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O FILME PERFEITO - P.2 / Jodi Picoult
O FILME PERFEITO - P.2 / Jodi Picoult

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O FILME PERFEITO

Segunda Parte

 

ELA NÃO FALOU SOBRE OS HEMATOMAS. NÃO PRECISAVA. A VERDADE é que já tinha suas dúvidas antes mesmo de o avião aterrissar e tinha preparado sua argumentação. Era simples: Ophelia acreditava que Alex estava preparando uma grande queda para mim, pois, caso contrário, não teria motivos para ter insistido em se casar com tamanha rapidez no meio do nada, em vez de realizar um grande casamento em Hollywood do qual todos se lembrariam durante anos.

- Além disso - ela sussurrou quando deixamos Alex e John perto da esteira de bagagens -, eu vi aquele beijo para as câmeras. Ele fez sombra a você, Cassie. Todo mundo sabe que é a mulher que fica de frente para a câmera.

Eu dei risada. De todas as pessoas que haviam visto a cena, Ophelia provavelmente tinha sido a única a perceber.

- E todos aqueles astros que fogem para Las Vegas? - contra-argumentei. - Lembre-se de quantos jornalistas apareceram aqui às três horas apenas para verem meu rosto... já pensou em como seria tentar realizar um casamento discreto aqui?

Ophelia pôs o dedo em meu peito.

- É exatamente o que quero dizer - ela disse, deixando para mim a função de entender a lógica daquilo

Nervosa, ela rolou os olhos.

- Não deveria ter sido um casamento discreto. Deveria ter sido o evento do ano. Toda mulher deste país quer saber com quem Alex Rivers se casou. Então por que ele realiza uma cerimónia na maldita Tanzânia e foge para o aeroporto no meio da madrugada como se não quisesse que ninguém a visse?

- Talvez porque ele me ama? A última coisa que eu desejaria seria um casamento no estacionamento de uma grande empresa de filmes.

Ophelia balançou a cabeça, de maneira negativa.

- Mas não é assim que as coisas são feitas, não em Hollywood. Tem alguma coisa errada. - Ela olhou para mim depois de baixar o olhar e de repente compreendi exatamente o que Ophelia acreditava estar errado: na ordem natural da indústria cinematográfica, Alex Rivers deveria se unir a uma mulher que fosse linda, voluptuosa e ostentosa; uma mulher que nunca teria concordado com uma cerimónia discreta; uma mulher que soubesse que um beijo era também uma oportunidade de foto. Alex Rivers deveria ter se casado com alguém como Ophelia.

Nunca antes eu havia tido algo que Ophelia quisesse. Nós saíamos, era ela quem atraía os olhares, aquela que virava assunto. No máximo, eu era o papel laminado que envolvia sua beleza.

Mas enquanto esperávamos que Alex e John trouxessem as bagagens, vi Ophelia olhando ao redor para os outros carros e limusines, esperando encontrar alguém que reconhecesse um carro com chofer de alguma celebridade e que a estivesse observando. Provavelmente aquela era a primeira vez em que ela não era o centro das atenções ao sair comigo, e a verdade era que, a partir de então, ela nunca mais seria.

Eu havia interpretado mal a reação de Ophelia a Alex. Sim, ela o estava analisando, e as marcas de hematomas em meu pescoço a haviam assustado, mas sua objeção a ele era a escolha que ele fizera. Ophelia não tinha a intenção de me diminuir - não havia pensado nisso. Simplesmente não conseguia compreender por que uma pessoa que poderia escolher o que quisesse optara por algo tão simples.

Fiquei irritada. Parecia que meu mundo todo havia sido virado. Ophelia, que eu considerava como minha melhor amiga, estava sentindo inveja de meu casamento. Alex, que eu pensava ser um megalomaníaco convencido, havia me protegido, revelado seus segredos e entrado em meu coração de um modo tão profundo que abandoná-lo seria uma dor enorme.

Como se meus pensamentos o tivessem atraído, Alex apareceu com John a seu lado, ambos carregando uma mala. Imediatamente, seus olhos encontraram os meus, e os músculos de seus ombros pareceram relaxar. Ele estava procurando por mim.

Mantive meus olhos em Alex enquanto respondia a Ophelia.

- Não tem nada errado - eu disse. - E ele não é o que você está esperando. - Olhei novamente para ela para perceber sua reação. - Temos muito em comum - acrescentei, mas só diria aquilo, pois não queria trair a confiança de Alex.

- Espero que sim - Ophelia disse. Ela esticou o braço para tocar os pontos em meu pescoço sobre os quais ela sabia que eu não podia falar. - Por que você entrou em um mundo completamente diferente, no qual ele é a única pessoa que você conhece.

A CASA DE ALEX EM BEL-AIR SE ESTENDIA POR cinco hectares cercados por portões e era exatamente como as plantações que eu imaginava quando minha mãe me contava sobre sua infância no Sul. Era quase cinco horas quando chegamos, e eu me ajeitei ao lado de Alex, conforme o carro descia o longo caminho de cascalho, e desejei que minha mãe pudesse ver onde eu havia chegado.

Não era o tipo de casa que a maioria dos atores tinha em Los Angeles. A simplicidade havia substituído a grandeza da Idade de Ouro de Hollywood, simplesmente por oferecer às celebridades um pouco de isolamento. Mas Alex, que havia crescido em um trailer, desejaria uma casa como aquela. Senti um nó na garganta quando percebi que ele, que dava tanto valor à sua privacidade, estava disposto a trocar tudo pela opulência que não tivera na infância. Tentei imaginar se era o melhor para ele; se, ao passar aquela imagem ao público, as lembranças eram apagadas.

Apesar de ser cedo, havia uma grande movimentação na casa. Um jardineiro estava fazendo a poda de uma cerca-viva que se estendia pelo lado esquerdo da casa, e uma fina camada de fumaça saía de um dos pequenos prédios brancos do fundo.

- O que você acha?

Respirei fundo.

- É linda. - Nunca havia visto uma casa como aquela em minha vida; e percebi que faria o que estivesse a meu alcance para impedir que Alex conhecesse o pequeno apartamento onde eu havia morado com Ophelia, apenas para que eu não me sentisse envergonhada.

Alex me ajudou a sair do carro.

- Vou fazer o grande tour guiado mais tarde - ele disse. - Acredito que você não quer nada mais do que um colchão macio.

Sorri só de pensar: Alex e eu deitados sob os lençóis de uma cama mais ampla do que o corpo de apenas um de nós. Eu o segui subindo os degraus de mármore, sorrindo enquanto John abria a porta.

- Prontinho, senhora Rivers - ele disse e eu corei.

Alex passou por John e me direcionou para uma escada gloriosa e enorme que poderia ser aquela do filme E o vento levou...

- Vou apresentá-la a todos mais tarde. Estão loucos para conhecê-la.

Pensei: "O que será que eles sabem de mim?" Mas antes que eu pudesse dizer qualquer coisa, Alex abriu a porta para uma sala de descanso oval que tinha cheiro de ar fresco e limões. Ele atravessou o quarto e fechou uma grande janela, fazendo as cortinas de renda ficarem paradas.

- Este é o quarto - ele disse.

Eu olhei ao redor:

- Não tem uma cama?

Alex riu, apontando para uma porta que eu não havia notado, misturada entre as faixas azuis e brancas do papel de parede.

- Por aqui.

Era a maior cama que eu já tinha visto, sobre uma plataforma e coberta por um enorme edredom. Sentei-me na beirada, testando-a, e então abri a bolsa que carregava desde que saíramos do Quênia e tirei as coisas que sempre levava comigo em viagens de avião: minha escova de dentes, meu kit de higiene, outra camiseta. Enrolada na camiseta estava o vidro de neve que Alex levara a mim na Tanzânia, algo que eu não queria que se quebrasse no compartimento de bagagem. Coloquei-o sobre a cômoda de bordo ao lado da escova de Alex e de uma pilha alta de roteiros fotocopiados.

Alex me abraçou por trás e tirou minha camiseta.

- Bem-vinda ao lar - ele disse.

Eu me virei em seu abraço.

- Obrigada. Permiti que ele abrisse o zíper de minha calça de linho e tirasse meus sapatos e me colocasse sob as cobertas. Pressionei meus braços no edredom e esperei que Alex viesse para a cama.

Ele se virou e seguiu na direção da porta para a sala de descanso, e eu me sentei.

- Aonde vai? - perguntei, aumentando minha voz por causa do pânico.

Alex sorriu.

- Acho que não vou conseguir voltar a dormir - ele disse. - Vou acertar algumas coisas lá embaixo, estarei de volta quando você se levantar.

Pensei em como queria que ele ficasse ali comigo, para tornar aquele quarto desconhecido um lugar confortável. Passei as mãos sob os lençóis, no lugar onde ele deveria estar. Imaginei o sol do final da manhã no Quênia e de como ficávamos por horas na cama sem que o mundo real batesse à nossa porta. Mas o que eu poderia dizer a Alex? "Tenho medo de ficar sozinha nesta casa. Não conheço ninguém. Preciso de você ao meu lado, para entender onde me encaixo." Ou a verdade mais profunda: "Não me reconheço. Não reconheço você."

Alex fechou a porta cuidadosamente, deixando-me perdida. Disse a mim mesma para parar de agir como uma tola e fixei o olhar no vidro de neve sobre a cômoda, a única coisa até então dentro daquela casa que eu podia dizer que era minha. O sol entrou pelas portas francesas do quarto como um incêndio se alastrando, uma acusação. "Então", eu pensei, "é assim que as coisas começam."

 

- Finlândia.

- Dinamarca.

Alex passou os dedos sobre minhas costelas.

- Você já usou Dinamarca.

Peguei as mãos dele e as pressionei contra meu corpo.

- República Dominicana, então.

Alex balançou a cabeça.

- Eu já usei isso. Pode admitir: você perdeu. Só existem dois países que começam com D.

Ergui as sobrancelhas:

- É mesmo? - perguntei. Estávamos brincando de um jogo chamado Geografia em uma quinta-feira de manhã e, apenas para dificultar, havíamos limitado a brincadeira aos nomes de países. - Prove.

Alex riu.

- Com prazer. Mas você pega o mapa.

Eu queria me mexer, mas Alex manteve o braço ao redor de meu corpo, indicando que não pretendia me deixar sair dali. Estava deitado sobre uma espreguiçadeira verde-oliva com listras, e eu estava entre suas pernas, recostada em seu peito. Olhei para o sol quando ele iluminou as pontas de uma nuvem atrás da qual se escondia.

- Você memoriza o mapa-múndi em seu tempo livre? - provoquei, já sabendo a resposta: Alex aprendera geografia na infância, sozinho, dizendo os nomes dos lugares exóticos que gostaria de conhecer.

Ele beijou minha cabeça e, como se os acontecimentos estivessem relacionados, o sol se mostrou.

- Sou um homem de raros talentos e sensibilidade - ele disse de modo sexy, e eu tentei imaginar se ele sabia que aquela frase era mesmo verdadeira.

Sabe, apesar do que já lhe contei sobre nossa chegada a Los Angeles, todas as minhas dúvidas sobre Alex haviam desaparecido. Na semana em que voltamos para casa, ele não começou a trabalhar imediatamente, deixando-me sozinha. Nós passamos tempo na piscina, brincamos no labirinto de arbustos e dançamos descalços, sem música, na varanda do lado de fora do quarto. Depois do jantar, Alex dispensava os funcionários e nós fazíamos amor em um cômodo diferente por noite; sobre a mesa de mogno na biblioteca, sobre o tapete persa da sala, na cadeira branca de balanço na varanda de trás. "Assim", ele disse, - você não vai conseguir ir a lugar nenhum sem se lembrar de mim." Por minha vez, eu o levei à UCLA, a meu escritório e mostrei a ele meus trabalhos em andamento no laboratório, um fémur reconstruído de um australopitecino. Eu o apresentei a Archibald Custer, e Alex disse que poderia dar ao departamento uma doação generosa se eles atualizassem o grupo de professores da universidade. Essa sugestão - sobre a qual não havíamos conversado - me deixou desconfortável. Depois disso, ofereceram-me uma vaga de professora adjunta e uma grande variedade de cursos de janeiro para eu escolher, que eu nunca teria aceitado se Alex não tivesse me pedido, como um favor. "Você mudou a minha vida; deixe-me mudar a sua", ele dissera.

Alex passou tanto tempo ao meu lado - apresentando-me a seu agente, funcionários e amigos - que em determinado momento tentei imaginar se eu teria de nos sustentar. Não que isso fosse um problema de verdade. Ophelia estava certa - Alex recebia entre quatro e seis milhões de dólares por filme, e a maior parte do dinheiro ia para a sua empresa de produção, a Pontchartrain Productions, para pagar impostos. Ele pagava a si mesmo um salário, mas havia tantas mais coisas a pagar que até mesmo a parte de sua renda que ia para diversas instituições de caridade chegava a mais de um milhão por ano.

Eu estava rica. Na Tanzânia, Alex havia recusado minha sugestão de fazermos um acordo pré-nupcial, dizendo que queria que nosso casamento durasse a vida toda. Eu agora possuía metade de um rancho no Colorado; metade de um Monet, de um Kandinsky e dois van Goghs; metade de um conjunto de sala de jantar entalhado em cerejeira que tinha lugar para trinta pessoas e custara mais do que eu havia pago em todos os meus anos de faculdade. Mas nem mesmo a mobília mais linda do mundo não me impedia de sentir falta de minha velha cadeira de couro vermelho, a primeira peça que eu havia comprado na Califórnia; ou de pensar na escrivaninha do Exército da Salvação que Ophelia havia me dado de presente de Natal há um ano, pintada com símbolos de paz e margaridas. Minha mobília antiga não valia nada, não se encaixava naquela casa; mas, quando um caminhão de uma entidade que aceitava doações foi buscá-la, eu chorei.

Mas eu gostava tanto de estar com Alex que pela primeira vez em anos não fiquei ansiosa com o semestre que se iniciava na UCLA; eu via meu trabalho como algo que me afastaria de meu marido. Apesar disso, demorei um pouco para me acostumar com aquela vida. Eu passei a esperar escutar o assovio de Elizabeth, a empregada, ao descer o corredor para encontrar Alex de manhã. Havia me acostumado a anotar que precisava de abacates e sabonete Neutrogena do mercado e apenas deixar a lista com a secretária de Alex. Quando um paparazzo ousado entrava na propriedade e eu o via pela janela do banheiro, não gritava. Contava o ocorrido calmamente a Alex, como se fosse algo com que eu lidasse todos os dias e o observava telefonando para a polícia.

Mas nós não saíamos. Alex dizia que era para o meu bem, que deveríamos deixar a novidade do casamento passar um pouco antes de encararmos o público de novo. Ele me dizia sorrindo que me queria inteira para ele. Mas, quanto mais tempo passava dentro de minha gaiola de ouro, mais me lembrava das palavras ditas por Ophelia no aeroporto. E eu sabia que, por mais fantástica que minha vida estivesse sendo no momento, nunca ficaria totalmente feliz se não conseguisse construir uma ponte que ligasse a vida que eu levava em Westwood para essa nova em Bel-Air.

Alex estava mergulhando o dedo do pé na beira da piscina e tentava escrever meu nome com as gotas.

- C - ele disse. - A-S-S-... - Franziu o cenho e olhou para mim. - Por que não gosta do nome Cassandra?

Dei de ombros.

- Nunca disse que não gostava - expliquei. - Era assim que minha mãe tentava me chamar até meu pai convencê-la de que era um nome grande demais para uma menininha. E na sétima série fizemos um trabalho sobre mitologia grega e minha professora pediu que eu pesquisasse o sentido de meu nome. - Contei a explicação a Alex da mesma maneira que fizera na sala de aula: - Cassandra era a bela filha do rei Príamo e de Hécuba. Ela recebeu o poder da profecia de Apolo, mas, quando ele se apaixonou por ela e não foi correspondido, ele a amaldiçoou para que ninguém acreditasse que ela tinha o poder de prever o futuro, apesar de ser verdade. Aos doze anos, eu tinha gostado do fato de Cassandra ser bela o bastante para fazer Apolo se apaixonar, mas a maneira com que ela tinha sido forçada a viver sua vida me deixara chateada. Sem credibilidade, ela se tornou uma escrava e depois foi assassinada.

Continuei:

- Depois que terminamos aquela unidade, contei a todos os professores que queria ser chamada de Cassie, e todos concordaram.

Alex me levantou e me virou para que pudéssemos ficar frente a frente.

- Sorte sua, Cassandra, que você corresponde aos meus sentimentos.

Seu hálito passou por meu pescoço e eu escorreguei minhas mãos Por dentro de seu calção de banho, sentindo seu calor. Alex segurou minha nuca e me aproximou dele, deitando-me até rolarmos para o gramado ao lado da piscina.

- Puxa! E pensei que eu havia vindo em um momento inoportuno alguém disse.

Eu me afastei de Alex e tirei os cabelos de meu rosto e vi Ophelia, sendo segurada por John. Seu cabelo estava despenteado, seu short estava torto e de vez em quando ela se afastava de John como se o julgasse completamente repugnante.

John olhou para mim e depois para Alex.

- Ela contou ao Juarez, no portão, que era amiga da senhora Rivers, mas não deixou que interfonássemos, por isso a mandamos embora. E depois ela foi detectada pelo monitor tentando pular o portão.

- Por falar nisso - Ophelia disse a Alex. - Vou mandar a conta deste short a você. - E se voltou para mim: - E foi uma vergonha você não ter me passado a senha do dia.

- Ophelia - eu disse, balançando a cabeça. - Por que simplesmente não deu seu nome no portão de entrada?

Ophelia parecia cansada e decepcionada.

- Queria lhe fazer uma surpresa. Se eu tivesse dado meu nome, eles teriam estragado a surpresa.

Ergui minhas sobrancelhas. Ela era a última pessoa que eu esperava ver pulando a cerca da casa. Durante a última semana, eu tentara fazer com que ela aceitasse minha nova vida. Eu sabia que, em determinados aspectos, Ophelia e Alex eram muito iguais para se darem bem. Suas carreiras giravam de maneira parecida: eles mediam seu sucesso pelo número de pessoas que os conheciam; ambos precisavam de mim. Sabia que, no fundo, Ophelia acreditava que Alex estava tentando me afastar dela, mas eu também sabia que podia mudar isso. Em vez de ver Alex como uma ameaça, eu estava determinada a fazer com que ela o visse como um benefício - como uma espécie de irmão mais velho em sua área. Disse isso a ela várias vezes ao telefone. E, obviamente, também queria que Alex gostasse de Ophelia. Ela era minha única e melhor amiga.

Alex enrolara uma toalha em sua cintura para esconder o que não havíamos tido a chance de terminar e rapidamente dispensou John e pegou uma cadeira para Ophelia, entretendo-a com tanta facilidade que quase acreditei que ele estava acostumado com mulheres pulando os portões de sua casa.

- A culpa é minha - ele disse. - Sempre me esqueço de dar os nomes dos amigos de Cassie para que eles não sejam retidos no portão.

Arregalei os olhos. Nós nunca havíamos conversado sobre o assunto. Eu o vi sorrir para ela, e Ophelia desfazer a carranca e percebi que Alex usava o charme como arte.

- Oh! - Ophelia gritou e abriu a bolsa de lona com motivos florais que estava desbotada e molhada na parte de baixo. Pegou um embrulho e o entregou a mim. Do lado de dentro, havia pedaços de vidro; abri o embrulho e vi o vidro verde de uma garrafa de champanhe e senti o cheiro da bebida.

- Caiu no chão antes de mim quando pulei o portão - ela disse, como maneira de se desculpar. - Era um presente por sua casa nova.

Passei o dedo pelos cacos.

- Obrigada. Mas Alex vive aqui há algum tempo - eu disse.

Ophelia sorriu.

- Era mais para preparar a casa para a minha presença - ela disse. - Tenho sido uma idiota. Estava pensando se, talvez, podemos começar de novo. - Ela olhou para Alex, que estava sentado ao meu lado. - Mas é que depois de conhecer Cassie por tantos anos, quando ela disse que havia trazido algo da Tanzânia, pensei que se tratava de febre amarela, e não de um marido. Ela já demorou mais tempo para escolher uma bebida em um bar do que para se comprometer com você. Mas - ela admitiu -, quando ela decide tomar uma decisão, costuma ser sempre a melhor.

Alex olhou para Ophelia por muito tempo, um ator observando as habilidades de outro, e lentamente balançou a cabeça.

- Bem, ela escolheu você como colega de quarto.

Ophelia jogou os cabelos por sobre o ombro e sorriu. Eu olhei para ela, e depois para Alex e me lembrei da sensação de quando me mudei para Los Angeles: de que as pessoas aqui faziam parte de um enorme cenário, saudáveis, bronzeadas e desproporcionalmente bonitas.

- Sinto muito pelo champanhe - Ophelia disse.

- Sinto muito pelo seu short. - Eu me virei para poder ver o rasgo.

Ophelia riu.

- Na verdade, ele é seu. Você o deixou lá em casa. - Impulsivamente, ela se jogou para a frente e me abraçou. - Vai me perdoar, não é, Cassie? - ela perguntou.

Sorri.

- Por Alex, sim. Pelo short, nunca.

VOCÊ SABE QUE eu NÃO FARIA ISSO POR MAIS NINGUÉM. Ao escutar a voz de Alex, eu desviei o olhar do espelho na frente do qual estava me maquiando. Ele estava arrumando sua gravata preparando-se para uma noite na cidade, algo que ele não queria fazer. Ophelia implorara Para se desculpar levando-nos para jantar no Nicky Blair's e disse que pagaria a conta se Alex usasse sua influência para fazer as reservas em cima da hora. Alex concordara de maneira simpática, mas quando estávamos sozinhos no quarto escutei suas objeções: - Deveríamos jantar aqui. Seria melhor deixar que o nosso casamento deixasse de ser novidade. Podemos fazer isso em outra ocasião.

- Não será tão ruim - eu disse delicadamente -, estará terminado antes que você se dê conta. - Soltei a base que segurava e caminhei pelo quarto com minha roupa íntima e chinelos, parando diante de Alex. Desfiz o nó de sua gravata e voltei a fazê-lo, passando a mão por ela ao terminar. Inclinei-me para beijar seu rosto. - Obrigada - eu disse.

Alex passou as mãos pelos meus braços.

- Não será tão ruim quanto espero - ele disse. - É o meu truque. Se eu imaginar o pior, ficarei alegre. - Ele caminhou até meu closet e pegou uma das roupas que magicamente haviam aparecido poucos dias depois de minha chegada a Los Angeles, um vestido vermelho e longo diferente de tudo que eu possuía antes. Na verdade, a maioria de minhas roupas era bem diferente das que eu tinha antes. Mas Alex sabia mais sobre essas coisas - aonde eu iria e do que precisaria - por isso simplesmente aceitava o que ele escolhia.

- Hoje é quinta-feira - ele pensou, observando enquanto eu entrava no vestido e subindo o zíper na parte de trás para mim. - Assim, não haverá ninguém da indústria cinematográfica por perto. Não estão acontecendo estreias, e os jornalistas devem estar descansando. - Ele me virou pelos ombros e sorriu para mim: - Se tivermos sorte, será uma noite tranquila.

Quase disse o que me veio à mente. "Ophelia ficará muito triste." Ela estava no quarto de hóspedes, pegando emprestado um de meus novos vestidos e um par de sapatos. Quando Alex fizera a reserva no Nicky Blair's, um local badalado pelas celebridades, Ophelia não se conteve. Era bom vê-la pensando em Alex como um aliado, e não como inimigo, mas tentei imaginar se sua mudança de comportamento se devia ao fato de sentir saudades de mim ou de ter percebido as conexões que Alex poderia lhe oferecer.

Afastei aquele pensamento. Era claro que ela estava ali por mim; mal conhecia Alex. E havíamos passado uma tarde excelente. Eu havia lhe mostrado a casa, rindo de seus comentários; ela havia dito que as banheiras eram grandes o bastante para abrigar uma festa de elenco e que talvez Elizabeth, a empregada, vendesse os lençóis sujos de Alex para as fãs incansáveis reunidas nos portões. Um pouco depois das dezesseis horas, havíamos assaltado a geladeira, pegando chocolates e um pouco de salada de frango para o labirinto de arbustos, onde nos deitamos de barriga para cima e deixamos os raios de sol incidindo sobre nossos corpos. E, da mesma maneira como quando vivíamos em Westwood, conversamos sobre sexo - mas, dessa vez, não fiquei apenas escutando.

Nunca tive facilidade para abordar o assunto e Ophelia riria de mim se eu dissesse o que realmente queria. Por isso, resolvi lhe falar sobre os lugares exóticos onde eu e Alex havíamos transado; no local de escavação na Tanzânia, no último banco de uma igreja católica no Quênia, dentro do armário de produtos de limpeza enquanto Elizabeth dobrava as roupas do lado de fora.

Eu lhe contei sobre como o corpo de Alex era bonito e sobre quantas vezes nos amávamos à noite.

Não lhe disse que às vezes ele era tão delicado que me fazia chorar. Não lhe contei que, depois, ele me abraçava com força a ponto de me tirar a respiração, como se temesse que eu sumisse. Não lhe contei que de vez em quando, quando ele conversava comigo com suas mãos, coração e boca, eu me sentia valorizada e abençoada como uma santa.

Não disse essas coisas a Ophelia, mas isso não a impediu de ver todas elas em mim.

- Jesus! - ela disse. - Você está mesmo apaixonada. - Eu apenas assentira. Não acreditava que existissem palavras que explicassem as conexões e dependência que existia entre Alex e mim. Ophelia sorriu:

- Nenhuma doença, sexo quatro vezes por noite e nada de traição ainda. Até agora, o homem só tem um defeito.

Eu estava apoiada em meu cotovelo.

- E qual é?

Ele escolheu a você, e não a mim.

A voz de Alex me trouxe de volta à realidade. Ele havia buscado Ophelia, e agora os dois me observavam da porta. Ophelia estava vestindo um vestido meu que eu não havia visto no closet, uma peça verde que envolvia seu corpo e iluminava seus olhos. Ela estava muito ansiosa para passar a noite em um restaurante exclusivo. De braços dados com Alex, eles pareciam um lindo casal.

Ophelia olhou para mim dos pés à cabeça.

- Meu Deus! Você está linda!

Apertei minhas mãos diante de meu corpo. Ainda não sabia como reagir àqueles comentários.

