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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O FILHO DO SHEIK / E. M. Hull
O FILHO DO SHEIK / E. M. Hull

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O FILHO DO SHEIK

 

O vento da madrugada soprava rijamente no deserto.

Três cavaleiros, envolvidos em albornozes rigorosamente fechados, as costas voltadas às correntes atmosféricas, trotavam pela obscuridade, procurando passagem pelo chão pedregoso que se ocultava manhosamente debaixo de espessa camada de areia movediça, tendo aqui e ali sinais de patas de cavalo, o que constituía verdadeira armadilha para os incautos e suas montadas.

Não havia caminho que permitisse passagem na treva.

A despeito, porém, da insofreguidão dos cavalos, que mordiam nervosamente os freios e sorviam o ar em longos haustos que lhes traíam a inquietação e apesar do cansaço que se estampava no rosto de dois dos membros da comitiva, esta pôs-se decididamente em marcha.

O chefe do grupo, embuçado num negro albornoz, cujas extremidades pendiam de cada lado dos arreios e que pareciam emergir imperceptivelmente da lustrosa negrura do cavalo, era quase invisível na escuridão, enquanto os seus companheiros, que o seguiam a poucos passos, pareciam dois esguios espectros.

Avançavam, milha por milha, dando aos animais plena liberdade na escolha do caminho pelo perigoso trilho, confiando mais no instinto das cavalgaduras do que nas suas próprias sugestões.

Subitamente cessou o vento, e fez-se um silêncio tão profundo que o mais imperceptível ruído podia ser facilmente ouvido.

Somente o incessante bulício da areia e o ruído surdo das pedras em contacto com as ferraduras quebravam o silêncio. Mas a calma passou e o vento voltou de novo a soprar, agora mais frio. Os dois árabes que fechavam a comitiva apertaram mais os albornozes, entre pragas e imprecações, e inclinaram-se para o pescoço dos cavalos.

O chefe, entretanto, mostrava-se indiferente tanto ao rigor da temperatura como aos murmúrios dos camaradas. De cabeça erecta, insensível aos grãos de areia que lhe açoitavam o rosto, parecia esquecido dos companheiros, imerso em profundos pensamentos que lhe deveriam ser amenos, pois trauteava entre os dentes uma pequena e alegre canção francesa. O cântico era muito baixinho, o que não impedia, contudo, que as notas atingissem o ouvido atento dos dois homens que o seguiam.

Um deles puxou as rédeas do cavalo e tocou levemente no outro.

.- Alá! - murmurou. - Ele canta!

- É bom ser-se jovem e amar .- disse o outro sentenciosamente.

Nestas palavras não se podia vislumbrar o menor toque de ironia, pois eram repassadas de doce simpatia, tanto mais que eram proferidas por quem poucos anos mais contava que o cantor.

A obscuridade do ambiente tornava-se cada vez mais densa. Pouco a pouco, porém, o negrume da noite cedia aos clarões da manhã de um novo dia. A Estrela da Manhã começava já a espargir a sua luz ainda indecisa, como se a timidez a fizesse receosa da sua força, mas fortalecia-se gradualmente, expondo à vista a total desolação do cenário na fria apoteose da madrugada.

O áspero deserto desenrolava-se em solitária grandeza - um oceano de areia semeado de pequenos outeiros pedregosos, que corriam em cadeias diagonais de norte a sul. Na meia luz, aqueles montículos assumiam proporções fantásticas.

O dia clareava. No firmamento as estrelas empalideciam e, uma a uma, iam morrendo. Depois, no horizonte longínquo, um traço rubro de luz explodiu, cresceu e adensou-se até se tornar semelhante a uma chama de fogo que esbraseasse o céu.

Era uma orgia de cores. Do seu leito carmesim o Sol surgia como imensa bola de oiro. Com a sua vinda, cessou o vento matinal.

Os árabes puxaram as rédeas e apearam-se. A oração matutina que os dois camaradas resmungaram foi apressada e curta, enquanto o guia, conquanto não se ajoelhasse, se limitava a apoiar a cabeça no cavalo negro em que viajava, que, por sua vez, acariciava com o focinho o peito do dono, traduzindo dessa maneira rude o afecto que lhe dedicava.

Cinco minutos depois estavam todos novamente erectos na sela, e galgavam a primeira orla de outeiros; os cavalos a galopar corajosamente, na ânsia de vencer distâncias.

Na luz matinal, o deserto assumia um aspecto menos desagradável: misterioso ainda e alguma coisa assustador; em razão da sua vastidão desolada respirava entretanto uma estranha atmosfera de quietude, em curioso contraste com a aparência selvagem.

Para os três homens que percorriam a movediça superfície, o deserto era um livro aberto. Desde a mais tenra infância se haviam identificado com ele, de maneira que o conheciam bem através das múltiplas fases de suas súbitas transições - toda a calma sorridente e as subitâneas fúrias tempestuosas. Nenhuma das suas feições lhes escapava, quer quanto aos elementos, quer quanto ao ponto de vista do homem.

O conhecimento que tinham era filho da experiência. Naturais de uma região onde os perigos ocultos se dissimulam perfeitamente, tomavam certas precauções, mas nunca mostravam inquietação, aceitando o inevitável com a indiferença fatalista que é a herança da raça. Soberbamente montados e bem armados, pareciam preparados para todas as contingências e desinteressavam-se das consequências que porventura lhes pudessem advir. Aliás, naquele momento não se lhes divisava motivo algum para apreensões. Tanto quanto os olhos lho permitiam, o deserto estava ermo.

Um terreno despovoado, evitado pelas caravanas e onde as pegadas dos nómadas não eram frequentes nem recentes, por não existir água nem vegetação. Plana, esta parte da região não apresentava nenhum local em que um inimigo pudesse ocultar-se com vantagem, posto que ali existissem desfiladeiros onde um regimento pudesse facilmente entrincheirar-se. Mas o temor de uma emboscada, se existia, não parecia perturbar nenhum dos três cavaleiros.

A paz inundava-lhes o ser enquanto se aproximavam do termo da jornada. Os cavalos, altos e imponentes, alimentados de modo a poderem vencer impàvidamente as peripécias da viagem, correspondiam galhardamente aos esforços que lhes exigiam. Firmes um atrás do outro, corriam o deserto como se fossem insensíveis à fadiga.

E os árabes, como centauros, cavalgavam-nos magnificamente. Imóveis nas selas, com as dobras dos albornozes a ondular-lhes ao redor do corpo, os rifles de prevenção nos joelhos, pareciam tão incansáveis e orgulhosos como os altivos animais que montavam.

Na ilusória atmosfera, os vales pareciam mais altos e distantes do que realmente eram, mas havia momentos em que surgiam mais próximos e de proporções atenuadas.

Os dois camaradas colocaram-se ombro a ombro com o chefe: era o primeiro vale que atingiam, com alegria também das cavalgaduras, que se detiveram subitamente junto da base de uma rocha alcantilada que ali surgia, abrupta.

O chefe apeou-se e fixou os olhos durante momentos na direcção percorrida. Aparentando vinte anos de idade, alto e delgado, largos ombros que denunciavam físico desenvolvido, a sua aparência tinha muito de arrogante e solene. O rosto agradável, magro e bronzeado pelo sol, limpo e escanhoado, disfarçava uma barba firme e obstinada. A boca era apertada, denotando um carácter um tanto cruel. Sobrancelhas negras e carregadas davam-lhe um ar carrancudo, sombreando-lhe dois olhos azulados que naquele momento se mostravam sombrios, pensativos.

Expressões várias lhe transmudavam a fisionomia. Os olhos estavam cravados na vastidão do deserto. Nada de concreto lhe povoava a mente. Dava ideia de que no seu cérebro se travava um conflito entre uma dúvida e uma incerteza, que finalizaria por uma decisão muito firme.

Encolhendo os ombros, como a disfarçar uma lembrança desagradável, repuxou o pesado albornoz e, rodando nos calcanhares, foi juntar-se aos seus homens, que o aguardavam com ansiedade, entretendo-se em amistosa palestra.

Dos companheiros, um era alto e imponente como o chefe e o outro mais baixo e pesado, mas uma inconfundível similaridade de aspectos e de expressão mostrava que ambos eram irmãos.

Os dois desviaram-se à chegada do chefe e o mais baixo ofereceu-lhe tâmaras de uma sacola presa nos arreios. O jovem recusou a oferta. Atirou-se à areia e, encostando os ombros numa pedra, tirou do bolso uma cigarreira de oiro e acendeu um cigarro.

Quase meia hora se demorou a fumar, guardando um silêncio que os demais julgaram prudente não quebrar. Mas os olhos dos outros denunciavam a inquietação íntima que lhes sombreava a mente, exprimindo o constrangimento que assaltava cada um deles a seu modo - o mais velho, imóvel, carrancudo como o chefe, enquanto o outro denotava desassossego, brincando com pedrinhas que havia guardado e dirigindo para as rochas um olhar de interrogação, como se temesse que lhe interrompessem a quietude.

Por último o jovem levantou-se e fez um sinal a pedir o seu cavalo. Mas o gesto que lhe acompanhou a ordem paralisou-se-lhe quando viu os homens voltarem, trazendo também os próprios animais.

Fez um gesto de desaprovação.

- Esses animais não eram necessários. Vou só - disse com acento peremptório, galgando os estribos que o mais velho segurava.

- Esperar-me-á aqui, Ramadan, está entendido! Você também, S’rir - ordenou ao mais novo.

A isso seguiu-se uma tempestade de protestos, um dueto de explosões de desagrado que exprimiam franca revolta contra a ordem dada. Nada, porém, demoveu o chefe da decisão anunciada. Montado e sofreando com dificuldade o animal impaciente, parou perto dos camaradas excitados, rebeldes e, visivelmente incomodado, perdeu a paciência.

- Calem-se! - gritou furibundo. - Quem aqui dá ordens sou eu ou são vocês? Ouviram bem ou preciso repetir: «Vou sozinho! Vou sozinho!»

Ramadan levantou a mão do estribo que ainda segurava.

- Iremos também - obtemperou.

- E por que motivo?

Os olhos do homem nadavam-lhe nas órbitas, mas não se deu por achado.

- Ameaça-o um perigo - resmungou com relutância, como se as palavras lhe escapassem da língua.

Durante segundos, os olhos do chefe relampejaram. Mas, como o vendaval que passa, a ira transmudou-se-lhe num sorriso quase infantil.

- Perigo, meu tímido rapaz, onde? De que perigo queres guardar-me, Ramadan?

- Velo pela sua segurança e não pela minha, senhor - respondeu Ramadan com calor.

- Minha segurança ou sua é tudo tolice. Bem, Ramadan, basta! Vou sozinho. Espere que eu volte.

- E se não voltar?

O chefe esporeou o cavalo, fazendo-o erguer-se perpendicularmente.

- Se não voltar - gritou zombeteiro - procure-me no céu ou no inferno, pois que num ou noutro lugar você entrará à minha procura.

Com um adeus com a mão partiu, no meio duma nuvem de pó e areia.

Os dois irmãos contemplaram-no até que uma saliência das rochas o furtou às suas vistas. Entreolharam-se e, enquanto o mais velho soltava pragas e maldições, o mais moço sorria enigmaticamente.

- Se algum mal lhe suceder, que será dele? - interrogou Ramadan subitamente.

O sorriso de S’rir transformou-se num trejeito em que não havia a mínima alegria e com um gesto muito significativo respondeu:

- Diz antes: que será de nós?

Daí a pouco, porém, encolheu os ombros com real ou fingida indiferença, e voltou os olhos na direcção do Sol.

- Três horas, de acordo com o que ele nos disse na última noite - observou com a maior calma.

- Seja! Três horas o esperaremos, mas, meu irmão, se em três horas não voltar, teremos de ir procurá-lo no céu ou no inferno. Entretanto, vou dormir.

Com um leve sorriso, puxou as dobras do albornoz, com que cobriu a cabeça, e deitou-se na areia, deixando o seu menos filosófico irmão às voltas com um sentimento de responsabilidade que, pouco pesado durante alguns anos, ultimamente se tornara ameaçador para a paz do seu espírito.

Além, nas dobras das rochas que o ocultavam dos seus aflitos companheiros, o ousado cavaleiro corria no grande corcel negro sem que a menor inquietação lhe anuviasse a fisionomia. Esquecido da insistência dos seus homens, na inconsciência da sua rígida têmpera, só se lembrava da sua mocidade, da sua força e dos prazeres que o esperavam, e assim demandava, rédeas soltas, a segunda base dos alcantis, que, como a precedente, se projectava adiante por uma ou duas milhas de areia.

Nos dois braços de rocha havia um anfiteatro natural, que se assemelhava a uma grande ferradura: dois dos lados apertavam-se na curva dos montes e o terceiro dava para um deserto aberto. Avermelhada pelo sol da manhã, a massa denteada da rocha erguia-se altaneira, de pé, num relevo apertado que desafiava o azul-claro do céu sem nuvens, projectando sombra para a areia que, na base, o vento agitava.

O local era um cenário de grandeza e amenidade quase sem paralelo, mas o pensativo cavaleiro não tinha olhos para extasiar-se na selvática majestade do espectáculo. Lançando olhares à direita e à esquerda, montado com o habitual aprumo dos árabes, não lhe sobrava outra preocupação que não fosse o objectivo da jornada.

Desfrutando irreprimida liberdade, que era a sua máxima aspiração, a fim de desembaraçar-se de sentimentos que o acompanhavam desde a infância, o rosto iluminou-se-lhe e os olhos pensativos brilhavam com ardor.

Desde a partida, só agora cantava com voz fresca de barítono aquela melancólica canção de amor, muito conhecida de todo o coração apaixonado habitante dos estados bárbaros:

- «Chora, chora, coração quebrantado» - trauteava plangentemente, à maneira dos seus patrícios, candidamente esquecido de que tais palavras dificilmente se lhe poderiam aplicar, a ele que, longe de ser um desanimado, requeria da sua montada o máximo que lhe poderiam dar as patas para que o levassem aos pés de um ente amado.

Pensou que era necessário ser prudente e a doce canção morreu-lhe nos lábios ao avistar a raiz do monte, que assinalava o fim da viagem.

Havia no labirinto daqueles outeiros alguém que o esperava - a mulher esbelta, virginal, dos seus sonhos. Mas estava ali em terra estranha e nada mais era que um forasteiro e cumpria-lhe por isso proceder com a maior prudência. Quem sabia que ouvidos, que não os dela, estariam atentos à sua chegada?

Dirigindo o cavalo para um caminho que circundava a base do outeiro, trotou vagarosamente até chegar à face pétrea que formava o elo meridional da elevação.

Aparentemente inacessível, havia ali um estreito desfiladeiro, porventura cortado por antigo ribeirão que havia muito secara.

Rebentando obliquamente, disfarçada por pedregulhos caídos, era difícil encontrar a boca da passagem, mas ele estava ali e não lhe eram possíveis hesitações.

De resto, o grande cavalo negro também tinha boa memória, pois que, havendo-se o cavaleiro apeado para tentar com ele atravessar a sombria passagem, recuou a tremer, como assaltado de grande terror. Foi somente após longa e teimosa luta que o animal consentiu em avançar, os olhos desmesuradamente abertos espreitando lado a lado a cetinosa capa molhada de suor, e estremecendo nervosamente enquanto o amo o dirigia e impelia com paciência que os árabes raramente revelam.

Embrenhando-se pelos penhascos, tropeçando seguidamente naquele terreno pedregoso, prosseguiram através dos intrincados ziguezagues do leito do rio, até que uma curva abrupta lhes revelou um vale encoberto que se assemelhava a uma algibeira no coração dos montes. Aí os muros que rodeavam o vale eram menos espessos e no rigor do dia o sol penetraria para aquecer a raquítica vegetação que, aderindo teimosamente à vida, a espaços crescia entre os rochedos.

Liberto por fim do terrificante desfiladeiro, os nervos do animal acalmaram-se e ele amansou, enquanto o dono, acariciando-o com as mãos e a voz, o amarrou a uma tamareira e aí o deixou com uma carícia de despedida.

Atravessando a pequena depressão a passo largo, o homem partiu em demanda da direcção oposta do valado. Era caminho mau, onde as pedras escorregadias e o chão frequentemente lhe fugiam sob os pés. Mas, como um gato em perfeitas condições físicas, ele subia firmemente, amparado pelo largo albornoz e pelas rijas botas.

Parou somente uma vez durante a caminhada, para melhor acomodar o pesado revólver oculto no cinto que lhe envolvia o abdómen. O contacto da arma fez-lhe lembrar os homens que o esperavam onde os deixara. Sorriu à lembrança da relutância com que o haviam deixado partir sozinho, da inquietação que mostraram quando, no dia anterior, lhes falara dos seus planos.

Sacudiu a cabeça com impaciência. Não lhes cabia discutir os seus passos e fazer oposição aos seus desejos, pensou desdenhosamente, entreabrindo os lábios com ironia. Nunca antes o haviam contrariado. Em todas as estúrdias infantis e em todas as peripécias da sua precoce virilidade, sempre lhe tinham sido auxiliares voluntários, verdadeiros protectores. Como se explicar a nova atitude que assumiam? O tempo, porém, não lhe sobrava agora para cuidar desse assunto, que relegava para quando novamente se lhes juntasse. Naquele momento, contentava-se somente em pensar nas coisas agradáveis que lhe povoavam a mente.

Seguindo os traços apagados de um velho trilho que serpenteava o escarpado declive, atingiu finalmente o cume do outeiro, onde havia um pequeno planalto, e de pé, durante momentos, contemplou o local.

À sua esquerda, o terreno sumia-se pontiagudo, desviando-se para uma estreita garganta de que emergiam espinhaços de rocha.

Voltando-se para a direita, olhava o deserto. Poucos passos o levariam a uma suave descida que se entranhava por vastos pedregais e que terminava na garganta que em direcção ao norte dava acesso a montes como aqueles nos quais penetrara no sul.

Esperava encontrá-la no planalto, mas aquele tabuleiro de terra apresentava-se-lhe vazio de vida.

Sacudiu de novo a cabeça impacientemente, no ardor da sua índole por demais ardente. Quão distante ela o imaginaria, para responder à mensagem ambígua que lhe mandara? Tinha galopado furiosamente durante a noite e devia passar o dia à procura de uma mulher que se havia rebaixado em olhar? Com o cenho carregado hesitou por momentos entre o desejo de seguir para diante e o de retroceder, vencido pelo orgulho.

Sorriu grotescamente. Castigá-la seria castigar-se a si próprio e, tendo vindo de tão longe, de maneira alguma poderia pensar em voltar sem a ver.

Arremessando para trás o albornoz, para dar liberdade aos braços, procurou vencer a subida do caminho, com a mão no gatilho do revólver que trazia ao cinto.

Livre do planalto, o trilho tornava-se mais e mais invisível, porque os pedregais existentes de cada lado pouco permitiam a visão da sua direcção. Com os sentidos firmemente alerta, ele vadeou rápida e silenciosamente pelas reentrâncias e prosseguia através do vale, quando um ruído inesperado o fez deter-se instantaneamente, com os ouvidos atentos.

Era um som metálico que ecoava nas rochas, à direita.

Voltou-se para a direcção de onde surgia aquele ruído e procurou segui-la palmilhando os pedregais mansamente, e assim chegou a um pequeno recesso semicircular, existente entre as paredes do rochedo. Do lado oposto, no rasgão da face penhascosa, distendia-se-lhe uma vista aberta do deserto, como se fosse a janela escancarada de um edifício em ruínas.

Oculta naquele desvão natural, estava ela sentada - delgado esgalho de uma rapariga que mal parecia haver saído da infância.

Vestida com um saiote debruado e uma curta jaqueta, com uma capa a envolver-lhe o busto e uma touca a cobrir-lhe a pequena cabeça, ela caminhava inconscientemente, prendendo um guesbo nos lábios.

Desatenta a tudo que a cercava, toda a atenção se lhe fixava numa cesta de que emergiam a cabeça estreita, achatada, e o corpo sinuoso de uma grande serpente. Coleante, a fazer artifícios com a cabeça, o réptil respondia, fascinado, ao ritmo dolente de uma terna melodia que a jovem arrancava de uma pequena flauta árabe.

Por instantes, o rapaz contemplou as evoluções do réptil e o busto flexível da juvenil tocadora.

Falou então:

- «Salamalik».

A saudação fora dita em voz grave, como tartamudeada.

Com um irado assobio, a cobra subiu rapidamente à borda da cesta e sumiu-se entre os rochedos, enquanto a rapariga saltava para perto do recém-chegado e o encarava com grandes olhos espantados.

Na atitude de um animal selvagem em fuga, ela parecia meio alegre e meio aborrecida com a chegada dele e, como se lhe aproximasse, voltou-se-lhe com um pequeno gesto petulante e murmurou em tom de reprovação:

- Demorou-se muito.

- Mas vim - respondeu ele docemente.

Decididamente, aquela saudação não era a que ele esperava, e chocara-lhe o temperamento apaixonado.

- Porque veio esperar-me aqui, quando lhe mandei dizer que me esperasse no planalto, de madrugada? - perguntou abruptamente.

Com feminina intuição ela percebeu que não lhe seria conveniente replicar dizendo a verdade, que a madrugada a encontrara tiritante de frio e medo no cume do monte, que a superstição popular assinalava como o habitáculo de duendes, e o terror a havia impelido para os rochedos, onde encontrara agasalho amigo.

Sacudiu a cabeça e afastou-se um pouco dele.

- Aqui é mais seguro - murmurou com voz fugitiva, mas logo os olhos o procuraram apaixonadamente.

Dirigindo-lhe um olhar carrancudo, como se sentisse um protesto da arrogância natural dos temperamentos juvenis, ele devorou-lhe o olhar em que havia um misto de respeito e de súplica, o que lhe fez sentir uma emoção que suavizava o golpe do sofrimento que lhe sobreviera.

As suas mãos delgadas, trigueiras, agarravam-lhe os ombros. Era a primeira vez que a tocava e o coração pulsou mais quando os dedos apertaram aqueles ombros femininos.

- Jasmim! Jasmim! - exclamou, colhendo-a nos braços.

Novo como era, sempre a tratara com amor e era assim que queria tratá-la naquela manhã, mas os factos haviam-lhe transtornado esse desejo. Já agora, o íntimo contacto com o seu corpo esplêndido de mocidade despertava nele o conhecimento de alguma coisa mais profunda e estranha, diferente do que havia sentido até então.

Devorava-a com o olhar abrasado, e apertava-a mais e mais contra o peito, mas o plano que havia arquitectado durante toda a noite parecia-lhe agora de todo impossível. Ele próprio não se compreendia e não tentava sequer dominar o impulso que o constrangia. Só uma coisa havia para ele bem real: era o sentimento de um desgosto íntimo que lhe sobreviera. E lutando consigo mesmo enquanto a sentia estremecer contra ele, o flexível corpinho a ele unido naquele abraço, podia perceber o terror que lhe perturbava os grandes e límpidos olhos.

Com um tremendo esforço, conseguiu repelir o desejo que quase o dominava.

- Porque receia tanto, minha tímida pequena? - murmurou. - O meu amor é tão mau que a perturbe assim? É tão horrível o meu beijo?

E, inclinando a cabeça rapidamente, pousou em cheio os seus nos lábios rubros da jovem.

Era essa uma forma de carícia a que os árabes não estão habituados e ele não estava preparado para o grito agudo que ela soltou, nem para a histérica torrente de lágrimas que manava dos seus olhos.

- Alma da minha alma, magoei-a? - perguntou aflito.

Durante algum tempo, ela não pôde responder. Cedendo aos seus abraços, por fim ela apertou-o também e cobriu o rosto com o albornoz, chorando como se o coração lhe estivesse a ponto de rebentar. Vencido por alguma apreensão que lhe fosse superior ao entendimento, ele esperou em silêncio a explicação de tudo aquilo. Finalmente, ela levantou a cabeça e encarou-o com timidez.

- Perdoe-me, senhor - ciciou num longo suspiro. - Não me magoou. É que antigamente, quando eu era ainda criança e feliz, era assim que me beijavam.

Ele encarou-a com um inquieto franzir de sobrolhos.

- Que te beijavam, quem? - perguntou com o acento da sua anterior arrogância.

A jovem sacudiu a cabeça como se não quisesse ou não pudesse esclarecer-lhe esse ponto.

- Esqueci-me - respondeu evasivamente, e desviou dele os olhos.

Ele desvaneceu a sua traiçoeira curiosidade, disposto a não continuar a tratar de um assunto que positivamente nada tinha que ver com a familiaridade que entre eles nascera naquele momento. Não havia motivo para ciúmes em simples reminiscências da infância.

De mãos dadas, o juvenil par subiu a uma saliência da rocha, onde ambos se sentaram, com o olhar perdido no deserto.

Longo tempo se conservou ele em silêncio, a face descansada na palma da mão, os cotovelos apoiados aos joelhos, estudando-a como se a estivesse a ver pela primeira vez.

A jovem suportava aquele exame com a sua característica resignação, sentada calmamente ao lado dele, os macios dedos fechados em redor dos joelhos apertados um ao outro, esperando serenamente que o companheiro sentisse prazer em dirigir-lhe a palavra.

Era uma linda face pequenina a que ele contemplava, estranhamente simples e perfeita. Opulentos cabelos negros como a noite sombreavam feições muito regulares e bem talhadas: nariz aquilino, a boca pequenina, de traços assaz delicados, e olhos negros discretamente expressivos.

O seu rosto ainda parecia tomado de espanto, até que moveu mansamente os olhos, as maçãs do rosto enrubescidas.

As suas mãos trigueiras procuravam subtilmente o jovem.

- Agrado-lhe? - aventurou ela com ar desconfiado.

Com um sorriso meio irónico e meio terno, ele atraiu-lhe a cabeça e encostou-a ao peito.

.- Você afinal não é má - disse ele.

Mas a luz que brilhava nos olhos negros satisfê-la e durante alguns momentos ela permaneceu quieta, brincando com as borlas douradas do albornoz, com um sorriso lânguido ao ouvir o relato fortemente fantasioso dos perigos da jornada nocturna, com que ele agora a distraía. Mas a sua atenção era apenas aparente, pois que os pensamentos lhe esvoaçavam na mente, tanto que interrompeu a narrativa, encarando-o com firmeza.

- Mas, finalmente, quem é o senhor? Nunca mo disse. Ignoro-lhe até o nome.

Os lábios do jovem entreabriram-se num meio sorriso.

- Sou aquele que a ama, ó filha da curiosidade!

Estimulada pela evasiva da resposta, ela persistiu:

- Diga-me o seu nome!

O sorriso fugiu dos lábios do jovem e o seu rosto tornou-se um pouco sério.

- Para quê? Que lhe adianta saber o meu nome? - resmungou. - É coisa insignificante, creia-o, para passar de lábio em lábio, para ser murmurado pelos cantos das casas e chegar ao mercado, onde todos começarão a dizer que isto e aquilo se passou de tal modo!

- Que mercado existe aqui? - replicou ela, apontando para o deserto - e eu, note bem, eu não ando a cochichar pelos corredores das casas - acrescentou, com altiva dignidade. - É por mim, somente por mim, que desejo saber o seu nome.

E como ele ainda hesitava, ela lançou-lhe os braços ao pescoço, baixando-lhe a cabeça, com os olhos brilhantes, fazendo-lhe o ardoroso apelo que lhe bailava nos lábios vermelhos.

- Diga-me - pediu ternamente.

Ele não respondeu logo. Os seus negros cílios apertavam-se-lhe carrancudos, a boca obstinadamente fechada, encarando-a profundamente, como se estivesse a sondar a razão oculta de tamanha insistência. Então, com um leve sorriso desviou-a um pouco, acendeu um cigarro e ainda a segui-la com os olhos através da fumaça, disse finalmente:

- Chamo-me Ahmed.

Um olhar de medo sombreou o rosto da rapariga.

- Ahmed! - repetiu vagarosamente. - Ouvi falar num grande senhor que existe além das montanhas do Sul - um príncipe da tribo de ben Hassan - que tem esse nome. Acaso será o senhor esse príncipe?

Surpreso, ele lançou-lhe um olhar perscrutador que disfarçava por detrás de indolentes olhos semicerrados e depois sorriu displicentemente.

- Quem sabe? - respondeu, encolhendo os ombros. Durante algum tempo fumou em silêncio; depois inquiriu:

- Porque o pergunta? Que ouviu dizer de Ahmed ben Hassan?

Estas palavras disse-as ele com indiferença aparente, sacudindo a cinza do cigarro numa pedrinha que sobressaía da rocha.

Um leve tremor perpassou pelo corpo da rapariga, que se arrastou para um pouco mais longe, espreitando nervosamente para um lado e outro, como se a assaltasse o temor de ser ouvida por qualquer testemunha invisível.

- Sempre ouvi dizer que Ahmed é um demónio - aventurou ela com receio, os grandes olhos presos de inquietação. - Não é um verdadeiro árabe, nascido de mulher, mas um vampiro que todos temem porque a sua força e poder estão acima de todos os mortais. Ele governa as suas tribos com feitiços e encantamentos, galopa mais que a tempestade e os seus olhos são rajadas semelhantes aos raios que riscam os céus em dias de tormenta. E, além disso, é imortal, pois já houve muita gente que tentou matá-lo e não pôde. É isto o que dele tenho ouvido e mais não posso dizer - declarou, horrorizada, a tremer de terror supersticioso, procurando ler no rosto impenetrável do seu interlocutor. - O senhor está bem «certo» de não ter com ele qualquer parentesco?

Sorriu mais uma vez e segurou-a firmemente nos braços.

- E se assim fosse, não mais me amaria?

Durante segundos ela hesitou, estremecendo. Depois um suspiro profundo lhe explodiu dos lábios.

- Não! Não! - exclamou, agarrando-o. - Homem ou demónio, amo-o como nunca amei.

A pequena capa que a envolvia caiu ao lado e o cheiro dos seus cabelos negros era como um tóxico subtil. Ele curvou-se para ela, triunfante e jubilosa no esplendor da sua beleza.

- Jasmim, meu amor, minha flor da alegria, jamais vi

uma rapariga tão linda!

Estas palavras mergulharam no silêncio e, atraídos para um local um pouco mais adiante, sentaram-se, a contemplar os olhos um ao outro, perdidos no abismo da sua felicidade. Mas através da sua rápida e tempestuosa explosão de amor, ele refreava ainda os lábios, não parecendo ter pressa de fazer revelações e elucidar o mistério que envolvia a sua personalidade.

E como se se contentasse somente com o conhecimento do seu amor, ela não fez mais nenhuma tentativa para penetrar-lhe o segredo.

Tão silenciosos estavam que os próprios passarinhos lhes ignoravam a presença e um brilhante lagarto verde desceu da rocha e aproximou-se deles com a máxima naturalidade.

Os causticantes raios do sol não lhes davam noção alguma da passagem do tempo e eles não davam acordo dos longos momentos que decorriam pesadamente. Ahmed estava esquecido dos seus homens, dos perigos que abundavam naqueles montes, esquecido de tudo que não fosse aquela rapariga sentada ao pé de si, com as mãos delgadas pousadas no colo.

Absorto, os seus ouvidos nada mais ouviam que a música das suas doces palavras, e os seus olhos ardentes nada mais viam que o encanto daquele talhe delicado.

Foi ela que, olhando para o que estava por detrás dele, viu alguma coisa. Foi ela que soltou o grito agudo que o fez tropeçar aos seus pés quando uma bala foi disparada contra a rocha, seguida logo de uma segunda que lhe passou perto da cabeça. Tirando o revólver da cinta, ele empurrou a jovem para trás de si e procurou ver os assaltantes.

Mas, ao voltar-se, uma chama de fogo crepitava pela sua testa e ele cambaleou. A sua arma estava descarregada.

Viu, em rápido relance, três vultos altos, vestidos de branco, e sentiu que o sangue lhe escorria do rosto. Cambaleou, dando um passo à frente, e lançou-se por um buraco da rocha. Era um recôncavo muito aberto, onde o ombro direito bateu na ponta de uma pedra, quebrada ou deslocada, que ele procurou remover com os dentes, enquanto com a mão direita procurava a arma, que caíra para trás. Atordoado pelo choque e sofrendo forte dor, levantou-se sobre os joelhos, quando uma nova pancada o atingiu na cabeça e o fez debater-se. Como algo que se parecia com o bramido do mar nos ouvidos, pareceu-lhe que caía vertiginosamente no negror de um abismo.

Com abundantes náuseas, lutou para voltar à vida. Teve a princípio consciência somente de uma dor fortíssima na cabeça. Uma sede febril atormentava-o.

Um mero sentimento de perigo fê-lo tentar mover-se, mas o primeiro esforço prostrou-o, com vertigens na cabeça, o corpo a suar horrivelmente.

Por momentos ficou quieto, com os olhos cerrados, esforçando-se para recobrar o domínio de si mesmo e vencer uma como nuvem que parecia toldar-lhe o cérebro. Não tinha lembrança do que se passara e até a sua vida lhe parecia um mistério de que somente uma coisa emergia clara e distinta. Lembrava-se do seu nome. Era Ahmed ben Hassan e alguém lhe havia dito que seu pai era um demónio.

Mas isso era uma estúpida crendice. Se fosse verdade, como poderia sua mãezinha, que conhecia bem e sabia ser de facto um anjo, ter casado com tal demónio? E, ainda, quem era essa «mãezinha» e quem era verdadeiramente Ahmed bem Hassan?

Pensar era sofrer, mas mesmo sofrendo ele via-se às voltas com problemas angustiosos que a cabeça pesada recusava resolver, até que percebeu que lhe era de todo impossível pensar e uma irritação desesperada se apoderou dele e o deixou exausto.

Sobreveio-lhe o medo na forma aguda de verdadeiro terror, medo de si mesmo, medo da treva mental que o envolvia. Com um grito estrangulado recaiu na inconsciência.

Uma ou duas horas mais tarde, despertou na plena posse dos sentidos.

Sentindo dores por todo o corpo e devorado de sede, o seu primeiro desejo foi beber água. Mas o local em que se encontrava era completamente seco. Mesmo, porém, que ali existisse água, compreendia que lhe seria impossível alcançá-la porque tinha feridos os pés, as mãos e os ombros, o que o tornava de todo inerme, incapaz de qualquer movimento.

O seu rosto estava duro e embebido do sangue que gotejava da ferida que fizera na testa, e o rapaz sentia um gosto salgado quando alguma gota lhe atingia os lábios secos, fazendo-o reviver os acontecimentos que se haviam desenrolado pela manhã.

Soltou um gemido e durante algum tempo debateu-se desesperadamente, sentindo a morte no coração. Logo, porém, compreendeu que qualquer esforço que fizesse seria malbaratar inutilmente o que lhe restava de energia e tratou de aquietar-se, o rosto ainda convulsionado. Não era em si que pensava. Poderia aguardar a sua sorte com a estóica indiferença que nele era, em parte, uma herança e em parte o resultado de um longo treino nas experiências da vida. Viver ou morrer era coisa que naquele instante pouco lhe importava. Era a jovem que lhe ocupava a mente. Era por ela que estava a sofrer muito. A que perigo a havia induzido a sua loucura? Em que situação desesperada estava ela naquele momento, enquanto ele ali estava amarrado como um animal impotente para a socorrer!

- Jasmim! Jasmim! - anjo da minha alegria!

Outra mão, mais rude e grosseira que a dele, seria a eleita para cultivar a tenra flor que ele pensara acarinhar no jardim do seu amor!

Louco, três vezes maldito, tinha sido!

Fora por sua causa que ela havia afrontado os horrores daqueles mal-afamados montes. Fora a sua tola arrogância que o fizera partir sozinho para a encontrar, desprezando a escolta cuja vigilância teria evitado a catástrofe que havia sobrevindo tão súbita e tragicamente.

Em si confiara, mas ei-lo ali impotente, havendo falhado miseravelmente, quer como homem quer como amante. Ela olhara para ele, a fim de que a protegesse, e na cega confiança do seu egoísmo ele havia descurado até os rudimentos daquela prudência que aprendera desde a infância. Confiado em si, tinha-se ocupado somente do seu amor, e deixara-se apanhar, como um rato imprudente que cai numa ratoeira.

Remorso e vergonha apoderavam-se dele e um temor mortal fazia-o agitar-se furiosamente até que o sangue borbotou da ferida da cabeça e ele caiu da posição em que estivera, meio sentado, e ficou a contorcer-se em atroz agonia mental, como se o seu espírito torturado conjurasse mil quadros, mil possibilidades de um arremesso ao reino da loucura, - Jasmim! - balbuciava com lábios trémulos. - Meu doce amor! Jasmim!

Até pouco antes, ela fora para ele mera distracção passageira, uma diversão que buscava até que perdesse o interesse, e eis que não podia agora compreender a vida sem ela!

A filha de um mouro errante, um encantador de serpentes, fora pelo destino colocada no seu caminho, certa vez que viajava pelo norte longínquo do seu território. Acampando uma noite nas imediações de uma estreita vilota, fora matar uma hora de tédio num ridículo café onde lhe ministraram horrenda beberagem com o nome da esplêndida rubiácea que rotulava a casa, enquanto aguardava qualquer divertimento que, como excepção, lhe parecesse suficientemente suportável. Mas o espectáculo proporcionado pelo encantador de serpentes interessou-o mais que de costume. O mouro, um disforme e taciturno gigante possuidor de um rosto brutalmente sinistro, havia-lhe inspirado nada mais do que aborrecimento. A filha que o acompanhava, essa, sim, era um novo tipo que lhe surgia da fantasia errante.

Embora não se ocultasse com um véu e pertencesse a uma classe que inspirava pouco respeito, ela nada tinha do estouvamento da sua espécie. Ao contrário, revestia-a uma dignidade natural, discreta, que constituía um verdadeiro contraste com a profissão.

Indiferente aos olhares curiosos que lhe lançavam daqui e dali, desempenhava o seu papel com estranho ar de despreocupação, os olhos a brincar-lhe nas órbitas como se os pensamentos lhe voassem ao longe. E não se misturou aos frequentadores do café: retraiu-se para um canto junto aos músicos, onde se sentou, brincando com a grande serpente negra que ainda se conservava enroscada nos seus ombros.

Contemplando-a, o interesse ia crescendo nele.

Na baixa atmosfera de um café de última classe ela parecera-lhe uma coisa à parte e maravilhara-o com aquele ar elegante, de delicada frescura, e com a pureza das suas feições infantis.

Intrigado, tratou de procurá-la no dia seguinte e ficou sabendo que ela deixara a aldeia pela madrugada, em companhia do pai.

O fracasso inflamara um interesse que de outro modo talvez morresse com a mesma facilidade com que nascera. Com o cérebro vazio, sem nada mais que os caprichos de uma vaga fantasia, seguira-a pelo norte, conseguindo encontrá-la em furtivas entrevistas, a última das quais fora a daquela manhã.

Quem os surpreendera, desgarrara a jovem e o aprisionara, não havia meio de ele o descobrir, nem mesmo em sonho. Este trecho da região era infestado por bandidos e ladrões e certamente algum divisara nele uma presa rica que lhe propiciaria gordo resgate.

A ignomínia da sua posição, devida exclusivamente a imprudência, acabrunhava-o. Mas este penoso pensamento desvanecia-se e anulava-se ante o facto esmagador de que permanecia chumbado à impotência para socorrer aquela cuja vida lhe era muito mais preciosa do que a própria.

Esta lembrança atormentava-o. Às vezes, mergulhava em meia consciência quando lhe era possível esquecer a miséria mental que o acabrunhava. Mas a vida moça estuava nele e os momentos de repouso eram muito fugazes. Deveria levantar-se e andar, embora como um animal enjaulado, os olhos penetrantes a errar incessantemente pelo quarto para onde fora conduzido, procurando ansiosamente alguma coisa que o ajudasse a sair dali.

Mas aquele pequeno e sujo aposento estava totalmente desprovido de quaisquer utensílios, nem sequer um prego lhe perfurava as paredes limosas. Sujo pela acção de anos incontáveis, tinha a aparência de estar de há muito desabitado.

Pela luz que penetrava por estreita fresta existente na parede um pouco acima da sua cabeça, de onde ele jazia podia ver a porta baixa que dava acesso ao aposento. Construída de madeira maciça encimada de ferro, a sua solidez emprestava-lhe fascinação a que ele não pôde resistir. Atraía-lhe a atenção de maneira que olhava aquilo tão fixamente que os olhos lhe arderam e ele se achou contando mecanicamente as cabeças de prego que guarneciam a sua superfície. Estaria eternamente fechada aquela porta?

O escoar lento das horas aumentava-lhe os desvarios e foi num desses momentos que finalmente chegou a suspirada interrupção daquela solidão. Não ouvira o abrir da porta.

Uma pancada brutal num ombro dorido despertou-lhe a consciência. Rangendo os dentes para abafar o gemido que quase deixara escapar, enfrentou com penetrante desconfiança os seus raptores. À vista deles o coração bateu-lhe violentamente. Dos três homens que ali estavam ao seu lado, reconheceu um, e esse era justamente o que menos poderia esperar encontrar. O mouro sorria perversamente, com aqueles olhos que eram porventura mais frios e cruéis do que os mais repulsivos répteis.

Foram, porém, os dois estrangeiros que primeiro falaram, dirigindo-lhe perguntas que, confuso e irado como se achava, mal compreendia. Embora vestidos como árabes e falando essa língua correntemente, a dureza gutural da sua voz assim como a sua aparência geral tornavam-lhes duvidosa a nacionalidade. Árabes bem vestidos e bem penteados não são raros, mas estes eram diferentes de qualquer que ele houvesse visto. De modos arrogantes, de falar duro, imperioso, parecia que pretendiam arrancar dele alguma confissão.

Não estava costumado a ser tratado com aspereza como se fosse qualquer irracional e o seu temperamento ardente despertou ao ouvir as perguntas que lhe faziam, sobre o seu nome, a sua tribo e sobre a natureza dos assuntos de que tratava naquele recanto do país, sobre a qualidade dos homens que com ele viajavam, não contando as palavras com que o acumulavam de acusações que ele não compreendia e nas quais a palavra «espião» surgia com irritante frequência.

Estivesse ali somente o mouro e compreenderia de qualquer modo o que dele queriam. Dos três, porém, era o mouro o que menos interessado parecia. Os dois estrangeiros é que manifestavam maior interesse.

Não compreendendo porque o privavam da sua liberdade, jurava a si mesmo que, se vivesse, haveriam de pagar-lhe caro a ousadia.

Cheio de ira, mas votando-se ao silêncio, estudava-os com muda passividade.

Ambos eram robustos, com aspecto de atletas, um orçando por meia idade e o outro por uns trinta anos.

Quanto mais os fitava, mais perturbado ficava. A despeito da sua atitude senhorial, era evidente que qualquer inquietação os amedrontava. E embora agissem conjuntamente, era palpável que não estavam inteiramente de acordo um com o outro, porque com muita frequência se interrogavam e discutiam demasiadamente numa linguagem desconhecida para o seu involuntário ouvinte.

Foi numa dessas discussões que o mouro interveio pela primeira vez.

Com uma imprecação de impaciência, arrancou uma faca da cinta e chegou-se rapidamente ao prisioneiro.

- Mato-o e pronto! - grunhiu, com a faca levantada para descarregar sobre a vítima. Os outros, porém, empurraram-no para trás.

- Não o matarás enquanto ele não falar - gritou o mais velho, com um gesto autoritário.

- Não to disse esta manhã, ó cabeça de vento? Até sabermos o muito que ele sabe, viverá.

Começou uma nova e interminável discussão, mas o ferido nada compreendia. Havendo-se-lhe clareado o entendimento por momentos, este se enfraquecera devido ao esforço que fazia, de maneira que de novo lhe fugira o sentimento da realidade. Tudo aquilo lhe parecia hediondo pesadelo. As perguntas eram feitas agora com aspereza sinistra e por último nova pancada brutal o despertou.

- Nada sei, viajo somente por prazer - balbuciou, obedecendo ao obstinado orgulho que o fazia não declinar a sua identidade. Não era para o filho de Ahmed ben Hassan admitir que se rebaixasse o nome poderoso do pai para obrigá-lo a declarações, que ele retinha a todo o custo.

Por misericórdia de Alá, só ele deveria estar preso, porque fora um mouro que o capturara, e portanto Jasmim deveria estar salva. Com visível alívio, diminuiu o domínio que mantinha sobre si e, no meio das fantasias que lhe povoavam a mente, a voz dura de um dos estrangeiros despertou-lhe os sentidos.

- Tragam a rapariga. Ela deve ter mais alguma coisa que dizer.

Ele ficou rígido, com ar de horror que traía uma suspeita terrível que lhe perturbava a mente. Vira o mouro sacudir a cabeça e ouvira a recusa que havia resmoneado.

- Não! Ela cumpriu o seu papel: disse tudo o que sabia. A sua boca agora fechar-se-á.

E então, como se uma verdade amarga lhe requeimasse o ser, não pôde evitar um grito que lhe explodiu dos lábios:

- Jasmim! Jasmim!

- Eis aí Jasmim, Jasmim - ironizou o mouro. - Pensavas que ela te amava, louco que não soubeste aproveitar aquilo que era teu! Viste a última de Jasmim: ela fez o que devia e mostrou-te que não era tua, ó cão do deserto.

A sua voz parou subitamente, convertendo-se num murmúrio, enquanto os dedos magros lhe tremiam e pairavam, como famintos, sobre o rosto agoniado do cativo.

- Queres viver? Queres de novo apertá-la nos braços? Fala, então, porque, caso contrário, farei de ti opróbrio e objecto de escárnio que levarão a fugir de ti as próprias bestas do mato.

Tais palavras foram ditas com acento pausado, traindo-lhe o rosto o gozo infernal que lhe inundava o ser.

Vagarosa e persistentemente pôs-se a delinear os métodos diabólicos com que pretendia extorquir a Informação desejada.

Ouvindo-o, pela primeira vez na vida o filho do sheik conheceu o medo, um medo entorpecedor que lhe gelava o sangue nas veias. Compreendera que de qualquer forma havia levado o pescoço a uma forca de que não poderia libertar-se; que de qualquer maneira se achava envolvido numa trama de circunstâncias misteriosas, totalmente superiores à sua compreensão e que lhe ameaçavam a própria existência. Havia visto a incredulidade claramente escrita nos rostos dos três homens, quando procurara convencê-los da ignorância das coisas que lhe imputavam; tinha ouvido o riso de zombaria que acolhera as suas palavras e compreendeu que toda a negativa era inútil, compreendendo, também, que a ameaça de tortura não era uma palavra vã, mas uma certeza que em breve se concretizaria, a não ser que um milagre se operasse para salvá-lo. O homem com quem tratava era um mouro e não um árabe e dos costumes dos mouros conhecia alguma coisa. Bagas de suor inundavam-lhe a testa enquanto se dispunha a aguardar os acontecimentos, orando para que a força não o desamparasse e lhe permitisse defrontar qualquer tormento como filho digno de seu pai.

Ainda se somente o matassem!... A morte era mil vezes preferível à tortura e à mutilação, E a vida poderia ser-lhe coisa preciosa, a ele que naquele dia perdera o amor, a fé e a esperança que lhe enchiam o coração?

Desviou de si tais pensamentos e congregou todas as forças de que podia dispor para suportar as provações que agora lhe pareciam inevitáveis.

Mas um clarão de esperança lhe sobreveio de modo inesperado.

Os dois estrangeiros, que se haviam retirado por momentos para um canto, aproximaram-se de novo e o mais moço parecia querer impor um ponto que ao outro repugnava aceitar. Porque, interrompendo a eloquência do companheiro, com o mesmo gesto breve de autoridade de que pouco antes se servira, voltou-se para o encantador de serpentes e bateu-lhe docemente nos ombros.

- Torna-se tarde, amigo - disse baixinho - e há perigos que, como sabes, podem sobrevir à noite. Não há já tempo para gozares este longo divertimento. Deixemo-lo pensar nas coisas que lhe prometeste e pode ser que amanhã se resolva a falar para salvar a pele.

Um estrepitoso riso de prazer acompanhou estas palavras e durante um momento os seus olhos pousaram no prisioneiro com um ar de afectada indiferença. O tom da voz então transmudou-se-lhe:

- Eia, homem! - disse com acento de comando. - Amanhã também é dia.

Com relutância, o mouro ergueu-se sobre os pés, a face lívida transtornada por fria maldade, as mãos crispadas como se lhe repugnasse largar a presa.

- Amanhã pode ser demasiado tarde - replicou com raiva, e encostou brutalmente o calcanhar no estômago do cativo.

Contorcendo-se de dor, o filho do sheik atingiu o limite do que podia sofrer.

- Alá te devore! - murmurou, desmaiando.

Quando voltou a si estava sozinho e o pequeno quarto imerso em trevas.

A solidão e a obscuridade, porém, eram-lhe gratas. Não tinha já necessidade de manter o aprumo de estóica indiferença que se esforçara por aparentar momentos antes. Sozinho, poderia vencer a angústia mental que naquele momento lhe varrera toda a sensação de sofrimento físico, assim como o mistério que o envolvia e o perigo que ainda o ameaçava, jasmim, a quem amava, e amava com amor que sabia impossível ser igualado, Jasmim, que ele poupara em razão desse amor, Jasmim traíra-o!

A sua alma passou então por uma agonia que lhe parecia maior do que poderia suportar.

Enfraquecido pela perda de sangue e pela necessidade de comer, torturado pelo conhecimento da traição da sua amada, ele sentia-se completamente vencido e, voltando o rosto para a parede, chorou como uma criança, todo o corpo a tremer-lhe ante as lágrimas que lhe marejavam os olhos e que ele nem sequer tentava conter... Chegara-lhe a hora da fraqueza. Exaurido física e mentalmente, mas ainda senhor de si, aquietou-se, perscrutando as trevas com olhos esgazeados, enquanto sentia que um grande amor aos poucos se convertia num grande ódio.

Doze horas antes havia ele compreendido o que significa o amor verdadeiro. E naquele momento recuperava a virilidade, tendo adquirido uma nova compreensão das coisas, uma nova ternura que a sua natureza ardente dantes não conhecia.

Mas o amor morrera na brutalidade da traição e com essa morte desvaneciam-se-lhe a fé e a confiança. Desiludido e amargurado pela experiência terrível por que passara, a nova ternura que lhe surgira evaporava-se como se nunca houvesse existido.

Somente nele permanecia a selvajaria primitiva, impondo-se como se fosse a única coisa que lhe restasse.

O seu rosto jovem endureceu-se e rictos cruéis se lhe espessaram pela boca, mostrando que unicamente sentimentos de vingança exerceria - se vivesse. E, por Alá! viveria, sim, para exigir total pagamento daqueles que o haviam injuriado! Tal qual agora sofria, teriam eles de sofrer. E ela também! Nem o sexo, nem a lembrança do amor que lhe dedicara a salvariam. Amor? Zombou de si mesmo em íntimo sarcasmo. Tinha procedido com amor! Jamais pouparia uma mulher que assim o condenava à horrível humilhação que agora o estava acabrunhando.

Louco e tolo tinha sido! Enganara-o uma rapariga que havia feito o que lhe era próprio, que tinha desempenhado o seu papel com a firmeza de uma actriz consumada!

Desde a primeira vez, certamente, o havia enganado. Confiante na atracção dos seus raros encantos, ela arquitectara os seus planos com incrível astúcia, iludira-o com uma falsa timidez e embrulhara-o com afectada modéstia, até o enredar subtilmente nas suas tramas sinistras, e finalmente havia jogado com a castidade de que se jactava, porque adivinhara o que lhe ia pela mente quando o encontrara naquela manhã fatal. Não poderia esperar, portanto, que ainda a poupasse. Para se assegurar da vitória não havia ela vacilado mesmo em correr esse risco!

E a trama de mentiras que os seus lábios infantis engendravam!

Rendida em seus braços, arrancando-lhe beijos, havia ela tramado uma centena de romances para o manter a seu lado, dando tempo a que os seus cúmplices chegassem.

Lembrava-se das suas insistentes perguntas a seu respeito, lembrava-se de uma dezena de incidentes aparentemente insignificantes, que agora serviam para prova da sua duplicidade. E durante tudo isso ela se rira dele, zombara do ardor da sua mocidade, escarnecera dele como de um louco cego!

Ódio e orgulho ferido agitavam-lhe o ser enquanto sorvia, gota a gota, o cálice da amargura. Amaldiçoando-se a si e a ela, enveredou os pensamentos por outra via.

A jovem não teria sido somente um instrumento dos infames que haviam urdido a armadilha em que tão facilmente caíra? Qual seria o motivo verdadeiro da sua captura? Sabia que penetrara em região mal afamada, onde a ilegalidade campeava com a desenvoltura permitida por um governo que não encontrava jeito de impor a sua autoridade, que, de resto, era ali apenas nominal. Sabia também que há muitos meses corriam rumores de desacordo entre as tribos ali existentes. Mas que tinha ele com isso? Jamais servira de mediador nas contendas que surgiam entre as tribos. Absorvido pelos prazeres e divertimentos, nunca lhe passava pela cabeça a ideia de administrar o poderoso clã que seu pai governava com mão de ferro. Como, pois, se encontrava envolvido em enredo tão misterioso? De todo impossível se lhe afigurava resolver esse problema.

E, de resto, o motivo da captura não era tão importante como a necessidade de salvar-se da situação em que estava.

Mas, ligado e impotente como estava, como poderia fugir?

Amarrado de pés e mãos por cordas sólidas, ali jazia como um cão incapaz de dar um passo.

Sem se alimentar durante vinte e quatro horas, abrasado de sede, admirava-se de o não vencer uma inconsciência completa. Já achava dificuldade em concentrar os seus pensamentos.

Incidentes completamente destituídos de importância e divagações desconexas, fantásticas, povoavam-lhe o cérebro. Por vezes parecia que não estava só: figuras sombrias acotovelavam-se perto dele, assobiando para as trevas, uma procissão de duendes que iam e vinham confusamente. E de vez em quando voltava-se com uma praga ciciada, um suor frio a percorrer-lhe a espinha, quando de novo lhe parecia ver a face má do mouro curvar-se perto dele e mais uma vez ouvia as suas sinistras ameaças, claras como se fossem faladas. Ante a frequência da visão, amaldiçoava-se como cobarde, e tentava afugentar as loucas fantasias que lhe enchiam a cabeça. Forçou a mente para calcular quanto tempo ali estaria.

Faltaria muito para amanhecer?

Um fugitivo clarão da Lua, filtrando-se pela janela, advertiu-o de que o tempo estava correndo e que, antes de passarem muitas horas, ele teria de se defrontar com uma realidade que a sua imaginação não poderia sequer entrever. Rangeu os dentes e repeliu para longe tais ideias. Por bem ou por mal, estava nas mãos de Alá e a manhã não havia ainda chegado.

Rendendo-se por último ao cansaço, não mais procurou combater a sonolência que o vencia, mas ficou quieto, vendo as sombras desaparecerem do quarto, à intensificação da luz do luar.

Estava quase adormecido quando um som muito brando se fez ouvir na completa quietude do quarto e o despertou subitamente.

Pôs-se à escuta, a princípio negligentemente e depois com interesse crescente. As pancadas redobravam, parecendo-lhe de estranhar que não as tivesse ouvido antes.

O som continuava a chamar-lhe a atenção e, ao aplicar os ouvidos para percebê-lo, um tremor lhe percorreu o corpo e o coração bateu sufocado. Aquelas pancadas eram singularmente persistentes e soavam com monótona regularidade. Quase inconscientemente pôs-se a contar os segundos que decorriam entre cada pancada.

- «Cinco-sete». «Cinco-sete».

Ramadan e S’rir - por Alá! - serviam-se de um código que há muitos anos arranjara numa febre de excitações para se unir a rapaziada árabe, nas suas estúrdias nocturnas. Ramadan e S’rir, como poderia tê-los esquecido?

Nova esperança lhe inundou o ser e os seus olhos cansados flamejaram enquanto se esforçava por corresponder ao sinal. Mas a sua língua estava seca e som algum podia ser emitido pelos seus lábios ressequidos.

Uma espécie de frenesi se apoderou dele à compreensão das consequências que lhe poderiam advir do silêncio.

Estava convencido de que os seus homens estavam ali. Não deveria ficar sem correspondência a sua nobre dedicação. Poderiam afastar-se dali somente por falta da resposta que lhe cumpria dar? Perder-se-ia essa perspectiva de salvação?

Se lhe fosse possível ao menos fazer qualquer movimento que pudesse ser percebido do outro lado daquela espessa parede!

Mas, incapaz de falar, incapaz de se mexer, sabia que cada momento que passava era a probabilidade de salvação que mais e mais se desvanecia.

A esperança já quase cedia ao desespero, quando de repente uma sombra ténue levantou o trinco da janela, onde os seus olhos se haviam fixado. Os segundos pareciam-lhe horas enquanto esperava, sacudindo a cabeça com apreensão, esforçando-se penosamente para respirar, quando os rudes ferrolhos da janela cederam, vencidos por duas mãos possantes.

Um por um foram os ferrolhos removidos calmamente e uma abertura se foi clareando até permitir a passagem do corpo de um homem.

Certamente era Ramadan, cuja força era proverbial. Houve o intervalo de um momento, um desconcertante lapso de tempo que produziu na mente atribulada do prisioneiro a sensação de mil temores, quando uma figura, mais delgada e ágil que a de Ramadan, penetrou pela abertura como um gato que pelo chão desliza sem fazer o menor ruído.

No momento que se seguiu, S’rir curvava-se sobre ele com uma enorme faca na mão.

- No céu ou no inferno, senhor - disse alegremente, e cortou as cordas que o atavam.

 

Era a hora da sesta.

O grande acampamento móvel dos sheiks estava imerso em pacífica quietude que dentro em breve seria vencida pela febril actividade que o agitava mesmo quando os olhos de águia do chefe estavam ausentes. A disciplina militar que vigorava no acampamento nunca se afrouxava.

Uma tribo combatente que se elevara à preeminência na região passara muitos anos na esperança de uma guerra que nunca vinha.

Poderosa de mais para ser molestada pelas tribos adjacentes, os seus homens eram temidos e detestados em razão da sua força e das estranhas crenças que por muito tempo os converteram numa raça à parte. Heréticos, sustentando dogmas que privativamente lhes pertenciam, desde há muito eram olhados com supersticioso terror, que lhes dava singular prestígio entre os seus vizinhos. E eles, orgulhosos daquela curiosa reputação, agarravam-se tenazmente às suas peculiaridades, dando vida ao mistério que os cercava.

E os acontecimentos desenrolados nos anos mais recentes não eram de molde a fazer diminuir esse mistério. As circunstâncias fora do comum que rodearam o nascimento de Ahmed ben Hassan e sua subsequente sucessão no governo da tribo tinham dado margem a contos extravagantes e fantásticos que se haviam tornado quase legendários no país. Durante vinte e cinco anos governara ele o seu povo despoticamente, mas para os seus súbditos ele era o chefe enviado do céu e cuja miraculosa vinda lhes garantiria a perpetuidade de um nome antigo.

Situados no extremo norte do vasto território que os sheiks consideravam seu, o acampamento estava assentado ao pé de um outeiro rochoso que era o último elo de uma cadeia de montanhas que constituía o ornamento do horizonte oriental. Algumas árvores raquíticas e duas ou três palmeiras esguias meio sepultadas na areia prenunciavam a proximidade de água e pareciam o produto de uma tentativa de lavoura não há muito abandonada. Espalhado em pitoresca confusão, um pequeno exército de tendas defrontava o sul, de sentinela para o deserto aberto em que milhas e milhas de areia se comprimiam interminavelmente, com a sua superfície ondulante semeada de arbustos espinhosos e de caniços de drim que proviam de alimento aos camelos que diariamente ali eram levados a pastar.

Patrulhado por sentinelas, o acampamento modorrava confiantemente ao sol do meio-dia e havia ali pouco sinal de vida humana, posto que daqui e dali emergisse de vez em quando uma figura a espreguiçar-se, provinda de uma das tendas, para sossegar os brancos e altivos cães de guarda da Cabila que rosnavam à entrada, e depois os recém-vindos iam tratar de cumprir qualquer obrigação algures. Pombos arrulhavam ao sol, e alguns destros e bem alimentados corcéis espojavam-se alegremente na areia, roçando os focinhos em tudo que passava, somente evitando os cavalos que ali ficavam erectos, cabeças erguidas com imponência, açoitando preguiçosamente com a cauda as moscas que os importunavam e ficando activos somente quando algum deles relinchava para repelir o avanço de um vizinho mais ousado.

O ladrar de um cão e o raro zurrar de um jumento eram os únicos ruídos que quebravam a perfeita quietude local.

A pequena distância do acampamento principal, meio oculta na folhagem das palmeiras, jazia a enorme tenda dupla dos sheiks.

As portas de pano estavam escancaradas e sob o toldo dormiam dois compridos e sujos cães caçadores, com a calma garantida por aduncas unhas.

Ali, também, tudo era silêncio.

Mas a solitária ocupante da tenda não estava a dormir.

Só, entre os bárbaros utensílios que de há muito eram o seu lar, Diana Glencaryll, que antes fora Diana Mayo,

estava sentada a uma pequena escrivaninha, o olhar absorto e sonhador, uma carta meio escrita esquecida em suas mãos! A passagem dos anos pouco a afectara.

Esbelta ainda, infantil nas vestes limpas que envergava, parecia pouco mais velha que a robusta rapariga que tinha partido de Biscra, alguns anos antes, à cata de aventuras que a tinham levado a experiências penosas e que haviam tido termo muito diferente do que esperava, mudando todo o curso

da sua vida.

Os meses terríveis do seu cativeiro pareciam-lhe agora apenas um sonho fantástico; a angústia da sua alma e os sofrimentos do seu corpo nada mais eram que uma prova - da qual passara para um gozo indizível.

Feliz como poucos podem esperar sê-lo, esquecera já o que é uma tristeza e diariamente dava graças a Deus por havê-la impelido para o deserto.

Amando a vida nómada que levava, ligada a um esposo que a adorava, contente no isolamento que certamente teria enlouquecido muitas outras mulheres, os seus dias eram dedicados às tarefas que a si própria impusera.

Nunca tinha tempo ou inclinação para sentir fadiga.

Isso até aqui.

Agora, porém, a sua testa denunciava os anseios que a assaltavam, contando as semanas em que ficara sozinha. Fazia quatro meses que o sheik estava ausente.

Há quatro meses aguardava ela o seu regresso, atormentada pelo temor do que de mau lhe houvesse talvez ocorrido.

Era a primeira longa separação, e saudosa do timbre da sua voz e do apertar dos seus braços vigorosos, agora compreendia bem o que o amor significava para ela e, mais do que até então, sentia quanto a presença dele era necessária à sua felicidade.

Os dias arrastavam-se interminavelmente. A sua partida fora misteriosa. Algum tempo antes, ela tinha notado que ele se mostrava mais pensativo e preocupado que de costume, mais silencioso do que nunca. Mas, habituada aos seus modos e hesitando sempre em intervir quando o seu conselho não era directamente solicitado, tinha-se guardado de fazer-lhe perguntas, até que por último uma crescente ansiedade a fez falar-lhe. As suas respostas, entretanto, tinham sido vagas, nada satisfatórias.

Um facto somente pudera ela colher e lhe dera algum sossego.

Não eram os negócios da tribo que o acabrunhavam. E tudo o que se passasse por fora dos limites do seu território tinha para ela a natureza das coisas imateriais. Mas para o sheik não era assim. Profundamente versado nos costumes do seu povo, com um conhecimento completo da natureza inconstante dos orientais, era impossível que lhe fossem desconhecidos os rumores de inquietação e desassossego que corriam por todo o país. Confiava na lealdade dos seus homens, mas percebia os perigos externos que o ameaçavam, e ultimamente convencera-se de que somente por investigação pessoal poderia chegar à verdade e esmagar, na origem, a ameaça que pendia sobre a tribo.

Não querendo acrescentar à sua ansiedade a que pudesse advir da revelação da natureza do que ele sabia ser uma empresa perigosa, muito pouco contou a Diana, e partiu uma noite, inesperadamente e sozinho.

Idolatrada pela tribo, ficara, confiada ao principal ajudante de seu marido, Yusef, e ao seu criado francês, Gastão, o que significava não haver dúvidas quanto à sua segurança: sobre isso podia ficar perfeitamente tranquila. Somente em relação a ele a assaltava o medo, pois os dias sucediam-se vertiginosamente e ele não voltava. Quatro meses!

Pôs de lado o livrinho de bolso com um olhar fatigado. Porque vinha agora essa inquietação, justamente quando a situação já era suficientemente difícil?

Lágrimas furtivas lhe marejavam os olhos quando ela se voltou para um tamborete mouro que lhe estava ao lado e dele tirou um álbum de fotografias, encadernado em couro. E os seus lábios tremiam ao contemplar firmemente o rosto dos dois filhos que ela dera ao homem que adorava. Eram gémeos, mas que diferença entre eles!

Instintivamente, olhou para o retrato do mais moço e mais amado dos seus filhos. Era um retrato que ela mesma tirara e no qual a pose natural, a graça livre e descuidada do seu modo de sentar, tornava a semelhança ainda mais real, mais natural.

Um trémulo sorriso passou-lhe pelos lábios ao contar um por um os pontos de parecença que tornavam tão querida aquela efígie. No rosto e no busto era a reprodução exacta do sheik. Era a mesma altura e o mesmo porte arrogante, a mesma fisionomia atraente, a mesma boca cruel, os mesmos olhos penetrantes debaixo de sobrancelhas petulantes, semicerradas - o sheik tal qual o conhecera pela primeira vez, antes que o amor viesse suavizar-lhe a dureza da expressão. O amor, entretanto, não o havia modificado muito - reflectiu ela com outro leve sorriso fugitivo. - Era somente para ela que a dureza da boca se suavizava, somente para ela que os seus grandes olhos negros e penetrantes se iluminavam por uma luz que tinha o poder de fazer pulsar-lhe violentamente o coração.

Como nas formas e nas feições, também no temperamento o filho parecia o pai, uma semelhança que nem sempre produzia perfeita harmonia entre os dois.

Tal se dava porque ambos eram de índole apaixonada e obstinada, de uma firmeza de vontade que chegava ao extremo.

Embora secretamente fosse orgulhosa do seu encantador filho, o sheik era intolerante para as faltas do jovem Ahmed, as quais lhe faziam lembrar dolorosamente a sua própria mocidade tormentosa. Desgostava-o também o facto de o filho já ter idade que o fazia homem, sem que se preocupasse com o que não fosse prazer: era menos prudente do que deveria ser para que o seu governo fosse menos arbitrário. E perpetuamente em diabruras, o filho estava muito longe de mostrar o amor verdadeiro e a admiração que nutria pelo pai, que entretanto era, para ele, o ideal do que um homem deveria ser.

Era Diana que formava o traço de união entre essas duas naturezas opostas, contraditórias. Adorada por ambos, era ela que amenizava a dureza do pai e que refreava as extravagâncias do filho - isso tudo como lhe fosse possível. Cabeçudo como era o filho, só ela conhecia o que de bom existia nele e só ela podia fazer concessões que o sheik não podia.

Quantas vezes ela se colocou entre eles! Quantas vezes o conhecimento profundo que ela tinha do carácter de um lhe fazia compreender o ponto de vista do outro! Nunca deveria, pois, existir concordância entre eles? Diana curvou-se na cadeira com um pequeno tremor.

E se as discórdias frequentes que entre eles se suscitavam terminassem na aberta ruptura que ela sempre temera?

Havia somente uma lei no acampamento do sheik - era a sua própria vontade. Ele exigia implícita obediência e fazia executar as suas ordens com o despotismo que sempre lhe caracterizava os actos. Deveria o filho, que ela amava tão entranhadamente, passar pelas mesmas experiências cruéis pelas quais ela anos antes passara?

Esforçou-se por desviar tal pensamento, que lhe parecia concretizar uma deslealdade.

O sheik era um homem recto, embora fosse severo nos seus actos. Somente uma cabeça poderia existir na comunidade - a sua. E o rapaz tinha de aprender como outros tinham aprendido.

Mas, oh! Deus querido, só ela poderia poupá-lo à dor de tal aprendizagem!

E mesmo agora ela sabia que se o sheik voltasse hoje, haveria motivo para desinteligência entre os dois, porque o jovem Ahmed estava também ausente do acampamento e isso apesar das ordens severas que o pai havia dado.

Os seus olhos sombreavam-se de ansiedade. Depois, a despeito de si mesma, riu-se à lembrança da sua impetuosa aparição no seu quarto, uma manhã cedo, para lhe pedir insistentemente uma licença de alguns dias para retirar-se, pois que um repouso se lhe tornava absolutamente necessário para lhe restituir a paz de espírito, e também se riu das advertências que lhe fez quando montou a cavalo, em companhia dos dois filhos de Yusef, que desde a infância lhe serviam de guarda-costas.

Fora isso há seis semanas.

Habituada às suas constantes excursões, ela argumentava consigo mesma, procurando fazer luz sobre esta última escapada, que era somente uma entre muitas. Com certeza esperava ele o regresso de Ahmed!

Ahmed! O amado esposo, cuja devoção lhe tornava suportável a vida solitária! Ela ciciava o seu nome com doce ternura enquanto procurava afugentar os temores que já se lhe tornavam quase insuportáveis.

Para distrair os pensamentos, ela voltou-se para o outro retrato - o retrato do desconhecido filho mais velho, a quem ela não via desde que completara cinco anos de idade e cuja próxima visita lhe fora anunciada, enchendo-a de um misto de alegria e de apreensão. Amá-la-ia este como o outro? Saberia ele que a separação lhe havia causado lágrimas amaríssimas, compreenderia quanto a ela custara tal renúncia?

Fora-lhe necessário deixá-lo ir para longe.

E o seu coração ainda sangrava à lembrança da sua partida com o suposto espírito de humanidade que o arrastara para Inglaterra, arrancado ao sheik pelos apelos do coração quebrantado do pai deste. Decidido a ficar na terra em que nascera, tinha mandado o filho para ser educado e treinado para a posição que ele mesmo jamais assumiria. Para o conde de Glencaryll nada significava ser o chefe da tribo de ben Hassan. E na Inglaterra, para o ancião solitário, o filho chegara como uma dádiva quase divina, em resposta directa às suas orações, a realização de uma esperança que por vezes lhe parecia uma louca quimera inatingível. Prodigalizava-lhe todo o recalcado afecto de anos e vira-o atingir a virilidade correspondendo aos carinhos do avô, cujo amor pagava com devoção partida de um coração simples e bom.

