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Rover mantinha os olhos fixos no chão de betão pintado de branco na cela prisional com onze metros quadrados. Cravou o dente de ouro um pouco comprido de mais no maxilar inferior. Chegara à parte mais difícil da sua confissão. O único som na cela era o das suas unhas a coçarem a tatuagem da Virgem Maria no antebraço. Desde que Rover entrara, que o rapaz, sentado de pernas cruzadas em cima da cama, permanecia em silêncio diante dele. Limitara-se a inclinar a cabeça e a pôr o seu sorriso ditoso de Buda, o olhar fixo num ponto por cima da testa de Rover. Era conhecido por Sonny e diziam que matara duas pessoas na adolescência, que o pai fora um agente da Polícia corrupto e que as mãos dele tinham poderes curativos. Era difícil perceber se o rapaz escutava – os seus olhos verdes e a maior parte do rosto estavam escondidos por detrás do cabelo comprido emaranhado – no entanto, isso não importava. Rover só queria perdão para os seus pecados e que Sonny lhe desse a sua caraterística bênção para que, no dia seguinte, ele pudesse sair da Prisão Estatal de Segurança Máxima com a sensação de ser um homem verdadeiramente purificado. Não que Rover fosse religioso, porém isso não tinha importância, uma vez que tencionava mudar, fazer mesmo um esforço para se endireitar. Rover inspirou fundo.
– Creio que ela era da Bielorrússia. Minsk fica na Bielorrússia, não fica? – Rover ergueu rapidamente o olhar, mas o rapaz não respondeu. – O Nestor pôs-lhe a alcunha de Minsk – disse Rover. – Ele mandou-me matá-la. – A vantagem óbvia de se confessar a alguém que tinha o cérebro tão intoxicado era o facto de ele não conseguir fixar nenhum nome ou ocorrência; era o mesmo que falar com os seus próprios botões. Só assim se compreendia o motivo pelo qual os reclusos na Estatal preferiam este tipo ao capelão ou ao psicólogo. – O Nestor mantinha-a a ela e a mais oito raparigas numa jaula lá em baixo no bairro de Enerhaugen. Europeias de Leste e asiáticas. Jovens. Adolescentes. Espero que estivessem pelo menos nessa faixa etária. Mas a Minsk era mais velha. Mais forte. Fugiu. Conseguiu chegar ao Parque Tøyen antes de o cão do Nestor a apanhar. Um daqueles mastins argentinos... sabes do que estou a falar?
Os olhos do rapaz nunca se moveram, no entanto levantou a mão. Encontrou a barba. Começou a cofiá-la lentamente com os dedos. A manga da sua camisa imunda recuou e pôs a descoberto crostas e marcas de agulhas. Rover prosseguiu.
– Uns malditos canzarrões albinos. Matam qualquer coisa que o dono lhes aponte. E, muitas vezes, ele nem sequer o faz. E é claro que estão proibidos na Noruega. Um tipo em Rælengen trouxe uns da República Checa, faz criação e regista-os como boxers brancos. Eu e o Nestor fomos lá comprar um quando era ainda um cachorro. Custou mais de cinquenta mil em dinheiro à vista. O cachorro era tão amoroso que ninguém imaginava que ... – Rover calou-se. Sabia que só estava a falar do cão para protelar o inevitável. – Adiante...
Adiante. Rover olhou para a tatuagem no seu outro antebraço. Uma catedral com duas flechas. Uma por cada pena que cumprira, nenhuma relacionada com a confissão daquele dia. Costumava fornecer armas a um grupo de motoqueiros e modificar algumas delas na sua oficina. Tinha jeito para a coisa. Demasiado jeito. Tanto, que acabou por dar nas vistas e ser apanhado. E era tão talentoso que, enquanto cumpria a sua primeira pena, Nestor resolvera pô-lo sob a sua asa. E certificara-se de que o tinha de tal forma na mão, que a partir daí só Nestor punha as mãos nas melhores armas, e não o gangue dos motoqueiros ou quaisquer outros rivais. Ele pagara-lhe mais por uns meses de trabalho do que alguma vez Rover poderia ter esperança de ganhar, nem que levasse a vida inteira a reparar motorizadas na sua oficina. Só que Nestor exigira muito em troca. Demasiado.
– Ela estava caída nos arbustos, havia sangue por todo o lado. E ali estava ela, imóvel, a olhar para nós. O cão arrancara-lhe um bocado da cara; era possível verem-se-lhe os dentes. – Rover esboçou um esgar. Vai mas é direto ao assunto. – O Nestor disse que estava na hora de lhes dar uma lição, mostrar às outras raparigas o que podia acontecer-lhes. E que agora a Minsk não lhe servia para nada, tendo em conta o estado da cara dela... – Rover engoliu em seco. – Então, ele mandou-me fazê-lo. Acabar com ela. Só assim eu conseguiria provar a minha lealdade, percebes. Ele tinha uma velha pistola Ruger MK II em que eu fizera algumas modificações. E eu ia fazê-lo. A sério que ia. Não era esse o problema...
Rover sentiu um nó na garganta. Pensara muitas vezes naquilo, revivera todos os segundos daquela noite no Parque Tøyen, vendo sucessivamente a rapariga. Nestor e ele próprio a desempenharem os papéis principais e os outros como testemunhas silenciosas. Nem o cão fizera barulho. Pensara nisso talvez uma centena de vezes. Um milhar? E, no entanto, só agora, altura em que proferira as palavras em voz alta pela primeira vez, se consciencializara de que não fora um sonho, de que aquilo acontecera mesmo. Ou melhor, foi como se o seu corpo o tivesse aceitado apenas naquele momento. E era por isso que o estômago se lhe embrulhava. Rover respirou fundo pelo nariz para reprimir a náusea.
– Mas não fui capaz de o fazer. Embora soubesse que ela ia morrer. Eles tinham o cão a postos e eu estava a pensar que, se fosse comigo, preferiria uma bala. Mas foi como se o gatilho estivesse encravado na posição. Não fui capaz de o puxar.
O jovem parecia ir anuindo tenuemente. Tanto podia ser em resposta ao que Rover lhe contava como à música que só ele conseguia ouvir.
– O Nestor disse que não tínhamos o dia todo, afinal estávamos num parque público. Então, ele retirou uma pequena faca curva de uma bainha na perna, avançou, agarrou-a pelos cabelos, levantou-a e começou a brandir a faca na garganta dela. Como se tirasse as tripas a um peixe. O sangue esguichou três, quatro vezes, e depois ela ficou vazia. Mas sabes do que me recordo principalmente? Do cão. Da forma como ele começou a uivar ao ver todo aquele sangue.
Rover debruçou-se na cadeira com os cotovelos apoiados nos joelhos. Tapou os ouvidos com as mãos e baloiçou-se para trás e para a frente.
– E eu não fiz nada. Fiquei simplesmente ali, a olhar. Sem fazer porra nenhuma. Enquanto eles a embrulhavam num cobertor e a transportavam para o carro, limitei-me a assistir. Levámo-la para a mata, para Østmarksetra. Levantei-a e atirei-a pela ribanceira em direção a Ulsrudvannet. Há muita gente que leva os cães a passear para aquela zona, por isso ela foi encontrada no dia seguinte. A questão era que o Nestor queria que a encontrassem, topas? Ele queria fotografias nos jornais sobre o que lhe tinha acontecido. Para poder mostrá-las às outras raparigas.
Rover destapou os ouvidos.
– Deixei de dormir; sempre que fechava os olhos tinha pesadelos. A rapariga sem cara sorria-me e mostrava os dentes todos. Então, fui ter com o Nestor e disse-lhe que queria sair. Disse-lhe que estava farto de limar Uzis e Glocks, que queria voltar a consertar motorizadas. Viver uma vida tranquila, sem ter de me preocupar constantemente com a Polícia. O Nestor respondeu que estava bem, provavelmente pensava que eu nunca viria a ser um tipo de fibra. No entanto, deixou bem claro o que me aconteceria se eu abrisse a boca. Pensei que estivesse tudo resolvido. Recusei todos os trabalhos que me ofereceram, embora eu ainda tivesse por aí algumas Uzis. Mas não me saía da cabeça que eles estavam a tramar alguma. Que iam limpar-me o sebo. Por isso, foi um alívio para mim quando os polícias vieram buscar-me. Julgava que me ia sentir mais seguro na prisão. Apanharam-me por um caso antigo: eu fora apenas cúmplice, mas tinham detido dois tipos que afirmaram que eu lhes fornecera armas. Confessei logo tudo.
Rover riu-se a bom rir. Começou a tossir. Recostou-se na cadeira.
– Daqui a doze horas saio daqui. Não faço a mínima ideia do que me espera lá fora. Mas tenho consciência de que o Nestor sabe que vou sair, apesar de estarem a libertar-me quatro semanas mais cedo. Ele sabe tudo o que se passa aqui dentro e na Polícia, tenho a certeza. Ele tem olhos e ouvidos em todo o lado. Por isso, a minha ideia é que se ele me queria morto, podia perfeitamente ter-me matado aqui dentro em vez de esperar que eu saísse. O que pensas disto?
Rover aguardou. Silêncio. O rapaz não tinha ar de pensar fosse o que fosse.
– Aconteça o que acontecer – disse Rover –, uma pequena bênção não faz mal, pois não?
Foi como se uma luz se acendesse nos olhos de Sonny ante a palavra «bênção» e ele levantou a mão para indicar que Rover devia aproximar-se e ajoelhar-se. Rover prostrou-se no tapete de oração diante da cama. Franck não deixava nenhum dos outros reclusos ter tapetes no chão das celas – fazia parte do modelo suíço que usavam na Estatal: nada de artigos supérfluos nas celas. O número de objetos pessoais estava limitado a vinte. Se se queria um par de sapatos, era necessário abrir mão de dois pares de cuecas ou de dois livros. Rover olhou para o rosto de Sonny. O rapaz passou a ponta da língua pelos lábios secos e escamosos para os humedecer. A sua voz era surpreendentemente clara, embora as palavras brotassem lentamente; contudo a sua dicção era perfeita.
– Que todos os deuses terrenos e celestiais tenham misericórdia de ti e perdoem os teus pecados. Morrerás, mas a alma do pecador penitente será conduzida ao Paraíso. Amén.
Rover baixou a cabeça. Sentiu as mãos do rapaz na sua cabeça rapada. Sonny era canhoto. Porém, neste caso, não era preciso ser-se um génio para perceber que a sua esperança de vida era mais curta do que a da maior parte das pessoas destras. A overdose poderia acontecer amanhã ou dali a dez anos – quem poderia saber? No entanto, não passava pela cabeça de Rover que a mão do rapaz tivesse poderes curativos, como diziam as pessoas. Tão-pouco acreditou realmente nesta cena da bênção. Assim sendo, porque estava ali? Bem, a religião era como um seguro de incêndio; nunca se considerava que viesse a ser realmente necessário, por isso, quando as pessoas diziam que o rapaz estava preparado para assumir os pecados dos outros e que não queria nada em troca, porque não conseguir alguma paz de espírito? O que intrigava Rover era que alguém como Sonny pudesse ter matado a sangue-frio. Não fazia qualquer sentido para ele. Talvez fosse como o velho ditado: o Diabo tem muitas caras.
– Salaam alaikum1 – disse a voz, e a mão ergueu-se.
Rover permaneceu imóvel e cabisbaixo. Passou a língua pela superfície posterior, macia, do dente de ouro. Sentia-se preparado naquele momento? Preparado para ir encontrar-se com o Criador, se fosse esse o seu destino? Levantou a cabeça.
– Sei que nunca pediste nada em troca, mas...
Olhou para o pé descalço do rapaz que ele recolhera debaixo de si. Viu as marcas de agulha na veia grande no peito do pé.
– Cumpri a última parte da minha pena na Botsen e lá era fácil arranjar drogas, na boa. Só que a Botsen não é uma prisão de alta segurança. Dizem que o Franck fez tudo para impedir o contrabando seja do que for na Estatal, mas... – Rover introduziu a mão no bolso – ...isso não é completamente verdade.
Tirou algo de lá. Era do tamanho de um telemóvel, um objeto dourado em forma de pistola. Rover premiu o gatilho. Irrompeu uma pequena chama da boca.
– Já viste uma destas antes? Claro, aposto que viste. Os agentes que me revistaram quando aqui cheguei viram de certeza. Disseram-me que, se eu estivesse interessado, vendiam cigarros de contrabando baratos. Então, deixaram-me ficar com o isqueiro. Calculo que não tenham lido o meu cadastro. Hoje em dia, ninguém se preocupa em desempenhar bem o seu trabalho, até admira que se consiga fazer algo de jeito neste país.
Rover tomou o peso ao isqueiro na sua mão.
– Há oito anos fabriquei duas destas. Não é para me gabar, mas garanto-te que ninguém na Noruega conseguia fazer um trabalho melhor. Fui contactado por um intermediário que me falou de um cliente que queria uma arma que nunca precisasse de esconder, uma arma que não parecesse uma arma. Então, criei isto. É curioso como a mente das pessoas funciona. Como é óbvio, primeiro pensam que é uma arma. Mas assim que lhes mostras que é usada como isqueiro, esquecem-se por completo de que pode ser uma arma. Também pensam que pode ser uma escova de dentes ou uma chave de fendas. Mas uma arma, nem pensar. Portanto... – Rover rodou um parafuso na parte inferior do punho. – Leva duas balas de nove milímetros. Chamo-lhe a Assassina do Casal Feliz. – Apontou o cano ao jovem. – Uma para ti, querido... – Depois, apontou-a à sua própria têmpora. – E uma para mim...
A gargalhada de Rover soou estranhamente solitária na pequena cela.
– Adiante. Eu só devia ter fabricado uma; o cliente não queria que mais ninguém soubesse o segredo da minha pequena invenção. Mas eu fabriquei outra. E trouxe-a comigo para proteção, não fosse o Nestor resolver tentar matar-me enquanto eu estava dentro. No entanto, como vou sair amanhã e já não preciso dela, passa a ser tua. E aqui...
Rover retirou um maço de cigarros do outro bolso.
– Porque vai parecer estranho teres um isqueiro, mas não cigarros, certo?
De seguida, retirou um cartão de visita amarelo que dizia «Oficina de Motorizadas Rover» e introduziu-o no maço de tabaco.
– Aqui tens a minha morada, caso venhas a ter uma motorizada que precise de arranjo. Ou caso queiras comprar o raio de uma Uzi. Como disse, ainda tenho algumas por aí...
A porta abriu-se para fora e uma voz troou:
– Pira-te, Rover!
Rover virou-se. As calças do guarda prisional à porta estavam descaídas devido ao enorme molho de chaves que lhe pendia do cinto, apesar de estar parcialmente encoberto pela barriga, que transbordava como massa a levedar.
– Sua Santidade tem uma visita. Um familiar chegado, poder-se-ia dizer. – Deu umas gargalhadas ruidosas e virou-se para o homem atrás de si. – Sem ofensa, hã, Per?
Rover guardou a arma e o maço de cigarros debaixo do edredão na cama do rapaz e lançou-lhe um último olhar.
Depois retirou-se rapidamente.
O capelão do estabelecimento prisional esboçou um sorriso enquanto endireitava de forma automática o cabeção que lhe assentava mal. Um familiar chegado. Sem ofensa. A sua vontade foi cuspir no rosto gordo e sorridente do guarda prisional, porém, cumprimentou com um aceno de cabeça o recluso que saía da cela, fingindo reconhecê-lo. Olhou para as tatuagens que tinha nos antebraços.
A Virgem Maria e uma catedral. Mas não, com o passar dos anos,
as tatuagens e os rostos tinham-se tornado demasiado numerosos para os conseguir distinguir.
O capelão entrou. Sentiu o cheiro a incenso. Ou algo que lhe fez lembrar o incenso. Como drogas a serem cozinhadas.
– Olá, Sonny.
O jovem em cima da cama não ergueu a cabeça, mas anuiu lentamente. Per Vollan calculou que ele quisesse dizer que a sua presença fora registada, reconhecida. Aprovada.
Sentou-se na cadeira e experimentou um ligeiro desconforto quando sentiu o calor do seu anterior ocupante. Colocou a Bíblia que trouxera consigo em cima da cama, ao lado do rapaz.
– Hoje fui pôr flores na campa dos teus pais – disse-lhe. – Sei que não me pediste que o fizesse, mas...
Per Vollan tentou captar o olhar do rapaz. Ele próprio tinha dois filhos; eram ambos crescidos e já tinham abandonado o lar da família Vollan. Tal como ele próprio fizera. A diferença era que os seus filhos seriam sempre bem-vindos.
No tribunal, um professor, testemunha de defesa, declarara que Sonny fora um excelente aluno, um talentoso praticante de luta livre, popular, sempre pronto a ajudar; na realidade, o rapaz até manifestara o desejo de vir a ser agente da Polícia, tal como o seu pai. No entanto, desde que este fora encontrado morto com um bilhete de suicídio ao lado no qual confessava ter sido corrupto, Sonny não voltara a aparecer na escola. O capelão tentara imaginar a vergonha que o rapaz de quinze anos sentira. Tentara imaginar a vergonha dos seus próprios filhos se viessem a descobrir o que o pai deles fizera. Ajeitou novamente o cabeção.
– Obrigado – disse Sonny.
Per reparou que Sonny tinha um ar estranhamente jovem. Porque, nesta altura, ele devia andar perto dos trinta anos. Sonny cumprira pena durante doze anos e tinha dezoito quando fora enviado para ali. Talvez as drogas o tivessem conservado, impedindo-o de envelhecer, pelo que só o cabelo e a barba cresciam enquanto os seus olhos inocentes de bebé continuavam a observar, maravilhados, o mundo. Um mundo malvado. Deus sabe como era mau. Per Vollan era capelão do presídio há mais de quarenta anos e vira o mundo tornar-se cada vez mais pecaminoso. O mal espalhava-se como um cancro, deixava as células saudáveis doentes, envenenava-as com a sua mordedura de vampiro e recrutava-as para fazerem o seu trabalho de corrupção. E, uma vez mordido, ninguém conseguia escapar. Ninguém.
– Como estás, Sonny? Gostaste do teu dia de saída precária? Chegaste a ir ver o mar?
Silêncio.
Per Vollan pigarreou.
– O guarda prisional contou-me que foste ver o mar. Provavelmente, leste nos jornais que no dia seguinte encontraram uma mulher morta, não muito longe do local onde estiveste. Foi encontrada na cama, em sua casa. A cabeça dela tinha sido... bem. Estão aqui todos os pormenores... – Bateu com o dedo na Bíblia. – O agente já elaborou um relatório a dizer que fugiste quando estiveste a ver o mar e que ele te encontrou junto à estrada uma hora depois. Que te recusaste a explicar o teu paradeiro. É importante que não menciones nada que contradiga o depoimento dele, entendes? Como sempre, dirás o mínimo possível. Está bem? Sonny?
Per Vollan conseguira finalmente estabelecer contacto visual com o rapaz. A expressão dele pouco ou nada lhe disse sobre o que lhe ia na cabeça, contudo teve quase a certeza de que Sonny Lofthus cumpriria ordens e não diria nada de desnecessário à Polícia ou ao delegado do Ministério Público. Ele só tinha de articular um quase impercetível «Culpado» quando lhe perguntassem como se declarava. Embora se afigurasse paradoxal, esporadicamente, Vollan detetava um rumo, uma força de vontade, um instinto de sobrevivência que distinguiam este toxicodependente dos outros, daqueles que estiveram sempre em queda livre, que nunca tiveram outras ambições a não ser encaminharem-se inexoravelmente para a sarjeta. Esta força de vontade podia exprimir-se através de um súbito lampejo de discernimento, uma pergunta que revelava que estivera sempre a prestar atenção e que vira e ouvira tudo. Ou da forma como se levantava de repente, com uma coordenação, um equilíbrio e uma flexibilidade que não se vislumbravam nos outros habituais consumidores de drogas. Ao passo que, noutras ocasiões, como a presente, ele parecia não registar nada de nada.
Vollan contorceu-se na cadeira.
– Claro que isto significa que não poderás pôr o pé na rua durante uns tempos. Mas tu também não gostas de sair, pois não? E sempre conseguiste ir ver o mar.
– Era um rio. Foi o marido que a matou?
O capelão sobressaltou-se. Como quando algo irrompe inesperadamente da água negra mesmo à nossa frente.
– Não sei. Isso é importante?
Nenhuma resposta.
Vollan suspirou. Voltou a sentir a náusea. Recentemente, ela parecia chegar e partir. Talvez devesse marcar uma consulta para saber do que se tratava.
– Não te preocupes com isso, Sonny. Lembra-te apenas de que, lá fora, as pessoas como tu têm de andar o dia inteiro a escarafunchar para conseguirem a próxima dose. Ao passo que, aqui dentro, está tudo tratado. Assim que acabares de cumprir as penas antigas, deixas de ter utilidade para eles, no entanto, com este homicídio, podes prolongar a tua detenção.
– Nesse caso foi o marido. Ele é rico?
Vollan apontou para a Bíblia.
– Encontrarás aqui uma descrição da casa em que entraste. É grande e está bem mobilada. Mas o alarme que devia proteger toda esta riqueza não estava ligado; a porta da rua nem sequer estava trancada. O apelido da família é Morsand. O armador da pala no olho. Viste-o nos jornais, não viste?
– Vi.
– Ah, viste? Não pensei que tu...
– Sim, eu matei-a. Sim, vou ler a descrição da forma como o fiz.
Per Vollan expirou.
– Muito bem. Há pormenores sobre a maneira como ela foi morta que devias memorizar.
– Claro.
– Ela foi... a parte de cima da cabeça foi cortada. Tu usaste uma serra. Compreendes?
As palavras foram seguidas de um longo silêncio que Per Vollan se sentiu tentado a preencher vomitando. Sempre era preferível a explorar o rapaz. Olhou para ele. O que determinava o desfecho de uma vida? Uma série de acontecimentos aleatórios sobre os quais não se tinha qualquer controlo, ou existia alguma força gravitacional que atraía tudo na direção para onde se estava predestinado a ir? Aliviou o desconforto provocado pelo cabeção, reprimiu a náusea e preparou-se. Recordou-se do que estava em jogo.
Levantou-se.
– Se precisares de entrar em contacto comigo, neste momento estou instalado no Centro Ila, na Alexander Kiellands Plass.
Reparou no ar perplexo do rapaz.
– É apenas temporário, entendes. – Soltou rapidamente uma gargalhada. – A minha mulher pôs-me fora de casa e, como conheço as pessoas que dirigem o centro, elas...
Calou-se bruscamente. De repente, apercebeu-se do motivo pelo qual muitos reclusos vinham falar com o jovem. Era o silêncio. A atração pelo vazio de alguém que se limita a ouvir sem reagir nem julgar. Que extrai de nós as palavras e os segredos sem fazer nada para tal. Toda a sua vida de capelão procurara essa capacidade, mas era como se os reclusos sentissem que ele tinha segundas intenções. Não sabiam quais eram, apenas que havia algo que ele pretendia através do conhecimento dos seus segredos. Acesso às suas almas e talvez, mais tarde, um eventual prémio de recrutamento no céu.
O capelão viu que o rapaz abrira a Bíblia. Era um truque muito simples, quase chegava a ser cómico; as páginas cortadas formavam um compartimento. Lá dentro encontravam-se papéis dobrados com as informações de que Sonny necessitava para poder confessar. E três saquinhos com heroína.
1 Forma de cumprimento usada pelos muçulmanos que professam a fé islâmica: que a paz esteja contigo. (N. da T.)
2
Arild Franck gritou um breve «Entre!», sem levantar os olhos do documento que estava a ler.
Ouviu a porta abrir-se. Ina, a sua secretária na área operacional, anunciara já a visita e, por uma fração de segundo, Arild Franck considerou pedir-lhe que dissesse ao capelão que estava ocupado. Não era propriamente mentira; tinha uma reunião com o comissário no Politihuset, o Comando da Polícia de Oslo, dentro de uma hora. Ultimamente, porém, Per Vollan não se revelava tão estável quanto necessitavam que estivesse e não era demais voltar a confirmar que ele ainda estava em condições de trabalhar. Não havia margem para deslizes neste caso, nem em qualquer um dos outros.
– Não vale a pena sentar-se – disse Arild Franck, assinando o documento e levantando-se. – Vamos conversando enquanto caminhamos.
Avançou para a porta, pegou no boné do uniforme pendurado no bengaleiro e ouviu os passos arrastados do capelão atrás de si. Arild Franck disse a Ina que estaria de volta dentro de uma hora e meia e encostou o dedo indicador ao sensor na porta das escadas. A prisão ocupava dois pisos e não havia elevador. Os elevadores significavam caixas que, por sua vez, significavam um sem-número de vias de fuga que era necessário bloquear em caso de incêndio. E, nessa eventualidade, com o subsequente caos da evacuação, era apenas um dos muitos recursos que os reclusos engenhosos usavam para se evadir das prisões. Pela mesma razão, todas as caixas de fusíveis, canalizações e cabos elétricos eram instalados de modo a serem inacessíveis aos reclusos, quer no exterior do próprio edifício quer nas paredes interiores. Ali, nada fora deixado ao acaso. Ele não deixara nada ao acaso. Reunira-se com os arquitetos e peritos internacionais em prisões, na altura de traçar a planta da Estatal. Na realidade, a Prisão de Lentzburg, no cantão de Aargau, na Suíça, fora a fonte de inspiração: hipermoderna, mas simples e, sobretudo, projetada com a preocupação da segurança e da eficiência e não tanto do conforto. Contudo, era ele, Arild Franck, o responsável pela sua criação. A Estatal era Arild Franck e vice-versa. Nesse caso, por que motivo a administração, na sua infinita sabedoria – que fossem todos para o inferno – o escolhera apenas para subdiretor prisional e nomeara aquele idiota do Estabelecimento Prisional de Haldern para o cargo de diretor? Sim, Franck era como um diamante em bruto, e não, não era o tipo de pessoa capaz de bajular os políticos dando pulos de satisfação sempre que surgia uma nova ideia brilhante para reformar o estabelecimento prisional quando era ainda necessário implementar as reformas anteriores. No entanto, sabia fazer o seu trabalho – manter as pessoas trancadas sem que adoecessem, morressem ou se tornassem manifestamente piores seres humanos em consequência disso. Era leal àqueles que mereciam a sua lealdade e olhava pelos seus.
Já não se podia dizer o mesmo dos seus superiores nesta hierarquia completamente podre e com motivações políticas. Antes de ser deliberadamente afastado da candidatura ao cargo de diretor, Arild Franck acalentara a esperança de ter um pequeno busto no átrio, como memorial, quando se reformasse – embora a sua mulher tivesse sugerido que o seu pescoço de touro, a sua cara de buldogue e a careca coberta com o cabelo dos lados não combinavam com um busto. Porém, era da opinião que se as pessoas não queriam homenagear a sua obra, o melhor que tinha a fazer era olhar pelos seus interesses.
– Não posso continuar a fazer isto, Arild – disse Per Vollan atrás dele, enquanto avançavam pelo corredor.
– Fazer o quê?
– Sou capelão. Aquilo que estão a fazer ao rapaz: obrigá-lo a arcar com as culpas de algo que não fez. A cumprir pena por um marido que...
– Caluda.
Uma vez transposta a porta da sala de controlo, ou a ponte, como Franck gostava de lhe chamar, passaram por um velho que parou de lavar o chão e cumprimentou amigavelmente Franck baixando a cabeça. Johannes era o homem mais velho na prisão e um recluso com o qual Franck se identificava, uma alma delicada que, a dada altura no século anterior, fora detida – quase por acaso – por contrabando de droga. Nunca fizera mal a uma mosca e, ao longo dos anos, tornara-se tão institucionalizado, condicionado e apaziguado que a única coisa que receava era o dia em que seria libertado. Infelizmente, reclusos como ele não constituíam um desafio para uma prisão como a Estatal.
– Está com problemas de consciência, Vollan?
– Estou, sim, Arild.
Franck não conseguia lembrar-se ao certo da altura em que os funcionários tinham começado a tratar os superiores pelos nomes próprios, nem de quando os diretores prisionais tinham começado a usar roupas à paisana em vez de uniformes. Em algumas prisões, os guardas também se vestiam à civil. Durante um motim no Estabelecimento Prisional Francisco de Mar, em São Paulo, os agentes tinham atingido os próprios colegas com gás lacrimogéneo por não conseguirem distinguir os funcionários dos reclusos.
– Quero sair – implorou o capelão.
– Parece-lhe correto? – Franck descia as escadas a correr. Estava em boa forma para um homem a quem faltavam menos de dez anos para a reforma, porque fazia exercício físico. Uma virtude esquecida numa atividade onde a obesidade era a regra e não a exceção. E não fora ele quem treinara a equipa local de natação na altura em que a filha entrava em competições? Não dera o seu contributo à comunidade nos tempos livres, retribuindo algo a este país que dera imenso a tanta gente? Assim sendo, como ousavam ignorá-lo? – E o que diz a sua consciência no que toca àqueles rapazinhos de quem abusou, e de que nós temos provas, Vollan? – Franck encostou o dedo indicador ao sensor na porta seguinte; esta conduziu-os a um corredor que, seguindo para oeste levava às celas, e para leste aos vestiários do pessoal e à saída para o parque de estacionamento.
– Sugiro-lhe que encare isto tal como o Sonny Lofthus, como a expiação dos seus pecados, Vollan.
Outra porta, outro sensor. Franck encostou lá o dedo. Adorava aquela invenção que copiara da Prisão de Obihiro, em Kushiro, no Japão. Em vez de mandarem fazer chaves que podiam perder-se, ser copiadas ou usadas indevidamente, as impressões digitais de todos aqueles que estavam autorizados a transpor as portas eram registadas numa base de dados. Não só tinham eliminado o risco de manipulação negligente das chaves como mantinham também um registo de quem transpunha cada porta e quando. Como é evidente, haviam sido instaladas câmaras de vigilância, mas era possível ocultar os rostos. Já o mesmo não se podia dizer das impressões digitais. A porta abriu-se com um suspiro e eles entraram numa câmara, um pequeno espaço com grades de metal em cada extremidade, sendo que a porta tinha de estar fechada antes de a outra se abrir.
– Estou a dizer que não consigo continuar a fazer isto, Arild.
Franck levou um dedo aos lábios. Para além das câmaras de segurança que cobriam praticamente toda a prisão, aquelas tinham sido equipadas com um sistema de comunicação nos dois sentidos, pelo que era possível contactar a sala de controlo se, por algum motivo, alguém ficasse preso. Abandonaram a câmara e prosseguiram em direção aos vestiários, onde existiam duches e um cacifo para roupa e objetos de uso pessoal de cada trabalhador. O facto de o subdiretor prisional possuir uma chave-mestra que abria todas as câmaras era algo que Franck decidira que o seu pessoal não tinha necessidade de saber. Muito pelo contrário, na verdade.
– Julguei que soubesse com o que estava a lidar – observou Franck. – Não pode retirar-se assim. Para estas pessoas, a lealdade é uma questão de vida ou de morte.
– Eu sei – disse Per Vollan; a respiração dele adquirira uma aspereza desagradável. – Mas estou a falar da morte e da vida eterna.
Franck deteve-se diante da porta de saída e olhou de relance para os cacifos à sua esquerda, para se certificar de que estavam sozinhos.
– Sabe qual é o risco envolvido?
– Deus é minha testemunha em como não contarei nada a ninguém. Quero que use precisamente essas palavras, Arild. Diga-lhes que a minha boca é um túmulo. Só quero sair. Por favor, ajuda-me?
Frank baixou o olhar. Para o sensor. Sair. Só existiam duas maneiras de sair. Esta, a das traseiras, e a outra, pela receção na entrada principal. Nem poços de ventilação, nem saídas de emergência, nem canos de esgoto com largura suficiente para permitirem que um corpo humano se esgueirasse por eles.
– Talvez – disse ele e apoiou um dedo no sensor. Acendeu-se uma luzinha vermelha no cimo do puxador da porta para indicar que a base de dados estava a ser pesquisada. Apagou-se e apareceu uma luz verde no seu lugar. Ele empurrou a porta. Ficaram ofuscados com o sol intenso e colocaram os óculos escuros enquanto atravessavam o enorme parque de estacionamento. – Vou comunicar-lhes que quer sair – disse Franck e tirou as chaves do carro enquanto espreitava a cabina de segurança. Tinha dois guardas armados vinte e quatro sobre vinte e quatro horas e os dois acessos, de entrada e saída, barreiras de aço que nem o Porsche Cayenne novo de Franck conseguiria forçar. Talvez fosse possível fazê-lo com um Hummer H1, que sonhara muito comprar, mas esse carro era demasiado largo porque tinham construído a entrada estreita precisamente para barrar o acesso a veículos maiores. E fora também a pensar neles que colocara barricadas de aço, com seis metros de altura que, do lado de dentro da vedação, cercavam toda a prisão. Franck pedira que fosse eletrificada, contudo, as autoridades de planeamento tinham indeferido o pedido alegando que a Estatal estava localizada no centro de Oslo e que civis inocentes podiam ficar vulneráveis. Inocentes, qual quê! Se alguém quisesse tocar na vedação do lado da rua, primeiro teria de transpor um muro de cinco metros de altura com arame farpado no cimo.
– A propósito, para onde vai?
– Para a Alexander Kiellands Plass – respondeu Per Vollan, esperançado.
– Lamento – disse Arild. – Não fica no meu caminho.
– Não tem importância, a paragem do autocarro é já ali.
– Ótimo. Darei notícias.
O subdiretor prisional entrou no carro e dirigiu-se à cabina de segurança. As regras referiam expressamente que todos os veículos, inclusive o seu, eram obrigados a parar para identificar os ocupantes. Só naquele momento, depois de os guardas o terem visto abandonar o edifício da prisão e entrar no carro, é que levantaram a barreira deixando-o passar. Franck correspondeu à continência dos guardas. Parou nos semáforos na rua principal. Olhou para a sua adorada Estatal pelo espelho retrovisor. Não era perfeita, mas andava lá perto. Atribuía à comissão de planeamento, aos novos regulamentos absurdos do ministério e aos recursos humanos incompetentes a culpa por eventuais falhas. Tudo o que ele sempre quisera era o melhor para todos, para todos os cidadãos trabalhadores e honestos que mereciam uma existência segura e um certo nível de vida. Pronto, está bem, podia ter sido tudo muito diferente. Não gostava de fazer as coisas desta maneira. Mas, como dizia sempre àqueles que estavam a aprender a nadar na piscina: aqui ou nadam ou vão ao fundo, ninguém vos fará favores. Depois, os seus pensamentos voltaram ao que aí vinha. Tinha de transmitir uma mensagem. E não duvidava nem um pouco de qual seria o resultado.
O semáforo ficou verde e ele carregou no acelerador.
3
Per Vollan atravessou o parque junto à Alexander Kiellands Plass. O mês de julho tinha sido muito chuvoso e atipicamente frio, mas agora o sol voltara e o parque estava tão ou mais verde quanto num dia de primavera. O verão regressara, as pessoas que o rodeavam estavam sentadas com os rostos virados para cima e de olhos fechados, absorvendo a luz solar como se ela estivesse prestes a acabar; ouvia-se o ruído dos skates e o chocalhar dos packs de seis garrafas de cerveja a caminho dos churrascos nos espaços verdes e varandas da cidade. Todavia, notava-se que algumas dessas pessoas se sentiam ainda mais felizes pela subida da temperatura. Pessoas que pareciam ter sido envoltas pelos escapes do trânsito que rodeava o parque: figuras maltrapilhas amontoadas em bancos ou ao redor da fonte, que o chamavam com vozes roucas e felizes que mais se assemelhavam aos guinchos das gaivotas. Esperou que o semáforo ficasse verde no cruzamento da Uelandsgate com a Waldemar Thranes Gate, enquanto camiões e autocarros passavam rapidamente por ele. Olhou para as fachadas do outro lado da rua à medida que iam surgindo diante de si nos intervalos do trânsito. Uma cobertura de plástico revestia as janelas do famoso pub, o Tranen, que matara a sede dos residentes mais sôfregos desde a sua construção em 1921 – nos últimos trinta anos animados por Arnie «Skiffle Joe» Norse2, que vestia um fato de cowboy e andava num monociclo enquanto tocava guitarra e cantava acompanhado pela sua banda constituída por um organista velho e cego e uma tailandesa que tocava tamborim e uma buzina. Os olhos de Per Vollan vogaram até à fachada de um edifício onde as letras em ferro forjado que grafavam «Ila Pensjonat» haviam sido cobertas com cimento. Durante a guerra, o edifício acolhera mães solteiras. Presentemente, era uma residencial para os toxicodependentes mais vulneráveis da cidade. Aqueles que não queriam ficar limpos. A última paragem antes do fim.
Per Vollan atravessou a rua, estacou junto à entrada do centro, tocou à campainha e fitou o olho da câmara. Ouviu a porta abrir-se com um zumbido e entrou. Em memória do passado, o centro oferecera-lhe um quarto durante duas semanas. Já lá ia um mês.
– Olá, Per – disse a jovem mulher de olhos castanhos que descera para abrir o portão com grades que dava acesso às escadas. Tinham danificado a fechadura, por isso as chaves já não conseguiam abri-la do lado de fora. – O café já encerrou, mas se entrar imediatamente ainda chega a tempo do jantar.
– Obrigado, Martha, mas não tenho fome.
– Parece cansado.
– Vim a pé desde a Estatal.
– Oh? E não havia um autocarro?
Ela começou a subir as escadas e ele seguiu-a com passos arrastados.
– Queria pôr as ideias em ordem – disse-lhe.
– Hoje vieram cá perguntar por si.
Per ficou imóvel.
– Quem?
– Não perguntei. Podia ter sido a Polícia.
– O que a leva a pensar nisso?
– Pareciam muito interessados em falar consigo, por isso pensei que pudesse ser sobre um recluso que conhece. Algo do género.
Já, pensou Per, já vieram procurar-me.
– Acredita em alguma coisa, Martha?
Ela virou-se nas escadas. Sorriu. Per pensou que um jovem podia apaixonar-se perdidamente por aquele sorriso.
– Como em Deus e em Jesus? – perguntou Martha, empurrando a porta da receção, uma portinhola numa parede com um escritório por detrás.
– Como o destino. Como o acaso por oposição à gravidade cósmica.
– Acredito na Mad Greta – murmurou Martha enquanto folheava uns papéis.
– Os fantasmas não são...
– A Inger disse que ontem ouviu um bebé chorar.
– A Inger é muito sensível, Martha.
A cabeça dela apareceu do lado de fora da abertura.
– Precisamos de ter uma conversa, Per...
Ele suspirou.
– Eu sei. Está farta e...
– O centro na Sporveisgata ligou hoje a dizer que o incêndio os vai obrigar a encerrar pelo menos durante dois meses. Mais de quarenta dos nossos residentes estão neste momento em quartos partilhados. Não podemos continuar assim. Eles roubam-se uns aos outros e depois começam a brigar. É só uma questão de tempo até alguém ficar ferido.
– Não tem importância; não vou estar aqui muito mais tempo.
Martha inclinou a cabeça para um lado e lançou-lhe um olhar intrigado.
– Porque é que ela não o quer deixar dormir em casa? Há quantos anos estão casados? Quarenta, não é?
– Trinta e oito. A casa é dela e... é complicado. – Per sorriu com ar cansado.
Deixou-a e avançou pelo corredor. Ouvia-se música aos berros por detrás de duas portas. Anfetaminas. Era segunda-feira, e o gabinete de apoio estava aberto após o fim de semana e os sarilhos fervilhavam por todo o lado. Abriu a sua porta. O quartinho miserável com uma cama de solteiro e um roupeiro custava 6 000 coroas por mês. Era possível arrendar um apartamento nos arredores de Oslo por aquela quantia.
Sentou-se na cama e olhou para a janela empoeirada. O trânsito zumbia sonolentamente lá fora. O sol entrava através das cortinas quase transparentes. Uma mosca lutava pela vida no parapeito. Não tardaria a morrer. A vida era assim. Não a morte, mas a vida. Há quantos anos chegara àquela conclusão? Que tudo, menos a morte, tudo acerca do qual pregava, mais não era do que uma defesa que as pessoas tinham criado contra o medo da morte. E, no entanto, nada daquilo em que ele dantes acreditava tinha qualquer significado. Aquilo que nós, humanos, julgamos saber não é nada comparado com aquilo em que precisamos de acreditar para entorpecermos o medo e a dor. Depois o círculo fechava-se. Ele recuperava a sua fé num Deus clemente e na vida após a morte. Acreditava agora, mais do que nunca, nela. Tirou um bloco de baixo de um jornal e começou a escrever.
Per Vollan não tinha muito que escrever. Algumas frases numa única folha de papel, apenas isso. Riscou o seu próprio nome num envelope que recebera com uma carta do advogado de Alma, informando sumariamente a que percentagem dos bens do casal eles consideravam que Per tinha direito. Era muito pequena.
O capelão viu-se ao espelho, compôs o cabeção, vestiu o casaco e saiu.
Martha não estava na receção. Inger pegou no envelope e prometeu expedi-lo.
O Sol estava agora baixo no céu; o dia retirava-se. Atravessou o parque enquanto, pelo canto do olho, ia registando como tudo e todos desempenhavam a sua função sem erros óbvios. Ninguém se levantou de um banco de forma ligeiramente mais rápida quando ele passou, nenhum carro se afastou discretamente da borda do passeio quando ele mudou de ideias e decidiu percorrer a Sannergata em direção ao rio. Mas eles estavam lá. Por detrás de uma janela que refletia um pacífico fim de tarde de verão, no olhar fortuito de um transeunte, na friagem das sombras que saíam sorrateiramente do lado oriental das casas e expulsavam a luz solar enquanto iam ganhando terreno. E Per Vollan pensou que toda a sua vida fora assim: uma constante, inútil e trémula luta entre as trevas e a luz, que parecia nunca resultar numa vitória de qualquer das partes. Ou resultava? Todos os dias as trevas avançavam mais um pouco. Encaminhavam-se para a longa noite.
Estugou o passo.
2 Cantor, músico, compositor e autor norueguês nascido em 1925. Iniciou a sua carreira na década de 1950. (N. da T.)
4
Simon Kefas levou a chávena de café à boca. Sentado à mesa da cozinha, conseguia ver o pequeno jardim na frente da casa deles na Fagerliveien, em Disen. Chovera durante a noite e a relva reluzia ainda ao sol matinal. Teve, inclusive, a sensação de que conseguia vê-la crescer. Isso implicava voltar a usar o corta-relva. Uma atividade manual ruidosa que o fazia suar e praguejar, mas tudo isso era bom. Else perguntara-lhe porque não comprava um corta-relva elétrico como todos os seus vizinhos. A resposta dele fora simples: dinheiro. Era uma resposta que punha termo à maioria das discussões enquanto ia crescendo naquela casa, assim como no bairro. Mas isso fora quando moravam ali pessoas comuns: professores, cabeleireiros, taxistas, funcionários públicos. Ou agentes da Polícia, tal como ele. Não que os atuais residentes fossem algo de especial, mas trabalhavam em publicidade ou TI3, eram jornalistas, médicos, tinham representações de produtos na moda ou herdado dinheiro suficiente para comprarem uma das casinhas idílicas, fazendo aumentar os preços e o bairro subir na escala social.
– Em que estás a pensar? – perguntou Else, que se colocara por detrás da cadeira dele, acariciando-lhe o cabelo que escasseava cada vez mais; quando iluminado de cima era possível ver-se-lhe o couro cabeludo. Mas ela dizia que gostava assim. Gostava que ele parecesse aquilo que era: um agente da Polícia à beira da reforma. Também gostava de um dia envelhecer. Apesar de ele lhe levar vinte anos de avanço. Um dos novos vizinhos deles, um produtor cinematográfico medianamente famoso, julgara que ela era filha de Simon. Ele não ficara nada incomodado.
– Estou a pensar que sou um homem com muita sorte – disse ele. – Porque te tenho a ti. Porque tenho isto.
Ela beijou-o no cocuruto. Ele sentiu os lábios dela diretamente na pele. Na noite anterior, sonhara que era capaz de abdicar da sua visão por ela. E, quando acordara sem conseguir vê-la – por um instante, antes de se aperceber que era devido à máscara para dormir que usava no verão para bloquear o sol de manhã cedo –, sentira-se um homem feliz.
Tocaram à campainha.
– Deve ser a Edith – disse Else. – Vou vestir-me.
– Olá, tio Simon!
– Olha quem chegou – afirmou Simon, enquanto olhava para o rosto sorridente do rapaz.
Edith entrou na cozinha.
– Desculpa, Simon, ele insistia que queria que eu chegasse aqui cedo para ter tempo de experimentar o teu boné.
– Claro – respondeu Simon. – Mas porque não vais à escola hoje, Mats?
– Dia de formação de professores – suspirou Edith. – As escolas não imaginam o pesadelo que é para as mães solteiras.
– Nesse caso, foi muita gentileza tua ofereceres-te para dar boleia à Else.
– Não tens de quê. Ele só está em Oslo hoje e amanhã, tanto quanto julgo saber.
– Ele quem? – perguntou Mats, enquanto agarrava e puxava o braço do tio para o obrigar a levantar-se da cadeira.
– Um médico americano que é uma sumidade em operações aos olhos – respondeu Simon, fingindo ser mais pesado do que era, enquanto deixava que o puxassem para se pôr de pé. – Anda daí, vamos ver se conseguimos encontrar o tal boné de polícia. Serve-te de café, Edith.
Simon e Mats dirigiram-se ao hall e o rapaz gritou de satisfação quando viu o boné de polícia preto e branco que o tio tirara da prateleira do roupeiro. Contudo, ficou silencioso e reverente quando Simon o colocou na cabeça. Estavam diante do espelho. O rapaz apontou para o reflexo do tio e emitiu ruídos a simular disparos.
– Estás a disparar contra quem? – perguntou-lhe o tio.
– Os maus – balbuciou o rapaz. – Pum! Pum!
– Chamemos-lhe treino de tiro ao alvo – disse Simon. – Nem sequer a Polícia pode disparar sobre os maus sem permissão.
– Pode sim! Pum! Pum!
– Se fizermos isso, Mats, vamos parar à prisão.
– Vamos? – O rapaz parou e lançou um olhar perplexo ao tio. – Porquê? Nós somos os polícias.
– Porque se alvejássemos alguém que tínhamos possibilidade de prender, seríamos nós os maus.
– Mas... quando os apanhamos podemos alvejá-los, não podemos?
Simon soltou uma gargalhada.
– Não. O juiz é que decide o tempo que irão ficar na prisão.
– Pensei que eras tu que decidias, tio Simon.
Simon apercebeu-se da deceção nos olhos do rapaz.
– Deixa que te diga uma coisa, Mats. Ainda bem que não tenho de decidir isso. Ainda bem que só tenho de apanhar criminosos. Porque essa é a parte divertida do trabalho.
Mats semicerrou um olho e o boné tombou para trás.
– Tio Simon...
– Sim?
– Porque é que tu e a tia Else não têm filhos?
Simon colocou-se por detrás de Mats, apoiou as mãos nos ombros do rapaz e sorriu-lhe pelo espelho.
– Nós não precisamos de filhos, temos-te a ti. Não temos?
Mats ficou a olhar pensativamente para o tio durante uns segundos. Depois, o seu rosto iluminou-se.
– Claro!
Simon levou a mão ao bolso para atender o telemóvel, que começara a vibrar.
Era um colega. Simon escutava.
– Junto ao rio Aker, onde? – inquiriu.
– Para lá do Kuba, junto à Escola de Artes. Existe uma ponte pedonal...
– Sei onde é. Estarei lá dentro de trinta minutos.
Calçou os sapatos, apertou os atacadores e vestiu o blusão.
– Else! – chamou.
– Sim?
O rosto dela aparecera ao cimo das escadas. Voltou a surpreender-se com a sua beleza. O cabelo comprido a fluir como um rio avermelhado à volta do seu rosto franzino. As sardas no nariz pequeno e à volta dele. E ocorreu-lhe que, decerto, aquelas sardas ainda lá estariam depois de ele partir. O seu pensamento seguinte, que procurou reprimir, surgiu rapidamente: quem cuidaria dela depois? Sabia que era muito improvável que ela conseguisse vê-lo do ponto onde se encontrava, estava só a fingir. Ele pigarreou.
– Tenho de ir, querida. Ligas-me a contar o que disse o médico?
– Ligo. Conduz com cuidado.
Dois homens de meia-idade caminhavam pelo parque popularmente conhecido por Kuba. A maioria das pessoas julgava que o nome estava relacionado com Cuba, possivelmente por causa dos comícios políticos que ali se realizavam com frequência e porque Grünerlokka fora em tempos considerado um bairro operário. Era preciso ter vivido ali durante muitos anos para saber que existira naquele local um enorme depósito de gás cuja estrutura tinha a forma de um cubo. Os homens atravessavam a ponte pedonal que dava acesso à velha fábrica agora convertida em escola de artes. Os apaixonados tinham prendido cadeados com as datas e iniciais aos corrimãos da ponte. Simon parou e olhou para um deles. Amara Else durante dez anos, cada dia dos mais de três mil e quinhentos que tinham permanecido juntos. Nunca existiria outra mulher na sua vida e não precisava de um cadeado simbólico para o saber. Nem tão-pouco ela; felizmente, ela sobreviver-lhe-ia por muitos mais anos, por isso, haveria tempo para outros homens na vida dela. E tudo isso era bom.
Do ponto onde se encontravam conseguia ver a Åmodt Bro, uma pontezinha modesta que atravessava um riozinho modesto que dividia esta capitalzinha modesta em este e oeste. Uma vez, há muito, muito tempo, quando ele era jovem e tolo, atirara-se ao rio desta mesmíssima ponte. Um trio composto por três rapazes ébrios, dois deles com uma fé inabalável em si mesmos e nas suas perspetivas. Dois deles convencidos de que, juntos, eram os melhores dos três. O terceiro, Simon, apercebera-se há muito de que não podia competir com os amigos em matéria de inteligência, força, competências sociais ou fascínio sobre as mulheres. Mas era o mais corajoso. Ou, por outras palavras, o mais disposto a correr riscos. E mergulhar em água poluída não requeria intelecto nem capacidade física, apenas temeridade. Muitas vezes, Simon Kefas convencera-se de que fora o pessimismo que o levara a apostar num futuro que não prezava muito, um conhecimento inato de que tinha menos a perder do que as outras pessoas. Equilibrara-se no corrimão enquanto os amigos lhe gritavam para que não o fizesse, que ele era louco. E depois saltara. Da ponte, da vida, para a maravilhosa roleta a girar que é o destino. Mergulhara na água que não tinha superfície, apenas espuma branca e, debaixo dela, um abraço gélido. E, nesse abraço, houve silêncio, solicitude e paz. Quando veio à superfície, incólume, eles tinham-no aclamado. Simon também. Apesar de ter sentido uma vaga desilusão por estar de volta. Era extraordinário o que um coração partido podia levar um jovem a fazer.
Simon repeliu as memórias e concentrou-se na queda de água entre as duas pontes. Mais especificamente, na figura que ficara ali como uma fotografia, imóvel a meio da queda.
– Pensamos que ele terá sido arrastado pela corrente – disse o agente do local do crime que estava de pé a seu lado. – E, depois, as roupas dele ficaram presas em alguma coisa que saía da água. O rio costuma estar tão baixo aqui que é possível atravessá-lo a pé.
– Muito bem – disse Simon, mascando o tabaco que tinha na boca e inclinando a cabeça. A figura pendia em linha reta com os braços ao lado do corpo e a água em cascata formava uma auréola branca à volta da cabeça e do corpo. Fez-lhe lembrar o cabelo de Else. Os outros ACC (Assistentes do Comissário do Condado) tinham conseguido finalmente meter o barco na água e tentavam libertar o corpo.
– Aposto uma cerveja em como foi suicídio.
– Acho que estás enganado, Elias – respondeu Simon e introduziu um dedo curvo debaixo do lábio superior para retirar o snus4. Preparava-se para o atirar à água lá em baixo, mas conseguiu refrear-se a tempo. Outros tempos. Olhou em redor, procurando um caixote do lixo.
– Portanto, não queres apostar uma cerveja?
– Não, Elias, não quero.
– Oh, desculpa, tinha-me esquecido... – O ACC ficou atrapalhado.
– Não tem importância – respondeu Simon, afastando-se. Ao passar, cumprimentou com um aceno de cabeça a mulher alta e loura de saia preta e casaco curto. Não fosse a identificação de polícia que lhe pendia do pescoço, tê-la-ia tomado por bancária. Arremessou o snus para o caixote do lixo verde ao fundo da ponte e desceu até à margem do rio, passando os olhos pelo terreno enquanto caminhava.
– Inspetor-chefe Kefas?
Elias levantou a cabeça. A pessoa que se lhe dirigira era o arquétipo da escandinava tal como os estrangeiros a imaginavam. Desconfiava que ela se julgava demasiado alta, e que, por isso tinha uma postura curvada e calçava sapatos rasos.
– Não, não sou eu. Quem é você?
– Kari Adel. – Levantou a identificação de polícia que pendia de um fio à volta do pescoço. – Acabei de ser destacada para a Brigada de Homicídios. Disseram-me que podia encontrá-lo aqui.
– Seja bem-vinda. O que quer do Simon?
– Ele vai ser o meu mentor.
– Que sorte a sua – respondeu Elias e apontou para o homem que caminhava ao longo do rio. – É aquele além.
– Do que anda ele à procura?
– De provas.
– Porém, as provas encontram-se de certeza no rio, onde está o corpo e não a jusante.
– Sim, ou seja, ele presume que já revistámos aquela zona. E assim sucedeu.
– O outro ACC diz que parece um suicídio.
– Pois, caí na asneira de tentar apostar com ele uma cerveja em como foi.
– Asneira?
– Ele tem um problema – explicou Elias. – Tinha um problema. – Reparou nos sobrolhos arqueados da mulher. – Não é segredo. E é preferível que saiba, uma vez que vão trabalhar juntos.
– Ninguém me informou que ia trabalhar com um alcoólico.
– Não é um alcoólico – respondeu Elias. – É um viciado em apostas.
Ela puxou o cabelo louro para trás de uma orelha e semicerrou os olhos por causa do sol.
– Que tipo de apostas?
– Daquelas em que se perde, tanto quanto julgo saber. Mas se é a nova parceira dele, pode perguntar-lhe. De onde vem?
– Da Brigada Antidroga.
– Bem, nesse caso, sabe tudo sobre o rio.
– Sei. – Semicerrou os olhos e observou o corpo. – Podia tratar-se de um crime relacionado com drogas, claro, mas a localização está completamente errada. Eles não traficam drogas duras tão acima no rio, para isso teríamos de ir até à Schous Plass e à Nybrua. E as pessoas não costumam matar por canábis.
– Oh, que bom – disse Elias, indicando o barco com a cabeça. – Conseguiram finalmente soltá-lo. Se trouxer com ele alguma identificação, não tardaremos a saber quem...
– Eu sei quem ele é – disse Kari Adel. – É o Per Vollan, o capelão da prisão.
Elias olhou-a de cima a baixo. Calculou que não tardaria muito a desistir de usar roupas elegantes como as detetives que vira nas séries de televisão americanas. No entanto, para além disso, parecia ter uma presença forte. Se calhar era uma daquelas que não desistiam. Talvez pertencesse a essa raça rara. Mas já antes tinha pensado o mesmo de outras.
3 Tecnologias da informação. (N. da T.)
4 Termo sueco que designa um tabaco húmido em pó para uso oral, produzido através de um processo de humidificação a vapor. (N. da T.)
5
A sala de interrogatórios estava decorada em tons pálidos; a mobília era de pinho. Cortinas vermelhas cobriam a janela que dava para a sala de controlo. O inspetor Henrik Westad da Polícia de Buskerud considerava-a uma sala acolhedora. Já antes viajara de Drammen até Oslo e estivera sentado nesta mesma sala. Tinham interrogado crianças num caso de abuso sexual e havia lá bonecas anatómicas. Desta vez, era uma investigação de homicídio. Observou o homem barbudo, de cabelo comprido, sentado do outro lado da mesa. Sonny Lofthus. Aparentava menos idade do que a que constava do processo. Também não parecia estar drogado; as pupilas apresentavam-se normais. No entanto, as pessoas com elevada tolerância às drogas raramente o pareciam. Westad pigarreou.
– Portanto, amarraste-a, usaste um vulgar serrote de metal e depois vieste embora?
– Sim – disse o homem.
Prescindira do direito a um advogado, contudo respondera praticamente a todas as perguntas por monossílabos. No fim, Westad limitara-se a fazer-lhe perguntas de resposta sim ou não. O que pareceu resultar. Claro que só podia resultar; estavam a arrancar-lhe uma confissão. Mas não batia certo. Westad olhara para as fotografias diante de si. A parte superior da cabeça e o crânio da mulher tinham sido serrados e pendiam para um lado, pelo que só estavam presos pela pele. A superfície do cérebro ficara exposta. Há muito que abandonara a ideia de que só de olhar para as pessoas era possível dizer o mal de que eram capazes. No entanto, este homem, ele... ele não exalava a frieza, a agressividade ou simplesmente a imbecilidade que Westad julgava ter detetado noutros assassinos cruéis.
Westad recostou-se na cadeira.
– Porque estás assumir a culpa?
O homem encolheu os ombros.
– ADN no local do crime.
– Como sabes que encontrámos ADN?
O homem levou a mão ao cabelo comprido e espesso, que a direção da prisão podia ter mandado cortar se assim o entendesse.
– O cabelo cai-me. É um efeito secundário do consumo prolongado de drogas. Já posso ir-me embora?
Westad suspirou. Uma confissão. Provas forenses no local do crime. Nesse caso, porque lhe restavam ainda dúvidas?
Debruçou-se sobre o microfone colocado entre eles.
– A entrevista com o suspeito Sonny Lofthus terminou às 13h04.
Viu a luz vermelha apagar-se e percebeu que o agente lá fora desligara o gravador. Levantou-se e abriu a porta para que os guardas prisionais pudessem entrar, retirar as algemas a Lofthus e levá-lo de volta para a Estatal.
– O que lhe parece? – perguntou o agente, quando Westad entrou na sala de controlo.
– Parece? – Westad vestiu o blusão e correu o fecho com um movimento brusco, irritado. – Ele não me dá nada sobre o que pensar.
– Então e o interrogatório de hoje?
Westad encolheu os ombros. Uma amiga da vítima apresentara-se na Polícia. Referira que a vítima lhe contara que o marido, Yngve Morsand, a acusara de ter um caso e ameaçara matá-la. Que Kjersti Morsand ficara assustada. Em particular, porque o marido tinha razões para as suas desconfianças – ela conhecera mesmo outra pessoa e fazia tenções de deixá-lo. Era difícil pensar num móbil mais clássico para um homicídio. Então e o móbil do rapaz? A mulher não fora violada, não tinham roubado nada da casa. O armário dos medicamentos na casa de banho tinha sido arrombado e o marido confirmara que faltavam uns comprimidos para dormir. Mas por que motivo precisava um homem que, a avaliar pelas marcas de agulhas, tivera acesso fácil a drogas duras, de uns míseros comprimidos para dormir?
A pergunta seguinte surgiu de imediato: Por que motivo haveria um investigador com uma confissão assinada de se preocupar com semelhantes insignificâncias?
Johannes Halden limpava o chão junto às celas na Ala A com uma esfregona quando viu dois guardas prisionais aproximarem-se levando o rapaz entre ambos.
O rapaz sorriu; parecia ir dar um passeio a um sítio bonito acompanhado de dois amigos, não obstante as algemas. Johannes estacou e levantou o braço direito.
– Olha, Sonny! O meu ombro está melhor. Graças a ti.
O rapaz teve de erguer ambas as mãos para fazer um sinal ao velho de que estava tudo OK. Os agentes pararam diante da porta de uma das celas e retiraram-lhe as algemas. Também não foi necessário destrancar a porta, uma vez que todas as celas se abriam automaticamente às oito da manhã e permaneciam assim até às dez da noite. Os funcionários na sala de controlo tinham mostrado a Johannes como fechavam e abriam todas as portas com uma única chave. Agradava-lhe a sala de controlo. Era por isso que se demorava sempre a lavar o chão naquela zona. Era um pouco como conduzir um superpetroleiro. Um pouco como estar onde ele devia ter acabado.
Antes da «ocorrência», ele fora um bom marinheiro e estudara ciência náutica. Fizera planos para se tornar oficial de convés. Depois imediato, primeiro imediato e a seguir, comandante. E, quem sabe, ir ter com a mulher e a filha à casa nos arredores de Farsund e arranjar emprego como piloto no porto. Nesse caso, porque não o fizera? Porque estragara tudo? O que o levara a aceitar levar escondidos dois sacos grandes do porto de Songkhla, na Tailândia? Como se não soubesse que continham heroína. E como se não conhecesse o código penal e a histeria do sistema legal norueguês que, na altura, equiparava o contrabando de droga a homicídio. E nem sequer precisava da batelada que lhe tinham oferecido para entregar os sacos numa morada em Oslo. Afinal, o que fora? O frémito? Ou a esperança de revê-la? A bela rapariga tailandesa com o vestido de seda comprido e cabelo preto sedoso, ver os seus olhos amendoados, ouvir a sua voz suave murmurar as difíceis palavras inglesas com lábios doces de cereja, dizendo-lhe que tinha de fazê-lo por ela, pela sua família em Chiang Rai5, que era a única forma de ele conseguir salvá-los. Nunca acreditara na história dela, mas acreditara no beijo dela. E aquele beijo levara-o a atravessar oceanos, a passar alfândegas, até à prisão preventiva, à sala de audiências do tribunal, à sala de visitas onde a sua filha adolescente se sentara e lhe dissera que a família não queria saber mais dele, ao processo de divórcio e à cela no Estabelecimento Prisional Ila. Aquele beijo fora tudo o que ele quisera e a promessa daquele beijo era tudo o que lhe restava.
Quando o libertaram, não havia ninguém à sua espera no exterior. A família renegara-o, os amigos tinham-se afastado e ele nunca iria conseguir trabalho num barco. Então, procurara as únicas pessoas dispostas a aceitá-lo. Os criminosos. E voltara aos velhos tempos. Transportes marítimos esporádicos. Nestor, o ucraniano, recrutara-o. A heroína do Norte da Tailândia era contrabandeada em camiões que usavam a velha rota dos estupefacientes através da Turquia e dos Balcãs. Na Alemanha, a carga era distribuída pelos países escandinavos e a tarefa de Johannes consistia em levar a cabo a última etapa. Mais tarde, viria a tornar-se um informador secreto.
Também não existira um bom motivo para isso. Apenas um agente da Polícia que apelara a algo dentro de si, algo que ele desconhecia possuir. E, apesar de essa perspetiva – a consciência tranquila – se ter afigurado menos importante do que o beijo de uma bela mulher, ele acreditara piamente naquele agente da Polícia. Havia algo nos olhos dele. Johannes podia emendar-se, mudar de vida, quem sabe? Mas depois, num final de tarde de outono, o agente da Polícia fora morto. E, pela primeira e única vez, Johannes ouvira o nome, ouvira-o ser sussurrado com um misto de receio e respeito. O Gémeo.
A partir daí, foi apenas uma questão de tempo até Johannes voltar a sentir-se tentado. Correu riscos cada vez maiores, transportou cargas cada vez maiores. Raios, queria mesmo ser apanhado. Redimir-se do que fizera. Assim, ficou aliviado quando os agentes alfandegários o mandaram parar na fronteira sueca. A mobília na traseira do camião estava cheia de heroína. O juiz lembrara ao júri não só a grande quantidade encontrada, mas também o facto de não se tratar da primeira transgressão de Johannes. Já lá iam dez anos. Passara os últimos quatro na Estatal, desde que a prisão abrira. Vira os reclusos chegarem e partirem, vira também os guardas prisionais chegarem e partirem, e ele tratara-os com todo o respeito que mereciam. E, em troca, recebera o respeito que merecia. Ou seja, usufruía do respeito que um veterano granjeava. O tipo que já não constitui uma ameaça. Porque nenhum deles conhecia o seu segredo. A traição de que ele era culpado. A razão pela qual infligira a si mesmo este castigo. E perdera por completo a esperança de obter as únicas coisas que eram importantes. O beijo que lhe fora prometido por uma mulher esquecida. A consciência tranquila que um agente da Polícia morto lhe prometera. Até ter sido transferido para a Ala A e conhecido o rapaz que diziam ser capaz de curar as pessoas. Johannes ficara surpreendido quando ouvira o apelido, todavia, não comentara. Limitara-se a continuar a lavar o chão sem levantar a cabeça, sorrira, fizera e recebera os pequenos favores que tornavam suportável a vida num lugar como aquele. Os dias, as semanas, os meses e os anos tinham passado a correr, transformando-se numa vida que ia terminar em breve. Cancro. Cancro do pulmão. Pequenas células, dissera o médico. Do tipo agressivo, que é o pior, a menos que seja detetado cedo.
Não fora detetado cedo.
Ninguém podia fazer nada. Muito menos Sonny. Ele nem sequer conseguira alvitrar qual era o mal quando Johannes lhe perguntara; o próprio rapaz sugerira as partes baixas, uma piscadela de olho e uma cotovelada. E o seu ombro melhorara por si próprio, verdade seja dita, e não pela mão de Sonny, cuja temperatura não ultrapassava os habituais 37 ºC, por sinal era até mais baixa. Mas ele era um bom rapaz, a sério que era, e se estava convencido de que as suas mãos tinham o poder de curar, não seria Johannes a querer desiludi-lo.
Assim, Johannes guardara tudo para si, não só a doença mas também a sua traição. Sabia, porém, que o tempo estava a esgotar-se. Que não podia levar este segredo consigo para a tumba. Não, se queria repousar em paz em vez do horror de acordar como um morto-vivo, carcomido e aprisionado, condenado ao tormento eterno. Não tinha convicções religiosas sobre quem podia ser condenado ao sofrimento eterno nem porquê, porém, estivera enganado a respeito de muitas coisas na sua vida.
– Tantas coisas... – murmurou Johannes Halden de si para si.
Depois encostou a esfregona à parede, encaminhou-se para a cela de Sonny e bateu à porta. Nenhuma resposta. Voltou a bater.
Aguardou.
Depois abriu a porta.
Sonny estava sentado com uma tira de borracha atada à volta do antebraço abaixo do cotovelo, a ponta da tira entre os dentes. Segurava uma seringa mesmo por cima de uma veia saliente. O ângulo era de trinta graus, o indicado para uma inserção ideal.
Sonny ergueu calmamente a cabeça e sorriu.
– Sim?
– Desculpa, eu... isto pode esperar.
– Tens a certeza?
– Sim, é... não há pressa. – Johannes soltou uma gargalhada. – Pode esperar mais uma hora.
– Pode esperar quatro horas?
– Quatro horas está ótimo.
O velho viu a agulha entrar na veia. O rapaz premiu o êmbolo. O silêncio e a escuridão pareceram encher a divisão como água negra. Johannes retirou-se de mansinho e fechou a porta.
5 A província mais setentrional da Tailândia. (N. da T.)
6
Simon tinha o telemóvel encostado ao ouvido e os pés em cima da secretária enquanto se baloiçava na cadeira. Era um número que a Troika aperfeiçoara de tal forma que se tinham desafiado uns aos outros; o vencedor era aquele que conseguisse manter o equilíbrio durante mais tempo.
– Então, o médico americano não quis dar-te a sua opinião? – perguntou ele em voz baixa, em parte porque não via nenhum motivo para envolver outros membros da Brigada de Homicídios na sua vida pessoal, e em parte porque era assim que ele e a mulher falavam sempre ao telemóvel. Baixinho, com intimidade. Como se estivessem na cama, abraçados.
– Oh, ele quer – respondeu Else. – Mas ainda não. Primeiro quer ver o resultado das análises e das tomografias. Amanhã terei mais informações.
– Está bem. Como te sentes?
– Bem.
– Bem como?
Ela riu-se.
– Não te preocupes tanto, querido. Vemo-nos ao jantar.
– Combinado. A tua irmã, ela está...?
– Sim, ela ainda aqui está e vai dar-me boleia até casa. Agora para de te preocupares e desliga, estás a trabalhar!
Ele terminou relutantemente a chamada. Pensou no seu sonho, aquele em que lhe dava a sua vista.
– Inspetor-chefe Kefas?
Levantou a cabeça. E continuou a levantar. A mulher de pé diante da sua secretária era alta. Muito alta. E lingrinhas. Abaixo de uma saia elegante apareciam umas pernas fininhas.
– Sou a Kari Adel. Fui instruída no sentido de o coadjuvar. Tentei encontrá-lo no local do crime, mas tinha desaparecido.
E era jovem. Muito jovem. Parecia mais uma bancária ambiciosa do que uma agente da Polícia. Simon inclinou a cadeira ainda mais para trás.
– Mas qual local do crime?
– O Kuba.
– E como sabe que é o local de um crime?
Viu-a mudar o peso de um pé para o outro. Procurar uma saída. Só que não havia.
– Possível local do crime – disse ela então.
– E quem diz que eu preciso de ajuda?
Ela apontou com o polegar para trás de si, a fim de indicar de onde viera a ordem.
– Mas parece-me que quem precisa de ajuda sou eu. Sou nova aqui.
– Concluiu recentemente a formação?
– Dezoito meses na Brigada Antidroga.
– Recente, nesse caso. E já conseguiu chegar aos Homicídios? Parabéns, Adel. Ou tem mesmo muita sorte, ou está bem relacionada ou é... – Reclinou-se na cadeira quase na horizontal e retirou uma lata de snus do bolso das calças de ganga.
– Uma mulher? – inquiriu.
– Ia dizer inteligente.
Ela ruborizou-se e conseguiu ver o desconforto nos olhos dele.
– É inteligente? – perguntou Simon, introduzindo um pedaço de snus debaixo do lábio superior.
– Fui a segunda no meu ano.
– E quanto tempo tenciona ficar nos Homicídios?
– Como assim?
– Se as drogas não a atraíram, por que motivo haveriam os homicídios de a atrair?
Ela voltou a mudar de posição. Simon percebeu que acertara. Ela era uma daquelas pessoas que fazia uma breve aparição antes de desaparecer dentro do edifício alcançando os pisos superiores e subindo nas fileiras. Inteligente. Provavelmente, abandonaria em definitivo a força policial. Como tinham feito os chicos-espertos no Departamento de Fraudes Graves. Levando consigo todas as competências e deixando Simon em apuros. A Polícia não era um local onde ficava quem era inteligente, talentoso, ambicioso e queria ter vida própria.
– Abandonei o local do crime porque não havia lá nada para encontrar – afirmou Simon. – Por isso, diga-me, por onde começaria?
– Eu iria falar com o familiar mais próximo – disse Kari Adel, procurando uma cadeira. – E seguia-lhe os movimentos antes que aparecesse a boiar no rio.
A pronúncia dela sugeria ser da parte oriental de Oslo Oeste, onde as pessoas tinham pavor de que a pronúncia errada pudesse estigmatizá-las.
– Muito bem, Adel. E o familiar mais próximo...
– ...é a mulher. Que não tardaria a ser a ex-mulher. Ela expulsou-o recentemente. Falei com ela. Ele estava instalado no Centro Ila para toxicodependentes. Importa-se que me sente...?
Inteligente. Manifestamente inteligente.
– Não vai ser necessário, neste momento – respondeu Simon, levantando-se. Estimou que ela fosse pelo menos quinze centímetros mais alta do que ele. Mesmo assim, tinha de dar dois passos por cada um dos dele. Saia travada. Isso era tudo muito bonito, mas desconfiava que ela não tardaria a usar outras roupas. Os crimes resolviam-se com calças de ganga.
* * *
– Sabe que não pode entrar aqui.
Martha bloqueava o acesso à porta principal do Centro Ila enquanto olhava para as duas pessoas. Tinha a sensação de que já vira a mulher antes. A altura e a magreza dela tornavam-na difícil de esquecer. Brigada Antidroga? Ela tinha cabelo louro, sem vida, quase não usava maquilhagem, e uma expressão facial ligeiramente desconfortável que a fazia parecer a filha amedrontada de um homem rico.
O homem era exatamente o oposto dela. Cerca de 1,70 metros de altura, algures já na casa dos sessenta. Rugas no rosto. Mas também algumas de expressão. Cabelo grisalho, ralo, por cima de uns olhos onde ela leu «bondoso», «dotado de sentido de humor» e «obstinado». Ela tinha por hábito ler automaticamente a expressão das pessoas quando fazia a entrevista de apresentação obrigatória a novos residentes, a fim de determinar qual o tipo de comportamento e sarilhos que os funcionários podiam esperar. Às vezes errava. Mas era raro.
– Não precisamos de entrar – disse o homem que se apresentara como inspetor-chefe Kefas. – Somos dos Homicídios. É sobre o Per Vollan. Ele vivia aqui.
– Vivia?
– Sim, morreu.
Martha ficou boquiaberta. Era a sua reação inicial quando a informavam de que morrera mais outro homem. Perguntava-se se era para se tranquilizar por ainda estar viva. A surpresa chegava depois. Ou melhor, o facto de não ficar surpreendida. Contudo, Per não era toxicodependente, não ficara sentado na sala de espera da morte com os restantes. Ou ficara? E ela vira-o, soubera-o subconscientemente? Fora por isso que, à habitual expressão boquiaberta, se seguira a igualmente rotineira reação mental: claro. Não, não era isso. Era a outra coisa.
– Ele foi encontrado no rio Aker.
O homem fazia as despesas da conversa. A rapariga tinha escrito na testa ESTAGIÁRIA.
– Certo – disse Martha.
– Não me parece surpreendida.
– Não. Não, provavelmente não. Claro que é sempre um choque, mas...
– ...mas é perfeitamente expectável na nossa atividade, não é? – O homem indicou com um gesto as janelas do edifício contíguo. – Não sabia que o Tranen tinha fechado.
– Vai ser uma pastelaria de luxo – disse Martha, abraçando-se como se sentisse frio. – Para as mães jovens e atraentes que bebem cappucinos.
– Pelos vistos, também já cá chegaram. Quem diria. – Cumprimentou com um baixar da cabeça um velhote que caminhava com passos arrastados e joelhos trémulos de drogado e foi correspondido com um aceno comedido. – Hoje há aqui muitos rostos familiares. Todavia, o Vollan era um capelão da prisão. O relatório da autópsia ainda não está concluído, mas não encontrámos quaisquer marcas de agulhas no corpo.
– Ele não estava aqui por andar a consumir. Ajudou-nos quando tivemos problemas com ex-criminosos que vivem aqui agora. Confiavam nele. Por isso, quando ele teve de abandonar a casa, oferecemos-lhe acomodação temporária.
– Nós sabemos. O que estou a perguntar é porque não ficou surpreendida com a sua morte quando sabe que ele não consumia. A morte dele podia ter sido acidental.
– Foi mesmo?
Simon olhou para a mulher alta e magra. Ela hesitou até ele lhe fazer sinal com a cabeça. Então ela abriu finalmente a boca.
– Não encontrámos quaisquer indícios de violência, no entanto a zona que rodeia o rio é conhecida por ser frequentada por criminosos.
Martha apercebeu-se da sua pronúncia e concluiu que uma mãe austera tinha corrigido o sotaque da filha à mesa do jantar. Uma mãe que lhe dissera que nunca arranjaria um marido decente se falasse como uma empregada de balcão.
O inspetor-chefe inclinou a cabeça.
– Qual é a sua opinião, Martha?
Gostava dele. Parecia ser uma pessoa que se preocupava.
– Penso que ele sabia que ia morrer.
Ele arqueou um sobrolho.
– Porquê?
– Porque me escreveu uma carta.
Martha contornou a mesa da sala de reuniões que ficava diante da receção no primeiro andar. Tinham conseguido manter o estilo gótico e era, sem dúvida, a sala mais bonita do edifício. Não que a concorrência fosse forte. Encheu uma chávena de café para o inspetor-chefe sentado a ler uma carta que Per Vollan deixara para ela na receção. A colega instalara-se na borda de uma cadeira ao lado dele, a enviar SMS do telemóvel. Declinara educadamente a oferta que Marta lhe fizera de um café, um chá ou uma água, como se suspeitasse que ali até a água da torneira estava contaminada com micróbios indesejáveis. Kefas empurrou a carta na direção dela.
– Diz aqui que ele deixa tudo o que possui ao albergue.
A colega enviou o SMS e pigarreou. O inspetor-chefe virou-se para ela.
– Sim, Adel?
– Não pode continuar a chamar-lhe albergue; agora chama-se centro residencial.
Kefas pareceu genuinamente surpreendido.
– Porquê?
– Porque temos aqui assistentes sociais e uma enfermaria – explicou Martha. – Isso faz com que seja mais do que um albergue. Claro, o verdadeiro motivo é a palavra «albergue» ter agora uma conotação negativa. Bebedeiras, rixas e condições de vida decadentes. Deste modo, aplicam uma camada de tinta sobre a ferrugem mudando-lhe o nome.
– Mesmo assim... – disse o inspetor-chefe. – O Vollan iria mesmo deixar tudo o que tinha a esta instituição?
Martha encolheu os ombros.
– Duvido que tivesse muito que deixar. Reparou na data por baixo da assinatura dele?
– Escreveu a carta ontem. E considera que ele o fez por saber que ia morrer? Está a dizer que se suicidou?
Martha pensou um pouco.
– Não sei.
A mulher alta e magra voltou a pigarrear.
– Tanto quanto julgo saber, o fracasso de um casamento não é uma razão invulgar para o suicídio entre os homens acima dos quarenta anos.
Martha ficou com a sensação de que a pacata rapariga sabia mais do que dizia; sabia as estatísticas exatas.
– Ele parecia deprimido? – perguntou Simon.
– Eu diria mais em baixo do que deprimido.
– Não é invulgar uma pessoa com tendências suicidas matar-se assim que sai da depressão – disse a rapariga, dando a impressão de estar a citar um livro. Os outros dois olharam para ela. – A depressão propriamente dita carateriza-se por apatia e é necessária uma certa dose de iniciativa para cometer suicídio.
Um bip indicou que ela recebera um SMS.
Kefas virou-se para Martha.
– Um homem de meia-idade é expulso pela mulher e escreve para si algo que pode ser considerado um bilhete de despedida. Nesse caso, por que motivo não é suicídio?
– Eu não disse que não era.
– Mas?
– Ele parecia assustado.
– Assustado com quê?
Martha encolheu os ombros. Perguntou-se se não estaria a meter-se em sarilhos desnecessários.
– O Per era um homem com um lado negro. Não fazia questão de escondê-lo. Dizia que se tornara capelão porque necessitava muito mais de perdão do que os outros.
– Está a afirmar que ele fez coisas que nem todos teriam capacidade de perdoar?
– Coisas que ninguém podia perdoar-lhe.
– Entendo. Estamos a falar do tipo de pecados em que o clero parece estar fortemente representado?
Martha não respondeu.
– Foi por esse motivo que a mulher o expulsou de casa?
Martha hesitou. Este homem era mais perspicaz do que os outros agentes da Polícia que ela conhecera. Mas podia confiar nele?
– No meu trabalho, aprendemos a arte de perdoar o imperdoável, inspetor-chefe. Pela lógica, é possível que o Per não conseguisse perdoar-se e ter por isso escolhido esta saída. Mas também é possível que...
– ...alguém, digamos o pai de uma criança que foi vítima de abusos sexuais, quisesse evitar apresentar uma queixa que levaria à estigmatização da vítima. E, além disso, esse homem não teria a certeza de que o Per Vollan viesse a ser castigado e, para todos os efeitos, qualquer que fosse a sentença aplicada, nunca seria suficiente. Então, decidiu ser juiz, júri e carrasco.
Martha anuiu.
– Parece-me algo perfeitamente natural quando alguém faz mal ao nosso filho. Nunca se deparou com situações na sua profissão em que a lei é inadequada?
Simon Kefas abanou a cabeça.
– Se os agentes da Polícia cedessem a esse tipo de tentação, a lei deixava de ser necessária, não é verdade? E também acredito no primado do Direito. A justiça deve ser cega. Suspeita de alguém em particular?
– Não.
– Dívidas por causa da droga? – perguntou Kari Adel.
Martha abanou a cabeça.
– Eu saberia se ele estivesse a consumir.
– Só perguntei porque acabo de enviar um SMS a um agente da Brigada Antidroga sobre Per Vollan. E ele respondeu... – Tirou o telemóvel do bolso do casaco justo e ouviu-se um baque quando veio atrás um berlinde, que caiu no chão e começou a rolar para a esquerda. – «Vi-o algumas vezes a conversar com um dos passadores do Nestor» – leu em voz alta enquanto se levantava e começava à procura do berlinde. – «Vi-o comprar uma dose, mas não pagou.» – Kari Adel guardou o telemóvel no bolso e apanhou o berlinde antes de ele chegar à parede.
– E o que pensa disso? – perguntou Simon.
– Que este edifício está inclinado na direção da Alexander Kiellands Plass. Provavelmente mais argila e menos granito daquele lado.
Martha soltou uma risada.
A mulher alta e magra esboçou um breve sorriso.
– E que o Vollan devia dinheiro a alguém. Uma dose de heroína custa trezentas coroas. E nem sequer é uma dose completa, são apenas 0,2 gramas. A uma média de duas por dia...
– Calma aí – interrompeu-a Simon. – Os drogados não têm crédito, pois não?
– Normalmente, não. Talvez ele estivesse a fazer favores a alguém e fosse pago com heroína.
Martha levantou as mãos.
– Ele não andava a consumir, já lhe disse várias vezes! Grande parte do meu trabalho é saber se as pessoas estão limpas, okay?
– Tem razão, claro, Miss Lian – referiu Simon, coçando o queixo. – Talvez a heroína não fosse para ele. – Pôs-se em pé. – De qualquer maneira, teremos de aguardar e ver o que diz o médico-legista.
– Foi boa ideia ter enviado um SMS à Brigada Antidroga – disse Simon quando desciam a Uelandsgate, em direção ao centro da cidade.
– Obrigada – disse Kari.
– Uma rapariga simpática, aquela Martha Lian. Já se cruzou com ela antes?
– Não, mas não a punha fora da cama se a apanhasse lá.
– O quê?
– Desculpe, foi uma péssima piada. Estava a perguntar-me se eu a conhecia dos meus tempos na Brigada Antidroga. Conheço. Ela é muito simpática e sempre me perguntei por que motivo trabalha no Centro Ila.
– Porque é bonita?
– É do conhecimento geral que a beleza aumenta as perspetivas de carreira apenas das pessoas dotadas de inteligência e capacidades medianas. A meu ver, trabalhar no Centro Ila não é um trampolim seja para o que for.
– Talvez ela julgue ser um trabalho que vale a pena.
– Que vale a pena? Tem a mínima noção de quanto eles pagam...
– Vale a pena fazê-lo. O trabalho da Polícia também não é bem remunerado.
– Tem razão.
– No entanto, é um bom começo de carreira se conjugado com uma licenciatura em Direito – disse Simon. – Quando é que termina o segundo nível?
Ele detetou mais uma vez um leve rubor no pescoço de Kari e percebeu que tocara num ponto sensível.
– Certo – disse Simon. – Foi bom poder contar com os seus serviços. Espero que em breve venha a ser minha chefe. Ou que consiga um emprego no setor privado, onde os ordenados são em média uma vez e meia superiores para as pessoas com as nossas competências.
– Talvez – respondeu Kari. – Mas não creio que alguma vez vá ser sua chefe. O senhor vai reformar-se no próximo mês de junho.
Simon não soube se rir, se chorar. Virou à esquerda na Grønlandsleiret, em direção ao Comando da Polícia.
– Uma vez e meia o seu vencimento vinha a calhar quando estamos a remodelar uma propriedade. Apartamento ou moradia?
– Moradia – disse Kari. – Tencionamos ter dois filhos e precisamos de mais espaço. Tendo em conta o preço do metro quadrado no centro de Oslo, devemos comprar uma casa que não necessite de grandes remodelações, a menos que se receba uma herança. Tanto os meus pais como os de Sam estão vivos e de boa saúde; e, além disso, Sam e eu estamos de acordo em que os subsídios corrompem.
– Corrompem? A sério?
– Sim.
Simon olhou para os donos das lojas paquistanesas que tinham saído dos seus estabelecimentos superaquecidos e vindo para a rua, onde conversavam, fumavam cigarros e observavam o trânsito.
– Não tem curiosidade em saber como descobri que anda à procura de casa?
– O berlinde – respondeu Kari. – Os adultos sem filhos só trazem um no bolso se andarem a ver casas ou apartamentos velhos e quiserem verificar se os soalhos estão inclinados devido a mau assentamento e se precisam de ser levantados.
Ela era inteligente.
– Não se esqueça disto – disse Simon. – Se uma casa está de pé há mais de 120 anos, os soalhos devem estar um pouco tortos.
– É possível que sim – respondeu Kari, debruçando-se para ver a flecha da igreja de Grønland. – Mas gosto que os soalhos estejam direitos.
Simon desatou às gargalhadas. Começava a gostar daquela rapariga. Se calhar, também ele gostava de soalhos direitos.
7
–Conheci o teu pai – disse Johannes Halden.
Lá fora chovia. O dia estivera quente e soalheiro; as nuvens tinham-se acumulado no horizonte e a chuva miudinha de verão caía sobre a cidade. Johannes recordou-se de como era antes de ser preso. Como as gotículas de chuva aqueciam mal nos caíam na pele beijada pelo sol. Como faziam com que o cheiro a pó se elevasse do alcatrão. O cheiro das flores, da relva e das folhas deixava-o louco, inebriado e animado. Ah, ser jovem de novo.
– Eu era o informador secreto dele – afirmou Johannes.
Sonny estava sentado no escuro, próximo da parede, e era impossível ver-lhe o rosto. Johannes não tinha muito tempo; as celas não tardariam a fechar-se, pois já anoitecera. Respirou fundo. Aí vinha ela. A frase que precisava de dizer, mas cujas consequências temia. Ao articular as palavras que tinham estado tanto tempo guardadas no seu peito receava que pudessem ter criado raízes.
– Não é verdade que se tenha suicidado, Sonny.
Pronto. Contara-lhe finalmente.
Silêncio.
– Não estás a dormir, pois não, Sonny?
Johannes conseguiu ver o corpo mexer-se na sombra.
– Sei o que tu e a tua mãe devem ter passado. Encontrarem o teu pai morto. Lerem o bilhete em que ele afirmava ser a toupeira, na Polícia, que tinha ajudado os passadores de droga e os traficantes. Que ele lhes falara das rusgas, das provas, dos suspeitos...
Viu as córneas num par de olhos que pestanejavam.
– Mas foi o inverso, Sonny. O teu pai desconfiava de quem era a toupeira. Ouvi o Nestor falar ao telefone com o chefe dizendo que tinham de se livrar de um polícia chamado Lofthus antes que ele lhes desse cabo de tudo. Eu pus o teu pai a par daquela conversa, disse-lhe que ele corria perigo, que a Polícia tinha de agir rapidamente. Mas o teu pai respondeu que não podia envolver outras pessoas, que tinha de ir sozinho porque sabia haver outros agentes da Polícia a dever dinheiro ao Nestor. Então, obrigou-me a jurar que ficava de bico calado e nunca contaria nada a ninguém. E eu mantive essa promessa até agora.
Teria Sonny compreendido? Possivelmente não, no entanto o mais importante não era que Sonny tivesse ouvido nem as consequências, mas que Johannes tivesse tirado aquele peso do peito. Conseguira finalmente contar-lhe. Transmitira a mensagem a quem ela pertencia por direito.
– O teu pai estava sozinho naquele fim de semana; tu e a tua mãe tinham ido a uma competição de luta livre fora da cidade. Ele sabia que vinham buscá-lo, por isso barricara-se naquela vossa casa amarela lá em cima em Berg.
Johannes julgou ter detetado algo no escuro. Uma alteração nas pulsações e na respiração.
– Mesmo assim, os tipos do Nestor ainda conseguiram entrar. Não queriam que recaíssem sobre eles as consequências de alvejarem um agente da Polícia, por isso, obrigaram o teu pai a escrever aquele bilhete de suicídio. – Johannes engoliu em seco. – A troco da promessa de te pouparem a ti e à tua mãe. Depois, mataram-no à queima-roupa com a sua própria arma.
Johannes fechou os olhos. Reinava o mais absoluto silêncio e, no entanto, parecia que estavam a gritar-lhe ao ouvido. E apercebia-se de um aperto no peito e na garganta como há muitos, muitos anos não sentia. Santo Deus, quando fora a última vez que chorara? Quando a sua filha nascera? Mas agora não conseguia parar; tinha de acabar aquilo que começara.
– Não estás curioso por saber como é que o Nestor entrou na casa?
Johannes susteve a respiração. Parecia que o rapaz também parara de respirar; tudo o que ouvia era o sangue a latejar-lhe ruidosamente nos ouvidos.
– Tinham-me visto a falar com o teu pai, e o Nestor achou que a Polícia tinha tido sorte a mais com os camiões que mandara parar recentemente. Neguei que tivesse sido eu, disse que conhecia vagamente o teu pai e que ele estava a tentar sacar-me informações. Então, o Nestor disse que se o teu pai acreditasse que eu poderia vir a ser o seu informador secreto, podia ser eu a dirigir-me à porta da rua e levá-lo a abri-la. Desse modo, podia provar a quem devia lealdade, disse ele...
Johannes conseguiu ouvir o recomeçar da respiração do outro. Acelerada. Pesada.
– O teu pai abriu a porta. Porque confiamos no nosso informador, não é?
Sentiu movimento, mas não ouviu nem viu nada antes de o punho o atingir. E, enquanto permanecia estendido no chão com o sabor metálico do sangue, sentindo o dente deslizar-lhe pela garganta, ouvindo o rapaz gritar continuamente e depois ser controlado e algemado, pensou na extraordinária agilidade física, na precisão e na força do soco daquele drogado. E no perdão. No perdão que não recebera. E no tempo. Nos segundos a passarem. Na noite a aproximar-se.
8
Oque mais agradava a Arild Franck no seu Porsche Cayenne era o som. Melhor dizendo, a ausência de som. O zumbido do motor V8 de 4,8 litros fazia-lhe lembrar a máquina de costura da mãe na altura em que ele estava a crescer em Stange, já fora de Hamar. Também ali havia o som do silêncio. Do silêncio, da calma e da concentração.
A porta do lado do passageiro abriu-se e Einar Harnes entrou. Franck não sabia onde é que os jovens advogados compravam os seus fatos; só sabia que não era nas mesmas lojas que ele frequentava. Assim como nunca percebera a razão para comprar fatos de cores claras. Os fatos eram escuros. E custavam menos de cinco mil coroas. A diferença de preço entre os seus fatos e os de Harnes devia ser depositada numa conta-poupança para as gerações futuras com famílias para sustentar e que dariam continuidade ao trabalho de construção da Noruega. Ou financiar uma reforma antecipada e confortável. Ou um Porsche Cayenne.
– Constou-me que ele está na solitária – disse Harnes quando o carro se afastou da berma junto à entrada cheia de graffiti dos escritórios de advogados Harnes & Fallbakken.
– Espancou outro recluso – adiantou Franck.
Harnes arqueou um sobrolho bem cuidado.
– O Gandhi desferiu um soco?
– Nunca se sabe do que os drogados são capazes. Mas ele teve quatro dias de desmame, por isso imagino que, nesta altura, se mostre bastante mais cooperante.
– Sim, é de família; pelo menos foi o que me constou.
– O que é que lhe constou?
Franck buzinou a um Corolla lento.
– Apenas aquilo que é do conhecimento geral. Há mais alguma coisa?
– Não.
Arild Franck colocou-se à frente de um Mercedes descapotável. Ainda na véspera visitara a cela de isolamento. O pessoal acabara de limpar o vomitado e o rapaz estava sentado a um canto, todo encolhido debaixo de um cobertor de lã.
Franck nunca estivera frente a frente com Ab Lofthus, no entanto sabia que o filho seguira as pisadas do pai. Que fora lutador, tal como o pai, e parecia tão promissor aos quinze anos que o jornal Aftenposten lhe vaticinara uma carreira na liga nacional. Naquele momento, porém, estava sentado numa cela fedorenta, a tremer como varas verdes e a soluçar como uma menina. No desmame são todos iguais.
Pararam diante da cabina da segurança, Einar Harnes exibiu a sua identificação e a barreira de aço foi erguida. Franck estacionou o Cayenne no espaço que lhe fora atribuído e ele e Harnes encaminharam-se para a entrada principal onde ficou registada a visita deste último. Por norma, Franck deixava entrar Harnes pela porta das traseiras, junto aos vestiários do pessoal, para evitar registá-lo. Não queria dar motivos para especulações sobre as visitas frequentes de um advogado com a reputação de Harnes à Estatal.
Qualquer recluso suspeito de envolvimento num novo caso criminal era, por norma, interrogado no Comando da Polícia, todavia, Franck solicitara que este interrogatório tivesse lugar na Estatal, atendendo a que Sonny Lofthus se encontrava naquele momento na solitária.
Para o efeito, tinham limpado e preparado uma cela vaga. Estavam dois polícias, um homem e uma mulher, sentados de um lado da mesa. Franck já os vira antes, mas não conseguia recordar-se dos nomes deles. A pessoa do outro lado da mesa era tão pálida que dava a impressão de se misturar com a parede leitosa. Mantinha-se de cabeça baixa e as suas mãos agarravam a extremidade da mesa com muita força, como se a sala andasse à roda.
– Então, Sonny – disse Harnes, em tom animado, colocando a mão no ombro do rapaz –, estás preparado?
A mulher-polícia pigarreou.
– Devia perguntar-lhe se ele já acabou.
Harnes sorriu-lhe fugazmente e arqueou os sobrolhos.
– Como assim? Espero que não tenha começado a interrogar o meu cliente na ausência do seu advogado.
– Ele disse que não precisava de esperar pelo senhor – respondeu o polícia.
Franck olhou para o rapaz. Pressentiu sarilhos.
– Então, ele já confessou? – Harnes suspirou, abriu a pasta e retirou três folhas agrafadas. – Se a quiserem por escrito, nesse caso...
– Pelo contrário – disse a mulher-polícia. – Ele acabou de negar ter tido algo que ver com o homicídio.
Fez-se tamanho silêncio na sala que Franck conseguiu ouvir as aves a cantar lá fora.
– Ele fez o quê?
Os sobrolhos de Harnes chegaram-lhe à linha do cabelo. Franck não soube o que o deixou mais furioso, se as sobrancelhas arranjadas do advogado se a sua lentidão em avaliar a catástrofe que se adivinhava.
– Ele disse mais alguma coisa? – perguntou Franck.
A mulher-polícia olhou para o subdiretor prisional, depois para o advogado.
– Não se preocupe – respondeu Harnes. – Ele está aqui a meu pedido, para o caso de necessitarem de mais informações sobre o dia de semiliberdade do Lofthus.
– Eu mesmo o autorizei – disse Franck. – E nada nos faria supor que fosse ter consequências tão trágicas.
– E não, ainda não sabemos se as teve – referiu a mulher-polícia. – Tendo em conta que não obtivemos uma confissão.
– Mas as provas... – exclamou Arild Franck, que logo se calou.
– O que quer saber sobre as provas? – perguntou-lhe o polícia.
– Limitei-me a presumir que tivesse algumas – respondeu Franck. – Dado que o Lofthus é suspeito. Não é verdade, senhor...?
– Inspetor-detetive Henrik Westad – disse o polícia. – Fui a primeira pessoa a entrevistar o Lofthus, mas agora ele alterou o depoimento. Afirma, inclusivamente, que tem um álibi para a hora do crime. Uma testemunha.
– Efetivamente, ele tem uma testemunha – afirmou Harnes, olhando para o seu cliente silencioso. – O guarda prisional que o acompanhou no dia de semiliberdade. E ele disse que o Lofthus desapareceu durante...
– Outra testemunha – referiu Westad.
– E quem poderia ser? – zombou Franck.
– O Lofthus afirma ter-se encontrado com um homem chamado Leif.
– Leif quê?
Olharam todos para o recluso de cabelo comprido que parecia estar muito longe dali e completamente alheado da presença deles.
– Ele não sabe – respondeu Westad. – Diz que conversaram por breves minutos numa área de serviço. Afirma que a testemunha conduzia um Volvo azul com um autocolante que dizia «Eu ? Drammen» e crê que podia estar indisposta ou sofrer de problemas cardíacos.
Franck deu uma gargalhada ruidosa.
– Creio – disse Einar Harnes, com forçada compostura, enquanto voltava a guardar os papéis na sua pasta – que devemos ficar por aqui para eu poder falar com o meu cliente e receber instruções.
Franck tinha por hábito sorrir quando se irritava. E, naquele momento, a raiva borbulhava dentro da sua cabeça como uma chaleira a ferver e teve de se recompor para não desatar outra vez às gargalhadas. Fuzilou com o olhar o alegado cliente de Harnes. Sonny Lofthus devia estar louco. Primeiro o ataque ao velho Halden e agora isto. A heroína devia ter-lhe finalmente corroído o cérebro. No entanto, não podiam permitir que Sonny desse cabo de tudo, era demasiado importante. Franck inspirou fundo e ouviu um clique imaginário, como uma chaleira a ferver que se desligava automaticamente. Era apenas uma questão de manter a calma, dar-lhe tempo. Deixar que os sintomas de desmame se mantivessem mais algum tempo.
Simon encontrava-se na Sannerbrua6 a olhar para a água que corria oito metros abaixo deles. Eram seis da tarde e Kari Adel acabara de inquiri-lo sobre as regras das horas extraordinárias na Brigada de Homicídios.
– Não faço ideia – respondeu Simon. – Fale com os Recursos Humanos.
– Consegue ver alguma coisa lá em baixo?
Simon abanou a cabeça. Conseguia descortinar, por detrás da folhagem na margem oriental do rio, o caminho de sirga que acompanhava a água até chegar à nova Casa da Ópera, junto ao Fiorde de Oslo. Encontrava-se ali um homem sentado no banco a dar comida aos pombos. Está reformado, pensou Simon. É o que fazemos quando estamos reformados. Na margem ocidental havia um prédio moderno com janelas e varandas com vista tanto para o rio como para a ponte.
– Afinal, o que estamos aqui a fazer? – perguntou Kari, dando impacientemente pontapés no alcatrão.
– Precisa de ir a algum lado? – perguntou-lhe Simon olhando em volta.
Um carro deslocava-se em marcha lenta, um mendigo sorridente perguntou-lhes se tinham troco de uma nota de duzentas coroas, um casal com óculos de sol de marca e que transportava um grelhador portátil na parte inferior do carrinho de bebé riu-se de algo quando passaram. Adorava Oslo nas férias de verão, altura em que a cidade se esvaziava de pessoas e se tornava mais uma vez sua. Altura em que voltava a ser a aldeia da sua infância, agora ligeiramente maior, em que nunca acontecia nada de importante. Uma cidade que ele compreendia.
– Eu e Sam recebemos um convite de uns amigos para jantar.
Amigos, pensou Simon. Costumava ter amigos. O que era feito deles? Talvez fizessem exatamente a mesma pergunta a si próprios. O que era feito dele? Não sabia se conseguia dar-lhes uma resposta adequada.
O rio não devia ter mais de um metro e meio de profundidade. Em algumas zonas havia pedras que sobressaíam da água. O relatório da autópsia mencionava ferimentos compatíveis com uma queda de uma determinada altura, algo que se coadunava com o pescoço partido, que era a verdadeira causa da morte.
– Estamos aqui porque andámos a subir e descer o rio Aker e este é o único local onde a ponte tem altura suficiente e o nível da água é bastante baixo para ele ter embatido com força nas pedras. Além disso, é a ponte mais próxima do albergue.
– Centro residencial – corrigiu-o Kari.
– Você era capaz de tentar matar-se aqui?
– Não.
– Quero dizer, se fosse matar-se.
Kari parou de arrastar os pés. Olhou por cima do corrimão.
– Acho que escolheria um lugar mais alto. O risco de sobreviver é enorme. O risco de acabar numa cadeira de rodas é demasiado grande.
– Mas também não empurrava uma pessoa desta ponte, se a quisesse matar, pois não?
– Não, acho que não – bocejou.
– Portanto, estamos à procura de alguém que partiu o pescoço ao Per Vollan e depois o atirou ao rio daqui.
– Presumo que lhe chame uma teoria.
– Não, isso é o que nós chamamos uma teoria. O tal jantar...
– Sim?
– Telefone à sua cara-metade e diga que está cancelado.
– Como?
– Vamos começar um inquérito porta a porta à procura de potenciais testemunhas. Pode começar por tocar às campainhas das que têm uma varanda virada para o rio. A seguir, vamos ter de passar os arquivos a pente fino, à procura de potenciais situações idênticas. – Simon fechou os olhos e inspirou. – Oslo não é simplesmente maravilhosa no verão?
6 Ponte Sanner. (N. da T.)
9
Einar Harnes nunca tivera quaisquer ambições de salvar o mundo. Apenas uma parte dele. Mais especificamente, a sua parte. Então, estudara Direito. Apenas uma parte dele. Mais precisamente, a parte de que necessitava para passar no exame. Conseguira emprego num escritório de advogados que funcionava incontestavelmente na base do sistema legal de Oslo, trabalhara para eles apenas o tempo suficiente para obter a carteira profissional, abrira o seu próprio escritório com Erik Fallbakken, um idoso alcoólico com transtorno de personalidade e, juntos, tinham levado o conceito de escória a um novo mínimo. Aceitavam os casos mais desesperados e perdiam-nos todos, mas granjeavam fama de defensores dos mais humildes da sociedade. A especificidade dos seus clientes garantia que a parceria jurídica de Harnes & Fallbakken conseguia pagar a maior parte das faturas – se é que alguma vez isso chegava a acontecer – nos mesmos dias em que as pessoas recebiam os subsídios ou as pensões. Não tardou a que Einar Harnes se apercebesse de que não se metera no negócio para fazer justiça, mas para ser uma alternativa ligeiramente mais dispendiosa aos cobradores de dívidas, aos serviços sociais e aos videntes. Ameaçava com processos judiciais as pessoas que lhe pagavam para ameaçar, contratava os indivíduos mais inúteis da sociedade pelo salário mínimo e prometia, sem exceção, uma vitória em tribunal aos potenciais clientes. Contudo, havia um cliente que era o verdadeiro motivo pelo qual Harnes continuava a exercer. O cliente não constava do sistema de arquivo – se é que tal se podia chamar ao caos que nele reinava –, organizado por uma secretária que se encontrava quase sempre de baixa. Esse cliente pagava sempre em dinheiro e raramente pedia fatura. Tão-pouco era provável que esse cliente fosse exigi-la pelas horas que Harnes se preparava para lhe cobrar.
Sonny Lofthus estava sentado na cama, de pernas cruzadas, com o desespero branco a irradiar-lhe dos olhos. Já tinham decorrido seis dias desde o famoso interrogatório e o rapaz estava a passar um mau bocado, no entanto resistira mais do que eles esperavam. Os relatos dos outros reclusos com quem Harnes contactava eram extraordinários. Sonny não tentara comprar drogas; muito pelo contrário, recusara todas as ofertas de anfetaminas e canábis. Fora visto no ginásio, onde correra na passadeira durante duas horas sem parar, passando de seguida para o levantamento de pesos. À noite, tinham-se ouvido gritos vindos da cela de Sonny. Mas ele estava a aguentar-se. Um sujeito que fora um consumidor crónico de heroína durante doze anos. As únicas pessoas de que Harnes tinha conhecimento de já o terem conseguido eram aquelas que substituíam as drogas por algo que criava igualmente dependência, que conseguia estimulá-las e motivá-las tanto quanto a moca de um chuto. E a lista era pequena. Podiam encontrar Deus, apaixonar-se ou ter um filho. E pronto. Em suma, encontravam finalmente algo que dava uma nova finalidade às suas vidas. Ou seria apenas a última viagem de um náufrago até à superfície antes de finalmente se afundar? A única certeza que Einar Harnes tinha era de que o seu cliente queria uma resposta. Não. Uma resposta, não. Resultados.
– Eles têm provas de ADN, por isso, serás condenado independentemente de confessares ou não. Porquê prolongares a agonia sem uma razão plausível?
Nenhuma resposta.
Harnes passou com tanta força a mão pelo cabelo penteado para trás que até lhe doeram as raízes.
– Eu podia ter aqui um saco de Superboy dentro de uma hora, por isso, qual é o problema? Só preciso da tua assinatura aqui. – Bateu com o dedo nas três folhas A4 em cima da sua pasta colocada sobre as coxas.
O rapaz tentou humedecer os lábios secos e gretados com uma língua tão branca que Harnes se perguntou se não produziria sal.
– Obrigado. Vou pensar nisso.
Obrigado? Vou pensar nisso? Ele estava a oferecer drogas a um patético agarrado em desmame! Teria o rapaz rejeitado as leis da gravidade?
– Escuta, Sonny...
– E obrigado pela sua visita.
Harnes abanou a cabeça e levantou-se. O rapaz não ia aguentar. Harnes só precisava de esperar mais um dia. Até a época dos milagres ter passado.
Quando um guarda prisional acompanhou o advogado através das portas e câmaras e ele regressou à receção onde pediu que lhe chamassem um táxi, pensou no que diria o seu cliente. Ou melhor, no que faria o seu cliente se Harnes não salvasse o mundo.
Quer dizer, a sua parte do mundo.
Geir Goldsrud debruçou-se na cadeira e olhou para o monitor.
– Que raio está ele a fazer?
– Parece que está a tentar chamar a atenção de alguém – disse outro guarda prisional na sala de controlo.
Goldsrud olhou para o rapaz. A barba comprida descia-lhe até ao peito nu. Ele subira a uma cadeira diante de uma das câmaras de segurança, batendo com a articulação do dedo indicador na lente enquanto proferia palavras incompreensíveis.
– Finstad, vem comigo – disse Goldsrud, levantando-se.
Passaram por Johannes, que lavava o chão do corredor. A visão trouxe a Goldsrud reminiscências de alguma coisa que vira num filme. Desceram as escadas até ao rés do chão, entraram, atravessaram a cozinha comum e avançaram pelo corredor, onde encontraram Sonny sentado na cadeira em cima da qual estivera empoleirado momentos antes.
Goldsrud olhou para o tronco e os braços e percebeu que o rapaz fizera recentemente exercício; os músculos e as veias sobressaíam nitidamente sob a pele. Constara-lhe que alguns dos mais inveterados consumidores de drogas por via intravenosa trabalhavam os bíceps no ginásio antes de se injetarem. Circulavam anfetaminas e todo o tipo de comprimidos, no entanto a Estatal era uma das poucas – muito provavelmente a única – das prisões na Noruega onde tinham efetivamente conseguido limitar o controlo da importação de heroína. Mesmo assim, não parecia que Sonny alguma vez tivesse tido problemas em arranjá-la. Até agora. Goldsrud apercebia-se, pelas tremuras, que o rapaz não tomava uma dose há vários dias. Não admirava que estivesse desesperado.
– Ajudem-me – suplicou Sonny quando os viu aproximarem-se.
– Claro – disse Goldsrud, piscando o olho a Finstad. – Uma dose custar-te-á duas mil.
Falara em tom de gracejo, mas reparou que Finstad ficara na dúvida.
O rapaz abanou a cabeça. Os músculos dele até sobressaíam no pescoço e na garganta. Chegara aos ouvidos de Goldsrud o boato de que o rapaz fora um promissor lutador. Talvez fosse verdade o que diziam, que quaisquer músculos que se desenvolvessem antes dos doze anos podiam ser recuperados em adulto numa questão de semanas.