- Você também - eu disse.

Ophelia sorriu e virou-se para Alex.

- Qual de nós dois?

Eu ri.

- Os dois.

John estava à nossa espera na porta e ofereceu o braço a Ophelia para que ela descesse as escadas, como se não tivesse sido ele a agarrá-la por ter invadido a propriedade horas antes. Ele abriu a porta traseira da Land Rover e ajudou Ophelia a entrar e depois me ajudou.

Ophelia me perguntou: - Ele a leva ao banheiro quando você precisa ir?

Alex entrou ao nosso lado.

- Bem, meninas, espero que já tenham comido alguma coisa.

Olhei para Ophelia, que estava com as sobrancelhas levantadas.

- Pensei que estávamos saindo para jantar - eu disse.

- Estamos - ele respondeu. - Mas isso não quer dizer que teremos a chance de comer. - Ele se virou para Ophelia, como se quisesse alertá-la sobre onde ela havia se metido. - Infelizmente, você me convidou e quando estou em uma mesa de restaurante, costuma ocorrer um evento, e não uma refeição.

Ophelia ergueu a cabeça e sorriu para Alex:

- É exatamente isso que estou esperando que aconteça - disse.

PARA A SURPRESA E ALEGRIA DE ALEX, CONSEGUIMOS comer os aperitivos antes de alguém se aproximar para cumprimentá-lo pelo nosso casamento.

- Obrigado, Pete - ele disse. - Deixe-me apresentá-lo à minha esposa, Cassie - ele tocou meu ombro -, e à amiga dela, Ophelia Fox. Ophelia está entrando na área. - Alex fez uma pausa. - E Pete é um dos mandachuvas da Touchstone.

Sob a mesa, apertei a perna de Alex, indicando que eu estava feliz por ele ter se esforçado para ajudar Ophelia depois de tudo que ela havia feito. Ele se inclinou e beijou meu pescoço.

- Não comece o que não pode ser terminado em público - ele sussurrou.

Ophelia não parava de falar sozinha sobre quais celebridades haviam entrado no restaurante e quem havia pedido o que de sobremesa.

- Posso lhe dizer que, se é para ser descoberta, posso simplesmente me colar na cadeira e esperar as pessoas virem e irem.

Alex comeu os três camarões que restavam em meu prato.

- Sem querer desanimá-la, mas nunca vi o Nicky Blair's tão vazio. - Como se fosse sua culpa, ele sorriu para Ophelia. - Podemos voltar aqui outro dia.

Sempre que Ophelia falava sobre as políticas de Hollywood e mostrava outro executivo de alguma empresa de produção, Alex mudava o rumo da conversa para mim. Dizia que se impressionou com meu conhecimento técnico no set, e Ophelia apenas levantava a sobrancelha e perguntava: - Conhecimento técnico sobre o que, exatamente? Ele contou a ela que eu havia me tornado professora adjunta, algo que eu havia lhe contado três dias antes, mas a que ela não dera atenção. Mas, naquele momento, pulou para me abraçar e chamou o garçom, pedindo mais uma garrafa de champanhe.

Talvez fosse interesse verdadeiro o que ela demonstrava por minha promoção; talvez fosse o fato de o jantar não ter se tornado um grande sofrimento, como Alex previra. Mas, para o meu alívio, quando a refeição terminou, Alex e Ophelia contavam piadas, davam tapinhas nas costas um do outro e faziam imitações de lendários personagens dos filmes. Alex insistiu para pagar a conta, o que eu sabia que ele faria, e que - acredito eu - Ophelia também sabia. Ela ficou em pé e segurou-se no encosto da cadeira.

- Nossa. Aquela segunda garrafa foi direto para a minha cabeça.

Não me surpreendeu o fato de Ophelia estar um pouco embriagada - eu havia tomado quase duas taças de Cristal e Alex bebera apenas água.

Alex passou o braço pela cintura dela para lhe dar suporte e sorriu para mim, enroscando seus dedos nos meus.

Quando ele saiu pela porta de entrada, estava abraçando uma mulher espetacular e eu estava logo atrás. Foi por isso que, por um segundo, não notei a comoção dos fotógrafos, os flashes atrás de nós.

- Maldição - Alex disse, segurando meu braço mais perto dele, de modo que tive de encarar as luzes, incapaz de me esconder como pretendia. Ele soltou a cintura de Ophelia, mas sua imagem já tinha sido registrada, com ele abraçando uma mulher que não era sua esposa.

- Esse era o tipo de porcaria que eu não queria - ele disse a ninguém em particular. Sabia o que ele estava pensando, que todas as colunas de fofocas do país comentariam sobre aquele ménage à trois. Eu sabia o que aquilo poderia causar à sua imagem imaculada.

A LUA DE MEL TERMINOU. A VIDA AMOROSA SECRETA DE ALEX Rivers. Duas pelo preço de uma. Eu imaginava as manchetes e apertei os dedos contra meus olhos, tentando bloquear os flashes das câmeras e o fato de que meu nome seria arrastado pela lama apenas três semanas depois de meu casamento. Consegui sentir o braço de Alex tenso sob meus dedos e acariciei seu pulso. "Foi um acidente", queria dizer. "Ninguém imaginaria que isso pudesse acontecer."

Eu me lembrei de Ophelia, que um minuto antes estava tonta demais para ficar em pé. Olhei para o chão, esperando encontrá-la caída, mas ela estava ao lado de Alex, em pé, firme e sorrindo lindamente, segurando-se ao braço dele enquanto ele tentava se livrar.

E foi então que percebi que ela havia planejado tudo.

Eu havia perdoado Ophelia quando ela pegou meu colar de pérolas para ir a uma festa e o perdeu no banco de trás da limusine de um diretor. Eu a havia perdoado quando ela me deixou sozinha no consultório de um dentista depois de tratado um canal, porque tinha ido a um teste no qual nem sequer passou. Eu a havia perdoado por usar o dinheiro de nosso aluguel para se matricular em um curso de ioga transcendental para controle do estresse, por ter me dito que eu era careta demais para ir à discoteca com alguns atores, amigos dela, por ter se esquecido do dia de meu aniversário quase todos os anos em que vivemos juntas. Mas quando vi Alex em apuros, protegendo-me com um braço de uma acusação inevitável, percebi que nunca a perdoaria por aquilo.

Alex disse alguma coisa sobre encontrar John e o carro e, quando ele se afastou, eu agarrei Ophelia por trás, girando-a. Enquanto girava, continuava observando os jornalistas que ainda seguiam Alex. Aquela tinha sido sua chance de ser fotografada.

- Como pôde? - eu perguntei.

Ophelia ergueu a sobrancelha.

- Como eu pude o quê?

Estreitei meus olhos. Nos dez anos em que nos conhecíamos, sempre tinha sido sua muleta, e nunca reclamara. Mas isso tinha sido antes de ela me magoar intencionalmente e prejudicado meu marido.

- Você contou a eles que viria aqui. Armou para o Alex.

Ophelia apertou os lábios:

- Não é isso o que você tem me dito para fazer, Cassie?

As palavras dela interromperam a minha raiva. "Sim, mas", eu queria dizer, "você não devia ter feito as coisas desse jeito. Não podia tê-lo enganado. Não podia ter me usado." - Ele estava começando a gostar de você - eu disse.

Ophelia rolou os olhos.

- Se os papéis estivessem invertidos, ele teria feito a mesma coisa. Provavelmente já fez.

- Não - eu disse com firmeza. - Não fez.

Virei minha cabeça e vi Alex voltando, irritado. Pegou meu braço e, sem olhar para Ophelia, me tirou do restaurante.

Deixei Alex abrir a porta do carro e recostei minha cabeça no banco, olhando as estrelas brilhando enquanto ele se sentava ao meu lado e dizia a John que estávamos prontos para partir.

- Bem - ele disse com cuidado -, amanhã cedo serei visto como o maior filho da puta de todos os tempos, e os mais atentos perceberão a perversidade de meus atos, agarrando a melhor amiga de minha esposa. - Ele olhou pela janela, longe de mim. - Saiba que, pelo ângulo da câmera, você provavelmente não vai aparecer na foto. Sua mão talvez, mas será apagada da foto. É claro que, conforme o planejado, sua amiga Ophelia aparecerá em destaque com meu braço ao redor de sua cintura.

Toquei a perna dele delicadamente.

- Sinto muito, Alex. Não sabia que ela faria uma coisa dessas. Ela não costuma ser assim.

- Você é uma atriz quase tão boa quanto ela - Alex disse. - Quase estou acreditando em você. - Ele se virou para mim, com os olhos nervosos. - Vou dizer apenas uma vez, por isso não se esqueça. Não gosto de me sentir acuado como um animal de circo. Já é ruim demais eu ter que pensar duas vezes antes de sair de casa, simplesmente porque sou bom no que faço e tenho de viver em um aquário. Mas não serei usado, Cassie, nem mesmo por você.

O fiasco todo tinha sido minha culpa, indiretamente, e, por causa disso, deixei que ele descontasse sua raiva em mim.

- Compreendo - sussurrei e me concentrei nas sombras da noite.

PASSAVA DAS TRÊS HORAS QUANDO ACORDEI E PERCEBI QUE Alex não havia se deitado. Havíamos chegado em casa e depois de dizer boa-noite a John, Alex tinha entrado na biblioteca, fechado a porta e deixado perfeitamente claro que não queria ficar comigo. Eu subia a escada e fui para o meu quarto, sentindo meus pés afundando no carpete. Tirei toda a minha roupa, mantendo as esperanças. Deitei na cama e disse a mim mesma que conversaríamos em algum momento. Adormeci imaginando as mãos dele percorrendo meu corpo.

Ao perceber que a cama do lado dele continuava vazia no meio da noite, comecei a entrar em pânico. Peguei um robe de seda branco de dentro do guarda-roupa, uma peça que estava no quarto de Alex antes mesmo de minha chegada. Não acreditava que ele pudesse ter saído de carro sem me dizer; não queria acreditar que ele estava com outra pessoa. Atravessando o corredor na ponta dos pés, abria as portas dos quartos de hóspedes, suspirando aliviada ao ver a cama feita.

Ele também não estava na biblioteca, nem na cozinha, nem no escritório. Hesitante, eu abri a pesada porta da frente, deixando-a entreaberta para que não se trancasse por dentro, e desci os degraus de mármore.

A propriedade estava bem iluminada para facilitar a vigilância das câmeras escondidas, por isso não foi difícil encontrar o caminho que levava para a parte de trás da casa, entre as construções, na direção do labirinto. Eu estava na metade dos jardins quando escutei o barulho na piscina.

Além do cheiro do cloro, senti o odor do uísque, e não sabia se Alex havia bebido muito ou se aquele cheiro já me era naturalmente familiar, por causa da lembrança de minha mãe. O odor forte e adocicado fez arder meus olhos, como acontecia vinte anos antes.

Certa vez, quando eu tinha 13 anos e já detestava o cheiro do uísque que parecia estar entranhado no papel de parede de nossa casa e nas saídas de ventilação, esvaziei todas as garrafas na pia. Minha mãe ficou irada quando descobriu. Rasgou minha camisa pela manga e me deu um tapa no rosto antes de se abraçar a mim, chorando como uma criança. Ela dissera: "Se você me amasse, não faria isso comigo". E por eu não saber se estava certa, jurei que nunca mais faria aquilo. Sentei-me à mesa da cozinha observando-a tomar uma pequena garrafa de Cointreau que ela mantinha para cozinhar. Quando suas mãos pararam de tremer, ela olhou para mim, sorrindo como se dissesse:"Está vendo?" E pela primeira vez percebi que eu estava crescendo e me tornando como ela.

Havia uma garrafa de uísque do lado dele, formando uma poça de bebida que ia até o final da piscina. Alex segurava uma segunda garrafa pelo pescoço. Ele estava sentado no banco liso que se estendia por uma lateral do lado de dentro da piscina, e, quando ele me viu, ergueu a garrafa:

- Quer uma bebida, chère? - ele perguntou e, quando neguei, ele riu. - Vamos, pichouette. Você e eu sabemos que está em nosso sangue.

Fiquei em pé da maneira mais ereta que pude.

- Vamos para a cama, Alex - eu disse, tentando esconder o tremor de minha voz.

- Acho que não - ele disse. - Preciso nadar primeiro.

Ele ficou em pé e estava completamente nu. Sob o brilho pálido das luzes de fora, ele parecia um deus grego. Todos os músculos de seu peito eram muito bem esculpidos, e a água que escorria entre suas pernas e por suas coxas dava a ilusão de que ele era feito de mármore. Ele abriu os braços, com as palmas das mãos para cima.

- Gosta do que vê, chère? Todo mundo parece gostar.

Alex saiu da piscina, vindo em minha direção. Prendi a respiração quando ele parou a centímetros de mim, molhando a barra de meu robe. Ele me puxou contra seu corpo, mantendo uma mão envolvendo minha cintura e a outra segurando meu queixo. Segurava minha mandíbula apertando tanto que minha pele começou a arder.

Seus olhos estavam quase pretos e eu não conseguia mexer a boca o suficiente para falar e estava cada vez mais difícil respirar. Ele tinha o dobro de meu tamanho, estava embriagado e eu não sabia ao certo se ele tinha consciência de quem eu era. Senti medo e foi então que percebi Alex começar a tremer.

Não era apenas um arrepio causado pelo sereno da noite em seu corpo molhado; era algo que vinha de seus ossos. O tremor subiu para seus joelhos, quadril e braços, e percebi que ele não conseguia se controlar, porque de repente pareceu tão assustado quanto eu. Olhou para mim fixamente, como se eu soubesse o que fazer.

Sem pensar, abri o robe com as mãos. Apertei meu corpo contra o de Alex, minha pele esquentando a dele, absorvendo seu frio até seu corpo parar de tremer e Alex ficar calmo e quente.

Ele soltou minha mandíbula e eu esfreguei meu rosto de um lado a outro de seu peito, sentindo o sangue corar minhas faces. Quando ele se afastou de mim, seus olhos brilhavam e estavam bem vivos. Suspirando, relaxei. Conhecia aquele estágio.

Alex permitiu que eu pegasse a garrafa de uísque e não disse nada quando eu derramei todo o líquido de dentro dela na grama a nossos pés. Ele observou a bebida vazar e então pegou o copo vazio de minha mão e olhou para ele como se não tivesse ideia de como ele havia ido parar ali.

Era muito fácil vê-lo como um garotinho quando suas defesas ruíam. Pensei nos amigos de infância sobre os quais ele havia me contado, retirados de livros e enfeitados, levando-os em aventuras que faziam com que se esquecesse de onde estava. Eu o via pegando redes de camarão quando seu pai estava bêbado demais para puxá-las; vestindo uma camisa branca dois números menores para ir ao enterro de um tio, porque sua mãe não se importara em comprar outra. Delicadamente o levei para se sentar na espreguiçadeira listrada onde havíamos sentado naquela tarde e afastei as pontas molhadas de seus cabelos de seus olhos. Ele se inclinou para a frente um pouco, inconscientemente desejando um gesto que deveria ter sido feito anos antes.

- Sabe, eu nunca tive um momento de transição - Alex disse. - Minha maman e meu pai não se importavam comigo e passei da vida que levava com eles diretamente para esta vida, com pessoas que recolhem meu lixo e perguntam o que quero para o café da manhã. - Ele me puxou para seu colo, escondendo o rosto entre meus cabelos. - Sabe o que eu gostaria de fazer? Gostaria de encontrar o alfaiate que faz meus ternos em vez de tê-lo aqui, gostaria de comprar margaridas para você de uma vendedora que não tenha assistido aos meus três últimos filmes. Gostaria de sair para jantar com você e sua amiga como um anónimo.

Ele ergueu a mão para cobrir meu seio, que descansou em sua mão como uma verdade simples e sólida.

- Quando era criança, deitava na cama desejando que alguém se importasse com o fato de eu acordar no dia seguinte, não apenas para me chutar. - Ele beijou minha cabeça e me apertou contra seu peito, como se pudesse me proteger de seu passado. - Cuidado com o que você deseja, Cassie - ele disse delicadamente. - Seus desejos podem se tornar realidade.

 

- Trouxe isto para você.

A voz de Alex veio por trás de mim e, sem querer, meus dedos seguraram com força os braços da poltrona branca. Não me virei, olhando para a varanda acima, contando os passos que Alex teve de dar para caminhar da porta do quarto até mim.

Ele colocou a xícara de chá com leite ao meu lado, centralizada sobre um pires simples, o que indicava que ele tomara o cuidado de preparar tudo, em vez de pedir à cozinheira. Ao longe, eu conseguia escutar os sons do tráfego do final da tarde e os grasnados das gaivotas, como se aquele dia fosse como qualquer outro. Alex ajoelhou-se na minha frente e descansou os braços dobrados sobre meus joelhos. Olhei para ele como se estivesse em choque e acredito que de fato estava. Minha mente registrou a simetria perfeita de seus traços como se os visse pela primeira vez.

- Cassie - ele sussurrou. - Sinto muito.

Eu assenti. Eu acreditava; tinha de acreditar.

- Não vai acontecer de novo - ele disse. Encostou a cabeça em meu colo e minhas mãos começaram a acariciar seus cabelos, sua orelha, a linha de sua mandíbula que eu conhecia tão bem.

- Eu sei - eu disse. Mas quando as palavras foram ditas, vi, com os olhos fechados, a imagem daquelas tempestades do Centro Oeste que acabavam com tudo e deixavam, como um sacrifício, um arco-íris para que você se esquecesse do que havia ocorrido antes.

O IMPORTANTE A SE LEMBRAR A RESPEITO DO OSSO é que ele nem sempre é como imaginamos que seja - eu disse aos rostos no salão onde ministrava a palestra. Saí de trás do tablado e me posicionei ao lado de uma pequena mesa de demonstração que eu havia montado antes de minha aula prática de antropologia. O curso já ocorria havia quase dois meses, e eu estava me esforçando para dar aos alunos o conhecimento de que precisariam para a escavação que faríamos no final do semestre.

- Quando desenterramos um osso, acreditamos que ele é sólido e estático, quando na verdade ele costuma ser tão vivo quanto os outros tecidos do corpo.

Eu escutei o movimento das canetas nos cadernos ao relacionar as propriedades do osso em um organismo vivo. - Ele pode crescer, pode ser atacado por uma doença, pode se curar. E sempre se adapta às necessidades da pessoa. - Levantei dois fémures da mesa de demonstração. - Por exemplo, os ossos se tornam mais fortes quando necessário. Este fémur era de uma garota de treze anos. Compare sua largura com a largura do outro osso que pertenceu a um levantador de pesos olímpico.

Eu gostava de dar aquela aula. Em parte, havia o sensacionalismo das demonstrações, e em parte porque desfazíamos a maioria das preconcepções que os alunos tinham a respeito dos ossos em geral. - Os ossos não são feitos de material inorgânico, como o giz. É uma rede orgânica de fibras e células que contém material inorgânico, como fosfato de cálcio. É a combinação dos dois que dá ao osso sua resistência e também sua firmeza.

De soslaio, observei Archibal Custer encostado no batente da porta. No último ano, ele havia me dito que eu tratava a ciência como uma história de uma revista de fofocas. E eu havia respondido que uma dissertação sobre a natureza dos ossos era chata demais para manter os alunos acordados durante uma hora, muito mais para mantê-los interessados na antropologia. Desde a doação de Alex, Custer não havia tido a coragem de criticar meus métodos de ensino, nem de me mandar para um curso diferente. Eu provavelmente poderia ter dado aulas nua sem que ninguém se intrometesse.

Meus olhos foram parar no fundo da sala, perto de onde Custer estava com os braços cruzados. Um garoto usava fones de ouvido, duas garotas cochichavam, eAlex estava ali.

Às vezes, ele vinha para me ver lecionar; dizia que ficava surpreso ao ver quanto eu sabia. Sempre entrava na sala depois que a aula já tinha começado, para não distrair os alunos. Geralmente, usava óculos escuros, como se eles bastassem para escondê-lo. A maioria de meus alunos sabia que eu era casada com ele - acredito que alguns deles assistiam àaula apenas para descobrir como eu era, ou com a esperança de encontrar Alex.

Eu sorri para ele, que tirou os óculos escuros e me deu uma piscadela. Quando Alex estava ali, eu sempre fazia meu melhor. Acredito nisso, de certa forma. Eu interpretava para ele.

- Vocês podem ver como um osso é orgânico se mergulhá-lo em ácido durante um tempo. Isso removerá os sais, deixando a matéria orgânica para trás na forma que tinha antes de ser colocado no ácido. Mas - eu disse, tirando uma fíbula de uma tigela de vidro onde estava mergulhada -, ao remover os sais, ele fica completamente maleável. - Segurei as duas pontas do osso comprido, deixando-as soltas por um instante ao segurar a peça no meio antes de dar-lhe um nó.

Caramba! - disse um aluno do primeiro ano da primeira fila. Eu sorri para ele.

- É isso o que eu penso - eu disse. Olhando para meu relógio, voltei para o tablado e comecei ajuntar meus papéis. - Não se esqueçam da prova da próxima quinta-feira.

Custer saíra, e os alunos começaram a descer pelos corredores do salão.

Geralmente depois dessa palestra, um grupo se reunia ao redor da mesa de exposição, tocando o osso mole, desfazendo o nó, passando os dedos pelas beiradas. Eu respondia às suas perguntas e permitia que ficassem ali durante quanto tempo quisessem. Afinal de contas, a antropologia era uma disciplina prática.

Mas naquele ano, apesar da atenção que a sala havia me dado e do fato de minha aula não ter mudado, ninguém parecia interessado. Rapidamente, comecei a organizar a mesa, guardando os ossos em camadas de algodão. Tentei imaginar se estava perdendo meu talento.

Olhei para cima, lembrando que Alex provavelmente estava me esperando, e vi um grupo de alunos reunidos ao redor dele no corredor, pedindo autógrafos em seus cadernos de antropologia. Fiquei lívida. Espere, eu queria dizer, eles pertencem a mim. Mas as palavras ficaram presas em minha garganta e apesar da raiva que senti percebi que eu não precisava ter ciúme. Alex não havia feito de propósito e, mesmo que ele não estivesse ali na sala, nada me garantia que qualquer um dos alunos se aproximasse para ver minha mesa.

Ele passou pelos estudantes e ficou com as mãos no bolso, olhando sobre a mesa os ossos organizados dentro das caixas de transporte.

- Alguns sais não passam para o solo quando um osso é fossilizado?- Alex perguntou em voz alta.

Eu ri; apesar de seu interesse, eu sabia exatamente o que ele estava fazendo.

- Claro - eu disse.

- Então por que você nunca escava nada parecido com isso? - ele apontou para o osso, ainda em nó, nadando dentro da solução ácida. Dois alunos desceram pelo corredor do salão, ficando ao lado de Alex e tocando os fémures nos pontos onde os dedos de Alex haviam passado segundos antes. Vários outros alunos se aproximaram.

- Em primeiro lugar, isso demora séculos para acontecer. Mas mesmo quando o conteúdo de cálcio é reduzido, não é tão drástico, por isso os ossos geralmente mantêm seu formato. É claro, às vezes o clima e o solo são certos - eu procurei em uma caixa já meio feita - e você consegue algo assim. Segurei uma mandíbula da Idade de Ferro que havia sido escavada de uma turfeira irlandesa, que estava retorcida, parecendo uma rosca. - A maneira com que os outros ossos estavam deitados sobre este foi o que o fez tomar essa forma.

Durante um tempo, as partes macias de uma dezena de mãos passaram sobre as amostras de ossos que eu havia trazido e, acima das cabeças dos alunos, eu vi os olhos de Alex. Ele sabia fazer as perguntas certas. Na verdade, se não fosse um bom ator, teria sido um excelente antropólogo. Ele caminhou para trás da mesa e escorregou o braço ao redor de minha cintura. Como se os alunos percebessem, olharam para nós e saíram da sala, conversando.

- Feliz aniversário de casamento - Alex disse, beijando-me com delicadeza.

Mantive os olhos abertos. Ao nosso redor, as partículas de pó dançavam na luz que entrava pela janela.

- Feliz aniversário de casamento - eu disse. Saí de seu abraço e cuidadosamente embrulhei as amostras que os alunos haviam examinado. - Deixe-me arrumar as coisas e poderemos sair daqui.

Ele me pegou pelos ombros e me puxou para entre suas pernas.

- Quero fazer um experimento - ele disse. - Quer participar?

Eu assenti, vendo sua cabeça inclinando-se para me beijar de novo. Os lábios dele passaram contra os meus, fazendo com que eu sussurrasse com ele, e ele aprofundou o beijo, segurando minha cabeça, impedindo que eu me afastasse.

Quando ele levantou a cabeça, eu estava deitada sobre ele, sem saber exatamente onde eu estava.

- Como eu pensava - ele disse. - Queria ver se os ossos podem ficar moles sem o ácido.

Sorri encostada em seu peito.

- Com certeza - eu disse.

TINHA SIDO UM MOMENTO, UM ERRO E, COMO ALEX dissera, não aconteceria de novo. Sussurrei aquelas palavras sem parar, pensando que essas coisas aconteciam a outras pessoas, aquelas que viravam notícia nos jornais, mas certamente não com Alex e eu.

- Cassie?

Ao som da voz de Ophelia, peguei a manta que estava sob a outra cadeira de balanço e a enrolei em meus ombros. Não estava frio, mas esconderia o que havia acontecido.

Depois da desastrosa noite no Nicky Blair's, havia mais de um ano, Ophelia e eu havíamos retomado contato aos poucos. Eu precisava dela; além de Alex, eu não tinha ninguém com quem conversar. Não sei se ela se retratou, mas parei de pedir desculpas por ter me casado com Alex, e mostrei que eu era leal a ele. Desde que ambos não se encontrassem quando Ophelia me visitava, não havia problemas. Na verdade, nosso relacionamento assumiu o curso de sempre: Ophelia me visitava e falava sobre ela, e como minha vida envolvia Alex, eu me sentava em silêncio e só escutava.

Ophelia apareceu nas portas francesas que levavam para o quarto.

- Aí está você - ela disse. - E eu já estava pensando que você havia se mudado sem avisar John.

Eu tentei sorrir para ela.

- Agora não é uma boa hora.

Ophelia balançou a mão no ar.

- Sei, sei. Os ilustres Rivers têm uma première para ir hoje à noite. Queria saber se posso pegar emprestado seu vestido vermelho.

