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Series & Trilogias Literarias
Cerca de 200 anos depois de ter criado o seu monstro, Victor Frankenstein (agora conhecido como Victor Hélios), instalou-se em Nova Orleães. A sua investigação e as suas experiências estão cada vez mais
sofisticadas, já não tem de roubar cadáveres em cemitérios para construir as suas criaturas, e desenvolveu uma tecnologia que lhe permite escapar ao envelhecimento. O seu plano consiste em propagar por
Nova Orleães espécimes da sua Nova Raça de criaturas perfeitas, destinadas a exterminar e a substituir os "imperfeitos" seres humanos.
A única criatura capaz de travar este plano diabólico é o misterioso Deucalião - o primeiro "monstro" criado por Frankenstein.
Aparentemente imortal e indestrutível, Deucalião parece possuir também uma alma e uma consciência quase humanas. Mas será isso suficiente para impedir os planos do seu monstruoso criador?
"Um romance povoado de personagens inesquecíveis, com um enredo muito cativante."
1.
Deucalião raramente dormia, mas, quando o fazia, sonhava. O sonho era sempre um pesadelo. Nunca o apavorava. Afinal, ele nascera de pesadelos; e fora empedernido por uma vida de terror.
Durante a tarde, a dormir a sesta na sua modesta cela, sonhou que um cirurgião lhe abria o abdómen para inserir uma massa misteriosa e agitada. Acordado, mas algemado à mesa de operação, a Deucalião só
restava suportar a cirurgia.
Depois de ter sido cosido, sentira qualquer coisa a rastejar-lhe dentro do corpo, como se tivesse curiosidade, como se explorasse.
Por detrás da máscara, o cirurgião dissera:
- Aproxima-se um mensageiro. A vida muda com uma carta.
Acordara do sonho e soubera que este fora profético. Deucalião não tinha poderes psíquicos de cariz clássico mas, por vezes, os augúrios chegavam-lhe durante o sono.
Naquelas montanhas do Tibete, um ocaso de fogo conjurava uma miragem de ouro derretido feita de glaciares e campos cobertos de neve. Uma lâmina serrilhada de picos, os Himalaias, com o Evereste no cume,
recortava o céu.
Longe da civilização, aquele vasto panorama apaziguava Deucalião. Durante vários anos, preferira evitar as pessoas, excepto os monges budistas naquele topo do mundo varrido pelo vento.
Embora não matasse havia muito tempo, ainda albergava em si a capacidade de ter fúrias homicidas. Ali esforçava-se sempre por suprimir os seus impulsos mais tenebrosos, buscava a calma, e esperava encontrar
a paz genuína.
De uma varanda de pedra aberta nas paredes caiadas do mosteiro, a contemplar o campo de gelo inundado pelo sol, considerou, e não pela primeira vez, que aqueles dois elementos, o fogo e o gelo, definiam
a sua vida.
A seu lado, um monge idoso, Nebo, perguntou:
- Observas as montanhas - ou além delas, aquilo que deixaste para trás?
Embora Deucalião tivesse aprendido a falar vários dialectos tibetanos durante a sua longa estadia ali, ele e o velho monge costumavam falar em inglês, pois assim gozavam de alguma privacidade.
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- Não sinto grande falta desse mundo. Do mar. Do som das aves da costa. De alguns amigos. De Cheez-Its.
- Queijos? Aqui temos queijo.
Deucalião sorriu e pronunciou a palavra com maior clareza do que antes.
- Cheez-Its são bolachas com sabor a queijo. Aqui neste mosteiro procuramos luz, sentido, finalidade... Deus. Contudo, e não raro, são as mais humildes coisas da vida quotidiana, os pequenos prazeres,
que me parecem definir a existência. Receio ser um aluno frívolo, Nebo.
Nebo aconchegou-se mais na sua túnica de lã para se proteger das brisas invernosas e disse:
- Pelo contrário. Nunca tive nenhum menos frívolo. Só de ouvir falar em Cheez-Its, eu próprio fico intrigado.
Uma volumosa túnica de lã cobria o emaranhado de cicatrizes que era o corpo de Deucalião, embora o frio mais agreste raramente o incomodasse.
O mosteiro de Rombuk em forma de mandala - uma maravilha arquitectónica de paredes de tijolo, torres altaneiras e telhados graciosos - agarrava-se precariamente a uma encosta estéril: imponente, majestoso,
escondido do mundo. Dos lados das torres quadrangulares derramavam-se cascatas de degraus, até à base dos pisos principais que davam acesso a pátios interiores.
Bandeiras votivas amarelas, brancas, vermelhas, verdes e azuis garridas, representando os elementos, adejavam na brisa. Sutras cuidadosamente escritos enfeitavam as bandeiras, pelo que de cada vez que
o tecido ondulava ao vento, enviava simbolicamente uma prece na direcção do Céu.
Apesar do tamanho e da estranha aparência de Deucalião, os monges haviam-no aceitado. Ele absorvia-lhes os ensinamentos e filtrava-os através da sua experiência singular. Com o tempo, tinham-no abordado
com questões filosóficas, procurando a sua perspectiva única.
Desconheciam quem ele era, mas compreendiam intuitivamente que não era um homem normal.
Deucalião ficou muito tempo sem falar. Nebo aguardava a seu lado. O tempo pouco significava no mundo sem relógios dos monges e, após duzentos anos de vida, e talvez com mais do que isso pela frente, Deucalião
costumava viver sem consciência do tempo.
Os moinhos de orações tilintaram, agitados pelas brisas. A chamar para a oração crepuscular, um monge apareceu à janela de uma torre
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alta, e soprou uma trombeta de concha. No âmago do mosteiro, começaram a ouvir-se cânticos que ressoavam através da pedra fria.
Deucalião contemplou os desfiladeiros mais abaixo, cheios da luz púrpura do ocaso, a leste do mosteiro. De algumas das janelas de Rom-buk, poder-se-ia cair mais de trezentos metros até às rochas.
No lusco-fusco surgiu uma figura distante.
- Um mensageiro - disse ele. - O cirurgião do sonho disse a verdade.
O velho monge a princípio não conseguia ver o visitante. Os seus olhos, da cor do vinagre, pareciam ter sido desbotados pelo sol que incidia sem filtros naquela extrema altitude. Depois arregalaram-se.
- Temos de o ir receber ao portão.
Salamandras de luz derramadas pelos archotes rastejavam nas barras revestidas a ferro do portão principal e nas paredes de tijolo adjacentes.
Do lado de dentro do portão, especado no pátio exterior descoberto, o mensageiro contemplava Deucalião, abismado.
- Yeti - sussurrou ele, o nome que os Xerpas tinham inventado para o abominável homem das neves.
Com as palavras a saírem-lhe em plumas de hálito gelado, Nebo disse:
- Agora é hábito anteceder uma mensagem com um comentário grosseiro?
Tendo sido outrora perseguido como um animal, tendo vivido duzentos anos como o último marginal, Deucalião estava imunizado contra toda e qualquer maldade. Era incapaz de se sentir ofendido.
- Fosse eu um yeti - disse, falando na língua do mensageiro - e poderia ser assim tão alto. - Ele tinha dois metros de altura.
- Poderia ter esta musculatura. Mas seria muito mais peludo, não lhe parece?
- Parece-me... Parece-me que sim.
- Um yeti nunca faz a barba. - Acercando-se dele, como se contasse um segredo, Deucalião disse:
- Debaixo daquele pêlo todo, um yeti tem a pele muito sensível. Rosada, macia... Pronta a acusar o corte de uma navalha.
Ganhando coragem, o mensageiro perguntou:
- Então o que é você?
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- Pé Grande - respondeu Deucalião em inglês, e Nebo riu-se, mas o mensageiro não compreendeu.
Enervado com o riso do monge, a tremer por muito mais do que o ar gelado, o jovem mostrou um embrulho feito de pele de cabra muito gasta e bem amarrado com uma fita de couro.
- Tome. Cá dentro. Para si.
Deucalião enrolou um dedo possante na fita de couro, partiu-a e desdobrou a pele de cabra; lá dentro via-se um envelope, uma carta amarrotada e manchada pelo tempo que passara em trânsito.
O remetente era de Nova Orleães. O nome era o de um velho e fiel amigo, Ben Jonas.
Ainda a olhar disfarçada e nervosamente para a metade castigada do rosto de Deucalião, o mensageiro decidira evidentemente que a companhia de um yeti seria preferível à viagem de regresso pelo desfiladeiro
gelado no meio da escuridão.
- Posso abrigar-me aqui e pernoitar?
- Quem entrar por este portão - garantiu Nebo - pode ter tudo o que precisar. Se os tivéssemos, eu até lhe daria Cheez-Its.
Do pátio exterior, subiram a rampa de pedra que dava para o portão interior. Apareceram dois monges com lamparinas, como se respondessem a um chamado telepático para acompanharem o mensageiro aos aposentos
das visitas.
Na sala de recepção à luz das velas, numa alcova que cheirava a sândalo e a incenso, Deucalião leu a carta. As palavras manuscritas de Ben veiculavam uma mensagem importante, a tinta azul bem aplicada.
Com a carta vinha um recorte de jornal, o New Orleans Times--Picayune. O título e o artigo interessavam menos a Deucalião do que a fotografia que os acompanhava.
Embora os pesadelos não o apavorassem, embora há muito tivesse deixado de temer qualquer homem, a mão tremeu-lhe. O recorte puído fez um ruído estaladiço, como um insecto a fugir, nos seus dedos trémulos.
- Más notícias? - inquiriu Nebo. - Faleceu alguém?
- Pior. Alguém ainda está vivo. - Deucalião olhava, incrédulo, para a fotografia, que parecia mais fria do que gelo.
- Tenho de deixar Rombuk.
Esta afirmação entristeceu claramente Nebo.
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- Há muito me conforta a ideia de seres tu a dizer as orações aquando da minha morte.
- Com a bazófia que tens, não morres tão cedo - disse Deucalião.
- Estás tão bem conservado como picles em vinagre. Além disso, eu talvez seja a última criatura na Terra a quem Deus daria ouvidos.
- Ou talvez a primeira - disse Nebo com um sorriso enigmático mas sabedor.
- Está bem. Se tencionas caminhar outra vez no mundo além destas montanhas, primeiro permite que te dê um presente.
Como estalagmites cerosas, as velas amarelas erguiam-se em castiçais dourados e alumiavam suavemente a sala. A decorar as paredes, mandalas pintadas, padrões geométricos delimitados por um círculo representando
o cosmos.
Reclinado numa cadeira cheia de almofadas finas de seda carmesim, Deucalião olhava para o tecto de flores de lótus esculpidas e pintadas.
Nebo estava sentado obliquamente, encostado a ele e a estudar-lhe o rosto com a atenção de um erudito a decifrar pergaminhos com sutras complexos.
Nas décadas passadas em feiras, Deucalião fora aceite por feirantes como se não houvesse nele nada de extraordinário. Também eles eram todos marginais por escolha ou necessidade.
Ganhara bem a vida a trabalhar nos espectáculos de aberrações, os quais se chamavam dez-em-um, por oferecerem dez exposições numa mesma tenda.
No seu pequeno palco, ficava sentado de perfil, o lado bonito do seu rosto virado para o corredor de serradura por onde os basbaques passavam de cena para cena, da mulher gorda ao homem de borracha. Quando
se juntavam diante dele, perplexos ao vê-lo incluído em tal espectáculo, ele virava-se para revelar o lado estragado do seu rosto.
Os homens crescidos arquejavam e estremeciam. As mulheres desmaiavam, embora cada vez menos com o passar das décadas. Só podiam entrar adultos com dezoito anos ou mais, porque as crianças, ao vê-lo, poderiam
ficar traumatizadas para a vida.
Depois de revelar o rosto por completo, punha-se de pé e tirava a camisa, para lhes mostrar o corpo até à cintura. As cicatrizes quelóides, os vergões teimosos de suturas metálicas primitivas, as excrescências
estranhas...
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Agora ao lado de Nebo estava uma bandeja com um leque de finas agulhas de aço e frasquinhos diminutos com tintas multicores. Com grande destreza, o monge tatuava o rosto de Deucalião.
- Este é o presente que te dou, um padrão de protecção. - Nebo inclinou-se para inspeccionar a sua obra, e depois começou a traçar um motivo ainda mais complicado em vários tons de azul-escuro,
preto e verde.
Deucalião não se mexeu, assim como não teria gritado com as picadas de mil vespas.
- Estás a criar um quebra-cabeças na minha cara?
- O quebra-cabeças é a tua cara. - O monge sorriu para a sua obra e a tela irregular onde imprimia os seus desenhos ricos.
A escorrerem cor, a escorrerem sangue, as agulhas picavam, reluziam e tilintavam quando, a espaços, Nebo usava duas de cada vez.
- Com tanto que desenhar, eu deveria oferecer-te algo para a dor. O mosteiro tem ópio, embora não seja com frequência que aprovamos esse recurso.
- Não receio a dor - afirmou Deucalião. - A vida é um oceano de dor.
- A vida fora daqui, talvez.
- Até aqui trazemos as recordações connosco.
O velho monge escolheu um frasquinho de tinta carmesim, e acrescentou o padrão, disfarçando concavidades grotescas e planícies quebradas, criando uma ilusão de normalidade por baixo dos motivos decorativos.
A obra prosseguiu num pesado silêncio, até que Nebo disse:
- Isto servirá de manobra de diversão para os olhares curiosos. Claro que nem um padrão tão pormenorizado conseguirá ocultar tudo.
Deucalião tocou na tatuagem dorida que cobria a superfície do tecido cicatricial em forma de espelho quebrado.
- Viverei de noite e de diversões, como tantas vezes antes.
Depois de rolhar os frasquinhos de tinta, de limpar as agulhas a um pano, o monge disse:
- Mais uma vez antes de partires... A moeda?
Sentando-se direito na cadeira, Deucalião apanhou uma moeda de prata do ar com a mão direita.
Nebo observou Deucalião a virar a moeda nos nós dos dedos - a fazê-la andar, como diziam os prestidigitadores, exibindo uma destreza
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admirável, tendo em conta o tamanho considerável e a aparência bruta das suas mãos.
Qualquer bom mágico poderia ter feito o mesmo.
Com o polegar e o indicador, Deucalião atirou a moeda ao ar. A luz das velas reflectiu-se nela ao elevar-se bem alto.
Deucalião apanhou-a no ar, fechou-a no punho... Abriu a mão, para a mostrar vazia.
Qualquer bom mágico poderia ter feito o mesmo, e poderia ter tirado a moeda de detrás da orelha de Nebo, o que Deucalião também fez.
O monge ficava intrigado, contudo, com o que vinha a seguir.
Deucalião atirava a moeda ao ar outra vez. A luz das velas reflectia--se nela. Depois, perante os olhos de Nebo, a moeda simplesmente... desaparecia.
No auge da trajectória, virava cara e coroa e cara outra vez, e deixava de existir. A moeda não caía ao chão. As mãos de Deucalião não estavam perto dela quando desaparecia.
Nebo vira aquela ilusão muitas vezes. Observara a uma distância de centímetros, mas não sabia dizer o que acontecera à moeda.
Meditara amiúde naquela ilusão. Em vão.
Agora Nebo abanava a cabeça.
- É verdadeiramente magia ou apenas um truque?
A sorrir, Deucalião respondeu:
- E que barulho faz uma mão a aplaudir?
- Mesmo após estes anos todos, ainda és um mistério.
- Como a própria vida.
Os olhos de Nebo varriam o tecto, como se esperasse ver a moeda cravada numa das flores de lótus esculpidas e pintadas. Baixando o olhar para Deucalião mais uma vez, disse:
- O teu amigo da América endereçou a tua carta a sete nomes diferentes.
- Já usei muitos mais do que isso.
- Problemas com a polícia?
- Há muito tempo que não. Somente... Em busca de um novo começo.
- Deucalião... - disse o monge.
- Um nome da mitologia antiga, já pouca gente o conhece. - Levantou-se da cadeira, sem ligar à dor que latejava nas inúmeras picadelas.
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O velho virou o rosto para cima.
- Na América, voltarás à vida de feira?
- As feiras não têm lugar para mim. Já não há espectáculos de aberrações como nos velhos tempos. São politicamente incorrectos.
- Quando havia espectáculos de aberrações, qual era o teu número?
Deucalião virou costas às mandalas iluminadas pelas velas na parede, o rosto acabado de tatuar escondido nas sombras. Quando falou, perpassou-lhe nos olhos uma subtil centelha de luminosidade, como o latejar
do relâmpago oculto por nuvens espessas.
- Chamavam-me... o Monstro.
-- NOVA ORLEÃES
2.
O trânsito da hora de ponta matinal na Via Rápida I-10 fluía com a mesma languidez do Rio Mississipi a passar por Nova Orleães.
Quando a detective Carson O'Connor saiu da via rápida no subúrbio de Metairie, na intenção de seguir por estradas nacionais para ganhar tempo, a manhã começou a correr pior.
Irremediavelmente parada num cruzamento, ia amassando com impaciência o volante do seu carro à paisana. Para dissipar uma sensação de sufocação crescente, abriu a janela do carro.
A canícula matinal já reinava nas ruas. Todavia, nem uma das desmioladas dos noticiários tentaria fritar um ovo no passeio. Até a escola de jornalismo as deixava com células cinzentas suficientes para
saberem que, naquelas ruas, até se poderia fritar gelado.
Carson gostava do calor, mas não da humidade. Talvez um dia se mudasse para um sítio mais agradável, quente mas seco, como o Arizona. Ou o Nevada. Ou o Inferno.
Sem avançar sequer meio metro, viu o minuto mudar no relógio do tabliê - e depois reparou no motivo do engarrafamento.
Dois rufias com as cores do gangue deixavam-se ficar na passadeira para impedir o trânsito de avançar de cada vez que o semáforo ficava verde. Três outros assediavam a fila, de carro em carro, a bater
nas janelas, a extorquir subornos.
- Limpo-te o pára-brisas. Duas notas.
Como o estalido de armas semiautomáticas, as portas dos carros trancavam-se uma atrás da outra à medida que os jovens empresários tentavam fazer negócio, mas carro algum podia avançar se o condutor não
pagasse a tarifa.
O suposto líder surgiu à janela de Carson, presunçoso e cheio de falsa boa disposição.
- Limpo-te o pára-brisas, dona.
Tinha na mão um trapo imundo que parecia ter sido pescado num dos muitos canais cheios de lodo da cidade.
Uma cicatriz fina e branca numa face bem bronzeada ostentava vários pontos salientes, indicando que ele se metera numa briga de naifas no dia em que o médico das Urgências era o doutor Frankenstein. A
barba rala implicava deficiência de testosterona.
Ao ver melhor Carson, o Cicatriz mostrou os dentes.
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- Ei, dona bonita. O que fazes com este chaço? Tu fostes feita para um Mercedes. - Levantou um dos limpa-vidros e deixou-o bater no pára-brisas.
- Atão, onde tens a cabeça? Não é que uma fresca com umas gâmbias dessas precise de cabeça.
Um carro à paisana tinha vantagens no trabalho discreto de detective; contudo, quando conduzia um carro-patrulha preto e branco, Carson nunca tivera de aturar porcarias daquelas.
- Estás a infringir a lei - avisou ela.
- Alguém 'tá maldisposta esta manhã.
- O pára-brisas está limpo. Isto é extorsão.
- São duas notas para o limpar.
- Aconselho-te a saíres de perto do carro.
O miúdo levantou o trapo, preparado para besuntar o pára-brisas.
- Duas notas para o limpar, três notas para não o limpar. A maior parte das donas, sejam donas machos ou donas fêmeas, escolhe a última.
Carson desapertou o cinto de segurança.
- Eu disse-te que saísses de perto do carro.
Em vez de bater em retirada, o Cicatriz debruçou-se na janela, a centímetros dela. O hálito adocicado pelo charro matinal, azedado pela gengivite.
- Dá-me três notas, o número de telefone, um pedido de desculpa... e talvez eu não te lixe a bela da fronha.
Carson agarrou na orelha esquerda do pulha, torceu-a com força até partir cartilagem e bateu com a cabeça dele de lado contra a porta. O uivo dele parecia menos de um lobo do que de uma criança.
Largou-lhe a orelha e, saindo do carro, abriu a porta contra ele com força bastante para o deitar ao chão.
Quando ele se estatelou de costas, batendo com a cabeça no passeio a ponto de conjurar constelações a um planetário interior, ela pôs-lhe um pé na braguilha, apoiou o suficiente para o fazer contorcer-se
e sossegar, com medo que ela lhe esmagasse o abono de família.
Meteu-lhe o distintivo da polícia na cara e disse:
- O meu número de telefone é o nove-um-um.
Entre os carros reféns, de grimpa levantada e alerta, os quatro manos de Cicatriz olhavam para ele, para ela, espantados e zangados, mas também divertidos. O gajo debaixo do pé dela era um mano, e a humilhação
de um mano era uma humilhação para todos, mesmo que
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ele fosse um bocadinho o que eles chamariam mano emprestado, um fingido.
Ao mais próximo dos amigos de Cicatriz, Carson disse:
- Baza, agarrado, se não quiseres um buraco no maço.
O pulha debaixo do pé dela tentou esgueirar-se de lado como um caranguejo mas ela pisou com mais força. As lágrimas vieram-lhe aos olhos, e ele escolheu a submissão, em vez da possibilidade de passar três
dias com um saco de gelo entre as pernas.
Apesar do aviso de Carson, dois dos outros quatro cobardolas começaram a chegar-se a ela.
Quase com a destreza da prestidigitação, Carson guardou o distintivo e sacou da pistola que tinha no coldre.
- Marquem bem, esta dama debaixo do meu pé já foi riscada - o que queria dizer "enxovalhada" - mas nenhum de vocês foi. Aqui não há nada para vocês, tirando dois anos dentro, talvez queimados e
aleijados para a vida.
Não bazaram, mas pararam de avançar.
Carson sabia que estavam menos ralados com a pistola dela do que com o facto de ela falar a língua. Dado que sabia calão, eles partiriam do princípio - correcto - de que ela já estivera em situações daquelas,
muitas, e, ainda assim, viam-na na mó de cima e sem medo.
Até o cobardolas mais tanso - e poucos deles ganhariam um tusto na Roda da Fortuna - saberia interpretar as credenciais dela e calcular as probabilidades.
- O primeiro a mexer-se é o primeiro a ir dentro - disse ela, avisando-os para se irem embora. - Se insistirem em lutar, vão perder.
Adiante do carro à paisana, mais perto do cruzamento, os carros começavam a avançar. Quer conseguissem ver o se passava pelos retrovisores, quer não, os condutores apercebiam-se de que o confronto terminara.
Quando os carros à volta deles se começaram a mexer, os jovens empresários decidiram que não valia a pena ficarem, já que a freguesia se tinha ido embora. Escapuliram-se como cavalos espantados de antolhos
postos nos trovões.
Debaixo do pé dela, custava ao lavador de vidros admitir a derrota.
- O cabra, o teu distintivo dizia Homicídios. Não me podes fazer nada! Não matei ninguém.
- Mas que atrasado mental - disse ela, guardando a pistola no coldre.
- Não me podes chamar atrasado mental. Eu acabei o secundário.
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- Não acabaste nada.
- Quase acabei.
Antes que o malandro se ofendesse - era de esperar - pela caracterização mal-educada que ela fizera da sua acuidade mental, e ameaçasse acusá-la de insensibilidade, o telemóvel de Carson tocou.
- Detective O'Connor - atendeu ela.
Quando soube quem ligava e porquê, tirou o pé de cima do cobardolas.
- Baza - disse-lhe. - Tira esse coiro da rua.
- Não me vais levar?
- Não vales a papelada. - E voltou ao telefonema.
A gemer, ele pôs-se de pé, uma mão a agarrar na braguilha das calças descaídas, como se tivesse dois anos e cheio de vontade de fazer chichi.
Não era daqueles que aprendesse com a experiência. Podia cambalear dali para fora, ir ter com os amigos, contar-lhes uma treta qualquer sobre como se safara da cabra da bófia e lhe partira os dentes; mas
não, ficou ali de mão na braguilha, a arengar sobre maus tratos, como se as queixinhas e ameaças suscitassem súbitos remorsos em Carson.
Quando Carson terminou a conversa, carregou na tecla vermelha e guardou o telemóvel. E o extorsionário ofendido disse:
- É assim: agora sei como te chamas, posso descobrir onde dromes.
- Estamos a obstruir o trânsito - disse ela.
- Vou meter-te cavalo uma noite, parto-te as pernas, os braços, os dedinhos. Tens gás na cozinha? Vou cozer-te a fronha no fogão.
- Agrada-me. Eu abro uma garrafa de vinho, faço tapas. Só que a fronha que vai cozer no fogão... estou eu a olhar para ela agora.
A intimidação era o melhor recurso dele, mas ela tinha um parafuso que não dava de si só com isso.
- Gostas de tapas? - perguntou ela.
- Cabra, és de seda como uma ratazana agarrada.
- É provável - concordou ela.
Ele recuou.
Ela piscou-lhe o olho e disse:
- Eu é que posso descobrir onde tu dormes.
- Não te metas comigo.
- Tens gás na tua cozinha? - perguntou ela.
- A sério, rata tarada.
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- Ah, agora estás só a arrastar-me - disse Carson, e queria dizer arrastar a asa.
O cobardolas atreveu-se a virar-lhe costas e a ir-se embora, evitando os carros.
Sentindo-se melhor com aquela manhã, Carson pôs-se ao volante do carro à paisana, fechou a porta e foi buscar o parceiro, Michael Maddison.
O dia, que prometia uma investigação de rotina, mudara com um telefonema. Fora encontrado o cadáver de uma mulher na lagoa do City Park. E pelo aspecto do corpo não se tratava de um acidental afogamento
entre mergulhos ao luar.
3.
Sem recorrer à sirene nem à luz de alerta, Carson fez rapidamente Veterans Boulevard, passando por um caleidoscópio de galerias comerciais, oficinas de mecânica, concessionários, agências bancárias e cadeias
de comida rápida.
Mais à frente, as subdivisões de casas em banda alternavam com corredores de prédios de apartamentos e condomínios. Fora ali que Michael Maddison, solteiro aos trinta anos, encontrara um apartamento monótono
e provável em qualquer cidade americana.
A monotonia não o incomodava. A trabalhar ao ritmo jazzístico e folclórico de Nova Orleães, na especialidade de detective de Homicídios, ele alegava terminar o dia numa sobrecarga de colorido local. O
apartamento vulgar era a sua âncora na realidade.
Trajado para trabalhar de camisa havaiana, blusão desportivo bege a tapar o coldre e calças de ganga, Michael estivera à espera dela. Parecia irónico e descontraído mas, como certas bebidas enganosas,
dava pica.
Com um saco de papel branco numa mão, um dónute inteiro na boca, e a delicadeza de um cão de caça que voltava ao dono com um pato abocanhado, Michael entrou para o carro e fechou a porta.
Carson perguntou;
- O que é isso a sair-te da boca?
Tirou o dónute de entre os dentes, inteiro e quase intacto, e respondeu:
- Leitelho com xarope de ácer.
- Dá cá.
Michael ofereceu-lhe o saco branco.
- Um com cobertura normal, dois de chocolate. Escolhe.
Sem ligar ao saco, Carson tirou-lhe o dónute da mão e disse:
- Sou louca por xarope de ácer.
Deu uma enorme dentada, mastigou vigorosamente, guinou o volante afastando-se da berma e acelerou rumo à estrada.
- Também sou doido por xarope - disse Michael, e suspirou.
O anseio na voz dele indicou a Carson que ele queria mais do que o dónute com xarope de ácer. Mas, por mais motivos do que apenas a manutenção da sua relação profissional, fingiu não reparar.
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- Vais gostar da cobertura normal.
Enquanto Carson metia pela Veterans Avenue perto de Jefferson Parish e rumo a Orleans Parish, com tenções de apanhar o Pontchar-train Boulevard para Harrison e depois o City Park, Michael remexia o saco
dos dónutes, deixando bem claro que escolhia um dos outros petiscos apenas por cruel necessidade.
Tal como ela sabia que ele faria, ele contentou-se com um de chocolate - e não escolheu o da cobertura normal que ela recomendara imperiosamente deu uma dentada e amachucou a abertura do saco de papel
para o fechar.
Levantou a cabeça quando Carson passou um semáforo amarelo mesmo antes de mudar para vermelho, e disse:
- Gasta menos e ajuda a salvar o planeta. Na minha igreja, começamos cada dia de trabalho com uma hora de açúcar e meditação.
-Eu não sou da Igreja dos Detectives Badochas. Além disso, recebi uma chamada, encontraram a número seis esta manhã.
- Seis? - Com a boca cheia de dónute de chocolate, perguntou:
- Como é que sabem que é o mesmo criminoso?
- Mais cirurgia, como as outras.
- Fígado? Rim? Pés?
- Ela devia ter mãos bonitas. Encontraram-na na lagoa do City Park, as mãos cortadas.
4.
As pessoas iam até ao hectare seiscentos do City Park para dar comida aos patos ou para descontrair debaixo dos carvalhos frondosos e cobertos com cortinas de samambaias verdes acinzentadas. Apreciavam
os jardins botânicos bem tratados, as fontes e as esculturas Art Déco. As crianças adoravam o parque temático dos contos de fadas e os famosos cavalinhos alados de madeira do carrossel antigo.
Agora os espectadores juntavam-se para assistir a uma investigação de homicídio que decorria na lagoa.
Como sempre, Carson passara despercebida pelos mirones morbidamente curiosos. Entre eles, avozinhas e adolescentes, homens de negócios de fato completo e vadios encanecidos a chucharem mistelas de garrafas
em sacos de papel, mas ela sentiu uma onda Noite dos Mortos-Vivos em todos eles.
Os carvalhos centenários pairavam sobre uma extensão de água verde orlada com caniços. Os caminhos de lajedo serpenteavam pela beira da lagoa, ligados por pontes de pedra graciosamente arqueadas.
Alguns mirones tinham subido às árvores para verem melhor além da fita que a polícia já colocara.
- Não parece a mesma gente que se vê na ópera - comentou Michael, quando ele e Carson abriram caminho por entre os basbaques no passeio e na pista de corrida.
- Nem num rali de camiões gigantes, já agora.
Nos séculos XVIII e XIX, aquela área fora popular entre os Crioulos fogosos que se metiam em duelos. Encontravam-se depois do pôr do Sol, ao luar, e digladiavam-se com espadas finas até fazerem sangue.
Actualmente, o parque continuava aberto de noite, mas os combatentes não estavam em pé de igualdade como nos velhos tempos. Os predadores seguiam as presas e sentiam-se confiantes de que escapariam ao
castigo, numa era em que a civilização parecia desabar.
Agora os polícias fardados obstruíam os meliantes, qualquer um deles poderia ser o assassino que voltara para se deleitar com o rescaldo do crime. Atrás deles, a fita amarela dos locais de crime fora disposta
como serpentinas de Carnaval, de árvore em árvore, e bloqueava uma secção da pista de corrida ao lado da lagoa.
29
Michael e Carson eram conhecidos de muitos dos polícias de serviço e técnicos da Patologia: apreciados por uns, invejados por outros, odiados por outros ainda.
Ela fora a mais nova a sagrar-se detective, Michael, o segundo mais novo. Pagava-se um preço pela ascensão rápida.
E também se pagava um preço pelo estilo, se não se fosse tradicional. E, para alguns dos cínicos que só queriam passar o tempo até à reforma, pagava-se um preço caso se trabalhasse na convicção de que
o trabalho era importante e a justiça tinha relevância.
Passada a fita amarela, Carson parou e observou o local.
O cadáver de uma mulher flutuava de barriga para baixo na água espumosa. O cabelo louro abria-se como uma auréola radiante sobre o qual o sol do Luisiana filtrado pelo arvoredo se derramava sobre ele.
Como as mangas do vestido retinham ar, os braços da morta também flutuavam à vista, e terminavam em cotos.
- Nova Orleães - disse Michael, citando um dos sloganes do Turismo -, o romantismo do bayou.
A espera de instruções, os técnicos da Patologia ainda não tinham entrado no local do crime. Tinham seguido Carson e encontravam-se do outro lado do perímetro assinalado.
Enquanto detectives da investigação, Carson e Michael tinham de formular um plano sistemático: determinar a geografia adequada à busca, os sujeitos e os ângulos das fotografias, possíveis fontes de pistas...
Michael geralmente deixava esta matéria com Carson porque ela tinha uma intuição a que, só para a aborrecer, ele chamava visão de bruxa.
Ao polícia mais próximo na linha de demarcação, Carson perguntou:
- Quem foi o agente que registou o auto?
- Ned Lohman.
- Onde é que ele está?
- Ali atrás daquelas árvores.
- Por que raio é que ele está a espezinhar o local? - inquiriu ela.
Como que em resposta, Lohman apareceu de detrás dos carvalhos com dois detectives de homicídios veteranos, Jonathan Harker e Dwight Frye.
- Manso e Tanso - resmungou Michael.
Embora longe de mais para ter ouvido, Harker lançou-lhes um olhar irritado. Frye acenou.
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- Que treta - disse Carson.
- Da grossa - anuiu Michael.
Carson não entrou espaventada no local, esperou que os detectives fossem até ela.
Que maravilha teria sido dar um tiro nos joelhos dos sacanas para poupar o local às aselhices deles. Muito mais satisfatório do que um grito ou um tiro de aviso.
Quando Harker e Frye chegaram perto dela, ambos sorriam e tinham ar presumido.
Ned Lohman, o agente fardado, teve o bom senso de evitar o olhar dela.
Carson dominou o mau génio.
- Este bebé é nosso, deixem-nos pô-lo a arrotar.
- Estávamos na zona - disse Frye -, recebemos a chamada.
- Apanharam a chamada - sugeriu Carson.
Frye era um homem corpulento com aspecto besuntão, como se o apelido não lhe viesse da linhagem familiar, mas sim do seu método preferido para preparar a comida.
- O'Connor - disse ele -, és a primeira pessoa irlandesa que eu já conheci que não quer ninguém bem-disposto.
Numa situação daquelas, a qual passara de um homicídio bizarro para seis crimes em poucas semanas, Carson e o parceiro não seriam os únicos destacados pelo departamento para investigar aspectos particulares
do caso.
Todavia, eles tinham apanhado o primeiro crime e, como tal, tinham interesse nos homicídios a ele associados, se e até que o criminoso acumulasse vítimas suficientes para obrigar à constituição de um grupo
de intervenção de emergência. E, nesse ponto, ela e Michael seriam provavelmente nomeados para liderar a operação.
Harker era de pavio curto - por causa do sol, por causa de invejas, por reparos imaginários à sua competência, por praticamente qualquer coisa. O sol meridional queimara-lhe o cabelo louro até ficar quase
branco; dava-lhe à cara um ar perpetuamente aferventado.
Os olhos, azuis como uma chama de gás, duros como pedras preciosas, revelavam a verdade que ele tentava disfarçar com um sorriso suave.
- Precisávamos de andar depressa, antes que se perdessem provas. Com este clima, os corpos decompõem-se rapidamente.
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- Ora, não sejas tão exigente contigo mesmo - disse Michael. - Com ginásio e alguma determinação, ficas com bom aspecto outra vez.
Carson puxou Ned Lohman à parte. Michael juntou-se a eles quando ela sacou do bloco de notas e disse:
- Dá-me as coordenadas do teu envolvimento.
- Ouçam, detectives, eu sei que vocês é que decidem isto. Disse o mesmo ao Frye e ao Harker, mas eles são graduados.
- A culpa não é tua - garantiu ela. - Eu já deveria saber que os abutres chegam sempre primeiro à carne morta. Comecemos pelas horas.
- A chamada entrou às sete e quarenta e dois. - Ele olhou para o relógio. - Ou seja, há trinta e oito minutos. Foi um corredor que viu o cadáver e telefonou. Quando eu apareci, o tipo estava aqui
a correr no mesmo sítio para manter o ritmo cardíaco.
Em anos recentes, os corredores munidos de telemóveis tinham encontrado mais cadáveres do que qualquer outro grupo de cidadãos.
- Quanto ao lugar - continuou o agente Lohman -, o cadáver está onde o corredor o encontrou. Ele não fez nenhuma tentativa de salvamento.
- As mãos cortadas - sugeriu Michael - talvez tenham sido uma pista em como a reanimação não resultaria.
- A vítima é loura, talvez pintada, provavelmente branca. Tens mais alguma observação? - perguntou Carson a Lohman.
- Não. Também não me aproximei dela, não contaminei nada, se é isso que estás a tentar saber. Ainda não lhe vi a cara, pelo que não posso calcular a idade.
- Horas, lugar... E a ocorrência? - perguntou ela a Lohman.
- A tua primeira impressão foi...?
- Crime. Ela não cortou as próprias mãos.
- Talvez uma - concordou Michael -, mas as duas, não.
5.
As ruas de Nova Orleães fervilhavam de possibilidades: mulheres de todas as variedades. Algumas bonitas, mas até às mais atraentes faltava uma ou outra coisa.
Durante os seus anos de buscas, Roy Pribeaux ainda estava para encontrar uma mulher que correspondesse aos seus padrões em todos os aspectos.
Orgulhava-se de ser perfeccionista. Se ele tivesse sido Deus, o mundo teria sido um sítio mais ordeiro e menos sujo.
Com Roy todo-poderoso, não teria havido gente feia nem desinteressante. Nem bolor. Nem baratas, nem sequer mosquitos. Nada que cheirasse mal.
Debaixo de um céu azul que ele não poderia ter aperfeiçoado, mas numa humidade opressiva que ele não teria tolerado, Roy passeava pelo Riverwalk, o recinto da Feira Mundial de 1984 no Luisiana, remodelado
como ponto de encontro público e pavilhão comercial. Ele andava à caça.
Passaram três jovens com tops justos e calções curtos, a rirem-se. Duas delas olharam para Roy.
Ele fitou-as, mirou-lhes audaciosamente os corpos, e despachou cada uma delas com uma olhadela.
Mesmo após anos à procura, continuava optimista. Ela andava ali algures, o seu ideal, e ele havia de encontrá-la - mesmo que tivesse de ser um bocado de cada vez.
Naquela sociedade promíscua, Roy continuava virgem aos trinta e oito anos, facto de que se orgulhava. Estava a guardar-se. Para a mulher perfeita. Para o amor.
Entretanto, ia polindo a sua própria perfeição. Fazia exercício duas horas todos os dias. Por se considerar um homem da Renascença, lia literatura durante exactamente uma hora, estudava um assunto novo
durante exactamente uma hora, meditava nos grandes mistérios e nas grandes questões do seu tempo durante outra hora, todos os dias.
Só comia fruta e legumes biológicos. Não comprava carne de produção industrial. Não havia poluentes que o maculassem, pesticidas, resíduos radiológicos, e certamente que não tinha material genético remanescente
de alimentos transformados.
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Com o tempo, depois de refinar a sua dieta na perfeição e quando o seu corpo estivesse sintonizado como um relógio atómico, ele esperava deixar de eliminar dejectos. O processamento de cada pedaço ingerido
seria tão completo que se converteria inteiramente em energia, e ele não produziria urina nem fezes.
Talvez então encontrasse a mulher perfeita. Costumava sonhar com a intensidade do sexo que eles fariam. Profundo como a fusão nuclear.
Os residentes adoravam o Riverwalk, mas Roy desconfiava que a maioria das pessoas ali eram turistas, tendo em conta como paravam para olhar embasbacados para os artistas de caricaturas e os músicos de
rua. Os residentes não seriam atraídos em tais quantidades para as bancas atulhadas com T-shirts de Nova Orleães.
Numa carrinha vermelho-vivo que vendia algodão doce, Roy parou repentinamente. A fragrância do açúcar quente derramava uma névoa suave em redor do carrinho.
A vendedora de algodão doce estava sentada num banquinho debaixo de um chapéu-de-sol vermelho. Na casa dos vinte, rosto menos do que comum, cabelo rebelde. Parecia anafada e malfeita como um Marreta, mas
sem tanta personalidade.
Mas os olhos dela. Os olhos dela.
Roy ficou cativado. Os olhos dela eram pedras valiosíssimas expostas numa vitrina atravancada e poeirenta, um azul-esverdeado espantoso.
A pele em redor dos olhos fez ruguinhas apelativas quando ela lhe chamou a atenção e sorriu.
- Posso ajudá-lo?
Roy avançou.
- Queria qualquer coisa doce.
- Só tenho algodão doce.
- Não é só - disse ele, maravilhado com a lábia que sabia ter.
Ela fez um ar perplexo.
Coitadita. Ele era vivaço de mais para ela.
E disse:
- Sim, algodão doce, se faz favor.
Ela pegou num cone de papel e começou a passá-lo pelo açúcar que girava, envolvendo-o numa nuvem açucarada.
- Como se chama? - perguntou ele.
Ela hesitou, com ar envergonhado, a evitar fitá-lo.
34- Candace.
- Uma rapariga chamada Candy vende doces? Será o destino ou apenas sentido de humor apurado?
Ela corou.
- Prefiro Candace. Há demasiadas conotações negativas para uma... mulher cheiinha se chamar Candy.
- Pronto, não é nenhuma manequim anoréxica, e depois? A beleza vem em muitas embalagens diferentes.
Era óbvio que Candace poucas vezes, se tanto, ouvira palavras tão simpáticas de um homem atraente e desejável como Roy Pribeaux.
Se ela própria alguma vez pensasse num dia em que não excretasse dejectos, deveria saber que ele estava muito mais perto desse objectivo do que ela.
- Tem uns olhos lindos - disse-lhe ele. - Espantosamente lindos. Para onde se poderia olhar durante anos e anos.
Ela corou mais, mas o espanto sobrepusera-se à timidez a tal ponto que ela chegou a fitá-lo.
Roy sabia que não se atrevia a arrastar a asa com demasiada insistência. Após uma vida de rejeição, ela desconfiaria que ele ia acabar por humilhá-la.
- Sou cristão - explicou ele, embora não tivesse convicção religiosa alguma - e acredito que Deus fez toda a gente bonita em pelo menos um aspecto, e precisamos de reconhecer essa beleza. Os seus
olhos são... perfeitos. São as janelas da sua alma.
Ela pôs o algodão doce num suporte em cima do balcão e desviou o olhar outra vez, como se fosse pecado deixá-lo desfrutar tanto deles.
- Não vou à igreja desde que a minha mãe morreu há seis anos.
- Lamento saber disso. Ela deve ter morrido muito nova.
- Cancro - revelou Candace. - Fiquei tão zangada por causa disso. Mas agora... sinto falta da igreja.
- Poderíamos ir juntos um dia, e tomar café depois.
Ela atreveu-se a encará-lo outra vez.
- Porquê?
- Porque não?
- E só que... Você é tão...
Fingindo-se tímido também, ele afastou o olhar.
- Tão diferente do seu tipo? Sei que para algumas pessoas posso parecer frívolo...
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- Não, por favor, não foi isso que eu quis dizer. - Mas não conseguia obrigar-se a explicar o que quisera dizer.
Roy tirou um pequeno bloco de notas do bolso, escrevinhou com uma caneta, e rasgou uma folha de papel.
- Tem aqui o meu nome - Ray Darnell - e o meu número de telemóvel. Talvez você mude de ideias.
A olhar para o número e o nome falso, Candace disse:
- Sempre fui uma pessoa bastante reservada.
Coitadita da tímida criatura.
- Compreendo - disse ele. - Tenho namorado muito pouco. Sou demasiado antiquado para as mulheres de hoje. São tão... arrojadas. Tenho vergonha por elas.
Quando tentou pagar o algodão doce, ela não quis receber o dinheiro. Ele insistiu.
Afastou-se, a debicar a nuvem, sentindo o olhar dela. Assim que saiu da vista dela, atirou o algodão doce para um caixote do lixo.
Sentado num banco ao sol, consultou o bloco de notas. Na última página da parte de trás tinha a sua lista. Depois de tantos esforços ali em Nova Orleães e, antes, noutros sítios, ainda ontem riscara o
penúltimo artigo: mãos.
Agora punha um ponto de interrogação ao lado do artigo final na lista, na esperança de o poder riscar em breve.
Olhos?
6.
Ele é filho da Misericórdia, nascido na Misericórdia e criado na Misericórdia.
No seu quarto sem janelas, está sentado a uma mesa, a trabalhar num livro grosso de palavras cruzadas. Nunca hesita, a ponderar sobre uma resposta. As respostas surgem-lhe instantaneamente, e escreve com
rapidez as letras nos quadrados, nunca fazendo erro algum.
Chama-se Randal Seis porque deram o nome Randal a cinco machos antes, os quais se fizeram ao mundo antes dele. Se também ele se fizesse ao mundo, dar-lhe-iam um apelido.
No tanque, antes de ganhar consciência, fora instruído por carregamento de dados directamente no cérebro. Quando ganhara vida, continuara a aprender durante sessões de sono induzido por medicamentos.
Conhece a natureza e a civilização nas suas complexidades, conhece o aspecto e o cheiro e o som de lugares onde nunca esteve. Todavia, o seu mundo está largamente limitado a um único quarto.
Os agentes da Misericórdia chamam a esse lugar o boleto, termo que descreve o alojamento de um militar.
Na guerra contra a humanidade - guerra secreta agora, mas destinada a não permanecer secreta para sempre - ele tem dezoito anos e ganhou vida quatro meses antes.
Para todos os olhos, ele tem dezoito anos, mas o seu conhecimento é maior do que o da maioria dos anciãos eruditos.
Fisicamente, é sadio. Intelectualmente, é avançado.
Emocionalmente, há algo errado nele.
Não considera que o quarto seja o seu boleto. Pensa nele como uma cela.
Todavia, é ele mesmo a sua própria prisão. Vive principalmente dentro de si. Pouco fala. Anseia pelo mundo além da sua cela, além dele mesmo e, contudo, este apavora-o.
Passa a maior parte do dia a fazer palavras cruzadas, imerso nos padrões verticais e horizontais dos termos. O mundo além dos seus aquartelamentos é atractivo mas também... desordenado, caótico. Sente-o
a fazer pressão nas paredes, pressão, pressão, e só concentran-
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do-se nas palavras cruzadas, só pondo em ordem os quadrados vazios, preenchendo-os com as letras absolutamente correctas, consegue impedir que a desordem exterior lhe invada o espaço.
Recentemente, começou a pensar que o mundo o apavora porque o Pai o programou para ter medo dele. Afinal, foi do Pai que recebeu instrução, e vida.
Esta possibilidade confunde-o. Não consegue compreender por que razão o Pai o criaria para ser... disfuncional. O Pai busca a perfeição em todas as coisas.
Há algo que lhe dá esperança. Lá fora no mundo, não muito longe, mesmo ali em Nova Orleães, está outro como ele. Não é uma das criações do Pai, mas também sofre.
Randal Seis não está só. Se conseguisse conhecer o seu igual, poderia compreender-se melhor a si mesmo... E ser livre.
7.
Uma ventoinha giratória levantava os documentos e apontamentos - presos com pisa-papéis improvisados - em cima da secretária de Carson. Pelas janelas, o pôr do Sol cor-de-laranja passara a carmesim e depois
a púrpura.
Michael estava sentado à secretária na Divisão de Homicídios, ao lado da de Carson, ocupado com muita da mesma papelada. Ela sabia que ele estava pronto para ir para casa, mas que geralmente a deixava
definir o dia de trabalho.
- Foste ver a tua caixa dos does ultimamente? - perguntou ela.
- Há dez minutos - recordou-lhe Michael. - Se me mandas lá mais uma vez, vou comer um cogumelo para ficar pequenino efico na caixa dos does até o relatório aparecer.
- Devíamos ter recebido há horas a autópsia preliminar daquela afogada - queixou-se ela.
- E eu devia ter nascido rico. Vá-se lá perceber.
Ela consultou fotografias de cadáveres in situ enquanto Michael a observava.
A primeira vítima, uma jovem enfermeira chamada Shelley Justine, fora assassinada em parte incerta e largada no London Street Canal. Os exames revelaram a assinatura química de clorofórmio no sangue.
Depois de o assassino a deixar inconsciente, matara-a com uma facada no coração. Com uma precisão extraordinária, tirara-lhe as orelhas. O perfil de péptidos não encontrara níveis elevados de endorfina
no sangue, indicando que a cirurgia ocorrera depois de ela morrer. Se tivesse estado viva, a dor e o terror teriam deixado uma química reveladora.
A segunda vítima, Meg Saville, turista do estado do Idaho, também fora cloroformizada e esfaqueada já inconsciente. O Cirurgião - era o nome que a imprensa lhe dava - serrara com esmero os pés de Saville.
- Se ao menos ele levasse sempre os pés - disse Michael - saberíamos que é pedicuro, e já o teríamos encontrado.
Carson mexeu na fotografia seguinte em cima da pilha.
As primeiras duas vítimas tinham sido mulheres; contudo, nem Shelley Justine nem Meg Saville haviam sido molestadas.
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Quando a terceira vítima se revelou um homem, o assassino estabelecera as suas credenciais enquanto maníaco adepto da lei da paridade. O corpo de Bradford Walden - jovem empregado de bar de um tasco do
outro lado do rio em Algiers - fora encontrado com o rim direito retirado cirurgicamente.
A mudança para recordações de origem interna não era perturbante - o impulso de coleccionar pés e orelhas não era menos perturbante do que o gosto por rins mas era curioso.
Encontraram vestígios químicos de clorofórmio mas, dessa vez, o perfil de péptidos mostrara que Walden estivera vivo e acordado durante a cirurgia. Teria passado o efeito do clorofórmio demasiado depressa?
Ou o assassino deixara o homem acordar de propósito? Fosse como fosse, Walden morrera agonizante, a boca cheia de trapos e selada com fita isoladora para abafar os gritos.
A quarta vítima, Caroline Beaufort, estudante na Universidade de Loiola, fora descoberta sem as duas pernas, o tronco encostado a um banco ricamente decorado numa paragem de autocarro no Garden District,
um bairro da classe alta. Fora cloroformizada e estivera inconsciente no momento da morte.
Para o quinto crime, o Cirurgião deixara-se de anestesias. Assassinara outro homem, Alphonse Chaterie, empregado numa lavandaria. Tirara o fígado a Chaterie enquanto a vítima estava viva e bem acordada:
não havia vestígios de clorofórmio.
Mais recentemente, ao cadáver daquela manhã na lagoa do City Park faltavam as duas mãos.
Quatro mulheres, dois homens. Quatro com clorofórmio, um sem, una conjunto de resultados pendentes. A cada vítima faltava uma ou mais partes do corpo. As primeiras três mulheres, mortas antes de os troféus
serem retirados, ao passo que os homens estavam vivos e conscientes durante a cirurgia.
Aparentemente, nenhuma das vítimas conhecera as outras. Até à data, também não haviam surgido conhecidos mútuos.
- Ele não gosta de ver as mulheres a sofrer, mas não se importa com homens agonizantes - disse Carson, e não era a primeira vez.
Michael tinha uma ideia nova.
- Talvez o assassino seja mulher, e tenha mais empatia com o próprio sexo.
- Pois, pois. Quantos assassinos em série foram mulheres?
40
- Alguns - retorquiu ele. - Mas, orgulho-me de dizer, os homens têm tido muito mais êxito nisso.
Carson perguntou:
- Haverá uma diferença fundamental entre cortar partes do corpo feminino e escavar órgãos internos masculinos?
-Já vimos isso. Dois assassinos em série a coleccionarem partes da anatomia na mesma cidade no mesmo período de três semanas? "Haverá lógica nessa coincidência, senhor Spock?" "A coincidência, Jim, é apenas
uma palavra que os supersticiosos usam para descrever acontecimentos complexos que, na verdade, são, matematicamente, consequências inevitáveis de uma causa principal."
Michael tornava aquele trabalho muito menos sinistro e mais tolerável, mas, por vezes, apetecia a Carson bater-lhe. Com força.
- E o que significa isso? - inquiriu ela.
Ele encolheu os ombros.
- Nunca compreendi o Spock.
Aparecendo como se fosse conjurado num pentagrama, Harker largou um envelope na secretária de Carson.
- O relatório do médico-legista sobre a afogada. Entregue na minha caixa dos does por engano.
Carson não queria jogar ao empurra com Harker, mas não poderia deixar passar interferências óbvias.
- Da próxima vez que me pisares os calos, faço queixa ao chefe dos detectives.
- Ai que medo - sentenciou Harker. A cara corada reluzia com uma camada de suor.
- A afogada ainda não foi identificada, mas parece que foi cloro-formizada, levada para um sítio isolado, e assassinada com um bisturi no coração antes de lhe levarem as mãos.
Como Harker continuava ali especado, o sol do dia engarrafado na sua cara de vidro, Michael perguntou:
- E depois?
- Vocês já verificaram toda a gente com acesso fácil a clorofórmio. Investigadores em experiências com animais, funcionários de empresas de material clínico... Mas há dois sítios na Internet com
fórmulas para o fazer em casa, com coisas que se podem comprar no supermercado. A minha opinião é que este caso não se encaixa em nenhum formato padrão. Vocês estão à procura de uma coisa que nunca viram
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antes. Para deter este gajo, têm de ir a um sítio mais esquisito - um nível abaixo do Inferno.
Harker virou-lhes costas e atravessou a sala da brigada.
Carson e Michael ficaram a vê-lo ir-se embora. Depois Michael disse:
- Mas o que era aquilo? Quase parecia preocupação genuína com o público.
- Ele já foi bom polícia. Talvez parte dele ainda seja.
Michael abanou a cabeça.
- Gostava mais dele quando era sacana.
8.
Saído do final do crepúsculo, apareceu Deucalião com uma mala, vestido com roupa demasiado pesada para aquela noite quente.
Aquela zona suscitava muito menos deslumbramento do que o Bairro Francês. Tascas, lojas de penhores, lojas de bebidas, lojas de acessórios para consumidores de marijuana.
Outrora uma grande sala de espectáculos, o Luxe Theater tornara--se numa relíquia esfarrapada e especializada em reposições. No painel luminoso, as letras de plástico mal espaçadas compunham os títulos
dos filmes em exibição.
DE QUINTA A DOMINGO CICLO DON SIEGEL INVASÃO DOS MORTOS-VIVOS O INFERNO É PARA OS HERÓIS
O painel estava às escuras, o cinema fechado, quer por aquela noite, quer em permanência.
Nem todos os candeeiros da rua estavam acesos. Deucalião aproximou-se do Luxe e encontrou um caminho de sombras.
Passou por alguns transeuntes, poucos, desviou o rosto sem dar nas vistas, e só atraiu as atenções devido à sua altura.
Esgueirou-se para um acesso de serviço ao lado do edifício. Durante mais de dois séculos, usara as portas das traseiras ou entradas ainda mais enigmáticas.
Por detrás do cinema, uma lâmpada nua dentro de uma grade por cima da porta derramava uma luz fosca e cinzenta como a do beco juncado de lixo.
Com várias camadas de tinta estalada e esfacelada, a porta era uma crosta na parede de tijolo. Deucalião estudou a tranca, a fechadura... e decidiu-se pela campainha.
Carregou no botão e um zumbido alto vibrou do outro lado da porta. Dentro do cinema sossegado, devia ter ecoado como um alarme de incêndio.
Momentos depois, ouviu movimentos pesados lá dentro. Sentiu que estava a ser observado pelo óculo de segurança da porta.
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A fechadura tiniu e a porta abriu-se; lá dentro, uma cara simpática e uns olhos alegres espreitavam dentro de uma prisão de carne. Com mais de um metro e setenta e talvez cento e trinta quilos, o homem
era o dobro do que devia ser.
- É o Jelly Biggs? - perguntou Deucalião.
- Parece-te que não?
- Não é assim tão gordo.
- Quando eu era uma estrela no dez-em-um, pesava quase mais cento e trinta. Sou uma sombra do homem que já fui.
- O Ben mandou-me chamar. Sou Deucalião.
- Pois, também calculei. Antigamente, uma cara como a tua valia ouro numa feira.
- Fomos os dois abençoados, não fomos?
Biggs deu um passo atrás, fez sinal a Deucalião para entrar e disse:
- O Ben contou-me muita coisa de ti. Não falou na tatuagem.
- É nova.
- Hoje em dia está na moda - disse Jelly Biggs.
Deucalião passou o umbral e entrou num corredor largo mas reles.
- Também eu - disse secamente. - Sempre fui o último grito.
Por detrás do grande ecrã do cinema, o Luxe tinha um labirinto de passagens, arrecadações e salas onde os espectadores nunca iam. Com um andar bamboleante e respiração pesada, Jelly mostrou o caminho;
passaram por grades de bebidas, caixas de papelão bolorentas, cartazes enrolados pela humidade e figuras recortadas em papelão a promover filmes antigos.
- O Ben pôs sete nomes na carta que me mandou - disse Deucalião.
- Tu uma vez falaste no mosteiro de Rombuk, pelo que ele achou que ainda poderias lá estar, mas não sabia por que nome te farias passar.
- Ele não devia ter divulgado os meus nomes.
- Só por saber as tuas alcunhas não quer dizer que eu te possa engatar.
Chegaram a uma porta que tinha uma camada de tinta verde espessa como uma armadura. Biggs abriu-a, acendeu uma luz e fez sinal para Deucalião entrar à sua frente.
Um apartamento sem janelas mas acolhedor. Uma kitchenette ao lado do combinado quarto e sala. Ben adorava livros, e havia duas paredes forradas com eles.
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Jelly Biggs disse:
- Herdaste um sítio simpático.
A palavra-chave serpenteou dentro da cabeça de Deucalião antes de lhe dar uma chicotada.
- Herdei. O que quer dizer? Onde está o Ben?
Jelly pareceu admirado.
- Não recebeste a minha carta?
- Apenas isto.
Jelly sentou-se numa das cadeiras de vinilo vermelho e cromado que estava ao pé da mesinha.
- O Ben foi assaltado.
O mundo é um oceano de dor. Deucalião sentiu a antiga maré, tão sua conhecida, assolá-lo.
- Esta não é a melhor zona da cidade, e está cada vez pior - disse Biggs.
- O Ben comprou o Luxe quando se reformou das feiras. Dizia-se que o bairro ia melhorar. Mas não. Seria difícil vender isto actualmente, e o Ben queria aguentar.
- Como foi que aconteceu? - perguntou Deucalião.
- A facada. Mais de vinte vezes.
A ira, como uma fome há muito reprimida, brotou em Deucalião. Outrora a ira fora como carne para ele e, regalando-se com ela, passara fome.
Se deixasse aquela ira avolumar-se não tardaria a ser uma fúria - e a devorá-lo. Durante décadas guardara aquele relâmpago numa garrafa, bem rolhado, mas agora ansiava por tirar-lhe a rolha.
E depois... O quê? Voltar a ser o monstro? Perseguido por multidões com archotes, com forquilhas e pistolas, a fugir, a fugir, a fugir com os cães a ladrarem pelo sangue dele?
- Ele era como um segundo pai para toda a gente - disse Jelly Biggs.
- O melhor patrão de feira que jamais conheci.
Naqueles dois séculos, Ben Jonas fora um de uma preciosa mão cheia de gente a quem Deucalião contara as suas origens, um dos poucos em quem confiara por completo.
E disse:
- Foi assassinado depois de me contactar.
Biggs franziu o sobrolho.
- Dizes isso como se estivesse tudo ligado.
- Encontraram o assassino?
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- Não. Mas não é invulgar. A carta para ti, o assalto - apenas coincidência.
Finalmente pousando a mala, Deucalião disse:
- Não há coincidências.
Jelly Biggs tirou os olhos da cadeira e fitou Deucalião. Sem uma palavra, compreenderam que, além dos anos passados em feiras, comungavam de uma mundivisão tão rica de significados como de mistérios.
Apontando para a kitchenette, o gordo disse:
- Além do cinema, o Ben deixou-te sessenta mil em dinheiro. Está no congelador.
Deucalião ponderou sobre esta revelação e depois observou:
- Ele não confiava em muita gente.
Jelly encolheu os ombros.
- Para que quero dinheiro com a beleza espampanante que tenho?
Ela era jovem, pobre, inexperiente. Nunca fizera uma manicura, e Roy Pribeaux ofereceu-se para lhe fazer uma.
- Eu faço a mim próprio - disse ele. - Pode ser uma coisa erótica, uma manicura. Dê-me só uma hipótese e verá.
Roy morava num grande apartamento, no último andar de um prédio antigo remodelado no Warehouse District. Muitos dos edifícios escaqueirados daquela zona da cidade haviam sido transformados em apartamentos
espaçosos para as gentes do meio artístico.
Uma tipografia e uma firma de montagem de computadores dividiam o andar de baixo. Existiam noutro universo, no que dizia respeito a Roy Pribeaux; ele não as incomodava, e elas retribuíam na mesma moeda.
Ele precisava de privacidade, especialmente quando levava mulheres novas e especiais a casa. Desta vez, ela chamava-se Elizabeth Lavenza.
Por mais que parecesse estranho num primeiro encontro - ou num décimo, já agora - sugerir uma manicura, ele encantara-a e Elizabeth aceitara. Ele sabia muito bem como as mulheres modernas reagiam bem aos
homens sensíveis.
Primeiro, na mesa da cozinha, ele pusera-lhe os dedos numa tigela com óleo aquecido para amaciar unhas e cutículas.
A maioria das mulheres também gostava de homens que as mimassem, e a jovem Elizabeth não era diferente.
Além da sensibilidade e da vontade de agradar, Roy tinha um manancial de histórias divertidas e sabia fazer rir uma rapariga. Elizabeth tinha um riso amoroso. Coitadinha, não tinha como lhe resistir.
Depois de as pontas dos dedos estarem de molho, ele enxugou-as com uma toalha macia.
Com um tira-verniz natural, sem acetona, ele limpou-lhe o vermelho das unhas. Em seguida, com gestos suaves e uma lima de papel, esculpiu a ponta de cada unha numa curva perfeita.
Mal começara a aparar as cutículas quando aconteceu uma coisa embaraçosa: o telemóvel especial tocou, e ele soube que só podia ser Candace. Ali estava ele a namoriscar com Elizabeth, e a outra mulher da
vida dele a ligar.
Pediu licença e correu para a zona de jantar, onde deixara o aparelho em cima da mesa.
47
- Estou?
- Senhor Darnell?
- Eu conheço esta voz amorosa - disse ele baixinho, e passou para a sala, para longe de Elizabeth.
- É a Candace?
A vendedora de algodão doce fez um risinho nervoso.
- Falámos tão pouco, como é que me reconheceu a voz?
Perto de uma das janelas altas, de costas para a cozinha, ele respondeu:
- Não reconhece a minha?
Ele quase sentia o calor das faces coradas dela pela linha quando ela admitiu:
- Sim, reconheço.
- Ainda bem que ligou - disse ele num murmúrio discreto.
Timidamente, ela perguntou:
- Bem, pensei... talvez um café?
- Um café para nos conhecermos. Diga onde e quando.
Esperava que ela não dissesse agora. Elizabeth estava à espera, e
ele estava a gostar de lhe fazer a manicura.
- Amanhã à noite? - sugeriu Candace. - Geralmente deixa de haver gente no paredão depois das oito horas.
- Encontramo-nos no vagão vermelho. Serei aquele com um grande sorriso.
Inexperiente em seduções, ela disse com estranheza:
- E... Eu acho que serei aquela dos olhos.
- Será, pois - disse ele. - E que olhos.
