no fim de contas, a resposta fosse, na realidade, simples.
Vem, Johnny. Na minha mente estendi uma mão e procurei chegar à criança enroscada no pequeno espaço escuro. Ele não olhava para mim; as suas mãos cobriam-lhe os olhos, como se, ocultando a luz, ficasse invisível. Segura na minha mão, Johnny. São dez passos para sair, sabes? Mas talvez tu não saibas contar até dez. Sabes? Então, damos um passo de cada vez e vamos contanto à medida que subirmos. Quando chegarmos ao alto, a noite terá acabado. Segura na minha mão, Johnny. Estende a tua só mais um pouco. Isso. Isso, muito bem. Lindo menino.
Agora, conta. Um, dois, três... quatro, cinco... muito bem... seis, sete... oito... já falta pouco... tu consegues... nove... dez... muito bem, meu amor. Muito bem... As vozes dos Anciãos fizeram-se eco da minha, profundas, sonoras, sábias. Muito bem. E então, súbita e completamente, o cansaço apoderou-se de mim. Caí num sono profundo e tive um sonho maravilhoso, no qual eu estava deitada ao lado de Bran e lhe sentia as lágrimas salgadas nas faces, um sonho no qual ele se mexia e me rodeava com um braço, me tocava na testa com os lábios e voltava a ser ele. No meu sonho rodeava-lhe o pescoço com os braços e sentia-lhe o corpo quente e vivo contra o meu e dizia-lhe que o amava e ele dizia que sim, que sabia. Abruptamente, acordei e estava claro, não a claridade suave da madrugada, mas sim a claridade muito mais tardia, a claridade brilhante da manhã. Como fora possível dormir até tão tarde? Estendi o braço e a minha mão tocou na pequena figura do meu filho a dormir, enroscado no cobertor que nos tapava aos dois, na esteira. Teria acordado e tê-lo-ia amamentado, adormecendo de novo sem me dar conta? Como fora possível? Estendi o braço mais ainda. Bran não estava ali. A minha garganta secou e uns dedos gelados apertaram-me o coração. Ele não podia ter acordado, levantando-se. Era impossível, depois de tanto tempo sem comida e água, devia estar muito fraco. Aquilo significava... só podia significar... Levantei-me e lembrei-me, tardiamente, que estava completamente nua. Estendi o braço para o vestido, onde o deixara cair, na noite anterior, junto da esteira. As minhas mãos tremiam. Não o consegui encontrar, nem a combinação. Estava ali uma velha camisa, que me cobriria até aos joelhos. Enfiei-a pela cabeça e saí, aos tropeções, do abrigo. Estavam três homens sentados junto da fogueira reacesa: Gull, Snake e o meu pai. As suas cabeças viraram-se ao mesmo tempo para mim.
— Onde... o que...? — Foi o melhor que consegui dizer.
O meu pai leu rapidamente a minha expressão e levantou-se para me segurar nas mãos, falando-me tranquilizadoramente.
— Está tudo bem, Liadan — disse ele. — Respira fundo. Ele está acordado e no seu perfeito juízo. Estás pálida como um fantasma, filha. Anda, senta-te aqui um bocadinho.
— Eu... eu... onde?
— Não está longe; nós estamos de olho nele. Está lá em baixo. — Gull acenou com a cabeça na direção da margem mais distante da lagoa, longe do túmulo.
— Ele não nos deixou acordar-te — disse Snake em tom de desculpa. — O Chefe não está lá muito bem-disposto. Como previmos, aliás. Mas está vivo. Conseguiste.
— Ele está a pé e a andar? — Não conseguia acreditar. Estivera às portas da morte. Devia estar a sonhar. — Ele não devia ter saído da cama. Como é que vocês o deixaram...?
— Não nos deu hipótese. Quase nos arrancou as cabeças. Mas já bebeu água suficiente e, como já disse, temo-lo vigiado. É melhor deixá-lo sozinho.
— É melhor vestires-te — observou Gull, olhando-me de cima a baixo. Corei.
— Onde estão as minhas roupas?
— Algures, a serem lavadas. Vamos arranjar-te outras. Estás a precisar.
— Tenho de ir... tenho...
— Talvez ainda não — disse Gull. — Ele deu-nos ordens. Deixá-lo só. Talvez mais tarde.
O meu pai aclarou a garganta.
— Eu falei com ele durante algum tempo, Liadan. Contei-lhe a história, como me pediste. Talvez seja melhor seguires os conselhos destes homens e dar-lhe algum tempo.
— Acho que não — disse eu e afastei-me, andando sob as faias com os pés descalços e com a minha camisa demasiado curta, na direção da margem norte da lagoa, onde uma grande árvore caíra há muito tempo. Agora, o seu tronco maciço estava cheio de musgo entre as suas fendas e falhas e no seu interior havia tocas e esconderijos para uma miríade de minúsculas criaturas.
Só acreditei quando o vi, sentado nas rochas, para lá daquela árvore e de costas para mim, com uma obstinação na posição dos ombros que eu reconheci logo. Usava as suas velhas roupas de cor indefinida, que lhe pendiam, como se pertencessem a um homem bastante maior. Estava a olhar para baixo e nas mãos virava, vezes sem conta, a pequena caixa de prata. Desejei correr e abraçá-lo, para me assegurar de que aquilo era real e não uma visão falsa. Mas aproximei-me cuidadosamente, sem fazer qualquer ruído com os meus pés descalços. Mas aquele homem era perito no que fazia. Falou sem se virar, fazendo-me parar a uma distância de dez passos. A sua voz era tensa.
— O teu pai vai-se embora esta manhã. É melhor empacotares as tuas coisas e ires com ele. É melhor. E é melhor para o bebê. Aqui não há nada para ti.
Reuni todas as forças que me restavam para não chorar, para não lhe dar a oportunidade, mais uma vez, de me dizer que uma mulher chora quando lhe apetece, para conseguir o que quer. Reuni todas as forças que me restavam para não me aproximar dele e dar-lhe um murro no queixo, dando-lhe a saber que, se bem que não quisesse gratidão, não queria ser despedida como uma assalariada, cuja tarefa está completa. Aprendera muito, desde que o vira pela primeira vez. Aprendera que a mais evasiva, a mais difícil das presas tinha de ser caçada com cuidado, paciência, subtileza.
