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Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O FILHO DE THOR - P.2 / Juliet Marillier
O FILHO DE THOR - P.2 / Juliet Marillier

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O FILHO DE THOR

Segunda Parte

 

O Rei continuou a caminhar em silêncio por mais uns momentos.

Só entre as marés, então, e levas Kinart e outro homem contigo, para que possam vigiar ambos os lados do lugar das mulheres. Tenho medo, Nessa. Eu vi o olhar daquele homem. Se não o puder fazer por meios legais, não hesitará em usar a força.

Não pode ser feito durante o dia, tio. Tem que ser feito de noite. Kinart pode levar-me e regressar comigo. Não quero que ele fique de vigia de noite.

Não gosto nada disto. Devia ter previsto tudo. Devia ter-te mandado embora antes do Inverno.

Vou amanhã e regresso no dia seguinte. Tio, tenho de fazer-te uma pergunta. Engus suspirou e parou de andar. A Nessa parecia que os ombros largos do seu tio iam curvados, como se o fardo que carregava o fizesse velho antes de tempo.

Não precisas de perguntar disse ele solenemente. Eu sei o que te preocupa. Nessa, como podem os Folk sobreviver sem um Rei? Como podem ter ainda esperança depois de tantas perdas, a não ser que a linha real tenha um herdeiro?

Nessa sentiu dificuldade em falar.

E como podem eles continuar sem uma sacerdotisa dos mistérios? perguntou ela com firmeza. Sem uma mulher sábia os Folk não podem ouvir a voz dos antepassados. Sem a sua orientação perderiam o rumo.

Uma escolha cruel disse Engus. Mas Rona ainda é viva. E há raparigas que podem aprender. Tu podias ensiná-las e, ao mesmo tempo, poderias dar-nos um herdeiro. Tu és a última, minha querida.

Nesse caso, por que não me casas com Somerled e acabas com tudo? Nessa não pôde evitar aquelas palavras amargas. Desse modo, pelo menos, o nosso povo não morre. Esquece os meus dez anos de dedicação e estudo, o chamamento do meu coração e do meu espírito. Tu ouviste os planos dele. O meu filho será o seguinte na linha de sucessão das Ilhas Brilhantes. O filho de Somerled.Engus rodeou-lhe os ombros com um braço, um gesto raro, porque ele não era homem de grandes afectos.É impossível disse ele em voz baixa. É impensável. Aliás, no fim, a decisão terá de ser tua. Desse modo, reconhecerei o tipo de pessoa que és e o que conseguiste. Eu sei que, seja qual for o equilíbrio da balança, tu nunca te aliarás àquele homem. Uma princesa pode casar-se com um homem que não pertença aos Folk, já aconteceu antes. Houve homens de Dalriada que foram pais dos nossos reis, homens de Nortúmbria e chefes de guerra dos Caitt. O pai de um futuro rei é escolhido não apenas pelas alianças que traz, mas também pela sua coragem, pela sua sensatez, pela sua rectidão. É desse modo que mantemos forte a nossa linhagem. Eu esperava, com o tempo, encontrar-te um marido, um marido que fosse aceite pelos Folk e por ti. Mas nunca te casarei com um homem como Somerled. Quanto à necessidade de velar pelos mistérios, respeito essa vontade; mas peço-te que ponderes no que te disse. Tu és uma mulher sábia e és capaz de fazer a escolha certa, nesta e noutras coisas, Nessa. E sei quão difícil é; o dever chama-te de ambos os lados e isso perturba-te. Também eu tenho passado noites sem dormir. Esperemos que o teu ritual nos ilumine nestes assuntos, porque bem precisamos. E agora vem, vamos para dentro, para ver se a tua mãe melhorou depois de ter descansado. Tenho esperança de que a Primavera possa trazer de volta a minha irmã.Eu vou à procura de Kinart disse Nessa. Dois dias e uma noite, tio. E tentarei trazer Rona comigo, mas não creio que ela queira vir.Ela sempre foi uma mulher teimosa disse Engus.É claro que a esta hora já ele está longe, pensou Nessa enquanto se dirigia para sul pela passagem por entre as dunas e sob um céu de nuvens pesadas. O cão seguia-a pacientemente, as orelhas alerta, os pés pisando silenciosamente no trilho arenoso. A Lua já percorreu o seu caminho quase duas vezes desde que o deixei e o Inverno passa rapidamente. Já deve ir longe. Talvez tenha regressado para junto de Somerled. De volta para o seu grande amigo.

Espero que eles apareçam grunhiu Kinart para o seu companheiro, Ferach. Espero que apareçam quando eu estiver de guarda. Corto-os aos bocadinhos como um porco no espeto. Esmago-lhes os crânios como se fossem pedaços de barro. Dou conta de todos, se se atreverem a pôr os pés perto do lugar secreto.

Talvez já esteja bom e esteja junto dos outros preparando-se para a batalha. Talvez até esteja neste momento a afiar o seu precioso machado e a sua querida espada. Talvez esteja a cuidar do escudo de que falou e esteja a olhar para as marcas que fez nele, um longo recorde de mortes desnecessárias. Espero que Rona esteja bem. mguerreiro cujos ouvidos estão receptivos ao chamamento de Thor não vê a fragilidade de uma anciã. Confiei nele; talvez tenha sido tolice da minha parte. Terá ele aprendido a diferença? Que, ao tirar uma vida, tem de perceber o valor dessa vida? Terá ele compreendido alguma vez o valor precioso de uma vida?

Tiras-me as palavras da boca, Kinart. O meu punhal anseia por saborear a carne deles. Eles que venham, nós damos-lhes a mesma dose de tratamento. Vão ter uma surpresa.

Talvez tenha morrido sozinho, nos montes... talvez a maré tenha levado o seu corpo, os seus cabelos da cor do trigo à deriva na rebentação... mas isto é uma tolice. Não é por ele que eu regresso ao lugar das mulheres. É pelo Chamamento. E todas as minhas forças vão para o Chamamento. Em direcção ás trevas, em direcção aos lugares secretos, uma jornada capaz de testar o espírito mais destemido. Tenho de manter o meu espírito concentrado nisso. Não pensarei mais nele.

É duro ter de esperar até à Primavera disse Kinart quando estavam a aproximar-se do local onde os dois homens teriam de parar e deixar que Nessa prosseguisse sozinha. O pai mantém-nos à espera quando os nossos estômagos estão esfomeados de vingança. Se fosse eu a comandar, armaria um exército só meu. Levaria a luta às portas de Somerled. Enquanto ele aguenta, enquanto espera, vai fortalecendo as forças, vai fincando a garra. Devíamos agir agora. Digo-te, se vir um daqueles carniceiros, nada me deterá.

Kinart, agora sigo sozinha disse Nessa. Não é preciso esperares; o dia passa lentamente e a noite é longa e fria. Vai para casa enquanto a maré o permite e regressa amanhã.

A boca de Kinart fechou-se; não mostrava sinais de abandonar o local.

Desta vez não. Vou ficar aqui a vigiar a praia; Ferach vai ficar no lado leste, junto do dique. E, quando saíres, traz Rona contigo. São as ordens do Rei.

Nessa suspirou. Apesar de ser mais velho um ano, por vezes aquele jovem e viril guerreiro demonstrava que não passava de um rapaz. Ela estremeceu quando uma vaga de frio, uma sombra de algo invisível, passou por ela.Eu sei o que o Rei quer, Kinart, não preciso que mo digas. Se queres ficar, fica, mas mantém-te à distância. Não te alarmes se ouvires vozes e luzes vindas do lugar das mulheres. Eu vim aqui esta noite para celebrar um ritual muito prolongado; é possível que acorde forças que nos são desconhecidas. Rona vai ajudar-me. Não sairei senão por ocasião da maré vazia, amanhã à tarde, e durante esse período não podemos ser perturbadas. Este ritual é muito antigo. Para ser celebrado como deve ser, é importante que sigas as minhas instruções.Kinart, com as feições sombrias, acenou com a cabeça.Se nos ajudar a ganhar esta guerra e a expulsar estes bárbaros das nossas costas, uma noite fria de vigília é um preço bem pequeno a pagar disse ele.E a Tribo Perdida? Ferach parecia menos confiante.Esta noite ficas de vigia aos mistérios mais antigos da ilha disse-lhe Nessa com um pequeno sorriso. Duvido que a Tribo Perdida te incomode. Eles andam sempre com partidas, mas são um povo antigo e o seu sangue, tal como o nosso, corre ao mesmo ritmo do das ilhas. Isso faz com que sejam do mesmo sangue que nós nestes tempos de sofrimento. Não tenhas medo deles. Se vires luzes estranhas, ou ouvires cânticos, ou gritos, olha para o outro lado e pensa no dia de amanhã. Espero que estejais ambos a usar os vossos feitiços da lua?Ambos os homens acenaram com as cabeças, as mãos subindo instintivamente até aos amuletos presos por tiras de pele em redor dos pescoços. Todas as crianças da ilha tinham um pequeno saco de pele com uns seixos redondos lá dentro, três, cinco ou sete. Amuletos considerados infalíveis como protecção contra os espíritos locais mais maliciosos. Até Nessa, apesar de ser sacerdotisa, usava um talismã daqueles.Nesse caso, não tendes problemas. E agora, adeus. Vejo-vos amanhã por ocasião da maré baixa. Não chameis por mim. Eu saio quando chegar a hora.A última coisa que esperava ver quando desceu o talude na direcção do lugar das mulheres era a rapariga. Esta era jovem, talvez tivesse catorze anos, com um rosto agradável, nervoso e uns cabelos cor de palha. Usava uma capa grosseira e longa com um pequeno capuz e umas botas robustas. Pertencia ao povo de Somerled. A rapariga permanecia de pé, desamparada, em frente da cabana de Rona, enquanto esta a invectivava com palavras que ela não compreendia.

Não vale a pena vires aqui se não compreendes o que eu te digo. Este lugar é sagrado, é um lugar proibido. A tua raça não é aqui bem-vinda. E agora põe-te a andar!

Eu só quero... a minha senhora quer... eu não posso regressar sem... A voz da rapariga tremia, nervosa; as suas mãos enclavinhavam-se, não paravam quietas.

Isto é um disparate, não percebes que eu não consigo entender nada do que dizes? Desaparece daqui antes que te lance um feitiço e te transforme numa barata! A boca de Rona estava torcida de fúria, revelando os seus poucos dentes negros. A rapariga vacilou, mas não arredou pé.

Nessa tossiu levemente numa demonstração de polidez.

Eu trato disto, Rona disse ela calmamente, aproximando-se, depositando o seu saco junto da porta da cabana e dando um beijo na face da anciã. O cão desaparecera na direcção da torre subterrânea, talvez em busca da companheira. Não havia sinal de Eyvind. Parecia que a jovem tinha razão.

Ela não faz o que lhe mandam resmungou Rona. Quer uma coisa qualquer, mas não diz o que é. E deve querê-la muito. É muito longe da colónia deles aqui, e era lá que ela devia estar.

Eu falo com ela disse Nessa. Por que não vais para dentro para te aqueceres?

Para ela és bem-vinda disse Rona. Animais e pessoas perdidas dão mais trabalho do que o que valem, se queres a minha opinião. Vais querer uma chávena de chá, espero, depois dessa caminhada toda. Este vento gela-nos o tutano dos ossos. A anciã desapareceu no interior da cabana.

Nessa virou-se para a rapariga e falou-lhe na língua de Eyvind.

Tu estás num local proibido disse ela. Mas talvez não saibas. O teu povo não é bem-vindo na nossa terra. Por que vieste aqui? O que queres?

Ouvi dizer... a minha senhora ouviu dizer... que havia aqui uma mulher sábia conseguiu a rapariga dizer, a voz entrecortada de ansiedade.

Eu só queria... dizem que ela é capaz de lançar feitiços, fazer poções... eu só queria...Precisas de ajuda? Um amante infiel, um senhor cruel? Nós, aqui, não tratamos dessas coisas; não lidamos com remédios rápidos e curas instantâneas.Dizem... dizem que a mulher sábia... A rapariga olhou de relance para a porta da cabana; um barulho de panelas vindo do interior disse a Nessa que Rona estava a pôr água ao lume na panela de ferro. O aroma a ervas saiu para o ar frio.Ela está a fazer um feitiço? murmurou a rapariga com olhos receosos.Talvez disse Nessa. Mas, agora, escuta. Eu também sou uma mulher sábia e não tenho tempo para estas coisas. Diz-me exactamente o que queres. Isto é um local de mulheres e tu és uma mulher, se bem que não sejas da nossa raça. Se puder, ajudo-te.Ela quer... eu quero... o que tu disseste, um amante infiel, ou uma coisa assim. Um filtro, um remédio, para o fazer regressar. Foi o que ela me pediu... Se aquilo era suposto ser uma tentativa para disfarçar a natureza do pedido, falhara miseravelmente. A rapariga não tinha mais subtileza do que uma galinha.Esse amante é teu namorado? Teu marido?É... não... quer dizer...Nessa olhou para ela em silêncio por um momento. Quem a encarregara daquilo não fora justo.Receio que não possa ajudar-te disse ela. Sabes, se fosse para ti, talvez te pudesse dar algo, se bem que não concorde com esses feitiços. Eles são eficientes, certamente, mas a longo prazo fazem tanto bem como mal. Mas, para mim, é evidente que o que tu queres não é para ti, mas sim para outra pessoa: para a tua patroa, suponho. E, a não ser que eu possa falar com ela directamente, não lhe posso dar o que ela quer. Vais ter de regressar a casa de mãos vazias.Oh, mas... Os olhos da rapariga ficaram alarmados e as faces coradas de desânimo. Oh, mas...Lamento. As coisas são assim. E não aconselho a que a tua patroa venha ela própria. O nosso povo está à beira da guerra. Não é seguro viajar até tão longe de casa: não é seguro para ela, nem para ti. Estou espantada por ela te ter mandado aqui sozinha.Os olhos da rapariga eram redondos e sinceros.

Oh, mas ela não... quer dizer, ela veio comigo, mas não quer vir aqui e pedir... e agora eu tenho de lhe dizer que não e ela vai ficar zangada comigo...Estou a ver disse Nessa lentamente enquanto a sua mente corria para Kinart e Rerach, um de cada lado do lugar das mulheres e a luz do dia ainda se ia prolongar por algumas horas. Onde é que está a senhora agora? Onde é que ela está à tua espera?Além. A cabeça dela fez um movimento com a cabeça para leste, para lá da cabana.Vai buscá-la disse Nessa. Diz-lhe que venha depressa; a noite vai cair dentro de pouco tempo e tu tens de atravessar a fronteira antes disso. De facto, talvez não tenhas tempo para isso; é uma longa caminhada.Nós temos cavalos. Eu vou-lhe dizer. A rapariga desapareceu com as botas a escorregarem na erva molhada.Rona pôs a cabeça do lado de fora da porta da cabana.Livraste-te dela?Ainda não. É melhor ficares aí dentro. Eu não me demoro.Se tu o dizes. A cabeça desapareceu.A mulher pareceu-lhe familiar. Era jovem, quase da idade de Nessa. Mantinha as costas direitas e a cabeça tinha um porte altivo, real. Os cabelos ruivos estavam penteados em forma de coroa, atados com fitas negras. Apesar da palidez das faces, não mostrava qualquer sinal de nervosismo.Gunhild disse-me que não me podes dar o que te pedi se não falares directamente comigo disse ela friamente sem recorrer a qualquer tipo de introdução. Eu não queria vir aqui.Acredita-me disse Nessa de modo severo - eu não queria receber-te aqui neste lugar sagrado. Mas estás aqui. Foi um loucura teres vindo. Em breve estará escuro e há guardas por perto. Não sabes como as coisas estão entre o teu povo e o meu? Arriscaste a vida da rapariga, a tua e a nossa.As sobrancelhas da jovem ergueram-se um pouco.Estás preocupada com a nossa segurança? Isso surpreende-me. Eu não sou uma dona de casa tola em busca de poções de amor. Eu preciso de ajuda: ajuda a sério. Se não precisasse não poria aqui os pés, acredita.

Ela estendeu uma mão elegante para ajustar o alfinete de prata que lhe segurava a capa e Nessa viu os anéis que ela usava, anéis de pedras preciosas e trabalhos delicados de filigrana. Não era a mulher de um fazendeiro qualquer. Na verdade, se a memória não lhe falhava, Nessa achava que já a tinha visto antes e em circunstâncias muito diferentes. Tinha de pisar com muito cuidado.Eu disse que te ajudaria se pudesse. Mas deves dizer-me a verdade; a cura tem de ser estritamente de acordo com a doença, ou não fará efeito; ou então, fará o efeito contrário. É por isso que não posso utilizar um intermediário. Nessa olhou de relance para a rapariga.Imagino que deves querer falar disso em particular.A jovem inclinou a cabeça.Muito bem disse Nessa. A rapariga que vá para dentro da cabana, para o pé da anciã. Falaremos aqui as duas, ao ar livre. Despacha-te, rapariga. Entra, Rona não te come.A rapariga entrou na cabana; a porta fechou-se com firmeza por trás dela.E agora disse Nessa, sentando-se num dos bancos de pedra junto das cinzas da fogueira e fazendo sinal à outra mulher para que se sentasse diz-me o teu nome.Os olhos escuros olharam para ela sem pestanejar.Não posso fazer isso.Tens de o fazer, se queres que eu te ajude. Margaret.Nessa estremeceu. Era quem ela pensava. Aquela rapariga de faces pálidas, sentada orgulhosamente com a sua capa cinzenta espessa, era a viúva de Ulf. Aquilo era muito perigoso. Corto-os aos bocadinhos como um porco no espeto...Muito bem, Margaret. Eu sou uma sacerdotisa dos mistérios das mulheres das Ilhas Brilhantes. Deves dizer-me de que precisas. A rapariga disse que tem a ver com um homem. Ela não teria deixado sair o nome se esse nome tivesse grande significado. Talvez houvesse mais do que uma Margaret entre eles. É teu marido? Teu amante? Ou um que desejas como tal?Eu... afinal, creio que não posso fazer isto disse Margaret firmemente. Creio que não consigo dizer o que quero.Nessa esperou em silêncio. As nuvens acumulavam-se no céu; o ar cheirava a tempestade, Kinart estaria a vigiar a passagem a oeste e Ferach a outra. Ainda bem que aquelas duas visitantes inesperadas tinham chegado antes dela e tinham escondido os cavalos. Mas, como sairiam dali? Maldita mulher, como pudera ser tão tola? Devia ter sido impelida pelo desespero.Eu... eu não quero uma poção de amor. Em tempos pensei que este homem era capaz de amar, apesar de o conhecer mal. Mas ele era bom para mim. Arranjava tempo para mim. O meu marido não tinha esse tempo; andava embrenhado nos seus sonhos. Ela mordeu o lábio e olhou para as mãos, torcidas no colo.Portanto, esse homem não é teu marido? perguntou Nessa cautelosamente.Creio... creio que não te posso dizer. Podes ser uma espia. Eu estava à espera de uma mulher velha. Não te posso dizer.Então, por que vieste, Margaret? Não precisas de te preocupar com segredos. Isto aqui é o lugar das mulheres, consagrado aos poderes profundos da terra. As confidências ficam seguras, aqui. E agora, conta-me.Eu sou viúva. O meu marido morreu. Ele era um bom homem, um óptimo homem, que dava tudo pelo que acreditava estar certo. Um verdadeiro líder. Eu tentei ser a esposa de que ele necessitava. Mas... mas havia tanta coisa para ele fazer, tanta coisa... Ele andava consumido pela vontade de conseguir os seus objectivos, de tornar realidade a sua visão antes... Se não tivesse morrido, talvez, no fim, conseguíssemos algum tempo para os dois. Mas a vida dele foi cortada cerce. Aliás, creio que ele estava à espera de uma morte assim.Morreu, portanto. E o outro homem?Os olhos de Margaret mudaram; foram percorridos por uma sombra.Havia tantas possibilidades para ele, quando viemos para cá disse ela com uma voz que não era mais do que um sussurro. Para ele, para todos nós. Este homem tem seguido um caminho solitário, para ele os deuses não têm sido bons. Não pode, por isso, dar o melhor de si próprio. Vive por trás de paredes muito altas, feitas por ele; não confia em ninguém. Talvez não seja inteiramente verdade. Havia um em quem ele confiava, para além de mim. Mas ele está... está muito só. E eu pensei... pensei que talvez pudesse mudar as coisas se viesse para cá. Pensei que talvez ele pudesse esquecer as coisas más que sofreu.Mas isso não aconteceu?

Ele mudou disse Margaret com um ar cansado. Não para melhor, antes para pior. Eu pensei... pensei que ele fosse capaz de pôr de lado o terrível ciúme que o consome, que conseguisse descobrir o seu próprio caminho. Mas, mesmo depois da morte do irmão, continua a flagelar-se a si próprio por não ter conseguido ser como o irmão; por não ter o que o meu marido tinha. Eu tentei levá-lo a proceder de maneira diferente. Tentei chegar-lhe ao coração. Mas...Somerled. Ela estava a falar de Somerled. Por todos os poderes, como era possível? O irmão de Ulf: aquele homem, aquele homem odioso, com aqueles olhos frios e o pequeno sorriso torcido.Mas o quê, Margaret? perguntou gentilmente Nessa, ao mesmo tempo que a sua pele se encarquilhava de horror.Creio que algo sombrio caiu sobre ele murmurou ela. Ele, agora, olha para mim e não me vê. A mente dele só vê uma coisa, o caminho que traçou. E é um caminho mau. Este homem nunca está contente. Quando consegue o que quer, cansa-se depressa e quer logo outra coisa melhor ainda.Deitaste-te com ele? perguntou Nessa. Com o irmão do teu marido?O rubor subiu às faces pálidas de Margaret.Isso não te diz respeito! disse ela bruscamente.Talvez não; mas foste tu que me vieste pedir conselho. Esse homem cansou-se de ti? Queres apenas um filtro de amor para lhe reacenderes a paixão? Isso podes tu conseguir na cabana de uma velha qualquer, mulher. Não precisavas de vir aqui ter comigo. Eu sou sacerdotisa dos Folk. Eu trabalho com os grandes mistérios, com as coisas misteriosas e secretas do nosso povo. Não lido com essas coisas.Dizem que os Folk estão acabados. O tom de Margaret era monótono. Lá se foi a visão de Ulf. Não durou muito mais do que ele.A fúria acendeu-se em Nessa. Pôs-se de pé.Tens-nos em pouca conta disse ela. No entanto, vens pedir a minha ajuda. Por que te hei-de ajudar?Porque és mulher e eu também sou disse Margaret calmamente, levantando-se para olhar Nessa nos olhos. E já te disse, eu não quero uma poção de amor. Se um homem não é capaz de me amar por si próprio, o seu amor não tem grande valor. Tu desprezas-me, vejo muito bem. Mas julgas-me mal. Eu nunca fui infiel ao meu marido.

Não lhe menti com este outro homem, apesar de ele me ter dito que me amava e me ter pedido que fizesse amor com ele. Só tive algo com ele depois... depois de... Margaret respirou fundo; Nessa via como ela fazia um grande esforço, como chamava a si todas as forças que possuía. E foi só uma vez. Pensei que o confortaria; a morte do irmão foi um golpe cruel para ele. Foi então que eu soube... que eu percebi que ele não era o homem que eu pensava que era. Foi... foi tudo menos gentil comigo. E depois foi desdenhoso, como se o que eu lhe dei lhe fosse devido. Não sei porque te estou a dizer estas coisas, nem sequer te conheço...Eu não te estou a julgar, Margaret. Como posso ajudar-te?Quero descobrir como posso desviá-lo do caminho que escolheu, porque só vejo nele dor, destruição e morte. Ele costumava ouvir-me, mas já não ouve. O outro amigo que ele tinha desapareceu; ele está rodeado de homens que só querem agradar-lhe. Se tens um feitiço que faça com que ele me oiça, um talismã que faça com que eu consiga influenciá-lo, pago-te bem. Tenho prata. Só quero que ele me ouça. Não me interessa que não me ame.Nessa permaneceu silenciosa por um momento, olhando para as feições pálidas sob controlo, para os olhos orgulhosos plenos de dor.Se tivéssemos mais tempo disse ela lentamente eu olharia para o fogo e perguntaria aos antepassados; procuraria ser sábia por ti. Mas não temos tempo. Tens de te ir embora rapidamente, enquanto eu distraio os guardas. Talvez já seja demasiado tarde para deter esse homem. Não há uma solução fácil, porque ele fez descer as trevas sobre os nossos dois povos, uma sombra da qual nem ele conseguirá escapar. Vou dar-te umas ervas que deitarás por cima das brasas da tua lareira. Fá-lo sozinha, à noite. Senta-te em silêncio em frente das brasas, esvazia a tua mente e observa o fogo. Se estiveres receptiva, receberás orientação.Margaret olhou para ela.É o melhor que podes fazer? perguntou ela. E se eu levo isso, tento e não acontece nada? Estarei a desperdiçar a minha prata num punhado de algas secas.Nessa engoliu a primeira resposta e respirou fundo.Eu não quero pagamento nenhum disse ela. A tua prata não me serve para nada.

A sério? A mim, parece-me que vives com alguma pobreza. Isto pode ajudar, não te parece? Cobertores para a velha, um pedaço de carne?Não quero a tua prata. E, acredita, o que te vou dar é raro, de grande valor e sagrado, concedido apenas ao nosso povo e, mesmo assim, raramente. Dou-to porque vejo a verdade nos teus olhos e a honestidade no teu rosto. Dou-to de irmã para irmã. Espera aqui, por favor.A jovem foi buscar aquilo de que necessitava à cabana. Rona ergueu as sobrancelhas ao ver Nessa abrir o pequeno jarro escondido no fundo de uma prateleira de pedra e encher um pequeno saco com o pó contido no seu interior. A rapariga estava sentada à lareira, tremendo, com uma taça do chá fumegante de Rona nas mãos. Talvez pensasse que um gole a transformaria num tritão, ou num sapo.Precisava de arranjar um pretexto para manter Ferach e Kinart distraídos enquanto as mulheres levavam os cavalos e escapavam. Ainda bem que já estava quase escuro; caso contrário, o rasto dos animais ver-se-ia. Eles andaram de um lado para o outro na praia até depois de o Sol se pôr, olhando para cima e para baixo da linha de água em busca de uma coisa qualquer que Nessa dissera que vira, talvez o corpo de um homem, uma foca doente, ou uma trouxa misteriosa. Quando a jovem viu que Margaret e a sua serva já estavam longe e em segurança, e que a chuva começava a cair, muito fina, disse aos dois homens que, provavelmente, se tinha enganado: uma ilusão provocada pela luz. Eles teriam de regressar aos seus postos de vigília e ela ao local do ritual. A chuva tornou-se mais grossa; pela manhã, as marcas dos cascos e outros sinais da passagem das mulheres teriam desaparecido.Chovia a cântaros. Envolvendo-se na capa, Nessa correu na direcção da cabana, abrindo a porta de rompante com uma mão, entrando aos trambolhões e erguendo uma mão para afastar os cabelos dos olhos. O fogo ardia, quente; havia um aroma a comida no ar. No outro lado da lareira estava um homem com cabelos cor de manteiga. Estava a deitar água de uma panela para uma taça; aquilo era um exercício de disciplina, via-se bem pela sua expressão de extrema concentração. As suas mãos tremiam um pouco. Enquanto Nessa permanecia ali, muda, ele pousou a panela e virou para ela o seu olhar azul, da cor do céu de Verão.Voltaste disse ele suavemente. Não pensei que o fizesses.

 

Nessa ficou sem palavras. Só sentia o bater do coração, o calor nas faces, nada que tivesse a ver com medo.E tu fizeste a barba disse ela. Pareces mais novo.Tira essa capa toda molhada! disse Rona bruscamente. Rapariga maluca. Senta-te ao pé da lareira; bebe aquele chá. Dá-lhe o chá ordenou ela e fez uma série de sinais com as mãos: passa, beber, tremer, frio. Eyvind colocou a taça entre os dedos gelados de Nessa; o calor da sua mão, ao roçar na dela por um mero instante, pareceu ir até ao fundo do seu ser.Obrigada disse ela. Pensei que te tivesses ido embora. Eu tinha a certeza de que te tinhas ido embora. Para junto dos outros, ou...Eu não podia deixar a anciã sozinha, desprotegida disse ele.Estás a ver? disse Rona. O homem continua aqui. Gosta dos meus cozinhados. Não se farta deles. De facto, até se tem tornado útil. Sabe pescar, mesmo com este tempo. É muito habilidoso com uma linha.Pescar? Nessa virou-se para ela aterrorizada. Tu deixa-lo sair, ir até às rochas? Ele não pode fazer isso, os homens do meu tio podem vê-lo, dão cabo dele...O que é que se passa? perguntou Eyvind. O que é que estás a dizer?Não deves sair daqui. Rona disse-me que tens ido pescar. Estou contente por poderes andar tanto; contente por teres recuperado e poderes fazer essas coisas. Mas não é seguro. As coisas mudaram. Mudaram terrivelmente desde que eu saí daqui.O rosto dele estava sério.É melhor dizeres-me o que se passa disse ele. Estás pálida, mais magra. O que é que se passa, Nessa?Rona bateu com a colher na panela, deixando cair na sopa de cebola colheradas de massa.Não sei o que lhe estás a dizer, ou ela a ti, mas isso pode esperar até que ela acabe de comer. Ela está muito cansada. E tu continuas magricela como um espectro, tu, que eras grande que se farta. Toma, come isto e fica calado um bocado.Ela disse: comer primeiro, falar depois disse Nessa, conseguindo um pequeno sorriso. Os seus olhos eram tão brilhantes à luz da lareira que ela mal podia olhar para ele; no entanto, queria olhar e continuar a olhar, para se assegurar de que ele estava mesmo ali. Estranhamente, sentiu que ia chorar. O que não era nada bom. Kinart e Ferach estavam de guarda e ela tinha de levar a cabo o ritual. Teria sido melhor se Eyvind já se tivesse ido embora, como esperara. Teria sido melhor para toda a gente. Porém, não podia negar o calor doce, aquele rio de prazer que a percorrera no momento em que o vira ali de pé, tão alto, tão calado, tão solene. Como se pertencesse ali. Como se fizesse parte dela. Sentia-se tão contente, tão contente por ele ter esperado.Pára de sonhar, rapariga, e corne ordenou Rona com um olhar extremamente perspicaz. Depois, dir-me-ás porque regressaste. Não foi só para passar o tempo, vejo isso muito bem no teu rostoQuem esteve aqui? perguntou Eyvind assim que acabaram de comer. Eu ouvi vozes. Pensei que era melhor ficar no velho lugar até que se fossem embora.Apenas duas mulheres em busca de poções. disse Nessa com ar despreocupado. As pessoas vêm aqui muitas vezes em busca dessas coisas. Mas já se foram embora. Mas tu tens de ter cuidado, Eyvind. Eu não posso estar aqui, agora, sem guardas. O meu primo está a vigiar o carreiro que dá para o mar e o amigo dele o que dá para leste. Eles estão bem armados e não hesitarão em atacar. Promete-me que não voltas a sair. Foi uma loucura. Não percebo como é que Rona permitiu semelhante coisa.Eu posso estar fraco e incapaz de segurar numa arma, mas não perdi as minhas outras capacidades, Nessa. Já caçava quando tinha cinco anos. Sou capaz de caminhar em silêncio e passar por um animal selvagem, ou por um homem a sete passos de distância sem ser visto ou ouvido. Não corri risco nenhum. Confia em mim.Nessa estremeceu e não disse nada.O que é? Que aconteceu?Primeiro tenho de falar com Rona. Eu não estou aqui por tua causa, mas para cumprir um ritual, uma cerimónia antiga e secreta. Tem de ser feita esta noite, na torre: na câmara mais abaixo, no local escondido por baixo da terra. E amanhã tenho de regressar a casa.O rosto dele alterou-se, como se ela lhe tivesse dado uma bofetada, mas não disse nada.O que é que lhe disseste? perguntou Rona asperamente. Não é preciso ser cruel. Este grandalhão tem feito os possíveis desde que te foste embora. Lavou-se, fez-se útil e recuperou o melhor que pôde. Tem estado à tua espera, rapariga. Bem podias dizer-lhe umas palavras amáveis.Pensei que, para ti, não passava de um empecilho retorquiu Nessa, espantada. Um homem grande com um grande machado, que nem sequer é capaz de falar como deve ser. Não era o que dizias?Os tempos mudam murmurou Rona, subitamente ocupada a levantar pratos e colheres e a empilhá-los para serem lavados. Esqueces-te que estiveste ausente durante muito tempo. Há um ligeiro ar a Primavera no ar e a Primavera é capaz de não ser grande coisa, este ano. Mas suponho que nos dirás mais coisas. Esse grandalhão ainda não sabe falar a nossa língua, mas conseguimos entender-nos. Sim, ele é um guerreiro; isso talvez nunca mude. Mas há uma grande bondade nele, Nessa. Vejo-o bem a cada dia que passa. Bondade e força apesar de todos os tremores e pesadelos que o assombram. Nunca pensei dizer isto, mas talvez ele seja o guerreiro de que ambas precisamos,tu e eu.Ele é amigo de Somerled. E Somerled declarou-se dono destas ilhas. Quer tomar o lugar do meu tio.Que estás a dizer? perguntou Eyvind, franzindo o sobrolho.O que é que disseste acerca... o que é que se passa com Somerled?O jovem parecia dizer aquele nome com alguma dificuldade.O que é que vieste aqui fazer, rapariga? Os olhos de Rona percorreram-lhe o rosto, ao mesmo tempo que a sua boca se cerrava.Um Ofício.Foi o que eu pensei. Tens a certeza de que és capaz? Engus precisa de orientação, suponho.- Somerled só lhe deu até à Primavera para decidir. Tem de entregar tudo, ou será varrido. O meu tio diz que nunca se renderá. Tenho medo, Rona. Isto pode ser o fim dos Folk. E...E o quê? perguntou Rona asperamente.Nessa? Eyvind também estava a olhar para ela com atenção do lugar onde estava sentado, à lareira, as mãos juntas para evitar que tremessem. Por favor, diz-me de que estás a falar. Pareces assustada. O que é?Mais tarde disse-lhe ela, e voltou a ver aquele olhar no rosto dele, a expressão de um cão fiel castigado sem razão. Maldito homem, por que tinha de a fazer sentir-se culpada? Rona continuou ela quase não suporto dizer-to, mas tenho de o fazer. A mim, parece-me que posso influenciar o decurso dos acontecimentos, se bem que o meu tio não queira. Depende de mim. Somerled pediu... ele disse que uma parte do acordo seria eu casar com ele e que o nosso filho seria o Rei destas ilhas depois dele. Se concordarmos com isso, ele poupará a vida do nosso povo, mas o meu tio e Kinart serão exilados. Rona... Nessa sentiu que ia começar a chorar e fez um esforço para que isso não acontecesse. se eu conseguisse persuadir o meu tio a concordar, as mortes parariam. Eu poderia salvar os Folk; homens, mulheres e crianças. Já perdemos tanta gente. A perspectiva gela-me, porque aquele homem não foi feito para liderar ninguém, não pertence aos Folk, nunca poderá compreender o que são as ilhas e o que significa ser o seu guardião. Mas, se não for assim, é o fim do nosso povo. É por isso que devo celebrar um Ofício. Eu sempre fui capaz de dizer qual é o caminho certo: qual o caminho a seguir. Mas, desta vez, ambas as hipóteses me parecem terrivelmente erradas.

Rona abanou a cabeça e colocou um braço por cima dos ombros de Nessa, murmurando qualquer coisa acerca de ossos e cinzas e, subitamente, Nessa desatou a chorar. Na sua mente via os olhos vazios da mãe, os corpos despedaçados de Ramsbeck e ouvia o furioso juramento de vingança de Kinart. Por cima de tudo, a voz de Somerled surgiu-lhe com uma calma estudada. Na minha visão de Hrossey não há lugar para ti.

Muito bem, rapariga disse Rona quando os soluços de Nessa abrandaram. Vamos fazer o seguinte. Primeiro, sentas-te aqui e bebes mais algum chá. Eyvind estava de pé junto da lareira, os olhos azuis fixos na infeliz Nessa. As mãos de Rona mostraram-lhe o que devia fazer; ele moveu-se obedientemente para colocar a panela de novo no fogo, foi buscar um punhado de hortelã seca e uma caneca de mel. Para Nessa era evidente, ao ver os seus movimentos cuidadosos e metódicos, que ele e Rona tinham estabelecido uma maneira eficiente de falar sem palavras. Eyvind não tentou perguntar-lhe o que se passava, o que havia de errado.

Agora, faz o que eu te disser, Nessa, e não discutas instruiu-a Rona. Esta noite, o ritual exigirá de ti todas as tuas forças. Bebe o chá. Aquece e deixa-te estar sentada um bocado. Eu preparo a câmara... não, não me interrompas... ainda não estou tão velha que não possa ir lá abaixo preparar as coisas como deve ser. Fizeste-o por mim muitas vezes ao longo dos anos. Enquanto eu estiver ausente, fala com o grandalhão. Vejo muito bem pelo olhar teimoso no teu rosto que não o queres fazer, mas deves-lhe isso por ter esperado por ti. Ele precisa que tu oiças o que ele tem para dizer.E se, depois de lhe falar, ele vai direitinho ter com Somerled? A coisa pode muito bem estar montada assim. Pode muito bem ser um jogo terrível, montado para nos apanhar na armadilha. Eu não posso confiar neste homem. Ele matou o irmão de Ara, rachou o crânio de Taran ao meio.Eu sei, filha. Nessa olhou para ela.Como é que sabes?Nós arranjámos maneira de falar um com o outro e eu sei somar dois mais dois tão bem como outra pessoa qualquer. Aquilo que ele não me pode dizer, vejo eu no fogo. E parece-me que vi aquilo que tu te recusas a ver.O que é que isso quer dizer? retorquiu Nessa, observando enquanto Eyvind deitava de novo água da panela numa taça, a boca cerrada, concentrado, forçando as mãos a permanecerem sob controlo. Desta vez teve menos sucesso; ouviu-se o fogo chiar quando algumas gotas caíram nas brasas e ela pôde ver como ele tremia. Talvez a culpa fosse dela.Eu vi o mesmo que tu viste naquela primeira noite, quando me disseste que precisávamos de manter o grandalhão em segurança disse Rona. Esqueceste-te disso, na tua ira por saberes do sangue derramado. Mas tinhas razão. Ele faz parte disto tudo, Nessa. Precisamos dele. Agora, deixa-te estar sentada um bocado e deixa-o falar. Pergunta-lhe acerca de Somerled. O problema dele é esse homem.Nessa sentou-se. Quando Eyvind lhe colocou a taça nas mãos, pareceu-lhe que ele fez um esforço para não lhe tocar. O chá estava bom. Rona estava a encher um saco com várias coisas tiradas das prateleiras e outras tiradas de vários cestos: ossos e cinza como dissera, ervas e outros objectos, coisas secretas que Eyvind não devia ver. Rona não sairia até Nessa começar a falar, isso era evidente.Rona está a preparar aquilo de que vou necessitar esta noite começou ela de modo algo estranho. Ela diz que eu devo falar contigo. Mas eu não sei por onde começar.Como está a tua mãe? perguntou ele. A cabeça dela melhorou?

Nessa não esperava aquilo e não protegeu a resposta.Vai vivendo, mas... mas parece um vaso vazio, não lhe sobrou tristeza nenhuma. Já não está cá. Não creio que chegue à Primavera. Esquece-se de comer e de beber; esquece-se de tudo, menos das filhas que perdeu.Filhas?As minhas duas irmãs; eu era a mais nova. Morreram com a doença, no Verão passado. A jovem não lhe queria dizer aquilo.Não admira que chores disse ele em voz baixa. E o teu pai?Morreu na guerra contra os Caitt. Eu era muito nova. Não me lembro dele.O teu pai era um guerreiro, nesse caso? Demasiadas perguntas.Só para defender as ilhas. Não por gostar de matar.Eyvind não respondeu. Ela magoara-o de novo e, em vez de satisfação, só sentiu confusão. Tinha de controlar a conversa, perguntar o que tinha de perguntar e depois terminar. Ela olhou de frente para ele, chamando a si toda a sua vontade. O cabelo dele brilhava, cor de mel, à luz da lareira; os olhos dele estavam solenes. Ela não sabia no que ele estava a pensar. Nessa respirou fundo, mas Eyvind foi o primeiro a falar.Foi um golpe doloroso para mim, o silêncio de Thor disse ele. Sem ti, eu não teria sobrevivido. Agora, parece que necessito do teu perdão, antes de começar a procurar outro caminho. Tudo bem. Não espero que mo dês, pelo menos depois do que fiz.Tudo o que precisava de dizer, tudo o que precisava de perguntar, fugiu-lhe da mente. Tudo o que queria era rodear-lhe o pescoço com os braços, chorar outra vez e dizer-lhe que era claro que estava perdoado e que tinha pena de o ter magoado quando já estava ferido. Não era nada dela perder assim o controlo. Não podia permitir que voltasse a acontecer.Fala-me de Somerled disse ela com um ar muito sério. A boca de Eyvind cerrou-se.Que se passa com ele? Tu falaste de... Somerled... há bocado, com a velha. Tens novidades?Algumas replicou ela cautelosamente. Ele pensa que tu morreste; acusou o Rei Engus de ter escondido o teu corpo. Chamou-te o seu melhor amigo. Como pode um homem daqueles ser o teu melhor amigo, Eyvind?

Ele hesitou.Somerled é... ele é um homem complicado disse ele. Determinado. Agarra aquilo que quer, é assim que joga os jogos dele. Nós somos amigos desde crianças; eu devo-lhe lealdade de acordo com isso. Sei que pode ser impiedoso.Eu conheci-o disse Nessa. Ele foi à minha... à corte do Rei Engus. Com um plano de paz.Ah sim? Os olhos de Eyvind iluminaram-se e ele inclinou-se para a frente, ansioso, com os cotovelos nos joelhos. Ele disse-me que faria isso, como Ulf queria, mas confesso que duvidava que ele o fizesse. Chegaram a acordo? Talvez eu possa regressar; aliviar-te da minha presença. E evidente que não sou aqui bem-vindo.Eu vou-te contar disse Nessa. Eu conto-te o que esse homem propôs, esse teu grande amigo. O acordo é simples. Engus perde o direito às ilhas e ao reino. Somerled fica com tudo. Será o chefe de guerra de Hrossey. Sim, até arranjou um nome novo para esta terra tão antiga. Ele disse: "Não há aqui espaço para dois líderes." Engus e o filho vão para o exílio com os guerreiros; o resto fica. E...E o quê? O rosto dele empalidecera.E., e nada. Não o sobrecarregaria também com aquilo. Para um homem da condição dele, proteger a sobrinha do Rei poderia ser perigoso para ambos; dizer-lhe quem era significava que, na manhã seguinte, ele já não estaria ali, tinha a certeza. Não podia dizer-lhe que o seu melhor amigo exigia que ela fosse o preço da sobrevivência do seu próprio povo. Com o tempo ele saberia, mas só quando estivesse forte de novo. Ele deu ao Rei até à Primavera para decidir disse ela. Se Engus disser não, e será o que ele dirá, será a guerra total. Se isso acontecer, os Folk não têm hipótese nenhuma. Este Somerled quer ser o grande líder, quer ser o fundador de uma nova era, creio.Ele quer ser Rei disse Eyvind. Nessa percebeu que ele estava a recordar uma coisa dita há muito tempo.Rona saíra; iria precisar de algum tempo para preparar a câmara secreta. Nessa pensou ouvir no suave crepitar e chiar do fogo e no vento em redor da cabana, vozes sussurrantes, uma história antiga.Fala comigo, Eyvind disse ela. Fala-me de Somerled.É muito... é muito difícil para mim falar assim dele. Existe o juramento que fizemos quando éramos crianças. Obriga-me a ser leal; obriga-me a um silêncio que se transformou na própria negação da verdade. Eu vejo todas as noites, todos os dias, as mesmas imagens, o sonho de que falámos, eu a cair de uma árvore: tantas imagens. Encolho-me ao vê-las, mas elas continuam a perseguir-me. Creio que não posso continuar a fingir; não posso continuar cego perante isto. Mas não sei o que fazer. A verdade é que... é impensável, Nessa. Ele é meu irmão. Mais íntimo do que um irmão.Conta-me, Eyvind. Fala-me do tempo em que os dois se cortaram um ao outro e juraram fidelidade mútua.Ele era uma criança estranha: desconfiado, orgulhoso, sempre muito sozinho. Ulf levou-o a Hammarsby e eu fiquei encarregue de... de o ensinar a ser rapaz, suponho. Mas não sabia o que fazer dele. Ele tinha sido muito maltratado. A mãe dele tinha morrido, o pai não queria saber dele e Ulf, simplesmente, não sabia o que fazer dele. Por isso eu... bem, fiz o que achei melhor. Ensinei-o a defender-se. Ensinei-o a caçar, a patinar, a nadar. Nunca consegui que gostasse dessas actividades, mas aprendeu-as; se ele acha que precisa de saber alguma coisa, trata de a aprender com uma dedicação feroz. Ninguém gostava dele. Não tinha amigos nenhuns senão eu. Eu tinha... pena dele, suponho. E admirava-o; ele era esperto. Era capaz de fazer muitas coisas que eu não conseguia.Nessa acenou com a cabeça. Havia muita coisa que queria dizer, mas permaneceu calada.Foi por isso que fiz aquilo. O juramento. Ele tinha ouvido dizer que eu me ia embora. Contra todas as suas expectativas, tinha sido feliz em Hammarsby. Creio que era a primeira vez que ele tinha um amigo. Como podia dizer não? Assim, fizemo-lo. A princípio não pareceu muito importante; éramos duas crianças. Mas em breve percebi que o juramento era mesmo vinculativo. Ele salvou-me a vida; então, vi-lhe nos olhos que aquele juramento era para toda a vida. Fiquei ligado a Somerled. Fiquei obrigado a...Ficaste obrigado a deixar passar as coisas quando devias denunciá-las?Acho que não te posso dizer. Eu não conheço muito bem a Lei, mas sei que não se deve acusar um homem sem provas. Fui tendo dúvidas, cada vez mais dúvidas à medida que o tempo ia passando. Mas não há quaisquer provas. E eu sou o único amigo dele. Se eu me virasse contra ele, ele ficava outra vez sozinho. E isso é uma coisa terrível, nessa, ficar sozinho. Eu sei o que isso é. Depois... depois do que aconteceu em Ramsbeck, vagueei durante muito tempo por um lugar onde ninguém me podia chegar. Até que apareceste tu.

Eu senti o mesmo murmurou ela. Tenho tantas saudades das minhas irmãs, se bem que quando elas eram vivas eu pensasse que elas não me compreendiam. Tenho saudades da minha mãe. Falo com ela e ela não me ouve. Eyvi, não contes comigo. O meu povo precisa de mim, está em perigo, um perigo terrível. Eu não posso... eu não devo...

Eu compreendo. Ainda não consegues confiar em mim. No fundo, é o que mereço. Eu esperava... não, é tolice. Tens um pente?

O quê?

O teu cabelo ainda está molhado. Ainda apanhas uma constipação se passas a noite na câmara com o cabelo molhado.

Ele estava a dizer-lhe que ela estava uma trapalhona, tal e qual como teria dito Kinart. Nessa sentiu-se aborrecida por o rubor lhe começar a subir pelas faces. Vasculhou na trouxa, encontrou o pequeno pente de osso com focas gravadas e tirou a fita que lhe atava a grande trança. Maldito homem. Como era possível ele fazê-la sentir-se assim, confusa, preocupada e feliz, tudo ao mesmo tempo? Não era ela uma mulher sábia?

Não disse ele, tirando-lhe o pente da mão. Eu faço. Assim, pratico. Tenho tentado fazer diferentes tarefas com as mãos. Até trouxe madeira da praia para a velha. Limpei o peixe que pesquei. Quando me concentro, consigo manter-me quase firme. E agora senta-te quieta. Isso.

Aquilo era uma coisa que as mães e as irmãs faziam umas às outras, não um guerreiro que ela mal conhecia. Homem ridículo. Eyvind, simplesmente, ajoelhou-se por trás dela e começou a pentear-lhe o cabelo molhado sem sequer pedir autorização.

Au!

Eu disse para ficares quieta. Está melhor assim?

Está, mas...

Podes confiar em mim para te prestar este pequeno serviço, pelo menos. Tive saudades tuas, Nessa.

Eu vou-me embora outra vez dentro de pouco tempo. E tu, se calhar, voltas para o pé dele, para o pé de Somerled. Não é possível nós... nós...

O movimento constante do pente era acariciador; fazia-a sentir-se quente e satisfeita. Não conseguia dizer-lhe para parar, se bem que aquilo fosse totalmente inapropriado.Podes muito bem ser um espião continuou. És amigo de Somerled, no fim de contas. Ele pode muito bem ter-te mandado aqui, ter montado uma armadilha para me apanhar. Ele pode muito bem ter fingido quando disse... quando disse que pensava que tu tinhas morrido.Por que havia ele de te montar uma armadilha? perguntou Eyvind enquanto continuava o seu trabalho, desfazendo os nós. Eu sei que, como guardiã dos mistérios, tens alguma influência sobre o Rei. Mas...E uma longa história disse Nessa. E agora responde à minha pergunta. Ulf veio para estas ilhas em busca de paz; os homens dele apoiavam-no. Alguns deles ligaram-se, até, a mulheres do nosso povo. Um até se casou. No entanto, assim que Ulf morreu, toda a gente se prestou a seguir Somerled, que não queria tratado nenhum. Tornou claro que não tem respeito pelos Folk; ele nem sequer quer as ilhas, na verdade, tudo o que ele quer é poder e influência. E o que Somerled quer, consegue. Um homem que em criança não tinha amigos. Por que não lhe fizeste frente? Por que não lhe fez ninguém frente? Não estavas a ver que o que ele estava a fazer era errado?Eu... O movimento do pente parou.Diz-me, Eyvi.Ninguém sabe se era verdade, mas as pessoas acreditavam que Ulf ia receber o baptismo cristão. Se um chefe de guerra dá semelhante passo, espera que, em breve, o seu povo lhe siga o exemplo. Isso perturbou as pessoas; fê-las ter medo. Quando Somerled se tornou chefe de guerra, confirmou a sua aliança com os antigos deuses e conquistou-lhes, desse modo, a lealdade. E houve homens que se tornaram íntimos dele, homens que ele conquistou... fazendo com que se tornasse no homem que eles admiravam. Alguns podem ter falado contra ele, mas o medo fechou-lhes a boca. Muitos não encontraram qualquer defeito no seu desejo de guerra. Na minha terra, um líder que é forte e decisivo, que mata inimigos e procura expandir a sua influência é um homem de respeito. Mas... houve um que falou alto. Hakon apareceu na corte depois de as mortes terem começado. Recusou-se a prestar vassalagem. Desistiu de ser Pele-de-Lobo.E Hakon morreu.

Sim, mas...Eu disse-te, Eyvi. O nosso povo não queima homens e mulheres vivos dentro das suas casas. Nós não matamos crianças.Ele ficou silencioso. Ela sentiu as mãos dele no pescoço por um momento e, então, ele pousou o pente.Qual é a melhor maneira de conseguir lealdade disse ela calmamente senão uma demonstração do que acontece àqueles que desobedecem?Creio que tu conheces os meus problemas tão bem como os meus sonhos disse ele. Esse é um deles. Depois de termos enterrado Hakon e a família, o meu irmão Eirik foi-se embora. Ele disse-me que ia ficar em Hafnarvagr e disse que ninguém iria ouvir falar dele senão na Primavera, porque queria regressar são e salvo para junto da mulher e dos filhos, em Rogaland. Ele disse-me que o perigo rondava. Eu... eu escondi-me da verdade, Nessa. Convenci-me de que não compreendia aquelas palavras. Mas...Mas?Somerled já andava fascinado com a morte. Quando nós apanhávamos animais em armadilhas, ele não as matava misericordiosamente; acabava com eles lentamente, enquanto observava. Quando ele ouviu aquela história acerca de Niall e de Thora, tudo o que ele queria saber era... no entanto, ele tem capacidade. Eu sei que ele é capaz de grandes coisas, se... se ao menos compreendesse o que significa magoar. Ele joga os jogos dele com homens e mulheres a sério, trata-os como se fossem as pequenas peças de pedra de um tabuleiro.Nessa acenou com a cabeça sinistramente.Vem, senta-te aqui, onde eu posso ver-te disse ela. Agora que o cabelo estava desentrançado, secaria rapidamente em frente do fogo. Assim está melhor. E obrigada. Já vi que consegues, pelo menos, fazer três coisas para além de lutar e matar. Podes sustentar uma família, já que não perdeste a tua habilidade para caçar. Talvez, como disseste, não sejas um homem inteligente, pelo menos como Somerled. Mas é evidente que és sábio. É por isso que demoras tanto tempo a resolver os teus problemas, Eyvi. Tens de examinar todas as possibilidades, pesá-las bem, antes de chegares a uma conclusão. Só um sábio faz as coisas assim. Só um sábio considera um assunto como deve ser antes de falar. Até lá mantém-se em silêncio. Não admira que os antepassados não te tenham impedido de entrar aqui.

Ele estava a olhar para ela intensamente.E a terceira coisa? perguntou ele suavemente.Sabes pentear os cabelos de uma mulher disse ela secamente. Como só tens irmãs mais velhas, suponho que foi uma mulher que te ensinou.Eyvind fez uma careta e ficou instantaneamente sério.Signe. Parece que foi há tanto tempo. O cabelo dela era claro como o trigo, não era escuro como o teu. Se bem que o teu fique vermelho à luz da lareira, tem um brilho parecido com o das castanhas maduras.Essa Signe é a tua mulher? A tua namorada? Maldita língua, por que lhe estava a perguntar aquilo? Como se lhe importasse!Não disse ele muito sério apesar de eu lhe ter pedido. Ela é... foi... uma amiga e uma amante, uma pessoa muito boa.Estou a ver. Por qualquer razão, aquilo não a fez sentir-se melhor. Portanto, continua à espera que regresses?Nós despedimo-nos. Não há qualquer compromisso entre nós.Rona volta daqui a pouco e eu tenho de ir celebrar o ritual. Eyvi, temos outro problema. E é um problema estranho e bem difícil. Diz respeito a um homem enforcado numa rede de pesca e pendurado entre a terra e o mar, um bom homem que nós acolhemos nas nossas ilhas. Tens a solução desse problema, também? Eu creio que tenho e a minha solução é a mesma do Rei Engus.Ele acenou lentamente com a cabeça. Havia um olhar miserável nos seus olhos.O método sugere apenas uma resposta. No entanto, na ocasião, Somerled ficou perturbado. O choque e a dor pareceram-me inteiramente genuínos.No entanto, tu próprio o disseste, ele transformou-se no tipo de homem que alguns admiram. Talvez, naquele dia, ele se tenha transformado na espécie de homem que chora a morte do irmão. Outro jogo.Mas não há provas disse Eyvind. O que acontece é que, como o conheço bem, vi algo na execução que só aponta para um homem. Foi uma morte inteligente, todos os vestígios desapareceram e tudo apontava para a profecia, até ao mínimo pormenor. Eu não quero acreditar que tenho razão, porque este crime foi contra o próprio sangue, contra um membro da família, contra as leis naturais. O tom da sua voz era abafado.

Nessa inclinou a cabeça.Mas acreditas disse ela. É isso que te impede de regressar, mesmo agora, que estás a recuperar as forças. Não queres confrontá-lo com a verdade.Como é possível um homem fazer uma coisa daquelas? Foi uma vingança grande demais, apesar de Ulf ter utilizado a herança de Somerled para pagar a viagem até aqui. No fim de contas, Somerled está bem equipado para seguir o seu próprio caminho; na verdade, é assim que ele prefere. Perguntei a mim próprio se ele não teria feito aquilo simplesmente para punir o irmão por não o amar? E lembrei-me...De quê, Eyvi? Ela viu as mãos dele a tremerem de novo e, sem pensar, estendeu a sua para segurar nelas e mantê-las firmes.Lembrei-me de uma outra vez em que a vingança dele também foi terrível, em que não houve provas. Quando nós éramos novos, em Hammarsby, houve uma rapariga que... foi forçada e ficou grávida antes de estar pronta para isso. Ela matou-se. Nunca ninguém soube quem foi. Eu sabia, mas neguei-o a mim próprio, recusei-me a acreditar que ele era capaz de uma coisa daquelas. Havia um rapaz, Sigurd, que gostava da rapariga; esse rapaz abandonou Hammasrby depois de ela morrer. Mais tarde, na viagem para cá, encontrámos Sigurd de novo, um homem ainda consumido pela raiva após aqueles anos todos. Ele tentou matar Somerled; eu impedi-o. E então... então houve aquele acidente terrível. Ele levou uma cornada de um boi. Foi a faca de Somerled que incitou o animal a atacar. Mas... mas eu estava ali, no outro lado. Somerled não podia saber se os cornos do boi perfurariam o peito de Sigurd ou o meu. Aquilo fez-me pensar. Fez-me pensar mais do que eu queria.Ele também fez um juramento de sangue disse Nessa. Mas tu não podes esperar lealdade de um homem como ele. O teu irmão teve razão em avisar-te. Somerled só está interessado em vencer. Não quer saber de quem fica caído na beira da estrada.Ele tem sido bom para mim.Um homem daqueles sabe o que é a bondade?Já te disse que ele me salvou a vida uma vez, quando éramos rapazes. Nesse dia ele foi... heróico, forte, admirável. Fiquei em dívida para com ele. E ajudou-me na corte do Jarl. Eu odiava aquelas conversas inteligentes, aqueles jogos e a necessidade de ter uma resposta sempre pronta para evitar o ridículo. Era respeitado como guerreiro, mas nunca consegui aprender a ser cortesão. Ele livrou-me de sarilhos vezes sem conta. Tinha sempre a palavra certa na ponta da língua, quando eu mais precisava. E era bom para Margaret, a mulher de Ulf. Quando ela se sentia só, ele arranjava tempo para ela. Ela é, creio, para além de mim, a única pessoa com quem ele se abre, mas, mesmo assim, muito raramente. Eu não acredito que ele seja só mau, Nessa. Se ele conseguisse adoptar outra atitude, se conseguisse compreender que não está a jogar um jogo, antes a própria vida, uma coisa preciosa, que deve ser vivida de maneira completa: uma hipótese de fazer as coisas bem, de provar o seu valor. Se ele soubesse isso, teria muito para dar.As mãos de Nessa apertaram a dele. Ela sentiu-se, curiosamente, perto das lágrimas de novo.A mim, parece-me que tu o julgas por ti disse ela com a voz um pouco tremida. É evidente que não perdeste o teu tempo aqui.Achas? perguntou ele suavemente. Mas continuo a não saber para onde hei-de ir ou o que hei-de fazer. Como posso virar-me contra ele? Como posso afastar-me de um juramento de fidelidade para toda a vida?Não te posso dizerdisse Nessa. Ela estava consciente da porta a abrir-se nas suas costas e de Rona a entrar. Sem dúvida, a anciã estava a olhar para o seu cabelo desentrançado e penteado e para as suas mãos envolvendo a de Eyvind; os dois sentados muito perto um do outro. Nessa não retirou as mãos. Mas esta noite vou tentar obter algumas respostas disse-lhe ela. Está tanta coisa em jogo que me parece impossível conseguirmos ter alguma influência, Eyvi. É uma tarefa terrível, uma tarefa que exige tanta coragem, tanta força. Não sei ao certo como havemos de conseguir. Mas temos de conseguir.Nós?Ela olhou-o nos olhos e acenou com a cabeça. Então, afastou as mãos e levantou-se.Está tudo pronto? perguntou ela à anciã.Fizeste o que devias comentou Rona. Deste-lhe o teu perdão. Agora, podes continuar e ele também. Sim, está tudo pronto. É pena eu não poder fazer isto por ti, mas os meus ossos já não aguentam um Ofício; exige muito de nós. Estás pronta?Estou disse Nessa. Estou pronta.

Estava frio, seco, escuro e o local enclausurado em silêncio. As lâmpadas que Rona acendera faziam aparecer, como que por encanto, sombras nas paredes. Junto dos degraus que levavam ao exterior os sete pequenos crânios olhavam para Nessa fixamente da prateleira de pedra. Junto deles estava um elmo, um belo objecto, resplandecente, com um espigão no topo, uma cortina delicada de anéis de metal na parte de trás e uma máscara na parte frontal. A Tribo Perdida gostava de coisas brilhantes. Assim, eram oito os rostos a olhar para Nessa, sentada com as pernas cruzadas no chão de terra.A longa noite de vigília de um Ofício era demasiado dura para uma anciã. Assim, Rona ficara em relativo conforto na câmara superior com os cães. Permaneceria acordada; era essencial que alguém ficasse de vigia para segurança da vidente. Eyvind recebera instruções para ficar na cabana, o mais afastado possível. Já se tinham quebrado demasiadas regras com a sua presença no lugar das mulheres. Não poderia aproximar-se do local daquela cerimónia secreta. Nessa nunca a fizera antes, pelo menos sozinha e era vital que tudo corresse como devia ser, ou esperaria toda a noite e, no fim, não teria qualquer resposta.Pouco a pouco, a jovem entrou em transe. Primeiro foi o abrandar calmo e silencioso da respiração, escutando o antigo bater do coração da terra. Depois, o gradual abandono do próprio corpo, começando pelos dedos dos pés e subindo até à cabeça, abandonando aquela concha sentada ali sob a luz difusa, de costas direitas e cabelos escuros caindo sobre os ombros esguios. Aquela operação levou tempo; a sabedoria da terra não fora conseguida num ano, ou em cem, ou em mil, antes ao longo de um tempo impossível de compreender por parte da mente humana, um espaço de tempo maior do que a abóbada celeste, mais profundo do que as profundezas do oceano. Nessa ficou ali a noite toda, até que a sua mente começou a fundir-se com uma outra extremamente antiga feita de pedra e terra, de água e raízes de árvores, um sopro de ar frio na câmara subterrânea, uma voz que vinha ao mesmo tempo de dentro e de fora. O invólucro vazio que era Nessa inclinou-se para a frente, obedecendo à sua vontade; as suas mãos moveram os objectos rituais: borrifando água, deixando que a cinza lhe escorresse por entre os dedos para formar um desenho, lançando os fragmentos de osso. Quando a voz falou, era a sua voz e não era a sua voz. A vidente e a visão eram uma entidade única.

Onde está o Lobo?O... o lobo... o cão? Está lá em cima, na câmara superior. Onde está o Lobo que tolda os passos da sacerdotisa? Onde está o chefe de guerra?Não está longe. Ele é homem. Não pode entrar neste lugar. O elmo dele brilha ali nas sombras, mais uma máscara de morte. Ele usá-lo-á uma vez mais em combate; oiço a lâmina do seu machado vibrando no vento gelado que vem do mar. Ele vai combater outra vez como é próprio da sua raça. Ele não conhece a rendição.Estás a dizer-me que ele vai morrer? Ele é um guerreiro. Tu precis as de um guerreiro.Silêncio. O invólucro que era Nessa inclinou a cabeça para olhar para o desenho no chão à sua frente, o alinhamento dos ossos, os subtis desenhos provocados pela cinza e pela água. As sombras passavam, vacilantes; sussurros assombravam o ar. O olho do espírito observava sem pestanejar.O que vês?Vejo morte, Mãe.Vês a verdade. Mas não a vês toda. Bebe da taça que a sábia arranjou para ti e olha de novo. A tua voz treme. Não deixes que o medo te impeça de ver o que aí está. Isso não é de uma vidente. Esvazia a mente.Nessa bebeu um gole da taça; o chá era forte e amargo, as ervas utilizadas para tornar o transe mais profundo e abrir a mente. A jovem fez um esforço e esvaziou a taça. Deixou de ter a noção do tempo. Sentia apenas a terra por cima e uma voz dentro de si. Os ossos e a cinza mudaram de posição e agitaram-se; então, viu uma imagem, fogo, homens correndo, algures nos cantos obscuros da câmara subterrânea ouviu-se um grito terrível que se prolongou e depois o som do mar. Teve uma visão das ilhas, mas estas tinham mudado. A Pedra do Povo estava por terra e o grande círculo estava abandonado, havia incêndios, destruição e ódio. Não se conseguia ver a si própria nem a Rona. Não conseguia ver Engus, Kinart ou qualquer homem dos Folk. Não conseguia ver Eyvind. Era um local vazio de espírito.Que vês?N... não sei...Tu acordaste-me do meu sono, filha. Não percamos tempo com cobardices. Uma mulher sábia não se esconde da verdade.

Isto não pode ser o futuro! Não pode ser! Temos de ser capazes de deter isto!O Lobo é fiel?E. A voz dela era um sussurro.A anciã é forte? ÉE tu, sacerdotisa? Hesitas perante essas imagens. Mas não esperes respostas fáceis. Pensas que viste sofrimento, mas o sofrimento que vais enfrentar é maior do que imaginas. Verás tudo o que te é querido suspenso de um fio mais fino do que o fio de uma teia de aranha. Terás força suficiente para perder tudo e, mesmo assim, continuar?Isto é... isto é uma visão verdadeira, então? É isto que espera os Folk, tal como ameaçou Somerled?A resposta está dentro de ti, filha. Tu procuras nas cinzas e nos ossos a verdade, nos fragmentos e na poeira do destino dos homens. Nas cinzas e nos ossos encontrarás a verdade, profundamente escondida. Chama a ti toda a tua coragem, porque a visão de trevas desta noite mostra-te o caminho a seguir. Segue-o resolutamente, ou tudo falhará.Ou tudo falhará? Então... há uma esperança, uma hipótese? Uma tábua de salvação? Diz-me. Diz-me, os Folk podem ser salvos? Ou estaremos... eu e ele destinados a lutar e a falhar, cada um de nós isolado nos tempos de trevas que aí vêm?O Lobo não sabe o que é a rendição.Ele mudou. Agora já sabe o que significa tirar uma vida e o que significa viver essa mesma vida.Ele irá desarmado para esta batalha. O adversário dele terá todas as armas.Nesse caso, mandá-lo-ei embora. O frio intensificou-se. As lâmpadas vacilaram, as sombras moveram-se. Não vou obrigá-lo a ficar junto de mim, fazendo com que seja vencido, fazendo com que morra por nós. Não o lançarei aos pés de Somerled. Prefiro que vá para casa: prefiro que cruze o mar e que nunca mais regresse.É demasiado tarde. O Lobo segue os teus passos. Ser-te-á leal até ao fim.O meu tio... o meu primo... e Rona? Nenhum deles estava ali, nenhum...És forte, filha? Quão forte? És tão forte como as pedras sagradas? És capaz de suportar o que as grutas profundas suportam, o teu coração bate ao ritmo do coração das ilhas? Quais são as tuas forças, Nessa?

As suficientes. Têm de ser.Ahhh... O som ecoou através da gruta, um suspiro, um soluço, um sussurro, um grande chamamento, uma profunda oração. Nessa cobriu o rosto com as mãos e sentiu as trevas rodearem-na.Nessa agitou-se, meio acordada. A sua cabeça flutuava; sentia os membros pesados, a boca seca. Passar do transe ao sono não é bom para o corpo ou para a mente. É melhor sair passo-a-passo, através da bruma do pensamento, até a mente atingir de novo a consciência total. Só então se pode deslizar para o sono em segurança. Mas ela não fizera isso; a exaustão, o desespero e a negação tinham-na reclamado e agora ela sentia-se vazia, sem forças, incapaz, até, de passar a língua pelos lábios secos. Lentamente, a consciência aumentou. Sentia-se quente; estava deitada algures num sítio macio, numa cama, com uma almofada sob a cabeça. Já não estava escuro; apesar de as pálpebras estarem pesadas de sono, sentiu a luz... Se estava na cabana e se estava assim tanta luz, era porque não era apenas dia, era porque a tarde já ia adiantada... estava quase na hora da maré vazia...Os olhos de Nessa abriram-se abruptamente. Os dedos quentes que rodeavam os seus afastaram-se também abruptamente. Ela tentou levantar-se, mas voltou a cair para trás com um gemido quando a sua cabeça começou a latejar, um insistente rufar de tambor que começava algures, mesmo por trás dos olhos.É tão tarde... por que não me acordaste? murmurou ela. Kinart deve estar à espera... tenho de ir...Água. A voz de comando era de Rona. Nessa virou a cabeça cautelosamente para o lado de onde viera a voz. Lá estava Eyvind junto da enxerga com um jarro numa mão e uma taça na outra; estava a ficar muito prático naquilo. O jovem estendeu-lhe a taça; ela ergueu-se num cotovelo e bebeu. Por que estava ele tão pálido? Por que parecia tão ansioso? Ela ainda nem sequer lhe dissera. Eles não sabiam o que vira.Óptimo disse Eyvind. Muito bem. Mais devagarinho. Isso mesmo. E agora deita-te outra vez.Não! Ela tentou sentar-se; desistiu e voltou a deitar-se na almofada. Devem ser horas de eu me ir embora. O Sol está quase a pôr-se. Tinha a cabeça cheia de facas, picando-a.

Kinart pode esperar um pouco mais disse Rona, aparecendo por trás do ombro de Eyvind. Também ela parecia pálida e cansada; uma noite sem dormir, para uma anciã, tem o seu preço. Tu estás completamente esgotada, pareces a sombra de uma fada. Deixa-te estar. Se for preciso eu vou lá fora ter com o teu primo. Tens tempo para descansar um pouco e dizer-nos o que viste. Depois, podes ir, se tem mesmo de ser.O meu tio obrigou-me a prometer. Rona, ele quer que tu vás comigo. E eu acho que ele tem razão. Já não é seguro ficares aqui. Vêm... O seu corpo foi percorrido por um arrepio apesar dos cobertores. Vêm aí tempos maus, tempos de trevas. Vens?Rona abanou a cabeça.Eu, ir para Dorso de Baleia? Não me parece. Eu não tenho medo de morrer, Nessa. Estou velha, já fiz o que tinha a fazer neste mundo e irei quando for chamada. Agora, a sacerdotisa és tu, miúda. Os antepassados olharão por mim e eu por eles enquanto tiver de ser.O problema é esse murmurou Nessa. Não me parece que já tenhas feito tudo. Perguntaram-me se eras forte. Eu creio que há outra tarefa para ti, Rona, e receio por ti se ficares aqui sozinha. O futuro... o futuro será vazio para nós, para os Folk e para as ilhas, se não formos fortes.Nós? perguntou Rona com um olhar arguto.Tu, eu e... Eyvind.Ah disse a anciã. Tínhamos razão acerca dele, afinal. Vais dizer-lhe?Não sei como. Pareceu-me que... pareceu-me que, ajudando-nos, vai sacrificar-se. Eu não o quero mandar para uma morte certa, Rona. Como posso fazer isto? Ele nem sequer é um dos nossos. É como utilizar um guerreiro cujo papel na batalha é ser o primeiro a atacar e a morrer.Diz-lhe. Eu vou lá fora ter uma conversa com Kinart. Vou-lhe dizer que vais assim que tiveres forças suficientes.A porta rangeu ao abrir e depois fechou-se. Tinha de sentar-se, tinha de chamar a si todas as suas forças, apesar da dor terrível na cabeça e do peso no coração, como se este fosse de chumbo. Sentiu um vómito, ia vomitar. Maldição, não era justo...Eu ajudo-te disse Eyvind. O jovem segurou numa tigela e pôs-lhe uma mão na testa enquanto ela vomitava desamparadamente.

Não te preocupes murmurou ele. Não te preocupes. Daqui a pouco já estás bem.E, extraordinariamente, estava. Com o estômago vazio, a dor de cabeça transformou-se num lento latejar. Eyvind ajeitou-lhe a almofada para que ela pudesse sentar-se. O jovem limpou tudo; regressou com um pano molhado e colocou-lho na testa.Estava preocupado disse ele. Parecias tão longe.Foi o transe. E... e o que vi era mau. Era tão mau que não consegui sair dele convenientemente; em vez disso, adormeci. Fugi outra vez. Por isso é que estou enjoada. Mas já passa. Tenho de me ir embora, a maré está quase no ponto mais baixo. Como é que vim aqui parar? Como é que saí da câmara?Eyvind sorriu.Bem, não foi a velha que te trouxe, podes ter a certeza.Mas... queres dizer que foste lá abaixo buscar-me? Trouxeste-me para aqui?Ela deu-me autorização, com instruções para que mantivesse os olhos no chão. Tu estavas gelada; respiravas tão lentamente como um homem abandonado na neve, à noite. Podias ter morrido.Obrigada por me teres ido buscar.Foi muito estranho. Aquela passagem é estreita e tu és alta para a tua raça. Chegas quase ao meu ombro.Quando eu era pequena, o meu primo chamava-me Pau-de-Feijoeiro disse Nessa secamente.Durante uns momentos Eyvind não disse nada; ela começou a perguntar a si própria se não teria dito a palavra errada na língua dele. Então, ele disse:Eu não te daria esse nome.Ela olhou de relance para ele. Havia uma expressão nos seus olhos que lhe pareceu nova. Perturbou-a, porque viu neles um reflexo de si própria, algo frágil e encantador, tão doloroso que quase não o conseguiu suportar.Que nome me darias, então? perguntou-lhe ela, não muito certa do que quereria ele dizer.Chamar-te-ia pérola pela tua beleza. Chamar-te-ia pomba pela tua doçura disse Eyvind suavemente. Chamar-te-ia estrela brilhante. Ele não estava a olhar para ela, estava a olhar, aparentemente fascinado, para o chão a seus pés.

O coração de Nessa ficou descontrolado, parou e voltou a bater. Os homens diziam aquelas coisas, claro, ela sabia. Mas nunca eram sinceros; as suas irmãs tinham-lhe dito que era apenas um truque, para fazer com que as mulheres lhes dessem o que eles queriam. A jovem respirou fundo, ia começar a censurá-lo, mas não encontrou palavras. Era evidente que Eyvind não era essa espécie de homem. Na verdade, até duvidava que ele tivesse alguma vez dito aquilo. Parecia estar a corar.Os homens não me dizem esse tipo de coisas disse-lhe ela sem conseguir manter a voz firme.Não? Ele conseguiu olhar para ela com um olhar tão profundo como o mar no Verão.Eu sou uma sacerdotisa. Os homens não se dirigem a mim nesses termos. Não é... apropriado.Ofendi-te? perguntou ele em voz baixa. Estás a dizer-me que estás ligada aos teus deuses para toda a vida? Que nunca te deitarás com um homem?Subitamente, aquilo estava a tornar-se muito difícil. Nessa estremeceu e envolveu-se nos seus próprios braços. Escolheu a resposta mais fácil.Não, não me ofendeste, Eyvind. Nós somos amigos. E agora escuta-me, por favor. Eu tenho de ir daqui a bocadinho, o meu primo está à espera. Ontem à noite... ontem à noite vi coisas terríveis. Parece-me que vamos todos caminhar muito perto da berma de uma falésia e que, se escorregarmos, os Folk estão perdidos, as ilhas estão perdidas e nós também estamos perdidos, Eyvi: tu, eu e Rona. Quero saber se nos ajudas! Ajudas-nos a salvar os Folk?Ele acenou com a cabeça sem hesitar.Tens de travar uma batalha. O Lobo, foi o que me disseram. O Lobo tem de entrar em combate contra um adversário que tem as armas todas. Mas não creio que seja a espécie de combate em que tu foste tão bom no passado. E devo dizer-te que porás a tua vida em perigo. Eu não... eu não quero que fiques ligado a uma promessa, Eyvi, para morreres no fim.Ele sorriu tristemente.É tudo o que eu sei fazer, acho eu.Não digas isso! Ela atirou com o cobertor para trás e pôs-se de pé junto da enxerga, oscilando enquanto as paredes, o chão da cabana e as vigas do tecto giravam diante dos seus olhos. Eyvind levantou-se para a segurar pelos braços; as mãos dele eram quentes e seguras, as mesmas mãos que tinham apertado as suas durante os tempos de trevas e esquecimento. Não digas isso, Eyvi! Eu acredito que aqui há futuro, acredito que podemos fazer coisas boas de novo, não me vou entregar ao desespero! E há tantas coisas que podes fazer, tens tanto para dar, pára de te esconderes por trás do teu elmo, do teu machado e do teu grito de batalha! O homem dentro de ti é bom, puro e forte. É ele que vai ganhar esta luta! Com um considerável esforço de vontade, ela afastou-se, se bem que tudo nela a impelisse a colocar-lhe os braços em redor do pescoço, encostar-lhe a cabeça no peito e... E havia tantas razões para não fazer aquilo, razões e mais razões. Devia mesmo estar doente e exausta, para permitir que aqueles pensamentos lhe entrassem na cabeça. Foi buscar a capa e a trouxa. Meteu os pés nas botas que alguém lhe colocara ali junto da cama.Não respondeste à minha pergunta. A voz dele era tão baixa que ela mal pôde ouvi-lo: um fio de voz, mas forte. Não conseguiu olhá-lo nos olhos. Estás ligada a uma vida de celibato, à prática dos vossos rituais? Era isso que querias dizer?Não sei murmurou ela. Não sei qual é a resposta. A jovem atrapalhou-se com os atacadores das botas.Deixa que eu ajudo-te disse ele e ajoelhou-se para os atar cuidadosamente. Para um homem com umas mãos tão grandes, ele tinha muito jeito.As tuas mãos não estão a tremer disse Nessa.Não replicou Eyvind mas eu estou assustado. Assustado por ti, assustado pela velha, aterrorizado com a tarefa que me espera. Ele pode sempre derrotar-me com palavras. São a sua melhor arma e ele usa-a com maestria.Ouviram-se passos vindos do exterior; Rona estava de regresso. A anciã tossiu alto e bom som, talvez um aviso.Não me podes dizer mais acerca do que viste? perguntou Eyvind insistentemente, pondo-se de pé. E acerca de ti? Eu não te quero na frente de batalha, devias ir para um lugar seguro...Shhh disse Nessa. Não há tempo. Só temos tempo para nos despedirmos. Ela colocou-se em bicos de pés e deu-lhe um pequeno beijo na face. Foi um beijo rápido e leve, como o roçar de uma pena, a breve dança de uma borboleta sobre uma flor. Ela ouviu-o reter a respiração e soube que, se permanecesse ali nem que fosse só mais um instante, os braços dele erguer-se-iam e rodeá-la-iam como uma capa de amor, calor e protecção. Mas não podia permitir que isso acontecesse. Nessa afastou-se e saiu para a luz crepuscular do fim de tarde, desceu até à praia onde os dois guardas a esperavam e correram contra a maré de regresso a casa.