Eu franzi a testa. Não conseguia me lembrar se possuía um vestido vermelho, mas Ophelia conhecia minhas roupas melhor do que eu.

- Para quê?

- Vou cantar em um blues club esta noite. - Ela se recostou no batente da varanda, colocando a mão acima da cabeça, em pose de mulher fatal.

- Você não sabe cantar - eu disse.

Ophelia deu de ombros.

- É, mas os donos ainda não sabem disso e só vão descobrir quando eu estiver no palco. E nunca se sabe quem estará na plateia. - Ela sorriu. - Além disso, eles me pagaram adiantado.

Eu não consegui controlar o riso. - Ophelia era mesmo o melhor remédio.

- Como, pelo amor de Deus, você conseguiu convencê-los de que canta blues?

Ophelia seguiu na direção do quarto, tentando encontrar o vestido vermelho.

- Eu menti - ela gritou.

Enrolei o cobertor ainda mais em meus ombros, guardando meu segredo.

- Como pode fazer isso? Nunca cai em contradição?

Ophelia dançou na varanda com o vestido sobre seus ombros.

- Seu problema é que sempre foi honesta. Quando começar... - ela disse com tranquilidade - mentir é mais fácil do que respirar. - Ela segurou o vestido até seu queixo e rodou para mim.

- Billie Holiday deve estar com inveja - eu disse. Mudei de posição, fazendo uma careta quando a lateral de meu corpo raspou no braço da cadeira.

Ophelia olhou para mim, com os olhos preocupados:

- Não está ficando doente, não é? - Ela segurou a beirada do cobertor. - Está pegando uma gripe?

Deixei que ela colocasse a palma de sua mão sobre minha testa como eu havia lhe ensinado a fazer anos antes e enrolei o cobertor com mais força ao redor de meus ombros. Odiei Alex por me submeter àquilo.

- Na verdade - eu disse -, devo estar pegando alguma coisa.

APÓS PASSAR UM ANO INTEIRO COM ALEX, COMECEI A perceber que havia me casado com muitos homens diferentes e Alex era o personagem principal quando nenhum outro estava por perto. Ele não podia deixar seu trabalho no escritório, por isso todos os personagens que ele interpretava iam para a minha cama, ou se sentavam diante de mim na mesa do café da manhã. Durante as oito semanas que passou gravando Velocidade, um filme de ação sobre um piloto, ele agira de maneira ostensiva, ativa e cheia de energia. Quando participou de uma temporada de verão atuando como Romeu para um grupo de teatro profissional, ele mesmo procurava à noite com todo o desejo de um jovem apaixonado por estar amando.

Eu não havia gostado do personagem do piloto, mas ele era tolerável. E Romeu me deixava um pouco nervosa, fazendo com que eu me olhasse com mais frequência no espelho procurando por novas rugas e tentando imaginar por que eu ficava tão cansada em um dia normal enquanto Alex parecia não se cansar nunca. Mas naquele momento Alex estava filmando António e Cleópatra, e deparei com o primeiro personagem que eu não queria perto de mim. Em meu calendário sobre a mesa da universidade, eu fazia as contas para saber quantos dias faltavam para o final da produção, quantos dias mais teria de esperar para que Alex se transformasse em Alex novamente.

Sob muitos aspectos, interpretar António não era muito diferente da pessoa Alex, por isso acredito que o papel foi tão atraente para ele a princípio. António era movido pelo poder e pela ambição, um homem que escolhera uma rainha; um homem que, nas palavras de Shakespeare, podia "ser incomparável". Mas António era também obsessivo, crítico e paranóico. Foi sua obsessão por Cleópatra que causou uma fraqueza em seu caráter - o ciúme -, o que facilitou para seus inimigos derrotá-lo. Convença António de que Cleópatra o traiu com César e seu mundo desabará.

É claro, é também uma boa história de amor: quando António acredita que Cleópatra se envolveu com César, ele a acusa e, temendo por sua vida, ela manda a notícia de que já se matou. Quando o mensageiro conta a António que ela morreu sussurrando seu nome, ele fica tomado pela culpa e se mata com a própria espada, morrendo nos braços de Cleópatra que continuava muito viva. Ela, então, em vez de procurar César, resolve se matar com uma cobra venenosa. É uma história de mal-entendidos e de mentiras descobertas; de um casal de amantes que só pode ser feliz em um mundo onde não há ninguém para tentá-los.

Eu não estava pronta para procurar uma cobra venenosa, mas compreendia a afirmação de Cleópatra de que António era um homem louco. Às vezes, quando estávamos sozinhos, Alex falava com sotaque shakespeariano. Passava horas me ignorando e de repente me levava para o quarto, onde me tocava com uma necessidade que beirava a violência. Chegou a ponto de Alex entrar pela porta e eu esperar em silêncio, sem nem cumprimentá-lo, até que pudesse perceber se daquela vez ele me convidaria para jantar à luz de velas ou se gritaria comigo por eu ter trocado de lugar um pedaço de papel no qual ele havia escrito alguma coisa.

Ele estava dirigindo a Range Rover naquela noite e eu estava sentada no banco da frente - um lugar que eu não ocupei durante o nosso primeiro ano de casamento. John ficara na casa para ajudar a proteger as janelas e a vegetação tomando medidas preventivas para as chuvas fortes que estavam atingindo a costa da Califórnia. Alex olhou para o relógio no painel e depois para as nuvens no céu.

- Vai ser difícil - ele disse.

íamos colocar sacos de areia no apartamento de Malibu, e eu sabia que aquela era a última coisa do mundo que Alex queria estar fazendo. Naquela semana, Brianne Nolan - a Cleópatra - havia desistido de seu contrato com a justificativa de que estava exausta. Mas, dois dias depois, Herb Silver contou a Alex que ele havia escutado que Nolan quisera sair da produção porque contracenar com a Alex não era tão lucrativo profissionalmente quanto outro acordo que seu agente acabara de fechar. Encontrei Alex em seu escritório às três horas, fazendo contas na calculadora para tentar descobrir quanto dinheiro havia sido gasto, quanto dinheiro havia sido perdido.

A empresa de produções processaria a atriz pela quebra de contrato, e Alex passou a maior parte do dia em reuniões com seus advogados. Assim que saiu, ele me disse para pegar capas de chuva e encontrá-lo na garagem. Não se tratava apenas de uma erosão na praia, mas de danos que poderiam ser causados ao apartamento.

- Você acha que conseguiremos voltar para Bel-Air hoje à noite? - perguntei discretamente, observando sua reação.

Alex não olhou para mim, mas um músculo saltou de seu rosto.

- Como é que eu vou saber? - ele respondeu.

A praia em Colony mostrava uma reunião de celebridades com capas de chuva amarelas, recorrendo ao trabalho braçal para conter a crueldade da natureza. Alex fez um sinal para um produtor que morava várias construções abaixo da nossa, e entregou a mim dois rolos de fita adesiva que havia guardado em seu bolso.

- Comece pelo lado de dentro - ele disse.- Depois, encontre-me aqui fora.

Eu entrei no apartamento e chamei pela senhora Alvarez, que estava no andar de cima, na cozinha, organizando velas e alimentos sobre a mesa.

- Oh, senhora Rivers - a governanta disse, descendo as escadas com bastante rigor. - Estão dizendo que a tempestade causará um grande desastre na costa. - Ela esfregou as mãos no avental branco em seu colo.

Eu franzi a testa.

- Talvez a senhora devesse voltar para casa conosco hoje à noite - sugeri. Não gostava de pensar em uma senhora de cinquenta anos sozinha dentro de casa durante uma violenta tempestade.

- Não, não - ela respondeu. - Se o senhor Rivers concordar, meu Luis pode vir me buscar e me levar para a casa dele.

- É claro que ele vai concordar - eu disse. - Saia daqui o mais rápido que puder.

Quando subi correndo as escadas para passar a fita nas janelas de vidro que ficavam de frente para o mar, a chuva começou. Não aumentou gradualmente, começou torrencial. Fiquei em pé com minhas mãos pressionadas contra as janelas observando Alex trabalhando lá embaixo, empilhando os sacos em um ritmo graciosamente natural.

A senhora Alvarez foi embora com seu filho assim que terminamos de fazer tudo o que podíamos do lado de dentro. Vestindo minha capa de chuva, passei pelas portas de correr que eu havia protegido com a fita e corri para perto de Alex. Sem nada dizer, arrastei um saco pesado de areia na direção da barricada que ele havia começado. Meus músculos doeram com o esforço e o suor escorreu atrás de meu pescoço, para dentro de minha capa. Fiz uma pilha bem alta, colocando os sacos uns sobre os outros.

A chuva começou a nos atingir, soprando areia molhada da beira do mar em nossos olhos, fazendo a maré chegar a nossos quadris. Acima de mim, na casa ao lado da nossa, escutei um vidro se quebrando.

Eu estava olhando para cima, tentando perceber qual janela havia se quebrada e por que, quando Alex me agarrou pelos ombros. Ele me chacoalhou com tanta força que minha cabeça foi para trás.

- Meu deus! - ele gritou, sua voz praticamente perdida ao vento. - Você não sabe fazer nada direito? - ele chutou as pilhas de sacos de areia que eu havia feito meticulosamente e, quando elas não caíram, ele jogou o peso de seu corpo nelas, derrubando-as na água. - Não é assim - ele disse. - devem ser como as minhas. - Ele apontou para a barreira que havia formado, uma pilha bem-feita como se fosse uma parede de tijolos. De qualquer modo, ele me empurrou para o lado e começou a formar uma parede com os sacos que havia derrubado de minhas pilhas.

Protegi meus olhos e olhei para os dois lados, tentando imaginar se os vizinhos haviam escutado ou visto Alex gritando comigo. Olhei por um momento para o trabalho que havia demorado uma hora para realizar, e que agora estava dentro do mar.

Tinha sido minha culpa; eu não pensei. Uma onda mais forte facilmente derrubaria as pilhas, mas com sacos encaixados uns aos outros, como a pilha formada por Alex, a proteção se tornava muito mais forte. Sem nada dizer, eu fiquei do lado dele, prestando atenção em seus movimentos e fazendo tudo igual, para que ele não achasse defeito algum em mim. Ignorei a dor em meu ombro e costas, determinada a fazer tudo certo.

ALEX ENTROU NA VARANDA, OBSERVANDO OPHELIA com a mão em minha testa.

- Fria como um pepino - ela disse, mas estava olhando para Alex. Ela colocou as mãos no quadril. - Cassie não está se sentindo muito bem - ela disse. - Talvez você devesse deixá-la em casa hoje à noite.

Alex riu.

- E levar você no lugar dela?

Ophelia ficou vermelha de raiva e desviou o olhar. Ela apertou meu ombro, despedindo-se.

- Eu estava de saída - ela disse e propositalmente empurrou Alex ao sair.

Eu a observei partir, fingindo que ainda a via muito tempo depois de ela ter desaparecido pelas cortinas do quarto. Olhei para os desenhos na renda. Não queria olhar para Alex.

- Você contou a ela?

- O que você acha? - Virei meu rosto para ele, percebendo a expressão de dor que tomava seus olhos, e percebi que eu não poderia feri-lo mais do que ele se feria. Engoli em seco e desviei o olhar.

De repente, Alex estava me abraçando, e o cobertor caiu e revelou as marcas vermelhas em meus braços e o inchaço perto de minhas costelas. Ele me carregou para o quarto e me deitou com delicadeza sobre a cama, com muito cuidado. Abriu minha blusa.

Passou os lábios sobre cada ponto, cada dor, tirando a dor e deixando para trás um rio de lágrimas. Eu segurei sua cabeça contra meu peito, pensando que aquela sensibilidade feria ainda mais.

- Psiu - eu disse, acariciando sua testa. - Está tudo bem.

O QUE ME IMPRESSIONOU A PRINCÍPIO A RESPEITO DA mão foi o fato de os ossos estarem esticados em minha direção, como se quisessem me pegar se eu tentasse ir embora. Peguei um pincel pequeno e comecei a limpar pequenos pedaços de madeira e fragmentos de terra, revelando um pulso praticamente intacto, e dedos ainda envolvendo uma ferramenta de pedra. Passei meus dedos sobre os fragmentos, o pequeno cinzel e sorri. Talvez não tivesse me puxado de volta. Talvez tivesse me atacado.

A mão estava posicionada em rocha sedimentar na altura de meu ombro e estava notável suficientemente para que eu tentasse imaginar como havia passado tanto tempo sem ser descoberta. O local de escavação não era novo na Tanzânia; havia décadas ele vinha sendo explorado pelos antropólogos.

Eu estava tonta. Sabia intuitivamente que aquilo era algo grande, antes mesmo de enviar as amostras para que fosse calculada a data. Meu coração acelerou quando percebi que essa descoberta provaria que os hominídeos tinham a capacidade mental de criar as próprias ferramentas em vez de usar aquelas naturalmente moldadas pela água ou pela fossilização. Eu iria para casa como uma heroína. Mandaria Archibald Custer se ferrar. Eu seria tão famosa quanto Alex.

Estava morrendo de vontade de contar para ele. Uma vez que a base do acampamento não tinha telefone, eu dirigiria para a cidade à noite e telefonaria para casa. Não havia gostado da ideia de ficar longe dele durante um mês inteiro, mas estava fazendo meu estudo de campo durante a interseção da universidade, eAlex estava filmando doze horas por dia. Eu conversava com ele aos domingos e às quartas-feiras, sentada no chão de terra da loja da cidade. Segurava o telefone com um ombro e escrevia o nome dele no chão de terra com um pedaço de madeira; prestava atenção ao som de sua voz para poder relembrar à noite e fingir que ele estava deitado ao meu lado.

Semicerrei os olhos por causa da luz do sol do meio-dia, tocando as áreas cinzas estriadas do lado esquerdo da mão. A distância eu consegui escutar o bater de picaretas e o barulho dos risos carregados pelo vento. Havia diversos alunos trabalhando comigo, e um deles havia encontrado uma mandíbula alguns dias antes, mas, tirando isso, não haviam sido feitas descobertas alarmantes. Eu sorri e caminhei ao redor do monte, onde eu podia ser vista por eles.

- Wally - eu disse -, traga uma lona.

O restante do dia foi gasto com cansativa escavação, pois era muito raro encontrar algo tão frágil quanto uma mão fossilizada que não dava para pensar em arriscar quebrar nem mesmo a pontinha de um dedo. Trabalhei com dois de meus alunos, um deles me ajudando a fazer a remoção e a limpeza, catalogando os ossos com tinta nanquim para a reconstrução posterior. Outro aluno foi mandado para a cidade para avisar a UCLA a respeito de nossas primeiras descobertas e para levar uma amostra ao correio para que fosse enviada para análise. O jantar, uma celebração, foi espaguete congelado e três garrafas de vinho da região.

Observei os alunos armarem uma fogueira e inventarem situações nas quais eu me tornava uma guru em antropologia física e eles se tornavam meus discípulos. Quando uma das brincadeiras envolveu enterrar o professor Custer vivo para que algum pobre universitário o desenterrasse depois de um milênio, eu ri com eles, mas na maior parte do tempo observei as chamas que pareciam o sangue que corria dentro de mim.

Eu me sentia viva com as escavações. Não tinha sido apenas a descoberta da mão, apesar de isso ter despertado os meus sentidos. Foi a alegria de procurar o desconhecido, como encontrar um tesouro enterrado ou procurar entre os presentes de Natal e encontrar aquele que você esperava ganhar. Quando o filme de Alex estreou quando eu e ele nos conhecemos, aquele era o traço de personalidade que seu personagem demonstrara. Lembro-me de ter assistido às gravações e de comentar com Alex que estava muito impressionada, e ele me dizia que havia copiado aquele traço de mim.

A telefonista demorou dez minutos para conseguir uma ligação para os Estados Unidos, eu tinha poucas chances de conseguir encontrar Alex em casa. Quando ele atendeu com a voz grossa de quem estava dormindo, percebi que devia ser madrugada.

- Adivinhe o que aconteceu? - eu disse, escutando minha voz no eco

- Cassie, Está tudo bem?

Eu consegui imaginá-lo sentado na cama, acendendo a luz.

- Eu encontrei uma coisa. Eu encontrei uma mão e uma ferramenta. - Sem deixá-lo interromper nem fazer perguntas, comecei a falar sobre como era raro uma descoberta daquela e o que aquilo significaria na minha carreira. - Tem o mesmo peso de um Oscar para você - eu disse. - Isso vai me colocar no topo.

Quando Alex não disse nada a princípio, pensei que a conexão havia sido desfeita e que eu estava ocupada demais falando para poder escutar.

- Alex?

- Estou aqui.

- a resignação e o desânimo em sua voz fizeram com que eu me surpreendesse. Talvez estivesse pensando que a minha descoberta me colocaria mais distante dele. Talvez estivesse pensando que eu colocaria minha carreira em primeiro lugar, antes dele. Seria uma ideia completamente ridícula, e se alguém devia saber disso esse alguém era Alex. As duas coisas tinham igual importância em minha vida. Eu precisava das duas. Não podia viver sem ambas. Eu me lembrei de António e Cleópatra. O filme parecia ser amaldiçoado. Apesar de Brianr Nolan ter sido substituída por outra atriz, no domingo anterior Alex havia mencionado alguma coisa a respeito da desistência do diretor devido a uma discussão com o cinegrafista. Fechando os olhos, pensando em minha tolice e em minha insensibilidade, segurei o telefone com mais força. Engoli em seco, tentando demonstrar alegria em minha voz.

- Estou aqui falando sem parar e ainda não perguntei sobre o filme.

Fez-se um instante de silêncio.

- Está muito tarde - Alex disse. melhor desligar.

Quando ele desligou, fiquei escutando o barulho da conexão desfeita até a telefonista tanzaniana perguntar com sua voz musical se eu desejava realizar outro telifonema. Em seguida, dirigi para o acampamento e entrei em uma das tendas de trabalho, acendendo a lâmpada acima da mesa para iluminar a área. Minhas mãos estavam desajeitadas quando toquei os ossos finos que iriam mudar a minha vida. Eu os coloquei em fila, enumerados, com metade da mão que havia sido escavada, e tentei compreender por que Alex não dissera nem mesmo "parabéns".

TRÊS DIAS DEPOIS eu HAVIA RECEBIDO telefonemas de Archibald Custer e de dois museus expressando interesse, mas não havia recebido contato de meu marido. A mão aproveitava sua glória, catalogada e registrada para a posteridade, reconstruída em uma cama de algodão. Estávamos tirando as fotografias obrigatórias, aquelas que podíamos enviar antes de os ossos seguirem para exibição. Eu estava em pé com as mãos na beira da mesa, com o suor escorrendo pelas minhas costas. Wally, um universitário que estava escrevendo sua tese com a minha coordenação, estava guardando a máquina fotográfica e as lentes.

- Então, o que acha, professora Barrett? - ele perguntou, sorrindo. - Seremos recebidos por uma multidão no aeroporto?

Sairíamos da Tanzânia duas semanas depois e eu sabia que Wally estava brincando, uma vez que a comunidade antropológica era pequena demais para gerar mais do que uma reportagem no The Wall Street Journal. Uma lembrança de minha chegada ao aeroporto de Los Angeles com Alex veio à minha mente. Imaginei aquele circo da imprensa para um grupo de cientistas cansados e sujos segurando uma caixa cheia de ossos.

- Duvido - respondi.

Wally ficou em pé, tirando a terra vermelha de seu short.

- Vou levar isso de volta para Susie antes que ela tenha outro ataque - ele disse, e moveu-se para a entrada da tenda. Ele chegou a levantar o pano de entrada e o deixou cair como se tivesse visto uma miragem grande demais para ser observada. Ele ficou surpreso e afastou a lona de novo. No meio do acampamento havia um caminhão, e Koji, um de nossos escoteiros, estava descarregando as caixas com o selo de Les Deux Magots, o restaurante parisiense. Meu pequeno grupo de assistentes ficou impressionado, observando caixas de camarões e frutas frescas e queijo brie sendo colocados no chão. Eu tinha visto isso apenas uma vez. Wally foi para fora, deixando-me com a visão desobstruída.

- Agora eu sei - ele disse - que Deus existe.

- Deus seria um pouco de mais - alguém disse -, mas me contentarei com a santidade.

Quando me virei, ali estava Alex. Ele estava alguns metros atrás de mim, tendo entrado pela parte de trás da tenda. Suas mãos se moviam sem parar e eu percebi que ele estava mais nervoso do que queria que eu soubesse.

- Pensei: "O que posso levar a uma mulher que está prestes a mudar o rumo da evolução humana?" E flores não pareciam bastar. Mas eu lembrava, de minha última vez na Tanzânia, que a culinária local deixa um pouco a desejar...

Oh, Alex - eu disse e me joguei nos braços dele. Suas mãos passaram por minhas costas, reaprendendo o caminho de meu corpo. Eu senti o cheiro familiar de sua pele e alisei os vincos de suas roupas. - Pensei que estivesse bravo comigo - eu disse.

- Bravo comigo - Alex admitiu. - Até eu perceber que havia agido como um idiota e gostaria que nos beijássemos e fizéssemos as pazes.

Eu segurei seu rosto com as mãos. Estava muito feliz com ele à minha frente e me perguntava como não havia percebido como me sentia vazia.

- Eu o perdoo - eu disse.

- Ainda não pedi desculpas.

Encostei minha testa em seu queixo.

- Não interessa.

Gentilmente, ele levantou meu rosto para olhar para ele. Do lado de fora, eu escutei uma caixa sendo aberta e os gritos de alegria dos meus estudantes ao verem o que havia dentro dela.

- Se isso realmente é como ganhar um Oscar - Alex disse -, então estou mais orgulhoso de você do que pode imaginar.

Eu me recostei nele, pensando que todos os elogios que eu havia recebido de Archibald Custer e todos os títulos que a mão me traria não se comparavam às palavras de Alex. A opinião dele era a única que importava.

Fizemos uma refeição deliciosa naquela noite, apesar de a fumaça da fogueira ter mudado um pouco o sabor da comida. Alex conversou alegremente com meus assistentes, fazendo todos eles rirem com as histórias a respeito dos erros que ele cometera enquanto interpretava um antropólogo no filme antes de me conhecer. Quando cinco alunos pegaram algumas garrafas de Bordeaux e sugeriram passar a festa para uma área perto do local de escavação, Alex recusou o convite. Ele pegou a última garrafa de vinho e esticou o braço para me ajudar a levantar, como se tudo já estivesse programado.

Ele fechou a entrada de minha tenda e fiquei em pé de costas para ele, olhando para minhas escovas de dente e de cabelo e o tubo de Creme ao lado da pia. Franzi a testa. Havia alguma coisa que eu precisava contar a Alex, que não conseguia lembrar. As mãos dele descansaram em minha cintura.

- Por que sempre estamos envolvidos com tendas e com a Tanzânia? - ele perguntou.

Foi impossível não pensar na primeira noite em que havíamos feito amor - não com o fogo dançando laranja sobre a lona, ou o vento soprando pelos montes e o céu escuro da noite africana nos aproximando ainda mais.

Nós nos reunimos da mesma maneira que a chuva chega na África central: rapidamente, sem aviso, trazendo uma fúria tão intensa que, pelos dias que ela dura, é possível olhar pela janela e imaginar se o mundo já foi de outra forma. Quando terminamos, caímos nos braços um do outro, seminus e cobertos de suor, com os dedos passando pela pele nua apenas para mantermos o contato.

Bebemos o vinho diretamente da garrafa, observando as sombras projetadas pelo fogo com uma satisfação tranquila de saber que haveria uma próxima vez mais lenta e mais doce. Passei meus dedos distraidamente pelos pulsos de Alex.

- Significa muito para mim a sua presença - eu disse.

Alex beijou minha orelha.

- O que a faz pensar que fiz isso por você? - ele perguntou. - Três semanas de abstinência é um inferno.

Sorri e fechei meus olhos e então fiquei tensa e me sentei. Abstinência. Repentinamente, lembrei o que havia esquecido de contar a Alex.

Quando desfiz minha mala na Tanzânia, percebi que havia esquecido minhas pílulas anticoncepcionais em casa. A princípio, pensei em conseguir uma receita para comprar o remédio ali, isso se eles vendessem anticoncepcionais na farmácia; então pensei que, a meio mundo distante de Alex, minhas chances de engravidar eram nulas. Mas agora Alex estava ali, e nós havíamos feito amor, e não havia garantias.

- Só por curiosidade - eu disse, virando-me para ele. - O que você pensa sobre ter filhos?

Os olhos dele ficaram escuros e ele se fechou.

- Que diabos está tentando me dizer? - ele perguntou, pronunciando cada palavra com clareza.

Coloquei a mão em seu ombro, percebendo que aquilo parecia muito pior do que realmente era.

- Deixei minhas pílulas em casa. Não estou tomando nada há semanas - sorri para ele. - Tenho certeza de que nada aconteceu. Tenho certeza de que tudo está bem.

- Cassie - ele disse lentamente. - Não pretendo ter filhos.

Não sei por que não havíamos discutido aquilo antes; eu imaginara que ele quisesse esperar um pouco, mas que, um dia, desejaria constituir uma família.

- Nunca? - perguntei, levemente chocada.

- Nunca - ele respondeu passando a mão no rosto. - Não tenho a menor intenção de ser como meu pai e minha mãe.

Relaxei; eu conhecia Alex, e não haveria como aquilo acontecer.

- Meus pais também não eram os melhores do mundo - eu disse -, mas isso não me impediria de ter meus filhos.

Fechei os olhos, imaginando um lindo menininho correndo pelos gramados da casa, o vento soprando em seus pezinhos. Eu o imaginei ali na Tanzânia, cavando ao meu lado com uma pá de plástico e um baldinho. Sabia que, com o tempo, faria Alex mudar de ideia.

Ele me deitou em seus braços, acreditando que meu silêncio indicava contrariedade.

- Além disso - ele explicou - como vai se tornar uma grande exploradora se estiver prestes a dar à luz? Não vai poder dar palestras pelo mundo com um filho.

Questionei a razão por trás daquilo, mas em alguns aspectos Alex tinha razão. Talvez logo, mas não naquele momento. Eu me virei e o encarei na cama estreita.

- Então, qual de nós vai dormir no chão?

Alex riu.

- Chère - ele disse -, já ouviu falar em roleta-russa?