– Tranquem-me.
– Só te trancamos às dez horas, Lofthus.
– Por favor.
Goldsrud ficara intrigado. Quando os reclusos pediam para serem trancados nas celas, era porque receavam alguém. Às vezes, mas não sempre, tinham motivos para isso. O medo era uma consequência normal de uma vida de crime. Ou vice-versa. No entanto, Sonny era provavelmente o único recluso na Estatal que não tinha um único inimigo entre os outros presos. Pelo contrário, tratavam-no como uma vaca sagrada. E o rapaz nunca mostrara quaisquer sinais de medo e possuía, sem dúvida, uma resistência física e mental para lidar melhor com a toxicodependência do que a maioria. Nesse caso, porque...?
O rapaz arrancou uma crosta de uma marca de agulha do antebraço e foi nessa altura que Goldstad se apercebeu de que havia crostas em todas as marcas. Não tinha nenhumas recentes. O rapaz deixara a droga. Era por isso que queria ser trancado. Estava com síndrome de abstinência e demasiado consciente de que aceitaria tudo o que lhe apresentassem, fosse lá o que fosse.
– Vá lá – disse Goldsrud.
– Faça o favor de levantar as pernas, Simon.
Simon ergueu a cabeça. A velha empregada da limpeza era muito pequena e estava toda curvada pelo que mal chegava ao carrinho. Já trabalhava no Comando da Polícia antes de Simon ter entrado lá, a dada altura no milénio anterior. Era uma empregada de limpeza com opiniões fortes e, muitas vezes, na sua profissão, Simon via-se a si e aos seus colegas como empregados de limpeza.
– Olá, Sissel, já é de novo aquela hora?
Simon olhou para o seu relógio de pulso. Passava das quatro. Oficialmente, o fim do dia de trabalho na Noruega. Na verdade, a lei laboral quase obrigava a que se saísse impreterivelmente à hora em ponto. No passado, ele queria lá saber dessas coisas, mas isso fora nessa altura. Sabia que Else o esperava, que começara a preparar o jantar há várias horas e que quando ele chegasse a casa, ela fingia ter preparado a refeição à pressa na esperança de que ele não reparasse na confusão, nos salpicos e nos outros sinais que revelavam que a sua visão se deteriorara mais um pouco.
– Há muito tempo que nós não fumamos juntos, Simon.
– Agora prefiro o snus.
– Aposto que a sua jovem mulherzinha o obrigou a abandonar o hábito. Ainda não tem filhos?
– Ainda não te reformaste, Sissel?
– Acho que o senhor já tem algures por aí um filho e é por isso que não quer outro.
Simon sorriu, olhou-a quando passou a esfregona por baixo das pernas dele e perguntou-se, já não era a primeira vez, como era possível que tivesse saído uma imensa prole do corpinho franzino de Sissel Thou. A Semente do Diabo7. Reuniu os papéis. O caso Vollan fora desvendado. Nenhum dos residentes nos apartamentos nas imediações da Sannerbrua vira algo e não tinham aparecido novas testemunhas. Até encontrarem provas que sugerissem ter sido cometido um crime, o caso deixava de ser prioritário, dissera o chefe, e mandara Simon passar os dois dias seguintes a trabalhar nos relatórios de dois casos de homicídio resolvidos que lhes tinham valido uma reprimenda da procuradora, que os descrevera como «fracotes». Ela não lhes encontrara propriamente erros; só queria ver «os pormenores mais desenvolvidos».
Simon desligou o computador, vestiu o casaco e encaminhou-se para a porta. Ainda era verão, o que queria dizer que muito do pessoal que não estava de férias saía às três e ouvia apenas os toques espaçados numa ou noutra tecla no open space que cheirava à cola das paredes divisórias antigas aquecidas pelo sol. Avistou Kari por detrás de uma das divisórias. Colocara os pés em cima da secretária e lia um livro. A cabeça dele assomou.
– Então, esta noite não se janta em casa de amigos?
Ela fechou automaticamente o livro com força e olhou-o com um misto de irritação e culpa. Reparou no título do livro: Direito Comercial. Sabia que ela sabia que não tinha qualquer motivo para se sentir mal por estudar durante o horário de trabalho, uma vez que não lhe tinham dado nada que fazer. Fazia parte do percurso nos Homicídios; não havia homicídios, não havia trabalho atribuído. Simon concluíra, pela forma como ela corara, que tinha consciência de que a sua licenciatura em Direito ia acabar por afastá-la do departamento e isso parecia uma espécie de traição. E irritação, porque, apesar de ela estar convencida de que devia ser aceitável aproveitar o tempo desta maneira, a reação instintiva que tivera quando ele aparecera fora a de fechar rapidamente o livro.
– Este fim de semana Sam vai estar a surfar em Vestlandet. Pensei que pudesse ler aqui em vez de em casa.
Simon anuiu.
– O trabalho da Polícia consegue ser monótono. Mesmo nos Homicídios.
Olhou para ele, que encolheu os ombros.
– Especialmente nos Homicídios.
– Nesse caso, porque se tornou investigador de homicídios?
Descalçara os sapatos e apoiara os pés na borda da cadeira. Como se esperasse uma resposta mais demorada, concluiu Simon. Provavelmente, era uma daquelas pessoas que preferia qualquer companhia à solidão, que preferia estar sentada num open space quase deserto com a oportunidade de ter companhia do que na sua própria sala de estar onde tinha, garantidamente, paz e sossego.
– Pode não acreditar, mas foi um ato de protesto. O meu pai era relojoeiro e queria que eu desse continuidade ao negócio dele. Eu não queria ser uma má imitação do meu pai.
Kari colocou os braços compridos à volta das pernas que faziam lembrar patas de insetos.
– Está arrependido? Houve pessoas que fizeram fortuna a vender relógios.
Simon olhou pela janela. O calor lá fora provocava ondas no ar.
– O meu pai não – respondeu Simon. – E ele também não gostava de imitações. Recusava-se a seguir a moda de fabricar cópias baratas e relógios digitais de plástico. Entendia que era o caminho mais fácil. Foi à falência em grande estilo.
– Bem, isso explica a razão pela qual não quis ser relojoeiro.
– Não, acabei à mesma por ser relojoeiro.
– Como?
– Técnico de local do crime. Perito em balística. Trajetória de balas e tudo isso. É quase o mesmo que consertar relógios. Provavelmente, somos mais iguais aos nossos pais do que gostaríamos de acreditar.
– Afinal, o que aconteceu? – Ela sorriu. – Foi à falência?
– Bem. – Olhou para o seu relógio de pulso. – Acho que me interessei mais pelo porquê do que pelo como. Não sei se tomei a decisão certa ao tornar-me investigador tático. Os projéteis e os ferimentos de bala são mais previsíveis do que o cérebro humano.
– E, nessa altura, resolveu ir trabalhar para o Departamento de Fraudes Graves?
– Leu o meu currículo.
– Informo-me sempre sobre as pessoas com quem trabalho. Não tem já a sua conta de sangue e tripas?
– Não, mas receava que a Else, a minha mulher, pudesse ter. Quando me casei, prometi-lhe que se acabavam os turnos e que teria um horário de trabalho mais regular. Eu gostava do Departamento de Fraudes Graves; era um pouco como voltar a trabalhar com relógios. Por falar na minha mulher... – Levantou-se da secretária.
– Por que motivo abandonou o Departamento de Fraudes Graves, se gostava tanto de lá trabalhar?
Simon esboçou um sorriso cansado. Não, o seu currículo não lhe revelava isso, pois não?
– Lasanha. Acho que ela vai fazer lasanha. Até amanhã.
– Por sinal, recebi um telefonema de um antigo colega. Contou-me que tinha visto um toxicodependente a deambular e que ele tinha um cabeção.
– Um cabeção?
– Como aquele que o Per Vollan costumava usar.
– E o que fez com esta informação?
Kari abriu novamente o livro.
– Nada. Disse-lhe que o caso tinha sido arquivado.
– Deixou de ser prioritário. Até se encontrarem novas provas. Como se chama o toxicodependente e onde podemos encontrá-lo?
– Gilberg. No albergue.
– O centro residencial. E que tal uma pausa na leitura?
Kari suspirou e fechou o livro.
– Então e a lasanha?
Simon encolheu os ombros.
– Está bem. Vou ligar à Else, ela vai entender. E a lasanha sabe melhor quando é aquecida.
7 Nome do filme de terror norte-americano escrito e realizado em 1968 por Roman Polanski. Foi uma adaptação do romance homónimo de Ira Levin, escritor e dramaturgo norte-americano (1929-2007). (N. da T.)
10
Johannes despejou a água suja na pia e arrumou o balde e a esfregona no armário das vassouras. Lavara todos os corredores do primeiro andar e da sala de controlo e estava ansioso por voltar ao livro que o aguardava na cela. As Neves do Kilimanjaro8. Era uma coletânea de contos, no entanto lera apenas um deles sucessivamente. Falava de um homem com gangrena no pé, que sabe que vai morrer. E do facto de este conhecimento não fazer de si uma melhor ou pior pessoa, apenas mais introspetiva, mais honesta, menos paciente. Johannes nunca fora um grande leitor, mas o livro fora-lhe recomendado pelo bibliotecário da prisão e, dado que Johannes desenvolvera um interesse por África desde que navegara para a Libéria e a Costa do Marfim, lera as primeiras páginas sobre este homem aparentemente inocente e moribundo numa tenda na savana. Da primeira vez, fizera apenas uma leitura superficial; agora lia devagar, uma palavra de cada vez, procurando algo, muito embora não fizesse ideia do que era.
– Olá.
Johannes virou-se.
O «olá» de Sonny quase não passara de um murmúrio e a figura de faces encovadas e olhos esbugalhados de pé diante de si era tão pálida, que quase parecia transparente. Como um anjo, pensou Johannes.
– Olá, Sonny. Constou-me que te puseram na solitária. Como tens passado?
Sonny encolheu os ombros.
– Tens um bom gancho de esquerda, rapaz.
Johannes sorriu e apontou para o intervalo onde costumava estar o seu dente incisivo.
– Espero que consigas perdoar-me.
Johannes engoliu em seco.
– Sou eu que preciso de perdão, Sonny.
Entreolharam-se. Johannes viu Sonny olhar para um lado e para o outro do corredor. Seguiu-se uma pausa.
– Evadias-te da prisão por mim, Johannes?
Johannes não respondeu logo e tentou baralhar as palavras para ver se faziam mais sentido antes de perguntar:
– Que história é essa? Eu não quero evadir-me. Além disso, não tenho para onde ir. Iriam encontrar-me e trazer-me imediatamente de volta.
Sonny não respondeu, todavia os seus olhos irradiaram um negro desespero e Johannes compreendeu.
– Tu queres... tu queres que eu me evada para te arranjar alguma Superboy.
Sonny continuava a não responder, no entanto não deixara de fitar o velho com o seu olhar intenso e maníaco. Pobre rapaz, pensou Johannes. Maldita heroína.
– Porquê eu?
– Porque tu és o único que tem acesso à sala de controlo, por isso, só tu podes fazê-lo.
– Errado. Eu sou o único com acesso à sala de controlo e é por isso que sei que não é possível fazê-lo. As portas só podem ser abertas com as impressões digitais guardadas na base de dados. E as minhas não estão lá. Assim como não posso acrescentá-las sem fazer um requerimento com quatro cópias que teria de ser aprovado lá em cima. Eu vi-as...
– Todas as portas podem ser fechadas e abertas a partir da sala de controlo.
Johannes abanou a cabeça e olhou em volta para se certificar de que continuavam a permanecer apenas os dois no corredor.
– Mesmo que o consigas, há guardas do lado de fora, na cabina de segurança no parque de estacionamento. Eles verificam a identificação de todos os que entram ou saem.
– Todos?
– Sim. Exceto durante as mudanças de turno, altura em que deixam sair carros que conhecem e rostos familiares.
– E, por acaso, isso incluiria pessoas com um uniforme de guarda prisional?
– Sem a menor dúvida.
– Nesse caso, seria necessário arranjar um uniforme e sair no momento da mudança de turno dos agentes?
Johannes apoiou o indicador e o polegar sob o queixo. Ainda lhe doía o maxilar.
– E como é que eu arranjava o uniforme?
– No cacifo do Sorensen, no vestiário. Terias de abri-lo com uma chave de fendas.
Sorensen era um guarda prisional que já estava de baixa há quase dois meses. Um esgotamento nervoso. Johannes sabia que hoje em dia lhe chamavam outra coisa, ia dar ao mesmo, uma enorme confusão de sentimentos. Já passara por isso.
Johannes voltou a abanar a cabeça.
– O vestiário está cheio de guardas prisionais durante a mudança de turno. Podem reconhecer-me.
– Muda de aspeto.
Johannes soltou uma gargalhada.
– Claro. E digamos que eu conseguia arranjar um uniforme e, nesse caso, como poderia ameaçar um grupo de guardas prisionais para eles me deixarem sair?
Sonny levantou a sua comprida camisa branca e retirou um maço de cigarros do bolso das calças. Colocou um cigarro entre os lábios secos e acendeu-o com um isqueiro em forma de pistola.
Johannes anuiu lentamente.
– Isto não tem que ver com drogas. Há alguma coisa que tu queres que eu faça lá fora, não há?
Sonny aspirou a chama do isqueiro para o cigarro e expeliu o fumo. Semicerrou os olhos.
– És capaz de fazê-lo? – A sua voz era calorosa e suave.
– Dás-me a absolvição dos meus pecados? – perguntou Johannes.
Arild Franck avistou-os quando virou a esquina. Sonny Lotfhus colocara a mão na testa de Johannes, que se encontrava de pé, cabisbaixo e com os olhos fechados. Pareceram-lhe dois maricas. Vira-os através do monitor na sala de controlo; já estavam a falar há algum tempo. Esporadicamente, arrependia-se de não ter equipado cada câmara com um microfone, porque percebia, pelos olhares de soslaio e desconfiados dos homens, que eles não estavam a falar do próximo boletim de apostas no totobola. Depois, Sonny tirara algo do bolso. O rapaz mantivera-se de costas para a câmara por isso era impossível perceber o que era, até ver fumo de cigarro elevar-se acima da cabeça dele.
– Ei! Sabem que não podem fumar nas zonas assinaladas.
A cabeça grisalha de Johannes pendeu e Sonny baixou a mão.
Franck encaminhou-se para eles. Apontou com o polegar para trás do ombro.
– Vai lavar o chão para outro lado, Johannes. – Franck esperou que o velho se afastasse o suficiente para não conseguir ouvir. – Do que estavam a falar?
Sonny encolheu os ombros.
– Não, não me digas, a inviolabilidade da confissão é sagrada – Arild Franck gargalhou ruidosamente. O som repercutiu-se nos corredores vazios. – Então, Sonny, tiveste tempo para pensar no assunto?
O rapaz apagou o cigarro no maço, guardou-o no bolso e coçou o sovaco.
– Comichão?
O rapaz manteve o silêncio.
– Imagino que existam coisas piores do que a comichão. Piores ainda do que o desmame. Soubeste do tipo na 317? Julgam que ele se enforcou no fio da instalação elétrica. Mas que mudou de ideias depois de ter derrubado a cadeira que estava debaixo dele. Foi por isso que ficou com o pescoço todo esgatanhado. Afinal como é que ele se chamava? Gomez? Diaz? Costumava trabalhar para o Nestor. Chegou a temer-se que pudesse começar a falar. Nenhumas provas, apenas uma preocupação. Foi o suficiente. Curioso, não é, quando estás fechado numa prisão, deitado na tua cama, à noite, e aquilo que mais te assusta é que a porta da tua cela possa não estar trancada? Que alguém na sala de controlo possa permitir que uma prisão cheia de assassinos tenha acesso a ti com o simples premir de um botão?
O rapaz baixara a cabeça, mas Franck conseguia ver-lhe as gotas de suor na testa. O rapaz acabaria por cair em si. Impunha-se que o fizesse. Franck não gostava que houvesse reclusos a morrer nas celas da sua prisão; a dúvida não deixaria de pairar, por mais plausível que se afigurasse.
– Sim.
A palavra saíra tão baixinho que Franck se debruçou automaticamente.
– Sim? – repetiu.
– Amanhã. Terão a confissão amanhã.
Franck cruzou os braços por cima do peito e baloiçou-se nos calcanhares.
– Ótimo. Nesse caso, eu trago o senhor Harnes comigo de manhãzinha. E, desta vez, nada de brincadeiras. Esta noite, quando estiveres deitado na cama, sugiro que olhes bem para a luz na instalação elétrica do teto. Entendido?
O rapaz levantou a cabeça e olhou o subdiretor prisional nos olhos. Há muito que Franck rejeitara a noção de que os olhos eram o espelho da alma; fitara muitas vezes os olhos azul-bebé de muitos reclusos enquanto mentiam com quantos dentes tinham. Além disso, era uma expressão estranha. Espelho da alma. Pela lógica, queria dizer que se via a própria alma nos olhos de outra pessoa. Por isso era tão desconfortável olhar para os do rapaz? Franck virou-se. Era uma questão de se manter focado. E de não se deixar guiar por pensamentos que não levavam a lado nenhum.
– Está assombrado, não está?
Com dedos da cor do carvão, Lars Gilberg levou um cigarro fino de enrolar aos lábios e semicerrou o olhar dirigido a dois agentes da Polícia que o observavam.
Simon e Kari haviam passado três horas a procurar Gilberg, tendo-o localizado finalmente debaixo da Grünerbrua. Tinham iniciado a busca no Centro Ila, onde ninguém o via há mais de uma semana, prosseguido rumo ao café Bymisjonen na Skippergata, depois Plata9, junto à Estação Central de Oslo, que continuava a servir de mercado de drogas e, por último, o albergue do Exército de Salvação, na Urtegata, onde as informações os conduziram na direção do rio até Elgen, que assinalava a fronteira entre as anfes e a heroína.
Pelo caminho, Kari explicara a Simon que os Albaneses e os Norte-africanos detinham presentemente o controlo da venda de anfetaminas e metanfetaminas ao longo do rio, a sul de Elgen, e descendo até à Ponte Vaterland. Estavam quatro Somalis nas imediações de um banco, aguardando impacientemente, com os capuzes bem puxados sobre os rostos, ao sol do entardecer. Um deles mostrou reconhecer a fotografia que Kari exibiu, apontou para norte na direção do território da heroína e piscou-lhes o olho quando perguntou se queriam um grama de cristais para a viagem. As gargalhadas deles acompanharam Simon e Kari enquanto avançavam rumo à Grünerbrua.
– Está a dizer que já não quer ficar no Centro Ila porque acha que está assombrado? – perguntou-lhe Simon.
– Não acho nem deixo de achar, meu. Sei que está. Ninguém consegue pregar olho num quarto de lá, já está ocupado, sente-se uma presença mal entramos. Acordo a meio da noite e não está lá ninguém, como é óbvio, mas parece que esteve alguém a respirar sobre o meu rosto. E não foi apenas no meu quarto. Pergunte a quem quiser lá.
Gilberg lançou um olhar reprovador ao cigarro que chegara ao fim.
– Nesse caso, preferes dormir ao relento? – perguntou Simon, estendendo-lhe a sua lata de tabaco.
– Para ser sincero, com fantasmas ou sem fantasmas, não aguento estar em espaços pequenos, sinto-me encurralado. E este sítio... – Gilberg gesticulou na direção da sua cama de jornais e do saco-cama imundo a seu lado – ...é um excelente destino de férias, não é? – Apontou para a ponte. – Um telhado que não mete água. Vista para o mar. Sem despesas, acesso fácil aos transportes públicos e serviços locais. Que mais se poderia desejar? – Tirou três pedaços de snus da lata de Simon e colocou um debaixo do lábio superior e os outros dois no bolso.
– Um trabalho como capelão? – alvitrou Kari.
Gilberg inclinou a cabeça para um lado, enquanto olhava para Simon.
– Esse cabeção que está a usar – disse Simon. – Pode ter lido naqueles seus jornais que encontraram um capelão morto no rio mesmo a montante daqui.
– Não sei nada sobre isso.
Gilberg tirou os dois pedaços de tabaco do bolso, voltou a colocá-los na lata e devolveu-a a Simon.
– O Laboratório Forense só precisa de vinte minutos para provar que aquele cabeção pertencia ao capelão, Lars. E você só precisa de vinte anos para cumprir a sua pena por este homicídio.
– Homicídio? Não sei nada sobre...
– Pelos vistos, lê a secção de crimes, não é? Ele já estava morto antes de o atirarem ao rio. Sabemo-lo pelas equimoses na pele. Bateu numas pedras e as equimoses têm um aspeto diferente quando se está morto. Consegue acompanhar o meu raciocínio?
– Não.
– Quer que lhe soletre? Ou prefere que lhe fale de como uma cela prisional pode ser claustrofóbica?
– Mas eu não...
– Mesmo na qualidade de suspeito, ficará detido várias semanas. E as celas de detenção são muito mais pequenas.
Gilberg ficou pensativo e chupou o snus duas vezes, com força.
– O que quer?
Simon acocorou-se diante de Gilberg. A respiração do sem-abrigo não exalava só cheiro, possuía também um travo. O travo adocicado e podre da fruta caída e da morte.
– Queremos que nos conte o que aconteceu.
– Eu não sei de nada, acabei de lhe dizer.
– Não nos contou nada, Lars. Mas parece ser importante para si. Quero dizer, o facto de não nos contar. Porquê?
– Foi só este cabeção. Estava à beira-rio e...
Simon levantou-se e agarrou Gilberg pelo braço.
– Vamos, acompanhe-nos.
– Espere!
Simon libertou-o.
Gilberg baixou a cabeça. Soltou um suspiro.
– Eram os homens do Nestor. Mas eu não posso... o senhor sabe o que o Nestor faz às pessoas que...
– Sei, sim. Mas você também sabe que lhe vai chegar aos ouvidos se o seu nome aparecer no registo de interrogatórios do Comando da Polícia. Por isso, sugiro-lhe que nos conte imediatamente o que sabe e depois decidiremos se isto fica por aqui.
Gilberg abanou lentamente a cabeça.
– Agora, Lars!
– Eu estava sentado no banco, debaixo das árvores, no caminho que vai ter à Sannerbrua. Estava apenas a dez metros, por isso consegui vê-los na ponte, mas acho que eles não me viram, eu estava escondido entre as folhas, faço-me entender? Eles eram dois e um agarrou o capelão enquanto o outro punha o braço à volta da testa dele. Eu estava tão perto que conseguia ver as córneas dos olhos do capelão. Eram completamente brancas, a propósito, era como se os globos oculares se tivessem revirado para dentro da cabeça, sabe o que quero dizer? Mas ele não soltou nenhum som. Como se soubesse que era escusado. Depois, o segundo tipo puxou a cabeça dele para trás como o raio de um quiroprático. Ouvi-a partir-se, não estou a brincar, parecia alguém a pisar um ramo na floresta. – Gilberg assentou o dedo indicador no lábio superior, piscou duas vezes os olhos e volveu-os para longe. – Eles olharam à sua volta. Cristo, tinham acabado de matar um tipo no meio da Sannerbrua e até parecia que não tinha acontecido nada. Vendo bem, no pino do verão, Oslo fica bastante deserta à noite, sabe o que quero dizer? Então, eles atiraram-no do muro de tijolo onde acaba o corrimão.
– É aí que as pedras estão saídas – afirmou Kari.
– Ele ficou algum tempo nas pedras antes de a corrente o arrastar. Eu nem me mexi. Se aqueles tipos soubessem que eu os tinha vi...
– Mas viu – disse Simon. – E estava tão perto que era capaz de voltar a reconhecê-los.
Gilberg abanou a cabeça.
– Nem pensar. Já os esqueci. É o que acontece quando estamos pedrados com a primeira coisa a que conseguimos deitar a mão, percebe o que quero dizer? Baralha-nos a cabeça.
– Acho que está a referir-se ao lado positivo – observou Simon, esfregando o rosto.
– E como é que sabia que eles trabalhavam para o Nestor? – Kari agitou os pés, inquieta.
– Os fatos deles – disse Gilberg. – Os homens pareciam idênticos, como se tivessem gamado um carregamento de fatos pretos de duas peças destinados à Associação Norueguesa de Cangalheiros. – Movimentou o snus com a língua. – Sabe o que quero dizer?
– Vamos dar prioridade ao caso – comunicou Simon a Kari quando seguiam no carro, de regresso ao Comando da Polícia. – Quero que reveja os movimentos do Vollan nas quarenta e oito horas que antecederam a sua morte e que me arranje uma lista de todos, e estou a referir-me a todos, aqueles com quem ele esteve em contacto.
– Muito bem – disse Kari.
Passaram pelo restaurante Lysverket e pararam para que um grupo de jovens peões pudesse atravessar. Hipsters10 a caminho de um concerto, pensou Simon e olhou para o Kuba. Reparou num ecrã gigante que fora montado no palco ao ar livre enquanto Kari ligava ao pai e dizia que não ia jantar. Exibiam um filme a preto e branco. Imagens de Oslo. Pareciam dos anos 50. Uma época que Simon recordava da sua infância. Provavelmente, para os hipsters, não passava de mera curiosidade, algo do passado, completamente inocente e, quem sabe, encantador. Chegaram até si gargalhadas.
– Tenho estado a matutar numa coisa – começou Kari. – Disse-me que o Nestor saberia se trouxéssemos o Gilberg para um interrogatório. Estava a falar a sério?
– O que lhe parece? – perguntou Simon, acelerando em direção à Hausmannsgate.
– Não sei, mas parecia estar a falar a sério.
– Não sei se estava a falar a sério. É uma longa história. Durante anos, circularam boatos de que existia uma toupeira na Polícia que passava informações à pessoa que controlava a maior parte do tráfico de drogas e sexo em Oslo. No entanto, isso foi há muito tempo e, apesar de ter sido muito falado na altura, nunca ninguém apresentou qualquer prova de que essa toupeira ou essa pessoa tivessem existido.
– Que pessoa?
Simon olhou pela janela lateral.
– Nós chamamos-lhe o Gémeo.
– Ah, o Gémeo – disse Kari. – Falaram dele na Brigada Antidroga, um pouco como os fantasmas do Gilberg no Centro Ila. Ele era real?
– Oh, o Gémeo é real.
– Então e a toupeira?
– Bem, um homem chamado Ab Lofthus antes de se suicidar escreveu um bilhete no qual afirmava ser a toupeira.
– Isso não constitui prova suficiente?
– Na minha opinião, não.
– E porque não?
– Porque o Ab Lofthus era o agente menos corrupto que alguma vez trabalhou para a Polícia de Oslo.
– Como é que sabe?
Simon parou num sinal vermelho na Storgata. A escuridão parecia emanar dos edifícios à volta deles e com a escuridão vinham as criaturas da noite. Deslocavam-se com passos arrastados, ou encostavam-se às paredes nas entradas de onde saía música a bombar, ou ficavam sentadas nos carros com os cotovelos de fora dos vidros laterais. Olhares perscrutantes, famintos. Caçadores.
– Porque ele era o meu melhor amigo.
Johannes verificou as horas. Passavam dez minutos das dez. Dez minutos após as celas terem sido trancadas. A esta hora, os outros já estavam enclausurados; ele seria trancado manualmente na sua assim que terminasse a última ronda de limpeza, às vinte e três horas. Era algo estranho. Quando se estava há muito tempo na prisão, os dias começavam a passar tão rapidamente quanto os minutos e as raparigas no calendário na parede da tua cela não conseguiam acompanhar o passar dos meses. Todavia, esta última hora parecera tão longa como um ano. Um ano longo e horrível.
Entrou na sala de controlo.
Estavam três pessoas de serviço, uma a menos do que durante o dia. As molas da cadeira chiaram quando uma delas se afastou dos monitores.
– Boa-noite, Johannes.
Era Geir Goldsrud. Tirou o caixote do lixo de baixo da secretária com o pé. Era uma reação automática. O jovem supervisor do turno a ajudar o velho empregado da limpeza que sofria da coluna. Johannes sempre gostara de Geir Goldsrud. Sacou a pistola do bolso e apontou-a ao rosto de Goldsrud.
– Que fixe. Onde a arranjaste? – disse um dos outros agentes, um homem louro que jogara futebol na terceira divisão pelo Hasle-Løren.
Johannes não respondeu, limitou-se a manter a vista e a mira fixos entre os olhos de Goldsrud.
– Dás-me lume, se fazes favor? – O terceiro agente introduzira um cigarro apagado entre os lábios.
– Guarda-o, Johannes.
Goldsrud falara em tom baixo e sem pestanejar e Johannes percebeu que ele entendera. Que aquele isqueiro não era realmente um isqueiro.
– Uma engenhoca digna do James Bond, amigo. Quanto queres por ela?
O futebolista levantara-se e encaminhava-se para Johannes, com o intuito de o observar melhor.
Johannes apontou a pistola a um dos monitores lá em cima sob o teto e puxou o gatilho. Não sabia o que esperar e ficou tão sobressaltado quanto os outros quando se ouviu um estrondo, o ecrã explodiu e o vidro se desfez em mil pedaços.
O futebolista ficou pregado ao chão.
– Todos imediatamente no chão!
Johannes fora abençoado com uma voz ressoante de barítono; naquele momento, porém, a sua voz era esganiçada e quase histérica como a de uma mulher. No entanto, resultou. O facto de sabermos que temos diante de nós um homem desesperado com uma arma letal tem maior impacto do que qualquer voz autoritária. Os três homens estavam naquele momento ajoelhados e tinham colocado as mãos atrás da cabeça como se fosse um exercício, como se o facto de serem ameaçados por uma arma fosse algo que tivessem treinado. E, se calhar, até tinham. Aprendido que a rendição total é a única resposta adequada. E, provavelmente, a única aceitável, tendo em conta o seu escalão de vencimento.
– Completamente deitados. No chão!
Acataram a ordem. Quase como que por magia.
Ele olhou para o quadro de controlo diante de si. Encontrou o botão que abria e fechava as portas das celas. De seguida, o que acionava as fechaduras e ambas as entradas. Por último, o grande botão universal vermelho, aquele que abria todas as portas, que só era usado em caso de incêndio. Premiu-o. Um tom uivante prolongado indicou que a prisão estava aberta naquele momento. E passou-lhe pela mente um pensamento curioso. Que era ali que ele sempre quisera estar. O comandante na ponte do seu navio.
– Os olhos fixos no chão – disse ele. A sua voz estava já a tornar-se mais forte. – Se algum de vocês tentar impedir-me, eu e os meus companheiros iremos atrás de vós e das vossas famílias. Lembrem-se de que eu sei tudo sobre vocês, rapazes. Trine, Valborg... – Desbobinou os nomes das esposas e dos filhos, as escolas que frequentavam, os passatempos, em que parte de Oslo moravam, informações acumuladas ao longo dos anos, enquanto continuava de olhos postos nos monitores. Quando terminou, abandonou-os. Transpôs a porta e depois desatou a correr. Seguiu pelo corredor, depois pelas escadas até ao piso inferior. Puxou a primeira porta. Ela abriu-se. Continuou a descer até ao corredor seguinte. Entretanto, o seu coração latejava, não treinara tanto quanto devia, não se mantivera em forma. Fazia tenções de começar naquele momento. A segunda porta também se abriu. As suas pernas protestavam por terem de mover-se tão rapidamente. Talvez fosse o cancro, talvez ele tivesse chegado aos músculos e estivesse a enfraquecê-lo. A terceira porta conduzia à câmara. Aguardou enquanto a primeira porta se fechava hermeticamente atrás de si com um zumbido baixo, contando os segundos. Olhou para o corredor que dava acesso aos vestiários. Quando finalmente ouviu a porta fechar-se, agarrou o manípulo da porta diante de si. Pressionou-o para baixo e puxou-o. Trancada.
Raios! Puxou-a novamente. A porta recusou mexer-se.
Olhou para a placa branca do sensor junto à porta. Apoiou nela o dedo indicador. Este ganhou um brilho amarelo durante uns segundos antes de se apagar e outro acender uma luz vermelha. Johannes sabia que isso queria dizer que a sua impressão digital não fora reconhecida, no entanto tentara abrir a porta na mesma. Encurralado. Derrotado. Ajoelhou-se diante da porta.
Simultaneamente, chegou até si a voz de Geir Goldsrud:
– Lamento, Johannes.
A voz vinha do altifalante no cimo da parede e parecia calma, quase reconfortante.
– Só estamos a fazer o nosso trabalho. Se entrássemos em greve de cada vez que alguém ameaça as nossas famílias, não restaria um único guarda prisional na Noruega. Descontrai-te, nós já vamos buscar-te. Queres atirar a pistola pelas grades, ou vamos ter de lançar gás sobre ti primeiro?
Johannes ergueu o olhar para a câmara. Conseguiam ver o desespero no seu rosto? Ou o alívio? O seu alívio por esta tentativa de fuga ter terminado ali e por a vida ir continuar como dantes. Mais ou menos. Provavelmente podia esquecer a lavagem do chão lá em cima.
Empurrou a pistola dourada pelas grades. De seguida, deitou-se no chão, colocou as mãos atrás da cabeça e enrolou-se como uma abelha que acabara de espetar o seu único ferrão. No entanto, quando fechou os olhos não ouviu hienas nem estava a bordo de um avião rumo ao cimo do monte Kilimanjaro. Estava vivo, mas não fora a lado nenhum. Estava ali.
8 Encontram-se reunidas neste volume, publicado em 1932, algumas das histórias mais famosas do escritor norte-americano Ernest Hemingway (1899-1961). O monte Kilimanjaro localiza-se no norte da Tanzânia, junto à fronteira com o Quénia. Tem uma altura de 5 895 metros no pico Uhuru. É um antigo vulcão coberto de neve no topo. (N. da T.)
9 Nome pelo qual é conhecida uma zona arborizada do Parque da Estação Central, onde existe bastante tráfico de droga. (N. da T.)
10 Jovens urbanos de meios abastados que adotam um estilo retro e original, exibindo o seu anticonformismo. (N. da T.)
11
Pouco passava das sete e meia e a chuva matinal caía no parque de estacionamento da Estatal.
– É só uma questão de tempo – disse Arild Franck e manteve aberta a porta de entrada das traseiras. – Basicamente, todos os toxicodependentes são indivíduos fracos. Sei que não fica bem dizê-lo, mas acredite em mim, sei como eles são.
– Desde que ele assine a confissão, nada mais me interessa. – Einar Harnes preparava-se para entrar, mas teve de se desviar pois vinham a sair três guardas prisionais. – Esta noite, estou a pensar comemorar com umas quantas taças de champanhe.
– Ah, eles pagam-te assim tão bem?
– Quando vi o teu carro, apercebi-me de que tinha de aumentar os meus honorários. – Sorriu rasgadamente, enquanto indicava com um movimento da cabeça o Porsche Cayenne no parque de estacionamento. – Falei em encargos adicionais por trabalho antissocial e o Nestor disse...
– Chiu! – Franck esticou o braço diante de Harnes para deixar sair mais guardas prisionais. A maioria dos homens mudara para roupas à civil, contudo via-se que alguns estavam tão ansiosos por chegar a casa depois do turno da noite que praticamente corriam para os respetivos carros ainda com os uniformes verdes da Estatal. Um homem que vestia um casaco comprido largo por cima do uniforme lançou um olhar penetrante a Harnes. Sabia que já antes vira o seu rosto. No entanto, apesar de não conseguir associar-lhe um nome, tinha quase a certeza de que o homem conseguia associar um nome ao seu: o sombrio advogado que aparecia nos jornais ligado a casos igualmente sombrios. Talvez este homem e outros como ele começassem a estranhar o que fazia Harnes na entrada das traseiras da Estatal. Não melhoraria em nada a sua imagem se o ouvissem mencionar Nestor...
Franck transpôs diversas portas, acompanhado de Harnes, até chegarem às escadas de acesso ao primeiro andar.
Nestor deixara claro que tinham de arrancar uma confissão assinada naquele dia. A menos que a investigação de Yngve Morsand ficasse concluída rapidamente, a Polícia podia descobrir novas provas que retirariam credibilidade à confissão de Sonny. Harnes não sabia como Nestor obtivera esta informação, nem estava interessado em saber.
Claro que o diretor prisional ocupava o gabinete maior, no entanto o gabinete do subdiretor prisional tinha vista para a mesquita e Ekebergåsen. Ficava ao fundo do corredor e estava decorado com quadros horrorosos de uma artista especializada em pintar flores e discutir a sua libido com a imprensa sensacionalista.
Franck premiu um botão no intercomunicador e pediu que trouxessem o recluso da cela 317 ao seu gabinete.
– Aquele carro custou-me um milhão e duzentas mil coroas – disse Franck.
– Aposto que metade foi para o emblema da Porsche no capô – comentou Harnes.
– Sim, e a outra metade foi para o Governo em impostos.
Franck soltou um suspiro e sentou-se pesadamente na invulgar cadeira de escritório de costas altas. Fazia lembrar um trono, pensou Harnes.
Ouviu-se uma pancada na porta.
– Entre – disse Franck em voz alta.
Surgiu um guarda prisional. Trazia o boné debaixo do braço e fez uma continência pouco entusiástica. De vez em quando, Harnes perguntava-se como conseguira Franck que os seus funcionários aceitassem rituais militares de saudação num local de trabalho moderno. E que outras regras teriam de engolir.
– Sim, Goldsrud?
– Estou de saída, mas antes de ir queria saber se tem algumas questões a colocar sobre o relatório de turno da noite passada.
– Ainda não tive oportunidade de passar os olhos por ele. Há alguma coisa que eu devesse saber, já que está aqui?
– Nada de significativo, a não ser uma tentativa de fuga; calculo que possamos chamar-lhe isso.
Franck uniu as palmas das mãos, pressionando-as uma contra a outra, e sorriu.
– Folgo em saber que os nossos reclusos revelam tanta iniciativa e empreendedorismo. Quem e como?
– Johannes Halden da cela 2...
– 238. O velho? A sério?
– Não se sabe como, mas ele arranjou uma pistola. Penso que foi uma coisa espontânea. Vim apenas informá-lo de que toda a ocorrência foi muito menos dramática do que poderia parecer pelo relatório. Se quer a minha opinião, bastariam consequências ligeiras. O homem tem feito um bom trabalho para nós desde há muitos anos e...
– Conquistar a confiança de alguém é uma jogada inteligente se queremos apanhá-lo desprevenido. Porque imagino que foi isso que ele fez?
– Bem, sabe...
– Está a dizer-me que se deixou ludibriar, Goldsrud? Até onde é que ele foi?
Harnes sentiu alguma pena do guarda prisional que passou o indicador pelo lábio superior suado. Ficava sempre do lado dos mais fracos. Era fácil imaginar-se no lugar deles.
– Até à câmara de vigilância. Mas nunca houve verdadeiro perigo de que ele passasse pelos guardas mesmo que conseguisse sair. A cabina de segurança tem vidro à prova de bala e aberturas para armas e...
– Obrigado pela informação, mas fui eu quem praticamente concebeu esta prisão, Goldsrud. E parece-me que você tem um fraquinho por este tipo e andou a confraternizar um pouco de mais. Abster-me-ei de mais comentários até ter lido o relatório, mas todos os do seu turno deviam preparar-se para perguntas difíceis. Quanto ao Johannes, não podemos ser brandos com ele; temos uma clientela que aproveitará qualquer sinal de fraqueza. Entendido?
– Entendido.
O telefone tocou.
– À vontade – disse Franck, levantando o auscultador.
Harnes estava à espera de outra continência, uma meia-volta e marchar, contudo Goldsrud abandonou a sala à civil. O advogado ficou a observá-lo, mas deu um salto quando Arild Franck gritou:
– O que raio quer dizer com «desapareceu»?
Franck olhou para a cama feita na cela 317. Via-se um par de sandálias em frente à cama. Estava uma Bíblia em cima da mesa de cabeceira, uma seringa descartável na secretária ainda dentro do invólucro de plástico e uma camisa branca numa cadeira. Era tudo. Mesmo assim, o guarda prisional atrás de Franck afirmou o óbvio:
– Ele não está aqui.
Franck olhou para o relógio de pulso. As portas das celas só seriam abertas dali a catorze minutos, por isso o recluso desaparecido não podia estar em qualquer das zonas comuns.
– Ele deve ter saído da cela quando o Johannes abriu as portas todas a noite passada a partir da sala de controlo.
– Santo Deus – murmurou Harnes e, por força do hábito, levou o dedo à cana do nariz onde os seus óculos costumavam assentar até ele ter largado 15 000 coroas por uma cirurgia a laser no ano anterior na Tailândia. – Se ele se evadiu...
– Caluda – sibilou Franck. – Ele não pode ter passado pelos guardas. Continua algures aqui. Goldsrud, dê o alarme. Tranque as portas todas; ninguém entra nem sai.
– Mas eu preciso de ir buscar os meus filhos à...
– Nem mesmo você.
– Então e a Polícia? – perguntou um dos guardas prisionais. – Não devia ser informada?
– Não! – berrou Franck. – O Lofthus ainda está dentro da Estatal, garanto-lhe! Nem uma palavra a ninguém.
Arild Franck olhou carrancudo para o velho. Trancara a porta depois de entrar e certificara-se de que não estavam guardas prisionais em sentido do lado de fora.
– Onde está o Sonny?
Johannes estava deitado na cama e esfregava os olhos para afastar o sono.
– Ele não está na cela?
– Sabes perfeitamente que não.
– Nesse caso, deve ter-se evadido.
Franck debruçou-se, agarrou a T-shirt do velho pelo pescoço e puxou-o na sua direção.
– Tira-me esse sorriso da cara, Johannes. Sei que os seguranças lá fora não viram nada, por isso, ele tem de estar aqui dentro. E, se não me contares onde ele está, podes dizer adeus ao teu tratamento para o cancro. – Franck viu o espanto no rosto do velho. – Oh, podes esquecer a confidencialidade médico-paciente, eu tenho olhos e ouvidos em todo o lado. Então, como é que vai ser? – Largou Johannes, cuja cabeça tombou sobre a almofada.
O velho compôs o cabelo ralo e cruzou os braços atrás da cabeça. Pigarreou.
– Sabe uma coisa, senhor diretor? Acho que já vivi tempo suficiente. Não tenho ninguém lá fora à minha espera. E os meus pecados foram perdoados, por isso, pela primeira vez, talvez tenha uma oportunidade de chegar lá acima. Talvez eu devesse aproveitar essa oportunidade enquanto é tempo. O que lhe parece?
Arild Franck cerrou os dentes com tamanha força que ficou com a sensação de que as suas obturações iam estalar.
– O que penso que vai acontecer, Johannes, é que irás descobrir que nem um só dos teus pecados foi perdoado. Porque aqui dentro eu sou Deus e posso garantir-te uma morte lenta e dolorosa por causa do cancro. Vou certificar-me de que ficas aqui na tua cela enquanto o cancro te corrói sem nunca teres um único vislumbre de alívio da dor. E não serias o primeiro, deixa que te diga.
– Mais vale isso que qualquer inferno para onde o senhor vá, senhor diretor.
Franck não teve a certeza se os ruídos gorgolejantes que brotavam da garganta do velho fossem as vascas da morte ou gargalhadas.
No regresso à cela 317, Franck voltou a verificar o seu walkie-talkie. Ainda nenhum sinal de Sonny Lofthus. Sabia que não tardariam a ver-se obrigados a lançar um aviso de «procura-se».
Entrou na cela 317, sentou-se pesadamente na cama e percorreu o chão, as paredes e o teto com o olhar. Raios, não queria acreditar. Pegou na Bíblia que estava em cima da cama e arremessou-a contra a parede. Ela abriu-se quando caiu no chão. Sabia que Vollan usara a Bíblia para contrabandear heroína e olhou para as páginas arrancadas. Frases interrompidas sem qualquer significado.
Praguejou e arremessou a almofada à parede.
Viu-a cair no chão. Olhou para o cabelo que saíra de lá. Cabelo arruivado que fazia lembrar tufos de barba e algumas madeixas compridas. Deu um pontapé na almofada. Saiu de lá mais cabelo louro, sujo e emaranhado.
Cabelo curto. Barba acabada de fazer.
E foi nesse momento que finalmente se fez luz.
– Turno da noite! – gritou pelo walkie-talkie. – Verifiquem todos os agentes que saíram no final do turno da noite!
Franck olhou para o relógio. 8h10 da manhã. Agora sabia o que acontecera. E sabia que era tarde demais para fazer fosse o que fosse. Levantou-se e deu um pontapé na cadeira, que foi de encontro ao espelho inquebrável junto à porta.
* * *
O motorista do autocarro olhou para o guarda prisional, que fitava impávido o bilhete e as cinquenta coroas que recebera de troco da nota de cem. Sabia que o homem era guarda prisional porque usava o uniforme debaixo do casaco comprido e tinha um cartão de identificação, que dizia «Sorensen», com uma fotografia que não se parecia mesmo nada com ele.
– Há muito tempo que não andava de autocarro, não é verdade? – inquiriu o motorista.
O homem com o cabelo mal cortado anuiu.
– São só trinta e seis coroas, se comprar um cartão pré-pago – disse o motorista, no entanto percebeu pela expressão do passageiro que ele considerava que mesmo esse preço era um roubo. Era uma reação normal para alguém que não viajava de autocarro em Oslo há já alguns anos.
– Obrigado pela sua ajuda – disse o homem.
O motorista afastou-se da berma enquanto observava as costas do guarda prisional pelo espelho retrovisor. Não sabia muito bem porquê, talvez fosse a voz dele. Tão calorosa e sincera, como se realmente lhe agradecesse do fundo do coração. Viu-o sentar-se e olhar admirado pela janela como um daqueles turistas estrangeiros que, de tempos a tempos, apanham o autocarro e viajam sem destino. Viu-o tirar um molho de chaves do bolso do casaco e observá-las como se nunca as tivesse visto antes. Tirar uma embalagem de pastilhas elásticas do outro bolso do casaco.
Depois foi obrigado a concentrar-se no trânsito à sua frente.
PARTE DOIS
12
Arild Franck estava de pé junto à janela do seu gabinete. Voltou a olhar para o relógio de pulso. A maior parte dos reclusos que se evadia era trazida de volta nas primeiras doze horas. Declarara à imprensa que era nas primeiras vinte e quatro horas a fim de poder chamar-lhe um resultado rápido, caso demorasse mais do que as doze. Naquele momento, porém, já fazia quase vinte e cinco horas e ainda não tinham qualquer pista para seguir.
Acabara de deixar o grande gabinete do diretor prisional. Aquele que não tinha vista. E, lá dentro, o homem sem vista exigira uma explicação. O homem estava de péssimo humor porque fora obrigado a regressar cedo de uma conferência anual das prisões nórdicas em Reiquiavique. Na véspera, quando telefonara da Islândia, dissera que ia contactar a imprensa. O chefe dele gostava de falar aos media, oh se gostava. Franck pedira-lhe para reterem a informação durante vinte e quatro horas para encontrarem Lofthus, porém o seu chefe recusara-se terminantemente e afirmara que não se tratava de algo que conseguissem esconder. Em primeiro lugar, Lofthus era um assassino, por isso o público tinha o direito de ser avisado. Em segundo, precisavam de divulgar uma fotografia nos media para ser mais fácil encontrá-lo.
E em terceiro, tu queres a tua fotografia nos jornais, pensou Franck. Para que os teus comparsas políticos vejam que estás a trabalhar e não a boiar na lagoa azul11 e a beber schnapps12 Svartadauir.
Franck tentara explicar ao diretor que não era muito provável que fazer circular as fotografias fosse eficaz; quaisquer fotos que tivessem de Sonny Lofthus eram da altura em que ele fora preso, há doze anos, e já então ele tinha cabelo comprido e barba. E as imagens das câmaras do CFTV depois de ele ter cortado o cabelo eram tão granuladas que não tinham serventia. E, mesmo assim, o diretor insistira em arrastar o nome da Estatal pela lama.
– A Polícia anda à procura dele, Arild, por isso deve saber que é apenas uma questão de tempo até eu receber um telefonema de um repórter a perguntar por que motivo não foi tornada pública a fuga e a querer saber se a Estatal tem vindo a encobrir anteriores situações idênticas. Prefiro ser eu a controlar a notícia, Arild.
O diretor prisional indagara de seguida quais os procedimentos que Franck considerava necessário reforçar. E Franck sabia porquê: para que o diretor pudesse ir ter com os seus amigos no Governo e apresentar as ideias do subdiretor prisional como sendo suas. As ideias de um homem com perspetiva. E, no entanto, ele partilhara os seus pensamentos com o idiota. Reconhecimento de voz para substituir as impressões digitais e pulseiras eletrónicas com chips de GPS indestrutíveis. Por último, havia coisas que Franck prezava mais do que a si próprio, e a Prisão Estatal era uma delas.
Arild Franck olhou para Ekebergåsen banhado pelo sol matinal. Fora, em tempos, um bairro idílico da classe operária. Em tempos, ele sonhara comprar ali uma casinha. Agora, era proprietário de um casarão numa zona mais luxuosa de Oslo. No entanto, continuava a sonhar com a casinha.
Embora Nestor parecesse ter reagido com calma à notícia da fuga, não era a perda da compostura por parte de Nestor e dos da laia dele que preocupava Franck. Pelo contrário, suspeitava que, quando eles tomavam decisões tão horríveis que até o sangue se lhe gelava nas veias, o faziam com a maior frieza. Por outro lado, agiam com uma lógica simples, clara e prática que Arild Franck não podia deixar de admirar.
«Encontre-o», dissera-lhe Nestor. «Ou certifique-se de que ninguém o faz.»
Se eles encontrassem Lofthus, podiam persuadi-lo a confessar o homicídio da senhora Morsand antes que mais alguém chegasse até ele. Tinham os seus métodos. Se matassem Lofthus, impediam-no de arranjar explicação para as provas forenses no local do crime de Morsand que o incriminavam, mas depois não poderiam usá-lo em casos futuros. Era assim mesmo. Prós e contras. Porém, em última análise, era uma questão de lógica.
– Está um tal Simon Kefas ao telefone para si.
Era a voz de Ina no intercomunicador.
Arild Franck resfolegou automaticamente.
Simon Kefas.
Ora aqui está um homem que sempre quis ser o primeiro. Um cobarde falhado que passara por cima de mais de um cadáver no seu vício do jogo. Diziam que mudara desde que conhecera a mulher com quem vivia neste momento. No entanto, ninguém melhor do que o subdiretor prisional sabia que as pessoas não mudam; Franck conhecia Simon Kefas bem demais.
– Diga-lhe que não estou.
– Ele quer encontrar-se consigo hoje ao final do dia. É sobre o Per Vollan.
Vollan? Franck julgava que a Polícia tinha declarado que a morte de Vollan fora suicídio. Suspirou fundo e olhou para o jornal em cima da secretária. Tinham publicado a notícia da fuga, mas pelo menos não vinha na primeira página. Ao que tudo indicava, porque a secção de notícias não tinha uma boa fotografia do recluso evadido. Os abutres tinham preferido esperar até conseguirem um esboço do assassino em que idealmente ele pareceria um monstro. Nesse caso, iam ficar desapontados.
– Arild?
Tinham um acordo tácito em que ela só o chamava pelo nome próprio quando não estivesse mais ninguém presente.
– Arranja algum espaço na minha agenda, Ina. Não lhe dês mais de trinta minutos.
Franck olhou para a mesquita. Não tardariam a passar vinte e cinco horas.
Lars Gilberg deu mais um passo.
O rapaz estava deitado num pedaço de cartão espalmado e cobrira-se com um casaco comprido. Tinha chegado na véspera e encontrado um local onde esconder-se por detrás dos arbustos que cresciam ao longo do caminho e dos edifícios lá ao fundo. Ficara ali sentado, silencioso e imóvel, como se jogasse às escondidas. Tinham parado dois agentes da Polícia fardados, olhado alternadamente para Gilberg e para uma fotografia que seguravam antes de seguirem caminho. Gilberg não dissera nada. Ainda naquela noite, quando começara a chover, o rapaz aparecera e estendera-se debaixo da ponte. Sem pedir licença. Não que a licença não lhe fosse concedida, mas ele nem sequer começara por pedi-la. E depois, havia mais uma coisa. Ele estava fardado. Lars Gilberg não sabia ao certo qual o tipo de uniforme – tinha sido rejeitado do exército antes de ter tempo de ver fosse o que fosse para além do oficial de recrutamento. «Inapto» tinha sido o motivo algo vago apresentado. De tempos a tempos, Lars Gilberg perguntava-se se havia algo de que fosse capaz. E, nesse caso, se alguma vez iria descobrir o que era? Talvez fosse isto: receber dinheiro a troco de drogas e viver debaixo de uma ponte.
Como naquele momento.
O rapaz estava a dormir e respirava regularmente. Lars Gilberg deu mais um passo. Havia algo na maneira como o rapaz se movera e na cor da sua pele que dizia a Gilberg que ele era um drogado. Nesse caso, podia ainda ter algumas drogas consigo.
Naquele momento, Gilberg estava tão próximo que conseguia ver as pálpebras do rapaz tremerem como se os globos oculares lá debaixo rodassem e se mexessem. Acocorou-se e levantou cuidadosamente o casaco. Estendeu os dedos na direção do bolso do blusão do uniforme.
Aconteceu tão rapidamente que Lars nem sequer se apercebeu. A mão do rapaz agarrou-lhe o pulso e Lars encontrou-se de joelhos com o rosto empurrado contra o solo molhado e o braço torcido atrás das costas.
Uma voz murmurou-lhe ao ouvido:
– O que queres?
A voz não parecia zangada nem agressiva, nem sequer assustada. Na verdade, soava educada, como se o rapaz quisesse mesmo saber em que podia ajudá-lo. Lars Gilberg fez o que sempre fazia quando se apercebia de que fora derrotado. Minimizava os danos.
– Roubar a tua droga. Ou, se não tiveres, o teu dinheiro.
O rapaz agarrara-o recorrendo à técnica de imobilização mais usada: puxa-se o pulso para junto do antebraço e aplica-se pressão na parte de trás do cotovelo. A imobilização da Polícia. Porém, Gilberg conhecia o andar, o falar, o ar e o cheiro dos polícias, e este rapaz não era um deles.
– Qual é o teu veneno?
– Morfina – gemeu Gilberg.
– Quanto consegues arranjar por cinquenta coroas?
– Um pouco. Não muito.
A pressão foi aliviada e Gilberg retirou rapidamente o braço.
Ergueu o olhar para o rapaz. Piscou os olhos ao ver a nota que ele lhe estendia.
– Lamento, é tudo o que tenho.
– Eu não tenho nada para vender, amigo.
– O dinheiro é para ti. Deixei-me disso.
Gilberg semicerrou um olho. O que é que se dizia? Quando algo parecia bom demais para ser verdade, normalmente era. Pensando bem, o tipo podia ser simplesmente maluco.
Agarrou a nota de cinquenta coroas e guardou-a no bolso.
– É a renda por te deixar dormir aqui.
– Ontem vi a Polícia passar por aqui – disse o rapaz. – Eles vêm cá muito?
– De vez em quando, mas recentemente temos sido invadidos por eles.
– Sabes de algum lugar que eles não invadam?
Gilberg inclinou a cabeça e observou o rapaz.
– Se queres mesmo evitar os polícias, precisas de arranjar um quarto num albergue. Experimenta o Centro Ila. Eles não deixam entrar lá polícias.
O rapaz olhou pensativamente para o rio, depois anuiu lentamente.
– Obrigado pela ajuda, amigo.
– Não tens de quê – murmurou Gilberg, espantado. Definitivamente um maluco.
E, como que para confirmar as suas suspeitas, o rapaz começou a despir-se. Jogando pelo seguro, Gilberg recuou alguns passos. Quando o rapaz ficou só em cuecas, enrolou o uniforme à volta dos sapatos. Gilberg entregou-lhe um saco de plástico com o qual o rapaz perguntou se podia ficar e onde guardou as roupas e os sapatos embrulhados. Colocou o saco debaixo de uma pedra entre os arbustos onde passara o dia anterior.
– Vou certificar-me de que ninguém o encontra – disse Gilberg.
– Obrigado, confio em ti.
Sorrindo, o rapaz abotou o casaco, mesmo até acima para que não se lhe visse o tronco nu.
Depois, começou a descer o caminho. Gilberg ficou a observá-lo; viu as suas solas dos pés descalços chapinharem na água das poças no alcatrão.
Confio em ti?
Completamente louco, doido varrido.
Martha estava na receção a olhar para o ecrã do computador com imagens do CFTV do Centro Ila. Mais especificamente, para um homem que olhava fixamente para a câmara do lado de fora da porta de entrada. Ainda não tocara à campainha, não descobrira o buraquinho no plexiglas que cobria a campainha. Tinham sido obrigados a instalá-lo, pois a destruição da campainha era uma reação comum quando se negava o acesso a alguém. Martha premiu o botão do microfone.
– Em que posso ajudar-te?
O rapaz não respondeu. Martha apercebera-se já de que ele não era um dos setenta e seis atuais residentes. Apesar de o centro ter registado uma rotatividade de uma centena de residentes nos últimos quatro meses, ela lembrava-se de cada rosto. No entanto, concluíra que ele pertencia ao «grupo-alvo de clientela» do Ila, como era conhecido: os toxicodependentes. Não que parecesse pedrado, porque não estava; era o seu rosto magro. As rugas à volta da boca. O corte de cabelo horrível. Suspirou.
– Precisas de um quarto?
O rapaz anuiu e ela rodou a chave que abria a porta lá em baixo. Gritou a Stine, que se encontrava na cozinha a preparar sanduíches, que vigiasse a receção na sua ausência. Depois, desceu rapidamente as escadas e transpôs o portão de ferro usado para vedar o acesso à receção, não fossem alguns intrusos forçar a entrada pela porta principal. O rapaz estava de pé do lado de dentro da porta, olhando à sua volta.
O casaco estava abotoado até ao pescoço e quase lhe chegava aos tornozelos. Vinha descalço e ela reparou que havia sangue numa pegada húmida junto à porta de entrada. No entanto, Martha já vira quase de tudo, por isso o que mais lhe chamou a atenção foram os olhos dele. A forma como ele a olhava. Não conseguia explicar de outra maneira. Os olhos mantinham-se focados em si e conseguiu ver neles que estava a analisar a impressão visual que ela causara. Podia não ser grande coisa, mas era mais do que aquilo a que ela estava acostumada no Centro Ila. E, por um breve momento, ocorreu-lhe que, afinal, ele podia não estar a consumir, porém afastou o pensamento com igual celeridade.
– Olá. Acompanha-me.
Ele seguiu-a até ao primeiro andar e entrou na sala de reuniões, depois de atravessar a receção. Como de costume, ela deixou a porta aberta para que Stine e os outros os pudessem ver, pediu-lhe que se sentasse e pegou nos impressos para a entrevista de apresentação que era obrigatória.
– Nome – perguntou-lhe.
Ele hesitou.
– Tenho de colocar um nome neste formulário – explicou ela, dando-lhe a abertura de que muitas das pessoas que ali se deslocavam necessitavam.
– Stig – respondeu, hesitante.
– Stig está bem – disse ela. – Mais alguma coisa?
– Berger?
– Então é o que escreveremos aqui. Data de nascimento?
Ele indicou uma data e um ano e ela calculou que tivesse acabado de fazer trinta. Parecia muito mais novo. Isso era o que os toxicodependentes tinham de curioso, uma pessoa podia enganar-se facilmente no cálculo da idade tanto para mais como para menos.
– Vens recomendado por alguém?
Ele abanou a cabeça.
– Onde dormiste a noite passada?
– Debaixo de uma ponte.
– Portanto, presumo que não tenhas residência fixa e ignores quais os Serviços Sociais da tua zona; logo, vou escolher o número onze, que é a tua data de nascimento e isso dá-nos – consultou a lista – os Serviços Sociais de Alna que, na sua infinita misericórdia irão, assim o espero, decidir financiar-te. Que tipo de drogas consomes?
A caneta dela ficou em suspenso, mas ele não respondeu.
– Refere só qual o teu veneno preferido.
– Deixei a droga.
Ela pousou a caneta.
– O Centro Ila é um lugar para toxicodependentes ativos. Podemos fazer uma chamada para o centro na Sporveisgata e ver se têm um quarto para ti. É muito mais simpático do que aqui.
– Está a dizer...?
– Sim, estou a dizer que precisas de drogar-te com regularidade para poderes cá estar. – Esboçou-lhe um sorriso cansado.
– E se eu tivesse mentido por pensar que era mais fácil conseguir um quarto aqui se dissesse que estava limpo?
– Nesse caso, também respondeste corretamente a essa pergunta, mas não tens mais alternativas, amigo.
– Heroína – disse ele.
– E?
– Apenas heroína.
Ela colocou uma cruz no quadradinho do impresso, no entanto duvidou que fosse verdade. Já quase não restava um consumidor de heroína pura em Oslo; presentemente, toda a gente usava substâncias mistas pela simples razão de que, se se combinasse a heroína já misturada com uma benzodiazepina como o Rohypnol, por exemplo, a moca era muito maior não só em termos de intensidade mas também de duração do efeito da dose.
– Porque vieste aqui?
Ele encolheu os ombros.
– Para ter um teto sobre a cabeça.
– Alguma doença ou medicação essencial?
– Não.
– Tens alguns planos para o futuro?
Ficou a olhá-la. O pai de Martha costumava dizer que o passado de uma pessoa estava escrito nos olhos dela e valia a pena aprender a lê-lo. Mas que o futuro não se encontraria lá. Mesmo assim, Martha iria recordar este momento e perguntar-se se podia, se devia, ter conseguido ler algo nos planos futuros do homem que dizia chamar-se Stig Berger.
Ele abanou a cabeça e reagiu da mesma forma às perguntas que ela lhe fez sobre emprego, educação, overdoses anteriores, doenças somáticas, infeções sanguíneas e questões de saúde mental. No fim, explicou que o centro tinha uma política de total confidencialidade e que não contariam a ninguém que ele era residente, no entanto, se assim o desejasse, podia preencher um formulário de consentimento indicando alguém a quem pudessem ser dadas informações, caso contactassem o centro.
– Para que os teus pais, amigos ou namorada possam entrar em contacto contigo, por exemplo.
Ele sorriu melancolicamente.
– Não tenho nenhum desses.
Já muitas outras vezes Martha Lian ouvira esta resposta. Tantas que deixara de ficar impressionada. O seu terapeuta chamara-lhe fadiga da compaixão e explicara que, mais cedo ou mais tarde, acabava por afetar as pessoas com a sua profissão. O que preocupava Martha era o facto de não melhorar. Claro que ela tinha a noção de que existe um limite para o cinismo que uma pessoa que se preocupa com o seu próprio cinismo consegue revelar, mas ela sempre se movera pela empatia. A compaixão. O amor. E estava quase a ficar vazia. Por isso, sobressaltara-se quando ouvira as palavras não tenho nenhum desses tocar em algo, como uma agulha a provocar a contração de um músculo atrofiado.
Reuniu os papéis e colocou-os dentro de uma pasta que deixou na receção e acompanhou o jovem residente a uma pequena arrecadação no rés do chão.
– Espero que não sejas do tipo paranoico que não consegue vestir roupa em segunda mão – disse ela e virou-lhe as costas enquanto ele despia o casaco e vestia as roupas e os ténis que ela lhe escolhera.
Ela aguardou até que ele tossiu. Virou-se. De certa forma, ele parecia mais alto e direito com a camisola desportiva azul-clara e as calças de ganga. Não era tão escanzelado como parecera dentro do casaco. Ele olhou para os ténis azuis simples.
– Sim – disse ela. – O calçado preferido dos sem-abrigo.
Na década de 1980, o Exército norueguês doara grandes quantidades de ténis azuis do depósito de excedentes a várias organizações assistenciais e eles tinham-se tornado símbolos de toxicodependentes e sem-abrigo.
– Obrigado – disse ele, baixinho.
Inicialmente, Martha começara a consultar o seu terapeuta por causa de um residente que era incapaz de lhe agradecer. Fora apenas mais um «não-obrigado» numa longa sucessão de outros «não-obrigados» de indivíduos autodestrutivos que ainda desfrutavam de alguma existência graças ao Estado Social e às várias organizações de beneficência contra os quais os mesmos toxicodependentes levavam a maior parte das horas que passavam acordados a insurgir-se. Ela perdera a paciência. Mandara-o ir dar uma curva se não gostava do tamanho da seringa descartável que recebia gratuitamente para poder ir para o seu quarto – pelo qual os Serviços Sociais pagavam seis mil coroas por mês – para se pedrar com drogas que ele financiara roubando bicicletas no bairro. O residente fizera acompanhar a sua queixa de uma história de sucessivos azares que se estendiam por quatro páginas. Ela fora obrigada a pedir-lhe desculpa.
– Vou acompanhar-te ao teu quarto – disse ela.
Enquanto subiam até ao segundo andar, ela mostrou-lhe onde ficavam as casas de banho. Passaram por eles homens com passos enérgicos e olhos pedrados.
– Bem-vindo ao melhor centro comercial de drogas de Oslo – disse Martha.
– Aqui – perguntou o rapaz – permitem o tráfico?
– De acordo com as regras não, mas se consumires, terás drogas na tua posse, como é óbvio. E estou a contar-te isto porque convém que saibas que não vamos verificar se é um grama ou um quilo. Não temos qualquer controlo sobre o que é comprado e vendido nos quartos. Só entramos se suspeitarmos de posse de armas.
– As pessoas fazem isso?
Ela lançou-lhe um olhar de soslaio.
– Porque perguntas?
– Só quero saber se é perigoso ficar aqui.
– Todos os narcotraficantes têm intermediários que atuam como fiscais e eles usam tudo, desde bastões de beisebol a armas de fogo, para cobrarem as dívidas dos outros residentes. A semana passada revistei um quarto e encontrei um arpão debaixo da cama.
– Um arpão?
– Sim. Um Sting 65 carregado.
Ela surpreendeu-se ao soltar uma gargalhada e ele retribuiu sorrindo. Tinha um sorriso bonito. Muitos deles tinham.
Ela bateu antes de abrir a porta do quarto 323.
– Tivemos de encerrar diversos quartos devido a danos causados por um incêndio, por isso as pessoas têm de partilhar até estar tudo arranjado. O teu companheiro de quarto chama-se Johnny, os outros tratam-no por Johnny Puma. Ele tem EM13 e passa a maior parte do dia na cama. Mas é uma pessoa simpática e calada, por isso não deves vir a ter problemas com ele.
Ela abriu a porta. Estava escuro lá dentro pois as cortinas tinham sido corridas. Acendeu a luz. As lâmpadas fluorescentes no teto piscaram algumas vezes antes de se acenderem.
– Que bonito – disse o rapaz.
Martha percorreu o olhar pelo quarto. Nunca ouvira ninguém descrever os quartos no Centro Ila como bonitos, a menos que estivesse a ser sarcástico. De certa forma, porém, ele tinha razão. Sim, o linóleo estava gasto e as paredes azul-claras cheias de mossas e grafíti que nem a cal conseguia apagar, mas era asseado e simples. A mobília era constituída por um beliche, uma cómoda e uma mesa baixa riscada com a tinta a sair, mas estava inteira e era funcional. O ar tinha o cheiro do homem adormecido no beliche de baixo. O rapaz afirmara nunca ter tido uma overdose, por isso ela atribuíra-lhe o beliche de cima. Deixavam prioritariamente os beliches inferiores para os residentes com maiores probabilidades de overdoses, uma vez que era mais fácil passá-los de um beliche baixo para uma maca.
– Aqui tens – disse Martha, estendendo-lhe uma argola com a chave. – Serei o teu primeiro contacto, o que quer dizer que vens ter comigo se precisares de alguma coisa. Está bem?
– Obrigado – disse ele, recebendo a etiqueta de plástico azul e ficando a olhar para ela. – Muitíssimo obrigado.
11 A Lagoa Azul, com uma área de cinco mil metros quadrados, é um spa termal e uma das atrações mais visitadas na Islândia. Localiza-se na cidade de Grindavik, a 39 quilómetros de Reiquiavique, a capital. Esta lagoa atrai visitantes que procuram as suas águas quentes (40 ºC) e propriedades medicinais. Acresce que a concentração de algas e sais minerais é eficaz no tratamento de doenças da pele e no combate ao envelhecimento. (N. da T.)
12 Bebida destilada. Refere-se a qualquer tipo de aguardante com teor alcoólico superior a 32º. (N. da T.)
13 Encefalomielite miálgica, síndrome que provoca a inflamação do sistema nervoso central, causando dores e fadiga muscular. (N. da T.)
13
–Ele vai já descer – gritou a rececionista a Simon e Kari, sentados num sofá de couro debaixo de um quadro gigantesco do que podia ser um nascer do Sol.
– Foi o que ela disse há dez minutos – murmurou Kari.
– No céu Deus decide que horas são – comentou Simon e introduziu um pedaço de snus sob o lábio superior. – Quanto poderá custar um quadro como aquele? E porque escolheram logo esse?
– A aquisição de arte pública, como é conhecida, não passa de um subsídio encapotado aos artistas medíocres do nosso país – respondeu Kari. – Os compradores não ligam ao que penduram nas suas paredes desde que isso combine com a mobília e o seu orçamento.
Simon olhou-a de soslaio.
– Já lhe disseram que por vezes parece estar a desbobinar citações que decorou?
Kari sorriu ironicamente.
– E o snus é um fraco substituto dos cigarros. Faz mal à saúde. Presumo que a sua mulher o tenha obrigado a mudar porque o cheiro dos cigarros ficava entranhado nas roupas dela?
Simon soltou uma risada e abanou a cabeça. Estranho sentido de humor o dos jovens de hoje.
– Boa tentativa, mas está enganada. Ela pediu-me que deixasse de fumar porque me quer por perto o máximo de tempo possível. E ela não sabe que eu masco tabaco. Guardo-o no serviço.
– Mande-os entrar, Anne – berrou uma voz.
Simon olhou para a câmara onde um homem, de farda e com um boné que faria as delícias de um presidente bielorrusso, tamborilava com os dedos nas grades de metal.
Simon ergueu-se.
– Depois decidimos se voltamos a libertá-los – disse Arild Franck.
Simon percebeu, pelo revirar quase impercetível dos olhos da rececionista, que era uma piada já com barbas.
– Então, que tal é estar de volta à sarjeta? – perguntou Franck, enquanto os acompanhava através da câmara e até às escadas. – Agora vocês estão no Departamento de Fraudes Graves, presumo. Oh, peço imensa desculpa, estou a ficar senil, esqueci-me por completo de que eles vos expulsaram.
Simon nem se deu ao incómodo de rir ante o insulto deliberado.
– Estamos aqui por causa do Per Vollan.
– Constou-me. Julguei que o caso tinha sido encerrado?
– Nós não encerramos um caso enquanto ele não estiver resolvido.
– Isso é uma novidade?
Simon mimou um sorriso comprimindo os lábios nos dentes.
– O Per Vollan veio cá visitar reclusos no dia em que morreu, não é verdade?
Franck abriu a porta do seu gabinete.
– O Vollan era um capelão de prisão, por isso presumo que estivesse a fazer o seu trabalho. Posso verificar o registo das visitas, se quiser.
– Sim, por favor. E, já agora, não nos podia fornecer também uma lista de todas as pessoas com quem ele falou?
– Infelizmente não fixei os nomes de todos aqueles que ele contactou quando aqui esteve.
– Sei pelo menos de uma pessoa que ele viu naquele dia – afirmou Kari.
– Sim? – inquiriu Franck, sentando-se à secretária que o acompanhara ao longo de toda a sua carreira. – Minha menina, se tenciona ficar, faça o favor de ir buscar as chávenas de café àquele armário ali, enquanto eu verifico o registo de visitas.
– Obrigada, mas não consumo cafeína – respondeu Kari. – O nome dele é Sonny Lofthus.
Franck olhou-a com uma expressão vazia.
– Gostávamos de saber se era possível visitá-lo – perguntou Simon. Sentara-se sem que ninguém o tivesse convidado. Ergueu o olhar para o rosto já ruborizado de Franck. – Oh, peço imensa desculpa, estou a ficar senil. Ele acabou de se evadir.
Simon viu Franck preparar uma resposta, porém antecipou-se-lhe.
– Estamos interessados nele porque a coincidência entre a visita do Vollan e a fuga do Lofthus torna ainda mais suspeita a morte do primeiro.
Franck ajustou o colarinho da camisa.
– Como sabe que eles se encontraram?
– Os interrogatórios da Polícia são todos arquivados numa base de dados comum – explicou Kari, que permanecera de pé. – Quando procurei o Per Vollan, vi que o nome dele era mencionado num interrogatório relacionado com a fuga do Lofthus. Por um recluso chamado Gustav Rover.
– O Rover acaba de ser libertado. Foi interrogado porque falou com o Sonny Lofthus pouco antes de ele se evadir. Nós queríamos saber se o Lofthus tinha dito algo que nos pudesse dar uma ideia do que andava a tramar.
– Nós? Nós? – Simon arqueou um sobrolho grisalho. – Em bom rigor, é da competência da Polícia, e apenas dela, apanhar presos que se evadiram, e não vossa.
– O Lofthus é meu prisioneiro, Kefas.
– O Rover não parece ter conseguido ajudá-lo – respondeu Simon. – Mas, quando interrogado, ele mencionou que, no momento em que ia abandonar a cela, o Per Vollan tinha chegado para falar com o Lofthus.
Franck encolheu os ombros.
– E daí?
– Daí termos curiosidade em saber do que falaram os dois.
E por que motivo, pouco depois, um deles foi morto e o outro se
evadiu.
– Pode ser coincidência.
– Claro. Conhece um homem chamado Hugo Nestor, Franck? Também conhecido como o Ucraniano?
– Já ouvi o nome.
– Portanto, isso é um sim. Existe algo que sugira que o Nestor possa estar envolvido na fuga?
– Como assim?
– Poderá ter ajudado o Lofthus a evadir-se ou poderá tê-lo ameaçado na prisão, precipitando deste modo a fuga dele?
Franck tamborilou com a caneta na secretária. Parecia perdido em pensamentos.
Pelo canto do olho, Simon viu Kari verificar os seus SMS.
– Sei que está desesperado por resultados, mas não vai apanhar nenhum peixe graúdo aqui – afirmou Franck. – O Sonny Lofthus evadiu-se apenas por sua própria iniciativa.
– Uau! – exclamou Simon, recostando-se na cadeira e unindo as pontas dos dedos. – Um jovem toxicodependente, um mero amador, evade-se, entre todas as prisões, logo da Estatal, sem contar com qualquer ajuda?
Franck sorriu.
– Quer apostar no amadorismo, Kefas? – E o sorriso dele rasgou-se quando Simon não conseguiu responder. – Que cabeça a minha, você já não é um homem de apostas. Por isso, permita-me que lhe mostre o seu amador.
– Estas são as gravações das câmaras de vigilância – disse Franck, fazendo um gesto na direção do ecrã de vinte e quatro polegadas do computador. – Nesta altura, todos os agentes na sala de controlo estão deitados de bruços no chão enquanto o Johannes abre todas as portas na prisão.
O ecrã estava dividido em dezasseis janelas, uma para cada câmara, mostrando várias secções da prisão. Ao fundo do ecrã havia um relógio.
– Ali vem ele – disse Franck, apontando para uma janela que mostrava um dos corredores da prisão.
Simon e Kari viram um jovem sair de uma cela e correr na direção da câmara. Vestia uma camisa branca que lhe chegava quase aos joelhos e Simon concluiu que o barbeiro do homem ainda devia ser pior do que o seu: o cabelo parecia ter-lhe sido arrancado da cabeça.
O jovem desapareceu da imagem. E reapareceu numa das outras.
– Este é o Lofthus a atravessar a divisão – disse Franck. – E, enquanto ele está ali, o Johannes entretém-se a arengar sobre o que pretende fazer à família dos agentes se alguém tentar impedi-lo. A parte interessante é o que acontece no vestiário do pessoal.
Viram Lofthus entrar a correr numa sala com cacifos, no entanto, em vez de ir direito à saída, virou à esquerda e desapareceu da imagem por detrás da última fila de armários. Franck carregou furiosamente numa das teclas com o dedo indicador e o relógio ao fundo do ecrã parou de correr.
Franck colocou o cursor em cima do relógio e introduziu a hora 07h20. Depois, começou a reproduzir a gravação ao quádruplo da velocidade normal. Apareceram homens fardados numa janela no ecrã. Entravam e saíam do vestiário e a porta abria-se e fechava-se constantemente. Era impossível distingui-los até Franck parar a imagem premindo outra tecla.
– Ali está ele – disse Kari. – Agora tem vestido um uniforme e um casaco.
– O uniforme e o casaco do Sorensen – disse Franck. – Deve ter mudado de roupa e ficado à espera no vestiário. Sentou-se no banco, manteve a cabeça baixa, fingindo estar a apertar os atacadores ou algo parecido enquanto os outros iam e vinham. Nós aqui temos uma rotatividade de pessoal tão elevada que ninguém olharia duas vezes para um tipo novo que trocava de roupa com alguma lentidão. Ele esperou pelo auge da correria matinal e saiu com os outros. Ninguém reconheceu o Sonny sem a barba e o cabelo comprido, que ele cortara na cela e escondera dentro da almofada. Nem mesmo eu...
Carregando noutra tecla, reiniciou a reprodução, desta vez a uma velocidade normal. O ecrã mostrou um jovem de casaco e uniforme a sair pela porta das traseiras enquanto Arild Franck e um homem com o cabelo puxado para trás e de fato cinzento vinham a entrar.
– E os guardas lá fora não o intercetaram?
Franck apontou para a imagem no canto inferior direito do ecrã.
– Esta foi captada pela cabina de segurança. Como pode ver, deixámos sair os carros e as pessoas sem verificar a sua identificação. Criava-se um engarrafamento se tivéssemos de aplicar todos os procedimentos de segurança a cada mudança de turno. No entanto, daqui para a frente, iremos verificá-los nessas ocasiões.
– Sim, não me parece que alguém faça fila para entrar – gracejou Simon.
No silêncio que se seguiu, ouviu-se Kari reprimir um bocejo ante a interpretação de Simon a respeito da piada de boas-vindas de Franck.
– Ora ali tem o seu amador – disse Franck.
Simon Kefas não respondeu, limitou-se a observar as costas da figura que passava vagarosamente pelos seguranças. Por alguma razão, começara a sorrir. Apercebeu-se, pelo andar, de que era Lofthus. Reconhecia aquele passo.
Martha encontrava-se de pé com os braços cruzados sobre o peito, avaliando os dois homens diante de si. Não podiam ser da Brigada Antidroga; estava convencida de que conhecia todos os agentes que a integravam e nunca antes vira aqueles dois.
– Andamos à procura... – começou um deles a dizer, mas o resto da frase foi abafado pelo uivo da sirene de uma ambulância que passou atrás deles, na Waldemar Thranes Gate.
– O quê? – gritou Martha. Perguntou-se onde já vira fatos pretos como aquele. Num anúncio.
– O Sonny Lofthus? – repetiu o mais pequeno dos dois. O seu cabelo era louro e parecia que lhe tinham partido o nariz várias vezes. Todos os dias Martha via narizes como aquele, porém, pensava que era o resultado da prática de um desporto de contacto.
– Nós nunca revelamos o nome dos nossos residentes – informou-os.
O outro, um homem alto mas entroncado, com caracóis pretos num estranho semicírculo à volta da cabeça, mostrou-lhe uma fotografia.
– Ele evadiu-se da Prisão Estatal e é considerado perigoso. – Aproximou-se outra ambulância e ele debruçou-se, gritando-lhe sobre o rosto: – Portanto, se ele está cá como residente e não nos avisarem, se acontecer alguma coisa, a culpa é vossa. Estamos entendidos?
Portanto, não eram da Brigada Antidroga; pelo menos isso explicava por que motivo não os vira antes. Anuiu, enquanto observava a fotografia. Ergueu de novo o olhar para eles. Abriu a boca para dizer algo quando uma rajada de vento lhe empurrou a franja escura para o rosto. Preparava-se para tentar de novo quando ouviu gritar atrás de si. Era Toy, nas escadas.
– Ei, Martha, o Burre resolveu cortar-se. Não sei o que fazer. Ele está novamente no café.
– No verão, as pessoas vão e vêm – disse ela. – É uma altura em que muitos dos nossos residentes preferem dormir ao relento nos parques, o que, por sua vez, permite espaço para novas chegadas. É difícil lembrarmo-nos de cada rosto...
– ...e nem todos querem registar-se sob o nome verdadeiro. Não estamos à espera de que os nossos clientes tenham passaporte ou outras formas de identificação, por isso, aceitamos o nome que eles nos dão.
– Mas os Serviços Sociais não precisam de saber quem eles são? – perguntou o louro.
Martha mordeu o lábio inferior.
– Ei, Martha, o Burre está, literalmente, a esvair-se em sangue!
O homem da auréola de caracóis assentou uma manápula peluda no braço despido de Martha.
– Porque não nos deixa simplesmente dar uma olhada e ver se conseguimos encontrá-lo?
Reparou na expressão nos olhos dela e retirou a mão.
– Por falar em identificação – disse ela. – Eu não deveria pedir-lhe a sua?
Ela viu algo ensombrar-se nos olhos do homem louro. E lá estava de novo a mão do homem de cabelo aos caracóis. Desta vez, não no braço dela, mas a rodeá-lo.
– O Burre está quase exangue. – Toy viera reunir-se-lhes; balançou-se e fitou os dois homens com os seus olhos húmidos. – O que se passa aqui?
Martha conseguiu libertar-se e apoiou a mão no ombro de Toy.
– Nesse caso, é bom irmos salvar-lhe a vida. Cavalheiros, se não se importarem de esperar.
Martha e Toy dirigiram-se ao café. Passou outra ambulância acelerada. Três ambulâncias. Ela estremeceu involuntariamente.
Quando chegou à porta do café, virou-se.
Os dois homens tinham desaparecido.
– Portanto, você e o Harnes viram o Sonny de perto? – perguntou Simon quando Franck o acompanhava, bem como a Kari, de volta ao rés do chão.
Franck olhou para o seu relógio de pulso.
– O que ele viu foi um jovem de rosto escanhoado com cabelo curto e uniforme. O Sonny que nós conhecemos vestia uma camisola imunda, tinha cabelo comprido embaraçado e barba.
– Então, está a afirmar que seria difícil encontrá-lo tendo em conta o seu atual aspeto? – inquiriu Kari.
– As fotografias das câmaras de vigilância são de má qualidade, como seria de esperar. – Arild Franck virou-se e cravou os olhos nela. – Mas nós vamos encontrá-lo.
– É uma pena que não possamos falar com este Halden – observou Simon.
– Sim, como disse, a doença dele agravou-se – replicou Franck, enquanto os conduzia à receção. – Quando ele estiver em condições de receber visitas, eu aviso-vos.
– E não faz ideia de qual possa ter sido o tema da conversa do Lofthus com o Per Vollan?
Franck abanou a cabeça.
– Presumo que tivesse necessidade de desabafar e precisasse de orientação espiritual. Embora o próprio Sonny Lofthus fosse um confidente.
– A sério?
– O Lofthus não se misturava com os outros reclusos. Era imparcial, não pertencia a nenhuma das fações que encontramos em todas as prisões. E ele nunca falava. É assim que se define um bom ouvinte, não é? Tornou-se uma espécie de confessor dos outros reclusos, alguém a quem eles podiam confiar tudo. A quem ia ele contar? Não tinha aliados e ia permanecer na prisão no futuro mais próximo.
– Em que tipo de homicídios esteve envolvido? – perguntou Kari.
– Homicídios humanos – comentou Franck, com secura.
– Estou a falar...
– Homicídios do tipo mais brutal. Matou uma rapariga asiática e estrangulou um albanês kosovar.
Franck abrira-lhes a porta de saída, que segurava.
– E pensar que um delinquente perigoso anda agora a monte – disse Simon, sabendo que não estava a ajudar nada naquele momento. Não que fosse sádico, no entanto estava preparado para abrir uma exceção quando se tratava de Arild Franck. Não pelo facto de ser difícil gostar-se de Franck; na realidade, a sua personalidade era uma circunstância atenuante. Não porque ele não fizesse o seu trabalho – todos no Comando da Polícia sabiam que Franck era o verdadeiro chefe na Estatal, e não o homem que detinha o título de diretor prisional. Não, era aquele outro assunto, as aparentes coincidências que se conjugavam para lançar uma suspeita que andava a desgastar Simon e se aproximava do tipo de conhecimento mais frustrante, aquele que não é possível provar. Que Arild Franck estava a aproveitar-se da situação.
– Dou-lhe quarenta e oito horas, inspetor-chefe – disse Franck. – Ele não tem nem dinheiro, nem familiares, nem amigos. É um solitário que se encontra preso desde os dezoito anos. Isso já foi há doze anos. Ele desconhece por completo o mundo lá fora, não tem para onde ir, nem lugares onde esconder-se.
Enquanto Kari se apressava a acompanhar Simon no caminho até ao carro, Simon ia pensando nas quarenta e oito horas e sentiu-se tentado a apostar. Porque ele reconhecera algo no rapaz. Não sabia bem o que era; talvez fosse apenas a maneira como ele se movia. Ou talvez tivesse herdado mais do que isso.
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Johnny Puma virou-se na cama e avaliou o seu novo companheiro de quarto. Não sabia quem inventara o termo companheiro de quarto, apenas que no Centro Ila era, a bem dizer, o nome menos adequado que se lhe podia dar. Era mais apropriado chamar-lhe inimigo de quarto. E, como se isso não bastasse, ainda tinha de partilhar um quarto com alguém que não tentasse roubá-lo descaradamente. Ou com alguém que ele não tivesse tentado roubar descaradamente. Por isso, guardava todos os seus objetos de valor, que eram constituídos por uma carteira impermeável com três mil coroas e um saco de plástico duplo com três gramas de anfetamina, colado a uma coxa tão peluda que qualquer tentativa para o arrancar o acordava mesmo do sono mais profundo.
Assim fora a vida de Johnny Puma ao longo destes últimos vinte anos: consumir anfetaminas e dormir. Tinham-lhe diagnosticado quase tudo o que aparecera dos anos setenta em diante, para explicar por que motivo um jovem preferia divertir-se a trabalhar, lutar e andar na borga a comprar uma casa e constituir família, pedrar-se a manter-se limpo e viver uma vida muito entediante. Todavia, o último diagnóstico fora inequívoco. EM. Encefalomielite miálgica. Exaustão crónica. Johnny Puma exausto? Quem tal ouvisse só podia convencer-se de que era uma piada. Johnny Puma, o halterofilista, a vida e a alma da festa, o homem das mudanças mais popular de Lillesand, que conseguia carregar sozinho um piano. Começara por uma dor forte na anca, os analgésicos não tinham resultado, seguindo-se mais analgésicos que tinham resultado bem demais e o deixaram viciado. Agora, a sua vida consistia em longos dias de repouso na cama, misturados com intensos períodos de atividade em que tinha de canalizar toda a sua energia para a obtenção de drogas. Ou arranjar dinheiro para saldar a sua dívida já perigosamente grande ao barão da droga do centro, um transexual lituano, cuja mudança de sexo estava a decorrer, que se autoapelidava de Coco.
Johnny percebera com um único olhar que o jovem que se encontrava de pé junto à janela precisava de marcar pontos. A busca constante e frenética. A compulsão. A luta.
– Importavas-te de correr as cortinas, amigo?
O outro obedeceu e, mais uma vez, o quarto ficou agradavelmente escuro.
– O que estás a consumir, amigo?
– Heroína.
Heroína? Aqui no centro, as pessoas diziam droga quando se referiam à heroína. Merda, heroa, cavalo ou pó. Ou boy. Ou Superboy, quando se tratava da nova droga maravilha que se podia comprar lá em baixo na Nybrua a um tipo que parecia o Soneca de A Branca de Neve. Heroína era o que as pessoas lhe chamavam na prisão. Ou se fossem novatos, evidentemente. Embora, se se fosse um novato à maneira, existisse a possibilidade de usar expressões como China White14, Mexican Mud15 ou qualquer dos outros termos absurdos que se retiravam dos filmes.
– Consigo arranjar-te heroína da boa e barata. Não precisas de sair.
Johnny apercebeu-se de que algo acontecia ao vulto no escuro. Já tinha visto os drogados que estavam verdadeiramente desesperados ficarem pedrados com a mera promessa de drogas; estava convencido de que os estudos tinham registado alterações no centro de prazer do cérebro nos vários segundos que antecediam a dose. Com uma margem bruta de quarenta por cento nas drogas que conseguia comprar ao Høvdingen, no quarto 36, Johnny podia adquirir três ou quatro sacos de speed para si. Sempre era melhor do que voltar a roubar o bairro.
– Não, obrigado. Se quiseres dormir, posso sair.
A voz que viera da janela era tão baixa e suave que Johnny não conseguiu perceber como era possível que ela se sobrepusesse ao ruído constante de festas, gritos, música, discussões e trânsito no Ila. Com que então, o tipo queria saber se Johnny se preparava para dormir, hein? Para poder revistá-lo. Talvez encontrar a dose que Johnny colara à coxa.
– Eu nunca durmo, apenas fecho os olhos. Topas-me, amigo?
O jovem anuiu.
– Vou sair.
Quando a porta se fechou atrás do seu novo inimigo de quarto, Johnny Puma levantou-se da cama. Bastaram-lhe dois minutos para revistar o roupeiro do tipo e o beliche de cima. Nada. Nicles. O seu inimigo de quarto não era tão inexperiente quanto parecia; levara tudo consigo.
Markus Engseth estava apavorado.
– Não me digas que estás acagaçado? – disse o maior dos dois rapazes que lhe barravam o caminho.
Markus abanou a cabeça e engoliu em seco.
– Sim, estás tão assustado que até começaste a suar, meu porco gordo. Ei, não sentem o pivete?
– Olhem, ele vai chorar – disse o outro rapaz com uma gargalhada.
Tinham quinze anos, possivelmente dezasseis. Markus não sabia, só tinha a certeza de que eles eram muito maiores e mais velhos do que ele.
– Só queremos pedi-la emprestada – disse o rapaz maior e agarrou o guiador da bicicleta de Markus. – Nós depois devolvemo-la.
– Ou não – disse o outro com nova gargalhada.
Markus olhou de novo para as janelas das casas na rua sossegada. Superfícies de vidro negras e cegas. Normalmente, não gostava que as pessoas o observassem. Gostava de ser invisível para poder escapulir-se pelo portão do jardim e ir até à casa amarela abandonada. Naquele momento, porém, esperava que se abrisse uma janela algures, que uma voz adulta mandasse embora os rapagões. Que voltassem para Tåsen ou Nydalen, ou algum outro bairro de rufias a que eles pertenciam. Mas o silêncio era absoluto. Um silêncio de verão. Estava-se no período das férias grandes e as outras crianças da rua tinham ido para as cabanas, as praias ou cidades estrangeiras. Não faziam falta nenhuma para as brincadeiras; Markus sempre brincara sozinho. No entanto, ser pequeno era mais arriscado quando não se era um entre a multidão.
O rapagão arrancara a bicicleta das mãos de Markus e ele percebeu que já não tinha forças para continuar a reprimir as lágrimas. A bicicleta que a mãe lhe comprara com dinheiro que podiam ter gastado a ir para qualquer outro lugar naquele verão.
– O meu pai está em casa – disse ele, apontando para o outro lado da rua na direção da casa vermelha deles, que ficava diante da amarela vazia de onde ele acabara de sair.
– Nesse caso, porque não o chamaste?
O rapaz sentara-se na bicicleta de Markus e experimentava-a; ela oscilou e ele ficou aborrecido por os pneus estarem um pouco vazios.
– Papá! – chamou Markus, apercebendo-se logo em seguida de quão pouco convincente e falso soara.
Os rapazes mais velhos soltaram gargalhadas ruidosas. O outro sentara-se no cesto de compras e Markus viu os pneus de borracha começarem a torcer-se no aro.
– Acho que não tens um pai – disse o rapaz e cuspiu para o chão. – Vá lá, Herman, arranca!
– Estou a tentar, mas tu estás a impedir-me.
– Não estou, não.
Os três rapazes viraram-se. Encontrava-se um homem de pé, por detrás do cesto. Levantara a traseira da bicicleta, por isso ela entrara em roda livre e os dois rapazes foram projetados. Caíram e lançaram um olhar fuzilante ao homem.
– O que raio pensa que está a fazer? – resmungou o rapaz mais velho.
O homem não respondeu, limitou-se a olhá-lo. Markus reparou no estranho corte de cabelo dele, no logótipo do Exército de Salvação na sua T-shirt e nas cicatrizes nos antebraços. Reinava tamanho silêncio que Markus teve a sensação de que ouvia cada ave em Berg cantar. E agora parecia que os dois rapazes mais velhos se tinham também apercebido das cicatrizes do homem.
– Nós só íamos pedi-la emprestada.
A voz do rapaz mais velho assumira um tom diferente; ficara rouca e baixa.
– Mas podes ficar com ela, se quiseres – apressou-se o outro a acrescentar.
O homem continuava a olhar para eles. Fez sinal a Markus para que fosse buscar a bicicleta. Os dois rapazes começaram a recuar.
– Onde moras?
– Em Tåsen. És... és o pai dele?
– Talvez. Próxima paragem Tåsen, certo?
Os rapazes anuíram em uníssono. Deram meia-volta como se reagissem a uma ordem e puseram-se a andar. Markus olhou para o homem que sorria lá do alto. Ouviram atrás deles um dos rapazes dizer ao outro:
– O pai dele é um drogado. Viste-lhe os braços?
– Como te chamas? – perguntou o homem.
– Markus – respondeu ele.
– Tem um bom verão, Markus – disse o homem, devolvendo-lhe a bicicleta e encaminhando-se para o portão da casa amarela. Markus susteve a respiração. Era uma casa como qualquer outra na rua; quadrada como uma caixa, não particularmente grande e rodeada de um jardim pequeno. No entanto, esta casa e o respetivo terreno estavam a necessitar de uma camada de tinta e de uma sessão com o corta-relva. Mesmo assim, era A Casa. O homem foi direito às escadas da cave. Não à porta da frente, como Marcus vira os vendedores ou as Testemunhas de Jeová fazerem. Saberia ele que a chave estava escondida na trave por cima da porta da cave e que Markus tinha sempre o cuidado de tornar a colocá-la no mesmo sítio?
Teve a sua resposta quando ouviu a porta da cave abrir-se e voltar a fechar-se.
Marcus ficou de queixo caído. Não entrava ninguém naquela casa desde que ele tinha lembrança. É certo que só se conseguia recordar até à altura em que tinha cinco anos, o que já fora há sete, porém, de certa forma, fazia sentido que a casa estivesse vazia. Quem quereria morar numa casa onde alguém se suicidara?
Bem, havia alguém que aparecia pelo menos duas vezes por ano. Markus só o vira uma vez e calculara que fosse ele quem ligava o aquecimento no mínimo antes do inverno e voltava a desligá-lo na primavera. Ele devia pagar as contas. A sua mãe dissera que sem energia a casa estaria já tão estragada nesta altura que não seria possível habitá-la, mas ela também não sabia quem era o homem. Mas não se parecia nada com aquele que estava lá dentro naquele momento, Markus podia afirmá-lo.
Markus conseguiu ver o rosto do recém-chegado através da janela da cozinha. A casa não tinha cortinas, por isso, sempre que Markus lá entrava, mantinha-se bem afastado das janelas para evitar ser visto. O homem não parecia nada ir ligar o aquecimento. Nesse caso, o que fazia ali dentro? Como podia Markus... depois lembrou-se do telescópio.
Fez entrar a bicicleta pelo portão da casa vermelha. E subiu as escadas a correr até ao seu quarto. O telescópio dele – que, na realidade, mais não era do que uns binóculos em cima de um suporte – fora a única coisa que o pai não levara consigo quando partira. Pelo menos, fora o que a mãe dissera. Markus apontou os binóculos para a casa amarela e ampliou a imagem. O homem tinha desaparecido. Deslocou o campo de visão circular através da casa, de janela em janela. E lá estava ele. No quarto do rapaz. Onde vivera o drogado. Markus explorara a casa e conhecia cada recanto e cada fenda. Inclusive o esconderijo debaixo da tábua solta no quarto principal. No entanto, mesmo que ninguém se tivesse suicidado ali, ele nunca quereria viver na casa amarela. Antes de ser abandonada definitivamente, o filho do morto tinha morado lá. O rapaz era um drogado e fizera ali muita porcaria sem nunca ter limpado nada. Não fizera reparações, por isso a água infiltrava-se pelo telhado sempre que chovia. O filho tinha desaparecido pouco depois do nascimento de Markus. Fora para a prisão, dissera a mãe de Markus. Porque matara alguém. E Markus perguntava-se se a casa lançava mau-olhado àqueles que se matavam a si próprios ou aos outros. Markus estremeceu. Embora esse fosse o aspeto que mais lhe agradava na casa – o facto de ser um pouco sinistra, o que lhe permitia inventar histórias sobre o que acontecia lá dentro. Só que, naquele dia, não precisava de inventar nada; naquele dia ia mesmo acontecer algo lá dentro.
O homem abrira a janela do quarto – não admirava, a divisão precisava de arejamento. Mesmo assim, Markus gostava mais daquele quarto, apesar de a roupa de cama estar imunda e haver seringas espalhadas pelo chão. O homem estava de pé de costas para a janela, a olhar para as fotografias de que Markus tanto gostava. A fotografia de família, dos três a sorrirem e com ar feliz. Aquela em que o rapaz, ainda com o equipamento de luta livre, estava ao lado do pai, este vestindo um fato de treino e segurando ambos um troféu desportivo. A fotografia do pai com o uniforme de polícia.
O homem abriu o roupeiro, tirou de lá o blusão com capuz e o saco de desporto vermelho com Clube de Wrestling de Oslo em letras brancas. Colocou algumas coisas no saco, no entanto Markus não conseguiu ver o quê. De seguida, abandonou o quarto e desapareceu. E reapareceu de novo no escritório, uma pequena divisão com uma secretária encostada à janela. A mãe dele dissera que era onde tinham encontrado o corpo. O homem procurava algo perto da janela. Markus sabia o que ele procurava, porém, a menos que ele conhecesse os cantos à casa, nunca o iria encontrar. Depois, o homem deu a impressão de estar a abrir a gaveta da secretária, mas tinha pousado o saco de desporto em cima do móvel, pelo que Markus não conseguia ver bem.
O homem devia ter encontrado o que procurava, ou então desistira, porque pegou no saco de desporto e retirou-se. Depois, subiu ao quarto principal antes de descer as escadas e Markus perdeu-o de vista.
Dez minutos mais tarde, a porta da cave abriu-se e o homem subiu as escadas. Vestira o blusão com capuz, puxara-o sobre a cabeça e colocara o saco ao ombro. Transpôs o portão e desceu a rua por onde viera.
Markus desceu rapidamente as escadas e correu lá para fora. Viu a parte de trás do blusão com capuz, pulou a vedação da casa amarela, atravessou o relvado e desceu as escadas da cave. Trémulo e esbaforido, tateou a viga. A chave voltara a ser colocada ali! Soltou um suspiro de alívio e entrou. Não sentia medo, nem por isso. De certa forma, esta era a sua casa. O intruso era o desconhecido. A menos que...
Galgou as escadas até ao escritório. Foi direito às estantes a abarrotar de livros. Segunda prateleira entre O Deus das Moscas16 e They Burn the Thistles17. Introduziu os dedos. A chave da gaveta da secretária estava lá. Mas fora encontrada e usada? Olhou para a secretária enquanto introduzia a chave na fechadura e a rodava. Havia uma nódoa escura na madeira. Podia ser uma mancha de gordura causada por anos de uso, porém, na mente de Markus, não havia dúvida de que se tratava da marca da cabeça que o rapaz assentara naquele mesmíssimo lugar, numa poça de sangue e com um salpico de sangue na parede, tal como ele vira nos filmes.
Markus olhou para dentro da gaveta. Ficou boquiaberto. Desaparecera! Só podia ter sido ele. O filho. Ele voltara. Mais ninguém tinha como saber onde era guardada a chave da secretária. E ele vira-lhe as marcas de agulhas nos braços.
Markus dirigiu-se ao quarto do rapaz. O seu quarto. Olhou em redor e apercebeu-se imediatamente do que faltava. A fotografia do pai com o uniforme de polícia. O Discman. E um dos quatro CD. Olhou para os outros três. O que não estava lá era Violator, dos Depeche Mode. Markus ouvira-o, mas não ficara com grande opinião a seu respeito.
Sentou-se no meio do quarto para ter a certeza de que não era visto da rua. Escutou o silêncio do verão lá fora. O filho regressara. Markus inventara toda uma vida para o rapaz na fotografia. No entanto, esquecera-se de que as pessoas envelhecem. E agora ele voltara. Para ir buscar as coisas à gaveta da secretária.
Depois, Markus ouviu o motor de um carro quebrar o silêncio.
– Tem a certeza de que a numeração não continua do outro lado? – perguntou Kari, enquanto olhava para as modestas casas de madeira, esperançada em localizar um número para se orientar. – Se calhar podíamos perguntar àquele sujeito além.
Esboçou um gesto na direção da berma onde um indivíduo com um blusão com o capuz na cabeça, cabisbaixo e com um saco vermelho ao ombro, caminhava na direção deles.
– A casa fica logo a seguir à colina – disse Simon e acelerou. – Confie em mim.
– Portanto, conhecia o pai dele?
– Conhecia. O que conseguiu descobrir sobre o rapaz?
– Alguém na Estatal que estava preparado para falar comigo disse que ele era reservado e de poucas falas, mas que era muito estimado. Não tinha verdadeiramente amigos e gostava sobretudo de estar sozinho. Não consegui encontrar quaisquer familiares. Esta é a última morada que se lhe conhece.
– Tem as chaves da casa?
– Estavam entre os pertences dele que tinham ficado guardados na prisão. Não precisei de um novo mandado, já tinha sido emitido um na altura da fuga dele.
– Nesse caso, já lá tinha ido um agente?
– Apenas para verificar se o Sonny tinha ido para casa. Apesar de, na realidade, ninguém pensar que ele fosse assim tão estúpido.
– Nem amigos, nem família, nem dinheiro. Isso não lhe deixa muitas opções. Não tarda, vai perceber que os reclusos são extraordinariamente estúpidos.
– Eu sei, mas aquela fuga não foi obra de um idiota.
– Talvez não – Simon teve de admitir.
– Não – respondeu Kari com firmeza. – O Sonny Lofthus era um excelente aluno. Era um dos melhores lutadores livres da Noruega na sua faixa etária. Não por ser o mais forte, mas porque era um tático inteligente.
– Vejo que fez o trabalho de casa.
– Não – disse ela. – Limitei-me a pesquisar o nome dele no Google, consultar ficheiros PDF de jornais antigos, fazer alguns telefonemas. Nada de especial.
– Lá está a casa – disse ele.
Simon estacionou o carro, apearam-se e Kari abriu o portão do jardim.
– Agora tem um ar tão decrépito – comentou ele.
Simon tirou o revólver de serviço da Polícia e verificou que tinha a patilha de segurança destravada antes de Kari abrir a porta da rua.
Simon foi o primeiro a entrar, de arma em punho. Estacou no hall e pôs-se à escuta. Acionou o interrruptor. Acendeu-se uma luz na parede.
– Ups! – sussurrou. – Não é vulgar uma casa desabitada ter eletricidade. Parece que esteve aqui alguém recentemente...
– Não – disse Kari. – Eu verifiquei. Desde que o Lofthus foi para a prisão que as contas da eletricidade têm sido pagas através de uma conta numa das ilhas Caimão, cujo rasto é impossível seguir até um titular. As quantias não são elevadas, mas é...
– ...misterioso – disse Simon. – Mas não tem importância porque nós, detetives, adoramos um bom mistério, não é verdade?
Ele seguiu pelo corredor na dianteira e entrou na cozinha. Abriu o frigorífico. Constatou que não estava ligado à corrente, embora se encontrasse lá dentro um solitário pacote de leite. Fez sinal a Kari, que lhe lançou um olhar de perplexidade antes de se fazer luz. Aproximou o pacote de leite aberto do nariz. Não tinha cheiro. Depois, sacudiu a embalagem e ouviram o chocalhar de pedaços do que antes fora leite. Seguiu Simon até à sala de estar. E pelas escadas até ao primeiro andar. Verificaram todos os quartos e acabaram no que era, manifestamente, o quarto do rapaz. Simon cheirou o ar.
– A família dele – disse Kari, apontando para uma das fotografias na parede.
– Sim – respondeu Simon.
– A mãe dele... ela tem ar de cantora ou atriz, não tem?
Simon não respondeu; olhava para a outra fotografia. Aquela que faltava. Mais precisamente, olhava para o retângulo desbotado no papel de parede onde costumava estar a fotografia. Voltou a cheirar o ar.
– Consegui falar com um dos antigos professores do Sonny – disse Kari. – Ele referiu que o Sonny queria ser agente da Polícia, tal como o pai, mas que saíra dos eixos após a morte dele. Meteu-se em apuros na escola, afastou as pessoas, isolou-se deliberadamente e tornou-se autodestrutivo. A mãe também se foi abaixo depois do suicídio, ela...
– Helene – disse Simon.
– Desculpe?
– Ela chamava-se Helene. Uma overdose de soporíferos.
Simon inspecionou o quarto. O seu olhar deteve-se na mesa de cabeceira coberta de pó enquanto a voz de Kari modulava ao fundo:
– Quando o Sonny tinha dezoito anos confessou os dois homicídios e mandaram-no para a prisão.
Havia uma linha no pó.
– Até essa altura, as investigações da Polícia apontavam em sentidos completamente diferentes.
Simon deu dois passos enérgicos em direção à janela. O sol da tarde incidia na bicicleta tombada no chão defronte da casa vermelha. Olhou para a rua que os levara ali. Não se via vivalma naquele momento.
– As coisas nem sempre são o que parecem – disse.
– O que quer dizer com isso?
Simon fechou os olhos. Tinha energia para isso? Mais uma vez? Inspirou fundo.
– Todos na Polícia julgavam que o Ab Lofthus era mesmo a toupeira. Quando o Ab morreu, as atividades da toupeira cessaram, assim como as rusgas que, curiosamente, não davam em nada, ou as provas, as testemunhas ou os suspeitos que desapareciam subitamente. Consideraram que era uma prova.
– Mas?
Simon encolheu os ombros.
– O Ab era um homem que se orgulhava do seu trabalho e da Polícia. Não queria ser rico, só se preocupava com a sua família. No entanto, existia inequivocamente uma toupeira.
– E daí?
– E daí que ainda falte descobrir quem era a toupeira.
Simon voltou a inalar. Suor. Detetava o odor a suor. Estivera alguém ali recentemente.
– E quem poderia ser? – perguntou ela.
– Alguém jovem e engenhoso.
Simon olhou para Kari. Por cima do ombro dela. Para a porta do roupeiro. Suor. Medo.
– Não está aqui ninguém – anunciou Simon em voz sonora. – Tudo bem. Vamos descer.
Simon estacou a meio das escadas e fez sinal a Kari para que prosseguisse. Permaneceu ali e aguardou. Apurou o ouvido enquanto apertava com força o punho da pistola.
Silêncio.
Depois seguiu Kari.
Regressou à cozinha, encontrou uma caneta e escreveu algo num bloco de Post-its amarelos.
Kari pigarreou.
– O que quis o Franck dizer exatamente quando referiu que você tinha sido expulso do Departamento de Fraudes Graves?