Era a sua própria face que Diana nele contemplava, eram como os seus próprios olhos os que ela fixava no retrato que tinha entre as mãos. Era um retrato bem diferente do outro, contendo a imagem de um jovem cujas feições sérias e cuja atitude convencional lhe emprestavam um ar de gravidade prematura, em flagrante contraste com a sua idade tenra. Longa e ardorosamente ela considerou a semelhança.

Que teriam feito dele o tempo e as circunstâncias? Que significaria a sua vinda ao seio do país que ele esquecera?

Dele só recebera poucas cartas, que não passavam de rápidos comunicados de factos, nunca dizendo nada de si próprio, nada do que o coração materno almeja saber. Ao menos se ela o pudesse ver algumas vezes! Se Ahmed consentisse ao menos que ela fosse visitá-lo de vez em quando!

Mas as suas súplicas nesse sentido tinham encontrado uma recusa tão categórica que não se arriscara a reiterá-las.

Agora, finalmente, ele vinha, mas vinha somente compelido por negócios.

Os lábios tremiam-lhe penosamente à lembrança das palavras da sua última carta, mais frias e formais do que as anteriores, nas quais não deixava entrever o menor prazer pela sua próxima chegada à casa de sua família, mas falando secamente apenas nos negócios.

Não era a carta de um filho ao pai, mas o relatório de um agente aos seus patrões ausentes, sem emoção, sem carinho. Porque o velho conde de Glencaryll morrera havia cerca de um ano. E, inflexível na determinação de não auferir nenhum lucro pela morte do pai, Ahmed ben Hassan passara para o filho, total e incondicionalmente, os vastos territórios que não o interessavam e a enorme fortuna na qual, mesmo que não fosse rico, jamais tocaria.

Mas haviam surgido certas formalidades, certos pontos a discutir, que tornaram necessária uma entrevista entre pai e filho. Correspondência trocada durante meses, insistentemente pedantesca de um lado e casualmente brutal do outro, finalizara com a combinação de uma entrevista. O coração de Diana bateu mais aceleradamente ao lembrar-se de tal entrevista, prestes a realizar-se.

Caryll estava mesmo agora a chegar à pequenina cidade de Touggourt, e talvez não demorasse uma carta a anunciar a sua chegada ao acampamento paterno.

Era somente de Raul que ela tinha sabido alguma coisa do filho que lhe era estranho. Era este o único elo que ainda a ligava ao passado e à sua família dividida, de maneira que as suas visitas espaçadas significavam para ela mais que a chegada de um amigo de confiança e estima. Ela jamais adivinhara o amor que ele trazia oculto no coração durante vinte anos, jamais suspeitara que tais visitas lhe causavam dor. As suas vindas sempre significavam notícias de Caryll, notícias da casa senhorial na Inglaterra, onde ele era sempre acolhido como hóspede bem-vindo. Vira ele o seu filho crescer da infância à puberdade, da puberdade à adolescência. E, entretanto, quão pouco podia ele dizer! A devoção apaixonada e a pródiga generosidade de um melancólico ancião a um herdeiro muito amado e guardado com ciúme; a ternura quase feminina do rapaz a tudo quanto dizia respeito ao avô - era tudo quanto ela pudera respigar, juntamente com outras pequenas minúcias da sua vida diária. Sabia que ele era mais sério do que era de esperar do verdor dos seus anos, sempre absorvido na administração dos territórios que seriam seus um dia, um moço discreto e reservado, que sempre se conservara como um quase enigma, mesmo para os franceses que toda a vida o haviam conhecido.

Assim, do Caryll verdadeiro ela nada sabia. Tinha de contentar-se com as exterioridades de factos comezinhos, enquanto ansiava pelo conhecimento mais íntimo, profundo, de factos que dela o desviavam.

E quando ele chegasse, qual seria a sua atitude? Tanto quanto suspirava pelos momentos propiciados pelo encontro, temia a sua vinda. Lendo nas entrelinhas da sua última carta, percebera a relutância com que ele encarava a sua próxima visita, surpreendera dolorosamente na mesma um tom de mal disfarçada hostilidade.

Estremeceu a tal pensamento. Mas, amargo que fosse o facto, era, entretanto, natural. Não era razoável esperar que ele conhecesse as causas desse aparente abandono.

Havia muita coisa que o rapaz não podia saber. Era impossível supor que o velho e orgulhoso conde confiasse ao neto a vergonhosa história da sua curta vida conjugal, alguma vez lhe contasse o trágico acontecimento que o fez perder mulher e filho e lhe imprimiu no rosto longos anos de tristeza, remorso e solidão. Por outro lado, parecia igualmente impossível que ela ultrajasse a memória de mortos, revelando agora a Caryll o motivo que causara a separação entre o sheik e o seu pai.

Cumpria que se deixasse Caryll pensar o que quisesse, embora custasse vê-lo lançar culpas sobre quem era inocente.

Havia mais uma única pessoa que conhecia a verdadeira história da família Glencaryll, e Diana esperava do cavalheirismo inato do carácter de Raul de Saint Hubert que mantivesse fechados os lábios, a menos que a necessidade algum dia o obrigasse a falar.

No seu apaixonado amor pelo marido, Diana quase chegava a desejar que tal necessidade viesse a surgir.

Era-lhe horrível pensar que ruins propósitos lhe fossem atribuídos, que a separação que se iniciara numa geração passasse para uma segunda, unicamente por uma errónea compreensão que jamais se elucidaria, pois que ela conhecia Ahmed ben Hassan o bastante para saber que ele nunca tocaria nesse assunto: ele desprezaria a possível condenação do filho. Nos primeiros dias de vida conjugal, Diana havia empregado toda a sua influência para promover uma reconciliação, mas os seus esforços haviam fracassado, porque o sheik, inflexível como sempre fora, tinha feito ouvidos moucos aos seus apelos e acabara por lhe declarar terminantemente que com ela não mais trataria do assunto.

Havia feito quanto lhe fora possível. Só Deus sabia o que traria o futuro.

Lançou um olhar mais pelas fotografias, pô-las de lado e releu uma carta que começara e que estava em cima da escrivaninha.

Mas a tinta secava-se-lhe na pena e não achava mais palavras para lançar naquele papel. A sua carta era endereçada a Raul, em Touggourt. Já lhe falara na ausência do sheik, tinha-lhe mandado instruções sobre o encontro do acampamento e pedira-lhe que se pusesse a caminho imediatamente. Nada havia a acrescentar ao que já estava escrito. Embora fosse grande o seu desejo nesse sentido, era-lhe impossível pedir a Raul que explicasse a Caryll a história da família.

Assinou e lançou o endereço no sobrescrito com um frio sentimento de temor mental, em luta com uma sensação de mau agouro que parecia ter-se apoderado dela tenazmente. Enraivecida consigo mesma, mas sentindo-se incapaz de sacudir de si as apreensões que a acabrunhavam, fincou os braços na escrivaninha e enterrou o rosto nas mãos.

Depois de tantos anos de paz, tudo lhe parecia haver mudado e um estranho sentimento instintivo dizia-lhe que qualquer coisa perturbadora se aproximava. A expressão concreta do que vagamente lhe passava pela mente chocava-a e fazia-a murmurar palavras ininteligíveis.

Não lhe eram da natureza as desconfianças. Era-lhe contrário ao temperamento deixar o mal em meio caminho. Que história era essa, portanto, de uma opressão ante a antevisão de desastres futuros?

Era verdade que se sentia inquieta por Ahmed, inquieta pelo filho, tanto que nem sequer podia dormir. Mas, já anteriormente, não era pequena a ansiedade que a cruciava por causa deles. Não era só o temor pelo que lhes pudesse acontecer que a oprimia: era um terror que antes nunca sentira. Reprimiu os seus trágicos pensamentos num leve estremeção dos nervos.

Conhecia o perigo do solitário choque que lhe sacudia os nervos e, apiedada de si mesma, conhecia o perigo da irrefreada introspecção mental que nascia da solidão.

Resolveu conter-se. Nenhuma força que possuísse poderia deter ou alterar aquilo que estivesse para acontecer. Devia deixar para o futuro as coisas que pertencem ao futuro e viver dia a dia como lhe fosse possível, lutando contra os vãos temores que a sobressaltavam.

«Deus me fortaleça», orava, e «me salve tanto dos homens como de mim própria».

Sorriu subitamente, para conter as lágrimas que lhe marejavam os olhos, que enxugou nervosamente, como se aquelas lágrimas a envergonhassem. Quantas vezes sentiu a agonia da sua ausência e quantas vezes elas voltavam maldosamente! Porque, pois, as não suportaria agora? Porque atormentar-se sem necessidade?

Isso, porém, era fácil de dizer mas difícil de praticar.

Difícil, mas não impossível. Decidida a vencer a fraqueza, sentou-se subitamente, olhando para o relógio.

Já a tarde enfraquecia e os sons de actividade repercutiam pelo acampamento. Breve viria Gastão com o chá e ela daria, então, um passeio a cavalo para aliviar a dor de cabeça que uma noite de insónia lhe causara.

Abaixou-se para acarinhar um leitão que se deitara aos seus pés, e depois foi ao quarto para pôr o chapéu e as luvas.

Quando voltou, o criado francês estava a dispor os preparativos para servir o chá, pondo nesse serviço a destreza que lhe era peculiar. Já com a cabeça branca, mas ainda de aparência vigorosa, continuava a ser o servo dedicado que sempre fora.

O criado saudou-a com o sorriso calmo e agradável do costume e colocou o serviço de chá num tamborete, perto do divã.

E colocando-se entre a fumarada que se desprendia da infusão, Diana olhava-o a servir-lhe o chá e percebia a muda simpatia com que ele a tratava solicitamente.

Sorriu para ele e disse-lhe:

- Mais um dia, Gastão.

Vendo-a tão ansiosa, ele percebeu o que se passava na mente dela e, posto que o pungisse a fraqueza que havia na sua voz, manteve a feição amável com que a saudara.

- Mais um dia, senhora - concordou delicadamente - mas talvez o último - acrescentou com confiança maior do que realmente sentia.

Ela encolheu os ombros suavemente e pegou na chávena que lhe era oferecida:

- In cha Allah! - murmurou na linguagem que se lhe tornara tão familiar como a língua materna.

Gastão acolheu a saudação com uma inclinação da cabeça.

- Na verdade, se Deus quiser, como a senhora disse - respondeu, e mudou de conversa. - A senhora falou de uma carta para o senhor conde.

Sentindo inveja daquele real ou improvisado optimismo, Diana esboçou um sorriso e apontou para a escrivaninha.

- Está pronta, Gastão, e peço-te que a mandes a Touggourt à noite, com dois homens, para evitar algum acidente. A escolta não deve partir imediatamente. Eu disse ao senhor conde onde a devia esperar. E, Gastão, os cavalos em dez minutos, por favor.

Com um calmo Bien, madame, ele pegou na carta lacrada e atravessou o quarto. Mas, ao chegar à porta, Diana chamou-o:

- Gastão!

Ele deteve-se e inquiriu:

- Senhora?

Voltou vagarosamente e ficou na expectativa, a olhá-la com ar grave, compassivo. E quando, por último, ela falou, inclinou-se para ouvir-lhe o ténue murmúrio:

- Gastão, pensa...?

Se pensava! Bon Dieu, não se lembrava ele do mês que passara, pensando e temendo tanto quanto ela? Mas ninguém lhe arrancaria a verdade. Respondeu-lhe em tom penetrante: - Não, senhora, eu não «penso» - mentiu com firmeza - e longe esteja de mim o que a senhora está pensando.

Mas a própria veemência com que proferiu essas palavras mais serviu para confirmar-lhe os temores que a assaltavam e ela fez um pequeno gesto com as mãos, no qual traiu o desespero que a acabrunhava.

- Não posso mais - murmurou. - O senhor foi há tanto tempo e estou com medo, com medo! - fez com voz tremente. - Sou cobarde, Gastão, miseravelmente cobarde.

Por momentos pareceu que ia desmaiar; conteve-se, porém, com um esforço supremo. Mas o riso convulso que se seguiu era perigoso como um desmaio.

Os pequeninos olhos do devotado francês resplandeceram inopinadamente e por pouco não o abandonou a sua habitual compostura.

- A senhora, uma cobarde! Faça Deus muitas cobardes desse jaez - desabafou, fugindo da tenda.

Não recuperou a habitual serenidade enquanto não despachou dois cavaleiros que havia aprestado para levarem a carta a Touggourt; procurou e teve uma entrevista com Yusef, cuja ansiedade crescia proporcionalmente à sua; tinha inspeccionado com cuidado os cavalos que estavam a ser selados para saírem.

A sua involuntária emoção reagira sobre o seu temperamento habitualmente plácido e ele amaldiçoou os cocheiros em árabe, enquanto colocava freios e apertava cilhas com uma opulência de sarcasmos que espantava os subordinados. Não podia admitir, mesmo a sós consigo, que o seu zelo fosse grandemente necessário, pois que a fraqueza era coisa inexistente no acampamento de Ahmed ben Hassan - mas era preciso convir que ele estava retardando o momento em que de novo tornaria a ver a sua angustiada senhora.

Mas era somente diante de Gastão que Diana se permitia aquelas fraquezas. Ela estava calma, mesmo sorridente, quando saiu da tenda e, saudando Yusef que a aguardava, ficou uns momentos a calçar as luvas, enquanto olhava o nervoso corcel negro que lhe havia sido preparado para montar.

Era o cavalo favorito do sheik, e ela havia-o exercitado regularmente durante a sua ausência. Parecia o diabo, selvagem e intratável para aqueles que dele se aproximavam, com excepção de Ahmed ben Hassan, a quem temia, e de Diana, que o fizera render-se pelos seus carinhos. Destemida e devotada aos animais, ela tinha um modo próprio de tratá-los, e Eblis era um entre os muitos outros incorrigíveis que haviam sido atraídos pelos seus métodos peculiares.

Hoje a sua índole parecia pior do que de costume, e quando Diana se chegou a ele, pinoteou furiosamente com o seu corpo forte, quase atingindo, com as patas elevadas, os demais animais que lhe estavam próximos. O homem soltou um grito de terror e agarrou-se furiosamente às rédeas.

- Diabo e pai do diabo! - gritou. - Acalma-te, besta maldita! - e desviou a cabeça para evitar uma dentada que tinha por alvo o seu rosto, que cuidadosamente envolveu nas dobras do albornoz.

Gastão e Yusef deram um salto instintivo. Mas foi Diana quem dele primeiro se aproximou, acalmando-lhe a raiva das irritadas patas. Trémulo e arquejante, mas obediente à sua voz, o animal deixou-se montar sem oposição, posto que os olhos inflamados se lançassem raivosamente em direcção a Yusef que segurava os estribos.

Diana sorriu ao enorme e imponente árabe e voltou-se para saudar com um gesto sorridente os demais. Deu dois ou três passos que lhe duplicaram o sorriso vitorioso.

Que crianças eram aqueles homens do deserto! - filosofou partindo vagarosamente do acampamento, seguida por Gastão. Crianças a divertir e a corrigir também, conforme as ocasiões. Apaixonados e temerários, sempre prontos a vingar uma ofensa e a retribuir uma injúria, eram também amáveis e leais como os que mais o fossem.

Quanto tempo levara para compreendê-los e quão profundamente avaliava o afecto que lhes conquistara!

Na estima que lhe dedicavam era ela mais que um ser humano - era uma espécie de anjo que entre eles habitava para cuidar-lhes das necessidades. Era adorada por toda a tribo.

O conhecimento desse facto, porém, tornava-a cada vez mais humilde. Que poderia ela fazer mais do que amá-los, repartindo com eles o amor pelo chefe que era o seu deus! Distante dos toldos do acampamento, Diana guiou o cavalo em direcção a um pequeno monte para o transpor. Era uma escarpa rasgada, mas o animal deteve-se um momento na base, como que a considerar a dificuldade da ascensão.

O corcel negro escarvou alegremente o chão à vista da subida a vencer e, como sentisse as rédeas soltas, galgou o monte com facilidade, sacudindo a cauda febrilmente e calcando as pedras com as patas. Entre os seus joelhos, Diana sentia-lhe o corpo estuante de vida e vigor, sentia-lhe os fortes músculos contraírem-se e distenderem-se através dos ombros sadios, e segurava-se à sela para facilitar a ascensão, a mão pousada com leveza no seu acetinado pescoço, as maçãs do rosto resplandecendo de prazer, por momentos esquecida das dúvidas e temores que a tinham assaltado. Uma chicotada desajeitada fez saltitar um chuveiro de pedrinhas no rosto de Gastão.

Eblis atingiu finalmente o cume do monte e dilatou voluptuosamente as narinas, sorvendo ruidosamente a brisa refrigerante que vinha do norte.

Diana olhou em redor com olhos brilhantes.

Habituada de há muito aos esplêndidos panoramas que se desenrolavam à sua vista, nunca, entretanto, deles se cansava. Deste lado do monte as ondulações do deserto eram débeis, e a vista alcançava milhas - uma vasta amplidão de areia dourada que parecia desvanecer-se imperceptivelmente ao azul-claro do céu da tarde.

A oeste, estendia-se a negra e sombria dentadura de montes distantes, nevoentos e intangíveis, porque o Sol ainda se mantinha muito alto no céu para lhes patentear a estrutura.

Por um momento, Diana voltou-se para contemplar o acampamento que ficara atrás, mas a visão larga do norte logo tornou a atrair-lhe a atenção.

Uma serena plenitude encheu-lhe os sentidos na contemplação da maravilhosa beleza que dali se desenrolava. Era, na verdade, o deserto, o deserto que era a sua casa. Ali estava tudo quanto lhe fazia a vida digna de ser vivida, ali estavam os seus interesses, o seu dever, o seu amor. A despeito da sua selvajaria e dos seus perigos, a despeito das suas limitações e da sua solidão, ela amava-o - amava-o nas próprias contradições da sua paz, das suas fúrias, do seu estranho encanto. Há longos anos se submetera à sua fascinação e o decurso do tempo mais contribuíra para lhe fortalecer os laços. O deserto a «agarrara» e não mais a deixaria.

Tremendo na sua imensidade, misterioso e flamejante, o deserto atraíra-a como a tantos outros, enlaçando-a no seu estranho desassossego, deleitando-a com a sua imutável amplidão. Como fora no princípio era agora e assim seria por toda a eternidade.

Chamou o criado que estava imóvel ao lado dela.

- Olha, Gastão! Não é maravilhoso? O espaço... Milhas e milhas de vácuo, e... - Calou-se, com um leve sorriso, pegando no binóculo que trazia preso à sela.

Que era aquela mancha escura que, à distância, parecia haver-se destacado da monótona uniformidade da planície que resplandecia amarela? Levantou o binóculo rapidamente, procurando o objecto que tinha ou cuidara ter visto.

Duas manchas e não uma. Duas manchas que cresciam e não assumiam aspecto definido.

As mãos começaram a tremer-lhe e uma névoa sombreou-lhe os olhos, mareando-lhe a vista. Entregou o binóculo a Gastão.

- Por cima disso - murmurou, apontando para eles - nada posso ver. Que há?

Durante alguns momentos ele não respondeu e ela esperou com ar de impaciência, o coração a bater-lhe furiosamente.

Quando ele se voltou para Diana, foi com um gesto de tristeza.

- Spahis, senhora - disse quase com relutância. - Somente spahis!

Um relance lhe escapou dos olhos e, quando falou, a voz era-lhe pesada e cansada.

- Podemos ir esperá-los.

E, juntando as rédeas, ela impeliu Eblis para o lado norte do monte. Movendo a cabeça e relinchando ruidosamente, o enorme animal desde logo se pôs a correr com o desabalado galope que tornava famosos os cavalos do sheik.

Por algum tempo abandonou as rédeas, deixando-o caminhar à vontade, enquanto ela permanecia em luta com o desapontamento que lhe fizera ressuscitar toda a ansiedade, todas as apreensões.

Gradualmente, porém, foi-a invadindo um pouco de sossego.

Inconscientemente acalmada pelo ar do deserto, a sua dor de cabeça dissipara-se. Amazona por demais destra em cavalgar corcéis, não podia fugir ao prazer que experimentava no rude exercício físico que amava, decidida a arrancar dele todo o gozo que lhe pudesse proporcionar, e desta maneira vencer a angústia mental que dela parecia querer tomar posse total. Hoje dera ela ensejo a lamentável fraqueza. Cansada por uma noite de insónia, havia descurado os muitos deveres que habitualmente lhe enchiam o tempo e encerrara-se na tenda, dando pasto à morbidez. Deveria fazer com que isso não mais acontecesse. Deveria inventar novos serviços, novas tarefas com que encher os dias que lhe corriam com tamanha insipidez. Precisava fazer com que a tribo não percebesse o menor sinal das angústias que a pungiam. Exteriormente, cumpria-lhe manter a todo o custo o ar de confiança que faria que ninguém compreendesse o que havia de sinistro na prolongada ausência do seu chefe.

Entretanto, o tempo fê-la entender que alguma coisa lhe dava uma espécie de ordem. Deixado ao seu próprio instinto, já pouco sentindo o peso que havia sobre si, Eblis mastigou os freios e dava mostras de querer trotar em regresso.

Gastão estava longe, atrás, e ela nenhum desejo tinha de encontrar-se a sós com os spahis.

Era uma luta terrível que tinha de sustentar para manter a direcção do cavalo, e força e paciência já lhe faltavam, para isso. Mas, adulando-o com consumada habilidade, ela conseguiu fazer parar o cavalo, e esperar pelo criado. Surrado mas impenitente, Eblis ficou tão quieto quanto lhe permitia a sua natureza irrequieta, disfarçando a contrariedade com o abano da cauda, calcando a areia, enquanto Diana, esfregando as quentes sobrancelhas, aguardava a rápida aproximação dos spahis, que agora estavam tão perto que já podia distinguir-lhes as feições.

Cavalgando com imponência animais de magreza quase incrível, pitorescos com os seus mantos tremulantes e os seus alvos albornozes tecidos, prega por prega, com pêlos de camelo, eram espadaúdos espécimes bem urdidos da sua raça, parecendo maiores do que realmente eram nos seus apertados uniformes azuis, que exibiam manchas que apenas denunciavam uma longa viagem. Bem armados, podiam enfrentar com vantagem os bandoleiros que encontrassem. Tinham aparência suficientemente formidável, mas Diana percebeu que eles se retesavam nas selas com fadiga e que os cavalos estavam quase exaustos.

Apertaram as rédeas com dramática subitaneidade e um deles apeou-se rapidamente. Com ar de extrema fadiga, o seu rosto bronzeado era uma máscara de pó e areia. Caminhou em direcção a Diana e saudou-a com elegância militar.

Perfeitamente seguro, na aparência, da sua identidade, ele perguntou pelo sheik e, ao ter conhecimento da sua ausência, prontamente tirou do interior da túnica um ofício e o estendeu a Diana.

Dominando Eblis, que relinchava com desconfiança para os dois cavalos que lhe estavam perto e os quais, de cansados, nada podiam responder-lhe, Diana tomou a carta e fez algumas perguntas antes de prosseguir no caminho, deixando Gastão levar os spahis ao acampamento.

Colocou a carta no bolso do casaco. Finda a leitura da mensagem recebida, pouco apreendeu do conteúdo. Havia outra carta igual na sua escrivaninha, recebida há quatro meses, poucos dias depois da partida do sheik. Esta última era-lhe tão indecifrável como a primeira. Sentia-se incapaz de suportar a situação que havia sobrevindo. Só lhe restava aguardar o regresso de Ahmed, mas - santo Deus! - quando viria ele?

Os seus profundos olhos azuis perturbaram-se tanto que se tornaram insensíveis à beleza circundante e à glória esplêndida do pôr do Sol no ocaso purpúreo. O coração pesava-lhe de horror ante os temores que se lhe amontoavam na mente pensativa. Forte e expedito mais do que o comum, ela bem o sabia, mas poderia ser que algo anormal, de mais força, lhe sobreviesse... Sacudiu os ombros violentamente e um prolongado suspiro se lhe exalou do peito, horrorizando-a com o barulho produzido. Ela não compreendia quão perto havia chegado do ponto culminante e, rangendo os dentes, forçou a calma a voltar-lhe.

Ela «não» cederia; «não» se entregaria àqueles pensamentos sombrios. Para distrair o espírito, voltou-se para Gastão, que se aproximara, e interrogou-o demoradamente.

- Donde vieram eles, Gastão?

- De Touggourt, senhora.

Ela fitou-o firmemente.

- O general está, então, em Touggourt?

- Sim, senhora.

Os seus pensamentos voaram para o filho, que deveria estar então na cidade.

- Alguma novidade má por lá? - perguntou, esforçando-se por conservar a voz firme.

Gastão sorriu imperceptivelmente.

- Umas leves desordens locais, senhora. Nada de importância. Descontentamento produzido pelo novo imposto e um pequeno raid a Touareg.

- A Touareg, tão longe ao norte! - exclamou Diana com

incredulidade.

Gastão sorriu novamente e procurou afastar de si qualquer responsabilidade pela informação.

- Isto é o que eles dizem, senhora - respondeu secamente. - Mas a senhora sabe como eles são, que não dizem nada, ces gens là! A Touareg - disse, rindo como se tal ideia o divertisse. - Há muitos descontentes que hão-de fazer tudo para prejudicar o governo ou para atingir os seus fins. O «véu negro» é muitas vezes útil - acrescentou significativamente, aludindo à corda de enforcar os condenados.

Diana compreendeu desde logo o que significavam aquelas palavras e sorriu, guiando a cabeça do cavalo em direcção ao acampamento.

- Útil, talvez - comentou - mas é necessário que ninguém seja castigado injustamente.

Mas Gastão, que se sentia perturbado à lembrança de haver certa vez surpreendido um relance de olhos do seu jovem senhor em direcção às terras da tribo temível e jamais dominada, não estava desejoso de continuar a conversação, que poderia levar a inesperadas revelações.

A senhora estava suficientemente abatida em razão da ausência do senhor. Seria, portanto, um crime aumentar-lhe o sofrimento com o relato das imprudências e diabruras do senhor Ahmed. Alguma coisa já ela sabia, mas não tanto como o senhor e como ele, Gastão. E não havia necessidade, de resto, que ela soubesse mais. O senhor Ahmed era moço, cheio de vida e vigor. Com o tempo tornar-se-ia mais velho e mais prudente, renunciando - queira Deus! - às loucuras da mocidade que, talvez, fossem devidas a um grande espírito que desabrochava. A vida era selvática no deserto, cheia de tentações, cheia de abismos. Além disso, era somentemente um rapaz, um amável rapaz que não pensava. Ainda havia tempo para ele aprender o que são as duras necessidades da vida.

Assim, com tais pensamentos, o devotado francês pôs-se a caminho, tagarelando sem cessar, enquanto os excelentes animais de raça venciam, rapidamente, a distância a percorrer até ao acampamento.

Ele era por vocação um contador de historietas, possuindo certa maneira humorística de manifestar as suas opiniões, e hoje, ardentemente desejoso de distrair os pensamentos de Diana, ele próprio se surpreendia com o acento dramático e original com que relatava uma engraçada altercação que tinha surgido entre dois homens da tribo e sentia-se bem pago vendo a angústia da senhora apagar-se pouco a pouco dos olhos e o riso com que ela acolhia o final da história contada.

- Que tempestade num copo de água! Que «crianças», Gastão! Traga-os amanhã para que me contem os seus males, se Yusef não puder dirimir a contenda.

Yusef poderia facilmente acomodar o caso, mas seria muito de duvidar que a esposa do seu chefe aprovasse os seus métodos. Diana dirigia o povo do mesmo modo com que dirigia os seus cavalos indómitos, mas os meios de que se servia não eram os mesmos do sheik, nem os de Yusef. Na ausência do marido sentia que era de seu dever pôr de acordo quantos fossem ao acampamento e tomavam lugar nos pequenos tribunais semanais de inquérito, acalmando brigas e ouvindo queixas pacientemente, por triviais que fossem os assuntos que lhe eram afectos. Conhecia aqueles pequeninos males que, não cuidados, fariam amadurecer frutos que seriam causa de não pequenas perturbações na vida da tribo. O Sol quase se tinha posto quando chegaram ao acampamento e, antes de entrar, Diana apertou as rédeas por alguns instantes, extasiando-se com o esplendor magnífico do céu e contemplando a longa procissão de camelos vagarosos que para ali eram levados a fim de passar a noite. Altaneiros e desdenhosos, os grandes animais desconformes caminhavam um a um, blaterando prazenteiramente ao passarem por alguma coisa que pudessem comer, indiferentes às pragas e imprecações dos rapazes de pernas finas que os conduziam. Os maiores já haviam atingido as linhas de limite, de onde provinha um horrendo coro de impertinências raivosas e protestos: somente alguns erradios tomavam todas as direcções e mostravam o seu descontentamento quando eram levados ao lugar que lhes competia.

Eblis detestava os camelos e corcoveou furiosamente quando um enorme, brutal, o incomodou com o seu talhe erecto e com as suas abertas e duras mandíbulas.

Gastão soltou um grito de aviso e uma dezena de árabes que estavam perto arremessaram-se em direcção ao animal enraivecido. Mas Diana dominou-o logo e afastou-o no momento em que ele pretendia exibir a rudeza do seu temperamento, empinando-se perpendicularmente e lutando com ela durante minutos em que as suas cabriolas teriam atirado ao chão um cavaleiro menos destro.

Rindo e arquejando, ela desceu para o chão e tratou de amenizar os seus revoltos sentimentos com um torrão de açúcar, com que lhe lambuzou as narinas macias, aconselhando o cavalo a que não reincidisse naquele mau procedimento. Os modos do animal modificaram-se como se se convencesse da justiça da repreensão, mas, não deixando de mostrar-se um tanto contente por ter demonstrado independência, pôs-se a aparentar um ar de grande inocência e consentiu em ser guiado pelos rapazes com docilidade quase igual à de um carneiro.

Depois de uma palavra a Gastão, Diana desapareceu na tenda para tomar banho e mudar de roupa. Uma hora mais tarde voltou à sala de visitas, onde Yusef a esperava com o relatório diário do costume.

Fazendo-o sentar-se perto do divã, Diana dispôs-se a ouvir-lhe o preciso e minucioso relato dos acontecimentos do dia, lançando-lhe um olhar de tempos a tempos e falando-lhe ora em árabe, ora em francês. Havia nele uns restos daquela cómica mocidade elegante que tanto a divertia quando o conheceu pela primeira vez. Bem posto nos seus trajes ainda se mostrava, mas a esbelteza abandonara-o para sempre. E embora tivesse apenas quinze anos mais que o filho do sheik, parecia consideràvelmente mais velho que o seu chefe. Casara cedo e já era pai de dois filhos que eram agora mais velhos do que ele era quando Diana foi trazida ao acampamento de Ahmed ben Hassan, e tinha adquirido a gravidade de maneiras que o fazia mais velho do que realmente era.

Os pensamentos de Diana voaram para esses dias ao sentar-se para lhe ouvir a voz apressada, alta, e, quando ele cessou de falar, teve de deter-se num momento de reajustamento mental antes de trazer o espírito para a hora presente. Ela conservou-o junto de si por mais alguns minutos, pedindo o seu conselho sobre as questões intrincadas que lhe apresentara e referentes a certas dificuldades sobre as quais ela queria mais conhecimento e experiência.

Nada lhe disse, porém, sobre a prolongada ausência do sheik, nem fez qualquer alusão ao filho estouvado que lhe estava causando tanta inquietação. E Yusef, também, seja que tivesse sido industriado por Gastão, seja por seus próprios instintos, absteve-se de mencionar o nome de qualquer deles durante a conversa. Era como se uma conspiração de silêncio tivesse sido tacitamente combinada entre todos. Mas cada um deles sabia o que ia pela mente do outro.

E como se desejasse fazer compreender o que não exteriorizava em palavras, os modos de Yusef eram mais atentos que de costume, bem como as suas saudações eram diferentes quando resolveu retirar-se.

Diana contemplou-lhe a figura e lançou-lhe um olhar furtivo. Quase desejava que ele tivesse falado. Mas que poderia ter dito?

Ele não conhecia mais do que ela as façanhas do sheik. Não era possível a este censurar o filho. E, de resto, o assunto tanto interessava a um como a outro. Se ela estava ansiosa, ele também o estava e com dobrada razão. Os seus filhos eram responsáveis pela segurança do rapaz, mas não tinham autoridade e jamais haviam manifestado a menor inclinação para lhe dirigir as acções. Ela encarava a situação com mais largueza de vistas que Yusef. O que quer que fosse que a ira paterna o levasse a fazer ou dizer, ela sabia que, do que pudesse ter acontecido, Ramadan e S’rir não seriam culpados. Só o rapaz podia responder pelas suas imprudências.

Com profundo dissabor mental ela dirigiu-se à escrivaninha, que abriu, e leu a mensagem que os spahis tinham trazido.

Era, como calculara, do governador militar do Saara e repetia, quase palavra por palavra, o que dizia na primeira carta, se bem que em tom de mais urgência, com termos mais expressivos, num apelo franco ao favor de um chefe que, embora independente e que não reconhecia qualquer suserania, era considerado como um amigo do governo francês. Pedia, implorava a cooperação de Ahmed ben Hassan, a quem fazia ver que os instigadores da desordem surgiam de cada canto da terra e procuravam febrilmente instigar as tribos minadas pelo descontentamento, e anotava as que poderiam ser contadas como leais ao governo.

Algum tempo depois da leitura da carta, Diana sentiu-se imersa em pensamentos, balançando nervosamente as pernas, seguindo com os olhos Gastão nos seus preparativos para o jantar. O general não se alongara em minúcias. Era patente que o Ministério do Interior, em Paris, estava alarmado. Qual seria a causa de um levantamento na Argélia? Que é que Ahmed tinha com isso?

Por um momento o rosto se lhe tornou mais pálido e a tenda pareceu dançar ao redor dela. Depois, com um esforço, retomou o domínio de si mesma.

Tinha fé no seu povo. Se as coisas piorassem e se tornasse necessário que Ahmed fosse tomar parte em operações militares, fora do seu próprio território, Deus lhe daria forças para que ela não o embaraçasse.

Leu a carta mais uma vez e guardou-a cuidadosamente.

Não lhe daria resposta nessa mesma noite: deixá-la-ia para o dia seguinte, pois não se sabe o que pode trazer o dia de amanhã.

E, durante o jantar solitário, conservou à distância as suas apreensões, palestrando com Gastão sobre frivolidades e comendo mais do que desejava, apenas por lhe ser agradável, apesar de sentir quase completa inapetência.

Quando acabou de ingerir o café e Gastão se retirou, embrulhou-se num albornoz e saiu, dando alguns passos para longe do toldo a fim de contemplar as estrelas.

Os pequenos candelabros do firmamento pareciam-lhe nessa noite menos brilhantes que de costume. Era noite de plenilúnio.

A Lua dos viajantes brilhava, admirada de tantas caravanas vagarosas que, naquele momento, palmilhavam grande amplidão de areia, aproveitando a luz clara, branca, que lhes facilitava a jornada. Via-as pela luz do espírito: - guardas armados que seguiam na frente, com os rifles nas mãos; longas fileiras de camelos, pisando com firmeza apesar de suas pesadas cargas de mercadorias, de grande valor, alguns trazendo envoltos nas cortinas alegremente dispostas os basours pendentes sobre que viajavam mulheres e crianças; e na cauda da procissão uma multidão muda de árabes cavalgando camelos e um pelotão de rapazes, que tinha a seu cargo a vigilância da longa linha de dromedários, e eram auxiliados por uma matilha de cães de guarda de selvático aspecto.

Quantas vezes tinha visto a realidade da cena! Tais caravanas tinham-se tornado uma parte da sua própria vida aquela vida estranha, primitiva, que era sempre a mesma, através dos séculos. Era sempre daquele jeito que os árabes viajavam, desde que o Islão penetrara na Argélia, e daquele mesmo modo viajariam nos dias de gerações ainda porvindouras.

A noite era calma e silenciosa e o ar macio, acarinhando-lhe o rosto, transportou até Diana os ruídos de uma festa distante: os sons lamentosos de uma gaita árabe, o bater rítmico de uma dança oriental, o cantar profundo de muitas vozes humanas. E longinquamente, do outro lado do acampamento, ela percebeu o ígneo reflexo de duas enormes fogueiras, entrevendo ao derredor delas, amontoados, os árabes.

Os risos que ecoavam naquele amplo cenário fizeram que Diana sentisse profundamente a tristeza da sua solidão e ela voltou-se para o criado com um sentimento de momentâneo alívio.

- Os homens estão alegres esta noite, Gastão.

- Sim, senhora. Promoveram uma festa em homenagem aos dois spahis que chegaram esta tarde. A senhora não gostaria de ir apreciar, por momentos, essa festa? Isso dar-lhes-ia prazer.

Diana sacudiu a cabeça.

- Hoje, não, Gastão. Não estou disposta. Estou cansada e aqueles homens notá-lo-iam logo. Não quero empanar-lhes a alegria. Mas esses spahis, Gastão, com certeza são feitos de ferro. Estavam mortos de cansaço quando chegaram.

Gastão riu-se da observação.

- Quando se trata de um divertimento, um árabe nunca está cansado. A senhora sabe disso. Dormirão amanhã e no dia seguinte, se assim o entenderem. Os seus cavalos também precisarão de dois dias de descanso, pelo menos. O barulho incomoda-a? Vou falar-lhes...

- Não, não - interrompeu ela - o barulho não me incomoda. Alegra-me vê-los contentes e felizes - concluiu, com um ligeiro tremor na voz.

Poucos minutos depois voltou à tenda. Quão vazia esta lhe pareceu! Quão fria e sem vida, sem a forte e vigorosa personalidade cuja dominadora influência lhe parecia estar em tudo quanto a rodeava. Toda a sala lhe falava dele, lembrando-lhe tantas coisas de uma longa coabitação, de dias e de noites de delirante felicidade, de um amor maravilhoso que nascera e se fortalecera numa mútua compreensão. Naquela noite tudo lhe parecia insuportável e com um leve suspiro correu para o dormitório, para se despojar dos vestidos, e caiu no leito, esperando encontrar, no sono, consoladora inconsciência. Mas o sono fugiu dela teimosamente e no leito lembranças mais íntimas, mais persistentes, a acabrunhavam.

No grande leito vazio, deitada sozinha, não precisou ocultar o sentimento de miséria e solidão que a desalentava e, enterrando o rosto nos travesseiros, chorou como nunca antes havia chorado.

Precisava dele. Sim, oh, Deus! Precisava dele! Mais vezes, anteriormente, durante muitos anos, ele partia com Raul de Saint Hubert e ela ficava angustiada naquele mesmo leito, temendo que o seu regresso fosse o fim do breve romance que tão estranhamente se desenrolava na sua vida. Então era ela somente a sua escrava, a vítima do seu capricho e paixão. Mas agora era sua esposa, uma parte integrante do seu ser. E, sem ele, parecia que uma parte da personalidade lhe fora arrancada, como se horrível amputação física lhe fizesse perder uma parte da vitalidade, toda a sua força, e o que ficara era apenas um frágil fragmento mutilado cuja única capacidade era a de sofrer.

- Ahmed, querido amigo!

Murmurou esse nome ansiosamente, com amor e desejo. Sentisse ela novamente o aperto dos seus fortes braços e ouvisse novamente o débil sussurro da sua voz, que tantas vezes a arrancara até das portas da morte! Quase morrera na noite em que os filhos nasceram, e somente a voz dele lhe dera força para lutar pela vida!

Exausta de emoções, cerrou os olhos, curtindo dores morais que jamais conhecera. Mas o sono teimava em não vir e hora por hora ela agitava-se febrilmente, ficando cada vez mais nervosa. A barulhenta alegria do acampamento cessara havia muito.

Somente o monótono tiquetaque dum relógio quebrava o pesado silêncio e ela, extremamente enervada, levantou-se para fazer parar, com dedos trémulos, gélidos, o pêndulo irritante.

Não voltou ao leito. O quarto tornara-se-lhe subitamente insuportável.

Envolvendo-se num quente casaco, saiu do quarto e dirigiu-se a outro em que havia luzes esquecidas, deixadas acesas, como sempre que ficava só.

Escolhendo ao acaso um livro, instalou-se num divã e procurou ler, já que o sono lhe era impossível. Mas depois de alguns minutos de leitura a atenção fugiu-lhe e ela sentou-se, afastando febrilmente da testa os cabelos em desordem.

A tenda parecia-lhe sem ar e quente, estranhamente quente, apesar da estação do ano. Talvez fossem as luzes que a aquecessem, pensou. E indo à porta, sem fazer barulho, descerrou-a, procurando não acordar Gastão que ali dormia, como sempre que o sheik se ausentava. Voltou a acomodar-se no divã, tentando ler, e gradualmente os nervos se lhe serenaram, a rigidez dos membros e do corpo amainou e ela descansou afinal, deixando de ouvir sons que nunca vinham.

Foi talvez a mudança da temperatura que a acalmou. Ou talvez o sono cedesse aos seus desejos e viesse. O que quer que fosse nunca ela o compreendeu, mas o facto é que a novela que estava tentando ler lhe fora arrebatada das mãos. E cabeceava, quando um som a despertou de repente, fazendo-a rodopiar nos pés, toda olhos e ouvidos.

Sem sentir a respiração, as mãos apertaram-lhe o coração, que batia, e ela pôs-se à espreita, procurando ouvir com um esforço que chegava às raias da loucura. O som foi repetido: o som duro dum camelo que protestava contra o tratamento dos seus condutores. Vozes humanas chegaram-lhe, também, aos ouvidos.

Então perpassou pela porta uma pessoa alta, que entrou pela tenda dentro.

Um momento depois apertavam-na os braços do marido, que ria entrelaçando-a. E apertando-a como se não a quisesse deixar fugir, o sheik cobria-lhe de beijos apaixonados a face transtornada.

- Ma mie, ma mie - murmurava com voz trémula, os olhos penetrantes envolvendo-a em profunda ternura. - Demorei-me, minha pobre e doce mulherzinha? Pensas que me demoraria tanto se o contrário me fosse possível? Sabes como contei dias e noites, esperando tornar a ver-te? Bon Dieu, como eu estava faminto de ti, Diana!

O aperto dos braços fortes era excessivo, mas Diana nada sentia. Os seus lábios nos dele, confessava-lhe a felicidade de que se sentia possuída e os temores que a sobressaltavam, as mãos tacteando-lhe o peito largo, como se procurasse convencer-se de que ele lhe voltara são e salvo, os olhos procurando penetrá-lo para lhe ler nas faces a resposta a perguntas que a sua voz não ousava articular.

E assim foi até que o abraço terminou, até que os dedos perscrutadores encontraram o pano de uma ligadura na parte superior de um braço, o que a fez empalidecer, horrivelmente assustada.

- Ahmed! Estás ferido?

Ele sorriu complacentemente e empurrou-a com uma quente carícia.

- Não é nada, chérie. Não tenho ossos quebrados. Estarei curado em um ou dois dias - disse displicentemente, voltando-se em busca dum cigarro.

- Mas... como? - murmurou, opressa, com os olhos a sondar-lhe todos os movimentos.

Ele encolheu os ombros, como se a insistência o impacientasse, e chupou demoradamente o cigarro, aspirando uma grande baforada, com o ardente prazer de quem havia muito não sabia o que é bom fumo.

- Foi num desfiladeiro que me surpreenderam com atroz fuzilaria - disse numa expansão.

A experiência de Diana fê-la compreender que nada mais ouviria sobre o assunto. Não era do agrado do sheik falar de si mesmo ou exagerar o que ele considerava ninharias.

Ela acompanhou-o até o divã, onde se acomodou.

- Achaste o que procuravas, senhor? Queres contar-mo esta noite, ou estás cansado demais? - perguntou hesitante, notando pela primeira vez, à luz da lâmpada, quanto os seus olhos pareciam enfraquecidos.

Ele apertou-a nos braços, atraindo-lhe a cabeça.

- Estou cansado - concordou, em tom que mostrava que tão pequena concessão lhe custara um penoso esforço. - Estou tão cansado que acredito que vou dormir uma semana inteira - volveu meio envergonhado - mas posso contar-te um pouco esta noite, até Gastão chegar. Ele me trará alguma coisa que comer. Há dois dias que não sei o que é isso.

Riu-se novamente ao ouvir a exclamação de espanto que ela soltou, e procurou outro cigarro.

Durante momentos ele ficou sentado em silêncio. - Sabes o que fui procurar - disse finalmente. - Foi a origem desta estranha inquietação, deste inexplicável desassossego que se apoderou de todo o país. Assim vinha sendo há muito tempo. Começou, tanto quanto posso saber, há muitos meses e Deus sabe quanto tempo antes. A princípio, eram vagos rumores que rebentavam de todos os lados, tomando, por último, uma expressão definida. Por toda a parte aonde eu ia, era a mesma coisa. Parecia-me alguma influência misteriosa e sinistra distendendo-se por todo o país, estimulando o povo para um propósito que ele não podia discernir. Velhos ódios reviviam, velhas reivindicações ressurgiam. Mas não eram somente questiúnculas antigas que levantavam as tribos. Deliberaram um levantamento contra os franceses. Ouvi anciãos pregando um jedah. Urdiam-se histórias de um povo oprimido. Impostos que dantes se consideravam razoáveis foram discutidos e proposta a sua rejeição. Ouvi narrativas que tinham o sabor duma fantasia mórbida. Falava-se dum conquistador que vinha do Norte para subverter a administração actual e dominar o país como Sidi Okba ben Nafi, quando trouxe o Islão para a Argélia.

«O seu advento é tido como o milénio, que descerrará a cortina duma pátria de prosperidade e liberdade sem limites. Todos os estrangeiros e todos os que simpatizam com os estrangeiros seriam expulsos e a Argélia seria dos argelinos - não franco-argelinos, como compreendemos o termo, mas árabes, bem entendido. Como isso poderia acontecer com a dominação de outro conquistador estrangeiro, é coisa que não me é possível compreender. Tudo isso é absurdo e contraditório até o infinito. Mas é o boato que circulou e sobre isso todos argumentavam e especulavam. Era um vento de maldade que soprava sobre o país, como na Índia antes de Mutiny. As suspeitas avolumavam-se e ninguém sabia em quem confiar, em quem acreditar.

O sheik calou-se subitamente, com o rosto endurecido. E, conquanto as revelações feitas a aturdissem, Diana

sentou-se, patenteando irresistível interesse por descobrir o sentido das palavras ditas. Era, pois, pior do que ela imaginava. Que resultaria de tudo isso?

- Foi isso somente o que descobriste? - perguntou num murmúrio.

- Não! Descobri mais algumas coisas - volveu ele vagarosamente. - Descobri algumas coisas que serão deveras desagradáveis para certas pessoas, se o governo francês tiver conhecimento da tempestade que se prepara. Há um facto de que cheguei ao conhecimento, após aturadas pesquisas, e vem a ser, em toda a sua natural brutalidade, o seguinte: o povo está sendo excitado por agitadores a soldo dalgumas nações estrangeiras. Não pude chegar ainda à raiz de tudo, mas já estou nas pegadas dos demónios que engendraram toda essa trama - acrescentou num tom de voz que a encheu de terror.

Ela tinha-o de volta, mas horrorizava-se com o resumido relato da obra perigosa em que se aventurara. Afugentou de si os pensamentos, disposta a ser feliz enquanto lhe fosse possível.

- Mas como chegaste a saber isso tudo, Ahmed? És muito conhecido. Como conseguiste que falassem tão abertamente? - perguntou espantada.

Ele mostrou-lhe as vestes sujas do disfarce que usara no desempenho da missão a que se votara, vestes essas tão diferentes das ricas e limpas que sempre usava.

- Eis aqui os meus trajes - disse com acento infantil - e dá graças a Deus por me haveres encontrado somente depois que lavei a imundície que havia no meu rosto. Representei o papel dum errante menestrel, um domador de cavalos e um santo - um nojento homem sujo, ma mie! Havia vezes em que não sabia se te desejava mais do que a um banho - acrescentou, calando-se, porque Gastão chegava com a ceia. Ela compreendeu que de momento nada mais podia esperar dos seus lábios e que ele tinha dito tudo o que poderia dizer naquela noite. E estava tão contente que de bom grado deixaria o resto para depois. Era-lhe bastante saber que ele ali estava salvo ao seu lado, ao menos por algum tempo. E mais alguma coisa a fazia guardar silêncio enquanto ele comia aquela rápida refeição que lhe fora posta. A despeito da felicidade que sentia, ela temia a pergunta que ele inevitavelmente lhe faria.

Ele levantou-se finalmente e, chegando-se a ela, arrebatou-a nos seus braços, com os olhos negros a reluzirem como se procurassem alguma coisa oculta nos dela.

E as suas palavras trémulas ruborizaram-na. Trémula também, ela encostou o rosto dele ao seu peito, sussurrando coisas incoerentes. Mas, com um macio riso de satisfação, ele levantou a cabeça, forçando-a a corresponder aos seus olhares apaixonados.

- Depois de tantos anos, Diana, ainda és uma criança. Não cresceste ainda, minha esposa?

E, com outro riso, deixou-a ir e voltou-se para apagar as lâmpadas.

- Creio ser inútil perguntar-te porque encontro a tenda resplandecendo de luz a esta hora, mas com humildade te pergunto se dormiste enquanto estive ausente ou se trocaste as noites pelos dias. Que fizeste, ma mie, daquele menino que deixei para te fazer companhia? Creio que ele não te fez perder muitas horas de sono por minha causa.

Foi o silêncio e alguma coisa que lhe baniu do rosto o sono que lhe emprestaram à fisionomia algo que a fez mudar completamente de expressão. Ele despiu o velho albornoz com um gesto de raiva.

- Onde está o rapaz, Diana? - disse em tom incisivo, esperando em vão uma resposta. - Responde-me!

Era a velha voz de comando a angustiá-la tanto como se durante muitos anos não a ouvisse, os olhos cheios de lágrimas e as mãos levantadas para ele num gesto de misericórdia implorada.

- Não sei, Ahmed, e nem quero saber! - gritou com um gesto de desespero.

Ele apertou-a, beijando-a com irresistível ternura.

- Pelo amor de Deus, não grites, querida. Nem hoje nem em qualquer outra noite. Não estou a censurar-te. Mas avisei o rapaz antes da minha partida. Fi-lo compreender que era o responsável, grand Dieu, e deixei-te ao seu cuidado!

- Mas Ahmed é ainda uma criança. E há Yusef e Gastão...

O sheik balançou iradamente a cabeça.

- É um homem já, Diana! - replicou com súbita dureza - e terá de responder por isto como homem. Bon Dieu, se ele tem tão pouca noção da honra, tão pouca noção da decência!... Há quanto tempo partiu ele?

- Seis semanas - ciciou, tremendo.

- Quem foi com ele?

- Ramadan e S’rir.

- Um trio completo - ironizou com um sorriso amargo.

- Sem nenhuma outra escolta? Quando ele sabe em que estado se encontra o país. Que imprudente!

Ela desfaleceu e agarrou-se a ele, com um suspiro.

Soltando uma praga ele agarrou-a nos braços e carregou-a pelo quarto.

- Não te apoquentes, querida - murmurou, deitando-a no leito. - Ele voltará sem novidade. É assim que fazem os carneiros negros. Sei-o, porque também já fui assim. Deus me ajude, Deus o ajudará - acrescentou, despindo-se.

 

A paz do céu pousava sobre o único hotel que existia na pequena cidade árabe de Touggourt.

Na fria, sombria sala de entrada, o forte patron francês, resguardado por sua caisse, estava enterrado em pretensiosa cadeira de braços, roncando sonorosamente, com a enorme cabeça coberta por um lenço de seda de cores berrantes, que ondulava maciamente ao sopro da respiração pesada do hoteleiro.

Por uma janela aberta, que do lado oposto à caisse levava a um quarto grande que era meio salão de jantar, meio de recreio, provinham sons semelhantes, de uma soneca mais ou menos pacífica dum numeroso grupo de caixeiros-viajantes que, bem alimentados e cansados de outras sociedades, auferiam as melhores vantagens duma estação de forçada ociosidade.

Perto da porta do salão, três ou quatro mensageiros árabes, ligados ao estabelecimento pelos interesses de sua profissão, de cócoras, as costas voltadas à parede, as cabeças caídas sobre o peito, perdiam-se em insone meditação.

Do lado de fora o beco estava deserto. Durante uma hora nenhum ser vivente passara pela frente do hotel, a não ser um gato que fugia à perseguição de dois enormes cães famintos, sem raça, que se entregavam àquele exercício venatório com entusiasmo. Um miserável jumento, meio faminto, de ar tristonho, tinha vagueado pela rua toda e agora parara por um momento em frente à porta do hotel, soltando um zurro prolongado, de intensa tristeza, para depois prosseguir em sua caminhada ziguezagueante, escarvando furiosamente o chão.

Em cima, no seu quarto particular, Raul de Saint Hubert estava sentado a uma mesa grande e escrevia.

Durante as duas horas que haviam decorrido após o lanche, não tinha deixado de trabalhar, a não ser para acender um ou outro cigarro e juntar mais algumas pontas à pilha que se amontoava no cinzeiro e para responder brevemente, às vezes por monossílabos, às perguntas e observações dum baixo e bonito rapaz que dormitava numa cadeira ao pé duma janela aberta. Essas interrupções, contudo, estavam a tornar-se cada vez menos frequentes e por último cessaram, convencendo-se Raul de que o seu companheiro dormia a sono solto. Mas Caryll João Aubrey, visconde de Caryll, estava longe de dormir.

A barba firme sobressaía, as sobrancelhas cerravam-se em formidável carranca que lhe era o único ponto de parecença com a família de seu pai, e o visconde estava mentalmente passando em revista uma situação que a cada momento mais lhe parecia insípida, desagradável.

Odiava a necessidade que o tinha arrancado do país em que vivia, onde tudo lhe parecia bom e onde residiam os seus interesses e, amargamente hostil ao pai que para ele não era mais que uma como reminiscência da fantasia, deplorava a cada minuto estar fora da Inglaterra, e lamentava ter-se empenhado na empresa em que se metera e pela qual era o único responsável. Tinha procedido bem? Ou tinha sido somente um louco inconsciente, por demais escrupuloso?

Semanas a fio vinha fazendo essa pergunta a si mesmo, sem poder chegar perto da solução do problema. Ouvindo agora o ruído que fazia a pena solícita com que Raul escrevia, achou-se de novo às voltas com essa obsessão e carregou ainda mais o cenho.

Estava, porém, convicto de que procedera bem. E, graças a Deus, estava seguro das suas razões. Não fora o interesse próprio o que o trouxera à Argélia. E, estando aqui, o negócio tinha de ser levado ao fim, fosse agradável ou desagradável, e por enquanto poderia descansar.

Resolutamente desviou a corrente dos seus pensamentos, ladeando a dificuldade com uma presteza que era o resultado dum treino deliberado.

Era modesto demais para admitir, mesmo de si para si, que um nítido sentimento do dever o tinha impelido para um caminho que, agora, no seu próximo término, lhe causava profundo aborrecimento.

O dever sempre fora a força motriz da sua vida. Imbuíra-se dele desde que se sentira com idade suficiente para compreender alguma coisa, isso juntamente com um elevado sentimento das suas obrigações morais e das responsabilidades a que o céu fora servido chamá-lo.

E ignorante, como era, da tragédia que havia abalado a vida do avô, jamais lhe perpassara pela mente a ideia de que a cuidadosa educação que recebera era um dos muitos meios pelos quais o coração quebrantado do ancião procurara reparar os seus próprios desatinos.

O seu crescimento fizera-se em condições excepcionais. Desde a infância ordenada e metódica, a constante companhia daquele velho tinha fortalecido os seus preconceitos e tinha-lhe imprimido um ar de gravidade que não condizia com o verdor dos seus anos.

Não tendo conquistado lauréis académicos e não tendo muita destreza nos jogos, era, contudo, popular e querido como um bom desportista. A sua carreira em Eton não fora cheia de peripécias. Sempre preocupado com o precário estado de saúde do avô, pouco frequentara escolas, para se lançar, de coração, na tarefa que era o objectivo da sua vida.

Era trabalhador tanto por instinto como por educação e durante dois anos tinha trabalhado como um escravo para se assenhorear das minúcias da administração dos vastos territórios que considerava como um depósito sagrado.

Manter as tradições do seu nome antigo e ser um proprietário modelar, eis em que consistia a sua única ambição, ao mesmo tempo que só nos desportos encontrava alguma distracção.

E era nesse seu único divertimento que pensava enquanto Raul escrevia. Até o desporto lhe faltava neste pobre país - pensava, a mente submersa na saudade da sua espingarda de caça, que deixara solitária no seu quarto na Inglaterra.

- Espera até estarmos mais longe no sul. Sentia-se cansado dessa reiterada observação. Tudo estava bem para aquele pachorrento tio Raul, que não perdia momento algum para prosseguir na sua interminável escrita, qualquer que ela fosse - pensou consigo. - E o tio Raul era francês e era difícil supor que um francês fosse tão activo como um inglês. E, entretanto, isso não era exactamente verdade - continuou Caryll nas suas divagações, renegando o criticismo mental com um olhar contrito para aquela figura sentada à mesa. O tio Raul era um desportista tão arrojado como os que mais o eram. Era só esperar, esperar até que chegassem «mais longe no sul». Mais longe no sul! Oh, sul maldito! E ele que pensava que havia batido àquela porta só por um ou dois dias! O famoso sobrecenho de Caryll carregou-se mais ainda ao galopar de intrusos pensamentos que turbilhonavam na sua mente agitada. Foram as taciturnas passadas do pobre jumento que vieram pôr fim às suas penosas reflexões. Com uma imprecação desceu ao estreito balcão que se projectava da janela e chegou à rua.

O rosto anuviou-se-lhe ao ver o pobre quadrúpede prosseguir, faminto, o caminho que levava à praça do Mercado, então vazia.

- Quase morre de pé e ninguém se apieda dele - murmurou com ira. - Que terra, meu Deus! Que povo, Deus meu!

Condoía-se muito daquele animal e, praguejando, tornou a recolher-se ao seu quarto.

- Quanto tempo mais teremos de esperar neste buraco que Deus esqueceu?

Foi um tanto neste tom que se dirigiu a Raul, que, mirando-o por cima do trabalho em que estava empenhado, o fitou sem responder. E quando falou não foi para responder à pergunta:

- Que é que agora vos apoquenta, Caryll? - inquiriu calmamente com simpatia e, contrariamente aos seus hábitos, em língua inglesa.

O rosto do jovem corou e os seus olhos irados submeteram-se ao interrogatório de Raul.

- Oh! Sempre a mesma coisa - resmungou com impaciência, como se estivesse meio envergonhado dos seus próprios sentimentos, tipicamente inglês na relutância em admiti-los. - Um pobre bruto, um jumento, que seria obra de caridade matar com uma bala.

A sua voz foi tomada de súbita indignação.

- Porque será que o diabo não arranca de tal miséria estes desgraçados animais? Este lugar é pior do que qualquer outro em que tenhamos estado. Preciso sair daqui, senão adoeço. Bom Deus! É revoltante, execrável! Por amor de Deus, porque não deixamos esta cidade idiota?

Raul fez uma careta e pôs-se a coordenar a papelada que enchia a mesa. Dotado de sentimentos humanos, mas endurecido para os quadros tristonhos que o outro achava insuportáveis, procurou evitar o reinício duma controvérsia já tantas vezes surgida.

- Não posso dizer mais do que já disse - redarguiu pacientemente - e não podemos sair daqui sem saber para onde. Devemos esperar até que nos cheguem notícias sobre o lugar em que está agora o acampamento. Devemos estar prontos para partir logo que tais notícias cheguem - continuou, empilhando as folhas de papel escritas e balançando-se na cadeira enquanto acendia outro cigarro.

«Em vista das recentes desordens, as autoridades estão a negar licença para quem quer que seja seguir para o sul. Considerai os protestos desses caixeiros-viajantes lá em baixo, que tiveram ordem de deixar o sul imediatamente.

«Somente por causa de vosso pai ser muito conhecido, e por minha causa, porque também sou mais do que conhecido, nenhuma dificuldade nos foi criada. Mesmo assim, o comandante insiste em mandar connosco uma escolta até encontrarmos gente de vosso pai. Eu, pessoalmente, não acho que isso seja necessário, mas o coronel Mercier está mais ansioso do que nós de evitar alguma contrariedade e de nos facilitar tudo que seja possível.

Disse isto e olhou profundamente para o companheiro.

- Penso que ignorais qual é aqui a vossa posição - continuou vagarosamente. - Neste país é alguma coisa ser filho de Ahmed ben Hassan. Tendes motivo para vos orgulhardes de vosso pai, Caryll.

Era uma provocação calma mas directa. E, embora esperasse uma resposta desagradável, não estava preparado para a violenta explosão que as suas palavras causaram. Como se Raul o houvesse ferido, Caryll deu uma punhada violenta na mesa que estava entre ambos e o seu rosto tornou-se lívido.

- Orgulhar-me de meu pai! - exclamou com calor. Orgulhar-me de ter por pai um árabe híbrido!...

Nem mesmo a severa reprovação de Raul conseguiu deter o dilúvio da amargura, que, recalcado durante anos, rebentou por fim.

Passeando pelo quarto com passo duro, irritado, Caryll fez com as mãos um gesto de supremo escárnio.

- De resto, quem é ele? - indagou furiosamente. - E que fez jamais para que dele se tenha orgulho? Devo ter orgulho de ele me haver abandonado durante tantos anos? Orgulhar-me porque ele quebrantou o coração do seu próprio pai deixando o pobre ancião morrer sem ir vê-lo? Pensais que posso esquecer isso? Pensais que posso esquecer a morte do meu avô e as suas palavras trémulas, murmuradas no derradeiro instante: «Meu filho, meu filho!» Meu Deus, como isso é atroz! E ainda quereis que me orgulhe dele! Foi somente uma fresta que me permitiu compreender a dor da vida do meu avô, quando vi bem o que significavam para ele as vossas visitas. Infundia piedade a agitação que dele se apoderava quando chegáveis e pior ainda vê-lo na ocasião em que partíeis. E quando ficáveis connosco e sucedia estarmos juntos no quarto, eu procurava ouvir-vos falar de meu pai, invejando-vos porque podíeis vê-lo e eu não podia. E, então, amaldiçoava o homem que fazia sofrer aquele nobre ancião. Meu Deus, como eu o odiava! E pensais que me era agradável ser conhecido, toda a vida, como «o filho daquele povo extraordinário que vive no deserto»? É talvez uma amabilidade, mas eu odeio o convencionalismo. Já na escola, por causa disso, a minha vida era um inferno que me acompanhou a Eton. Cresci detestando as próprias sílabas do meu nome e o mistério que o rodeava. Mas todos pareciam conhecer esse mistério ou supunham conhecê-lo. Eu era apontado como uma espécie de raridade aos ouvidos de outras mães e irmãs. Era «um dos estranhos Caryll» e meu pai era uma espécie de estróina, que, por ter feito das suas, fora expulso do seio da família. Como poderia explicar-lhes que era um chefe árabe? Um chefe árabe, bom Senhor! Eu queria ser filho de pais decentes, iguais aos outros, semelhantes aos seus concidadãos. Mas isso não é o pior. Quem não sabe o que é a tagarelice das comadres, que em mim viam o filho de um homem que... que...?

Sentou-se exausto, arrastou a cadeira para perto da mesa e enterrou a cabeça nas mãos.

Era um desabafo franco, maior do que Raul podia esperar, apesar de nunca anteriormente haver o magro, sensível rapaz, derrubado a barreira de reserva que tinha levantado ao derredor de si, deixando nela encerrados os seus sentimentos íntimos, sem jamais deixar sequer entrever a morbidez chocante que lhe envenenava a vida jovem.

E agora, ante o seu encolher de ombros, viu-se Raul novamente às voltas com o problema que durante tantos anos o perturbara.

Teria justificação que continuasse a esconder o conhecimento que tinha, ou era seu dever esclarecer Caryll, como só ele poderia fazê-lo?

O amor que ligava o avô e o neto era maravilhoso e para Caryll o velho era o protótipo de tudo o que é recto e honrado. Deveria destruir a fé do rapaz e derrubar o seu ideal, dando-lhe brutalmente conhecimento de factos verídicos, de uma velha história de sofrimento e maldade? Já uma vez tivera necessidade de contar essa história. Mas Caryll recebê-la-ia como sua mãe a recebera? Daquela vez a história fora contada para justificar o homem que era o melhor amigo de Raul. E não havia agora a mesma razão, talvez maior ainda? Era impossível que Caryll concordasse em ficar na ignorância, sem oportunidade para julgar por si mesmo depois de conhecer os factos que haviam ocorrido entre o pai e o avô.

Raul foi vagarosamente para o outro lado da mesa, mas, ao colocar as mãos nos ombros de Caryll, foi tomado de chocante indecisão, e reteve a revelação que estava prestes a fazer.

Ainda não. Esperaria um pouco mais, esperaria até que se reunisse, como se projectava, a família, até que o jovem ficasse conhecendo o amor de sua mãe e que um conhecimento melhor do pai, que odiava agora, lhe facilitasse a narrativa. Mas tinha de dizer alguma coisa.

- Meu caro rapaz - começou, para logo parar com hesitação.

E já sem sentir descanso para a cabeça entre as mãos, foi a voz fresca de Caryll que se fez ouvir.

- Tudo está certo, tio Raul - disse, sacudindo-se, conservando a cabeça nas mãos. - Entristeço-me de ter sido um tolo. Esquecei, peço-vos. Tinha de falar, aquilo já durante anos me agoniava. E não me fiqueis considerando um bruto. Compreendeis tudo. Tendes sido sempre para mim um óptimo amigo.

A voz tremia-lhe horrivelmente na garganta. Levantou subitamente a cabeça e agarrou a mão de Raul com tanta força que o francês gemeu.

- Porque sois tão bom para mim, tio Raul? Porque tanto fazeis por mim? Vós e aquele santo ancião conseguistes fazer-me sentir a necessidade de um pai e fizestes-me compreender, mesmo mais do que o possível, quanto ele me amava. Desejo dizer-vos o quanto vos sou grato. Mas a minha língua trai-me e eu não sei expressar-me. Tendes sido para mim mais do que um pai, tio Raul, e eu gostaria, por Deus, que fôsseis meu pai!

Atrás dele, Raul de Saint Hubert permanecia silencioso, satisfeito por o seu rosto estar oculto, em luta com emoções que quase o estrangulavam.

As últimas palavras, que nada mais eram do que a expressão dum afecto, assumiram uma significação mais profunda para aquele que as ouvia. Seu filho, poderia ter sido. Era a imagem viva da mulher que ele adorava. Esse pensamento era como uma espada levantada sobre uma ferida aberta, gotejante. Os seus olhos negros encheram-se de dor e teve de lutar de novo com o amor imperecível que há tanto tempo trazia oculto, causando-lhe uma dor que nunca o deixava.

Durante vinte anos havia representado o seu papel e guardado o seu segredo. Tinha permanecido como amigo dela.

Era o amor de Ahmed, não o seu, que ela queria. Satisfazer-lhe o desejo do coração, era coisa que o levaria até a morte, mesmo que fosse restituir aos seus braços o homem que tanto mal lhe fizera. E a felicidade que constituía o objecto das suas orações chegara a ela, e a felicidade daquele ser era para ele de mais valia que a sua própria.

Ahmed jamais suspeitara de coisa alguma.

Sem egoísmo, não havia amargura no coração de Raul e a sua amizade ao sheik tinha resistido às maiores provas.

Amigo de ambos, visitava-os sempre que as circunstâncias e o ânimo lho permitiam. E ninguém, a não ser ele mesmo, sabia a dor que lhe causavam tais visitas.

Sempre as temera e ainda agora tremia à visita próxima, cobarde e tolo que era! Fechou brutalmente o espírito ao presente, admirado de Caryll haver falado tanto. A sua agitação passara despercebida.

Temeroso de si mesmo, temeroso duma situação que chegara à máxima tensão, compreendeu que uma resposta banal seria a única possível. Forçou um riso que, embora algo agitado, parecia bem natural.

- Isso faria de vós um francês, quando não sois mais que um súbdito de John Bull - disse vagarosamente. - O que dissestes penhorou-me muito, naturalmente. Mas deixai de proferir palavras molestas quando alguma coisa vos angustia. Esperai até ver vosso pai.

A sua sinceridade e a profunda admiração que transpareciam da sua voz não davam azo a dúvidas. Caryll proferiu alguns sons inarticulados e aproximou-se da janela aberta, ali ficando com as mãos enterradas nos bolsos.

- Deve haver alguma coisa de bom nele - disse por fim - visto que o acompanhastes todos estes anos. Mas sois seu amigo e isso torna-vos suspeito. Não podeis vê-lo como eu o vejo e como os outros o vêem. Deus sabe que não quero julgá-lo superficialmente, mas há muita coisa que quero que me expliquem. Pouco sei. Sei somente que por qualquer motivo, que ele conhece melhor que ninguém, toda a vida a tem passado no deserto, como árabe, no meio de árabes. Que encontrou aqui minha mãe e com ela se casou. Mas mesmo que ele prefira passar por um potentado oriental e ser o chefe duma horda de ladrões sujos, não pode afastar o facto de que tem responsabilidades e obrigações fora da Argélia...

- Ele reconheceu essas obrigações quando vos enviou para a Inglaterra a fim de o substituirdes - interrompeu Raul - e não podeis lançar-lho em rosto porque com isso só tivestes a lucrar consideràvelmente.

- Mas, bom senhor, é justamente isso o que eu discuto - replicou Caryll, prontamente. - Está errado, fundamentalmente errado. Ele é Glencaryll, não é? Não tem ele outros deveres além de o vir viver entre estas bestas árabes? - rosnou com indignação, franzindo a testa em direcção a Raul, que havia voltado para o seu lugar junto à mesa.

- Era ele mais velho que vós, Caryll, quando soube que não era árabe e ouviu falar em Glencaryll - replicou Raul. - Nascera no deserto, crescera no deserto e aprendera os seus deveres para com a tribo antes de lhe passar sequer pela mente que possuía outra herança. O conhecimento disso veio tarde de mais para poder influenciá-lo.