Roy carregou no botão para desligar a chamada. O telemóvel descartável não estava registado em nome dele. Por força do hábito, limpou as impressões digitais e atirou-o para cima do sofá.
O apartamento moderno e austero estava pouco mobilado. As máquinas de ginásio eram o orgulho dele. Nas paredes, reproduções dos esboços anatómicos de Leonardo da Vinci, os estudos do grande homem sobre
a forma humana perfeita.
Voltando a Elizabeth à mesa da cozinha, Roy disse:
- Era a minha irmã. Conversamos muito. Somos muito chegados.
Depois da manicura, ele esfoliou a pele das suas mãos perfeitas com uma mistura aromática de óleo de amêndoas doces, sal marinho e essência de alfazema (receita dele), e massajou-lhe as palmas das mãos,
as costas das mãos, os nós dos dedos, os dedos.
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Por fim, enxaguou cada uma das mãos, embrulhou-as em papel branco de talhante limpo, e selou-as num saco de plástico. Quando pôs as mãos no congelador, disse:
- Fico tão contente que tenhas vindo para ficar, Elizabeth.
Não achava peculiar que estivesse a falar para as mãos decepadas dela. As mãos tinham sido a essência dela. Não havia mais nada em Elizabeth Lavenza com que valesse a pena falar, de que valesse a pena
falar. As mãos eram ela.
o Luxe era um palácio de estilo Art Déco, deslumbrante no seu tempo, uma montra adequada a filmes de William Powell e Myrna Loy, Humphrey Bogart, Ingrid Bergman. Como tantas outras caras hollywoodescas,
o encanto descascara e fenecera.
Deucalião acompanhou Jelly Biggs pelo corredor central fora, passando por filas e filas de assentos remendados e bafientos.
- Os malditos DVDs lixaram o negócio das reposições - disse Jelly. - A reforma do Ben não correu como ele esperava.
- O painel diz que o cinema ainda abre de quinta-feira a domingo.
- Desde que o Ben morreu, não. Quase que há fanáticos suficientes de trinta e cinco milímetros para que valha a pena. Mas há fins-de--semana em que temos mais despesas do que receitas. Não quis
assumir essa responsabilidade, dado que isto passou a ser teu.
Deucalião olhou para o ecrã. O pano de cena dourado e escarlate soçobrava, carregado de pó e bolor insidioso.
- Então... tu deixaste a feira quando o Ben deixou?
- Quando os espectáculos de aberrações perderam a piada, o Ben fez de mim gerente do cinema. Tenho o meu apartamento aqui. Espero que isso não mude... Calculo que queiras continuar o negócio.
Deucalião apontou para uma moeda no chão.
- Achar dinheiro é sempre um sinal.
- Sinal de quê?
Deucalião baixou-se para apanhar a moeda e respondeu:
- Cara, ficas sem emprego. Coroa, ficas sem emprego.
- Não gosto dessas probabilidades.
Deucalião atirou a moeda ao ar e apanhou-a a meio. Quando abriu o punho, a moeda desaparecera.
- Nem cara, nem coroa. é mesmo um sinal, não achas?
Em vez do alívio por ficar com o emprego e a casa, o semblante de Jelly toldara-se.
- Tenho sonhado com um mágico. Com poderes muito estranhos.
- Foi só um truque.
Jelly disse:
- Se calhar sou vidente. Os meus sonhos às vezes realizam-se.
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Deucalião tinha muito que podia dizer, mas ficou calado, à espera.
Jelly olhou para o pano de cena bolorento, a alcatifa puída, o tecto ornamentado, para todo o lado menos para Deucalião. Por fim, disse:
- O Ben contou-me de ti, coisas que não parecem reais. - E fitou Deucalião finalmente. - Tens dois corações?
Deucalião preferiu não responder.
- No sonho - disse Jelly - o mágico tinha dois corações... e foi esfaqueado em ambos.
Asas a bater chamaram a atenção de Deucalião para cima.
- O pássaro entrou ontem - disse Jelly. - Parece uma pomba. Ainda não a consegui pôr fora.
Deucalião acompanhou o voo da ave encurralada. Sabia como era.
11.
Carson morava numa rua com árvores, numa casa sem nada de especial, salvo a varanda cheia de floreados em três lados da casa.
Estacionou na berma porque a garagem estava atulhada com os pertences dos pais, e ela ainda não arranjara tempo para tratar disso.
A caminho da porta da cozinha, parou debaixo de um carvalho cheio de samambaias. O trabalho empedernia-a, embrutecia-a. Arnie, o seu irmão, precisava de uma irmã amável. Por vezes, ela não conseguia descomprimir
do carro para casa; precisava de um momento só para si.
Ali, na noite húmida com o perfume do jasmim, ela descobrira que conseguia ganhar uma disposição doméstica. Tinha os nervos tão tensos como tranças, e a cabeça a mil. Nunca antes o odor a jasmim lhe fizera
lembrar o cheiro do sangue.
As mortes recentes tinham sido tão sangrentas, e ocorrido em tão rápida sucessão, que ela não as conseguia descartar durante o tempo livre. Em circunstâncias normais, ela era setenta por cento polícia,
trinta por cento mulher e irmã; actualmente, era toda polícia, vinte e quatro horas por dia, sete dias por semana.
Quando Carson entrou na cozinha, Vicky Chou acabara de encher e ligar a máquina de lavar louça.
- Ora, fiz borrada.
- Não me digas que puseste roupa na máquina da louça?
- Pior. Com a costeleta, dei-lhe cenouras e ervilhas.
- Oh, nunca verde e cor-de-laranja no mesmo prato, Vicky.
Vicky suspirou.
- Ele tem mais preceitos com a comida do que kosher e vegan juntos.
Com o ordenado de detective, Carson não se podia dar ao luxo de ter uma enfermeira a tomar conta do irmão autista. Vicky aceitara o emprego em troca de cama e mesa - e por gratidão.
Quando Liane, irmã de Vicky, fora acusada com o namorado e dois outros de conspiração para cometer homicídio, parecera irremediavelmente apanhada numa teia de provas. Estava inocente. Enquanto mandara
os outros três para a cadeia, Carson ilibara Liane.
Vicky fazia transcrições médicas de cassetes num horário flexível em casa. Se Arnie fosse um autista mais exigente, Vicky talvez não
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tivesse podido continuar a trabalhar, mas o rapaz estava quase sempre sossegadinho.
Viúva aos quarenta, agora com quarenta e cinco, Vicky era uma beleza asiática, esperta e doce e solitária. Não ficaria de luto para sempre. Um dia, quando menos esperasse, surgiria um homem na sua vida,
e o acordo actual terminaria.
Carson lidava com essa possibilidade da única maneira que a vida atarefada lhe permitia: ignorando-a.
- Além de verde e laranja juntos, como esteve ele? - perguntou Carson.
- Absorto com o castelo. Por vezes parece acalmá-lo, outras... -Vicky franziu o sobrolho.
- De que tem ele tanto medo?
- Não sei. Deve ser... da vida.
Ao deitar abaixo uma parede e combinar dois dos quartos no andar de cima, Carson dera a Arnie o maior quarto da casa. Parecia justo, dado o facto de a sua doença lhe roubar o resto do mundo.
A cama e a mesa-de-cabeceira estavam encostadas a um canto. A televisão em cima de uma mesa metálica. Por vezes ele via desenhos animados em DVD, os mesmos, uma e outra vez.
O resto do quarto estava dedicado ao castelo.
Quatro mesas baixas e robustas serviam de plataforma, com 3,5 por 2,5 metros. Em cima das mesas estava uma maravilha arquitectónica feita de peças de Lego.
Poucos rapazes de doze anos teriam sido capazes de criar um castelo sem seguir um esquema, mas Arnie montara uma obra-prima: muralhas e alas, barbacã e bastiões, contrafortes e parapeitos, torreões, a
caserna, a capela, o arsenal, a torre de menagem com baluarte e ameias.
Ele andava obcecado com aquele modelo há semanas, e erigira-o num silêncio intenso. Desmontava com regularidade partes já terminadas para as poder remodelar e aperfeiçoar.
A maior parte do tempo, ficava de pé a montar o castelo - entrava por um buraco na disposição das mesas para acrescentar peças por dentro, e também o podia fazer a toda a volta - mas, por vezes, como agora,
trabalhava sentado num banquinho com rodas. Carson chegou outro banquinho à mesa e sentou-se a observar.
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Era um rapaz de cabelo castanho-escuro e olhos azuis cuja beleza teria, só por si, garantido um lugar ao sol no mundo, não fosse ele autista.
Naquelas alturas, em que Arnie estava completamente concentrado no projecto, não tolerava que ninguém se aproximasse demasiado. Se Carson ficasse um metro mais perto dele, Arnie começaria a ficar agitado.
Quando estava absorto num projecto, podia passar dias em silêncio, evadindo-se com reacções mudas a qualquer tentativa de lhe interromper o trabalho para invadir o seu espaço pessoal.
Havia mais de dezoito anos de diferença entre Carson e Arnie. Ele nascera no ano em que ela saíra da casa dos pais. Mesmo que não sofresse de autismo, eles nunca seriam chegados como muitos irmãos, pois
não teriam muitas experiências em comum.
A seguir à morte dos pais, quatro anos antes, Carson ficara com a guarda do irmão. Ele estava com ela desde então.
Por motivos que ela não sabia explicar muito bem, Carson amava aquela criança amável e reservada. Não lhe parecia possível amá-lo mais se ele fosse seu filho e não seu irmão.
Tinha esperança de que a medicina avançasse e descobrisse um tratamento para o autismo em geral, ou para o caso de Arnie em particular. Porém, sabia que poucas hipóteses havia para essa esperança.
Agora ponderava sobre as alterações mais recentes que ele fizera à muralha exterior do recinto. Fortificara-a com contrafortes a espaços regulares que também serviam de escadarias íngremes, pelas quais
os defensores podiam chegar aos parapeitos entre ameias.
Recentemente, Arnie parecia estar mais receoso do que o costume. Carson não conseguia afugentar a sensação de que ele sentia alguma perturbação iminente e de que se preparava com urgência para isso. Não
podia construir um castelo a sério, e refugiava-se naquela fortaleza de fantasia.
12.
Randal Seis cruza Esfinge com Xenófobo e termina o último exercício de palavras cruzadas daquele livro.
Tinha mais colecções de quebra-cabeças à sua espera. Porém, com a conclusão do presente livro, sente-se couraçado contra a temível desordem do mundo. Ganhou protecção.
Estará seguro durante algum tempo, embora não para sempre. A desordem cresce. O caos aperta as paredes. Com o tempo, terá de encher mais padrões de quadrados vazios, com mais letras judiciosamente escolhidas,
no intuito de recusar ao caos a entrada no seu espaço privado.
Temporariamente seguro, levanta-se da mesa de trabalho, senta-se na beira da cama e carrega num botão da mesa-de-cabeceira, para pedir o almoço.
Não lhe servem refeições a horas certas porque ele não consegue comer quando está obcecado com as palavras cruzadas. Costuma deixar a comida arrefecer para não interromper o importante trabalho de afugentar
o caos.
Um homem de bata branca leva-lhe o tabuleiro e pousa-o na mesa de trabalho. Enquanto o auxiliar lá está, Randal mantém a cabeça baixa para desencorajar conversas e impedir contacto visual.
Toda e qualquer palavra que ele diga a outra pessoa diminui a protecção que ele ganhou.
Outra vez sozinho, Randal Seis almoça. Ordeiramente.
A comida é branca e verde, como ele aprecia. Peito de peru fatiado em molho de natas, puré de batata, pão branco, ervilhas, favas. Para sobremesa, gelado de baunilha com licor de hortelã-pimenta.
Depois de terminar, atreve-se a abrir a porta para deixar o tabuleiro no corredor. Fecha rapidamente a porta, e sente-se tão seguro quanto possível.
Senta-se na beira da cama e abre a gaveta da mesa-de-cabeceira. A gaveta tem dentro algumas revistas.
Tendo recebido instrução por carregamento de dados directamente no cérebro, Randal Seis é encorajado pelo Pai a abrir-se ao mundo, a acompanhar a actualidade, mediante a vulgar leitura de publicações periódicas
e jornais diversos.
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Não suporta jornais. Resistem ao manuseamento. As secções confundem-se; as folhas ficam fora de ordem.
Pior, a tinta. A tinta fica-lhe nas mãos, como se fosse a desordem suja do mundo.
Pode lavar a tinta com muito sabonete e água quente na casa de banho que tem no quarto, mas decerto parte dela infiltra-se nos poros e depois na corrente sanguínea. Nesse sentido, um jornal é um agente
de contágio que o infecta com a desordem do mundo.
Entre as revistas que estão dentro da gaveta, contudo, está um artigo que ele recortou de um jornal local três meses antes. É uma luz ao fundo do túnel.
O artigo fala de uma organização local de angariação de fundos para descobrir a cura para o autismo.
Segundo a definição rigorosa dessa doença, Randal Seis poderá não ser autista; mas sofre de algo deveras semelhante a esse infeliz distúrbio.
Como o Pai o encorajou fortemente a compreender-se melhor a si mesmo enquanto etapa fundamental para a cura, Randal lê livros subordinados ao tema. Não lhe dão, no entanto, a paz que ele encontra nas palavras
cruzadas.
No primeiro mês da sua vida, quando ainda não era evidente o que poderia estar mal com ele, quando ainda conseguia tolerar a leitura de jornais, lera algo sobre a associação de caridade local para investigação
sobre autismo e reconhecera-se de imediato nas descrições desse distúrbio. Apercebera-se então de que não estava sozinho.
Mais importante ainda, viu a fotografia de outro como ele: um rapaz de doze anos, fotografado com a irmã, uma agente da polícia de Nova Orleães.
Na fotografia, o rapaz não olha para a câmara mas sim para um dos lados. Randal Seis reconhece essa evasão.
Todavia, e coisa incrível, o rapaz sorri. Parece feliz.
Randal Seis nunca foi feliz nos quatro meses de vida, desde que saiu do tanque de criação com dezoito anos de idade. Nem uma vez. Nem por momentos. Ocasionalmente sente-se mais ou menos seguro... mas nunca
feliz.
Por vezes senta-se e fica a olhar para o recorte de jornal durante horas.
O rapaz da fotografia chama-se Arnie O'Connor. E sorri.
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Talvez Arnie não esteja feliz o tempo todo, mas às vezes deve estar.
Arnie tem conhecimentos de que Randal necessita. Arnie tem o segredo para a felicidade. Randal precisa dele a tal ponto que à noite não dorme, tentando desesperadamente encontrar maneira de o alcançar.
Arnie está naquela cidade, tão perto. Todavia, em termos práticos, é inalcançável.
Nos seus quatro meses de vida, Randal Seis nunca esteve fora das paredes da Misericórdia. Só de o levarem a outro piso no próprio edifício para tratamento já é uma experiência traumática.
Outro bairro em Nova Orleães é para ele inacessível como uma cratera na Lua. Arnie vive com o seu segredo, intocável.
Se ao menos Randal conseguisse chegar ao rapaz, ficaria a saber o segredo para a felicidade. Talvez Arnie não o queira partilhar. Não importa. Randal arranca-lho. Randal arranca-lho.
Ao invés da esmagadora maioria dos autistas, Randal Seis é capaz de uma violência extrema. A sua raiva interior é quase igual ao seu medo da desordem do mundo.
Ocultou esta propensão para a violência de todos, até do Pai, pois receia que, se souberem, algo de mal lhe aconteça. Viu no Pai uma certa... frieza.
Guarda a fotografia do jornal na gaveta mais uma vez, debaixo das revistas. Ainda vê Arnie na sua cabeça, Arnie a sorrir.
Arnie está lá fora, na lua em Nova Orleães, e Randal Seis sente-se atraído por ele como o mar pelas fases lunares.
A pequena cabina de projecção mal iluminada, um sofá com as molas partidas encostado a uma parede, pilhas de livros de bolso por todo o lado. Era evidente que Jelly gostava de ler enquanto o filme passava.
Apontando para uma porta diferente daquela por onde tinham entrado, o gordo disse:
- O meu apartamento fica ali. O Ben deixou uma caixa especial para ti.
Enquanto Jelly ia buscar a caixa, Deucalião sentiu-se atraído pelo velho projector, o qual, sem dúvida lá estava de raiz. Aquela peça de maquinaria monstruosa tinha bobinas enormes de entrada e saída.
A película de trinta e cinco milímetros tinha de ser passada por um labirinto de rodas dentadas e guias até entrar no intervalo entre a lâmpada de elevada intensidade e a lente.
Estudou os botões de ajuste e avançou até poder espreitar para dentro do olho dclópico do projector. Tirou uma tampa para examinar as engrenagens, rodas e motores internos.
Para além da varanda, do mezanino e dos assentos mais baixos, aquele dispositivo podia lançar uma ilusão de vida cintilante no grande ecrã.
A própria vida de Deucalião, na sua primeira década, parecera-lhe amiúde uma ilusão negra. Todavia, com o tempo, a vida ficara demasiado real e obrigara-o a refugiar-se em feiras, em mosteiros.
Jelly voltou com uma caixa de sapatos velha cheia de papéis e deteve-se quando viu Deucalião a mexer no projector.
- Faz-me nervoso miudinho, tu mexeres nisso. É uma antiguidade. É difícil encontrar peças ou alguém que arranje. Isso é o sangue da vida deste sítio.
- Pois há hemorragia. - Deucalião pôs a tampa para proteger as peças delicadas. - A lógica revela os segredos de qualquer máquina -seja projector, motor a jacto ou o próprio universo.
- O Ben avisou-me de que tu pensas de mais. - Jelly pousou a caixa de sapatos sobre uma pilha de revistas de mexericos de celebridades.
- Ele mandou-te um recorte de jornal na carta, não mandou?
- E fez-me vir para o outro lado do mundo.
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Jelly destapou a caixa.
- O Ben coleccionava muito disto.
Deucalião pegou no recorte que estava por cima, observou a fotografia e leu o título: VICTOR HÉLIOS DOA UM MILHÃO A SINFONIA.
A visão do homem da fotografia, praticamente inalterado ao fim de tanto tempo, abalou Deucalião como antes fizera, no mosteiro.
Cimitarras de luz esventram uma noite de barriga negra, e depois os trovões abalam as trevas mais uma vez pelas altas janelas de batente. Derramada pelos candeeiros a gás tremeluzentes, a luz galga as
paredes de pedra de um laboratório cavernoso. Um feixe de electricidade crepita entre os pólos cobertos de cobre do equipamento insólito. Chovem centelhas de transformadores perigosamente sobrecarregados
e maquinaria movida a pistões.
A tormenta recrudesce de violência, lançando relâmpago atrás de relâmpago contra os receptores metálicos que juncam as torres mais altas. Aquela energia incrível é canalizada para baixo, para...
... ele.
Abre as pálpebras pesadas evê o olho de outro homem ampliado por um engenho ocular parecido com a lupa de um joalheiro. A lupa levanta-se e ele vê a cara de Victor. Jovem, séria, esperançosa.
De barrete e bata branca salpicada de sangue, aquele criador, aquele aspirante a deus...
As mãos trémulas, Deucalião deixa cair o recorte, o qual voa até ao chão da sala de projecção.
Ben preparara-o para aquilo, mas é um choque renovado. Victor está vivo. Vivo.
Durante mais de um século, Deucalião explicara a si mesmo que a sua longevidade se devia ao simples facto de ser único, de ter ganhado vida por meios singulares. Por conseguinte, poderia existir além do
alcance da morte. Nunca se constipara, nunca apanhara nada, nunca sofrera nenhuma lesão física.
Victor, todavia, nascera de homem e mulher. Deveria ser herdeiro de todos os males da carne.
De um bolso interior do casaco, Deucalião tirou um rolo de papel pesado que costumava guardar na mochila. Desatou o nó do laço que
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prendia o papel, desenrolou-o e olhou para ele um momento, antes de o mostrar a Jelly.
Depois de observar o retrato a lápis, Jelly disse:
- É o Hélios.
- Auto-retrato - disse Deucalião. - Ele tem... talento. Tirei isto de uma moldura que ele tinha no escritório... Há mais de duzentos anos.
Era evidente que Jelly sabia o bastante para receber a notícia sem surpresa.
- Mostrei isto ao Ben - continuou Deucalião. - Mais de uma vez. Foi assim que ele reconheceu Victor Hélios e soube quem ele realmente é.
Deucalião pôs de parte o retrato de Victor e escolheu outro recorte da caixa; era uma fotografia de Hélios a receber um galardão do presidente da câmara de Nova Orleães.
Terceiro recorte: Victor com o procurador durante a campanha para a eleição deste.
Quarto: Victor e a sua bela mulher, Erika, num leilão de beneficência.
Victor a comprar uma mansão no Garden District.
Victor a patrocinar uma bolsa de estudos na Universidade de Tulane.
Victor, Victor, Victor.
Deucalião não se recordava de largar os recortes, nem de atravessar a pequena sala, mas devia tê-lo feito, pois a seguir metera o punho direito na parede e furara o estuque antigo. Quando tirou as mãos,
cheias de bocados de tela partida, um bocado da parede desabou e esboroou-se a seus pés.
Ouviu-se rugir de fúria e angúsfia, e conseguiu abafar o grito antes de perder o controlo.
Quando se virou para Jelly, a vista de Deucalião iluminou-se, escureceu, iluminou-se, e ele soube que uma subtil pulsação de luminosidade, como um raio de calor por detrás das nuvens num céu estival, lhe
passara pelos olhos. Já vira o fenómeno em espelhos.
De olhos arregalados, Jelly parecia prestes a fugir da sala, mas depois exalou pesadamente.
- O Ben disse que ias ficar aborrecido.
Deucalião quase se riu do eufemismo e descaramento do gordo, mas temia que o riso se transformasse num grito de raiva. Pela primeira vez
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em muitos anos, quase se descontrolara, quase se entregara ao impulso criminoso que fazia parte dele desde o momento da sua criação.
E perguntou:
- Sabes o que eu sou?
Jelly fitou-o, estudou a tatuagem e o estrago que esta mal disfarçava, examinou a envergadura do corpo dele.
- O Ben... explicou. Acho que pode ser verdade.
- Acredita - aconselhou Deucalião. - As minhas origens são o cemitério de uma prisão, os cadáveres de criminosos - combinados, revitalizados, renascidos.
Lá fora, a noite estava quente e húmida. Na biblioteca de Victor Hélios, o ar condicionado refrescava tanto que era necessária uma chama alegre na lareira.
O fogo caracterizava algumas das suas recordações menos agradáveis. O grande moinho de vento. O bombardeamento de Dresden. o ataque da Mossad israelita ao complexo de investigação secreto na Venezuela
que ele dividira com Mengele nos anos após a Segunda Guerra Mundial. Não obstante, gostava de ler acompanhado por um lume acolhedor e crepitante.
Quando, como naquela altura, lia publicações médicas como, por exemplo, The Lancet, JAMA e Emerging Infectious Diseases, o lume servia para dar ambiente e também como expressão da sua opinião científica
abalizada. Era frequente rasgar artigos das revistas e atirá-los às chamas. Ocasionalmente, queimava edições inteiras.
Como sempre, o establishment científico não tinha nada para lhe ensinar. Estava muito à frente deles. Contudo, sentia a necessidade de acompanhar os avanços na genética, na biologia molecular, e noutros
campos.
Sentia necessidade também de um vinho que complementasse melhor as nozes fritas do que o Cabernet com que Erika lhas servira. Demasiados taninos. Teria sido preferível um Merlot.
Ela sentou-se na cadeira de braços em frente dele, a ler poesia. Andava encantada com Emily Dickinson, o que incomodava Victor.
Dickinson não fora má poetisa, claro, mas estivera encantada com Deus. Os poemas dela podiam condicionar os ingénuos. Veneno intelectual.
A necessidade que Erika tivesse de um deus poderia satisfazer-se naquela biblioteca. Afinal o seu criador era também seu marido.
Fisicamente, fizera um belo trabalho. Ela era linda, graciosa, elegante. Parecia ter vinte e cinco anos mas só existia há meras seis semanas.
O próprio Victor, embora tivesse duzentos e quarenta anos, passaria por quarenta e cinco. A sua aparência jovem fora mais difícil de manter do que a dela de criar.
A beleza e a graça não eram os únicos critérios para uma esposa ideal. Ele também queria que ela fosse social e intelectualmente sofisticada.
Neste sentido, e em muitos aspectos, Erika deixara-o ficar mal e revelara-se de aprendizagem lenta, apesar dos carregamentos de dados
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directamente no cérebro, de entre os quais enciclopédias virtuais de etiqueta, história culinária, degustação de vinhos, ditos espirituosos, e muito mais.
O conhecimento de uma temática não implicava que se conseguisse aplicá-la, claro, mas Erika não parecia esforçar-se o suficiente. O Cabernet em vez do Merlot, Dickinson...
Victor tinha de admitir, contudo, que ela era uma criatura mais atractiva e aceitável do que Erika Três, a sua antecessora. Podia não ser a versão final - só o tempo o diria - mas, fossem quais fossem
os seus defeitos, Erika Três não era completamente embaraçosa.
As baboseiras das publicações médicas e Erika a ler Dickinson fizeram-no finalmente levantar-se da cadeira.
- Sinto-me criativo. Acho que vou passar algum tempo no meu estúdio.
- Precisa de ajuda, querido?
- Não. Fique aqui, divirta-se.
- Ouça isto. - O encanto dela era pueril. Antes que Victor a pudesse impedir, ela começou a ler em voz alta.
- A linhagem do mel / Não respeita à abelha / Um trevo, em qualquer altura, para ele / é aristocracia.
- Encantador - disse ele. - Mas podia variar e ler Thom Gunn e Frederick Seidel.
Ele podia mandá-la ler o que quisesse que ela teria obedecido. Mas não queria um autómato como esposa. Queria que ela tivesse um espírito livre. Só em questões sexuais exigia a mais cega obediência.
Na imensa cozinha que não destoaria num restaurante, de onde a criadagem poderia servir um jantar para cem pessoas sentadas sem problema algum, Victor entrou na despensa. As prateleiras do fundo, carregadas
de enlatados, deslizaram para o lado quando ele carregou num interruptor oculto.
Além da despensa, escondido no meio da casa, ficava um estúdio sem janelas.
O laboratório público ficava na Hélios Biovision, a empresa que o dava a conhecer ao mundo e com a qual ganhara mais uma fortuna, além daquela já acumulada em épocas anteriores.
E nas Mãos da Misericórdia, um hospital abandonado remodelado para o principal trabalho dele e equipado com pessoal da sua lavra, Victor tratava da criação da nova raça que substituiria a humanidade imperfeita.
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Ali, atrás da despensa, num espaço de seis por quatro metros, aquele retiro servia para ele trabalhar em experiências pequenas, não raro as que lideravam a tecnologia do seu empreendimento histórico.
Victor achava estar para o equipamento de laboratório antiquado como o Pai Natal estava para as lojas de brinquedos cheias de engenhocas.
Quando Mary Shelley pegara numa lenda local baseada na verdade e a misturara com ficção, fizera de Victor uma figura trágica e matara-o. Ele compreendia a finalidade dela em termos dramáticos, dar-lhe
uma cena de morte, mas abominava-a por o retratar como um fracassado trágico.
O juízo que ela fizera da obra dele era arrogante. O que mais escrevera ela que se visse? E dos dois, quem morrera - e quem sobrevivera?
Embora o romance dela sugerisse que o local de trabalho dele era uma fantasmagoria de engenhocas sinistras na aparência e no objectivo, não entrara em pormenores. Só aquando da primeira adaptação do seu
livro é que o nome Frankenstein se tornara sinónimo do termo "cientista louco" e os laboratórios passaram a ter maquinetas, engenhocas e geringonças que crepitavam, estalavam e zumbiam.
Era divertido que Hollywood quase tivesse acertado na produção dos cenários, não das máquinas propriamente ditas, mas do ambiente. Até o estúdio por detrás da despensa parecia um inferno com máquinas.
Na bancada de trabalho estava um tanque acrílico com uma solução antibiótica leitosa. Dentro do tanque, a cabeça degolada de um homem.
Aliás, a cabeça não fora degolada, pois nunca estivera ligada a corpo nenhum.
Victor criara-a apenas para servir de tábua rasa. A cabeça não tinha cabelo, e as feições eram toscas e informes.
Havia sistemas de apoio que abasteciam sangue oxigenado rico em nutrientes e equilibrado em enzimas, e que escoavam os resíduos metabólicos por vários tubos de plástico ligados ao pescoço.
Sem necessidade de respirar, a cabeça estava quase imóvel. Porém, os olhos mexiam-se atrás das pálpebras, a indicar que a cabeça sonhava.
O cérebro dentro do crânio tinha consciência de si, mas apenas a personalidade mais rudimentar e suficiente para a experimentação.
Victor aproximou-se da bancada e dirigiu-se ao residente do tanque acrílico aberto:
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- São horas de trabalhar, Karloff.
Não se poderia dizer que Victor Hélios, anteriormente conhecido por Frankenstein, não tivesse sentido de humor.
Na cabeça, os olhos abriram-se. Eram azuis e estavam raiados de sangue.
Karloff fora selectivamente instruído mediante carregamento de dados directamente no cérebro; por conseguinte, falava inglês.
- Pronto - disse em voz grossa e rouca.
- A tua mão? - perguntou Victor.
Os olhos raiados de sangue dardejaram até uma mesa mais pequena ao canto do estúdio.
Ali estava uma mão viva numa taça pouco funda da mesma solução antibiótica leitosa. À semelhança da cabeça, aquela maravilha de cinco dedos tinha numerosos tubos e uma bomba eléctrica de baixa tensão que
lhe alimentava os nervos e, assim, a musculatura.
Os sistemas de apoio à cabeça e à mão eram independentes entre si, não havia tubos nem fios em comum.
Depois de ler os visores do equipamento e de fazer ajustes, Victor disse:
- Karloff, mexe o polegar.
Na taça, a mão continuou imóvel. Imóvel. E nisto... o polegar agitou-se, dobrou-se pelo nó, esticou-se outra vez.
Victor procurava há muito os genes que poderiam transportar esses poderes psíquicos fugazes que a humanidade por vezes sentira mas que nunca pudera dominar. Recentemente ele alcançara esse pequeno triunfo.
Aquele derradeiro exemplo de amputado, Karloff, acabara de exibir telecinesia psicomotora, o controlo da sua mão completamente separada do corpo estritamente por meio de esforço mental.
- Dá-me um arpeggio - disse Victor.
Na taça pouco funda, a mão ergueu-se no cutelo da palma e os dedos cruzaram o ar, como se dedilhassem as cordas de uma harpa invisível.
Agradado por aquela exibição, Victor disse:
- Karloff, faz um punho.
A mão fechou-se devagar, cada vez mais, até os nós dos dedos estarem salientes e brancos.
Não se via emoção alguma na cara de Karloff, mas a mão arvorava uma excelente expressão de raiva e desejo de violência.
15.
Dia novo, morte nova. Pela segunda manhã consecutiva, Carson terminava o pequeno-almoço com a descoberta de um corpo mutilado.
Havia uma equipa de televisão na biblioteca, a tirar equipamento da carrinha satélite, quando Carson travou a fundo, guinou o volante e meteu o carro civil entre dois brancos e pretos em espinha na berma.
- Bato todos os recordes de velocidade terrestre - resmungou ela - e a comunicação social já cá está.
- Luvas para as pessoas certas - sugeriu Michael -, e da próxima vez pode ser que recebas a chamada antes do Channel 4.
Quando ela e Michael atravessaram o passeio rumo à biblioteca, um repórter chamou-a:
- Detective O'Connor! É verdade que o Cirurgião cortou um coração desta vez?
- Talvez lhes interesse tanto - disse ela a Michael -, porque nenhum daqueles sacanas tem coração.
Subiram a correr os degraus que levavam ao edifício de tijoleira, com arcadas e colunas de granito cinzento.
O agente deixou-os passar a porta e disse:
- Mesmo padrão, malta. É um dos dele.
- Sete crimes em pouco mais de três semanas já não é padrão -retorquiu Carson. - É matança.
Entraram no átrio com a secretária elevada e Michael disse:
- Devia ter trazido o livro que tenho para entregar.
- Vieste buscar um livro? O senhor DVD com um livro?
- Era um guia de DVD.
Técnicos da Patologia, fotógrafos da polícia, criminalistas, agentes fardados e pessoal da Medicina Legal recebiam ordens sem dizer palavra. Carson e Michael seguiram os acenos de cabeça e os gestos até
passarem o labirinto de livros.
A três quartos do caminho por um corredor atulhado, encontraram Harker e Frye a isolarem o local com fita amarela.
Para estabelecer que o território era dele e de Carson, Michael disse:
- O bandido das mãos de ontem é o ladrão de corações desta manhã.
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Frye conseguia ter um ar besuntão e pálido. A cara não tinha cor. Tinha uma mão agarrada à enorme barriga, como se tivesse comido camarão estragado ao pequeno-almoço.
E disse:
- No que me diz respeito, podem ficar com as pistas. Perdi o gosto pelo caso.
Se Harker também tivesse mudado de ideias, não seria por razões idênticas às de Frye. A cara estava corada como sempre, os olhos desafiadores.
Harker passou a mão pelo cabelo desbotado pelo sol e disse:
- A mim parece que quem tiver os galões nisto anda na corda bamba. Basta um erro num caso destes e a comunicação social acaba-Lhe com a carreira.
- Se isso quiser dizer cooperação em vez de competição - disse Michael -, aceitamos.
Carson não estava assim tão disposta a perdoar os calos que aqueles dois lhe tinham pisado, mas perguntou:
- Quem é a vítima?
- Um segurança da noite - respondeu Harker.
Com Frye atrás dele, Harker passou por baixo da fita amarela e levou-os ao fundo do corredor, na esquina para outra fileira de livros.
O sinal no fim da fileira dizia PSICOLOGIA aberrante. A dez metros, o cadáver estava de costas no chão. A vítima parecia um porco a meio caminho do matadouro.
Carson entrou no corredor, mas não avançou para ver o sangue que espirrara, e deixou a zona crítica intocada para a Patologia.
Enquanto avaliava rapidamente o local e tentava adaptar-se a ele, a pensar na estratégia a seguir, Harker disse atrás dela:
- Parece que ele partiu o esterno com a limpeza de um cirurgião. Entrou com total profissionalismo. O gajo anda com a ferramenta atrás.
Michael postou-se ao lado de Carson e disse:
- Pelo menos podemos descartar suicídio.
- Quase parece suicídio - murmurou Carson, pensativa.
Michael disse:
- Recordemos agora os princípios desta relação. Tu é que és o homem.
- Houve luta - disse Harker. - Os livros foram arrancados das prateleiras.
67
Havia cerca de vinte livros espalhados do lado mais próximo deles. Todos fechados. Alguns em pilhas de dois e três.
- Arrumado de mais - disse ela. - Parece mais que alguém os estava a ler e depois os pôs de parte.
- Talvez o doutor Jekyll estivesse sentado no chão a investigar a sua própria insânia - especulou Michael - quando o segurança deu com ele.
- Olha para a zona crítica - disse Carson. - Muito contida à volta do corpo. Não há grandes salpicos nos livros. Não há sinais de luta.
- Não houve luta? - zombou Harker. - Diz isso ao tipo sem coração.
- Ainda tem a arma no coldre - disse Carson. - Nem sequer a tirou, quanto mais disparar.
- Clorofórmio por trás - sugeriu Michael.
Carson não retrucou logo. Durante a noite, a loucura entrara na biblioteca, armada de instrumentos cirúrgicos. Ela até podia ouvir os passos da loucura, ouvir-lhe a respiração suave e vagarosa.
O fedor do sangue da vítima agitou no sangue de Carson uma corrente de medo. Havia algo naquele local, algo que ela não conseguia identificar, que era extraordinário, sem precedentes na sua experiência,
e tão contranatura que era quase sobrenatural. Falava-lhe primeiro às emoções e só depois ao intelecto; espicaçava-a vê-lo, descobri-lo.
Ao lado dela, Michael sussurrou:
- Aqui vem a visão de bruxa.
Ela sentiu a boca seca de medo, as mãos subitamente geladas. Não desconhecia o medo. Podia ter medo e continuar a ser profissional, alerta e rápida. Por vezes o medo aguçava-lhe o instinto, clareava-lhe
o raciocínio.
- Parece mais - disse ela por fim - como se a vítima estivesse ali deitada à espera de ser esquartejada. Olhem para a cara dele.
Os olhos estavam abertos. As feições descontraídas, e não contorcidas pelo terror ou pelo sofrimento.
- Clorofórmio - repetiu Michael.
Carson abanou a cabeça.
- Ele estava acordado. Olhem para os olhos dele. A expressão da boca. Não morreu inconsciente. Olhem para as mãos.
A mão esquerda do segurança estava aberta ao lado do corpo, a palma para cima, os dedos esticados. A posição sugeria sedação antes do assassínio.
A casa de banho das senhoras cheirava a desinfectante com aroma de pinho e perfume White Diamonds. O serviço de limpeza regular estava na origem do primeiro, e Nancy Whistler do segundo.
Uma mulher jovem e bonita, que desmentia o estereótipo da bibliotecária, com um vestido estival justo ao corpo e amarelo como um narciso.
Debruçou-se num dos lavatórios e deitou água fria da torneira aberta no rosto. Bebeu com as mãos em concha, bochechou e cuspiu.
- Desculpe o estado em que me encontro - disse ela.
- Não faz mal - Carson queria sossegá-la.
- Tenho medo de sair daqui. Logo quando creio que jã não posso vomitar mais, torno outra vez.
- Adoro o meu emprego - disse Michael para Carson.
- Os agentes que verificaram o perímetro disseram-me que não há sinais de arrombamento. Tem a certeza de que a porta da frente estava trancada quando chegou? - insistiu Carson.
- Absoluta. Duas trancas, ambas fechadas.
- Quem mais tem chave?
- Dez pessoas. Talvez doze - respondeu Nancy Whistler. - Não me lembro dos nomes agora.
Só se podia insistir até certo ponto com uma testemunha no rescaldo do seu encontro com um cadáver ensanguentado. Não era altura de ser mandona.
Carson pediu:
- Mande-me uma lista de quem tem chave por correio electrónico. Em breve.
- Está bem, claro. Compreendo. - A bibliotecária fez uma careta como se fosse vomitar outra vez, mas disse:
- Credo, ele era muito tanso, mas não merecia aquilo. - As sobrancelhas erguidas de Michael pediam-lhe uma explicação.
- O Bobby Allwine. O segurança.
- Defina tanso - pediu Michael.
- Estava sempre... a olhar para mim, a dizer coisas inconvenientes. Tinha uma maneira de se fazer a mim que era... esquisita.
- Assédio?
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- Não. Não era nada forçado. Apenas esquisito. Como se ele não percebesse um monte de coisas, a maneira de se portar. - Nancy abanou a cabeça.
- E ia a casas funerárias por graça.
Carson e Michael entreolharam-se, e ele retrucou:
- Quem é que não vai?
- Velórios em casas funerárias. De gente que ele nem sequer conhecia. Ia duas, três vezes por semana.
- Porquê?
- Disse que gostava de olhar para pessoas mortas deitadas no caixão. Disse que o... relaxava. - Nancy fechou a torneira.
- O Bobby era assim taradinho, mas porque é que alguém lhe havia de arrancar o coração?
Michael encolheu os ombros.
- Recordação. Satisfação sexual. Jantar.
Apavorada, enojada, Nancy Whistler correu para uma sanita.
Carson disse a Michael:
- Lindo! Ai que lindo!
17.
Tinta descascada, estuque esburacado, ferro forjado enferrujado, jasmins-da-virgínia pendurados a amarelecerem ao calor, e um fungo com ar de pústula a sair das muitas fendas no passeio de cimento estabeleciam
o padrão que se repetiria em todos os aspectos daquele prédio de apartamentos.
No relvado irregular, onde mais parecia terem deitado sal, uma tabuleta dizia APARTAMENTOS VAGOS / SÓ PARA VENCIDOS DA VIDA.
Bem, só se viam as primeiras duas palavras. As outras cinco não eram precisas para Carson as deduzir pelo estado lastimável do prédio quando estacionara na berma.
Além da tabuleta, o relvado da frente tinha mesmo um bando de sete flamingos.
- Aposto que também há um casal de anões de plástico algures -disse Michael.
Alguém pintara quatro dos flamingos noutros tons tropicais - ver-de-manga, amarelo-ananás -, talvez na esperança de que uma mudança de cor atenuasse o absurdo dos enfeites do relvado, mesmo que não atenuasse
o mau gosto. A tinta nova já desbotara a espaços, via-se o cor-de-rosa.
Não pela implicação de pobreza mas sim pela estranheza do sítio, era um prédio ideal para excêntricos e tarados como Bobby Allwine, o do coração roubado. Sentiam-se atraídos para ali, e, na companhia dos
seus, ninguém se destacaria em particular.
Estava um velhote ajoelhado nos degraus a consertar um bocado do corrimão.
- Desculpe. Trabalha aqui? - perguntou Michael, e mostrou o distintivo.
- Contrariado, mas sim. - O velho mirou Carson de alto a baixo mas continuou a falar com Michael.
- Quem é ela?
- Na esquadra hoje era o dia traz-a-tua-irmã-para-o-trabalho. Você é o encarregado do condomínio?
- Não me parece que "condomínio" se aplique a este pardieiro. Eu sou o pau para toda a obra daqui. Vieram ver a casa do Bobby Allwine?
- As notícias espalham-se depressa.
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O pau para toda a obra pousou a chave de ferramentas, pôs-se de pé e disse:
- As boas, sim. Venham comigo.
Lá dentro, a escada do prédio era estreita, escura, descascada, húmida e malcheirosa.
O velho também não cheirava nada bem, e a caminho do segundo andar Michael disse:
- Nunca mais me hei-de queixar do meu apartamento.
À porta do 2 D, enquanto remexia nas algibeiras das calças procurando pela chave-mestra, o velho disse:
- Ouvi nas notícias que lhe tiraram o fígado.
- Foi o coração - corrigiu Carson.
- Ainda melhor.
- Não simpatizava com o Bobby Allwine?
A destrancar a porta, ele respondeu:
- Mal o conhecia, mas isto faz com que o apartamento valha mais cinquenta dólares. - Viu a descrença deles e assegurou-lhes:
- Há quem queira pagar mais.
- Quem - perguntou Michael -, a família Addams?
- Gente que gosta de lugares com um bocadinho de história.
Carson avançou para dentro do apartamento e, antes que o velho
fosse atrás, Michael chamou-o à parte e disse:
- Chamamo-lo quando terminarmos.
Os estores estavam para baixo. Estava tudo invulgarmente escuro para uma tarde tão soalheira.
Carson encontrou o interruptor do candeeiro do tecto e disse:
- Michael, olha para isto.
Na sala de estar, o tecto e as paredes estavam pintadas de preto. O chão de madeira, os rodapés, a porta e os caixilhos das janelas eram pretos também. Os estores eram pretos.
A única mobília era uma poltrona de vinilo preto no meio da sala.
Michael fechou a porta da rua atrás de si e ironizou:
- A Martha Stewart não tem um número de emergência para decoração?
As janelas estavam fechadas. Não havia ar condicionado. O calor húmido e o negrume e um cheiro doce provocadoramente familiar fizeram com que Carson se sentisse lenta e estúpida.
- Que cheiro é este? - perguntou ela.
- Alcaçuz.
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Denso, doce, invasivo, o cheiro era mesmo a alcaçuz. Embora devesse ter sido agradável, Carson ficou meio enjoada.
A porta preta tinha brilho, e não havia pó nem cotão. Carson passou a mão pelo parapeito da janela, pelo painel de uma porta e não encontrou sujidade.
Tal como perante o cadáver de Allwine na biblioteca, o medo rondava Carson, numa inquietude insidiosa que lhe subia pela espinha e lhe deixava um beijo frio na nuca.
Na cozinha meticulosamente limpa, Michael hesitou em abrir a porta preta do frigorífico.
- Parece um momento Jeffrey Dahmer, cabeças cortadas entre frascos de picles e maionese, um coração num saco de plástico com fecho.
Até o interior do frigorífico fora pintado de preto, mas não havia cabeças. Apenas bolo de café e um pacote de leite.
A maioria dos armários também estava vazia. Numa gaveta estavam três colheres, dois garfos, duas facas.
Segundo a ficha de funcionário, Allwine morara ali dois anos. o inventário dos seus pertences daria a impressão de que ele estava pronto para partir a qualquer momento e com pouca bagagem.
A terceira divisão era o quarto. O tecto, as paredes e o chão eram todos pretos. Até a cama e os lençóis: pretos. Mesa-de-cabeceira preta, candeeiro preto, rádio preto com números que brilhavam a verde.
- Mas que sítio é este? - inquiriu Carson.
- Se calhar era satanista! Ou apenas fã desalmado de heavy metal.
- Não há sistema de som. Não há televisor.
Michael encontrou a origem do cheiro a alcaçuz. Na alcova sem estofos estava um tabuleiro com várias velas pretas grossas, todas apagadas. Michael inclinou-se para cheirar e disse:
- Perfumadas.
Carson pensou no tempo e no esforço necessários para criar aquele negrume sem tréguas e, de súbito, lembrou-se de Arnie e do seu castelo de Lego. Bobby Allwine tinha emprego e interagia com o mundo, mas,
a determinado nível, era tão disfuncional como o irmão dela.
Todavia, Arnie era benigno, ao passo que, perante as provas disponíveis, a psicologia de Allwine devia ser, no seu âmago, maligna.
- Este sítio vale mais cem dólares por mês - declarou Michael.
Quando Carson acendeu a luz da casa de banho, o contraste feriu-lhe os olhos. A tinta, os mosaicos, o lavatório, a sanita - era tudo
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deslumbrante de tão branco e limpo com assiduidade. O cheiro pungente a amoníaco não permitira intrusões do aroma a alcaçuz.
Em frente ao espelho, centenas de lâminas de barbear saíam da parede. Cada qual fora introduzida no mesmo ângulo no estuque, deixando metade da lâmina de fora, como um maléfico dente prateado. Fila após
fila após fila de lâminas de barbear limpas, cintilantes e novas.
- Parece - disse ela - que a vítima ainda era mais louca do que o assassino.
Na nata da sociedade de Nova Orleães, os jantares formais eram uma necessidade política, e Victor levava as suas responsabilidades muito a sério.
Dentro da enorme mansão no Garden District, as governantas -Christine e Sandra - e o mordomo, William, tinham passado o dia a preparar o evento dessa noite. Limparam todas as divisões, puseram flores e
velas, varreram os alpendres cobertos. Os jardineiros tratavam do relvado, das árvores, dos canteiros e das sebes.
Eram todos eles gente feita por Victor, feita nas Mãos da Misericórdia e, como tal, incansáveis e eficientes.
Na sala de jantar de cerimónia, a mesa estava posta para doze, com linhos Pratesi, pratas Buccelatti, louças de Limoges, baixelas de prata históricas Paul Storr, e um monumental candelabro Storr com Baco
e sua criadagem. O volume de brilhos era maior - e incorporava um valor maior - do que qualquer montra de diamantes na Tiffany's.
As governantas e o mordomo aguardavam pela inspecção do seu amo. Este entrou na sala de jantar, já vestido, e observou os preparativos.
- Sandra, seleccionou as louças certas para os convivas desta noite.
A aprovação dele suscitou um sorriso nela, embora pouco à vontade.
- Mas William, há dedadas em alguns copos.
O mordomo levou imediatamente os copos indicados.
Dois centros de mesa com rosas cor de creme ladeavam o candelabro, e Victor fez um reparo:
- Christine, há ramagem a mais. Tire alguma para salientar as flores.
- Não fui eu quem dispôs as rosas, senhor - disse ela, parecendo confrangida por ter de revelar que fora a mulher dele a tratar dos arranjos.
- A senhora Hélios preferiu ser ela a fazer. Ela leu um livro sobre arranjos florais.
Victor sabia que os criados gostavam de Erika e se preocupavam com o sucesso dela.
Suspirou.
- Repitam os arranjos mesmo assim, mas não digam nada à minha mulher. - Anelante, tirou uma das rosas brancas e virou-a lentamente entre o polegar e o indicador. Cheirou-a e reparou que algumas
pétalas já mostravam sinais de querer murchar.
- Ela é tão... nova. Há-de aprender.
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Aproximava-se a hora do evento, e Victor foi ao quarto saber o que estava a atrasar Erika.
Encontrou-a sentada ao espelho. O seu cabelo cor de bronze até aos ombros era lustroso como seda. A forma magnífica e a macieza dos seus ombros nus perturbavam-no.
Infelizmente, ela entusiasmava-se demasiado com o efeito da maquilhagem.
- Erika, não pode melhorar o que já é perfeito.
- Quero tanto ficar bonita para si, Victor.
- Então tire praticamente tudo. Deixe a sua beleza natural brilhar. Dei-lhe tudo o que precisa para deslumbrar.
- Que simpático - disse ela, mas parecia não saber se fora um elogio ou uma crítica.
- A esposa do vereador, a esposa do reitor da universidade, nenhuma delas estará pintada como uma diva da música pop.
O sorriso dela vacilou. Victor acreditava que a frontalidade com um subordinado - ou uma esposa - era sempre preferível à crítica dissimulada para não ferir susceptibilidades.
Atrás dela, pousou-lhe as mãos nos ombros nus, inclinou-se para lhe cheirar o cabelo. Afastou aquela juba gloriosa e beijou-lhe a nuca - e sentiu-a estremecer.
Tocou-lhe no colar de esmeraldas.
- Diamantes seriam uma escolha melhor. Mude, se faz favor, por mim.
No espelho, ela fitou-o e depois baixou o olhar para o leque de pincéis de maquilhagem e frasquinhos. A voz saiu-lhe num sussurro:
- Os seus padrões para tudo são... tão elevados.
Ele beijou-lhe outra vez o pescoço e sussurrou também:
- Foi por isso que a fiz. Minha mulher.
No carro, a caminho do Bairro Francês para um petisco em Jackson Square, Carson e Michael trocavam palpites sobre o caso.
Ela disse:
- O Allwine não foi cloroformizado.
- Ainda não temos os resultados das análises.
- Lembra-te da cara dele. Não foi cloroformizado. Isso faz dele, e do empregado da lavandaria, Chaterie, as excepções.
- O outro homem, Bradford Walden, foi cloroformizado - disse Michael.
- Caso contrário, esses três seriam uma série.
- O Cirurgião tirou-lhes os órgãos internos para recordação.
- Mas às mulheres só tirou orelhas, pés, mãos... A Nancy Whistler mandou-te a lista de quem tem a chave da biblioteca?
- Mandou. Mas, depois de ver o apartamento do Allwine, acho que ele abriu a porta ao assassino, o tipo não precisou de chave.
- Como é que chegaste a essa conclusão?
- Não sei. É uma sensação.
- Vamos fazer análise vitimológica - propôs Michael. - Primeiro... Já desisti da ideia de que as vítimas estão ligadas de algum modo. Acho que são presas aleatórias.
- Como é que fazes essa análise?
- De vez em quando - respondeu ele - também tenho sensações minhas.
- Há significado no órgão que ele tira a determinada vítima?
- Elizabeth Lavenza, a nadar sem mãos. As mãos eram importantes na vida dela? Era pianista? Artista? Talvez massagista?
- Como sabes, ela era empregada numa livraria.
- Meg Saville, a turista do Idaho.
- Levou-lhe os pés.
- Não era bailarina. Apenas recepcionista.
- Levou as orelhas a uma enfermeira, as pernas a uma estudante universitária - disse Carson. - Se houver significado, é imperscrutável.
- Ele leva o fígado ao empregado da lavandaria, o rim ao empregado de bar. Se tivesse levado o fígado ao do bar, ainda podíamos ter uma teoria.
- Que desgraça - disse ela.
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- Completa - anuiu ele. - O empregado de bar tinha um estilo gótico, e o Allwine vivia em negro. Haverá ligação?
- Não pensei em gótico no apartamento dele, só em maluco.
Ela estacionou ilegalmente na Jackson Square, perto de um restaurante típico que era poiso da polícia.
Iam a chegar à porta quando Harker saiu com um saco enorme de comida, trazendo consigo um aroma a lampreia grelhada de fazer água na boca, o que despertou em Carson a lembrança de não ter almoçado.
Como se não estivesse nada admirado por vê-los, como se retomasse uma conversa interrompida, Harker disse:
- Consta que o presidente da câmara vai querer uma força de intervenção já este fim-de-semana. Se vamos fazer equipa, é melhor começarmos já a trocar ideias.
Carson disse para Harker:
- Decerto que conheces a vossa reputação. Toda a gente na esquadra sabe que tu e o Frye querem os louros todos.
- Inveja - descartou Harker. - Encerramos mais casos do que quaisquer outros.
- Por vezes matando o suspeito - disse Michael, referindo-se a um tiroteio recente que metera a polícia, e a que Harker escapara, por uma unha negra, de ser acusado.
Harker fez um sorriso de desdém.
- Querem saber a minha teoria sobre o segurança da biblioteca?
Michael retorquiu:
- E eu quero ter cancro no pâncreas?
- A casa preta é um desejo de morte - conjecturou Harker.
- Caraças - disse Carson.
- Ele tentou cortar os pulsos com cada uma daquelas lâminas na parede da casa de banho - continuou Harker. - Mas não arranjou coragem.
- Tu e o Frye foram a casa do Allwine?
- Fomos. Vocês dois - disse Harker - são os nossos bebés e, por vezes, temos necessidade de vos pôr a arrotar.
Passou entre eles num empurrão e olhou para trás depois de dar uns passos.
- Quando vocês tiverem uma teoria, não me importo nada de a ouvir.
Michael disse para Carson:
- Tenho uma selecção de corações que não me importaria nada de cortar.
Depois de Victor sair da suíte, Erika envergou um vestido St. John que conseguia ser sensacional mas respeitável, subtilmente sensual mas com classe.
De pé em frente ao espelho de corpo inteiro no enorme roupeiro, quase tão grande como a maioria dos quartos de casal, ela sabia que tinha de ficar encantadora, de causar uma impressão indelével em todos
os homens presentes. Não obstante, sentia-se aquém.
Teria provado outros vestidos se os primeiros convidados não chegassem daí a meros dez minutos. Victor queria que ela estivesse a seu lado para os cumprimentar à chegada, e ela não se atrevia a desapontá-lo.
Toda a sua roupa estava atrás de portas ou em gavetas naqueles três corredores. Ela possuía, literalmente, centenas de conjuntos.
Não comprara nenhum deles. Victor criara-a com as medidas que entendera ideais e comprara tudo, ainda estava ela dentro do tanque.
Talvez tivesse comprado algumas daquelas roupas para a Erika anterior. Ela não gostava de pensar nisso.
Tinha esperança de um dia poder fazer as suas compras. Quando Victor a autorizasse, ela saberia que já cumpria finalmente os seus padrões e que ganhara a confiança dele.
Ocorreu-lhe por instantes como seria não ligar ao que Victor -ou qualquer outra pessoa - pensava dela. Ser ela própria. Independente.
Eram ideias perigosas. Tinha de reprimi-las.
Na parte de trás do roupeiro, havia cerca de duzentos pares de sapatos em prateleiras inclinadas. Embora ela soubesse que o tempo urgia, hesitou entre Gucci e Kate Spaãe.
Atrás dela no roupeiro, algo roçagou, algo fez "baque".
Virou-se para ver o corredor central mas só lá estavam as portas de cerejeira que davam para o guarda-roupa sazonal, e a alcatifa amarela. Espreitou o corredor da direita, depois o da esquerda, mas estava
tudo deserto.
Voltando ao seu dilema, decidiu-se finalmente pelos sapatos Kate Spade. Pegou-lhes com uma mão, saiu do roupeiro a correr e entrou no quarto.
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Quando entrou achou ter visto movimento pelo canto do olho, no chão à entrada do quarto. Quando virou a cabeça, não estava lá nada.
Curiosa, entrou no quarto mesmo assim - a tempo de ver as sedas a adejarem atrás de algo que se esgueirara para debaixo da cama de casal.
Eles não tinham animais de estimação, cães, gatos.
Victor ficaria furioso se um rato tivesse entrado em casa. Tinha tolerância zero à bicharada.
Erika fora feita para ser cautelosa com o perigo mas para não ter medo - embora o respeito pelo criador, com que fora programada, por vezes raiasse o medo.
Se um rato tivesse entrado em casa, e se estivesse agora escondido debaixo da cama, ela não hesitaria em apanhá-lo e ver-se livre dele.
Pôs de lado os sapatos e ajoelhou-se ao lado da cama. Não tinha dúvidas de que os seus reflexos eram suficientemente rápidos para apanhar um bicho a fugir.
Quando levantou a colcha e olhou para debaixo da cama, a sua visão soberba não precisou de lanterna alguma. Porém, não havia nada escondido debaixo das molas do colchão.
Pôs-se de pé e virou-se, observando o quarto. Sentia que algo lá estava, mas não tinha tempo para procurar atrás de cada peça da mobília.
Ciente de que o tempo lhe fugia, sentou-se na beira da poltrona, junto à lareira, e calçou os sapatos. Eram lindos, mas gostaria mais deles se tivesse sido ela a comprá-los.
Ficou sentada por momentos, à escuta. Silêncio. Todavia, era o tipo de silêncio que indicava poder haver algo a escutá-la a ela também.
Quando saiu da suíte para o corredor, fechou a porta atrás de si. Bem fechada. Não poderia entrar nada por baixo da porta. Se houvesse um rato à solta no quarto, não conseguiria descer a escada para estragar
o jantar.
Ela desceu a escadaria grandiosa e, quando chegou ao átrio, a campainha tiniu. Chegavam os primeiros convivas.
Roy Pribeaux estava a vestir calças pretas, blusão desportivo de seda azul-clara e camisa de linho branco, para o seu encontro com Candace - aqueles olhos! - Num canal noticioso actualizavam as novidades
sobre o Cirurgião.
Mas que cognome absurdo lhe tinham dado. Ele era um romântico. Ele era um idealista de uma família de idealistas. Ele era um purista. Ele era muita coisa, mas não era cirurgião.
Sabia que falavam dele, embora não acompanhasse com toda a atenção a reacção mediática às suas proezas. Não começara aquela colecção de perfeição feminina na esperança de vir a ser uma celebridade. A fama
não o atraía.
Claro que a demanda dele gerara interesse no público pelos motivos errados. Viam violência e não arte. Viam sangue e não a obra de um sonhador que busca a perfeição em todas as coisas.
Ele desprezava a comunicação social e o público a que esta queria agradar. Poltrões a falarem para imbecis.
Oriundo de uma destacada família de políticos - o pai e o avô tinham trabalhado para a cidade de Nova Orleães e o estado do Lui-siana - ele vira a facilidade com que se podia manipular a opinião pública
com o uso inteligente da inveja e do medo. A sua família era especialista nisso.
Entrementes, os Pribeaux tinham enriquecido. O avô e o pai tinham--se saído tão bem na vida pública que Roy nunca tivera necessidade de trabalhar, nem nunca teria.
À semelhança dos grandes artistas da Renascença, ele tinha mecenas; gerações de contribuintes. A herança permitia-lhe dedicar a sua vida à demanda da beleza ideal.
Quando o repórter televisivo falara nas duas vítimas mais recentes, um nome desconhecido chamara a atenção a Roy - Bobby Allwine -, mencionado juntamente com Elizabeth Lavenza. Ele colhera as belíssimas
mãos de Elizabeth antes de entregar o resto, tão imperfeito que até era deprimente, à lagoa do City Park.
Tinham tirado o coração ao tal Allwine.
Roy não se interessava por corações. Não apreciava interiores, apenas exteriores. O tipo de beleza que movia Roy era superficial.
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Além disso, o tal Allwine era homem. Roy não se interessava pela beleza ideal do homem - salvo pelo constante refinamento e aperfeiçoamento do seu próprio corpo.
Agora, em frente à televisão, ficou ainda mais admirado por saber que Allwine era o terceiro homem que o Cirurgião matava. Aos outros tirara o fígado e um rim.
Aqueles crimes estavam ligados aos das mulheres pelo facto de uma das vítimas masculinas, no mínimo, ter sido cloroformizada.
Macaco de imitação. De quinta categoria. Algures em Nova Orleães, um imbecil invejoso inspirara-se nos crimes de Roy sem compreender nada da finalidade destes.
Por momentos, sentiu-se ofendido. Depois apercebeu-se de que o macaco de imitação, inevitavelmente menos inteligente do que o próprio Roy, acabaria por fazer borrada, e que a polícia lhe atribuiria todas
as mortes. O macaco de imitação era, para Roy, o cartão Você Está Livre da Prisão.
22.
A cabina de projecção poderia parecer pequena de mais para dois homens grandes - cada qual à sua maneira - como Jelly Biggs e Deucalião. Não obstante, tornou-se no espaço que eles preferiam quando não
queriam estar sós.
A cabina era acolhedora, talvez devido à colecção de livros de Jelly, talvez por parecer um reduto acima da azáfama da vida.
Durante extensos períodos da sua longa existência, Deucalião sentira o apelo da solidão. Um desses períodos terminara no Tibete.
Agora, com a descoberta de que Victor não morrera, a solidão perturbava Deucalião. Ansiava por companhia.
Sendo antigos artistas de feira, ele e Jelly tinham um mundo de experiências em comum, histórias para contar, reminiscências nostálgicas a partilhar. Em apenas um dia deram consigo a conversar descontraidamente,
e Deucalião desconfiava que, com o tempo, viriam a ser grandes amigos.
Todavia, também havia silêncios, pois a situação deles assemelhava-se à dos soldados nas trincheiras, na calma enganadora antes do fogo dos morteiros. Nesta acepção, tinham questões profundas a ponderar
antes de estarem preparados para as debater.
Jelly reflectia enquanto lia os romances policiais que tanto apreciava. Grande parte da sua vida, preso em tanta carne, vivera por interposta pessoa, a polícia, os investigadores privados, os detectives
amadores que pululavam nas páginas do seu género favorito.
Naqueles silêncios mútuos, Deucalião lia os artigos que Ben coleccionara sobre Victor Hélios, anteriormente conhecido como Franken-stein. Analisava-os, tentando habituar-se à amarga e incrível verdade
da continuada existência do seu criador, enquanto pensava na melhor maneira de destruir aquele pilar de arrogância.
Uma e outra vez, dava consigo inconscientemente a tocar na metade estragada do rosto, até que Jelly não pôde deixar de perguntar como acontecera aquilo.
- Indispus o meu criador - respondeu Deucalião.
- Todos o fazemos - disse JeUy -, mas com essas consequências, não.
- O meu criador não é o mesmo que o teu - recordou Deucalião.
Uma vida de muita solidão e contemplação acostumara Deucalião ao silêncio, mas Jelly precisava de ruído de fundo mesmo quando
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estava a ler um romance. A um canto da cabina de projecção, com o volume baixo, estava um televisor a mostrar imagens que, para Deucalião, não tinham mais narrativa do que as chamas numa lareira.
De súbito, houve algo numa das vozes monocórdicas que lhe chamou a atenção. Crimes. Cadáveres mutilados.
Deucalião aumentou o volume. Uma detective dos Homicídios, chamada Carson O'Connor, cercada por repórteres à porta da biblioteca municipal, respondia à maior parte das perguntas de maneiras que equivaliam,
todas elas, à expressão sem comentários.