– Preferia não falar nisso – disse Simon, arrancando o Post-it e colando-o na porta do frigorífico.
– Teve alguma coisa a ver com o jogo?
Simon lançou-lhe um olhar severo. Depois foi-se embora.
Ela leu o bilhete.
Conheci o teu pai. Era um bom homem e penso que ele teria dito o mesmo de mim. Contacta-me e prometo-te que te detenho de forma segura e adequada.
Simon Kefas, tel. 550106573, simon.kefas@oslopol.no
Depois correu atrás dele.
Markus Engseth ouviu o carro arrancar e soltou um suspiro de alívio. Estivera acocorado debaixo das roupas nos cabides, todo encostado ao fundo do roupeiro. Nunca em toda a sua vida tivera tanto medo; sentia o cheiro da sua T-shirt, tão encharcada em suor que se lhe colava ao corpo. E, no entanto, também fora emocionante. Como naquela altura em que mergulhara em queda livre da prancha de dez metros na piscina do Frognerbadet18, pensando que o pior que podia acontecer era morrer. E que, na verdade, não era tão horrível assim.
14 Forma de heroína muito pura. Em alternativa, um opioide analgésico análogo do fentanil. (N. da T.)
15 À letra «lama mexicana», é um termo regional para a heroína do México, que apresenta uma cor mais escura. (N. da T.)
16 Obra da autoria do escritor inglês William Golding (1911-1983). O livro retrata o retorno à selvajaria de um grupo de crianças inglesas de um colégio interno, que fica preso numa ilha deserta sem a supervisão de adultos, após a queda do avião que as transportava para longe da guerra. (N. da T.)
17 À letra Eles Queimam os Cardos, é um romance do escritor turco Yasar Kemal (1923-2015) publicado em 1969. (N. da T.)
18 Complexo de piscinas, adjacente ao Parque de Esculturas Vigeland, com duas piscinas de cinquenta metros, uma das quais infantil, escorregas e prancha de mergulho. Foi inaugurado em 1956. (N. da T.)
15
–E em que posso ser-lhe útil hoje, cavalheiro? – perguntou Tor Jonasson.
Normalmente, era assim que se dirigia aos clientes. Tor tinha vinte anos, a média da idade dos seus clientes era de vinte e cinco e as mercadorias na loja eram escoadas em menos de cinco. E era por esse motivo que a forma de tratamento tinha piada, na opinião de Tor Jonasson. Todavia, tudo levava a crer que o seu sentido de humor tivesse passado ao lado do cliente; o capuz do sujeito estava tão descido sobre o rosto que este acabava por ficar completamente oculto. Brotaram palavras do país das sombras.
– Quero um daqueles telemóveis que não identificam quem faz as chamadas.
Um traficante de droga. Claro. Eram os únicos clientes que pediam telemóveis desses.
– Neste iPhone, é possível bloquear a identificação do seu número nas chamadas – explicou Tor e retirou um telemóvel branco de uma prateleira na lojinha. – O seu número não surgirá no visor da pessoa a quem está a ligar. É um excelente contrato.
O potencial cliente apoiou-se no outro pé. Compôs a tira do saco desportivo que levava ao ombro. Tor decidiu ficar de olho nele enquanto não estivesse bem longe da loja.
– Não, não quero um telemóvel com contrato – disse o sujeito. – Quero um que não possa ser localizado. Nem sequer pela operadora.
Nem pela Polícia, pensou Tor Jonasson.
– Está a pensar num telemóvel descartável. Como o que usam em The Wire19 – disse em voz alta.
– Desculpe?
– The Wire. A série televisiva. Assim, a Brigada Antidroga não consegue localizar o dono do telemóvel.
Tor apercebeu-se de que o seu cliente não fazia a mais pálida ideia do que ele estava a falar. Meu Deus. Um traficante de droga que pedia desculpa e nunca vira The Wire.
– Isso é nos Estados Unidos; nós não temos desses na Noruega. Desde 2005, tem de mostrar a sua identificação se quiser comprar um telemóvel com um cartão SIM pré-pago. Tem de ficar registado em nome de alguém.
– Alguém?
– Sim, precisa de ficar registado no seu nome. Ou no nome dos seus pais se, por exemplo, fosse comprar-lhes um telemóvel.
– Muito bem – respondeu o homem. – Dê-me o telemóvel mais barato que tiver. Com um cartão SIM pré-pago.
– Com certeza – disse o empregado de balcão, omitindo o cavalheiro, voltando a guardar o iPhone e pegando num telemóvel mais pequeno. – Este não é o mais barato de todos, mas tem acesso à Internet. São mil e duzentas coroas com o cartão SIM.
– Acesso à Internet?
Tor voltou a olhar para o homem. Não devia ser mais velho do que ele, mas parecia genuinamente baralhado. Com dois dedos, Tor puxou para trás da orelha o cabelo que lhe dava pelos ombros. Era um maneirismo que adotara depois de ver a primeira temporada de Sons of Anarchy20.
– O cartão SIM permite-lhe navegar na Net a partir do seu telemóvel.
– Não posso fazer isso num cibercafé?
Tor Jonasson riu-se. Vendo bem, afinal sempre tinham em comum um certo sentido de humor.
– O meu chefe ainda há pouco me disse que, há uns anos, esta loja era um cibercafé. Provavelmente, o último em Oslo...
O homem pareceu indeciso. Depois anuiu.
– Vou levá-lo. – Colocou um monte de notas em cima do balcão.
Tor pegou nelas. As notas estavam rígidas e empoeiradas como se tivessem ficado guardadas por muito tempo.
– Como disse, preciso de um documento de identificação.
O homem retirou um cartão de identificação do bolso e entregou-o. Tor olhou para ele e percebeu que se enganara. Redondamente. Era impossível este homem ser um traficante de droga; muito pelo contrário. Introduziu o nome dele no computador. Helge Sørensen. Encontrou a morada. Devolveu o cartão e o troco ao homem que sabia agora ser um guarda prisional.
– Vende pilhas para isto? – perguntou o homem, segurando um aparelhómetro prateado.
– O que é? – perguntou Tor.
– É um Discman – replicou o homem. – Vejo que vende auscultadores para ele.
Tor olhava apático para a quantidade de auscultadores e auriculares expostos por cima dos iPods.
– Vendo?
Tor abriu a parte de trás da peça de museu e tirou as pilhas velhas. Encontrou duas Sanyo AA recarregáveis que introduziu e premiu play. Ouviu-se um zumbido estridente vindo dos auscultadores.
– Estas pilhas são recarregáveis.
– Portanto não vão morrer como as antigas?
– Vão, sim, mas depois ressuscitam dos mortos.
Tor julgou detetar um sorriso nas sombras. De seguida, o homem empurrou para trás o capuz e colocou os auriculares.
– Depeche Mode – disse, com um sorriso rasgado e pagou as pilhas. Depois, deu meia-volta e abandonou a loja.
Tor Jonasson apercebeu-se de que ficara surpreendido com o rosto atraente debaixo do capuz. Foi ter com um novo cliente e perguntou em que podia então ser útil ao cavalheiro. Somente depois do intervalo para o almoço se apercebeu do motivo pelo qual o rosto despertara a sua atenção. Não pelo facto de ser atraente. Mas porque não era nada parecido com a fotografia no cartão de identificação.
Afinal, o que tornava um rosto atraente? Martha interrogou-se, enquanto olhava para o jovem por detrás do balcão da receção. Talvez fossem apenas as palavras que ele proferira. A maioria das pessoas chegava à receção porque queria uma sanduíche, um café ou conversar sobre problemas reais ou imaginários. E, se não fosse isso, então aparecia com um recipiente cheio de seringas usadas que tinha de entregar em troca de novas esterilizadas. Todavia, este novo residente acabara de lhe dizer que estivera a refletir sobre a pergunta dela desde a conversa preliminar: se ele tinha planos para o futuro? E, sim, agora tinha. Ia procurar emprego. No entanto, para isso, necessitava de um aspeto profissional, de um fato. E vira uns no depósito de roupa. Seria possível emprestarem-lhe...
– Claro – dissera Martha, levantando-se e indicando-lhe o caminho. Há muito tempo que não sentia os seus passos tão leves. Bem, podia tratar-se apenas de um capricho, de um projeto que ele podia abandonar ao primeiro obstáculo, mas, pelo menos, era alguma coisa, era esperança, uma interrupção temporária no implacável trânsito de sentido único até ao fundo do poço.
Sentou-se numa cadeira junto à porta do armazém enquanto o via colocar as calças do fato diante de um espelho encostado à parede. Aquele era o terceiro fato que ele experimentava. Uma vez, um grupo de políticos da Câmara Municipal fizera uma visita ao centro. Tinham vindo assegurar-se de que as condições de vida nos centros residenciais de Oslo eram mais do que apenas adequadas. No armazém, um deles perguntara por que motivo o centro tinha tantos fatos em stock, dando a entender que este género de vestuário destoava completamente do tipo de clientela. Os políticos tinham-se mostrado preocupados até Martha responder sorrindo:
– Porque os nossos residentes vão a muito mais funerais do que os senhores.
O jovem era magricela, mas não tão frágil quanto ela inicialmente julgara. Viu-lhe músculos sob a pele quando ele ergueu os braços para vestir uma das camisas que ela lhe arranjara. Não tinha tatuagens, no entanto, a pele pálida estava cheia de marcas de agulha. Na parte de trás dos joelhos, no interior das coxas, nas pernas, de lado no pescoço.
Ele vestiu o casaco e olhou-se antes de se virar para ela. Era um fato às riscas que o anterior dono mal usara antes de passar de moda e – num gesto de boa vontade e bom gosto – doara-o ao centro, juntamente com o resto do guarda-roupa do ano anterior. Ficava apenas um bocadinho grande ao jovem.
– Perfeito – disse ela, com uma gargalhada e batendo as palmas das mãos.
Ele sorriu. E quando o sorriso lhe chegou aos olhos foi como se tivessem ligado um aquecedor elétrico. Era o tipo de sorriso que amolecia os músculos e acalmava os sentimentos feridos. Um sorriso que alguém que sofria de fadiga de compaixão necessitava desesperadamente. Porém – e o pensamento só lhe ocorrera naquele momento – ela não se podia permitir. Libertou-se do olhar dele e mirou-o de cima a baixo.
– É uma pena não termos uns sapatos elegantes para ti.
– Estes estão ótimos.
Bateu com o calcanhar do ténis azul no chão.
Ela sorriu, porém, desta vez sem erguer o olhar.
– E precisas de cortar o cabelo. Vem daí.
Ela seguiu-o pelas escadas acima até à receção, mandou-o sentar-se numa cadeira, cobriu-o com duas toalhas e foi buscar uma tesoura. Molhou-lhe o cabelo com água da torneira da cozinha e penteou-o com o seu próprio pente. E, enquanto as outras raparigas na receção faziam comentários e sugestões, os tufos de cabelo iam caindo no chão. Dois residentes junto ao balcão da receção queixaram-se de que nunca lhes fora oferecido um corte de cabelo, e queriam saber por que motivo o recém-chegado tinha direito a tratamento especial.
Martha ignorou-os e concentrou-se na tarefa que tinha em mãos.
– Onde tencionas ir procurar trabalho? – perguntou ela enquanto olhava para os cabelos brancos finos na nuca dele. Precisava de uma máquina de barbear elétrica. Ou de uma gilete.
– Tenho alguns contactos, mas não sei onde moram, por isso pensei ir procurá-los na lista telefónica.
– Na lista telefónica? – escarneceu uma das raparigas. – Podes procurá-los na Net.
– Eu posso fazer isso? – perguntou o jovem.
– Em que planeta é que tu vives?! – Ela soltou uma gargalhada. Um pouco ruidosa de mais. E os olhos brilharam, apercebeu-se Martha.
– Comprei um telemóvel com Internet – disse ele. – Mas não sei como...
– Eu mostro-te!
A rapariga aproximou-se dele e estendeu a mão.
Ele tirou o telemóvel e entregou-lho. Ela premiu as teclas com natural familiaridade.
– É só pesquisá-los no Google.
– Qual é o nome?
– O nome?
– Sim. O nome deles. Por exemplo, eu chamo-me Maria.
Martha lançou-lhe um discreto olhar de advertência. A rapariga era jovem e começara a trabalhar com eles. Tirara o curso de Ciências Sociais, mas tinha pouca experiência prática. O tipo de experiência que permite saber exatamente onde traçar a linha invisível que separa a preocupação profissional da confraternização com os residentes.
– Iversen – disse ele.
– Assim vão aparecer demasiados resultados. Sabes o nome próprio deles?
– Mostra-me apenas como se procura que eu trato do resto – disse o jovem.
– Está bem. – Maria premiu alguns botões e devolveu-lhe o telemóvel. – Escreve ali o nome deles.
– Muitíssimo obrigado.
Martha terminara, só faltavam os cabelos finos no pescoço e ela lembrara-se de que encontrara uma lâmina colada a uma janela num quarto que arrumara ao início daquela manhã. Ela colocara a lâmina – que fora sem dúvida usada para separar coca para snifar – em cima da bancada da cozinha para poder deitá-la com segurança no próximo recipiente para seringas usadas que chegasse. Acendeu um fósforo e aproximou a lâmina da chama durante uns segundos. Depois, lavou-a com água corrente e segurou-a entre o polegar e o dedo indicador.
– Agora vais ter de ficar completamente imóvel – disse ela.
– Hum – respondeu o jovem, que estava entretido a carregar nas teclas do seu telemóvel.
Ela estremeceu quando viu a fina lâmina de aço deslizar na pele macia do pescoço dele. Viu os cabelos serem cortados e caírem. O pensamento fez-se anunciar espontaneamente: não era preciso muito. Tão pouco separava a vida da morte. A felicidade da tragédia. O que era importante do que não interessava. Terminou e espreitou por cima do ombro dele. Viu o nome que ele introduzira, os traços brancos do símbolo de pesquisa a girarem.
– Já está – disse ela.
Ele inclinou a cabeça para trás e olhou para ela.
– Obrigado.
Ela pegou nas toalhas e dirigiu-se rapidamente à lavandaria para não espalhar os cabelos cortados por todo o lado.
Johnny Puma estava deitado no escuro, com o rosto virado para a parede, quando ouviu o seu inimigo de quarto entrar e fechar silenciosamente a porta. Caminhava em bicos de pés. No entanto, Johnny estava na retranca. Se tentasse assaltar-lhe o esconderijo, o tipo ia provar o punho de ferro de Puma.
Todavia, o seu inimigo de quarto não fez qualquer menção de se aproximar dele; pelo contrário, Johnny ouviu a porta do roupeiro abrir-se.
Virou-se na cama. Era o roupeiro do seu inimigo de quarto. Não tinha importância; Johnny calculava que o tipo já lhe devia ter revistado o roupeiro enquanto dormia e descobrira que ele não guardava ali nada de valor.
Um raio de sol entrava por entre as cortinas e incidia no jovem. Puma estremeceu.
O rapaz tirara algo de um saco de desporto vermelho e, naquele momento, Johnny conseguia ver o que era. O rapaz introduziu o objeto na caixa vazia dos ténis que colocou depois na prateleira superior.
Quando fechou o roupeiro e se virou, Johnny fechou rapidamente os olhos.
Raios, pensou. E certificou-se de que mantinha os olhos fechados. Contudo, sabia que não ia conseguir dormir.
Markus bocejou. Encostou os olhos aos binóculos e observou a Lua que pairava sobre a casa amarela. De seguida, apontou os binóculos à própria casa. Estava completamente silenciosa naquele momento. Não acontecera mais nada. Iria o filho regressar? Markus esperava que sim. Talvez ele conseguisse descobrir o que queria fazer com ela, a «coisa velha» que estivera dentro da gaveta, reluzindo, cheirando a óleo e metal, e que podia ser aquela que o pai usara quando...
Markus voltou a bocejar. Tinha sido um dia repleto de acontecimentos. Sabia que naquela noite ia dormir como uma pedra.
19 Série de televisão norte-americana criada pelo escritor e repórter policial David Simon e transmitida pela HBO nos Estados Unidos entre 2002 e 2008. (N. da T.)
20 Série dramática de televisão norte-americana, criada por Kurt Sutter, sobre a vida de um clube de motociclistas, cuja ação decorre em Charming, uma cidade fictícia no norte da Califórnia. (N. da T.)
16
Agnete Iversen tinha quarenta e nove anos, no entanto, a avaliar pela pele lisa, os olhos vivos e a figura esbelta, aparentava trinta e cinco. Porém, a maioria das pessoas julgava-a mais velha devido ao cabelo grisalho, à maneira conservadora, clássica e intemporal como se vestia e ao seu discurso educado que quase raiava o antiquado. E, logicamente, à vida que a família Iversen levava lá em cima em Holmenkollåsen. Dava a impressão de pertencer a uma geração diferente, mais velha, em que Agnete era a dona de casa com duas empregadas domésticas que a ajudavam a cuidar do lar e do jardim, para além de atenderem a qualquer necessidade da própria Agnete, do marido Iver e do filho Iver Júnior.
Mesmo em comparação com as outras casas imponentes do bairro, a dos dos Iversen era impressionante. Não obstante, as tarefas domésticas ainda conseguiam ser razoavelmente exequíveis, pelo que os empregados (ou «o pessoal» como Iver Júnior gostava de se lhes referir, com uma pontinha de sarcasmo, desde que concluíra os exames finais e adquirira uma nova estrutura de referência mais social-democrata) não começavam a trabalhar antes do meio-dia. Significava isto que Agnete Iversen podia ser a primeira pessoa a levantar-se, ir dar um passeio de manhãzinha pela floresta que delimitava a propriedade deles e apanhar um ramo de margaridas silvestres antes de preparar o pequeno-almoço para os seus dois homens. Sentava-se com a sua chávena de chá enquanto os via devorar a refeição saudável e nutritiva que lhes preparara como começo de um dia de trabalho longo e exigente. Quando eles acabavam de comer e Iver Júnior lhe agradecia a refeição com um aperto de mão como era de tradição na família Iversen há já várias gerações, ela levantava a mesa e enxugava as mãos a um avental branco que não tardaria a colocar no cesto da roupa suja. Depois, seguia-os até aos degraus da frente, dava um beijo na face a cada um e ficava a vê-los entrar no velho Mercedes bem conservado na garagem dupla e arrancar em direção ao sol radioso. Iver Júnior passava as férias escolares na empresa que era propriedade da família, na esperança de que isso lhe ensinasse o significado do trabalho árduo, que nada é de graça e a perceber que controlar a fortuna familiar acarreta tantas obrigações como privilégios.
A gravilha no acesso fez barulho quando pai e filho subiram até à rua enquanto ela lhes acenava dos degraus. E, se lhe dissessem que toda aquela cena parecia um anúncio da década de 1950, tinha-se rido, concordado com eles e esquecido praticamente o assunto. Porque Agnete Iversen vivia a vida que queria. Passava os dias a cuidar dos dois homens que amava para que, por sua vez, eles conseguissem administrar os bens tendo em conta o que era melhor para a família e a sociedade; haveria algo mais gratificante?
Do rádio da cozinha chegou-lhe a voz do locutor que falava de uma subida a pique do número de overdoses fatais em Oslo, de um aumento da prostituição e da evasão de um recluso que andava a monte há dois dias. Existiam tantos problemas no mundo abaixo dela. Tantas coisas que não funcionavam, a que faltavam o equilíbrio e a ordem pelos quais se devia sempre lutar. E, enquanto estava ali a contemplar a harmonia perfeita da sua própria vida – a sua família, a sua casa, este dia – apercebeu-se de que o portão lateral na sebe bem aparada com dois metros de altura, que era usado sobretudo pelo pessoal doméstico, se abrira.
Ergueu a mão para proteger os olhos do sol.
O rapaz que avançava pelo caminho estreito de lajes parecia ser da mesma idade que Iver Júnior e, a princípio, pensou que pudesse ser um amigo dele. Alisou o avental. No entanto, quando ele se aproximou, apercebeu-se de que provavelmente era uns anos mais velho do que o filho e vestia roupas que nem Iver Júnior nem os amigos alguma vez usariam: um fato castanho às riscas fora de moda e um par de ténis azuis. Trazia um saco vermelho de desporto ao ombro e Agnete Iversen perguntou-se se seria das Testemunhas de Jeová, antes de se lembrar de que elas andavam sempre aos pares. Tão-pouco tinha o ar de um vendedor porta a porta. Chegara ao fundo dos degraus.
– Em que posso ser-lhe útil? – disse ela simpaticamente.
– É aqui que vive a família Iversen?
– É, sim. Mas se quer falar com o Iver Júnior ou com o meu marido, perdeu-os por pouco. – Apontou para lá do jardim na direção da rua.
O rapaz anuiu, levou a mão ao saco de desporto e retirou de lá algo. Apontou-lho enquanto recuava um passo para a esquerda. Agnete nunca vivenciara nada de semelhante, não na vida real. Contudo, não havia qualquer problema com a sua visão, nunca houvera, toda a família via em perfeitas condições. Por conseguinte, nem por um momento duvidou dos seus olhos, apenas ficou boquiaberta e recuou automaticamente um passo na direção da porta aberta atrás de si.
Era uma pistola.
E continuou a recuar enquanto fitava o rapaz, porém não conseguia captar o olhar dele por detrás da arma.
Ouviu-se um estrondo e ela teve a sensação de que alguém lhe dera um murro, um empurrão com força no peito e continuou a deslocar-se, cambaleando enquanto transpunha a porta, entorpecida e sem controlo dos seus membros e, no entanto, permaneceu de pé na entrada; estendeu os braços numa tentativa de recuperar o equilíbrio e sentiu a sua mão bater num dos quadros na parede. Só caiu quando se precipitou pela porta da cozinha e mal se apercebeu de que batera com a cabeça na bancada levando consigo uma jarra de vidro que estava lá em cima. Porém, quando ficou estendida com a cabeça assente na última gaveta e o pescoço curvado, pelo que olhava para si própria, viu as flores. As margaridas silvestres espalhadas por entre o vidro partido. E algo que parecia uma rosa vermelha a desabrochar no avental branco. Olhou na direção da porta da frente. Viu a silhueta da cabeça do rapaz lá fora, viu-o virar-se na direção dos áceres do lado esquerdo do caminho lajeado. A seguir, curvou-se e desapareceu. E ela pediu a Deus para que assim fosse.
Tentou levantar-se, mas não conseguia mexer-se; era como se o corpo dela tivesse sido desligado do cérebro. Fechou os olhos e registou uma sensação desagradável, um tipo de dor como nunca tivera antes. Invadia todo o seu corpo como se estivesse prestes a abrir-se ao meio; simultaneamente, porém, estava entorpecido, quase distante. O noticiário terminara; passavam de novo música clássica. Schubert. Abends unter der Linde21.
Ouviu o som de passos suaves.
Ténis no chão de pedra.
Abriu os olhos.
O rapaz vinha na sua direção, embora o olhar dele estivesse focado em algo que trazia preso entre os dedos. Um cartucho de bala; vira-os quando a família ia caçar no outono na cabana que tinham em Hardangervidda. Ele guardou-o dentro do saco vermelho, tirou um par de luvas de borracha amarelas e uma toalha de rosto. Acocorou-se, calçou as luvas e limpou algo do chão. Sangue. O sangue dela. Depois esfregou as solas dos ténis com a toalha. Agnete apercebeu-se de que ele estava a eliminar as suas pegadas e a limpar os ténis. Como teria feito um assassino profissional. Alguém que não queria deixar ficar quaisquer provas. Nem quaisquer testemunhas. Ela devia sentir medo. No entanto, não sentia, não sentia absolutamente nada – apenas conseguia observar, registar, raciocinar.
Ele passou por cima dela e regressou ao hall, às casas de banho e aos quartos. Deixou a porta aberta. Agnete conseguiu virar a cabeça. O rapaz abrira a sua mala, que ela deixara em cima da cama – tencionava ir à cidade comprar uma saia no Ferner Jacobsen. Ele abriu o porta-moedas, tirou o dinheiro e deitou fora tudo o mais. Dirigiu-se à cómoda, abriu a primeira gaveta e depois a segunda, onde ela sabia que ele ia encontrar o guarda-joias. Os brincos de pérola belos e de valor inestimável que herdara da avó. Bem, se quiséssemos ser rigorosos, não eram inestimáveis; o marido mandara avaliá-los:
280 000 coroas.
Ouviu o som das joias a caírem no saco de desporto. Ele reapareceu trazendo na mão as escovas de dentes dela, de Iver e de Iver Júnior. Devia ser extremamente pobre ou muito perturbado, ou ambas as coisas. Aproximou-se dela e debruçou-se. Pousou-lhe a mão no ombro.
– Dói?
Ela conseguiu abanar a cabeça. Não ia dar-lhe essa satisfação.
Ele deslocou a mão e ela sentiu a luva de borracha no pescoço. O polegar e o indicador dele fizeram-lhe pressão na artéria. Preparava-se para a estrangular? Não, ele não fazia muita pressão.
– O teu coração vai parar de bater em breve – disse ele.
Depois, ergueu-se e encaminhou-se para a porta da frente. Limpou o puxador com a toalha de rosto. Fechou a porta ao sair. A seguir, ela ouviu o portão do jardim fechar-se. Depois, Agnete Iversen sentiu-o chegar. O frio. Começou pelos pés e pelas mãos. Estendeu-se à cabeça. Ao cimo do couro cabeludo. Foi abrindo caminho de todos os lados em direção ao coração. E seguiu-se a escuridão.
Sara olhou para o homem que entrara no metro na Estação de Holmenkollen. Sentara-se na outra carruagem, aquela de onde ela acabara de se mudar quando em Voksenlia tinham entrado três jovens com bonés de beisebol com a pala para trás. Durante as férias de verão havia poucas pessoas nos comboios assim que passava a hora de ponta matinal, por isso ela era a única passageira. E agora eles tinham começado também a importuná-lo. Ouviu o mais pequeno deles, que era sem dúvida o líder, chamar falhado ao homem, gozar com os ténis dele, mandá-lo sair da carruagem deles, cuspir para o chão diante dele. Uns estúpidos que ambicionavam ser gangsters. Naquele momento, um deles, um rapaz louro bem-parecido, provavelmente um puto rico, sacou de uma navalha de ponta e mola. Santo Deus, eles iam mesmo...? O rapaz agitava a mão diante do homem. Por pouco Sara não gritou. Irromperam gargalhadas na outra carruagem. Ele tinha cravado a navalha no banco entre os joelhos do homem. O líder disse qualquer coisa, deu cinco segundos ao homem para sair. Este levantou-se. Por momentos, pareceu estar a pensar ripostar. Sim, de facto chegou a fazê-lo. Mas, depois, aproximou o saco vermelho de desporto do corpo e mudou para a carruagem dela.
– Cabrão cobardolas! – gritaram nas costas dele, em norueguês da MTV. Depois desataram às gargalhadas.
No comboio restavam somente ela, ele e os três jovens. O homem estacou junto à porta de comunicação entre as duas carruagens, equilibrou-se por uns segundos e os seus olhos cruzaram-se. E, apesar de ela não conseguir ver exatamente o medo nos olhos dele, sabia que ele estava lá. O medo dos fracos e dos degenerados que adiam sempre, esgueiram-se furtivamente e cedem terreno a quem quer que mostre os dentes e ameace com violência física. Sara desprezava-o. Desprezava a fraqueza dele. E a bondade bem-intencionada de que ele indubitavelmente se rodeava. De certa forma, desejou que lhe tivessem dado uma tareia. Ensinado a odiar um pouco. E desejou que ele visse o desprezo nos olhos dela. E que ele se contorcesse, revirasse no anzol.
No entanto, ele sorriu-lhe, murmurou um discreto «olá», sentou-se duas filas adiante e olhou com ar sonhador pela janela como se não tivesse acontecido nada. Santo Deus, em que tipo de pessoas nos tornámos? Num bando de velhas patéticas que não têm sequer a decência de sentir vergonha de si próprias. Sentiu-se bastante tentada a cuspir para o chão.
21 Noites sob as Tílias. (N. da T.)
17
–E dizem que a Noruega não tem uma classe alta – observou Simon Kefas enquanto segurava a fita branca e laranja do cordão policial para que Kari Adel pudesse passar po baixo dela.
Um arquejante agente da Polícia fardado, cuja testa reluzia de suor, barrou-lhes o caminho defronte da garagem dupla. Eles mostraram-lhe as identificações; ele verificou as fotografias e pediu a Simon que tirasse os óculos de sol.
– Quem a encontrou? – perguntou Simon, semicerrando os olhos por causa do sol forte.
– Os funcionários da limpeza – disse o polícia. – Chegaram por volta do meio-dia e ligaram para o serviço de urgência.
– Alguma testemunha que tivesse visto ou ouvido algo?
– Ninguém viu nada – disse o polícia. – Mas falámos com uma vizinha, que afirma ter ouvido um estrondo forte. A princípio, julgou que pudesse ter sido um pneu a rebentar. Nunca reconheceriam tiros de pistola num bairro como este.
– Obrigado – disse Simon, voltando a colocar os óculos de sol e subindo os degraus à frente de Kari até junto de um ACC de fato-macaco branco que examinava a porta da rua à maneira da velha guarda, com um pincel de cerdas pretas. Bandeirinhas assinalavam o caminho que o ACC entretanto limpara e que conduzia diretamente ao corpo que jazia no chão da cozinha. Pela janela entrava um raio de sol, que se estendia pelo chão de pedra e cintilava nas poças de água e no vidro partido à volta das margaridas silvestres. Um homem que vestia um fato estava acocorado ao lado do corpo e conferenciava com o médico-legista que Simon reconhecera.
– Desculpe – disse Simon e o homem de fato ergueu o olhar. O cabelo dele, que reluzia com vários produtos diferentes, e as patilhas estreitas e cuidadosamente penteadas, levaram Simon a supor que fosse italiano. – Quem é o senhor?
– Podia perguntar-lhe o mesmo – respondeu o homem, sem fazer menção de se levantar. Simon calculou que andasse pelos trinta e poucos anos.
– Inspetor-chefe Kefas, Homicídios.
– Prazer em conhecê-lo. Åsmund Bjørnstad, DI22 na Kripos. Parece que não o informaram de que somos nós que vamos ficar com este caso.
– E quem o afirma?
– O seu próprio chefe, por sinal.
– O superintendente chefe?
O enfarpelado abanou a cabeça e apontou para o teto. Simon reparou nas unhas de Bjørnstad. Só podiam ter sido arranjadas por uma manicura.
– O comissário?
Bjørnstad anuiu.
– Ele contactou a Kripos e informou-nos de que também podíamos vir imediatamente para aqui.
– Porquê?
– Calculo que terá pensado que, mais cedo ou mais tarde, vocês iriam acabar por nos pedir ajuda.
– E, nessa altura, vocês entravam por aqui dentro, como fizeram agora, e tomavam conta do caso?
Åsmund Bjørnstad esboçou um breve sorriso.
– Oiça, a decisão não partiu de mim. Mas sempre que a Kripos é chamada a colaborar numa investigação de homicídio, nós impomos sempre a condição de que nos seja atribuída a responsabilidade geral na investigação, tanto tática como técnica.
Simon anuiu. Estava perfeitamente ciente disso; já não era a primeira vez que a Brigada de Homicídios da Polícia de Oslo e a Kripos, Unidade Central de Investigação Criminal, pisavam os calos uma à outra. E ele sabia que a sua atitude deveria ser de dar graças por ter menos um caso para resolver, voltar para o seu gabinete e concentrar-se na investigação de Vollan.
– Bom, já que aqui estamos, podíamos dar uma vista de olhos – disse Simon.
– Porquê?
Bjørnstad não fez o mínimo esforço para ocultar a sua irritação.
– Tenho a certeza de que está tudo sob controlo, Bjørnstad, mas vim acompanhado de uma investigadora recentemente formada; ela só teria a beneficiar se visse como examinamos um local de crime na vida real. Como é que vai ser?
O investigador da Kripos olhou com relutância para Kari. De seguida, encolheu os ombros.
– Ótimo – disse Simon e acocorou-se.
Somente naquele instante olhou para o corpo. Evitara deliberadamente fazê-lo e esperara pelo momento de poder dedicar-lhe toda a sua atenção. Só se tem uma oportunidade de obter as primeiras impressões. O círculo quase simétrico de sangue no meio do avental branco recordou-lhe vagamente a bandeira nacional do Japão. Para além do facto de o Sol já se ter posto e não ir voltar a nascer para a mulher que fitava o teto com aquela expressão sem vida a que ele nunca se iria acostumar. Simon concluíra que a expressão era uma combinação de um corpo humano e da expressão totalmente desumanizada, da ausência de vitalidade, um ser humano reduzido a um objeto. Tinham-no informado de que o nome da vítima era Agnete Iversen. Certeza, só tinha a de que ela fora alvejada no tórax. Um único tiro ou, pelo menos, assim parecia. Olhou para as mãos dela. Não tinha nenhuma unha partida e as mãos não exibiam qualquer sinal de luta. O verniz no dedo médio da mão esquerda dela estava lascado, mas isso podia ter sucedido quando caíra.
– Algum sinal de arrombamento? – perguntou Simon e fez sinal ao médico-legista para que virasse o corpo.
Bjørnstad abanou a cabeça.
– A porta podia ter ficado no trinco. O marido e o filho da vítima tinham acabado de sair para o trabalho. Também não encontrámos quaisquer impressões digitais no puxador da porta.
– Nem uma?
Simon deixou que o seu olhar deslizasse pela extremidade da bancada.
– Não. Como pode ver, ela tinha muito orgulho na casa.
Simon examinou o ferimento de saída nas costas da vítima.
– Atravessou-a de um lado ao outro. Parece que a bala apanhou apenas tecido mole.
O médico-legista comprimiu os lábios e esticou-os para fora enquanto encolhia os ombros, um gesto que disse a Simon que a sua conjetura não era despropositada.
– E a bala? – inquiriu Simon, olhando para a parede por cima da bancada.
Relutante, Åsmund Bjørnstad apontou lá para o alto.
– Obrigado – disse Simon. – E o invólucro?
– Ainda não foi encontrado – disse o investigador e exibiu um telemóvel de capa dourada.
– Estou a ver. E qual é a teoria preliminar da Kripos sobre o que aconteceu aqui?
– Teoria? – Bjørnstad sorriu, encostando o telemóvel ao ouvido. – Mas é óbvio. O ladrão entrou, alvejou a vítima aqui, levou os objetos de valor que encontrou e fugiu do local. Um assalto planeado que acabou com uma morte não planeada, parece-me. Talvez ela tivesse oferecido resistência ou começasse a gritar.
– E como pensa que...
Bjørnstad ergueu uma mão para indicar que tinham atendido a sua chamada.
– Estou? Sou eu. Consegues arranjar-me uma lista de pessoas que estejam em liberdade mas tenham sido condenadas por assalto violento? Faz uma verificação rápida e vê se existe alguém em Oslo. Dá prioridade aos que usaram armas de fogo. Obrigado. – Guardou o telemóvel no bolso do casaco. – Oiça, meu velho, nós temos imenso que fazer aqui, por isso vamos ter de lhe pedir que...
– Tudo bem – disse Simon, exibindo o seu sorriso mais rasgado.
– Mas se nós prometermos não vos atrapalhar, não poderíamos dar primeiro uma vista de olhos?
O investigador da Kripos olhou desconfiado para o seu colega mais velho.
– E prometemos também não transpor as bandeirinhas.
Bjørnstad aceitou o pedido dele com graciosa benevolência.
– Ele encontrou aquilo que procurava – observou Kari quando estavam defronte da cama assente na carpete, de parede a parede, no quarto maior. Sobre a colcha estava uma mala de mão, um porta-moedas aberto e um guarda-joias forrado de veludo vermelho, também vazios.
– Talvez – disse Simon, ignorando a bandeira e acocorando-se ao lado da cama.
– Ele devia estar mais ou menos aqui, de pé, quando esvaziou a mala e o guarda-joias, não concorda?
– Sim, já que está tudo em cima da cama.
Simon observou a carpete. Preparava-se para se levantar de novo quando estacou a meio do movimento e se curvou.
– O que é?
– Sangue – disse Simon.
– Ele sangrou na carpete?
– É muito improvável. É uma marca retangular, por isso, provavelmente uma pegada. Imagine que está a assaltar uma casa numa zona abastada como esta: onde lhe parece que está o cofre?
Kari apontou para o roupeiro.
– Precisamente – disse Simon, levantando-se e abrindo a porta do roupeiro.
O cofre situava-se a meio da parede e era do tamanho de um forno micro-ondas. Simon rodou o manípulo para baixo. Estava trancado.
– A menos que o assaltante se desse ao trabalho de fechar o cofre depois, algo que não faria sentido uma vez que ele descartou o guarda-joias e a mala, ele não lhe tocou – disse Simon. – Vamos ver se já acabavam de analisar o corpo.
Quando ia regressar à cozinha, Simon entrou na casa de banho. Reapareceu de semblante carregado.
– O que é? – perguntou Kari.
– Sabia que em França têm uma escova de dentes por cada quarenta habitantes?
– Isso é um mito e essas estatísticas são antigas – respondeu ela.
– Vendo bem, eu sou antigo – disse Simon. – Seja como for, a família Iversen não tem uma única escova de dentes.
Regressaram à cozinha onde o corpo de Agnete Iversen tinha sido temporariamente abandonado, permitindo a Simon examiná-lo à vontade. Olhou-lhe para as mãos e analisou de perto o ângulo dos ferimentos de entrada e saída. Levantou-se e pediu a Kari que se colocasse mesmo diante dos pés da vítima, de costas para a bancada.
– Peço de antemão desculpa – disse ele, vindo posicionar-se ao lado da colega, colocando um dedo entre os pequenos seios dela no mesmo local onde a bala entrara em Agnete Iversen e outro entre as omoplatas num local que correspondia ao ferimento de saída da vítima. Analisou o ângulo entre os dois pontos antes de deixar que o seu olhar se deslocasse até ao buraco de bala na parede. De seguida, curvou-se, pegou numa das margaridas silvestres, apoiou um joelho em cima da bancada, esticou-se e colocou a flor no buraco da bala.
– Vamos – disse ele, deslizando da bancada e atravessando o hall até à porta da frente. Deteve-se diante de um quadro que estava torto, aproximou-se mais e apontou para algo vermelho na extremidade da moldura.
– Sangue? – perguntou Kari.
– Verniz de unhas – disse Simon e assentou as costas da mão esquerda no quadro, olhando depois por cima do ombro para o corpo. De seguida, prosseguiu em direção à porta. Parou e acocorou-se junto ao limiar. Debruçou-se sobre um pedaço de terra que fora assinalado com uma bandeira.
– Não se atreva a tocar nisso! – exclamou uma voz atrás deles.
Olharam ambos para cima.
– Oh, és tu, Simon – disse o homem de branco e passou um dedo pelos lábios húmidos nas profundezas da sua barba ruiva.
– Olá, Nils. Bons olhos te vejam. Estão a tratar-te bem na Kripos?
O homem encolheu os ombros.
– Oh, pelos vistos, sim. Mas, provavelmente, estou tão velho e incapaz, que têm pena de mim.
– E estás?
– Se estou. – O técnico da cena de crime suspirou. – Hoje em dia, tem tudo a ver com ADN, Simon. ADN e esquemas de computador que pessoas como nós não entendem. Os tempos são outros.
– Não me parece que estejamos assim tão incapazes – disse Simon, observando o trinco da porta da frente. – Dá cumprimentos meus à tua mulher, Nils.
O homem barbudo permaneceu de pé.
– Continuo a não ter uma...
– Nesse caso, ao teu cão.
– O meu cão morreu, Simon.
– Bom, nesse caso vamos ter de saltar as amenidades, Nils – disse Simon e saiu. – Kari, conte até três e depois grite o mais alto que conseguir. Depois, vá até lá fora aos degraus e fique lá. Pode ser?
Ela anuiu e ele fechou a porta.
Kari olhou para Nils, que abanou a cabeça antes de se afastar. Depois gritou a plenos pulmões. Berrou a palavra «bola!» que era o que lhe tinham ensinado a gritar nas raras ocasiões em que, numa tacada de golfe, a bola vinha demasiado para a esquerda ou demasiado para a direita no final da trajetória.
De seguida abriu a porta.
Simon apontava-lhe o dedo indicador ao fundo dos degraus.
– Agora mexa-se – disse ele.
Ela assim fez e viu-o desviar-se ligeiramente para a esquerda e semicerrar um olho.
– Ele deve ter estado aqui de pé – afirmou Simon, continuando a apontar-lhe o indicador. Ela virou-se e viu a margarida silvestre branca na parede da cozinha.
Simon olhou para a direita. Aproximou-se dos áceres. Afastou-os. Kari apercebeu-se do que ele procurava. O invólucro.
– Ah – murmurou de si para si, pegou no telemóvel, aproximou-o do olho e ela ouviu o som do obturador da máquina fotográfica simulado digitalmente. Apanhou um pouco de terra do chão com o polegar e o indicador e espalhou-o. Depois regressou aos degraus para lhe mostrar a fotografia que tirara.
– Uma pegada – disse ela.
– Do assassino – disse ele.
– Oh?
– Bom, por hoje a escola terminou, Kefas.
Viraram-se os dois. Era Bjørnstad. Estava com cara de poucos amigos. Havia três ACC a seu lado, incluindo Nils da barba ruiva.
– Acho que terminámos – disse Bjørnstad, de pernas afastadas, enquanto cruzava os braços sobre o peito, bloqueando o caminho. – Encontrámos uma flor no meu buraco de bala, e isso é inadmissível. Por hoje basta.
Simon encolheu os ombros.
– Muito bem, vimos o suficiente para tirarmos as nossas conclusões. Boa sorte para descobrirem o vosso assassino, pessoal.
Bjørnstad escarneceu.
– Pelos vistos, estás a tentar impressionar aqui a tua pupila chamando-lhe um assassínio. – Virou-se para Kari. – Lamento que a vida real não seja tão emocionante quanto aqui o velhadas gostaria que fosse. É apenas um vulgar homicídio.
– Estás enganado – retorquiu Simon.
Bjørnstad assentou a mão na anca.
– Os meus pais ensinaram-me a respeitar os mais velhos. Vou dar-te dez segundos de respeito e depois quero-te daqui para fora.
Um dos ACC riu-se entre dentes.
– Que ricos pais – comentou Simon.
– Nove segundos.
– A vizinha disse que ouviu um tiro.
– E depois?
– Aqui, as propriedades são grandes e existe imenso espaço entre elas. E as casas têm bom isolamento. Era impossível a vizinha ter ouvido algo que conseguisse identificar como um tiro vindo de dentro de casa. Já do lado de fora...
Bjørnstad inclinou a cabeça para trás como se para observar Simon de outro ângulo.
– Aonde pretendes chegar?
– A senhora Iversen era quase da altura aqui da Kari. E o único ângulo que corresponde a ela estar de pé quando foi alvejada e o ferimento de entrada ser aqui... – apontou para o peito de Kari – ...e o ferimento de saída ser aqui nas costas dela, enquanto a bala se crava na parede onde coloquei a margarida silvestre, é que o atirador se encontrasse a um nível inferior ao dela, mas que estivessem ambos bem longe da parede da cozinha. Por outras palavras, a vítima encontrava-se aqui onde nós estamos neste momento, ao passo que o atirador estava ao fundo dos degraus nas lajes. Só assim é que a vizinha ouvia o tiro. Todavia, a vizinha não ouviu gritos nem ruídos antes do tiro, nada que indicasse agitação ou resistência, por isso o meu palpite é que aconteceu tudo rapidamente.
Bjørnstad não pôde deixar de lançar um olhar aos seus colegas. Mudou de posição.
– E depois ele arrastou-a lá para dentro, é isso que está a dizer?
Simon abanou a cabeça.
– Não, penso que ela caiu para trás.
– E o que o leva a pensar semelhante coisa?
– Tem razão quando afirma que a senhora Iversen tinha muito orgulho na sua casa. A única coisa que se encontra torta é aquele quadro ali. – Os outros viraram-se para verem para onde Simon apontava. – Além disso, há verniz na parte lateral da moldura do quadro mais próximo da porta. Isso quer dizer que ela lhe bateu enquanto cambaleava lá para dentro; corresponde ao verniz lascado no dedo médio esquerdo dela.
Bjørnstad abanou a cabeça.
– Se ela foi alvejada na entrada e recuou, deveriam existir manchas de sangue do ferimento de saída ao longo da entrada.
– E existiam – respondeu Simon –, mas o assassino limpou-as. Como referiu, e bem, não havia impressões digitais no puxador da porta. Nem sequer da família. Não porque Agnete Iversen tivesse começado a fazer limpezas a fundo segundos depois de o marido e o filho terem tocado no puxador ao saírem, mas porque o assassino não queria deixar-nos quaisquer provas. E tenho a certeza absoluta de que o motivo pelo qual ele limpou o sangue do chão foi porque o pisara e não queria deixar pegadas. Por isso, ele também limpou as solas dos sapatos.
– A sério? – perguntou Bjørnstad, continuando a inclinar a cabeça para trás, sem contudo sorrir já tão rasgadamente. – E deduziu isto tudo assim do nada?
– Quando limpamos as solas dos sapatos, não removemos o sangue que fica nos sulcos no padrão da sola – explicou Simon, olhando para o seu relógio de pulso. – Mas esse sangue acabará por sair, por exemplo, se estivermos em cima de um tapete espesso cujas fibras entram no padrão da sola e absorvem o sangue. Encontrará no quarto uma mancha de sangue retangular na carpete. Penso que o seu técnico de sangue concordará comigo, Bjørnstad.
No silêncio que se seguiu, Kari ouviu o som de um carro a ser mandado parar pelos agentes da Polícia mais ao cimo da rua. Ouviam-se vozes agitadas, uma delas pertencente a um jovem. O marido e o filho da vítima.
– Como queira – disse Bjørnstad, com forçada indiferença. – Vendo bem, não é relevante o local onde a vítima foi alvejada, isto foi um assalto que correu mal, não um assassínio. E parece que, não tarda, teremos aqui alguém que pode confirmar quais as peças que faltam no guarda-joias.
– As joias ainda vá – disse Simon – mas, se eu fosse o assaltante, tinha levado a Agnete Iversen lá para dentro e obrigava-a a mostrar-me onde estão guardados os verdadeiros objetos de valor. Obrigava-a a revelar o segredo do cofre que qualquer ladrão, por mais idiota que seja, sabe que uma casa como esta terá. No entanto, ele alvejou-a aqui mesmo, onde os vizinhos podiam ouvir. Não porque estivesse em pânico – a maneira como ele eliminou as provas mostra-nos que é insensível. Não, ele fá-lo porque sabe que não vai estar muito tempo na casa, que já terá partido há muito quando a Polícia chegar. Porque ele não veio aqui para roubar muita coisa, pois não? Apenas o suficiente para que um investigador inexperiente chegue rapidamente à conclusão de que se tratou de um assalto que deu para o torto sem prestar demasiada atenção ao verdadeiro motivo.
Simon tinha de admitir que lhe agradou o silêncio e a súbita cor no rosto de Bjørnstad. Lá no fundo, Simon Kefas era uma alma simples, mas não vingativa. Apesar da enorme tentação, poupou o seu jovem colega a uma última réplica: A escola acabou, Bjørnstad.
Com tempo e experiência, era sempre possível que Åsmund Bjørnstad viesse, um dia, a ser um bom investigador. A humildade também era algo que as pessoas boas tinham de aprender.
– Uma teoria muito divertida, Kefas – disse Bjørnstad. – Não vou esquecê-la. Mas o tempo está a passar e... – um breve sorriso – ...não seria melhor ir andando?
– Porque não lhe contou tudo? – perguntou Kari enquanto Simon manobrava cuidadosamente o carro pelas curvas apertadas na descida de Holmenkollåsen.
– Tudo? – disse Simon, fazendo-se de inocente. Kari não pôde deixar de rir-se. Simon estava a fazer o seu número de velho excêntrico.
– O senhor sabia que o invólucro caíra algures naquele canteiro. Não encontrou um invólucro, mas descobriu uma pegada. Que fotografou. E a terra nele correspondia à que estava na entrada?
– Correspondia.
– Nesse caso, porque não lhe forneceu essa informação?
– Porque ele é um investigador ambicioso cujo ego é maior do que o seu espírito de equipa, por isso, é preferível que ele o descubra por si próprio. Ficará mais motivado se sentir que estão a seguir o rasto à prova que foi encontrada por ele e não por mim, quando começarem a procurar um homem que calça o tamanho 43 e que apanhou um invólucro naquele canteiro de rosas.
Pararam num semáforo vermelho na Stasjonsveien. Kari reprimiu um bocejo.
– E como está tão por dentro da maneira de pensar de um investigador como o Bjørnstad?
Simon riu-se.
– É fácil. Eu já fui jovem e ambicioso.
– Mas a ambição não desaparece com o tempo?
– Uma parte dela, sim. – Simon sorriu. Um sorriso melancólico, pensou Kari.
– Foi por esse motivo que deixou de trabalhar no Departamento de Fraudes Graves?
– O que a leva a afirmar isso?
– O senhor pertencia à direção. Inspetor-chefe, responsável por uma grande equipa. Deixaram-no manter o título nos Homicídios, no entanto, a única pessoa por quem é responsável sou eu.
– Pois – respondeu Simon, atravessando o cruzamento e continuando em direção a Smestad. – Vencimento a mais, habilitações a mais, excedente. Ou quase.
– Afinal, o que aconteceu?
– Decerto não quer...
– Quero, sim.
Prosseguiram o trajeto em silêncio, o que Kari considerou ser-lhe vantajoso, por isso não abriu a boca. Mesmo assim, estavam quase a chegar à Majorstua quando Simon começou a falar.
– Eu tinha descoberto uma operação de lavagem de dinheiro. Estamos a falar de uma quantia avultada. Pessoas em altos cargos. As outras chefias pensaram que eu e a minha investigação representávamos um enorme risco. Que eu não tinha provas suficientes, que íamos meter-nos em sarilhos se prosseguíssemos a investigação e não conseguíssemos garantir uma condenação. Não estamos a falar de um criminoso vulgar, os suspeitos eram gente poderosa, pessoas que ripostariam usando o mesmíssimo sistema que a Polícia. Os meus colegas receavam que, ainda que ganhássemos, viéssemos a pagar mais tarde, que houvesse uma reação.
Outro silêncio. Que durou até chegarem ao Parque Frogner, altura em que Kari perdeu por completo a paciência.
– Portanto, eles correram consigo por ter aberto uma investigação polémica?
Simon abanou a cabeça.
– Eu tinha um problema. Jogo. Ou, para usar o termo técnico, ludomania. Comprava e vendia ações. Não muitas. No entanto, quando trabalhamos no Departamento de Fraudes Graves...
– ...temos acesso a informações privilegiadas.
– Eu nunca negociei ações sobre as quais tinha informações, mas não deixei de violar as regras. E eles descobriram, se isso serve de alguma coisa.
Kari anuiu. Avançavam sinuosamente em direção ao centro da cidade e ao Túnel Ibsen.
– E depois?
– Deixei de jogar. E também já não incomodo ninguém.
Novamente o sorriso triste, resignado.
Kari pensou nos planos que tinha para aquela noite. Ir ao ginásio. Jantar com os sogros. Uma visita a um apartamento no bairro de Fagerborg. E ouviu-se fazer a pergunta que devia ter brotado de outra parte, quase subconsciente, do seu cérebro:
– Por que motivo o assassino levou consigo o invólucro?
– Cada invólucro possui um número de série, embora raramente nos leve ao assassino – explicou Simon. – Ele pode ter receado que o invólucro contivesse impressões suas, mas julgo que este assassino decerto já teria pensado nisso antes, que convinha usar luvas quando carregasse a arma. Acho que podemos concluir que esta arma é relativamente recente, produzida nos últimos anos.
– Sim?
– De há dez anos para cá, passou a ser obrigatório os fabricantes de armas gravarem um número de série no percussor para que ele deixe uma espécie de impressão digital única quando bate no invólucro da bala. Quer isto dizer que, para identificarmos o dono só precisamos de um invólucro vazio e do Registo de Armas de Fogo.
Kari projetou o lábio inferior e anuiu lentamente.
– Muito bem, já entendi. Só não percebi por que motivo ele quis que parecesse um assalto.
– Tal como ele receia as provas no invólucro, também receia que, se soubermos qual o verdadeiro móbil, isso nos leve até ele.
– Bem, então é simples – disse Kari, apesar de estar efetivamente a pensar no anúncio do imóvel no Fagerborg. Referia que o apartamento tinha duas varandas, uma virada a leste, uma virada a oeste.
– Sim? – interpelou Simon.
– O marido – afirmou Kari. – Todos os maridos sabem que serão o principal suspeito, a menos que consigam fazer parecer que a mulher foi assassinada por outro motivo. Um assalto, por exemplo.
– Outro motivo para além de...?
– Ciúmes. Amor. Ódio. Há mais alguma coisa?
– Não – respondeu Simon. – Não há.
22 Detetive Inspetor. (N. da T.)
18
Ao início daquela tarde, caiu um aguaceiro em Oslo que mal chegou para arrefecer a cidade. E, quando o Sol abrasador abriu caminho através das camadas de nuvens, parecia querer compensar o tempo perdido, envolvendo a capital numa luz branca que fez com que o vapor se elevasse dos telhados e das ruas.
Quando Louis acordou, o Sol estava tão baixo no céu que os raios lhe feriram a vista. Entreabriu-os para o mundo. Para as pessoas e os carros que iam e vinham diante de si e da sua tigela de mendigo. Até há algum tempo, fora um negócio razoavelmente lucrativo, mas depois os ciganos romenos chegaram à Noruega. Uns quantos tornaram-se muitos. Que, por sua vez, se transformaram numa praga. Uma praga de gafanhotos que roubava, mendigava e trapaceava. E, à semelhança de todos os vermes, tinham de ser combatidos com o máximo possível de meios. Era a opinião simples de Louis sobre o assunto, que os mendigos noruegueses – tal como as companhias de navegação – tinham direito a proteção do Governo contra a concorrência estrangeira. No atual estado de coisas, via-se obrigado a recorrer aos furtos; algo que não era apenas esgotante mas francamente abaixo da sua dignidade.
Soltou um suspiro e deu um toque na sua tigela de mendigo, com um dedo imundo. Apercebeu-se de que havia algo na tigela. Não eram moedas. Notas? Nesse caso, era melhor guardá-las, antes que um dos ciganos as gamasse. Olhou para a tigela. Piscou duas vezes os olhos. Depois pegou-lhe. Era um relógio. Um relógio de senhora, ao que tudo indicava. Um Rolex. Obviamente era falso. Mas pesado, muito pesado. As pessoas gostavam mesmo de usar objetos assim tão pesados nos pulsos? Constara-lhe que relógios como aquele resistiam à água até uma profundidade de cinquenta metros, algo que dava um certo jeito se se fosse nadar usando um relógio daqueles. Era possível...? Andavam mesmo por aí pessoas muito estranhas, não havia dúvida. Louis olhou para um lado e para o outro da rua. Conhecia o relojoeiro na esquina da Stortingsgata; tinham andado juntos na escola. Talvez ele pudesse...
Louis levantou-se, cambaleante.
Kine estava de pé, junto ao seu carrinho das compras, a fumar um cigarro. No entanto, quando apareceu o homenzinho verde e os outros peões à sua volta começaram a andar, ela não se mexeu. Mudara de ideias. Naquele dia não ia atravessar a rua. Deixou-se ficar ali, terminando o cigarro. Gamara o carrinho no IKEA há muito, muito tempo. Saíra simplesmente da loja com ele e empurrara-o até à carrinha no parque de estacionamento. Levara-o mais uma cama Hemnes, uma mesa Hemnes e algumas estantes Billy para um lugar que considerava ser o futuro deles. O futuro dela. Ele limitara-se a guardar a mobília antes de preparar um chuto para ambos. Agora ele morrera, ela não. E deixara de ser toxicodependente. Estava limpa. Mas há imenso tempo que não dormia na cama Hemnes. Espezinhou o cigarro e agarrou a pega do carrinho do IKEA. Apercebeu-se de que alguém – provavelmente um dos outros peões – deixara um saco de plástico no carrinho, em cima do cobertor de lã imundo. Irritada, pegou bruscamente no saco; já não era a primeira vez que as pessoas confundiam o carrinho, com todos os seus objetos pessoais lá dentro, com um vulgar caixote do lixo. Ela virou-se bruscamente; conhecia de olhos fechados a localização de cada caixote do lixo em Oslo e sabia que havia um mesmo atrás de si. Mas depois estacou. O peso do saco de plástico despertou-lhe a curiosidade. Abriu-o. Meteu a mão lá dentro e trouxe o conteúdo para o sol da tarde. Brilhava e cintilava. Joias. Colares e um anel. Os pingentes eram brilhantes e o anel de ouro maciço. Ouro verdadeiro, brilhantes verdadeiros. Kine tinha quase a certeza; já antes vira ouro e brilhantes. Afinal, a mobília na casa da sua infância não viera por montar.
Johnny Puma arregalou os olhos, sentiu o terror invadi-lo e virou-se na cama. Não ouvira ninguém entrar, naquele momento, porém, ouvia a respiração pesada e gemidos. Coco estava no quarto? Não, aquele arfar mais parecia de alguém a fornicar do que a cobrar uma dívida. Uma vez, tinham deixado ficar um casal no centro; a direção devia ter julgado que os dois necessitavam tanto um do outro que resolvera abrir uma exceção à regra de aceitar apenas homens. Era efetivamente verdade que o homem precisava da mulher – ela financiara a heroinodependência de ambos prestando serviços sexuais de quarto em quarto, até que a direção se fartara e a expulsara.
Era o recém-chegado. Estava estendido no chão, de costas para Johnny que conseguia ouvir muito tenuemente uma faixa rítmica sintética e uma voz robótica monótona que vinha dos auriculares que ele usava. O rapaz fazia flexões. No seu auge, Johnny conseguia fazer cem, apenas com um braço. O rapaz era forte, não havia a menor dúvida disso, no entanto, começavam a faltar-lhe as forças, as suas costas vergavam já. Viu, à luz que se infiltrava pelas cortinas e incidia na parede, uma fotografia que o rapaz devia ter prendido com tachas. Um homem com uniforme de Polícia. E viu algo mais, no parapeito da janela. Um par de brincos. Tinham ar de caros; ficou curioso em saber onde o rapaz os roubara.
Se fossem tão caros como pareciam ser, podiam resolver o problema de Johnny. Constava que Coco ia abandonar o albergue no dia seguinte e que os traficantes dele andavam atarefados a cobrar a quem lhe devia. Johnny só tinha mais umas horas para arranjar algum dinheiro. Tinha ponderado assaltar um dos apartamentos em Bislett, já que muitas pessoas estavam de férias. Tocar à campainha e ver se não vinha ninguém abrir. Só precisava de reunir primeiro a energia. Mas isto era mais simples e mais seguro.
Ponderou a hipótese de se esgueirar da cama e deitar a mão aos brincos sem que ninguém se apercebesse, no entanto, pôs de parte a ideia. Com ou sem energia, arriscava-se a levar uma tareia das grandes. A ideia em si mesma era absurda. Mas ele podia sempre tentar distrair o recém-chegado, inventar uma desculpa para o tirar do quarto e atacar depois. De repente, Johnny deu consigo a fitar os olhos do rapaz. Ele virara-se e fazia abdominais. Sorriu.
Johnny fez sinal de que queria dizer algo e o rapaz tirou os auriculares. Johnny ouviu a letra «...agora estou limpo» antes de começar a falar.
– Ias comigo lá abaixo ao café, amigo? Vais precisar de comer algo depois desse exercício. Sabes, se o corpo não tiver gordura nem hidratos de carbono para queimar, vai começar a atacar os músculos. E todo esse teu trabalho terá sido em vão.
– Obrigado pela dica, Johnny. Só preciso de tomar um duche antes, mas vai-te arranjando. – O rapaz levantou-se. Guardou os brincos no bolso e encaminhou-se para a porta em direção aos duches comuns.
Raios! Johnny fechou os olhos. Ainda lhe sobrava energia? Sim, só podia. Apenas dois minutos. Contou os segundos. Depois sentou-se na borda da cama. Aguardou. Levantou-se. Pegou nas calças que estavam na cadeira. Ia vesti-las quando bateram à porta. O rapaz devia ter-se esquecido das chaves. Johnny avançou a coxear até à porta e abriu-a.
– Quantas vezes será preciso...
Um punho cerrado com soqueiras acertou em cheio na testa de Johnny Puma e ele foi arremessado para trás.
A porta abriu-se toda e Coco e dois dos seus rapazes entraram. Estes últimos agarraram-lhe os braços e Coco deu uma cabeçada em Johnny pelo que a nuca dele foi embater no beliche de cima. Quando se levantou de novo, olhava diretamente para os olhos feios e carregados de rímel de Coco e a ponta reluzente de um estilete.
– Sou um homem ocupado, Johnny – disse Coco em norueguês macarrónico. – Os outros têm dinheiro, mas continuam sem pagar. Tu não tens cheta, eu sei, por isso, vais servir de exemplo.
– E-exemplo?
– Sou um homem razoável, Johnny. Ficas com um olho.
– Mas... Por favor, Coco...
– Não te mexas, senão o olho fica danificado quando eu o tirar. Vou mostrá-lo aos outros canalhas para eles saberem que é um olho verdadeiro, okay?
Johnny desatou a gritar, mas foi rapidamente calado por uma mão que lhe cobriu a boca.
– Calma, Johnny. Não há muitos nervos no olho, pouca dor, prometo.
Johnny sabia que o seu medo devia dar-lhe força para resistir, no entanto, parecia ter definhado. Johnny Puma, que noutros tempos levantara carros, olhava apaticamente para a ponta do estilete que se aproximava cada vez mais.
– Quanto?
A voz era suave, quase um murmúrio. Eles viraram-se para a porta. Ninguém dera pela entrada dele. Tinha o cabelo molhado e vestia apenas umas calças de ganga.
– Rua! – ordenou Coco com voz sibilante.
O rapaz não se mexeu.
– Quanto é que ele deve?
– Imediatamente! Queres conhecer o meu punhal?
Nem assim o recém-chegado se mexeu. O pau-mandado que cobria a boca de Johnny soltou-o e foi ter com ele.
– Ele... gamou os meus brincos – disse Johnny. – É verdade! Estão no bolso dele. Eu ia pagar-te com eles, Coco. Revista-o e verás! Por favor, por favor, Coco! – Johnny ouviu os soluços na sua própria voz, mas ignorou-os. Além disso, Coco não parecia dar-lhe ouvidos, fitava o rapaz. Provavelmente gostara do que vira, o porco nojento. Coco chamou o moço de recados fazendo um gesto e riu de si para si.
– O Johnnyzinho está a dizer a verdade, jeitoso?
– Podias tentar descobrir – respondeu o rapaz. – Mas, se eu fosse a ti, dizia quanto ele te deve e poupavas sarilhos. E confusão.
– Doze mil – respondeu Coco. – Porque...
Calou-se quando o rapaz levou a mão ao bolso, retirou um pequeno maço de notas e começou a contar em voz alta. Quando chegou às doze, entregou-as a Coco e guardou as restantes de novo no bolso.
Coco hesitou. Como se pudesse haver algo de errado com o dinheiro. Depois, soltou uma gargalhada. Abriu a boca e revelou os dentes de ouro que mandara colocar para substituir os brancos perfeitamente saudáveis.
– Ora esta. Ora esta.
E depois, voltou a contar as notas. Levantou a cabeça.
– Portanto, está tudo bem? – perguntou o rapaz sem o rosto empedernido de um jovem traficante de droga que vira filmes a mais. Pelo contrário, sorria. Tal como os empregados de mesa costumavam sorrir nos tempos em que ele jantava em restaurantes finos e lhe perguntavam se a refeição estava do seu agrado.
– Está tudo bem – Coco sorriu rasgadamente.
Johnny deitou-se na cama e fechou os olhos. Ouviu as gargalhadas de Coco depois de ele e os seus paus-mandados fecharem a porta e desaparecerem no corredor.
– Não te preocupes – disse o rapaz. Johnny conseguia ouvi-lo, embora tentasse abafar a sua voz. – Se eu estivesse no teu lugar tinha feito o mesmo.
Mas tu não estás no meu lugar, pensou Johnny e sentiu que as lágrimas se mantinham lá, algures entre a garganta e o peito. Tu não foste Johnny Puma. E depois deixou de ser ele.
– Porque não vamos até ao café, Johnny?
O brilho do ecrã do computador era a única luz no escritório.
Do lado de fora da porta que Simon deixara entreaberta chegou-lhe um ruído. Era o som de um rádio com o volume baixo na cozinha do piso inferior e de Else nos seus afazeres. Fora criada no campo; havia sempre algo que era necessário arrumar, lavar, separar, mudar, plantar, costurar, levar ao forno. O trabalho não tinha fim. Por mais que se fizesse hoje, amanhã seria outro dia repleto de trabalho. Implicava trabalhar a um ritmo constante e sem pressas para não dar cabo das costas. Era o zumbido relaxante de alguém que faz as suas tarefas com alegria e finalidade, o som de um ritmo regular e de satisfação. Em certa medida, ele invejava-a. Mas estava também atento a outros sons: passos cambaleantes ou objetos a caírem ao chão. Se isso acontecesse, ele aguardaria. Até perceber, pelo som, que ela tinha tudo sob controlo. E, se ouvisse que ela estava bem, não lhe faria perguntas mais tarde, deixando-a pensar que ele não se dera conta.
Entrara na intranet da Brigada de Homicídios e lera os relatórios sobre Per Vollan. Kari escrevera uma quantidade impressionante, era uma trabalhadora esforçada. E, no entanto, quando os lia, tinha a sensação de que faltava algo. Nem sequer o relatório policial mais processual e burocrático conseguia disfarçar a paixão de um investigador entusiástico. Os relatórios de Kari eram um exemplo clássico de como devia ser um relatório policial: objetivo e factual. Sem afirmações tendenciosas nem preconceitos da parte do seu autor. Frios e sem vida. Lera os depoimentos das testemunhas para ver se surgia algum nome interessante de alguém com quem Vollan tivesse estado em contacto. Nada. Olhou para a parede. Vieram-lhe à mente duas palavras. Nestor. Arquivado. Depois pesquisou Agnete Iversen no Google.
Surgiram parangonas sobre o homicídio.
«CONHECIDA INVESTIDORA IMOBILIÁRIA
BRUTALMENTE ASSASSINADA.»
«ALVEJADA E ASSALTADA EM SUA PRÓPRIA CASA.»
Clicou numa das parangonas. Havia uma citação do inspetor Åsmund Bjørnstad da conferência de imprensa da Kripos em Bryn. «A Equipa de investigação da Kripos descobriu que, embora Agnete Iversen tivesse sido encontrada na cozinha, provavelmente terá sido assassinada na entrada.» E mais adiante: «De momento várias provas novas sugerem que se tratou de um assalto, porém, não podemos excluir outros motivos.»
Simon foi percorrendo a página e encontrou artigos de jornal mais antigos. Provinham quase exclusivamente de jornais financeiros. Agnete Iversen era filha de um dos maiores proprietários de Oslo, tirara um MBA em Economia na Escola Superior de Administração Wharton, em Filadélfia e, ainda muito jovem, assumira a administração da carteira de imóveis da família. No entanto, depois de se casar com Iver Iversen, um colega economista, afastara-se. Um dos jornalistas da área financeira descrevera-a como a administradora, a perfeccionista que geria a carteira de forma eficaz e lucrativa. Em contraste, o marido adotara uma estratégia mais agressiva, comprando e vendendo com frequência, o que envolvia maior risco, mas também maiores lucros. Outro artigo, de há dois anos, tinha uma fotografia do filho, Iver Júnior, com a manchete «HERDEIRO MILIONÁRIO VIVE VIDA DE JET-SET EM IBIZA.» Bronzeado, a rir-se, exibindo um sorriso impressionante e com olhos vermelhos do flash da máquina fotográfica, suado depois de dançar com uma garrafa de champanhe numa mão e uma loura igualmente suada na outra. Numa página da secção financeira com três anos, Iver Sénior a apertar a mão ao diretor de Finanças da Câmara Municipal de Oslo quando foi anunciado que a Investimentos Imobiliários Iversen gastara mil milhões de coroas na compra de propriedades municipais.
Simon ouviu a porta do escritório abrir-se de mansinho. Pousaram uma chávena de chá diante de si.
– Não precisas de mais luz aqui dentro? – perguntou Else, assentando as mãos nos ombros dele. Para o massajar. Ou apoiar-se.
– Continuo à espera da próxima prestação – disse Simon.
– A próxima prestação de quê?
– Do que disse o médico.
– Mas eu telefonei a avisar-te. Estás a ficar esquecido, querido? – soltou uma risada e encostou os lábios ao couro cabeludo dele. Suspeitava de que ela o amava.
– Tu disseste que não havia muito que ele pudesse fazer – respondeu Simon.
– Sim.
– Mas?
– Mas o quê?
– Tu sabes, Else. Ele não disse apenas isso.
Else afastou-se deixando apenas uma mão assente no ombro dele. Ele aguardou.
– Ele falou num novo tipo de cirurgia nos Estados Unidos. Vai ajudar aqueles que vierem depois de mim.
– Depois?
– Quando a cirurgia e o equipamento se tornarem um procedimento corrente. Mas isso pode demorar anos. Neste momento, é uma cirurgia complicada que custa uma fortuna.
Simon virou-se tão rapidamente na cadeira giratória que ela se viu obrigada a recuar um passo. Ele tomou-lhe as mãos.
– Mas isso são excelentes notícias! Quanto?
– Mais do que uma mulher com pensão de invalidez e um homem com vencimento de Polícia podem pagar.
– Escuta, Else. Nós não temos filhos. A casa é nossa, não gastamos dinheiro em mais nada. Somos frugais...
– Para com isso, Simon. Sabes perfeitamente que não temos dinheiro. E a casa está completamente hipotecada.
Simon engoliu em seco. Ela não lhe chamara o que realmente era – a dívida de jogo dele. Como sempre, ela usara de extremo tato para lhe recordar que continuavam a pagar os pecados do passado dele. Simon apertou-lhe as mãos.
– Hei de encontrar uma solução. Tenho amigos que nos emprestarão o dinheiro. Confia em mim. Quanto?
– Tu tiveste amigos, Simon. Mas agora nunca falas com eles. Estou farta de te dizer, precisas de te manter em contacto, caso contrário vais distanciar-te.
Simon suspirou. Encolheu os ombros.
– Tenho-te a ti.
Ela abanou a cabeça.
– Só eu não basto.
– Claro que bastas.
– Não quero bastar. – Ela debruçou-se e beijou-o na testa. – Estou cansada, vou deitar-me.
– Está bem, mas quanto é que custa...?
Ela já saíra.
Simon ficou a olhar para ela. Depois desligou o computador e pegou no telemóvel. Percorreu a sua lista de contactos. Velhos amigos. Velhos inimigos. Alguns deles úteis, a maioria não. Premiu o número de um dos últimos. Um inimigo. Porém, útil.
Frederik Ansgar ficou surpreendido ao ter notícias de Simon, tal como este já calculava, no entanto fingiu-se encantado e aceitou que se encontrassem; nem sequer fingiu que estava ocupado. Depois de terminar a chamada, Simon ficou sentado no escuro, a olhar para o telemóvel. Pensou no seu sonho. Na sua visão. Ele ia dar-lhe os olhos. Depois, apercebeu-se de que estava a olhar para o telemóvel. Era a fotografia da pegada no canteiro das rosas.
– Boa paparoca – disse Johnny, limpando a boca. – Não vais comer nada?
O rapaz sorriu e abanou a cabeça.
Johnny olhou em redor. O café era uma sala com uma cozinha aberta, balcões, uma secção de self-service e mesas que estavam todas ocupadas. O café costumava fechar depois do almoço, mas como o Meeting Place, o café da Bymisjonen para drogados na Skippergata, estava a ser remodelado, eles tinham prolongado o horário de funcionamento, o que significava que nem todos os que ali estavam eram residentes. Contudo, a maioria das pessoas fora-o a dada altura, pelo que Johnny reconhecia todos os rostos.
Deu outro sorvo ruidoso no café enquanto observava os toxicodependentes carrancudos. Era a habitual e constante paranoia e movimentos furtivos, cabeças a voltarem-se; o local era como um bebedouro na savana, onde as pessoas se revezavam sendo presas ou predadoras. Exceção feita ao rapaz. Ele parecia descontraído. Até àquele momento. Johnny seguiu o olhar dele até à porta ao fundo da cozinha, onde Martha emergia da sala dos funcionários. Vestira o casaco e ia, sem dúvida, para casa. E Johnny reparou que as pupilas do rapaz se dilatavam. Qualquer toxicodependente observava de forma automática as pupilas das outras pessoas. Estão a consumir? Estão pedradas? São perigosas? Da mesma forma que observava o que as outras pessoas faziam com as mãos. Mãos que eram capazes de roubar alguém ou sacar de uma naifa. Ou, em situações de ameaça, cobrir e proteger o local onde guardava as drogas ou o dinheiro. E, naquele momento, as mãos do rapaz estavam nos bolsos. O mesmo bolso onde ele guardara os brincos. Johnny não era estúpido. Ou, sim, era, mas não em todos os aspetos. Martha entra, as pupilas do rapaz dilatam-se. Os brincos. A cadeira raspou no chão quando o rapaz se levantou com um olhar febril que cravou nela.
Johnny pigarreou.
– Stig...
Mas era tarde demais, ele já virara as costas a Johnny e começara a encaminhar-se para ela.
Simultaneamente, a porta da rua abriu-se e entrou um homem que deu imediatamente nas vistas. Blusão de cabedal preto, cabelo escuro cortado curto. Ombros largos e uma expressão determinada. Com um movimento irritado, afastou um residente imobilizado numa posição acocorada de toxicodependente que estava no seu caminho. Fez sinal a Martha, que retribuiu acenando. E, naquele momento, Johnny viu que o rapaz se apercebera. Que estacara como se tivesse perdido o ímpeto, enquanto Martha prosseguia em direção à porta. Viu o homem introduzir a mão no bolso do blusão de cabedal e rodar o cotovelo para fora, para que ela pudesse introduzir a mão debaixo do braço dele. E ela assim fez. Fora o movimento hábil de duas pessoas que estão juntas já algum tempo. Depois desapareceram lá fora na noite ventosa e subitamente gélida.
O rapaz ficou a meio caminho, atónito, como se precisasse de tempo para digerir a informação. Johnny viu todas as cabeças na sala virarem-se para examinar o rapaz. Sabia o que estavam a pensar.
Presa.
Johnny despertou com o som de choro.
E, por instantes, pensou no fantasma. O bebé. Que ele estava ali.
No entanto, apercebeu-se depois de que o som vinha do beliche de cima. Virou-se de lado. A cama começou a tremer. O choro transformou-se em soluços.
Johnny levantou-se e ficou defronte do beliche. Assentou a mão no ombro do rapaz, que tremia como uma folha. Johnny acendeu a luz de leitura na parede por cima de si. A primeira coisa que viu foi os dentes expostos a morderem a almofada.
– Doi? – Johnny fez mais uma afirmação do que uma pergunta.
Um rosto de uma lividez cadavérica, suado e com os olhos encovados fitava-o.
– Heroína? – perguntou Johnny.
O rosto fez que sim.
– Queres que eu vá ver se te arranjo alguma?
Um abanar da cabeça.
– Sabes que te encontras no local errado, se estás a tentar deixar, não é? – disse Johnny.
A cabeça fez que sim várias vezes.
– Nesse caso, o que posso fazer por ti?
O rapaz humedeceu os lábios com a língua branca. Murmurou algo.
– Hã? – disse Johnny, aproximando-se. Sentiu o cheiro do hálito carregado e putrefacto do rapaz. Mal conseguia decifrar as palavras. Endireitou-se e anuiu.
– Como queiras.
Johnny voltou para a cama onde ficou a olhar para a parte inferior do colchão por cima de si. Estava coberta de plástico para proteger os residentes dos fluidos corporais. Escutou o ruído constante do centro, o som dos eternamente perseguidos, de passos rápidos no corredor, de imprecações, música abafada, gargalhadas, pancadas em portas, gritos desesperados e do frenesi do tráfico a processar-se mesmo do outro lado da porta. Mas nada disso conseguiu abafar os soluços discretos e as palavras que o rapaz murmurara:
– Impede-me se eu tentar sair.
19
–Portanto, agora estás nos Homicídios – disse Fredrik, sorrindo por detrás dos óculos de sol. O logótipo da marca nas hastes era tão pequeno que só uns olhos de águia como os de Simon para conseguirem vê-lo, porém, alguém com conhecimentos de grandes marcas, superiores aos de Simon, saberia como eram exclusivos. Mesmo assim, Simon presumiu que os óculos de sol fossem caros, em conformidade com a camisa, a gravata, as unhas arranjadas por manicura e o corte de cabelo de Fredrik. Mas sinceramente, um fato cinzento-claro com sapatos castanhos? Ou então, era presentemente o último grito da moda.
– Sim – disse Simon e semicerrou os olhos. Sentara-se com o vento e o sol nas costas, contudo, os raios solares provinham do reflexo nas superfícies de vidro do edifício recentemente construído do outro lado do canal. Fora Simon quem pedira para se encontrarem, porém, Fredrik tinha sugerido o restaurante japonês na Tjuvholmen; o nome queria dizer «ilha de ladrões» e Simon perguntou-se se ele se aplicaria a todas as empresas de investimento que se localizavam ali, inclusive a de Fredrik.
– E tu investes dinheiro em nome de pessoas que são tão ricas que lhes é indiferente se lucram ou têm prejuízo?
Fredrik soltou uma gargalhada.
– Mais ou menos isso.
O empregado de mesa colocara um pratinho diante de cada um deles com o que parecia ser efetivamente uma minúscula alforreca. Provavelmente era o prato do dia na Tjuvholmen; o sushi tornara-se a piza da classe média-alta.
– Não sentes saudades do Departamento de Fraudes Graves? – perguntou Simon, bebendo golinhos de água do seu copo. Diziam que era água do glaciar de Voss, que fora enviada para os Estados Unidos e depois importada de novo para a Noruega, despojada dos minerais essenciais de que o organismo necessitava e que era possível obter gratuitamente na água canalizada norueguesa, límpida e saborosa. Cada garrafa custava sessenta coroas. Simon desistira de tentar compreender as forças do mercado, a sua psicologia e a luta pelo poder. Mas Fredrik não. Ele compreendia. Alinhava no jogo. Simon suspeitava que ele sempre o fizera. Tinha muito em comum com Kari; demasiado bem-educado, demasiado ambicioso e demasiado consciente do seu próprio valor para a Polícia poder passar sem ele.
– Sinto falta dos meus colegas e da agitação – afirmou Fredrik. – Mas não da molenguice nem da burocracia. Será que saíste pela mesma razão?
Levou o seu copo com água aos lábios demasiado depressa para Simon conseguir ler-lhe o rosto e perceber se ele não sabia mesmo ou estava apenas a fingir. Afinal, fora pouco depois de Fredrik ter anunciado a sua saída para aquilo que muitos consideravam o lado negro, que surgira a polémica sobre o caso de lavagem de dinheiro. Fredrik até fora uma das pessoas que trabalhara no caso. Mas talvez ele já não tivesse quaisquer contactos na Polícia.
– Mais ou menos isso – murmurou Simon.
– Os homicídios são mais a tua área – afirmou Fredrik e olhou para o relógio de pulso com simulada discrição.
– Por falar na minha área – afirmou Simon – pedi este encontro porque necessito de um empréstimo. É para a minha mulher, ela precisa de ser operada à vista. A Else, lembras-te dela?
Fredrik mastigou a sua alforreca e emitiu um som que tanto podia querer dizer sim como não.
Simon aguardou que ele tivesse terminado.
– Lamento, Simon, mas só invisto o dinheiro dos nossos clientes em empresas cotadas na Bolsa ou em obrigações emitidas por governos, nós nunca emprestamos ao mercado privado.
– Tenho consciência disso, mas estou a pedir-te porque não posso recorrer às vias normais.
Fredrik limpou cuidadosamente os cantos da boca e colocou o guardanapo em cima do prato.
– Desculpa, mas não posso ajudar-te. Uma operação à vista? Isso parece grave.
O empregado de mesa chegou, levantou o prato de Fredrik, viu o de Simon intacto e olhou-o com ar trocista. Simon fez-lhe sinal para que o levasse.
– Não gostaste? – perguntou Fredrik e pediu a conta em algumas palavras que podiam ser japonês.
– Não sei, mas por norma sou cético em relação aos invertebrados. Escorregam com demasiada facilidade, se é que me faço entender. Não gosto de desperdiçar, mas aquele animal em particular parecia ainda estar vivo, por isso espero que ele tenha uma segunda oportunidade no aquário.
Fredrik riu-se com desnecessária cordialidade da piada dele, aliviado por aquela segunda parte da conversa parecer terminada. Agarrou na conta assim que a trouxeram.
– Deixa-me... – começou Simon, porém Fredrik introduzira já o cartão de crédito no terminal de pagamento que o empregado de mesa trouxera e premia as teclas.
– Foi bom rever-te e lamento não poder ajudar-te – disse Fredrik quando o empregado de mesa desapareceu e Simon sentiu que a pressão no assento da cadeira de Fredrik abrandara.
– Leste ontem a notícia do homicídio da Iversen?
– Oh Deus, li, sim. – Fredrik abanou a cabeça, tirou os óculos de sol e esfregou os olhos. – O Iver Iversen é um dos nossos clientes. Uma tragédia.
– Creio que ele já era teu cliente quando trabalhavas no Departamento de Fraudes Graves.
– Como?
– Quero dizer, um suspeito. É uma pena que todos os que têm as tuas habilitações venham embora. Com pessoas como vocês na equipa podíamos ter conseguido levar o caso a tribunal. O ramo imobiliário necessita de uma reforma; costumávamos estar de acordo nesse aspeto, recordas-te, Fredrik?
Fredrik colocou de novo os óculos de sol.
– Tu sempre gostaste de apostar alto, Simon.
Simon anuiu. Afinal, Fredrik sabia por que motivo Simon mudara repentinamente de departamento.
– Por falar em jogo – afirmou Simon. – Não passo de um polícia estúpido sem uma licenciatura na área financeira, no entanto, sempre que lia os relatórios de contas da Iversen perguntava-me como conseguia aquela empresa sobreviver. Era de grande incompetência a comprar e vender propriedades; a maior parte das vezes sofria perdas consideráveis.
– Sim, mas sempre foi boa a gerir propriedades.
– Abençoados prejuízos que permitem continuar o negócio. À conta deles, o Iversen poucos ou nenhuns impostos tem pago sobre os lucros de exploração ao longo dos últimos anos.
– Santo Deus, parece que voltaste ao Departamento de Fraudes Graves.
– A minha palavra-passe ainda me dá acesso aos casos antigos. Ontem fiquei acordado até tarde a lê-los no meu computador.
– A sério? Mas não existe nada de ilegal nisso, as regras fiscais são mesmo assim.
– Pois são – respondeu Simon, apoiando o queixo na mão e olhando para o céu azul. – E tu lá sabes; afinal, investigaste a Iversen. Talvez a Agnete Iversen tenha sido morta por um cobrador de impostos ressentido.
– O quê?
Simon soltou uma gargalhada e levantou-se.
– Apenas um velho a provocar-te. Obrigado pelo almoço.
– Simon?
– Sim.
– Não quero criar-te falsas esperanças, mas vou informar-me sobre o teu empréstimo.
– Fico-te grato – respondeu Simon e abotoou o casaco. – Adeus.
Não precisou de se virar; sabia que Fredrik o observava pensativamente enquanto ele se afastava.
Lars Gilberg colocou no chão o jornal que encontrara no caixote do lixo à porta do 7-Eleven. Ia servir-lhe de almofada naquela noite. Viu que, página após página, só se falava do homicídio daquela mulher rica do lado ocidental de Oslo. Se a vítima fosse um pobre desgraçado que morrera de uma overdose adulterada lá em baixo junto ao rio ou na Skippergata, mal teria direito a umas linhas. Um manda-chuva da Kripos, um homem chamado Bjørnstad, anunciara que todos os recursos disponíveis seriam destacados para a investigação. A sério? E se apanhassem primeiro os assassinos em série que misturavam arsénico e veneno para ratos nas drogas que vendiam? Gilberg espreitou da sua terra de sombras. O vulto que se aproximava usava capuz e parecia um dos habituais praticantes de jogging que incluíam o caminho ao longo do rio no seu percurso de exercício físico. Mas ele tinha avistado Gilberg, abrandara e Lars Gilberg presumiu que pudesse ser ou um polícia ou um puto rico à procura de anfes. Somente quando ele já estava debaixo da ponte e baixou o capuz é que Gilberg reconheceu o rapaz. Estava suado e sem fôlego.
Gilberg levantou-se do forro impermeável, ávido, quase feliz.
– Olá, rapaz. Olhei pelas tuas coisas, sabes, ainda ali estão. – Indicou os arbustos fazendo um movimento com a cabeça.
– Obrigado – respondeu o rapaz, acocorando-se e verificando as suas pulsações. – Mas estava a pensar se me podias fazer outro favor.
– Claro. Diz lá.
– Obrigado. Quais são os passadores que vendem Superboy?
Lars Gilberg fechou os olhos. Raios.
– Não faças isso, rapaz. Superboy não.
– Porque não?
– Porque posso dizer-te o nome de três pessoas que morreram por causa daquela merda só este verão.
– Quem vende a mercadoria mais pura?
– Não percebo de pureza. Não é o meu veneno. Mas o traficante é fácil, só existe um local nesta cidade onde se vende Superboy. Os passadores trabalham sempre aos pares. Um tem as drogas e o outro recebe o dinheiro. Eles param debaixo da Nybrua.
– Como é que eles são?
– Varia, mas normalmente o homem do dinheiro é um tipo entroncado, com cabelo curto e cicatrizes de acne. Esse é o chefe, mas gosta de estar na rua e é quem mexe no dinheiro. É um sacana desconfiado, duvida dos seus passadores.
– Entroncado e com cicatrizes de acne?
– É fácil reconhecê-lo pelas pálpebras. Pendem-lhe sobre os olhos e parece que está com sono. Topas?
– Estás a falar do Kalle?
– Conhece-lo?
O rapaz anuiu lentamente.
– Então sabes o que aconteceu às pálpebras dele?
– A que horas é que ele começa a trabalhar, sabes? – perguntou o rapaz.
– Eles estão lá das quatro às nove horas. Sei-o porque os primeiros clientes começam a fazer fila meia hora antes. E os últimos vêm a correr, mesmo antes das nove, como ratazanas a subir por um cano, para não o perderem.
O rapaz cobriu-se novamente com o capuz.
– Obrigado, amigo.
– Lars. O meu nome é Lars.
– Obrigado, Lars. Precisas de alguma coisa? Dinheiro?
Lars precisava sempre de dinheiro. Abanou a cabeça.
– Como te chamas?
O rapaz encolheu os ombros. Aquele encolher de ombros de como-queres-que-eu-me-chame? Depois prosseguiu a sua corrida.
Martha estava sentada na receção quando ele subiu as escadas e passou por ela sem parar.
– Stig! – chamou-o.
Ele só parou um longo momento depois. Ora, isso podia atribuir-se a um enfraquecimento geral dos seus reflexos. Ou ao facto de não se chamar Stig. Estava a suar; dava a impressão de ter estado a correr. Só esperava que não viesse a fugir de sarilhos.
– Tenho uma coisa para ti – disse ela. – Espera!
Pegou na caixa, avisou Maria de que ia demorar-se apenas uns minutos e correu atrás dele. Tocou-lhe com a mão ao de leve no cotovelo.
– Anda. Vamos até ao teu quarto e do Johnny.
Quando entraram no quarto, foram recebidos por uma visão inesperada. As cortinas estavam afastadas, pelo que o quarto era banhado pela luz, não se via Johnny em lado nenhum e o ar era fresco porque uma das janelas tinha sido aberta – tanto quanto o fecho dela o permitia. A Câmara obrigara-os a colocar travões nas janelas de todos os quartos, depois de vários incidentes com peões lá em baixo no passeio que por pouco não tinham sido atingidos com objetos grandes e pesados que eram regularmente arremessados das janelas do centro: rádios, colunas, aparelhagens estéreo e, esporadicamente, televisores. Os residentes do centro entravam na posse de imensos eletrodomésticos, no entanto tinham sido as matérias orgânicas a desencadear a ordem. Em virtude da enorme fobia social que crescia entre os residentes, era frequente mostrarem-se relutantes em usar as instalações sanitárias comuns. Assim, alguns tinham sido autorizados a ficar com um balde no quarto que despejavam a intervalos regulares – embora, e infelizmente, por vezes irregulares. Um destes últimos colocara o balde no parapeito da janela para que pudesse abri-la e ver-se livre dos maus odores. Um dia, um membro da direção abrira a porta do quarto e a corrente de ar derrubara o balde. Foi durante a remodelação da nova pastelaria e quis o destino que estivesse um pintor em cima de uma escada mesmo debaixo da janela. O pintor escapara sem ferimentos de maior, no entanto, Martha – que fora a primeira pessoa a chegar à cena e prestara assistência ao homem em choque – sabia que o incidente o deixara traumatizado.
– Senta-te – disse ela, apontando para a cadeira. – E descalça os sapatos.
Ele assim fez. Ela abriu a caixa.
– Não queria que os outros os vissem – disse-lhe e exibiu um par de sapatos pretos macios em pele genuína. – Eram do meu pai – disse, entregando-lhos. – Vocês calçam mais ou menos o mesmo número.
Ele fora tão apanhado de surpresa que ela sentiu que se ruborizara.
– Não podemos mandar-te de ténis a uma entrevista de emprego – apressou-se ela a acrescentar.
Ela olhou o quarto de relance enquanto ele os calçava. Não tinha a certeza, mas julgou detetar o cheiro a detergente. Os funcionários da limpeza não tinham ali estado naquele dia. Ela aproximou-se de uma fotografia presa à parede com um pionés.
– Quem é este?
– O meu pai – respondeu ele.
– A sério? Um agente da Polícia?
– Sim. Olha.
Ela virou-se para ele. Levantara-se e apoiava primeiro o pé direito e depois o esquerdo no chão.
– E?
– Assentam que nem uma luva – disse ele, sorrindo. – Muitíssimo obrigado, Martha.
Ela sobressaltou-se quando ouviu o seu nome sair da boca dele. Não que não estivesse habituada a ouvi-lo, os residentes tratavam-se constantemente pelos nomes próprios. Todavia, os apelidos, as moradas de casa e os nomes próprios dos familiares eram confidenciais; afinal, os funcionários assistiam todos os dias ao tráfico de droga. No entanto, houvera algo na maneira como ele o proferira. Como uma carícia. Cuidadosa e inocente, mas igualmente palpável. Ela apercebeu-se de que não era muito apropriado da sua parte estar sozinha com ele no quarto; a sua suposição inicial fora que Johnny também estivesse ali presente. Ficou curiosa em saber onde ele se metera; as únicas coisas que conseguiam fazer Johnny levantar-se da cama eram as drogas, a casa de banho ou a comida. Por aquela ordem. E, contudo, ela ficara onde estava.
– De que tipo de trabalho andas à procura? – perguntou-lhe. Tinha consciência de que parecera ligeiramente ofegante.
– Algo no sistema judicial – respondeu ele, com ar grave. Notava-se uma certa doçura na sua sinceridade. Quase precoce.
– Um pouco como o teu pai?
– Não, os agentes da Polícia trabalham para o poder executivo. Eu quero trabalhar para o poder judicial.
Ela sorriu. Ele estava tão diferente. Talvez fosse esse o motivo por que se pusera a pensar nele, porque não se parecia nada com os outros toxicodependentes. E, no entanto, ele também era muito diferente de Anders, que tivera sempre um controlo férreo, ao passo que este rapaz parecia franco e vulnerável. Enquanto Anders era desconfiado e desdenhava das pessoas que ainda não conhecia bem e às quais tinha de dar a sua aprovação, Stig parecia simpático, bondoso, quase ingénuo.
– Tenho de ir andando – disse ela.
– Sim – respondeu ele, encostando-se à parede. Abrira o fecho de correr do blusão com capuz. A T-shirt debaixo estava encharcada em suor e colada ao corpo.
Ele preparava-se para dizer algo quando o walkie-talkie dela deu sinal.
Ela aproximou-o do ouvido.
Tinha uma visita.
– O que ias a dizer? – perguntou-lhe, depois de confirmar a mensagem.
– Pode esperar – respondeu o rapaz e sorriu.
Era novamente o agente da Polícia mais velho.
Estava à espera dela na receção.
– Deixaram-me entrar – disse ele, atrapalhado.
Martha lançou um olhar reprovador a Maria, que levantou as mãos num gesto de e-qual-é-o-problema?
– Há algum sítio onde possamos...?
Martha levou-o para a sala de reuniões, mas não lhe ofereceu café.
– Sabe o que é isto? – perguntou ele, levantando o telemóvel para que ela pudesse ver o ecrã.
– Uma fotografia de um bocado de terra?
– É uma pegada. O que provavelmente não lhe diz muito, mas tenho estado a perguntar-me porque me pareceu que era uma pegada familiar. E depois, apercebi-me de que é porque já a vi em tantos potenciais locais de crimes. Sabe, nos lugares onde encontramos cadáveres. Principalmente como rastos na neve num terminal de contentores, num antro de droga, próximo de um traficante de droga, num quintal, num bunker da Segunda Guerra Mundial que serve de carreira de tiro. Em suma...
– Em suma, nos lugares frequentados pelo tipo de pessoas que vivem aqui. – Martha suspirou.
– Precisamente. Por norma, a morte é autoinfligida, no entanto, independentemente da causa, esta pegada está sempre a reaparecer. Aqueles ténis azuis do exército tornaram-se o calçado mais comum dos toxicodependentes e sem-abrigo por toda a Noruega porque o Exército de Salvação e a Bymisjonen os distribuem. E, por isso, são inúteis como prova; existem demasiados nos pés de pessoas com cadastro.
– Assim sendo, o que faz aqui, inspetor-chefe Kefas?
– Eles deixaram de fabricar estes ténis e os que estão a uso acabam por gastar-se. Mas se olhar com atenção para a fotografia, verá que a pegada tem um padrão nítido, o que significa que estes ténis são novos. Confirmei junto do Exército de Salvação e disseram-me que vos enviaram a última remessa de ténis azuis em março deste ano. Por isso, a minha pergunta é apenas: distribuiu alguns destes ténis desde a primavera? Tamanho 43.
– A resposta é sim, claro.
– A quem...
– A imensos.
– Tamanho...
– No mundo ocidental, o tamanho 43 é o mais comum nos sapatos masculinos e, por sinal, também entre os consumidores de droga. Não sou capaz, nem estou preparada para lhe adiantar algo mais do que isso. – Martha olhou para ele com os lábios comprimidos.
Desta vez, o agente da Polícia suspirou.
– Respeito a sua lealdade para com os residentes. Só que não estamos aqui a falar de um grama de anfes, isto é uma investigação de homicídio. Encontrei esta pegada no local onde ontem foi alvejada aquela mulher, lá em cima em Holmenkollåsen. A Agnete Iversen.
– A Iversen?
Subitamente, Martha voltou a sentir falta de ar. Que estranho. No entanto, vendo bem, o terapeuta que lhe fizera o diagnóstico de «fadiga por compaixão» dissera-lhe que procurasse sinais de stresse.
O inspetor-chefe Kefas inclinou ligeiramente a cabeça para um lado.
– Sim, a Iversen. A imprensa deu-lhe imensa cobertura. Alvejada à porta da sua própria casa...
– Sim, sim, vi algumas manchetes. Mas nunca li essas notícias, já há muita coisa neste trabalho que nos transtorna. Deve saber ao que me refiro.
– Sei. O nome dela era Agnete Iversen. Quarenta e nove anos. Antiga mulher de negócios, agora dona de casa. Casada, com um filho de vinte e um anos. Presidente da Associação de Mulheres local. Uma generosa benemérita da Associação de Turismo da Noruega. Por isso, pode ser considerada um pilar da comunidade.
Martha tossiu.
– Como podem ter a certeza de que a pegada pertence ao assassino?
– Não podemos. Mas encontrámos uma pegada parcial com sangue da vítima no quarto, e essa pegada poderia corresponder a esta.
Martha voltou a tossir. Devia ser vista por um médico.
– Mas supondo que conseguia recordar-me do nome de alguém a quem foram entregues uns ténis tamanho 43, como pode ter a certeza de quais são os do local do crime?
– Não sei se conseguiríamos, mas parece que o assassino pisou o sangue da vítima e ele entrou no padrão da sola. E se estiver coagulado, ainda poderiam existir vestígios de sangue nos sulcos.
– Estou a ver – disse Martha.
O inspetor-chefe Kefas ficou à espera.
Ela levantou-se.
– Infelizmente, porém, não sei como posso ser-lhe útil. Claro que é possível confirmar com outros elementos do pessoal, ver se alguém se recorda de um tamanho 43.
O agente da Polícia permaneceu imóvel, como se para lhe dar uma oportunidade de mudar de opinião. E de lhe contar algo. Depois também ele se levantou e entregou-lhe o seu cartão.
– Obrigado pela sua disponibilidade. Ligue-me a qualquer hora.
Martha ficou na sala de reuniões depois de o inspetor-chefe Kefas ter saído. Mordeu o lábio inferior.
Ela contara-lhe a verdade. 43. Era o tamanho mais comum de sapatos de homem.
– Está na hora de fechar – anunciou Kalle.
Eram nove horas e o Sol começava a pôr-se por detrás dos edifícios na margem do rio. Recebeu as últimas notas de cem coroas e guardou-as na bolsa de cintura. Ouvira dizer que, em São Petersburgo, os traficantes de droga que transportavam dinheiro eram assaltados com tanta frequência que a máfia lhes fornecera bolsas em aço que lhes eram colocadas à cintura e soldadas. A bolsa tinha uma ranhura fina onde se introduzia o dinheiro e um código que só o tipo no escritório conhecia, pelo que os traficantes não podiam ser torturados para o revelar a quaisquer assaltantes ou sentir-se tentados a roubar o dinheiro. O traficante tinha de dormir, comer, defecar e fornicar com a bolsa do dinheiro posta, mas ainda assim, Kalle pensara bastante na opção. Já não aguentava mais estar ali de pé noite após noite.
– Por favor!
Era uma daquelas cabras drogadas emaciadas e escanifradas, com a pele no crânio toda esticada estilo Holocausto.
– Amanhã – disse Kalle e começou a afastar-se.
– Preciso de alguma!
– Vendemos tudo – mentiu e fez sinal a Pelvis, o seu passador, para que se afastasse.
Ela começou a chorar. Kalle não sentiu a menor compaixão, estas pessoas tinham de aprender que a loja fechava às nove horas e que era escusado aparecerem dois minutos depois. Claro que ele podia ter ficado ali até às dez e meia, onze e um quarto, para vender àqueles que conseguiam arranjar o dinheiro à última hora. Basicamente, era uma questão de encontrar o equilíbrio certo entre trabalho e vida, saber quando podia ir para casa. Assim como ficar aberto mais tempo não melhorava a sua margem de lucro, uma vez que eles tinham o monopólio da Superboy; ela voltaria amanhã ao abrir da loja.
Ela agarrou-o pelo braço, mas Kalle sacudiu-a. Ela cambaleou pela relva e caiu de joelhos.
– Foi um bom dia – observou Pelvis enquanto desciam rapidamente o caminho. – Quanto, diz lá?
– O que te parece? – respondeu-lhe Kalle, com brusquidão.
Até multiplicar o número de sacos pelo preço era demasiado para aquele idiota. Hoje em dia não se arranjava pessoal de jeito.
Antes de atravessarem a ponte, olhou por cima do ombro para se certificar de que ninguém os seguia. Era um hábito há muito adquirido, fruto da sua experiência como traficante de droga que transportava mercadoria valiosa; em caso de assalto, uma vítima que nunca poderia apresentar qualquer queixa à Polícia. Experiência que lhe saíra bem cara num dia de verão junto ao rio, por não ter conseguido manter os olhos abertos e adormecer num banco, numa altura em que tinha na sua posse heroína no valor de 300 000 coroas, que ia vender para o Nestor. Quando acordara, obviamente que a droga tinha desaparecido. Nestor procurara-o no dia seguinte e explicara que o patrão tinha sido muito generoso e resolvera dar uma opção a Kalle. Ambos os polegares – porque ele fora muito desastrado. Ou ambas as pálpebras porque ele adormecera em serviço. Kalle escolhera as pálpebras. Dois homens enfarpelados, um de cabelo escuro e um louro, tinham-no agarrado com força enquanto Nestor lhe levantava as pálpebras e as cortava com a hedionda cimitarra. Depois, Nestor – igualmente instruído pelo chefe – dera dinheiro a Kalle para um táxi que o levasse ao hospital. Os cirurgiões tinham-lhe explicado que, para lhe colocar pálpebras novas, necessitavam de enxertar pele de outra zona do corpo e ainda bem que ele não era judeu e não fora circuncidado. Ao que tudo indicava, o prepúcio possuía um tipo de pele com propriedades muito semelhantes às das pálpebras. Apesar de tudo, a operação fora um êxito e a resposta-chave de Kalle, quando lhe perguntavam como ficara sem as pálpebras, era que tivera um acidente com ácido e que a pele nova fora enxertada da coxa. Da coxa de outrem, explicava, se a pessoa que perguntava era uma mulher na sua cama, fazendo questão de ver a cicatriz. E que ele era um quarto judeu, para a eventualidade de ela também ter curiosidade em relação ao resto.
Durante muito tempo, ele convencera-se de que o seu segredo estava bem guardado, até ao momento em que o tipo que fora substituí-lo na equipa de Nestor o abordara num bar e perguntara em voz alta se ele não sentia o cheiro a sémen coalhado quando esfregava os olhos pela manhã. O tipo e os amigos tinham partido o coco a rir. Kalle quebrara a garrafa de cerveja no balcão do bar e espetara-lha várias vezes até se certificar de que não lhe restavam olhos para esfregar. No dia seguinte, Nestor fizera uma visita a Kalle e dissera-lhe que o patrão soubera do sucedido e que Kalle podia contar com o seu lugar de volta, tendo em conta que não só estava disponível como aprovava o seu engenho. A partir desse dia, Kalle nunca fechava os olhos enquanto não tinha a certeza absoluta de que estava tudo sob controlo. No entanto, naquele momento, só via a mulher a suplicar na relva e um corredor solitário com um blusão com capuz.
– Duzentas mil? – arriscou Pelvis.
Parvalhão.
Depois de percorrerem durante quinze minutos o centro oriental de Oslo e as ruas mais duvidosas mas características de Gamlebyen, transpuseram um portão de acesso a uma zona fabril abandonada. Demoraram mais de uma hora a somar tudo. Para além deles só lá estavam Enok e Syff, que vendiam anfes junto à Elgen e à Tollbugata, respetivamente. Depois, tiveram de cortar, misturar e embrulhar novas doses para o dia seguinte. Só então podia ir para casa, para junto de Vera. Ultimamente ela andava amuada. A viagem a Barcelona que ele lhe prometera não tinha acontecido porque ele andara atarefado a traficar a primavera inteira, por isso em troca prometera-lhe uma viagem a Los Angeles em agosto. Infelizmente, o seu registo criminal levara à recusa do pedido de visto. Kalle sabia que mulheres como Vera não eram pacientes, tinham opções, por isso tinha de fodê-la regularmente e acenar-lhe com joias diante dos seus olhos gananciosos para a manter. E isso obrigava-o a despender tempo e energia. Mas também dinheiro, o que implicava trabalhar mais. Estava entre a espada e a parede.
Atravessaram uma zona ampla com gravilha manchada de óleo, erva alta e dois camiões sem pneus permanentemente assentes em tijolos de escória e saltaram para uma plataforma elevatória diante de um edifício de tijolo vermelho. Kalle introduziu o código de quatro dígitos no painel, ouviu o zumbido da fechadura e abriram a porta. Chegaram-lhes aos ouvidos sons de bateria e baixo. A Câmara transformara o rés do chão da fábrica de dois andares em salas de ensaio para jovens bandas. Kalle arrendara uma sala no primeiro andar por uma renda nominal, a pretexto de gerir uma banda e uma agência de marcação de espetáculos. Ainda não tinham assegurado um único espetáculo a banda nenhuma, no entanto todos sabiam que eram tempos difíceis para as artes.
Kalle e Pelvis avançavam pelo corredor em direção ao elevador enquanto a porta da frente se fechava lentamente atrás deles nas suas molas rígidas. Apesar do ruído, Kalle julgou ouvir lá fora passos em corrida na gravilha.
– Trezentas? – sugeriu Pelvis.
Kalle abanou a cabeça e premiu o botão de chamada do elevador.
Knut Schrøder pousou a guitarra em cima do amplificador.
– Pausa para cigarro – disse e encaminhou-se para a porta.
Sabia que os seus companheiros de banda trocavam olhares, enfadados. Outra pausa para cigarro. Dali a três dias tinham um concerto no clube juvenil e era lamentável que tivessem de ensaiar feitos loucos para não darem barraca. Na opinião de Knut, os outros membros da banda eram uma cambada de meninos de coro: não fumavam, raramente bebiam álcool e nunca tinham visto um charro, quanto mais pegado num. Se alguma vez aquilo podia ser rock ‘n’ roll. Saiu fechando a porta e ouviu-os atacar a canção desde o princípio sem ele. Não soava nada mal, mas era completamente desprovida de alma. Ao contrário dele. Sorriu ante a ideia, enquanto passava pelo elevador e as duas salas de ensaio vazias, ao longo do corredor a caminho da saída.
Era exatamente como a melhor parte do DVD dos Eagles, Hell Freezes Over – o prazer secreto e inconfesso de Knut – quando a banda ensaia com a Orquestra Filarmónica de Burbank, que começa a tocar New York Minute com um ar muito compenetrado e Don Henley se vira para a câmara, franze o nariz e murmura: «...mas eles não têm os blues...»
Knut passou a sala de ensaio cuja porta se encontrava sempre aberta porque a fechadura estava estragada e as dobradiças tão deformadas que era impossível fechá-la. Estacou. Estava um homem lá dentro de costas para si. No passado, os vagabundos que procuravam instrumentos ou equipamento que pudesse ser logo convertido em dinheiro assaltavam constantemente o edifício, mas isso acabara desde que a agência de marcação de espetáculos no primeiro andar se mudara para lá e gastara dinheiro numa nova porta sólida com uma fechadura com código de acesso.
– Ei, tu aí – disse Knut.
O rapaz virou-se. Era difícil perceber o que ele era. Um praticante de jogging? Não. Sim, ele vestia um blusão com capuz e calças de fato de treino, mas calçava uns elegantes sapatos de couro preto. Só os vagabundos se vestiam tão mal. No entanto, Knut não sentia medo, porque haveria de sentir? Era da altura de Joey Ramone23 e vestia o mesmo blusão de cabedal.
– O que fazes aí, meu?
O tipo sorriu. O que queria dizer que não podia ser membro de um gangue de motoqueiros.
– Apenas umas arrumações.