 

Em tempos teria agido sem hesitação. Teria posto a espada à cintura, Mordedor ao ombro e teria abandonado o lugar secreto na direcção da corte de Somerled. Em tempos teria agido como um Pele-de-Lobo.Não eram apenas as dúvidas que o faziam esperar. Rona também o aconselhara a ser prudente. Compreendia suficientemente bem os seus gestos; até conseguia perceber uma palavra ou duas. Ainda não, estava ela a dizer-lhe, Ainda não. E porque não tinha esquecido nem nunca esqueceria o que fora, Eyvind passou o tempo a preparar-se o melhor que podia e sabia. Não lutaria contra Somerled com a espada, o machado ou os punhos. Mas também não queria ser assassinado antes de lá chegar. Imaginava o que diriam Grim, Erlend e Holgar quando chegasse lá e não conseguisse, sequer, erguer uma taça sem entornar metade do conteúdo. Imaginava o que Somerled pensaria se o seu principal guarda-costas mal conseguisse ir da caserna ao salão grande sem ter de parar para descansar. Assim, treinou o corpo e durante esse treino árduo tentou tirar Nessa da mente. Faria o que ela queria, estava decidido. Provavelmente, morreria. Vira isso nos seus olhos, se bem que ela não tivesse dito nada. Talvez fosse melhor se morresse, porque, por mais que tentasse, não conseguia tirá-la do pensamento. Esse pensamento vinha-lhe à mente vezes sem conta; de manhã, quando acordava, à noite, antes de adormecer, durante o dia, quando se punha a si próprio à prova e erguia Mordedor sobre a cabeça. Não conseguia esquecer os lábios dela na sua face, o seu cheiro a violetas, o roçar do seu corpo esguio contra o seu, levando-o a um instante de extrema excitação que o envergonhava. Nessa era uma sacerdotisa, proibida, intocável. Mesmo que não fosse o caso, estava fora do seu alcance com a sua calma e sabedoria, de tal modo que era ridículo passar-lhe tal ideia pela cabeça; era ultrajante o seu corpo arder por ela, mesmo agora, que ela se tinha ido embora há muito. Bastava-lhe imaginar... bastava-lhe recordar-se... mas não recordaria, disse Eyvind selvaticamente a si próprio, deixando cair Mordedor sobre um toro de madeira que tinha colocado contra o banco para servir de alvo. O machado caiu com precisão; o toro maciço partiu-se em dois. Não podia pensar nela. Pensaria apenas no dia-a-dia, no momento: no machado, nos braços, no alvo. Era, mais uma vez, uma arma, mas dela, não de Thor. A sua missão era ir ter com Somerled e dizer a verdade; usar o que sabia, de certo modo, para influenciar as acções do seu amigo. Não poderia acusar Somerled em frente de outros sem provas. Fazer isso seria agir como um louco; não mudaria nada. Tudo o que poderia fazer, pensou, seria falar com o amigo em particular e tentar fazer com que Somerled fizesse a paz com Engus. Teria de confiar na força do juramento e esperar que Somerled enveredasse por outro caminho. Eu sei que mataste o teu irmão. A partir de agora vou ficar de olho em ti, para ter a certeza de que te portas como deve ser. Todos os dias, todos os momentos. Pelos ossos de Odin, o juramento tinha-o mesmo agrilhoado. A tarefa seria difícil; mais difícil do que tudo o que fizera até então. Teria de ganhar forças para estar pronto.Eyvind deu um nome à cadela: Shadow. Talvez tivesse tido outro nome, em tempos, dado por Ulf, mas estava esquecido. Shadow mantinha-se por perto; se tinha saudades do companheiro, que tinha ido com Nessa, não parecia. Mantinha-se deitada à entrada do dólmen, o nariz em cima das patas, observando solenemente enquanto Eyvind praticava com a espada, erguendo-a bem alto, varrendo o espaço de lado, virando-se, aparando, golpeando de alto a baixo, segurando-a firmemente. As suas armas tinham estado guardadas cuidadosamente, não escondidas. O que significava que Nessa confiava nele desde o primeiro momento, quando não tinha razões para o fazer. Havia recordações dela por toda a parte; a capa que deixara para trás, nas pregas da qual permanecia o doce aroma que tanto o seduzia; o pequeno desenho com pedras que ela fizera no lugar onde Mordedor estivera guardado. Ele tirava de lá o machado todas as manhãs e voltava a pô-lo todas as noites sem tocar naqueles símbolos secretos. Conseguia imaginar a solene expressão nos seus olhos claros e estranhos, via os seus cabelos castanhos e sedosos caindo-lhe sobre os ombros enquanto ela se inclinava para colocar as pedras minúsculas no seu devido lugar, o jogo de sombras da luz da lâmpada na pele pálida do seu queixo e a suave curva rosada da sua boca. Vi-a como se estivesse ali na sua frente... Maldição, era uma tortura lenta e ele era um perfeito louco. Tinha um trabalho para fazer, tinha de o fazer e pronto. O facto de Nessa ter suficiente fé nele para lhe pedir ajuda, bastava-lhe. Não era culpa dela se os seus olhos só a viam a ela, se o seu corpo ansiava pelo dela, se a sua mente andava aterrorizada com a probabilidade de ela estar em perigo e ele não poder estar a seu lado para a proteger. Ela não sabia que lhe tinha roubado o coração no momento em que lhe apertara a mão e lhe chamara Eyvi. Ela não lhe pedira que a amasse. A culpa era dele, uma fraqueza que, nas palavras de Somerled, só podia estar na cabeça de um homem pouco inteligente. Agora teria de pensar e pensar bem, porque a Primavera estava a chegar e ele ainda não sabia como dizer o que teria de ser dito. O que estás afazer é errado. Toda a tua estratégia quanto às ilhas está errada. Os seus habitantes são homens e mulheres verdadeiros, não são nenhuns brinquedos. Conseguia ouvir a resposta de Somerled. Ora bolas, Eyvind. Confundiste tudo. Deixa isto comigo, sim, e preocupa-te com aquilo que sabes fazer?Perguntava todas as noites à anciã, por meio de sinais, gestos e palavras mal compreendidas: chegou a ocasião? E ela respondia-lhe todas as noites a mesma coisa: Ainda não. Espera mais um pouco. Mas chegou a altura em que não pôde esperar mais.Talvez houvesse, naquele dia, um cheiro a Primavera no ar. Rona passou muito tempo a olhar para o céu e ainda mais a olhar para sua pequena lareira e a murmurar para si própria. Enquanto polia o elmo e a espada, Eyvind apanhou-a a olhar para si de modo perspicaz, com um olhar agudo, como se estivesse a medi-lo.Farei o que puder disse ele apesar de ela não perceber as suas palavras. Tudo o que estiver ao meu alcance. Tentarei protegê-la, ajudá-la. Só que...Eyvind ficou subitamente silencioso. Rona ficou gelada; os seus velhos ouvidos também ouviram, um som de passos não muito longe, as botas de um homem pisando onde não deveriam pisar, no perímetro do lugar das mulheres, no lado ocidental. Shadow começou a rosnar baixinho, profundamente; Eyvind calou-a com um gesto rápido. O jovem levantou-se, escutando como um caçador. Rona ficou imóvel.

Outro som quase inaudível, desta vez a leste. Ele achou que eram quatro. Ou não eram habilidosos, ou ele estava a perder qualidades ao deixá-los aproximarem-se daquela maneira. Quatro. Muito bem, não tinha outra hipótese senão defrontá-los antes que a anciã saísse ferida. Ele olhou para ela de lado e fez um movimento de cabeça na direcção do dólmen: Vai lá para dentro, depressa, esconde-te. Não precisou de se preocupar com o barulho que ela faria, porque a anciã deslocou-se como um fantasma, em completo silêncio e com uma rapidez notável. Ele tentou comunicar a mesma mensagem a Shadow. Vai com ela, toma conta dela, mas Shadow não obedeceu. Ficou ao lado dele, de dentes arreganhados, movendo o focinho peludo de um lado para o outro como se tentasse adivinhar qual dos inimigos atacaria primeiro.Os passos aproximaram-se, furtivos mas inequívocos. Eram, pelo menos, quatro, talvez cinco. Eyvind colocou o elmo. Empunhou o machado com a mão direita, a espada com a esquerda e colocou-se a um canto, por trás da barrica da água. Algo no seu interior lhe dizia: Que não seja Holgar. Que não seja Grim. Que não seja Erlend ou Thord. Que não seja o meu irmão. Os seus dedos apertaram o cabo do machado e então algo voou através do ar fazendo um grande arco, uma bola de fogo, um archote, as chamas começaram a crepitar instantaneamente no telhado de colmo da cabana de Rona e umas silhuetas armadas correram na direcção do lugar das mulheres, vindas de ambos os lados ao mesmo tempo.Procurai a rapariga! gritou alguém. Procurai antes que arda tudo. Dá um pontapé na porta!Eu não entro ali dentro! gritou outro homem. E a bruxa? Mais vale queimá-los, é mais seguro!Tu ouviste o que Somerled disse. Apanhai a rapariga viva. É o que ele quer. Ele não te vai agradecer se apareceres lá com um cadáver todo queimado.Está bem, está bem. Um dos homens encostou o pé à porta da cabana; esta ofereceu pouca resistência, já que era quase tão velha como a própria Rona. Pela abertura saíram nuvens de fumo escuro; o homem entrou às cegas, tossindo.E além? Era um dos da tripulação do knarr, Eyvind conhecia-o. Uma gruta, ou coisa parecida. Ela pode estar lá dentro. Vamos! Conhecia-os a todos; homens que tinham sido companheiros leais de Ulf e homens que tinham sido simplesmente contratados como marinheiros. Agora, andavam todos armados; agora, eram homens de Somerled.Não está ninguém lá dentro! arquejou o homem da entrada da cabana. Por trás dele, as tábuas começavam a ceder; faúlhas estranhas assobiavam e estalavam no meio do fumo, púrpuras, verdes e escarlates. Pouco restaria, no fim, dos pertences da mulher sábia, magros como eram.Em seguida, os cinco dirigiram-se para o dólmen, mas, subitamente, lá estava Shadow rosnando ameaçadoramente, a boca uma armadilha de grandes dentes babados, próprios para morder ursos, veados ou javalis. Os seus olhos, tão meigos quando caminhava ao lado de Eyvind, ou brincava com o companheiro, estavam raiados de vermelho, como um animal feroz. Os homens hesitaram.Pelos ossos de Odin! murmurou o líder. Em nome dos deuses, que é aquilo?É uma bruxa-lobo sussurrou alguém. Uma mordidela e morres logo numa agonia terrível.Veneno nas presas disse outro em tom trémulo. No sítio de onde venho chamam-lhes cães do diabo. É melhor voltarmos para trás.Mas um deles tinha uma lança, que estava apontada ao coração de Shadow. O braço dele recuou, a arma voou e foi nesse preciso momento que Eyvind apareceu, vindo do seu esconderijo, para lhe desviar o curso. Shadow começou a ladrar furiosamente.Até esse momento, Eyvind não sabia o que faria: o que diria. Mas, agora, erguia Mordedorbem alto e as chamas da cabana a arder reflectiram-se, douradas e alaranjadas, na sua lâmina. Uma voz chegou-lhe espontaneamente aos lábios, uma voz irada, poderosa como as trevas no momento da morte. Percorreu o local como um chamamento do outro mundo.Quem se atreve a desafiar-me?Eyvind! arquejou alguém com um terror abjecto. Os rostos dos homens ficaram brancos como a cal, os olhos arregalados de pânico e começaram a recuar, tropeçando na pressa. É Eyvind! Mas... mas ele está morto!Seguiu-se uma fuga desordenada, os homens tropeçando uns nos outros num frenesim terrível e Shadow mordendo-os e rosnando-lhes nos calcanhares. No espaço de momentos, o lugar das mulheres ficou vazio de novo, com excepção de Eyvind e da cadela. O jovem reparou numa espécie estranha de bruma verde no chão e em redor dos seus joelhos, uma espécie de vapor que se pegou e serpenteou misteriosamente pelo seu corpo acima. E quando Rona saiu lentamente da torre subterrânea, o mesmo véu verde parecia manter-se agarrado às suas mãos e vestido, antes de se dissipar no ar frio. Parecia que a anciã tinha acrescentado um toque pessoal aos acontecimentos.Ficaram lado-a-lado, olhando para os restos queimados da cabana. O incêndio era grande; não se podia salvar nada. Eyvind pôs o braço em redor dos ombros de Rona; ela era tão frágil e ossuda como um mocho velho. Ocorreu-lhe que ela era uma mulher ao mesmo tempo sábia e simpática.Lamento disse ele. Lamento se não pude salvá-la. Rona murmurou algo e fez um gesto com as mãos. A casa; os seus pertences. Um movimento dos braços: tudo perdido. Ela levou as mãos ao coração, tocou com os dedos na cabeça e sorriu torridamente com a boca aberta. Ele pensou compreender os seus gestos. Está tudo no coração e na cabeça, rapaz. E isso é que interessa.Após o incêndio, era evidente que nenhum deles podia continuar ali. Abrigaram-se no dólmen quando a noite caiu. Shadow ficou no exterior, sabendo, talvez, que era necessária uma vigília permanente. Eyvind tentou explicar a Rona o que ouvira. Parecia-lhe de uma importância vital.Nessa disse ele, sabendo que aquele nome, pelo menos, era do conhecimento de ambos. O jovem usou as mãos. Homens virem... não por mim, não por ti... homens virem por Nessa. Somerled... procurar Nessa. Porquê? Por que a quer ele, Rona? Diz-me.Mas, como muitos idosos, a anciã escolhia os momentos em que decidia ajudar e os momentos em que decidia permanecer em silêncio. Ela encolheu os ombros e não disse nada.Por favor pediu Eyvind, sabendo que estava a falar para si próprio. Rona deitou-se no chão e cobriu-se com a capa de Nessa. Não era uma boa cama para uma anciã. Por favor, diz-me. Eu amo-a, não posso permitir que ele a magoe. Eu aceito o que ela é e o que eu sou. Sei que o melhor que tenho a fazer é tentar interpor-me entre ela e o perigo, ajudá-la, tal como prometi. Só estou a tentar juntar as peças de maneira a poder compreender: para que saiba o que hei-de fazer a seguir.

Não valia a pena. Os olhos de Rona estavam fechados; a anciã ressonava tranquilamente. Assim que o céu começasse a clarear, teria de acordá-la e teriam de ir... para onde? Um fugitivo, cujos conterrâneos pensavam ser um fantasma, uma velha e um grande cão de caça: não iriam longe sem ser vistos. Eyvind não gostava de pensar em Rona nas mãos de Somerled. O tratamento que ele infligira à mulher-gato naquele ano distante mostrava o que ele pensava das sacerdotisas. Para onde iriam? Para onde poderia levá-la? Para os Folk, ele era o inimigo, um carniceiro que chacinara os seus filhos. E Somerled? O perigo aumentava para Nessa e para o seu povo a cada momento que passava. Se ao menos ela estivesse ali a seu lado; se ao menos aquela fosse de novo a primeira noite, quando ele acordara do seu longo pesadelo para a ver ali na sombra com todo o mistério, solenidade e maravilha das ilhas escritos nas feições delicadas. Não admirava que a tivesse tomado por uma deusa, por um espírito. Não admirava que se tivesse sentado junto dela, os dois corpos juntos, como se não houvesse qualquer inconveniente. Aquela noite não fizera parte do tempo normal; decorrera num tempo próprio. Onde estava Nessa naquele momento? Pensaria nele? Perguntaria a si própria se ele já tinha começado a tarefa de que o incumbira, ou esquecera-o no momento em que se virara e correra de volta para o seu povo? Eyvind levou os dedos ao local onde ela o beijara e, sentindo-se um tolo, murmurou umas palavras de boas-noites:Descansa, minha estrela brilhante. Caminha em segurança. A minha mão na tua. O jovem fechou os olhos e adormeceu.Estava tudo silencioso. Tão silencioso que ele soube, no momento em que acordou, que a anciã se tinha ido embora. Percorreu o dólmen com o olhar, mas não viu sinal dela. Eyvind saiu para o exterior, esperando que Rona tivesse ido buscar água ao regato, ou talvez andasse a vasculhar nos restos carbonizados da cabana, esperando salvar algum pequeno tesouro. Mas o local estava deserto. Um manto fino de cinzas cobria os pequenos arbustos e as margens do ribeiro. Rona desaparecera, assim como Shadow. Uma expedição, um rapto, até um assassínio... dormira enquanto isso acontecera? Pensa, Eyvind. Não havia sinais de luta, não havia sangue, tudo estava como no dia anterior, tanto quanto podia ver, apesar das pegadas dos homens de Somerled ainda se verem no solo macio. Aonde iriam dar as pegadas de Rona? Saíra dali com a mesma subtileza com que tecia os seus feitiços de bruma verde e voz fantasmagórica, desaparecera sem deixar rasto?Rona! chamou ele, sabendo que ela não lhe responderia. Onde estás, velha maluca? Quem te há-de proteger, se andas por aí sozinha? Lá estavam as pegadas de Shadow sobrepondo-se a outras, um rasto contínuo através do espaço sagrado, afastando-se pelo trilho na direcção leste e subindo para os montes. Tinham-se ido embora, os dois. Rona resolvera-lhe o primeiro problema; a anciã libertara-o da necessidade de a proteger, para que pudesse prosseguir na sua tarefa. Eyvind perguntou a si próprio em que canto gelado da ilha ela depositaria os seus velhos ossos naquela noite.Desculpa murmurou ele, e regressou ao dólmen, porque tinha de sair dali antes que Somerled mandasse de novo os seus homens para que terminassem a tarefa de que os incumbira, já refeitos do seu terror. Procurai a rapariga. Porquê? Por que razão Somerled queria tanto Nessa? Somerled, que só tinha respeito pelas coisas do espírito quando lhe convinha?No dia anterior fora fácil. O seu elmo e armas polidos, a voz terrível que em tempos fora a sua, a coragem da cadela, tudo isso forçara os atacantes a fugir sem que tivesse necessidade de brandir a espada ou o machado, sem que tivesse necessidade de se testar a si próprio. Continuava sem saber se o teria conseguido. Não tinha maneira de saber se conseguiria, sequer, lutar com um homem sem a voz de Thor a gritar-lhe aos ouvidos. Chegaria a ocasião, em breve, em que o descobriria. Conseguiria matar, agora que começara a compreender quão preciosa era a vida?Tinha de apagar todos os vestígios da sua presença no lugar das mulheres. Não tinha dúvidas de que os homens de Somerled regressariam. Teria de levar todas as suas coisas, as suas armas, as suas botas, a sua capa. Tinha de usar a sua pele de lobo. Pô-la pelos ombros pareceu-lhe estranho, como se estivesse a vestir a roupa de outro homem. Levaria também o elmo. Onde estava ele? Tinha a certeza que o deixara no recanto ao lado de Mordedor, mas não estava lá. Eyvind não queria regressar à câmara obscura no subterrâneo, o local onde encontrara Nessa inanimada após o seu longo e solitário ritual. Por um instante, naquela noite, pensara que a tinha perdido, e uma onda de desespero percorrera-o, parecida com a própria morte. Quando percebera que ela ainda respirava, Eyvind começara a compreender por que razão Thor o libertara do seu voto e agradecera ao deus do fundo do coração.

Mas agora não tinha outra hipótese senão descer até às profundezas da câmara e procurar o que lhe pertencia. O elmo estava na prateleira ao lado dos pequenos crânios com as suas órbitas vazias, sem expressão. Eyvind tentou não olhar para eles enquanto estendia a mão. Não precisava de recordar a si próprio que aquela câmara era um local proibido. A conversa acerca de uma Tribo Perdida era mais do que suficiente para anular a curiosidade de um homem. Os seus dedos encontraram algo escondido por baixo do elmo, um pequeno objecto macio. Ele estremeceu e tentou não imaginar o que seria. Ao mesmo tempo que a sua mão o sentia, pareceu-lhe ouvir uma voz, um sussurro terrível, tenebroso: Pega nele. Pega nele, guerreiro. Ele não olhou em volta, pegou no pequeno embrulho com uma das mãos, no elmo com a outra e fugiu pelos degraus acima até à câmara superior e dali para a luz do dia. Só então olhou para o que tinha diante de si, no chão, e o examinou.

Havia duas coisas no interior e uma delas era sua: a bolsa que usava no cinto quando fora parar ao local secreto. Nunca mais pensara nela. A outra era um pedaço de pano dobrado, atado com uma fita azul. A fita era de Nessa, a mesma que atara a sua longa trança no dia em que secara o cabelo à lareira. Cuidadosamente, ele desatou o nó e abriu o pano. Ao olhar para o que via, ouviu a voz dela, calma, muito séria e viu os movimentos graciosos das suas mãos enquanto gesticulava, explicando. Isto é tudo o que as ilhas são, Eyvi, tudo o que os Folk são, tudo o que eu sou. Terra, fogo, água, ar: o feitiço da luz a essência da vida. Guarda tudo isto com cuidado, porque isto é a própria vida. No pano aberto estavam uma pequena pena cinzenta, leve como um sussurro; um seixo macio da praia com um desenho delicado de linhas prateadas e brancas, como se fossem uns estranhos caracteres rúnicos feitos pela terra; um pequeno conjunto de algas secas com grãos de areia ainda agarrados; e um graveto de uma lareira, branco numa das pontas e carbonizado na outra. Além disso, a pequena trouxa tinha três minúsculos seixos redondos, pálidos como o luar de Inverno. Ao segurá-los nas mãos, Eyvind sentiu a sua respiração abrandar e a mente acalmar. O bater do seu coração pareceu-lhe mais forte e mais firme. Era como se estivesse numa ilha silenciosa, afastada das coisas normais; como se estivesse de regresso ao local onde os dois tinham partilhado a noite em que se tinham conhecido. Ele lembrou-se de como ela andara exausta naqueles últimos dias; de como os seus olhos cinzentos, da cor do mar, mostravam medo e tornavam as suas faces brancas como a cera. No entanto, arranjara tempo para reunir aquelas coisas para ele; provavelmente pedira a Rona que as guardasse até que ele estivesse em condições de as receber. Cuidadosamente, ele embrulhou de novo a minúscula trouxa, atou-a e abriu a bolsa para a meter lá dentro.A sua mão encontrou um pedaço de corda, ou de fio envolvendo algo metálico e aguçado. Tirou o objecto. Uma fivela: a fivela do cinto de Ulf, tinha-a metido ali dentro naquele dia, na Ilha Alta, pensando dá-la a Somerled, mas esquecera-a por completo. Era uma bela peça de prata, de valor considerável; devia ter sido queimada com o seu proprietário, ou entregue ao irmão. Levá-la-ia agora... O coração de Eyvind baqueou; sentiu um arrepio pelo corpo acima. Os seus olhos compreenderam, mas, por um momento, a mente recusou-se a aceitar. Por todos os deuses, como pudera ser tão cego? Por que não percebera no dia da morte de Ulf? A fivela tinha pedaços de fio, um fio fino e muito forte, o mesmo fio que prendera Ulf no alto da falésia, de tal maneira que os esforços que fizera para se libertar apenas tinham conseguido que o seu pulso quase se desfizesse. A faca de Eyvind libertara-o. O fio manchado de sangue estava coçado onde os extremos da fivela o tinham friccionado e estava desemaranhado onde a faca tinha cortado, mas, acima e abaixo desses pontos ainda era possível ver os nós feitos no fio. Não admirava que Ulf não tivesse conseguido libertar-se. Eyvind conhecia aquele nó. Era um nó habilidoso, pequeno e decorativo; parecia uma pequena flor. Era um nó que apertava rapidamente a princípio e depois mais lentamente, um nó infalível numa armadilha. Ele só conhecia duas pessoas capazes de fazer aquele nó: ele próprio e Somerled.Eyvind voltou a meter a fivela na bolsa e atou esta ao cinto. Os seus intestinos revolveram-se; a sua mente parecia um turbilhão. Pensa, Eyvind. Muito bem, tinha a prova, se bem que quase desejasse não a ter. Porque, agora, podia enfrentar a verdade: Somerled fizera o inimaginável. O amigo a quem jurara lealdade para toda a vida matara o próprio irmão, matara-o com fria premeditação e crueldade tortuosa e imaginativa. E mentira; convencera toda a gente do seu desgosto, da culpa dos ilhéus e da sua genuína vontade de descobrir a verdade acerca do assassínio do irmão.As imagens percorreram a mente de Eyvind com uma nitidez terrível: Hakon atirando com a sua pele de lobo para cima da mesa diante dos guerreiros do seu irmão pela última vez; um corno perfurando o peito de um homem; uma rapariga afogada, de olhos abertos, na corrente de um regato. Tantas mentiras: tantas traições. Se Somerled era culpado, não era ele também culpado pela sua fidelidade a um juramento que o obrigava ao silêncio? No entanto, um juramento de sangue nunca podia ser quebrado. Que fazer? Ali não havia nenhum Jarl Magnus, nenhum sacerdote da sua fé, nenhum homem de leis imparcial a quem pudesse pedir ajuda. Podia tentar encontrar Eirik, ou Thord, podia pedir-lhes que o apoiassem. Mas não havia um lugar onde as acusações pudessem ser feitas formalmente, já que Somerled dispensara a Assembleia. Além disso, mesmo que uma acusação de assassínio pudesse ser provada, que pena poderia ser imposta ali, naquela terra isolada? Somerled não podia ser banido; nem sequer podia pagar uma indemnização, já que era o parente mais próximo do morto. Aquilo não podia ser feito às claras, como se estivessem em Rogaland. Além de que não queria destruir Somerled. Não queria tirar-lhe violentamente tudo o que ele desejara durante toda a sua vida: reconhecimento, autoridade, um lugar na sociedade. Como um verdadeiro irmão, teria de persuadir Somerled a mudar, a tornar-se na espécie de chefe de guerra de que necessitavam ali naquela terra, um homem equilibrado e de visão. Aquela criança pálida, de olhar feroz, tivera em si a semente da grandeza; Eyvind vira-a. Tinha, de algum modo, que desviar Somerled do caminho de trevas que seguia e encaminhá-lo para uma via de verdadeira liderança. A resposta era essa. Se conseguisse convencer Somerled a rever o tratado, o povo de Nessa seria salvo. Depois, Eyvind teria de fazer com que o novo chefe de guerra liderasse o seu povo com justiça e lealdade. Usaria o que sabia para forçar a mudança. Desiste desta batalha, deixa os Folk em paz ou direi ao mundo que mataste o teu irmão. Renova o tratado de amizade feito por Ulf, ou exporei o teu crime perante todos. Rona percebera. De algum modo, percebera o significado daquela fivela e guardara-a até que Eyvind estivesse em condições de a utilizar. Uma mulher sábia, na verdade.Eyvind colocou o pequeno talismã de Nessa sob a túnica, junto do coração. Não colocaria aquela coisa preciosa junto da sombria recordação da traição de um irmão. Olhou uma última vez em redor. A cabana não passava de uma concha, a terra ainda mostrava o rasto das botas dos assaltantes e a pequena fogueira onde os três se tinham sentado juntos estava fria. Eyvind olhou para o céu como vira Rona fazer e, enquanto olhava, passou um bando de pássaros, um bando disperso de relâmpagos de prata contra o cinzento-pálido da manhã. O feitiço da luz... a essência da vida... a própria vida. Talvez nunca mais regressasse ali. Talvez nunca mais voltasse a ver as duas mulheres sábias. Com o machado, a espada, as facas, a pele de lobo sobre os ombros e o elmo brilhante debaixo do braço, Eyvind sentia-se tão nu como um bebé recém-nascido, um guerreiro avançando desarmado contra o inimigo. O jovem virou o rosto para sudoeste e afastou-se do lugar das mulheres. Tudo o que tinha era a verdade; teria de bastar.

Pareceu-lhe mais longe do que se recordava. Circundou as margens do grande lago que se espraiava para o interior, parando para se esconder várias vezes de grupos de homens armados que passavam. Não estava a cobrir a distância com a rapidez que esperava, no entanto já estava cansado, as pernas doíam-lhe e a cabeça latejava-lhe. Quando atingiu um cruzamento que julgou estar a meio caminho do fim da sua jornada, o Sol já se estava a pôr e o vento era vivo e frio. Reparou que havia mais gente da sua raça por aquelas paragens do que ilhéus. Estava numa parte da ilha por onde o povo de Ulf, segundo dissera o Rei Engus, podia viajar livremente. Não que isso, agora, tivesse importância. Os homens de Somerled não tinham ido impunemente até ao mais proibido dos lugares de armas desembainhadas? Talvez a guerra já tivesse sido declarada.

Pelos ossos de Odin, sentia-se cansado. Sentar-se para descansar à sombra daquele maciço rochoso fora um erro, porque enquanto andara ignorara a dor nas pernas, as tonturas na cabeça e o desejo urgente de encontrar um refúgio onde usufruir de descanso e sono. Não podia deixar-se abater. Não podia continuar a fugir. Teria de chegar, antes do anoitecer, ao salão de Somerled e pedir-lhe para falarem os dois em particular. Teria de encontrar as palavras certas e fazer com que Somerled acreditasse nelas. Ficaria sentado só mais um minuto e depois prosseguiria.

Dormiu, ou dormitou. A imagem de Nessa esteve sempre na sua mente. Viu a sua figura delicada e etérea caminhando ao longo de uma praia solitária, virando-se para olhar para ele com aqueles estranhos

olhos claros, cinzentos, orlados de azul-escuro, uns olhos espantosos, dignos de um animal selvagem... Eyvind foi acordado do seu sonho por um pequeno som. Pôs-se de pé num instante. Havia alguém no outro lado do maciço rochoso, alguém andando suavemente, arrastando-se para o atacar de surpresa. Muito bem, jogaria também esse jogo. Eyvind moveu-se, veloz como um cão de caça, deu a volta ao maciço e prendeu o homem com um braço enquanto lhe tapava a boca com o outro para evitar que pedisse ajuda. Boa: pelo menos, ainda conseguia fazer aquilo. O jovem olhou rapidamente de relance para a encosta onde se encontrava e para as pastagens que bordejavam o lago. Ninguém à vista; aquele louco devia ser um assaltante isolado. O guerreiro abrandou o amplexo. O homem não estava a oferecer qualquer tipo de resistência. Quando Eyvind lhe tirou a mão da boca, o seu prisioneiro começou a falar calmamente num tom cadenciado. A linguagem era-lhe vagamente familiar e reconheceu instantaneamente a voz.Pa ter noster qui es in coe lis, sanctificetur nomem tuum... Eyvind largou-o.Ainda consegues que te matem um destes dias, se continuas a aproximar-te desse modo, quase rastejando disse ele asperamente.O irmão Tadhg manteve-se silencioso, virando uns olhos suaves para o seu captor. Não parecia muito abalado; talvez fosse difícil assustar um homem com tanta fé no seu deus.Ah disse ele. Então é verdade o que dizem. Que o teu fantasma se ergueu da campa e que caminha com um machado.Estás a brincar, suponho.Não totalmente disse o monge. Por mim, direi que as minhas costelas dizem-me que tu és de carne e osso e que sobreviveste, de algum modo, a uma batalha e que estiveste desaparecido durante muito tempo. Mas há outros que contam uma história diferente. Dizem que te manifestaste num lugar improvável, o teu machado e o teu elmo brilhando com uma luz sobrenatural e com um cão-lobo de grandes olhos cor de rubi a teu lado. Vejo que vais para sul.Eyvind acenou com a cabeça. Tinha muitas perguntas na cabeça, mas não podia fazê-las. Não era seguro dizer onde estivera, nem sequer àquele cristão de falinhas mansas. Não fazia ideia do que ele sabia.Não era minha intenção fazer-te mal disse Tadhg. Eyvind sorriu.

Não, também não me pareceu. Desculpa se fui bruto, mas podia ser uma pessoa qualquer. Sabes dizer-me... Não, não lhe podia perguntar.Que desejas saber? Eu, agora, passo pouco tempo com o teu povo. Somerled acha a minha função de tradutor desnecessária. O Rei Engus ficou muito desagradado com a oferta de paz que o teu amigo lhe fez.Havia ali uma suposição, pensou Eyvind, de que ele sabia o que se passava; certamente, Tadhg não sabia onde estivera?Somerled ainda não enviou um mensageiro para saber a decisão do Rei? perguntou ele cautelosamente. Engus deu alguma resposta?Ainda não respondeu Tadhg, sem demonstrar qualquer surpresa perante aquelas perguntas. O primeiro dia de Primavera é o ultimo dia do prazo. Estamos quase lá. Mas Engus anda preocupado com outros assuntos, neste momento. A irmã dele morreu esta manhã. É um dia de grande tristeza para os Folk, a acrescentar às perdas todas do último Verão. Para esta gente, a linha de sucessão é a linha feminina e esta dama era uma princesa de direito.Eyvind inclinou a cabeça e não disse nada.Esta noite vai haver um ritual solene em Dorso de Baleia continuou Tadhg. Estive lá esta manhã, mas não vou assistir; é um ritual de profunda tristeza. O povo vai reunir-se para se despedir da dama e a cerimónia vai durar toda a noite. Assim que ela for sepultada, talvez Engus esteja preparado para tomar uma decisão.Ouvi dizer... pareceu-me, pelo menos... que o Rei não vê isto como uma escolha disse Eyvind hesitantemente. Parece que ele prefere sacrificar o seu povo a ceder às exigências de Somerled.O irmão Tadhg observava-o com insistência.Também me pareceu disse ele. Acredito que estamos à beira de um desastre, Eyvind. Há gente em Dorso de Baleia que concorda comigo. Havia uma pergunta no seu tom de voz.Eyvind olhou na direcção das águas agitadas do lago e das curvas suaves das colinas em redor. Sentiu a energia da grande pedra por trás de si e viu como o céu ali parecia tão vasto, tão aberto, que enchia a terra de luz.Lembras-te perguntou ele de como uma vez me falaste da verdade? De como eu poderia ser dono de mim próprio?

Tadhg acenou com a cabeça.Quanto tempo achas que nos resta? perguntou Eyvind calmamente. Eu espero que ele me dê ouvidos, se for lá agora e tentar falar-lhe... ele é meu amigo, no fim de contas, quase um irmão. Quanto tempo, antes do primeiro dia de Primavera?O suficiente, guerreiro. Os olhos de Tadhg estavam brilhantes. Mas deves apressar-te. O teu amigo tem uma força considerável de homens armados. Os meus conhecimentos acerca da guerra são limitados, mas parece-me que Somerled avançará assim que receber notícias de Engus. Os homens dele estão ansiosos por entrar em combate.Não será um combate disse Eyvind. Será um massacre. Ele não pode fazer isso. O tratado foi jurado na pedra; um homem que quebre um juramento desses atrai a fúria dos deuses não só sobre si mesmo, mas também sobre o seu povo. Ele tem de me dar ouvidos. Tenho de ir. Ainda é longe e eu já não sou tão forte como era.Quanto a isso observou Tadhgparece-me que ainda estás mais forte: quase um homem diferente. Parece que fizeste uma amiga nova desde que te vi pela última vez.Duas disse Eyvind.Que vais dizer a Somerled quando ele te perguntar onde estiveste este tempo todo?Eyvind já pensara naquilo, enquanto caminhava.Eu não me lembro de nada desde aquele dia... desde Ramsbeck. Varreu-se-me tudo da memória.Tadhg acenou com a cabeça.Ouvi dizer que uma pancada na cabeça pode fazer isso. Agora, deixa-me dar-te um conselho, e depois vou-me embora. Eu vou-me encontrar com o irmão Lorcan não muito longe daqui e depois vou para porto seguro. Nós temos lá uma capela e uma pequena casa onde moram três dos meus irmãos. Fica em frente da Ilha Alta. Eyvind, se tens amigos em quem confias entre o teu povo, pede-lhes ajuda. Se eu puder ajudar-te, diz-me. Ambos procuramos a verdade. Ambos procuramos evitar o caminho de trevas que vamos todos ser forçados a trilhar se Somerled não for reprimido.Eyvind olhou para ele. Muita coisa fora dita sem palavras. O monge sabia, assim como Somerled, certamente, que fora num lugar sagrado dos Folk que o fantasma de Eyvind e o seu mastim se tinham manifestado. E Tadhg, parecia-lhe, era o tipo de homem que raciocinava com rapidez.Eu... há uma coisa disse ele com alguma hesitação. O meu irmão Eirik... tu disseste que ias para sul? Vais passar perto de Hafnarvagr?Vou. A nossa pequena igreja e a nossa cabana ficam a pouca distância, ao longo da costa, dessa colónia. Queres que eu vá ter com Eirik? Ele é homem para me ouvir?Acho que vou falar abertamente e confiar em ti. Tadhg esperou.É preciso que o meu irmão saiba que eu estou vivo e de boa saúde; o meu desaparecimento deve ter-lhe causado uma grande dor. Mas qualquer mensageiro lhe pode dar essa notícia. É por outras razões que eu quero que o procures. Tenciono dizer a verdade a Somerled, hoje, assim que chegar ao salão dele e conseguir falar-lhe em particular. Tenho provas que são capazes de o surpreender. Mas eu sei que ele é esperto e muito sabedor em questões de leis; sei que tem muitos apoiantes. Seria útil se... daria força ao meu caso se...Compreendo. É raro um crime destes não ter quaisquer testemunhas, Eyvind. O teu irmão, como está entre alguns dos homens que estiveram na Ilha Alta, pode conseguir-te algumas informações.Tem de ser rápido, creio eu. Quem sabe quando chega a Primavera? Mas eu não quero pôr a vida de Eirik em perigo. O maior desejo dele é regressar a casa para junto da mulher e dos filhos.Nesse caso, pôr-lhe-ei a questão com toda a clareza e ele que escolha disse Tadhg calmamente.Fico-te grato. Tu és um homem muito corajoso. Mas deves ter cuidado. Há homens nesta ilha que têm pouco respeito por aquilo que tu representas. Eu acho que até um sacerdote, neste momento, deve manter-se calado e andar com cuidado.Nós somos todos filhos de Deus, sejam quais forem as nossas crenças disse o irmão. Ele tem-nos nas Suas mãos. Se pudermos impedir que este povo sofra mais, temos obrigação de o fazer. Em tempos, franzi o sobrolho a essa cicatriz que tu e ele têm; perturbou-me saber desse juramento. Mas talvez essa ligação seja a nossa melhor arma. Se te dá o poder de alterar as intenções de Somerled, afastá-lo do caminho de trevas, usa-a. Sê bravo, guerreiro. Agarra-te à verdade.Ela disse a mesma coisa murmurou Eyvind. Nós podemos fazer com que as coisas sejam de novo boas e luminosas.

Se ela é capaz de ter essa esperança disse Tadhg depois de tantas perdas, não vai ser difícil para nós. E agora tenho de ir; o irmão Lorcan inquieta-se quando as pessoas se atrasam. Adeus, Eyvind. Espero que nos possamos encontrar de novo em tempos melhores.

Adeus e obrigado. Eirik deve estar a viver com um homem chamado Thord, um homem grande com uma cicatriz no rosto. A cabana está na ponta leste da colónia, junto ao mar. Diz-lhe que tenha cuidado.

Direi. Vai com Deus, Eyvind.

Eyvind recomeçou a caminhar o mais rapidamente que pôde, amaldiçoando a sua fraqueza. Em tempos, antes de Ramsbeck, teria percorrido facilmente aquela distância entre o nascer do Sol e o meio-dia. Agora, teria sorte se conseguisse atingir o salão de Somerled antes do anoitecer. O seu pensamento estava em Eirik e nos bons tempos de Hammarsby: as lutas na neve, os longos passeios solitários sob os pinheiros, a alegria de patinar no rio gelado. E aquelas longas noites à lareira, juntos à luz das lâmpadas de óleo de foca enquanto a neve caía lá fora, cobrindo a casa de silêncio; os dedos das mulheres fazendo coisas belas com as agulhas e o fio de lã, Karl fazendo uma morsa a partir de um pedaço de pedra-sabão e Bjarni franzindo o sobrolho, ao desenhar no seu quadro. Imaginava Eirik contando algumas histórias de batalhas, observado por uma Oksana de cabelos escuros e pelos seus filhos de olhos azuis. Eyvind sentiu um arrepio. Eirik tinha de ir para casa, tinha uma família à sua espera. Não devia ter pedido a Tadhg que fosse ter com ele. Quando o Dragão Dourado erguesse as velas e partisse para Rogaland, o seu irmão teria de ir a bordo, são e salvo. Deviam ambos isso a Ingi e a todas as mulheres que esperavam, contando os dias até ao regresso dos seus homens. Era estranho, pensou Eyvind, sentindo as pernas a doer-lhe enquanto trepava por uma ladeira por entre rochas escuras, indefinidas, era muito estranho, mas não conseguia ver-se a si próprio nessas visões. Por qualquer razão, parecia-lhe que não regressaria.

Quando chegou ao perímetro exterior da colónia, pareceu-lhe que as pernas não lhe pertenciam e tinha a visão enevoada devido às dores de cabeça. O local estava surpreendentemente silencioso; apenas alguns archotes ardiam à luz do crepúsculo e não havia movimento de pessoas. As sentinelas gritaram; ele avançou para a luz, o elmo debaixo do braço, desta vez, e viu o terror empalidecer os rostos e as espadas tremerem nas mãos dos guerreiros, antes que tivesse tempo de os acalmar com as suas palavras.À vontade, rapazes disse ele. Eu não sou nenhum fantasma, sou de carne e osso; o mesmo homem que partilhou a viagem convosco desde Rogaland, na última Primavera e que se sentou convosco à mesa durante muitas noites. Estive fora. Doente. Mas, agora, estou de regresso e quero ver Somerled imediatamente. Deixais-me passar?Eyvind! O tom de voz do homem sugeria que ainda tinha algumas dúvidas. Estás vivo!É claro que estou. Eyvind deu uma palmada no ombro do homem e sentiu a dor em todos os músculos do braço. Ainda bem que não fora forçado a puxar pela espada ou pelo machado, porque não teria forças. Estás a sentir isto? Não sou nenhum espectro, sou um homem, e estou bem vivo.Talvez, mas nem pareces tu, Pele-de-Lobo observou o outro homem, um homem mais velho, que fora um dos guardas da casa de Ulf. Estás só pele e osso. É melhor entrares já e procurares uma mulher que te arranje um bocado de carne assada e uma caneca ou duas de cerveja. Depois, hás-de querer ir-te embora outra vez.O primeiro homem acenou com a cabeça.Chegaste mesmo a tempo. O Rei vai ficar contente. Eyvind tinha a cabeça a zunir; não pareceu perceber.O Rei? repetiu ele.Talvez ainda não, mas há-de ser, pela manhã.Através das dores de cabeça, Eyvind esforçou-se por compreender.Que queres dizer? perguntou ele. Quem? O guarda mais novo ergueu as sobrancelhas.Por onde tens andado? perguntou ele, espantado. Somerled, Senhor-dos-Cavalos, claro, o Rei de Hrossey. Digo-te uma coisa, aquele homem, por vezes, é chato, mas é um homem que sabe o que quer e não hesita em fazer o que é preciso. Um verdadeiro líder.Havia uma sombra nos pensamentos de Eyvind, o jovem continuava a tentar perceber o significado total das palavras do homem.Tenho de falar com Somerled disse ele agora, imediatamente. Tenho de falar com ele e persuadi-lo...

Ele não está cá disse o guarda mais velho. Partiram há um bocado. É melhor entrares, comeres qualquer coisa antes de partires de novo. É uma longa caminhada. Para ti não é nada, suponho. E quando Eyvind se limitou a olhar para ele, acrescentou: Ataque de madrugada, é esse o plano. Ele vai receber-te de braços abertos, rapaz. Como podem falhar com o herói de Ramsbeck na frente de ataque?Algures, na cabeça de Eyvind, as peças do quebra-cabeças uniram-se, dando-lhe uma resposta que o gelaram de horror.Estás a dizer que ele planeia atacar Engus esta madrugada? Que já está a caminho de Dorso de Baleia?Os dois guardas acenaram com a cabeça.Pouca sorte a nossa observou um deles estarmos de sentinela. Mas alguém tinha de ficar de guarda às mulheres. É capaz de haver mais algumas amanhã de manhã; as raparigas da ilha não são nada más, se bem que sejam um pouco magricelas. Mas, se tiver oportunidade, não digo que não.Ainda podes chegar a tempo, Pele-de-Lobo disse o outro. A maré baixa é antes da madrugada; o ataque vai ser a essa hora.O coração de Eyvind começou a bater como um tambor. Miraculosamente, a sua cabeça desanuviou-se e a mente começou a trabalhar com rapidez, com mais rapidez do que nunca.Quem é que está aqui? perguntou ele. Thord? O meu irmão?As sentinelas abanaram as cabeças.Continuam os dois em Hafnarvagr. Somerled nunca os mandou vir.Não teria ajuda dali. Muito bem, teria de procurar ajuda noutro sítio.E lady Margaret?Foi-se embora. Somerled mandou-a para uma das herdades, com a aia e dois guardas. Mais seguro, disse ele.Não tinha tempo para pensar na estranheza daquilo. Parecia-lhe óbvio que o lugar mais seguro era a própria colónia; além disso, Margaret não tinha um papel a desempenhar como líder daquela comunidade? Mas em frente. Ela não estava ali; não tinha mais ninguém a quem pedir ajuda.Tenho de ir murmurou ele, mais para si próprio do que para os guardas. Tenho de chegar lá antes que ele avance sobre Dorso de Baleia. Parece que Somerled não sabe que aquela gente está de luto.

A irmã do Rei Engus morreu hoje: uma princesa real. Esta noite, o povo vai reunir-se para o ritual solene da despedida. Atacar em semelhante ocasião vai contra todas as regras da guerra; as tréguas em tempo de rictos funerários são respeitadas e compreendidas por todos os inimigos, mesmo os mais encarniçados. Além disso, Somerled não disse que esperava pela resposta do Rei Engus antes de atacar? Não era suposto ser no primeiro dia de Primavera?Os olhos do guarda mais velho semicerraram-se.Onde tens estado? perguntou ele asperamente. Com quem tens andado a falar?Talvez seja melhor levarmos-te para dentro, para te fazermos algumas perguntas disse o outro. Somerled não gosta nada dessa espécie de conversa.A mão de Eyvind subiu na direcção de Mordedor e os seus dedos apertaram o cabo do machado.Já esqueceste tudo o que aprendeste com os guerreiros de Ulf ?perguntou ele calmamente. Já esqueceste todos os princípios de combate? Aquela gente vai estar cansada, desgostosa, mal equipada, não vai ser capaz de oferecer a mais elementar das resistências. Atacar numa tal ocasião é um acto de barbárie; será como atacar um grupo de crianças.Terra nova, regras novas grunhiu o guarda mais velho. Tu, agora, não estás em Rogaland, Pele-de-Lobo disse o outro.Põe-te a andar, antes que te prendamos e passes a noite no calabouço. Vai procurar comida e abrigo. Andas há muito tempo perdido, é por isso. Vai lá. Os seus olhos fixaram-se nervosamente no machado e depois no rosto de Eyvind.Comida e abrigo; a sua mente, lá no fundo, pedia-lhe comida; tinha fome. Já não se lembrava de quando comera pela última vez. Tinha uma vontade imensa de dar descanso ao corpo dorido numa enxerga confortável e render-se a um sono sem sonhos até de manhã.Não vou. Vou-me embora disse-lhes. Como disseste, Somerled precisa de mim. Rapidamente, antes que eles pudessem mudar de opinião, antes que descobrissem as poucas forças que tinha, afastou-se na escuridão. Conseguiu caminhar como um Pele-de-Lobo, direito, com rapidez, confiante, até que os guardas ficaram distantes e longe da vista. Depois, o fingimento tornou-se demasiado doloroso. Talvez devesse ter ficado e descansado um pouco. Mas não havia tempo.

Eyvind continuou a caminhar, vacilante. Após um certo tempo, a luz fria de uma meia-lua ajudou-o e ele seguiu os trilhos das ovelhas e os diques de pedra, tentando manter-se na direcção noroeste, de regresso ao local de onde tinha partido. Tentou ensaiar o que poderia dizer, mas a sua mente andava às voltas e dizia sempre a mesma coisa: Que Nessa esteja sã e salva. Que eu chegue a tempo.Tropeçava, caía, levantava-se, caía de novo. Uma das vezes, quando tropeçou numa pedra e se estatelou ao comprido, deixou-se ficar na escuridão, o rosto no solo duro, pensando como poderia ser suficientemente forte para fazer o que devia. Nessa era forte e não passava de uma coisinha pequenina, tão insubstancial como uma pequena sombra. O irmão Tadhg era forte e no entanto era pequeno, um homem magricela, sem força física. Isso devia querer dizer qualquer coisa. Rona também era forte; era velha e frágil, mas tomara a decisão de se afastar, pondo a sua vida em perigo e libertando-o, assim, para a sua missão. Abrigara-o com grande risco. O jovem pensou naquelas três pessoas, sentiu o solo duro por baixo de si e sentiu-se seguro. Havia algo pequeno e duro sob o seu queixo: o presente de Nessa, o enigma que cabia na palma da sua mão. Eyvind pôs-se em pé com dificuldade. Olhou através das ondulações de terreno banhadas pelo luar, depois para o imenso céu estrelado e recomeçou a andar.A distância parecia infinda. A certa altura encontrou um pequeno regato com as margens cheias de erva e de fetos; parou para beber e tentou calcular a distância que percorrera e quanto tempo demorara, mas estava demasiado cansado. Não conseguiu. O melhor a fazer era continuar a andar e manter a esperança.Ainda estava escuro quando tropeçou nos corpos das sentinelas de Engus, todas mortas com precisão e, suspeitou ele, silenciosamente, para que não pudessem dar o alarme. O luar iluminava as suas túnicas manchadas de vermelho, azul e verde, os seus olhos abertos de surpresa e as poças de sangue a seu lado. As mortes tinham a marca dos Pele-de-Lobo, eficientes, profissionais. Não tinham podido correr para dar o alarme, não tinham podido fazer sinais com fumo ou com bandeiras, nem tinham podido gritar. Aquela hora, provavelmente, o povo de Engus estaria a dormir, cansado das orações e das lágrimas, sonhando, talvez, com o horror que a madrugada lhes traria.

Eyvind já passara a margem ocidental do grande lago e agora, não muito longe, podia ouvir o grande e profundo rugido do mar. Forçou os seus pés a moverem-se mais rapidamente, sabendo que devia estar perto da língua de terra que avançava na direcção de Dorso de Baleia e sabendo que Somerled e as suas forças estariam por ali, esperando a primeira luz da aurora. Já não se sentia cansado, se bem que todos os músculos do corpo parecessem ter a sua dor muito particular. Algo o mantinha acordado, algo o forçava a continuar, a mesma coisa que fazia com que os pensamentos na sua cabeça se agitassem em turbilhão. Que ele me escute, disse ele para si próprio. Que ele me escute.Ouviu-os mesmo antes de se aproximarem, um de cada lado e outro por trás, rápidos como predadores selvagens. Teve apenas tempo para dizer "Amigo" antes de uma mão lhe tapar a boca e de os seus braços ficarem imobilizados atrás das costas. A dor foi terrível; conseguia imaginar quem o prendera. Em tempos, tê-los-ia ouvido mais cedo, em tempos teria ripostado contra qualquer homem suficientemente louco para o atacar daquela maneira. Mas, agora, mal se conseguia ter de pé. A Lua escondeu-se por trás de uma nuvem; o jovem esperava que não o matassem como tinham matado as sentinelas, antes de terem oportunidade de ver quem ele era.O que é isto? disse a voz de Grim ao seu ouvido, e o aperto cessou abruptamente. Devia ter sido, provavelmente, o tamanho do prisioneiro que revelara a sua identidade. Eyvind? O seu tom de voz era de alegria incrédula.Grande Thor! Erlend tirou a sua grande mão da boca de Eyvind e agarrou-o pelos ombros, as mãos apertando-o cordialmente, já não num abraço de captura. És tu! Ele mantinha a voz baixa; a escuridão e o silêncio eram sinónimos de emboscada, de preparação para um ataque de surpresa ao amanhecer. - Por todos os deuses, disseram-nos que tu eras um cadáver ambulante, uma coisa de luz e sombras, que só se podia ver em visões! Isto é espantoso!Onde tens estado? - perguntou Holgar asperamente. De onde vens?Tenho de falar com Somerled. Agora, imediatamente. É urgente.Shhh, fala baixo murmurou Grim. Vem, então, ele não está longe. Ainda vai ficar mais contente do que nós por te ver. Ele pensa que os ilhéus te mataram naquele dia, em Ramsbeck e que arrastaram o teu corpo para alimentar os abutres.

Estamos certos da vitória disse Erlend sorrindo ferozmente. Pelo martelo de Thor, mal posso esperar. O meu sangue ferve de antecipação, o meu coração bate como se estivesse à proa de um barco com os Dinamarqueses à vista. Nós os quatro na vanguarda; nós os quatro a gritar o nome de Thor e a brandir, juntos, as nossas armas! Tenho sede de sangue, rapazes.Já lá vai tanto tempo grunhiu Grim. Foi um Inverno muito longo. A Primavera vai ser gloriosa; vamos varrer esta escumalha e dar o nosso nome a esta terra, como já devíamos ter feito há muito. O nosso nome: o nosso Rei.Somerled disse Eyvind. Levai-me a Somerled. Agora. O jovem viu os dois trocarem uns olhares de espanto; pareceu-lhe que, a cada momento que passava, via com mais precisão, como se a madrugada não estivesse longe. Pelos deuses, levara a noite inteira para chegar ali? Um rapaz tê-lo-ia feito mais depressa. Por que estavam eles a franzir os sobrolhos? Dissera alguma coisa errada, mostrara algum sinal de fraqueza? Ergueu bem alto a cabeça, endireitou as costas o melhor que pôde e forçou as pernas a continuarem a transportá-lo.Somerled montara o seu quartel-general numa das cabanas de pescadores perto da língua de terra. Não havia lâmpadas acesas, mas o céu já estava suficientemente claro. Homens armados esperavam num silêncio total em redor da cabana e Eyvind viu muitos mais colocados ao longo da praia, escondidos por trás de rochas ou arbustos enfezados, invisíveis para qualquer sentinela que patrulhasse as praias de Dorso de Baleia. Uma floresta de lanças, uma parede de espadas, uma chuva mortífera de flechas. Pelos ossos de Odin, praticamente todos os noruegueses capazes de pegar em armas estavam ali, salvo Thord e Eirik, que, estranhamente, não tinham sido chamados. Aquela força devia ser o triplo dos homens que Engus devia ter na pequena aldeia de Dorso de Baleia. Que ela esteja sã e salva.O jovem entrou silenciosamente, sem se fazer anunciar.Somerled?Na semiobscuridade da cabana o rosto branco de Somerled virou-se bruscamente, os seus olhos arregalaram-se e então, coisa nunca antes vista por Eyvind, as suas feições transformaram-se num sorriso alegre e deslumbrante.Eyvind! Thor seja louvado! Somerled deu dois passos em frente e envolveu o amigo num forte abraço. Disseram-me que tinhas morrido; disseram-me que eras um fantasma. Não acredito no que vejo! É um milagre, ainda por cima quando mais precisamos de ti. Onde tens estado? Estás uma sombra do que eras, velho amigo. Que te fizeram? Vem, senta-te um pouco. Ainda temos algum tempo.

Somerled disse Eyvind com a voz trémula. O jovem respirou fundo. Somerled, tenho informações para ti, são importantes. Mais tarde respondo às tuas perguntas. Mas, para já, devo dar-te algumas notícias. Esta invasão não pode ir em frente; tens de chamar os teus homens.

Seguiu-se um pequeno silêncio.

Porquê? perguntou Somerled calmamente.

Houve uma morte em Dorso de Baleia; a irmã do Rei. Aquela gente está de luto, o funeral foi esta noite. Não podes atacar agora, Somerled. Toda a gente sabe que nestas ocasiões se fazem tréguas. Tens de retirar e deixar que se despeçam da parente.

Seguiu-se um silêncio mais longo.

Onde tens andado, Eyvind? O tom de voz de Somerled mudou; os seus olhos semicerraram-se.

N... não me lembro. Não me lembro de nada desde Ramsbeck.

Nesse caso, quem é que te deu essa informação?

Ouvi-a enquanto vinha para aqui: uns viajantes com quem me cruzei.

A sério? Tu nunca foste bom em subterfúgios, pois não? És mais o tipo deixa cair o machado e espeta a espada. Deixa lá. Estou tão contente por saber que estás vivo e por estares aqui ao meu lado, que estou preparado para te perdoar tudo, até uma tentativa para proteger os nossos inimigos. Eu já sabia, Eyvind. Estou a par dessa morte. Na verdade, até escolhi a ocasião deliberadamente, sabendo que me dá uma grande vantagem estratégica.

Como podes dizer isso? Eyvind olhou para ele, espantado. O Jarl Magnus nunca teria desrespeitado desse modo as regras da guerra. Ulf nunca teria aprovado um ataque vergonhoso como este que tu estás a preparar. És assim tão cobarde, precisas de atacar aquela gente quando está tão indefesa?

O que é que disseste?

Eyvind já ouvira aquele tom antes, mas nunca contra si próprio. Sentiu um arrepio.

Ouviste muito bem o que eu disse, Somerled. Além disso, tu fizeste uma proposta ao Rei Engus. Ele tem de responder até ao primeiro dia de Primavera e esse dia ainda não chegou. Já te esqueceste das leis de Rogaland? Puseste de lado as leis todas?

Se perdeste a memória em Ramsbeck, como podes saber da proposta que eu fiz ao líder bárbaro? O tom de Somerled era suave como a seda. Este jogo está para além da tua compreensão, Pele-de-Lobo. E magoa-me muito ouvir-te falar assim, como se troçasses dos meus esforços para atingir o objectivo da minha vida. Não foste tu que me encorajaste a não desistir do meu sonho? Não foste tu me aconselhaste a manter-me fiel à minha visão, quando andava desesperado? Pensei que partilhavas das minhas ambições, Eyvind. Pensei que continuaríamos juntos, o Rei e o seu chefe de guerra. Eu acreditei que te tinha perdido; a partir desse dia jurei empenhar-me no meu objectivo em memória da tua coragem e lealdade. Agora, regressaste miraculosamente. É uma maravilha, já não estou só. No entanto, falas de modo estranho, e magoas-me. Como se... como se me desprezasses.

A voz de Somerled era insegura; quase parecia que ia chorar. Eyvind viu de novo a criança perdida, o rapaz sem amigos que lhe cortara o braço na floresta e o desafiara a ser seu irmão.

O ataque tem de ir em frente disse Somerled. Os homens estão mortos por isso; estão mortos por entrar em combate. É muito tarde para recuar, agora. Ficaria com um motim nas mãos. Eles respeitam-me, Eyvind. Gostam do modo como eu faço as coisas. E parece-me que este reino só pode ser conseguido, de uma vez por todas, com a morte de Engus e dos seus guerreiros patéticos. Não posso permitir que continue vivo, ou o filho dele, ou qualquer dos parentes. Pouparei, na medida das possibilidades, as mulheres. Eyvind, estou a ver que já há luz. Estamos a perder tempo, velho amigo. Estarás a meu lado na batalha? Queres ser o chefe dos Pele-de-Lobo, como planeámos há tanto tempo?

Eyvind fechou os olhos por um momento, chamando a si todas as suas forças. Teria de o dizer, roubando assim a vitória ao amigo. Teria de ameaçar Somerled com a perda daquilo com que ele sonhava desde criança. O jovem levou a mão ao peito, ao presente de Nessa sob a sua túnica, junto do coração.

Estes homens não te seguirão quando souberem que mataste o teu irmão para ficares com o que lhe pertencia disse ele calmamente.

Eyvind esperou, encharcado em suores frios, enquanto Somerled o olhava fixamente. Mas foi este o primeiro a desviar o olhar, cruzando os braços e franzindo o sobrolho.

Que loucura, Eyvind observou ele em tom uniforme.

Parece-me que não percebes o alcance da tua loucura.

Tenho provas e não hesitarei em apresentá-las. Desiste do ataque, ou direi a toda a gente o que fizeste. Não quero saber do que me possa acontecer, Somerled. Podes fazer o que quiseres. Desiste do ataque. Ainda não chegou a hora, ainda tens tempo.

Que provas? cortou Somerled. Mostra-mas! Isto é um disparate, Eyvind. Tenho a certeza que estás mais uma vez a fazer confusão, tu tens tendência para isso...

Aqui estão. Eyvind estendeu a mão e abriu-a; nela estava a fivela de Ulf, ensanguentada e emaranhada no fio de pesca. Um instante mais tarde fechou-a, mas Somerled já lha tinha tirado.

Onde encontraste isto? sibilou ele.

Já te esqueceste que fui eu que fui buscar o corpo do teu irmão? perguntou Eyvind. Era para ta entregar, mas esqueci-me. Depois, estive... fora. Reconheces esses nós, não reconheces? Não foram feitos por mim, por isso, só podem ter sido feitos por ti. Talvez, naquela longa manhã, tenhas ficado a ver morrer o teu irmão, do mesmo modo que torturaste lentamente aquele coelho que caiu na armadilha. Que pensarão os teus homens do seu querido chefe quando souberem disto? Que pensarão eles quando souberem que foste tu que ordenaste o incêndio que matou Hakon e a família dele? É muita esperteza da tua parte, culpares os teus inimigos pelos teus crimes. Assim, é mais fácil virares os teus homens contra eles. Não admira que os odeiem, não admira que estejam mortos por lhes cortar as cabeças. Essas mortes têm a tua marca. Conheço-te há muito tempo e lamento muito. Desiste do ataque, Somerled. Desiste, e eu não digo nada. Dou-te hipótese de te arrependeres e de te emendares. Eyvind fixou o amigo e viu os mesmos olhos escuros, intensos, decididos, de um rapazinho pálido e magricela transportando o amigo ferido pela encosta de Hammarsby abaixo. Certamente que aquela centelha de bondade, de grandeza, ainda ali estava, lá bem no fundo. Certamente que aquela promessa não murchara e morrera. Somerled demonstrara bondade como criança e amizade como homem, apesar do seu feitio. Tinha de aceitar a sua proposta.

Os dedos de Somerled fecharam-se sobre a fivela. Meteu-a no bolso.

Tu não és muito bom nestas coisas, pois não, Eyvind? disse ele. Estou sempre à espera que tu me surpreendas com algum relâmpago de inteligência, mas é inútil. Devo dizer que a tua deslealdade me deixa muito preocupado. Não terá algo a ver com as tuas companhias recentes? Ouvi dizer que o teu fantasma foi visto num certo casinhoto nas terras dos bárbaros. Dizem que vivia lá uma velha antes de os meus homens o terem incendiado, pondo termo às suas feitiçarias. E há outra feitíceirazinha, também, bem jeitosa, bonita e com mau feitio. Conheci-a há pouco tempo. Fala muito bem a nossa língua e eu perguntei a mim mesmo onde a teria ela aprendido, já que o tio dela não gosta nada de a mostrar. Uma jovem franca, impressionante. Gostei dela.

Tio? repetiu Eyvind, enquanto a luz começava a iluminar a cabana e os sons de metal e de botas se ouviam no exterior.

Oh sim. Somerled ergueu as sobrancelhas. Refiro-me à sobrinha de Engus, a encantadora Nessa. A última princesa dos Folk: a última esperança de um herdeiro para o velho. A rapariga não vai continuar a ser uma sacerdotisa durante muito mais tempo; vai ter de dar à luz um filho. Que pena, Eyvind, ficaste tão pálido, subitamente. Ela tornou-se tua amiga? Vou pedir aos rapazes que tomem conta dela enquanto estão lá, no fim de contas é do meu interesse fazer com que sobreviva. Acho que um Rei precisa de uma mulher e por estas bandas não há muitas princesas, por isso não posso ser muito esquisito. Infelizmente, os meus guerreiros morrem por um pouco de acção. Não tenho a certeza se eles não começarão a cortar cabeças a torto e a direito. Talvez consigamos que ela sobreviva, ou talvez não. E agora, creio que estamos a perder tempo. Foi uma conversa interessante. Continuamos mais tarde? Não gosto dessa tua cara, Eyvind. Não ganhas nada em pores essas tuas grandes mãos em redor do meu pescoço, não ganhas nada em me estrangular, Pele-de-Lobo. Isso só incitaria os meus homens. Creio que te esqueceste que eu, agora, sou o teu chefe de guerra. Sugiro que ponhas esse belo elmo na cabeça e que te juntes aos outros... na linha da frente, onde é o teu lugar. Não preciso de te recordar a ambição da tua vida, pois não?

Não podes fazer isso murmurou Eyvind com as entranhas a retorcerem-se-lhe de terror. Não podes fazer isso. Um acto demoníaco desses, renega o homem que és, o rapaz que foste. É uma maldição para o teu futuro. Aquela gente não tem culpa, o teu irmão era amigo deles. O tratado foi jurado sobre o bracelete. Não faças isso, Somerled. E o jovem recuou para a porta da cabana, como que para evitar que o outro saísse. Algures, nos campos, as aves cantavam aos primeiros alvores do dia; o céu escuro estava agora pintado de cinzento-claro, com uma orla de azul-escuro a leste. Não faças disse ele em voz alta, abrindo os braços para impedir a passagem. Peço-te, em nome do nosso juramento.Somerled olhou através dele, como se Eyvind não estivesse ali e falou com alguém que estava no exterior da cabana.Avançai disse ele. Esperai pelo sinal de Holgar e avançai. Mantende-vos ao centro, como vos disse, aquelas rochas são traiçoeiras. Não quero som nenhum até que chegueis à última praia, queremos surpreender aquela gente.Por trás de Eyvind ouviu-se um movimento apressado de homens pegando em lanças, de homens desembainhando espadas, de homens dando grandes passadas, demasiados homens para serem contados, as suas botas transportando-os, como uma maré inflexível, para oeste, na direcção de Dorso de Baleia.Não fujas outra vez, Eyvind disse Somerled com um sorriso torcido. O próximo movimento é teu e deves fazê-lo como deve ser, já que foste tu que começaste.Demasiado tarde, demasiado tarde, não valia a pena gritar acusações, não valia a pena gritar que o líder deles era um fratricida. Eyvind sabia muito bem o que significava aquele momento antes de avançar, todos os tendões e músculos tensos, a mente concentrada no desafio. Por maior que fosse a verdade, não o ouviriam. Depressa, tinha de haver outra solução. Seria Holgar a dar o sinal de ataque. Holgar, Grim e Erlend seriam os primeiros, liderando o bando através da passagem no ataque aos confiantes ilhéus. Tinha de chegar à passagem antes de Holgar e tinha, de algum modo, de os deter.Eyvind pôs o elmo na cabeça à pressa e correu, angustiado, empunhando Mordedora chamando a si todas as suas forças e toda a sua coragem. Correu como nunca correra antes, ao longo do trilho que circundava o promontório, acima das rochas onde as focas cinzentas se aqueciam ao sol no tempo quente. A maré já descia, as rochas estendiam-se, escorregadias e escuras na direcção do mar. Dorso de Baleia surgiu por trás das ondas, a sua grande superfície em declive subindo sempre na direcção oeste, até onde a falésia caía para o oceano. As gaivotas gritavam; era manhã. Eyvind passou por homens com arcos e homens com martelos, homens vestidos de peles e com elmos de ferro, homens com lanças, chuços e espadas, silenciosos, todos eles, obedientes às ordens de Somerled. Já podia ver a passagem, que se estendia através da ilha que deixava de o ser com a maré, um carreiro estreito e seguro, feito de lajes de pedra meticulosamente colocadas umas a seguir às outras, um grande trabalho de construção que se aguentava firmemente, há longas estações, contra os avanços diários das marés. Com a maré baixa ficava exposto, a sua superfície coberta de algas e conchas. Podiam passar ali dois homens lado-a-lado, ou passar um pelo outro. Com a maré alta, o mar engolia-o, transformando Dorso de Baleia ao mesmo tempo numa fortaleza e numa armadilha. De cada um dos lados da passagem brilhavam rochas amontoadas umas nas outras, espalhadas, atiradas para ali pelo mar, e entre elas súbitas lagoas traiçoeiras. Seria possível seguir por ali se um homem estivesse disposto a arriscar um membro partido, ou o súbito afogamento. A passagem era a única hipótese para um grupo armado que pretendesse atravessar rápida e silenciosamente.Onde começava a passagem estavam três figuras com peles de lobo pelos ombros, de armas prontas, juntos e agarrando as mãos num breve ritual de preparação silenciosa. Eyvind podia ouvi-lo na sua própria cabeça, se bem que Thor não estivesse a falar para ele. Incendeia tudo por mim, guerreiro; fere com força. Era daquele momento que ele necessitava e moveu-se com o sopro do terror nos seus calcanhares, passando pelos três a correr e saltando para ficar, de pernas afastadas, na estreita passagem. O jovem olhou para Dorso de Baleia enquanto os primeiros raios do Sol perfuravam o céu, dourando os campos que subiam pelo penhasco acima. Que ela esteja sã e salva.Espera pelo sinal, Eyvind murmurou Grim por trás dele. Vamos avançar juntos, correndo numa fila única, ou então será o caos. Metade destes homens nunca travou uma batalha a sério. Tiveram apenas umas rixas nas traseiras da taberna, mais nada. Espera pelo sinal, homem.Pelo canto do olho, Eyvind viu Holgar erguer o braço com um pano vermelho na mão. Os homens começaram a aparecer em vagas vindos da língua de terra na direcção de Dorso de Baleia, alinhando ao acaso, preparando-se para atravessar a correr a estreita passagem.Agora! gritou Holgar e tanto ele, como Erlend desataram a correr pela passagem atrás de Grim com outros nos calcanhares. Eyvind respirou fundo e chamou a si toda a sua vontade. Virou-se para os enfrentar, erguendo Mordedor bem alto. A sua voz soou, poderosa.Não podeis passar! Aquela gente está indefesa, está de luto! Retirai! Não podeis passar! Mordedor girou no ar numa e noutra direcção; Grim recuou um passo com uma expressão de choque e consternação no rosto.Que estás a fazer, homem? gritou Erlend. Deixa-nos passar, louco! E fala baixo, sim? Ou ainda acordas aquela gente toda. Que é que te deu?Grim erguera o seu martelo, mas não avançou.Eyvind? arriscou ele. Sai da frente, rapaz, deixa-nos passar!Não podeis passar! Mato o primeiro que tente passar por mim! Seguis um chefe de guerra que matou o próprio irmão?O jovem viu Erlend olhar para Holgar, este acenou levemente com a cabeça e os dois homens avançaram juntos, tirando Grim do caminho. Holgar aproximou-se com a sua espada e Erlend com a lança; Eyvind torceu-se, deixou cair o machado e virou-se. Por trás de Grim, os outros homens murmuravam por entredentes e sussurravam "Guerreiro-fantasma... morto-vivo... maldição de bruxa..."Para trás, Holgar gritou Eyvind, perguntando a si próprio durante quanto tempo mais conseguiria conseguiria enganá-los quanto à sua força. Ordena aos homens que retirem. Somerled é um assassino, foi ele que ordenou a morte de Ulf e de Hakon. Eu tenho a prova. Para trás, antes que eu vos obrigue.Os Pele-de-Lobo fizeram uma pausa; trocaram olhares. Eyvind sabia no que estavam a pensar. Talvez conseguisse aguentar com dois; mas os três juntos dariam cabo dele. Pareciam não ter ouvido o que dissera. Grim saíra da passagem como que tencionando retirar, mas, em vez de voltar para trás, moveu-se rapidamente para a esquerda sobre as rochas traiçoeiras, o seu martelo pronto para desferir um golpe num dos joelhos de Eyvind. Eyvind aparou o golpe com Mordedor, o ferro resvalou no ferro e Grim cambaleou, lutando para não perder o equilíbrio. Eyvind completou o círculo do machado, pensando apanhar Holgar no regresso do arco, mas Holgar também já se tinha desviado para a direita, enquanto Erlend se mantinha na passagem com a lança na mão.Parai com isso, loucos! arquejou Eyvind Não quero ter de vos matar! Desisti, estais a ouvir? Pelos ossos de Odin, Mordedor era pesado; esquecera-se de quanto era pesado. E a cabeça começava a doer-lhe de novo, uma dor tão lancinante que quase o cegava. O Sol nascente era deslumbrante; talvez fosse o primeiro dia de Primavera. Umas aves pequenas passaram lá no alto, gritando as suas canções à madrugada. Para trás! A espada de Holgar golpeou-lhe as pernas; Eyvind saltou para o lado, fazendo toda a força possível nas pernas e fazendo um esforço para que a sua mente se mantivesse límpida. Agarrou com força no machado. Grim aproximou-se pelas costas e, na sua frente, a lança de Erlend estava apontada ao seu coração. Holgar golpeou de novo; Eyvind vacilou. Os homens na praia começavam a berrar conselhos com vozes ainda baixas. "Matai esse maldito traidor!" "Vai-lhe ao flanco esquerdo, homem, dá cabo dele!" "Sai do caminho, estamos a perder tempo!" Dentro de pouco tempo começariam a gritar. Subitamente, Eyvind curvou-se e quando a lança avançou na sua direcção ergueu a mão esquerda para agarrar na haste, ao mesmo tempo que Mordedor desferia um golpe no escudo de Erlend. Este deixou-o cair e agarrou-se com as duas mãos à lança, procurando desequilibrar Eyvind e atirá-lo para as rochas. Que estava a fazer Grim? Estava algures por trás de si, mas não se mexia. O perigo estava em Holgar, que avançava de novo com a espada; tinha de fazer qualquer coisa, não podia desviar-se do golpe enquanto segurava a haste da lança. Largou subitamente a haste; Erlend desequilibrou-se e avançou na sua direcção, ficando ao alcance do machado. Holgar fez uma pausa; o alvo já não era certo, a sua espada não poderia cair sem se arriscar a ferir Erlend. Eyvind deixou cair Mordedor, com todas as suas últimas forças, deu uma pancada e aquele caiu. O jovem atirou-se sobre o guerreiro e apertou-lhe o pescoço com as mãos. Para trás, ou ele morre gritou Eyvind, não muito certo de que teria a força necessária para cumprir a ameaça. Sentia-se tonto; os seus membros doíam-lhe terrivelmente e arquejava. Os seus adversários já deviam ter percebido quão fraco estava, já que o conheciam como um irmão! Para trás! Eu mato-o! Ide buscar Somerled e dizei-lhe que o ataque teve de ser cancelado!

- O que é isto? Parecia que Somerled já tinha chegado; a sua voz clara e dura, vinha da praia, por detrás do ajuntamento de homens. Não tendes ordens para vos manterdes em silêncio? Que se passa aqui?

Ninguém arriscou uma resposta.

Por Thor, homem! Era a voz de Grim por trás de Eyvind, um sussurro rouco. Liberta-o, é Erlend, louco, um amigo e um camarada! Nós temos um trabalho a fazer. Sai daí. Não me obrigues...

Manda parar o ataque disse Eyvind, rangendo os dentes. Somerled matou o irmão. Queimou Hakon. Mentiu-me; mentiu a todos. Juro por Thor que é verdade. Não podeis avançar... O seu aperto na garganta de Erlend parecia estar a enfraquecer, por mais força que fizesse. Conseguia sentir os ombros de Erlend a retesarem-se, as suas pernas procurando apoio para desalojar Eyvind das suas costas. Estava tudo a ficar enevoado; através da viseira do seu elmo podia ver Somerled não muito longe, mas as suas feições estavam esbatidas e os homens à sua volta começavam a transformar-se em sombras.

Ora vejam disse Somerled com firmeza. Já percebi o que se passa. Esse homem está doente; e já sei de que doença sofre, chamam-lhe doença da guerra, se bem que nenhum guerreiro goste de dar um nome a essa doença, já que é uma doença que provoca o abrandamento do passo e a vontade de combater. Eyvind sofre de alucinações que resultam do seu longo cativeiro entre os homens daquela tribo primitiva e de escutar as suas histórias venenosas. É a eles que devemos culpar pela mudança operada no herói de Ramsbeck. Uma visão lamentável, de facto. Foi uma feiticeira dos Folk que lançou um feitiço sobre o nosso caro Eyvind. Quanto ao que ele diz, não passa de disparates. Eu, matar o meu irmão? Não procurei vingar o seu assassinato com todas as forças e vontade desde o dia em que eles o mataram? Solta o teu amigo guerreiro, Eyvind, velho amigo. Tu precisas de descanso e ajuda, não de combater. Os outros que o façam hoje por ti. O teu braço mal pode com o machado; as tuas pernas mal podem contigo. Vede, homens, as mãos dele nem conseguem apertar o pescoço de Erlend e a cabeça verga sob o peso do belo elmo que usou gloriosamente em tantas batalhas. Este homem já não é um Pele-de-Lobo, é uma mera sombra.

Não o ouçais! rosnou Eyvind, esforçando-se por manter O aperto, ao mesmo tempo que Erlend começava a agitar-se e a torcer-se, sentindo que o seu adversário estava a perder as forças. Eu estou no meu perfeito juízo e digo-vos que este ataque não pode ir em frente. Mato este homem se algum de vós tentar passar por mim. Corre, Nessa. Esconde-te. Pelo martelo de Thor, parecia estar a ficar escuro; se perdesse a consciência, estaria tudo terminado. Não podia deixá-la ficar mal, não podia... O mundo estava a ficar enevoado; o Sol ofuscava-o. Corre! gritou ele. Esconde-te! Cuidado com os atacantes! Mas o seu grito pareceu-lhe apenas um murmúrio vindo do seu coração enfraquecido.Pobre Eyvind disse alguém. Um momento mais tarde ouviu-se uma pancada no seu elmo; o martelo de Grim fora usado com a força suficiente para o incapacitar sem lhe desfazer o crânio. A escuridão desceu sobre ele, uma escuridão que não lhe provocou a inconsciência, porque continuou a ouvir o som das botas dos homens que passavam a seu lado, escolhendo um caminho pelas rochas escorregadias de ambos os lados da estreita passagem. Os pés passavam-lhe ao lado, por cima, sempre em frente. Não se ouviam gritos, salvo os das gaivotas, ásperos, mas os Folk dificilmente dariam atenção a esses. Começou a ter outras sensações; tinha pedras por baixo da cabeça, as suas pernas estavam na água e o machado e o elmo tinham desaparecido. Continuava cego; o martelo de Grim roubara-lhe a luz do dia. Após algum tempo, o som de passos cessou. O jovem rastejou sem saber se havia alguém por perto, sem saber se estava só ou não. Talvez já tivessem atravessado todos, com as suas lanças, espadas e machados... Corre, esconde-te, depressa, depressa... Não conseguia ver e também não parecia capaz de falar. Talvez fosse a dor que lhe provocava um nó na garganta. Tinha de continuar, tinha de atravessar a passagem e ajudá-la, talvez ainda não fosse demasiado tarde... À distância, os homens gritavam e ouvia-se uma crepitação sinistra e subitamente, acima dos gritos de guerra, ouviu-se o grito agudo e aterrorizado de uma mulher. Pergunto a mim próprio se ela gritou, dissera-lhe Somerled uma vez, há muito tempo. Tinha de se mexer, tinha de continuar, talvez ainda a conseguisse encontrar, talvez... Pareceu-lhe ter regressado à passagem, sentia as lajes de pedra, mas não conseguia levantar-se, as pernas não tinham força... muito bem, rastejaria, se fosse preciso, encontrá-la-ia, mesmo cego como estava... dera a sua palavra... tinha de a honrar...Não me parece, Eyvind. Somerled devia estar mesmo a seu lado; devia ter estado a observar os seus patéticos movimentos.