QUANDO VOLTEI PARA OS ESTADOS UNIDOS, REALIZEI uma série de palestras em diversas universidades, discutindo as implicações da mão e da ferramenta na evolução da mente humana. Eu não gostava de passar tanto tempo longe de Alex, mas ele estava ocupado gravando António e Cleópatra. Pouco importaria se eu estivesse em Boston, em Chicago ou Baltimore. Alex trabalhava 24 horas por dia, por isso, mesmo que eu estivesse em Los Angeles, não poderia estar com ele.

Escutei a voz de Alex do quarto no andar de cima. "Às vezes contemplamos uma nuvem que parece um dragão; um vapor às vezes parece um leão ou um urso feroz, de cidade com torres, pedra ingente de promontório azul coroado de árvores, que oscila sobre o mundo, e nossa vista deixa atemorizada."

Eu suspirei aliviada quando o motorista do táxi colocou minha bolsa do lado de dentro da casa. Eu não o deixara esperando acordado: ele estava fazendo o que costumava fazer uma noite antes de filmar uma cena importante: ensaiando. Eu sabia que o encontraria andando pelo quarto, vestindo uma camiseta velha de Tulane e sua cueca samba-canção e sorri pelo conforto familiar.

Meu voo havia saído atrasado de Chicago devido às tempestades e às nove horas da noite telefonei para dizer a Alex que não sabia se conseguiria chegar em Los Angeles naquela noite.

- Vá dormir - eu disse. - Se eu conseguir chegar, pegarei um táxi. - Eu sabia que ele teria um dia exaustivo no dia seguinte, filmando as cenas em que António percebe a traição de Cleópatra e depois fica sabendo de seu suposto suicídio. Além disso, mais problemas haviam ocorrido com o filme. Algumas divulgações usadas como trailers haviam recebido uma reação negativa do público. Alex me contara ao telefone:

- Eles riram - disse ele, chocado. - Eles me viram correr com uma espada e riram.

Desejei que estivesse ali para ajudá-lo e para mostrar o lado bom que todas as notícias ruins a respeito do filme estavam tendo nos programas de entretenimento e nas colunas de fofocas. Até mesmo em Chicago havia sido publicada uma nota no Tribune dizendo que António e Cleópatra era um dos fracassos mais caros de Hollywood. Ao ler isso em um hotel, tive de lutar contra a vontade de telefonar para Alex no mesmo momento. Eu sabia que em uma semana os primeiros boatos estariam esquecidos. Seria melhor acalmar Alex pessoalmente, eu pensei, em vez de tentar ao telefone.

Além disso, eu tinha uma notícia que afastaria sua preocupação com o filme. Eu ainda não tinha certeza absoluta, uma vez que não tivera tempo de ir ao médico, mas estava com a menstruação atrasada havia uma semana. Porém estava temerosa. Havia pensado na situação na viagem de volta para casa, imaginando que Alex teria um ataque quando eu contasse a ele a respeito do bebê, mas havia pensado em várias possibilidades. Em uma delas, ele ficava sem saber o que falar. Em outra, eu dizia que os melhores planos nem sempre funcionam como queremos. Em uma terceira, pacientemente fiz com que se lembrasse que ele mesmo havia decidido brincar com o fogo. Todos os cenários terminavam da mesma maneira: com nós dois sentados perto da janela, Alex com a mão pousada sobre meu ventre, como se pudesse me ajudar a carregar nosso filho.

Eu olhei para a minha mala, decidindo deixá-la na sala, porque, afinal, não podia carregar coisas pesadas. A cada passo que eu dava, escutava Alex ensaiando outra fala, algumas vezes repetindo-a com a ênfase em diferentes palavras: "Realizei essas guerras pelo Egito... Ela roubou minha espada".

Sorri, pensando na crise de masculinidade de António, e nas notícias que eu tinha para Alex. Respirando fundo, entrei na suite.

- Olá - eu disse.

Alex virou para mim, com os olhos tomados de raiva.

- Ela roubou - ele disse mais lentamente - a minha espada. - Ele deu dois passos em minha direção, parando a alguns centímetros de meu rosto. - Bem - ele disse - acredito que vai tentar se explicar.

Fiquei boquiaberta e magoada, esperando pela recepção que não se materializou.

- Eu avisei que chegaria tarde - eu disse. - Telefonei assim que soube. - Passando cuidadosamente por Alex, coloquei meu casaco em uma cadeira. - Pensei que fosse ficar feliz por eu ter chegado em casa hoje.

Alex virou-me segurando meus ombros.

- Seu avião não estava atrasado - ele disse. - Eu telefonei para o aeroporto.

- É claro que estava - respondi. - Quem lhe passou informações, disse coisa errada. Por que eu mentiria para você?

Alex apertou os lábios.

- Isso é você quem pode me dizer.

Esfreguei minhas têmporas, tentando imaginar por qual tipo de estresse Alex estava passando para imaginar aquelas maluquices.

- Não acredito que tentou me vigiar - eu disse.

Alex esboçou um sorriso.

- Pois é, eu não confio em você.

Aquela frase fez com que eu me descontrolasse. O estresse de uma semana de palestras me abateu. Meus olhos ficaram marejados. Aquela não era a noite que eu tinha planejado; não haveria lanchinho na cama no final da noite, canetas, comentários admirados sobre a vida que havíamos criado. Olhei para Alex e tentei descobrir o que tinha acontecido com o homem que eu conhecia.

Assim que as primeiras lágrimas escorreram de meu rosto, Alex começou a sorrir. Ele me agarrou pelos ombros com força.

- O que houve, pichouette? - ele disse, com gentileza. - Você veio da cama de outro homem? Alguém que escolheu em Chicago? Ou estava apenas andando pelas ruas, aproveitando sua semanazinha de glória, para o caso de o fracasso estar próximo?

Escutei em suas palavras o quanto ele odiava a si mesmo e, enquanto balançava minha cabeça de maneira negativa, eu fui até ele, oferecendo a única coisa que eu tinha. Alex segurou meus pulsos com uma mão e bateu na lateral de meu corpo, com grande esforço. Eu não me mexi; nem mesmo respirei. Simplesmente não acreditava que aquilo estava acontecendo, sentindo acontecer comigo. Não, eu pensei, mas não havia palavras.

Quando me empurrou para longe dele, bati na beira de uma estante de livros e quando caí uma chuva de livros de capa dura e de pesos de papel de vidro caiu sobre mim. Tentei me afastar, mas, quando ele me chutou, acertou meu abdome, e então rolei para o lado. Cobri meu rosto e tentei desaparecer - a ponto de Alex não me ver mais, a ponto de eu me esquecer.

Percebi que tinha terminado apenas porque escutei Alex chorar sobre meu corpo dolorido. Tocou meu ombro e virei para ele, escondendo meu rosto em seu peito e soluçando, procurando conforto com a pessoa que causara a dor. Ele me embalou em seu colo; disse que sentia muito.

Quando não havia mais nada dentro de mim, Alex ficou em pé e foi para o banheiro. Voltou com uma toalha e limpou meu rosto, meu nariz, meu pescoço. Colocou-me sob as cobertas e se sentou na beira da cama. Quando pensou que eu estava dormindo, voltou a falar.

- Não quis fazer isso. - Começou a chorar de novo. Então, caminhou até a sala de descanso e deu um soco na parede.

QUANDO O SANGRAMENTO COMEÇOU MAIS TARDE, eu disse a mim mesma que era a minha menstruação, fechei meus olhos e sussurrei aquela frase como se fosse uma oração, até acreditar que era verdade. E talvez fosse: não sabia nada sobre abortos, mas não sentia muita dor - apesar de isso ter acontecido porque eu simplesmente havia ficado entorpecida.

Pensei no que poderia ter sido um bebê apenas uma vez, quando ainda não havia amanhecido. Decidi não contar a Alex. Não havia necessidade; ele se sentia mal o bastante. Quando ele acordou, levantou os lençóis e olhou para o inchaço em meus braços e os hematomas em minha barriga.

- Não - eu disse a ele com delicadeza, tocando seu rosto, e o observei ir para o estúdio sob o peso de sua culpa.

Mas agora ele estava em casa novamente e íamos a uma première. Eu me virei para Alex, deitado na cama ao meu lado, onde havíamos adormecido depois que Ophelia saíra, com seu braço caído de modo possessivo sobre minha cintura. Cuidadosamente levantei sua mão, escapando e entrei na sala de descanso.

Eu havia arrumado os livros e os pesos de papel de manhã, mas ainda conseguia vê-los espalhados pelo chão de madeira. Distraidamente, eu me sentei em uma poltrona dupla e peguei o controle remoto da televisão, ligando-a. Na tela havia dois animais sem forma, um desenho. Um deles batia na cabeça do outro com uma bigorna. O segundo sorriu, e seu corpo se espatifou e se desfez, restando apenas o esqueleto.

"Então", eu pensei, "é assim em todos os lugares"

Alex saiu alguns minutos depois e sentou-se ao meu lado. Ele me beijou com tanta delicadeza que imaginei meu coração como aquele animal do desenho, despedaçando-se e deixando apenas a dor, a essência.

- Você vai comigo? - ele perguntou.

Assenti. Eu caminharia sobre brasas se Alex me pedisse. Eu abriria mão de minha alma. Eu o amava.

É difícil para você entender, mas eu sabia que não aconteceria uma segunda vez, porque percebi que tinha uma parcela de culpa. Era minha obrigação manter Alex feliz. Era isso o que havia prometido um ano antes. Mas eu havia feito algo errado, algo que prejudicara o equilíbrio e o levara ao limite. Eu descobriria o que tinha sido, para que nunca mais ele se sentisse daquela maneira, para que nunca mais as coisas acontecessem daquele jeito.

Alex me levou para o quarto e me ajudou a colocar um vestido preto colado que deixava os ombros à mostra, mas escondia quase todas as outras partes do meu corpo, do pescoço aos tornozelos.

- Você está linda - ele disse, levando-me para a frente de um espelho.

Olhei para meus pés descalços, para as minhas mãos e para os olhos de Alex, que ainda pareciam magoados. Não dava para ver os meus hematomas.

- Sim - eu disse. - Este está ótimo.

Chegamos à festa com outros vinte carros dirigidos por motoristas e esperamos para chegar ao lugar onde todos estavam descendo. Fãs e paparazzi haviam formado duas filas que levavam à porta do teatro, e dois jornalistas estavam posicionados bem na esquina, para poderem registrar o momento em que as celebridades saíssem de seus carros.

Não havia nada de novo; Alex e eu havíamos ido a muitas premières no ano anterior. Ele saiu do carro antes, vestindo sua camisa branca e uma gravata. Acenou para a multidão e o sol se refletiu em sua aliança de casamento, emitindo um raio que temporariamente me cegou. Depois, delicadamente, ele me ajudou a sair do banco de trás, envolvendo minha cintura com seu braço, tomando cuidado para apoiar sua mão numa parte mais baixa de meu quadril, onde eu não sentiria dor.

Era um procedimento comum ficar em pé ali por um momento, como um rei e uma rainha, para que as pessoas pudessem tirar fotos e observar bem. A jornalista ao meu lado praticamente gritava mais do que a multidão que urrava o nome de Alex. "Aqui estão Alex Rivers e sua esposa, Cassandra. Andam dizendo que o novo filme de Rivers, António e Cleópatra, está mal das pernas", ela disse. "Mas, como podem ver, os fãs não duvidam de que, independentemente dos problemas que a produção encontrar, Alex encontrará uma maneira de sair deles." Ela lançou um olhar cheio de significado para trás e pretendia que fosse captado pela câmera. "Parece que tudo que Alex Rivers toca vira ouro."

Alex me guiou adiante, com a mão delicadamente pousada em minhas costas. Olhei mais uma vez para a jornalista e então joguei a cabeça para trás e ri.

 

Escutei os passos na escada do apartamento e agora, completamente acordada, eu saí da cama onde estava tirando um cochilo. Com o coração aos pulos, estiquei o edredom, tirando a forma de meu corpo para que ele nunca soubesse.

Era o mês de abril, e eu estava de licença da UCLA, mas Alex não gostava de me ver sem nada para fazer. Ele já havia me dito aquilo mais de uma vez, às vezes brincando, às vezes de maneira tão séria que me fazia procurar coisas com as quais me mantivesse ocupada: limpar candelabros de cristal, fazer aulas de aeróbica que eu detestava, redecorar o apartamento, que havia sido lindamente mobiliado. A verdade é que o ano anterior havia sido desgastante, entre ser professora na universidade e equilibrar aqueles compromissos com palestras aqui e acolá sobre a mão, que estava em exposição em um museu de Londres. Naquele ano eu queria descansar.

Mas também não queria chatear Alex.

Fiquei em pé e passei a mão sobre meu cabelo, verificando se nenhuma mecha havia escapado do grampo enquanto eu dormia. Meu coração acelerou e eu contei os segundos que restavam antes de Alex abrir a porta. Rapidamente olhei ao redor procurando por alguma coisa que desse a impressão de que eu estava ocupada e peguei um bloco de anotações e uma caneta. Senteime à escrivaninha e escrevi a primeira coisa que me veio à mente: uma árvore linear da evolução do homem.

Um minuto se passou; dois. Empurrei a cadeira para trás e atravessei o quarto para abrir a porta. Meu rosto estava corado quando girei a maçaneta e senti um certo receio, sem saber o que me esperava do outro lado.

Havia uma cortina esvoaçando com as ondas de calor. A senhora Alvarez abrira as janelas antes de sair para ir ao Mercado. Mas a casa estava silenciosa, o que significava que ela ainda não havia retornado.

Desci a escada e abri a porta da frente, colocando a cabeça para fora. Chamei, esperando uma resposta, e procurei nos banheiros, no escritório e na varanda antes de perceber que havia ficado nervosa por nada. Eu havia apenas imaginado os passos. Alex não estava em casa.

DURANTE SEIS MESES DEPOIS DAQUELA PRIMEIRA VEZ, Alex foi o marido ideal. Nunca deixava de me perguntar o que estava acontecendo na universidade. Construíra meu próprio laboratório no terreno da casa como presente de aniversário. Contratara um artista para pintar um quadro com minha imagem e o pendurou em seu escritório na frente de sua mesa, onde ele dizia que sempre poderia ficar de olho em mim. Quando eu ministrava palestras a respeito da mão, ele participava e aplaudia mais alto do que as outras pessoas. Durante alguns meses, ele chegou a contratar uma secretária completamente dispensável para gravar o que eu dizia e para organizar as folhas a respeito da minha descoberta em um tipo de livro de recortes. À noite, ele me tocava com reverência e me abraçava forte quando eu dormia, como se ainda pensasse que eu podia fugir.

Tudo isso nos deixou mais próximos. Eu sei que você não compreende e não posso explicar melhor: eu amava Alex de tal forma que era mais fácil permitir que ele me machucasse do que assisti-lo machucando a si mesmo. A dor física não era nada em comparação com o olhar de Alex quando ele não conseguia satisfazer suas expectativas.

Eu não tinha medo dele, porque o compreendia. Eu tentava manter tudo constante e organizado em casa, como se isso pudesse lhe dar uma base sobre a qual trabalhar. Às vezes isso dava errado - o que servia de desculpa para que ele explodisse. Quando retirei uma pilha de roteiros de cima de sua mesa para que a empregada pudesse limpar, ele gritou comigo durante mais de uma hora. Mas não me tocava, não quando estava com raiva, durante um tempo.

Ele estava filmando Argumentos insuficientes - um filme sobre o qual eu nada sabia porque não tivera tempo de ler o roteiro. Era a segunda vez que isso acontecia. Estávamos morando no apartamento, por que o papel de parede estava sendo trocado, e era mais fácil dormir ali do que ir todos os dias de manhã para supervisionar a decoração. Alex chegou em casa perto da hora do jantar, quando a senhora Alvarez já havia guardado a refeição e ido para a casa de seu filho para passar o final de semana.

Eu estava em pé diante da mesa quando escutei John chegar com o carro. Checando os detalhes de última hora, eu estiquei meu braço para realinhar a faca, o garfo e a colher de Alex, para que todas as pontas estivessem no mesmo nível.

- Oi - Alex disse, chegando por trás de mim e me abraçando pela cintura. Seu cheiro era da loção fria usada para retirar a maquiagem no final do dia. Ele ainda estava usando os óculos escuros. - O que tem para jantar?

Eu me virei em seus braços.

- O que você queria?

Alex sorriu.

- Você precisa perguntar? - lentamente ele começou a desabotoar minha blusa. - Não está com calor?

- Não - eu ri. - Estou com fome. - Levantei a tampa de uma travessa, deixando que o aroma de ervilhas frescas cozidas e frango seduzisse Alex. - Por que não troca de roupa?

Alex desceu as escadas para o nosso quarto e eu servi arroz, frango e vegetais em nossos pratos. Sentei-me pacientemente com o guardanapo em meu colo até Alex retornar, vestindo um short e uma camisa azul-clara que realçava a cor de seus olhos. - Viu meus tênis, pichouette? - ele perguntou.

Franzi a testa, tentando me lembrar de onde eles estavam. Em algum momento do dia eu os vira, entre papéis, tubos e cola de papel de parede.

- Oh! - exclamei, lembrando. - Eles estão na varanda.

A varanda do apartamento ficava de frente para o deque no nível da praia. Deixávamos nossas plantas lá, além de uma estátua indiana feia que Alex não lembrava ter comprado. Ele se dirigiu às portas de correr e saiu na varanda, encontrando seus tênis e calçando-os.

Imediatamente ele os tirou, dizendo um palavrão em francês. Levou um deles ao nariz e fez uma careta, jogando-o o mais longe que pôde na sala de estar. O tênis acertou o novo papel de parede branco, deixando uma mancha escura de lama.

Alex fechou a porta de correr e caminhou pelo apartamento, fechando as janelas que eu abrira para deixar entrar a brisa do mar. Quando ele havia nos isolado de todas as outras pessoas lá fora, começou a falar.

- Algum gato maldito fez xixi dentro deles - ele disse. - O que eu quero saber é por que eles estavam lá fora, para começo de conversa.

Pousei meu garfo na beirada do prato, tomando cuidado para não fazer nenhum barulho.

- Você os deixou lá fora? - perguntei.

- Você ficou aqui o dia inteiro, porra - Alex gritou. - Não pensou em trazê-los para dentro?

Eu não entendi por que aquilo era motivo de crise. Sabia que Alex tinha outro par de tênis, mais velhos, dentro do closet, no andar de baixo. Na casa, havia pelo menos mais três pares. Sem saber o que ele queria escutar, olhei para o meu prato, para o frango que esfriava.

Alex segurou meu queixo e me forçou a olhar para cima.

- Olhe para mim quando estiver conversando com você - ele disse. Então, segurou meus ombros e me empurrou para o lado, derrubando a cadeira para que eu caísse.

Fechei os olhos e me enrolei, esperando pelo que viria em seguida, mas escutei a chave virando na porta de entrada.

- Aonde você vai? - sussurrei, com a voz tão baixa que pensei que ele não fosse me escutar.

- Vou correr - ele respondeu.

Fiz um esforço para me sentar.

- Você está sem seus tênis - eu disse.

- Eu já tinha percebido - ele respondeu e bateu a porta.

Fiquei sentada por alguns momentos com os joelhos encostados em meu peito, e então me levantei e comecei a limpar os pratos. Deixei o de Alex no micro-ondas, mas joguei minha comida no lixo. Em seguida, caminhei pelo apartamento abrindo as janelas que Alex fechara. Escutei latidos de cães lá fora, além de uma partida de vôlei em andamento. Esperei para escutar Alex correndo de volta para mim. Convenci a mim mesma que nada havia acontecido, para que quando ele voltasse não houvesse nada a ser perdoado.

Herb SILVER ENTREGOU UMA SEGUNDA taça de champanhe para mim. Ele estava em pé comigo em um canto do salão lotado, comendo enroladinhos de salsicha.

- Você sabia que Alex providencia esses enroladinhos por minha causa? Ele sabe que eu não como esses outros aperitivos como ostras e outras coisas.

- Quiche - eu disse.

- Sei lá. - ele pousou o braço sobre meus ombros. - Respire fundo, querida. Ele volta logo.

Sorri como se pedisse desculpas, desejando não ser tão óbvia. Eu gostava da companhia de Herb e ficava feliz em saber que Alex cuidava para que eu estivesse bem, mas eu preferia estar com meu marido. E nós estaríamos juntos se estivéssemos em uma première de qualquer coisa que não fosse um filme dele. Mas, naquela noite, ele tinha obrigações e entrevistas a cumprir; pessoas com quem precisava conversar a respeito do patrocínio de seu novo filme. Eu só atrapalharia. Esticando o pescoço, tentei enxergá-lo no meio da multidão.

Eu não o encontrei. Conformada, voltei-me a Herb. Ele estava ali com Ophelia, não porque era seu agente, mas, sim, porque não perderia a oportunidade de levar uma mulher bonita para um evento da imprensa. Pedi a ele que fizesse isso como um favor pessoal, assim como havia pedido a Alex um convite para ela. Eu a vi do outro lado do salão, usando um de meus vestidos, conversando com um ator que estava prestes a estourar na imprensa.

- Parece que Ophelia está se divertindo - eu disse, retomando a conversa.

Herb deu de ombros.

- Ophelia seria capaz de se divertir em um funeral se este estivesse repleto de pessoas da indústria do cinema. - Ele ficou pálido, como se acabasse de perceber que havia insultado minha amiga.

- Não estou criticando - ele diz. - Mas acontece que Ophelia é bem diferente de você.

Eu sorri para ele.

- É mesmo? E como eu sou?

Ele sorriu, mostrando as obturações douradas de seus dentes do fundo.

- Você? Você é boa para o meu Alex.

As luzes piscaram e os convidados começaram a entrar no cinema. Os críticos abriram seus cadernos e suas canetas. Herb olhou ansioso para os lados, esperando que Alex me encontrasse antes de entrar.

- Pode ir - eu disse. - Sou perfeitamente capaz de cuidar de mim mesma.

- Sei... - Herb disse. - Já conheço a história. Qual é o problema em perder um ou dois minutos do início? - Ele dobrou os braços e recostou-se na parede.

Observei o fluxo de pessoas, tentando descobrir se Alex havia me esquecido.

- Não sei nem do que se trata a história - confessei. - Estive ocupada demais para ler o roteiro dessa vez.

Herb ergueu as sobrancelhas.

- digamos que é uma virada para Alex. Duvido que você já tenha visto ele assim. - Herb começou a sorrir. - Falando no diabo... - ele disse.

Alex envolveu meu braço no dele.

- Sinto muito - ele disse. - Até mesmo os astros de cinema precisam ir ao banheiro de vez em quando.

- Ele agradeceu a Herb por ter cuidado de mim e caminhou comigo para dentro do cinema escuro.

Eu me inclinei para Alex quando os créditos começaram a aparecer na tela.

- Herb me disse que eu não vou conseguir reconhecê-lo.

Alex respirou fundo, segurando minha mão.

- Cassie - ele disse delicadamente -, prometa-me que vai se lembrar de que eu estou atuando.

- Ele envolveu seus dedos nos meus e os apertou, colocando nossas mãos sobre o braço da poltrona entre nós, e não a largou.

O que tornava aquele filme diferente dos outros nos quais Alex atuara era o fato de ele ser um vilão. Seus outros personagens tinham defeitos de algum tipo, mas não grandes o bastante para o tornarem um vilão. Demorei Pouco tempo para perceber do que se tratava o filme.

Alex estava interpretando um homem que espancava a sua mulher.

Não percebi que estava apertando os dedos dele e que me sentia tão tonta que se tivesse me levantado e saído correndo do cinema teria caído.

Observei a primeira cena ocorrendo em um banheiro branco, onde as louças eram brancas e sem manchas e as toalhas estavam dobradas em seus ganchos. Alex afastava a cortina do chuveiro e atrás dela apareceram às torneiras de água fria e água quente, e uma delas não estava posicionada em um ângulo de noventa graus em relação ao teto. Alex arrastou uma mulher que não era eu para dentro do banheiro, forçou-a a ver seu erro e a jogou no chão.

Eu estava assistindo à história de minha vida.

Mas nos sets de gravação havia dublês; eles ensinavam os atores a coreografar falsos golpes. Eu tentei me lembrar de que a atriz não havia se machucado.

Quando me voltei para Alex, ele estava olhando para mim e não para o filme. Seus olhos refletiam os personagens que estavam passando pelo que nós passávamos. "Prometa-me que vai se lembrar de que eu estou atuando."

- Por quê? - eu perguntei, mas Alex apenas inclinou sua cabeça na direção da minha e pediu desculpas.

DEPOIS DE O FILME ESTREAR PARA O GRANDE PÚBLICO e de Alex ter recebido ótimas críticas por aceitar um papel que alterava sua imagem como ator, nós fomos para o rancho no Colorado. Das três residências de Alex, aquela era a minha favorita. Espalhada em 121 hectares de amplos pastos, seus limites eram as montanhas. A propriedade era atravessada por um riacho comprido e tão frio que chegava a entorpecer os tornozelos. Eu sabia sobre a altitude no Colorado, mas, assim que cheguei no rancho, ficou muito mais fácil respirar.

Até mesmo os estábulos e a casa principal eram construídos em linhas diferentes daquelas das residências de Los Angeles. Eram em estilo espanhol, coberturas de telhas vermelhas e estuque, e gerânios podiam ser encontrados nas jardineiras. Os funcionários que cuidavam dos cavalos e do rancho quando Alex estava na Califórnia pareciam se esconder pelos montes quando chegávamos para passar alguns dias, fazendo com que eu tivesse a impressão de que apenas Alex e eu tínhamos acesso àquele pedaço do paraíso.

Nas primeiras vezes em que fomos ao rancho, Alex havia me ensinado a montar. Era algo que ele havia aprendido anos antes para o filme Malfeitor. Eu era boa naquilo e gostava.

Alex comprara para mim uma égua chamada Annie, que tinha dez anos de vida, mas agia como uma moleca. A cada três vezes que eu a montava, ela tentava me derrubar. Apesar disso, ela não era nada em comparação com os cavalos que Alex preferia. Parecia ter um novo a cada vez, arredio, e grande parte da emoção para Alex era manter-se na sela.

- Eu o desafio para uma corrida - eu disse, observando Alex puxar as rédeas para manter Kongo controlado. Dancei com Annie em um círculo restrito. - Ou está com medo de não ser capaz de controlá-lo?