— Eu... eu recordo-me que uma vez disseste-me — disse eu, mantendo a voz o mais firme possível — que nunca me mentirias. O meu pai falou-te numa promessa que me fez?
Seguiu-se uma longa pausa, antes de ele me responder.
— Não dificultes as coisas mais ainda entre os dois, Liadan — disse ele e enquanto eu me aproximava pude ver que as mãos dele tremiam, segurando a caixa de prata.
— Falou-te?
— Falou.
— Muito bem. Nesse caso, sabes que a escolha é minha, não do meu pai.
— Como é que podes escolher? Não passa de bom senso, deixares-me. Que futuro para... para...
Aproximei-me dele e coloquei-me na sua frente, a três passos de distância. Se alguém quebrasse o código, não seria eu.
— Olha para mim, Bran — disse eu. — Olha para mim e diz-me que queres que eu me vá embora. Diz-me a verdade.
Mas ele continuou a olhar para as mãos.
— Deves pensar que eu sou fraco — murmurou. — Depois disto, perdi o direito ao respeito.
Apesar de todos os seus esforços, vi os sinais de uma lágrima no seu rosto, brilhando no lado tatuado, onde não fora capaz de a reprimir.
— Gostava tanto de secar essas lágrimas — disse eu docemente. — Gostava tanto que tudo te fosse mais fácil. Mas não sei como.
Seguiu-se um silêncio incrivelmente pequeno; uma batida no coração do tempo, ao mesmo tempo que as árvores, as rochas e até as correntes de ar pareceram suspender a respiração. Então, ele estendeu a mão, cegamente e agarrou-me no braço, puxando-me para ele. Fiquei ali com a cabeça dele encostada ao meu peito e os meus braços em redor do seu pescoço, enquanto ele derramava as lágrimas retidas durante tanto tempo.
— Pronto, Bran. Está tudo bem. Está tudo bem. Chora, meu amor. — Seguiu-se um longo período de tempo, ou um pequeno. Quem pode dizer? Os homens não nos perturbaram, as altas faias olharam para nós em silêncio e o Sol subiu alto no céu frio de Outono. Não é assim tão grave, um homem adulto chorar. Não quando tem 18 anos de dor e desgosto dentro de si; não quando, por fim, depois de uma longa e penosa jornada, encontra a verdade. Finalmente, ele parou e eu usei um canto da minha vergonhosa camisa para lhe limpar o rosto, dizendo-lhe severamente:
— Nem sequer devias estar fora da cama. Comeste alguma coisa esta manhã, ou estiveste muito ocupado a dar ordens?
Sentei-me ao pé dele, nas rochas, muito perto, para que os nossos corpos se tocassem.
— Na verdade, foi incrível acordar — disse ele, trêmulo e ver-te ali deitada a meu lado, sem uma única peça de roupa entre os dois. Incrível e frustrante, porque estava demasiado fraco, só podia olhar para ti. Mesmo agora, mal consigo levantar um braço para te abraçar, quanto mais aproveitar-me dessa peça de roupa interessante que estás a usar. Suspeito que não tens mais nada senão isso.
— Ah — disse eu, sentindo o calor a subir-me às faces. — Já adquiriste um certo sentido de humor. Gosto disso. Mas haverá outras manhãs.
— Pode haver como, Liadan? Como pode haver tempo para nós? Tu não podes viver no meio destes homens, viajando pela calada, sempre a olhar por cima do ombro, proscrita, perseguida. Nunca te sujeitaria, ou a ele, a uma vida dessas. A decisão está para lá daquilo que gostaríamos para nós próprios. A tua segurança está antes de tudo. Além disso, como podes ficar comigo depois do que aconteceu? Permiti que aquele homem me... apanhasse; permiti que Gull fosse mutilado e que tu suportasses um tratamento terrível, tu e o meu filho. Agora, não passo de uma sombra de homem, trêmulo, choramingão. Que hás de pensar de mim?
— Não mudei de opinião acerca de ti desde a última vez que nos vimos — disse eu firmemente.
— Que estás para aí a dizer, Liadan? — Ele continuava a olhar para o chão, recusando-se a olhar para os meus olhos. Deslizei da rocha onde estávamos sentados e ajoelhei diante dele, obrigando-o a olhar para mim. Envolvi as suas mãos com as minhas e a caixa de prata ficou segura, protegida por ambos.
— Lembras-te — disse eu em voz baixa — do que me perguntaste em Sevenwaters, que queria eu para mim? Eu disse-te que não estavas preparado para o ouvires. Achas que estás preparado, agora? O que é que recordas do que se passou aqui?
— O suficiente. O suficiente para saber que atravessamos anos e não dias. O suficiente para saber que estavas ali ao meu lado. E é isso que torna as coisas mais difíceis. Eu devia ordenar-te que te fosses embora, acabando com tudo. Eu sei que seria a coisa correta a fazer. Mas... mas acho que, no fim de contas, não consigo dizer-te adeus. Tenho nas mãos o amor da minha mãe e sei que o amor perdura, para além da morte. Que, quando se dá o coração, é para sempre.
Acenei com a cabeça, as lágrimas perigosamente perto.
— Ela escondeu as suas coisas mais preciosas — disse eu. — Esta caixa, com as recordações dos seus entes perdidos. A sua pequena bolsa, transportando os símbolos de quem era e em quem se tornou. E o seu pequeno filho. Deu a vida por ele. John deu a sua vida ao serviço do seu amigo e parente. A verdade é essa.
Ele acenou sobriamente com a cabeça.
— Tenho andado errado com certas coisas. Não me ouvirás reconhecer Hugh de Harrowfield como herói; mas acho que o homem tem algumas qualidades. Foi muito direto comigo. Respeito isso. É mais parecido contigo do que imaginava.
— Ele é conhecido pela sua honestidade.
— Liadan.
Olhei-lhe para os olhos. O seu rosto estava extremamente pálido, as feições magras, exaustas. Mas os seus olhos diziam-me uma coisa completamente diferente. Estavam famintos.
— Não te respondi, pois não? Não te disse o que queria, pois não? Mas, é preciso dizer-te, Bran?
Ele acenou com a cabeça, sem dizer uma palavra.