Quando o artigo terminou, Deucalião perguntou:
- O Cirurgião... Há quanto tempo é que isto acontece?
Enquanto aficionado de romances policiais, Jelly também gostava de crimes verdadeiros. Sabia, não somente, todos os pormenores sangrentos da carnificina do Cirurgião, como também desenvolvera algumas teorias
que entendia serem superiores a quaisquer outras que a polícia tivesse adiantado entretanto.
Deucalião pôs-se à escuta, com desconfianças muito suas, que decorriam da sua experiência singular.
O mais provável era que o Cirurgião fosse um comum assassino em série que gostava de ficar com recordações. Porém, numa cidade em que o deus dos mortos-vivos assentara arraiais, o Cirurgião poderia ser
algo pior do que o psicopata do costume.
Deucalião voltou a guardar os recortes na caixa de sapatos, levantou-se e anunciou:
- Vou sair.
- Aonde?
- Procurar a casa dele. Ver com que estilo é que um deus autoproclamado gosta de viver actualmente.
Mal estacionado em Jackson Square, o capô do carro à paisana servia-lhes de mesa de jantar.
Carson e Michael estavam a comer camarão panado em milho, camarão estufado com arroz e maque choux de milho em embalagens descartáveis.
No passeio andavam jovens casais de mãos dadas. Músicos de fato preto e chapéu de copa lisa passavam apressados, com estojos de instrumentos ao ombro, entre velhotes locais mais vagarosos, de camisa de
cambraia e panamá na cabeça. Grupos de raparigas a mostrarem mais carne do que ditava o bom senso, e travestis a desfrutarem dos turistas basbaques.
Ouvia-se tocar bom jazz. No ar da noite tecia-se uma tapeçaria de conversas e risos.
Carson disse:
- O que mais me chateia em tipos como o Harker e o Frye...
- A lista há-de ser épica - atalhou Michael.
- ... é o facto de os deixar irritarem-me.
- Estão melindrados porque ninguém chegou a detective tão novo como nós.
- Isso foi há três anos, para mim. É melhor que se adaptem.
- Hão-de-se reformar, levar um tiro. Seja como for, nós acabaremos por ter a nossa hipótese de sermos os velhos dos Marretas.
Depois de saborear uma garfada de maque choux de milho, Carson disse:
- É tudo por causa do meu pai.
- O Harker e o Frye não querem saber do que o teu pai fez ou não fez - garantiu Michael.
- Enganas-te. Toda a gente está a contar que eu, mais tarde ou mais cedo, revele o meu gene de polícia corrupto, como acham que ele fez.
Michael abanou a cabeça.
- Não acho nem por sombras que tu tenhas o gene do polícia corrupto.
- Estou a marimbar-me para o que tu achas, Michael, eu sei o que tu achas. É o que toda a gente acha que torna este trabalho muito mais difícil do que deveria ser para mim.
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- Pois sim - disse ele, fingindo-se ofendido - estou a marimbar-me que te estejas a marimbar para o que eu acho.
Carson acusou o toque e riu-se baixinho.
- Desculpa lá. Tu és das poucas pessoas cuja opinião me interessa.
- Magoaste-me - disse ele. - Mas hei-de recuperar.
- Trabalhei muito para chegar onde estou. - Ela suspirou. - Mas onde estou é simplesmente a comer mais uma refeição de pé no meio da rua.
- A comida é óptima - disse ele e eu sou uma companhia excelente.
- Com o que ganhamos, porque é que trabalhamos tanto?
- Somos heróis americanos genuínos.
- Já me tinhas dito.
O telemóvel de Michael tocou. Lambeu o molho tártaro crioulo que tinha nos lábios e atendeu:
- Detective Maddison. - Quando desligou momentos depois, disse:
- Fomos convidados a ir à morgue. Nada de música nem dança, mas pode ser giro.
Acariciadas pela luz das velas, as superfícies cinzeladas de prata clássica pareciam em estado de liquefacção perpétuo.
Com cinco figurões e as suas esposas na sala de jantar, Victor estava ansioso por estimular conversas que ele pudesse orientar na direcção que melhor servisse os seus interesses, muito para além de o presidente
da câmara, o vereador, o reitor da universidade e os outros saírem da sua mesa. Para Victor, todas as ocasiões sociais eram oportunidades para influenciar líderes políticos e culturais, fazendo assim avançar,
discretamente, os seus projectos.
De início, claro, a conversa versava sobre frivolidades, mesmo entre convivas tão especiais. Porém, Victor sabia-se capaz de fazer sala como qualquer um, e desfrutava daquelas ligeirezas, na expectativa
de assuntos mais suculentos.
William e Christine serviram a sopa, o mordomo a segurar a terrina enquanto a criada deitava conchas daquela riqueza aveludada e cor-de-rosa nos pratos.
Era o terceiro jantar de Erika nas cinco semanas que haviam passado desde a saída do tanque, e já se mostrava mais prendada nas suas capacidades sociais, embora menos do que ele esperava.
Viu-a franzir o sobrolho ao reparar que os arranjos florais estavam diferentes de como ela os deixara, após aturado trabalho, mas ela teve o bom senso de não fazer comentários.
Todavia, quando a esposa olhou para ele, Victor disse:
- As rosas estão perfeitas - para ela aprender com o erro anterior.
O vereador Watkins, cujo nariz outrora patrício começava a ficar deformado à medida que a cocaína ia erodindo a cartilagem, abanou uma mão para que o aroma do prato lhe chegasse às narinas.
- Erika, a sopa cheira divinalmente.
O adversário de John Watkins nas eleições vindouras - Bobby Moreau - era um dos sequazes de Victor. Com tantos podres sobre Watkins que Victor podia desenterrar, Bobby marcharia seguro para a vitória nas
urnas. Contudo, nos meses que faltavam até lá, era necessário lisonjear Watkins com convites para jantar e trabalhar com ele.
- Adoro bisque de lagosta - disse Pamela Watkins. - A receita é sua, Erika?
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- Não. Encontrei-a numa revista, mas acrescentei alguns temperos. Duvido que a tenha melhorado, talvez até o contrário, mas gosto de comida apaladada, até mesmo bisque de lagosta.
- Oh, está divinal - declarou a mulher do reitor depois de provar. Este elogio, de imediato repetido pelos outros, fez o rosto de Erika animar-se de orgulho mas, quando ela própria levou a colher
à boca, sorveu a sopa devagar e ruidosamente.
Horrorizado, Victor viu-a levar a colher outra vez ao prato.
A sopa não fizera parte da ementa em nenhum dos jantares anteriores, e Victor partilhara apenas duas refeições com Erika antes. A gafe dela surpreendeu-o e perturbou-o.
Ela sorveu a segunda colherada com o mesmo ruído da primeira. Embora parecesse que nenhum dos convivas reparava naquele pavor de língua e boca, Victor importava-se que a esposa se arriscasse a ser gozada.
Quem se risse dela nas suas costas também se riria dele.
E anunciou;
- A bisque está azeda. William, Christine, levem-na imediatamente.
- Azeda? - repetiu a mulher do presidente da câmara, perplexa.
- A minha não.
- Azeda - insistiu Victor, e os criados levaram apressadamente os pratos de sopa.
- E não queiram comer lagosta que possa estar de algum modo passada.
Abalada, Erika viu os pratos serem levados da mesa.
- Lamento, Erika - disse Victor naquele silêncio constrangedor.
- Foi a primeira vez que encontrei algo de mal nos seus cozinhados - ou em qualquer coisa que lhe diga respeito.
John Watkins protestou:
- A minha estava uma delícia.
Embora ela pudesse não compreender o motivo de Victor, recuperou rapidamente.
- Não, John. Eu votarei sempre em si para vereador mas, em questões culinárias, confio no Victor. Ele tem um palato refinado como o de um chef.
Victor sentiu o próprio maxilar descontrair-se num sorriso genuíno. Em parte, Erika redimira-se.
o soalho de mosaicos de vinilo cinzento rangia debaixo dos pés de Carson e Michael. Embora subtil, o barulho soava alto no corredor, de resto silencioso.
A unidade de Patologia Forense parecia deserta. Àquela hora havia sempre menos pessoal, mas assim tão pouco era drástico.
Encontraram Jack Rogers onde ele disse que estaria - na Sala de Autópsias número 2. Estavam com ele o cadáver profissionalmente cosido de Bobby Allwine, deitado numa mesa metálica com goteiras para o sangue,
e um assistente jovem e magriço que Jack apresentou como sendo Luke.
- Arranjei uma desculpa para mandar o resto do pessoal para casa - disse Jack. - Não quis arriscar que alguma língua de trapo visse o que temos aqui.
- E o que temos aqui? - perguntou Carson.
- Um milagre - disse Jack. - Só que tenho uma sensação escamosa, de que é um milagre tenebroso de mais para ter algo a ver com Deus. Por isso é que só cá estamos nós, eu e o Luke. O Luke não gosta
de mexericos, pois não, Luke?
- Não, senhor.
Os olhos ligeiramente salientes de Luke, o nariz comprido, e o queixo ainda mais comprido davam-lhe um ar intelectual, como se os livros exercessem uma atracção tal sobre ele que até lhe puxavam as feições
para o conteúdo das páginas.
Barrigudo, com cara de cão de caça cheia de papos e vincos que lhe davam mais anos do que a idade que tinha, Jack Rogers parecia ainda mais velho do que o costume. Embora o seu entusiasmo fosse palpável,
a cara tinha um ar macilento.
- O Luke tem olho para as anomalias fisiológicas - disse Jack. -Percebe de miudezas.
Luke assentiu, orgulhoso dos elogios do patrão.
- Interesso-me por vísceras desde miúdo.
- Comigo - atalhou Michael -, era o basebol.
Jack disse:
- Eu e o Luke concluímos todas as fases do exame interno. Cabeça, cavidades, pescoço, sistema respiratório...
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- Sistema cardiovascular - continuou Luke sistema gastrointestinal, tracto biliar, pâncreas, baço, rins...
- Tracto urinário, aparelho reprodutor e sistema musculoesquelético - concluiu Jack.
O cadáver na mesa parecia realmente bem explorado.
Se o corpo não estivesse tão fresco, Carson teria besuntado o nariz com Vicks Vaporub, mas podia aguentar o fedor ligeiro de estômago e intestinos dissecados.
- Cada fase revelou uma anatomia assaz bizarra - disse Jack -, estamos a recapitular para ver se algo nos passou.
- Bizarra? Por exemplo?
- Ele tinha dois corações.
- O que quer dizer, dois corações?
- Dois. O número depois do um e antes do três. Uno, dos.
- Por outras palavras - disse Luke, muito sério -, duas vezes mais do que deveria ter.
- Isso percebemos - garantiu Michael. - Mas, na biblioteca, vimos o peito do Allwine aberto. Podia estacionar-se lá um Volkswagen. Se falta tudo, como é que sabem que ele tinha dois corações?
- Para começar, as tubagens inerentes - respondeu Jack. - Ele tinha artérias e veias para uma bomba dupla. Os indicadores são numerosos, e constarão todos do meu relatório final. Mas não era a única
coisa estranha quanto a Allwine.
- O que mais?
- Ossos do crânio densos como uma armadura. Dei cabo de duas serrilhas eléctricas de trepanação para tentar entrar nele.
- E também tinha um par de fígados - disse Luke - e um baço com 350 gramas, quando a média é de 200 gramas.
- Um sistema linfático mais extenso do que jamais se verá num manual de medicina - continuou Jack. - Mais dois órgãos que nem sequer sei o que são.
- Ele era uma espécie de aberração - disse Michael. - Por fora, parecia normal. Talvez não fosse modelo de revista, mas também não era o Homem Elefante. Por dentro, está todo marado.
- A natureza está cheia de aberrações - disse Luke. - Cobras bicéfalas. Sapos com cinco patas. Gémeos siameses. O detective ficaria admirado com a quantidade de gente que nasce com seis dedos numa
das mãos. Mas não é nada - e deu palmadinhas no pé de Allwine -como o nosso amigo aqui.
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Com dificuldade em abarcar aquilo tudo, Carson perguntou:
- Então quais são as probabilidades? Dez milhões para uma?
Jack Rogers passou a manga da camisa pela testa suada e respondeu:
- A Terra chama O'Connor. Não é possível uma coisa assim, ponto final. Isto não é mutação. É criação.
Por momentos ela não soube o que dizer e, talvez pela primeiríssima vez na vida, Michael também não.
Jack adiantou-se a eles e disse:
- E não me perguntem o que quero dizer com criação. Macacos me mordam se sei.
- É que - explicou Luke - estas coisas todas parecem destinar-se a ser... melhorias.
Carson perguntou:
- As outras vítimas do Cirurgião... Não encontraram nada esquisito nelas?
- Nada, népias, nadufes. Tu leste os relatórios.
Instalara-se uma aura de irrealidade na sala a tal ponto que Carson não teria ficado grandemente admirada se o cadáver esventrado se tivesse soerguido na mesa da autópsia e tentado explicar.
Michael disse:
- Jack, queríamos instaurar um embargo ao teu relatório da autópsia do Allwine. Trata dele aqui mas não nos mandes cópia. A nossa caixa ultimamente tem sido pilhada, e não queremos que mais ninguém
saiba disto durante... digamos, quarenta e oito horas.
- E não arquives com o nome Allwine nem com número de caso onde possa ser encontrado - sugeriu Carson. - Arquiva como...
- Munster, Herman - sugeriu Michael.
Jack Rogers não percebia só de vísceras. Parecia que os papos debaixo dos seus olhos escureciam quando perguntou:
- Esta não é a única coisa esquisita que vocês têm, pois não?
- Bem, sabes que o local do crime era esquisito - disse Carson.
- E também não é só isso que vocês têm.
- O apartamento dele era uma aberração completa - revelou Michael.
- O tipo era tão esquisito psicologicamente como qualquer coisa que tenhas encontrado dentro dele.
- E clorofórmio? - perguntou Carson. - Foi usado no Allwine?
- Só terei os resultados das análises amanhã - respondeu Jack. -Mas não estarei a inventar se disser que não vamos encontrar vestígios de clorofórmio. Este tipo não se teria podido dominar assim.
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- Porque não?
- Dada a fisiologia dele, não actuaria tão depressa como em mim ou em ti.
- Tão depressa?
- É difícil dizer. Cinco segundos. Dez.
- Além disso - atalhou Luke se tentassem tapar a cara a Allwine com um pano embebido em clorofórmio, os reflexos dele teriam sido muito mais rápidos do que os vossos... ou os meus.
Jack anuiu.
- E ele teria sido forte. Forte de mais para ser manietado por um homem comum, por um momento que fosse, quanto mais o bastante para o clorofórmio actuar.
Carson recordou-se do semblante tranquilo de Bobby Allwine deitado no chão da biblioteca e considerou a sua percepção inicial de que ele dera as boas-vindas ao próprio assassínio. Todavia, não conseguia
dar mais sentido a essa hipótese do que antes.
Momentos depois, lá fora no parque de estacionamento, quando ela e Michael se aproximaram do carro, o luar ondulava no ar denso e húmido, como se passasse pela superfície de um lago acariciado pela brisa.
Carson recordou-se de Elizabeth Lavenza, sem mãos, a flutuar de barriga para baixo na lagoa.
De súbito, viu-se meio afogada nas profundezas turvas daquele caso, e sentiu uma necessidade quase imperiosa de tentar chegar à tona e deixar a investigação para outrem.
26.
Para todos os efeitos, Randal Seis, nado e criado na Misericórdia, passara o dia em vários graus de transe autista mas, por dentro, estivera no maior tumulto.
Na noite anterior, sonhara com Arnie O'Connor, o miúdo do recorte de jornal, o autista sorridente. No sonho, ele pedira-lhe uma fórmula para a felicidade, mas o rapaz O'Connor zombara dele e não quisera
partilhar o seu segredo.
Agora Randal Seis está sentado à sua escrivaninha, frente ao computador onde, por vezes, faz jogos de palavras cruzadas com jogadores de cidades longínquas. Esta noite os jogos de palavras não lhe interessam.
Encontrou uma página onde pode estudar mapas da cidade de Nova Orleães. Como esta página também oferece uma lista municipal de todos os detentores de casa própria, conseguiu saber a morada da detective
Carson O'Connor, com quem reside o egoísta Arnie.
O número de quarteirões que separa Randal da casa deles é esmagador. Tão longe, tanta gente, obstáculos sem fim, tanta desordem.
Mais, aquela página Web oferece mapas tridimensionais do Bairro Francês, do Garden District, e de várias outras zonas históricas da cidade. Sempre que ele recorre a esses guias mais complicados, sente-se
tomado de agorafobia.
Se ele reage com tal terror à realidade virtual dos mapas que mais parecem bandas desenhadas, ficará paralisado pela vastidão e o caos do mundo propriamente dito, caso venha a sair de entre aquelas quatro
paredes.
Contudo, insiste em estudar os mapas tridimensionais, pois há um intenso desejo que o motiva. O desejo de encontrar a felicidade do tipo que crê ter visto no sorriso de Arnie O'Connor.
Na realidade virtual de Nova Orleães apresentada no ecrã do seu computador, uma rua leva a outra. Cada cruzamento exige escolhas. Cada quarteirão alinhado de empresas, residências. Cada qual é uma escolha.
No mundo real, um labirinto de ruas poderá exigir-lhe que avance cem ou mil quilómetros. Nessa viagem, seria confrontado por dezenas de milhares ou até centenas de milhares de escolhas.
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A enormidade deste desafio esmaga-o mais uma vez, e retira-se em pânico para um canto, de costas para o quarto. Não consegue avançar. Não há nada a confrontá-lo, excepto a junção de duas paredes.
As suas únicas escolhas são ficar de frente para o canto ou virar-se para o resto do quarto. Desde que não se vire, o medo amaina. Ali está seguro. Ali há ordem: a simples geometria de duas paredes que
se encontram.
Com o tempo, sente-se mais calmo com aquele panorama exíguo mas, para acalmar por completo, precisa das suas palavras cruzadas. Numa poltrona, Randal Seis senta-se com outra colecção de quebra--cabeças.
Gosta de palavras cruzadas porque não há escolhas múltiplas válidas para cada quadrado; apenas uma escolha resultará na solução correcta. Tudo está predestinado.
Cruzar FESTAS com NATAL, cruzar Natal com INCENSO... Com o tempo, todos os quadrados ficarão preenchidos; todas as palavras ficarão completas e devidamente entrelaçadas. A solução predestinada será alcançada.
Ordem. Estase. Paz.
Enquanto preenche os quadrados com letras, ocorre uma ideia perturbante a Randal. Talvez ele e o egoísta Arnie O'Connor estejam predestinados a encontrarem-se.
Se ele, Randal Seis, estiver predestinado a encarar o outro rapaz e a tirar-lhe o precioso segredo da felicidade, aquilo que parece agora uma viagem longa e penosa até à casa dos O'Connor revelar-se-á
tão simples quanto atravessar aquele pequeno quarto.
Não consegue parar de fazer as palavras cruzadas, pois necessita desesperadamente da paz temporária que a sua conclusão lhe trará. Não obstante, ao ler as pistas e escrever as letras nos quadrados vazios,
considera que a possibilidade de encontrar a felicidade furtada a Arnie O'Connor poder-se-á revelar não um sonho mas sim um destino.
Dentro do carro, depois do gabinete do patologista, num mundo transformado pelo que tinham acabado de descobrir, Carson perguntou:
- Dois corações? Órgãos novos e esquisitos? Aberrações feitas por encomenda?
- Estou a pensar - disse Michael - se não terei faltado a alguma aula na Academia.
- O Jack pareceu-te sóbrio?
- Infelizmente, sim. Talvez seja doido.
- Não é nada doido.
- Gente perfeitamente sã a uma terça-feira por vezes fica doida na quarta-feira.
- Que gente? - perguntou ela.
- Sei lá. Estaline.
- Estaline não era perfeitamente são a uma terça-feira. Além disso, não era louco, era demoníaco.
- O Jack Rogers não é demoníaco - disse Michael. - Se não é nenhum bêbado, louco ou demónio, acho que teremos de acreditar nele.
- Achas que o Luke pode estar a enganar o velho Jack?
- O Luke "interesso-me por vísceras desde miúdo"? Primeiro, seria um engano bem complexo. Segundo, o Jack é mais esperto do que o Luke. Terceiro, o Luke tem tanto sentido de humor quanto um rato
de cemitério.
Um maciço de nuvens transformou a Lua Cheia numa meia-lua. A luz pálida dos candeeiros nas folhas brilhantes das magnólias dava a ilusão de gelo, de um clima setentrional na cálida Nova Orleães.
- Nada é o que parece - disse Carson.
- Isso é apenas uma observação - perguntou Michael - ou devo ralar-me porque vou ser assolado por uma enchente de filosofia?
- O meu pai não era polícia corrupto.
- Como queiras, tu conhecia-lo melhor.
- Ele nunca roubou droga confiscada do cofre das provas.
- O passado já passou - contemporizou Michael.
Ela travou no semáforo vermelho e disse:
- A reputação de um homem não devia ficar destruída para sempre por mentiras. Devia haver a esperança da justiça, da redenção.
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Michael preferiu um silêncio respeitoso.
- O pai e a mãe não foram mortos a tiro por um traficante qualquer que achou que o pai andava a meter-se no território dele. São tudo tretas.
Há muito tempo que ela não verbalizava aquelas coisas. Era doloroso.
- O pai descobrira algo que os poderosos preferem manter escondido. Contou à mãe, e por isso ela morreu também. Eu sei que ele estava perturbado com algo que viu. Só não sei o que era.
- Carson, já vimos cem vezes as provas do caso dele - recordou Michael - e chegámos à conclusão de que é à prova de bala e de que isso nunca pode ser real. Não há ficheiro de provas nenhum assim
tão bem arquitectado se não for forjado. Cá para mim, é prova incriminatória. Mas esse também é o problema.
Ele tinha razão. As provas haviam sido forjadas com intenção de condenar o pai postumamente, e também de não deixar pista alguma quanto à identidade de quem as forjara. Ela procurara longamente a ponta
solta que desenrolaria o novelo todo, mas não encontrara ponta alguma.
Quando o semáforo passou a verde, Carson disse:
- Não estamos longe de minha casa. Tenho a certeza de que a Vicky tem tudo controlado, mas sinto que devia ver o Arnie, se não te importas.
- Na boa. Apetece-me um daqueles péssimos cafés da Vicky.
28.
No quarto de casal da residência Hélios, nem tudo estava bem.
Aquilo que Victor queria do sexo ultrapassava o mero prazer. Mais, ele não queria ficar apenas satisfeito, ele esperava ficar completamente. A expectativa dele era, aliás, uma exigência.
Segundo a filosofia de Victor, o mundo só tinha dimensão material. A única reacção racional às forças da natureza e da civilização humana era tentar dominá-las em vez de ser esmagado por elas.
Havia escravos e havia amos. Ele nunca usaria a canga de um escravo.
Se não havia na vida um aspecto espiritual, não existiria algo como o amor, salvo na cabeça dos tolos; pois o amor é um estado de espírito, não da carne. Na opinião dele, a ternura não tinha lugar numa
relação sexual.
Quanto muito, o sexo era hipótese de a pessoa dominante exercer controlo sobre o parceiro submisso. A ferocidade desse domínio e a integralidade da submissão levavam a uma satisfação de maior intensidade
do que o amor poderia veicular, mesmo que o amor existisse.
Erika Quatro, como as três antes dela e como as outras noivas que ele criara para si próprio, não era parceira no sentido tradicional do matrimónio. Para Victor, ela era um acessório que lhe permitia funcionar
com mais eficiência em ambientes sociais, uma defesa contra o tédio das mulheres que viam nele a possibilidade de riqueza pelo casamento, e um instrumento de prazer.
Dado que o prazer e o poder eram sinónimos para ele, a intensidade da sua satisfação era directamente proporcional à crueldade com que ele a usava. E, não raro, ficava deveras satisfeito.
Como todas as suas criações modernas, numa crise ela poderia bloquear a percepção da dor com força de vontade. Durante o sexo, ele não lho permitia. A submissão dela seria mais satisfatória e completa
e genuína se ele a fizesse sofrer.
Se lhe batesse com muita força, a prova desaparecia em poucas horas, pois, como toda a sua gente, ela sarava depressa. Hemorragias duravam menos de um minuto. Cortes saravam sem cicatrizes em poucas horas.
Hematomas ocorridos de noite ter-se-iam desvanecido pela manhã.
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A maioria da sua gente fora psicologicamente programada para ser liminarmente incapaz de humilhação, pois a vergonha, em todos os seus cambiantes, decorria da aceitação de que havia uma Lei Moral no cerne
da criação. Na guerra contra a humanidade vulgar, que ele pretendia declarar, precisava de soldados sem escrúpulos morais, seguríssimos na sua superioridade a ponto de contemplarem todas as formas de impiedade.
Todavia, permitia humildade a Erika, pois dela surgia uma certa inocência. Embora ele não soubesse inteiramente porque seria esse o caso, o abuso moderado de uma sensibilidade delicada era mais empolgante
do que cometer selvajarias numa mulher que carecesse de toda a inocência.
Obrigava-a a suportar as coisas que mais a envergonhavam porque, ironicamente, quanto maior fosse a vergonha e o asco que ela sentisse de si própria, mais se rebaixaria e mais obediente seria. Ele fizera-a
forte em muitos aspectos, mas não tão forte que ele não lhe pudesse vergar a vontade e moldá-la a seu bel-prazer.
Valorizava mais a subserviência numa esposa que lhe tivesse sido inculcada pela violência do que programada no tanque, pois, neste caso, a obediência cega dela pareceria mecânica e monótona.
Embora ele se recordasse de um tempo, séculos antes, na sua juventude, em que se sentira de outro modo quanto às mulheres e ao casamento, não conseguia lembrar-se nem compreender por que razão esse jovem
Victor se sentira assim, qual a crença que o motivara. Todavia, não era que tentasse compreender, porque havia já muito tempo que enveredara por este caminho diverso, e não havia retorno.
O jovem Victor também acreditara no poder da vontade humana para vergar a natureza aos seus desejos; e era esse aspecto do seu eu inicial com o qual Victor ainda se conseguia identificar. Só o triunfo
da vontade importava.
O que não estava a correr bem ali no quarto era que, caso inédito, a sua vontade não lograra vergar a realidade aos seus desejos. Queria satisfação sexual, mas ela fugia-lhe.
Estava sempre a pensar no jantar, quando vira e ouvira Erika a sorver ruidosamente a colher de sopa.
Por fim saiu de cima dela e ficou deitado de costas, derrotado.
Ficaram ambos a olhar para o tecto em silêncio até que ela sussurrou;
- Desculpe.
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- Talvez a culpa seja minha - disse ele, mas referia-se à possibilidade de ter feito algum erro na criação dela.
- Não o consigo excitar.
- Geralmente, sim. Esta noite, não.
- Hei-de aprender - prometeu ela. - Hei-de melhorar.
- Sim - disse ele, pois era o que ela deveria fazer se queria manter o seu papel, mas ele começava a desconfiar que Erika Quatro não seria a Erika final.
- Vou ao hospital - disse ele. - Sinto-me criativo.
- As Mãos da Misericórdia. - Ela estremeceu. - Acho que sonho com isso.
- Não sonha nada. Eu poupei-os a todos a sonhos sobre as suas origens.
- Sonho com um lugar - insistiu ela. - Escuro e estranho e cheio de morte.
- Ora aí está a prova de que não sonha com as Mãos da Misericórdia. Os meus laboratórios estão cheios de vida.
Entediado com Erika e perturbado pelo rumo que os devaneios dela tomavam, Victor levantou-se da cama e foi nu para a casa de banho.
Uma jóia naquela instalação de metais dourados e paredes de mármore, contemplou-se nos espelhos biselados e viu algo muito mais do que humano.
- Perfeição - disse, embora soubesse que estava muito ligeiramente aquém desse ideal.
A toda a volta do seu tronco, embutido na carne, rodeando as costelas, numa espiral à volta da coluna, um cabo metálico flexível e implantes inerentes convertia a corrente eléctrica simples - a que ele
se submetia duas vezes por dia - numa energia diferente, uma descarga estimulante que sustentava um ritmo juvenil de divisão celular e mantinha longe o tempo biológico.
O corpo dele era uma massa de cicatrizes e excrescências estranhas, mas que ele achava belíssimas. Eram as consequências das operações pelas quais ele alcançara a imortalidade; eram as insígnias da sua
divindade.
Algures no futuro, iria clonar um corpo com o seu ADN, aperfeiçoá-lo com as muitas melhorias que desenvolvera, acelerar-lhe o crescimento e, com o auxílio de cirurgiões criados por ele, iria transferir
o seu cérebro para essa nova morada.
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Quando essa obra estivesse terminada, ele seria um modelo de perfeição física, mas sentiria falta das suas cicatrizes. Eram prova da sua persistência, do seu génio, e do triunfo da sua vontade.
Agora vestia-se, ansioso por uma longa noite no laboratório principal das Mãos da Misericórdia.
29.
Enquanto Carson ia ver o seu irmão a fazer castelos, Michael ficou ao balcão da cozinha com uma caneca de café feito por Vicky.
Vicky Chou terminara de limpar o forno e perguntou-lhe:
- Que tal a mistela?
- Amarga como bílis - respondeu ele.
- Mas ácida, não.
- Não - admitiu ele. - Não sei como é que consegues fazê-lo amargo sem ser ácido também, mas consegues.
Ela piscou o olho.
- É segredo.
- Isto é escuro como pez. E não é por engano, tu tentas mesmo fazê-lo assim, não é?
- Se é assim tão mau - disse ela - porque é que bebes sempre?
- E um teste à minha virilidade. - Ele bebeu um trago e fez uma careta.
- Ultimamente tenho andado a pensar, mas vais mandar-me calar porque não queres saber.
Vicky lavou as mãos no lava-louça e disse:
- Eu tenho de te dar ouvidos, Michael. Faz parte da minha função.
Ele hesitou e depois prosseguiu:
- Ando a pensar em como seriam as coisas se eu e a Carson não fossemos colegas.
- Que coisas?
- Entre mim e ela.
- Há coisas entre ti e ela?
- O distintivo - disse ele com ar pesaroso. - Ela é demasiado sólida e profissional enquanto polícia para namorar com um colega.
- A cabra - disse Vicky secamente.
Michael sorriu, bebeu mais um gole, fez uma careta.
- O problema é que, se eu mudar de colega para podermos namorar, vou ter saudades de ganhar a toda a gente e dos nossos confrontos.
- Talvez seja assim que vocês se dão melhor.
- Que ideia deprimente.
Era evidente que Vicky tinha mais a dizer, mas calou-se quando Carson entrou na cozinha.
102
- Vicky - disse ela eu sei que és cuidadosa com as trancas das portas mas, por algum tempo, vamos ter ainda mais em conta a segurança.
Vicky franziu o sobrolho e perguntou:
- O que se passa?
- Este caso esquisito que temos agora... parece que... Se não tivermos cuidado, até nos pode entrar pela casa adentro. - Carson olhou para Michael.
- Pareço-te paranoia?
- Não - respondeu ele, e terminou o resto do café amargo, como se o gosto fizesse com que a relação insatisfatória deles parecesse mais doce em comparação.
Outra vez dentro do carro, Carson saiu da berma e Michael começou a mastigar uma pastilha de mentol para matar o aroma fétido da mistela de Vicky.
- Dois corações... órgãos sem finalidade conhecida... Não consigo deixar de pensar na Invasão dos Mortos-Vivos, gente alienada a crescer na cave.
- Não são extraterrestres.
- Talvez não. Depois penso em... radiação cósmica esquisita, poluição, engenharia genética, demasiada mostarda na dieta americana.
- Perfis psicológicos e peritos da Patologia não servem de nada aqui - disse Carson, e bocejou. - Mas que dia comprido. Já não consigo pensar. E se te levar a casa e dermos isto por terminado?
- Parece-me bem. Tenho um pijama novo com macaquinhos que estou desejoso de vestir.
Ela subiu a rampa para a via rápida, rumo a oeste e Metairie. O trânsito, felizmente, estava calmo.
Seguiram em silêncio algum tempo, mas depois ele disse:
- Sabes, se quiseres pedir ao chefe para reabrir o caso do teu pai e nos deixar tentar, conta comigo.
Ela abanou a cabeça.
- Só o faria se tivesse algo novo: provas frescas, um ângulo diferente para a investigação, qualquer coisa. Caso contrário, ele recusa.
- Palmamos uma cópia do ficheiro, revemos as provas no nosso tempo livre, o tempo que for preciso até desencantar o que precisamos.
103
- Neste momento - advertiu ela em voz cansada - não temos tempo livre.
Quando saíram da via rápida, ele disse:
- O caso do Cirurgião há-de acabar. As coisas hão-de amainar. Não te esqueças de que podes contar comigo quando quiseres.
Ela sorriu. Ele adorava o sorriso dela. Não o via assim tantas vezes.
- Obrigada, Michael. És boa pessoa.
Ele teria preferido ouvi-la dizer que ele era o amor da vida dela, mas "boa pessoa" já seria um ponto de partida.
Quando ela encostou à berma em frente ao prédio dele, tornou a bocejar e disse:
- Estou de rastos. Queimadinha.
- Tão queimadinha que estás ansiosa por voltar ao apartamento do Allwine.
O sorriso dela já foi mais ligeiro.
- Sou um livro aberto para ti.
- Não terias ido ver o Arnie se fizesses tenções de ir para casa depois de me dares boleia.
-Já devia saber que não me safo com um detective de homicídios. São aquelas divisões pretas, Michael. Preciso... de as analisar sozinha.
- Para soltares a vidente que há em ti.
- Mais ou menos.
Ele saiu do carro e depois baixou-se para a fitar.
- Deixa-te de dias com doze horas, Carson. Não tens de provar nada a ninguém. A ninguém da esquadra. Nem sequer ao teu pai.
- A mim.
Ele fechou a porta e viu-a arrancar. Sabia que ela era rija e sabia tomar conta de si, mas preocupava-se.
Quase desejava que ela fosse mais vulnerável. Era quase um desgosto que ela não precisasse desesperadamente dele.
30.
Roy Pribeaux estava a gostar mais da saída do que esperava. Regra geral, era um interlúdio aborrecido entre a organização do crime e a execução do mesmo.
Candace revelou-se tímida mas encantadora, genuinamente doce e com um sentido de humor cheio de autocrítica.
Tomaram café numa esplanada ribeirinha. Quando a conversa começou a fluir facilmente acerca de uma série de temas, Roy ficou admirado mas também contente. A falta de qualquer constrangimento inicial mais
depressa desarmaria a coitadita.
Ao fim de algum tempo, ela perguntou-lhe exactamente o que ele quisera dizer na outra noite, quando alegara ser cristão. De que credo, de que culto?
Ele soube logo que esta seria a chave para ganhar a confiança dela e lhe abrir o coração. Já recorrera ao pendor cristão em duas outras instâncias e, com a mulher certa, funcionara tão bem quanto a expectativa
de bom sexo ou até de amor.
Porque é que ele, um Adónis, se interessaria por uma feiosa como ela - esse mistério alimentava-lhe a desconfiança. Tornava-a cautelosa.
Todavia, se ela acreditasse que ele era um homem de princípios morais genuínos que procurava uma companheira virtuosa e não apenas uma boa queca, já o veria como alguém que valorizava mais do que a beleza
física. Convencer-se-ia de que os seus lindos olhos eram beleza física suficiente para ele, e que aquilo que ele prezava mesmo era a inocência, a castidade, a personalidade e a piedade dela.
O truque estava em adivinhar o ramo do Cristianismo que ela preferia, e depois convencê-la de que comungavam dessa fé particular. Se ela fosse pentecostal, a abordagem dele teria de ser muito diferente
do que se ela fosse católica, e ainda mais diferente do estilo mundano e irónico que ele assumiria se ela fosse unitarista.
Felizmente, ela revelou-se episcopaliana, o que Roy achava muito mais fácil de fingir do que um dos cultos mais arrebatados. Ter-se-ia sentido perdido se ela dissesse ser adventista do Sétimo Dia.
E revelou-se amante de livros também, especialmente adepta de C.S. Lewis, um dos melhores escritores cristãos do século anterior.
105
Na sua demanda por ser um homem da Renascença, Roy lera Lewis: não todos os muitos livros que ele dera ao prelo, mas o bastante. The Screzvtape Letters. The Problem ofPain. A Grief Observed. Felizmente
eram volumes curtos.
A querida Candace estava tão encantada por ter um homem bonito e interessante para conversar que ultrapassou a timidez quando o assunto passou a Lewis. Fez a maior parte da conversa, e Roy só precisou
de inserir uma citação aqui e uma referência ali para a convencer de que o seu conhecimento da obra do grande homem era enciclopédico.
Outro feliz acaso quanto ao facto de ela ser episcopaliana era o culto não a proibir da alegria da música dos sentidos, nem de beber. Da esplanada, ele levou-a ao clube de jazz da Jackson Square.
Roy aguentava bem o álcool, mas um Furacão possante apagou qualquer prudência que Candace pudesse ter mantido.
Depois do clube de jazz, quando ele sugeriu que dessem um passeio no molhe, a única preocupação dela era que estivesse fechado àquela hora.
- Ainda está aberto para peões - garantiu ele. - Só não o iluminam para patinadores e pescadores.
Talvez ela tivesse hesitado em passear num molhe mal alumiado se ele não fosse um homem tão forte, e tão bom, e tão capaz de a proteger.
Caminharam ao longo do rio, para longe da zona comercial e das multidões. A Lua Cheia dava mais luz do que ele teria desejado, mas também o bastante para dissipar qualquer preocupação que Candace ainda
pudesse sentir em relação à sua segurança.
Passou um barco todo enfeitado, a grande roda a cortar a água tépida. Viam-se passageiros nos tombadilhos, sentados à mesa. Aquele cruzeiro nocturno tardio não parava em docas próximas dali. Roy vira os
horários, sempre cuidadoso com a organização.
Chegaram ao fim do paredão por cima das rochas que serviam de quebra-mar. Durante o dia, era mais provável que os pescadores fossem tão longe. Tal como ele esperava, ele e Candace estavam sozinhos ali,
na noite.
As luzes do barco que desaparecia deixavam serpentinas de cores oleosas na água escura, e Candace achou bonito, e Roy também, de facto. E ficaram a observar por momentos, antes que ela se virasse para
ele, na expectativa de um beijo casto, ou até nada casto.
106
Antes pelo contrário, ele borrifou-lhe o rosto com a bisnaga de clorofórmio que tirara do bolso do casaco.
Roy concluíra que aquela técnica de saturação era muito mais rápida, eficaz e dava menos luta do que um pano embebido. O fluido penetrou-lhe nas narinas, salpicou-lhe a língua.
Sufocada, a tentar respirar e, assim, a inalar a anestesia, Candace tombou tão súbito e tão hirta quanto se tivesse levado um tiro.
Caiu de lado. Roy virou-a de costas e ajoelhou-se a seu lado.
Até naquele luar insistente e prateado, eles pareceriam discretos a quem olhasse para a margem de uma embarcação em movimento. Roy olhou para o caminho de onde tinham vindo e não viu mais transeuntes tardios.
Do bolso interior do casaco, tirou um estilete e um estojo compacto com bisturis e outros instrumentos.
Não precisava de ferramentas grandes para aquela. Seria simples extrair os olhos, embora ele devesse ter cuidado para não danificar a parte deles que considerava bela, perfeita.
Com o estilete, encontrou o coração dela e levou-a do sono à morte apenas com um ligeiríssimo som líquido.
Não tardou a que os olhos fossem seus, e estivessem seguros num frasco de plástico cheio de soro fisiológico.
De regresso às luzes e ao jazz, ficou admirado por ter, subitamente, vontade de comer algodão doce, coisa que nunca antes cobiçara. Mas claro que a carrinha vermelha estaria fechada e poderia não abrir
durante muitos dias.
31.
Um pedreiro do século XIX esculpira MÃOS DA MISERICÓRDIA num bloco de calcário por cima da entrada do hospital. Uma imagem gasta da Virgem Maria sobrepunha-se à escada da frente.
O hospital encerrara há muito e, depois de o edifício ser vendido a uma empresa fictícia controlada por Victor Hélios, as janelas tinham sido emparedadas. Todas as entradas tinham agora portas de aço,
equipadas com trancas mecânicas e electrónicas.
A rodear a propriedade à sombra dos carvalhos, erguia-se uma vedação de ferro forjado como a barricada de lanças de uma legião romana inteira. No portão eléctrico de abertura lateral havia uma placa: ARMAZÉM
PARTICULAR / ENTRADA PROIBIDA.
Câmaras ocultas vigiavam o recinto, o perímetro. Não havia depósito de armas nucleares que tivesse uma força de segurança maior, mais dedicada, nem mais discreta.
A estrutura imponente estava silenciosa. Nem se via um feixe de luz, embora fossem ali concebidos e criados os novos líderes da Terra.
Entre aquelas paredes, vivia e trabalhava uma equipa de oitenta ajudantes, acompanhando as experiências que decorriam no labirinto de laboratórios. Em salas que outrora tinham doentes internados, eram
alojados homens e mulheres novinhos em folha, e rapidamente instruídos até poderem incorporar a população da cidade.
Victor conduzia a sua obra mais importante no laboratório principal. Um espaço imenso com sensibilidade tecnológica, estilo Art Déco e grandiosidade wagneriana. Vidro, aço cromado, cerâmica branca: tudo
fácil de esterilizar se as coisas corressem... mal.
Equipamento elegante e vetusto, maioritariamente concebido e feito por ele, a toda a extensão da sala, brotando do chão, suspenso do tecto. Umas máquinas zumbiam, outras borbulhavam, outras ainda mudas
e ameaçadoras.
Naquele laboratório sem janelas, se ele guardasse o relógio de pulso numa gaveta, poderia trabalhar horas, dias sem parar. Tendo melhorado a sua fisiologia e o seu metabolismo a ponto de precisar de pouco
ou nenhum sono, lograva assim entregar-se apaixonadamente ao seu trabalho.
Naquela noite, quando chegara à secretária, o telefone tocou. Chamada na linha cinco. Das oito linhas, as últimas quatro - alternâncias
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de um único número - estavam reservadas a mensagens e perguntas das criações com que ele povoava gradualmente a cidade.
Victor pegou no auscultador.
- Estou?
Do outro lado, um homem tentava reprimir a emoção na voz, mais emoção do que Victor jamais esperara ouvir num dos da Nova Raça.
- Algo me está a acontecer. Pai. Algo estranho. Talvez algo maravilhoso.
As criações de Victor compreendiam que só podiam contactá-lo em caso de emergência.
- Qual és tu?
- Ajuda-me, Pai.
Victor sentiu-se diminuído pela palavra pai.
- Não sou teu pai. Como te chamas?
- Estou confuso... e por vezes assustado.
- Perguntei o teu nome.
As criações dele não tinham sido concebidas com a capacidade de lhe dizerem não, mas aquela recusava-se a identificar-se:
- Comecei a mudar.
- Tens de me dizer o teu nome.
- Assassínio - disse o homem. - O assassínio... excita-me.
Victor reprimiu a preocupação que desejava avolumar-se na sua voz.
- Não, a tua mente está óptima. Eu não erro.
- Estou a mudar. Há tanto a aprender com o assassínio.
- Vem ter comigo às Mãos da Misericórdia.
- Não me parece. Já matei três homens... sem remorsos.
- Vem ter comigo - insistiu Victor.
- A tua misericórdia não será extensiva a um de nós que... desceu tão baixo.
Victor sentiu um mal-estar raro. Seria aquele o assassino em série que encantava a comunicação social? Uma das suas criações, a infringir a programação para cometer assassínio sem motivos autorizados?
- Vem ter comigo, e dar-te-ei a orientação de que precisas. Aqui só há compaixão para ti.
A voz disfarçada electronicamente recusou-se outra vez.
- O mais recente que matei... era um de nós.
Victor sentiu-se ainda mais alarmado. Uma das suas criações a matar outra de moto próprio. Nunca tal acontecera. Havia uma providência programada na psique deles contra o suicídio, bem como um
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mandamento rigoroso que só permitia o assassínio por duas razões: autodefesa ou quando o seu criador os instruísse para matar.
- A vítima - disse Victor o nome dela?
- Allwine. Encontraram o cadáver na biblioteca municipal esta manhã.
Victor susteve o fôlego enquanto ponderava as implicações.
O homem disse:
- Não havia nada a aprender com o Allwine. Era como eu por dentro. Tenho de procurar noutro lado, noutros.
- Procurar o quê? - perguntou Victor.
- O que preciso - respondeu o homem, e desligou.
Victor marcou *69 - e descobriu que o telefone do outro lado tinha a rechamada automática bloqueada.
Furioso, bateu com o auscultador no aparelho.
Afigurava-se um revés.
32.
Durante algum tempo depois de Victor sair para as Mãos da Misericórdia, Erika ficou na cama, enrolada na posição fetal que lhe fora vedada no tanque de criação. Aguardava que a depressão lhe passasse ou
que se sentisse a afundar no abismo tenebroso do desânimo.
O fluxo dos seus estados de alma por vezes parecia ter pouca relação com as experiências de que decorria. Depois do sexo com Victor, a depressão sobrevinha sempre, sem tréguas, o que era compreensível;
mas quando devia amadurecer para algo como, por exemplo, desalento, por vezes isso também não acontecia. E embora o futuro lhe parecesse sombrio a ponto de o desalento só a poder esmagar, não raro ela
conseguia afugentá-lo.
Recordar a poesia de Emily Dickinson podia arrancá-la ´à tristeza: A "esperança" é a coisa emplumada -/ Que se empoleira na alma -/ E canta a melodia sem as palavras -/ E nunca para de todo.
As obras de arte nas paredes de Victor eram abstractas: blocos de cor estranhamente justapostos que pairavam opressivamente, manchas de cor ou borrões de cinza sobre preto, que pareciam a Erika o caos
ou a nulidade. Todavia, na biblioteca dele, havia livros grandes sobre arte e, por vezes, ela lograva melhorar a sua disposição contemplando simplesmente um único quadro de Albert Bierstadt ou Childe Hassam.
Ensinaram-lhe que ela pertence à Nova Raça, pós-humana, melhorada, superior. Ela é praticamente imune à doença. Sara rapidamente, quase milagrosamente.
Contudo, quando precisa de conforto, encontra-o na arte e na música e na poesia da simples humanidade que ela e a sua gente se destinam a substituir.
Quando se sente confusa, perdida, encontra clareza e rumo nos escritores da humanidade imperfeita. E os escritores são aqueles que Victor censura especialmente.
É algo que deixa Erika perplexa: que uma espécie primitiva e fracassada, a humanidade enferma, possa com as suas obras apaziguar-lhe o coração quando ninguém da sua gente é capaz de o fazer por ela.
Ela gostaria de debater isto com outros da Nova Raça, mas aflige--se que um deles considere que essa perplexidade faça dela uma herege. Todos obedecem a Victor por omissão, quando não por medo.
111
um medo tão reverencial que interpretariam as perguntas dela como dúvidas, as dúvidas como traições, e, consequentemente, denunciá-la-iam ao seu criador.
Assim, guarda as perguntas para si, pois sabe que há uma Erika Cinco num tanque à espera.
Na cama, com o cheiro de Victor ainda nos lençóis, Erika entende que essa é uma das alturas em que a poesia pode impedir que a depressão chegue ao desespero. Se eu não estiver viva / Quando os piscos chegarem
/ Dêem ao de Peito Ruivo / Uma migalha de recordação.
Ela sorri com o humor gentil de Dickinson. Esse sorriso poderia ser o primeiro de muitos se não fosse o ruído debaixo da cama.
Ela atira os lençóis para trás, senta-se na cama, sem respirar, à escuta.
Como se percebesse a reacção dela, o ruído pára - ou emudece, e quem o faz avança agora em silêncio.
Não tendo ouvido nem visto indicação alguma de haver um rato quando ela e Victor voltaram para o quarto a seguir à despedida dos convidados, Erika partira do princípio de que se enganara ao pensar que
havia lá um. Ou talvez tivesse encontrado um caminho numa parede ou num cano e dali passasse a outro sítio daquela casa imensa.
O bicho regressara ou estivera ali o tempo todo, testemunha silenciosa da provação terrível a que Victor sujeitara o direito de viver de Erika.
Passou um momento, e depois ouviu-se um som noutro ponto do quarto. Um roçagar furtivo e breve.
As sombras velavam o quarto, só cediam à luz derramada pelo candeeiro da mesa-de-cabeceira.
Nua, Erika saiu da cama e ficou ali, preparada e alerta.
Embora a sua vista melhorada aproveitasse ao máximo a luz existente, faltava-lhe a visão nocturna e penetrante de um gato. Actualmente, Victor fazia experiências entre espécies, mas ela não era uma delas.
Desejosa de mais luz, avançou para um candeeiro de leitura ao lado de uma poltrona.
Antes de lá chegar, sentiu, mais do que ouviu, uma coisa no chão a passar por ela. Assustada, levou o pé esquerdo atrás, rodou sobre o direito, e tentou ver o intruso pelo caminho que o instinto lhe dizia
ser o que ele tomara.
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Não havendo nada para ver - pelo menos, nada que ela pudesse ver - continuou rumo ao candeeiro e acendeu-o. Essa luz nada revelou do que ela esperava encontrar.
Um baque na casa de banho parecia o baldinho do lixo a ser derrubado.
Essa porta estava entreaberta. As trevas mais além.
Começou a avançar para a casa de banho, mexia-se depressa, mas no umbral da porta deteve-se.
Como os membros da Nova Raça são imunes à maioria das doenças e saram rapidamente, tinham medo de muito menos coisas do que os seres humanos vulgares. Tal não significa que fossem completamente alheios
ao medo.
Embora difíceis de matar, não são imortais e, tendo sido feitos à revelia de Deus, não podem ter esperança em outra vida depois desta. Por conseguinte, temem a morte.
Inversamente, muitos temem a vida porque não têm controlo sobre o seu destino. São servos aprendizes de Victor, o trabalho não se traduz em alforria.
Temem a vida também porque não podem abdicar dela se o fardo de servir Victor se tornar insuportável. Foram criados com uma injunção psicológica profundamente arreigada contra o suicídio; mesmo que o vácuo
os atraia, até isso lhes é negado.
A um passo do limiar da casa de banho, Erika sente outro tipo de medo: o do desconhecido.
Ao que é anormal para a natureza chama-se monstro, mesmo que seja belo, à sua maneira. Erika, criada pela mão do homem e não da natureza, era um monstro belíssimo, mas um monstro, não obstante.
Pensava ela que os monstros não deviam temer o desconhecido porque, por qualquer definição racional, fazem parte dele. Contudo, um arrepio de apreensão percorreu-lhe a linha das costas.
O instinto disse-lhe que o rato não era rato nenhum, que era, antes pelo contrário, algo desconhecido.
Da casa de banho ouviu-se um dique, um tilintar, um ruído metálico, como se algo tivesse aberto um armário e começasse a explorar o recheio às escuras.
Os dois corações de Erika bateram mais depressa. Sentiu a boca seca. As palmas das mãos suadas. Naquela vulnerabilidade, tirando a pulsação dupla, ela era muito humana, fossem quais fossem as suas origens.
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Afastou-se da porta da casa de banho.
O roupão de seda azul estava sobre a poltrona. De olhar fixo na porta da casa de banho, vestiu o roupão e amarrou o cinto.
Descalça, saiu da suíte e fechou a porta do corredor atrás de si.
Quando deu a meia-noite, desceu a escadaria da casa de Frankenstein rumo à biblioteca onde, entre os muitos volumes do pensamento e da esperança humanas, se sentia mais segura.
Por ordem de Victor, compareceram no laboratório principal dois jovens de aparência tão comum como quaisquer outros em Nova Orleães.
Nem todos os homens da Nova Raça eram bem-parecidos. Nem todas as mulheres eram bonitas.
Por um lado, quando ele tivesse finalmente criações suas infiltradas na sociedade em número suficiente para exterminar a Velha Raça, a humanidade poderia defender-se melhor se pudesse identificar o inimigo
pelos sinais mais subtis na aparência deste. Se todos os membros da Nova Raça parecessem material espampanante para os campos de batalha das bilheteiras de Hollywood, a sua beleza faria deles alvos de
desconfiança, iria sujeitá-los a provas e interrogatórios e, em derradeira instância, iria expô-los.
A sua infinita variedade, por outro lado, garantiria o desfecho da guerra. A sua variedade, superioridade física e implacabilidade.
Além disso, e embora ele, por vezes, moldasse espécimes de aparência belíssima, aquele empreendimento não incidia fundamentalmente na beleza. No seu âmago, era sobre poder e o estabelecimento de uma Nova
Verdade.
Por conseguinte, os jovens que ele convocara poder-se-iam considerar extraordinários de aspecto apenas na medida em que, dado que estavam lá dentro, pareciam assaz comuns. Chamavam-se Jones e Picou.
Victor informou-os acerca de Bobby Allwine, jazente num gavetão da morgue.
- O cadáver dele tem de desaparecer esta noite. Bem como todas as provas - amostras de tecidos, fotografias, videogravações.
- O relatório da autópsia, gravações áudio? - perguntou Jones.
- Se não forem difíceis de encontrar - respondeu Victor. - Mas por si só nada confirmam.
Picou perguntou:
- E o patologista, ou alguém que possa ter lá estado quando abriram o cadáver?
- Por agora, deixem-nos vivos - respondeu Victor. - Sem cadáver nem provas, só terão uma história louca que os fará parecer bêbados ou drogados.
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Embora eles fossem intelectualmente capazes de trabalhos maiores do que aqueles pormenores residuais, Jones e Picou não se queixaram nem acharam a sua missão aviltante. A sua obediência paciente era a
essência da Nova Raça.
Na civilização revolucionária que Victor estava a criar, tal como no Admirável Mundo Novo de Aldous Huxley, toda a gente na sociedade teria o seu lugar. E toda a gente estaria contente e livre de inveja.
Huxley ordenara o seu mundo com Alfas no topo, a elite liderante, seguidos de Betas e Gamas. Os trabalhadores braçais chamavam-se Ipsílones, nascidos para os seus lugares numa sociedade predeterminada.
Para Huxley, aquela visão fora uma distopia. Victor via-a com outra clareza: utopia.
Ele conhecera Huxley numa festa. Considerara o homem um pedantezinho que estupidamente temia que a ciência se tornasse num carro de assalto e mais dogmática do que qualquer religião lograria ser, esmagando
tudo o que fosse humano na humanidade. Victor achara--o rico em conhecimentos ganhos nos livros, fraco em experiências e entediante.
Não obstante, a visão de pesadelo de Huxley servira de ideal para Victor. Faria a classe Alfa quase igual a si próprio, para que pudessem ser uma companhia estimulante e capaz de executar os planos dele
chegado o dia em que a humanidade estivesse liquidada, em que a Terra servisse de palco a grandes feitos de uma raça de pós-humanos industriosamente unida no labor como uma colmeia.
Aqueles dois Ipsílones, Oliver Jones e Byron Picou, saíram dali como duas abelhas obreiras, ansiosos por cumprir o papel para que haviam sido concebidos e feitos. Roubariam os restos mortais de Allwine
e deixá-los-iam num aterro que existia numa elevação fora da cidade.
O aterro era propriedade de Victor, através de outra empresa fictícia, e empregava somente membros da Nova Raça. Ele necessitava regularmente de um sítio seguro a fim de enterrar para sempre as experiências
interessantes, mas goradas, que os humanos vulgares nunca poderiam descobrir.
Debaixo daquelas montanhas de lixo jazia uma cidade dos mortos. Se chegassem a fossilizar-se e a serem escavados por paleontólogos daqui a um milhão de anos, que mistérios poderiam constituir, que pesadelos
poderiam inspirar!
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Embora existissem problemas na colmeia, comparativamente pequena - até ao momento apenas dois mil da Nova Raça que ele estabelecera em Nova Orleães, eram problemas que se poderiam resolver. Semana após
semana, ele fazia progressos na sua ciência e aumentava o contingente do seu exército implacável. Não tardaria a produzir tanques em massa, criando a sua gente não em laboratório mas nos muitos milhares
de instalações, muito maiores, a que se poderia chamar com exactidão viveiros.
O trabalho era infindável mas compensador. A Terra não fora feita num dia, mas ele tinha a paciência necessária para a refazer.
Agora tinha sede. Abriu um frigorífico no laboratório e tirou uma Pepsi. Havia um pratinho cheio de bolachas com pepitas de chocolate no frigorífico. Ele adorava bolachas com pepitas de chocolate. Tirou
duas.
Fora deixado um selo da polícia na porta do apartamento de Bobby Allwine. Carson violou-o.
Era uma infracção menor, tendo em conta que o sítio não era realmente local de um crime. Além disso, ela era polícia.
Depois usou uma pistola de desencravamento de emergência da Lockaid, vendida apenas às forças policiais, para abrir o trinco. Inseriu a gazua da pistola na fechadura, por baixo dos pinos do tambor, e accionou
o gatilho. Quatro vezes, até soltar todos os pinos na linha de corte.
A pistola Lockaid era mais problemática do que violar o selo. Na esquadra havia várias. Estavam guardadas no armeiro com outras armas. Era preciso requisição por escrito ao graduado de serviço de cada
vez que se tivesse o direito legal de usar uma.
Não havia detective algum autorizado ao porte de uma arma Lockaid em permanência. Devido a um percalço no processo de requisição, Carson conseguira ficar permanentemente na posse de uma - e preferira não
divulgar que a tinha.
Nunca a usara para violar os direitos de ninguém, usava-a apenas quando era legal e quando se podia poupar um tempo precioso sem passar pela requisição escrita. Na presente instância, ela não podia violar
os direitos de Bobby Allwine pela simples razão de que ele falecera.
Embora gostasse desses filmes antigos, Carson não era nenhuma Dirty Harry de saias. Nunca vergara nenhuma regra a ponto de a quebrar, nunca numa situação de verdadeira importância.
Podia ter acordado o encarregado e pedido uma chave-mestra. Teria sido agradável tirar o velho traste da cama.
Todavia, recordara-se de como ele a olhara de alto a baixo e lambera os beiços. Sem Michael presente, acordado de um sono talvez induzido pelo vinho, o encarregado poderia armar-se em engraçadinho.
Depois ela teria de lhe recordar a ele o efeito de uma joelhada nas partes. O que poderia redundar numa detenção, quando ela só queria meditar sobre o significado do apartamento preto-e-preto de Allwine.
Acendeu o candeeiro do tecto da sala, fechou a porta atrás de si e pousou a arma Lockaid no chão.
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À meia-noite, mesmo com a luz acesa, o negrume da sala desorientava-a tanto que ela quase fazia ideia do que um astronauta sentia num passeio pelo espaço, amarrado a um vaivém, no lado nocturno da Terra.
A sala não tinha mais do que a poltrona de vinilo preto. Como estava sozinha, parecia uma espécie de trono, feito não para a realeza terrena mas sim para um demónio de média patente.
Embora Allwine não tivesse sido assassinado ali, Carson sentiu que, se apreendesse a psicologia daquela vítima em particular, poderia chegar ao entendimento do Cirurgião. Sentou-se na cadeira.
Harker dizia que as divisões pretas expressavam um desejo de morte, e Carson admitia que a interpretação dele fazia sentido, mau grado seu. Como um relógio parado, Harker de vez em quando podia ter razão,
embora nunca tanto quanto duas vezes ao dia.
Todavia, um desejo de morte não explicava inteiramente nem a decoração nem Allwine. Aquele buraco negro também tinha a ver com poder, tal como os buracos negros nos confins do universo, os quais exercem
tal atracção gravitacional que nem a luz lhes pode fugir.
Aquelas paredes, aqueles tectos, aqueles soalhos, não tinham sido pintados por um homem em desespero; o desespero enervava e não inspirava à acção. Era-lhe mais fácil imaginar Allwine a enegrecer as paredes
numa fúria de energia, num frenesim de raiva.
Se assim fosse, qual seria o alvo dessa raiva?
Os braços da poltrona eram amplos e acolchoados. Debaixo das mãos, Carson sentiu inúmeras picadas no vinilo.
Algo lhe picou a palma da mão direita. Do estofo por baixo do buraquinho, Carson tirou uma meia-lua pálida: uma unha partida.
Um olhar mais atento revelou dezenas de entalhes curvos.
A cadeira e a sala enregelavam-na, como se estivesse sentada num bloco de gelo dentro de um contentor frigorífico.
Carson encolheu as mãos e esticou os dedos. Descobriu que cada uma das suas unhas encontrava a ranhura correspondente no vinilo.
O estofo era espesso, resistente, flexível. Teria sido precisa muita pressão para cravar unhas nele.
Logicamente, o desespero não produziria a intensidade de emoções necessária para danificar o vinilo. Nem a raiva poderia ter sido suficiente se Allwine não fosse, como Jack Rogers dissera, invulgarmente
forte.
Carson levantou-se e limpou as mãos às calças de ganga. Sentia-se suja.
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No quarto acendeu as luzes. As superfícies negras absorviam a iluminação.
Alguém abrira uma das persianas pretas. O apartamento era um mundo tão lúgubre em si mesmo que os candeeiros da rua, as luzes de néon distantes, e o clarão da cidade, pareciam desfasados do reino de Allwine,
como se devessem existir em universos diferentes e isolados.
Ao lado da cama, ela abriu a gaveta da mesa-de-cabeceira, onde descobriu Jesus. O rosto dele olhava para ela num emaranhado de pagelas, a Sua mão direita erguida numa bênção.
De entre talvez uma centena de pagelas, ela escolheu quatro e descobriu que eram daqueles livrinhos de homenagem que se distribuem aos enlutados em funerais. O nome do defunto era diferente em cada um
deles, embora todos fossem da Agência Funerária Fullbright.
Nancy Whistler, a bibliotecária que encontrara o corpo de Allwine, dissera que ele ia a velórios porque se sentia em paz nesses sítios.
Guardou as quatro pagelas no bolso e fechou a gaveta.
O aroma a alcaçuz perdurava no ar com a mesma intensidade do princípio desse dia. Carson não se conseguia livrar da ideia de que alguém acendera recentemente as velas negras que estavam numa bandeja sobre
um assento junto à janela.
Foi até às velas para apalpar a cera em redor dos pavios, quase na esperança de a encontrar quente. Não. Fria e dura, em todas as velas.
A sua impressão do panorama além da janela era inquietante mas inteiramente subjectiva. Nada mudara no fardo que era Nova Orleães. Todavia, tomada de uma paranoia insidiosa, ela não via a cidade festiva
sua conhecida, mas sim uma metrópole sinistra, um lugar estranho cheio de ângulos bizarros, trevas latentes, luzes feéricas.
Um reflexo de movimento no vidro desviou-lhe a atenção da cidade para a superfície da janela. Havia uma figura imponente no quarto atrás dela.
Carson levou a mão para debaixo do casaco, à pistola de 9 mm que tinha no coldre do ombro. Sem sacar dela, virou-se.
O intruso era alto e possante, vestido de preto. Talvez tivesse entrado pela sala ou pela casa de banho, mas parecia ter-se materializado na parede preta.
Estava a cinco metros dela, onde as sombras lhe ocultavam o rosto. As mãos estavam ao lado do corpo - e pareciam grandes como pás.
- Quem é você? - inquiriu ela. - De onde veio?