Eu estava provocando Alex; sabia que, se ele se sentisse confiante o suficiente para montar o animal, conseguiria fazer com que o cavalo o obedecesse. Mas Kongo era um garanhão enorme, forte e preto como piche e não mostrava vontade de fazer o que Alex queria. - Acredito que se fizesse isso acabaria aleijado. - Alex sorriu e, como se compreendesse o que havia sido dito, Kongo virou-se e começou a trotar na direção errada.

- Não vou deixar - eu disse, e enterrei meus calcanhares nos flancos de Annie, passando pelos portões que levavam ao vale, onde o riacho dava três voltas para um pequeno bosque sombreado por álamos, cujas folhas prateadas balançavam ao vento.

Alex correu pelo bosque bem na minha frente e depois passou a trotar, fazendo círculos para tranquilizar o cavalo. Ele apeou de Kongo e o amarrou a um galho baixo de uma árvore e depois me ajudou a apear de Annie. Ele me colocou no chão grudada em seu corpo, e eu envolvi seu pescoço e o beijei.

- O que eu gosto em você - ele disse, sorrindo - é que você sabe perder.

Deixamos os cavalos pastando e nos sentamos à beira do riacho, molhando nossos pés descalços na água gelada. Eu estiquei-me para trás, encostando minha cabeça no colo de Alex.

Acordei quando minha cabeça bateu nas pedras da beira da água. Alex estava em cima de Kongo de novo. - Annie acabou de escapar - ele disse. - Estou indo atrás dela.

Eu sabia que Alex conseguiria recuperar Annie. Tentei imaginar como ela havia se soltado. Era possível que tivesse mordido as rédeas; com seu temperamento, não seria difícil. Mas podia ser que eu a tivesse amarrado mal e, se fosse o caso, quando Alex voltasse, seria um inferno.

Quando Alex voltou irado em minha direção, eu estava sentada bem quieta. Ele parou os cavalos a um metro de mim, ofegante, sem me encarar. Ele se virou, mas não consegui decifrar sua expressão. Quando ele se aproximou, instintivamente me afastei.

Alex arregalou os olhos. Então ele esticou a mão, da maneira que fazemos para um cachorro que está inseguro a respeito de seu odor. Ele esperou até que eu colocasse a palma de minha mão contra a dele e me puxou para seus braços.

- Jesus - ele disse, alisando meus cabelos. - Você está tremendo. - Ele acariciou a lateral de meu pescoço. - Mesmo que eu não a tivesse Pegado, ela teria voltado ao estábulo. Não precisava se preocupar. - Mas eu não conseguia parar de tremer e, depois de um momento, ele me afastou delicadamente, ainda me abraçando. - Meu Deus - ele disse lentamente. - Você estava com medo de mim.

Levantei a cabeça e neguei, mas eu estava tremendo, o que não condizia com minha resposta. Alex sentou-se no chão e abaixou a cabeça. Eu me sentei ao lado dele, arrasada por ter estragado o que seria uma tarde perfeita. Percebi que dependia de mim fazer com que voltássemos ao normal, por isso respirei profundamente. Levantei-me e fui para ao riacho, inclinando-me e colocando os dedos na água.

- Dizem que há trutas nesse riacho.

Alex levantou a cabeça e sorriu para mim de maneira agradecida, olhando-me desde meus cabelos até meus pés descalços.

- Sim - ele disse.

- Fiquei sabendo.

- E dizem - eu continuei - que dá para pegar um peixe com as mãos. - Enquanto eu falava, uma truta lisa escorregou entre as palmas de minhas mãos, fazendo com que eu me assustasse e pulasse para trás.

Alex ficou em pé, entrando na água atrás de mim.

- Se você quisesse aprender - ele disse, encaixando suas coxas atrás das minhas -, a primeira coisa a fazer seria parar de se mexer tanto. - Ele se inclinou sobre mim, tão perto que seus lábios roçaram minha orelha. Seus braços envolveram os meus, dentro d'água, onde minhas mãos repousaram nas dele. - A próxima coisa a se fazer seria ficar parada. Não respire. Uma truta fugirá se imaginar que você está aqui. E agora feche os olhos.

Eu me virei em seus braços.

- Você fecha?

- Assim você pode sentir o peixe.

Obedientemente eu fechei meus olhos, deixando o ar gelado preencher meus pulmões, aproveitando a sensação de ter o corpo de Alex perto do meu em tantos pontos diferentes.

Quando a truta escorregou pela palma de minha mão, um raio prateado, Alex apertou os dedos. Ele lançou nossos braços para trás e o peixe bateu contra meu peito, entrando no espaço entre meus seios. Juntos, caímos para trás, dando risada.

Olhamos um para o outro, a centímetros de distância, com as mãos de Alex ainda sobre as minhas. No ponto em que seus pulsos ficaram pressionados contra mim, consegui sentir sua pulsação, combinando com a minha. Não tentamos desfazer o nó que nossos corpos haviam formado, nem mesmo quando Alex se inclinou para a frente para colocar a truta no riacho novamente. Juntos, observamos o peixe passar pela água, desaparecendo rapidamente.

O QUE eu ME LEMBRO A RESPEITO DESSA BRIGA EM particular não foi o que a causou nem como Alex veio atrás de mim. Só sei que aconteceu no quarto grande da casa, e que um de nós bateu na cômoda durante a briga. Por isso, a imagem que guardei não foi das palavras de Alex ou de suas mãos em meus ombros; foi o momento em que o vidro de neve que Alex havia levado para mim na Tanzânia rolou e se espatifou no piso de madeira.

Foi um acidente que poderia ter acontecido muito antes, caso uma empregada tivesse sido descuidada ou se eu tivesse me virado rapidamente ao me trocar. Mas não tinha acontecido. Durante dois anos e meio o pequeno vidro permanecera, muito bem fechado, entre a minha escova de cabelo e a de Alex, como se fosse um elo que as mantivessem juntas.

Alex ficou em pé, ofegante, observando a água se espalhar no chão. Eu tentei imaginar se ela deixaria uma mancha e fiquei torcendo para que deixasse, assim restaria alguma coisa.

Em vez de pedir desculpas ou me abraçar, Alex ajoelhou-se e começou a recolher os fragmentos maiores do vidro. Um deles cortou seu polegar e eu observei fascinada seu sangue misturar-se na poça d'água.

Acredito que foi isso que me colocou no limite.

- Se você voltar a me tocar dessa maneira - eu disse delicadamente, olhando para a água -, irei embora.

Alex não parou o que estava fazendo. Ele recolheu aqueles pedaços como se realmente pensasse que seria capaz de reuni-los novamente. Ele disse:

- Isso acabaria comigo.

Peguei minha bolsa e um casaco e desci as escadas, balançando a cabeça, em negativa, quando John perguntou se eu precisava de uma carona. Eu caminhei pelas ruas do bairro, respirando o ar processado.

Quando cheguei à igreja St. Sebastian - sim, a nossa igreja -, o primeiro pensamento que tive foi que poderia conseguir refúgio. Eu poderia me esconder lá dentro e nunca mais sair. Talvez se ficasse sentada durante bastante tempo nos bancos frios e escuros, observando as sombras produzidas pelos vitrais, o mundo voltaria a ser como era.

Eu queria desesperadamente ser uma católica, ou ter qualquer definição mas eu não podia dizer com honestidade que acreditava em alguma coisa. Tinha minhas dúvidas a respeito de um Deus misericordioso. Fechei meus olhos e em vez de rezar para Jesus, rezei para Connor.

- Gostaria que você estivesse aqui - eu sussurrei. - Não faz ideia de quanto eu preciso de você.

Fiquei sentada no banco até sentir a madeira presa na parte de trás de minhas coxas, e nesse momento a única luz da pequena igreja vinha das velas brancas e brilhantes que ficavam sobre uma mesa no fundo do lugar. Eu fiquei em pé, tonta, e compreendi que ainda acreditava em algumas coisas. Acreditava em Alex e em mim. Apesar desse ciclo, eu acreditava em nós dois juntos.

Saí pelas portas pesadas da igreja e chamei um táxi para me levar para casa. Quando toquei a porta da frente, ela se abriu. A sala estava escura. Alex estava sentado no último degrau da escada, segurando a cabeça nas mãos.

Percebi duas coisas naquela noite: que Alex pensara que eu havia ido embora para sempre e que, independentemente do que eu havia dito no calor do momento, tinha sido apenas uma ameaça vazia. Desde o primeiro segundo que eu passei fora de casa, estava simplesmente fazendo meu caminho de volta.

 

Ao meu lado havia um monte de roteiros. Não era minha responsabilidade, mas eu gostava de lê-los. Eu fechava os olhos e tentava imaginar Alex seguindo as direções escritas, falando as palavras da página. A maioria dos roteiros eu abandonava depois de ler algumas páginas, mas aqueles que pareciam mais promissores eu passava adiante.

Eu estava no escritório de Alex na Warner Brothers. Nos dias em que não estava lecionando ou quando não queria fazer pesquisa, eu me acomodava no sofá macio, esperando que ele terminasse o que estivesse fazendo naquele dia para que pudéssemos ir juntos para casa. Naquele dia, Alex estava no estúdio de som, dublando seu último filme. Ele só voltaria depois de várias horas. Suspirando, peguei o roteiro em cima da pilha e comecei a ler.

Duas horas depois, larguei os papéis e corri pelo estacionamento da Warner Brothers. Eu tinha uma vaga ideia de onde era feita a mixagem de som, mas entrei em três salas diferentes antes de encontrar aquela na qual Alex estava trabalhando. Ele estava inclinado sobre uma mesa de som eletrônica com técnico e, quando ele me viu, tirou os fones de ouvidos.

Eu ignorei sua insatisfação por eu o ter interrompido, o olhar me indicava que eu receberia uma bronca depois.

- Você precisa vir comigo - eu disse, em um tom de voz que não dava espaço a discussões. - Tenho um filme para você.

A PRIMEIRA IMAGEM DE A HISTÓRIA DELE ERA DE um homem vendo o pai morrer. Em um quarto de hospital, entre tubos, fios e máquinas barulhentas, ele se inclinava sobre o rosto frágil e sussurrava: "Eu te amo".

A história era sobre um pai e um filho que nunca haviam se comunicado, pois essa era a definição pessoal de ambos do que significava ser um homem. Ao perder contato com o pai, que sempre fora exagerado e crítico, o filho volta para casa quando a mãe morre em um acidente de carro. Ele é agora um fotojornalista muito viajado; seu pai continua sendo o que sempre foi: um agricultor de Iowa simples e sem educação. O filho logo vê que tem muito pouco em comum com o pai, percebe que seu pai envelheceu e vê como é difícil viver na mesma casa quando a mulher que servia de intermediária entre eles não existe mais.

Por motivos complexos, o filho começa a fazer uma exposição de seu pai, retratando-o como um agricultor independente, vítima de preços e incapaz de sobreviver com suas plantações. Flashes mostram os eventos que formam a parede entre pai e filho; o restante do filme mostra a gradual destruição dessa parede, quando o filho abandona a câmera e trabalha ao lado do pai nos campos, começando a compreendê-lo por experiência, não apenas como observador.

O clímax da história envolve uma cena forte entre pai e filho. O filho, que sempre procurou o pai, continua sendo deixado um pouco distante; na verdade, os únicos momentos em que eles parecem se relacionar são quando caminham lado a lado pelas plantações de milho. Ressentido pelas críticas de seu pai a respeito do que ele se tornou, o filho explode. Grita dizendo que deu ao velho todas as chances de enxergá-lo como realmente é; que qualquer outro pai sentiria orgulho das conquistas do filho; que ele nunca precisaria ter percorrido o mundo para encontrar seu lugar se tivesse sido aceito em sua casa. O pai balança a cabeça e vai embora. Quando o velho não está por perto, o filho percebe a vista: uma extensão de terra que sua família possui. Ele percebe que quando era pequeno ficava ali e via os campos apenas em seus limites, apenas pelo que existia do outro lado.

Mas ele também percebe que o motivo pelo qual seu pai o feria na infância era porque era mais fácil deixar seu filho vê-lo como um tirano exigente e mandão do que vê-lo pelo que de fato é: um agricultor que nunca fez nada de importante. Até mesmo ser visto como um cafajeste era melhor, em seu ponto de vista, do que ser visto como um fracasso.

Acontece uma reconciliação discreta no filme que ocorre na colheita, sem nenhuma palavra, pois no passado as palavras apenas os afastaram. E então, no fim do roteiro, o filho publica o ensaio com fotos, que ele espalha ao redor da cama do pai no hospital: imagens sensíveis não de uma vítima ou de um fracasso, mas, sim, de um herói. A tela fica branca e vem a cena final na qual o pai, décadas mais jovem, ergue uma criança sorridente em seus braços. Voltamos para o início. "Eu te amo", ele diz, e a história termina.

Eu soube, quando li o roteiro, que Alex tinha de fazer aquele filme. Também soube que eu estava brincando com fogo. Interpretar o papel do filho traria ainda mais raiva à tona. Trabalhar com as cenas de confronto significaria enfrentar sua raiva. E Alex deixaria o set e voltaria para casa para aliviar a nova e crua dor me espancando.

Mas eu sabia que ele não tinha a intenção de me ferir. E eu sabia que tudo apontava para a parte de Alex que ainda acreditava que ele não era bom o bastante. Se Alex fosse forçado a analisar esse seu lado, talvez ele fosse exorcizado para sempre.

PENSEI QUE ELE FOSSE ME MATAR. Ele estava em pé no banheiro, chutando-me várias vezes, seu rosto tremendo de fúria. Ele me colocou em pé me puxando pelos cabelos e, quando tentei imaginar o que mais ele poderia fazer, fui jogada contra o vaso sanitário e ele se afastou.

Tremendo, fiquei em pé e joguei água em meu rosto. Dessa vez, ele havia batido em minha boca, o que era surpreendente - era mais difícil esconder os hematomas em meu rosto, e ele não costumava perder o controle e me ferir no rosto. Apertei um pedaço de papel higiênico contra o sangue no canto de meus lábios e tentei reconhecer a mulher que me encarava no espelho.

Eu não sabia aonde Alex ia e não me importava. Eu estava esperando aquilo. Alex havia terminado de ler A história dele e eu sabia que ele se sentiria dessa maneira depois. Era o primeiro passo que ele teria de tomar para se curar; o segundo seria seu comprometimento em fazer o filme.

Vesti uma camisola e entrei debaixo das cobertas, virando-me de costas para o lado de Alex na cama. Um pouco depois, ele entrou sem fazer barulho no quarto e começou a tirar suas roupas. Ele foi para a cama, prendeume em seus braços e olhou pela janela para as mesmas estrelas que eu estava tentando decifrar.

- Eu não fui ao enterro de meu pai - Alex disse, e eu me assustei um pouco com o timbre de sua voz. É verdade que não havia ninguém na casa àquela hora, mas algumas coisas era melhor sussurrar. - Minha maman telefonou e me disse que ele era um filho da puta infeliz, mas que ir ao enterro seria o mais cristão a se fazer.

Fechei os olhos, imaginando aquela cena da história mais difícil de esquecer, aquela do pai erguendo seu filho. Imaginei Alex sentando ao lado da cama do pai no hospital. Vi as câmeras gravando quando ele teve sua segunda chance.

- Claro, foi o que pensei, uma vez que ele era o diabo em pessoa, a caridade cristã não se aplicava a ele. - As mãos de Alex subiram e desceram sobre minhas costelas, sobre lugares que ele havia ferido horas antes. - Vou dirigi-lo e coproduzi-lo. Dessa vez, quero ser a pessoa no controle

Jack GREEN SENTOU-SE PERTO DE MIM enquanto um funcionário aproximadamente do mesmo tamanho dele estava arrumando câmeras e luzes. Ele era um ator veterano, que já fizera de tudo, desde comédia com Marilyn Monroe até o retrato dramático de um alcoólatra que o rendeu um Oscar em 1963. Mas ele também era capaz de fazer sons de assovio com as axilas e embaralhar um monte de cartas com mais pose do que um apostador em Las Vegas e sabia cortar as táboas que cresciam nos campos de Iowa. Depois de Alex, ele era a pessoa do set de quem eu mais gostava.

Ele interpretaria o papel do pai, em grande parte pela insistência de Alex, uma vez que Jack não filmava desde 1975. A princípio, havia sido divertido ver as pessoas passando pelo set, sem saber ao certo se deveriam procurar Jack, a lenda, o Alex, o deus. E ninguém sabia como Jack aceitaria a direção de Alex. Mas, depois de ver as primeiras cenas, Jack levantou-se e virou-se para Alex:

- Rapaz, quando você chegar à minha idade, pode ser tão bom quanto eu.

Jack ergueu as sobrancelhas, perguntando a mim se eu queria outra carta. Nós estávamos jogando vinte e um, e ele dava as cartas.

- pode me dar - eu disse, batendo em cima do livro que estávamos usando como mesa.

Jack virou o dez de ouros e sorriu.

- Vinte e um - ele disse. Balançou a cabeça de maneira apreciativa. - Cassie, você tem mais sorte do que uma prostituta de três tetas.

Eu ri e saí da cadeira de Alex.

- Você não precisa se preparar?

Jack levantou a cabeça e olhou ao redor.

- Bem - ele disse -, acho que posso dar uma volta para conhecer o terreno. - Ele sorriu e me jogou o roteiro, que até onde eu sabia ele não havia lido desde que entrara no set dez semanas antes, apesar de não ter errado uma fala. Ele se dirigiu na direção de Alex, que estava fazendo gestos para o diretor de fotografia.

Eu não havia conversado com Alex o dia todo, apesar de isso não ser incomum. Durante as semanas que ele passou filmando A história dele, em Iowa, Alex se mantivera mais ocupado do que eu já tinha visto. Sempre havia uma fila de pessoas esperando para pedir a opinião técnica sobre alguma coisa; havia jornalistas tentando conseguir entrevistas; havia patrocinadores com os quais conversar sobre dinheiro. De certa maneira, Alex vencia o estresse. Sua carreira estava em jogo: apesar de estar em um filme no qual não seria visto como protagonista romântico tradicional, ele estava dirigindo pela primeira vez. Mas toda a pressão parecia tirar sua mente do fato de que o filme que estava fazendo e as emoções que estava trazendo à tona eram coisas próximas de sua realidade.

Alex insistira para filmar a cena de confronto entre pai e filho por último. Ele havia reservado dois dias de filmagem para ela, e aquele dia seria o primeiro, porque ele queria que a cena fosse gravada ao crepúsculo, quando os montes e plantações de milho a distância estivessem arroxeados pelo sol. Eu observei um maquiador aproximar-se de Jack e molhar seu rosto com suor artificial, sujando seu pescoço com algo que parecia terra. Olhou para mim e piscou.

- Que bom que ele tem quarenta anos a mais do que você - Alex disse atrás de mim -, ou eu estaria morrendo de ciúme.

Sorri e me virei, sem saber ao certo o que encontraria nos olhos de Alex. Acredito que eu estava mais nervosa em relação àquela cena do que ele. Afinal de contas, eu tinha tanto interesse nela quanto ele. Se fosse um sucesso, tornaria aquele filme uma obra-prima para Alex. Mas também mudaria a minha vida.

Eu o abracei e o beijei delicadamente.

- Está pronto? - perguntei.

Alex olhou para mim por um momento e tudo o que eu pude ver foram os seus medos refletidos em mim.

- Você está? - ele perguntou com gentileza.

Quando o diretor-assistente pediu silêncio e tudo começou, prendi a respiração. Alex e Jack estavam em pé no meio de um campo alugado de um fazendeiro da região. Atrás deles havia um milharal que era muito mais alto do que deveria ser naquela época do ano, mas tinha sido daquela maneira que o departamento de produção transformara a realidade do mês de abril na ilusão do mês de setembro. O primeiro diretor assistente pediu ação e eu observei quando uma máscara escondeu os traços de Alex, transformando-o em alguém vagamente familiar.

O vento passou pela grama alta como se tivesse ensaiado, e Jack deu as costas a Alex e inclinou-se para pegar uma pá. Observei o rosto de Alex transfigurado pela raiva e percebi que ele engasgava em sua fúria até que disse: - Vire-se, maldito - ele gritou, pousando uma mão no ombro de Jack.

Como havia sido ensaiado, Jack lentamente virou-se na direção de Alex. Eu me inclinei para a frente esperando a próxima fala, mas nada foi dito. Alex ficou pálido e sussurrou: - Corta - e eu soube que no rosto de Jack ele havia visto o próprio pai.

A equipe relaxou, voltando e reposicionando-se enquanto Alex dava de ombros e pedia desculpas a Jack. Eu me aproximei para olhar, até estar perto do cameraman.

Quando o filme voltou a ser gravado, o sol já havia se posto, amparado pelo céu antes de a noite cair. Foi um cenário bonito: o ressentimento vívido no rosto de Alex e Jack diante da luz que ia se apagando, parecendo mais uma lembrança do que um homem.

- Diga-me o que devo fazer - Alex gritou e de repente sua voz falhou, fazendo com que ele parecesse o adolescente repreendido pelo pai nos flashbacks já filmados. Durante o ensaio, Alex fizera com que seu personagem gritasse a cena toda, esperando provocar o pai. Mas agora sua voz afinara até se tornar um sussurro. - Durante anos eu pensei que, quanto maior eu fosse, melhor as coisas ficariam. Eu dizia a mim mesmo que você me notaria - a voz de Alex falhou. - Eu já não fazia isso por mim, depois de um tempo. Estava fazendo por você. Mas você não liga, não é, Pai? O que queria de mim?

- Alex engoliu em seco.

- Quem diabos pensa que é?

Alex esticou a mão e agarrou Jack, outro movimento que não havia sido ensaiado. Prendi a respiração, observando as lágrimas de Alex, percebendo a maneira com que seus dedos se flexionavam nos ombros de Jack. Não dava para saber se Alex pretendia jogar Jack ao chão ou se estava se prendendo a ele para não cair.

E Jack, surpreso com a reação de Alex, simplesmente olhou para seu rosto, parecendo desafiá-lo por um segundo. Mas então se afastou de Alex. - Ninguém - a resposta do roteiro, e então se virou para fora da mira da câmera.

Eu saí do caminho quando a base alta sobre a qual a câmera estava apoiada de repente foi para a esquerda para pegar Alex de perfil. Ele olhou para o milharal, vendo, eu sabia, um pântano com vinhas, uma rede de camarão na entrada de um restaurante decadente e o rosto duro de seu pai - uma cópia mais dissoluta do rosto dele - a imagem contra a qual ele lutara e, ironicamente, carregava consigo.

O sol escorregou atrás da cerca que nesse momento parecia estar amparando Alex. Ele fechou os olhos; abaixou a cabeça. As câmeras continuaram registrando aqueles momentos, porque ninguém pensou em pedir para cortar.

Por fim, Jack Green interrompeu.

- Corta, caramba - ele gritou. Depois de um segundo de silêncio, a equipe começou a aplaudir, reconhecendo que haviam acabado de ver algo raro e bonito. - É melhor aproveitar isso - Jack disse a Alex -, porque eu não faço melhor.

Algumas pessoas riram, mas Alex não pareceu ter escutado. Ele foi direto da cerca para a escuridão, passando pelas pessoas do caminho. Ele foi de encontro aos meus braços e, com todos observando, disse que me amava.

EM FEVEREIRO, ALEX E eu ESTÁVAMOS NA CAMA DO apartamento, assistindo pela televisão quando o presidente da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas e a vencedora do prémio de Melhor Atriz Coadjuvante do ano passado leram os nomes dos indicados para as cinco maiores categorias do Oscar de 1993. Era um pouco antes das seis horas, uma vez que tudo precisava ser feito no horário da Costa Leste. Alex fingiu que não estava muito preocupado, mas sob os lençóis seus pés estavam frios e inquietos.

Alex foi indicado para Melhor Ator e Melhor Diretor. Jack Green foi indicado para Melhor Ator Coadjuvante. O filme A história dele foi indicado para Melhor Filme; no total, havia recebido onze indicações em diferentes categorias.

Alex balançou a cabeça, rindo de orelha a orelha.

- Não acredito nisso - ele disse. - Simplesmente não acredito. - Rolou para o criado-mudo e desligou o telefone.

- Por que isso? - eu perguntei.

- Herb vai ligar, depois Michaela e sabe-se Deus quem tem o número daqui. Jesus, vou ficar atolado até ir para a Escócia. - Ele ia começar a filmar Macbeth em algumas semanas. Ele voltou-se para mim, com os olhos brilhando. - Diga-me que não estou sonhando.

Eu estiquei o braço. - Venha aqui, vou beliscá-lo.

Alex riu e pressionou minhas costas contra a cama.

- Conheço maneiras melhores - ele disse.

Antes do café da manhã, Alex havia marcado uma entrevista pré-Oscar no programa de Barbara Walters. John se aproximou e disse que uma multidão de fãs e jornalistas havia montado acampamento do lado de fora da casa. E, naquela tarde, quando eu fui ao ginecologista e obstetra para confirmar minha gravidez de doze semanas, o médico me deu os parabéns e disse que Alex teria dificuldades para decidir qual notícia do dia havia sido mais maravilhosa.

ESPEREI DUAS SEMANAS ANTES DE CONTAR A ALEX sobre o bebê, planejando mencionar a notícia um dia antes de sua entrevista com Barbara Walters, que nos entrevistaria da sala de estar de nossa casa. Não havia contado assim que soube, porque não queria roubar seu momento. E levou duas semanas para que toda a comoção e as entrevistas terminassem. Eu dizia a mim mesma que havia sido por esses motivos que eu mantivera o assunto em segredo; que não tinha nada a ver com o fato de que amanhã ele poderia contar ao mundo e dar a Barbara Walters o "furo" do ano.

Não estávamos tentando, mas aparentemente eu me encaixava naqueles 2% de mulheres que tomam pílulas e a quem os acidentes acontecem. Nunca me ocorreu que Alex se sentia da mesma maneira que três anos antes em relação a ser pai. Até onde eu sabia, ele havia deixado o fantasma de seu pai no passado, onde deveria ficar.

Nos dez meses desde A história dele ter começado, ele não havia perdido o controle. Havia terminado um papel de protagonista em uma comédia romântica sem incidentes. E mesmo durante as duas semanas, quando a tensão estava aumentando ao seu redor, ele não havia demonstrado sinais de que descontaria em mim. Já havia muito tempo desde a última agressão, a ponto de ser difícil lembrar que elas já tinham acontecido.