Que há de tão importante além, que faz com que tu, um destroço do que eras, te empenhes desse modo? Entristece-me ver-te assim. Não podes continuar a torturar-te. O golpe de Grim foi apenas para te tornar inconsciente, não para te transformar num herói. Desiste, sim? Atai-o! ordenou ele. Atai-lhe os pulsos e os tornozelos com força. Depois, colocai-o fora do carreiro. Ele que possa ver tudo, já que anseia tanto por tomar parte no combate. E vigiai-o, estamos entendidos? Se ele tentar fugir, batei-lhe com força.Umas mãos agarraram em Eyvind e atiraram-no sem cerimónia para cima das rochas. Indistintamente, o jovem estava consciente das dores. Os gritos tornaram-se mais altos, mais estridentes e, subitamente, pararam. Os homens continuavam a berrar, o metal a bater contra o metal e começou a ouvir-se um rugido, como que o de um grande incêndio. Estavam a arrastá-lo pela praia, pela passagem; a sua cabeça bateu numa pedra e ele pôde ver de novo.Somerled! tentou ele gritar, mas o som saiu-lhe rouco e sem fôlego, afogado pelos gritos das gaivotas. Somerled, por favor! Não sabes o que estás a fazer! Somerled!Mas Somerled não podia ouvi-lo. Caminhava a passos largos pela passagem, esguio e de costas direitas, desta vez sem qualquer guarda atrás de si. Não precisava, porque parecia que a batalha já teria terminado quando ele pusesse os pés no seu novo domínio.Os guardas de Eyvind fizeram como Somerled lhes ordenara, acrescentando uma mordaça como medida de precaução. Amarraram firmemente o seu prisioneiro a uma rocha na ponta de terra, de frente para a passagem e para a aldeia de Engus. Os nós eram apertados; a princípio, Eyvind lutou contra eles com todas as forças que lhe restavam, dando pontapés, torcendo-se, retesando-se, mas os seus esforços foram fúteis. Tentou gritar, mas a mordaça tornava as suas palavras nuns sons ásperos, irracionais, que ecoavam no turbilhão da sua cabeça. O fumo ergueu-se, espesso e escuro, do salão grande de Engus; por trás, as chamas erguiam-se, douradas. A maior parte dos combates parecia ter cessado; havia corpos espalhados na relva, em redor do pequeno aglomerado de casas, corpos com túnicas vermelhas, verdes e azuis. O jovem podia ver os homens de Somerled deambulando por entre eles e o movimento descendente e cortante dos machados e das espadas. Outros homens mantinham-se a alguma distância e em redor do salão grande a arder, prontos para agarrar quem tentasse fugir pela porta ou pelas janelas. Mas parecia não haver ninguém a tentar sair. Eyvind viu pessoas dirigirem-se para a passagem, a maior parte mulheres; talvez prisioneiros. Nessa. Dentro de quanto tempo voltariam para trás? Não poderiam demorar muito mais tempo, a maré começaria a subir e ficariam presos, se se atrasassem. Talvez ainda estivesse viva, talvez a visse entre os prisioneiros, de cabeça erguida orgulhosamente, os seus belos olhos virados para ele com desgosto e reprovação. Deixara-a ficar mal; não cumprira a sua promessa. Jurara ajudá-la, jurara ser o seu campeão. Pensara que conseguiria fazê-lo. Mas, no fim, não tivera forças suficientes. Eyvind fez um novo esforço para se libertar; pelos ossos de Odin, estava tão fraco como uma criança. Talvez fosse como Somerled dissera. Mal da guerra. Toda a gente sabia o que era, se bem que os guerreiros não falassem abertamente desse mal. Era a doença que os guerreiros mais temiam, porque tornava um homem inútil, roubava-lhe a vontade, transformando-o num invólucro trémulo e patético. Eyvind vira um homem nessas condições em Rogaland, um destroço trémulo e lamentável, sentado a um canto da taberna com uma cerveja na mão, rejeitado até pela própria mulher. A doença da guerra roubava a um homem até a sua vontade de viver. O facto de Somerled a ter mencionado soava a maldição; era como se tivesse lançado sobre ele a escuridão. O jovem vira o olhar de piedade e horror nas feições agradáveis de Grim. Vira repulsa nos olhos de Erlend, confusão e vergonha nos de Holgar. Parecia que Somerled tinha razão. Porque Eyvind não podia fazer outra coisa senão testemunhar a destruição do que jurara preservar. Viu o salão grande arder até aos alicerces de pedra. Viu os homens de Somerled começarem a marchar de regresso através da passagem com as cabeças dos inimigos espetadas nas lanças, o sangue fresco brilhando nas hastes à luz da manhã. As gaivotas voavam em círculo por cima, gritando uma canção de morte. Depois das cabeças vinham um ou dois anciãos de barbas grisalhas e algumas mulheres, não mais de seis ou sete. Bastou-lhe um olhar de relance para ver que Nessa não se encontrava entre elas; nenhuma tinha a sua estatura, o seu porte orgulhoso, os seus cabelos castanhos brilhantes. Um guerreiro com uma espada conduzia um bando de crianças aterrorizadas. Uma rapariga transportava ao colo um bebé, uma outra guiava uma avó amparada a um pau. Não era Rona: esta tinha ralos cabelos brancos e ombros curvados. Nessa... O jovem viu-os aproximarem-se, tão poucos, tão comoventemente poucos. Não havia rapazes entre eles, nem jovens, nem guerreiros de meia-idade. Esses já tinham passado, de olhos escuros furiosos e rostos sem sangue, empalados nas lanças dos conquistadores.Nada se mexia em Dorso de Baleia, salvo o fumo que se erguia dos edifícios em chamas e os pontos brancos que representavam as ovelhas nas pastagens do declive do penhasco por trás da aldeia arruinada. Os homens dos Folk permaneciam onde tinham caído mortos; não havia ninguém para tirar dali os seus corpos sem cabeça. Os guerreiros atravessaram a passagem, já não silenciosos, antes rejubilantes: fora uma grande vitória. Na linha de costa abaixo de Eyvind, os prisioneiros mantinham-se num grupo cerrado, de rostos cor de cinza; o bebé berrava estridentemente, as crianças soluçavam de terror. As mulheres mantinham-se silenciosas. Eyvind viu Somerled na praia, aos ombros dos seus homens, de braço erguido num gesto de triunfo. Estavam a colocar as cabeças alinhadas ao longo da passagem, enterrando as lanças com força na terra silenciosa. A curva da linha de costa estava cheia delas, os olhos desses guerreiros mortos virados para oeste, para o lugar onde o último Rei dos Folk combatera a sua última e breve batalha. Alguém espetou na terra, junto de Eyvind, uma lança. Contra vontade, o jovem olhou. No topo da haste estava espetada a cabeça do filho de Engus, Kinart, de olhar furioso, maxilares cerrados, tão novo, tão novo...Então, Eyvind? Somerled estava a seu lado com uma expressão calmamente divertida. Foi uma pena teres perdido aquilo tudo: uma bela batalha, se bem que demasiado fácil. Mas, receio ter más notícias para ti.A mordaça abafou as palavras de fúria que Eyvind teria gritado; o som que emitiu foi um gemido irracional de dor.Ora, ora, velho amigo, deixa-te estar calado e quieto, está bem? Estás a pôr os meus guardas nervosos, sacudindo-te assim e rugindo dessa maneira. Creio que eles ainda têm a cabeça cheia de guerreiros-fantasmas e maldições de bruxas, apesar de tu seres de carne e osso. Calma; tu não estás bem, qualquer pessoa vê isso.Diz-me! Diz-me! O jovem tentava dizer com os olhos aquilo que não podia dizer com a boca; não que tivesse dúvidas de que Somerled percebia. Este estava, simplesmente, a brincar; havia um pequeno sorriso nos seus lábios.Foi uma infelicidade. Não pudemos poupar o filho. Somerled olhou de relance para cima. O palermazito achava-se um guerreiro, mas esta gente não é especialista no assunto; não durou muito. Esperava que Engus me enfrentasse, mas ele preferiu ficar no salão grande e temo que a jovem que eu mencionei tenha ficado com ele, leal até ao fim. Foi impressionante, digno de uma história. Disseram-me que não se ouviu um único som vindo lá de dentro, nem um grito, nem um choro. Morreram todos em silêncio. Muito digno, pensei para mim próprio, a dor deve ter sido considerável. Os que estavam cá fora é que fizeram o barulho todo. Bem, foi-se, Eyvind. Vou ter de procurar uma noiva noutro sítio qualquer. Talvez tenha sido melhor assim. Fica tudo mais limpo, foi a ruptura total, deixa de haver questões quanto à minha autoridade. Somerled, Rei de Hrossey. Tem uma certa aura, não achas? Oh, Eyvind. Isso que vejo nos teus olhos são lágrimas? São! Meu caro amigo, não esperava esse sentimento todo da tua parte. Foi uma grande vitória, tenho de reconhecer.Eyvind deixou que as pálpebras se fechassem sobre os seus olhos. A sua dor era profunda, ia até aos confins da terra, não tinha palavras, estava para além de qualquer pensamento. A raiva que sentia não podia ser expressa, ardia-lhe na cabeça, transformando os pensamentos numa fornalha de ódio. A perda espalhou-se-lhe pelas veias e açoitou-lhe o coração ferido até ele gritar por misericórdia. Mas não havia misericórdia. Ela tinha desaparecido. Nessa tinha desaparecido e ele falhara.É melhor levarmos-te para um local seguro, meu amigo disse Somerled. Um sítio mesmo seguro e tranquilo. Precisas de tempo para recuperar, tempo para pensar no que aconteceu e tempo para pensar no teu futuro. Mais tarde falaremos. Agora não. Acho melhor essa mordaça continuar aí até te termos bem fechado, apenas para tua protecção. As acusações precipitadas tornam as pessoas zangadas e tu não pareces capaz de te defenderes, pobre Eyvind. Um longo descanso num sítio bem seguro, é o melhor que podemos fazer. E agora, se não te importas, tenho mais que fazer. Não é todos os dias que nos tornamos reis.Pouco tempo antes, quando Thor o abandonou e ele perdeu a vontade, pensou que tinha atingido as profundezas do desespero. Quase desistira de tudo, nesses tempos de trevas. Talvez tivesse sido a doença de que Somerled falara, se bem que Eyvind achasse que não, pelo menos agora. Achava que fora uma espécie de teste, um desafio e por causa disso começara a pensar com clareza e a perceber a verdade. Não percebera o desafio até ele o atingir. Agora, o ódio corroía-lhe o ventre, a dor cegava-o e uma outra coisa, que ele não sabia o que era, fazia com que não conseguisse fazer o que fizera antes, enroscar-se simplesmente na escuridão e fechar-se sobre si próprio. Algo lhe mantinha a mente acordada, dizendo-lhe que ainda nada estava terminado, se bem que tivesse falhado, se bem que Nessa tivesse desaparecido, se bem que Somerled tivesse conseguido exactamente o que queria. Desta vez não fugiria.

Tinham-no fechado numa espécie de cela cuja única luz vinha de umas fendas na parede de pedra e do telhado de colmo; um armazém, provavelmente, porque havia grãos de cereal no chão de terra e nas prateleiras, onde devia ter havido sacos para que se mantivessem secos. Ouvira correr um grande ferrolho. De vez em quando ouvia vozes de homens; não mais de dois, pensou. Somerled devia achá-lo muito enfraquecido para merecer mais do que dois homens. Toda a gente sabia que não era possível manter um Pele-de-Lobo prisioneiro durante muito tempo. Eyvind estremeceu. Naquela manhã não fora lá grande Pele-de-Lobo. Nem quisera lutar e, no fim, as suas forças, como estandarte, tinham sido bem pobres, porque a verdade fora uma arma bem fraca: ninguém tinha acreditado nele. Como era possível homens como Erlend e Holgar seguirem Somerled cegamente? Seria a sede de batalha tão forte que lhes retirava toda a percepção do que era certo ou errado? No entanto, ele próprio não tinha atacado à frente dos guerreiros do Jarl Magnus sem nunca ter questionado as exigências do inimigo quanto a terras e bens, ou fosse o que fosse que o Jarl procurava tirar-lhes? Eyvind sentou-se no chão de terra, os braços em redor dos joelhos e olhou para a parede a dois passos de distância. Era diferente. E a diferença estava no próprio Magnus, um homem de bom senso, um homem que todos eles tinham visto julgando casos na Assembleia e pesando cada caso com seriedade e justiça, um homem que só tomava uma decisão depois de muito pensar em todos os aspectos relevantes. Magnus podia ser duro; tinha esmagado aquela rebelião no leste com rapidez e muito sangue derramado. Mas era sempre justo e o que fazia era para benefício, a longo prazo, do seu povo. Magnus era um verdadeiro líder. Somerled era... era perigoso, não apenas para os seus inimigos, mas também para os amigos, para a família e para todos aqueles em quem tocava. Até era um perigo para si próprio. Eyvind nunca esquecera as palavras da vidente. Para ele, tinham sido verdadeiras: naquele local longínquo encontrara, na verdade, um tesouro sem preço, encontrara-a e perdera-a no espaço de uma estação. Quanto a Somerled, a mulher-gato vira dois caminhos, um que levava ao reinado e à glória e um outro, cheio de sombras e solitário. Para Eyvind, era evidente qual deles Somerled seguia. Mas uma coisa era certa. Somerled tinha de ser detido. Não podia permitir que ele continuasse como até ali, deixando a sua marca naquela terra e naquela gente, até que o povo de Nessa ficasse totalmente destruído e as suas belas ilhas desprovidas dos seus antigos mistérios e beleza tranquila. Era melhor não ter qualquer chefe de guerra, a ter um que mergulhava os seus seguidores cegamente em crimes e injustiças e que mostrava a espada àqueles que lhe estendiam a mão num gesto de amizade.No exterior a luz diminuiu. A determinada altura o ferrolho correu, a porta abriu-se com um estalido e uma mão cautelosa apareceu com um pedaço de pão e uma caneca de água. Eyvind não fez qualquer movimento, qualquer som. A porta fechou-se; o ferrolho correu de novo. Podia muito bem suportar uma noite ou duas naquele buraco fedorento; ainda tinha a sua pele de lobo para se abrigar, ainda tinha o presente de Nessa pendurado no peito, contra o coração. Investir cegamente, sem outra coisa na cabeça que não o desejo de estrangular Somerled, era a coisa que Eyvind teria feito no passado: a espécie de coisa que um Pele-de-Lobo faria. Mas ele já não era um Pele-de-Lobo. Ele tinha uma missão; dera a sua palavra a Nessa e mantê-la-ia enquanto pudesse. Era demasiado tarde para ela, mas algures na ilha estavam os restos do povo de Engus, escondidos nos campos, prisioneiros na colónia de Somerled, ou vivendo da terra e do mar nas ilhas mais remotas, sem saberem ainda que o seu bom Rei desaparecera para sempre. Podia avisar essa gente; a eles poderia protegê-los, de algum modo. Poderia falar-lhe do que Nessa desejara e esperara para eles, poderia dar-lhes ânimo. E poderia deter Somerled. A primeira parte seria essa.Na escuridão, Eyvind desatou cuidadosamente a pequena fita que atava o pequeno saco de pano. Nessa usara-a nos cabelos, nos seus longos cabelos sedosos. Fora descarado, naquele dia, nem acreditava como fora descarado ao tirar-lhe o pente das mãos e ao passá-lo depois, gentilmente, pelos cabelos, tocando-os com os dedos, suavemente, para que ela não sentisse nada. Tão perto, estivera tão perto dela e, no entanto, a jovem não se apercebera do seu desejo de a rodear com os braços, de lhe beijar a cova do pescoço, as faces pálidas, a suave curva dos lábios... Não queria pensar no que teria sido o seu fim; ela e o tio, sentados tranquilamente no salão grande enquanto o fogo os rodeava, o fumo lhes entrava nos pulmões e o calor lhes ressequia os corpos. Não pensaria nisso, no entanto os seus maxilares cerraram-se, sentiu um nó na garganta, as lágrimas começaram a cair-lhe de novo pelas faces, não conseguia deixar de pensar, a dor e o terror dilaceravam-no. Sobrinha de Engus: não admirava que Somerled a perseguisse. E agora tinha desaparecido e se Somerled dissera a verdade, a linha real dos Folk tinha terminado. O jovem tocou na pequena pena e nos seixos brancos. O bater do coração das ilhas não pararia com essa facilidade. Os seres antigos de que Nessa falara continuavam a morar nos lugares profundos, se bem que a sua sacerdotisa de olhos claros já não os pudesse chamar. Por trás da sua dor, um propósito frio começara a possuí-lo. Aquilo ainda não tinha terminado.Dormir não era possível. Eyvind deitou-se no chão frio e forçou o seu corpo a ficar imóvel, uma disciplina praticada ao longo de anos de viagens pelo mar e sob abrigos construídos à pressa. Mas não conseguia apaziguar a alma; esta mostrava-lhe as mesmas imagens de fogo e de terror vezes sem conta, até ele quase gritar a sua angústia como um animal selvagem. Recordou a história de Niall e Brynjolf e do juramento que forçara um homem a uma vida de sentimento de culpa e sofrimento. Achou que Niall nunca deveria ter feito aquele juramento, já que não conhecia muito bem Brynjolf. Mas como fez o juramento e cometeu o crime, não devia ter permitido que a sua vida decorresse como decorreu, despejando a sua dor nas canções que compunha. Devia ter defrontado Brynjolf, devia ter-lhe contado a verdade. Devia ter deixado bem claro que uma coisa daquelas nunca mais aconteceria entre ambos. Seria o que Eyvind teria feito. Não evitaria a perda, isso seria impossível, mas, pelo menos, seria uma resolução, um propósito de vida recta. Somerled roubara-lhe a fivela de Ulf. Muito bem, teria de arranjar, à falta de evidências materiais, uma outra espécie de prova. Que dissera o irmão Tadhg? Que era raro um crime daqueles não ter qualquer testemunha? Somerled não podia ter morto o irmão assim, com tantos pormenores, sem, pelo menos, um cúmplice. Encontrar esse homem, persuadi-lo a falar, e teria um caso. Apresentá-lo perante os homens da corte: Olaf Sveinsson, Harald, Língua de Prata, os conselheiros mais razoáveis de Ulf, e a balança penderia para o seu lado. Os homens de Rogaland não eram cegos perante a verdade. Um guerreiro podia atacar sem medir o carácter do seu inimigo, mas nunca prestaria vassalagem a um fratricida. Se provasse a sua culpa, Somerled estaria acabado.

Precisava de ajuda. Teria de ser Eirik: Eirik, que morava agora no sul, onde era possível encontrar as testemunhas e forçá-las a falar contra o seu chefe de guerra. O grande e barbudo Eirik era bom, com pequenos danos, a fazer falar as pessoas. Começou a traçar uma estratégia: sair daquele buraco, encontrar o irmão, esconder-se enquanto se procurava uma testemunha, regressar à corte de Somerled e apresentar o caso. Se, ao menos, Somerled conduzisse as coisas como Magnus em Freyrsfjord. Os procedimentos formais de uma Assembleia providenciavam a protecção necessária e um fórum, onde todos os argumentos deviam ser ouvidos com justiça. Era tudo o que queria. Mas parecia que Somerled tinha desistido da Assembleia, tornando-se, assim, único árbitro e juiz. Só ele determinava o castigo. Era poder a mais, mesmo para o mais sábio dos homens. Pelos ossos de Odin, esperava que Eirik não olhasse para ele com a expressão chocada e trocista que ele vira nos olhos de Erlend e de Holgar.

Escapar: sabia como faria isso. Era apenas uma questão de descanso, de comer aquele desagradável pedaço de pão meio apodrecido, beber aquela água salobra e estar pronto quando, de madrugada, eles abrissem a porta, no dia seguinte ou no outro dia, quando se sentisse suficientemente forte. Por agora, descanso. Abrandar os pensamentos desordenados, acalmar o coração desenfreado, descontrair os membros. Dorme, minha estrela brilhante. Sonha com coisas boas. A minha mão na tua.

Dois dias mais tarde, quando os homens de Somerled apareceram na casa isolada para render os guardas de serviço, encontraram um homem estendido no chão à entrada da cela aferrolhada, inconsciente, com um galo vermelho do tamanho de um ovo de ganso na cabeça e uma tigela de papas de aveia espalhada pelo pavimento. Se o homem tinha algumas armas, tinham desaparecido. O outro guarda estava de rosto para baixo sobre o dique de pedra que ia da cabana à casa principal da herdade; o seu crânio tinha um golpe profundo, como se tivesse sido atingido por uma barra de ferro. Quando olharam mais de perto, verificaram que o ferrolho que servira para manter o prisioneiro dentro da cela fora arrancado dos gonzos e utilizado para imobilizar aquele homem, porque a grande peça de metal enferrujada jazia ali perto; um rebanho de ovelhas, com alguns cordeiros recém-nascidos, pastava tranquilamente em redor dele. Quando o viram, os homens resmungaram e olharam um para o outro. Talvez fosse verdade o que as pessoas diziam, que aquele não era um guerreiro vulgar, antes um fantasma vingador vindo de além-túmulo. Não demonstrara ele uma força nunca vista num simples mortal? Quanto à doença da guerra, Somerled devia ter-se enganado. Aquilo não era nenhum inválido encolhido, era um guerreiro que era melhor evitar a não ser que se tivesse um grupo de homens bem armados e que, mesmo assim, poderia cair-lhes em cima e dar-lhe uns murros valentes. E o cão? O cão podia regressar a qualquer momento, atacando com as presas cheias de sangue, pronto para os fazer em bocados. Era melhor deixar o homem em paz, se queriam a sua opinião; tentar agarrar um homem daqueles era o mesmo que tentar agarrar um dragão, ou um troll mau, ambos muito ousados e muito, muito estúpidos.

Quando contaram a novidade a Somerled, este mandou-os de volta para o mesmo sítio com dois dos seus Pele-de-Lobo. Que não se poupassem a esforços, que não deixassem nenhuma possibilidade por explorar. Eyvind fora seu amigo; Eyvind tinha de ser encontrado e trazido com vida. O que o homem fizera não podia, de modo nenhum, ser ignorado. Enfrentara as forças do seu chefe de guerra no momento do grande ataque e gritara palavras da mais reles traição, mentiras venenosas. Tinha de ser presente à justiça e confrontado com as suas acções erradas. Eyvind quebrara um juramento e tinha de pagar por isso.

E porque nenhum homem no seu perfeito juízo questionava Somerled quando ele arvorava aquela expressão no rosto e utilizava aquele tom de voz muito particular, os homens pegaram nas armas e partiram, um grupo na direcção das terras de Engus, a oeste, o outro na direcção da Ilha Sagrada e o último para sul, na direcção de Hafnarvagr. Somerled assistiu à partida, regressou depois ao salão grande, pegou no saco de pele de Margaret que continha as belas peças de jogo, o seu presente de despedida da parte do Jarl. Resmungou para si próprio enquanto as colocava, umas em marfim e outras em prata, no tabuleiro polido e ornamentado com animais e folhas entrelaçadas embutidos. Era uma pena não ter um adversário à altura naquela ilha; teria de ir buscar Margaret. Era tempo; já devia ter aprendido a lição. Tinha de aprender que era inaceitável a viúva de Ulf falar abertamente contra a nova política do Rei. Margaret surpreendera-o. No fim de contas, entregara-se a ele e isso, certamente, implicava uma certa lealdade. A experiência, em si, não fora grande coisa; onde estava a piada se uma mulher não lutava? Infelizmente, os seus comentários tinham continuado, começando a despertar dúvidas na sua casa. Tornara-se necessário tirar Margaret da corte. Porém, a seu devido tempo, tornar-se-ia uma esposa satisfatória. No fim de contas, poderia muito bem procurar satisfação fora do leito marital. E Margaret continuava a ser a única capaz de o enfrentar nos jogos. Sim, chamá-la-ia em breve. Reconheceu, com surpresa, que tinha saudades dela, da sua inteligência, do seu raciocínio rápido, da sua elegância, tal como da primeira vez em que a vira. Tinha, simplesmente, de tornar bem claro que deveria manter a boca fechada, senão...Entretanto, à falta de um adversário decente, tinha de jogar contra si próprio. Os seus dedos estenderam-se confiantemente para pegar na cabeça em relevo do pequeno rei branco; suavemente, fez o seu primeiro movimento.

 

O pequeno barco transportara-a em segurança até à praia de seixos perto da cabana de Rona. Mas não podia deixá-lo ali; seria o mesmo que dizer, a quem a quisesse encontrar, onde estava. Nessa saltou para fora do barco e ficou com água pelos quadris. Mal sentiu o frio; só lhe restava o peso da dor, como uma pedra pesada alojada onde em tempos tivera o coração. A jovem rasgou a pele que cobria o esqueleto de madeira do barco e afundou-o. Kinart teria ficado furibundo. Com aquele pequeno barco tinha pescado muito bacalhau e muita cavala; fora ele que fizera o curragh durante as longas noites de Inverno e o seu perfil agradável, já meio submerso enquanto Nessa caminhava com dificuldade para terra, levava consigo para o fundo do mar o seu amor pelo oceano e pelas suas dádivas em cada sutura perfeita, em cada ripa moldada com perfeição. Mas Kinart não veria o seu barco destruído. Kinart estava morto. Estavam todos mortos: todos, menos Nessa. O seu tio obrigara-a a fazer uma promessa e ela sobrevivera.Desejava não ter prometido. Desejava que tivessem planeado melhor, ou menos bem. Estavam precavidos quanto a um ataque. Se esse ataque se desse, Nessa deveria pegar numa pequena trouxa e deveria correr para a enseada escondida, por baixo do flanco sul de Dorso de Baleia. Se as coisas corressem mal para todos, ela fugiria no pequeno barco. Engus recusara-se a escutar os seus protestos. Fora perfeitamente bruto. Se alguém tinha de sobreviver, esse alguém era Nessa. E ela sabia porquê. Por isso, obrigara-a jurar e quando o pior aconteceu, ela cumpriu a promessa. O plano incluía outras disposições: homens para defender a passagem, para guardar o salão grande, para proteger as mulheres. Mulheres para olharem pelas crianças, esconder as coisas de valor e reunir o gado. Ninguém acreditara que Somerled enviaria mensageiros e esperaria por uma resposta. Mas ao escolher aquele dia, aquela madrugada após o falecimento da sua mãe, quando estavam todos de luto, para atacar, apanhara-os totalmente desprevenidos. Nessa acordara abruptamente com o coração aos pulos, sem saber o que a acordara; tudo parecia calmo, no entanto era como se alguém tivesse gritado o seu nome, como se uma força fora do seu corpo a impelisse a correr para o esconderijo naquele momento, rapidamente, antes que fosse demasiado tarde. No entanto, nada se movia. A jovem podia ouvir as gaivotas a passar, gritando, e a suave canção do mar. Nessa levantou-se, meteu os pés nas botas, agarrou numa capa e acordou as outras mulheres. Correu na direcção do salão grande onde os homens dormiam todos sentados em bancos, cansados de uma longa noite de cerimónias, os sentidos embotados pela exaustão e pela cerveja forte.Tio! gritou ela. Kinart! Acordem! Porque, enquanto corria, a jovem olhou para terra à luz da madrugada e o que viu gelou-a de terror. Homens armados acumulavam-se na língua de terra, mais homens do que alguma vez vira. E ouviu gritos, na passagem estava um grande guerreiro, um homem alto, de ombros largos, usando um belo elmo com uma cortina de anéis de metal, tinha um machado na mão e enfrentava os seus camaradas, gritando, brandindo a arma. Ele estava a tentar detê-los... À sua volta, os homens de Engus começaram a emergir do sono com olhos congestionados, demorando tempo a acordar, demorando tempo a agarrar nas armas que tinham a seu lado. Ela olhou para a passagem uma vez mais, viu Eyvind pontapear, curvar-se e virar-se no meio dos seus atacantes e viu-o cair com um único golpe poderoso. Nenhum homem podia sobreviver a um golpe daqueles... a jovem sentiu-o como se o tivesse recebido no seu próprio coração. Os guerreiros de Somerled começaram a atravessar a passagem em passo rápido transportando lanças, machados, martelos e espadas cintilantes. Algures, por baixo daquelas botas em correria ficara o corpo de Eyvind. Nessa ouviu-se a si própria gritar, um som estrangulado, meio soluço, meio grito e o seu tio apareceu junto dela afivelando a espada à cintura, de rosto pálido, com um olhar que ela nunca vira antes.Adeus, Nessa disse Engus. Vai, foge, depressa. Não podes ser vista. Tu és a nossa única esperança. O futuro está nas tuas mãos. Vai. O Rei tirou do seu dedo o pesado anel de prata ornamentado com dois escudos gémeos e colocou-o na mão dela. Não era um símbolo real, era o seu símbolo pessoal de linhagem. Deveria ter passado para o seu filho.

Nessa ficou sem palavras, sabendo que era a última vez que o via: a última vez que os via a todos. Fora tudo tão rápido, tão súbito, que estava sem fôlego. Kinart já corria de lança na mão, desesperadamente, para tentar impedir o primeiro dos invasores de pôr o pé em Dorso de Baleia. O seu rosto jovem ia radiante de coragem. Nessa ficou imóvel, o sofrimento fazia-lhe doer o corpo todo.

Vai disse Engus de novo e inclinou-se para a beijar na testa. Ela pôs-se em bicos dos pés, abraçou-o com força e, engolindo as lágrimas, correu. Tinha de cumprir a promessa. O cão seguiu-a; a jovem esperava que ele não fizesse barulho, porque não poderia remar enquanto a maré não subisse de novo.

Nessa não precisava de ver para saber do terror do seu povo naqueles últimos momentos e da sua coragem. Correu com os olhos fechados e bem no fundo da sua alma, enquanto ouvia os gritos, o bater das armas umas nas outras, o rugido do fogo, estava a imagem de um guerreiro cometendo um acto heróico e terrível, enfrentando, sozinho, cinquenta: a visão de Eyvind lutando e caindo, tal como uma voz antiga lhe dissera que aconteceria. Ao mesmo tempo que os sons do morticínio chegavam aos seus ouvidos, que a sua casa era incendiada a menos de cem passos do local onde estava escondida, tremendo, naquela fenda sobre a saliência rochosa posta a nu pela maré, sabia que o seu guerreiro morrera em vão. Tens coragem, Nessa? Tens a coragem necessária para continuar depois de teres perdido tudo?

Após algum tempo, não muito, o silêncio voltou. Durante alguns momentos ainda lhe chegou o som de vozes de homens, não gritando, antes falando em tom mais uniforme, como se estivessem a estabelecer a ordem e a dar ordens. Ainda bem que não conseguia ouvir o que eles diziam. O cão, Guard, era agora o seu nome, estava deitado a seu lado de olhar ansioso. De vez em quando lambia-lhe a mão e ela passava-lhe os dedos pela cabeça, tirando algum conforto do calor do seu corpo. Nessa exigira silêncio a Guarde, ele obedecera, se bem que os sons que vinham da aldeia o fizessem baixar a cabeça e achatar as orelhas, tremendo.

Há muito que Nessa aprender a ler as subtilezas da maré. Já estava a subir. As vozes tinham cessado, o crepitar tinha morrido; uma cortina de fumo tinha transformado a luz matinal num amarelo-doentio. A água batia gentilmente nas rochas em baixo. Não iria ser difícil lançar o curragh à água, leve como era. Dentro de pouco tempo abandonaria aquele lugar. O seu tio dissera que ela devia partir o mais rapidamente possível.Não olhes para trás, Nessa dissera Engus. Se formos atacados, lutaremos até ao fim como verdadeiros guerreiros dos Folk. Mas as probabilidades não são a nosso favor. Se falharmos, abandona este lugar. Procura o irmão Tadhg; procura refúgio nas outras ilhas e depois vai para a terra dos Caitt. Os nossos parentes, lá, dar-te-ão abrigo. E não olhes para trás.Mas ele esquecera, talvez, que ela era uma sacerdotisa. Fosse qual fosse o aspecto do penhasco verdejante de Dorso de Baleia acima de si, não podia partir sem que certas coisas fossem feitas, sem que fossem ditas umas certas palavras. Assim, quando lhe pareceu que tudo estava mais calmo e que a maré estava a subir regularmente, de modo que os homens de Somerled já teriam passado para o outro lado para celebrar a sua grande vitória, Nessa saiu do seu esconderijo. Aproximou-se cautelosamente da aldeia; talvez houvesse guardas, deixados ali por Somerled para vigiar o terreno do seu triunfo, não fossem ter esquecido algum inimigo, algum jovem ainda com cabeça, ou uma anciã escondida nas ruínas enegrecidas. Mas não havia ninguém: ninguém, apenas a morte. A jovem atravessou o relvado pisado.Parecia um pesadelo. Uma visão de apertar o mais duro dos corações, de empalidecer as faces mais coradas. Nessa estava preparada para ver a morte; preparara-se para isso. Mas aqueles cadáveres infelizes, a quem nem sequer tinham concedido a dignidade de jazer inteiros no seu solo pátrio, aqueles corpos cruelmente mutilados, para que nenhum homem ficasse como tinha morrido era uma cena de desespero, uma ferida que nunca sararia. Aquele lugar nunca mais seria um abrigo seguro. A jovem sentiu a grande injustiça daquilo tudo; o fumo que se erguia do salão arruinado subia pesado de vergonha. Nessa não chorou. Os seus olhos estavam secos, a sua respiração calma. Sentia apenas o frio e uma coisa pesada no peito, uma dor enorme, um nó de sofrimento e perda. Já não havia qualquer sinal de movimento na língua de terra. Nenhumas sentinelas a vigiavam; apenas os olhos mortos dos seus parentes olhavam através do turbilhão da maré a subir, cada rosto empalidecido olhando para oeste, empalado no topo do seu chuço enquanto a sua sacerdotisa ajoelhava junto de cada corpo sem cabeça, lhe cruzava os braços no peito e pronunciava as palavras tradicionais de despedida. Descansa, espírito corajoso; que a terra te guarde no seu seio. Grande mãe, recebe o teu guerreiro Ferach... o teu guerreiro Brude... o teu querido guerreiro

Kinart... Ela conhecia-os a todos como irmãos, um pelos seus longos dedos anelados, outro pelo modo como roía as unhas até ao sabugo, outro pelas sardas que o sol lhe provocara na pele clara.

Junto do salão grande estavam três mulheres. Jaziam numa confusão piedosa, os peitos, os estômagos e as gargantas perfurados pelas lanças, ainda agarradas umas às outras devido ao terror. Eram todas de idade, servas fiéis da casa de Engus. Uma fora ama da mãe de Nessa. Não havia mulheres novas entre os mortos, não havia raparigas, não havia crianças. Ficara combinado estas abrigarem-se na cabana fora da aldeia, onde o gado era reunido com mau tempo; dois dos rapazes mais crescidos, que deviam protegê-las, jaziam, ensanguentados, junto da parede. Mãe, recebe os teus filhos Gartnait e Drust, que nunca chegaram à virilidade, mas que morreram como homens... mãe, recebe as tuas filhas, que te serviram com lealdade. Não podem descer à terra, mas repara, preparei-as o melhor que pude e esta noite velarei e orarei por elas. Dá-lhes descanso e perdoa esta nódoa, este morticínio estouvado, que entristeceu este lugar tão belo... recebe o teu filho Erip... recebe o teu filho Conal... recebe o teu filho...

Nessa não podia entrar no salão grande porque as pedras ainda estavam muito quentes, mas pôde ver de relance que só restavam ossos e cinzas. A jovem inclinou a cabeça. Mãe de todos nós, aqui pereceu o último grande Rei dos Folk das Ilhas Brilhantes. Recebe o teu filho Engus.

Guard mantinha-se a seu lado, a cauda entre as pernas e tremendo de medo. De vez em quando emitia um pequeno queixume e ela mandava-o calar, mas gentilmente, porque a inquietação do animal era a imagem do que lhe ia no coração. Ali estava o dólmen onde as suas duas irmãs dormiam o seu longo sono. A sua mãe não descansaria ao lado das suas duas filhas perdidas, porque o seu corpo amortalhado ainda não tinha descido à terra quando o incêndio irrompera pelo salão grande, levando no seu frenesim a irmã morta e o irmão vivo. Quando tudo está perdido, um Rei deve morrer com honra no seu salão grande; isso era sinal de força e Engus era um dos homens mais fortes que conhecera.

Havia ainda uma coisa a fazer antes de abandonar aquele local sombrio. Nessa subiu o penhasco de Dorso de Baleia e Guard seguiu-a.

As ovelhas vagueavam por ali e pastavam à-vontade. Guard manteve o passo até ela chegar ao topo do monte, de onde era possível ver a Pedra do Povo no topo da falésia a oeste, orgulhosa e poderosa entre a terra e o mar. Ali iria jurar lealdade e fidelidade ao seu tio; ali juraria, junto da pedra, ser digna da confiança que ele depositara nela. A jovem continuou a subir, olhou para oeste, pestanejou e olhou de novo.A Pedra do Povo desaparecera. Como era possível? Os seus olhos deviam estar a pregar-lhe uma partida; marcava aquele domínio antigo desde os tempos antes da história, desde que o primeiro homem e a primeira mulher dos Folk se tinham instalado em Dorso de Baleia. Não podia ter desaparecido; os antepassados não permitiriam um tal sacrilégio.Guard murmurou Nessa enquanto um arrepio gelado a percorria acho que não posso continuar. Guard?Mas Guard’já seguia na frente e ela seguiu-o. Não podia fazer outra coisa. O que a impelia era mais terrível do que o orgulho, mais obscuro do que a ira, mais poderoso do que o amor. Era algo antigo e profundo, algo que não tinha nome.A Pedra do Povo estava quebrada; despedaçada. Jazia em bocados no espaço relvado, o crescente desfeito, o Rei em relevo separado dos filhos, que olhavam cegamente para o céu vazio. Lá estava a águia, o seu voo cortado cerce, ali o animal marinho, quebrado e desagregado. Parecia que Somerled não ficara contente com a chacina dos Folk, tivera que obliterar o símbolo da sua identidade. Nessa ajoelhou-se junto da pedra em pedaços, estendendo a mão para tocar nos cabelos encaracolados do antigo rei. Um tal ódio cego devia, certamente, ter nascido do medo; não podia haver outra razão para aquilo. E Somerled tinha razão para ter medo. O que lhe ia naquele momento no sangue era poderoso e perigoso. Era o mesmo batimento da terra, que soava em cada vaga que rebentava na costa. Que soava no coração das pedras erectas e gritava no vento que soprava de ocidente. As ilhas estão vivas. As ilhas resistem. As ilhas não esquecem.Nessa não podia colocar de novo no seu lugar a Pedra do Povo em pedaços; os pedaços eram demasiado pesados. Faria aquele trabalho curativo mais tarde. A jovem pegou num fragmento minúsculo, talvez uma parte dos membros e da cauda do estranho animal marinho, ou talvez não, e meteu-a na pequena bolsa que continha os seus sortilégios da lua. Descobriu que não era capaz de entoar o cântico do voto solene que tencionava. Algures, no seu espírito, pranteava uma angústia, um lamento selvagem que recusava deixar-se libertar. A calma fria, que se apoderara dela enquanto preparava os homens perdidos dos Folk para o seu longo sono, banira-lhe as lágrimas e emudecera-lhe a voz. Mas tinha pouca importância. Os antepassados ouviam até um sussurro, e uma jura podia ser feita mesmo quando a pedra sagrada estava desfeita, porque a verdade nunca pode ser destruída. Nessa olhou para leste, para as ruínas da aldeia e ajoelhou para pousar a mão na cabeça do corajoso rei gravado na pedra. Recebe os nossos pobres mutilados, gentil terra, embala suavemente os seus espíritos; dá-lhes descanso. A jovem levantou-se, virou -o rosto para oeste e o Sol estendeu a sua sombra, longa, através da terra, para tocar no ponto mais longínquo das ilhas. Grande oceano, transporta a sua canção de coragem para oeste, leste, norte e sul, leva-a a todos os cantos do mundo. Que os Folk nunca sejam esquecidos.Em seguida, a jovem pegou no barco e remou para sul, para perto do lugar das mulheres. O Sol já ia alto, mas estava velado por nuvens pesadas; Nessa permanecera muito tempo naquele lugar de morte, talvez demasiado. Somerled sabia o que ela era; sabia o que defendia. Tinha de agir rapidamente, ficar-lhe à frente. Tinha uma tarefa para cumprir, tinha de arranjar as forças necessárias para a levar a cabo e sozinha. Uma vez terminada, prosseguiria e enfrentá-lo-ia, se bem que esse pensamento a enchesse de pavor. Tinha esperança de encontrar Rona sã e salva, mas quando entrou aos tropeções no espaço verdejante do lugar das mulheres encontrou a cabana incendiada e a sua velha amiga tinha desaparecido. Era evidente que os homens tinham estado ali, a terra ainda mostrava os sinais das suas botas. A jovem não via como poderia a anciã ter sobrevivido àquele ataque. Mesmo então, Nessa não chorou; a sua dor sobrepunha-se às lágrimas. Era uma coisa mais profunda, sombria; essa coisa pousara naquelas belas ilhas, tão pesada que parecia superior às forças de qualquer sacerdotisa por mais sabedora do conhecimento que fosse, por mais impregnada de sabedoria que estivesse e por mais corajosa que fosse, mais do que um herói das velhas histórias. Não cederia à fraqueza; não ficaria ali na quietude da torre subterrânea, abrigada sob uma capa que um dia aquecera um guerreiro ferido, não libertaria as lágrimas que cresciam, cresciam dentro dela.A sua pequena trouxa fora cuidadosamente preparada, pronta para uma fuga como aquela. Engus sabia, tal como ela, como era frágil a esperança de sobrevivência uma vez as ilhas apanhadas nas garras de Somerled. Podia acender uma fogueira; podia alimentar-se durante um dia ou dois. Tinha uma pequena lâmpada, óleo e uma vasilha de cortiça. Podia lançar os ossos e ver o que eles diziam; podia queimar ervas e entoar cânticos pelos mortos. Podia executar os deveres que lhe estavam destinados desde o dia em que se aventurara nas dunas e conhecera a mulher sábia.Nessa não dormiu naquela noite. Guard enroscou-se na capa, suficientemente alerta para a avisar da aproximação de quaisquer intrusos, mas não parecia ele; talvez esperasse encontrar ali a companheira, ou o homem que ajudara a vigiar, porque havia algo na inclinação da sua cauda e na tristeza dos seus olhos que a comovia. Não foi caçar; comeu um pedaço de pão duro que Nessa lhe deu e instalou-se à entrada, vigilante.Ela sentou-se entre duas lâmpadas na câmara do fundo e entoou o cântico dos mortos: tantos nomes, tantos adeus. Entoou a história dos Folk nas ilhas, geração após geração: como tinham trabalhado a terra e pescado nos mares, como tinham gerado filhos fortes e filhas corajosas, como os seus reis tinham governado com justiça e como as suas mulheres sábias lhes tinham dado o conhecimento da terra e do céu, tinham tecido os rituais do fogo, da água, da morte e da Lua. Falou da mãe, das irmãs, do Rei Engus e do seu filho Kinart, um óptimo pescador, um valente guerreiro. A escuridão rodeou-a naquele lugar pequeno, redondo; as sombras fecharam-se sobre ela. Acima, na prateleira, os sete pequenos crânios observavam-na com uma atenção sombria.Hoje perdi mais dois murmurou Nessa para o silêncio da câmara subterrânea. A minha amiga e conselheira durante todos estes anos, Rona, sacerdotisa dos mistérios. Mãe e professora, na verdade uma grande sábia. Creio que conheceu um fim cruel, mas também creio que o enfrentou tranquilamente, com coragem, porque se alguém estava pronto para seguir em frente, esse alguém era ela. E perdi outro: o meu fiel guerreiro, morto numa valorosa luta pela verdade. Mas, se não fosse eu, Eyvind ainda estaria vivo e poderia regressar, através do mar, para junto do seu povo. Ele fez o que me pertencia; fui eu que o mandei para a morte. A sua voz vacilou; aquilo não era bom, tinha de ser forte. Não compreendo por que tive de fazer aquilo, por que razão as vossas palavras me disseram que ele cairia numa última batalha. A mim, parece-me um desperdício, já que todos os seus esforços não puderam impedir a chacina do nosso povo. E morrer quando começava a ver o caminho da verdade... Procurastes ensinar-me que uma sacerdotisa não pode sentir o que eu sentia por ele? Foi uma lição muito cruel, que eu guardo no meu coração juntamente com todas as outras que aprendi hoje. Não sabia que este homem me era tão querido até o ver cair. Não choraria, não por ele, não quando tantas mortes tinham de ser choradas. No entanto, a dele parecia-lhe a mais cruel. O facto de saber que nunca mais se sentaria junto dele, como naquela noite, partilhando o calor de um único cobertor, falando com ele como se estivesse a falar consigo própria, de tal modo estavam sintonizados um com o outro, saber que isso não voltaria a acontecer parecia-lhe insuportável. É difícil permanecer leal em tempos como estes murmurou ela ferozmente. Muito difícil. Levaste-lo apenas porque, se ele tivesse sobrevivido, eu não poderia continuar como sacerdotisa? Roubastes-lhe o futuro apenas para que eu continuasse ao vosso serviço? Isso foi muito cruel; tão cruel que eu não sei se tenho coragem para continuar.Não recebeu qualquer resposta; os antepassados não tinham resposta para as suas perguntas. Assim, quando as despedidas terminaram, Nessa permaneceu em silenciosa meditação, porque ninguém dava ordens àquelas vozes, se elas decidiam não se manifestar. Sentou-se muito direita, de pernas cruzadas, os olhos abertos mas sem ver e esvaziou a mente, pronta para o que lhe aparecesse pela frente quando a madrugada estendesse os seus dedos de luz pelo interior da câmara superior. Durante muito tempo não aconteceu nada. Talvez até os poderes antigos ficassem silenciosos após uma noite de tantas perdas; talvez nem eles conseguissem alcançar o significado de tanto sofrimento e desolação. Até certo ponto, Nessa percebeu que a noite se ia passando, que a luz regressaria dentro em pouco. Os seus ouvidos registaram os pequenos sons do cão agitando-se na câmara superior, fungando, suspirando, acomodando-se de novo para descansar e vigiar. Por fim, um fragmento de pensamento.Ossos e cinza... ossos e cinza... nos ossos e na cinza encontrarás a verdade... és forte, Nessa?Suficientemente forte, foi a sua resposta. Tenho de o ser.Tens a certeza?Como posso não ter a certeza? Não há mais ninguém para fazer o que tem de ser feito.

Tu não estás só, Filha. Reúne as tuas forças. Encontra o teu caminho. O tempo é escasso para os Folk. Procura o rumo verdadeiro nos ossos e na cinza...A manhã chegou. Enquanto a luz entrava na câmara acima, Nessa saía do transe, lentamente desta vez, preocupada com o seu corpo cansado e o espírito abalado, até que conseguiu mover os dedos, espreguiçar-se e, por fim, erguer-se para subir os degraus íngremes e ser recebida em êxtase por um Guard que desatou a gemer e a lambê-la. A jovem saiu para a luz do dia. O ar estava mais quente; o céu estava de um azul-doce, suave, da cor dos olhos do seu guerreiro, mas não ia pensar nisso, não pensaria nele. Tinha de planear o que fazer a seguir. Se Somerled suspeitasse que ela ainda estava viva, aquele lugar seria, certamente, o primeiro onde a procuraria.A jovem partilhou uma côdea com o cão.Vou-te contar uma história, Guard. É uma história muito antiga, acerca de duas irmãs; eram ambas filhas de um Rei. Ambas amavam o mesmo homem, mas ele não podia ser das duas. Ele queria a mais nova, que se chamava Dervla. Um dia, a mais velha empurrou a mais nova para um rio e Dervla afogou-se. O seu corpo, vestido de branco, flutuou durante muito tempo pela corrente abaixo, até que chegou a um lugar onde havia uma azenha. O moleiro pensou que era uma ave muito bela que via a nadar, mas depois, quando olhou mais de perto, viu que era uma bela donzela e puxou-a para a margem. Pobre rapariga, pensou ele, que coisa tão triste: pergunto a mim mesmo qual terá sido a sua história? E como tinha jeito para aquelas coisas, transformou o corpo numa bela harpa, dos ossos fez a armação e dos cabelos dourados as cordas. Não havia necessidade de tocar com os dedos naquele instrumento delicado, porque no momento em que ele inseriu a última cavilha no seu devido lugar a harpa começou a cantar sozinha e a canção era tal, que o moleiro teve a certeza que era uma coisa maravilhosa e encantada e levou-a ao salão grande do rei. Um pouco atrapalhado, porque estavam ali muitas pessoas importantes além da filha mais velha do Rei com o seu novo marido, o moleiro colocou a sua harpa em cima da mesa diante do Rei e deu um passo à retaguarda. Então, a harpa começou a tocar, Guard; oh, que canção maravilhosa ela tocou:Oh meu pai, escuta-meEscuta-me, mãe queridaA teu lado está a minha falsa irmã que me afogou com as próprias mãos.Pelo amor do doce ConallDervla morreu no rio profundoE", a vossa filha, regressa agora a casaComo a voz da verdade numa harpa de osso.Guard olhou para Nessa. O animal lambeu-lhe a mão.Toda a gente conhece esta história disse Nessa ou uma outra parecida. Uma harpa de osso diz sempre a verdade; a sua voz vem das profundezas da terra, da essência da natureza. Penso que a expressão ossos e cinza significa precisamente isso. Somerled não escutou Eyvind, ninguém escutou, isso é evidente. Sem provas, sem testemunhas, só tinha o seu machado e a sua coragem. Mas não foi o suficiente e, por isso, morreu.Guard ganiu e pousou-lhe o focinho no joelho. Nessa fez-lhe uma festa na cabeça.Portanto, como vês murmurou elatodos vemos aquilo que devemos ver. E sabemos para onde devemos ir. A jovem sentiu um arrepio percorrê-la. Eu não posso fazer o que o meu tio me pediu. Não posso fugir, procurar abrigo, esconder-me. Não faz sentido. Não me vou juntar aos que restam do meu povo para ver Somerled chaciná-los uma vez mais, para o ver fazer deles uma parada perversa de conquistador. Não posso permitir que isso aconteça. Somerled tem de ser detido. Agora que Eyvind, o único homem que poderia fazer com que ele ouvisse, morreu, essa tarefa cabe-me a mim: apelar à voz que não pode ser negada, a única verdadeira testemunha das maldades daquele homem. Tenho de dar a conhecer ao seu povo o tipo de homem que Somerled é e onde ele o levará se não for detido. Vais comigo, Guard? Teremos de atravessar as terras de Somerled: ir ao coração do seu domínio e depressa, porque creio que há mulheres e crianças prisioneiras na sua colónia e devemos ir a tempo de as salvar. Vais comigo?Os olhos de Guard estavam tão firmes como só os de um cão podem estar; o animal abanou a cauda.Muito bem, então disse Nessa, tentando não pensar muito nos pormenores, agora que sabia o que devia fazer. Creio que precisamos de uma pá e... e de um saco e de uma faca afiada... isso já eu tenho. É melhor darmos uma olhadela no entulho das ruínas, a ver se escapou alguma coisa ao incêndio.

A jovem andou pelo terreno vazio como uma sombra e Guard sempre com ela como o último e mais leal dos companheiros. Passando silenciosamente das rochas para a praia, de uma pedra alta para a desoladora arrecadação, percorreu o espaço de sul para leste enquanto o Sol se deslocava por um pálido céu de Primavera. Havia carneiros recém-nascidos nos campos, saltando e brincando na sua pelagem alva de neve, como se não houvesse sofrimento neste mundo. Nessa descansou um pouco à sombra de uma pedra alta junto do lago, reconhecendo que a sua forma imensa vagueara um pouco desde que ali estivera pela última vez, num Verão longínquo e num mundo distante. Era sabido que as pedras se moviam, se bem que nunca ninguém as tivesse visto fazerem-no. Em busca de água, em busca de calor, em busca de sabedoria: quem saberia o que lhes iria nos corações, salvo a própria terra? Aquela aproximara-se do lago e agora abrigava o descanso de Nessa. A jovem sentiu o seu calor nas costas, viu, sem necessitar de olhar, o complexo padrão de líquen que se incrustava na sua superfície rugosa, dourado, vermelho, cinzento, amarelo-esverdeado, um pequeno mundo, subtil e misterioso. Nessa encostou-se ao monólito de olhos fechados e soube instantaneamente que havia uma imagem que não conseguiria, nunca, pôr de lado, uma perda que permanecia nos seus pensamentos. Dourado e vermelho, o Sol cintilava na franja do seu elmo como se se espelhasse numa cascata; prateada e dourada, a luz espelhava-se no seu machado, que brilhava como um farol. Ele caíra. As botas tinham-lhe passado por cima. Dourado e vermelho, o seu cabelo ensopado em sangue encaracolava-se gentilmente em redor das suas feições pálidas e solenes; o azul cruzando-se com o azul, os seus olhos vazios olhando para o céu vazio, procurando respostas onde não as havia. Fora ela que o enviara para a morte. Sacrificara-o para nada. Desperdiçara o que sabia ser de grande valor. Era uma perda menor face à chacina dos Folk, coisa pequena comparada com a morte do seu Rei. A sacerdotisa sabia-o. Mas a mulher sentia a ferida no coração, era o seu ponto fraco, o seu desejo, a sua condição de ser humano. Ele pertencia-lhe e ela tinha-o matado.Vem disse Nessa para Guard, e ele levantou-se obedientemente do local onde estava deitado, arfando, na erva junto da pedra antiga. O tempo vai passando. Temos de encontrar o caminho antes do anoitecer. A jovem pôs o saco ao ombro, pegou na pá e começou a andar. O cão seguiu-a de perto com ligeireza; deixou de olhar para as ovelhas, para os pássaros e para os tentadores restolhares dos arbustos, partiram os dois juntos, num único passo e com um único objectivo.Andaram durante muito tempo e acabaram por se encontrar com pessoas, com gente de Somerled, soldados, sentinelas e Nessa soube que não poderia ir aonde pretendia sem passar por eles. Na base da encosta a jovem podia ver a colónia. Havia vários edifícios, longos e baixos, feitos de pedras trabalhadas e com telhados de colmo sobre armações de madeira, dádivas do mar. Homens e mulheres andavam de um lado para o outro e ela viu uma criança a correr, perseguindo uma bola. Um cão ladrou e Guard retesou-se, os pêlos do pescoço eriçados e os dentes arreganhados. Nessa acalmou-o com um olhar e um gesto. Imóvel junto da parede de um anexo, ela olhou para a base da encosta em busca de pistas. Os do seu povo estariam ali prisioneiros? A criança que vira era atarracada, tinha cabelos claros e faces rosadas: era um deles. Onde estavam as mulheres jovens dos Folk, as crianças, as avós? Talvez já fosse demasiado tarde para elas.Uns guardas atravessaram o portão de entrada, um grupo com túnicas atadas com cintos de cabedal, capas curtas de lã, elmos de metal parecidos com gorros nas cabeças e espadas curtas à cintura. Caminharam pelo carreiro na sua direcção. Nessa encolheu-se na sombra do velho edifício, o seu coração batendo apressadamente em sinal de alarme. Guard rosnou; ela moveu a mão, fazendo-o calar. Os homens aproximaram-se, ela podia ouvi-los falando uns com os outros, podia ouvi-los rirem-se acerca do que se passara em Dorso de Baleia, como tudo acontecera com tanta facilidade. O pânico deu lugar à fúria; algo no seu interior desesperava por avançar e enfrentá-los, gritar o seu ultraje, acordar alguma vergonha nos seus olhos complacentes. Mas manteve-se imóvel, como se fizesse parte da própria parede de pedra, como se pudesse fundir-se com a sua superfície rugosa, transformar-se no musgo e plantas que tinham ali encontrado o seu lar. Guard esforçava-se por suster o seu instinto de predador. Nessa manteve a mão no pescoço do cão e afagou-o gentilmente, tranquilizando-o apesar do turbilhão dos seus sentimentos. Os homens passaram a menos de cinco passos dela, sem a verem. As suas vozes diminuíram na distância, brincando, alegres, inconscientes. Subiram a encosta e desapareceram de vista.Vem murmurou Nessa e os dois recomeçaram a andar. De uma árvore solitária para uma pedra solitária, de um pequeno buraco para um aprisco abandonado, de um muro arruinado para um maciço esfarrapado de ervas, passaram para a parte sul da colónia e antes de o Sol se pôr atingiram uma colina suave por entre um terreno de pastagem, um lugar de imensa tranquilidade, cuja paz era apenas quebrada pelo trinado dos pássaros, pelas ovelhas chamando os seus cordeiros, pelo restolhar do vento primaveril. No topo da colina fora erguido um dólmen; a erva já trepava pela sua superfície, onde a terra cobrira as pedras que formavam a sua estrutura. Pequenas flores viam-se aqui e ali, amarelas, púrpuras e brancas, abrigando delicadamente a sepultura de um homem bom. A vista para oeste era grande. Daquele lugar de repouso, o grande sonhador podia ver até ao fim do mundo. Nessa ouvira dizer que fora a mulher de Ulf que escolhera o local. Se assim fora, Margaret conhecera bem o marido.

Nessa esperou até escurecer e bebeu a custo um pouco de água e uma côdea de pão. Quando os coelhos saíram das suas tocas para pastar na escuridão, Guard desapareceu por algum tempo e regressou lambendo os beiços. Precisariam ambos de forças, Guard para se manter alerta e Nessa para escavar.

Ao longo dos anos de tutela de Rona, enquanto passava da infância à puberdade, aprendera muitos rituais. Havia grandes cerimónias para as ocasiões em que as grandes estações do ano mudavam, aquando da passagem da época da luz para a época das trevas e vice-versa. E havia aquelas que celebravam a viagem de um homem ou de uma mulher pelo mundo, o nascimento, o casamento e a morte. Havia ritos para honrar os poderes que sustinham a vida, os elementos, os antepassados, a eterna essência da natureza. Havia orações para a caça, para os barcos de pesca e havia ritos mais secretos e fechados, como o do Chamamento de uma voz antiga, o apelo a alguém que só podia ser acordado em tempos extremamente terríveis. Fora a Mãe Terra, profunda, no núcleo da qual batia o coração do mundo, mais velha do que a própria humanidade, mais misteriosa do que as premonições de um sonho profético, que lhe falara. Fora ela que enviara Nessa àquele lugar de morte. Mas Rona não lhe tinha ensinado um ritual para o que tinha de fazer agora. Nessa tinha de arrancar as palavras à Lua e às trevas, à terra e às cinzas da memória, ao seu coração despedaçado e saber que a verdade é a faca mais acerada de todas. Em voz baixa, na escuridão, com pequenos passos hesitantes sobre a erva, teria de dizer as palavras e andar em redor do círculo para que aquele fosse um acto poderoso.

Com a força das próprias mãos teria de arrancar a morte à terra e conseguir uma voz nova, uma canção nova, que não pudesse ser ignorada. Estava escuro e frio, estava cansada e o seu coração doía-lhe para além do que seria imaginável. Mas era a sacerdotisa dos Folk, a última de linhagem real das Ilhas Brilhantes. Seria forte.

Nessa libertou os cabelos, que se espalharam pelos ombros e pelas costas. Da pequena trouxa tirou o minúsculo frasco que continha o barro cerimonial, azul como o mar. Deitou um pouco do pó na palma da mão, humedeceu-o com orvalho da erva, fez a espiral na testa e as pegadas espirituais do mocho e da lontra nas faces. Desenhou a linha dos ossos nas mãos. Não precisava de água límpida ou de metal brilhante; aquela era uma prática aperfeiçoada ao longo de estações de disciplina. O olho do espírito não precisa de espelho; a mão da sacerdotisa escreve a verdade, mesmo na escuridão. A sua faca ritual era de bronze, o punho de osso tinha gravados animais de muitas espécies: o mocho e a lontra, seus símbolos pessoais, o cão, a lebre e a serpente do mar. Fora um presente de Rona aquando da sua primeira menstruação, quando se tornara mulher: uma lembrança, talvez, do seu verdadeiro destino. A ponta da faca traçou o círculo widdershins, porque aquele era um ritual obscuro. Sob uma lua em quarto-crescente, Nessa saudou os espíritos dos quatro pontos cardeais e permaneceu por uns momentos em silenciosa meditação, sabendo que aquela noite era um ponto de viragem, não só para si própria, mas também para as ilhas e para todos os que nela habitavam. De um lado o ódio, o sangue e o sacrifício: do outro a luta, a cura, a esperança.

O círculo manter-se-á murmurou Nessa até que o meu trabalho esteja feito. Mãe, olha por esta tarefa sombria; quero que saibas que não venho profanar este lugar, que não venho devastar o que deve permanecer em repouso. Venho, antes, procurar a ajuda deste homem chamado Ulf, assassinado intempestivamente, um homem que desejava a paz e a compreensão para estas ilhas, mas que apenas trouxe doença, morticínio e caos. Ele deve ceder-me a sua voz para que as coisas sejam colocadas nos seus devidos lugares. Aquilo que tiro daqui esta noite, tiro com mãos respeitosas, conhecendo e aceitando o poder da senhora das trevas, aquela a quem todos nos juntamos no fim. Que devolverei com solene cerimónia aquilo que vou tirar, após

Nota: Círculo mágico especial o meu objectivo conseguido. Juro-o como tua sacerdotisa. Já morreu demasiada gente, já houve demasiado sofrimento. Que não haja mais.A Lua brilhava, prateada, fria, imparcial. As estrelas ficaram mais brilhantes, um grande arco de jóias sobre um manto escuro como o olho de uma foca, escuro como uma alga marinha no Inverno, escuro como as sombras de uma gruta profunda. Nessa pegou na pá.O dólmen estava selado; não havia uma entrada. Ocorreu-lhe à medida que a noite avançava, o corpo se lhe enchia de suor e a dor se lhe alojava nas costas e nos braços que uma história era uma coisa, enquanto a realidade era outra. As velhas histórias não falavam na viabilidade de uma tarefa como aquela, nas dores nas costas, na incrível lentidão do processo, no medo crescente enquanto o tempo passava e a quantidade de solo retirado era tão pequena, para além das grandes lajes de pedra. A jovem começou pelo topo, na esperança de que aquele dólmen tivesse sido construído à maneira antiga, as lajes colocadas de modo a formar uma abóbada interior. Esperava que não tivessem coberto o cadáver de terra. Se tivessem deixado algum espaço, conseguiria chegar até ele com mais facilidade. Talvez tivesse tempo até a manhã chegar; tinha de ter.Estava tudo muito silencioso. Guard rosnou suavemente uma vez ou duas para um pequeno animal qualquer que ouviu restolhar na erva. Um mocho piou uma vez ou duas, voando por cima na sua jornada nocturna de caça. Nessa ouvia a sua própria respiração, conseguia cheirar o seu próprio medo. Uma pedra; outra. Não as atiraria fora, seria ofender a terra, perturbar ainda mais a santidade do local. Tinha de as pôr de lado à vez, prontas para serem recolocadas assim que a tarefa terminasse. Mas eram pesadas, cada uma mais pesada do que a anterior, lajes monumentais, que pareciam vergar ao peso de uma dor antiga. As lágrimas caíam-lhe pelas faces; a jovem continuou a trabalhar sem as limpar. Por todos os poderes, estava tão cansada! Como seria agradável estender-se e sentir o braço do guerreiro em redor de si, quente e forte, e a sua respiração junto do seu cabelo. Não gostava nada, naquele momento, de ser sacerdotisa.Nessa descansou uns momentos, acocorando-se, imóvel, como se fosse mais uma pedra, uma pedra insignificante naquele lugar vasto e tranquilo, sob o céu pejado de estrelas. Era tão tarde: e se não conseguisse terminar a tarefa antes do amanhecer? E se ainda ali estivesse de manhã, o dólmen descoberto, as suas mãos cheias de terra, as ferramentas a seu lado? Que aconteceria? Não podia deixar o trabalho a meio e procurar um local escondido, porque os homens de Somerled passariam por ali e veriam o que ela tinha feito; um sacrilégio daqueles significava a sua morte. Além disso, o trabalho daquela noite era apenas uma parte da tarefa. A jovem despertou; atirou-se de novo ao trabalho, puxando uma laje para libertar outra pedra, escavando a terra que fora colocada para as ancorar umas às outras. Tentou com todas as suas forças fechando os olhos com força. Por favor, por favor. Aquela não queria mexer-se; lutava contra as suas mãos cada vez mais fracas. Por favor. Ajuda-me.Guard rosnou de novo, um som terrível, que significava ao mesmo tempo desafio e terror. Nessa abriu os olhos. Luzes, muitas luzes nos campos à sua volta, aproximando-se. O seu coração parou. Os homens de Somerled. Era o fim, então. Mas não se ouvia qualquer som, salvo uma espécie de sussurro, como uma linguagem para além do ouvido humano, e as luzes não eram de archotes, porque eram de um azul misterioso, eram as luzes das histórias das avós, eram as luzes das histórias dos antigos pastores. Oscilando, entrelaçando-se, progrediam na direcção do dólmen onde estava Nessa, que sabia que o círculo a protegia, que os sinais no seu rosto a protegiam, mas que, mesmo assim, tremia de medo. Guard aproximara-se da base do dólmen, parara de rosnar e colocara-se sobre a trouxa de Nessa contendo os seus poucos pertences. A Lua reflectiu o seu olhar selvagem e os seus dentes arreganhados, mas o animal manteve-se firme, fiel ao nome que ela lhe dera.Eles atravessaram o círculo que ela fizera e fizeram outro em redor do dólmen. A jovem via-os mal devido àquelas luzes azuis que estavam sempre a mudar de posição, mas aqui e ali conseguia distinguir umas sombras, uns olhos escuros, opacos, uns corpos acocorados marcados com cicatrizes rituais, rostos que poderiam, ou não, estar mascarados, porque era impossível dizer se eram homens ou animais. Nessa não tinha dúvidas de pertenciam à Tribo Perdida das histórias. Muita gente tinha visto aquelas luzes à distância, reunidas em redor de um qualquer dólmen antigo, ou desenhando um padrão no grande círculo de pedras no sul. Uma ou duas pessoas tinham jurado que as tinham visto, mas poucos tinham acreditado nelas. Todos os camponeses tinham ficado sem algum cereal, ou sem uma peça de roupa ou duas, tiradas da corda onde estavam penduradas a secar; uma vez, diziam as pessoas, tinham tirado um bebé do berço e tinham-no substituído por uma cebola com duas pedras no lugar dos olhos. Todos os camponeses deixavam no exterior, em noites de luar, malgas de leite e pequenos bolos por ocasião das colheitas.Eles subiram o dólmen na direcção dela. Nessa tremia de medo. Que queriam eles? Quem os mandara? Ela não se podia esconder, mas também não fugiria. Em vez disso, agarrou-se de novo à pedra, fazendo uma careta de esforço. O suor fazia-lhe escorregar os dedos e as dores nos ombros eram insuportáveis. Agarrou-se de novo à pedra e então outras mãos juntaram-se às suas, mãos tão rugosas e nodosas como raízes mortas, um par, dois pares, três, todas fizeram força juntas e a grande pedra libertou-se da terra com uma torção e um som áspero, parecido com o estertor da morte. Do interior subiu um cheiro desagradável; Nessa recuou com as mãos em frente da boca e do nariz. O movimento, à sua volta, aumentou, as pedras moviam-se, erguiam-se, eram passadas de mão em mão e eram colocadas no chão, em baixo, mãos longas escavavam a terra, as luzes movendo-se num silêncio total, salvo o sussurro constante. O buraco alargou e o cheiro dispersou-se no ar nocturno. Guard ganiu e olhou para ela ansiosamente.O dólmen estava aberto. As formas escuras introduziram-se nele e as luzes azuis iluminaram o interior. Mãos que eram apenas ossos esbranquiçados estenderam-se na direcção de Nessa. Nesse momento, a jovem lembrou-se que tinha pedido ajuda; fora ela que os chamara. Deixou-se cair até que as mãos estendidas a apanharam e a pousaram no fundo, como se não pesasse mais do que uma pena. Ficou em frente da laje onde Ulf, o Sonhador, jazia no seu leito de urze, coberto com a sua capa vermelha, e a Tribo Perdida colocou-se em círculo à sua volta, esperando.Erguer as pedras e desobstruir a entrada exigira força, mas ela conseguira com uma pequena ajuda. O que ia fazer a seguir exigia uma força completamente diferente. Todos os seus instintos recusavam a tarefa: o seu coração, aos pulos, dizia-lhe que o medo que sentira antes não era nada comparado com o que sentia agora. Nessa ergueu uma ponta da capa com dois dedos e puxou-a para trás.O tempo e os pequenos animais que viviam na terra tinham provocado mudanças. O apodrecimento desfigurara a nobre figura daquele chefe de guerra, encolhera-lhe e desfizera-lhe o corpo, tornara-o lívido, cinzento e escuro como a noite. O crânio estava inteiro apesar da substância que o cobria, mas o corpo estava a desfazer-se sob o belo sudário constituído pela túnica debruada, a capa de lã, o cinto largo adornado com motivos de prata e as belas botas macias. Ulf tinha a seu lado as suas armas, um elmo de viseira dourada, uma longa espada, um punhal cujo cabo tinha ondas e sóis desenhados, como que demonstrando a vontade de viajar que fora sempre tão forte naquele chefe de guerra vinda das terras geladas. O seu cabelo continuava longo e escuro, caindo-lhe sobre os ombros; a fita de pano bordado, que o mantivera seguro, continuava em redor do crânio, logo acima dos buracos vazios onde, em vida, brilhavam uns olhos sonhadores.O cabelo: essa era a parte mais fácil. Começaria pelo cabelo. A faca de Nessa aproximou-se e cortou; as mechas suaves caíram-lhe na mão, um sussurro apenas na sua palma cheia de bolhas. Outras mãos estenderam-se, cor de cinza, e tiraram-lhas. A jovem passou para o outro lado do cadáver, para junto do seu braço direito. Todos os passos a dar estavam definidos na sua mente. Nessa ergueu a faca, segurou-a com força e começou a cortar.O céu começava a clarear quando ela terminou. Os da Tribo Perdida transportaram para fora da câmara o fardo dificilmente conseguido; ergueram Nessa para o exterior, pousaram-na no chão junto de Guarde entregaram-lhe os ossos, passados de mão em mão, que a jovem guardou, em segurança, no saco que trouxera. Nessa sentia-se estranha, como se não estivesse ali, como se fosse outra rapariga a fazer aquelas coisas terríveis e a movimentar-se por entre aqueles seres lendários e a verdadeira Nessa estivesse em casa, em Dorso de Baleia, a dormir aconchegada junto das irmãs, numa época em que o mundo era normal, numa época antes da chegada de uns gigantes louros que tinham atravessado o mar para pisar aquelas costas tranquilas com as suas pesadas botas. Mas era ela; podia sentir as dores nas costas, podia ver o círculo de figuras irreais na escuridão e ouvir os seus murmúrios. Oh, estava cansada, tão cansada, e aquilo ainda não tinha terminado.Cobrir tudo conseguiu ela dizer. Não podemos deixá-lo assim. As pedras, a abertura...Já atrás de si, no dólmen, se ouviam sons fracos de actividade, no entanto os estranhos companheiros do seu esforço à luz do luar continuavam ali bem perto dela, as luzes azuis desvanecendo-se lentamente à medida que a madrugada se aproximava. Ela aventurou um olhar por cima do ombro e pestanejou, espantada. A Tribo Perdida, pelos vistos, não era a única força chamada pelas ilhas para ajudar a sua sacerdotisa naquela noite. Umas pequenas criaturas, vindas das profundezas, arrastavam-se, umas em duas pernas, outras em quatro, umas cobertas de pêlos, outras de penas e outras ainda com muitas pernas e carapaças brilhantes como jóias e enquanto Nessa olhava para aquilo tudo, o dólmen foi reconstruído, pedra por pedra, seixo por seixo, até que a sua superfície ficou macia e intacta à luz da madrugada. A jovem não vira as grandes pedras a moverem-se, mas as pessoas sabiam que aquele era um lugar onde o impossível acontecia todos os dias; e a mulher que tinha sido uma foca, e o bebé-cebola, e o monólito com uma sede terrível pela água do lago? Nessa olhou para longe. Fosse o que fosse que movera aquele peso enorme, pensou, preferia não o ver. No entanto, podia ver fetos restolhando no topo do dólmen, plantas rasteiras aproximando-se e ligando-se umas às outras para cobrir a terra que ela descobrira, podia ver um manto de suaves Primaveras trepando para abrigar de novo o descanso de Ulf até que ela regressasse para lhe devolver o que lhe tirara.Tinha de ir; tinha de encontrar um lugar para se esconder o mais longe possível dali, antes que o Sol brilhasse no céu primaveril. Os seus ajudantes pareciam esperar algo; talvez esperassem alguma recompensa. Nessa pegou de novo na sua faca e deu a volta ao círculo no sentido do Sol, desfazendo o que fizera. Dirigiu algumas palavras ao guardião de cada ponto cardeal, demorando um pouco mais de tempo no norte, casa da Mãe Terra, porque sabia que fora ela que lhe dera coragem e lhe tornara a mão firme para aquela tarefa nocturna. Pronto: o círculo fora desfeito, a manhã estava a chegar, o céu mostrava-se cor-de-rosa a leste. No entanto, continuaram à espera, os olhos escuros e solenes, os corpos vestidos de farrapos cujos buracos deixavam ver antigos e profundos cortes na pele, padrões de linhas nos peitos, nas barrigas, nas costas ou nas pernas. Alguns usavam talismãs feitos de ossos de baleia atravessados nas orelhas ou nos narizes e um tinha, até, um colar feito de pequenos crânios.Ob... obrigada gaguejou Nessa, pouco certa de que eles compreendessem. Estou-vos reconhecida por terdes vindo ajudar-me. Sem a vossa ajuda nunca teria conseguido levar a cabo a minha tarefa.Eles permaneceram mudos e quedos.

Gostava de vos dar qualquer coisa, um testemunho da minha gratidão disse ela mas saí à pressa; não tenho quase nada.Então, eles olharam para Guard; este lambeu os beiços. O cão rosnou, avisando-o.

Tenho alguma comida. Pão, algum queijo duro e alguma fruta seca. Podeis ficar com tudo. Nessa inclinou-se para o saco, perguntando a si própria como se arranjaria sem aquelas magras provisões.Um dedo ossudo tocou-lhe no ombro. Nessa olhou para cima. O seu proprietário fez um movimento na direcção do seu rosto e depois na do seu, tocando nos próprios lábios. Ouviu-se um sussurro em redor do círculo; as figuras aproximaram-se.Um beijo? Nessa pôs-se de pé e pestanejou, espantada. Só quereis isso? Dou-vo-lo de boa vontade, mas depois tenho de ir. Lembrar-me-ei de cada um de vós e farei os possíveis para que as vossas moradas secretas continuem sãs e salvas. A nossa espécie e a vossa, pertencemos todos a estas ilhas, se bem que os nossos pés raramente trilhem os mesmos caminhos.Nessa percorreu o círculo, inclinando-se aqui e pondo-se em bicos dos pés ali. Cada um deles levou um beijo; todos sentiram os seus lábios na face ou na boca, todos sentiram o calor das suas mãos e um ou dois foram suficientemente arrojados para lhe passar um braço pelos ombros, para lhe tocar nos cabelos com um dedo rude, ou para lhe rodear a cintura estreita. Quando terminou, abriu a boca para lhes agradecer de novo e viu que os sorrisos tinham aumentado nos seus rostos ferozes, mas antes que tivesse tempo de pronunciar qualquer palavra, as luzes desvaneceram-se e, como um sussurro tocando em erva orvalhada, desapareceram. Por trás de si, o dolmen restolhava de vida, enquanto miríades de pequenas criaturas faziam o seu trabalho mágico de reconstrução.Vamos, Guard disse Nessa, colocando ao ombro o pequeno saco e pegando no outro com a sua estranha carga. Teria de deixar a pá algures, no campo; retardar-lhe-ia a progressão, mas não podia deixá-la ali. Temos de arranjar abrigo antes de escurecer de novo. Vamos, amigo.Mas não andaram muito, porque em breve Nessa viu homens, homens de Somerled, e era evidente, espreitando do local onde se escondera, que andavam à procura de alguém. Talvez tivessem sabido da sua fuga ao descobrirem os restos do barco de Kinart, ou as suas pegadas na praia, ou outro vestígio qualquer. Talvez Somerled pressentisse o seu propósito e procurasse silenciar a voz a que ela iria apelar. A jovem podia ver pequenos grupos de guerreiros vasculhando os campos, entrando em cada cabana, em cada celeiro, procurando em cada acidente de terreno, em cada fenda, em cada gruta, talvez com ordens de não regressarem sem encontrarem o que procuravam. Nessa não viu ninguém do seu povo enquanto prosseguia, mas também não os procuraria, porque pedir abrigo entre os sobreviventes ainda vivos nalguma casa ou aldeia isolada era chamar a atenção de Somerled. Teria de levar a cabo a sua tarefa sozinha.Sentia-se cansada; tão cansada que as suas pernas mal conseguiam avançar e os seus olhos mal se tinham abertos para verem o caminho. Teria de parar. Teria de descansar e prosseguir ao anoitecer, quando poderia caminhar mais facilmente sem ser detectada. Viu um grupo de cinco guerreiros inspeccionarem um celeiro agora quase vazio da sua colheita de Verão. O melhor gado teria saído há pouco das instalações de Inverno e estaria agora a pastar a erva fresca dos prados; era estranho recordar aquilo, mas, não fora Margaret e Ulf e a colheita armazenada ali talvez nunca tivesse alimentado o gado durante a estação fria. Quando a busca terminou e os homens prosseguiram, Nessa entrou no celeiro com Guard a seu lado e arrastou-se para um canto escuro, no meio da palha restante. A jovem deitou-se com a trouxa sob a cabeça e o braço em redor do outro saco numa atitude protectora. Estava demasiado cansada para comer, para beber ou para fazer fosse o que fosse. Guard apanhou um animal pequeno no canto mais longínquo e comeu-o avidamente. Nessa pensou em Margaret. Uma boa rapariga, forte: era uma pena não ter conseguido influenciar Somerled. Ele não ouvira, assim como não ouvira Eyvind. Tinha desprezado até os conselhos dos que o amavam. Tinha escolhido o seu próprio caminho e agora parecia que queria escolher os caminhos e as vidas de todos. Não podia permitir que isso acontecesse. Tinha de detê-lo. Quando escurecesse iria para sul, até ao grande círculo, e em seguida de novo para a costa. A Tribo Perdida ajudara-a. Agora, teria de pedir ajuda a outro ponto cardeal, se bem que tremesse só de pensar nisso. Tinha de continuar... tinha de...Nessa dormiu. Guard ficou de guarda à porta, de olhos meio abertos, pronto para o que desse e viesse. O Sol passou por cima, a brisa trouxe um aguaceiro e depois outro. Na base da colina, os homens armados passavam e voltavam a passar, procurando. A luz do Sol reflectia-se nas suas lanças, nos seus elmos e nas bossas polidas dos seus escudos redondos.Nada disse um guerreiro para outro, descontraindo os músculos. Não sei para onde ele fugiu, mas para aqui não foi.O que é que fazemos? perguntou o segundo. Regressamos de mãos vazias? Quem é que vai dizer a Somerled que procuramos desde a madrugada até ao meio-dia e não encontrámos nada? Eu não.Podíamos tentar para norte sugeriu um outro.Asneira grunhiu o primeiro. O homem é um Pele-de-Lobo e os Pele-de-Lobo são animais selvagens. Deslizam pelos campos como os caçadores de quem receberam o nome. Como sombras. Como fantasmas.Tretas disse o segundo. Qualquer homem pode ser apanhado, desde que seja de carne e osso. Somerled tem razão. Eyvind transformou-se num traidor. Os traidores têm de ser apanhados e punidos. Nenhum chefe de guerra digno desse nome deixa que um homem se vire contra os seus e se safe, quer seja Pele-de-Lobo, quer não.Nunca o apanharemos, a não ser que ele queira ser apanhado resmungou o primeiro homem. Se queres saber, Somerled é um louco.O quê? As quatro vozes falaram ao mesmo tempo. Os companheiros viraram-se para ele de olhos semicerrados e bocas severas. Todos levaram as mãos às armas.Nada. Vamos lá. Vamos para norte.Avançaram pelos campos em silêncio, não deixando uma cabana arruinada, uma gruta, um redil, um maciço rochoso por investigar. No celeiro, pequenos animais agitaram-se nas fendas das paredes e as orelhas de Guard arrebitaram-se. Nessa dormia um sono de sonhos obscuros.