Parecia plausível. Era o que acontecia às salas de ensaio comuns; roubavam ou destruíam tudo e nunca ninguém assumia a responsabilidade da sua limpeza. A janela continuava tapada com painéis de isolamento acústico, no entanto o único instrumento que restava era um velho bombo em que alguém pintara em tipo gótico na pele «Os Jovens Desesperados». No chão, entre as pontas de cigarros, cordas de guitarra partidas, uma baqueta solitária e fita adesiva, estava uma ventoinha de secretária que o baterista alegadamente usava para não sobreaquecer. E também um cabo de áudio comprido que Knut podia ter verificado se funcionava, mas que devia ter defeito. Na realidade, os cabos de áudio eram consumíveis pouco fiáveis, o futuro era a conexão sem fios e a mãe dele prometera oferecer-lhe um sistema wireless para a guitarra se ele deixasse de fumar, um episódio que o inspirara a escrever a canção Ela É Mesmo Um Osso Duro de Roer.
– Não é um pouco tarde para um funcionário camarário estar ainda a trabalhar? – disse Knut.
– Estamos a pensar voltar a ensaiar.
– Estamos?
– «Os Jovens Desesperados».
– Ah, pertences à banda?
– Eu era o baterista deles. Pareceu-me ver as costas dos outros dois tipos quando entrei, mas eles meteram-se no elevador.
– Não, eles estão a gerir uma banda e uma agência de marcação de espetáculos.
– Ah sim? E eles podiam ajudar-nos?
– Não creio que aceitem novos clientes. Batemos-lhes à porta e eles mandaram-nos bugiar.
Knut esboçou um sorriso, tirou um cigarro do maço e introduziu-o entre os lábios. Talvez o tipo fosse fumador e aceitasse dar umas passas lá fora com ele. Podiam conversar sobre música. Ou equipamento.
– De qualquer forma vou verificar – disse o baterista.
O tipo tinha mais ar de vocalista do que de baterista. E Knut até nem achou má ideia que o tipo fosse falar com o pessoal da marcação de espetáculos, ele parecia ter algo em si... algum carisma. E se eles lhe abrissem a porta, talvez Knut passasse por lá mais tarde.
– Eu mostro-te onde fica.
O tipo pareceu relutante. Depois anuiu.
– Obrigado.
O monta-cargas movia-se tão lentamente que Knut teve tempo de explicar em pormenor por que razão o amplificador Mesa Boogie era tão fantástico e tinha um bom desempenho sonoro no rock.
Saíram do elevador, Knut virou à esquerda e apontou para a porta de metal azul, a única que existia naquele piso. O tipo bateu.
Uns segundos depois, abriu-se um pequeno postigo à altura da cabeça e apareceram uns olhos injetados. Tal como na altura em que Knut a experimentara.
– O que queres?
O tipo aproximou-se mais do postigo, provavelmente numa tentativa de ver o que estava por detrás do homem à porta.
– Aceitavas agendar concertos para «Os Jovens Desesperados»? Somos uma das bandas que ensaiam lá em baixo.
– Põe-te na alheta e não voltes a aparecer aqui. Capisce24?
No entanto, o tipo manteve-se perto do postigo e Knut conseguia ver os olhos dele agitarem-se de um lado para o outro.
– Nós somos bastante bons. Gostas dos Depeche Mode?
Ouviu-se uma voz vinda de algures atrás dos olhos injetados.
– Quem é, Pelvis?
– Uma banda qualquer.
– Livra-te deles, caraças! E volta ao trabalho, quero estar em casa às onze.
– Ouviste o boss.
O postigo fechou-se com força.
Knut recuou quatro passos até ao elevador e premiu o botão. As portas abriram-se com relutância e ele entrou. Mas o tipo deixou-se ficar onde estava. Olhou para o espelho que a agência de marcação de espetáculos colocara no cimo da parede do lado direito quando se saía do elevador. Refletia a porta de metal, só Deus sabia porquê. Na verdade, este não era o bairro mais bonito de Oslo, contudo, para uma agência de marcação de espetáculos havia uma boa dose de paranoia. Será que guardavam um monte de dinheiro dos espetáculos no escritório? Constara-lhe que as bandas norueguesas famosas recebiam meio milhão pelas atuações nos grandes festivais. Mais uma razão para continuarem a ensaiar. Se ao menos ele conseguisse arranjar aquele sistema wireless. E uma nova banda. Com alma. Talvez ele e o tipo novo pudessem unir esforços? O tipo regressara finalmente ao elevador, mas mantinha uma mão diante dos sensores para que as portas não se fechassem. Depois retirou a mão e observou a luz fluorescente no teto do elevador. Pensando melhor, não. Knut passara tempo suficiente a trabalhar com psicóticos.
Saiu para fumar o seu cigarro, enquanto o tipo regressava à sala de ensaios para arrumar tudo. Knut estava sentado na plataforma de um dos camiões enferrujados quando o tipo saiu.
– Calculo que os outros estejam atrasados, mas não consigo contactá-los porque fiquei sem bateria no telemóvel – explicou ele, exibindo um telemóvel com ar de muito novo. – Por isso vou arranjar cigarros.
– Fuma um dos meus – disse Knut, estendendo o maço. – Que tipo de bateria tens? Não, deixa-me adivinhar! Tu pareces ser da velha guarda. Uma Ludwig?
O tipo sorriu.
– Agradeço imenso a tua amabilidade. Mas só fumo Marlboro.
Knut encolheu os ombros. Respeitava as pessoas que eram fiéis à sua marca, quer fossem baterias ou cigarros. Mas Marlboro? Isso era o mesmo que dizer que só se conduzia um Toyota.
– Paz, meu – disse Knut. – Vemo-nos por aí.
– Obrigado pela tua ajuda.
Viu o tipo atravessar a gravilha em direção ao portão e depois dar meia-volta e regressar.
– Acabei de me lembrar que o código da porta está no meu telemóvel – disse ele com um sorriso ligeiramente acanhado. – E...
– Está sem bateria. 666S. Fui eu quem teve a ideia. Sabes o que significa?
O tipo anuiu.
– É o código da Polícia do Arizona para suicídio.
Knut piscou os olhos várias vezes.
– A sério?
– Iá. O «S» corresponde a suicídio. Foi o meu pai que me ensinou.
Knut viu o tipo sair pelo portão e desaparecer no final da tarde de verão enquanto uma rajada de vento apanhava a erva crescida junto ao portão e a fazia oscilar para cá e para lá como o público num concerto durante uma balada sentimental. Suicídio. Raios, sempre era muito mais fixe do que 666 de Satanás!
Pelle olhou pelo espelho retrovisor e esfregou o pé mau. Tudo era mau; o negócio, o seu humor e até o endereço que o cliente lá atrás acabara de lhe dar, o Centro Ila. Bem, por ora, estavam parados naquilo que era praticamente o seu ponto habitual na fila de táxis em Gamlebyen.
– Está a referir-se ao albergue? – perguntou Pelle.
– Sim. Mas agora chama-se... Sim, o albergue.
– Eu não levo ninguém ao albergue sem receber adiantado. Lamento, mas tive umas más experiências.
– Claro. Não tinha pensado nisso.
Pelle viu o seu cliente ou, melhor dizendo, potencial cliente remexer no bolso. Pelle já estava dentro do táxi há treze horas seguidas, mas ainda faltavam umas quantas para regressar ao seu apartamento na Schweigaards Gate, estacionar o táxi e subir vacilante as escadas com as muletas dobráveis que guardava debaixo do banco, cair na cama e adormecer. Oxalá não sonhasse. Muito embora isso dependesse do sonho. Podia ser o céu ou o inferno, nunca se sabia. O cliente entregara-lhe uma nota de cinquenta coroas e uma mão-cheia de trocos.
– Isto é pouco mais de cem, não chega.
– Cem não chegam? – perguntou o agora não tão potencial cliente, ao que tudo indicava, com genuína surpresa.
– Há muito tempo que não apanha um táxi, não é verdade?
– Pode dizer-se que sim. É tudo o que tenho, mas será que pode levar-me até onde der?
– Claro – respondeu Pelle, e colocou o dinheiro no porta-luvas uma vez que o sujeito parecia não querer fatura, e carregou no acelerador.
* * *
Martha encontrava-se sozinha no quarto 323.
Estivera sentada na receção e vira Stig sair primeiro e Johnny depois. Stig levava calçados os sapatos pretos que ela lhe dera.
Os regulamentos do centro permitiam-lhes revistar o quarto de um residente sem avisar ou pedir permissão, se suspeitassem que ele guardava lá armas. Contudo, as regras referiam também, normalmente, que as revistas deviam ser efetuadas por dois membros do pessoal. Normalmente. Como se define normal? Martha olhou para a cómoda. E depois para o roupeiro.
Começou pela cómoda.
Continha roupas. Apenas roupas de Johnny; sabia quais eram as roupas de Stig.
Abriu a porta do roupeiro.
A roupa interior que dera a Stig estava cuidadosamente dobrada numa prateleira. O casaco dele pendurado num cabide. Na prateleira de cima estava o saco de desporto vermelho com que ela o vira chegar. Ia esticar o braço para trazê-lo para baixo quando avistou os ténis azuis ao fundo do roupeiro. Largou o saco, dobrou-se e pegou nos ténis. Inspirou fundo. Susteve o ar. Procurava sangue coagulado. Depois virou-os.
Suspirou de alívio e sentiu uma forte emoção.
As solas estavam absolutamente limpas. O padrão não estava sequer manchado.
– O que estás a fazer?
Martha virou-se bruscamente enquanto o seu coração começava a bater desenfreadamente. Levou a mão ao peito.
– Anders! – dobrou-se e gargalhou. – Pregaste-me um susto de morte.
– Tenho estado à tua espera. – Fez uma careta e enfiou as mãos nos bolsos do blusão de cabedal. – São quase nove e meia.
– Desculpa, perdi a noção do tempo. Disseram que um dos residentes podia guardar armas no quarto e é nosso dever verificar.
Martha ficara tão ansiosa que a mentira brotou sem dificuldade.
– Dever? – Anders demonstrou irritação. – Se calhar, devias começar a pensar no verdadeiro significado da palavra dever. A maioria das pessoas pensa na família e no lar quando fala em dever, não num local de trabalho como este.
Martha suspirou.
– Anders, por favor, não comeces...
Porém, ela já sabia que ele não ia ceder, como de costume, tinham-lhe bastado uns segundos para ficar tenso e nervoso.
– Quando quiseres, há um trabalho para ti na galeria da minha mãe. E concordo com ela. Seria muito melhor para o teu desenvolvimento pessoal misturares-te com pessoas mais estimulantes do que com os falhados aqui neste sítio.
– Anders! – Martha levantara a voz, no entanto sabia que estava demasiado cansada, faltavam-lhe as forças. Então, aproximou-se dele e poucou-lhe a mão no braço. – Não lhes chames falhados. E já te tinha dito, a tua mãe e os clientes dela não precisam de mim.
Anders sacudiu bruscamente o braço.
– As pessoas que estão neste sítio não precisam de ti, mas que o Estado deixe de vir em seu socorro. Aqueles malditos drogados são o projeto favorito da Noruega.
– Não estou preparada para voltar a ter esta discussão. Porque não vão andando sem mim, que eu apanho um táxi quando acabar?
Mas Anders cruzou os braços sobre o peito e encostou-se à ombreira da porta.
– Afinal que discussão estás preparada para ter, Martha? Tenho tentado que marques uma data...
– Agora não.
– Agora, sim! A minha mãe quer fazer planos para o verão e...
– Agora não, já te disse.
Tentou afastá-lo, mas ele nem se mexeu. Estendeu o braço para lhe barrar o caminho.
Martha passou por baixo do braço dele, saiu para o corredor e começou a afastar-se.
– Ei! – Ouviu a porta do quarto fechar-se com força e os passos de Anders atrás de si. Ele agarrou-lhe o braço, obrigou-a a virar-se e atraiu-a a si. Ela reconheceu o aftershave caro que mãe dele lhe oferecera no Natal, mas que Martha não suportava. O seu coração quase sofreu um baque quando viu o negrume vazio nos olhos dele.
– Não te atrevas a virar-me as costas – admoestou-a.
Ela levantara automaticamente a mão para escudar o rosto e foi então que viu o choque no semblante dele.
– O que é isto? – murmurou ele num tom cortante. – Achas que vou bater-te?
– Eu...
– Duas vezes – disse ele entre dentes e ela sentiu o seu hálito quente no rosto. – Duas vezes em nove anos, Martha. E tratas-me como se eu... se eu fosse capaz de bater em mulheres.
– Solta-me, Anders, estás...
Ela ouviu tossir atrás de si. Anders largou-lhe o braço, olhou furiosamente por cima do ombro e proferiu com desdém:
– Então, agarrado, queres passar ou não?
Ela virou-se para trás. Era ele. Stig. Ele estava simplesmente ali, à espera. Desviou o seu olhar calmo de Anders para ela. Fazia-lhe uma pergunta silenciosa. A que ela respondeu anuindo; estava tudo bem.
Ele compreendeu e passou por eles. Os dois homens olharam-se furiosamente quando ele passou. Tinham a mesma altura, mas Anders era mais largo, mais musculoso.
Martha observou Stig enquanto ele prosseguia corredor fora.
Depois, o seu olhar regressou a Anders. Ele inclinara a cabeça e encarava-a com aquela expressão hostil que exibia com uma frequência cada vez maior, mas que ela concluíra ser causada pela frustração que sentia por não obter o merecido reconhecimento no trabalho.
– Mas que porra foi aquela? – disse ele.
Também não costumava dizer palavrões.
– O quê?
– Foi como se vocês os dois... comunicassem. Quem é aquele tipo?
Ela respirou. Quase de alívio. Pelo menos, aquele era território familiar. Ciúmes. Não mudara desde o tempo em que tinham começado a namorar na adolescência e ela sabia como resolver o assunto. Pousou a mão no ombro dele.
– Não sejas tonto, Anders. Anda, vem comigo, vamos buscar o meu blusão e depois seguimos para casa. E esta noite não vamos discutir, vamos preparar o jantar.
– Martha, eu...
– Chiu – disse ela, no entanto sabia que já levava vantagem. – Tu preparas o jantar, enquanto eu tomo um duche. Okay? E amanhã vamos falar sobre o casamento. Está bem assim?
Apercebeu-se de que ele queria protestar, porém, ela colocou-lhe um dedo sobre os lábios. Os lábios cheios de que tanto gostava. Ia fazendo deslizar o dedo, acariciando a barba escura espetada, cuidadosamente aparada. Ou os ciúmes dele tinham sido a primeira coisa que a atraíra? Já nem se lembrava.
Quando entraram no carro, ele acalmara. Era um BMW. Tinha-o comprado contra a vontade dela, pensando que ela acabaria por acostumar-se assim que percebesse como era confortável, especialmente para as viagens longas. Quando ligou o motor, ela voltou a vislumbrar Stig. Viera até à entrada, atravessara rapidamente a rua e seguira para leste. Levava o saco vermelho de desporto ao ombro.
23 Nome artístico de Jeffrey Ross Hyman (1951-2001), vocalista e letrista norte-americano, cofundador da banda pioneira de punk rock Ramones. (N. da T.)
24 Em italiano no original e na tradução inglesa: «Entendido?» (N. da T.)
20
Simon passou os campos de jogo e virou para a rua onde moravam. Reparou que o seu vizinho estava novamente a fazer um churrasco. As gargalhadas fortes abrasadas pelo sol e regadas com cerveja acentuavam o silêncio estival no bairro. A maior parte das casas estava vazia e havia apenas um carro estacionado na rua.
– E aqui estamos em casa – anunciou Simon e parou diante da garagem deles.
Não sabia porque o dissera. Certamente Else conseguia ver onde estavam.
– Obrigada por me teres levado ao cinema – disse Else, apoiando a mão na alavanca das mudanças, como se ele a tivesse acompanhado à porta de casa e se preparasse para lhe desejar uma boa noite e deixá-la ali. Seria incapaz de fazer semelhante coisa, pensou Simon,
e sorriu-lhe. Duvidou de que ela tivesse conseguido ver uma boa parte do filme. A ideia de irem ao cinema partira de Else. Ele lançara-lhe várias vezes olhares furtivos durante o filme e vira que pelo menos ela se rira nas partes certas. Por outro lado, o humor de Woody Allen residia mais nos diálogos do que nos efeitos visuais. Não importava, tinham passado um serão agradável. Mais um serão agradável.
– Aposto que sentiste a falta da Mia Farrow – provocou-o.
Ele riu-se. Era uma piada privada. O primeiro filme que a levara a ver tinha sido A Semente do Diabo, o filme hediondamente brilhante de Roman Polanski, em que Mia Farrow dá à luz um bebé que, afinal, é o filho do Diabo. Else ficara horrorizada e, durante muito tempo acreditara que era a maneira de Simon lhe dizer que não queria ter filhos – especialmente quando ele insistira que voltassem a vê-lo. Só mais tarde – depois de um quarto filme de Woody Allen com Mia Farrow – é que ela se apercebera de que era Farrow e não a cria do Diabo que tanto o fascinava.
Enquanto se afastavam do carro em direção à porta principal, Simon avistou um breve clarão na rua. Como a luz giratória de um farol. Vinha do carro estacionado.
– O que foi aquilo? – perguntou Else.
– Não sei – respondeu Simon e abriu a porta de casa. – Importavas-te de ir fazer café? Eu volto já.
Simon deixou-a e atravessou a rua. Sabia que o carro não pertencia a nenhum dos vizinhos. Nem a ninguém que morasse nas imediações. Em Oslo, as limusinas estavam sobretudo associadas a embaixadas, à família real ou aos ministros de Estado. Só conhecia mais uma pessoa que circulava num carro com os vidros fumados, imenso espaço para esticar as pernas e motorista próprio. Acabara de sair um motorista e segurava a porta traseira aberta para Simon.
Simon inclinou-se, no entanto permaneceu no exterior. O homenzinho sentado lá dentro tinha um nariz pontiagudo no rosto redondo e corado do tipo que as pessoas descreviam como «jovial». O blazer azul com botões dourados – um modelo preferido pelos banqueiros, armadores e cantores românticos da década de 1980 – sempre levara Simon a perguntar-se se não seria para disfarçar uma fantasia profundamente arraigada nos homens noruegueses de serem comandantes de um navio.
– Boa-noite, inspetor-chefe Kefas – disse o homenzinho com uma voz alegre e animada.
– O que faz na minha rua, Nestor? Aqui ninguém quer a sua porcaria.
– Ora, ora. O eterno combatente da criminalidade, hein?
– Dê-me um motivo para o prender e não hesitarei.
– A menos que seja proibido ajudar pessoas em apuros, não creio que isso vá ser necessário. Porque não entra, para podermos conversar sem sermos incomodados, Kefas?
– Não consigo ver nenhum motivo para o fazer.
– Nesse caso, não me diga que também tem um problema de visão?
Simon olhou para Nestor. Braços curtos e um tronco pequeno e corpulento. Porém, as mangas do blazer eram ainda mais curtas, pelo que apareciam os botões de punho em ouro com a forma das iniciais «HN». Hugo Nestor dizia-se ucraniano, mas, de acordo com o processo que tinham sobre ele, nascera e crescera em Florø, vinha de uma família de pescadores e o seu apelido inicial era Hansen, antes de decidir mudá-lo. Nunca passara uma temporada no estrangeiro à exceção de um breve curso de Economia inacabado em Lund, na Suécia. Só Deus sabia onde arranjara aquela estranha pronúncia, mas de certeza que não tinha sido na Ucrânia.
– Duvido que a sua jovem esposa conseguisse ver quais os atores que entravam no filme, Kefas. Porém, calculo que ela soubesse que o Allen não entrava. Aquele judeu tem uma voz horrorosa e irritante. Não que eu tenha algo contra os Judeus enquanto indivíduos, apenas acho que o Hitler estava certo a respeito deles enquanto raça. Os Eslavos são iguais. Embora eu seja europeu de Leste, tenho de admitir que ele tinha uma certa razão quando afirmou que os Eslavos não são capazes de se liderar. Quero dizer, ao nível racial. Este Allen também não era pedófilo?
O processo referia também que Hugo Nestor era o mais importante operador de droga e tráfico humano em Oslo. Nunca fora condenado nem acusado, mas sempre suspeito. Também era inteligente e demasiado cauteloso, a enguia escorregadia.
– Não sei, Nestor. Só sei que consta que os seus homens despacharam o capelão da prisão. Ele devia-lhe dinheiro?
Nestor sorriu arrogantemente.
– Acha correto dar ouvidos a boatos, Kefas? Você costuma ter uma certa classe, ao contrário dos seus colegas. Se tivesse mais do que boatos, como uma testemunha fidedigna disposta a ir a tribunal e apontar o dedo, por exemplo, você já tinha feito uma detenção. Não é verdade?
Uma enguia escorregadia.
– De qualquer forma, quero oferecer-lhe dinheiro, a si e à sua esposa. Dinheiro suficiente, digamos, para uma operação aos olhos que é muito cara.
Simon engoliu em seco; ouviu a voz sair-lhe rouca quando respondeu:
– O Fredrik contou-lhe?
– O seu antigo colega no Departamento de Fraudes Graves? Digamos que tive conhecimento do seu problema. Calculo que fosse ter com ele para lhe fazer o pedido, na esperança de que acabasse por me chegar aos ouvidos. Não é verdade, Kefas? – Sorriu. – De qualquer maneira, eu tenho uma solução que julgo convir a ambos. Não quer mesmo entrar?
Simon agarrou o puxador da porta e viu Nestor deslizar automaticamente no banco para lhe deixar espaço. Concentrou-se em respirar calmamente, para que a raiva não lhe fizesse tremer a voz.
– Continue a falar, Nestor. Por favor, dê-me um pretexto para o prender.
Nestor arqueou um sobrolho inquiridor.
– E que pretexto seria então, inspetor-chefe Kefas?
– Tentativa de suborno de um funcionário público.
– Suborno? – Nestor soltou uma breve gargalhada guinchada. – Chamemos-lhe uma proposta de negócio, Kefas. Vai ver que podemos...
Simon não chegou a ouvir o resto da frase já que a limusina era manifestamente insonora. Afastou-se sem olhar para trás, desejando ter batido a porta ainda com mais força. Ouviu o carro arrancar e os pneus esmagarem a gravilha no alcatrão.
– Pareces incomodado, querido – disse Else quando ele se sentou à mesa da cozinha junto à sua chávena de café. – Quem era?
– Alguém que estava perdido – respondeu Simon. – Indiquei-lhe o caminho.
Else arrastou os pés até junto dele levando a cafeteira. Simon olhava pela janela. Naquele momento, a rua estava deserta. Subitamente, uma dor escaldante espalhou-se-lhe pela parte superior das coxas.
– Raios!
Fez saltar a cafeteira das mãos dela, a qual acabou por ir parar ao chão com uma pancada enquanto ele gritava.
– Diabos, mulher, acabaste de entornar café a ferver em cima de mim! És... és...
Uma parte do cérebro dele sabia o que aí vinha e tentava bloquear a palavra, no entanto, foi como o bater da porta traseira do carro de Nestor: não queria lá estar, recusava-se, queria destruir, preferia cravar a faca em si próprio. E nela.
– ...cega?!
Fez-se silêncio na cozinha; só conseguia ouvir a tampa da cafeteira a rolar no chão de linóleo e o borbulhar do café que saía da cafeteira. Não! Não o dissera intencionalmente. Não mesmo.
– Desculpa. Else, eu...
Levantou-se para a abraçar, mas ela encaminhava-se já para o lava-loiça. Abriu a torneira da água fria e colocou um pano de cozinha debaixo dela.
– Baixa as calças, Simon, deixa-me...
Ele envolveu-a por trás com os braços. Encostou a testa ao pescoço dela. Murmurou:
– Peço desculpa, imensa desculpa. Por favor, perdoas-me? Eu... Eu não sei o que fazer. Devia conseguir ajudar-te, mas eu... eu não posso, eu não sei, eu...
Ainda não a ouvia chorar, apenas sentia que o corpo dela tremia e que o tremor se propagava ao seu. A garganta apertou-se-lhe, reprimiu os seus próprios soluços e não sabia se tinha conseguido, apenas que tremiam ambos.
– Eu é que devia pedir desculpa – soluçava ela. – Tu podias estar com alguém melhor, alguém que não... te escaldasse.
– Mas não há ninguém melhor – murmurou ele. – Está bem? Por isso, podes continuar a despejar café a ferver em cima de mim, que eu nunca me irei embora. Está bem?
E ele sabia que ela sabia que era verdade. Que ele faria tudo, suportaria tudo, sacrificaria tudo.
Mas ele não tivera coragem de o fazer.
No escuro, ouviu as gargalhadas distantes e eufóricas dos vizinhos enquanto as lágrimas desciam pelo rosto dela.
Kalle viu as horas. Vinte para as onze. Tinha sido um bom dia; vendera mais Superboy do que era costume num fim de semana inteiro, por isso o fecho de caixa e a preparação de novas doses demorara mais do que o habitual. Tirou a máscara de gaze que usavam quando cortavam e misturavam as drogas na bancada da divisão de vinte metros quadrados que funcionava como escritório, fábrica de droga e banco. Como é óbvio, a droga era cortada antes de lhe chegar às mãos, porém, mesmo assim, a Superboy continuava a ser a droga mais pura que encontrara na sua carreira de passador. Tão pura que, se não colocassem as máscaras de gaze, não só apanhavam uma pedrada como podiam também morrer por causa da inalação das partículas que rodopiavam no ar quando cortavam e manipulavam o pó branco. Guardou as máscaras no cofre diante dos montes de notas e dos sacos de drogas. Devia ligar a Vera e avisá-la de que ia chegar tarde? Ou estava na hora de bater o pé, dizer-lhe quem mandava, quem levava para casa o carcanhol e quem podia aparecer e desaparecer sem ter de justificar constantemente os seus movimentos?
Kalle mandou Pelvis ir inspecionar o corredor. O elevador ficava apenas a uns metros da porta de ferro do escritório deles, do lado direito. Lá ao fundo do corredor havia uma porta que dava acesso a umas escadas, porém eles – contrariando as normas de proteção contra incêndios – tinham vedado essa porta, pelo que se encontrava permanentemente trancada.
– Cassius, verifica o parque de estacionamento – gritou Kalle em inglês, enquanto fechava o cofre. Era um escritório sossegado sem outros ruídos para além de algo que saísse das salas de ensaio, mas ele gostava de gritar. Cassius era um africano tão grande e gordo como não havia outro igual em Oslo. Com o seu corpo disforme e tão descomunal, era impossível saber o que era o quê, mas, ainda que só dez por cento dele fossem músculo, bastavam para impor respeito à maioria das pessoas.
– Nem carros, nem pessoas no parque de estacionamento – anunciou Cassius enquanto espreitava pelas grades de ferro na janela.
– Corredor completamente desimpedido – disse Pelvis, que olhava pelo postigo na porta.
Kalle rodou o disco. Saboreou a agradável resistência lubrificada, os estalidos suaves. Guardava unicamente na sua cabeça a combinação, não tinha nada anotado fosse onde fosse e não havia qualquer lógica nela, nenhuma conjugação de aniversários ou algo semelhante.
– Vamos – disse ele e endireitou-se. – Tenham as armas a postos, os dois.
Eles lançaram-lhe um olhar perplexo.
Kalle não lhes dissera nada, no entanto, houvera algo nos olhos que ele vira a espreitar pelo postigo. Sabia que tinham visto Kalle sentado à mesa. Tudo bem, era apenas um tipo de uma banda manhosa à procura de agente, mas havia dinheiro e drogas suficientes em cima da mesa para tentar qualquer idiota. Com alguma sorte, o tipo também tinha reparado nas duas armas em cima da mesa, que pertenciam a Cassius e Pelvis.
Kalle dirigiu-se à porta. Podia ser trancada por dentro e apenas a sua chave a abria. Isso significava que Kalle podia fechar qualquer pessoa que estivesse a trabalhar ali dentro caso necessitasse de sair. As grades na janela eram sólidas. Em suma, ninguém que trabalhasse para Kalle conseguia fugir com o dinheiro ou com as drogas. Ou deixar entrar visitantes indesejados.
Kalle espreitou pelo postigo. Não porque se tivesse esquecido de que Pelvis acabara de anunciar que o caminho estava livre, mas porque presumira automaticamente que Pelvis não teria pejo em trair o seu patrão abrindo a porta, caso alguém estivesse disposto a recompensá-lo generosamente. Raios, Kalle teria feito exatamente o mesmo. Ele fizera exatamente o mesmo.
Não conseguia ver ninguém através do postigo. Olhou para o espelho que colocara na parede para se certificar de que ninguém se conseguia esconder encostando-se à porta debaixo do postigo. O corredor mal iluminado estava vazio. Girou a chave e segurou a porta aberta para os outros dois. Pelvis saiu primeiro, depois Cassius e finalmente Kalle. Virou-se para trancar a porta.
– O que...!
Foi Pelvis quem falou.
Kalle virou-se e foi só nessa altura que conseguiu ver pelo postigo o que até então não lhe fora possível, em virtude do ângulo: que as portas do elevador estavam abertas. Porém, continuava a não conseguir ver o que estava lá dentro, uma vez que tinha a luz interior apagada. Tudo o que via com a luz fraca do corredor era algo metálico de um lado da porta do elevador. Os sensores cobertos com fita adesiva. E vidro partido no chão.
– Cuidado...
Mas Pelvis já dera quatro passos até ao elevador aberto.
O cérebro de Kalle registou o clarão da boca da arma no escuro do elevador antes de receber o sinal do estrondo.
Pelvis rodou como se o tivessem agredido. Fitou Kalle com uma expressão atónita. Parecia que lhe tinham aberto um terceiro olho no malar. Depois a vida deixou-o e o seu corpo caiu por terra como um casaco despido pelo dono.
– Cassius! Dispara, caraças!
No meio do pânico, Kalle esquecera-se de que Cassius não falava norueguês, mas isso não constituía um problema, ele apontara já a pistola ao escuro dentro do elevador e disparara. Kalle sentiu algo bater-lhe no peito. Nunca antes estivera do lado errado de uma pistola, porém, naquele momento, sabia por que motivo as pessoas a quem ele apontara a sua arma tinha estacado de uma maneira caricata, como se enchidas com cimento. A dor no seu peito alastrou, não conseguia respirar, mas tinha de fugir, havia ar por detrás da porta à prova de bala. Uma porta que ele podia trancar. No entanto, a sua mão recusava-se a obedecer, não conseguia introduzir a chave na fechadura, era como um sonho, como mover-se debaixo de água. Felizmente estava escudado pelo corpo imenso de Cassius que disparava sucessivamente. Por fim, a chave entrou e Kalle rodou-a, escancarou a porta e atirou-se lá para dentro. O disparo seguinte teve acústicas diferentes e ele calculou que devia ser porque viera de dentro do elevador. Rodopiou para fechar a porta com violência, só que ela embatia em Cassius, que tinha metade do ombro e um braço da grossura de uma coxa presos lá dentro. Raios! Procurou repeli-lo só que o corpanzil de Cassius insistia em tentar entrar no escritório.
– Entra lá, meu paspalho gordo! – sibilou Kalle e abriu a porta.
O africano entrou como massa de pão a levedar, espalhando o seu corpanzil na entrada e lá dentro no chão. Kalle olhou para a expressão vítrea dele. Os olhos saíam-lhe das órbitas, como os de um peixe de mar alto acabado de apanhar, com a boca a abrir e a fechar-se.
– Cassius!
A única resposta que obteve foi um jacto húmido quando uma enorme bolha cor-de-rosa rebentou nos lábios do africano. Kalle fez pressão com as pernas na parede tentando retirar a montanha negra do caminho, para poder voltar a fechar a porta; então, curvou-se e tentou arrastá-lo antes lá para dentro, mas era escusado. Demasiado pesado. A pistola! Cassius tombara sobre o próprio braço. Kalle escarranchou-se no corpo, tentando desesperadamente introduzir a mão debaixo dele, mas após cada rolo de gordura que ele transpunha surgia logo outro e ainda nem sinal da pistola. Tinha o braço enterrado em gordura até ao cotovelo quando ouviu passos lá fora. Sabia o que estava prestes a acontecer, tentou sair do caminho, mas era tarde demais, a porta bateu-lhe na cabeça e ele apagou-se.
Quando Kalle abriu os olhos, estava deitado de costas a olhar para um tipo com um blusão com capuz, luvas amarelas de borracha calçadas e que lhe apontava diretamente uma pistola. Virou a cabeça, mas não viu mais ninguém, apenas Cassius, estendido com metade do corpo do lado de dentro da porta. Deste ângulo, Kalle conseguia ver o cabo da pistola de Cassius a sair-lhe debaixo da barriga.
– O que queres?
– Quero que abras o cofre. Tens sete segundos.
– Sete?
– Comecei a contar antes de tu acordares. Seis.
Kalle levantou-se num ápice. Estava atordoado, mas conseguiu chegar ao cofre.
– Cinco.
Rodou o disco da combinação.
– Quatro.
Mais um dígito e o cofre abria-se e o dinheiro desaparecia. Dinheiro que ele teria de repor do seu bolso, eram essas as regras.
– Três.
Hesitou. E se ele conseguisse deitar a mão à pistola de Cassius?
– Dois.
O tipo ia mesmo matá-lo, ou estava apenas a fazer bluff?
– Um.
O tipo matara duas pessoas sem pestanejar, um terceiro corpo não lhe fazia diferença.
– Já está – disse Kalle, desviando-se. Não suportava olhar para os montes de notas e sacos de droga.
– Mete tudo aqui dentro – ordenou o tipo e entregou-lhe um saco de desporto vermelho.
Kalle fez o que lhe mandavam. Nem muito devagar nem muito depressa, ia simplesmente colocando o conteúdo no saco branco enquanto o seu cérebro contava automaticamente. Duzentas mil coroas. Duzentas mil...
Quando terminou, o tipo mandou-o atirar o saco para o chão diante de si. Mais uma vez, Kalle fez o que lhe mandavam. Apercebeu-se, naquele momento, de que, se ia ser alvejado, que fosse já. Ali. O tipo já não precisava dele. Kalle deu dois passos em direção a Cassius. Tinha de ir buscar a arma.
– Se não o fizeres, não te mato.
Mas que diabo, o tipo conseguia ler-lhe o pensamento?
– Põe as mãos na cabeça e sai para o corredor.
Kalle hesitou. Isto queria dizer que ia deixá-lo viver? Passou por cima de Cassius.
– Encosta-te à parede com as mãos acima da cabeça.
Kalle fez o que o tipo dissera. Virou a cabeça. Viu que o tipo apanhara já a pistola de Pelvis e estava agora acocorado com a mão debaixo de Cassius, mas de olhos postos em Kalle. Conseguira apoderar-se também da arma de Cassius.
– Não te importas de arrancar a bala ali naquela parede? – disse o tipo, apontando, e Kalle apercebeu-se de onde já o vira antes. Junto ao rio, era o praticante de jogging. Devia tê-los seguido. Kalle levantou a cabeça e viu a extremidade da bala deformada cravada na argamassa. Um borrifo fino de sangue partia da parede até ao seu ponto de origem: a cabeça de Pelvis. Não se deslocara a grande velocidade, por isso Kalle conseguiu agarrá-la com as unhas.
– Passa-a para cá – disse o tipo, pegando na bala com a mão livre. – Agora, quero que encontres a minha outra bala e os dois invólucros vazios. Tens trinta segundos.
– E se a outra bala estiver dentro do Cassius?
– Não creio. Vinte e nove.
– Olha para aquela montanha de gordura, meu!
– Vinte e oito.
Kale ajoelhou-se e começou a procurar. Amaldiçoou-se por não ter investido em lâmpadas mais potentes.
Aos treze encontrara já quatro dos invólucros de Cassius e uma do outro tipo. Aos sete, localizara a outra bala que o tipo disparara sobre eles; devia ter atravessado Cassius e feito ricochete na porta de metal porque esta apresentava uma pequena mossa.
Quando terminou a contagem decrescente, ele ainda não tinha encontrado o último invólucro.
Fechou os olhos. Sentiu que uma das pálpebras um nadinha esticada de mais raspava a córnea enquanto pedia a Deus que o deixasse viver mais um dia. Ouviu o tiro, mas não sentiu dor. Abriu os olhos e apercebeu-se de que continuava de gatas no chão.
O tipo conseguiu tirar o cano da arma de Pelvis debaixo de Cassius.
Cristo, ele voltara a alvejar Cassius com a arma de Pelvis para se certificar de que estava morto! E, naquele momento, aproximava-se de Pelvis, apontava a arma ao mesmo sítio onde entrara a primeira bala, ajustava o ângulo. E puxava o gatilho.
– Porra! – gritou Kalle e ouviu o terror na sua própria voz.
O tipo guardou as duas armas dos outros no saco de desporto vermelho e apontou a Kalle com a deste.
– Anda. Para o elevador.
O elevador. O vidro partido. Tinha de ser no elevador. Tinha de atacá-lo no elevador.
Entraram e, à luz do corredor, Kalle viu que havia mais vidro partido no chão do elevador. Escolheu um pedaço alongado que parecia ser perfeito para o fim. Assim que as portas se fechassem ficaria completamente escuro e bastava-lhe curvar-se, apanhar o fragmento e cravá-lo com um movimento fluido. Tinha de...
As portas fecharam-se. O tipo guardou a arma no cós das calças. Perfeito! Seria como matar um frango. Ficou escuro. Kalle curvou-se. Os seus dedos encontraram o fragmento de vidro. Endireitou-se. Depois, quando deu por si estava paralisado.
Kalle não sabia que técnica de domínio era aquela, tão-somente que estava imobilizado, não conseguia mexer sequer um dedo. Tentou libertar-se, mas foi como se puxasse a ponta errada de um nó, a pressão aumentou ainda mais e o pescoço e os braços doíam-lhe como o caraças. Só podia ser uma técnica qualquer de arte marcial. O fragmento de vidro escorregou-lhe da mão. O elevador começou a mover-se.
As portas abriram-se de novo, ouviram a infindável batida do baixo e a pressão afrouxou. Kalle abriu a boca e inspirou. Tinha de novo a arma apontada a si, e fazia-lhe sinal para que avançasse pelo corredor.
Kalle foi mandado entrar numa das salas de ensaio vazias, onde lhe ordenaram que se sentasse no chão de costas para o radiador. Ele assim fez, sem sair do sítio, e ficou a olhar para um bombo com o nome «Os Jovens Desesperados» escrevinhado de um lado ao outro, enquanto o tipo o amarrava ao radiador com um cabo preto comprido. Era escusado debater-se, o seu atacante não tencionava matá-lo, caso contrário já o teria feito. E o dinheiro e as drogas podiam ser substituídos. Ia pagá-los do seu próprio bolso, claro, mas o que mais o preocupava era como explicar a Vera que era improvável que, nos tempos mais próximos, fizessem outra viagem para ir às compras numa cidade fixe. O tipo apanhou duas cordas de guitarra do chão, passou a mais grossa à volta da testa dele por cima da cana do nariz e a mais fina à volta do queixo. Devia tê-las atado ao radiador atrás de si; Kalle sentia o metal da corda mais fina cravar-se-lhe na pele e fazer pressão na gengiva inferior.
– Mexe a cabeça – disse o tipo. Teve de gritar para se fazer ouvir acima da música que vinha lá do fundo do corredor. Kalle tentou virar a cabeça, mas as cordas da guitarra estavam demasiado apertadas.
– Ótimo.
O tipo colocou uma ventoinha elétrica numa cadeira, ligou-a e apontou-a ao rosto de Kalle. Este fechou os olhos por causa da corrente de ar e sentiu o suor secar na sua pele. Quando voltou a abrir os olhos, viu que o tipo colocara um dos sacos de quilo de Superboy pura em cima da cadeira diante da ventoinha e puxara o capuz para cobrir o nariz e a boca. Mas que raio estava ele a dizer? Depois Kalle avistou o fragmento de vidro.
Teve a sensação de que uma mão fria lhe apertava o coração.
Sabia o que aí vinha.
O tipo apanhou a lasca de vidro. Kalle preparou-se. A ponta do vidro perfurou o saco de plástico, abriu-o fazendo um rasgão e, no instante seguinte, o ar encheu-se de pó branco. Entrou para os olhos, a boca e o nariz de Kalle. Ele fechou a boca. Mas tinha de tossir. Voltou a fechar a boca. Sentiu o gosto amargo do pó colar-se-lhe às membranas mucosas que começaram a picar e a arder; a droga estava já a entrar-lhe na corrente sanguínea.
A fotografia de Pelle e da sua mulher fora colada no tablier do lado esquerdo, entre o volante e a porta. Pelle passou o dedo pela superfície macia e gordurosa. Estava de volta ao seu local habitual em Gamlebyen, mas era uma perda de tempo, era o período calmo do verão e as viagens que surgiam no ecrã partiam de outros destinos na cidade. Mesmo assim, sempre podia ter esperança. Viu um homem sair pelo portão da velha fábrica. Caminhava com uma finalidade e uma velocidade indiciadoras de que tinha aonde ir e queria chamar o único táxi na praça antes que a luz no tejadilho se apagasse e ele arrancasse. Mas depois estacou subitamente e encostou-se à parede. Dobrou-se. Estava mesmo debaixo de um candeeiro de rua, pelo que Pelle conseguiu ver nitidamente o conteúdo do estômago dele cair no alcatrão. Nem pensar que o deixava entrar no táxi. O tipo permanecia acocorado e vomitava. O próprio Pelle já passara muitas vezes por aquilo e sentiu o travo a bílis na boca só de ver. Depois, o tipo limpou a boca à manga do blusão com capuz, endireitou-se, voltou a colocar a tira do saco ao ombro e prosseguiu em direção a Pelle. Só quando ele já estava próximo é que se apercebeu de que era o mesmo tipo que ele transportara há apenas uma hora. Aquele que não tivera dinheiro suficiente para chegar ao albergue. E, naquele momento, fazia sinal a Pelle de que queria outra corrida. Pelle premiu o botão de fecho centralizado e abriu uma nesga da janela. Esperou que o tipo se aproximasse da lateral da viatura e tentasse em vão abrir a porta.
– Lamento, amigo, não vou fazer esta corrida.
– Por favor?
Pelle olhou para ele. Corriam-lhe lágrimas pelas faces. Só Deus sabia o que teria acontecido, mas o problema não era seu. Pronto, o tipo até podia ter uma história triste para contar, mas não se sobrevivia como taxista em Oslo se se abrisse a porta e deixasse entrar os problemas das outras pessoas.
– Oiça, eu vi-o vomitar. Se vomitar no táxi, vai custar-lhe mil coroas e a mim o rendimento de um dia de trabalho. Além disso, da última vez que esteve neste táxi, estava teso. Por isso vou passar, okay?
Pelle subiu manualmente o vidro e olhou sempre em frente, na esperança de que o rapaz se afastasse sem arranjar problemas, no entanto preparou-se para arrancar caso fosse necessário. Cristo, como lhe doía o pé naquela noite. Viu, pelo canto do olho, o rapaz abrir o saco e tirar algo que encostou à janela.
Pelle virou ligeiramente a cabeça. Era uma nota de mil coroas.
Abanou a cabeça, porém, o tipo permaneceu ali, imóvel.
À espera. Pelle não estava verdadeiramente preocupado, o tipo não tinha dado problemas ao início da noite. Pelo contrário, em vez de insistir para que Pelle o levasse um pouco mais longe, como teria feito a maior parte das pessoas sem dinheiro suficiente, ele agradecera-lhe quando parara para o deixar sair quando o taxímetro chegara à quantia que ele lhe tinha dado. Agradecera-lhe de uma forma tão sincera que Pelle se sentira culpado por não o ter levado até ao albergue – só teria demorado mais dois minutos. Pelle suspirou e premiu o botão que destrancava as portas.
O tipo instalou-se no banco traseiro.
– Muito obrigado, muitíssimo obrigado.
– Muito bem. Para onde vamos?
– Primeiro até Berg, se faz favor. Vou só deixar uma coisa, por isso agradecia-lhe que esperasse. Depois para o Centro Ila. Vou pagar-lhe adiantado, como é óbvio.
– Não é necessário – disse Pelle, ligando o motor. A mulher dele tinha razão, ele era bom demais para este mundo.
PARTE TRÊS
21
Eram dez da manhã e há muito tempo que o sol banhava a Waldemar Thranes Gate quando Martha estacionou o Golf descapotável. Saiu e caminhou com passos ligeiros, passando pela pastelaria, até à entrada do café do Centro Ila. Reparou que alguns homens – e até algumas mulheres – a olharam quando passou. O facto em si até nem era invulgar. Naquele dia, porém, parecia despertar mais atenção. Atribuiu-o à sua extraordinária boa disposição, no entanto não lhe ocorria nenhuma razão em concreto para ela. Tivera uma discussão com a sua futura sogra sobre a data do casamento, com Grete – a gerente do albergue – sobre o pessoal e com Anders sobre praticamente tudo. Talvez ela estivesse de bom humor porque era o seu dia de folga, porque Anders tinha ido passar o fim de semana com a mãe à cabana e porque tinha todo aquele sol só para si durante dois dias inteiros.
Quando entrou no café, viu todas as cabeças paranoicas levantarem-se. Todas exceto uma. Ela sorriu, acenou quando as pessoas a chamaram e foi ter com as duas raparigas por detrás do balcão. Entregou uma chave a uma delas.
– Vocês vão sair-se bem. Vão conseguir dar conta do recado. Lembrem-se de que vocês são duas.
A rapariga anuiu, mas parecia pálida.
Martha serviu-se de uma chávena de café. Ficou ali de pé, de costas para a sala. Sabia que falara um pouco mais alto do que era necessário. Virou-se e sorriu, como se surpreendida quando correspondeu ao olhar dele. Dirigiu-se à mesa onde ele estava sentado, sozinho. Levou a chávena de café aos lábios, falou por cima dela.
– Levantaste-te cedo?
Ele arqueou um sobrolho e ela apercebeu-se da aparente idiotice do seu comentário; já passava das dez horas.
– A maioria das pessoas tende a levantar-se muito tarde – apressou-se a acrescentar.
– Sim, é verdade.
Ele sorriu.
– Ouve, só queria pedir desculpa pelo que aconteceu ontem.
– Ontem?
– Sim. O Anders não costuma ser assim, mas às vezes... Seja como for, ele não tinha o direito de falar contigo daquela maneira. Chamar-te agarrado e... bem, tu sabes.
Stig abanou a cabeça.
– Não precisas de pedir desculpa, não fizeste nada de errado. Nem sequer o teu namorado. Eu sou um agarrado.
– E eu sou uma péssima condutora. Isso não significa que deixe que as pessoas mo atirem à cara.
Ele soltou uma gargalhada. Ela reparou que a gargalhada lhe amenizava as feições, lhe conferia um ar mais arrapazado.
– E, no entanto, continuas a conduzir, pelo que vejo. – Fez um gesto com a cabeça na direção da janela. – É o teu carro?
– É, sei que está a cair aos bocados, mas gosto da independência e da liberdade que ele me proporciona. Não achas?
– Não sei, nunca conduzi um carro.
– Nunca? A sério?
Ele encolheu os ombros.
– Isso é muito triste – disse ela.
– Triste?
– Há lá coisa melhor do que conduzir um descapotável ao sol e com a capota descida.
– Até para um...
– Sim, até para um agarrado. – Deu uma gargalhada. – A melhor viagem que alguma vez farás, vai por mim.
– Então, espero que um dia me leves a dar um passeio.
– Claro – disse ela. – E que tal se fosse agora?
Reparou na ligeira surpresa no olhar dele. A sugestão saíra de forma impulsiva. Sabia que os outros estavam a observá-los. E daí? Era capaz de ficar sentada horas com os outros residentes, a falar sobre os problemas pessoais deles sem que ninguém tivesse nada que ver com isso; muito pelo contrário, fazia parte do seu trabalho. E, como naquele dia estava de folga, podia passá-lo com quem lhe apetecesse, não podia?
– Claro – respondeu Stig.
– Só disponho de algumas horas – afirmou Martha, consciente de um tom levemente agitado na sua voz. Estava já com dúvidas?
– Desde que eu possa experimentar – disse ele. – Conduzir. Parece-me divertido.
– Conheço um sítio. Vem daí.
Quando saíram, Martha sentiu todos os olhares cravados em si.
Stig estava tão concentrado que ela não pôde deixar de se rir. Curvado e agarrado ao volante, ia descrevendo com incrível lentidão círculos largos à volta do parque de estacionamento em Økern, que estava deserto aos fins de semana.
– Muito bem – disse ela. – Agora experimenta conduzir aos oitos.
Ele fez o que ela dissera e acelerou um pouco o motor, mas quando as rotações aumentaram, ele tirou instintivamente o pé.
– Outro dia, a Polícia apareceu por lá – disse Martha. – Queriam saber se tínhamos distribuído alguns ténis novos. Foi por causa do homicídio da Iversen, não sei se ouviste falar.
– Sim, li sobre isso – disse ele.
Ela olhou-o. Agradava-lhe que ele andasse a ler. A maioria dos residentes nunca lia uma única linha, não assimilava qualquer notícia, não sabia quem era o primeiro-ministro ou o que fora o 11 de Setembro. No entanto, sabiam qual era o preço aproximado das anfes em coroas fosse onde fosse, a pureza da heroína e as percentagens dos principios ativos de qualquer novo fármaco.
– E por falar na Iversen, não era esse o nome do homem que talvez conseguisse arranjar-te um emprego?
– Era. Eu fui lá, mas ele não tinha nada neste momento.
– Oh, que pena.
– Sim, mas eu não vou desistir, tenho mais nomes na minha lista.
– Ótimo! Portanto, tens uma lista?
– Sim, tenho.
– Porque não tentamos meter outras mudanças?
Duas horas depois, desciam acelerados a Mosseveien. Era ela quem conduzia. De um lado, o Fiorde de Oslo brilhava ao sol. Ele dera mostras de aprender rapidamente. Houvera algumas tentativas falhadas com a mudança de velocidade e a embraiagem, mas assim que o problema fora resolvido, até parecia que se limitara a programar o cérebro para se recordar de qualquer ação que tivesse resultado e repetia-a, automatizava-a. Ao fim de três tentativas de arranques em subida, já conseguia fazer o ponto da embraiagem sem usar o travão de mão. E, quando compreendeu a geometria do estacionamento em paralelo, dominou-a com uma destreza quase irritante.
– O que é isso?
– Depeche Mode – disse ele. – Gostas?
Ela escutou a entoação, as partes a duas vozes e o ritmo mecânico.
– Gosto – respondeu ela, aumentando o volume do leitor de CD. – Parece muito... britânico.
– É verdade. O que é que ouves mais?
– Hum. Cheerful Dystopia. Como se eles não levassem a sério a sua própria depressão, se é que me faço entender.
Ele riu-se.
– Entendo-te perfeitamente.
Após alguns minutos de autoestrada, ela tomou a saída para a península de Nesoddtangen. As estradas eram cada vez mais estreitas, o trânsito mais reduzido. Ela encostou e parou.
– Estás preparado para a verdadeira cena?
Ele anuiu.
– Sim, estou preparado para a verdadeira cena.
Respondera com uma paixão que a fez desconfiar que se referia a mais do que conduzir simplesmente o carro. Apearam-se e trocaram de lugar. Viu-o sentar-se quase em cima do volante e olhar sempre em frente, concentrado. Ele carregou na embraiagem e engrenou o carro. Começou a acelerar de forma cuidadosa e hesitante.
– Espelho – disse ela, enquanto verificava pessoalmente o retrovisor.
– Não vem ninguém.
– Pisca.
Ele deu um toque no indicador de direção, murmurou «ligado» e soltou delicadamente a embraiagem.
Entraram lentamente na estrada. Com as rotações ligeiramente aceleradas.
– Travão de mão – disse ela e agarrou a alavanca entre ambos para a libertar. Sentiu a mão dele aproximar-se para fazer o mesmo, tocar na sua e estremecer como se se tivesse queimado.
– Obrigado – disse ele.
Seguiram dez minutos no mais absoluto silêncio. Deixaram um condutor apressado ultrapassá-los. Veio um camião-reboque na direção deles. Ela susteve a respiração. Sabia que na estrada estreita ela devia – embora houvesse espaço para ambos – travar automaticamente e encostar à berma. No entanto, Stig não se deixou intimidar. E o mais curioso foi que ela estava confiante de que ele ia tomar a decisão certa. A capacidade inata que o cérebro masculino possuía de compreender as três dimensões. Viu as mãos dele assentes calmamente no volante. E concluiu que lhe faltava precisamente a caraterística que ela tinha em excesso, a tendência para duvidar das suas próprias decisões. Conseguia ver, pelas magníficas veias grossas nas costas da mão dele, que o seu coração bombeava calmamente o sangue. Para as pontas dos dedos. Viu as mãos dele rodarem rapidamente o volante, mas não demasiado para a direita, quando a deslocação do camião se apoderou do carro.
– Uau! – gargalhou ele, com excitação e trocou um olhar com ela. – Sentiste aquilo?
– Senti – respondeu ela. – Senti aquilo.
Foi-lhe dando indicações até chegarem à ponta de Nesodden e subirem um caminho de gravilha onde estacionaram atrás de uma fila de casas com janelinhas nas traseiras e janelas panorâmicas viradas para o mar.
– Casas de férias, recuperadas, que remontam à década de 1950 – explicou-lhe Martha, enquanto descia à frente dele o caminho através da erva alta. – Cresci numa delas. E esta era a nossa estância secreta...
Tinham chegado a uma ponta rochosa. Lá em baixo ficava o mar e chegavam-lhes os guinchos animados das crianças que tomavam banho. Não muito longe dali havia um cais com o ferryboat de ligação que subia a costa para norte até Oslo, e que, num dia sem nuvens, parecia ficar apenas a algumas centenas de metros. A distância real era de cinco quilómetros, mas a maior parte das pessoas que trabalhava na capital preferia apanhar o ferry a fazer uma viagem de quarenta e cinco quilómetros contornando o fiorde de carro.
Ela sentou-se e inspirou o ar salgado.
– Os meus pais e os amigos deles costumavam chamar «Pequena Berlim» a Nesodden – contou Martha. – Por causa de todos os artistas que se instalaram aqui. Era mais barato viver numa cabana com correntes de ar do que em Oslo. Se a temperatura descesse bastante abaixo de zero, as pessoas reuniam-se na casa menos fria. Que era a nossa. Ficavam acordadas e bebiam vinho tinto até de manhã, porque não havia colchões suficientes para todos dormirem. Depois, tomávamos um bom pequeno-almoço juntos.
– Muito bonito.
Stig sentara-se ao lado dela.
– Sim, era. As pessoas olhavam umas pelas outras.
– Tão idílico.
– Isso já não sei. De vez em quando discutiam sobre dinheiro, criticavam os trabalhos uns dos outros ou dormiam com as mulheres uns dos outros. Mas era um local animado, emocionante. A minha irmã e eu acreditávamos mesmo que vivíamos em Berlim, até que o meu pai me mostrou no mapa onde ficava a verdadeira Berlim. E explicou que era muito longe, mais de mil quilómetros. Mas um dia haveríamos de ir até lá. E visitaríamos a Porta de Brandenburgo25 e o Palácio de Charlottenburg26, onde eu e a minha irmã seríamos princesas.
– E chegaste a ir lá?
– À verdadeira Berlim? – Martha abanou a cabeça. – Os meus pais nunca tiveram muito dinheiro. E não viveram até serem muito velhos. Eu tinha dezoito anos quando eles morreram e tive de cuidar da minha irmã. Mas sempre sonhei com Berlim. De tal forma, que já nem sequer tenho a certeza se existe de verdade.
Stig anuiu lentamente, fechou os olhos e deitou-se de costas na erva.
Ela olhou para ele.
– Porque não ouvimos mais um pouco da tua música?
Ele abriu um olho. Semicerrou-o.
– Depeche Mode? O CD está no leitor do carro.
– Passa-me o teu telemóvel – pediu ela.
Ele assim fez e ela começou a premir botões. Não tardou, principiaram a sair sons de respiração rítmica dos pequenos altifalantes. Depois a voz inexpressiva: Deixa que te leve numa viagem... Stig ficou tão estupefacto que ela não pôde deixar de se rir.
– Chama-se Spotify – disse ela, colocando o telemóvel entre ambos. – Podes ouvir música através da Internet. Tudo isto é novidade para ti, não é?
– Não nos deixam ter telemóveis na prisão – respondeu ele, pegando avidamente no telemóvel.
– Na prisão?
– Sim, cumpri pena.
– Traficavas?
Stig protegeu os olhos do sol.
– Isso mesmo.
Ela assentiu. E sorriu rapidamente. O que lhe passara pela cabeça, logo entre todas as pessoas? Que ele era heroinodependente e um cidadão cumpridor da lei? Ele fizera o que tinha de fazer, tal como todos os outros.
Agarrou no telemóvel dele. Mostrou-lhe a função de GPS e como podia indicar-lhe no mapa onde estavam e como calcular o percurso mais curto para qualquer lugar no mundo. Tirou-lhe uma fotografia usando a função máquina fotográfica, premiu o botão gravar, aproximou o aparelho dele e pediu-lhe que dissesse algo.
– Hoje está um magnífico dia – disse ele.
Ela parou a gravação e reproduziu-a para ele.
– Essa é a minha voz? – perguntou, surpreendido e manifestamente embaraçado.
Ela premiu stop e voltou a reproduzi-la. A voz soou constrangida e metálica através dos altifalantes.
– Essa é a minha voz?
E ela soltou gargalhadas quando viu a expressão no semblante dele. E deu ainda mais gargalhadas quando ele lhe arrancou o telemóvel, encontrou o botão gravar e disse que agora chegara a vez dela, agora ela tinha de dizer algo, não, ela tinha de cantar.
– Não! – protestou. – Prefiro que me tires uma fotografia.
Ele abanou a cabeça.
– As vozes são melhores.
– Porquê?
Ele esboçou um movimento como se fosse puxar o cabelo para trás da orelha. O gesto habitual de alguém que teve o cabelo comprido durante tanto tempo que se esqueceu de que o cortara, pensou ela.
– As pessoas podem mudar de aspeto. Já as vozes mantêm-se iguais.
Ele olhou para o mar e ela seguiu-lhe o olhar. Não viu nada senão a superfície brilhante, algumas gaivotas, rochas e velas ao longe.
– Algumas vozes mudam – disse ela.
Estava a pensar no bebé. No choro através do walkie-talkie. Isso nunca mudava.
– Gostas de cantar – disse ele. – Mas não diante dos outros.
– O que te leva a afirmar isso?
– Tu gostas de música. Mas quando te pedi para cantares, ficaste apavorada, como aquela rapariga no café quando lhe entregaste a chave.
Ela sobressaltou-se. Ele lera-lhe o pensamento?
– De que tinha ela medo?
– De nada – respondeu Martha. – Ela e a outra rapariga tinham de destruir e reorganizar os processos no sótão. Ninguém gosta de ir lá acima. Por isso, o pessoal reveza-se sempre que é preciso fazer um trabalho.
– Mas há algum problema no sótão?
Martha seguiu uma gaivota que pairava suspensa no ar, lá no alto, deslocando-se apenas com uma ligeira oscilação de um lado para o outro. Lá em cima, o vento devia ser muito mais forte do que ali em baixo.
– Acreditas em fantasmas? – perguntou ela, baixinho.
– Não.
– Eu também não. – Apoiara-se nos cotovelos, pelo que não conseguia vê-lo sem se virar. – O Centro Ila parece ser do séc. XIX, não parece? Só que foi construído na década de 1920. De início, era apenas uma vulgar pensão.
– As letras em ferro forjado na fachada.
– Isso mesmo, são dessa altura. Porém, durante a guerra, os Alemães transformaram-na num lar para mães solteiras e respetivos filhos. Existem tantas histórias trágicas daqueles anos que elas deixaram a sua marca nas paredes. Uma das mulheres que por lá passou dera à luz um rapaz e afirmava ter sido um nascimento virginal, algo que as raparigas referiam esporadicamente quando se viam em apuros naquela época. O homem de quem todos suspeitavam era casado e, claro, negava ser o pai. Tinham circulado boatos a seu respeito.
O primeiro, que era um elemento da Resistência. O segundo, que era um espião alemão infiltrado na Resistência e que, por esse motivo, os alemães tinham dado um lugar no lar à mulher e deixado o homem em liberdade. De qualquer forma, uma manhã, o presumível pai foi morto a tiro num elétrico apinhado no centro de Oslo. O assassino nunca chegou a ser identificado. A Resistência afirmou que tinha liquidado um traidor, os Alemães que tinham apanhado um elemento da Resistência. Para que não restassem quaisquer dúvidas, os Alemães penduraram o corpo no cimo do Farol de Kavringen. – Ela apontou para o mar. – Os marinheiros que passavam de dia pelo farol podiam ver o cadáver mirrado que as gaivotas tinham debicado e aqueles que passavam à noite podiam ver a imensa sombra que ele projetava na água. Até que, de repente, o corpo desapareceu. Houve quem dissesse que a Resistência o retirara. Contudo, a partir daquele dia, a mulher começou a enlouquecer e afirmava que o morto a perseguia. Que entrava no quarto dela à noite, que se debruçava sobre o berço do bebé e quando ela lhe gritava que se fosse embora, ele virava-se para ela com buracos negros no lugar onde costumavam estar os olhos.
Stig arqueou um sobrolho.
– Foi esta a história que a Grete, a diretora do Centro Ila, me contou – disse Martha. – De qualquer forma, reza a lenda que o bebé não parava de chorar, mas sempre que as mulheres dos outros quartos se queixavam e mandavam a mulher embalar o filho, ela respondia que a criança chorava pelos dois e iria fazê-lo para todo o sempre. – Martha calou-se. Ia chegar à sua parte preferida da história. – Corria o boato de que a mulher não sabia para que lado trabalhava o pai do seu filho, no entanto, para se vingar por ele ter negado a paternidade, ela denunciara-o aos Alemães como membro da Resistência e dissera à Resistência que ele era um espião.
Uma súbita rajada de vento frio fez Martha estremecer e ela sentou-se e colocou os braços à volta dos joelhos.
– Uma manhã, a mulher não desceu para o pequeno-almoço. Encontraram-na no sótão. Enforcara-se na enorme trave mestra no telhado. É possível ver um entalhe mais claro na madeira onde ela alegadamente amarrou a corda.
– E agora ela assombra o sótão?
– Não faço ideia. Só sei que é complicado estar lá. Não acredito em fantasmas, só que ninguém consegue passar muito tempo naquele sótão. É como se fosse possível detetar a presença do mal. As pessoas sentem dores de cabeça, veem-se forçadas a sair de lá. E, muitas vezes, são novos membros do pessoal ou empreiteiros contratados para fazerem trabalhos de manutenção, pessoas que desconhecem a história. E, não, não existe amianto no isolamento nem nada do género.
Ela observou-o, mas ele não exibia a expressão cética nem o sorrisinho que, em parte, estava à espera de ver. Limitava-se a ouvir.
– Mas não é tudo – prosseguiu ela. – O bebé.
– Sim – disse ele.
– Sim? Conseguiste adivinhar?
– Tinha desaparecido.
Ela olhou-o, estupefacta.
– Como sabias?
Ele encolheu os ombros.
– Não me mandaste adivinhar?
– Algumas pessoas pensam que a mãe o entregou à Resistência na mesma noite em que se enforcou. Outras, que ela matou o filho e o enterrou no quintal para que ninguém lho tirasse. De qualquer forma... – Martha inspirou fundo. – Nunca chegou a ser encontrado. E o mais estranho é que de vez em quando ouvimos um ruído nos nossos walkie-talkies, mas não conseguimos perceber de onde vem. No entanto, pensamos que é...
Pelo ar dela, ele parecia ter adivinhado de novo.
– Um bebé a chorar – disse ela.
– Um bebé a chorar – repetiu ele.
– Muitas pessoas, especialmente quando são novas no albergue, ficam histéricas quando o ouvem, mas a Grete diz-lhes que por vezes os walkie-talkies captam sinais dos monitores de bebés na vizinhança.
– Mas tu não pensas o mesmo?
Martha hesitou.
– Ela pode ter razão.
– Mas?
Outra rajada de vento. Tinham surgido nuvens negras a poente. Martha arrependia-se de não ter trazido um casaco.
– Já trabalho no Centro Ila há sete anos. E quando disseste que as vozes nunca mudam...
– Sim?
– Juro que é o mesmo bebé.
Stig anuiu. Não disse nada, não tentou encontrar uma explicação ou tecer um comentário. Anuiu simplesmente. Ela gostou da atitude dele.
– Sabes o que significam aquelas nuvens? – perguntou ele por fim, levantando-se.
– Que vai chover e está na hora de irmos para casa?
– Não – disse ele. – Que precisamos de ir nadar imediatamente, para termos tempo de secar ao sol.
– Fadiga por compaixão – disse Martha. Estava deitada de costas, a olhar para o céu; tinha ainda o sabor a sal na boca e sentia a rocha quente na pele e através da roupa interior molhada. – Significa que perdemos a capacidade de nos preocuparmos. É tão impensável no setor dos cuidados norueguês, que nem sequer temos uma palavra própria para ela. – Ele não respondeu. E ainda bem, pois Martha não estava realmente a falar com ele, tudo não passava de um pretexto para pensar em voz alta. – Calculo que seja uma maneira de nos protegermos, de desligarmos quando se torna excessivo. Talvez o poço tenha secado, talvez se me tenha acabado o amor. – Refletiu sobre o que dissera. – Não, isso não é verdade. Eu tenho imenso... só não... – Martha viu uma nuvem com a forma da Grã-Bretanha atravessar o céu. Pouco antes de ela cruzar a copa da árvore por cima da sua cabeça, transformou-se num mamute. De muitas maneiras, era como estar deitada no divã do seu terapeuta. Ele era uma daquelas pessoas que ainda usava divã. – O Anders era o rapaz mais corajoso e simpático da escola – disse ela às nuvens. – Capitão da equipa de futebol da escola. Por favor, não me perguntes se ele era presidente da associação de estudantes.
Ela ficou à espera.
– Era?
– Sim.
Desataram ambos às gargalhadas.
– Estavas apaixonada por ele?
– Muito. Ainda estou. Estou apaixonada por ele. É um bom homem. Não é apenas bonito, também está em excelente forma física. Ainda bem que tenho o Anders. Então e tu?
– Então e eu?
– Quantas namoradas já tiveste?
– Nenhuma.
– Nenhuma. – Ela soergueu-se nos cotovelos. – Um tipo bonito como tu? Não acredito.
Stig despira a T-shirt. A sua pele era tão pálida ao sol que quase a ofuscava. Reparou, com alguma surpresa, que ele não tinha marcas recentes de agulha. Calculou que estivessem nas coxas ou nas virilhas.
– A sério? – perguntou ela.
– Beijei algumas raparigas... – Passou a mão pelas marcas antigas, acariciando-as. – Mas esta foi a minha única amante...
Martha olhou para as marcas das agulhas. Também sentiu vontade de passar os dedos por elas. Fazê-las desaparecer.
– Da primeira vez que te entrevistei, disseste que ias deixar – disse ela. – Eu não conto à Grete. Por agora não. Mas tu sabes...
– ...que o centro é só para consumidores ativos.
Ela anuiu.
– Achas que vais conseguir?
– Passar no exame de condução?
Trocaram sorrisos.
– Hoje estou limpo – disse ele. – Amanhã é outro dia.
As nuvens continuavam bastante distantes, mas Martha ouvia um ribombar longínquo, um aviso do que aí vinha. E foi como se também o Sol o soubesse, e brilhasse um pouco mais intensamente.
– Dá-me o teu telemóvel – pediu ela.
Martha premiu gravar. Depois, cantou a canção que o pai costumava tocar para a mãe na guitarra. Por norma, quando as inúmeras festas de verão deles começavam a esmorecer. Ele ficava sentado exatamente onde estavam naquele momento, com a sua guitarra maltratada, dedilhando tão baixinho que quase parava. A canção de Leonard Cohen em que ele dizia que sempre fora o amor dela, que ia viajar com ela, segui-la cegamente, que sabe que ela confia nele porque ele tocou no corpo perfeito dela com a sua mente27.
Ela cantou a letra com voz fraca e frágil. Era sempre assim quando cantava; parecia muito mais fraca e vulnerável do que era. De vez em quando, perguntava-se se era realmente assim, e se a sua outra voz, a voz mais áspera que usava para se proteger, é que não era dela.
– Obrigado – disse ele, quando ela terminou. – Foi mesmo muito bonito.
Ela não se perguntou porque fora embaraçoso. Perguntou-se porque não fora mais embaraçoso.
– Está na hora de regressarmos.
Martha sorriu e devolveu-lhe o telemóvel.
Devia ter calculado que tentar abrir a capota velha e apodrecida era estar a pedi-las, no entanto, queria sentir o ar puro durante a viagem. Foram necessários mais de quinze minutos de trabalho árduo alternado com pensamento prático e força bruta, mas finalmente conseguiram baixá-la. E ela sabia que nunca mais iria conseguir subi-la, sem peças sobressalentes e sem a ajuda de Anders. Quando ela entrou no carro, Stig mostrou-lhe o seu telemóvel. Introduzira Berlim no GPS.
– O teu pai tinha razão – observou. – Da pequena Berlim à grande Berlim são mil e trinta quilómetros. Tempo de viagem previsto: doze horas e quinze minutos.
Ela conduzia. Conduzia acelerada como se tivessem algo urgente que fazer. Ou estivessem a tentar fugir. Olhou pelo espelho retrovisor. O castelo de nuvens brancas sobre o fiorde fez-lhe lembrar uma noiva. Uma noiva a marchar intencional e incontrolavelmente em direção a eles, arrastando um véu de chuva.
Os primeiros pingos pesados caíram sobre eles quando estavam no trânsito denso na Estrada de Circunvalação 3 e ela apercebeu-se imediatamente de que a batalha estava perdida.
– Sai aqui – disse Stig, apontando.
Ela fez o que ele lhe disse e, de repente, encontraram-se numa zona residencial.
– Vira aqui à direita – disse Stig.
Os pingos caíam agora mais densos.
– Onde estamos?
– Em Berg. Estás a ver aquela casa amarela?
– Estou.
– Conheço os donos dela, está vazia. Para no exterior daquela garagem que eu vou abrir a porta.
Passados cinco minutos, estavam sentados no carro, que naquele momento se encontrava estacionado entre ferramentas enferrujadas, pneus gastos e mobiliário de jardim envolto em teias de aranha enquanto viam a chuva cair torrencialmente no exterior da porta da garagem aberta.
– Parece que não vai parar tão depressa – comentou Martha. – E parece-me que a capota não tem recuperação possível.
– Concordo – respondeu Stig. – Que tal uma chávena de café?
– Onde?
– Na cozinha. Sei onde está a chave.
– Mas...
– Esta é a minha casa.
Olhou para ele. Ela não acelerara o suficiente. Não conseguira fazê-lo a tempo. Fosse lá o que fosse, era tarde demais.
– Claro – disse ela.
25 É uma antiga porta da cidade, reconstruída no final do século XVIII como um arco do triunfo neoclássico, e hoje um dos marcos mais conhecidos da Alemanha. (N. da T.)
26 Palácio localizado na cidade de Berlim que serviu, durante muito tempo, de residência de verão da primeira rainha da Prússia, Sophie Charlotte, que deu nome ao próprio palácio. É um dos locais mais visitados na cidade de Berlim, tanto pelo seu palácio como pelos seus belos jardins. (N. da T.)
27 A letra é da canção «Suzanne». (N. da T.)
22
Simon ajustou a máscara de gaze e observou o corpo. Fazia-lhe lembrar algo.
– A Câmara detém a posse e a exploração deste local – disse Kari. – Arrendam salas para ensaios de bandas jovens por tuta e meia.
É preferível cantar sobre ser um gângster do que andar pelas ruas e sê-lo efetivamente.
Simon recordou-se do que era. Jack Nicholson morrera congelado em Shining. Ele fora ver o filme sozinho. Depois dela. E antes de Else. Talvez fosse a neve. O morto parecia estar estendido num amontoado de neve. Uma fina camada de heroína cobria o corpo e a maior parte da divisão. O pó à volta da boca, do nariz e dos olhos do morto entrara em contacto com a humidade e começava a aglomerar-se.
– Um dos elementos da banda que ensaia mais ao fundo do corredor encontrou-o quando iam para casa – disse Kari.
O corpo fora descoberto na véspera à noite, no entanto só naquela manhã, quando Simon chegou mais cedo ao trabalho, é que teve conhecimento de que tinham sido encontradas três pessoas mortas. E de que a Kripos ficara encarregada do caso.
Ou seja, o comissário pedira ajuda à Kripos – o que equivalia a entregar-lhes o caso – sem sequer consultar primeiro a Brigada de Homicídios. O resultado acabaria por ser o mesmo, mas não caíra bem.
– O nome dele é Kalle Farrisen – disse Kari.
Lia em voz alta o relatório preliminar. Simon ligara ao comissário a pedir que lhes fosse enviado. E solicitara acesso imediato ao local do crime. Afinal, ainda era o território deles.
«Simon», dissera o comissário, «dá-lhe uma vista de olhos, claro, mas, por favor, não te envolvas. Já somos ambos demasiado velhos para entrarmos em disputas».
«Tu podes ser demasiado velho», respondera Simon.
«Fui claro, Simon?»
De vez em quando, Simon pensava no assunto. Não havia dúvida sobre qual deles tivera o maior potencial. Onde seguira cada um o seu caminho? Quando tinham decidido quem ia ocupar que cadeira? Quem ia sentar-se na cadeira de espaldar no gabinete do comissário e quem ia ocupar a velha cadeira na Brigada de Homicídios, depois de lhe terem cortado as asas? E que o melhor dos dois acabasse numa cadeira no seu gabinete com uma bala da sua própria arma na cabeça.
– As cordas de guitarra à volta da cabeça dele são do mi agudo e do sol e manufaturadas por Ernie Ball. E o cabo de ligação é fabricado pela Fender – leu Kari.
– E a ventoinha e o radiador?
– O quê?
– Nada. Continua.
– A ventoinha estava ligada. A conclusão preliminar do médico-legista é que o Kalle Farrisen sufocou.
Simon observou o nó no cabo de ligação.
– Parece que o Kalle foi obrigado a inalar a droga que lhe era atirada ao rosto. Não concordas?
– Parece-me que sim – disse Kari. – Ele conseguiu suster a respiração durante um curto período, mas acabou por desistir. As cordas de guitarra impediam-no de desviar a cabeça. Mas ele bem tentou, e é por isso que apresenta ferimentos da corda de guitarra mais fina.
A heroína acaba por ir parar-lhe ao nariz, ao estômago e aos pulmões, é absorvida pela corrente sanguínea, ele começa a sentir-se drogado e continua a respirar. Só que mais tenuemente, porque a heroína o impede de respirar. E, por fim, deixa por completo de respirar.
– Um caso clássico de morte por overdose – disse Simon. – Sucedeu o mesmo a vários clientes dele.
Apontou para o cabo.
– E quem quer que tenha dado este nó é canhoto.
– Não podemos continuar a encontrar-nos desta maneira.
Eles viraram-se.
Åsmund Bjørnstad encontrava-se à porta, com um sorriso sarcástico e duas pessoas atrás de si que transportavam uma maca.
– Queremos levar o corpo agora, por isso, se estão despachados...
– Já vimos tudo o que queríamos – disse Simon, erguendo-se a custo. – Seria possível darmos uma vista de olhos por aí?
– Claro – respondeu o investigador da Kripos, ainda com o seu meio sorriso, indicando-lhes o caminho com um gesto cortês. Simon revirou os olhos na direção de Kari, com ar surpreendido, a qual, por sua vez, arqueou os sobrolhos como se dissesse que ele mudara de atitude.
– Há testemunhas? – perguntou Simon no elevador e olhou para o vidro partido.
– Não – respondeu Bjørnstad. – Mas o guitarrista da banda que o encontrou diz que antes, à tardinha, esteve aqui um tipo. Afirmou tocar numa banda chamada Os Jovens Desesperados, mas nós verificámos e essa banda já não existe.
– Qual era a aparência dele?
– A testemunha afirma que o tipo usava um blusão com capuz que lhe cobria a cabeça. Há imensos jovens a usá-los hoje em dia.
– Portanto, era jovem?
– A testemunha acha que sim. Aí entre os vinte e os vinte e cinco.
– De que cor era o blusão com capuz que usava?
Bjørnstad abriu o seu bloco.
– Cinzento, creio.
As portas do elevador abriram-se, eles saíram cuidadosamente e passaram as pernas por cima dos cordões e bandeirinhas colocados pelos ACC. Encontravam-se quatro pessoas naquele piso. Duas vivas e duas mortas. Simon cumprimentou sumariamente uma das vivas. Exibia uma barba ruiva farfalhuda e estava acocorada sobre um corpo, segurando uma lanterna do tamanho de uma caneta de tinta permanente. O falecido tinha uma ferida grande debaixo de um olho. No chão, uma auréola de sangue vermelho-escuro emoldurava-lhe a cabeça. No cimo da auréola, os salpicos de sangue formavam um padrão que se assemelhava a uma lágrima. Em tempos, Simon tentara explicar a Else que era possível ver beleza no local de um crime. Fora uma vez sem exemplo.
Outra vítima, muito mais corpulenta, jazia na soleira da porta com o tronco para lá dela.
O olhar de Simon percorreu automaticamente as paredes e encontrou um buraco de bala numa delas. Reparou no postigo na porta e no espelho lá em cima no teto. Depois, recuou um passo para dentro do elevador, ergueu o braço direito e apontou. Mudou de ideia e levantou antes o braço esquerdo. Teve de dar um passo para a direita para que o ângulo correspondesse à trajetória de uma bala a atravessar a cabeça e – se o crânio não fizera com que a bala mudasse de direção – a entrar no buraco no reboco. Fechou os olhos. Recentemente, encontrara-se na mesma posição. Nas escadas, à porta da casa dos Iversen. Apontara com a mão direita. Fora também necessário ajustar a sua posição para que o ângulo correspondesse. Mudar um pé para lá do limite das lajes. Para o solo macio. O mesmo solo macio que havia à volta dos arbustos. Mas não existira uma pegada a condizer no solo junto às lajes.
– Minhas senhoras e meus senhores, podemos prosseguir a visita guiada ao interior? – Bjørnstad segurava a porta aberta e esperou que Kari e Simon passassem por cima do corpo e entrassem. – A Câmara arrendou este espaço ao que supunha ser uma agência de bandas e agendamento de espetáculos.
Simon olhou para o interior do cofre vazio.
– O que acha que aconteceu?
– Ocorrência relacionada com gangues – disse Bjørnstad. – Eles entraram na fábrica por volta da hora de fecho. A primeira vítima foi alvejada enquanto estava prostrada no chão; recuperámos a bala das tábuas corridas. A segunda vítima foi atingida quando transpunha a soleira da porta; também ali há uma bala no soalho. Obrigaram o terceiro homem a abrir o cofre. Levaram o dinheiro e as drogas, e depois mataram-no lá em baixo para enviarem uma mensagem à concorrência sobre quem manda agora.
– Estou a ver – disse Simon. – E os invólucros?
Bjørnstad deu uma breve gargalhada.
– Eu sei. O Sherlock Holmes fareja uma ligação ao homicídio da Iversen.
– Não há invólucros vazios?
Åsmund Bjørnstad olhou para Simon, depois para Kari e outra vez para Simon. Então, sorrindo como um mágico ao executar um passe, retirou um saco de plástico do bolso. Agitou-o diante do rosto de Simon. Continha dois invólucros vazios.
– Lamento deitar por terra a sua teoria, velhote – disse ele. – Além disso, os buracos das balas nas vítimas são grandes e indicam um calibre muito maior do que aquele que encontrámos na Agnete Iversen. E termina assim a nossa visita. Espero que tenham gostado.
– Tenho apenas três perguntas a fazer antes de nos irmos embora.
– Venham de lá elas, inspetor-chefe Kefas.
– Onde encontrou os invólucros vazios?
– Junto dos corpos.
– Onde estão as armas das vítimas?
– Elas não tinham armas. Última pergunta?
– O comissário mandou-o mostrar-se cooperante e fazer-nos uma visita guiada?
Åsmund Bjørnstad soltou uma gargalhada.
– Possivelmente através do meu chefe na Kripos. Nós fazemos sempre o que os nossos chefes nos mandam, não fazemos?
– Sim – respondeu Simon. – Se queremos ganhar terreno, então é o que fazemos. Muito obrigado pela visita guiada.
Bjørnstad ainda ficou na sala, porém Kari seguiu Simon. Parou atrás dele quando Simon, em vez de ir direito ao elevador, pediu ao ACC barbudo que lhe emprestasse a sua lanterna e se encaminhou para o buraco de bala na parede. Fez incidir nele a lanterna.
– Já retiraram a bala, Nils?
– Esse buraco deve ser antigo, não encontrámos nenhuma bala aí – disse Nils, enquanto examinava o chão à volta do corpo com uma lupa simples.
Simon acocorou-se, humedeceu as pontas dos dedos e pressionou-as no chão, mesmo debaixo do buraco. Mostrou os dedos a Kari. Esta reparou que havia partículas de reboco agarradas à pele dele.
– Obrigado pelo empréstimo da lanterna – disse Simon, e Nils levantou a cabeça, anuindo vagamente e agarrando na lanterna.
– O que foi aquilo? – perguntou Kari quando as portas do elevador se fecharam diante deles.
– Preciso de um momento para pensar, depois já te digo – respondeu Simon, agora menos formal.
Kari ficou aborrecida. Não por suspeitar que o seu chefe estivesse a ser evasivo, mas porque não conseguia acompanhar o raciocínio dele. E isso era algo a que não estava acostumada. As portas abriram-se e ela saiu. Virou-se e olhou com perplexidade para Simon, que permanecia ainda dentro do elevador.
– Podes emprestar-me o teu berlinde? – perguntou-lhe ele.
Ela suspirou e levou a mão ao bolso. Simon colocou o pequeno berlinde amarelo no meio do chão do elevador. Primeiro, começou a rolar lentamente, depois com cada vez mais velocidade até à frente do elevador, onde desapareceu pelo intervalo entre as portas interior e exterior.
– Ups! – disse Simon. – Vamos lá abaixo à cave procurá-lo.
– Não é insubstituível – disse Kari. – Tenho mais em casa.
– Não estou a referir-me ao berlinde.
Kari apressou-se a tentar alcançá-lo, ainda dois passos atrás. No mínimo. Ocorreu-lhe um pensamento; a oportunidade de outro emprego que devia ter aceitado e onde podia estar naquele momento. Melhor ordenado, mais independência. Sem chefes excêntricos nem corpos malcheirosos. Mas esse momento haveria de chegar; por ora, era apenas uma questão de se munir de paciência.
Encontraram as escadas, o corredor da cave e a porta do elevador. Em contraste com os pisos mais acima, esta era uma simples porta de metal com vidro fosco. Havia uma placa na porta. CASA DAS MÁQUINAS. PROIBIDA A ENTRADA. Simon sacudiu o puxador da porta. Estava trancada.
– Vai rapidamente lá acima às salas de ensaio e vê se encontras um cabo – pediu Simon.
– Que tipo de...
– Qualquer coisa – disse ele e encostou-se à parede.
Ela engoliu um protesto e regressou às escadas.
Dois minutos depois, estava de volta com um cabo de ligação e viu Simon desaparafusar os pinos e retirar o plástico à volta dos fios. De seguida, dobrou o cabo em U e introduziu-o entre a porta do elevador e a ombreira à altura do puxador da porta. Ouviram um estalido forte, e saltaram duas faíscas. Abriu a porta.
– Cristo! – exclamou Kari. – Onde foi que aprendeu isso?
– Quando era miúdo meti-me em apuros – disse Simon, descendo ao poço do elevador, que ficava meio metro abaixo do chão da cave. Olhou para o poço. – Se não tenho sido agente da Polícia...
– Isso não é um bocado arriscado? – disse Kari, sentindo um formigueiro no couro cabeludo. – E se o elevador descer?
No entanto, Simon pusera-se já de gatas e varria o chão de betão com as mãos.
– Precisa de uma luzinha aí em baixo? – perguntou ela, esperando que ele não detetasse a tensão na sua voz.
– Sempre – gargalhou ele.
Kari deixou escapar um gritinho quando ouviu uma pequena pancada e viu que os cabos grossos oleados começavam a mover-se. Mas Simon levantou-se rapidamente, apoiou as palmas das mãos no chão da cave e içou-se para o corredor.
– Vamos – disse ele.
Ela correu atrás dele pelas escadas, transpôs a porta de saída e atravessou a zona de gravilha.
– Espere! – disse-lhe ela antes de ele entrar no carro que tinham estacionado entre dois camiões abandonados. Simon parou e olhou para ela do outro lado do tejadilho do carro.
– Eu sei – disse ele.
– Sabe o quê?
– Que é tremendamente irritante quando o nosso parceiro decide agir por conta própria e não nos dizer o que se passa.
– Tem toda a razão! Nesse caso, quando pensa...
– Mas eu não sou teu parceiro, Kari Adel – respondeu Simon. – Sou teu chefe e teu orientador. Acontece quando tiver de acontecer. Estamos entendidos?
Olhou para ele. Viu a brisa sacudir-lhe o cabelo ridiculamente fino de um lado para o outro no couro cabeludo reluzente. Viu a chispa no seu olhar usualmente afável.
– Entendidos – respondeu ela.
– Toma lá isto.
Ele abriu uma mão e atirou algo por cima do tejadilho do carro. Ela pôs as mãos em concha e apanhou ambas as coisas. Olhou para elas. Uma era o berlinde amarelo. A outra era um invólucro vazio.
– E podes descobrir coisas novas se mudares a tua perspetiva e a sua localização – respondeu ele. – Podes compensar quaisquer ângulos mortos. Vamos.
Ela sentou-se no banco do passageiro, ele ligou o carro e avançou pela gravilha até ao portão. Ela manteve-se de boca fechada. Aguardou. Ele parou e olhou demorada e muito cuidadosamente para a direita e para a esquerda antes de entrar na rua, como costumam fazer os condutores idosos. Kari sempre imaginara que era por causa da diminuição dos níveis de testosterona. No entanto, deu-se conta, naquele momento – quase como uma nova perceção – de que toda a racionalidade se baseava na experiência.
– Pelo menos um tiro foi disparado dentro do elevador – disse ele e posicionou-se atrás de um Volvo.
Ela continuou em silêncio.
– E a tua objeção é?
– Que ela não corresponde à prova – disse Kari. – As únicas balas eram aquelas que mataram as vítimas e foram encontradas mesmo debaixo delas. As vítimas deviam estar deitadas no chão quando foram alvejadas e isso não corresponde ao ângulo, se foram alvejadas de dentro do elevador.
– Não e, além disso, havia uma queimadura de pólvora na pele do tipo que foi atingido na cabeça, que chamuscou as fibras de algodão na camisa à volta do ferimento da bala na outra vítima. O que sugeres?
– Que eles foram alvejados à queima-roupa enquanto estavam deitados. Condiz com os invólucros vazios que foram encontrados ao lado deles no chão.
– Certo. Mas não te parece estranho que os dois homens caíssem primeiro no chão e fossem alvejados depois?
– Talvez tenham ficado tão assustados quando viram a arma que entraram em pânico e tropeçaram. Ou então receberam ordens para se deitarem no chão antes de serem executados.
– Bem pensado. Mas reparaste no sangue à volta do corpo mais próximo do elevador?
– Que havia imenso?
– Sim.
Ele falara com uma lentidão que a levou a perceber que vinha aí algo mais.
– O sangue brotou da cabeça da vítima e formou uma poça – disse ela. – Quer dizer que ela não foi mexida depois de ter sido alvejada.
– Sim, mas havia salpicos no sangue ao redor da poça. Como se tivesse esguichado. Por outras palavras, o sangue que jorrou cobriu partes da zona para onde tinha esguichado primeiro da cabeça. E, tendo em conta a extensão e o alcance do jorro de sangue, a vítima devia ter estado de pé quando foi alvejada. Era por isso que o Nils andava de roda dele com a lupa: não conseguia obter provas de sangue que correspondessem.
– Mas você consegue?
– Consigo – limitou-se Simon a responder. – O assassino disparou o primeiro tiro de dentro do elevador, a bala atravessou a cabeça da vítima e deixou o buraco que viu na parede. Enquanto o invólucro caía no chão do elevador...
– ...rebolava por causa da inclinação do chão, caía pelo intervalo e descia pelo poço do elevador.
– Sim.
– Mas... a bala na tábua corrida...
– O assassino alvejou-o novamente à queima-roupa.
– O ferimento de entrada...
– O nosso amigo da Kripos está convencido de que o assassino usou uma bala de calibre maior, no entanto, se ele percebesse mais de balística tinha reparado que os invólucros vazios eram de balas de pequeno calibre. Portanto, na realidade, não existe um ferimento de entrada, mas dois mais pequenos e sobrepostos que o assassino tentou fazer parecer que eram um só. Foi por isso que ele levou a primeira bala que deixou o buraco na parede.
– Então, não se tratava de um antigo buraco de bala, como julgou o ACC – afirmou Kari. – Era por isso que havia pó de argamassa recente no chão mesmo por baixo.
Simon sorriu. Ela percebeu que ele tinha ficado satisfeito consigo. E apercebeu-se, para sua surpresa, de que ficara mais animada.
– Repare na descrição do tipo e no número de série no invólucro da bala. É um tipo de munição diferente do que encontrámos no primeiro andar. Significa que o tiro que o assassino disparou do elevador proveio de uma arma diferente daquela que usou posteriormente nas vítimas. Penso que a balística irá provar que elas vieram das armas das próprias vítimas.
– Das próprias vítimas?
– Esta é mais a sua especialidade, mas tenho dificuldade em acreditar que estivessem três tipos desarmados num antro de droga. O assassino levou consigo as armas deles para que nós não descobríssemos que ele as tinha usado.
– Tem razão.
– A questão é – referiu Simon, parando atrás de um elétrico –, logicamente, porque é tão importante para ele que não encontremos a primeira bala e o invólucro vazio.
– Não é óbvio? A marca no percussor dava-nos o número de série da arma e o Registo Nacional de Armas levar-nos-ia a...
– Errado. Olha para a parte de trás do invólucro. Não tem nenhuma marca. Ele estava a usar uma arma mais antiga.
– Muito bem – disse Kari, lembrando a si própria que nunca mais deveria voltar a usar a palavra «óbvio». – Nesse caso, não sei o que é, mas ou muito me engano, ou vai contar-me...
– Vou. O invólucro vazio que tens na mão é o mesmo tipo de munição usado para alvejar a Agnete Iversen.
– Estou a ver. Mas estava a dizer...?
– Estou convicto de que o assassino tentou encobrir que também matou a Agnete Iversen – afirmou Simon e parou tão bruscamente quando o semáforo passou a amarelo que o carro de trás buzinou. – A razão pela qual ele levou o invólucro vazio da casa da Iversen não foi, como julguei inicialmente, porque tinha uma marca do percussor. Foi porque ele já estava a planear uma segunda morte e a esforçar-se por minimizar o risco de conseguirmos estabelecer uma ligação. Aposto que o invólucro vazio que o assassino levou consigo de casa da Iversen era da mesma série que aquele que tens aqui.
– O mesmo tipo de munição, mas é muito comum, não é?
– É.
– Nesse caso, como tem tanta certeza de que existe uma ligação?
– Não sei muito bem – disse Simon, olhando para o semáforo como se fosse uma bomba-relógio. – Mas só dez por cento da população é canhota.
Ela anuiu. Tentou raciocinar por si. Desistiu. Suspirou.
– Passo, desisto mais uma vez.
– O Kalle foi amarrado ao radiador por alguém que é canhoto. A Agnete Iversen foi morta por alguém que é canhoto.
– A primeira ainda compreendo. Mas a segunda...
– Eu devia ter percebido isso muito mais cedo. O ângulo da entrada até à parede da cozinha. Se a bala que matou a Agnete Iversen tivesse sido disparada por um assassino destro e do local que supus inicialmente, ele tinha de estar de um lado do caminho lajeado e haveria pegadas de um dos sapatos dele no solo macio.
A resposta óbvia é que ele tinha ambos os pés nas lajes porque estava a disparar com a mão esquerda. Admito o meu mau trabalho de polícia.
– Deixe-me ver se percebi bem – afirmou Kari, apoiando o queixo nas palmas das mãos e fechando os olhos. – Existe uma ligação entre a Agnete Iversen e as três vítimas aqui. E o assassino esforçou-se muito para ter a certeza de que nós não nos apercebíamos disso porque tem medo de que seja precisamente essa ligação que permita identificá-lo.
– Muito bem, agente Adel. Mudou a sua perspetiva e a localização, e agora já consegue ver.
Kari ouviu buzinar furiosamente e abriu de novo os olhos.
– O semáforo está verde – disse ela.
23
Já não chovia com tanta intensidade, no entanto Martha cobrira a cabeça com o blusão enquanto via Stig ir buscar a chave e abrir a porta da cave. Esta, à semelhança da garagem, estava cheia de objetos que contavam a história de uma família: mochilas, estacas de tenda, um par de botas vermelhas em mau estado, que pareciam ter sido usadas em algum desporto, talvez boxe. Um trenó. Um corta-relva manual que fora substituído por um movido a combustível que se encontrava na garagem. Uma arca frigorífica grande e retangular. Amplas prateleiras com garrafas de licor e frascos de compota unidos por teias de aranha, e um prego com uma chave e uma etiqueta cujas letras sumidas teriam em tempos indicado a sua serventia. Martha estacou junto à fila de esquis, alguns deles ainda cobertos com a lama de uma viagem para esquiar na Páscoa. Um dos esquis, o mais comprido e largo, estalara ao comprimento.
Quando entraram na casa, Martha apercebeu-se imediatamente de que há anos não vivia ali ninguém. Talvez fosse o cheiro, o pó ou talvez a camada invisível do tempo. E a sua teoria confirmou-se quando entraram na sala de estar. Não conseguia ver um único objeto que tivesse sido fabricado na última década.
– Vou fazer um café – anunciou Stig e dirigiu-se à cozinha adjacente.
Martha olhou para as fotografias na prateleira por cima da lareira.
Uma fotografia de casamento. Era extraordinária a parecença, especialmente com a noiva.
Outra fotografia – provavelmente tirada uns anos mais tarde – mostrava-os com outros dois casais. Martha desconfiava que eram os homens que ligavam os casais um ao outro, e não as mulheres. Tinha que ver com a semelhança que apresentavam entre si. As posturas idênticas, os sorrisos confiantes, a forma como preenchiam o espaço, como machos alfa – marcando tranquilamente o respetivo território. Iguais, pensou ela.
Entrou na cozinha. Stig estava de pé, de costas para ela, debruçado sobre o frigorífico.
– Encontraste algum café? – perguntou ela.
Ele virou-se, arrancou rapidamente um Post-it amarelo da porta do frigorífico e guardou-o no bolso das calças.
– Claro que sim – disse ele e abriu o armário por cima do lava-loiça. Mediu o café para um filtro, deitou água na máquina de café e ligou-a com movimentos rápidos e familiares. Despiu o blusão e pendurou-o nas costas de uma das cadeiras da cozinha. Não naquela que se encontrava mais perto de si, mas na que estava mais próxima da janela. A sua cadeira.
– Já viveste aqui – afirmou ela.
Ele anuiu.
– És muito parecido com a tua mãe.
Ele esboçou um sorriso irónico.
– É o que as pessoas diziam.
– Diziam?
– Os meus pais já não estão vivos.
– Sentes a falta deles?
Viu-o de imediato no rosto dele. Como aquela pergunta simples, aparentemente banal, o atingira como uma cunha numa abertura que ele se esquecera de vedar. Piscou duas vezes os olhos e abriu e fechou a boca, como se a dor fosse tão inesperada e tão súbita que ele perdera a capacidade da fala. Anuiu e virou-se para a máquina de café, ajustando o recipiente como se não estivesse bem assente num bico de fogão.
– O teu pai tem um ar muito autoritário naquelas fotografias.
– E era.
– De uma maneira boa?
Virou-se para ela.
– Sim, de uma maneira boa. Ele cuidou de nós.
Ela anuiu. Pensou no seu próprio pai, que fora o oposto.
– E precisavas que cuidassem de ti?
– Precisava. – Esboçou um sorriso rápido. – Precisava que cuidassem de mim.
– O que é? Estás a pensar em alguma coisa.
Ele encolheu os ombros.
– O que é? – insistiu ela.
– Oh, vi-te olhar para o esqui partido.
– E o que tem isso?
Ele olhou distraidamente para o café que começara a cair na cafeteira.
– Na Páscoa, costumávamos ir sempre visitar o meu avô, lá acima a Lesjaskog. Havia uma pista de saltos de esqui onde o meu pai era o detentor do recorde. E o anterior pertencia ao meu avô. Eu tinha quinze anos e treinara todo o inverno, para tentar estabelecer um novo recorde. Só que, naquele ano, a Páscoa calhou mais tarde e foi amena e, quando chegámos lá acima à casa do meu avô, já quase não havia neve ao fundo da pista, onde o sol incidia e havia ramos e pedras à mostra. Mesmo assim, eu tinha de tentar.
Lançou um olhar rápido a Martha, que anuiu para o encorajar.
– O meu pai sabia o quanto eu queria tentar, mas aconselhou-me a não arriscar, era demasiado perigoso. Então, eu limitei-me a assentir e convenci um rapaz de uma quinta vizinha a ser minha testemunha e a medir o comprimento. Ele ajudou-me a espalhar mais neve na zona onde eu tencionava aterrar, e depois subi a correr até ao cimo da colina, coloquei os esquis que o meu pai herdara do pai dele, e iniciei a descida. A colina estava incrivelmente escorregadia, mas eu comecei bem. Na verdade, bem demais. Vinha pelo ar. Sentia-me como uma águia, não queria saber de nada porque era isto, era exatamente aquilo que importava, nada podia ser superior àquilo. – Martha reparou que ele tinha os olhos brilhantes. – Aterrei cerca de quatro metros para lá do local onde tínhamos espalhado a neve. Os esquis atravessaram a neve derretida e uma pedra pontiaguda abriu o meu esqui como se cortasse uma banana ao meio.
– E o que te aconteceu?
– Virei os esquis para dentro. Abri um sulco na neve derretida e muito para lá dela.
Alarmada, Martha levou a mão à clavícula.
– Santo Deus. Ficaste ferido?
– Cheio de nódoas negras. E encharcado até aos ossos. Mas não parti nada. E mesmo que tivesse partido, provavelmente não me aperceberia porque a minha única preocupação era: o que vai o meu pai dizer? Tinha feito algo que ele me desaconselhara. E tinha-lhe dado cabo do esqui.
– E o que te disse ele?
– Não disse muito, perguntou-me apenas qual o castigo que eu considerava adequado.
– E o que respondeste?
– Sugeri que me pusesse de castigo três dias. Mas ele disse que estávamos na Páscoa, dois dias seriam suficientes. Depois da morte do meu pai, a minha mãe contou-me que, enquanto eu tinha estado de castigo, ele convencera o rapaz que trabalhava na quinta a mostrar-lhe onde eu aterrara e a contar-lhe toda a história um sem-fim de vezes. E que ele se ria sempre tanto que até chorava. Mas a minha mãe obrigou-o a prometer que não me contava, que isso só me encorajaria a cometer mais loucuras. Então, resolveu trazer o esqui para casa a pretexto de querer consertá-lo. Mas a minha mãe disse-lhe que era um absurdo, que ele era a sua lembrança mais preciosa.
– Posso ir vê-lo outra vez?
Ele serviu café para ambos e levaram consigo as chávenas até à cave. Ela sentou-se em cima da arca frigorífica e observou-o enquanto ele lhe mostrava o esqui. Um pesado esqui branco fabricado por Splitklein, com seis sulcos na parte de baixo. E ela pensou que tinha sido um dia muito estranho. Sol e aguaceiros. O mar ofuscante e a cave escura e fria. Um estranho que ela tinha a sensação de ter conhecido a vida inteira. Tão longe. Tão perto. Tão certo. Tão errado...
– E estavas certo em relação ao salto? – perguntou ela. – Não havia mesmo nada superior a isso?
Ele inclinou a cabeça para o lado, pensativo.
– O meu primeiro chuto. Esse foi superior.
Ela batia cuidadosamente com os calcanhares na arca frigorífica. Se calhar o frio vinha de lá. E ocorreu-lhe que a arca devia estar ligada à corrente: brilhava uma luzinha vermelha entre a pega e o buraco da fechadura da arca.
– Bem, pelo menos estabeleceste um novo recorde – observou ela e abanou a cabeça enquanto sorria. – Não estabeleceste?
– Um salto não é válido quando caímos, Martha – disse ele e bebeu um gole de café.
Ao ouvi-lo dizer o seu nome, ela sentiu-se percorrida por um frémito.
– Nesse caso, tiveste de continuar a saltar. Porque os rapazes reveem-se nos pais e as filhas nas mães.
– Achas mesmo?
– Todos os filhos acreditam que um dia vão ser iguais aos pais, não te parece? E é por isso que ficam tão desiludidos quando se apercebem das fraquezas do pai; pensam que os esperam os seus próprios fracassos, as suas próprias derrotas futuras. E, por vezes, o choque é tão demolidor que desistem antes sequer de terem começado.
– Foi o que aconteceu contigo?
Martha encolheu os ombros.
– A minha mãe nunca devia ter continuado casada com o meu pai. Mas ela escolheu conformar-se. Uma vez atirei-lho à cara quando discutimos sobre qualquer coisa que ela não me queria deixar fazer, já nem me lembro do que era. Gritei-lhe que era injusto negar-me a felicidade por ela a ter negado a si própria. Nunca me arrependi tanto em toda a minha vida de lhe ter dito aquelas palavras e nunca hei de esquecer a sua expressão magoada quando respondeu: «Porque corria o risco de perder a única coisa que me traz mais felicidade. Tu.»
Stig assentiu e olhou pela janela da cave.
– Por vezes, enganamo-nos quando julgamos saber a verdade sobre os nossos pais. Talvez eles não fossem fracos. Talvez tivesse acontecido algo que te deu a impressão errada. E se eles fossem fortes? E se eles estivessem dispostos a deixar manchar o seu nome, decidindo despojar-se de qualquer honra, assumir a culpa, salvar aqueles que amavam? E se eles eram assim tão fortes, talvez tu também fosses forte.
A tremura na voz dele era quase impercetível. Quase. Martha esperou que ele voltasse a olhar para ela, antes de perguntar:
– Afinal, o que é que ele fez?
– Quem?
– O teu pai.
Viu a maçã de Adão dele subir e descer. Viu-o pestanejar mais rapidamente. Comprimir os lábios. Viu a vontade nele. Viu-o ficar atento à aproximação do ponto de partida. Ele podia interromper a queda atirando-se para o lado.
– Deixou um bilhete de suicídio antes de o matarem – disse Sig. – Para nos salvar, a mim e à minha mãe.
Martha sentiu-se zonza, enquanto ele continuava a falar. Ela podia tê-lo levado a lançar-se no precipício, mas ia cair com ele. E, naquele momento, não havia volta ao ponto em que podia apagar o que ficara a saber. Lá no fundo, soubera mesmo o que estava a fazer? Quisera mesmo esta agitação desenfreada, esta queda livre?
Naquele fim de semana, Stig e a mãe tinham ido a um torneio de luta livre em Lillehammer. Por norma, o pai acompanhava-os, no entanto, dissera que precisava de ficar em casa, que tinha uma coisa importante a fazer. Stig vencera na sua categoria de peso e, quando chegaram a casa, correra para o escritório do pai para lhe dar a novidade. Encontrara o pai sentado de costas para ele, com a cabeça apoiada na secretária. A princípio, Stig julgou que o pai tinha adormecido enquanto trabalhava. Depois viu a arma.
– Eu só tinha visto aquela arma uma vez. O meu pai tinha por hábito escrever no seu diário no escritório, um diário com capa de pele preta e páginas amareladas. Quando eu era pequeno, ele costumava dizer que era a sua confissão. Eu pensava que confessar era apenas um sinónimo de escrever, até ao dia em que, com onze anos, o meu professor de Religião me disse que confessar é contar os pecados a alguém. Naquele dia, quando cheguei a casa da escola, dirigi-me sorrateiramente ao escritório e encontrei a chave da secretária: sabia onde ele a guardava. Queria conhecer os pecados do meu pai. Abri...
Martha inspirou como se fosse ela quem contava a história.
– Mas o diário não estava lá. Em vez disso, encontrei uma pistola preta antiga. Tranquei a gaveta, voltei a guardar a chave e saí sorrateiramente. E senti-me envergonhado. Tentara espiar o meu próprio pai, denunciá-lo. Nunca contei a ninguém nem nunca fiz mais nenhuma tentativa de descobrir onde ele guardava o diário. Porém, naquele fim de semana, quando estava por detrás do meu pai no escritório, apercebi-me. Era o meu castigo pelo que fizera. Levei a mão ao pescoço dele para o despertar. Não foi só o facto de ele não estar quente, foi a frieza que o seu corpo exsudava, uma espécie de morte hirta e gélida como o mármore. E percebi que a culpa era minha. Foi então que vi a carta...
Martha olhou para a veia no pescoço dele enquanto lhe ia contando que a lera. Vira a mãe de pé à entrada. Disse à mãe que a sua primeira reação fora rasgar a carta, fingir que nunca tinha existido. No entanto, faltara-lhe a coragem para o fazer. E quando a Polícia chegou, ele entregara-a aos agentes. E percebeu, só de olhar para eles, que também tinham ficado com vontade de a rasgar. A veia tornou-se saliente como se ele fosse um cantor inexperiente. Ou alguém que não estava acostumado a falar muito.
A mãe dele começara a tomar os antidepressivos que o médico lhe receitara. Depois outros comprimidos por iniciativa própria. No entanto, como ela gostava de dizer, nada resultava melhor nem mais depressa do que o álcool. Então, começara a beber. Vodca ao pequeno-almoço, almoço e jantar. Ele tentara cuidar dela, fazê-la largar os comprimidos e a bebida. Para tal, fora obrigado a abandonar a luta livre e outras atividades extracurriculares. Os seus professores tinham ido lá a casa, tocado à campainha e perguntado por que motivo ele, que costumava ter tão boas notas, andava a fazer gazeta, só que ele expulsara-os. O estado de saúde da mãe agravara-se, ficando cada vez mais desequilibrada e, inclusivamente, com tendências suicidas. Quando ele tinha dezasseis anos, encontrara uma seringa no meio dos comprimidos enquanto arrumava o quarto da mãe. Percebera o que era. Ou, pelo menos, para que servia. Cravara-a na própria coxa e tudo ficara melhor. No dia seguinte, descera até à Plata e comprara a primeira dose. Passados seis meses, tinha vendido tudo o que havia em casa que podia ser facilmente convertido em dinheiro e roubara a sua pobre mãe cega e indefesa. Não queria saber de nada, muito menos de si próprio, mas precisava de dinheiro para afastar a dor. Como ainda não tinha dezoito anos e não podia ser enviado para uma prisão para adultos, começara a sustentar o seu vício confessando pequenos furtos e assaltos dos quais os criminosos mais velhos eram acusados. Quando fez dezoito anos, essas propostas cessaram e quando a pressão, a constante pressão para arranjar dinheiro se agravou, tinha aceitado ser detido por dois homicídios em troca do fornecimento de drogas enquanto estava na prisão.
– E agora cumpriste a tua pena? – disse ela.
Ele anuiu.
– Podes crer que cumpri.