Eu estava nervosa para contar a Alex que teríamos um bebê, por isso peguei o caminho da covardia e decidi deixar que alguém falasse por mim.

Pedi a John que me levasse a Rodeo Drive, apesar de nunca fazer compras ali. Ele me deixou a alguns quarteirões de meu destino desejado. Coloquei óculos de sol e entrei em uma loja estreita chamada Waddle-potamus, repleta de móbiles e ursinhos de pelúcia. Escolhi um macacão de algodão tão pequenino que não consegui acreditar que algum ser com vida coubesse nele. Tinha um dinossauro bordado, e eu me imaginei dizendo a Alex que havia tentado encontrar um bordado com a imagem de um Homo erectus, mas não tivera sucesso.

Estava tão animada quando cheguei em casa que subi correndo as escadas. Abri a porta da sala de descanso e dei de cara com Alex.

- Você está atrasada - ele disse de maneira seca.

Eu sorri.

- Você está adiantado. - Segurei a caixa atrás de mim, esperando que ele não tivesse visto.

Um músculo ficou aparente no rosto dele.

- Você disse que estaria aqui quando eu chegasse. Não contou a ninguém que ia sair.

Dei de ombros.

- Eu disse a John. Tinha uma coisa a fazer.

Alex me bateu tão rapidamente no peito que eu não tive tempo de me preparar. Surpresa, olhei para ele, caída no chão, amassando a caixa e seus fitilhos.

Fiz algo que não fizera nos três anos em que aquilo vinha acontecendo: chorei. Não consegui controlar. Eu havia acreditado que havíamos começado do zero e agora Alex, que nunca havia me decepcionado, nos levava de volta à maneira como tudo era antes.

Quando ele começou a me chutar, eu rolei para longe dele, sentindo seu sapato me atingir nas costas, nos rins e nas costelas. Dobrei os braços de maneira protetora sobre a barriga e, quando Alex voltou a si, ajoelhou-se ao meu lado e eu não olhei para ele. Esfreguei as palmas de minhas mãos sobre aquela vida que carregava como se ela fosse um amuleto. Escutei os pedidos de desculpa e pensei: "Espero que este bebê odeie você".

BARBARA WALTERS ERA MUITO MAIS BONITA pessoalmente do que pela televisão, e ela entrou em nossa casa com a autoconfiança de um general, estrategicamente reposicionando móveis e vasos de flores para dar espaço às luzes e às câmeras. Planejava entrevistar Alex por cerca de uma hora, e depois queria que eu participasse para poder me perguntar algumas coisas também. Durante a entrevista com Alex, eu fiquei sentada ao lado do produtor de segmento, tentando ignorar a dor nas minhas costas e na lateral do meu corpo.

Quando a câmera começou a funcionar, estava voltada diretamente para a apresentadora, enquanto ela fazia um resumo e uma apresentação da carreira de Alex, começando com Malfeitor e terminando com a produção que ainda estava em andamento Macbeth. - Alex Rivers - ela disse gentilmente - mostrou ser mais do que mais um rosto bonito. Desde seu primeiro filme, e em quase todas as produções depois, ele procurou escapar de papéis românticos tradicionais para viver homens assustados e imperfeitos. Isso o diferencia de outros talentosos atores, assim como suas indicações recentes ao Oscar com sua primeira tentativa de direção, A história dele. Conversei com Alex em sua casa em Bel-Air.

Depois disso, as câmeras se moveram para incluir Alex na filmagem.

- Muitas pessoas usam o seu nome para definir a palavra "astro". O que você diria que caracteriza um astro?

Alex recostou-se no sofá. Cruzou uma perna sobre a outra.

- Charme - ele disse. E sorriu. - E o fato de você conseguir ou não participar das decisões em um filme. - Ele se ajeitou. - Mas prefiro ser visto mais como um ator do que como um astro - ele disse lentamente.

- Não pode ser os dois? - Barbara pressionou.

Alex inclinou sua cabeça.

- É claro - ele disse. - Mas um é uma vocação séria, e o outro é coisa passageira, e é difícil ser considerado um profissional dedicado quando se é chamado de "astro". Nunca pedi nada disso. Mas gosto de fazer o que faço.

- Mas, diferentemente de muitos atores, você não passou dez anos trabalhando como garçom antes de entrar para o ramo.

Alex sorriu.

- Dois anos. E eu era bartender, não garçom. Ainda consigo fazer bons drinques. Mas tive muita sorte. Eu estava no lugar certo e na hora certa. - Ele olhou para mim. - Na verdade, isso tem sido a história de minha vida.

Barbara sorriu.

- Vamos falar sobre isso. A história dele é muito autobiográfico?

Por um breve momento, Alex ficou nervoso.

- Bem - ele disse lentamente. - Eu tive um pai, mas a familiaridade termina aí. - Eu desviei o olhar, olhando pela janela para a tempestade que estava se formando. Íamos gravar a entrevista ao lado da piscina, mas o tempo estava incerto. Em minha mente, eu estava ciente de Alex dizendo a Barbara Walters as mesmas coisas que havia dito a mim na Tanzânia a respeito de sua infância antes de me contar a verdade. Eu olhei para um raio e pensei no quão cansada estava.

- Alguns críticos dizem que você deixou de lado o símbolo sexual e que usa sua aparência para chegar às falhas de caráter, digamos assim... para expor o que existe embaixo do personagem. - Barbara inclinou-se para a frente. - Quais tipos de falha existem em seu caráter?

Alex esboçou um sorriso que faria com que um milhão de mulheres ficassem sem fôlego quando assistissem ao Oscar e que, naquele momento, fazia meu coração acelerar.

- O que faz com que você pense que eu tenho alguma?

Barbara riu e disse que seria o momento ideal de me apresentar, Cassandra Barrett Rivers, esposa de Alex havia três anos. Ela esperou até que eu me sentasse no sofá ao lado de Alex como eu havia sido instruída a fazer e então deixou as câmeras começarem de novo.

- Vocês dois certamente enfrentaram muitas fofocas que acometem os casais em Hollywood. - Ela se virou para Alex: - É, mais uma vez, uma questão de estar no lugar certo e na hora certa.

Eu fiquei parada como uma pedra, sorrindo para Alex como uma idiota.

- Tem mais a ver com não estar no lugar errado na hora errada - ele disse. - Mas somos pessoas muito comuns. Passamos muito tempo em casa. Acho que não damos muitos motivos para as pessoas falarem de nós.

- Acha que os telespectadores acreditam que vocês dois comem biscoitos na cama e assistem desenhos nas manhãs de sábado e correm na praia?

Alex e eu nos entreolhamos e rimos:

- Isso mesmo - ele disse. - A única coisa é que Cassie não corre.

- Você é uma antropóloga - Barbara disse para mim, mudando o II rumo da conversa. - O que a atraiu em uma celebridade tão "grande" quanto Alex Rivers?

- Eu não fiquei atraída por ele - respondi. - Na primeira vez em que nos encontramos, eu derrubei, de propósito, um copo de suco em seu colo. - Eu contei a história de minha chegada ao set do filme na Tanzânia e, enquanto Alex ajeitava-se inquieto no sofá, a maioria das pessoas da equipe de Barbara Walters riu. Quando a gravação mostrou a todos nós de novo, eu me inclinei imperceptivelmente para mais perto de Alex, uma demonstração de apoio. - Acho que não o vejo como muitas mulheres o vêem - eu disse com cuidado. - Para mim, ele não é uma celebridade; nunca foi. Não me importaria se ele fosse vendedor de carros usados ou se trabalhasse em uma mina de carvão. Ele é simplesmente alguém que amo Barbara virou-se para Alex.

- Por que Cassie? De todas as mulheres do mundo, por que ela?

Alex me puxou para mais perto e meus olhos se fecharam rapidamente quando encostei a lateral de meu corpo, que estava dolorido, nele.

- Ela foi feita para mim - ele disse simplesmente. - É a única maneira de explicar.

Do lado de fora, trovejava.

- Uma última pergunta - Barbara disse -, e é para Cassie. Diga-nos o que os Estados Unidos não sabem sobre Alex Rivers e você acha que deveriam saber.

Chocada, eu olhei para ela, com a boca entreaberta. O ar na sala ficou mais pesado, e a chuva caía como pedra contra as portas francesas. Consegui sentir os dedos de Alex mais tensos em meu ombro e senti uma breve dor nas costelas. "Bem, Barbara", eu poderia dizer, "ele me espanca. E seu pai era terrivelmente agressivo. E ele será pai, mas ainda não sabe porque estou temerosa demais da reação dele para dizer a verdade."

Forcei-me a relaxar no abraço de Alex.

- Nada - eu disse, minha voz um pouco mais alta do que um suspiro. - Nada em que você acreditaria.

 

Eu pensava que minha nota de suicídio seria Você venceu. Não que tivesse sido um jogo, mas nos piores momentos eu sabia que Alex sabia interpretar melhor do que eu; que, quando eu não mais resistisse à pressão e revelasse a verdade a alguém, ele ainda assim conseguiria se safar. E em Los Angeles, uma cidade que ele comandava, em quem as pessoas acreditariam?

Mas o verdadeiro motivo pelo qual eu nunca pude contar a ninguém a verdade sobre o nosso casamento tinha menos a ver com medo de não ser levada a sério do que com Alex mesmo. Eu simplesmente não queria feri-lo. Quando eu pensava nele, não era me agredindo. Eu o via dançando comigo na varanda, fechando um colar de esmeraldas que acabara de me dar, penetrando-me maravilhado. Aquele, para mim, era Alex. Aquele era o homem com quem ainda queria passar a minha vida.

Eu nunca o teria abandonado se não houvesse outra pessoa envolvida. Mas eu me forçara a estabelecer um ultimato em minha mente. "Mais uma vez", eu pensei, "mais uma ameaça a esta vida dentro de mim e eu irei embora." Tentava não pensar naquilo como abandonar Alex; eu imaginava aquilo como salvar meu filho. Não me permitia pensar além, pois uma grande parte de mim desejava que aquilo não acontecesse.

Até que Alex soube, no dia em que viajaria para a Escócia, que seria apresentado em segundo lugar no programa de Barbara Walters, e não em terceiro. E ele tinha uma certeza supersticiosa de que aquilo significava o que o esperava na festa do Oscar em março. Não seria vencedor; seria um fracasso. Ele me dissera essas coisas e então descontara sua raiva em mim.

Bem, você sabe o resto. Devo ter desmaiado devido ao ferimento na cabeça um tempo depois de sair da casa. Eu o encontrei por puro acaso no cemitério de St. Sebastian e você cuidou de mim até Alex voltar da Escócia e me levar para casa.

E me lembrei de tudo: no final de fevereiro, vários dias depois de você ter me devolvido a Alex na delegacia, eu estava em pé diante do closet do quarto preparando-me para fazer a mala para voltar para a Escócia com Alex.

Encontrei a caixa com o teste de gravidez extra. E tentei acreditar que eu levaria uma parte de Alex comigo quando fugi correndo.

UMA HORA DEPOIS DE TER DEIXADO A CASA, eu estava bem longe de Bel-Air, mas não tinha para onde ir. Os bancos estavam fechados e eu tinha menos de vinte dólares na carteira. Não pensei em você, não num primeiro momento. Mais uma vez pensei em correr para Ophelia; e mais uma vez não pude, porque era ali que Alex esperaria que eu estivesse.

Não me senti à vontade para procurar ajuda com uma colega da UCLA, e não podia me esconder em meu escritório, pois ali seria o segundo lugar onde Alex procuraria. E então me lembrei do que você me dissera na quartafeira de manhã, e da maneira que olhou para mim depois da briga de Alex no Le Dome. Sabia que você me receberia; talvez soubesse antes mesmo de sair da casa, por isso esperei na esquina por um ônibus que me levasse a Reseda.

Sua casa caberia em um canto da nossa, e as árvores em seu gramado estão todas em variados estágios de morte, mas nunca vi nenhum lugar tão convidativo. Uma luz amarela inunda a varanda e quando eu piso nela, sinto-me protegida, não à mostra.

Você abriu a porta antes de eu bater. Não se mostrou surpreso ao me ver; é como se estivesse esperando o tempo todo. Você me coloca em uma saleta no corredor de entrada e fecha a porta. Pareceu perfeitamente natural o fato de você nada ter dito quando começou a passar as mãos delicadamente sobre meu corpo, minhas costelas, quadril. Hesitando nos pontos onde tenho hematomas. Fui ferida. Você sentiu os lugares pelo algodão de minha camisa, como se estivesse percebendo a mudança de temperatura que a dor traz.

E, Will, quando você terminou, olhou para mim. Seus olhos estavam mais escuros do que os de Alex durante um acesso de raiva. Eu olhei para você, sem saber como ou por onde devia começar.

Não precisei. Você me abraçou e me deu as simples batidas de seu coração para medir o tempo. Mantive as mãos soltas nas laterais do corpo, tensa por ser abraçada por outro homem.

- Cassie - você sussurrou sobre meu cabelo -, eu acredito em você. - Do lado de fora, uma coruja grita. Fecho meus olhos, apoio-me em sua fé e me entrego.

Há muito tempo, quando o mundo acabara de começar, seis moças viviam em um vilarejo ao lado de um enorme penedo. Como costumavam fazer, um dia, quando seus maridos estavam fora caçando, elas foram procurar ervas. Algum tempo se passou, cada mulher com seu galho para cavar, até que uma delas encontrou algo novo para comer.

- Venham experimentar isso - ela disse às amigas. - Esta planta é deliciosa!

Poucos minutos depois, as seis mulheres estavam comendo cebolas. Elas eram tão deliciosas que as jovens comeram até o sol se pôr. Uma das esposas olhou para o céu escuro.

- É melhor voltarmos para casa para cozinharmos para os nossos maridos - ela disse e todas foram embora.

Quando os maridos voltaram para casa naquela noite, estavam exaustos, porém felizes, porque cada um deles havia caçado um puma.

- Que cheiro horrível é esse? - um dos homens perguntou ao parar na porta de sua cabana.

- Talvez alguma comida que estragou - outro marido disse. Mas, quando eles beijaram suas esposas, perceberam que o odor vinha delas.

- Encontramos algo novo para comer - as esposas disseram, totalmente animadas. Elas ofereceram as cebolas. - Aqui, provem-nas.

- Tem um cheiro horrível - os maridos disseram. - Não vamos comê-las. E vocês não ficarão na mesma cabana que nós, não com esse cheiro. Terão de dormir do lado de fora hoje. - Assim, as esposas juntaram suas coisas e dormiram sob as estrelas.

Quando os maridos saíram para caçar no dia seguinte, as esposas retornaram para o lugar de onde haviam tirado as cebolas. Sabiam que os maridos não gostavam do odor, mas as cebolas eram tão deliciosas que as esposas não pararam de comê-las. Encheram a barriga e se deitaram sobre a terra macia e vermelha.

Os maridos chegaram em casa aquela noite irritados. Eles não haviam caçado pumas.

- Estávamos cheirando a cebola - acusaram -, por isso os animais fugiram. Foi culpa de vocês.

As esposas não acreditaram neles. Dormiram fora de casa mais uma vez, três, quatro noites, até uma semana ter se passado. As esposas continuaram comendo as cebolas que estavam deliciosas, e os homens não conseguiram pegar pumas. Frustrados, os homens gritaram com as esposas:

- Vocês devem ir embora! Não aguentamos seu cheiro de cebola!

- Bem, não conseguimos dormir ali fora - as esposas contra-argumentaram.

No sétimo dia, as mulheres levaram suas cordas quando foram pegar as cebolas. Uma das esposas carregava sua filha pequena. Escalaram o grande penedo ao lado do vilarejo e viraram seus rostos para o sol forte que se punha.

- Vamos deixar nossos maridos - uma esposa sugeriu. Não quero mais viver com o meu. - Todas as esposas concordaram. A esposa mais velha ficou sobre o penedo e entoou uma palavra mágica. Jogou a corda para o céu, que se prendeu em uma nuvem, deixando aponta solta. As outras esposas amarraram suas cordas àquela com aponta solta e se seguraram. Lentamente, começaram a subir, rodando como passarinhos. Elas se moviam em círculos e passavam umas pelas outras, subindo cada vez mais.

Os outros moradores do vilarejo viram as esposas subindo no céu.

- Voltem! - as pessoas gritavam conforme as mulheres subiam. Mas as esposas e a menininha continuaram subindo.

Quando os maridos retornaram naquela noite, estavam famintos e solitários. Desejaram não ter mandado as esposas para longe. Um deles teve a ideia de ir atrás das mulheres, usando o mesmo tipo de mágica delas. Correram para as cabanas, pegaram as cordas e logo estavam indo atrás delas.

- Devemos esperar por eles?- uma mulher perguntou com calma.

As outras gritaram e negaram.

- Não! Eles nos mandaram embora. Não permitiremos que nos peguem. - Elas dançaram e penduraram-se em suas cordas. - Ficaremos mais felizes no céu.

Quando os maridos estavam perto o bastante para ouvir, as mulheres gritaram para que parassem e eles ficaram exatamente onde estavam, um pouco atrás das esposas.

Assim, as mulheres que adoravam cebolas ficaram no País do Céu. Ainda estão ali, sete estrelas chamadas Plêiades. A mais fraca delas é a menininha. E os maridos, que não irão para a casa até suas esposas mandarem, continuam a uma curta distância, seis estrelas na constelação de Touro. É possível encontrá-los brilhando para as esposas, desejando que as coisas tivessem acontecido de outra forma.

 

                             Lenda dos monges indianos

No escuro, com um saco de remédios, Cassie contou a Will a história de sua vida. Ela falou a noite toda. Às vezes, Will apenas a observava; às vezes a abraçava enquanto ela chorava. E, quando ficou em silêncio, Will suspirou e recostou-se em seu sofá novo, consciente do silêncio estranho e sufocado. Cassie estava sentada com a cabeça baixa, as mãos entre os joelhos.

Will não saberia dizer como sabia que Cassie ia aparecer na porta de sua casa. Soubera antes de ela mostrar sua barriga que estava grávida. Soubera que dependia dele cuidar dela. O que ele não compreendia era como, mesmo depois de tudo, ela continuava preocupada em magoar Alex.

- Só preciso me afastar por um tempo - ela disse de repente, assustando Will. Ela assentiu com um movimento de cabeça, como se ainda estivesse tentando convencer a si mesma. - Estamos no final de fevereiro agora, e eu terei o bebê em agosto.

- Posso estar errado - Will disse cuidadosamente, suas primeiras palavras depois de horas. - Mas não acho que Alex vai esperar seis meses.

Cassie virou-se para ele.

- De que lado você está? - perguntou.

O problema era que Alex Rivers tinha o dinheiro e os recursos para encontrá-la em qualquer lugar.

- Preciso - Cassie disse - de um lugar onde ele nem pense em me procurar.

E foi então que Will compreendeu por que os espíritos haviam levado Cassie até ele uma semana antes, na igreja St. Sebastian. Pensou nas casas de papelão de Pine Ridge, nos salgueiros que pontuavam as planícies como carcaças de animais místicos. Como todo mundo, o governo havia se esquecido dos sioux; a maioria dos americanos não tinha conhecimento de que condições de vida como as deles ainda existiam. A reserva podia, para muitos, ser coisa de outro planeta.

Will escutou a respiração de Cassie e virou a mão dela sobre a sua, com a palma para cima, como se pudesse ler seu futuro.

- Acho que conheço o lugar que você procura - ele disse.

ASSIM, DEPOIS DE PASSAR DUAS SEMANAS EM Los Angeles, Will Cavalo Alado entrou em um avião e foi para o lugar que mais detestava no mundo.

Quando chegou em Denver para fazer o voo de conexão, sentiu um nó na garganta e a cabeça girar. Já imaginava a terra vermelha da Reserva de Pine Ridge; os lakotas de olhos vagos, que esperavam suas vidas passarem por eles. Olhou pela janela do avião, sabendo que demoraria pelo menos uma hora, mas ainda esperando ver as pontas rochosas e finas da região de Black Hills. Imaginou os picos rasgando a barriga do avião, espalhando malas cinza e cor de vinho.

Ao lado dele, Cassie dormia. Queria acordá-la, apenas para se lembrar exatamente por que havia voltado para trás depois de andar tanto tempo para a frente. Mas ela havia descansado tão pouco na noite anterior que a pele sob seus olhos estava azulada. Ele a invejava - não sua exaustão, certamente não a sua vida, mas sua capacidade de ver aquela viagem como um novo começo, e não como um retrocesso.

Ele a deixaria com seus avós, mas ali terminaria sua obrigação. Voltaria para Los Angeles e retomaria de onde havia parado: dias repletos de detalhes sobre o tráfego e violações de velocidade e noites silenciosas e sufocantes. Poderia se tornar detetive no ano seguinte e, se saísse mais com os caras, poderia encontrar alguma mulher para deitar-se do outro lado de sua cama.

A verdade é que não compreendia aquela cidade recém-adotada. Não conseguia se lembrar das regras especiais da Delegacia de Polícia de Los Angeles a respeito da prisão de políticos e celebridades. Não sabia o que dizer nos bares quando mulheres perfeitas lhe diziam que liam cristais ou que faziam a dieta da água. Ficava atento sempre que ia para a estrada e via um enorme fluxo de carros, mais pessoas concentradas em uma pequena área do que na cidade onde ele crescera. Mas, independentemente do que ele admitia a si mesmo, era isso o que ele diria ao povo lakota que visse durante o final de semana: "O mundo é grande lá fora; estou no meio de um turbilhão; não trocaria isso por nada no mundo."

Dormindo, a cabeça de Cassie pendeu para a direita, repousando em seu ombro. Ela descansou o braço sobre sua barriga, protegendo seu filho.

Aquilo era algo que Will conseguia compreender. Não a atitude egoísta de Los Angeles, mas o conceito de família. Seus pais haviam morrido, mas sempre houvera pessoas para cuidar dele, mesmo que precisassem abrir mão de algo em suas vidas.

Will sentiu o cheiro adocicado do cabelo de Cassie, chocado ao sentir o perfume de seu xampu. Descansou o rosto em seus cachos, acalmado pela maravilhosa responsabilidade de ser sua salvação.

DURANTE SEUS 81 ANOS DE VIDA, Cyrus CAVALO Alado havia feito cercas, tomado conta de gado, colhido batatas, domado cavalos. Já tinha sido palhaço de rodeio, já havia consertado estradas, matado cobras. Até três anos antes, trabalhara em uma fábrica que produzia anzóis de pesca, mas agora ele fazia os anzóis apenas por fazer; estava tecnicamente aposentado, e até onde ele sabia isso significava nunca ter dinheiro suficiente para as despesas. E isso apesar de Dorothea trabalhar três dias por semana em uma cafeteria da cidade. Ela trazia para casa um salário mínimo, um cheiro de suor e trabalho e sobras de peixe frito e almôndegas. Mas Cyrus se preocupava mais em preencher seu dia com atividades do que com a falta de dinheiro. Ele tinha parentes e era assim que as coisas funcionavam entre os lakota - cada um cuidava de si, mesmo que não tivesse onde cair morto. Ele se sentou em um pedaço de tronco do lado de fora do prédio do governo, onde a madeira estava lisa sob seu traseiro depois de todo aquele tempo. A neve estava derretendo; ainda estava frio, mas o tempo estava agradável o suficiente para se esquecer do inverno se ficasse bastante tempo sob o sol. Naquele dia, ele estava fazendo palavras cruzadas. Não era exatamente um desafio mental; havia conseguido aquela revista com Arthur Dois Pássaros, que apagara todas as respostas a lápis, de modo que quando Cyrus não sabia a resposta, podia pegar seus óculos e olhar a sombra das palavras de que não se lembrava.

Sua pele era enrugada, como a paisagem das terras áridas das áreas estranhas da região de Black Hills, onde, na infância, ele acreditava que era onde os espíritos do mal viviam. É claro que agora ele sabia que o mal não se assentava em rochas. Na verdade, entrava nas pessoas, tornando-se parte delas, assim como seu cheiro ou impressão digital. Ele havia visto o mal nos olhos azuis brilhantes da atendente wasicun, no Centro de Assuntos Indígenas? Na expressão cansada do banqueiro que tomara o primeiro caminhão que ele comprou? No olhar perdido e embriagado do vendedor ambulante cujo carro desgovernado matara seu único filho cem anos antes?

Cyrus suspirou e inclinou a cabeça para o papel amassado. Algumas das palavras ele não sabia: o marido de Maria fora preenchido como Trump; e aparentemente O amigo de Bert fora preenchido com Ernie. Ficava muito contente quando conseguia completar uma palavra sem ter que olhar as letras de Arthur. Gritos dos necessitados, ele leu em voz alta, batendo o lápis em sua têmpora. Curvou-se, cuidadosamente formando as letras na linha de quatro espaços. D-E-U-S.

Ele manda em tudo - Cyrus disse, virando a frase várias vezes, dando ênfase a diferentes palavras na esperança de que a resposta se materializasse.

"Chef" - disse alguém atrás dele, dando uma leve risada em seguida. Ele não havia percebido a aproximação de Dorothea, mas assentiu e preencheu o que agora lhe parecia claro. Colocou o lápis dentro da revista e ficou em pé, pisando na neve derretida com suas botas. Seguiu a esposa para a casa de um cômodo.

Dorothea tirou seu casaco e começou a tirar das sacolas salada de repolho e bolo de peru, o prato especial do dia. Suas mãos se mexiam nervosamente sobre a toalha de plástico da mesa, como dois passarinhos voando. Finalmente, ela se sentou e virou os olhos pretos brilhantes para seu marido.

- Hoje - ela disse a ele. - Úyelo. Ele está vindo.

Cyrus olhou para a curva de seu quadril, a trança pesada de cabelos brancos que descia por suas costas largas. Ela sempre mantivera contato com os espíritos. Ele se sentou pesadamente em uma cadeira diante de Dorothea, fingindo estar aborrecido com suas premonições místicas. Era um jogo que eles faziam, que existia há sessenta anos. Ele pegou um pedaço de bolo de peru com o garfo.

- Você está louca, mulher - ele disse como se reclamasse, quando o que queria dizer era "Você é a minha vida." - Como sabe disso? - ele disse. "Você ainda me surpreende."