«Por instinto era um árabe, amava os árabes, e desde cedo se educara para se conservar fiel àqueles de cujo seio havia surgido. Se supondes que a coisa era fácil, estais enganado. Os homens da tribo de ben Hassan são muito diferentes dos árabes que até agora encontrastes. São um povo guerreiro, o que torna necessário que haja um homem que governe. A vida do vosso pai tem sido árdua e trabalhosa. E mesmo que não houvesse razões que o impedissem de visitar a Inglaterra, duvido que fosse possível achar um político sábio que o pudesse substituir.

O rosto atribulado de Caryll fez-se zombeteiro.

- Concordo plenamente. Que belo lugar para a gente viver! - disse com ira mal disfarçada. - Mas, dado que tudo assim seja, presumo que as mesmas razões se aplicarão à minha mãe.

Havia uma estranha mistura de sofrimento e provocação na voz daquele jovem, o que fazia com que Raul compreendesse, mesmo mais do que antes, quão profundamente enraizado e amargo era o ressentimento que Caryll nutria contra os pais. A sua posição parecia-lhe cada vez mais difícil e embaraçosa.

- A vida da vossa mãe também tem sido muito afanosa - afirmou vagamente, traindo o desejo apaixonado de defender a mulher amada e o temor de tornar ainda maior a injúria. - Mais afanosa do que podeis supor. Ela tem trabalhado infatigavelmente para melhorar a sorte das mulheres e crianças que a cercam. Por exemplo, foi graças inteiramente a ela que a oftalmia quase foi extirpada da tribo.

- Os próprios filhos têm sido o alvo principal das suas actividades - interrompeu Caryll com amargura.

O rosto de Raul encheu-se de ira.

- Serenai, Caryll - disse a custo. - Se tivesse havido necessidade real, vossa mãe teria movido céus e terras para satisfazê-la. Mas na sua vida não há sequer um dia de ociosidade. Sois tão forte como um touro e duplamente sadio. Ora, sendo assim, nunca houve causa de ansiedade a vosso respeito. Não creio que vossa mãe jamais precisasse ver-vos. Esta separação tem sido a única tristeza da sua vida. E, além de tudo, ela não tem tido liberdade de fazer o que entende - acrescentou ainda mais vagarosamente, com indisfarçável embaraço. - Vosso pai sempre esteve muito ligado a ela e, naturalmente, ele tem os instintos do povo no meio do qual habita. Ela nunca pôde ir ver-vos, isto é, nunca lhe foi possível...

Raul gaguejava e Caryll despertou-o com cáustica presteza.

- Não batais nessa tecla, tio Raul, quereis dizer que ele não consentiu que ela fosse...

Raul desviou o olhar. Sem desejo de prolongar uma discussão que já tinha ido muito longe, e repugnando-lhe pedir desculpas pelo que lhe ia no coração, respondeu com um rápido gesto de aquiescência, não tomando em consideração os comentários que se sucediam.

Profundamente ligado a Caryll como era, e compreendendo perfeitamente a dificuldade da sua posição, Raul começava a sentir a dureza de uma situação que, desde o princípio, tinha sido insustentável.

A intolerância do jovem e os preconceitos britânicos que o oprimiam, fazendo-o descortês, certa ocasião tinham sido minorados numa breve permanência em Paris. Uma vez na Argélia, porém, tinham novamente rebentado sem reserva. Durante a viagem de comboio a Biscra e subsequente cavalgada a Touggourt, não tinha guardado segredo sobre os seus sentimentos, criticando e condenando livremente. Não encontrara beleza no país e parecia votar ódio aos seus habitantes. Sob o seu pitoresco exterior ele só vira imundície e fealdade que lhe faziam afastar-se fastidiosamente e evitar, tanto quanto possível, qualquer identificação com aquele país.

E agora, quase no fim da jornada, a sua atitude ainda mais hostil se mostrava.

A estada forçada em Touggourt, excitando-lhe ainda mais os nervos agitados, mais fortes tornara os seus preconceitos e a sua intolerância. Tinha sido reservado e nada cordial tanto com as autoridades militares francesas, como com os chefes árabes locais, que tanto desejavam entreter relações com ele, e muitas vezes o tacto e a paciência de Raul operaram milagres para aplainar dificuldades e desfazer aparências.

E não tinha sido coisa fácil, pois que já no primeiro intercâmbio de hospitalidade Raul tinha sido compelido a deixá-lo entregue aos seus próprios defeitos. Não fora somente a necessidade de acompanhar Caryll que tinha levado o francês à África. Viera também para realizar uma empresa que muito de perto lhe falava ao coração e, imerso na obra relativa a essa empresa, fechava-se sozinho no quarto horas e horas, escrevendo por disfarce, e recebendo grande número de nativos que tinha recrutado e de chefes e marabutos que fingiam de mendigos e cuja imundície e andrajos provocavam no sobrinho o máximo desgosto. E solitários vagabundos, não os considerava companheiros de modo que nem o servo árabe de Raul e o mensageiro do hotel que os acompanhara podiam reconciliar Caryll com o ambiente, nem suavizar-lhe a índole. Era o pensamento de que tinha de deixá-lo de novo que angustiava Raul, enquanto punha em ordem os seus papéis, deitando-os num portefeuilles que fechou à chave, e que depois foi acomodar sobre uma mesa ao lado. Depois dos seus desabafos, Caryll votara-se a absoluto silêncio, sentado na cadeira de vime para onde voltou. Não se movia nem levantava a cabeça quando Raul foi até a janela aberta e, cruzando as pernas, falou, de costas meio voltadas para o quarto.

- Entristece-me ter de deixar-vos mais uma vez, meu caro, mas é-me forçoso fazê-lo esta tarde. E à noite vou jantar com o cádi e com o filho, que ontem vieram visitar-nos. Sei que não gostaríeis de ir comigo. E como o cádi não tem intérprete francês, farei do vosso desconhecimento da língua árabe uma desculpa suficiente.

Os seus esforços para fugir ao assunto das conversas anteriores pouco resultado produziram. Ainda sentindo sangrar-lhe as feridas abertas, as respostas sarcásticas de Caryll eram uma provocação para novas discussões.

- O meu irmão mais novo parecer-se-á com aquele sujeito?

Quase com a paciência esgotada, Saint Hubert sentiu a reacção do temperamento, mas o riso que a observação lhe causou casava-se com um sentimento de piedade ao fazer um paralelo entre o vigor atlético e as sadias faces do Ahmed ben Hassan mais novo e a grosseira e debilitada figura do jovem cádi, cujas feições pálidas e olhos sensuais lhe haviam produzido no dia anterior impressão tão desagradável.

- Não vejo vosso irmão há uns dois anos - afirmou. - Mas, como já vos disse, porque não esperais até poderdes ver e julgar por vós mesmo? E porque fazer comparação com aquele infeliz rapaz? Em todas as nações há degenerados. Tendes mesmo de confessar que, desde que estais na Argélia, tendes visto inúmeros árabes de físico soberbo que não envergonhariam qualquer país. Não críeis mais obstáculos, Caryll. Vejo que o vosso ódio abrange tudo. Sei que tudo vos é difícil. Provavelmente, tudo será difícil também para eles, isto é, para a vossa gente. Devo acrescentar que também para mim assim é.

Caryll cruzou as mãos em sinal de contrição.

- Sou uma besta, uma besta quadrada - respondeu. - Porque não me pondes umas palas, em vez de argumentar comigo? Mas aqui tudo é inteiramente bestial. Odeio o país e odeio o povo que o habita. Cumpre lavrar um e fornecer calças ao outro.

Raul riu-se e voltou para o quarto.

- Não sejais tão exigente - disse, bem-humorado - há gente limpa neste povo.

- Não vi nenhum - principiou Caryll, e parou repentinamente, com o rosto corado.

Mas Raul, que estava a procurar uma carta que tinha arrumado mal, não notou a confusão e, depois de achar a carta extraviada, lançou um olhar rápido para o relógio e fez um gesto de espanto.

- Caramba! - exclamou. - Não supunha que fosse tão tarde. Preciso de correr. Tenho pena de vos deixar sozinho esta tarde, Caryll, mas não há outro remédio. Tenho razões para não desprezar o cádi. Se sentirdes tédio após o jantar, há lá em cima o patron. É boa pessoa e joga razoavelmente. Sei que o café maure não tem atractivos - acrescentou. E com outro riso e um adeus de mãos, deixou o quarto. Novamente o sangue se aqueceu no rosto de Caryll, que sacudiu a cabeça iradamente quando se deteve ante a porta que Raul havia fechado ao partir.

Não era Raul que o fazia irar-se. Era o conhecimento da sua própria inconstância, o conhecimento de um novo interesse que nele despertara, contrário às suas veementes asserções. Tal sentimento apossara-se agora dele. Entretanto, rigorosamente falando, não se tinha desviado da verdade, argumentava consigo mesmo. Tudo o que dissera até aqui era exacto, não tendo de retractar-se de uma palavra sequer. Mas ao mesmo tempo que odiava sinceramente o país e o seu povo, certamente podia sentir compaixão pelo membro de uma raça que, diferente dos outros, causava estranheza em razão mesmo dessa diferença. Fora esse vívido contraste que lhe despertara a atenção e lhe excitara o interesse.

Era, pois, somente piedade que sentia, a mesma piedade que experimentara ao ver o mudo sofrimento de um animal torturado, o pobre jumento que encontrara de manhã. E novamente se inflamou com honesta indignação a outra lembrança que lhe surgiu.

Fora há mais de duas semanas.

Tinha partido a cavalo para Temacim, certa manhã, acompanhado apenas de um criado inglês, e, cansado da intérmina e desagradável estrada, fizera uma volta.

Entre os bancos de areia, depois dos Túmulos dos Reis, encontrou um árabe gigantesco a espancar implacàvelmente uma rapariga magra que, embora sofresse sem protestar o horrível castigo, procurava, gemendo de dor, desesperadamente libertar-se do suplício.

Sem pensar nas consequências possíveis, esquecido das reiteradas advertências de Raul, consciente apenas da ira e desgosto que experimentava, Caryll galopou em direcção ao bruto e com a mão aparou um golpe que ele ia desferir sobre a pobre pequena.

O enorme chicote riscou o ar, apanhou o corpo do árabe, que rodou nos calcanhares e procurou agarrar Caryll, soltando, ao cair, a rapariga. Levantara-se furioso, com uma faca reluzindo na mão, e lançara-se contra o intruso com o rosto horrivelmente contraído, os olhos quase cegos de raiva. Esporeando o cavalo, Caryll evitou o golpe terrível que o visava.

E, como nada mais pudesse fazer, o árabe abaixou-se novamente na sela e brandiu o chicote, mas nesse instante chegou o criado que viera com Caryll e que, em atenção a essa façanha, foi promovido de criado a guarda pessoal; veio em auxílio do amo e carregou de rijo contra o bruto, procurando derrubá-lo do cavalo. Perante o segundo inimigo, o monstro fugiu ignominiosamente, correndo com rapidez incrível, ao passo que o criado, com um alegre e estridente «Foi-se embora», lhe correu no encalço até achar que a perseguição se tornara desnecessária.

Apeando-se, Caryll procurou com dó a menina, que jazia imóvel na areia.

Habituado a tratar com mulheres e admirado de a sua intervenção não lhe haver causado mais mal do que bem, tocou-lhe nos ombros receosamente, preferindo, mil vezes, estar dali distante algumas centenas de léguas.

Estremecendo ao contacto das suas mãos, ela sentou-se vagarosamente, olhando-o com uma espécie de estranho espanto, em que não havia nem curiosidade nem medo. Não tinha gritado e não havia lágrimas nos seus olhos. Somente um fio de sangue lhe escorria dos lábios, mostrando que o suplício fora cruel.

A compaixão cedera, em Caryll, lugar à admiração.

Ele gaguejou algumas palavras sem muita esperança de que fossem compreendidas. Mas ela respondeu em francês corrente, com voz macia e cansada.

- Já estou habituada!

Ela habituara-se àquilo! Um ímpeto de ira o sacudiu. Tentou interrogá-la, mas as respostas obtidas eram evasivas. Ela parecia esmagada, indiferente tanto à sua intervenção como à sua presença. E sem saber o que fazer, se retirar-se, se ficar, sofria por tudo aquilo, mas, como fora tão longe, reflectia se não devia fazer algum esforço para lhe dar protecção posterior, embora estivesse muito longe de perceber como deveria agir nesse sentido.

De vez em quando, contemplava-a disfarçadamente, os seus olhos irresistivelmente atraídos por ela, e ficara espantado da beleza não comum do seu rosto, da pureza infantil da sua expressão e da fresca doçura que parecia rodeá-la. Pobremente vestida como estava, mesmo assim, do alto da cabeça aos seus pés pequeninos, ela era «limpa».

Foi a jovem que deu por encerrado o incidente. À volta do criado, com um pequeno gesto gentil, mas inconfundível, ela despediu-se e pela primeira vez murmurou algumas palavras de agradecimento. Nada mais havia a fazer que partir dali e Caryll montou a cavalo novamente e voltou ao hotel, ainda sem saber se procedera imprudentemente ou se fizera a única coisa que podia fazer; sem saber se o marido, pai, amante, o que quer que fosse o monstro, aproveitara a lição ou se exerceria duplicada vingança sobre a sua vítima indefesa.

Doía-lhe lembrar-se da frágil rapariga nas mãos daquele infame bruto.

Desde então vira-a e falara-lhe algumas vezes, em encontros inesperados em vários pontos do país. E era sempre a mesma, tão indiferente à sua chegada como à partida.

Recebia-o sempre como na primeira vez, fria e muda.

Não havia embaraço, nenhum traço de coquetterie feminina nos seus modos e não deixava entrever nenhum sentimento sexual enquanto falava com ele, parecendo que nem sequer reparava que um era homem e outro mulher. Era coisa que ele não esperava de uma mulher oriental. E, muitas vezes, ficava sem saber se a razão estava com ele ou com ela e se o habitual enleio dela não seria a causa da imperturbável e desapaixonada atitude que mantinha em relação a ele.

Mas, mesmo assim, havia nela uma coisa que não era humana. Diferente de todas as crianças e mulheres que ele jamais vira, parecia que lhe faltava vitalidade, que aquela estranha criatura só se movia impelida por influências externas, que estava morta para as emoções. E havia um estranho ar de atordoamento nos seus olhos, uma falta de vida nos movimentos, que faziam dela um lindo e insensível autómato.

Nunca falava muito.

Fumando os cigarros que lhe dava, mantinha-se silenciosa durante longos períodos, fitando o espaço extáticamente, como se os pensamentos lhe voassem ao longe, se é que tinha pensamentos.

Todavia, sempre conseguira arrancar dela alguma coisa.

Sabia agora que aquele árabe brutal era seu senhor, a quem ela muitas vezes chamava pai, para logo depois negar que entre eles houvesse parentesco, que com ele havia ela viajado através de todos os estados bárbaros, ajudando-o nos seus serviços, escravizada, espancada e faminta.

Ficara a saber em que se ocupava a fera e certa vez viera buscá-la com uma enorme serpente negra enroscada ao pescoço e o desprazer havia cedido lugar à admiração ao ver a maneira hábil como ela tratava o réptil repulsivo. A curiosidade crescera de modo a vencer-lhe a repugnância e a arrastá-lo até ao horrível café maure, onde, com ofensa aos seus sentimentos íntimos, se sentou para assistir a um espectáculo que não lhe dava prazer, onde presenciava cenas que atraíam ao café verdadeiras multidões de espectadores.

O café maure!

Caryll despertou da sua longa abstracção e sorriu.

Aquela partida do tio Raul, levando a espingarda, seria propositada ou aquelas poucas visitas eram somente pretexto de caçadas que Caryll, na primeira chegada a Touggourt, havia enfaticamente condenado como insuportavelmente revoltantes?

Tinha ido com Raul ao café uma ou duas noites depois que chegaram à cidade. Lembrando-se então do seu amargo criticismo e meio envergonhado do impulso que agora o dominava, havia ficado silencioso, como nas visitas subsequentes.

Mas o mensageiro árabe que viera com ele poderia facilmente falar. E se falasse? Caryll levantou a cabeça com altivez. O tio Raul não era seu guarda. E ele era senhor de si mesmo, com completa liberdade para fazer o que entendesse.

Tinha perante si a perspectiva de uma tarde solitária que deveria passar de qualquer maneira e cá fora seria decerto mais interessante do que lá dentro, naquele pobre hotel.

Com a espessa barba bem penteada, Caryll entrou no quarto próximo para buscar o seu chapéu. Aí encontrou o seu criado, bem parecido, bem disposto, dando mostras de estar gozando a Argélia tanto quanto o amo a odiava. Estava de pé, no meio de uma montanha de cartuchos, preparando a carga de um rifle. Voltou-se com respeitosa saudação à entrada de Caryll.

- Estou a fazer do quarto um horroroso chiqueiro, senhor - balbuciou, lançando um pesaroso olhar para o chão, que se enchera de todo um arsenal de limpeza. - Há já muito tempo que ninguém limpava estas espingardas. E vossa senhoria compreende que eu deveria aqui fazer isso.

- Está tudo muito bem, Guilherme - disse Caryll com um rápido sinal de aquiescência. - Quero somente o chapéu.

Guilherme lançou um olhar contrariado para as mãos e tossiu embaraçado.

- Deve estar em cima da mesa, peço perdão a vossa senhoria - balbuciou. E com o ar mais cândido do mundo, acrescentou: - Estou cheio de azeite, senhor - disse, apanhando uma escova com que se pôs a escovar furiosamente os dedos finos.

Caryll riu.

- Não é preciso incomodar-vos - disse. - Penso que ao menos uma vez eu mesmo poderei pegar no meu chapéu. Se pudésseis, faríeis de mim um paralítico, Guilherme. Não preciso de ama-seca - acrescentou sorrindo.

Guilherme corou ainda mais e tossiu.

- O senhor Roberto, senhor... - começou.

Mas Caryll protestou com a mão, como se estivesse sendo procurado por uma visão mental do velho e solícito criado do avô.

- Poupai-me o Roberto - ordenou. - Roberto é uma excelente pessoa e sem dúvida vos deu muito conselho. Mas estais procedendo tão bem como ele, Guilherme. Se tivesse de que me queixar, logo o diria. - E chegando à porta para sair, perguntou: - Isto aqui é confortável? Tem tudo o que precisais?

- Sim, senhor. Obrigado, senhor.

O tom de satisfação que havia na resposta de Guilherme fez Caryll olhá-lo com um pouco de inveja.

- Gostais disto aqui? - perguntou.

- É de primeira classe, senhor. É um circo perfeito este lugar. Não que eu não gostasse de ir para diante. Não chegámos ainda bem ao fim, não é verdade, senhor?

Havia tal animação na voz do criado que Caryll se voltou para o fitar, ao deixar o quarto. O que de há muito temia era que Guilherme se envolvesse nalguma grande aventura, nalguma experiência excitante de que ele próprio gostaria de participar.

E Caryll invejou-o ainda mais.

Em baixo, o salão estava vazio e, satisfeito por escapar às persistentes atenções dos mensageiros árabes que sempre se mostravam excessivamente servis, Caryll saiu e dirigiu-se à praça do Mercado. Era dia de feira e o grande espaço aberto estava cheio de vendedores e compradores, de grupos de nativos que gesticulavam, de pequenos jumentos sobrecarregados e de caravanas de camelos ao serviço de homens de aspecto rude e selvagem.

Perto de montes de vassouras e escovas, expostos à venda, havia bodes enormes e ovelhas que baliam, bandos de pombos brancos arrulhavam e revoavam com ousadia aos pés dos transeuntes.

Multidões de compradores acotovelavam-se ao redor das barracas, perto de vendedores de doces e vegetais, instalados em cima de panos, no chão. O ouriço bravo, ubíquo, era encontrado por toda a parte, arrojando-se pelo meio das turbas, impedindo a passagem dos jumentos, metendo-se debaixo dos vagarosos camelos, lutando, caindo, provocando inenarráveis contendas e agarrando vorazmente qualquer coisa que lhe fosse oferecida.

Grupos de árabes, aos dois e aos três, amontoavam-se no meio da multidão, falando muito alto, indiferentes à babel que os cercava.

Aqui e ali um chefe montado soberbamente e seguido por um pequeno séquito, marchava através da praça, altivamente indiferente a tudo que houvesse no caminho. De tempos a tempos um oficial francês com bem talhado uniforme, constituindo uma nota distinta no meio daqueles enormes albornozes, caminhava elegantemente em direcção às barracas.

O coro de vozes era desafinado e o cheiro que se desprendia de animais sem trato e de muitos seres humanos refractários aos banhos enjoava as delicadas narinas de Caryll. Mendigos cantarolando as suas eternas lamúrias passavam para diante e para trás com passos arrastados, levantando pó e areia, e finalmente Caryll foi cair literalmente nos braços dum cego de aparência feroz, que também implorava «uma esmola por amor de Alá!», em tom que mais parecia uma ameaça que um pedido.

Caryll encolheu-se, a resmungar, a um canto, para fugir a desagradáveis contactos que lhe sujariam o casaco, e teve de afastar energicamente vendedores de facas e pequenos utensílios, que se amontoavam ao redor dele.

Fugindo ao imprudente caminhar de um camelo manco que se sustentava sem firmeza sobre três patas, chegou em frente dum garoto que fazia caretas junto a um montão de pêlos escuros, vestido de andrajos gandoura. Examinando-se bem, aquilo não passava dum jumento salpicado de sangue.

Molestado pelo pó, sacudido e comprimido pela multidão, Caryll tratou de chegar ao outro lado da praça, onde um branco e aberto parapeito dava para uma alameda de palmeiras que assinalava os limites da praça do Mercado.

Aqui neste recanto relativamente vazio, achou um bendito espaço banhado de oxigénio e por momentos ali ficou, contemplando o tumulto por onde passara, esfregando a testa quente e hesitando se devia ou não voltar para o hotel.

Permanecia ainda indeciso quando um grito rouco, que não parecia humano, o fez tomar a direcção de onde partia aquele ruído chocante, vindo ali a encontrar uma figura selvagem que desde logo lhe chamou a atenção.

Com olhar estúpido e a boca espumante, com o corpo seminu apenas resguardado por pequenos fragmentos de albornoz vermelho que algum dia pertenceu a um spahi, o louco ou fanático - palavras que Caryll considerava sinónimas - pôs-se a sacudir os braços furiosamente.

Caryll já o tinha visto antes muitas vezes. Mas ainda não se afizera a olhar aquela repulsiva criatura, nem a simpatizar com um sistema que faz pública exibição da desgraça.

Para os árabes, de resto, a loucura tornava santo aquele infeliz, mas o governo francês tinha obrigação de fazer alguma coisa em favor dessa classe - murmurava para si mesmo, virando o rosto ao espectáculo e mostrando no lábio superior um ar de desdém.

Ao virar as costas, a atenção foi-lhe atraída para uma densa multidão que se comprimia em torno dalguma coisa que ele ainda não podia ver.

Movido pela curiosidade, juntou-se à turba e, sem nunca saber perfeitamente como, viu-se bruscamente admitido na roda de nativos grosseiros. Não tardou, porém, a sentir o desejo de sair dali, maldizendo a curiosidade que o fizera ingressar naquele meio.

- Outra vez os fanáticos, bom Senhor! - exclamou ao perceber um «santo» com aparência de fantasma, que representava o seu papel para ganhar algumas moedas, entregando-se a exercícios horríveis que em certas fases do ano faziam parte das suas práticas religiosas.

A dose de coisas horríveis era suficiente para o dia, pareceu-lhe. Tinha ouvido falar dos dervixes, da fraternidade dos Aissaonia e sabia o que tinha de esperar, com os cenhos carregados e as mãos mergulhadas nos bolsos, olhando com piedade as contorções e trejeitos daquela figura semidesnuda, que, com duas lâminas de metal fino enterradas nas faces, parecia atacada de loucura no meio daquela multidão de curiosos, com a cabeça derrubada para trás, os músculos do rosto e do tronco horrivelmente convulsionados, levantando uma tocha que flamejava num suspiro lento através de cicatrizes que denunciavam antigas lacerações.

Era o epílogo da representação, quase a concluir.

Por mais alguns momentos o dervixe permaneceu como em transe, os olhos semicerrados, em êxtase, palpitante e abrasado como um animal em tortura.

Teve uma vertigem e caiu prostrado. Um espectador adiantou-se para recolher numa rede aquele corpo miserável.

Caryll tinha visto mais do que o suficiente, mas sair daquele círculo em arrebatamento era tarefa um tanto difícil.

Por último, forçou o caminho, toda a sua sensibilidade magoada, furioso consigo mesmo. Havia no mundo alguma força que o obrigasse a ver aquela cena horrorosa? Devia concordar que havia alguma coisa desconhecida dele saía do ser daqueles imundos mendigos, tão calmos e sossegados.

Caminhou apressadamente, mas tinha dado apenas alguns passos quando uma mão o puxou pelo casaco, fazendo-o parar subitamente.

- Um guia, senhor, não precisa dum guia? Mostro-lhe Touggourt inteira, senhor. Levo-o ao café maure, à noite. Verá as jovens bailarinas! Que pedaços!...

A voz macia, sussurrante, em que havia francês de contrabando, soou-lhe bem aos ouvidos e ele voltou-se para examinar o abjecto sujeito que o fitava com um sorriso hediondo no rosto vicioso.

Os nervos de Caryll, já tensos, quase não puderam suportar esta última provação.

- Não, não! Deixe-me! - ordenou, levantando os braços. Mas não era fácil expulsar o homem. Impudente, lisonjeiro, seguia Caryll com persistência, falando com volubilidade, até chegar a fazer veladas sugestões que fizeram o moço esbugalhar os olhos e sentir forte calor no rosto.

- Cala-te, besta imunda! Vai para o inferno! - exclamou irado, desatento aos interessados espectadores que se haviam ali aglomerado quase instantaneamente, acotovelando-se sussurrantes.

Brados de animação e gritos de zombaria saudavam-no, pois que a multidão, seguindo as pegadas de todas as multidões do mundo inteiro, tomava partido na disputa, embora desconhecesse a causa que a motivara, e gritava, gesticulava, grunhia à medida que a excitação aumentava e o interesse pessoal dos dois partidos mais e mais se elevava. Era um pandemónio. Empurrado de um lado e doutro, com uma porção de mãos a tocá-lo e outras tantas vozes sussurrando ininteligivelmente aos seus ouvidos, Caryll encarou a mole humana com mal contida raiva, deplorando a indignidade da sua posição e pela primeira vez sentindo não poder fazer-se compreender.

Não era temor o que ele sentia: era somente ira e um íntimo sentimento de humilhação. Possuísse ao menos um rudimentar conhecimento da língua, e teria posto o assunto em pratos limpos em poucos instantes. Entretanto, naquelas condições, estava condenado a suportar tudo, o que lhe chocava horrivelmente o orgulho. E não poderia aguentar aquilo por muito tempo, reflectia, com o temperamento a levantar-se num protesto. Não estava para ali ficar o dia inteiro como um louco, para ser açoitado... Se não houvesse outro meio de resolver a dificuldade, tinha duas mãos e podia usá-las, graças a Deus. Se alguma coisa não acontecesse dentro de um minuto, teria de tomar uma decisão e fugir dali - com dignidade ou não, pouco lhe importava.

Percorrendo com os olhos aquele oceano de faces excitadas, deteve-se um instante, mas naquele momento a algazarra cessou bruscamente e a multidão, que o cercava impedindo-lhe a saída, deixou um espaço aberto diante dele.

Aquele espaço aberto foi ocupado por uma linha de cavalos brancos formando uma ala que um árabe solitário atravessou com grandes passadas vagarosas. Passando já da meia idade, alto e com ar distinto, tinha um rosto grave e barbudo, sombreado por um haic de neve. Do seu albornoz bordado a oiro pendiam medalhas. Aquele estrangeiro não podia deixar de ser, a julgar pela aparência externa, um chefe de elevada proeminência e o mais belo espécime da sua raça que o jovem inglês jamais vira.

E, ainda ofegante e desnorteado, Caryll esperou a sua chegada com um ar de ressentimento e gratidão. Mas mesmo esse ressentimento não demonstrava desprezo pela cortesia que o visava. Com um rápido salamaleque que não era um acto de deferência, mas simplesmente a polida saudação de igual para igual, o chefe estendeu-lhe a mão.

- Senhor visconde, queira aceitar as minhas desculpas e esquecer a rudeza dos meus patrícios - disse com voz lenta, bem modulada. - Estas desagradáveis contrariedades ocorrem algumas vezes quando se viaja. Eu também fui vaiado em Paris - acrescentou com um sorriso que mostrava perfeitos dentes brancos debaixo dum bigode bem tratado.

Havia naquelas palavras alguma coisa mais que as maneiras simples dum homem de voz bem educada, alguma coisa indefinível e convincente que fez Caryll sentir que, a despeito da diferença de raça e de cor, estava em frente duma pessoa da sua classe, de educação tão elevada como a sua e com infinitamente mais tacto e savoir faire.

Os olhos sérios e bondosos que estavam olhando os seus fizeram o jovem inglês sentir-se de súbito mais pequeno e enleado. E, gaguejante, achou-se explicando com dificuldade a causa da desordem ao novo amigo que tão prontamente havia chegado em seu socorro e que parecia perfeitamente a par da sua identidade.

Touggourt em peso conhecia-o então?

Lembrou-se das palavras que pouco antes Raul lhe dissera e a observação parecia-lhe agora que realmente exprimia a verdade. Era aqui conhecido mais amplamente do que jamais suspeitara. Desinteressado de si mesmo, nunca imaginara, mesmo por um instante, que poderia ser objecto do interesse de outrem. Mas reconhecia agora que era, de facto, objecto de interesse e foi com um sentimento de humilhação que ele compreendeu que para aquele povo a sua única distinção consistia na circunstância de ser filho do famoso Ahmed ben Hassan. Esse pensamento era desconcertante e fê-lo andar silenciosamente em demanda do hotel com o chefe emir com que principiava agora a manter relações de amizade, ouvindo-lhe a palavra fluente, com uma deferência que jamais mostrara a nenhum árabe e admirando-se por estar na presença, como tudo mostrava, dum amigo íntimo não só do sheik como de Raul de Saint Hubert.

Mas mais conhecedor, provavelmente, do seu embaraço que o próprio Caryll, o chefe resolveu a dificuldade com aquele tacto subtil que já antes revelara. Quando os dois chegaram à porta do hotel, ele montou o magnífico cavalo branco que puxava atrás de si e com reiteradas expressões de boa vontade e corteses palavras de despedida desapareceu, seguido pelo séquito de auxiliares.

Quando Caryll subiu ao seu quarto entrechocavam-se no seu íntimo os sentimentos mais díspares.

O incidente daquela tarde tinha sido um choque para ele sob muitos pontos de vista. Consciente de que tinha representado a parte mínima na rixa selvagem travada na praça do Mercado, o seu orgulho ainda ardia à lembrança da triste figura que fizera aos olhos do digno árabe que tinha acorrido em seu auxílio.

Era grato, naturalmente, a uma intervenção que o tinha salvo duma situação penosa. Mas a essa gratidão misturava-se profundo ressentimento. A despeito de todos os seus preconceitos e de todo o seu ódio de raça, devia uma obrigação a um árabe. E aquele mesmo árabe o tinha forçado a compreender o que nunca havia resolvido compreender, tinha derrubado todas as suas preconcebidas noções e dera ao seu espírito elementos que lhe desordenavam os pensamentos.

Não queria reajustar as ideias. Não queria dever obrigação a árabe algum.

Estava ainda argumentando iradamente consigo mesmo quando desceu, mais tarde, ao salão de jantar para tomar a sua solitária refeição.

E sentado a uma mesa à parte, as costas voltadas à barulhenta multidão de caixeiros-viajantes, nada lia no livro que estava aberto aos seus olhos, mas continuava a argumentar consigo mesmo durante as sucessivas fases do jantar, até que finalmente se encontrou olhando vagamente para a xícara de café.

À noite, como nada o atraísse, com uma leve inclinação em direcção aos ruidosos circunstantes, retirou-se para o quarto.

Acendendo um velho cachimbo, consultou o relógio.

Somente vinte horas, isto é, pelo menos duas horas mais cedo do que a decência lhe permitia que se metesse na cama. Pondo de lado as grandes almofadas macias que estavam na cadeira de junco, arrastou esta para perto da lâmpada e pôs-se ansiosamente a ler.

O livrinho bem encadernado que tinha à mão era um tratado sobre florestas, assunto que noutras ocasiões sempre lhe despertara interesse absorvente. Hoje, porém, julgava-o intragável.

Procurando, como lhe era possível, concentrar a atenção, o seu espírito vagueava, e entre ele e as páginas impressas interpunha-se um tipo gracioso com uma cabeça delicada, uma face oval de olhos negros e melancólicos, semiocultos por longos cabelos que se espalhavam pelas faces morenas. Desesperado, deixou cair o livro na mesa. Há três dias que não a via e agora, distante dela mais ou menos uma milha, acreditava que provavelmente se estava preparando para divertir uma sórdida canalha cuja simples proximidade era já um insulto. Como havia ela podido conservar-se pura, virginal, em tal ambiente?

Pura e virginal, era assim que ele a queria toda a vida. Consultou novamente o relógio, tremendo com o brusco impulso que lhe sobreviera, e entrou no quarto. Depois de acender uma pequena lâmpada eléctrica que trazia no bolso, envergou um sobretudo leve e desceu rapidamente as escadas. Sons orgíacos ecoavam ainda no salão de jantar. Só, no refeitório, o patron estava sentado à caisse, sorvendo copos de vinho e somando cerradas fileiras de algarismos.

Quando Caryll apareceu, levantou-se com servil curvatura.

- Um guia? Num momento, senhor visconde... - disse

com respeitosa unção a que Caryll respondeu com um curto, seco:

- Não, obrigado!

- Mas, senhor visconde - protestou com as gordas mãos espetando o ar. - Está escuro, isto aqui não é seguro e tem havido desastres nas ruas à noite...

Mas Caryll saíra e ninguém ficara para lhe ouvir as oportunas recomendações, senão um gato que a um canto lavava imperturbavelmente o focinho, na pitoresca atitude com que esses animais praticam a higiene. Então, sacudindo os fortes ombros, como que declinando qualquer responsabilidade pelo que viesse a acontecer, o patron lançou os olhos bem-aventurados para a caisse, amaldiçoando a loucura dos ingleses em geral e deste em particular.

Fora, nas trevas, Caryll dirigiu-se à praça do Mercado. Não procurou discutir o motivo que o levava novamente ao café maure.

«Mas que havia a discutir?», perguntou a si mesmo com brusca irritação. «Era piedade e interesse o que sentia, nada mais que piedade e interesse».

A praça estava menos frequentada do que de tarde, mas nela ainda se agitava a multidão. O confuso arrastar de chinelas e o baixo sussurro de palestras ao derredor prenunciavam desusada actividade para aquela noite.

Com o chapéu desabado a cobrir-lhe os olhos, Caryll evitava os transeuntes tanto quanto possível e, atravessando o espaço aberto, chegou ao outro lado da praça sem que o estorvassem.

Ali deteve-se por um momento. À direita estava um enorme edifício, profusamente iluminado, no qual ele reconheceu as barracas. O seu caminho era à esquerda. Até ali houvera luz em abundância, mas agora diante dele só haveria trevas. Sentindo no bolso a lanterna eléctrica, lançou-se confiadamente pela viela que levava ao café maure, que ficava situado num extremo da cidade. Do outro lado dele levantavam-se altos muros e atrás ficavam pequenos jardins em que altas palmeiras se erguiam como torres, sobre figueiras e granadinas cobertas de folhas. Estava muito escuro para as enxergar, mas podia ouvir o vento sibilando pelos galhos daquelas árvores e o sussurro das frondes secas das palmeiras. E, andando, percebia outras figuras horríveis que por ele passavam, umas indo, outras vindo, e, acendendo a lanterna eléctrica, procurou o caminho, cautelosamente, através das trevas.

Tropeçou em qualquer coisa e quase caiu. Recobrando os sentidos, acendeu a lanterna e maldisse a sua própria estupidez ao ver o foco da luz alumiar dois trilhos de aço que cruzavam o caminho. Havia esquecido a linha do «eléctrico» que, atravessando aquela rua estreita, levava às barracas distantes. Devia ter-se lembrado. Ali hesitou largo tempo. Decidido agora a fazer funcionar a lanterna, por ali andou apressadamente até que a travessa terminou tão abruptamente como havia começado, os muros do jardim fazendo ângulos rectos, deixando um espaço aberto diante dele.

Perto podia ver a espessa contextura das sórdidas e pequenas tendas em que se hospedavam as dançarinas que só ali achavam agasalho em Touggourt.

Uns poucos passos além estava o café maure, esplendidamente iluminado e do qual voavam os sons álacres de trombetas que tocavam nas portas abertas.

Parou um momento, olhando para trás e para diante, onde jaziam a vacuidade silente das dunas de areia e a estrada solitária que levava a Temacim.

Puxando ainda mais o chapéu para os olhos, pôs-se a caminho, quase esbarrando na esquina com a solitária sentinela sudanesa que permanecia como uma estátua de bronze no ângulo do muro.

O café estava cheio. Pareceu até a Caryll que estava mais cheio que de costume.

Deslumbrado pela luz subitânea, atravessou o sujo andar térreo e foi tomar a cadeira que ocupava habitualmente. Aí tirou o chapéu, acendeu um cigarro e olhou ao redor.

Uma sala longa e estreita, com paredes mal caiadas, era alumiada por lamparinas baratas que esfumaçavam para o tecto coberto de teias de aranha. No fim estava uma platibanda em que se colocavam os músicos e os trombeteiros e uma meia dúzia de raparigas, com olhos sonolentos, sob ténues vestes transparentes que mais pareciam sacos pendentes dos ombros; perto da entrada havia bancos e pequenas mesas de ferro, onde se sentavam os habitués, que bebiam café ou chá com cheiro de erva-cidreira.

Quase atrás da cadeira que Caryll ocupou havia uma porta que levava a um aposento reservado - o quarto verde do estabelecimento, que estava cheio de bailarinas e através do qual passava uma verdadeira multidão de homens sedentos de prazer, que frequentavam aquele meio.

Aliás, por todos os lados havia frequentadores. A classe melhor era composta da escuma dos esgotos, soldados sudaneses e franceses de qualquer classe, nómadas do deserto e, aqui e ali, europeus de aspecto duvidoso - espanhóis a maior parte, e indivíduos de outras procedências.

A expressão de todas aquelas fisionomias era idêntica. Era o vício nas suas formas mais degradantes, mais repelentes. Era uma viciosidade indisfarçável que parecia cochichar-lhe a cada canto da sala. Com um pequeno, involuntário gesto de desprazer, Caryll voltou-se para pegar na xícara de café que lhe fora colocada em frente.

A sua entrada parecia ter servido de calmante. O espaço reservado às danças, no meio da sala, estava vazio; somente a obesa e velha proprietária do café se mantinha no salão, discutindo violentamente com um enorme flautista de olhos em cruz, que finalmente a agarrou pela cintura e a arrastou até o quarto, gesticulando e gritando.

Ela voltou dentro de poucos segundos, trazendo consigo um par de dançarinas que se colocou no meio da sala, para iniciar as tediosas evoluções duma dança dos Cabilas, que a orquestra acompanhava com maior ou menor desafinação. Acompanhando os lânguidos, desgraciosos movimentos, Caryll espantava-se sem saber como dança e dançarinas tais logravam acolhida mesmo numa assistência por demais complacente. Mas a verdade é que eram bem acolhidas, pois o sussurro das conversas cessou e os olhos faiscavam intensamente, olhos famintos, animais, que provocavam repulsa, olhos que causavam náuseas.

O pesado e impaciente arrastar da sua cadeira no chão cimentado constituiu uma como nota dissonante àqueles ouvidos encantados pelas notas musicais que assinalavam o fim da dança.

A orquestra invadiu o meio do salão, ainda ressoando voluptuosamente, em busca de gorjetas, e as dançarinas meteram-se pelo meio dos espectadores até encontrarem indivíduos complacentes que se dispusessem a pagar-lhes café e cigarros. Houve nova calma. Conhecedor profundo do ambiente, Caryll pedira um café e oferecera-o a um homem do deserto que estava sentado perto dele e que parecia faminto.

Havia ali, naquela noite, muitos moradores do deserto. Verificou-o quando os seus olhos percorreram a sala repleta. E a sala, que se achava quase cheia quando ali entrou, nos últimos minutos acabara de se encher.

Junto dele estavam dois europeus enormes, musculosos, bem penteados, que ali não estavam quando começou a dança dos Cabilas. Falavam bastante calorosamente e de vez em quando deixavam escapar um som gutural que não lhe era possível compreender. Eram alemães que falavam e Caryll julgava-os caixeiros-viajantes, que provavelmente enchiam a Argélia como enchiam o mundo, vendendo óptimas e baratas mercadorias. Ele sacudiu os ombros com ódio instintivo e virou-lhes as costas. Pagou, então, uma segunda chávena de café que fora trazida pelo solícito criado.

Houve mais um intervalo dalguns momentos e então a velha proprietária emergiu do quarto de dentro e, meneando os quadris no tablado, sentou-se atrás dos músicos, acomodando as gordas ancas, lançando olhares e fazendo sinais com a cabeça, com evidente excitação.

Houve o súbito atroar de sons discordes e desarmónicos, partidos daquilo que ali estava a título de músicos, numa horrenda desafinação de que sobressaíam os flautistas, que dos instrumentos arrancavam notas que mais pareciam ecos distantes.

Seguiu-se um novo silêncio tumular. Um murmúrio de ardorosa expectativa encheu o salão.

Vieram primeiro, dois rapazes negros, solenes, como pequenas estátuas de ébano, trazendo consigo uma cesta bem coberta que colocaram no meio do espaço vazio. Retiraram-se depois para o tablado, onde se baixaram, ficando sem movimento, os braços envolvendo os joelhos.

Então veio «ela», que avançava vagarosamente com uma olhadela à direita e à esquerda, com olhos semicerrados, sonhadores, que pareciam não ver nada, e um rosto moreno, inexpressivo. E, encimando-lhe o busto, o hediondo encantador de serpentes, magro e de olhar repelente, os braços descarnados, desnudos, o tórax apenas coberto pela cauda coleante duma enorme serpente negra.

Foi o homem que começou a trabalhar. Mas, por extraordinário que fosse o seu trabalho, não era ele que Caryll viera ver. Só olhava para a rapariga encantadora que com ele trabalhava. Ela, porém, não o sentiu nem viu, a princípio. Colocando-se perto dum dos rapazes negros, ajoelhou-se no chão poeirento, desatenta, absorta, à espera da sua vez de se exibir.

O aplauso que festejou o primeiro trabalho foi interrompido por qualquer som na outra extremidade da sala. Mas o ruído, qualquer que fosse, cessou logo. E, olhando para trás, Caryll apenas percebeu que qualquer nova deslocação se fizera na assistência e que o morador do deserto agora estava mais em evidência, emergindo no meio das duas fileiras de espectadores, encostado às paredes.

Havia entre os assistentes uma porção de olhos selvagens - notou-o ao examiná-los curiosamente - e provavelmente mais entusiasmados pelo espectáculo que os habitués do café. Mas o interesse despertado por aqueles homens evaporou-se logo, porque chegara a vez «dela», que vagarosamente se levantou e lentamente se dirigiu à enorme cesta fechada que o mouro vigiava, acocorado, com um canudo na mão.

A música soltava agora sons graves, rítmicos. Por último, do canudo que o encantador de serpentes segurava, partiu uma melodia menor, que melhor se diria o assobio do vento. A tampa da cesta foi afrouxada e caiu. De dentro saiu uma cabeça chata, lisa, com mandíbulas abertas de que se projectava comprida língua. Levantou-se mais e mais, arrastando enorme cauda em que finalizava um corpo sinuoso, rastejante. Articulando-se de modo fantástico, o réptil arrastou-se até o estrado da música. A jovem dirigiu-se para ela, com uma das mãos estendida e a outra levantada para o tecto.

Com um silvo agudo, a serpente voltou-se hesitante para ela, avançando e recuando, e finalmente pulou para o seu braço estendido, onde se enroscou. Dali, passando aos ombros, foi-se enroscar no outro braço.

Por um instante, a jovem ficou rígida segurando o réptil; depois, com um movimento rápido, sacudiu-o livremente, levantou-o pela cauda e estendeu o corpo com ambas as mãos em cima da cabeça. E, pela primeira vez, a rapariga levantou os olhos, para fitar o oceano de olhos que ali estava. Mas o exame durou apenas um segundo.

Houve novo ruído perto da porta e um estremeção de fisionomias lívidas. No meio delas Caryll, alçando-se nos pés, tinha o coração a pulsar furiosamente.

Os homens procedentes do deserto haviam tomado posse da sala. Armados agora com rifles que haviam trazido ocultos nas vestes, de pé, pareciam formar uma muralha por entre os terrificados habitués do café. O encantador de serpentes, a orquestra, os dois alemães e Caryll contemplavam as armas de fogo e os rostos dos portadores, de dentes arreganhados. Uma porta bateu violentamente e, tão subitamente como nascera, o tumulto amorteceu e, no silêncio que se seguiu, Caryll ouviu um grito agudo de mulher.

Possuído de temor pela jovem, que conheceu e amou no mesmo instante, procurou aproximar-se dela, mas pesada mão de ferro o arrastou para trás e, trémulo no meio dos nómadas que o seguravam, sentia horrorosa agonia vendo a terrível mudança que se operara no rosto da rapariga.

A serpente deitara-se aos pés dela e animada de novo, mas com as feições convulsionadas de terror, ela esbugalhou os olhos, transida. Havia um homem que a olhava. Um homem que se erguia erecto, costas voltadas à porta fechada, que seguiu para a frente, vagarosamente, movendo os passos com negligência e altivez por entre as fileiras de nómadas lívidos, que, comprimindo-se, abriram espaço que lhe permitia a passagem para o salão.

Moço, alto, de porte arrogante, o seu rosto agradável estava marcado por uma cicatriz mal fechada que se insinuava pelas borlas cetinosas do turbante, os cenhos carregados, tudo lhe dando uma aparência sinistramente estranha.

Ele caminhava com altiva indiferença ao terror que inspirava, os olhos ardentes fitos na jovem, que se contraía, trémula, à sua aproximação. O salão mergulhara no silêncio, apenas interrompido pelos passos do desconhecido. Os lábios da jovem tremiam quanto mais ele se aproximava. Ao chegar perto dela, o homem deteve-se. Com um suspiro de medo, ela caiu ao chão, cobrindo o rosto. E, como ele estacara, bruscamente entre ambos se ergueu, ameaçadora, a grande serpente negra, que assobiava sinistramente e nele bateu com a hedionda cabeça. Com um fino sorriso, ele afastou-a e fê-la voltar aos pés da rapariga.

Febricitante, agarrou a jovem pela cabeça e forçou-a, meio desfalecida, a olhá-lo.

Durante um momento de ansiedade, encarou-a com fixidez.

Depois riu, um riso lento, cruel, que tinha tanto de amargura como de triunfo, e enlaçou-a com um ar de subtil crueldade. Aterrorizada ou inconsciente, ela permaneceu inerte. E por mais um momento ele a apertou nos braços, fixando os olhos no salão, o revólver tremulando-lhe nas mãos esguias, trigueiras. Houve um momento de geral estupefacção, durante o qual os seus olhos esgazeados, perpassando por entre as figuras impotentes, raivosas, dos mouros e dos alemães impassíveis, tinham um relance de alegre desprezo, e pareciam perscrutar Caryll.

Então, com um novo ar de mofa, levantou a mão e, acendendo a lâmpada, bateu com a porta.

Enquanto percorria o salão, uma descarga pesada soou em resposta e o salão ficou imerso em treva. No inferno de barulho que a isso se seguiu, Caryll sentiu novamente os dedos de ferro que o agarravam. Depois, braços vigorosos apertaram-no e, apesar dos seus esforços desesperados, foi levado para um quarto escuro, onde ficou mergulhado na fresca escuridão da noite.

Indiferente ao que a si próprio sucedia, pensando somente na rapariga, lutou desesperadamente para reconquistar a liberdade, tomado do indómito desejo de a salvar, se tal lhe fosse possível. Mas enquanto lutava desesperadamente, o coração dizia-lhe que tudo havia chegado a um ponto inatingível à sua intervenção, percebendo instintivamente que o que acontecia naquela noite nada tinha de casual, que ali havia uma série de circunstâncias que faziam parte dum mistério que ele não podia esclarecer e que parecia envolvê-la sinistramente.

Era palpável que o audacioso assalto ao café havia sido planeado e executado por algum interessado. Lia-se isso nos olhos assustados da jovem.

Compreendia que o seu pequeno romance de amor chegara ao epílogo, que ele estava fora desse drama do deserto. Posto que a houvesse chegado a amar, nada tinha com ela. Não tomava parte no esquema da sua existência. E agora afastara-se da sua vida, tão estranhamente como nela penetrara.

Mesmo que estivesse livre para a procurar e encontrar, sabia que todos os esforços seriam infrutíferos. E não estava livre.

Lutador que fosse, a sua força não era igual às forças combinadas dos dois homens que, um de cada lado, o conduziam a caminhos desconhecidos. E nada podia perguntar, porque mão grosseira, musculosa, lhe fechava a boca. E quem quer que fossem, pareciam ter olhos de gato, porque aqui e ali se desviavam de obstáculos que ele, na escuridão, não notaria.

Por tempo que lhe pareceu interminável foi levado para diante. Vencido e confuso, com o coração a bater-lhe ansiosamente, começava a admirar-se da sua sorte, quando os homens pararam, lhe retiraram as mãos das goelas e com grande espanto se viu à porta do hotel.

Não podia perceber como ali chegara, e aspirava o ar, procurando interrogar os homens, que agora sabia amigos e não assassinos. Mas um já havia desaparecido e o outro mergulhara na noite enquanto Caryll o procurava com os olhos.

- Diga ao senhor conde que Daoud ben Ali pagou uma parte das suas dívidas.

Esse recado misterioso retinia-lhe nos ouvidos ao entrar no hotel.

 

Fora do café, o jovem Ahmed ben Hassan conservou-se um instante nas trevas, ouvindo os sons do tumulto que havia dentro do edifício, e olhando ao derredor de si. Depois arrancou dos ombros o albornoz e com ele envolveu o corpo inanimado da rapariga.

Um sorriso bailava-lhe nos lábios ao tomar nos braços aquele corpo delicado. Lançou um olhar para o local em que antes estava a sentinela, não a encontrando. A densa escuridão nada permitia ver, mas o silêncio que reinava no quarteirão mostrou-lhe que Ramadan e S’rir tinham desempenhado bem o papel que lhes fora destinado para aquela noite.

Apertando mais o peso leve que carregava, ele voltou-se e correu em direcção aos Túmulos dos Reis, como que deixando Touggourt para trás de si.

Era muito arriscado voltar pelo caminho por onde viera. Havia outros caminhos e desvios que desnorteariam os que tentassem acompanhá-lo e pelos quais poderia voltar à cidade. A noite estava propícia. Durante mais de uma milha não afrouxou o passo, correndo fácil e incansavelmente pelo chão arenoso, quase sem sentir o peso leve da rapariga.

Desde que deixara o café não vira ninguém e estava certo de que também não fora visto por quem quer que fosse. A pesada solidão do local, a serena beleza da noite estrelada pareciam em estranha harmonia com os seus modos. Semanas a fio havia entrevisto o que significaria para ele aquela noite e o seu coração estava cheio de feroz orgulho enquanto estugava o passo através da escuridão.

A despeito de dificuldades intransponíveis, tinha feito o que se propusera. Estava cumprida a primeira parte da vingança.

Tinham sido Ramadan e S’rir que haviam tornado possível essa almejada desafronta. Sem eles nada poderia ter feito, porque sem eles nem sequer estaria vivo para cumprir o juramento que tinha feito quando jazia amarrado e desamparado no antro sórdido em que ambos foram encontrá-lo. Sabia sem a menor sombra de dúvida qual teria sido a sua sorte se eles não fossem arrancá-lo de lá. Tinha ouvido o suficiente e havia adivinhado muito através das palavras dos homens que o haviam assaltado.

Não o salvassem Ramadan e S’rir e teria morrido no dia seguinte, de maneira horrorosa.

A lembrança daquelas horas de infernal sofrimento ter-se-ia apagado com a sua vida. Pensando nisso, o seu rosto suava. Quase tinha perdido toda a esperança quando os ombros robustos de Ramadan surgiram na pequena janela. Parecia-lhe que esperara uma eternidade, sentindo a esperança desvanecer-se à medida que lhe cresciam as apreensões, à medida que os dois irmãos forçavam a entrada. Quase desfaleceu quando S’rir cortou as cordas que lhe atavam os membros pisados e sem força.

Das poucas horas que se seguiram não tinha lembrança, como não a tinha também dos sobre-humanos esforços dos seus salvadores para fazer passar o seu corpo inerte pela estreita abertura, nem da corrida a cavalo, nos braços robustos de Ramadan, enquanto S’rir os seguia no cavalo que ele deixara amarrado e que os dois encontraram seguindo em direcção à aldeia deserta de onde fora salvo.

Foi a dor de um ombro destroncado que o fez despertar. Depois, teve de resistir corajosamente às tentativas dos dois homens para convencê-lo a voltar ao acampamento do pai. Tinha feito um juramento e nada deste mundo o desligaria desse juramento. E pouco a pouco conseguiu convencê-los de maneira que passaram a nutrir um desejo de vingança maior que o dele mesmo.

Mas o pronto e sumário castigo que eles propunham fora rejeitado em favor de uma forma bem mais subtil e pitoresca de resposta ao ultraje recebido. Mereciam a morte que sem escrúpulo queriam dar-lhe, mas ele tinha alguma coisa mais particular a considerar no caso.

Com este fim em vista, tinha esperado pacientemente na vizinhança dos seus inimigos e havia resolvido aguardar ocasião azada para a realização dos seus planos. O tempo de espera, porém, fora curto. Inconscientemente, o mouro caíra-lhe nas mãos. Com a rapariga e os dois estrangeiros, havia-se escapulido no dia seguinte, deixando sinais evidentes da pressa com que abandonara a aldeia em que havia permanecido durante uma semana. E, passo a passo, o pequeno bando havia seguido até Touggourt numa caravana.

Viajando sem criados, um camelo somente bastava para os dois estrangeiros e um camelo e dois pequenos jumentos transportariam todo o material e as provisões do encantador de serpentes. Para os bem montados perseguidores a jornada era aborrecida, mas as curtas caminhadas e longas paragens do bando maldito tinham dado tempo a Ahmed para sarar dos maus tratos recebidos. Uma força renovada tinha tornado mais firme a sua decisão.

Dia a dia antegozava o seu triunfo, cada vez mais próximo, e noite após noite, enquanto o sono não o vencia, ficava, ouvindo o pacífico ressonar dos seus companheiros, a planear a vingança.

Touggourt foi finalmente atingida. Não querendo mostrar-se desde logo abertamente numa cidade em que era tão conhecido, antes de ali entrar esperou que escurecesse, poucas horas após a chegada do mouro.

Assim resolvido, foram hospedar-se na casa de um amigo árabe, um moço de hábitos indolentes e gostos caros e cujas inclinações o faziam morar mais em Paris do que na sua própria terra. O acaso protegia Ahmed, pois fora encontrar o amigo em casa, embora estivesse em vésperas de partir para uma das suas visitas periódicas à capital francesa,

Depois de poucas palavras de explicação, casa e criados foram postos entusiasticamente à disposição do árabe, manifestando o hospedeiro tão-sõmente o desgosto de não poder ficar para tomar parte numa aventura que tão fortemente lhe falava à imaginação, mais activa que o seu corpo.

Em Touggourt, os criados do hospedeiro juraram guardar segredo e Ahmed lá ficou escondido.

Não fazia parte dos seus projectos que as autoridades soubessem da sua presença antes de o plano de acção estar amadurecido. A rapariga deveria ser segura antes de ele ajustar contas com o mouro e seus apaniguados.

E de princípio a fim o golpe delineado fora executado mais facilmente do que jamais sonhara. Com o auxílio de gorjetas liberais, pagas com prazer, Ramadan e S’rir não haviam encontrado dificuldade em reunir um magote de árabes legítimos, vagabundos, ardorosamente entusiasmados por tal empresa, por ela visar directamente um mouro errante, cujas opiniões religiosas lhes eram contrárias, e um par de estrangeiros nojentos, que, como o seu assalariador, estavam ocultos na cidade. De resto, naquele tempo, Touggourt estava cheia de descontentes que teriam arriscado mais do que isso por amor do lucro inesperado que tão facilmente lhes caía nas mãos.

Por intermédio de Ramadan e S’rir, Ahmed ficara sabendo o êxito que o encantador de serpentes conseguira no café maure e pelos mesmos soubera que a rapariga tinha permissão para andar livremente pela cidade. Mas a ideia de a apanhar daquele modo fácil não lhe sorriu. Tinha tramado uma vingança mais dramática e satisfatória. Abertamente com a exibição da força de que podia dispor, poderia apanhá-la mesmo aos olhos daqueles que dela se serviram como armadilha para o capturar.

Feito isso, e não antes, trataria de recolher-se ao seu esconderijo e saber alguma coisa mais dos movimentos dos estrangeiros cuja misteriosa linguagem e comportamento tanta suspeita lhe despertaram. Meras suposições não eram suficientes para movê-lo: precisava de factos actuais - alguma coisa clara que pudesse confiar às autoridades francesas e por meio delas satisfazer a sua sede de vingança, ao mesmo tempo que prestaria bom serviço à administração pública.

Ele estava mais interessado que seu pai acerca dessa estranha inquietação que parecia estar pairando sobre o país e a experiência pela qual passara fazia-o pensar mais profundamente do que nunca.

Em busca de seus próprios prazeres havia surpreendido um segredo que parecia cheio de sinistra importância, e a louca aventura, em que tão imprudentemente se envolvera, tornara-se um brinquedo que quase lhe custara a vida. Que tinha sido enganado por outros, estava certo desde o princípio. Mas, trazendo à lembrança as perguntas que lhe tinham sido feitas e as ameaças com que procuravam extorquir-lhe declarações, tudo o convencia de que aquela ocasião lhe proporcionara a visão de manobras que até agora permaneciam bem escondidas, e que aquele trio híbrido estava de qualquer modo tenebroso e imperscrutável em ligação com o mistério que se difundia pelo país.

A sua reaparição repentina não deixaria de os advertir do perigo a que estavam expostos e de os pôr em guarda. Mas agora tinha-os nas mãos porque, a menos que os recursos lhes sobejassem e fossem maiores que os seus, não poderiam sair de Touggourt sem seu conhecimento. Tudo tinha acautelado. Dias e semanas havia estudado planos e naquela noite colhia os primeiros frutos da vitória. Naquela noite tinha nos braços mais uma vez a mulher que chegara a odiar, mas que ainda desejava. Porque a queria? Porque a posse daquele ser lhe parecia muito mais preciosa do que o castigo que queria infligir àqueles aos quais ela servira de instrumento?

Nesta terra de amores tempestuosos e de paixões primitivas, muitas mulheres eram punidas com a morte por muito menos do que aquilo que ela havia feito. Mas ele não a queria morta. Queria que vivesse para sofrer como ele sofrera, para que ela pudesse conhecê-lo senhor e dono do seu destino. A nativa selvajaria da sua natureza era-lhe superior e franzia o rosto perante ela e os seus lábios descerravam-se num ricto de íntima crueldade. Percebeu que ela despertara do desmaio e, embora nenhum ruído fizesse, sentia-a trémula nos seus braços, sentia-lhe o palpitar apressado do coração que tão perto estava do seu.

Podia temer aquela que fora tão traidora! Temesse aquela que o condenara, com mentiras e beijos hipócritas, a uma morte quase certa! Agora já não tinha ilusões sobre ela, ele, que fora tão tolo e louco. Não a pouparia por amor daquela inocência infantil que aparentava com tanta arte. Guardá-la-ia até que compreendesse a indignidade da beleza com que o procurara enredar, guardá-la-ia até que o seu desejo desaparecesse - et puis, bon soir! O seu rosto estava tomado de atroz ironia quando parou no cimo de um banco de areia para olhar em redor.

Não muito longe, fogos mortiços de um acampamento de nómadas indicaram-lhe a direcção da cidade.

Olhando para diante, caminhava com longos e rápidos passos, passando por outros acampamentos solitários, que contornava de longe, lembrando-se de que bravios cães de guarda poderiam ladrar se o farejassem e fariam acordar os inquilinos adormecidos. A Lua nascia quando chegou ao triste e pequenino cemitério europeu que dormia desolado, em abandono, nas cercanias da cidade. Um tremor involuntário perpassou-lhe pela medula ao contemplar as carcomidas paliçadas e as sepulturas cobertas de areia.

Tinha encarado a morte recentemente, com a sua habitual indiferença. Com a cabeça curvada, passou rapidamente. Chegando aos muros internos de Touggourt, encostou-se à sombra das casas, caminhando com cautela, sem que os seus passos fizessem barulho na areia macia, movediça, os olhos firmes através das trevas, o coração a bater mais rapidamente à medida que se aproximava do destino.

Certa vez, quase tropeçou no corpo de um ente humano que, agarrado a uma porta, era quase invisível na escuridão. De outra feita, o ladrar furioso de um cão fê-lo quase perder o ar. Não encontrou, porém, outros vagabundos nocturnos e, palmilhando as ruas vazias e silenciosas, chegou finalmente em frente ao portão maciço, de ferro, da casa que procurava.

Abriu-lhe os trincos e fechou-o rapidamente, enveredando pelo estreito corredor que levava a uma varanda, onde arbustos em flor se alinhavam ao redor de uma palmeira solitária que alteava a cabeça desfolhada para as estrelas brilhantes.

Cruzando o estreito quadrângulo coberto de telhas, passou por uma pequena antessala, ornamentada de antigas armas de fogo e acessórios de caça, e chegou a uma sala maior, onde valiosos utensílios árabes e franceses se misturavam em alegre camaradagem. Era uma sala mobilada com luxo enervante e subtilmente sensual, em que parecia respirar-se uma atmosfera de voluptuosa indolência.

Exalante de incenso e cheia de flores, ornada com grossos tapetes de Guémar, em que morriam os passos dos que ali penetravam, parecia, apesar do luxo com que fora cuidada, uma prisão dourada para os filhos do deserto que nela entravam. «E prisão seria até estar concluído o seu trabalho em Touggourt», pensou zombeteiramente. A sala dava para um dormitório, de que estava separada por estreitos arcos de onde pendiam cortinas sedosas.

Menor do que a sala contígua, estava mobilado com o mesmo luxo e capricho, cheio de vasos e ornamentos orientais e europeus.

Neste quarto, nesta prisão dentro de outra, depôs o seu fardo, descalçando-lhe os pés e libertando-a das dobras sufocantes do albornoz. Cerrando os olhos à luz, estonteada e trémula, ela agitou-se nervosamente, sem dar atenção ao que a cercava, os olhos medrosos fitos no rosto sinistro, carrancudo, tão diferente daquele rosto juvenil, de que tão bem se lembrava.

O espanto e a admiração pareciam confundir-se nela com o terror que lhe convulsionava as faces ao encará-lo, levando as mãos à garganta sufocada. Vagarosamente ela arrastou-se para mais perto.

- Penso, agora ainda, que foi o vosso espírito - murmurou, cheia de medo. E, com um grito estrangulado, meio soluço, meio gemido, ela esbracejou e saltou para junto dele.

- Eles disseram-me que estáveis «morto»! - exclamou. Mas a brusca alegria que inundara os seus olhos desapareceu subitamente quando ele se levantou em atitude ameaçadora.

Com um riso breve e penetrante afastou-se do alcance dos seus dedos trémulos.

- Não morremos tão facilmente, nós os da casa de meu pai - respondeu vagarosamente. - Vivemos para destruir aqueles que intentam destruir-nos. Oh, imprudente menina, nunca pensaste que algum dia cairias nos teus próprios laços?! Representaste o teu papel somente uma vez, mas essa foi suficiente, pequena louca!

Ela pulou para trás com um gesto de espanto.

- Que papel representei? - perguntou em resposta.

Lançou os olhos, pela primeira vez, em derredor, rápida e furtivamente, os seus olhos penetrantes e bravios, como os de um animal preso na ratoeira. Ele seguiu-lhe o olhar terrificado com um sorriso irónico.

- Aqui não há janela. É uma prisão mais segura do que aquela para onde me levaste...

As lágrimas rebentaram-lhe dos olhos e ela ergueu as mãos com desespero.

- Que quereis dizer? Oh, amor da minha alma, que fiz eu para estardes tão mudado?!

- Que fizeste? - volveu ele. - Ainda o perguntas? Representaste com tamanha perfeição o papel que eles te confiaram; tu que me prendeste com mentiras, beijos e falsas juras de amor, até que eles chegaram e te ensinaram a enganar e trair-me.

Com um grito de angústia ela lançou-se-lhe aos pés, envolvendo-o com os braços.

- Nunca vos menti, nunca vos enganei, senhor! Embora não o creiais, eu amo-vos!

- E quantas vezes amaste anteriormente? - retorquiu ele com amargura. - Quantos homens enlouqueceste e traíste antes de me enlouqueceres e traíres?

Ela tremeu violentamente, com um olhar de incrédulo horror a nadar-lhe nos olhos.

- Pensais, então - murmurou, trémula - pensais então que vos traí?

Ele fitava-a, imóvel, sombriamente.

- Não penso - disse duramente. E então a sua voz mudou bruscamente. - Julgas que sou ainda o mesmo cego e louco que era? - tornou apaixonadamente. - Digo-te, rapariga, que tive tempo para pensar e lembrar, enquanto estava esperando a morte naquele antro medonho para onde me levaram. Ouvi o que eles disseram quando procuravam arrancar-me revelações. Fiquei, então, sabendo de que espécie era o amor que me dedicavas. Fiquei, então, sabendo porque vieste cair nos meus braços naquela manhã, tu que dantes te mostravas tão recatada. Riste quando te poupei por causa do meu amor - o amor que morreu quando soube da tua traição. Por Alá! Nunca mais rirás para mim daquele modo. Como sofri, assim também sofrerás, até que me canse do teu sofrimento.

A sua voz era grossa e trémula de furor. Tremendo, ela

levantou a cabeça e fitou-o estranhamente.

- Não vos apiedais de mim, senhor? Não sofri já bastante? Não me batiam eles quando eu chorava por vós, não me açoitavam quando não me queria entregar a Alman, que me desejava? Ele jurou prender-me e só me dar a liberdade em Touggourt. E eu, eu preferia morrer a suportar-lhe a paixão. Como poderia amá-lo, quando só a vós eu amo?

- Amavas-me ou àquele elegante estrangeiro que ontem à noite estava no café maure? Foi para falar-lhe no teu amor extinto que com ele te encontraste nos lugares solitários de Touggourt? Isso impressiona-te? - chalaceou. - Então, impressiona-te? Ou queres prendê-lo, como a mim querias, para dar lucro ao diabo que te possui? Ou ama-lo, mulher de muitos amantes?

Riu com crueldade.

- Nunca o amei, nunca amei senão a vós, senhor! Não acreditais? - perguntou ela com aflição.

Com uma imprecação, ele afastou os dedos trémulos que o apalpavam febrilmente.

- Nunca, por Alá! Nunca!

Mas, confiadamente, ela agarrou-se a ele, o peito estreitado aos seus joelhos, a cabeça pendida, os olhos lacrimejantes esgazeados.

- Senhor, se eu jurar...

- Não jures! - bradou. - Não juraste anteriormente, e não foste falsa?

E, afastando-lhe os braços, levantou-se.

Na perfumada atmosfera da sala contígua, ele ficou alguns instantes com as mãos ao alto, respirando com dificuldade.

Então, pôs-se a dar grandes passadas pela sala, caminhando para trás e para diante com passo lento, silencioso, afastando as tapeçarias e ouvindo os sons surdos que provinham de detrás das cortinas. Uma onda de raiva perpassou-lhe o ser. Pobre louca! Pensava ela convencê-lo com lágrimas e mais mentiras? Pensava salvar-se com protestos de inocência? Pensava tentá-lo mais uma vez com a rara beleza do seu rosto e das suas formas, para o seduzir como anteriormente o seduzira, a fim de o fazer esquecer a sua vingança? A fé, tão cruelmente desfeita, poderia renascer com tamanha facilidade?

Dera-lhe o seu amor e ela traíra-o. Nela confiara e ela mentira-lhe. E agora, para evitar o castigo, mentir-lhe-ia novamente. Educada na escola da mentira e da traição, falsa como já se mostrara, até agora havia desempenhado o seu papel com consumada perfeição, chorando e abraçando-o com um semblante de sinceridade que chegaria a convencê-lo se não tivesse a guiá-lo a lembrança de anteriores lágrimas e abraços, seguidos da traição. Pensaria ela que o amor ainda se lhe aninhava no coração? Pensaria que ele era um grande louco? Era necessária alguma coisa mais do que lágrimas e abraços para curar a ferida que lhe abrira, para fazê-lo esquecer aquele breve sonho de felicidade que, traído, lhe matara a ilusão, lhe destruíra a fé. O amor fora-se. Só o prazer da vingança lhe restava. Com dedos trémulos, acendeu um cigarro e deixou a sala, fechando a porta atrás de si. Na pequena antecâmera encontrou alimentos que o esperavam. Mas, demasiadamente excitado todo o dia, não lhe apetecia comer. Só sentia uma sede abrasadora e bebeu chávenas sobre chávenas de café escaldante, fumando inúmeros cigarros, enquanto, sentado à mesa, olhava para a ceia intacta.

Por fim, chegaram Ramadan e S’rir, o primeiro com ar grave e sério, como de costume, e o outro sorrindo o seu eterno sorriso enigmático.

Pela primeira vez, ocorreu-lhe saber se as suas ordens, bem arquitectadas e severas, haviam sido executadas com rigor ou se a ilegal quadrilha de sectários que ele havia congregado teria, em momento de excitação, excedido as suas instruções, aproveitando a oportunidade para auferir lucro pessoal, para praticar desregramentos ou coisa pior.