 

Com a noite veio um vento frio que lhe entorpeceu as orelhas, lhe fez doer a cabeça e o fez tremer até aos ossos. Tinha roubado uma faca e uma espada, um par de botas, um pedaço de carne que já comera e enroscara-se, imóvel, descansando um pouco da sua jornada para sul por trás de uma parede de pedra, abrigado do vento. Sem uma fogueira seria uma noite fria e escura. Mas uma fogueira atrairia os seus perseguidores; na escuridão ficava a salvo de Somerled. Um lobo encontra o seu caminho pela Lua e pelas estrelas, pelo odor do seu inimigo e pelos subtis movimentos das folhas e dos gravetos. Assim fazia Eyvind; mas, por agora, o seu corpo dorido pedia repouso e a sua cabeça latejante e olhos inchados exigiam dormir. Ah, dormir: ansiava por isso, mas temia fazê-lo. Dormir significava um emaranhado de sonhos e todos eles eram sobre ela. Os maus: Nessa assustada, Nessa prisioneira, Nessa a arder; acordava desses sonhos banhado em suor, o coração aos pulos e os olhos cheios de lágrimas. Os bons: a sua voz suave, o seu sorriso esquivo, o seu cheiro a Primavera; as palavras de amor que nunca pronunciara, as pequenas carícias que nunca fizera. Caminhava pela praia com ela, no Verão; sentara-se em silêncio com ela no alto da falésia, na Primavera. Acordar daqueles sonhos ainda era pior e ele não sabia o que era mais forte, se a ânsia de a ver, se o horror de saber, a cada novo sonho, que lha tinham tirado. Amaldiçoava os deuses por lhe enviarem aqueles sonhos, no entanto não podia passar sem eles.

Não podia continuar; tinha de encontrar um esconderijo para tentar descansar, pelo menos por algum tempo. Teria de continuar de madrugada e, com alguma sorte, chegaria a Hafnarvagr no dia seguinte, a tempo de fazer chegar a mensagem a Eirik, de algum modo, e arranjar ajuda. Vira durante todo o dia enxames de homens armados à sua procura pelos campos; ir directamente ter com o irmão era impossível. Teria de agir sub-repticiamente e com toda a subtileza que um Pele-de-Lobo, na opinião de Somerled, não possuía. Talvez devesse pensar como Somerled, inteligentemente, astuciosamente. Somerled sempre soubera como apresentar um argumento legal, numa sequência lógica, claramente e com graça; quando desafiado pela oposição, Somerled arranjava sempre um trocadilho de palavras, ou atirava uma farpa ao seu adversário de modo a desenredar-se. Eyvind nunca o vira perder. Muito bem, teria de fazer algo parecido. Sentiu um arrepio, porque sabia que era quase impossível. Sem ajuda, parecia-lhe uma tarefa para além das suas possibilidades. E procurar a ajuda do irmão, de Thord ou de outros, como o irmão Tadhg, ou até Margaret, seria arriscar as suas vidas. E se acontecesse alguma coisa a Eirik e o seu irmão não pudesse regressar a Rogalan para junto da sua família? Como poderia arcar com esse peso na consciência?Pensando naquilo e tentando ignorar o frio crescente, Eyvind marchou desesperadamente na escuridão até que chegou a um local que reconheceu. Afastara-se demasiado para leste e estava perto do grande círculo de pedras, erguido junto a um estreito desfiladeiro e numa elevação de terreno. Já ali estivera, nos tempos em que qualquer homem podia atravessar livremente aquelas terras, sem receio de uma súbita emboscada. Mas nenhum homem ia ali de noite, a não ser em caso de necessidade. As pedras estavam prenhes de poderes antigos; todos sentiam a lenta dança dos espíritos em redor e entre aqueles gigantes solenes. Pontuando a paisagem, junto do grande círculo, havia montículos de terra, alguns selados, outros com pequenas entradas que iam dar a uma escuridão total. Só um louco procuraria abrigo num local daqueles depois do pôr do Sol; todos tinham ouvido histórias contadas pelos locais, de como uma noite no seu interior embranquecia os cabelos, tornando-os alvos como a neve e deixando um homem a berrar loucuras para o resto da vida. Em poucas palavras, era evidente que aqueles locais antigos eram proibidos.Eyvind continuou a caminhar até que viu vagamente a silhueta de um. Pensou discernir uma abertura, se bem que só se vissem as sombras cinzentas do anoitecer. A Lua ainda estava baixa, estendendo as longas sombras das pedras através da encosta vestida de urze até tocarem na água do lago com um débil brilho prateado. Era evidente que não podia continuar; reconheceu o gradual entorpecimento das pernas e soube que lhe desobedeceriam se lhes pedisse para continuarem. Dobrou-se em dois e entrou nas profundezas secretas do dólmen. Percorreu a câmara, tocando nas pedras perfeitamente assentes com os dedos estendidos, avaliando o tamanho e a posição de três pequenos recantos. Não tentou chegar ao fundo destes. Se havia coisas sagradas escondidas lá dentro, não lhe cabia a ele perturbá-las. Eyvind desafivelou a espada roubada; estendeu por terra a sua pele de lobo e sentou-se, encostando-se desastradamente à parede inclinada e olhando para a escuridão. A pele de lobo era tudo o que lhe restava, a única coisa mesmo sua: isso e os pequenos talismãs que Nessa lhe dera. Os seus captores tinham tentado tirar-lhe ambas as coisas com palavras resmungadas acerca de feitiços e feiticeiras. Ele não tinha lutado com eles por causa das sua brilhante espada, ou do seu punhal, nem sequer tinha lutado por Mordedor, por maior que fosse a sua angústia naquele dia de morte e traição. Mas lutara com eles por causa daquela pele, daquela fita, daquelas coisas pequenas que não pareciam ter qualquer significado, mas que continham o mundo no espaço da palma da mão de uma rapariga.Eyvind não queria sonhar. Ficou sentado a pensar, retardando o momento em que as suas pálpebras cansadas desceriam sobre os seus olhos e as visões temidas e sempre desejadas o assaltariam. Sentia o calor da pele de lobo; acolheu essa sensação com prazer. Nenhum deles ousara pôr as mãos naquele símbolo de honra, naquele símbolo de poder. Era estranho. De certo modo, já não merecia a pele; por outro lado, nunca fizera parte de si de modo tão verdadeiro. Thor libertara-o. Nunca mais ouviria aquela voz dourada e tornitruante, chamando-o para a batalha, nunca mais sentiria o fluxo arrebatador de raiva que fazia com que um guerreiro avançasse, com uma coragem cega, para fazer a vontade do deus, o chamamento que fazia de um homem uma arma irracional de puro poder inexpugnável. Invulnerável, era o que diziam: um Pele-de-Lobo não podia ser detido com lanças, machados ou sabres. O silêncio do Pai da Guerra parecera-lhe um golpe mortal; sem a sua voz sentira-se perdido, à deriva, sem forças e sem objectivo. Um Pele-de-Lobo jurava lealdade para toda a vida; quebrar esse voto era uma espécie de morte. Mas, então, também fora humano, pleno de dúvidas e aspirações, de amor e tristeza, tal como naquele momento. O grito de Thor mantivera-o surdo a esses sentimentos, o frenesim sangrento da batalha cegara-o. Agora compreendia o que significava ser um homem: umas vezes fraco, outras vezes forte, por vezes tolo, por vezes sábio, saber amar e ter de matar. E aprendera que havia outros caminhos, outros deuses que chamavam de diversas partes do mundo, no regaço das pequenas ondas da praia, no sopro do vento de oeste. Aprendera que havia outros homens de coragem. Sabia, com toda a certeza, que o seu futuro estava naquelas ilhas. Só tinha de o encontrar.Os seus dedos percorreram a pele de lobo, sentindo a sua suavidade, a sua força, a sua beleza e poder. O jovem pensou ver os olhos do lobo brilhando na escuridão, mas já não amarelos e ferozes, antes amarelos como um céu de Primavera, cheios de coragem e sofrimento. Eram os seus próprios olhos. Era a sua própria pele. Precisara de tanto tempo, de tantas estações, para aprender aquela lição. Acreditara ser corajoso, não sentir medo. Só agora, quando não parecia haver mais nada senão escuridão, é que compreendia o que era ser um lobo.Sem se dar conta, os seus olhos fecharam-se; a escuridão ficou ainda mais escura. Desta vez, o sonho surgiu de imediato, um restolhar suave vindo da entrada, como que um som gentil de passos, uma luz dourada tremeluzente entrando pela câmara. Ela estava ali, de pé, hesitante, à entrada, vestida com uma túnica azul, uma saia escura, os cabelos suaves soltos por cima dos ombros, um pequeno saco ao ombro e um outro debaixo do braço. Na mão livre transportava uma pequena lâmpada; o seu brilho iluminava-lhe a pele pálida, os olhos profundamente sombreados, os lábios entreabertos devido ao súbito choque de o ver ali. A sua mão começou a tremer; a lâmpada oscilou perigosamente, derramando óleo, ameaçando cair. Ele ouviu-lhe a voz, um sussurro de espanto, de descrença.Eyvi?Deuses, que crueldade, o pesadelo copiar assim uma imagem que podia ser real. Como conseguiria suportar aquilo? O desejo de se levantar, dar dois passos e abraçar aquele fantasma adorável, aquele sedutor truque de luz e memória era insuportável, se bem que soubesse que, no momento em que estendesse os braços ela desvanecer-se-ia e ele ficaria apenas com a noite e a solidão. Deixou-se ficar quieto. Mal se atrevia a respirar com medo que ela desaparecesse.Eyvi? disse a visão de novo e uma forma peluda cinzenta surgiu de detrás da sua saia e trotou na direcção do guerreiro, a cauda abanando com deleite, a língua lambendo-lhe o rosto numa exuberante demonstração de reconhecimento. Eyvind pôs-se lentamente de pé, os olhos fixos na figura esbelta. A lâmpada tremeu; ela ia deixá-la cair, apagar-se-ia e a visão desapareceria para sempre.Cuidado disse ele, avançando. Dá cá, que eu pego nela. O jovem estendeu o braço; tirou-lhe cuidadosamente a lâmpada das mãos e virou-se para a colocar em segurança num dos recantos. Um brilho quente espalhou-se pela câmara redonda, imitando o calor que parecia espalhar-se agora, miraculosamente, por todos os cantos do seu coração ferido. No momento em que os seus dedos tocaram os dela, soube que a visão era real.Eyvind virou-se. Não precisava de palavras. Os seus braços rodearam-na e os dela rodearam-no a ele; ficaram assim abraçados durante muito tempo, imóveis, porque a mensagem que passava de um para o outro era profunda e solene e não precisava de outra coisa senão o bater de ambos os corações.No entanto, o cão também queria tomar parte e acabou por fazer notada a sua presença saltando e colocando as patas nos ombros de Nessa, ganindo de excitação. Relutantemente, Eyvind afrouxou o abraço, recuou um passo e ficou a olhar para ela, maravilhado.Pensei que tinhas morrido disse ele, dando-se conta de que a sua voz não estava tão firme como de costume. Pensei que tinhas morrido no salão grande do teu tio. Lamento, Lamento tanto ter falhado. Eu tentei, mas...Shhh disse Nessa, erguendo um dedo e levando-o à boca dele para o silenciar. Estás aqui, nada mais interessa. Como é que estás aqui, Eyvi? Eu vi-te cair, vi o golpe que te fulminou... Pensei que te tinha perdido, naquele dia... A sua voz tremia; ele podia ver, à luz da lâmpada, os sulcos das lágrimas nas suas faces, o profundo cansaço nos seus olhos e na palidez da sua pele.É melhor sentares-te disse Eyvind, conduzindo-a até ao sítio onde a pele de lobo estava estendida no chão. Pareces exausta. Precisas de beber e comer, precisas de descansar. Eu tenho alguma água, mas não tenho comida; parti à pressa e só trouxe o que consegui apanhar antes de fugir. Nessa...Ela sentou-se; olhou para ele e ele ficou instantaneamente sem palavras. Em silêncio, foi buscar a sua vasilha de pele e ofereceu-lha para que bebesse.

Eu tenho alguma comida disse-lhe ela. Pão, queijo, estão no meu saco. Podemos muito bem partilhá-los; quem sabe o que nos espera amanhã? Não, nesse saco não disse ela asperamente quando ele se prestava para abrir o saco maior. O outro, o mais pequeno; esse mesmo.Era como na primeira noite, quando se tinham sentados juntos à luz suave de uma lâmpada, debaixo de terra, e tinham conversado como se não houvesse barreiras entre eles. Eyvind viu esse reconhecimento nos olhos de Nessa. No entanto, era diferente. Naquela primeira vez tinham-se sentado lado-a-lado, de mão na mão, como se fosse muito natural. Agora, depois daquele abraço intenso, um súbito constrangimento apoderou-se deles; sentaram-se perto um do outro, mas cuidadosamente, para não se tocarem. Os seus olhos encontraram-se, afastaram-se, encontraram-se de novo, como se incapazes de negar o que ainda não fora dito. Eyvind abriu a trouxa, Nessa dividiu equitativamente a comida pelos três e fingiram que comeram.Como é que escapaste? aventurou-se ela a perguntar. Não compreendo como pudeste sobreviver a um golpe daqueles.Grim é especialista; ele não queria matar-me. E eu tenho uma cabeça dura e vontade de continuar. Foi isso que me trouxe até aqui. E tu... Somerled disse-me que tu tinhas morrido. Ele disse-me que estavas no salão grande com o Rei Engus. Com o teu tio.Ela pareceu ficar ainda mais pálida, os seus olhos cheios de recordações sinistras.O meu tio já esperava um ataque, se bem que não tão cedo. Ele obrigou-me a prometer que fugiria e me esconderia se isso acontecesse e eu cumpri a promessa. Fugi num barco pequeno, depois de todos se terem ido embora. Somerled matou-os, Eyvi. O meu povo todo, os jovens, todos. Decepou-lhes as cabeças e deixou os corpos em campo aberto, à mercê das gaivotas, à mercê dos vermes; conspurcou Dorso de Baleia para sempre com aquele acto impensável de profanação. Eu andei entre os caídos; vi aquele acto de loucura. Ele deitou abaixo a Pedra do Povo. Creio que um oceano de lágrimas não é suficiente para exprimir tanto sofrimento.Eyvind acenou com a cabeça. Não havia palavras adequadas. O jovem só desejava tomá-la nos braços de novo, oferecer-lhe conforto, mas achou que não conseguiria.

Por que estás aqui? Aonde vais? perguntou-lhe ela subitamente.A Hafnarvagr, procurar o meu irmão. Tenho provas, provas claras da responsabilidade de Somerled na morte do irmão. Fui um tolo. Mostrei-lhas, pensando evitar o ataque a Dorso de Baleia e ele ficou-me com elas. Não me quis ouvir, Nessa. E eu tentei dizer aos outros, tentei detê-los, mas era demasiado tarde. A consciência da batalha cegou-os para a verdade. Mas hei-de provar a verdade, apesar de tudo. Hei-de encontrar testemunhas do que aconteceu naquele dia na Ilha Alta e também do incêndio que matou Hakon e a sua família. O meu irmão pode ajudar-me. Parto ao amanhecer. Os homens de Somerled estão por todo o lado à minha procura. Mas não posso deixar-te aqui sozinha, sem ninguém que te proteja. Para onde podes ir? Onde poderás ficar em segurança? Eu devia ficar a teu lado para te servir de escudo.Ela ficou em silêncio por uns momentos, brincando com a côdea de pão que tinha na mão. Os olhos de Guard seguiam cada um dos seus movimentos.Eu... eu tenho que fazer uma coisa, uma tarefa. É como um pequeno ritual, é a única coisa que posso dizer. Para o fazer, preciso de algum tempo sozinha, num local muito particular. Vou para lá agora. Fica a oeste; vim até aqui apenas para falar com as pedras, contar-lhes a história do meu tio. Eyvi... eu não te posso dizer o que vai acontecer a seguir, é misterioso e secreto. Mas esta tarefa, se conseguir levá-la a cabo, vai ser de grande ajuda. O seu objectivo é confrontar Somerled com a verdade daquilo que tem feito. Assim, a minha demanda é igual à tua.As suas palavras perturbaram-no profundamente.Tu não podes ir sozinha, não é seguro disse ele. Os homens dele estão por todo o lado, deves tê-los visto. Ele ouviu-me acusá-lo abertamente e não vai descansar enquanto não me calar. Quanto a ti, se te vêem a atravessar os campos, prendem-te. Não creio que estejas a par dos verdadeiros propósitos de Somerled: das suas intenções a teu respeito. Ele disse-me que queria fazer de ti sua mulher, que queria o teu sangue real para os seus filhos e é o que fará assim que souber que estás viva. Eu conheço-o.Nessa acenou solenemente com a cabeça.

Eu estou a par disso. Ele visitou o salão grande do meu tio, falou disso abertamente.Quando?Há muito tempo, quando nos ameaçou de aniquilação. A minha mão fazia parte do preço a pagar pelo facto de ele poupar as vidas do nosso povo. Isso deu-me muitas noites sem dormir, Eyvi, noites sem dormir e dias perturbadores.Por que não me disseste? murmurou ele.Eu queria, mas não consegui. Era... era muito difícil, não conseguia encontrar as palavras. Teria sido um preço muito alto; mas eu perguntei a mim própria se devia concordar para salvar os Folk. Agora, que vi como Somerled trabalha, sei que fiz bem em recusar. Se tivesse dito que sim só teria conseguido para o meu povo uma vida de servidão. Além disso, eu... eu sabia que não me podia casar com Somerled. Sabia.Porque és uma sacerdotisa disse Eyvind, achando de novo que a sua voz não lhe obedecia. Eu compreendo.Nessa estava a olhar intensamente para ele.Eu não me podia casar com Somerled disse ela de novo. Percebi que não era possível.Deixa-me ir contigo proferiu ele abruptamente. Deixa-me proteger-te e ajudar-te nessa tarefa, seja ela qual for. Eu... eu pensei que te tinha perdido para sempre. Não te posso perder outra vez.Não sei disse ela lentamente. Esta tarefa é... é algo que devo fazer sozinha, é um trabalho de magia, no qual não podes tomar parte. Mas... mas se eu pudesse ter um companheiro nesta jornada para além do meu fiel Guard, serias tu acima de todos, Eyvi.Não posso, ao menos, vigiar-te para que possas terminar a tarefa sem seres perturbada? Proteger-te-ia. Não peço mais nada. Por favor, não me vires as costas quando posso colocar-me entre ti e o perigo que ensombra os teus passos.E a tua demanda, a tua própria tarefa?Pode esperar. O jovem sabia, no momento em que dizia aquelas palavras, que não era verdade.Não sei. Eu também receio dizer-te adeus outra vez, com medo que seja a última vez. Não sei se sou capaz de suportar. Precisamos de um sinal. Se, ao menos, Rona continuasse viva. Tenho tantas saudades da sabedoria dela.

É natural que ela continue viva disse-lhe Eyvind cautelosamente se bem que ela se tenha arriscado bastante. Ela está velha, é certo, mas é rija como o ferro.Os olhos de Nessa esbugalharam-se.Que queres dizer? Não sabes que a cabana dela foi incendiada com tudo o que havia lá dentro? Os assassinos de Somerled devastaram o nosso santuário, consumiram os seus segredos. Uma anciã não sobrevive a um ataque daqueles.Eyvind sorriu.Ah. Não foi bem assim. Ela e eu assistimos ao incêndio e foi muito triste ver as coisas dela desfazerem-se em fumo; foi, de facto, um acto bárbaro. Quando os homens de Somerled procuraram descobrir-nos no dolmen, eu saí e enfrentei-os, eu e a cadela, Shadow. O meu corpo ainda estava fraco, duvido que tivesse sido capaz de lutar com eles. Mas eles fugiram cheios de medo, pensando que eu era o fantasma de um guerreiro. Nessa noite dormimos no dólmen e na manhã seguinte Shadow tinha desaparecido, assim como Rona. Não sei para onde foram, Nessa, mas tenho esperança de que estejam ambas vivas.Obrigada disse ela suavemente. E eu sei qual teria sido o conselho dela. Amanhã de manhã lanço os ossos e verei o que eles nos dizem. Talvez possamos continuar juntos; talvez cada um de nós deva seguir um caminho diferente. Mas não posso pensar nisso agora, a minha mente está povoada com outras coisas e o meu coração demasiado cheio para me deixar ver com clareza.Eyvind acenou com a cabeça, pensando que o coração dela não podia estar tão cheio de tantos sentimentos em conflito como o dele. Mal conseguia pensar, tão poderoso era o seu desejo por ela.Estás exausta disse ele Tens de dormir. Eu não tenho um cobertor, nem sequer uma capa; mas a pele de lobo é quente. Deita-te aqui; eu durmo do outro lado. Um guerreiro está acostumado a dormir em solo duro. O teu cão... deste-lhe algum nome?Chamo-lhe Guard.Guarde, capaz de ouvir qualquer intruso, se bem que eu pense que não há nenhum por aqui; todos têm medo de se aproximar deste lugar.Tu não tiveste.Eu perdi o medo depois de pensar que te tinha perdido. Agora, tenho medo outra vez; não consigo suportar a ideia de te saber sozinha por esses campos fora.

Calado disse Nessa. Esta noite está fora do tempo; nesta noite não há lugar para o medo.Descansa. Ele afastou-se o mais possível dela. Mas não se afastou muito. Para ele não haveria sono; as dores que tinha no corpo atormentá-lo-iam, a presença dela garantiria a sua luta contra o desejo que sentia, momento a momento, até amanhecer. Não gosto de te ver tão pálida, tão perturbada. Tens retido as lágrimas, este tempo todo, por aqueles que perdeste? Não devias ter medo de chorar; não te faz menos forte, deixar que as lágrimas corram. Queres que apague a lâmpada?Ainda não. A sua voz era débil, e vacilava. Eyvi? Ele esperou em silêncio.Sinto-me tão só disse ela num sussurro, Eles desapareceram todos, a minha família, o meu povo, todos mortos. E estou cansada, mas não me apetece dormir, não aqui, na escuridão; não quero ver os rostos deles nos meus sonhos.Ele cerrou os dentes, forçando-se a permanecer imóvel.Lembras-te daquela noite, na primeira noite, quando tu acordaste na torres subterrânea? Ficámos sentados à luz da lâmpada e falámos de sonhos, tu puseste o teu braço em redor dos meus ombros e seguraste-me na mão. Era um tempo diferente, um tempo em que as feridas podiam ser saradas e os segredos ditos e compreendidos,como se... como se...Como se nós dois fôssemos apenas um disse ele sem querer.Podemos fazer a mesma coisa outra vez? perguntou-lhe ela. Ficas ao pé de mim e afastas as visões, só durante um bocadinho? Se o fizesses, talvez fosse mais fácil.Para mim não, pensou ele lugubremente, amaldiçoando o seu egoísmo. Que tipo de homem era ele, que não era capaz de ultrapassar as necessidades do corpo para ajudar uma amiga? Quão fraco era o seu autocontrole, que não era capaz de confiar em si próprio?És capaz, Eyvi? Ele mal conseguia ouvir-lhe a voz suave, no entanto sentia-a em cada canto do seu corpo.O jovem não disse nada, mas aproximou-se dela para se sentar como na primeira noite, com o braço em redor dos seus ombros e agarrando-lhe numa das mãos; o seu odor suave encheu-lhe as narinas, o seu calor espalhou-se pelo seu corpo e a sua respiração acelerou-se apesar dos seus esforços para a controlar.

Hummm disse Nessa e encostou a cabeça no ombro dele.Que bom, Eyvi; é tão bom. Não sabia que desejava tanto isto. Então, a jovem calou-se e ele soube que ela estava a chorar, mas não se atreveu a apertá-la mais, não se atreveu a estender a mão para limpar aquelas lágrimas com os dedos, para as deter com os lábios, para... Não, não pensaria nisso. A mão dele apertou a dela com força; o jovem sentiu a respiração dela transformar-se num grande suspiro. Os deuses eram bons e cruéis. Tinham-lha entregue sã e salva, quando pensava tê-la perdido; a culpa era sua, se não estava contente com o que tinha.Desculpa disse Nessa passados uns momentos. Não sabia que ia chorar. Já estou bem. Talvez devêssemos tentar dormir.A jovem continuava agarrada à mão dele; quando ele tentou levantar-se, agarrou-se ainda com mais força.Talvez seja melhor disse ele. Tu ficas aqui; a pele de lobo é quente. Eu vou para o outro lado. Ele apoiou-se num joelho, procurando levantar-se, mas a mão dela agarrou a dele com firmeza.Não, Eyvi disse ela em voz baixa. Aqui, ao pé de mim. O coração dele deu um baque.Não compreendes disse ele. Tenho vergonha de o dizer, mas não posso. Não posso deitar-me aqui ao pé de ti, tão perto sem... sem... desculpa, gostaria de te abraçar e confortar sem te desejar, mas sonho contigo todas as noites desde que nos separámos, penso em ti a cada momento. Por isso, como vês, tenho de dormir longe de ti...Ela largou-lhe a mão. Ele não parecia capaz de sair dali. Ficou ali ajoelhado, olhando para o chão, envergonhado com a sua própria fraqueza, sofrendo pelo que nunca poderia acontecer. Nessa ficou silenciosa por um momento. Quando voltou a falar, a sua voz era ao mesmo tempo gentil e segura.Eyvi disse ela escuta-me. Não sabemos o que nos pode trazer o amanhã. Talvez possamos fugir, talvez sejamos apanhados, talvez venhamos a morrer. Não sei. Tudo o que sei é o que sinto neste momento. Eu nunca me deitei com um homem; pensava que nunca o faria. Mas o meu corpo anseia por ti, há muito que anseia por ti. Eu não quero morrer sem te ter nos braços; não quero deixar este mundo sem fazer o que um homem e uma mulher fazem quando se amam. É tudo o que posso dizer, meu querido. É claro que, se pensas que não o deves fazer...

Da garganta do jovem saiu um som, algo entre um gemido agonizante de desejo reprimido e uma risada de espanto. Um instante mais tarde ela estava nos braços dele, os seus lábios suaves nos dele, abrindo-se para ele, esfomeada, as suas mãos arranhando-lhe suavemente a pele e os dois deitaram-se na pele de lobo, esquecendo o mundo durante alguns momentos, partilhando a alegria feroz de atingirem juntos o êxtase. Aquilo era novo para ela e o desejo de Eyvind era tão forte que ameaçava roubar-lhe todo o controlo. Ele achara Signe bela, com a sua figura exuberante e a sua beleza saudável, e assim era. Mas aquela rapariga, pálida como um vidoeiro, suave como um salgueiro, com uns cabelos castanhos tantalizantes, um xaile sedoso quase revelando as suaves curvas do seu corpo, aquela mulher flexível era a delícia do seu coração. Ela era a sua estrela, a sua alegria e a sua satisfação. E abençoava Signe pelo que lhe ensinara ao longo de tantas noites em Freyrsfjord, como ser lento e cuidadoso, como esperar, como não a magoar. Essa repressão exigia força; ele encontrou essa força no interior de si mesmo e só quando Nessa gritou por baixo de si, o seu corpo tremendo no momento do êxtase, é que Eyvind se deixou mergulhar nas trevas da sua própria satisfação. Dormiram encostados um ao outro, abraçados, as pernas entrelaçadas, respirando como um só. Agitaram-se uma ou duas vezes, cada um deles tocando na pele do outro, afagando, acariciando, assegurando-se de que aquilo não era outro sonho cruel. E, uma vez, Nessa sussurrou:

Eyvi?

Ele agitou-se, meio acordado.

Hum?

Creio que hoje é o primeiro dia de Primavera disse ela, e voltou a adormecer.

Os olhos do jovem abriram-se numa fracção de segundo. Num instante, o corpo e a mente ficaram conscientes do perigo. Ali, no interior do dólmen, estava o calor de Nessa, ainda a dormir nos seus braços. No exterior, Guard ladrava furiosamente e uns homens erguiam as vozes para se fazerem ouvir por cima dos latidos.

Ele tem de estar ali dentro! Até que enfim, apanhámo-lo!

Bom trabalho, rapazes! Quem é que o vai buscar?

Entrar ali dentro? Deves estar a brincar.

Não tinha tempo; acordou Nessa rapidamente, silenciosamente a sua mão na boca dela para a avisar. Ela acordou também instantaneamente, vestindo-se rapidamente, procurando os seus pertences na semi-escuridão, metendo os pés nas botas. A luz da manhã entrava difusa, através da entrada em forma de túnel. Os olhos de Nessa encontraram os dele, muito abertos devido ao choque, reconhecendo que, desta vez, não havia para onde fugir. Eyvind lutava por manter uma expressão tranquilizadora. As vozes ouviram-se de novo.O que é que sugeres, então? Temos de o fazer sair, de qualquer modo. Vamos receber uma boa recompensa, rapazes. Vai lá, Thorvald. Tu és um homem grande forte. É só um cão.Alguém tem uma lança? Aquilo não é um cão, é um demónio do Inferno. É melhor atirar de longe, talvez, assim, tenhamos hipótese.Os dedos de Nessa aproximaram-se dos de Eyvind no silêncio do dolmen. As suas mãos apertaram-se mutuamente com força. Mesmo que fosse possível dizer qualquer coisa, não tinham palavras.Espera aí disse outra voz. Não tenhas tanta pressa com essa lança. Aquilo é o cão de Ulf, não o reconheces? Somerled é capaz de não ficar muito satisfeito se apareceres com ele na ponta de um chuço, como um porco.Empresta-me o teu martelo disse outro homem. Eu dou-lhe uma martelada. Ouviu-se um arrastar de pés, seguido pelo som de uma pancada. Os latidos cessaram abruptamente e Nessa sufocou um pequeno grito.Pronto. E agora, toca a entrar, Thorvald. Tu és o maior. Um homem chega; talvez ele esteja a dormir.Engraçadinho. Thorvald parecia tudo menos divertido.É uma boa maneira de morrermos todos. Rastejamos um a um por ali dentro e ele acaba connosco com o punhal, um a um, assim que chegarmos ao fim do túnel. O homem é um Pele-de-Lobo, rapazes, não é nenhum miserável vagabundo. A mim não me apanham a rastejar por ali dentro, com ou sem recompensa.Por que é que não nos limitamos a esperar? disse alguém. Ele tem de sair dali quando precisar de comer.Ficar aqui fora o dia inteiro e a noite inteira? perguntou uma voz incrédula.Fumo disse alguém subitamente. Fazemos uma fogueira à entrada; não há nenhum buraco no topo, o interior fica cheio de fumo num instante. Ele vai ter de sair; se não o fizer, fica inconsciente e nós poderemos entrar e amarrá-lo antes que ele volte a si.

Eyvind curvou-se para tocar na testa de Nessa com os lábios e para lhe afagar os cabelos com os dedos. Adeus, minha estrela. A minha mão na tua. O coração batia-lhe no peito com toda a força. Era evidente que só havia uma coisa a fazer.

Boa ideia. Tu tens mais miolos do que eu pensava, homem.

Muito bem. Toca a andar. Vê se encontras com que fazer a fogueira. Já vejo a recompensa na minha frente. Talvez seja uma daquelas raparigas daqui, quem sabe?

Eyvind largou a mão de Nessa e pegou na espada roubada e no punhal. O jovem fez sinal a Nessa de que deveria manter-se silenciosa e apontou para o fundo do dólmen, onde ela ficaria menos visível caso alguém espreitasse pela entrada. Vai para ali. Esconde-te. Espera.

Os olhos dela estavam desesperados, mas manteve-se em silêncio.

Não! segredou ela. Não, Eyvi!

Amo-te. Os lábios dele disseram a palavra sem um som e em seguida o jovem virou-lhe as costas. Thorvald gritou ele. Gudbrand, és tu, velho patife? Vou sair; estou cansado e com fome e não me apetece nada morrer sufocado. Levo as minhas armas pela lâmina, não há truque nenhum. Eyvind rastejou pela estreita passagem, ao mesmo tempo que as vozes dos homens se erguiam numa reacção de espanto. Por trás de si o silêncio era total. O jovem saiu para a luz da manhã de joelhos, meio cego pela claridade e empurrando a espada e o punhal na sua frente.

Pelo martelo de Thor, Eyvind observou alguém em tom de aversão. Já não és o homem de outros tempos, isso é certo.

Ata-lhe as mãos, depressa aconselhou outro homem. Não podemos confiar nele.

Eyvind deu um pouco de luta; era melhor acabar com aquilo rapidamente, mas entregar-se docilmente seria fazer um convite à suspeita. O cão estava estendido por terra à entrada, talvez apenas atordoado. Eyvind não olhou para o dólmen.

É tudo o que tens? Gudbrand, que parecia ser o chefe da expedição, olhou intensamente para o rosto de Eyvind enquanto os outros lhe atavam as mãos atrás das costas. Não tens nenhum machado, nem lança? Não tens provisões?

Eyvind abanou a cabeça.

Saí à pressa, como sabes disse ele. As minhas coisas desapareceram.

Gudbrand coçou o queixo.

É melhor darmos uma vista de olhos. Pode ser um truque. Nem parece teu, desistires com essa facilidade. Thorvald? Por que é que não vais lá dentro dar uma olhadela?

Eu?

Por que não?

Não ouviste falar do que aconteceu àquele homem de Hafnarvagr, que entrou numa coisa destas e desenhou o nome dele em caracteres rúnicos na pedra? Passou os três dias seguintes a tagarelar acerca de fantasmas e depois saltou da falésia para o mar. Vamos embora. Pelo menos, vamos ter um bom jarro de cerveja como recompensa.

E o cão? Não disseste que era de Ulf ?

Alguém se oferece para o levar? Ele que fique aqui. Uma oferta para os espíritos, para que não venham atrás de nós. Vamos embora. Toca a andar!

Em tempos, aqueles homens tinham sido seus camaradas, mas era evidente que agora não passava, para eles, de um prisioneiro que era preciso levar na ponta de uma lança. Eyvind não olhou para trás. Manteve os olhos fixos na sua frente, na direcção norte, na direcção do salão de Somerled, abençoando cada passo que os afastava do local onde Nessa continuava escondida. Não a tinham encontrado; por agora, estava salva. Tinha de esperar que ela conseguisse continuar sozinha e levar a cabo a misteriosa tarefa de que falara. Pelo menos, agora que o tinham recapturado, Somerled não teria necessidade de enviar mais guerreiros para vasculhar os campos. Nessa tinha algumas hipóteses de evitar os poucos que continuariam a patrulhar o que em tempos tinham sido as fronteiras do reino de Engus. Quanto a ele, apesar do terror de a ver tão perto de ser capturada, era de novo dono do seu coração, levava consigo a doce recordação da última noite e parecia-lhe que esse talismã tinha o poder de o proteger contra tudo. Regressaria à pequena cela, supunha, regressaria à escuridão e à companhia dos seus pensamentos. Que assim fosse; fugiria de novo, por mais guardas que pusessem a vigiá-lo. Dar-lhes-ia alguns dias, pelo menos, para que Nessa tivesse tempo de fugir, tempo para fazer o que tinha a fazer antes de ele tentar, de novo, a fuga. Então, voltaria ao primeiro plano, o de procurar Eirik. Talvez encontrasse Nessa de novo, desse de caras com ela devido a um qualquer poder antigo, o mesmo que os levara a ambos a procurar refúgio no mesmo local, na mesma noite. Seria o cúmulo da sorte. Se essas forças tivessem a bondade de fazer com que a encontrasse de novo, nunca mais a deixaria. Faria tudo o que estivesse nas suas posses para a manter a salvo de Somerled. Tempo, era disso que precisavam, tempo. Enquanto marchavam para norte, com os seus guardas silenciosamente carrancudos, Eyvind ia fazendo planos, imaginando a casa isolada onde estivera prisioneiro antes, imaginando onde colocariam os guardas extra, planeando quanto tempo esperaria, desta vez, antes de se evadir de novo e que caminho tomaria para regressar ao sul sem ser detectado.

Mas parecia que não o levavam para a herdade isolada onde estivera antes. O grupo estava a passar a oeste do local, contornando os campos que bordejavam o monumento funerário de Ulf e curvando depois para nordeste de novo, na direcção da colónia e do salão de Somerled. Eyvind manteve-se silencioso. Era evidente, pelos olhares carrancudos da sua escolta, que não iria receber nenhuma informação. Sabia no que iam a pensar. Contrariar as ordens de um chefe de guerra e virar-se contra as suas próprias forças já era mau. Mas que espécie de guerreiro se rende sem qualquer resistência, pensando apenas numa cama macia e num pernil de carneiro? Os seus olhos diziam-lhe qual era a sua opinião. Ele, a quem eles em tempos tinham admirado, invejado, até idolatrado, tinha agora descido na sua consideração, não passando de um verme que só merecia ser pisado pelo tacão das suas botas: descera ainda mais devido ao que fora em tempos. A sua vergonha roubava-lhes quaisquer palavras.

A vista dos muros da colónia e os chamamentos das sentinelas devolveram-lhes a luz aos olhos e os sorrisos aos rostos. Rangendo os dentes, Eyvind deixou que o arrastassem para a prisão com alguns golpes nas orelhas e no queixo pelo caminho. Os homens ataram-no a um poste enquanto Thorvald entrava no salão; em breve, a chegada do novo prisioneiro atraía uma multidão de homens e mulheres, resmungando e murmurando a princípio, mas depois escarnecendo e gritando insultos à medida que iam ganhando confiança. Alguém lhe cuspiu no rosto. Eyvind manteve-se mudo e calado. A sua mente mostrava-lhe pequenas imagens: Nessa dormindo, uma grande pedra ao luar, escura, com o lago cintilante em baixo, uma praia pálida, solitária, onde as vagas lavavam a areia. Respirou cuidadosamente; algumas partes do seu corpo doíam-lhe das pancadas recebidas durante a longa caminhada, pancadas a que preferira não responder. Era importante manter-se alerta e guardar as forças para mais tarde. Aqueles homens não tinham importância. Apenas Somerled tinha importância. Na retaguarda do grupo que agora o rodeava, nos insultos crescentes face ao seu silêncio, o jovem viu Grim, uma figura alta, forte, vestido com a pele de lobo, uma túnica de lã e o martelo pendurado no dorso. Fora um golpe bem dado; Grim soubera exactamente onde bater para o deter, mas não para o matar. O jovem achou que nem Holgar, nem Erlend, tinham demonstrado um tal discernimento. No entanto, não sabia quem era amigo ou inimigo. O bem e o mal andavam misturados naquela ilha desde a morte de Ulf. E Grim também tinha atravessado a passagem naquela manhã para decepar membro após membro, para cortar cabeça após cabeça.

Alguém lhe atirou um ovo; este quebrou-se na face de Eyvind e espalhou-se pelo rosto e pelo pescoço.

Chega! A voz de Grim era profunda e áspera, como o rugido de um urso; as pessoas calaram-se. Agora sois uma ralé sedenta de divertimento barato? Levai esse homem para dentro; limpai-o antes que Somerled o veja. Um homem tem o direito de ser ouvido antes de ser escarnecido, não tem? E agora, fora daqui; começo a sentir uma comichão nos dedos, daqui a nada pego no meu martelo e não me responsabilizo por quem estiver na minha frente.

A multidão afastou-se como que por magia, deixando Eyvind e os seus captores. Grim tinha o sobrolho franzido. Já não falava. Olhava para Eyvind e Eyvind devolveu-lhe o olhar, pensando ver um pequeno aceno no guerreiro barbudo antes de este girar nos calcanhares e entrar no salão grande. Então, Gudbrand puxou a corda que atava o seu prisioneiro e arrastou-o.

No interior, foi levado com pouca gentileza para os alojamentos em que dormira em tempos com os seus camaradas Pele-de-Lobo, mas ninguém parecia preparado para lhe desatar os nós que lhe prendiam as mãos atrás das costas, ou para lhe tratar dos cortes e ferimentos no rosto, ou oferecer-lhe uma túnica limpa, ou uma tigela de água fresca. O jovem esperou, imóvel no centro da sala, enquanto os seus captores conversavam em voz baixa. Uma audiência, pensou, seria o passo seguinte. Fechá-lo-iam durante algum tempo e depois teria de comparecer perante alguém e dizer o que tinha a dizer, tudo sem quaisquer testemunhas.

Não contava com aquilo; teria de dar o seu melhor. Pelo menos estava a ganhar tempo para Nessa. Perguntou a si próprio onde estaria ela naquele momento. Gostaria que ela se metesse num barco de pesca e fosse para outra ilha qualquer, onde as garras de Somerled ainda não tivessem chegado. O novo Rei estaria ocupado a estabelecer o seu domínio de Hrossey, não teria tempo para virar a atenção para os remotos restos do povo dos Folk na Ilha Arenosa, na Ilha Ocidental, ou nos locais mais pequenos e remotos. Mas Nessa não escolheria esse caminho; ele conhecia-a. Ela era um líder. Não descansaria enquanto não levasse a cabo a tarefa de que falara. Eyvind esperava que isso não a trouxesse à colónia. Não a queria ali, perto de Somerled.

Muito bem disse uma voz à entrada. O Rei quer vê-lo imediatamente. Nos seus alojamentos. Sozinho.

Sozinho? perguntou Gudbrand de sobrolho franzido. Isso não é sensato. Um guarda ou dois dentro da câmara, talvez?

Sozinho e já, disse Thorvald, que trouxera a mensagem. Foi o que ele disse.

À entrada dos alojamentos privados de Somerled, que tinham pertencido ao seu irmão, estavam Holgar e Erlend, um de cada lado da entrada. Erlend avançou, agarrou em Eyvind por um braço e fez sinal a Gudbrand para que se fosse embora.

É tudo rosnou ele.

Gudbrand hesitou; talvez tivesse o pensamento na recompensa.

O que é? Deixaste de ouvir, de repente? Holgar apareceu por trás de Erlend, franzindo sinistramente o sobrolho, e de repente ficaram ali apenas os três Pele-de-Lobo.

Ele diz que quer falar contigo a sós resmungou Erlend, evitando o olhar de Eyvind. Não acho nada sensato, se querem saber a minha opinião.

Não tentes nada. A voz de Holgar era cortante; parecia pouco à-vontade, nervoso. Nós vamos estar mesmo no lado de fora da porta. Nada de truques. Nós conhecemo-los todos.

A cortina de lã espessa que tapava a entrada foi afastada.

Eyvind não é nenhuma ameaça para mim. Somerled estava no interior, de expressão calma e voz tranquila. Estava simplesmente vestido com uma túnica escura e calças e os cabelos atados atrás com uma fita escarlate. Nós somos como irmãos. Conhecei-lo menos do que pensais, se pensais que ele é capaz de levantar uma mão contra mim.

Mas, por favor, ficai ali fora se isso vos faz sentir melhor. Mas um bocadinho para lá, junto da entrada, por favor; esta conversa é privada. Entra, Eyvind. O Rei deu um passo à retaguarda e Eyvind entrou na câmara. Oh, a propósito Somerled pusera a cabeça no lado de fora dizei a alguém que precisamos de uma tigela de água morna e uma toalha. E acho que um jarro de cerveja e um pedaço de carne virão a propósito. Aqueles que trataram este guerreiro desta forma erraram; dizei-lhes que não me esquecerei. E o Rei deixou cair firmemente a cortina.Eyvind esperou. Aquilo não era o que esperava depois daquela madrugada sangrenta em Dorso de Baleia e do repto de Somerled. Aquele jogo parecia não ter quaisquer regras.Somerled olhou para ele com solenidade.Não pareces nada bem, Eyvind observou ele. Pelo menos, vamos limpar esses cortes. Vira-te.Silenciosamente, Eyvind obedeceu. O jovem sentiu o toque hábil, leve, dos dedos de Somerled desatando os nós.Pronto disse Somerled, enrolando a corda cuidadosamente. E agora, senta-te e vamos conversar um pouco. É bom ver-te de novo, velho amigo, apesar do que aconteceu entre nós. Tive saudades tuas; por aqui tudo é novo e, estranhamente, não gosto de fazer as coisas sozinho.Eyvind sentou-se. Doíam-lhe os braços e tinha marcas vermelhas nos pulsos, no sítio onde a corda os tinha apertado. Tremiam-lhe as mãos; o jovem apertou-as e fez um esforço para respirar lentamente. Um homem entrou com água e uma pequena toalha; um outro trouxe um tabuleiro com carne assada e um jarro de cerveja. Somerled encheu duas taças.Estás muito calado observou ele.Não sei o que te hei-de dizer. Eyvind olhou para os olhos do seu velho amigo. Só lia neles inquietação. Não sei por onde começar.Toma, bebe um pouco. Deixa-me tratar primeiro desses cortes; tens sangue coagulado nas faces e na testa, para não falar do que parece ser gema de ovo. Conseguiste surpreender-me, Eyvind. O homem que me trouxe a notícia disse que te entregaste sem luta.Estou cansado disse Eyvind. Achei que não podia continuar a fugir.

Mas escapaste à minha custódia. Onde é que imaginaste que ias?Eyvind não replicou. Não mencionaria Eirik, ou Thord; não falaria do irmão Tadhg. Não precisava de meter outras pessoas naquilo. Faria sozinho o que tinha de ser feito.Somerled molhou a toalha e passou-a pelos ferimentos no rosto de Eyvind. Após uns momentos, disse calmamente:Podes falar comigo, Eyvind. Eu não sou nenhum monstro, sabes? Sou teu amigo, como sempre; tal como tu, jurei ser-te leal acima de tudo o mais. É por isso que estás aqui sozinho comigo, em vez de compareceres perante um tribunal pelas tuas acções. Quero isto resolvido como deve ser e quero proteger-te, se puder. Toma, bebe esta cerveja, pareces um fantasma ambulante. Isso mesmo. E come qualquer coisa. Suspeito que ainda não comeste nada hoje. Os homens estão zangados; não podes esperar que te tratem bem. Eles viram a maneira como desafiaste as minhas ordens. Eles viram a maneira como te opuseste aos teus próprios camaradas.Eyvind sentiu de novo a confusão e a dúvida na sua mente, as suas mãos tremeram e pousou a caneca de cerveja.Que queres dizer com isso, proteger-me? perguntou ele. Eu vim aqui dizer a verdade, mais nada.Somerled olhou-o de perto.A verdade? perguntou ele com as sobrancelhas erguidas. Que verdade é essa? A mesma que gritavas naquela manhã quando tinhas acabado de regressar dos mortos? Acusações infundadas, sem quaisquer provas, palavras ocas proferidas por um homem fora de si devido a um longo cativeiro e a torturas? Tu podes chamar verdade a esses devaneios, mas aqui eu sou o Rei e estes homens seguem-me. Nestas ilhas, a única verdade que conta é a minha.Eyvind respirou fundo. Pelo martelo de Thor, parecia que tinha chamas nos pulsos.Portanto, esperas que o nosso povo siga um homem que assassinou o próprio irmão? perguntou ele. A mim, parece-me que o que tu não queres é que nada nem ninguém se intrometa no teu caminho, ou nos teus desejos. Não tenho a certeza se terás a noção do que fizeste.Se me quiseres explicar, estou às tuas ordens, Eyvind. Estou aqui para ouvir.

Num certo aspecto tens razão. Os punhos de Eyvind fecharam-se com força; as tremuras estavam a piorar. Eu jurei-te, em tempos, lealdade, e fui sincero. Nunca esqueci que me salvaste a vida. Desde o primeiro momento que reconheci em ti o que outros não reconheceram: coragem, determinação e uma vontade de ferro. Uma inteligência de que eu nunca conseguiria aproximar-me. O desejo de seres o teu próprio dono e senhor e de determinar o teu próprio rumo. Admirava isso em ti; vi um futuro no qual essas qualidades floresceriam, um tempo em que as utilizarias com um objectivo grande e nobre.Nos olhos de Somerled acendeu-se uma centelha de luz.Chegou esse tempo! exclamou ele, pondo-se de pé e pousando uma mão no ombro de Eyvind. Não vês? Estamos aqui juntos, eu sou Rei e temos um mundo inteiramente novo à nossa disposição. Esta gente olha para mim, Eyvind, eles gostam de um líder que está preparado para tomar decisões difíceis e que vive junto deles. Querem alguém que se mantenha fiel aos velhos deuses. Não querem um pacifista com a cabeça nas nuvens, querem um líder forte. E eu dei-lhes isso. E eles estão gratos. Farão tudo por mim. Olha para os teus camaradas Pele-de-Lobo ali à espreita, na entrada. São-me mais leais do que alguma vez foram a Ulf. Eu dei-lhes trabalho a sério, o único trabalho que eles compreendem.Um reino fundado sobre o sangue de um irmão não é um grande reino disse Eyvind calmamente. Uma batalha travada em proporções tão desiguais como a tua contra o Rei Engus não te pode trazer glória, só te pode trazer vergonha.Os olhos de Somerled semicerraram-se.Estás a dizer-me que serias capaz de quebrar o teu juramento? Que neste momento, à luz do dia, depois de reflectires, depois de medires as consequências, ainda estás contra mim, Eyvind?Eu não estou a dizer isso. A mim, parece-me que o meu juramento me obriga a guiar os teus passos para o verdadeiro caminho. Obriga-me a dizer-te quando estás errado; a certificar-me de que não provocas mais danos a ti próprio ou a outros. Que crime cometeu Ulf, para ter morrido daquela maneira?Os lábios de Somerled apertaram-se.Tu és mais meu irmão do que ele alguma vez foi disse ele. No entanto, viras-te contra mim. Nos teus esforços para me destruir, só te destróis a ti mesmo. Disseste que não compreendias o significado disto. Mas tu é que não compreendes.Talvez não. Tu sempre achaste que eu era um tipo estúpido, confuso. Talvez seja verdade. Tudo o que te posso dizer é que, se continuas a seguir esse caminho de chacinas, destruição e medo, far-te-ei frente até ao fim, com ou sem juramento. Morreu aqui muita gente boa, gente que foi chacinada sem razão, só porque tu quiseste o que lhes pertencia. Quebraste um tratado, menosprezaste as mais elementares leis da guerra.Seguiu-se uma pausa. Os dedos de Somerled brincaram com uma caneca de cerveja, fazendo-a girar no tampo da mesa.E a rapariga morreu disse ele finalmente. É disso que se trata, não é?Que rapariga? Até a ele próprio a sua voz lhe soava tensa. A princesa. A pequena sacerdotisa, a sobrinha de Engus. Foi uma pena. Eu gostava dela. E creio que tu também gostavas; tu não estavas escondido no sítio onde as bruxas da ilha cozem as suas poções? Suponho que te apaixonaste por ela, se bem que eu pensasse que os teus gostos vão mais para o tipo rechonchudo, louro. Mas não pode haver outra explicação para a tua súbita loucura. Ela nunca poderia ser tua, velho amigo. Estava muito acima de ti, ela era uma princesa real. Enfim, agora já não interessa; ela foi-se. Não te preocupes, tens muito por onde escolher, se bem que as melhores já têm dono. Eu dou-te a melhor das que sobraram.A fúria acelerou a respiração de Eyvind; com dificuldade, manteve as feições calmas.Eu não quero uma mulher disse ele.Nesse caso, que queres tu, Eyvind? Por que permitiste que te trouxessem aqui? Diz-me.Eyvind engoliu em seco.Um julgamento justo, mais nada. Deixa-me apresentar a verdade tal como ela é, chamar testemunhas, apresentar provas perante uma Assembleia, ou qualquer outra assembleia que queiras convocar. Dá-me o tempo do costume para preparar o meu caso. Aceitarei o veredicto de homens conceituados.Tu? Preparar um caso? Ora ora, Eyvind. Esse tempo todo em que andaste fugido deu-te volta ao miolo.

É possível disse Eyvind que a verdade venha a sobrepor-se aos argumentos mais inteligentes. Posso ser estúpido e fraco de espírito, mas até aí percebo eu. Tens medo da verdade?É claro que não! respondeu secamente Somerled. Tenho medo é que tu sofras, meu amigo entre os amigos. És tão estúpido que ainda não percebeste. Eyvind, eu conheço-te tão bem como qualquer pessoa. Tu não tens a capacidade necessária para vencer esta batalha. Aqui, quem faz as regras sou eu, regras novas. Eu não convoco assembleias, ouço os casos eu próprio. Os julgamentos são sumários e rápidos. É essencial manter a disciplina. Chamei-te aqui porque é a única maneira de te salvar. Tu desobedeceste a uma ordem directa, fizeste acusações irreflectidas, viraste-te contra os teus camaradas guerreiros. Se essas acusações forem apresentadas formalmente contra ti, e provadas, eu só posso pronunciar uma sentença de morte, que será executada no espaço de um dia.Morte? Aquilo era novo. Nos julgamentos formais, em Rogaland, a expulsão para toda a vida era o pior castigo que um homem podia receber. Evidentemente, havia execuções não oficiais pelo fogo, ou por meio de emboscadas, mas essas também estavam sujeitas a castigo; havia contendas dessas que duravam gerações. JáÉ verdade; decretei assim. Necessariamente, nestes tempos de instabilidade. Não me posso dar ao luxo de ter insubordinações, ou rebeliões mal cozinhadas. Portanto, Eyvind, como vai ser?Não sei muito bem o que queres dizer. Eyvind pôs-se de pé e arrependeu-se imediatamente; após aquele dia de marcha forçada, a velha fraqueza regressara às suas pernas e ele teve de pousar uma mão na mesa para se apoiar.Estou a oferecer-te uma oportunidade de te redimires. Mais do que uma oferta, peço-te que a aceites. Somerled estava pálido; os seus olhos estavam mortalmente sérios. Que não se fale mais de Ulf nem de assassínios. Que não se fale mais de Engus, das batalhas que vencemos, ou de tratados. Não podes fazer com que os mortos ressuscitem, Eyvind. Regressa para junto de mim; sigamos em frente como planeamos há muito tempo, um grande Rei e o seu Pele-de-Lobo sem rival. O teu comportamento pode ser facilmente explicado, prontamente esquecido uma vez contada toda a história, como os ilhéus te fizeram prisioneiro depois de Ramsbeck e te fizeram a cabeça, de modo que não eras capaz de distinguir um amigo de um inimigo, o bem do mal. Ainda estás fraco de corpo e espírito. Como seria possível, se não fosse assim, o mais valente dos meus guerreiros entregar-se com tanta facilidade? Podes descansar, terás quem trate de ti; com tantas raparigas quantas quiseres para te aquecerem a cama. Não é preciso nenhum julgamento; eu anuncio que perdoei a tua indiscrição e partimos daqui. Que dizes?Eyvind manteve-se silencioso. Na sua mente viu Nessa, uma figura delicada, graciosa, caminhando pela praia, virando a cabeça para olhar para ele, os seus longos cabelos castanhos esvoaçando como uma bandeira sob o vento de oeste. Viu a cabeça austera e os olhos ferozes de um jovem guerreiro. Viu o corpo torturado de Ulf pendurado da falésia. Perguntou a si mesmo como o mataria Somerled, quando tivesse oportunidade.Eyvind? Não me obrigues a fazer isto, peço-te. A voz de Somerled tremia. Era a voz da criança que dissera, um dia, que ninguém gostava dela.Quero um julgamento justo disse Eyvind calmamente. Se não queres convocar uma assembleia, deixa-me, então, contar a verdade, tal como a sei, perante o povo desta colónia. E depois, como te nomeaste a ti próprio como único árbitro, suponho que pronunciarás a sentença. Mas eu quero ser ouvido. Gostaria que o meu irmão estivesse presente, se puder vir de Hafnarvagr. Gostaria que lady Margaret ouvisse o que tenho para dizer.Não te cabe a ti determinar quem deve estar presente cortou Somerled. Pelos ossos de Odin, Eyvind, és mesmo louco! Por que sacrificares-te por uma coisa de nada? Raios te partam, homem, eu não posso fazer as coisas sem ti!Eyvind conseguiu sorrir.Eu, pelo contrário, acho que não há outra maneira de fazer isto disse ele. Tu não podes desfazer o que fizeste. Mesmo que ponhas os pés no barco, amanhã, de regresso a Freyrsfjord, o legado dos teus actos ensombrará este local durante muitos anos, porque tu roubaste a este povo uma geração inteira de homens. Quanto a mim, não vejo outra maneira de resolver as coisas tal como as compreendo, e apelo aos deuses e à sabedoria dos homens para que endireitem o que está torto. É tudo o que posso dizer, Somerled, excepto que lamento, lamento muito que isto tenha acontecido entre nós.

Por favor disse Somerled num sussurro. Por favor, não faças isso. Não sabes o que estás a desperdiçar.A pequena imagem de Nessa regressou, minúscula e perfeita, as suas feições solenes, as suas mãos graciosas fazendo um desenho com pedras brancas, os seus cabelos brilhando à luz da lâmpada.Sei disse Eyvind calmamente. Sei que a parada é alta. E sei que devo jogar até ao fim.

 

Guard estava a ser lento, tão lento. Um cão corajoso e leal, fazia os possíveis para a acompanhar, cambaleando atrás dela, as suas longas pernas vacilando, trémulas. Nessa parou três vezes durante o dia para que ele pudesse descansar, uma vez junto de um ribeiro onde o cão matou a sede, outra junto das ruínas de uma cabana, ela tremeu ao pensar no que teria acontecido ao pescador e família que viviam ali desde que se conhecia - e, mais tarde, à sombra de uns arbustos quando já se aproximavam da falésia por cima do local que ela procurava. A jovem rangia os dentes de frustração a cada paragem. Pobre Guard. Os homens de Somerled tinham-lhe batido de modo a tornarem-no insensível; não podia esperar mais dele. O animal esforçava-se por acompanhá-la, mas não havia tempo a perder. As mulheres dos Folk tinham sido feitas prisioneiras, Eyvind tinha sido feito prisioneiro e estava à mercê de Somerled. Ela já vira do que era capaz o novo Rei.

O Sol atravessou o céu. A Nessa parecia que o dia se passava com uma rapidez cruel e despropositada. Os fardos que transportava eram pesados: debaixo de um dos braços transportava aquele com a carga estranha tirada do túmulo de um chefe de guerra e, debaixo do outro, a pele de lobo, cuidadosamente enrolada e atada com um pedaço de fio tirado da sua própria camisa. Não ia deixar aquela grande e brilhante pele para trás, por mais impraticável que o seu transporte fosse. Já permitira que Eyvind se sacrificasse por ela, não apenas uma vez, mas duas. Para Nessa era evidente que aquela pele fazia parte dele, tanto quanto o seu coração inabalável e o seu espírito leal. Tinha de salvar a pele de lobo. Desse modo, raciocinou ela, talvez pudesse, de certo modo, protegê-lo até que a verdade se soubesse, finalmente, para que todos a vissem e a compreendessem. Do mesmo modo, a jovem irritava-se a cada pequena demora e enquanto passava por vales escondidos e suaves colinas na direcção do mar, a sua mente ia ocupada com imagens prováveis: Eyvind preso, Eyvind espancado, Eyvind ganhando desesperadamente tempo para que ela se pudesse pôr a salvo. O seu guerreiro estava sob um perigo terrível. Um homem como Somerled que chacinava e queimava indiscriminadamente, não hesitaria em varrê-lo da face da terra se acreditasse que ele era uma ameaça. Para um homem daqueles, a amizade não tinha qualquer significado. Plantada no alto da falésia por cima da enseada escondida, Nessa estremeceu. Que ele viva. A jovem enviou uma oração a um qualquer dos deuses que pudesse estar a ouvir: Thor, talvez, porque, certamente, aquele pai da guerra não abandonaria, obviamente, um guerreiro heróico como ele, por mais que Eyvind pensasse o contrário. Se o deus se calara, fora por uma razão qualquer, talvez para que o seu filho ouvisse o seu próprio coração durante algum tempo e pudesse fazer a sua escolha. Mantém-no a salvo até eu fazer o que deve ser feito e poder regressar para junto dele.

Nessa não esperava qualquer resposta e não a teve. Tinha, simplesmente, de continuar. A descida para a enseada era íngreme e estreita; ela desceu com os sacos, pisando cautelosamente no carreiro escorregadio. Lá no fundo o oceano rolava, escuro e frio, na direcção da costa e durante todo o caminho as aves gritaram, planando e mergulhando numa dança sem fim em redor das saliências e fendas da face rochosa. Nessa não tinha nenhuma mão livre para proteger os olhos, nem podia fechá-los quando os bicos ou as garras passavam a um palmo do seu rosto. Seria assim durante toda a estação dos ninhos. Guard seguiu-a vacilando, avançando cuidadosamente pelo trilho precário. Por fim, atingiram a base da falésia, onde uma pequena extensão de areia se estendia diante de umas grutas pouco profundas e de umas lajes de pedra salientes de ambos os lados, que ofereciam porto seguro às focas e era um bom local para a pesca à linha quando o vento e a maré o permitiam. Não havia ali pescadores naquele dia. Talvez não restassem nenhuns; a jovem passara por várias cabanas cujos telhados estavam queimados e cujo gado vagueava sem ninguém a tomar conta dele. Uma vez pensara ver o corpo de um homem estendido num pátio; outra vez ouvira um cão a uivar. Não se aventurara a aproximar-se. Quantos súbditos de Engus teriam sobrevivido na ilha mãe? Teria Somerled procurado exterminá-los a todos, varrer qualquer sinal dos Folk, para que até nas histórias das futuras gerações a sua existência fosse desconhecida?

Chegara, por fim. Agora teria de trabalhar rapidamente nos preparativos. No fim teria outro obstáculo para transpor, mas não pensaria, por ora, nisso. Nessa olhou para o Sol. Já se estava a inclinar a oeste. Se fizesse aquilo durante a noite e viajasse no dia seguinte, chegaria a tempo? Quanto tempo conseguiria Eyvind aguentar? Fora feito prisioneiro de madrugada: há quase um dia inteiro, portanto. Talvez até já estivesse morto. Os seus dedos estenderam-se para desatar a pele de lobo e estendê-la no chão da pequena gruta. Era, na verdade, uma coisa espantosa e poderosa, cuja magia podia ser sentida em cada ponto da sua superfície brilhante. Espera por mim, sussurrou Nessa. Não continues sem mim.

A tarefa não poderia ser completada sem ajuda. Ela sabia isso; fora esse o propósito da sua jornada àquele local. Nessa desatou o saco e esvaziou-o da sua carga. Com uma música débil e tilintante, os ossos caíram, brancos como o luar, sobre a pele de lobo cinzento-prateada. Uma mecha de cabelos escuros tinha-se enrolado em redor deles. Ela olhou para baixo, para aquela salgalhada de formas, mordendo o lábio. Não passava de uma velha história, no fim de contas: a voz da verdade numa harpa de osso. Ela acreditava, é claro que acreditava; simplesmente, as histórias nunca davam a sua opinião, passo-a-passo, sobre como construir os misteriosos objectos de que falavam. Falando praticamente, era impossível. A armação não podia ser feita; que havia de usar em lugar das cavilhas de madeira, ou de osso de baleia? Como moldar as curvas apenas com uma pequena faca e num espaço de tempo tão curto? E as cordas? Os cabelos de um homem não podiam fornecer a tensão necessária para emitir as notas de uma melodia. Partir-se-iam no momento em que apertasse as cavilhas. No entanto, não tinha escolha. Tinha de pôr as dúvidas de parte. A verdade era a voz mais poderosa de todas; a verdade far-se-ia ouvir contra todas as probabilidades. E para um trabalho de magia daqueles, Nessa precisava da ajuda daqueles que compreendiam os segredos mais profundos do coração e da alma: aqueles cuja existência fazia parte do fluxo e refluxo das marés.

A jovem instalou-se nas pedras macias por cima da água escura. Voltou atrás no tempo durante alguns instantes, até ao dia em que a pequena Nessa estivera a observar as focas na praia e a pensar no pescador solitário que construíra a torre subterrânea.

Rona perguntara ela como chamarias a Tribo das Focas? Se quisesses falar com elas, como farias para que ouvissem?

Depende respondera Rona cautelosamente. Essa gente não aparece quando nós queremos. Não estão à disposição da espécie humana e nunca estarão.

Portanto, nunca...?

Ah respondera Rona eu não disse isso. Entre tu e eu as coisas são um pouco diferentes. Hás-de descobrir, à medida que fores estudando os mistérios. Eles começam por te ouvir, a seguir identificam-te e só depois é que tu começas a ouvi-las. Esses anciãos, o povo do mar, os folk da terra, sabem que é nossa responsabilidade preservar o coração das ilhas, Nessa. Todos nós queremos isso. Um dia, quando estiveres a desenhar o teu círculo e olhares para oeste para invocar os poderes do oceano, verás que a Tribo das Focas estará a observar-te. E há uma maneira de as chamar, se estiveres desesperada.

E que maneira é essa? Aos nove anos, Nessa não sabia o que era o desespero, mas estava sempre ansiosa por aprender o que a mulher sábia tinha para lhe ensinar.

Deves sentar-te perto da água, num lugar que saibas que elas amem e deves derramar sete lágrimas no mar. Depois, pedes-lhes que te ajudem.

E isso funciona?

Não sei, dissera Rona secamente. Esperemos que não precises, nunca, de experimentar.

Essa ocasião chegara. Sete lágrimas, nem mais, nem menos. Não era difícil chorar. Bastava pensar na morte do seu tio, de Kinart e de todos os homens dos Folk, na Pedra do Povo por terra, na lenta agonia da sua mãe e na febre que ceifara as suas irmãs antes de lhes poder dizer adeus. Bastava pensar nas mulheres de Dorso de Baleia, prisioneiras e assustadas. Bastava pensar em Rona vagueando sozinha pelos campos para que Eyvind pudesse enfrentar o amigo que era seu inimigo. Bastava pensar em Eyvind entregando-se para que Nessa se salvasse, ou no que poderia estar a sofrer naquele momento. Oh não: pensar apenas na última noite, pensar no seu olhar, no seu sorriso que parecia um raio de sol, na carícia das suas mãos no seu corpo, tão suaves, tão cuidadosas apesar de toda a paixão, que lhe alterava a respiração e lhe escurecia os olhos azuis. Pensar em como os seus corpos se moviam juntos, como se fossem duas metades de um todo maravilhoso; recordar o segredo misterioso do desejo de ambos e o brilho destruidor do seu êxtase. Apesar de se terem passado tantas horas, o seu corpo ainda lhe doía de tanta satisfação. Bastava pensar naquela doçura impensável e do quanto tinha a perder se falhasse. Bastava pensar naquilo tudo e chorar. Uma, duas, três... sete... e agora cobrir o rosto com ambas as mãos, não fora alguma lágrima escapar-se e cair no mar frio, desfazendo assim o encanto antes mesmo de ele ter começado.A jovem permaneceu assim em silêncio, de cabeça curvada, com espaço nos seus pensamentos apenas para ele. No entanto, à sua volta a magia espalhava-se, antiga e verdadeira, porque aquilo não se destinava apenas aos homens e às mulheres, aos laços que os uniam; destinava-se aos Folk, às ilhas, à própria vida. Ali sentada, chorando com o rosto tapado, Nessa sentiu o poder das profundezas na alma, inundando-lhe o coração, enchendo-lhe o espírito de luz, e soube que nunca fora tão sacerdotisa como naquele momento.A jovem abriu os olhos ao ouvir os latidos de Guard. Havia cinco delas sentadas nas rochas à sua roda, mulheres mas ao mesmo tempo não-mulheres, frágeis, criaturas do mar selvagem com olhos escuros e líquidos e cabelos caindo-lhes pelos ombros como folhas entrelaçadas, cinzentas, azuis, verdes como as profundezas sob as ondas. Os seus corpos estavam nus e molhados, as peles cor de pérola cheias de gotas, como se só há um momento tivessem emergido do abraço gelado do oceano. Talvez aquilo que jazia na praia arenosa por trás delas fosse apenas um conjunto de algas escuras; talvez fossem peles de foca, ali deixadas até que as suas donas precisassem delas de novo. Guard estava histérico, correndo de um lado para o outro na praia, esbanjando as suas últimas forças em avisos frenéticos.Calado, Guard, calado. Nessa levantou-se e regressou à pequena gruta e elas seguiram-na com os seus pequenos pés brancos. Instalaram-se em redor da pele de lobo e umas mãos de longos dedos estenderam-se imediatamente para tocar nos ossos, afagando-os e examinando-os. Pareciam falar umas com as outras, mas as suas vozes eram musicais, não emitiam palavras: um sussurro profundo e antifonário, que dizia da sua compreensão acerca daquilo que Nessa preparara. Apontando dedos, acenando com as cabeças ou encolhendo os ombros, com pequenas notas de música, demonstraram-lhe como executar a tarefa. Pedaços de matéria escura aderindo aos ossos, perto das juntas; estas teriam de ser limpas e as hastes longas e pálidas teriam de ser polidas. Teria de esfregar com força a armação com uma mão-cheia de areia e pedaços de algas secas, porque aquilo teria de ser um instrumento tão belo, puro e brilhante como a própria Lua. Levaria tempo. Ao mesmo tempo que cada osso era considerado pronto, era colocado no lugar em cima da pele de lobo, para que a forma final pudesse ser vista. Ossos da canela e ossos da coxa para a armação: estes teriam de ser desbastados, aparados, moldados com a pequena faca de Nessa. Por uma ou duas vezes, as mulheres do mar não ficaram satisfeitas com os esforços da jovem. Então, não usaram a faca, usaram os dentes com precisão, roendo uma concavidade, desfazendo uma curva com precisão. As juntas deviam unir com perfeição, correspondendo tão suavemente como as pranchas do grande barco utilizado por Ulf, o sonhador, para chegar às ilhas do seu destino. Elas observaram-na intensamente, os olhos brilhantes fixos em cada tentativa desajeitada para colocar as peças escorregadias no seu devido lugar, atentas a cada raspagem de um minúsculo fragmento, para que o instrumento pudesse ficar perfeito na forma e na função. Mais tarde, mastigaram algas e fizeram longas tiras para as uniões, passando-lhe os longos fios escuros e molhados, ensinando-lhe nós habilidosos, laços inteligentes. Aquele método permitia que ficassem apertados depois de secarem, dando firmeza à armação.O dia passou rapidamente; o Sol banhou com a sua luz dourada aquele pequeno pedaço de costa, iluminando os rostos das companheiras de Nessa, provocando neles um brilho translúcido. Havia agora uma nota de urgência nas suas vozes, o padrão do seu discurso-canção uma clara mensagem: Depressa! O Sol está a descer. Despacha-te, ou será demasiado tarde!Cavilhas, pequenas cavilhas feitas dos ossos dos dedos. Entalhes quase impossíveis de ver. Tão pequenos que as suas mãos tremiam, tinha de concentrar-se, tinha de abrandar o ritmo. Tinha de manter a mente apenas na tarefa e pôr de lado aquelas imagens: Eyvind ferido, Eyvind lutando e caindo de novo.O tempo tem de chegar murmurou ela para si própria. Acendo uma fogueira, trabalho de noite. De manhã, arranjo um cavalo numa das herdades. Chego lá num instante. Ele só está prisioneiro há um dia. Eles devem ter alguma espécie de julgamento, estas coisas levam tempo... Amanhã, amanhã ainda tenho tempo.Enquanto falava via os grandes olhos das mulheres do mar virados para si, ouvia o som das suas vozes sem palavras e percebia o que elas lhe tentavam dizer. Uma ergueu uma mão delicada, fazendo um gesto na direcção do Sol e ululou um aviso. Uma outra apontou para o trilho na falésia, para a própria Nessa e para Guard, que dormia com os olhos meio abertos nas traseiras da pequena gruta, tremendo. A mulher do mar usou as mãos para demonstrar o movimento de correr, correr. Apontou para leste, o seu murmúrio subindo de tom até se transformar numa espécie de grito que lhe saiu pela boca e pelo nariz, um bramido de perigo, como a voz de uma trombeta de guerra. Não havia engano na mensagem. Acaba e vai-te embora. Agora. Amanhã será demasiado tarde.Elas começaram a trabalhar ao lado da jovem; parecia que tinham decidido que ela não conseguiria terminar a tempo sozinha. Os seus dedos finos e pálidos começaram a puxar os cabelos da confusão de ossos e começaram a torcê-los e a entretecê-los com uma rapidez e uma destreza que deixaram Nessa espantada, até que uma delas sibilou, indicando-lhe a armação da harpa onde os pequenos buracos continuavam sem as cavilhas. A jovem fizera os buracos o melhor que pudera, o que não era fácil com uma faca mais indicada para desenhar os círculos rituais do que para aquele trabalho de precisão. Nessa colocou uma cavilha, esforçando-se por manter as mãos firmes enquanto o céu escurecia e o Sol ficava vermelho, mergulhando no horizonte até ficar apenas a um dedo de distância do mar cinzento-ardósia. Nessa colocou outra cavilha.Tenho de acender uma fogueira disse ela, esperando que elas tivessem compreendido. Já não vejo bem. Está a ficar escuro, tenho ainda de colocar mais quatro e depois as cordas. Vou de noite? É isso que quereis dizer?A única resposta que recebeu não tinha palavras, era incompreensível. Uma das mulheres do mar segurava na armação, duas outras continuavam a fabricar as cordas e havia duas que estavam na areia, acocoradas sobre algo que estavam a fazer. Nessa colocou a cavilha seguinte.Devíeis dizer-me a verdade disse ela, tentando desajeitadamente encontrar outro dos ossos minúsculos, para lhe aparar a extremidade enquanto conseguia ver. Se não conseguir chegar lá antes de amanhecer Eyvind morre? Como é que eu hei-de chegar lá? Como é que hei-de subir aquele carreiro às escuras com... Nessa olhou para o instrumento que tinha fabricado, tão delicado, tão frágil. Olhou para a pele de lobo, volumosa, pesada, mas que não podia deixar ficar para trás. Guard gania no seu sono; o animal estava exausto e ferido. Creio que não consigo murmurou Nessa. Oh, Eyvi, como hei-de fazer? Ela estendeu a mão para colocar a peça no lugar, mas era grande de mais e não cabia, o Sol mergulhou abruptamente e de repente deixou de haver luz suficiente, ficou demasiado escuro para calcular o ajustamento necessário, para aparar o menor dos fragmentos de osso para que se ajustasse e que rodasse ao mesmo tempo. Não consigo. Subitamente, a mulher do mar largou a harpa e as mãos de Nessa estenderam-se para evitar que o instrumento caísse. A jovem sentiu-se percorrida por um arrepio, uma onda poderosa que lhe provocou um formigueiro por todo o corpo, tornando-a terrivelmente consciente. Sentiu, instantaneamente, o que era aquele instrumento. Se bem que ainda não tivesse cordas, nem voz, pressentiu a magia armazenada na sua armação graciosa, a energia oculta na sua forma elegante. Eu sou... eu sou... A sua voz pairou na orla da audição, ansiosa por avançar. Oh, aquela harpa falaria; contaria a história, gelaria os corações dos homens, encher-lhes-ia os olhos de lágrimas, fá-los-ia tremer e vacilar com a sua canção. Aquela harpa levaria a verdade ao salão grande do tirano. Salvaria os Folk. Salvaria Eyvind, se conseguisse chegar a tempo.

Houve alguma discussão quanto ao local onde Eyvind ficaria preso até que tudo estivesse pronto para um julgamento formal. Erlend e Holgar recomendaram uma espécie de grilhetas e uma porta com ferrolho. Somerled achou desnecessárias essas precauções. No fim de contas, Eyvind pedira um julgamento justo. Agora que ia ter um, por que se daria ao trabalho de fugir? Não se entregara ele sem, praticamente, nenhuma luta?