— Disse-te que não tinha mudado de opinião acerca de ti, desde que vieste ter comigo a Sevenwaters e quase esquecemos o resto do mundo, por algum tempo. O que aconteceu, nestes últimos dias, faz parte de uma jornada em conjunto. Juntos, sofremos, suportamos, mudamos e voltamos a caminhar, de mãos dadas. Eu acho que tu és incrivelmente forte, por vezes, demasiado forte para teu próprio bem. Vejo em ti um líder, um homem de visão e audácia. Vejo um homem que continua com medo de amar e de rir; mas que está a aprender ambas as coisas, agora que sabe a verdade acerca de si próprio. Vejo o único homem que quero para marido e pai dos meus filhos. Tu e mais ninguém, Bran.
Ele levantou uma mão e estendeu-a até me tocar na face, com muito cuidado, como se estivesse a aprender, de novo, como fazê-lo, agora que tudo tinha mudado.
— Isso é uma... uma proposta de casamento? — perguntou ele e eu vi a pequena sombra de um sorriso no canto da sua boca, algo que nunca vira antes.
— Suponho que sim — disse eu, corando de novo. — E, como vês, estou a fazê-lo como deve ser, de joelhos.
— Hum. E é uma sociedade em partes iguais o que estás a propor, suponho?
— Sem dúvida.
— Estou sem palavras. Nem quero pensar em recusar-te. Mas, como posso aceitar-te? Estás a pedir o impossível. O seu rosto ficou, de novo, sombrio. — Estás a pedir-me que sujeite aqueles que mais amo a uma vida de perigo e fuga permanente. Como posso concordar com semelhante coisa?
— Ah — disse eu. — Não te queria dizer, pelo menos por enquanto; mas não me dás alternativa. Parece que há um lugar para ti... para nós... na Bretanha. Em Harrowfield. Um lugar e uma missão. Pelo menos, foi o que o meu pai me disse. A posição do irmão dele enfraquece a cada dia que passa; Edwin de Northwoods está de atalaia, pensando em ampliar o seu próprio domínio. O meu pai não pode regressar para o ajudar, mas tu podes. Não precisa de ser já; mas podias pensar nisso. É a terra do teu pai, Bran; é o povo do teu pai. Amaldiçoaste Lorde Hugh, uma vez, por virar as costas a Harrowfield e seguir o seu coração. Agora, ele dá-te a hipótese de fazer o que ele não pode: ajudar Simon a fortalecer e unir aquela boa gente uma vez mais.
Seguiu-se um silêncio prolongado e eu comecei a arrepender-me das palavras que dissera. Talvez eu tivesse razão. Talvez fosse ainda muito cedo para lhe dizer.
— Hugh de Harrowfield confia assim tanto em mim? — perguntou Bran suavemente.
Olhei-o nos olhos. Não havia dúvida, havia neles uma nova luz; uma chama de esperança e objetivo.
— Ele confia no filho de John — disse eu. — E, com o tempo, também o povo de Harrowfield confiará, quanto tu provares o que és.
— Eras capaz de ir? Eras capaz de ir comigo, para a Bretanha? Viver no meio de estrangeiros, longe da tua família?
— Eu não estaria longe da minha família, Bran. Seja para onde for que nós os três viajemos, estaremos em casa. Além disso, estás a esquecer-te de uma coisa. Eu sou meio bretã. Simon de Harrowfield é meu tio; aquelas pessoas são tanto minhas, como tuas.
Ele deu um pequeno aceno com a cabeça; a sua mão apertou a minha.
— Mal acredito — disse ele. — E, no entanto, acredito. A minha mente já salta, a pensar no que se pode fazer e como consegui-lo. Receio voltar lá; é um lugar de trevas e terror. No entanto, desejo voltar e compor as coisas. Anseio por provar o que me parecia impossível; que posso ser o filho do meu pai.
As suas palavras fizeram com que me apetecesse chorar. Ainda estava extremamente cansada da noite anterior e das mudanças tão rápidas, mal conseguia acompanhá-las.
— Os homens — disse Bran subitamente. — E os homens? Para onde irão? Não os posso deixar sozinhos, sem um lugar e um objetivo.
— Bem — disse eu. Pode ser que esses homens possam vir a ser mais úteis do que pensas. Vamos até à fogueira. Consegues pôr-te de pé? Andar, com a minha ajuda? Ótimo. Apoia-te no meu ombro. Vamos, apoia-te. Ninguém está à espera que exibas uma força semelhante à dos deuses, salvo, talvez, tu próprio. Essa ferida na cabeça era o suficiente para matar um homem. Estiveste sem comer durante dias e estás cheio de nódoas negras. Quero ver-te beber alguma água e comer umas papas de aveia. Os teus homens têm uma proposta para te fazer. Uma proposta que te vai interessar e responder a muitas das tuas preocupações. Eles têm olhado pelo seu Chefe com muita fidelidade, Bran. Talvez possas dizer uma palavra ou duas. Eu tenho de me despedir do meu pai, porque ele é preciso em casa. Mais tarde, voltaremos a falar com ele sobre estas coisas.
— Eu... — Ele oscilou, o rosto branco como a cal, como um fantasma.
— Anda, meu amor. Apoia-te a mim e percorramos este caminho juntos.
Eles conheciam-no demasiado bem. Assim, nem Gull, nem Snake, nem nenhum dos outros, se levantou para lhe oferecer apoio, enquanto ele caminhava cuidadosamente na direção da fogueira. Ninguém fez espaIhafato, ou comentou fosse o que fosse.
Mas havia um lugar para nos sentarmos, água para beber, assim como cerveja e papas de aveia em escudelas de barro. O meu pai continuava ali, mas já estava pronto para partir.
— Parece que tendes qualquer coisa para me dizer — disse Bran com um ar desagradavelmente carrancudo, uma vez sentado. Pareceu-me que todos os homens estavam reunidos à nossa volta, exceto os poucos que estavam, obrigatoriamente, de guarda nos perímetros do acampamento. Todos tinham um ar de profunda expectativa, que depressa desapareceu com a chegada de Rat, que transportava o meu bebê chorão.
— É melhor continuarem sem mim — disse eu, pegando no meu filho e levantando-me. — Suponho que é um assunto de homens.
— Tu pertences aqui — disse Bran muito calmamente. — Nós esperamos por ti. — Virou-se para Gull, com as suas mãos ligadas; para Snake, cujas feições tatuadas tinham a palidez de mais de uma noite sem dormir; para Otter e Spider, que acabavam de chegar de uma missão: para o grande e carrancudo Wolfe para o jovem Rat, guardião da coisa mais preciosa e mais pequena. — Tenho algumas coisas para vos dizer começou ele.