Ela desceu da arca frigorífica e abeirou-se dele. Nem pensara, era tarde demais para isso. Estendeu a mão e tocou-lhe na veia do pescoço. Ele fitou-a com enormes pupilas negras que quase enchiam a íris. Depois, ela abraçou-o pela cintura e ele pôs os braços à volta dos ombros dela, como dois dançarinos que não conseguem decidir quem conduz quem. Permaneceram assim durante um bocado, depois ele cingiu-a a si. Estava a arder, devia ter febre. Ou seria ela? Fechou os olhos, sentiu o nariz e os lábios dele no seu cabelo.
– Vamos lá para cima – murmurou ele. – Tenho uma coisa para ti.
Voltaram à cozinha. Lá fora, parara de chover. Ele tirou algo do bolso do blusão, que pendurou na cadeira da cozinha.
– Estes são para ti.
Os brincos eram tão bonitos que inicialmente ela ficou sem palavras.
– Não gostas deles?
– São lindíssimos, Stig. Mas como foi que tu... Roubaste-os?
Ele fitou-a com ar muito sério, sem responder.
– Desculpa, Stig. – Ela tinha as ideias baralhadas e as lágrimas marejaram-lhe os olhos. – Sei que já não consomes, mas percebo que os brincos pertenceram a alguém...
– Ela já não está viva – interrompeu-a Stig. – E algo tão belo devia ser usado por alguém que o é.
Martha pestanejou, confusa. Depois fez-se luz.
– Eles pertenciam... eles eram... – Ergueu o olhar para ele, meia cega pelas lágrimas. – Da tua mãe.
Ela fechou os olhos, sentiu a respiração dele no seu rosto.
A mão dele desceu-lhe pela face, a garganta, o pescoço. A mão que ela tinha livre avançou para o flanco dele, querendo repeli-lo. Atraí-lo mais. Sabia que há muito se tinham beijado na imaginação deles. Centenas de vezes, pelo menos, desde a primeira vez que se encontraram. No entanto, foi diferente quando os seus lábios finalmente se uniram e ela foi percorrida por um choque elétrico. Permaneceu de olhos fechados, sentiu os seus lábios, tão macios, as mãos dele a deslizarem até ao fundo da sua cintura, a barba crescida, o cheiro e o gosto dele. Ela queria-o, queria-o na totalidade. Porém, o toque também a despertou, arrancou-a do belo sonho onde se deixara perder, porque não tinha havido consequências. Pelo menos até àquele momento.
– Não posso – murmurou ela, com voz trémula. – Agora tenho de ir, Stig.
Ele libertou-a e ela desviou-se rapidamente. Abriu a porta da frente, todavia, estacou antes de sair.
– A culpa foi minha, Stig. Não podemos voltar a encontrar-nos assim. Compreendes? Nunca.
Ela fechou a porta antes de ter tempo de ouvir a resposta dele. O Sol abrira caminho à força através da camada de nuvens e o vapor elevava-se do alcatrão preto brilhante. Ela saiu para o ar húmido.
Pelos binóculos, Markus viu a mulher correr para a garagem, pôr a trabalhar o velho Golf em que tinham chegado e fazer marcha-atrás, ainda com a capota aberta. Ela conduzia tão acelerada que ele não conseguia focá-la convenientemente, no entanto parecia que ela vinha a chorar.
Depois, apontou de novo os binóculos para a janela da cozinha. Aproximou a imagem. O homem estava ali de pé, a observá-la. Tinha as mãos crispadas, o maxilar comprimido e as veias sobressaíam-lhe nas têmporas como se sentisse dor. E, no instante seguinte, Markus percebeu porquê. O Filho estendera os braços, abrira as mãos e apoiara-as do lado de dentro da vidraça. Algo cintilava ao sol. Tinha uns brincos cravados na palma de cada mão e desciam-lhe dois fios de sangue pelos pulsos.
24
O gabinete encontrava-se na penumbra. Alguém apagara todas as luzes ao sair, provavelmente convencido de que era o último, e Simon deixara-as ficar assim. Ainda havia luz suficiente nas noites de verão. Além disso, ele tinha um teclado novo com as teclas iluminadas, por isso, não necessitava sequer de acender o candeeiro de leitura. Só o piso deles no edifício de escritórios consumia 250 000 kilowatts-hora por ano. Se conseguissem reduzir o consumo para os 200 000, talvez fosse possível poupar dinheiro suficiente para mais duas viaturas de emergência.
Ia navegando no site da Clínica Howell. As fotografias da clínica oftalmológica não se pareciam nada com a maior parte dos hospitais privados americanos, que faziam lembrar hotéis de cinco estrelas com doentes sorridentes, testemunhos entusiásticos e cirurgiões que pareciam estrelas de cinema e pilotos de companhias de aviação. Esta clínica apresentava apenas algumas fotografias e informações discretas sobre habilitações do pessoal, resultados, artigos publicados em revistas de renome e nomeações para o Prémio Nobel. E o que mais importava: a percentagem de operações bem-sucedidas para a intervenção de que Else necessitava. O número era superior a cinquenta por cento – mas não tão elevado quanto ele esperara. Por outro lado, era suficientemente baixo para ele acreditar que era real. O site não fazia referência aos preços praticados. Porém, Simon não se esquecera de quanto era. Suficientemente elevado para acreditar que era real.
Sentiu movimento no escuro. Era Kari.
– Tentei ligar-lhe para casa. A sua mulher disse-me que estava aqui.
– Sim.
– Porque está a trabalhar até tão tarde?
Simon encolheu os ombros.
– Quando não podemos ir para casa com boas notícias, por vezes, fazemos tudo para adiar esse momento.
– Como assim?
Simon ignorou-a.
– O que queres?
– Fiz o que me disse, revirei todas as pedras, procurei todas as ligações possíveis ou impossíveis entre a morte da Iversen e o triplo homicídio. E não encontrei nada de nada.
– Tens consciência, como é lógico, de que isso não exclui a hipótese de existir uma ligação – afirmou Simon e avançou para outra página do site.
Kari puxou uma cadeira e sentou-se.
– Bem, se existe, então, não consigo encontrá-la. E procurei muito bem. E estava aqui a pensar...
– Nós gostamos de pensar.
– Se calhar é simples: o ladrão viu duas oportunidades: a casa dos Iversen e um local com drogas e dinheiro. E sabia, desde o primeiro assalto, que devia obrigar sempre as pessoas a darem o código do cofre antes de as matar.
Simon levantou a cabeça do computador.
– Um assaltante que já matou duas pessoas esbanja meio quilo de Superboy com um valor de rua de meio milhão de coroas para matar a sua terceira vítima?
– O Bjørnstad pensou que pudesse estar relacionado com gangues, que fosse uma maneira de mandar um recado à concorrência.
– Os gangues podem enviar mensagens sem gastarem meio milhão nos portes, agente Adel.
Kari atirou a cabeça para trás e suspirou.
– A Agnete Iversen não tem qualquer ligação ao tráfico de droga nem a gente da laia do Kalle Farrisen, penso que pelo menos disso podemos ter a certeza.
– No entanto, existe uma ligação – insistiu Simon. – O que me intriga é que, agora que descobrimos o que ele está a tentar ocultar, nomeadamente a existência de uma ligação, não consigamos identificá-la. Se ela é assim tão obscura, por que motivo tanto trabalho para encobrir que é o mesmo assassino?
– Se calhar, esse encobrimento não se destina a confundir-nos – Kari bocejou.
Fechou a boca mal viu Simon olhar para ela, de olhos arregalados.
– Claro. Tens toda a razão.
– Tenho?
Simon levantou-se. Depois, tornou a sentar-se. Bateu com a palma da mão na secretária.
– Ele não está preocupado com o facto de a Polícia poder descobrir a sua identidade. Isto tem que ver com outra coisa.
– Receia que mais alguém possa vir atrás dele?
– Sim, ou talvez ele não queira alertá-los da sua presença. Simultaneamente, porém...
Simon apoiou o queixo na mão e soltou uma imprecação entre dentes.
– Simultaneamente, o quê?
– É mais complicado do que isso. Mas ele não está de todo a esconder-se. Ao matar o Kalle daquela maneira, está a enviar uma mensagem a alguém. – Com a irritação, Simon desferiu um pontapé e a cadeira inclinou-se para trás. Permaneceram sentados, sem dizerem uma palavra, enquanto a escuridão se adensava à volta deles sem que se apercebessem. Simon foi o primeiro a quebrar o silêncio. – Tenho estado a pensar que a vida do Kalle terminou da mesma maneira que a de alguns dos seus clientes. Insuficiência respiratória na sequência de uma overdose. Como se o assassino fosse uma espécie de anjo vingador. Isso diz-te alguma coisa?
Kari abanou a cabeça.
– Apenas que, provavelmente, a Agnete Iversen não foi executada de acordo com a mesma lógica; tanto quanto sei, ela nunca alvejou ninguém no peito.
Simon levantou-se. Aproximou-se da janela e olhou para os candeeiros de rua lá em baixo. Chegou-lhe aos ouvidos um estrondo vindo de baixo, das rodas de dois skates. Dois rapazes, ambos com blusões com capuz, passaram lá em baixo.
– Oh, já me esquecia – disse Kari. – Descobri uma ligação. Entre o Per Vollan e o Kalle Farrisen.
– Sim?
– Falei com um dos meus antigos IS28 da Brigada Antidroga. Ele disse que achava estranho que duas pessoas que se conheciam tão bem tivessem morrido num tão curto período de tempo.
– O Vollan conhecia o Farrisen?
– Sim. Bem. Demasiado bem, segundo o meu IS. E outra coisa. Verifiquei o processo do Kalle. Ele foi interrogado sucessivas vezes no decorrer de uma investigação de homicídio há uns anos, e chegou a estar preso preventivamente. A vítima nunca foi identificada.
– Nunca?
– Tudo o que sabemos é que era uma jovem asiática. A análise dentária sugeriu que devia ter uns dezasseis anos. Uma testemunha viu um homem injetá-la com uma seringa num quintal. A testemunha identificou o Kalle num alinhamento.
– Bingo.
– Mas o Kalle foi libertado quando outra pessoa confessou.
– Que tipo sortudo.
– Sim. Por coincidência, o homem que confessou o homicídio é o mesmo que acaba de se evadir da Prisão Estatal.
Kari viu a figura imóvel de Simon diante da janela. Teria ouvido o que ela disse? Preparava-se para o repetir quando a sua voz de avô rouca e reconfortante ressoou:
– Kari?
– Sim?
– Quero que confiras todos os aspetos da vida da Agnete Iversen. Vê se existe alguma coisa, algo que se pudesse parecer minimamente com um disparo próximo dela. Qualquer coisa, entende?
– Claro. O que tem em mente?
– Estou a pensar... – a voz dele perdera o tom tranquilizador – ...que se... se... então...
– Então, o quê?
– Então isto ainda mal começou.
28 Informador secreto. (N. da T.)
25
Markus apagara a luz no seu quarto. Era uma sensação estranha estar a observar os outros sabendo que não conseguiam vê-lo. Mesmo assim, sempre que o Filho espreitava pela janela e olhava diretamente para os binóculos de Markus, este era percorrido por uma espécie de choque elétrico. Era quase como se ele soubesse que estava alguém a espiá-lo. Naquele momento, o Filho encontrava-se no quarto dos pais, sentado em cima daquela arca cor-de-rosa que Markus sabia não ter nada, à exceção de alguns lençóis e capas de edredão. O quarto sem cortinas era iluminado por um candeeiro de teto com quatro lâmpadas, o que permitia ver bem lá para dentro. E, como a casa amarela ficava num nível inferior à do próprio Markus, e este estava sentado no beliche de cima que arrastara para junto da janela, conseguia ver o que o Filho estava a fazer. Que não era muito; ele mantivera-se ali sentado durante imenso tempo, com os auscultadores ligados ao telemóvel, a ouvir algo. Devia ser uma boa canção porque, a cada três minutos, ele voltava a premir uma tecla no telemóvel, como se não se fartasse de a ouvir. E sorria sempre na mesma parte, muito embora, provavelmente, se sentisse triste por causa daquela rapariga. Eles tinham-se beijado e depois ela saíra disparada, correndo a sete pés. Coitado. Markus interrogou-se se devia ir até lá e bater à porta. Perguntar ao Filho se queria ir jantar com eles. Provavelmente, a sua mãe iria achar que era uma ideia simpática. Mas o Filho parecia triste, por isso, talvez não quisesse companhia. Sempre podia ficar para amanhã. Markus iria levantar-se cedo, tocava à campainha, levava-lhe uns pãezinhos quentes. Sim, era isso que ia fazer. Markus bocejou. E, na sua cabeça, também ele ouvia uma canção. Não, não era propriamente uma canção, era apenas uma frase. Mas andava constantemente às voltas na sua cabeça. Desde que aquele rufia de Tåsen perguntara ao Filho se ele era o pai de Markus. «Podia ser.»
Podia ser. Uau!
Markus voltou a bocejar. Estava na hora de se ir deitar. Afinal, amanhã tinha de se levantar cedo para aquecer os pãezinhos. Mas quando se preparava para baixar os binóculos, sucedeu algo. O Filho pusera-se em pé. Markus voltou a aproximar os binóculos dos olhos. O Filho afastara o tapete e levantara a tábua solta. O esconderijo. Ele estava a guardar algo no esconderijo. Era o saco de desporto vermelho. Abriu-o. Tirou de lá um saco de pó branco. Markus percebeu logo o que era, já vira sacos como aquele na televisão. Drogas. De repente, o Filho ergueu a cabeça. Pareceu pôr-se à escuta de algo; arrebitara as orelhas como os antílopes no charco no programa Animal Planet. E agora Markus também o ouvia. O som de um motor ao longe. Um carro. Não abundavam na sua rua àquela hora da noite durante as férias grandes. O Filho sentara-se completamente imóvel, como paralisado. Markus viu os faróis iluminarem o alcatrão. Um carro preto grande, aquilo a que chamavam um SUV, parara debaixo do candeeiro de rua entre as casas deles. Apearam-se dois homens. Markus observou-os através dos binóculos. Vestiam ambos fatos pretos. Homens de Negro. O segundo era o melhor. No entanto, o mais pequeno dos dois tinha cabelo louro e isso não batia certo. O mais alto tinha, de facto cabelo encaracolado, tal como Will Smith, mas uma enorme calva e a sua pele era branca como a cal. Markus viu-os comporem os fatos enquanto olhavam para a casa amarela. O homem meio calvo apontou para a janela do quarto onde havia luz e eles encaminharam-se rapidamente para o portão. O Filho ia finalmente ter visitas!
Tal como Markus, pularam a vedação em vez de entrarem pelo portão. E tal como ele, também se tinham apercebido de que era muito mais silencioso atravessarem o relvado do que irem pelo caminho de gravilha. Markus virou de novo os binóculos na direção do quarto. O Filho desaparecera. Provavelmente também os vira e tinha descido para deixar entrar as visitas. Markus apontou os binóculos para a porta da frente onde os dois homens subiam já os degraus. Estava demasiado escuro para Markus conseguir ver exatamente o que aconteceu. Porém ouviu algo partir-se e depois a porta abriu-se. Markus susteve a respiração.
Eles... eles tinham arrombado a fechadura. Eram ladrões!
Se calhar, alguém lhes dissera que a casa estava vazia. Fosse lá o que fosse, tinha de avisar o Filho – e se eles fossem perigosos?! Markus saltou da cama. Devia acordar a mãe? Chamar a Polícia? E dizia o quê? Que estava a espiar o vizinho com os binóculos? E, se eles viessem recolher impressões digitais para descobrirem os ladrões, encontravam as suas, as impressões digitais de Markus! E as drogas do Filho, pelo que ele ia também para a prisão. Markus estava no meio do chão; não sabia de todo como agir. Depois, detetou movimento no quarto do outro lado da rua. Pegou novamente nos binóculos. Eram os homens, eles estavam no quarto. Procuravam alguma coisa. No roupeiro, debaixo da cama. Eles... eles tinham armas! Recuou instintivamente um passo quando o homem alto de cabelo aos caracóis se aproximou da janela, verificou se estava fechada e olhou diretamente para Markus. O Filho devia ter-se escondido, mas onde? Tudo indicava que tivesse guardado o saco com as drogas no esconderijo, mas não era suficientemente grande para uma pessoa. Ah! Nunca iriam encontrar o Filho, pois conhecia a sua própria casa muito melhor do que eles, tal como os soldados vietnamitas conheciam a selva muito melhor do que os Americanos. Ele só precisava de ficar calado que nem um rato, tal como o próprio Markus fizera. O Filho devia estar bem. Ele tinha de estar bem! Meu Deus, por favor faz com que ele esteja bem.
* * *
Sylvester percorreu o olhar pelo quarto e coçou a coroa desguarnecida entre os caracóis pretos.
– Raios, Bo, ele deve ter cá estado! Tenho a certeza de que ontem havia luz nas janelas.
Sentou-se pesadamente numa arca, guardou a arma no coldre de ombro e acendeu um cigarro.
O homenzinho louro ficou de pé no meio do chão, empunhando ainda a arma.
– Tenho um palpite de que ele anda algures por aqui.
Sylvester agitou o cigarro.
– Descontrai-te, ele veio e foi-se. Verifiquei ambas as casas de banho e o outro quarto.
O homem louro abanou a cabeça.
– Não, ele está algures dentro desta casa.
– Desiste, Bo, ele não é um fantasma, apenas um amador que teve sorte. Até agora.
– És capaz de ter razão. Mas eu cá não subestimava o filho do Ab Lofthus.
– E devo saber quem é esse?
– Já não é do teu tempo, Sylvester. O Ab Lofthus foi, de longe, o polícia mais duro da cidade.
– Como é que tu sabes?
– Porque eu conheci o tipo, meu palerma. Nos anos noventa, eu e o Nestor estávamos a meio de um negócio em Alnabru, quando o Lofthus e outro polícia apareceram por acaso. O Lofthus topou logo que estavam perante um negócio de droga, mas em vez de pedirem reforços, ele e o parceiro tentaram gamar-nos. Sozinho, o Ab Lofthus arriou em quatro dos nossos homens antes de conseguirmos imobilizá-lo. E não foi pera doce, deixa que te diga: o tipo era um lutador. Nós íamos matá-lo ali mesmo, mas o Nestor acagaçou-se, teve receio de que derramar o sangue de um polícia pudesse prejudicar o negócio. E, enquanto estávamos a discutir o assunto, o gajo estava ali estendido a gritar «Venham daí!» como aquele cavaleiro nos Monty Python – lembras-te? Eles cortam-lhe os braços e as pernas, e nem mesmo assim ele aceita a derrota.
Bo riu-se. Como quem se ri de uma lembrança que lhe era cara, pensou Sylvester. O homem era doentio, adorava a morte e a mutilação e ficava estendido no sofá a ver sessões inteiras de Ridiculousness29 na Internet porque apresentava imagens de pessoas a fazerem mal mesmo a si próprias, e não apenas os vídeos caseiros cómicos de pessoas que tropeçam ou torcem dedos, algo de que toda a família podia rir-se.
– Não disseste que eles eram dois? – contrapôs Sylvester.
Bo resfolegou.
– O parceiro dele desistiu logo. Muito satisfeito em cooperar, ajoelhou-se e pediu misericórdia, conheces o género.
– Sim – respondeu Sylvester. – Um falhado.
– Népia – disse Bo. – Um vencedor. Chama-se inteligência emocional. E a estratégia do tipo levou-o mais longe do que tu possas pensar. Mas chega de falar disto. Vamos verificar de novo a casa.
Sylvester encolheu os ombros e estava quase a transpor a porta quando se apercebeu de que Bo não o seguira. Virou-se e olhou para o seu parceiro, que permanecia de pé no mesmo lugar, a olhar para o local de onde Sylvester acabara de se levantar. A tampa da arca. Bo levou um dedo aos lábios e apontou para a arca. Sylvester sacou da arma e puxou a patilha de segurança para o lado. Todos os seus sentidos se apuraram; a luz tornou-se mais forte, os sons intensificaram-se e as pulsações latejaram-lhe no pescoço. Sem fazer o menor ruído, Bo deslizou para a esquerda da arca para que Sylvester também tivesse uma boa linha de tiro. Sylvester cobriu o punho da pistola com ambas as mãos e aproximou-se mais. Bo fez sinal para que ele levantasse a tampa. Sylvester anuiu.
Susteve a respiração enquanto Bo – com a pistola apontada à arca – colocava os dedos da mão esquerda debaixo da borda da tampa. Esperou um segundo, pôs-se à escuta. E levantou a tampa.
Sylvester sentiu a resistência do gatilho no seu dedo indicador.
– Raios – sibilou Bo.
Para além de roupa de cama, a arca estava vazia.
Juntos, Bo e Sylvester passaram revista às outras divisões, acendendo e apagando as luzes, mas não encontraram nada. Por fim, voltaram para o quarto, onde estava tudo tal como tinham deixado.
– Estavas enganado – disse Sylvester, articulando as palavras de forma lenta e clara, porque sabia exatamente como iriam deixar Bo enfurecido. – Ele desapareceu.
Bo rodou os ombros como se o fato não lhe assentasse bem.
– O rapaz foi-se, mas deixou a luz acesa, isso pode querer dizer que tenciona voltar. E se nós estivermos à espera e a postos quando ele o fizer, ficamos com o trabalho facilitado, pois não teremos de o obrigar a entrar.
– Talvez – respondeu Sylvester. Estava a ver no que aquilo ia dar.
– O Nestor quer apanhá-lo o mais depressa possível. Ele pode causar imensos estragos, sabes?
– Claro. – Sylvester carregara o cenho.
– Por isso, ficas aqui esta noite para o caso de ele voltar.
– E porque me calha sempre a pior parte?
– A resposta começa por um A.
Antiguidade. Sylvester suspirou. Desejou que matassem Bo, para que ele pudesse ter um novo parceiro. Um com menos antiguidade.
– Sugiro que esperes na sala de estar, de onde consegues ver a porta da frente e a porta da cave – disse Bo. – Não sabemos ao certo se este tipo é tão fácil de apagar como o capelão.
– Eu ouvi à primeira – retrucou Sylvester.
Markus viu os dois homens abandonarem o quarto bem iluminado e, pouco depois, o homem louro saiu da casa, entrou no SUV e afastou-se. O Filho continuava algures ali dentro, mas onde? Talvez tivesse ouvido o carro ligar o motor e afastar-se, mas saberia que um dos homens continuava dentro de casa?
Markus apontou os binóculos para as janelas escuras, mas não conseguia ver nada. O Filho podia ter-se esgueirado pelas traseiras da casa e fugido, contudo Markus não estava convencido disso; permanecera junto à janela, à escuta, devia ter ouvido algo.
Markus sentiu movimento e dirigiu os binóculos para o único quarto na casa com a luz acesa. E viu que estava certo.
A cama. Movia-se. Melhor dizendo, era o colchão. Estava a ser empurrado para cima e para o lado. E lá estava ele. Tinha-se escondido entre as ripas da cama e o enorme colchão alto da cama de casal onde Markus adorava estender-se. Ainda bem que o Filho era tão lingrinhas; se fosse tão gordo quanto a mãe de Markus temia que ele viesse a ser, tinham-no visto. Cuidadosamente, o Filho avançou para a tábua solta, levantou-a e tirou algo do saco de desporto vermelho. Markus aproximou a imagem. Focou. E ficou boquiaberto.
Sylvester posicionara a poltrona de modo a poder ver a porta da frente e o portão lá fora. Este era iluminado pelo candeeiro de rua, no entanto conseguia ouvir com bastante antecedência se aparecesse alguém; sabia-o pelo ruído dos passos na gravilha quando Bo se fora embora.
Podia vir a ser uma longa noite, por isso, precisava de pensar em algo que o ajudasse a manter-se acordado. Dirigiu-se à estante e encontrou o que procurava: o álbum de fotografias da família. Acendeu um candeeiro de leitura e afastou-o da janela, para que a luz não fosse vista do exterior. Começou a passar as fotografias. Eles pareciam uma família feliz. Muito diferente da sua. Talvez isso explicasse a sua obsessão pelas fotografias das outras pessoas. Gostava de olhar para elas e tentar imaginar como devia ser. Como era óbvio, sabia que aquelas fotografias de família não contavam toda a verdade, mas certamente contavam uma verdade. Sylvester deteve o olhar numa fotografia de três pessoas, tirada possivelmente durante as férias da Páscoa. Sorridentes e bronzeadas, estavam de pé diante de um dólmen. A mulher estava ao meio; Sylvester presumiu, pelas outras fotografias, que fosse a mãe. À esquerda dela o pai, o tal Ab Lofthus. E à direita deste, um homem com óculos sem armação. «A Troika e eu numa viagem. Fotógrafo: O Mergulhador» podia ler-se na legenda por baixo, em caligrafia feminina. Sylvester ergueu o olhar. Ouvira algo? Olhou na direção do portão lá fora. Ninguém ali. E o som não viera da porta da frente nem da porta da cave. No entanto, algo se alterara, a densidade do ar, havia algo mais substancial no escuro.
O escuro. O rapaz haveria sempre de sentir um certo receio do escuro, o seu pai certificara-se disso. Sylvester concentrou-se de novo na fotografia. No ar de felicidade que eles tinham. Toda a gente sabia que não se devia ter medo das coisas que aparecem na calada da noite.
O ruído soou como se tivesse vindo do cinto do seu pai.
Sylvester olhou para a fotografia.
Estava agora salpicada de sangue e tinha um buraco que atravessava o álbum. Algo branco flutuara e ficara preso no sangue. Uma pena? Só podia provir do estofo da poltrona. Sylvester calculou que estivesse em choque, porque não sentia dor. Ainda não. Olhou de novo para a sua arma que deslizara para o chão e estava fora do seu alcance. Ficou à espera do próximo tiro, mas ele não veio. Talvez o tipo julgasse que o matara. E, nesse caso, ele tinha hipótese, caso se fingisse de morto.
Sylvester fechou os olhos, ouviu o rapaz entrar e susteve a respiração. Sentiu uma mão no peito a revistar-lhe o casaco, encontrar a carteira e a carta de condução e retirá-las. Dois braços agarraram-no pela cintura, arrastaram-no da cadeira e colocaram-no ao ombro; depois o rapaz começou a caminhar. Devia ser muito forte.
Ouviu o som de uma porta a abrir-se, uma luz a acender-se, passos cambaleantes a descerem as escadas e sentiu o ar húmido. Transportavam-no para a cave.
Tinham chegado lá abaixo. Ouviu um ruído de fechos de plástico a afrouxarem a pressão. Depois, Sylvester caiu, contudo a sua aterragem foi muito mais suave do que ele receara. Sentiu pressão nos ouvidos e ficou mais escuro. Abriu os olhos. A escuridão era total. Não conseguia ver nada, estava deitado numa espécie de caixa. Não há que ter medo do escuro. Os monstros não existem. Ouviu passos arrastarem-se para cá e para lá, até que desapareceram. A porta da cave fechou-se ruidosamente. Estava sozinho. O rapaz não dera por falta de nada. Agora era uma questão de manter a calma, não ter nenhuma atitude precipitada. Esperar que o rapaz se fosse deitar. Então, poderia tentar a fuga. Ou ligar a Bo e pedir-lhe que viesse buscá-lo com os seus homens e depois matavam o rapaz. O mais estranho era que ele não sentia grande dor, apenas o sangue morno a escorrer-lhe pela mão. Mas tinha frio. Muito frio. Sylvester tentou mover as pernas para se colocar numa posição em que fosse possível alcançar o telemóvel, mas não era capaz, deviam ter ficado dormentes. Conseguiu introduzir a mão no bolso do casaco e tirar o telemóvel. Premiu-o e o visor iluminou-se no escuro.
Sylvester prendeu a respiração.
O monstro estava mesmo diante do seu rosto, a olhar para ele com olhos esbugalhados por cima de uma boca aberta revestida de dentes afiados.
Um bacalhau, provavelmente. Dentro de uma embalagem de plástico. À volta dele estavam vários sacos de congelação, algumas caixas de marisco Frionor, bifes de frango, lombos de porco, frutos silvestres. O brilho do seu telemóvel refletia-se nos cristais de gelo das paredes brancas como a neve que o rodeavam. Estava dentro de uma arca frigorífica.
Markus olhou para a casa e contou os segundos.
Abrira a janela, ouvira o estrondo vindo lá de dentro e vira um clarão de luz na sala de estar. Depois, voltara a ficar tudo silencioso.
Markus estava convencido de que fora um tiro, mas quem o disparara?
Meu Deus, por favor, que tenha sido o Filho. Por favor, não deixes que ele tenha sido atingido.
Markus contara até cem quando viu a porta do quarto abrir-se. Obrigado, meu Deus, obrigado; era ele!
O Filho voltou a guardar a pistola no saco de desporto, retirou a tábua solta e começou a transferir os sacos de plástico com pó branco para dentro do saco vermelho. Quando terminou, colocou-o ao ombro e abandonou a sala sem apagar a luz.
Pouco depois, a porta da frente fechou-se com uma pancada e Markus viu o Filho encaminhar-se com passos firmes para o portão. Parou, olhou para a esquerda e para a direita e depois desapareceu rua abaixo na mesma direção de onde Markus o vira chegar.
Markus atirou-se de costas para cima da cama. Ficou a olhar para o teto. Estava vivo! Matara os mauzões. Porque... eles só podiam ser vilões, não era? Claro que sim. Markus ficara tão entusiasmado que sabia que não ia conseguir pregar olho naquela noite.
Sylvester ouvira a porta da frente fechar-se com estrondo.
A arca frigorífica estava muito bem isolada, por isso era difícil conseguir ouvir barulhos, todavia a porta fora fechada com uma pancada tão forte que ele sentira as vibrações. Até que enfim. Claro que o seu telemóvel não conseguia enviar nem receber nada a partir de uma arca frigorífica numa cave, por isso, após três tentativas, vira-se obrigado a desistir. Naquele momento, Sylvester começara a sentir dores, ao mesmo tempo que uma certa sonolência, contudo o frio mantinha-o desperto. Assentou as palmas das mãos na tampa e fez pressão. Sentiu uma pequena pontada de pânico quando ela não se deslocou imediatamente. Empurrou com mais força. Continuava a não ceder. Lembrou-se do som dos vedantes de plástico, como se tinham colado uns aos outros, era apenas uma questão de mais um pouco de força. Comprimiu as mãos contra a tampa, empurrando com a máxima força possível. O rapaz trancara a arca frigorífica.
Desta vez, o pânico não se resumiu a umas pontadas, era um aperto.
Sylvester começou a hiperventilar, mas fez um esforço para afastar o pânico a fim de evitar que o dique rebentasse, e deixasse que o escuro, o verdadeiro escuro, o invadisse. Pensa. Controla a situação e pensa com clareza.
As suas pernas. Por que motivo não pensara nelas antes? Sabia que as suas pernas eram muito mais fortes do que os braços. Conseguia levantar facilmente duzentos quilos no exercício de pressão de pernas, contra os escassos setenta quilos no levantamento de pesos. E isto era apenas uma fechadura de arca frigorífica, fora concebida para evitar que as pessoas roubassem carne e frutos silvestres, e não para impedir um homem grande e desesperado de sair. Havia espaço suficiente entre si e a tampa para que ele pudesse dobrar os joelhos e fazer pressão com os pés nela...
Todavia, não era capaz de fletir os joelhos.
Eles recusavam-se simplesmente a obedecer-lhe. Nunca antes sentira um formigueiro tão grande. Tentou novamente. Nenhuma reação; era como se tivessem sido desligados. Beliscou a canela. Beliscou a coxa. O dique começava a ceder. Pensa. Não, não penses! É tarde demais. O buraco no álbum de fotografias, o sangue. A bala devia ter-lhe cortado a espinal medula. Só assim se explicava a ausência de dor. Sylvester levou a mão ao ventre. Ela veio cheia de sangue. Mas foi como se tocasse no corpo de outra pessoa.
Estava paralisado da cintura para baixo. Desferiu socos na tampa com os punhos, mas foi em vão, as comportas só se abriram na sua mente. A barragem que ele sabia que nunca devia ser aberta. Fora o pai quem lhe ensinara. Naquele momento, porém, tinha começado a abrir brechas e Sylvester sabia que ia morrer, tal como nos seus pesadelos. Trancado. Sozinho. No escuro.
29 Programa exibido no canal MTV que transmite vídeos virais da internet. Foi para o ar no dia 29 de agosto de 2011. (N. da T.)
26
–Está uma manhã de domingo perfeita – anunciou Else, enquanto olhava pela janela do carro.
– Concordo – disse Simon, metendo uma mudança e fitando a esposa. Não fazia ideia do quanto ela conseguia alcançar, se conseguia ver que os Jardins do Palácio estavam particularmente verdes depois da chuva torrencial da véspera. Se se apercebia sequer de que passavam pelos Jardins do Palácio.
A sugestão de que visitassem a exposição de Chagall na Høvikodden partira da própria Else e Simon dissera que era uma excelente ideia, mas antes precisava de passar por casa de um antigo colega que vivia em Skillebekk, a caminho da galeria de arte.
Havia imensos lugares de estacionamento ao longo da Gamle Drammensveien. Os antigos palacetes e prédios pareciam manifestamente vazios durante as férias. Uma ou outra bandeira de embaixada agitava-se com a brisa.
– Eu não me demoro – disse Simon.
Saiu e encaminhou-se para a porta da morada que encontrara na Internet. O nome que procurava encabeçava uma fila de campainhas.
Depois de tocar duas vezes, Simon preparava-se para desistir quando ouviu uma voz de mulher.
– Sim?
– O Fredrik está?
– Hã... E quem quer saber?
– O Simon Kefas.
Fez-se silêncio durante alguns segundos, no entanto Simon ouviu estalidos quando uma mão cobriu o microfone no intercomunicador. Depois ela voltou a falar.
– Ele já desce.
– Está bem.
Simon aguardou. Era demasiado cedo para as pessoas normais andarem já a pé, por isso, as únicas que se viam na rua eram um casal da sua idade. Pareciam ter ido dar um passeio de domingo. Um passeio cujo ponto de partida era também o seu destino. O homem usava um boné de tweed e umas vulgares calças de caqui. Era assim que as pessoas se vestiam quando envelheciam. Simon olhou para o seu reflexo no vidro da porta da rua em carvalho trabalhado. Boné de tweed e óculos de sol. Calças de caqui. Farda domingueira.
Estava um pouco demorado; calculou que tivesse acordado Fredrik. Ou a mulher dele. Ou quem quer que ela fosse. Simon lançou um olhar na direção do carro e viu que Else estava a olhar para ele. Acenou. Nenhuma reação. A porta do prédio abriu-se. Fredrik apareceu de calças de ganga e T-shirt. Tomara um duche – o cabelo molhado fora penteado para trás.
– Isto é inesperado – disse ele. – O que...?
– Porque não vamos dar um passeiozinho?
Fredrik olhou para o seu relógio de pulso pesado.
– Olha, eu...
– O Nestor e os seus comparsas traficantes fizeram-me uma visita – anunciou Simon em voz suficientemente alta para o casal nas imediações ouvir. – No entanto, terei todo o prazer em prosseguir esta conversa lá em cima no apartamento onde está a tua... mulher?
Fredrik olhou para Simon. Depois fechou a porta ao sair.
Seguiram pelo passeio, onde as havaianas de Fredrik batiam fazendo eco entre as paredes.
– Ele veio propor-me aquele empréstimo que discuti contigo, Fredrik. Que discuti unicamente contigo.
– Eu não falei com alguém chamado Nestor.
– Não precisas de referir-te a ele como «alguém chamado Nestor», ambos sabemos perfeitamente que conheces o nome. Podes mentir à vontade a respeito de quaisquer outros conhecimentos que tenhas dele.
Fredrik estacou.
– Então, Simon. Era impossível conseguir-te aquele empréstimo através de qualquer dos meus clientes. Por isso, abordei o teu problema com terceiros. Era o que esperavas de mim, não era? Sê sincero.
Simon remeteu-se ao silêncio.
Fredrik suspirou.
– Escuta, eu só estava a tentar ajudar. Claro que o pior que podia acontecer era receberes uma proposta irrecusável.
– O pior que podia acontecer é agora uns canalhas julgarem ter descoberto uma maneira de chegar até mim. Finalmente, estão a pensar. Mas antes nunca tiveram nada contra mim, Fredrik. Contra ti, sim, mas contra mim, nunca.
Fredrik encostou-se ao gradeamento.
– Talvez seja esse o teu verdadeiro problema, Simon. A razão pela qual nunca tiveste a carreira que merecias.
– Porque eu não estava à venda?
Fredrik sorriu.
– O teu mau génio. A tua falta de diplomacia. Até te dás ao luxo de insultar as pessoas que procuram ajudar-te.
Simon olhou para a velha linha férrea abandonada lá em baixo. Dos tempos em que a Vestbanen ainda funcionava. Não sabia porquê, mas sentia-se nostálgico e excitado ao ver que as marcas no solo permaneciam ali.
– Leste a notícia do triplo homicídio em Gamlebyen?
– Claro – respondeu Fredrik. – Os jornais praticamente não falam de outra coisa. Parece que todos os elementos da Kripos foram chamados a ajudar. Ainda costumas alinhar nas brincadeiras deles?
– Eles preferem guardar os melhores brinquedos para si próprios. O Kalle Farrisen foi um dos homens mortos. Reconheces o nome?
– Não posso dizer que sim. Mas se os Homicídios não estão autorizados a dar uma espreitadela, porque é que tu...
– Porque o Farrisen chegou a ser suspeito de ter matado esta rapariga.
Simon exibiu a fotografia que imprimira do ficheiro e entregou-a a Fredrik. Viu-o observar o rosto pálido com feições asiáticas. Era desnecessário ver o resto do corpo para perceber que ela estava morta.
– Foi encontrada num quintal; para parecer que tinha morrido de uma overdose acidental. Quinze anos. Talvez dezasseis. Não tinha documentos, por isso, nunca descobrimos quem ela era nem de onde vinha. Ou como chegou à Noruega. Possivelmente dentro de um contentor num navio proveniente do Vietname. A única coisa que conseguiram descobrir foi que estava grávida.
– Sim, espera, recordo-me desse caso. Julguei que alguém tinha confessado, não?
– Sim. Ao final do dia e para surpresa de toda a gente. O que quero perguntar-te é o seguinte: existia alguma ligação entre o Kalle Farrisen e o teu cliente preferido, o Iversen?
Fredrik encolheu os ombros e olhou para o fiorde. Abanou a cabeça. Simon seguiu o olhar dele em direção à floresta de mastros dos iates ancorados na marina onde, nos tempos que corriam, o termo «iate» significava algo ligeiramente mais pequeno do que uma fragata.
– Sabias que o homem que confessou o homicídio da rapariga, e foi condenado pelo mesmo, fugiu da prisão?
Fredrik voltou a abanar a cabeça.
– Que o pequeno-almoço te faça bom proveito.
* * *
Simon estava encostado ao balcão curvo do vestiário na galeria de arte em Høvikodden. Tudo era curvo. Tudo era neoexpressionista. Até as paredes de vidro que separavam as salas eram curvas e possivelmente neoexpressionistas. Olhou para Else. Esta olhava para Chagall. Ela parecia tão pequena ali de pé. Mais pequena do que as figuras de Chagall. Se calhar eram as curvas, talvez criassem uma ilusão como a sala de Ames30.
– Portanto, foi visitar esse tal Fredrik só para lhe fazer uma pergunta? – inquiriu Kari, que estava de pé a seu lado. Chegara cerca de vinte minutos depois de ele lhe ter ligado. – E o que está a dizer é...
– Que eu sabia que ele ia negá-lo – afirmou Simon. – Mas eu precisava de olhar para ele para saber se estava a mentir.
– Tem a noção de que, não obstante certas séries de televisão referirem o contrário, é extremamente difícil afirmar com certeza se alguém está a mentir?
– O Fredrik não é uma pessoa qualquer. Tenho experiência de o ouvir mentir. Reconheço os «sinais» dele.
– Portanto, o Fredrik Ansgar é um ilustre mentiroso?
– Não. Ele mente por necessidade, não por predisposição ou inclinação.
– Muito bem. E como sabe disso?
– Não o sabia antes de começarmos a trabalhar juntos numa grande investigação de bens imobiliários no Departamento de Fraudes Graves. – Simon apercebeu-se de que Else parecia um pouco perdida e tossiu ruidosamente para que ela pudesse ouvir onde ele estava. – Era difícil provar que o Fredrik estava a mentir – prosseguiu Simon. – Ele era o único especialista em contabilidade da investigação e, precisamente por esse motivo, era extremamente difícil verificarmos tudo o que ele dizia. Para começar, existiam pequenas discrepâncias e estranhas coincidências, mas o somatório parecia um pouco grande demais para ser uma coincidência. Ele não nos transmitia informações sobre determinados aspetos ou, então, enganava-nos propositadamente. Eu fui o único que desconfiei. E, com o tempo, aprendi a perceber quando ele estava a mentir.
– Como?
– Era muito simples. A voz dele.
– A voz dele?
– O ato de mentir desperta emoções. O Fredrik conseguia mentir bem através da escolha das palavras, da lógica e da linguagem corporal. No entanto, a sua voz era um barómetro emocional que ele não era capaz de controlar. Ele não conseguia manter o tom natural certo, tinha uma inflexão quando mentia, que ele próprio detetava e sabia que podia denunciá-lo. Quando lhe faziam uma pergunta direta e ele tinha de dar uma resposta também direta, não conseguia confiar na sua voz. Então, começava a acenar ou a abanar a cabeça em jeito de resposta.
– E quando lhe perguntou se ele tinha conhecimento de alguma ligação entre o Kalle Farrisen e o Iversen?
– Ele limitou-se a encolher os ombros como se não soubesse.
– Portanto, estava a mentir?
– Estava. E abanou a cabeça quando lhe perguntei se tinha conhecimento de que o Sonny Lofthus se evadira da prisão.
– Isso não é um pouco simplista?
– É, mas o Fredrik é um homem simples que, por sinal, sabe fazer contas de multiplicar melhor do que a maioria das pessoas. Ouve, quero que faças o que te vou dizer. Quero que analises com atenção todas as condenações do Sonny Lofthus. Tenta descobrir se havia outros suspeitos em cada caso.
Kari Adel assentiu.
– Ótimo, também não tinha grandes planos para este fim de semana.
Simon sorriu.
– Aquele caso do Departamento de Fraudes Graves – afirmou Kari. – De que se tratou?
– De fraude – respondeu Simon. – Evasão fiscal, quantias avultadas, nomes sonantes. Dada a situação, podia fazer cair pessoas importantes da área empresarial, bem como políticos e tudo indicava que isso pudesse levar-nos ao cabecilha.
– Quem era?
– O Gémeo.
Kari estremeceu.
– Que alcunha tão estranha, não haja dúvida.
– Não tão estranha quanto a história que está por trás dele.
– Sabe o verdadeiro nome do Gémeo?
Simon abanou a cabeça.
– Ele dá por vários nomes. Tantos, que é completamente anónimo. Quando entrei para o Departamento de Fraudes Graves, era suficientemente ingénuo para pensar que o peixe mais graúdo era o que dava mais nas vistas. Logicamente, a verdade é que a importância de alguém é inversamente proporcional à sua visibilidade. O Gémeo enganou-me mais uma vez. Por causa das mentiras do Fredrik.
– Acha mesmo que o Fredrik Ansgar podia ter sido a toupeira?
Simon abanou vigorosamente a cabeça.
– O Fredrik nem sequer trabalhava para a Polícia na altura em que a toupeira começou a operar. Estou convencido de que, naquela fase, ele era uma figura menor, mas é evidente que podia ter causado imensos estragos, caso permitissem que ele subisse nas fileiras. Por isso, eu travei-o.
Os olhos de Kari arregalaram-se.
– Denunciou o Fredrik Ansgar ao comissário?
– Não. Fiz-lhe uma proposta. Ou ele ficava quietinho ou eu levava o pouco que tinha sobre ele ao conhecimento das cúpulas. Muito provavelmente, não chegaria para garantir uma investigação ou uma exoneração, mas cortava-lhe as asas, suspendia-lhe a carreira por uns tempos. Ele aceitou retirar-se.
Sobressaiu uma veia na testa de Kari.
– Você... você deixou-o ficar em liberdade?
– Livrámo-nos de uma maçã podre sem arrastar a força policial pela lama. Sim, deixei.
– Mas não pode simplesmente deixar que pessoas como ele fiquem impunes.
Detetou a indignação na voz dela. E com razão.
– O Fredrik é peixe miúdo e, como disse, ele conseguira escapar. Nem sequer se deu ao trabalho de fingir que não era uma boa proposta. Na realidade, ele sente que me deve um favor.
Simon virou-se para ela. Fora sua intenção provocá-la. E resultara. Mas a indignação dela passara depressa. Naquele momento, parecia ter apenas encontrado mais um pretexto para abandonar a Polícia à primeira oportunidade.
– E qual é a história por detrás da alcunha do Gémeo?
Simon encolheu os ombros.
– Acredito que ele tinha um irmão gémeo idêntico31. Aos onze anos, sonhou duas noites seguidas que tinha matado o irmão. Concluiu que, como eram gémeos idênticos, fazia sentido presumir que o irmão tivesse tido o mesmo sonho. A partir daí, foi apenas uma questão de se lhe antecipar.
Kari olhou para Simon.
– De se lhe antecipar – repetiu ela.
– Com licença – disse Simon, e correu para Else que se preparava para ir de encontro a uma parede de vidro.
Fidel Lae viu o carro antes de o ouvir. Era o que acontecia com os carros novos. Quase não faziam ruído. Se o vento viesse da estrada, atravessasse a charneca e seguisse na direção da quinta, conseguia ouvir o ruído dos pneus sobre a gravilha, a redução da velocidade ou a aceleração enquanto o carro subia as colinas, no entanto, Fidel só podia contar com os seus olhos para o avisarem. Dos carros, sim. Já as pessoas e os animais eram outra história – por isso, tinha o melhor sistema de alarme do mundo. Nove doberman pinschers numa jaula. Sete fêmeas que tinham uma ninhada todos os anos, sendo os cachorros vendidos por doze mil coroas cada. Constituíam o negócio oficial do seu canil, em que os cães eram entregues aos compradores com um microchip, seguro contra defeitos latentes e o seu pedigree registado no Clube de Canicultura Norueguês.
A parte oficiosa do canil encontrava-se mais embrenhada na mata.
Duas cadelas e um macho. Dos quais não existia registo em lado nenhum. Mastins argentinos. Os doberman pinschers tinham um medo de morte deles. Cinquenta e cinco quilos de agressividade e lealdade cobertos por um pelo curto branco-albino que explicavam por que motivo todos os cães de Fidel tinham nomes com a palavra «fantasma»: as cadelas eram Máquina Fantasma e Ameaça Fantasma, o macho Caça-Fantasmas. Os compradores podiam chamar aos cachorros o que muito bem lhes apetecesse, desde que se chegassem à frente com 120 000 coroas. O preço refletia não só a raridade do cão, o seu efetivo instinto assassino e o facto de a raça estar proibida na Noruega e em diversos outros países. Como os seus clientes não colocavam objeções quanto ao preço, nem estavam preocupados com a legislação norueguesa, pouco ou nada levava a crer que aquele fosse baixar. Muito pelo contrário. Por esse motivo, naquele ano, Fidel mudara o cercado dos mastins argentinos ainda mais para o interior do bosque, para que não se ouvissem os latidos deles na quinta.
O carro avançava em direção à quinta, o trilho não conduzia a mais lado nenhum, por isso Fidel encaminhou-se calmamente para o portão que estava sempre fechado. Não para impedir os dobermans de saírem, mas os intrusos de entrarem. E, como qualquer pessoa, exceção feita aos seus clientes, era um transgressor, Fidel tinha à mão uma Mauser M98 restaurada num pequeno alpendre encostado ao canil próximo do portão. As armas mais sofisticadas estavam guardadas no edifício principal, mas ele podia sempre alegar que usava a Mauser para caçar alces, já que estes por vezes atravessavam a charneca. Isto é, sempre que o vento não soprava da direção do cercado onde estavam os fantasmas argentinos.
Fidel chegara ao portão ao mesmo tempo que o carro com o logótipo da empresa de aluguer de automóveis no exterior. Fidel apercebeu-se, pelo arranhar das mudanças, de que o condutor tinha pouca experiência com carros daquela marca; também demorou a desligar as luzes, os limpa-para-brisas e, por fim, o motor.
– Tudo bem? – perguntou Fidel, observando o sujeito que saiu do carro. Blusão com capuz e sapatos castanhos. Um citadino. De vez em quando, apareciam por lá alguns sozinhos e sem marcação prévia. Mas era raro. Fidel não divulgava as moradas na Net, tal como faziam os outros canis. O tipo apareceu ao portão que Fidel não fez sequer menção de abrir.
– Estou à procura de um cão.
Fidel afastou da testa a pala do boné.
– Lamento, mas fez uma viagem em vão. Não falo com potenciais donos de quaisquer dos meus cães sem ter primeiro referências. É assim que as coisas se processam. Um doberman pinscher não é um cão de família fofinho, precisa de um dono que saiba o que vai levar. Ligue-me na segunda-feira.
– Não procuro um doberman – disse o tipo e olhou para lá de Fidel. Para lá da quinta e das jaulas das suas nove cadelas legais. Para o bosque por detrás. – E a minha referência é o Gustav Rover. – Estendeu-lhe um cartão de visita. Fidel olhou para ele. Oficina de Motorizadas do Rover. Fidel tinha boa memória para nomes e pessoas porque não lhe apareciam em grande quantidade. O tipo das motorizadas com o dente de ouro. Estivera ali com Nestor para comprar um mastim argentino.
– Ele disse que os seus cães vigiam as empregadas de limpeza bielorrussas e certificam-se de que elas não fogem.
Fidel coçou demoradamente a verruga que tinha no pulso. Depois abriu o portão. Este tipo não podia ser da Polícia, eles não estavam autorizados a armadilhar pessoas que cometiam crimes como a venda ilegal de cães, seria o mesmo que sabotarem o caso. Pelo menos, fora que o advogado lhe dissera.
– Trouxe...?
O tipo anuiu, levou a mão ao bolso do blusão com capuz e retirou um maço de notas grande. Notas de mil coroas.
Fidel abriu o armário das armas e tirou a Mauser.
– Nunca me aproximo deles sem isto – explicou. – Se um deles tentar fugir...
Demoraram dez minutos a chegar ao cercado.
Durante os últimos cinco ouviram latidos furiosos cada vez mais intensos.
– Eles pensam que estão quase a ser alimentados – disse Fidel, mas não acrescentou: à tua custa.
Os cães enfurecidos arremessaram-se contra a vedação de arame quando os homens surgiram. Fidel sentiu o terreno estremecer quando eles assentaram as patas no chão. Sabia exatamente a que profundidade as estacas da vedação tinham sido cravadas, só esperava que fosse suficiente. As jaulas alemãs importadas tinham bases de metal, para que cães como os terriers, os dachshunds32 e os sabujos não conseguissem fugir escavando a terra, e telhados de chapa ondulada que os mantinham secos e impediam os mais ágeis de pularem a cerca.
– São mais perigosos quando estão em matilha – disse Fidel. – Seguem o líder, o Caça-Fantasmas. Ele é o maior.
O cliente limitou-se a anuir. Olhou para os cães. Fidel sabia que ele devia estar com receio. As mandíbulas abertas com filas de dentes reluzentes, brilhantes, plantados em gengivas cor-de-rosa pálidas. Caraças, até ele se acagaçava. Só quando estava apenas com um animal, de preferência uma das cadelas, conseguia ter a certeza de que era o chefe.
– Quando o cão é cachorro tem de se afirmar rapidamente como líder e certificar-se de que assim se mantém. Lembre-se de que a bondade sob a forma de indulgência e perdão será encarada como fraqueza. O comportamento indesejável deve ser punido, e isso é trabalho seu. Entendido?
O cliente virou-se para Fidel. Havia algo estranhamente distante no seu olhar quando repetiu:
– Punir o comportamento indesejável é trabalho meu.
– Ótimo.
– Porque é que aquela jaula está vazia?
O cliente apontou para um cercado próximo dos cães.
– Já tive dois machos. Se os juntasse na mesma jaula, um deles acabava morto.
Fidel exibiu um molho de chaves.
– Venha ver os cachorros, estão numa jaula própria além.
– Antes de fazermos isso, diga-me uma coisa...
– Sim?
– Considera um comportamento desejável deixar um cão morder a cara de uma jovem?
Fidel estacou subitamente.
– Hã?
– É um comportamento desejável usar cães para arrancar o rosto a uma rapariga quando ela tenta fugir à escravatura, ou devia ser punido?
– Oiça, o cão só está a agir por instinto e não pode culpá-lo só porque...
– Não me estou a referir ao cão mas, sim, aos donos. Na sua opinião, eles deviam ser castigados?
Fidel olhou com atenção para o seu cliente. Poderia ser mesmo um polícia?
– Bem, se acontecesse semelhante acidente, nesse caso...
– Duvido que fosse um acidente. Depois, o dono cortou a garganta à rapariga e abandonou o corpo na floresta.
Fidel agarrou a Mauser ainda mais firmemente.
– Não sei nada disso.
– Mas eu sei. O nome do dono era Hugo Nestor.
– Oiça lá, quer ou não um cão?
Fidel levantou alguns centímetros o cano da sua espingarda, que até ali estivera apontada para o solo.
– Ele comprou-lhe o cão. Comprou-lhe vários cães. Porque você vende cães que podem ser usados para esses fins.
– E o que sabe sobre esse assunto?
– Imenso. Durante doze anos, estive sentado numa jaula a ouvir as pessoas contarem-me histórias. Já imaginou o que é estar sentado numa jaula?
– Oiça...
– Agora vai poder experimentar.
Fidel não teve tempo colocar a espingarda a postos antes de o outro homem conseguir dominá-lo por detrás apertando os braços com tanta força à volta do corpo dele que o ar abandonou o corpo de Fidel com um som sibilante. O dono do canil mal se apercebeu do ladrar frenético ao ser agarrado. O outro homem inclinou-se para trás enquanto levantava Fidel e o arremessava num arco grande por cima da sua cabeça. Mas quando se deu o embate de Fidel no solo com a cabeça e os ombros, o sujeito atirou-se de modo a cair em cima dele. Fidel lutou por ar enquanto tentava libertar-se, mas cessou bruscamente quando olhou para a boca de uma arma.
Quatro minutos depois, Fidel olhava para as costas do homem em retirada, que parecia caminhar sobre a água enquanto atravessava a charneca por entre o nevoeiro. Os dedos de Fidel agarravam a vedação de rede perto do cadeado grande. Estava trancado na jaula vazia. Ali ao lado, o Caça-Fantasmas deitara-se e olhava-o indolentemente. O homem enchera de água a tigela na jaula de Fidel e deixara-lhe quatro embalagens de ração crua para cão. E levara-lhe o telemóvel, as chaves e a carteira. Fidel começou a gritar. E os demónios brancos responderam uivando e latindo. De um recinto construído tão no interior do bosque que ninguém os conseguia ouvir ou ver.
Porra!
O homem fora-se. Fez-se um estranho silêncio. Uma ave soltou um grito. Depois Fidel ouviu as primeiras gotas de chuva caírem no telhado de chapa ondulada.
30 É uma sala distorcida usada para criar uma ilusão ótica. Baseou-se nas reflexões do físico alemão Hermann von Helmholtz. Foi inventada em 1946 pelo oftalmologista norte-americano Adelbert Ames Jr. Esta sala é construída de modo que, vista de frente, parece ser uma sala cúbica em forma normal, com uma parede no fundo e duas paredes laterais paralelas e perpendiculares ao chão e ao teto. No entanto, este é um truque de perspetiva e a verdadeira forma da sala é trapezoidal: as paredes são inclinadas e as do teto e do chão encontram-se em plano inclinado, e o canto direito está muito mais perto da frente do que o canto esquerdo. Como resultado da ilusão de ótica, uma pessoa de pé num canto parece, a quem observa, ser um gigante, ao passo que uma pessoa de pé no outro canto parece ser um anão. (N. da T.)
31 Quando um óvulo é produzido e fecundado por um só espermatozoide e se divide em duas culturas de células completas, origina os gémeos monozigóticos ou idênticos. (N. da T.)
32 Também conhecidos como «salsichas». (N. da T.)
27
Quando Simon saiu do elevador e entrou na sala dos Homicídios às 08h08 da manhã de segunda-feira, levava três coisas em mente. Que antes Else estivera a lavar os olhos na casa de banho da suíte completamente alheia ao facto de Simon ter ficado a observá-la do quarto. Que possivelmente dera demasiado trabalho a Kari para ela fazer num domingo. E que abominava o traçado do escritório, em particular depois de uma das amigas de Else, que era arquiteta, lhe ter dito que era um mito os escritórios sem divisórias pouparem espaço por funcionário, uma vez que o ruído implicava a criação de tantas salas de reuniões e zonas privadas que qualquer vantagem era anulada pelos gastos adicionais.
Encaminhou-se para a secretária de Kari.
– Chegaste cedo – disse ele.
Um rosto bastante cansado ergueu-se na direção dele.
– Bom-dia para si também, Simon Kefas.
– Obrigado. Descobriste alguma coisa?
Kari reclinou-se na cadeira. Embora estivesse a bocejar, Simon julgou detetar uma certa satisfação na expressão dela.
– Em primeiro lugar, procurei uma ligação entre a Iversen e o Farrisen. Nada. Depois procurei as condenações do Sonny Lofthus e de quaisquer outros potenciais suspeitos. O Lofthus foi condenado pelo homicídio de uma rapariga não identificada, possivelmente vietnamita, que morreu de overdose, apesar de, inicialmente, a Polícia ter desconfiado do Kalle Farrisen. Mas o Lofthus também estava a cumprir pena por outro homicídio. O de Oliver Jovic, um traficante de droga, um sérvio kosovar que estava a tentar entrar à força no mercado quando foi encontrado no Stensparken com uma garrafa de vidro de Coca-Cola enfiada na garganta.
Simon fez uma careta.
– Cortaram-lhe a garganta?
– Não, não foi isso que eu quis dizer. Tinham-lhe enfiado uma garrafa de Coca-Cola à força pela garganta abaixo.
– Pela garganta abaixo?
– Primeiro o gargalo da garrafa. Assim é mais fácil. É empurrada para baixo e o fundo pressiona a parte de trás dos dentes.
– Como é que sabe...?
– Vi as fotografias. A Brigada Antidroga julgou que se tratava de uma mensagem para mostrar a potenciais concorrentes o que acontece se tentarem dar um passo maior do que a perna no mercado da coca. – Ela lançou um olhar rápido a Simon e acrescentou: – Garrafa de coca como em Coca-Cola.
– Sim, obrigado, eu entendi.
– A Polícia abriu uma investigação, mas não chegou a conclusão alguma. O caso nunca chegou a ser propriamente abandonado, no entanto, muito pouco aconteceu até o Sonny Lofthus ser detido pelo homicídio da rapariga asiática. Ele também confessou ter assassinado o Jovic. Nas gravações do interrogatório, refere que se encontrou com o Jovic no parque para saldar uma dívida, que não tinha dinheiro suficiente e o Jovic o ameaçou com uma arma. Que ele o atacara e derrubara. Calculo que a Polícia tenha considerado que fazia sentido, uma vez que o Lofthus tinha sido lutador.
– Hum.
– O mais interessante é que a Polícia retirou uma impressão digital da garrafa.
– E?
– E não pertencia ao Lofthus.
Simon anuiu.
– E que explicação deu o Lofthus para tal?
– Disse que tinha encontrado a garrafa vazia num caixote do lixo ali perto. Que drogados como ele o faziam constantemente para receberem a tara.
– Mas?
– Os drogados não recolhem recicláveis. Levariam demasiado tempo a reunir o dinheiro para a dose diária. E o relatório referia que era a impressão digital de um polegar e que tinha sido recolhida do fundo da garrafa.
Simon percebeu onde ela queria chegar, mas decidiu não estragar tudo antecipando-se-lhe.
– Quero dizer, quem apoia o polegar no fundo de uma garrafa quando bebe dela? Já se estivesse a enfiar uma garrafa à força pela garganta de alguém...
– E acha que a Polícia não considerou essa hipótese na altura?
Kari encolheu os ombros.
– Não me parece que a Polícia vá dar prioridade a resultados de um toxicodependente. Eles não encontraram nenhuma correspondência com a impressão do polegar na base de dados. Por isso, quando alguém lhes entrega de bandeja uma confissão respeitante a um caso que eles puseram de parte durante um tempo...
– ...Eles mostram-se muito agradecidos, dão o caso por encerrado e seguem em frente.
– É assim que vocês trabalham, não é?
Simon suspirou. Vocês. Lera nos jornais que a reputação da Polícia junto do público começava a subir depois dos escândalos dos últimos anos, no entanto a força policial só tinha um nadinha mais de popularidade do que os caminhos de ferro. Vocês. Imaginou-a a agradecer à sua estrelinha da sorte por já ter um pé fora daquele open space.
– Então, o Sonny Lofthus foi condenado por dois homicídios, mas em ambos os casos as suspeitas apontavam para traficantes de drogas. Está a afirmar que ele é um bode expiatório profissional?
– Não diria o mesmo?
– Talvez. Mas ainda não existe nada que o ligue ao Farrisen ou à Agnete Iversen.
– Existe um terceiro homicídio – afirmou Kari. – O da Kjersti Morsand.
– A mulher do armador – referiu Simon, apesar de os seus pensamentos terem convergido, naquele momento, para o café e a respetiva máquina. – Esse é o caso da Polícia de Buskerud.
– Exatamente. Ele serrou-lhe a parte de cima da cabeça. O Sonny Lofthus também é suspeito desse homicídio.
– Isso só pode ser engano, não? Ele estava dentro quando isso aconteceu.
– Não, ele tinha tido uma saída precária de um dia. Estava na zona. Eles até encontraram um cabelo dele no local do crime.
– Estás a brincar – disse Simon, esquecendo-se por completo do café. – Devia ter saído alguma notícia nos jornais. Um assassino notório ligado ao local de um crime. Poderia lá haver notícia mais mediática do que essa?
– O agente de Buskerud, que está à frente da investigação, decidiu não o tornar público – afirmou Kari.
– E porque não?
– Pergunte-lhe.
Kari apontou e Simon reparou num homem alto e espadaúdo que se encaminhava para eles, vindo da máquina do café, e trazendo uma caneca na mão. Não obstante a temperatura de verão, vestia uma camisola grossa de lã.
– Henrik Westad – disse o homem, estendendo a mão. – Sou inspetor da Polícia de Buskerud. Sou responsável pela investigação da Kjersti Morsand.
– Pedi ao Henrik que viesse até cá esta manhã para conversarmos – explicou Kari.
– Veio de propósito de Drammen à hora de ponta da manhã? – disse Simon apertando a mão ao homem. – Estamos muito gratos.
– Antes da hora de ponta da manhã – corrigiu Westad. – Estou aqui desde as seis e meia. Não creio que haja muito mais a dizer sobre a investigação, mas aqui a sua colega é muito minuciosa.
Cumprimentou sumariamente Kari e sentou-se na cadeira diante dela.
– Explique-me lá porque não divulgou que tinha encontrado um cabelo de um assassino condenado no local do crime? – perguntou Simon, olhando com inveja para a caneca que Westad levava aos lábios. – Isso equivale a dizer que o caso foi resolvido. Por norma, a Polícia não retém boas notícias.
– Lá isso é verdade – referiu Westad. – Especialmente quando o dono desse cabelo confessou o homicídio da primeira vez que o interrogámos.
– Afinal, o que aconteceu?
– Aconteceu o Leif.
– Quem é o Leif?
Westad abanou a cabeça lentamente.
– Depois do primeiro interrogatório, eu podia ter feito um comunicado à imprensa com o que tínhamos, mas algo não batia certo. Algo sobre o suspeito... a sua atitude. Por isso, preferi esperar. E, da segunda vez que o interrogámos, ele deu o dito por não dito e afirmou que tinha um álibi. Um tipo chamado Leif, que conduzia um Volvo azul com um autocolante «Eu ? Drammen», e que, por alguma razão, o Lofthus considerou que tinha problemas cardíacos. Então, confirmei junto dos revendedores de automóveis em Drammen e da Unidade de Cardiologia do Hospital Central de Buskerud.
– Sim?
– Leif Krognæss, de cinquenta e três anos. Vive em Konnerud, em Drammen, e reconheceu imediatamente o suspeito da fotografia que lhe mostrei. Vira-o na área de descanso na velha estrada nacional que segue paralela à Drammensveien. Sabe, um daqueles lugares com bancos de piquenique e mesas onde se pode passar algum tempo ao ar livre. O Leif Krognæss tinha ido dar um passeio de carro para aproveitar o sol, mas acabou por parar ali e ficar sentado várias horas na área de descanso por sentir uma estranha exaustão. Não acredito que ela seja muito procurada pelos motoristas, eles preferem a estrada nova e, além disso, existe um lago que tem mosquitos. De qualquer forma, naquele dia, estavam dois homens sentados a outra mesa de piquenique. Ficaram horas ali sem dizer nada, como se estivessem à espera de alguma coisa. Depois, um dos homens olhou para o relógio de pulso e disse que estava na hora de partirem. Quando passaram pela mesa do Krognæss, o outro homem debruçou-se, perguntou ao Krognæss como se chamava e depois disse-lhe que fosse a um médico, que havia algum problema com o seu coração. Depois, o primeiro homem levou dali o segundo, o Krognæss presumiu que se tratava de um doente psiquiátrico numa saída, e foram-se embora.
– No entanto, ele não conseguiu alhear-se do episódio – afirmou Kari. – Então foi ao médico. Que descobriu que ele tinha efetivamente um problema cardíaco e mandou interná-lo imediatamente no hospital. E é por esse motivo que o Leif Krognæss se lembra do breve encontro com um homem numa área de descanso na velha estrada nacional junto ao rio Drammen.
O rio Drammen, pensou Simon.
– Pois é – disse Westad. – O Leif Krognæss disse que o tipo lhe salvou a vida. Mas não é aí que reside o problema. A questão é que o relatório do médico-legista refere que a Kjersti Morsand foi assassinada precisamente na altura em que os homens estavam sentados na área de descanso.
Simon anuiu.
– E o fio de cabelo? Não verificou como pode ter ido parar ao local do crime?
Westad encolheu os ombros.
– Como afirmei, o suspeito tem um álibi.
Simon estava ciente de que ainda faltava Westad mencionar o nome do rapaz. Pigarreou.
– Podia parecer que o cabelo fora colocado ali. E, se foi concedido um dia de precária ao Sonny Lofthus para fazer crer que foi ele a cometer o homicídio, então um dos guardas prisionais da Estatal deve estar metido nisso. Foi por isso que o caso foi abafado?
Henrik Westad fez deslizar a sua caneca na secretária de Kari; talvez o sabor já não lhe agradasse.
– Mandaram-me abafá-lo – disse ele. – Alguém lá em cima disse com toda a clareza ao meu chefe que não se metesse no assunto até eles terem uma oportunidade de o analisar melhor.
– Eles querem reconfirmar os factos antes que o escândalo venha a público – referiu Kari.
– Esperemos que se fique por aí – Simon falou baixinho. – Nesse caso, porque veio falar connosco, uma vez que lhe disseram para ficar calado, Westad?
Westad voltou a encolher os ombros.
– É complicado ser a única pessoa que sabe. E quando a Kari mencionou que estava a trabalhar com o Simon Kefas... Bem, dizem que você é uma pessoa íntegra.
Simon olhou para Westad.
– Sabe que isso é apenas um sinónimo de conflituoso, não sabe?
– Sei – respondeu Westad. – Eu não quero causar problemas. Só não me agrada ser o único a saber.
– Porque se sente mais seguro assim?
Westad encolheu os ombros pela terceira vez. Já não parecia tão alto e espadaúdo como na altura em que estava sentado. E, apesar da camisola, dava a sensação de estar com frio.
Reinava o mais absoluto silêncio na sala de reuniões.
A atenção de Hugo Nestor fixara-se na cadeira à cabeceira da mesa.
A cadeira de espaldar forrada com pele de búfalo estava virada de costas para eles.
O homem na cadeira exigira uma explicação.
Nestor ergueu o olhar para o quadro por cima da cadeira. Retratava uma crucificação. Grotesca, sangrenta e excessivamente rica em pormenores. O homem no crucifixo tinha dois cornos na testa e olhos vermelhos incandescentes. Para além daqueles pormenores, a semelhança era óbvia. Corria o boato de que o artista pintara o quadro antes de o homem na cadeira de espaldar lhe ter cortado dois dedos porque ele lhe devia dinheiro. A parte dos dedos era verdadeira, o próprio Nestor fora testemunha. E corria também o boato de que tinham decorrido apenas doze horas desde a altura em que o artista expusera o quadro na sua galeria e o homem na cadeira o retirara de lá. Isso, juntamente com o fígado do homem. Aquele boato não era verdadeiro. Tinham decorrido oito horas, e o órgão retirado tinha sido o baço.
Já em relação à pele de búfalo, Nestor não podia confirmar nem desmentir a história de que o homem na cadeira pagara 13 500 dólares para caçar e matar um búfalo branco, o animal mais sagrado para os índios Lakota Sioux33, que ele próprio matara com uma besta e, quando o animal se recusara a morrer mesmo depois de ter duas flechas cravadas no coração, o homem na cadeira escarranchara-se no bicho de meia tonelada para lhe torcer o pescoço. No entanto, Nestor não via motivo algum para duvidar da história. A diferença de peso entre o animal e o homem era mínima.
Hugo Nestor desviou o olhar do quadro. Encontravam-se mais três pessoas na sala, para além dele e do homem na cadeira de pele de búfalo. Nestor rodou os ombros e sentiu a camisa colar-se-lhe às costas por baixo do casaco do fato. Raramente suava. Não só porque evitava o sol, a lã de má qualidade, o exercício, fazer amor e outros esforços físicos, mas porque ele – de acordo com o seu médico – tinha uma deficiência no seu termóstato intrínseco que, de outro modo, fazia as pessoas suar. Por isso, mesmo quando fazia esforços, nunca suava, mas corria o risco de sobreaquecimento. Era uma predisposição genética que só vinha provar o que ele sempre soubera: que os seus alegados pais não eram os seus verdadeiros pais, que os seus sonhos de estar deitado num berço num local que era igual às fotografias que vira em Kiev na década de 1970 não eram apenas sonhos, eram as suas primeiras memórias da infância.
Naquele momento, porém, suava. Embora fosse portador de boas notícias, não deixava de estar a suar.
O homem na cadeira não se enfurecera. Não espumara de raiva por causa das drogas e do dinheiro roubados do escritório de Kalle Farrisen. Não gritara como era possível que Sylvester tivesse desaparecido. Nem bradara sequer por que raio ainda não tinham encontrado aquele rapaz, Lofthus. Apesar de todos saberem o que estava em jogo. Havia quatro cenários e três deles eram maus. Cenário mau número um: Sonny matara Agnete Iversen, Kalle e Sylvester e ia continuar a matar qualquer pessoa com quem eles trabalhassem. Cenário mau número dois: Sonny é detido, confessa e revela os nomes dos verdadeiros assassinos pelos quais ele cumpriu pena. Cenário mau número três: na ausência da confissão do rapaz, Yngve Morsand é detido pelo homicídio da sua mulher, não aguenta a pressão e conta à Polícia o que realmente aconteceu.
Quando Morsand os procurara da primeira vez dizendo que queria a sua esposa infiel morta, Nestor depreendera que ele queria contratar um assassino profissional. Contudo, Morsand insistira no prazer de matar a esposa com as próprias mãos, só queria que eles arranjassem outra pessoa para arcar com a culpa, já que ele, o marido cornudo, seria automaticamente o principal suspeito da Polícia. E, pelo preço certo, tudo se pode comprar. Neste caso, três milhões de coroas. Uma taxa horária razoável para uma pena perpétua, argumentara Nestor e Morsand concordara. Depois, quando Morsand explicara que queria amarrar a cabra infiel, encostar-lhe a serra à testa e olhá-la nos olhos enquanto lhe cortava a cabeça, Nestor sentira os cabelos eriçarem-se-lhe na nuca, num misto de horror e excitação. Tinha tudo combinado com Arild Franck. A saída precária do rapaz, a sua localização geográfica e o acompanhamento por um dos guardas prisionais corruptos bem pagos e da confiança de Franck, um eremita de Kaupang que gostava de mulheres rechonchudas, gastava o dinheiro em cocaína, a saldar as suas dívidas e em prostitutas tão gordas e feias, que seríamos levados a pensar que o dinheiro mudava de mãos no sentido errado.
O quarto, e único cenário bom, era muito simples: encontrar o rapaz e matá-lo. Era tão elementar quanto isso. Já devia ter sido feito há muito tempo.
E, no entanto, o homem falava calmamente na sua voz cava e murmurada. E fora a voz que deixara Nestor a suar. Lá da cadeira alta e branca, a voz pedira uma explicação a Nestor. Apenas isso. Uma explicação. Nestor pigarreara, esperançado de que a sua voz não denunciasse o terror que nunca deixava de estar presente quando se encontrava na mesma sala que o seu chefe.
– Nós voltámos à casa à procura do Sylvester. Tudo o que encontrámos foi uma poltrona vazia com um buraco de bala nas costas. Confirmámos com o nosso contacto no centro de operações da Telenor, mas nenhuma das estações de base deles conseguiu captar um sinal do telemóvel do Sylvester desde a noite passada. Isto quer dizer que ou o Lofthus lhe destruiu o telemóvel ou este está num sítio sem rede. Para todos os efeitos, penso que existe um risco real de o Sylvester já não estar vivo.
A cadeira à cabeceira da mesa girou lentamente e o homem apareceu. Sim, o corpo volumoso, os músculos que faziam esticar todas as costuras do seu fato, a testa alta, o bigode à moda antiga, as sobrancelhas farfalhudas por cima de uns olhos enganadoramente ensonados.
Hugo Nestor tentou corresponder àquele olhar. Matara mulheres, homens e crianças. Olhara-os nos olhos enquanto o fazia, sem sequer pestanejar. Muito pelo contrário, observara-os com atenção para ver se conseguia detetá-lo: o medo da morte, a certeza absoluta do que estava prestes a acontecer, qualquer vislumbre que o moribundo pudesse ter na passagem para o além. Como aquela rapariga bielorrussa cuja garganta cortara quando os outros se tinham recusado. Fitara os seus olhos suplicantes. Era como se retirasse prazer de um misto de sentimentos, da raiva que sentia dos outros e da capitulação e fraqueza da mulher. Vibrava com a excitação de ter uma vida nas mãos e decidir se – e, na realidade, quando – ia levar a cabo o ato que lhe poria termo. Podia prolongar a vida dela por um segundo, e depois por outro segundo. E mais outro. Ou não. E ocorreu-lhe que aquilo era o mais próximo que alguma vez estaria do êxtase sexual de que as pessoas falavam, uma união que para ele só estava associada a ligeiro desconforto e uma embaraçosa tentativa de encontrar uma pessoa que parecesse normal. Lera algures que um indivíduo em cada cem era assexual. Isso fazia dele uma exceção. Mas não o tornava anormal. Pelo contrário, conseguia concentrar-se no que era realmente importante, construir a sua vida, a sua reputação, granjear o respeito e o medo dos outros sem quaisquer distrações e o desperdício de energia que advinha da dependência sexual de que as outras pessoas eram escravas. Mas decerto isso era racional e – consequentemente – normal? Ele era uma pessoa normal que não tinha medo da morte, mas antes curiosidade em relação a ela. E, para além disso, tinha boas notícias para o seu patrão. No entanto, Nestor conseguiu suportar o olhar do chefe apenas durante cinco segundos antes de ter de desviá-lo. Porque o que ali viu era mais frio e mais vazio do que a morte e a aniquilação. Era a perdição. A promessa de que tínhamos uma alma e que ela nos podia ser tirada.
– Mas recebemos uma informação sobre o possível paradeiro do rapaz – disse Nestor.
O homenzarrão arqueou um dos seus caraterísticos sobrolhos.
– De quem?
– Do Coco. Um traficante de droga que até há bem pouco tempo vivia no Centro Ila.
– O psicopata do estilete, certo?
Nestor nunca conseguira perceber muito bem de que forma o seu patrão obtinha as informações. Nunca o viam nas ruas. Nestor nunca conhecera ninguém que afirmasse ter falado com ele, muito menos que lhe tivesse posto a vista em cima. E, contudo, ele sabia tudo e sempre assim fora. Nos tempos da toupeira, isso não causaria estranheza, até porque o seu patrão tinha acesso a praticamente tudo o que a Polícia fazia. Mas depois de terem matado Ab Lofthus quando ele se preparava para o denunciar, as atividades da toupeira pareciam ter cessado. Já lá iam quase cinco anos, e Nestor aceitara que provavelmente nunca iria saber a identidade da toupeira.
– Ele falou de um rapaz no Ila que tinha tanto dinheiro que até pagava as dívidas do seu companheiro de quarto – disse Nestor, num tom de voz cuidadosamente ensaiado, e com o que julgava ser um «r» com pronúncia eslava de Leste. – Doze mil coroas em dinheiro.
– Ninguém no Ila paga as dívidas de outro drogado – disse o Lobo, um homem mais velho, que era responsável pelo tráfico de raparigas.
– Precisamente – afirmou Nestor. – Mas este jovem fê-lo, apesar de o seu companheiro de quarto o ter acusado de roubar uns brincos. Por isso pensei...
– Estás a pensar no dinheiro no cofre do Kalle? – disse o homenzarrão. – E nas joias que foram roubadas da casa dos Iversen?
– Estou. Por isso fui falar com o Coco e mostrei-lhe uma fotografia do tipo. E confirmou-me que era ele, o Sonny Lofthus. Até sei o número do quarto dele. 323. A questão agora é como vamos... – Nestor uniu as pontas dos dedos e fez estalar os lábios como se conseguisse saborear os sinónimos de «matá-lo».
– Não vamos conseguir entrar – disse o Lobo. – Ou, pelo menos, sem darmos nas vistas. O portão está trancado, existem rececionistas e CFTV em todo o lado.
– Podíamos usar um dos residentes para o trabalho – disse Voss, um antigo chefe de uma empresa de segurança, que fora despedido depois de se envolver na importação e tráfico de esteroides anabolizantes.
– Nós não vamos deixar isto nas mãos de um drogado – disse o Lobo. – Não só o Lofthus conseguiu enganar os nossos homens, alegadamente competentes, como também parece ter matado um deles.
– Nesse caso, o que fazemos? – perguntou Nestor. – Ficamos à espera dele no exterior do centro? Colocamos um atirador furtivo no edifício em frente? Pegamos fogo ao centro e bloqueamos as saídas?
– O momento não é para brincadeiras, Hugo – disse Voss.
– Devias saber que eu nunca brinco. – Nestor sentiu o seu rosto ficar quente. Quente, mas não suado. – Se não o apanharmos antes de a Polícia...
– Boa ideia.
As duas palavras foram proferidas num tom tão baixo, que praticamente não se ouviram. E, no entanto, soaram como o ribombar de um trovão na sala.
– Qual delas? – perguntou por fim Nestor.
– Não o apanharmos antes que a Polícia o faça – disse o homenzarrão.
Nestor olhou ao redor da divisão para se certificar de que não era o único que não percebera, antes de inquirir:
– O que quer dizer com isso?
– Exatamente o que disse – murmurou o homenzarrão, sorrindo fugazmente e cravando o seu olhar na única pessoa na sala que guardara silêncio até então. – Sabes ao que me refiro, não sabes?
– Sei – respondeu o homem. – O rapaz acabará por voltar para a Prisão Estatal. E talvez acabe com a própria vida, tal como o pai dele?
– Ótimo.
– Vou revelar à Polícia onde podem encontrar o rapaz – disse o homem, levantando o queixo e afastando a pele do pescoço do colarinho da camisa do seu uniforme verde.
– Não será necessário. Eu encarrego-me da Polícia – afirmou o homenzarrão.
– A sério? – perguntou Arild Franck, parecendo surpreendido.
O homenzarrão virou-se e dirigiu-se a todos os presentes.
– Então e esta testemunha em Drammen?
– Está no hospital, na Unidade de Cardiologia. – Hugo Nestor ouviu alguém dizer, enquanto ele próprio olhava para o quadro.
– E o que fazemos em relação a isso?
Ele fixou o olhar.
– O que temos de fazer – respondeu a voz cava.
Fitou o Gémeo enforcado no crucifixo.
Enforcado.
Martha estava sentada no sótão.
A olhar para a viga.
Dissera aos colegas que queria verificar se os arquivos estavam devidamente organizados. Deviam estar, mas não queria saber disso para nada. Na verdade, atualmente não queria saber de nada. Pensava nele, em Stig, o tempo inteiro, o que era tão banal quanto trágico. Estava apaixonada. Sempre acreditara não possuir a capacidade de sentir emoções profundas. Tivera as suas paixonetas, como é óbvio, montes delas, mas nunca nada assim. Das outras vezes, sentira borboletas no estômago, fora um jogo excitante com os sentidos exaltados e as faces ruborizadas. Mas isto era... uma doença. Algo que lhe invadia o corpo e controlava todos os seus pensamentos e ações. Estava loucamente apaixonada. Fora atacada por uma doença, ou por um destino maléfico. Era uma expressão adequada. Isto era excessivo. Era indesejado. Estava a destruí-la.
A mulher que se enforcara ali no sótão... também lhe sucedera o mesmo? Também ela se apaixonara perdidamente por um homem que sabia, no mais recôndito do seu ser, que era a pessoa errada? E também ela estivera tão cega de amor que começara a debater de si para si o que estava certo e o que estava errado, tentando criar uma nova moral que fosse compatível com esta doença maravilhosa? Ou por acaso ela – tal como Martha – só o descobrira quando já estava demasiado envolvida? À hora do pequeno-almoço, Martha voltara ao quarto 323. Verificara de novo os ténis. Cheiravam a detergente. Quem lava as solas de um par de ténis praticamente novo, a menos que tivesse algo a esconder? E porque lhe trouxera isso tamanho desespero ao ponto de sentir necessidade de se refugiar no sótão?
Olhou para a viga.
Mas ela não ia fazer o mesmo que a mulher que ali morrera: denunciá-lo. Não podia. Tinha de existir uma razão, algo que ela desconhecia. Ele não era assim. Ouvira tantas mentiras, pretextos e versões da realidade no seu trabalho, que acabara por não acreditar que as pessoas eram quem diziam ser. Mas de uma coisa tinha a certeza: Stig não era um assassino a sangue-frio.
Sabia-o porque estava apaixonada.
Martha cobriu o rosto com as mãos. Sentiu as lágrimas brotarem. Ficou ali sentada, a tremer no silêncio. Ele quisera beijá-la. Ela quisera beijá-lo. Ainda queria beijá-lo. Aqui, agora, eternamente! Perder-se neste oceano de emoções vasto, maravilhoso e quente. Tomar a droga, entregar-se, premir o êmbolo, sentir a pedrada, ficar grata e condenada.
Ouviu soluçar. E sentiu os pelos eriçarem-se-lhe no braço. A lamúria delicada de um bebé.
Quis desligar o walkie-talkie, mas não o fez. Desta vez, o choro tinha um som diferente. Como se o bebé estivesse com medo e chamasse por ela. No entanto, era a mesma criança, sempre a mesma criança. O filho dela. O filho perdido. Aprisionado num vazio, num nada, tentando encontrar o caminho para casa. E ninguém queria nem podia ajudá-lo. Ninguém ousava fazê-lo. Porque não sabiam o que era e as pessoas temem o desconhecido. Martha escutou o choro. Este subiu de tom e intensidade. De seguida, ouviu um estalido forte e uma voz histérica:
– Martha! Martha! Chamo...
Martha ficou estarrecida. O que estava a acontecer?
– Martha! Eles estão a invadir o centro! Estão armados! Por amor de Deus, onde estás?
Martha pegou no walkie-talkie e premiu o botão falar.
– O que se passa, Maria? – Libertou o botão.
– Estão vestidos de preto e usam máscaras, têm escudos e armas e são imensos! Tens de vir já cá abaixo!
Martha levantou-se e precipitou-se para a porta. Ouviu os seus próprios passos fazerem barulho nas escadas. Escancarou a porta que dava acesso ao corredor do segundo andar. Viu um homem vestido de preto virar-se e apontar-lhe uma caçadeira ou possivelmente uma pistola-metralhadora. Viu outros três em frente à porta do quarto 323. Dois deles balançavam um aríete curto.
– O que... – começou Martha a dizer, mas calou-se quando o homem da metralhadora se colocou diante dela e levou um dedo ao que ela presumiu serem os lábios debaixo da balaclava preta. Ela empertigou-se momentaneamente, antes de se aperceber de que a única coisa que a impedia era aquela arma idiota.
– Exijo que me mostre imediatamente um mandado de busca! Não têm o direito de...
Ouviu-se um estrondo forte quando o aríete embateu na porta, abaixo da fechadura. O terceiro homem abriu uma nesga da porta e arremessou lá para dentro o que pareciam ser duas granadas de mão. Depois, os homens viraram-se e taparam os ouvidos. Santo Deus, eles iam...? O clarão de luz que saiu pela ombreira foi tão intenso que os três polícias projetaram sombras no corredor já bem iluminado, e a explosão tão forte que os ouvidos de Martha zuniram. Depois, eles entraram de rompante no quarto.
– Afaste-se, menina!
As palavras que provieram do polícia diante de si eram abafadas. Parecia estar a gritar. Martha olhava simplesmente para ele. À semelhança dos outros, envergava o uniforme preto da Força Delta e um colete à prova de bala. Depois, ela foi recuando até à porta de acesso às escadas. Encostou-se à parede. Apalpou os bolsos. Guardava ainda o cartão no bolso do blusão, como se sempre tivesse sabido que um dia ele ia ser-lhe útil. Marcou o número que estava por baixo do nome.
– Sim?
A voz é um indicador extremamente preciso da temperatura. Simon Kefas parecia cansado e stressado, no entanto faltava-lhe o entusiasmo que um raide, uma grande detenção, deveriam conferir-lhe. Pela acústica, deduziu também que ele não estava lá fora na rua, nem em qualquer dos quartos do Centro Ila, mas num espaço grande, rodeado de outras pessoas.
– Eles estão aqui – disse ela. – Estão a lançar granadas.
– Mas de que é que está a falar?
– Fala a Martha Lian, do Centro Ila. Está aqui uma unidade de armada. Estamos a ser atacados.
Na pausa que se seguiu, ela ouviu uma voz ao fundo fazer um anúncio, dizer um nome, chamar um médico para comparecer na enfermaria do pós-operatório. O inspetor-chefe estava num hospital.
– Eu vou já para aí – disse ele.
Martha desligou a chamada, abriu a porta e regressou ao corredor. Os estalidos e os silvos dos rádios da Polícia ainda se faziam ouvir.
O agente da Polícia apontou-lhe a arma.
– Olhe lá, o que foi que eu acabei de lhe dizer?
Uma voz metálica no rádio dele disse: «Vamos levá-lo daqui agora.»
– Vá, alveje-me se quiser, mas a responsável aqui sou eu, e ainda não vi nenhum mandado de busca – declarou Martha, passando por ele em passo de marcha.
E depois viu-os sair do quarto 323. Ele estava algemado e era levado por dois agentes. Vinha quase nu, tendo vestidas apenas umas cuecas brancas demasiado grandes e parecia estranhamente vulnerável. Apesar do torso musculado, tinha um ar escanzelado, abatido, acabado. Escorria-lhe um fio de sangue de um ouvido.
Ele levantou a cabeça. Os seus olhos cruzaram-se com os dela.
Depois passaram por ela e desapareceram da sua vista.
Acabara. Martha suspirou de alívio.
Depois de bater duas vezes à porta, Betty pegou na chave-mestra e entrou na suíte. Como era seu hábito, aguardara mais do que o necessário, por isso, mesmo que o hóspede estivesse no quarto, tinha tempo de evitar uma eventual situação embaraçosa. Era esta a política do Hotel Plaza: o pessoal não devia ver nem ouvir nada que não devesse ser visto ou ouvido. Mas não era esta a política de Betty. Bem pelo contrário. A mãe de Betty sempre lhe dissera que, um dia, a sua curiosidade ainda ia trazer-lhe sarilhos. E, sim, trouxera, em mais de uma ocasião. No entanto, tratando-se de uma rececionista, tivera também as suas vantagens; mais ninguém no hotel possuía faro para escroques como Betty. Denunciar pessoas que se instalavam no hotel comendo, bebendo e recebendo convidados sem fazerem tenções de pagar a conta quase se tornara a sua marca registada. E, com frequência, era empreendedora; Betty nunca escondera as suas ambições. Na última avaliação anual, o chefe elogiara-a por ser vigilante, mas discreta e pôr sempre o interesse do hotel em primeiro lugar. Dissera que ela podia ir longe, que a receção era apenas um trampolim para alguém com o seu perfil. A suíte era a maior do hotel, com vista panorâmica sobre Oslo. Tinha um bar, uma kitchenette, uma casa de banho e o quarto separado possuía casa de banho privativa. De onde ouviu o som do chuveiro a correr.
De acordo com o registo de hóspedes, o nome dele era Fidel Lae e dinheiro era coisa que não lhe faltava. O fato que lhe levava era da Tiger e tinha sido comprado na Bogstadveien ao início do dia, enviado ao alfaiate para alterações usando o serviço expresso deles, e entregue depois de táxi no hotel. No verão, o hotel costumava contratar um paquete para levar artigos aos quartos, porém, como aquele verão estava tão calmo, eram os próprios rececionistas a fazê-lo. Betty oferecera-se logo. Não porque tivesse qualquer motivo efetivo para desconfiar. Quando ela lhe fizera o ckeck-in, ele pagara duas noites adiantadas e os escroques não faziam isso. Mas havia algo nele que não batia certo. Não parecia ser o tipo de pessoa que reserva a suíte no último andar. Parecia antes alguém que dormia ao relento ou ficava num albergue para turistas de mochila às costas. Parecia tão inexperiente e concentrado durante o check-in, como se nunca antes tivesse ficado num hotel, mas possuía conhecimentos teóricos e estava ansioso por fazer tudo como devia ser. Além disso, pagara em dinheiro.
Betty abriu o roupeiro e viu que estavam lá uma gravata e duas camisas novas, também da Tiger e provavelmente compradas na mesma loja. No fundo, estava um par de sapatos pretos novos. Leu o nome «Vass» na palmilha. Pendurou o fato ao lado de uma mala comprida e maleável com rodas. Era quase da altura dela; já antes vira malas assim, serviam para transportar pranchas de snowboard ou de surf. Sentiu-se tentada a correr o fecho, no entanto, apalpou a mala. O tecido deu de si. Estava vazia – ou pelo menos não tinha uma prancha de snowboard lá dentro. Ao lado da mala encontrava-se a única peça no roupeiro que não parecia nova, um saco de desporto vermelho com as palavras Clube de Wrestling de Oslo.
Fechou as portas do roupeiro, encaminhou-se para a porta do quarto aberta e chamou na direção da casa de banho:
– Senhor Lae! Dá-me licença, senhor Lae?!
Ela ouviu a torneira fechar-se e, pouco depois, apareceu um homem com o cabelo penteado para trás e espuma de barbear em todo o rosto.
– Pendurei o seu fato no roupeiro. Disseram-me que viesse buscar uma carta, para ser franquiada e expedida?
– Ah, sim. Muito obrigado. Podia esperar um minuto?
Betty encaminhou-se para a janela da sala de estar, observou a vista para a nova Casa da Ópera e o Fiorde de Oslo. Os novos arranha-céus estavam todos juntinhos como sardinhas em lata. Ekebergåsen. O edifício dos Correios. A Câmara Municipal. Os carris de ferro que vinham de todo o país e se uniam num feixe nervoso lá em baixo na Estação Central de Oslo. Reparou na carta de condução em cima da enorme secretária. Não era de Lae. Ao lado estava uma tesoura e uma fotografia tipo passe de Lae usando os chamativos óculos quadrados com as armações pretas com que o vira quando ela lhe fizera o check-in. Mais adiante na secretária estavam duas pastas manifestamente novas e idênticas. Saía o canto de um saco de plástico debaixo da tampa de uma delas. Olhou com atenção. Plástico mate, mas transparente. Com vestígios de algo branco no interior.
Recuou dois passos para poder observar o quarto. A porta da casa de banho estava aberta e conseguia ver as costas do hóspede em frente ao espelho. Tinha uma toalha enrolada à cintura e estava muito concentrado a fazer a barba. Significava que ela tinha uma pequena janela de oportunidade.
Tentou abrir a pasta que continha o saco de plástico. Estava fechada à chave.
Olhou para a fechadura com código. As rodinhas de metal indicavam 0999. Olhou para a outra pasta. 1999. As duas pastas tinham o mesmo código? Nesse caso, 1999 parecia ser o código. Um ano. Talvez o ano de nascimento de alguém. Ou a canção do Prince. Nesse caso, não estaria trancada.
Betty ouviu o hóspede abrir a torneira na casa de banho. Naquele momento enxaguava o rosto. Ela sabia que, na realidade, não devia fazê-lo.
Levantou a tampa da segunda pasta. E ficou boquiaberta.
A pasta estava a abarrotar de maços de notas. Nessa altura, ouviu passos vindos do quarto e fechou rapidamente a tampa, deu três passos rápidos e estacou à porta para o corredor com o coração em sobressalto. Ele saiu do quarto e olhou para ela com um sorriso. No entanto, algo mudara nele. Talvez fosse apenas o facto de já não estar a usar óculos. Ou era o bocado de um lenço de papel ensanguentado por cima de um olho. Naquele momento apercebeu-se de que ele estava diferente. Rapara as sobrancelhas, era isso. Mas quem, no seu perfeito juízo, rapa as sobrancelhas? Para além de Bob Geldoff34 em The Wall, claro. Mas ele era louco. Ou fingia-se louco. O homem diante dela também era louco? Não, as pessoas loucas não tinham pastas cheias de dinheiro, apenas julgavam que tinham.
Abriu a gaveta da secretária, tirou um envelope pardo e entregou-o a Betty.
– Podia certificar-se de que isto segue ainda hoje pelo correio, por favor?
– Tenho a certeza de que será possível – disse ela, esperando que ele não tivesse detetado o seu sobressalto.
– Muitíssimo obrigado, Betty.
Ela pestanejou duas vezes. Claro, o nome dela estava no distintivo de identificação que usavam no hotel.
– Tenha um bom dia, senhor Lae – disse, sorrindo, e colocou a mão no puxador da porta.
– Espere, Betty.
Ela sentiu o seu sorriso cristalizar. Ele vira-a abrir a pasta, ele preparava-se para...
– Talvez seja... hum, habitual dar gorjeta por estes serviços?
Ela suspirou de alívio.
– De modo algum, senhor Lae.
Somente quando estava já dentro do elevador é que se apercebeu de que suava copiosamente. Porque é que não conseguia refrear a sua curiosidade? Tão-pouco podia contar fosse a quem fosse que andara a remexer nos objetos pessoais de um hóspede. Afinal, desde quando era ilegal guardar dinheiro dentro de uma pasta? Em especial se se trabalhava para a Polícia. Porque era isso que estava escrito na frente do envelope pardo. Comando da Polícia, Grønlandsleiret, 44. À atenção de Simon Kefas.
Simon Kefas encontrava-se no quarto 323 e olhava à sua volta.
– Portanto, a Delta tomou de assalto o quarto? – disse ele. – E levou o tipo que estava no beliche inferior? O Johnny... como era o nome dele?
– Puma – respondeu Martha. – Eu liguei porque julguei que talvez tivessem...
– Não, eu não tive nada que ver com isto. Quem é o companheiro de quarto do Johnny?
– Ele diz que se chama Stig Berger.
– Hum. E onde se encontra neste momento?
– Não sei. Ninguém sabe. A Polícia interrogou toda a gente aqui. Ouça, se não foi o senhor, então eu quero saber quem ordenou o raide.
– Não sei – respondeu Simon, abrindo o roupeiro. – Só o comissário pode autorizar uma operação Delta, fale com ele. São estas as roupas do Stig Berger?
– Tanto quanto sei.
Tinha a sensação de que ela estava a mentir, de que ela sabia que lhe pertenciam. Ele pegou nos ténis azuis ao fundo do roupeiro. Tamanho 43. Voltou a guardá-los, fechou o roupeiro e reparou na fotografia colada na parede ao lado do móvel. Quaisquer dúvidas que pudesse ter até àquele momento tinham-se dissipado.
– O nome dele é Sonny Lofthus – disse Simon.
– O quê?
– O outro residente. O nome dele é Sonny e esta é a fotografia do pai, o Ab Lofthus. O pai dele era agente da Polícia. O filho tornou-se um assassino. Até ao momento, já matou seis pessoas. Pode queixar-se ao comissário, se quiser, mas penso que estamos em condições de afirmar com segurança que a presença da Delta foi justificada.
Viu que o rosto dela parecia endurecer e as pupilas contrair-se como se houvesse subitamente luz a mais. Os que ali trabalhavam já tinham visto muitas coisas, mas ainda causava choque saber que tinham dado abrigo a um assassino em série.
Acocorou-se, havia algo debaixo do beliche. Tirou-o para fora.
– O que é? – perguntou ela.
– Uma granada de atordoamento – disse ele, segurando o objeto verde-azeitona que parecia a pega de borracha do guiador de uma bicicleta. – Produz uma luz intensa e um estrondo de cerca de 170 decibéis. Não é perigosa, mas deixa as pessoas cegas, surdas, zonzas e desorientadas durante alguns segundos para que a Delta tenha tempo de fazer o que é necessário. Mas eles não puxaram a cavilha desta, por isso não chegou a rebentar. É assim mesmo, as pessoas cometem erros quando estão sob pressão. Não concorda?
Olhou para os ténis e depois para ela. Porém, quando ela correspondeu ao seu olhar, este já estava sereno e firme. Não viu nada ali.
– Tenho de voltar para o hospital – disse Simon. – Liga-me se ele voltar?
– O senhor está bem?
– Provavelmente não – respondeu Simon. – Mas a doente é a minha mulher. Está a ficar cega.
Ele olhou para as mãos. Sentiu-se tentado a acrescentar: tal como eu.
33 Povo indígena das Grandes Planícies da América do Norte. (N. da T.)
34 Cantor, compositor e humanista irlandês nascido em 1951. Desempenhou o papel principal da versão em filme de «The Wall» realizado em 1982 pela MGM sob o título de Pink Floyd The Wall. (N. da T.)
28
Hugo Nestor adorava o Vermont. Era uma das poucas combinações de restaurante, bar e clube noturno que tinha efetivamente sucesso nas três áreas. A clientela era constituída pelos ricos e bonitos, os não bonitos mas ricos, os não ricos mas bonitos, uma mistura de celebridades, financeiros semi-bem-sucedidos e pessoas que trabalhavam à noite na indústria do entretenimento e vida noturna. Aos quais se vinham juntar os criminosos endinheirados. Nos anos noventa, fora no Vermont que o Gangue de Tveita e as pessoas envolvidas na lavagem de dinheiro e assaltos a bancos e estações dos correios compravam garrafas de seis litros de Dom Pérignon e, como na época faltava uma certa sofisticação às strippers norueguesas, preferiam mandar vir as de Copenhaga para uma breve lap dance na sala de jantar privativa. Usavam palhinhas para soprar cocaína diretamente para vários orifícios das strippers, e por vezes também nos próprios, enquanto os empregados de mesa lhes serviam ostras, trufas do Périgord e foie gras de gansos que tinham sido alimentados tão bem quanto eles próprios. Em suma, o Vermont era um local de estilo e tradição. Um local onde Hugo Nestor e a sua gente se sentavam todas as noites na mesa isolada por um cordão e viam o mundo lá fora mergulhar no inferno. Um local onde era possível fazer negócio, onde banqueiros e financeiros tinham oportunidade de se misturar com criminosos sem que os polícias que frequentavam o Vermont se apercebessem do que acontecia à sua volta.
Em consequência, o pedido do homem que se sentara à mesa deles não era dos mais invulgares. Ele entrara, olhara em redor e abrira caminho por entre a multidão até chegar perto deles, no entanto, vira-se impedido por Bo quando tentara passar a perna por cima do cordão vermelho que demarcava o território deles. Após uma breve troca de palavras, Bo aproximara-se de Nestor e segredara-lhe ao ouvido:
– Ele quer uma rapariga asiática. Diz que é para um cliente que paga o que for preciso.
Nestor inclinou a cabeça e bebeu um golinho do seu champanhe. Havia uma frase do Gémeo de que ele se apropriara: O dinheiro pode comprar-te champanhe.
– Ele parece-te ter ar de polícia?
– Não.
– A mim também não. Arranja-lhe uma cadeira.
O sujeito vestia um fato que aparentava ter sido caro, uma camisa acabada de engomar e uma gravata. Tinha sobrancelhas pálidas por cima de um par de óculos chamativos e exclusivos. Não, correção, não tinha sobrancelhas.
– Ela tem de ter menos de vinte anos.
– Não sei do que está a falar – disse Nestor. – Porque está aqui?
– O meu cliente é amigo do Iver Iversen.
Hugo Nestor olhou-o com atenção. Também não tinha pestanas. Se calhar, sofria de alopecia universalis, tal como o irmão de Hugo – o alegado irmão de Hugo – que não tinha um único pelo no corpo. Assim sendo, o cabelo na cabeça do tipo só podia ser um chinó.
– O meu cliente opera no ramo dos transportes marítimos. Ele paga-lhe em dinheiro e em heroína que veio por mar. Provavelmente, saberá melhor do que eu o que isso significa em termos de pureza.
Menos paragens. Menos intermediários a cortarem as drogas.
– Deixe-me ligar ao Iversen – disse Nestor.
O tipo abanou a cabeça.
– O meu cliente exige discrição absoluta, nem o Iversen nem mais ninguém devem saber. Se o Iversen é suficientemente estúpido para contar aos amigos mais chegados o que anda a fazer, nesse caso, o problema é dele.
E potencialmente nosso, pensou Nestor. Quem é este tipo? Não tinha nada ar de ser um moço de recados. Um protegido? Um advogado de família da maior confiança?
– Compreendo, como é óbvio, que uma abordagem direta de um homem que não conhece requer garantias extra de uma transação segura. Assim sendo, o meu cliente e eu sugerimos um adiantamento como prova da nossa seriedade. O que me diz?
– Digo quatrocentos mil – afirmou Nestor. – Não passa de um número hipotético, mas continuo sem saber do que está a falar.
– Claro que não – disse o tipo. – Nós podemos aceitar a proposta.
– Para quando?
– Estou a pensar esta noite.
– Esta noite?
– Só estou na cidade até amanhã de manhã, depois regresso a Londres. O dinheiro está na minha suíte no Plaza.
Nestor trocou um olhar com Bo. Depois esvaziou de uma assentada a flute de champanhe.
– Não percebo patavina do que me está a dizer, cavalheiro. A menos que esteja a tentar dizer-me que nos está a convidar para tomarmos uma bebida na sua suíte.
O tipo brindou-o com um sorriso.
– É exatamente isso que estou a dizer.
Revistaram o tipo mal chegaram ao parque de estacionamento. Bo agarrou-o enquanto Nestor o revistava à procura de armas e microfones. O tipo deixou-se palpar sem oferecer resistência. Estava limpo.
Bo conduziu a limusina até ao Plaza e seguiram a pé do parque de estacionamento por detrás do Spektrum35 até ao prisma alto de vidro que era o Hotel Plaza. Olharam para a cidade lá em baixo através do elevador exterior e Nestor pensou que era uma metáfora: as pessoas lá em baixo iam ficando cada vez mais pequenas quanto mais alto ele próprio subia.
Bo sacou da pistola quando o tipo abriu a porta da suíte. Não existia nenhuma razão óbvia para esperar uma emboscada; presentemente, e tanto quanto julgava saber, Nestor não tinha quaisquer inimigos vivos. Nem litígios pendentes no mercado e a Polícia era livre de o prender se quisesse, mas nada tinha contra ele. E, no entanto, sentia um desconforto a que não conseguia atribuir propriamente uma causa. Calculou que se devesse a vigilância profissional e decidiu não baixar a guarda, algo que as outras pessoas no ramo só lucravam em aprender. Nestor não chegara onde chegara sem ter um bom motivo.
A suíte era ótima. Uma vista fantástica, disso não havia a menor dúvida. O tipo colocara duas pastas em cima da mesinha do café. Enquanto Bo verificava as outras divisões, o tipo dirigiu-se ao bar e começou a preparar as bebidas.
– Faça favor – disse ele, estendendo a mão na direção das pastas.
Nestor sentou-se à mesinha do café e levantou primeiro o trinco e depois a tampa. Estavam ali mais de quatrocentas mil coroas. Só podiam estar.
E se as drogas na outra pasta fossem tão puras quanto o tipo dera a entender, havia mais do que suficiente para comprar uma pequena aldeia de raparigas asiáticas.
– Importa-se que ligue o televisor? – perguntou Nestor, pegando no controlo remoto.
– Não faça cerimónia – disse o tipo; estava ocupado a preparar as bebidas, o que parecia não o deixar confortável, apesar de, pelo menos, estar a cortar rodelas de limão para os três gins tónicos.
Nestor premiu o botão dos canais de televisão pagos, foi passando os filmes infantis e familiares até chegar ao canal pornográfico e aumentar o som. Encaminhou-se para o bar.
– Ela tem dezasseis anos e será entregue no parque de estacionamento do Lido36 de Ingierstrand à meia-noite. Você para a meio do parque e fica dentro do carro. Um dos meus homens virá ter consigo, entra para o banco traseiro, conta o dinheiro e depois virá outra pessoa trazer a rapariga. Entendido?
O tipo anuiu.
O que Nestor não mencionou, porque não havia necessidade disso, era que a rapariga não estaria no mesmo carro que vinha recolher o dinheiro. Este ia abandonar o local de encontro antes de o carro com a rapariga chegar. O mesmo princípio que num negócio de droga.
– E o dinheiro...?
– Mais quatrocentos mil – disse Nestor.
– Muito bem.
Bo entrou vindo do quarto e parou para olhar para o ecrã. Parecia estar a gostar. A maior parte das pessoas gostava. Nestor só via utilidade na pornografia porque oferecia uma banda sonora previsível e constante de gemidos que frustravam qualquer possível escuta clandestina colocada no quarto.
– No Lido de Ingierstrand à meia-noite – repetiu Nestor.
– Brindemos a isso – disse o tipo, estendendo dois copos.
– Obrigado, mas vou conduzir – respondeu Bo.
– Claro. – O tipo soltou uma gargalhada e deu uma palmada na testa. – Coca?
Bo encolheu os ombros e o tipo abriu uma lata de Coca-Cola, despejou-a num copo e cortou outra rodela de limão.
Brindaram e sentaram-se à mesa. Nestor fez sinal a Bo, que retirou o primeiro maço de notas da pasta e começou a contar em voz alta. Trouxera um saco do carro, no qual colocou o dinheiro. Nunca aceitavam os sacos dos clientes, podiam conter sensores que indicavam para onde era levado o dinheiro. Só quando Nestor se enganou a contar é que se apercebeu de que algo estava errado. Só não sabia o quê. Olhou à sua volta. As paredes tinham mudado de cor? Olhou para o seu copo vazio. Olhou para o copo vazio de Bo. E para o copo do advogado.
– Porque não pôs limão no seu? – perguntou Nestor.
A sua voz parecia vir de muito longe. E a resposta chegou do mesmo lugar distante.
– Intolerância a citrinos.
Bo parara de contar; a sua cabeça tombara sobre o dinheiro.