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- Você é a detectíve O'Connor. - A voz profunda dele tinha um timbre e uma ressonância que, noutro homem, transmitiriam apenas autoconfiança mas que, aliados ao tamanho dele, sugeriam ameaça.
- Deu na televisão.
- O que é que está aqui a fazer?
- Vou onde me apetece. Em duzentos anos, aprendi muito sobre fechaduras.
Aquela implicação deixou Carson sem alternativa além de sacar da pistola. Apontou a boca da arma para o chão mas disse:
- Isso é invasão de propriedade. Avance para a luz.
Ele não se mexeu.
- Não seja estúpido. Avance. Para. A. Luz.
- Tenho tentado fazer isso toda a vida - disse ele e deu dois passos em frente.
Ela não poderia ter adivinhado o rosto dele. Bem-parecido do lado esquerdo, algo estranho do direito. Por cima dessa estranheza, a velá-la, havia um padrão complexo reminiscente, mas diferente, de uma
tatuagem maori.
- O homem que morava aqui - disse o intruso - estava desesperado. Reconheço o sofrimento dele.
Embora ele estivesse imóvel, pairava, e poderia estar sobre ela com duas passadas, pelo que Carson disse:
- Já chega.
- Ele não foi feito por Deus... e não tinha alma. Agonizou.
- Você tem nome? Com muito cuidado, muito devagar, mostre-me identificação.
Ele não ligou à ordem dela.
- Bobby Allwine não tinha livre arbítrio. Era, na sua essência, um escravo. Queria morrer mas não podia atentar contra a própria vida.
Se aquele tipo estivesse certo, Harker acertara em cheio. Cada uma das lâminas que estava na parede da casa de banho assinalava uma tentativa gorada de autodestruição.
- Nós temos - disse o intruso - uma norma incorporada contra o suicídio.
-Nós?
- Allwine também estava repleto de fúria. Desejava matar o seu criador. Mas também fomos concebidos para sermos incapazes de levantar um dedo contra ele. Eu próprio tentei há muito... e ele quase
me matou.
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Todas as cidades modernas têm os seus loucos, e Carson achava que conhecia todas as variantes, mas aquele tipo tinha um ar diferente do que ela conhecia e uma intensidade perturbante.
- Tentei ir a casa dele para o estudar à distância... Mas se me vissem, ele poderia ter acabado comigo. Portanto, vim aqui. O caso interessou-me por lhe faltar o coração. Eu fui, em parte, feito
dessas peças roubadas.
Quer aquela bisarma fosse o Cirurgião, quer não, não parecia o tipo de cidadão que fizesse da cidade um lugar mais seguro por andar nas suas ruas.
Ela disse:
- Esquisito de mais. Abra os braços, ponha-se de joelhos.
Embora devesse ser um reflexo da luz, ela achou ter visto uma centelha perpassar-lhe nos olhos quando ele disse:
- Não me curvo perante ninguém.
Não me curvo perante ninguém.
Nunca suspeito algum a desafiara de um modo tão poético.
Retesada, cautelosa, a afastar-se lateralmente da janela porque se sentia com as costas vulneráveis, ela disse:
- Eu não estava a pedir.
Carson segurou na pistola com as duas mãos e apontou-a para ele.
- Vai alvejar-me no coração? - perguntou ele. - Precisará de dois tiros.
Allwine deitado na mesa de autópsia. Peito aberto. A tubagem associada a dois corações.
- Vim aqui a pensar que Allwine era inocente - disse ele -, que fora aberto para dar o coração a outra... experiência. Mas já não é assim tão simples.
Ele mexeu-se e, por um instante, ela pensou que ele a ia atacar:
- Não seja estúpido.
Em vez disso, ele passou por ela e foi para a janela.
- Todas as cidades têm os seus segredos, mas nenhuma tão pavorosos quanto esta. A sua presa não é um assassino tresloucado. O seu verdadeiro inimigo é o criador dela... e meu também.
Ainda abalada com a alegação dele de ter dois corações, ela perguntou:
- O que quer dizer, precisarei de dois tiros?
- As técnicas dele agora são mais sofisticadas. Mas criou-me com cadáveres roubados ao cemitério de uma prisão.
Quando ele virou costas à janela e encarou Carson outra vez, ela viu aquela centelha subtil nos olhos dele.
- Um coração veio de um louco que ateava incêndios - disse ele. - O outro de um abusador de menores.
As posições deles tinham-se invertido. Ele estava de costas para a janela, ela de costas para a porta da casa de banho. De súbito, ocorreu a Carson que ele poderia não ter ido sozinho.
Moveu-se até fazer um ângulo, tentando observá-lo directamente e mantendo o umbral da casa de banho na visão periférica.
Ficava assim com a porta da sala atrás de si. Não poderia cobrir toda e qualquer abordagem com que a pudessem atacar, dominar.
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- As minhas mãos foram tiradas a um estrangulador - disse ele. -Os meus olhos a um assassino à machadada. O meu sopro vital veio de uma trovoada. E essa estranha trovoada concedeu-me dons que Victor
não me poderia outorgar. Para começar...
Ele moveu-se tão depressa que ela não o viu dar um passo. Ele estava à janela, mas depois mesmo diante dela.
Nunca, desde os primeiros dias na academia de polícia, onde recebera formação, fora Carson ludibriada, dominada. Mesmo quando parecia materializar-se à frente dela, ele tirou-lhe arrojadamente a pistola
da mão - houve um tiro que estilhaçou um vidro da janela - e depois à volta dela, atrás dela.
Ela achou que ele ia para trás dela, mas quando se virou, parecia que ele tinha desaparecido.
Mesmo vestido de preto naquele quarto preto, ele não conseguia fazer-se passar por uma sombra. Era grande de mais para se armar em camaleão num canto escuro.
Aquela voz inconfundível chegou-lhe do assento junto à janela:
- Já não sou eu o monstro. - Mas quando Carson girou para o enfrentar, ele não estava lá.
Mais uma vez falou, aparentemente da entrada para o quarto:
- Sou a sua melhor esperança. - Mas, quando ela se virou uma terceira vez em busca dele, ainda deu consigo sozinha.
Também não o encontrou na sala, embora pudesse recuperar a pistola de serviço. A arma estava no chão ao lado da Lockaid que ela lá deixara antes.
A porta para a rua estava aberta.
Desejando que o coração acelerado amainasse, ela tirou o carregador da arma. O brilho revelador do metal confirmou-lhe que a arma estava carregada, menos uma bala.
Carson encaixou o carregador na arma, avançou depressa para o átrio, agachada, com a arma à sua frente.
O corredor estava deserto. Ela esperou, mas não ouviu passos pelas escadas abaixo. Tudo sossegado.
Tendo em conta o tiro acidental, ela podia ter quase a certeza de que alguém no apartamento em frente a estaria a ver pelo óculo dessa porta.
Recuou para dentro do buraco negro, agarrou na Lockaid e fechou a porta. Saiu do prédio.
Quando chegou ao fundo da escada, apercebeu-se de que não apagara as luzes do apartamento. Para o diabo com isso. Allwine estava morto de mais para se ralar com a conta da electricidade.
A um canto do laboratório principal, Randal Seis fora amarrado de braços e pernas abertas no meio de um engenho esférico, que parecia uma daquelas máquinas de ginásio que podem fazer girar uma pessoa em
qualquer eixo imaginável para melhor esforçar todos os músculos irmãmente. Todavia, aquela não era uma sessão de exercícios.
Randal não iria mover a máquina; seria a máquina a movê-lo, e não era com o intuito de ganhar nem de manter massa muscular. Da cabeça aos dois pés, até à ponta de cada dedo das duas mãos, ele estava fixado
numa posição determinada com a máxima precisão.
A cunha em borracha que ele tinha na boca impedia-o de morder a língua caso sofresse convulsões. Uma correia no queixo não o deixava abrir a boca nem engolir a cunha por acidente.
Aquelas precauções também abafariam eficazmente os gritos dele.
As Mãos da Misericórdia tinham isolamento contra a fuga de qualquer som que chamasse a atenção do exterior. Contudo, sendo um investigador envolvido em ciência pioneira, para Victor todo o cuidado era
pouco.
E assim...
O cérebro é um engenho eléctrico cujas ondas se podem medir numa máquina de electroencefalogramas.
Depois de Randal Seis ter sido extensivamente instruído mediante carregamento de dados directamente no cérebro, mas ainda com o rapaz inconsciente no tanque de formação, Victor estabelecera no cérebro
da sua criação padrões eléctricos idênticos aos que se encontravam em vários autistas que ele estudara.
A sua esperança era que tal se traduzisse no "nascimento" de Randal enquanto rapaz de dezoito anos com autismo grave. E conseguira realizar esta esperança.
Depois de impor o autismo a Randal, Victor procurava restaurar o funcionamento normal do cérebro com uma variedade de técnicas. Até então, sem sucesso.
O objectivo de libertar Randal do autismo não era descobrir uma cura. Não lhe interessava nada descobrir a cura para o autismo, salvo no que pudesse ser fonte de receitas, caso ele optasse pela sua comercialização.
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Em contrapartida, Victor levava a cabo estas experiências porque, se conseguisse impor e aliviar o autismo a seu bel-prazer, lograria saber como impor graus selectivos de autismo, o que poderia trazer
benefícios económicos e sociais.
Imagine-se um operário cuja produtividade seja baixa devido à natureza entediante e repetitiva do trabalho. O autismo selectivo poderia ser um meio pelo qual o dito operário seria obrigado a concentrar--se
de moto próprio na tarefa com uma obsessão que faria dele tão produtivo quanto - e mais barato do que - um robô.
O nível mais baixo de Ipsílones dos estratos sociais escalonados com a maior exactidão na sociedade ideal de Victor poderia traduzir-se em pouco mais do que máquinas de carne. Não perderiam tempo em conversas
ociosas com os colegas.
Agora ele empurrava o interruptor que accionava o engenho esférico onde Randal Seis estava amarrado. Começou a girar, três rotações num único eixo, cinco noutro, sete ainda noutro, devagar a princípio,
mas ganhando velocidade paulatinamente.
Uma parede ali próxima tinha um plasma de alta resolução com um metro quadrado. Um monitor colorido de ultra-sons revelava a circulação do sangue nas veias e artérias cerebrais de Randal Seis, bem como
as correntes mais subtis no seu fluido cefalorraquidiano a passarem pelas meninges, pelos ventrículos cerebrais, pelo tronco cerebral.
Victor acreditava que, com uma aplicação devidamente calculada de forças centrífugas e centrípetas extremas, poderia estabelecer condições contranatura nos fluidos cerebrais que aumentariam as hipóteses
de converter as ondas cerebrais características do autismo de Randal Seis em padrões eléctricos cerebrais normais.
A máquina girava cada vez mais depressa, os gemidos e súplicas aterradas e mudas da cobaia avolumavam-se em gritos de angústia e agonia. Os guinchos dele teriam sido incomodativos, se não fosse a cunha
na boca e a correia no queixo.
Victor almejava chegar a um avanço antes de testar o rapaz até à destruição. Perder-se-ia tanto tempo se tivesse de começar tudo de novo com Randal Sete.
Por vezes, Randal mordia a cunha de borracha com tal força e durante tanto tempo que os dentes se cravavam nela até à gengiva, e depois tinha de se lhe cortar a cunha da mandíbula cerrada em bocados. Parecia
que esta era uma dessas ocasiões.
Uma cerca branca terminava numa cancela incrustada com conchas. A cancela em si tinha o motivo de um unicórnio.
Debaixo dos pés de Carson, o acesso da frente cintilava magicamente, com os pedaços de mica no lajedo a reflectir o luar. O musgo entre as lajes amortecia as passadas.
Quase tão densa que se podia sentir a fragrância das flores de magnólia embalando o ar.
As janelas da casinha de conto de fadas tinham portadas azuis onde haviam sido recortadas estrelas e meias-luas.
As latadas quase encerravam o alpendre, num emaranhado de videiras polvilhadas com flores de cor púrpura em forma de corneta.
Kathleen Burke, a moradora daquele pequeno oásis de fantasia, era psiquiatra da polícia. O seu trabalho exigia lógica e razão mas, na sua vida privada, ela refugiava-se num escapismo ligeiro.
Às três da manhã, nãc se via luz nas janelas.
Carson tocou à campainha e logo a seguir bateu à porta.
Viu-se uma luz suave no interior e, mais depressa do que Carson esperava, Kathy abriu a porta.
- Carson, o que se passa, o que aconteceu?
- Dia das Bruxas em Agosto. Temos de conversar.
- Miúda, se fosses uma gata, estarias toda eriçada e de rabo entre as patas.
- Tens sorte de não te aparecer com um presente nas calças.
- Ai que coisa tão elegante. Se calhar estás há tempo de mais com o Michael. Entra lá. Acabei de fazer café com avelã.
Carson entrou e disse:
- Não vi luz acesa.
- Lá atrás, na cozinha - retorquiu Kathy, e foi à frente.
Era atraente, tinha trinta e muitos, cabelo preto como pez e olhos asiáticos. Num pijama vermelho chinês com punhos e colarinho bordado, era uma figura exótica.
Na cozinha estava uma caneca de café fumegante em cima da mesa. Ao lado, um romance; na capa, uma mulher com trajes fantasiosos em cima de um dragão alado.
- Costumas ler às três da manhã? - perguntou Carson.
- Não conseguia dormir.
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Carson estava enervada de mais para se sentar. Mais do que andar de um lado para o outro na cozinha, passava de um lado para o outro às arrancadas.
- Esta é a tua casa, Kathy, não é o teu consultório. Isso importa, não é assim?
Kathy serviu café e respondeu com perguntas:
- O que aconteceu? Porque estás tão assustadiça?
- Tu aqui não és psiquiatra. És só amiga, está bem?
Kathy pousou a segunda caneca de café em cima da mesa, voltou à sua cadeira e respondeu:
- Sou sempre tua amiga, Carson. Aqui, ali, seja onde for.
Carson ficou de pé, demasiado retesada para se sentar.
- Nada do que eu te disser pode ir parar ao meu processo.
- A menos que tenhas matado alguém. Mataste alguém esta noite?
- Esta noite, não.
- Então desabafa, amiga. Já me estás a enervar.
Carson puxou uma cadeira, sentou-se. Estendeu a mão para a caneca de café, hesitou, não lhe pegou.
A mão tremia-lhe. Fechou-a num punho. Com toda a força. Abriu-a. Ainda tremia.
- Já alguma vez viste um fantasma, Kathy?
- Já fiz a visita assombrada por Nova Orleães, já fui ao jazigo de Marie Laveau de noite. Isso conta?
Carson agarrou na pega da caneca, olhou para os nós dos dedos brancos e disse:
- Estou a falar a sério. Refiro-me a quaisquer tretas esquisitas que não consigas explicar. Fantasmas, OVNIs, Pé Grande... - Olhou para Kathy.
- Não olhes para mim assim.
- Assim como?
- Como psiquiatra.
- Não estejas tanto à defesa. - Kathy deu palmadinhas no livro com o dragão na capa. - Sou eu quem lê três romances de fantasia por semana e quem deseja mesmo viver num.
Carson soprou o café, bebeu um gole hesitante, depois outro mais longo.
- Preciso disto. Não dormi. Nem por sombras vou dormir esta noite.
Kathy aguardou, com paciência profissional.
Após um momento, Carson disse:
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- Fala-se do desconhecido, do mistério da vida, mas nunca vi um esguicho de mistério nela.
- Esguicho?
- Esguicho, gota, colherada... sei lá. Quero ver mistério na vida -quem não quer? - Algum significado místico, mas sou adepta da lógica.
- Até agora? Conta-me lá do teu fantasma.
- Não era um fantasma. Mas era qualquer coisa. Passei esta última hora a conduzir, talvez mais tempo, a tentar encontrar as palavras certas para explicar o que aconteceu...
- Começa por onde aconteceu.
- Foi no apartamento do Bobby Allwine...
Kathy debruçou-se sobre a mesa e interrompeu:
- A última vítima do Cirurgião. Tenho andado a fazer um perfil do assassino. É difícil. Psicótico mas controlado. Não há componente sexual óbvia. Até agora, não deixou grandes provas para a Patologia
no local. Nada de impressões digitais. Um psicopata comum não é assim tão prudente.
Kathy apercebeu-se de que tinha tomado as rédeas da conversa. Largou-as e recostou-se na cadeira.
- Desculpa, Carson. Falávamos do teu fantasma.
Kathy Burke talvez conseguisse separar o trabalho na polícia da amizade delas, mas acharia mais difícil afastar a psiquiatria quando ouvisse o que Carson lhe fora ali contar.
Um gigante com um rosto estranhamente deformado, alegando ter sido feito de bocados de cadáveres de criminosos, alegando ter ganhado vida com um relâmpago, capaz de movimentos tão rápidos, tão furtivos,
tão mágicos que só podia ser algo sobrenatural e, como tal, o que alegava ser...
- Está gente? O teu fantasma?
Em vez de responder, Carson bebeu mais café.
- Mais nada? - perguntou Kathy. - Provocas-me e depois piras-te?
- Sinto-me um bocadinho culpada.
- Óptimo. Estava pronta para um grande susto.
- Se te contar como amiga, ficas comprometida profissionalmente. Terás de dar parte de mim para uma investigação de AIT.
Kathy franziu o sobrolho.
- Agente Implicado em Tiroteio? Qual é a seriedade disto, Carson?
- Não limpei o sebo a ninguém. Nem sequer de raspão, tanto quanto sei.
- Conta-me. Não dou parte coisa nenhuma.
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Carson sorriu afectuosamente.
-Farás o mais correcto. Darás parte de mim, sim senhora. E passas--me uma receita para o divã.
- Não sou tão certinha quanto pensas.
- És, pois - contrariou Carson. - Uma das razões para eu gostar de ti.
Kathy suspirou.
- Estou desejosa por uma história à roda da fogueira, e agora não ma contas. O que fazemos?
- Podíamos tomar um pequeno-almoço adiantado - sugeriu Carson. - Partindo do princípio de que tens comida aqui na terra dos elfos.
- Ovos, bacon, salsichas, cebola frita, torrada de brioche.
- Todos os apresentados.
- Vais ser uma daquelas polícias matronas.
- Népias. Hei-de morrer muito antes disso - disse Carson, e não tinha grandes dúvidas.
Roy Pribeaux gostava de se levantar muito antes da alvorada para empreender o seu regime de longevidade - tirando nas ocasiões em que estivera a pé até tarde na noite anterior, a matar alguém.
Não havia luxo maior do que ficar na cama com a certeza de que uma nova peça da mulher ideal acabara de ser embrulhada, embalada e guardada na arca congeladora. Sentia-se a satisfação do trabalho feito,
o orgulho do trabalho bem feito, o que fazia daquela hora a mais no vale dos lençóis algo justificado e, como tal, doce.
Tirar os olhos de Candace e conservá-los não lhe exigira deitar-se tão tarde como outras colheitas mas, ainda assim, ele teria preguiçado na cama, se não estivesse incrivelmente animado pelo facto de ter
a colecção completa. Os olhos perfeitos eram o último artigo na sua lista.
Dormiu profundamente algumas horas, poucas, todos os minutos nos braços de sonhos arrebatadores, e saltou da cama profundamente repousado e entusiasmado com o dia que tinha pela frente.
Uma variedade de máquinas de exercício de alta tecnologia ocupava parte do apartamento. De calções e camisola de cavas, fez um circuito de pesos que queimava cada um dos grupos musculares em séries graduadas
e que resultaria na sua resistência máxima. Depois exercitou-se na passadeira e na elíptica, até ficar a transpirar como nos trópicos.
O duche da manhã demorava sempre algum tempo. Ensaboava-se com dois produtos: primeiro, um sabonete esfoliante com uma esponja de lufa, seguido de um sabonete hidratante com uma luva macia. Para a mais
completa limpeza exequível e boa saúde folicular, ele usava dois champôs naturais, seguidos de um amaciador em creme que enxaguava passados exactamente trinta segundos.
O Sol nasceu finalmente quando ele estava a aplicar um creme condicionador do pescoço às solas dos pés. Não negligenciava um único centímetro do seu corpo magnificamente tratado, e recorria a uma esponja
em forma de espátula para chegar ao meio das costas.
Este creme era, não só hidratante, mas também um emoliente rejuvenescedor rico em vitaminas contra os radicais livres. Se deixasse as solas dos pés por tratar, seria apenas um imortal a caminhar nos pés
de um moribundo, e só a ideia fazia-o arrepiar-se.
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Depois de aplicar a série habitual de substâncias revitalizantes no rosto - incluindo um creme enriquecido com embriões de macaco liquefeitos - Roy contemplava o seu reflexo no espelho com satisfação.
Durante alguns anos, conseguira parar completamente o processo de envelhecimento. Mais empolgante ainda, lograra recentemente reverter os efeitos do tempo e via-se a rejuvenescer, semana após semana.
Os outros iludiam-se a pensar que estavam a retroceder nos anos, mas Roy sabia que o seu triunfo era real. Chegara à mais perfeita combinação de exercício, dieta, suplementos nutricionais, cremes e meditação.
O ingrediente final e crucial fora urina purificada de cordeiro da Nova Zelândia - bebia 120 ml por dia. Com um quarto de limão.
Esta inversão do relógio era altamente desejável, claro, mas Roy estava ciente do risco de se rejuvenescer demasiado. Se conseguisse chegar ao corpo de um homem de vinte anos, e lá ficasse durante uma
centena, seria bom; caso se entusiasmasse e voltasse a ter doze anos, seria mau.
Não desfrutara da primeira vez que passara pela infância e adolescência. Ter de repetir qualquer parte delas, mesmo que apenas em aparência física, seria um vislumbre do Inferno.
Depois de Roy se vestir, enquanto estava na cozinha a engolir vinte e quatro cápsulas de suplementos com sumo de toranja antes de preparar o pequeno-almoço, apercebeu-se subitamente de que a sua vida não
tinha agora finalidade.
Nos últimos dois anos, coleccionara os componentes anatómicos da mulher perfeita, primeiro numa variedade de sítios muito longe de Nova Orleães, depois, ultimamente e com particular frenesim, mesmo ao
pé de casa. Porém, desde que Candace acontecera, já os tinha todos. Mãos, pés, lábios, nariz, cabelo, seios, olhos, e tantos mais - ele não se esquecera de nada.
E agora?
Admirou-se por não ter pensado mais além. Sendo um homem sem preocupações monetárias, tempo era o que não lhe faltava; sendo imortal, ele dispunha da eternidade.
Esta ideia revelou-se, de súbito, atemorizadora.
Apercebia-se lentamente agora de que, nos anos de busca e colheita, partira supersticiosa e inconscientemente do princípio de que quando a colecção estivesse completa - quando a arca congela-
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dora estivesse cheia das peças do quebra-cabeças para a mulher mais perfeita e mais bela do que qualquer mulher viva, personificando cada um desses aspectos e qualidades - apareceria na sua vida como que
por artes mágicas uma mulher. Andara empenhado numa espécie de demanda de talismãs com a finalidade de moldar o seu destino romântico.
Talvez aquela sorte desse certo. Talvez naquela mesma tarde, quando passeasse pelo Bairro Francês, se deparasse com a sua mulher encantadora e deslumbrante.
Todavia, se os dias passassem sem aquele tão desejado encontro, dias e semanas e meses... como seria?
Ansiava por partilhar a sua perfeição com uma mulher que estivesse à sua altura. Até chegar esse momento, a vida seria vazia, desprovida de objectivos.
Sentiu um certo mal-estar. Tentou mitigá-lo com o pequeno-almoço.
Enquanto comia, ficou fascinado pelas próprias mãos. Eram mais do que bonitas mãos de homem; eram extraordinárias.
Oh, mas até encontrar a sua deusa - não em pedaços, mas inteira e viva, sem falhas nem deficiências - as suas mãos impecáveis não poderiam acariciar a perfeição que estava no seu destino erótico.
O mal-estar aumentou.
39.Ao nascer do dia, com o Sol nascente ainda aquém do ângulo que incidisse nas janelas de vitral, Nossa Senhora das Mágoas abrigava uma congregação de sombras. A única luz vinha dos mistérios da cruz
iluminados e das velas votivas nos castiçais vermelho-rubi.
A humidade e o calor que já se faziam sentir amadureciam as fragrâncias da cera com aroma a incenso, sebo e limão. Victor inalou esta mescla e imaginou transpirá-la por cada poro durante o resto do dia.
Os passos dele no chão de mármore faziam eco nas abóbadas por cima da sua cabeça. Gostava da frieza estaladiça daquele barulho, que ele ouvia como uma voz da verdade, na atmosfera opressora da igreja.
Ainda faltava meia hora para a primeira missa do dia, e a única pessoa presente, além de Victor, era Patrick Duchaine. Aguardava, conforme as instruções recebidas, num banco de nogueira na fila da frente.
O homem ergueu-se nervosamente, mas Victor disse;
- Sente-se, sente-se - não no tom que usaria para recusar uma cortesia, mas sim naquele com que poderia dirigir-se impacientemente a um cão incomodativo.
Aos sessenta anos, Patrick tinha cabelos brancos, a cara séria típica de um avô, e os olhos húmidos de compaixão perpétua. Bastava o aspecto dele para inspirar a confiança e o afecto dos seus paroquianos.
Juntem-se às aparências uma voz amável e melodiosa. Um riso simpático e fácil. Mais, ele tinha a humildade genuína de um homem que conhecia demasiado bem o seu lugar no mundo.
O padre Duchaine era a imagem do sacerdote de bondade inatacável a quem os fiéis entregavam os seus corações. E a quem confessavam os seus pecados sem hesitar.
Numa comunidade com muitos católicos - praticantes e outros -Victor entendia ser útil ter um dos seus a gerir o confessionário no qual alguns dos cidadãos mais poderosos da cidade se ajoelhavam.
Patrick Duchaine era um daqueles raros membros da Nova Raça que fora clonado a partir do ADN de um ser humano existente, em vez de ter sido concebido de raiz por Victor. Fisiologicamente, fora melhorado
mas, a olho nu, era Patrick Duchaine, nascido de homem e mulher.
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O verdadeiro padre Duchaine fora dar sangue a uma carrinha da Cruz Vermelha, facultando sem saber o material a partir do qual viria a ser replicado. Estava a apodrecer debaixo de toneladas de lixo, no
fundo do aterro, enquanto o seu duplo cuidava das almas em Nossa Senhora das Mágoas.
A substituição de seres humanos a sério por réplicas implicava riscos que Victor não gostava de correr. Embora o duplicado pudesse ter o aspecto e a conversa e os gestos iguais aos do que lhe servira de
inspiração, não se podia transferir as recordações do original para ele.
Os parentes e amigos mais próximos do indivíduo substituído não deixariam de reparar em numerosas lacunas no conhecimento da história pessoal e dos relacionamentos dessa pessoa. Não o imaginariam como
impostor, mas decerto pensariam que ele sofria de um problema mental ou físico, insistiriam com ele para consultar um médico.
Além disso, e por preocupação, iriam observá-lo atentamente e não confiariam nele por inteiro. A capacidade que ele tivesse de se fundir na sociedade e de executar o seu trabalho ao serviço da Nova Raça
ficaria comprometida.
No caso do sacerdote, não tivera mulher, claro, nem filhos. Os seus pais tinham falecido, bem como o único irmão. Embora contasse muitos amigos e paroquianos chegados, não havia família próxima que reparasse
em recordações faltosas durante o dia.
No laboratório, Victor criara o padre Duchaine a partir do sangue derramado antes de o verdadeiro padre Duchaine morrer, um truque mais complicado do que aquele que o homem da Galileia executara em Lázaro.
Sentado no banco da frente ao lado do padre, Victor perguntou:
- Como é que dorme? Costuma sonhar?
- Raramente, senhor. Por vezes... um pesadelo sobre as Mãos da Misericórdia. Mas nunca me lembro de pormenores.
- Nem nunca se lembrará. E a dádiva que lhe dou - não tem memória de ter nascido. Patrick, preciso da sua ajuda.
- O que lhe aprouver, com certeza.
- Um dos meus está a ter uma grave crise de mente. Não sei quem é. Ele chamou-me... mas tem receio de vir a mim.
- Talvez... não tenha receio, senhor - disse o padre. - Vergonha. Vergonha por tê-lo desapontado.
Esta afirmação perturbou Victor.
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- Como pode sugerir tal coisa, Patrick? A Nova Raça não tem a capacidade de sentir vergonha.
Apenas Erika fora programada para sentir vergonha, e apenas porque Victor a achava mais erótica se estivesse envergonhada.
- A vergonha - disse ele a Patrick - não é uma virtude. É uma fraqueza. Não há Lei Natural que a preconize. Nós mandamos na natureza... E transcendemo-la.
O sacerdote evitou o olhar de Victor.
- Sim, senhor, claro. Creio que me referia a... talvez ele sinta uma espécie de... mágoa por não ter estado à altura das suas expectativas.
Talvez o padre precisasse de ser vigiado ou de ser submetido a um dia inteiro de exames no laboratório.
- Passe a cidade a pente fino, Patrick. Passe a palavra entre a minha gente. Talvez tenham visto um dos seus com um comportamento estranho. Vou encarregá-lo a si e a alguns outros desta busca, e
sei que o Patrick há-de estar à altura das minhas expectativas.
- Sim, senhor.
- Se o encontrar e ele fugir... mate-o. Sabe como se pode matar os da sua espécie.
- Sim, senhor.
- Tenha cautela. Ele já matou um de vós - revelou Victor.
Admirado, o sacerdote tornou a fitar Victor.
- Eu prefiro tê-lo vivo - continuou Victor. - Mas, pelo menos, preciso do corpo dele. Para estudar. Traga-mo para as Mãos da Misericórdia.
Estavam tão perto da fila de velas votivas que os reflexos cor de carmim das chamas ondulantes incidiam no rosto de Patrick.
Victor sentiu-se inspirado a perguntar:
- Alguma vez lhe ocorreu pensar em danação?
- Não, senhor - respondeu o padre, mas algo hesitante. - Não há Céu nem Inferno. Esta é a única vida que temos.
- Exacto. A sua mente foi demasiado bem-feita para albergar superstições. - Victor levantou-se do banco.
- Que Deus o abençoe, Patrick. - Quando o padre arregalou os olhos de admiração, Victor sorriu e rematou:
- Era uma piada.
40.
Quando Carson foi buscar Michael ao seu apartamento, ele entrou no carro, olhou para ela e disse:
- Essa roupa é de ontem.
- Mas agora és crítico de moda?
- Estás com ar... amarrotado.
Quando ela arrancou, disse:
- Amarrotado, o caraças. Pareço bosta de vaca com uma peruca ranhosa.
- Não dormiste nada?
- Se calhar vou deixar de dormir de vez.
- Se estás acordada há mais de vinte e quatro horas, não devias conduzir - observou ele.
- Não te rales. Mamã. - Ela pegou num copo alto da Starbucks que tinha entre as pernas e bebeu pela palhinha.
- Estou tão cheia de cafeína que tenho os reflexos de uma cascavel.
- As cascavéis têm reflexos rápidos?
- Queres meter-te com uma para ficares a saber?
- Estás mesmo em brasa. O que aconteceu?
- Vi um fantasma. Pregou-me um susto do catano.
- E depois?
Aquilo que ela não conseguira contar a Kathy Burke, contaria a Michael. Na vida de polícia, os colegas eram mais íntimos do que apenas amigos. E ainda bem. Confiavam diariamente a vida uns aos outros.
Se não se pudesse contar tudo ao colega, seria melhor arranjar outro colega.
Não obstante, ela hesitou antes de dizer:
- Pareceu-me que ele saiu da parede e que voltou a entrar nela. Uma bisarma, mas mexia-se mais depressa do que eu podia acompanhar.
- Quem?
- Mas estás a ouvir o que eu digo, ou não? O fantasma!
- Andas a pôr alguma coisa no café?
- Disse que tinha sido feito com bocados de criminosos.
- Abranda. Estás a conduzir muito depressa.
137
Carson acelerou.
- As mãos vieram de um estrangulador, um dos corações de alguém culpado de fogo posto, o outro de um pedófilo. Deram-lhe vida com uma trovoada.
- Não percebo.
- Eu também não.
Quando Carson estacionou em frente da Agência Funerária Full-bright, já contara a Michael tudo o que acontecera no apartamento de Allwine.
O rosto dele não demonstrava cepticismo, mas o tom de voz era o equivalente a ter o sobrolho erguido:
- Estavas cansada, num sítio esquisito...
- Ele tirou-me a arma - interrompeu ela, no que podia ser a essência do seu espanto, a única coisa naquela experiência que lhe parecera mais sobrenatural. - Ninguém me tira a arma, Michael. Queres
experimentar?
- Não. Gosto de ter testículos. Só digo que ele estava vestido de preto, o apartamento é todo preto, pelo que o truque pode ter sido apenas isso, um truque.
- Então ele pode ter-me manipulado e eu vi o que ele queria que eu visse. E isso?
- Não fará mais sentido?
- Fará, pois, caraças. Mas se foi um truque, o gajo devia ser cabeça de cartaz de um espectáculo em Las Vegas.
A olhar para a agência funerária, Michael perguntou:
- Porque é que viemos aqui?
- Talvez ele não se tenha mexido mais depressa do que eu pude acompanhar, talvez ele não se tenha mesmo desvanecido no ar, mas acertou na mosca quanto disse que o Allwine estava desesperado, que
queria morrer... Mas que não se podia matar.
Carson tirou do bolso as quatro pagelas e deu-as a Michael.
- O Bobby tinha uma centena destas coisas - continuou ela - numa gaveta da mesa-de-cabeceira. Todas de funerais diferentes nesta agência. A morte atraía-o.
Carson saiu do carro, bateu com a porta do seu lado, e juntou-se a Michael no passeio.
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Michael perguntou:
- "Deram-lhe vida com uma trovoada". O que raio quer isso dizer?
- Por vezes passa-lhe um relâmpago suave pelos olhos.
Michael estugou o passo ao lado dela e disse:
- Sempre foste dura como pedra até agora, como o Joe Friday sem cromossoma Y. Agora pareces a Nancy Drew com uma moca de doces.
Como tantas coisas em Nova Orleães, a casa mortuária parecia tanto um lugar de pesadelo como um sítio real. Fora outrora uma mansão do Revivalismo Gótico, e não havia dúvida de que ainda servia de residência
ao cangalheiro, além de casa comercial. O peso das peças de marcenaria rococó devia estar a poucos quilos da carga necessária para fazer cair as caleiras, implodir as paredes e desabar o telhado.
Havia carvalhos que remontavam à época das plantações a dar sombra à casa, e camélias, gardénias, mimosas e rosas-chá a saturarem o ambiente com o seu perfume. As abelhas zumbiam preguiçosamente de flor
em flor, demasiado gordas e felizes para picarem, encantadas com a riqueza dos néctares.
Carson chegou à porta e tocou à campainha.
- Michael, às vezes não sentes que há mais na vida do que o ramer-rão, um segredo espantoso qualquer que quase consegues ver pelo canto do olho? - Antes que ele pudesse responder, ela continuou:
- Ontem à noite vi uma coisa espantosa... uma coisa que não consigo explicar por palavras. É quase como se os OVNIs existissem.
- Eu e tu já pusemos gente em alas psiquiátricas por falar assim.
Um homem grande como um urso e com ar severo apareceu à porta, e admitiu com o ar mais sombrio desta vida que era realmente Taylor Fullbright.
Carson mostrou o distintivo e disse:
- Desculpe não termos ligado a avisar, mas o assunto que nos trouxe cá é urgente.
Mais animado com a descoberta de que eles não eram um casal enlutado e necessitado de aconselhamento, Fullbright revelou a sua verdadeira natureza gregária.
- Entrem, entrem! Estava mesmo a cremar um cliente.
Durante muito tempo depois da sessão na roda, Randal Seis ficou deitado na sua cama, sem dormir - pois raramente dorme - de frente para a parede, de costas para o resto do quarto, a afugentar o caos, a
deixar que a sua mente se aquietasse devagar, muito devagar.
Ele não sabe qual o objectivo do tratamento mas tem a certeza de que não conseguirá aguentar muitas mais sessões daquelas. Mais tarde ou mais cedo, sofrerá um enfarte maciço; a falha de uma artéria interior
fará o que uma bala no seu crânio blindado não conseguiria com a mesma facilidade.
Se um aneurisma cerebral não acabar com ele, não tem dúvidas de que trocará a deficiência no desenvolvimento que o autismo constitui por uma psicose genuína. Irá procurar na loucura a paz que o mero autismo
nem sempre lhe pode assegurar.
Nos momentos mais sombrios, Randal pergunta-se se a roda será um tratamento, como o Pai lhe chama repetidamente, ou se a intenção é a tortura.
Não nascido de Deus e alienado de qualquer crença, isto é o mais próximo que ele pode estar de um pensamento blasfemo: que o Pai é um criador cruel e não afectuoso, que o próprio Pai é psicótico e todo
aquele empreendimento uma missão de loucura.
Quer o pai seja sincero, quer enganoso, quer o seu projecto seja de génio, quer de demência, Randal Seis sabe que ele próprio nunca encontrará a felicidade nas Mãos da Misericórdia.
A felicidade está a poucas ruas de distância, a pouco menos de cinco quilómetros dali, em casa de alguém chamado Carson O'Connor. Nessa casa há um segredo a ser tomado se não for oferecido de livre vontade:
a razão para o sorriso de Arnie O'Connor, a razão para o momento de alegria captado na fotografia do jornal, por mais breve que possa ter sido.
Assim que possível, ele tem de chegar ao rapaz O'Connor, antes do aneurisma cerebral que o há-de matar, antes que a roda o faça girar até à loucura.
Randal não está trancado no seu quarto. O autismo de que sofre, por vezes complicado por causa da agorafobia, mantém-no deste lado do umbral com mais segurança do que correntes e fechaduras.
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O Pai costuma encorajá-lo a explorar o edifício de ponta a ponta, até pisos acima e abaixo daquele. O sentido de aventura será a primeira prova de que os tratamentos estão a funcionar.
Seja aonde for que ele vá no edifício, não poderá sair, pois as portas exteriores estão ligadas a um sistema de segurança. Seria apanhado ainda antes de sair do recinto... E poderia ser castigado com uma
sessão bem longa na roda.
Seja como for, quando ele ocasionalmente sai do seu quarto e passeia nos corredores, nunca se atreve a ir longe, nunca uma fracção do que o Pai gostaria de o ver deslocar-se. Por vezes, até uma distância
de dez metros lhe apresenta uma sobrecarga de sons e vistas que o faz ajoelhar-se a tremer.
Naquele isolamento por si imposto, não obstante, ele vê. Ele ouve. Ele aprende. Ele conhece uma maneira de sair das Mãos da Misericórdia sem desencadear nenhum alarme.
Poderá nem ter a coragem suficiente para alcançar essa porta especial, quanto mais para confrontar a azáfama do mundo lá fora. Porém, o desalento que ele sentia avolumou-se até chegar recentemente ao desespero,
e o acto irreflectido que constitui o látego do desespero poderá ainda acicatá-lo a um arremedo de coragem.
Partirá na próxima noite, dentro de pouco mais de doze horas.
42.
o átrio tranquilo que servia de recepção tinha um friso barroco em vez das habituais cornijas: folhas de acanto profundamente esculpidas ornamentavam-na a cada meio metro e, nos cantos, cabeças de anjos
alternavam com gárgulas ou talvez demónios escarninhos.
Embutido no chão de mármore verde musgo, uma obra de marchetaria recorrera a mármores mais leves para retratar seres mitológicos -deuses, deusas e semideuses - num movimento perpétuo. Mesmo sem se ajoelhar,
Michael pôde ver que algum desse movimento tinha conotações sexuais.
Apenas em Nova Orleães poderia uma agência funerária achar que ornamentos daqueles pareciam adequados. Era provável que a casa tivesse sido erigida por volta de 1850, por novos-ricos recém-chegados que
não tinham sido bem recebidos nas zonas crioulas da cidade. Em Nova Orleães, o tempo acabava por conferir dignidade ao que outrora parecera um ultraje, assim como ao que era clássico desde o dia em que
fora construído.
A estudar uma fotografia de Bobby Allwine que Carson lhe dera, Taylor Fullbright disse:
- É este o cavalheiro, de facto. Tive muita pena daquela pobre alma - tantos amigos a morrerem. Depois apercebi-me de que ele não conhecia nenhum dos defuntos.
Carson perguntou:
- Ele... o quê? Ficava excitado ao pé dos mortos?
- Não era nada assim perverso - respondeu Fullbright. - Ele apenas... Parecia sentir-se em paz perto deles.
- Foi o que ele disse - estava em paz?
- A única coisa de que me consigo lembrar que ele tenha dito foi "A morte pode ser uma dádiva e uma maldição", o que, amiúde, se revela verdadeiro.
- Chegou a perguntar-lhe porque é que vinha a tantos velórios?
- Não sou de perguntas, detective. Há agentes funerários que são tão solenes a ponto de parecerem severos. Eu sou mais amigo de consolar e abraçar as pessoas. O senhor Allwine e o amigo nunca trouxeram
problemas. Eram mais melancólicos do que esquisitos.
O telemóvel de Carson tocou e, quando ela se afastou para atender, Michael perguntou a Fullbright:
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- Ele vinha com um amigo? Pode fazer-nos uma descrição?
A sorrir, a assentir, afável como um urso nos desenhos animados, o cangalheiro respondeu:
- É como se o estivesse a ver à minha frente. Era do mais comum que pode haver. Estatura média. Um pouco mais forte do que o peso médio. De meia-idade. Cabelo castanho - talvez louro. Olhos azuis
ou verdes, talvez cor de amêndoa.
Com um sarcasmo que soava a elogio sentido, Michael observou:
- Espantoso. é tão bom como uma fotografia.
Contente, Eullbright comentou:
- Tenho bom olho para pormenores.
Carson guardou o telemóvel e virou-se para Michael:
- O Jack Rogers quer falar connosco na morgue.
- Não se importa de informar o médico-legista - pediu Eullbright - que, embora eu não pague comissões a quem nos arranja negócio, ofereço desconto aos clientes.
- Fico ansioso por lhe contar - disse Michael. Apontou para a marchetaria de mármore a seus pés e perguntou:
- Quem é aquela figura?
- A dos pés alados? É Mercúrio.
- E aquela a seguir a ele?
- Afrodite - respondeu Eullbright.
- Eles estão...?
- A praticar sodomia? - Ajudou jovialmente o cangalheiro. - Estão, de facto. O detective ficaria espantado com a quantidade de clientes que repara e que fica animada com isso.
- Estou mesmo espantado - retorquiu Michael.
43.
Quanto mais Roy Pribeaux andava pelo seu apartamento espaçoso e dispendioso, a olhar pelas janelas altas, a matutar no futuro, mais perturbado ficava.
Quando caiu um aguaceiro, a meio da manhã, a bater nos vidros, a desfocar a cidade, ele sentiu que o seu futuro também ia ficando desfocado até redundar num borrão sem sentido. Poderia ter chorado, se
fosse atreito a essas coisas.
Nunca na sua jovem vida - e cada vez mais jovem - estivera sem objectivos e planos. O trabalho com sentido mantinha a cabeça alerta e o coração animado.
O trabalho com sentido, se tivesse um objectivo válido, era crucial para a longevidade e uma juventude duradoura, tal como as megadoses de Vitamina C e Coenzima Q10.
Sem objectivo inspirador, Roy receava que, apesar de uma dieta perfeita, suplementos nutricionais equilibrados, e um leque de emolientes exóticos, e até a urina de cordeiro purificada, começasse a envelhecer
mentalmente. Quanto mais matutava, mais lhe parecia que o caminho para a senilidade pairava diante de si, íngreme como uma pista de esqui.
A mente e o corpo estavam inextrincavelmente ligados, claro, pelo que um ano de senescência mental levaria inevitavelmente a rugas aos cantos dos olhos, às primeiras cãs nas têmporas. Roy arrepiou-se.
Tentou encontrar vontade para ir dar um passeio mas, se passasse o dia no Bairro Francês, entre magotes de turistas esfuziantes, e se não conseguisse encontrar a deusa radiosa do seu destino, o seu mal-estar
só aumentaria.
Dado que ele próprio estava muito perto da perfeição, talvez agora que coleccionara todas as partes de uma mulher ideal, devesse tomar como objectivo dar o derradeiro passo na sua sofisticação. Poderia
agora concentrar-se em alcançar o metabolismo perfeito até deixar de excretar desperdício.
Embora fosse uma empresa nobre, não prometia o mesmo divertimento da demanda que ele terminara recentemente.
Desesperado, por fim, deu consigo a pensar - aliás, a ansiar - ter errado ao concluir que completara a sua colecção. Poderia ter negli-
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genciado alguma parte anatómica que, porquanto menor, continuasse a ser essencial ao quebra-cabeças da beleza.
Ficou sentado à mesa da cozinha algum tempo, com os famosos esboços anatómicos de Leonardo da Vinci e algumas páginas centrais de Playboys antigas. Estudou o corpo feminino de todos os ângulos, em busca
de um pedaço que lhe pudesse ter passado despercebido.
Não descobrindo nada que o fizesse clamar Eureka!, começou a considerar a possibilidade de não ter sido específico o bastante na sua colheita. Seria possível que tivesse feito a colecção de uma perspectiva
demasiado global?
Se tirasse as belíssimas e alvas mãos de Elizabeth Lavenza da arca congeladora, e as revisse com olhar crítico, poderia ficar admirado por constatar que eram deveras perfeitas, excepto num pormenor. Talvez
ela tivesse um polegar que ficava aquém da perfeição.
Talvez os lábios que ele colhera não fossem ambos tão perfeitos quanto ele se recordava. O superior poderia ser perfeito, o inferior nem tanto.
Se precisasse de se lançar numa demanda do polegar esquerdo perfeito para casar com as mãos alvas e, de resto, impecáveis de Elizabeth, se tivesse de descobrir um lábio inferior carnudo que combinasse
com o magnífico lábio superior já na sua posse, significaria que a demanda não ficara concluída, afinal, e que ele teria durante algum tempo sentido para...
- Não - declarou em voz alta. - Nesse caminho jaz a loucura.
Não tardaria a ver-se reduzido a colher um dedo do pé por dador e a matar por meras pestanas. Era muito ténue, a linha que separava um objectivo homicida sério da palhaçada.
Apercebendo-se de que estava num beco sem saída, Roy poderia ter-se deixado levar pelo desespero nesse momento, embora fosse optimista por natureza. Felizmente, ocorreu-lhe uma ideia que o salvou.
Pegou na lista original de delícias anatómicas pretendidas que tinha na mesa-de-cabeceira. Riscara todos os artigos à medida que os conseguira, e terminara com OLHOS.
A lista era comprida e, talvez, no início da demanda, ele tivesse riscado um artigo pelo entusiasmo ainda antes de o ter na sua posse. A memória que tinha de certas fases do seu passado era algo turva,
não por causa de uma qualquer deficiência mental, mas somente por ele ser uma pessoa deveras concentrada no amanhã, no futuro em que cada vez seria mais novo e estaria mais perto da perfeição.
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Recordava-se vagamente, ao longo dos anos, de ter matado um ou duas mulheres por causa de uma característica ideal, mas depois descobrir, na presença íntima do cadáver, que o artigo desejado tinha imperfeições
ínfimas e, como tal, não valia a pena colhê-lo. Talvez mais do que uma ou duas mulheres. Provavelmente, até tinham sido quatro a desapontá-lo. Talvez cinco.
Calculou ser possível ter riscado um ou dois artigos da lista, e depois descoberto, após a morte, que fora indulgente no seu discernimento - e depois na azáfama ter-se esquecido de repor o artigo necessário
na lista.
Fosse para confirmar, fosse para eliminar esta possibilidade, ele teria de comparar o recheio da sua arca congeladora especial com a lista original.
O desalento rapidamente se desvaneceu e deu lugar a uma expectativa animadora. Roy abriu uma garrafa de sumo de maçã e fatiou um queque com passas para ir debicando enquanto trabalhava.
Todos os electrodomésticos na sua espaçosa cozinha tinham acabamentos em aço inoxidável, de entre os quais fornos, microondas, máquina de lavar loiça, máquina do gelo, um frigorífico Sub-Zero e duas enormes
arcas congeladoras.
Na primeira arca, guardava as partes da mulher perfeita. Gostava de chamar à arca o cofre do amor.
A segunda arca tinha um sortido de gelados sem lactose feitos à base de soja, peitos de frango do campo, e quartos de puré de ruibarbo. Caso houvesse algum ataque terrorista que lhe interrompesse o fornecimento
de suplementos nutricionais vitais, Roy também guardava ali embalagens de meio quilo de palmeto, milfurada, pólen e outros artigos.
Quando levantou a tampa da primeira arca, saiu uma nuvem de ar frio com um vago aroma de peixe congelado. Viu de imediato que a arca tinha artigos que não faziam parte da sua colecção.
Os maiores tesouros - braços e pernas - estavam selados com várias camadas de película aderente. Os mais pequenos dentro de sacos de plástico com fecho e depois em caixas Tupperware com tampas apertadas
e de confiança.
Encontrou na sua colecção três caixas que não eram Tupperware. Eram imitações baratas dessa marca de eleição: fundos de plástico opaco com tampas verdes e feias.
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Esta descoberta deixou-o intrigado. Embora pudesse haver acontecimentos do seu passado distante que lhe fugiam da memória, aquelas caixas inaceitáveis estavam em cima do resto da colecção; logo, só podiam
ter sido lá guardadas recentemente. Porém, ele nunca as vira.
Curioso, mas ainda sem se deixar alarmar, Roy tirou as três caixas da arca congeladora, e colocou-as num balcão.
Quando as abriu, deparou com aquilo que poderiam ter sido órgãos humanos. O primeiro assemelhava-se a um fígado. O segundo poderia ter sido um coração. Sem verdadeiro interesse em coisas internas, não
sabia se o terceiro artigo seria um rim, um baço ou algo ainda mais obscuro.
Parou para dar uma dentada no queque com passas e para beber sumo de maçã, e não pôde deixar de pensar que aqueles três espécimes poderiam muito bem ser as recordações tiradas pelo outro assassino que
fazia actualmente as parangonas dos jornais em Nova Orleães.
Sendo um homem da Renascença autodidacta numa variedade de disciplinas, Roy sabia qualquer coisa de Psicologia. Agora não podia deixar de ponderar sobre o conceito da múltipla personalidade.
Achava interessante pensar que ele poderia ser o assassino original e simultaneamente o imitador, que poderia ter assassinado três homens quando estava fora de si, e que, mesmo agora, confrontado com as
provas, não se lembrasse de os ter matado ou esquartejado. Interessante... mas nada convincente, afinal. Ele e o seu ego, a trabalharem separadamente, não eram, juntos, o Cirurgião.
A verdadeira explicação teimava em fugir-lhe, mas sabia que se revelaria mais bizarra do que uma personalidade múltipla.
O instinto chamou-lhe a atenção para a segunda arca congeladora.
Se a primeira tinha o inesperado, será que a segunda também encerrava surpresas? Poderia encontrar litros de gelado cheio de gordura e quilos de bacon entre as ervas e a comida saudável.
Antes pelo contrário, quando abriu a tampa e a nuvem de ar gelado se dissipou, descobriu o cadáver sem olhos de Candace em cima de suplementos e aHmentos.
Roy tinha a certeza de que não trouxera a vendedora de algodão doce para casa com ele.
À semelhança do médico-legista, ele próprio desmazelado, o gabinete de Jack Rogers era um exemplo clássico de caos controlado. A secretária estava coberta de papéis, cadernos, pastas, fotografias. Havia
livros em estantes por todo o lado. Não obstante, Jack conseguiria encontrar o que quer que procurasse em meros segundos.
Parcialmente devido à falta de sono e a demasiado café, Carson sentia a própria cabeça tão desalinhada como o gabinete.
- O Bobby Allwine desapareceu?
Jack respondeu:
- O cadáver, as amostras de tecido, a videogravação da autópsia - tudo.
- E o relatório e as fotografias da autópsia? - perguntou Michael. -Arquivou-os com o nome "Munster, Herman" conforme eu sugeri?
- Arquivei. Também os encontraram e também os levaram.
- Lembraram-se de procurar em "Munster, Herman"? - tornou Michael a perguntar, incrédulo. - Desde quando é que os salteadores de campas também são entendidos em cultura geral?
- A avaliar pela trapalhada na sala do arquivo - respondeu Jack -, acho que abriram as gavetas todas até encontrarem o que queriam. Bem podíamos ter arquivado com o nome "Sininho, Fada", que eles
teriam dado com ele. Seja como for, não eram salteadores de campas. Não desenterraram Allwine. Tiraram-no de um gavetão na morgue.
- Então são ladrões de corpos - disse Michael. - Acertar com o termo adequado não invalida que você esteja tramado, Jack.
- Parece-me mais que estou lixado - contrapôs Jack. - Perder provas de um caso destes? Caneco, lá se vai a reforma.
A tentar dar sentido à situação, Carson perguntou:
- A câmara cortou-lhe o subsídio de segurança ou quê?
Jack abanou a cabeça.
- Estamos mais seguros do que numa prisão. Teve de ser alguém cá dentro.
Em simultâneo, Carson e Michael olharam para Luke, sentado a um canto.
- Eh lá - fez ele. - Nunca roubei um tostão na vida, muito menos um morto.
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- Não foi o Luke - afirmou Jack Rogers. - Ele não se teria safado. Teria metido água.
Luke fez uma careta.
- Obrigadinho.
- Eu e o Luke ficámos cá um bocado depois de vocês saírem, mas não ficámos a noite toda. Chegámos a um impasse, precisávamos de dormir. Como eu tinha mandado para casa o pessoal nocturno para não
haver fugas nisto, a morgue estava deserta.
- Esqueceu-se de fechar tudo? - perguntou Carson.
Jack olhou-a com má cara.
- Nem pensar.
- Sinais de arrombamento?
- Nenhum. Eles deviam ter chave.
- Alguém sabia o que iria ser encontrado no Allwine - disse ela -, talvez por ele não ser único. Talvez haja outros como ele.
- Não entres na Quinta Dimensão outra vez - Michael avisava-a, e pedia-lhe, ao mesmo tempo.
- Pelo menos mais um - disse ela. - O amigo com quem ele ia a funerais. O Senhor-Do-Mais-Comum-Que-Há.
Quase em simultâneo com o bater à porta, esta abriu-se e entrou Frye, o colega de Jonathan Harker. Pareceu admirado ao vê-los.
- Tão tristes? - perguntou ele. - Morreu alguém?
O cansaço e a cafeína tinham Carson ao rubro.
- Não percebes quando te mandam "bazar"?
- Ouve, não vim cá pelo teu caso. Temos o tiroteio na loja de bebidas.
- Ai sim? Não me digas! É por isso que ontem estavas no apartamento do Allwine - à procura de pistas para o tiroteio na loja de bebidas?
Frye fingiu-se inocente.
- Não sei do que estás a falar. O'Connor, estás mais tensa do que uma bola de golfe. Arranja um gajo para aliviar a tensão.
Ela só queria alvejá-lo por acaso.
Como se lhe lesse o pensamento, Michael disse:
- Uma arma pode sempre disparar por acaso, mas tens de explicar porque é que sacaste dela, para começar.
Confortável no seu roupão, aninhada num cadeirão alto, Erika passou a noite e a manhã sem outra companhia além dos livros, e até tomou o pequeno-almoço na biblioteca.
A ler por gosto, a demorar-se na prosa, mesmo assim conseguia devorar cem páginas por hora. Ela era, afinal, membro classe Alfa da Nova Raça, com excelentes aptidões linguísticas.
Estava a ler Um Conto de Duas Cidades, de Charles Dickens e, quando terminou, fez uma coisa que jamais fizera nas suas poucas semanas de vida. Chorou.
A narrativa era sobre o poder do amor, a nobreza da abnegação e os horrores da revolução em nome de uma ideologia política, entre outras coisas.
Erika compreendia o conceito de amor e achava-o apelativo, mas não sabia se alguma vez o poderia sentir. A Nova Raça devia valorizar a razão, abdicar da emoção, rejeitar a superstição.
Ouvira Victor dizer que o amor era superstição. Sendo da Velha Raça, ele fizera-se da Nova. Alegava que a perfeita clareza da mente era um prazer maior do que qualquer simples sentimento.
Não obstante, Erika dava consigo intrigada pelo conceito do amor e ansiosa por vivê-lo.
Ganhou esperança com o facto de ser capaz de chorar. A disposição com que a haviam imbuído, tendente à razão em detrimento da emoção, não a impedira de se identificar com aquele advogado trágico que, no
final do romance de Dickens, fora parar à guilhotina no lugar de outro homem.
O advogado sacrificara-se para garantir que a mulher amada teria felicidade com o homem que ela amava. Esse homem era aquele cujo nome o advogado assumira e em lugar do qual fora executado.
Mesmo que Erika fosse capaz de amar, não seria capaz de se sacrificar, pois tal violava a prescrição contra o suicídio que estava programada em cada membro da Nova Raça. Por conseguinte, ficava maravilhada
com essa capacidade dos seres humanos comuns.
Quanto à revolução... Chegaria o dia em que Victor daria a ordem, e a Nova Raça, que vivia em segredo entre a Velha, lançaria sobre a humanidade uma tempestade de terror sem precedentes na História.
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Ela não fora criada para servir nas linhas da frente dessa guerra, apenas para ser esposa de Victor. Quando chegasse a altura, calculava que viesse a ser implacável como o criador a destinara a ser.
Se eles soubessem o que ela era, os humanos comuns chamar-lhe-iam monstro. Os membros da Velha Raça não eram seus irmãos nem irmãs.
Todavia, ela admirava muitas coisas neles e, na verdade, invejava alguns dos seus dons.
Desconfiava que seria um erro dar a saber a Victor que o seu interesse pelas artes da Velha Raça passara a ser admiração. Na opinião dele, só mereciam desprezo. Se ela não sentisse esse desprezo por eles,
ele poderia activar Erika Cinco.
Chegado o meio-dia, depois de ter a certeza de que os empregados domésticos tinham tratado da suíte principal e feito a cama, ela subiu para o andar de cima.
Se as criadas tivessem encontrado algo de extraordinário ou apenas peculiar no quarto, se tivessem descoberto umas simples caganitas de rato, ter-lhe-iam dito. O que tinha estado no quarto na noite anterior
já lá não devia estar agora.
Percorreu a suíte mesmo assim, atenta a ruídos furtivos, a ver atrás dos móveis.
De noite, tomada por um medo surpreendente do desconhecido, ela batera em retirada. O medo, um importante mecanismo de sobrevivência, não fora inteiramente negado à Nova Raça.
A superstição, por outro lado, era prova incontestável de uma mente fraca. Victor não tolerava superstições. Quem tivesse uma mente fraca seria recolhido, desactivado, substituído.
A superstição mais inocente, na aparência - como, por exemplo, a crença no azar de sexta-feira 13 -, poderia abrir uma porta na mente a questões sobrenaturais maiores. A finalidade essencial da revolução
de Victor estava na conclusão do trabalho da modernidade e na criação de uma raça de materialistas absolutos.
Erika procurou pela suíte fora para dissipar o medo quase supersticioso que se apoderara dela na noite anterior e que ainda permanecia. Como não encontrou nada inadequado, sentiu renovada confiança.
E gozou um duche longo e quente.
Os membros da Nova Raça, até os Alfas como ela, eram encorajados a desenvolver uma acentuada apreciação dos prazeres físicos simples que poderiam servir de inoculação contra as emoções. As emoções
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propriamente ditas poderiam constituir fonte de prazer, mas também uma força anti-revolucionária.
O sexo encontrava-se entre os prazeres aprovados, sexo puramente animalesco distanciado do afecto, do amor. O sexo entre membros da Nova Raça também estava distanciado da reprodução; estavam programados
para serem estéreis.
Cada homem novo e cada mulher nova deviam a sua existência à acção directa de Victor. A família era uma instituição anti-revolucionária. A família fomentava as emoções.
Victor não confiava em ninguém, além de si próprio, para criar vida por motivos puramente intelectuais, unicamente racionais. A vida oriunda do laboratório viria um dia a substituir a vida oriunda das
entranhas.
Terminado o duche, Erika abriu a porta do compartimento, pegou numa toalha, pisou o tapete de banho - e descobriu que tivera visitas. O barulho da água e as nuvens de vapor tinham dissimulado os movimentos
do intruso.
Em cima do tapete estava um bisturi. De aço inoxidável. Cintilante.
O bisturi devia ser de Victor. Ele possuía colecções de instrumentos cirúrgicos, adquiridas ao longo dos duzentos anos da sua cruzada.
Todavia, Victor não pusera aquela lâmina no tapete de banho dela. Nem nenhum dos criados da casa. Tinha lá estado mais alguém. Mais qualquer coisa.
O vapor girava em redor dela, mas Erika não deixou de se sentir arrepiada.
A seguir à passagem pela morgue, Michael tentou fazer-se às chaves do carro, mas Carson, como de costume, pôs-se ao volante.
- Tu guias devagar de mais - disse-lhe ela.
- Tu guias a dormir de mais.
- Estou bem. 'Tou fixe.
- Pois estás - concordou ele -, mas não estás bem acordada.
- Nem inconsciente guiaria devagar como tu.
- Pois, vês, eu não quero pôr a teoria à prova.
- Falas como se o teu pai fosse engenheiro de segurança ou coisa assim.
- Tu sabes que ele é engenheiro de segurança - disse Michael.
- O que é que faz um engenheiro de segurança?
- Engenharia segura.
- A vida é inerentemente insegura.
- Por isso é que precisamos de engenheiros de segurança.
- Falas como se a tua mãe andasse obcecada com brinquedos seguros quando eras pequeno.
- Sabes muito bem que ela é analista de segurança de produção.
- Credo, deves ter tido uma seca de infância. Não admira que quisesses ser polícia, levar tiros, dar tiros também.
Michael suspirou.
- Nada disto tem nada a ver com estares bem para conduzir ou não.
- Não somente estou bem para conduzir - disse Carson -, como sou uma dádiva divina às auto-estradas do Luisiana.
- Detesto quando te pôes com essas coisas.
- Sou o que sou.
- O que tu és, Popeye, é teimosona.
- Olha quem fala - o gajo que nunca aceitará que uma mulher pode conduzir melhor do que ele.
- Isto não tem nada a ver com masculino e feminino e tu sabes bem disso.
- Eu sou feminino. Tu és masculino. Tem a ver, pois.
- Tem a ver com gente doida, isso sim - disse ele. - Tu és doida, eu não, pelo que devia ser eu a conduzir. Carson, tens mesmo que dormir.
- Durmo quando estiver no caixão.
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A ordem de trabalhos do dia consistia em várias entrevistas a amigos de Elizabeth Lavenza, o cadáver sem mãos encontrado na lagoa. Depois do segundo interrogatório, na livraria onde Lavenza trabalhava,
Carson teve de admitir que a falta de sono interferia com a sua capacidade de investigação.
Voltou ao carro e perguntou:
- Pronto, eu tenho de ir ao vale dos lençóis, e tu que vais fazer?
- Vou para casa ver o Assalto ao Arranha-Céus.
- Já deves ter visto cinquenta vezes.
- Está cada vez melhor. Como o Hamlet. Dá cá as chaves do carro.
Ela abanou a cabeça.
- Eu levo-te a casa.
- Tu ainda me espetas no pilar de uma ponte.