Havia entre eles muitos que faziam vida fácil, muitos, indubitavelmente, que tinham contas a ajustar com as autoridades, que passaram a ser tidos como mãos-rotas de dinheiro, pelo menos no meio da turba de frequentadores do café maure. Percebeu que havia passado por um risco perigoso e tal pensamento enrugou-lhe as faces, ao voltar-se para os dois irmãos a fim de lhes fazer um breve interrogatório.

- Nada de novo?

Ramadan sacudiu de leve a cabeça.

- Nada, senhor - respondeu com uma ponta de despeito na voz grossa. - Tudo foi feito de acordo com as suas ordens, graças a Alá! Haverá algumas cabeças feridas amanhã, mas isso não tem importância. Nada se pôde fazer ao mouro, que combatia como dez demónios, o cão infiel! Quanto aos estrangeiros, isto. - E colocou uma volumosa agenda de algibeira na mesa. - Deixámo-los amarrados numa vala, com uma faca perto deles. Libertar-se-ão antes de raiar a manhã. Alá os amaldiçoe! Seria melhor tê-los matado, senhor. Eles envenenam a terra.

Indiferente aos comentários do camarada, Ahmed pegou no livro e analisou-lhe rapidamente o conteúdo. Mas aquelas folhas estavam cheias de escritos numa linguagem que lhe era desconhecida, pelo que o arremessou à mesa, deixando transparecer um gesto de repugnância, e depois limpou os dedos como se houvessem tocado numa coisa imunda.

- E as sentinelas? - perguntou, olhando novamente para os dois homens.

Desta vez foi S’rir que respondeu com um sorriso de prazer:

- Dormem docemente em lençóis de vinho, senhor. Ramadan teve de chegar com alma, a esses negros de cabeça de ferro.

Ahmed deteve-os ainda algum tempo, ouvindo a narração de mais alguns pormenores sobre o trabalho da noite, Depois, dando-lhes ordens para serem executadas no dia seguinte, despediu-os.

E durante muito tempo, depois que eles se foram, esteve sentado à mesa e examinou o livro que arremessara entre os pratos e talheres. Se esse livro contivesse o que ele estava convencido que continha, quanto mais depressa fosse entregue às autoridades melhor seria, mas, se estivesse em erro, devolvê-lo-ia ao seu legítimo dono - com elogios. Mas estava certo de que não seria devolvido. Tinha profunda convicção de que não se enganara em relação a esses estrangeiros suspeitos, cuja presença constituía uma ameaça para a terra que ele amava. E para servir o país estava disposto a arriscar alguma coisa.

Se a aventura daquela noite tivesse findado com perigo, sabia que só uma coisa lhe restaria fazer: entregar-se ao comandante francês e aceitar as consequências. Mas do modo como as coisas haviam corrido não havia necessidade de medidas heróicas e as autoridades não ligariam importância a um caso liquidado sem derrame de sangue. Se algum mal lhe sobreviesse, era ainda tempo de ele ir fazer a sua amende honorable.

Entretanto, o livro deveria ser remetido ao comandante no dia seguinte, acompanhado de uma nota que poderia ser mais ou menos ambígua. E no dia seguinte trataria de regressar à sua terra. Mas o dia seguinte - amanhã - ainda não chegara. Uma tola vermelhidão tomou-lhe a face requeimada de sol e, levantando-se, pôs-se a caminhar pela sala contígua durante cerca de uma hora.

Dando passadas nervosas pela sala, com o coração a pular, não houve canto que não percorresse.

Que o detinha? Que escrúpulo importuno lhe impedia o cumprimento do seu firme propósito?

O amor morrera, mas o desejo ficara, desejo que lhe requeimava o sangue nas veias, enquanto lhe dava força momentânea, artificial. Logrando desfazer-se da paixão, a cor desapareceu lentamente das suas faces, que empalideceram horrivelmente.

Os seus olhos percorriam o quarto angustiosamente e de tempos a tempos palavras desconexas lhe borbotavam dos lábios comprimidos.

Parou depois no limiar da porta de comunicação e ficou imerso num olhar fixo, as mãos cruzadas nas costas.

De há muito havia arrojado de si o pesado turbante e a luz duma lâmpada pendente projectava-se resplandecente nos seus cabelos curtos, castanhos. O calor da luz, penetrando-lhe a epiderme, parecia oprimi-lo e ele moveu a lâmpada ao mesmo tempo que arrancou do corpo a sua curta jaqueta bordada e a camisa de seda que vestira antes de iniciar a sua monótona viagem. Pôs-se novamente a caminhar, até sentir os pés cansados. Então, com um suspiro, atirou-se a um divã, apoiando a cabeça nas mãos.

Ela mentira-lhe... Então porque a pouparia?

Ela traíra-o... Porque não a puniria então?

Não sentiu piedade pelo desamparo dela. O que havia de cavalheiresco no seu temperamento morrera com o seu amor.

Tinha feito um juramento e, por Alá, haveria de cumpri-lo! Que escrúpulo poderia detê-lo? Que fizera ela para merecer misericórdia?

Ela pertencia-lhe... para fazer o que ele quisesse!

O domínio de si mesmo abandonou-o. Torturado pelo anelo físico que já se estava tornando insuportável, tendo consciência somente da necessidade avassaladora que o abrasara, caminhou com pressa, o coração a bater e o pulso a fugir-lhe. Mas ao chegar à soleira do quarto parou com as mãos crispadas, o rosto atormentado.

Então, com uma praga, afastou violentamente as cortinas.

A madrugada havia há pouco passado quando a deixou. Andando silenciosamente, na ponta dos pés, padeceu por um momento, olhando o quarto com ar cansado, esgazeado.

Ela dormia pesadamente, com graciosa inconsciência infantil, tendo uma das suas delgadas mãos mergulhada na cabeleira negra espalhada pelo travesseiro e a outra crispada a um lado, apalpando maciamente a colcha de seda.

Mesmo adormecida, o seu rosto era tristonho, murchos os lábios entreabertos, os olhos ainda húmidos das lágrimas vertidas.

Ele curvou-se, fitando-a fixamente.

Quão jovem lhe pareceu e quão bela!

Mas para ele que valia aquela beleza? Alá misericordioso! Se pudesse ao menos perdoar! Mas nunca perdoaria a traição!

Tremeu à lembrança da noite passada.

Que lhe tinham trazido aquelas horas de vingança?

Tinha feito o que jurara fazer - mas o prazer que antegozara era-lhe agora negado. Ela pagara a infidelidade com lágrimas e angústias, como havia prometido que ela lhe pagaria, e o seu triunfo tinha o sabor de cinza na sua boca. Falhara a satisfação por que tanto ansiara e havia no seu coração uma dor que ele não podia compreender. Com um pouco de impaciência e um pouco de amargura, pôs-se a caminhar e retirou-se do quarto.

A atmosfera da sala vizinha, pesada de incenso e do aroma das flores emurchecidas, encheu-o de fundo desgosto.

Naquele momento, tudo daria para sacudir dos sapatos o pó de Touggourt e galopar na limpa e doce frescura do deserto, para deixar para trás tudo o que queria esquecer, voltando para casa como o filho pródigo, para começar de novo a vida.

Mas a sua obra de Touggourt estava apenas em metade e ali, a poucos metros, estava a rapariga.

Não podia, ainda, deixá-la ir-se embora. Queria-a ali ainda, embora a odiasse!

O seu rosto sombreou-se ao curvar-se para retirar o albornoz do cabide em que à noite fora deixado. Passou depois para a antecâmara.

Era muito cedo e por isso os criados ainda não haviam limpado a mesa, de maneira que o livro de notas ainda estava no lugar em que fora deixado. Pegou nele e com ele foi para a varanda e dali a outra fileira de quartos, na outra ala da casa, que ele ocupara até a véspera.

Um banho, numa magnífica banheira de porcelana que desafiava todo o conforto moderno, embora sem o necessário suprimento de água, mas que na véspera fora cheia, deleitou-o. Depois de se barbear sentou-se à mesa para escrever a pequena nota que deveria acompanhar o livrinho que pretendia mandar ao comandante. Era uma carta anónima que nada o comprometia, mas que prometia informações posteriores. Feito isso num abrir e fechar de olhos, pôs-se a fazer os preparativos dos seus próximos movimentos.

Uma hora mais tarde, um nómada maltrapilho, esquálido, deslizou subtilmente através da casa ainda adormecida, em direcção à varanda, da qual uma porta dava acesso a um estreito corredor que saía na rua em que estava situada a porta principal...

Através dos subúrbios meridionais de Touggourt, ao longo da rua ajardinada que levava às dunas, e além, à longínqua cidade de El-Qued, Luciano Maria, barão de Préfont - ocioso por inclinação e spahi por necessidade - viajava com dois auxiliares árabes que trotavam vagarosamente atrás dele.

Arrancado ao leito em hora que lhe parecia pouco natural e empenhado em empreender o que ele considerava mero trabalho de polícia, dava curso ao seu mau humor no quase rebentado corcel que recentemente se tornara sua propriedade como pagamento duma dívida. - O trabalho foi feito para os cachorros - grunhiu para si mesmo enquanto esporeava e acalmava alternativamente a sua maltratada cavalgadura. O serviço do polícia ia bem, mas cumpria contornar-lhe as durezas, com um melífluo bien entendu, e não varrer as ruas deste sacré pequeno buraco de cidade à procura dum maltrapilho vagabundo ou dum brinco qualquer. Se houvera uma desordem no café maure, que diabo tinha ele com isso? Não houvera outros prejuízos além dalgumas lâmpadas quebradas e um êxodo geral das bailarinas. Caminhariam sem destino um dia ou dois e se o não fizessem, que se perdia com isso? Todo o mundo parecia agora sofrer dos nervos. O próprio velho Mercier já não era o mesmo que antigamente e isso somente por causa dalguns boatos! Que asneira, essa de revistar as ruas à procura de pessoas de aparência suspeita! Bon Dieu, que vida!

Estava em estado de extrema exasperação quando um mendigo, surgindo subitamente dum lado da rua, fez o já citado cavalo dar um salto quase perpendicular.

- Alá te fulmine, filho dum burro! - praguejou batendo na andrajosa figura com o cabo do chicote e puxando brutalmente o freio do cavalo.

- Burro sejas tu, Luciano - retorquiu o mendigo em perfeito francês. - Esse teu cavalo ainda cai num buraco, se não tomas tento.

O rosto do mendigo, envolto num pano escuro, estava escondido pelas dobras do albornoz, mas a voz era perfeitamente reconhecível. Contendo a custo o cavalo, de Préfont bateu no arreio com uma grande explosão de riso.

- Ahmed! - exclamou ele, estendendo-lhe logo a mão enluvada.

As mãos do falso mendigo acolheram-na pressurosamente.

- Devagar, meu velho - murmurou - e dize aos teus homens que esperem um pouco atrás.

Tendo ordenado aos dois árabes que se distanciassem deles, de Préfont abrandou o andamento do cavalo e fez sinal ao suposto mendigo para que o acompanhasse.

Fora do alcance dos ouvidos dos seus homens, voltou-se de novo para o companheiro.

- Que diabo é isso, Ahmed? Para quê essa mascarada? Há quanto tempo estás em Touggourt? Ouviste falar na pagodeira de ontem à noite no café maure? Creio que estou agora a varrer os restos. O velho Mercier farejou qualquer coisa naquilo, posso dizer-te. Tudo aquilo é um mistério e como tal ficará enquanto eu quiser. Pelo que posso ajuizar, parece que foi apenas uma brincadeira arranjada por algum jovem velhaco vindo do deserto. Com a devida deferência, meu caro, os teus patrícios estão a tornar-se intragáveis!

Ahmed mudou de assunto, saltitando com as suas vestes esfrangalhadas.

- Provavelmente eles não te dão todo o prazer que esperavas, pobre diabo - disse com um riso meio amargo. – Mas basta - acrescentou enfastiado, quando de Préfont lhe lançou um olhar de muita curiosidade. - Não temos tempo de sobra e os teus homens já devem estar desconfiados, vendo-nos conversar tanto tempo. Esquece-te de que me viste esta manhã, Luciano, e entrega este embrulho ao coronel Mercier. Dize-lhe que o achaste ou arranja qualquer mentira para disfarçar. É importante, mas não quero que o meu nome apareça por enquanto. Tenho razões para isso, mas agora não posso dizer-tas. Podes, entretanto, confiar em mim.

E, aproximando-se do cavalo do oficial da polícia, colocou-lhe nas mãos o pacote. De Préfont apanhou-o e guardou-o na túnica.

- Muito bem, meu bravo - disse com um sinal de inteligência. - Serei surdo, cego e tudo o que for preciso. Que novidades há lá pela tua terra? Sabes naturalmente que Raul de Saint Hubert está na cidade?

Ahmed estremeceu. Os acontecimentos das últimas semanas tinham-lhe desviado os pensamentos de Raul e do seu desconhecido irmão. Não tendo lidado com ninguém desde que estava em Touggourt, só saindo à rua à noite, não ouvira nenhuma tagarelice. Mas Ramadan e S’rir deviam sabê-lo. Porque não lhe disseram nada? Sacudiu a cabeça em resposta à pergunta de de Préfont.

- Não sabia - respondeu - e não há necessidade de lhe falar a meu respeito quando o encontrares, Luciano.

A curiosidade, porém, venceu-lhe a reserva.

- Será porque meu irmão esteja com ele? - perguntou, meio hesitante.

De Préfont fitou-o fixamente.

- Teu «irmão»? - repetiu. - Naturalmente é teu irmão. Tinha-me esquecido disso. Oh! «lá! lá!» - fez, batendo no arreio num paroxismo de alegria.

- Porque «lá, lá»? Que te parece?

De Préfont puxou as rédeas e fez saltar o cavalo.

- Espera até o encontrares! - exclamou. - Não terás de caçá-lo, monsieur, ao teu precioso e estimável irmão a fazer raids ao café maure e pondo toda Touggourt em polvorosa. Au revoir, meu bandido! E fica sossegado, serei mudo como um sepulcro. Agora toca a trotar, meu amigo, e não receies que eu vá uivar por aí. Sabes que temos de guardar as aparências.

E, picando o cavalo, foi juntar-se aos seus homens.

Quando estes se lhe juntaram, fingiu lançar o excitado animal sobre a figura sórdida do mendigo, contra quem disse os maiores palavrões em língua árabe.

Reassumindo o seu disfarce, Ahmed soltou um grito de terror e precipitou-se para junto do muro do jardim mais próximo, enquanto de Préfont chicoteava o cavalo e com uma praga galopava de volta a Touggourt.

Então, Ahmed, com um sorriso quase imperceptível, rodou nos calcanhares e, afastando as dobras do albornoz, procurou um cigarro entre os seus andrajos.

Encontrar de Préfont tinha sido um acaso mais feliz do que esperava. O embrulho seria entregue directamente ao comandante e o seu segredo seria guardado pelo jovem francês.

Mas o seu rosto ensombrou-se de novo ao lembrar-se do gesto ridente do spahi. Sim, seu irmão era «o precioso, estimável irmão» que encontrara nos lugares solitários das cercanias de Touggourt! O seu irmão era aquele homem que vira na última noite no café maure. No momento em que se encontraram os olhos de ambos, alguma coisa na aparência do estrangeiro lhe atraíra a atenção, uma parecença que lhe tornava familiar o rosto do jovem! Não lhe restava já dúvida alguma a tal respeito. Era a parecença com sua mãe. Alá! Que complicação! Com violentas exclamações arremessou o cigarro para longe.

Foi, então, por amor ao seu irmão que ela lutou com ele na última noite? Era então o seu próprio irmão que vinha colocar-se entre ele e a mulher querida? Sacré Dieu, nem todos os irmãos do mundo a tirariam dele!

Colocando sobre si os andrajos, retomou o caminho por onde viera. Tratou, então, de não pensar mais nisso. Havia tempo de sobra para se entender com seu irmão. De momento, cumpria-lhe concentrar os esforços em busca daquilo pelo qual estava em campo desde muito cedo.

Na estrada havia agora mais tráfego. Um constante vaivém de cavaleiros, montando animais bem nutridos ou miseráveis, atarracados ou magros, que perpassavam num vendaval de pó e areia; mulheres com véus marchavam pacientemente com os filhos ao colo; jumentos magros cambaleavam sob o peso de cavaleiros cujos pés se arrastavam pelo chão ou empilhados com gravetos, e, no meio deles, grupos de operários seguiam em direcção aos numerosos jardins que faziam Touggourt tão linda. Perto da praça do Mercado encontrou uma caravana que seguia para El-Qued, e admirou-se como muitos desses árabes guardavam o oiro nos bolsos.

Era para a parte mais antiga da cidade que se dirigia, para aquele estranho labirinto de ruas estreitas, onde os habitantes viviam como ratos na ratoeira, um labirinto de buracos, passagens varridas pelo vento, cujos lodaçais faziam ecoar misteriosamente os movimentos dos pés e figuras movediças esbarravam frequentemente contra os transeuntes cujos rostos não podiam ver. Foi à entrada desta cidade dentro de outra que ele parou, pisando o caminho de areia onde autênticos mendigos esfarrapados dormiam, passando o tempo em descuidado lazer.

Com as dobras do albornoz a cobrir-lhe o rosto, fingindo dormir, examinou a multidão em torno, enquanto de hora a hora soavam os relógios nas barracas, ao longo da praça. Viu muita coisa que o intrigou, muita coisa que o interessou, mas dos três homens que procurava não viu nem sombra.

O relógio da barraca soou mais uma vez com badaladas barulhentas e o som morreu-lhe aos ouvidos.

O acaso estava contra ele, parecia. Começou a sentir uma fome impertinente. Poderia, também, conceder-se algumas horas de descanso. Nada lhe cumpria senão confiar em si próprio. Ramadan e S’rir tinham ordens a executar e estavam ao seu serviço espiões a vigiar os diversos pontos da cidade.

Lembrando-se da sua aparência exterior, rumou preguiçosamente por caminhos calmos e não frequentados até chegar ao portão por onde passara às primeiras horas da manhã. Na varanda, S’rir esperava-o, dando doces a uma gazela aleijada e fumando, contemplativo, um cigarro, que desapareceu numa lata de lixo à chegada de Ahmed.

- Não havia novidades - informou, após rápido salamaleque. - Ramadan ainda não voltara. O pessoal da casa esperava as suas instruções e a «camela velha, esbranquiçada», a cujo cargo estava a rapariga, tinha justamente naquele momento solicitado licença para ir à mesquita, pois, ao que parecia, era muito devota. E que lhe restava naquela idade, a não serem os consolos da religião? - acrescentou, sacudindo os ombros e fazendo uma careta. Mas a careta sumiu-se-lhe do rosto ao ver o aspecto sombrio do chefe, a quem perguntou solicitamente onde sua senhoria havia almoçado.

Determinando que lhe levassem o almoço ao quarto, Ahmed precedeu-o na casa, para mudar de roupa.

Com um suspiro de alívio despojou-se dos andrajos do seu disfarce e, lavando o pó do rosto e das mãos, trocou as roupas velhas por outras limpas e bem talhadas, que ali estavam dispostas para ele.

Terminado o lanche simples, sentou-se alguns momentos a fumar, com uma xícara de café à mesa, imerso em profundo cismar. Afinal de contas, não estava a gastar tempo e dinheiro procurando lá fora a informação que desejava obter, quando ali estava à sua disposição uma pessoa de quem podia saber muito mais do que com o auxílio de espiões pagos? A rapariga sabia onde se ocultara o mouro e provavelmente sabia quem eram os seus estranhos companheiros. Sendo deles instrumento e sócia, ela deveria conhecer forçosamente as suas secretas maquinações. E o que sabia poderia dizê-lo!

Levantou-se abruptamente e, deixando cair o resto do cigarro na borra do café, arrancou dos ombros o albornoz e saiu do quarto.

A casa estava imersa em silêncio, como de manhã aqueles criados de Sliman ou eram muito dorminhocos ou eram bem ensinados para desaparecerem, pensou enquanto passava pelas salas desertas e pelos corredores vazios que levavam à pequena antecâmara.

Foi no salão quente e perfumado que a encontrou, e logo à primeira vista verificou que determinadas ordens suas haviam sido escrupulosamente atendidas e que a «velha camela esbranquiçada» de S’rir cumprira perfeitamente a sua missão.

A mudança que se operara na aparência da rapariga era notável.

Nos farrapos de ontem era bonita, mas nas ricas vestes de agora parecia dez vezes mais encantadora!

Uma jaqueta curta, de seda, cobria dois vestidos alegres de cores contrastantes, que realçavam um vestido interno de gaze dos mais finos, o qual revelava um tronco delicado e a maravilha de opulentos seios; o seu peito delgado estava enfaixado pelas muitas dobras deuma fouta de seda às riscas, que lhe chegava até aos quadris. Os seus pés pequeninos estavam nus, dentro de finas chinelas francesas. Anéis, braceletes e jóias constituíam-lhe adorno abundante. Encarou-a com firmeza ao notar tantos enfeites. Ondeando entre as almofadas de um grande divã, ela não fez movimento algum quando ele entrou, o que o fez supor que estivesse a dormir. Chegado, porém, mais perto, notou a colorida chama das suas faces e um súbito estremecimento perpassar-lhe o corpo, enquanto ela parecia afundar-se mais na macieza dos travesseiros.

Ele abordou o assunto com característica rudeza, fazendo as perguntas em tom que, embora fosse baixo como de costume, era duro e francamente autoritário. E durante o interrogatório ela ouviu-o em silêncio, sem mudar de posição, nem levantar os olhos baixos. Parecia surda e muda para toda a impressão visível provocada pelo interrogatório. Aquele silêncio e aquele domínio sobre si mesma exasperaram-no, mas à ira juntava-se admiração ao examinar-lhe a figura esbelta, da cabeça aos pés.

Compreendia ela que se achava à mercê dele? Em que confiava para o contrariar? Fez um rápido movimento em direcção a ela.

- Fala, menina! - disse ameaçadoramente.

Então, pela primeira vez, ela levantou a cabeça e fitou-o com um olhar que era singularmente intencional e penetrante. Os lábios tremiam-lhe e durante um momento parecia que se esforçava por evocar palavras que não vinham.

- Acusais-me de traição - volveu por fim - e agora quereis que traia meu pai?

Ele sacudiu a cabeça com um gesto de impaciência. - Já milhares de vezes me disseste que aquele sujeito não é teu pai. Queres mentir-me mais ainda?

As pestanas velaram-lhe os olhos. - É o único pai que jamais conheci - murmurou.

Ele ironizou com súbita cólera:

- É um parentesco fácil que reconheces ou negas à vontade - resmungou - mas repito que inúmeras vezes me declaraste que não é teu pai.

Ela estremeceu ante a fúria concentrada da sua voz, mas a boca ficou-lhe obstinadamente fechada.

- Podeis matar-me, mas não falarei.

Por um minuto ele esteve junto dela com silenciosa ira. Mas o sangue inglês que lhe circulava nas veias impedia-o de tentar arrancar a verdade, e no estado em que se encontrava foi com dificuldade que reteve as mãos para não a agarrar. Então, com um riso sarcástico, desviou-se dela e pôs-se a caminhar pelo quarto.

- Não és digna de morrer - disse numa provocação. Há outros meios de te fazer falar.

Ela estremeceu de novo e um olhar estranho lhe sobreveio ao mover-se devagar no divã, as mãos agarrando a cinta larga que lhe envolvia o corpo.

Fitava-o firmemente através das pestanas cerradas enquanto ele ia e vinha e os seus membros flexíveis tremiam enquanto os músculos se retesavam. Ele parou de novo ao lado dela, o rosto como que mascarado pelo esforço que fazia.

- Por amor de ti própria, rapariga, dize-me o que sabes - convidou mais gentilmente. - Com que fim esses homens estão na Argélia? Que segredo os trouxe do seu país para semear a discórdia entre os moradores de outro país? Que ligação existe entre o teu «pai» e esses estrangeiros? Não podes compreender quanto depende das tuas palavras - quanto mal para esta terra pode resultar do teu silêncio.

- Pensais que me importa o mal que pode advir a esta vossa pobre terra? - respondeu zombeteiramente. - Que vos adiantam os segredos de meu pai a vós, filho de uma raça conquistada? Que sabeis de liberdade, se o vosso pescoço está sob o jugo da França - que Alá a destrua se ela quiser escravizar-nos como vos escravizou! Mas em Marrocos «somos» livres e as nossas velhas mulheres são melhores que os vossos famintos patrícios, cuja energia é reservada só para o prazer, como também a vós vos acontece. E em Marrocos nós, mulheres, não trememos, não nos acobardamos como as valentonas daqui quando um homem quer fazer-nos mal. Nós lutamos, como eu luto.

O ataque foi feito tão subitamente que apenas os seus olhos atentos e os seus firmes nervos o salvaram.

Com o pequeno corpo, bem treinado, atlético, retesado, ela movera-se quase imperceptivelmente para o atacar com a faca reluzente na mão, arrancada da fouta que lhe cobria o peito.

A ponta aguda da arma estava perto do coração dele mais ou menos na distância de uma polegada, quando ele agarrou a lâmina com dedos de aço, empurrando a rapariga violentamente para trás. Ela moveu a faca ao redor, comprimindo o corpo trémulo até se admirar como as suas costelas não rebentaram sob a impiedosa pressão que parecia querer arrebatar-lhe a vida. Ansiosa por falta de ar, encarou o seu rosto lívido, apaixonado, enquanto vagarosa e cruelmente ele lhe apertava o pulso até perceber que a ela já não era mais possível suportar a dor da compressão e um fundo suspiro lhe explodiu dos lábios ao sentir a mão liberta, deixando cair a faca no tapete. Durante um momento ela debateu-se, com os olhos em estranha mobilidade e o peito a arfar tumultuosamente. Então, a jovem congregou toda a força dos músculos enfraquecidos e com um grito desesperado caiu nos braços dele, a chorar copiosamente.

Aquelas lágrimas, porém, não impressionaram Ahmed, que com um riso terrível a fez prostrar-se aos seus pés.

- Alá tenha misericórdia de ti, minha pequena louca - gritou furiosamente - porque tu nada terás de mim.

Ela ouviu o estalo da porta como se houvesse sido fechada violentamente atrás dele e muito tempo depois da sua saída ficou no lugar em que havia caído, tremente e suspirosa como em estado de agonia, soluçando como se o coração lhe rebentasse em pedaços. Que tinha feito? Oh! Alá! Que loucura fora a sua! Que mau espírito a tinha tentado, levando-a a retirar da sala de armas aquela faca, para matar aquele que amava e que já a amara? Planeara a morte daquele cuja vida lhe era mais preciosa que a sua própria - não, não, mil vezes não, não fora ela, mas aquele espírito mau que lhe forçara a mão, que tinha fugido quando ela começou a perceber o erro em que quase havia caído. Se o magoasse, oh! Alá! Se ferisse o seu senhor! É verdade que ele fora cruel - mas todos os homens são cruéis, e não era certo que lhe pertencia para fazer tudo quanto ele quisesse? E já que ele a fizera amá-lo, amá-lo até à loucura, deveria saber que isso passara e que em breve a amaria de novo. Algum dia viria a saber que ela não lhe mentiu, que ela não sabia que os seus passos eram seguidos naquela manhã sinistra, que jamais soubera da traição premeditada e que a fizera passar como falsa. Ainda agora, na sua loucura, para fazê-lo irar-se, fingira saber mais do que realmente sabia. Fizera-o supor que a chave do conhecimento por ele desejada estava nas suas mãos. Mas o esconderijo do mouro era tudo quanto ela poderia contar-lhe - nada mais do que isso. Que tinha ela que ver com as obras secretas do homem, argumentava, que dela se utilizara desde a infância e cuja lembrança estava impregnada de coisas subtis, fantásticas, que eram como sonhos sombrios de um tempo em que mãos bondosas a tocavam, e uma voz doce, melancólica, sussurrava cantigas que ainda agora viviam no seu espírito? E que tinha ela também com Alman, árabe brutal cujos olhos concupiscentes a enchiam de terror mortal? Por causa de um sentimento que não sabia definir, não poderia provar-lhe que não o traíra e que todos eles nada valiam para ela, que vivera sempre como escrava no meio deles, e que tinha suportado uma vida de miséria e de revolta, até que ele - o amado estrangeiro, cuja magnificência a havia deslumbrado - começara a abrir-lhe os olhos para o amar. E durante curtas horas fugitivas de felicidade, ele também a amara! Oh! Que Alá fizesse que ele a amasse de novo - fizesse com que ele acreditasse nela e confiasse nela novamente!

Com o rosto mergulhado na macia almofada, ela orou, chorando até não ter mais lágrimas para derramar, até que, alquebrada pela comoção, caiu exausta, o cérebro cansado, estalando, e todo o corpo quebrantado, dorido, ainda sentindo a violência das suas mãos fortes.

Embora a vida não fosse senão sofrimento, ela admirava-se como o seu espírito voltava às semanas de agonia que passara e que lhe pareciam como uma morte viva, que dela tinha feito uma coisa insensível a tudo o que não fosse a lembrança da alegria que dela se afastara. Sem querer, eles tinham-lhe falado da sorte do seu amado e a angústia que ela mostrara provocara-lhes a ira.

E na sucessão monótona dos dias, só vivia com um pensamento, com a esperança de depressa estar também ela ao abrigo da crueldade do carrasco que a torturava desde que ainda era uma criança desamparada. Sempre o temera, sempre fugira dele com horror instintivo. Mas ódio não sentira, a não ser quando ele foi torturar-lhe o coração, fazendo-a ver as suas mãos manchadas com o sangue do seu amado. Seu amado! Um soluço forte produziu-lhe um choque violento. Amado algum faria o que ele fez na noite anterior. O seu amor morrera. E quando ele voltasse... Trémula, levantou-se na ponta dos pés e ficou a olhar tristemente em redor de si, palpitando com os soluços que ainda lhe fugiam dos lábios.

Quando ele voltasse, o amor lhe daria forças para suportar tudo quanto ele quisesse. Porque nada poderia matar a paixão que era uma chama viva, a crepitar dentro dela.

Os seus olhos tristes, girando incansavelmente, passeavam pelas jóias com que zombeteiramente se adornara até pousarem ao lado da faca que deixara cair no tapete, quando contra ele investira. Com um grito de desespero, agarrou-a com frenesi e, arremessando-a com toda a força para longe, deixou-se cair no divã, imergindo o rosto nas almofadas.

 

- O último acampamento, meu caro!

Para Caryll, sentado comodamente num monte de areia, com as costas voltadas para o vento matinal, chupando um cachimbo que obstinadamente se negava a acender, a voz de Raul de Saint Hubert soou quase agressiva.

Ele não estava, de modo algum, alegre consigo mesmo e a consciência da sua atitude inquieta - que honestamente admitia que fosse infantil até ao último grau - não tendia a fazer dele outra coisa. Mas, com os demónios, como poderia alegrar-se naquele ambiente venenoso? - argumentava consigo mesmo. - O tio Raul tudo achava bem, porque amava o país e parecia não dar pela «abominação da desolação» por que tinham passado. Mas ele sentia-se cansado de tanta areia, cansado de tão insípidos dias de ininterrupta monotonia, porque não considerava como alívio aceitável a hospitalidade que lhes fora oferecida, a primeira vez pelos marabutos de um zaonia do deserto e a outra por um chefe de distinção.

Desde o dia em que haviam deixado Touggourt, achara que a viagem era de um tédio horroroso, e ainda não viera uma ocasião para lhe modificar esse parecer. E o cúmulo do aborrecimento era a lembrança daquele fútil espectáculo de alguns dias antes, quando mais ou menos cinquenta homens da tribo de seu pai tinham chegado para render a escolta que com eles viera de Touggourt! Um horrível espectáculo circense que tanto calor e tanta febre lhe causara, tanto desconforto e aborrecimento, que o deixavam doente só ao lembrar-se daquilo. Deveria ter parecido um verdadeiro louco, quando uma horda de maníacos o cercou, como um bando de demónios, fazendo uso dos rifles com sublime indiferença pela vida e pelos membros do corpo! Um ridículo desperdício de munições. Honra ao filho de seu pai - bom Senhor, ele poderia ter agido sem distinção, loucamente.

O seu rosto tremia enquanto esvaziava o cachimbo com desnecessária violência e murmurava uma tardia e ininteligível resposta a uma observação de Raul.

O conde deixou de contemplar os camelos que estavam sendo carregados com a bagagem e sentou-se perto dele, acendendo um cigarro com dificuldade.

- Que dizeis? - perguntou ocultando do vento, com as duas mãos, um palito de fósforo.

Caryll levantou mais alto a gola do casaco, enterrando petulantemente os calcanhares na areia.

- Eu disse «graças a Deus» - respondeu secamente.

Raul sorriu com a sua paciência habitual.

- De modo algum - concordou serenamente - posso pretender que a viagem esteja sendo divertida, especialmente para quem não se interessa pelo país. Admito que é um péssimo caminho, esse que temos de fazer. Mas, pouco a pouco, tornar-se-á mais interessante e logo que estejamos no acampamento haverá mais distracções e menos monotonia. Examinareis aquelas famosas espingardas e achareis que os famosos cavalos do vosso pai são mais do que interessantes.

Caryll franziu o sobrolho e lançou um rápido olhar para a figura indolentemente estendida ao lado dele. Estaria sendo escarnecido? Que diabo pretendia o tio Raul ao falar-lhe como se fosse uma criança manhosa a quem se fazem promessas de brinquedos e de divertimentos? Mas o rosto de Raul estava sério e, longe de se mostrar interessado pelo companheiro, parecia que todo o seu interesse se encontrava na aproximação do acampamento. De costume, a esta hora da manhã já as caravanas de camelos estavam prontas para partir. Hoje, porém, não havia necessidade de partir muito cedo. O equipamento de viagem não seria reclamado no acampamento do sheik e tudo contribuía para facilitar a última etapa da jornada, agora aliviada da necessidade de levantar tendas e cozinhas. Alguns camelos já estavam carregados e vagueavam sem direcção, mostrando certa impaciência; outros, ainda ajoelhados, rugiam e blateravam, enquanto as cargas eram amarradas e desamarradas, afrouxadas e apertadas, pelo bando de barulhentos carregadores, cujo clamor se erguia cada vez que uma carga se achava mal ajustada nos animais. Uma cena de confusão aparentemente inextricável, de que emergiam figuras pernaltas de roupa branca, voando de um lado para outro, recambiando, excessivamente zelosos, alguns animais que se desgarravam em direcção errada ou fazendo esforços hercúleos para levantar alguma carga mais pesada ou dizendo impropérios em torno de algum objecto esquecido que passava de mão em mão até achar um lugar em que pudesse ser colocado.

Era uma confusão, entretanto, que tinha um certo método próprio, porque a ordem alvoreceria finalmente do caos sob a hábil direcção do criado árabe de Raul, Mohamed, um cabila delgado mas de aspecto viril que era seu ajudante há dez anos, e sucedera a Henrique, que, casado e pai de família, fora promovido à mordomia da propriedade do conde, em França.

Finalmente, um dos homens da turma de Caryll estava empenhado em preparar o magnífico corcel que o sheik tinha mandado para uso do filho. Sem se deixar perturbar pelo grupo de camaradas que o cercavam, crivando-o de piadas, com superior indiferença, o jovem inglês continuava o seu serviço, respondendo às chalaças com qualquer picante anedota que o auditório não podia compreender, mas que depois, embrulhada num misto das línguas árabe e francesa, com palavras de uma intercaladas com as de outra, levaram os camaradas ao paroxismo do gozo.

De tempos a tempos, o seu riso sadio ecoava alacremente. Os dedos manchados de nicotina de Raul apontaram em sua direcção.

- Guilherme, em todo o caso, parece alegrar-se bastante - observou. - Ele é já popular entre os homens e Mohamed é estrondoso nos seus elogios. Somente Deus sabe o quanto lhe custa fazer-se compreender, porque Mohamed, como sabeis, tem alguma tintura da língua inglesa. Mas parece que geralmente está como quer. Os homens fizeram uma festa a última noite, quando estáveis dormindo e roncando, meu caro...

- Eu não estava a dormir - contestou Caryll. - Era lá possível alguém dormir com aquele barulho infernal?

Raul riu.

- Não estáveis a dormir? Então fazíeis alguma coisa muito parecida. Bem, fui vê-los, porque eles gostam dessa prova de interesse, e lá encontrei o vosso senhor Guilherme todo rígido num albornoz e num turbante. Parecia muito divertido no seu colarinho corta-gargantas, maltratando uma dança da última moda e trauteando qualquer cançoneta dos cabarés, com enorme delícia da selecta assistência. Receio que ele não ficasse lá muito alegre ao ver-me, mas mandei-lhe que continuasse o divertimento. Certamente, ele está muito contente com a vida e parece ter encontrado o seu métier. Tornar-se-á um admirável viajante, bem depressa. Estou disposto a seduzi-lo e a tirá-lo do vosso serviço quando estiver finda a vossa excursão, Caryll.

Caryll seguiu-lhe a tagarelice com um olhar ardente.

- É um bom rapaz - disse.

Então, o mesmo sentimento de inveja lhe sobreveio mais uma vez. Porque não levava ele a vida alegremente como Guilherme? Que lhe faltava no temperamento para que a seriedade da vida a tudo se lhe sobrepusesse? Dois anos de árdua responsabilidade tinham-lhe arrebatado as prerrogativas da mocidade e fizeram dele um homem ainda antes de deixar de ser uma criança. E entretanto, nas últimas semanas, ele não tinha sido um homem, propriamente falando. Tinha sido somente uma máquina - uma criatura rotineira e metódica, mais do que um ente vivo, um mortal que respira, movido por paixões humanas ordinárias. Em Touggourt, Guilherme, que era cinco anos mais velho do que ele, tinha sido uma espécie de menino em férias, procedendo com interesse e penetrando com ardor em tudo o que se lhe deparava, sem se deixar impressionar pela ignorância da língua. E Caryll espantava-se vendo-o gozar à vontade.

Mas foi em Touggourt que ele próprio, pela primeira vez, tivera consciência da sua virilidade. Touggourt! Conteve a respiração. A pequena cidade árabe que ele odiava estaria, de agora em diante, ligada na sua lembrança ao pequeno romance que se tinha desenrolado como um clarão do sol do estio, iluminando-lhe o calmo horizonte da plácida existência, levando-o a um profundo sentimento de que anteriormente não se sabia capaz.

Pela primeira vez, o amor vencera-o, o amor estranho, incompreensível de um homem por uma mulher, e durante algumas semanas fugazes deixara-se prender na trama de emoções e impulsos que eram totalmente desconhecidos pela sua natureza.

Tinha sido tudo bem real para ele, embora aquilo lhe começasse a parecer agora como um sonho fantástico, improvável. Mas fantástico e improvável que pudesse ser e dominado pela vergonha, como agora estava, da forte impressão que a rapariga nele causara, sabia que jamais poderia esquecê-la. Mesmo que amasse novamente, a lembrança do primeiro amor estaria sempre com ele - lembrança meio triste, meio terna, que o importunaria. O rosto dela ainda lhe vivia na memória.

Pobre amor ocasional, movido como desamparado náufrago no tormentoso oceano da vida! Onde estava ela agora? Qual seria a sua sorte nas mãos daquele jovem desesperado, sorridente, sinistro, diabólico, que a raptara? Teria sido metida numa prisão dourada para ser mimada ou maltratada segundo os caprichos do seu raptor, ou já teria sido jogada, como um brinquedo partido, às fileiras de desgraçadas iguais? Tremeu ante o horror deste último pensamento. A sua parte nesse negócio parecia-lhe revestida de indigna cobardia. Mas que poderia ter feito? As circunstâncias haviam impedido que levantasse a mão em sua defesa e, quando chegou ao hotel, Raul não havia voltado. Na manhã seguinte, enquanto consultava os seus sentimentos a respeito da rapariga, tinha procurado interessar Raul na sorte dela, mas o conde havia-se negado a aceitar as suas sugestões para mover as autoridades em busca de uma bailarina raptada. Era impossível, disse, que Caryll se metesse num caso de que fora simples espectador desinteressado, um caso, entretanto, que causara às próprias autoridades muita inquietação e aborrecimento. Essas coisas tinham acontecido naquela terra e, infelizmente, a Argélia não é a Inglaterra. Noblesse oblige, mon ami, concluíra, e não vos é próprio envolver-nos nos amores e raptos de raparigas de um café de reputação duvidosa. E a argumentação de Raul trouxera-lhe de novo a lembrança dos seus deveres e responsabilidades de herança e as injunções de um amor juvenil tinham-se apagado antes do correr dos anos.

Tudo tinha sido um trecho de romântica loucura, um sonho que nada mais fora. Mesmo que a nacionalidade dela não fosse uma barreira intransponível entre ambos, não era na viciosa atmosfera de um café maure ou nas ruas insípidas de uma cidade árabe que ele deveria escolher a futura condessa de Glencaryll. Mas se pudesse ter feito alguma coisa em favor da rapariga, sentiria pelo menos diminuído o sentimento de vergonha e desgosto que agora o acabrunhava!

O seu rosto corou fortemente e ele baixou a cabeça, moendo a areia com dedos nervosos e impacientes.

- Nada mais se soube daquele caso do café, tio Raul?

Raul, atento à cena, levantou-se rapidamente.

- Lá vão eles, finalmente! - exclamou. - Penso que deveríamos partir primeiro.

Sentando-se, sacudiu a areia da jaqueta e consultou o relógio.

- Que foi, Caryll? A embrulhada do café maure? Não, nada mais ouvi a esse respeito, desde que deixámos Touggourt. O coronel Mercier recebeu um misterioso livro de notas que lhe foi remetido por alguém que está a par do caso, mas enviou-o ao quartel-general e eu não ouvi contar o que continha o livro. O encantador de serpentes que era dono da rapariga desapareceu de modo esquisito e agora parece que a ideia geral sobre o assunto é que se trata de uma questão particular, entre ele e o raptor da rapariga. O astuto moço também desapareceu e todos os esforços feitos para o encontrar e identificar falharam. Ele ou era realmente um estranho na cidade ou conseguiu um bom disfarce. Ninguém confessa que esteve aquela noite no café e Touggourt em peso jura uma cândida e encantadora ignorância sobre o que se passou. Na minha opinião, aquilo não passou de um negócio particular, provavelmente ligado a roubo de mercadorias de ambos os lados, mas as autoridades estão agora inclinadas a considerar o caso como suspeito. O tempo o mostrará. Seria interessante ver se alguma coisa nasce disso. Entretanto, se estiverdes pronto, é tempo de partir.

Foi com um sentimento de prazer que Raul viu que Caryll era capaz de guiar o belo, mas fogoso animal que o sheik enviara ao filho como primeiro presente. Teria Ahmed algum motivo para mandar este intratável animal experimentar capacidades que ele desconhecia ou ver de que qualidade de estofo era esse filho desconhecido? Os lábios do conde entreabriram-se num pequeno sorriso de satisfação.

De qualquer outro modo Caryll poderia deixar de ganhar a aprovação paterna, mas na equitação, não. Aí, era ele irrepreensível. Sabia montar a cavalo e isso significava muita coisa naquele país.

Raul estava possuído de um forte sentimento de responsabilidade, cavalgando ao lado do sobrinho. Por muitas razões, embora diferentes, tinha tanto motivo para estar tão nervoso como Caryll, em vista do encontro que daí a algumas horas se realizaria. Sabia qual era a opinião preconcebida de Caryll sobre o pai e seria o sheik capaz de fazer as concessões devidas para que pudesse surgir um acordo entre ambos? Caryll teria a graça de responder às primeiras perguntas ou fechar-se-ia naquele poço de reserva que exteriormente o tornava inatingível? Lançou uma olhadela para o companheiro. O ar de prazer e interesse que havia animado o rosto do jovem durante as primeiras horas de montaria perigosa tinha passado e, como o animal amansara, Caryll cavalgava com os lábios firmemente fechados e com um ar de concentração sombria.

Raul olhou-o meio impaciente, meio piedosamente, mas prudentemente absteve-se de qualquer comentário. Além de tudo, que tinha a dizer? Tinha feito todo o possível para aplanar o caminho e Caryll agora teria de fazer por si, arrostando as consequências.

Os seus pensamentos mudaram logo de direcção. Por muito que quisesse ajudá-lo, as dificuldades de Caryll tinham assumido um lugar secundário nas suas cogitações desta manhã.

Tinha uma dificuldade mais íntima para vencer. O seu rosto sombreou-se e uma profunda tristeza se lhe aninhou nos olhos à lembrança do próximo encontro, não do sheik com o filho, mas do seu próprio encontro com a mulher que amava. Durante anos procurara arrancar do coração aquele amor e esmagar aquele ciúme que lhe parecia indigno e desleal, mas por demais arraigado; ele a tudo resistia e por fim deixou de lutar contra ele. Não podia prever as consequências da renovação dessa luta. Poderia ainda amar e encontrar consolação na sua felicidade.

Havia dois anos que a vira, dois anos desde que deliberadamente se torturava em presença do contentamento que aquela mulher exibia. Era penoso olhar para a felicidade através dos olhos de outro homem, penoso testemunhar aquela ideal camaradagem, que tornava ainda mais agudo o sentimento da sua amarga solidão. Mas quão maior seria a miséria da sua vida se o amor do sheik por aquela mulher que ele tomara tão violentamente fanasse, como ele temia que acontecesse. Isso seria um inferno impossível de suportar. Mas Ahmed amava-a apaixonadamente, ternamente. Por isso, o sacrifício que fazia não era vão.

Era bastante que ela lhe mostrasse amizade e que ele, por sua parte, a ajudasse a ser feliz.

Havia ela mudado nalguma coisa nestes últimos dois anos? Porque supor, então, que qualquer alteração nela se houvesse operado? Para ele nunca ela parecera mudar. O «seu» amor tê-la-ia conservado cheia de mocidade, tão perfeitamente satisfeita? Os lábios tremeram-lhe dolorosamente. Ele nunca teria ocasião de experimentar. Não a conhecera antes de o amor lhe haver insuflado o seu indómito e imperioso espírito. Fria e sem emoção que ela tivesse sido, nunca o desdenhara como fazia a todos os homens. Teria vivido indiferente ao amor, indiferente a tudo que não fossem os desportos e aventuras para que existia neste mundo. Ele nunca teria empregado os métodos terríveis com que o sheik a subjugara. Nunca a teria compelido, primeiro a uma involuntária admiração e depois ao seu afecto, como Ahmed tinha feito pela força de brutal senhorio, que a fizera reconhecer uma imperiosidade que era maior do que a sua, que a levara, finalmente submissa, aos pés do seu raptor.

Era somente a um homem como Ahmed que ela se teria rendido. E Deus sabe que, embora o invejasse, jamais roubaria ao seu amigo a felicidade que lhe pertencia. Como ele próprio não a pudera conquistar, achava melhor que antes Ahmed do que outro a tivesse conquistado. Endireitou-se na sela, desviando um pensamento em que pedia que a força nunca o abandonasse em tais conjunturas.

O que escondera por muito tempo, continuaria a esconder, assim Deus o ajudasse! Além do mais podia dar muitas graças ao Senhor. Ele teria de suportar novos sofrimentos, se a visse maltratada ou abandonada. Como estava agora, era feliz e nada a preocupava senão a felicidade. E, certamente, ele agora não tinha já idade para chorar como uma criança que quisesse agarrar a Lua!

Um sorriso de íntima ironia brilhou na melancolia do seu rosto e Raul contemplou Caryll com atenção bondosa.

O vento da manhã havia cessado e o dia prometia grande calor. Já o horizonte se fizera vago e obscurecido, brusco, com fitas de fumaça que espiralavam do seio do deserto. E o calor do sol num céu sem nuvens fazia a areia arder, levantando miríades de partículas de oiro. Cotovias pequenas e cinzentas voavam silenciosas em bandos e aqui e ali uma avezinha do deserto fugia às patas dos cavalos.

Durante algum tempo, Caryll estivera examinando as pegadas de um animal que mais de uma vez lhe atravessara o caminho e finalmente Raul notou o seu interesse.

- É uma gazela - disse, puxando as rédeas - mas não passou por aqui recentemente, receio.

Caryll riu-se pela primeira vez naquela manhã.

- Estou principiando a crer que as vossas gazelas são mitos - retorquiu. - Vimos já anteriormente essas pegadas, mas parece que os próprios animais têm o dom de iludir. Não posso perceber como elas possam viver numa terra destas - acrescentou com uma olhadela ao redor.

E a imensa e desolada solidão para a qual olhava fez-lhe por último explodir a pergunta que há muitos dias lhe pendia nos lábios.

- Como tem ela podido suportar isto, tio Raul? Falo de minha mãe. Como pode ela permanecer nesta horrível solidão, neste horroroso ermo?

Raul empalideceu.

- Isto não a impressiona de maneira alguma - respondeu vagarosamente. - Isto exerce grande fascinação sobre muita gente; sobre mim, por exemplo. Há anos que vossa mãe ama este deserto e para ela o seu encanto compensa o desconforto. E se ela não o amasse intrinsecamente, amá-lo-ia pelo que significa para ela.

- Porém, ela deverá ter perdido muito - objectou Caryll.

- Ela terá sacrificado muito a... a... - disse com súbita indignação gaguejante. - Santo Céu! Um homem não tem o direito de exigir tanto de uma mulher! - exclamou com veemência.

Raul empalideceu novamente.

- Mas se a mulher o quer? Neste caso, ela quis e portanto não tem de que se queixar.

Caryll olhou-o com o cenho carregado.

- Ela deve ser... mais que maravilhosa - disse quase imperceptivelmente.

Raul aprovou sem pestanejar.

- Ela é maravilhosa - confirmou calmamente.

Durante a sesta do meio-dia Caryll voltou a falar na mãe. Terminara o lanche e todos ao redor estavam envolvidos nas mantas, como mortos sepultados. Mesmo Guilherme, o adaptável, tinha sucumbido ao costume do país e estava deitado ao comprido, no típico sistema inglês de bruços, a cabeça apoiada nos braços, o capacete caído para a nuca.

Raul estava desperto, contemplando curiosamente as esforçadas tentativas dum pertinaz escaravelho para carregar um pedaço de pão nas costas e olhando de tempos a tempos Caryll, que estava deitado ali perto.

Desde o lanche, o jovem não se movera nem falara. Com os nervos acalmados pelos efeitos dum cachimbo que por último consentira em se deixar acender, estava procurando vencer a nervosa reserva que dele se apoderara desde a manhã e que ameaçava aumentar à medida que se aproximava a hora do encontro com seus pais.

Quebrou, por fim, o longo silêncio.

- É mais do que uma rara espécie de sensação - começou hesitando - não saber sequer o que pensa uma mãe. Não me lembro dela nem um pouco, e a única fotografia que dela possuo é duma cabeçuda criança em cueiros. Não se deve parecer com ela, com certeza. Deve ter sido tirada há muito tempo. Creio que minha mãe mudou muito. Naturalmente deve ser... deve ser...

Parou vacilante, o rosto corado denotando embaraço.

Raul fitou-o com um leve sorriso. Com as suas precisas e velhas maneiras, Caryll não se chocaria com a aparência juvenil da sua mãe? Aquela mocidade, que constituía um dos seus maiores encantos, seria causa para aumentar o pesar deste moço cheio de preconceitos?

- Ela não é bem um Matusalém - respondeu secamente - embora, naturalmente, a vida no deserto tenha acção muito forte sobre as mulheres. Algumas dessas velhas senhoras enrugadas que vimos em Touggourt são provavelmente mais novas que vossa mãe.

E Caryll, curvado e fazendo distraidamente pequenos montes de areia, ouviu somente a seriedade daquele tom de voz, mas não viu a alegria bailar-lhe nos olhos. Ao contrário, ele tinha uma súbita e acabrunhante visão de certa velhice encanecida que encontrara na sua peregrinação nesta terra de belezas fugazes.

- Oh! - exclamou quase imperceptivelmente.

Raul nada o esclareceu a este respeito.

A caravana com as bagagens já há muito os surpreendera e ultrapassara e não dera mais sinal de si quando a cavalgada prosseguiu rumo ao sul.

A paragem do meio-dia fora mais rápida que de costume, e não havia necessidade de fazer hoje concessões aos vagarosos camelos, para enveredar pelo caminho em que as tendas deveriam ser levantadas, nem era preciso preparar comida para quando os cavaleiros penetrassem no acampamento.

Posto que fizesse calor, os raios do sol haviam-se suavizado em intensidade e o nevoeiro tinha desaparecido, prometendo uma visão mais límpida e distinta.

Estavam cavalgando há cerca de uma hora, quando Caryll, viu, ainda de longe, uma coluna de pó que parecia aproximar-se rapidamente deles. A garganta tornou-se-lhe seca e uma involuntária pressão nervosa nos joelhos fê-lo espicaçar violentamente o fogoso cavalo.

Puxando as rédeas, voltou-se para Raul com uma ansiosa palavra de interrogação.

O conde também estava atento.

- Está ainda muito longe para sabermos com certeza, mas creio que é vosso pai que se aproxima.

Pela primeira vez na vida, Caryll sentiu uma espécie de pânico. O temido encontro avizinhava-se e ele daria mais do que lhe era possível para poder virar as costas e voltar na direcção oposta. Com que se pareceria esse seu pai árabe? Que faria quando se encontrassem? Que diria? Tinha elevado ao máximo, mentalmente, este encontro, muitas vezes. Febrilmente procurava lembrar ao menos um dos seus planos e das suas preparadas falas, que, longe do pretenso ouvinte, tão fáceis lhe ocorriam e que formulara com tamanha prontidão.

Ele forçava os miolos, suando nervosamente, mas o cérebro parecia-lhe uma densa, profunda perplexidade.

Entretanto a coluna de pó aproximava-se com espantosa rapidez. Então, gradualmente, surgiu um redemoinho que, limpando a perspectiva, deixou visível um pequeno bando de árabes que galopava, com a habitual desenvoltura, atrás dum cavaleiro solitário que vinha um pouco adiante.

Por alguns minutos, Caryll agarrou-se desesperadamente à esperança de que talvez ainda não houvesse chegado o momento fatal, que aqueles seriam outros árabes que não os que estavam sendo esperados. Mas o alarido que se fez ouvir por detrás dele, promovido pela escolta, fê-lo compreender que a esperança que alimentara fora errónea e uma sensação mista de nervosismo e excitação perpassou-lhe pela espinha. Irado consigo mesmo e invadido por aquela estranha sensação que ele não sabia que era emoção, sentiu o velho antagonismo, a velha intolerância. O alarido da escolta lembrou-lhe a barulhenta manifestação que lhe foi feita quando ela o encontrou. Seria agora uma demonstração idêntica? Por que diabos, então, não traziam uma banda completa, com trombetas e clarins ou o que o diabo quisesse? - reflectiu aborrecido, os lábios entreabertos com ironia.

Raul fez sinal ao seu pessoal para parar e, em luta ainda com os seus sentimentos, Caryll entusiasmou-se com a rapidez do avanço dos cavaleiros, embora a admiração que de outro modo poderia sentir fosse vencida por iroso preconceito que o fez olhá-los com desdém de crítico. Era um bando de homens de aspecto magnífico, soberbamente montados, e poderiam, admitiu sarcàsticamente, galopar, mas somente para apascentar o gado. E paravam, era de presumir, com a mesma horrível brutalidade que caracterizava esses cavaleiros sem graça, sem contar com as feridas abominàvelmente cruéis patentes nos seus cavalos.

O da frente deveria ser seu pai - esse pai árabe. As vestes regionais, mesmo preparado para vê-las, davam-lhe um aspecto chocante e novamente a sensação de terror lhe percorreu a espinha. Desmontado agora, tinha as mãos mergulhadas nos bolsos da jaqueta, e o coração pulsava-lhe furiosamente.

Nunca mais refreariam a pressa? Tinham enlouquecido? O brusco estrugir da mosquetaria fê-lo parar e o seu rosto tornou-se endurecido ao ouvir a selvática explosão de gritos e o disparo dos rifles. Aquilo era um pandemónio - pensou agressivamente - uma representação teatral infantil, tão estúpida como desnecessária. Os lábios tremeram-lhe novamente quando o bando oposto parou, rapidamente como ele supusera, pó e areia a voar dentre as patas dos cavalos, e outro alarido ensurdecedor explodiu com o relinchar dos cavalos excitados, com o tinir das facas e o duro estalar dos rifles. Somente o chefe desmontou. Quando ele pisou o chão, Caryll contemplou a erecta figura, pitorescamente vestida, apear-se do grande cavalo preto e caminhar vagarosamente para ele.

Assim, «este» era o seu pai - «este» era o conde de Glencaryll! Um árabe dos árabes! Um árabe, entretanto, cuja escura face lhe era estranhamente familiar! Não era a primeira lembrança, mas uma semelhança vista mais recentemente que lhe fazia recordar alguma coisa sinistra.

Onde vira antes aquele rosto? Estava ainda a divagar quando um empurrão de Raul o chamou à realidade presente e ele voltou o rosto, que estava branco, em resposta à chamada urgente do francês.

- Pelo amor de Deus, ide primeiro, tio Raul - pediu, e quando Raul seguiu para a frente arrastou-se com esforço e seguiu-o, como agoniado, trémulo e constrangido.

Os dois velhos amigos encontraram-se como franceses. E, vendo as suas entusiásticas saudações, Caryll tremeu com tristeza, ofegando nervosamente. Que aborrecido costume! Que se podia esperar dali?

A curta, delgada e erecta figura permaneceu com os lábios fechados, esperando a prova.

O sheik, porém, não fez pergunta alguma sobre seu filho inglês. Voltando-se para ele com um grave sorriso, estendeu-lhe a mão delgada num gesto de saudação.

- Enfin, mon fils - disse com voz profunda, macia. - Soyez le bienvenu.

O tom sincero da voz, o calor com que estreitou a sua mão, era tudo quanto um filho poderia desejar. Mas Caryll tinha consciência somente da linguagem em que a cordial saudação fora proferida e o ressentimento que ele havia tentado vencer surgiu de novo irresistivelmente. Raul havia-o prevenido do preconceito de seu pai pelo país que ele recusava reconhecer, mas advertira-o da má vontade do pai em falar a língua materna, que conhecia perfeitamente. Mas certamente neste caso deveria fazer excepção. Decerto que, nesta única ocasião, o preconceito deveria ser posto de lado. Ele tinha-se preparado para encontrar o pai concordemente, respeitando-lhe os preconceitos tanto quanto possível, mas esta saudação em francês parecera-lhe uma bofetada na cara. Hesitara se deveria responder também em francês. Procurava tornar claras as suas simpatias desde logo. Mas a fala não lhe veio com facilidade e as faces enrubesceram violentamente quando correspondeu à pressão daqueles dedos que seguravam os seus com a dureza do aço. Teve uma brusca e curiosa impressão de inferioridade; um sentimento obstinado de que estava face a face com alguém cujas determinações eram superiores às suas. Com a língua presa e furioso com o seu próprio embaraço, encontrou-se gaguejante como um verdadeiro menino de escola.

- Agradecido, senhor - balbuciou em inglês - estou bem contente por ter vindo.

Corou ainda mais ao compreender que a mentira lhe fora arrancada por uma força estranha. E o bondoso ar de alegria que brincara momentaneamente nos olhos negros penetrantes que o fitavam tão intensamente não lhe fez acalmar os sentimentos desordenados. Mas o sheik não pareceu notar a falta de espontaneidade na resposta do filho, nem a frieza da sua voz. Fez algumas perguntas de delicadeza acerca da jornada e então, com uma pequena inclinação de cabeça, voltou-se amigavelmente para Raul, que em vista dos espinhos deste primeiro encontro se movera para deixar a sós pai e filho. Abandonado a si mesmo, Caryll lutou com emoções contraditórias, em perplexidade. A despeito de todas as tentativas em contrário, parecia-lhe que ficara novamente louco! Mais uma vez o acabrunhava aquele sentimento que experimentara naquele dia em Touggourt, quando o chefe árabe o arrebatara à populaça excitada. Então, muito claramente, tivera consciência do acanhamento e inexperiência que nunca antes compreendera. Mais do que nunca, sentia-o agora de novo. Donde derivam estes árabes inescrutáveis a sua calma dignidade de comportamento? Que os faz parecer tão seguros de si mesmos? Embora classificando-os como selvagens, tinha sido forçado a reconhecer-lhes a cortesia e tacto irrepreensíveis. Com profundo descontentamento, teve de reconhecer que a sua própria cortesia o abandonara.

Era talvez natural que o pai viesse ao seu encontro, mas fora, entretanto, uma delicadeza que ele recebera muito grosseiramente. Embora o odiasse pelo pesar que causara ao velho avô, o ódio não lhe devia fazer esquecer a civilidade. A visita tornava-se cada vez mais desagradável e inatingível o objectivo que a inspirara. Demais, posto que lhe desagradasse o facto, era seu filho e seu hóspede. Perdera a serenidade por coisa muito insignificante. Inglês até à medula, sentia o menosprezo feito ao país que amava. Mas, embora fosse difícil de compreender, o pai lá teria suas razões para justificar a atitude que assumira, e nesse caso ele tinha tanto direito como Caryll para ter as suas opiniões. Não se pode compreender que quem também alimenta preconceitos desaprove os dos outros. Sacudiu a cabeça irado, descontente consigo mesmo. Principiara mal, dera causa, logo de início, a uma impressão má. Há muito o pai deveria saber, por intermédio de Raul, que o filho falava francês correntemente. A sua recusa de falar-lhe nessa língua deveria parecer uma estudada impertinência, uma provocação a alguém cujas vistas eram as suas próprias. Em lugar de mostrar ressentimento pela sua idiotice e incivilidade, o pai somente sorria, como sorriria ante as travessuras duma criança. Era um começo bem humilhante.

Triste e irritado, mas afastando resolutamente o orgulho, foi juntar-se aos outros, antegozando o que seria a sua recepção e receoso de interromper-lhes a palestra. Mas os momentos que lhe haviam parecido muito longos tinham sido realmente muito curtos e, absorvidos um pela palavra do outro, os dois amigos pareciam não lhe ter notado a ausência.

E alguns momentos depois da sua chegada continuaram a conversar sem interrupção.

Quando finalmente o sheik se voltou mais uma vez para o filho nada nos seus modos indicava desprazer ou aborrecimento.

- Deveis desculpar-nos - disse com o mesmo sorriso grave. - Temos de conversar sobre coisas acumuladas durante dois anos. Não devemos fazer esperar vossa mãe, pois ela anda contando os dias e as horas, creio, a aguardar a vossa vinda.

Novamente Caryll sentiu os seus olhos penetrantes a sondar-lhe os mais íntimos recessos da alma e sobreveio-lhe nervoso embaraço.

- Espero que ela esteja passando bem - articulou, sentindo-se humilhado por ver a dificuldade com que fazia uma pergunta tão simples e trivial.

- Ela está sempre passando bem, graças a Alá! - replicou o sheik com um gesto involuntário que Caryll não pôde compreender.

Nada mais se disse até que montaram de novo e prosseguiram o seu caminho, e então Caryll venceu o embaraço para agradecer ao pai o esplêndido cavalo que lhe mandara. Desde logo percebeu que olhos atentos o acompanhavam e, conquanto fosse bom cavaleiro, aquele exame perturbava-lhe os nervos. Começava já a supor que não resistiria a tal exame e que a única coisa que sabia fazer bem viria a resultar em fracasso. E então, com prazer, achou-se ansiosamente desejoso de ao menos nisso conseguir a aprovação do homem que odiava. O facto surpreendeu-o bastante. Que lhe importava a aprovação ou desaprovação paterna? Porque cuidar de uma coisa ou outra?

Mas, a despeito de si mesmo, sabia que cuidava disso tanto que se sentiu bem ao vir a aprovação do sheik:

- Alegra-me ver-vos igualar-me. Raul havia-me dito que sabíeis montar.

Tais palavras produziram-lhe indizível prazer.

Seguiu admirado de si mesmo, irado da sua inconstância, irado porque tão poucas palavras houvessem dado tanto prazer.

O Sol transpunha o ocaso quando chegaram ao seu destino. Aos olhos de Caryll o acampamento pareceu imenso, todo o cenário estranho e pitorescamente lindo, mais do que ele jamais imaginara, e, absorvido por essa apreciação, esqueceu a obsessão, que lhe torturava a mente, de criticar e condenar a todo o transe. A descarga de rifles que lhe anunciou a chegada passou-lhe quase despercebida e o alarido com que foi saudado já não lhe sombreou o rosto. Esquecia-se de que era a causa de todo aquele barulho alegre. Transportado para fora de si mesmo, parecia-lhe que assistia a um espectáculo teatral de flagrante realidade ou que contemplava um quadro de maravilhosa pintura e vitalidade. Com um fantástico sentimento de irrealidade, ele marchava entre o sheik e Raul, através de uma longa fileira de árabes que haviam sido seleccionados nos diversos acampamentos, em honra ao filho do chefe, e se estendia pelo deserto como uma avenida viva. Depois passava-se por numerosas tendas baixas, por linhas de camelos barulhentos, por extensas cocheiras e depois por fileiras de homens da tribo, que gritavam alegremente, mas cujas vozes se perdiam ante a de suas mulheres, de rostos cobertos por véus, e ante a gritaria da criançada.

Uma chegada parecida com a de um rei, um acolhimento de rei que despertava dentro dele alguma lembrança esquecida, que lhe acelerava a respiração.

Depois, com o coração a bater, chegaram a um largo espaço aberto e logo lhe surgiu perante os olhos a tenda principal, diante da qual estava uma mulher esbelta, de longa cabeleira.

Espanto e confusão lhe sobrevieram ante aquela figura de aspecto juvenil. Aquela «jovem» era, pois, sua mãe! Sentiu o tio Raul puxar-lhe uma perna!

Indignado, voltou-se para lhe fazer uma censura, mas viu que não havia nos olhos de Raul intento de se divertir, e que o seu rosto se mostrava lívido, perplexo.

- Ide, Caryll - disse bruscamente. - Ela espera-vos há catorze anos!

 

- Estás contente com «a nossa filha», ma mie?

Havia uma nota irónica na voz do sheik, que fazia tremer sua mulher. Por momentos ela não respondeu e continuou a passar o pente pela linda cabeleira que lhe caía pelo busto como uma nuvem de oiro, ocultando-lhe o rosto de olhos que a contemplavam com oculta intenção.

Dez minutos antes tinha-a ele arrancado, bem disposta, do vestiário próximo, e desde então comodamente instalado num divã, fumando em silêncio, esperava que se vestisse para o jantar.

Um sorriso breve se lhe esboçava nos lábios vendo passar o tempo sem que ela lhe respondesse.

Acomodando melhor as pernas, sacudiu a cinza do cigarro e falou de novo, mais compassadamente.

- Fiz uma pergunta, Diana.

Ela encarou-o e, afastando a cabeleira, fez um gesto algo nervoso.

- Ahmed! Não és justo - observou em tom repreensivo.

- Não? - riu brandamente. - Bem, de qualquer modo, tens de convir que não é, pelo menos, papel de uma senhora. Não é de uma senhora da tua idade, de maneira nenhuma - acrescentou, rindo novamente.

Ela corou, mas sorriu sem vontade.

- Eu? Oh! Eu era uma coisa horrível. Não tinha maneiras. Caryll tem belas maneiras e, como sabes, «as maneiras fazem o homem».

O sheik experimentou divergir.

- É um provérbio antiquado. Pessoalmente, procedo sem maneiras, mas com um pouco mais de virilidade.

Diana voltou à mesa e de novo manejava, vigorosamente, o pente.

- Porque pensas que ele não é um homem? - perguntou por detrás da nuvem dourada de cabelos. - Admites que ele cavalga bem e Raul diz que atira maravilhosamente.

- Também tu, minha querida - tornou o sheik secamente. - Montas tão bem ou melhor do que teu prendado filho. Esses requisitos não bastam. Montar e atirar não é tudo. Quero mais alguma coisa que, infelizmente, nele não encontrei.

Essas palavras marejaram de lágrimas os olhos de Diana, que depôs na mesa o pente com dedos trémulos.

- Não viste ainda nele muita coisa - murmurou. - Não podes julgá-lo somente em vinte e quatro horas. Ele é medonhamente tímido e há muita coisa aqui a que não está acostumado. Se fosse somente um hóspede comum, a coisa seria mais fácil. Mas porque ele é quem é, porque não se pode esperar que saiba a causa da horrível separação, deve ser tudo tão difícil para ele como para nós. Ele vê somente um lado e não sabe tudo. Amava o velho avô e para ele nada somos. Provavelmente, não sabe que eu... que nós... precisamos do seu amor.

A voz dela tinha qualquer coisa que fez o sheik levanlar-se e dar pela sala algumas passadas.

Feminilmente, ela havia feito do tom da voz, inconscientemente, o principal argumento, no qual havia um desapontamento igual ao dele. A sua angústia fez-lhe esquecer o próprio enfado.

Gentilmente, levantou-lhe a cabeça.

- Lágrimas, Diana? - arriscou com um sorriso, meio terno, meio extravagante. - Torço a garganta do nosso filho ou a minha? Nenhum de nós merece essas lágrimas.

E, levantando-a nos braços, levou-a ao divã.

- Oh, malvado jantar! - exclamou em resposta às suas advertências quando ele se sentou e a apertou nos braços.

- Que importa o jantar quando te fiz gritar, besta que sou! O rapaz pode esperar mais uma vez na sua vida e Raul tem alma superior à comida, bendito seja! Como achas Raul desta vez, minha querida? - disse com brusca mudança no tom da voz, cruzando as mãos no peito.

Ela compreendeu que ele estava deliberadamente procurando desviar o assunto da conversa e, agarrando-lhe as mãos, levou-as aos lábios, com um sorriso a cantar-lhe nos olhos.

- Era sobre Caryll que estávamos discutindo, querido, e não sobre Raul - recordou com gentil insistência.

Ele sorriu para ela.

- Era Caryll? - respondeu quase com indiferença. - Muito bem! Além de tudo, o melhor que temos a fazer é esperar. Como disseste, sapientíssima mulher, vinte e quatro horas não é tempo que permita firmar um juízo. Talvez esteja enganado, esperei talvez demasiadamente, talvez nunca pensasse nisso - acrescentou com um leve encolher de ombros.

Mas ele havia pensado nisso e só Diana sabia quão profundamente.

Ela afagou-lhe a cabeça, com olhos súplices.