– Você drogou-nos – disse Nestor e estendeu a mão para a faca na bainha na perna. Teve tempo de registar que tateava a perna errada antes de ver a base do candeeiro vir na sua direção. Depois ficou tudo negro.
Hugo Nestor sempre gostara de música. E não se estava a referir ao tipo de barulho ou séries de notas pueris a que as pessoas vulgares chamavam música, mas a música para pessoas adultas capazes de pensar pela sua própria cabeça. Richard Wagner. Escala cromática. Doze semitons com rácios de frequência na 12.ª raiz de dois. Matemática nítida e pura, harmonia, ordem alemã. No entanto, o som que ele ouvia naquele momento era o oposto de música. Era dissonante, sem nenhuma relação fosse com o que fosse, era o caos. Quando recuperara os sentidos, apercebera-se de que estava num carro, dentro de uma espécie de saco grande. Sentia-se nauseado e com vertigens; as mãos e os pés estavam atados com algo afiado que lhe trilhava a pele – provavelmente algemas de plástico, às vezes ele usava-as nas raparigas.
Quando o carro parara, fora içado e apercebera-se de que devia estar dentro de uma mala maleável com rodas. Meio deitado, meio de pé, fora empurrado e arrastado por um terreno acidentado. Ouvira quem quer que puxasse a mala arfar e chiar. Nestor gritara-lhe, fizera propostas financeiras a troco da sua libertação, mas não obtivera nenhuma resposta.
O som seguinte que ouviu foi uma misturada pouco musical e átona que ia subindo de intensidade. E que reconheceu assim que a mala foi pousada e ele ficou deitado de costas, sentindo o terreno debaixo de si e sabendo – porque já percebera onde estava – que a água fria que se infiltrava na mala e depois no fato era água lamacenta. Cães. Os latidos curtos e frenéticos dos mastins argentinos.
O que ele não sabia era o que vinha a ser aquilo. Quem era o tipo e porque lhe estava a acontecer semelhante coisa? Era uma disputa de território? O tipo que o raptara era o mesmo que matara Kalle? Mas porquê dar-se a todo aquele trabalho?
O fecho da mala abriu-se e Nestor semicerrou os olhos, ofuscado pela luz da lanterna apontada diretamente ao seu rosto.
Uma mão agarrou-lhe o pescoço e obrigou-o a ficar de pé.
Nestor abriu os olhos e viu uma pistola brilhar tenuemente na luz. Os latidos dos cães tinham cessado bruscamente.
– Quem era a toupeira? – disse a voz por detrás da lanterna.
– O quê?
– Quem era a toupeira? A Polícia julgava que era o Ab Lofthus.
Hugo Nestor semicerrou os olhos, para não ficar encandeado.
– Não sei. Bem podes matar-me, não sei mesmo.
– Quem sabe?
– Ninguém, nenhum de nós. Talvez alguém na Polícia.
A luz foi desviada e Nestor viu que era o advogado. Ele tirara os óculos.
– Precisas de ser castigado – disse ele. – Não gostavas de aliviar primeiro a tua consciência?
De que é que ele estava a falar? Parecia um padre. Teria que ver com aquele capelão que fora morto? Mas ele era apenas um pedófilo corrupto... de certeza que ninguém ia querer vingá-lo?
– Não fiz nada de que me arrependa – disse Nestor. – Despacha mas é isto.
Sentiu-se estranhamente calmo. Se calhar, era um efeito secundário da droga. Ou o facto de ter pensado já vezes suficientes no assunto, aceitado que a sua vida provavelmente ia acabar daquela maneira, com uma bala na cabeça.
– Nem mesmo àquela rapariga que deixaste que maltratassem antes de lhe cortares a garganta? Com esta faca...?
Nestor pestanejou quando a luz se refletiu na lâmina curva da faca. A sua faca árabe.
– Não...
– Onde escondes as raparigas, Nestor?
As raparigas? Era isso que ele queria, ficar com o tráfico? Nestor procurou concentrar-se. Mas era difícil com o cérebro toldado.
– Prometes não me matar, se eu te contar? – perguntou, embora tivesse a noção de que um sim tinha quase tanta credibilidade quanto o marco alemão em 1923.
– Prometo – disse o tipo.
Nesse caso, por que motivo continuava Nestor a acreditar nele? Porque se fiava na promessa de que não seria alvejado por um tipo que não fizera outra coisa senão mentir-lhe desde que aparecera no Vermont? Só podia ser o seu cérebro delirante a agarrar-se a uma última tábua de salvação. Porque não havia mais nada a não ser aquela esperança tola num canil numa floresta à noite: que o tipo que o raptara estava a dizer a verdade.
– Enerhauggata 96.
– Muitíssimo obrigado – disse o tipo e guardou a pistola no cós das calças.
Muitíssimo obrigado?
O tipo pegara no telemóvel e copiava a informação que estava escrita num Post-it amarelo, provavelmente um número de telefone. O visor iluminou-se e passou pela cabeça de Nestor que afinal ele sempre podia ser padre. Um padre não mentia. Claro que era uma contradição, mas estava convencido de que existiam padres que não tinham consciência de que estavam a mentir. Ele continuava a premir teclas. Um SMS. Enviou-o carregando num dos botões. De seguida guardou o telemóvel no bolso e olhou para Nestor.
– Fizeste uma boa ação, Nestor, agora existe uma hipótese de elas poderem ser salvas – disse-lhe. – Julguei que gostasses de sabê-lo antes de...
Antes de quê? Nestor engoliu em seco. O tipo prometera que não o matava! Prometera... Espera. Ele prometera que não o matava. O feixe da lanterna apontava agora diretamente para o cadeado no cercado. O tipo introduziu uma chave na fechadura. Nestor conseguiu então ouvir os cães. Não a ladrar, apenas um baixo quase inaudível mas harmonioso. Veio uma rosnadela abafada dos estômagos deles, que foi aumentando de volume, tom e modulação, abafada e controlada como o contraponto de Wagner. E, naquele momento, não houve droga que conseguisse refrear o seu medo. Medo que parecia estar a ser regado com água gélida. Se ao menos a pressão tivesse conseguido levá-lo, só que este homem estava no interior, dentro dele lavando-lhe a cabeça e o corpo por dentro com uma mangueira. Não havia fuga possível. Era o próprio Hugo Nestor quem segurava nela.
Fidel Lae estava sentado no escuro, de olhos bem abertos. Cessara de mexer-se ou emitir qualquer som. Apenas se enrolara numa tentativa de manter-se quente e controlar as tremuras. Reconheceu as duas vozes masculinas. Uma era do homem que aparecera do nada e o trancara há mais de vinte e quatro horas. Fidel mal tocara na comida de cão, só bebera a água. E tiritava de frio. Mesmo numa noite de verão o frio vai-se entranhando no corpo, petrifica-o, persegue uma pessoa para onde quer que ela vá. Ele gritara por socorro até ficar com a garganta arranhada e não lhe restar voz, até o sangue, e não a saliva, lhe humedecerem a garganta e a água que bebera não proporcionar qualquer alívio mas picar e arder como álcool. Quando ouvira o carro, tentara gritar de novo, no entanto começara a soluçar quando a voz não emitira nenhum som; só arranhava como um motor enferrujado.
Depois apercebeu-se, pela agitação dos cães, que alguém se aproximava. Acalentara a esperança. E rezara. E, por fim, vira a silhueta recortada no céu da noite de verão, vira que ele estava de volta. O homem que na véspera pairara sobre a charneca estava agora todo dobrado enquanto arrastava algo atrás de si. Uma mala. Com um ser humano vivo lá dentro. Um homem que tinha as mãos atadas atrás das costas e os pés tão juntos, que tinha manifestamente dificuldade em manter o equilíbrio quando o colocaram defronte da cancela do cercado onde se encontrava Fidel.
Hugo Nestor.
Estavam apenas a quatro metros da jaula de Fidel e, no entanto, não conseguia ouvir o que eles diziam. O homem abriu o cadeado e pousou a mão na cabeça de Nestor como se o abençoasse. Disse algo. Depois empurrou ligeiramente a cabeça de Nestor. O homem roliço de fato soltou uns gritos, depois tombou para trás e embateu na cancela, que se abriu para dentro. Os cães agitaram-se. O homem empurrou rapidamente os pés de Nestor lá para dentro e fechou a cancela. Os cães hesitaram. Depois, o Caça-Fantasmas pareceu agitar-se e começou a mover-se. Fidel viu os cães brancos saltarem sobre Nestor. Os movimentos deles foram tão silenciosos que conseguiu ouvir nitidamente a mastigação ruidosa, o som de carne a ser arrancada, a rosnadela quase extasiada quando Nestor gritou. Uma única nota curiosamente pura e tremulante que se elevou em direção ao céu nórdico claro onde Fidel conseguiu ver a dança dos insetos. Depois, a nota foi subitamente abreviada e Fidel viu algo mais erguer-se, fazia lembrar um enxame que vinha direito a si e sentiu a pulverização de gotículas quentes e soube que se devia ao facto de ele ter cortado a artéria de um alce ainda vivo numa caçada. Fidel limpou o rosto com a manga do blusão e desviou o olhar. Viu que o homem do lado de fora da jaula também se virara. Viu os seus ombros serem sacudidos. Como se chorasse.
35 Arena multiusos situada no centro de Oslo. Foi inaugurada em 1990. (N. da T.)
36 Tipo de costa baixa, de praias com lagunas isoladas do mar por cordões de areia, que vão sendo aumentados pela sedimentação. (N. da T.)
29
–Já é muito tarde – disse o médico, esfregando os olhos. – Porque não vai para casa, Kefas, dorme um pouco, e fazemos isto amanhã?
– Não – respondeu Simon.
– Como queira – afirmou o médico, fazendo sinal a Simon para que se sentasse numa das cadeiras ao longo da parede do corredor sombrio do hospital. Quando o médico se sentou a seu lado e fez uma pausa antes de se inclinar na direção dele, Simon percebeu que vinham aí más notícias.
– Não resta muito tempo à sua mulher. Para que haja hipóteses de a operação ser bem-sucedida, precisa de fazer a cirurgia dentro de dias.
– E não há nada que o senhor possa fazer?
O médico suspirou.
– Por norma, não aconselhamos os doentes a ir ao estrangeiro e sujeitarem-se a um tratamento particular e caro, em especial quando o resultado é relativamente incerto. Mas neste caso...
– Está a dizer que quer que eu a leve já para a Clínica Howell?
– Não estou a dizer-lhe para fazer o que quer que seja. Há muitas pessoas cegas que conseguem viver uma vida plena com a sua deficiência.
Simon anuiu enquanto os seus dedos acariciavam a granada de atordoamento que trazia no bolso. Fez um esforço para processar a informação, mas foi como se o seu cérebro tentasse fugir, procurasse refúgio, especulando se deficiência não era uma palavra não-PC37. Calculou que agora lhe chamassem «pessoa portadora de necessidades especiais». Ou também se tornara – tal como albergue – não-PC? As coisas mudavam tão rapidamente que não conseguia acompanhar o ritmo, e a terminologia da saúde e da assistência social pareciam ter um prazo e validade inferior ao do leite.
O médico pigarreou.
– Eu... – começou Simon e ouviu o seu telemóvel apitar. Pegou nele, grato por uma pausa. Não reconheceu o número de que recebera a mensagem.
«Encontrará as prisioneiras do Nestor na Enerhauggata, 96. Apresse-se. O Filho.»
O Filho.
Simon premiu um número.
– Oiça, Simon – disse o médico – não tenho tempo para...
– Está tudo bem – afirmou Simon e levantou uma mão para silenciar o médico quando ouviu uma voz sonolenta atender a chamada:
– Falkeid.
– Olá, Sivert, fala o Simon Kefas. Quero que envie a Delta para tomar de assalto a seguinte morada: Enerhauggata, 96. Quanto tempo demoram a chegar lá?
– Estamos a meio da noite.
– Não foi isso que eu perguntei.
– Trinta e cinco minutos. Tem autorização do comissário?
– O Pontius não está disponível neste momento – mentiu Simon. – Mas fique descansado, tanto quanto me apercebo, temos motivos para o raide. Tráfico. E não há tempo a perder. Façam-no, eu assumo a responsabilidade.
– Espero que saiba o que está a fazer, Simon.
Simon desligou e olhou para o médico.
– Obrigado, doutor. Agora tenho de voltar ao trabalho.
Betty ouviu os ruídos de acasalamento assim que saíram do elevador no último andar.
– Francamente.
Betty franziu os sobrolhos.
– É um canal pago de televisão – disse o segurança a quem ela pedira que a acompanhasse.
Tinham recebido queixas dos quartos vizinhos e, por uma questão de política, Betty anotara a ocorrência no livro de registo noturno, que se encontrava na receção. «02h23 da manhã, queixa de ruído na Suíte 4.» Ligara para a Suíte 4, mas não tinham atendido. Então, ela chamara o segurança.
Ignoraram o pedido de «Não Incomodar» pendurado no puxador da porta e bateram com força. Aguardaram. Bateram novamente. Betty apoiava-se ora num pé ora no outro.
– Parece nervosa – comentou o segurança.
– Tenho a sensação de que o hóspede está a tramar... alguma.
– Alguma?
– Drogas... vá-se lá saber...
O segurança soltou o botão do seu cassetete e endireitou-se enquanto Betty introduzia a chave-mestra na fechadura. Abriu a porta.
– Senhor Lae?
A sala de estar encontrava-se vazia. Os ruídos de acasalamento provinham de uma mulher com um espartilho de couro vermelho com uma cruz branca que se destinava a indicar que ela era enfermeira. Betty pegou no comando que estava em cima da mesinha de café e desligou o televisor enquanto o segurança entrava no quarto. As pastas tinham desaparecido. Betty reparou nos copos vazios e em meio limão no balcão do bar. O limão secara e a sua polpa tinha uma estranha coloração castanha. Betty abriu o roupeiro. O fato e a mala de viagem grande e o saco de desporto vermelho tinham desaparecido. Era o truque mais velho no manual de fraudes do hotel, pendurar um aviso de «Não Incomodar» do lado de fora da porta e ligar o televisor para que parecesse que o hóspede continuava lá dentro. Mas o senhor Lae pagara o quarto adiantado. E ela já verificara que não tinham sido debitados pedidos ao restaurante ou ao bar na conta do quarto.
– Está um tipo na casa de banho.
Ela virou-se para o segurança, que estava de pé à porta do quarto.
Ela seguiu-o até lá dentro.
O homem estendido no chão da casa de banho parecia estar abraçado à sanita. Uma inspeção mais minuciosa revelara que estava amarrado a ela com tiras à volta dos pulsos. Vestia um fato preto, tinha cabelo louro e não parecia lá muito sóbrio. Estava pedrado com alguma substância. Ou sedado. Pálpebras pesadas piscaram sonolentamente na direção deles.
– Soltem-me – pediu ele com uma pronúncia que ela não conseguiu identificar com nenhuma parte do mundo.
Betty fez sinal ao guarda, que tirou um canivete do exército suíço e cortou as tiras de plástico.
– O que aconteceu? – perguntou ela.
O homem levantou-se a cambalear. Oscilou ligeiramente diante deles. Fez um esforço para focar os seus olhos marejados.
– Nós jogámos um jogo estúpido – balbuciou ele. – Agora tenho de ir...
O segurança posicionou-se à porta e barrou-lhe o caminho.
Betty olhou à sua volta. Nada fora danificado. A conta tinha sido paga. Existia apenas uma queixa sobre o ruído da televisão. Arriscavam-se a ter problemas com a Polícia, cobertura negativa na imprensa e a fama de serem um ponto de encontro de elementos pouco recomendáveis. O chefe dela elogiara-a por ter sido discreta, por colocar os interesses do hotel em primeiro lugar. Dissera que ela podia ir longe, que a receção era apenas um trampolim para alguém como ela.
– Deixe-o ir – disse ela.
* * *
Lars Gilberg fora acordado por uma restolhada vinda dos arbustos. Virou-se. Viu os contornos de um vulto entre os ramos e as folhas. Estava alguém a tentar roubar as coisas do rapaz. Lars meneou-se para sair do saco-cama imundo e pôs-se em pé.
– Ei, tu!
O vulto estacou. Voltou-se. O rapaz estava transformado. Era algo no rosto dele, de certa forma, parecia inchado.
– Obrigado por olhares pelas minhas cenas – disse o rapaz, indicando com um trejeito da cabeça o saco que enfiara debaixo do braço.
– Hum – disse Lars e aproximou-se mais para ver se assim era mais fácil detetar a mudança. – Não te meteste em sarilhos, pois não, rapaz?
– Oh, sim, na verdade meti. – O rapaz sorriu.
No entanto, havia algo no seu sorriso. Algo pálido. Os lábios tremiam-lhe. Parecia ter estado a chorar.
– Precisas de ajuda?
– Não, mas obrigado por perguntares.
– Hum. Não voltarei a ver-te, pois não?
– Não, não me parece. Vive bem, Lars.
– Assim farei. E tu... – Deu um passo em frente e assentou uma mão no ombro do rapaz. – Vive muito. Prometes-me?
O rapaz anuiu rapidamente.
– Vê debaixo da tua almofada – disse ele.
Automaticamente, Lars olhou para a sua cama debaixo do arco. E, quando tornou a virar-se, só teve tempo de ver as costas do rapaz antes de ele ser engolido pelo escuro.
Lars voltou para o seu saco-cama. Avistou um envelope com uma ponta que saía de baixo da sua almofada. Pegou nele. «Para o Lars», dizia. Abriu o envelope.
Lars Gilberg nunca vira tanto dinheiro em toda a sua vida.
* * *
– A Delta não devia já estar cá? – perguntou Kari, bocejando e olhando para o seu relógio de pulso.
– Devia – respondeu Simon e espreitou lá para fora. Tinham estacionado lá em cima, a meio da Enerhauggata e o número 96 ficava cinquenta metros à frente, do outro lado da rua. Era uma casa de madeira de dois pisos, pintada de branco, uma daquelas que tinham sido salvas aquando da demolição dos pitorescos edifícios de madeira de Energaugen, na década de 1960, para dar lugar a quatro torres de apartamentos. A casinha de madeira repousava tão imóvel e tranquila na noite de verão que Simon teve dificuldade em imaginar que pudesse haver pessoas prisioneiras lá dentro.
– Sentimos uma pontinha de culpa – disse Simon. – No entanto, penso que o vidro e o betão são mais adequados às pessoas de hoje.
– O quê?
– Estou a citar o diretor executivo da Sociedade Construtora OBOS, em 1960.
– A sério? – perguntou Kari e voltou a bocejar. Simon ficou curioso em saber se ela estava à espera de que ele sentisse uma pontinha de culpa por tê-la arrancado da cama a meio da noite. Poder-se-ia alegar que a presença dela não era estritamente necessária em semelhante ataque-surpresa. – Porque é que a Delta ainda não está aqui? – voltou a perguntar.
– Não sei – respondeu Simon e, naquele momento, o interior do carro foi iluminado pelo ecrã do seu telemóvel, que estava entre os bancos. Olhou para o número. – Mas não tardaremos a saber – disse, aproximando lentamente o telemóvel do ouvido. – Sim?
– Sou eu, Simon. Não vem ninguém.
Simon ajustou o espelho retrovisor. Um psicólogo talvez conseguisse encontrar uma explicação para Simon fazer aquilo, todavia, tornara-se uma reação automática à voz do outro homem. Simon focou-se no espelho pera ver o que estava por detrás de si.
– E porque não?
– Porque os motivos para o raide não foram devidamente justificados, a sua necessidade não foi explicada e tu não fizeste nenhuma tentativa de passar pelos canais adequados para autorizar a Delta.
– Mas tu podes autorizá-la, Pontius.
– Pois posso. Mas decidi que não vou fazê-lo.
Simon praguejou em silêncio.
– Ouve, é...
– Não, ouve-me tu. Eu dei ordens ao Falkeid para que se retirasse e disse que ele e os seus homens podiam voltar para a cama. Afinal, o que é que andas a tramar, Simon?
– Tenho razões para crer que há pessoas detidas contra a sua vontade na Enerhauggata, 96. Francamente, Pontius, é...
– A franqueza é positiva, Simon. Lembra-te disso da próxima vez que ligares ao chefe da Delta.
– Não houve tempo para explicar. Não há tempo, raios. Tu costumavas confiar no meu discernimento.
– É correto teres usado o verbo no passado, Simon.
– Portanto, agora não confias em mim, é isso?
– Tu perdeste todo o teu dinheiro, recordas-te? Inclusive o da tua mulher. Na tua opinião, o que é que isso me diz sobre a tua capacidade de discernimento?
Simon cerrou os dentes. Houve uma altura em que não teria sido fácil prever qual deles levava a melhor numa discussão ou quem tinha as melhores notas, corria mais depressa ou ficava com a rapariga mais bonita. A única certeza era que eles se uniam na retaguarda do terceiro homem na Troika. Mas, agora, ele estava morto. E, embora ele tivesse sido o melhor pensador e o mais forte dos três, Pontius Parr tivera sempre uma vantagem: pensava mais longe do que qualquer dos outros dois.
– Fá-lo-emos amanhã de manhã bem cedo – afirmou o comissário, com a autoconfiança despreocupada que naquela altura levava as pessoas a acreditar que a opinião dele é que prevalecia. Inclusive o próprio Pontius. – Se recebeste uma informação confidencial sobre uma suspeita de tráfico de droga nessa morada, podes ter a certeza de que ela não vai desaparecer durante a noite. Vai para casa e põe o sono em dia.
Simon abriu a porta do carro e apeou-se enquanto dava indicações a Kari sobre a sua posição. Trancou a porta e avançou alguns metros rua abaixo. Falava baixinho ao telemóvel.
– Isto não pode esperar. Isto é urgente, Pontius.
– O que te leva a pensar isso?
– A informação é confidencial.
– E como chegaste até ela?
– Um SMS de alguém... anónimo. Vou entrar sozinho.
– O quê? Nem penses nisso! Para, Simon. Estás a ouvir-me? Estou?
Simon olhou para o seu telemóvel. Encostou-o novamente ao ouvido. «A avaliação feita pelo agente no local.» Lembras-te de aprender isso, Pontius? Lembras-te de eles nos terem ensinado que ela se sobrepõe sempre às ordens dos agentes longe do local?
– Simon! Oslo já está um caos! A Câmara Municipal e os media andam em cima de nós por causa destas mortes. Desta vez não tomes decisões precipitadas. Simon!
Simon terminou a chamada, desligou o telemóvel e abriu a mala do carro. Destrancou a caixa da arma. Tirou a caçadeira, a pistola e umas caixas de munições. Pegou em dois coletes à prova de bala que andavam à solta dentro da mala e entrou no carro.
– Vamos avançar – disse, entregando a caçadeira e um colete a Kari.
Esta olhou para ele.
– Há pouco estava a falar com o comissário?
– Estava – respondeu Simon, verificando que o carregador da pistola Glock 17 estava cheio. Voltou a encaixá-lo no punho. – Passa-me as algemas e a granada de atordoamento que está no porta-luvas, se fazes favor?
– Tem uma granada de atordoamento?
– Um resquício do raide ao Centro Ila.
Ela entregou a Simon as algemas Peerless dele e a granada.
– Ele deu-nos permissão para entrarmos?
– Ele foi informado – disse Simon, vestindo o colete à prova de bala.
Kari levantou o cano da caçadeira e carregou os cartuchos com movimentos rápidos e familiares.
– Caça ao galo silvestre desde os nove anos – explicou, tendo-se apercebido do olhar de Simon. – No entanto, prefiro as espingardas. Como vamos fazer isto?
– Quando eu disser três – respondeu Simon.
– Quero dizer, como é que nos aproximamos...
– Três – disse Simon e abriu a porta do carro.
O Hotel Bismarck localizava-se no centro de Oslo, lá isso era verdade. O pequeno hotel situava-se em pleno Kvadraturen, onde a cidade fora fundada, no ponto onde o mercado da droga se encontrava com o bairro vermelho. E, fiel à sua localização, alugava quartos à hora com toalhas que ficavam entesadas por serem lavadas em água a ferver. Os quartos não eram redecorados desde que o hotel fora comprado pelo seu atual dono, há dezasseis anos, mas as camas tinham de ser substituídas a cada dois anos, como consequência do muito uso que lhes era dado.
Por isso, quando Ola, filho do proprietário, que trabalhava na receção desde os dezasseis anos, levantou a cabeça do seu PC às 03h02 da manhã e viu um homem de pé diante do balcão, não foi estranho ter presumido que o homem estava no sítio errado. Não só tinha vestido um belo fato como carregava duas pastas e um saco de desporto vermelho, no entanto não tinha companhia feminina nem masculina. Todavia, o homem, fez questão de pagar adiantado um quarto para uma semana, aceitou a toalha e proferiu um quase humilde obrigado antes de desaparecer a caminho do segundo andar. Ola voltou à leitura da página do Aftenposten na Internet sobre uma onda de homicídios em Oslo, a especulação sobre se rebentara uma guerra de gangues e como poderia estar ligada ao assassino que se evadira da Estatal. Observou a fotografia durante alguns momentos. A seguir, clicou noutra página.
Simon estacou diante das escadas de acesso à casa e fez sinal a Kari para que tivesse a arma a postos e vigiasse as janelas do primeiro andar. Depois, subiu os três degraus e bateu com os nós dos dedos na porta. Murmurou «Polícia». Olhou para Kari, para se certificar de que ela poderia atestar que ele seguira o procedimento policial correto. Outra pancada. Voltou a murmurar «Polícia». Depois, agarrou o cano da sua pistola e inclinou-se para partir o vidro na janela ao lado da porta. Segurava a granada de atordoamento a postos na outra mão. Tinha um plano. Claro que tinha um plano. Mais ou menos. Como dizem, o elemento-surpresa é tudo. Colocar todos os ovos no mesmo cesto. Fizera-o sempre. E essa, conforme lhe explicara o jovem psicólogo, era a sua doença. A investigação provara que as pessoas exageravam constantemente a possibilidade de algo improvável lhes acontecer, como morrerem num desastre de aviação, violarem-lhe ou raptarem-lhe o filho a caminho da escola, ou que o cavalo no qual se apostara as poupanças da mulher ia ficar para trás pela primeira vez na história das suas competições. O psicólogo dissera que havia algo no subconsciente de Simon que era mais forte de que o senso comum, que era uma questão de identificar e iniciar um diálogo com este tirano louco e doente que o aterrorizava e lhe arruinava a vida. Que ele tinha de perguntar a si mesmo se existia algo mais importante na sua vida. Mais importante do que o tirano. Algo que ele amasse mais do que o jogo. E havia. Havia Else. E ele fizera-o. Falara com a besta, domara-a. Não recaíra uma única vez. Até àquele momento.
Inspirou fundo. Preparava-se para partir o vidro com a pistola quando a porta se abriu.
Simon virou-se com a pistola diante de si, mas não foi tão rápido quanto noutros tempos. Nem por sombras. Não teria tido hipótese, se o homem à porta estivesse armado.
– Olá – foi tudo o que o homem disse.
– Boa-noite – disse Simon, tentando recuperar a compostura. – Polícia.
– Posso ajudá-lo?
O homem escancarou a porta. Estava vestido. Calças de ganga justas. T-shirt. Pés descalços. Nenhum sítio onde esconder uma pistola.
Simon guardou a granada de atordoamento no bolso e mostrou a sua identificação de polícia.
– Tenho de lhe pedir que venha cá para fora e se encoste a esta parede. Imediatamente.
O homem encolheu calmamente os ombros e fez o que lhe mandavam.
– Para além das raparigas, quantas pessoas estão dentro de casa? – perguntou Simon, enquanto uma revista rápida confirmava que o homem estava desarmado.
– Raparigas? Só aqui estou eu. O que quer?
– Mostre-me onde elas estão – pediu Simon, algemando o homem, empurrando-o à sua frente e indicando a Kari que o seguisse. O homem disse algo.
– O quê? – perguntou Simon.
– Estou a dizer à sua colega que também tenho muito gosto em que ela entre. Não tenho nada a esconder.
Simon permanecia de pé atrás do homem. Olhava fixamente para o pescoço dele. Viu a pele contorcer-se ligeiramente, como num cavalo nervoso.
– Kari? – chamou Simon.
– Sim?
– Quero que fique lá fora. Vou entrar sozinho.
– Está bem.
Simon colocou uma mão no ombro do homem.
– Comece a andar e nada de movimentos bruscos, tenho a pistola apontada às suas costas.
– Quais são...
– Aceite que, por ora, o considero um criminoso e posso alvejá-lo; depois pode vir a receber um imerecido pedido de desculpas.
Sem mais protestos, o homem entrou no hall. Automaticamente, Simon procurou qualquer indício do que podia esperar ver lá dentro. Quatro pares de sapatos no chão. O homem não vivia sozinho. Uma tigela de plástico e um tapete junto à porta da cozinha.
– O que foi feito do seu cão? – perguntou Simon.
– Qual cão?
– Você costuma beber por aquela tigela?
O homem não respondeu.
– Os cães costumam ladrar quando se aproximam estranhos da casa. Portanto, ou é um péssimo cão de guarda ou...
– Ele está no canil. Aonde vai?
Simon olhou à sua volta. Não existiam grades nas janelas, a porta da frente tinha uma fechadura simples com uma corrente de segurança por dentro. Elas não estavam presas ali.
– A cave – disse Simon.
O homem encolheu os ombros e continuou a avançar pelo corredor. E Simon percebeu que acertara no jackpot quando viu o homem abrir a porta para a cave. Tinha duas fechaduras.
Simon reconheceu o cheiro mal começaram a descer as escadas e viu as suas suspeitas confirmadas. Que havia pessoas retidas ali. Imensas pessoas. Agarrou mais firmemente na pistola.
Mas não estava ali ninguém.
– Que uso lhes dão? – perguntou Simon quando passaram por umas celas separadas por grades de aço em vez de paredes.
– Para quase nada – disse o homem. – O cão vive aqui. E guardo uns colchões, como pode ver.
Agora, o cheiro era ainda mais acre. As raparigas deviam ter estado ali até há bem pouco tempo. Raios, tinham chegado tarde de mais. Mas iam de certeza conseguir recolher ADN dos colchões. No entanto, o que é que isso provava? Que alguém estivera em contacto com um colchão que se encontrava naquele momento na cave. O que seria de estranhar era se não encontrassem ADN nos colchões velhos. Não tinham nada. Apenas um raide não autorizado. Raios, raios.
Simon reparou num ténis pequeno, sem atacadores, no chão, ao pé de uma porta.
– Aonde vai dar aquela porta?
– Apenas ao caminho de acesso.
Apenas. Estava a tentar minimizar a importância da porta. Assim como fizera ao querer que Kari entrasse na casa.
Simon abriu-a e encontrou-se mesmo ao lado de uma carrinha branca estacionada no alcatrão entre a casa e a vedação da casa vizinha.
– Para que serve esta carrinha? – perguntou Simon.
– Sou eletricista – respondeu o homem.
Simon recuou alguns passos. Acocorou-se e apanhou o ténis do chão da cave. Tamanho 36, possivelmente. Mais pequeno do que os sapatos de Else. Introduziu a mão lá dentro. Ainda estava morno. Não podiam ter decorrido mais de uns minutos desde que a dona o perdera. Naquele momento, porém, ouviu um som. Abafado, surdo, mas inconfundível. Um latido. Simon olhou para a carrinha e ia levantar-se quando recebeu um pontapé no flanco e caiu enquanto ouvia o homem gritar:
– Arranca! Arranca!
Simon conseguiu rebolar e apontar a pistola ao homem, mas este já se ajoelhara e cruzara as mãos atrás da cabeça, em rendição total. O motor pegou, as rotações tão elevadas que até guinchou. Simon rebolou para o outro lado e conseguiu então ver cabeças na frente da carrinha; as raparigas estavam, sem dúvida, escondidas na traseira.
– Pare! Polícia!
Simon tentou pôr-se em pé, mas sentiu dores horríveis, o tipo devia ter-lhe partido uma das costelas. E, antes que Simon conseguisse apontar a pistola, a carrinha pusera-se em movimento e ficara fora do alcance de um tiro. Raios!
Ouviu-se um bang seguido do som de vidro a estilhaçar-se.
O guincho de um motor a silenciar-se.
– Não se mexam! – gritou Simon e gemeu enquanto se punha em pé e saía a cambalear pela porta.
A carrinha imobilizara-se. Ouviam-se lá dentro gritos altos e latidos frenéticos.
Todavia, foi à cena em frente à carrinha que Simon tirou uma fotografia mental para o seu álbum de recortes. Kari Adel, com um casaco de cabedal comprido, iluminada pelo feixe dos faróis da carrinha agora sem para-brisas. A coronha da caçadeira assentava-lhe no ombro e uma mão agarrava por baixo o cano ainda fumegante.
Simon encaminhou-se para a parte lateral da carrinha e fez deslizar a porta do lado do condutor.
– Polícia!
O homem lá dentro não reagiu, limitou-se a manter o olhar fixo em frente, como se em choque, com sangue a escorrer-lhe do couro cabeludo. Tinha o colo cheio de estilhaços de vidro. Simon ignorou a dor no flanco, arrastou o homem para fora e para o solo.
– O nariz no chão e as mãos atrás da cabeça! Já!
Depois, contornou a carrinha e submeteu o apático pendura ao mesmo tratamento.
De seguida, Simon e Kari aproximaram-se da porta lateral na carroçaria da carrinha. Ouviam o cão ganir e ladrar lá dentro. Simon agarrou o puxador da porta e Kari posicionou-se diante dela com a caçadeira a postos.
– Parece ser enorme – disse Simon. – Não era preferível recuares mais num passo?
Ela anuiu e fez o que ele lhe sugerira. Depois abriu a porta fazendo-a deslizar.
Um monstro branco saiu de lá disparado e atirou-se a Kari a rosnar e com as mandíbulas abertas. Aconteceu tão rapidamente que ela nem teve tempo de disparar a arma. O animal tombou no solo diante dela e ficou ali.
Simon olhou para a sua própria pistola fumegante, espantado.
– Obrigada – disse Kari.
Viraram-se para a carrinha. Rostos apavorados e de olhos arregalados fitavam-nos lá de dentro.
– Polícia – disse Simon. E acrescentou quando viu pelas expressões que aquilo podia não ser considerado uma boa notícia para toda a gente: – Polícia boa. Nós estamos do vosso lado.
Depois pegou no telemóvel e ligou para um número. Encostou o telemóvel ao ouvido e olhou para Kari.
– Achas que consegues ligar para a esquadra e pedir-lhes que enviem dois carros-patrulha?
– Afinal, a quem está a telefonar?
– À imprensa.
37 Politicamente correta. (N. da T.)
30
A alvorada começava a despontar sobre Enerhaugen, no entanto a imprensa ainda não terminara de tirar fotografias e entrevistar as raparigas, a quem tinham sido distribuídos cobertores de lã e chá que Kari preparara na cozinha. Três repórteres rodeavam Simon, numa tentativa de lhe arrancar mais pormenores.
– Não, ainda não sabemos se há mais pessoas por detrás disto, para além daquelas que prendemos aqui esta noite – repetiu Simon. – E, sim, é verdade que tomámos de assalto a casa depois de uma denúncia anónima.
– Tinham mesmo de matar um animal inocente? – perguntou uma jornalista, indicando com a cabeça o cão morto que Kari tapara com um cobertor que trouxera da casa.
– Ele atacou-nos – disse Simon.
– Atacou-vos? – Ela escarneceu. – Dois adultos contra um cãozinho? Teriam certamente maneira de o controlar.
– A perda de uma vida é sempre lamentável – disse Simon e sabia que não devia, contudo foi mais forte do que ele e prosseguiu: – no entanto, tendo em conta que a esperança de vida de um cão é proporcionalmente inversa ao seu tamanho, perceberá, se espreitar debaixo do cobertor, que este cão também não ia ter uma vida longa.
Stalsberg, um repórter sénior que havia sido a primeira pessoa a quem Simon ligara, sorriu abertamente.
Surgira um SUV da Polícia lá em cima na colina e estacionara atrás do carro-patrulha, que – para irritação de Simon – mantinha ainda a luz azul a acender e a apagar no tejadilho.
– Mas em vez de me fazerem mais perguntas, sugiro que falem com o próprio chefe.
Simon esboçou um gesto com a cabeça na direção do SUV e os jornalistas viraram-se. O homem que saiu do carro era alto e esguio, com cabelo ralo penteado para trás e óculos retangulares sem aros. Endireitou-se e olhou espantado para os jornalistas que corriam na sua direção.
– Parabéns pelas detenções, comissário Parr – felicitou Stalsberg. – Gostaria de comentar o facto de terem finalmente feito progressos no problema do tráfico? E chamar-lhe-ia um avanço?
Simon cruzou os braços sobre o peito e suportou o olhar gélido de Pontius Parr. O comissário anuiu quase impercetivelmente, depois olhou para o repórter que lhe colocara a pergunta.
– É, sem dúvida, um passo importante na luta da Polícia contra o tráfico. Antes deste incidente, frisámos que devia ser dada prioridade à questão e isso deu frutos, como podem constatar. Por isso, gostaríamos de felicitar o inspetor-chefe Kefas e os seus colegas.
Parr agarrou Simon quando ele regressava ao carro.
– Mas que raio julgas que estás a fazer, Simon?
Ora ali estava algo que Simon nunca conseguira compreender no seu velho amigo, que a voz dele nunca mudasse, assim como as caraterísticas e o tom. Podia estar alegre ou furioso, que a sua voz nunca se alterava.
– O meu trabalho. A apanhar os vilões.
Simon estacou, colocou um pedaço de snus debaixo do lábio superior e estendeu a lata a Parr, que revirou os olhos. Era uma velha piada da qual Simon nunca se fartava, porque Parr nunca na vida usara snus nem fumara um cigarro.
– Refiro-me a este circo – respondeu Parr. – Ousas desafiar uma ordem direta de não entrar e depois convidas todos os órgãos de informação para virem até aqui. Porquê?
Simon encolheu os ombros.
– Pensei que, ao menos uma vez, pudéssemos ter cobertura favorável da imprensa. Além disso, não são todos, apenas aqueles que estiveram a fazer o turno da noite. E fico satisfeito por estarmos de acordo em como a avaliação do agente no local do crime deveria constituir um fator decisivo. Se assim não fosse, não tínhamos conseguido encontrar estas raparigas... eles iam levá-las daqui.
– Aquilo que me causa estranheza é como tiveste conhecimento deste lugar.
– Conforme referi antes, foi um SMS.
– De quem?
– Anónimo. É um telemóvel descartável.
– Pede às operadoras que o localizem. Descobre o mais depressa possível quem é para podermos interrogá-lo e obter mais informações. Porque ou muito me engano ou não vamos conseguir arrancar uma palavra às pessoas que detivemos hoje aqui.
– Ah, sim?
– Elas não passam de peixe miúdo, Simon. Sabem que o peixe graúdo as comerá, a menos que fiquem de bico calado. E nós queremos o graúdo, não queremos?
– Claro.
– Ótimo. Escuta, Simon, tu conheces-me e eu sei que, por vezes, também posso estar demasiado seguro do meu próprio discernimento, e...
– E...?
Parr pigarreou. Baloiçou-se nos calcanhares como se fosse descolar.
– E a avaliação que fizeste da situação aqui, esta noite, foi melhor do que a minha. Pura e simplesmente. Não será esquecida na tua próxima avaliação.
– Obrigado, Pontius, mas já estarei reformado antes da minha próxima avaliação.
– É verdade. – Parr sorriu. – Mas tu és um ótimo polícia, Simon, sempre foste.
– Isso também é verdade – disse Simon.
– Como está a Else?
– Bem, obrigado. Ou...
– Sim?
Simon inspirou fundo.
– Bastante bem. Falamos noutra altura. Cama?
Parr anuiu.
– Cama.
Tocou no ombro de Simon, virou-se e encaminhou-se para o SUV. Simon ficou a vê-lo afastar-se. Curvou o dedo indicador e retirou o snus. Não lhe soubera bem.
31
Eram sete da manhã quando Simon chegou ao trabalho. Conseguira dormir duas horas e meia, beber meia chávena de café e tomar meio comprimido para a dor de cabeça. Algumas pessoas conseguiam aguentar-se com muito pouco sono. Simon não era uma delas.
Já Kari talvez fosse. Parecia estar mesmo muito desperta enquanto avançava para ele em passos largos.
– Então? – perguntou Simon, deixando-se cair pesadamente na cadeira do seu gabinete e abrindo, sem qualquer cuidado, o envelope pardo que o aguardava no seu compartimento.
– Nenhuma das três pessoas que detivemos a noite passada abriu a boca – afirmou Kari. – Nem uma única palavra, na realidade. Até se recusaram a dizer como se chamavam.
– Que lindos meninos. Conhecemo-los?
– Oh, sim. Os agentes à paisana reconheceram-nos. Têm condenações anteriores, os três. O advogado deles apareceu de repente, a meio da noite, e interrompeu as nossas tentativas de conseguir arrancar-lhes algo. Um homem chamado Einar Harnes. Consegui localizar o telemóvel com o SMS deste tal Filho. O telemóvel pertence a Fidel Lae. É dono de um canil. Ele não atende o telemóvel, mas os sinais das estações de base indicam que está na sua quinta. Enviámos dois carros-patrulha para lá.
Simon percebeu por que motivo ela – ao contrário de si – não parecia ter acabado de sair da cama. Era porque não chegara a deitar-se, fizera uma direta.
– Depois, temos este Hugo Nestor, que me pediu que encontrasse...? – prosseguiu ela.
– Sim?
– Ele não se encontra em casa, não atende o telemóvel, nem está no seu escritório, mas pode ser tudo falso. De momento, só tenho um agente da Polícia à paisana que afirma ter visto o Nestor no Vermont a noite passada.
– Hum. Acha que eu tenho mau hálito, agente Adel?
– Não que me apercebesse, mas vendo bem nós não...
– Portanto, não consideraria isto uma pista?
Simon exibiu três escovas de dentes.
– Parecem usadas – disse Kari. – Onde as arranjou?
– Boa pergunta – disse Simon, espreitando o conteúdo do envelope. Retirou uma folha com o logótipo do Hotel Plaza no cimo. Mas não tinha remetente. Apenas uma pequena mensagem escrita à mão:
Verifique o ADN. S.
Entregou a folha a Kari e olhou para as escovas de dentes.
– Provavelmente algum excêntrico – afirmou Kari. – O Laboratório Forense já tem muito que fazer com as mortes para...
– Leve-as lá pessoalmente – pediu Simon.
– O quê?
– É ele.
– Quem?
– O «S». É o Sonny.
– Como é que sabe...
– Diga-lhes que é urgente.
Kari olhou para ele. O telemóvel de Simon começou a tocar.
– Muito bem – disse ela e virou-se para sair.
Estava junto ao elevador quando Simon se aproximou e se colocou ao lado dela. Vestira o casaco.
– Primeiro vem comigo – disse ele.
– Ah, sim?
– Era o Åsmund Bjørnstad. Encontraram outro corpo.
Uma ave soltou um pio surdo algures no meio da floresta de abetos.
Åsmund Bjørnstad perdera toda a sua arrogância. Estava pálido. Fora logo direto ao assunto:
– Precisamos de ajuda, Kefas.
Simon encontrava-se ao lado do inspetor da Kripos e de Kari e olhava, através da rede de uma jaula, para os restos de um corpo que tinham identificado temporariamente com base nos vários cartões de crédito como sendo de Hugo Nestor. A confirmação ia ter de esperar até efetuarem a comparação com a ficha dentária dele. Simon podia concluir, do ponto onde se encontrava e de olhar para as obturações nos dentes expostos, que o morto tinha efetivamente consultado um dentista. Os dois agentes da equipa cinotécnica que levaram os mastins argentinos tinham adiantado uma explicação simples para o estado do corpo:
– Os cães estavam com fome. Tinham-se esquecido de os alimentar.
– O Nestor era o patrão do Kalle Farrisen – disse Simon.
– Eu sei – Bjørnstad gemeu. – Mal a imprensa descubra, vai andar o diabo à solta.
– Como encontraste o Lae?
– Havia dois carros-patrulha na quinta a seguirem o sinal do telemóvel – disse Bjørnstad.
– Fui eu que os enviei. Recebemos uma mensagem anónima.
– Primeiro encontraram o telemóvel do Lae – disse Bjørnstad. – Estava no cimo do portão, como se alguém o tivesse deixado ali para ser localizado e encontrado. Mas só deram com o Lae quando revistaram a casa. Já vinham embora quando um dos cães-polícia reagiu e quis entrar no bosque. E foi quando encontraram... isto. – Agitou as mãos no ar.
– E o Lae? – inquiriu Simon, indicando com o queixo o homem que tiritava embrulhado num cobertor de lã, sentado num tronco de árvore atrás deles.
– O assassino ameaçou-o com uma arma, diz ele. Trancou-o numa jaula adjacente, tirou-lhe o telemóvel e a carteira. O Lae esteve preso trinta e seis horas. Viu tudo.
– E o que conta ele?
– O pobre homem está destroçado, não para de falar. O Lae vendia cães ilegalmente e o Nestor era cliente dele. Mas não consegue fazer uma boa descrição do assassino. Mesmo assim, é comum as testemunhas não se recordarem dos rostos das pessoas que os ameaçam de morte.
– Oh, elas lembram-se, se lembram – afirmou Simon. – Não vão esquecer aqueles rostos para o resto das suas vidas. Só não se recordam deles tal como nós os vemos, e é por isso que as descrições que fazem não batem certo. Aguarde aqui.
Simon foi ter com o homem. Sentou-se noutro tronco de árvore ao lado dele.
– Como é que ele era? – perguntou Simon.
– Eu já fiz uma descrição...
– Assim? – disse Simon, tirando uma fotografia do bolso interior do casaco e mostrando-lha. – Tente imaginá-lo sem a barba e o cabelo comprido.
O homem olhou demoradamente para a fotografia. Depois anuiu lentamente.
– Aquela expressão. Ele tinha aquela expressão no olhar. Como se fosse inocente.
– Tem a certeza?
– Absoluta.
– Obrigado.
– Ele dizia constantemente isso. Obrigado. E chorou quando os cães mataram o Nestor.
Simon voltou a guardar a fotografia no bolso.
– Só mais uma coisa. Contou à Polícia que ele o ameaçou com uma arma. Em que mão é que ele segurava a arma?
O homem pestanejou duas vezes como se não tivesse pensado nisso senão naquele momento.
– Na esquerda. Ele era canhoto.
Simon levantou-se e voltou para junto de Bjørnstad e Kari.
– É o Sonny Lofthus.
– Quem? – perguntou Åsmund Bjørnstad.
Simon olhou demoradamente para o inspetor.
– Não foi você que apareceu com a Delta, tentando capturá-lo no Centro Ila?
Bjørnstad abanou a cabeça.
– De qualquer forma – referiu Simon, voltando a mostrar a fotografia. – Precisamos de emitir uma descrição e um aviso de pessoa procurada para que o público possa ajudar-nos. Precisamos de enviar esta fotografia para as redações da NRK e da TV2.
– Duvido de que alguém vá reconhecê-lo a partir daquela fotografia.
– Com que brevidade conseguimos que o façam?
– Eles vão arranjar imediatamente espaço para esta notícia, confiem em mim – disse Bjørnstad.
– Então, nos noticiários da manhã dentro de cerca de quinze minutos – informou Kari, pegando no telemóvel e acionando
a função máquina fotográfica. – Segure a fotografia e mantenha-a imóvel. Conhece alguém na NRK a quem possamos enviá-la?
Morgan Askøy coçava cuidadosamente uma pequena crosta nas costas da mão quando o motorista do autocarro travou a fundo e Morgan arrancou inadvertidamente a crosta. Apareceu uma gota de sangue. Morgan desviou rapidamente o olhar, não suportava ver sangue.
Morgan apeou-se do autocarro na Prisão Estatal de Segurança Máxima, onde começara a trabalhar há dois meses. Seguia na cauda de um grupo de guardas prisionais quando um sujeito de uniforme se colocou a seu lado.
– Bom-dia.
– Bom-dia – respondeu Morgan automaticamente, e lançou-lhe um olhar rápido, mas não conseguiu identificá-lo. Mesmo assim, o tipo continuou a caminhar a seu lado, como se se conhecessem. Ou como se ele quisesse conhecê-lo.
– Não trabalhas na Ala A – comentou o tipo. – Ou és novo?
– Na Ala B – respondeu Morgan. – Dois meses.
– Ah, claro.
O tipo era mais jovem do que os outros fetichistas de uniformes. Eram sobretudo os agentes mais velhos que iam para o trabalho e regressavam a casa de uniforme, como se, de alguma forma, se sentissem orgulhosos dele. Como sucedia com o próprio Arild Franck, o subdiretor prisional. Morgan sentir-se-ia um idiota se tivesse de ir sentado no autocarro com as pessoas a olharem para ele e talvez a fazerem perguntas sobre o local onde ele trabalhava. Na Estatal. Numa prisão. Nem pensar.
Olhou para o cartão de identificação no uniforme do jovem. Sørensen.
Passaram lado a lado a cabina de segurança e Morgan cumprimentou o segurança lá dentro baixando a cabeça.
Quando se aproximaram da entrada, o tipo pegou no telemóvel e ficou ligeiramente para trás; talvez estivesse a enviar um SMS.
A porta fechara-se ruidosamente depois de o pessoal à frente deles ter entrado, por isso Morgan teve de usar a sua própria chave. Destrancou a porta.
– Muito obrigado – disse o tal Sørensen, quando passou à frente dele. Morgan seguiu-o, mas virou na direção dos cacifos. Viu o sujeito reunir-se ao resto do pessoal que entrava em grupo na zona de reclusão em direção às alas.
* * *
Betty tirou os sapatos e caiu pesadamente na cama. Que turno da noite. Estava exausta e sabia que não ia conseguir adormecer logo, mas pelo menos tinha de tentar. E, para tal, primeiro precisava de libertar-se da sensação de que devia ter comunicado à Polícia o episódio na Suíte 4. Depois de ela e o segurança terem revistado o quarto para verem se havia algo danificado ou em falta, Betty arrumara-o e preparava-se para deitar fora o meio limão quando encontrou uma seringa descartável no lixo. O seu cérebro somara logo dois e dois: a polpa descolorada do limão e a seringa. Passara os dedos pela casca do limão e encontrara vários furinhos. Espremera uma gota de limão para a mão e vira que o sumo estava turvo, como se contivesse giz. Levou cuidadosamente a língua à gota para sentir o sabor; para além da acidez quase avassaladora, havia outro toque amargo, medicinal. Tomara uma decisão. Havia alguma lei que proibisse os hóspedes de terem na sua posse limões com um sabor estranho? Ou uma seringa descartável? E se eles fossem diabéticos ou sofressem de outra doença? Ou jogassem jogos bizarros com visitas no quarto deles? Então, levara o conteúdo do caixote do lixo para a receção e deitara-o fora. Escrevera uma breve anotação no registo sobre o barulho vindo da Suíte 4 e o homem que tinham encontrado amarrado na casa de banho. Um homem que desvalorizara todo o incidente. O que mais podia ela fazer?
Ligou o televisor fixado na parede enquanto se despia, ia à casa de banho, tirava a maquilhagem e lavava os dentes. Chegava até si o constante sussurrar de vozes no canal de notícias TV2. Gostava de deixá-lo com o volume baixo porque a ajudava a adormecer depressa. Possivelmente porque a voz tranquilizadora do pivô lhe fazia lembrar a do pai, uma voz que podia anunciar a queda dos continentes, no entanto ela não deixaria de sentir-se segura. Mas a televisão por si só já não surtia efeito. Começara a tomar soporíferos. Não muito fortes, como é evidente, mas não deixava de os tomar. O médico dissera-lhe que ela devia considerar a hipótese de abandonar os turnos da noite para ver se isso a ajudava. Mas ninguém chegava ao topo esquivando-se às responsabilidades, tinha de se esforçar. Apesar do ruído da torneira e da escova de dentes cheia de espuma, ouviu a voz dizer que a Polícia andava à procura de uma pessoa que podia estar ligada ao homicídio de um homem num canil na noite anterior, e que associavam esta pessoa ao homicídio de Agnete Iversen e ao triplo homicídio em Gamlebyen.
Betty enxaguou a boca, fechou a torneira e voltou para o quarto. Estacou bruscamente à porta. Olhou para a fotografia do homem procurado na TV.
Era ele.
Tinha barba e cabelo comprido, mas Betty fora treinada para despir um rosto de disfarces e máscaras, comparar rostos com as fotografias que o Plaza e outros hotéis internacionais guardavam sobre vigaristas conhecidos que, mais cedo ou mais tarde, podiam aparecer na receção. E era ele. O homem que ela registara, só que sem os óculos, mas com as sobrancelhas.
Olhou para o seu telemóvel, que deixara em cima da mesa de cabeceira.
Atenta, mas discreta. Põe os interesses do hotel em primeiro lugar. Podia ir longe.
Voltou a fechar os olhos com firmeza.
A sua mãe tinha razão. Aquela sua maldita curiosidade.
Da janela do seu gabinete, Arild Franck via os agentes do turno da noite saírem pelo portão. Ia anotando mentalmente aqueles que tinham chegado tarde ao turno da manhã. Isso irritava-o. As pessoas que não eram capazes de cumprir as suas obrigações irritavam-no. Como a Kripos e a Brigada de Homicídios. A Polícia recebera uma denúncia para tomar de assalto o Centro Ila e, mesmo assim, Lofthus conseguira enganá-los. Não fora suficiente. E agora iam ter de pagar o preço da inépcia da Polícia. Hugo Nestor fora assassinado a noite anterior. Num canil. Era inacreditável que um homem, um drogado, conseguisse causar tamanho caos. O cidadão cumpridor da lei que existia em Franck sentia-se igualmente ultrajado com este exemplo sucessivo de incompetência por parte da Polícia; às vezes, até se sentia frustrado por as autoridades nunca terem conseguido apanhá-lo a ele, um subdiretor prisional corrupto. Vira a desconfiança nos olhos de Simon Kefas, mas este não tivera coragem de ir atrás dele, que grande cobarde, tinha demasiado a perder. Simon Kefas só era corajoso quando havia dinheiro em jogo. Aquele maldito dinheiro. Do que estava Franck à espera? Que isso lhe desse direito a um busto, à reputação de pilar da comunidade? E, assim que ficasse viciado em dinheiro, era como se a heroína e os números na conta bancária se tornassem o fim e não o meio, porque já não havia qualquer objetivo que fosse importante. E, tal como o drogado, ele sabia e compreendia-o e, no entanto, era incapaz de tomar uma medida.
– Vem a caminho um agente chamado Sørensen para falar consigo – comunicou-lhe a secretária na antecâmara.
– Não...
– Ele ignorou-me, disse que era só um minuto.
– A sério?
Franck franziu os sobrolhos. Iria mesmo Sørensen apresentar-se ao serviço antes de a sua baixa por doença terminar? Que invulgar num trabalhador norueguês. Ouviu a porta abrir-se atrás de si.
– Então, Sørensen? – disse Arild Franck sem se virar. – Já não se bate à porta?
– Sente-se.
Franck ouviu a porta ser trancada e virou-se para a voz, surpreso. Imobilizou-se quando viu a arma.
– Se emitir um som que seja, leva logo um balázio no meio da testa.
Quando apontam uma arma a alguém, essa pessoa costuma focar logo a sua atenção na arma e demora algum tempo a olhar para a pessoa que a empunha. Porém, quando o rapaz levantou o pé e empurrou a cadeira fazendo-a deslizar até ao subdiretor prisional, Franck viu quem era. O Filho voltara.
– Mudaste – observou Franck. Tinha intenção de conferir maior autoridade àquela afirmação, mas a garganta secara-se-lhe e não saíra de lá nenhum som em particular.
A arma subiu ligeiramente e, de imediato, Franck deixou-se cair na cadeira.
– Pouse os braços nos apoios da cadeira – ordenou o rapaz. – Vou premir o botão do seu intercomunicador e você vai dizer à Ina para ir buscar uns bolos à pastelaria. Vamos.
O rapaz premiu o botão.
– Sim?
Ouviram a voz obsequiosa de Ina.
– Ina... – O cérebro de Franck procurava desesperadamente alternativas.
– Sim?
– Importava-se... – A procura de Franck cessou bruscamente quando viu o dedo do rapaz apertar o gatilho. – ...de ir lá abaixo à pastelaria e trazer-me uns bolos frescos? Agora.
– Está bem.
– Obrigado, Ina.
O rapaz libertou o gatilho, pousou a arma, tirou um rolo de fita adesiva do bolso do blusão, contornou a cadeira de Frank e começou a prender-lhe os antebraços aos apoios. De seguida, passou a fita à volta do peito e das costas da cadeira e em torno dos pés dele, do assento e dos rodízios. Depois voltou a pegar na arma. Um estranho pensamento passou pela mente de Franck: que devia estar a sentir-se mais assustado do que estava. O rapaz matara Agnete Iversen, Kalle, Sylvester, Hugo Nestor. Não se apercebia de que ia morrer? Talvez a diferença residisse no facto de ele estar ali dentro do seu gabinete seguro, na Estatal, e o dia ainda fosse a meio. De ter visto aquele rapaz crescer na sua própria prisão e – à exceção de um incidente com Halden – ele nunca ter mostrado qualquer propensão ou capacidade de recorrer à violência.
O rapaz revistou os bolsos de Franck e tirou-lhe a carteira e a chave do carro.
– Porsche Cayenne – leu o rapaz em voz alta na chave do carro. – Um carro caro para um funcionário público, não é?
– O que queres?
– Quero respostas para três perguntas simples. Se me disser a verdade, deixo-o viver. Se não, lamento, mas vou ter de o matar.
Falara num tom de voz quase pesaroso.
– A primeira pergunta é: qual o nome do titular e o número da conta para onde o Nestor enviou o dinheiro quando lhe pagou?
Franck ficou a pensar. Ninguém sabia da conta, ele podia dizer o que lhe apetecesse, inclusivamente inventar uma conta porque ninguém ia contradizê-lo. Franck abriu a boca, mas o rapaz interrompeu-o.
– Se eu fosse a si, pensava bem antes de responder.
Franck olhou para a boca da arma. O que é que ele queria dizer? Ninguém podia confirmar ou negar a existência da conta. Ninguém, exceto Nestor, alguma vez transferira dinheiro para ela. Franck piscou os olhos. Teria o rapaz arrancado a informação a Nestor antes de o matar? Estaria a testá-lo?
– A conta está no nome de uma empresa – disse Franck. – Dennis Limited, registada nas ilhas Caimão.
– E o número da conta?
O rapaz segurava algo que parecia ser um cartão de visita amarelo. Teria anotado o número da conta que Nestor lhe dera. E se o rapaz estava a fazer bluff? Ele não iria conseguir levantar dinheiro da conta, mesmo que Frank lhe desse o número. Franck começou a desbobinar os números.
– Mais devagar – pediu o rapaz, olhando para o cartão de visita. – E fale com maior clareza.
Franck fez o que lhe mandavam.
– Agora só faltam duas perguntas – disse o rapaz quando ele terminou. – Quem matou o meu pai? E quem era a toupeira que ajudou o Gémeo?
Arild Franck piscou os olhos. O seu corpo sabia-o. Sabia que, naquele momento, libertava suor por cada poro. Compreendia que devia sentir medo. O rapaz voltara a pousar a arma, no entanto, exibia uma faca. A arma hedionda, mortífera e curva de Nestor.
Franck gritou.
– Agora percebo – afirmou Simon, enquanto guardava o telemóvel no bolso do casaco e saía do túnel para a luz que incidia sobre Bjørvika e o Fiorde de Oslo.
– Percebe o quê? – disse Kari.
– Uma das rececionistas do Plaza, que esteve de serviço à noite, acabou de ligar para a Polícia a dizer que o homem de que andamos à procura para ser interrogado passou uma noite numa das suítes deles. Sob o nome de Fidel Lae. E que depois de uns hóspedes se queixarem de barulho encontraram na suíte outro homem amarrado à sanita. Este outro homem foi-se simplesmente embora assim que o libertaram. O hotel verificou também as câmaras na entrada e consegue ver-se o Lofthus a entrar com o Hugo Nestor e o tal homem que foi mais tarde encontrado na suíte.
– Ainda não me disse o que é que percebe.
– Oh, claro. Como é que os três homens na Enerhauggata sabiam que íamos aparecer. De acordo com o registo noturno do hotel, o homem amarrado abandonou o Plaza precisamente quando nós estávamos posicionados no exterior do endereço do tráfico. Ele ligou a avisar toda a gente de que o Nestor tinha sido raptado e eles começaram a evacuar todas as posições expostas, não fosse ele denunciá-los. Eles sabiam o que tinha acontecido ao Kalle, não sabiam? No entanto, precisamente quando se preparavam para levar as raparigas na carrinha, aperceberam-se de que nós já lá estávamos. Então, decidiram esperar que nos retirássemos. Ou que entrássemos na casa, para poderem afastar-se sem que ninguém se apercebesse.
– Pensou muito no assunto, não pensou? – disse Kari. – Como é que eles podiam ter percebido que iríamos lá?
– Possivelmente – respondeu Simon, virando para o Comando da Polícia. – Mas agora já percebi.
– Sabe como podia ter acontecido – corrigiu-o Kari. – Vai ou não contar-me agora o que está a pensar?
Simon encolheu os ombros.
– Que temos de apanhar o Lofthus antes que ele cause mais estragos.
– Mas que tipo tão patusco – comentou Morgan Askøy com o seu colega mais velho enquanto avançavam pelo amplo corredor. As portas das celas estavam escancaradas, prontas para a inspeção matinal. – O Sørensen, era esse o nome dele. Veio ter comigo.
– Não pode ter sido ele – disse o colega. – Só existe um Sørensen na Ala A e está de baixa por doença.
– Oh, era ele. Eu vi a placa de identificação na farda.
– Mas eu falei com o Sørensen há dois dias. Ele voltou a ser internado no hospital.
– Nesse caso, teve uma recuperação rápida.
– Que estranho. Ele estava fardado, dizes? Não pode ter sido o Sørensen, ele detesta o uniforme; muda-se sempre aqui e guarda-o no cacifo. Foi assim que o Lofthus conseguiu roubá-lo.
– O recluso que se evadiu?
– Sim. Estás a gostar do trabalho, Askøy?
– Estou.
– Ainda bem. Certifica-te de que tens tempo livre, não abuses das horas extraordinárias.
Deram mais seis passos, antes de estacarem ambos bruscamente e se entreolharem. Viram os olhos arregalados um do outro.
– Qual era o aspeto do Lofthus? – exclamou Morgan.
– Qual era o aspeto daquele tipo? – exclamou o seu colega.
* * *
Franck expirou pelo nariz. O seu grito foi abafado pela mão do rapaz que lhe fazia pressão sobre a boca. O rapaz descalçou o sapato com um piparote, puxou a peúga, enfiou-a na boca de Franck e cobriu-a com fita adesiva.
O rapaz levantou uma porção de fita do apoio do braço direito, o suficiente para os dedos de Franck conseguirem segurar a caneta que lhe ele entregou e levá-la ao papel que estava mesmo na bordinha da secretária.
– Responde-me.
Franck escreveu.
Não sei.
Depois largou a caneta.
Ouviu o som áspero da fita adesiva a ser rasgada ao meio, sentiu a cola do adesivo ser-lhe colocada sobre as narinas e cortar o ar. O corpo de Franck ficou descontrolado, sacudia-se e arqueava-se na cadeira. Torcia-se e contraía-se. Dançava para aquele maldito rapaz! A pressão dentro da sua cabeça aumentou, não tardaria a explodir. Preparara-se para morrer quando viu o rapaz espetar o bico da caneta na fita esticada sobre a sua narina.
Ele perfurou-a e a narina esquerda de Arild Franck inalou ar enquanto as primeiras lágrimas mornas lhe desciam pela face.
O rapaz devolveu-lhe a caneta. Franck concentrou-se.
Tem misericórdia. Eu dizia-te o nome da toupeira se o soubesse.
O rapaz leu o que ele escrevera. Fechou os olhos e fez um esgar como se em agonia. Furou o outro pedaço de fita.
O telefone em cima da secretária começou a tocar. Franck olhou para ele, enchendo-se de esperança. A extensão do gabinete iluminou-se no visor. Era Goldsrud, o supervisor de turno. Contudo, o rapaz ignorou-o e concentrou-se exclusivamente na recolocação da fita sobre as narinas de Franck. E este sentiu a tremura de que o seu próprio pânico se fazia acompanhar. Quase o levou a perguntar-se se chorava ou se ria.
– Não atendem do gabinete do diretor – disse Geir Goldsrud e desligou. – E a Ina também não está lá. Ela atende sempre se ele não o faz. Mas antes de incomodarmos o diretor, vamos rever isto mais uma vez. Estás a dizer que o homem que viste se chamava Sørensen e que se parecia com ele... – Goldsrud apontou para o monitor da TV onde fizera aparecer a fotografia de Sonny Lofthus.
– Não se parece com ele! – insistiu Morgan. – É ele, já lhe disse várias vezes.
– Descontrai-te – disse-lhe o colega mais velho.
– Para si é fácil falar – resmungou Morgan. – O tipo só é procurado por cinco homicídios.
– Vou ligar para o telemóvel da Ina e, se ela não souber onde está o chefe, daremos início à nossa própria busca. Mas não quero pânico, entendidos?
Morgan olhou para o seu colega e novamente para o supervisor de turno. Parecia mais perto do pânico do que o próprio Morgan. Pessoalmente, sentia-se apenas excitado. Deveras excitado. Um recluso a tomar de assalto a Estatal, como era sequer possível?
– Ina? – Goldsrud estava praticamente a gritar ao telefone e Morgan conseguiu detetar o alívio no rosto dele. Era tentador acusar o supervisor de turno de querer esquivar-se à responsabilidade, no entanto devia ser bastante complicado ocupar um cargo de chefia intermédio, ter de informar o subdiretor prisional. – Precisamos de falar imediatamente com o Franck! Onde é que ele está?
Morgan viu o alívio dar lugar à perplexidade e depois ao horror. Goldsrud terminou a chamada.
– O quê...? – começou a dizer o colega mais velho.
– Ela diz que ele está com uma visita no gabinete – informou Goldsrud, levantando-se e dirigindo-se ao armário das armas ao fundo da sala. – Um homem chamado Sørensen.
– Nesse caso, o que fazemos agora? – perguntou Morgan.
Goldsrud introduziu a chave na fechadura, rodou-a e abriu o armário das armas.
– Isto – disse ele.
Morgan contou doze espingardas.
– Dan e Harald, vocês vêm comigo! – gritou Goldsrud, e Morgan já não conseguiu detetar qualquer resquício de perplexidade, horror ou medo da responsabilidade na voz dele. – Imediatamente!
Simon e Kari estavam no átrio do Comando da Polícia, ao pé do elevador, quando o telemóvel dele tocou.
Era do Instituto de Medicina Legal.
– Temos os resultados preliminares do ADN das escovas de dentes.
– Ótimo – disse Simon. – E o resultado ao intervalo é?
– Eu preferia chamar-lhe os trinta segundos antes de soar o apito. A probabilidade é superior a noventa e cinco por cento.
– Para o quê? – perguntou Simon e viu as portas do elevador abrirem-se.
– Para o facto de termos encontrado uma correspondência parcial na nossa base de dados de ADN para a saliva de duas das escovas de dentes. O mais interessante no resultado é não pertencer a um criminoso conhecido ou a um agente da Polícia, mas a uma vítima de homicídio. Mais especificamente, prova que quem quer que tenha usado as escovas de dentes tem uma estreita relação com a vítima.
– Já estava à espera disso – afirmou Simon, entrando no elevador. – As escovas de dentes vieram de casa da família Iversen. Apercebi-me da sua ausência na casa de banho dos Iversen depois do homicídio. É uma correspondência parcial do ADN da Agnete Iversen, não é?
Kari olhou rapidamente para Simon, que levantou uma mão em vitória.
– Não – respondeu a voz proveniente do Instituto de Medicina Legal. – Na realidade, nós ainda não temos o ADN da Agnete Iversen registado no nosso sistema.
– Oh? Nesse caso, como...
– Esta é uma vítima de homicídio não identificada.
– É possível provar uma relação entre duas das escovas de dentes e uma vítima de homicídio não identificada? Não identificada do tipo...?
– Não identificada. Uma mulher muito jovem e muito morta.
– Quão jovem? – perguntou Simon e olhou para as portas do elevador que começavam a fechar-se.
– Mais jovem do que habitualmente costumam aparecer-nos.
– Como?
– Um feto de quatro meses.
O cérebro de Simon tentou processar a informação o melhor que lhe era possível.
– A Agnete Iversen fez um aborto tardio, é isso?
– Não.
– Não fez? Nesse caso quem é... Raios!
Simon fechou os olhos e encostou a testa à parede do elevador.
– A chamada caiu? – perguntou Kari.
Simon anuiu.
– Vamos já sair deste elevador – disse ela.
O rapaz fizera dois furos na fita adesiva. Um debaixo de cada narina, concedendo a Arild Franck novos segundos de vida para os seus pulmões. Só queria ficar vivo. E era o único instinto a que o seu corpo obedecia.
– Então, quer dizer-me um nome? – perguntou o rapaz, em voz baixa.
Franck inspirou com força; desejou que as suas fossas nasais fossem mais amplas para deixar entrar este ar doce e delicioso. Pôs-se à escuta de sons que lhe indicassem que a ajuda vinha a caminho, a sua salvação, enquanto abanava a cabeça, tentando indicar com a língua seca por detrás da peúga, os lábios por detrás da fita adesiva, que não tinha um nome, não sabia quem era a toupeira, que suplicava por misericórdia. Ser libertado. Ser perdoado.
E empertigou-se quando viu o rapaz parar diante de si e levantar a faca. Franck não conseguia mexer-se, todos os seus membros estavam presos com a fita adesiva. Tudo... A faca desceu. A hedionda faca curva de Nestor. A cabeça de Franck contraiu-se no apoio para a cabeça, todos os músculos ficaram tensos e ele gritou silenciosamente quando viu o sangue esguichar-lhe do corpo.
32
–Dois – murmurou Goldsrud.
Os homens mantinham as armas a postos, escutando o silêncio atrás da porta do gabinete do subdiretor prisional.
Morgan expirou. Era agora que tudo ia acontecer. Chegara o momento de conseguir finalmente participar em algo com que sonhava desde que era rapazinho. Ia apanhar alguém. Talvez mesmo...
– Três – murmurou Golsdrud.
Depois fez descer a marreta. Esta embateu na fechadura e saltaram lascas da ombreira quando Harald, o mais alto de todos, deu um encontrão na porta. Morgan entrou levando uma carabina à altura do peito e deu dois passos para a esquerda, tal como Goldsrud o instruíra. Estava apenas uma pessoa na divisão. Morgan olhou para o homem na cadeira cheio de sangue no peito, na garganta e no queixo. Cristo, havia tanto sangue! Morgan sentiu os joelhos fraquejarem, como se lhes tivesse sido injetada droga. Não podia! Mas havia imenso sangue! – E o homem na cadeira tremia, tinha convulsões como se estivessem a eletrocutá-lo. E os olhos dele fitavam-nos, frenéticos, esbugalhados, como se fosse um peixe das profundezas marinhas.
Goldsrud deu dois passos em frente e arrancou a fita adesiva da boca do homem.
– Onde está ferido, chefe?
O homem escancarou a boca, mas não saiu de lá nenhum som. Goldsrud enfiou dois dedos e retirou uma peúga preta. Saiu saliva da boca do homem e Morgan reconheceu a voz do subdiretor prisional Arild Franck quando ele gritou:
– Vá atrás dele! Não o deixe escapar!
– Precisamos de descobrir onde está ferido e estancar a... – Goldsrud preparava-se para rasgar a camisa do chefe, no entanto, Franck gritou-lhe:
– Tranquem o raio das portas, ele vai fugir! Ele tem a chave do meu carro! E o boné do meu uniforme!
– Acalme-se, chefe – disse Goldsrud, quando cortou a fita adesiva de um braço da cadeira. – Ele está encurralado; não vai conseguir passar o sensor de impressões digitais.
Franck lançou-lhe um olhar furioso e levantou a mão que agora tinha livre.
– Oh, sim, ele vai conseguir!
Morgan recuou a cambalear e teve de encostar-se à parede para não cair. Tentou sem êxito desviar os olhos do sangue que jorrava do lugar onde o subdiretor prisional Arild Franck devia ter um dedo indicador.
Kari saiu do elevador depois de Simon e desceu o corredor até à sala sem divisórias.
– Portanto – disse ela, tentando digerir a informação. – Recebe três escovas de dentes pelo correio com um bilhete de alguém chamado «S» que quer que sejam examinadas para pesquisa de ADN?
– Sim – respondeu Simon enquanto premia as teclas do telemóvel.
– E duas das escovas de dentes continham ADN que prova uma relação familiar com um filho não nascido? Um filho que está registado como vítima de homicídio?
Simon anuiu enquanto aproximava um dedo dos lábios para indicar que restabelecera a ligação. Quando falou, fê-lo alto e a bom som, com o telemóvel em alta-voz.
– Fala novamente o Kefas. Quem era a criança, como morreu e qual a relação de parentesco?
Segurava o telemóvel entre ambos para que Kari pudesse ouvir.
– Não sabemos quem era a mãe nem o bebé, apenas que a mãe morreu de, ou foi morta por, uma overdose, no centro de Oslo. No registo ela consta como «não identificada».
– Nós temos conhecimento do caso – disse Simon, praguejando silenciosamente. – Asiática, provavelmente vietnamita. E provavelmente vítima de tráfico.
– Esse é o seu departamento, Kefas. O bebé, ou o feto, morreu porque a mãe morreu.
– Compreendo. E quem é o pai?
– A escova de dentes vermelha.
– A... vermelha?
– Sim.
– Obrigado – disse Simon e terminou a chamada.
Kari dirigiu-se à máquina para ir buscar café para ambos. Quando regressou, Simon encontrava-se novamente a falar ao telemóvel e calculou, pela voz suave, que devia ser com Else. Quando desligou, tinha aquela expressão que algumas pessoas de certa idade denotam durante uns segundos, como se tivesse passado algo por elas, como se pudessem transformar-se em pó ali mesmo. Kari preparava-se para perguntar como estavam as coisas, mas decidiu abster-se.
– Bom... – disse Simon, tentando mostrar-se animado. – Quem julgamos ser o papá? O Iver Sénior ou o Iver Júnior?
– Nós não julgamos – afirmou Kari. – Nós sabemos.
Simon olhou para ela, momentaneamente surpreendido. Viu-a abanar lentamente a cabeça. Depois semicerrou os olhos, baixou a cabeça e passou a mão por ela, como que a alisar o pouco cabelo que lhe restava.
– Claro – disse baixinho. – Duas escovas de dentes. Devo estar a ficar velho.
– Vou tentar descobrir o que temos sobre o Iver – informou Kari.
Quando ela desapareceu, Simon ligou o computador e abriu a caixa de correio.
Tinham-lhe enviado um ficheiro de som. De um telemóvel, ao que tudo indicava.
Ninguém lhe enviava ficheiros de som.
Abriu o ficheiro e carregou em reproduzir.
Morgan olhou para o subdiretor prisional, incandescente no centro da sala de controlo. Envolvera o coto da mão em gaze, todavia ignorara os pedidos urgentes do enfermeiro para que se deitasse.
– Então, levantou a barreira e deixou o assassino sair? – bradou Franck.
– Ele ia a conduzir o seu carro – justificou-se o guarda, limpando o suor da testa. – Usava o boné do seu uniforme.
– Mas não era eu! – berrou Franck.
Morgan não sabia se era por Franck ter a tensão arterial alta, no entanto a substância vermelha e nauseante ia ensopando a gaze branca e Morgan começava a sentir que ia desmaiar de novo.
Um dos telefones ao lado dos monitores tocou. Goldsrud atendeu-o e escutou.
– Encontraram o dedo – disse ele, cobrindo o bocal com a mão. – Vamos levá-lo ao Hospital Ullevål para uma cirurgia, para que eles possam...
– Onde? – interrompeu-o Franck. – Onde foi que o encontraram?
– Bem à vista no tabliê do seu Porsche. Estava estacionado em segunda fila na Grønland.
– Encontrem-no! Encontrem-no!
Tor Jonasson estava agarrado à pega no varão na carruagem do metro. Murmurou um pedido de desculpa quando foi de encontro a um dos outros suburbanos a cair de sono pela manhã. Tinha de vender cinco telemóveis naquele dia. Essa era a sua meta. E, quando seguisse de pé – ou quem sabe, sentado – na composição mais ao final da tarde, teria consciência de que fora bem-sucedido. E que isso lhe traria... felicidade. Quem sabe.
Tor suspirou.
Olhou para o homem fardado, em pé, de costas para si. Saía música dos seus auriculares. O fio descia até à mão que segurava um telemóvel com uma etiqueta minúscula na parte de trás da loja onde Tor trabalhava. Mudou de posição para poder observar o homem de perfil. Tentou olhar bem para ele. Não era o tipo que quisera comprar pilhas para aquela peça de museu? O Discman. Tor ficara bastante intrigado e fora pesquisar na Net. Tinham fabricado Discmans até 2000, altura em que fora inventado um Walkman que era compatível com um MP3. Tor estava mesmo atrás dele e conseguia ouvir o som dos auriculares acima do chocalhar das rodas de aço da carruagem, que deixou de se ouvir quando a composição descreveu uma curva e a carruagem chiou.
Pelo som, parecia uma voz feminina, solitária. Mas ele reconhecera a música:
«That you’ve always been her lover...» Leonard Cohen.
Simon olhava incrédulo para o ícone do ficheiro de som. Demorara apenas uns segundos a ouvi-lo. Voltou a premir reproduzir.
Não havia dúvida, era a voz que ele inicialmente presumira ser. Só não compreendia do que falava.
– O que está a fazer? A escolher os números do Totoloto?
Simon virou-se. Sissel Thou fazia a sua ronda matinal e despejava os cestos dos papéis.
– Mais ou menos isso – respondeu Simon e premiu o botão parar enquanto ela levantava o cesto que estava debaixo da secretária e o esvaziava para dentro do carrinho.
– Está a deitar o seu dinheiro à rua, Simon, o Totoloto é para os sortudos.
– E acha que nós não somos? – perguntou Simon, enquanto olhava para o ecrã do computador.
– Veja o mundo que criámos – disse ela.
Simon recostou-se na cadeira e esfregou os olhos.
– Sissel?
– Sim?
– Foi assassinada uma jovem e agora parece que ela estava grávida. No entanto, não creio que o assassino tivesse medo dela. Acho que ele tinha medo do bebé dela.
– Hum-hum.
Silêncio.
– Isso era uma pergunta, Simon?
Simon apoiou a cabeça no encosto para o pescoço.
– Se soubesse que carregava o filho do diabo, era capaz de o dar à luz, Sissel?
– Já tivemos esta conversa antes, Simon.
– Bem sei, mas o que respondeu?
Ela lançou-lhe um olhar reprovador.
– Respondi que, infelizmente, a natureza não dá qualquer escolha à pobre mãe, Simon. Ou, já agora, ao pai.
– Julgava que o senhor Thou a tinha abandonado...
– Estou a referir-me a si, Simon.
Simon voltou a fechar os olhos. Anuiu lentamente.
– Portanto, somos escravos do amor. E de quem nos é dado amar, também é uma questão de sorte. É isso que está a dizer?
– É brutal, mas é assim mesmo – declarou Sissel.
– E os deuses riem-se – respondeu Simon.
– Provavelmente, mas, nesse entretanto, alguém tem de limpar a porcaria cá em baixo.
Simon ouviu os passos dela sumirem-se ao longe. De seguida, encaminhou o ficheiro de som do seu computador para o telemóvel, dirigiu-se às instalações sanitárias dos homens, entrou num dos lavabos e voltou a reproduzir a gravação.
Depois de a ouvir duas vezes, compreendeu finalmente o que significavam os números.
PARTE QUATRO
33
Simon e Kari atravessaram pelo sol a Rådhusplassen, ligeiramente grande demais, ligeiramente exposta demais e ligeiramente sossegada demais para o verão.
– A descrição do Fidel Lae ajudou-nos a encontrar o carro alugado. Já tinha sido entregue, mas, felizmente, ainda não o tinham lavado. A equipa forense encontrou manchas de lama que correspondiam à do caminho que conduzia ao canil. E eu aqui a pensar que lama era apenas lama.
– Cada amostra tem a sua mistura única de minerais – explicou Simon. – Alugado em nome de quem?
– De Sylvester Trondsen.
– Quem é ele?
– Um homem de trinta e três anos que recebe subsídio de desemprego. Não consegui encontrá-lo na sua morada oficial. Tem duas condenações por agressão. Os nossos agentes ligaram-no ao Nestor.
– Muito bem. – Simon parou diante de uma entrada no meio de duas lojas. A porta era alta e larga, transmitindo solidez e solenidade. Premiu um dos botões para o terceiro andar. – Mais alguma coisa?
– Um dos residentes no Centro Ila contou aos agentes que parecia que o tipo novo no quarto 323 e a subgerente se davam bem.
– A Martha Lian?
– Há dias foram vistos a sair do centro num carro.
– Investimentos Imobiliários Iversen – disse uma voz vinda dos orifícios na placa de latão por cima das campainhas.
– Quero que aguardes na receção enquanto eu falo com o Iversen – disse Simon, enquanto subiam no elevador.
– Porquê?
– Porque posso violar algumas regras e prefiro que não sejas envolvida nisto.
– Mas...
– Lamento, mas é mesmo uma ordem, apenas para que saibas.
Kari revirou os olhos, mas não disse nada.
– Iver – apresentou-se o jovem quando veio recebê-los à receção. Apertou firmemente as mãos, primeiro a Simon, depois a Kari. – Estão aqui para falar com o meu pai.
Algo disse a Simon que normalmente o rapaz se mostrava sorridente e descontraído, que não estava habituado à dor e ao sofrimento que ele conseguia ler-lhe nos olhos por baixo da franja descaída. Calculou que era por isso que o rapaz parecia tão perdido e confuso.
– Acompanhem-me.
O pai devia ter-lhe dito que eles eram agentes da Polícia e o rapaz presumira, tal como o pai, que a visita deles estava relacionada com a investigação do homicídio da mãe.
Do gabinete avistavam-se a Vestbanen e o Fiorde de Oslo. Ao lado da porta havia uma vitrina com um modelo pormenorizado de um arranha-céus com a forma de uma garrafa de Coca-Cola.
O pai parecia uma réplica mais velha do filho. A franja pesada, a pele macia e saudável e uma expressão alegre mas submissa nos olhos eram iguais. Alto, com boa postura, queixo firme, um homem que olhava diretamente nos olhos, simpático, mas com um desafio jovial e arrapazado. Havia nesta classe uma assertividade, uma solidez, típicas de Oslo Oeste, pensou Simon, como se tivessem sido todos moldados à semelhança uns dos outros: combatentes da resistência, exploradores polares, a tripulação do Kon-Tiki38, comissários da Polícia.
Iver Sénior convidou Simon a sentar-se e também ele o fez a uma secretária debaixo de uma fotografia antiga a preto e branco de um prédio, que era, sem dúvida, Oslo ao virar do século XIX, mas que Simon não conseguia situar naquele momento.
Simon esperou que Iver Júnior abandonasse o gabinete e depois foi direto ao assunto.
– Há doze anos, uma rapariga apareceu morta num pátio no Kvadraturen, em Oslo. Era este o seu aspeto quando foi encontrada.
Simon colocou a fotografia em cima da secretária de Iversen e observou com atenção o rosto do investidor imobiliário quando ele olhou para a fotografia. Quase nenhuma reação.
– Um rapaz chamado Sonny Lofthus confessou o homicídio – disse Simon.
– Entendo.
Ainda nenhuma reação.
– A rapariga estava grávida quando foi encontrada.
Desta vez houve uma reação. As narinas expandiram-se, as pupilas dilataram-se.
Simon esperou dois segundos antes de lançar a segunda fase da ofensiva.
– As análises de ADN das escovas de dentes em sua casa provam que alguém da sua família era o pai do bebé nascituro.
A artéria no pescoço dele ficou mais grossa, houve uma alteração na cor das faces, os olhos piscaram descontroladamente.
– A escova de dentes vermelha é sua, não é, Iversen?
– Como... como foi que você...?
Simon sorriu brevemente e olhou para as suas mãos.
– Eu também tenho uma júnior, e ela está à espera na receção. Só que a cabeça dela é um pouco mais rápida do que a minha. Foi ela quem chegou primeiro à conclusão simples e lógica de que, quando o ADN em apenas duas de três escovas de dentes na família Iversen mostra uma relação com o feto, nesse caso, o filho que vive lá em casa não pode ser o pai. Se assim fosse, os três membros da família estariam relacionados com o feto. Logo, só podia ser o único outro homem. O senhor.
A cor saudável da pele de Iver Iversen empalideceu, antes de desaparecer por completo.
– Provavelmente, quando chegar à minha idade constatará que lhe vai acontecer o mesmo – disse Simon para o consolar. – As mentes destes jovens são muito mais rápidas do que as nossas.
– Mas...?
– É esse o problema do ADN. Não deixa muita margem para «mas»...
Iversen abriu a boca enquanto, simultaneamente, a forçava a esboçar um sorriso circunstancial. Numa conversa incómoda era nesta altura que costumava, por norma, proporcionar o que era conhecido como momento cómico, um comentário desarmante. Sim, era isso, algo que tornava a situação menos perigosa. Porém, não saiu nada. Não havia nada ali.
– Ora, esta geringonça – diante dele, Simon bateu com o dedo na testa – demora um bocado a chegar, mas consegue ir mais longe. E a primeira coisa que lhe ocorreu é que um homem casado como o senhor possui o motivo mais óbvio do mundo para se livrar de uma mulher grávida que pode vir a causar-lhe problemas. Não concorda?
Iversen não fez menção de responder, no entanto, a sua maçã de Adão fê-lo por si.
– A Polícia divulgou uma fotografia da mulher nos jornais perguntando se alguém conhecia a sua identidade. E, quando o amante dela, e pai do filho, ficou calado que nem um rato, não fazendo sequer uma denúncia anónima à Polícia, isso torna-se ainda mais suspeito. Não concorda?
– Eu não sabia... – começou ele a responder, mas calou-se. Já arrependido. E depois arrependeu-se de ter deixado tão claro que se arrependera.
– Não sabia que ela estava grávida? – perguntou o agente da Polícia.
– Não! – disse Iversen, cruzando os braços sobre o peito. – Quero dizer, eu sabia... Não sei nada disso. Agora, gostava de ligar ao meu advogado.
– É claro que sabe alguma coisa. Na verdade, porém, acredito em si quando afirma não saber tudo. No entanto, penso que a sua mulher, a Agnete, tinha conhecimento de tudo. O que lhe parece?
Kefas. Inspetor-chefe, não fora assim que ele se apresentara? Iver Iversen estendeu a mão para o telefone.
– O que me parece é que não tem nenhuma prova e que esta reunião terminou, senhor Kefas.
– Está certo em relação à primeira, mas errado quanto à segunda. Esta reunião não terminou porque o senhor devia saber que está a enveredar por um caminho sem retorno se pegar nesse telefone, Iversen. A Polícia não tem quaisquer provas contra a sua mulher, mas pode crer que o homem que a matou efetivamente tem.
– E como é isso possível?
– É possível porque há doze anos que ele é um bode expiatório e confessor de criminosos nesta cidade. Ele sabe tudo. – Kefas debruçou-se na cadeira e ia batendo com o dedo na secretária a cada palavra. – Ele sabe que o Kalle Farrisen matou a rapariga e que a Agnete Iversen lhe pagou para o fazer. Ele sabe-o porque foi preso por esse homicídio. E a única razão pela qual acredito que o senhor possa estar inocente é o facto de ele ainda não ter vindo atrás de si. Vá, pegue no telefone e vamos seguir tudo à risca, contar aos media tudo o que sabemos sobre si e a rapariga, explicar aos seus parceiros de negócios que vai estar ausente por uns tempos, contar ao seu filho que... bem, o que quer que contemos ao seu filho?
O que contar ao filho dele... Simon aguardou. Deixou que penetrasse. Era importante para o que vinha a seguir. Deixou que criasse raízes. Deu tempo a Iversen para compreender a magnitude, as consequências. Para que ficasse recetivo a alternativas que, ainda há dois minutos, estariam completamente fora de questão. Tal como o próprio Simon tivera de fazer. E isso levara-o ali, àquilo.
Simon viu a mão de Iversen cair pesadamente e ouviu uma voz insegura e áspera:
– O que pretende?
Simon endireitou-se na cadeira.
– Conte-me tudo agora. Se eu acreditar em si, é possível que não tenha de acontecer muita coisa. Afinal, a Agnete já foi castigada.
– Castigada?!
Os olhos do viúvo flamejaram, no entanto o fogo extinguiu-se quando eles se cruzaram com a frigidez nos de Simon.
– Muito bem. A Agnete e eu, nós... tínhamos um casamento de fachada. Não dessa maneira. Um sócio tinha umas raparigas. Asiáticas. Foi assim que conheci a Mai. Ela... tinha algo, algo de que eu necessitava. Não juventude ou inocência e tudo isso, mas uma... solidão na qual eu me revia.
– Ela tinha sido feita prisioneira, Iversen. Tinha sido levada de casa e da família.
O investidor imobiliário encolheu os ombros.
– Eu sei, mas paguei pela liberdade dela. Dei-lhe um apartamento onde nos encontrávamos. Apenas ela e eu. Então, um dia, ela disse-me que não lhe vinha o período há alguns meses. Que podia estar grávida. Eu disse-lhe que tinha de se livrar do bebé, mas ela recusou-se. Eu não sabia o que fazer. Então perguntei à Agnete...
– Perguntou à sua mulher?
Iversen ergueu uma mão, desvalorizando.
– Sim, claro. A Agnete era adulta. Não se importava que os outros assumissem as obrigações que ela preferia não ter de chamar a si. Para ser sincero, acho que ela preferia as mulheres aos homens.
– Mas ela deu-lhe um filho.
– Na família dela, as obrigações são levadas muito a sério e ela foi uma boa mãe.
– Uma família que também é a maior detentora de propriedades privadas em Oslo, com uma imagem perfeita e um apelido tão impoluto que um bastardo asiático seria algo pura e simplesmente impensável.
– Sim, a Agnete era conservadora. E eu recorri a ela porque, em última análise, era ela quem mandava.
– Porque esta empresa foi constituída com o dinheiro dela – acrescentou Simon. – Por isso, a Agnete decidiu livrar-se do problema. De uma forma radical.
– Não sei nada sobre isso – respondeu Iversen.
– Pois não, porque não perguntou. Deixou que ela contactasse pessoas que podiam fazer o serviço por si. E depois, em troca, elas tiveram de arranjar um bode expiatório quando uma testemunha contou à Polícia que tinha visto alguém injetar uma rapariga naquele pátio. Era preciso encobrir o rasto e o senhor abriu os cordões à bolsa.
Outro encolher de ombros de Iversen.
– Eu não matei ninguém, só estou a cumprir a minha parte do nosso acordo contando-lhe o que aconteceu. A questão é: vai cumprir a sua?
– A questão – respondeu Simon – é como uma mulher como a sua arranjou um marginal como o Kalle Farrisen.
– Nunca ouvi falar do Kalle Farrisen.
– Pois não – disse Simon, cruzando as mãos diante de si. – Mas sabe quem é o Gémeo?
Desceu sobre a sala um momento de absoluto silêncio. Foi como se, lá fora, o trânsito tivesse sustido a respiração.
– Desculpe? – perguntou finalmente Iversen.
– Trabalhei durante muitos anos no Departamento de Fraudes Graves – afirmou Simon. – A Investimentos Imobiliários Iversen fez negócios com o Gémeo. Vocês ajudaram-no a lavar dinheiro das drogas e das atividades de tráfico e, em troca, ele proporcionava-vos perdas fictícias que permitiam uma poupança de impostos na ordem das centenas de milhões de coroas.
Iver Iversen abanou a cabeça.
– Infelizmente, receio nada saber sobre algum Gémeo.
– Para além de recear, isso é mentira – afirmou Simon. – Tenho provas de que vocês os dois trabalharam juntos.
– Ah tem, hum? – disse Iversen e uniu as pontas dos dedos. – Nesse caso, por que motivo o Departamento de Fraudes Graves nunca interpôs uma ação contra mim?
– Porque quando eu trabalhava no Departamento de Fraudes Graves tinha de contar com apoio interno – disse Simon. – Mas sei que o Gémeo usou o seu dinheiro sujo para lhe comprar propriedades comerciais e voltar a vender-lhas mais tarde a um preço muito mais elevado. Ou, pelo menos, foi isso que os documentos provaram. Ele simulava lucros que lhe permitiam depositar o dinheiro da droga no banco sem que as autoridades tributárias questionassem a sua proveniência. E isso proporcionava-lhe a si um prejuízo aparente que o senhor podia contrabalançar com futuros lucros e evitar, assim, contribuir para a sociedade. Saíam todos a ganhar.
– Uma teoria interessante – respondeu Iversen, encolhendo os ombros. – Contei-lhe tudo o que sei. Há mais alguma coisa?
– Há. Quero encontrar-me com o Gémeo.
Iversen suspirou.
– Já lhe disse que não conheço nenhum Gémeo.
Simon pareceu anuir silenciosamente de si para si.
– Sabe uma coisa? No Departamento de Fraudes Graves ouvimos isso tantas vezes que as pessoas começaram a duvidar de que o Gémeo existisse sequer, convenceram-se de que ele não passava de um mito.
– Parece-me que ele pode ser precisamente isso, Kefas.
Simon levantou-se.
– Por mim está tudo bem. Mas os mitos não controlam o mercado do tráfico de droga e do sexo numa cidade inteira, ano após ano, Iversen. Os mitos não liquidam mulheres grávidas a pedido dos seus parceiros de negócios. – Debruçou-se, assentou as palmas das mãos em cima da secretária e expirou levando a que Iversen ficasse a conhecer o seu hálito de velho. – Os homens não ficam tão apavorados a ponto de se disporem a saltar de um penhasco por causa de um mito. Eu sei que ele existe.
Simon deu um impulso para se pôr em pé e encaminhou-se para a porta enquanto agitava o seu telemóvel.
– Assim que entrar no elevador, vou convocar uma conferência de imprensa, por isso talvez esta seja uma boa ocasião para aquela conversa entre pai e filho.
– Espere!
Simon estacou diante da porta, sem se virar.
– Eu... eu vou ver o que posso fazer.
Simon tirou um cartão de visita e colocou-o em cima da vitrina com o arranha-céus em forma de uma garrafa de Coca-Cola.
– O senhor e ele têm até às dezoito horas.
– Dentro da Estatal? – repetiu Simon, quando vinham a descer no elevador. – O Lofthus atacou o Franck no gabinete dele?
Kari anuiu.
– É tudo o que sei por agora. O que disse o Iversen?
Simon encolheu os ombros.
– Nada. Mas não é de estranhar, ele fez questão de falar primeiro com o advogado. A nossa conversa com ele terá de ficar para amanhã.
Arild Franck estava sentado na beira da cama, à espera de ser levado para o bloco cirúrgico. Vestia uma das batas hospitalares de cor azul-clara e fora-lhe colocada uma pulseira de identificação à volta do pulso. Não sentira dores durante a primeira hora, no entanto começava a doer-lhe agora e aquela mísera injeção que o anestesista lhe dera não estava a surtir qualquer efeito. Tinham-lhe prometido uma injeção a sério que lhe adormeceria o braço inteiro antes mesmo da operação. Um cirurgião especialista em mãos passara por lá e explicara-lhe em pormenor do que a microcirurgia era capaz hoje em dia, que o dedo cortado chegara ao hospital, que fora um corte feito com limpeza e que, mal o dedo fosse reunido ao seu legítimo proprietário, de certeza que os nervos se tornavam a ligar, pelo que ele poderia voltar a usar o dedo para fazer «várias coisas» dentro de uns meses. A sua tentativa de humor fora bem-intencionada, só que Franck não estava com disposição para brincadeiras. Então, ele interrompera o cirurgião e perguntara-lhe quanto tempo ia demorar a colocar o dedo no lugar e quando poderia voltar a trabalhar. E, quando o cirurgião respondera que a operação em si ia demorar várias horas, Franck – para espanto do cirurgião – olhou para o relógio e praguejou em tom baixo mas audível.
A porta abriu-se e Franck levantou a cabeça. Esperava que fosse o anestesista porque, se não fosse, não era apenas o seu dedo que ia latejar furiosamente, mas toda a sua cabeça e o corpo.
Mas não foi ninguém vestido de branco nem de verde, mas sim um homem alto e magro de fato cinzento.
– Pontius? – disse Franck.
– Olá, Arild. Só queria ver como estavas.
Franck semicerrou um olho. Como se assim lhe fosse mais fácil perceber o verdadeiro motivo da visita do comissário. Parr sentou-se na cama ao lado dele. Indicou a mão ligada esticando o pescoço.
– Dói?
– Vai ficar boa. Diz-me que andas à procura dele.
O comissário encolheu os ombros.
– O Lofthus evaporou-se. Mas havemos de encontrá-lo. Tens alguma ideia do que ele pretendia?
– Pretendia? – Franck resfolegou. – E alguém sabe o que ele pretende? É evidente que ele está numa qualquer cruzada alucinada.
– Precisamente – comentou Parr. – Portanto, a verdadeira questão é quando e onde vai ele atacar a seguir. Ele deu-te alguma indicação?
– Indicação? – Franck gemeu e dobrou o cotovelo com cuidado. – Como por exemplo?
– Ele deve ter dito alguma coisa.
– Ele falou. Eu estava amordaçado. Ele queria saber quem era a toupeira.
– Sim, eu vi.
– Tu viste?
– Pelos papéis no teu gabinete. Ou pelo menos aqueles que não estavam cobertos de sangue.
– Tu estiveste no meu gabinete?
– Este caso é de prioridade máxima, Arild. O homem é um assassino em série. Já é suficientemente mau a imprensa andar atrás de nós, mas agora os políticos também estão a começar a meter o nariz. A partir de agora, vou assumir o controlo.
Franck encolheu os ombros.
– Está bem.
– Tenho uma pergunta...
– Estou quase a ir para o bloco operatório e isto dói como o caraças, Pontius. Não pode esperar?
– Não. O Sonny Lofthus foi interrogado a propósito do homicídio da Kjersti Morsand, mas negou qualquer envolvimento. Alguém lhe contou que o marido dela era o nosso principal suspeito antes de encontrarmos cabelo do Lofthus no local do crime? Ou que tínhamos provas que sugeriam que o Yngve Morsand a matou?
– Como queres que eu saiba? Estás a referir-te a quê?
– Oh, eu só estava curioso. – Parr apoiou a mão no ombro de Franck e este sentiu a dor descer-lhe pelo braço. – Concentra-te apenas na tua cirurgia.
– Obrigado, mas, na verdade, não há muito em que pensar.
– Não – disse Parr tirando os óculos retangulares. – Calculo que não haja. – Começou a limpá-los com uma expressão abstrata. – Só tens de ficar aí estendido enquanto outra pessoa faz o trabalho todo.
– Sim – disse Franck.
– Enquanto outra pessoa te cose. Te põe de novo inteiro.
Franck engoliu em seco.
– Então – disse Parr, voltando a colocar os óculos. – Contaste-lhe quem era a toupeira?
– Queres dizer, se lhe contei que era o seu próprio pai? O Ab Lofthus confessou. Se eu o tivesse escrito num pedaço de papel, aquele rapaz podia ter-me cortado a cabeça.
– O que lhe contaste, Arild?
– Nada! O que poderia ter-lhe contado?
– É precisamente o que tenho estado a perguntar-me. Gostava de saber como é que o rapaz estava tão certo de que tinhas informações, ao ponto de estar disposto a entrar na tua prisão para as obter.
– O rapaz é louco, Pontius. Mais cedo ou mais tarde qualquer toxicodependente se torna psicótico, tu sabes isso. A toupeira? Meu Deus, essa história desapareceu juntamente com o Ab Lofthus.
– Nesse caso, o que lhe contaste?
– Como assim?
– Ele apenas te cortou um dedo. Todos os outros foram assassinados. Tu foste poupado, deves ter-lhe dado alguma coisa. Não te esqueças de que eu o conheço, Arild.
A porta abriu-se e entraram dois funcionários hospitalares vestidos de verde.
– Vamos a isto?
Um deles sorriu.
Parr endireitou os óculos.
– Não tiveste tomates, Arild.
Simon desceu a rua cabisbaixo por causa do ar do mar que soprava com força do fiorde, atravessando o bairro de Aker Brygge e a Munkedamsveien antes de os edifícios a fazerem estreitar e depois subiu acelerado a Ruseløkkveien. Parou no exterior da igreja que ficara entalada entre dois prédios. A Igreja de S. Paulo era mais modesta do que as suas homónimas noutras capitais. Uma igreja católica num país protestante. Estava virada para o lado errado, oeste, e tinha apenas uma amostra de torre na fachada. O acesso à entrada fazia-se por três degraus. Mas estava sempre aberta. Ele sabia-o porque já lá estivera, uma noite, já tarde, a meio de uma crise, e hesitara antes de subir aqueles três degraus. Fora pouco depois de ter perdido tudo, antes de ter encontrado a sua salvação em Else.
Simon subiu os degraus, pressionou o manípulo de cobre, abriu a pesada porta e entrou. Depois quis fechar rapidamente a porta, mas as molas rígidas ofereceram resistência. Já era assim naquela altura? Não se recordava, estava demasiado embriagado. Largou a porta e esta foi-se fechando atrás de si, um centímetro de cada vez. No entanto, lembrava-se do cheiro. Estranho. Exótico. Uma atmosfera de espiritualidade. Magia e misticismo, arte e espetáculo. Else gostava do catolicismo, mas não tanto da ética quanto da estética, e explicara-lhe que tudo naquele edifício religioso, mesmo os elementos mais básicos, como os tijolos, a argamassa e os vitrais, estava imbuído de um simbolismo religioso. E, contudo, este simbolismo singelo possuía um peso, uma mensagem subliminar, um contexto histórico e a fé de tantos seres pensantes, que era impossível rejeitá-lo. O espaço estreito, caiado e singelamente decorado continha filas de bancos que conduziam a um único altar com Jesus pendurado na cruz. Um símbolo de vitória na derrota. Encostado à parede, do lado esquerdo, a meio caminho do altar, encontrava-se o confessionário. Tinha dois compartimentos; um com uma cortina preta corrida sobre a abertura, que fazia lembrar uma cabina fotográfica. Quando ali chegara, naquela noite, não fazia ideia de qual dos dois cubículos se destinava ao pecador que vinha confessar-se, antes de o seu cérebro toldado pelo álcool ter deduzido que, se o padre não devia ver os pecadores, então ele devia estar dentro da cabina fotográfica. Então, entrara aos tombos no cubículo sem a cortina e começara a falar para o painel de madeira perfurada que os separava. Confessara os seus pecados. Em voz desnecessariamente alta. Esperando e temendo simultaneamente que estivesse alguém do outro lado, ou que alguém, qualquer pessoa, pudesse ouvi-lo e fazer o que fosse necessário. Conceder-lhe o perdão. Ou condená-lo. Tudo menos aquele vazio sufocante onde ele estava sozinho consigo mesmo e os seus erros. Não acontecera nada. E, na manhã seguinte, acordara sem a habitual dor de cabeça – o que era estranho – e apercebeu-se de que a vida continuava como se nada se tivesse passado, que, em última análise, ninguém queria saber. Fora a última vez que pusera os pés numa igreja.
Martha Lian estava de pé, próximo do altar, com uma mulher que gesticulava bruscamente, envergando um fato elegante e o tipo de penteado curto que algumas mulheres mais velhas julgam que as faz parecer mais novas. A mulher apontava e explicava e Simon captou palavras como «flores», «cerimónia», «Anders» e «convidados». Estava quase a alcançá-las quando Martha Lian se virou para ele. A primeira coisa que o surpreendeu foi como estava diferente desde a última vez. Quão vazia. Sozinha. E quão infeliz.
– Olá – disse ela, em voz átona.
A outra mulher parou de falar.
– Peço desculpa pela interrupção – disse Simon. – Disseram-me no Centro Ila que podia encontrá-la aqui. Espero não interromper nada de importante.
– Oh, não, é...
– Sim, na verdade, estamos neste momento a planear o casamento do meu filho e da Martha. Por isso, se não se importasse de esperar, senhor...?
– Kefas – disse Simon. – E não, não pode esperar. Sou agente da Polícia.
A mulher olhou para Martha com os sobrolhos arqueados.
– É precisamente o que quero dizer quando afirmo que vivemos num mundo que é demasiado real, minha querida.
– Ao qual tencionamos poupá-la, senhora...?
– Desculpe?
– A menina Lian e eu vamos falar deste assunto em privado. Dever de confidencialidade, e isso tudo.
A mulher afastou-se batendo ruidosamente com os saltos, e Simon e Martha sentaram-se no banco da frente.
– Foi vista a afastar-se num carro com o Sonny Lofthus – afirmou Simon. – Por que motivo o omitiu?
– Ele queria aprender a conduzir – explicou Martha. – Levei-o até um parque de estacionamento para podermos treinar.
– Neste momento, ele é procurado por toda a Noruega.
– Eu vi na televisão.
– Ele disse, ou viu-o fazer, algo que pudesse sugerir onde se encontra neste momento? E quero que pense muito bem antes de responder.
Martha parecia estar mesmo a pensar com muito cuidado antes de abanar a cabeça.
– Não? Alguma coisa sobre os planos que tinha para o futuro?
– Ele queria aprender a conduzir.
Simon suspirou e passou os dedos pelo cabelo.
– Tem a noção de que se arrisca a ser acusada de cumplicidade se o ajudar ou nos ocultar informações?
– E por que motivo faria eu semelhante coisa?
Simon olhou para ela sem dizer nada. Ia casar-se em breve. Assim sendo, porque tinha um ar tão infeliz?
– Pronto, pronto – disse ele e levantou-se.
Ela permaneceu onde estava e baixou o olhar para o colo.
– Só uma coisa – disse ela.
– Sim?
– Acha que ele é o assassino louco que todos dizem ser?
Simon transferiu o peso de um pé para o outro.
– Não – respondeu.
– Não?
– Ele não é louco. Está a castigar as pessoas. Está a levar a cabo uma espécie de vingança.
– E o que pretende ele vingar?
– Penso que tem que ver com o pai, que foi agente da Polícia; depois de ele morrer, as pessoas disseram que ele era corrupto.
– Está a dizer que ele castiga as pessoas... – Ela baixou a voz. – Ele castiga de modo justo?
Simon encolheu os ombros.
– Não sei. Mas ele faz concessões.
– Concessões?
– Ele confrontou o subdiretor prisional no seu gabinete. Foi uma atitude audaz. Vendo bem, tinha sido muito mais fácil para ele e bem menos arriscado, se tivesse aparecido em casa do Franck.
– Mas...?
– Mas isso traria a mulher e o filho do Franck para a linha de fogo.
– Espectadores inocentes. Ele não quer fazer mal aos inocentes.
Simon anuiu lentamente. Viu algo acontecer nos olhos dela. Uma centelha. Uma esperança. Era realmente assim tão simples? Ela estava apaixonada? Simon endireitou as costas. Olhou para o retábulo que mostrava o Salvador na cruz. Fechou os olhos. Voltou a abri-los. Que se lixasse. Que se lixasse tudo.