Chegou-se a um compromisso: grilhetas nos tornozelos, mas as mãos livres, já que os pulsos do prisioneiro ainda estavam vermelhos da corda com que o tinham amarrado durante a marcha. A cela onde o colocaram parecia nova. Eyvind achou que devia ter sido construída para prisioneiros como ele, porque a porta era gradeada e tinha um pesado ferrolho. Havia uma pequena janela no alto da parede de pedra; só um tentilhão ou um rato conseguiriam escapar daquela cela. Um saco cheio de palha e um balde constituíam a única mobília. Uns guardas passeavam de um lado para o outro no corredor para lá da porta. Não eram Grim, ou Holgar, ou Erlend, eram outros, homens que não conheciam bem o prisioneiro. Talvez Somerled achasse que era mais seguro. Ou talvez os Pele-de-Lobo não gostassem de ver o antigo camarada descer tão baixo. Ele vira as expressões de constrangimento nos seus rostos, a confusão nos seus olhos. Agora, ele não era apenas um traidor, era algo pior: um cobarde.Porque Somerled tinha razão, como de costume. Eyvind não tentaria fugir, se bem que, assim que o meteram na cela, ele tivesse avaliado instintivamente a porta, o ferrolho e os guardas para considerar as probabilidades. Para um Pele-de-Lobo, aquela reacção era normal. Mas não ia tentar, se bem que suspeitasse que a ideia de Somerled acerca do que era um julgamento justo seria muito diferente da sua. Se fugisse, seria perseguido. Somerled não se podia dar ao luxo de o ter ao largo, espalhando uma verdade perigosa. E se o perseguissem, encontrariam Nessa. Não podia permitir que isso acontecesse. Não era assim tão louco que acreditasse que podia haver um futuro para ele naquelas ilhas, apesar de ela ter passado uma única e doce noite nos seus braços. Ela tinha um lugar ali como sacerdotisa, como líder. Quanto a ele, parecia que tinha ganho a troça de todos aqueles que em tempos o tinham admirado e amado. Não havia outra coisa a fazer senão continuar como guerreiro, com a força e a dignidade possíveis. Enfrentaria a morte como um lobo, com firmeza, até ao último momento, o momento das trevas.O tempo passou. A guarda mudou e voltou a mudar. Alguém lhe trouxe comida e água. Eyvind não tinha fome, mas comeu, simplesmente para ter alguma coisa para fazer. O silêncio e as sombras aguçavam a consciência da dor nos seus pulsos, o tremor das suas mãos e a fraqueza das suas pernas. Forçou-se a movimentar-se no interior da cela, curvando-se, espreguiçando-se, sempre com os tornozelos agrilhoados. Tentou imaginar como seria o julgamento, o que diria Somerled e como um homem como ele poderia contrapor os argumentos de um orador habilidoso.A luz que entrava pela pequena janela sugeria um fim de tarde, ou um anoitecer. Eyvind sentou-se na enxerga de palha e concentrou-se, certificando-se de que conseguia lembrar-se de todos os pormenores da morte de Ulf e do que se dissera naquele dia em Ilha Alta. O sangue... o olho esvaziado... os nós... a voz de Somerled, esganiçada devido ao choque... O jovem foi acordado abruptamente por um murmúrio rouco junto da porta. Grim estava encostado às grades com os seus cabelos loiros como espigas de milho, barba sedosa e olhos ansiosos.

Eyvind! chamou ele. Acorda, homem!

Eyvind levantou-se e avançou até à porta. O jovem não disse nada.

Escuta murmurou Grim com a boca colada ao gradeamento estreito da porta. Não devia estar aqui e não tenho muito tempo. Talvez consiga tirar-te daqui. Estás pronto?

O coração de Eyvind, cheio de esperança, bateu com toda a força e o sangue correu-lhe mais depressa nas veias. Um amigo, liberdade, oportunidade de vida, deuses, como o desejo era grande!

Como? murmurou ele.

À hora da refeição, um pouco de diversão, um de nós faz deslizar o ferrolho. Ao fundo do corredor há um pátio e um par de cavalos velhos. Depois, é contigo. Nós mantemo-los ocupados e tu aproveitas. É melhor do que nada. Que dizes?

Não posso. Não tinha escolha; soubera-o desde o princípio.

O quê?

Não posso. Tenho de o enfrentar; tenho de contar a minha versão da história. Mas obrigado. Pensava que já não tinha nenhum amigo.

Ora. Os olhos de Grim olhavam numa e noutra direcção, vigiando o regresso dos guardas. Nós não gostamos muito do que tu fizeste. O que não quer dizer que te queiramos morto. Porquê? Por que não foges? Tens tantas hipóteses contra ele, o guerreiro acenou com a cabeça na direcção do salão grande como um bebé contra um guerreiro armado. Nenhumas. É melhor morrer como um homem livre.

Não posso. Alguém tem de dizer a verdade e parece que eu sou a única pessoa que o pode fazer. Grim?

O que é?

Onde está Eirik? Eu mandei-lhe uma mensagem, há pouco tempo. Por que é que ele não está aqui?

Grim ficou carrancudo.

Não sei. Há que tempos que não sei nada dele e de Thord, já antes de termos tomado Dorso de Baleia. Andam ocupados com os barcos, suponho. Está quase na hora da partida. Mas nem parece dele.

Eyvind...

Grim calou-se ao ouvir passos no corredor: os guardas estavam a regressar.

Tens a certeza? disse ele em tom urgente.

Eyvind acenou com a cabeça. Inexplicavelmente, tinha lágrimas nos olhos e o jovem virou-se para que o seu velho camarada não pudesse ver o seu sinal de fraqueza. Tinha de ser forte: forte, inteligente e sereno, como Somerled. Os argumentos, os factos; tinha de os rever uma vez mais, certificar-se de que seria capaz de os relatar com clareza, mesmo com Somerled a olhar para ele, pronto para saltar à menor falha. O jovem sentou-se de novo na enxerga de palha e tentou concentrar-se, mas parecia que a sua mente decidira deixar de cooperar. As imagens que via na cela obscura não eram as da viagem à Ilha Alta, da subida, da bruma, da busca desesperada e da descoberta chocante. Em vez disso, via a floresta por trás de Hammarsby e dois rapazes caminhando ao longo de um estreito carreiro sob uns grandes abetos. Caminhavam ambos suavemente, as facas e as lanças prontas, movendo-se juntos em silêncio, numa compreensão total. Um dos rapazes ia orgulhoso: Ele é bom e fui eu que o ensinei. O que o outro sentia, não havia maneira de saber. Via os dois mais novos, à luz vermelha da madrugada de Inverno no lago gelado, um equilibrando-se com dificuldade nos seus patins novos, o outro apoiando-o com palavras amáveis e braços fortes. Via-se a si próprio com uma perna rudemente partida, o rosto branco como a cal, cambaleando pela encosta rochosa abaixo e um pequeno Somerled de olhos ferozes lutando para o manter direito. A visão do maxilar cerrado e a determinação carrancuda daquela criança exausta despedaçou-lhe o coração; Eyvind achou que aquela coragem teimosa destinara Somerled a grandes coisas. E tornara-se Rei, tal como a vidente profetizara. Mas... certamente a vidente não profetizara aquela caricatura baseada em assassínio, crueldade e mentiras, aquele arremedo de monarca governante? Até ele, disse Eyvind para si próprio, que só sabia pegar na espada e no machado, teria feito melhor obra como líder. Apesar de toda a sua inteligência, Somerled errara em toda a linha. E aquela gente tinha de ser confrontada com essa verdade. E seria ele a fazer essa confrontação. Eyvind deitou-se e fechou os olhos. Sem descanso não teria a clarividência necessária quando chegasse a ocasião. Dorme bem, minha estrela. A minha mão na tua.

A determinada altura, na escuridão, Eyvind foi acordado por vozes, pelo clarão de archotes e pelo som de ferrolhos a abrirem-se. Parecia chegada a hora. Erlend e Holgar escoltaram-no até ao salão grande com os pés ainda agrilhoados. Nenhum deles disse uma palavra ou lhe pôs as mãos em cima, limitando-se a caminhar a seu lado como se não se soubesse o que eram, se carcereiros, se guarda-costas.O salão grande estava cheio de vida, com lâmpadas acesas, movimento e o burburinho de vozes antecipatórias. Os dois homens levaram Eyvind até ao centro, deixando-o em frente da mesa à qual estava sentado Somerled, ladeado pelos homens que tinham sido os conselheiros do seu irmão e por outros que pareciam ter sido promovidos pelos favores do novo chefe de guerra. O capitão do knarr estava presente: o knarr onde morrera um homem chamado Cabeça-de-Fogo. De cada lado da longa câmara havia homens sentados em bancos, ou de pé em pequenos grupos, conversando uns com os outros; o local estava tão cheio como um templo por ocasião de um sacrifício. Desta vez não há nenhum bode branco, apenas um homem. Os pensamentos de Eyvind desviavam-se para onde ele não queria, mas não conseguia pará-los. E Somerled aprendeu a usar uma faca; e fui eu que o ensinei. O jovem pestanejou e endireitou os ombros. Não podia demonstrar sinais de fraqueza. Manter-se quieto, direito, olhar e falar de modo a não trair qualquer segredo, não dizer mais do que o necessário.O burburinho de vozes cessou. Somerled pusera-se de pé. O Rei usava na cabeça um pequeno círculo de prata trabalhada em vez da costumeira fita; parecia muito pálido, muito sério e muito rei.Chamo esta assembleia à ordem disse ele solenemente sem erguer a voz. Os assuntos que vamos tratar aqui, esta noite, são tristes e perturbadores. Dizem respeito à segurança e estabilidade da nossa colónia nesta terra. O nosso inimigo manobra com subtileza. Procura minar-nos transformando os nossos mais leais servidores e camaradas em traidores, os nossos mais queridos amigos em inimigos. Não penseis que a nossa grande vitória que conseguimos em Dorso de Baleia foi o fim da nossa luta. Oh não. A luta continua nas fendas e cantos escondidos deste país, nas cavernas profundas e lugares sinistros da terra, nas ilhas mais remotas. O mal manobra subtilmente; está debaixo dos nossos narizes, em frente dos nossos olhos, sem que lhe vejamos a cor. Somerled suspirou, o seu olhar escuro intensamente fixo em Eyvind. Por isso é que este julgamento foi convocado sem demora. Não vos mentirei. Sabeis que este homem foi meu amigo íntimo desde a infância, tão querido como um irmão, ambos fizemos um juramento de sangue. Sabeis a dor que sinto por levar isto por diante. Falei com ele, ofereci-lhe a minha ajuda ao ver, já que ele não é capaz, o veneno que o inimigo lhe introduziu na mente. Mas Eyvind não a quis. Foi ele que pediu este julgamento formal, a que eu presido esta noite. E talvez tenha razão em o ter pedido. As acusações são muito graves e se o julgarmos culpado, o castigo será muito severo. Sabeis o que quero dizer. Ouviu-se no salão grande um ligeiro arrastar de pés, uma certa agitação. Grim estava junto da porta virada para ocidente; Eyvind viu o seu ar carrancudo. Onde estava Eirik? Onde estava Margaret?

Portanto, vamos começar. Eu farei as acusações; Eyvind terá a sua vez de falar. A decisão e o castigo serão pronunciados esta noite e a sentença será executada amanhã de madrugada. Isto deixa-nos perturbados; intromete-se nos nossos planos e esforços e lança uma sombra sobre os nossos esforços de conquista. Não posso permitir tal coisa. Não permito uma coisa destas. Quero isto terminado rapidamente e de uma vez por todas.

Os homens murmuram de novo uns para os outros; a Eyvind parecia que todos concordavam. Não havia ali amigos, ninguém para o ouvir? Somerled convencera-os a todos antes de tudo começar?

Muito bem, Eyvind. O tom mudara; agora era sedoso, um tom de voz ilusoriamente suave, um tom de voz que Eyvind ouvira antes num tribunal, deliciosamente antecipatório, parecido com a voz de um gato antes de se lançar sobre a sua presa. Os factos são estes. Tu comandaste os teus homens em Ramsbeck com uma coragem que ninguém discute...

Foi um discurso hábil. Somerled manteve a audiência na palma da mão enquanto desenrolava a história do desaparecimento do seu Pele-de-Lobo e a sua própria dor e ira face à aparente passagem de Eyvind para o lado do Rei Engus e dos seus guerreiros. Em seguida descreveu a visão fantasmagórica no covil das bruxas da ilha aquando do ataque dos seus homens para capturar a sobrinha de Engus. A rapariga era uma feiticeira e tinha de ser detida antes que empregasse as suas artes demoníacas contra as suas forças.

Somerled deu a volta à mesa enquanto falava, andando de um lado para o outro, por vezes por trás de Eyvind, outras vezes na sua frente. Eyvind reparou que ele olhava cada homem nos olhos enquanto passava, como se estivesse a falar directamente com cada um deles. Era enervante. O jovem assestou o seu olhar num determinado ponto da parede de pedra, por cima das cabeças dos árbitros que ouviam atentamente o Rei. Em breve seria ele a falar; teria de apresentar o seu caso com clareza, apesar de se sentir cansado. Tinha de fazer com que aquilo continuasse, não podia desistir. Quanto mais tempo demorasse o julgamento, mais tempo comprava para Nessa.Então, ele regressou dizia Somerled desta vez em carne e osso. Pelos ossos de Odin, nunca senti tanta alegria como naquele momento ao ver o meu velho amigo vivo, se bem que ele parecesse uma sombra de si mesmo. Nós estávamos à beira da nossa grande vitória; e eu só precisava da presença do meu Pele-de-Lobo para que o dia fosse perfeito. Enviei-o para a frente, para que ocupasse o seu lugar entre os outros, na vanguarda, porque, a despeito da sua fraqueza óbvia, parecia ansioso por isso. E então... a voz de Somerled falhou. O Rei olhou para as mãos entrelaçadas. E então... custa-me muito dizer aquilo que já todos vós sabeis. Erlend, meu rapaz, avança e diz a esta assembleia o que aconteceu naquela madrugada em Dorso de Baleia.Erlend tossiu para clarear a voz. Era um homem de poucas palavras; um Pele-de-Lobo sentia-se bem no campo de batalha, à proa de um navio, não num tribunal, se se podia dar esse nome àquela fantochada.Meu senhor e homens aqui reunidos... só posso dizer aquilo que todos vimos naquela manhã. O regresso de Eyvind alegrou os nossos corações. Parecia um bom presságio, ele regressar para junto de nós naquele dia muito particular, naquela hora muito particular. Era um sinal de Thor. Eu achei Evyind um pouco... um pouco mudado, doente, talvez, e enfraquecido por ter vivido durante muito tempo à sorte. Nós não sabíamos onde ele tinha estado e ele disse-nos que se tinha esquecido. Então, no momento de avançarmos, ele...Vai com calma, tens tempo disse Somerled amavelmente.Ele fez uma coisa incrível resmungou Erlend. Desobedeceu ao chamamento de Thor e às tuas ordens, meu senhor. Tentou enfrentar-nos. Só gritava disparates, acusações, coisas de louco. Não podíamos fazer outra coisa senão derrubá-lo, nós os três. Ele estava a pôr a missão em perigo.

Eyvind manteve o olhar fixo na parede. Contava as pedras até vinte e recomeçava de novo, tentando não ouvir a voz angustiada de Erlend. Pôr uma missão em risco era a pior ofensa que um guerreiro podia cometer; quase a pior.Obrigado disse Somerled. Podes sentar-te. O Rei ergueu as mãos abertas, virando-se para envolver no seu gesto toda a assembleia. Que outra coisa havia a fazer? Que havíamos nós de pensar? Houve uma mulher, claro: e quem, senão a própria sobrinha de Engus, a bruxa que nós queimámos juntamente com o tio dela, naquela manhã? Eu vi a fúria nos olhos do Pele-de-Lobo, quando ele ouviu dizer que ela morrera. Para mim, foi evidente que ele tinha sido seduzido pela feitiçaria da feiticeira. Eyvind sempre foi um pouco ingénuo no que diz respeito às mulheres. Havia uma prostituta em Freyrsfjord; metade dos homens da colónia já tinha dormido com ela, mas no nosso amigo aqui eriçava-se todo se alguém fazia algum comentário acerca da... generosidade da senhora.O riso estoirou na sala. Eyvind cerrou os dentes. Ele está a tentar provocar-te, disse ele a si mesmo. Mantém-te calmo.Eyvind dava à desmazelada flores e palavras de amor. Nós outros, dávamos-lhe aquilo que ela esperava disse Somerled secamente.Eyvind fechou os olhos por um momento. Signe nunca fez amor contigo. Ter-mo-ia dito.Eyvind é um homem simples, um homem que nós gostamos de ter a nosso lado no campo de batalha, porque é... era... famoso pela sua coragem e habilidade com as armas. Não é um homem que se mande numa missão que necessite de diplomacia. Durante muitos anos, este grande guerreiro foi como uma criança, fácil de contentar, fácil de comandar. Foi como um pedaço de barro nas mãos daquela gente. Só precisaram de uma estação para o confundirem e corromperem. E regressou para junto de nós ferido, sem cura. Meus amigos, este homem que tendes perante vós não é capaz de distinguir o bem do mal, o amigo do inimigo. Tentei chamá-lo à razão, tentei ajudá-lo. Mas Eyvind não quis. Parece fixo na sua visão estrábica. E, infelizmente, no estado em que está é um perigo para todos nós e para todos os nossos empreendimentos. Um homem forte como um touro e de mente débil não pode andar à solta num reino pequeno como este. E quem é que o leva através do mar para o exílio? Ninguém se arrisca a fazer uma viagem longa por mar com um louco a bordo. Lamento muito dizer isto, mas, a mim, parece-me que só há uma solução.

Seguiu-se um silêncio, um silêncio que se arrastou quando Somerled cruzou os braços, olhou para Eyvind durante alguns momentos e depois, lentamente, como se se dirigisse na direcção do machado de um carrasco, encaminhou-se para a sua cadeira entre os juizes. Nenhum dos homens abriu a boca, emitiu, sequer, um murmúrio.

Eyvind respirou fundo. Juntou as mãos diante de si, não fossem elas começarem a tremer.

Posso falar, agora? perguntou ele o mais tranquilamente possível.

Seguiu-se alguma agitação num dos lados do salão grande, perto da entrada.

Eu tenho uma pergunta a fazer, primeiro! Era a voz de Grim, áspera, forte e nervosa.

Não podes falar. O acusado está primeiro. Podes fazer perguntas mais tarde.

Numa Assembleia, na nossa terra, um homem tem direito a um parente para o apoiar. Isto assim não está certo. Onde está o irmão dele? Eirik devia...

Chega! A voz parecia um chicote. Acusas-me de ser injusto? Tu, um Pele-de-Lobo? Que sabes tu de leis? Somerled virou-se para o homem a seu lado, Harald, Língua de Praia, que fora o homem de leis de Ulf. Explica-lhe disse ele rudemente.

Harald levantou-se lentamente. As suas mãos estavam inquietas, mexendo nervosamente no tecido do seu longo traje, torcendo-o e retorcendo-o.

Eirik Hallvardsson foi mandado chamar já há algum tempo disse ele. Como vês, não apareceu. Se o irmão de um acusado não aparece para o ajudar é porque a ofensa é grave, não te parece?

Onde está lady Margaret? perguntou Eyvind subitamente. Ela não devia estar presente como viúva do anterior chefe de guerra?

Somerled ergueu as sobrancelhas.

Isto é um assunto entre o Rei e o seu súbdito disse ele friamente. Não tem nada a ver com Margaret. Além disso, ela está ausente da colónia.

O que eu tenho a dizer tem tudo a ver com ela disse Eyvind. Devíamos esperar por ela e pelo meu irmão. Em Rogaland, um homem tem tempo para preparar o seu caso, para arranjar testemunhas de defesa... O jovem hesitou ao ver a sólida determinação do olhar de Somerled.Nós já não estamos em Rogaland disse o Rei. E tu estás a perder tempo: o teu tempo. Fala. Que explicação tens para os teus actos bizarros de traição? Ou foi outro homem qualquer que se colocou na passagem de machado em riste contra os seus próprios camaradas?O momento chegara e ele não tinha qualquer ajuda. Até Grim se remetera ao silêncio.Não, meu senhor. Óptimo, a sua voz estava firme: era uma pena as mãos e o coração a bater como um tambor. As tuas acusações são verdadeiras, de facto. Eu enfrentei os teus homens, mas não me arrependo. O teu ataque a Dorso de Baleia foi um acto errado, profundamente errado. O jovem sentiu o estremecimento que percorreu o salão grande; assinara a sua sentença de morte. Confio que possa, esta noite, dar-te parte das minhas razões, dar aqui conhecimento daquilo a que tu chamas uma grande vitória. Eyvind tentou o truque que Somerled tentara, virando-se para que cada homem presente pudesse ver os seus olhos por um momento, ver a sua expressão. Mas foi desastroso; as grilhetas que lhe prendiam os tornozelos estavam separadas apenas por um palmo de corrente e tilintaram quando ele se moveu. Pareço-vos louco, ou selvagem? Estou tão são como sempre fui, talvez mais ainda, porque agora vejo a verdade, ao passo que antes me escondia dela. Aquilo não foi nenhuma vitória, foi um massacre bárbaro e cruel e o homem que o ordenou é agora Rei de um reino sem qualquer consistência. Ele mandou-vos atacar num dia em que o inimigo estava de luto. Isso quebrou todas as regras da guerra; qualquer líder digno desse nome sabe isso. No entanto, nenhum de vós teve a coragem de desafiar a sua decisão.Não sou eu que estou aqui a ser julgado disse Somerled calmamente. Os a seu lado murmuraram consentaneamente.Continua disse Harald, Língua de Prata com alguma irritação.- Nós não estamos interessados nos prós e contras da batalha, apenas no papel que tu desempenhaste nela. As regras da guerra são muito bonitas quando enfrentamos um inimigo da mesma categoria; os Dinamarqueses, por exemplo. Contra tribos primitivas, como estas daqui, essas coisas são inapropriadas.Já te esqueceste do tratado que foi jurado ao mesmo tempo sobre o bracelete e a pedra? perguntou Eyvind. Ulf fez a paz com esta gente, um pacto solene, legal. Tu bates palmas a uma promessa de amizade num dia e no dia seguinte espetas uma faca nas costas do teu aliado?Olha quem fala de promessas disse Somerled em tom monótono. Nós não fazemos, os dois, um juramento de sangue, no qual jurámos lealdade um ao outro? No entanto, tentas sabotar o meu grande empreendimento. Neste momento estás no meu salão a acusar-me de uma traição. Mas tu cometeste uma traição maior: traíste Thor. Aquele espectáculo em Dorso de Baleia, aquela demonstração deslumbrante de força foi uma ilusão, não foi? Thor perdeu a paciência contigo; o deus abandonou o seu filho favorito. Tu já não és capaz de lutar. Somerled olhou em volta, de olhos brilhantes. Mal da guerra, meus amigos, a doença a que os homens não ousam dar nome. Atingiu, até, o nosso mais bravo e corajoso guerreiro. Que outra razão poderia haver para a sua fuga após a batalha de Ramsbeck?Eyvind sentiu-se, subitamente, extremamente cansado. Estava consciente do tremor nas suas mãos, da dor nos joelhos, da cabeça latejante. Os sons pareciam ir e vir como ondas. Aquilo não podia continuar. Ainda mal lhes começara a falar. A sua mão subiu para tocar no pequeno talismã de Nessa, por baixo da túnica, junto à pele.Eu agi como agi para preservar o tratado disse ele, fazendo um esforço para manter a voz firme. A população das ilhas tratou-nos com generosidade. E nós retribuímos-lhe com a morte. Se é isso que significa ser guerreiro, então talvez seja uma bênção eu já não poder pegar no machado como antes. Uma coisa eu sei. Não posso seguir um chefe de guerra que tem as mãos manchadas do sangue do próprio irmão.O quê? Harald, Língua de Prata pusera-se de pé de novo, assim como Olaf Sveinsson, do outro lado do Rei. O salão grande encheu-se de vozes chocadas. Somerled continuou sentado tão tranquilamente como sempre.O homem é maluco! explodiu Olaf Isto é um disparate perigoso.Na verdade acrescentou Harald. Não ouçamos mais estes disparates. Se Eyvind Hallvardsson não é capaz de se limitar ao que estamos aqui a debater, não vale a pena ouvi-lo.De modo nenhum disse Somerled gentilmente. Quando um homem enfrenta uma sentença de morte, o mínimo que podemos fazer é ouvi-lo, por mais detestável que seja o seu discurso. Longe de mim amordaçar os seus argumentos só porque parecem aproximar-se do meu modo de actuação. Continua, Eyvind. Nunca pensei ver-te apresentar um caso legal, velho amigo; é uma experiência nova. Ouviram-se algumas risadas de troça, mas a disposição predominante era tão sombria como o olhar de Somerled; apesar de toda a ironia do Rei, era evidente, para Eyvind, que ele sabia que aquela era uma luta de morte.Eu não peço desculpa pela minha maneira de falar disse Eyvind. Tal como Erlend, eu sou um guerreiro, não um cortesão. Estou aqui para dizer a verdade, mais nada, para ser ouvido antes de decidirdes o meu destino. Mantenho o que disse. Como Somerled vos disse, sou um homem simples. Não posso colocar magia nas minhas palavras para mudar a opinião dos homens, para fazer com que eles digam que uma coisa é preta, quando é branca. Quero refazer o dia passado em Ilha Alta, o dia em que o nosso bom chefe de guerra, Ulf, foi assassinado de acordo com uma profecia e o seu irmão tomou o seu lugar. Estais dispostos a ouvir-me?Seguiu-se um silêncio gelado. Então, Olaf Sveinsson disse levemente:Esse assunto não tem nada a ver com as acusações. Meu senhor Rei, está a fazer-se tarde. Temos de ouvir isto?Por que não? perguntou Somerled em tom leve, e encostou-se na cadeira, semicerrando os olhos e cruzando os braços. O divertimento é gratuito, no fim de contas: temos pouco disso neste canto esquecido do mundo. Por favor, continua, Eyvind.Imitando o truque de Somerled, Evyind virou-se, abrindo os braços num gesto que envolvia os que estavam ao fundo do salão grande, os Pele-de-Lobo, os guardas, os homens de menos posição.Vós conheceis-me disse ele simplesmente. Sabeis muito bem que não tenho o hábito de contar falsidades. Somerled foi meu amigo. Em rapazes passámos muitas estações em perfeita companhia, na caça, nos campos da herdade do meu irmão, em Hammarsby, a patinar no lago e a contar histórias à lareira. Por isso, ficai a saber que me dói muito falar desta maneira, porque ele é um homem de muitas qualidades, um homem que eu, em tempos, acreditei com capacidades de liderança. Quando éramos crianças, dizia-me que um dia seria rei, mas os outros riam-se. Eu acreditava nele. Creio que pressentia aquilo que sei hoje, que ele não permitiria que nada se opusesse à sua ambição, nem sequer o seu próprio irmão.

Seguiu-se um burburinho de vozes em redor do salão grande, depois silêncio e Eyvind continuou.

Eu tenho fortes razões para acreditar que Somerled sempre tencionou ocupar o lugar de Ulf disse ele calmamente, fixando de novo o olhar na parede de pedra por cima da cabeça do Rei, porque não conseguia olhar para os implacáveis olhos escuros e dizer o que tinha para dizer. O amor não desapareceu entre eles; nunca existiu. Ulf não queria Somerled na corte. Aproveitava todas as ocasiões para deixar o irmão connosco, na herdade. Ulf temia trazê-lo nesta viagem.

Temer, disse Somerled vagarosamente é um bocado forte. Mas é verdade, Ulf não queria que eu viesse. Foi o próprio Eyvind que me conseguiu um lugar no knarr: um belo sinal de amizade, pelo qual lhe estou imensamente grato.

Sim, é verdade. A culpa é minha e sinto-me envergonhado por ser o causador da sua estadia nestas ilhas. Porque quando Ulf trouxe o seu irmão para as Ilhas Brilhantes, trouxe também a inquietação. Trouxe sangue e crueldade. Trouxe a própria morte.

O silêncio foi completo. Os dedos de Harald, Língua de Prata pareciam ser a única coisa móvel na câmara, brincando nervosamente com uma colher que alguém deixara na mesa depois da refeição. Finalmente, Harald clareou a voz e falou.

Essas acusações são muito graves, Pele-de-Lobo. Já que o meu senhor Rei deseja ouvir a tua história, parece que não temos outro remédio senão deixar-te falar. Mas não vejo em que é que essas acusações podem ajudar o teu caso. Poupa-nos os pormenores, pelo menos, e sê breve.

Olaf resmungou consentaneamente; Somerled ficou silencioso. O Rei estava a olhar com interesse para o fundo do salão grande, para lá de Eyvind e, contra a sua vontade, este virou a cabeça para olhar. Duas mulheres passavam ao longo da câmara com jarros de cerveja, enchendo canecas à medida que iam andando, mulheres jovens, de cabelos escuros, vestidas com saias simples e olhos sombrios. Uma tinha uma equimose lívida na face; a outra caminhava cuidadosamente, como se tivesse uma dor qualquer. Eram filhas das ilhas: pertenciam ao povo de Nessa. Ao vê-las naquele local, prisioneiras, encheu Eyvind de fúria e terror. Reparou, um momento antes de se virar para a mesa, que os homens as apalpavam, as acariciavam e as beliscavam à medida que passavam, e como o ressentimento nos seus rostos jovens se misturava com o medo. Uma das raparigas pisou o pé de um dos homens e o tipo deu-lhe uma palmada numa orelha, o que provocou a chacota dos guerreiros que estavam perto dele. Eyvind virou-se para enfrentar Somerled e os lábios deste torceram-se num sorriso.

Tempo, recordou Eyvind a si mesmo. Joga com o tempo; mantém Nessa a salvo.

Muito bem disse ele. Se queres uma história curta, tê-la-ás, curta e sangrenta, uma história capaz de enojar o coração dos homens...

Contou-a o melhor que pôde. Foi uma história simples; o jovem não tinha o palavreado de Somerled, a sua inteligência brilhante. Falou da viagem a Ilha Alta, na subida, na bruma, na terrível busca e na descoberta medonha. Achou que não deixara nada de fora, se bem que lhe fosse cada vez mais difícil pensar. Via os rostos dos juizes desfocados e as lâmpadas pareciam dançar diante dos seus olhos. Tentou explicar como o medo e o preconceito os tinham cegado a todos. Por que razão havia o Rei Engus de querer Ulf morto? O respeito entre ambos era claro para todos e depois da visita ao antigo túmulo esse respeito desapareceu. Depois, falou na morte de Hakon. Eles tinham de compreender que os ilhéus não podiam ter cometido aquele crime, ia contra tudo aquilo em que acreditavam. Ninguém se lembrava de ter visto Somerled ameaçar o mais leal dos seus Pele-de-Lobo? O incêndio que matara Hakon fora ateado por ordem de Somerled como demonstração de força. Por certo que tinham percebido? Por certo que viam como aquele novo líder tinha transformado a visão de paz de Ulf num pesadelo de sangue e crueldade?

A voz de Eyvind tremia; precisava de se sentar. O jovem tentou juntar as pernas, endireitar os ombros. As raparigas da ilha estavam agora a abandonar o salão grande com os jarros de cerveja vazios. As suas feições delicadas, o porte orgulhoso e as peles pálidas como o luar fizeram-no recordar Nessa. Pelo martelo de Thor, fora naquela manhã que a tivera nos braços, que sentira a carícia dos seus longos cabelos na pele, o calor do seu corpo contra o seu, a sua outra metade, o seu complemento? As raparigas desapareceram. O jovem virou-se; Somerled sorriu levemente.

Que estás tu a tentar fazer aqui, Pele-de-Lobo? Harald, Língua de Prata bebeu um gole de cerveja e pousou a caneca pesadamente na mesa. A tua história é incoerente. Estás a acusar o Rei para que o castigo pelas tuas maldades seja menor? A justiça, aqui em Hrossey não é a mesma de outros tempos. Não percebeste, quando o Rei explicou? O seu tom não era desprovido de alguma amabilidade.

Eyvind nunca foi muito rápido em raciocínio disse Somerled gentilmente. Recordo-me do tempo em que tentei ensinar-lhe a escrever o nome dele em caracteres rúnicos; posso dizer-vos que essa tarefa pôs à prova a minha paciência. É melhor facilitar-lhe as coisas ou ficamos aqui a noite toda. Eyvind, tu não podes fazer acusações só por ouvir dizer. Tens de ter provas. Se eu te digo que não tomei parte no que aconteceu a Hakon, isso chega, a não ser que consigas apresentar testemunhas que digam o contrário. Um assembleia legal não aceita acusações infundadas como essas. Compreendes?

A visão de Eyvind desfocou-se de novo e voltou a limpar. Não sentia as pernas. O jovem cerrou os maxilares e fez um grande esforço para olhar directamente para os olhos escuros e enigmáticos de Somerled.

Compreendo disse ele, respirando fundo. Não falarei mais de Hakon, cuja morte se destinou a inflamar-nos contra o povo de Engus. Não falarei de outras acções que deviam pesar na consciência de Somerled: a violação de uma rapariga quase uma criança e o assassínio a sangue-frio de um homem que procurava vingar esse acto criminoso. Eu pedi um julgamento aberto com um objectivo único: poder dizer à assembleia aqui reunida que este homem assassinou o irmão. Fê-lo para conseguir o reino que ambiciona desde a infância. A sua subida ao poder baseou-se num crime hediondo contra a natureza e o sangue. Naquela manhã, em Dorso de Baleia, eu já sabia que não podia continuar a segui-lo e acreditava que todos tinham o direito de saber a verdade acerca deste novo líder antes de prestarem vassalagem. Ou foi o próprio Somerled que o fez, ou contratou outros para o fazerem por ele. Sei como ele é implacável. Vi-o vezes sem conta, desde que era uma mera criança. Conheço-o melhor do que ninguém. É clara a sua mão na morte de Ulf, cuidadosamente planeada, fiel em cada pormenor à profecia cuja sombra o nosso bom chefe de guerra transportou consigo até esta bela terra. Acreditai que digo a verdade. Eu só sei dizer a verdade. A sua respiração estava a ficar entrecortada, como se tivesse acabado de fazer uma longa corrida; terminou Com um murmúrio e as luzes pareceram ficar mais vivas e depois pareceram apagar-se, como se o estivessem a fazer de propósito. O jovem perguntou a si próprio se não iria desmaiar.

Ouviu-se uma chiadeira; Grim apareceu ao lado de Eyvind com um banco de três pernas.

O que é isto, Pele-de-Lobo? A voz de Somerled soou, pela primeira vez, aborrecida. Eu dei-te autorização para te aproximares do prisioneiro?

Senta-te, louco grunhiu Grim em voz baixa, e Eyvind sentou-se. Seria completamente inútil para a causa de Nessa, ou para a sua, se caísse no chão inconsciente. Somerled não hesitaria em concluir o processo sem ele, pronunciando o veredicto e a sentença na sua ausência. Tinha de continuar: cada momento que passava era tempo que Nessa ganhava.

Os olhos de Somerled perfuraram a longa câmara na direcção de Grim.

Falarei contigo mais tarde disse ele secamente. Um homem que não obedece às ordens tem estadia curta na minha casa, e por estas bandas não há grandes ofertas de emprego. Bem, onde íamos? Ah, sim: o meu irmão. Estou impressionado com o arrojo do teu depoimento, Eyvind. Não consigo perceber como levei a cabo o assassínio. Na verdade, é difícil imaginar alguém a cometer um crime em circunstâncias tão bizarras. Cometer um acto daqueles exigiu um homem de força excepcional. O meu irmão não era nenhum magricela e o seu instinto de conservação deve ter sido formidável. Ele tinha aqui uma missão, uma visão que o obcecava há muito tempo. Ulf é que era implacável, Eyvind, não eu. Ele mal esperou pela morte do nosso pai para vender tudo e começar a construir o seu grande navio. O homem ainda estava quente no túmulo quando os contratos foram fechados.

E tu perdeste a tua herança disse Eyvind suavemente, sentindo uma estranha vertigem na cabeça, uma vertigem que ia e vinha.

Somerled encolheu os ombros.

Aquilo, para mim, tinha pouco significado. Eu sempre segui O meu caminho.

Pele-de-Lobo? A voz de Olaf era acerada. Tu acusas o Rei, nada mais nada menos, de fratricídio, um crime aberrante

para qualquer homem ou melhor de mente sã. As tuas alegações parecem ser inteiramente sem fundamento. Nós não podemos continuar por este caminho sem que apresentes provas. Tens testemunhas que possas chamar? Tens alguma prova concreta? Recordo-te que não é Somerled que está a ser julgado, tu é que estás e é a tua vida que está no prato da balança. Seria bom que não o esquecesses.

Eu sei isso disse Eyvind, perguntando a si próprio se o estranho comportamento da sua visão e audição teriam alguma coisa a ver com os ferimentos que sofrera durante o dia, ou talvez com o golpe que lhe desferira Grim. Se me tivesse sido concedido tempo, teria feito com que fosse o Jarl Magnus a presidir a este julgamento e teria, quase de certeza, encontrado testemunhas. Um crime como o assassínio de Ulf, levado a cabo com tantos pormenores cuidadosos, não se consegue sem o conhecimento de alguns homens, pelo menos.

A não ser que o criminoso tivesse forças sobre-humanas observou Olaf. Portanto, estás a dizer-nos que não tens testemunhas?

Não posso apresentá-las esta noite. Não quereis, pelo menos, considerar o modo como o crime foi perpetrado? Ulf e o seu irmão estavam juntos na falésia. Desapareceram juntos quando a bruma apareceu. Só vimos Somerled de novo quando o Sol nasceu no outro dia e quando ele reapareceu a sua história foi muito resumida e pouco plausível. Meus senhores, fui eu quem ensinou Somerled a caçar e a colocar armadilhas nas florestas selvagens de Rogaland. Ilha Alta é um lugar aberto, deserto, onde as escarpas e as encostas dos montes oferecem enormes paisagens, tanto de terra, como de mar. Somerled nunca se podia ter perdido naquele dia. Ele sabe guiar-se, tanto de noite como de dia. Ele conhecia perfeitamente a profecia. Era uma pessoa influente, havia homens que eram capazes de tudo só para lhe agradar, homens que ele atraiu com promessas, homens sem escrúpulos, capazes de assassinar para conseguir um lugar acima da sua condição. Eyvind olhou de relance para o capitão do knarr o homem devolveu-lhe o olhar, o rosto vermelho, os pequenos olhos irados, cheios de aversão. Mais ninguém podia ter feito aquilo naquele dia.

Disparate. O tom de Somerled era suave. Havia quatro homens perdidos na montanha naquela noite e nenhum regressou de madrugada. Havia nove homens à espera no ponto de encontro, dormindo, incapazes de ver dois dedos à frente do nariz por causa da bruma. Aposto contigo em como qualquer um deles, ou dois, teve oportunidade, como outro qualquer, de cometer o assassínio. Naquela manhã tudo estava confuso, segundo me disseram. Eu próprio andei perdido durante a maior parte do dia, tal como os outros. Quem pode saber o que aconteceu na falésia e em que sequência? A única coisa que eu sei é que o meu irmão foi assassinado e que tudo apontava para o Rei Engus. Esta gente das ilhas não pensa como nós. Este sítio está cheio de superstições e práticas de feitiçaria. A maneira como o assassínio foi cometido não sugere um sacrifício, talvez para apaziguar a fúria do oceano? Não se devem fazer alianças com um povo tão diferente do nosso, tanto nas crenças, como no sangue.Eyvind. Fora Olaf Sveinsson que falara, o seu olhar fixo intensamente no acusado. Sem provas, as tuas acusações não têm validade. Chegou a hora de encerrarmos o processo. Estamos todos cansados. Se o Rei concordar, penso que devemos discutir isto em privado e tu deves regressar à tua cela. Tu não pareces bem; o descanso preparar-te-á melhor para enfrentares o que se segue. Estamos de acordo? O juiz virou-se para Somerled e este acenou com a cabeça.Existe uma prova! Eyvind pôs-se de pé num salto, a voz faltando-lhe devido ao desespero. Aquilo não podia acabar já, tão depressa: e Nessa? Eu tinha-a na minha posse, naquela manhã em Dorso de Baleia, mas Somerled roubou-ma. Pergunta-lhe, se te atreves.Harald e Olaf olharam ambos para Somerled. Este olhava para Eyvind e tinha de novo aquele olhar antecipatório presunçoso. Agora, pensou Eyvind, agora Somerled vai dizer algo como Não sei do que estás a falar, Eyvind, e recordar a todos como um homem forte pode ficar perigoso quando perde o juízo.Sabes o que isto significa, meu senhor? perguntou Harald. Seguiu-se uma pequena pausa. Subitamente, o salão grande ficou silencioso, salvo uma pequena perturbação na porta mais distante, onde parecia que alguém tinha acabado de entrar.Creio que sim disse Somerled suavemente, metendo a mão numa algibeira da túnica. Estás a falar disto, Eyvind? O Rei mostrou um pequeno objecto que colocou em cima da mesa. Eyvind aproximou-se, arrastando os pés, para ver melhor. Pelo martelo de Thor, Somerled era, na verdade, um grande jogador; não havia, certamente, maneira de ele virar aquilo a seu favor. O coração de Eyvind batia violentamente; sentiu o fluxo de sangue nas orelhas e o suor a escorrer-lhe pelo corpo todo. Porque ali, em cima da mesa, ainda com os nós do fio de pesca emaranhados, estava a fivela de prata de Ulf.

Faltava uma cavilha. A mulher do mar segurou-a entre os seus aguçados dentes brancos. Roeu-a um pouco, gentilmente, tirando-a de vez em quando para olhar para a forma e metendo-a de novo na boca para continuar o seu trabalho de desbaste. Por fim, aparentemente satisfeita, meteu-a no último pequeno buraco e sentou-se nos calcanhares com uma melodia de satisfação. As outras estenderam as mãos, oferecendo solenemente a Nessa as seis cordas que tinham fabricado com os cabeços. Se bem que as cordas fossem finas como a seda, ela assistira à sua feitura e sabia que cada um delas tinha a sua espessura particular, a sua nota e o seu lugar. Agora, tinha de as colocar na armação e acordar a voz do morto. Mas estava escuro; só um mocho, ou um rato nocturno seria capaz de executar essa tarefa. Sem aquelas maravilhosas filhas do oceano ela não teria conseguido. No entanto, quase desejou chamar de novo a Tribo Perdida; esses, pelo menos, traziam as suas próprias luzes.Não vejo nada disse ela com a voz a tremer. Como hei-de fazer isto?À sua volta, as mulheres da Tribo das Focas sentaram-se em silêncio, como se estivessem à espera. Pensa, Nessa. Era difícil obedecer à sua própria ordem porque estava cansada, doíam-lhe as costas e não comia nada há longas horas. E havia o medo de errar: o seu povo escravizado, maltratado, Eyvind em risco de vida, tudo dependia dela. Pensa. A praia, o silêncio, a faca na sua mão: a faca, era isso. Nessa levantou-se; olhou para oeste e desenhou um círculo, um círculo muito pequeno na escuridão. Murmurou as palavras de saudação, saudou os quatro pontos cardeais e virou-se de novo para o oceano. A sua voz era um murmúrio, o seu cântico não foi hesitante, saiu claro e puro. Em redor do círculo, as cinco mulheres do mar permaneciam silenciosas enquanto a última sacerdotisa dos Folk proferia a sua invocação.Poderes da terra, espíritos do oceano, divindades o ar e do fogo, saúdo-vos! Saúdo o vosso poder; agradeço-vos a vossa orientação. O meu chamamento é solene e desesperado. Vós, que vedes os nossos passos todos os dias, todas as estações, vistes o que caiu sobre estas ilhas pacíficas. O nosso Rei morreu pelo fogo e os nossos homens tiveram as cabeças cortadas como espigas colhidas antes de tempo, perdidas e desperdiçadas para sempre. As nossas mulheres foram escravizadas e as nossas crianças caminham com olhos aterrorizados, a sabedoria dos nossos anciãos foi eliminada. A Pedra do Povo foi atirada por terra, os Folk estão reduzidos a uma sombra do que eram. Estamos presos por um pequeno dedo. Estamos a um fio da destruição total. As ilhas foram despojadas dos seus guardiões humanos no espaço de uma Primavera para outra. O mal caiu sobre esta terra, um mal que roubou as nossas terras, as nossas casas e as nossas vidas. Somerled Senhor-dos-Cavalos é capaz de nos roubar o futuro; é capaz de apagar a nossa memória, a memória do que éramos.As mulheres do mar tinham recomeçado a cantar, uma canção pura e em voz baixa, um cântico doce que se entrelaçou nas palavras de Nessa. As suas vozes zumbiam-lhe no sangue, faziam coro com o seu coração, dando-lhe forças.Estes homens das terras geladas não eram todos maus. Aquele que os liderava procurava a paz; ele veio como amigo. Por isso, foi morto. Eu procuro acordar a voz dele. Gostaria de o levar ao seu próprio salão e deixá-lo-ia dizer a verdade, para que todos ouvissem. E há outro, que arrisca neste momento a vida para testemunhar a nosso favor. Se não chego a tempo, será decapitado, tal como os nossos homens. E isso não pode acontecer. Eu ouvi a voz vinda das profundezas da terra, a voz da Mãe Terra. Eyvind é nosso guerreiro. Ele lutou e caiu por nós no nosso dia de sangue e de terror, porque eu o enviei para falar pelos Folk. Um homem menos forte não teria sobrevivido ao que lhe fizeram, mas ele conseguiu libertar-se e veio ajudar-me. Este campeão tem um papel a desempenhar, um papel muito maior do que simplesmente sofrer uma morte sem sentido. Nós perdemos demasiados homens bons nesta estação de carnificina. Ajudai-me a salvá-lo. Ajudai-me a salvar as filhas dos Folk, cativas na colónia de Somerled. Ajudai-me a acordar a voz de Ulf, sonhador de sonhos, a única verdadeira testemunha contra este cruel chefe de guerra. Dai-me luz! Guiai-me nesta jornada!A canção da Tribo das Focas elevou-se na noite, complexa e bela, nota após nota de uma melodia graciosa, tecendo uma teia que foi rodeando a figura imóvel de Nessa, ao mesmo tempo que as estrelas apareciam uma a uma, pontos brilhantes no céu azul-escuro. Com O coração ao ritmo daquela música estranha, Nessa ergueu as mãos num gesto que era mais uma feroz exigência do que uma humilde súplica.

Guard acrescentou uns uivos sobrenaturais àqueles sons nocturnos e, por cima, piou um mocho, de passagem para a caça. O mar ia e vinha, ia e vinha; um sussurro de brisa passou pelos cabelos de Nessa e agitou as frondosas madeixas das suas estranhas companheiras.A jovem fechou os olhos numa meditação silenciosa, acalmando o seu coração apressado, abrandando a respiração e acalmando a mente, até que a mais profunda das vozes falou no interior do seu espírito. E tu? Há uma parte nessa história que tu não me contaste. Que te diz o teu coração, sacerdotisa? Manter-te-ás fiel a mim?Sim sussurrou ela. Os seus olhos ficaram marejados de água; a jovem não permitiu que elas caíssem. Farei o que for preciso para salvar as ilhas e preservar os seus segredos. Farei o que for preciso para assegurar que os Folk sobrevivam e permaneçam como guardiões desta bela terra. Juro-o como tua sacerdotisa. E juro-o como a última mulher de linhagem real das Ilhas Brilhantes.Nessa permaneceu imóvel, sentindo o peso da exaustão em todas as partes do corpo. Mas era necessário continuar. Encontraria forças algures. Nessa abriu os olhos e viu uma luz pálida que começava a aparecer na paisagem, tocando a areia com uma luz levemente prateada, iluminando as formas delicadas e nuas das suas companheiras, os seios cor de pérola, os braços alvos de neve, as ancas longas, as curvas suaves de uns corpos que não eram exactamente de mulher. A jovem virou-se: a pequena harpa brilhava, branca, à luz do luar, esperando as cordas que libertariam a sua voz.Que bom disse Nessa solenemente. Que bom. Agradeço-te do fundo do meu coração. E cumprirei a minha palavra. Então, a jovem deu de novo a volta ao círculo e apagou-o, enquanto o cântico das mulheres do mar decaía e refluía como uma maré poderosa. Elas amontoaram-se de novo junto da harpa e, uma a uma, as escuras cordas feitas de cabelo foram atadas e enganchadas na base, onde Nessa tinha feito encalhes e enroladas cuidadosamente em redor das pequenas cavilhas habilmente fabricadas, na parte superior da armação. Uma, duas... quatro, cinco... À medida que cada uma era colocada no seu lugar e a cavilha era rodada para a apertar, Nessa ia sentindo o poder crescente do instrumento que fabricara; transportava consigo, sem dúvida, a vida do chefe de guerra cujo corpo fornecera os seus materiais e parecia ansiosa, pronta para fazer soar as palavras que lhe tinham sido retiradas pela morte.

Eu sou... Ulf... Ela sentiu os pêlos do pescoço eriçarem-se-lhe e um arrepio percorrer-lhe a espinha. Enroscado... à beira... sussurrou a harpa. Som... Somer... Nessa quase tinha medo de colocar a última corda. Mas as mulheres do mar apressavam-na: O carreiro, lá em cima, para leste, corre, corre, depressa, depressa! Ela meteu a frágil fibra no entalhe, enroscou-a em redor do pequeno osso da mão e girou este para que a corda ficasse no seu lugar; a jovem começou a apertar a cavilha. Ouviu-se um súbito som sibilante e quando ela olhou para cima as mulheres do mar estavam, com os seus olhos líquidos ansiosos, a abanar as cabeças em sinal de aviso.

Ainda não? perguntou Nessa com o coração a bater com toda a força. Ah, já percebi. Só quando chegar ao salão de Somerled. Só então poderei libertar a voz. A jovem meteu cuidadosamente a pequena harpa no saco que pouco tempo antes transportara apenas ossos amontoados uns nos outros. Vou-me embora. Agradeço-vos a vossa ajuda. Sem vós isto teria sido impossível.

Elas saudaram-na com uma chuvada de notas parecidas com o canto das cotovias, uma música deslumbrante, brilhante, de reconhecimento. Somos irmãs. Vai. Tem cuidado.

Havia por ali pequenos bocados de osso, lascas, fragmentos. Nessa reuniu-os todos com respeito e depositou-os gentilmente num canto abrigado da gruta. Enrolou novamente a pele de lobo e apertou-a fortemente. Guard esperava de orelhas para trás e cauda entre as pernas. O animal parecia tudo menos firme. O caminho até ao alto da falésia era longo e mais longo ainda, à luz do luar, até ao salão de Somerled.

Duas mulheres do mar avançaram com um pequeno pacote nas mãos estendidas. O tom da sua canção e a inclinação cortês das suas cabeças indicava que era um presente e que Nessa devia levá-lo com ela. Estava embrulhado no que podia ter sido um pedaço de tecido, ou algas secas, ou a pele de um animal existente apenas nas águas profundas.

Ob... obrigada gaguejou Nessa. Não sei como poderei levar...

Umas mãos longas estenderam-se para lhe prenderem o pacote no dorso com uma corda de algas entrançadas. Nessa respirou fundo. Levava a pele de lobo debaixo do braço e a harpa debaixo do outro. O carreiro era íngreme e estreito. Não poderia cometer qualquer erro. Jurara que faria aquela jornada e fá-la-ia.

Adeus disse-lhes ela Não esquecerei o que fizestes. Com preendo a sua importância. Nós somos da mesma espécie, irmãs, apesar das nossas diferenças.

Elas estenderam os braços para a acariciarem nas faces, nos cabelos, nos braços e agarrando-lhe na mão. A pele delas era fria, tão fria como a geada e estava constantemente a tremer, como se o fluxo e refluxo do mar lhes estivesse presente na carne, mesmo quando em terra. As suas vozes cantaram uma canção de saudação e adeus: Irmã nossa irmã. Tão corajosa, tão pura. Vai, tem cuidado.

Guard hesitou, relutante em começar a jornada. Ficou na base do carreiro ganindo, um som que aumentou de ansiedade quando Nessa, com o coração aos pulos, deu os primeiros passos à luz fraca da Lua que jazia pendurada no céu, algures por trás do topo da falésia. Não podia demorar-se mais. Não podia ignorar a mensagem: se não fosse naquela noite, nunca mais seria. Por trás de si, Guard ganiu de novo. O som chegou-lhe como se ele estivesse muito longe. Ela esperou, tentando não olhar para trás, e chamou-o com uma voz tranquilizadora.

Lindo menino, Guard. Anda. Não é longe.

A jovem ouviu em baixo um som sibilante, como se as mulheres do mar procurassem levar o animal consigo: seguiu-se um súbito esgravatar e depois o silêncio. Nessa não sabia onde estava o cão. Virou a cabeça, olhando para baixo à luz difusa. O luar reflectia-se na água do mar. O seu estômago agitou-se; uma vertigem varreu-lhe a cabeça. Para cima, tinha de continuar, era a única coisa que interessava.

Guard? A jovem conseguiu vê-lo na base do carreiro, a uns metros apenas da praia, agachado, imóvel. Ela não podia ajudá-lo, carregada como ia. Talvez conseguisse chegar ao topo, pousar o que transportava e regressar para o ir buscar. Mas, supondo que o levava são e salvo até ao topo, e depois? Para chegar à colónia a tempo teria de arranjar um cavalo em qualquer sítio e, se o fizesse, Guard não conseguiria acompanhá-la.

Nessa continuou a trepar pelo carreiro. Nas suas costas só se ouvia o suspiro do mar e os gritos sonolentos das gaivotas nas saliências. Estava sem fôlego e doía-lhe o corpo. Fora estupidez esquecer a importância da comida, porque agora estava fraca e estava a ficar sem forças. Imaginava o que Rona teria dito. Rapariga tola! Até uma sacerdotisa tem de comer e beber. A mente não te pode ajudar se tu não ajudares o corpo. Toma, bebe este caldo de carne.

Uma nuvem tapou a Lua e o carreiro desapareceu sob os seus olhos. Não podia usar as mãos, que seguravam as trouxas, para apalpar o caminho; tudo o que podia fazer era ficar completamente imóvel encostada à parede de rocha. Durante o dia, a paisagem devia ser maravilhosa, com as aves voando em busca de comida, gaivotas e papagaios-do-mar, andorinhas-do-mar e mergulhões, circulando e passando na sua dança pela sobrevivência. Mas agora, na escuridão, só via imensidão do vazio, a estreita margem de segurança tão estreita como o tamanho do seu pé, o negro vazio pronto para a receber na queda final. A jovem sentiu uma náusea no estômago; fez um esforço para se controlar, fincando os dedos na grande e suave pele de lobo. Quero tanto viver. Mais do que outra coisa qualquer na minha vida. A Lua emergiu uma vez mais; fria, banhou a falésia gelada com uma luz prateada e abriu um trilho brilhante na água escura. Nessa avançou sem saber se a voz que ouvira era a sua ou a de outra pessoa qualquer, trazida por algum vento estranho vindo de leste.Já vou murmurou ela. Estou a chegar. Espera por mim. Guard ganiu algures lá em baixo. Certamente, não estava muito mais acima do que da primeira vez e agora ela já estava perto do topo e tinha de continuar. Como ir buscá-lo? O cão era grande e as suas forças eram tão poucas como as dele. O animal ganiu de novo e então ela ouviu uma resposta vinda de cima, uns latidos fortes, vivos, vindos do topo da falésia. O coração de Nessa apertou-se, alarmado. Os homens de Somerled, com cães: tinham-na seguido de qualquer modo e agora esperavam-na para a levar como tinham levado Eyvind. A harpa perder-se-ia, a única hipótese, porque o frágil instrumento ficaria em pedaços se fosse deixado cair ou tratado com rudeza. O povo de Somerled achava que ela era uma feiticeira, que fazia feitiços para lhes fazer mal. Destruiriam imediatamente o instrumento, antes que a sua voz pudesse ser ouvida.Os latidos continuaram, profundos e vibrantes e ouviu-se um arranhar, um som de patas a rasparem nas rochas do carreiro e, de súbito, Guard apareceu por trás de si, latindo de contentamento. Contra todas as probabilidades, o animal conseguira trepar por ali acima numa fracção do tempo que levara a Nessa.Muito bem, Guard conseguiu ela dizer e como não tinha outra hipótese, deu os últimos passos que faltavam para chegar ao topo da falésia. No momento em que pôs os pés em terreno plano quase foi atirada pela falésia abaixo, porque o cão que se lhe atirou ao peito para a receber com alegria era saudável e forte. Guard chegou também ao topo e os dois, como duas ervilhas saindo da vagem, correram, perseguiram-se e farejaram-se extasiados, as caudas agitando-se furiosamente perante o deleite do reencontro. Shadow. Shadow desaparecera com Rona, fora o que Eyvind dissera. Mas, parecia que Shadow chegara ali sozinha. Não havia ali guerreiros, ninguém, apenas o luar e as pedras.Linda menina murmurou ela, pousando a pele de lobo para descansar o braço. A jovem fez uma festa na cabeça do animal, sentindo o calor da língua húmida nos dedos. Muito bem. Mas, agora, temos de continuar. Preciso de um cavalo e tenho de o arranjar na escuridão. E depois... Não sabia como havia de fazer aquilo, era impossível fazer a jornada a cavalo carregada daquela maneira. Que diria Rona? A jovem imaginou a velha amiga junto da fogueira, agitando um pote com qualquer coisa odorífera lá dentro; deuses, como tinha fome; e olhando para ela de esguelha. Tu és uma sacerdotisa. Faz com que as coisas aconteçam. Que grande ajuda.Shadow parara de brincar e marchava agora por um carreiro quase invisível, virando a cabeça como que para se certificar de que Nessa a seguia. Guard mantinha-se junto da companheira. Parecia que o animal, pelo menos, tinha algumas forças de reserva e que ia continuar até atingir o ponto de exaustão. Tinha, talvez, reencontrado a esperança. Pegando na pele de lobo e fincando os dedos no outro precioso fardo que transportava, Nessa seguiu os dois animais para leste, através dos campos mergulhados na escuridão. Viu algumas herdades não muito longe. Pelo menos, tinham sido herdades ainda não há muito tempo, três cabanas com bom aspecto, separadas por campos murados, com animais bem tratados, incluindo um ou dois cavalos. Os homens que olhavam por eles tinham morrido em Dorso de Baleia. Não sabia se haveria ali alguma mulher. Era na direcção daquelas casas que Shadow os guiava. Marcharam os três à luz do luar.Shadow passou ao largo da primeira casa, onde as portadas das janelas estavam fora dos gonzos e partidas e onde algo batia ritmadamente sob a brisa cada vez mais fresca. Não havia sinais de vida. A segunda casa estava queimada até aos alicerces e havia objectos espalhados no pátio: um xaile de lã praticamente rasgado ao meio, uma bota de criança e um cesto cujo conteúdo de cebolas engelhadas estava espalhado pelo chão. Aquilo era sangue, naquele canto onde uns degraus iam dar ao muro de pedra, ou era apenas um pedaço solo mais escuro? Shadow passou por cima; Guard seguiu-a desajeitadamente devido à sua fraqueza. Nessa saltou logo a seguir a eles e não olhou para trás. Mais tarde, quando tudo tivesse terminado, haveria tempo para recordar aquilo, para chorar, para os rituais de despedida.Aproximaram-se da terceira casa. O coração de Nessa deu um salto. No interior brilhava uma luz e no pátio estavam uns homens armados, de guarda. Tinham aspecto de noruegueses, elmos de ferro, capas curtas, túnicas atadas com cintos. Em redor dos seus corpos havia numerosas armas.Shadow! sibilou ela. Shadow, anda cá! Porque o animal desatara a correr e a ladrar, chamando a atenção para a sua presença. Guard seguiu-a confiantemente. Nessa acocorou-se junto de um anexo com o coração a bater como um tambor. Dentro de momentos os homens descobri-la-iam.Um dos guardas estava a estender o braço para fazer uma festa ao animal; não parecia nada perturbado pela chegada dramática. O outro juntou-se-lhe com as mãos nas ancas. Ficaram a olhar para Guard; Nessa podia ouvir as suas vozes espantadas.Bem, bem. Que temos nós aqui?Pelo martelo de Thor! Dois! Não disseram que um deles tinha ido com...?Com o Pele-de-Lobo. Foi o que disseram. Uma besta depravada, com dentes como facas, que quase arrancou a mão a um homem.Não pode ser o mesmo cão disse o segundo homem, estendendo a mão para afagar Guard por trás das orelhas. Está pele e osso, mas é amigável. Parece que tem andado a monte.Os dois trocaram um olhar. Então, sem uma palavra, desembainharam as facas e avançaram a direito para o esconderijo mais provável, o anexo solitário onde Nessa estava acocorada, trémula, encostada à parede. Shadow ia à frente, mostrando o caminho. Desesperada, Nessa levantou-se e mostrou-se, falando na língua dos noruegueses.Estou sozinha e desarmada. Tudo o que eu quero é ir para norte. Por favor, deixai-me passar.Os dois homens pararam, surpreendidos; não esperavam encontrar uma mulher jovem naquele descampado, à noite. Olharam de novo um para o outro.


Por favor repetiu Nessa, mantendo um tom suave, se bem que a ira lhe ardesse no peito pelas coisas que aquela gente tinha feito ao seu povo e o medo lhe provocasse um nó nas entranhas. Por favor, deixai-me passar, eu não faço mal a ninguém.Os olhos do primeiro homem semicerraram-se; estava a olhar para a trouxa que a jovem levava embrulhada debaixo do braço.O que é isso que levas aí, miúda? Nessa endireitou a cabeça. Não ia mentir.Sabes muito bem o que é: um distintivo de honra, o reconhecimento do vosso Pai da Guerra, Thor. Eu sou uma amiga do guerreiro Eyvind; vou a caminho do salão de Somerled com uma mensagem de verdade. Deve ser-me permitido continuar ilesa. Tenho de chegar lá esta noite.Eles olharam para ela de olhos abertos.Hum disse um. Deixar-te ir, é isso? Não me parece.Como é que te chamas? perguntou rispidamente o outro. De onde vens? Responde depressa. E o homem estendeu o braço, agarrando-lhe o braço com uma mão de ferro. No interior da trouxa, a harpa estremeceu; Nessa fez um esforço para não a deixar cair.O meu nome é Nessa. Deixa-me. Não tentarei fugir. Não sou tão louca que acredite que sou capaz de correr mais do que tu. Só um cobarde, ou um estúpido utiliza a força contra uma mulher. Estes cães protegem-me. Olha para eles.E, de facto, no momento em que o homem pousou a mão em Nessa, o comportamento afectivo de Shadow alterara-se. As suas orelhas estavam agora deitadas para trás, tinha a cabeça baixa e rosnava profundamente. Guard colocara-se perto do segundo homem, as quatro patas abertas e o olhar fixo, como se estivesse pronto para saltar mal o homem fizesse um movimento.O primeiro homem tossiu para aclarar a voz.Não podes passar disse ele rudemente, mas abrandara o aperto no braço da jovem. Tens de vir connosco.A porta da cabana abriu-se; uma luz quente saiu do interior quando os dois homens se aproximaram com Nessa entre ambos, sempre agarrada às suas duas preciosas trouxas. Os cães seguiam-nos, atentos.O que é que se passa? Por que estava o cão a ladrar?Era a voz de uma mulher, e na entrada iluminada surgiu a silhueta de uma mulher, uma mulher magra usando um vestido escuro e uma pequena túnica clara por cima, presa nos ombros com dois alfinetes de prata que brilhavam à luz da lâmpada.

O que é, Ash? perguntou ela.

Uma intrusa, minha senhora. Encontrámo-la além, junto do celeiro. Diz que é amiga do Pele-de-Lobo Eyvind e que vai à corte vê-lo. A mim parece-me um disparate, mas ela tem a pele de lobo e tem o cão dele com ela.

A mim não me cheira nada bem. A voz do outro homem era áspera. Uma rapariga sozinha a vaguear por aqui à noite. Deve ser um truque. Uma emboscada; é capaz de estar por ali, no escuro, um grupo de parentes dela, à espera de poder avançar. É melhor acordarmos rapidamente os outros homens.

Já vos disse disse Nessa, cansada. Eu estou sozinha, só trago os cães. Por favor, deixai-me passar; não tenho tempo a perder. Tenho de chegar ao salão de Somerled antes de amanhecer. Por favor disse ela de novo, olhando para a silhueta à entrada da cabana.

Seguiu-se um momento de silêncio e então a mulher virou-se ligeiramente para que a luz vinda do interior pudesse iluminar as suas feições e Nessa viu que era Margaret.

 

Olaf olhou de sobrolho carregado para a fivela com o fio de pesca emaranhado cheio de nós. Pele-de-Lobo disse ele, diz-nos como é que este objecto implica o Rei na morte do seu irmão. Há aqui um mistério qualquer; Na verdade, confesso que me sinto um pouco surpreendido por o Rei não ter apresentado mais cedo isto como prova no processo, se tem assim tanta importância. O conselheiro olhou nervosamente para Somerled, desviando logo de seguida o olhar. Por que razão havia de apresentar se não é relevante para o caso? grunhiu o capitão do knarr. Era a sua primeira contribuição para o julgamento.

Eu digo-te o que significa disse Eyvind calmamente. Quando eu fui forçado a cortar essa fivela para poder libertar Ulf, pensei ficar com ela apenas para a devolver ao meu amigo, porque sabia que tinha algum valor familiar. Pensei que Somerled gostaria de ficar com ela como recordação do irmão. Mas esqueci-me dela durante muito tempo; tinha a mente ocupada com outras coisas. Mais tarde, tive razão para a examinar de novo e reparei no fio que, como podes ver, está todo emaranhado à volta, que está cheio de nós tão apertados, de tal modo que tive de a cortar para poder libertar o corpo. Olha mais de perto, meu senhor. Alguma vez viste alguns nós mais apertados do que esses, tão bem feitos, que até parecem flores? São nós muito difíceis de fazer, que apanham a presa e que, depois, vão apertando lentamente. Ulf lutou contra eles de tal maneira que quase perdeu um dos pulsos; o teu chefe de guerra sangrou até morrer por causa desse ferimento auto-infligido. Se as gaivotas se atiraram a ele quando ainda estava vivo, ou se o fizeram já depois de morto, nunca saberemos, mas o seu corpo ainda estava quente quando eu o fui lá buscar. Nenhum homem merece uma morte daquelas, quer tenha sido profetizada, quer não. Nenhum homem inflige uma tortura daquelas a um seu semelhante, salvo se for levado pelo ódio mais profundo, pelos ressentimentos mais ressaiviados. Meus senhores, esses nós são ao mesmo tempo uma coisa bela e uma coisa horrorosa, utilizados apenas nas armadilhas mais cruéis, porque um animal capturado assim morre dolorosa e lentamente. Eu nunca os usei numa armadilha feita por mim, porque sempre acreditei que se deve matar rapidamente, piedosamente. Mas sei fazer esses nós; Somerled ensinou-me há muito tempo, quando éramos crianças. É uma invenção dele, um segredo pessoal. Só há duas pessoas capazes de o fazer; o vosso novo Rei e eu próprio.O silêncio era profundo. Harald, Língua de Prata tinha pegado na fivela; os seus dedos tocaram cuidadosamente nos pequenos nós, ao mesmo tempo que a sua boca se apertava de aversão. Olaf tinha o queixo na mão, como se estivesse imerso em profundos pensamentos. Agora, pensou Eyvind, agora têm de acreditarem mim. Somerled foi louco em ter ficado com isto, pensando que não era perigoso. Agora, têm, pelo menos de sentir alguma dúvida acerca dos seus motivos. Mas Somerled sorria,Ouvistes o homem disse o Rei em tom monótono. Apenas duas pessoas sabem fazer este nó. Pode ser verdade, mas também pode não ser, claro; quem pode dizer que não ensinei a outros a minha invenção? Eyvind não tem o monopólio da minha amizade, apesar de sermos irmãos de sangue. Mas digamos que não ensinei. Digamos que este segredo é partilhado apenas por nós os dois. E agora pensai no modo como Ulf morreu. Um homem capaz, forte, que amava a vida; Eyvind não disse que Ulf lutou de tal maneira que provocou em si próprio um ferimento mortal? Que espécie de assassino seria capaz de o atar, de o arrastar, provavelmente, de lhe encher a boca com algas secas para o silenciar e de o pendurar num sítio perigoso da falésia? Não houve alguém que disse que seria preciso um homem de força excepcional? Então, limitemos as nossas suspeitas a alguém que seja capaz de fazer estes nós e que também possui uma força extraordinária, superior à de qualquer guerreiro. Não posso ser eu, meus amigos, todos vós sabeis que as minhas forças não chegam aí. Mas, com Eyvind, o caso muda de figura. Se perguntásseis ao povo desta ilha, no último Verão, quem entre nós tinha mais força e mais capacidade, todos apontariam este homem que tendes diante de vós. Eyvind, meu velho amigo, receio que a tua prova se tenha virado contra ti próprio.Mas... começou Eyvind, espantado com a distorção cruel dos acontecimentos por parte de um homem que ainda há pouco professara a mais profunda amizade por ele. Maldito sejas, homem, eu não posso seguir em frente sem ti. Todos os juizes estavam a olhar para ele; o jovem via o choque nos seus olhos, a repugnância e o espanto. Apenas reconheceu a sombra da dúvida nas feições argutas de Olaf Sveinsson. E foi para Olaf que falou em tom abalado.Meu senhor, isto é um disparate. Que razões teria eu para matar Ulf ? Eu respeitava-o, achava-o um óptimo líder.Ouvi-te resmungar muitas vezes por estares morto por regressar a casa acrescentou o capitão do knarr. Fartaste-te de amaldiçoar os dias sem fazer nada, dizias que era uma perda de tempo, creio que foi o que disseste.Talvez me sentisse aborrecido. Mas isso não faz de mim um assassino disse Eyvind. Além disso, eu dormi junto do meu irmão e dos outros naquela noite. Não podia ter feito aquilo.Ele tem razão. As cabeças viraram-se; Erlend avançara, vindo do fundo do salão. As suas feições francas estavam tensas de nervosismo. Holgar e eu dormimos junto de Eyvind naquela noite, durante o tempo todo que durou o nevoeiro. Estava tanto frio que eu até tinha os tomates gelados. Nenhum de nós conseguiu dormir mais do que alguns minutos de cada vez. Eyvind não poderia ter saído dali sem o nosso conhecimento. Era impossível.É verdade. Holgar colocou-se ao lado do seu camarada Pele-de-Lobo; os dois juntos formavam uma visão impressionante de força, com a sua alta estatura, os ombros largos envoltos nas peles de lobo e o olhar feroz. E também não o poderia ter feito no dia seguinte, porque ninguém saiu sozinho. Eyvind levou um dos homens de Engus com ele durante toda a manhã, até se ir embora com Somerled. Eles chamaram-me quando descobriram o corpo. Eyvind não tinha o aspecto de quem acabara de assassinar o seu chefe de guerra.E eu tinha? perguntou Somerled muito calmamente. Um pequeno músculo no seu queixo começara a tremer, algo que Eyvind já testemunhara algumas vezes. Por fim, Somerled parecia preocupado.

Não, meu senhor disse Holgar. Se me tivessem perguntado, diria que nenhum de vós o poderia ter feito. Eyvind estava desolado e tu estavas... para além de desgostoso, pareceu-me quase que também tinhas caído da falésia. Foi um dia terrível.Um dia negro acrescentou Erlend. Meus senhores, eu não aprovo o que Eyvind fez em Dorso de Baleia, porque é contrário ao código de um guerreiro virar-se contra os seus camaradas e desafiar o seu chefe. Mas sinto-me na obrigação de dizer que foi evidente para nós os três que ele não tencionava matar-nos, nem ferir-nos gravemente. Se o quisesse fazer, tê-lo-ia feito, com doença da guerra ou sem doença da guerra. O homem não tem igual em combate corpo-a-corpo. Sabemos que ele apenas queria retardar o ataque. Nós é que não compreendemos porquê. Talvez as revelações desta noite sejam a chave. Só posso dizer-vos que todos nós conhecemos Eyvind muito bem e todos nós diremos que Eyvind não poderia ter assassinado Ulf. Não só não tinha razão para isso, como o modo como ele morreu o iliba como suspeito. Eyvind é um exímio caçador desde a infância, todos nós sabemos isso. Um caçador mata com eficiência, com compaixão. Com respeito pela vida de que se apodera.Teorias, teorias resmungou Harald, Línngua de Prata. Nunca nenhum caso foi provado com base em especulações dessas. E os factos? Suponhamos que aceitamos a premissa de que Eyvind não podia ter cometido o acto naquela noite. Temos, é claro, de ter presente que tu és camarada do acusado, ligado a ele pelo juramento de Thor, e que a lealdade talvez seja mais importante do que a verdade. No entanto, digamos que aceitamos o que nos disseste acerca do que aconteceu naquela noite. Mas há o dia seguinte. Tu mencionaste que nenhum homem saiu sozinho, na manhã seguinte, do sítio onde passásteis a noite. Dizes que Eyvind levava um dos ilhéus com ele. Tendo em conta a teoria de traição do Rei, do veneno que essa gente meteu na mente do Pele-de-Lobo, a presença de um dos homens de Engus a seu lado não constitui um álibi.É precisamente o contrário acrescentou subitamente o capitão do knarr. Facilitou o assassínio. Ulf andava perdido, tal como o seu irmão; eles fizeram-lhe uma emboscada, tinham tudo preparado. Foi fácil. Tinha de haver cúmplices para levar a rede e as cordas. Só podia ter acontecido assim.Somerled acenou solenemente com a cabeça.

É verdade. Foi chocante. É claro, não há provas. É a minha palavra contra a de Eyvind. Só vos peço que não vos esqueçais que eu fui o mais justo possível, permitindo que ele dissesse tudo o que tinha na mente, se bem que irrelevante. Apresentei todas as provas que ele quis, com as quais ele pensava incriminar-me. Mas não precisava de o fazer, podia muito bem negar que tinha a fivela em meu poder. Já vos disse que estava pronto para o perdoar se ele admitisse que os ilhéus o corromperam e o usaram. Por que razão me abriria deste modo se fosse o culpado do crime hediondo de que Eyvind me acusa? No entanto, não é desse assunto que estamos a tratar aqui, esta noite. Arriscamo-nos a esquecer a natureza das acusações originais, se permitirmos que esta teia de argumentos continue.Ninguém comentou. Harald acenava com a cabeça judiciosamente, se bem que os seus dedos continuassem a brincar, desassossegados, com a fivela. Olaf olhava para as suas mãos unidas, como se fossem uma coisa extremamente interessante. Os outros agitavam-se, inquietos.Vós ouvistes o que Eyvind disse. A voz era de Grim, se bem que Eyvind não o pudesse ver por estar entre o grupo de homens que se amontoava junto da porta oeste. Pareceu-vos que ele estava a mentir? O homem nunca disse uma mentira em toda a sua vida, não ia começar agora. Quanto às acusações, ele confessou e deu razões para ter feito o que fez. Por que outra razão se teria entregado, senão para dizer a verdade?Estamos todos cansados disse Somerled, levantando-se. Cansados e angustiados. Podeis sentar-vos. Os seus olhos passaram por cima das figuras altas de Erlend e de Holgar; o seu olhar era frio e Eyvind sentiu um arrepio. A coragem dos Pele-de-Lobo pusera o seu futuro em risco. O jovem, na verdade, tinha amigos, amigos corajosos.Esta parte do processo está concluída continuou Somerled. Vamos discutir as provas em privado e regressaremos, depois, com o veredicto. Entretanto, comei e bebei; fostes muito pacientes. Acabemos com isto e permitamos que Eyvind regresse à sua cela e descanse as suas pernas trémulas. A não ser que mais alguém queira dizer de sua justiça.Certamente, pensou Eyvind, que o tom de voz do Rei e o brilho no seu olhar seriam suficientes para impedir o mais determinado dos advogados. Estava tudo terminado. Harald, Língua de Prata começou a levantar-se a custo, porque estava a envelhecer, o tempo frio fazia-lhe doer as juntas. O capitão do knarr estava de pé e falava animadamente com os outros membros da tripulação do seu barco que se encontravam por perto.

Eu gostava de falar em defesa de Eyvind, se possível. A voz era suave, inofensiva, mas que se ouviu bem, vinda do fundo do salão grande, por cima do burburinho causado pelos homens.

Silêncio! ladrou Olaf Sveinsson. No silêncio que se seguiu, o homem que falara avançou até ao centro do salão, os pés metidos em sandálias, e enfrentou a mesa. Acenou delicadamente com a cabeça na direcção de Eyvind. A sua cabeça curiosamente tonsurada estava bem erguida e os ombros direitos; o homenzinho, com o seu traje castanho coçado, no meio daqueles guerreiros altos e cortesãos ricamente vestidos, impunha-se pela sua dignidade. O monge tinha uma cicatriz lívida na face esquerda e um corte exsudante no olho.

Eu tenho algumas palavras a acrescentar ao caso antes que ele seja concluído disse o irmão Tadhg. Chego atrasado, claro. De Hafnarvagr aqui ainda é longe e a minha jornada foi ininterrupta. Mas penso que posso acrescentar algo aos vossos argumentos. Posso falar?

Margaret despediu os dois guardas com algumas palavras ásperas e estendeu uma mão para guiar Nessa para o interior da cabana. Pela porta saía um odor agradável; estavam a cozinhar o jantar. A boca de Nessa salivou.

Dá cá isso disse Margaret e a sua mão avançou para pegar no saco da jovem.

Não! disse Nessa, alarmada, apertando instintivamente a trouxa. No seu interior, a harpa de osso estremeceu e falou: Eu sou... eu sou...

Margaret ficou gelada, as mãos na garganta e o rosto branco como a cal.

O que é isso? perguntou ela, sufocada. Nessa engoliu em seco.

Eu explico conseguiu ela dizer. Os antepassados tinham-na ajudado, e aquilo era uma coisa feita dos ossos e dos nervos do marido da rapariga; a jovem fizera aquele feitiço com o seu corpo. Explicar? Por onde havia de começar? Deixa-me entrar, primeiro; não é coisa de que possamos falar aqui fora. Estou cheia de frio e de fome e preciso muito da tua ajuda.

Talvez algo nos seus olhos tivesse dito algo à jovem viúva; talvez Margaret se recordasse de uma época, não muito distante, em que também pedira ajuda.

Nesse caso, entra. Aquece-te junto da lareira e partilha do nosso jantar. Estou suficientemente consciente dos meus deveres para te deixar lá fora na escuridão. Entra.

A cabana era confortável; ardia uma lareira no fogão de pedra central e havia lâmpadas nos quatro cantos da sala. As prateleiras tinham tapetes e roupa branca e havia taças e tigelas numa laje de pedra. Os dois cães já se tinham instalado como se estivessem na sua própria casa, Guard bebendo sedentamente de uma tigela de água e Shadow sentada, muito quieta, junto de uma mulher acocorada à lareira, mexendo o pote da sopa. Nessa pestanejou. Devia estar a ver coisas; a fome e a exaustão estavam a pregar-lhe uma partida. No entanto, o cheiro era único; não havia nada no mundo melhor do que a sopa de Rona.

Como vês disse Margaret desastradamente, os seus olhos fixos na trouxa escura onde estava embrulhada a harpa estás entre amigos.

Nessa quase deixou cair o instrumento, assaltada por um turbilhão de sentimentos; esperança, sofrimento, medo, desgosto, alegria e uma terrível ansiedade. Meio cega pelas lágrimas, depositou cuidadosamente a harpa e a pele de lobo no chão e correu para atirar os braços ao pescoço da sua velha amiga e mentora.

Rona! Por todos os poderes! Pensei que tinhas morrido. Eyvind disse-me que te tinhas ido embora... como é que estás aqui, com ela? Não sabes o que aconteceu? Estão todos mortos, todos, Engus e Kinart e todos os homens que estavam com eles, cortaram-lhes as cabeças, deixaram-nos no chão, levaram as mulheres todas e agora Eyvind está prisioneiro, e Somerled...