- Sê bom para ele, Ahmed! - implorou. - E procura, procura compreender o seu ponto de vista, que deve ser bem diferente do nosso. Ele não é como aquele outro rapaz que nunca conheceu outra coisa senão a vida selvagem que aqui levamos. A vida deve ser-lhe regular, bem metódica. Viveu sempre com um ancião que o fez calmo, reservado - e pontual. Sabemos, por intermédio de Raul, quanto teu pai nele confiava, quanta responsabilidade pesava sobre ele, responsabilidade, essa, excessiva para pessoa tão nova. E diz Raul que nos dois últimos anos - quando Caryll percebeu que teu pai morreria a qualquer hora - a sua devoção pelo velho tornou-se idolatria. Tudo deixou por ele. E nem tudo foi fácil. Não era natural para uma criança daquela idade. Quantas vezes não aspirou ele à liberdade para fazer o que fazem as outras crianças! Ao invés, todo o seu tempo o passou ele entre um quarto de doente e um escritório. Isso não podia deixar de influir nele e fazê-lo diferente daquilo que esperavas que ele fosse. Mas aquilo que queres está ali, estou convencida, se tão-somente te baixares a tentar encontrar. Mas tens de fazer-lhe, também, as concessões possíveis. Promete-me, Ahmed! Sim, promete-me que serás bondoso para com ele - tão bondoso quanto és para comigo. Porque ele é mais meu que teu filho, penso - finalizou ela com um pequeno sorriso trémulo.

O sheik sacudiu a cabeça.

- Duvido-o - disse vagarosamente. - Ele parece-se contigo no rosto, minha querida, mas aí termina a semelhança. Não posso encontrar outro ponto de parecença.

- Mas, Ahmed, promete-me...

- Tudo prometerei, dentro do razoável, que enxugue desses lindos olhos essas lágrimas - interrompeu bruscamente - mas não posso prometer fazer o impossível. Caryll é obstinado nos seus preconceitos e parece que veio preparado para tudo dificultar. As concessões devem ser recíprocas. Se eu tenho de fazê-las - também ele! E, pondo os pontos nos ii, direi que a sua atitude de hoje esteve longe de ser conciliatória.

Diana baixou os olhos.

- Sei-o - declarou com amargura. - Parece que ele se mantém sempre na defensiva. Ele não ajuda, não dá entrada. É como se fosse preciso tirar uma pedra da parede - e, oh! Ahmed! eu «quero» tirá-la. «Quero» fazer com que ele me ame. Dói-me ter de deixá-lo ir, não sabes quanto isso me custa!...

Ela tremeu ao dizer essas palavras.

Os olhos do sheik estavam semicerrados quando puxou com ternura para o seu peito a cabeça dela.

- E eu? - murmurou com um doloroso sorriso. - Diana, sempre o soubeste. Mas não é falando nisto que removeremos a dificuldade. Foi-me penoso, também. Mas tinha de ser, o resultado era inevitável. Sei que, mandando-o voltar, provavelmente continuaríamos sem ele para sempre. Mas que outra coisa poderia eu fazer? Ele tem de nos deixar.

Durante algum tempo, ficou calada, trémula em razão da emoção a que tinha dado motivo e evitando que as lágrimas lhe caíssem dos olhos. Depois, como estimulada por brusco impulso, moveu-se nos braços e sentou-se, afastando da testa os cabelos e fitando nele um olhar cheio de timidez.

- Se ao menos se lhe dissesse... - arriscou, os dedos a esconderem-se nervosamente entre as dobras do albornoz.

Mas ela notou a recusa no rosto dele, mesmo antes de aventurar essas palavras. Com um negativo sacudir de cabeça, ele levantou-se, afastando-a gentilmente.

- É impossível, Diana - afirmou com acento que ela bem conhecia como não admitindo contestação. - Nenhum de nós poderá dizer-lho.

Anos antes ela havia já apreendido a futilidade do argumento e assim não fez nenhum esforço para o persuadir, e guardou silêncio ao vê-lo deixar a sala. Mas o rosto dela estava perturbado, as pesadas cortinas haviam-se cerrado atrás dele, e com um ar acabrunhado Diana voltou a terminar os seus preparativos para a toilette do jantar.

Eles não poderiam dizer-lhe, mas Raul poderia.

Mas, agora, como pedir-lhe que o fizesse?

Pouco tempo depois, num dos luxuosos aposentos da tenda dos hóspedes, que fora plantada no deserto ao lado da tenda do sheik, afastada do tumulto do acampamento principal, o filho estava sentado naquele mesmo instante, esperando comodamente a chegada de Raul de Saint Hubert.

Já vestido para o jantar, naquele momento havia dispensado o criado. O rosto excitado de Guilherme traía o prazer de se achar finalmente no meio daquilo que pomposamente denominava a «coisa real». Tinha mais satisfação ainda agora do que Caryll podia perceber. Este estava longe de sentir igual prazer.

Do princípio ao fim, o dia fora de fracassos.

Na última noite, passadas as primeiras saudações, sentira um estado de tensão nervosa que ele sabia devida exclusivamente a si mesmo. E, se assim era, que é que poderia socorrê-los? - pensou raivosamente. - Que outra coisa esperavam eles? Era razoável supor que pudesse manifestar deleite num encontro com pais que lhe eram estranhos, cuja atitude passada não hesitava em condenar, cujo modo de vida deplorava? Era este tardio reconhecimento da sua existência compensação suficiente do abandono de muitos anos? Tinha de perdoar o afastamento que amargurara a vida ao querido velhinho, cuja morte parecia deixá-lo só no mundo? Os seus preconceitos não lhe valiam de nada? O momentâneo e incompreensível desejo de obter a aprovação paterna, a onda súbita de emoções que sentiu quando sua mãe lhe passou os braços pelo corpo e quando os seus lábios tocaram nos seus, tinham-se desvanecido com a mesma facilidade com que haviam nascido e tinham cedido lugar ao velho sentimento de amarga hostilidade, fazendo-o voltar a ser friamente reservado, pouco expansivo, com a língua presa.

Na última noite, ao jantar, durante as horas subsequentes, tinha sido presa de um sentimento de distância, de um embaraço que lhe aumentara a timidez e o condenara a um silêncio quase completo.

A despeito de todas as tentativas feitas para o envolverem nas conversas, sentira-se um homem longe de tudo. Fora-lhe difícil encontrar um assunto sobre que conversar. Queimado pelo despeito, não podia falar do lar na Inglaterra que ele tanto amava, e da Argélia não poderia falar. Durante toda a noite sentira olhos penetrantes, cravados na sua direcção, que pareciam dissecá-lo mentalmente. Sob tal exame havia corado, até que um sentimento de ira lhe tornou tudo insuportável. Sentindo sobremaneira não poder disfarçar as suas emoções, a calma, a impassível atitude do sheik encheu-o de uma espécie de furor nada razoável. Tinha um sentimento instintivo de que aquela calma impassibilidade era disfarce tecido por forças tremendas, postas em movimento pela força de uma vontade de ferro. Que se ocultava debaixo daquele exterior tão suavemente cortês? Que haveria dentro daquele rosto duro, impenetrável?

Vinte e quatro horas antes havia-se proposto estas perguntas. Agora ele sabia-o, ou julgava saber. E esse conhecimento fê-lo pensar no que seriam as suas futuras relações com aquele pai de fala francesa e aparência bárbara, sendo certo que entre ambos cada vez mais se cavava um abismo intransponível.

Que base de acordo poderia vir a existir entre seres cujos pólos eram opostos, que não tinham um pensamento, um impulso em comum?

A noite anterior tornara esse facto bem evidente. Hoje, igualmente, nada sucedera que o autorizasse a mudar de opinião. Muito ao contrário, tinha visto que tudo contribuíra para lhe aumentar a irritação, que tudo lhe fortalecia os sentimentos de ódio e antagonismo.

A manhã começara desagradàvelmente. Tendo-se erguido do leito muito cedo, fora dar um passeio pelo acampamento e no decurso do mesmo encontrara-se num ermo onde se procedia a um acto de justiça com ardor e severidade verdadeiramente orientais. Não tinha, naturalmente, conhecimento do crime ou da falta que o infeliz estava pagando tão caro, mas a punição infligida ao culpado, e que ele involuntariamente testemunhara, fizera-o voltar à tenda cheio de desgosto e horror.

Sem ser visto, voltara para trás trazendo a horrível lembrança de um paciente macilento, que, imóvel, esperava chicotadas que lhe flagelavam o próprio rosto!

Aquilo era seu pai desmascarado!

Um selvagem, um tirano, um déspota cruel que não somente tolerava, mas era o responsável por tal infâmia.

Era este, então, o homem que Raul admirava, o homem que sua mãe amava. Bom Deus celeste! Como era possível tal coisa? Sobretudo, sua mãe, mãe de voz doce, como podia, sabendo tais coisas, manter afecto por tal bruto! Era a vida selvagem que ela vivia que lhe dava tal insensibilidade? A atmosfera do deserto tornara-a, pois, indiferente ao sofrimento?

Mais tarde, quando se encontrou com ela, fitou-a demoradamente para nela surpreender qualquer coisa que lhe mostrasse que ela estava a par do que acontecera de manhã.

Teria ela conhecimento daquilo ou deliberadamente fechava os olhos a uma ocorrência a que o tempo a habituara? Mas, soubesse ou não daquilo, uma coisa era indiscutível: ela adorava o homem que permitia tais selvajarias e sentia-se feliz no meio de circunstâncias que seu filho achava horríveis, indescritíveis.

Para Caryll o episódio da manhã enegrecera todos os acontecimentos subsequentes do dia. Tudo, depois, o aborrecia. Agora parecia ver uma justa causa para o ódio que votava ao pai.

Os homens, tanto como o chefe, pareciam imbuídos da mesma fria indiferença. Andando pelo acampamento durante o dia em companhia do sheik e de Raul, não tinha percebido nenhum sinal de revolta ou sequer de lembrança do incidente que tanto o impressionara. Parecia que o caso se apagara da memória de todos. Aquilo nada era para aqueles selvagens, que eram governados por um selvagem tão brutal como eles próprios!

Até o prazer que lhe causavam os cavalos, que, noutras circunstâncias, seriam para ele uma fonte de sumo deleite, fora manchado pela vista da aplicação de uma ferradura por método que ele reputava desumano, cruel. Reprovando interiormente aquilo tudo, tornava-se cada vez mais silencioso, mais friamente inacessível.

Com toda a sensibilidade em revolta, votara-se à reclusão na sua tenda tão cedo quanto possível, a relembrar morbidamente as coisas vistas e a dar maior relevo a tudo quanto lhe parecia contrário ao seu modo de ver e sentir. Tinha passado de uma furiosa indignação a uma raiva concentrada e então, por cúmulo, Raul veio juntar-se-lhe. Um olhar pelo seu rosto rubro e irado convenceu o caloroso e bondoso francês de que havia necessidade de uma íntima confidência entre ambos, antes de chegar a hora da reunião da família. Tivera uma inteligente compreensão do estado mental de Caryll e viera preparado para falar-lhe francamente, quaisquer que fossem as consequências.

Que ele se encontrava em condições de ver os dois lados do caso e que as suas simpatias estavam igualmente divididas, pensava, ansioso por dizer a palavra de aviso que ele via claramente que deveria ser dita.

- Que há, Caryll? - perguntou Raul, instalando-se numa cadeira e chegando ao ponto com característica prontidão.

- Não é preciso dizer-me que tudo correu mal, porque eu vos vi durante todo o dia. Não quero que nos precipitemos no poço do provérbio, e Deus sabe que não vos quero obrigar a confidências, mas aqui estou para ouvir-vos naquilo que entendeis falar. Sempre fomos francos um com o outro, sede agora também franco comigo. Que é que especialmente vos apoquenta?

Os olhos espantados de Caryll encontraram os de Raul por um momento.

- «Especialmente apoquenta» - repetiu. - Bom Deus, é «tudo». É tudo tão completamente, tão superlativamente brutal!

Era uma reedição da sua primeira explosão em Touggourt e Raul sacudiu os ombros com impaciência.

- Isso é generalizar - disse. - Tendes de ser mais explícito, se é que vos posso ajudar nalguma coisa. Sei que odiais o país e viestes preparado para não gostar de nada. Mas, já que aqui estais, não podeis pôr de lado os preconceitos e fazer algumas concessões? Sei que a situação é difícil. Mas ser intolerante em relação a tudo que vedes, e mostrar essa intolerância, não é tornar a situação mais fácil. Não quero fazer-vos um sermão, Caryll, mas, crede-me, estais a incorrer num engano que tereis de lamentar durante toda a vossa vida. Pensai no que a vossa vinda significa para a vossa família. Considerai o caso sob o ponto de vista deles. Não desprezeis o afecto que estão preparados para vos dedicar. Circunstâncias infelizes fizeram com que de vós se separassem quando ainda éreis criança e não vos esqueçais de que foi para vosso próprio bem que eles vos enviaram para Inglaterra. Tal sacrifício certamente requer consideração da parte beneficiada. Procurai recompensá-los por tal sacrifício. Procurai tratá-los com afabilidade, como eles vos tratam. Além disso, que mais poderiam fazer eles do que fizeram? Não vos podeis queixar da recepção que vos foi feita. A felicidade de vossa mãe, quando vos viu, foi tão patente, que não há necessidade de a encarecer, e vosso pai...

Caryll estremeceu e esgazeou os olhos. - Não faleis nele! - exclamou. - «Meu pai!» Oh, Deus! Lembro-me do que vi esta manhã...

E como se as palavras lhe fossem arrancadas, descreveu com frases rápidas, incisivas, a ocorrência que de manhã presenciara.

- Batido como se fosse um cão - concluiu com voz tremente de paixão - coberto de sangue...

Interrompeu-se horrorizado, escondendo o rosto com as mãos.

Houve um longo silêncio, em que só se ouvia a sua respiração ofegante. E enrolando com os dedos o cigarro que se tinha esquecido de acender, Raul fitou-o com compaixão e perplexidade, enquanto ensaiava uma expressão que nem ofendesse nem parecesse condenar. Nunca se vira às voltas com tamanha dificuldade, nunca lhe parecera tão necessária a escolha de palavras. Pela primeira vez na sua confortável existência, Caryll via-se defrontando as duras necessidades que eram indispensáveis para governar uma comunidade turbulenta que estava muito longe da civilização. Tinha visto a execução da justiça sumária que era inevitável numa terra onde a represália é imediata e só se podia responder à violência com a violência. Pela primeira vez ele se pusera em contacto com a lei natural, a lei antiga que requer olho por olho, dente por dente, vida por vida.

Tinha sido um brutal despertar para um aspecto da vida que, até aqui, não conhecia, e Raul compreendeu quão grande fora o choque para o seu supersensitivo, enfastiado espírito. Fremindo em pensamento ansioso, o conde adiantou-se na cadeira, procurando palavras que pudessem explicar o que ele sabia ser ao mesmo tempo imperioso e inevitável nas condições do ambiente, palavras que pudessem levar Caryll a compreender melhor essas condições.

O cigarro fizera-se em pedaços entre os seus dedos nervosos, até que pôde falar.

- Alegro-me por me terdes falado nisso - prosseguiu finalmente - porque assim se me tornou possível compreender o que fora inexplicável durante todo o dia. É lamentável que tenhais visto isso antes de terdes chegado a uma compreensão mais profunda das circunstâncias que tornam necessárias essas tristes ocorrências. Em vista disso, aquilo deve-vos ter parecido horrível e bárbaro. Mas somente vistes o castigo, sem saber o motivo que o provocou. Isto é uma terra primitiva, meu amigo, onde as paixões fazem explosão e abunda a licença e há certas ofensas que exigem medidas drásticas se se quiser manter a disciplina. Lembrai-vos, outrossim, de que, aqui, estamos fora das convenções, fora das leis que governam as convenções sociais. Aqui é somente o braço forte que governa. A equidade e a justiça têm de ser interpretadas de conformidade com as várias classes da sociedade, e a justiça que vosso pai ministra é a justiça que é reconhecida e compreendida pelo povo que ele governa.

«As circunstâncias fizeram dele aquilo que ele é e a necessidade compele-o a obedecer a métodos que sempre têm prevalecido e continuarão a prevalecer até que a civilização varra usos antigos e abra um caminho para o pensamento moderno e para o melhoramento - se isso é melhoramento.

Raul sentou-se bruscamente, arrojou com um gesto impaciente a capa que envergava e prosseguiu:

- A aspiração moderna, de melhoria e de educação para o nativo, que bem já produziu? - perguntou com veemência.

- Que benefício nos trouxe a soi-disant civilização? Roubado da terra que dantes era sua, sobrecarregado de impostos para custear serviços que melhor fora não existissem, explorado para que o dinheiro encha os bolsos daqueles que deles se servem somente para os seus fins! Tomai a Argélia por exemplo...

Quando disse estas palavras, Raul arrependeu-se e voltou ao tom usual, calmo, da sua voz:

- É triste, Caryll, mas não quero impingir-vos as minhas retrógradas opiniões e receio ter-me afastado do ponto de que tratávamos. Voltemos ao que vos apoquenta. Sei que tudo vos é estranho, mas não quero que ideias erróneas se instalem definitivamente no vosso espírito. Não podeis aprovar os métodos de justiça de vosso pai. Ora, muito bem. Mas não esqueçais que esses são os únicos métodos que o povo compreende. Ele faz o que faz, porque o deve fazer. Tem de manter a ordem e segue uma regra reconhecida. Se ele fosse o déspota cruel que pensais, não teria sobrevivido até agora para governar ben Hassan. O seu povo teme-o, mas ama-o como poucos chefes são amados. Vistes algum sinal de descontentamento no acampamento, hoje? Não. Então não é isso uma prova do que estou a dizer? Se o seu povo o ama, porque não podeis amá-lo também? Crede, Caryll, ele é digno da vossa confiança e da vossa estima. Como poderia ele conservar o amor de vossa mãe durante tantos anos - e vós mesmo podeis ver que ela adora até o chão que ele pisa -, como conserva também o meu afecto humilde? Como podereis, em apenas vinte e quatro horas, conhecê-lo melhor do que nós? Como podereis julgá-lo por preconceito? Dissestes-me em Touggourt que o odiais e a razão desse ódio? Que será se eu vos provar que esse ódio que tendes alimentado toda a vossa vida é infundado? Se eu provar que, condenando-o por motivos insuficientes, lhe estais fazendo grave injustiça...

Raul arrependeu-se novamente. No entusiasmo do momento, no seu ardente desejo de conciliar pai e filho, tinha dito mais do que queria dizer, quase chegara ao ponto de revelar, prematuramente, a história que ele tinha decidido que, mais cedo ou mais tarde, seria contada.

Mas não era agora o tempo oportuno e já lamentava as palavras impetuosas que lhe tinham escapado.

Com uma breve referência à hora avançada, fez menção de levantar-se. Mas uma mão no seu braço deteve-o.

- Que quereis dizer, tio Raul? A que aludis?

Raul voltou a cabeça vagarosamente. Era um rosto estranhamente pálido que o fitava, os olhos a traírem não se sabe se suspeita se apreensão.

Mentalmente Raul maldizia a sua precipitação, mas, enquanto ele hesitava, os dedos de Caryll mais se crispavam apertando-lhe o pulso.

- Que quereis dizer, tio Raul? A que aludis?

A repetição mecânica dessas palavras, a forte ansiedade que transparecia da voz estrangulada de Caryll, fez que Raul desejasse ardentemente que outro e não ele abrisse os olhos de Caryll à verdade e lhe causasse a dor que provoca o despedaçar de uma ilusão.

Mas, quando Caryll soubesse tudo, seria capaz de compreender bem? A trágica história de sua avó espanhola não deixaria de impressioná-lo. Mas, inglês até à medula, poderia compreender a agonia mental do sheik quando descobriu que era um estrangeiro na terra do seu nascimento e não o verdadeiro filho do velho chefe árabe, coisa de que veio a saber somente quando chegou à virilidade. Essas dúvidas foram-se avolumando no cérebro de Raul e este então levantou-se, colocando suavemente as mãos nos ombros do jovem.

- Não posso dizer-vos, agora - disse - não pretendo falar disso esta noite. Deveis esperar, confiante em mim. É uma longa e velha história, uma história que Deus sabe que não é fácil contar, mas, para que possais fazer justiça a vosso pai, tereis de ouvi-la. Não tendes culpa de o não julgar rectamente, porque vos deixaram crescer sob uma falsa impressão que cumpre corrigir. Que ele não a contará, sei-o eu. A vossa atitude não me deixa outra alternativa. Mas tendes de ouvir essa história. No tempo oportuno, Caryll, por amor de vós mesmo, pedir-vos-ei que a ouçais. Não deixeis que o vosso natural bom-senso seja toldado pelo preconceito. Procurai encontrar-vos com ele esta noite, com o coração aberto. Lembrai-vos, acima de tudo, que há outros pontos de vista além dos vossos.

Esperou algum tempo olhando para aquela face pálida e as suas mãos caíram aos lados. Fez, então, menção de alcançar a porta.

Vagarosamente, Caryll seguiu-o e foi depois de estarem fora da tenda, à branca luz do luar, que falou.

- Falastes em coisas terríveis, tio Raul, e aludistes a algo de misterioso que existe na nossa família. Se tendes o desejo de contar-me, preferia que o fizésseis agora. Detesto os mistérios. Mas se há alguma coisa contra o velho... - acrescentou com voz calorosa - aviso-vos que...

- Agora, não - interrompeu Raul - deixai isso para mais tarde, meu caro. Fui um louco dizendo o que disse, pois não queria falar-vos a esse respeito tão cedo. Preferia esperar que conhecêsseis melhor vosso pai. Deveis confiar em mim até que chegue o tempo oportuno. Até então, esquecei-vos disso e perdoai-me o sermão.

A resposta que Caryll sussurrou foi inaudível e, em silêncio, ambos se puseram a caminhar, cada qual possuído de um sentimento de reserva que pareceu suscitar-se entre os dois, cada qual admirado do que passava pelo cérebro do outro.

Quase haviam chegado ao pavilhão principal, quando Raul parou com uma exclamação e apontou para uma multidão que se tinha juntado a alguma distância, do outro lado das tendas da tribo. À luz do luar, as figuras moviam-se quase imperceptíveis, com aspecto fantástico, sobrenatural. Momentos depois percebiam-se camelos e cavaleiros, em redor dos quais se agrupavam os árabes.

- Parece uma caravana a chegar ou a partir - disse finalmente. - Que há, Caryll, que vossos olhos estão menos cansados do que os meus? Quem quer que sejam, aqueles homens estão extraordinariamente silenciosos.

Sufocando o «graças a Deus pelas suas misericórdias», que quase lhe escapou, Caryll relanceou os olhos na direcção indicada.

- Diria que estão a partir e para isso se põem em movimento.

O seu total desinteresse e falta de curiosidade sobre coisa aliás rara no deserto fizeram brotar nos lábios de Raul um sorriso, mas ele nenhum comentário fez.

- São, provavelmente, transeuntes que pedem água - observou, mais para si próprio do que para o companheiro.

O jantar esperava-os quando chegaram à tenda principal, mas Diana ainda não aparecera e o sheik entretinha-se com a correspondência numa secretária pequena, colocada a um canto da sala.

Ahmed lançou-lhes um olhar à chegada e fez sinal a Raul para se sentar a seu lado.

Entregue aos seus próprios projectos, Caryll procurou uma cadeira distante dos dois, onde se juntou a um dos sloughis que se lhe ligara desde a chegada ao acampamento. Apaixonado amigo dos animais, correspondeu à saudação daquele tratador de animais e pôs-se a estudar o homem que Raul havia defendido com tanta veemência: o sheik. Observou-lhe o rosto que era um enigma de impenetrabilidade.

E Caryll escarnecia dele. Dentro de poucas horas vira a expressão da sua fisionomia mudar-se da maior ferocidade à mais extrema delicadeza e ficava sem saber, perplexo, qual era a verdadeira natureza do pai a quem tão pouco conhecia e de quem viria a saber mais «quando chegasse o tempo oportuno». A lembrança da promessa de revelações, feita pelo tio, fê-lo sentir um frio tremor. Aquela história, a velha história que teria de ouvir, clarearia ou obscureceria ainda mais a sombra negra que sobre ele pesava desde a infância? O conhecimento dela implicaria a expulsão de todas as crenças primitivas e dos ideais sobre que edificara a sua fé? Sentiu-se enrubescer e a si próprio se maldisse. Como se alguma dessas coisas pudesse ser longinquamente possível! O pensamento que se lhe instalara no cérebro parecia-lhe uma deslealdade, um insensato insulto à memória do morto querido. Alguma coisa deveria, no entanto, existir, pois do contrário Raul não lhe teria falado.

A confiança pareceu desertar dele. Era como se o chão firme, que pisara por tantos anos, se lhe fugisse subitamente dos pés, deixando-o perante um abismo, diante da dúvida e incerteza.

Que resultaria de tudo aquilo? Que mais apoquentações e desilusões o aguardavam nesta terra, em que sentia que lhe fugiam os últimos resquícios da paz do espírito? A vida seria sempre a mesma? Sentiu-se assoberbado de temor.

Os seus olhos pousaram de novo no rosto do pai. E novamente o surpreendeu a vaga semelhança que o inquietou na tarde anterior, uma semelhança ilusória que não parecia completa, mas que era suficientemente notável para fazer com que o cérebro se lhe empenhasse na fútil tentativa de lembrar onde havia visto um rosto semelhante.

Foi na Argélia ou na Inglaterra? Era um rosto parecido visto recentemente ou há anos?

O problema mantinha-se insolúvel quando viu os dois homens levantarem-se. Então, afastando-se do sloughi, foi ao encontro da mãe.

Todos os sinais de choro se haviam dissipado no rosto de Diana, que, sorridente, constituía um radiante contraste, na brancura imaculada das suas vestes, com a cor negra das cortinas.

Então, com um gesto de irónica contrição, ela avançou para a frente.

- Estais todos famintos - disse alegremente. - Sei que já é tarde e por isso nada mais direi. Mas tremo pensando no que será a sopa.

- A ferver, provavelmente.

- Excelente, como sempre.

O sheik e Raul falaram ao mesmo tempo e como o primeiro fosse à porta para bater palmas a chamar os criados, o outro foi sentar-se ao lado da recém-vinda, para quem se voltou com o agradável sorriso habitual.

- Não me importa a sopa, Diana. Não penso, em qualquer emergência, em perturbar a equanimidade do meu velho amigo Benalia. Tive com ele longa palestra esta manhã. Homem maravilhoso que não envelhece! Contou-me que arranjou uma nova esposa e que inventou um novo tempero para o cuscuz. O tempero parecia interessá-lo mais particularmente.

- As esposas de Benalia - observou o sheik voltando ao seu lugar - só existem para lhe provar os condimentos. Se elas sobrevivem, apanhamos uma nova iguaria. Usualmente, elas sucumbem. Espero devotamente que a sua última aquisição lhe tenha rendido o novo tempero, que esta noite decerto experimentaremos.

Diana sacudiu a cabeça em sinal de reprovação.

- Não o ouçais, Caryll - aconselhou, sorrindo. - Ele não é tão mau como parece, embora eu tenha de admitir que os negócios matrimoniais do nosso velho cozinheiro são geralmente mais ou menos confusos. E eu não lhe aprovei o cuscuz quando ele o sugeriu pela manhã. Creio que já estais farto disso, não?

A pergunta pareceu dirigida directamente ao centro de atenção, enrubescendo o rosto sensível de Caryll.

- É mais um gosto adquirido, não é? - tartamudeou com dificuldade.

Raul percebeu o embaraço do rapaz e lançou-lhe um olhar de motejo.

- Não é bom, Caryll. Fazei de conta que nunca experimentastes esse acepipe. A atitude de Caryll em relação ao cuscuz - continuou, dirigindo-se aos demais presentes - lembra-me duas encantadoras americanas que há alguns anos encontrei em Biscra. Elas haviam chegado duma curta excursão pelo deserto e estavam entusiasmadas com tudo, menos com o cuscuz. Parece que o cozinheiro que as acompanhava tinha uma invencível predilecção pelo prato nacional, que lhes servia todas as tardes. Com a mesma regularidade, todas as tardes as duas, não querendo ferir-lhe os patrióticos sentimentos culinários deixando intacto o prato querido, sepultavam o cuscuz na areia, sob a tenda. Contaram-me elas o horror com que viram, quando o acampamento se mudou e ao ser arrancada a tenda, os pedaços de cuscuz serem exumados sob os olhos acusadores do cozinheiro, perdendo elas assim para sempre o prestígio que gozavam perante ele.

Vendo a atenção geral desviada de si, Caryll pôde aderir às risadas que se seguiram a essa humorística narrativa. A conversação tornou-se generalizada e pouco a pouco ele sentia-se mais à vontade, menos consciente de si próprio.

Reservado ainda e pouco comunicativo, por natureza, ele não podia juntar muita coisa à animada palestra que os outros entretinham com tamanha facilidade, mas uma observação que lhe foi feita fê-lo deixar de corar e emudecer e a sua atitude tornou-se, por momentos, menos esquisita e comprometedora.

Muito do que foi dito lhe escapava à compreensão e ele teve tempo de olhar ao redor de si e notar pormenores que, meio absorto, não notara anteriormente.

Com um crescente sentimento de admiração, foi-se sentindo cada vez mais interessado pelo ambiente. Bárbaras como eram as disposições da tenda e por bizarras que lhe parecessem, não podia deixar de admitir que os utensílios caros eram harmónicos na aparência e estavam dispostos com gosto. E, olhando mais atentamente, viu muitas ninharias que tornavam evidente a mão duma mulher.

Estranho lar para uma inglesa e estranha mulher aquela que achava felicidade e alegria em tal ambiente!

Ele lançou sobre ela um olhar disfarçado. Certo, então, de não ser percebido, olhou mais firmemente. Olhou ainda mais, até que lhe adveio uma sensação que não era apenas admiração, mas que se transmudara rapidamente num sentimento profundo, quente, que lhe fez bater o coração.

Como ela lhe pareceu jovem, absurdamente jovem, para ser sua mãe! Tinha dificuldade em reconhecer que era sua mãe! Tinha-a pintado, na imaginação, muito diferente da realidade. Nunca pensara que a verdade fosse aquela, nunca mesmo a sonhara tão linda. Tão linda e tão doce!

Sua mãe! O termo, que anteriormente lhe fora apenas uma forma de palavra, agora revestia-se duma significação maravilhosa.

Imerso no vórtice duma emoção nova, ele procurava repeli-la, lutando por conservar a sua compostura, mas incapaz de tirar os olhos daquela face amável que lhe parecia agora mil vezes mais bela, mais querida. Como atraída pelo seu olhar insistente, a mãe virou o rosto e sorriu para ele, e, por um segundo, viu-a somente através dum tecido de lágrimas. Furioso consigo mesmo, ele procurou disfarçá-las pestanejando e, sábia no conhecimento dos homens, Diana não deu sinal de as haver percebido. Somente, como por acaso, as suas mãos tocaram as dele.

E a rápida pressão dos seus macios dedos quentes deu-lhe um arrepio estranho que antes não conhecia e, rendendo-se sem reservas ao apelo da natureza, todo o coração se lhe abriu para ela, em fervente gratidão e amor.

Mas, com o sentimento de desconforto ante a desconfiança de que os outros houvessem presenciado a sua fraqueza, lançou um olhar furtivo para o sheik e para Raul e respirou mais sossegado quando os viu absorvidos numa conversa que lhes fez passar despercebido o pequeno incidente.

Tranquilizado, endireitou-se na cadeira e entregou-se a nova ordem de meditações, agora iniciada.

O jantar estava quase terminado.

Os silenciosos criados árabes já se haviam retirado e só ficara Gastão, servindo o café, que fora preparado num braseiro do lado de fora da tenda.

Houve uma pausa na conversação.

Foi a voz do sheik que quebrou o silêncio e despertou Caryll dos pensamentos em que imergira.

- Ireis pelo norte ou pelo sul quando nos deixardes, Raul, ou voltareis directamente para França?

Decorreram um ou dois minutos até Raul responder. Entretinha-se a fazer figuras com o seu canivete.

- Não volto à França - disse. - Vou a Marrocos.

Havia uma curiosa deliberação na sua resposta, uma quase sinistra inflexão de voz que atraiu para o seu rosto os olhos do sheik.

- Com algum objectivo definido? - perguntou.

Raul fitou-o firmemente.

- Sim, com objectivo definido - confirmou calmamente. - Vou procurar o assassino de Renato De Chailles.

O pequeno suspiro que partiu dos lábios de Diana foi abafado pela exclamação em voz grossa do sheik.

- O assassino de De Chailles - repetiu com incredulidade. - Bon Dieu, pensava que já havíeis renunciado à esperança de o achar. Já há muito tempo que falais nisso, pelo menos dez anos, desde que o governo fez circular um relatório da sua morte.

- Eu sei - respondeu Raul - mas nunca concordei em dar como definitivo esse relatório. Não quero dizer que as autoridades foram negligentes ou não empregaram os meios adequados à descoberta do criminoso. Mas, para mim, a evidência não era concludente e o corpo do assassino nunca foi encontrado. Pessoalmente, tenho sempre tido o pressentimento de que ele ainda vive e que algum dia será encontrado e entregue à justiça. Para esse fim tenho persistido nas minhas investigações, mesmo depois que o governo considerou o caso perdido. Tenho agentes trabalhando para mim em toda a Argélia. Mas ainda não obtive resultado algum, e eu começava a desanimar quando o ano passado recebi certas informações que me apontaram nova pista. Recebi comunicação dum dos meus homens de que o homem, ou alguém muito parecido com ele, fora visto em Marrocos - era um mouro, como deveis lembrar-vos, que, segundo se supunha, se encaminhava para o sul. Era uma pista muito frágil, mas, pelo menos, era alguma coisa concreta, e resolvi segui-la. É curioso. Na mesma semana fui procurado em Paris pelo representante legal da família De Chailles. Ao tempo da tragédia, como sabeis, Ahmed, Renato tinha uma filha, uma menina de cerca de dois anos de idade. Quando ele foi assassinado, a criança desapareceu com a mãe, ao mesmo tempo que o assassino. Nunca mais se ouviu falar neles e o caso envolveu-se em mistério. Mas agora tornou-se necessário provar se aquela criança é viva ou morta, porque, em razão de muitos falecimentos ocorridos na família De Chailles, se aquela criança estiver viva, é ela a herdeira duma enorme fortuna. Há outros pretendentes à herança, parentes de longe que naturalmente estão procurando fazer valer os seus supostos direitos, mas os tribunais têm-se negado a reconhecê-los enquanto não houver informações positivas de que o tronco principal da família, representado pela filha de Renato, morreu ou não. Assim, no momento, o litígio está na fase probatória. Entretanto, prossigo nas minhas pesquisas com um duplo objectivo: punir o assassino do meu pobre amigo e achar a filha ou certificar-me da morte desta.

Houve uma pequena pausa quando ele deixou de falar.

O seu calmo tom de voz e os seus gestos não revelavam o implacável vingador. E dos três que o ouviam sentados, somente o sheik lhe conhecia o inflexível propósito a que dedicara tantos anos de vida e a coragem e firmeza com que prosseguia nas suas investigações. Para Caryll a história e o novo aspecto sob que via o carácter do homem que ele conhecia tão perfeitamente eram uma revelação que o deixava boquiaberto de espanto. Incapaz de compreender a completa significação do que ouvira, o caso, entretanto, projectava muita luz sobre coisas que muito o haviam intrigado durante a sua permanência em Touggourt.

Foi Diana quem primeiro falou, sacudindo a cabeça com perplexidade.

- Mas quando aconteceu essa coisa horrível? Porque foi que nunca ninguém me disse nada a esse respeito? Conhecias o caso e porque não mo referiste, Ahmed?

O sheik estremeceu levemente e não levantou os olhos do cigarro que estava a acender.

- Nada poderias ter feito, ma mie. Porque haveria de entristecer-te sem necessidade?

Conhecendo-o como ela o conhecia, compreendeu que alguma coisa se ocultava naquela evasiva do esposo e os seus olhos fixaram-se por momentos na face impenetrável daquele homem. Depois dirigiu-se a Raul.

- Quem era o senhor De Chailles e porque o mataram?

Raul abanou a cabeça.

- Se eu pudesse responder a essa pergunta, as minhas pesquisas seriam muito fáceis. A causa do crime jamais transpirou. A única sugestão que finalmente recebi veio dum condutor de camelos, que estava ligado à expedição ao tempo da tragédia e que, sendo o único sobrevivente, pôde contar a história do massacre da caravana de De Chailles. Ele também, mortalmente ferido, sucumbiu algumas semanas depois, no pequeno hospital militar de El-Oued. Foi lá que o vi e fiquei sabendo o pouco que sei de todo este triste caso. Mas a história ficará mais fácil de compreender se eu contar os acontecimentos pela ordem da sua sequência.

«Renato De Chailles era um dos meus amigos mais antigos. Era o filho mais novo do conde De Chailles, cuja família se contava entre as mais antigas da França. Sempre visionário e sonhador, era, ao mesmo tempo, um dos homens mais encantadores e amáveis que jamais conheci e um dos mais obstinados. O seu património, como filho mais novo, não era grande, mas, perfeitamente satisfeito com os seus escassos recursos, dedicou a sua vida a pesquisas científicas, que lhe deram reputação mundial, embora não lhe proporcionassem muito lucro material. Mas a venda dos seus livros auxiliava-o um tanto no custeio das suas expedições. Desde o princípio, a Argélia atraiu-o, de forma que vagueava no deserto durante meses e, às vezes, anos a fio. Como o dinheiro não lhe sobrava, as suas expedições tinham um cunho de espartana simplicidade e o seu séquito era dos menores. Era muito simpático e popular entre os árabes e os seus criados eram-lhe devotados em extremo. Absorvido pelos seus trabalhos, pouco tempo consagrava às mulheres. Era bacharel formado e quando chegou aos quarenta anos caiu de amores por uma linda menina, vinte anos mais nova do que ele, e com ela se casou. A despeito da disparidade de idades, foi, de ambos os lados, um casamento por amor, porque ela era pobre como ele, mas encantadora. Ela fechou os olhos à pobreza do esposo e entusiasmou-se com a ideia de lhe partilhar a vida selvagem. O deserto não lhe infundia medo, desde que estivesse a seu lado.

«Vi-os principiar a lua-de-mel, que durou até o seu assassínio, e raramente tenho encontrado casal tão feliz. Vi-os no ano seguinte em Biscra, justamente por ocasião do nascimento da pequenita, cujo advento lhes veio completar a felicidade. Foi enquanto ali os visitava que pela primeira vez ouvi falar no novo criado que haviam contratado para substituir o velho assistente, que naqueles dias havia morrido, após muitos anos de serviço fiel. Infelizmente, nunca vi o homem, pois fora mandado ao sul para organizar a caravana para a próxima excursão.

«Renato, entusiasta como era, era pródigo nos seus louvores. Destituído, a muitos respeitos, de prática e dado a apressadas preferências e antipatias, o meu pobre amigo pouco valor atribuía às referências e preferia confiar, de todos os modos, no seu próprio juízo. O precipitado contrato do novo criado foi feito assim. O homem chegara a Biscra, sabe Deus vindo de onde, sem credenciais e sem amigos que o afiançassem. Mas expressava-se com facilidade e ganhou a confiança de De Chailles exibindo um conhecimento íntimo do país e um grande interesse pela obra que Renato empreendia.

«Eu próprio ouvi Renato elogiá-lo abertamente, mas soube que não foram poucos os que em Biscra, tanto árabes como franceses, tentaram mostrar-lhe a necessidade de obter informes do homem em quem ele depositava tanta confiança. Mas ninguém conseguiu dissuadi-lo nem influenciá-lo de qualquer modo. Também lavrei o meu protesto contra a imprudência e fi-lo com veemência, mas Renato a nada atendeu e, pelo contrário, fez ardorosa defesa do homem. Declarou que em Ghabah, o mouro, tinha finalmente encontrado o servo ideal, o príncipe dos condutores de caravanas. Que somente o ciúme provocava objecções de estrangeiros contra o mouro e que ele, Renato, estava plenamente satisfeito, preferindo confiar na sua própria opinião. Naturalmente, uma vez que assumira aquela atitude, nada mais se podia fazer. «Deixaram Biscra logo que a senhora De Chailles se encontrou forte bastante para viajar.

«Nunca mais os vi. Mas nos dois anos que se seguiram recebi uma ou duas cartas de Renato, cheias de amor pela esposa e pela filha, que pareciam admiravelmente identificadas com o deserto e cheias de esperança no êxito final da expedição. Também falava em termos elogiosos do seu criado modelo, Ghabah. Nunca tivera um servo tão dedicado, nunca recebera assistência tão inteligente, na obra que tão de perto lhe falava ao coração. O resultado da sua cega confiança ouvi-o dos lábios do condutor de camelos, agonizante no hospital de El-Oued. Sabendo da minha amizade a De Chailles, as autoridades telegrafaram-me para França, logo que tiveram conhecimento da tragédia, e eu parti para El-Oued para ouvir o único sobrevivente da caravana.

«O pobre homem estava em estado horrível. O facto de ele não sucumbir imediatamente e de as forças não lhe abandonarem pés e mãos durante alguns dias e noites, enquanto não o recolheu uma caravana que passou pelo local, mostra somente como a vida é tenaz nesses homens do deserto.

«Ele parecia ter resolvido não morrer enquanto não revelasse tudo o que sabia para que justiça se fizesse.

«Contou-me a história aos pedaços, conforme lhe permitiam as forças, mas o seu cérebro permanecia claro e, posto que repetisse muitas minúcias, nunca se desviou um ponto e nunca se contradisse em coisa alguma.

«Selou a história com um juramento e a sua sede de vingança nascia mais da estima que dedicava ao seu senhor, que das ofensas pessoais que recebera.

«Fora também uma aquisição nova para o séquito de De Chailles, como, de resto, todos os que tomaram parte na excursão fatídica. Parece que Ghabah, conquanto exercesse extraordinária influência sobre De Chailles, era odiado e temido por práticas que todos censuravam e que Renato ignorava. Cruel e vingativo por natureza, entre outros desagradáveis atributos que lhe creditavam, passava por ter mau olhado. De aparência sinistra e diabòlicamente sagaz em suas secretas operações, parece que resolveu ganhar completamente a confiança de De Chailles e ao mesmo tempo afastar do seu senhor os velhos servos que pudessem interferir nos seus planos. As suas maquinações, ao que parece, surtiram efeito sem que De Chailles tivesse a menor suspeita dos planos urdidos para a tragédia.

«Maltratados pelo mouro e temerosos dos seus supostos poderes maléficos, os velhos servos foram-se despedindo, um a um, sendo substituídos por estrangeiros. O próprio condutor de camelos ficou com eles apenas seis meses e nesse curto espaço de tempo criou estima por De Chailles e sua esposa e adorava a pequenina filha do casal que, por qualquer razão, foi por ele criada. Mas Renato persistia ainda na sua cega confiança. Embora lamentando abertamente a deserção dos velhos servos, é de supor que nunca ligasse a retirada dos mesmos ao proceder do homem em quem confiava tão inteiramente. E ninguém ousou dizer-lhe a verdade, ninguém ousava aventar qualquer coisa que dissesse respeito ao favorito. Seguro da sua sinistra reputação, o mouro continuava sem levantar suspeitas contra si. Sabia-se, entretanto, que a senhora De Chailles não partilhava dos sentimentos do marido neste particular; sabia-se que ela também o odiava e temia. E tamanha era a influência daquele ser sinistro, que nem mesmo as suspeitas da esposa abalaram a fé a De Chailles, de modo que este via na desconfiança dela apenas um capricho de mulher e como tal deveria ser considerada essa desconfiança. Murmurava-se no acampamento que essa divergência de opiniões era o único ponto de discórdia na vida feliz daquele casal e que a senhora De Chailles muitas vezes chorava em segredo por causa disso.

«O fim veio com catastrófica subitaneidade. O séquito, não muito grande à partida, com as frequentes dispensas tornara-se cada vez menor, até que ficou limitado a um pequeno grupo - uns dois ou três criados e seis ou sete condutores de camelos.

«Na noite da tragédia, o mouro, alegando negligência por parte dos seus homens, recolheu todos os rifles existentes no acampamento e levou-os para a sua própria tenda, sob pretexto de os examinar. As coisas haviam chegado a tal ponto que ninguém tentou opor-lhe resistência e os homens entregaram as suas armas, contra vontade talvez, mas em todo o caso entregaram-nas.

«Nessa noite o condutor de camelos que me contou a história estava atacado de cruel dor de dentes e deixou a fogueira do acampamento, ao redor da qual estavam sentados todos os homens, e foi deitar-se atrás da tenda de De Chailles, onde sempre ficava, e procurou dormir, na esperança de esquecer a dor. Mas o sono não vinha. E, colocado como estava, da sua posição podia ver e ouvir tudo o que se seguiu. À tarde, o mouro fora à tenda e tivera longa conferência com o senhor. E, depois que ele saiu, o condutor de camelos ouviu forte altercação entre De Chailles e a esposa, que soluçava amargamente e parecia pedir instantemente a seu marido qualquer coisa a que ele recusava anuir. Então sobreveio o silêncio e o condutor de camelos disse que supõe que De Chailles cabeceou com sono alguns momentos. De qualquer modo, houve um intervalo durante o qual nada aconteceu.

«Então, repentinamente, foi ele despertado por um gemido, seguido de um grito que o fez levantar-se, gelado de terror. Parece ter hesitado um momento, desnorteado pelo medo, e sem saber o que fazer. Por último, a estima que dedicava ao casal venceu-lhe o terror e abrindo, com a faca, um buraco na parede da tenda, forçou a entrada da mesma. Nunca esquecerei o seu olhar ao relatar este passo da tragédia. De Chailles estava caído de bruços no tapete, com uma faca atravessada no coração. A senhora De Chailles, também morta ou desmaiada, jazia junto ao corpo do marido, com o rosto pousado no peito ensopado de sangue. A criança, que evidentemente despertara naquele momento, estava deitada ao lado do casal, com as mãozinhas agarradas aos cabelos negros de sua mãe, chamando-a e rindo - meu Deus! -, provavelmente pensando, em sua cabecinha inocente, que aquilo tudo era uma cena preparada expressamente para a divertir!

«Bastante trémulo, foi a vista da criança que pôs o homem em actividade. Correu para fora da tenda, contando apenas com a sua faca como arma, para presenciar o acto final do drama que também lhe custou a vida. Era tarde para ir avisar os outros, pois que o mouro, com um revólver em cada mão, estava diante dele. A luz do fogo tornou fácil o alvo ao mouro, que disparou as armas contra os homens desarmados e indefesos que ali estavam como ovelhas.

«O horror desse horrendo massacre parece que deixou o condutor de camelos embrutecido. Sem consciência do perigo a que se expunha, sem esperança de escapar à sorte dos companheiros, atirou-se ao mouro, lutando como um louco, até que caiu, literalmente varado pelas balas.

«Era madrugada quando recobrou a consciência. Tudo em redor dele era morte, e o silêncio que tudo envolvia era terrificante. «Banhado em sangue e exausto de fraqueza, cortou algumas tiras da roupa dos cadáveres e fez uma faixa para envolver as partes feridas do corpo, parecendo que isso contribuiu para infectar as feridas. Voltou, então, cheio de dores, para a tenda. Teve de esperar até que as forças lhe permitissem entrar ali. Acalmando um pouco os nervos, entrou. De Chailles jazia ainda onde caíra, os olhos pávidos, bem abertos. Somente a faca lhe fora arrancada do peito, deixando aberta uma enorme ferida que já estava negrejante de moscas. Mas da senhora De Chailles e da criança, não restava sequer um sinal. Tinham desaparecido na noite com o assassino. Os camelos, também, tinham sido levados, como ele descobriu mais tarde, e com eles os objectos de mais valor existentes no acampamento.

«Todo o dia ficou deitado na tenda, com os cadáveres por única companhia, esperando a noite, temendo os efeitos do calor excessivo do sol na sua fraqueza e os abutres que já rondavam, ansiosos, o acampamento. Mas na frescura da tarde, quando as sinistras aves de rapina estavam fartas a ponto de já não se poderem mover, ele avançou à luz da Lua para o deserto e iniciou aquela maravilhosa e heróica jornada da qual ele só se lembrava, mais tarde, duma sede insuportável, duma dor insuportável e duma fraqueza insuportável.

«Como já vos disse, ele foi casualmente encontrado e recolhido por uma caravana que passava e levado a El-Oued. Morreu sentindo-se feliz por ter vivido o suficiente para contar a história, alegre por pensar que a vingança que jurara se realizaria, embora já não vivesse para nela tomar parte.

Houve um momento de silêncio, quando Raul terminou a trágica história.

Vencendo os pensamentos tristes produzidos pela narrativa que a sua eloquência revestira de tão intenso realismo, procurou acender um cigarro, mas os seus dedos trémulos não podiam segurar o fósforo e, lançando-o fora, encostou-se na cadeira, olhando firmemente para a mesa, através da qual Caryll o fitava com evidente horror. Conquanto tivesse brancos os lábios, Diana estava sentada rígida, a boca fechada e os olhos humedecidos pelas lágrimas. Somente o sheik estava imóvel, em parte porque já antes ouvira essa história terrível e em parte porque raramente se permitia, em tais ocasiões, uma expressão visível dos seus sentimentos.

Mas a sua face estava mais severa, a sua voz mais grossa que de costume, quando finalmente falou.

- Mas a causa do crime qual seria? - perguntou vagarosamente. - De Chailles era conhecido como pobre para ser morto para o roubarem, suas propriedades poucas e sem valor que justificasse a aventura desesperada do assassino. O mouro deveria ter algum outro desejo mais forte do que pilhar algumas ninharias. Parece que só há uma explicação: ele queria a mulher.

Os lábios de Raul descoraram.

- Assim o suponho - concordou. - Essa era, igualmente, a opinião do condutor de camelos. Ele tinha, uma ou duas vezes, visto Ghabah a olhar a senhora De Chailles de modo muito estranho, mas nunca quis falar nisso nem mesmo aos seus íntimos. Permita Deus que essa pobre criatura tenha logo morrido.

- Deus o permita - murmurou o sheik.

E mais uma vez fraquejou a sua vontade de ferro. À sua voz, ordinariamente firme, soou de modo constrangido, enquanto um ar de densa tristeza lhe sombreava os olhos penetrantes, negros, que estavam fixos na face da esposa.

Era o mesmo pensamento a passar-lhe pelo cérebro, admirava-se, com um travo de insuportável agonia. Os anos teriam voltado para ela também, para o tempo em que, naquela mesma tenda, ela também jazera aos pés de um desapiedado raptor, chorando, gemendo e pedindo a morte? Compreenderia agora porque nunca lhe falara na história terrível da senhora De Chailles?

O remorso imperecível que o acompanhara em todos os subsequentes anos de felicidade nunca lhe parecera tão pungente como naquele momento e a sua forte cabeça balanceou com a dor amarga da recordação.

Não havia, porém, nem sombra de tristeza nos olhos lacrimosos de Diana. Não pensara em si na exclamação de piedade que soltara.

- Mas se ela ainda estiver viva, Raul, se ela ainda estiver viva!...

Raul fez um gesto de desaprovação,

- Oro a Deus pedindo que não esteja - disse. - Peço a Deus que quando me entregar o homem, em minhas mãos, com ele só encontre a criança - a criança que é a senhora condessa De Chailles - acrescentou, com um comovido acento na voz.

- Uma mulher agora, certamente, a vossa condessa De Chailles - sugeriu o sheik, recobrando com esforço o domínio de si mesmo. - Estais esquecido de quantos anos passaram desde a morte do pai?

- Uma mulher, realmente, ou quase isso - respondeu. - Se viver, deverá contar uns dezassete anos. Sempre me esqueço disso. Penso somente na linda criança que vi em Biscra.

- Pobre criança e pobre mãe! - murmurou Diana. - Teria sido melhor, infinitamente melhor, que houvessem morrido quando a felicidade lhes sorria!

- Mil vezes melhor - concordou Raul - mas quem poderia imaginar o que estava reservado para elas? Quem poderia ter sequer sonhado o que o futuro reservara para aquela formosa criança de olhos pretos?

O sheik voltou-se para ele subitamente, com um olhar ainda mais estranho.

- No caso de as vossas pesquisas serem coroadas de êxito e encontrardes a menina - disse com assinalada decisão - esperais ainda, considerando o que tem sido a sua vida, «poder» levá-la a França para lhe entregar a herança?

Raul estremeceu com desesperança e meneou a cabeça.

- Deus o sabe - disse - e eu não devo pensar nisso. É-me suficiente aguardar o dia em que espero conseguir bom resultado nas minhas pesquisas e queira Deus misericordioso protegê-la daquilo que é quase inevitável.

E pousando os braços na mesa, envolveu as faces com as mãos.

Houve outra vez silêncio na sala, silêncio em que os pensamentos de todos se concentraram na história contada e que foi ouvida entre as mais desencontradas sensações e emoções.

Durante toda a narrativa, os olhos de Caryll não abandonaram os de Raul. A sua mente enfastiada revoltava-se com os horrores da tragédia do deserto. Moralmente sadio, jamais cuidara de esquadrinhar as paixões primitivas que movem a humanidade a vergonhosos actos de violência. Sabia que tais coisas aconteciam, mas não queria habitar em tal meio, e até à noite todas aquelas cenas se lhe afiguravam remotas possibilidades, muito distantes da sua bem ordenada e prosaica existência.

À noite, julgava ver a luxúria diante dele, na sua forma mais cruel, e um crime, embora lhe fizesse mal aos nervos, despertava nele sentimentos cavalheirescos.

O seu fôlego tornou-se agitado graças à violência das palpitações do coração. Porque é que pensava em Touggourt e na tez delgada daquela jovem árabe de olhos negros, que tanta impressão lhe produzira? A herdeira que Raul procurava parecer-se-ia com «ela» nalguma coisa? A sumptuosa tenda pareceu-lhe que se evaporava e ele viu, novamente, o jardim sombreado pelas palmeiras, onde a encontrou antes da noite fatal que a varreu da sua vida. Sonhando, esqueceu o presente, tudo esqueceu, para somente lembrar o breve romance que fora tão doce, tão transitório.

- «Salam aleikoum».

Caryll desceu dos seus sonhos à terra. Aquela voz grossa, profunda, era a de seu pai e a princípio pensou que fora o sheik que falara.

Mas uma exclamação de sua mãe fê-lo voltar-se em direcção à porta, para onde ela corria com os braços abertos.

Com um suspiro, ele caiu numa cadeira, a face sem cor, as mãos a tremer, ao divisar novamente o corpo alto de árabe e a face sinistra do homem que vira no café maure, em Touggourt.

Um calor de ódio transtornou-o ao apreender a verdade.

Naquele homem existia a semelhança que tornara tão curiosa a face do pai! Eram de igual feição. Era somente a grande cicatriz da testa que os diferençava. Agora sabia tudo: aquele era seu irmão! Bom Deus! Que complicação e que infâmia!

Seria possível que a mãe, que acorrera tão solícita a acolher o filho, nada soubesse da vida que ele levava e o recebesse com tantas expansões de alegria? Se ela soubesse o que ele, Caryll, vira em Touggourt, não o repeliria com os mesmos sentimentos de desgosto e aversão que agora nele actuavam? Como poderia ela dar um abraço tão cordial a um ente que ele gostaria de afastar para não a manchar de vil contaminação?

Cego de indignação, não viu o rosto moço e endurecido que se pendurava nos ombros de Diana, nem ouviu a ternura com que ele lhe dizia: «mãezinha, mãezinha», pagando-lhe dessa forma muitas semanas de ânsia e inquietação.

E quando, finalmente, cessaram os abraços, foi somente com um profundo sentimento de desprezo e provocação que ele acompanhou os passos e a pose quase agressiva do jovem Ahmed ben Hassan, que atravessou a sala em procura do pai.

Predisposto a condenar, julgou o irmão unicamente pelas exterioridades. Não lhe era possível conhecer os anseios íntimos e os sentimentos que estavam ocultos sob aquele aspecto bravio.

O sheik não se mexeu nem falou desde a súbita e quase dramática aparição do filho mais novo. Continuou onde estava, em posição de ver o que os outros não notaram, até que a voz possante do árabe, saudando-o, lhe atraiu a atenção para a presença que ele preferia ignorar. Não disse uma palavra, nem fez sinal algum, com a atenção aparentemente presa no cigarro que estava fumando. Mas agora os cílios franziram e aguardou a aproximação do rapaz com o mesmo silêncio. Nem falou até que o filho, que se curvara para lhe chegar aos ombros, lhe estendeu os lábios e ficou de pé diante dele, encarando-o com olhos fixos em que havia provocação e carinho, curiosamente entrelaçados. E, então, umas poucas palavras ditas em árabe foram ouvidas somente por aquele a quem eram endereçadas.

O rapaz nada respondeu quando o sheik parou de falar, mas a sua mão procurou-lhe mecanicamente a testa, numa saudação que era tão humilde e deferente como a de qualquer homem da tribo. Voltou-se, depois, para Raul, cuja entusiástica recepção muito se prolongaria se Diana não se interpusesse entre os dois, com uma palavra de protesto.

- Não façais monopólio dele, Raul. Poupai-o em favor de Caryll por um minuto. Quero ver os meus filhos apertarem as mãos.

Mas, apesar da sua face alegre, havia na sua voz alguma coisa que lhe traía a emoção que procurou dominar e as lágrimas estavam prestes a inundar-lhe os olhos enquanto aguardava o encontro que durante tanto tempo esperara.

Foi com uma emoção não menor que a de Diana, mas produzida por causas diversas, que Caryll se achou junto ao irmão, gaguejando uma resposta qualquer à cordial saudação do seu irmão mais novo, cujos olhos negros nele pousavam com um ar de ameaçadora advertência, que contrastava flagrantemente com as palavras corteses do acolhimento.

Seu irmão... Seu rival!...

Não mais vexado pelo amor que, amadurecido, agora lhe enchia o coração com surpreendente intensidade, desejou proclamar o segredo que tão estranhamente os unia, desejou arrancar a verdade daqueles lábios sorridentes, escarninhos.

Desde que ele ali estava, que seria feito da pobre rapariga que era sua vítima?

Tremendo com ira e ciúme, Caryll julgou-se obrigado a pegar na mão bronzeada que lhe fora estendida.

 

Somente Caryll notou o ar de ameaçadora advertência. Para os demais, o encontro dos dois irmãos fora perfeitamente natural.

Apesar disso, uma sensação de constrangimento se apossou de todos os presentes na sala e houve uma pausa expectante quando ambos se reuniram à mesa, o rapaz sentando-se perto de Diana, cujos olhos se fixaram ansiosamente na cicatriz da sua testa, da qual, de momento, não achou conveniente falar.

O alívio causado pela sua presença fora enorme. Mas perturbava-a o mistério da sua longa ausência e entregava-se a indagações acerca da sua longa permanência longe, voltando com sinais visíveis de que passara por qualquer grande perigo. Deitou um olhar demorado e inquiridor ao rosto que, em contraste com a sua anterior aparência descuidada, apresentava agora o aspecto de quem envelhecera alguns anos. Dolorosamente, compreendeu que o rapaz, que algumas semanas antes partira com ar sorridente, tinha deixado após si, para sempre, a puberdade e regressava agora um homem. E a sua perturbação aumentava ao pensar na próxima entrevista entre pai e filho. A sua desobediência não poderia ficar impune, disso estava bem certa, mas qual seria o castigo? Olhou furtivamente para o marido, mas o rosto do sheik estava impenetrável. Não se mostrava carrancudo; todavia, isso nada significava. Ela compreendeu que ele estava tão-somente dando tempo ao tempo, até à chegada do momento azado. Quando chegaria esse momento? Tremia involuntariamente pensando nisso.

Ele seria justo, como sempre, mas, se a justiça assim o exigisse, seria implacável, mesmo em relação ao filho. A sua lei era a mesma tanto para os filhos como para qualquer dos homens da sua tribo. E por uma infracção às suas leis puniria tão imparcial quão violentamente o rapaz, como o mais desprezível dos seus camaradas.

Nas profundezas do seu espírito, Diana achava que isso era justo, mas não minorava a dor ao seu entristecido coração de mãe. Apesar disso, concordou que o seu sentimento de equidade não podia aliviar o fardo pesado que tinha de carregar.

Dominava-a a instintiva sensação de que os mesmos pensamentos passavam pela cabeça do filho, porque uma ou duas vezes a sua musculosa mão se agarrara aos seus delicados dedos, apertando-os dolorosamente, e quando, de tempos a tempos, os olhos dele procuravam os seus, percebia neles uma expressão de vergonha e contrição que nunca antes ela surpreendera.

O que teria ele feito para a olhar daquela maneira? Porque não era da têmpera daquele filho arrepender-se de qualquer acção errada. A sua atitude habitual era de descuidada indiferença. Naquela noite, lobrigava nele alguma coisa que não podia compreender e que vagamente a inquietava.

Foi Raul, também cuidadoso do castigo que aguardava o ausente que voltara, quem preencheu a brecha e com habilidade manteve a palestra, evitando cuidadosamente qualquer alusão ao assunto que causava aquela desagradável situação.

Mas achava que era enganosa bondade prolongar tanto a angústia que agitava mãe e filho.

Que Caryll, que ignorava a falta do irmão e o desprazer do pai, não visse o que para ele era bem claro, era admissível. Decidiu-se a fazê-lo sair. Os métodos do sheik não admitiam delongas. O rapaz tinha de prestar contas de si e sofrer as consequências da sua desobediência ainda naquela noite e quanto mais depressa melhor, para todos os envolvidos no caso. Foi pensando no sofrimento de Diana que se decidiu. Posto que muito íntimo dele, pouca simpatia dispensava, nesta ocasião, ao culpado. O jovem patife devia receber aquilo que tão fartamente estava guardado para ele, reflectiu com raiva. Era tempo de fazê-lo compreender que as suas estroinices afectavam a outros além dele, que sua mãe sofria, mais do que ele, as consequências das suas fugas.

Raul sabia, mais do que Diana podia imaginar, a ansiedade que a ela causavam as imprudências do filho mais novo.

E, agora, que sabia o que ia sofrer nessa noite, sentia já o espírito angustiado pelo castigo que o filho ia receber.

Abreviar-lhe o tempo de sofrimento era o melhor que podia fazer.

Levantou-se com um bocejo simulado.

- Estou em estado deplorável! Desculpai-me, Diana, mas sinto-me quase morto de sono. Sei que ainda é cedo, mas tenho preparativos a fazer. Ahmed fez-me falar ontem à noite, até os galos cantarem; eu já estou ficando velho para me deitar tão tarde. Ides comigo, Caryll? Quase sempre, a qualquer hora estais pronto para vos deitardes.

Com outro sorriso, dirigiu-se para a porta.

Deitar cedo era um pretexto pouco aceitável, mas foi o único que lhe ocorreu no momento, e a prontidão com que Caryll se dispôs a acompanhá-lo tornou o êxito ainda mais fácil. Tremente como se estivesse gelada de frio, Diana viu-os transpor a porta e desaparecer na noite. Depois fitou pai e filho, ambos de pé, no outro lado da mesa.

A cabeça do filho estava desviada da direcção do pai, mas o sheik contemplou por um momento a esposa, sem que o olhar de apelo que ela lhe lançou suavizasse a expressão de dureza dos seus olhos, nem lhe abrandasse as maneiras rígidas.

Abanando as mãos, ele apontou-lhe o quarto e ela dirigiu-se ao filho desejando-lhe boas-noites. Na ocasião, aquilo tinha um involuntário sabor de ironia.

Quando o filho se levantou para receber o beijo, mais uma vez Diana lhe notou um estranho olhar de envergonhada contrição. Com um soluço estrangulado, ela recolheu rapidamente ao quarto.

Um ar de compaixão tomou os olhos sombrios do sheik, vendo a retirada precipitada da esposa.

Pretendia inquirir o jovem sobre a ausência e julgá-lo ali mesmo, naquela sala. Mas não fora já um duro sofrimento para ela as cenas que presenciara? Se não podia poupar-lhe a angústia causada pelo pensamento da entrevista, poderia ao menos poupar-lhe o pesar de ouvir coisas que lhe seriam insuportáveis.

Envergando o albornoz, dirigiu-se para a porta.

- Se nada tens a dizer imediatamente, ouvir-te-ei no teu próprio alojamento - disse com voz seca, em árabe.

O rapaz sentiu um choque sacudi-lo medonhamente.

- Prefiro falar aqui - declarou.

- Mas eu prefiro ouvir-te noutro lugar - retorquiu o sheik friamente, retirando-se.

Durante algum tempo, o jovem hesitou, lançando um olhar para o quarto vizinho, com um ar assustado nos olhos. Depois chegaram ambos às cortinas, ainda levantadas, que davam para o quarto em que sua mãe chorava e orava como - Alá o perdoasse - fazia sempre, porque já não eram poucas as vezes que a fizera chorar e orar por ele.

Com uma praga quase a rebentar-lhe dos lábios, voltou-se para seguir o pai.

Na noite enluarada, clara como um dia, o sheik estava, do lado de fora, de pé, uns poucos passos além do toldo, com as botas batendo no chão, com impaciência.

Fingiu, entretanto, não se ter impacientado com a demora, quando o filho se aproximou.

Ambos silenciosos, partiram cruzando o espaço aberto que os separava do acampamento principal. O jovem respirava ofegante, como se procurasse encher-se de coragem para enfrentar a ira paterna.

Naquela noite o acampamento parecia mais silencioso que de costume e somente alguns homens permaneciam acocorados ao redor do fogo moribundo, que já era apenas um remanescente de brasas que ardiam. No mesmo silêncio tétrico o sheik passou pelo aglomerado de baixas guitounes que serviam de casa ao seu povo, passou pelas longas filas de animais amarrados aos palanques, passou pelo enorme bando de camelos que ruminavam bucòlicamente e finalmente chegaram ambos ao local em que, até àquela noite, fora levantada a tenda dupla do rapaz, a qual era uma miniatura da sua própria e ficava perto das duas menores ocupadas por S’rir e Ramadan.

Mas agora o local estava vazio e, olhando para ali, o sheik viu somente dois cavalos selados que um árabe segurava.

A humilde saudação com que o sheik foi acolhido não lhe suavizou o aspecto carrancudo.

- Afinal, que história vem a ser esta?

Corando à pergunta do pai, o rapaz deu um passo constrangido, com os olhos esgazeados.

- É que acampei em El-Hassi - murmurou por fim, com visível relutância, citando o nome de um pequeno oásis que distava cerca de cinco milhas ao sul.

O sheik sacudiu a cabeça raivosamente. - Em nome de todos os demónios, porquê?

O rosto do jovem ainda mais se afogueou.

- Tinha razões para isso - balbuciou em voz quase inaudível, passando rapidamente a língua pelos lábios secos ao perceber a impropriedade da resposta.

Por um instante, o sheik mirou-o. Depois, sacudindo os ombros, chamou com voz imperiosa o árabe que estava segurando os cavalos.

Percebendo-lhe a intenção, o rapaz avançou em sua direcção, tocando-lhe no braço.

- Pai, se quiser ouvir-me aqui ou se pudesse esperar até amanhã...

Com um gesto brusco de recusa o sheik sacudiu a mão.

- Ouvir-te-ei quando e onde quiser - replicou em tom que não admitia resposta.

O árabe que segurava os cavalos era S’rir, tão devotado ao seu jovem senhor e que estava acabrunhado com o que via e percebia. O jovem pegou nas rédeas e o árabe montou noutro cavalo, dirigindo-se ao acampamento para executar uma ordem do sheik.

Havia algum conforto, naquela noite, no afectado caminhar do enorme corcel, cujas narinas se encostavam frequentemente nas dobras do albornoz, polvilhando-as com brancos flocos de espuma. Curvando a cabeça sobre o macio pescoço do animal, o jovem achava o tempo interminavelmente longo, com o pensamento cheio de penosas apreensões.

O que o esperava bem o podia imaginar. Amargamente considerava a pena que teria de sofrer.

Não havia razão alguma com que pudesse justificar-se.

Faltara à sua palavra. Ausentara-se sem licença, e isso, em vista das ordens rigorosas que recebera, era motivo suficiente para encher de ira o pai. Mas algo mais tinha por que responder, quando chegassem ao acampamento de El-Hassi.

Que outra coisa, entretanto, poderia ter feito?

As suas mãos estavam húmidas devido aos esforços que fazia para achar um meio de mover o pai à misericórdia, enquanto era tempo. Enchendo-se de coragem, voltou-se e lançou um olhar através dos ombros do sheik. Compreendeu, porém, que era tarde para tais esforços.

Já o cavalo e a escolta que o sheik havia mandado aprestar se aproximavam, vindo na frente S’rir, que foi logo segurar o estribo para Ahmed montar. Foi Eblis o animal trazido como que propositadamente para agravar a agitação em que se debatia o homem que o deveria montar. Sem lhe fazer os carinhos a que Diana habituara o fogoso animal, o sheik puxou-o para perto de um barranco, acenando para o filho e indicando-lhe a sela.

Folgado por um dia de descanso, Eblis debatia-se como um demónio contra a mão potente que o retinha, corcoveando e relinchando até o rapaz montar.

Depois, lado a lado, pai e filho seguiram, ao clarão da Lua, pelo deserto, em direcção ao sul, os cavalos a galopar furiosamente e a escolta a segui-los.

Era uma excursão que noutras circunstâncias teria deleitado sobremaneira o jovem. Por assim dizer nascido na sela, desde a infância acompanhava o pai nas suas excursões. Dia e noite devoravam espaços sem limites, partilhando as alegrias, os perigos e os mistérios do deserto, pondo à prova a força e energia próprias contra a força despótica da sua amplidão. Com seu pai aprendera tudo quanto sabia da sua terra natal, toda a ciência do deserto, na qual era bem versado e tudo fazia dele o nómada que sabia ser.

Os seus pensamentos transportaram-no a outras excursões mais felizes, nas quais sombra alguma pairava entre ele e o pai, quando ambos galopavam como agora, lado a lado, e se punha a admirar o homem que lhe parecia tão maravilhosamente, tão incomensuràvelmente superior aos demais homens, cuja coragem e espírito expedito procurava imitar e a quem amava e temia com todo o vigor do seu coração juvenil.