Dorothea gemeu sem explicar. Virou a cabeça e fungou, como se as respostas viessem a ela pelo vento. Ela olhou para ele, séria, e apontou um dedo curvado e com nós grandes.

- Pode esperar - ela disse, esboçando um sorriso atrás do aviso. Esticou o braço e apertou a mão de Cyrus com uma força e uma convicção que aceleraram os batimentos dele. Ele olhou para ela. "Eu te amo", ela estava dizendo de modo claro no espaço entre eles onde não existiam palavras. "Caminhe ao meu lado para sempre."

ALEX FEZ DOIS TELEFONEMAS. O PRIMEIRO FOI para Herb Silver, pedindo que ele cancelasse a produção de Macbeth por tempo indeterminado; para guardar todos os cenários e itens de produção na Escócia e mandar todos para casa até que ele enviasse mais orientações. O segundo foi para Michaela, avisando-a para se preparar para a grande repercussão que uma mudança tão abrupta causaria.

- Não me importa o que você disser para a imprensa - Alex disse com nervosismo. - Dê alguma desculpa de modo que não pareça que eu vou passar uma temporada internado em uma clínica de reabilitação para viciados em droga.

- O que está acontecendo, de fato, Alex? - Michaela exigiu saber, mas Alex não conseguia vencer o nó em sua garganta. Desligou o telefone repentinamente antes que fosse forçado a contar mais uma vez o que havia acontecido.

Cassie o deixara. De novo.

Mas dessa vez era diferente. Não havia ocorrido uma briga, um motivo. Ela havia simplesmente desaparecido como se tivesse premeditado.

Alex deitou-se na cama de barriga para cima e tocou a pilha de roupas que ela estava colocando na mala para a viagem para a Escócia, roupas que não fariam diferença agora. Maldição. A última semana havia sido perfeita. Ele vinha se mantendo sob controle, impedindo que tudo começasse de novo. E estava funcionando: ao tocar Cassie, ele vinha sendo gentil e carinhoso, e tudo o que ela merecia. Ele observara Cassie, por sua vez, dando-lhe pequenas partes de si - um beijo aqui, uma pergunta ali, uma lembrança. Alex vinha colecionando essas partes como flores selvagens, esperando pelo momento em que ela voltaria por completo, um buquê todo diante dele.

Ele lhe devolvera seu passado, com alguns detalhes não revelados que ela obviamente descobriria sozinha. Ele nunca quis machucar Cassie, não Cassie, e, todas as vezes em que a agredia, jurava que não aconteceria de novo. Não era da boca para fora; era o que sentia. Se tivesse encontrado uma maneira de voltar seu ódio para dentro de si mesmo e não para ela, teria feito isso sem pestanejar.

Alex sentou-se e olhou para a chuva da manhã. Ele havia passado a maior parte da noite anterior com John, percorrendo os bairros que cercavam Bel-Air. John tinha ido até a delegacia discretamente. Nenhuma das companhias aéreas ou terminais de ônibus havia recebido uma passageira com seu nome, casada ou solteira. Por fim, Alex desistiu. Tinha ido sentar-se no quarto, não dormir, apenas esperando que ela voltasse para ele.

Ela precisava voltar. Assim que descobrissem que Cassie o abandonara, ou mesmo que estava sumida, começariam a surgir todos os tipos de rumores: infidelidade, divórcio, talvez até a triste verdade. Independentemente da forma que tomasse, a publicidade gerada diminuiria as chances do Oscar. Ele sempre havia podido contar com sua reputação impecável.

Alex passou a mão no queixo, sobre a barba por fazer. Ela tinha que voltar. Ele não podia viver sem ela. Cassie tinha sido a única pessoa em sua vida toda que o olhara por dentro e trouxera à tona a alma brilhante e que dizia sem parar sim, você é bom. Ele se lembrou de que certa vez, nas florestas de sequoias, os dois haviam visto duas enormes sequoias separadas que se uniram, inclinando-se para os mesmos raios de sol, até se tornarem uma só árvore. Ele não admitia isso a ninguém, apenas a si mesmo, mas Cassie era, simplesmente, o ponto onde Alexander Riveaux terminava e Alex Rivers começava.

 

EXATAMENTE ÀS NOVE HORAS, UM FUNCIONÁRIO da manutenção destrancou o escritório de Cassie na UCLA para Alex.

- Obrigado - ele disse, olhando para o homem sem saber se devia ou não lhe dar uma gorjeta. Alex fechou a porta, olhando para a cadeira de couro com a forma de Cassie, procurando por pistas que sugerissem que ela havia estado ali pouco tempo atrás.

Ele estava mexendo na pesquisa sobre sua mesa quando a porta foi aberta.

- Bom dia - uma voz eletrônica disse, e Alex olhou para a frente e viu Archibald Custer olhando para ele, com a mão no microfone de voz em sua garganta. - Oh - ele olhou para a sala, procurando por Cassie. - Fiquei sabendo que sua esposa estava doente. Quando vi a luz acesa, pensei... bem, eu estava procurando por ela.

- Ela não está aqui - Alex disse, fazendo gestos. - Você provavelmente percebeu.

Archibald Custer olhou para ele de maneira estranha.

- Mas você está. Alex olhou para seus dedos, segurando uma pasta de papel manilha onde se lia Pessoal e Confidencial. Os pensamentos dele se confundiram:

Cassie não estava ali. Cassie não havia dito a Archibald Custer onde estava, ou ele não estaria procurando por ela.

- Ela me pediu para lhe enviar algumas coisas - Alex disse, fingindo surpresa quando Custer ergueu as sobrancelhas quando sugeriu que Cassie estava em outro lugar que não fosse Los Angeles. - Acho que ela ainda não teve a chance de entrar em contato com o senhor ainda. O pai dela está hospitalizado, no Maine, e ela foi chamada para cuidar dele. Ele olhou para seu relógio. - Tenho certeza de que logo ela entrará em contato. Emergências familiares, você entende. - Ele bateu o arquivo na beirada da mesa. - Quer que eu pergunte alguma coisa a ela? Ou quer que eu envie algo a ela com essas coisas?

Custer pensou por um momento, olhando para os arquivos cuidadosãmente organizados e os objetos que definiam o pequeno escritório. Convencido de que de fato ela havia ido embora de repente, ele balançou a cabeça, negando: - Vamos conseguir alguém do departamento para colocar no lugar dela até que a situação se ajeite - ele disse com simpatia. - Diga a ela para não se preocupar.

- Não - Alex disse. - Tenho certeza de que ela não vai se preocupar. - Ele observou Custer sair e sentou-se na cadeira atrás da mesa. Cristo! Ele estava ajudando Cassie. Havia ajudado a esconder sua fuga. Olhou para a pasta, para as fotos em preto e branco espalhadas sobre a mesa. Osso, uma pelve e uma série de ossos que podiam já ter sido dedos. Nada de estranho para Cassie. Ela estudava coisas como aquelas desde que ele a conhecera.

Ele levantou-se e saiu antes de decidir para onde ir. Passando pelos largos caminhos do campus da UCLA, ele chegou à estrada, em Westwood. Ele se lembrou de qual era o apartamento de Ophelia apenas por causa de uma palmeira recurvada que Cassie dizia que lembrava um idoso.

Alex bateu à porta.

- Merda! Abra, Ophelia. Sei que ela está aí! - Ele respirou fundo, pronto para arrombar a porta com o ombro, da mesma maneira que faziam seus dublês.

Ophelia abriu uma fresta da porta, e por dentro o apartamento estava escuro. A fumaça de seu cigarro saiu pela estreita abertura.

- Jesus! - ela murmurou. - Parece que ganhei uma grande plateia.

Ela soltou a corrente e abriu a porta, ficando em frente de Alex vestindo um roupão salmão de chiffon quase transparente. Por baixo, estava nua. Alex percebeu, sem interesse, que a sombra entre suas pernas não combinava com o tom de seus cabelos. Ela soprou a fumaça nos olhos de Alex.

- A que devo a honra? - ela disse, passando a mão pelo nariz.

- Vim buscar a Cassie - Alex disse, passando por Ophelia e entrando na minúscula sala do apartamento.

Ele sentiu mãos puxando sua camisa por trás, sem conseguir detê-lo.

- Bem, você pode querer começar a procurar em um lugar onde ela esteja - Ophelia disse. - Não converso com ela desde aquele dia no apartamento. Pensei que ela tivesse ido para a Escócia com você.

Alex olhou atrás das cortinas que iam até o chão e olhou dentro dos armários.

- Você mente mal, Ophelia. Conte-me onde ela está escondida.

- Ele foi para a cozinha, procurando nos armários, derrubando uma garrafa pela metade de vinho tinto.

Ao voltar para Ophelia, ela estava com os olhos arregalados. Ótimo, ela estava assustada. Alex a segurou pelos ombros, chacoalhando-a.

- Você a escondeu ontem à noite? Ela lhe contou para onde ia?

Ophelia gritou e a porta do quarto se abriu. Alex a soltou abruptamente, correndo na direção do quarto e dando de encontro com um homem em um robe de seda florida, ainda sonolento.

- Alex, Yuri. Yuri, Alex. - Ophelia apagou o cigarro na metade de uma laranja em cima do balcão da cozinha. - Viu, Alex? Eu não estava escondendo a Cassie. Estava ocupada fazendo outra coisa.

Alex não olhou para ela.

- Saia - ele disse a Yuri. Yuri percebeu com quem estava falando. - Ei - ele disse. - Você não é...?

- Saia - Alex gritou. Ele empurrou Yuri para a porta e o trancou do lado de fora, e o rapaz ainda usava o robe florido.

Ophelia lançou-se a Alex, gritando e o arranhando.

- Como você ousa? Entra no meu apartamento como se fosse o dono do mundo...

- Ophelia - Alex disse suavemente, com a voz falhando. - Não consigo encontrá-la. Procurei por todos os lados. Não consigo encontrar Cassie.

Ophelia passou a mão sem perceber pelo gesso preto de seu braço, observando Alex Rivers sentar-se em seu sofá manchado. Ela pensou em diversas possibilidades e lugares onde tinha certeza de que Alex já havia procurado. O que teria feito Cassie ir embora de repente? Se tivesse a ver com Alex, será que Cassie não sabia que ela faria o que pudesse para ajudar?

Ela endireitou as costas e caminhou na direção de Alex até estar em pé diante dele.

- O que você fez com ela? - ela perguntou, a voz contida e fria.

Alex escondeu o rosto nas mãos.

- Deus - ele disse -, eu não sei.

O TRAJETO DO AEROPORTO RAPID CITY PARA Pine Ridge durava duas horas, e enquanto Cassie sacolejava dentro da caminhonete alugada percebeu duas coisas: que a terra se estendia sem limites, como se fosse o mar, e que, quanto mais se embrenhavam na região de terra vermelha, mais nervoso Will ficava.

Havia um policial na beira da reserva, um cara que cumprimentou Will e olhou para Cassie no banco do passageiro. - Hau, kóla - ele disse. Começou a falar um idioma que Cassie não compreendia. Para sua surpresa, Will tirou os óculos de sol e começou a conversar com o policial no mesmo dialeto e levou o carro para um caminho de grama.

- O que ele disse? - Cassie perguntou.

- Ele disse oi - Will respondeu. - Em lakota.

- Lakota?

- A língua do povo.

Cassie afastou uma mecha de cabelo da boca.

- Seu nome em sioux é Kóla?

Will não conteve o riso.

- Não - respondeu. - Quer dizer "amigo".

Cassie relaxou. Se eles estavam na reserva e Will já havia encontrado alguém que conhecia bem, era um bom sinal.

- Então ele é seu amigo - ela disse, puxando assunto.

- Não - Will disse. - Não é. - Passou a mão sobre o volante, dizendo a si mesmo que Cassie não tinha direito de exigir explicações sobre sua vida, mas sabendo que ela não se calaria enquanto não soubesse mais. - Ele é policial da tribo. Estudamos juntos. Certa vez, ele fez com que três crianças me segurassem e esfregou cocô de cachorro em meu rosto. - Assustada, Cassie olhou para ele. - Ele disse que, fazendo aquilo, minha pele ficaria menos branca.

- As crianças são cruéis - Cassie disse, sentindo que precisava fazer um comentário.

Will disse: - Os índios também.

Cassie virou o rosto para a janela, tentando imaginar como Will sabia para onde dirigir. Não havia estradas, apenas caminhos de terra pela neve, ou rastros como aqueles deixados por esquis. De vez em quando, Will virava para a esquerda ou a direita. Nunca desviava os olhos do caminho à sua frente.

- Sabe de uma coisa? - Cassie disse. - Talvez você devesse tentar em vez de dizer a si mesmo o quanto detesta.

Will pisou nos freios até a caminhonete parar. Cassie sentiu seu corpo prender-se no cinto de segurança e depois voltar para trás. No mesmo instante, levou as mãos ao ventre. Will olhou para ela, incrédulo, e então com um olhar de desgosto virou-se para a frente e começou a dirigir novamente.

Ela percebeu a realidade. Afinal de contas, Will - que não a conhecia muito bem -, estava fazendo mais do que podia para ajudá-la. Ela não tinha o direito de se intrometer em sua vida, muito menos criticar a maneira como ele vivia.

- Sinto muito - Cassie disse.

Will não respondeu, mas assentiu com a cabeça. Alguns momentos depois, a planície vazia deu espaço a um pequeno amontoado de cabanas, algumas feitas de madeira e outras de papelão. Três crianças estavam correndo pela neve com tênis e camisas de manga curta, brincando com galhos de pinheiros.

- Estes são os nossos vizinhos mais próximos - Will disse, diminuindo a velocidade e apontando para as casas. - Charlie e Linda Cachorro Risonho, Bernie Mineiro, Rydell e Marjorie Dois Punhos. Abel Sabão vive naquele monte, naquele ônibus.

Cassie tentou controlar a vontade de rir que lhe afligiu. Um dia atrás, ela havia tomado banho em uma banheira de mármore verde com detalhes em ouro. Havia caminhado em carpetes macios e usado um roupão de seda chinesa. Sentira-se um pouco desconfortável com o luxo na casa de Alex, mas aquilo era o outro extremo. Estava no meio do nada, escondida entre pessoas que não sabiam nada sobre água encanada, que viviam em ônibus escolares quebrados. Ela apertou as mãos para não agarrar Will pelo casaco e pedir Para que ele a levasse para casa.

Cassie mordeu o lábio e voltou a olhar para Will, consciente da dor que ele carregava, o fracasso que deixava seu rosto triste. Como seria sair dali, finalmente, mas voltar algumas semanas depois, por causa de problemas alheios? Quando Cassie esticou o braço e apertou a mão dele, Will retribuiu o gesto, mas não sem que antes ela percebesse a surpresa em seus olhos.

Ele parou o caminhão no quintal da frente de uma casa pequena de cimento. Imediatamente, um vira-lata preto que estava preso a uma cerca começou a uivar.

- Ei, Wheezer - ele disse. - O cão abanava o rabo com força. - Sentiu minha falta?

Cassie ficou sentada por um momento dentro do veículo, respirando e pensando. Quando saiu, afundou até os joelhos na neve. Caminhou com dificuldade até Will e o cachorro.

- Sempre neva tanto assim?

Will se assustou com o som de sua voz, como se tivesse esquecido de que ela estava ali.

- Na verdade - ele disse, virando-se na direção dela -, grande parte está derretida. Na maior parte dos invernos, a neve ultrapassa a sua altura.

Wheezer pulou e colocou as patas no peito de Will. Abaixou as orelhas; começou a chorar. Will olhou por cima da cabeça do cachorro para a porta de entrada da cabana, que lentamente se abria.

Cassie observou um homem sair pela porta. Tinha a mesma altura que Will, mas sua pele parecia estar solta de seu rosto. Seu rosto era cor de castanha e tinha muitas rugas. Desceu as escadas e ficou diante de Will, murmurou alguma coisa em lakota e o abraçou.

Cassie se mexeu com nervosismo, batendo um pé no outro para afastar um pouco da neve. Wheezer cheirou sua mão, procurando comida.

- Sinto muito - ela disse. - Não tenho nada.

Ao escutarem a voz dela, Will e o avô olharam para ela. Mas, antes que Will pudesse apresentá-la, uma mulher apareceu na porta. Tinha uma longa trança branca jogada sobre um ombro; seus olhos eram intensos. Seus pulsos cerrados estavam plantados no quadril, prontos para um confronto, e quando falou com a voz baixa, não falou no dialeto indígena:

- Então - ela disse a Will, apesar de não ter desviado o olhar de Cassie. Ela olhou dos cabelos de Cassie para seus joelhos cobertos de neve e continuou -, você volta da cidade grande, e é isso o que nos traz de lá?

A CASA DE Cyrus E DOROTHEA CAVALO ALADO era uma de cerca de cem residências subsidiadas pelo governo para os cidadãos sioux idosos. Eles haviam se mudado para lá havia cerca de dez anos, apenas; Will passara grande parte de sua infância vivendo em uma cabana de madeira como aquelas pelas quais eles haviam passado no caminho de entrada na reserva. Mas as casas do governo eram consideradas chiques para os padrões lakotas. Contavam com água encanada, eletricidade e descarga que funcionava na maior parte do tempo. Com exceção do pequeno banheiro em um dos cantos da residência, o resto da construção era um único cômodo.

A área da cozinha, onde Cassie estava sentada, era muito limpa e parecia ter sido feita com fórmica dos anos 1950. A parte de cima era verdeabacate com pequenos detalhes dourados, e a mesa que partia de uma parede era de mármore rosa falso. Havia uma fileira de armários pendurados sem pintura e sem portas, mas a maioria das latas e dos jarros de vidro ficava embaixo da pia e nas prateleiras feitas de tábuas e blocos de concreto cinza. Havia uma geladeira - bem antiga, com um grande ventilador em cima - que engasgava e tremia a cada poucos segundos.

O restante da casa era formado pela grande área de estar e o "quarto", separado do resto do espaço por uma cortina de algodão. Havia um sofá e uma poltrona que não combinavam sobre um tapete vermelho. Em um canto do sofá havia uma bola de fios, atravessada por agulhas de tricô, do outro lado, uma bolsa de couro meio bordada com miçangas azuis. Um grande cilindro de madeira, do tipo usado por eletricistas para enrolar fios elétricos, era agora uma mesa de canto, e estava repleta de revistas de três ou quatro anos atrás.

Cassie não havia visto o quarto, onde Will entrara com seus avós para poder conversar com eles a sós. Ela os escutou sussurrar, bem baixinho, mas não fazia muita diferença, já que eles falavam em lakota. Ela passou os dedos sobre a mesa de fórmica e contou até dez. Esfregou as costas da mão sobre a leve protuberância em sua barriga. E pensou: "Saiba que eu estou fazendo isso por você".

Will foi o primeiro a sair de trás da cortina, com o rosto sério. Em seguida, saiu sua avó, com os braços cruzados e, por fim, seu avô. Havia sido mais difícil do que ele imaginava, uma vez que Cyrus e Dorothea nunca haviam escutado falar de Alex Rivers, por isso não podiam entender por que Will tivera de levar Cassie a Pine Ridge. Ele havia contado tudo aos avós, incluindo a agressão física que Cassie sofrera, e de sua gravidez, mas eles estavam em pé, olhando para Cassie como se ela fosse uma mulher má que havia causado tudo o que lhe ocorrera.

- Cassie Barrett - Will disse, intencionalmente, deixando de mencionar seu nome de casada -, estes são meus avós, Cyrus e Dorothea Cavalo Alado. Eles ficarão satisfeitos de mantê-la aqui até o nascimento do bebê.

Cassie não conseguiu conter o calor que lhe subiu pela barriga, pelos seios e fez seu rosto corar. Disse a si mesma que não se tratava de vergonha, mas, alívio.

- Obrigada - ela disse discretamente, esticando a mão. - Vocês não sabem o que isso significa para mim.

Nem Cyrus nem Dorothea apertaram a mão de Cassie. Ela esperou por um momento e passou a mão em seu casaco e deixou que ela descansasse ao lado de seu corpo.

Will aproximou-se dela e inclinou-se para dizer: - Vou inventar uma história para deixá-la sozinha com eles - ele disse. - Acredite: eles só precisam de tempo para conhecê-la melhor. - Ele apertou o ombro de Cassie e voltou-se para seus avós. Dorothea já tinha ido para a cozinha para começar a lavar os pratos.

- Vou até Abel Sabão para saber se ele continua vivo - Will disse tranquilamente. - Ele me deve cinquenta pratas.

Caminhou em direção à porta, onde Wheezer já o esperava.

- Lembrem-se: nada de falarem em lakota. Vocês prometeram.

Will fechou a porta e Cassie olhou para ela por diversos segundos. Apesar do barulho da água, pôde escutar Dorothea murmurando em lakota. Às vezes ela olhava para trás, como se quisesse ver se Cassie tinha saído. Era óbvio que a idosa falava a sua língua; poderia lhe dar uma chance de aproximação. Endireitando-se, Cassie virou-se para Cyrus e perguntou:

- O senhor pode me dizer o que ela está dizendo?

Cyrus deu de ombros e caminhou em direção ao sofá.

- Ela gostaria que Will tivesse levado você com ele.

Durante alguns minutos Cassie ficou em pé no meio da sala de estar, decidindo se choraria ou se sairia pela porta e continuaria até chegar a Rapid City. Cyrus acomodou-se na almofada do meio do sofá e pegou a linha e as agulhas. Envolveu os dedos com o fio e mexeu as agulhas cada vez mais com rapidez, até que elas batessem como dentes. Dorothea terminou de lavar os pratos e começou a varrer o chão sem manchas da cozinha.

Na verdade, os avós de Will não demonstraram a menor vontade de deixar Cassie mais à vontade, ou conversar com ela de maneira civilizada e nenhum deles achava que aquele comportamento era grosseiro. Cassie se lembrou de um colega que fizera sua dissertação a respeito do que chamou de etiqueta da tapera: como os índios das planícies do século XIX viviam. Cassie se lembrava de algo sobre as mulheres ficarem de um lado e os homens de outro, a respeito de os guerreiros comerem antes que todas as outras pessoas, sobre a falta de educação de caminhar entre uma pessoa e a fogueira central. Cassie não sabia se aqueles costumes continuavam válidos, mas sentia que existia um conjunto de regras sobre as quais não havia sido informada, regras que ela teria de aprender sozinha.

Começou organizando as revistas. Cyrus olhou por cima de suas agulhas uma vez, reclamou e continuou tricotando. Quando Cassie havia formado duas pilhas organizadas, foi para a área da cozinha. Procurou pelos armários até encontrar uma pilha de panos limpos e molhou um deles com água e sabão e começou a esfregar a parte da frente da geladeira.

Dorothea não olhou para Cassie, nem mesmo pareceu perceber que ela estava a menos de um metro dela. - Sabe - Cassie começou, a voz alegre e alta demais para a pequena casa -, tenho um amigo na UCLA que é especialista em antropologia dos índios americanos. Ela não disse que o homem era antropólogo cultural, pois mal o vira nos últimos três anos. Mas procurou lembrar de seu curso e do próprio trabalho de graduação.

- A verdade é que não sei nada sobre índios - ela disse. - Não sei o que Will disse, mas minha especialidade é sobre povos mais antigos. Ela lavou o pano na pia. - E armas - ela disse. - Sou muito boa quando o assunto é armas. Fiz minha dissertação a respeito de violência, se ela era aprendida ou adquirida... - Cassie parou, pensando na ironia daquilo, dado o resultado de seu casamento. Sem receber resposta ela continuou falando. - Vejamos... consigo me lembrar de um grupo do Novo México chamado cultura Clóvis que inventou uma lança de pedra que poderia ser lançada com um arco, o que obviamente facilitava a caça de mamutes... - A voz de Cassie falhou ao pensar nesse grupo de nómades de quarenta mil anos antes matando uma enorme fera; e então pensou no avô de Cyrus, que devia caçar búfalos mais ou menos da mesma maneira cerca de cinquenta anos antes. Ela parou, percebendo que parecia estar dando uma palestra. Sobre sua cabeça, Cyrus e Dorothea trocavam olhares como se dissessem: "Ela é sempre assim?".

- Bem - Cassie disse, mais contida. - Vocês provavelmente sabem disso. - Ela balançou a cabeça, chamando-se de tola por ter chegado como uma locomotiva quando deveria ter sido mais tranquila.

Dorothea se aproximou dela e torceu o pano de limpeza, esticando-o sobre a pia e fazendo um gesto com as mãos para que Cassie compreendesse que era assim que ela gostava que fosse feito. Dorothea olhou ao redor, na cozinha brilhando, fez um movimento positivo com a cabeça e vestiu seu casaco. Atravessou na frente de Cassie, segurando seu queixo com os dedos fortes e virando o rosto dela para cima. E disse algo em lakota, uma estranha coleção de sons e sílabas que Cassie achou mais suave do que uma canção de ninar.

Depois que Dorothea saiu pela porta, Cyrus ficou perto da janela, observando-a voltar para o trabalho para o turno da tarde. Sabia o que Cassie estava prestes a perguntar.

- Ela disse que você deve se lembrar de algo quando estiver com os índios - ele traduziu. - O que você considera espécies da história ainda são nossos tataravós.

Ele não se virou, mas gesticulou, chamando Cassie. Ela ficou e caminhou até Cyrus, e ele pousou o braço sobre seu ombro, em um gesto que não era bem um abraço, mas uma maneira de chamar à realidade. Seus dedos longos e retos descansaram em sua clavícula. Cassie observou a vasta paisagem com Cyrus, sabendo que ele não percebia os mares de neve, as carcaças de caminhões abandonados e as lonas rasgadas da cabana de um vizinho. Em vez disso, ele via o lugar onde os passos de seus ancestrais estavam sob os dele, o lugar que - por esse motivo - ele chamaria de lar.

Will SENTOU-SE NA PILHA DE TRAVESSEIROS que estava usando como cama e olhou para Cassie, adormecida no sofá-cama. Quando vivia com os avós, aquela era a sua cama e ele observou o corpo dela pressionar as marcas do colchão que ele havia feito.

Ele estava banhado em suor; estava sonhando com ela. Por mais maluquice que fosse, ela era uma raposa, membro de uma das sociedades antigas de guerreiros. Todo garoto sioux crescera ouvindo falar sobre os raposas e os Corações Valentes, desejando que o povo ainda estivesse em guerra com os ojibuas para que também pudessem ganhar prestígio e provar sua valentia. Os raposas eram os mais drásticos. Vestiam faixas vermelhas que colocavam no chão, mostrando que brigariam naquele ponto até que vencessem, mortos ou libertados por um amigo. Will lembrava que brincava disso atrás da escola durante o recreio; lembrou que um dia pegou o lenço de sua avó para usar como faixa e ficou de castigo durante um mês.