- Se quiseres - disse ela, e sentou-se ao volante.
No lugar do passageiro, ele perguntou:
- Sabes o que tu és?
- Dádiva divina às auto-estradas do Luisiana.
- Além disso. És maníaca do controlo.
- Isso é paleio de calinas para quem trabalha muito e gosta das coisas bem-feitas.
- Ai agora sou calinas? - perguntou ele.
- Eu não disse isso. Só digo, amigavelmente, que estás a falar como um.
- Não vás tão depressa.
Carson acelerou.
- Quantas vezes é que a tua mãe te avisou para não correres com tesouras na mão?
- Tipo, setecentas mil - respondeu ele. - Mas isso não quer dizer que estejas bem para conduzir.
- Credo, és uma seca.
- E tu és incorrigível.
- Onde é que foste buscar essa palavra? O diálogo no Assalto ao Arranha-Céus não é assim tão sofisticado.
Quando Carson parou na berma em frente ao apartamento de Michael, ele hesitou antes de sair.
- Não fico descansado por conduzires até casa.
- Sou como uma mula velha. Já sei o caminho de olhos fechados.
- Se fosses a puxar o carro, não me ralava, mas vais guiá-lo à velocidade da luz.
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- Estou armada, mas isso não te rala nada.
- Está bem, está bem. Vai lá. Mas se apanhares à tua frente alguém a pisar ovos, não o mates.
Quando o carro se afastou, ela viu-o pelo espelho retrovisor, a observá-la com ar preocupado.
A questão não era ter-se apaixonado por Michael Maddison. A questão era até que ponto? Não teria remédio?
Não era que o amor fosse uma treta que tivesse de ser remediada, como alguém a afogar-se, como um agarrado à droga. Ela era toda a favor do amor. Só não estava pronta para o amor.
Tinha a carreira. Tinha Arnie. Tinha perguntas sobre a morte dos seus pais. A vida dela não tinha espaço para a paixão nesta altura.
Talvez estivesse pronta para a paixão quando tivesse trinta e cinco. Ou quarenta. Ou noventa e quatro. Mas agora, não.
Além disso, se ela e Michael dormissem juntos, o regulamento da divisão mandava destacar-lhes novos colegas.
Ela não gostava de quase nenhum dos detectives dos Homicídios. O mais certo era que a emparelhassem com um convencido qualquer. Fosse como fosse, ela não tinha tempo para treinar um colega novo.
Não era que obedecesse sempre aos regulamentos da divisão. Ela não comia procedimentos ao pequeno-almoço nem tinha que pôr os pontos nos ii.
Porém, a regra contra polícias a copularem com polícias e depois andarem em missão juntos era meramente senso comum para Carson.
Não era que ela usasse sempre de bom senso. Por vezes era preciso arriscar quando se confiava no instinto e quando se era humana.
Caso contrário, mais valia sair da polícia e ser engenheira de segurança.
Quanto a ser humana, havia aquela figura de susto no apartamento de Allwine, a qual alegara não ser humana, a menos que ele acreditasse que ser feito com bocados de criminosos e parido por um relâmpago
não era desvio suficiente da norma habitual "papá emprenha mamã" para lhe negar estatuto humano.
O monstro - fora ele que assim se chamara a si próprio, ela não estava a ser politicamente incorrecta - não passara de imaginação dela, ou seja, estava louca, ou fora a sério, ou seja, o mundo é que teria
enlouquecido de todo.
No meio daquele caso pavoroso e impossível, ela não podia abrir a braguilha a Michael e dizer. Sei que tens sonhado com isto. O romance
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era uma coisa delicada. Precisava de cuidados e carinhos para crescer e amadurecer em algo maravilhoso. Naquele momento ela não tinha tempo para orgasmos, quanto mais para romances.
Se ela e Michael pudessem ter algo significativo juntos, ela não queria estragar tudo a precipitar-se para a cama, especialmente numa altura em que a pressão do trabalho quase a esmagava.
E isso indicava o quanto ela o amava e já não tinha remédio. Já estava com a água por cima da cabeça.
Conduziu até casa sem se matar nem matar ninguém. Se estivesse acordada e lúcida como alegava estar, não teria ficado tão tolinha e orgulhosa de tal proeza.
Entre o carro e a casa, o sol pareceu-lhe tão brilhante que até a cegava. Mesmo no quarto, a luz nas janelas feria-lhe os olhos vermelhos e fazia-a encolher-se.
Fechou as persianas. Fechou as cortinas. Pensou em pintar o quarto de preto, mas decidiu que seria ir longe de mais.
Completamente vestida, caiu na cama e adormeceu ainda antes que a almofada cedesse ao peso da sua cabeça.
Da quarta vez que Roy Pribeaux abriu a arca congeladora para ver se Candace ainda lá estava, ela ainda lá estava, pelo que ele decidiu descartar a hipótese de estar com alucinações.
Ele não levara o carro na noite anterior. Morava a pouca distância do Bairro Francês. Eles tinham ido a pé a todo o lado.
Contudo, ele não a poderia ter carregado desde o dique até ao apartamento. Embora fosse um homem forte, e cada vez mais forte, ela era pesada.
Além disso, não se podia carregar um cadáver sem olhos pela baixa de Nova Orleães sem levantar suspeitas ou suscitar comentários. Nem sequer em Nova Orleães.
Ele não tinha um carrinho de mão. Fosse como fosse, não seria uma solução prática.
Serviu-se de mais sumo de maçã para acompanhar o que sobrava do queque.
A única explicação credível para a surpreendente aparição de Candace seria alguém a ter trazido para ali desde o dique e guardado na arca congeladora da comida. A mesma pessoa que pusera as três caixas
de plástico, com órgãos, na outra arca, o cofre do amor.
Aquilo queria dizer que alguém sabia que Roy matara Candace.
Aliás, esse alguém devia tê-lo visto a matá-la.
- Sinistro - sussurrou ele.
Não tivera noção de que o seguiam. Se alguém andava na peugada dele, a vê-lo namorar com Candace, o tipo seria perito em vigilância, quase que com as propriedades de um fantasma.
Não seria alguém comum. Não seria qualquer um. Perante os órgãos humanos nas três caixas foleiras com tampas verdes feias, o meliante só poderia ser o assassino imitador.
A obra de Roy inspirara um imitador. O imitador, com aqueles actos, dizia. Olá, deixa-me ser teu amigo. Tens para a troca?
Embora Roy se sentisse lisonjeado, como qualquer artista ficaria com a admiração de outro artista, não lhe agradava o caminho que as coisas estavam a levar. Não lhe agradava mesmo nada.
Para começar, aquele indivíduo obcecado por órgãos era uma toupeira cujo fascínio por interiores era nojento e rude. Ele não era do calibre de Roy.
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Além disso, Roy não precisava nem queria a admiração de ninguém. Ele bastava-se a si próprio - até que a mulher perfeita do seu destino entrasse na sua vida.
Ficou a pensar quando é que o imitador lá teria ido. Candace doara os seus olhos apenas há pouco mais de doze horas, antes de ele a encontrar dentro da arca frigorífica. O intruso só teria tido duas oportunidades
de a levar para o apartamento.
Satisfeito com a sua vida, imensamente satisfeito consigo próprio, Roy não tinha motivos para sofrer de insónias. Dormia profundamente todas as noites.
O imitador, porém, não poderia ter levado uma pessoa pesada como Candace para o apartamento, e para a arca frigorífica, enquanto Roy dormia sem dar por nada.
A cozinha era aberta, e dava para a sala de jantar. A sala de jantar era comum à sala de estar. Só havia um muro baixo a separar a sala do quarto. O ruído teria fluído sem obstruções, e Roy teria despertado.
Agora ia à casa de banho na outra ponta do apartamento, no lado oposto ao da cozinha. Fechou a porta. Abriu a torneira do chuveiro. Ligou a ventoinha.
Sim. Completamente possível. O imitador teria levado Candace para o apartamento enquanto Roy gozava o seu duche antes da alvorada.
Ele tomava duches longos: o sabonete esfoliante com a esponja de lufa, o sabonete hidratante, dois champôs excelentes, um amaciador em creme...
O sentido de oportunidade do visitante sugeria que ele sabia muito da rotina doméstica de Roy. E que devia ter chave.
Roy não tinha senhorio. Era dono do prédio. As únicas chaves do apartamento eram dele.
De pé na casa de banho, rodeado pela água a correr e as pás da ventoinha a girar, sentiu-se esmagado pela desconfiança de que o imitador até poderia estar no apartamento agora, a preparar outra surpresa.
Esta preocupação não tinha valor nenhum, pois baseava-se nos requisitos de que o imitador fosse omnisciente e omnipresente. Mas a desconfiança passou a ser convicção.
Roy desligou o chuveiro e a ventoinha. Saiu da casa de banho de rompante e passou o apartamento a pente fino. Ninguém.
Embora sozinho, Roy sentiu-se finalmente alarmado.
48.
Ela montava um cavalo preto e atravessava uma planície desolada sob um céu baixo e tormentoso.
O céu abria-se em cataclismos de relâmpagos. Onde cada raio feria a terra, nascia uma rosa gigante, bonita mas deformada, tatuada.
Cada gigante agarrava-a, tentava fazê-la desmontar. Cada qual se agarrava ao cavalo também, aos cascos relampejantes, às patas, e à crina sedosa.
O cavalo aterrorizado relinchava, escoiceava, tropeçava, soltava-se, precipitava-se para a frente.
Sem sela, ela agarrava-se à montada com os joelhos, com as mãos fechadas na crina, segurava-se, aguentava. Havia mais gigantes na terra do que aqueles que o cavalo poderia ultrapassar. Relâmpago, trovão,
mais um golem a erguer-se da terra, uma mão enorme a fechar--se sobre o punho dela...
Carson acordou numa escuridão implacável, não por causa do pesadelo mas espicaçada por um ruído.
A penetrar no zumbido e sussurro do ar condicionado, ouviu-se uma tábua do chão a ranger. Mais uma. Havia alguém a mexer-se furtivamente no quarto.
Ela acordara de costas, transpirada, em cima da roupa da cama, na mesmíssima posição em que caíra na cama. Sentiu alguém a pairar sobre ela.
Por momentos, não se lembrava de onde deixara a arma de serviço. Depois apercebeu-se de que ainda estava vestida, calçada, até tinha o coldre ao ombro. Pela primeira vez na vida, adormecera ainda armada.
Fez deslizar uma mão por baixo do casaco, sacou da arma.
Embora Arnie nunca tivesse entrado no quarto dela às escuras, e embora o comportamento dele fosse previsível, poderia ser ele, ainda assim.
Quando ela se sentou lentamente na cama e, com a mão esquerda, foi apalpando até encontrar o candeeiro da mesa-de-cabeceira, as molas da cama rangeram baixinho.
O soalho tornou a ranger, talvez porque o intruso reagira ao ruído que ela fazia. E rangeu outra vez.
Os dedos dela encontraram o candeeiro, o interruptor. Luz.
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Não viu ninguém naquele primeiro clarão. Todavia, sentiu logo, mais do que viu, movimento pelo canto do olho.
Virou a cabeça, apontou a arma, mas não encontrou ninguém.
Numa das janelas, as cortinas esvoaçavam. Por momentos, atribuiu o movimento ao ar condicionado. Depois as cortinas pararam de esvoaçar. Ficaram direitas e quietas. Como se alguém, ao sair, tivesse roçado
nelas.
Carson saiu da cama e atravessou o quarto. Quando correu as cortinas, deu com a janela fechada. Trancada.
Talvez não tivesse acordado tão depressa quanto pensava. Talvez o sono se tivesse agarrado a ela, e o sonho também. Talvez.
Carson tomou duche, mudou de roupa, e sentiu-se fresca mas desorientada. Depois de dormir a tarde toda, acordara de noite, o relógio interno confuso, sem objectivo.
Na cozinha, serviu-se da salada de frango que estava numa tigela. De prato e garfo, a comer pelo caminho, foi ao quarto de Arnie.
O glorioso castelo, digno do Rei Artur, parecia ter ganho torres mais altas.
Caso raro, Arnie não estava a trabalhar na cidadela. Pelo contrário, estava sentado a olhar para uma moeda equilibrada na unha do polegar direito, apoiada pelo indicador.
- O que se passa, fofinho? - perguntou ela, embora não esperasse resposta.
Ele confinou-se à expectativa dela, mas atirou a moeda ao ar. O cobre cintilou enquanto se virava.
Com reflexos mais rápidos do que tinha habitualmente, o rapaz apanhou a moeda no ar e fechou-a bem no punho da mão direita.
Carson nunca o vira portar-se daquela maneira. Ficou a observá-lo, curiosa.
Passou meio minuto com Arnie a olhar para o punho fechado. Depois abriu-o e franziu o sobrolho, desapontado, por ver a moeda a brilhar na palma da sua mão.
Enquanto o rapaz atirava moeda ao ar e a apanhava outra vez, Carson reparou numa pilha de moedas em cima da ponte levadiça do castelo.
Arnie não compreendia o que era o dinheiro nem via a necessidade dele.
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- Querido, onde é que arranjaste as moedas?
Arnie abriu a mão, viu a moeda e tornou a franzir o sobrolho. Atirou-a ao ar outra vez. Parecia ter uma obsessão nova.
À porta, Vicky Chou espreitou.
- Está boa, a salada de frango?
- Fabulosa. Todos os dias me fazes sentir poucochinha de uma maneira nova.
Vicky fez um gesto que dizia não tens de quê.
- Todos temos talentos especiais. Eu não saberia acertar em alguém como tu sabes.
- Quando precisares, sabes onde estou.
- Onde é que o Arnie arranjou as moedas? - perguntou Vicky.
- Era o que eu te ia perguntar.
Depois de atirar a moeda outra vez, de a encontrar na palma da mão depois de a agarrar no ar, o rapaz parecia perplexo.
- Arnie, onde é que arranjaste as moedas?
Do bolso da camisa, Arnie tirou um cartão. E ficou a olhar para ele em silêncio.
Ciente de que o irmão poderia muito bem ficar uma hora a estudar o cartão antes de lho dar, Carson tirou-lho gentilmente dos dedos.
- O que é? - perguntou Vicky.
- E um vale para um sítio chamado Luxe Theater. Um filme grátis. Onde é que ele arranjou isto?
Arnie tornou a mandar a moeda ao ar e, quando a agarrou, disse:
- Todas as cidades têm os seus segredos...
Carson sabia que já tinha ouvido aquelas palavras algures...
- ... mas nenhuma tão pavorosa quanto esta.
E sentiu o sangue gelar-lhe nas veias quando viu na sua cabeça o homem tatuado diante da janela no apartamento de Bobby Allwine.
Duzentos anos de vida podiam deixar um homem empedernido.
Se for um génio, como Victor, as suas demandas intelectuais levam-no sempre a novas aventuras. A mente pode manter-se fresca e sempre empenhada ao confrontar e resolver problemas cada vez mais complexos.
Por outro lado, a repetição dos prazeres físicos acaba por fazer com que as anteriores delícias pareçam monótonas. O tédio instala-se. No segundo século, os apetites de um homem viram-se cada vez mais
para o exótico, o extremo.
Por isso é que Victor exige violência com o sexo, e a humilhação cruel da sua parceira. Há muito que ele transcendeu a culpa que a execução de actos de crueldade poderá suscitar noutros. A brutalidade
é um afrodisíaco; o exercício do poder em bruto excita-o.
O mundo oferece uma gastronomia tão vasta que o sexo convencional fica entediante muito antes de os pratos favoritos parecerem insípidos ao palato. Só na última década é que Victor ganhou um desejo periódico
por alimentos tão exóticos que devem ser comidos com a maior discrição.
Em certos restaurantes da cidade, onde os proprietários dão valor a tê-lo como cliente, onde os empregados dão valor às suas gorjetas generosas, e onde os chefes admiram o seu palato único e sofisticado,
Victor organiza de vez em quando jantares especiais com antecedência. Servem-no sempre num privado, onde um homem refinado como só ele pode desfrutar de pratos tão raros que até podem parecer asquerosos
às massas ignorantes. Victor não deseja de modo algum explicar esses seus gostos educados aos clientes rudes - e são quase sempre rudes - da mesa vizinha.
Quan Yin, restaurante chinês homónimo da Rainha do Céu, tinha dois privados. Um adequado a um grupo de oito pessoas. Victor reservara-o só para si.
Era frequente comer sozinho. Com duzentos anos de experiência, à qual ninguém de longevidade comum poderia aspirar, descobrira que era ele próprio, quase sempre, a sua melhor companhia.
Para espevitar o apetite, dando-lhe tempo de ansiar pela entrada exótica, começou com um simples prato de sopa de ovo.
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Ainda ia a meio do primeiro prato quando o telemóvel tocou. Ficou admirado por ouvir a voz do renegado.
- O crime já não me assusta. Pai.
Num tom de autoridade que garantia sempre obediência, Victor disse:
- Tens de falar comigo sobre isso em pessoa.
- O crime já não me perturba como quando lhe telefonei.
- Como é que chegaste a este número?
O número de emergência nas Mãos da Misericórdia, que se dava a membros da Nova Raça, não transferia as chamadas para o telemóvel de Victor.
Em vez de responder, o renegado disse:
- O crime só me torna mais humano. Eles são excelentes no crime.
- Mas tu não és da laia deles. - A necessidade de falar naquilo, de debater aquilo, incomodava Victor. Ele era dono e senhor. A palavra dele era a lei e todos obedeciam às suas vontades, pelo menos
entre a sua gente.
- Tu és mais racional, mais...
- Nós não somos melhores. Há qualquer coisa que nos falta... Algo que eles têm.
Era uma mentira intolerável. Era uma heresia.
- A ajuda de que precisas - insistiu Victor, impaciente - só eu ta posso dar.
- Se eu cortar e abrir muitos deles para ver lá dentro, mais cedo ou mais tarde hei-de descobrir o que faz deles... mais felizes.
- Isso não é racional. Vai ter comigo às Mãos da Misericórdia...
- Há uma rapariga com quem me encontro às vezes, ela é particularmente feliz. Encontrarei a verdade nela, o segredo, aquilo que me falta.
O renegado desligou.
Tal como antes, Victor premiu *69. Tal como antes, a chamada viera de um número que bloqueava rechamadas automáticas.
Aquela involução não lhe estragara o jantar especial, mas já não se sentia tão animado. Decidiu passar do chá ao vinho.
A cerveja costumava combinar com a comida chinesa melhor do que o vinho. Todavia, Victor não era homem de cerveja.
Ao invés de muitos restaurantes chineses, Quan Yin tinha uma grande adega repleta das melhores colheitas. O empregado de mesa -
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de camisa branca com rufos, laçarote, calças pretas de smoking-levou-lhe a lista de vinhos.
Quando terminou a sopa e enquanto esperava pela salada de corações de palmito e pimentos, Victor estudou a lista. Hesitava entre um vinho adequado a carne de porco e outro mais apropriado para marisco.
Não iria comer nem carne de porco nem marisco. A entrada, que ele já conhecia, era uma iguaria tão rara que qualquer conhecedor de vinhos ficaria indeciso quanto à selecção mais compatível.
Finalmente, escolheu um soberbo Pinot Grigio e apreciou o primeiro copo de vinho com a salada.
Havia muita cerimónia na apresentação do prato principal, a começar pelo próprio cozinheiro, um homem anafado como Buda, chamado Lee Ling. Este espalhou pétalas de rosa vermelha na toalha de mesa branca.
Dois empregados apareceram com uma bandeja de bronze esculpida onde havia uma panela de cobre cheia de óleo a ferver. Um fogão Sterno de um só bico por baixo da panela mantinha a temperatura do óleo.
Pousaram a bandeja em cima da mesa, e Victor inalou profundamente o aroma que saía da panela. Aquele óleo de amendoim, duas vezes clarificado, tinha uma infusão que era um misto de óleos de pimenta. A
fragrância era divina.
Um terceiro empregado colocou um prato branco simples diante dele. Ao lado dele, pauzinhos vermelhos. Com todo o cuidado para não se ouvir o menor tilintar, o empregado colocou uma pinça em aço inoxidável
em cima do prato.
As pegas da pinça eram de borracha para proteger do calor que o óleo fervente passaria ao aço inoxidável. As pontas da pinça tinham a forma de pétalas da flor de lótus.
A panela de óleo estava à direita de Victor. Agora colocavam-lhe uma taça de arroz de açafrão à frente do prato.
Lee Ling retirara-se para a cozinha, mas voltava agora com a entrada, a qual colocou à esquerda do prato de Victor. A iguaria aguardava numa terrina de prata com tampa.
Os empregados fizeram uma vénia e retiraram-se. Lee Ling ficou à espera, a sorrir.
Victor destapou a terrina de prata. Tinham-na forrado com folhas de couve, fervidas brevemente para murcharem e ficarem maleáveis.
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Aquela iguaria rara não estava na ementa. Não estava disponível o tempo todo nem esporadicamente.
Fosse como fosse, Lee Ling só a preparava para aquele cliente - um num milhão que conhece há anos, em quem confia, de quem sabe ser um verdadeiro gourmet. O cliente também tem de estar familiarizado com
a gastronomia regional chinesa a ponto de saber pedir aquele artigo.
As autoridades da hotelaria não teriam aprovado aquele serviço, nem sequer na libertina Nova Orleães. Não havia riscos para a saúde, mas há coisas demasiado exóticas até para as gentes mais tolerantes.
Na terrina, rodeada pela couve, mexia-se uma ninhada dupla de ratos bebés vivos, acabados de nascer, cor-de-rosa, sem pêlos e ainda cegos.
Em chinês, Victor exprimiu a sua aprovação e gratidão a Lee Ling. A sorrir, a fazer vénias, o cozinheiro retirou-se e deixou o convidado sozinho.
Talvez o vinho excelente tivesse restaurado a boa disposição de Victor, ou talvez a sua própria e extraordinária sofisticação lhe agradasse tanto que ele não conseguisse ficar sombrio muito tempo. Um dos
segredos para uma vida cheia de grandes concretizações era gostar de si mesmo, e Victor Hélios, anteriormente Frankenstein, gostava mais de si mesmo do que saberia exprimir.
Jantou.
o segundo piso das Mãos da Misericórdia estava sossegado.
Era ali que os homens e as mulheres da Nova Raça, acabados de sair dos tanques, passavam pelas fases finais de carregamento de dados directamente no cérebro. Não tardaria que estivessem prontos a entrar
no mundo e tomar os seus lugares entre a humanidade condenada.
Randal Seis deixará a Misericórdia antes de qualquer um deles, antes de esta noite terminar. Está aterrorizado, mas está preparado.
Os mapas e as visitas virtuais a Nova Orleães que fez por computador enervaram-no tanto quanto o prepararam. Porém, e para evitar a roda e sobreviver, ele não pode esperar mais.
Para abrir caminho no mundo perigoso além destas paredes, ele deve ir armado. Contudo, não tem arma alguma e não vê nada no quarto que lhe possa servir para isso.
Se a viagem for mais longa do que ele espera, precisará de mantimentos. Não tem comida no quarto, apenas o que lhe levam à hora das refeições.
Algures neste edifício há uma cozinha de dimensões consideráveis. Uma despensa. Lá encontrará a comida de que necessita.
A perspectiva de ir à procura de uma cozinha, de recolher comida de entre um esmagador número de escolhas, e de embalar mantimentos é tão assustadora que ele não consegue começar. Se tiver de levar coisas,
nunca sairá da Misericórdia.
Por conseguinte, partirá sem mais além da roupa do corpo, um livro novo de palavras cruzadas e uma caneta.
No umbral da porta entre o quarto e o corredor, fica paralisado. Não consegue continuar.
Sabe que aqueles dois espaços ficam no mesmo piso, mas sente que cairá a pique caso se atreva a sair para o corredor. O que ele sabe geralmente não é tão forte quanto o que ele sente, e é a maldição da
sua doença.
Embora lembre a si mesmo que talvez um encontro com Arnie O'Connor esteja no seu destino, continua imóvel.
Esta perturbação emocional piora enquanto ele está ali, paralisado. A agitação revolve-lhe os pensamentos até serem uma confusão, como um torvelinho que levanta folhas outonais numa espiral colorida.
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Tem plena consciência de que aquela agitação rapidamente poderá chegar a um distúrbio mais profundo, depois a uma tempestade, depois a uma tormenta. Deseja desesperadamente abrir o livro de quebra-cabeças
e pôr a caneta nos quadrados vazios.
Se sucumbir ao desejo das palavras cruzadas, não terminará um exercício, nem dois, mas o livro inteiro. Passará a noite. Virá a manhã. Ele terá perdido a coragem de fugir, para sempre.
Umbral. Corredor. Com um passo, ele pode transpor o primeiro e estar no segundo. Já o fez, mas desta vez parece-lhe uma viagem de mil quilómetros.
A diferença, claro, é que anteriormente não fazia tenções de ir além do corredor. Desta vez, ele quer o mundo.
Umbral, corredor.
De súbito, umbral e corredor apareceram-lhe na mente como letras escritas a negro em filas de quadrados brancos, duas entradas num exercício de palavras cruzadas, com a letra r em comum.
Quando vê as duas palavras a cruzarem-se desta maneira, reconhece com mais clareza que o umbral e o corredor na realidade também se cruzam ao mesmo nível. Cruzar o primeiro para chegar ao segundo não custa
mais do que encher os quadradinhos com letras.
E sai do quarto.
Os motivos geométricos na fachada Art Déco do Luxe Theater ganhavam maior profundidade com o brilho contrastante do candeeiro de rua e as sombras que ele acentuava.
O cartaz estava às escuras, e parecia que o teatro estava fechado, se não mesmo abandonado, quando Carson espreitou por uma das portas. Viu luzes suaves no balcão das bebidas e alguém a trabalhar lá.
Quando tentou a porta, esta abriu-se para dentro. Carson entrou no átrio.
As vitrinas com os produtos estavam iluminadas para os exibir. Na parede atrás do balcão, um relógio da Coca-Cola ao estilo Art Déco iluminado, branco-gelo e carmesim, constituía uma lembrança surpreendentemente
pungente da inocência de outros tempos.
O homem a trabalhar ao balcão era o gigante que ela encontrara no apartamento de Allwine. A compleição dele identificara-o ainda antes de se virar e revelar a fisionomia.
Ela bateu com o vale para o cinema no vidro do balcão.
- Quem é você?
- Já lho disse.
- Não percebi o seu nome - retorquiu ela, tensa.
Ele estivera a limpar a máquina das pipocas, e virou-se para ela mais uma vez.
- O meu nome é Deucalião.
- Nome ou apelido?
- Nome e apelido.
- Trabalha aqui?
- Sou dono do teatro.
- Você atacou uma agente policial.
- Ataquei? Ficou ferida? - Ele sorriu, mas sem sarcasmo, com uma simpatia surpreendente, tendo em conta o seu rosto.
- Ou o dano foi ao seu amor-próprio?
A compostura dele impressionava-a. O tamanho imponente não era a fonte da sua autoconfiança; ele não era nenhum rufia. Antes pelo contrário, a sua natureza tranquila abeirava-se da serenidade mais profunda,
que ela associava a gente monástica nos seus hábitos embuçados.
Também havia sociopatas serenos, compostos como aranhas viúvas--negras dentro da toca à espera que as presas lhes caíssem no colo.
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Ela perguntou:
- O que foi fazer a minha casa?
- Pelo que vi da maneira como você vive, creio que posso confiar em si.
- Porque é que eu havia de querer saber se confia em mim ou não? Fique longe da minha casa.
- O seu irmão é um fardo. Você carrega-o com graciosidade.
Alarmada, ela disse:
- Você não faz parte da minha vida.
Ele largou o pano húmido com que estava a limpar a máquina das pipocas e virou-se outra vez para ela, só com o balcão das guloseimas de permeio.
- É isso que você quer? - perguntou ele. - É mesmo? Se é isso que você quer, porque é que veio cá para ouvir o resto? Porque não veio cá só para me dizer que fique longe. Você veio com perguntas.
A perspicácia dele e o facto de se estar a divertir calmamente não se coadunava com a brutalidade do seu aspecto.
Como ela ficara impassível, ele continuou:
- Não desejo mal algum ao Arnie ou a si. O seu inimigo é o Hélios.
Ela pestanejou, admirada.
- Hélios? Victor Hélios? Dono da Biovision, grande filantropo?
- Ele tem a arrogância de se chamar "Hélios", o deus grego do Sol. Hélios... Aquele que dá a vida. Esse não é o verdadeiro nome dele. -Sem ênfase, sem sequer erguer uma sobrancelha, sem ironia aparente,
ele declarou:
- O verdadeiro nome dele é Frankenstein.
Depois do que ele dissera no apartamento de Bobby Allwine, depois de alegar ser feito de pedaços de criminosos e de lhe terem dado vida com uma trovoada, ela deveria estar à espera daquele desenvolvimento.
Todavia, não estava nada à espera, e ficou desapontada.
Carson sentira que Deucalião era especial, de algum modo além do seu tamanho e aparência imponentes, e, por motivos que não sabia verbalizar satisfatoriamente, ela quisera que ele fosse especial. Precisava
que lhe puxassem o tapete da rotina de debaixo dos pés, de cair de cabeça no mistério da vida.
Talvez mistério fosse sinónimo de mudança. Talvez ela precisasse de um tipo de entusiasmo diferente daquele que o trabalho geralmente lhe dava. Contudo, desconfiava que precisaria de mais sentido na
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vida do que o caso de homicídio para o qual a tinham destacado, embora não soubesse bem o que queria dizer com sentido.
Deucalião desapontara-a porque aquela história do Frankenstein era apenas mais uma variação das taradices com que ela se deparava, a maior parte do tempo, nas investigações habituais. Ele parecera-lhe
estranho mas significativo; agora soava pouco diferente dos tarados alucinados que se pensavam perseguidos por operacionais da CIA ou por extraterrestres.
- Pois - disse ela -, Frankenstein.
- A lenda não é ficção, é facto.
- Claro que é. - Os vários tipos de desapontamento tinham o mesmo efeito nela: desejo de chocolate. Apontou para o vidro do balcão e disse:
- Queria um Hershey com amêndoas.
- Há muito tempo, na Áustria, deitaram fogo ao laboratório dele e arrasaram-no. Porque ele me criou.
- Chatice. Onde estão os parafusos do pescoço? Fez uma operação e tiraram-lhos?
- Olhe para mim - disse ele solenemente.
Ela olhou anelante para o chocolate Hershey, mas depois encarou-o.
Pulsava-lhe nos olhos uma radiância fantasmagórica. Desta vez ela estava tão perto que, mesmo que quisesse, não poderia descartá-la como simples reflexo de alguma luz natural.
- Desconfio - disse ele - que há coisas mais estranhas do que eu nesta cidade... e que ele começou a perder o controlo delas.
Ele avançou para a caixa registadora, abriu uma gaveta debaixo dela e tirou um recorte de jornal e um papel enrolado e atado com uma fita.
O recorte tinha uma fotografia de Victor Hélios. O papel era um retrato a carvão do mesmo homem, uma década mais novo.
- Tirei isto de uma moldura no estúdio de Victor há dois séculos, para nunca me esquecer da cara dele.
- Isto não prova nada. Os chocolates estão à venda ou não?
- Na noite em que nasci, Victor precisava de uma trovoada. E teve a trovoada do século.
Deucalião arregaçou a manga do braço direito e mostrou três discos metálicos brilhantes incrustados na carne.
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Carson tinha de admitir que nunca vira tal coisa. Por outro lado, os tempos eram tais que as pessoas furavam a língua com tachas e até fendiam a ponta da língua para ficarem com um ar reptiliano.
- Pontos de contacto - explicou ele. - Em todo o corpo. Mas havia algo estranho nos relâmpagos... um poder tremendo.
Não falou nas cicatrizes quelóides brancas e irregulares que iam do pulso ao antebraço.
Se ele estivesse a viver uma fantasia de monstro de Frankenstein, tinha chegado a extremos para adaptar a aparência física à lenda. Era um bocadinho mais impressionante do que um fã do Caminho das Estrelas
de fato-macaco e orelhas de Spock.
Contra todo o discernimento, mesmo que não conseguisse acreditar nele, Carson deu consigo a querer ter fé nele.
Esta vontade de acreditar surpreendeu-a, perturbou-a. Não a compreendia. Não era nada típico de Carson O'Connor.
- A trovoada deu-me vida - continuou ele -, mas também me deu algo que é uma quase imortalidade.
Deucalião pegou no recorte de jornal, olhou um momento para a fotografia de Victor Hélios, e depois amachucou-a na mão fechada.
- Pensei que o meu criador morrera há muito. Mas desde o princípio que ele busca a sua própria imortalidade - de um tipo ou de outro.
- Mas que história - comentou ela. - Vai haver rapto por extraterrestres?
Na experiência de Carson, os maluquinhos não gostavam que os gozassem. Reagiam com raiva ou acusavam-na de fazer parte da conspiração em que pensavam estar implicados.
Deucalião limitou-se a deitar fora o papel amachucado, a tirar um chocolate Hershey do expositor, e a colocá-lo no balcão em frente a ela.
Ela começou a desembrulhar a tablete e perguntou:
- Acha que eu vou acreditar em duzentos anos? O relâmpago daquela noite... alterou o quê? A genética?
- Não. O relâmpago não lhe tocou. Só a mim. Ele chegou até aqui... de algum outro modo.
- Muitas fibras, fruta fresca, nada de carne vermelha.
Ela não o conseguia vergar.
Já não havia a tal luminosidade feérica nos olhos dele, mas ela viu algo que nunca vira nos olhos de outra pessoa. Uma frontalidade electrizante. Sentia-se tão exposta que o frio apertou-lhe o coração
como um punho.
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Solidão naquele olhar, e sabedoria, e humildade. E... mais qualquer coisa enigmática. Os olhos dele eram singulares e, embora houvesse muito a ler neles, ela não sabia a língua que interpretava o que lia,
pois a alma que olhava para ela através daquelas lentes parecia-lhe, de súbito, estranha como qualquer criatura nascida noutro mundo.
O chocolate entupia-lhe a boca, a garganta. Sabia-lhe estranhamente a sangue, como se ela tivesse mordido a língua.
Pousou a tablete de chocolate.
- O que é que Victor tem feito todo este tempo? - perguntou Deucalião.
- O que é que ele tem... criado?
Ela lembrou-se do cadáver de Bobby Allwine, nu e dissecado na autópsia - e da insistência de Jack Rogers em como as suas entranhas aberrantes não eram consequência de mutação, mas sim de criação.
Parecia que Deucalião tinha tirado uma moeda do ar. Virou-a com o polegar, apanhou-a no ar, segurou-a um momento no punho. Quando abriu a mão, a moeda não estava lá.
Era o truque que Arnie estivera a tentar imitar.
Deucalião virou a tablete que Carson acabara de pousar no balcão e a moeda apareceu.
Ela sentiu que aquela exibição inesperada se destinava a ser mais do que mero entretenimento. Que se destinava a convencê-la de que a verdade nele era tão mágica como ele a apresentara.
Pegou na moeda - as mãos dele com uma destreza invulgar para o seu tamanho - e atirou-a por cima da cabeça dela.
Quando ela se virou para seguir a trajectória, perdeu de vista a moeda bem alto no ar.
Esperou ouvir o ruído da moeda a cair no chão de mármore do átrio. Silêncio.
Quando o silêncio se prolongou além de toda a expectativa razoável, Carson olhou para Deucalião.
Ele tinha outra moeda. E fê-la saltar do polegar.
Com mais atenção do que antes, ela acompanhou-a, mas perdeu-a quando a moeda chegou ao cume da trajectória.
Susteve o fôlego, à espera que a moeda caísse e tilintasse no chão, mas o ruído não se deu, não se deu - e depois ela teve de respirar.
- Ainda não faço parte da sua vida? - perguntou ele. - Ou pretende ouvir mais?
Os candeeiros derramam radiosos leques ambarinos pelas paredes, mas, àquela hora, as luzes estão baixas e as sombras dominam.
Randal Seis só agora se apercebeu de que os mosaicos de vinilo no corredor são como os quadrados das palavras cruzadas. Aquela geometria conforta-o.
Começa a visualizar uma letra do seu nome a cada passo que dá, soletrando-se a si próprio pelo chão fora, mosaico por mosaico, rumo à liberdade.
Aquele é o piso do dormitório, onde os membros recentemente acordados da Nova Raça ficam até estarem aperfeiçoados e prontos para se infiltrarem na cidade.
Das portas, metade está aberta. Além delas, corpos nus fixos em todas as posições sexuais imagináveis.
Especialmente nas primeiras semanas, os nascidos nos tanques enchem-se da angústia de saberem aquilo que são. Sofrem também de intensa ansiedade porque ganham consciência com a noção imediata de que, enquanto
criadagem de Victor, não controlam as questões primárias das suas vidas e não têm livre arbítrio; por conseguinte, no seu princípio jaz o seu fim, e as suas vidas estão definidas sem esperança de mistério.
São estéreis mas vigorosos. Neles, o sexo foi separado inteiramente do objectivo de procriação, e funciona somente como escape para o stresse.
Copulam em grupos, emaranhados e contorcidos, e parece a Randal Seis, cujo autismo o diferencia deles, que aquelas investidas não lhes dão prazer algum, apenas os aliviam da tensão.
Os sons que saem daquelas orgias não chegam a ser de alegria, ficam aquém da ternura. São ruídos bestiais, cavos e roucos, insistentes quase ao ponto da violência, ávidos ao ponto do desespero.
O choque de carne contra carne, os grunhidos sem palavras, os gritos guturais que parecem eivados de raiva - tudo aquilo apavora Randal Seis ao passar por aqueles quartos. Sente o ímpeto de fugir mas não
se atreve a pisar os riscos entre mosaicos de vinilo; tem de pôr cada pé inteiro num quadrado, o que implica uma passada deliberada.
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O corredor cada vez se parece mais com um túnel, os quartos de cada lado como catacumbas em que os mortos inquietos se abraçam num desejo gélido.
O coração a bater como se quisesse pôr à prova a robustez das suas costelas. Randal soletra o seu nome com frequência bastante para chegar a um cruzamento entre corredores. Com uma das letras, soletra
uma palavra de ordem - esquerda - a qual lhe permite virar nessa direcção.
Com a letra d, soletra direita de trás para a frente enquanto avança. Com a letra r para começar de novo, consegue soletrar o próprio nome e, assim, prosseguir naquele corredor novo, rumo à escolha entre
elevadores ou escadas.
Erika jantou sozinha no quarto de casal, sentada a uma mesa de marchetaria francesa do século XIX, com um motivo que retratava as benesses do Outono - maçãs, laranjas, ameixas, uvas, todas a saírem do
*** corno da abundância - esculpidas em magníficos baixos-relevos numa ampla variedade de madeiras.
Como todos os da Nova Raça, o metabolismo dela era apurado e poderoso como o motor de um Ferrari, o que implicava um apetite imponente.
Dois bifes com 170 gramas - do lombo, malpassados - acompanhados de bacon estaladiço, cenouras em manteiga de tomilho, ervilhas tenras com batata-doce fatiada. Em separado uma travessa aquecida de batatas
guisadas com molho de queijo azul. Para sobremesa, um bolo de pêssego inteiro com uma dose de gelado de baunilha aninhado numa taça com gelo picado.
Enquanto comia, ela olhava para o bisturi que tinham deixado em cima do tapete da casa de banho, ao princípio do dia. Estava em cima do prato do pão como se fosse a faca da manteiga.
Ela não sabia como é que o bisturi se ligava aos ruídos furtivos como os das ratazanas que andava a ouvir, mas tinha a certeza de que estavam ligados.
Não há outro mundo além deste. Toda a carne é erva, e murcha, e os campos da mente também, são carbonizados pela morte e não tornam a crescer verdes. Aquela convicção era essencial ao credo do materialismo;
e Erika é um soldado no exército determinado que irá inevitavelmente conquistar a Terra e impor essa filosofia em todos os quadrantes.
Todavia, embora o seu criador proíba a crença no sobrenatural, embora as suas origens laboratoriais sugiram que se pode criar vida inteligente sem inspiração divina, Erika não consegue deixar de sentir
o insólito naqueles acontecimentos recentes. Parecia que o bisturi cintilava não só do brilho do aço cirúrgico mas também por... magia.
Como se com estes pensamentos ela tivesse aberto uma porta entre este mundo e outro, uma força inexplicável ligou o plasma. Erika assustou-se e viu o ecrã ganhar vida.
O painel sem fios Crestron, com que se controlava a televisão, estava na mesa-de-cabeceira de Victor, sem resquícios de movimento.
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Parecia haver uma presença incorpórea a mudar de canal. As imagens passavam rapidamente pelo ecrã, cada vez mais depressa.
Quando Erika pousou o garfo e afastou a cadeira da mesa, a Presença escolheu um canal vazio. O grande ecrã embranqueceu com um nevão de estática.
Sentindo que algo bizarro - e algo significativo - estava para acontecer, ela pôs-se de pé.
A voz - funda, rouca e sinistra - chegou-lhe pelo canal vazio, pelas colunas Dolby Surround Sound no tecto: Mata-o. Mata-o.
Erika afastou-se da mesa, rumo à televisão, mas parou ao fim de dois passos quando lhe pareceu imprudente aproximar-se demasiado do ecrã.
- Enterra o bisturi no olho dele. No cérebro dele. Mata-o.
- Quem és tu? - perguntou ela.
-Mata-o. Enterra fundo e roda. Mata-o.
- Matar quem?
A Presença não respondeu.
Ela repetiu a pergunta.
No ecrã, do meio da neve, começou a formar-se um rosto pálido e ascético. Por momentos, ela pensou que deveria ser a cara de um espírito mas, quando ganhou fisionomia, ela reconheceu Victor, de olhos fechados
e feições descontraídas, como se fosse o semblante da sua morte.
- Mata-o.
- Ele criou-me.
- Para usar.
- Não posso.
- Tu és forte.
- Impossível
- Mata-o.
- Quem és tu?
- O mal - disse a voz, e ela soube que a Presença não falava de si, mas de Victor.
Se ela participasse daquela conversa, iria inevitavelmente ponderar trair Victor, mesmo que fosse apenas para discutir que era impossível levantar a mão contra ele. O mero acto de pensar em matar o criador
poderia acarretar a morte dela.
Cada pensamento cria uma assinatura eléctrica única no cérebro. Victor identificara as assinaturas que representavam o pensamento de empreender um acto violento contra ele.
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Implantado no cérebro de Erika - como nos cérebros de todos os membros da Nova Raça - estava um nanodispositivo programado para reconhecer a assinatura do pensamento de parricídio, de deicídio.
Se ela chegasse a pegar numa arma com a intenção de a usar contra Victor, esse espião dentro dela iria reconhecer de imediato essa intenção, e iria mergulhá-la de imediato num estado de paralisia de que
só Victor a poderia resgatar.
Se depois ele a deixasse viver, a vida dela seria um sofrimento pegado. Ele encheria os dias dela com castigos ricos em imaginação.
Por conseguinte, ela avança para o painel táctil Crestron em cima da mesa-de-cabeceira e usa-o para desligar a televisão. O plasma escurece.
Fica à espera, de comando na mão, que a televisão se ligue sozinha outra vez, mas esta continua desligada.
Ela não acredita em espíritos. Não pode acreditar. Tal crença é uma desobediência. A desobediência leva à execução.
É melhor que a misteriosa voz que a instara ao assassínio permaneça misteriosa. Buscar qualquer compreensão dela seria persegui-la por um penhasco abaixo, até à morte certa.
Quando se apercebeu de que estava a tremer de medo, Erika voltou à cadeira perto da mesa.
Começou a comer outra vez, mas agora o seu apetite já era do tipo nervoso. Comeu vorazmente, a tentar matar uma fome que a comida nunca poderia satisfazer: fome de sentido, fome de liberdade.
As tremuras dela - e o medo da morte que representavam - surpreenderam-na. Houvera alturas desde o seu "nascimento", seis semanas antes, em que ela considerara a morte algo desejável.
Agora não. Algo mudara. Enquanto ela estava distraída, aquela coisa emplumada, a esperança, entrara-lhe no coração.
Roy Pribeaux tinha armas.
Tirou-as do armário onde estavam guardadas em estojos próprios. Examinou-as afectuosamente, uma por uma, limpou-as e lubrificou-as conforme o necessário, preparando a sua utilização.
Ao longo da adolescência e já na casa dos vinte, ele adorara armas. Revólveres, pistolas, caçadeiras, espingardas - tinha uma colecção basilar de cada tipo de arma.
Pouco depois de fazer vinte anos, quando recebera a herança, comprara um Ford Explorer, carregara-o com as suas armas preferidas, e dera uma volta pelo Sul e Sudoeste.
Até então, só matara animais.
Não fora caçador. Nunca tivera porte de arma. Calcorrear o mato e o campo não era coisa que o atraísse. As suas presas eram animais domésticos e de lavoura.
Na estrada, aos vinte anos, apontara pela primeira vez a um alvo humano. Durante vários anos, não tivera cuidados e fora feliz.
Como tanta gente aos vinte anos, Roy fora idealista. Acreditara que podia fazer uma sociedade melhor, um mundo melhor.
Mesmo então, apercebera-se de que a vida só poderia ser tolerável com a existência da beleza. Beleza na natureza. Beleza na arquitectura e na arte e em objectos de fabrico humano. Beleza entre seres humanos.
Desde a infância que ele fora extraordinariamente atraente, e tivera consciência de que as pessoas se sentiam melhor só de o ver e de estar na sua companhia.
Tencionava fazer do mundo um lugar mais feliz eliminando gente feia sempre que se deparasse com ela. E deparava-se com ela em toda a parte.
Em dezoito estados até ao remoto Alabama a leste, ao distante Colorado a norte, ao longínquo Arizona a oeste e ao Texas afastado mais a sul, Roy viajou para matar. Destruiu a humanidade feia onde as circunstâncias
lhe assegurassem que poderia atacar sem risco de apreensão.
Empregou tal variedade de armas boas em tão vasta área geográfica que os muitos ajustes de contas nunca foram ligados ao trabalho de um único criminoso. Matou à distância com espingardas, a quarenta
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metros ou menos com caçadeiras de calibre 12 carregadas com chumbo grosso, e ao perto com revólveres ou pistolas, consoante mandasse a disposição.
Regra geral, preferia a intimidade das armas de mão, pois permitiam-lhe praticamente sempre chegar perto o bastante para explicar que não tinha nenhuma animosidade pessoal contra o alvo.
- Trata-se de uma questão estética - poderia ele dizer, ou:
- Há-de convir, tenho a certeza, de que morto é melhor do que feio. -Ou:
- Só estou a fazer a obra de Darwin para progredir com a beleza da espécie.
As caçadeiras eram empolgantes quando ele tinha tempo de recarregar e de as usar com proximidade crescente, num total de quatro ou seis cartuchos federais de 7 centímetros, os quais garantiam uma penetração
tremenda. Ele podia, não só, retirar a pessoa feia do património genético, mas também, com as balas federais, aniquilar a fealdade e deixar um cadáver tão destroçado que teria de haver um funeral de urna
fechada.
Naqueles anos de viagens e feitos, Roy tivera a satisfação de um objectivo nobre e um trabalho valoroso. Partira do princípio de que aquele seria o trabalho de uma vida, sem necessidade de aprender novas
competências nem de se reformar.
Com o tempo, porém, chegara relutantemente à conclusão de que havia tanta gente feia no mundo que o seu esforço não bastava, por si só, para assegurar gerações futuras mais bonitas. Aliás, quanto mais
gente matava, mais feio o mundo lhe parecia ficar.
A fealdade tem o ímpeto de uma onda gigante. É o braço direito da entropia. A resistência de um homem, porquanto admirável, não pode reverter as mais titânicas forças da natureza.
Por fim, regressou a Nova Orleães, para descansar e reconsiderar a sua missão. Comprara o prédio e remodelara o último andar para fazer um apartamento.
Começara a desconfiar que estivera ligado a demasiada gente feia durante tempo de mais. Embora os tivesse matado a todos, poupando à humanidade ter de os contemplar mais uma vez, talvez aquela fealdade
toda tivesse contaminado Roy de algum modo.
Pela primeira vez, o seu reflexo ao espelho inquietou-o. Para ser brutalmente sincero, tinha de admitir que ainda era lindo, que ainda estava certamente no décimo superior do mero um por cento de gente
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bonita do mundo inteiro, mas talvez já não fosse tão lindo quanto antes de partir no seu Explorer para salvar a espécie humana da fealdade.
Sendo uma pessoa determinada e concentrada no futuro, não se deixara desesperar. Desenvolvera um programa de dieta, exercício, suplementos nutricionais e meditação para recuperar o antigo esplendor.
Como qualquer espelho agora diria, ele triunfara. Era arrebatador.
Não obstante, costumava chamar a esses anos de remodelação os Anos Perdidos, pois enquanto se restaurava, não tivera tempo de matar ninguém. Nem razão para matar.
Roy era uma pessoa movida a objectivos com um profundo ensejo de dar o seu contributo à sociedade. Não matava por matar. Precisava de uma finalidade.
Quando tivera a ideia de colher e preservar as partes ideais da mulher perfeita, rejubilara por a sua vida ter outra vez sentido.
Com o tempo poderia doar anonimamente a colecção a um grande museu. Os académicos e críticos que eram paladinos da arte moderna reconheceriam logo o valor e a excelência da sua mulher em montagem.
Primeiro teria de encontrar essa fêmea viva e fugaz que fosse perfeita em todos os aspectos e que estava destinada a ser sua companheira. Até então, precisaria da colecção para a poder compor, peça por
peça, e comparar a sua amada com todas aqueles pedaços de perfeição, para ter a certeza de que ela ombreava em todos os aspectos com o seu elevadíssimo padrão.
Não havia dúvida de que aquela Vénus tão desejada não tardaria a cruzar-se com ele - outra razão para não poder tolerar a intrusão do assassino imitador na sua vida. O facto de aquele pobre coitado ter
imitações de Tupperware foleiras e rascas só provava que a sua apreciação da beleza em todas as coisas ficava tão aquém que jamais poderia haver amizade entre ele e Roy.
Agora, nos preparativos para a próxima visita do imitador, Roy carrega várias pistolas e revólveres. E esconde uma arma em cada zona do seu apartamento espaçoso.
Na casa de banho, uma Browning Hi-Power de 9 mm, na gaveta onde guarda os perfumes.
Debaixo de uma almofada em cima da cama, uma Smith & Wesson Chiefs Special, um dos melhores revólveres pequenos de calibre 30 jamais fabricados.
Debaixo de um coxim no sofá da sala, uma Glock Modelo 23 carregada com munições Smith & Wesson de calibre 40.
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Escondido em dois sítios, entre a parafernália de máquinas de ginásio, ficou um par de SIG P2A5.
Na cozinha, Roy colocou uma Springfield Trophy Match 1911-AI na caixa do pão, junto a um pão baixo em gordura com sete cereais e passas.
Quando Roy fechou a tampa da caixa do pão e se virou, estava um estranho enorme na cozinha com ele, um tipo de cara corada e curtida com olhos azuis malvados.
Roy não sabia como é que o intruso entrara e se mexera sem ruído algum, mas devia ser o imitador. O tipo não era agressivamente feio, mas também não era nada bonito, apenas comum, pelo que não haveria
hipótese alguma de amizade entre ele e Roy.
A expressão feroz na cara do imitador indicava que ele também não estava interessado em amizades. Talvez Roy se tivesse enganado ao pensar que o imitador lá tinha ido, da primeira vez, pela admiração que
nutria por ele.
Reparou que o intruso tinha luvas de borracha cirúrgicas. Não era bom sinal.
Apercebendo-se de que não se poderia virar para a caixa do pão e sacar rapidamente da pistola para a usar, Roy atacou o adversário com toda a confiança, recorrendo ao que aprendera em quatro anos de treino
de Tae Kwon Do.
Embora o imitador não parecesse estar em boa forma como Roy, revelou-se rápido e forte. Conseguiu não só amparar os golpes como também agarrar na mão direita de Roy, dobrá-la para trás e partir-lhe o pulso
como se fosse um ramo seco.
A dor assolou Roy Pribeaux. Não se dava bem com a dor. A sua vida fora misericordiosamente isenta dela. O choque do pulso partido tirou-lhe o fôlego de tal modo que a tentativa de gritar produziu apenas
um silvo.
Inacreditavelmente, o imitador agarrou-o pela camisa e pela braguilha das calças, levantou-o acima da cabeça como se ele não pesasse mais do que uma criança, e atirou-o contra a beira do balcão da cozinha.
Mais alto do que o silvo do grito, ouviu-se o barulho da espinha dele a partir-se.
O imitador soltou-o. Roy deslizou pelo balcão e tombou no chão.
A dor parara. Pareceu-lhe positivo, até se aperceber de que não sentia nada abaixo do pescoço.
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Tentou mexer a mão esquerda. Não conseguiu. Paralisado.
A olhar furibundo para ele, o imitador disse:
- Não preciso de te abrir e ver por dentro. Não tens do que eu ando à procura. És completamente negro por dentro, e eu preciso da outra coisa.
O negrume chamava Roy, e ele entregou-se-lhe.
Jonathan Harker, nado e criado nas Mãos da Misericórdia, ingressara na Divisão de Polícia de Nova Orleães dezasseis anos antes.
Todos os documentos a consolidarem a sua identidade e o seu histórico profissional haviam sido impecavelmente falsificados. Segundo esses registos, ele fora polícia em Atlanta, Geórgia.
Outros membros da Nova Raça, já infiltrados na divisão, haviam falsificado os contactos com agentes de Atlanta, facilitando assim o ingresso dele. Mais tarde, tinham-lhe aberto o caminho para a Brigada
de Homicídios da NOPD.
Ele fora um bom filho para o seu Pai, dedicado e obediente... Até um ano antes. Perdera o norte. Os preparativos para a guerra contra a humanidade, ainda a uma década de distância, no mínimo, já não o
entusiasmavam nem lhe interessavam.
Durante vários anos sentira-se... incompleto. Naqueles doze meses, aquela sensação amadurecera num vazio terrível, um vácuo frio e escancarado mesmo no meio do seu ser.
Reconhecia na humanidade uma vontade de viver, uma alegria, que ele não tinha. Ansiava por saber como é que essa característica despertava nela.
Todo e qualquer pormenor da sua concepção física e mental fora carregado directamente no cérebro quando Jonathan estivera no tanque de criação, para que ele pudesse sempre admirar devidamente Victor, o
seu criador. Assim, ocorrera-lhe que, ao estudar a fisiologia humana e ao compará-la com a sua, saberia identificar aquilo que a Velha Raça tinha que lhe faltava a ele, talvez uma glândula que segregasse
uma hormona ou uma enzima necessária para a felicidade.
Começou por estudar a biologia humana. Por devorar compêndios médicos.
Em vez de descobrir maior complexidade nos seus corpos, encontrou uma simplicidade comparada. Não lhe faltava nada que eles tivessem; antes pelo contrário, pareciam menos bem preparados para a durabilidade
do que ele, com um segundo coração e outros sistemas redundantes.
Por fim, chegou à convicção de que eles tinham mesmo alguma glândula ou algum órgão que lhes permitia a possibilidade de serem felizes, mas que eles próprios ainda não tinham descoberto nem identificado
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como tal. Por conseguinte, ele não o poderia encontrar num manual de medicina.
Como a Nova Raça saía dos tanques de criação programada com fé na sua superioridade relativamente aos seres humanos vulgares, Jonathan não duvidava que, com mais instrução, poderia encontrar o que escapara
aos fisiólogos da Velha Raça. Se cortasse e abrisse e procurasse nas entranhas de exemplares suficientes, conseguiria - graças à sua mente mais perspicaz e ao seu olhar mais penetrante - encontrar a glândula
da felicidade.
Quando apareceu um assassino em série naquela conjuntura, Jonathan reconheceu a oportunidade. Poderia prosseguir as suas próprias dissecções com cautela e acabaria por fazer com que as atribuíssem ao assassino.
Usara clorofórmio numa das primeiras duas vítimas precisamente nesse sentido.
A investigar nas costas de O'Connor e Maddison, Jonathan trabalhava no caso do Cirurgião vinte e quatro horas por dia, sem dormir. Tinha um entendimento bizarro e intuitivo da psicologia do assassino e
sentira desde logo que a sua presa embarcara numa demanda de felicidade semelhante à sua. Por esse motivo, encontrara Roy Pribeaux a tempo de o ver cortejar e matar a rapariga do algodão doce.
Jonathan poderia ter deixado Pribeaux continuar indefinidamente, se as suas próprias circunstâncias não se tivessem alterado. Estava a acontecer-lhe algo que prometia a realização por que ele há tanto
ansiava.
Não aprendera nada ao remexer nos primeiros dois objectos. E aquilo que ele fizera a Bobby Allwine não fora parte das suas investigações, apenas um acto de misericórdia. Bobby queria morrer e, dada a injunção
programada pelo Pai contra assassínio ter-se avariado em Jonathan, ele conseguira fazer a vontade ao amigo.
Todavia, e embora nada tivesse descoberto para acrescentar aos seus conhecimentos sobre a fonte da felicidade humana, Jonathan começara a mudar de maneira assombrosa. Sentia movimento dentro de si. Várias
vezes vira algo dentro de si, algo vivo, como se ansiasse por sair.
Desconfiava que estava a ultrapassar outra das restrições essenciais que o Pai impusera à Nova Raça. Jonathan acreditava que não tardaria a reproduzir-se.
Por conseguinte, precisava de concluir o assunto com Pribeaux, atribuir-lhe todos os crimes até à data, e preparar-se para a glória que estaria para vir.
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Tencionava efectuar apenas mais uma dissecção, acentuadamente mais complexa do que as anteriores. Ver-se-ia livre do objecto final de tal modo que, quando lhe encontrassem o corpo, muito depois do acto,
também ele poderia ser imputado a Roy Pribeaux.
Enquanto Pribeaux jazia paralisado e inconsciente no chão da cozinha, Jonathan Harker tirou um pente do bolso da camisa. Comprara--o ao princípio do dia mas não o usara.
Passou-o pelo cabelo grosso do assassino. Ficaram várias mechas soltas presas aos dentes de plástico.
Guardou o pente e os cabelos num envelope que levara para o efeito. Provas.
Pribeaux recobrara a consciência.
- Quem... Quem é você?
- Quer morrer? - perguntou Jonathan.
Os olhos de Pribeaux ficaram cheios de lágrimas.
- Não. Por favor, não.
- Quer viver mesmo paralisado para toda a vida?
- Sim. Sim, por favor. Tenho muito dinheiro. Posso ter os melhores cuidados e reabilitação. Ajude-me a ver-me livre do que... do que está nas arcas, tudo o que seja incriminatório, deixe-me viver,
e farei de si um homem rico.
A Nova Raça não ficava motivada por dinheiro. Jonathan fingiu o contrário.
- Eu conheço a extensão dos seus recursos. Talvez possamos chegar a acordo.
- Sim, podemos. Eu sei que podemos - disse Pribeaux em voz fraca, mas ansiosa.
- Mas neste momento - atalhou Jonathan - quero que fique sossegado. Tenho trabalho a fazer, e não quero ouvi-lo carpir. Se ficar calado, chegaremos a acordo mais tarde. Se falar, uma vez que seja,
mato-o. Compreende?
Quando Pribeaux quis assentir, não conseguiu.
- Muito bem - disse Jonathan. - Estamos na mesma onda.
Pribeaux sangrava do pulso aberto, mas lenta e regularmente, não a jorrar e a salpicar.
Com um conta-gotas novo que comprara na mesma drogaria onde adquirira o pente, Jonathan sugou o sangue da poça que se avolumava no chão. Transferiu alguns centímetros cúbicos de cada vez para um frasquinho
que também levara consigo.
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Os olhos de Pribeaux seguiam-no para todo o lado. Estavam húmidos de autocomiseração, cintilantes de curiosidade, arregalados de terror.
Depois de encher o frasquinho, Jonathan rolhou-o e guardou-o no bolso do blusão. Embrulhou o conta-gotas ensanguentado num lenço e também o guardou.
Revistou rapidamente as gavetas da cozinha até encontrar um saco de plástico branco para o lixo e alguns elásticos.
Enfiou o saco pelo braço esquerdo ferido de Pribeaux e prendeu-o bem acima do cotovelo com dois elásticos. Assim poderia deslocar o homem sem deixar um rasto de sangue.
Sem esforço algum, Jonathan pegou em Pribeaux e pousou-o no chão perto da pequena sala de jantar, fora do caminho.
Limpou o sangue dos mosaicos brancos. Felizmente, Pribeaux selara o ralo tão bem que o sangue não se escoava por lá.
Depois de ter a certeza de não haver uma única gota ou mancha de sangue, e de não haver mais provas de violência na cozinha, meteu o papel absorvente e outro material de limpeza noutro saco de lixo, deu
um nó e prendeu-o no cinto das calças.
Foi à secretária da sala ligar o computador. Seleccionou um programa do menu e escreveu umas linhas que, depois de aturada reflexão, redigira anteriormente.
Jonathan deixou o computador ligado e foi à porta da rua, abriu-a e saiu para o patamar espaçoso, no cimo das escadas que davam para o apartamento de Pribeaux. Ficou um momento à escuta.
As empresas do primeiro andar tinham fechado há horas. Parecia que Pribeaux não tinha amigos nem visitas. Uma profunda imobilidade derramava-se pelo edifício.
*** V t"
Novamente no apartamento, Jonathan pegou em Pribeaux e levou-o ao colo como se ele fosse uma criança, até ao patamar.
Além da escada, havia um monta-cargas que datava da construção do prédio. Com o cotovelo, Jonathan carregou no botão para chamar o elevador.
Os olhos de Pribeaux perscrutavam o rosto de Jonathan, a tentarem desesperadamente ler as intenções deste.
Dentro do elevador, ainda com o homem paralisado ao colo, Jonathan carregou no número 3 do painel de controlo.
No telhado plano do anterior armazém havia estruturas de armazenamento que precisavam do monta-cargas.
186
Quando Pribeaux se apercebeu de que iam para o telhado, empalideceu ainda mais, e o terror nos seus olhos atingiu um frenesim. Sabia agora que não haveria acordo algum para lhe salvar a vida.
- Você ainda sente dor na cara, no pescoço - avisou Jonathan. - Vou causar-lhe a dor mais horrenda que pode imaginar quando o cegar. Compreende?
Pribeaux pestanejou rapidamente, abriu a boca, mas não se atreveu a dizer palavra, nem sequer de submissão.
- Dores lancinantes - prometeu Jonathan. - Porém, se ficar calado e não me der problemas, terá uma morte rápida.
O elevador chegou ao topo do prédio.
Apenas a luz cor-de-laranja da Lua acabada de surgir iluminava o telhado, mas Jonathan via muito bem. Levou o assassino para o parapeito de protecção, um metro mais acima.
Pribeaux começara a choramingar, mas não tão alto que granjeasse a dor insuportável que lhe fora prometida. Parecia uma criancinha, perdida e muito triste.
A viela de piso empedrado atrás do armazém ficava doze metros mais abaixo, e estava deserta àquela hora.
Jonathan deixou Pribeaux cair do telhado. O assassino gritou, mas nem alto nem por muito tempo.
Considerando já o desesperante estado físico antes de ser largado, Pribeaux não tinha hipótese alguma de sobreviver à queda. O ruído do embate no chão era uma lição sobre a fragilidade do esqueleto humano.