Era durante essas longas expedições que ele parecia pôr-se em contacto mais íntimo com aquele pai grave, prudente, que ainda agora lhe infundia medo. Fora, na infância, a sombra do sheik.

A chegada, porém, da adolescência, aos poucos se fora diferençando.

Fora do acampamento paterno, os prazeres atraíam-no e deles não se desviava em acatamento às restrições impostas à sua liberdade, sem prestar atenção a advertências que considerava injustificadas e supérfluas, sem se incomodar com os constantes castigos que lhe eram infligidos.

Por mais tempo do que supunha, a espada de Dâmocles estivera suspensa sobre a sua cabeça. Agora, ela caíra.

Que faria seu pai? Olhou furtivamente para a figura erecta que seguia a seu lado.

Em que pensaria, galopando com os olhos fixos para a frente, governando o intratável cavalo com o semblante mais duro que o rapaz jamais vira?

Teria alguma suspeita? Teria tido qualquer indício revelador da verdade?

Com um tremor, o rapaz virou o rosto. Alá! Se fosse possível desfazer o que estava feito! Mas não era possível. As semanas que haviam passado jamais voltariam e a lembrança delas acompanhá-lo-ia toda a vida.

Entretanto, não era esta a primeira vez. Pecara outras vezes e fora perdoado. Porque julgava agora que o perdão não lhe seria dado? E porque sofria agora?

Torturado por estes pensamentos, abaixou-se na sela, desgostoso de si mesmo, desgostoso da noite calma e radiante que dele parecia zombar com a sua quietude e paz.

A planície que agora percorriam ondulava gentilmente pelo terreno. Era uma região de dunas, em que a areia amortecia o passo dos animais e tornava impossível a visão. Passaram, uma a uma, as dunas, e por fim, os cavalos, que seguiam a passo, atingiram o cume de um outeiro onde todos se detiveram, lançando um olhar para o pequeno oásis, que, humedecido por um regato que murmurava lá em baixo, exibia algumas árvores desgalhadas e cheias de espinhos, e ligeiras moitas de mato rasteiro. E junto às árvores, estava a fonte de que o oásis tirava o nome. Um pouco adiante, o pequeno acampamento, com as tendas pequeninas que eles procuravam e com elas os abrigos das sentinelas.

A tenda dupla fora levantada longe das outras e da sua entrada entreaberta jorrava a luz vermelha de uma lâmpada.

Os instantes pareciam horas ao rapaz, ao passo que o pai, ainda silencioso, fazia parar o cavalo fogoso e, sentando-se imóvel, fitava com cenho carregado a cena aprazível que se lhe descortinava aos olhos. Foi com sensação de relativo alívio que o jovem viu o pai fazer sinal à escolta para se deter ao longe e depois, montados, se encaminharam vagarosamente por um declive abaixo.

Juntos chegaram ao local que visavam e desmontaram, entregando os cavalos a S’rir, que os levou para longe do lume do acampamento.

A capacidade sofredora do rapaz fraquejou.

- Meu pai...

Nunca a voz lhe fora tão humilde, tão súplice. Mas as palavras que lhe tremiam nos lábios morriam sem resposta, pois o sheik voltou-se para ele e impôs-lhe silêncio com a mão levantada.

- Espera - disse, e seguiu em direcção à tenda. Ao chegar, porém, à porta aberta, parou, à escuta. Rígido ao lado dele, o jovem também ouviu a voz que lhe atraíra a atenção e uma convulsão de medo lhe sacudiu o rosto.

Quantas vezes, nas últimas semanas, havia ouvido aquele canto cheio de queixume, entoado por voz doce de mulher, o qual, penetrando nos mais íntimos recessos do coração, algumas vezes quase lhe fazia esquecer a traição que convertera o amor em ódio! Ela entoara aquele cântico pela primeira vez numa manhã, perto da Caverna dos Fantasmas, e cantava-o sempre que supunha não ser ouvida.

Mas aquela noite não era a melhor para ouvir a terna melodia a que estava ligada lembrança tão penosa. Com um rugido que tanto poderia ser um gemido como uma praga, o sheik afastou o toldo meio aberto e entrou na tenda.

Ao lado de um tamborete, em desordem, onde havia xícaras de café e cigarros, a cantora estava acocorada, meio sentada, meio deitada, numa pilha de almofadas, a cabecinha pendida para uma guitarra nativa que lhe jazia entre os joelhos, o talhe esbelto acompanhando o ritmo do canto.

Absorvida, mas à escuta, os seus ouvidos atentos perceberam o barulho feito pelo albornoz do recém-chegado. Pôs de lado a guitarra e levantou a cabeça. Mas a exclamação alegre de acolhimento morreu-lhe nos lábios e ela levantou-se, com as mãos palpando o peito. Os olhos radiantes estavam amedrontados, como os de uma corça assustada. Lançou olhares esgazeados de um para outro daqueles rostos iguais, somente dessemelhantes na sua expressão.

Ficou de pé um instante. Depois, com outro grito, desceu o véu sobre o rosto e, com um movimento rápido, recolheu-se a outro quarto.

- Quem é aquela rapariga?

Pela primeira vez na sua vida, o sheik falou ao filho em inglês e ante a fúria regelada do seu rosto o rapaz deu um passo para trás, empalidecendo.

Hesitou um momento.

- É uma mulher que arranjei - disse, virando o rosto com um súbito gesto de desconfiança.

Os olhos do sheik luziram de modo perigoso.

- «Que arranjaste»? - repetiu de modo cortante. - Podes falar assim com tamanho desembaraço?

Então, como uma represa que rebentasse, a índole apaixonada que o caracterizava explodiu sem controle, a ira há tanto tempo recalcada ferveu dentro dele e fluiu numa torrente de palavras escaldantes e impiedosas, requeimando até a alma do filho que ali estava com os lábios lívidos.

Trémulo perante essas explosões, o rapaz esperava em silêncio que a tremenda tempestade se lhe desencadeasse sobre a cabeça.

E durante algum tempo depois que o sheik deixou de falar, ele nada disse.

Depois, vagarosamente, relanceou os olhos, contemplando o pai de maneira estranha.

- Amaldiçoastes-me pelo que eu fiz - murmurou com lábios trémulos - mas dizei-me como foi que «vós» vos apossastes de minha mãe?

O rosto do sheik tornou-se tão branco como o do filho e ele tergiversou como se uma bala o houvesse atingido.

- Sabes disso? - falou pesadamente.

Numa rápida repulsão de sentimentos, incapaz de suportar os olhos negros que nele estavam cravados, o jovem desviou a cabeça, e desvanecido o efémero triunfo que gozara, sentiu ódio de si mesmo por haver ter tido a ideia de vingança que momentos antes lhe parecia tão doce.

- Sempre soube disso, desde que cresci. - disse, apalpando os joelhos - e Gastão quase matou o homem que me contou essa história.

O sheik nada comentou. Passando a mão pelo rosto, afastou o albornoz como se o peso deste o oprimisse e, dirigindo-se à porta, ficou com as costas viradas para o quarto, olhando a noite, em luta com a amargura e a vergonha que o venciam.

A repetição da sua própria falta!

A lembrança do seu erro sobreveio-lhe vividamente na pessoa do filho, o filho a quem havia transmitido o mesmo estigma vicioso que existia no seu sangue. Como poderia julgar quem fizera coisa igual? Como, mesmo, poderia ressentir-se do ridículo que sobre si atraíra?

Era sua a falta - mais que do filho, pois a tara era hereditária. E, reconhecendo esse facto, fracassaria nas responsabilidades que a paternidade lhe acarretava? Tinha-o pressentido, era verdade, não uma, mas muitas vezes. Mas, absorvido pelos negócios da tribo, tinha feito tudo quanto deveria ter feito, tinha chegado mesmo às origens remotas daquele delito? Não tinha, ao invés, tomado o caminho mais fácil, punindo quando deveria advertir e fechando os olhos ao que, em qualquer outro país, ele não teria deixado de ver?

Era demasiadamente um chefe, esquecendo-se de que era pai. Tinha dado mais liberdade do que era aconselhável em tais circunstâncias. Tinha confiado de mais na acção do tempo, sem compreender quão aguda se tornara a necessidade de uma intervenção. E agora ali estava, aquela patente ligação com uma rapariga nativa!

Com um ar carrancudo, voltou ao quarto e, instalando-se num divã, fez sinal ao filho para que se aproximasse.

- Uma vez que sabes tanto - disse, e as palavras pareciam arrancadas a custo - é melhor que falemos claro. Achaste bom recordar-me - e eu admito a tua provocação - que fizeste o mesmo que eu também já fiz. Não posso negar o que é sabido de quantos estavam comigo naquele tempo, mesmo que eu quisesse negar, o que não se dá, mas sempre quis, por amor à tua mãe, que nunca soubesses a vergonha que lancei sobre ela. Isso, porém, não te autoriza a abrigares-te por detrás da minha falta. Tens de pagar, como eu paguei. Podes argumentar que isso é uma ocorrência muito comum, que estás procedendo como a maioria dos homens - como eu, digamos. Mas porque fui um estróina, um sedutor, não devo protestar ao ver meu filho seguir caminho igual? Porque tua mãe, em seu divino amor e caridade, pode - e só o Céu sabe como - perdoar-me o erro que cometi, pensas que eu também perdoei a mim mesmo? Deus se apiede de ti se tiveres de experimentar a mesma tristeza e repugnância que tem sido o meu castigo durante vinte anos. Lembrando-me o louco insulto que ela sofreu de minhas mãos, pensas que perdoarei o insulto que estás fazendo àquela rapariga que ali está? Deverias ter compreendido que o dano que lhe fizeste é intolerável. Perdeste todo o sentimento de decência ou supões que o meu exemplo é desculpa suficiente, que, conhecendo os meus princípios morais, eu teria de fechar os olhos à tua falta de princípios? Jamais esperei que qualquer dos meus filhos fosse um santo, mas também nunca esperei que expusesses tua mãe a tanta indignidade!

Os olhos do sheik eram escarnecedores, a voz de amargo desafio. O jovem sentia o rosto brutalmente enrubescido.

- Nunca desejei insultá-la - contestou apaixonadamente. - Pelo contrário, sempre quis que ela o ignorasse. É por isso que estou aqui em El-Hassi. Ia para o sul, mas não tinha nem tendas, nem homens, a não ser Ramadan e S’rir. Precisava de uma escolta, e tinha de vos ver para vos relatar aquilo de que tive conhecimento em Touggourt, coisas que dizem respeito ao estado perturbado do país. Não digo isto como desculpa, por ter deixado o país sem prévia licença, por ter faltado à minha palavra. Peço-vos perdão e estou pronto para sofrer o castigo que me impuserdes. Nada pode fazer-me sentir falta de respeito por mim próprio, nada pode ser pior do que o inferno em que tenho vivido nas últimas semanas. Mas a rapariga... - A despeito de si mesmo, os seus olhos cravaram-se nas cortinas que dividiam as duas partes da tenda - ...tenho de conservá-la.

Houve uma brusca mutação na sua voz, que fez o sheik olhá-lo mais firmemente.

- Tu ama-la? - perguntou.

Reveio-lhe uma lembrança daquele tempo passado, há vinte anos, em que Raul de Saint Hubert lhe fez a mesma pergunta.

- Não!

A própria veemência da enfática negativa deixou o sheik pensativo.

- Então porque não a deixaste em Touggourt? - perguntou secamente.

As mãos do jovem alçaram-se num gesto de desamparo.

- Com quem a poderia ter deixado? - exclamou. - Com Sliman ou outro qualquer da mesma força, para dela se servirem como eu me servi - por um dia, uma semana, até passar o capricho, e então atirá-la irremissivelmente à lama, a um estado pior do que aquele em que a deixei? Por baixo que eu seja, não o serei tanto! Porque mesmo na vida odiosa que ela levava em companhia do bruto que era seu dono, ficou intacta, limpa como a flor de que tirou o nome, até que a raptei e fiz dela o que é...

A voz falhou-lhe, deixando-o por momentos sem poder falar. Logo depois, porém, voltou a argumentar:

- Mas mesmo que ela não fosse o que é, não poderia deixá-la, porque tem conhecimento de factos que nos interessam, que precisamos saber, que dizem respeito aos assuntos de que vos falei.

O pai fixou-o.

- Esse negócio é urgente?

- Muito urgente.

- Então é melhor que nele me fales agora. Da outra dificuldade... - e o sheik fez um sinal a respeito da pessoa que estava no quarto vizinho - da outra dificuldade trataremos mais tarde.

Era somente um pálido esboço de factos que o jovem realçou, mas que era suficiente para fazer pensar o sheik, deixando-o mais sério e apressado. Havia naquele relato muita coisa que coincidia com as suas próprias deduções, muita coisa que lhe mostrava que estava de posse do fio da meada, que as suas conclusões eram certas e que a força oculta que estava agindo no país era, de facto, procedente de estrangeiros. E que acaso, que notável acaso! Por felicidade, o jovem emudecera sobre aquilo que era a sua pesquisa mais árdua e persistente. Provavelmente, tinha encontrado a chave de tudo! E o jovem, a quem supunha tão-somente imerso nas loucuras da mocidade, acabava de provar que não era indiferente ao bem-estar do país, ao contrário do que ele imaginara.

Uma expressão mais branda lhe acudiu ao rosto ao fazer uma pergunta mais abrupta.

- Naturalmente, viste Mercier em Touggourt e falaste-lhe nisso?

O jovem tornou-se confuso.

- Não... Eu... Houve dificuldades - gaguejou, corando excessivamente.

Omitira o pormenor do café maure na sua narrativa e isso vinha agora perturbá-lo.

Desprezando a pergunta natural que tinha em mente, o sheik passou a língua pelos dentes e levantou-se.

- Nesse caso, deve levar-se imediatamente um relatório ao coronel Mercier - disse em tom decisivo. - Uma demora poderia agora ser fatal. Dizes que perdeste de vista esse perigoso trio ao deixar Touggourt, mas o relato que fizeste no-lo descreve melhor do que pensávamos, conforme os dados que possuímos até aqui. Voltarás agora comigo e precisamos do auxílio de Raul. Ele está a par de toda a situação e Mercier melhor o esclarecerá.

Enquanto envergava novamente o albornoz, olhou através dos ombros e voltou-se para o filho.

- Esta rapariga - falou calmamente - dizes que te traiu, entregando-te aos homens que te tomaram por um agente secreto, contra os quais lutaste, e capturaste essa mulher por causa da informação que ela pode prestar. Mas isso não explica a posição em que vim encontrá-la. Trouxeste-a somente por causa da vingança pela injúria que ela te fez e pelo conhecimento que tem, ou estava eu na verdade quando supus que era tua amante? Em vista disso e considerando a pouca vontade que mostraste de que eu viesse até aqui, deves admitir que a minha suspeita era fundada. Há poucos minutos, deixaste que as minhas palavras ficassem indiscutidas, não refutaste a acusação. Mas posso estar equivocado, ao menos em parte. Se eu estava enganado, espero que me corrijas. Se julguei injustamente, penitenciar-me-ei. Mas quero a verdade, meu filho! Ela é ou não é o que pensei? Deste ocasião a um impulso de momento, que lamentas, ou tens vivido realmente com ela?

O rapaz ficou durante um segundo sem saber o que dizer. Depois, com uma palavra de assentimento dificilmente audível, atirou-se ao divã, ocultando a cabeça com as mãos.

Colocando-se em frente da figura abatida do jovem que mergulhava nas macias almofadas do divã, um súbito ar de compaixão perpassou pelos olhos do sheik, que deu um passo impulsivo para a frente. Mas impaciente ante essa manifestação de fraqueza, esboçou um sorriso e, voltando-se, apanhou na mesa um cigarro da carteira que estava aberta ao lado das xícaras vazias de café.

- Há quanto tempo está ela na tua companhia?

O cigarro estava aceso e fumado em parte, quando um vacilante «Três meses» lhe chegou aos ouvidos.

O sheik olhou em redor com uma violenta exclamação.

- Três meses - repetiu - sem ter o amor como desculpa? Perante Deus, rapaz, não te compreendo.

Enquanto falava, súbito rubor lhe passou pelas faces. O amor fora a «sua» desculpa há muitos anos, quando arrebatara uma mulher, não por causa de injúria que lhe fizesse, mas por mera concupiscência e pelo ódio à raça que ela representava.

Esmagado pela recordação, pôs-se a dar passadas pela sala, mas daí a poucos momentos parou novamente ao lado do divã e pousou as mãos nos ombros do rapaz.

- E nunca pensaste como este caso terminaria? - disse com menos aspereza do que antes. - Nunca pensaste o que resultaria disso tudo, tanto a ti como a ela?

- Não sei. Não pensei nisso, eu - oh, Deus! - nunca pensei nisso!

A miséria da voz do rapaz fez o sheik obstinar-se na convicção desagradável que desde algum tempo o assoberbava.

Tal pensamento foi mal acolhido, mas, entretanto, o sheik sentiu-se incapaz de acreditar na decidida negativa que antes lhe fora feita.

Os seus lábios firmes fecharam-se num projecto decisivo. Não havia modo de a deixar morar ali. Quaisquer que fossem os sentimentos do rapaz, jamais consentiria em tal contravenção dos bons princípios.

- Agora é tarde de mais para que se cuide disso - declarou com ar grave. - O que está feito não pode ser desfeito. Resta o futuro. Nisso tens de pensar agora, pensar nalgum plano. Naturalmente, em vista das informações que dizes que ela nos poderá dar, deverá ela aqui ficar até que tenhamos conseguido essas informações.

«Depois disso, verei o que se poderá fazer e de que modo se resolverá o caso. Não pretendo ser um Dom Quixote, mas há certas obrigações a que não posso fechar os olhos. Fizeste a esta rapariga o maior mal que um homem pode fazer a uma mulher. Sem entrar muito na ética do caso - e quem sou eu, Deus me perdoe, para julgar-te - penso que alguma coisa precisa ser feita. Segundo deduzo das tuas palavras, ela é estrangeira, sem amigos na Argélia, e acredito que a sua vida dificilmente poderia ser objecto de resgate, se ela caísse nas mãos do homem de quem a arrancaste, isto é, naturalmente, se ele vier a escapar, o que não creio. És, portanto, até certo ponto, responsável por ela. Mas além desse ponto não podes passar. Não podes casar com ela, mesmo que ela o quisesse, e sabe Deus se me disseste ou não a verdade. Mas o facto permanece. Ela é nativa. Tanto quanto amo o meu povo, não acho conveniente a mistura de raças. Árabe, como sabes que sou de coração, conheces os meus pontos de vista sobre casamentos mistos, sobre confusões nesse assunto. A Argélia está cheia desses hibridismos. Não quero que meu filho se enfileire entre esses tais. Compreende claramente, rapaz, que esta ligação tem de cessar «agora» mesmo. Dás-me a tua palavra nesse sentido?

A resposta demorou um pouco, mas a demora fez o sheik olhar uma ou duas vezes para o relógio e mexer-se sem descanso. Teve entretanto mais paciência que de costume e esperou em silêncio.

Atrás dele o jovem, acomodado no divã, tinha o rosto apoiado nas mãos, lutando com as emoções em conflito dentro dele, na mesma luta que sempre manteve desde a noite em que arrebatara a rapariga, de tudo resultando passar a viver num inferno que muitas vezes lhe fora insuportável.

Remorso e vergonha, em luta com uma sede insatisfeita de vingança.

Cumpria o seu juramento. Tinha-a feito pagar o que jurara que ela pagaria, mas ainda a queria. Porquê? Não era amor. O amor fora morto pela traição e jamais reviveria. Só sentia agora, por ela, ódio. Então porque lhe era tão difícil fazer a promessa que lhe era requerida? Porque se lhe obstinava ainda o pensamento em fixar-se nela? Não era amor: era simples desejo físico que o prendia; não o amor, mas o desejo requeimava-lhe as veias. Quase gritou ao sentir a ânsia de desejos que o perturbava.

Queria-a, embora a presença dela fosse para ele tormento, queria-a! Deixá-la, vê-la ir-se embora, nunca mais lhe sentir o tremor nos braços!... Não, não podia concordar com isso.

Que outra coisa, entretanto, poderia fazer? A promessa que o pai exigia era, nada mais nada menos, que uma ordem que não podia ser desobedecida. O desejo do pai era lei, que se estendia mesmo à vida íntima do seu povo. E embora fosse seu filho, era também um súbdito, sujeito à sua autoridade, preso às mesmas restrições. Uma recusa de nada lhe valeria. Essa recusa significaria somente o banimento para um acampamento distante, um humilhante cerceamento da sua liberdade.

E a rapariga? Que significaria para ela? Significaria simplesmente a liberdade recuperada!

Nas últimas semanas, uma mudança subtil parecia ter-se operado nela, e ei-la refugiada agora numa muda reserva que zombava da sua compreensão. Tinha deixado de protestar inocência sobre a traição que lhe era imputada, tinha deixado as suas ardentes e apaixonadas juras de amor, às quais ele voltava o rosto com escárnio e descrença. Sabia que muitas vezes ela chorara em segredo, mas na sua presença ficava muda, com os olhos secos, ora submissa, ora rebelde, silenciosa mesmo quando lutava com os seus abraços. Ela mostrava ter coragem, admitia-o contrariado. Através da longa e dura jornada de Touggourt, uma jornada que tinha posto à prova mesmo a capacidade de resistência dos seus homens, ela não deixara escapar dos lábios o menor queixume. Cansada, exausta, muitas vezes vencida pelo sono, nos seus braços, quando ele a tirava do cavalo que havia aprendido a dirigir tão bem, jamais soltara um murmúrio, nunca fizera a menor queixa. E, assim, a cada dia que se sucedia ela achava força para o penoso exercício que dela se exigia.

É verdade que fora bem treinada para resistir à fadiga, mas a sua força de vontade parecia fora de proporção com o seu delicado organismo. Muitas vezes se admirava disso, admirava-se da fonte desconhecida de que ela hauria tanta coragem e decisão.

Agora, jamais o saberia. Tinha chegado ao fim o idílio apaixonado que só mal lhe produzira, só repugnância, e a vida que se lhe desenhava para o futuro era um enigma.

Se ao menos pudesse ter acreditado e perdoado! Jasmim, a quem uma vez amara! Jasmim, que o traíra?

Com um gemido, levantou-se e escondeu nas peles o rosto lívido.

- Dar-vos-ei a minha palavra - disse com voz estrangulada e trémula - mas não posso dá-la agora, não esta noite.

Por um momento, o sheik projectou nos olhos negros e aturdidos do jovem, bem iguais aos seus, os seus olhos penetrantes, e depois brotou dos seus lábios um sorriso brusco, um sorriso como jamais o rapaz vira outro igual, um sorriso que só Diana conhecia.

- Então diz-lhe que preciso de ti - disse amavelmente, em língua árabe - mas diz-lho já. E lembra-te sempre de que confio em ti.

Ditas essas palavras, saiu da tenda.

Dizer-lho já! Dizer-lhe o quê? Que ela era livre e ele impotente para a reter? Que, agora, ele, que a tomara tão arrogantemente e a obrigara a ceder à sua vontade, já não lhe era senhor do destino, nem sequer senhor de si mesmo, de si que era um simples súbdito, como o mais humilde dos seus camaradas, sujeito a um soberano cuja palavra era absoluta? Não, fosse o que fosse que ela lhe dissesse, nunca se sujeitaria a tamanha humilhação.

O seu rosto denotava amargura, ao levantar as cortinas que separavam as duas salas. O rapaz passou vagarosamente para o quarto de dentro.

Ela não deu pela sua chegada. Sentada, imóvel, nem levantou a cabeça à sua aproximação.

Ele, porém, percebeu que ela sabia da sua presença, porque ao chegar perto a rapariga tremeu e as mãos finas crisparam-se-lhe convulsivamente nos joelhos, até as articulações se tornarem tão brancas como a pele macia e lívida.

O coração bateu-lhe com violência quando o jovem a fitou, com olhos famintos, que lhe percorriam a beleza juvenil. A boca cerrou-se-lhe e o corpo premiu-se ao toque dos seus dedos convulsos.

Lá fora, ao luar, o pai esperava-o, mas os momentos sucediam-se e ele mantinha-se silencioso, incapaz de afastar de si a timidez, incapaz de coordenar as palavras que os lábios recusavam proferir.

Depois, com esforço, conseguiu falar à rapariga.

- Tenho serviço algures esta noite. Não temes ficar só? Aqui estás a salvo, com Ramadan, S’rir e os demais.

Não era bem isso o que ele pretendia dizer, pois que jamais tivera consideração por tais coisas, jamais se mostrara sensível à fraqueza perante o belo sexo. Mas naquela noite a visão daquela figura pequenina ajoelhada aos seus pés compelia-o, contra vontade, a um sentimento de piedade que jamais sentira.

Porque, entretanto, apiedar-se dela - inquiria de si amargamente -, se a sua ausência seria somente o alívio da tirania de um senhor que ela temia?

Não havia, porém, expressão de alívio, nenhuma emoção visível naqueles olhos negros, impenetráveis, que o fitaram por um momento.

- Que temeria eu? - replicou ela calmamente.

Havia, contudo, na sua voz, alguma coisa que fez afluir-lhe o sangue ao rosto e lhe provocou brusca e inexplicável ira.

- Medo de quê, realmente? - replicou com sarcasmo. - Já que «eu» não estarei contigo - Alá seja louvado pela necessidade que daqui me afasta.

O rosto dela, escondido entre os cotovelos, não lhe permitiu ver o tremor do lábio delicado, que ela mordeu com os dentes brancos, nem o dilúvio de lágrimas que lhe correu pelas faces.

Quando ela falou, não o fez em resposta às suas palavras.

- Quem veio em vossa companhia?

Surpreso com esta pergunta, ele fitou-a com suspeita. Estaria ela ainda a procurar resolver o problema da sua identidade, que nunca lhe fora revelada, ou estaria à espera de qualquer meio que fosse um auxílio para os homens de quem a havia arrancado?

Perpassou-lhe pela memória uma visão retrospectiva de tudo quanto se passara entre ambos. E o remorso corrosivo, que ultimamente se mostrara tão violento, morreu e a lembrança da traição apoderou-se dele novamente, esmagando-lhe a nobreza das intenções. A ideia de que ela talvez estivesse urdindo tramas, procurando secretamente esmagá-lo, despertou o diabo que dormia dentro dele e estimulou-lhe toda a crueldade da sua natureza.

Uma vez que a força física falhara, experimentaria outros meios para a reduzir à submissão e de maneira alguma havia necessidade de fazer mistério sobre si mesmo, ou de deixá-la na ignorância da localidade para a qual fora trazida.

Saiba-o então agora e lembre-se da manhã em que o traiu.

- É o sheik Ahmed ben Hassan - declarou secamente, e acrescentou com um sorriso irónico: - É o demónio, que galopa mais velozmente que a tempestade e cujos olhos resplendem como fogo do céu. É o demónio que não pode morrer: é meu pai.

Ela tremeu violentamente. Mas, como impelida por alguma coisa mais forte que o medo, levantou a cabeça e olhou para ele com estranha fixidez.

- É ele que precisa de vós? É somente por causa dele que ides?

Havia uma nota de intensa ansiedade na sua voz, mas, tendo falado muito baixo, somente a primeira parte da sua pergunta o alcançou.

Ele gemeu, repuxando o albornoz e dando um passo para mais perto.

- Não é só de mim que ele precisa - disse de modo significativo. - Também precisa saber o que sabes e que não quiseste dizer-me. Não seria melhor que mo dissesses agora do que esperar que ele te force a falar?

Era uma provocação directa que a fez tremer de novo, mas os seus olhos medrosos fixaram-se nos dele.

- Como poderei dizer o que não sei? Já disse e repito que nada sei.

O jovem abanou a cabeça com irada impaciência, sentindo a sua índole apaixonada rebelar-se contra aquilo que lhe parecia somente obstinação.

- Já me disseste muitas mentiras - disse asperamente - mas, aqui, chegarás a compreender que as mentiras de nada valem. Alá te dê juízo, minha louca.

Com passo curto e pesado, encaminhou-se para a porta.

- Senhor!

Mas aquele grito não o deteve e ela, levantando-se, foi no seu encalço, acenando-lhe com os braços.

O jovem não pretendia molestá-la, mas, ao voltar-se para a afastar, a sua mão bateu-lhe pesadamente no peito. Com um gemido penoso ela parou, procurando auxílio no pano das vestes.

Durante momentos, ficou ali com os olhos fechados, tremendo da cabeça aos pés. Depois passou as mãos pelo peito dorido, transpôs as cortinas e correu à porta.

Abrigada pelo toldo semiaberto, ela viu-o montar a cavalo e juntar-se ao outro cavaleiro, cujo nome a enchia de supersticioso terror. Viu-os galoparem, um ao lado do outro, até ao cume do outeiro, onde os aguardava a escolta, que se pôs de lado para os deixar passar, e cerrou fileiras por detrás deles, subtraindo-os à sua vista. Viu-os seguirem, deixando apenas Ramadan de guarda. Este pôs-se a caminhar em direcção à fogueira distante.

Ele retirara-se!

Trémula, voltou-se e contemplou a sala vazia. Na tarde em que fora para ali levada após longa e penosa viagem, que tinha sido como um sonho terrível, depois de noites que passara ao seu lado, sentindo dor sob o céu aberto, aquela tenda parecia-lhe um porto de refúgio.

E agora?...

Com os olhos toldados pelas lágrimas que lhe corriam pelo rosto, ela deteve-se no quarto, ajoelhou-se junto à cama e pousou a cabeça nos colchões, procurando combater o nervosismo de que se achava possuída. De que, sobretudo, estava temerosa? - perguntou a si mesma, enquanto os olhos tristes passeavam pelo quarto que agora lhe parecia tão ermo e desolado.

Seria medo de fantasma ou demónio, ou seria o medo do ente terrível com cuja ira fora ameaçada? Aquele que era a luz dos seus olhos, que era o seu mundo, a razão da sua existência, tinha-a deixado e talvez jamais voltasse!

Mesmo que não a amasse, mas estivesse perto, com isso já se sentiria feliz.

Mas, agora?...

Ali no seio do seu próprio povo, não haveria outra que o amasse, outra com mais direito do que ela? Era este o fim: cansado da posse, satisfeita a sua vingança, não era ela agora um caco inútil a ser jogado fora, desnecessário, esquecido? Antes nunca o tivesse visto, antes nunca lhe ouvisse a voz, antes nunca sentisse os seus braços fortes e atraentes. Como poderia viver sem ele, sem aquele que era a sua vida, o seu senhor! Alá! Alá! Que dor terrível é o amor!

Agachada nas almofadas, despedaçada por soluços que lhe sacudiam o frágil organismo e pareciam despedaçá-lo, chorou no abandono da sua dor, balbuciando o nome dele. Depois, exausta, ficou encarando a verdade que lhe parecia inevitável.

Nunca mais voltaria. Agora, ela já nada mais era para ele. Tinha-se ido e com ele tudo.

Tudo?

O seu rosto incandescido chegou-se mais à almofada, molhada pelas suas lágrimas. Nem tudo!

Uma coisa tinha que não poderia ser-lhe tirada. Na sua solidão e miséria, uma esperança, uma alegria lhe restava. Uma esperança que jamais deixou transparecer para ele, uma esperança que era a sua força secreta e o seu consolo, até que um conforto vivo lhe viesse encher os braços vazios e dormir no peito que ele magoara com mão irada.

Havia suspirado pela morte, mas como poderia morrer quando dentro de si agasalhava o dom precioso que fora a sua graça única? Um filho para amar e por causa dele viver. Um filho dele...

Um grito de angústia escapou-lhe dos lábios. Só o filho não bastaria para lhe satisfazer o coração faminto!

Era o pai que ela queria, o pai por quem ela suspirava, cujo nome era murmurado com apaixonado ardor no meio dos gemidos terríveis que a sacudiam enquanto horas intermináveis decorriam com atroz lentidão. A lâmpada do quarto tremeluziu e apagou-se e ela imergiu na treva, tendo por único companheiro o desespero.

 

Era ainda muito cedo quando Caryll despertou do sono por que passara e que durara, no máximo, um par de horas. O repouso da noite fora passado virando-se incessantemente de um lado para outro, na estreita cama do acampamento, e dando passadas pela tenda até sentir necessidade de ar fresco e mais espaço, quando saiu ao luar, sentindo febricitante o tumulto íntimo das suas sensações.

Seria amor o que sentia, ou somente ciúme - um insensato ciúme que nunca conhecera anteriormente, o qual lhe produzia uma raiva fria e penosa que lhe fazia temer os próprios pensamentos e o ódio que fervia dentro de si.

Naquele momento de recolhimento, quando chegara a estabelecer a identidade do homem que vira no café maure, em Touggourt, tinha julgado vê-lo através de uma nuvem de fogo e tudo fizera para reter a denúncia prestes a rebentar-lhe dos lábios, reter a mão que lhe estendera e responder de modo cortês à saudação que tanto contradizia a ameaça que se continha nos seus olhos relampejantes.

Fervendo de ira, atormentado pela lembrança da rapariga, sentar-se junto com ele no mesmo quarto tinha sido uma quase impossibilidade, e havia acolhido, como um alívio, a proposta de Raul, de se retirarem. A solidão, porém, de nada lhe valera e, incapaz de dormir, havia cismado e meditado até que os seus pensamentos se tornaram uma onda de confusão que, partindo de um ponto qualquer, tornava invariavelmente à mesma coisa: onde estava a rapariga e qual fora a sua sorte?

Uma infinidade de vezes durante a noite tinha sido tentado a sair à procura do irmão e, face a face, perguntar-lhe essas coisas. Mas em todo o vasto acampamento, não sabia onde encontrá-lo e, esmagado pela impossibilidade, as suas cogitações haviam-se chumbado ao sentimento de que nada poderia fazer para remover o seu desassossego e o peso horroroso que sentia dentro da sua cabeça.

Certa vez, a luz que ainda brilhava na tenda de Raul tornara-o ansioso por procurar-lhe a companhia, mas o som de vozes que partiam lá de dentro fê-lo voltar para a sua tenda ainda mais perturbado que antes. Que mistério era esse que fazia Raul conservar-se de pé até hora tão avançada, quando se retirara cedo pretextando cansaço e urgente necessidade de dormir? E porque estavam com ele o sheik e o outro filho, entretidos em animada palestra, àquela hora da noite, ou, melhor, da madrugada, Já que uma consulta ao relógio lhe mostrara que eram quase três horas? Tinha-se confundido apenas um instante, mas agora podia distinguir bem nitidamente as três vozes.

Não querendo passar por intruso, voltara ao leito para se debater febrilmente até que o sono o vencesse. Dormira, então, cerca de duas horas, tendo sonhos perturbados, para despertar indisposto, com a cabeça a doer, o peito em fogo e o seu problema sem solução.

A rapariga era árabe. Nunca poderia ser nada para ele. Porque permitia então que a lembrança dela viesse molestá-lo? Em Touggourt, o seu amor por ela fora um sentimento vago, indefinível, que não chegara a ser sequer uma paixão física. Não obstante o encantasse a frescura delicada da compleição dela, não fora a beleza do seu corpo, mas a complexidade profunda da sua mentalidade e a estranha e indizível fascinação, que ela exercia, que o atraíra, despertando-o e compelindo-o ao interesse. Um amor nebuloso, que dificilmente havia reconhecido como tal, que tinha sido puramente platónico, que só nascera quando a vira sem defesa nos braços do rude raptor. E mesmo aquele amor, ele o tinha expulsado do coração, supunha-o, até a noite em que a aparição do homem que a raptara o tinha lançado num redemoinho de sensações que quase o venceu. Virou-se para o lado com um gemido, apertando a cabeça abrasada nos travesseiros, esforçando-se por estabelecer a verdade completa.

O desejo físico é amor? Queria-a agora, como nunca antes a quisera, somente por causa do estranho ciúme que lhe sobreviera tão bruscamente - o mero ciúme animal do macho sedento? Em nome do céu, qual a causa desse ciúme? Em sentido algum ela fora sua, enquanto que o outro...

Sentou-se afastando as roupas da cama, com o rosto carregado, à lembrança do ar de reconhecimento que vira nos seus olhos aquela noite, no café. Que tinha sido anteriormente para seu irmão aquela rapariga, por cuja inocência e castidade ele apostaria a vida? A doce pureza que ela ostentava existiria apenas na sua imaginação?

Seria ela melhor que as vis e desprezíveis criaturas que lhe eram associadas?

Tremeu com desgosto ao lembrar-se das raparigas de olhos e faces sensuais que vira no café maure.

Não havia nada mais, então, que bestialidade neste maldito país? Que história medonha o tio Raul contara a última noite e agora - isto!

- Meu Deus, porque vim a este país maldito? Esmagado, física e mentalmente, com a mente enfastiada em revolta contra o caos de pensamentos que lhe repugnavam, mas que não podia dominar, sentou-se confuso ao lado da cama, com a cabeça apoiada nas mãos. Foi nessa atitude que Guilherme o encontrou meia hora mais tarde, quando veio trazer-lhe água quente e uma xícara de chá. A voz do homem, a perguntar-lhe ansiosamente se estava doente, despertou-o e ele olhou com um rosto lívido, que fez o solícito criado fazer-lhe mais perguntas sobre a sua saúde.

- Não, não me sinto doente. Por amor de Deus, Guilherme, não me incomode - disse, irritado. - Não pude dormir e dói-me a cabeça. Tudo melhorará depois de eu tomar um pouco de chá. Coloque tudo na mesa. Não, não quero nada mais. De que diabo está à espera?

Habitualmente delicado com os seus subordinados, a irritação que sentia cedeu lugar a uma sensação de arrependimento e de desgosto por si mesmo ao ver o ar acabrunhado do rosto de Guilherme, e espreitou-lhe a saída da tenda. Não precisava amargurar o pobre criado somente porque se sentia indisposto - reflectiu tristemente ao encher a chávena de chá, e sentou-se numa cadeira ao lado da mesa, entregando-se ao mais amargo cismar.

Não esteve só, porém, por muito tempo, com as suas dolorosas cogitações.

Mal tinha bebido o chá quando Guilherme reapareceu, detendo-se com hesitação, muito embaraçado.

- Rogo-lhe me perdoe, senhor - disse hesitante - mas o jovem gentil-homem que chegou ontem à noite... - balbuciou aos poucos, como se procurasse um título próprio para atribuir ao outro, e então mais decidido acrescentou, por fim:

- O irmão de vossa senhoria, senhor visconde.

Com os nervos excitados e rígidos, Caryll fitou-o demoradamente, lançando a vista de modo perscrutador para a porta.

- Sim, meu senhor! - respondeu Guilherme a uma pergunta que não fora feita.

Por um instante, Caryll ficou sentado em silêncio, com o coração a pulsar com medonha violência.

- Peça-lhe que entre - ordenou finalmente, e a sua voz pesada, sufocada, chegou-lhe aos ouvidos como se fosse a voz de um estranho.

Caryll não se mexeu quando a figura alta, pitoresca, do irmão lhe surgiu na tenda, saudando-o com uma respeitosa reverência que parecia estabelecer uma profunda diferença entre os dois, e os seus olhos tornaram-se friamente hostis ao notar o porte arrogante, a expressão algo insolente que havia causado, entre os dois, tão grande antagonismo na noite anterior. Foi o visitante que, ostentando um ar de despreocupada segurança, primeiro falou.

- Peço desculpas por uma visita tão matinal, monsieur - começou em francês - mas o vosso criado disse-me que já estáveis de pé e não poderia, talvez, achar melhor ocasião para vos falar a sós. É-me permitido fumar? - acrescentou com flagrante inconsequência, rolando com os dedos um cigarro apagado.

Sentindo renascer a ira, Caryll indicou-lhe uma caixa de fósforos que estava perto do aparelho de chá e apontou-lhe uma cadeira do outro lado da mesa.

- Não falais inglês? - perguntou quando o irmão se sentou, dispondo o albornoz pelo corpo com exagerado cuidado e cruzando as pernas.

O visitante deixou sair dos lábios um riso alegre, que deixava transparecer-lhe os dentes brancos, o que fez Caryll exasperar-se ainda mais.

- Falo... quando é preciso - respondeu na mesma língua que anteriormente - mas prefiro falar em francês, isto é, se não compreendeis o árabe - acrescentou com um olhar inquiridor que era quase um desafio.

- Não falo árabe - retorquiu Caryll de modo breve, como que querendo exceder o irmão em indelicadeza. Sem se perturbar, o visitante sorriu com brandura.

- É pena - observou, com ironia. - É a língua de alguns dos poetas mais antigos.

E tirando o cigarro da boca deixou evolar-se dela uma fina, azulada nuvem de fumo, que acompanhou com o olhar, até se desvanecer pela porta aberta.

Quase sem mais poder suportar aquilo tudo, Caryll fitou-o sombriamente, com profunda irritação. Estaria aquela raposa do deserto a tentar dominá-lo, ou estaria propositadamente a querer fazer-lhe perder a paciência? Era tempo de acabar com aquela farsa ignóbil. O árabe queria a luta e não seria Caryll quem fugisse a ela.

- Presumo que não viestes aqui tão cedo para discutir os méritos da língua árabe ou de outra qualquer - obtemperou, em tom causticante.

A sua suspeita confirmou-se ao ver o visitante deixar de sorrir com brandura para responder-lhe:

- Não é esse, de facto, o fim da visita - retorquiu prontamente, e Caryll observou pela primeira vez o indisfarçável cansaço que havia sob o seu ar quixotesco. - Presumo que sabeis bem o que aqui me trouxe. Ouso crer que provavelmente a minha visita era esperada. Há, suponho, um pouco de necessidade duma explicação entre nós. É para esse fim que aqui estou.

Interrompeu-se por segundos, perscrutando o rosto que se lhe defrontava no outro lado da mesa.

- A última noite não foi a do nosso primeiro encontro - prosseguiu, mais devagar. - Encontrámo-nos antes em Touggourt. Vim esta manhã propor à vossa consideração um acordo, como direi, político? no sentido de esquecerdes um incidente que, ademais, nenhum interesse pessoal tem para vós. - Um acento irónico transparecia na sua voz. - Foi lamentável haverdes presenciado aquilo. Mas, já que tratamos do caso, seria ainda mais lamentável se vos referísseis ao mesmo, perante outras pessoas a quem nada disso interessa. Preciso ser mais explícito?

Novamente Caryll divisou nos seus olhos a ameaça que vira na noite passada e levantou-se, trémulo, apaixonado.

- Não é preciso - exclamou furioso - dissestes o bastante, mais do que era necessário. Que diabo entendeis, fazendo-me ameaças? Se entendeis que dou importância a pragas dum grosseirão, a vós ou às vossas ameaças, estais redondamente enganado. Se decidi fechar a boca em relação àquele incidente brutal de Touggourt, não é por vosso respeito. Se o quiserdes, tanto quanto isso vos interesse e que nada me diz respeito, podeis ir para o diabo tão depressa quanto entenderdes. Mas no que toca à honra de nossa família, isso interessa-me. É tudo quanto vejo naquela cobardia. De forma alguma me empenho em proclamar a todo o mundo que meu irmão é um bárbaro e um sedutor. Tão-pouco cuido de saber qual é aqui o vosso código de moral, mas na Inglaterra a coisa seria outra. Compreendeis ou cumpre que, também, seja mais explícito?

O visitante levantou-se e durante segundos, ambos de pé, encararam-se, um irrepreensível no vestuário e o outro desajeitado no seu pijama, ambos lívidos e trémulos, devorados de raiva incoercível. Momento sério, aquele, em que a atmosfera da pequena tenda parecia bruscamente carregada de electricidade, viva no fogo de paixões humanas desnudas, ao passo que olhos relampejantes despediam chispas, os de um procurando penetrar os de outro, os deste a desafiar os daquele.

Depois, com tremendo esforço, o visitante recobrou o domínio de si mesmo. Com as mãos ainda crispadas, deu um passo e fez um salamaleque superficial.

- Obrigado - disse suavemente. - Compreendo perfeitamente. A vossa confiança e a vossa inocência tornam desnecessária qualquer explicação entre nós. E, assim sendo, não devo continuar abusando da vossa hospitalidade. Como presumo que a minha companhia não é para vós das mais agradáveis, apresso-me a libertar-vos dela.

Já ele havia chegado à porta, quando um «espere» sussurrado dèbilmente o deteve, fazendo-o olhar ao redor de si, com as mãos ainda retendo o toldo da porta da tenda.

- Senhor? - Onde está ela?

Essa pergunta brusca reviveu o inflamado ciúme que o consumia e, suspeitoso e ressentido, ele voltou-se rapidamente.

- Porque vos interessa isso? - perguntou resmungando.

O seu rosto, então, tornou-se inexpressivo e os olhos como que se lhe sumiam nas órbitas. Sacudiu os ombros com indiferença.

- Desde que o perguntais, dir-vos-ei que ela está na minha tenda em El-Hassi - e apontou com as mãos em direcção ao sul.

Contendo-se com dificuldade, Caryll chegou um passo mais perto do irmão, encarando-o apaixonadamente.

- Que pretendeis fazer dela?

O outro riu amargamente.

- Que pretendo fazer dela? - repetiu silabando as palavras. - Bon Dieu, sei-o tanto como vós. Se me houvésseis perguntado o que lhe fiz, ter-vos-ia respondido que esse negócio só a mim diz respeito, monsieur mon frère. Mas como a vossa pergunta diz respeito ao futuro, declaro-vos que errastes quanto à pessoa que vos poderia informar. Uma vez que fui tolo de mais e a trouxe até aqui, ela deixou de estar sob o meu domínio. Ainda não estais no acampamento de Ahmed ben Hassan o tempo suficiente para compreender que aqui só a vontade dele predomina? Perguntai-lhe a ele, se é que quereis outras notícias da rapariga.

Caryll moveu os lábios lívidos. - Que dizeis, meu Deus, que dizeis?

O irmão fitou-o perplexo por alguns instantes e depois riu novamente, com um riso pleno de provocação e ironia.

- Não digo o que evidentemente vos agradaria - respondeu com aspereza. - Além de tudo, a moral árabe não é assim tão má. E o nosso pai dificilmente vos agradeceria se lhe alvitrásseis a formação de um harém.

Com outro riso escarninho, rodou nos calcanhares e deixou a tenda.

Muito vermelho, Caryll lançou-se novamente no leito, enojado de si mesmo em razão do pensamento terrível que tão brutal e inopinadamente lhe derivara para os lábios. Que lhe acontecera para ter concebido ideia tão revoltante? Estaria às voltas com pensamentos e impulsos insidiosos que, apesar de seus esforços por bani-los, lhe desencadeavam tempestades no espírito?

Fazendo a si mesmo uma análise retrospectiva, mas encarniçadamente disposto a ir até o abismo da estranha mudança que nele se operara, parecia estar defrontando uma crise moral que o deixava mentalmente desnorteado, sem poder concluir se algo sabia de si mesmo. Seria apenas a Argélia com a sua atmosfera subtil, perturbadora, oriental, que no momento exercia influência sobre ele, ou seria alguma tara oculta que nele se manifestara ao chegar à virilidade, desenvolvendo tendências cuja existência ignorava?

Mas que lhe importavam o ambiente e a viciosidade que lhe eram inerentes? Era tão fraco, então, que não podia ser superior a ambos?

Sentou-se bruscamente, fazendo os calcanhares aprofundarem-se no chão, e dardejou olhares furiosos por toda a tenda vazia.

Estaria bem arranjado se se deixasse influenciar por uma coisa ou outra! A terra era pútrida, não havia que ver. E a noção de tendências herdadas era somente um meio cómodo de alienar a responsabilidade pessoal. Não era muito digno lançar tudo à conta das loucuras paternas, sobre ombros alheios. Demais, quem lhe garantia que nele havia tendências herdadas? Era esta venenosa existência ociosa, a falta de ocupação a causa de todo aquele mal-estar. Em casa, na Inglaterra, não tinha tempo para pensar, enquanto que ali... Com uma exclamação raivosa, arrancou do corpo o pijama e meteu-se na banheira existente num canto da tenda. Vinte minutos depois, barbeado e vestido, sentou-se à secretária para escrever uma longa carta ao seu correspondente da Inglaterra. Essa ocupação, entretanto, escasso alívio lhe trouxe. Pouco podia escrever, porquanto lhe deixara instruções minuciosas ao preparar-se para a viagem e elas eram suficientes para o encaminhar durante a ausência. Mas não mostrando o sheik muita disposição de tratar do assunto que o trouxera à Argélia, nada tinha a juntar ao que já havia determinado e, portanto, a carta que estava querendo escrever era trabalho supérfluo. E, nervoso como estava, difícil lhe era concentrar os pensamentos.

Procurando fixar a mente em factos e pessoas, os pensamentos fugiam-lhe. O rosto do irmão e o da rapariga misturavam-se-lhe às divagações com obstinada frequência, levantando-se entre ele e a tarefa que tão de perto lhe dizia ao coração.

Que adviria de tudo, qual seria o destino daquela rapariga? A amante de seu irmão, bom Deus do céu? Mas que lhe importava isso, porque o magoava isso tanto? Uma mulher nativa que de modo algum poderia ser-lhe alguma coisa... Apesar de tudo, a lembrança dela obcecava-o.

«Ela está na minha tenda, em El-Hassi». Rememorava a voz melíflua e o riso escarninho que acompanhara essas palavras do seu irmão e levou as mãos ao rosto, em luta com a ira e o ciúme que ainda o venciam, enquanto em vão se esforçava por esquecer ambos - ele e ela.

Chegara a hora do lanche quando concluiu a carta que tantas vezes interrompeu e, sem sentir ânimo para se apresentar na reunião da família, quase cedeu ao impulso de mandar um recado a pedir desculpas pela ausência.

Pensando, entretanto, no mau efeito que causaria a sua falta e nas interpretações a que daria lugar, colocou a carta no bolso e foi, com relutância, para o acampamento paterno. Só a mãe o esperava, com o rosto estranhamente pálido, com ar estranhamente ansioso.

Absorvido entretanto pelos pensamentos particulares, a ansiedade materna e o seu silêncio passaram-lhe despercebidos. E jubiloso por lhe ser poupado um estúpido encontro com o irmão, não comentou o facto de a encontrar a sós à mesa e conteve-se de perguntar o que sucedera aos demais; conteve-se em verdade, evitando uma simples pergunta que poderia dar margem a palavras que seriam confidências íntimas.

Os seus árduos esforços para entreter a conversação, que girava inteiramente em torno da sua vida na Inglaterra, só provocavam respostas curtas, desinteressadas, que faziam o assunto prolongar-se sem resultado. Finalmente, Diana, também, mergulhou no silêncio como esmagada pela esterilidade do assunto, lembrando-se de que na última noite nele notara qualquer coisa alarmante que desaparecera. Agora só o que observava nele era uma sólida barreira de reserva que desafiava todos os esforços que se fizessem para derrubá-la.

Nem após o lanche ele quis deter-se ou, ao menos, oferecer-se para partilhar a solidão.

Quando Diana se levantou da mesa, ele tirou a carta do bolso e estendeu-lha.

- Ficar-vos-ia muito grato se mandásseis seguir esta carta - pediu com a frieza que manteve desde o começo.

Um sorriso lhe perpassou pelos lábios e os olhos cansados luziram ao pôr a carta ao lado de outra volumosa missiva que ela encontrara na mesa naquela manhã. Não saberia ele que havia um lugar para esse fim no canto da tenda?

- Lamento, Caryll - disse com gentileza, desculpando-se. - Esqueci-me de vos perguntar se tínheis cartas a expedir. Aqui nem sempre se pode remeter correspondência, mas parece-me que hoje à noite haverá portador. Talvez tenhais outras cartas a escrever. Só ao anoitecer é que o portador seguirá.

Tendo, então, deliberadamente sufocado o desejo da sua companhia, e havendo-lhe permitido que se retirasse, ela admirava-se tristemente da facilidade com que o filho engendrava pretextos para a deixar e um forte desapontamento se apoderou dela quando o jovem murmurou alguma coisa corriqueira sobre a «vinda de ocasião».

Através das lágrimas, ela viu-o ir e, mais uma vez a sós, atirou-se ao divã, em luta novamente com o medo que a sobressaltava incessantemente desde a noite anterior.

Que teria acontecido entre pai e filho quando se atiraram à noite pelo deserto, deixando-a em estado de medonha apreensão que a conservou insone até de madrugada? Hora por hora esperava angustiada a volta do sheik e hora após hora decorria sem que ele voltasse. Por último, exausta de forças, o sono viera.

Entretanto, ele devia ter chegado, porque, levantando-se mais tarde do que costumava, ela vira que as almofadas e travesseiros tinham sido deixados no divã, mostrando que ele ali estivera e depois saíra. Ela procurou ser grata à consideração que ele mostrou evitando incomodá-la, mas a dúvida era pior de suportar que qualquer coisa que ele lhe dissesse. Todo o dia o marido esteve ausente. E, igualmente, durante o dia inteiro, não vira o filho. Que ele estava na tenda de Raul de Saint Hubert sabia-o ela porque Gastão lho dissera, mas este criado contou também que ambos estiveram ausentes durante toda a noite e estavam agora a dormir. Assim, era obrigada a esperar, tendo de afastar da mente o constante «porquê?» que a torturava, incapaz de encontrar uma resposta satisfatória para essa pergunta íntima. Se ao menos Ahmed a houvesse acordado... Se ao menos o filho tivesse vindo, como nunca deixara de vir, oferecer-lhe a face para beijar, prometendo corrigir-se das suas faltas com os olhos a fingir arrependimento... Pobre rapaz, amável cabeçudo! Que teria feito esta vez, que não veio ver a mãe, que jamais lhe lançou faltas em rosto, que sempre lhe perdoou, fosse qual fosse a falta praticada? Esperou muito tempo, até que os ruídos que ecoavam lá fora lhe mostraram que findara a hora da sesta. Esperou até se lhe tornar impossível a inactividade e então pôs-se a caminhar sem descanso pelo quarto. Estava agora de pé junto a uma estante, a virar mecanicamente as páginas de um livro que ela sabia de cor, quando o sheik entrou.

Vagamente consolada só porque o marido aparentava estar de saúde, ela permaneceu por um momento nos seus braços, sem falar. Compreendendo que ela necessitava disso, apertou-a bem contra o peito, ele também quieto, até que por último Diana o fitou com olhos súplices, ainda lacrimosos.

- Ahmed! - exclamou. - Certamente tive de esperar-te bastante. Sei que, por bondade, me deixaste a dormir, mas eu preferia mil vezes ter despertado por ocasião da tua volta. Agora, não trato de saber se é bom ou mau o que houve, mas peço que mo contes. Que mal fez o nosso filho que até agora não veio ver-me? Nada sei. Não vi ninguém desde a noite passada, a não ser Caryll, que só veio aqui para o lanche, se foi embora e estava de tal modo esquisito... Oh, meu caro, que significa isto tudo?! Preciso saber. Não posso suportar mais tempo este mistério todo.

Olhando-lhe o rosto lívido, o sheik compreendeu que, querendo poupá-la, a tinha feito sofrer mais e jurou intimamente aliviá-la de tal sofrimento.

- Não sei se algum mal aconteceu a Caryll, mas quanto ao outro...

Interrompeu-se e, posto que Diana não tirasse dele os olhos, o medo transparecia nos olhos dela.

- Ahmed, que lhe fizeste?

O sheik apertou-a nos braços.

- Nada - respondeu apressadamente. - A sua ausência, naturalmente, era indesculpável. Mas a demora não foi totalmente por sua culpa. Tinha ido ao norte, como me confessou francamente, sem outro fim que não fosse o de distrair-se, mas, perto da Caverna dos Fantasmas, parece que se envolveu numa aventura de que lhe resultou ficar a par de algumas coisas que dizem respeito à desordem que reina no país, e isso pode vir a ser de muito proveito para o governo. Por motivos que só ele compreende, preferiu trazer-me tais informações em lugar de levá-las directamente às autoridades em Touggourt. É desnecessário dizer que a perda de tempo é lamentável e pode até ser irreparável. Para reduzir a demora tanto quanto possível, gastámos quase toda a noite, eu e Raul, a escrever um relatório que mandei esta madrugada às autoridades. Aquela carta que deixei na mesa e que irá à noite é apenas uma cópia que resolvi tirar para evitar extravio. Assim, por esta vez, deixei livre o rapaz, perdoando-lhe a ausência sem licença em troca das notícias que trouxe - juntou com um breve sorriso.

Ela, porém, não sorriu e fixou-o mais firmemente, os olhos ainda perturbados.

- Não é tudo, Ahmed. Há qualquer coisa além disso tudo, alguma coisa que não quiseste contar. Vi-o no teu rosto. Vi-o também no rosto dele ontem à noite. Que foi que ele fez que não pôde vir ver-me hoje?

Embora soubesse que mais cedo ou mais tarde ela viria inevitavelmente a saber de tudo, o sheik ainda procurou ocultar-lhe pormenores que só dor lhe causariam.

Agarrando-a, fê-la curvar a cabeça e beijou-a com apaixonada ternura.

- Não tratemos disso, ma mie. O rapaz tem sido um louco, mas o que passou, passou. Lamentar as coisas não é corrigi-las. Ele tem brincado com o fogo e por fim queimou os dedos, como era de esperar. Desta vez, a sua própria loucura castigou-o; um castigo que o magoou bastante e cujas consequências durarão mais tempo do que a pena que eu lhe aplicasse.

Essas palavras não a acalmaram, antes mais angustiados lhe deixaram os olhos.

- Não posso deixar o assunto. Preciso saber. Que foi que ele fez? - gritou aflita.

Ele ainda hesitou. Com um gemido, Diana afastou a cabeça, fitando-o meio alucinada.

- Sou sua mãe e tenho o direito de saber. Ele é meu filho, Ahmed, tanto quanto é teu.

O sheik lembrou-se das palavras dela, meio sérias, meio maliciosas, da noite anterior e olhou para o lado com ar compungido.

- Não é teu, este, ma mie - volveu com amargura. - É meu, a todos os respeitos. Deus nos ajude a ambos.

E amavelmente contou-lhe toda a história, poupando o que podia ser poupado, sem omitir, porém, os pontos mais importantes. Antes de ele terminar a narrativa, o rosto de Diana estava escondido no pano preto do albornoz e, de tempos a tempos, ele sentia os tremores que sacudiam o corpo da esposa. Ela, porém, ouviu-o sem o interromper.

Era apenas a confirmação do que, nas profundezas do coração, ela sabia e temia, com um medo, que, no grande amor que sentia, procurara vencer ou negar. Agora, entretanto, o cumprimento do que temera era coisa quase insuportável. Todo o seu amor de mãe, toda a sua angústia e desapontamento se sintetizaram na exclamação que lhe explodiu dos lábios:

- Oh! Ahmed, como pôde ele fazer isso?

O sheik baixou os olhos e um ar dorido transpareceu-lhe na face.

- Grand Dieu, perguntaste-me isso lembrando-te do que eu também te fiz há anos - exclamou com amargura ainda maior do que antes. - Se ele procedeu assim é porque é meu filho, porque a sensualidade tem sido a desgraça da nossa família em muitas gerações. Sabes o que era o meu pai até que o desaparecimento de minha mãe sanou essas e outras faltas. Sabes o que eu era até que penetraste na minha vida, minha santa querida! O rapaz procedeu conforme o modelo e não posso censurá-lo mais do que a mim próprio. Conhecendo o mal que em nós existe, eu deveria ter feito mais do que fiz. Deveria ter-lhe aberto os olhos e ajudado. Fizeste-me agradecer esta dor, minha esposa, não meu filho. Ele...

As mãos de Diana fecharam a boca do sheik, fazendo-o calar-se.

- Nada me fizeste de mal - interrompeu-o apaixonadamente - nunca durante os anos que temos vivido juntos. Em tudo tens sido bom. E mesmo isto, este caso penoso, não é tão difícil de suportar se dividirmos o peso entre nós dois. Devemos ser unidos, Ahmed, mesmo num caso como este. Se julgas haver faltado aos deveres que tinhas para com ele, também eu faltei, porque sempre pensei na possibilidade de isto vir a acontecer, e nada fiz para o evitar. Mas ele parecia-me ainda muito novo... Nunca me lembrei de que os anos correm com fantástica velocidade. Nunca reconheci nele um homem, até ontem à noite. E então o rosto dele, oh, Ahmed! Meu filho! Meu filho!

Diana soluçou com indizível amargura. O marido levou-a até o divã, sem a largar até que se acalmasse.

Só muito tempo depois ela levantou a cabeça, não para o fitar, mas para fitar aquelas mãos fortes que seguravam as suas.

- E ela está com ele, agora, em El-Hassi? - perguntou estremecendo.

O sheik moveu-se inquieto.

- Em El-Hassi, sim. Com ele, porém, não. Já disse que o que passou, passou - respondeu secamente.

Diana sentou-se imóvel, em luta com o ciúme maternal que lhe afligia o coração e que a levou a fazer mais uma pergunta, em voz sumida.

- Mas ela parece?...

Murmurando alguma coisa que não lhe foi possível ouvir, o sheik pôs-se a procurar na mesa um cigarro.

- Regularmente bonita - gaguejou - porque de contrário o rapaz nunca teria olhado para ela. Regularmente, disse eu, mas esta palavra não diz tudo. Ela é realmente linda, inegavelmente. É um tipo pouco comum, e não sei como classificá-la. Dizem que é moura, mas eu duvido. É muito calma e o seu olhar é delicado de mais para uma dançarina. Ela não me engana.

- Será que o ama?

O sheik tornou-se grave, contemplando o cigarro que acabara.

- Receio que sim.

- E ele?

- Deus sabe-o, mas eu, não. Ele jura que a odeia, mas presumo que mente. Mas, se mente ou não, isso não vem ao caso. A rapariga é uma nativa e isso põe ponto final no assunto. Tê-la-ia mandado para outro acampamento, se isso me fosse possível, mas, infelizmente, ela tem informações sobre os homens com quem vivia e recusa transmitir-nos essas informações. Enquanto não falar, ficará em El-Hassi.

Vi-a hoje de manhã novamente e procurei todos os meios ao meu alcance para quebrar-lhe o mutismo, sem empregar violência, bem entendido; ela, porém, recusou dizer uma palavra que dissesse respeito a essa gente e às suas actividades. Todo o tempo esteve tomada de pavor e parecia obcecada pela ideia de que todos somos demónios, ou, pelo menos, qualquer coisa de sobrenatural e desagradável. É o velho mito corrente sobre o nome de ben Hassan, suponho. A sua obstinação exaspera, mas não posso deixar de admirar-lhe a coragem. Nem mesmo o medo pôde pôr em cheque a sua lealdade. E, contudo, não passa de uma criança - um pequenino ente delgado com olhos semelhantes aos de uma gazela. É dotada, entretanto, de incrível vivacidade. Nunca fui batido em coisa alguma deste mundo, jamais cheguei a ser na minha vida vencido como acabo de sê-lo por uma mulher!

Riu-se brandamente, como se os olhos lhe brilhassem com uma luz muito ténue, suavizados pela recordação da mulher de que falava. Foi somente um sorriso murcho o que ela teve para corresponder-lhe, e depois baixou a cabeça. Durante longo tempo Diana ficou muda, em luta com os impulsos que a cada momento se tornavam mais fortes dentro dela.

Bruscamente, pareceu reagir, e aproximou-se dele, a sua face linda corando com o esforço que estava fazendo.

- Ahmed, eu gostaria de a ver...

Por instantes, o marido fitou-a com espanto, com um sorriso a morrer-lhe nos lábios.

A sua boca fechada, porém, tomou aquele aspecto que ela conhecia tão bem.

- O caso não é contigo, Diana. Recuso terminantemente.

A sua voz tinha tal acento que ela precisou apelar para o seu amor e encheu-se de coragem para insistir.

- Mas, Ahmed...

Ele fez como se virasse o rosto, com os olhos carregados.

- Ma mie, eu disse que o caso não é contigo, e acabou-se. Que ele aqui a trouxesse fazendo-te um insulto, ainda admito, mas que a queiras visitar, bon Dieu, é impossível - concluiu com veemência.

Conquanto empalidecesse muito, ela ficou firme, de pé, com os dedos embrulhados no albornoz, os olhos pousados nele.

- Não compreendeste - volveu precipitadamente. - Não, porque és homem. Mas eu sou mulher e vejo tudo de maneira diferente. Não posso deixá-la assim. Preciso fazer alguma coisa, oh! Ahmed, percebes o que quero dizer? Somos responsáveis - tu e eu - tanto quanto o nosso filho. Sei que é uma nativa - é horrível! - mas se é somente uma criança, como dizes, e se o rapaz fez... alguma coisa, se... se...

O rubor invadiu-lhe o rosto.

- Não é nada - respondeu o sheik firmemente, deixando cruzadas as mãos. - Penso nisso também, e esta manhã chamei o rapaz.

Ela lançou-lhe um olhar irónico.

- Como se ele não soubesse que ela nunca dirá coisa alguma - replicou Diana.

Ele estremeceu com impaciência.

- Quanto a isso, nada posso dizer - retorquiu com patente irritação. - Mas mesmo que assim seja - o que Deus não permita - isso em nada altera o caso, nem a minha decisão. Deixará El-Hassi em paz, ma mie, e trata de fazer as provisões necessárias para a rapariga, aconteça o que acontecer. E deixa de torturar o teu terno coração imaginando o pior, quando não há necessidade disso.

Como para pôr ponto final na discussão, ele dirigiu-se à secretária, onde se sentou para ler a correspondência, a enviar pelo portador, à noite. Mas isso foi apenas um pretexto, como Diana bem o sabia, para deixar sem resposta quaisquer outras perguntas, porquanto nada havia a acrescentar ao relatório que ele e Raul haviam redigido nas primeiras horas da manhã.

Insatisfeita, ela voltou ao divã, onde se sentou, com a testa franzida a trair-lhe a ansiedade, os olhos fixos nas costas do marido. Procurava ainda um meio de fazer qualquer coisa, impelida pela consciência. O sheik fumara um cigarro e acendia o segundo, quando a voz dela lhe chegou aos ouvidos, tão débil que mais se diria um murmúrio.

- Suponhamos que a rapariga não diz o que queres saber. Deixar-me-ás, então, ir vê-la? Ela a mim talvez o dissesse...

Com uma praga, ele deitou fora o fósforo e virou a cadeira.

- Diana - exclamou com irritação. Riu a seguir, com ar carrancudo, fitando-a meio alegremente meio ironicamente.

- És bem uma mulher - afirmou com um sorriso. - Concordo em que me rodeies procurando decifrar-me o pensamento, mas não é bom, minha querida. Já te disse que não quero que a vejas. Não me faças falar mais claro. A rapariga falará seja de que maneira for. Não quero dizer que vá espancá-la, que vá matá-la à fome, ou que empregue qualquer outro meio violento, embora ela pareça resolvida a tudo, e de facto, quando estive com ela, esta manhã, ameacei-a com diversos tormentos que ela prefere suportar a trair a sua gente. Inconscientemente confessou certo parentesco com um deles, derramando alguma luz sobre a vida dos outros, e aparenta um sentimento de honra que é muito difícil de compreender. Mas eu não afirmo que compreenda as mulheres, tu menos que todas, querida. Por isso, julguei conveniente apelar para Raul. E nele deposito, agora, as minhas esperanças. Ele, que é boa pessoa, ofereceu-se para intermediário. Como sabes, é muito persuasivo, quando quer. Pode ser capaz de convencer aquela jovem supersticiosa de que não sou um fantasma nem uma alma do outro mundo, como parece que ela pensa, mas um mortal comum como ela, e assim ganhará a sua confiança. Possa Alá ajudar-lhe a eloquência - acrescentou em árabe, com um sorriso que nada tinha de confiante.

Mal ele havia acabado de falar, entrou Raul, com o passo arrastado do costume, voltando os olhos pequeninos com alguma apreensão de um para outro, como se pela primeira vez temesse um acolhimento desagradável.

Os seus olhares eram endereçados ao sheik e a Diana, os quais atravessaram a sala para irem ao encontro dele, o primeiro com a fria compostura habitual e a última com o coração a bater, temendo que ele soubesse qualquer coisa.

Instalando-se numa cadeira que o sheik lhe indicou, Raul sentou-se, respirando com dificuldade durante algum tempo. Foi somente ao ouvir a voz de Diana a implorar-lhe informações, que ele olhou para cima, sacudindo a cabeça.

- Não. Nada de novo aconteceu. - disse com esforço. - Desculpai-me se vos assustei. Sucedeu somente que sofri um grande choque de que ainda não estou refeito.

Voltou-se depois para o sheik, os olhos sombreados de dor.

- Estive em El-Hassi, Ahmed, para ver a pequena... - disse, meneando a cabeça - mas em lugar dela achei um fantasma, o fantasma de uma mulher que vi há dezasseis anos em Biscra. Era Isabel De Chailles, em carne e osso, a voz de Isabel De Chailles que me falava, Isabel De Chailles como a vi uma noite, vestida como árabe para agradar ao marido.

A sua voz tremia de emoção e Raul cobriu o rosto com as mãos para evitar o ar de horror com que Diana o fitava.

No silêncio que se seguiu, ele ouviu o estalido da frágil armação da cadeira em que estava sentado, como se tivesse sido um palito de fósforo premido pela mão do sheik. Ouviu também o grito atormentado:

- A filha de Renato de Chailles na tenda de meu filho. Oh, meu Deus!...

Raul levantou-se, esquecido de que a sua própria angústia era maior que a do sheik.

- Meu amigo...

Mas, já senhor novamente de si mesmo, o sheik estava a defrontá-lo, com os sentimentos ocultos sob a máscara do semblante, como sempre, a fazer-lhe o rosto impenetrável.

- Tendes de fazer a prova disso, Raul - disse quase violentamente, como se lutasse contra alguma coisa que não podia consentir em crer. - É somente uma parecença e uma suposição... Preciso mais do que isso para aceitar essa vossa ideia, antes que eu possa fazer alguma coisa para... para...

Calou-se, cerrando os lábios, com o olhar a errar de Raul para a amada esposa, cuja infelicidade o molestava mais que a sua. Dirigiu-se a ela com passo vagaroso.

Ela levantou o rosto lívido.

- Por favor, por favor, Ahmed, não me mandes retirar - balbuciou, trémula. - Creio que não suportarei a solidão agora. Não vos interromperei. Não direi sequer uma palavra sem que ma peças. Mas deixa-me ficar aqui!