– Sabe o que o pai dele, o Ab, costumava dizer? – perguntou, puxando as calças para cima. – Ele dizia que o tempo de clemência tinha acabado e que chegara o dia do juízo. Mas o Messias está a ficar atrasado, temos de fazer o trabalho por ele. Só ele pode puni-los, Martha. A Polícia de Oslo é corrupta, protege os escroques. Penso que o Sonny está a fazer isto porque sente que o deve ao pai, que foi por isto que o pai dele morreu. Justiça. O tipo de justiça que está acima da lei.
Observou a mulher mais velha junto ao confessionário, onde discutia algo com um padre em voz baixa.
– Então e o senhor? – disse Martha.
– Eu? Eu sou a lei. Por isso, tenho de apanhar o Sonny. É assim mesmo.
– E aquela mulher, a Agnete Iversen, que crime cometeu ela?
– Não posso revelar-lhe nada a respeito dela.
– Li que as joias dela foram roubadas.
– Ah, sim?
– Isso inclui um par de brincos de pérola?
– Não sei. É importante?
Ela abanou a cabeça.
– Não – disse ela. – Não é. Estava a tentar pensar em algo que pudesse ajudá-lo.
– Obrigado – disse Simon e abotoou o casaco. Os saltos ruidosos aproximavam-se. – Tem outras coisas em mente, pelo que vejo.
Martha lançou-lhe um olhar rápido.
– Eu falo consigo mais tarde, Martha.
Quando Simon ia a sair da igreja, o seu telemóvel tocou. Olhou para o visor. O código da zona disse-lhe que a chamada vinha de Drammen.
– Kefas.
– Fala Henrik Westad.
O agente da Polícia que estava a investigar o homicídio da mulher do armador.
– Estou na Unidade de Cardiologia do Hospital Central de Buskerud.
Simon conseguiu adivinhar o que se seguiria.
– O Leif Krognæss, a nossa testemunha com problemas cardíacos. Julgaram que ele estava livre de perigo, mas...
– Morreu repentinamente – disse Simon, suspirando e apertando a cana do nariz com o polegar e o indicador. – Ele estava sozinho na enfermaria quando isso aconteceu. A autópsia não vai encontrar quaisquer anormalidades. E está a ligar-me porque não quer ser o único que não vai conseguir dormir esta noite.
Westad não respondeu.
Simon guardou o telemóvel no bolso. Levantara-se vento e ele olhou para o céu por cima dos telhados. Ainda não conseguia vê-lo, mas a sua dor de cabeça dizia-lho. Vinha um sistema de baixas pressões a caminho.
A motorizada diante de Rover estava prestes a ressuscitar dos mortos. Era uma Harley-Davidson Heritage Softail, o modelo de 1989, com uma roda dianteira enorme, a preferida de Rover. Quando a comprara, era uma lata dilapidada de 1340cc tratada pelo dono sem o amor, a paciência ou a compreensão que uma HD – ao contrário das suas primas japonesas mais flexíveis – exigia. Rover substituíra o rolamento da cambota, o rolamento da cabeça da biela, os anéis dos pistões, reposicionara as válvulas, e restava muito pouco da original depois de a motorizada ter sido transformada numa 1700cc com 119 de potência na roda traseira, e que antes era de apenas 43. Rover tinha óleo a escorrer-lhe do antebraço com a tatuagem de uma catedral quando se apercebeu de uma alteração na luz. O seu primeiro pensamento foi que o céu estivesse a ficar nublado, conforme prometera a previsão meteorológica. Porém, quando olhou para cima, reparou numa sombra e numa silhueta à entrada da sua oficina.
– Sim? – gritou Rover e continuou a limpar o óleo do braço.
O homem começou a encaminhar-se na direção dele. Silenciosamente. Como um predador. Rover sabia que a arma mais próxima estava demasiado longe para conseguir alcançá-la a tempo. E que era assim que devia ser. Estava farto daquele modo de vida. As pessoas diziam que era difícil não regressar aos maus hábitos depois de se sair da prisão, mas isso não passava de uma grande aldrabice; era apenas uma questão de força de vontade. Era tão simples quanto isso. Se quiséssemos, podíamos fazê-lo. Contudo, se a nossa intenção não passasse de uma ilusão, de um devaneio, apenas algo com que nos disfarçássemos, então dali a um dia ou dois voltaríamos para a sarjeta.
O homem estava agora tão perto que Rover conseguia distinguir-lhe as feições do rosto. Mas claro que isso era...
– Olá, Rover.
Era ele.
Exibia um cartão de visita amarelecido que dizia «Oficina de Motorizadas do Rover».
– A morada estava certa. Disseste que me arranjavas uma Uzi.
Naquele momento, Rover limpava as mãos enquanto olhava para ele. Lera os jornais. Vira a fotografia na televisão. Porém, naquele momento não olhava para o rapaz que estivera na cela da Estatal, mas sim para o seu futuro. O futuro tal como ele o imaginara.
– Despachaste o Nestor – disse Rover, passando o pano entre os dedos.
O rapaz não respondeu.
Rover abanou a cabeça.
– Isso significa que não é só a Polícia que anda à tua procura, mas o Gémeo também.
– Sei que estou em apuros – afirmou o rapaz. – Vou-me embora imediatamente, se é isso que queres.
Perdão. Esperança. Um corte radical. Uma segunda oportunidade. Tantas pessoas a desperdiçavam, continuavam a cometer os mesmos erros estúpidos a vida inteira, conseguiam arranjar sempre um pretexto para estragar tudo. Não se conheciam a si próprias, ou então fingiam não se conhecerem, mas antes de começarem já tinham perdido. Porque, na realidade, não queriam triunfar. Mas Rover queria. Não era isso que ia derrubá-lo. Agora estava mais forte. Mais sensato. Mas isso queria dizer o seguinte: se saíres de cabeça bem erguida, existe sempre uma possibilidade de te estatelares ao comprido.
– Porque não fechamos a porta da garagem? – sugeriu Rover. – Parece que vai chover.
38 Nome dado ao barco utilizado pelo explorador norueguês Thor Heyerdahl (1914-2002), na expedição pelo oceano Pacífico, que partiu da América do Sul para a Polinésia, em 1947, com o intuito de demonstrar a possibilidade de a colonização da Polinésia ter sido realizada por nativos da América do Sul que chegaram por via marítima. O nome do barco foi uma homenagem ao deus do Sol inca, Viracocha, também chamado «Kon-Tiki» pelos habitantes da Polinésia. (N. da T.)
34
A chuva fustigava o para-brisas quando Simon tirou a chave
da ignição e se preparou para dar uma corrida do parque de estacionamento até ao edifício do hospital. Avistou uma figura loura de bata mesmo defronte do seu carro. Chovia com tanta intensidade que as gotas faziam ricochete no capô e o contorno do homem ficou desfocado. A porta do lado do condutor abriu-se e outro homem de cabelo escuro pediu-lhe que os acompanhasse. Simon olhou para o relógio no painel de instrumentos: 16h00. Faltavam duas horas para o fim do prazo.
Os dois homens levaram-no de carro até Aker Brygge, um empreendimento à beira-mar com lojas, escritórios, alguns dos apartamentos mais caros e cerca de cinquenta cafés e bares. Percorreram o passeio marítimo e viram o ferryboat de Nesoddtangen atracar quando viraram para uma das muitas ruelas; continuaram a caminhar até chegarem a umas pequenas escadas de ferro que davam acesso a uma porta com uma vigia que, alegadamente, evocava associações a marisco. Ao lado da porta havia uma pequena placa que dizia «Restaurante Nautilus» em letras invulgarmente discretas. Um dos homens segurava a porta aberta e penetraram num corredor estreito onde sacudiram a chuva dos casacos e os penduraram no vestiário, onde não havia ninguém de serviço. Não se via vivalma e o primeiro pensamento que ocorreu a Simon foi que aquele era o local perfeito para lavagem de dinheiro. Não demasiado grande, mas com um aluguer e uma situação que tornavam credível a sua rentabilidade e cujos lucros nunca seriam questionados, já que isso raramente sucede quando os impostos são pagos.
Simon estava molhado. Quando mexia os pés dentro dos sapatos, eles emitiam pequenos sons de sucção. Mas não era esse o verdadeiro motivo pelo qual sentia frio.
A sala de jantar estava dividida ao meio por um enorme aquário retangular, que também constituía a única fonte de iluminação. Na mesa diante dele e de costas para o aquário sentava-se um vulto avantajado.
Era por causa dele que Simon sentia frio.
Nunca o vira em carne e osso, mas não tinha a menor dúvida de quem ele era.
O Gémeo.
O homem parecia encher a sala por completo. Simon não sabia se isto ficava simplesmente a dever-se à dimensão física e presença óbvia dele, aos sinais exteriores de poder e riqueza, ou à capacidade que ele tinha de controlar tantos destinos. Ou se todas as lendas em torno da sua pessoa o tornavam ainda maior, a imagem da morte, da crueldade sem sentido e da destruição.
O homem esboçou um gesto quase impercetível na direção da cadeira que fora puxada para diante dele. Simon sentou-se.
– Simon Kefas – disse o homem, acariciando o queixo com o dedo indicador.
Os homenzarrões possuíam com frequência vozes surpreendentemente esganiçadas.
Mas não o Gémeo.
O tom grave e profundo da sua voz provocou ondas no copo com água diante de Simon.
– Sei o que pretende, Kefas.
Os músculos incharam debaixo do fato que tinha todo o ar de poder rebentar pelas costuras a qualquer instante.
– E o que é?
– Dinheiro para a operação aos olhos da Else.
Simon engoliu em seco ao ouvir o nome da sua amada na boca daquele homem.
– A questão é o que tem para vender, não é?
Simon exibiu o seu telemóvel, abriu a caixa de correio. Colocou o aparelho em cima da mesa e premiu reproduzir. A voz no ficheiro de som que ele recebera tinha um som metálico:
«... qual é o titular e o número da conta para onde o Nestor enviou o dinheiro quando ele lhe pagou? Se eu fosse a si pensava bem antes de falar.»
Uma pausa, depois outra voz:
«A conta está em nome de uma empresa. Dennis Limited, registada nas ilhas Caimão.»
«E o número da conta?»
Outra pausa.
«Oito, três, zero.»
«Mais devagar. E fale com maior clareza.»
«Oito. Três. Zero. Oito...»
Simon premiu parar.
– Presumo que saiba quem estava a responder às perguntas.
O homenzarrão respondeu com um gesto ínfimo que podia significar tudo.
– É isso que está a vender?
– Esta gravação foi-me enviada de um endereço de Hotmail que não consegui nem sequer tentei localizar. Porque, neste momento, sou a única pessoa que tem conhecimento do ficheiro de som. Provas de que o diretor pri...
– O subdiretor prisional.
– ...da Estatal confessa ter uma conta secreta através da qual recebeu dinheiro do Hugo Nestor. Verifiquei o número da conta e a informação está correta.
– E que valor tem isto para mim?
– O que é valioso para si é que eu não mostre isto aos meus colegas e o senhor perca um aliado importante. – Simon pigarreou. – Mais outro aliado importante.
O homenzarrão encolheu os ombros.
– Os subdiretores prisionais podem ser substituídos. E, de qualquer forma, parece que o Franck cumpriu a sua função. O que mais tem, Kefas?
Simon espetou o lábio inferior.
– Tenho provas de que o senhor lavou dinheiro através da empresa imobiliária do Iversen. E ADN que prova a ligação entre o Iver Iversen sénior e uma rapariga vietnamita que o senhor trouxe clandestinamente para o país e assassinou, obrigando depois o Sonny Lofthus a arcar com as culpas.
O homenzarrão passou delicadamente dois dedos pela garganta.
– Sou todo ouvidos. Continue.
– Se eu receber o dinheiro para a operação aos olhos, posso garantir que nenhum destes casos será investigado.
– E de que quantia estamos a falar?
– Dois milhões de coroas.
– Por essa quantia, podia ter chantageado diretamente o Iversen. Afinal, porque está realmente aqui?
– Porque quero mais do que dinheiro.
– E afinal o que vem a ser?
– Quero que deixe de procurar o rapaz.
– O filho do Lofthus? E porque o faria?
– Porque o Ab Lofthus era meu amigo.
O homenzarrão olhou demoradamente para Simon. Depois recostou-se na cadeira e bateu com o dedo no vidro do aquário.
– Parece um aquário vulgar, não parece? Mas sabe quanto custa o peixe que se assemelha a uma espadilha39, Kefas? Não, não sabe, porque eu não quero que o Departamento de Fraudes Graves saiba que alguns colecionadores estão dispostos a pagar milhões de coroas por ele. Não é particularmente impressionante nem atraente, mas é incrivelmente raro. Por isso, o seu preço é determinado pelo valor que tem para o indivíduo: aquele que pagar mais.
Simon agitou-se na cadeira.
– A questão é – disse o homenzarrão – que eu quero o rapaz Lofthus. Ele é um peixe raro e tem mais valor para mim do que para qualquer outro comprador. Porque ele matou gente minha e roubou o meu dinheiro. Acha que conseguia controlar esta cidade durante vinte anos se deixasse as pessoas saírem impunes com semelhantes atos? Ele transformou-se num peixe que faço questão de ter. Lamento, Kefas. Nós damos-lhe o dinheiro, mas o rapaz é meu.
– O rapaz só quer a toupeira que traiu o pai dele, depois vai-se embora.
– E, cá para mim, ele pode ficar com a toupeira, ele ou ela já não me servem para nada, a toupeira cessou a sua atividade há doze anos. Mas nem eu próprio sabia a sua identidade. Trocámos dinheiro e informações anonimamente, e para mim isso chegou, recebi aquilo por que paguei. E você também receberá, Kefas. A visão da sua mulher, sim?
– Como queira – respondeu Simon e levantou-se. – Se for atrás do rapaz, arranjarei o dinheiro de alguma outra maneira.
O homenzarrão soltou um suspiro.
– Parece-me que não entendeu a nossa negociação, Kefas.
Simon viu que o homem louro também se levantara.
– Sendo você um jogador experiente, tinha a obrigação de saber que deve verificar sempre com cuidado as suas cartas antes de decidir jogar – disse o homenzarrão. – Depois, é tarde demais, não é?
Simon sentiu o homem louro assentar-lhe a mão no ombro. Resistiu ao impulso de a sacudir. Voltou a sentar-se. O homenzarrão debruçou-se sobre a mesa. Cheirava a lavanda.
– O Iversen contou-me que lhe foi falar das amostras de ADN. E agora temos esta gravação. Isso quer dizer que esteve em contacto com o rapaz, acertei? Por isso, agora você vai levar-nos até ele. A ele e ao que quer que ele nos tenha roubado.
– E se eu recusar?
O homenzarrão soltou outro suspiro.
– De que é que todos nós temos receio quando vamos para velhos, Kefas? De morrermos sozinhos, não é? O verdadeiro motivo pelo qual está a fazer tudo o que pode para devolver a visão à sua mulher é querer que ela o veja quando você morrer. Porque nos tentamos convencer de que assim a morte se torna um pouco menos solitária, não é? Bem, imagine um leito de morte ainda mais solitário do que um em que a mulher cega mas viva está presente...
– O quê?
– Bo, mostra-lhe.
O homem louro mostrou o seu telemóvel a Simon. Ele reconheceu a enfermaria do hospital. A cama. A mulher adormecida na cama.
– O mais interessante não é o facto de sabermos onde ela está neste momento – disse o homenzarrão. – Mas tê-la encontrado, não é? Menos de uma hora depois de o Iversen nos ter contactado. E isso quer dizer que conseguiremos encontrá-la de novo, independentemente do local onde a esconda.
Simon levantou-se bruscamente da cadeira, a sua mão direita avançou rapidamente para a garganta do homenzarrão, porém, foi sustida por um punho que a apanhou com a mesma facilidade que a uma borboleta. E que, naquele momento, se fechava silenciosamente à volta dos dedos de Simon.
– Tem de decidir o que preza mais, Kefas. A mulher com quem partilha a sua vida ou este cão abandonado que adotou.
Simon engoliu em seco. Tentou ignorar a dor, o som das articulações dos dedos a serem comprimidas umas contra as outras, contudo sabia que as lágrimas de dor iriam denunciá-lo. Pestanejou uma vez. Duas. Sentiu uma lágrima quente descer-lhe pela face.
– Ela precisa de se deslocar aos Estados Unidos nos próximos dois dias – murmurou ele. – Eu preciso de ter o dinheiro na mão quando ela partir.
O Gémeo aliviou a pressão e Simon sentiu vertigens quando o sangue voltou a fluir rapidamente e exacerbou a dor.
– Ela embarcará assim que me entregue o rapaz e a mercadoria roubada – disse o homenzarrão.
O louro acompanhou Simon à saída. Parara de chover, no entanto o ar estava ainda pegajoso e carregado.
– O que vai fazer-lhe? – perguntou Simon.
– Não queira saber – disse o homem louro com um sorriso.
– Mas foi bom fazer negócio consigo.
A porta foi fechada e trancada depois de Simon sair.
Abandonou a viela. A noite caía. Simon desatou a correr.
Martha estava sentada a olhar para o rosbife e os copos altos de vinho, para as cabeças do outro lado da mesa, para os retratos de família na pequena mesa em frente à janela, para as macieiras no jardim, saturadas de chuva, para o céu e para a escuridão que se aproximava.
Anders fizera um discurso bonito. Não havia a menor dúvida, até conseguiu imaginar uma das velhas tias a limpar uma lágrima.
– A Martha e eu decidimos casar-nos no inverno – disse ele. – Porque sabemos que o nosso amor é capaz de derreter o gelo todo, que os corações dos nossos amigos conseguem aquecer qualquer salão de festas e que a vossa proteção, sabedoria e orientação serão toda a luz de que necessitamos no nosso caminho escuro de inverno. E, logicamente, existe outra razão... – Anders pegou no copo de vinho e virou-se para Martha, que a custo conseguiu desviar o olhar do céu noturno e retribuir o sorriso dele. – Não conseguimos de todo esperar pelo verão!
A sala encheu-se de gargalhadas felizes e aplausos.
Anders pegou na mão dela com a que tinha livre. Apertou-a com força, sorriu, os seus magníficos olhos cintilando como o mar, e ela percebeu que ele tinha consciência da impressão que causara. Depois curvou-se, como se emocionado pela ocasião, e deu-lhe um beijo breve nos lábios. A mesa manifestou-se energicamente. Ele ergueu o copo.
– À nossa!
Depois sentou-se. Captou o olhar dela e brindou-a com um sorriso quase íntimo. O sorriso que disse aos doze convidados reunidos à mesa do jantar que ele e Martha partilhavam algo especial, algo que pertencia só a eles. Mas, lá porque Anders estava a tentar conquistar a simpatia dos convidados, isso não significava que não fosse verdade. Eles tinham, de facto, algo que só lhes pertencia a eles. Algo bom. Já eram um casal há tanto tempo, que facilmente se esqueciam de todos os dias bons e das coisas agradáveis que tinham feito juntos. E tinham atravessado os maus momentos e saído deles mais fortalecidos. Ela gostava de Anders, a sério que gostava. Claro que gostava, caso contrário, porque aceitaria casar-se com ele?
O sorriso dele esmoreceu ligeiramente. Dizia-lhe que ela podia tentar mostrar um pouco mais de entusiasmo, estar em sintonia com ele no momento em que tinham reunido as respetivas famílias para lhes contarem que tencionavam casar-se. A sua futura sogra pedira para fazer o anúncio e Martha não tivera energia para protestar. E, naquele momento, ela levantava-se e batia no copo. Foi como se alguém tivesse ligado um interruptor assinalado com «silêncio». Não apenas porque os convidados aguardavam ansiosamente o que ela tinha a dizer, mas porque ninguém queria ser alvo do olhar furioso da mãe do noivo.
– E ficámos muito entusiasmados por a Martha ter decidido que a cerimónia do casamento decorreria na Igreja de S. Paulo.
Por pouco Martha não se engasgou. Ela tinha decidido?
– Como sabem, somos uma família católica. E, embora o nível médio de educação e rendimentos em muitos outros países seja mais elevado entre os protestantes do que entre os católicos, não é o caso da Noruega. Aqui, nós, os católicos, somos a elite. Por isso, Martha, bem-vinda à equipa A.
Martha reconheceu a piada que sabia perfeitamente não ser uma piada. Ouviu a voz da sua futura sogra prosseguir, no entanto, deixou-se novamente vogar. Fugir para outro lugar.
– No que estás a pensar, Martha?
Sentiu os lábios de Anders roçarem o seu cabelo e a parte inferior da orelha. Conseguiu esboçar um sorriso porque estava prestes a desatar às gargalhadas. Imaginou-se a levantar-se e dizer-lhe e aos outros convidados que o que lhe ia na mente era estar deitada ao sol, em cima de uma rocha, nos braços de um assassino, enquanto uma tempestade avançava pelo fiorde em direção a eles. Mas isso não significava que não amasse Anders. Ela dissera que sim. Dissera que sim porque o amava.
39 Espécie semelhante à sardinha que vive em águas puras como as dos fiordes noruegueses. (N. da T.)
35
–Lembras-te da primeira vez que nos vimos? – perguntou Simon enquanto acariciava a mão de Else em cima do edredão. As outras duas doentes na enfermaria dormiam atrás das respetivas cortinas.
– Não – sorriu ela, e ele imaginou aqueles seus olhos azuis puros e estranhamente brilhantes por detrás da ligadura. – Mas tu lembras-te. Vá lá, conta-me outra vez.
Em vez de se limitar a sorrir, Simon soltou uma risada ligeira para que ela pudesse ouvi-la.
– Estavas a trabalhar numa florista no Grønland. E eu entrei para comprar flores.
– Uma coroa – disse ela. – Tu entraste para comprar uma coroa.
– Estavas tão bonita que me certifiquei de que conversávamos mais tempo do que era necessário. Apesar de seres demasiado jovem para mim. Mas, enquanto falávamos, eu próprio rejuvenesci. E, no dia seguinte, apareci para comprar rosas.
– Compraste lírios.
– Sim, claro. Queria que pensasses que eram para uma amiga. Mas da terceira vez comprei rosas.
– E da quarta.
– Fiquei com o meu apartamento atulhado de flores, mal conseguia respirar.
– Eram todas para ti.
– Eram todas para ti. Eu só me limitava a cuidar delas. Depois, convidei-te para sair. Nunca senti tamanho pavor em toda a minha vida.
– Parecias tão nervoso que não fui capaz de dizer que não.
– Esse truque resulta sempre.
– Não. – Ela riu-se. – Tu estavas nervoso. Mas eu senti-me atraída pelos teus olhos tristes. Uma vida vivida. A melancolia do discernimento. Como sabes, isso é irresistível para qualquer mulher jovem.
– Sempre disseste que era o meu corpo atlético e o facto de eu ser bom ouvinte.
– Não disse nada! – Else deu uma gargalhada ainda mais alta e Simon fez coro com ela. Aliviado por ela conseguir vê-lo naquele momento.
– Compraste uma coroa da primeira vez – disse ela baixinho. – Escreveste um cartão e ficaste a olhar para ele durante um bocado, depois deitaste-o para o caixote do lixo e escreveste outro. Depois de te ires embora, fui buscar o cartão ao caixote e li-o. E dizia «Ao amor da minha vida». Foi isso que me prendeu a atenção.
– Oh? Não preferias ter um homem que julgasse que ainda estava para conhecer o amor da sua vida?
– Eu queria um homem que fosse capaz de amar, amar de verdade.
Ele anuiu. Ao longo dos anos, tinham repetido esta história tantas vezes um ao outro que as frases eram ensaiadas, tal como as reações deles e a aparente espontaneidade. Uma vez, tinham jurado contar tudo, absolutamente tudo, um ao outro, e depois de o fazerem, depois de terem testado que dose de verdade o outro conseguia tolerar, as suas histórias tinham-se tornado as paredes e o telhado que mantinham de pé a casa deles.
Ela apertou-lhe a mão.
– E tu foste, Simon. Tu soubeste amar-me.
– Porque tu me curaste.
– Tu é que te curaste. Tu é que decidiste deixar de jogar, não fui eu.
– Tu foste o remédio, Else. Sem ti... – Simon inspirou fundo e esperou que ela não detetasse a tremura na sua voz, porque lhe faltava a energia para lá voltar naquele momento, não naquela noite. Não queria repetir a história do seu vício do jogo e dívidas para a qual ele acabara por arrastá-la. Ele fizera o imperdoável, hipotecara a casa sem ela saber. E perdera-a. E ela perdoara-lhe. Ela não ficara zangada nem viera embora nem o deixara sofrer as consequências, nem lhe fizera qualquer espécie de ultimato. Ela limitara-se a acariciar-lhe a face e dizer-lhe que lhe perdoava. E ele chorara como uma criança e, naquele momento, a sua vergonha extinguira a ânsia da vida palpitante no cruzamento entre a esperança e o medo, em que tudo está em jogo e pode ser ganho ou perdido num instante, em que os pensamentos sobre a catastrófica derrota final são quase – quase – tão aflitivos quanto a ideia da vitória. É verdade, ele abandonara o vício naquele dia. E, desde então, nunca mais jogara, não se aproximara sequer de uma cerveja, e essa fora a sua salvação. Fora a salvação deles. Isso e a promessa de contarem absolutamente tudo um ao outro. Saber que ele tinha a capacidade de autocontrolo e a coragem de ser absolutamente sincero com alguém que fizera algo por ele, regenerara-o enquanto homem e ser humano, sim, até o fizera crescer mais do que se ele tivesse ficado à mercê dos seus vícios. Talvez isso explicasse por que motivo, nos seus últimos anos como agente da Polícia, deixara de ver todos os criminosos como famigerados e incorrigíveis, mostrando-se disposto a dar uma segunda oportunidade a todos – em nítido contraste com tudo o que a sua vasta experiência lhe dizia.
– Nós fomos como o Charlie Chaplin e a florista40 – disse Else. – Se vires o filme de trás para a frente.
Simon engoliu seco. A florista cega que pensa que o vagabundo é um cavalheiro rico. Simon não conseguia lembrar-se de como, apenas que o vagabundo a ajuda a recuperar a visão, mas depois nunca revela a sua identidade por estar convencido de que ela não o quereria se visse quem ele era realmente. E depois, quando descobre a verdade, não deixa de o amar.
– Vou esticar as pernas – disse ele, levantando-se.
Não estava mais ninguém no corredor. Ele olhou durante algum tempo para o aviso na parede onde se via um telemóvel com um
X vermelho por cima. Depois, pegou no seu telemóvel e procurou o número. Algumas pessoas pensam que se alguém enviar um e-mail de um telemóvel através de um endereço Hotmail na Internet, a Polícia não consegue localizar o número de telefone de onde é enviado. Errado. Tinha sido fácil descobri-lo. Parecia sentir o coração na garganta, como se batesse por detrás da clavícula. Não havia nenhum motivo para ele não pegar no telemóvel.
– Sim?
A voz dele. Desconhecida e, no entanto, estranhamente familiar, como o eco de um passado remoto, não, recente. O Filho. Simon teve de tossir duas vezes antes de as suas cordas vocais conseguirem emitir um som.
– Preciso de encontrar-me contigo, Sonny.
– Isso até nem era má ideia...
Não se notava qualquer ironia na sua voz.
– ...acontece que não tenciono ficar aqui muito tempo.
Aqui? Em Oslo, na Noruega? Ou aqui na Terra?
– O que vais fazer? – perguntou Simon.
– Acho que já sabe.
– Vais procurar todos os responsáveis e castigá-los. As pessoas por quem cumpriste pena. As pessoas que mataram o teu pai. E, depois, queres encontrar a toupeira.
– Não tenho muito tempo.
– Mas eu posso ajudar-te.
– É muita gentileza da sua parte, Simon, mas o melhor que tem a fazer para me ajudar é continuar a fazer aquilo que tem feito até agora.
– Oh! E afinal o que é?
– Não tentar impedir-me.
Seguiu-se uma pausa. Simon ficou à escuta de quaisquer ruídos de fundo que pudessem revelar onde estava o rapaz. Ouviu umas pancadas surdas e rítmicas e gritos e berros esporádicos.
– Penso que queremos a mesma coisa, Simon.
Simon engoliu em seco.
– Lembras-te de mim?
– Tenho de desligar.
– O teu pai e eu...
Mas a ligação já caíra.
– Obrigado por ter vindo.
– Não tem de quê, amigo. – disse Pelle, olhando para o rapaz pelo espelho retrovisor. – As corridas que um taxista faz são inferiores a trinta por cento do seu dia de trabalho, por isso ainda bem para mim e para o meu negócio que me chamou. Para onde quer ir esta noite, cavalheiro?
– Ullern.
O rapaz pedira-lhe o cartão da última vez que Pelle o levara. De vez em quando os passageiros faziam-no, quando ficavam satisfeitos, mas depois nunca chegavam a ligar. Era bastante fácil arranjar um táxi mandando parar um na rua. Por isso, Pelle não fazia ideia do motivo pelo qual o rapaz quisera especificamente que ele fosse de Gamlebyen até ao Kvadraturen para o apanhar à porta do duvidoso Hotel Bismarck.
O rapaz vestia um fato elegante e, de início, Pelle não o reconheceu. Algo estava diferente. Trazia o mesmo saco de desporto vermelho e uma pasta. Ouvira um forte chocalhar vindo de dentro do saco quando o rapaz o pousara no banco traseiro.
– Estão com um ar feliz naquela fotografia – observou o rapaz. – É você e a sua mulher?
– Oh, essa – disse Pelle e sentiu-se ruborizar. Nunca ninguém comentara a fotografia antes. Ele colara-a na parte inferior do lado esquerdo do volante para que os clientes não conseguissem vê-la. No entanto, ficara sensibilizado por o rapaz ter percebido, ao ver a fotografia, que eles estavam felizes. Que ela estava feliz. Ele não tinha escolhido a melhor fotografia de ambos, mas aquela em que ela parecia mais feliz.
– Acho que ela vai fazer rissóis esta noite – disse ele. – Mais tarde vamos dar um passeio pelo Parque Kampen. A brisa ali será muito bem-vinda num dia quente como este.
– Parece-me uma boa ideia – observou o rapaz. – É um sortudo por ter encontrado uma mulher com quem partilhar a sua vida.
– De facto sou – respondeu Pelle e olhou pelo espelho retrovisor. – Acertou em cheio.
Por norma, Pelle costumava certificar-se de que o cliente fazia a despesa da conversa. Era algo que lhe agradava, reunir retalhos da vida de outrem enquanto durava a breve viagem de táxi. Filhos e casamento. Empregos e empréstimos. Dar uma curta espreitadela às tribulações do quotidiano. Não ter de abordar os temas que sabia que imensos taxistas gostavam de discutir. Porém, crescera uma estranha intimidade entre eles; na verdade, ele gostava mesmo de conversar com aquele homem.
– Então e o senhor? – perguntou Pelle. – Já arranjou uma namorada?
O rapaz sorriu, ao mesmo tempo que abanava a cabeça.
– Não? Ninguém que faça acelerar esse velho motor?
O rapaz assentiu com a cabeça.
– Sim? Que bom para si, amigo. E para ela.
Os movimentos da cabeça do rapaz mudaram de direção.
– Não? Não me diga que ela não gosta de si? Confesso que não me pareceu um grande partido quando estava virado para a parede a vomitar, mas hoje, com esse fato e tudo...
– Obrigado – disse o rapaz. – Mas, infelizmente, não posso tê-la.
– E porque não? Já lhe confessou que a ama?
– Não. Devia fazê-lo?
– Constantemente, várias vezes ao dia. Pense que é como o oxigénio, estamos sempre a precisar dele. Amo-te. Amo-te. Experimente, depois vai perceber o que quero dizer.
Fez-se momentaneamente silêncio lá atrás. Depois ouviu tossir.
– Como... como é que sabe se alguém o ama, Pelle?
– Sei e pronto. É o somatório de todas as coisinhas para as quais nunca conseguimos encontrar uma explicação. O amor envolve-nos como o vapor no duche. Não conseguimos ver as gotas individualmente, mas fica quente. E molhado. E limpo.
Pelle soltou uma gargalhada, embaraçado e ligeiramente orgulhoso das suas palavras.
– E continua a banhar-se no amor dela e a dizer-lhe que a ama todos os dias?
Pelle ficou com a sensação de que as perguntas do rapaz não eram espontâneas, que era um assunto sobre o qual ele quisera fazer perguntas a Pelle por causa da fotografia dele e da mulher, que o rapaz devia tê-la visto numa das duas outras corridas que tinham feito.
– Não tenha a menor dúvida – respondeu Pelle e sentiu que algo ficara preso na sua garganta, uma migalha ou outra coisa. Tossiu ruidosamente e ligou o rádio.
A viagem até Ullern demorou quinze minutos. O rapaz indicara a Pelle uma morada numa das ruas que subiam em direção a Ullernåsen por entre duas estruturas de madeira gigantescas que mais pareciam fortificações do que lares familiares. O alcatrão secara já depois da chuvada mais ao início daquele dia.
– Importava-se de parar aqui um instante, se faz favor?
– Mas a porta é além.
– Está bem aqui.
Pelle parou junto ao passeio. A propriedade estava rodeada de um muro branco alto com vidros partidos no cimo. A enorme casa de tijolo de dois andares situava-se no cimo de um grande jardim. Vinha música do terraço diante da casa e as luzes estavam acesas em todas as janelas. Holofotes no jardim. Em frente ao portão estavam dois homens corpulentos de ombros largos e vestindo fatos pretos, um com um cão branco enorme preso por uma trela.
– Vai a uma festa? – perguntou Pelle e massajou o pé doente. De vez em quando, a cãibra voltava, como se alguém lha tivesse arremessado.
O rapaz abanou a cabeça.
– Não creio que tenha sido convidado.
– Conhece as pessoas que moram aqui?
– Não. Deram-me a morada quando estive na prisão. O Gémeo. Já ouviu falar dele?
– Não – respondeu Pelle. – Mas tendo em conta que o senhor não o conhece, posso dizer-lhe que não me parece bem uma pessoa ter tanto. Olhe para aquela casa! Estamos na Noruega, não nos Estados Unidos ou na Arábia Saudita. Não passamos de um pedaço de rocha gélida aqui em cima no Norte, mas sempre tivemos algo de que os outros países não podem gabar-se. Uma certa paridade. Uma certa equidade. Mas agora estamos apostados em dar cabo dela.
Ouviram os cães ladrar no jardim.
– Você é um homem sábio, Pelle.
– Oh, não tenho tanta certeza disso. Porque esteve dentro?
– Para encontrar a paz.
Pelle observou o rosto do jovem através do espelho. Foi como se o tivesse visto em algum outro lugar, e não apenas ali dentro do seu táxi.
– Vamos embora daqui – disse o rapaz.
Quando Pelle voltou a espreitar pelo para-brisas, viu que o homem com o cão branco vinha direito a eles. Ambos tinham os olhos fixos no carro e tanto músculo armazenado dentro dos seus corpos que se bamboleavam.
– Certo – disse Pelle, ligando o taxímetro. – Para onde?
– Chegou a despedir-se dela?
– O quê?
– Da sua mulher.
Pelle pestanejou. Viu o homem e o cão aproximarem-se. A pergunta acometera-o como um murro no estômago. Olhou de novo para o rapaz pelo espelho retrovisor. Onde é que o vira antes? Ouviu rosnar. O cão devia estar a preparar-se para atacar. Já transportara o rapaz noutra ocasião, era tão simples quanto isso, só podia ser esse o motivo. A memória de uma memória. Como ela era neste momento.
– Não – respondeu Pelle, abanando a cabeça.
– Um acidente?
Pelle engoliu em seco.
– Sim, um acidente de viação.
– Ela sabia que a amava?
Pelle abriu a boca, no entanto apercebeu-se de que não ia conseguir dizer nada, por isso limitou-se a anuir.
– Lamento que a tenha perdido, Pelle.
Sentiu a mão do rapaz no seu ombro. E foi como se o calor exsudasse dela e se lhe espalhasse pelo peito, a barriga, os braços e as pernas.
– Se calhar íamos andando, Pelle.
Somente nessa altura é que Pelle se apercebeu de que fechara os olhos e quando voltou a abri-los, o homem e o cão já se encontravam perto do carro. Pelle acelerou e soltou a embraiagem. Ouviu o cão ladrar furiosamente lá atrás.
– Aonde vamos agora?
– Visitar um homem que é culpado de homicídio – disse o rapaz, puxando o saco de desporto vermelho para junto de si. Mas, primeiro, temos de ir deixar uma coisa.
– A quem?
O rapaz esboçou um sorriso estranho e melancólico.
– A alguém cuja fotografia gostava de ter no meu tabliê.
Martha estava de pé, junto à bancada da cozinha, a deitar o café da cafeteira para um termos. Tentou abstrair-se da voz da sua futura sogra. Procurou focar-se nos temas de conversa dos convidados na sala de jantar. Mas era impossível, a voz dela era tão insistente, tão absorvente.
– O Anders é um rapaz sensível, percebe? Ele é bem mais sensível do que a Martha. É por isso que precisa de assumir o controlo e...
Um carro abrandou e parou diante do portão. Um táxi. Apeou-se um homem com um fato elegante; trazia uma pasta.
Ela julgou que o seu coração ia parar. Era ele.
Abriu o portão e começou a subir o curto caminho de gravilha até à porta da frente.
– Com licença – disse Martha, pousando a cafeteira no lava-loiça com um baque e tentando pôr o ar de quem não estava a fazer uma retirada estratégica e apressada da cozinha.
Era uma distância de poucos metros e, no entanto, ela vinha esbaforida quando escancarou a porta antes de ele ter tempo de tocar à campainha.
– Temos companhia – disse-lhe entre dentes, puxando a porta ao sair. – E a Polícia anda à tua procura. O que queres?
Olhou para ela com aqueles malditos olhos verdes cristalinos. Tinha rapado as sobrancelhas.
– Quero pedir-te perdão – disse ele. Baixinho, com calma. – E depois quero dar-te isto. É para o centro.
– O que é? – perguntou ela e olhou para a pasta que ele lhe estendia.
– Para aquelas obras que precisas de fazer. Pelo menos, para uma parte...
– Não! – Ela olhou por cima do ombro e baixou a voz. – O que se passa contigo? Achas mesmo que eu quero o teu maldito dinheiro? Tu matas pessoas. Os brincos que quiseste dar-me... – Martha engoliu em seco, abanou impetuosamente a cabeça e sentiu pequeníssimas lágrimas de fúria brotarem. – Eles pertenciam... a uma mulher que tu assassinaste!
– Mas...
– Vai-te embora!
Ele anuiu. Desceu um degrau, às arrecuas.
– Porque não contaste à Polícia a meu respeito?
– E quem te garante que não contei?
– Porque não o fizeste, Martha?
Ela transferiu o peso de um pé para o outro. Ouviu uma cadeira arrastar no chão da sala de jantar.
– Se calhar, porque queria ouvir-te dizer-me que mataste aquelas pessoas?
– E fazia diferença se assim fosse?
– Não sei. Fazia?
Ele encolheu os ombros.
– Se quiseres chamar a Polícia, estarei em casa dos meus pais esta noite. Depois disso, vou desaparecer.
– Porque estás a contar-me isto?
– Porque quero que venhas comigo. Porque te amo.
Ela piscou os olhos. O que é que ele acabara de dizer?
– Amo-te – repetiu devagar, e deu a impressão de estar a saborear as suas próprias palavras, surpreendido.
– Meu Deus – gemeu ela em desespero. – És louco!
– Vou-me já embora. – Virou-se na direção do táxi que aguardava com o motor a trabalhar ao ralenti.
– Espera! Para onde vais?
Ele deu meia-volta e sorriu ironicamente.
– Falaram-me de uma bela cidade na Europa. É muito longe para ir a conduzir sozinho, mas... – Deu a impressão de querer dizer algo mais e ela ficou à espera. E continuou à espera e rezou para que ele o fizesse. Ela não sabia o que era, apenas que, se ele dissesse o que estava certo, se dissesse a palavra mágica, então esta libertava-a. Mas era ele quem tinha de fazê-lo, ele tinha de saber qual era.
No entanto, ele fez uma vénia rápida, deu meia-volta e começou a encaminhar-se para o portão.
Martha sentiu-se tentada a chamá-lo, mas o que ia dizer? Era uma loucura. Um capricho louco. Algo que não existia, que não podia existir no mundo real. A realidade estava ali, na sala de jantar atrás dela. Virou-se e voltou lá para dentro. E olhou diretamente para o rosto furioso de Anders.
– Sai da frente.
– Anders, não...
Ele derrubou-a, escancarou a porta e saiu disparado.
Martha levantou-se e seguiu-o até ao caminho, a tempo de ver Anders agarrar Sonny e desferir-lhe um golpe na nuca. No entanto, Sonny devia ter ouvido Anders aproximar-se porque se baixou, rodou numa espécie de pirueta e colocou os braços à volta de Anders. Este bradou:
– Vou matar-te!
E tentou libertar-se, mas tinha os braços presos e não podia fazer nada. Depois, tão depressa como o prendera, Sonny libertou Anders. A princípio, Anders ficou a olhar com ar espantado para o homem de pé, à sua frente, com os braços pendendo passivamente ao lado do corpo. Depois, Anders levantou a mão para atacar. E desferiu-lhe um soco. Ergueu o punho pronto para outro soco. Desferiu-o. Sem grande ruído. Um embate surdo e abafado dos nós dos dedos na carne e no osso.
– Anders – gritou Martha. – Anders, para com isso!
Ao quarto soco, a pele do malar do rapaz rebentou. Ao quinto, ele caiu de joelhos.
A porta do táxi do lado do motorista abriu-se e este fez menção de sair, mas o rapaz ergueu uma mão para lhe fazer sinal de que não devia intrometer-se.
– Seu filho da mãe cobarde! – berrou Anders. – Mantém-te bem longe da minha noiva!
O rapaz levantou a cabeça como se para oferecer um ângulo melhor a Anders, virando a face que estava intacta. Anders deu-lhe um pontapé. A cabeça do rapaz foi arremessada para trás e ele caiu de joelhos e estendeu os braços como um jogador de futebol a derrapar no campo em triunfo.
A sola pontiaguda do sapato de Anders devia ter apanhado a testa de Sonny porque o sangue começara a jorrar de um golpe comprido mesmo abaixo da linha do cabelo. Quando os ombros de Sonny roçaram a gravilha e o seu casaco se abriu, Martha viu Anders estacar na corrida para outro pontapé. Viu-o olhar fixamente para o cinto de Sonny e ver o que ela vira. Uma pistola. Uma pistola reluzente, com o cano metido no forro das calças; estivera ali o tempo todo, porém, Sonny não lhe tocara.
Ela colocou a mão no ombro de Anders e ele sobressaltou-se como se ela tivesse acabado de o acordar.
– Vai lá para dentro – ordenou-lhe ela. – Imediatamente!
Ele fitou-a piscando os olhos, confuso. Depois fez o que lhe tinham mandado. Passou por ela a caminho dos degraus onde os outros convidados se tinham entretanto reunido.
– Vão lá para dentro – gritou-lhes Martha. – Ele é um residente do Centro Ila, eu resolvo isto. Todos vocês, vão lá para dentro!
Martha acocorou-se ao lado de Sonny. O sangue escorria da testa e descia-lhe pela cana do nariz. Ele respirava pela boca.
Veio dos degraus uma voz insistente e exigente:
– Mas isto é realmente necessário, Martha, minha querida? Afinal, tu vais deixar aquele lugar agora que tu e o Anders vão...
Martha fechou os olhos e concentrou-se.
– E isto também se lhe aplica. Cale-se e vá imediatamente para dentro!
Quando tornou a abrir os olhos, reparou que ele sorria. E depois murmurou com os lábios ensanguentados. Tão baixinho que ela teve de se curvar para o ouvir:
– Ele tem razão, Martha. Tu consegues mesmo sentir que o amor purifica.
Depois, ele levantou-se, vacilou momentaneamente antes de transpor o portão a cambalear e entrar no táxi.
– Espera! – gritou ela e agarrou na pasta que continuava caída no caminho de gravilha.
Mas o táxi descia já a rua em direção à escuridão, ao fundo da zona residencial.
40 Alusão ao filme Luzes da Cidade, de 1931. (N. da T.)
36
Iver Iversen fazia baloiçar o corpo ora fincando ora levantando os calcanhares e agitava o pé do seu copo de Martini vazio. Observava os convidados reunidos em pequenos grupos no terraço caiado e lá dentro na sala de estar. Esta era do tamanho de um salão de baile e fora mobilada ao gosto de alguém que não tinha de viver nela. «Designers de interiores com talento limitado e orçamentos ilimitados» como teria dito Agnete. Os homens vestiam smoking, conforme referia o convite. As mulheres estavam manifestamente em minoria, no entanto, as ali presentes, sobressaíam muito. Extraordinariamente belas, irresistivelmente jovens e representantes de uma interessante etnia mista. Vestidos com grandes rachas, costas nuas e decotes pronunciados. Elegantes, exóticas e importadas. A verdadeira beleza é sempre rara. Iver Iversen nem pestanejaria se alguma entrasse na sala acompanhada de um leopardo-das-neves.
– Parece que estão aqui todos os financiadores solteirões de Oslo.
– Apenas aqueles que não são particularmente entediantes – disse Fredrik Ansgar, endireitando o laço e bebendo golinhos do seu gin tónico. – Ou estão nas suas casas de férias.
Errado, pensou Iver Iversen. Se eles quiserem fazer negócio com o Gémeo terão de deslocar-se à cidade. Não ousariam fazê-lo de outra maneira. O Gémeo. Olhou para o homenzarrão, de pé junto ao piano. Ele podia ter servido de modelo do trabalhador ideal nos cartazes de propaganda soviética ou para as estátuas no Parque Vigeland. Tudo nele era sólido. Sólido e cinzelado: a cabeça, os braços, as mãos, as barrigas das pernas. Testa alta, queixo firme, lábios cheios. A pessoa que conversava com ele tinha constituição forte e mais de um metro e oitenta de altura, no entanto parecia um anão ao pé do Gémeo. Iver julgou reconhecê-lo vagamente. Tinha uma pala sobre um olho. Provavelmente algum magnata que ele vira nos jornais.
Iversen tirou outro Martini da bandeja que um dos empregados fazia circular pela sala. Sabia que não devia, que já estava embriagado. Mas não queria saber, afinal, ele era um viúvo enlutado. Ainda assim, sabia que beber era exatamente o que não devia estar a fazer. Podia acabar por dizer algo de que viesse mais tarde a arrepender-se.
– Conhece a história que está por detrás do nome do Gémeo?
– Conheço a história, sim – respondeu Fredrik Ansgar.
– Ouvi dizer que o irmão dele morreu afogado, mas que foi um acidente.
– Um acidente? Num balde com água?
Fredrik soltou uma gargalhada e o seu olhar seguiu uma beldade de pele escura que passou majestosamente.
– Olhe – disse Iver. – Até está cá um bispo. Gostava de saber como foi apanhado na rede do Gémeo.
– Sim, é uma reunião impressionante. Também é verdade que ele tem o diretor prisional na mão?
– Digamos que não se fica por aí.
– A Polícia?
Iver não respondeu.
– Ainda mais acima?
– Você é jovem, Fredrik, e embora tenha acesso a informações confidenciais, ainda não está tão imerso que não tenha a opção de retirada. Mas quanto mais se sabe, mais preso se fica, acredite em mim. Se eu tivesse a oportunidade de fazer as coisas de modo diferente...
– Então e o Sonny Lofthus? E o Simon Kefas? Vão tratar deles?
– Oh sim – respondeu Iver, olhando para uma rapariga pequena e ágil sentada sozinha no bar. Tailandesa, vietnamita? Tão jovem, bonita e embonecada. Tão instruída. Tão apavorada e desprotegida. Tal como Mai. Quase chegou a sentir pena de Simon Kefas. Também ele estava aprisionado. Vendera a sua alma por amor a uma mulher mais jovem e, tal como Iver, ia acabar por conhecer a humilhação. Pelo menos, Iver esperava que Simon tivesse tempo de a sentir antes que o Gémeo fizesse o que era necessário e se antecipasse a Simon Kefas. Um lago na Østmarka41? Talvez Kefas e Lofthus tivessem direito a um lago cada um.
Iver Iversen fechou os olhos e pensou em Agnete. A sua vontade foi arremessar o copo do Martini à parede, mas em vez disso resolveu emborcá-lo de uma assentada.
– Centro de operações da Telenor, assistência policial.
– Boa-noite, fala o inspetor-chefe Simon Kefas.
– Consigo saber pelo número de onde está a ligar. E que está algures no Hospital de Ullevål.
– Impressionante. No entanto, quero que me localize um número diferente.
– Tem um mandado?
– Isto é um assunto urgente.
– Muito bem. Vou comunicá-lo amanhã e depois terá de falar com o delegado do Ministério Público. Nome e número?
– Só tenho o número.
– E o que pretende?
– O local onde se encontra um telemóvel neste momento.
– Só podemos dar-lhe uma localização aproximada. E se o telemóvel não estiver a ser usado, pode demorar algum tempo até as nossas estações de base detetarem o sinal. Acontece automaticamente uma vez de hora a hora.
– Vou agora ligar para o número para que consigam obter um sinal.
– Nesse caso, não se trata de alguém que não possa saber que o seu telemóvel está a ser localizado?
– Liguei várias vezes para o número na última hora e até ao momento ninguém atendeu.
– Muito bem. Diga-me o número, ligue para ele e eu informo-o do que descobrirmos.
Pelle parou o táxi no caminho de gravilha deserto. À sua esquerda, a paisagem descia em direção ao rio, que brilhava ao luar. Uma ponte estreita ligava o caminho de gravilha à estrada principal que tinham tomado. À sua direita, um campo de trigo sussurrava e oscilava sob as nuvens negras que corriam pelo céu, fazendo lembrar o negativo de uma fotografia numa noite de verão cheia de luz.
Mais ao fundo da estrada, embrenhado na floresta à frente deles, estava o seu destino: um casarão cercado por uma vedação de estacas brancas.
– Eu devia levá-lo às Urgências para que eles pudessem cosê-lo – disse Pelle.
– Eu fico bem – disse o rapaz e colocou uma nota de valor elevado no apoio de braço entre os bancos dianteiros. – E obrigado pelo lenço.
Pelle olhou para ele pelo espelho retrovisor. O rapaz amarrara o lenço à volta da testa. Estava encharcado de sangue.
– Vá lá. Eu não lhe vou cobrar. Deve existir um serviço de urgências algures em Drammen.
– Talvez vá lá amanhã – disse o rapaz, pegando no saco de desporto vermelho. – Primeiro, preciso de fazer uma visita a este homem.
– Isso é seguro? Não me disse que ele tinha matado alguém?
Pelle olhou na direção da garagem que fora incorporada na casa. Tanto espaço e, no entanto, nenhuma garagem autónoma. Provavelmente, o dono era um fã da arquitetura americana. A avó de Pelle morara numa aldeia de noruegueses que emigraram para a América ou tinham ainda familiares a viver lá e, na sua maioria, os habitantes mais ferrenhos não se contentavam com uma casa com um alpendre, uma bandeira da nação hasteada e um automóvel americano na garagem, tinham também instalações elétricas de 110 volts para poderem ligar as suas jukeboxes, torradeiras e frigoríficos comprados no Texas ou herdados de um avô em Bay Ridge, Brooklyn.
– Ele não vai matar ninguém esta noite – disse o rapaz.
– Mesmo assim – respondeu Pelle. – De certeza que não quer que eu espere? É só meia hora de volta a Oslo e outro táxi vai custar-lhe uma fortuna, pois terá de pagar a deslocação até aqui. Vou parar o taxímetro...
– Fico-lhe muito reconhecido, Pelle, mas provavelmente é melhor para ambos que não seja testemunha de nada. Compreende?
– Não.
– Ainda bem.
O rapaz saiu do carro. Olhou para Pelle. Este encolheu os ombros e arrancou; ouviu a gravilha ser esmagada pelos pneus enquanto seguia o rapaz pelo espelho retrovisor. Viu-o ficar ali de pé, parado. No instante seguinte, tinha desaparecido, fora engolido pela escuridão da mata.
Pelle parou o carro. Continuou a olhar para o espelho. O rapaz desaparecera. Tal como a sua mulher.
Era tão difícil entender. Que as pessoas que tinham estado por perto, preenchido a sua vida, pudessem simplesmente evaporar-se e nunca mais voltarmos a vê-las. Exceto em sonhos. Os sonhos bons. Porque ele nunca a vira no seu pesadelo. Neste, ele via apenas a estrada e os faróis do carro em sentido contrário. No pesadelo, ele, Pelle Granerud, em tempos um promissor piloto de ralis, não tivera tempo de reagir, não conseguira efetuar a manobra simples necessária para se desviar de um condutor embriagado que vinha em contramão. Em vez de fazer as coisas que fazia todos os dias quando treinava no circuito de corridas de automóveis, ficara sem reação. Porque ele sabia que podia perder a única coisa que não suportaria perder. Não a própria vida, mas a da sua família: as duas pessoas que eram a sua vida. As duas pessoas que ele acabara de ir buscar ao hospital, elas eram a sua nova vida. Que começava naquele momento. Ele era pai. Fora pai apenas por três dias. E, quando acordara, estava de volta ao mesmo hospital. Primeiro falaram-lhe dos ferimentos nas suas pernas. Só podia ser engano, houvera uma mudança de turno e o pessoal que entrara não sabia que a sua mulher e o filho tinham morrido no acidente. Ele só descobrira passadas duas horas. Era alérgico à morfina, provavelmente um problema hereditário, e ficara estendido em insuportável agonia a gritar o nome dela dia após dia. Mas ela não viera. E hora a hora, dia a dia, pouco a pouco, começou a compreender, que nunca, nunca mais, voltaria a vê-la. Então, continuara a gritar o nome dela. Apenas para o ouvir. Não tinham tido tempo de escolher um nome para o bebé. E, de repente, fizera-se luz em Pelle de que, somente naquela noite, quando o rapaz colocara a mão no seu ombro, a dor desaparecera por completo.
Pelle conseguiu ver o contorno de um homem na casa branca. Estava sentado a uma janela panorâmica enorme e sem cortinas. A sala de estar encontrava-se iluminada como se o homem estivesse em exposição. Como se estivesse à espera de alguém.
Iver reparou que o homenzarrão encaminhava o convidado com quem estivera a conversar junto ao piano para junto de si e de Fredrik.
– É consigo que ele quer falar, não comigo – murmurou Fredrik e afastou-se, tendo posto a vista em cima de algo russo junto ao bar.
Iver engoliu em seco. Há quantos anos é que ele e o homenzarrão faziam negócios juntos, estavam no mesmo barco, partilhavam o sucesso e o muito esporádico retrocesso, como daquela vez em que as ondas de choque da crise financeira global tinham vindo dar de mansinho à costa norueguesa? E, no entanto, continuava a ficar tenso, quase petrificado, quando o homenzarrão se aproximava. As pessoas diziam que ele conseguia levantar o seu próprio peso no supino.
E não apenas uma vez, mas fazer dez repetições seguidas. Todavia, uma coisa era a sua presença física intimidatória, outra, o facto de ser sabido que, absolutamente tudo o que fosse dito, cada palavra, mas também a mais ínfima mudança de tom, e também – ou, na verdade, e em especial – qualquer coisa que não se quisesse que fosse entendida, ele percebia. Para além do que a linguagem corporal, a cor do rosto e o movimento das pupilas da pessoa revelasse, como é evidente.
– Bom, Iver. – A voz cava, de baixa frequência. – Como tem passado? A Agnete. Um terrível incidente, não foi?
– Efetivamente foi – disse Iver, procurando um empregado de mesa.
– Quero que conheça um amigo meu. Vocês os dois têm algo em comum. Ficaram ambos viúvos recentemente...
O homem com a pala no olho estendeu a mão.
– ...às mãos do mesmo assassino – afirmou o homenzarrão.
– Yngve Morsand. – O homem apresentou-se e apertou a mão de Iver. – Os meus pêsames.
– Igualmente – disse Iver Iversen.
Era por isso que o homem lhe parecia familiar. Era o armador, o marido cuja esposa fora praticamente decapitada. Durante uns tempos, Yngve Morsand fora o principal suspeito da Polícia, até terem encontrado ADN no local do crime. De Sonny Lofthus.
– O Yngve mora mesmo nas imediações de Drammen – afirmou o homenzarrão.
– E esta noite pedimos-lhe a casa emprestada.
– Oh?
– Estamos a usá-la como uma armadilha. Vamos apanhar o tipo que matou a Agnete, Iver.
– O Gémeo diz que existem boas probabilidades de o Sonny Lofthus atentar contra a minha vida esta noite. – Yngve Morsand soltou uma gargalhada e olhou à sua volta, à procura de algo. – Apostei que ele não virá. Importava-se de pedir aos seus empregados que me trouxessem algo mais forte do que um martini, Gémeo?
– É a próxima jogada óbvia do Sonny Lofthus – afirmou o homenzarrão. – A nossa sorte é ele ser suficientemente sistemático e previsível, por isso creio que vai trazer o seu dinheiro. – O homenzarrão esboçou um sorriso rasgado. Dentes brancos sob o bigode, olhos semelhantes a duas nesgas no rosto bolachudo. Assentou uma mão gigantesca nas costas do armador. – E preferia que não me chamasse isso, Yngve.
O armador olhou para ele com ar jocoso.
– Refere-se ao Gém... Aaah.
A boca dele abriu-se e o seu rosto contorceu-se num esgar desconcertado, gélido. Iver viu os dedos do homenzarrão aliviarem a pressão no pescoço de Morsand e o armador dobrou-se para tossir.
– Acho que estamos de acordo quanto a esse assunto, não?
O homenzarrão levantou a mão na direção do bar e fez estalar os dedos.
– Bebidas.
Com ar desconfiado, Martha introduziu a colher no pudim de amora ártica enquanto ignorava as palavras com que a bombardeavam de todos os cantos da mesa. Esta pessoa atacou-te antes? Ele é perigoso? Se é um residente, de certeza vais voltar a vê-lo, santo Deus! E se ele apresenta queixa do Anders à Polícia por tê-la defendido? Toda a gente sabe como estes toxicodependentes são imprevisíveis. Mas provavelmente estava tão drogado que não conseguirá lembrar-se de nada. Um tio achara que ele se parecia com o homem na TV que era procurado por homicídio. Como é que ele se chama – é estrangeiro? O que foi, Martha, porque não dizes nada? Deves calcular porquê, ela está obrigada ao sigilo.
– Estou a comer o meu pudim – disse Martha. – É bom, deviam prová-lo. Acho que vou buscar mais um pouco.
Anders surgiu por detrás dela na cozinha.
– Eu ouvi-o – ceceou. – Amo-te? Era o tipo que estava no corredor do Ila. Aquele com quem estavas a falar. O que se passa entre vocês os dois?
– Anders, não...
– Dormiste com ele?
– Para com isso!
– Ele tem, sem dúvida, a consciência pesada. Se assim não fosse, tinha-me apontado a arma. O que fazia ele aqui: veio matar-me? Vou chamar a Polícia...
– Para confessares que atacaste e agrediste um homem a pontapé na cabeça sem que houvesse qualquer provocação?
– E quem lhes dizia que eu não estava a ser provocado? Tu?
– Ou o taxista.
– Tu? – Agarrou-a pelo braço e soltou uma gargalhada. – Sim, eras capaz disso, não eras? Tomavas o partido dele contra o teu próprio noivo. Sua pu...
Ela libertou-se. Um prato de sobremesa caiu no chão e partiu-se. Fez-se silêncio absoluto na sala de jantar.
Martha saiu para o hall em passo de marcha, agarrou no casaco e encaminhou-se para a porta. Estacou. Parou por um segundo. Depois, deu meia-volta e entrou decidida na sala de jantar. Agarrou na colher, suja de branco do pudim de amora ártica, e bateu com ela numa taça engordurada. Levantou a cabeça e apercebeu-se de que aquela última ação fora desnecessária, ela já conseguira a atenção de toda a gente.
– Caros amigos e família – disse. – Gostaria de acrescentar que o Anders tinha razão. Não podemos mesmo esperar até ao verão...
Simon praguejou. Estacionara no meio do Kvadraturen e consultava um mapa da zona. O serviço de assistência à Polícia da Telenor informara-o de que aquele telemóvel estava ali. O aparelho que Sonny Lofthus usara para lhe enviar o SMS. E que Simon sabia agora ser um telemóvel descartável registado em nome de Helge Sørensen. Fazia sentido, já antes ele usara o cartão de identificação do mesmo guarda prisional.
Mas onde podia ele estar?
As coordenadas abrangiam apenas algumas ruas, mas eram as mais densamente povoadas de Oslo. Lojas, escritórios, hotéis, apartamentos. Simon sobressaltou-se quando ouviu baterem no vidro lateral. Levantou a cabeça e viu uma rapariga rechonchuda com maquilhagem carregada, de calções curtos e seios comprimidos numa espécie de corpete. Ele abanou a cabeça, ela fez cara feia e afastou-se. Simon esquecera-se de que aquele era o bairro vermelho mais movimentado e que um homem sozinho dentro de um carro estacionado naquelas ruas era, inevitavelmente, considerado um freguês. Uma mamada no carro, dez minutos no Hotel Bismarck ou possivelmente encostados aos muros da Fortaleza de Akershus42. Ele já fora esse tipo de homem. Não era algo de que se orgulhasse, no entanto, noutros tempos estivera disposto a pagar por uma migalha de contacto humano e uma voz a dizer «amo-te». Esta última inseria-se na categoria de «serviços especiais» e custava mais duzentas coroas.
Ligou novamente para o número e observou as pessoas que subiam e desciam os passeios, esperançado de que uma delas pegasse no telemóvel denunciando-se assim. Suspirou e terminou a chamada. Olhou para o seu relógio de pulso. Pelo menos sabia que o telemóvel estava na zona, e isso era um sinal de que Sonny ia manter-se onde estava e não tentaria nada de diabólico naquela noite.
Nesse caso, porque tinha Simon a sensação de que algo não estava certo?
Bo estava sentado na sala de estar desconhecida, a olhar pela grande janela panorâmica. Estava sentado diante de uma luz forte direcionada para a janela, pelo que, quem quer que observasse do exterior só conseguiria ver a sua silhueta e não as feições. Com sorte, Sonny Lofthus não tinha uma noção muito clara da constituição de Yngve Morsand. Bo estava a pensar que fora precisamente assim que Sylvester estivera sentado quando o deixara na casa de Lofthus. O bom, estúpido, leal e chinfrineiro Sylvester. E aquele cabrão matara-o. Provavelmente nunca iam saber como ele o fizera. Porque nunca houvera um interrogatório, uma sessão de tortura onde Bo pudesse vingar-se, saboreá-la como se fosse um copo de retsina43 com o seu sabor a resina. Algumas pessoas não o suportavam, mas para Bo representava o sabor da sua infância, a ilha de Telendos44, amigos, um barco a baloiçar suavemente no fundo do qual ficava deitado a olhar para o céu grego sempre azul, enquanto ouvia as ondas e o vento cantarem juntos um dueto. Ouviu um estalido no seu ouvido direito.
– Parou um carro lá em baixo na estrada e depois deu meia-volta.
– Saiu alguém – perguntou Bo.
O auricular, o fio e o microfone eram tão discretos que não se viam do exterior em contraluz.
– Não tivemos tempo de ver, mas o carro está neste momento a afastar-se. Se calhar andava perdido.
– Muito bem. Toda a gente a postos.
Bo ajustou o colete à prova de bala. Lofthus não ia ter oportunidade de disparar quaisquer tiros, mas preferia tomar precauções. Colocara dois homens no jardim para apanharem Lofthus quando ele entrasse pelo portão ou saltasse a vedação, e um no corredor por detrás da porta da frente destrancada. Todos os outros meios de acesso à casa estavam fechados ou trancados. Encontravam-se ali desde as cinco da tarde, sentiam-se cansados e a noite ainda mal começara, no entanto, se pensasse em Sylvester podia manter-se acordado. A ideia de apanhar aquele filho da mãe. Atraí-lo ali. Se não naquela noite, então no dia seguinte ou mesmo no outro. De tempos a tempos, Bo achava estranho que o homenzarrão – que possuía tão pouca humanidade dentro de si – conseguisse ser tão perspicaz em relação às pessoas. Às suas necessidades, às suas fraquezas e motivações, à forma como reagiam à pressão e ao medo, e como ele, que dispunha de informações suficientes sobre o temperamento, as propensões e a inteligência delas, conseguia antever o passo seguinte que iam dar com extraordinário – ou como o próprio homenzarrão costumava dizer, dececionante – rigor. Infelizmente, o homenzarrão dera ordens para que matassem imediatamente o rapaz em vez de o fazerem prisioneiro, para que a sua morte fosse rápida e muito pouco indolor.
Bo agitou-se na cadeira quando ouviu um som. Antes mesmo de se ter virado, ocorreu-lhe um pensamento. Que não possuía a capacidade do homenzarrão de prever o que este tipo ia fazer de seguida. Nem quando deixara Sylvester na casa amarela nem naquele momento.
O rapaz tinha um lenço ensanguentado atado à volta da cabeça e encontrava-se junto de uma porta lateral, aquela que dava acesso à sala de estar e diretamente à garagem.
Como raio é que ele entrara daquela maneira, quando tinham trancado a garagem? Devia ter vindo por trás, da floresta. Arrombar uma porta de garagem trancada era, sem dúvida, uma das primeiras coisas que um drogado inteligente aprendia. No entanto, este não era o problema mais premente de Bo, mas sim o facto de o rapaz segurar algo que, infelizmente, tinha uma lamentável semelhança com uma Uzi, a metralhadora israelita que cospe chumbo de nove milímetros mais depressa do que um esquadrão de fuzilamento normal.
– Tu não és o Yngve Morsand – disse Sonny Lofthus. – Onde é que ele está?
– Ele está aqui – disse Bo, virando a cabeça para o microfone.
– Onde?
– Está aqui – repetiu Bo, um pouco mais alto desta vez. – Na sala de estar.
Sonny Lofthus olhou à sua volta enquanto avançava em direção a Bo, com a metralhadora levantada e o dedo no gatilho. O carregador parecia ter capacidade para trinta e duas balas. Ele estacou. Detetara o auricular e o cabo do microfone?
– Estás a falar com alguém – afirmou o rapaz e teve tempo de recuar um passo antes de a porta do hall se escancarar e Stan entrar pela porta de pistola em punho. Bo levou a mão à sua própria Ruger quando ouviu o grito, os ruídos secos dissonantes da Uzi e uma cascata de vidro quando a janela por detrás de si se estilhaçou. Saía enchimento branco da mobília estofada e voavam lascas do soalho de parquê. O tipo espalhava generosamente balas, sem ter em mente um alvo específico. Mas isso não era importante, uma Uzi supera sempre duas pistolas. Bo e Stan refugiaram-se atrás do sofá mais próximo. Depois o silêncio. Bo estava deitado de costas agarrando a pistola com ambas as mãos, não fosse a cara do tipo aparecer por cima da borda do sofá.
– Stan! – gritou ele. – Leva-o lá para fora!
Nenhuma resposta.
– Stan!
– Leva-o tu! – berrou Stan lá de trás do sofá junto à outra parede. – Ele tem a porra de uma Uzi, caraças!
Ouviu-se um estalido no auricular de Bo.
– O que se passa, chefe?
Naquele instante, Bo ouviu acionar a ignição de um carro, e depois a aceleração ruidosa do motor. Morsand tinha levado o seu imponente Mercedes 280CE Coupé, modelo de 1982, para a festa do Gémeo em Oslo, mas o veículo citadino da sua esposa – um amoroso e pequeno Honda Civic – continuava ali. Agora que Morsand a matara, já não tinha mulher para se deslocar nele, no entanto, a chave devia ter ficado esquecida na ignição. Provavelmente era isso que faziam às mulheres e aos carros ali no campo, partilhavam-nos. Ouviu lá fora as vozes dos seus homens.
– Ele está a tentar fugir!
– Está alguém a abrir a porta da garagem.
Bo ouviu um som áspero quando o Honda foi posto a trabalhar. E um gemido quando o motor se foi abaixo. O tipo era completamente amador? Não sabia atirar e, muito menos, guiar.
– Apanha-o!
O carro tentou pegar uma segunda vez.
– Ouvimos algo sobre uma Uzi...
– É a Uzi ou o Gémeo, a escolha é vossa!
Bo levantou-se rapidamente e correu para a janela estilhaçada a tempo de ver o carro sair aos solavancos da garagem. Nubbe e Evgeni tinham-se posicionado diante do portão. Nubbe disparava com a sua Beretta, bala atrás de bala. Evgeni segurava junto ao rosto uma Remington 870 de canos serrados à altura do carregador. Estremeceu quando puxou o gatilho. Bo viu o para-brisas explodir, no entanto, o carro continuava a acelerar, o para-choques dianteiro atingiu Evgeni mesmo por cima dos joelhos, atirando-o para cima, e Bo viu-o dar um salto mortal no ar antes de o Civic sem para-brisas o engolir tal como uma orca devora uma foca. O Civic fez saltar o portão e uma parte da vedação, seguiu em frente pelo caminho de gravilha estreito e pelo campo de trigo adentro do outro lado. E, sem abrandar, continuou a avançar, forçando a primeira velocidade, enquanto abria um carreiro por entre os feixes dourados banhados pelo luar, descrevia uma curva larga antes de regressar ao caminho de gravilha lá mais em baixo. O motor roncou ainda mais alto – obviamente que o condutor carregava na embraiagem sem levantar o pé do acelerador. Depois meteu a segunda, o motor esteve quase a ir de novo abaixo, mas conseguiu recuperar e o carro continuou a descer o caminho de gravilha onde, porque o condutor não ligara os faróis, não tardou a desaparecer no escuro.
– Para o carro! – gritou Bo. – Temos de apanhá-lo antes que ele chegue à cidade!
Pelle olhava para o Honda, incrédulo. Ouvira os tiros e vira pelo espelho retrovisor que o carro saíra disparado pelo portão, fazendo voar pedaços de estacas da vedação branca. Vira o carro atravessar o campo plantado com produtos agrícolas fortemente subsidiados antes de regressar ao caminho e prosseguir a sua viagem dúbia. O rapaz não era um condutor experiente, disso não havia a menor dúvida, no entanto Pelle respirara de alívio quando conseguira distinguir ao luar o lenço manchado de sangue acima do volante por detrás do parabrisas estilhaçado. Pelo menos o rapaz ainda estava vivo.
Ouviu gritos vindos da casa.
O som de armas a serem carregadas na tranquila noite de verão.
Um carro a arrancar.
Pelle não fazia ideia de quem eles eram. O rapaz dissera-lhe – verdade ou mentira – que o homem dentro da casa era um assassino. Um homem, talvez um condutor embriagado que matara e estava agora de novo em liberdade. Pelle não sabia. Só sabia que, ao cabo de meses e anos em que se certificara de que passava a maior parte das horas do dia e da noite ao volante do seu táxi, estava de volta ali. Ao local onde podia reagir ou ficar parado. Mudar a órbita das estrelas – ou não. Um jovem que não conseguia ter a rapariga que queria. Passou um dedo por cima da fotografia ao lado do volante. Depois, ligou o motor e foi atrás do Honda. Desceu as colinas e entrou na ponte estreita. Lá no alto, conseguiu ver dois faróis atravessarem o escuro. Acelerou, ganhou velocidade, rodava ligeiramente o volante para a direita, agarrava o travão de mão, carregava nos pedais e aliviava-os de forma rápida e musical como um organista de igreja, enquanto virava com força o volante para a esquerda. A traseira do carro dançou como era de esperar, enquanto executava o «cavalo de pau». E, quando o carro parou, estava perfeitamente posicionado na diagonal sobre a ponte. Pelle anuiu de si para si, de contentamento; não perdera o jeito. Depois, desligou a ignição, engrenou a primeira, deslizou para o banco do pendura e saiu do carro. Confirmou que havia um intervalo no máximo de vinte centímetros entre o murete da ponte e o carro de ambos os lados. Trancou todas as portas com um simples clique da chave e começou a encaminhar-se para a estrada principal. Pensou nela, o tempo todo, só pensou nela. Se ao menos ela pudesse vê-lo agora. Ver que ele andava. Quase não sentia dores no pé, mal coxeava. Talvez os médicos tivessem razão. Talvez tivesse chegado a hora de se livrar das muletas.
41 Zona de floresta a leste de Oslo. (N. da T.)
42 A sua construção iniciou-se em 1299, sob as ordens do rei Haakon V da Noruega, substituindo Tønsberg como um dos mais importantes castelos noruegueses desse período. Foi construída em resposta ao conde Alv Erlingsson, que comandou um ataque a Oslo. A fortaleza conseguiu resistir a cercos, principalmente das forças suecas. No começo do século XVII, foi modernizada sob o reinado do rei Cristiano IV, passando a ter sua traça baseada na arquitetura renascentista. (N. da T.)
43 É o vinho grego mais conhecido, que se bebe sobretudo no verão. É feito adicionando resina de pinheiro ao vinho branco, durante o processo de fermentação. Tem uma graduação alcoólica muito superior à dos vinhos brancos normais. (N. da T.)
44 Pequena ilha do arquipélago do Dodecaneso, no sul do mar Egeu. (N. da T.)
37
Eram duas da manhã e a noite de verão atingira a escuridão máxima.
Do ponto de observação na clareira da floresta deserta por cima de Oslo, Simon conseguia ver o fiorde brilhar monotonamente debaixo da enorme Lua amarela.
– Então?
Simon aconchegou mais o casaco ao corpo como se tivesse frio.
– Costumava trazer a primeira rapariga por quem me apaixonei a este mesmíssimo lugar. Só para ver a vista. Para curtir. Percebe...
Viu Kari apoiar-se no outro pé.
– Não tínhamos mais nenhum sítio para onde ir. E, muitos anos mais tarde, quando a Else e eu namorávamos, eu também a trazia aqui. Apesar de termos um apartamento e uma cama de casal. Era tão... romântico e inocente. Era como se estivessemos tão apaixonados quanto da primeira vez.
– Simon...
Simon virou-se e observou novo a cena. Os carros da Polícia com as luzes azuis a piscar, os cordões e o Honda Civic azul com o para-brisas partido e um homem morto jazendo num ângulo artificial, era o mínimo que podia dizer-se, no banco do pendura. Havia ali uma forte presença policial. Demasiada. Pânico por de mais.
Pela primeira vez, o médico-legista chegara primeiro do que ele ao local do crime e deduzira que a vítima partira as duas pernas num choque frontal de veículos, fora cuspida, passara por cima do capô e entrara pelo outro carro partindo o pescoço quando embatera no banco. No entanto, o médico-legista achara estranho que a vítima não apresentasse ferimentos no rosto depois do seu encontro imediato com o para-brisas, até Simon ter retirado uma bala do estofo do banco. Simon solicitara também uma análise ao sangue encontrado no banco do condutor, pois o padrão não correspondia aos golpes nas pernas da vítima.
– Portanto, ele pediu especificamente que estivéssemos presentes – inquiriu Simon, indicando com um movimento da cabeça Åsmund Bjørnstad, que se encontrava de pé perto de um ACC e agitava as mãos enquanto falava.
– Sim – disse Kari. – Porque o carro está registado em nome da Kjersti Morsand, que é uma das vítimas do Lofthus. Ele queria...
– Presumível.
– Desculpe?
– O Lofthus é apenas suspeito da morte da Kjersti Morsand. Já alguém falou com o Yngve Morsand?
– Ele não sabe de nada; está a passar esta noite num hotel, e a última vez que viu o carro foi na sua garagem. A Polícia de Drammen diz que parece ter havido um tiroteio em casa dele. Infelizmente, o vizinho mais próximo está muito afastado, por isso não há testemunhas.
Åsmund Bjørnstad foi ter com eles.
– Sabemos agora quem é o tipo no lugar do pendura. O Evgeni Zubov. Um criminoso conhecido. E a Polícia de Drammen diz que há balas Luger de nove milímetros no soalho da casa, dispostas em leque.
– Uma Uzi? – estranhou Simon, arqueando um sobrolho.
– O que acha que devo dizer à comunicação social? – perguntou Åsmund Bjørnstad, fazendo gestos com o polegar por cima do ombro. Os primeiros repórteres estavam já reunidos à volta do cordão policial junto à estrada.
– O costume – respondeu Simon. – Diga-lhes algo, mas não lhes revele nada.
Bjørnstad soltou um suspiro.
– Eles não vão deixar-nos em paz. Quando é que vamos poder dispor de tempo para trabalhar? Detesto-os.
– Eles também têm de fazer o seu trabalho – respondeu Simon.
– Já reparou que os jornais estão a transformá-lo numa celebridade? – observou Kari, enquanto viam o jovem inspetor encaminhar-se para um mar de lanternas.
– Bem, ele é um investigador talentoso – observou Simon.
– Não é o Bjørnstad. O Sonny Lofthus.
Simon virou-se para ela, surpreendido.
– A sério?
– Chamam-lhe o terrorista dos tempos modernos. Dizem que declarou guerra ao crime organizado e ao capitalismo. Que está a livrar a cidade dos parasitas.
– Mas ele próprio é um criminoso.
– Isso só torna a história ainda mais suculenta. Não costuma ler os jornais?
– Não.
– E também não atende o seu telemóvel. Tentei ligar-lhe.
– Estive ocupado.
– Ocupado? Oslo foi virada de pernas para o ar por estes homicídios e você não está no seu gabinete e também não está no terreno. Você é o meu chefe, Simon.
– Mensagem recebida e entendida. O que era?
Kari inspirou fundo.
– Tenho estado a pensar: o Lofthus é um dos pouquíssimos adultos neste país que não tem uma conta bancária, um cartão de crédito ou uma residência oficial. No entanto, sabemos que ele tem dinheiro suficiente do homicídio do Kalle Farrisen para se instalar num hotel.
– Ele pagou em numerário no Plaza.
– Precisamente. Por isso, verifiquei os hotéis. Dos vinte mil hóspedes que se instalam todas as noites nos hotéis em Oslo, em média apenas seiscentos pagam em numerário.
Simon ficou a olhar para ela.
– Consegues saber quantas dessas seiscentas pessoas estão alojadas no Kvadraturen?
– Hã, sim. Aqui tem a lista dos hotéis. – Tirou uma cópia impressa do bolso do casaco. – Porquê?
Simon pegou na cópia com uma mão enquanto colocava os óculos graduados com a outra, desdobrava as páginas e passava os olhos por elas. Olhou para as moradas. Um hotel. Dois. Três. Seis. E vários deles com hóspedes que tinham pago em dinheiro, em especial os baratos. Ainda eram muitos nomes. E calculou que alguns dos mais baratos nem sequer figurassem na lista. De repente, Simon parou de ler.
Baratos.
A mulher que lhe batera no vidro. Um encontro de amantes no carro, na Fortaleza de Akershus ou... no Bismarck. O hotel eleito pelas prostitutas de Oslo. Mesmo no meio do Kvadraturen.
– Eu perguntei-lhe porquê.
– Continua a seguir essa pista, tenho de ir andando.
Simon começou a encaminhar-se para o carro.
– Espere! – gritou Kari e barrou-lhe o caminho. – Não se atreva a ir-se embora. O que se passa?
– O que se passa?
– Você está aqui numa espécie de missão. Não se passa nada.
Kari afastou algumas madeixas de cabelo do rosto.
Simon apercebeu-se então; ela também estava exausta.
– Não sei o que tem em mente – disse ela. – Se quer salvar a situação, seja um herói no crepúsculo da sua carreira ou prove ao Bjørnstad e à Kripos que estão enganados. Mas é inaceitável, Simon. Este caso é demasiado importante para se transformar numa disputa de rapazes já crescidinhos.
Simon olhou demoradamente para ela. E, por fim, anuiu lentamente.
– És capaz de ter razão. Mas os meus motivos não são os que julgas.
– Nesse caso, diga-me quais são.
– Não posso, Kari. Vais ter de confiar em mim.
– Quando fomos falar com o Iversen, disse que eu tinha de esperar lá fora porque estava a pensar violar as regras. Eu não quero violar as regras, Simon. Só quero fazer o meu trabalho. Por isso, se não me disser o que se passa... – A voz dela tremia. Manifestamente cansada, pensou Simon. – ...nesse caso, terei de ir falar com alguém lá em cima e contar-lhe o que se passa.
Simon abanou a cabeça.
– Não faças isso, Kari.
– E porque não?
– Porque – respondeu Simon, procurando o olhar dela e fixando-o. – A toupeira ainda aqui está. Dá-me vinte e quatro horas. Por favor.
Simon não esperou pela resposta dela. Não fazia qualquer diferença. Passou por ela e seguiu em direção ao seu carro. Sentiu o olhar dela cravado nas suas costas.
Quando descia as colinas de Holmenkollåsen, Simon reproduziu a gravação da curta conversa telefónica com Sonny. As pancadas rítmicas. Os gemidos exagerados. As paredes finas do Hotel Bismarck: como era possível não ter reconhecido aquele som?
Simon olhou para o rapaz atrás do balcão da receção, que examinava a sua identificação. Tinham passado tantos anos e, contudo, nada mudara no Bismarck. À exceção do rapaz; naquela altura, ele não estava ali. Mas isso era-lhe indiferente.
– Sim, vejo que é um agente da Polícia, mas, na realidade, não tenho nenhum livro de hóspedes que possa mostrar-lhe.
– Ele tem este aspeto – disse Simon, colocando a fotografia em cima do balcão.
O rapaz observou-a. Hesitou.
– A alternativa é tomarmos o edifício de assalto e encerrarmos isto tudo – disse Simon. – O que acha que o seu pai vai dizer se lhe encerrarem o bordel?
A parecença familiar não o enganara, acertara.
– Ele está no segundo andar. Quarto 216. Vai...
– Eu dou com ele. Entregue-me uma chave.
Mais uma vez, o rapaz mostrou-se relutante. Depois, abriu a gaveta, retirou uma chave de um molho grande e entregou-a a Simon.
– Mas nós não queremos confusões.
Simon passou pelo elevador e subiu as escadas galgando dois degraus de cada vez. Pôs-se à escuta enquanto avançava pelo corredor. Agora estava silencioso. À porta do quarto 216, tirou a Glock. Colocou o dedo no gatilho de ação dupla em duas etapas. Introduziu a chave o mais silenciosamente possível e rodou-a. Posicionou-se ao lado da porta com a pistola na mão direita e abriu-a com a esquerda. Contou até quatro, espreitou e recolheu a cabeça num movimento rápido. Expirou.
Estava escuro lá dentro, as cortinas tinham sido corridas, mas havia luz suficiente para Simon captar um vislumbre da cama.
Estava feita e vazia.
Entrou para verificar a casa de banho. Uma escova e pasta de dentes.
Regressou ao quarto, não acendeu a luz, mas sentou-se na cadeira desnecessária próximo da parede. Pegou no telemóvel e premiu alguns botões. Começou a ouvir-se um sinal sonoro algures no quarto. Simon abriu o roupeiro. Em cima de uma mala, um telemóvel iluminava-o com o seu próprio número indicado no visor.
Simon premiu terminar chamada e sentou-se pesadamente na cadeira.
O rapaz deixara ficar propositadamente o telemóvel para que não conseguissem localizá-lo. Só não contara que alguém o encontrasse numa zona tão densamente povoada como aquela. Simon pôs-se à escuta no escuro. Ouviu um relógio em contagem decrescente.
* * *
Markus ainda estava acordado quando viu o Filho descer a rua.
Markus tinha a casa amarela sob vigilância desde que aquela outra pessoa chegara há umas horas; nem sequer vestira o pijama, não queria perder pitada.
Reconheceu o Filho pela maneira como se movia ao caminhar pelo meio da rua, sossegada à noite, e os candeeiros de iluminação pública incidiram nele quando lhes passou por baixo. Parecia cansado, talvez tivesse vindo de longe, porque cambaleava. Markus observou-o pelos binóculos. Vestia um fato, levava a mão no flanco e tinha um lenço vermelho amarrado à volta da testa. Aquilo no rosto dele era sangue? Mesmo assim, tinha de avisá-lo. Markus abriu a porta do seu quarto com cuidado, desceu as escadas em bicos de pés, calçou os sapatos e correu para o portão por cima da relva assimétrica e maltratada.
O Filho reparou nele e estacou mesmo defronte do portão da sua própria casa.
– Olá, Markus. Não devias já estar deitado?
A voz dele era calma e suave. Parecia ter estado envolvido em guerras, no entanto falou como se lhe contasse uma história para adormecer. Markus decidiu que ia falar com uma voz como aquela quando fosse grande e tivesse deixado de ser medricas.
– Estás ferido?
– Chocaram comigo quando vinha a conduzir. – O Filho sorriu. – Não é nada.
– Está alguém na tua casa.
– Sim? – perguntou o Filho, virando-se para as janelas pretas brilhantes. – Gente boa ou gente má?
Markus engoliu em seco. Vira a fotografia na televisão. Mas também ouvira a mãe dizer que não tinha motivos para temer, que ele só fazia mal às pessoas más. E, no Twitter, várias pessoas elogiavam-no, twittando que a Polícia devia deixar os maus matar os maus, que era o mesmo que usar predadores para controlar pragas.
– Nenhuma delas, creio.
– Então?
Martha acordou quando entraram no quarto.
Estivera a sonhar. A sonhar com a mulher no sótão. E com o bebé. Que ela vira o bebé, que ele estava vivo, que estivera ali o tempo todo, preso na cave onde não parava de chorar à espera de que o libertassem. E agora saíra. Estava ali.
– Martha?
A voz dele, a sua voz agradável e calma soou com incredulidade.
Ela virou-se na cama e olhou para ele.
– Disseste que eu podia vir – afirmou ela. – Não estava ninguém para me deixar entrar, mas eu sabia onde guardavas a chave, por isso...
– Vieste.
Ela anuiu.
– Escolhi este quarto, espero que não te importes.
Ele limitou-se a assentir e sentou-se na borda da cama.
– O colchão estava no chão – disse ela, e espreguiçou-se. – A propósito, caiu um caderno por entre as ripas quando ia colocar de novo o colchão na cama. Pu-lo em cima daquela mesa ali.
– Está bem?
– O que fazia o colchão...
– Eu estive escondido lá debaixo – respondeu ele, sem tirar os olhos dela. – Depois saí de lá a gatinhar, empurrei-o para o chão e deixei-o ficar ali. O que tens aí?
Ele ergueu a mão com a qual estivera a agarrar o flanco e acariciou-lhe uma orelha. Ela não respondeu. Deixou que ele apalpasse o brinco. Uma rajada de vento fez deslocar as cortinas que ela colocara depois de as encontrar dentro da arca. Um raio de luar entrou de mansinho, incidindo na mão e no rosto dele. Ela ficou estarrecida.
– Não é tão mau quanto parece.
– Não, não é do golpe na tua testa. Mas estás a sangrar de outro lado. De onde?
Ele afastou o casaco para um dos lados e mostrou-lhe. O lado direito da sua camisa estava ensopado de sangue.
– O que aconteceu?
– Uma bala. Entrou de raspão e seguiu a trajetória. Completamente inofensiva, é apenas um bocado de sangue, não tarda...
– Chiu – disse ela e empurrou o edredão com o pé, pegou-lhe na mão e levou-o até à casa de banho. Ignorando o facto de ele poder vê-la em roupa interior enquanto ela remexia no armário dos medicamentos. Encontrou desinfetante de há doze anos, duas ligaduras, algodão em rama e uma tesoura pequena. Obrigou-o a despir-se da cintura para cima.
– Como podes ver, é apenas uma beliscadura no meu pneu sobressalente – disse, sorrindo.
Ela já vira pior. E também já vira melhor. Limpou-lhe as feridas e aplicou algodão em rama sobre os orifícios de entrada e saída da bala. De seguida, colocou-lhe uma ligadura à volta da cintura. Quando desapertou o lenço à volta da testa, começou imediatamente a escorrer sangue fresco por baixo da crosta.
– A tua mãe tinha um estojo de costura algures por aí?
– Eu não preciso...
– Eu disse chiu.
Bastaram quatro minutos e quatro pontos para unir a pele aberta.
– Eu vi a pasta no corredor – disse ele enquanto Martha lhe enrolava várias camadas de gaze à volta da cabeça.
– Aquele dinheiro não é meu. E a Câmara atribuiu-nos fundos suficientes para obras de remodelação, por isso, não, obrigada. – Ela fixou as extremidades e fez-lhe uma festa na face. – Pronto, isso deve...
Ele beijou-a. Mesmo nos lábios. Depois soltou-a.
– Amo-te.
De seguida, voltou a beijá-la.
– Não acredito em ti – disse ela.
– Não acreditas que eu te amo?
– Não acredito que tenhas beijado outras raparigas. Beijas tão mal.
A gargalhada fez os olhos dele cintilar.
– Já foi há muito tempo. Relembras-me, por favor?
– Não te preocupes em fazê-lo bem. Deixa simplesmente acontecer. Beija-me indolentemente.
– Indolentemente?
– Como uma cobra macia e sonolenta. Assim.
Ela segurou-lhe a cabeça entre as mãos e aproximou os lábios dos dele. E ficou surpreendida por parecer tão natural, como se fossem duas crianças a brincarem a um jogo estimulante mas inocente. E confiou nela. Tal como ela confiava nele.
– Vês? – murmurou ela. – Mais lábios, menos língua.
– Mais embraiagem, menos acelerador?
Ela soltou uma risada.
– Exatamente. Vamos para a cama.
– O que vai acontecer ali?
– É o que vamos ver. Como está o teu flanco? Vai ficar bom?
– Bom para quê?
– Não te armes em inocente comigo.
Ele voltou a beijá-la.
– Tens a certeza? – murmurou ele.
– Vamos para a cama.
Rover levantou-se e endireitou as costas com um gemido. No meio do seu entusiasmo, não se apercebera de que as suas costas estavam emperradas; era como quando fazia amor com Janne, que parava de vez em quando para «ver o que ele estava a fazer». Tentara explicar que havia muitas semelhanças entre brincar com a sua motorizada e brincar com ela. Que era preciso manter a mesma posição fixa sem se ter a noção de que os músculos doíam ou o tempo passava. Porém, quando terminava, aí chegava a hora da vingança. Ela ficara agradada com a comparação. Combinava mesmo consigo.
Rover limpou as mãos. A tarefa estava concluída. A última coisa que ele fizera fora colocar um tubo de escape novo na Harley-Davidson. Era preciso dar atenção aos pormenores finais. Como sucede quando o afinador de pianos verifica se o seu trabalho ficou bem feito. Apenas por pura satisfação. Com uma simples alteração no tubo de escape e no filtro de ar, era possível aumentar em 20 a potência de travagem, no entanto, todos sabiam que o tubo de escape tinha sobretudo que ver com o som. Conseguir que ele produzisse aquele ruído vibrante forte e agradável, que não se comparava a nenhum outro que Rover já tivesse ouvido. Claro que podia dar imediatamente à ignição a fim de ouvir a música do motor para confirmar tudo aquilo que ele já sabia. Ou podia deixá-lo para a manhã seguinte, como um presente a si mesmo. Janne sempre dissera que não devíamos adiar os nossos prazeres, que nada garantia que se fosse viver mais um dia. Calculou que fosse Janne a ser igual a si própria.
Rover limpou o óleo dos dedos com o trapo e dirigiu-se à casa de banho para lavar as mãos. Viu-se ao espelho. As manchas de óleo no rosto, a fazer lembrar pintura de guerra, e o dente de ouro. Como de costume, apercebeu-se de que, agora que terminara, as outras necessidades se faziam anunciar: fome, sede, fadiga física. Era uma excelente sensação. Todavia, registava-se também o estranho vazio de que essa proeza se fazia acompanhar. Um «E agora?» Um «De que vale tudo isto?» Repeliu os pensamentos. Olhou para a água quente que saía da torneira. Depois parou. Virou-se para a água. Viera um som lá de fora da garagem. Janne? A esta hora?
– Também te amo – disse Martha.
A dada altura, ele parara – estavam ambos arquejantes, suados, ruborizados –, limpara o suor entre os seios dela com o lençol que ela arrancara do colchão, e dissera que podiam encontrá-los ali, que era perigoso. E ela respondera que não se assustava facilmente assim que tomava uma decisão. E que, por acaso – se fosse mesmo necessário dizê-lo –, o amava.
– Amo-te.
Depois, prosseguiram.
– Uma coisa é deixares de fornecer-me armas – disse o homem, enquanto descalçava a luva fina. Era a maior manápula que Rover alguma vez vira. – Já outra é começares a fornecer o inimigo, não é?
Rover não se debateu. Fora agarrado por dois homens; havia um terceiro de pé ao lado do homenzarrão, que apontava uma pistola à testa de Rover. Uma pistola que Rover conhecia bem demais porque fora ele quem a modificara.
– Entregares uma Uzi àquele rapaz é o mesmo que dizeres-me que vá para o inferno. O que é que tu querias? Enviar-me para o inferno?
Rover podia ter replicado. Dito que, uma vez que já sabia do Gémeo, calculava que tivesse sido enviado diretamente por ele.
No entanto, não o fez. Queria viver. Só mais uns segundos.
Olhou para a motorizada por detrás do homenzarrão.
Janne acertara. Devia tê-la posto a trabalhar. Fechou os olhos e escutou. Devia ter parado para cheirar as flores. Era uma verdade tão óbvia, tão banal e, contudo, tão impossível de compreender até estares no limiar e te aperceberes de quão banal realmente é: que a única garantia que tens na vida é a de que vais morrer.
O homem pousou as luvas em cima da bancada. Pareciam preservativos usados.
– Ora deixa-me cá ver... – disse ele, olhando à sua volta para as ferramentas fixadas nas paredes. Apontou um dedo na direção delas enquanto cantarolava em voz baixa:
– Um-dó-li-tá...
38
A alvorada começava a despontar.
Martha estava deitada ao lado de Sonny, com os pés entrelaçados nos dele. Ouviu o ritmo estável da respiração no sono mudar. No entanto, ele continuava de olhos fechados. Ela acariciou-lhe a barriga e viu um pequeno sorriso nos lábios dele.
– Bom-dia, meu amor – murmurou ela.
Ele rasgou um sorriso de orelha a orelha, mas esboçou um esgar quando tentou virar-se para ela.
– Tens dores?
– Apenas no flanco. – Fez um esgar.
– A hemorragia parou, eu verifiquei algumas vezes durante a noite.
– O quê? Tomaste liberdades enquanto eu dormia?
Ele deu-lhe um beijo na testa.
– Julguei que tomasse as suas próprias liberdades, senhor Lofthus!
– Foi a minha primeira vez, lembras-te? – perguntou ele. – Não sei o significado de liberdades.
– Saíste-me cá um mentiroso – disse ela.
Ele riu-se.
– Tenho estado a pensar – disse ela.
– Sim?
– Vamos embora daqui. Vamos embora já.
Ele não respondeu, mas ela sentiu o corpo dele empertigar-se. E sentiu também as lágrimas chegarem, de forma súbita e violenta, como se tivesse rebentado um dique. Ele virou-se e abraçou-a.
Esperou que o choro dela passasse.
– O que lhes disseste? – perguntou ele.
– Eu disse que o Anders e eu não podíamos esperar até ao verão – fungou. – Que íamos acabar tudo imediatamente. Ou, pelo menos, eu ia. E depois retirei-me. Saí para a rua. Desci a correr até à rua principal. Mandei parar um táxi. Vi-o vir a correr atrás de mim com a maldita da mãe dele a segui-lo. – Deu uma gargalhada sonora, depois recomeçou a chorar. – Desculpa – soluçou. – Sou... tão estúpida! Meu Deus, o que faço aqui?
– Tu amas-me – sussurrou junto ao cabelo dela. – É isso que fazes aqui.
– E daí? Que tipo de pessoa ama um homem que mata pessoas, que faz tudo o que pode para ser morto e que vai acabar por consegui-lo? Sabes o que te chamam na Internet? – O Buda com a Espada45. Entrevistaram antigos reclusos que te descrevem como uma espécie de santo. Mas sabes uma coisa? – Limpou as lágrimas. – Acho que és tão mortal como todos os outros que vi chegar e partir do Centro Ila.
– Iremos embora daqui.
– Então que seja agora.
– Já só faltam duas coisas, Martha.
Ela abanou a cabeça. As lágrimas recomeçaram a cair e ela deu-lhe socos no peito, sentindo-se impotente perante a raiva.
– É tarde demais... não entendes? Andam todos à tua procura, todos.
– Só faltam mais dois. O homem que decidiu que o meu pai devia ser morto e fez parecer que ele era a toupeira. E a toupeira. Depois, podemos ir-nos embora.
– Só faltam dois. Tu só tens de matar mais duas pessoas e depois podemos ir-nos embora daqui? É assim tão fácil para ti?
– Não, Martha. Não é fácil para mim. Nenhum deles foi fácil. E não é verdade o que dizem, que se torna mais fácil. No entanto, tenho de fazê-lo, não existe outra maneira.
– Achas mesmo que vais sobreviver?
– Não.
– Não?
– Não.
– Não! Mas em nome de Deus, então porque insistes em falar de...
– Porque só se pode planear sobreviver.
Ela remeteu-se ao silêncio.
Ele acariciou-lhe a testa, a face e o pescoço. E depois começou a falar. Baixinho e devagar, como se precisasse de ter a certeza de que cada palavra que escolhia era a mais adequada.
Ela ouvia. Falou-lhe da sua infância. Do pai. Da morte dele e de tudo o que acontecera depois.
Ela escutou e compreendeu. Escutou e não compreendeu.
Quando ele terminou, entrava um raio de sol pelas cortinas.
– Ouve só o que estás a dizer – murmurou ela. – Sabes que isto é uma loucura, não sabes?
– Sei – disse ele. – Mas é a única coisa que posso fazer.
– A única coisa que podes fazer é matar uma quantidade de pessoas?
Ele inspirou fundo.
– Tudo o que eu sempre quis foi ser como o meu pai. Quando li aquele bilhete de suicídio, ele desapareceu. E eu também. Mas depois, na prisão, quando soube a verdadeira história de como ele deu a vida por mim e pela minha mãe, renasci.
– Renasceste para fazeres... isto?
– Gostava que houvesse outra maneira.
– Mas porquê? Para seguires as pisadas do teu pai? Porque o filho tem de... – Ela semicerrou os olhos, obrigando as últimas lágrimas a saírem. Prometendo a si mesma que seriam as últimas – ...terminar o que o pai não conseguiu?
– Ele fez o que tinha de ser feito. Eu vou fazer aquilo que tenho de fazer. Ele morreu por nós. Quando terminar isto, acaba-se tudo. Prometo-te. Vai ficar tudo bem.
Ela olhou demoradamente para ele.
– Preciso de pensar – respondeu ela, finalmente. – Tenta dormir mais um pouco.
Ele dormiu enquanto ela se mantinha acordada. Somente depois de as aves começarem a cantar lá fora é que também ela adormeceu. E, desta vez, não tinha quaisquer dúvidas.
Era louca.
Fora-o desde a altura em que o vira.
No entanto, só se apercebera de que era tão louca como ele quando entrara na casa amarela, encontrara os brincos de Agnete Iversen na bancada da cozinha e os colocara.
Martha foi acordada pelo som de crianças a brincarem lá fora na rua. Gritos de alegria. Pezinhos a correr. Pensou na forma como a inocência anda de mão dada com a ignorância. Como o discernimento nunca esclarece, só complica. Ele dormia tão tranquilamente ao lado dela que, por momentos, julgou que já estivesse morto. Acariciou-lhe a face. Ele murmurou algo, mas não acordou. Como era possível que um homem procurado conseguisse dormir tão profundamente? O sono dos justos. Devia ser bom.
Ela saiu da cama, vestiu-se e desceu à cozinha. Encontrou café, mas nada mais. A arca frigorífica em cima da qual estivera sentada na cave, talvez ele tivesse uma piza congelada ou outra coisa. Desceu as escadas da cave e levantou a pega da arca. Estava trancada. Olhou à sua volta. Os seus olhos incidiram no prego na parede e na chave com a etiqueta ilegível. Pegou na chave e introduziu-a na fechadura. Rodou-a. Voilà. Levantou a tampa e sentiu o frio no peito e na garganta, depois soltou um grito curto e deixou cair a tampa. Virou-se e deixou-se descair com as costas contra a arca frigorífica.
Permaneceu acocorada, respirando com dificuldade pelo nariz. Procurou abstrair-se da visão do corpo que a fitava com uma boca branca aberta e cristais de gelo nas pestanas. As suas pulsações estavam tão aceleradas que se sentiu desfalecer. Escutou o seu coração. E as vozes. Eram duas.
Uma delas gritou-lhe ao ouvido que ela era louca, que ele era louco, um assassino, que ela tinha de subir as escadas a correr e sair imediatamente dali!
A outra disse-lhe que aquele corpo não passava de uma manifestação física de algo que ela já sabia e aceitara. Sim, ele tinha matado pessoas. Pessoas que mereciam morrer.
A voz gritante ordenou-lhe que se levantasse. Sobrepôs-se à voz que lhe dizia que aquilo era o pânico que ela tinha inevitavelmente de sentir a dada altura. Ela fizera a escolha na noite anterior, não fizera?
Não, não fizera.
Sabia-o agora. Que a decisão de se enfiar no buraco, seguir o coelho e entrar no mundo dele, ou de ficar ali no mundo normal, estava a ser tomada naquele momento. Esta era a sua última oportunidade de se afastar. Os próximos segundos eram os mais importantes da sua vida. A sua última oportunidade de...
Levantou-se. Continuava a sentir vertigens, porém, sabia que conseguia correr depressa. Ele nunca a alcançaria. Inalou oxigénio para os pulmões e o sangue transportou-o até ao cérebro. Encostou-se à tampa da arca frigorífica, viu o seu reflexo na superfície brilhante. Viu os brincos.
Amo-o. É por essa razão que vou fazer isto.
Depois, abriu novamente a tampa.
O corpo sangrara sobre a maior parte da comida. O logótipo nas caixas da Frionor parecia bastante antigo. Deviam ter pelo menos doze anos, de certa forma, até fazia sentido.
Concentrou-se na sua respiração, nos seus pensamentos, afastando à força tudo o que não era útil. Se iam comer, ela precisava de ir a uma loja. Podia perguntar a uma das crianças onde ficava o supermercado mais próximo. Sim, era isso que ia fazer. Ovos com bacon. Pão fresco. Morangos. Iogurte.
Fechou a tampa. Fechou os olhos com força. Pensou que ia voltar a chorar. No entanto, desatou às gargalhadas. As gargalhadas histéricas de uma pessoa que desce em queda livre pela toca do coelho, pensou. Depois, abriu os olhos e encaminhou-se para as escadas. Quando chegou lá acima, apercebeu-se de que estava a cantarolar:
That you’ve always been her lover and you want to travel with her.
Louca.
...And you want to travel blind and you know that she will trust you.
Louca, louca.
...for you’ve touched her perfect body with your mind.
Markus estava a jogar Super Mario Brothers junto à janela aberta quando ouviu uma porta bater com força. Olhou lá para fora. Era a senhora bonita. Ou, pelo menos, estava bonita naquele dia. Saíra da casa amarela e descera até ao portão. Markus recordava-se de que o Filho se animara quando ele lhe contara que fora ela quem ele tinha visto entrar na casa. Não que Markus entendesse muito dessas coisas, mas desconfiava que o Filho estava apaixonado por ela.
A mulher aproximou-se das miúdas que estavam a saltar à corda e fez-lhes uma pergunta. Elas apontaram e ela sorriu, gritou-lhes algo e caminhou em passos rápidos na direção que lhe tinham indicado. Markus preparava-se para voltar ao seu jogo quando reparou que as cortinas do quarto estavam abertas. Pegou nos binóculos.
Era o Filho. Estava de pé junto à janela, de olhos fechados e a mão apoiada no flanco, por cima de uma ligadura. Estava nu e sorria. Parecia feliz. Como Markus na Noite de Consoada, antes de desembrulhar os seus presentes. Não, correção, no dia seguinte, quando acordava e se lembrava dos presentes que lhe tinham dado na véspera à noite.
O Filho foi buscar uma toalha ao armário, abriu a porta e preparava-se para a fechar quando estacou. Olhou para o lado, para a mesa. Pegou em algo que estava ali. Markus aproximou a imagem.
Era um caderno. Com uma capa de couro preto. O Filho abriu-o e começou a lê-lo. Depois deixou cair a toalha. Sentou-se na cama e continuou a ler. Permaneceu ali sentado vários minutos. Markus viu a sua expressão facial mudar e o seu corpo empertigar-se numa espécie de posição deformada.
Depois, levantou-se subitamente e arremessou o caderno à parede.
Agarrou no candeeiro de mesa e submeteu-o ao mesmo tratamento. Levou a mão ao flanco, gritou e atirou-se para cima da cama. Baixou a cabeça, forçando-a a descer com as mãos, que tinha cruzado atrás do pescoço. Ficou sentado com o corpo a tremer, como se estivesse a ter uma convulsão.
Markus percebeu que algo horrível acontecera, só não sabia o quê. Teve vontade de correr para lá, dizer ou fazer algo que o consolasse. Sabia fazê-lo. Era frequente animar a mãe. Falar com ela, recordar-lhe as coisas boas que tinham feito juntos, será que se lembrava? Não havia muitas por onde escolher, apenas os mesmos três ou quatro acontecimentos, por isso, era natural que se lembrasse. Então, ela sorria, uma espécie de sorriso melancólico, e despenteava-lhe o cabelo. E depois as coisas melhoravam. Mas ele e o Filho não tinham partilhado bons momentos juntos. E talvez ele preferisse estar sozinho, algo que Markus conseguia compreender, ele também era assim. Quando a mãe queria consolá-lo porque alguém o perturbara, ele ficava aborrecido; era como se a bondade dela o irritasse, desse legitimidade aos fanfarrões que lhe chamavam mariquinhas.
Mas o Filho não era choramingas.
Ou era?
Ele acabara de se levantar e aparecera à janela; estava a chorar. Tinha os olhos vermelhos e as faces molhadas das lágrimas.
E se Markus se enganara, e se o Filho era igual a si? Fraco, cobarde, alguém que corria a esconder-se, com medo de levar uma tareia? Não, não, ele não era assim, não o Filho! Ele era grande, forte e corajoso e ajudava aqueles que não o eram ou que ainda tinham de tornar-se fortes.
O Filho apanhou o caderno, sentou-se e começou a escrever.
Dali a pouco, arrancou uma página do caderno, amachucou-a e atirou-a para o cesto dos papéis junto à porta. Começou numa nova página. Desta vez por menos tempo ainda. Arrancou a página e leu o que escrevera. E depois fechou os olhos e aproximou o papel dos lábios.
Martha pousou os sacos de compras em cima da bancada da cozinha. Limpou o suor da testa. A loja ficava mais distante do que ela esperara e regressara praticamente a correr. Lavou a caixa de morangos à torneira, tirou dois dos maiores e mais suculentos e levou consigo o ramo de ranúnculos que apanhara à beira da estrada. Voltou a sentir a doce pontada ao recordar a pele escaldante dele debaixo do edredão. O heroinodependente que ficava pedrado quando ela lhe tocava. Porque agora ele era a sua nova droga. Agarrada logo após a primeira dose. Ela estava perdida e isso agradava-lhe imenso!
Ela teve um pressentimento logo nas escadas, mal viu a porta do quarto aberta. Algo estava errado. Havia demasiado silêncio.
A cama estava vazia. O candeeiro fora arremessado ao chão e partira-se. As roupas dele tinham desaparecido. Viu o caderno preto que ela encontrara debaixo da cama sob os cacos do candeeiro.