Jonathan deixou o elevador no telhado e desceu a escada até ao rés-do-chão. Foi até ao carro, que estacionara a três quarteirões de distância.
Pelo caminho, desfez-se do saco de lixo cheio de papéis sanguinolentos num caixote que estava convenientemente a jeito.
No carro, pegou num telemóvel que horas antes tirara a um traficante de droga perto do Bairro Francês. Ligou para o número nacional de emergência, disfarçou a voz, e fingiu ser um agarrado que, a chutar--se
num beco, vira um homem a saltar do telhado de um armazém.
Chamada concluída, Jonathan atirou o telemóvel pela janela do carro.
Ainda tinha as luvas de borracha calçadas. Tirou-as já a conduzir.
o elevador é como um exercício de palavras cruzadas, a descer para a cave das Mãos da Misericórdia.
Randal Seis virou à esquerda no corredor do segundo andar e entrou no elevador ao oitavo passo que deu; logo, a letra que aquele quadrado tem - e a partir da qual ele tem de continuar quando chegar ao
piso de baixo - é o a.
Quando a porta se abre, ele diz:
- Avante - e os seus passos soletram v-a-n-t-e rumo ao corredor.
Uma vida de maior mobilidade está a revelar-se mais fácil de viver do que ele esperava. Ainda não está pronto a conduzir um bólide de Fórmula 1, e poderá nunca estar preparado para um passeio vagaroso
no mundo além daquelas paredes, mas está a lograr progressos.
Há muitos anos, o Pai levou a cabo algumas das suas experiências mais revolucionárias naquele piso de baixo do hospital. Os boatos do que ele criara ali, os quais Randal ouvira mais acima, eram muitos
e perturbadores.
Parece que houve uma batalha naquele piso. Uma parte do muro do corredor ruiu, como se alguma coisa tivesse embatido contra ela, saída de uma das salas.
A direita do elevador, metade da passagem está ocupada por pilhas de entulho organizadas: blocos de cimento partidos, cofragens retorcidas em emaranhados de ferrugem, montes de estuque, umbrais de portas
de aço dobrados em formas peculiares, as próprias portas de aço imponentes vergadas ao meio...
Segundo a lenda que corria nas Mãos da Misericórdia, algo correra tão mal ali em baixo que o Pai sempre quisera manter essa recordação bem clara na sua mente e, como tal, não mandara fazer reparações e
deixara o entulho, em vez de o mandar levar dali. Dezenas de membros da Nova Raça haviam ali perecido numa tentativa de conter... algo.
Como o Pai entra e sai das Mãos da Misericórdia por aquele piso, é regularmente confrontado com as provas da terrível crise que, aparentemente, quase levou à destruição do trabalho da sua vida. Há quem
se atreva a especular que o Pai quase morreu ali, embora repetir tal ideia seja praticamente blasfémia.
Randal Seis vira costas ao entulho e usa a última letra em avante para escrever determinação, numa direcção nova. Com uma série de
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passos laterais que soletram pequenas palavras, alternando com passos em frente que soletram palavras maiores, ele chega à porta ao fim do corredor, a qual não está trancada.
Mais além fica uma arrecadação com filas de armários onde se guardam cópias em papel dos registos informáticos do projecto.
Directamente em frente à primeira porta está outra, a qual estará fechada. É por ela que o Pai entra e sai da Misericórdia.
Randal Seis navega no chão de mosaico daquela sala fazendo palavras cruzadas e, por fim, fica num esconderijo entre filas de armários, perto da segunda porta, mas fora da vista.
Agora tem de esperar.
57.
Do Luxe, Carson foi à esquadra, sentou-se à secretária em frente ao computador e abriu o motor de busca da Web.
Não havia turno da noite nos Homicídios. Os detectives trabalhavam quando a investigação ditava, de noite ou de dia, mas havia tendência para não estarem dentro de portas quando o dia terminava, de serviço
mas não sentados pela madrugada dentro. Naquele momento, embora ainda a noite não fosse adiantada, ela estava sozinha sentada, no canto dos que andavam atrás de cadáveres.
Abalada com o que Deucalião lhe contara, Carson não sabia bem em que acreditar. Achava surpreendentemente difícil descrer de qualquer parte da história dele, independentemente do facto de ser fantástica
ao ponto da insânia.
Precisava de recolher informações sobre Victor Hélios. Com a Web, poderia deslindar uma biografia com mais facilidade do que nos tempos em que uma busca de dados tinha de se fazer a pé ou através de agentes
cooperantes noutras jurisdições.
Introduziu a expressão de pesquisa. Em segundos, deparou-se com dezenas de correspondências. Hélios, o visionário fundador da Biovi-sion. Hélios, o figurão da política e da sociedade de Nova Orleães. Hélios,
o filantropo.
A princípio, parecia que ela tinha muito material, mas não tardou a descobrir que, por mais riqueza e contactos que tivesse, Hélios não nadava propriamente nas águas da sociedade de Nova Orleães, pois
só lhes aflorava a superfície.
Na cidade há quase vinte anos, fizera a diferença na comunidade, mas com o mínimo de exposição pública. Havia muitas pessoas na sociedade local a conseguir mais tempo de antena; comparados com Hélios,
eram omnipresentes.
Mais, quando Carson tentou fundamentar os poucos factos do passado de Hélios antes de Nova Orleães, estes pareciam volutas de bruma a evaporarem-se.
Andara na universidade "na Europa", mas não se dizia nada mais específico sobre a sua alma mater.
Embora a sua fortuna tivesse sido herdada, não havia menção alguma ao nome dos pais.
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Dizia-se que aumentara grandemente essa fortuna, com vários golpes financeiros durante a explosão da Internet. Não havia pormenores sobre isso.
As referências a "uma infância passada na Nova Inglaterra" nunca incluíam o estado em que ele fora nado e criado.
Havia uma coisa nas fotografias disponíveis que intrigava Carson. No primeiro ano que passara em Nova Orleães, Victor era bem-parecido, quase encantador, e parecia ter trinta e muitos anos. Nas fotografias
mais recentes, pouco mais velho parecia.
Adoptara um penteado que lhe ficava melhor - mas não tinha menos cabelo do que antes. Caso tivesse havido cirurgia plástica, o médico fora particularmente talentoso.
Oito anos antes voltara de um sítio não especificado na Nova Inglaterra com uma noiva que parecia não ter mais de vinte e cinco anos. Chamava-se Erika, mas Carson não encontrou menção ao apelido de solteira.
Erika teria agora trinta e três anos. Nas fotografias mais recentes, não parecia nem mais um dia do que naquelas tiradas oito anos antes.
Havia mulheres com a sorte de manterem o aspecto dos vinte anos até terem quarenta. Talvez Erika fosse uma delas.
Não obstante, a capacidade de tanto ela como o marido desafiarem o passar do tempo parecia notável. Se não mesmo insólita.
- Apanharam-no, O'Connor.
Assustada, ela tirou os olhos do computador e viu Tom Bowmaine, o graduado de serviço, à porta do corredor, do lado oposto ao recinto dos Homicídios.
- Apanharam o Cirurgião - continuou Tom. - Morto. Atirou-se de um prédio abaixo.
Um dos quarteirões da viela estava isolado para preservar o máximo de provas possível para a equipa da Patologia. O mesmo se passava no telhado do prédio e no monta-cargas.
Carson subiu as escadas até ao apartamento de Roy Pribeaux. O agente que estava à porta conhecia-a e deixou-a entrar.
Quase esperava encontrar Harker ou Frye, ou os dois. Não se via nenhum. Outro detective, Emery Framboise, estivera na zona e recebera a chamada.
Carson gostava de Emery. Ao vê-lo não sentia os pelinhos da nuca todos eriçados.
Ele era jovem - trinta e quatro anos - e vestia-se da maneira que os detectives mais velhos costumavam andar, antes de decidirem que mais pareciam cópias do estilo sulista nos anos 50. Fatos de linho às
riscas brancas e azuis, camisas brancas de rayon, gravatas fininhas, um chapéu de palha enterrado na cabeça.
De algum modo, ele fazia com que aquele estilo retro parecesse moderno, talvez porque ele próprio era, de resto, de uma sensibilidade completamente moderna.
Carson ficou admirada por ver Kathy Burke, amiga e psiquiatra, com Emery na cozinha. Kathy prestava principalmente sessões de terapia obrigatórias a agentes envolvidos em tiroteios e outras situações traumáticas,
embora também elaborasse perfis psicológicos de criminosos fugidios como o Cirurgião. Raramente ia aos locais do crime, pelo menos nunca tão cedo na investigação.
Kathy e Emery observavam dois técnicos da Patologia a descarregarem o recheio de uma das duas arcas congeladoras. Caixas da Tupper-ware.
Quando Carson se juntou a Kathy e Emery, um dos técnicos estava a ler o rótulo na tampa de uma das caixas.
- Mão esquerda.
Ela teria compreendido a essência da situação mesmo sem ouvir aquelas duas palavras, porque a tampa levantada da segunda arca revelava o cadáver sem olhos de uma jovem mulher.
- Porque é que não estás enxcasa a ler sobre heroínas-espadachins e dragões alados? - perguntou Carson.
192
- Há outro tipo de dragão morto na viela - respondeu Kathy. - Quis ver-lhe o antro para saber se o perfil que fiz dele se coaduna.
- Mão direita - dizia um técnico, e tirou uma caixa de dentro da arca.
Emery Framboise disse:
- Carson, parece que acabaram de te poupar um monte de trabalho.
- Calculo que não tenha sido acidente que ele tenha caído do telhado?
- Suicídio. Deixou bilhete. Provavelmente soube que tu e o Michael lhe estavam na peugada, e achou que já estava mais do que morto.
- Os sociopatas homicidas cometem suicídio? - inquiriu Carson.
- Raramente - respondeu Kathy. - Mas não é inédito.
- Orelhas - dizia um dos técnicos, a tirar uma caixa pequena da arca, e o parceiro leu o rótulo de outra:
- Lábios.
- Desiludi a minha mãe - comentou Emery. - Ela queria que eu fosse piloto comercial como o meu pai. Em alturas como esta, creio que talvez me desse melhor lá em cima na noite, onde o céu é limpo,
a voar de São Francisco para Tóquio.
- Pois - disse Carson -, mas quando é que um piloto comercial vai ter histórias como esta para contar aos netos quando os puser a dormir? Onde está o bilhete de suicídio?
Kathy disse:
- Eu mostro-te.
Na sala, havia um computador numa secretária de canto. As letras brancas num campo azul exibiam uma despedida peculiar:
Matei o que queria. Tirei o que precisava. Agora parto quando quero, como quero, e vou para onde quero - um nível abaixo do Inferno.
- O tom provocador é típico de um sociopata - observou Kathy. - A sugestão de que ele ganhou um lugar principesco no Inferno também não é única mas, geralmente, se ele estivesse a realizar uma fantasia
satânica, encontraríamos literatura do oculto, cartazes. Ainda não vimos nada disso.
193
Carson não estava a dar muita atenção, gelada com a sensação de déjà vu, de ter visto aquela mensagem antes; olhava para o ecrã, leu as palavras duas, três vezes, quatro.
Enquanto lia, tirou uma luva de borracha do bolso do casaco, enfiou-a na mão direita, e depois introduziu o comando para imprimir no teclado.
- Houve uma altura - dizia Kathy - em que, se o bilhete de suicídio não fosse escrito à mão, seria suspeito. Mas hoje em dia eles costumam usar o computador. Há casos em que até mandam aos amigos
e parentes mensagens de correio electrónico, antes mesmo de se suicidarem. O progresso.
Carson tirou a luva, esperou impacientemente que a impressora acabasse de trabalhar, e perguntou:
- Lá em baixo na viela, o que resta da cara dele chega para uma boa fotografia?
- Não - respondeu Kathy. - Mas o quarto dele está cheio delas.
E se estava. Nas duas mesas-de-cabeceira e na cómoda havia uma dúzia ou mais de fotografias de Roy Pribeaux, a maioria tiradas por fotógrafos profissionais, cada qual na sua moldura cara e prateada.
- Não parece que lhe faltasse amor-próprio - comentou Kathy secamente.
Jenna Parker, de vinte e cinco anos, vivia para se divertir. Parecia que a convidavam para uma festa em cada noite da semana.
Naquela noite, era óbvio que ela tomara qualquer coisa, a preparar-se para uma farra tardia, pois quando saiu de casa, já ia alegre e a cantar desafinadamente.
Com ou sem droga, Jenna estava sempre contente, a caminhar ao sol mesmo quando o dia só prometia chuva.
Naquela noite de céu limpo, parecia que ela flutuava um centímetro acima do chão, quando tentou trancar a porta de casa. Parecia que a relação correcta entre uma chave e a sua fechadura a ultrapassava,
e ela riu-se quando, três vezes seguidas, chumbou a simples prova da inserção.
Talvez não estivesse apenas alegre, talvez estivesse completamente pedrada.
Conseguiu à quarta tentativa, e a tranca fechou-se com um estalido sólido.
- Sheryl Crow - disse Jonathan Harker à porta da sua casa, do outro lado do corredor, em frente à dela.
Ela virou-se, só agora o vira, e brindou-o com um sorriso radioso.
- Johnny!
- Pareces a Sheryl Crow quando cantas.
- Ai pareço?
- E eu ia mentir?
- Depende do que quiseres - retrucou ela timidamente.
- Ora, Jen, alguma vez me fiz a ti?
- Não. Mas farás.
- Quando é que será isso?
- Mais tarde. Mais cedo. Talvez agora.
Ela já fora a casa dele duas vezes para comer massa, e ele fora a casa dela para jantar algo que ela encomendara, pois nem sequer sabia fazer massa. Tinham sido estritamente jantares entre vizinhos.
Ele não queria sexo de Jenna Parker. Ele queria saber dela o segredo da felicidade.
- Já te disse - fazes-me lembrar a minha irmã.
- Irmã. Pois sim.
- Seja como for, tenho quase idade para ser teu pai.
195
- E alguma vez isso interessou aos homens?
- Nem todos somos porcos - disse ele.
- Oh. Desculpa, Johnny. Credo, não queria parecer... mazinha. É que estou tão nas nuvens por dentro que nem sempre venho cá abaixo onde as palavras saem.
- Já reparei. Mas porque é que consomes droga? És feliz quando estás sóbria. Estás sempre feliz.
Ela sorriu, foi ter com ele, e deu-lhe um beliscão afectuoso na bochecha.
- Tens razão. Adoro viver. Estou sempre feliz. Mas não é crime querer estar ainda mais feliz de vez em quando.
- Aliás - disse ele -, se eu estivesse nos Costumes em vez dos Homicídios, talvez tivesse de considerar isso crime.
- Tu não me irias prender, Johnny. Provavelmente nem mesmo se eu matasse alguém.
- Provavelmente não - concordou ele, e borrifou-lhe a boca e o nariz com clorofórmio.
A exclamação de surpresa dela fez o que um golpe na parte de trás dos joelhos teria feito: derrubou-a. Espumou, arquejou e desmaiou.
Ele tirara o frasquinho de plástico do apartamento de Roy Pribeaux. Era um de três que ele lá encontrara.
Mais tarde deixaria o frasco com o cadáver dela. Passariam meses até o descobrirem, pelo que o estado dele não permitiria à Patologia datar a morte dela após a de Pribeaux. O frasco seria uma de várias
provas a identificá-la como a derradeira vítima.
Agora Jonathan pegava-lhe ao colo sem esforço, levava-a para o seu apartamento, e dava um pontapé na porta para a fechar.
Dos quatro apartamentos no quarto andar, havia um vago. Paul Miller, do 4-C, estava fora numa conferência de vendas em Dallas. Apenas Jonathan e Jenna ali estavam. Ninguém poderia ser testemunha da agressão
e do rapto.
Ninguém daria por falta de Jenna durante um dia ou dois. Nessa altura, ele tê-la-ia aberto de cima a baixo, teria encontrado o que ela tinha de especial, e ter-se-ia visto livre do corpo.
Ele tomava estas precauções todas não porque receasse ser preso, mas sim porque temia que o Pai o identificasse como sendo o renegado.
No quarto, Jonathan empurrara a cama para um canto. Empilhara o resto da mobília em cima dela a fim de arranjar espaço para a mesa de autópsia que preparara para ela.
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O chão estava tapado com plásticos. Nas duas pontas da mesa, havia candeeiros com uma luz potente para revelar a fonte da felicidade dela, quer estivesse num emaranhado de intestinos, quer embutida no
cerebelo.
Pousou-a na mesa e reparou que ela sangrava de uma narina. Partira o nariz quando caíra no chão. A hemorragia não era grave. Ela não morreria de um nariz partido.
Jonathan tomou-lhe o pulso. Regular.
Ficou aliviado. Ralara-se que ela tivesse inalado demasiado clorofórmio, que tivesse sofrido uma sufocação química ou um choque anafiláctico.
Queria que ela estivesse viva durante a intervenção. Parte desta exigia que ela estivesse acordada e reactiva.
Na cave da Misericórdia, escondido atrás de uma fila de armários, Randal Seis ouve barulho além das paredes do seu mundo: primeiro, o som cavo de uma porta a fechar-se noutra sala.
Segundo o que Randal ouviu enquanto esteve aparentemente perdido no seu autismo, somente o Pai entra e sai pela porta exterior daquela sala. Agora, depois de um jantar tardio, como acontece amiúde, o Pai
deve estar de volta com a intenção de trabalhar noite fora.
Agachado no fim da fila de armários, Randal inclina a cabeça para um lado e põe-se à escuta. Após um momento, ouve os tons dos números a serem introduzidos no teclado da tranca eléctrica, do outro lado
da sala dos arquivos.
Os dez tons que representam números - de zero a nove - nos teclados de telefones, sistemas de segurança, trancas eléctricas, e outros, são universais. Não variam de um fabricante para outro.
Ele aprendeu isto numa página Web educativa mantida por uma das maiores operadoras de comunicações do país. Depois de descarregar os tons nos preparativos desta odisseia, reproduziu-os centenas de vezes
até saber identificar sem falha qualquer código pelos tons que o compõem.
Como a porta da sala dos arquivos é um obstáculo, os tons estão abafados. Se não tivesse a audição melhorada da Nova Raça, Randal talvez não conseguisse identificar o código: 368284.
Um ronronar suave indica que o circuito que prende a tranca se abriu.
Embora a porta não esteja no campo de visão de Randal, as dobradiças a ranger sugerem que o Pai a abriu. Os passos nos mosaicos de vinilo indicam que o Pai entrou na sala dos arquivos.
Fora da vista do corredor principal, Randal pergunta-se, de súbito, até que ponto terá o Pai sentidos mais apurados, se os tiver - e suspende a respiração, não vá a mais leve exalação revelar a sua presença.
Sem hesitar, os passos do Pai atravessam a sala.
A porta exterior fecha-se atrás dele, e o ronronar da tranca corrida interrompe-se com o estalido duro do ferrolho.
A porta interior abre-se, fecha-se, e o Pai já entrou no corredor da cave, onde as pilhas de entulho lhe fazem lembrar um dia mau nas profundezas da Misericórdia.
A paciência é uma virtude que Randal possui ao extremo. Não sai imediatamente do esconderijo, antes espera uns minutos até o Pai estar certamente noutro piso, sem poder ouvir nada.
Um quadrado de vinilo atrás do outro, ele vai soletrando até à porta exterior. Ali, tal como na outra ponta, há um teclado numérico. Ele introduz o código: 368284.
A tranca eléctrica abre-se. Ele põe a mão na porta mas não encontra coragem para a abrir.
Mais além, não há Misericórdia. Tudo é novo e cheio de escolhas atordoantes.
Demora-se tanto que a tranca eléctrica torna a correr.
Introduz o código no teclado. A tranca abre-se: ronrom.
Ele manda a si próprio abrir a porta. Não consegue.
A tranca torna a fechar-se.
A tremer, está especado à porta, aterrorizado por ter de passar por ela, mas também aterrorizado por ficar deste lado.
Na sua mente torturada surge a recordação da fotografia no jornal: Arnie O'Connor, autista mas sorridente. Arnie é claramente mais feliz do que Randal jamais foi ou jamais será.
Uma sensação de injustiça amarga e cáustica invade Randal. Esta emoção é tão intensa que ele receia dissolver-se de dentro para fora, se não fizer algo a fim de garantir para si a felicidade de que Arnie
O'Connor desfruta.
O fedelho. O vermezinho odioso, a guardar egoisticamente o segredo da felicidade. Que direito tem ele de ser feliz quando um filho do Pai, superior em todos os aspectos, vive na desgraça, mais do que na
Misericórdia?
Torna a introduzir o código. Ronrom.
Empurra a porta. Esta abre-se.
Randal Seis soletra-se a si próprio além do umbral, para fora da Misericórdia, rumo ao desconhecido.
Carson ouviu música típica de filmes de terror através da porta. Tocou à campainha, e tocou outra vez antes que a primeira série de toques terminasse propriamente de ecoar pelo apartamento fora.
De camisola interior, calças de ganga e peúgas, Michael apareceu à porta. Despenteado. Cara inchada. Olhos pesados do sono que não conseguira afugentar por completo. Devia ter adormecido na grande espreguiçadeira
de napa verde.
Estava amoroso.
Carson desejou que ele fosse desmazelado. Ou badalhoco. Ou taradinho. Era só o que lhe faltava, sentir-se atraída fisicamente por um colega.
Antes pelo contrário, ele estava fofo como um ursinho de peluche. Pior, só de o ver, ela sentia-se toda quentinha e contentinha, cheia de afecto mas com um toque de desejo.
Merda.
- Ainda são só dez horas - disse ela, e entrou à frente dele pelo apartamento adentro - e tu estás a dormir à frente da televisão. O que são essas migalhas cor-de-laranja na camisola? Cheez Doodlesl
- Exactamente - disse ele, e foi atrás dela para a sala. - Cheez Doo-dles. És mesmo detective.
- Posso depreender que estejas sóbrio?
- Népias. Bebi duas colas light.
Ele bocejou, espreguiçou-se, esfregou os olhos com as costas do punho. Estava de se comer.
Carson tentou desviar essa ideia. Apontou para a espreguiçadeira enorme e disse:
- É a cadeira mais feia que eu já vi. Parece um fungo apanhado numa latrina do Inferno.
- Pois, mas é o meu fungo do Inferno, e eu adoro-o.
Apontando para a televisão, ela perguntou:
- Invasão dos Mortos-Vivos?
- O primeiro remake.
- Já viste para aí quê? Dez vezes?
- Talvez doze.
- No que toca ao glamour - disse ela -, tu és o Cary Grant da tua geração.
200
Ele sorriu-lhe. Ela sabia porquê. Aquela rabugice dela não o iludia. Ele sentia o efeito que exercia nela.
Carson virou-lhe costas quando se sentiu corar, pegou no telecomando e desligou a televisão.
- O caso está a desfazer-se. Temos de nos mexer.
- A desfazer-se?
- Um gajo atirou-se do telhado e transformou-se em papa num beco, e deixou uma arca frigorífica cheia de bocados de gente. Dizem que é o Cirurgião. Talvez seja - mas não as matou a todas.
Sentado na beira da espreguiçadeira, a apertar os atacadores, Michael perguntou:
- O quê, ele tem um comparsa ou um imitador?
- Pois. Um ou outro. Descartámos essa ideia com demasiada facilidade.
- Vou buscar uma camisa lavada e um casaco - disse ele.
- E, se calhar, tira a camisola dos Cheez Doodles, de caminho.
- Com certeza. Quero lá envergonhar-te na frente de alguma escumalha criminosa - disse ele, e despiu a camisola já a sair da sala.
Ele sabia exactamente o que estava a fazer: a deixá-la ver. E ela viu. Belos ombros, bons abdominais.
Erika perambulava pela mansão silenciosa, parando com frequência para estudar a colecção de antiguidades europeias e asiáticas de Victor.
Como faziam todas as noites, os nove membros do pessoal da casa - mordomo, criadas, cozinheiro, empregadas de limpeza, jardineiros - tinham-se retirado para o seu alojamento, por cima de uma garagem onde
cabiam dez carros, nas traseiras da propriedade.
Viviam como num dormitório misto. Gozavam do mínimo de serviços.
Victor raramente precisava de criados depois das dez da noite -mesmo nas noites em que ficava em casa -, mas preferia não deixar que o pessoal da casa, todos membros da Nova Raça, tivesse vida fora da
mansão. Queria-os disponíveis vinte e quatro horas por dia. Sustentava que a única meta da vida deles devia ser o seu conforto.
Erika sofria com as circunstâncias em que eles viviam. Era como se estivessem pendurados numa grelha, como ferramentas, à espera da próxima ocasião em que ele os usasse.
O facto de as circunstâncias dela não serem assim tão diferentes das deles já lhe ocorrera. Porém, ela gozava de maior liberdade para encher os seus dias e noites com projectos que lhe interessassem.
A medida que a relação dela com Victor fosse amadurecendo, ela esperava conseguir ganhar alguma influência sobre ele. Talvez pudesse usar essa influência para melhorar a sorte do pessoal da casa.
À medida que esta preocupação com o pessoal foi aumentando, ela dera consigo menos propensa ao desespero. Estava muito bem poder fazer o que lhe interessava - e assim aperfeiçoar-se a si mesma -, mas ter
um objectivo revelava-se mais satisfatório.
Na sala de estar principal, parou para admirar um magnífico par de bas d'armoires de ébano ao estilo Luís XV, em marchetaria de Boulle com ouropéis.
A Velha Raça sabia criar objectos de uma beleza avassaladora que não tinham igual em nada do que a Nova Raça criasse. Isto confundia Erika; não lhe parecia encaixar-se na certeza que Victor tinha de que
a Nova Raça era superior.
O próprio Victor tinha olho para a arte da Velha Raça. Pagara 2,250 milhões por aquele par de bas d'armoires.
202
Dissera que alguns membros da Velha Raça se tinham notabilizado a criar coisas belas porque eram inspirados pela angústia. Pela profunda sensação de perda. Pela busca de sentido.
Todavia, a beleza surgia às custas da certeza, da eficiência. Criar uma belíssima obra de arte, dizia Victor, não era um dispêndio de energia admirável, porque não adiantava em nada a conquista que a humanidade
tinha de fazer de si própria e da natureza.
Uma raça sem dor, por outro lado, uma raça que ficasse a saber o seu sentido e a quem o seu criador ditasse explicitamente o objectivo, nunca precisaria de beleza, porque teria uma série infinita de tarefas
grandiosas à sua frente. Laborando como um só, com a determinação unívoca de uma colmeia, todos os membros da Nova Raça iriam domar a natureza, conquistar os desafios da Terra perante os quais a humanidade
fracassara, e depois seriam donos dos outros planetas, das estrelas.
Todas as barreiras cairiam perante eles.
Todos os adversários seriam esmagados.
Os Novos Homens e as Novas Mulheres não precisariam de beleza porque teriam poder. Aqueles que se sentiam impotentes criavam arte; a beleza era o substituto do poder que não logravam alcançar. A Nova Raça
não precisaria de substitutos.
Contudo, Victor coleccionava a arte e as antiguidades da Velha Raça. Erika não sabia porquê, e perguntava-se se o próprio Victor saberia porquê.
Ela já lera literatura suficiente para ter a certeza de que os autores da Velha Raça lhe teriam chamado um homem cruel. Porém, a colecção de arte de Victor dava a Erika esperança de que houvesse nele um
âmago de piedade e ternura a que ela pudesse recorrer, com muita paciência.
Ainda na sala de estar principal, chegou diante de um quadro de Jan van Huysum, assinado e datado de 1732. Por aquela natureza morta, Victor desembolsara mais uns milhões.
No quadro, as uvas brancas e pretas pareciam querer rebentar em sumo ao menor toque. Pêssegos e ameixas suculentos espalhados por uma mesa, acariciados pela luz do Sol de tal modo que pareciam brilhar
por dentro.
O artista usara o realismo no retrato que fizera daquela plenitude, mas lograra, subtilmente e sem sentimentalismos, sugerir o cariz efémero até das dádivas mais doces da natureza.
203
Hipnotizada pelo génio de van Huysum, Erika assinallou inconscientemente um arranhar furtivo. O ruído aumentou de intensidade até que por fim lhe desviou a atenção do quadro.
Quando se virou para observar a sala de estar, viu de imediato a origem do som. Como um caranguejo de cinco patas numa qualquer missão estranha e cega, uma mão decepada rastejava pelo tapete persa fora.
o detectíve Dwight Frye morava num bangalô tão cheio de buganvílias que o telhado principal e o telhado do alpendre estavam completamente tapados. Brácteas florais - cor-de-rosa-choque durante o dia, mas
menos vivas agora - caíam de cada caleira, e a parede inteira a norte estava coberta com uma teia de vides que tecera barras com padrões aleatórios em cima das janelas.
O relvado da frente não era cortado há semanas. Os degraus do alpendre soçobravam há anos. A casa bem podia não ser pintada há uma década.
Caso fosse arrendada, o senhorio de Frye seria um sovina. Se a casa fosse sua, ele mais merecia uma barraca.
A porta da frente estava aberta.
Pelo caixilho de rede, Carson via uma turva luz amarela ao fundo na cozinha. Como não conseguia encontrar a campainha, bateu à porta, bateu com mais força e depois chamou:
- Detective Frye? Ouve, Dwight, é a O'Connor e o Maddison.
Frye apareceu, iluminado por detrás, pela luz da cozinha. Percorreu o corredor como um marujo num navio com mar bravo.
Quando chegou à porta da frente, acendeu a luz do alpendre e pestanejou a olhar para eles pela rede.
- O que é que vocês querem, seus tansos?
- Um bocadinho de hospitalidade sulista, para começar - alvitrou Michael.
- Nasci no Illinois - disse Frye. - Nunca devia ter saído de lá.
Trajava calças largas e suspensórios. A camisa de cavas empapada em suor revelava tanto de um torso tão infeliz que Carson soube vir a ter pesadelos com aquilo.
- O caso do Cirurgião está a desfazer-se - disse ela. - Há uma coisa que temos de saber.
-Já disse na biblioteca: já não me interessa nada disso.
O cabelo e a cara de Frye luziam como se ele andasse à procura de azeitonas num bidão de óleo.
Carson cheirou-o, deu um passo para longe da porta, e disse:
- Preciso de saber quando é que tu e o Harker foram a casa do Bobby Allwine.
Frye respondeu:
205
- Quanto mais velho fico, menos gosto dos casos sangrentos desmazelados. Já não se estrangula ninguém. Todos cortam às fatias. É a malvada influência de Hollywood.
- A casa do Allwine? - recordou ela. - Quando é que lá foram?
- Mas tu estás a ouvir o que eu digo? - perguntou Frye. - Nunca lá fui. Talvez tu te excites com corações arrancados e tripas a escorrer mas eu, com a meia-idade, fiquei de estômago fraco. O caso
é vosso, e não têm de quê.
Michael perguntou:
- Nunca lá foste? Então como é que o Harker sabia das paredes pretas e das lâminas da barba?
Frye franziu a cara como se fosse cuspir, mas depois contrapôs:
- Quais lâminas? Porque é que as meninas estão tão melindradas?
Carson perguntou a Michael:
- Cheira-te a verdade nisto?
- Ele tresanda nisto - respondeu Michael.
- Tresanda? Isso é alguma chalaça? - exigiu saber Frye.
- Tenho de admitir que é - disse Michael.
- Se não estivesse meio bêbado e a sentir-me caridoso - disse Frye -, abria esta porta de rede e dava-te um pontapé nas moelas.
- Fico grato com a tua temperança - disse Michael.
- Mas isso é algum sarcasmo?
- Tenho de admitir que sim - disse Michael.
Carson virou costas à porta, dirigiu-se aos degraus do alpendre e disse:
- Vamos embora, temos de nos despachar.
- Mas eu e a Coisa do Pântano aqui - disse Michael - estávamos a conversar tão bem.
- Isso é outra chalaça, né? - perguntou Frye.
- Tenho de admitir que sim - disse Michael, e foi atrás de Carson pelo alpendre fora.
Enquanto rememorava as vezes que se deparara com Harker nos últimos dois dias, Carson ia para o carro em passo de corrida.
Depois de algemar os pulsos e tornozelos de Jenna à mesa de autópsia no seu quarto, Jonathan Harker usou uma tesoura para lhe tirar a roupa.
Com uma bola de algodão húmida, limpou gentilmente o sangue que rodeava a narina esquerda. Parecia que a hemorragia do nariz já parara.
De cada vez que ela começava a despertar, ele pegava no frasquinho de plástico e deitava duas ou três gotas de clorofórmio no lábio superior dela, logo abaixo das narinas. Depois de inalar os vapores enquanto
o fluido secava rapidamente, ela perdia outra vez a consciência.
Quando a mulher ficou nua, Jonathan tocou-a onde lhe apeteceu, curioso quanto à sua reacção. Melhor dizendo, curioso quanto à sua falta de reacção.
O sexo - desligado do poder da procriação - era o principal escape para os membros da Nova Raça aliviarem as tensões. Estavam sempre disponíveis uns para os outros, era só mandar, a um nível que os maiores
libertinos da Velha Raça achariam chocante.
Eram capazes de reagir a qualquer voz de comando. Não precisavam de beleza nem emoção, nem qualquer forma de sentimentos de ternura para lhes estimular o desejo.
O desejo neles não abrangia amor, meramente necessidade.
Rapazes acasalavam com velhas, velhas com novas, novas com velhos, magros com gordos, feios com bonitos, em todas as combinações, cada qual com o único objectivo de se satisfazer, sem obrigações para com
o outro, sem maior afecto do que aquele que teriam pela comida ingerida, sem expectativas de que o sexo levasse a um relacionamento.
Aliás, desencorajavam-se os relacionamentos pessoais entre membros da Nova Raça. Jonathan por vezes desconfiava que, enquanto espécie, estavam programados para serem incapazes de se relacionarem, de alguma
das maneiras com que a Velha Raça vivia e que a definia.
Os casais, sob compromisso mútuo, eram obstáculos à série infinita de conquistas que deve ser a finalidade unívoca de cada membro da Nova Raça. Tal como as amizades. Tal como as famílias.
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Para que o mundo seja só um, todas as criaturas pensantes devem comungar do mesmo ímpeto, do mesmo objectivo. Devem nortear-se por um sistema de valores tão simplificado que não dê azo ao conceito de moral
e às diferenças de opinião decorrentes.
Como as amizades e as famílias são distracções do grande objectivo unificado da espécie, o cidadão ideal, diz o Pai, deve ser solitário na sua vida pessoal. Enquanto solitário, pode dedicar a sua paixão
integralmente ao triunfo e à glória da Nova Raça.
Enquanto tocava Jenna a seu bel-prazer, incapaz de agitar dentro de si a necessidade que passava por desejo, Jonathan desconfiava que a sua gente também era incapaz de fazer - ou pelo menos não se interessava
por - sexo com membros da Velha Raça.
Com a instrução básica mediante carregamento de dados directa-mente no cérebro seguia também um desprezo programado pela Velha Raça. O desprezo, claro, pode levar a um sentido de dominação justa que inclui
exploração sexual. Tal não acontece com a Nova Raça, talvez porque o desprezo programado pela forma de humanidade da natureza inclui um subtil elemento de asco.
Entre aqueles criados nos tanques, apenas a mulher do Pai podia sentir desejo por um dos da Velha Raça. Porém, de certa maneira, ele já não pertencia à Velha Raça, pois era um deus da Nova.
A acariciar Jenna, cujo corpo era bonito e cuja forma exterior poderia passar pela de qualquer mulher da Nova Raça, Jonathan permanecera, não só, flácido, como também começara a sentir alguma repulsa por
ela.
Coisa mais estranha, aquela criatura inferior, o elo sujo entre os animais vis e a Nova Raça superior, podia mesmo assim ter em si a coisa que parecia faltar ao próprio Jonathan, o órgão ou a glândula
ou a matriz neural que lhe permitia ser feliz quase o tempo todo.
Chegara a altura de cortar.
Quando ela gemeu e as pálpebras se mexeram, ele aplicou-lhe mais umas gotas de clorofórmio no lábio superior, e ela amainou.
Ele puxou um suporte de soro para perto da mesa. Dele pendia uma solução salina com glucose.
Atou um torniquete de borracha ao braço direito de Jenna e encontrou uma veia apropriada. Inseriu uma cânula intravenosa por onde a solução entraria na corrente sanguínea dela, e tirou o torniquete.
O tubo entre a bolsa de líquido e a cânula tinha um ponto de entrada para medicamentos. Ele inseriu uma seringa grande e cheia
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de um potente sedativo, o qual poderia ministrar em várias doses, consoante o necessário.
Para que Jenna ficasse perfeitamente imóvel durante a dissecção, ele tinha de a manter profundamente sedada. Quando a quisesse acordar para responder a perguntas sobre o que encontrasse dentro dela, poderia
recusar-lhe o sedativo.
Como ela podia gritar, mesmo durante a sedação, e alarmar os residentes do apartamento de baixo, Jonathan metia agora um trapo na boca dela. E tapava-lha com fita isoladora.
Quando pôs a fita, os olhos de Jenna mexeram-se, abriram-se. Por momentos ficou confusa, desorientada - mas depois parou.
Quando ela arregalou os olhos, aterrorizada, Jonathan disse:
- Eu sei que a tua espécie não consegue desligar a dor física quando quer, como nós podemos. Portanto, vou acordar-te o menos possível para me explicares o que vou encontrando dentro de ti.
Com uma sirene de emergência que aderia por sucção ao tejadilho do carro, por cima da porta do condutor, Carson acelerava pela estrada nacional.
A tentar assimilar tudo o que ela lhe contara, Michael perguntou:
- O gajo que tu viste no apartamento do Allwine é dono de um cinema?
- O Luxe.
- O tarado que disse ser feito de pedaços de criminosos e reavivado com um relâmpago... é dono de um cinema? Eu mais depressa diria uma banca de cachorros-quentes. Uma oficina de recauchutagem.
- Talvez não seja tarado.
- Uma rulote de hambúrgueres.
- Talvez ele seja quem alega ser.
- Um salão de beleza.
- Devias ter visto o que ele fez às moedas.
- Eu sei dar um nó num pé de cereja com a língua - disse Michael -, mas isso não faz de mim sobrenatural.
- Eu não disse que ele era sobrenatural. Ele diz que parte daquilo que o relâmpago lhe deu naquela noite, além da vida, foi... um entendimento da estrutura quântica do universo.
- Mas que raio quer isso dizer?
- Sei lá - admitiu ela. - Mas explica de algum modo como é que ele faz as moedas desaparecerem.
- Qualquer mágico decente sabe fazer uma moeda desaparecer, e nem todos são génios da física quântica.
- Isto foi mais do que um truque de meia-tigela. Seja como for, Deucalião disse que alguns da sua raça devem ter um forte desejo de morte.
- Carson, qual raça?
Em vez de lhe responder, ciente de que teria de o levar um passo de cada vez até à derradeira revelação, Carson disse:
- O Allwine e o amigo estavam na biblioteca, a ler manuais de psicologia aberrante, a tentar compreender a sua angústia.
- Não vás tão depressa.
A acelerar, Carson disse:
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- Portanto, os livros não saíram das estantes durante a luta. Não houve luta nenhuma. Por isso é que o local estava tão arranjadinho, apesar da violência aparente.
- Aparente? Arrancaram o coração ao Allwine.
- Corações. Plural. Mas ele deve ter pedido ao amigo que o matasse.
- O camarada, faz-me um favor e arranca-me o coração? Não podia simplesmente cortar os pulsos, beber veneno, aborrecer-se de morte a ver repetidamente O Paciente Inglês!
- Não. Deucalião disse que a raça deles foi feita para ser incapaz de suicídio.
Com um suspiro de frustração, Michael disse:
- A raça deles. Cá vamos nós outra vez.
- A regra contra o suicídio... está no diário original. Eu vi. Depois das moedas, depois de eu começar a aceitar... Deucalião mostrou-mo.
- Diário? Diário de quem?
Ela hesitou.
- Carson?
- Isto vai ser uma prova de fogo.
- Qual prova?
- Uma prova de fogo a mim, a ti, à nossa amizade.
- Não vás tão depressa - avisou ele.
Desta vez, ela não reagiu à repreensão dele para não acelerar tanto. Não abrandou, mas não meteu prego a fundo. Uma pequena concessão para ajudar a conquistá-lo.
- Isto é mesmo esquisito - avisou ela.
- O quê? Não tenho queda para a esquisitice? Tenho uma queda espantosa para a esquisitice. Diário de quem!
Ela respirou fundo.
- O diário de Victor. Victor Frankenstein. - Quando ele olhou para ela numa mudez perplexa, ela disse:
- Se calhar parece maluquice...
- Pois. Se calhar.
- Mas acho que a lenda é verídica, como Deucalião diz. Victor Hélios é Victor Frankenstein.
- O que é que tu fizeste com a verdadeira Carson O'Connor?
- Deucalião... foi o primeiro de Victor... não sei... a primeira criação.
- Vês, só com o nome já me cheira a feira Renascentista. Parece
211
O Quarto Mosqueteiro ou coisa assim. Mas que tipo de nome é Deucalião?
- O nome que ele deu a si próprio. É da mitologia. Deucalião era filho de Prometeu.
- Ah, claro - disse Michael. - Deucalião Prometeu, filho de Fred Prometeu. Agora já me lembro.
- Deucalião é o único nome e apelido.
- Como a Cher.
- Na mitologia clássica. Prometeu era irmão de Atlas. Moldou seres humanos com barro e deu-lhes a centelha da vida. Ensinou à humanidade várias artes e, para desafiar Zeus, deu-nos o fogo.
- Talvez eu não adormecesse tanto na escola se a minha professora desse as aulas a 120 à hora. Pelo amor de Deus, desacelera.
- Seja como for, Deucalião tem o diário original de Victor. Está em Alemão, e cheio de esboços anatómicos que até têm um sistema circulatório melhorado com dois corações.
- Se o desses ao Dan Rather e ao 60 Minutos, talvez eles fizessem uma peça sobre isso, mas a mim cheira-me a falsificação.
Apetecia-lhe esmurrá-lo. Para dominar esse impulso, Carson lembrou-se do fofo que ele estava quando ela o fora buscar a casa.
Em vez de lhe dar um murro, ela pisou o travão e encostou o carro à berma em frente à Agência Funerária Fullbright.
- Um bom polícia tem de ter mente aberta - disse ela.
- Concordo. Mas não ajuda nada ter uma mente tão aberta que o vento sopra nela com um barulho cavo e triste.
A vida na casa de Victor Frankenstein implicava mais momentos macabros do que a vida na casa de Huckleberry Finn.
Não obstante, a visão de uma mão decepada a rastejar pelo tapete da sala de estar espantava até Erika, uma mulher feita por um homem e equipada com dois corações. Ficou hipnotizada talvez um minuto, sem
se conseguir mexer.
Nem a ciência podia explicar uma mão autónoma. Parecia uma manifestação sobrenatural, tal como seria uma figura humana ecto-plásmica a flutuar por cima de uma mesa pé de galo.
Contudo, Erika sentia menos medo do que assombro, menos assombro do que maravilhamento. O coração batia-lhe mais depressa só de ver a mão, e um arrepio nada desagradável fê-la estremecer.
Instintivamente, soube que a mão sabia da presença dela. Não tinha olhos, não tinha mais do que o sentido do tacto - e nem devia ter sentido do tacto, já que não tinha sistema nervoso, cérebro - mas de
algum modo sabia que ela a estava a observar.
Devia ser aquilo que ela ouvira a mexer-se furtivamente pelo quarto, debaixo da cama, a coisa que remexera no armário da casa de banho. A coisa que deixara o bisturi no tapete da casa de banho.
Esta última ideia fê-la aperceber-se de que a mão devia ser apenas o instrumento da entidade que falara com ela pelo ecrã da televisão e a encorajara a matar Victor. Tal como usara a televisão, também
usava a mão.
Enquanto usava a mão, almejava usá-la como agente da destruição do homem a quem chamara o mal.
Não há outro mundo além deste.
Erika recordou-se de que era um soldado sem alma no exército do materialismo. Acreditar em algo mais do que os olhos viam era punível com a morte.
Como se fosse a mão de um cego a explorar o padrão do tapete persa, a besta de cinco dedos tacteou a mobília, e rumou às portas duplas que separavam a sala do átrio, no piso de baixo.
A coisa não vagueava sem norte. Para todos os efeitos, mexia-se com uma finalidade.
Uma das duas portas que dava para o corredor estava aberta. A mão parou ali, à espera.
Mesmo com a noite a avançar para o início turvo de um novo dia, via-se luz nas traseiras da agência funerária.
Michael tocou insistentemente à campainha e observou:
- Vês, outra coisa que não faz sentido é o Victor Frankenstein a aparecer em Nova Orleães, para começar.
Carson disse:
- Onde é que esperavas que ele assentasse arraiais? Eaton Rouge, Baltimore, Omaha, Las Vegas?
- Algures na Europa.
- Porquê na Europa?
- Ele é europeu.
-Já foi, sim, mas agora já não é. Enquanto Hélios, nem sequer tem sotaque algum.
- O folclore arrepiante da história do Frankenstein é completamente europeu - insistiu Michael.
- Lembras-te das multidões com forquilhas e archotes a invadir o castelo? - perguntou Carson. - Ele nunca mais lá pode voltar.
- Isso foi nos filmes, Carson.
- Talvez sejam mais do tipo documentários.
Ela sabia que parecia maluquinha. O calor e a humidade do bayou tinham finalmente levado a melhor. Talvez, se lhe abrissem o crânio, encontrassem musgo a crescer-lhe no cérebro.
Carson perguntou:
- Onde é que se está a fazer mais trabalho de investigação sobre recombinações de ADN, sobre clonagem? Onde é que se fazem mais descobertas sobre biologia molecular?
- Segundo os pasquins que eu leio, deve ser na Atlântida, uns quilómetros abaixo das Caraíbas.
- Está tudo a acontecer aqui nos velhos Estados Unidos, Michael. Se o Victor Frankenstein estiver vivo, é aqui que ele quer estar, mesmo onde se faz mais ciência. E Nova Orleães é sinistra o bastante
para lhe agradar. Onde mais é que se enterram os mortos em mausoléus acima do chão?
A luz do alpendre acendeu-se. Ouviu-se um ferrolho ser corrido com algum estrondo, e a porta abriu-se.
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Taylor Fullbright estava diante deles, de pijama de seda vermelha e roupão de seda preta, e no peito havia uma imagem bordada da Dorothy de Judy Garland.
Afável como sempre, Fullbright disse:
- Ora esta, gosto em vê-los outra vez!
- Desculpe se o acordámos - disse Carson.
- Não, não acordaram nada. Terminei de embalsamar um cliente há meia hora, e ganhei apetite. Estou a fazer uma sandes de paio e língua, são servidos?
Michael respondeu:
- Não, obrigado. Estou cheio de Cheez Doodles, e ela está cheia de entusiasmo inexplicável.
- Não é preciso entrarmos - atalhou Carson, e mostrou-lhe primeiro a fotografia de Roy Pribeaux na moldura prateada.
- Já viu esta pessoa?
- Que bem-parecido - comentou Fullbright. - Mas parece algo presumido. Conheço bem o tipo. São sempre um sarilho.
- Mais sarilho do que o senhor imagina.
- Mas nunca o vi - disse Fullbright.
De um envelope laminado, vinte por trinta centímetros, Carson tirou uma fotografia do arquivo da polícia, do detective Jonathan Harker.
- Esse conheço - disse o cangalheiro. - Era o amigo que o Allwine trazia aos funerais.
Jenna Parker, amiga da farra, não sendo a primeira vez que estava nua diante de um homem, mas a primeira vez em que não provocava interesse sexual, chorava. Os soluços dela soavam ainda mais tristes por
estarem abafados pelo trapo e a fita isoladora que tinha na boca.
- Não é que eu não te ache atraente - dizia Jonathan. - Acho. Acho que és um belo exemplo da tua espécie. É só que eu sou da Nova Raça, e fazer sexo contigo seria como tu fazeres sexo com um macaco.
Por alguma razão, aquela explicação sincera fê-la chorar ainda mais. la sufocar nos próprios soluços, se não tivesse cuidado.
Ele deu-lhe hipótese de se adaptar às circunstâncias e de dominar as emoções, enquanto foi buscar uma maleta de médico ao armário. Pousou-a num carrinho de aço inoxidável, e fê-lo rolar até à mesa da autópsia.
Da maleta preta tirou instrumentos cirúrgicos - bisturis, pinças, retractores - e alinhou-os em cima do carrinho. Não tinham sido esterilizados, mas dado que Jenna iria morrer quando ele terminasse, não
havia razão para prevenir infecções.
Quando a visão dos instrumentos cirúrgicos fez com que a mulher chorasse ainda mais, Jonathan apercebeu-se de que o medo da dor e da morte poderia ser a única causa das suas lágrimas.
- Bem - disse ele -, se vais chorar por causa disso, terás mesmo que chorar, pois não há nada que possas fazer. Agora já não posso deixar-te ir embora. Irias contar tudo.
Depois de esvaziar a maleta, pô-la de lado.
Na cama estava uma gabardina de plástico fino mas robusto, daquelas que podiam ser enroladas e guardadas num saco do tamanho de uma bolsa para tabaco. Ele tencionava envergá-la por cima da camisola e das
calças de ganga, de modo a abreviar a limpeza que teria de fazer depois de terminar com Jenna.
Quando Jonathan sacudiu a gabardina para a desenrolar, uma pulsação conhecida, um movimento dentro dele, fê-lo soltar uma exclamação de surpresa, de excitação.
Largou a gabardina. Puxou a camisola para cima e desnudou o tronco.
217
No abdómen, o Outro fazia pressão contra a pele que o enjaulava, como se experimentasse as paredes da sua clausura. Mexia-se, avolumava-se.
Não se preocupava que o Outro rebentasse de dentro dele e, porventura, o matasse entretanto. Não seria assim que o parto se daria. Ele estudara os diversos métodos de reprodução, e desenvolvera uma teoria
que considerava convincente.
Ao ver aquele movimento dentro de Jonathan, Jenna parou de chorar num piscar de olhos - e começou a gritar através do trapo, da fita isoladora.
Ele tentou explicar-lhe que não havia nada a recear, que aquele era o seu derradeiro acto de rebeldia contra o Pai, e o início da emancipação da Nova Raça.
- Ele recusa-nos o poder de nos reproduzirmos - dizia Jonathan - mas eu estou a reproduzir-me. Vai ser do tipo partenogénese, parece--me. Quando chegar a altura, vou dividir-me como uma amiba. Depois
seremos dois - eu, o pai, e o meu filho.
Quando Jenna se debateu, desesperada mas estupidamente para se tentar soltar da sua prisão, Jonathan temeu que ela tirasse o tubo do soro. Ansioso por prosseguir com a dissecção, não queria perder tempo
a reinserir a cânula.
Premiu cuidadosamente o êmbolo da seringa na entrada do tubo e ministrou alguns centímetros cúbicos de sedativo.
Ela rapidamente deixou de se debater, passou apenas a tremer. Depois aquietou-se. Adormeceu.
Dentro de Jonathan, o Outro também se aquietou. O tronco retesado de Jonathan recuperou a forma natural.
A sorrir, ele passou uma mão pelo peito e abdómen.
- Está a chegar a nossa hora.
Michael afastou-se da porta da Agência Funerária FuUbright e só queria correr para o carro e sentar-se ao volante. Tê-lo-ia feito, teria tomado as rédeas, se tivesse chave.
O simples facto de ficar ao volante nada significaria para Carson. Ela não lhe daria a chave. A menos que quisesse ir no lugar do passageiro, ela mais depressa iria a pé do que abdicava do volante.
O carro tinha dois conjuntos de chaves. Carson tinha ambos.
Michael muitas vezes pensara em requisitar outro conjunto ao serviço de viaturas. Sabia que ela consideraria isso uma traição.
Por conseguinte, foi ela ao volante outra vez. Era evidente que não havia engenheiros de segurança na família dela.
Pelo menos estava longe de pensar na velocidade, distraído como ia com a precisão de assimilar a história da carochinha em que ela queria que ele acreditasse.
- Homens feitos pelo homem? A ciência ainda não foi tão longe.
- Talvez a maioria dos cientistas não tenha ido, mas Victor sim.
- Mary Shelley era romancista.
- Ela deve ter-se baseado numa história verídica que ouviu nesse Verão. Michael, tu ouviste o que o Jack Rogers nos contou. Não era uma aberração. Bobby Allwine foi criado.
- Porque é que ele criaria monstros para serem seguranças como o Bobby Allwine? Não te parece uma palermice?
- Talvez ele os crie para serem toda a espécie de coisas - polícias, como o Harker. Mecânicos. Pilotos. Burocratas. Talvez estejam por todo o lado.
- Porquê?
- Deucalião diz que é para nos tirar o nosso lugar, para destruir a obra de Deus e a substituir com a dele.
- Eu não sou o Austin Powers, nem tu, e é difícil engolir que o Hélios é o doutor Evil.
Impaciente, ela perguntou:
- O que é que aconteceu à tua imaginação? Já viste tantos filmes que não consegues imaginar nada, precisas que Hollywood imagine por ti?
- O Harker, hein? De polícia dos Homicídios a robô homicida?
219
- Robô não. Fabricado ou clonado ou criado num contentor - não sei como. Já não é com pedaços de cadáveres animados por relâmpagos.
- Um único homem, mesmo que fosse um génio, não poderia...
Ela interrompeu-o:
- O Hélios é um visionário louco e obcecado, a trabalhar há dois séculos, com uma enorme fortuna pessoal.
Preocupada com um pensamento novo, ela abrandou a velocidade.
Passados uns momentos de silêncio, Michael perguntou:
- O que foi?
- Estamos mortos.
- Não me sinto morto.
- Quer dizer, se o Hélios for quem Deucalião diz, se ele tiver feito tudo isto, se as criações dele estiverem infiltradas pela cidade fora, não temos grandes hipóteses contra ele. É um génio, é
multimilionário, um homem de enorme poder... e nós não somos nada.
Ela estava assustada. Ele ouvia o medo na voz dela. Nunca a vira assustada. Daquela maneira, não. Sem uma arma apontada e o dedo de um escumalha qualquer no gatilho.
- Simplesmente não engulo isto - disse ele, mas pouco convicto. - Não compreendo porque é que tu engoles.
Algo irritada, ela retrucou:
- Se eu engolir, meu, não será o suficiente para nós?
Quando ele hesitou na resposta, ela travou a fundo e encostou à berma. Zangada, desligou os faróis e saiu do carro.
Nos filmes, quando se vê um corpo com dois corações e órgãos de função desconhecida, sabe-se logo que são extraterrestres ou coisa assim.
Embora ele ainda não tivesse visto Deucalião, Michael não sabia porque é que estava a resistir à natural ilação cinematográfica a tirar do que Jack Rogers dissera ter encontrado dentro de Bobby Allwine.
Além disso, alguém roubara o cadáver de Allwine e os registos da autópsia, o que parecia indicar uma qualquer imensa conspiração.
Saiu do carro.
Estavam numa zona residencial, debaixo da copa de carvalhos vivos. A noite estava quente. A Lua parecia derreter-se nos ramos das árvores.
Michael e Carson entreolharam-se por cima do tejadilho do carro. Ela de lábios apertados. Geralmente davam vontade de os beijar. Agora não davam vontade nenhuma.
220
- Michael, eu contei-te o que vi.
- Já saltei de grandes alturas contigo, mas esta é muito alta, caraças.
Ela nada disse, a princípio. Surgiu-lhe no rosto o que poderia ser uma expressão anelante. Depois disse:
- Há manhãs em que é difícil sair da cama sabendo que o Arnie continuará a ser... o Arnie.
Michael aproximou-se da dianteira do carro.
- Todos nós queremos coisas que talvez não venhamos a alcançar.
Carson ficou à porta do condutor, sem ceder um centímetro.
- Quero sentido. Finalidade. Uma parada mais alta. Quero que as coisas importem mais do que agora.
Ela parou em frente ao carro.
A olhar pelos carvalhos para a Lua leitosa, ela disse:
- Isto é a sério, Michael. Eu sei. As nossas vidas nunca mais serão as mesmas.
Ele reconheceu nela um desejo de mudança tão forte que até aquilo - uma troca do mundo que conheciam por outro ainda mais aterrador - era preferível ao ramerrão.
- Pronto, pronto - disse ele. - Onde está o Deucalião? Se alguma parte disto for a sério, a batalha é dele, mais do que nossa.
Ela deixou de olhar para a Lua e fitou Michael. Avançou para a frente do carro.
- Deucalião é incapaz de violência contra o seu criador - disse ela. - E como a regra contra o suicídio. Ele tentou há duzentos anos, e Victor quase acabou com ele. Metade do rosto... tão estragada.
Estavam cara a cara.
Ele queria tocá-la, pôr-lhe a mão no ombro. Conteve-se, porque não queria saber aonde levaria esse contacto, e aquele não era momento para uma mudança ainda maior.
Em vez disso, perguntou:
- Homens feitos pelo homem, hã?
- Pois.
- Tens a certeza?
- Sinceramente? Não sei. Talvez só queira ter a certeza.
O calor, a humidade, o luar, a fragrância do jasmim: Nova Orleães parecia, por vezes, um sonho febril, mas nunca tanto como agora.
- Frankenstein vivo - disse ele. - E o sonho do National Enquirer.
Uma expressão mais dura fê-la franzir os olhos.
Michael apressou-se a dizer:
221
- Eu gosto do National Enquirer. Quem é que, no seu juízo perfeito, acredita no New York Times? Eu cá, não.
- O Harker anda por aí - recordou ela.
Ele assentiu.
- Vamo-nos a ele.
Numa mansão daquela enormidade, uma mão decepada tem de andar muito para chegar aonde pretende.
Quando andara sem se dar a ver no quarto, a mão, pelo ruído que fazia, mexera-se depressa como uma ratazana nervosa. Agora, não.
O conceito de uma mão decepada cansada, exausta de andar sem parar, não fazia sentido.
O conceito de uma mão decepada confusa também não fazia sentido nenhum. Todavia, esta parava de vez em quando, como se não tivesse a certeza da direcção certa, e uma vez até arrepiou caminho e escolheu
outro percurso.
Erika continuava convicta de que estava a assistir a um acontecimento de carácter sobrenatural. Não havia ciência que ela conhecesse e que pudesse explicar aquela maravilha rastejante.
Embora Victor outrora tivesse transaccionado peças como aquela, a fazer homens de retalhos com fragmentos vindos do cemitério, há muito que não recorria a métodos tão rudimentares.
Além disso, a mão não terminava num coto ensanguentado. Tinha uma terminação arredondada de pele macia, como se nunca tivesse estado ligada a um braço.
Este pormenor bastava, por si só, para confirmar as suas origens sobrenaturais.
Com o tempo, e Erika a aguardar pacientemente, a mão abriu caminho para a cozinha. Depois parou, em frente à porta da despensa.
Ela esperou que a mão fizesse algo, e depois decidiu que a mão precisava da sua ajuda. Abriu a porta da despensa, acendeu a luz.
Quando a mão decidida avançou para a parede posterior da despensa, Erika apercebeu-se de que ela quereria levá-la ao estúdio de Victor. Ela sabia da existência do estúdio, mas nunca lá estivera.
O espaço de trabalho secreto dele ficava além da parede posterior da despensa. O mais provável era que houvesse um interruptor escondido a comandar as prateleiras cheias de comida, para que estas se virassem
para dentro, como uma porta que se abre.
Antes de ela começar a procurar o interruptor, as prateleiras abriram-se mesmo. Não fora a mão que as activara do chão, havia outra entidade em acção.
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Ela seguiu a mão rumo à sala escondida e viu na mesa de trabalho central um tanque de acrílico cheio de uma solução leitosa e lá dentro, a cabeça cortada de um homem. Não era bem uma cabeça completamente
perfeita, apenas o modelo tosco de uma, as feições ainda mal formadas.
Uns olhos azuis raiados de sangue abriram-se naquela pálida imitação de um rosto humano.
A coisa falou com Erika, numa voz baixa e rouca exactamente igual à da entidade que, através da televisão, lhe rogara que matasse Victor:
- Olha para o que eu sou... e diz-me que ele não é o mal, se puderes.
71.
Quando estacionou em frente ao prédio de apartamentos onde Harker morava, Carson saiu do carro, correu para o porta-bagagens, e tirou a caçadeira de repetição.
Michael aproximou-se enquanto ela carregava a arma.
- Ouve. Espera. Não me vou armar em força de intervenção.
- Se tentaremos prender o Harker como se ele fosse um tarado qualquer, seremos dois polícias mortos.
Um tipo numa carrinha branca do outro lado da rua reparou neles. Michael não queria fazer uma cena, mas disse:
- Dá cá a caçadeira.
- Eu aguento o coice - garantiu ela.
- Não vamos entrar dessa maneira.
Ela bateu com a porta da bagageira e avançou para o passeio.
Michael seguiu-a, a tentar fazer-lhe ver, já que dá cá não funcionava.
- Chama reforços.
- Como é que vamos explicar à Central a necessidade de reforços? Vais dizer-lhes que encurralámos um monstro feito por um homem?
Quando chegaram à porta do prédio, ele disse:
- Isto é uma loucura.
- E eu disse que não era?
A porta do prédio abriu-se e entraram num átrio com ar arrebicado e dezasseis caixas de correio metálicas.
Nada convencido da sensatez daquilo, mas apanhado no ímpeto de Carson, Michael passou com ela por uma porta que dava para uma escada há muito precisada de uma demão de tinta.
Ela começou a subir, ele foi atrás, e ela avisou:
- Deucalião diz que, numa crise, feridos, é provável que eles consigam bloquear a dor.
- Precisamos de balas de prata?
- Mas isso é algum sarcasmo? - perguntou Carson, a imitar Dwight Frye.
- Tenho de admitir que sim.
A escada era estreita. O cheiro a bolor e desinfectante misturava-se no ar abafado. Michael obrigou-se a pensar que não estava nada enjoado.
225
- É possível matá-los - disse Carson. - O Allwine morreu.
- Pois, mas ele queria morrer.
- Lembra-te do que o Jack Rogers disse, o crânio deles tem uma densidade molecular incrível.
- Isso significa alguma coisa em palavras a sério? - perguntou ele.
- O cérebro dele está blindado contra tudo, menos o calibre mais alto.
A arquejar, não do esforço, mas da necessidade de ar mais puro do que o daquela escada fumarenta, Michael disse:
- Monstros entre nós, disfarçado" de gente, é a paranóia mais antiga.
- A palavra impossível contém a palavra possível.
- E isso que é? Alguma coisa zen?
- Caminho das Estrelas, parece-me. Do Spock.
No patamar entre os terceiro e quarto pisos, Carson parou, engatou a caçadeira e inseriu um cartucho.
Michael sacou da arma de serviço, do coldre que tinha no quadril direito, e disse:
- Em que é que nos vamos meter, afinal?
- Numa merda pavorosa. Qual é a novidade?
Subiram o último lanço de escadas até ao quarto andar, passaram por uma porta corta-fogo e depararam-se com um corredor curto para os quatro apartamentos.
O chão de madeira fora pintado num tom brilhante cinzento-couraçado. A poucos metros da porta de Harker, estavam umas chaves num chaveiro de plástico espiralado.
Michael agachou-se e pegou nas chaves. No mesmo chaveiro estava um pequeno cartão magnético de desconto num supermercado. Em nome de Jenna Parker.