Incapaz de lhe negar no momento qualquer coisa, ele assentiu, encarando-a um instante, a vê-la endireitar as almofadas do divã para as tornar mais cómodas. Depois, depondo um beijo nos seus cabelos, voltou-se para Raul:

- Agora, Raul.

Saint Hubert aproximou a cadeira.

- Primeiramente, a informação que quereis. Lamento, mas nada lhe arranquei. Conquanto admita que ela odeia e teme o mouro, devido à crueldade com que sempre a tratou, que odeia e teme os companheiros estrangeiros do mouro por motivos que ela não discrimina, recusa prestar qualquer informação concernente aos actos deles na Argélia. Das suas operações secretas diz nada saber, que eles nunca depositaram confiança nela e que nunca procurou saber em que se ocupam e quais são as suas intenções. Assim, falharam as minhas tentativas, como haviam falhado as vossas. Mas, ao contrário do vosso ponto de vista, eu acredito que ela diz a verdade. Tudo o que sabe são as regiões que tem percorrido e, mais tarde, quando se alojaram em Touggourt. Mas isso, declara, nem os tormentos lhe arrancarão. E então o que ela pensa que nós somos, pobre criança! Parece ter uma ideia confusa do que seja a honra, confuso fundo de coragem em seu corpo frágil. À primeira vista temeu-me horrivelmente. Parece plenamente convencida de que o território de ben Hassan é a porta do inferno, se é que já não está dentro dele. Mas eu tratei de convencê-la de que sou um ser humano como qualquer outro, igual a ela, e então falou mais livremente sobre a sua própria vida. Uma vida bem triste, de resto. Aliás, não acredito que ela tenha a noção exacta de quanto a sua vida tem sido triste e cruel. Passou-a a vaguear por todos os estados bárbaros, principalmente em Tunes, acontecendo que o ano passado estiveram em Marrocos, onde, parece, finalizam as suas recordações. O ano passado em Marrocos quer dizer, Ahmed, o último ano em que lá foi visto Ghabah, o mouro.

Deteve-se um momento fitando o sheik. Mas os olhos de Ahmed ben Hassan estavam cravados no chão, imobilizados no tapete. Após um pequeno descanso, Raul retomou o fio da narrativa.

- Procurei arrancar-lhe recordações mais antigas, mas, além do facto de o mouro ser excessivamente cruel, as suas lembranças infantis parecem confusas e assemelham-se a uma sombra. Quando experimentei fazê-la estimular a memória, falou vagamente de um tempo em que não vivia sozinha com o seu brutal senhor, de alguma pessoa de que tinha lembrança muito ténue e que era muito boa para ela, que lhe pegava com mãos bondosas, ao invés de espancá-la, que tinha uma voz agradável e que cantava para ela. Parece lembrar-se alguma coisa de um desses cânticos, pedaços insignificantes, mas que, pelo tom, lembram uma antiga berceuse francesa, com palavras, porém, que são uma confusa mistura de francês e árabe, de que nada se pode perceber. Nem sequer se lembra se essa pessoa semelhante a um sonho é um homem ou uma mulher. Diz que nunca teve mãe e não sei como ela explica a sua vinda a este mundo. Experimentei-a com o nome de Ghabah, mas não lhe ocorreu nada com relação a esse nome, mostrou nunca o ter conhecido, enquanto eu a vigiava para surpreender-lhe a verdade. Assim, nada descobri que seja uma prova absoluta da sua identidade, mas, de todo o exposto, concluo que ela é a menina que procuro. A sua semelhança com Isabel De Chailles é tão evidente que não pode ser posta em dúvida. Até que possa encontrar o mouro e conseguir provas de que é ou não o mesmo que assassinou o meu pobre amigo, sustento que essa menina é Isabel De Chailles, nome que herdou da sua infeliz progenitora.

- E se provardes isso?

A voz do sheik mostrava que não estava convencido, mas Raul, que bem o conhecia, compreendeu a luta que se feria por detrás daquela fronte aparentemente impenetrável.

- Deixai-me prová-lo primeiro, meu caro - disse suavemente.

- Posso talvez encontrar o homem que conhece o segredo da origem dessa menina. E se eu o encontrar... quem sabe o que então sucederá? Por enquanto, só me resta esperar. Graças a Deus, a gente pode sempre esperar! Mas, lembrai-vos, Ahmed - prosseguiu, levantando-se - que, enquanto procedo às minhas pesquisas, seja essa menina Isabel De Chailles ou qualquer avezinha sem nome, do deserto, o caso pertence-me.

Por um momento, Raul ficou de pé, com as mãos pousadas nos ombros largos do sheik e depois, irresistivelmente, a despeito de si mesmo, foi até o divã.

E os finos, frios dedos que ele procurou para beijar, fecharam-se nos seus.

- Raul, parece-lhe que ela quer muito ao meu filho?

O murmúrio dessas palavras quase o desnorteou e o seu rosto tornou-se branco ao olhar para os lindos e melancólicos olhos de Diana. Olhou com coração faminto para a graça esbelta, para a beleza daquela árabe. E os seus pensamentos dirigiram-se para outra figurinha frágil, que apenas uma hora antes se ajoelhara a seus pés, numa torrente de lágrimas, suspirosa, a pedir-lhe notícias do «seu senhor, que se tinha ido tão irado».

Os lábios tremeram-lhe e sacudiu a cabeça.

- Que sei «eu» de um coração de mulher? - disse com amargura na voz, como Diana jamais ouvira; e saiu da tenda para a escuridão da noite.

Na mesma noite, a cerca de cinquenta milhas do território do sheik, dois fogos acesos davam luz a um acampamento que era militar na sua ordem e disposição e mais silencioso do que se fosse apenas ocupado por árabes. Não havia tendas, nem camelos bagageiros, nada, em suma, que pudesse retardar a viagem. Nenhum som de música bárbara se levantava do grupo de figuras morenas que rodeavam o fogo, além do qual havia cavalos amarrados e alguns volumes pequenos com equipamento de viagem.

Perto do fogo, descuidoso das faúlhas que lhe caíam ao redor, em chuva, e sem dar atenção aos companheiros, estava sentado o encantador de serpentes, olhando as chamas crepitantes, com os olhos estranhos fitos imóveis num ponto, um mau sorriso a brincar-lhe nos lábios grossos, uma das mãos passando continuamente pela lâmina de uma faca que lhe estava aos pés e que mais parecia a lâmina de afiada navalha - uma figura sinistra para o qual o velho alemão, que mudava constantemente de posição ao pé do fogo, olhava de vez em quando com mal disfarçada desconfiança. Desconfiado também e possuído de irritação crescente, era o olhar do outro, que estava de cócoras sobre um arreio fora do alcance das faúlhas, com a mão apoiada nos braços.

Gott in Himmel não era o bastante para tirar a um homem o coração - reflectia com raiva. - Ver assim o trabalho de anos em perigo, por causa de um capricho? Que von Lepel não o fizesse fracassar! Von Lepel, a quem ele tinha escolhido com tanto cuidado entre os muitos associados que lhe tinham sido oferecidos, cujo conhecimento da língua era tão proveitoso, cujos conhecimentos topográficos eram superiores aos seus! Von Lepel, em quem confiara, cujas muitas qualidades para a empresa a ele confiada lhe tinham contrabalançado a fraqueza, agora mareava o brilho de todo o negócio.

Mulheres, a maldição de todas as empresas! Tinham-no avisado em Berlim desse perigo, de que tinha tanta prova, no dossier que estudara tão minuciosamente antes de fazer a escolha final do seu ajudante. Em vista, porém, dos grandes e especiais predicados do seu subordinado, sujeitara-se ao risco. É forçoso arriscar alguma coisa... E von Lepel, que era capitão de cavalaria, obedecia à regra militar - as mulheres haviam penetrado mais na sua vida que na de seu chefe. Mulheres - bah! Sacudiu os ombros desdenhosamente. Que eram elas para aquele cujo coração estava na sua empresa, cujo único amor era o Serviço Secreto, a que dedicara toda a vida? - nada senão um meio para conseguir um fim, somente mães possíveis, um mal necessário à propagação da raça, a raça que era a única existente no mundo. Por mais de um ano, von Lepel não deu sinal da fraqueza que em si também existia e justamente agora, que mais dele necessitava, viera este fracasso, esta loucura de uma paixão insana por uma rapariga nativa, que ameaçava transtornar toda a obra. E porquê? Uma fantasia passageira, um capricho que duraria somente o que lhe determinasse a natureza volúvel, mas uma fantasia que, naquele momento, tudo transtornava sem lhe satisfazer a vontade.

E por isso, ele, Carl Rost, que via nesta missão secreta na Argélia a coroa da sua vida, tinha sido forçado ao mais difícil e perigoso período da sua obra, tinha de gastar um tempo precioso e de se sujeitar aos azares desta expedição militar, somente porque não o deixaram ir só.

Porque o facto é que ele era indispensável a von Lepel, tanto quanto von Lepel lhe era rigorosamente necessário. Era um momento crítico para ambos, um momento em que o menor desvio do dever significaria a ruína de tudo que fora feito.

Obra que, até agora, oferecia tantas perspectivas de êxito, mas que ultimamente tropeçara numa série de reveses, que aliás tinham sido previstos, e eram elos quebrados na cadeia que ele tinha de reunir para formar um todo perfeito na sua mão. Contara com a falta de informações e com o silêncio de um ou dois dos lugares em que operavam os agentes mais eficientes e de mais confiança. Onde, então, o fracasso e quem era o responsável? Um passo em falso seria um desastre. Até há três meses, tudo correra com a precisão de um cronómetro, e os relatórios regulares para Berlim não tinham sido interrompidos, mas nos últimos três meses já houvera duas interrupções na regularidade das comunicações. E, para cúmulo de inquietação, aquela lembrança chocante do roubo do seu livro de notas em Touggourt. É verdade que os papéis estavam escritos em código e o conteúdo dos mesmos poderia perfeitamente passar por mero relatório comercial de um caixeiro-viajante, mas não deixava de ser uma desastrada ocorrência, que poderia produzir resultados maléficos e que tinha tornado imperioso o regresso ao vestuário nativo e fizera de Touggourt uma zona perigosa, que cumpria evitar a todo o transe. Touggourt era a sede do governo. E agora trazia consigo muitos outros papéis, papéis que, mais importantes do que os que foram roubados, deveriam passar às mãos do agente que combinara encontrar-se com eles na pequena guarnição da cidade, mas que não aparecera. E porque fracassara? Se o Serviço Secreto francês, com agudeza maior do que a que lhe creditavam, lhe espiasse os movimentos e o agarrasse? Mas Rost desafiava com desprezo o Serviço Secreto francês. Cabeçudos e palradores, os seus agentes operavam de modo tão infantil, ineficiente e transparente, que provocava o riso geral, como afirmara Meyer, que os espiara muitos anos, nos seus relatórios a Berlim. Tinham árabes ao seu serviço, também, os porcalhões! O que ele aprendera da palavra «nº 7» tinha-o mandado a Touggourt, posto que o nº 7 não se materializasse. A mensagem nº 7 continha um aviso especial contra certo árabe vagabundo que lidava com cavalos, mas que tinha feito qualquer coisa que levantara suspeitas num espírito que era, ao mesmo tempo, corajoso e medroso. Carl Rost lembrou-se da minuciosa descrição que lhe fora enviada e sacudiu de novo os ombros, com escárnio. Um operador admirável, mas alma de medroso essa do nº 7, que via a morte em cada canto e sempre agia com nervosa apreensão!

Longamente e do coração, maldisse o nº 7 ausente. A maldição seria ainda maior se ele soubesse que o relatório que estava no seu bolso era o último serviço que o seu colega prestara à Pátria, que pagava uma miséria pelos seus árduos trabalhos e perigos, a ele, que agora jazia nos desertos arenosos do sul, um branco montão de ossos que a bala de Ahmed ben Hassan fizera tombar no repouso eterno.

Mesmo, porém, que o houvesse sabido, é duvidoso que esse conhecimento causasse a Carl Rost qualquer sentimento de pesar, porque, para ele, os homens do Serviço Secreto não eram homens, mas dentes de máquina, simples unidades que faziam o serviço e passavam, anónimos, esquecidos...

Cansado do seu monótono raciocinar e já enfraquecido por um longo dia de equitação, Rost aproximou-se mais do fogo e mergulhou os pés na areia, ao lado de von Lepel. Esteve em silêncio alguns minutos. Depois, a irritação acumulada despertou e explodiu bruscamente.

- Quanto tempo durará essa loucura, Hugo?

Era o início da discussão da noite, dessas discussões que sempre se travavam entre eles desde que deixaram Touggourt. Von Lepel levantou vagarosamente a cabeça, fitando-o com os seus olhos azuis que dardejavam perigosamente.

- Até que eu consiga o que quero - respondeu num tom insolente.

Rost agitou as mãos em raivoso protesto.

- Que é que quereis? - perguntou com amargura. - Sois pago para procurar aquilo de que precisais? Sois pago para passar o tempo e gastar vossas energias em aventuras amorosas? Esquecestes que não vos pertenceis? O vosso tempo, as vossas energias, o vosso todo não vos pertencem, mas à Pátria. Sabia que nisso éreis um perigo quando vos contratei em Berlim. Confiei na vossa honra - du lieb Gott - mas se soubesse que havíeis de falhar... Justamente agora, quando é imperioso não haver interrupção nos nossos trabalhos, quando é imperiosa a necessidade de irmos a Touggourt para tratar do caso nº 7...

- Não tínheis necessidade de vir comigo - interrompeu von Lepel friamente. - Disse-vos que preferia tratar sozinho desse assunto.

- Não é ocasião para qualquer de nós andar sozinho - retorquiu Rost. - Sabeis isso tão bem como eu. Todo o êxito do nosso trabalho depende de agirmos em conjunto. Estais-vos arriscando mais do que julgais por causa dessa ignóbil loucura. Digo-vos sinceramente, Hugo, já estou farto disso. Depois, com franqueza, não confio muito nesse mouro. Não o olheis - ordenou duramente - pois que ele está a fitar-nos através do fogo e não quero que pense que estamos tratando dele.

Von Lepel atiçou o fogo.

- O mouro é leal - afirmou confiadamente. - Não sei porque desconfiais dele. Tem no coração o mesmo interesse que nós. E agora impele-o o mesmo motivo que eu, embora por causas diferentes. E conseguirá o que deseja presentemente, porque, quanto à rapariga, ele precisa recuperá-la por alguma razão que lhe convém. Mas antes disso ela cairá nas minhas mãos - acrescentou com os olhos subitamente incandescidos.

- Não, porque posso preveni-lo - exclamou o outro furiosamente. - Fostes longe de mais, Hugo. Quereis a rapariga só para um momento de prazer. Quereis vingar-vos do rapaz que impediu que saciásseis os vossos desejos animais. Sabeis agora, porém, quem é o rapaz, conheceis a reputação do pai dele no país e penetrando no seu território correis um perigo insensato e arriscais a vossa vida.

«E arriscais também a minha! A satisfação de um capricho passageiro! Louco, a vossa vida não vos pertence, para com ela jogardes: pertence ao Kaiser - a quem Deus ajude - e, sendo assim, eu, vosso superior nesta missão, proíbo-vos que deis mais qualquer passo nesta louca aventura. É a minha última palavra, Hugo. Voltaremos amanhã a Touggourt. Von Lepel voltou-se para ele rapidamente. - Não voltaremos a Touggourt amanhã - resmungou por entre os dentes. - Vós podeis ir, se o quiserdes, mas ireis só. Tenho o mouro comigo e o resto dos nossos homens à retaguarda.

«Pensais que o mouro consentiria em adiar a vingança? Ele passa as noites a afiar aquela faca e a planear o serviço que com ela deseja executar. Acreditais que os homens adiarão o recebimento do dinheiro que ainda lhes estais devendo, embora tivessem bastante, Deus o sabe, antes de deixarem Touggourt? São homens da Tunísia, todos, aliás não teriam vindo. Só o guia é da Argélia e envolveu-se nisto somente porque tem algum motivo para odiar ben Hassan. Não, meu amigo, já fomos longe de mais para voltar atrás. Levantais a mão, Dost - rosnou bruscamente - mas o meu revólver está no bolso e trago-vos debaixo de olho. Seria mau que um de nós matasse o outro. Dizeis que vos sou necessário e não sou louco para crer que pudesse executar a minha obra sozinho. Esquecestes a palavra que ainda há pouco dissestes, amigo Carl? Mas deveis agradecer-me por vo-la ter lembrado. Uma demora, por pequena que seja, fará fracassar tudo. E não haverá demora prolongada, prometo-vos. Deus Todo-Poderoso, um homem deve ter alguma distracção. Sou soldado, um ser humano e não uma máquina do Serviço Secreto, como vós. Tenho sangue nas veias, não tinta. A vida não dura sempre. Durante um ano, vivi como um monge, e trabalhei como um forçado das galés. Sede razoável, Rost. Dai-me uma semana ou duas e depois voltaremos à vida austera de meninos bem-comportados e ganharemos os dias com rigoroso escrúpulo. Estamos entendidos, Carl?

Agarrou as mãos do companheiro com ar de franqueza, mas Rost retirou-as com relutância.

- É um contrato unilateral o que propondes - observou fazendo uma careta - pois não me deixastes a faculdade de opção. Tendes a força convosco, pois fostes vós que contratastes e pagastes a esses homens, devo concordar, mas pagastes com dinheiro que não é nosso e que nos foi entregue para fim muito diferente.

Von Lepel riu.

- Meu dinheiro, não... - retorquiu descuidadosamente.

- A paga de um capitão não é um barril. O dinheiro, contudo, será reembolsado de qualquer forma, se os escrúpulos da vossa consciência não vos permitirem considerar esses gastos como «despesas gerais», quando regressarmos à Pátria.

«Quando». Haveria qualquer coisa na voz de Rost que tornou sombria a face de von Lepel.

- Que tendes esta noite, Carl? - perguntou irritado. Falais de um modo que indica que duvidais de que um dia voltaremos à Pátria. Estais nervoso?

- Nervoso? Não! - respondeu Rost em tom de desafio.

- Não estou pensando nem em mim, nem em vós. Penso no serviço...

- Oh, maldito serviço! Deixai-o ao menos de noite... O serviço não corre perigo, já vo-lo assegurei. Deixai-me pôr as mãos na rapariga e dar àquele garoto uma lição que nunca mais esquecerá, ficando ciente de que na vida dos outros ninguém deve meter-se. Depois, então, voltarei a ser vosso auxiliar até ao fim deste eterno serviço. Teria sido muito melhor que houvésseis deixado o nosso amigo ali da frente dar cabo do rapaz quando teve ocasião para isso.

- Mais uma vez concordo convosco - respondeu Rost rapidamente. - Não é crível que ele nos tenha esquecido, e esse é o perigo. Entrar nos seus domínios é loucura!

Von Lepel fez um movimento rápido com a mão, como se quisesse contestar as objecções do outro.

- Estamos atrasados somente um dia e eles têm a rapariga a estorvá-los. Espero agarrá-los antes de lá chegarmos, E, se isso não se der, algum acaso feliz há-de favorecer-nos. Não me olheis tão aborrecido, homem! Fazei cara mais alegre. A sorte acompanha-nos, garanto. Aquele maldito rapaz, por exemplo, não sabe que lhe estamos na peugada. Ele não sabe, também, inocente boneco, que alguns dos homens com quem esbanjou dinheiro em Touggourt também receberam dinheiro nosso e espalham os seus segredos tanto quanto os nossos. Foi, apenas, um caso de alta escola. Não o acalentará por muito tempo o engano em que jaz, pois que a cabeça logo se lhe há-de abaixar.

Levantou a cabeça arrogantemente e um riso cruel lhe aflorou aos lábios. Fitou Rost com confiante segurança. Rost também o fitou firmemente.

- Pode ser - admitiu pausadamente - mas não sinto muita vontade de continuar a discutir esse assunto. Fiz o meu protesto e vós decidistes fazer o que entendeis. Advirto-vos, somente, que se derdes motivo para que outros embaraços nos perturbem o serviço, nada podereis esperar de mim em vosso favor, junto do governo em Berlim. Não vos pouparei no meu relatório. Outra advertência, Hugo. Cuidado com esse mouro, porque, repito, não confio muito nele!

Von Lepel olhou-o por alguns instantes e depois virou-lhe as costas com um riso irado, cortante.

Alguns minutos mais tarde estavam os dois estirados nas suas tarimbas, dormindo a sono solto, tal qual como se estivessem habituados a dormir onde e como quisessem.

Ainda muito depois de se deitarem, o mouro ficou sentado imóvel, com a faca entre os joelhos, contemplando os tições de fogo já moribundo, com o pensamento na sua vingança e alimentando o coração cruel com a perspectiva do sofrimento que também teria prazer em infligir à rapariga, que durante toda a vida lhe lembrava um desejo contrariado.

 

Os dois ou três dias que se seguiram à revelação da descoberta de Raul de Saint Hubert foram difíceis para todos no acampamento de Ahmed ben Hassan. O próprio Raul, que diariamente passava muitas horas com a rapariga em El-Hassi, procurando pacientemente penetrar a nuvem que encobria as suas recordações da infância, de cada visita voltava mais convicto de que em Jasmim encontrara a herdeira perdida a quem procurava. A sua extraordinária parecença com a senhora De Chailles, a notável semelhança da voz e dos gestos, em conjunto com outras circunstâncias que não lhe passavam despercebidas, e que ele declarava serem forçosamente reminiscências da esposa do amigo, fortaleciam-lhe a convicção e arrebatavam-lhe qualquer dúvida que porventura persistisse.

As visitas diárias a El-Hassi fizeram mais que consolidar a crença firme que fazia aquele francês bondoso e compassivo desviar os muitos obstáculos que se levantavam contra os seus raciocínios, e tentavam desfazer a pista frágil em que baseava as suas convicções. O seu interesse e simpatia cada dia se tornavam mais fortes, revelando-lhe um carácter que ao mesmo tempo lhe causava pena e admiração. A paciência e gentileza dela, a sua abnegação completa na devoção carinhosa que mostrava pelo homem que lhe fizera mal e a sua persistente lealdade aos seus primitivos camaradas, revelavam a lealdade da sua natureza e faziam-no mais firmemente decidido a considerá-la, enquanto não houvesse prova em contrário, como sendo Isabel De Chailles, mesmo que por acaso ela mostrasse não o ser. Fazia do futuro e do bem-estar dela a sua preocupação especial. A Diana, predisposta, por muitos motivos, a acreditar nele, mas temendo que a confirmação do facto acarretasse complicações em torno da falta do filho, por horrível que isso lhe parecesse a princípio, a argumentação de Raul parecia lógica e concludente e as suas revelações tornavam mais profundo o sentimento de responsabilidade que se arrogava e aumentavam-lhe o ardente desejo de fazer o que o seu coração de mulher lhe ditava. Mas argumentos e deduções não podiam mudar a decisão inflexível do sheik.

Céptico ainda, ou querendo parecê-lo, ouvia em silêncio todas as confiantes declarações de Raul e opunha-se obstinadamente aos apelos de Diana. Determinara que ela não fosse a El-Hassi e mantinha essa sentença.

Mais do que isso, por motivos que conservara consigo, recusava peremptoriamente consentir que o filho tivesse conhecimento da origem possível da menina. Nisto Diana teve de concordar com ele, porque a atitude do rapaz tornava impossível prever que resultado teria sobre ele esse conhecimento. Obedecendo literalmente às ordens do pai, nunca mais voltara a El-Hassi, deixando a rapariga pensar o que entendesse. E desde a noite em que de lá voltara, nem sequer fizera qualquer alusão a ela, imerso em isolamento completo, mantendo-se distante do círculo familiar. Até Diana só o vira uma vez, fugaz entrevista que durou apenas cinco minutos e que se tornou dolorosa e desagradável para ambos. Uma pequena porção de potros que devia ser domada forneceu-lhe pretexto para ausentar-se e seus dias passava-os entre os tratadores de animais, com quem lidava de sol a sol, exaurindo as forças em exercícios físicos com que baldadamente tentava esquecer o conflito mental que se travava dentro dele perpetuamente, conflito entre o amor e o ódio que, recalcado durante o dia pela atenção que lhe cumpria concentrar nos animais de difícil manejo que tinha de dominar, à noite o sacudia com força irresistível, tornando eternas as horas que passava na tenda que fora agora levantada para ele e convertendo num inferno a tétrica solidão em que nasciam rugas que jamais poderiam ser-lhe extirpadas do rosto. Servido somente por S’rir, porque Ramadan ficara de guarda em El-Hassi, vivia a sós com os seus pensamentos, sozinho com o remorso atroz que vagarosa, mas firmemente matava o ódio que ele ainda supunha existente no seu coração.

Caryll também se tornou, como o irmão, um recluso. Friamente reservado e impenetrável, como fora desde o princípio, as suas aparições eram curtas e não muito frequentes, apenas o suficiente para satisfazer as exigências da cortesia. Jamais aludira à visita matinal do irmão à sua tenda, jamais dissera palavra sobre o raid ao café maure, de que o sheik nada sabia ainda.

Raul, porém, foi o primeiro a descobrir que a rapariga que despertou o interesse de Caryll era a mesma que estava agora em El-Hassi. No dia seguinte ao da chegada do rapaz, tinha ousadamente inquirido o motivo do raid e fizera uma pergunta directa a Caryll a respeito do raptor, ao que lhe foi respondido tão-somente:

- Não o posso dizer. Só conheceria o maldito animal se o tornasse a ver.

Raul, entretanto, leu a verdade na sua face tremente e no clarão de ira que lhe surgiu nos olhos.

Sempre esperançoso de encontrar luz no assunto que lhe enchia a mente, falou-lhe francamente na descoberta que fizera aquela tarde em El-Hassi e, como confiança puxa confiança, respondeu às objecções de Caryll, aos poucos, referindo-lhe tudo quanto sabia da rapariga. Mas Caryll fora bastante hábil para nada acrescentar ao que Raul conseguira apreender e a sua primeira confidência foi também a última. Desde esse momento, Raul viu nele tão pouca coisa como os outros.

Deste modo, quatro dias de insuportável tensão nervosa decorreram com infernal lentidão, dias de tremenda ansiedade para Diana, que só na ternura do sheik encontrava lenitivo. Só quando estavam a sós é que a pesada carranca, que lhe tomara a face desde o regresso do filho, se lhe aliviava nos cílios carregados. Somente quando se lhe deixava ver alguma coisa da luta que se travava dentro dele, luta em que a dúvida se sobrepunha, a despeito de si mesmo, ante a convicção firme com que Raul contendia contra uma esperança, quase apaixonada, de que a vítima de seu filho provasse não ser Isabel De Chailles, cuja sorte por tanto tempo o interessara. Sem saber coisa definitiva, nada poderia fazer. E, quando soubesse, que faria? Repetidamente perguntava isso a si mesmo.

Suposto que a menina fosse a filha de De Chailles, poderia ele forçar o filho à mesma reparação tardia que fizera à mulher a quem ofendera? O amor salvara esta, mas, no outro caso, isso podia não existir. Os verdadeiros sentimentos do filho ainda eram uma incógnita. E ligar a menina pelos laços de um casamento sem amor, só porque a necessidade o obrigava, não seria sujeitá-la a uma vida de sofrimento maior do que o que ela já conhecia?

O futuro parecia-lhe um problema desesperado, que cada dia mais intrincado se tornava. De tudo isso era ele o principal responsável.

Oh! Os pecados dos pais!... Os seus e agora os do filho!...

Jamais lhe pareceram tão atrozes a vergonha e o remorso. Jamais a mão de Némesis lhe parecera tão pesada!...

Noite após noite, quando Raul ia para a sua tenda, deixando-os a sós, Diana sentia os olhos do marido fixos nela, com um ar pesaroso que lhe sacudia o peito num gemido, fazendo-a cair-lhe nos braços num ímpeto de compaixão a comunicar-lhe amor, tentando sufocar, com beijos, as amargas acusações que contra si próprio explodiam dos lábios convulsos do sheik. O passado passara, insistia, embora ela não pensasse em lançar-lhe qualquer acusação em rosto. Que lhe seria a vida sem o seu amor, sem a alegria que lhe proporcionava a sua presença? Uma vida sem objectivo, incompleta.

Se não a arrebatasse, se não a forçasse a um reconhecimento de sua feminilidade, nunca teria conhecido a perfeita felicidade que, por meio dele, a levara à plenitude da vida, à maternidade. Torturar-se-ia a si e a ela com a contínua lembrança do que ela, de há muito, perdoara? Não havia suficientemente expiado, e mais que isso, os poucos meses de infelicidade por anos de reparação e devoção que lhe tinham ultrapassado a expectativa, que da vida em comum fizera um ideal de camaradagem? Certamente, pagara aquela infelicidade com tristezas maiores do que tudo que ela pudesse vir a sofrer. Um amor sofredor a ambos havia vencido, amor tão grande que não permitia queixas, tão perfeito que não podia ser maculado por amargas recordações. Assim é que ela lhe fazia ver todas as vezes que o remorso, como fera insaciável, procurava esmagá-lo.

Só ela o via rebaixado do pedestal de orgulho, só ela presenciava a funda humilhação que o torturava de modo insuportável.

Nem mesmo nos primeiros dias de vida de casal o remorso e o arrependimento tinham sido mais patentes que nestes últimos quatro dias. Nem na primeira realização de seu amor lhe mostrara tanta devoção, aberta e sem reservas. Pensativo e terno como sempre fora com ela, desde a noite do regresso do filho passara a manifestar mais ternura e estima que nunca. Em cada acto, em cada palavra e em cada gosto, todos os seus pensamentos giravam em torno dela e para ela.

Só numa coisa a contrariava, só numa coisa era inflexível. Mesmo nos momentos de maior ternura, mesmo nos momentos em que se mostrava vencido, continuava a sua obstinação com respeito à rapariga que estava em El-Hassi, e nenhum dos esforços de Diana conseguia levá-lo a modificar a sua decisão.

A esposa não iria, com o seu consentimento, a El-Hassi.

Mas iria sem essa licença?

Durante os últimos quatro dias, tal pensamento lhe adviera com irritante teimosia, pensamento que ela procurava banir porque tal coisa lhe parecia superior às forças de que dispunha para a executar. A palavra de seu marido era lei, mesmo para ela, e durante todos os anos em que viveram unidos nunca lhe parecera possível contrariar o menor dos seus desejos. Em tudo, a vontade dele predominava. Teria ânimo, agora, para se lhe opor? De há muito aprendera que a obediência vem do temor e o amor fizera isso fácil. Mas o amor ela o sabia tão enraizado no coração, que o temor forçosamente subsistia. Poderia ela, mesmo em obediência aos ditames da consciência, quebrantar a regra por que se governara durante tantos anos? Teria a força moral para decididamente lhe desobedecer e defrontar a sua ira inevitável? Nunca ele aceitaria as razões que a levassem a isso. Veria no seu acto apenas uma flagrante violação das suas ordens expressas, uma oposição directa à sua vontade.

Arriscar-se a desagradar-lhe, fazer alguma coisa secreta, clandestinamente!... Mas que mais poderia ela fazer? Argumentos e carinhos falharam e assim só lhe restava optar entre as suas obrigações para com ele e os deveres da consciência. A escolha era difícil e só foi na manhã do quinto dia que Diana se decidiu finalmente, chegando a este resultado: quaisquer que fossem as consequências, deveria fazer aquilo que a consciência lhe apontava como sendo o seu dever.

Foi quase à hora do lanche que essa decisão foi tomada. Já que tal lhe parecia ser o seu dever, iria a El-Hassi e à tarde, quando Ahmed regressasse, dir-lhe-ia tudo. Não lhe mentiria, quaisquer que fossem as consequências. Se lhe contrariara os desejos, ao menos saberia tão depressa quanto possível aquilo que tanto desejava saber.

Se ao menos pudesse ir com sua licença! Mas nem era bom pensar nisso! Ele jamais o permitiria. Assim, ela deveria ir, como planeara hoje, quando a ausência do sheik lho permitisse. Quase desejava que a oportunidade não viesse. Mas ele facilitou-lhe o plano e isso deixou-a ainda mais perplexa. Se ela ao menos tivesse a coragem precisa para lho dizer antes! Mas quando ele saiu, a sua decisão não estava firmada.

O sheik fora com Caryll a um dos acampamentos distantes, em direcção oposta a El-Hassi. Foi depois que ela os viu seguir que lhe nasceu a ideia de que chegara a ocasião de fazer o que premeditara, pois era impossível que o marido voltasse antes do anoitecer.

Um tremor de repulsa invadiu-a. Odiosa ocasião e odiosa necessidade. E quando ele voltasse e quando ela tivesse de contar-lhe... O retalho de cambraia que ela amarrotava entre os dedos rasgou-se e ela deixou-o cair com um grito de amargura. Oh, porque era tudo tão difícil?! Porque, pensando fazer o que era justo, fazia algo que o irritaria e talvez destruísse a confiança que nela depositava sempre!

Naquele momento, a coragem quase a abandonou. Mas a ideia da menina reforçou o seu propósito, a menina que poderia ser Isabel De Chailles.

- Somente uma criança, traída e só! E quatro dias assim a deixara, por cobardia!

Os lábios tremeram-lhe e por um momento ficou com o rosto escondido entre as mãos. Depois, com um sussurro: «Oh, meu filho! Meu filho!» foi ao quarto para mudar de roupa e vestir a de equitação.

O lanche esperava por ela quando voltou e poucos minutos depois Raul entrou, olhando contrito para o relógio.

- Tarde como sempre, Diana, lamento-o - desculpou-se. Mas, ao aproximar-se dela, parou, olhando para a mesa, onde só havia dois lugares.

- Não sabia que estáveis só - disse, tomando uma cadeira ao lado dela. - Não devíeis ter esperado por mim. Ahmed disse-me ontem à noite que iria hoje a Ras-Djebel, mas onde está Caryll? Supus que estivesse aqui. A sua tenda estava vazia, quando por lá passei, ainda agora.

Diana serviu-lhe uma fritada de ovos antes de lhe responder.

- Caryll? Foi com Ahmed - declarou por fim, despreocupadamente, como se aquilo fosse uma ocorrência diária de indiscutível banalidade.

Raul surpreendeu-se, mas conteve uma exclamação prestes a explodir-lhe dos lábios.

- Alegro-me com isso - disse - porque ao menos terão ocasião de melhor se conhecerem. Muitas não lhes têm sido as oportunidades para isso. Admirava-me pensando: onde iria o nosso velho ermitão, para sair da sua casca?

Diana fitou-o com um sorriso fugidio.

- Ele não veio. Foi arrastado - corrigiu secamente.

- Quereis então dizer que foi convite de Ahmed?

- Convite? Meu caro Raul, quando é que Ahmed convida ou propõe qualquer coisa? Ouvi o recado que ele mandou Gastão levar-lhe de manhã e nem por sonhos se pode chamar àquilo convite ou proposta. Caryll foi a Ras-Djebel porque Ahmed lhe mandou dizer que era preciso ir.

- Perfeitamente, mas mesmo assim acho estranho.

Diana abanou a cabeça.

- Admiro-me disso - declarou com acento de dúvida. Tenho pensado mesmo que seria melhor que Caryll nunca tivesse vindo até cá. Parece que o que ele menos deseja é que nos conheçamos melhor. Procurei por todos os meios ao meu alcance fazer-lhe sentir que foi bem-vindo e está em sua casa, mas ele não me anima. Só uma vez, no dia seguinte ao da vossa chegada, tive a ilusão de que conseguiria atraí-lo, que ele corresponderia aos meus sentimentos. Depressa, porém, percebi o contrário. Depois disso, não tive outra oportunidade. Ele evita-me, como evita o pai, e magoa-nos mais do que poderia dizer-vos. Sei que ele nunca quis vir, as suas cartas deixavam isso bem claro, mas nutri tais esperanças à sua chegada... Pensava que, chegando aqui, não deixaria de ver o quanto o estimamos, quanto lhe queremos, quanto nos custou a separação, compreenderia que só o mandámos para Inglaterra para seu próprio bem. Mas não conseguimos esse objectivo. Tudo fizemos, mas agora a paciência de Ahmed esgotou-se e eu... - Interrompeu-se, presa de funda emoção.

- Porque nos odeia ele tanto? Nunca o avô lhe disse coisa alguma, não tenho motivo para crer o contrário. Mas odeia-nos e agora, parece-me, mais do que a princípio. E porquê? É por alguma coisa que ele supõe tenhamos feito ou que deixamos de fazer. Oh, Raul! Vós, que melhor o conheceis, dizei-me se a culpa é nossa ou dele, pois que o coração se me despedaça ao pensar nisso.

Ela levantou-se bruscamente da mesa, voltando-se para ocultar as lágrimas que já não podia conter.

Foi com emoção não menor que Raul a seguiu até ao divã, o coração a pulsar dorido, com as mãos que já pareciam nem sequer poder acomodar-se nos bolsos da jaqueta. A sua proximidade e a sua angústia, assim como a doce e triste felicidade que esta hora de isolamento com ela lhe causava, faziam-no afundar-se em profundezas de emoções cujo perigo ele não avaliava. Nunca o papel a representar lhe pesara tanto! Nunca chegara tão perto de declarar o amor que durante tanto tempo ocultara. Desolado pelas lágrimas de Diana, sentiu faltarem-lhe as forças e quase inconscientemente se chegou para mais perto dela, impelido pela louca tentação que o transtornava. Agarrá-la nos braços, render-se por um momento ao inflamado impulso que lhe parecia mais forte do que a sua razão... O sangue afluiu-lhe à cabeça e por um momento tudo lhe fugiu, restando-lhe somente o desejo que por tanto tempo ficara insatisfeito. Então, superior à loucura que lhe fazia perder o domínio de si mesmo, acudiu-lhe uma brusca lembrança que lhe fez sentir um arrepio, e virou-se, não querendo mais encará-la.

Deus misericordioso! Que é que quase chegara a fazer! Baixara assim tanto? Era tão infame que chegasse a tanto, esquecido da sua lealdade ao amigo? Sim, amigo que nele confiava. Ah, se este chegasse a imaginar como estivera perto de desmerecer dessa confiança! E ela, que nele depositava confiança e amizade, com que escárnio e repugnância lhe viraria as costas se ele chegasse a proferir as palavras que quase lhe fugiram dos lábios!

Mas o escárnio e a repugnância não seriam maiores do que as que ele próprio sentia de si mesmo, quando a simples proximidade seria um insulto à sua pureza.

Diana! Diana! O único amor da sua vida - mas era a esposa de Ahmed!

Desenrugando a testa, dominou-se e voltou para perto do divã.

- Foi culpa das circunstâncias, penso - disse pausadamente, esforçando-se por conservar a voz firme.

E Diana, por seu turno, imersa na sua própria infelicidade, não pareceu estranhar a longa demora da resposta.

- Culpa das circunstâncias - repetiu, olhando-o sem compreender. - E depois da chegada dele houve complicações que tornaram estes últimos quatro dias difíceis para nós todos. Mas, como poderão essas complicações afectar Caryll? Ele nada tem com os nossos negócios, inclusive os de seu irmão. Nunca falou a respeito dele, nunca sequer cuidou de saber se vive ou não. É-lhe tão indiferente como nós próprios lhe somos. E, Raul, sempre orei a Deus pedindo que fizesse amigos - os meus filhos.

Raul, que de tudo estava a par, não pôde deixar de, com desânimo, sacudir os ombros.

- Estranho rapaz! - fez com consciência de que a consolação que lhe era possível dar pouco aliviaria a tristeza e desapontamento de Diana. - Extraordinariamente sensível à... atmosfera... Mas apesar de toda a sua sensibilidade, não é tolo e pode perceber que as condições do meio são um tanto anormais. Pode compreender que chegou num momento mau e que lhe é difícil identificar-se com as circunstâncias actuais. Já aqui chegou há dias, mas tudo ainda lhe é estranho. Dai-lhe tempo, Diana, e não percais a esperança. Há um lado melhor no seu carácter, que ainda não lhe foi possível mostrar. O preconceito ainda o aguilhoa e torna-o reservado ao mais alto grau. Tudo isso cessará quando as circunstâncias mudarem e as dificuldades actuais desaparecerem... A voz de Raul sumia-se e Diana interrompeu-o. - E se sempre for assim? Oh, Raul, qual será o fim de tudo isso?!

Raul tremeu mais ainda e respondeu:

- Deus o sabe!

Houve um curto silêncio entre ambos. Encostada às almofadas do divã, Diana ficou a olhar vagamente o espaço, sem saber como tocar no assunto que lhe ocupava a mente, sem saber se Raul se oporia ao plano que ela formara, sem saber, mesmo, se devia dar-lhe conhecimento desse plano, porque, sabendo da oposição de Ahmed, a sua confidência poderia colocá-lo em má situação. Seria bom para ele, que sempre fora amigo fiel de ambos? Virou-se impulsivamente para Raul.

- Não sei se há duas pessoas que tenham um amigo tão bom como tendes sido, Raul - afirmou ela. - Sabeis o que sois para Ahmed, mas não sei se compreendeis o quanto me tendes ajudado desde que vos conheço. E não posso deixar de dizer que tenho a máxima confiança em vós e que sempre vos serei grata.

A sua gratidão era tudo quanto ele poderia ter dela! As mãos crisparam-se-lhe, e pôs-se a sacudir a cinza do cigarro para que ela não lhe visse a angústia do rosto.

- E eu, nada tenho que agradecer-vos? - respondeu com voz quase sumida. - Nunca vos ocorreu pensar no que significa a vossa amizade e a de Ahmed para um solitário como eu?

Ela riu, meneando a cabeça em sinal de protesto.

- Loucura, Raul. Não sejais tão modesto. Tendes mais amigos do que supões.

Já os pensamentos, porém, a venciam e os seus olhos ficaram de novo sérios.

- Fostes hoje mais cedo a El-Hassi, não? Ahmed perguntou por vós antes de partir, mas Gastão contou que já havíeis ido. Não, não creio que fosse coisa de importância - disse em resposta a um olhar dele - somente alguma coisa a respeito da guarda do norte, creio. Chamou-os aqui, e não sei porque queria que o soubésseis. Ele estava com pressa e não foi muito explícito. Não vejo, porém, em que poderia o assunto interessar-vos. O que quer que pudesse haver era noutras partes do país, nada de mal existe aqui perto. Foi somente porque estou só que eles foram postos de prevenção. Com Ahmed em casa, não há necessidade deles. Há já semanas que meu marido os queria mandar chamar. Vieram a noite passada e acompanharam-no hoje a Ras-Djebel. Muitos deles são casados e residem nesse lugar com suas mulheres.

Interrompeu-se por um instante, com os olhos velados pelas negras tranças de cabelo que lhe invadiram as faces, os dedos a trair-lhe o embaraço que dela se apossara.

Quando falou novamente, havia certa hesitação na sua voz.

- Descobristes mais alguma coisa em El-Hassi, Raul?

- Mais nada, Diana.

- Mas ainda estais certo, convicto...

- Ainda certo, com convicção absoluta, mas, mesmo que eu não possa conseguir prova alguma, ainda assim continuarei seguro de que tenho razão.

- E se estais certo, Raul, se tiverdes razão, então meu filho...

A sua voz sumiu-se numa exclamação angustiosa.

- Meu Deus! É horrível...

Com um gemido estrangulado, enterrou a cabeça nas almofadas do divã.

Raul sentiu tremerem-lhe os lábios e pôde apenas balbuciar palavras que nem sequer chegaram aos ouvidos de Diana.

O seu abatimento foi curto.

Obrigando-se à compostura, ela levantou-se e, aproximando-se de Raul, colocou-lhe as mãos nos ombros.

- Não quisestes responder-me quando uma vez vos perguntei, mas agora peço que me digais a verdade: a jovem gosta do meu filho?

Tremendo ao contacto das mãos dela, Raul fitou-lhe quase com medo os olhos tristes, inquietos. Esse olhar durou um instante, depois do qual ele também se levantou, com o rosto lívido como o dela.

- Se o ama? Deus a ajude, pobre criança! - disse com pena. - Se a vísseis, não me faríeis essa pergunta, Diana.

- Vou vê-la esta tarde.

A esta revelação inesperada, ele deixou escapar dos lábios uma exclamação brusca e agarrou-lhe as mãos para as levar aos lábios.

- Diana! Diana!

Então, repentinamente, deu uns passos à frente, deixando apagar-se a luz que lhe iluminara os olhos.

Voltou-se com enfático gesto de descrença.

- Não, não. É impossível - disse com esforço - é inteiramente impossível, porque Ahmed...

- Sei, sei - interrompeu ela. - Ahmed ficará furioso. Mas não levo isso em conta, «resolvi» ir. Mesmo que ela não seja Isabel De Chailles, não faz diferença. É uma menina, está em dificuldades, sozinha, tendo só homens ao redor.

- Homens somente, não. Ahmed mandou uma mulher para ficar ao seu serviço, logo no dia imediato ao da chegada. Não vo-lo disse?

- Não, nunca me falou nisso - respondeu ela vagarosamente, e por um momento ficou a fitar firmemente Raul, vendo-o não a ele, mas ao marido que ela amava, o marido cuja natureza complexa ainda tinha profundidades que ela não podia penetrar.

Ela firmou a mente errante no presente com um impaciente meneio de cabeça.

- Isso não diminui a minha responsabilidade - declarou com firmeza. - Procurei fazer Ahmed compreender o meu ponto de vista, mas ele não o quer ver, ou não pode, e sabeis quem é Ahmed quando decide alguma coisa. Não pude arrancar-lhe o consentimento para a minha ida. Tanto pior, irei sem essa licença.

- Mas, Diana, pelo amor de Deus, pensai...

- Já pensei bastante. De tanto pensar doeu-me a cabeça. Não me façais a coisa pior, Raul. Não me é fácil proceder contra a vontade de Ahmed, mas neste assunto julgarei por mim mesma. Vou «agora» a El-Hassi. Agradecer-vos-ia se fosse de vossa vontade ir comigo. Senão...

A censura que ele leu nos olhos dela chocou-o e Diana agarrou-lhe as mãos com ar de arrependimento.

- Dizei-lhes que me tragam o cavalo. Quero ir sem pensar muito nisso. - E, indo para o quarto, acrescentou: - Se me mandardes Mohamed, não precisamos de mais ninguém.

Já não havia alegria nos seus olhos ao voltar da tenda alguns minutos mais tarde e a incrível palidez do seu rosto levou Raul a fitá-la com ansiedade, esperando o animal que a levaria.

Durante algum tempo depois de deixarem o acampamento, ela seguiu em silêncio, os lábios cerrados, os olhos fixos nas orelhas do cavalo.

Estava fazendo o que a consciência lhe ordenava, mas, pensando bem, tudo daria neste mundo para poder vencer o impulso da consciência e voltar para trás. Não era só por causa da ira do sheik. Era também outra coisa, ainda mais profunda, um instinto vago e informe, que parecia querer adverti-la de qualquer perigo, um instinto que cada vez se tornava mais premente. Procurou, sem resultado, removê-lo e por último, desesperada, voltou-se inopinadamente para Raul.

- Já tivestes pressentimentos alguma vez, Raul?

Ele puxou o cavalo para perto dela e encarou-a.

- Algumas vezes - concordou. - Mas porque o perguntais?

Lamentando já que a pergunta lhe escapasse da boca, não querendo que os seus pensamentos se concretizassem em palavras, Diana sacudiu a cabeça.

- Oh, não sei! - respondeu evasivamente. - Foi um disparate que me passou pela cabeça. É ridículo o que por vezes a imaginação nos arranja. São nervos, creio, ou falta de ocupação. Fiquei preguiçosa desde que Ahmed voltou daquela excursão horrível. A todo o momento ele me chamava e todas as minhas boas obras morriam na ideia, enquanto aguardava o seu chamamento, como uma esposa carinhosa, e acompanhava-o milhas e milhas em redor do distrito, única maneira de lhe dar uma folga.

Ela falava com rapidez maior que de costume, com um leve tique nervoso na voz, o que fazia Raul ficar ansioso, porque conhecia o mau aspecto da questão em que ela se encontrava envolvida nos últimos meses.

Não era, entretanto, próprio o momento para atender ao temor, de forma que calmamente recomendou:

- Cuidado com esses nervos, Diana. São coisas perigosas e não se pode brincar com eles.

Vendo o modo como Diana ouvia estas palavras, Raul compreendeu, pelo seu olhar esgazeado, a significação que elas tinham. E, caminhando lado a lado, olhava-a de vez em quando, maravilhado, como sempre, daquele admirável altruísmo, daquele formoso espírito indómito que não se deixava vencer pelas amargas experiências da vida, que a muitas mulheres teriam esmagado. Pensava no amor que tornava possível aquela estranha vida. Mas aquela era a vida da sua eleição e, graças a Deus, nada tinha a lamentar. Apesar de tudo, sentia-se feliz, tão feliz como se nada houvesse. Com um breve trejeito de dor ao endireitar-se na sela, repelindo a inveja, Raul encaminhou os pensamentos para outra direcção.

Havia muitos dias que o vento não dava um ar da sua graça, de modo que a poeira levantava-se em nuvem ao passo dos cavalos. Outra poeira que ele não vira ao apear-se para o lanche, surgia agora bem visível. Era, provavelmente levantada por homens da guarnição de El-Hassid - concluiu - que voltavam, carregados de provisões, do acampamento principal.

Examinou-os com desnecessária curiosidade, porque marchavam em direcção contrária à que seguiam.

Evidências mudas de pés de transeuntes, quantas vezes as encontrara anteriormente, sem sentir o arrepio, a estranha excitação que isso produz à vista ao viajante do deserto? Quem eram? Donde vinham? Que objectivos tinham?

Os seus lábios cerraram-se. Em que se metera agora que chegara o tempo para proceder às suas averiguações sobre o assunto que tão imperiosamente lhe falava ao espírito? Encontrara a filha de De Chailles, estava convicto. Mas isso não bastava. Precisava encontrar Ghabah, o mouro, antes que outros acreditassem no que ele acreditava.

Olhou com ar pensativo, e engolfou-se em cogitações que o acompanharam até que divisaram El-Hassi.

No alto da duna, Diana puxou as rédeas do cavalo, olhando em silêncio o pequeno oásis, que lhe parecia uma taça emergindo da areia. O véu espesso do chapéu cobria-lhe o rosto, mas, olhando-a firmemente, Raul percebeu as nervosas contracções dos seus dedos, que haviam abandonado as rédeas, no pescoço do cavalo, e notou o rápido pulsar do coração no delicado tórax. Então, sem falar, ela guiou o cavalo em direcção à descida.

O acampamento oferecia um aspecto de solidão, dando sinal de que estava quase deserto. Só uma meia dúzia de homens seguia Ramadan para lhes ir ao encontro.

E Ramadan, ocultando a surpresa que lhe causava a aparição de Diana, parecia pensar que qualquer explicação era necessária, porque, sondando-a com a gravidade habitual e com delicadeza ainda maior do que nunca, se apressou em desculpar-se pela guarda pequena que a fora encontrar, asseverando que o restante fora ao acampamento buscar alimentos e outras coisas necessárias.

Correspondendo mecanicamente à saudação, Diana interrompeu-lhe as lamentosas desculpas com uma impaciência que lhe era pouco comum. Que importava que a recepção não fosse a que o sheik determinara! Que lhe importavam formaturas e cerimónias num momento como aquele! Fazendo-lhe sinal para levar os cavalos, ela dirigiu-se à pequena tenda dupla. Mas os passos tornavam-se-lhe cada vez mais lentos à aproximação da tenda e em frente à entrada semicerrada parou subitamente, tremente e nervosa. A sua agitação era tão grande que Raul lhe acenou com a mão, pedindo que esperasse.

- Deixai-me ir primeiro, Diana, para a preparar para a vossa visita - pediu com delicadeza. Movendo a cabeça, ela afastou-o.

- Não quero vê-la preparada. Prefiro surpreendê-la tal qual ela é. Peço que espereis que vos chame - disse, abanando a cabeça.

Compreendendo, ele deixou-a ir, passando com fria decisão em frente dele.

Um olhar mostrou-lhe que a sala de espera estava vazia e exibia a Diana uma escrupulosa limpeza e boa ordem, que lhe deu uma curiosa sensação de alívio.

Mas não foi uma sala vazia o que ela veio ver e por isso, com passo tardo, atravessou os espessos tapetes, parando um pouco adiante do divã para tirar o pesado chapéu e afastar das têmporas a densa cabeleira.

Enquanto hesitava, pensando na entrevista que temia, veio do quarto de dentro uma voz de infinita doçura, baixinha.

Sem fazer barulho, ela afastou as cortinas e ficou a olhar até que lágrimas de compaixão lhe taparam a vista, ocultando-lhe uma figurinha graciosa sentada no chão, no meio do quarto.

Sem atenção a nada que não fosse a sua própria infelicidade, a menina cantava tristemente como pássaro tragicamente metido na prisão de uma gaiola, com o rosto fresco entre os joelhos, nos quais existia algo que ela apertava suavemente nos braços. Só havia ali uma jaqueta que Diana reconheceu com melancólica dor compassiva.

Era a rapariga simplesmente uma criança, como lhe disseram, frágil, delicada, tão linda quanto é possível imaginar. Foi, entretanto, mais que a sua beleza que fez Diana fitá-la com intensidade um tanto febril. Teve a forte intuição, inexplicável mas absorvente, de que Raul não se enganara. O instinto, mais forte que a razão, clamava-lhe no íntimo que, se Isabel De Chailles vivia, era Isabel De Chailles que ali estava sentada. Isabel De Chailles e o filho... Seu corpo pesava contra as cortinas que ela ainda segurava. Por um momento, fechou os olhos, sofrendo horrivelmente.

Mas passou aquela manifestação de fraqueza e ela pôs-se a tentar levar o cérebro a fornecer-lhe um meio pelo qual pudesse chegar à verdade.

Como prová-lo? Como proceder, se o próprio Raul nada conseguira?

Orou fervorosamente, pedindo a Deus inspiração, e o pensamento que lhe acudiu brotou das profundezas do seu coração de mãe.

Talvez já Raul houvesse tentado a mesma coisa, mas não seria mais própria a sua voz feminina que a de Raul, grossa, masculina?

Mansamente, com infinita ternura, ela proferiu o nome que poderia despertar a memória.

- Isabel...

- Mamã!

A doce exclamação ecoou pela tenda e a menina chegou perto de Diana, com o rosto rubro, os lábios trémulos, os olhos dilatados, banhados de alegria.

- Mamã! - exclamou de novo, olhando para os lados, como que a ressuscitar o passado, sem que Diana pudesse vê-la bem. - Mamã! - balbuciou mais uma vez, como uma criança amedrontada - porque nunca mais voltaste? Ouvi os teus gritos, mas só «ele» voltou, com as mãos vermelhas e secas... E bate-me...

As últimas palavras foram sufocadas pela emoção, convertendo-se em débil sussurro e ela afastou-se para trás com as mãos na cabeça, com a alegria das faces feita êxtase, como se o passado se sumisse de novo na treva e a porta da memória, que se abrira parcialmente, se fechasse outra vez, inexoravelmente.

Como o sonhador que despertasse do sono, ela murmurou para si mesma, olhando furtivamente ao redor, como se procurasse uma visão que se dissipara.

Então, pela primeira vez, pareceu ver que não estava só e, com um pequeno gesto de surpresa, afastou-se ainda mais, espantada daquela senhora que ali estava a mirá-la, com as mãos crispadas, os olhos piedosos, esgazeados. Novamente Diana a chamou, mas desta vez o nome, que tão poderoso fora antes, nada produziu no cérebro da menina, que se limitou a sacudir a cabeça.

- Aqui não há mais ninguém senão eu, e eu sou Jasmim... - disse simplesmente.

Mas já o espanto cedia lugar à curiosidade. E olhando meio timidamente, meio em ar inquiridor, a face docemente simpática da visita que tão inesperadamente viera quebrar-lhe a solidão, tornou-se vagamente consciente de um novo sentimento íntimo, um sentimento que lhe passou a encher o coração, que lhe deu uma sensação de confiança como jamais tivera. Trémula de emoção, projectou os seus nos olhos piedosos e tristonhos que procuravam atingir-lhe o coração, atraindo-a irresistivelmente. E rendida quase inconscientemente à fascinação, ela aproximou-se mais, com um lânguido sorriso nos lábios.

.- Em nome de Alá... - murmurou, apontando para as almofadas colocadas no meio da sala.

Grata por essa pausa momentânea, porque estava inteiramente sem saber o que fazer, Diana foi sentar-se no pequeno divã providencial. Esteve silenciosa algum tempo, com as mãos a apalpar os travesseiros, enquanto infrutiferamente procurava palavras. Depois, disse bondosamente:

- Sentai-vos aqui comigo.

Após alguma hesitação, a jovem acedeu.

Mas as palavras teimavam em não aparecer e, buscando um pretexto para dizer alguma coisa, os olhos de Diana deram novamente com a jaqueta que estava ali perto.

- É um paletó bem feito - comentou, examinando o tecido daquela peça de roupa. - É certamente do vestuário dalgum grande senhor?

Com gesto súplice, a jovem tirou-o da mão de Diana e segurou-o com ciúme.

- É do meu senhor! - murmurou, com uma onda de rubor a cobrir-lhe o rosto.

- E como se chama esse teu senhor? - perguntou Diana com os lábios trémulos.

Como se sentisse bruscamente desconfiada, a jovem fez um pequeno gesto negativo.

- É o meu senhor. Não posso dizer qual é o seu nome.

Um gemido rebentou dos lábios de Diana, que agarrou os dedos frios, morenos, da jovem.

- Oh, filha, és tão leal assim para aquele que te fez tanto mal?!

Com uma interjeição nos lábios, a jovem caiu aos pés de Diana, libertando as mãos.

- Quem és tu? Que sabes tu do meu senhor?

Então, como não obtivesse resposta, abundantes lágrimas lhe caíram dos olhos e a jovem agarrou-se aos joelhos de Diana.

- Porque não me respondes? - gemeu. - Que mal lhe aconteceu que não queres falar? Alá! Alá! Foi por isso que sonhei com ele a noite passada e com o outro, aquele que quis matá-lo. No sonho vi-os lutando, ambos cobertos de sangue, e então ele - o meu senhor - caiu, com uma grande faca cravada no peito.

Tremendo e gemendo, ela afastou-se, com ar aterrado, a voz sufocada.

- És um espírito e é porque ele está «morto» que vieste?

Com o rosto banhado de lágrimas e incapaz de resistir à explosão de ternura que lhe sobreveio, Diana apertou nos braços aquele corpo trémulo.

- Não, não - murmurou, comovida. - Nenhum mal lhe aconteceu. Não sou um espírito, mas uma mulher como tu, que o ama tanto como tu. Jasmim! Jasmim! Ainda não descobriste quem eu sou? Nunca ele te falou de mim, que sou sua...

Não pôde terminar a frase, porque ouviu um ruído que a fez levantar-se instintivamente, a mão a procurar mecanicamente o revólver que não trazia consigo já há muitos anos, enquanto, quase sem poder crer nos seus ouvidos, se pôs a escutar o horrível alarido que vinha de fora, o troar da mosquetaria e o feroz rugido de vozes hostis que a transportaram para um tempo de hórrida memória, o tempo de Ibrahim Oamir.

Paralisada de susto, ela fitava, lívida, a face da jovem que por sua vez tinha o terror estampado no rosto. Depois, no meio daquele marulho ensurdecedor, ouviu-se a voz de Raul e, mais animada, Diana agarrou a jovem pelo braço e arrastou-a para a outra sala. Enquanto as duas corriam, ouviu-se por detrás delas o ruído de panos que se rasgavam e o disparo de uma bala que parecia querer abrir caminho por meio da tolda.

Baixando a cabeça instintivamente, Diana correu para a porta, arrastando Jasmim consigo, e saiu da tenda, para o local em que Raul se encontrava, de pé, revólver na mão, ainda chamando por ela. O seu rosto estava cor de cinza e, quando ela chegou, ele balbuciou qualquer coisa que ela não pôde ouvir e os seus braços envolveram-na convulsivamente.

Abraçando-o sem fôlego, ela perguntou qual era a causa do tumulto e endireitou-se com um pequeno suspiro, enquanto o coração parecia deixar de bater.

Diante deles, Ramadan e Mohamed cuidavam dos animais, enquanto por trás, nas tendas, fervia um pandemónio. O fumo dos rifles e nuvens aladas de areia e pó tornavam difícil a vista, mas, firmando os olhos, Diana pôde ver o reduzido grupo dos seus homens, que galhardamente tentavam rechaçar invasores seis vezes mais numerosos, e podia ver, também, que a coragem de nada lhes valia e aos poucos cediam e caíam perante os assaltantes. Assaltantes, no território de Ahmed! Era coisa quase incrível! Estava ali a sua gente e podia ela conservar-se ao longe, vendo os seus massacrados? Virou-se para Raul com um grito de agonia.

- Raul, os «homens...»

- Não penso nos homens! - respondeu ele. - É em vós e na jovem que eu penso. Meu Deus! Porque chamou Ahmed a guarda do norte? Ouvi, Diana - acrescentou aflito, os braços apertando-a inconscientemente - se eles chegarem até nós, Ramadan e Mohamed, ainda com tempo, deveis fugir tão depressa quanto possível. Não espereis por mim e por ninguém e deveis galopar desabaladamente, como nunca o fizestes. Graças a Deus, os cavalos estão folgados, frescos.

Nem concordando, nem discordando, Diana limitou-se a apertar-lhe as mãos. No mesmo momento, um fundo gemido partiu dele, que a lançou violentamente para trás de si, interpondo-se entre ela e qualquer coisa que não queria que ela visse. Diana, porém, vira e, firmando-se contra o braço que se lhe opunha, ficou insensível ao estalar de balas que rebentavam ao redor dela, que olhava cavaleiros que chegavam cheios de ódio.

Os seus homens estavam longe, ocultos da sua vista, quando os invasores os bateram. Só Ramadan e Mohamed ali estavam com ela. E, enquanto os fitava, Mohamed caiu de bruços no chão, espojando-se na areia. E, selados, três cavalos estavam ao pé dele. Ramadan galopava sozinho.

Com um brado de alegria, os invasores voaram para o corpo inanimado de Mohamed, cada vez mais perto, até que o barulho se foi amortecendo e, com um gemido magoado, Diana viu Ramadan cercado. Um grito penetrante fê-la voltar-se apreensiva para a jovem que, até então, se mantivera em silêncio. Nenhuma bala perdida a atingira, mas o terror convulsionava-lhe a face e fazia-a agachar-se no chão, com a cabeça escondida entre os braços, enquanto ela sussurrava continuamente o nome que também estava nos lábios de Diana.

Houve mais gritaria, outro estalar de disparos de rifle, mas as balas passaram sobre a cabeça deles, sem os ofender. Os assaltantes depois afastaram-se. Voltando-se bruscamente, Raul empurrou as duas mulheres contra o toldo lateral da tenda e, ocultando-as com o próprio corpo, encarou os bandoleiros, disparando fria e cuidadosamente a arma que possuía, com um terror mortal no coração.

Durante apenas um momento, rebentou o inferno de um tumulto e do que aconteceu naqueles instantes Diana nunca teve uma lembrança nítida.

O temor foi esquecido pelo frio furor que nela perpassou e Diana lamentou o desamparo em que ficou, a sua incapacidade para ajudar o homem que as livrara das balas, colocando-as ao seu lado de maneira a, miraculosamente, ficarem incólumes.

Ensurdecida pelo barulho infernal, incapaz de ver o que acontecia, sobreveio-lhe um estranho sentimento de irrealidade, um pesadelo que a deixou imóvel, que a deixou com um único pensamento: o apertar no peito a frágil menina cujos soluços procurava amortecer.

Apertava-a ainda contra o peito, quando, repentinamente, a parede da tenda contra a qual ela se firmava pareceu abater-se rapidamente e com ela toda a tenda.

Como se tivesse um colapso, Diana sentiu Jasmim desligar-se dos seus braços, viu em redor dela uma multidão de faces patibulares e ouviu o ruído das patas de muitos cavalos. No mesmo momento, Raul desmaiou e cambaleou e ela procurou-lhe o rosto, esmagada pelo seu peso.

Curvada sobre a areia, jazia ela, implorando ar, doente e angustiada pelo terror que a vencia.

Mas, sobrepondo-se ao medo, acudiu-lhe a lembrança de Raul, Raul que talvez tivesse morrido para a salvar. Vagarosa e dolorosamente, ela saiu debaixo dele e sentou-se, limpando os olhos e a boca, cheios de areia, admirada do longo silêncio que sobreviera.

Tremendo da cabeça aos pés e encostada ainda ao corpo insensível de Raul, ela forçou a vista, gemendo ao ver os corpos caídos que jaziam na areia revolvida, coberta de sangue, e viu que a maioria dos bandoleiros sobreviventes já estava em fuga em direcção ao norte. Só dois deles ficaram, de pé, não muito longe, e discutiam acaloradamente.

Olhando-os, viu que um procurava dissuadir o outro de qualquer objectivo, porque levantava os braços e apontava com fúria para os companheiros foragidos. Eram dois homens enormes, mas um chegava a parecer um gigante. Argumentavam e altercavam até que as palavras cederam o lugar aos insultos e atacaram-se corpo a corpo. Depois, pareceu a Diana que chegavam a um acordo e o mais baixo deles resolveu seguir caminho, arrastando o outro consigo. E com o coração a pulsar, com os olhos quase fora das órbitas, Diana então viu o gigante rolar ao chão, mas levantar-se com uma enorme faca reluzente na mão, viu-o enterrar a lâmina afiada no peito do outro e ouviu as gargalhadas do assassino, que se ergueu e correu para o lado dela. Pela primeira vez viu-lhe o rosto, que mais parecia o focinho de uma fera louca que a face de um homem, e então percebeu que a morte estava muito perto dela e que, se quisesse salvar-se, tinha de agir imediatamente.

Meio cega, ainda, da areia que lhe enchia os olhos e lutando desesperadamente contra a fraqueza que a queria vencer, ela rangeu os dentes e agarrou o revólver que caíra da mão exânime de Raul. Sedento de sangue, o mouro arrastava-se, os olhos fosforescentes, os lábios lívidos contraídos em horrível careta, acocorando-se como um animal que quissesse dar um salto mortal.

Ele estava a poucos passos de distância quando Diana disparou o tiro. E como o monstro cambaleasse e caísse pesadamente na areia, tudo lhe pareceu ficar escuro e ela chegou-se dèbilmente a Raul, lutando por conservar os sentidos, prestes a abandoná-la.

Gradualmente, porém, a escuridão foi-se atenuando e ela endireitou-se, fixando os olhos aterrados no cenário que a cercava, e que pouco antes fora teatro de tão horrorosa carnificina. O horror daquilo tudo e o sentimento da sua solidão fizeram-na querer gritar e por um momento escondeu a face entre as mãos, acreditando que enlouquecera. Com um tremendo esforço, readquiriu o domínio de si mesma.

Quando Diana levantou a cabeça e olhou para os cadáveres que ali jaziam, verificou que não estava inteiramente só, porque uma figura lutava para sair de um montão de corpos e vinha em direcção a ela.

Com indizível alívio, reconheceu Ramadan e correu ao encontro dele. Ferido e roto, mal se sustendo nos pés, com o sangue a escorrer de uma ferida do rosto, com o braço direito a pender desarticulado, parecia manter-se firme unicamente por possuir inquebrantável força de vontade. Apesar, porém, da luta terrível por que passara, a sua aparência era calma e imperturbável como de costume.

Depois de certificar-se de que Diana estava salva, foi com ela até junto de Raul e ambos se curvaram sobre ele.

Com uma grave contusão na testa, produzida por bala, com ferimentos também pelo corpo, ele ainda respirava, mas Diana leu no rosto perturbado de Ramadan um reflexo do seu próprio temor. Lágrimas amargas banharam os olhos dela ao contemplar as feições lívidas do homem que prezava mais que o próprio irmão e fora o melhor, o mais fiel amigo que uma mulher jamais teve.

Morreria antes que lhes chegasse socorro? Não haveria alguma coisa que ela pudesse fazer para lhe aliviar os sofrimentos se lhe voltasse a consciência?

Desesperada, olhou para a tenda lá adiante e depois para Ramadan.

- Água - murmurou. - Oh! Ramadan, não poderás ir até a fonte?

Com um sorriso sumido, ele levantou-se.

- Em cha Allah! - respondeu com estoicismo admirável.

Mas voltando-se rapidamente, parou perto da imensa, agitada figura do mouro. Depois de o olhar com atenção, deu-lhe um brusco pontapé e fez-lhe rolar o corpo sem cerimónia com os pés. Fitando bem aquele rosto mau, salpicado de sangue, amaldiçoou-o com palavras terríveis, como nunca Diana vira um árabe proferir.

- Está apenas atordoado - anunciou lacònicamente, e fez uma careta que traía a sua indecisão, a mão esquerda apalpando o albornoz, à procura do revólver que havia recuperado.

Mas antes que Diana percebesse a sua intenção, abanou a cabeça e guardou a arma com um ar de tristeza.

- Ele estaria melhor no inferno - observou friamente mas não posso matá-lo, porque me diz o coração que meu amo quer que ele viva.

Explicando resumidamente o que sabia sobre o mouro, retirou com cuidado a faca enorme que estava enterrada no peito de Carl Rost e com ela cortou alguns pedaços de corda da armação da tenda em ruínas. Mas com um braço inutilizado era-lhe impossível realizar o seu propósito e solicitou o auxílio de Diana para amarrar solidamente o gigante.

Feito isso, Ramadan caminhou em direcção à fonte.

Alguns momentos Diana ficou a apreciar-lhe o avanço e depois foi sentar-se perto de Raul, levantando-lhe com cuidado a cabeça e os ombros, que colocou sobre os joelhos.

Uma reacção começava a operar-se nela, mas, ainda sob a impressão do choque, parecia-lhe que tudo aquilo era um horrível pesadelo, pois que a verdade lhe parecia por demais brutal para ser real.