Enquanto amamentava Johnny, no abrigo, olhei para os homens e esperei que não falassem de Eamonn e do que ele tinha feito. Era evidente que o meu pai ainda não sabia a verdade; e eu achava que devia ser mantido na ignorância. O equilíbrio entre os membros da aliança ficaria delicado e eu não ia perder tempo a contar a Bran o acordo que fizera com o seu inimigo para assegurar a sua libertação.
Em breve, Johnny tinha acabado e agitava-se no meu colo, pronto para novas aventuras. Pousei-o no chão, reparando que as suas roupas tinham mudado, desde a simples camisa e calças com que viajara de Sevenwaters. Parecia ter-se passado tanto tempo, era como se o mundo tivesse mudado desde aquele dia. Alguém estivera ocupado com uma agulha e agora o meu filho usava uma pequena jaqueta de pele de veado e botas do mesmo material, cozidas com finas tiras de pele. Vestia uma espécie de túnica por baixo da jaqueta, cobrindo-o até aos pés. O tecido era às riscas, azul, castanho e encarnado-vivo. Um ótimo tecido; alguém tinha sacrificado uma peça de vestuário para que aquela obra-prima pudesse ser criada. Johnny começou a arrastar-se para fora do abrigo, eu peguei nele ao colo e saí.
— Eu tomo conta dele por um bocado — disse o meu pai quando eu apareci. — Vocês, certamente, não querem que eu esteja presente enquanto fazem planos.
— Eu acho que devia ficar. — Enquanto falava, olhei interrogativamente para Bran. — Porque este plano, se for para a frente, envolverá não só o meu irmão, mas também o pai. Acho que deve tomar conhecimento dele.
— Ela tem razão — disse Gull. — Ou isto vai para a frente com a ajuda de Sevenwaters, ou fica como está. Não arriscamos nada, se lhe dissermos.
— Não estou a gostar nada disto — disse Bran. — Está bem, então, pode ser. — O seu tom era feroz; mas quando me sentei ao pé dele e meti a minha mão na dele, senti-o estremecer e percebi o esforço que ele estava a exercer para parecer duro. O seu aspecto carrancudo transmitia uma mensagem clara. Eu sou o Homem Pintado. Atrevei-vos a pensar que sou fraco.
E eles contaram-lhe. Expuseram o plano, enquanto o meu pai se sentava no chão com o neto entre as pernas, brincando com gravetos e folhas. Um após outro, falaram. Tinham ensaiado bem. Gull expôs o plano em linhas gerais. Snake elaborou-o um pouco. Não houve argumentos emotivos; não se falou de mulheres nem de casamentos. Apenas lógica pura, vantagens e lucros e como ultrapassar certos problemas. Seguiu-se Otter. Só devia saber do plano desde o seu regresso, na noite passada, mas expôs todos os pormenores, de como o empreendimento seria pago, como o meu irmão poderia envolver-se e como os lucros podiam ser repartidos por todos, depois de todas as despesas pagas. De como, com o tempo, o investimento de Sean seria pago, em prata, gado, ou serviços.
Bran não disse uma única palavra e da sua expressão não transparecia nada. Quanto ao meu pai, ainda bem que estava sentado um pouco à parte, vigiando Johnny, porque podia muito bem ver o seu olhar chocado e como se esforçava por estar calado.
— Há o problema da acomodação. — Era a vez, agora, do grande Wolf, geralmente um homem de poucas palavras. — Disseram-me que havia uma ou duas casas, nessa ilha e alguns muros de pedra para manter os carneiros afastados das falésias. Vamos precisar de mais. Simples, baixas, construídas contra o mau tempo. Eu sei um pouco de construção. Podia ensinar os restantes. Fazíamos assim... — Acocorou-se, começou a desenhar na terra com um pau e todos assistiram profundamente concentrados. — ... colmo, bem apertado... pátio para treinos...
Eu continuava cansada e encostei a cabeça ao ombro de Bran, quase sem pensar. A sua mão apertou a minha e eu apanhei o olhar do meu pai. Nele já havia a sombra de mais um adeus.
O debate terminou. Seguiu-se um silêncio, no qual ninguém parecia querer ser o primeiro a falar. Foi Lubdan que o quebrou.
— Quereis que eu faça essa... proposta ao meu filho, quando regressar a Sevenwaters? Estais ao corrente, suponho, que Sean só se tornou o chefe do seu túath recentemente e que carrega um fardo bem pesado para um homem tão novo?
Bran acenou com a cabeça.
— Lorde Liam era um grande chefe; um homem equilibrado. Certamente, não será esquecido. Mas o seu filho é capaz de fazer melhor, com o tempo. Tem visão. Não há necessidade de lhe falar nisto. Tenho de pensar, primeiro. Se decidir ir em frente, convoco uma reunião. Tenho informações para Sean, que ele me mandou reunir.
— Eu podia, suponho, levar-lhas — disse o meu pai. O seu tom era pouco entusiasta.
Bran franziu o sobrolho.
— Não, fica entre mim e ele. O risco é menor. Eu falo com Sean quando chegar a altura.
Alguém assobiou baixinho. E Gull disse, incrédulo:
— Estás a dizer que a missão foi um sucesso, no fim de contas? Que conseguiste o que querias? Que não disseste nada, mesmo quando...
— Nenhuma missão é demasiado difícil para o Homem Pintado — disse eu rapidamente. — Estou surpreendida por ainda não o saberdes.
— Toca a trabalhar, todos — disse Snake, levantando-se. — Temos muito em que pensar e ponderar. O Chefe há de dar-nos a sua resposta, quando estiver pronto. Ide preparar o cavalo de Lubdan e aqueles que o vão escoltar examinai as armas e as provisões. Ele precisa de se ir embora.
— Dá-mo — disse Rat acocorando-se ao pé do meu pai e estendendo os braços para Johnny. — Eu fico com ele, agora. — Pegou na criança e os pequenos braços de Johnny rodearam-lhe, confiantemente, o pescoço.
O meu pai levantou-se.