Gritou o nome dele, embora soubesse que não obteria resposta. O portão estava aberto quando ela regressara, e tinha praticamente a certeza de que o fechara ao sair. Tinham vindo buscá-lo, conforme ele dissera. Era evidente que ele dera luta, mas em vão. Ela deixara-o a dormir, não fora capaz de tomar conta dele, ela não...
Ela virou-se e viu o bilhete em cima da almofada. A folha estava amarela e parecia ter sido arrancada do caderno. Fora escrito com uma caneta velha que estava ao lado da almofada. A sua reação inicial foi que devia ter sido a caneta do pai dele. E, antes sequer de ter lido as palavras, pensou que aquela história se repetia. Depois leu o bilhete, deixou cair as flores e levou a mão à boca, um gesto automático, para esconder a maneira feia como aquela se contorceu quando as lágrimas brotaram.
Querida Martha,
Perdoa-me, mas agora vou ter de desaparecer. Amo-te para todo o sempre.
Sonny
45 No budismo, a espada flamejante na mão direita simboliza o poder da sabedoria, que corta a ignorância, a raiz de todo o sofrimento. (N. da T.)
39
Na casa amarela, Markus sentara-se na cama.
Depois de a mulher se ter ido embora a correr, apenas vinte minutos depois de o Filho ter saído à pressa, Markus esperara mais dez antes de se aperceber de que eles não iam voltar.
Então, atravessara a rua. A chave da casa voltara a ser colocada no seu lugar habitual.
A cama fora feita e os cacos do candeeiro colocados no cesto dos papéis. Encontrara a folha de papel amarfanhada debaixo dos cacos.
As palavras tinham sido escritas numa caligrafia bem legível, quase feminina.
Querida Martha,
Uma vez, o meu pai contou-me que vira um homem afogar-se. Ele andava a fazer a ronda, a noite ia a meio e um rapaz ligara do porto de Kongen. O pai do rapaz caíra ao mar enquanto amarravam o barco. Ele não sabia nadar e estava agarrado à amurada, mas o filho não conseguia puxar o pai para bordo. Quando o carro-patrulha chegou, o pai do rapaz tinha desistido, soltara-se e submergira. Tinham passado vários minutos e o meu pai chamara os mergulhadores pois o rapaz soluçava desesperadamente. E, enquanto esperavam, o homem veio subitamente à superfície, o seu rosto pálido a lutar por ar. O filho soltou um grito de alegria. Depois o pai voltou a submergir. O meu pai atirou-se à água para o salvar, mas estava demasiado escuro. Quando o meu pai veio à tona, olhou diretamente para o rosto ainda sorridente do rapaz que julgava que agora estava tudo bem, o pai estava vivo e a Polícia chegara. E o meu pai contou-me que vira o coração ser arrancado do peito do rapaz, quando ele se apercebera de que Deus estivera apenas a brincar com ele deixando-o pensar que lhe ia devolver o pai que lhe tirara. O meu pai disse que se existia um Deus, então era um Deus cruel. Julgo agora entender o que ele queria dizer, porque encontrei finalmente o diário do meu pai. Talvez ele quisesse que nos conhecêssemos. Ou talvez ele fosse apenas cruel. Senão, para quê ter um diário, mas escondê-lo num lugar tão óbvio como debaixo do colchão?
Tens a vida toda pela frente, Martha. Penso que podes fazer algo de bom com ela. Já eu não poderei fazer o mesmo. Perdoa-me, mas agora vou ter de desaparecer.
Amo-te para todo o sempre.
Sonny
Markus olhava para a mesa. Lá estava o caderno que o Filho andara a ler.
Capa de couro preta, páginas amarelecidas. Folheou-o.
Apercebeu-se imediatamente de que era um diário, embora não houvesse registos para cada dia. Em algumas partes, havia meses de intervalo entre os registos. Por vezes, surgia apenas uma data e duas frases. Por exemplo, dizia que a «Troika» acabaria por se dissolver, que acontecera algo entre eles. Uma semana depois, que Helene estava grávida e que tinham comprado casa própria. Mas quão difícil era sobreviver apenas com o vencimento de um polícia, era uma pena que tanto os pais dele como os de Helene fossem pessoas com uma situação económica desfavorável, não podendo ajudá-los. Mais adiante, quão feliz estava por Sonny ter começado a lutar. Depois, uma página mencionava que o banco aumentara as taxas de juro, que não podiam simplesmente pagar o empréstimo, que ele tinha de fazer algo antes que a casa fosse penhorada. Pensar em algo. Que ele prometera a Helene que ia correr tudo bem. Felizmente, o rapaz não parecia ter-se apercebido de que algo preocupava os pais.
19 de março
O Sonny quer seguir as minhas pisadas e tornar-se agente da Polícia. A Helene diz que ele está obcecado por mim, que me venera. Eu disse que não é de estranhar um filho fazer isso e que eu não era diferente. O Sonny é um bom menino, talvez bom de mais, vivemos num mundo difícil, mas um rapaz como ele será sempre uma bênção para o seu pai.
Seguiam-se algumas páginas que Markus não compreendeu bem. Palavras como «insolvência pessoal iminente» e «vender a minha alma ao Diabo». E o nome «o Gémeo».
Markus virou para a página seguinte.
4 de agosto
Hoje, na esquadra, voltaram a falar sobre a toupeira, dizendo que o Gémeo deve ter um informador na Polícia. É estranho que as pessoas, mesmo os agentes da Polícia, tenham tão pouca imaginação. É sempre um assassino, um traidor. Não percebem a genialidade de serem dois? Que um terá sempre um álibi enquanto o outro estiver ativo, que, desta forma, estaremos ambos acima de qualquer suspeita em tantas ocasiões que seremos automaticamente eliminados como potenciais suspeitos? Sim, é um bom esquema. É perfeito. Somos agentes da Polícia corruptos e completamente podres, que traímos tudo aquilo em que acreditávamos por umas míseras moedas de prata. Fizemos vista grossa ao comércio ilícito de droga, ao tráfico humano, inclusive a homicídios. Já nada importa. Existe um caminho de volta? Existe uma hipótese de confissão, penitência e perdão sem que eu destrua tudo e todos à minha volta? Não sei. Só sei que tenho de sair.
* * *
Markus bocejou. A leitura deixava-o sempre sonolento, especialmente quando havia tantas palavras que ele não compreendia. Passou adiante várias páginas.
15 de setembro
Durante quanto tempo mais vamos conseguir continuar sem que o Gémeo descubra quem somos? Comunicamos através de endereços de Hotmail a partir dos nossos computadores autónomos e roubados que «pedimos emprestados» à sala de provas, mas não é infalível. Por outro lado, se ele quisesse, podia ter conseguido a vigilância dos locais onde fazemos as nossas entregas. Na penúltima semana, quando fui buscar o envelope que estava colado debaixo do banco no Restaurante Broker’s na Bogstadveien, tive a certeza de ter sido topado. Um tipo no bar lançou-me um olhar carrancudo, qualquer um percebia que ele era um criminoso. E eu tinha a certeza em relação a ele. Veio ter comigo e disse-me que há dez anos eu o prendera por estar na posse de propriedade roubada. Disse que fora o melhor que lhe podia ter acontecido, que deixara de andar com más companhias e que agora era coproprietário de um viveiro com o irmão. De seguida, apertou-me a mão e foi-se embora. Uma história com um final feliz. O envelope continha também uma carta na qual o Gémeo afirmava que queria que eu – portanto, ele não sabe mesmo que somos dois – progredisse na Polícia, conseguisse um lugar no topo onde poderia ser mais útil; tanto a ele como a mim próprio. Acesso a informação confidencial, mais dinheiro. Escreveu que podia ajudar-me a progredir, mexer uns cordelinhos. Eu desatei às gargalhadas. O tipo devia ser completamente doido, um fulano como aquele só para quando tiver conseguido dominar o mundo. É daqueles que não para, mas tem de ser parado. Mostrei a carta ao Z. Não sei porquê, mas ele não lhe achou piada nenhuma.
Markus ouvia a mãe chamá-lo. Calculou que tivesse uma tarefa para ele. Detestava quando ela fazia aquilo, escancarava uma janela e gritava o nome dele pelo bairro, como se ele fosse um cão ou assim. Virou outra página.
6 de outubro
Aconteceu algo. O Z diz que pensa que devíamos sair enquanto levamos vantagem, parar enquanto as coisas correm de feição. E o Gémeo não responde ao meu e-mail há vários dias. Isso nunca aconteceu antes. Teriam os dois andado a conversar? Não sei se andaram, só sei que isto não é algo a que possamos simplesmente virar as costas. Sei que o T2 já não confia em mim. Pela mesma razão, também já não confio nele. Mostrámos os nossos verdadeiros rostos um ao outro.
7 de outubro
A noite passada, percebi subitamente tudo: o Gémeo só precisa de um de nós e é exatamente isso que ele vai ter – um. O outro será o amante rejeitado, uma testemunha ressentida que tem de ser eliminada. E o Z já o percebeu. Por isso, agora é urgente, tenho de o apanhar antes que ele chegue até mim. Pedi à Helene que amanhã leve o Sonny à competição de wrestling pois tenho assuntos a tratar. Perguntei ao Z se nos podíamos encontrar nas ruínas medievais em Maridalen à meia-noite, que tínhamos assuntos a discutir. Ele mostrou-se um pouco surpreendido por eu querer encontrar-me num local deserto e tão tarde, mas disse que estava bem.
8 de outubro
Reina o silêncio. Carreguei a pistola. É uma estranha sensação saber que estou prestes a tirar a vida a um homem. Continuo a perguntar-me o que me trouxe aqui. Fi-lo pela minha família? Ou por mim próprio? Ou foi a tentação de conseguir algo que não foi possível aos meus pais, um lugar na sociedade, a vida que vi ser dada de bandeja a idiotas que não a merecem? Sou engenhoso e corajoso – ou fraco e cobarde? Sou uma má pessoa? Fiz a mim mesmo esta pergunta: se o meu filho estivesse no meu lugar, eu ia querer que ele fizesse aquilo que eu fiz? E, obviamente, isso tornou a resposta muito óbvia.
Não tarda, vou até Maridalen, depois veremos se volto um homem mudado. Um assassino.
Sei que parece estranho, mas às vezes rezo para que alguém encontre este diário. Acho que faz parte da natureza humana.
Não havia mais nada. Markus foi passando as páginas em branco até chegar às últimas, que tinham sido arrancadas. Depois, voltou a colocar o diário em cima da mesa de cabeceira e desceu silenciosamente as escadas enquanto ouvia a voz da mãe a gritar sucessivamente o seu nome.
40
Betty entrou na farmácia apinhada. Tirou uma senha numerada onde podia ler-se «Receitas», e encontrou uma cadeira vazia ao longo da parede entre os clientes que olhavam para o ar ou, não obstante o aviso a proibi-lo, teclavam nos seus telemóveis. Convencera o médico a passar-lhe uma receita de soporíferos mais fortes.
«Estes benzodiazepínicos são fortes e só devem ser tomados durante curtos períodos de tempo», advertira-a ele, e repetira o que ela já sabia: que o seu uso criava um círculo vicioso que podia levar a dependência e que não atacava o problema pela raiz. Betty respondera que a raiz do problema era o facto de não conseguir dormir. Especialmente, depois de ter estado sozinha numa sala com o assassino mais procurado do país. Um homem que matara uma mulher na sua própria casa em Holmenkollåsen. E, naquele dia, saíra no jornal que ele também era suspeito do homicídio da mulher de um armador, que entrara numa casa, ao que tudo indicava, escolhida aleatoriamente nos arredores de Drammen e lhe serrara a cabeça. Nas últimas semanas, Betty deambulara como um zombie, meio acordada, meio a dormir, a alucinar. Via o rosto dele em todo o lado, não apenas nos jornais e na TV, mas na publicidade, no elétrico, nos reflexos nas montras das lojas. Ele era o carteiro, o seu vizinho, o empregado de mesa.
E, naquele momento, também o via ali.
Ele estava de pé junto ao balcão com um turbante branco, ou talvez fosse apenas uma ligadura à volta da cabeça. Pousara um monte de seringas descartáveis e agulhas hipodérmicas em cima do balcão e pagava em dinheiro. As fotografias com grão nos jornais não ajudavam muito, no entanto Betty apercebera-se de que a mulher na cadeira ao lado da sua segredara algo ao seu companheiro, enquanto apontava para o homem, por isso talvez ela também o tivesse reconhecido. Porém, quando o homem com o turbante se virara e encaminhara para a saída, o seu corpo fizera uma rotação lateral, e Betty apercebera-se de que estava novamente a ver coisas.
O rosto rígido, retraído e macilento não se parecia nada com aquele que vira na Suíte 4.
Kari debruçou-se para ler os números enquanto passava lentamente pelas casas grandes. Tomara a decisão depois de uma noite insone. Sam – a quem ela também não deixara pregar olho – dissera que Kari não devia aceitar um emprego onde não tencionasse empenhar-se a sério. Claro que era verdade, no entanto, Kari era uma pessoa que gostava de ordem. E isso podia afetar o seu futuro, podia fechar-lhe portas. Por isso, tomara a decisão de fazer uma abordagem direta.
Parou o carro. Este era o número certo.
Perguntou-se se devia transpor o portão aberto e conduzir até à casa, mas decidiu estacionar na rua. Subiu a pé o acesso íngreme. Um aspersor assobiava no jardim; para além disso, o silêncio era absoluto.
Subiu os degraus e tocou à campainha. Ouviu latidos furiosos vindos do outro lado. Aguardou. Não apareceu ninguém. Virou-se, e preparava-se para descer os degraus, e ali estava ele. O sol refletia-se nos seus óculos retangulares. Devia ter vindo das traseiras da casa e da garagem, movendo-se rápida e silenciosamente.
– Sim?
Tinha as mãos atrás das costas.
– Sou a agente Kari Adel. Gostaria de falar consigo sobre um assunto.
– E qual poderia ser?
Ele enfiara as mãos nas costas por detrás do cinto, como se para puxar as calças de algodão beges ou pôr a camisa para fora, afinal estava um dia de verão muito quente. Ou para esconder uma arma atrás do cinto e puxar a fralda da camisa sobre ela para que não se visse.
– O Simon Kefas.
– Estou a ver. E veio ter diretamente comigo a que propósito?
Kari rodou a cabeça de um lado para o outro.
– O Simon convenceu-me de que eu corria o risco de fugas de informação se seguisse as vias tradicionais. Ele continua convencido de que existe uma toupeira nas nossas fileiras.
– Não me diga?
– E foi por isso que achei melhor ir diretamente à cúpula. A si, senhor comissário.
– Ora, ora – disse Pontius Parr, coçando o queixo estreito. – Nesse caso, é melhor entrarmos, senhora agente Adel.
Um airedale terrier feliz saltou para Kari no hall.
– Willoch! Já falámos sobre isto...
O cão assentou nas quatro patas e limitou-se a lamber a mão de Kari enquanto a sua cauda se agitava como uma hélice. Quando entraram na sala de estar, Kari explicou que fora informada de que o comissário estava a trabalhar em casa naquele dia.
– Resolvi fazer gazeta. – Parr sorriu e estendeu a mão na direção de um sofá enorme coberto com diversas almofadas. – Eu devia começar as minhas férias de verão esta semana, mas com este assassino à solta... – Suspirou e afundou-se numa das poltronas a condizer. – Afinal, o que se passa com o Simon?
Kari pigarreou. Planeara o que ia dizer com todo o tipo de reservas e garantias, que não viera fazer intrigas, apenas assegurar a qualidade do trabalho deles. Naquele momento, porém, ali sentada com Parr, que tinha um ar tão descontraído e recetivo, que até admitira estar a fazer gazeta, fazia mais sentido ir direto ao assunto.
– O Simon está numa missão própria – disse ela.
O comissário arqueou um sobrolho.
– Continue.
– Estamos a investigar o caso em paralelo com a Kripos, mas não a trabalhar com eles, e agora ele também deixou de trabalhar comigo. Não tem importância, o problema é que parece existir uma espécie de plano. E eu não quero cair com ele, caso ele esteja a fazer algo ilegal. Ele pediu-me que me afastasse de certas situações e disse-me com todas as letras que não tenciona jogar limpo.
– Estou a ver. E quando foi isso?
Kari fez-lhe um breve resumo da reunião com Iver Iversen.
– Hummm – disse Parr, prolongando eternamente o «m». – Isso não é bom. Eu conheço o Simon, e gostava de poder dizer que isto não parece nada dele. Mas, infelizmente, parece. Qual pensa que seja o plano dele?
– Ele quer apanhar o Sonny Lofthus sozinho.
Parr apoiou o queixo entre o polegar e o indicador.
– Estou a ver. Quem mais tem conhecimento disto?
– Ninguém. Vim diretamente aqui.
– Ótimo. Prometa-me que não o menciona a ninguém. Trata-se de um assunto delicado, como certamente entenderá. Neste momento, todos os olhos estão postos na Polícia e não podemos dar-nos ao luxo de ter agentes a comportarem-se individualmente de forma pouco profissional.
– Com certeza, eu compreendo.
– Deixe isto comigo. Nunca iremos mencionar o seu envolvimento. Esta conversa nunca aconteceu. Pode parecer uma medida extrema, mas, deste modo, não corre o risco de os seus colegas lhe chamarem delatora. Esses nomes tendem a colar.
Tendem a colar. Ela não pensara nisso. Kari engoliu em seco e anuiu rapidamente.
– Muitíssimo obrigada.
– Não tem de quê. Eu é que lhe agradeço, Adel. Tomou a decisão certa. Agora volte ao seu trabalho e aja como se nada tivesse acontecido, como dizem. – O comissário levantou-se. – Tenho de voltar para a minha inatividade, já que devo estar a trabalhar em casa.
Kari levantou-se, satisfeita e aliviada por aquilo se ter revelado bem mais indolor do que ela esperara.
Parr estacou na entrada.
– Onde está o Simon neste momento?
– Não faço ideia. Ele afastou-se do local do crime quando encontrámos o carro e o corpo a noite passada e, desde então, ninguém mais o viu.
– Hum. Portanto, não faz ideia?
– A última coisa que fiz foi dar-lhe uma lista dos hotéis onde o Lofthus pudesse estar hospedado.
– Com base em quê?
– No facto de ele pagar em dinheiro. Já quase ninguém o faz hoje em dia.
– Inteligente. Boa sorte.
– Obrigada.
Kari desceu os degraus e estava a chegar ao aspersor quando ouviu passos atrás de si. Era Parr.
– Só mais uma coisa – disse ele. – Com base no que acabei de ouvir, depreendo que existe uma possibilidade de ser você mesma a conseguir localizar o Lofthus para nós.
– Sim? – respondeu Kari, e soube que soara tão convencida quanto fora sua intenção.
– Se isso acontecer, lembre-se de que ele está armado e é perigoso. Que será tratada com compreensão se você e vários dos seus colegas forem obrigados a defender-se.
Kari afastou os habituais cabelos rebeldes.
– E o que quer exatamente dizer com isso?
– Apenas que as consequências de uma resposta armada para deter este assassino são pouco relevantes. Lembre-se, ele já torturou um funcionário público.
Kari sentiu o vento soprar uns borrifos de água finos.
– Muito bem – disse ela.
– Vou dar uma palavrinha ao chefe da Kripos – disse Parr. – Pode ser uma boa ideia você e o Åsmund Bjørnstad trabalharem juntos, em equipa, nesta investigação. Estou convicto de que têm a mesma perceção da situação.
Simon olhou para o espelho. Os anos iam passando. As horas iam passando. Ele já não era o homem que fora há quinze anos. Ele nem sequer era o homem que fora há setenta e duas horas. Em tempos, julgara-se invencível. Em tempos fora considerado escumalha. Chegara à conclusão de que não era nem uma coisa nem outra, que era um ser humano de carne, osso e sangue, com o potencial de fazer o que estava certo. Ou deixar-se dominar pelos seus instintos mais básicos.
Mas quereria isso dizer que ele, ou fosse lá quem fosse, tinha livre-arbítrio? Não teríamos todos nós, perante a mesma equação matemática, as mesmas hipóteses, a mesma probabilidade do que compensava, feito sucessivamente as mesmas escolhas? As pessoas afirmam que é possível mudar os valores, uma mulher podia entrar na nossa vida, podíamos tornar-nos mais sábios e chegar a uma nova compreensão do que é realmente importante. Sim, mas apenas porque aquelas outras coisas se tinham tornado importantes, na verdade, apenas os números tinham mudado na equação, porque continuávamos a resolvê-la da mesma maneira. Só que nessa altura faziam-se sucessivamente essas novas escolhas. Determinadas pela composição das substâncias químicas no nosso cérebro, pela informação disponível, pelo instinto de sobrevivência, pelos impulsos sexuais, pelo medo da morte, pela moral adquirida e pelo instinto de grupo. Não castigamos as pessoas apenas porque são más, mas porque fazem escolhas más, escolhas que são más para o instinto de grupo. A moral não cai do céu nem é eterna, não passa de um conjunto de regras vantajosas para o grupo. E aqueles que são incapazes de seguir as regras, a norma de comportamento aceite, nunca conseguirão conformar-se por não possuírem livre-arbítrio; é uma ilusão. Tal como os restantes de nós, os infratores apenas fazem o que fazem. É por isso que devem ser eliminados para garantir que não procriam, infetando assim o grupo com os seus genes do comportamento negativo.
Simon Kefas pensou que aquilo para que olhava no espelho era um robô. Complexo, intrincado e cheio de possibilidades. Mas não deixava de ser um robô.
Assim sendo, o que movia o rapaz na sua sede de vingança? O que esperava ele alcançar? Salvar um mundo que não queria ser salvo? Exterminar todas as coisas que recusamos admitir precisar? Porque quem consegue viver num mundo sem crime, sem a rebelião idiota dos néscios, sem os irracionais que geram movimento, mudança? Sem a esperança de um mundo melhor – ou pior. Esta agitação infernal, a necessidade que o tubarão tem de se movimentar para obter oxigénio.
– Este momento é excelente. Vamos ficar onde estamos. Assim mesmo.
Só que nunca acontece.
Simon ouviu passos. Verificou se a patilha de segurança da pistola estava destravada.
A chave rodou na fechadura.
Os passos pareciam rápidos. Alguém estava com pressa. Contou os segundos sem tirar os olhos do seu rosto no espelho por cima do lavatório na casa de banho. O rapaz, ao verificar que estava exatamente tudo como deixara ao sair do quarto, ia descontrair-se e baixar a guarda. Ele podia entrar ali, mas nessa altura já teria pousado as armas. Simon começou a contar.
Aos vinte abriu a porta e saiu, empunhando a pistola.
O rapaz estava sentado na cama.
Tinha uma ligadura à volta da cabeça. Diante dele, no chão, encontrava-se a pasta que guardava no roupeiro. Estava aberta e cheia de sacos de pó branco que Simon reconheceu de imediato. O rapaz abrira um buraco num deles. Segurava na mão esquerda uma colher de chá com pó branco, na outra um isqueiro aceso. Em cima da cama estava uma pilha de seringas descartáveis e uma embalagem de agulhas hipodérmicas.
– Quem dispara primeiro? – perguntou o rapaz.
41
Simon sentou-se na cadeira em frente dele. Viu-o segurar o isqueiro debaixo da colher de chá.
– Como me encontrou?
– O teu telemóvel – disse Simon, sem desviar os olhos da chama. – E os ruídos de fundo. Prostitutas a trabalhar. Sabes quem eu sou?
– O Simon Kefas – disse o rapaz. – Reconheço-o das fotografias. – O pó começava a dissolver-se. Vieram bolhinhas à superfície. – Não vou resistir à detenção. Também já tencionava entregar-me hoje, mais ao final do dia.
– Sim? Porquê? A tua cruzada terminou assim tão cedo?
– Não há cruzada nenhuma – respondeu o rapaz, pousando a colher de chá com cuidado. Simon sabia que era para deixar a heroína líquida arrefecer. – Existe apenas uma fé cega, aqueles de nós que ainda acreditam naquilo que nos ensinaram em crianças. Até ao dia em que descobrimos que o mundo não é assim. Que somos escória. Que não passamos todos de lixo.
Simon colocou a arma na palma da mão e olhou para ela.
– Não vou levar-te para a esquadra, Sonny. Vou levar-te ao Gémeo. Tu, as drogas e o dinheiro que lhe roubaste.
O rapaz ergueu o olhar para ele enquanto rasgava o invólucro de uma seringa.
– Tudo bem. É-me indiferente. Ele vai matar-me?
– Vai.
– Eliminar a escória. Deixe que me chute primeiro. – Colocou uma bola de algodão em rama na colher, introduziu a agulha nela e puxou o êmbolo. – Não conheço estas drogas, podem não ser puras – referiu ele, como se para justificar o filtro de algodão em rama.
Depois, ergueu o olhar para Simon, para ver se ele gostara da ironia.
– Heroína do esconderijo do Kalle Farrisen – disse Simon. – Tiveste-a contigo este tempo todo e não te sentiste tentado a experimentá-la?
O rapaz soltou uma gargalhada curta, grosseira.
– Expressei-me mal – disse Simon. – Apaga «tentado». Mas conseguiste resistir. Como?
O rapaz encolheu os ombros.
– Sei alguma coisa sobre toxicodependentes – afirmou Simon. – A lista de coisas que nos levam a desistir não é longa. Ou encontrámos Jesus, uma rapariga, os nossos próprios filhos ou o homem da foice. No meu caso foi uma rapariga. E no teu?
O rapaz não disse nada.
– O teu pai?
O rapaz limitou-se a cravar atentamente os olhos em Simon, como se tivesse descoberto algo.
Simon abanou a cabeça.
– Vocês os dois são tão parecidos. Vejo-o agora com mais clareza do que nas fotografias.
– Sempre disseram que ele e eu não éramos nada parecidos.
– Não tu e o teu pai. Tu e a tua mãe. Tens os olhos dela. Ela costumava levantar-se ao raiar do dia, mais cedo do que o resto de nós, e tomava o pequeno-almoço antes de sair a correr para ir trabalhar. Às vezes, eu levantava-me cedo só para a ver ali sentada, antes de ela se preparar para sair, cansada, mas com aqueles olhos extraordinários e belos.
Naquele momento, o rapaz permanecia completamente imóvel.
Simon continuava a virar a pistola como se procurasse algo.
– Éramos quatro pessoas que não tinham nada, que partilhavam um apartamento em Oslo, assim ficava mais barato. Três rapazes que foram para a Escola Superior de Polícia, mais a tua mãe. Os três rapazes intitulavam-se a «Troika» e eram os melhores amigos: o teu pai, eu e o Pontius Parr. A tua mãe andava à procura de um lugar onde morar, tinha visto o anúncio no jornal e veio ocupar o nosso quarto vago. Penso que nós os três nos apaixonámos por ela mal a vimos. – Simon sorriu. – Andávamos de roda dela, cortejando-a em segredo. E éramos três belos rapazes, não creio que ela soubesse qual de nós escolher.
– Desconhecia isso – respondeu o rapaz. – Mas sei que ela escolheu o errado.
– Sim – disse Simon. – Ela escolheu-me.
Simon ergueu os olhos da arma. Encontrou o olhar de Sonny.
– A tua mãe foi o amor da minha vida, Sonny. Quase fiquei destroçado quando ela me deixou e começou a sair com o teu pai. Em particular, quando mais tarde se ficou a saber que ela estava grávida. Eles tinham-se mudado, comprado a casa em Berg. Ela estava grávida, ele continuava na Escola Superior de Polícia, também não tinham onde cair mortos. Mas as taxas de juro eram baixas e, naquela época, os bancos emprestavam dinheiro com facilidade.
Sonny não pestanejara uma única vez. Simon pigarreou.
– Foi sensivelmente nessa altura que comecei a jogar a sério. Já estava endividado quando comecei a apostar em cavalos. A parada era alta. Havia qualquer coisa de libertador no facto de estar à beira do vazio e saber que, acontecesse o que acontecesse, ia desviar-me do meu caminho. Para cima ou para baixo, era quase indiferente. Naquela altura, o teu pai e eu tínhamo-nos afastado. Era-me difícil suportar a sua felicidade. Ele e o Pontius tinham-se tornado amigos do peito, a Troika dissolvera-se. Inventei uma desculpa qualquer quando ele me convidou para ser teu padrinho, mas fiquei escondido ao fundo da igreja quando foste batizado. Foste o único bebé que não chorou. Olhaste calmamente para cima e sorriste ao novo vigário, que estava ligeiramente nervoso, como se fosses tu a batizá-lo e não o contrário. Eu retirei-me logo e apostei treze mil coroas num cavalo chamado Sonny.
– E?
– Deves-me treze mil coroas.
O rapaz sorriu.
– Porque me está a contar tudo isto?
– Porque de vez em quando pergunto-me se as coisas tinham de ser assim. Se eu podia ter feito outra escolha. Se o Ab podia tê-la feito. Ou se tu podias tê-la feito. Einstein afirmou que a definição de insanidade é fazer a mesma coisa sucessivamente pensando que se vai chegar a um resultado diferente. No entanto, e se houvesse algo mais, a inspiração divina, que pudesse levar-nos a escolher de maneira diferente da próxima vez?
O rapaz amarrou um tubo de borracha à volta do braço.
– Até parece um crente a falar, Simon Kefas.
– Não sei, só estou a perguntar. Só sei que as intenções do teu pai eram boas, por mais duramente que o julgues. Ele queria ter uma vida melhor, não apenas para si, mas para vocês os três. O amor foi a sua ruína. E agora julgas-te tão severamente porque pensas que és uma cópia dele. Mas tu não és o teu pai. Lá porque ele falhou moralmente, isso não significa que te vá acontecer o mesmo. A responsabilidade de um filho não é ser igual ao pai, mas ser melhor do que ele.
O rapaz cravou os dentes na extremidade do tubo de borracha.
– Talvez, mas isso é importante agora?
Falara pelo canto da boca, puxando a cabeça para trás de modo a que o tubo ficasse apertado e as veias no seu antebraço se tornassem salientes. Segurava a seringa com a mão por baixo e a agulha assentava na parte de dentro do dedo médio. Tal como um jogador de ténis chinês, pensou Simon. Agarrava a seringa com a mão direita, embora fosse canhoto, porém Simon sabia que os agarrados tinham de aprender a injetar-se com ambas as mãos.
– É importante porque agora chegou a tua vez de escolheres, Sonny. Vais introduzir essa agulha? Ou ajudar-me a apanhar o Gémeo? E a verdadeira toupeira?
Brilhou uma gota na ponta da agulha. Chegou da rua o som do trânsito e de gargalhadas, do quarto ao lado conversa de alcova em voz baixa. O calmo pulsar do verão na cidade.
– Vou marcar um encontro em que estejam tanto o Gémeo como a toupeira. Mas não posso fazê-lo a menos que estejas vivo, tu és o isco.
O rapaz não pareceu tê-lo ouvido e estava praticamente curvado à volta da seringa, a postos para o chuto. Simon preparou-se. E ficou surpreendido quando ouviu a voz do rapaz:
– Quem é ele, a toupeira?
Simon sentiu uma dor no peito e apercebeu-se de que se esquecera de respirar.
– Ficarás a saber se apareceres, mas não antes. Sei pelo que estás a passar, Sonny. Mas há sempre um ponto em que não é possível continuar a adiar as coisas, em que não podes fraquejar nem mais um dia e prometes a ti próprio que amanhã, amanhã vais iniciar aquela outra vida.
Sonny abanou a cabeça.
– Não haverá outra vida.
Simon olhou para a seringa. E foi nessa altura que se fez luz. Era uma overdose.
– Queres morrer sem saber, Sonny?
O rapaz ergueu o olhar da seringa lentamente até Simon.
– Veja aonde o conhecimento me trouxe, Kefas.
– É aqui? – perguntou Åsmund Bjørnstad, enquanto se debruçava sobre o volante. Leu a placa por cima da entrada. – O Hotel Bismarck?
– Sim – disse Kari e libertou o cinto de segurança.
– E tem a certeza de que é aqui que ele está?
– O Simon quis saber quais os hotéis no Kvadraturen que tinham hóspedes que pagavam em dinheiro. Presumi que ele soubesse algo, por isso liguei para os seis hotéis e enviei-lhes fotografias do Sonny Lofthus.
– E obteve um resultado no Bismarck?
– O rececionista confirmou que o homem na fotografia estava alojado no quarto 216. Referiu também que já lá estivera um agente da Polícia e que tivera acesso ao quarto. Que o hotel fizera um acordo com o agente da Polícia, o qual ele esperava que honrássemos.
– O Simon Kefas?
– Infelizmente, sim.
– Está bem, é melhor irmos andando. – Åsmund Bjørnstad pegou no rádio da Polícia e premiu o botão falar. – Delta, responda.
O altifalante emitiu ruídos.
– Aqui Delta. Termino.
– Tem permissão para entrar. É o quarto 216.
– Recebido. Vamos entrar. Termino e desligo.
Bjørnstad pousou o rádio da Polícia.
– Quais são as ordens? – perguntou Kari, sentindo a sua blusa muito apertada.
– Dar prioridade à sua segurança, atirar a matar, se necessário. Aonde vai?
– Apanhar ar.
Kari atravessou a rua. À sua frente, viam-se agentes da Polícia vestidos de preto e empunhando metralhadoras MP5 a correr; alguns entraram na receção do hotel, outros no pátio, onde se localizavam as escadas de serviço e a saída de emergência. Ela atravessou a receção e ia a meio das escadas quando ouviu o estrondo de uma porta a ser deitada abaixo e a pancada surda das granadas de atordoamento. Continuou a subir as escadas e seguiu pelo corredor, ouvindo a estática dos rádios da Polícia.
– A zona está desimpedida e segura.
Ela entrou no quarto.
Quatro agentes da Polícia: um na casa de banho, três no quarto. Todos os roupeiros e janelas abertos. Mais ninguém. Não se viam quaisquer objetos pessoais. O hóspede tinha feito check out.
* * *
Markus estava acocorado, à procura de rãs na relva, quando viu o Filho sair da casa amarela e encaminhar-se para ele. O Sol da tarde pairava tão baixo sobre o telhado que quando o Filho estacou diante de Markus, pareceu que ele saía da sua cabeça. Ele sorria e Markus ficou satisfeito ao ver que tinha agora um ar menos infeliz do que ao início daquele dia.
– Foi bom conhecer-te, Markus.
– Já te vais embora?
– Sim, tem de ser.
– Porque tens sempre de ir-te embora?
As palavras brotaram precipitadamente, antes que ele tivesse tempo de conter-se.
O Filho também se acocorou e apoiou a mão no ombro de Markus.
– Lembro-me do teu pai, Markus.
– Lembras-te? – perguntou Markus, não parecendo nada convencido.
– Sim. E, independentemente do que a tua mãe possa dizer ou pensar, ele sempre foi bom para mim. Uma vez, afugentou um enorme alce macho que se tinha afastado da floresta e entrado no bairro.
– A sério?
– Sem a ajuda de ninguém.
Depois, Markus teve uma estranha visão. Por detrás da cabeça do Filho, na janela do quarto que estava aberta na casa amarela, as cortinas brancas diáfanas agitaram-se. Apesar de não haver vento nenhum. O Filho levantou-se, despenteou o cabelo de Markus e começou a descer a rua. Fazia balançar uma pasta enquanto assobiava. Algo chamou a atenção de Markus, e ele virou-se de novo para a casa. As cortinas estavam em chamas. E viu então que as outras janelas também estavam abertas. Todas sem exceção.
Um alce macho, pensou Markus. O meu pai afugentou um alce macho.
A casa emitiu um ruído como se sugasse o ar. O som atingiu gradações atroadoras e depois tons cantantes que ganharam força e se transformaram em música triunfal ameaçadora. E como elas saltavam e rodopiavam agora por detrás das janelas negras, as bailarinas amarelas a celebrarem já a queda, o Dia do Juízo Final.
Simon pôs o carro em ponto morto e deixou o motor ligado.
Mais ao fundo da rua, do lado de fora da sua casa, estava outro carro. Um Ford Mondeo azul, novo. Vidros fumados na traseira. Um modelo idêntico estivera estacionado no exterior da Unidade de Oftalmologia do hospital. Podia ser uma coincidência, contudo, ele sabia que a Polícia de Oslo comprara oito Ford Mondeo no ano anterior. Com vidros fumados para que não se visse a luz azul a apagar e a acender localizada por detrás do apoio de cabeça.
Simon pegou no telemóvel que estava em cima do banco do passageiro.
A chamada foi atendida antes do segundo toque.
– O que queres?
– Olá, Pontius. Deve ser muito frustrante para ti que o meu telemóvel ande sempre em movimento.
– Para já com esta loucura, Simon, e prometo-te que não haverá consequências.
– Nenhumas, mesmo?
– Se desistires agora, não. Temos acordo?
– Tu sempre quiseste fazer acordos, Pontius. Bem, tenho um acordo para ti. Aparece num restaurante amanhã de manhã.
– E qual é a ementa?
– Dois criminosos cuja detenção constituirá um motivo de orgulho para ti.
– Podes ser mais específico?
– Não. Mas vou indicar-te uma morada e uma hora se prometeres levar apenas uma pessoa. A minha colega, a Kari Adel.
O silêncio reinou momentaneamente.
– A tua ideia é armares-me uma cilada, Simon?
– Alguma vez o fiz? Lembra-te de que tens imenso a ganhar. Ou, melhor dizendo: tens imenso a perder, se deixares escapar estas pessoas.
– Dás-me a tua palavra em como não nos vamos meter numa emboscada?
– Dou. Achas que deixava que acontecesse algo à Kari?
Pausa.
– Não. Não, tu nunca serias capaz disso, Simon.
– Talvez por isso mesmo nunca tenha chegado a comissário.
– Tens muita piada. Quando e onde?
– Sete e quinze. Aker Brygge, número 86. Encontramo-nos lá.
Simon abriu o vidro lateral, arremessou o telemóvel e viu-o desaparecer por cima de uma vedação vizinha. Ouviu ao longe as sirenes de carros de bombeiros.
Depois, engrenou o carro e acelerou.
Partiu rumo a oeste. Em Smestad, tomou a saída para Holmenkollåsen. Subiu aos ziguezagues até ao mirante que sempre lhe dera um sentido de perspetiva.
Entretanto, o Honda fora removido e os ACC tinham terminado o seu trabalho.
Afinal, deixara de ser o local de um crime.
Pelo menos, de um assassínio.
Simon estacionou o carro de modo a ter uma vista do fiorde e do pôr do sol.
À medida que ia escurecendo, Oslo começou a parecer-se cada vez mais com um fogo quase extinto com brasas incandescentes e cinzas amarelas. Levantou a gola do casaco e recostou-se no banco. Precisava de passar pelas brasas. O dia seguinte seria um dia grande.
O maior de todos.
Se a sorte estivesse do lado deles.
* * *
– Experimenta este – disse Martha, entregando um casaco ao jovem.
Ele era relativamente novo. Só o tinha visto ali uma outra vez. Talvez vinte anos, no entanto teria muita sorte se conseguisse viver até aos vinte e cinco. Ou, pelo menos, era essa a opinião geral na receção do Centro Ila.
– Que bom, serve-te! – Ela sorriu. – Porque não experimentas usá-lo com estas calças? Entregou-lhe umas calças de ganga praticamente novas. Apercebera-se de que estava alguém atrás dela e virou-se. Ele devia ter entrado pelo café, talvez estivesse já há algum tempo a observá-la, à porta do depósito de roupas. O fato e a ligadura à volta da cabeça eram suficientes para o fazer dar nas vistas, mas Martha nem reparara neles.
Só tinha olhos para a sua expressão intensa e faminta.
Tudo o que ela não queria. Tudo o que ela queria.
Lars Gilberg virou-se no seu saco-cama novinho em folha. A empregada de balcão no armazém olhara com desconfiança para a nota de mil coroas antes de a aceitar e entregar-lhe o miraculoso saco-cama.
Gilberg piscou os olhos.
– Voltaste – disse ele. – Cristo, tornaste-te hindu?
A voz dele produziu um eco agudo debaixo dos arcos da ponte.
– Talvez. – O rapaz sorriu e acocorou-se ao lado dele. – Preciso de um lugar onde passar esta noite.
– Não faças cerimónia. Apesar de teres ar de quem pode pagar um quarto de hotel.
– Eles vão encontrar-me lá.
– Aqui há imenso espaço e nenhuma vigilância.
– Emprestas-me um dos teus jornais, por favor? Quero dizer, se já os tiveres lido.
Gilberg soltou uma risada.
– Podes usar o meu velho e fiel cobrejão. Uso-o como colchão agora. – Tirou debaixo de si o saco-cama velho, puído e imundo. – Sabes uma coisa? Fica com o novo, que esta noite eu durmo no velho. Há muito de mim no velho, percebes?
– Tens a certeza?
– Tenho, o velho cobrejão sente a minha falta.
– Muito obrigado, mesmo, Lars.
Lars Gilberg limitou-se a sorrir.
E, quando se deitou, sentiu um agradável calor que não provinha do saco-cama. Brotava de dentro de si.
Pareceu que os corredores soltaram um suspiro coletivo quando todas as portas das celas da Estatal se fecharam em simultâneo para a noite.
Johannes Halden estava sentado na sua cama. Era indiferente o que fazia. Sentado, deitado ou de pé, a dor era igual. E sabia que só se agravaria a cada dia que passava. Agora a sua doença era visível. Ao cancro do pulmão viera juntar-se um tumor na virilha, do tamanho de uma bola de golfe.
Arild Franck fora fiel à sua palavra. Como castigo por ter ajudado o rapaz a evadir-se, Johannes seria corroído pelo cancro na sua cela, sem assistência médica nem alívio da dor. Era possível que Franck o enviasse para a enfermaria quando entendesse que Halden já sofrera o suficiente e podia finar-se a qualquer momento, simplesmente para evitar ter de registar um óbito numa cela no seu relatório anual.
Reinava um enorme silêncio. Tranquilamente monitorizado por câmaras. Nos velhos tempos, os guardas prisionais faziam rondas após o fecho das celas e fora reconfortante ouvir os passos deles. Um dos agentes no Estabelecimento Prisional de Ullersmo, Håvelsmo, um homem velho e religioso, costumava cantar durante as rondas. Era a melhor canção de embalar para um recluso a cumprir uma pena longa e até os mais psicóticos paravam de gritar quando ouviam Håvelsmo andar pelos corredores. Johannes desejou que Håvelsmo estivesse ali agora. Desejou que o rapaz ali estivesse agora. No entanto, não se queixava. O rapaz dera-lhe o que ele queria. O perdão. E, ainda por cima, uma canção de embalar.
Ele segurou a seringa contra a luz.
A canção de embalar.
O rapaz dissera-lhe que a encontrara numa Bíblia do capelão da prisão, o falecido Per Vollan – que a sua alma atormentada encontrasse a paz – e que aquela era a heroína mais pura que havia em Oslo. Depois, mostrara-lhe como injetar-se quando chegasse a hora.
Johannes colocou a agulha sobre uma veia azul grossa no seu braço. Inspirou tremulamente.
Por conseguinte, isto era apenas o que havia, isto era a sua vida. Uma vida que podia ter sido tão diferente se ele não tivesse aceitado trazer duas sacas do porto de Songkhla46. Curioso. Se fosse hoje, teria dito que sim? Não. Mas o homem que ele fora noutros tempos dissera que sim. Sucessivamente. Por isso, não podia ser de outra maneira.
Pressionou a agulha na pele, estremeceu ligeiramente quando a viu ceder e a agulha deslizar lá para dentro. Depois premiu o êmbolo até ao fim. Regular e calmamente. Era importante esvaziar por completo a seringa.
A primeira coisa que aconteceu foi que a dor desapareceu. Como que por magia.
Depois, a segunda coisa aconteceu.
E ele compreendeu finalmente aquilo de que os outros tinham falado. A euforia. A queda livre. O abraço. Podia ser realmente tão simples assim, que todo este tempo estivesse apenas à distância de uma picada? Ela também estivera à distância de uma picada? Porque ela estava ali naquele momento, com o seu vestido de seda, com o seu cabelo preto brilhante, os seus olhos amendoados. E a voz terna dela que segredava as palavras inglesas difíceis com lábios suaves de cereja. Johannes Halden fechou os olhos e tombou na cama.
O beijo dela.
Era tudo o que sempre quisera.
Markus olhava para a televisão.
Estavam a falar de todas as pessoas que tinham sido mortas nas últimas semanas, passava constantemente na televisão e na rádio. A mãe aconselhara-o a não ver as imagens, só lhe iam causar pesadelos. Mas ele já não tinha pesadelos. E agora ele estava na televisão e Markus reconhecera-o. Estava sentado a uma mesa cheia de microfones, a responder a perguntas e Markus lembrava-se dele por causa dos óculos sem aros. Markus não percebia o que tudo aquilo queria dizer ou como tudo se encaixava. Só sabia que o homem não precisava de vir ligar o aquecimento da casa amarela agora que ela fora completamente destruída pelo fogo.
46 Cidade na província com o mesmo nome, situada no Sul da Tailândia, perto da fronteira com a Malásia. (N. da T.)
PARTE CINCO
42
Às 6h35 da manhã, Beatrice Jonasen, rececionista da Tomte & Øhre Solicitadores, reprimiu um bocejo enquanto fazia um esforço para se lembrar do título do filme que a mulher com uma gabardina diante de si lhe fazia lembrar. Qualquer coisa com Audrey Hepburn. Boneca de Luxo? A mulher também usava uma écharpe de seda e uns óculos de sol que lhe conferiam um ar dos anos sessenta. Colocara um saco em cima do balcão, dissera que era para Jan Øhre, conforme o combinado, e retirara-se.
Meia hora depois, o sol fazia ricochete nas janelas da fachada de tijolo vermelho da Câmara Municipal de Oslo, os primeiros ferries atracavam em Aker Brygge e as pessoas que chegavam dos subúrbios de Nesoddtangen, Son e Drøbak eram despejadas aos magotes a caminho do seu trabalho. Ia ser outro dia de céu limpo, no entanto notava-se uma frescura no ar, um indício de que nem sequer aquele verão duraria para sempre. Dois homens caminhavam lado a lado ao longo do passeio marítimo entre os cais, passando por restaurantes com as cadeiras ainda de pernas para o ar em cima das mesas, lojas de roupa que só iam abrir dali a duas horas e vendedores ambulantes a descarregar e a preparar-se para o ataque dos últimos turistas na capital. O mais jovem dos dois homens vestia um elegante fato cinzento, só que estava amarrotado e cheio de nódoas. O mais velho envergava um casaco de xadrez comprado em saldos na Dressmann e calças que combinavam com ele apenas em termos de preço. Usavam óculos de sol idênticos comprados numa bomba de gasolina vinte minutos antes e transportavam pastas idênticas.
Os dois homens viraram para uma ruela deserta. Cinquenta metros adiante, desceram umas escadas de ferro estreitas até à modesta porta de um restaurante que, a avaliar pela placa discreta, parecia servir peixe e marisco. O homem mais velho tentou abrir a porta, mas encontrou-a trancada. Bateu. Apareceu um rosto, distorcido como numa sala de espelhos num parque de diversões, do outro lado da vigia na porta. Os lábios moveram-se e as palavras soaram como se tivessem sido proferidas debaixo de água:
– As mãos bem à vista.
Eles assim fizeram e a porta abriu-se. O homem era louro e entroncado. O par olhou para a pistola que ele lhes apontava.
– Muito prazer em revê-lo – disse o homem mais velho com o casaco de xadrez e empurrou os óculos de sol para a testa.
– Entrem – disse o homem louro.
Eles entraram e imediatamente os dois homens de fatos pretos começaram a apalpá-los de cima a baixo, enquanto o louro se encostava descontraidamente ao balcão do vestiário, mas sem nunca baixar a arma.
Foi encontrada uma pistola no coldre de ombro do homem mais velho e entregue ao louro.
– Este está limpo – anunciou o outro homem de fato preto, indicando com um gesto da cabeça o sujeito mais jovem. – Ele tem uma coisa tipo faixa à volta da cintura.
O homem louro olhava fixamente para o jovem.
– Portanto, tu és como o Buda com a Espada, sim? O Anjo do Inferno, hein? – O jovem manteve o silêncio. O homem louro cuspiu para o chão diante dos seus sapatos pretos brilhantes Vass. – Boa alcunha... parece que alguém te coseu o raio de um crucifixo na testa.
– E na tua.
O louro ficou carrancudo.
– Mas o que raio queres tu dizer, Buda?
– Não sentes?
O louro deu um passo em frente e ergueu-se em bicos de pés, pelo que os narizes deles quase se tocaram.
– Ora, ora – interveio o homem mais velho.
– Cala-te, avozinho – disse o louro, abrindo o casaco e a camisa do jovem. Os seus dedos apalparam lentamente a ligadura à volta da cintura.
– Aqui? – perguntou ele quando a sua mão chegou ao flanco do jovem.
Apareceram duas gotas de suor na testa do jovem, por cima dos óculos de sol. O louro apertou a ligadura. O jovem abriu a boca, no entanto, não saiu nenhum som.
O louro resmungou.
– Sim, aqui está ela. – Introduziu os dedos, apertou a carne e retirou-a.
O jovem emitiu um som cavo.
– Bo, ele está à espera – lembrou-lhe um dos outros.
– Sim, sim – disse o homem louro em tom baixo, sem tirar os olhos do jovem que lutava por ar. O louro carregou com mais força. Desceu-lhe uma única lágrima pela face pálida, que passou por debaixo dos óculos.
– Cumprimentos do Sylvester e do Evgeni – murmurou o homem louro. Depois aliviou a pressão e virou-se para os outros.
– Tira-lhes as pastas e trá-los.
Os recém-chegados entregaram as suas pastas e entraram na sala de refeições.
O homem mais velho abrandou instintivamente.
Desenhava-se a silhueta de um homem, um homenzarrão, no fundo verde da luz do aquário onde peixes coloridos apareciam e desapareciam rapidamente e via-se um cristal brilhar numa pedra branca grande com ervas compridas que se agitavam na corrente das bolhas. No fundo havia lagostas com as pinças amarradas.
– Como vos prometi... – murmurou o homem mais velho. – Aqui está ele.
– Mas onde está a toupeira? – perguntou o jovem.
– Confie em mim, ele virá.
– Inspetor-chefe Simon Kefas. E Sonny Lofthus. Há muito tempo que estava à espera disto. Sentem-se.
O jovem moveu-se mais rapidamente do que o homem mais velho enquanto avançavam para ir ocupar os seus lugares à frente do homenzarrão.
Entrou outro homem, silenciosamente, pela porta de vaivém, vindo da cozinha. De ombros largos e com um cachaço de touro, tal como os outros três.
– Eles vieram sozinhos – disse ele e ocupou a sua posição junto da comissão de boas-vindas, de modo a formarem um semicírculo atrás dos recém-chegados.
– A luz aqui é demasiado intensa para si? – perguntou o homenzarrão dirigindo-se ao jovem, que ainda não tirara os óculos de sol.
– Consigo ver tudo o que quero, obrigado – respondeu o jovem com uma voz enfadada.
– Boa resposta. Quem me dera ter os seus olhos jovens e saudáveis. – O homenzarrão apontou para os seus próprios olhos. – Sabia que a sensibilidade dos olhos à luz é reduzida em trinta por cento antes de fazermos cinquenta anos? Vista por esta perspetiva, a vida é uma viagem em direção ao escuro, e não à luz, certo? Não é nenhum trocadilho intencional relativamente à sua esposa, inspetor-chefe Kefas. É por isso que aprendemos a navegar na vida sem conseguirmos ver assim que nos é possível. Temos de adquirir a capacidade da toupeira e usar os nossos outros sentidos, a fim de vermos quais os obstáculos e as ameaças que se nos apresentam, não é?
Estendeu os braços. Foi o mesmo que olhar para um buldózer com duas pás.
– Ou podias, como é lógico, comprar uma toupeira que visse por ti. O problema das toupeiras é que tendem a ficar debaixo de terra, por isso é fácil perderem-se. Foi assim que eu perdi a minha. Não faço ideia do que lhe aconteceu. E compreendo que também andes à procura dela, não?
O jovem encolheu os ombros.
– Deixa-me adivinhar. O Kefas convenceu-te a vir aqui prometendo-te a toupeira, não foi?
O homem mais velho pigarreou.
– O Sonny está aqui de sua livre e espontânea vontade porque quer firmar a paz. Ele pensa ter vingado o pai. E que, agora, as partes deviam seguir cada uma o seu caminho. Para mostrar as suas boas intenções, está preparado para devolver o dinheiro e as drogas que tirou. Em troca, deixam de persegui-lo. Entregam-nos as pastas, por favor?
O homenzarrão fez um sinal com a cabeça ao louro que colocou as duas pastas em cima da mesa. O homem mais velho estendeu a mão para uma delas, mas o louro desviou-lhe a mão.
– Como queira – disse o homem mais velho, erguendo as palmas das mãos. – Só queria mostrar-lhe que, por ora, o senhor Lofthus lhe trouxe um terço das drogas e um terço do dinheiro. Receberá o resto quando ele tiver a sua garantia de tréguas e puder sair daqui vivo.
Kari desligou a ignição do carro. Olhou para a placa de néon do antigo estaleiro naval onde letras vermelhas grafavam A-k-e-r B-r-y-g-g-e. As pessoas saíam do ferry que acabara de chegar.
– Será mesmo seguro o comissário encontrar-se com criminosos sem reforços?
– Como costumava dizer um amigo meu – respondeu Pontius Parr, verificando a sua pistola antes de voltar a guardá-la no coldre de ombro – quem não arrisca, não petisca.
– Isso parece-me coisa do Simon – afirmou Kari e olhou para o relógio no cimo da torre da Câmara Municipal. 7h10.
– Correto – disse Parr. – E sabe uma coisa, Adel? Desconfio que hoje vamos merecer muitos louvores. Depois, quero que me acompanhe a uma conferência de imprensa. O comissário e a jovem agente. – Fez estalar os lábios como se saboreasse algo. – Sim, acho que vai combinar bem. – Abriu a porta do pendura e saiu.
Kari quase teve de correr pelo passeio marítimo para o acompanhar.
– Então? – perguntou o homem mais velho. – Temos acordo? O senhor recebe o que lhe foi tirado e o Lofthus um salvo-conduto para poder abandonar o país.
– E você recebe uma pequena comissão por intermediar o negócio, não é?
O homenzarrão sorriu.
– Precisamente.
– Hum. – O homenzarrão olhou para Simon como se procurasse algo que não conseguia encontrar. – Bo, abre as pastas.
Bo avançou e tentou abrir a primeira.
– Está trancada, chefe.
– Um – disse o jovem em voz baixa, quase sussurrada – nove-nove-nove.
Bo rodou os cilindros de metal. Levantou a tampa. Virou a pasta para o seu patrão.
– Muito bem – disse o homenzarrão, pegando num dos sacos brancos. – Um terço. E onde está o resto?
– Num local secreto – respondeu o homem mais velho.
– Claro que está. E o código da pasta com o dinheiro?
– Idem – respondeu o jovem.
– Dezanove noventa e nove. O ano em que o teu pai morreu, não é?
O jovem manteve o silêncio.
– Concorda? – perguntou o homem mais velho, pondo um sorriso forçado e esfregando as mãos. – Já podemos ir?
– Pensei que pudéssemos comer juntos – afirmou o homenzarrão. – Gostam de lagosta, não gostam?
Não houve reações.
Ele soltou um suspiro.
– Sinceramente, também não gosto de lagosta. Mas sabem uma coisa? Não deixo de comê-la. Porquê? Porque é o que se espera de um homem na minha posição. – O casaco do fato afastou-se do seu peito descomunal quando ele estendeu os braços. – Lagosta, caviar e champanhe. Ferraris a que faltam peças sobressalentes, ex-modelos que exigem acordos de divórcio. A solidão no iate, o calor das Seychelles. Fazemos imensas coisas que, na realidade, não queremos, não é? Mas é necessário manter a motivação das pessoas que trabalham para mim. Elas necessitam destes símbolos de sucesso... o que alcancei, o que elas podem alcançar se fizerem o seu trabalho, não é?
O homenzarrão levou um cigarro aos lábios carnudos. O cigarro parecia extraordinariamente pequeno na sua cabeçorra.
– Mas é evidente que estes símbolos de posição social estão também presentes para que os potenciais rivais e adversários não se esqueçam do poder que detenho. Sucede o mesmo com a violência e a brutalidade. Não me agradam. Mas, às vezes, é necessário manter a motivação. Incentivar as pessoas a pagarem-me o que me devem. Induzo-as a não trabalharem contra mim... – Acendeu o cigarro com o isqueiro em forma de pistola. – Por exemplo, havia um homem que costumava modificar armas para mim. Reformou-se. Aceito que um homem prefira reparar motorizadas a fabricar armas. O que não posso aceitar é que, depois, ele dê uma Uzi a alguém que ele sabe que já matou vários dos meus homens.
O homenzarrão bateu no vidro do aquário.
Os olhos tanto do jovem como do homem mais velho seguiram o dedo dele. O jovem deu um pulo na cadeira. O homem mais velho ficou apenas a olhar.
Para a pedra branca com a erva ondulante que crescia nela. Não era uma pedra. E o reflexo não provinha de um cristal. Mas de um dente de ouro.
– Ora, algumas pessoas poderiam considerar excessivo decapitar um homem, mas se quisermos incutir lealdade no nosso pessoal, por vezes é preciso ir mais longe. Estou certo de que concorda comigo, inspetor-chefe.
– Desculpe? – perguntou o homem mais velho.
O homenzarrão inclinou a cabeça e observou-o.
– Tem dificuldade em ouvir, inspetor-chefe?
O homem mais velho volveu de novo o olhar do aquário para o homenzarrão.
– É da velhice, sabe? Por isso, se não se importasse de falar mais alto, dava-me muito jeito.
O Gémeo soltou uma gargalhada, surpreendido.
– Falar mais alto?
Deu uma passa no cigarro e olhou para o homem louro.
– Verificaste se trazem escutas?
– Sim, patrão. Também verificámos o restaurante.
– Nesse caso está a ensurdecer, Kefas. O que vai acontecer-lhe e à sua mulher quando... como é a expressão? A cega passar a guiar o surdo?
Olhou à sua volta com os sobrolhos arqueados e os quatro homens desataram imediatamente às gargalhadas.
– Eles riem-se porque têm medo de mim – disse o homenzarrão, dirigindo-se ao rapaz. – Estás com medo, rapaz?
O jovem manteve o silêncio.
O homem mais velho olhou para o seu relógio de pulso.
Kari olhou para o seu relógio de pulso: 7h14. Parr frisara que tinham de chegar a horas.
– É aqui – disse Parr, apontando para o nome na fachada. Subiu até à porta do restaurante e manteve-a aberta para dar precedência a Kari.
O vestiário estava escuro e silencioso, no entanto, ela conseguia ouvir uma voz vinda de uma divisão mais ao fundo do corredor.
Parr tirou a sua pistola do coldre de ombro e fez sinal a Kari para que procedesse do mesmo modo. Ela tinha conhecimento das histórias que circulavam pela esquadra sobre a sua performance com a caçadeira em Enerhaugen, por isso explicara ao comissário que ela, não obstante as provas, era uma novata em raides armados. No entanto, ele respondera que Simon fizera questão de que ela, e apenas ela, o acompanhasse e acrescentara que em nove de dez casos, bastava mostrar a identificação. E em noventa e nove de cem casos bastava mostrá-la em simultâneo com uma arma. Mesmo assim, o coração de Kari batia descompassadamente enquanto avançavam céleres pelo corredor.
A voz calou-se quando entraram na sala de jantar.
– Polícia! – disse Parr, apontando a pistola às pessoas sentadas à única mesa ocupada. Kari dera dois passos para o lado e tinha o maior dos dois homens na sua mira. Por um instante, fez-se silêncio absoluto, à exceção da voz de Johnny Cash e Give My Love to Rose que saía de uma pequena coluna na parede entre o balcão e a cabeça embalsamada de um boi com uns chifres enormes. Uma churrascaria a servir pequenos-almoços. Os dois homens à mesa, vestindo ambos fatos cinzento-claros, olharam-nos surpreendidos. Kari apercebeu-se de que, afinal, não eram eles os únicos clientes na sala iluminada; a uma mesa junto à janela, com vista para o passeio marítimo, um casal idoso parecia estar a ter um ataque cardíaco em simultâneo. Só podemos ter-nos enganado no sítio. Era impossível ser aquele o restaurante a que Simon quisera que fossem. Depois, o mais pequeno dos dois homens limpou a boca ao guardanapo e dirigiu-lhes a palavra:
– Obrigado por ter vindo pessoalmente, comissário. Posso garantir-lhe que nenhum de nós está armado nem tem más intenções.
– Quem é o senhor? – retumbou Parr.
– O meu nome é Jan Øhre, sou advogado e represento este cavalheiro, Iver Iversen Sénior. – Esticou a mão na direção do homem mais alto e Kari reconheceu imediatamente a parecença com Iversen Júnior.
– O que faz aqui?
– O mesmo que o senhor, presumo.
– Não me diga? Informaram-me de que havia criminosos na ementa.
– E essa é uma promessa que tenciono cumprir, Parr.
– Bem – disse o homenzarrão – tu devias estar borrado de medo.
Fez um sinal com a cabeça ao louro, que puxou de uma faca estreita de lâmina comprida que trazia no cinto, avançou um passo, colocou o braço à volta da testa do jovem e encostou-lhe a faca à garganta.
– Achas mesmo que me preocupo se me roubares uns trocos, Lofthus? Esquece o dinheiro e as drogas. Prometi ao Bo deixá-lo cortar-te aos bocadinhos, e considero a perda das drogas e do dinheiro um bom investimento. Um bom investimento em motivação, sim? Claro que há várias maneiras de fazermos isto, mas terás uma morte menos dolorosa se nos disseres o que fizeste ao Sylvester para que possamos fazer-lhe um enterro cristão. Então, como vai ser?
O jovem engoliu em seco, mas manteve o silêncio.
O homenzarrão deu um murro na mesa com o punho, fazendo saltar os copos.
– Também és surdo?
– Se calhar é – disse o louro, cujo rosto estava mesmo encostado ao ouvido do jovem que aparecia debaixo do braço com que ele lhe prendia a cabeça. – Aqui o Buda tem tampões nos ouvidos.
Os outros desataram às gargalhadas.
O homenzarrão abanou a cabeça em desespero, enquanto ia marcando o código na outra pasta.
– Ele é todo teu. Bo, corta-o.
Ouviu-se um pingue quando o homenzarrão abriu a pasta, contudo os dois homens estavam demasiado focados na faca de Bo para se aperceberem da pequena peça de metal que caíra de dentro da pasta e ressaltava no chão de pedra.
– A tua astuta mãezinha tem razão numa série de coisas, mas está redondamente enganada a teu respeito – disse Simon. – Ela nunca devia ter deixado o filho do diabo chupar-lhe as tetas.
– Mas que r... – começou o homenzarrão. Os lacaios dele viraram-se. Dentro da pasta, ao lado de uma pistola e uma Uzi, estava um objeto verde-azeitona que fazia lembrar a pega do guiador de uma bicicleta.
O homenzarrão voltou a erguer o olhar, mesmo a tempo de ver o homem mais velho baixar os óculos de sol que tinha na testa.
– É verdade que combinei com o inspetor-chefe Simon Kefas vir ter consigo aqui, acompanhado do meu cliente – disse Jan Øhre, tendo mostrado a identificação a Pontius Parr, para provar que era efetivamente advogado. – Ele não lhe disse?
– Não – respondeu Pontius Parr. Kari viu a confusão e a raiva no rosto de Parr. Øhre trocou olhares com o seu cliente.
– Devo depreender que também não tem conhecimento do nosso acordo?
– Qual acordo?
– O nosso acordo judicial no sentido de uma redução da pena.
Parr abanou a cabeça.
– O Simon Kefas só mencionou que eu ia receber dois criminosos de mão beijada. Afinal, o que vem a ser isto?
Øhre preparava-se para responder, quando Iver Iversen se debruçou e lhe murmurou algo ao ouvido. Øhre anuiu, Iversen recostou-se novamente na cadeira e fechou os olhos. Kari observou-o. Tinha um ar abatido, pensou ela. Abatido, resignado.
Øhre pigarreou.
– O inspetor-chefe Kefas está convencido de que tem alguma... hã, prova contra o meu cliente e a sua falecida mulher. Prende-se com uma série de transações de imóveis com um parceiro que dá pelo nome de Levi Thou. Talvez seja mais conhecido pela sua alcunha, o Gémeo.
Thou, pensou Kari. Não é um nome muito comum e, no entanto, ela ouvira-o mencionar recentemente. Alguém que ela cumprimentara. Alguém na esquadra da Polícia.
– O Kefas afirma possuir igualmente provas de um alegado homicídio que acredita ter sido ordenado pela Agnete Iversen. O Kefas disse que, em atenção ao filho da Iversen, ia abster-se de apresentar provas deste último e, no que se refere às transações de imóveis, o meu cliente terá uma pena reduzida se em troca se confessar culpado e apresentar provas contra o Thou em posterior julgamento.
Pontius Parr tirou os óculos retangulares e limpou-os com o lenço de assoar. Kari ficou surpreendida com o tom azul-bebé dos seus olhos.
– Parece-me um acordo que podemos honrar.
– Ótimo – disse Øhre e abriu a pasta que estava na cadeira ao lado dele, tirou de lá um envelope e fê-lo deslizar pela mesa na direção de Parr.
– Aqui tem uma lista das transações de imóveis efetuadas a pedido de Levi Thou para efeitos de lavagem de dinheiro. O Iversen também está preparado para depor contra o Fredrik Ansgar, que trabalhava nessa altura no antigo Departamento de Fraudes Graves, e se certificou de que nunca ninguém ia investigar as transações.
Parr pegou no envelope. Apalpou-o.
– Está mais alguma coisa aqui dentro – disse ele.
– Um cartão de memória. Contém um ficheiro de som que o Kefas enviou de um telemóvel ao meu cliente, tendo solicitado que também lhe fosse entregue.
– Sabe o que contém?
Øhre e Iversen voltaram a trocar olhares. Iversen pigarreou.
– É uma gravação de alguém. O inspetor-chefe Kefas disse que o senhor sabia quem era.
– Eu trouxe comigo um computador para o caso de querer ouvi-la imediatamente – acrescentou Øhre.
* * *
A pasta aberta. As armas. A granada verde-azeitona.
O inspetor-chefe Kefas só teve tempo de fechar os olhos com força e tapar os ouvidos. Brilhou uma luz intensa que lhe deu a sensação de fogo a roçar-lhe o rosto e ouviu-se uma pancada surda semelhante a um murro no estômago.
Abriu então os olhos, atirou-se para a frente, apanhou a pistola que estava dentro da pasta e virou-se. O homem louro ficara petrificado, como se tivesse acabado de fitar os olhos de Medusa47. Continuava a prender a cabeça de Sonny com o braço e segurava a faca na mão. E Simon viu-a naquele momento, Sonny tinha razão; o tipo tinha mesmo uma cruz na testa. As linhas cruzadas da mira. Simon puxou o gatilho e viu o buraco que a bala fizera debaixo da franja loura. Quando o homem caiu, Sonny agarrou a Uzi.
Simon explicara-lhe que teriam, no máximo, dois segundos antes de a paralisia temporária passar. Nessa altura, ficaram sentados no quarto do Bismarck a treinar para este preciso momento, agarrando nas armas e disparando-as. Como era óbvio, não fora possível prever a sequência dos acontecimentos ao pormenor e, até ao momento em que o Gémeo abrira a pasta, ativando a granada de atordoamento, Simon estava convencido de que ia correr tudo mal. No entanto, quando vira Sonny premir o gatilho e descrever uma pirueta num pé, tivera a certeza de que o Gémeo não iria regressar a casa feliz após aquele dia de trabalho. As balas cuspidas da arma balbuciante que nunca iria conseguir passar da primeira sílaba. Dois dos homens do Gémeo haviam sido já abatidos e o terceiro conseguira levar a mão dentro do casaco quando a rajada de balas desenhou uma linha tracejada à largura do seu peito. Permaneceu momentaneamente de pé, antes de os seus joelhos receberem a mensagem de que ele morrera e, nessa altura, Simon virara-se já para o Gémeo. E olhara com assombro para a cadeira vazia. Como era possível que um homem tão descomunal se conseguisse mover tão...
Avistou-o ao fundo do aquário, mesmo ao pé da porta de vaivém para a cozinha.
Fez pontaria e apertou três vezes o gatilho numa sucessão rápida. Viu o casaco do Gémeo contorcer-se e depois o vidro do aquário estalar. Por instantes, parecia que a água iria conseguir conservar a sua forma retangular, manter-se unida por uma questão de hábito ou através de forças invisíveis, antes de desabar na direção deles como um muro verde. Simon tentou saltar para o lado, porém, foi demasiado lento. Esmagou uma lagosta com o pé quando deu um passo, sentiu o joelho ceder e estatelou-se ao comprido no dilúvio. Quando tornou a erguer o olhar, não conseguiu ver o Gémeo, apenas o vaivém da porta da cozinha.
– Está bem? – perguntou Sonny, enquanto estendia a mão para ajudar Simon a levantar-se.
– Nunca estive melhor – gemeu Simon, e sacudiu bruscamente a mão de Sonny. – Mas se o Gémeo conseguir escapar, nunca mais ninguém o apanha.
Simon correu para a porta da cozinha, abriu-a com um pontapé e entrou segurando a pistola diante de si. O cheiro desagradável de uma cozinha industrial. O seu olhar percorreu rapidamente as bancadas e os fogões de metal polido, as filas de panelas, conchas e espátulas suspensas do teto baixo e que lhe tapavam a vista. Simon acocorou-se para procurar sombras ou movimento.
– O chão – disse Sonny.
Simon olhou para baixo. Manchas vermelhas nos mosaicos azul-acinzentado. Os seus olhos não lhe tinham pregado uma partida, uma das balas acertara no alvo.
Ouviu ao longe o som de uma porta a bater.
– Anda daí.
O rasto de sangue levou-os para lá da cozinha, ao longo de um corredor escuro onde Simon tirou os óculos de sol, subiu umas escadas e seguiu por outro corredor, que terminava numa porta de metal. Uma porta que devia ter feito precisamente o barulho que eles tinham acabado de ouvir. Ainda assim, Simon não deixou de verificar todas as portas ao longo do corredor e de espreitar lá para dentro. Nove em cada dez homens a fugirem de dois homens e uma Uzi escolhiam sempre seguir o caminho mais curto e a saída mais óbvia, no entanto, o Gémeo era o décimo homem. Sempre frio, sempre racional e calculista. O tipo que sobrevive a um naufrágio. Ele podia simplesmente ter batido com a porta para os desorientar.
– Estamos a perdê-lo – disse Sonny.
– Mantém a calma – disse Simon e abriu a última porta lateral. Nada.
E as manchas de sangue eram agora inequívocas. O Gémeo encontrava-se atrás da porta de metal.
– Preparado? – perguntou Simon.
Sonny anuiu e posicionou-se com a Uzi apontada diretamente à porta.
Simon fundiu-se com a parede ao lado da ombreira, baixou o manípulo e abriu a porta de metal.
Viu Sonny ser atingido. Pelo sol.
Simon saiu para o exterior. Sentiu o vento no rosto.
– Raios...
Olhavam para uma rua vazia banhada pelo sol matinal. A rua era a Ruseløkkveien, que atravessava a Munkedamsveien e desaparecia lá em cima na direção dos Jardins do Palácio. Nem carros nem pessoas.
E nem sinal do Gémeo.
47 Segundo a mitologia grega, era uma das três Górgonas. Filha de Fórcis e Ceto, quem quer que olhasse diretamente para ela era transformado em pedra. Ao contrário das suas irmãs, Esteno e Euríale, Medusa era mortal. Foi decapitada pelo herói Perseu, que utilizou posteriormente a sua cabeça como arma, até a oferecer à deusa Atena, que a colocou no seu escudo. (N. da T.)
43
–O rasto de sangue termina aqui – disse Simon, apontando para o alcatrão. O Gémeo devia ter-se apercebido de que estava a deixar um rasto de sangue e conseguira estancar o fluxo. Era daqueles que sobrevivem a um naufrágio.
Olhou para a Ruseløkkveien deserta. Deixou que o seu olhar percorresse a Igreja de S. Paulo e passasse a pequena ponte onde a rua curvava e desaparecia de vista. Olhou para a esquerda e para a direita do outro lado da Munkedamsveien. Nada.
– Raios, ele... – Sonny bateu com a Uzi na coxa, manifestando a sua frustração.
– Se ele ficasse numa das ruas, ainda chegávamos a tempo de vê-lo – disse Simon. – Deve ter entrado em qualquer lado.
– Onde?
– Não faço ideia.
– Talvez ele tivesse um carro aqui.
– Talvez. Olha! – Simon apontou para o chão entre os sapatos de Sonny. – Olha, está ali outra mancha de sangue. E se...
Sonny abanou a cabeça e abriu o casaco. A parte lateral da camisa lavada que Simon lhe dera estava vermelha.
Simon praguejou silenciosamente.
– Aquele sacana conseguiu reabrir a ferida?
Sonny encolheu os ombros.
Simon deixou que o seu olhar vagueasse de novo lá para cima. Não era permitido o estacionamento na rua. Não havia nenhuma loja aberta. Apenas portões fechados que davam acesso a quintais. Para onde podia ele ter ido? Vê por outra perspetiva, pensou Simon. Compensa os ângulos mortos. Deixa que... Deslocou o olhar. As suas pupilas reagiram a algo. Um forte clarão de luz solar a fazer ricochete numa pequena peça de vidro em movimento. Ou metal. Latão.
– Venha – disse Sonny. – Vamos tentar de novo o restaurante, talvez ele...
– Não – respondeu Simon em voz baixa. Um puxador de porta em latão. Uma mola que obriga a porta a fechar-se lentamente depois de entrarmos. Um local que está sempre aberto. – Estou a vê-lo.
– Está?
– A porta da igreja ali em cima, consegues vê-la?
Sonny olhou.
– Não.
– Ainda está a fechar-se. Ele está dentro da igreja. Vamos.
Simon correu. Colocou um pé diante do outro e arrancou. Foi uma ação simples, algo que fazia desde os seus tempos de rapaz. Fartara-se de correr, todos os anos um pouco mais depressa. E depois, todos os anos, um pouco mais devagar. Nem os seus joelhos nem a sua respiração se conseguiam coordenar como antes. Simon conseguira acompanhar Sonny nos primeiros vinte metros, depois o rapaz distanciara-se. Levava pelo menos cinquenta metros de avanço quando Simon o viu galgar os três degraus, escancarar a pesada porta e desaparecer lá dentro.
Simon abrandou. Esperou pela pancada. O som destacado, quase pueril que as armas de fogo emitiam quando as ouvíamos através de uma parede. Isso não aconteceu.
Subiu os degraus. Abriu a pesada porta e entrou.
O cheiro. O silêncio. O peso da fé de tantos seres.
Os bancos estavam vazios, no entanto, havia velas acesas no altar e Simon lembrou-se de que a missa da manhã começaria dali a meia hora. As velas tremularam na direção do Salvador na cruz. Depois, ouviu a voz sussurrada e virou-se para a esquerda.
Sonny estava sentado no cubículo aberto do confessionário com a Uzi apontada ao painel de madeira perfurada que separava o outro cubículo, cujas cortinas pretas quase cobriam a abertura no painel. Havia apenas uma nesga entre a cortina e o painel, no entanto, Simon conseguiu ver uma mão através dela. E, no chão de pedra, debaixo da cortina, uma poça de sangue alastrava lentamente.
Simon aproximou-se de mansinho; conseguiu ouvir o murmúrio de Sonny:
– Que todos os deuses terrenos e celestiais tenham misericórdia de ti e perdoem os teus pecados. Vais morrer, mas a alma do pecador arrependido será conduzida ao Paraíso. Amén.
Depois o silêncio.
Simon viu Sonny crispar o dedo à volta do gatilho.
Simon guardou a sua arma no coldre de ombro. Não ia fazer nada, nada de nada. O veredito do rapaz seria pronunciado e executado. O seu próprio julgamento ficaria para mais tarde.
– Sim, nós matámos o teu pai. – A voz do Gémeo soou fraca por detrás da cortina. – Teve de ser. A toupeira disse-me que o teu pai planeava matá-lo. Estás a ouvir?
Sonny não respondeu. Simon susteve a respiração.
– Ele ia fazê-lo naquela precisa noite, nas ruínas medievais em Maridalen – prosseguiu o Gémeo. – A toupeira disse que a Polícia andava atrás dele, que era apenas uma questão de tempo antes de ser denunciado. Por isso, ele queria que simulássemos a sua morte como se fosse um suicídio. Dar a impressão de que o teu pai era a toupeira, para que a Polícia cancelasse a busca. Eu concordei. Tinha de proteger a minha toupeira, não é?
Simon viu Sonny humedecer os lábios:
– E quem é ele, esta toupeira?
– Não sei. Juro. Nós só comunicávamos por e-mail.
– Nesse caso, nunca irão saber. – Sonny levantou de novo a Uzi, curvou o dedo à volta do gatilho. – Está preparado?
– Espera! Tu não precisas de me matar, Sonny, eu já estou aqui a esvair-me em sangue. Só te peço que me deixes despedir dos que me são caros antes de morrer. Eu deixei o teu pai escrever um bilhete, dizendo-te a ti e à tua mãe que vos amava. Por favor, podes mostrar a mesma misericórdia com este pecador?
Simon conseguia ver o peito de Sonny subir e descer. Os músculos contraíram-se-lhe ao longo da linha do maxilar.
– Não – gritou Simon. – Não lhe dês esse prazer, Sonny. Ele...
Sonny virou-se para ele. Havia brandura nos seus olhos. A brandura de Helene. Ele baixara já a Uzi.
– Simon, ele só está a pedir que...
Simon viu o movimento no intervalo na cortina, a mão a ser erguida. Uma pistola-isqueiro dourada. E Simon apercebeu-se de imediato que não havia tempo suficiente. Não o suficiente para avisar Sonny e ele ter uma reação, não o suficiente para ele sacar a sua própria arma do coldre de ombro, não o suficiente para dar a Else o que ela merecia. Ele empoleirara-se no corrimão da ponte sobre o Aker e o rio corria enfurecido debaixo dele.
Então, Simon atirou-se.
Atirou-se para fora da vida e para dentro da maravilhosa roleta sempre a andar à roda. Não eram necessárias nem inteligência nem coragem, apenas a loucura de um homem condenado que está disposto a arriscar um futuro que não preza muito, que sabe que tem menos a perder do que os outros. Atirou-se para dentro do cubículo aberto entre o Filho e o painel de madeira perfurada. Ouviu o disparo. Sentiu a mordedura, a ferroada paralisante de gelo ou calor dilacerar-lhe o corpo ao meio, as ligações serem cortadas.
E depois ouviu outro som. A Uzi. A cabeça de Simon estava no chão dentro do cubículo e sentiu estilhas de madeira do painel choverem sobre o seu rosto. Ouviu um grito; levantou a cabeça e viu o Gémeo sair a cambalear do confessionário e vacilar entre os bancos, viu as balas atacarem as costas do seu fato como um enxame de abelhas enfurecidas. Os cartuchos vazios da Uzi – ainda incandescentes – caíam em cascata sobre Simon, queimando-lhe a testa. O Gémeo derrubou bancos, caiu de joelhos, no entanto, continuou a mover-se. Recusava-se a morrer. Aquilo não era natural. Há muitos anos, quando Simon soube que a mãe de um dos homens mais procurados da Noruega estava a trabalhar na esquadra da Polícia como empregada de limpeza e decidira ir procurá-la, fora a primeira coisa que ela dissera: que Levi não era natural. Ela era mãe dele e amava-o, como é óbvio, mas deixara-a apavorada mal nascera, e não apenas por causa do seu tamanho.
E ela falara-lhe daquela altura em que levara o filho ainda jovem, mas já gigantesco, para a ajudar no trabalho porque não tinha ninguém em casa que cuidasse dele e que ele tinha olhado para o seu reflexo num balde com água no carrinho de limpeza e dissera que estava alguém lá dentro, alguém que era igualzinho a ele. Sissel sugerira que talvez pudessem brincar juntos e fora despejar os cestos dos papéis. Quando ela regressara, Levi tinha enfiado a cabeça no balde e agitava desesperadamente as pernas no ar. Os ombros tinham ficado presos dentro do balde, pelo que ela tivera de usar de todas as suas forças para o retirar. Ele ficara completamente encharcado e com o rosto todo roxo. Mas, em vez de chorar como teria feito a maior parte das crianças, rira-se às gargalhadas. E respondera que o Gémeo tinha sido mau, tentara matá-lo. A partir daquele momento, ela perguntara-se de onde poderia ele ter vindo e só se sentira livre no dia em que ele saíra de casa.
O Gémeo.
Apareceram dois buracos por cima das pregas gordas entre o seu pescoço grosso e possante e os movimentos cessaram subitamente.
Claro, pensou Simon. Um filho único perfeitamente normal.
E teve noção de que o homenzarrão estava morto mesmo antes de cambalear e a testa dele embater no chão de pedra com uma pancada surda.
Simon fechou os olhos.
– Simon, onde...?
– O meu peito – disse Simon e tossiu. Percebeu, pela consistência na sua pele, que era sangue.
– Vou chamar uma ambulância.
Simon abriu os olhos. Observou-se. Viu a mancha de sangue vermelho-escuro espraiar-se no peitilho da camisa.
– Não vou sobreviver, não te incomodes.
– Vai, sim...
– Ouve. – Sonny pegara no telemóvel, no entanto, Simon cobriu-o com a própria mão. – Eu percebo bastante de ferimentos de bala, certo?
Sonny colocou a mão no peito de Simon.
– Não vale a pena – disse Simon. – Foge daqui. Estás liberto, fizeste o que tinhas a fazer.
– Não fiz, não.
– Foge por mim – disse Simon, agarrando a mão do rapaz. Sentiu-a tão quente e familiar, como se fosse a sua. – A tua tarefa terminou.
– Não se mexa.
– Eu disse que a toupeira estaria aqui hoje, e esteve. E agora está morta. Por isso, foge.
– A ambulância não tardará a chegar.
– Porque não ouves...
– Se ao menos se calasse...
– Era eu, Sonny. – Simon fitou os olhos cristalinos e doces do rapaz. – Eu era a toupeira.
Simon ficou à espera de que as pupilas do rapaz se dilatassem com o choque, que o negro desalojasse a íris verde-vivo. No entanto, isso não aconteceu. E ele compreendeu.
– Tu sabias, Sonny. – Simon tentou engolir, mas foi obrigado a tossir de novo. – Tu sabias que era eu. Como?
Sonny limpou o sangue da boca de Simon com a manga da camisa.
– O Arild Franck.
– O Franck?
– Depois de eu lhe cortar o dedo, ele começou a falar.
– A falar? Ele não sabia nada sobre mim. Ninguém sabia que o Ab e eu éramos as toupeiras, Sonny, ninguém.
– Não, mas o Franck contou-me aquilo que ele sabia. Que a toupeira tinha um nome de código.
– Ele contou-te isso?
– Sim. O nome de código era o Mergulhador.
– O Mergulhador, sim. Era esse o nome que eu usava quando contactava o Gémeo. Nessa altura, uma pessoa costumava chamar-me isso, sabes. Apenas uma pessoa. Diz-me lá, como ficaste a saber...?
Sonny tirou algo do bolso do casaco. Segurou-o diante de Simon. Era uma fotografia. Tinha manchas de sangue secas e viam-se dois homens e uma mulher junto a um dólmen, todos eles jovens e a rirem-se.
– Quando eu era miúdo, costumava olhar para o nosso álbum de fotos e foi aí que vi esta, que tinha sido tirada nas montanhas. E perguntei à minha mãe quem era ele, esse misterioso fotógrafo com aquela alcunha interessante, o Mergulhador. E ela contou-me. Que era Simon, o terceiro de três melhores amigos. Que ela o alcunhara de o Mergulhador, porque ele mergulhava nos sítios onde mais ninguém ousava.
– Portanto, somaste dois mais dois...
– O Franck não sabia da existência de duas toupeiras. Mas o que ele me contou fez com que tudo se encaixasse. Que o meu pai ia denunciá-lo. Por isso, você matou-o antes que ele pudesse fazê-lo.
Simon pestanejou, no entanto o escuro continuava a avançar sorrateiramente da periferia do seu campo de visão. Mesmo assim, conseguia ver com mais clareza do que nunca.
– E então, decidiste matar-me. Foi por isso que me contactaste. Querias ter a certeza de que eu te encontrava. Tu só estavas à minha espera.
– Sim – disse Sonny. – Até ao momento em que encontrei o diário e compreendi que o meu pai estava metido nisso. Que vocês eram dois. Dois traidores.
– Então, o teu mundo desmoronou-se e abandonaste a tua missão. Já não existia nenhum motivo para matar.
Sonny anuiu.
– Nesse caso, o que te levou a mudar de ideias?
Sonny olhou-o demoradamente.
– Algo que me disse. Que a responsabilidade de um filho não é ser igual ao pai, mas ser...
– ...melhor do que ele. – Sentiu a mão de Sonny na sua testa. – Então, sê-o, Sonny. Sê melhor do que o teu pai.
– Simon?
– Sim?
– Está a morrer. Há alguma coisa que queira muito?
– Quero dar-lhe o dom da visão.
– E o perdão, não o quer?
Simon voltou a fechar os olhos e abanou a cabeça.
– Não posso... não o mereço.
– Nenhum de nós merece. Errar é humano, perdoar é divino.
– Mas eu não te sou nada, não passo de um desconhecido que te levou as pessoas que amavas.
– É alguém, é o mergulhador que esteve sempre com eles, mas não aparecia na fotografia. – O rapaz levantou o casaco de Simon e introduziu a fotografia no bolso interior. – Leve-a consigo na sua viagem, eles eram seus amigos.
Simon fechou os olhos. Pensou: Por mim, tudo bem.
As palavras do Filho ecoaram no espaço da igreja vazia:
– Que todos os deuses terrenos e celestiais tenham misericórdia de ti e perdoem os teus pecados...
Simon olhou para uma gota de sangue que acabara de pingar de dentro do casaco do rapaz e caíra no chão da igreja. Passou um dedo pela superfície vermelho-dourada da gota. Reparou que o sangue parecia colar-se-lhe à ponta do dedo; levou o dedo aos lábios e fechou os olhos. Fitou a queda de água branca e cheia de espuma. A água. Um abraço gélido. Silêncio, solidão. E paz. E, desta vez, não viria à superfície.
* * *
No silêncio que se seguiu à reprodução da gravação pela segunda vez, Kari ouviu o chilreio impávido das aves do lado de fora da janela meio aberta lá ao fundo da churrascaria.
O comissário olhava para o computador portátil, incrédulo.
– Posso? – perguntou Øhre.
– Pode – disse Parr.
O advogado retirou o cartão de memória e entregou-o a Parr.
– Reconheceu aquela voz?
– Reconheci – disse Parr. – O nome dele é Arild Franck, e é o homem que está realmente à frente da Prisão Estatal de Segurança Máxima. Adel, importa-se de verificar se aquela conta que ele menciona nas ilhas Caimão existe mesmo? Se o que ele diz é verdade, estamos perante um enorme escândalo.
– Lamento sabê-lo – disse Øhre.
– De modo algum – respondeu Parr. – As minhas suspeitas já vêm de há anos. Recentemente, recebemos informações de um agente da Polícia corajoso, em Drammen, que deu a entender que a Estatal concedera um dia de precária ao Lofthus para que ele pudesse arcar com a culpa do homicídio da Morsand. Temos estado a reter essa informação até termos a certeza de que existe um caso sólido antes de irmos atrás do Franck, mas com isto devemos ter elementos mais do que suficientes. Uma última coisa antes de irmos...
– Sim?
– O inspetor-chefe Kefas disse por que motivo queria que se encontrasse connosco, em vez de ser ele a ir ter consigo?
Iversen trocou olhares com Øhre antes de encolher os ombros.
– Ele disse que estava ocupado com outros assuntos. E que os senhores eram os únicos colegas em quem ele confiava a cem por cento.
– Compreendo – disse Parr e levantou-se para sair.
– Só mais uma coisa... – disse Øhre e pegou no telemóvel.
– O meu cliente referiu o meu nome ao inspetor-chefe Kefas, que me contactou para perguntar se eu podia organizar o transporte e o pagamento de uma operação à vista amanhã na Clínica Howell em Baltimore. Eu disse que sim. E tenho uma mensagem da nossa rececionista a informar-me de que, há uma hora, chegou uma mulher ao nosso escritório e entregou um saco de desporto vermelho. O saco contém uma avultada quantia em dinheiro. Só quero saber se isto é algo que a Polícia estivesse interessada em investigar?
Kari apercebera-se de que o canto da ave, do lado de fora da janela, tinha cessado e fora substituído por sirenes ao longe. Eram várias. Carros da Polícia.
Parr pigarreou.
– Não vejo como esta informação possa ser relevante para a Polícia. E, atendendo a que a pessoa que fez o pedido deve ser agora considerada sua cliente, nesse caso, o senhor está abrangido, no que me concerne, pela confidencialidade advogado-cliente e não poderia fornecer-me quaisquer informações se eu lhas pedisse.
– Excelente. Nesse caso, temos a mesma perspetiva da situação – respondeu Øhre, e fechou a pasta.
Kari sentiu o seu telemóvel vibrar no bolso, levantou-se rapidamente, afastou-se da mesa e pegou nele. O berlinde veio agarrado ao telemóvel e caiu no soalho de madeira com uma pancada surda.
– Adel.
Ela olhou para o berlinde, que pareceu hesitar, não saber se rolar ou ficar onde estava. No entanto, após uma ligeira tremura, deslocou-se vacilante em direção a sul.
– Obrigado – disse Kari e voltou a guardar o telemóvel no bolso. Virou-se para Parr, que fazia menção de se levantar. – Há quatro corpos num restaurante de peixe chamado Nautilus.
Parr pestanejou quatro vezes por detrás dos óculos e Kari ficou curiosa em saber se era algum tipo de reação compulsiva, piscar uma vez por cada novo corpo que lhe aparecia.
– Onde é que isso fica?
– Aqui.
– Aqui?
– Aqui em Aker Brygge. Fica a cerca de cem metros.
Os olhos de Kari tinham voltado a encontrar o berlinde.
– Vamos embora.
Ela teve vontade de correr para apanhar o berlinde.
– De que está à espera, Adel? Vamos lá!
O berlinde adquirira um ritmo constante e ganhava velocidade; se ela não se decidisse rapidamente, ia perdê-lo.
– Muito bem – disse ela e correu atrás de Parr. As sirenes da Polícia ouviam-se agora mais perto, o ruído intensificava-se e esmorecia, cortava o ar como uma foice.
Correram lá para fora, para o sol luminoso, para uma manhã cheia de promessas, para a cidade azul. Continuaram a correr e as pessoas apressadas àquela hora da manhã afastavam-se à frente deles. Os rostos apareciam e desapareciam do campo de visão de Kari. E, algo no seu subconsciente reagiu a um deles. Óculos de sol e um fato cinzento-claro. Parr seguiu na direção da rua estreita para onde tinham visto diversos agentes da Polícia precipitarem-se. Kari estacou, virou-se e viu as costas do fato cinzento a bordo do ferryboat para Nesoddtangen, que se preparava para partir. Depois, deu meia-volta e continuou a correr.
Martha baixara a cobertura do descapotável e encostara a cabeça ao apoio para a nuca. Olhou para uma gaivota que pairava no vento entre o céu azul e o fiorde também azul. Equilibrando as forças, as suas e as externas, enquanto procurava comida. A respiração dela era profunda e regular, contudo, o seu coração batia porque o ferry se preparava para atracar no cais. Havia poucas pessoas a viajar de Oslo para Nesoddtangen àquela hora da manhã, por isso, não seria difícil avistá-lo. Se ele tivesse conseguido. Se. Ela murmurou a prece que repetia desde que saíra da Tomte & Øhre, há hora e meia. Ele não chegara a apanhar o ferry anterior, que partira trinta minutos antes, no entanto, ela dissera de si para si que isso seria esperar demasiado. Mas se ele não apanhara este... Sim, e depois? Ela não tinha nenhum plano B. Não quisera tê-lo.
Os passageiros apareceram. Sim, ela tinha razão, não eram muitos, a tendência das pessoas era viajarem para a cidade de manhã, e permanecerem lá. Tirou os óculos de sol com aros de tartaruga. O seu coração sobressaltou-se quando viu o fato cinzento-claro. Mas não era ele.
O coração caiu-lhe aos pés.
Depois, apareceu outro fato cinzento.
Ele vinha ligeiramente inclinado, como se tivesse metido água e tombasse.
Ela sentiu o coração avolumar-se-lhe no peito, obrigando os soluços a subirem-lhe à garganta. Talvez fosse apenas a luz matinal enviesada a incidir no seu fato cinzento-claro, mas ele dava a sensação de brilhar.
– Obrigada – murmurou ela. – Obrigada, obrigada.
Olhou pelo espelho retrovisor, enxugou as lágrimas e endireitou o lenço de cabeça. Depois acenou. E ele correspondeu.
E enquanto ele subia a colina até onde ela tinha estacionado, ocorreu-lhe um pensamento: que era bom de mais para ser verdade. Que ela estava a olhar para uma miragem, um fantasma, que ele morrera, fora alvejado, que, naquele preciso momento, ele se encontrava suspenso num farol, crucificado, e que ela estava a olhar para a sua alma.
Ele entrou no carro com imenso cuidado e tirou os óculos de sol. Estava pálido. E ela percebeu, pelos seus olhos vermelhos, que estivera a chorar. A princípio, julgou que o tremor devia ser seu, antes de se aperceber de que provinha do corpo dele.
– Como...?
– Muito bem – disse ele, sem a largar. – Correu tudo bem.
Ficaram sentados em silêncio, agarrados um ao outro como duas pessoas cuja única fixação é a outra. Queria fazer-lhe perguntas, mas não naquele momento. Haveria imenso tempo para isso depois.
– E agora? – murmurou ela.
– Agora – disse ele, soltando-a delicadamente e sentando-se direito com um gemido. – Agora vai começar. Mas que mala tão grande. – Fez um movimento com a cabeça na direção do banco traseiro.
– Apenas o estritamente essencial – sorriu ela, introduzindo o CD no leitor e entregando-lhe o telemóvel. – Eu conduzo na primeira etapa. Importas-te de ser o copiloto?
Ele olhou para o visor do telemóvel quando a voz robótica e monótona começou a entoar:
– My own... personal...
– Mil e trinta quilómetros – disse ele. – Tempo de viagem estimado doze horas e cinquenta e um minutos.
EPÍLOGO
Os flocos de neve davam a impressão de sobressair de um céu insondável e incolor e colar-se a um teto de alcatrão, passeios, carros e casas.
Kari estava curvada nas escadas e acabara de apertar os atacadores das suas botas de cano curto, pelo que via tudo ao contrário quando olhava por entre as pernas. Simon tinha razão. Víamos as coisas de uma maneira diferente quando mudávamos a perspetiva e a localização. Todos os ângulos mortos podiam ser compensados. Ela demorara a aperceber-se disso. A aperceber-se de que Simon Kefas tivera razão em tantas coisas. Nem todas. Mas em tão grande medida que chegava a causar irritação.
Ela endireitou-se.
– Tem um excelente dia, querida – disse a rapariga à porta, dando um beijo nos lábios de Kari.
– E tu também.
– Provavelmente, lixar soalhos não será compatível com ter um excelente dia. Mas vou tentar. Quando é que chegas a casa?
– À hora do jantar, a menos que aconteça alguma coisa.
– Tudo bem, mas parece que acabou de acontecer.
Kari virou-se para a direção que Sam apontava. O carro que parara junto ao portão era familiar e o rosto por cima do vidro descido era-o ainda mais.
– O que aconteceu, Åsmund? – gritou Sam.
– Peço desculpa por interromper o seu Faça-Você-Mesma, mas preciso de lhe roubar a sua senhora – gritou-lhe o inspetor. – Aconteceu algo.
Kari olhou para Sam, que bateu no bolso traseiro das suas calças de ganga. No outono, Kari arrumara a saia e o casaco do fato novamente no roupeiro e, por alguma razão, ali tinham ficado.
– Vai e presta um bom serviço público, rapariga.
Enquanto seguiam pela E18, Kari ia olhando para a paisagem coberta de neve. A pensar que os primeiros nevões traçavam sempre uma linha divisória, escondendo tudo o que ali existira antes e mudando o mundo para o qual se olhava. Os meses que se seguiram aos tiroteios em Aker Brygge e na igreja católica tinham sido caóticos. Como era de esperar, a Polícia fora objeto de duras críticas, acusações de brutalidade e a missão insana de um homem só. No entanto, mesmo assim, Simon tivera um funeral de herói, ele era o polícia do povo, alguém que combatera os criminosos da cidade, colocara a sua vida ao serviço da justiça. Como frisara o comissário Parr no seu elogio fúnebre, o público estava preparado para esquecer o facto de ele não ter seguido escrupulosamente as regras. Nem o Direito norueguês, já agora. Parr podia dar-se ao luxo de uma certa flexibilidade moral, atendendo a que ele próprio extravasara os limites da legislação fiscal norueguesa colocando algum do seu dinheiro em paraísos fiscais anónimos nas ilhas Caimão. Kari confrontara Parr no velório, porque a sua investigação para apurar quem pagava as faturas da casa de Lofthus acabara por levá-la até ele. E Parr confessara logo, acrescentando que não tinham sido infringidas quaisquer leis e que o seu motivo tinha sido puramente altruísta: aliviar a sua consciência por não ter cuidado de Sonny e da mãe dele depois do suicídio de Ab. Parr dissera que não ficara barato, mas isso significava que o rapaz tinha uma casa com condições de habitabilidade onde morar assim que terminasse de cumprir a sua pena.
* * *
Pouco tempo depois, as pessoas começaram também a mentalizar-se de que o Buda com a Espada tinha desaparecido sem deixar rasto. A sua cruzada parecia ter terminado com a morte de Levi Thou, também conhecido como o Gémeo.
A vista de Else melhorara consideravelmente. Ela dissera a Kari, que a visitara algumas semanas depois do funeral, que a operação nos Estados Unidos tivera oitenta por cento de sucesso. Que quase nada era perfeito. Nem a vida, nem as pessoas, nem Simon. Apenas o amor.
– Ele nunca a esqueceu. A Helene. Ela foi o amor da vida dele. – Ainda era verão e elas estavam sentadas em cadeiras reclináveis no jardim de Else, em Disen, a beber vinho do Porto e a assistir ao pôr do sol. E Kari apercebera-se de que Else tomara a decisão de partilhar isto consigo. – Ele contou-me que os outros dois que a cortejavam, o Ab e o Pontius, eram mais simpáticos, mais fortes e mais inteligentes. Mas que fora ele quem a vira tal como ela era. Isso era o mais estranho em Simon. Ele via as pessoas, via os seus anjos e os seus demónios. Ao mesmo tempo que lutava contra o seu próprio demónio, claro. O Simon era viciado em jogo.
– Ele contou-me.
– Ele e a Helene começaram a encontrar-se, mas a dívida de jogo dele transformou as suas vidas num inferno. Não durou muito, no entanto, o Simon sentia que estava a arrastá-la consigo para o fundo quando apareceu o Ab Lofthus e a salvou dele. O Ab e a Helene mudaram-se. O Simon ficou destroçado. E, pouco tempo depois, soube que ela estava grávida. Jogou como um louco, perdeu tudo e estava à beira do abismo. Depois, foi procurar o diabo e ofereceu-lhe a única coisa que lhe restava. A sua alma.
– Ele foi procurar o Gémeo?
– Sim. O Simon era uma das poucas pessoas que sabiam quem era o Gémeo e como contactá-lo. Só que o Gémeo nunca soube quem eram o Simon e o Ab, as informações que lhe davam chegavam através de telefonemas ou de cartas. A seu tempo, pelo computador.
Com o silêncio que se seguiu, chegou-lhes o zumbido do trânsito vindo da Trondsheimsveien e do Sinsenkrysset48.
– O Simon e eu contávamos tudo um ao outro, mas ele tinha dificuldade em falar sobre este assunto. O facto de ele ter vendido a sua alma. Lá no fundo, ele consciencializara-se de que desejava sentir vergonha, abjeção, repulsa, porque isso entorpecia a outra dor. Era uma forma de autodestruição mental.
Alisou o vestido. Ali sentada, parecia tão frágil e, no entanto, tão forte, pensou Kari.
– No entanto, para Simon, o pior foi o que ele fez ao Ab. Ele odiava o Ab por lhe ter roubado a única coisa que tinha valor para ele. Ele arrastara o Ab consigo para o abismo. O Ab e a Helene estavam fortemente endividados quando se deu a crise da banca e as taxas de juro dispararam; só uma coisa podia salvá-los de perderem a casa e isso era dinheiro rápido. Assim, depois de o Simon ter feito um acordo com o Gémeo, foi ter diretamente com o Ab e fez-lhe uma proposta. A princípio, o Ab recusou e ameaçou fazer queixa do Simon ao chefe dele. Depois, o Simon usou o calcanhar de Aquiles do Ab. O filho dele. Disse-lhe que era assim que sucedia na vida real, e que o seu filho ia pagar o preço do orgulho do pai e crescer pobre. Simon afirmara que aquilo fora o pior, ver o Ab consumir-se, perder a alma. Mas também que o fizera sentir-se menos solitário. Até ao momento em que o Gémeo quisera que a sua toupeira subisse nas fileiras da Polícia, e deixara de haver espaço para ambos.
– Porque me está a contar isto, Else?
– Porque ele me pediu que o fizesse. Ele entendia que devia saber antes de fazer a sua escolha.
– Ele pediu-lhe que fizesse isso? Ele sabia que ia...?
– Não sei, Kari. Ele apenas me disse que via muito dele em si. Ele queria que você aprendesse com os seus próprios erros enquanto agente da Polícia.
– Mas ele sabia que eu não ia ficar na Polícia.
– Não vai?
Os raios de sol brilharam sombriamente no porto quando Else levou o copo aos lábios, bebendo cuidadosamente antes de voltar a pousá-lo.
– Quando o Simon se apercebeu de que o Ab Lofthus estava disposto a matá-lo para ocupar o único lugar junto do Gémeo, ele contactou este último e disse-lhe que tinha de eliminar o Ab, que ele andava atrás de ambos, que era urgente. Dissera que ele e o Ab eram gémeos idênticos que tinham o mesmo pesadelo, que era cada um matar o outro. Então, ele antecipou-se ao Ab. O Simon matou o seu melhor amigo.
Kari engoliu em seco. Reprimiu as lágrimas.
– Mas arrependeu-se? – murmurou ela.
– Sim, arrependeu-se. Deixou de ser a toupeira. Ele podia ter continuado. Mas depois a Helene morreu. O Simon chegara ao fim do caminho, tinha perdido tudo o que havia a perder. Portanto, já não havia nada a temer. E ele passou o resto da vida a penitenciar-se. A reparar erros. E foi implacável na perseguição daqueles que eram corruptos, tal como ele o fora em tempos, e isso não granjeia muitos amigos na Polícia. Tornou-se solitário. Mas nunca sentiu pena de si mesmo, achava que a sua solidão era merecida. Recordo-me de ele dizer que repulsa é aquele tipo de ódio que sentimos todas as manhãs quando acordamos e nos olhamos ao espelho.
– A Else salvou-o, não salvou?
– Ele chamou-me o seu anjo. Mas não foi o meu amor por ele que o salvou. Contrariando o que os chamados sábios dizem, argumentarei que ser amado nunca salvou ninguém. Foi o amor que ele nutria por mim que o fez. Ele salvou-se a si próprio.
– Amando-a também.
– Amén.
Ficaram sentadas lá fora até à meia-noite, altura em que Kari se retirou.
À saída, no hall, Else mostrara-lhe a fotografia. Três pessoas diante de um dólmen.
– O Simon tinha esta fotografia com ele quando morreu. Aqui está a Helene.
– Eu vi uma fotografia dela na casa amarela antes de ter sido incendiada. Disse ao Simon que ela tinha ar de cantora ou atriz.
– A Mia Farrow. Ele levou-me a ver A Semente do Diabo, só para poder olhar para ela. Embora ele afirmasse que não conseguia ver a parecença.
Curiosamente, a fotografia enterneceu Kari. Era algo nos sorrisos deles. O otimismo. A fé.
– A Else e o Simon nunca falaram em ter filhos?
Ela abanou a cabeça.
– Ele tinha receio.
– De quê?
– De que os seus próprios vícios fossem transmitidos. O gene do vício. A temeridade destrutiva. A falta de limites. Os estados depressivos. Creio que ele receava poder vir a ser o filho do diabo. Eu costumava provocá-lo e ele respondia que devia ter algures um filho ilegítimo e que era por isso que tinha medo.
Kari anuíra. A Semente do Diabo. Ela recordava-se da velhota que fazia a limpeza da esquadra da Polícia e de cujo nome haveria de lembrar-se.
Depois Kari despedira-se de Else e saíra para a noite de verão, em que primeiro uma brisa ligeira e depois o temporal a tinham apanhado num turbilhão até ficar ali sentada, dentro de um carro, a olhar para a neve pura e a pensar como ela transformava toda a paisagem. Como era frequente as coisas saírem diferentes do que se tinha planeado. Ela e Sam estavam já a tentar ter o primeiro bebé. Para sua própria surpresa, ela declinara primeiro uma entrevista de emprego do Ministério da Justiça e, mais tarde um emprego numa seguradora com um ordenado elevado.
Somente depois de terem deixado Oslo e atravessado a pequena ponte até ao caminho de gravilha é que ela perguntara a Åsmund o que tinha acontecido.
– A Polícia de Drammen ligou a pedir-nos ajuda – disse Åsmund. – A vítima é um armador. O Yngve Morsand.
– Santo Deus, é o marido.
– Sim.
– Homicídio? Suicídio?
– Não estou a par dos pormenores.
Estacionaram atrás dos carros da Polícia, transpuseram o portão na cerca de estacas e subiram até à porta da frente do casarão. Foram recebidos por um inspetor da Polícia de Buskerud. Ele abraçou Kari e apresentou-se a Bjørnstad como Henrik Westad.
– Pode tratar-se de suicídio? – perguntou Kari ao entrar.
– O que a leva a fazer semelhante pergunta? – questionou Westad.
– Dor pela perda da mulher – respondeu Kari. – Porque as pessoas suspeitaram que ele a tinha matado, e que, na realidade, ele a matou e não aguentou viver com a culpa.
– É possível... – disse Westad, enquanto os acompanhava à sala de estar.
Os ACC andavam praticamente a rastejar por cima do homem na cadeira. Como larvas brancas, pensou Kari.
– ...no entanto, tenho as minhas dúvidas – concluiu Westad.
Kari e Bjørnstad olharam para o corpo.
– Raios! – exclamou Bjørnstad em voz baixa a Kari. – Parece-lhe que... ele...?
Kari pensou nos ovos cozidos que preparara para o pequeno-almoço. Ou talvez já estivesse grávida; isso poderia explicar porque se sentia tão nauseada? Afastou a ideia e concentrou-se no corpo. Tinha um olho arregalado, uma pala preta no outro, e por cima da pálpebra havia uma borda denteada no ponto onde a cabeça fora serrada.
Jo Nesbo
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