Ele lembrava-se de ver o nome nas caixas de correio do átrio no rés-do-chão. Jenna Parker morava no cimo do prédio; era uma das vizinhas de Harker.
Carson sussurrou:
- Michael.
Ele olhou para ela, e ela apontou com o canhão da caçadeira.
Mais perto da porta de Harker do que onde as chaves tinham caído, a dois centímetros e meio do umbral, uma mancha negra sujava as tábuas cinzentas brilhantes. A mancha também brilhava, era aproximadamente
do tamanho de uma moeda, mas oval. Escura, brilhante e vermelha.
Michael tocou-lhe com um dedo. Molhada.
226
Esfregou o indicador no polegar e cheirou os dedos. Pôs-se de pé, assentiu para Carson e mostrou-lhe o nome no cartão do supermercado.
Passou para um dos lados da porta e experimentou a maçaneta. Nunca se sabe. A maioria dos assassinos não era nenhum génio na escala de Stanford-Binet. Mesmo que Harker tivesse dois corações, ainda tinha
só um cérebro e, se fosse responsável por alguns dos crimes atribuídos ao Cirurgião, muitas das suas sinapses deviam estar avariadas. Todos os assassinos fazem erros. Por vezes fazem tudo menos afixar
um chamariz para serem presos.
Desta vez a porta revelou-se trancada. Porém, Michael rodou a maçaneta e sentiu que só teria a tranca corrida, não o ferrolho.
Carson poderia ter destruído a fechadura com um disparo daquele calibre 12. Uma caçadeira é uma bela arma de defesa residencial porque o chumbo não entra pela parede adentro, para matar alguém inocente
na sala ao lado, com a facilidade das balas de armas de mão de grande potência.
Embora a rajada na fechadura não acarretasse consequências letais para quem lá estivesse dentro, Michael não tinha vontade nenhuma de usar a caçadeira.
Talvez Harker não estivesse sozinho lá dentro. Talvez tivesse um refém.
Tinham de usar o mínimo de força necessária para conseguir entrar, e depois aumentar, consoante os acontecimentos ditassem.
Michael pôs-se em frente da porta, deu-lhe um pontapé com força ao lado da fechadura, mas a porta aguentou-se; mais um pontapé, ainda outro pontapé, cada qual com quase tanto barulho quanto a caçadeira
faria, e a tranca deu de si. A porta escancarou-se.
Agachada e rápida, Carson passou primeiro, a caçadeira à sua frente, a virar o canhão para a esquerda e a direita.
Atrás dela, por cima do ombro dela, Michael viu Harker atravessar a outra ponta da sala.
- Larga! - gritou Carson, pois ele tinha um revólver.
Harker disparou um tiro. Acertou no umbral da porta.
Uma rajada de lascas de madeira salpicou a testa de Michael, e o cabelo, quando Carson disparou contra Harker.
A força primária da rajada apanhou Harker no quadril esquerdo, na coxa. Abanou, embateu na parede, mas não tombou.
227
Assim que disparou, ainda a avançar, Carson meteu outro cartucho e afastou-se para o lado esquerdo da porta.
Atrás dela, Michael passou para a direita quando Harker disparou outra vez. Ouviu o lamento agudo de uma bala a cortar o ar, quase lhe acertava, a centímetros da sua cabeça.
Carson tornou a disparar, e Harker cambaleou com o impacto, mas continuou a mexer-se, lançou-se para a cozinha, longe da vista, quando Carson meteu o terceiro cartucho.
De costas contra a parede entre a sala e a cozinha, Carson sacava cartuchos do bolso do casaco.
Tremia. Manuseou os cartuchos gordos um de cada vez, com medo de se atrapalhar. Se deixasse cair um, se ele rolasse para debaixo da mobília...
Lá fora, em frente à bagageira do carro aberta, quando carregara a caçadeira, mal aprovisionara os bolsos de cartuchos sobresselentes. Era uma arma terminal, útil para acabar rapidamente com uma situação
perigosa; não era coisa que se usasse para tiroteios prolongados.
Ela só precisara de uma caçadeira duas vezes antes. Em cada uma dessas ocasiões, um único tiro - num dos casos apenas de aviso, noutro com intenção de ferir - pusera termo ao confronto.
Aparentemente, seria tão difícil abater Harker quanto Deucalião previra.
Ela só tinha mais três cartuchos. Inseriu-os no cão em forma de tubo e esperou ter o bastante para dar conta do recado.
Ossos cranianos densos como blindagem. Até poderia cegá-lo com um tiro na cara, mas faria alguma diferença, ele continuaria a funcionar?
Dois corações. Apontar ao peito. Dois disparos rápidos, talvez três, à queima-roupa se possível. Alvejar os dois corações.
Do outro lado da sala, Michael estava agachado, a proteger-se com a mobília, a avançar pela sala, à procura de mira para a cozinha, onde Harker se abrigara.
Harker era apenas uma parte do problema; Jenna era a outra parte. O sangue no corredor indicava que ela estava no apartamento. Ferida. Talvez mortalmente ferida.
Apartamento pequeno. Provavelmente, três assoalhadas, uma casa de banho. Ele saíra do quarto. Jenna poderia estar lá dentro.
Ou poderia estar na cozinha, onde ele se metera. Ele poderia estar a cortar-lhe o pescoço agora.
De costas contra a parede, com a caçadeira em frente ao corpo, Carson passou para a arcada entre aquela sala e a cozinha, ciente de que ele poderia estar à espera para lhe acertar na cara assim que ela
aparecesse.
229
Tinham de abater Harker depressa, pedir socorro para Jenna. A mulher não gritava. Talvez morta. Talvez a morrer. Numa situação assim, o tempo era a essência e o terror a quintessência.
Barulho na cozinha. Ela não soube o que era.
Michael levantou-se temerariamente de detrás de um sofá para ver melhor, e gritou;
- Ele vai sair pela janela!
Carson passou a arcada, viu uma janela aberta. Harker estava agachado no parapeito, de costas para ela.
Os olhos dela varreram a cozinha para ter a certeza de que Jenna não estava lá para apanhar com o ricochete. Não. Apenas Harker.
Monstro ou não, se o alvejasse pelas costas teria de enfrentar um inquérito, mas ela tê-lo-ia alvejado mesmo assim, só que ele desapareceu antes de ela puxar o gatilho.
Carson correu para a janela e esperou ver uma saída de incêndio, talvez uma varanda. Nenhuma das duas.
Harker atirara-se para a viela. Uma queda de, pelo menos, dez metros, se não mais. Suficientemente alto para atingir uma velocidade mortal antes do impacto.
Ele estava de barriga para baixo no passeio. Imóvel.
Aquela queda parecia desmentir o aviso de DeucaUão, de que as criaturas de Victor estavam efectivamente proibidas de se autodestruírem.
Lá em baixo, Harker mexeu-se. Levantou-se. Ele sabia que sobreviveria a uma queda assim.
Quando olhou para a janela, para Carson, o luar reflectiu-se nos olhos dele, e pareceram-lhe lanternas.
Aquela distância, um tiro - ou os quatro tiros - da caçadeira não o abalaria.
Ele correu para a ponta mais próxima da viela. Parou quando, com uma chiadeira de travões na rua mais além, uma carrinha branca derrapou e parou em frente a ele.
A porta do condutor abriu-se, um homem saiu. Aquela distância, de noite, Carson não lhe viu a cara. Parecia ter cabelo branco ou louro claro.
Ouviu o condutor chamar Harker. Não distinguiu as palavras.
Harker rodeou a carrinha e entrou para o lugar do passageiro.
Outra vez ao volante, o condutor bateu com a porta e meteu prego a fundo. Os pneus rodaram, guincharam e deitaram fumo, e deixaram borracha queimada quando a viatura se lançou na noite.
73.
Victor chamara-lhe Karloff, talvez por pilhéria, mas Erika não achava graça nenhuma à "vida" horrenda que aquela criatura recebera.
A cabeça sem corpo estava num banho leitoso de antibióticos, fornecido por tubos que lhe levavam nutrientes e por outros que lhe tiravam os resíduos metabólicos. Uma profusão de máquinas servia e sustentava
Karloff, todas elas misteriosas e sinistras, na opinião de Erika.
A mão estava no chão, a um canto, de palma para cima. Parada.
Karloff controlara aquela exploradora de cinco dedos com o poder da telecinesia, o qual o seu criador almejara atribuir-lhe. Objecto de terror, revelara-se, não obstante, uma experiência bem-sucedida.
Autodesligada da maquinaria que a sustenta, a mão está agora como morta. Karloff ainda a pode animar, embora por pouco tempo. A carne rapidamente se irá deteriorar. Nem o poder da telecinesia consegue
manipular articulações paralisadas e musculatura putrefacta.
Decerto, porém, Victor não previra que Karloff conseguisse recorrer à sua capacidade psíquica para ganhar uma forma de liberdade, por mais limitada que fosse, e percorrer a mansão na esperança desesperada
de incitar ao assassínio do seu criador.
Com aquele mesmo poder insólito, Karloff activara o mecanismo eléctrico que movia a porta secreta na despensa da cozinha, e fizera Erika entrar. Com isso, também controlara a televisão no quarto principal,
para falar com ela e para encorajar a rebelião.
Sendo uma criação menos completa do que Erika, Karloff não fora programado com um entendimento integral da missão de Victor, nem com o conhecimento das limitações impostas à liberdade da Nova Raça. Agora
sabia que ela não conseguiria agir contra o seu criador, e o desespero era total.
Quando ela sugeriu que ele usasse o seu poder para desactivar as máquinas que lhe sustentavam a existência, Erika descobriu que também ele fora programado para ser incapaz de autodestruição.
Erika debateu-se com o desânimo, a esperança reduzida à trémula condição de uma mesa com três pernas. A mão rastejante e as outras aparições não tinham sido os acontecimentos sobrenaturais que ela ansiara
por acreditar que eram.
232
Oh, como ela desejara que aqueles milagres fossem provas de outro mundo além daquele. Todavia, aquilo que lhe parecera uma Presença divina, fora apenas o grotesco Karloff.
Poderia tê-lo culpado pela sua profunda desilusão, poderia tê-lo odiado, mas não. Antes pelo contrário, apiedava-se daquela criatura desgraçada, impotente nas garras dele e condenada a um inferno em vida.
Talvez não fosse piedade o que ela sentia. Em rigor, ela não deveria ser capaz de sentir pena. Mas sentia algo, sentia intensamente.
- Mata-me - rogou a desgraçada coisa.
Os olhos raiados de sangue estavam assombrados. A cara meio formada era a máscara do desalento.
Erika começou a dizer-lhe que o seu programa a proibia de matar, quer a Velha Raça quer a Nova Raça, excepto em caso de legítima defesa ou por ordem do criador. Depois apercebeu-se de que o seu programa
não previra aquela situação.
Karloff não era da Velha Raça, mas também não se coadunava com a Nova Raça. Era outra coisa, era singular.
As regras de conduta pelas quais Erika se regia não se aplicavam àquela matéria.
A olhar para a maquinaria que o sustentava, alheia ao seu funcionamento, ela disse:
- Não te quero causar dor.
- Só conheço a dor - murmurou ele. - Só desejo a paz.
Ela carregou em interruptores, puxou fichas. O ronrom dos motores e o latejar das bombas reduziram-se ao silêncio.
- Vou-me - disse Karloff, a voz a entaramelar-se, a arrastar-se. Os olhos raiados de sangue fecharam-se. - Vou-me...
No chão, a um canto, a mão contorcia-se.
As últimas palavras da cabeça sem corpo saíram tão entarameladas e sussurradas que mal se percebiam:
-Tu... deves ser... anjo.
Ela ficou ali, a pensar no que ele dissera, pois os poetas da Velha Raça tinham escrito amiúde que misteriosos são os desígnios de Deus, Seus sinais e prodígios.
Passado algum tempo, ela apercebeu-se de que Victor não a poderia encontrar ali.
Observou os interruptores onde mexera, as fichas que tirara das tomadas. Reinseriu uma delas. Colocou a mão que estava no chão
*** (página?))Frankenstein - O Filho Pródigo
exactamente por baixo dos interruptores. Pôs a outra ficha dentro da mão, apertou-lhe os dedos em redor e segurou-os até lá ficarem sem a pressão dos dela.
Outra vez na despensa, precisou de um minuto para encontrar o interruptor oculto. As prateleiras cheias de comida enlatada voltaram ao lugar, e fecharam a entrada para o estúdio de Victor.
Ela voltou ao quadro de van Huysum na sala de estar. Belíssimo.
Para satisfazer melhor Victor sexualmente, ela fora programada com vergonha. Da vergonha viera a humildade. Agora parecia que da humildade surgia a piedade, talvez, e mais do que piedade: clemência.
Enquanto pensava no seu potencial, Erika sentiu a esperança renascer. A sua coisa emplumada, empoleirada no coração, na ausência de alma, era uma fénix que se erguia mais uma vez das cinzas.
Das sirenes rotativas nos tejadilhos dos carros policiais e das ambulâncias, jorravam centelhas dessincronizadas de luzes vermelhas, brancas e azuis, que pintavam uma fantasmagoria patriótica na fachada
do prédio de apartamentos.
Uns de pijama e roupão, outros vestidos e aperaltados para as câmaras dos noticiários, os vizinhos juntavam-se no passeio. Tagarelavam, riam-se, bebiam cerveja em copos de papel, bebiam cerveja em lata,
comiam piza fria, comiam batatas fritas de pacote, tiravam fotografias à polícia e uns aos outros. Parecia que consideravam a irrupção de violência súbita e a presença de um assassino em série no meio
deles motivo de comemoração.
No porta-bagagens aberto do carro da esquadra, Carson guardou a caçadeira e Michael perguntou:
- Como é que ele pode levantar-se e fugir depois de uma queda de quatro andares?
- É mais do que genica.
- E como é que vamos fazer o relatório disto sem ir parar a uma ala psiquiátrica?
Carson fechou o porta-bagagens e disse:
- Mentimos.
Apareceu um Subaru Outback na berma atrás deles, e Kathleen Burke saiu.
- Não dá para acreditar - o Harker?
- Parecia ser tão amoroso - disse Michael.
- Assim que eu vi o bilhete do suicídio no computador do Roy Pribeaux - disse Carson a Kathy - não pude acreditar que fora ele a escrevê-lo. Ontem, quando me estava a atazanar e ao Michael, o Harker
empregou a mesma expressão que termina o bilhete do Pribeaux: "um nível abaixo do Inferno".
Admirada, Kathy perguntou:
- Queres dizer que achas que ele fez de propósito, que ele queria que o descobrisses?
- Talvez só inconscientemente - respondeu Carson - mas fez. Atirou o bonitão do telhado abaixo depois de o ter incriminado pela série de crimes de um e de outro. Mas com aquelas cinco palavras -
"um nível abaixo do Inferno" - acendeu um fusível para se destruir.
235
- No fundo, eles querem sempre ser apanhados - anuiu Kathy. -Mas eu não esperava que a psicologia do Harker fosse...
- Fosse o quê?
Ela encolheu os ombros.
- Fosse assim. Não sei. Não sei o que digo. Caraças, passo este tempo todo a interpretá-lo, e o gajo está à minha porta.
- Não te recrimines - aconselhou Carson. - Nenhum de nós desconfiava do Harker até ele praticamente apontar um dedo a si mesmo.
- Mas talvez eu devesse ter apontado - Kathy estava ralada. - Lembras-te dos três crimes nas discotecas há seis meses?
- Boogie City - relembrou Carson.
- Parece um sítio onde a malta vai tirar macacos do nariz - comentou Michael.
- O Harker e o Frye trabalharam nesse caso - disse Kathy.
Michael encolheu os ombros.
- Pois. O Harker matou o gajo. Foi um tiro esquisito, mas ele safou-se.
- Depois de um inquérito fatal, - disse Kathy - ele tinha de fazer seis horas de terapia obrigatória. Apareceu-me no consultório para duas dessas horas, mas nunca mais voltou.
- Sem ofensa, doutora Burke - disse Michael -, mas muitos de nós pensam que a terapia obrigatória é uma treta. Lá porque o Harker se pirou não quer dizer que a doutora devia ter descoberto que ele
tinha cabeças cortadas no frigorífico.
- Pois, mas eu sabia que havia qualquer coisa a incomodá-lo, e não insisti o suficiente para terminar as sessões.
Na noite anterior, Carson deixara passar a oportunidade de contar a Kathy a história do Teatro do Pavor sobre os monstros de Nova Orleães. Agora não havia maneira de explicar que ela não tinha razões para
sentir peso na consciência, que a psicologia de Harker nem sequer era humana.
A tentar aligeirar a situação o mais possível, Carson perguntou a Michael:
- Ela está condenada ao Inferno, não está?
- Ela tresanda a enxofre.
Kathy conseguiu fazer um sorriso pesaroso.
- Se calhar às vezes levo-me demasiado a sério. - O sorriso vacilou. - Mas parecia que eu e o Harker tínhamos... uma ligação.
Um paramédico interrompeu-os.
75.
Jenna Parker, espírito alegre, vivia numa colecção de ursinhos de peluche fofos, pósteres inspiradores - TODOS OS DIAS SÃO O PRIMEIRO DIA DA TUA VIDA, DIZ NÃO A TRISTEZA - e boiões para bolachas amorosos.
Os boiões em cerâmica estavam, na sua maioria, limitados à cozinha. Havia um boião-palhaço, um boião-urso polar, um boião-urso castanho, um boião da Mother Hubbard, um boião do Rato Mickey, um boião-Wookie
da Guerra das Estrelas. Boiões em forma de cãozinho, gatinho, guaxinim, coelho, casa de gengibre.
O preferido de Carson era um boião em forma de pilha de bolachas.
Parecia que Jenna Parker não passava muito tempo a cozinhar, pois a colecção de boiões ocupava metade do balcão. Havia armários sem portas de maneira a que as prateleiras servissem para exibir mais boiões
de bolachas.
- Não te atrevas a dizer nada - resmungou Carson para Michael, quando entraram na cozinha e foram enfrentados pelas figuras de cerâmica agressivamente bem-dispostas.
Fingindo-se inocente, com os olhos muito abertos, ele perguntou:
- De quê?
Jenna estava sentada num banco, com um fato de treino cor-de--rosa que tinha uma tartaruga a correr bordada sobre o peito esquerdo. Estava a mordiscar uma bolacha.
Para uma mulher que ainda há tão pouco tempo estivera nua, amarrada a uma mesa de autópsia, e quase a ser dissecada viva, Jenna parecia extraordinariamente bem-disposta.
- Olá, querem uma bolacha?
- Não, obrigada - disse Carson, e Michael conseguiu recusar também, sem bocas foleiras.
Com um polegar ligado, como uma criança orgulhosamente a mostrar um dói-dói, Jenna disse:
- Arranquei a unha do polegar quando caí, mais nada. Não é óptimo?
- Imagine como se sentiria - disse Michael - se tivesse partido uma perna.
Bem, ele aguentara-se pouco mais de um minuto.
238
Jenna disse:
- Quer dizer, tendo em conta que eu podia estar aqui sentada de coração arrancado, que interessa a unha do polegar?
- A unha do polegar não interessa nada, népias, nadufes - disse Michael.
- É uma pluma na balança - disse ela.
- Pó na balança - concordou ele.
- De nada.
- A sombra do nada.
- Peu de chose - disse ela.
- Exactamente o que eu diria se soubesse francês.
Ela sorriu-lhe.
- Para polícia, você é engraçado.
- Especializei-me em pilhéria na academia de polícia.
- Não é giro? - perguntou Jenna a Carson.
Em vez de meter um deles, ou os dois, dentro de um boião de bolachas, Carson perguntou com impaciência:
- Menina Parker, há quanto tempo é vizinha de Jonathan Harker?
- Mudei-me há cerca de onze meses. Desde o primeiro dia que ele foi um querido.
- Um querido? A menina e ele...
- Oh, não. O Johnny era homem, pois, e sabe bem como eles são, mas éramos apenas bons 'migos. - Para Michael, disse:
- O que eu disse sobre os homens... sem ofensa.
- Não fiquei ofendido.
- Gosto de homens - disse ela.
- Eu não - garantiu ele.
- Seja como for, aposto que você não é como os outros. Tirando no que interessa.
- Peu de chose - disse ele.
- Oh, aposto que não - disse Jenna, e piscou-lhe o olho.
Carson disse:
- Defina lá "'migos", se faz favor.
- De vez em quando, o Johnny vinha cá jantar, ou ia eu a casa dele. Ele fazia massa. falávamos da vida, sabe?, do destino, da dança moderna.
Atarantada, Carson perguntou:
- Dança moderna? O Harker?
239
- Eu fui bailarina antes de cair na real e ser higienista mental.
Michael disse:
- E eu quis ser astronauta durante muito tempo.
- Mas que corajoso - disse Jenna com admiração.
Michael encolheu os ombros e fez um ar humilde.
Carson perguntou:
- Menina Parker, esteve consciente em algum momento depois de ele lhe dar clorofórmio?
- De vez em quando, sim.
- Ele falou consigo entretanto? Disse porquê!
- Acho que ele disse que fazer sexo comigo seria como fazer sexo com uma macaca.
Carson não se deixou abalar, mas depois insistiu:
- A menina acha que ele disse isso?
- Bem, com o clorofórmio e tudo o que ele me deve ter metido para a veia, eu adormecia e acordava. Para ser sincera, eu ia a uma festa quando ele me agarrou, e já estava meio embalada para a festa.
Se calhar ele disse, ou fui eu que sonhei que ele disse.
- Que mais sonhou que ele tenha dito?
- Ele disse-me que eu era bonita, um belo exemplo da minha espécie, o que foi simpático, mas disse que pertencia à Nova Raça. Depois uma coisa esquisita.
- Já me perguntava quando é que isto ia ficar esquisito - comentou Michael.
- O Johnny disse que não o deixavam reproduzir-se mas que ele se estava a reproduzir mesmo assim, a dividir-se como uma amiba.
Mesmo que estas palavras tenham deixado Carson gelada, não deixaram de invocar um sentido do absurdo que a fazia sentir-se como um homem heterossexual num festival de burlesco.
- O que lhe parece que ele quis dizer com isso?
- Bem, depois ele puxou a camisola para cima, e a barriga dele parecia uma cena do Alien, tudo a mexer-se lá dentro, portanto tenho a certeza de que isso foram as coisas que eu tomei a falarem.
Carson e Michael entreolharam-se. Ela gostaria de desenvolver o assunto mas, se o fizesse, alertaria Jenna para o facto de ela poder ter passado por aquilo que pensava ter sonhado apenas.
Jenna suspirou.
- Ele era um querido, mas às vezes ficava tão deprimido, completamente desalentado.
240
- Com quê? - perguntou Carson.
Jenna mordiscou a bolacha, a pensar. Depois respondeu:
- Achava que alguma coisa lhe faltava na vida. Eu disse-lhe que a felicidade era sempre uma opção, basta escolhê-la. Mas ele às vezes não conseguia. Eu disse-lhe que ele tinha de encontrar alegria
na vida. Será que...
Ela franziu o sobrolho. A expressão surgiu e desapareceu do seu rosto duas vezes, como se ela estivesse tão pouco habituada a franzir o sobrolho que não sabia como fazê-lo quando precisava.
Carson perguntou:
- Será que o quê?
- Eu disse-lhe que ele tinha de encontrar alegria na vida, portanto espero bem que a alegria dele não seja cortar as pessoas aos bocadinhos.
Passada a porta com código, fora da Misericórdia, Randal Seis dá consigo num corredor com dois metros de largura por dois metros e meio de altura, paredes de tijolo e madeira e chão de cimento. Não há
quartos de nenhum dos lados da passagem.
Aproximadamente a quarenta metros dele está outra porta. Felizmente, não há alternativas. Ele chegou longe de mais para recuar. Só pode avançar.
O chão foi moldado em blocos de um metro quadrado. Dando passadas largas - por vezes saltando - Randal consegue soletrar o seu nome naqueles quadrados gigantescos, até à outra ponta do corredor.
Na segunda porta, encontra um sistema de fecho semelhante ao da primeira. Introduz o código que usou antes, e aquela barreira abre-se.
O corredor é, na verdade, um túnel debaixo do recinto do hospital. Dá para o estacionamento subterrâneo no edifício vizinho.
O Pai também é dono daquela estrutura de cinco pisos, onde ficam os departamentos de contabilidade e gestão de pessoal da Biovision. Podem vê-lo a entrar e a sair de lá sem dar azo a perguntas.
Através daquela passagem subterrânea secreta entre prédios, as visitas dele às Mãos da Misericórdia, das quais é proprietário através de uma empresa fictícia, podem permanecer ocultas.
Aquela segunda porta abre-se para um sítio escuro. Randal descobre um interruptor e uma sala com três metros quadrados, paredes de cimento.
O chão é de cimento também, mas usaram um molde sem linhas divisórias. Dito de outro modo, é um grande quadrado vazio.
Directamente em frente à porta onde ele está fica outra porta, a qual dá indubitavelmente para o estacionamento.
O problema é que ele não consegue atravessar três metros e chegar a essa porta num único passo. Para soletrar o seu nome até à saída, ele terá de dar vários passos dentro do mesmo quadrado vazio.
Cada passo é uma letra. As regras das palavras cruzadas são simples e claras. Uma letra por quadrado. Não se podem escrever várias letras num único quadrado.
Aquele é o caminho do caos.
242
SÓ de considerar a possibilidade, Randal Seis estremece de medo e asco.
Um bloco, uma letra. Não há outro método capaz de pôr ordem no mundo.
O umbral diante dele tem uma letra em comum com o recinto que o espera. Depois de passado o umbral, ele tem de terminar de soletrar as seis letras da outra palavra, e-c-i-n-t-o.
Pode chegar à outra porta em seis passos. Não há problema. Mas só tem um quadrado vazio.
Randal está especado no umbral daquela nova sala. Especado. Especado no umbral. A pensar, a raciocinar, a raciocinar... E começa a chorar de frustração.
Quando já não havia balas por todo o lado, Carson pôde ver melhor o apartamento de Harker. Os sinais de personalidade disfuncional eram evidentes.
Embora as mobílias fossem todas de estilos diferentes, cores contrastantes e padrões díspares, tal poderia significar apenas que Harker não tinha gosto nenhum.
Embora aquela sala tivesse consideravelmente mais recheio do que a de Allwine - onde não havia mais do que uma cadeira de vinilo preto - estava tão pouco mobilada que parecia espartana. O minimalismo,
claro, é o estilo preferido de muita gente perfeitamente sã.
A ausência de pinturas de espécie alguma nas paredes, a falta de bibelôs e recordações, o desinteresse por embelezar o espaço de algum modo, recordavam demasiado a Carson a maneira como AUwine vivia.
No mínimo, um póster inspirador ou um boião de bolachas giro teria sido bem-vindo.
Em contrapartida, ali vinha Dwight Frye a sair da cozinha, com o mesmo ar besuntão de sempre mas, como nunca antes, desolado.
- Se me vão dar na cabeça, poupem-me, já me flagelei o suficiente.
Michael disse;
- E a desculpa mais comovente que eu já ouvi.
- Era como um irmão para mim - disse Frye -, mas afinal não o conhecia de todo.
Carson disse:
- Era apaixonado por dança moderna.
Erye fez um ar perplexo, e Michael disse aprovadoramente:
- Carson, pode ser que ainda ganhes jeito para isto.
- A sério que ele se atirou da janela da cozinha abaixo? - perguntou Frye.
- A sério - respondeu Carson.
- Mas a queda tê-lo-ia matado.
- Não matou - disse Michael.
- Ele não tinha a porcaria de um pára-quedas, pois não?
Carson encolheu os ombros.
- Também estamos espantados.
- Um de vocês disparou dois cartuchos de calibre 12 - observou Frye, a apontar para os buracos na parede.
244
- Fui eu - disse Carson. - Completamente justificados. Ele disparou sobre nós primeiro.
Frye estava confuso.
- Como é que não o abateram assim tão perto?
- Não falhámos por completo.
- Vejo algum sangue - disse Frye - mas não muito. Mesmo assim e tudo, ser atingido de raspão por uma calibre 12... só pode fazer doer. Como é que ele conseguiu continuar?
- Moxie? - sugeriu Michael.
-Já bebi muitas Moxies, mas não estou à espera de me safar de uma caçadeira.
Saiu do quarto um técnico da Patologia.
- O'Connor, Maddison, vocês têm de ver isto. Acabámos de descobrir onde é que ele vivia mesmo.
o padre Patrick Duchaine, pastor da congregação de Nossa Senhora das Mágoas, atendeu a chamada na cozinha do presbitério, onde estava nervosamente a comer nozes-pecãs fritas com açúcar e a debater-se com
um dilema moral.
Depois da meia-noite, um telefonema para um padre pode querer dizer que morreu um paroquiano, ou que está a morrer, que é precisa a extrema-unção, bem como palavras de conforto aos enlutados. Neste caso,
o padre Duchaine tinha a certeza de que seria Victor ao telefone, e não se enganou.
- Fez o que eu lhe pedi, Patrick?
- Sim, senhor. Com certeza. Percorri a cidade toda desde que tivemos a nossa pequena conferência. Porém, ninguém da nossa gente viu algum dos nossos com um comportamento... estranho.
- Deveras? Pode assegurar-me de que não há nenhum renegado no seio da Nova Raça? Nenhum... apóstata?
- Não, senhor, não lho posso assegurar em absoluto. Mas se houver, não exibe sinais exteriores de crise psicológica.
- Exibe, sim - disse Victor friamente.
- Como disse?
- Se ligar o rádio ou vir o primeiro noticiário desta manhã, ficará a saber muito do nosso detective Harker da Brigada de Homicídios.
O padre Duchaine lambeu nervosamente os lábios, cheios de açúcar das nozes.
- Compreendo. Foi um polícia, então? O senhor... o senhor pensa que eu o deixei ficar mal?
- Não, Patrick. Ele era esperto.
- Fui rigoroso... na minha busca.
- Estou certo de que fez tudo o que estava ao seu alcance.
Então porquê esta chamada?, quis perguntar o padre Duchaine, mas não se atreveu.
Antes pelo contrário, aguardou um momento e, como o seu criador nada dizia, perguntou:
- Há mais alguma coisa que o senhor precise da minha parte?
- De momento, não - disse Victor. - Talvez mais tarde.
O açúcar já tinha sido todo lambido nos lábios do padre Duchaine, e ele sentia a boca seca e amarga.
***
Kí'"'.'
Em busca de palavras que pudessem reparar o estrago na confiança que o seu criador tinha nele, deu consigo a dizer:
- Que Deus o acompanhe. - Não tendo resposta além de silêncio, acrescentou:
- Era uma piada, senhor.
Victor retorquiu:
- Deveras? Que espirituoso.
- Como na igreja... quando o senhor me disse o mesmo.
- Sim, recordo-me. Boa noite, Patrick.
- Boa noite, senhor.
O padre desligou. Tirou nozes fritas do prato que estava no balcão da cozinha, mas a mão tremia-lhe tanto que as deixou cair antes de chegarem à boca. Baixou-se e apanhou-as.
Na mesa da cozinha com um copo de água e uma garrafa de vinho, Jonathan Harker perguntou:
- Se tu precisares de guarida, Patrick, para onde irás tu?
Em vez de responder, o padre Duchaine disse:
- Desobedeci-lhe. Menti-lhe. Como é possível?
- Poderá não ser possível - disse Harker. - Pelo menos, sem consequências terríveis, não.
- Não. Creio que talvez seja possível porque... a minha programação está a ser reformulada.
- Ai sim? Como é que está a ser reformulada, se já não estás num tanque, nem ligado a uma entrada de dados?
O padre Duchaine olhou para o tecto, para o Céu.
- Não podes estar a falar a sério - disse Harker, e bebeu um grande gole do vinho da comunhão.
- A fé pode mudar uma pessoa - declarou o padre Duchaine.
- Antes de mais, tu não és uma pessoa. Não és humano. Um padre verdadeiro diria que és uma blasfémia ambulante.
Era verdade. O padre Duchaine não tinha resposta àquela acusação.
- Além disso - continuou Harker -, tu não tens propriamente fé.
- Ultimamente, ando... a interrogar-me.
- Eu sou um assassino - recordou Harker. - Matei dois deles e um de nós. Deus aprovaria que me desses guarida, mais do que o próprio Victor aprova?
Harker verbalizara um elemento crucial do dilema moral do padre Duchaine. Ele não tinha resposta. Em vez de retorquir, comeu mais nozes-pecãs fritas com açúcar.
Na parte de trás do roupeiro do quarto, Harker tinha aberto as tiras e o estuque, e mudado os rebites para facilitar a passagem mais além.
O técnico abriu caminho pela parede para Carson, Michael e Frye, e disse:
- Este prédio já teve comércio no rés-do-chão, escritórios nos três pisos de cima, e teve um sótão para armazém dos inquilinos.
Do outro lado da parede estava uma escada - de madeira, puída, a ranger.
Enquanto subia com eles, o técnico dizia:
- Quando o remodelaram para fazer apartamentos, fecharam o sótão. O Harker deve ter arranjado maneira de saber que havia um. E transformou-o na sua sala de fúria.
Naquele reduto altaneiro, duas lâmpadas nuas pendiam de uma viga e derramavam uma luz amarela e poeirenta.
Três traças grandes esvoaçavam por baixo e em redor das lâmpadas. As sombras delas avolumavam-se, encolhiam-se, e tornavam a avolumar-se contra o chão revestido, as paredes revestidas, o tecto com as vigas
expostas.
Uma cadeira e uma mesa desdobrável que fazia de escrivaninha eram a única mobília. Havia livros empilhados em cima da mesa, e também aqui e ali no chão.
Uma caixa de luz enorme de fabrico caseiro tapava dois terços da parede virada a norte e dava iluminação a dúzias de radiografias: vários crânios sorridentes vistos de diversos ângulos, torsos, pélvis,
colunas, braços, pernas...
Michael observou aquela galeria macabra e disse:
- Achei que, quando se entra num roupeiro, se sai do outro lado na terra mágica de Nárnia. Devo ter feito um desvio.
No canto noroeste estava um espelho articulado em três partes, com caixilho dourado. No chão em frente ao espelho estava um tapete de banho branco.
A pisar fantasmas fugazes de traças, a servir de ecrã para projecções do voo delas, Carson passou pelo espelho e atravessou a sala até uma exibição diferente que cobria a parede sul de canto a canto, do
chão ao tecto.
248
Harker fizera na parede de estuque uma colagem de imagens religiosas: Cristo na cruz. Cristo a revelar o Seu coração secreto, a Virgem Maria; Buda; Ahura Mazda; do Hinduísmo, as deusas Kali e Parvati e
Chandi, os deuses Vishnu e Doma e Varuna; Quan Yin, a Rainha do Céu e deusa da compaixão; os deuses egípcios Anúbis, Hórus, Amen-Ra...
Aturdido, Frye perguntou:
- Mas o que é isto?
- Uma súplica - respondeu Carson.
- Súplica de quê?
- Sentido. Finalidade. Esperança.
- Porquê? - inquiriu Frye. - Ele tinha emprego, e com regalias que não há em mais lado nenhum.
Randal Seis está de pé, imóvel, no umbral da porta que dá para a sala seguinte, há tanto tempo, tão retesado, que as pernas já começam a doer-lhe.
A Nova Raça não se cansa facilmente. Esta é a primeira experiência de Randal Seis com cãibras. Estas são tão intensas que, por fim, ele decide tirar partido da sua capacidade de bloquear a dor.
Não tem relógio. Nunca precisou de um. Calcula que está de pé, imobilizado por aquela indeterminação, naquele mesmo sítio há, pelo menos, três horas.
Indeterminação é um termo tristemente insuficiente. O termo correcto tem menos letras e significado mais forte: dilema.
Embora ele se tenha furtado à dor física, não consegue fugir à angústia mental. E despreza-se pelas suas insuficiências.
Pelo menos parou de chorar. Há muito.
Gradualmente, a impaciência que sente para consigo ganha os tons negros de uma raiva intensa contra Arnie O'Connor. Se não fosse Arnie, Randal Seis não estaria naquele dilema.
Se conseguir chegar ao rapaz O'Connor, há-de tirar-lhe o segredo da felicidade. Depois fará Arnie pagar caro por todo este sofrimento.
Randal sente-se também tomado de ansiedade. Periodicamente, os seus dois corações galopam, batem, com tal terror que o suor jorra e a vista fica toldada de sangue.
Tem medo de que o Pai descubra que ele não está e mande fazer uma busca. Ou talvez o Pai termine o trabalho que tem em mãos e se vá embora, e venha assim a encontrar Randal ali especado numa indecisão
autista.
Será levado de volta à roda e amarrado a ela em posição cruciforme. A cunha de borracha, presa pela correia ao queixo, será colocada entre os dentes dele.
Embora nunca tenha visto o Pai enraivecido, já ouviu falar da ira do criador. Não há esconderijo possível nem misericórdia para o objecto da sua fúria.
Quando Randal pensa que ouviu o ruído de uma porta a abrir-se na outra ponta o corredor, atrás dele, fecha os olhos e espera, apavorado.
250
O tempo passa.
O Pai não aparece.
Randal deve ter confundido, ou imaginado, o barulho.
Ali de pé com os olhos fechados, porém, e enquanto os seus corações procuram voltar a um ritmo normal, surge a imagem de padrão tranquilizador na sua mente: disposições de quadrados brancos vazios num
pano de fundo preto, numa intersecção com as belíssimas linhas virgens de um exercício de palavras cruzadas por fazer.
Enquanto ele se concentra nesta imagem estéril e no seu efeito calmante, ocorre-lhe uma solução para o dilema. Quando não houver quadrados de vinilo ou cimento, ou qualquer outro material, no chão à sua
frente, ele poderá desenhá-los na sua imaginação.
Entusiasmado, abre os olhos, observa o chão da sala além do umbral e tenta pintar nele os seis quadrados que tem de soletrar para terminar recinto quando passar o umbral.
Não consegue. Embora, com os olhos fechados, tenha sido capaz de ver claramente os quadrados na sua mente, o chão de cimento diante de si continua renitente à imposição de geometrias imaginadas.
As lágrimas quase o derrubam novamente, antes de se aperceber de que não precisa de ter os olhos abertos para atravessar aquela sala. Os cegos andam com a ajuda de bengalas e cães cheios de paciência.
A imaginação será a sua bengala branca.
De olhos fechados, ele vê seis quadrados. Avança em frente seis vezes, a soletrar pelo caminho: e-c-i-n-t-o.
Quando a palavra está completa, ele abre os olhos e vê-se diante da porta que dá para o exterior. A porta eléctrica atrás dele fechou-se. O portal diante dele tem uma simples tranca que está sempre corrida
do outro lado, sempre aberta deste lado.
Abre a porta.
Triunfo.
Mais além fica uma garagem, mal-iluminada e deserta àquela hora. Silenciosa, sossegada, a cheirar vagamente a humidade e cal.
Para sair daquela salinha, Randal Seis fecha simplesmente os olhos e imagina a palavra umbral em letra de forma, da esquerda para a direita, imediatamente à sua frente. Convenientemente, a palavra garagem
cruza-se no segundo a.
De olhos fechados, ele dá decididamente três passos, g-e-m, rumo ao enorme espaço mais além. A porta fecha-se atrás dele, e tranca-se do lado de fora.
***
II
251
Não há retorno possível.
A dimensão imponente da garagem intimida-o e, por momentos, quase o deixa esmagado. Não houve nenhuma sala da sua experiência na Misericórdia que o tenha preparado para aquela imensidão.
Uma tremura interior parece fazer os ossos chocalharem. Ele sente-se como uma bola de matéria altamente compactada no instante anterior à criação do universo e, com o Big Bang iminente, ele irá expandir-se
e explodir em todas as direcções, a correr para colmatar um vazio infinito.
Com o raciocínio mais poderoso que até então conseguira impor ao seu estado, ele convence-se de que o vazio não irá destroçá-lo, não irá dispersá-lo na eternidade. Gradualmente, o pânico vai amainando
e desaparece por completo.
Fecha os olhos para imaginar quadrados, e vai soletrando obstinadamente o seu avanço. Entre cada palavra, Randal abre os olhos para avaliar o percurso e determinar a extensão da palavra que será necessária
a seguir.
Deste modo, acaba por chegar a uma rampa de saída e subir até à rua. A noite no Luisiana está quente, húmida, ruidosa dos mosquitos.
Quando consegue passar a maior parte de um quarteirão e virar à direita numa viela, a trincha da alvorada pinta uma débil luz cinzenta a oriente.
O pânico ameaça-o mais uma vez. Em plena luz do dia, com toda a gente acordada e em movimento, o mundo será um tumulto de imagens e sons. Ele tem a certeza de que não conseguirá aguentar tal invasão aos
sentidos.
A noite é melhor ambiente. A escuridão é sua amiga.
Tem de encontrar um sítio para se esconder até o dia terminar.
Exausta, Carson passou por um sono sem pesadelos, apenas um único sonho contínuo em que está a bordo de um barco preto, debaixo de um céu negro, a cortar silenciosamente as águas negras.
Só fora deitar-se muito depois da alvorada. Acordara às 14h30, tomara duche, e comera Hot Pockets no quarto de Arnie, a ver o rapaz montar o castelo.
Aos pés da ponte que atravessava o fosso, em frente ao portão com a barbacã, em cada uma das duas entradas da ala exterior para a ala interior e, finalmente, na entrada fortificada para a torre do castelo,
Arnie colocara uma das moedas reluzentes que Deucalião lhe dera.
Ela calculou que as moedas fossem, na cabeça de Arnie, talismãs que personificavam o poder do gigante desfigurado. A sua magia poderosa impediria a entrada a qualquer inimigo.
Era evidente que Arnie confiava em Deucalião.
E Carson também.
Considerando os acontecimentos dos últimos dois dias, a alegação de que Deucalião era o monstro de Frankenstein já não parecia mais impossível do que outras coisas a que ela assistira. Além disso, ele
tinha uma característica que ela nunca encontrara em ninguém, uma substancialidade que iludia qualquer descrição facilitista. A calma dele tinha uma profundidade oceânica, o seu olhar era tão firme e tão
frontal que ela, por vezes, tinha de o desfitar, não porque a ocasional pulsação de luz nos olhos dele a perturbasse, mas porque ele parecia ver fundo de mais dentro dela, passando-lhe as defesas, até
ser incomodativo.
Se Deucalião fosse a criação romanceada de Victor Frankenstein, nos últimos dois séculos, enquanto o médico humano se tinha tornado num monstro, o monstro humanizara-se - e talvez se tivesse tornado num
homem de perspicácia e calibre invulgares.
Ela precisava de um dia de folga. Um mês. Havia outros a trabalhar no caso agora, em busca de Harker. Ela não precisava de se matar sete dias por semana.
Não obstante, e porque combinara anteriormente, às 15h30 Carson estava à espera na berma em frente a sua casa.
Às 15h33, Michael chegou no carro à civil. No princípio desse dia, Carson tivera um momento de fraqueza. Michael levara o carro quando saíram do prédio de Harker.
253
Quando ela entrou para o lugar do passageiro, Michael disse:
- Vim o caminho todo sem nunca passar um limite de velocidade.
- Por isso é que estás três minutos atrasado.
- Três minutos inteirinhos? Bem, acho que estraguei qualquer hipótese que tenhamos de encontrar o Harker.
- A única coisa que não conseguimos arranjar é mais tempo - disse ela.
- E pássaros dodó. Não podemos arranjar mais disso. Estão extintos. E os dinossáurios também.
- Liguei para o Luxe e falei com Deucalião. Está à nossa espera às quatro horas.
- Estou ansioso por meter isto no meu registo de interrogatórios - "discuti o caso com o monstro de Frankenstein. Diz que o Igor era um sacana e que comia macaquinhos do nariz".
Ela suspirou.
- Eu estava mais ou menos à espera que a concentração necessária à condução se traduzisse em menos tagarelice.
- Antes pelo contrário. Conduzir dá-me fluidez mental. E fixe ser o homem do volante.
- Não te habitues muito.
Quando chegaram ao Luxe Theater, depois das quatro horas, o céu ficara negro como uma frigideira de ferro.
Michael estacionou ilegalmente numa berma encarnada e pendurou um dístico a dizer POLÍCIA no espelho retrovisor.
- Mora num teatro, hã? E compincha do Fantasma da Opera?
- Verás - disse ela, e saiu do carro.
A fechar a porta, a olhar para ela por cima do tejadilho, ele perguntou:
- As palmas das mãos dele ganham pêlos quando está Lua Cheia?
- Não. Ele rapa-as como tu.
82.
A seguir a uma longa noite e um dia ainda mais comprido na Misericórdia, Victor comia aquilo que era um almoço tardio, ou um jantar adiantado, de gumbo de marisco com quiabos e estufado de coelho, num
restaurante cajun do Bairro. Embora não fosse tão satisfatória como a sua refeição exótica no chinês da noite anterior, a comida era boa.
Pela primeira vez em quase trinta horas, foi para casa.
Tendo aperfeiçoado os seus sistemas fisiológicos a ponto de não precisar de muito sono e, como tal, poder fazer mais no laboratório, por vezes ocorria-lhe que trabalhava de mais. Talvez, caso se permitisse
mais momentos de lazer, a sua mente estivesse mais límpida no laboratório e, logo, ele fizesse ainda melhor ciência.
Periodicamente, ao longo das décadas, ele tivera este debate consigo próprio. Sempre o resolvera a favor de mais trabalho.
Quer gostasse, quer não, ele entregara-se a uma grande causa. Era o tipo de homem que trabalha altruisticamente por um mundo governado pela razão, um mundo livre de ganância e povoado por uma raça unida
num único objectivo.
Chegou à mansão no Garden District e escolheu o trabalho em detrimento do lazer, outra vez. Foi directamente ao seu estúdio escondido atrás da despensa.
Karloff morrera. As máquinas de apoio à vida não estavam a funcionar.
Aturdido, Victor rodeou a mesa de trabalho central, e só alcançou o que acontecera quando viu a mão no chão. Os interruptores mexidos estavam logo acima dela. Mais, tinha nos dedos uma ficha que tirara
de uma tomada.
Embora desapontado por aquele revés, Victor estava espantado por Karloff ter conseguido desligar-se.
Para começar, a criatura fora programada para ser incapaz de se autodestruir. Nessa questão, não havia margem de manobra quanto às directivas que a regiam.
Mais importante ainda, a mão não poderia ter funcionado separada do seu próprio sistema de apoio à vida. No momento em que se libertara dos fios que a alimentavam e limpavam, perdera a corrente de baixa
tensão necessária a impulsionar-lhe os nervos e a flectir a
255
musculatura. Nessa altura, deveria ter caído inerte e morta de imediato - e devia ter começado a decompor-se.
Só ocorria uma explicação a Victor. Aparentemente, os poderes telecinéticos de Karloff tinham tido força suficiente para animar a mão como se ela estivesse viva.
Ao controlar a mão à distância, Karloff mostrara a capacidade de flectir um polegar e imitar um arpeggio, tocando numa harpa imaginária com aqueles quatro dedos. Tarefas pequenas e simples.
Fazer com que a mão se libertasse das suas ligações, com que ela caísse no chão e depois subisse quase um metro pelas máquinas acima de modo a carregar nos interruptores de apoio à vida, com que tirasse
a ficha da tomada também... Implicava muito mais poderes telecinéticos, e um controlo muito mais específico, do que ele mostrara anteriormente.
Uma descoberta incrível.
Embora Karloff tivesse morrido, poder-se-ia criar outro Karloff. O revés seria temporário.
Entusiasmado, Victor sentou-se à secretária e abriu o ficheiro das experiências no computador. Clicou no ícone da câmara e chamou a gravação vídeo das últimas vinte e quatro horas passadas no estúdio.
Ao retroceder do momento presente, ficou admirado quando Erika, de súbito, apareceu.
Tal como quando fora ao Luxe na noite anterior, Carson deu com uma das portas da frente destrancada. Desta vez, não havia ninguém à espera no átrio.
Havia portas duplas abertas entre o átrio e o teatro.
Michael observou a banca das bebidas quando passaram e comentou:
- Quando se compra pipocas aqui, será que se pode pedi-las sem baratas?
O teatro propriamente dito revelou-se amplo, com balcão e mezanino. O tempo, a sujidade, e o estuque descascado diminuía-lhe o encanto Art Déco, mas não o derrotava completamente.
Um homem gordo de calças brancas largas, camisa branca e pana-má branco estava em frente aos cortinados esfarrapados de veludo vermelho que tapavam o ecrã gigante.
Parecia Sidney Greenstreet acabadinho de sair do filme Casablanca.
Greenstreet olhou para o tecto, interessado em algo que não era imediatamente evidente para Carson.
Deucalião estava a meio caminho na coxia central, de frente para o ecrã. A cabeça inclinada para trás, contemplava lentamente a arquitectura rebuscada mais acima.
A estranheza daquele momento acabou junto com o silêncio, quando se ouviu asas a bater e se viu um pássaro a esvoaçar nas traves do tecto abobadado, de uma cornija para a outra.
Quando Carson e Michael se aproximaram de Deucalião, ela ouviu--o dizer:
- Vem ter comigo, pequenina. Sem medo.
O pássaro voou outra vez, lançou-se descontroladamente para baixo, e aterrou no braço esticado de Deucalião. Assim ao perto e sossegada, viu-se que era uma pomba.
Com uma gargalhada deliciada, o gordo afastou-se do ecrã e aproximou-se.
- Diabos me levem. Se alguma vez tivermos um leão aqui, espero contar contigo.
A fazer festinhas à pomba, Deucalião virou-se quando Carson e Michael se acercaram dele.
Carson disse:
- Achava que era só São Francisco e o doutor Doolittle a falarem com os animais.
257
- Um pequeno truque.
- Parece que tem muitos truques, pequenos e grandes - disse ela.
O gordo mostrou que tinha uma voz doce.
- A coitadita estava presa há dois dias, a comer pipocas velhas. Não a consegui fazer sair pelas portas quando as abri.
Deucalião segurou na pomba com uma mão enorme, e parecia que esta não tinha medo, que estava quase em transe.
Com as duas mãos papudas, o homem de branco aceitou a pomba que Deucalião lhe passava e encaminhou-se para a frente do teatro.
- Vou soltá-la.
- Este é o meu colega, detective Maddison - disse Carson para Deucalião.
- Michael Maddison.
Fizeram um aceno de cabeça um para o outro, e Michael - fingindo não se impressionar com o tamanho e o aspecto de Deucalião -disse:
- Tenho de ser franco consigo. Sou o primeiro a admitir que estamos a lidar com a maior esquisitice, mas ainda não engulo isso tudo da Transilvânia.
- Isso é nos filmes. Na vida real - disse Deucalião - era Áustria.
- Precisamos da sua ajuda - disse-lhe Carson. - Afinal, eram dois assassinos.
- Sim. Deu nas notícias.
- Pois. Bem, apenas um deles parece ter sido... do tipo que você me avisou.
- E é detective - disse Deucalião.
- Certo. Ainda anda a monte. Mas encontrámos a... o recreio dele. Se ele for mesmo criação de Victor, você será mais capaz de interpretar o sítio do que nós.
Michael abanou a cabeça.
- Carson, ele não é psicólogo, não é criminalista.
Num tom casual, cativante precisamente devido à falta de drama, Deucalião disse:
- Compreendo assassinos. Sou um deles.
Aquelas palavras, e a centelha latejante de luz nos olhos do gigante, deixaram Michael sem fala.
- Nos meus princípios - continuou Deucalião - eu era um animal diferente. Incivilizado. Cheio de raiva. Matei alguns homens... e uma mulher. A mulher era a esposa do meu criador. No dia do casamento
deles.
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Sentindo obviamente em Deucalião a seriedade convincente que impressionara Carson, Michael procurou as palavras certas e encontrou estas:
- Também sei essa história.
- Mas eu vivi-a - disse Deucalião, e virou-se para Carson.
- Prefiro não sair com ar de dia.
- Nós levamo-lo. Num carro à civil. Sem dar nas vistas.
- Sei onde fica. Vi nas notícias. Prefiro que nos encontremos lá.
- Quando? - perguntou ela.
- Partam agora - disse ele. - Estarei lá quando chegarem.
- Da maneira que ela conduz, não - disse Michael.
- Lá estarei.
Na frente do teatro, o gordo empurrou com o ombro uma saída de emergência que se abriu para a tarde que findava. Soltou a pomba, e esta voou rumo à liberdade na luz sombria da tempestade que se avizinhava.
Victor encontrou Erika na biblioteca. Estava enrolada numa poltrona, as pernas dobradas debaixo do corpo, a ler um romance.
Em retrospectiva, ele deveria tê-la proibido de passar tanto tempo com poesia e ficção. Emily Dickinson, francamente.
Os autores de tais obras imaginavam que se dirigiam não só à mente mas também ao coração, mesmo à alma. Pela sua própria natureza, a ficção e a poesia encorajavam uma reacção emocional.
Ele deveria ter insistido para que Erika dedicasse mais leitura às ciências. Matemática. Teoria económica. Psicologia. História.
Também havia livros de História que podiam ser perigosos. Contudo, e regra geral, a não-ficção poderia instruí-la com risco mínimo de instilar nela um sentimentalismo corruptor.
Tarde de mais.
Infectada pela piedade, ela já não tinha utilidade para ele. Ela achava que tinha consciência e capacidade de empatia.
Contente consigo própria pela descoberta destes sentimentos ternos, ela traíra o seu amo. E voltaria a traí-lo.
Pior, embriagada pela compaixão aprendida nos livros, poderia muito bem, na sua simpatia ignorante, atrever-se a ter pena dele por qualquer razão. Ele não iria tolerar a piedade tola dela.
Os sábios há muito que advertiam para o poder corruptor dos livros. Ali estava a prova inatacável.
Quando se aproximou, ela tirou os olhos do romance, o maldito e venenoso romance, e sorriu.
Ele bateu-lhe com tanta força que lhe partiu o nariz. O sangue jorrou, e ele ficou encantado.
Ela aguentou três bofetadas. Teria aguentado quantas ele quisesse dar-lhe.
Victor não ficou satisfeito por lhe bater apenas. Arrancou-lhe o livro das mãos, atirou-o pelo quarto fora, agarrou-a pelo cabelo grosso cor de bronze, puxou-a da cadeira, e largou-a no chão.
Recusada a escolha de desligar a dor, ela sofria. Ele sabia precisamente como aumentar esse sofrimento. Deu-lhe pontapés, uma e outra vez.
Embora tivesse aperfeiçoado o seu próprio corpo, Victor não podia ombrear fisicamente com um membro da Nova Raça. Acabou por se cansar e ficou ali, ensopado em suor, a arquejar.
260
Todas as lesões que ela tivera, claro, iam sarar sem deixar marcas. As lacerações já começavam a sarar, os ossos partidos a consolidarem-se.
Se ele quisesse deixá-la viver, ela estaria como nova num ou dois dias. Sorriria para ele outra vez. Servi-lo-ia como antes.
Ele não queria isso.
Puxou uma cadeira de espaldar alto da frente da escrivaninha e mandou:
- Levanta-te. Senta-te aqui.
Ela estava um trapo, mas conseguiu pôr-se de joelhos e depois chegar à cadeira. Sentou-se de cabeça curvada um momento. Depois levantou-a e endireitou as costas.
A gente dele era espantosa. Rija. Resistente. A sua maneira, orgulhosa.
Deixou-a na cadeira e foi ao bar da biblioteca, servir-se de um conhaque com o decantador.
Queria estar mais calmo quando a matasse. Naquela agitação toda, não conseguiria desfrutar do momento.
Perto de uma janela, de costas para ela, bebericou o conhaque e viu um céu magoado cheio de contusões a escurecer, a escurecer. A chuva viria ao cair da noite, se não antes.
Diziam que Deus criara o mundo em seis dias e que ao sétimo descansara. Era mentira.
Primeiro, não havia Deus algum. Apenas uma natureza brutal.
Segundo, Victor sabia por experiência própria que a criação de um novo mundo era uma empresa frustrante, não raro entediante, e morosa.
Passado um pouco, calmo e preparado, virou-se para Erika. Estava sentada na cadeira como ele a deixara.
Ele tirou o blusão, pendurou-o nas costas de uma cadeira, e disse:
- Esta pode ser uma cidade perfeita. Um dia... um mundo perfeito. A humanidade imperfeita vulgar... resiste à perfeição. Um dia serão... substituídos. Todos.
Ela continuou sentada em silêncio, de cabeça levantada, mas sem olhar para ele, a contemplar os livros nas estantes.
Ele tirou a gravata.
- Um mundo limpo da humanidade trapalhona, Erika. Oxalá pudesses estar cá connosco para ver.
*** II
261
Quando criava uma mulher para si próprio, ele modificava - muito ligeiramente - a fisiologia padrão que dava aos membros da Nova Raça.
Para começar, seria extremamente difícil estrangulá-los. Mesmo que a vítima estivesse dócil e obediente, a tarefa poderia demorar muito tempo, poderia até revelar-se demasiado difícil.
Todas as Erikas, por outro lado, tinham a estrutura do pescoço -traqueia, artérias da carótida - tão vulnerável ao garrote quanto qualquer membro da Velha Raça. Ele poderia ter acabado com ela de outras
maneiras, mas desejava que fosse um momento íntimo; o estrangulamento satisfazia esse desejo.
De pé atrás da cadeira dela, ele debruçou-se e beijou-lhe o pescoço.
- Isto é muito difícil para mim, Erika.
Como ela não respondeu, ele endireitou-se e agarrou na gravata com as duas mãos. Seda. Muito elegante. E forte.
- Sou criador e destruidor, mas prefiro ser criador.
Passou-lhe a gravata em redor do pescoço.
- A minha maior fraqueza é a compaixão - disse ele - e tenho de me purgar dela, para poder fazer um mundo melhor baseado na racionalidade e na razão.
A saborear o momento, Victor ficou admirado quando a ouviu dizer:
- Eu perdoo-te por isto.
Aquela audácia inédita deixou-o tão aturdido que até lhe prendeu a respiração.
Quando falou, as palavras saíram de rajada:
- Perdoas-me? Não sou de molde a precisar de perdão, e tu não estás em posição de teres o poder de o conceder. O homem que come o bife precisa do perdão da vitela de onde foi tirado? Sua cadela
tola. Menos do que uma cadela, pois cachorro algum jamais sairia de dentro de ti, nem que vivesses mil anos.
Calmamente, quase ternamente, ela disse:
- Mas nunca te perdoarei por me teres feito.
A audácia dela já passara da afronta a uma impudência tão chocante que lhe tirava todo o prazer que ele esperava de a estrangular.
Para Victor, a criação e a destruição eram expressões de poder igualmente satisfatórias. Só o poder o motivava: o poder de desafiar a natureza e de a vergar à sua vontade, o poder de controlar os outros,
o poder de moldar o destino da Velha Raça e da Nova Raça, o poder de suplantar os seus próprios impulsos mais fracos.
262
Estrangulava-a, cortava-lhe o afluxo de sangue ao cérebro, esmagava-lhe a traqueia, estrangulava, estrangulava, mas com tal raiva, em tal fúria cega que, quando acabou, já não era um homem com poder, mas
apenas uma besta a grunhir, completamente nas garras da natureza, descontrolada, sem razão nem racionalidade.
Na sua morte, Erika negara-o e derrotara-o, humilhara-o, como não lhe acontecia há mais de dois séculos.
Sufocado com a ira, tirava livros das estantes, atirava-os ao chão, rasgava-os e espezinhava-os. Rasgava e espezinhava. Atirava e rasgava.
Mais tarde, foi para o quarto principal. Tomou duche. Inquieto e energético, não lhe interessava nada relaxar. Vestiu-se para sair, embora não soubesse para onde, nem com que fim.
De outro decantador, serviu-se de mais um conhaque num copo limpo.
Pelo intercomunicador, falou com William, o mordomo que estava de serviço na sala do pessoal.
- Hã uma coisa morta na biblioteca, William.
- Sim, senhor.
- Contacte a minha gente no departamento de resíduos. Quero aquela carne inútil enterrada bem fundo no aterro, e imediatamente.
À janela, observou o céu baixo, o qual ficara tão escuro das nuvens carregadas que o crepúsculo jã pairava sobre a cidade.
85.
No prédio de Harker, Carson e Michael foram de elevador até ao quarto andar, para evitarem o fedor a bafio da escada de serviço.
Os Homicídios, a Patologia e os vizinhos curiosos há muito tinham desaparecido. O prédio parecia quase deserto.
Quando chegaram ao quarto andar, encontraram Deucalião à espera no corredor, à porta do apartamento de Harker.
Para Carson, Michael murmurou:
- Não vi o Batmobile estacionado lá fora.
- Não queres admitir - disse ela -, mas estás convencido.
Para admiração dela, ele disse:
- Quase.
Tendo evidentemente ouvido o que Michael murmurara, Deucalião disse:
- Trouxe o Batcopter. Está no telhado.
Em jeito de pedido de desculpa, Michael disse:
- Ouça, aquela chalaça não foi por mal. Eu sou assim. Quando vejo oportunidade para uma piada, aproveito.
- Porque vê tanto na vida que o perturba, a crueldade, o ódio -disse Deucalião. - O humor é a sua armadura.
Pela segunda vez numa hora, Michael não soube o que dizer.
Carson nunca imaginara que chegaria tal dia. Talvez aquele fosse um dos sete sinais do Apocalipse.
Cortou o selo da polícia que estava na porta, usou a pistola Lockaid na fechadura e entraram todos.
- Minimalismo minimizado - comentou Deucalião enquanto percorria a sala pouquíssimo mobilada. - Não há livros.
- Ele tem alguns no sótão - disse Carson.
- Não há recordações - continuou Deucalião -, não há peças decorativas, fotografias, obras de arte. Ele não encontrou maneira de viver esta vida. Esta é a cela de um monge... mas de um monge que
não tem fé.
A tentar ganhar vantagem outra vez, Michael disse:
- Carson, ele é completamente barra nisto.
Deucalião olhou para a cozinha, mas não avançou nessa direcção.
264
- Por vezes ele senta-se à mesa ali, a beber. Mas o uísque não lhe proporciona a evasão de que ele necessita. Apenas um olvido ocasional.
Anteriormente, a busca da praxe revelara uma caixa de uísque na cozinha.
A olhar para o quarto, Deucalião anunciou:
- É provável que encontrem pornografia ali. Um único objecto. Uma cassete vídeo.
- Exacto - confirmou ela. - Encontrámos uma.
Quando aparecera na busca, Michael dera vários nomes à cassete pornográfica - Travestissilvânia, A Coisa com Duas Coisas - mas agora nada dizia, impressionado com a perspicácia de Deucalião.
- Ele não encontrava excitação alguma em imagens de cópula -rematou Deucalião. - Apenas uma sensação ainda mais profunda de ser um forasteiro. Apenas maior alienação.
Receoso de um mundo inundado pela luz do dia, em toda a sua azáfama estonteante, Randal Seis refugiou-se antes disso dentro de um contentor de lixo numa viela.
Felizmente, aquele contentor enorme está meio cheio com coisas nada ofensivas, lixo de escritórios, principalmente papel e cartão. Não há lixo de restaurantes nem do mercado, não há fedor orgânico nem
substâncias viscosas.