— Muito bem — disse ele em tom distante e estendeu a grande mão para tocar no rosto do neto, gentilmente. E Rat afastou-se, correndo para o acampamento principal com o seu pequeno amigo oscilando e guinchando, excitado, nos braços. Os homens dispersaram, todos menos Gull, porque quando ele ia segui-los, Bran segurou-o pelo braço e disse:
— Não. Tu ficas.
E ali ficamos, os quatro, junto da pequena fogueira, com tantas palavras por dizer entre todos que era difícil saber por onde começar. Finalmente, Bran olhou para o meu pai e falou calmamente.
— Liadan falou-me na sua proposta quanto a Harrowfield. Muito pode ser feito lá, acho eu. Alianças reconstruídas; fronteiras asseguradas; defesas reforçadas.
— Talvez queiras tempo para pensar no assunto — disse o meu pai cuidadosamente. — Suponho que uma tal missão é nova para ti. Mas tu és meu parente e de Simon; tens direito ao domínio e capacidades que me parecem incontestáveis.
— Não preciso de pensar — disse Bran. — Aceitamos o desafio. No futuro imediato, quero Liadan e o meu filho longe destas paragens. Vamos para norte durante algum tempo. Os meus homens precisam de se instalar e começar a sua nova vida; o que não será tarefa fácil. Depois disso, vamos para Harrowfield. Liadan, eu e Johnny. Tenho de ser franco consigo. Não é por Lorde Hugh que concordo com isto, mas pelo meu pai, pela minha mãe e pelo lugar que me viu nascer. Quero esquecer certas coisas; assim, podem ser esquecidas e eu posso começar de novo.
Os olhos azuis do meu pai estavam frios. Mas a ligeira inclinação da sua cabeça era um sinal do reconhecimento da força de Bran; diria que ele estava surpreendido e impressionado.
— Muito bem — disse ele. — Vou tratar de que Simon seja informado, discretamente, das nossas intenções. A notícia vai entristecê-lo. Quanto ao futuro imediato, sinto-me pouco à vontade. Gostaria de te pedir que mantivesses a minha filha e o meu neto longe de perigo. Mas esse pedido parece-me pouco apropriado, aqui.
Senti a mão de Bran tensa na minha e ouvi-o suspender a respiração.
— Pelo contrário, pai, é muito apropriado — disse eu. — Como já lhe disse, estes homens são muito habilidosos em muitas coisas. Confia no meu juízo, não confia?
— Liadan fica protegida conosco — disse Gull e também ele estava zangado. — Mais protegida do que em casa de alguns a quem chama amigos.
— Que queres dizer?
— Nada, pai. Gull está a referir-se à habilidade destes homens para passarem despercebidos, evitarem ser detectados e utilizarem métodos invulgares de defesa. Não se preocupe comigo. Nunca pensei que algum dia me afastaria tanto de Sevenwaters. Mas é melhor assim. É a única hipótese.
— Levas-me a minha filha, então — disse Lubdan, olhando fixamente para Bran.
Bran devolveu-lhe o olhar, os seus olhos cinzentos firmes e límpidos.
— Só tomo o que me é dado de livre vontade — disse ele.
— É melhor ir — disse Gull. — Ainda é longe. Os nossos homens escoltam-no até às suas fronteiras.
— Não é preciso. — O tom do meu pai era frio. — Não estou tão velho que não me possa defender, ou despachar um inimigo.
— Já ouvimos dizer — disse Bran. — No entanto, há perigos de que pode não se aperceber. Quem sabe que armadilhas podem esperar um viajante solitário? Os meus homens acompanham-no.
— Gostava de falar com a minha filha a sós — disse Lubdan sem sorrir. — Se me for permitido.
Bran largou-me a mão.
— Liadan é livre de tomar as suas próprias decisões — disse ele. — Como minha mulher, continuará a sê-lo.
As sobrancelhas de Gull ergueram-se, mas ele não disse nada.
Desci até à margem da lagoa com o meu pai, observando-o enquanto ele apanhava uma pedra redonda e lisa e a atirava através da água, um, dois, três.
— Achas que isto vai resultar? — perguntou. — Uma escola de guerreiros? Uma casa para os fora-da-lei?
— Ele é que sabe. O projeto será modificado, sem dúvida, corrigido e melhorado, de acordo com as suas próprias ideias. É um novo passo para ele; mais um dos muitos com que vai ter de lidar.
— Ele precisa de ti. Eles precisam de ti. Isso vejo eu. Mas a tua escolha continua a chocar-me. Creio que cometi um erro na tua educação. És tão parecida com a tua mãe em tudo, que não esperava surpresas. Nunca acreditei que deixasses a floresta. Mas eu também fiz uma escolha, em tempos, contra todas as regras. E tu também és minha filha. O fato de regressares a minha casa, a Harrowfield, enche-me de orgulho e esperança. Gostava de ver a cara do meu irmão quando te vir pela primeira vez. Mas não consigo imaginar Sevenwaters sem a tua mãe e sem ti. É como se o coração da casa tivesse parado.
— Conor, sem dúvida, concordará consigo. Mas o coração da floresta continua a bater forte e lentamente, pai. Seria preciso mais do que essas duas perdas para o parar.
— Eu tenho outras preocupações. Há segredos, aqui, que me perturbam. Referências veladas. Partes de uma história que está por contar.
— E que deve continuar por contar, pai. Eu também estou ligada a uma promessa.
— Disseste-me que Niamh sobreviveu e que estava em segurança. Ela é minha filha, Liadan. Falei em emendar erros e esse é um dos que precisa de ser emendado. Gostaria que Niamh regressasse a casa. Se sabes onde ela está, deves dizer-me. A tua mãe gostaria muito.
— Lamento — disse eu em voz baixa. — Calculo onde ela esteja, mas não lhe posso dizer. Sei, apenas, que está em segurança e que tem quem olhe por ela. Ela não nos quer ver, pai. Nem quer regressar.
— Nesse caso, perco-vos a todas — disse ele, desanimado. — Niamh, Sorcha e tu. E o pequenino.
— Há de haver uma tribo de crianças em Sevenwaters, dentro de poucos anos. E o pai há de ver-me de vez em quando, assim como Johnny, pode ter a certeza. O pai vai estar ocupado; demasiado ocupado para ter tempo para desgostos e arrependimentos. Agora, deve ir para casa, para junto de Sean e de Aisling e dar-lhes o seu apoio. Os três têm de trabalhar arduamente para manter Sevenwaters forte. Terá notícias nossas, a seu tempo. Dê saudades minhas a Sean.