Shhh disse Rona, dando uma palmada no ombro de Nessa shhh, minha filha. Eu estou bem, como vês. Esta rapariga tem sido muito boa para mim, se bem que esteja cansada, doente, cheia de tristeza e eu não perceba uma palavra do que ela diz. Pára de chorar. Eu sei o que aconteceu em Dorso de Baleia. Nunca esquecerei essa manhã. Uma dor terrível; um grande erro. O facto de saber antecipadamente que aquilo ia acontecer não diminui o sofrimento. Senta-te, Nessa. Toma. Come esta sopa, filha. Tens uma tarefa a fazer e a tua mente não conseguirá fazê-la se o teu corpo não estiver em condições, pronto, pronto. Seca essas lágrimas.Eu tenho... eu fiz...Shhh. Primeiro, come a sopa. Contas-nos tudo depois. Os olhos profundos de Rona estavam calmos, observando Nessa enquanto esta comia o caldo e o pão e Guard fazia um festim dos restos de um osso de carneiro. Margaret não comeu. Sentou-se à lareira, em silêncio.Como é que eu lhe hei-de dizer? sussurrou Nessa após ter terminado a refeição. O que eu tenho aqui é... é o testemunho final da morte do marido dela, a única voz que ninguém poderá calar. Tu lembras-te do que foi dito. Procura a verdade na cinza e nos ossos. Esta harpa já fala, se bem que a última corda ainda não esteja apertada como deve ser. Como é que eu hei-de dizer-lhe? Ela vai pensar que eu não sou melhor do que um ladrão de túmulos.Rona acenou com a cabeça.Diz-lhe a verdade. Que outra coisa podes fazer?Agora, tens de te explicar disse Margaret. Fala na minha língua, para que eu possa compreender. Chega de conversa na língua da tua ilha. Eu tenho de ter cautela; como posso saber se posso confiar em ti? Diz-me porque estás aqui e aonde vais. Diz-me como escapaste... diz-me como fugiste de Dorso de Baleia, naquela manhã. Mostra-me o que tens nesse saco. E despacha-te. Eu tenho ali fora homens armados e não tenho obrigação de te ajudar.Eu sei. No entanto, nós carregamos um fardo, nós as três, como mulheres, e eu vejo no teu rosto que és honesta, tal como quando nos encontrámos a primeira vez disse Nessa. Que estava a rapariga a fazer ali, sozinha, no meio de um grupo de guardas, numa cabana isolada? Ela não era cunhada de Somerled? Por que não estava ela na corte? Nessa ocasião ajudei-te, ou tentei ajudar-te. Utilizaste o feitiço que te dei?Os lábios de Margaret apertaram-se. Nessa reparou como ela emagrecera, como estava gasta, a pele das faces pálidas e secas, os olhos com olheiras. As suas mãos estavam fechadas uma sobre a outra e os seus ombros estavam tensos.Não interessa cortou Margaret. Isso é passado. Diz-me. Responde-me, depressa.

O coração de Nessa batia como um tambor. Não sabia como havia de dizer aquilo.Antes, quero agradecer-te por teres dado refúgio a Rona. Não sei como é que isso aconteceu, mas já não é seguro nós, os do meu povo, andarmos por aí, e reconheço que a tua amabilidade, provavelmente, lhe salvou a vida. A jovem virou-se para Rona. Agradeci-lhe disse ela à anciã na sua própria língua. Por te ter ajudado. Tu és uma velha teimosa e demasiado corajosa para o teu próprio bem.Não me deu maçada nenhuma disse Margaret solenemente.A tua amiga é uma companheira pouco exigente e tem retribuído a minha hospitalidade cozinhando para os homens, se bem que eu passasse bem sem os seus chás. Mas, agora, continua, preciso de conhecer a tua história. Disseram-me que és uma parente próxima do Rei Engus. Eu não sabia isso no dia em que fui ter contigo. Deves ter pensado que eu era muito mal-educada.Nessa conseguiu sorrir.Não, minha senhora. Pensei que estavas confusa, mas achei-te corajosa e aberta. Não me deste razão para mudar de opinião, se bem que o teu povo tenha matado o meu com uma selvajaria estúpida. Mas esta noite preciso da tua ajuda. Tenho de chegar ao salão de Somerled. Tenho de estar lá de madrugada. Preciso de um cavalo e preciso que me deixes passar sem que me incomodem.Os olhos de Margaret esbugalharam-se.Isso é uma loucura disse ela. Se és, na verdade, parente de Engus, devias ir para toda a parte, menos para lá. Se Somerled sabe que estás viva, ver-te-á como uma inimiga e como ameaça à sua autoridade. Devias deixar estas ilhas para sempre. Ir à colónia significa a morte, ou o cativeiro. Por que razão farias uma coisa dessas? Não me pareces uma rapariga tola.Eu posso explicar. Mas... podes ficar chocada; vai fazer-te sofrer muito.Não te posso deixar ir sem que me digas o que andas a fazerdisse Margaret solenemente. O meu marido era aqui o chefe de guerra. Eu tenho uma certa responsabilidade.Nessa não pôde deixar de sentir uma certa ira.Perdoa-me disse ela mas não sentes essa responsabilidade ensombrada pelo que os homens do teu marido fizeram aos homens e mulheres do meu povo? Devias enforcar-te de vergonha por o nosso bom Rei ter sido queimado no seu salão e a antiga terra dos Folk transformada num campo de batalha sangrento, só porque o povo do teu marido decidiu pôr os pés nestas ilhas. Este lugar é o nosso lar desde os tempos anteriores à memória. Dizes-me que o abandone para sempre. Eu é que devia pedir-te que o abandonasses, acho. Deveria ser tua responsabilidade impedi-los de cometer aquela chacina. Agora é demasiado tarde.

Margaret manteve-se imóvel. Os seus lábios eram uma linha fina. As mãos, inquietas, torciam-se uma na outra.

Se é demasiado tarde disse ela num murmúrio por que estás tu, então, aqui?

Ah disse Nessa. Queres ouvir? Queres ouvir até eu terminar?

Margaret acenou levemente com a cabeça.

Assim, Nessa contou a história: como tinham encontrado Eyvind e como o tinham abrigado, como ela lhe falara do assassínio de Ulf, como o Pele-de-Lobo confirmara aquilo que os Folk já sabiam no fundo do seu coração. Somerled assassinara o seu próprio irmão porque queria aquilo que Ulf tinha: terras, poder, liderança. Não disse o que tinha na ponta da língua: que talvez Somerled também quisesse a mulher do irmão. Essa parte pertencia a Margaret: a verdade sobre o que havia entre os dois talvez nunca se viesse a saber. Nessa descreveu o modo como Eyvind enfrentara os homens que tinham tentado capturar Rona; contou-lhe como ele decidira confrontar-se com Somerled, como escapara e como se entregara para que Nessa pudesse fugir. Houve uma parte da história que não contou: ainda bem, pensou ela, que Rona não podia seguir os pormenores daquela narrativa, porque a anciã era uma intérprete perspicaz do que ficava por dizer. E Nessa mal podia pronunciar o nome do guerreiro sem estremecer, sem sentir um conflito que a impedia de pensar com clareza. A jovem fizera uma promessa, profunda e solene. Como se manter fiel a ela era um assunto para mais tarde, uma vez a sua tarefa concluída.

Margaret ouviu em silêncio. A determinada altura curvou a cabeÇa; mais tarde, sentou-se e levou as mãos ao rosto. Não era tanto uma reacção de choque, era, antes, a resposta a algo que estava para além do que supunha possível.

Mas a parte mais custosa estava para vir.

Eu tenho de te perguntar disse Nessa cuidadosamente se, nas antigas histórias do teu povo, nas histórias de Thor e de... de Odin, nas dos teus antepassados, há algumas que tocam no... A jovem olhou de relance para Rona, mas esta limitou-se a encolher os ombros, incapaz de compreender as palavras estrangeiras, se bem que os seus olhos demonstrassem que ela tinha uma ideia daquilo com que Nessa estava a lutar. Nas nossas histórias, há uma acerca de uma princesa afogada pela irmã continuou Nessa com a voz a tremer. O corpo dela flutua pelo rio abaixo e é encontrado por um moleiro. Ela fabrica uma... ele fabrica uma harpa com os ossos e os cabelos dela, vai até à corte do Rei e lá ela toca uma melodia terrível, uma canção que relata a história do mal que fora feito. A jovem estava incapaz de olhar Margaret nos olhos. Vós tendes alguma história parecida com esta? O povo das terras geladas sabe o que é um instrumento de osso, um instrumento que diz a verdade? Um testemunho inegável?

Margaret não disse uma palavra. A mulher do antigo chefe de guerra levantou-se, deu dois passos em frente e, com dedos trémulos, desembrulhou a pequena e graciosa harpa, que brilhou à luz da lareira com as suas pequenas cavilhas feitas dos ossos dos dedos, as algas que enchiam as juntas e as cordas escuras, silenciosas. A harpa estremeceu. Ulf... gemeu ela baixinho. Ulf... chefe de guerra...

O rosto de Margaret estava cinzento, os seus olhos escuros eram dois lagos de horror. A rapariga recuou, fez um som estrangulado e saiu pela porta traseira da cabana. As duas mulheres, no interior, ouviram uns vómitos dolorosos, pontuados por arquejos estrangulados. O coração de Nessa batia com toda a força; levantou-se para ir ajudar a rapariga.

Não disse Rona. Deixa-a. Ela não tem nada que o tempo e um pouco de reflexão não curem, pobre rapariga. Mas, diz-me: Eu já vi o que andaste a fazer e sei para que é. Estou impressionada. Chamaste a Tribo das Focas? Foi arriscado. Que quiseram elas em troca?

Elas não me pediram nada disse Nessa, tremendo. Pelo menos, ainda não. A Tribo Perdida também me ajudou. Todos eles tiveram a sua quota parte de ajuda.

Ainda bem que os antepassados acordaram. A voz da anciã era solene. Poucos de nós restam. Naquele dia, em Dorso de Baleia, a flor da nossa mocidade foi ceifada antes de tempo. Digamos que chegas à corte a tempo com essa harpa, que ela conta a sua história e que as pessoas acreditam. E depois? Os Folk estão enfraquecidos, quase sem salvação, e estes noruegueses têm armas e são numerosos.

Talvez consigas persuadi-los de que o seu chefe de guerra não é o melhor dos líderes, mas que pensas tu que eles farão? Põem outro no lugar daquele e começam tudo de novo.Nem parece teu disse Nessa de sobrolho franzido. Onde está a tua fé? Onde estão as tuas crenças? Não podemos falhar. A verdade tem de vencer, a verdade e a bondade. Eyvind ajudar-me-á... . A voz faltou-lhe.Ah sim? perguntou Rona com as sobrancelhas erguidas.Se eu conseguir chegar a tempo murmurou Nessa. Se eu conseguir chegar antes que Somerled o mate. Confia em mim, Rona. Não me esqueci que sou sacerdotisa.Margaret estava de regresso; a rapariga vinha muito direita, os ombros quadrados, a cabeça erguida, como se determinada a mostrar que era uma mulher nobre, que sabia controlar-se. Passou pela harpa sem olhar para ela e sentou-se rigidamente no banco junto da lareira.Cobre-a disse ela. Não quero vê-la. Foste tu... não, não consigo dizê-lo... foste tu...?Fui eu que a fiz disse-lhe Nessa gentilmente. Eu sou uma sacerdotisa dos mistérios. Nós mantemo-nos fiéis à nossa fé desde os dias dos nossos mais antigos antepassados; ela tem-nos guiado desde os tempos antes do tempo. Os seus desígnios podem ser encontrados nas profundezas da terra e do oceano, nos eternos percursos do Sol e da Lua. Eu estudo-os desde criança e Rona tem sido, sempre, a minha sábia professora. Nós temos um ritual solene para fazer este tipo de feitiço. Tanto o tirar, como o devolver, são feitos com o maior respeito. Se visitares amanhã o túmulo do teu marido, verás que está intocado. Ulf não quereria que se fizesse justiça? Esta é a única maneira de ele poder ser ouvido, minha senhora. Concedamos-lhe o direito de falar. Uma vez isso conseguido, ele pode descansar em paz nestas ilhas que ele tanto amava e honrava. Ulf era um bom homem; o que aconteceu aqui não foi obra dele, se bem que tenha sido o seu desejo de viajar que provocou tudo. Nós devemos-lhe isto, assim como ao Rei Engus e a todos os homens cujo sangue foi derramado, devemos levar este testemunho ao salão grande de Somerled, certificando-nos de que o futuro das ilhas não caia no caos e nas trevas. Preciso da tua ajuda, Margaret. Sem ti, não posso chegar a tempo.Como podes ver, estou doente disse Margaret em tom monótono. Doente e cansada. Como te poderei ajudar? Tu própria me disseste que é demasiado tarde. Eu devia tê-lo detido, devia ter tido forças para isso. Ainda tentei. Pensei que conseguiria demovê-lo, pensei que talvez me ouvisse, como nos velhos tempos. Mas ele não me ouviu. Ninguém me ouviu, eles têm medo de falar, já que sabem o que ele é capaz de fazer. Num lugar como este o poder pode ser imenso, se um homem for suficientemente ousado. Eu falei, e ele mandou-me embora para não ter de me ouvir. Nada correu como eu previa, nada. A princípio fiquei zangada por ter sido banida da corte, mas agora estou contente. Aqui não tenho de pensar nessas coisas. Não tenho que pensar em nada.A sua voz era sem expressão, mas Nessa viu o tremor nas mãos da jovem viúva e os seus maxilares cerrados; viu o que custava a Margaret manter aquele controlo apertado. As lágrimas estavam perto, mas Margaret não permitiria que elas corressem.É o amor que enfraquece a tua vontade de fazer justiça? perguntou Nessa suavemente. Amor por um homem no qual, contra toda a evidência dos teus olhos, ainda vês uma centelha de bondade? Ou não acreditas no que te contei acerca da morte do teu marido? Nesta harpa está uma voz que é a prova irrefutável da verdade, se a deixares falar.Amor? Margaret suspirou. O amor não tem nada a ver com isto. Já ultrapassei o amor. Não vale a pena.Desistes assim tão facilmente? perguntou-lhe Nessa. Que idade tens, minha senhora?Apanhada de surpresa, Margaret respondeu automaticamente.Dezassete. Suficientemente velha para saber que a opinião de uma mulher não vale nada num mundo governado por homens. Suficientemente velha para saber o que é ser afastada quando já não nos querem. Margaret sufocou o que ia dizer a seguir. Havia lágrimas nos seus olhos.Tu e eu somos da mesma idade disse-lhe Nessa. Tu decidiste não fazer nada. Tu é que sabes. Mas eu vou dizer-te o que vou fazer esta noite. Vou montar num cavalo e vou até ao salão de Somerled. Vou àquela colónia e vou pedir uma audiência. Eu sou o único parente vivo de Engus e a última de linhagem real das Ilhas Brilhantes. Naquela corte vou estar rodeada de inimigos. E estou cheia de medo, acredita. Naquela corte vou dizer como Somerled assassinou o irmão e introduziu o caos nesta bela terra. E libertarei a voz da única verdadeira testemunha desse crime. No teu povo nem todos são maus; são apenas escravos do medo e dos costumes. Espero que esta voz os acorde e lhes abra os olhos para o que é verdade e justo. Há mulheres e crianças do meu povo prisioneiras naquela colónia, Margaret. O Pele-de-Lobo está lá prisioneiro e Somerled silenciá-lo-á para sempre se eu não chegar lá de madrugada.O Pele-de-Lobo? Estás a falar de Eyvind? Mais uma vez, Margaret ficara espantada. Somerled nunca matará Eyvind. Ele adora-o. Eyvind é a única pessoa de quem ele alguma vez gostou.Nessa acenou com a cabeça.Talvez o faça por isso mesmo, porque não suporta ver o seu reflexo nos olhos do amigo: a imagem de um homem que falhou redondamente a grande ambição da sua vida. Ele não é nenhum rei, não passa da sombra deformada e louca de um líder, deformado pela crueldade que carrega dentro de si e da qual não consegue livrar-se. O som da verdade nos lábios do seu mais querido amigo deve cortar mais do que uma faca. Eu não sei o que vai dentro da cabeça de Somerled. Mas sou uma sacerdotisa e oiço as vozes dos espíritos. E sei que, se não partir brevemente, será demasiado tarde. Fica aqui, se quiseres. Tu lá sabes, se preferes fechar os olhos à verdade mal ela começa a ser demasiado pesada para suportar. Tu lá sabes, se achas que assim é mais fácil. Não interessa o que o teu marido queria. Não interessa a coragem que, em tempos, eu vi nos teus olhos, quando me procuraste apesar do perigo que corrias. Aquela rapariga corajosa desapareceu. Aos dezassete anos, tornaste-te numa velha medrosa. Eu bem vejo que estás doente; suponho que é uma desculpa como outra qualquer. Dá-me um cavalo, Margaret e deixa-me ir. Deixa-me ir agora, neste momento. Não te peço mais nada.Margaret afastara-se; virara-lhes as costas e tinha os braços cruzados no peito. A tensão era visível em todo o seu corpo esbelto.Espero que não tenhas sido demasiado cruel resmungou Rona. Ela é boa rapariga e tem sido boa para mim. Simplesmente, tem passado tempos difíceis.Pela mente de Nessa passaram imagens daquela manhã sangrenta, em Dorso de Baleia, com todos os pormenores. A jovem não disse nada. O tempo passava; quanto tempo demoraria a chegar lá na escuridão? Margaret continuava silenciosa. Oh, depressa, responde depressa. Nessa ouviu de novo aquela voz: Quero tanto viver.

Muito bem disse Margaret concisamente sem se virar. Muito bem. Eu ainda sei o que é o dever, por mais baixa que seja a tua opinião. Já percebeste que não podes montar com... com o instrumento e a pele de lobo? Não conseguirás passar pelas sentinelas, ou chegar ao salão grande sem que te tirem tudo o que levas. Talvez, no fim de contas, não sejas tão inteligente como pensas.Talvez não murmurou Nessa, dividida entre a esperança e o desespero. E Eyvind também não. Somos apenas teimosos, os dois, e decididos a contar a verdade. Ulf é que tem de ser inteligente por nós. Ulf e tu.Pára com isso! cortou Margaret, furiosa. Não me faças chorar, ou não serei capaz de fazer nada! A rapariga caminhou rapidamente até à porta, abriu-a e chamou para a escuridão.Bjorn! Ash! Venham cá!Ouviu-se um som de passos a correr e uma rápida troca de palavras no exterior. Nessa dobrou-se para pegar na harpa. Os olhos de Rona semicerraram-se.Que saquinho é esse que levas às costas? perguntou ela. Nessa esquecera-se por completo do presente das mulheres domar.Isto? Não sei. Deram-mo. Talvez o possa deixar ficar; já chega ter de andar a cavalo e tentar chegar lá com a harpa sã e salva.Deixar ficar? Não me parece disse Rona. Um presente daquelas que ajudaram a fazer a harpa, não foi? O melhor é abri-lo imediatamente. Um prémio desses é raro e raramente é oferecido sem um propósito.Não há tempo...Abre-o, Nessa.Ela tirou o pequeno pacote do dorso e desenrolou aquele estranho amontoado de algas. O conteúdo apareceu, iridescente, cheio de pérolas, um pedaço de tecido verde-azulado. Era suave ao toque e cheirava levemente a sal.Oh! A voz de Margaret soou por trás delas; a rapariga estava na soleira da porta, olhando. Oh, que beleza!Que belo presente disse Rona, erguendo o leve tecido com dedos cuidadosos. Lindo, mágico e, como te disse, com um propósito. Tu não podes ir junto de um Rei com essas roupas velhas. Nessa, tens de usar isto esta noite.

Muito pouco prático observou Margaret, percebendo o que Rona queria dizer. É melhor levares uma capa quente.Rona, não tenho tempo! disse Nessa, irritada. Por que não eram capazes de compreender que tinha de ser naquele momento, imediatamente, porque cada momento que passava era um passo mais que Eyvind dava para morte? Ela conhecia-o; nunca esperaria por ela. Não está na natureza de um Pele-de-Lobo atacar com desprezo pelo medo, arriscar tudo em cada desafio? Talvez Eyvind estivesse mudado, mas a coragem louca continuava no seu espírito e ele não podia negá-lo. A jovem vira-o em Dorso de Baleia; vira-o de novo na manhã em que acordaram nos braços um do outro, quando ele sacrificou a sua liberdade por ela. Eyvind queria-a fora de perigo, longe de Somerled. Não esperaria por ela. Deixa-me, Rona. Tenho de ir!Silêncio, rapariga. Isto não demora nada. Eu ajudo-te.O vestido era de corte simples, de busto alto e mangas estreitas, com uma saia que caía a direito até ao chão em pregas graciosas. O tecido tremeluzente, ondulante, com todos os tons do mar na sua superfície fluida, tornava aquele vestido digno de uma misteriosa rainha de uma história antiga. Tinha um círculo para usar na cabeça e Rona insistiu que Nessa o usasse. Ansiosa por partir, Nessa submeteu-se às atenções da anciã, já que discutir com ela só servia para atrasar a partida. Margaret esperou, silenciosa e pálida, com uma capa nas mãos e outra em redor dos ombros. Por fim, Rona obrigou a sua aluna a girar uma, duas, três vezes e, finalmente, declarou-se satisfeita.Não posso ir contigo, rapariga disse ela, os seus olhos argutos, mas gentis, enquanto perscrutava o rosto de Nessa. Mas acredito em ti; acredito que és capaz. Não terias chegado a este ponto se todos os poderes das ilhas não estivessem por trás de ti. Ganha o dia por nós, Nessa; que a verdade seja ouvida.Nessa inclinou a cabeça, mas não disse nada. Se se permitisse pensar demasiado acerca do que aquilo queria dizer, a sua magnitude e importância, talvez se tornasse mais difícil continuar. Mas tinha de continuar; não havia mais ninguém para o fazer.Eu vou ter contigo disse Rona. Quando for dia, em passo próprio da minha idade. Espero que salves aquele grandalhão. Há uma grande bondade nele; levei algum tempo para a descobrir, mas ele tem um espírito tão grande como o corpo e uma grande vontade de viver, o nosso guerreiro. Só espero que não despedacem ambos os corações um do outro. Não chores, Nessa. Esta tarefa vai exigir de ti todas as tuas forças. Mais tarde terás todo o tempo de chorar, quando tudo estiver terminado.

Os homens estão prontos disse Margaret. Eu levo a pele de lobo, se não te importas. É uma longa jornada e teremos de ser rápidas, se o que dizes é verdade.

Queres dizer...?

Mas Margaret já tinha saído. Através da soleira, Nessa pôde ver vários homens a cavalo, à espera; alguns deles levavam archotes nas mãos.

Não podes ir sozinha disse Margaret por cima do ombro enquanto descia os degraus. Na minha companhia serás admitida no salão sem te fazerem perguntas. Depois, é contigo. Estes homens proteger-nos-ão durante a jornada. Todos eles me são leais. Nessa sentiu uma ênfase subtil na última palavra. Dá-me a pele de lobo, eu levo-a. A anciã que te dê a... outra coisa. Não consigo pegar nela.

Um visível arrepio percorreu-a.

Obrigada disse Nessa em voz baixa, sem saber ao certo por que tomara Margaret aquela decisão, mas reconhecendo a sua coragem.

O que é que ela pensa que está a fazer? A voz de Rona era áspera; a anciã estava na soleira por trás delas, os olhos fixos em Margaret, que subira para o seu cavalo e estava a dizer a um dos homens que atasse a pele de lobo à sela. Um outro homem estava à espera para ajudar Nessa a subir para uma grande égua cinzenta de aspecto firme.

Ela está a pensar ir contigo? Ela não pode montar. Diz-lhe, Nessa.

O quê...?

Diz-lhe o que eu estou a dizer. A mensagem foi passada. Os lábios de Margaret apertaram-se e o seu rosto ficou ainda mais pálido à luz dos archotes.

Pensas que me interessa? respondeu ela com a voz cortante, olhando a direito para Rona. Isto não é nada. É menos do que nada. E agora vamos, que estamos a perder tempo.

Louca resmungou Rona. Mas a anciã não disse mais nada, limitando-se a pegar na pequena harpa enquanto Nessa subia para a égua e entregando-lha quando ela já estava lá em cima. Guard ficara nos degraus ao lado da anciã e os dedos enrugados dela afagaram-lhe a cabeça abstractamente, enquanto murmurava em voz baixa uma bênção antiga. Os cavalos saíram do pátio e afastaram-se na direcção dos campos à luz do luar, para leste. Rona ficou a vê-los até que eles desapareceram na escuridão e regressou lentamente para junto da lareira, seguida por Guard. A anciã mexeu numa pequena panela que tinha ao lume e atirou com um punhado de algas secas para as chamas. Ao mesmo tempo que o cheiro pungente das ervas se elevava no ar quente da cabana, Rona fechava os olhos e começava a entrar em transe. Não dormiria naquela noite.Somerled olhou para o irmão Tadhg com um olhar frio.Por que havemos de te ouvir? perguntou ele. Tu foste sempre dominado por esta gente, eras o braço direito de Engus, com as tuas traduções esquisitas e os teus modos patéticos de espião por baixo da capa da disseminação da tua ridícula fé. Todo o caso contra Eyvind se baseia no modo como os Ilhéus o iludiram e corromperam. Qualquer ajuda vinda de ti só serve para lhe piorar o caso.Olaf virou o seu olhar penetrante para o monge.Como é que arranjaste esse ferimento no rosto? perguntou ele monotonamente. Um sacerdote, seja de que fé for, não deve ser alvo de actos de violência. Será isso a prova do que Somerled diz, que, de facto, tu não és nenhum homem santo, antes uma espécie qualquer de espião?O irmão Tadhg sorriu.Não, meu senhor. A minha lealdade vai apenas para Deus e para a verdade, porque a última verdade está em Deus. Esta noite está aqui a ser julgado um homem, um homem que vive para a verdade, eu sei, porque não concebe outra maneira de viver. Vejo-o apanhado nas malhas da falsidade e da fraude, numa posição da qual não vai sair vencedor. Talvez eu não possa mudar isso. Mas a minha fé compele-me a falar por ele, já que o seu irmão foi impedido de o fazer. Quanto ao ferimento, recebi-o a caminho deste salão. Todos sabeis o perigo que ameaça os viajantes solitários por estes sítios, perigo que os ilhéus desconheciam até que a vossa raça fez destas ilhas a sua casa. Parece que nem os sacerdotes ficam imunes a tais ataques.Isso é... lamentável resmungou Olaf, semicerrando os olhos enquanto olhava para o monge. O conselheiro virou-se para Somerled. Que achas? Ouvimos o homem?

Que queres dizer com isso, "impedido"? Subitamente, o tom de voz de Harald, Língua de Prata mudara. O homem sentou-se pesadamente. Eu pensava que tinha sido pedido a Eirik Hallvardsson para vir apoiar o seu irmão e que ele se tinha recusado. Foi isso que me disseram.

Somerled abriu a boca para replicar, mas Tadhg foi mais rápido. A sua voz era suave mas ressonante, devido à sua longa prática de salmos e orações.

Eirik vinha a caminho disse Tadhg. Tanto ele, como o seu companheiro Thord ficaram muito preocupados quando lhes levei a notícia de que Eyvind estava em grande perigo. Pensavam partir nessa mesma noite. Se ainda não chegaram é porque algo os impediu, talvez os mesmos que tentaram assaltar-me a mim. Como não sou um Pele-de-Lobo, tive medo e fugi; felizmente estava perto do lago e sei nadar um pouco, coisa que não acontecia com o meu assaltante. Por isso, aqui estou, algo molhado e ferido, mas, felizmente, foi só isto. Deus olhou pelo seu filho. Imagino que Eirik e Thord tiveram mais luta; devem ter sido necessários muitos homens para os submeterem.

Um momento disse Somerled asperamente. Que queres dizer com isso, levaste-lhe a notícia? Notícia de quê, exactamente? Quando foi isso?

Cheguei ao porto na noite do dia anterior à chacina do Rei Engus e dos da sua casa. Fui imediatamente procurar Eirik e entreguei-lhe a mensagem antes de o irmão Lorcan e eu próprio continuarmos o nosso caminho. Eirik e Thord já se estavam a preparar para a viagem quando saímos de lá.

Mensagem? cortou Somerled. Que mensagem? Tadhg olhou de relance para Eyvind.

Tinha encontrado o teu Pele-de-Lobo nesse dia, a caminho daqui. O pobre homem perdera por completo a memória dos meses de Inverno. Mas estava determinado a procurar-te para te dissuadir de atacar os Folk.

Estou a ver. Havia uma nota perigosa na voz de Somerled. Sabes quem deu abrigo a Eyvind durante essa misteriosa ausência da nossa colónia? Ele esteve, realmente, com aquelas duas bruxas de quem ouvimos falar, a velha e a nova?

Eyvind descobriu que estava a prender a respiração; teve o cuidado de não olhar para o monge.

Não sei nada acerca disso disse Tadhg. Passei a maior parte do Inverno na Ilha Sagrada; não vi o teu Pele-de-Lobo, nem ouvi falar dele durante esse período. Fiquei muito surpreendido por encontrá-lo nas terras de Engus. Mais do que surpreendido: ele quase me partiu o braço antes de perceber que eu não era nenhum guerreiro.

A sério? Com aquela simples palavra, Somerled conseguiu exprimir incredulidade e desdém. Eyvind falou-te da morte de Ulf ? O que é que ele disse acerca disso?

Meu senhor replicou tranquilamente Tadhg era do conhecimento de todos, entre os Folk, que tu é que és o responsável por esse acto. Ouviu-se um sobressalto em redor do salão grande; mãos moveram-se na direcção dos punhos das espadas, como se aquele homem pequeno e plácido fosse mais ameaçador do que qualquer monstro escondido na bruma. Faz sentido. Eles sabiam que ninguém da sua gente podia ter feito aquilo. O Rei Engus conduziu um inquérito exaustivo; até os seus camaradas e parentes mais próximos foram interrogados. Engus sabia como tu és impiedoso e ambicioso. Para ele, era evidente que tinhas levado a cabo o assassínio para ficares com a posição do teu irmão e, ao mesmo tempo, incitar o teu povo a actos de violência contra os Folk. Dou-te os meus parabéns. Tiveste sucesso em ambas as coisas.

Jovem, o tom de Olaf Sveinsson era de incredulidade não temes pela tua segurança? Um homem não pode simplesmente entrar no salão grande do Rei e chamar-lhe... chamar-lhe...

Carniceiro? Somerled empregou a palavra friamente. Sacerdote, ouvimos os teus disparates e, francamente, ainda fazem menos sentido do que os de Eyvind. Recordo a mim próprio que tu não pertences ao nosso povo e sabes pouco dos nossos usos e costumes. A tua fé é branda, confortável, baseada em amor e perdão, gentileza e inacção. Nós fizemos uma viagem perigosa para chegar a estas costas. Somos um povo orgulhoso e amante da guerra, cujos feitos de coragem no campo de batalha, expedições e conquistas são conhecidos e temidos desde Halogaland à Saxónia, desde Birka a Novgorod. Nós atacamos com ousadia, vencemos os mais temíveis inimigos, conseguimos grandes saques e deixamos a nossa marca por onde passamos. Olha para os nossos Pele-de-Lobo. São guerreiros de força divina, são inspirados pelo próprio Thor. Odin, o escroque, dá-nos a astúcia, a esperteza e a determinação. Se vencemos aqui nas Ilhas Brilhantes, se depusemos o Rei Engus e os seus inúteis subalternos, não passa da derrota natural do mais fraco perante o mais forte. Não voltarei a falar da morte do meu irmão; a minha dor redobra cada vez que essa história é contada. Mas direi uma coisa. Num lugar como este, remoto, difícil, virtualmente desocupado, só pode vencer uma espécie de líder. Não um líder que sonha, filosofa e faz companhia a monges cristãos. Tem de ser um homem que não tenha medo de levar o seu povo em frente para o seu novo mundo, um chefe de guerra que seja capaz de controlar as coisas e que saiba distinguir o amigo do inimigo. É isso que eu estou a fazer esta noite, sacerdotesinho, é isso que significa ser líder. Sem uma autoridade firme, só pode haver o caos. É por isso que este caso tem de ser decidido rapidamente, determinado o castigo e a sentença executada de madrugada, de acordo com as novas leis que decretei. Aqueles que se opuserem às minhas regras não têm lugar nestas ilhas. Aqueles que se opuserem à minha liderança pagarão com as suas vidas a sua traição. Isto aqui é a fronteira, o ponto mais longínquo a que um homem pode chegar, um lugar de onde não é possível partir para mais longe, nem regressar. E, aqui, eu sou o Rei. Alguém, entre vós, está disposto a discordar?

Ninguém disse uma palavra. Para Eyvind, Somerled dissera uma coisa com um significado terrível. Após a morte de Ulf, ele próprio achara que o amigo seria a única pessoa capaz de assumir a liderança. Havia outros chefes de guerra como ele na sua terra natal. Tais homens governavam pelo medo. O seu olhar, as suas vozes, eram o suficiente para conseguir obediência imediata. No entanto, naquela noite, quatro outros homens, para além dele, tinham tido a coragem de falar contra o rei. Mas não chegava. O jovem guerreiro ponderou, indistintamente, nas hipóteses que os Pele-de-Lobo teriam contra os cinquenta e tal outros homens que estavam reunidos no salão grande naquela noite. Criariam devastação, certamente, rachariam mais do que alguns crânios antes de serem mortos. O jovem pensou nas grilhetas e como cairia sobre um homem sem poder andar devidamente. Era uma loucura, pensar, sequer, na hipótese. Se não pudesse vencer pela verdade e pela coragem, certamente não venceria pela violência e pelo sangue. Os seus camaradas Pele-de-Lobo já se tinham arriscado por si; tinham-no feito apesar de o acharem um traidor. Não podia arriscar ainda mais as suas vidas. Talvez fosse bom Eirik não ter podido comparecer.

Eyvind?

Alguém estava a falar com ele. A sua mente andara à deriva enquanto pensava em escapar, os juizes tinham-se levantado e retirado para uma pequena câmara e só Olaf tinha ficado para trás. Em redor do salão a cerveja estava a ser servida e o local fervia de conversas especulativas. Tadhg continuava imóvel, o seu braço imobilizado pela mão de um Thorvald fortemente armado; Gudbrand mantinha-se pronto para conduzir Eyvind de volta à sua cela.Eyvind? Olaf disse de novo o seu nome. Chegou a hora de ires. Creio que não ouviste o Rei. Vós os dois tendes de regressar ao vosso lugar de reclusão até que cheguemos a uma conclusão. Olaf virou-se para Gudbrand. Levai-os. Dai-lhes comida e bebida. Nada de porcarias, entendido? Este homem está doente, está quase a desmaiar. Não esqueçais que levou, naquela manhã em Dorso de Baleia, um golpe na cabeça, depois de um longo Inverno preso em condições que só Odin conhece. Ide, levai-os.Espera... tu não podes prender o monge... gaguejou Eyvind, alarmado por ver o modo como Thorvald arrastava o seu prisioneiro para fora do salão. Eu é que sou o prisioneiro, não ele... ele não fez nada...Ordens do Rei disse Olaf.Acredita-me, eu não gosto nada disto. Se houvesse uma voz credível que pudesse falar em tua defesa, Eyvind, uma testemunha imparcial cuja história não pudesse ser contestada, pediria a prorrogação do julgamento, com tempo para que se juntassem mais provas. Mas, assim, o teu caso é muito fraco, filho. Não podemos contar com o testemunho dos teus camaradas Pele-de-Lobo, que estão ligados a ti por velhas lealdades. Este sacerdote, que foi próximo do Rei Engus, não é uma testemunha imparcial. Quanto à tua história, tu és um homem sincero, por vezes quase verdadeiro demais. Acho que deves preparar-te para o pior.Eyvind inclinou a cabeça.Obrigado pela tua honestidade conseguiu ele dizer no meio de uma vertigem cada vez maior. O monge... podes tentar com que o soltem? Ele é bom homem, arriscou-se para me ajudar e...Acredita-me disse Olaf muito calmamente há ocasiões em que eu daria tudo para estar de novo em Rogaland. A minha influência aqui é muito menor do que pensas. Vai. Descansa o que puderes.

Tadhg estava a dizer uma oração. Eyvind ouvia-a por fragmentos, através do zumbido dos seus ouvidos e do latejar da sua cabeça. O seu som era agradável, algo acerca de um pastor que guardava o seu rebanho, conduzindo-o até onde havia água doce e pastagens verdes. As palavras fizeram-no recordar Hammarsby e os seus belos prados ricos de miríades de flores de variados tons, o som de Karl assobiando enquanto verificava o progresso dos seus novos cordeiros bem desenvolvidos, o tilintar de um balde quando Thorgerd tirava água do poço. Via a sua mãe sentada num banco ao sol, os seus cabelos cor de trigo dourado por baixo do gorro adornado com laços e a morena Oksana a seu lado de sobrolho franzido, concentrando-se num pormenor qualquer do bordado. Os filhos de Eirik brincando em redor dos pés das mulheres. Era uma outra vida, um outro mundo. Tadhg estava, agora, a falar de morte, como o pastor conduziria os seus cordeiros em segurança através das sombras até um lugar onde o próprio Deus vivia, um lugar onde não havia trevas. Pelos ossos de Odin, aquela dor de cabeça era terrível. Tirava-lhe qualquer possibilidade de pensar razoavelmente.Eyvind? O irmão terminara a sua oração. A sua voz surgiu com clareza da porta da outra cela, que tinha também uma porta gradeada, tal como a sua. Eyvind, está tudo bem contigo?Desculpa resmoneou Eyvind, aproximando-se da porta gradeada. Dói-me a cabeça; os meus ouvidos zumbem-me. Parece que...Eles deram-te água? Tadhg mantinha o tom de voz baixo; tinham recebido instruções para não falarem um com o outro, mas até ao momento os guardas ainda não tinham ouvido nada. Bebe, talvez te faça bem. E, depois, deita-te; aproxima a tua enxerga da porta. Preciso de falar contigo. Já está? Óptimo. Deita-te, fica quieto e respira devagar. Quero que me digas uma coisa, Eyvind. Nós temos uma amiga comum, penso que sabes a quem me refiro.Humm grunhiu Eyvind, que fizera como ele lhe pedira e jazia agora de costas com a cabeça apoiada na almofada de palha e os joelhos dobrados acanhadamente, porque a cela era demasiado pequena para permitir que um homem grande como ele pudesse esticar-se a todo o comprimento do seu corpo. No dia seguinte talvez eles fizessem isso quando o descessem à terra. Então, teria todo o espaço necessário.Essa amiga, pressinto-o, continua em busca da verdade, se bem que me parece que tu e eu chegámos ao fim da nossa jornada disse Tadhg com uma voz que era pouco mais do que um sussurro.

Hum. Nessa. Onde estaria ela? O jovem rezou para que a jovem não se aproximasse, sequer, da colónia, implorou a Thor, a Odin, a Freykr e a todos os outros deuses que a levassem em segurança para outro lugar qualquer, para que nunca se aproximasse das garras de Somerled.Portanto, está tudo perdido disse Tadhg em voz baixa. Ela está viva?Aqui não murmurou Eyvind. É melhor... aqui não.Achas que a nossa amiga concorda connosco? Nós lutamos pela verdade, Eyvind, nós os três.É melhor... o fim... De manhã. Tu não. Ela não. Só eu... Pelo martelo de Thor, ia vomitar; uma matéria qualquer a saber mal estava a encher-lhe a garganta. O jovem rastejou até ao canto onde estava o balde e pareceu-lhe que estava a vomitar as próprias entranhas. Se tinha de enfrentar a morte, se aquela era a sua última noite na terra, então era uma maneira bem lamentável de passar o tempo que lhe restava.Eyvind? Estás bem? Eyvind!O jovem não conseguiu responder durante muito tempo. Por fim, os espasmos diminuíram; Eyvind rastejou de volta para a enxerga, deitou-se e enroscou-se. A dor de cabeça diminuíra; já podia ouvir melhor, mas continuava com os olhos fechados com força, porque até a luz difusa da lâmpada no corredor lhe fazia doer a cabeça, como se lhe estivessem a espetar facas no crânio.Eyvind? a voz de Tadhg era ansiosa.Estou bem. Só quero... dormir...Este caso foi lamentável. Mas não deves perder a esperança. Nós somos todos filhos de Deus e a Sua mão estende-se sobre todos nós. Por mim, não temo a morte. A maneira como posso morrer é que me mete medo; eu posso ser um monge, mas continuo a ser um homem e nunca pensei ter uma morte violenta. Mas enfrentá-la-ei de olhos abertos, se Nosso Senhor decidiu que chegou a minha hora. Caminharei para ela sem medo de enfrentar o meu Criador. Quanto a ti, o caso muda de figura, eu sei. Tu não partilhas da minha fé e eu não tenciono passar a minha última noite neste mundo a tentar persuadir-te, apesar de estares presente em todas as minhas orações, Eyvind. O nosso Pai que está no céu olha por ti como olha por nós, monges, pelos guerreiros, pelos pescadores e até pelos reis. Talvez morramos os dois amanhã. Tu, um dia falaste-me do teu deus, Thor. Que te espera no outro mundo, Pele-de-Lobo? Eyvind sorriu sinistramente na meia escuridão.

Se morrermos no campo de batalha, teremos a vida eterna à direita do deus. As mulheres guerreiras de Thor descem à terra para levar os guerreiros leais para o Valhõll, para festejarem eternamente. Mas creio que, para mim, será diferente. A sua voz tremeu. Thor abandonou-me. Deixou de me chamar. Com o tempo, acabei por aceitar; aprendi que havia outro caminho para eu trilhar, aquele que segui ao regressar aqui para confrontar Somerled com a verdade. Agora, parece que esse caminho era muito curto e que falhei nos meus esforços para defender o que está certo. Parece que, no fim de contas, não sou capaz de enfrentar a morte com coragem, como um Pele-de-Lobo. O jovem pensou em Nessa, nos seus grandes olhos cinzentos, nos seus lábios doces abrindo-se para os seus, no calor suave e delicado do seu corpo. Quero tanto viver murmurou ele ferozmente com os olhos subitamente rasos de água. Mais do que tudo o que já desejei na vida. Não posso morrer agora, quando ainda não atingi o meu objectivo, quando há ainda tantos caminhos por explorar... Ainda não estou pronto para morrer, Tadhg. Como posso deixá-la sozinha? No entanto... no entanto, se pudesse escolher, daria alegremente a minha vida por ela. Parece-te tolice?

Seguiu-se um pequeno silêncio.

O maior amor é o amor de Deus, Eyvind disse Tadhg, finalmente. Esse amor é superior a todos os outros amores; é mais poderoso e vinculativo do que qualquer outra paixão. Mas eu compreendo-te. Se deste o teu afecto, a tua devoção, a tua lealdade a alguém destas ilhas, não me surpreende que tenha sido a... esta nossa amiga. Ela inspira sentimentos fortes. Sabes, suponho, que ela é sacerdotisa da sua fé?

Shhh disse Eyvind baixinho, aterrorizado com a possibilidade de os guardas ouvirem. Não podia, de modo nenhum, arriscar ainda mais a vida de Nessa. Sim, é claro que sei.

Digo isto apenas para que tenhas cuidado. Se sobreviveres, é provável que o futuro de que falas tão apaixonadamente não seja possível.

Isso não é importante murmurou Eyvind. Não falemos mais disso.

Suponho que nos vão chamar dentro de pouco tempo disse Tadhg placidamente. Talvez ainda haja tempo para outra oração. Deixa-me ver...Diz outra vez aquela do pastor murmurou Eyvind.A voz suave recomeçou o fluxo de belas palavras, tecendo a imagem de um lugar onde o amor, a paz e a beleza andavam de mãos dadas, onde as dores eram esquecidas e as feridas curadas, onde tudo era como devia ser. Para Eyvind, foi como se um sino tocasse, medindo o tempo.

 

Havia sussurros na escuridão, vozes furtivas dizendo algo que não podia ser ouvido fora das paredes daquele lugar obscuro de cativeiro. Parecia que acreditavam que ele estava a dormir, enroscado como estava na enxerga de palha, o rosto virado para a parede. Mas Eyvind era caçador e um caçador ouve o que os outros homens não são capazes de ouvir. Discutiam o modo como ele havia de morrer. Algo mudara. Algo acontecera e não pareciam capazes de tomar uma decisão formal, não pareciam capazes de terminar o julgamento. Não haveria nenhuma execução de madrugada. Em vez disso, matá-lo-iam de noite, às escondidas. Eyvind retesou-se para apanhar cada palavra, o seu coração batendo com toda a força. Não podia mexer-se, não podia alertar o seu companheiro de prisão, porque era vital que pensassem que continuava a dormir.... completamente inesperado e inacreditavelmente inconveniente. Que pensa ele que está a fazer? Aquela voz pertencia a Somerled e tinha um tom que Eyvind conhecia bem e do qual não gostava nada.Quantos é que estão com ele, meu senhor?O mensageiro disse trinta, pelo menos... vêm de Baía de Prata... e chegam aqui, certamente, de madrugada.Muito bem, meu senhor. Que fazemos, então?Não podemos esperar, temos de resolver o assunto antes de eles chegarem. E temos de o resolver de modo a que não fique nenhuma impressão adversa. Compreendes o que quero dizer?Compreendo, meu senhor. Aquela voz também lhe era familiar, pertencia a um dos rufiões do knarr, mais rápido com os punhos do que com o raciocínio. Queres que acabe com ele rapidamente.

Não é tão simples como isso disse Somerled. Eu não te estou a pedir que cometas um assassínio; isso deixaria em aberto muitas perguntas. Tem de ser um caso de tentativa de evasão, no qual os teus esforços para recapturar o prisioneiro terminaram, infelizmente, com a sua morte. Fá-lo com as portas fechadas e não faças muito barulho. Manda um homem chamar-me quando tudo estiver terminado.Mas... meu senhor, tu conheces reputação do homem. Ele é um Pele-de-Lobo, no fim de contas. E se ele...? Aquela voz era diferente e estava tingida de genuíno medo.Se ele te assusta assim tanto, ata-lhe as mãos atrás das costas antes de começares disse Somerled friamente. Não te esqueças é de o desatar depois, ou a coisa fica má para ti. Não quero que se diga que batemos nos prisioneiros. E agora faz o que tens a fazer, sim? Não sabemos quando chegarão os nossos visitantes inesperados e eu preciso de ter a certeza de que os recebemos adequadamente. Pareces hesitante. Detecto alguma relutância em cumprir as minhas ordens? O homem é um cobarde e um traidor. De que estás à espera?Meu senhor, pergunto a mim próprio...Ouviu-se o som de uma porta a fechar-se e depois o silêncio. Eyvind esperou um momento, os sentidos todos em alerta, à espera do mínimo som. Parecia que se tinham ido embora, pelo menos por agora.Eyvind? O chamamento veio da cela ao lado.Eu ouvi-os. Eyvind levantou-se, forçando os membros dormentes a movimentarem-se, imaginando o que poderia fazer contra um grupo de assaltantes com os pés agrilhoados.Tens de lutar contra eles murmurou Tadhg ferozmente. Luta e sobrevive. Eu tenho esperança; ele pressente a derrota, ou não agiria assim. Tu és capaz, guerreiro.Tu, a pedir-me para lutar? Eyvind respirou fundo enquanto abria e fechava os punhos, distendia os ombros doridos e se afastava da porta gradeada para poder ter alguma vantagem quando eles atacassem. Um monge cristão? Era capaz de rir, se não tivesse que poupar o fôlego.Tu não és, nem cristão, nem monge observou Tahdg secamente. Tu tens de lutar por mim, por Nessa e pela verdade. Tens de lutar por Somerled. Se ele te matar, ficará amaldiçoado para o resto da vida. Sê forte, Pele-de-Lobo. Estou a ouvi-los.

Eyvind ficou muito quieto. Tinha a cabeça límpida apesar da luz, que brilhou subitamente na entrada um archote? Uma lanterna? o obrigara a semicerrar os olhos. O jovem guerreiro esperou, preparado para o momento do ataque. Os pés agrilhoados poderiam ser utilizados com vantagem se fosse suficientemente rápido. Achou, pelos passos, que eram cinco ou seis. Eles não acreditavam que ele estivesse tão fraco como diziam os rumores. Parecia que a sua reputação não tinha desaparecido de todo. Respirou profundamente, lentamente, firmemente, pronto, cada inalação um acumular de forças. Tirariam o ferrolho à porta, fá-lo-iam, possivelmente, sair com paus e os que estavam no exterior usariam chuços para o derrubar. Depois, bater-lhe-iam até o matarem, de modo selvagem e rápido. Não queriam barulho. Não queriam provas. Aquilo soava-lhe de modo familiar. Muito bem, faria o maior barulho possível antes de conseguirem silenciá-lo. Se Grim o ouvisse, se Erlend ou Holgar lhe reconhecessem a voz, talvez viessem em seu socorro. Se Olaf Sveinsson soubesse que se estava a cometer um assassínio em vez de se fazer justiça, certamente que interviria, por mais medo que tivesse de Somerled.

Os homens estavam a aproximar-se, a sua tentativa de o fazerem sem ruído ridiculamente inepta. Era evidente que eram marinheiros ou operários, não guerreiros ou caçadores. Eyvind esperou pelas mãos nas grades e pelo ranger da porta a abrir-se. Mas a que se abriu foi a do irmão Tadhg e o som que se ouviu no silêncio da escura prisão foi o de uma pancada e de um arquejo de dor, de choque, quando o monge foi atirado contra a parede de pedra. O jovem ouviu a voz de Tahdg, entrecortada e desigual, recitando palavras que Eyvind já ouvira antes, se bem que não as compreendesse.

Paternosterquiesincoelis... A oração cessou momentaneamente, substituída por outra paulada e outro arquejo de dor, continuando depois mais fraca mas cheia de determinação. santctificetur nomen tuum... fiat voluntas tua... aaah...

Chega! gritou Eyvind, furioso, agarrado às barras da cela e o rosto pressionando-as, procurando ver. Chega! Perdestes toda a noção de decência, para atacardes assim um sacerdote que não é acusado de qualquer crime? Um homem honesto? Deixai o homem em paz, ou juro por Thor que arranco as barras desta cela e faço-vos em bocados! O jovem abanou as grades e sentiu um calor subir-lhe pelo corpo acima, um esgar feroz contorcendo-lhe as feições. É a mim que deveis matar, não a ele! Deixai-o em paz imediatamente!

Eyvind não podia ver Tahdg, mas ouvia as pancadas. A oração hesitante continuou, desta vez na sua própria língua.

... a morte aproxima-se... mas Tu guias-me na escuridão... Tu és... Tu és a minha força e o meu conforto... Tu...

Pelos ossos de Odin, iam matar o monge mesmo ali ao pé dele; pensou ouvir as costelas do irmão a estalar. Não podia permitir aquilo. Thor não podia permitir.

Eyvind lançou a cabeça para trás e rugiu. Rugiu o nome do deus num grito de fúria e frustração e sob o aperto dos seus punhos a porta começou a ceder nos gonzos, quase caindo para o lado de fora. O jovem abanou com força, esforçando por se manter equilibrado nos pés agrilhoados. Rapidamente, como o corte da machadinha de um carniceiro, vários pares de mãos agarraram-lhe os braços, fechando-lhe em redor dos pulsos uns anéis de ferro unidos por uma corrente e prendendo-o firmemente às grades da cela. O último gonzo cedeu; a porta caiu no chão e Eyvind caiu em cima dela, firmemente preso, os braços agrilhoados, o rosto pressionado contra o metal frio. Uma armadilha, fora uma armadilha, para conseguirem aproximar-se. Inteligente. Demasiado inteligente para aqueles imbecis. O jovem achou que sabia quem imaginara aquilo.

Estás bem? gritou Eyvind e ouviu um "sim" entrecortado antes de a primeira pancada lhe cair nas costas. Lutou o melhor que pôde, torcendo-se e retorcendo-se, puxando os grilhões e batendo com os pés agrilhoados. Finalmente tinham largado o monge, de modo a concentrarem-se nele. Havia uma espécie de padrão no modo como eles estavam a proceder, como se tivessem instruções para minimizar os danos, ao mesmo tempo que se certificavam de que o resultado seria, eventualmente, o exigido por Somerled. Algures, não muito longe, a oração continuava.

A Tua casa é o lugar aonde todos os caminhos vão dar, Senhor. Se eu prosseguir no caminho da verdade e da coragem, no fim terei abrigo seguro...

Um súbito golpe na cabeça fez-lhe regressar as dores de cabeça. Parecia-lhe sentir sangue num olho. A oportunidade de lutar, tal como recomendara o irmão Tadhg, era algo limitada, com os pulsos presos, o rosto pressionado contra a porta caída no chão e as grilhetas limitando-lhe o movimento das pernas. Luta por Nessa. Pensa nela. Pensa na vida e no futuro. Todos os caminhos vão dar... verdade e coragem... Luta por ela e luta pela verdade. E quando já não podia lutar mais, barulho, muito barulho, porque tinham dito que estava alguém a chegar, alguém cuja chegada preocupava Somerled, e se ele conseguisse aguentar, aguentar o tempo suficiente...Thor! gritou Eyvind. Thor, sê a minha força! Odin, sê o meu protector e o meu escudo! Freyr, concede-me o poder da tua virilidade! Cobardes, quereis bater-me? Um pau apanhou-o de raspão na orelha esquerda; a cabeça zumbia-lhe como se um enxame de abelhas se tivesse introduzido no espaço entre os olhos. Somerled! gritou ele com toda a força dos seus pulmões. Somerled, anda cá abaixo e luta! Queres matar-me na escuridão, não queres? Cobarde! E chamas-te tu Rei? Anda cá abaixo e luta!Socorro! Havia outra voz a gritar. Socorro! Assassinos! Como a sua oração terminara, o pequeno monge fazia agora a sua própria contribuição para a comoção geral, com ou sem costelas partidas. Socorro! Estão a matar um Pele-de-Lobo!Cala-me aquele homem! disse alguém em voz entrecortada. Ouviu-se uma pancada e os gritos do monge cessaram abruptamente.Maldito! arquejou Eyvind, pontapeando para cima e para baixo com os dois pés e ouvindo um gemido doloroso quando uma pancada às cegas acertou num sítio vulnerável. Malditos, malditos vermes miseráveis! Lutai como homens, malditos! Ou guardais as vossas forças para homens santos e prisioneiros agrilhoados? Tirai-me estas grilhetas e dou cabo de todos e, pelo martelo de Thor, quando acabar só fica um osso ou outro para dar aos cães! Deixai-me levantar, malditos! Somerled! Somerled, anda cá abaixo e enfrenta-me, anda cá abaixo e enfrenta a verdade do juramento que juraste um dia! Anda cá abaixo, irmão!Depressa! disse alguém asperamente. Dá-me esse martelo! E tu cala-me essa boca! Ninguém te vem salvar, nem Thor, nem Somerled, nem ninguém. Tu és um traidor miserável, e um mentiroso.Uma bota acertou no queixo de Eyvind; o jovem sentiu a vibração do golpe no crânio e os dentes a partirem-se. A boca encheu-se-lhe de sangue; tornou-se impossível formar palavras. No entanto, continuou a fazer barulho, já que parecia ser a única forma de resistência que lhe restava. Alguém se tinha sentado em cima das suas pernas, segurando-as por mais força que fizesse para se libertar.Parece um animal selvagem grunhiu alguém. Ouvi dizer que são quase todos assim. Os Pele-de-Lobo, quero eu dizer.Vê se o calas! A voz daquele tremia. Está a complicar com os nervos, a uivar como um cão maluco. Onde está o maldito martelo? Um bom golpe na base do crânio deve bastar... ah, cá está ele...Seguiu-se um instante de silêncio, durante o qual Eyvind conseguiu encher os pulmões de ar e ter uma imagem da sua cabeça estilhaçada. A minha mão na tua... O golpe ia cair e aquela agonia terminaria.Ouviu-se um barulho e um súbito clarão de luz quando a porta ao fundo do corredor se abriu abruptamente.Em nome de Odin, que pensais vós que estais a fazer? A voz era de Somerled, acerada como facas e perigosa. Levantai esse homem daí imediatamente e levai-o para o salão grande. Saibamos, pelo menos, comportar-nos.Mas... disse alguém atabalhoadamente.Que aconteceu aqui? Aquela voz era diferente, era a de Olaf Sveinsson, na qual o choque era quase palpável. Este homem foi espancado?Seguiu-se um breve silêncio, durante o qual Eyvind sentiu libertarem-lhe as mãos das barras da porta. Mas as pulseiras de ferro nos pés ficaram; a corrente entre elas, com um palmo de comprimento, impediam-no de se movimentar.Estava a provocar sarilhos resmungou alguém. Gritava e batia nas barras, este Pele-de-Lobo maluco.Mas ele está acorrentado. O tom de Olaf era frio, desaprovador.A nós, disseram-nos... começou a dizer o guarda, mas a voz de Somerled cortou-lhe a palavra como se fosse uma lâmina letal.Tens alguma coisa a dizer?Aaa... não, meu senhor. Só que... e o sacerdote?Estás a dizer-me que também o feriram? Que falta de cuidado. Ele está morto?Um gemido vindo algures do fundo do corredor indicou que não estava. Cuspindo sangue e bocados de dentes partidos, Eyvind conseguiu falar.Deixai-o. Eu enfrento qualquer castigo que tenhais decidido impor-me. Eu não tenho medo de morrer. Mas que a sentença seja executada à luz do dia, perante os homens da colónia, não furtivamente, na escuridão. E libertai o sacerdote. Ele não vos fez mal nenhum.Seguiu-se outro silêncio. Os homens ergueram Eyvind. O jovem podia ouvir o irmão Tadhg a tossir por trás de si, um som irritante, aos repelões.Estes homens pagarão por tentarem fazer justiça com as suas próprias mãos. A voz de Somerled era calma e precisa. Foi uma estupidez. Uma verdadeira estupidez. A opinião geral é contra ti, Eyvind; isto foi apenas uma amostra.Por que vieste aqui? perguntou Eyvind enquanto o mundo girava à sua volta, ameaçando embaciar-se até mergulhar na escuridão da inconsciência. Os rostos dos seus guardas tinham empalidecido. Não me digas que desenvolveste uma súbita paixão pela justiça. Ou fui eu que gritei demasiado alto, acordando assim a tua consciência?Não te armes em esperto cortou Somerled. Nunca foi o teu forte. Temos visitantes inesperados e tornou-se necessário mostrar-lhes que não te aconteceu nada enquanto estiveste sob a minha custódia, até agora. O Rei virou-se para os guardas. Tragam-no para cima!O salão grande resplandecia de luz. Como a noite ia adiantada, talvez pouco faltando para que o céu começasse a clarear, alguns já se tinham ido deitar. As canecas de cerveja tilintavam, havia pratos espalhados em cima das mesas e restos de carneiro e de pão indicavam que se tinha comido ali com entusiasmo. Estavam ali reunidos quarenta ou cinquenta homens, a maior parte pertencentes à casa de Somerled e também algumas mulheres. Os juizes tinham regressado. Não estavam sentados calmamente à mesa, antes de pé por trás das cadeiras, as suas expressões variando de alguma surpresa até uma completa incredulidade enquanto olhavam para o pequeno grupo de viajantes que entrara pela grande porta das traseiras e que esperava agora, calmamente, no meio do salão. Enquanto o arrastavam até ao local onde estava a cadeira de Somerled, Eyvind olhou em volta e deu de caras com os olhos furiosos de Margaret. A dama estava ladeada por dois guardas corpulentos, as mãos pousados nos punhos das espadas; e tinha outros por trás de si. Todos eles olhavam para o exterior: a sua própria força de protecção, então, não um bando de carcereiros para a manterem aprisionada.Minha senhora conseguiu Eyvind dizer, sem compreender o que estava a acontecer, mas vendo, nas suas feições abatidas, uma sombra de algo profundamente tranquilizador. Era, pensou ele, a qualidade que Ulf possuía com abundância e que Somerled nunca conseguira agarrar: a compreensão da justiça. O jovem ouvia a respiração entrecortada de Tadhg; o pequeno monge estava perto dele flanqueado por um guarda, como se também ele estivesse a ser julgado.Esses homens foram espancados. O tom de Margaret era frio e desafiador. Pensei que tinhas dito que Eyvind estava preso, à espera do veredicto. Ele está a sangrar. O monge está coberto de equimoses. Já chegámos a isto, agora mandamos rufias espancar os nossos prisioneiros, em vez de observar as regras mais básicas da honestidade? Estou envergonhada, envergonhada por mim mesma e envergonhada por Ulf, que sempre procurou assumir as suas responsabilidades como chefe de guerra de acordo com as leis de Rogaland. Que aconteceu aqui? Olaf ? Harald? Como pudestes pactuar com este notório abuso de autoridade?Alguns arrastaram os pés no chão; outros tossiram, aclarando as gargantas. Somerled aproximou-se de Eyvind, em frente da mesa. Ele, assim parecia, não tinha medo de responder.Minha querida, como já te disse, não te esperava e não compreendo como fizeste esta longa jornada de noite, às escuras. É uma longa jornada para uma mulher; vai descansar e deixa que os homens da minha casa resolvam isto. É um caso muito triste, não é próprio para os ouvidos de uma dama. Tenho a certeza de que estás exausta. Um cantinho privado, uma lareira... De manhã explico-te tudo. Se os meus homens foram um pouco zelosos demais e deixaram o Pele-de-Lobo com uma ou duas nódoas negras a mais, foi a aversão à sua traição que os levou a esse exagero. Por favor, permite-me que te escolte até aos teus aposentos, minha senhora, como é apropriado. O Rei deu um passo em frente, sorrindo.Apropriado? O tom de Margaret era gelado, calmo, um eco do de Somerled. Estou certa de que não concordamos com a definição dessa palavra, cunhado. É apropriado atacar um sacerdote, mesmo que ele pertença à fé cristã? Ouves o som da sua respiração? Consegues ver como lhe é difícil manter-se de pé? Que vergonha, todos vós. Agora virastes costas à justiça que o meu marido defendeu com talento, à justiça que todos nós respeitávamos em Rogaland? Por que está ele atado e agrilhoado, ele, que era o teu mais leal companheiro? Diz-nos.

Somerled franziu o sobrolho.Minha senhora, isto não é...Apropriado, sim, já me disseste. Mas eu quero respostas, Somerled. E, se não mas dás, talvez Eyvind mas possa dar, se a sua estadia aqui, sob a tua custódia, não lhe tirou a capacidade de falar.Somerled respondeu imediatamente.Toda a gente sabe o que ele fez. Ele é um mentiroso e um traidor. De acordo com a minha lei, um traidor paga com a vida. Não há mais nada a dizer.Estou a ver disse Margaret friamente. E suponho que, neste julgamento, Eyvind teve oportunidade de falar? Que disse ele em sua defesa?Confessou disse rapidamente Somerled. Confessou tudo. O caso é claro como água. Infelizmente, a mente do nosso velho amigo foi completamente apagada durante o Inverno que ele passou sob a custódia de gente desta ilha. Ele é um perigo para ele próprio e para todos nós. Entristece-me muito ter de dizer-te isto.Margaret avançou um passo e Eyvind pôde ver que havia mais alguém a seu lado, uma figura delicada, metida numa capa escura e com um embrulho debaixo do braço. Os pêlos dos braços e do pescoço eriçaram-se-lhe; o seu coração deu um salto.Que razões tiveste para tais acções, Eyvind? perguntou Margaret calmamente. Tu eras o mais bravo dos guerreiros e o mais verdadeiro. O meu marido tinha-te em grande estima. Por que tentaste deter o ataque a Dorso de Baleia?Não há necessidade de ouvirmos isto tudo outra vez acrescentou Harald, Língua de Prata, zangado.Silêncio! A chicotada da voz de Olaf Sveinsson espantou-os a todos. Ela não é a viúva de lorde Ulf ? lady Margaret tem o direito de ouvir todos os pormenores que desejar. A dama tem razão; esquecemos o que é correcto. Fala, Pele-de-Lobo. Talvez a história dele te angustie, minha senhora ele olhou de relance para Margaret com o sobrolho franzido, preocupado mas deves ouvi-la.Vamos, Eyvind, estou à espera. A voz de Margaret era calma.O ataque não devia fazer-se disse Eyvind debilmente. Desvia-te um bocadinho. Quem é que está por trás de ti? Era contra todos os princípios da guerra. A população de Dorso de Baleia estava de luto. E havia um tratado que tinha sido jurado sobre o bracelete; Engus tencionava manter a paz, tal como Ulf. Eu só tentei deter uma chacina selvagem.

E? Margaret olhava para ele com algo da ferocidade de Somerled no olhar. Era como se já soubesse a verdade.

E... lamento que seja eu a dizer-te que foi Somerled que matou o teu marido. Eu sei que é verdade e tentei demonstrá-la, mas eles dizem que eu não tenho provas, não tenho testemunhas. Eles dizem que podia muito bem ter sido eu a fazê-lo. Lamento, minha senhora, porque falhei. Tentei que se fizesse justiça a Ulf...

Um disparate, claro disse Somerled secamente. Produto de uma mente confusa. Aqui o nosso amigo sempre foi susceptível à influência feminina. Uma feiticeira apanhou-o na rede dela. Muito triste. Ela não tem caso nenhum, não tem testemunhas, não tem nada. Todo o esforço é ridículo e é triste de ver, porque tens razão num ponto: este homem foi, em tempos, um dos nossos melhores guerreiros e o mais leal dos amigos. É este o mal que a gente desta ilha pode lançar sobre o espírito de um homem. Parecem fracos, mas são perigosos. Não o devemos esquecer. Mas está a fazer-se tarde. Retiramo-nos e reconsideramos pela manhã? Apesar da confiança do seu tom de voz, Somerled parecia pouco à-vontade; Eyvind aprendera a ler as suas feições há muito tempo e reparou que ele tinha o queixo levemente torcido e que batia com os dedos na coxa, tudo sinais de ansiosidade. Somerled estava nervoso. Que tinham eles dito antes do anoitecer? Trinta homens a chegar? Somerled fora avisado da chegada iminente de visitantes inesperados; era evidente que esperava outras pessoas para além de Margaret.

Na verdade, é uma crueldade matar o próprio irmão para ficar com aquilo que ele possuía disse Margaret. A sua voz estava menos firme do que antes e o seu rosto estava branco como a seda, mas mantinha a cabeça bem erguida. Cruel e repulsivo. Não consigo imaginar o castigo para um crime desses. Um crime desses é mais horroroso, creio, do que uma tentativa para deter um ataque a uma aldeia cheia de pessoas a dormir, que só sentem nos seus corações dor pelo parente perdido e desejo de paz. Não achais, vós que estais aqui a julgar? Margaret virou-se, olhando para cada um nos olhos: Olaf Sveinsson, Harald, Língua de Prata, o capitão de navio, os guardas Pele-de-Lobo, os homens da corte, imóveis, de pé em redor do salão grande, presos pelo drama que se estava a desenrolar. Estava tudo silencioso, tão silencioso que o restolhar dos pequenos animais podia ser ouvido no telhado de colmo. Por fim, a viúva de Ulf olhou para Somerled. Não achas? perguntou ela, e a sua voz era agora tão firme e dura como uma rocha.O que eu penso é irrelevante disse Somerled suavementejá que tal crime não está aqui em consideração e apesar das acusações de Eyvind, nem uma única voz desinteressada se ofereceu para o apoiar.Margaret sorriu. Um sorriso capaz de gelar o tutano dos ossos de qualquer homem: o sorriso no rosto do jogador quando ele move a última peça, antecipando uma vitória certa.Estou a ver disse ela suavemente. Sinto-me um pouco cansada, cunhado. Não tenho andado bem ultimamente. Creio que me vou sentar. Talvez uma taça de água. Obrigada, Ash acrescentou ela quando um dos seus homens surgiu com uma cadeira de espaldar. Ela desviou-se e sentou-se graciosamente; só então aqueles que estavam perto, como Eyvind, puderam ver como as suas mãos tremiam.Como vês continuou Margaret não vim sozinha. Esta aqui é lady Nessa, herdeira do Rei Engus das Ilhas Brilhantes. Ela viajou até aqui sob a minha guarda. Aqui está a tua testemunha, Pele-de-Lobo. Aqui está a tua voz da verdade. Margaret fechou os olhos por um momento e oscilou ligeiramente. Olaf Sveinsson moveu-se rapidamente, encheu uma caneca com água e colocou-lha na mão.A figura encapuçada avançou até que ficou no centro do salão grande, sozinha, de frente para Somerled e retirou a escura capa encapuçada dos ombros. Da multidão ergueu-se um som de admiração, porque parecia que a sua silhueta esbelta estava coberta por uma luz que não era deste mundo, uma luz feita de todas as subtis cores das ilhas: cinzento-pérola, azul-celeste, verde-mar, dourado da areia sob o Sol da Primavera, azul-escuro brilhante da pele das focas. Vestida com aquele vestido brilhante e sedoso, os seus cabelos castanhos, longos e suaves como a pele de uma lontra, Nessa mostrou-se com firmeza e delicadeza, os seus grandes olhos fitando os de Somerled sem qualquer sinal de medo. A grinalda que tinha na cabeça era feita de finas algas entrançadas e ornamentada com pequenas conchas, fetos verdes e secos e com as primeiras flores cor-de-rosa da estação. Eyvind não ouvia mais nada senão o bater do seu coração e o alegre e terrível fluxo de sangue nas veias.

Eu sou Nessa, sacerdotisa dos mistérios. A voz era tão límpida como um carrilhão; a sua vibração poderosa fez estremecer cada nervo e silenciar cada língua. Sou a última de linhagem real das Ilhas Brilhantes. Falo em nome do Rei Engus e dos seus homens, cruelmente chacinados quando estavam de luto. Falo em nome das mulheres e crianças do nosso povo, cativas nesta colónia. Falo em nome dos antepassados, em nome dos antigos poderes que habitam os dólmanes e as pedras erectas, em nome dos seres das profundezas da terra e do oceano, falo em nome de todas as criaturas que habitam este belo lugar e em nome dos seus corpos, dos seus espíritos, que vagueiam desassossegados. Falo em nome de todos. Aquilo que trago comigo é a última e inquestionável testemunha: a voz que contará a mais profunda verdade.Os seus dedos esbeltos moveram-se para tirar do tecido escuro a pequena coisa que trazia debaixo do braço. Ainda antes de estar completamente descoberta, soou, trémula. Eu sou... Ulf...Ouviu-se um novo som de choque, um ahhh!, tão palpável como um vento frio em redor do salão grande. Os rostos empalideceram; as mãos moveram-se para fazer gestos de protecção. E a coberto da consternação geral, Somerled mexeu-se. Com a faca na mão, lançou-se sobre Nessa com a rapidez própria de um Pele-de-Lobo.A voz surgiu, clara, forte, uma trombeta de guerra no seu coração. Arde com força! Fere com força! Mais tarde, Eyvind quase não se recordaria dos seus movimentos. O salto surgiu-lhe quase sem pensar, rápido como o salto final do lobo ao abocanhar o pescoço da presa. Saltou a pés juntos, percorrendo o espaço antes que Somerled pudesse chegar à jovem, e com uma sacudidela e um torção atirou com o Rei de joelhos por terra. Um golpe súbito de mãos, um súbito puxão e Somerled ficou encostado de costas ao peito de Eyvind, com a pequena corrente dos pulsos do Pele-de-Lobo em redor do pescoço. Eyvind tinha as mãos cruzadas, os braços segurando os anéis de ferro com força suficiente para quase sufocarem o rei, mas não para o impedirem de respirar.Se alguém põe as mãos nela, Somerled morre! A sua voz soou através do salão grande. Que alguém se atreva a mexer, e eu mostro-vos o que um Pele-de-Lobo é capaz de fazer. E agora calai-vos e ouvi, cegos, loucos! O jovem atreveu-se a olhar para Nessa, solene e tranquila a menos de três passos dele. Fora por pouco, fora quase, e fora ele que ensinara a Somerled aquele movimento rápido com a faca.

Leva o tempo que quiseres disse-lhe Eyvind calmamente, e não conseguiu impedir que a voz lhe tremesse. Não deixo que te façam mal. Prometo.Nessa acenou com a cabeça e um leve e hesitante sorriso surgiu na sua boca, acompanhado por um débil rubor cor-de-rosa nas faces. Era um sorriso totalmente despropositado naquela assembleia estranha e solene, na qual os homens olhavam agora para ela com uma mistura de medo e terror enquanto a jovem tirava completamente a cobertura para revelar a delicada e pálida forma de uma pequena harpa. Era um sorriso pertencente a alguém completamente diferente da figura etérea que se encontrava entre eles como uma deusa de uma história antiga. O coração de Eyvind estava parado. O jovem não conseguia falar, não conseguia esboçar a menor resposta, porque o medo, o amor, o deleite e o terror mantinham-no, gelado, no sítio onde estava. Nessa não parecia descontente. Talvez os seus olhos falassem por ele, porque acenou com a cabeça solenemente, agora já sem o sorriso, mas com o olhar quente e puro que ele vira antes, quando ela se aproximara dele à luz da lâmpada. Fora apenas no dia anterior, um único dia, mas que parecia algo de um passado distante, como se uma vida inteira tivesse acontecido no espaço de um nascer do Sol ao outro. Agora, fechado naquele estranho abraço, sentindo no seu próprio peito a respiração difícil de Somerled, Eyvind mal conseguia conter na mente as mudanças que tinham ocorrido.Um dos homens de Margaret avançou e desenrolou a brilhante pele de lobo no chão de terra vazio. Nessa ajoelhou-se, pousou a pequena harpa na pele à sua frente e com dedos delicados tocou nas pequenas cavilhas de osso, uma, duas, três... cinco... e a última, que não podia ser afinada senão no local onde testemunharia. O corpo de Somerled agitou-se violentamente, tentando libertar-se. Como as suas duas mãos estavam a apertar a corrente, Eyvind não podia impedir que os membros do seu prisioneiro se mexessem e Somerled era um lutador duro, astucioso, capaz de se livrar de situações incómodas. O desespero dá a um homem uma força sobrenatural. Os dedos de Somerled fincaram-se na corrente. Eyvind fez ainda mais força nas suas próprias mãos cruzadas, uma sobre a outra; Somerled tentou falar e o seu rosto tornou-se púrpura. O Rei contorceu-se de novo, retesou o corpo, fez força com as pernas no chão num esforço final para se libertar do amplexo de Eyvind antes que a harpa começasse a falar.

Quanto tempo mais conseguiria manter-se assim, usando apenas a corrente, Eyvind não sabia. A cabeça doía-lhe, os braços doíam-lhe e Somerled lutava de um modo que o devia, supunha, deixar orgulhoso, já que fora ele a ensiná-lo. Podia matá-lo, claro; seria fácil. Seria demasiado fácil.Ouviu-se um som ínfimo através do salão grande, um assobio, breve, discreto, um som conhecido de qualquer Pele-de-Lobo habituado às emboscadas na floresta. Eyvind acenou muito levemente com a cabeça e um instante mais tarde uma faca voava pelo ar para aterrar na mão que ele abrira rapidamente. Naquele momento de chocante percepção, durante o qual Somerled compreendeu a careta de auto-satisfação de Grim e o abrandamento do amplexo de Eyvind, a corrente rebentou-se e Somerled foi atirado para a frente, ficando ajoelhado com o braço esquerdo torcido dolorosamente atrás das costas, ao mesmo tempo que, com a mão direita, Eyvind lhe encostava a faca ao pescoço. Tudo acontecera num instante. Nessa olhou para cima, os olhos abertos de espanto.Está tudo bem disse Eyvind suavemente. Faz o que tens a fazer. O jovem podia vê-los a todos, agora, Grim, Holgar, Erlend e até aqueles que tinham duvidado dele, tomando posições estratégicas em redor do salão grande, de armas na mão, como que desafiando cada homem que ousasse desvirtuar o rumo dos acontecimentos, agora que tinham começado a percorrer o caminho da verdade. Grim não conseguia tirar do seu semblante barbudo o sorriso feroz; Holgar acenava solenemente com a cabeça. Até Erlend tinha nos olhos o respeito, um respeito que Eyvind não esperava merecer de novo.Bruxaria! berrou Somerled. Feitiçaria! Não oiçam essa coisa malvada! As suas palavras cessaram quando a faca se moveu e todos viram um fio de sangue a escorrer-lhe pelo pescoço, manchando-lhe a roupa de escarlate.A mim, parece-me disse Olaf Sveinsson com uma voz onde havia ao mesmo tempo espanto e respeito, medo e admiração, uma voz que talvez reflectisse o que todos os presentes começavam a sentir nos corações que não precisamos de ouvir o som desse instrumento, porque todos nós conhecemos o nosso folclore e sabemos o que isso é. Uma nota bastou para ouvirmos a voz do nosso chefe de guerra perdido, e vemos no rosto do nosso Rei algo que diz mais do que seríamos capazes de imaginar. Amigos, creio que estivemos cegos pelo medo e pelo preconceito. Creio que nos esquecemos do tipo de homens que somos. Escutemos, então, e lembremo-nos do que em tempos conhecemos por justiça. Escutemos e choremos pela nossa loucura.Somerled contorceu-se sob o amplexo de Eyvind.Loucos! A sua voz era um sussurro estrangulado. Ela domina-vos com a sua magia negra, assim como dominou Eyvind e o virou contra mim! Não oiçam, ordeno-vos! A faca voltou a abrir um fio vermelho no seu pescoço e ele ficou silencioso.Em seguida foi Harald que falou, as suas feições rudes coradas de confusão.Se a harpa não é o que clama ser, meu senhor Rei, então não cantará e não causará qualquer prejuízo. Mas todos conhecemos a velha sabedoria destes encantos: a história de Snorri, Meio-Sapato, que reuniu os ossos do filho para se vingar; a história da rapariga que subiu até ao Eagle Crap e regressou com uma voz clara e transparente, falando de assassínios secretos e conspirações. Só beneficias se concederes à jovem dama uma audiência, porque se isto foi feito com os ossos do teu irmão, todos nós sabemos que só pode dizer a verdade. E a verdade, certamente, é a coisa de que mais necessitamos esta noite.Eyvind podia ter sorrido perante aquelas palavras, mas não podia. As suas mãos, uma com a faca e a outra torcendo cruelmente o braço de Somerled para que ele não tivesse a mínima hipótese de fazer mal a Nessa ajoelhada, muito pálida, muito quieta, tão distante e tão sedutora, requeriam toda a sua força de vontade; ouvir, respirar e esquecer a dor numa ou noutra parte do seu corpo exigia toda a sua concentração.Tu não és capaz de me matar coaxou Somerled, ao mesmo tempo que Nessa apertava a última cavilha. Não tens coragem. Tu nunca...É capaz, sim. Fora Margaret que falara do sítio onde estava sentada, aparentemente tranquila, vendo os dedos de Nessa na pequena cavilha de osso, o polegar de Nessa testando a corda fina e escura. Se tocares nela, ele apaga-te como quem apaga uma vela. Vejo-o nos olhos dele. No fim de contas, não é todos os dias que alguém tenta contar a verdade e acaba condenado à morte por isso. A dama levantou-se e virou-se para a assistência. Ao fundo do salão grande, as mulheres do povo de Nessa estavam juntas num pequeno grupo, os seus vestidos vermelhos, azuis e verdes dando uma nota de cor vibrante à luz das lâmpadas. Todas tinham as cabeças bem erguidas. Os seus rostos pisados e os seus olhos sombreados brilhavam de orgulho ao verem a sua sacerdotisa tocar uma última vez no instrumento e depois sentar-se nos calcanhares, à espera.Que esta harpa seja ouvida disse Margaret. Ela fala com a voz de Ulf, que era o vosso chefe de guerra. Foram os seus ossos e o seu cabelo que lhe deram substância. Ouvi e chorai.Mais tarde, se um homem perguntasse àqueles que tinham estado presentes na colónia de Hrossey, naquela noite, o que tinham ouvido, teria recebido como resposta tantos relatos diferentes como mulheres e homens no salão grande. Alguns não diriam nada e um desses era Margaret, filha de Thorvald, Braço de Ferro. Fosse o que fosse que ouviu, encheu-lhe os olhos de lágrimas, até que meteu a cabeça nas mãos para que ninguém pudesse testemunhar a sua dor. Talvez tivesse ouvido as palavras de um jovem marido transformado pela visão de um novo mundo, preocupado com o que o seu irmão pudesse fazer para o deter, um homem desesperado por atingir o seu objectivo antes que a profecia o levasse, negligenciando, assim, a sua mulher, adiando o tempo que devia passar com ela para um dia em que não houvesse tantos assuntos para tratar, para um dia em que a sua colónia estivesse terminada e o seu povo e o povo de Engus vivessem a vida que ele tão ferozmente desejava para ambas as comunidades. Talvez, naquela noite, Ulf tivesse dito palavras vindas do seu coração; talvez tivesse dito a Margaret como a sua admiração e respeito se tinham transformado em amor, um amor que, sendo ele um homem reservado, nunca conseguira exprimir por palavras. Talvez lhe tivesse dito quanto desejara um filho. Ou talvez não. Fosse o que fosse que a harpa cantou para Margaret, ela guardou-o para si.Mas outros foram mais abertos. Foi uma história terrível, contou Harald, Língua de Prata, uma história de fratricídio e odiosa sede de poder, tudo concebido com versos habilmente construídos à maneira dos skalds. Ora, se um poeta fosse capaz de memorizar aquilo, seria uma óptima peça para ser recitada em dias de festa à volta da lareira. E como tinham estado enganados, todos eles. Mas ele sempre desconfiara de Somerled...