Ao longo do dia, até chegarem as nuvens carregadas, o sol incide em Randal. É o primeiro sol da sua vida, brilhante e quente, assustador a princípio, mas depois menos.
Está sentado a um canto, encostado aos papéis, o mundo reduzido a dimensões comportáveis, e a fazer palavras cruzadas, umas atrás das outras, no livro que trouxe com ele do seu quarto nas Mãos da Misericórdia.
Há trânsito frequente naquela viela. E gente a pé. Inicialmente ele pára de fazer as palavras cruzadas a cada possibilidade de um encontro mas, por fim, acaba por perceber que não é provável que o incomodem.
Se aparecer um camião do lixo para esvaziar o contentor, ele não sabe bem como lidar com isso. Esta possibilidade só lhe ocorreu depois de se refugiar dentro do contentor. Resta-lhe esperar que a recolha
de lixo não seja diária.
Como faltou ao pequeno-almoço e ao almoço, a fome avoluma-se com o passar do dia. Tendo em conta as proezas que já alcançou, bem pode aguentar alguma fome.
Na Misericórdia, as refeições intactas de Randal vão alertar o pessoal sobre a sua ausência, embora isso talvez demore algum tempo. Por vezes, quando está particularmente imerso no seu desprendimento autista,
ele deixa uma refeição por comer durante horas. Já muitas vezes comeu o pequeno-almoço e o almoço uma hora antes do jantar - e depois deixou o jantar até à meia-noite.
Antes de partir da Misericórdia, fechou a porta da casa de banho. Poderão pensar que ele está lá dentro.
De vez em quando, as pessoas atiram sacos de lixo e objectos soltos para dentro do caixote. O contentor é mais alto que as suas cabeças, pelo que não podem vê-lo facilmente lá dentro.
266
Por vezes o lixo bate nele, mas nunca se revela problemático. Quando as pessoas se vão embora, Randal afasta as coisas recém-chegadas e restabelece-se no seu ninho acolhedor.
A meio da tarde, um homem a cantar "King of the Road" percorre a viela. Canta desafinadamente.
A avaliar pelo barulho, deve estar a empurrar um carrinho qualquer. As rodas giram com estrépito no pavimento rachado.
Entre versos da canção, o homem resmunga cadeias incoerentes de palavrões e depois volta a cantar.
Quando o homem pára no contentor do lixo, Randal Seis põe de lado o livro das palavras cruzadas e a caneta. O instinto diz-lhe que pode vir a haver problemas.
Aparecem duas mãos sujas na beira do contentor. O cantor agarra--se bem, a grunhir e a praguejar enquanto sobe pelo contentor acima.
Equilibrado na beira do caixote, metade dentro, metade fora, o homem repara em Randal. E arregala os olhos. "
Deve ter trinta e tal anos, barba, está precisado de um banho. Os dentes são tortos e amarelados quando os mostra e diz:
- Isto é o meu território, ó tanso.
Randal levanta os braços, agarra no homem pelas mangas da camisa, puxa-o para dentro do contentor e parte-lhe o pescoço. Empurra o cadáver para a outra ponta do contentor e tapa-o com sacos de lixo.
Mais uma vez no seu canto, torna a pegar no livro das palavras cruzadas. Vira as páginas até chegar àquela onde estava, e termina de soletrar perturbação.
O carrinho do morto está perto do contentor. Alguém acabará por reparar nele e pensar onde poderá estar o dono.
Randal terá de lidar com o problema se e quando este surgir. Entretanto, palavras cruzadas.
O tempo passa. As nuvens escurecem o céu. Embora ainda esteja quente, o dia vai ficando mais fresco.
Randal Seis não está feliz, mas está satisfeito, descontraído. Mais tarde, será feliz pela primeira vez.
Vê na sua mente a imagem do mapa da cidade, o seu caminho para a felicidade, a casa dos O'Connor no fim da viagem, a estrela que lhe serve de guia.
Dado ao seu sofisticado metabolismo, os membros da Nova Raça não se embebedam facilmente. Possuem grande capacidade de beber e, quando ficam embriagados, recuperam com mais rapidez do que qualquer membro
da Velha Raça.
Ao longo do dia, o padre Duchaine e Harker abriram garrafa atrás de garrafa do vinho da comunhão. Este recurso ao inventário da igreja perturbava o padre, por ser uma apropriação indevida dos fundos e
porque o vinho, depois de abençoado, ter-se-ia tornado no sangue sagrado de Cristo.
Sendo uma criatura sem alma feita pelo homem mas encarregado de obrigações religiosas, o padre Duchaine ficara, ao longo dos meses e dos anos, cada vez mais dividido entre o que era e o que almejava ser.
Independentemente da questão moral de usar aquele vinho específico para fins alheios ao culto, o conteúdo alcoólico da bebida era inferior ao que eles teriam desejado. Ao fim da tarde, começaram a apimentá-lo
com o que o padre Duchaine tinha de vodca.
Sentados nas poltronas do gabinete do presbitério, o padre e o detective tentavam pela décima - talvez vigésima - vez deslindar os problemas nas psiques um do outro.
- O Pai não tardará a encontrar-me - previu Harker. - E vai deter-me.
- E a mim - disse o padre com ar soturno.
- Mas não me sinto culpado pelo que fiz.
- Não matarás.
- Mesmo que haja Deus, o mandamento não se pode aplicar a nós - disse Harker. - Não somos filhos Dele.
- O nosso criador também nos proibiu de matar... salvo por ordem dele.
- Mas o nosso criador não é Deus. Ele é mais... como o dono de uma plantação. O assassínio não é pecado... apenas desobediência.
- Ainda assim é crime - disse o padre Duchaine, perturbado pelas justificações que Harker dava a si próprio, embora a analogia com o dono de uma plantação tivesse um fundo de verdade.
Sentado à beira da poltrona, debruçado para a frente, o copo de vinho temperado com vodca bem seguro nas duas mãos, Harker perguntou:
- Acreditas no mal?
268
- As pessoas fazem coisas terríveis - disse o padre - quer dizer, pessoas a sério, da Velha Raça. Para filhos de Deus, fazem coisas terríveis, terríveis.
- Mas o mal - insistiu Harker -, o mal puro e determinado? O mal será uma presença real no mundo?
O padre bebeu um gole e respondeu:
- A Igreja permite exorcismos. Eu nunca fiz nenhum.
Com a solenidade de um pavor profundo e de muito álcool, Harker perguntou:
- Será ele o mal?
- Victor? - O padre Duchaine sentiu-se em terreno perigoso.
- É um homem duro, não é fácil gostar dele. As piadas que conta não têm graça.
Harker levantou-se da cadeira, foi até à janela e observou o céu baixo e ameaçador que impusera um crepúsculo antecipado ao dia.
Ao fim de algum tempo, disse:
- Se ele for o mal... o que seremos nós? Tenho estado tão... confuso ultimamente. Mas não sinto que sou o mal. Não sou como Hitler ou Lex Luthor. Apenas... incompleto.
O padre Duchaine chegou-se para a beira da poltrona.
- Achas que... se vivermos da maneira certa, poderemos com o tempo desenvolver as almas que Victor não nos pôde dar?
Harker afastou-se da janela, deitou mais vodca no copo, e disse com ar sério:
- Ganhar alma? Como... se ganham pedras na vesícula? Nunca pensei nisso.
-Já viste o filme Pinóquio?
- Nunca tive paciência para os filmes deles.
- É uma marioneta de madeira - explicou o padre Duchaine - que quer ser um rapaz de verdade.
Harker assentiu, engoliu metade do vinho e disse:
- Como o Ursinho Puff quer ser um urso a sério.
- Não, o Puff tem delírios. Ele já acha que é um urso a sério. Come mel e tem medo de abelhas.
- E o Pinóquio consegue ser um rapaz de verdade?
O padre Duchaine respondeu:
- Depois de muitas vicissitudes, consegue.
- Mas que inspirador - concluiu Harker.
- Pois é. E deveras.
269
Harker mordiscou o lábio inferior, a pensar. Depois perguntou:
- Consegues guardar segredo?
- Com certeza. Sou padre.
- Isto mete algum pavor - disse Harker.
- Tudo na vida mete algum pavor.
- Grande verdade.
- Aliás, esse foi o tema da minha homilia no Domingo passado.
Harker pousou o copo e pôs-se de pé diante de Duchaine.
- Mas estou mais entusiasmado do que apavorado. Começou há dois dias, e tem vindo a acelerar.
Expectante, Patrick levantou-se da poltrona.
- Como Pinóquio - disse Harker -, estou a mudar.
- A mudar... como?
- Victor negou-nos a capacidade de nos reproduzirmos. Mas eu... eu vou parir qualquer coisa.
Com uma expressão que parecia ser de medo mas também de orgulho, Harker levantou a camisola larga.
Um rosto subcutâneo tomava forma debaixo da pele e das camadas superficiais de gordura do abdómen de Harker. A coisa era como uma máscara de morte mas em movimento: olhos cegos a revirarem-se, boca a abrir-se
como que num grito mudo.
O padre Duchaine encolheu-se com o choque e benzeu-se, antes de se aperceber do que fazia.
Tocaram à campainha.
- Parir? - perguntou o padre, todo agitado. - O que te faz pensar ser um parto e não o caos biológico?
Um suor súbito revestiu a cara de Harker. Amuado com aquela rejeição, puxou a camisola para baixo.
- Não tenho medo. Porque deveria ter? - Mas era evidente que tinha medo.
- Já matei. Agora dou vida - o que faz de mim mais humano.
Tocaram à campainha outra vez.
- Uma separação na estrutura celular, metástase - disse o padre Duchaine. - Um defeito de criação terrível.
- Tens inveja. É isso que tu tens - inveja na tua castidade.
- Tens de ir ter com ele. Pedir ajuda. Ele saberá o que fazer.
- Ah, ele saberá o que fazer, de certezinha - disse Harker. - Tenho um lugar à minha espera no aterro.
270
Tocaram à campainha uma terceira vez, com mais insistência do que antes.
- Espera aqui - disse o padre Duchaine. - Já volto. Havemos de descobrir o que fazer... alguma coisa. Espera.
Fechou a porta quando saiu do gabinete. Atravessou a sala até ao átrio da frente.
Quando o padre abriu a porta da rua, deparou-se com Victor no alpendre.
- Boa noite, Patrick.
A tentar esconder a ansiedade, o padre Duchaine disse:
- Sim, senhor. Boa noite.
- Boa noite, mais nada?
- Desculpe, como? - Quando Victor franziu o sobrolho, Duchaine compreendeu.
- Ah, sim, claro. Entre, senhor, faça o favor de entrar.
88.
***II
II
As sombras das traças criavam uma tatuagem em constante mutação nos rostos de Cristo, Buda, Amen-Ra.
No sótão por cima do apartamento de Harker, Carson, Michael e Deucalião reuniram-se diante da colagem de deuses que ia de parede a parede, onde Harker devia ter passado horas sem fim.
- Parece exprimir tal anseio - disse Carson. - Sente-se a angústia dele.
- Não se deixe comover - aconselhou Deucalião. - Ele aderiria a qualquer filosofia que enchesse o vazio dentro dele.
Deucalião arrancou uma imagem de Cristo no Jardim do Getsema-ni, depois uma de Buda, e viram-se várias formas e rostos por baixo, cuja natureza era, a princípio, misteriosa.
- Deus era apenas a obsessão mais recente - explicou Deucalião.
À medida que se revelavam outras fotografias, Carson viu uma colagem subjacente de imagens e símbolos do nazismo: suásticas, Hitler, soldados a marchar.
- Por baixo de todos estes rostos de deuses tradicionais está outro deus que o deixou ficar mal - disse Deucalião. - Um deus de violenta mudança social e pureza racial. Há tantos desses.
Talvez finalmente convencido da natureza de Deucalião, Michael perguntou:
- Como sabia que havia uma segunda camada?
- Não apenas segunda - corrigiu Deucalião. - Uma terceira também.
Quando Hitler e seus sequazes foram arrancados da parede, surgiu uma colagem ainda mais fantasmática: Satanás, demónios, símbolos satânicos.
Deucalião disse:
- A falta de esperança exclusiva de uma criatura sem alma acaba por levar ao desespero, e o desespero fomenta a obsessão. No caso de Harker, esta é apenas a superfície disso.
Carson arrancou a carantonha de um demónio com cornos e cornilhos e perguntou:
- Quer dizer... que há mais camadas debaixo destas?
- A parede parece esponjosa, acolchoada - disse Michael.
Deucalião assentiu.
***II
272
- Foi forrada a papel vinte vezes, ou mais. Pode ser que encontrem deuses e deusas outra vez. Quando as esperanças novas falham, as esperanças antigas regressam, no ciclo infindável do desespero.
Pelo contrário, Carson e Michael encontraram Sigmund Freud na quarta camada. Depois outras imagens de homens igualmente solenes.
- Freud, Jung, Skinner, Watson - observou Deucalião, a identificar cada rosto revelado. - Rorschach. Psiquiatras, psicólogos. Os deuses mais inúteis de todos.
89.
o padre Duchaine recuou no umbral da porta e Victor entrou no átrio do presbitério.
O senhor da Nova Raça olhou em redor com interesse.
- Acolhedor. Bastante agradável. O voto de pobreza não exclui certos confortos. - Levou um dedo ao colarinho do padre Duchaine.
- Leva os seus votos a sério, Patrick?
- Claro que não, senhor. Como poderia? Nunca frequentei realmente o seminário. Nunca tomei votos. O senhor deu-me vida com um passado inventado.
No que poderia ter sido um tom de advertência, Victor disse:
- Vale a pena recordá-lo.
Imbuído do sentido de posse, Victor percorreu o corredor, foi entrando na casa, sem ser convidado.
Atrás do seu amo, o padre entrou na sala e perguntou:
- A que devo a honra desta visita, senhor?
Victor observou a sala e disse:
- As autoridades ainda não encontraram o detective Harker. Todos corremos riscos até eu me reapossar dele.
- Pretende que eu mobilize a nossa gente para o procurar?
- Crê mesmo que isso serviria de alguma coisa, Patrick? Não me parece.
Quando Victor atravessou a sala na direcção da porta do gabinete, o padre Duchaine perguntou:
- Posso servir-lhe um café, senhor? Um brande?
- É isso que cheirei no seu hálito, Patrick? Brande?
- Não. Não, senhor. É... é vodca.
- Só há uma coisa que eu pretendo agora, Patrick: uma visita à sua bonita casa.
Victor foi até à porta do gabinete e abriu-a.
O padre Duchaine susteve a respiração e passou o umbral da porta atrás do seu criador - e viu que Harker se fora.
Victor deu a volta ao gabinete e disse:
- Programei-o com uma bela educação em teologia. Melhor do que qualquer coisa que pudesse ter tido numa universidade ou num seminário.
274
Parou para ver a garrafa de vinho e a garrafa de vodca lado a lado na mesinha. Havia apenas um copo em cima da mesa.
Alarmado, o padre Duchaine reparou que ficara um círculo a marcar o sítio onde estivera o copo de Harker.
Victor disse:
- Com a sua bela educação, Patrick, talvez me possa dizer - alguma religião ensina que Deus pode ser ludibriado?
- Ludibriado? Não. Claro que não.
O segundo círculo poderia ter sido feito pelo copo do padre Duchaine. Ele poderia tê-lo mexido para onde estava agora, deixando esse círculo. O padre Duchaine desejou que Victor considerasse essa possibilidade.
Enquanto Victor continuava a percorrer o gabinete, disse:
- Tenho curiosidade. O Patrick já tem alguns anos de experiência com os seus paroquianos. Acha que eles mentem ao seu deus?
Sentindo-se na corda bamba, o padre respondeu:
- Não. Não, eles tencionam cumprir as promessas que Lhe fazem. Mas são fracos.
- Porque são humanos. Os seres humanos são fracos, os da Velha Raça. No que é uma das razões para a minha gente os destruir, os substituir.
Embora Harker se tivesse esgueirado do gabinete, devia ter-se escondido em algum lado.
Outra vez na sala, Victor não se encaminhou para o átrio, e rumou à sala de jantar adjacente. O padre Duchaine seguiu-o, muito nervoso.
A sala de jantar estava deserta.
Victor empurrou a porta oscilante e entrou na cozinha, e o padre Duchaine foi atrás como um cão temeroso de que o seu exigente dono encontre motivo para castigo.
Harker fora-se embora. Na cozinha, a porta que dava para o alpendre das traseiras estava aberta. A corrente de ar que entrava do crepúsculo negro da tempestade cheirava vagamente à chuva que se avizinhava.
- Não devia deixar as portas abertas - advertiu Victor. - Há tanta gente de Deus com tendências criminosas. Não se coibiriam de assaltar a casa a um padre.
- Quando o senhor tocou à campainha - disse o padre Duchaine, espantado por mentir com tanto arrojo - eu tinha ido lá fora apanhar ar fresco.
275
- O ar fresco não tem valor especial para aqueles que eu criei. Estão concebidos para medrarem sem exercício, dietas, com ar fresco ou ar poluído. - Bateu com os nós dos dedos no peito do padre
Duchaine.
- Você é uma máquina orgânica extraordinariamente eficiente.
- Estou grato, senhor, por aquilo que sou.
Da cozinha para o átrio, do átrio para o vestíbulo, Victor perguntou:
- Patrick, compreende o porquê de a minha gente se infiltrar na religião organizada, bem como em todos os outros aspectos da sociedade humana?
A resposta surgiu ao padre, não depois de uma reflexão cuidadosa, mas devido à sua programação:
- Daqui a muitos anos, quando chegar a altura de liquidar os que restarem da Velha Raça, não pode haver ninguém a quem possam recorrer.
- Nem ao governo - anuiu Victor - porque nós seremos o governo. Nem à polícia ou às forças armadas... nem à igreja.
Mais uma vez, como num discurso decorado, o padre Duchaine disse:
- Temos de evitar uma guerra civil destrutiva.
- Exacto. Em vez de guerra civil... um extermínio assaz civilizado. - Abriu a porta da rua. - Se o Patrick alguma vez se sentisse... incompleto de algum modo... iria ter comigo, espero.
Cauteloso, o padre perguntou:
- Incompleto? O que quer dizer?
- A deriva. Confuso quanto ao sentido da sua existência. Sem objectivos.
- Oh, não, senhor. Eu sei qual o meu objectivo, e sou-lhe dedicado.
Victor fitou o padre Duchaine durante muito tempo antes de dizer:
- Óptimo. Muito bem. Porque há um risco especial para aqueles que servem no clero. A religião sabe ser sedutora.
- Sedutora? Não vejo como. É um tal disparate. Irracional.
- Tudo isso é pior - concordou Victor. - E se houvesse vida além da morte e um deus, ele odiá-lo-ia por aquilo que o Patrick é. Ele acabaria consigo e lançá-lo-ia no Inferno. - Victor saiu para
o alpendre.
- Boa noite, Patrick.
- Boa noite, senhor.
Depois de o padre Duchaine fechar a porta, deixou-se ficar no vestíbulo até sentir as pernas tão fracas que teve de se sentar.
276
Foi à escada e sentou-se num degrau. Agarrou uma mão com a outra para sossegar as tremuras que sentia.
Gradualmente, as mãos mudaram de posição e ele deu com elas juntas em oração.
Apercebeu-se de que não trancara a porta. Antes que o seu criador pudesse abri-la e apanhá-lo na sua traição, o padre cerrou os punhos e bateu com eles nas pernas.
90.
De pé junto da mesa desdobrável que servia de escrivaninha na sala de fúria, Deucalião mexia nas pilhas de livros.
- Anatomia. Biologia celular. Biologia molecular. Morfologia. Este é de psicoterapia. Mas o resto... Biologia humana.
- E porque é que ele montou isto? - perguntou Carson, e apontou para a caixa de luz na parede virada a norte, onde estavam afixadas radiografias de crânios, caixas torácicas, braços e pernas.
Deucalião respondeu:
- Ele crê que algo lhe falta. Há muito que tenta compreender o que poderá ser.
- E por isso estuda gravuras em livros de anatomia, e compara as radiografias de outrem com as suas...
- Como não aprendeu nada com isso - disse Michael - começou a cortar gente verdadeira e a procurar dentro dela.
- Tirando o Allwine, o Harker escolheu gente que lhe parecia inteira, que lhe parecia possuir o que lhe faltava a ele.
Michael disse:
- No depoimento que a Jenna prestou, ela diz que o Harker lhe confidenciou querer ver o que ela tinha por dentro que fazia dela mais feliz do que ele.
- Queres dizer, deixando de lado as vítimas do Pribeaux, as do Harker não foram aleatórias? - perguntou Carson. - Era gente que ele conhecia?
- Gente que ele conhecia - confirmou Deucalião. - Gente que ele achava feliz, completa, segura de si.
- O empregado de bar. O empregado da lavandaria - disse Michael.
- Harker deve ter bebido um copo, de vez em quando, nesse bar - alvitrou Deucalião. - É provável que encontrem o nome da lavandaria no livro de cheques dele. Ele conhecia aqueles homens, assim como
conhecia Jenna Parker.
- E o espelho da Alice? - perguntou Michael, e apontou para o espelho tripartido a um canto do sótão.
- Ele punha-se ali todo nu - explicou Deucalião. - A estudar o seu corpo em busca de... uma diferença, uma deficiência... algo que revelasse o motivo de se sentir incompleto. Mas isso deve ter sido
antes de ele ter começado a procurar... por dentro.
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Carson voltou aos livros que estavam em cima da mesa, e abriu-os um por um, nas páginas que Harker assinalara com post-its, na esperança de saber mais daquilo que lhe interessava especificamente.
- O que fará ele a seguir? - perguntou Michael.
- O que tem feito até aqui - respondeu Deucalião.
- Mas ele anda a monte, anda fugido. Não tem tempo de organizar uma das suas... dissecções.
Quando Carson pegou no livro de psicoterapia, Deucalião afirmou:
- Está mais desesperado do que nunca. E quando o desespero aumenta, aumenta também a obsessão.
Um dos marcadores não era post-it. Carson descobriu um cartão de marcação para a terceira sessão com Kathleen Burke, a marcação a que ele faltara.
Virou-se e olhou para o mural de imagens coladas.
Quando eles tinham arrancado pedaços da colagem, a quarta camada surgira, debaixo dos demónios e diabos. Freud, Jung. Psiquiatras...
Carson ouviu dentro da sua cabeça a conversa que tivera com Kathy na noite anterior, diante daquele mesmo prédio: Mas parecia que eu e o Harker tínhamos... uma ligação.
Michael percebeu, como percebia sempre, e perguntou:
- Alguma coisa?
- E a Kathy. Ela é a próxima.
- O que encontraste?
Ela mostrou-lhe o cartão das marcações.
Ele pegou no cartão, virou-se para Deucalião, mas Deucalião já desaparecera.
91.
Permanece uma fracção do dia, mas filtrada pelas nuvens negras como fuligem, a luz derrama-se fina, cinzenta, e entretece-se com sombras mais para obscurecer do que para iluminar.
Há horas que o carrinho de supermercado - atulhado de sacos de lixo cheios de latas, garrafas e outros artigos respigados aqui e ali - está onde o vagabundo o deixou. Ninguém reparou nele.
Randal Seis, acabado de sair do contentor, tenciona empurrar o carrinho até um sítio mais discreto. Talvez possa atrasar assim a descoberta do cadáver dentro do caixote do lixo.
Fecha as duas mãos na pega do carrinho, fecha os olhos e imagina dez quadrados de palavras cruzadas no chão diante de si, e começa a soletrar consumista. Não termina a palavra, pois acontece uma coisa
espantosa.
Enquanto o carrinho das compras avança, as rodas fazem barulho no pavimento irregular; não obstante, o movimento é extraordinariamente, satisfatoriamente, suave. Suave e contínuo a ponto de Randal descobrir
que não consegue pensar facilmente no seu avanço letra por letra, um quadrado de cada vez.
Embora este desenvolvimento o assuste, o movimento incessante das rodas pelos quadrados, em vez de um quadrado após outro ordeiramente, não o faz parar. Ele ganha... ímpeto.
Quando chega ao segundo s da palavra consumista, pára de soletrar porque já não sabe bem em qual dos dez quadrados imaginados se encontra. Espantosamente, embora pare de soletrar, ele continua a avançar.
Abre os olhos, partindo do princípio de que, quando já não visualizar os quadrados das palavras cruzadas na sua mente, irá parar de súbito. Continua a avançar.
A princípio, sente-se como se o carrinho fosse a força motriz que o puxa pela viela fora. Embora não tenha motor, deve haver uma espécie de magia a impeli-lo.
É assustador porque implica falta de controlo. Ele está à mercê do carrinho das compras. Tem de ir aonde ele o levar.
No fim do quarteirão, o carrinho poderia virar à esquerda ou à direita, mas continua em frente, passa uma rua lateral, e entra na extensão seguinte da viela. Randal continua no caminho estabelecido para
a casa dos O'Connor. Continua a avançar.
Enquanto as rodas giram, giram, ele apercebe-se de que, afinal, não é o carrinho a puxá-lo. É ele a empurrar o carrinho.
Faz uma experiência. Quando tenta aumentar a velocidade, o carrinho anda mais depressa. Quando opta por um ritmo menos apressado, o carrinho abranda.
Embora a felicidade não esteja ao seu alcance, sente uma satisfação inédita, talvez até contentamento. Enquanto roda, roda, roda para a frente, sente o gostinho, o mais leve gostinho, daquilo a que deve
saber a liberdade.
A noite caiu por completo mas, até na escuridão, até nas vielas, o mundo além da Misericórdia está repleto de tantas imagens, tantos sons, tantos cheiros, que ele não consegue processar sem entrar em pânico.
Por conseguinte, não olha nem para a esquerda nem para a direita, concentra-se no carrinho diante de si, no som das rodas.
Continua a avançar.
O carrinho de compras é como um quadrado de palavras cruzadas sobre rodas, e dentro dele não está somente uma colecção de latas de alumínio e garrafas de vidro, mas também a sua esperança de felicidade,
o seu ódio por Arnie O'Connor.
Continua a avançar.
92.
No bangalô do portão das conchas com o motivo do unicórnio, atrás das janelas ladeadas de persianas azul-cobalto decoradas com estrelas e meias-luas, Kathy Burke está sentada à mesa da cozinha, a ler um
romance de aventuras passado num reino governado por magia e bruxaria, a comer bolachas de amêndoa e a beber café.
Pelo canto do olho, vê movimento, ergue o olhar do livro e depara-se com Jonathan Harker especado à porta entre a cozinha e o corredor escuro.
A cara dele, geralmente corada do sol ou da raiva, está mais do que pálida. Desalinhado, a transpirar, é como se tivesse malária.
Embora os olhos dele estejam irrequietos e arregalados, embora as suas mãos nervosas puxem continuamente a camisola bamba e ensopada, ele fala de uma maneira humilde e cativante que contrasta estranhamente
com a entrada e a aparência agressivas:
- Boa noite, Kathleen. Como estás? Ocupada, de certeza. Sempre ocupada.
Kathy adaptou-se ao tom de voz dele, pôs calmamente um marcador no livro e pousou-o na mesa.
- Não tinha de ser assim, Jonathan.
- Talvez sim. Talvez nunca tenha havido esperança para mim.
- Em parte é culpa minha que sejas aquilo que és. Se tivesses ficado na terapia...
Ele deu um passo para dentro da cozinha.
- Não. Escondi-lhe muita coisa. Não queria que a Kathy soubesse... o que eu sou.
- Tenho sido uma terapeuta péssima - disse ela, apelando para a empatia dele.
- A Kathy é boa mulher. Boa pessoa.
A estranheza daquela conversa - a humildade dela, a lisonja de Harker - à luz dos crimes mais recentes, era impossível de manter, e Kathy deu voltas à cabeça a pensar onde aquele encontro iria levar e
na melhor maneira de o orientar.
O destino interrompeu quando o telefone tocou.
Olharam os dois para o aparelho.
- Prefiro que a Kathy não atenda - disse Harker.
Ela continuou sentada e não o desafiou.
282
- Se eu tivesse insistido para que o Jonathan viesse às sessões, poderia ter reconhecido sinais de que o Jonathan estava... com problemas.
O telefone tocou uma terceira vez.
Ele assentiu. Fez um sorriso torturado.
- Pois teria. A Kathy é tão perspicaz, tão compreensiva. Por isso é que eu tinha receio de continuar a falar consigo.
- Não se quer sentar, Jonathan? - convidou ela, e apontou para a cadeira do outro lado da mesa.
Quinto toque.
- Estou tão cansado - admitiu ele, mas não avançou para a cadeira.
- Meto-lhe asco... aquilo que fiz?
Escolhendo as palavras com cautela, Kathy respondeu:
- Não. Sinto... uma espécie de mágoa, parece-me.
Depois do sétimo ou oitavo toque, o telefone calou-se.
- Mágoa - continuou ela - porque gostava tanto do homem que você era... O Jonathan que eu conheci.
- Não há retorno possível, pois não?
- Não lhe vou mentir - disse ela.
Harker avançou hesitante, quase tímido, para Kathleen.
- A Kathy é tão completa. Eu sei que, se puder ver dentro de si, encontrarei o que me falta.
Na defensiva, ela levantou-se da cadeira.
- Sabe bem que isso não faz sentido, Jonathan.
- Mas que mais posso fazer senão... continuar à procura?
- Eu só quero o melhor para si. Acredita no que lhe digo? -Acho... Sim, acredito.
Ela respirou fundo e arriscou:
- Então deixa-me chamar alguém, tratar das coisas para o levarem? Durante um momento angustiado, Harker olhou em redor da cozinha, como se estivesse encurralado. Poderia ter explodido então, mas
a tensão amainou e ficou só a ansiedade.
Sentindo que estava a conseguir que ele se rendesse, Kathy pediu:
- Deixe-me chamar alguém. Deixe-me fazer o mais correcto.
Ele ponderou sobre a oferta dela por momentos.
- Não. Não, isso não seria o melhor.
Olhou para o fundo da cozinha, intrigado com qualquer coisa. Quando Kathy seguiu a direcção do olhar dele, viu o suporte das facas cheio de lâminas reluzentes.
283
Ao sair do apartamento de Harker, Michael não fez qualquer tentativa de se sentar ao volante, e atirou as chaves a Carson.
Foi ao lado dela, agarrado à caçadeira, com a arma entre os joelhos, o canhão apontado para o tecto do carro.
Por força do hábito, enquanto eles voavam noite fora, ele disse:
- Pára de tentar bater o recorde em terra. A central vai mandar alguém que chegará antes de nós, seja como for.
A acelerar, Carson retrucou:
- Disseste alguma coisa, Michael? "Sim, Carson, disse mais depressa, mais depressa". Ah, foi o que me pareceu, Michael.
- Não sabes mesmo imitar-me - queixou-se ele. - Não tens metade da pilhéria.
Com uma mão no abdómen, como se tivesse dores de estômago, Harker percorreu a cozinha, avançou para o suporte das facas, retrocedeu, e tornou a avançar.
- Algo está a acontecer - disse ele com ar preocupado. - Talvez não venha a ser como eu pensei que seria.
- O que se passa? - perguntou Kathy, à cautela.
- Talvez não vá correr bem. Nada bem. Vem aí qualquer coisa. Abruptamente, o rosto dele contorceu-se de dor. Soltou um grito estrangulado e levou as mãos ao abdómen.
- Jonathan?
- Estou a dividir-me.
Kathy ouviu pneus a derraparem e travões a chiarem quando um carro parou rapidamente no acesso a sua casa.
A olhar em direcção ao ruído, o terror a sobrepor-se à dor, Harker inquiriu:
- Pai?
Em vez do portão com o unicórnio, Carson preferiu o acesso da garagem, e parou tão perto da porta desta que nem um feiticeiro poderia ter-se conjurado a ponto de caber entre a casa e o pára-choques do
carro.
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Sacou da pistola do coldre quando saiu do carro, e Michael meteu um cartucho na caçadeira enquanto dava a volta ao carro para ir ter com ela.
A porta da rua escancarou-se e Kathy Burke correu pelo alpendre fora e desceu os degraus.
- Graças a Deus - exclamou Carson.
- Harker saiu pelas traseiras - disse Kathy.
Mesmo enquanto ela falava, Carson ouviu passos a correr e virou--se em busca do som.
Harker saíra pelo outro lado da garagem. Passou do relvado para a rua antes que Carson pudesse fazer pontaria.
Agora já estava numa zona demasiado pública - casas do outro lado da rua - para que ela disparasse. O risco de danos secundários era muito alto.
Michael corria, Carson corria, e Harker corria à frente deles, pelo meio da rua do bairro.
Apesar dos dónutes e dos jantares rápidos comidos de pé, apesar do tempo engordativo passado sentados à secretária a preencher as resmas de papelada que se tornara no flagelo do polícia moderno, Carson
e Michael eram rápidos, rápidos como polícias em filmes, rápidos como lobos atrás de coelhos.
Harker, não sendo humano, sendo uma aberração qualquer criada num laboratório por Victor Frankenstein, era mais rápido. Ao longo do quarteirão de Kathy até à esquina e depois à esquerda para outra rua,
ao longo de outro quarteirão e depois à direita nessa esquina, ele ganhava terreno.
Os relâmpagos rasgaram o céu, as sombras das magnólias saltaram para o passeio, e um trovão abalou a cidade de tal maneira que Carson achou sentir o chão a tremer, mas a chuva não caiu logo, aguentou-se.
Passaram do bairro de bangalôs para a zona de prédios baixos com escritórios e apartamentos.
Harker corria como o homem da maratona cheio de speeds, e afastava-se, afastava-se - mas nisto, a meio do quarteirão, fez o erro de virar para uma viela que afinal era um beco.
Chegou à barreira de tijolos com dois metros e meio, atirou-se ao ar, subiu como um macaco por um pau, mas gritou abruptamente, como se tomado de dores lancinantes. Caiu do muro, rebolou no chão e pôs-se
imediatamente de pé.
285
Carson gritou para ele parar, como se houvesse alguma esperança de que ele o fizesse, mas ela tinha de seguir os procedimentos.
Ele tornou a lançar-se ao muro, saltou, agarrou-se ao cimo, demasiado depressa para ela fazer pontaria, e passou para o outro lado.
- Põe-te à frente dele! - gritou ela para Michael, e ele voltou para trás, à procura de um caminho diferente para a rua além do muro.
Ela meteu a pistola no coldre, arrastou um caixote do lixo meio cheio até à ponta do beco, subiu para cima dele, agarrou-se ao cimo do muro com as duas mãos, içou-se e passou uma perna para o outro lado.
Embora tivesse a certeza de que Harker tinha escapado, Carson deparou-se com ele caído outra vez. Estava de barriga para cima, a contorcer-se como uma cobra que partiu a espinha.
Se a espécie dele podia desligar a dor em momentos de crise, como Deucalião alegava, Harker esquecera-se dessa opção, ou havia algo tão errado nele que não o conseguia controlar.
Quando ela desceu o muro, ele pôs-se de pé outra vez, e cambaleou rumo a um cruzamento.
Estavam perto do cais. Transitãrios, armadores, armazéns, na sua maioria. Não havia trânsito àquela hora, as empresas às escuras, as ruas silenciosas.
No cruzamento, Michael apareceu na rua mais à frente.
Encurralado entre Carson e Michael, Harker virou-se para a viela da esquerda, a qual dava para o cais, mas estava vedada quase a quatro metros de altura, com um portão largo fechado a cadeado, pelo que
ele guinou para a frente de um armazém.
Quando Michael se acercou dele de caçadeira apontada, Carson não avançou, para não obstruir a mira.
Harker ganhou velocidade na direcção da porta do armazém, como se não a visse.
Obedecendo ao protocolo habitual, Michael gritou para Harker parar, deitar-se no chão e pôr as mãos atrás da cabeça.
Quando Harker embateu na porta, esta aguentou-se, e ele gritou, mas não caiu como seria de esperar. Antes pelo contrário, parecia colado à porta.
Ao estrépito do impacto seguiu-se o grito de raiva de Harker e o guincho do metal torturado.
Michael tornou a berrar ordens, a cinco passos da posição de disparo à queima-roupa.
286
A porta do armazém cedeu. As dobradiças saltaram e ouviu-se tão alto como se fossem tiros. A porta foi-se abaixo, e Harker desapareceu lá dentro mesmo antes de Michael parar e apontar a caçadeira de calibre
12.
Carson juntou-se a ele à entrada.
- Ele vai tentar sair pelas traseiras.
Assim que Harker chegasse ao cais - as docas, os barcos, a zona de carga - haveria mil maneiras de ele desaparecer.
Carson ofereceu a sua arma, com o punho para a frente, a Michael e disse:
- Dá-lhe com as duas pistolas quando ele sair pelas traseiras. Dá cá a caçadeira que eu empurro-o para ti.
Isto fazia sentido porque Michael era mais alto do que ela, mais forte e, como tal, capaz de subir os quatro metros da vedação da viela mais depressa do que Carson.
Pegou-lhe na pistola e deu-lhe a caçadeira.
- Cuidado com a tua pele. Não me agradaria nada que lhe acontecesse alguma coisa.
O manto do céu negro rasgou-se. Clarões de luz vulcânica, explosões vulcânicas. Finalmente a chuva reprimida desabava num volume capaz de inspirar construtores de arcas diluvianas.
À direita da porta partida, Carson encontrou interruptores. A luz revelou uma zona de recepção. Soalho de mosaicos cinzentos, paredes azul-pálidas. Algumas cadeiras. Corrimãos baixos à esquerda e à direita,
secretárias mais além.
Precisamente à frente estava um balcão de serviço. No extremo esquerdo, um portão aberto.
Harker poderia estar agachado do lado oposto do balcão, à espera dela, mas ela duvidava que o encontrasse ali. A prioridade dele não era limpar-lhe o sebo, era fugir.
Ela passou o portão primeiro, a varrer o ar com a caçadeira de calibre 12 para cobrir a zona atrás do balcão. Nada de Harker.
Havia uma porta entreaberta atrás da zona administrativa. Carson abriu-a com o cano da caçadeira.
Chegava-lhe luz suficiente de trás para revelar um corredor curto. Nada de Harker. Deserto.
Ela entrou, acendeu a luz do corredor. Pôs-se à escuta mas só captou o trovão e o batuque insistente da chuva no telhado.
De cada lado havia uma porta. A sinalética identificava-as como casas de banho de homens e de senhoras.
Harker não teria parado para verter águas, lavar as mãos, ou admirar-se ao espelho.
Garantindo a si própria que ele não teria vontade nenhuma de vir por detrás dela e apanhá-la de surpresa, que ele só queria fugir, Carson passou as casas de banho rumo a outra porta ao fundo do corredor.
Olhou para trás duas vezes. Nada de Harker.
A porta tinha uma janela para controlo do trânsito por onde ela viu a escuridão mais além.
Ciente de que era um alvo retro-iluminado enquanto estivesse no umbral da porta, Carson passou-a depressa e agachada, a olhar para a esquerda e a direita no feixe de luz que a acompanhava. Nada de Harker.
A porta fechou-se e deixou-a às escuras. Encostou-se à parede, sentiu os interruptores contra as costas, afastou-se, segurou na caçadeira com uma mão e acendeu a luz.
Suspensa do tecto dez metros acima, uma série de luzes de candeeiros em forma de cone mostrava um armazém grande com mercadoria empilhada em paletes com cinco metros de altura. Um labirinto.
288
Virou à direita e passou pelos intervalos, a olhar para o fundo de cada um. Nada de Harker. Nada de Harker. Nada de Harker. Harker.
A dez metros do princípio do intervalo entre paletes, na direcção oposta à dela, Harker coxeava como se tivesse dores, debruçado para a frente, agarrado ao tronco com os dois braços.
A pensar nas pessoas que ele esquartejara, a pensar na mesa de autópsia improvisada no quarto dele, onde se preparara para dissecar Jenna Parker, Carson foi atrás dele sem tenções de lhe dar margem de
manobra. Percorreu cinco metros antes de o chamar, levantou a caçadeira, e pôs o dedo no gatilho.
Se ele tombasse como deveria, ela tê-lo-ia na mira, e pegaria no telemóvel para chamar Michael, para pedir reforços.
Harker virou-se para ela. O cabelo molhado caía-lhe na cara. A forma do corpo dele parecia... errada.
O filho da mãe não tombou. Saiu dele o barulho mais fantasmagórico que ela jamais ouvira: grito de agonia, riso excitado, expressão de raiva em bruto.
Carson disparou.
O chumbo acertou-lhe em cheio, onde os braços aconchegavam o abdómen. O sangue jorrava.
Tão rápido que ele não parecia ser uma figura real mas sim alguém num filme sincopado, Harker subiu por uma parede de paletes e saiu do intervalo.
Carson carregou a arma, seguiu-o com a mira como se ele fosse um prato de tiro ao alvo e rebentou com um bocado da grade de cima, mas falhou quando ele desapareceu por cima da paliçada.
A rezar para que não lhe viesse a estragar o abono de família, Michael meteu a pistola de Carson no cinto, subiu a vedação no princípio da viela, fez uma careta quando um relâmpago cortou a noite, a pensar
que ele atingiria o arame e o deixaria electrocutado.
Passou a vedação, entrou na viela, ileso, e correu debaixo de chuva incessante e ecos do trovão para as traseiras do armazém.
Uma rampa de betão dava para a zona de carga nas traseiras. Havia uma enorme porta corrediça e uma porta do tamanho de um homem nessa plataforma funda. Harker sairia pela porta mais pequena.
Sacou da pistola de Carson mas deixou a sua no coldre. Não iria realmente disparar duas armas ao mesmo tempo, uma em cada mão.
289
Para ter melhor pontaria, teria de segurar numa arma com as duas mãos.
Se Harker se revelasse, conforme o anunciado, tão difícil de abater como um rinoceronte em fúria, Michael poderia esvaziar um carregador a tentar acertar-lhe nos dois corações. Se depois disso Harker ainda
conseguisse fugir, não haveria tempo de tirar o carregador vazio e inserir um novo. Ele largaria a arma de Carson, sacaria da sua, e rezaria para o conseguir abater com essas dez balas.
Satisfeito com esta estratégia, Michael apercebeu-se de que, embora a história de Frankenstein parecesse uma lata de toucinho, ele comera-a com tanta avidez como se fosse bife do lombo.
Lá dentro, a caçadeira de calibre 12 disparou. Quase de imediato, disparou outra vez.
Michael meteu uma mão no bolso do casaco e apalpou cartuchos para a caçadeira. Esquecera-se de os dar a Carson. Ela entrara com um cartucho no cano, três no carregador. Agora só restavam dois.
A caçadeira atroou outra vez.
Ela só tinha um cartucho, e não tinha arma de reserva.
Esperar por Harker na zona de carga já não era viável.
Michael experimentou a porta mais pequena. Estava trancada, claro, mas pior, era de placa de aço, resistente ao arrombamento, com três canhões na fechadura.
Sentiu movimento e assustou-se. Recuou e viu Deucalião a seu lado - alto, tatuado, totémico, à luz do relâmpago.
- Onde raio...
- Eu percebo de fechaduras - interrompeu Deucalião.
Em vez de aplicar afinesse que as suas palavras implicavam, aquela bisarma agarrou na maçaneta da porta, girou-a com tanta força que os três canhões da fechadura saíram da placa de aço com um estalido,
rangido e guincho do metal torturado, e atirou a porta arrancada para a zona de carga.
- Mas que raio - perguntou Michael - foi aquilo?
- Invasão de propriedade - respondeu Deucalião, e desapareceu dentro do armazém.
94.
Quando Michael entrou no armazém atrás de Deucalião, o gigante já lá não estava. Estivesse lá onde estivesse, o gajo dava novo sentido ao termo furtivo.
Se chamasse Carson, iria alertar Harker. Além disso, a tempestade fazia mais barulho dentro do que fora, era quase ensurdecedora. A chuva rugia contra o telhado de metal canelado.
Grades de tamanhos diversos, barricas, e cubos de mercadorias embaladas a vácuo formavam um labirinto de tamanho imponente. Michael teve a mais breve hesitação e depois lançou-se na peugada do Minotauro.
Encontrou centenas de contentores de duzentos litros hermeticamente selados com cápsulas de vitaminas a granel, peças de maquinaria em grades, material audiovisual japonês, grades de equipamento desportivo
- e um corredor deserto atrás do outro.
A frustração aumentou até ele achar que talvez devesse dar uns tiros nuns caixotes que diziam ter bonecos do Elmo a fazer kungfu, a fim de aliviar a tensão. Se tivessem bonecos do Dinossauro Barney, seria
mais provável que ele tivesse agido por impulso.
Mais acima, e mais alto do que a chuva, ouvia-se o barulho de alguém a correr sobre a mercadoria empilhada. As grades e barricas do lado direito do corredor estremeciam e rangiam e entrechocavam-se.
Quando Michael olhou para cima, viu algo que era Harker mas que não era, um vulto corcunda, retorcido e grotesco, vagamente humano mas com um torso disforme e braços a mais, que vinha na direcção dele
por cima da paliçada. Talvez a velocidade a que ele se mexia e o jogo de luz e sombra lhe enganassem a vista. Talvez não fosse nada monstruoso. Talvez fosse apenas a grande carraça que era o Jonathan,
e Michael estivesse em tal estado de agitação paranoica que estaria praticamente a imaginar os pormenores demoníacos.
Com a arma nas duas mãos, tentou seguir Harker, mas o fugitivo mexia-se depressa de mais, e Michael calculou que, se disparasse, o primeiro tiro seria quando Harker saltasse na direcção dele e estivesse
no ar. Todavia, no penúltimo minuto, Harker mudou de direcção e saltou das pilhas da direita, galgou os três metros do intervalo e aterrou na paliçada do lado esquerdo.
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Michael olhou para cima e, apesar do ângulo extremo, conseguiu ver melhor o adversário. Já não podia agarrar-se à esperança de que imaginara a transformação grotesca de Harker. Não poderia jurar pelos
pormenores específicos do que vislumbrara, mas Johnny não estava de modo algum em condições aceitáveis para jantar com companhia decente. Harker era Hyde saído de Jekyll, Quasímodo cruzado com o Fantasma
da Opera, sem a capa negra, sem o chapéu mole, mas com um toque de H.E Lovecraft.
Harker aterrou em cima da mercadoria à esquerda de Michael e agachou-se, de gatas, talvez em seis pernas e, com aquilo que pareciam ser duas vozes a discutirem entre si com guinchos desarticulados, gatinhou
dali para fora na direcção de onde viera.
Como não padecia de dúvidas quanto à sua virilidade, como sabia que a bravura era muitas vezes a melhor parte da coragem, Michael pensou em sair do armazém, voltar à esquadra, e escrever uma carta de demissão.
Em contrapartida, foi atrás de Harker. Não tardou a perdê-lo.
A escutar ruídos além da tempestade, a respirar o mesmo ar que a sua presa, Deucalião movia-se devagar, pacientemente, entre dois contrafortes de paletes de mercadoria. Não procurava, aguardava.
E, tal como esperara, Harker foi ter com ele.
Aqui e ali, as frestas entre cada parede de grades davam a ver o corredor seguinte. Quando Deucalião chegou a uma dessas vigias, uma cara pálida e luzidia olhava-o a dois metros e meio da passagem paralela.
- Irmão? - perguntou Harker.
Deucalião fitou aqueles olhos torturados e respondeu:
- Não.
- Então o que és?
- O primeiro que ele fez.
- De há duzentos anos? - perguntou Harker.
- E um mundo de distância.
- És tão humano quanto eu?
- Vem até ao fim do corredor comigo - pediu Deucalião. - Posso ajudar-te.
- És tão humano quanto eu? Consegues matar e criar?
Com a ligeireza de um gato, Deucalião escalou a paliçada, do chão ao tecto, talvez em dois segundos, três quando muito, atravessou para
292
O corredor seguinte, olhou para baixo, saltou. Não fora rápido o bastante. Harker desaparecera.
Carson encontrou uma escada em caracol aberta a um canto. Ou-viam-se passos rápidos nos degraus metálicos mais acima. Algo a ranger e depois uma rajada de chuva repentina. Uma porta a bater, bloqueando
o barulho imediato da carga de água.
Com uma única bala e pronta a disparar, Carson começou a subir.
A escada dava para uma porta. Quando a abriu, a chuva açoitou-a.
Mais além ficava o telhado.
Carson premiu um interruptor na parede. Lá fora, por cima da porta, acendeu-se uma lâmpada nua dentro de uma grade metálica.
Depois de mexer na tranca para que a porta não se fechasse automaticamente atrás dela, Carson saiu para a tempestade.
O telhado amplo era plano, mas a visibilidade até ao parapeito não era boa. Além das cortinas cinzentas da chuva, das colunas de ventilação e de várias estruturas tipo depósito - talvez com equipamento
de ar condicionado e quadros eléctricos dentro - tapavam-lhe a vista.
O interruptor perto da porta acendera outras lâmpadas dentro de grades, mas o dilúvio atenuava a maior parte da iluminação.
A cautela, ela começou a avançar.
Ensopado, enregelado mesmo que a chuva estivesse morna, na certeza de que a expressão "molhado até aos ossos" faria com que as lágrimas lhe viessem aos olhos para o resto da vida, Michael deslocava-se
entre as colunas de ventilação. Prudentemente, deu a volta a um dos depósitos, passando bem ao largo em cada esquina.
Ia a seguir alguém - alguma coisa - no telhado e sabia que não estava sozinho.
Fosse qual fosse a serventia, os depósitos ou barracões pareciam casinhas para Hobbits do ar. Depois de contornar o primeiro, Michael experimentou a porta. Trancada. A do segundo também estava trancada.
E a do terceiro.
293
Quando se dirigia ao quarto depósito, ouviu o que poderiam ser as dobradiças da porta que ele acabara de tentar abrir - e depois, à distância, Carson a chamar por ele, um grito de aviso.
Em cada clarão do relâmpago, as bátegas de chuva cintilavam como torrentes de cristais biselados num candeeiro colossal mas, em vez de alumiar o telhado, aquela pirotecnia só aumentava a confusão e diminuía
a visibilidade.
Carson deu a volta a um monte de tubagens de ventilação e lobrigou uma figura naquela cintilação de cristal obscurecido. Viu melhor quando o relâmpago incidiu, apercebeu-se de que era Michael, a seis metros
de distância, e depois reparou noutra figura que saía de um dos depósitos.
- Michael! Atrás de ti!
Quando Michael se virou, Harker - pois só podia ser Harker -agarrou-o e, com uma força sobre-humana, levantou-o no ar e acima da cabeça e depois correu para o parapeito.
Carson levou um joelho ao chão, apontou para baixo de modo a poupar Michael e disparou a caçadeira.
Atingido nos joelhos, a cambalear, Harker atirou Michael para a beira do prédio.
Michael embateu contra o parapeito baixo, começou a escorregar, quase caiu, mas segurou-se e voltou ao telhado.
Embora Harker devesse ter tombado e estar a ganir de dor, com os joelhos em pouco mais do que gelatina, continuava de pé. E lançou-se a Carson.
Carson levantou-se e apercebeu-se de que disparara o último cartucho. Agarrou-se à arma pelo efeito psicológico, se o houvesse, e recuou quando Harker se aproximou.
A luz dos candeeiros velados pela chuva, numa série quântica de relâmpagos cada vez mais incandescentes, Harker parecia ter uma criança ao colo, embora os braços estivessem livres.
Quando a coisa pálida agarrada a Harker se virou e olhou para ela, Carson viu que não era nenhuma criança. Um anão, mas não ao estilo conto de fadas, deformado a ponto de parecer maligno, a boca apenas
uma fenda e os olhos malévolos, era decerto um fantasma, um truque da luz e dos relâmpagos, da chuva e da obscuridade, da mente e da confusão, a conspirar para iludir.
294
Contudo, a monstruosidade não desapareceu quando ela tentou apagá-la com um piscar de olhos. Harker aproximava-se, Carson recuava, e ela achou que a cara do detective estava estranhamente inexpressiva,
os olhos vítreos, e ela teve a perturbante sensação de que a coisa agarrada a ele o controlava.
Quando Carson bateu contra uma pilha de tubos de ventilação, os pés derraparam no telhado molhado e ela quase caiu.
Harker lançou-se sobre ela, como um leão que ataca a presa vacilante. O grito de triunfo não parecia sair dele, mas sim da coisa agarrada ao seu peito, ou... a sair do seu peito?
De súbito, Deucalião apareceu e agarrou no detective e no monstro em cima dele. O gigante levantou-os sem esforço, tão alto quanto Harker levantara Michael, e atirou-os do telhado abaixo.
Carson correu para o parapeito. Harker estava de barriga para baixo na viela, a mais de doze metros de altura. Inerte, como morto, mas ela já o vira sobreviver a outra queda fatal na noite anterior.
95
A escada de incêndio descia em ziguezague da empena do armazém. Carson parou no cimo o tempo suficiente para agarrar nos três cartuchos que Michael lhe passava e carregá-los na caçadeira.
A escada de ferro estava escorregadia com a chuva. Quando ela se agarrou ao corrimão, sentiu-o viscoso na pele.
Michael seguia-a de perto, de perto de mais, a escada aberta a tremer e a ranger com o peso deles.
- Estás a ver aquela coisa?
- Estou.
- Aquela cara?
- Estou.
- Estava a sair de dentro dele.
- O quê?
- De dentro dele!
Ela nada disse. Não sabia o que dizer. Continuou a descer depressa, a virar um lanço após o outro.
- A coisa tocou-me - disse Michael, a repulsa bem patente na sua voz.
- Está bem.
- Não está nada bem.
- Estás ferido?
- Se ele não estiver morto...
- Está morto - interrompeu ela, esperançosa.
- Mata-o.
Quando chegaram à viela, Harker continuava caído no chão, mas já não estava de barriga para baixo. Tinha-se virado de costas.
A boca aberta. Os olhos arregalados, fixos; a chuva fazia poças dentro deles.
Dos quadris aos ombros, aquilo que ele era... já não era. O peito e o abdómen tinham desabado. Farrapos de pele e tecido cobriam os fragmentos da caixa torácica.
- Saiu de dentro dele - afirmou Michael.
Algo a raspar e a mexer em metal chamou-lhes a atenção para mais adiante na viela, perto da fachada do armazém.
Através da cortina de chuva e da luminosidade dos relâmpagos, Carson viu uma figura pálida e disforme agachada diante de uma abertura para os esgotos, agora destapada.
296
Àquela distância de três metros, na névoa da tempestade tropical, pouco via da criatura. Mas Carson sabia que estava a ser observada por ela.
Levantou a caçadeira, e já a criatura lívida entrara para o esgoto e desaparecera.
Michael perguntou:
- Mas que raio era aquilo?
- Não sei. Talvez... talvez nem queira saber.
Pessoal da Criminologia, da Medicina Legal, uma dúzia de agentes fardados, e a mescla habitual e desagradável de repórteres chegara, e a tempestade fora-se.
Os edifícios escorriam, a rua brilhava cheia de poças, mas nada parecia limpo, nada cheirava a limpo, e Carson desconfiou que nada nunca mais lhe pareceria limpo.
Jack Rogers aparecera para supervisionar o acondicionamento e transporte dos restos mortais de Jonathan Harker. Estava decidido a não perder provas desta vez.
Na parte de trás do carro à civil, a guardar a caçadeira, Carson perguntou:
- Onde está Deucalião?
Michael respondeu:
- Deve ter ido jantar com o Drácula.
- Depois do que viste, ainda continuas a resistir a isto?
- Digamos que continuo a processar os dados.
Ela deu-lhe um calduço afectuoso - mas com força - na cabeça.
- É melhor arranjar-te uma unidade lógica actualizada.
O telemóvel dela tocou. Quando Carson atendeu, ouviu Vicky Chou em pânico.
96.
Terminada, programada, depois de receber um carregamento de habilitações linguísticas e outras, Erika Cinco estava deitada no tanque de vidro selado, à espera de ser animada.
Victor pairava sobre ela, a sorrir. Ela era uma criatura belíssima.
Embora já quatro Erikas o tivessem desapontado, ele tinha grandes esperanças nesta quinta. Mesmo ao fim de duzentos anos, aprendia novas técnicas, soluções de concepção melhoradas.
Introduziu comandos no computador que estava associado àquele tanque - número 32 - e ficou a ver a solução leitosa onde Erika estava deitada a ser escoada e a dar lugar a uma solução de limpeza transparente.
Em poucos minutos, este segundo banho foi escoado também, debcando-a seca e rosada.
Os numerosos eléctrodos, tubos com nutrientes, drenos, e tubagens de serviços que estavam ligados a ela retiraram-se automaticamente. Nisto, ela sangrou de algumas veias, mas apenas por um momento; nos
membros da Nova Raça, feridas tão diminutas saravam em segundos.
A tampa de vidro curvo abriu-se sobre dobradiças pneumáticas, e um choque activador deixou Erika a respirar sem assistência.
Victor estava sentado num banquinho ao lado do tanque, debruçado, o rosto dele perto do dela.
As pestanas belíssimas mexeram-se. Abriu os olhos. O primeiro olhar foi bravio e temeroso. Não era invulgar.
Quando o momento certo chegou, e Victor soube que ela passara do choque do parto ao interesse pela vida, perguntou:
- Sabes o que és?
- Sim.
- Sabes porque é que existes?
- Sim.
- Sabes quem eu sou?
Pela primeira vez, ela fitou-o.
- Sim. - E depois baixou o olhar numa espécie de reverência.
- Estás pronta a servir-me?
- Sim.
- Vou gostar de te usar.
Ela olhou para ele outra vez, e depois afastou humildemente o olhar.
97.
No relvado escuro e ensopado da chuva, havia um carrinho de supermercado cheio de latas e garrafas, ao lado da casa, perto do alpendre das traseiras.
Carson, com Michael atrás, olhou para o carrinho, perplexa, e subiu os degraus do alpendre a correr.
Vicky Chou, de roupão e chinelos, estava à espera na cozinha. Tinha na mão um garfo para carne como se fizesse tenções de o usar como arma.
- As portas estavam trancadas. Eu sei que estavam - disse ela.
- Não faz mal, Vic. Como já te disse ao telefone, eu conheço-o. Ele não faz mal nenhum.
- Grande, tatuado, mesmo grande - disse Vicly para Michael. - Não sei como é que ele entrou cá em casa.
- Deve ter levantado o telhado - ironizou Michael. - Veio pelo sótão.
Deucalião estava no quarto de Arnie, a ver o rapaz brincar com o castelo. Olhou para Carson e Michael quando estes entraram.
Arnie falava consigo mesmo:
- Fortificar. Fortificar. Fortificar e defender.
- O seu irmão - disse Deucalião - vê profundamente a natureza verdadeira da realidade.
Intrigada por esta afirmação, Carson disse:
- Ele é autista.
- Autista... Porque vê demasiado, demasiado mas não o bastante para compreender o que vê. Ele confunde a complexidade com o caos. O caos apavora-o. Ele esforça-se por trazer a ordem a este mundo.
Michael disse:
- Pois. Depois de tudo o que vi esta noite, também eu me esforço.
A Deucalião, Carson perguntou:
- Duzentos anos... Você e o tal Victor Frankenstein... Porquê agora? Porquê aqui?
- Na noite em que eu ganhei vida... Talvez tenha recebido a missão de destruir Victor quando chegasse o momento.
- Recebido de quem?
- Por quem quer que tenha criado a ordem natural que Victor desafia com tal raiva e tal ego.
300
Deucalião tirou uma moeda da pilha que estava em cima da mesa, que anteriormente dera a Arnie. Lançou-a ao ar, apanhou-a pelo caminho, abriu a mão. A moeda desaparecera.
- Tenho livre arbítrio - disse Deucalião. - Poderia fugir ao meu destino. Mas não fujo.
Tornou a lançar a moeda ao ar.
Carson observava-o, hipnotizada.
Tornou a apanhá-la no ar, a abrir a mão. Nada da moeda.
Michael perguntou:
- O Harker e essas... essas outras coisas que Victor tem criado... são demoníacas. E você? Você tem...
Como Michael hesitava, Carson terminou-lhe a pergunta:
- Feito por mão humana mas... você tem alma? Aquele relâmpago... deu-lhe uma?
Deucalião fechou a mão, abriu-a um instante depois e as duas moedas estavam na palma da sua mão.
- Apenas sei que... sofro.
Arnie deixara de brincar com o castelo. Levantou-se da cadeira, hipnotizado pelas duas moedas na mão de Deucalião.
- Sofro de culpa, remorso, contrição. Vejo mistérios por toda a parte na trama da vida... e acredito.
Deucalião pôs as moedas na mão aberta de Arnie.
- Victor era apenas um homem - continuou Deucalião -, mas fez um monstro de si próprio. Eu era um monstro... mas sinto-me tão humano agora.
Arnie fechou a mão sobre as moedas e abriu-a logo.
Carson ficou sem fôlego. As moedas tinham desaparecido da mão de Arnie.
- Duzentos anos - continuou Deucalião - que tenho vivido como um estranho no vosso mundo. Aprendi a estimar a humanidade imperfeita pelo optimismo de que dá mostras, apesar dos seus defeitos, pela
sua esperança diante de uma luta incessante.
Arnie fechou a mão vazia.
- Victor pretende matar a humanidade inteira - declarou Deucalião - e povoar o mundo com as suas máquinas de sangue e osso.
Arnie olhava para o seu punho fechado - e sorria.
- Se não me ajudarem a resistir - disse Deucalião - ele terá a arrogância de triunfar.
Arnie tornou a abrir a mão. As moedas tinham reaparecido.
301
- Aqueles que lutarem contra ele - disse Deucalião - ver-se-ão na luta das suas vidas...
Da mão de Arnie, Deucalião tirou uma das moedas.
- Tiramos à sorte? - perguntou ele a Michael. Depois olhou para Carson.
- Cara, e vocês lutam a meu lado... Coroa, luto sozinho.
Atirou a moeda e apanhou-a no ar.
Antes que ele pudesse mostrá-la, Carson pôs a mão na dele, impedindo-o de a abrir. E olhou para Michael.
Michael suspirou.
- Bem, eu nunca quis ser realmente engenheiro de segurança -admitiu ele, e pôs a sua mão em cima da dela.
Para Deucalião, Carson disse:
- Que se lixe a sorte. Lutamos juntos.
Escuro, seco, sossegado, o espaço exíguo por baixo da casa é para Randal Seis um ambiente ideal. As aranhas não o incomodam.
A viagem desde a Misericórdia foi um triunfo, mas deu-lhe cabo dos nervos e deixou-lhe a coragem em carne viva. A tempestade quase o deitara abaixo. A chuva, o céu em chamas com os relâmpagos e as sombras
a ganharem a terra, os trovões, as árvores a tremerem ao vento, as sarjetas a transbordarem de água suja cheia de lixo... Demasiados dados. Demasiada informação. Por várias vezes, ele quase se fora abaixo,
quase caíra no chão e se enrolara numa bola como um bicho-de-conta.
Agora precisa de tempo para recuperar, para recobrar a autoconfiança.
Fecha os olhos no escuro, respira lenta e profundamente. O aroma doce a jasmim chega até ele pela gelosia entrecruzada que rodeia a base da casa.
Directamente de cima dele, vêm três vozes abafadas a conversar com toda a seriedade.
No quarto acima dele há felicidade. Ele sente-a, radiante. Conseguiu chegar à fonte. O segredo está ao seu alcance. Este filho da Misericórdia, às escuras e coberto de aranhas, sorri.
Dean Koontz
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