— Darei, meu amor.
— Pai.
— O que é?
— Eu não teria feito isto sem si. Vá para onde for, nunca esquecerei que sou sua filha. Sentir-me-ei sempre orgulhosa disso.
Então eles chamaram-no, ele abraçou-me rapidamente e com força e foi-se embora, uma figura alta, de cabelos cor de fogo, caminhando na direção do acampamento, onde os homens esperavam com os cavalos. Fiquei junto da lagoa, olhando através da sua superfície prateada e, enquanto olhava, apareceu uma imagem, um reflexo nas águas imóveis; um imponente cisne branco, flutuando com as asas recolhidas. Um reflexo que não era real, porque à superfície da água não havia nada, nem uma única ave nadava na água lisa, como um espelho. Pestanejei e esfreguei os olhos. Mas a imagem manteve-se, as penas brancas como a neve de um dia de solstício de Inverno, o pescoço graciosamente arqueado, os olhos sem cor, límpidos como a água, profundos, tão profundos.
Bom trabalho, Liadan. Era a voz do meu tio Finbar. És um mestre e eu saúdo-te por isso.
O tio é que é o mestre. O tio é que me ensinou.
Eu não teria feito o que tu fizeste; desafiaste as trevas e trouxeste de volta um homem que estava às portas da morte. A tua força espanta-me. A tua coragem deixa-me maravilhado. Não esqueças, Liadan. Precisarás de mim, mais tarde. A criança precisará de mim.
Senti um arrepio súbito.
O que quer dizer? O que é que viu?
Mas, na superfície da água, a bela imagem invertida do cisne fragmentou-se, espalhou-se e desapareceu.
Três dias mais tarde, estávamos prontos para partir. Eu tivera que ser muito rigorosa e assegurar-me de que Bran comia, bebia e descansava, porque, se o deixasse fazer as coisas à sua maneira, teria forçado o corpo, com resultados desastrosos. No entanto, não perdia tempo. Quando obrigado a descansar, continuava a fazer planos, a dar ordens e irritava-se por estar imobilizado. Quanto às noites, se bem que o meu desejo fosse outro, dormia afastada dele, partilhando a cama de fetos com o meu filho e Bran não fazia comentários. Naquela noite fora arrojada, o suficiente para me despir e aquecer-lhe o corpo com o meu. Mas agora sentia-me um pouco tímida, porque o que estava a acontecer entre nós era novo e frágil e havia muitos homens em redor. Além disso, achava que algumas coisas deviam esperar até ele recobrar todas as suas forças. Fizeram-se planos. O bando devia dividir-se em três grupos. Havia trabalho para fazer. O grupo de Otter iria para sul, numa missão não especificada. O grupo de Snake para noroeste, na direção de Tirconnell. O nosso grupo deveria seguir para norte, para o local previsto e dar-lhe uma vista de olhos, antes de ser tomada a decisão final. Wolf verificaria as dificuldades de acesso para os homens, com os materiais de construção. Gull, veria as capacidades locais e julgaria a recepção que seria dada a um tal empreendimento. Numa determinada data, os outros encontrar-se-iam conosco e o futuro do bando seria determinado. Não tomava decisões à pressa, disse Bran aos homens. Estava muita coisa em causa.
Eu tivera que ser teimosa, para o impedir de correr para sul, no momento em que ele se achou pronto para montar a cavalo, em busca de vingança. Tive de lhe explicar o acordo que conseguira, para o afastar, a ele e a Gull, de Sídhe Dubh. Como prometera guardar silêncio, para conseguir a libertação de ambos.
— Uma promessa feita a um homem daqueles não tem valor — disse ele, de lábios cerrados. Depois do que ele te fez, a morte é uma coisa boa demais para ele. Se eu não o despachar, despacham-no o teu pai, ou o teu irmão, quando souberem a verdade.
— Eles não a saberão — disse eu. — Nem por mim, nem por ti, nem por Gull ou por qualquer dos homens. Esta história ficará por contar. Dei a Eamonn a minha palavra de que nos manteríamos calados e por uma boa razão. Ele pode ser um vira-casacas, um homem que fica cego perante o que está certo devido aos seus próprios desejos e ao seu desejo de poder. Mas ninguém pode negar que é um líder forte. É rico, influente e inteligente. E ainda não tem herdeiros. Se ele morrer, as suas terras ficarão abertas a uma luta pelo seu controlo, o que pode mergulhar a aliança na desordem e na confusão. Seamus Redbeard está velho e o filho dele ainda é uma criança. Apareceriam pretendentes de toda a parte. Seria um banho de sangue. É melhor que Eamonn continue vivo. Só precisamos de continuar a vigiá-lo. Não lhe diria nada sobre os meus piores pressentimentos. Porque me recordava dos avisos das Criaturas Encantadas e das palavras de Ciarán. Havia alguém que não olharia a meios para impedir que o meu filho se tornasse num homem. Alguém que, por razões só desconhecidas, não queria que a profecia se cumprisse. Eu vira a expressão no rosto de Bran ao olhar para o seu filho a dormir, ou às cavalitas de Rat, olhando em volta com um olhar inteligente. Vira as suas feições duras suavizarem-se com a nova descoberta e sabia que não lhe podia dizer.
— Não se pode confiar em Eamonn Dubh — disse ele, franzindo o sobrolho. Mais tarde ou mais cedo, vira-se contra o teu irmão.
Eu sorri.
— Não me parece. O meu irmão vai-se casar com a irmã de Eamonn na Primavera. Assegurei-me de que isso aconteceria. E Eamonn sabe que eu estou de olho nele. Consegui um acordo difícil, comprando com o meu silêncio e o teu.
— Estou a ver — disse Bran lentamente. — Tu és uma mulher perigosa, Liadan. Uma estrategista de alguma subtileza. Mas fazes-me sentir frustrado. Sentirei sempre uma comichão nas mãos, por causa do pescoço desse homem. Se algum dia o encontrar, não respondo por mim.
— No lugar para onde vamos estarás demasiado ocupado para pensar nele — disse-lhe.
— Nesse caso, acreditas que vamos para a frente com este empreendimento.
— Eu sabia que não ias negar aos homens o sonho deles.