Mas todos concordavam com alguns aspectos da história. Houvera uma conspiração, homens pagos pelo irmão de Ulf para levar outros a montar uma emboscada ao chefe de guerra na Ilha Alta, de noite, atando-o com cordas e uma rede de pesca e levando-o para o local da sua cruel execução e, acima de tudo, a manterem as bocas caladas. Essa operação devia ter custado caro a Somerled. Mas conseguira, comprando a lealdade de homens que não eram nada sem os seus favores e forçando outros ao silêncio por meio de terror. Ele tinha uma língua persuasiva e um modo inteligente de distorcer os factos. Todos eles tinham acreditado que o Pele-de-Lobo fora enfeitiçado e que, por isso, se virara contra os seus. Todos eles tinham acreditado que a população da ilha era traiçoeira, assassinos selvagens, especialistas em magia negra. Mas aquela rapariga... bastava olhar para ver nela a bondade, como uma luz brilhante: algo mais do que um simples ser humano, como se a filha da deusa Freya caminhasse entre eles, vestida com o sopro da Primavera. Além disso, a harpa era de osso. Uma harpa de osso diz sempre a verdade, toda a gente sabia isso.Os nós tinham sido feitos por Somerled. Fora Somerled a encher a boca do irmão com algas, impedindo o último grito da verdade e deixando-o a morrer na falésia por cima das águas escuras, atormentado pelos bicos afiados como navalhas das gaivotas. Talvez aquela última parte tivesse demorado mais tempo do que Somerled esperava. Ulf amava tanto a vida.Quando a Eyvind, o que ele ouviu também foi diferente. Ele não precisava da história; ele sabia o suficiente. O jovem sentiu os arrepios que percorriam o corpo de Somerled, encostado ao seu; ele ouviu... o quê, exactamente? Um som que não era o de um homem a falar nem de cordas a vibrar, um som que não emitia palavras nem notas de música, antes algo mais antigo do que o conhecimento, uma presença de sabedoria ancestral, como o silêncio no coração de uma violenta tempestade, ou o ponto de viragem da maré, ou o momento... o momento no fim da expiração, quando a vida e a morte se encontram. Pausa, imobilidade, espera. Naquele momento ele reconheceu o valor da vida, o seu prodígio: como pode um homem ser tão louco ao ponto de desperdiçar até ao último momento um presente tão precioso, um presente tão imenso e tão fugaz. Eyvind mantinha a faca encostada ao pescoço do seu amigo; o menor movimento poderia roubar o futuro a Somerled, o mesmo futuro que Somerled roubara ao irmão. Alguns pensaram que seria justo. Mas Eyvind ouviu o que lhe estava destinado, olhou para a mulher diante de si, para o seu rosto puro e pálido como o luar, para os seus estranhos e grandes olhos plenos de magia enquanto a canção que ela fizera regressar à vida subia no ar em seu redor e soube que não era nenhum juiz do destino dos homens, nenhuma divindade brincalhona, julgando e castigando com mão segura. Aquelas coisas estavam para além dele, sempre estariam e ele sentia-se feliz por isso. Estavam, certamente, para além de qualquer homem, por mais sábio que fosse.A sua cabeça ainda lhe doía; a maravilha daquela canção não era suficiente para lhe afastar a dor. Outras partes do seu corpo também pareciam protestar: o seu queixo, as suas costas, os seus joelhos. Tinha uma certa névoa na visão, como se as lanternas estivessem enfarruscadas, e tinha de novo abelhas nos ouvidos. A determinada altura tomou consciência de que Grim e Erlend retiravam Somerled da sua custódia e o aliviavam da faca. Mais tarde, recordou-se de se ter sentado no chão, ainda agrilhoado, e de ter encostado a cabeça nos joelhos. Fechar os olhos: muito melhor. Então, à medida que a música subia e descia, cheia de graça, terrível, ele pensou sentir um leve odor a violetas; pensou ouvir um suave frufru e o passar de uns dedos gentis pelo queixo inchado e ferido. Para além da música da harpa ouviu um sussurro: Estou tão orgulhosa de ti, Eyvi. Tão orgulhosa, que o meu coração parece rebentar. O guerreiro não abriu os olhos, com medo que aquilo fosse uma partida da sua mente. Um momento mais tarde a mão retirou-se e pareceu-lhe que ela se afastava. Apenas a música permanecia: a voz da verdade tecendo a sua magia na quietude do salão grande completamente cheio. Finalmente, exausto, cheio de dores e justiçado, Eyvind permitiu que as lágrimas lhe rolassem pelas faces.Depois, tudo pareceu enevoar-se, transformando-se numa espécie de sonho ou pesadelo, na irrealidade em que o mundo, por vezes, se transforma quando se passa demasiado tempo na taberna. Ouviu-se um rugido vindo da porta das traseiras:Onde está o meu irmão? Que lhe fizeram? Esfolo-vos a todos em nome de Thor, miseráveis. Onde está ele? Ninguém teve dúvidas de que aquela voz, que era tudo menos doce, pertencia a Eirik. Por trás dele ouviam-se outras vozes que não pareciam pertencer às Ilhas Brilhantes, vozes de homens que não se ouviam desde a última Primavera. A harpa calou-se. O jovem não ouvia Nessa, Margaret ou o irmão Tahdg. Não ouvia Somerled. A dor que sentia na cabeça sugeria que talvez não fosse boa ideia abrir os olhos. Mas ele abriu-os, apenas um pouco, para ver a figura grande e hisurta do seu irmão caminhando com grandes passadas na sua direcção vindo do fundo do salão grande, corado e rugindo. Trazia um braço ao peito e tinha os dois olhos negros.Eyvind! Pelos tomates de Freyr, homem, que te fizeram? Tirai estas cadeias ao meu irmão, filhos de uma cadela maldita, ou mostro-vos as lâminas do meu machado! E, em nome de Thor, o que é aquilo? Eirik vira a harpa e, por momentos, calou-se.Gudbrand! Thorvald! Onde estão as chaves das grilhetas? perguntou Olaf Sveinsson asperamente. Podeis libertá-lo. Estou certo de que temos a palavra de Eyvind em como não abandonará esta colónia até que o processo esteja terminado. Precisamos todos de descansar antes de continuarmos. E temos hóspedes, a quem temos de dar as boas-vindas. Hóspedes distintos. O conselheiro virou o olhar para as traseiras do salão grande, por onde estava a entrar um grande número de homens, homens com o ar salgado e batido pelas intempéries dos marinheiros, homens com a estatura e tez clara próprias de Rogaland. Eyvind conhecia-os a todos. Pertenciam à casa de Freyrsfjord e, atravessando a porta com um ar seguro, lá vinha a figura de ombros largos do próprio Jarl Magnus. Eyvind semicerrou os olhos por causa da luz; as facas continuavam a perfurar-lhe o crânio. Um sonho, tudo aquilo... ou mais do que um sonho, porque talvez o tivessem espancado até à morte, lá em baixo, na escuridão, e aquilo fosse uma visão da jornada que tinha pela frente. O guerreiro fechou os olhos de novo, inclinou a cabeça e sentiu umas mãos nos pulsos e nos tornozelos, desapertando-lhe as grilhetas. Gudbrand e Thorvald, assim parecia, não pareciam sentir qualquer dificuldade em obedecer à nova autoridade. O equilíbrio alterara-se rapidamente.Eirik estava agora a falar com Olaf e o rugido da sua voz praticamente não diminuíra.Processo? Continuar? Que processo? Estás a dizer que o meu irmão é acusado de um crime qualquer?Olaf tossiu para aclarar a voz. É preciso coragem para enfrentar um Pele-de-Lobo quando ele está irritado.Eyvind tem algumas acusações pendentes contra ele. Nós estávamos a deliberar quando... quando os acontecimentos nos ultrapassaram. Agora vemo-nos na contingência de considerar também algumas acusações contra o Rei. Temos de as comparar...

Rei? explodiu Eirik. Este boneco tortuoso de coração negro. Eu provo essas acusações num abrir e fechar de olhos. Trago aqui um homem que te vai contar tudo, a conspiração contra Ulf, o papel de Somerled e os subornos que ele pagou para calar a boca a todos. Este homem é o único que resta e tem tanto medo que se borra todo. Os outros foram todos abatidos, um a um. Parece que esse teu Rei não confiava neles. E também nos queria abater a nós; pergunta ali ao sacerdote, que tem no rosto as marcas do longo braço de Somerled, tal como eu e Thord. Se o Jarl e o seu bando de viajantes intrépidos não tivesse aparecido, talvez ainda estivéssemos amarrados num celeiro qualquer. Dás crédito às acusações de Somerled contra o meu irmão, quando posso provar que ele só é líder aqui devido a um acto de fratricídio premeditado?Se tivesses chegado um pouco mais cedo disse Olaf calmamente terias sido o portador da notícia da libertação do teu irmão de uma sentença de morte. Mas acabamos de ouvir a voz de uma testemunha mais poderosa do que qualquer linguagem humana. O testemunho do teu homem já não é necessário, já que o próprio Ulf contou aqui a verdade. Meu senhor! O conselheiro virara-se para o Jarl Magnus, a sua voz com um ligeiro timbre de nervosismo. Bem-vindo a Hrossey! Tivemos notícias da tua chegada há pouco. Foi uma grande surpresa. Ninguém imaginava que o teu navio oceânico já estivesse pronto, ou que tu e os teus homens pensariam em viajar até aqui apenas um ano depois de nós. Lamento as boas-vindas inadequadas, mas como vês...Vejo o meu Pele-de-Lobo favorito coberto de nódoas negras e amarrado como um frango para assar observou Magnus. E devo dizer que estou mais do que descontente. Vais ter muita dificuldade para me explicar o que é que Eyvind fez de errado. O rapaz não tem um único osso em condições. Lady Margaret, é com prazer e tristeza que te vejo de novo; fui recebido, mal atraquei, com a notícia da morte de Ulf. Lamento muito, minha cara. Onde está Somerled?Não se sentia muito bem. Era a voz de Harald, língua de Prata. Retirou-se para os seus alojamentos. Holgar e Erlend estão de vigia. No fim de contas, Eyvind quase lhe cortou a garganta.Estou a ver. E estou a ver o que se passa aqui, e o seu propósito. Na verdade, passaram-se aqui coisas bem estranhas. Pobre Ulf. Partiu com tantas esperanças, tantos sonhos. Aprendeu, talvez, que não chega desejar, simplesmente que as pessoas sigam o caminho da amizade. Nestes tempos conturbados, um homem sem uma espada na mão não pode esperar seguir em frente. A paz é um luxo que não podemos comprar.

Meu senhor disse o irmão Tahdg, respirando com dificuldade e com uma mão nas costelas é muito tarde e não dormimos há muito tempo. Eyvind está muito ferido e precisa das atenções de um físico, ou de um herbanário, acho eu. Devíamos todos descansar antes de continuarmos.

E tu és?

O meu nome é Tadhg e sou do Ulster, em Erin; mas, com mais alguns da minha fé, moramos perto, na Ilha Sagrada, graças à amabilidade do Rei Engus, que governava estas ilhas antes da chegada do teu povo. Ele permitiu que contássemos as nossas histórias e ensinássemos a nossa fé cristã entre o seu povo. Meu senhor, esta dama é Nessa, sobrinha do mesmo Engus que foi cruelmente chacinado pelas forças de Somerled. Nessa é a voz do povo da ilha. Foi ela que trouxe esta harpa a este salão e que permitiu que a voz de Ulf fosse ouvida. E é a ela que deves falar do futuro. Devido ao que aconteceu aqui, a súbita chegada de mais viajantes de leste só causa mais inquietação.

A sério? Ulf não veio em paz?

- Ulf morreu disse Tahdg secamente. É uma longa história, que ouvirás antes de ocorrerem mais deliberações.

E a jovem dama fala tão bem a nossa língua como tu, sacerdote?

Não tão bem, meu senhor, mas suficientemente bem. A voz de Nessa soou fraca e límpida, delicada e precisa. Fez com que toda a gente se calasse. Não espero que compreendas tão depressa o que aconteceu aqui, os métodos e o que está, agora, em jogo. Estamos todos muito cansados e este homem está ferido. Meu senhor, o teu Pele-de-Lobo mostrou muita coragem nas piores circunstâncias. Devias ouvir a história da minha boca, da de lady Margaret e da do irmão Tahdg, se ele se sentir suficientemente bem. Devias ouvir, primeiro, a história contada por nós. Estes homens ouviram a voz de Ulf e dizem, agora, que reconhecem a verdade. Mas todos eles viveram aterrorizados sob o comando de Somerled e todos eles o seguiram. Foram aqui cometidos actos terríveis sob a sua liderança e o que se perdeu nunca mais poderá ser recuperado. O irmão Tahdg tem razão. A última coisa que eu queria ver era outro navio carregado de guerreiros louros, armados até aos dentes. Que procurais nestas ilhas? Poder, conquista, domínio, tal como Somerled? Ele queimou o nosso Rei no seu próprio salão, matou os nossos homens e aprisionou as nossas mulheres. Ficou com as nossas herdades e deu às nossas antigas terras nomes escolhidos por si. Cortou as cabeças dos nossos guerreiros e espetou-as em chuços para que as aves as comessem. Que mais nos querem tirar, salvo a fé em nós próprios?

Magnus não replicou. Talvez não tivesse resposta. As palavras de Nessa tinham sido um grande desafio. No silêncio que se seguiu, Margaret falou.

Algum tempo de descanso e precisamos de encontrar alguém que trate de Eyvind, ou...

Rona está quase a chegar disse Nessa num tom mais gentil. Ela trata dele. Entretanto, talvez o irmão dele...?

Enquanto a jovem falava, Eyvind sentiu o forte aperto das mãos de Eirik, os braços de Eirik erguendo-o do chão e viu um cão, mas não podia ser Guard, porque Guard, certamente, tinha morrido, mas outro parecido com ele que só podia ser a sua própria Shadow, saltando ansiosamente e lambendo-lhe o rosto ferido, cheio de sangue. Onde estava Nessa? Não a via, queria vê-la...

Pouco tempo disse Margaret de novo. Temos de tomar uma decisão rapidamente. Meu senhor Jarl, estou certa de que a cozinha consegue arranjar qualquer coisa para ti e para os teus homens, já que deveis estar cansados. A viagem é muito dura.

Os homens começaram a movimentar-se, a conversar uns com os outros.

Vamos embora, companheiro disse Eirik. Vamos tirar-te daqui. Pelos ossos de Odin, o teu amigo da onça tem muitas explicações a dar. Gostava de o apanhar num canto escuro... e que história é essa de quase lhe teres cortado a garganta?

Eyvind estava incapaz de falar. Encostado pesadamente no ombro do irmão, com umas tonturas que o impediam por completo de pensar, conseguiu, apesar de tudo, abrir os olhos de novo, apenas um pouco, para olhar para trás enquanto era conduzido por Eirik. Lá estava ela, ajoelhada em cima da pele de lobo, calada, pálida, as graciosas mãos embrulhando a pequena harpa. O seu trabalho estava feito. Ficaria guardada até que pudesse regressar ao local de onde viera. Pela virilidade de Freyr, gelava-se-lhe o sangue só de pensar no local onde ela fora, imaginar o que tivera de fazer para fabricar aquilo e para chegar até ali. Que coragem, que resistência. Como era possível ser tão frágil e tão forte?Não, eu...gaguejou ele, e Eirik, tendo compreendido, fez uma paragem, mantendo a cabeça do irmão contra o seu ombro maciço.Ela não podia tê-lo ouvido. No entanto, levantou-se e aproximou-se, as feições solenemente tranquilas. Os seus olhos estranhos, profundos, cinzentos como o mar cambiando para um azul-escuro, estavam perturbados, sombrios. Apesar do seu aspecto confiante, Eyvind sabia que Nessa estava assustada. E estava cansada, muito cansada; via-se pela curva da sua boca, pela palidez translúcida das suas faces.... tudo... bem... conseguiu ele dizer. Magnus... bom homem...Espero que sim, Eyvi disse ela sobriamente. Nos tempos que correm é difícil termos uma visão do futuro. A tua gente é muito forte, forte e determinada. E nós ficámos com tão pouco para dar.De certo modo, aquilo doeu-lhe mais do qualquer dos ferimentos que sofrera, qualquer equimose ou qualquer paulada. Era como se lhe tivessem espetado uma faca no coração.Lamento murmurou ele fechando outra vez os olhos, e deixou que Eirik o levasse.Sentiu pessoas à sua roda, examinando-lhe os ferimentos, aplicando-lhe unguentos, envolvendo-lhe o corpo em tecido. Levaram-lhe uma taça aos lábios; ele bebeu sedentamente. Ali, na câmara que partilhava com os Pele-de-Lobo, a luz era menos viva, apenas uma vela e os primeiros raios da alvorada ao fundo do corredor. Eirik resmungava para si próprio. Grim estava calado, com um certo ar de satisfação enquanto aprontava a enxerga, indo depois buscar uns cobertores de boa lã, melhores, de longe, do que aqueles a que qualquer um deles estava habituado. Ofereceram-lhe de novo a taça. Eyvind farejou o conteúdo. Desta vez não era água. Eles tinham a intenção de o tornar insensível, pelo menos até meio do dia, isso era evidente. Mas não podia ser. Não podia ser. O rosto de Nessa estava na sua mente desde que a deixara; o jovem via aqueles olhos límpidos, corajosos, que, apesar da vitória, apesar do que tinham ambos feito e suportado, continuavam sombrios, não por estar exausta, mas por se sentir derrotada. Não podia permitir que isso acontecesse.

Eyvind nunca fora um homem de palavras. Compreendia que teria de haver debate. Percebia que o povo de Nessa os queria a todos longe das suas costas. Nunca seriam ali aceites depois de tudo o que acontecera sob o comando de Somerled. Mas sabia que Magnus, um chefe de guerra justo e sábio, era também suficientemente astuto para perceber a importância de um ancoradouro num local estratégico como aquele, agora que ele próprio tinha feito a viagem e que sabia que esta podia ser feita com relativa rapidez. Influenciar o curso das negociações estava para além das capacidades de Eyvind. Não o recordara Somerled disso, naquela mesma noite, de como ele não tinha a capacidade de argumentar? Não fora ele que ganhara aquela batalha, fora Nessa, e a voz que ela trouxera consigo. Fora Ulf que derrotara Somerled, não um Pele-de-Lobo com talento para matar e sem o dom da palavra. No entanto, não seria de todo inútil. Havia algo que podia fazer para endireitar as coisas, algo que aliviaria o sombrio cansaço dos olhos de Nessa e lhe aliviaria um pouco o fardo dos ombros. Talvez, de momento, não pudesse fazer mais nada por ela. Ela desprezava-os, isso era evidente. Ela queria que eles se fossem embora. Por que razão haveria uma regra para Eirik, para Grim e para Thord, todos eles homens bons, e outra para ele?Pelos ossos de Odin, Eyvind, está quieto, sim? Nunca conseguiremos estancar esta hemorragia se continuas a agitar-te dessa maneira. Este dente tem de sair. Precisávamos daquele tipo com as tenazes. Ou pode um de nós a fazê-lo. Pelo martelo de Thor, homem, acalma-te, sim? Não estás quieto, pareces uma enguia. Bebe, não fiques com isso na mão.Não disse Eyvind, e levantou-se. O quarto oscilou, os seus ouvidos zumbiram e os seus olhos queriam fechar-se, oh, sim, mas ele forçou-os a manterem-se abertos. Não, ainda não. Quem está aqui?Que queres dizer?Fecha a porta. Quem é que está aqui à mão?Só nós disse Grim, enquanto Eirik tapava a entrada com a espessa e rude cortina. Eu, Eirik e Thord. O que é, homem? O que é que te consome?Escuta, kmãozinho disse Eirik, tapando a entrada com o seu corpanzil. Estou a ver um olhar que conheço bem e do qual não gosto nada. Sugere-me que não é em descanso e recuperação que estás a pensar. Se pensas, por um só momento...Não posso ficar aqui. Tenho de fazer uma coisa...

Nada que não possa esperar acrescentou Grim firmemente.Além disso disse Eirik quer gostes, quer não, tens ordens para ficar aqui até que o processo termine. Pensa no que aconteceria se saísses daqui a correr, culpado ou não culpado. E agora, deita-te, bebe isso e cala a tua grande boca. Tu não és o único que precisa de dormir, irmãozinho. Seja lá o que for, pode esperar.Tu não podes continuar assim, velho amigo. O tom de voz de Thord era amável. Mas Thord não compreendia. Nenhum deles compreendia. Tinha de continuar. Era o que um Pele-de-Lobo fazia. Se não fora o Pai da Guerra a chamá-lo para aquela súbita explosão, para aquele esforço louco que salvara Nessa, então fora outra divindade qualquer de poder semelhante, uma força que continuava a impeli-lo, apesar de estar cansado e ferido. Fosse o que fosse, incitava-o. Forçava-o. Ocorreu a Eyvind, enquanto se deitava obedientemente na enxerga, que era a sua própria voz, mas mais pura do que qualquer outra que guiara os seus passos até então. Com esse conhecimento sobreveio o desanuviamento da sua cabeça, e a prudência. O jovem fez de conta que engolia a droga para dormir; os cobertores de lã absorveram a maior parte do líquido. Agora, teria de esperar. Não muito: eles estavam todos cansados. Então, sairia dali e fá-lo-ia e, pelo menos, mostrar-lhe-ia, antes que a mandassem embora, que a sua raça era capaz de mudar se lhe fosse dada uma oportunidade. Sabia que não era um homem inteligente, mas sabia que seria capaz de o fazer.Assim, um pouco mais tarde, quando Eirik, Thord e Grim dormiam um sono de profunda exaustão e o Jarl e os seus companheiros saboreavam à lareira pão fresco e carneiro frio, Eyvind saía da colónia, passava sem ser visto pelos postos de sentinela porque qual é a necessidade de estar vigilante se o inimigo está reduzido a um grupo de velhas e crianças? e, montado num cavalo roubado, seguia para noroeste sob um céu pálido de manhã de Primavera. A seu lado corria Shadow. Ultrapassaram a fronteira das terras do Rei Engus e contornaram o monte, essa curva maravilhosa que revelava ao viajante a massa vasta e ascendente de Dorso de Baleia, como se fosse uma grande criatura marinha cinzento-esverdeada, surgindo majestosamente do oceano. Não se via qualquer fumo subindo da chaminé do salão grande; não se ouvia qualquer som de batalha acima dos gritos das gaivotas. O jovem desceu o monte na direcção da língua de terra e pôde ver a linha de lanças com a sua estranha carga, evidência da carnificina que profanara aquela costa poucos dias antes. Uma madrugada, uma batalha sangrenta e toda uma raça, pais e filhos, perdida. O cavalo assustou-se; todo o seu corpo estremeceu e Shadow recuou, pouco à-vontade. Eyvind desmontou, conseguindo manter-se de pé por se agarrar à crina do cavalo. Deuses, estava mesmo fraco. Tinha de se recompor. Aquela fraqueza, aquelas dores no corpo não eram nada comparadas com o que aquele povo tinha ali sofrido.O guerreiro prendeu o cavalo no exterior da cabana de pescador onde confrontara Somerled pouco tempo antes. Somerled. Que lhe iria acontecer? O Jarl decidiria de acordo com a lei de Rogaland, supunha. Pagaria uma multa em tecido, ou em prata, ou proibi-lo-iam de regressar a Freyrsfjord, ou ao seu local de nascimento em Halogaland. Talvez fosse tudo decidido antes de Eyvind terminar o que fora ali fazer sozinho, e que era muito.O jovem meteu mãos à obra com todas as suas forças, reparando de modo ausente nas marcas vermelhas em redor dos pulsos e dos tornozelos, no dedo provavelmente partido, na dor permanente no queixo. De vez em quando sentia sangue na boca; cuspia e continuava. A linha de lanças continuava enterrada no solo da língua de terra e na ilha sujeita às marés as silhuetas dos guerreiros de Engus continuavam espalhadas na encosta relvada, como flores brilhantes de Primavera, vívidas nas suas túnicas vermelhas, azuis e verdes. Havia ali muitas aves, esvoaçando por cima dos cadáveres, prontas para arrancar um qualquer bocado de carne putrefacta, esfomeadas devido à época dos ninhos. Eyvind estremeceu ao recordar Ulf. Mas não tinha tempo para recordações; estava quase na hora da maré baixa e tinha de trabalhar com rapidez. Não poderia fazer tudo; os ritos de despedida e os funerais ficariam para Nessa e para os sobreviventes do seu próprio povo. Mas podia remediar aquele sacrilégio. Podia fazer com que aqueles corpos jazessem mais ou menos no seu estado integral. Podia cobri-los até que pudessem ser iniciados os rituais próprios. Tinha tempo suficiente, pensou, antes que a maré subisse e cobrisse a passagem mais uma vez, isolando Dorso de Baleia da costa.As lanças de madeira eram compridas e tinham sido espetadas no solo com força considerável. O seu povo, naquele dia, estava cheio de raiva. Quando conseguiu arrancar a primeira e a baixou ao nível do solo, já as suas mãos tremiam e percebeu que a tarefa seria mais longa do que pensara. Uma picareta, ou uma alavanca ajudariam, e um saco, porque cada uma daquelas pobres cabeças putrefactas eram parte de um homem e teriam de ser levadas para a ilha com o mínimo de respeito. Não podia levá-las pelos cabelos, como se fossem carcaças para meter na panela. Eyvind procurou no interior escuro da cabana e encontrou, para sua surpresa, uma pilha de sacos a cheirar a peixe, algumas pás e uma barra de ferro de aspecto perigoso com a ponta aguçada. Alguém, assim parecia, estivera ali com a mesma intenção. Na verdade, quanto mais tempo passava ali, mais o formigueiro aumentava na base do pescoço, mais o arrepio se repetia na espinha, o que sugeria que havia outros por perto, invisíveis, observando. Tolice. Não havia ali ninguém. Os únicos olhos que observavam os seus esforços, o arrancar difícil de cada lança do solo e o armazenamento de cada trofeu sinistro no respectivo saco eram os olhos vazios dos chacinados: um corajoso ancião, um robusto guerreiro, um rapaz de aspecto feroz. Os seus rostos, agora, tinham apenas o prenúncio arrepiante da putrefacção. O que tinham sido, quatro dias antes, tinha sido varrido. Somerled apagara o futuro daquele povo. E fora tudo tão rápido: tão rápido como o tempo que levava a atravessar a nado o Pescoço de Serpente e regressar, ou varrer a neve de um telhado, no Inverno.O jovem chegou a uma lança cujo solo, no sítio onde estava enterrada, tinha sinais de ter sido esgravatado. Afinal, alguém estivera ali antes dele, e falhara. Aquela teria de esperar, porque os sacos estavam cheios: as cabeças de seis homens. Seis longas hastes de freixo jaziam por terra. Eyvind colocara-as junto à água. Talvez o mar as levasse; ali, a madeira era tão valiosa como o âmbar, mas aquela, pensou, nunca mais seria usada novamente para matar, para servir de armação ao telhado de uma cabana ou para aquecer a lareira de um homem numa noite fria. Estava amaldiçoada.A seguir foi a travessia da estreita passagem entre as muitas poças de variadas cores provocadas pela maré baixa, franjadas de sargaço, salpicadas de espessas e escorregadias hastes de algas e com miríades de pequenos animais fugidios. O céu olhava para ele, azul e vasto, espelhado naquelas poças e canais. O jovem viu nelas os olhos de Nessa, tão profundos e deslumbrantes como a paisagem que se estendia à sua volta; viu o seu pequeno sorriso. Eyvind atravessou a passagem e subiu a encosta até ao local onde se erguera o salão grande do Rei Engus.O trabalho não foi fácil. Havia muitos homens estendidos por terra, e mulheres também, mas nenhum lhe era familiar. Alguns estavam inteiros. Evyind retirou os ossos do Rei das cinzas do seu salão e estendeu-os na relva. O incêndio fora muito intenso; pouco restava. Que canção cantaria aquela harpa? Um lamento de dor, uma história de morte, de desperdício. Um grande grito de orgulhoso desafio. Tinham lutado até ao último homem, sabendo que não sobreviveriam. Os corpos jaziam aparentemente em paz, todos com as mãos cruzadas no peito, obra de Nessa naquela manhã terrível, depois de sair do abrigo na enseada secreta onde se escondera enquanto ouvia morrer o seu povo. O jovem deslocou-os a todos gentilmente, um a um, o melhor que os seus membros doridos e costas torturadas lhe permitiam, até que o relvado junto do salão grande do Rei ficou apinhado de cadáveres. Já trabalhava há muito tempo, já atravessara a passagem muitas vezes, faltando-lhe apenas três cabeças, quando percebeu que não estava só. Primeiro foi um rapaz de seis ou sete anos, que saiu timidamente de uma cabana arruinada para o ajudar a transportar um dos cadáveres até ao seu local de descanso. Feito o trabalho, o rapaz esgueirou-se de novo para o seu esconderijo; pouco tempo depois surgiu outra criança, e depois outra. Tinham estado a observá-lo durante aquele tempo todo, procurando certificar-se de que aquele guerreiro de aspecto feroz, rosto e mãos ensanguentadas, era amigo. E quando ele regressou à língua de terra para recolher a sua última colheita sinistra, também lá estavam algumas mulheres, as mesmas mulheres de rostos pálidos como a cera da casa de Nessa, que ele vira como prisioneiras no mesmo local onde gritara, acorrentado, a sua cólera perante os ouvidos moucos de Somerled. As mesmas mulheres que tinham entrado amargamente orgulhosas e de rostos pisados no salão grande de Somerled na noite anterior, sofrendo rudes maus tratos por parte dos homens da sua raça. Agora, libertadas, sem dúvida, a pedido de Nessa, a sua primeira resolução fora regressar ali. Talvez também elas o tivessem estado a observar em silêncio. Então, quando ele arrancou do solo uma lança, duas, três, elas avançaram para retirar piedosamente as cabeças. Uma rapariga disse qualquer coisa em voz baixa, sibilando, a Eyvind com uma voz feroz de ódio; uma outra censurou-a e no seu discurso ininteligível, ele reconheceu a palavra Nessa. Elas atravessaram a passagem numa procissão sinistra, os olhos secos, três mulheres transportando cada uma a cabeça de um homem nos braços, como se fosse um tesouro sem preço. Eyvind seguia-as de cabeça baixa e depois dele vinham lentamente as anciãs com as crianças ao colo e, aqui e ali, um minúsculo rapaz ou rapariga, aos tropeções, pela mão. Quando estavam a meio caminho, ouviu-se um grito no ar salgado, um uivo ululante de dor que lhe arrepiou os pêlos do corpo e lhe gelou o sangue. A esse juntou-se outro e outro, até que as rochas vibraram e as gaivotas se calaram perante a sua força. Atravessaram assim a passagem até chegarem à encosta relvada de Dorso de Baleia e ali formaram um círculo em redor dos cadáveres dos seus homens. Tornou-se evidente para Eyvind, então, que a parte mais difícil do trabalho não lhe cabia a si, mas sim a elas. Com cânticos nascidos de uma profunda dor, de uma dor que estava para além das lágrimas, as mulheres de Dorso de Baleia completaram os corpos dos seus filhos, dos seus maridos e dos seus pais o melhor que puderam, cantando cada vez mais alto, em espiral, para o céu, para as rochas e para as águas do oceano, o antigo hino da dor, como se a sua dor pudesse chegar ao fim do mundo. Eyvind mantinha-se silencioso. A seu lado, um dos rapazitos fazia os possíveis para arvorar um ar corajoso, mas os seus lábios tremiam sinistramente. Talvez aquele corpo, ali, de olhos vazios, túnica manchada de sangue coagulado e pouco mais velho do que ele, fosse o do seu irmão. Eyvind pousou uma mão no ombro do rapaz; um momento mais tarde, uns pequenos dedos agarraram-se a ela e o rapaz fungou, cerrando com força os maxilares.Às vezes, os homens também choram disse Eyvind em voz baixa. Eu, por exemplo. E sou um Pele-de-Lobo. O rapaz não o podia compreender, claro; nenhum deles podia. Mas quando tudo estava terminado e o cântico da tristeza abrandava, ouviu-se uma melodia de luto, cantada em voz baixa por uma jovem que embalava nos braços o corpo imóvel de um homem, os olhos fechados com tanta força que parecia não mais os querer abrir e Eyvind deu consigo sentado a alguns metros de distância, encostado a uma rocha, com várias crianças encostadas a si, como se procurassem um qualquer abrigo na sua forma maciça. Os dois rapazes enroscaram-se um de cada lado e. aos seus pés instalou-se um par de rapariguinhas de pele pálida, translúcida, e longos cabelos negros, fazendo-o recordar Nessa. Uma tocou-lhe na pele ferida dos seus tornozelos com dedos pequenos, suaves. A outra ficou simplesmente a olhar para ele com olhos esbugalhados. Uma terceira, um pouco mais velha, empoleirou-se na rocha a seguir ao primeiro rapaz e pareceu querer perguntar qualquer coisa a Eyvind, mas ele não conseguiu compreendê-la, claro. Ele percebeu que ela disse Nessa e acenou com a cabeça; pensou ter percebido a palavra Rona e perguntou a si próprio o que lhe teria acontecido, já que Shadow regressara. Teria percebido bem, na noite anterior? A anciã teria sobrevivido contra todas as probabilidades? Era bem capaz disso. Um terceiro rapaz estava a afagar a cadela na parte de trás das orelhas, falando-lhe como se não tivesse testemunhado tantas mortes, tanto ódio e tanta crueldade. E o Sol brilhava; apesar de toda a dor, espalhava a sua luz por aqueles prados verdes, por aquelas pedras estranhas incrustadas de líquen, por aquelas belas baías e canais, como uma bênção. O tempo foi passando e a maré também. Junto dele estavam crianças, crianças que um dia seriam homens e mulheres jovens, com a mesma beleza, paixão e bondade de Nessa e do seu jovem primo Kinart, que jazia agora ali no solo duro. Shadow ergueu-se nas patas dianteiras e pousou-as nos ombros de Eyvind, lambendo-lhe o rosto ensanguentado com a língua molhada. As crianças riram-se e Eyvind sentiu os seus lábios abrirem-se num grande sorriso. Pelos ossos de Odin, tinha de arrancar aquele denteVamos trabalhar disse-lhes ele, levantando-se com alguma dificuldade. Temos de acabar e regressar antes que a maré mude. Vocês vão ter de me ajudar.Mais tarde, seria ali erguido um dólmen à maneira antiga, para que os corpos descansassem dentro dele, o que lhe exigiria mais forças do que as que tinha agora, apesar de toda a ajuda prestada pelos seus pequenos ajudantes. Mas, por agora, era importante proteger os cadáveres das rajadas de vento, do clima e das gaivotas. A terra engoli-los-ia em seu devido tempo; assim devia ser. Cobri-los com terra, simplesmente, um cobertor quente para lhes proteger o longo sono. Todos poderiam ajudar nessa tarefa, salvo a jovem que continuava a embalar o seu homem, recusando-se a largá-lo. O seu homem, que permaneceu por sepultar enquanto as pás subiam e desciam, enquanto os rapazes cavavam, enquanto as raparigas carregavam terra com as próprias mãos e as mulheres reuniam pedras para as colocar em redor da berma, em espiral e em círculo, simbolizando bênção e protecção. Antes de terminarem, elas conseguiram tirar o corpo fracturado dos braços da jovem para o colocarem junto dos seus camaradas e Eyvind espalhou a terra o mais delicadamente que pôde sobre os seus olhos estáticos e boca retorcida. Quem fora ele? Um pescador, um pastor, um jovem pai? Fora um homem amado, isso era certo. Quando tudo terminou, a jovem estendeu-se sobre a terra, as mãos esticando-se, os dedos retorcendo-se, esgravatando, e o seu lamento continuou, ténue, áspero. Recusava-se a sair dali apesar de a maré estar a subir e de serem horas de partirem. Finalmente, com um aceno de cabeça, uma das mulheres mais velhas acocorou-se a seu lado e as outras afastaram-se, caminhando em silêncio até onde a encosta de Dorso de Baleia atingia o seu ponto mais baixo. As mulheres olharam através da passagem para a língua de terra e viram um grupo de homens a cavalo à espera, o Sol reflectindo-se nas suas armas, a brisa agitando-lhes as guarnições dos elmos e ondulando-lhes as espessas e brilhantes peles que lhes serviam de capas. Eirik não precisara de muito tempo para lhe descobrir a pista. Thord e Grim estavam a seu lado e o quarto homem, que não usava uma pele de lobo, era Magnus de Freyrsfjord. As mulheres ficaram geladas; os rapazes murmuraram uns para os outros, estendendo as mãos para as suas pequenas facas.Está tudo bem disse Eyvind, tentando tranquilizá-los com a voz e com as mãos. Eu protejo-vos, prometo. Farei com que nada de mal vos aconteça. Dou-vos a minha palavra. Ocorreu-lhe, enquanto avançava, conduzindo aquela gente através da estreita passagem, por entre as poças agora cheias a transbordar, os seus xailes de algas agitando-se preguiçosamente sob o impulso da maré, que podia fazer exactamente aquilo. Podia proteger aquela gente, podia certificar-se de que as suas herdades e barcos de pesca ficariam fora de perigo, assim como as suas fronteiras. Faria desse trabalho a sua profissão, para que aquelas crianças de olhos brilhantes, que ainda sabiam sorrir apesar do terror, crescessem fortes e corajosas, sábias, felizes como os seus pais e irmãos tinham sido. Podia ensiná-las a lutar. Os guerreiros de Engus tinham lutado com coragem, mas não fora o suficiente. Aquele povo ilhéu precisava de aprender a vencer, mesmo quando o inimigo era em número superior. Tinha de aprender a prevalecer pela calada e pela astúcia quando o invasor tinha armas superiores. Ele podia ensiná-los. Tudo o que era preciso era tempo. Tudo o que era preciso era uma nova hipótese.Eu protejo-vos disse Eyvind de novo e, se bem que não pudessem compreender as suas palavras, pareceu que compreendiam o significado, porque o seguiram através da passagem, mulheres com túnicas alvas agora manchadas com o sangue dos seus homens chacinados e crianças anormalmente silenciosas, de olhos fixos naquelas figuras de ombros largos, imóveis nos seus cavalos, no local onde as lanças tinham estado espetadas. As mulheres e as crianças pararam, muito juntas umas das outras, perto da linha de água; recordavam o momento em que tinham sido levadas como animais sob a ameaça das lanças dos noruegueses. A mão de Somerled ainda se estendia, como uma sombra escura, sobre aquele local. Foi Eyvind que saltou por cima das rochas que corriam ao lado da passagem, precisamente no sítio onde caíra sob o golpe do martelo de Grim e se postou, o mais erectamente possível, diante do cavalo de Magnus.

Peço desculpa por ter desobedecido a ordens e por ter abandonado a colónia, meu senhor disse ele calmamente. Mas era necessário. Tinha um assunto que não podia esperar. Mas, agora, já está resolvido e vou regressar para enfrentar o castigo que devo receber. Eu... O jovem sentiu uma vertigem; as palavras faltaram-lhe.

Louco estúpido! grunhiu Eirik, desmontando de um salto e avançando para o irmão para o amparar. Em nome de Freyr, que pensas tu...

Eyvind? O Jarl Magnus estava a olhar para Dorso de Baleia, o olhar perturbado, a boca anormalmente torcida. O seu tom de voz, no entanto, não era de desaprovação. Diz-me o que aconteceu aqui. Conta-me tudo. O que Somerled fez, e o que fazer a seguir?

Eyvind olhou para ele, espantado. O Jarl estava a perguntar-lhe o que fazer? A ele, Eyvind, que sempre fora melhor com o seu grande machado do que com a inteligência?

Isso pode esperar disse Eirik asperamente. Ele não está em condições, meu senhor...

Não, disse Eyvind. Não pode esperar. Meu senhor, foi cometido aqui um erro terrível e nós podemos muito bem tentar emendá-lo, creio eu. Por favor, peço-te que me escutes até ao fim.

Grim aproximou-se com o outro cavalo; com a ajuda de Eirik e com dores consideráveis, Eyvind conseguiu montar. Quando olhou para trás as mulheres estavam a afastar-se, os xailes apertados em redor dos ombros ou sobre as cabeças e as crianças em redor das saias. Um dos rapazes acenou de leve na direcção de Eyvind. Eyvind ergueu a mão em resposta e foi recompensado com um breve sorriso deslumbrante.

Tu mudaste, Pele-de-Lobo observou Magnus solenemente enquanto se afastavam. Mudaste tanto que mal te reconheço. Mas continuas o mesmo de sempre: firme, puro e bem intencionado. Conta lá, então, a tua história. Estou a ver aqui algo que me espanta e entristece; algo que é muito mais profundo do que parece. Conta-nos tudo, Eyvind. Diz-nos o que havemos de fazer!

 

Eyvind acordou lentamente, desta vez. As sensações regressaram uma a uma, ao mesmo tempo que a capa do sono se ia afastando: a suavidade da enxerga por baixo das suas costas doridas, os cobertores quentes que o cobriam, a câmara na obscuridade apesar da luz que entrava pelas frinchas da cortina da entrada, uma luz que sugeria que a tarde ia adiantada e que se aproximava o crepúsculo. Ainda lhe doía o queixo. Uma cuidadosa exploração com a língua disse-lhe que o dente partido tinha desaparecido e que tinha um pedaço de lã metido no seu lugar. A boca sabia-lhe a um chá qualquer de ervas. Vagamente, lembrou-se de ter visto o rosto de Rona, muito severo, ordenando-lhe que engolisse o chá. Havia dois cães a seu lado, igualzinhos. Então, Guard estava vivo: outro pequeno milagre. Bebe, ordenara-lhe a anciã e ele não precisara de compreender a língua para obedecer. Fosse o que fosse que ela lhe dera, fizera-o perder de imediato a consciência; parecia que tinha dormido a tarde toda. Tinha outras recordações: uma jornada a cavalo, durante a qual falara muito e os outros tinham ouvido em silêncio e antes disso Dorso de Baleia e aqueles rapazes sem pais... A sua mão encontrou algo suave e quente e percebeu que havia algo pouco pesado contra o seu corpo. Ergueu a cabeça; olhou. Ficou sem respiração. Ela adormecera ali, sentada num banco ao lado da sua enxerga. Os seus cabelos negros cobriam-no, a sua cabeça descansava-lhe no peito, uma das suas pequenas mãos servia-lhe de almofada, ao passo que a outra descansava no cobertor, perto da dele. O jovem mal se atrevia a mexer-se, com medo de a acordar. Porque lhe parecia que aquele era mais um daqueles momentos de encantamento, fora do tempo, quando o mundo parava de respirar. Apesar disso, os seus dedos estenderam-se para lhe acariciar o cabelo, para lhe tocar nas faces onde as marcas da amargura se viam, vermelhas e inchadas, na pele pálida. Havia olheiras sob os seus olhos e um pequeno suspiro quando exalava. Levaria muito tempo até que o sofrimento desaparecesse. O jovem daria a sua vida, se lhe fosse permitido.Eyvi? murmurou Nessa sem abrir os olhos.A sua mão parou. Talvez, no fim de contas, ela não tivesse estado a dormir.Estiveste a chorar foi tudo o que ele conseguiu dizer. Ela ergueu-se, estremecendo enquanto distendia os membros entorpecidos.Devo ter adormecido. Ele franziu o sobrolho.Devias descansar como deve ser. Admira-me muito que Rona não te tenha dado uma dose igual à minha.Os lábios de Nessa abriram-se num sorriso.Ela tentou. Mas eu queria estar aqui quando acordasses. Estava preocupada contigo, Eyvi.Ele olhou para ela com espanto. Apesar do peso das responsabilidades, dos medos e da exaustão, estava preocupada com ele?Não fiques assim tão surpreendido disse Nessa, olhando para as mãos como se tivesse ficado, subitamente, envergonhada. No fim de contas, tu desapareceste. E estavas ferido. Algumas pessoas começaram a dizer que tinhas fugido, tal como da primeira vez. Eu sabia onde tinhas ido, claro. Assim que me perguntaram, não lhes foi difícil encontrarem-te.Tu sabias? Como?Ela olhou para ele por baixo das pestanas, os olhos muito brilhantes.Eu... eu sei que te magoei... o que eu disse... não foi justo e eu peço-te desculpa... mas estava tão preocupada, e triste, e quando te vi... tentei tanto não chorar em frente deles e... A jovem levou as mãos ao rosto.Oh não, oh não, não... Eyvind mexeu-se, os seus braços envolveram-na, apertaram-na, as suas faces contra o cabelo dela e o seu coração batendo como um tambor. Está tudo bem, está tudo bem murmurou ele, consciente de que era verdade e que, ao mesmo tempo, não era, porque o passado não podia ser reconstruído, mas o futuro, certamente, pertencia-lhes. Chora, minha pérola; retiveste essas lágrimas durante muito tempo. Deixa-as sair.Nessa permaneceu agarrada a ele durante alguns momentos e durante esse período ele foi percorrido pelos mais estranhos sentimentos, como se o seu coração estivesse a ser remendado enquanto a tinha nos braços, ponto a ponto, sutura a sutura, até ficar, de novo, inteiro. Por fim, ela fungou, passou uma mão pelas faces e disse-lhe:Eu sabia onde estavas porque sabia que tentarias fazer justiça por nós. Foi o que andaste a fazer este tempo todo. Foi o que os antepassados me mostraram, se bem que durante algum tempo eu não acreditasse. Mas tu estavas ferido e doente e eu estava preocupada. Há tanta coisa em jogo, tanto para ser decidido. O meu povo depende de mim e eu nunca fiz nada disto antes, tratados e negociações, jogos de poder. Estou assustada. Tenho medo de errar e de perder o pouco que me resta.Ela afastara-se do seu abraço, mas as suas mãos continuavam nas dele, pequenas, quentes e seguras. Deuses, como ela parecia cansada. Que fardo tão pesado; tinha o futuro do seu povo sobre os ombros.Eu tinha esperança de que talvez estivesse a ajudar um pouco disse Eyvind hesitantemente. O que fiz esta manhã, quero dizer. Pareceu-me importante fazer aquilo. Mas não posso desfazer o que o meu povo fez aqui. E continuo a ser um guerreiro, Nessa, é nisso que sou bom, e não creio que possa mudar. Mas tentei mostrar-te. Tentei mostrar como posso ajudar, se me deres uma hipótese. Hoje de manhã vi crianças, rapazes e raparigas do teu povo. Elas podem perdoar, já que ainda conseguem sorrir. Elas podem aprender a sobreviver.Nessa acenou solenemente com a cabeça.Falaram-me do que fizeste. Foi uma boa acção, Eyvi. Não esperava menos de ti, e continuo a esperar.Nessa...Ela olhou para ele de sobrancelhas erguidas, mas ele descobriu que não conseguia explicar. Muita coisa dependia da sua resposta.Que me queres perguntar?Ele abanou a cabeça, olhou para longe e largou-lhe a mão.Não posso. Não interessa. Mas interessava, claro; interessava mais do que tudo. Eyvind meteu os pés nas botas e procurou uma capa.Eyvi?

Quando ela usava aquele tom de voz, ele tinha de olhar para ela. A sua expressão derretia-lhe o coração: aqueles olhos grandes, solenes, o meio sorriso um pouco hesitante.Eu falei com Rona enquanto estavas a dormir disse ela. Falámos de muitas coisas, incluindo de ti. Falámos em especial de uma promessa que eu fiz ao vir para aqui: uma promessa em troca da ajuda no fabrico da harpa e da sua vinda, sã e salva, a este salão. Não foi fácil, compreendes?O que é que prometeste? O jovem fez um esforço para fazer a pergunta.Que seria a guardiã dos mistérios das ilhas. E que guiaria o meu povo como última representante da linhagem real. Na verdade, foram duas promessas. Por isso, fiquei com um problema. As duas não são compatíveis. Foi por isso que pedi a opinião de Rona. As promessas não se devem quebrar quando são feitas com tanta solenidade.Eyvind estava incapaz de falar.Perguntei a Rona se poderia escolher! Mas, como posso escolher se tenho de cumprir as duas? Na preservação dos antigos segredos reside o bem-estar do nosso povo; sem essa crença, o coração das ilhas seca e morre. No entanto, poderemos continuar se a linha real terminar? O meu filho, só o meu filho pode ser herdeiro. Sem ele, o povo não tem esperança no futuro. É uma escolha impossível. Nem a mulher mais sábia do mundo conseguiria escolher.Nessa fez uma pausa. Eyvind prendeu a respiração.Rona riu-se disse Nessa. Depois, perguntou-me se tu e eu já não tínhamos escolhido?O jovem respirou de novoMas... disse ele com a cabeça a andar à roda.Talvez ela tenha percebido pelo meu olhar: pela maneira como eu falava de ti. Ela é uma velha muito arguta. Ela disse... ela disse... Subitamente, Nessa ficou sem palavras e as suas faces ficaram escarlates.Que disse ela? perguntou Eyvind gentilmente, ao mesmo tempo que um sorriso lhe começava a aflorar nos lábios, uma careta de pura alegria, na qual a dor provocada pelo penso ensanguentado e o lábio entumescido não representavam qualquer papel.Ela disse que a criança que eu trago no ventre, agora, vai ser uma rapariga, para os mistérios; e que a próxima será um rapaz, para as ilhas. Mas eu não quero que o nosso filho seja Rei, Eyvind acrescentou Nessa, muito séria. Eu quero que ele tenha uma vida de alegria, de sentido e de paz. É do que nós precisamos. O turbilhão de sentimentos dificultou-lhe as palavras.Uma criança... estás a dizer...?É claro que ainda é muito cedo para saber. Mas Rona pareceu-me muito segura e ela nunca se enganou antes. Espero que não estejas zangado, Eyvi. Até para mim foi um choque. Rona há-de começar a ensiná-la quando ela tiver quatro ou cinco anos. Mas eu também vou andar muito ocupada, porque vai ser necessário fazer as duas coisas ao mesmo tempo: liderar o meu povo e ser sacerdotisa. Espero ter forças suficientes.Recordando a noite anterior, ele não tinha dúvidas.Eu ajudo-te disse ele com a voz a tremer. Tudo o que tenho cá dentro, dar-to-ei. Mas tu disseste... as tuas palavras, ontem à noite., e se...?Não vai ser fácil para ti. Pelo menos, compreendes isso. O meu povo não esquecerá o morticínio de Ramsbeck, nem os tempos em que Somerled governou como quis contra nós enquanto todos os teus se mantinham de lado. És capaz de passar o resto da tua vida a expiar esses pecados, Eyvi. Talvez nunca te libertes da sombra dos actos de Somerled e de não teres conseguido detê-lo. Em Rogaland, talvez sejas recebido como um herói, louvado pela tua bravura, elogiado pela tua capacidade na guerra. A maior parte dos homens não hesitaria em partir com a próxima maré.Não estás a imaginar que eu...Não, Eyvi. Eu sei o que te vai no coração, meu querido, e nunca duvidei da tua lealdade, nunca, desde o dia em que me disseste coisas tão doces que me encheram de confusão. A jovem meteu a sua mão na dele e encostou-lhe a cabeça ao ombro. Simplesmente, quero que saibas que vai ser duro para ti. No entanto, tiveste um bom começo. Eles viram-te enfrentá-lo em Dorso de Baleia. Sabem que salvaste a minha vida e a de Rona. Sabem que disseste a verdade, arriscando-te a um grande castigo. E viram o que fizeste esta manhã, trabalhando ao lado deles. Há uma qualidade em ti que faz com que as pessoas te sigam. Essa qualidade é como uma luz apontando para a frente. Não admira que digam... A jovem fez uma nova pausa.O quê, minha estrela?

Eles dão-te um nome que eu não consigo traduzir para a tua língua, mas é um nome antigo, uma palavra profunda vinda dos antepassados. Fala do que trazes ao ombro, do cão que te segue tão fielmente e do que eras no teu país natal. É algo parecido com cão e com dourado, mas que é um nome de homem: um homem que assume o aspecto do animal com quem fala à noite. Eles sabem da pele que usas em combate; viram algo em ti que fez com que se recordassem desse nome do nosso folclore antigo, acho eu. É bom sinal; eles hão-de exigir tanto de ti, como tu de ti próprio. No entanto, quero que compreendas como será difícil.Crianças, disseste tu. Uma rapariga e um rapaz. Isso quer dizer que estás disposta a deitar-te de novo com um Pele-de-Lobo, se a oportunidade se apresentar?Se esse homem for meu marido disse Nessa com um sorriso torcido a oportunidade talvez se apresente muitas vezes, penso eu. Mas ele precisaria de estar preparado para ficar nesta terra: não poderia responder à chamada e embarcar num navio para uma viagem qualquer. Teria de ser camponês e pescador, juiz e professor, líder e guardião, além de guerreiro. E teria de aprender a ser pai.Ele levou a mão dela aos lábios; os seus olhos pareciam estar rasos de água pela segunda vez naquele dia, ou talvez pela terceira, mas o jovem limitou-se a baixar a cabeça.Vai ser bom, creio eu murmurou Nessa. Tem de ser bom a partir de agora, se ambos tentarmos com força, não achas?Então, ele envolveu-a com os braços e apertou-a, sentindo o seu calor entrar-lhe no corpo, sentindo o bater do seu coração contra o seu e desejando ficar naquela posição para sempre. No entanto, a sombra estava ali, na periferia do pensamento. Somerled. Ela dissera: não teres conseguido detê-lo. Era verdade. Somerled era seu amigo, irmão de sangue e, se não fosse Somerled, nada daquilo teria acontecido. Havia, portanto, um assunto a tratar antes de prosseguirem em frente.Ele pediu para te ver disse Nessa em voz baixa, como se lhe tivesse lido o pensamento. O teu Jarl Magnus disse que não, que tu estavas a dormir. Nessa ocasião, Rona estava aqui. Ela não deixa que mais ninguém trate de ti. Diz que não confia em ninguém. Mas ela foi chamada para tratar dos ferimentos do irmão Tahdg. Para um homem santo, ele tem tendência para estar sempre metido em sarilhos.

 

                   JULIET

Somerled pediu para me ver? Eyvind respirou fundo. Mais valia agora do que mais tarde; era melhor agora, enquanto ainda tinha forças. Onde está ele? Nos alojamentos do costume?Tens a certeza de que queres vê-lo? perguntou Nessa gentilmente.Devo-lhe isso, pelo menos, já que somos irmãos de sangue disse ele. Talvez queira falar comigo, explicar-se. O que vem a seguir não me cabe, a mim, determinar. Cada um de nós enfrenta acusações. Cada um de nós enfrenta um julgamento e um castigo. E cada um de nós tem responsabilidades no crime que o outro cometeu, creio. Entre irmãos é assim. Esperas aqui por mim? Tens de descansar; não gosto nada de te ver tão pálida e cansada.Eu estou bem. Vai lá, então. Ela pôs-se em bicos dos pés e beijou-o docemente no lábio inchado, um sopro de Primavera, um murmúrio de promessa. Vai, Eyvi, eu espero aqui por ti.Ali não havia grilhões nem portas gradeadas. Nem a presença assustadora de Erlend e de Holgar, de espadas e machado em riste, era pior do que o que Eyvind suportara quando enfrentara o amigo como fugitivo recapturado. Mas aquela presença armada não estava ali para proteger o Rei. Em vez disso, tornava-o prisioneiro no seu próprio domínio.Houve uma pequena altercação. Eyvind viu o embaraço nos seus olhos e ouviu a hesitação nas suas vozes. Alterara-se tudo. Eles tinham julgado mal um camarada. Esse erro caía mal no código de lealdade dos Pele-de-Lobo.Deixai-me entrar disse Eyvind. E deixai-nos sozinhos durante alguns instantes. Sozinhos? Isso é contra as ordens...Ordens de quem? Anda lá, Erlend. Eu estou desarmado. Somerled não significa nenhum perigo para mim, nem eu para ele. Fica aqui à porta, se quiseres. Eu grito por socorro se tiver problemas, prometo.Holgar reteve uma risada de troça.Mesmo assim... recomeçou Erlend, franzindo o sobrolho.Tu estás em dívida para comigo disse Eyvind calmamente. Dá-me a tua mão; tu também, Holgar. Temos de ultrapassar isto, os três. Óptimo. Eu não me demoro.Somerled estava a escrever. Estava sentado a uma mesa pequena com uma lâmpada de óleo de um lado e um pergaminho diante de si.

Estava de semblante carregado, concentrado, enquanto a escrita escura fluía através daquela superfície antiga. A sua camisa estava imaculadamente limpa; acima do colarinho tinha uma fita de tecido branco atada ao pescoço. Quando Eyvind se aproximou, ele olhou para cima com olhos sem expressão. A pena cessou o seu movimento disciplinado; ele pousou-a cuidadosamente em cima da mesa.Eyvind. O tom de voz era neutro.Querias ver-me Eyvind avançou até ficar iluminado pela luz da lâmpada. Não sei o que te hei-de dizer, salvo que, se lhe tivesses posto a mão em cima, ter-te-ia matado. Nada neste mundo me teria impedido.Talvez tivesse sido melhor observou Somerled, levantando-se e aproximando-se da estreita janela, onde ficou a olhar para o crepúsculo. Um fim limpo. Não preferiste sempre assim?E tem de ser sempre assim? perguntou-lhe Eyvind com ar cansado. Sempre que temos uma conversa, entramos numa espécie de combate, num jogo cujas regras desfazemos sempre que nos convém? Eu não vim aqui para isso, Somerled.Por que vieste? Somerled continuava de costas, de braços obstinadamente cruzados. A posição era familiar; trouxe-lhe recordações desagradáveis à mente, recordação que só tornavam aquele encontro ainda mais difícil.Não sei. Eyvind hesitou. Creio que por... dever, obrigação. Senti que... era necessário.Dever. O tom de Somerled era neutro. E que dever é esse, Eyvind? O dever de um guerreiro para com o seu chefe de guerra? Não pode ser o dever de um amigo para com o amigo, do irmão para com o irmão. Esse já tu traíste, vezes sem conta. Mostraste ao mundo o quanto acreditas em mim. Os seus ombros estavam tão tensos como os de um animal selvagem preparado para fugir. O seu olhar continuou, feroz, no exterior.Pelos ossos de Odin, Somerled, não se pode falar contigo! Não fazes qualquer sentido. Como podes falar do dever de irmão para irmão, se... nem sei por onde começar.Seguiu-se um breve silêncio.Nem sempre foi assim entre nós. Havia, agora, um tom diferente na voz de Somerled, que descruzara os braços e olhava para as mãos; os dedos torciam-se uns nos outros.

Em tempos tive orgulho em ti disse Eyvind calmamente. Confesso que, quando apareceste pela primeira vez em Hammarsby, não gostei da tarefa que me era imposta. Achei que nunca serias capaz de aprender fosse o que fosse, mas, ao mesmo tempo, admirei-te. Eras tão inteligente, tão seguro do teu destino. Então, descobri, claro, que podia ensinar-te qualquer coisa e que tu eras capaz de aprender. E aprendes muito mais do que eu esperava. Penso que, até termos deixado Freyrsfjord a caminho de terras desconhecidas, ainda acreditava que tinha conseguido levar a cabo a tarefa de que Eirik me tinha incumbido. Mas descobri, entre a última Primavera e esta, que havia uma coisa que eu não te podia ensinar e sem essa coisa tudo o mais deixou de valer a pena. Tu sempre me consideraste estúpido e suponho que isso não mudou. Mas é a ti que te falta a compreensão, não a mim. Pelo menos, eu sei... pelo menos, eu compreendo...

O quê, Eyvind? Somerled dera um quarto de volta e não havia sinais de troça na sua voz, nenhum sobrolho erguido, nenhum sorriso divertido na sua boca, apenas circunspecção. Estava muito quieto, à espera.

É difícil pôr isto em palavras. O valor da vida, acho eu; aprendi que é muito valiosa e o que significa tirar essa dádiva. Sei que nenhum momento dela deve ser perdido. E aprendi o que é o amor. Se conseguisse ter-te ensinado isso, talvez o teu destino tivesse sido diferente. Falhei nisso, mas só compreendi o meu erro quando já era demasiado tarde.

Pobre Eyvind! És pior filósofo do que homem de leis. Isso não é assim.

Que queres dizer? perguntou Eyvind enquanto Somerled emergia da sombra, os olhos brilhantes com uma coisa nova, algo indefinível.

Houve uma coisa, pelo menos, que eu aprendi em Hammarsby disse Somerled com uma voz não mais forte do que um murmúrio. Só que tu nunca percebeste. Mesmo agora, continuas sem perceber. Ainda bem, talvez. Ele tossiu para aclarar a voz. Eyvind, que vai acontecer? Eu sinto-me cansado e disposto a uma conclusão rápida e eficiente. Que vai Magnus fazer, sabes?

Estás-me a perguntar, a mim? Eu penso que os nossos crimes vão ser confrontados, tanto o teu como o meu. Tu não precisas de mim para explicar a lei, Somerled. É sabido que teremos de pagar uma multa, ou receber outro castigo qualquer: a perda de terras, ou de cargos públicos, talvez o exílio. A minha honesta opinião é que o teu crime devia ser considerado mais atroz do que o meu. Um homem não mata o seu irmão, nem mesmo quando esse irmão é um tirano cruel e perigoso. E Ulf não era nada disso; era um bom chefe de guerra, um homem de honra. Continuo a não compreender por que o fizeste.Um homem não pode agir decisivamente de modo a obedecer a uma profecia? As sobrancelhas de Somerled estavam erguidas de um modo familiar. Na verdade, eu fiz com que se cumprissem aqui não uma, mas duas profecias. Isso, certamente, é uma proeza.Se isso é uma piada disse Eyvind, que começava a irritar-se é bem amarga e negra. Tu não podes ignorar o mal que soltaste sobre o povo destas ilhas.Ah. Somerled estava agora junto da mesa; os seus longos dedos pegaram na pena e rolaram-na de modo ausente. O povo das ilhas. Para ti, o cerne da questão é esse, não é? Ou antes, uma pessoa especial. Eu vi como olhavas para ela e ela para ti com aqueles olhos ilusoriamente puros. Que te aconteceu, Pele-de-Lobo? Sentiste saudades da tua puta? Sentiste falta dos prazeres da carne aqui, na solidão, entre estas nativas ignorantes? Como é ela? É...Chega. Eyvind controlou a respiração com alguma dificuldade. Forçou os punhos a descontraírem-se. Se a tua intenção é enfurecer-me até que te ponha as mãos no pescoço e te estrangule, estás enganado. Essa justiça sumária não é suficiente neste caso. Tu tens de responder perante o Jarl e o povo de Nessa, não perante mim. Assim, seria demasiado fácil.Desapontas-me, Eyvind. Tu disseste ontem à noite que me matavas. Por que não me matas agora?Eu, agora, não estou zangado, estou desapontado. Tinha tanta esperança em ti! Agora só vejo desperdício.A sério? Portanto, na tua mente, já me julgaste e achas-me culpado. De acordo com as minhas leis, o castigo seria o mesmo que eu decretei para ti. Devo confessar que uma morte rápida às tuas mãos seria bem melhor do que um julgamento demorado, penoso e um castigo determinado por aqueles que nunca me poderão compreender. Um fim misericordioso, eficiente: até a mais miserável das criaturas merece isso. Não foi o que tu sempre defendeste?Isto não é nenhuma caçada.

Talvez não; no entanto, tenho a sensação desconfortável de estar sentado em cima de uma armadilha, à espera.Eyvind não fez qualquer comentário.Esta gente não merece a tua lealdade, Eyvind disse Somerled enquanto enrolava o pergaminho e o atava com um fio. Nem a generosidade de Ulf. O meu irmão foi mal aconselhado e era demasiado brando, duas falhas fatais num líder. Ele ouvia os outros com demasiada atenção. A paixão que o trouxe a estas costas extinguiu-se devido a um excesso de boas intenções. Eyvind, esta gente não consegue sobreviver aqui. Nós somos mais fortes, mais competentes e temos capacidade de liderança. Tu estás cego por aquilo a que chamas amor. Recua um pouco e usa esse teu intelecto. Até tu és capaz de ver que, com o tempo, estas ilhas serão governadas por homens de Rogaland e com todo o direito. Esta gente será varrida daqui; será como se nunca tivesse existido. O meu único erro, penso, foi ter-me atrevido a tomar essa decisão demasiado cedo. E roubaram-me a hipótese de consolidar, eu próprio, essa conquista. Mas o que eu comecei, outros continuarão, até que os únicos rostos existentes nesta terra sejam os da nossa espécie. O local é um porto seguro para os nossos navios. É uma posição fundamental para as viagens para sul e para oeste, e os saques por essas bandas são substanciais, a acreditar nas histórias dos viajantes. A mudança é inevitável.Enganara-se, pensou Eyvind, ao pensar que Somerled já não era capaz de o chocar.Thor é minha testemunha murmurou ele em como me oporei a essa abominação até ao último suspiro. Este povo é muito antigo. Há uma força nele que tu ainda não viste, apesar de ela ter estado mesmo à tua frente ontem à noite. Na decisão do Rei em enfrentar um ataque que ele sabia não poder conter; na determinação de uma rapariga em apresentar a verdade perante os seus inimigos com risco da própria vida. No rosto pisado e respiração difícil do sacerdote cristão e no sorriso corajoso de uma criança. Tu é que não compreendes, tu é que continuas cego. Pelos ossos de Odin, Somerled, devias mesmo detestar o teu irmão, porque não só lhe roubaste a vida, como também a sua visão. Ao fazeres isso, quase destruíste o que aqui existia antes de termos aqui aportado: um povo grande, corajoso, que ocupa pacificamente esta terra desde o tempo antes da memória. E por quê? Porque temias a incerteza dos augúrios de uma velha, vislumbrados numa nuvem de fumo?

Cala essa boca! Tu não percebes nada! A voz de Somerled tremia, desaparecera a capa da indiferença. Achas que Ulf era o único a ter esperança e sonhos? Lamento se te desapontei, mas, infelizmente, parece que é o que eu sei fazer melhor. Eu tentei ser... eu tentei... Ele parou e olhou para Eyvind com olhos sombrios e boca cerrada. Subitamente, a criança desesperada de Hammarsby estava ali, rígida, retendo as lágrimas que poderiam mostrar a sua dor. Eyvind viu-a e ouviu as suas palavras: Ninguém quer saber de mim. O jovem sentiu o coração contrair-se. No entanto, não conseguia ver aquela criança solitária sem ver também o salão de Engus incendiado, o rosto ensanguentado de Ulf encostado ao seu e as lágrimas de Nessa. Não conseguia sentir piedade daquele rapaz perdido, porque recordava o calor da mão de uma criança agarrando-se à sua e a coragem estampada no rosto de um rapaz ao ver o seu pai, irmão ou parente jazendo por terra.

O erro não foi teu, Somerled disse Eyvind calmamente, dirigindo-se para a saída. Foi meu. Esqueci-me de te ensinar uma coisa fundamental: como ser homem.

No momento de se virar e de sair, o jovem viu a mudança no rosto de Somerled. Foi como se uma máscara, que até então variara entre a calma fria, o escárnio suave e a desaprovação mordaz, tivesse desaparecido para mostrar o rosto que estivera sempre cuidadosamente escondido por baixo. Havia nele amor, anseio e auto-escárnio, uma grande inteligência e uma profunda dor. Olhar demasiado tempo para aquele rosto significava chorar pelo que o seu dono poderia ter sido. Baixando a cabeça para passar pela soleira, Eyvind desapareceu.

No fim não houve grandes deliberações, grandes testemunhos nem grandes argumentos. Magnus fora, no fim de contas, o seu chefe de guerra e líder em Rogaland e a expedição às Ilhas Brilhantes dependera do seu patrocínio e aprovação. Além disso, era parente do morto, Ulf, e o Pele-de-Lobo continuava a ser um membro da sua guarda pessoal, tendo-lhe sido concedida apenas uma licença desde a Primavera até ao Outono. Magnus informou todos de que ouvira a história. Olaf contara-lha, com Harald a preencher as lacunas. Falara com Margaret e com a princesa estrangeira. Tivera uma conversa com o sacerdote cristão. A única voz que não ouvira, disse ele a todos, reunidos em assembleia no salão grande, naquela noite, fora a de Somerled. E Somerled enfrentava a acusação de assassínio. Era razoável permitir-lhe que se defendesse. Mas por pouco tempo. Estavam todos cansados.

Na verdade, pensou Eyvind, sentia-se bastante cansado e via as marcas da mesma exaustão nos muitos rostos reunidos naquela noite no salão grande à luz das lâmpadas. Magnus não acreditava em grilhões nem no arranjo formal de juizes sentados a uma mesa com os prisioneiros forçados a manterem-se de pé diante deles. Aquilo seria mais como uma Assembleia, em Rogaland, com as pessoas agrupados por famílias, ou facções. Eyvind estava junto do seu irmão, Eirik; Thor e Grim tinham-se postado por perto. Magnus arranjara assentos junto da lareira para Margaret, Nessa e o irmão Tahdg e ele próprio sentou-se perto delas com Olaf Sveinsson de pé a seu lado. Os homens do knarr não estavam presentes, tendo percebido, talvez, que era melhor um regresso discreto a Hafnarvagr, seguido de uma viagem rápida de regresso a casa sem responderem a quaisquer perguntas. Eyvind sabia que Nessa ainda não dormira, salvo aquele pequeno período junto da sua cama. Depois de ter abandonado os aposentos de Somerled, Eirik enchera-o de perguntas e de argumentos sobre a família, o dever e a sensatez. Finalmente, falara de Hammarsby e da mãe de ambos. Entretanto, Nessa estivera em conferência durante algum tempo com o Jarl e Eyvind só a viu quando o seu irmão terminou o interrogatório. Rona estava agora por trás da sua aluna com uma expressão severa no rosto; os cães flanqueavam-na como dois guardas gémeos saídos de uma qualquer história antiga. Quanto a Nessa, estava pálida e tinha olheiras púrpuras sob os olhos. A Eyvind pareceu que ela fazia um enorme esforço para se manter sentada de costas direitas. Que aquilo fosse rápido, pediu ele. Que fosse curto, como era desejo de Somerled: breve e misericordioso. Chega a ocasião em que é necessário dizer: basta. Então, disse ele a si mesmo, faria com que ela se fosse deitar e aconchegar-lhe-ia os cobertores, com ou sem Rona, e segurar-lhe-ia na mão até que adormecesse. Que dissera Eirik acerca do dever, afinal?

Chegara a vez de Somerled se apresentar perante o tribunal e ser julgado. O ex-rei usava a mais simples das túnicas pretas e as suas feições rivalizavam com a palidez da ligadura que tinha ao pescoço. Não havia sinais de repressão, como grilhões, ou correntes, mas Holgar e Erlend mantinham-se vigilantes a uma distância discreta. Todos exibiam sinais de um longo período sem descanso. Um Pele-de-Lobo, porém, consegue suportar esse tipo de privação e manter-se pronto a agir instantaneamente e com eficiência. Somerled esquecera-se disso na noite anterior.

Comecemos disse Magnus pondo-se de pé. Houve acusações contra o meu Pele-de-Lobo Eyvind Hallvardsson e ele admitiu serem verdadeiras em termos de facto. Foram-me contadas várias versões sobre o que aconteceu naquela manhã em Dorso de Baleia e eu concluí que os actos de Eyvind foram inteiramente justificados. O ataque foi uma traição ao tratado jurado sobre o bracelete. Espero que sintais vergonha, todos vós. O que fizestes não tem perdão.

Harald, Língua de Prata aclarou a garganta.

Os homens estavam a obedecer às ordens de Somerled, meu senhor Jarl. O Inverno tinha sido longo, sem actividade. Este lugar maldito...

Há ocasiões em que a obediência cega deve dar lugar a uma tomada de consciência, por maior que seja o temor pelo castigo. Não me interpretes mal. Eu estou tão pronto como qualquer outro homem a entrar em combate quando sou chamado e os meus Pele-de-Lobo não hesitam em carregar sob as minhas ordens. Thor recompensa esses actos corajosos. Eyvind tem a reputação de ser o mais corajoso de todos; o seu machado já provou a sua dose de sangue e voltará a prová-lo, atrevo-me a dizer. No entanto, é preciso diferenciar as coisas. Eu não ataco casas indefesas de pescadores ou de pastores. Eu não estendo a minha mão a um homem em sinal de amizade apenas para lhe espetar uma faca nas costas. Conta-nos o que aconteceu a Hakon, Somerled. Como é que o meu leal guerreiro, que eu libertei do meu serviço com tanta relutância, já não está connosco?

O tom de voz de Magnus mantivera-se neutro e cortês ao fazer aquela pergunta súbita e inesperada. O seu olhar era duro como o ferro.

Hakon não era tão leal como dizes disse Somerled insipidamente. O seu rosto não tinha qualquer expressão. Morreu. Não há mais nada a dizer.

Não era uma confissão. No entanto, um arrepio de horror percorreu a assembleia e Eirik Hallvardsson foi visto e levar a sua mão nodosa ao punho da espada.

Não? Nesse caso, fala-nos do teu irmão. Nós ouvimos aqui a sua própria voz, uma coisa maravilhosa, na verdade, que serviu para aumentar ainda mais o meu respeito por lady Nessa e pelo seu povo. E ouvi outra testemunha, graças a Thord e Eirik, que conseguiram trazer o homem a este salão, apesar de os teres tentado assassinar por intermédio dos teus homens de mão. Portanto, não há qualquer dúvida de que foste responsável pela morte de Ulf, ou que isso seja considerado como um acto de desobediência de Eyvind para contigo. Eu sempre tive orgulho em ser parente do teu irmão; ele era um grande homem, firme nas suas convicções e nos seus propósitos. Mas não tenho orgulho nenhum nos laços de sangue que me unem a ti. Mas isso não deve pesar na sentença final. É bom que te defendas agora, Somerled. Estamos todos muito cansados. De acordo com as tuas novas leis, segundo me diz Olaf, o castigo para um crime destes é a morte e a sentença deverá ser executada amanhã ao romper do dia. Não estou certo de qual das leis seguir. No fim de contas, tu ainda és o Rei de Hrossey.

Meu senhor...

Mas...

Eyvind deu um passo em frente para protestar, chocado. A outra voz que falara pertencia a Margaret. O Jarl Magnus silenciou-os a ambos com um gesto curto.

A acusação foi provada, Somerled disse ele, fixando os olhos cinzentos na figura esbelta, muito direita, e vestida de negro. O olhar de Somerled era impassível. Parecia totalmente descontraído. Tens alguma coisa a alegar em tua defesa? Uma explicação para aquele morticínio frio e premeditado, para aquele acto abominável contrário a todos os códigos de parentesco e lealdade? Fala. Diz-nos.

Somerled respirou fundo e deixou sair o ar lentamente. Talvez, afinal, não estivesse assim tão descontraído. O pequeno músculo no seu queixo tremia.

Não me parece que valha a pena disse ele calmamente. Se a acusação foi provada, por que me daria ao trabalho de a negar? Sinto-me muito cansado, pouco disposto a argumentos legais e uma simples explicação para um assunto tão complexo como este está para além das minhas capacidades, pelo menos esta noite. Prefiro não dizer nada.

O salão grande zumbiu com o som de vozes espantadas. Todos esperavam qualquer coisa de excepcional daquele subtil e astucioso mestre da palavra, que passara, da noite para o dia, de chefe de guerra a fratricida desprezível. Não esperavam aquele silêncio.