A lembrança de Jasmim quase a pôs furiosa. Naquela curta e estranha entrevista, entregara o coração sem reservas à jovem que estava sofrendo o mesmo que ela já sofrera. O laço comum, tanto como o amor comum, tinha despertado nela mais do que mera compaixão e, quando a abraçou, parecia-lhe que Deus lhe dera finalmente a filha que tanto desejava ter, sem jamais conseguir a realização desse sonho. Ela poderia ser sua filha se... Mordeu os lábios trémulos, esforçando-se por conter as lágrimas prestes a brotar-lhe dos olhos. Mesmo que o filho a quisesse, mesmo que a viesse a amar como acontecera a Ahmed, seria possível encontrá-la novamente? Tão perto estava o fim das devotadas pesquisas de Raul?

Raul! Olhou-o cheia de receio. Reconhecia a sua culpa e arrependia-se mortalmente. E, se ele morresse, Ahmed algum dia poderia perdoar-lhe? E, ela também, poderia perdoar-se jamais a si própria?

Ele estava agora a mexer-se nos seus braços, gemendo e falando incoerentemente, e Diana olhava-o com incontida impaciência, enxugando dos olhos as lágrimas, para contemplar os passos arrastados e penosos de Ramadan, que parara junto de um dos cadáveres e se abaixara um instante, movendo-se vagarosamente. Depois emergiu das tendas distantes outra figura e logo os dois homens se encontraram.

Só dois restavam, com Raul talvez moribundo, e as horas arrastar-se-iam até que o resto do corpo da guarda chegasse, vindo do acampamento principal. E como poderia ela mandar pedir socorro, se não havia nenhum cavalo vivo? Alguns jaziam mortos, espalhados no meio dos cadáveres que ela podia enxergar, mas onde estariam os outros? Animou-a a lembrança de que talvez alguns houvessem fugido dos cavaleiros, correndo febrilmente para as suas moradas, dando assim o alarme necessário.

Mas essa frágil esperança desvaneceu-se quando Ramadan voltou acompanhado do outro sobrevivente, que trazia nos ombros um odre com água.

Ferido e abatido, mas menos inutilizado que Ramadan, o homem chegou e ajoelhou-se perto de Diana, levantando o odre para que ela pudesse embeber o lenço para humedecer os lábios de Raul. Desmontado e sem sentidos logo no começo da luta, pouco podia contar, pois só voltara a si quando os bandoleiros fugiram, e assim pôde dizer somente que os cavalos foram levados com eles, assim como a jovem, a quem ele vira caída, atravessada na sela de um homem que parecia ser o chefe do bando.

Era um dos rapazes mais moços do corpo da guarda, um pouco mais que uma criança, mas lutara heroicamente com o raptor, procurando subjugá-lo, no meio da fúria e da emoção dos seus companheiros, e quando Diana proferiu algumas palavras de simpatia ele calou-se e escondeu o rosto no albornoz. Mas recuperou logo a calma, e com mais confiança do que antes, declarou que estava pronto para ir buscar socorro.

Duvidando da sua capacidade de cumprir o que oferecia, Diana fitou-o com incerteza. Parece que aquilo fora combinado entre os dois quando voltavam da fonte, porque Ramadan pôs um termo às suas objecções com uma curta declaração de que não havia outra alternativa. Não dissera que estava fisicamente impossibilitado de andar tanto, mas Diana, que percebera que ele estava mais ferido do que pensava, compreendeu que assim era. Se, entretanto, um deles tinha de ir, preferia ela que Ramadan ficasse, porque temia que o mouro recuperasse os sentidos, embora estivesse amarrado.

Era de acreditar que o mouro estava também na mente de Ramadan, porque, antes de o rapaz sair, convidou-o para irem arrastar para mais longe aquela abjecta figura. E enquanto isso não foi feito e o mensageiro seguiu pela estrada, não se sentou na areia, exausto, para vigiar o prisioneiro, lamentando, pela centésima vez, não o haver morto quando a ocasião se lhe deparou em Touggourt.

Muito antes, Diana tirara o casaco para fazer um travesseiro em que pudesse depor a cabeça de Raul. Ali se instalou para esperar a chegada de socorros, esforçando-se por conservar a lucidez da mente, dando graças a Deus por ter sido poupada para atender às necessidades do ferido. Era pouco o que podia fazer - apenas afugentar as moscas e humedecer-lhe os lábios de vez em quando, mas esse pouco servia para fazê-la suportar a ansiedade da espera.

Mal o mensageiro se retirou, o encantador de serpentes recuperou a consciência e tentou levantar-se, enraivecendo-se furiosamente ao reconhecer a sua impotência. Escabujando horrivelmente pela areia, desvairava e uivava, soltando um oceano de blasfémias que esfriavam o sangue de Diana e por último fizeram irritar o próprio Ramadan, que se arrastou penosamente para tirar um pedaço do albornoz de um dos cadáveres, com que embrulhou a cabeça do mouro, abafando-lhe assim as pragas e as maldições. Estabeleceu-se o silêncio novamente, um silêncio que agiu benèficamente sobre os nervos agitados de Diana. Era um silêncio que parecia cheio de vozes, e a fazia olhar nervosa e apreensiva em volta de si, mas isso não durou muito porque ali só havia morte e silêncio, corpos gelados que a enchiam de horror. Algumas vezes aqueles cadáveres pareciam mover-se e a brisa que perpassava ecoava-lhe aos ouvidos como se fosse o choro de almas separadas dos corpos. Estariam à espera daquela alma que talvez estivesse margeando o rio da morte? Trémula, procurou afastar de si esse pensamento, combater as estranhas alucinações que se aninhavam na sua mente excitada.

Não devia pensar, não devia permitir-se tais devaneios.

Devia ser forte e acalmar os nervos até à chegada de Ahmed. Oh, Deus! Manda-o depressa. Assim havia ela vivido há muitos anos, num momento de perigo atroz. Assim deveria viver agora, não em seu próprio favor, mas no do amigo que dera a vida por ela. Dera a vida por ela!

Curvou-se sobre ele com indescritível agonia, procurando-lhe o rosto com olhos angustiados, em luta aberta com a aflição que a perturbava.

Os minutos pareciam horas enquanto velava e esperava, fatigada pelo peso dele, não procurando mover-se, mas sustentando-o até que os braços se lhe amorteceram e todo o corpo lhe doeu com o esforço que ela fazia.

Durante algum tempo, ele não se mexeu, nem fez ruído algum. Mas agora estava desassossegado e bruscamente começou a falar, fazendo-a curvar-se para apanhar-lhe as palavras, a princípio confusas e ininteligíveis.

Aos poucos a sua voz foi-se tornando mais forte e distinta. E ela ouviu quando o ferido lhe proferiu o nome, em tom jamais ouvido, repetindo-o mais e mais, entre palavras desconexas que a tornavam pesarosa e inquieta. Depois, numa torrente de palavras apaixonadas, sucederam-se frases - frases que eram a revelação de uma alma atormentada.

Com lágrimas que ela já não podia conter, com o coração tomado de compaixão, Diana sentou-se rígida, ouvindo o inconsciente extravasar o amor que por tanto tempo ocultara, e ficou finalmente conhecendo a verdade.

Durante vinte anos ele ocultara esse segredo, e eis que, agora, os lábios insensíveis o traíram, canalizavam toda a sua dor, toda a devoção altruísta e o desejo contrariado de uma paixão desesperada de que ela nem sequer suspeitava!

Absorvida no seu grande amor, jamais lhe ocorrera que a sua amizade disfarçava um sentimento mais forte e profundo. Agora verificava que ele a amara e que esse amor só infelicidade lhe trouxera. Por intermédio dela, a tristeza apossara-se dele. Por causa dela, passara os melhores anos da sua vida sozinho e desgostoso. A dor que isso lhe causava, quase não a podia suportar.

Ela magoara-o, arruinara-lhe a vida, a Raul - a quem ela sempre amara, embora com um amor diferente daquele de que ele precisava. Raul, que fora seu amigo e de Ahmed. Porque, sim, porque fora ela o instrumento do seu pesar? Sensibilizada, tremeu perante a inesperada revelação. Ela não tinha direito ao segredo que fora tão cuidadosamente guardado, que ele queria que ela nunca conhecesse. Pobre Raul, pobre, fiel, leal Raul, fiel a um amor que nunca seria satisfeito, leal ao amigo cuja felicidade colocara acima da própria!...

Indigna aos seus próprios olhos, um sentimento de intensa humildade se apossou dela. Que fizera para que tamanho amor lhe fosse dedicado? Que tinha feito jamais para merecer o amor de ambos?

Lágrimas abundantes manavam-lhe dos olhos ao olhar tristemente para o homem que dantes ela supunha conhecer tão profundamente. Quão pouco realmente o conhecera, quão pouco realmente o compreendera!

E agora, que tudo sabia, nada mais podia fazer que guardar aquele segredo no escrínio secreto do coração e agradecer a Deus por só ela ter ouvido aquele grito de desolação.

O murmúrio da sua voz cessara e ele estava agora silencioso. Tão silencioso que um brusco temor se apossou dela. Chegou-lhe então a mão ao peito. Mas, embora dèbilmente, o coração batia ainda e, com um gemido de alívio, ela tratou de o colocar em posição mais cómoda.

Mas só teve alívio muito fugaz. Como hora após hora decorresse e o socorro tão desejado ainda tardasse, olhou mais ansiosamente, encarou o rosto lívido e contraído, que lhe estava no colo, percebendo que a vida aos poucos se extinguia e o seu estado se tornava cada vez mais crítico.

Se havia ainda alguma coisa que pudesse ser feita em favor dele, devia sê-lo imediatamente, pois de minuto para minuto diminuía a possibilidade da sua salvação e mais aumentava o perigo.

Frequentemente, desesperadamente, levantava Diana os olhos cansados para as dunas de areia, apurando os ouvidos à espreita do ruído de patas de cavalos. Teria sucumbido o mensageiro? Passariam mais horas sem vir socorro, para chegar quando já fosse inútil? Morreria Raul sem receber socorro humano? Encontrariam somente um cadáver nos seus braços? Um sentimento de dor desenhou-se-lhe no rosto. «Raul morrer»! Jamais sequer pensara que algum dia não mais houvesse um Raul a acolher, um Raul para levar a civilização até suas isoladas vidas. A sua chegada sempre significava alguma coisa para ambos. Perdê-lo - e perdê-lo desta forma? O desespero despedaçava-lhe o coração. Que faria Ahmed sem ele?

Porque, porque não chegava socorro? Mesmo que Ahmed ainda estivesse em Ras-Djebel, havia Gastão e Yusef para providenciar na sua ausência, porque ela havia pedido o chá e nada dissera sobre uma ausência prolongada.

Já quase anoitecia, já o Sol se ocultava por detrás dos montes de areia e o vento, agora fresco, fazia-a tremer como se fosse a seda do lenço que, juntamente com as suas vestes de equitação, estava manchado e embebido do sangue de Raul.

Ao contemplar as longas sombras cinzentas que pairavam sobre o pequeno oásis, o terror das trevas próximas sobreveio-lhe e sentiu a força mental enfraquecer-se.

Sozinha no meio de mortos e moribundos, que mais horrores não lhe traria a noite!

Lutara para guardar a lembrança de tudo, mas agora vivia com o pensamento concentrado na tragédia daquela tarde sinistra. Reviu o horrível morticínio dos seus homens, o último suspiro do leal Mohamed; lembrou os medonhos presságios de Jasmim, o riso cruel do assassino ao avançar para ela. Ouviria isso tudo enquanto a vida lhe durasse? Enlouqueceria, adoeceria antes de vir o socorro? A capacidade sofredora, elevada ao máximo, extinguia-se bruscamente e no terror da solidão ela contemplava, tomada de pânico, o corpo inerte dos mortos. Olhou Ramadan desmaiado e deitado na areia. Olhou Raul sem sentidos no seu colo e levou as mãos aos lábios para abafar um grito.

- Ahmed! Ahmed! Vinde a mim!

E, como se ela houvesse gritado, ele veio. Por um instante ela viu-o a lutar com o seu cavalo meio selvagem, como se fosse uma silhueta projectada contra o céu. Então, como uma grande onda de branca espuma, rolando pelas praias, os seus homens surgiam, como por encanto, das altas dunas e dele se acercaram enquanto guiava o cavalo Eblis pelo íngreme declive, fazendo-o galopar com tamanha velocidade que Diana, assustada, levou a mão ao peito.

Atrás dele, na mesma galopada célere, vinham juntos Caryll e Ahmed e, perto destes, ela cuidou ver Gastão e S’rir. Os seus olhos, porém, Diana tinha-os presos no enorme corcel negro, sobre o qual se achava aquele rosto moreno que lhe era o mais querido do mundo.

Antes que os filhos ou os homens que os acompanhavam pudessem puxar os animais para uma cocheira, o sheik saltou da sela e alcançou a esposa.

Daí a um instante, Diana cingia-lhe os braços, soluçando histèricamente e implorando perdão, mesmo enquanto lhe relatava as minúcias do raid.

Nos olhos do sheik, porém, só se via amor, como só amor existia na pressão dos seus braços, que a afastavam um pouco para dar lugar a Gastão, que já estava ajoelhado ao pé de Raul.

- Ma mie, ma mie! - exclamava. - Já estás salva... - e deixou escapar um soluço que todo o seu estoicismo não pudera reter.

Depois, com uma palavra de ternura, deixou-a e foi ver Raul.

O grupo de árabes, de rosto ansiado, reunido ao redor do ferido, afastou-se à sua chegada, e, antes que se reunisse de novo, Diana lançou um olhar para Gastão e Caryll, este de luvas brancas, e mais a alguma coisa que lhe bania dos lábios a ténue coloração que por eles se infiltrava. Quando, momentos mais tarde, o sheik regressou da visita a Raul e ela tentou ir ao seu encontro, ele viu, embora nada ouvisse, a pergunta que se recusava a sair-lhe da boca.

- Ainda não - disse com calma forçada - mas é somente uma questão de tempo. Poucas horas ou talvez um dia ou dois. Ainda está inconsciente, Deus louvado. Se ao menos o pudermos levar para o acampamento...

Sacudiu os ombros quase com desespero, virando-se para esconder a emoção que procurava dissimular, mesmo perante a esposa.

Era o que ela quisera saber primeiro que tudo, que a fazia ter esperança contra esperança, e agora a confirmação do que temera roubava-lhe toda a força para falar e mover-se. Através de uma gaze de lágrimas, viu Caryll retirar-se do grupo que se achava em volta de Raul e juntar-se ao pai. Viu depois que ambos se dirigiam ao local onde Ahmed se achava curvado sobre Ramadan, o qual, sustentado nos joelhos de S’rir, estava a falar rapidamente, apontando ora para o cadáver do alemão, ora para o mouro, agora resignado e impassível.

E foi a vista de seu filho Ahmed que lhe fez lembrar-se da tristeza que sentia por causa de Raul, de que no momento estava esquecida.

O filho tinha ladeado o sheik, as mãos erguidas como pedindo-lhe algo de muito urgente. Longe de mais para poder ouvir-lhe a voz, estava perto o bastante para ver-lhe o movimento dos lábios, fazendo-a perceber que se tratava de um apelo aflitivo e mostrando-lhe, também, a expressão de fundo desespero que havia nos seus olhos, e para que ela pudesse observar a pesada catadura que obscurecia o rosto do marido.

Recusaria o sheik a anuência pedida? Como poderia recusá-la se soubesse tudo!

Os gritos da jovem ainda lhe retiniam aos ouvidos quando ambas fugiam da fúria das balas.

- Ahmed! Ahmed! Pelo amor de Deus! Pelo amor que me tens, deixa ir o rapaz. Ela é Isabel De Chailles. Sei-o com certeza!

Por um instante, o sheik fitou-lhe os olhos húmidos e súplices, olhou o filho e suspirou.

- Ide com Deus - disse em tom breve, e expediu uma ordem que fez uns cinquenta homens galgarem as selas, uivando como loucos.

O tumulto, porém, serenou quando eles se colocaram regularmente em fileira. E no relativo silêncio que então se seguiu, Diana sentiu os braços do filho, que a cingia num abraço quente, que lhe prometia uma profunda gratidão, enquanto os lábios só conseguiram murmurar:

- Mãezinha, mãezinha!...

Depois afastou-se, com o pai ao lado, em direcção ao cavalo que S’rir acabava de trazer.

Quando ele seguiu, revolveu-a repentinamente um sentimento terrível, a ideia de que, talvez pleiteando a sua ida, contribuíra para fazê-lo morrer, mas agora só lhe restava ficar quieta e vê-lo seguir. De novo, porém, lhe acudiu a lembrança de Jasmim, que veio abafar um grito prestes a rebentar-lhe dos lábios, envergonhando-a do impulso que tão insensatamente tivera.

Sentindo a dor que lhe dilacerava o coração, ela voltou-se instintivamente para o filho que ficara ao seu lado, mas, antes que pudesse falar, este retirou-se também.

O pé do primeiro já se metia no estribo quando Diana sentiu um leve toque no braço, e, virando-se, viu um rosto que estava pouco menos agitado que o seu. Por um momento, os olhos dos dois irmãos encontraram-se. Então, com um gesto por demais expressivo, Caryll estendeu-lhe a mão.

- É negócio que vos diz respeito e não a mim, mas, se me levardes convosco, muito vos agradecerei.

Na sala principal do pavilhão do sheik, Raul de Saint Hubert estava em luta, não pela vida, mas pela prolongação do pouco de vida que ainda lhe restava. Resolvido a viver até que voltasse o filho do sheik, ou pelo menos até que já não restasse esperança do seu regresso, com a jovem que representava papel tão proeminente para ambos, o enfermo parecia deter a morte a distância, por mera força de vontade. O facto de ainda estar vivo era um milagre para quantos lhe conheciam a gravidade das lesões recebidas e de tempos a tempos consideravam extinta aquela frágil centelha de vida. Mas cada vez que o ferido se reanimava, fisicamente mais enfraquecido, era com indómita coragem e sempre mais firme na insistência de que o rapaz voltaria e que antes de morrer teria a prova positiva de que as suas longas pesquisas não tinham sido infrutíferas.

Mais de uma vez pediu que lhe trouxessem o mouro, mas o sheik demorava-se a satisfazer esse pedido, temendo o efeito de tal entrevista sobre aquele organismo depauperado. A jornada de volta de El-Hassi fora lenta e ansiosa, não só porque o terreno dificultava o trajecto dos carregadores que traziam a improvisada ambulância, mas também porque era forçoso ter em consideração o estado de Ramadan. Tendo recebido lesões que incapacitariam qualquer homem comum, ele asseverava com indignação que ainda estava em condições de montar a cavalo, e tinha vindo para o acampamento, ora esbravejando, ora apoiando-se nos companheiros que o seguiam de cada lado para o sustentarem na sela, em que, a despeito de todos os protestos, obstinadamente se mantinha. Para Diana aquelas cinco milhas pareciam cinquenta. Cheia de ansiedade pelos filhos, temia receber, a cada momento, notícia da morte de Raul, reclinada nos braços do marido, visto ter recusado montar sozinha, torturada pelo medo.

A noite havia caído quando chegaram ao acampamento. Perturbada mental e fisicamente, dormira exausta de forças quando o sheik a conduzira ao leito, não despertando mesmo quando o marido lhe arrancou as longas botas e lhe limpou as roupas sujas de sangue.

Dormira pesadamente durante toda a noite, enquanto o sheik e Gastão velavam na sala contígua. As forças, porém, voltaram-lhe com o clarear do dia, permitindo-lhe também ir ocupar um lugar ao lado de Raul, ocultando os seus temores para não contribuir para que ele piorasse, e atendendo às suas necessidades com o sorriso franco que sempre lhe tremulava nos olhos.

Durante algumas horas, enquanto os outros descansavam, ela ficara a sós com o ferido e, ao ver as variadas expressões que o seu rosto assumia, pensava se ele ainda teria qualquer reminiscência da revelação que lhe fizera em El-Hassi. Certa vez quase concluiu que assim fosse, porque, despertando repentinamente, após alguns minutos de sono solto, lhe agarrou a mão quando ela se inclinava sobre ele, e a olhara com estranha atenção em que ela julgou perceber um temor absorvente.

- Tenho dito loucuras? - perguntou. E o débil sinal de alívio que ele fez quando Diana lhe assegurou o contrário, fê-la virar o rosto para esconder as lágrimas que quase a traíam.

Durante todo o dia, poupando as forças, ele falara muito pouco, mas nas poucas horas em que ficara a sós com a esposa do sheik raramente tirava os olhos do rosto dela, e o conhecimento que esta obtivera tornava-lhe o pesar ainda mais intenso. Ela compreendeu que o enfermo lançava o derradeiro olhar para quem fora para ele o ente mais querido da terra, e o patético daquela muda saudação era-lhe mais penoso do que julgava poder suportar.

Ela convencera-se de que o ferido ficava desassossegado quando desviava dele a vista e, por isso, ficava o dia todo junto dele, raramente se afastando de perto do leito, mesmo para tomar as refeições, a que ela se constrangia contra a rebeldia da vontade.

Todos os dias se suspendia a vida ordinária do acampamento. Do lado de fora do enorme pavilhão, homens sóbrios amontoavam-se silenciosos e faziam grupos, esperando, gravemente, notícias do homem que durante tanto tempo fora um bom amigo de todos, cuja vinda tinha sido aguardada quase com tanto fervor como a do chefe. Entretanto, nas pintadas guitounes, no outro lado do acampamento, as mulheres que ainda choravam os seus mortos interrompiam as suas lamentações para dirigir a Alá uma prece em favor do médico querido cuja competência curara tantos que já agora estavam impossibilitados de receber a cura.

Assim, hora após hora se arrastava no carrilhão do tempo, e ainda Raul sofria, e nada de notícias de Caryll e Ahmed.

Certo dia, que parecia sem fim, excitando ao máximo os nervos de Diana, ele começou a falar sobre o sheik.

Logo ao meio-dia, cedendo às sugestões de sua esposa, embora ele não reconhecesse a necessidade de fazê-lo, enviara reforços para guardar a estrada de El-Hassi e com eles um grupo de escuteiros a cavalo, que deveriam ser colocados por intervalos ao longo da estrada para que as notícias, tão ansiosamente esperadas, fossem recebidas com a menor demora possível.

Tudo o que se poderia ter feito se fizera, e nada mais restava do que esperar.

Escondendo a sua própria ansiedade, procurava sempre combater os temores de Diana, lembrando-lhe a partida dos cavaleiros há algumas horas, lembrando-lhe mais que os reforços tinham seguido, circunstância, disse, de grande relevância porque o destacamento dos filhos era muito superior ao que eles perseguiam.

Mas embora ela o ouvisse pacientemente, embora procurasse encontrar consolo nos seus argumentos, ele notou que a agitação dela se tornava, hora a hora, mais visível, viu a sua face tornar-se cada vez mais lívida, mais branca, com os olhos voltados afectuosamente em direcção à entrada semiaberta.

Nas sombras da noite, o clarão solene que anunciava a vinda das trevas - clarão que nesse dia assumira mais significativa intensidade, maior que a do costume - adensara a atmosfera de sombra e melancolia, induzindo a um sentimento de aguda depressão, que quase a fez desmaiar. No crepúsculo espesso, antes de Gastão acender as luzes, ela estivera sentada com as mãos do sheik entre as suas, sem falar, somente a olhar, a olhar até os olhos doerem ofendidos pela luz ofuscante que se escoava pela porta. Esquecida até de Raul, com os pensamentos perdidos na amplidão arenosa do deserto, ouvia, orava e temia pelos filhos que tanto amava. O acender das luzes só lhe aumentou a ansiedade, para lhe fazer o tempo mais longo e lembrar-lhe que a noite chegara. E a noite viera, sem alívio, sem a palavra pela qual esperava.

Cerca das dez horas, estava ela à espreita na sala da frente, pediu-lhe o sheik que fosse descansar, mesmo que não pudesse dormir. Temendo a solidão que alongava horrivelmente as horas, quase desesperadamente pedira para ficar. Mas ele sabia que a sua energia estava esgotada e por isso, pelo amor que lhe dedicava, insistiu.

Gastão, também, fora dormir um pouco e agora, à última hora, o sheik estava sentado ao lado do amigo, cuja vida tudo daria para salvar.

A noite ainda durava, com a temperatura rarefeita. E todo o acampamento desperto e agitado, como ela sabia estar; havia ali perto, ao luar, congregados à porta da tenda, outros que partilhavam da vigilância, sem que voz alguma lhe chegasse aos ouvidos e ruído algum viesse quebrar o silêncio pesado que cada vez mais se adensava, cada vez assumia mais notável significação.

O quarto estava meio envolto em trevas e cada canto sombrio e obscuro. Só uma lâmpada continuava acesa, a qual, obscurecida por causa dos olhos moribundos de Raul, projectava um pálido círculo de luz no divã em que ela se sentara.

No limite daquele círculo de luz estava sentado Ahmed ben Hassan, com as mãos crispadas, voltando a cabeça, em vigília, em torno a Raul, que parecia estar adormecido, enquanto os seus pensamentos se concentravam naqueles longos anos de amizade que tanto significavam para ele.

Parecia-lhe impossível crer que aquela íntima camaradagem estivesse prestes a chegar ao fim, que talvez antes da madrugada dela já não restasse senão a memória.

Cada incidente de importância da sua vida parecia inseparável do ferido.

Na adolescência fora ele o guia e mentor daquele casal, no meio das novas e estranhas cenas que tinham feito a existência daquele filho do deserto, na capital da França, verdadeiramente insuportável. - Nos tormentosos dias da sua juventude, Raul tinha sido a única influência, maior que a do velho sheik, a que Ahmed se rendera. Com Raul, antes da morte de seu pai adoptivo, viajara e desempenhara os papéis mais importantes em muitos recantos longínquos da terra. De Raul viera a saber a verdadeira história do seu nascimento e do seu parentesco. Fora por meio de Raul, depois que assumira a direcção da tribo, que se pusera em contacto íntimo com o mundo, que de outra maneira sempre ficaria imensamente distante da sua solidão. Fora com Raul que mantivera íntima camaradagem, era pela chegada de Raul que muitas vezes ansiava, em razão de assuntos importantes que se impunha resolver, e aguardava-o com sofreguidão que lhe custava reconhecer. E, no momento da sua maior degradação, Raul viera... Raul, cujo cavalheirismo deveria fazer a sua própria brutalidade mil vezes mais brutal à mulher que ele não soubera poupar na sua vergonha, a quem fizera amante, perante um homem da sua própria categoria.

Porque não amara ela Raul em lugar dele? Porque não o deixaram na miséria e solidão que merecia? Se tivessem querido, provavelmente de há muito se teria suicidado, porque a vida sem ela haveria sido insuportável. Mas ao menos ele não teria a consciência do sangue de Raul a manchar-lhe as mãos, como agora a tinha, porque directa ou indirectamente essa morte se relacionava com o serviço dele.

Perdido em penosos pensamentos, foi com pasmo que viu os olhos do ferido abertos a fitá-lo com o fantasma de um sorriso nos lábios lívidos.

Foi aquela voz meio escarnecedora, meio afectuosa, que falou:

- Onde estais, Ahmed?

O sheik estremeceu ao tocar aqueles dedos brancos, límpidos, que lhe eram estendidos.

- No inferno, creio - disse com infinita amargura - ou tão perto dele, provavelmente, como nunca estive. A realidade não pode ser pior do que nós a fazemos.

Havia muitos anos que o assunto fora entre eles discutido, mas Raul sempre soubera que remorso íntimo mareara a felicidade do amigo e naquela noite procurava a ordem de pensamentos que provocara aquela frase amarga.

Fez um débil gesto de protesto.

- O inferno intercala-se no paraíso, meu amigo - disse com doce censura. - Tivestes vinte anos de céu na terra, oh! demónio feliz, como posso testemunhar. Podes ainda lembrá-lo? Se «ela» perdoa, porque não podeis fazer o mesmo?

O sheik largou-lhe a mão em rápido protesto.

- Se houvésseis feito o que eu fiz, poderíeis esquecê-lo? - gritou com mais amargura que antes - mas vós, bon Dieu, jamais cometeríeis essa infâmia.

Um ar penalizado cobriu o rosto de Raul, que remexeu as mãos no travesseiro.

- Quem sabe? - disse vagarosamente. - Para ganhar o que ganhastes teria feito também o que fizestes. Se a mesma tentação me viesse...

A sua voz cansada parou e, quase inconscientemente, os seus olhos fixaram-se nas cortinas que separavam o dormitório.

- Tout comprendre c’est tout pardonner - murmurou. Compreender tudo é tudo perdoar. Ela compreendeu e, porque amou, pôde perdoar e esquecer. Se, desde então, lhe fizestes qualquer mal, ou se deixastes de manter o amor, teríeis justa causa de amargura. Mas fizeste-la feliz todos estes anos. Isso nada vale, meu caro?

- É isso o que tem feito a minha vida digna de existir - replicou o sheik. - Sem o seu amor e sem a nossa amizade, só Deus sabe o que me teria acontecido.

Envergonhado da súbita emoção que lhe fez tremer os lábios, levantou-se inopinadamente e foi até a mesa em que se achavam os papéis que foram tirados do corpo de Carl Rost, papéis que seriam de grande valor para o governo, no que respeitava ao país que, poucos meses mais tarde, a nuvem tormentosa da conflagração europeia arrebatou à França.

Contemplando-o com o rosto carrancudo perto dos documentos escritos que estava virando nas mãos, Raul agradeceu a Deus, como já muitas vezes fizera durante vinte anos, a força que lhe dera para conservar aquela amizade. Nem o amor que o consumia a tinha maculado, e uma perfeita camaradagem chegara, ininterrupta, até o fim da vida.

O fim! Um débil sorriso bailou-lhe nos lábios. Podia pensar nele calmamente, pois que nada tinha a lastimar, nada de que penitenciar-se. A mulher que amara era feliz e se somente pudesse deter a morte até que Jasmim voltasse - como certamente voltaria, estava convicto - morreria sem o mais leve pesar. Mas morrer sem saber o que era feito dela - Deus! seria duro!

A mão crispou-se-lhe violentamente ao sentir a dor aumentar e, por momentos, ficou com os olhos cerrados, lutando contra uma fraqueza mortal que prenunciava o estado de coma.

Era um aviso, que não podia desprezar, de que devia procurar saber o que tivesse a indagar, porque já não era possível maior demora.

A sua voz fraca trouxe de novo o sheik para perto de si.

- O mouro - murmurou. - Preciso vê-lo agora, se tenho de vê-lo alguma vez. E quero saber ao certo, antes de me ir deste mundo.

Contemplando a face morena, congestionada, que era ainda a mesma naqueles últimos instantes de vida, o sheik compreendeu que o amigo estava falando somente a verdade. Hesitou, entretanto.

- Pelo amor de Deus, poupai-vos isso, rogo-vos. Deixai que só eu o veja...

O murmúrio débil de Raul tornou-se um pouco mais forte.

- Não fará grande diferença, meu caro, e eu mesmo quero vê-lo e ouvir a verdade dos seus lábios antes da minha morte - disse mais firmemente. - Mandai buscá-lo, Ahmed. Isso tornaria mais fácil a minha partida deste mundo.

Com um pequeno soluço, porque no momento lhe eram impossíveis as palavras, o sheik foi até a porta aberta e, batendo as mãos, deu uma ordem ao criado que o estava esperando, sem ter sido chamado.

O amigo ansioso como que imergiu no chefe quando este voltou com rosto fechado e duro, os cílios carregados numa formidável carranca. Arrastou a cadeira um pouco para longe do divã e sentou-se para esperar em silêncio a vinda do prisioneiro.

Cônscio de que com pouca força podia contar, Raul também estava silencioso, sofrendo falta de ar, os olhos brilhando em febril expectativa.

Um criado chegou sem fazer barulho, a fim de tornar a acender as lâmpadas que haviam sido apagadas para refrescar o quarto. Após ele, o escrivão, que deveria registar o depoimento do mouro, curvou-se em respeitoso salamaleque e acomodou-se numa almofada perto do sheik, espalhando pelos joelhos o material que trouxera para o fim para o qual fora chamado.

Chegaram depois Yusef e dois subchefes, que se colocaram atrás de Ahmed. Por último, após um intervalo que, apesar de curto, a Raul parecera de um século, chegou o mouro entre dois guardas, a cabeça enfaixada erguida e mostrando no rosto congestionado um ar de ira feroz.

Lançou uma olhadela para o homem que ele ferira e outra furtiva através do quarto grande, mobilado sumptuosamente, antes de se voltar arrogantemente para a figura silenciosa que ali estava numa cadeira.

Durante alguns segundos, o sheik não se mexeu nem falou. Depois, vagarosamente, levantou os olhos. - A todos os homens e a todas as coisas chega um fim. E porque por intermédio de ti o fim chegou rapidamente a um dos meus servos, digo-te de coração, homem, que o teu fim também está a chegar, mas não pode sê-lo tão depressa. Não está escrito que «toda a alma é dada em penhor daquilo que obrou»? Breve serás chamado para o resgate desse penhor. Antes, porém, do julgamento de Alá, existe o julgamento dos homens. Conheço um pouco dos males que cometeste. Mais do que isso, porém, se és o homem a quem procuro, devo ficar sabendo. Se queres, pois, morrer rapidamente, dize as coisas que preciso saber.

As palavras saíam da boca do sheik calmamente, quase indiferentemente, a voz baixa mal atingindo o semicírculo de homens armados que guardavam o prisioneiro por trás. Mas através da maciez da voz havia um quer que fosse de ameaça final, como algo havia no frio, firme olhar pousado no mouro, que fez os olhos deste piscarem e as mãos crisparem-se-lhe.

- A morte virá em qualquer caso - murmurou com ar sombrio, e vendo a leve sacudidela da cabeça do sheik desvanecer-lhe a última esperança, o prisioneiro aprumou-se, sacudindo os ombros. - Já que só me resta morrer, morrerei sem falar - gaguejou - porque nesse caso que me aproveitará falar?

O sheik franziu a testa; os olhos assumiram um ar sinistro.

- Que aproveitará? - repetiu com um sorriso terrível. -

Já te esqueceste de que há muitos caminhos que levam ao paraíso ou ao inferno? Ouve e, depois de eu falar, escolhe o caminho que melhor te pareça.

E na mesma voz baixa, desapaixonada, do princípio, disse palavras que provocaram um protesto de Raul e que fizeram tremer o homem que, em seu tempo, muito mais fizera a muitos desgraçados que se interpunham contra os seus malignos propósitos, mas que gostava de experimentar, por si, o que fazia os outros suportarem. O seu orgulho selvagem revoltou-se contra o terror sufocante que o fazia intimamente pedir água e esforçou-se desesperadamente por manter o aspecto ousado que a princípio assumira. O seu respirar ofegante, porém, traía o terror que procurava disfarçar e grossas gotas de suor se lhe amontoavam na testa, fixando o rosto impassível do juiz, perante o qual estava, e as faces igualmente impassíveis dos homens que o cercavam. Neles via o seu fim e o fim de todos os seus projectos e esperanças. Rangeu os dentes num paroxismo de furor impotente. Foi Raul que quebrou o silêncio em que caíra o quarto.

- Ahmed! Pelo amor de Deus! - murmurou, protestando, em inglês. - Não façais assim para dele obter as informações que me são precisas.

O sheik olhou para os seus ombros com um sorriso de satisfação.

- Ficai calado - recomendou calmamente. - Não haverá necessidade de chegar a extremos. Esse sujeito já está a suar. Tomará o caminho mais fácil. De resto, nos meus métodos de persuasão não há mais do que ele prometeu ao meu filho quando lhe caiu nas garras. Oferecer-lhe-ei menos de que ele ofereceu ao meu filho?

O sorriso desapareceu quando o sheik se voltou de novo para o mouro.

- Tenho de esperar toda a noite, cachorro? Escolhe!

Novamente os longos dedos do preso apalparam as

dobras do seu sujo albornoz e um grunhido lhe escapou dos lábios, que mordia nervosamente.

Durante um momento permaneceu irresoluto, relanceando os olhos de um lado a outro, como se estivesse procurando um meio de fugir. Depois, com tremor de raiva impotente:

- Uma vez que a misericórdia do meu senhor é tão grande, que posso eu escolher? - rosnou.

Uma súbita mudança se operou nas suas maneiras e a ironia da sua voz deu lugar a uma melíflua confidência, dita em palavras que rapidamente lhe saíam dos lábios.

- Que deseja saber, meu senhor? - perguntou em tom de lisonja. - Os segredos do cristão que me vi obrigado a matar ontem? Não os conheço. Eu era o guia dele, não o seu confidente. Demais, que tinha eu com os seus segredos ou com ele próprio? Os seus segredos estavam anotados nos papéis que ele escondia no fato. Vi tirarem-nos do seu corpo ontem à noite. Sem dúvida, estão nas mãos do meu senhor para os ler, se quiser. Não tenho deles conhecimento, nem das razões que o trouxeram da sua terra. Quanto a mim, senhor, peço-lhe que me diga se um homem tem de expor as razões por que procurou vingar a sua honra, por que procurou reaver a filha que lhe foi roubada...

O sheik interrompeu-o com um gesto de impaciência. - Tudo isso é sabido - disse com dureza - e cumpre poupar o tempo. O que eu quero ouvir respeita, não ao presente, mas ao passado...

Parou por um instante, fitando o rosto escuro, suado, do preso, sobre o qual havia uma palidez mortal.

- Vamos ao passado - tornou significativamente. - É melhor que dele te lembres. Ser-te-ia melhor que houvesses lidado com as serpentes toda a tua vida, do que voltar ao teu velho ofício. Pelas acções se conhece o homem. A noite passada mataste o teu patrão, mas que outro patrão mataste anteriormente, ó Ghabah marroquino?

Com um grito estrangulado, o mouro encostou-se aos homens que o cercavam.

- Não o matei - murmurou de modo chocante. - Ele morreu, mas pela cabeça do Profeta juro que não o matei...

- Entretanto, pela cabeça do Profeta alguém jurou que te viu matá-lo e a doze homens que estavam sentados desarmados, ao redor das brasas moribundas de uma fogueira, num acampamento.

- Mentiu, porque não houve quem visse...

Muito tarde compreendeu o mouro que caíra numa armadilha e procurou engolir as palavras impetuosas que soltara e que eram uma clara confissão do crime.

Anos a fio supusera o inquérito abandonado e acreditara-se salvo e impune. Mas agora viera a saber que o inquérito não fora encerrado, que as pesquisas haviam prosseguido e que, desconhecido para ele, o vingador do sangue derramado viera no seu encalço, apanhando-o irresistivelmente. Ah! Como amaldiçoava amargamente o acto de loucura que de novo o trouxera à terra do crime! Mas quem era o vingador?

Num súbito arranco de inspiração os seus olhos vermelhos de sangue rolaram em direcção a Raul e num gargalhar de louco avançou.

O sheik lançou-se contra ele, para interceptar-lhe a passagem. Entretanto, os guardas acercaram-se dele, obrigando-o a retroceder, mas através do grupo de guardas a sua voz rebentou, em tom triunfante:

- É verdade que o matei, ao louco, mas pergunta o meu senhor porquê? Foi por interesse monetário, pensas tu! Perante Alá, ele era tão pobre como eu. Mas uma coisa ele tinha e que eu desejava, uma coisa que ele tinha e eu queria possuir, até que o fogo devastador do meu desejo me levou a matá-lo para que eu pudesse arrebatar-lhe aquela coisa pela qual a minha alma se abrasava. Amaste-a também, ó cristão? Foi por amá-la que me apanhaste para me matar? Sabe, então, que eu, sim, eu, a tomei por amante, a fiz minha. Três anos, ó cristão, estes braços a cingiram. Três anos estes olhos lhe contemplaram a beleza magnífica. Era escrava «minha», «minha», até que a matei porque a sua frieza fez que o meu amor se convertesse em ódio. Preciso contar-te como ela pagou essa frieza? Preciso contar-te o que fiz antes de a matar?...

A mão crispada do sheik tapou-lhe a boca imunda.

- Basta que ela tenha morrido, besta louca - gritou com acento fulminante. - Que foi feito da filha?

O mouro cambaleava, numa hedionda explosão de paixão desperta.

- A filha guardei-a eu - respondeu em voz grossa - para me recordar o ódio, para lhe lembrar também que a mãe dela não «me» deu filho algum. Doutro modo, não a teria poupado.

Fitando-o com ardor, o sheik formulou a última pergunta:

- Essa filha é então Jasmim?

A resposta, que tinha tanto valor, foi dita prontamente pelo mouro.

- Sim, é a menina chamada Jasmim - disse com os lábios entreabertos com malícia. - É Jasmim, a filha do orgulhoso senhor francês. É Jasmim, aquela que o filho do meu senhor quis tirar-me para fazer dela seu instrumento de prazer. Querê-la-á ainda, acreditas, depois do que Alman lhe fez?

A voz zombeteira tornou-se ténue murmúrio, e, novamente gargalhando como louco, o mouro caiu, trémulo e espumante, nos braços dos guardas, com sangue a escorrer-lhe do nariz e da boca.

Muito depois de ele ter sido levado, ainda as suas explosões de raiva penetraram no quarto silencioso onde o sheik estava de joelhos perto do divã, procurando, com a ternura de uma mulher, acalmar o moribundo que jazia com as faces enterradas no travesseiro, murmurando com o horror que dele se apoderara:

- Meu Deus, meu Deus! Quanto terá ela sofrido! Se ao menos eu pudesse tê-la encontrado, poupar-lhe-ia um pouco daquela agonia. Três anos, Ahmed? Pensai nisso! Foi por minha culpa? Poderia eu, porventura fazer mais do que fiz? Deus sabe como pesquisei. Deus sabe que fiz o mais que podia...

Com um murmúrio de protesto, o sheik pegou na mão trémula que se agarrava ao cobertor.

- Raul! Raul! - exclamou, suplicante. - Por mim, por tudo que amamos, cuidai de vós mesmo, peço-vos. Para ela, graças a Deus, foram só três anos. Podia ser mais. Esquecei, amigo. Era o seu destino, pobrezinha, e o que somos nós para lutar contra a sorte? Nada adianta estar a lembrar. Nada há de que possais censurar-vos. Fizestes tudo que vos foi possível, ninguém faria mais. Ele soube apagar bem as suas pegadas, aquele diabo cruel! Estava louco naquele tempo e agora também está louco. Eu, por mais que queiras, não posso mandar fuzilar um louco.

O silêncio caiu entre ambos e aos poucos as contorções espasmódicas que lhe sacudiam o corpo diminuíram e Raul acalmou-se.

Foi quando a luz hesitante da alva principiou a iluminar o quarto que o enfermo voltou a falar. Agitando-se dolorosamente, virou a cabeça no travesseiro, contemplando o rosto fatigado que lhe estava próximo.

- A jovem, Ahmed - murmurou dèbilmente - quando o rapaz a trouxer...

Havia um mundo de incerteza naquele olhar interrogativo e os olhos do sheik cobriram-se de lágrimas.

- Meu amigo, é preciso perguntá-lo? A jovem ficará aos nossos cuidados, de Diana e dos meus, se meu filho a trouxer de novo.

Com um sorriso cansado, Raul fechou os olhos.

- Trá-la-á, sei-o - murmurou com sonolência. - Quero vê-los e a Caryll quando voltarem. Mas, se eu já houver morrido, falai-lhes da minha estima, Ahmed, e, para seu próprio bem, contai a Caryll o que ele precisa saber.

Houve uma pequena pausa. Depois levantou as mãos enfraquecidas e disse com voz mais vagarosa e dormente:

- Quarenta anos, Ahmed, e nunca houve nada entre nós. É muito tempo, muito tempo, meu velho Ahmed...

Durante toda a vida, Caryll jamais se esqueceu daquela rude excursão nocturna. Com a ciência de que só restavam uma ou duas horas da luz do dia, a partida fora tempestuosa. Durante algum tempo, embora fosse bom cavaleiro, fora forçado a concentrar toda a atenção no fogoso animal cuja força experimentava pela primeira vez.

Havia feito excursões a cavalo, em caçadas, desde a infância e metera-se em aventuras venatórias através do país, mas nunca participara num furacão como aquele, numa corrida que era de vida ou de morte, que fora iniciada com terrível propósito. A deslocação do ar, o ruído das patas dos cavalos a galope, o pensamento do mal iminente, excitaram-no como nunca.

A Inglaterra e a vida calma, prosaica que ali passara pareciam-lhe coisas longínquas naquela noite. E a desordem mental que lhe sacudia o espírito metódico, as visões estranhas e as cenas com que o haviam posto em contacto, que eram longínquas na sua bem ordenada existência, acharam um adequado clima nesse furioso raid que lhe paralisava o coração e que o enchia, no íntimo, de prazer inenarrável.

Poucos momentos antes, pela primeira vez, enfrentara a morte e vira o seu melhor amigo a morrer num cenário de dor e violência. Completamente fora de si, havia-se rendido, por fim, aos instintos hereditários e aos impulsos adormecidos que jamais soubera existissem. O convencionalismo morrera e, não mais vítima dos seus preconceitos e hostilidades, naquela noite era somente o filho do seu pai, um na mente e outro no coração com aquele grupo de duros e inflexíveis vingadores. Parecia-lhe subitamente que durante todo o dia se movera pelo senso de simpatia e bondade, envolvendo a aceitação de uma filiação que dantes repudiava.

O dia fora bem diferente do que ele esperava e a expedição a Ras-Djebel produzira resultados que jamais tinham sido sequer sonhados.

Chocado pelos recados peremptórios do pai que todo o tacto e cortesia de Gastão não conseguiam amenizar, restando como ordens claras e obrigatórias, havia consentido em acompanhá-lo, com mal disfarçada relutância e com o ar sombrio de quem não deseja conciliação.

Mas, dominando a própria repugnância, o sheik tinha feito um esforço decisivo para ganhar a confiança do filho, falava-lhe com muita simpatia sobre os assuntos que trouxeram Caryll da Inglaterra e atraiu-o, pouco a pouco, para uma conversa que muito contribuíra para estabelecer uma base de entendimento entre ambos. Muito antes de chegar a Ras-Djebel, Caryll começara a falar e, quebrado o gelo, achara que o resto era fácil fazer. A reserva abandonara-o à medida que entusiasticamente se aprofundava no assunto, de que ficou a par, mesmo nas mais insignificantes minúcias, e chegara a esquecer-se de quem era o ouvinte, à medida que falava eloquentemente de lucros e perdas, de chácaras e fazendas, de madeiras e florestas, de animais de raça e dos métodos modernos da agricultura.

Falar nisso era, de resto, um alívio, era um alívio tratar de interesses que, se não fossem reais, eram, pelo menos, simulados. Em Ras-Djebel ele não tinha, do seu lado, causa alguma de interesse. Um oásis que era o maior que jamais vira, um dos principais centros de actividade do sheik, e as horas que ali passara não tinham sido assinaladas por cenas tristes que lhe empanassem o gozo. Nada achava que lhe merecesse a reprovação nos cavalos maravilhosos que tornaram célebre a tribo. Depois de mal-ensaiada aprovação passara rapidamente a uma honesta admiração. E a melhor compreensão, começada durante o dia, não diminuíra durante a excursão de regresso.

Mais descansado, em paz consigo mesmo, desde que deixara a Inglaterra, Caryll começava a ter outra apreciação das circunstâncias do ambiente, a ver beleza na dourada expansão do deserto, a deleitar-se com a sua calma e encanto. Mas a sua chegada ao acampamento era uma rude lembrança da ameaça que jazia oculta na sua ridente tranquilidade e lhe evocava vividamente as vicissitudes de uma vida que estava fora do alcance da sua compreensão.

Antes de ali chegarem, foram advertidos por uns ruídos de feroz tumulto que denunciava alguma ocorrência fora do comum, e o sheik transpusera o local com desabalado galopar.

Chegando, encontraram o acampamento em desordem com o seu espaço enorme, habitualmente tão calmo, formigando com densa mole humana, uma confusão de ruídos e movimentos, em que cavalos meio selados, transtornados pela excitação geral, corriam em todas as direcções. Mulheres e crianças eram empurradas para aqui e ali, quando se chegavam à multidão de homens que gesticulavam, passados em revista por Yusef e Ahmed, cujo rosto cinzento o tornava quase irreconhecível.

Os acontecimentos seguiram-se com uma rapidez que não deu a Caryll tempo para pensar.

Tinha visto o sheik, com a aparência de um cadáver, deter-se um pouco, perto do mensageiro de quem Gastão tentava arrancar informações. Tinha pegado e disposto na cinta, mecanicamente, a caixa de balas e o revólver que lhe eram entregues por alguém lívido que parecia Guilherme.

Montara o cavalo folgado que, por uma espécie de lance de mágica, surgira a seu lado. E antes que lhe fosse possível compreender o que se passava e desse conta da gravidade da situação, via-se galopando para o sul, numa corrida como nunca conhecera.

Enquanto não entrara em El-Hassi, não havia chegado a compreender bem o perigo que sua mãe tinha corrido nem o risco em que estava Jasmim.

E o choque produziu-lhe uma impressão brutal, superior ao entendimento humano, fazendo-o bruscamente ter uma compreensão que lhe permitia reconhecer uma pretensão que era maior que a sua, que o fazia capaz de abandonar ódio e inveja e levantar-se acima de si mesmo.

Voltara uma página na história da sua vida quando fez o espontâneo oferecimento, franco e sincero, e também franca e sinceramente aceito. Agora, correndo ao lado do irmão, já não odiava este, estava cônscio de que a inquietação dos últimos dias passara como passa um pesadelo e estava em condições, finalmente, de pensar com calma, senão desapaixonadamente, na breve loucura, pois que aquilo lhe parecia agora que não fora mais que loucura, que nele despertara paixões cuja lembrança agora lhe causava desgosto e acanhamento.

Não deixara de a amar. Amava-a ainda e sabia que vinha ainda longe o tempo em que a lembrança dela se dissipasse. Mas a atroz febre de desejo, essa, apagara-se como nascera, bruscamente, e o amor que lhe restava era somente a piedosa ternura que sempre nutrira por ela.

Pensou nisso admirando-se do facto.

Havia alguma coisa que lhe faltasse na compleição? Era, talvez, incapaz de duradoura amizade? Mais do que nunca se sentia incapaz de se compreender. Uma coisa, porém, sabia.

Contemplando a face jovem e branca ali a seu lado, compreendia o que o amor jamais significaria para ele, e o que significava para a natureza ardente, apaixonada e tempestuosa de seu irmão.

E se a lembrança da sorte da jovem era para ele como uma faca cravada no seu coração, quais deveriam ser os sentimentos do homem que para ela tinha sido o que ele, Caryll, jamais fora e que tivera nos braços a terna doçura que agora talvez estivesse fora do alcance dos seus ou dos desejos de qualquer homem!

A sua mente embrenhou-se em horrível apreensão. Que encontrariam no fim da árdua caçada e quando o alcançariam?

Os cavalos pareciam fraquejar e, perdendo momentaneamente o domínio de si mesmo, esporeou inconscientemente o animal que montava, mas a subsequente reacção, que o fez quase ser cuspido ao solo, forçou-o a concentrar a atenção no enfurecido cavalo, que tão ardentemente protestava contra o desnecessário estimulante.

Enraivecido e envergonhado da crueldade que mostrara e que era tão contrária à sua natureza, Caryll pôs-se a acalmar o fogoso corcel e a repelir de si os pensamentos que lhe tumultuavam no cérebro.

Os movediços montes de areia haviam dado lugar a um terreno quase nivelado, chato e inexpressivo. O deserto desdobrava-se pela frente em insípida monotonia enquanto os cavaleiros galopavam, sentindo o vento sibilar-lhes aos ouvidos e o ruído seco das patas dos cavalos e o ocasional tinido das armas, únicos sons que quebravam a intensa quietude local.

Galoparam durante duas horas sem afrouxar a velocidade.

Depois, como aos poucos a luz se fosse extinguindo e a treva os fosse cercando, moderaram o passo, cada vez mais, até que finalmente o guia, na frente, levantou a mão e, empurrando o cavalo, apeou-se, com um grunhido.

Um sentimento apreensivo tomou Caryll ao contemplar o céu escurecido, onde escassas estrelas brilhavam pàlidamente, e o seu coração pulsou à ideia das horas que deveriam decorrer antes que a Lua surgisse.

Quase antes de formular pensamentos nesse sentido terminou a breve parada. Com uma lâmpada acesa perto do chão, o guia recomeçou a marcha a pé, acelerando o passo num trote incansável que aparentemente não lhe exigia esforço.

Depois uma escuridão incompleta os envolveu, de maneira que Caryll sentia, mais do que via, as sombrias silhuetas que lhe marchavam ao lado.

Os homens extraviavam-se por vezes e os cavalos, certa vez, erraram o caminho. E como ele dirigisse por ali o seu esplêndido corcel, ouviu uma voz sumida dizer-lhe: «Peço perdão, senhor!» Aquela voz, surgida da treva, fê-lo imaginar no que Guilherme, que se negara a ficar atrás, estaria pensando, e o seu entusiasmo de jovem achara, finalmente, satisfação na «coisa real», que ora se consubstanciava num caminho no qual talvez nunca pensasse.

A lembrança de Caryll fê-lo discutir consigo mesmo se fizera bem ou não em aceder às súplicas lacrimosas que o bom servo fizera para o acompanhar nesta expedição, que poderia vir a terminar num desastre para todos. Era uma contingência de que não cuidara e que de modo algum podia ser considerada como um dos deveres daquele leal servo. Se ele, Caryll, fosse morto, isso era inteira e individualmente coisa que só a ele interessava, ao passo que Guilherme tinha mãe viúva que dele dependia. Enfim, se o pior sucedesse, o fundo de pensões do Estado proveria àquilo de que ela necessitasse e Guilherme não estava correndo maior risco que os demais. Desde que preferia vir, deveria tomar a sua parte com os outros, viver ou morrer conforme a sorte o determinasse.

- Sorte? Bom Deus!

Os lábios de Caryll entreabriram-se numa inaudível explosão de espanto.

Viajara bastante, reflectia, e agora filosofava sobre a sorte como qualquer árabe ingénuo. Árabe, não. Mas, era esta a terra do seu berço e naquela noite, pela primeira vez, ouvira o apelo desta terra. Naquela noite, pela primeira vez, percebera que os sentidos se lhe rendiam à subtil fascinação do seu estranho encanto. E assim renunciava à luta. Instintos herdados suscitavam-se finalmente e tiravam-lhe toda a capacidade de resistência. O deserto reclamara-o. E, contente com a rendição, deixava os pensamentos voarem num devaneio, ao passo que se rendia à maravilha daquela estupenda noite oriental e ao novo aspecto que a vida lhe apresentava.

Ante as exigências do momento, Caryll que esquecera Raul e quase esquecia o perigo objectivo dessa excursão nocturna, quando os cavalos se detiveram bruscamente, impelindo-o de novo ao presente. Levantou os olhos com ar de espanto.

O tempo voara sem ele dar por isso e na macia luz da Lua que ele jamais vira nascer, levantou-se e viu o irmão de pé em conversa com o guia e, ao derredor, todos desmontando e afrouxando os couros das selas.

Apeando-se também, envergou o casaco que Guilherme segurava, esforçando-se por aliviar as cãibras das pernas.

- Sabeis, mais ou menos, que horas são? - perguntou a Guilherme, que ainda se detinha ali perto, com olhar crítico fixado no árabe que estava desencilhando o cavalo do patrão.

Guilherme acendeu um fósforo e consultou o relógio.

- Faltam dois minutos para a meia-noite - informou metodicamente, guardando o relógio. E acrescentou em sua meia língua pitoresca: - Palavra! Este povo mexe-se, senhor! Pensava que já conhecia o pior desta vida, mas agora temos esta aventura muito arriscada. Estava admirado desses pobres cavalos, que não podiam sequer tomar ar!

Acrescentou mais algumas palavras inconsequentes, que fizeram sorrir Caryll, que lhe volveu com calma:

- Obrigado, Guilherme, cuidais de tudo.

Essas palavras fizeram o rosto do homem corar de prazer. Caryll foi depois juntar-se ao irmão.

Atrás, os camaradas sentavam-se em grupos, cochichando entre si, tirando proveito do descanso que lhes fora concedido. O guia estava já a dormir quando Caryll por ele passou. Mas não se descortinava desejo de dormir na atitude de Ahmed, que estava distanciado, de pé, olhando o deserto e a Lua em direcção ao norte, um cigarro quase apagado pendendo-lhe dos lábios fechados. O seu talhe estava dominado por uma febre de impaciência, conservando-se imóvel por duplicada força de vontade.

Alheio a tudo que lhe estava em redor, não parecia saber que não estava acompanhado e Caryll achou que o melhor era não lhe interromper o silêncio.

Por último, vencido pela inacção, o visconde principiou a mover-se sem descanso, quando o irmão lhe fez uma pergunta brusca:

- Sabeis o que a nossa mãe queria dizer quando falou em Isabel de Chailles? Quem é essa Isabel De Chailles?

Por um momento, Caryll fitou-o com espanto. Pois então ele não o sabia, bom Deus do céu? Lembrou-se então de que Raul uma vez lhe dissera que o irmão de nada sabia e Caryll sentiu-se amargurado porque a ele ficara competindo, no meio de tanta gente, esclarecer o homem que a raptara tão brutalmente.

Era melhor, porém, sob todos os pontos de vista, que o irmão soubesse a verdade e que a conhecesse sem mais delongas, e assim, calcando os próprios sentimentos, contou-lhe resumidamente, com a cabeça erguida, a história que ouvira na noite da chegada do irmão.

Quando terminou a narrativa, o ouvinte voltou-se sem uma palavra e retirou-se silenciosamente.

Não era o caminho que se tornara intransitável pela escuridão, que Ahmed viu, quando chegou a uma parada, nem a brancura infinita da planície, mas somente uma face delicada, oval, embelezada por uns olhos negros que estavam molhados de lágrimas, lágrimas que ele fizera verter!

Com sufocação, palpou as cicatrizes da ferida que fora há tempos aberta no seu peito.

Que diferença podia advir dessa história toda? Pensavam então que ele cuidava da identidade daquela rapariga? Condessa De Chailles ou Jasmim, a dançarina, que significava isso? Era a rapariga que o interessava. Somente a rapariga que ele amava, a rapariga que jamais deixara de amar, posto a raiva o fizesse negar esse facto e jurar que a odiava. Sem se lembrar da fraqueza dela, sem cogitar da sua própria força, dera rédeas à inata selvajaria da sua natureza e impusera terrível castigo à acusação que lhe imputavam.

Para satisfazer a sua cruel e insensata vingança, não se detivera mesmo diante da violência pessoal. Satisfazendo a sua ira torturara-a, a ela, Jasmim, flor frágil e delicada! Fizera-a sofrer física e moralmente, brincando com o seu crédulo temor e quebrantando com as suas impiedosas mãos o corpo pequeno pelo qual agora daria a vida - para o poder apertar de novo, mesmo por um só momento, nos seus braços! Que teriam significado para ela essas semanas de agonia?

Ela suplicara-lhe misericórdia e ele abusara vilmente dela.

Ela chorara a seus pés e ele zombara, rindo, das suas súplicas, zombara dos seus protestos de inocência e amor. Ela amara-o, sabia-o agora, amara-o até o fim, amara-o mesmo quando ele a maltratava.

Claramente, como naquela última noite, podia ver-lhe os olhos angustiados, cheios de lágrimas, ouvir a sua voz trémula, súplice. Um gemido escapou-lhe da boca.

- Alá, Alá misericordioso! - orava. - Que eu a encontre a tempo e possa penitenciar-me...

Esperar mais era impossível. Os cavalos teriam de ir, mesmo que os conduzissem à morte. Assobiou para os arredores e os companheiros acorreram prontamente.

Antes que chegassem, o guia montou de novo, pois que agora o luar mostrava o caminho com tanta clareza como se fosse dia.

A corrida era agora mais fácil de suportar e o rápido movimento, o ruído de patas por trás, a maciez do ar da noite acalmavam e davam uma sensação de esperança renascida, de coragem.

Mas as horas sucediam-se e o caminho ainda se estendia desoladamente e a esperança que animara o filho do sheik fraquejava. O medo horrível que desde o princípio lhe devorava o coração transformara-se numa agonia que o fazia sofrer medonhamente. «Tarde de mais!» «Tarde de mais!» Esse brado parecia estar contido no cicio da brisa, no grão de areia, na pata dos cavalos. «Tarde! Tarde!»

Antes de fazer o grande corcel negro correr como agora, as suas esporas também não estavam, como agora, cheias de sangue. Quase deitado no pescoço do cavalo, via por trás a distância vencida. Corria tendo os olhos fitos unicamente nos cascos dos cavalos, que tão eloquentemente falavam de uma raça tão ligeira e resistente, como era a sua.

Milha após milha e então, com as esporas e com a voz, impelia o galhardo cavalo, cujos lombos sentia tremer-lhe entre os joelhos. Caryll e os outros seguiam-lhe o exemplo, os corpos curvados sobre as selas, as faces morenas lívidas na fraquíssima luz da madrugada incipiente. Avante, com um só pensamento. Avante, até a cabeça se acalmar. O pesado pulsar do coração retinia-lhe aos ouvidos como o bater de um relógio. Avante, até uma explosão de luz purpurear o céu. Avante, através das ondulações caprichosas do terreno. Avante, até passar a baixa cadeia de rochedos que se erguiam ã vista com chocante subitaneidade, mascarando a linha de montes, transpondo-lhe a base escarpada e pendendo inesperadamente para a esquerda.

Saltando velozmente um precipício, o jovem rodeou o rochedo principal em desabalada carreira e depois voou para trás e puxou, com extrema violência, o freio, fazendo o cavalo moderar a corrida.

Uma aldeia avistava-se, quase dentro da areia, abandonada, cheia de cabanas destelhadas e muros carcomidos, jazendo, fria e desolada, na luz mortiça. Parecia desocupada, deserta. Mas no momento em que emergira de detrás de um rochedo, aos olhos atentos do jovem se deparou uma figura emboscada, vigilante, que correu a toda a brida, desaparecendo entre as ruínas das cabanas. Percebeu, então que chegara o termo da longa jornada.

O cansaço desapareceu e só lhe restava a consciência de uma agradável excitação indómita, que vencia até o temor que o torturava por ter de esperar ainda, apalpando o pesado revólver que arrancara da cinta, até que finalmente Caryll e o resto da expedição lhe surgiram à vista. Então, com agudíssimo assobio, fez-lhes sinal e ainda a alguns passos distante deles rompeu em direcção à aldeia.

Depois, uivando como os demónios que o povo supunha eles serem, os expedicionários galopavam, seguindo-o ansiosos por ganhar distância, com excitada alegria ao atingir a primeira pequena rua, cheia de vento e de areia.

A galopar sem tréguas, calcando a trote os pedregulhos que atravessavam o caminho, o grande corcel negro enveredou, após uma alameda, por um largo espaço aberto que dantes fora a praça do Mercado, tremendo com relutância, quando o jovem o impeliu para trás, no meio de infernal saraivada de balas.

Os tiros partiram da entrada escura de uma colunata meio demolida, mas quando os homens de Ahmed encheram a praça e responderam condignamente ao ataque, a fuzilaria cessou imediatamente. O jovem precipitou-se da sela e arremeteu pela estreita passagem. Caryll e os demais seguiram-no em tropel.

Corriam através de um labirinto de curvas sombrias, ziguezagueantes, admirados com a ausência de qualquer indício de bandoleiros, atentos contra qualquer inevitável emboscada, e ao encontrarem de novo a luz do dia compreenderam a razão daquele silêncio aparentemente inexplicável.

Em número reduzido e com o coração esmagado pelo final de uma empresa que resultara totalmente diferente de sua expectativa, os homens de von Lepel, após a primeira mostra de resistência que defrontaram, abandonaram o patrão à sua própria sorte e cuidaram de se pôr ao fresco como melhor lhes fosse possível, sem sequer esperarem um pagamento com o qual, aliás, sabiam que não podiam contar.

Quando Ahmed e os seus seguidores se retiraram através de arcadas em ruínas e foram dar a uma rua larga que terminava em pleno deserto, encontraram o último dos seus adversários tremendo como varas verdes, na sela, pronto para ir juntar-se aos seus companheiros, já em precipitada fuga. Com uma palavra, apenas resmungada, do jovem a S’rir, este correu em perseguição dos fugitivos, seguido de uma pequena escolta. Ahmed, porém, permaneceu imóvel, sem sequer dar atenção ao fogo de mosquetaria que irrompera do extremo da rua, sem dar conta da proximidade de Caryll, contemplando firmemente a entrada sem portas de uma casa junto à qual um cavalo, preso a uma argola existente na parede, dava mostras de intenso terror.

Depois, com um leve assobio entre os dentes cerrados, o jovem começou a mover-se quase imperceptivelmente, escorregou vagarosa e cautelosamente até perto da estreita abertura, da qual von Lepel, de revólver na mão, nu até o peito e meio descalço, com a face convulsionada a escorrer sangue, o olhava com insolente desafio que traía atroz desespero. No silêncio completo que se fez, explodiu uma gargalhada escarnecedora e o espião germânico deu um pulo para a frente. Uivou e disparou um tiro, mas apenas por uma fracção de polegada errou o alvo, que era a cabeça de Ahmed. A bala atingiu ainda um pedaço do haic do jovem, que se havia desviado a tempo.

No mesmo momento, antes que von Lepel pudesse fazer fogo novamente, o jovem deu um salto que era como o de uma pantera e derrubou o revólver da mão do teutão.

O ataque fora inesperado e von Lepel não estava preparado para o desviar, de modo que Ahmed apanhou em cheio o espião e arremessou-o contra a parede, fazendo-o debater-se novamente para desviar as mãos férreas que o esmagavam e que aos poucos lhe iam arrancando a vida. Percebeu depressa a sua inferioridade e que, embora fosse um ginasta treinado, a sua força era muito inferior à do adversário. Percebeu, também, que a morte rondava em torno dele, em forma ainda mais sinistra do que podia imaginar. Sentiu-se fraquejar e, como nunca, tremeu de medo.

Trémulo e lívido, com os olhos injectados de sangue a saltar-lhe das órbitas, lutando desesperadamente, estimulado pelo instinto de conservação, fixando a face fechada, impiedosa, que aos poucos se ia chegando mais a mais perto da sua, em breve perdeu a vista, os seus lábios tremeram numa última convulsão e a cabeça caiu pesadamente no ombro.

Cambaleando, o jovem endireitou o corpo e dirigiu os olhos relampejantes, não ao morto, mas aos seus próprios dedos, tintos de sangue. Depois, com outro terrível rugido, sem mesmo enxergar o grupo de companheiros vigilantes, nem Caryll, encostado no muro, acabrunhado ante aquele quadro medonho, avançou passando pela baixa abertura. Não sentia arrependimento pelo que fizera. O facto de haver morto um homem antes que o pai o fizesse, não o incomodava. Pensava tão-somente no que poderia encontrar nalgum canto daquele edifício em ruínas.

Cambaleando ainda um pouco, passou com uma ligeira sensação de torpor e medo por um pátio entreaberto, através de quartos destelhados, tropeçando em montes de pedregulhos e imundícies, e chegou finalmente à entrada de um estreito cubículo que era o único em relativo bom estado, no meio de tanta ruína.

O instinto disse-lhe que era ali que estava o que ele procurava e então, por um momento, ergueu o corpo e apalpou a porta com os dedos até lhe caírem nas palmas das mãos os pregos e ferrolhos. Vagarosamente, transpôs o umbral, esquadrinhando com os olhos penetrantes a imundície daquele quarto sórdido.

Ali, num canto, estava ela, não morta, como ele temia, mas pedindo a morte com um timbre de voz que lhe ficou tinindo nos ouvidos durante anos. Acocorada no chão, seminua, mostrando sinais de uma luta desesperada, com os cabelos desgrenhados ondulando pelos ombros, lá estava a gemer e a contorcer-se em agonia, com o rosto oculto, encostado à parede arruinada.

Respirando com dificuldade, ele permaneceu como petrificado, contemplando, cheio de dó, aquela figurinha quebrantada, ao passo que, uma a uma, as linhas infantis do rosto dela se apagavam para sempre. As feições de Ahmed endureceram, dando-lhe um aspecto terrível.

- Jasmim!

A rude exclamação rebentou dele como o grito de uma alma que estivesse nas labaredas do inferno. Com um suspiro, ela levantou-se.

- Senhor!

Os braços finos abriram-se-lhe em ardente saudação e ela correu, atravessando o quarto. Ao chegar junto dele, porém, os seus olhos encheram-se de medo e ela cambaleou, cobrindo as faces com as mãos.

Com um gemido doloroso, ela lançou-se-lhe aos pés, e rojou-se pelo chão salpicado de areia.

- Mata-me, mata-me - gaguejou.

Um estranho nevoeiro lhe flutuou nos olhos, empanando-lhe a vista, e o jovem sentiu pelas têmporas uma pressão terrível, como se uma faixa de ferro lhe comprimisse a cabeça.

Matá-la e depois matar-se. Era isso somente o que lhe restava! Lutando contra a gelidez que lhe tomava os membros e o imobilizava pouco a pouco, arrancou da cintura o revólver.

Mas ao chegarem os dedos ao gatilho da arma deteve-se voluntariamente, e um espasmo terrível convulsionou-lhe a face. Matá-la... Elevá-la até aquele mundo ignoto onde o espírito inocente dela pairava longe da sua alma pecadora! Mas, matá-la porquê?

O seu amor não era digno de mais? Com um soluço que parecia despedaçar-lhe o coração, deitou fora o revólver, e agarrou-a nos braços, apertando-a apaixonadamente.

- Jasmim! Jasmim! Perdoa!...

Ela ficou, meio desmaiada, apertada nos seus braços, até que, finalmente, as tranças longas dos seus cabelos, que eram como uma franja de seda nas suas faces macias, flutuaram sob os beijos ardentes do jovem e aqueles olhos lacrimosos, cheios de amor e confiança, abriram-se para cruzar com os dele.

- Quem sou «eu» para perdoar? - murmurou humildemente. - Não sou vossa para que façais o que quiserdes?

Depois, timidamente, uma mão fininha, levemente rosada, insinuou-se e pousou-lhe no pescoço.

- Senhor, senhor, se soubésseis o quanto vos amo e quanto tenho suspirado pelo vosso amor!... Acreditais-me finalmente? Sabeis agora que não vos traí?

O rosto do jovem pousou nos cabelos negros que caíam pelo peito dela.

- Sei, sei - respondeu ternamente. - Que Deus me perdoe como tu me perdoaste... Jasmim, meu amor!... Jasmim!...

 

                                                                                E. M. Hull  

 

                      

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