Ele olhou para mim e aquela pequena tentativa de sorriso brincou, de novo, na sua boca severa.
— Estou a ver que não tenho segredos para ti — disse ele. — Só precisei de lhes ver a luz nos olhos e ouvir a esperança na voz, para saber que a escolha estava feita. Mas não lhes podia dizer logo. Essa táctica ter-lhes-ia parecido fraca. Além disso, esta espera é boa para os testar. Força-os a ponderar todos os aspectos do projeto, a avaliar as suas forças e fraquezas e a enfrentar os problemas.
— Eu sei — disse eu.
Os planos estavam feitos e faltava um dia para a nossa partida. A manhã estava pálida, sob as grandes faias agora quase despidas. O tempo estava limpo e frio. Com sorte, poderíamos cobrir a distância rapidamente, mesmo com um bebê. Aquele último dia destinava-se a consultas finais entre os chefes de cada grupo, para levantar o acampamento e apagar todos os vestígios da nossa presença. Esse procedimento alterar-se-ia, uma vez o empreendimento começado. Os homens teriam de se habituar a acordar nas suas próprias camas; aos rostos das mulheres a seu lado, junto à lareira; à vida sedentária. Seria o fim de uma vida de fugas e constantes mudanças. Seria duro para eles, mas não tão duro, talvez, se eles se mentalizassem. Pensei na mulher de Evan, Biddy, e nos seus dois filhos. Talvez ainda estivesse à espera, algures na Bretanha, pelo seu homem. Pelo que ele me dissera, devia ser uma mulher forte, capaz. Eles precisariam de umas poucas como ela. Decidi que falaria nisso, mais tarde.
Sentei-me na margem da lagoa com Johnny ao colo, sonhando um pouco enquanto atirava com pedrinhas para a água. Johnny gostava do som que elas faziam e parecia contente por estar ali ao meu colo, observando. Por trás de mim, no acampamento, o trabalho do dia decorria com a sua costumeira ordem e disciplina. Senti-me esquisita ao pensar que no dia seguinte ir-me-ia embora, regressando apenas à floresta como visitante; que, mais tarde, viveria na herdade do meu pai e criaria o meu filho no meio de bretões. Esperava que a minha mãe não pensasse que aquilo era uma traição.
Esperava que as Criaturas Encantadas estivessem enganadas sobre o significado de tudo aquilo.
É melhor ires.
Aquela voz assustou-me; pensei que não voltaria a ouvir aquelas vozes antigas de novo, agora que Bran estava salvo e o nosso destino traçado.
Vamos amanhã de manhã, disse eu silenciosamente. Nunca mais regressaremos aqui.
Parte agora. Já. A voz era lenta e profunda, como sempre, mas desta vez as palavras eram de aviso.
Já? Queres dizer... agora, imediatamente? Porquê?
Era tola em perguntar, talvez. De repente, a Visão estava na minha mente e havia um jovem guerreiro a lutar e eu pensei que era Bran, até que vi as feições sem qualquer tatuagem, apenas a sugestão da cabeça de um corvo na testa e em volta de um olho. Estava ferido; vi a palidez e ouvi a respiração áspera. O jovem guerreiro deu uma estocada, com um rápido movimento o seu oponente tirou-lhe a espada da mão e eu vi-lhe nos olhos, cinzentos e firmes, que estava a ver a morte de frente; a sua expressão era sem medo. Apertei o meu filho com força e ele protestou. A Visão mudou e apareceu uma rapariga, a chorar, todo o seu corpo sacudido por soluços, as duas mãos no rosto, num esforço vão para conter a dor. O seu cabelo encaracolado era ruivo e a pele branca como leite. Enquanto pranteava a sua angústia, acendeu-se um fogo em volta dela, de chamas famintas, devoradoras; e tive o estranho pressentimento de que eram as suas próprias lágrimas que atiçavam furiosamente aquele fogo. E então, abruptamente, a visão desapareceu.
É melhor ires agora, disse a voz mais uma vez, silenciando-se depois.
Não podia deixar de dar atenção a um tal aviso. Procurei Bran e disse-lhe, não tudo o que vira, mas que a Visão me mostrara que a nossa partida devia ser imediata. Eles já estavam habituados. Antes de o Sol começar a descer para oeste já nós tínhamos partido, cavalgando em três direções diferentes com eficiência silenciosa. O meu bando viajou para norte, por caminhos escondidos. Paramos quando escureceu, porque Bran insistiu que o bebê e eu tínhamos de dormir. Acampamos sob umas rochas, na encosta de um monte. Amamentei Johnny; enquanto Bran e Wolf montavam guarda; Rat fez uma pequena fogueira e preparou alguma comida. Gull tratou dos cavalos, tendo insistido que faria a sua parte, apesar das mãos. Passado um bocado, Bran subiu a encosta para se deitar a meu lado. Johnny terminara de mamar; fiquei com ele ao colo, até que adormeceu.
— Desculpa — disse eu em voz baixa. — Por te ter estragado os planos. Podíamos ter ficado mais um dia, provavelmente. Nem sempre a Visão me mostra a verdade; e aquelas vozes podem ser enganadoras.
— Talvez não — disse Bran com um tom de voz estranho. — Anda cá, quero mostrar-te uma coisa.
Segui-o até um local, sobre as rochas, de onde se podia ver até longe, para sul. À luz do dia, imaginei, devia ser possível ver tão longe quanto a grande floresta de Sevenwaters. Mas estava escuro. Por completo, salvo um pequeno lugar, não muito longe, onde ardia uma grande fogueira.
— É estranho, não é? — observou Bran. — Um raio, talvez? Mas o céu está limpo; não há sinais de tempestade. E tem chovido; as árvores e a erva não ardem assim, sem mais nem menos, com um calor devorador, salvo em alturas de grande seca. Vês como o fogo se move e leva tudo na frente? No entanto, a noite está calma. É muito estranho.
— É no lugar onde nós estávamos, não é? — sussurrei, tremendo. Bran rodeou-me com os braços cuidadosamente, como se ainda não soubesse bem se o podia fazer.
— Se não fosses tu, estávamos ali disse ele. — Esse teu dom é muito poderoso. Uma vez, viste a minha morte. Lembras-te?
— Lembro.