Nós queremos as tuas explicações! gritou Eirik do meio do burburinho. Merecemos isso, pelo menos! Justifica-te!Isso é uma cobardia! acrescentou Thord, virando o seu esgar sem dentes para Somerled e erguendo um punho enfaixado. Exigimos satisfações!O Jarl Magnus ergueu uma mão e todos se calaram.Não te aconselho, Somerled disse o Jarl. Tu não podes esquivar-te ao veredicto de culpado, mas tens o poder de influenciar o castigo que nós determinarmos se o fizeres com palavras em tua defesa. E nós sabemos que tu és capaz de tais argumentos; já te vimos defender mais do que um vilão em Rogaland com inteligência e fluência e reduzir uma multa de cinquenta para cinco varas, ou o exílio de um ano para uma bolsa de resíduos de prata. E o que está aqui em jogo é mais do que isso: muito mais. Dás assim tão pouco valor a ti próprio, que nem sequer te defendes? Não te apercebes do castigo que podes receber?Somerled sorriu. Era uma expressão sem alegria, salvo pelo trejeito amargo de auto-escárnio que Eyvind lhe vira pouco antes. O coração de Eyvind bateu com mais força. Descobriu que queria que o seu amigo falasse. Seria a sua hipótese, a sua hipótese de mudar o rumo dos acontecimentos, ali, naquele tribunal, onde todos o podiam ouvir, ali, onde podia mostrar a Eirik, a Nessa e ao próprio Jarl que se tinham enganado acerca dele. Podia mostrar que existia outro homem, o homem por trás da máscara, um homem inteligente e capaz, que podia aprender a transformar-se num verdadeiro rei. Podia endireitar a sua vida e seguir um outro rumo. Algum tempo de exílio não era nada do outro mundo. Tudo o que Somerled tinha de dizer era: Errei e lamento.Somerled encolheu os ombros. Os seus olhos passaram por Magnus, por Nessa e por Margaret. O seu olhar encontrou o de Eyvind e mudou. As suas palavras caíram no silêncio como gotas de chuva gelada.Não tenho nada a dizer. Somerled inclinou a cabeça e fechou os olhos, como se o que vira nos olhos do Pele-de-Lobo fosse, por fim, demasiado penoso para suportar.Muito bem disse Magnus pesadamente. Um homem tem o direito de permanecer em silêncio, mesmo que seja uma loucura. E tu conheces as tuas próprias leis, suponho. Assim, um homem que mata um parente enfrenta a execução sumária, de acordo com aquilo que os juizes julgarem apropriado. Esse castigo só pode ser revogado ou atenuado em circunstâncias excepcionais e apenas a pedido do rei. Como o acusado é o próprio Rei, suponho que a decisão me cabe a mim. Eu não gosto nada dessas tuas novas leis, Rei Somerled. Acho-as um pouco bárbaras. No entanto, parece-me inteiramente apropriado aderirmos a elas por algum tempo. Até à madrugada de amanhã, por exemplo.Seguiu-se um murmúrio de aprovação, centrado em Eirik Hallvardsson e nos Pele-de-Lobo. Margaret tinha os lábios fortemente cerrados; o brilho da lâmpada não conseguia aliviar a palidez fantasmagórica do seu rosto. Os olhos de Nessa estavam esbugalhados e perturbados, mas o homem para quem ela estava a olhar não era Somerled.Morte ao amanhecer observou Somerled. Não falta muito. Mas não quero o sacerdote cristão ao pé de mim nos últimos momentos. Acho-o intrometido e irritante e não quero passar a última noite neste mundo a ouvir os seus patéticos esforços para me converter.Era uma atitude corajosa. No entanto, Somerled não levantou os olhos.Meu senhor... as palavras de Margaret saíram-lhe como que contra vontade. Isto é... isto é...Desejas falar, minha cara? perguntou-lhe Magnus. Fala à-vontade; tens esse direito, como viúva do assassinado.Eyvind viu Nessa estender o braço e segurar a mão de Margaret na sua; no outro lado, Rona pousara a sua mão enrugada no ombro da jovem viúva.Eu... gaguejou Margaret; parecia que um arrepio lhe percorrera o corpo. É que... meu senhor, o assassinato do meu marido foi um golpe terrível. Como disseste, foi um acto abominável. Não parece haver razão para tal acto, não tem qualquer justificação. É isso, suponho, que faz com que o seu irmão se mantenha silencioso.Os lábios de Somerled curvaram-se num ligeiro sorriso. Margaret também fora sempre muito inteligente nos jogos que jogava.De qualquer maneira continuou ela com a voz quase totalmente controlada o que tu propões é algo... incivilizado. Em Rogaland, um homem culpado de um crime qualquer paga uma multa e aprende com os seus erros. Se o castigo for a morte, esse homem não pode emendar-se.

Magnus virou-se para olhar para ela. A sua surpresa era evidente.Estás a falar a favor de Somerled? perguntou ele. De Somerled, que matou o teu marido?Os lábios de Margaret apertaram-se. O seu rosto estava branco como a cal.Não meu senhor disse ela. Simplesmente, parece-me que, se seguirmos estas novas leis do Rei para determinarmos o seu castigo, tornamo-nos iguais a ele: cruéis e injustos. Demonstramos ser cegos perante o valor de uma vida humana.Ulf não teria querido a morte para o irmão. Era a voz de Tadhg, uma voz algo entrecortada. O teu parente andava muito interessado nos ensinamentos da minha fé e nós falávamos muito acerca desses assuntos. Ele valorizava a filosofia do perdão e a santidade da vida humana. Deus perdoa os pecados todos, até o assassínio de um irmão, se nos virarmos para Ele. Ulf teria querido que Somerled tivesse a hipótese de buscar a graça de Deus, de se arrepender dos seus pecados. Tê-lo-ia desejado, se bem que me tenha falado muitas vezes no receio que tinha do irmão e na devastação que Somerled seria capaz de desencadear se não tivesse quem o vigiasse.Diz-me uma coisa disse Magnus, cofiando a barba bem aparada e franzindo o sobrolhovês algo neste homem que eu não vejo? Eu conheço-o há muito tempo, desde que ele foi para Freyrsfjord ainda como criança, onde provou ser muito competente nas artes da corte: na poesia, nos jogos, no discurso da lei e, até certo ponto, no manejo da espada e do arco. Há um ou dois anos, teria dito que ele era um jovem de grande potencial, que teria ainda que suplantar algumas... falhas de carácter, digamos, que o estavam a limitar. Mas, agora, não tenho tanta certeza. Tu falas de emenda, lady Margaret. Talvez um homem destes não consiga emendar-se. A mim, parece-me justo que, tendo estabelecido as suas próprias leis, se submeta a elas. Não desejas satisfação pela morte cruel do teu marido?Meu senhor disse Margaret calmamente eu gostaria que o castigo para este homem fosse de acordo com o seu crime. Uma execução é uma coisa rápida: de certo modo é um acto de misericórdia. A morte é o que ele quer. É uma saída fácil.Magnus ficou silencioso durante alguns momentos, enquanto as conversas em voz baixa aumentavam no salão grande. Rona tinha trazido água a Margaret, olhando, com olhos de falcão, enquanto ela bebia até à última gota. Acabaria dentro de pouco tempo, pensou Eyvind. De uma maneira ou de outra, tinha de acabar. Somerled mantinha-se imóvel, sempre com a mesma pose, o olhar impassível virado na direcção de Magnus e de Olaf. Tinha as mãos entrelaçadas diante de si, com força: o único sinal de que não estava perfeitamente à-vontade. Em tempos, considerara Margaret uma adversária valorosa, mas nunca gostara de ceder um ponto.

Isso apresenta uma dificuldade disse Magnus. Porém, todos os problemas têm solução. Ainda não perguntámos a lady Nessa a sua opinião. Se há alguém aqui, esta noite, que tem o direito de julgar os actos de Somerled nestas ilhas, é ela. Foi o seu povo quem mais sofreu com a governação brutal do Rei, foi a sua terra que suportou o jugo da sua tirania. Ela é não só a princesa real desta terra, como também uma mulher sábia, capaz de compreender o que se esconde por trás das sombras. Vimos isso a noite passada, quando ela conjurou a voz do meu parente para que todos ouvissem a verdade. Procuremos a sua sabedoria e da sacerdotisa mais velha, sua companheira. Esta decisão está, acredito, para além do nosso conhecimento. Importas-te de falar, minha senhora?

Nessa estivera a traduzir em voz baixa para Rona. Eyvind prendeu a respiração quando ela se levantou, já não usando o belo e estranho vestido que usara na noite anterior, mas sim uma simples túnica azul e uma saia, o traje de todos os dias das mulheres da ilha. Os seus cabelos estavam perfeitamente entrançados e caíam-lhe pelas costas; não usava qualquer adorno, salvo a estreita fita que os atava; não tinha quaisquer jóias. No entanto, parecia-lhe encantadora, totalmente maravilhosa, como se, de cada vez que olhava para ela, ficasse mais bela e mais poderosa.

Meu senhor, agradeço a tua cortesia disse Nessa solenemente. Mas não posso fazer o que me pedes. Se este homem estivesse a ser julgado pelo mal que fez ao meu povo, pelo morticínio e pelas mutilações, pelo rapto de inocentes sem defesa, pela falta de respeito para com os antepassados cujos ossos são a origem destas ilhas, emitiria uma opinião, Dir-lhe-ia: vai em paz, porque a tua liberdade será de pouca dura. Os antigos poderes das Ilhas Brilhantes não permitirão que uma criatura como tu, malvada, caminhe, incólume, por estes belos campos, por estas costas brilhantes. Mas o meu povo não tem autoridade para julgar a acusação que pende esta noite sobre Somerled.

Ele está aqui a responder pelo assassínio do seu irmão, um crime cuja vítima e autor pertencem ao teu povo. É um assunto que pertence às vossas leis. Assim, tendes de ser vós a julgá-lo.Seguiu-se um curto silêncio. Parecia que se chegara a um impasse. Somerled cruzou os braços e mudou o peso do seu corpo ora para um pé, ora para outro; parecia que as palavras de Nessa tinham penetrado a couraça da serenidade.Pelos ossos de Odin disse ele de repente vamos ficar aqui a noite toda? Já todos perceberam, certamente, por que razão instituí novas leis. Foi para abreviar estes julgamentos. Seria muito mais simples...Ainda não acabei disse Nessa suavemente, virando os seus grandes olhos cinzentos para o rosto de Somerled. Qualquer coisa neles o silenciou instantaneamente, uma coisa que Eyvind pensava ser antiga, sábia e extremamente perigosa. Um arrepio percorreu-lhe a espinha. Eu compreendo as dificuldades por que estais a passar continuou Nessa e ofereço-vos uma solução. Por vezes, surge um problema que está para além do alcance das leis e códigos dos homens, um problema que requer uma sabedoria para além do mais sábio de entre vós. Eu não espero que compreendais as nossas crenças e costumes. Sem dúvida, achais que são tão difíceis de compreender como eu acho que é difícil compreender Thor e o seu martelo de guerra. Se eu me visse perante o mesmo dilema que enfrentais, procuraria o auxílio dos poderes da terra e do oceano. Procuraria a resposta no Sol, na Lua e nas estrelas. Procuraria a sabedoria que existe nos lugares secretos, a verdade que grita na voz do vento. Se eu buscasse essa orientação esta noite, não tenho dúvidas do que me seria dito. Só há um homem, entre vós, capaz de tomar essa decisão. Ele foi o único homem que viu a verdade e que teve a coragem de a apresentar perante Somerled com risco da própria vida. Ele conhece Somerled melhor do que qualquer um de vós. Perguntai a Eyvind, portanto, que determine o castigo que o seu amigo deve sofrer. Os antepassados tornaram claro, desde o princípio, que o vosso Pele-de-Lobo deve desempenhar um papel vital no desenrolar desta história. Ele que escolha.Eyvind ficou atordoado, orgulhoso e horrorizado, ao mesmo tempo que a assembleia desatava novamente a falar em voz alta e o riso de Somerled percorria o salão grande, ao mesmo tempo amargo, chocado e genuinamente divertido.

Por todos os deuses! exclamou Somerled. O Pele-de-Lobo, que nunca conseguiu aprender mais do que cinco caracteres rúnicos e que não conseguia compreender o mais simples ponto da lei é que vai tomar a decisão final sobre a vida de um rei? É evidente que a história a que te referes não é uma saga heróica cantada em versos escandinavos, é antes uma coisa ridícula, própria das tabernas frequentadas pelos seguidores estúpidos de Thor, como esse a quem chamas corajoso. Somerled virou-se para Magnus. Ele dormiu com ela, claro. É tudo uma questão de luxúria. Uma jovem impressionável e um guerreiro de cabelos louros a quem costumavam chamar Pequeno Touro. Que esperavam? A rapariga quere-o entre as pernas, mais nada. É insaciável.

A raiva irrompeu, vermelha, na cabeça de Eyvind, cega e terrível; a voz soava-lhe nos ouvidos, incitando-o à acção. Bastariam três longos passos até chegar a Somerled, alguns momentos para lhe chegar as mãos ao pescoço, torcê-lo de uma certa maneira e acabar com as suas acusações porcas. Tudo nele gritava Em frente! Os olhos de Nessa estavam nele, os de Rona, os do Jarl. O jovem respirou fundo. Manteve-se imóvel: tão imóvel como uma pedra. A névoa no seu cérebro desanuviou-se; a voz esmoreceu. Afinal, podia escolher. Se em tempos fora o servo estúpido de Thor que Somerled descrevera, já não era.

A voz de Rona ouviu-se, a voz de uma anciã, mas forte e vibrante. O irmão Tahdg providenciou a imediata tradução.

A mulher sábia pergunta se Somerled se esqueceu das mudanças que podem acontecer entre uma Primavera e outra? Seria sensato da parte dele lembrar-se, porque no espaço de algumas estações o Pele-de-Lobo será pai de reis, enquanto ele não será mais do que uma sombra no espaço recôndito da memória.

Espantas-me disse Magnus olhando para Rona, que retribuiu o olhar com olhos ferozes. Pai de reis? Não creio que isso seja possível. Devo dizer-te, o Jarl olhou em seguida para Nessa, que Eyvind tirou licença para poder estar aqui por pouco tempo. Eu tive muita relutância em permitir que ele viesse; na verdade, foi por causa dos bons ofícios de Somerled que eu dei a este amigo autorização para o acompanhar. Eyvind é o primeiro da minha força de ataque e membro indispensável da minha guarda pessoal. Ele é o nosso melhor guerreiro e um grande favorito no campo de jogos. Não pode, simplesmente, ficar aqui. Na verdade, pensava que era desejo de lady Nessa que todos nós desaparecêssemos rapidamente destas costas. Os acontecimentos do ano passado não lhe dão motivo para confiar na nossa raça. Por isso, tenciono respeitar os seus desejos e retirar as minhas forças, tanto as da malfadada expedição de Ulf, como as da minha viagem de exploração. No entanto, devo dizer que acredito ser inevitável outros virem até aqui para se instalarem, quer pela força das armas, quer pacificamente. Não conseguirás ficar com estas ilhas para ti própria por muito mais tempo, minha cara. Nem creio que possas ficar com o meu Pele-de-Lobo favorito.As mãos de Nessa estavam entrelaçadas uma na outra, com força; porém, a sua voz era a de um líder, uniforme e discreta.Meu senhor, agradeço a tua prudência ao retirares os teus homens das Ilhas Brilhantes. Isso é bom para o meu povo. Quanto ao futuro, não sou tão louca que não veja que os tempos estão em mudança. Tudo o que eu quero é um adiamento, tempo suficiente para nos prepararmos. Sem isso, a sabedoria dos antepassados perder-se-á. Muitos dos nossos homens capazes foram chacinados na batalha de Ramsbeck, no assalto a Dorso de Baleia ou isolados, silenciosamente, enquanto vigilantes na escuridão. As nossas mulheres e crianças são fortes, mas não tão fortes que possam reconstruir tudo o que se perdeu. Nós precisamos de ajuda. O teu Pele-de-Lobo, Eyvind, está preparado para ficar e para nos oferecer essa ajuda, se o libertares. Esperávamos que ele pudesse ficar. A voz, bem controlada, falhou, finalmente. Fora muito, o tempo.O teu problema pode resolver-se de outra forma disse Magnus e Eyvind recordou-se de que o Jarl sempre gostara muito de jogos. Quando eu permiti que os meus homens viessem até aqui com Ulf, alguns deles tiveram licença para ficar e instalar-se. Hakon era um deles. Infelizmente, Hakon já não está entre nós. Talvez Thord possa ser persuadido a ficar; disseram-me que a mulher dele gosta desta terra. Atrevo-me a dizer que sou capaz de arranjar mais um ou dois voluntários, desde que lhes garantas segurança uma vez os restantes longe daqui. Creio que é uma boa solução. Acabas por ficar com o teu complemento de homens capazes.Meu senhor a voz de Nessa tremia creio que não me fiz entender. O meu entendimento da tua língua não é perfeito, eu sei. Se um ou dois homens desejam ficar, considerarei a hipótese. Mas é este guerreiro, em particular, que eu desejo que fique.

Somerled fez uma careta.

Foi o que eu disse comentou ele.

Hum disse Magnus com um ar abstracto e com o esboço de um sorriso. Um dilema, porque eu quero que ele vá. Ouçamos o que o homem tem para dizer. Avança, Eyvind.

O jovem avançou, a pele de lobo sobre os ombros, a espada à cintura e o bater do coração forte e firme. A raiva desaparecera e com ela os últimos vestígios de incerteza. O guerreiro olhou para Nessa.

Tu sabes o que me vai no coração disse ele. Jurei ser guarda e protector do teu povo e não farei menos por ti. É uma promessa para toda a vida. Meu senhor Jarl, peço que me libertes os laços que me prendem a ti e que me permita ficar nestas ilhas. Tu és um grande líder e um homem justo, um modelo para qualquer homem que aspire a esse grande posto. Mas eu devo trilhar o meu próprio caminho e seguir a voz que me vai no peito. Libertas-me?

Promessa para toda a vida, ha? cuspiu Somerled. Este nosso amigo quebra votos e alianças como um cortesão muda de camisa. E o seu juramento de fidelidade para comigo? E o seu juramento eterno a Thor? Tu não podes confiar nele, Nessa. Ele serve-te durante algum tempo e depois põe-te de lado assim que uma outra grande causa lhe passar ao lado. Eyvind não é nenhum herói. Não passa de um homem grande com fraca capacidade de pensamento e uma recém-adquirida propensão para tentar o que está para além dessa mesma capacidade. Mais valia teres-te deixado ficar nessa tua profissão de matar, velho amigo. És tão bom nisso.

Chega! A voz de Magnus parecia o ribombar de um trovão; todos deram um salto. Não te dei autorização para falar. Bem, Eyvind o tom já era diferente estou a ver aqui uma solução. Um teste: um teste à tua capacidade para levares a cabo os deveres que esta dama parece considerar para ti. Todos nós sabemos que és forte e determinado. Sabemos que és inflexível e corajoso. Agora, terás de nos mostrar que também tens alguma sabedoria.

Que queres dizer, meu senhor? Enquanto falava, Eyvind ia percebendo o significado daquela frase. Uma coisa sombria, na verdade: o mais perigoso dos jogos.

Tens de pronunciar a sentença de Somerled disse Magnus calmamente. Foi a própria lady Nessa que te encomendou essa tarefa e eu penso que deves passar no teste, não apenas para me satisfazeres e às pessoas aqui presentes, mas para satisfazeres também a dama. Se eu ficar contente com o teu julgamento, libertar-te-ei do meu serviço. E considerarei o teu crime de desobediência ao teu chefe de guerra como sem efeito. Se a tua decisão não me agradar, ou ao tribunal, ou à dama, terás de honrar o teu voto a mim e regressar a Rogaland no meu navio antes da próxima lua cheia. Uma vez em Freyrsfjord, espero, pelo menos, mais cinco anos de serviço da tua parte. Estamos entendidos?Sim, meu senhor.Precisas de tempo para pensar? Está em jogo a vida deste homem, no fim de contas, e ele é teu irmão de sangue. Uma decisão dessas não pode ser tomada levianamente.Pelos ossos de Odin, isto nunca mais acaba? O tom de Somerled era amargo. Nunca vi um debate mais longo e mais chato...Eu não preciso de tempo para pensar disse Eyvind. O seu coração batia depressa e com força e, no entanto, sentia ao mesmo tempo uma espécie de calma apoderar-se dele. Não precisava de pensar no que ia dizer. Tinha a resposta dentro de si, completa e espontânea. O jovem virou-se para Somerled. Tu és, na verdade, meu irmão disse ele tranquilamente. As marcas que ambos trazemos são testemunhas desse laço e eu fiz os possíveis para o honrar. Tu achas que eu traí essa promessa, eu sei. Mas não é verdade. Eu tenho-te observado ao longo da tua vida, tenho visto como vais ficando cada vez mais astucioso e como cada vez compreendo menos as tuas decisões e as tuas acções. Perguntei a mim mesmo muitas vezes o que te terá levado a isso, por que razão a ânsia de aceitação arde tanto em ti, ao ponto de te cegar perante as consequências dos teus actos. Parece que não existe mais ninguém senão tu. Com o tempo, acabei por compreender que estavas a ir pelo caminho errado; ocorreu-me que te tinhas desviado há muito tempo, que vagueavas quase para além do alcance do teu amigo mais leal. Havia uma profecia, deves lembrar-te dela...Despacha-te, sim? resmungou Somerled.Nunca é tarde para regressar ao cruzamento e tentar de novo disse Eyvind. O irmão Tadhg dir-te-ia que é apenas uma questão de reconheceres o teu próprio erro. Mas tu não foste capaz de aprender a fazer isso, Somerled. Os teus olhos continuam fechados perante essa possibilidade, mas isso não quer dizer que não te possas emendar. Eu não traí o nosso juramento. O facto de eu estar aqui a falar, esta noite, depois de tudo o que fizeste, é a prova da minha lealdade.O que é que propões, encarcerar-me no meio de um bando de adeptos cristãos para que eu me transforme gradualmente por puro tédio? Vamos lá, Eyvind. Tu sabes como fazer a coisa limpa e rapidamente. Já te vi despachar numerosas vítimas com o gesto implacável de um bom caçador. Acaba com isto, sim? Os seus olhos estavam sombrios; o terror do desconhecido espreitava do fundo do seu espírito. Eyvind viu que, talvez pela primeira vez na sua vida, Somerled não fazia ideia do que se esperava dele.Eu não tenciono escolher a prisão para ti disse Eyvind. Não há um lugar nestas ilhas onde tu possas ficar preso: nenhum lugar, onde a tua vida não valha mais do que uma palha. Nem te vou mandar para Rogaland. Nenhum dos nossos conterrâneos aceitará levar-te. Nem te sentenciarei ao pagamento de um pedaço de tecido, ou de umas moedas de prata, porque não há tesouro no mundo que pague o que tu fizeste.Nesse caso disse Somerled com um sorriso trocista não tens muito por onde escolher, pois não? A morte ao nascer do Sol parece ser a única opção.Sabes disse Eyvind cheguei a pensar nisso. Na verdade, estive quase a executar essa sentença com as minhas próprias mãos: creio que estive tão próximo disso como o espaço entre dois cabelos. Eu tenho meditado na coragem, Somerled. Fui aqui chamado de corajoso, esta noite, e isso aqueceu-me o coração. Mas há aqui pessoas muito mais corajosas. O jovem olhou em volta: para o rosto adorável de Nessa, delicadamente corado nas faces; para os lábios cerrados de Margaret e para a sua palidez; para Rona, de pé, forte e severa, com os cães a seu lado. Olhou para o irmão Tadhg, que usava uma ligadura em redor das costelas e tinha equimoses no rosto. Pessoas que sofreram o que eu nunca sofri, mas que continuaram fortes e boas. Vejo nos seus rostos as marcas da tua crueldade, as cicatrizes infligidas pela tua sede cega de poder. E vejo nelas a força que tu não conseguiste dominar, apesar do medo com que forçaste os nossos próprios homens a obedecerem-te contra a sua vontade. Tu nunca paraste um pouco para pensar, para prestar atenção. Nunca permitiste a ti próprio tempo para isso.

Exibes raparigas, velhas e sacerdotes como modelos para mim? Somerled ergueu as sobrancelhas; a sua boca torceu-se. Isto é ridículo. A tua argumentação não tem lógica nenhuma. Essa gente não é nada. Não passam de peões na luta pelo poder. Não durarão muito. A nossa raça tem de prevalecer. Tu falas de tempo. Esse tempo, e não falta muito, é que me vai dar razão.

Eyvind respirou fundo.

Tu achas que o sacerdote é fraco. Sabes como foi que ele e os da sua fé chegaram aqui?

Somerled não replicou. A sua expressão mudou quase imperceptivelmente. Sempre fora bom com quebra-cabeças.

Sabes, estou a ver que sim. Mas talvez o nosso Jarl e os nossos recém-chegados camaradas não saibam. Os irmãos chegaram aqui em minúsculos curraghs feitos de pele e de ripas. Saíram das suas costas sem qualquer mapa senão o do coração, sem saberem para onde iam, sabendo apenas que a voz do seu deus lhes murmurava aos ouvidos. Velejaram à luz suave das estrelas e sob o calor feroz do sol do meio-dia. Pouco traziam com eles: um barril de água, uma linha de pesca e um livro de orações. Flutuaram à mercê das vagas e das correntes oceânicas, arrastados por tempestades e ventos terríveis, numa rota apenas conhecida das baleias e das focas, das gaivotas e das serpentes, até que a maré os atirou para as costas das Ilhas Brilhantes. Agradeceram ao seu deus e começaram uma vida nova. Isto é coragem, Somerled, um exemplo para todos nós.

Somerled esperou, os seus olhos escuros fixos no rosto de Eyvind.

Eu vi este sacerdote a ser espancado pelos teus homens continuou Eyvind. Ouvi a sua voz, firme enquanto os golpes choviam, recitando tranquilamente umas belas palavras de oração. Um homem forte, na verdade. Veremos se conseguirás ser assim tão forte.

Um murmúrio de excitação percorreu o salão grande. Somerled cruzou os braços.

Propões que me espanquem enquanto componho versos? perguntou ele numa demonstração de bravata.

Não, velho amigo. Vou arranjar um barco tão pequeno como aquele que trouxe até aqui Tahdg e os seus irmãos. Vou colocar nele um barril de água e uma linha de pesca. E na primeira maré depois do nascer do Sol vou pôr-te à deriva nesse pequeno barco, a caminho do exílio, para oeste. A tua rota, portanto, será determinada pelo oceano e pelas tempestades e o teu destino ficará nas mãos dos deuses que quiserem ter misericórdia de ti. Espero que ganhes sabedoria e que tenhas paz, tal como o irmão Tahdg. Parece-me um castigo apropriado.Os olhos de Somerled estavam esbugalhados. Por um momento, o horror transformou o seu rosto, ao reconhecer a peremptoriedade das palavras de Eyvind. Depois, a máscara desceu de novo e ele voltou a mostrar-se tranquilo.Eyvind virou-se para Magnus.Esta é a minha sentença, meu senhor. Espero que a aches satisfatória.Sabes observou Magnus expansivamente eu achei a jovem dama um pouco desequilibrada ao referir-se a ti como o único homem, entre nós, capaz de tomar uma decisão. Um Pele-de-Lobo, jovem e impetuoso, à mercê do chamamento do deus para a guerra, certamente não possuiria a sabedoria exigida para uma tarefa tão difícil. Mas, agora, vejo que estava enganado. Tu continuas a ser o mesmo homem que carregava contra os meus inimigos, um grande guerreiro, perto da loucura. Essa determinação e coragem ainda brilha nos teus olhos. Mas mudaste. Transformaste-te no homem que estas mulheres querem no futuro das suas ilhas: um pai de reis. A tua decisão agrada-me muito. E vós, estais de acordo?O rugido de aprovação fez tremer o salão grande. Talvez estivessem à espera de sangue, mas havia neles uma satisfação que ultrapassava esse desejo. Era como o fim de uma história antiga, profundamente estranho, mas, de certo modo, inevitável. Rodeado pelo clamor dos aplausos, dos murros em cima da mesa, Eyvind olhou e viu o pequeno sorriso de Nessa, o calor dos seus olhos e, um momento depois, viu-a ficar subitamente branca e de joelhos trémulos. O jovem alcançou-a em duas passadas e segurou-a nos braços antes que alguém tivesse tempo de se mexer. O seu coração rufava como um tambor. Certamente, os deuses não seriam tão cruéis depois de tudo o que...Exaustão total observou Margaret, como se lhe estivesse quase a acontecer o mesmo. E ela não come nada há horas. Uma rapariga muito forte; passou por muito.Nessa parecia uma pena nos seus braços. Estava pálida como a neve e mole como uma boneca, os seus longos cabelos pendentes enquanto ele a transportava para o quarto que a jovem partilhava com Margaret.

Rona seguia logo a seguir, resmungando para si própria. Eyvind depositou Nessa numa enxerga e cobriu-a com uns cobertores. Em seguida, afastou-se e a anciã substituiu-o, desarrolhando um pequeno frasco que exalou um odor forte e pungente. O jovem sentiu o nariz arder-lhe e os seus olhos encheram-se de lágrimas. As pálpebras de Nessa tremeram. A jovem agitou-se e abriu os olhos. Eyvind ficou ali a pairar, esperando ser expulso a qualquer momento daquele território de mulheres, mas, ao mesmo tempo, incapaz de desviar o olhar da jovem. Rona deitou água numa taça e entregou-lha, fazendo um gesto. Foi Margaret que falou.Está a dar-te algum tempo, creio. Não muito. Eu própria estou esgotada e não tenciono despir-me e meter-me na cama com um Pele-de-Lobo por perto. Despacha-te. Ainda há certas coisas a fazer e nós não nos demoramos.As duas mulheres saíram, não sem um olhar penetrante por parte de Rona. Era uma espécie de aviso; ele sabia que continuaria a ser vigiado, que seria avaliado e julgado para o resto da vida. Mas não se importava.Desmaiei? perguntou Nessa quando ele lhe levou a taça aos lábios. Nunca me tinha acontecido. Talvez devesse ter comido qualquer coisa. Passou tanto tempo que já nem sei se é de dia ou se é de noite.Shhh disse Eyvind, aconchegando-lhe a almofada. Não fales. Descansa. O seu polegar afagou-lhe a têmpora, afastando-lhe as madeixas de cabelo do rosto. Ela olhou para ele, os olhos escuros como ardósias à luz da lâmpada.Tu estás triste, não estás? murmurou ela. Triste por não teres conseguido que ele entendesse.Eyvind inclinou a cabeça e não disse nada. Por vezes, ela parecia capaz de lhe ler a mente, de lhe descobrir segredos que ele mal sabia que guardava.E estás triste por teres sido obrigado a fazer o que fizeste disse Nessa. Mas foi a decisão certa, Eyvi. Tu deste-lhe uma segunda oportunidade. Foi uma grande dádiva; ele não foi tão teu amigo.Não sei. Posso ter sido cruel. Uma viagem assim está cheia de perigos. É uma viagem por mares desconhecidos. Quem sabe onde ele vai parar? Ele queria a morte.E tu deste-lhe a vida. Um homem como tu não podia ter feito outra coisa. Eyvi? Hum?

Daqui a pouco Margaret regressa e Rona vai ralhar-te por me manteres acordada e por não tratares de ti próprio como deve ser.Hum disse ele, os seus dedos afagando os cabelos dela, castanhos-escuros, sedosos, espalhados pelos ombros.Gostava que pudesses ficar aqui disse ela em voz baixa. Eyvind engoliu em seco.Pelo menos, posso dar-te um beijo de boas noites, não posso? -tentou ele. Apesar do que acontecera entre ambos, as coisas pareciam, agora, diferentes. Ele sentia um certo constrangimento, como se estivesse tudo a começar de novo, agora que a morte já não estava tão perto.É claro que não podes disse Nessa, mas sorria. Não fiques tão desanimado, Eyvi. Tu tens o queixo cheio de equimoses e inchado como um fruto maduro e eu sei que te foi ontem arrancado um dente. Os beijos podem esperar...As suas palavras perderam-se quando ele a tomou nos braços de novo e a beijou suavemente, porque um beijo, no fim de contas, pode ser tão leve como as asas de uma borboleta, desde que se queira. Um momento depois os lábios dela abriram-se, ele sentiu as mãos dela nas suas costas e a língua dela tocou a dele, endurecendo-o de desejo. O beijo prolongou-se; os dedos dele deslizaram para o interior da túnica dela, acariciando-lhe a curva suave do seio. Então, Eyvind estremeceu de dor e Nessa afastou-se, um pouco esbaforida, o riso e a preocupação misturados na voz suave.Eu disse-te. É preciso ir devagar. Temos tempo, depois; já falta pouco. Vais dormir, esta noite?Por entre as dores que sentia no corpo e o que teria de ser feito de madrugada, Eyvind achou que seria pouco provável.Vou tentar disse-lhe ele. Agora, fecha os olhos e descansa. É melhor eu ir-me embora.Oh não, ainda não. Os dedos dela agarraram-se aos dele.Só mais um pouco, então. Se bem que deva dizer que estar aqui tão perto de ti sem poder fazer o que me apetece tanto me deixa muito desconfortável.Nessa sorriu.Esse desconforto não é privilégio dos homens, acredita. Mas não podemos chocar Rona. Talvez possas pôr um braço em redor de mim, por cima dos cobertores e possas descansar a tua cabeça no meu ombro. Hum. Que bom. Talvez eu consiga adormecer.

De facto, quando Rona regressou pouco depois, teve de o acordar e, enquanto o mandava para o aquartelamento dos homens, havia um sorriso nas suas feições enrugadas. Margaret estava junto dela, parecendo totalmente esgotada; a viúva de Ulf devia estar ansiosa por regressar a casa, pensou Eyvind, para junto da sua família, em Rogaland. Ele inclinou-se para beijar de novo a testa de Nessa, as suas pesadas e sombreadas pálpebras e, muito levemente, a sua boca. Ela estava profundamente adormecida. Dorme bem, minha estrela. A minha mão na tua. Rona emitiu um comentário, mas não lhe pareceu um comentário rígido. Teria de começar a aprender rapidamente a língua para que pudesse falar com ela, para que pudesse falar com toda a gente. Pediria ajuda a Tadhg.

Eyvind disse Margaret secamente se não sais daqui depois de eu contar até cinco, chamo o teu irmão. Boa noite e dorme bem. Tomaste a decisão certa, esta noite.

Certa? perguntou ele. Não sei. Creio que nunca saberei.

Temos de estar preparados para sonhos perturbantes disse Margaret para premonições nos nossos pensamentos. Ele deixa-nos esse legado. Mas não podemos permitir que isso nos deixe desamparados. A vida continua; e nós temos de a viver o melhor que pudermos e soubermos, suponho. Ela parecia tão abatida e desesperada, que Eyvind teve dificuldade em encontrar uma resposta. Foi salvo por Rona, que se aproximou com uma taça contendo um chá a ferver que cheirava pior do que as ervas que tinham reanimado Nessa. Parecia que aquela poção se destinava a Margaret. Com grande alívio, Eyvind saiu do quarto e regressou ao aquartelamento dos Pele-de-Lobo, onde dois homens já ressonavam nas suas enxergas e onde o seu irmão o esperava de caneca de cerveja na mão.

Para a cama ordenou Eirik, apontando para a enxerga com uns bons cobertores de lã e uma almofada fofa. Já. E, de repente, não lhe custou nada obedecer.

Nessa achou que aquele momento devia ser muito difícil para Eyvind: tocar com os dedos naquele pequeno barco oscilando na água pouco profunda, pronto para transportar Somerled para oeste na sua jornada para o exílio. Porque também ela sentia a tristeza da ocasião, a sua sombria solenidade, apesar de sentir que era, ao mesmo tempo, purificadora, O peso da dor que todos sentiam nos ombros tinha de ser aliviado com a partida daquele homem. Era uma espécie de fim,, necessário, antes de recomeçarem tudo de novo. Para Eyvind, era diferente. Ela podia olhar para as feições tensas de Somerled sem sentir qualquer dúvida, porque via um homem que, simplesmente, não compreendia a diferença entre o bem e o mal. Mas Eyvind via o amigo, um rapaz por quem se sentia responsável. E ela sabia que algures, lá muito no fundo, Eyvind duvidada da sua decisão. Mesmo depois de tudo o que fizera, da força que demonstrara, da sabedoria e capacidade de liderança, Eyvind não se via como os outros o viam. Aos seus olhos, nunca passaria de um simples guerreiro, um homem que precisava de tempo para compreender as coisas, um pensador pouco subtil, falho de inteligência. Não via a admiração nos olhos dos outros, nos do Jarl Magnus, nos de Margaret, nos de Olaf, ao aperceberem-se de como ele mudara e no que se transformara. Não percebia por que razão o seu povo o aceitava daquela maneira tão espantosa; a rapidez com que estabelecera laços tão difíceis. Estava cego quanto a isso. Essa era uma das razões por que o amava tanto.

Naquela manhã havia uma sombra nos seus olhos azuis-claros. No entanto, estava erecto como sempre, como se fizesse parte da rocha monumental onde se mantinha de pé. Apesar da brisa que lhe agitava o cabelo e a túnica, parecia, quanto a Nessa, uma ilha de tranquilidade. Fora assim que o vira na praia, havia muito tempo, antes de ela saber que tipo de homem era; antes de ter percebido que ele pertencia àquelas ilhas. No entanto, de certo modo, já então o sabia. A partir desse momento, os espíritos passaram a murmurar-lhe ao ouvido: Ele faz parte desta história: da tua história e da história dos Folk. Não o deixes fugir. No peito deste guerreiro bate a verdade antiga.

Nessa era a única mulher presente na praia. Margaret declinara o convite do Jarl. Era evidente que a viúva de Ulf chegara ao limite das suas forças. Diziam que Somerled lhe entregara uma carta antes de sair da colónia, mas ninguém sabia o seu conteúdo. Quanto a Margaret, não procurara falar com o assassino do seu marido em particular. Nessa supôs que ela tinha uma informação que lhe dizia respeito e ponderou na decisão de Margaret em não a partilhar com ele, mas não disse nada.

A jovem preferia não estar presente, mas ao ver a palidez de Eyvind e o seu maxilar cerrado, decidira acompanhar aquele pequeno grupo de homens ao local escolhido. A menos de três barcos de distância daquela estreita praia de seixos, o curragh seria apanhado por uma forte corrente vinda de leste e afastá-lo-ia das ilhas. Só um grande marinheiro seria capaz de virar o barco e fazê-lo regressar a terra. O seu primo, Kinart, poderia tê-lo feito. Somerled, certamente, não o conseguiria.Foi tudo muito rápido. Os homens tinham trabalhado durante toda a noite para que tudo estivesse pronto; o barril de água, a linha de pesca e um pequeno saco impermeável com provisões estavam cuidadosamente armazenados. O barco tinha remos, um mastro e uma vela. Nessa estremeceu. O barco era tão pequeno. Na praia, o irmão Tadhg mantinha-se com a cruz de madeira entre as mãos, olhando para as águas agitadas.Fez-se silêncio. Todos esperavam que Somerled entrasse para o barco. Nessa perguntara a si própria se tudo seria feito sem mais palavras; se naquele momento, mesmo no fim, Eyvind e Somerled ainda teriam alguma coisa a dizer um ao outro. Talvez tivessem tanta coisa para dizer que nenhum deles soubesse por onde começar. Ela podia sentir a dor de Eyvind, se bem que não a compreendesse totalmente. Quanto a Somerled, deixara-a surpreendida. Calado, tranquilo, vestido com roupas quentes simples, chegara à praia com uma dignidade total, ladeado pelos dois Pele-de-Lobo. Nessa foi forçada a admitir que, exteriormente, ele se comportava como um verdadeiro rei.Chegou a hora disse Magnus. É melhor ires. Tens mais alguma coisa a dizer?Somerled olhou para ele.A ti, não disse ele. Mas quero fazer uma pergunta a Eyvind. Eu disse-lhe que preferia a morte. Fui muito claro. Mas, é evidente que não me foi dado escolher. Diz-me, Eyvind, que me impede de dar a volta ao barco assim que a corrente deixar de o puxar e regressar a terra? Os locais acabam comigo, se os espíritos de Nessa não o fizerem primeiro. Que me impede de abrir os pulsos com uma faca de pesca? Estou certo de que há uma a bordo, algures. Ou posso, simplesmente, percorrer uma certa distância e depois saltar do barco, afogando-me. Lembras-te, com certeza, que não sou o melhor dos nadadores. Dá-me uma razão para eu obedecer a este castigo ridículo!Vários homens falaram ao mesmo tempo.Talvez eu deva ir com ele... disse o irmão Tadhg e as suas palavras provocaram um horrível "Não!" de Nessa. Várias vozes, entre elas, a de Eirik, falaram, dizendo a Somerled que se calasse e que se despachasse. Mas foi a resposta de Eyvind que os calou. O guerreiro desceu da rocha, o seu rosto cor de cinza e aproximou-se, até que a distância entre os dois foi de apenas um braço.Aqui tens a razão disse ele, enrolando a manga esquerda para mostrar a longa cicatriz no braço, símbolo do seu juramento. Dá-me a tua mão. Eu não esqueci o nosso juramento. Tu exigiste-me lealdade; agora, sou eu que te peço que honres essa lealdade. Dá-me a tua mão, Somerled.Somerled enrolou a manga da camisa e olhou para Eyvind; os olhos escuros pareciam querer devorar os azuis. Os dois homens pressionaram os braços um contra o outro. As duas cicatrizes sobrepuseram-se, iguais.Muito bem disse Eyvind. Agora, quero que me prometas solenemente, em nome do espírito da amizade que jurámos um ao outro em rapazes, que farás tudo o que estiver ao teu alcance para sobreviver a esta jornada. Jura que seguirás em frente com a coragem que eu sei que tens, com toda a inteligência, vontade e engenho que possuis, até conseguires chegar a uma nova costa. E tens de me prometer que, uma vez nessa costa, iniciarás uma nova vida, esforçando-te por ser o homem que podes ser.O jovem segurava o olhar de Somerled com o seu, mas Nessa sabia que ele não estava a ver o mesmo que ela, algo que lhe fazia encolher o coração de piedade e dor pelos dois. Ele não estava a ver o amor nos olhos de Somerled. Para ela, foi apenas um vislumbre por trás da máscara, uma visão que preferia não ter visto. A jovem pensou saber o que ia no coração de Somerled. Eu nunca poderia ter sido bom para ti, nunca, por mais que tivesse tentado, por mais que tivesse conseguido. E nunca poderei ser o homem que tu és.Estás a pedir demasiado disse Somerled num murmúrio, a sua boca torcendo-se num meio sorriso seco. Creio que nunca te exigi tanta lealdade.Se não tivesse fé em ti respondeu Eyvind com um tom de voz ligeiramente mais alto não to pedia. Jura.Finalmente, Somerled ficara sem palavras. O ex-rei acenou bruscamente com a cabeça e largou abruptamente o braço de Eyvind. Quando subia para o curragh, Nessa viu-o esfregar com as costas da mão uma face e depois a outra. Um rei não chora quando o povo o está a observar.

A sério disse o irmão Tadhg, começando a caminhar na direcção da água a sério, ele não pode ir sozinho...Poupa-me à tua companhia sacerdotal, peço-te disse rispidamente Somerled. Sempre preferi a minha. Além disso, tenho aqui falta de tradutores e tu vais precisar da tua vida toda para ensinar a língua local a Eyvind. E agora acabemos com isto, está bem?Então, Eirik, Thord e os outros homens empurraram o curragh pela popa, Somerled pegou nos remos e, com uma competência razoável, começou a remar na direcção do mar alto. Nessa avançou para segurar na mão de Eyvind e a jovem pôde ver as lágrimas a correrem-lhe pelas faces abaixo. Um Pele-de-Lobo, assim parecia, podia chorar sem vergonha numa ocasião daquelas. Ficaram os dois a olhar enquanto o pequeno barco desaparecia. Os outros dirigiram-se para o local onde estavam os cavalos, prontos para regressarem à colónia, e os dois ficaram sós com as ondas a rebentarem e os gritos das gaivotas. Então, Eyvind limpou as faces com as costas da mão, tal como Somerled fizera, pôs um braço em redor dos ombros de Nessa e ambos viraram as costas ao mar.Ela viu a dor e a dúvida nos olhos de Eyvind e quis confortá-lo com os seus conselhos e com o seu corpo. Mas havia muito que fazer e a privacidade tornava-se difícil. Antes de embarcar de regresso a Rogaland, Magnus determinou que se fizesse um inventário do que Ulf já fizera e disponibilizou as suas forças para restaurar o que Somerled destruíra. Nessa fez notar, muito cortesmente, que os Folk desembaraçar-se-iam bem com a ajuda que tinham conseguido: Eyvind, Thord e mais um ou dois outros. O seu argumento foi fortalecido com a chegada, numa tarde de chuva miudinha de Primavera, de uns vinte homens do seu próprio povo, pescadores e camponeses das ilhas mais remotas vindos em socorro depois de, finalmente, terem sabido da chacina dos seus conterrâneos. A maior parte era constituída por homens grisalhos e os restantes pouco mais eram do que rapazes, mas o entusiasmo era visível nos seus olhos, assim como a vontade feroz nas suas vozes ao ajoelharem-se perante ela, um a um, oferecendo-se como guerreiros. Nessa teria chorado, noutros tempos. Mas naqueles tempos novos limitou-se a oferecer a sua mão e algumas palavras solenes de agradecimento a cada um deles. E explicou a todos, depois, quem era Eyvind e o que fizera. Ele era seu marido e companheiro a partir daquele dia; a sua união limitar-se-ia à cerimónia formal das mãos atadas e celebrar-se-ia quando a Primavera estivesse no auge. Ela não acrescentou as palavras depois de os outros terem partido, mas todos perceberam. Eyvind estaria sempre a seu lado; ajudá-la-ia a governar. Ele ensiná-los-ia a estarem preparados para os novos tempos, já que as ilhas já não eram um lugar isolado do resto do mundo. Os rapazes olharam para o gigante de cabelos dourados com uma antecipação excitada, dificilmente contida. Os mais velhos demorariam mais tempo a aceitá-lo, mas ela não duvidava de que também eles, com o tempo, seguiriam o Pele-de-Lobo até à morte se ele lhes pedisse. Esse pensamento provocou-lhe um estremecimento, como se um sopro de vento frio lhe passasse por perto. Tantas mudanças: todos os dias havia algo novo. Os tempos de longa e silenciosa meditação, as noites de comunhão com os antepassados pareciam recordações distantes e ela tinha saudades dessa quietude, desse espaço necessário à paz de espírito. No entanto, a escolha fora sua. Seria mãe antes do próximo Inverno, segundo Rona, se bem que para si esse conhecimento por parte da anciã fosse um mistério.

Os navios estavam prontos: o Dragão Dourado, orgulhoso e esbelto no seu ancoradouro, o knarr pesadão e o orgulho e alegria de Magnus, o novo navio a que ele pusera o nome de Lady Hilde, nome da sua mulher. Talvez ele tivesse pensado naquele nome para a adoçar, já que partira, mal o navio ficara pronto. Mas ela tê-lo-ia de volta mais cedo do que esperava. Os homens estavam ansiosos por partir. Eyvind despedir-se-ia do seu irmão; Eirik tinha muitas saudades da sua mulher e dos seus filhos e jurou que nunca mais navegaria até tão longe. Na verdade, ouviram-no dizer aos seus camaradas Pele-de-Lobo, em redor de umas canecas de cerveja, que estava a pensar em desistir do chamamento de Thor e em regressar a Hammarsby para dar uma ajuda à sua mãe na herdade. Com vinte e cinco anos, já estava a ficar um pouco velho para andar de um lado para o outro com a espada, com a moca ou com o machado. Os outros receberam a novidade com grandes risadas, dizendo que ele nunca faria uma coisa daquelas, que não duraria uma estação a trabalhar a terra, que em breve estaria de regresso para junto deles, na proa de um navio, farejando dinamarqueses. Mas Eyvind disse a Nessa que eles estavam enganados. O jovem conhecia bem o irmão e vira a saudade de casa nos seus olhos.

Havia outros que iam ficar nas Ilhas Brilhantes, para além de Eyvind e de Thord. A mulher deste já conseguira fama como cozinheira em Hafnarvagr. O que ela conseguia criar a partir de alguns simples ingredientes fizera com que os homens fizessem fila com os pratos, pedindo para serem servidos uma segunda vez. Era uma rapariga muito viva, admirada tanto pelos seus modos descarados e anedotas atrevidas como pelos seus cozinhados. O facto de ter sido em tempos escrava não tinha qualquer significado naquela terra.Uma tarde em que Nessa desfrutava de alguns momentos de tranquilidade sentada num banco à entrada do salão grande, Margaret sentou-se a seu lado. A viúva de Ulf parecia nervosa, torcendo um lenço com os dedos. Era evidente que queria dizer algo, mas hesitava, como se não soubesse como começar. Nessa esperou com as mãos no colo. Shadow estava aos seus pés; Guard tinha saído com Eyvind e Thord, que tinham ido buscar umas tábuas que tinham dado à costa.Eu... eu queria pedir-te uma coisa acabou por gaguejar Margaret.Claro disse Nessa.Eu não posso ir para casa. As palavras de Margaret começaram, então, a sair em catadupas, como se a jovem tivesse de as dizer antes que lhe faltasse a coragem. Todos esperam que eu vá, mas eu não posso. Deixas-me ficar aqui? Eu posso ser útil, posso tratar da casa, sei fazer contas e organizar as provisões, talvez pudesse fazer algum do trabalho que teria feito se Ulf... se ele não tivesse... doce Freya, ajuda-me! A jovem meteu o rosto nas mãos. Não posso, não vale a pena, como é que eu hei-de dizer isto? Oh, por favor...Nessa esperou um pouco. Margaret não estava a chorar; não o faria ali, se bem que estivessem as duas sozinhas. Mas a sua pose, os ombros descaídos, a cabeça curvada, o pescoço exposto por baixo dos pesados cabelos ruivos, falavam de um grande desespero.Rona diz que eu vou ter um bebé lá para o fim do Outono disse Nessa tranquilamente. Para mim foi uma grande surpresa. Tu és a primeira pessoa a saber, à parte de Eyvind.Margaret emitiu um gorjeio estrangulado que até podia ser uma gargalhada.Um pequeno guerreiro de cabelos louros? Tu és uma mulher cheia de surpresas!Rona diz que vai ser uma rapariga. Mas espero que, a seu devido tempo, venham, também, alguns Pele-de-Lobo.Seguiu-se uma longa pausa.

O meu filho vai nascer muito antes desse, disse Margaret num suspiro mas, infelizmente, tarde de mais para poder ser, também, filho do meu marido. Certamente, será parecido com o pai. O seu tom era amargo. Já percebeste por que razão não posso regressar a Rogaland? Como posso dar a notícia aos meus pais? Mas suponho que sou tola em pedir a tua ajuda. Tu mal podes esperar por me ver longe daqui. Como seria possível dares abrigo a um filho de Somerled?

O teu filho é bem-vindo aqui, Margaret disse Nessa gentilmente. Será filho das ilhas. Cabe-te a ti, como mãe, criá-lo e ensinar-lhe o que os teus pais te ensinaram a ti: a ser forte, a ser indulgente e a ser generoso. Quanto a ti, tens de merecer o teu lugar; foi o que eu pedi a todos aqueles que preferiram ficar.

O teu povo deve odiar-me disse Margaret, mas havia esperança na sua voz. A jovem endireitou as costas e ergueu a cabeça. Depois de tudo o que aconteceu... depois daquela chacina... como é que eles...?

Como já te disse, tens de merecer o teu lugar. Serás vigiada. Todos vós sereis. Mas o meu povo lembra-se de como o ajudaste aquando da grande doença. Com o tempo, creio que serás aceite. E eu dou valor às tuas capacidades e à tua amizade, porque nunca esperei governar um povo. O meu destino mudou e eu nem sempre consigo enfrentá-lo com coragem.

Eu tenho muito medo de ter este filho disse Margaret em voz baixa se bem que, mais tarde ou mais cedo, isso tivesse de acontecer. A perspectiva deste filho em especial é que me desinquieta. Ele não foi concebido com amor. Não sei se serei capaz de ser uma boa mãe para ele. Tenho medo de o vir a odiar.

Olha para mim no dia em que ele nascer e diz-me isso outra vez disse Nessa e talvez eu acredite. Nós temos sorte em termos Rona. Por que não lhe pedes que procure respostas no fogo da lareira? Ela dir-te-á coisas sobre o teu filho, se puder.

Margaret estremeceu.

Não me parece. Prefiro não saber. Nessa?

Sim?

A minha criadita, Gunhild... ela também pode ficar? E os meus homens, Bjorn e Ash? Eles são leais, os três. Eles não vão querer abandonar-me.

Nessa franziu o sobrolho.

Gunhild pode ficar; vais precisar dela. Quanto aos homens, tenho de falar com Eyvind. Ele decidirá. Cada um deles terá de apresentar o seu caso e mostrar-se merecedor. Se tens fé neles, talvez possam ficar.Eles são bons trabalhadores disse Margaret, ansiosa prometo-te...Como já te disse, tens de falar com Eyvind. A escolha é dele. Eu não tenciono desempenhar o papel de Rainha. Temos tempos difíceis pela frente; entendo que devemos, todos, enfrentá-los em conjunto. Agradeço a tua ajuda, Margaret. Nessa estendeu a mão; um momento mais tarde, sentiu os dedos frios de Margaret roçando nos seus. Em seguida ficaram as duas em silêncio, lado a lado.Então, Margaret disse:Obrigada. Oh, deuses, vou vomitar outra vez...Isso passa disse Nessa, segurando na cabeça da rapariga enquanto ela se dobrava e perguntando a si própria quanto tempo levaria até que aqueles enjoos a atacassem também a ela. Prometo-te que passa.Magnus foi fiel à sua palavra. Os navios, que tinham estado juntos no ancoradouro em trabalhos de reparação, zarparam na segunda lua cheia para Freyrsfjord e Eyvind disse adeus a Eirik e aos seus antigos camaradas, Erlend e Holgar.Foi um conjunto estranho de pessoas que se reuniu na colina sobranceira a Hafnarvagr, onde a extensão de águas abrigadas se estende perante o olhar maravilhado do espectador, até à Ilha Alta, como um lençol sempre a mudar de luxuriantes azuis, cinzentos e verdes. Permaneceram em silêncio enquanto os remos saíam e entravam na água e a frota avançava através da baía prateada, serpenteando através das ilhas numa perigosa viagem de regresso a casa, a Rogaland. Poder-se-ia olhar para aquela gente, pensou Nessa, e tentar imaginar que futuro teriam as ilhas sob os seus cuidados. Lá estava a pálida e silenciosa Margaret com o xaile de lã em redor dos ombros e a seu lado um pequeno e apertado círculo de protectores: a jovem Gunhild, de faces rosadas e ansiosa e os dois robustos guardas, Ash e Bjorn. Por trás deles estavam dois outros homens da casa de Ulf. Todos eles tinham convencido Eyvind do seu valor e lealdade. À direita de Nessa estava Rona, alta e direita com a sua trança grisalha e os seus olhos perspicazes, que viam longe e a seu lado a figura singela do irmão Tadhg. Graças a todos os poderes, o monge não seguira o seu primeiro instinto, saltando para o barco de Somerled. Como conseguiriam desembaraçar-se sem aquele homenzinho tranquilo e corajoso? Na encosta abaixo de Nessa estava Thord com a pele de lobo pelos ombros e uma mão erguida em saudação, enquanto o Dragão Dourado içava a vela para apanhar o vento de oeste. A mulher de Thord, Zaira, observava os navios com um sorriso gaiato. Aquela tinha possibilidades; Nessa já se apercebera. E ela adorava a ilha; já tinha, entre as mulheres, um círculo de amigas. Talvez assim, tranquilamente e sem rebuliço, fosse possível remendar aquela comunidade destroçada. Dai-nos tempo, orou Nessa, fechando os olhos. Dai-nos tempo suficiente para que isto possa ser feito.Desta vez Eyvind não estava só. Tinha um rapaz de cada lado e os braços em redor dos seus ombros. Aos seus pés os dois cães, guardiões, companheiros, mensageiros quem saberia o que eles eram, na verdade? Perto, sete dos homens de Nessa vestidos com as cores da ilha: azul-celeste, verde-mar e vermelho-sangue, mantinham-se vigilantes. E Grim também ali estava: uma deserção surpresa, aquela, que não agradara nada a Magnus, mas o Jarl acabara por ceder ao ver que aquele tenaz guerreiro não mudaria de opinião. Um dos jovens de Ilha Arenosa parecia olhar frequentemente para Gunhild e as faces rosadas da rapariga enrubesciam cada vez mais. Tempo, pediu Nessa de novo. Não é pedir muito.Arranja tempo. Rona aparecera a seu lado e falara de um modo a que Nessa se habituara ao longo dos anos. Rona não era capaz, exactamente, de ler o pensamento; simplesmente, parecia saber certas coisas sem que lhas dissessem. Talvez a Visão fosse aquilo, apenas o poder muito apurado de observação de uma anciã. Para ele, especialmente. Leva-o daqui por algum tempo; espaço e tranquilidade é o que ele precisa neste momento. Tempo para chorar a dor e tempo para ser consolado. Tu podes dar-lhe isso, e vê se também aproveitas um pouco.Mas... Nessa nem sabia por onde começar, tinha tantas objecções. Havia tanta coisa para fazer e tinha tão pouca gente: gado para tratar, barcos para reparar, diques para consertar, para que o grão tenro, plantado quase demasiado tarde para poder crescer ao ritmo das estações, não fosse ceifado demasiado cedo por ovelhas esfomeadas, vacas tresmalhadas ou coelhos em busca de forragem. Tinham de dividir responsabilidades e começar a trabalhar. E ela tinha de ir às outras ilhas visitar o seu povo e tranquilizá-lo. Como podia arranjar tempo?

Ele é forte disse Rona calmamente. Eles já se juntam à volta dele. E há-de ser cada vez mais forte; sejam quais forem os desafios que o mundo lhe puser à frente, ele enfrentá-los-á com coragem. Mas ainda é um homem muito novo, Nessa, e disse hoje adeus à família. Tu, que perdeste tanto, sabes o que isso significa. Arranjai um pouco de tempo para ambos. Confia em nós; nós andamos com as coisas para a frente até que estejais prontos para regressar.

E assim foi que, num dia em que o céu estava de um azul sem nuvens e os prados ondulantes das Ilhas Brilhantes estavam cheios de flores de tonalidades rosa, amarela, violeta, Eyvind e Nessa partiram a pé, cada um com uma pequena trouxa, para oeste ao longo da costa, passaram perto de Dorso de Baleia e foram até um local onde uma cabana que fora incendiada estava agora meio reconstruída e onde uma entrada baixa, por entre umas pedras erectas, ia dar a uma câmara a que uma rapariguita chamara, em tempos, a torre subterrânea. Ali desempacotaram o que traziam e Eyvind acendeu a lareira onde Rona cozinhara uma vez peixe embrulhado em algas, ao mesmo tempo que Nessa ia buscar água fresca e colocava as provisões à mão. Nenhum deles falou muito; o frequente encontro dos dois olhares, um azul e outro cinzento, a carícia das mãos e o roçar dos dois corpos ao passarem um pelo outro dizia mais do que quaisquer palavras. Naquele lugar tranquilo havia um mundo inteiro de sons: o som das ondas na praia, o grito das aves marinhas e as vozes mais próximas, mais harmoniosas das calandrinas e das cotovias, o distante mugido do gado e os pequenos e ansiosos balidos dos cordeiros; no entanto, para lá desses sons de habitação, havia um imenso silêncio, um vazio vasto e aberto, pelo qual a mente podia andar à deriva, em busca de respostas e descobrindo que não havia respostas, que não havia fim, apenas uma jornada, um caminho para percorrer. E esse caminho podia ser bem ou mal percorrido; todos os homens e todas as mulheres tinham essa hipótese.

Bem disse Eyvind, sentando-se nos calcanhares enquanto o fogo subia, firme, transformando-se numa massa brilhante cada vez mais sombria e coroada de chamas brilhantes. O que é que se segue?

O jovem olhou para ela, os olhos brilhantes como o fogo e ela devolveu-lhe o olhar, sorrindo.Um passeio disse-lhe ela, estendendo a mão.Oh.Não fiques desapontado. Não vamos longe. Só até ao topo da falésia, além, a sul. Lembras-te?Eyvind acenou com a cabeça.Tu prometeste disse ele. Ou desejaste, se não prometeste. Disseste que iríamos lá na Primavera. Então, pareceu-me impossível, por uma ou outra razão. Fomos de tal modo abençoados que mal me atrevo a olhar para lá do dia de amanhã com medo que tudo mude de repente.E muda disse Nessa. O truque é mudarmos também. Vamos?Existe um lugar, mesmo por baixo da parte mais alta da falésia a sul de Dorso de Baleia, onde um carreiro estreito desemboca numa reentrância de pouca profundidade, uma taça, na qual um homem e uma mulher podem ficar sentados em segurança, como que protegidos pela mão da própria Mãe Terra, e olhar para oeste através do oceano desconhecido que vai dar ao fim do mundo. Por baixo desse pequeno abrigo, a falésia cai até à linha de água rochosa. Nessa face íngreme, gerações de aves têm feito ninho ao longo das estações, criando os seus filhos nas asas do vento agreste, lutando por espaço nas saliências estreitas, planando e voando a grande altura numa incessante busca de alimento no mar abundante. A sua dança intrincada em voo picado concede ao local uma certa magia, as suas vozes ásperas gritando um cântico antigo de sobrevivência.Nessa e Eyvind sentaram-se ali enquanto o Sol percorria o horizonte; à medida que tarde azulada se foi transformando num crepúsculo violeta e cinzento, as sombras mudaram. Os dois jovens não se abraçaram apesar do desejo que sentiam, cada vez mais forte, desde que tinham deixado a colónia. Eyvind limitou-se a rodear os ombros de Nessa com um braço, ao mesmo tempo que a outra mão agarrava a dela. Partilhavam o calor; acordavam recordações. O céu mudou, escureceu; as aves calaram-se.Exigi demasiado dele, no fim disse Eyvind, olhando para o mar cada vez mais escuro. Mais do que se deve exigir a qualquer homem.

Talvez te enganes.Ele olhou para ela de relance.Acreditas nisso?Nessa estremeceu.Não sei. E não procurarei a resposta no fogo. Tu indicaste-lhe outro caminho. Agora é com ele, não contigo.Eu não agi bem. Devia ter agido de outra maneira.Tu és um homem, não um deus. Talvez o tempo te dê ou não razão. Mas, agora, estou a ficar com frio. E quero fazer o jantar antes que escureça. Vamos?Boa ideia. Mas, és capaz de fazer uma sopa de cebola melhor do que a de Rona?Nessa sorriu e, de mãos dadas, começaram a descer pela falésia abaixo.Não me atrevo a fazê-la. Eu sou boa é a fazer pães com cogumelos secos e ervas aromáticas. Da última vez que tos dei a comer alimentaste o cão com eles, se bem me lembro. Desta vez, espero melhor de ti.Espero não te desapontar disse ele calmamente.Nessa sentiu um rubor subir-lhe às faces. Percebeu que ele estava a falar a sério.Acho que é pouco provável disse-lhe ela, compreendendo que por mais que ele conseguisse, por mais que fosse amado e aceite, exigiria sempre mais de si próprio: considerar-se-ia sempre, de certo modo, rejeitado. E isso era obra de Somerled.Ela pensava que não conseguiria comer; a dor enternecedora que sentia no corpo, aliada a um estranho nervosismo, parecia ser o suficiente para lhe tirar o apetite. Mas o passeio alterou tudo. Eyvind avivou o fogo enquanto Nessa modelava a farinha que preparara de manhã, acrescentando uma pitada ou duas disto e daquilo que ia tirando das profundezas do seu saco. Uma vez os pães a fritar na frigideira de ferro e depois de Eyvind lhe ter metido nas mãos uma caneca de chá, ela achou que se podia sentar tranquilamente, saboreando o aroma dos cogumelos, da manteiga a fritar e olhou para ele com um sorriso que expulsava qualquer embaraço.Desta vez temos um pouco mais de tempo disse ela. Um luxo, podermos estar aqui sozinhos. Temos de aproveitar ao máximo.

Eyvind não sorriu, mas havia calor nos seus olhos, uma serenidade que não conseguia esconder uma sombra de desejo.Tencionas levar-me para mais passeios?Eu cumpro as minhas promessas disse-lhe Nessa, colocando os pequenos pães num prato. Visitar a praia de madrugada é uma delas. Quero que vejas as cores. E temos de ir a Dorso de Baleia, mais tarde. Preciso de me colocar junto da Pedra do Povo e falar em ti ao meu tio; explicar-lhe, e aos antepassados, o que vamos fazer. Não tive oportunidade por ocasião dos funerais. É uma coisa para ser feita por nós os dois.Eyvind inclinou a cabeça.Honras-me com essa atitude disse ele calmamente.Sim. Mas deves compreender que é normal as mulheres de sangue real do nosso povo casarem fora dos Folk. Houve homens da Saxónia e de Dalriada que foram pais de reis nossos. Desse modo, a linhagem mantém-se forte e mantém os parentes afastados das gargantas uns dos outros.Mas o teu tio não quereria para ti um marido como eu, certamente.O meu tio era um homem como o teu chefe de guerra, Ulf, e como tu, Eyvi. Ele julgava as pessoas pelo seu valor, antes de pensar na linhagem. Espero que os nossos filhos venham a ter a mesma sabedoria.Filhos?Se os antepassados assim o desejarem. Mas, primeiro, uma filha. Ela pousou uma mão na barriga ainda lisa; mas não sentiu nada.Nesse caso vais manter-me ocupado, com um passatempo ou outro durante os intervalos disse Eyvind.Com um passatempo ou outro disse Nessa solenemente. Os dois ficaram silenciosos por um momento e então, subitamente, desataram a rir. Ele pousou a comida e aproximou-se para a tomar nos braços; ela encostou a testa ao ombro dele, ainda a rir, pensando em como se tinham tornado ambos tolamente solenes, sentiu as mãos dele no seu cabelo, afagando-o, e a boca dele na sua têmpora, mas já sem se rir.Creio que não consigo esperar mais, minha pomba disse ele com dificuldade. Mas se tu não queres...Shhh disse Nessa, afastando-se. Vamos apagar a fogueira, vem cá... Ela abafou as brasas e afastou a frigideira. Hábitos cuidadosos não se perdem, mesmo em momentos tão delicados. É quase noite; é melhor acendermos a lâmpada e prepararmo-nos para dormir. Vens comigo, meu amor?

Assim, conduzindo-o pela mão, ela transformou aquilo na coisa mais natural do mundo, enquanto entravam pela baixa abertura na torre subterrânea. Eyvind colocou a lâmpada num recanto da parede; Nessa estendeu uns cobertores no chão de terra batida. O tempo parecia ter desaparecido; cada momento era uma dádiva preciosa. Os seus dedos moveram-se cuidadosamente, desapertando-lhe os pequenos laços que ela tinha na frente do vestido. Ela podia sentir o calor da respiração dele contra as faces; a leve carícia das suas mãos através da leve lã do corpete era ao mesmo tempo uma delícia e um tormento. Os dedos dela afagaram os cabelos dourados, no sítio onde eles se encaracolavam, por trás das orelhas. O coração parecia saltar-lhe do peito, numa dança selvagem descontrolada.

Desculpa murmurou Eyvind. De repente, tornei-me muito desajeitado.

Queres que eu te ajude?

Não levou muito tempo a desapertar o corpete e a saia, deixando cair ambas as coisas no chão, ficando diante dele apenas com a leve camisa. Nessa mal conseguia suportar o olhar dele, mas não conseguia afastar o seu. Que um homem pudesse sentir tamanho desejo por ela espantava-a; enchia-lhe o coração de alegria e terror, e descobriu que o seu próprio corpo ansiava por lhe responder.

Vira-te disse Eyvind e quando ela obedeceu, alarmada, ele desapertou a fita que lhe atava a longa trança, passando os dedos pelos cabelos escuros e sedosos, até que eles caíram como uma cortina suave quase até à cintura. Então, por sua vez, ela despiu-o, uma tarefa embaraçante devido ao seu tamanho. Teve alguma dificuldade com as calças, o que os fez rir de novo desamparadamente.

Minha bela estrela disse Eyvind, trémulo, era capaz de ficar a noite toda a olhar para ti, porque não é possível existir uma beleza igual em todo o mundo. Mas, neste momento não consigo... tu consegues...? Mas o jovem conteve-se, exigindo de si mesmo mais do que seria de esperar de outro homem qualquer.

Ela deu um passo em frente, pôs-se em bicos de pés e beijou-o; com toda a sua força, encostou o seu corpo ao dele. A contenção, então, tornou-se impossível para cada um dos dois. Tinham esperado demasiado tempo e a urgência não era menor do que da última vez, quando a morte pairava por perto.

Eyvind quase esqueceu, por momentos, o que Signe lhe ensinara, rendendo-se demasiado cedo ao êxtase do desejo, à urgente necessidade de terminar. Mas aquela mulher era Nessa, que lhe aprisionara o coração e lhe libertara o espírito, e ele lembrou-se. Assim, atingiram o orgasmo juntos no meio de risos e desejo ardente, contorceram-se numa alegria apaixonada e, no fim, atingiram juntos um momento de êxtase cego, avassalador.

Magoei-te? murmurou Eyvind, pondo um braço a jeito para que ela pudesse descansar a cabeça confortavelmente no seu ombro e cobrindo-a com o cobertor.

Tu nunca me poderias magoar, Eyvi disse ela em voz baixa, encostada à pele suada dele. Nunca. Não precisas de me perguntar.

Os dois ficaram deitados em silêncio, avassalados pelo que estava a acontecer entre ambos, a sua ferocidade, a sua força, que era ao mesmo tempo maravilhosa e aterradora. Se, algum dia, a sua ligação terminasse, como seria possível sobreviver?

A lâmpada ardia, firme. Eyvind adormeceu com as pernas entrelaçadas nas de Nessa, o braço em redor dos seus ombros e os dedos enroscados nos seus cabelos. A sua respiração era lenta e tranquila; não teria sonhos sombrios. Nessa permaneceu acordada durante algum tempo, olhando para as sombras enquanto elas se agitavam e estremeciam no espaço secreto do antigo dólmen. E se bem que estivessem sozinhos naquele lugar secreto, ocorreu-lhe que não estavam totalmente sós, porque através da estreita entrada e através da minúscula abertura do tecto, uma débil luz azul ia e vinha numa sequência regular, como se houvesse lá fora, na escuridão, uma dança qualquer, um ritual de boas-vindas. E do mar, por cima do eterno rugido do oceano, vinha o som de vozes, sem palavras, fluido, cantando uma canção de acolhimento, um hino de irmandade, falando de laços mais profundos do que os laços de sangue. Quanto à voz profunda vinda da terra, essa permanecia silenciosa, talvez para sempre. Nessa fizera a sua escolha. Havia um preço a pagar por tudo o que se fazia.

A jovem fechou os olhos. Eyvind mexeu-se no seu sono, apertando mais o braço em redor dela; ela podia sentir o bater do coração dele nas suas faces, firme e forte. Mais tarde, ele acordaria e ririam ambos, conversariam em voz baixa e fariam magia na escuridão. Era um milagre, certamente, que depois de tanta amargura, de tanto sofrimento, pudesse haver uma alegria tão transcendente. Tens forças suficientes para perder tudo e, mesmo assim, continuar? Parecia que tivera e, por isso, os antepassados tinham-lhe concedido uma dádiva que não tinha preço. Sorrindo, Nessa adormeceu.O pequeno barco oscilava, avançando através do mar escuro, escoltado por gaivotas e focas. O rosto de Somerled não tinha qualquer expressão; não dizia nada do que lhe ia no pensamento, enquanto o vento e as vagas o transportavam sempre para mais longe, para o espaço onde as grandes baleias emergiam e mergulhavam no meio da espuma das ondas e onde criaturas de longos braços deslizavam como algas emaranhadas. Numa jornada assim, um homem tem tempo para pensar. No exílio, na sentença cruel se bem que benevolente, na decisão ao mesmo tempo maldita e redentora. Era uma ironia o facto de o seu objectivo há muito desejado lhe ter sido subtraído pelo mesmo homem que acreditara na sua visão, quando todos os outros troçavam dela. O riso amargo de Somerled subiu, misturando-se com as vozes ásperas das aves marinhas. Eyvind, um líder? O Pele-de-Lobo, pai de reis? Não podia dizer que o seu amigo não o surpreendera. Havia algo de divertido naquilo tudo. E havia também lágrimas, ali, onde ninguém as podia testemunhar; Somerled inclinou a cabeça e deixou-as fluir para as águas impiedosas do oceano, água salgada ao encontro de água salgada. Ele amara Eyvind e Eyvind traíra-o. Amara Eyvind e Eyvind salvara-o. Onde estava a verdade?Para oeste, sempre para oeste, o pequeno barco foi avançando, passando para lá do fim do mundo. Escureceu e os golfinhos dançaram à proa do barco. A noite chegou e as estrelas despertaram na vasta escuridão do céu, um céu que só pode ser visto quando um homem está só numa noite de vigília. Somerled olhou para elas e esperou. Que outra coisa podia fazer senão esperar? A viagem teria de ter um fim.

 

NOTA HISTÓRICA

A história das Ilhas Orcades está escrita nas próprias ilhas. À cultura sobrepõe-se a cultura: casas neolíticas, dólmanes e círculos de pedras, antelas funerárias da Idade do Bronze, utensílios da Idade do Ferro junto de restos de colónias posteriores pertencentes a esse povo esquivo e independente, os Pictos, cujas pedras simbólicas são o seu legado mais espantoso. Depois deles vieram os Viquingues e com a sua chegada o rápido estabelecimento de uma cultura Nórdica nas ilhas. Por volta de 880 d. C, as ilhas Orcades eram um condado nórdico governado por Rognvald de More.A Orkneyinga Saga, escrita por um cronista islandês por volta de1200 d. C, conta a história do estabelecimento dos noruegueses nas Ilhas Orcades. Antes disso, temos apenas restos arqueológicos e referências de fontes mais ou menos credíveis. A Saga não nos diz nada acerca do povo que viveu nas ilhas antes da chegada dos noruegueses. É provável que tivessem o mesmo sangue dos antepassados da Idade do Ferro e, mais recentemente, dos imigrantes Celtas. A evidência arqueológica aponta para uma cultura do estilo dos Pictos. Os seus reis prestavam vassalagem aos reis Pictos de Caithness, mas o seu isolamento geográfico permitia-lhes um certo grau de independência.Portanto, que aconteceu? Um invasor viquingue varreu-os numa batalha, ou estes foram chegando aos poucos, aproveitando a oportunidade para se instalarem num local que oferecia boas terras e mar rico em peixe? A transição para o predomínio do sangue norueguês e estilo de vida norueguês pode ter sido pacífica, os casamentos entre as duas raças podem ter, eventualmente, provocado a absorção de uma cultura pela outra. E isso levanta uma série de questões. Pode uma mudança desse tipo ocorrer sem a perda de algo precioso e insubstituível: a identidade ancestral?

Essas "áreas cinzentas" da História são um chamariz irresistível para os escritores de ficção histórica. Em O Filho de Thor, não tentei recriar a história da primeira chegada dos noruegueses às Ilhas Órcades. Uma grande parte da história, incluindo os elementos mágicos e folclóricos, é produto da minha imaginação. Limitei-me a apresentar uma imagem possível do que pode ter acontecido quando os antigos habitantes das ilhas encontraram os ferozes estrangeiros vindos de leste com a sua cultura inteiramente diferente. Que terão pensado uns e outros? Que terão perdido uns e outros?

Os Folk, portanto, são uma criação minha, assim como o seu Rei, Engus. Mas ambos são baseados no que sabemos sobre a cultura dos Pictos nas Ilhas Órcades. Dei nomes da minha autoria às pessoas e aos locais, já que a maioria actual deles tem derivação norueguesa. A maior parte dos lugares desta história pode ser encontrada num mapa moderno sob outros nomes. Dorso de Baleia, sede da corte de Engus, é Brough of Birsay, onde existem os restos de uma colónia dos Pictos por baixo de umas construções vinquingues. A outros locais do mapa de Somerled são dados os nomes originais, antigos nomes noruegueses, como Hrossey e Hafnarvagr. A Pedra do Povo foi, na verdade, destruída por mãos inconscientes num período qualquer da sua História. A pedra original pode ser vista no Museu da Escócia. A Grande Pedra dos Juramentos, conhecida como a Pedra de Odin, desapareceu, vítima do zelo de um camponês qualquer. Os grandes círculos de pedra, e outros mais pequenos, ainda existem e junto deles pode, possivelmente, ser encontrado o velho dólmen onde Eyvind e Nessa se abrigaram. Pode-se, até, ir ao abrigo onde estiveram sentados a olhar para o ocidente, não muito longe do ponto mais alto de Marwick Head. Pode-se apanhar um ferry e ir a Hoy (Ilha Alta) e caminhar até Dwarfie Stane, o túmulo de pedra que tanto impressionou o perceptivo chefe de guerra Ulf.

Os monges e as suas perigosas viagens a partir da Irlanda são verdadeiros. O estabelecimento precoce de monges nas Ilhas Órcades está documentado; Eynhallow (Ilha Sagrada) é o seu lar em O Filho de Thor, mas, de facto, eles espalharam-se por muitas partes das ilhas e tiveram uma forte influência na cultura orcadiana.

As Ilhas Órcades inspiraram apenas metade desta história. A outra metade baseia-se no grande guerreiro do seu tempo, o berserk (guerreiro nórdico). Este nome deriva, provavelmente, de berserkir, aquele que usa camisa. Um outro nome para esses guerreiros era uljbednar, Pele-de-Lobo. Essa pele de lobo, provavelmente, distinguia esses homens como a força de elite de um rei, ou de um nobre.O excelente livro de Paddy Griffith, The Viking Art of War (Greenhill Books, 1995) foi o responsável pelo despertar do meu interesse pela natureza dos berserks. A ideia generalizada de que tais soldados eram psicopatas, imbecis que mordiam os seus escudos e que corriam nus para o combate está pouco de acordo com a descrição que se faz deles na literatura da Saga, na qual são sempre homens altamente respeitados e que, tal como outros viquingues, davam escapadelas até casa para ajudar nas sementeiras, nas colheitas, ou para fazer um filho no intervalo dos seus deveres militares. Há referências a bandos de irmãos berserk contratados em massa, e outras sugerindo que substâncias alucinógéneas podem ter desempenhado um papel na coragem insane e quase hipnótica dos berserk.Havia, também, o aspecto religioso: os berserk eram, geralmente, seguidores de Odin, o mais traiçoeiro dos deuses, e combatiam em obediência a um voto que lhes garantia a glória depois da morte. Em O Filho de Thor, o meu bando de guerreiros presta vassalagem a Thor, cuja natureza honesta o torna mais adequado para deus de soldados.Tendo decidido que o meu herói seria um guerreiro berserk, dei, depois, com a minha história a explorar o tema da lealdade e do juramento. Para um homem do tempo dos Viquingues, um juramento de sangue era uma coisa absolutamente sagrada, tanto quanto uma promessa feita a um deus. Trair esse juramento significava perder a honra; significava ultrapassar o que era considerado aceitável. Eyvind enfrenta um dilema que o põe totalmente à prova. Em tais circunstâncias, só um homem de uma bondade extrema é capaz de encontrar uma solução ao mesmo tempo compassiva e honrosa.

 

                                                                                Juliet Marillier  

 

                      

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