— Parece-me que a evitaste; que a fizeste recuar. Que mudaste o curso dos acontecimentos. Pouca coisa me assusta, Liadan. Treinei-me para enfrentar seja o que for. Mas isto assusta-me.
— Também a mim. Fico aberta a... muitas influências, a vozes que não devia ouvir, a visões contrárias. Fico sem saber se devo escondê-las, ou se devo seguir o meu próprio instinto. No entanto, já não posso passar sem ele. Se não fosse este dom, não te teria trazido de volta.
Ele não replicou e o silêncio prolongou-se de tal maneira que comecei a ficar preocupada.
— Bran? — perguntei docemente.
— Pergunto a mim mesmo — disse ele hesitantemente — pergunto a mim mesmo se tu... se tu não estarás arrependida. Quer dizer, de ter visões. Agora que viste... agora que viste essas coisas todas acerca de mim, coisas que eu nunca disse a ninguém... Eu não sou o homem que tu, um dia, pensaste que eu era. Pensei que talvez... — As palavras faltaram-lhe.
— Por quê? — Ele deixara-me espantada. — Por que razão haverias de acreditar numa coisa dessas, que não te quero, que te amo menos, por isso? Já te disse, tu és o único homem, no mundo, que quero a meu lado. Nada mudará isso, nunca. Não posso ser mais clara.
— Nesse caso... — Ele parou, de novo.
— Nesse caso o quê, meu amor?
— Por que é que tu... — ele falou tão baixo que eu mal o ouvi. — Por que é que queres dormir sozinha, por que é que evitas a minha cama, depois daquela noite, daquela noite tão longa, quando acordei e vi que estavas a meu lado, uma presença tão preciosa, que varreu as sombras de uma vida inteira? Anseio por sentir esse momento de novo e, desta vez, poder abraçar-te, tocar-te e... não tenho palavras para dizer o que sinto, Liadan.
Ainda bem que estava escuro. Eu ria e chorava ao mesmo tempo e não sabia o que lhe havia de dizer.
— Se não fosse o bebê — disse eu, trêmula — mostrava-te, neste instante, como o meu corpo arde de desejo pelo teu. Parece-me que tens memória curta. Lembro-me de uma tarde, junto do lago de Sevenwaters, quando a intervenção do nosso filho nos chamou à razão. Quanto a estes últimos dias, pensei apenas na tua saúde. Passaste por muito. Ainda tens feridas, no corpo e na alma. Eu não quis... exigir-te mais do que aquilo que podias...
Senti, no escuro, a expressão dele, ferozmente carregada.
— Pensavas que eu não era capaz? É isso?
— Eu... bem, eu... eu sou uma curandeira, no fim de contas e é uma questão de bom senso...
Ele deteve-me as palavras com um beijo, um beijo firme, um beijo sem bom senso nenhum. Foi mais breve do que eu desejava; Johnny estava entre os dois, em risco de ser esmagado.
— Liadan?
— Hum?
— Ficas na minha cama, esta noite? — Senti as faces corar.
— É muito provável — disse-lhe eu.
Creio que a deusa nos abençoou. Alguém olhou por nós, naquela noite, porque Johnny só acordou de manhã; os outros desapareceram, montaram guarda e não fizeram um único ruído durante toda a noite. Quanto a mim e ao meu homem, passamos a noite entrelaçados no abrigo das rochas e não nos mostramos mais comedidos do que naquela tarde no lago, porque demasiado tempo se passara.
Colamo-nos um ao outro, arquejamos e choramos no nosso desejo mútuo, até que, por fim, adormecemos, exaustos, debaixo do mesmo cobertor, sob aquela grande abóbada estrelada. Acordamos de madrugada, docemente quentes e não nos mexemos senão para nos tocarmos suavemente, aflorando a pele um do outro com os lábios, murmurando pequenas palavras, até que ouvimos Rat junto da fogueira e Gull comentando sobre o que era feito de nós.
— Haverá outras manhãs — disse eu em voz baixa.
— Até agora, creio que nunca tinha pensado nisso. — Bran levantou-se relutantemente, cobrindo o seu corpo finamente tatuado com as roupas simples de viagem, que preferia. Fiquei a olhar para ele, descarada, maravilhada com a sorte que tinha. — Mas tens de acreditar — disse eu e nesse momento Johnny acordou, começando a pedir, insistentemente, o pequeno-almoço. — Temos de acreditar num futuro para ele, para estes homens e para nós. Certamente que o amor tem força suficiente para construir um... — Creio que falei mais pelas Criaturas Encantadas do que por nós. Mas, se elas me ouviram, não o mostraram. Tomara uma decisão. Mudara o curso dos acontecimentos. Se isso significava que nunca mais ouviria falar delas, o futuro o diria.
E assim cavalgamos para norte, sem barulho, um bando de viajantes calmo, ordenado, vestido com roupas que não chamavam a atenção. Um homem cujo rosto era um estudo de luz e sombra, cujas feições transportavam a cabeça feroz do corvo e que eram, ao mesmo tempo, belas e jovens. Qual dos lados preferir dependia, simplesmente, de como o queríamos ver. Uma mulher de cabelos escuros apertados na nuca e estranhos olhos verdes. Um homem negro com umas mãos estranhas e uma pena de gaivota no cabelo entrançado. Um jovem carregando um bebê e um gigante silencioso, montado num grande e silencioso cavalo. Sempre para norte, na direção da costa escarpada, frente a Alba, o lar das mulheres guerreiras. Atrás de nós, as terras do Ulster acordavam para uma manhã de Outono, com o Sol brilhando por trás do nevoeiro sobre um vale verdejante, um lago cintilante e a sombria beleza da grande floresta de Sevenwaters. Atrás de nós a terra ardia e uma coluna de fumo marcava o local da sua força destrutiva, uma força do Outro Mundo, precisa e furiosa. Talvez a feiticeira acreditasse que morrêramos na sua fornalha. Viramos-lhe as costas e cavalgamos em frente e à medida que íamos seguindo, ouvi na minha mente, de novo, se bem que o túmulo antigo já estivesse longe; o som profundo, cantante, do vento oeste, soprando sobre ele, passando pela estreita abertura deixada para a entrada do Sol no solstício de Verão. Era como a nota de um grande instrumento; uma saudação de reconhecimento e despedida. Bom trabalho, filha, sussurraram as vozes dos meus antepassados. Bom trabalho.
S.D. Perry
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