No sonho, a barriga de Cassie estava maior, e ela usava a faixa alta, um pouco abaixo dos seios. A distância, Will a vira na terra macia, começando a cantar:

Sou uma raposa.

Tenho que morrer.

Se há alguma coisa difícil

Se há alguma coisa perigosa

sou eu quem tem que fazer.

De repente, Alex Rivers reaparecia, andando ao redor dela, aproximando-se cada vez mais. Bateu na cabeça de Cassie e, de onde ele estava, Will tentou alertá-la, mas ela não se moveu. Manteve-se em pé, mesmo quando os golpes deixaram seus olhos marejados.

Will sonhou que ele gritava a plenos pulmões e começava a se mexer, correndo na direção do lugar onde Cassie estava. Sem perder velocidade, ele se abaixou e pulou onde ela estava, passando o braço ao redor de seu quadril e forçando-a a correr o máximo que pudesse.

Ele acordou ofegante, nervoso e surpreso por Cassie estar a um metro dele, encolhendo e esticando os dedos enquanto dormia. Ele se moveu em silêncio, em ritmo com o som da respiração de seu avô vindo de trás da cortina do quarto e sentou-se na beirada do colchão.

Cassie acordara antes de ele apoiar todo o peso de seu corpo. Will colocou um dedo sobre os lábios dela e então apontou na direção da cortina.

- Vou embora amanhã - ele sussurrou.

Cassie se esforçou para sentar, mas Will colocou a mão sobre seu ombro, pressionando-a para que se mantivesse deitada.

- Por quê?

- Porque tenho um emprego em Los Angeles. Porque detesto aqui. - Will sorriu. - Faça sua escolha.

Ela sabia que as coisas chegariam àquele ponto; ele havia dito claramente. Mas, para seu horror, Cassie ficou triste.

- Não pode me deixar aqui sozinha - ela sussurrou, sabendo muito bem que ele podia e que iria.

Quando ela deu as costas para ele, ele passou a mão sobre a sobrancelha dela, sentindo-se culpado. Cassie era pequena e simples, uma mulher comum; ele havia visto centenas de mulheres mais bonitas que ela. Tentou descobrir o que aquela mulher tinha que tirava sua razão, que podia fazer um astro de cinema querer se casar.

Will olhou para a nuca de Cassie, forçando-se a se lembrar de como mantinha o polegar sobre seu boletim escolar quando o carregava para casa, pois os alunos eram relacionados não apenas pelo sobrenome, mas também pela porcentagem de sangue indígena em suas veias. Tentou pensar no inverno em que ele seus avós haviam sobrevivido comendo carne-seca e abóbora, porque o programa de racionamento do governo estava fora de controle. "Sim", ele pensou, "preciso me distanciar." Mas mesmo depois de pensar isso ele se deitou atrás de Cassie até suas costas trêmulas ficarem grudadas em seu peito. Ele não se mexeu atrás dela, não quis transformar aquilo em algo que não era. Em vez disso, escutou o coração dela e o ronco suave dos avós, entrelaçados. Delicadamente, pousou a mão sobre o ventre de Cassie.

- Você não estará sozinha - ele disse.

 

Durante o mês de março, enquanto a neve em Pine Ridge derretia e se formavam poças presas entre os choupos, Cassie se acostumou com a reserva. Por ser seu porto seguro, ela não via o local como era: um lugar com índice de assassinatos maior do que qualquer outro nos Estados Unidos, um povo arrasado pela pobreza e pela indiferença. Em vez disso, ela preferia perceber a beleza dos bebês, como as poças de lama refletiam sua barriga em crescimento, como o sol se enroscava nos galhos das árvores e como o silêncio tinha um barulho todo seu.

- Você vem ou não vem, wasicun wínyan?

A voz de Dorothea assustou Cassie, que estava debruçada na janela. Ela ainda não se sentia confortável com a avó de Will, mas queria sair da casa.

- Adoraria - ela disse, colocando seu casaco e se esforçando para fechar os botões na barriga. Dorothea estava de folga da cafeteria naquele dia e, como o solo estava começando a melhorar, ela sairia para buscar mais raízes e ervas.

Durante as semanas passadas com os Cavalo Alado, Cassie passara a compreendê-los melhor. E, apesar de Cyrus e Dorothea não serem exatamente amigáveis, tampouco a ignoravam; na verdade, paravam para apresentá-la quando alguma pessoa da vila olhava para ela com curiosidade. Cassie começava a perceber que as coisas eram diferentes ali - que um homem podia vestir a mesma camisa cinco dias seguidos simplesmente por não ter outra; que uma mãe costumava dar mais salgadinhos e refrigerante a seu filho do que grãos e leite. Ela havia alterado seu conceito de tempo, o que significava que as pessoas comiam quando tinham fome e descansavam quando sentiam necessidade. E estava se acostumando com a economia de palavras dos lakotas. Ela percebia que diferentemente das pessoas brancas, que conversam para preencher os espaços nas conversas, os lakotas acreditam ser completamente normal não dizer nada. Assim, Cassie caminhava pela mata com Dorothea sem nada dizer, escutando o vento e a grama sendo pisada.

- Wanláka he? Está vendo aquilo? - Ela estava apontando para uma árvore familiar, ainda nua.

Cedro? - Cassie perguntou, percebendo que estava sendo testada. Dorothea assentiu, impressionada. - Ainda está cedo, mas nós fervemos os frutos e as folhas e bebemos o remédio para curar tosse.

Durante uma hora e meia Cassie escutou Dorothea descrever uma antiga arte de cura. Alguns dos itens ainda não estavam bons por causa do inverno: taboa, que era usada como gaze; cálamo para febre e dor de dente; olmo americano como laxante; verbena selvagem para dor de estômago. Dorothea afastou as raízes do malvavisco, que se tornaria um remédio para queimaduras de sol e feridas abertas. Ela pegou goji, porque melhorava a vista cansada de Cyrus.

Quando ela se sentou encostada em um choupo, sem ligar para a terra molhada que umedecia sua calça de poliéster, Cassie fez o mesmo.

- Não sabia que a senhora era uma curandeira.

Dorothea balançou a cabeça, negando.

- Não sou - ela disse. - Apenas sei algumas coisas. - Ela deu de ombros. - Além disso, tem muitas coisas sobre as quais não posso fazer nada. É para isso que serve um curandeiro. Temos Joseph Cabanas ao Sol - Cyrus apresentou você a ele na cidade na semana passada. Existem algumas doenças que vivem aqui - ela apontou para o coração - e existem algumas doenças que não podem ser curadas.

- Está se referindo a algo como o câncer - Cassie disse.

- Hiyá. Dorothea respondeu, negando. - Isso é apenas algo ruim no corpo. Marjorie Dois Punhos foi para Rapid City e teve o câncer removido de seu seio e está bem há anos. Estou falando sobre algo ruim. Na ton. A alma. - Ela olhou fixamente para Cassie. - Os índios acreditam que um bebê nasce bom ou mau. E pronto. Você pode fazer mudanças até o nascimento, mas depois dele não adianta. E um bebê mau se transforma em um homem mau.

Os olhos de Dorothea mantiveram o olhar de Cassie e ela se virou. Em uma sociedade em que os filhos de alguém eram um presente que poderia deixar feliz uma casa, como Dorothea via um homem que humilhava o filho? Uma mãe que se esquecia da existência dele. Cassie queria dizer a Dorothea que seu marido não havia nascido mau; que ele simplesmente havia sido convencido disso tantas vezes que assumira o papel.

Um vento frio bateu, tirando Cassie de seus pensamentos. Ela olhou para o avental cheio de ervas de Dorothea.

- A senhora e Joseph Cabanas ao Sol devem roubar muitos clientes dos médicos da cidade - ela disse.

Dorothea pegou um galho, quebrando a madeira e revelando um pequeno botão verde.

- Às vezes é mais fácil para as pessoas virem até mim do que ir ao médico; algumas pessoas não acreditam em médicos.

Por quê?

- Porque sempre tivemos curandeiros, mas nem sempre existiram médicos wasicun.

- Wasicun. O que quer dizer? - Cassie perguntou rapidamente, reconhecendo a palavra lakota. - Parece com o que vocês me chamam. Como todos me chamam.

Dorothea pareceu surpresa, como se qualquer idiota pudesse ter percebido antes.

- Significa "branco" - ela disse.

Cassie disse a palavra de novo, testando-a.

- É bonita.

Dorothea ficou em pé e olhou para Cassie. Com sua sinceridade típica de um sioux, ela disse:

- Tem origem em três palavras lakotas que podem ser traduzidas como: "pessoa gorda e gananciosa".

Cassie passou lentamente pela lama, forçando-se a ficar calada. Ninguém se interessara por ela ali, ninguém gostara dela. Durante toda a sua vida, desempenhou papéis para agradar às pessoas e sempre falhava, simplesmente por causa de quem ela era: uma criança carente, esposa de Alex, uma mulher branca. Tentou imaginar se, como Dorothea havia dito, isso era algo que havia nascido com ela, um defeito de seu espírito.

Quase deu um encontrão em Dorothea, pois não percebeu que a mulher havia parado.

- Quando eu era criança, eu tinha sete irmãs. Vivíamos um pouco mais próximos da cidade de Pine Ridge. É claro que meus pais não tinham dinheiro, comida ou roupas suficientes para nós, muito menos brinquedos, por isso só podíamos brincar com botões velhos e ursinhos de pelúcia do Exército da Salvação no Natal, e com coisas que nós podíamos fazer. Minha irmã mais velha nos ensinou a fazer bonecas com abóboras, com trapos que conseguíamos encontrar no lixo. Enrolávamos os trapos ao redor da cabaça da abóbora, como se fosse lenço, e amarrávamos os tecidos para fazer braços e pernas.

- Elas eram ótimas, aquelas bonecas. E o que eu me lembro era que todos os anos, enquanto minhas irmãs tentavam encontrar abóboras verdes e lisas sem furos, eu procurava por aquelas com duas cores, amarela e verde, meio a meio. - Dorothea, de repente agarrou a mão de Cassie, que ficou surpresa com a força de seus dedos morenos. - As híbridas são fortes, sabia? Elas duram mais tempo. E são bonitas à sua maneira, Cassie, han?

As mulheres caminharam cuidadosamente, ambas sem querer quebrar o tênue elo que Dorothea havia tecido entre elas chamando Cassie, pela primeira vez, por seu nome.

QUANDO ALEX Rivers ESTAVA FAZENDO O NÓ DE SUA gravata borboleta preta, pensou a respeito de Macbeth, o personagem que ele havia deixado parado por um mês antes de retomar a produção na semana anterior. Ele estava começando a entender a personalidade do personagem, muito mais do que havia compreendido ao começar o filme. Havia um terror no casamento de Macbeth - uma percepção de que a mulher diante dele não era a mesma mulher com quem ele havia se casado; que ela tinha uma capacidade de agir de certa maneira que ele não acreditava ser possível existir.

Sua situação pessoal era claramente diferente, mas ainda familiar. Certamente havia cometido erros, mas nunca imaginara que as coisas chegariam àquele ponto. Quando voltou para casa e não encontrou Cassie, ficou tentando procurá-la nos quartos duas vezes, nos armários e no sótão. Era difícil aceitar que ela tinha ido embora. Acontecia com outras pessoas, especialmente em Hollywood, onde os casamentos eram mais uma confecção de publicidade do que o fruto de um amor. Mas as coisas nunca tinham sido daquela forma entre ele e Cassie. Ele não havia acreditado que ela poderia ir embora, em grande parte porque não conseguia admitir para si mesmo que talvez ele precisasse mais dela do que ela dele.

Alex passou um pente pelo cabelo e ajeitou o colarinho de sua camisa. Em cinco minutos sairia para ir à casa de Melanie Grayson. Ela era a sua senhora Macbeth; eles iriam juntos para o Dorothy Chandler Pavilion, onde a cerimónia do Oscar seria realizada. Ele olhou para o espelho, sem reconhecer muito bem a pessoa que viu. Sabia que seu maior trabalho de atuação não seria aquele pelo qual talvez recebesse um Oscar, mas, sim, a interpretação que faria naquela noite quando ficasse diante de milhares de pessoas, fingindo que se importava se ganhasse ou não.

Herb estava esperando lá embaixo com uma limusine Mercedes.

- Hoje estou com azia - ele disse. Sorriu para Alex. - Conversou com Cassie?

- Acabei de falar com ela ao telefone. Ela me desejou sorte.

- Argh, sorte. - Herb disse. - Você é um engraçadinho. Que pena que ela não pôde vir, ao menos hoje. Mas eu sei como as coisas são nessas situações extremas, quando não queremos sair de perto da pessoa doente nem por um minuto.

Alex concordou.

- Ela disse que, se eu ganhar o prêmio hoje à noite, seu pai terá uma repentina melhora.

- Que Deus o ouça - Herb murmurou e empurrou Alex em direção à porta. - Vamos buscar Melanie e depois poderemos ir.

Alex não saiu da limusine quando chegaram à casa de Melanie. Ele sabia que aquilo estava longe de ser um encontro romântico e não planejava passar a impressão errada. Ele deixou o Herb levar a atriz da porta de sua casa para o banco traseiro da limusine, onde já havia lhe servido uma taça de champanhe. - Você está adorável - Alex disse, sabendo que era o esperado.

Melanie passou a mão em sua saia de cetim branco que estava grudada em seu corpo como a pele de uma cobra.

- Esta coisa velha? - ela disse sorrindo. Todos sabiam que ela havia gastado uma quantia exorbitante no vestido ostentoso e que havia tentado incluí-lo no orçamento de Macbeth. Ela disse que não teria que ser tão cuidadosa com sua aparência se não fosse se sentar ao lado de Alex, sobre quem todos os refletores ficariam pelo menos três vezes na noite.

Ele olhou pela janela quando o tráfego começou a ficar pesado vários quarteirões antes do prédio. Cassie nunca teria vestido uma roupa como aquela. Escolheria alguma coisa original, é claro, porém simples e bonita. Assim como ela.

Ele foi ficando cada vez mais irritado com Melanie. Sua coxa estava pressionada muito perto da dele; seu cabelo era da cor errada; e seu perfume não era o de Cassie.

- Está nervoso? - ela ronronou, esfregando seu braço.

Alex não respondeu. Olhou para a mão na manga de seu casaco como se fosse uma tarântula.

- Crianças, crianças - Herb falou do assento diante deles. - Vamos nos beijar e fazer as pazes. Lembrem-se de que é para o bem da divulgação.

Alex sabia que Herb tinha razão; havia muitos rumores acerca da última interrupção na produção de Macbeth, tantos que Alex estava começando a lembrar do inferno que havia passado com António e Cleópatra. Talvez tivesse azar com Shakespeare.

- Isso mesmo, Alex - Melanie disse, a centímetros de seu rosto. - Vamos nos beijar e fazer as pazes.

Alex rodou a aliança de casamento em seu dedo, um hábito que passara a ter nos últimos tempos, como se fosse um lembrete necessário. "Se você ganhar", ele pensou, "independentemente do que fizer, não a abrace."

Herb deu um tapinha no joelho de Melanie.

- Deixe-o em paz. Ele é sério.

- Eu sei - Melanie disse. - É isso o que todos amamos nele.

Alex ignorou a conversa dos dois até a limusine ser a próxima da fila.

- Está pronto para os urubus, querido? - Melanie perguntou, fechando sua embalagem de pó compacto.

Alex saiu no sol da tarde primeiro, semicerrando os olhos e levantando a mão em um meio aceno, protegendo os olhos da luz. Ele voltou-se para a limusine para ajudar Melanie a sair, vendo-a abrir um amplo sorriso forçado. Ela colocou a mão sobre o braço dele e, quando ele reclamou levemente, soltou-o.

Havia muitos gritos e apelos do público ao redor para que ele escutasse os jornalistas, percebesse os flashes ou as câmeras gravando-os. Ele caminhou ao lado de Melanie, mexendo a cabeça e sorrindo, tentando fazer uma cara que mostrasse que não tinha muita convicção a respeito de suas chances.

O homem que caminhava na frente dele era um produtor da Fox, e, apesar de Alex não lembrar seu nome, sua maneira recurvada de caminhar e manchas na testa eram familiares. Ele e sua esposa eram corcundas e pequenos, e Alex tentou imaginar se aquela condição devia-se à idade ou simplesmente pelo casamento longo em Hollywood. Eles caminhavam tão vagarosamente pelo tapete vermelho que várias vezes Alex havia sido forçado a parar e simplesmente ficar em pé esperando, sorrindo como um idiota. O homem se virou e percebeu pela primeira vez que Alex estava atrás dele. Ele parou, esticando o braço. Alex apertou sua mão.

- Nó na garganta - o homem disse.

- Desculpe?

- Nó na garganta. Quando vi seu filme, fiquei com um nó na garganta. Mexeu muito comigo. - Ele esticou o braço e apertou o ombro de Alex. - O melhor dos melhores hoje à noite, certo?

Alex já escutara aquele tipo de comentário a respeito do filme. Todos tinham um pai, uma irmã ou amigo com quem não se davam, e o papel de Alex havia incentivado todos a fazerem as pazes. Alex Rivers, rei das reconciliações. Sultão da reaproximação. Com um grande segredo: a esposa que o abandonara.

Enquanto esperava no tapete vermelho, ele escutou as palavras "levar todas" e percebeu que as pessoas estavam falando sobre o potencial do filme A história dele de sair com um prêmio para cada uma de suas indicações, incluindo a trinca de ouro de Melhor Ator, Melhor Diretor e Melhor Filme. Levar, levar, levar. A palavra não saía de sua mente, fazendo com que Alex imaginasse como teria sido ter Cassie a seu lado, o que os jornalistas diriam quando ele a abraçasse e a levasse pelo corredor dançando uma valsa, como se nada naquela noite fosse mais importante do que ela.

Eles ESTAVAM NA MESMA CASA DE UM cômodo havia três dias, mas Cassie ainda se sentia constrangida por estar vestindo uma camisa velha de Cyrus e uma calça de poliéster verde amarelada com elástico na cintura de Dorothea. Will bateu na porta da frente como se não estivesse vivendo ali temporariamente. Quando Cassie abriu a porta, ele olhou para seu cabelo preso em uma trança e para as roupas largas.

- Uau - ele disse -, você está linda de morrer.

- Dá um tempo - Cassie disse, dando risada. - Não tenho cintura e nunca vesti nada dessa cor antes.

Era a primeira vez que Will havia voltado para Pine Ridge desde que partira, um mês antes. Dissera aos supervisores que um familiar havia falecido, o que lhe rendeu uma semana de licença. Queria acreditar que nada além de um enterro o faria voltar para Pine Ridge, mas, na verdade, ele só queria levar Cassie ao Oscar. A TV mais próxima ficava a trinta e cinco quilómetros, em um bar, e ele sabia que ela nunca iria até lá sozinha.

- Então - ela disse, entrando na caminhonete alugada de Will. - O que estou perdendo em Los Angeles?

Will deu de ombros.

- O de sempre: muita poluição, algumas chuvas torrenciais, o burburinho de Hollywood. - Ele olhou para ela rapidamente, esperando que compreendesse que ele não pretendia incluí-la no final daquela lista. Na verdade, ele estava acompanhando aqueles programas ridículos de entretenimento, mas nada havia sido dito a respeito do desaparecimento de Cassie Rivers.

O prédio não tinha nome nem número, porque todos sabiam onde ficava e o que era. Estava bem cheio, uma vez que era o local mais próximo da reserva onde era possível tomar uma bebida, e Will esperava que não houvesse problemas. Ele não havia dito a Cassie, mas era sabido que ocorriam esfaqueamentos e estupros no estacionamento e que a polícia procurava se afastar em vez de fazer perguntas. Atrás do bar descuidado existia uma placa velha e desbotada onde se lia Lei Lakota Kin Iyokipisni, "Não é permitida a entrada de sioux". Estava rachada ao meio por um tacape, preso na viga atrás dele.

Cassie era a única pessoa branca do bar, e uma das poucas mulheres. Ela estava um pouco nervosa atrás de Will, tentando ignorar os olhares lançados a ela como desafios. Ela o seguiu para uma mesa de canto de onde dava para ver a televisão sem obstruções. Sua cadeira estava pressionada atrás da jukebox e, enquanto Loretta Lynn cantava, Cassie levantou as mãos para a caixa de seleção com as luzes acesas e ficou vendo as pontas de seus dedos brilharem com a luz rosada.

- Eles estão assistindo ao jogo de hóquei - Cassie disse. Não lhe ocorrera que poderiam estar assistindo a outra coisa que não fosse a cerimónia do Oscar. Talvez em Los Angeles, mas não em Pine Ridge, onde o cinema mais próximo ficava a uma hora de distância.

Will olhou sem prestar atenção para a tela, observando os golpes no gelo.

- Deixe comigo - ele disse. Ele ficou em pé e ergueu uma perna pelas costas da cadeira, como um caubói apeando do cavalo. Caminhando para o bar, apoiou os cotovelos sobre o balcão grudento. - Hau, kóla - ele disse, tentando chamar a atenção do bartender.

O homem era obeso e tinha o cabelo separado em duas tranças pretas e compridas, amarradas com cadarços de sapato nas pontas. Estava secando um copo.

- Em que posso ajudar? - ele perguntou desanimado.

- Preciso de um Rolling Rock e de um copo com água - Will disse. - E a moça gostaria de mudar de canal.

- De jeito nenhum - o bartender disse, abrindo uma garrafa gelada.

- Três pratas.

Will esperava por aquilo. Entregou ao bartender uma nota de cinquenta dólares que havia retirado do envelope de seu pagamento, e ele apostava que o homem nunca havia visto uma daquela em sua vida.

- Se colocar no canal ABC às nove da noite - Will disse -, pode ficar com o maldito troco.

Quando ele entregou a água a Cassie, ela estava sentada na ponta da cadeira.

- Eles vão mudar? - ela perguntou, com a voz fina e ansiosa.

- Sem problemas - Will disse. Ele bateu o gargalo de sua garrafa de cerveja no copo de Cassie, fazendo um brinde, pensando que, milagrosamente, aquele canto de Dakota do Sul concordava com ela.

- Há rumores de que você se tornou uma grande índia - ele disse.

Cassie corou.

- Obrigada.

Will riu.

- Para muitos lakotas isso é um insulto que vale uma briga - ele disse. - Não foi um elogio.

Rolando o copo entre as palmas das mãos, Cassie olhou para Will.

- Pelo menos estou tentando me encaixar - ela disse.

Como se nunca tivesse feito isso. A brincadeira ficou entre eles, e, apesar de Will acreditar que podia se proteger com a atitude fria que cultivava, ficou chocado ao ver quanto as coisas que Cassie não havia dito ainda podiam ferir. Seu avô estava encantado com ela; sua avó não conseguia parar de falar sobre ela. Doía saber que alguém sem sangue sioux correndo em suas veias conseguia um espaço para si, sendo que ele nunca havia conseguido nada.

Estreitando os olhos, Will fez o que havia se tornado natural durante os anos em que ele havia vivido em Pine Ridge: rebateu. Ele balançou a cabeça de maneira positiva lentamente, como se estivesse pensando na rotina diária de Cassie havia algum tempo.

- Você fez com que os velhos desejassem que todos os wasicun fossem iguais a você. Passeando com Cyrus; perguntando ao curandeiro sobre frutos e raízes. A própria indiazinha.

Cassie ergueu a cabeça, indisposta a defender suas ações para a pessoa que a havia levado ali.

- O que devo fazer o dia todo? Deitar no sofá e ver minha cintura sumir? Além disso, parece um acampamento de escoteiros. Ter de sobreviver na floresta à noite e tudo o mais. É bom saber essas coisas. Imagine se eu me perdesse na mata e torcesse meu tornozelo...

- Imagine se existisse mata em Los Angeles e que todas as farmácias abertas 24 horas estivessem fechadas? - Will riu e tomou um grande gole de sua cerveja, terminando-a. - Você pretende voltar, não é?

O rosto de Cassie ficou sério, e por um instante terrível Will pensou que ela fosse chorar. De repente, ele se lembrou de quando estava na segunda série, quando um aluno novo entrou na escola. Horace era apenas 25% índio, e Will havia feito amizade com ele, pensando que devesse alguma coisa a alguém que o tirasse da condição de bode expiatório. Deu certo: os mesmos valentões que haviam pisado em seus sanduíches na hora do almoço e quebrado seus lápis agora pediam para ele jogar beisebol com eles e os convidava para ir à casa deles aos finais de semana. Will se lembrava da sensação boa que sentiu quando percebeu que estava sendo aceito e, sem perceber, passou a agir como eles. Só se deu conta disso quando, certo dia depois da aula, ficou escondido atrás de algumas árvores, esperando que Horace se aproximasse, e com todos os outros meninos lançou pedras e galhos no garoto, até que este saísse correndo.

Mas, antes de correr, viu o rosto de Horace. Ele estava olhando para Will, e para mais ninguém, como se dissesse: "Você também, não."

Will balançou a cabeça para afastar a imagem, sem saber ao certo o que ela tinha de ver com Cassie, exceto pela horrível sensação que o tomara quando percebeu quanto havia magoado alguém que nada fizera a ele. - Ei - ele disse, tentando deixar a situação mais leve. Apontou com a cabeça na direção da televisão.

- Você vai perder seu programa.

Conforme ele havia pedido, o bartender mudara de canal quinze minutos antes da transmissão do Oscar. Will não fazia ideia do que passava antes; concluiu que devia ser algum seriado idiota. Mas acima dele estava Alex Rivers e sentada ao lado dele, em um sofá, estava Cassie.

- A entrevista com Barbara Walters - Cassie disse. Estava segurando um guardanapo com tanta força que o rasgou. Em seguida, começou a rir com histeria. - Ele ia aparecer em segundo lugar. Não em último. Segundo.

Mil coisas passaram por sua mente: e se ele soubesse, desde o começo, que seria apresentado por último? Eles nunca teriam brigado? Ela não teria fugido? Olhou para as cortinas familiares de sua sala de estar, para a tempestade que atingia os arbustos de azaleia do lado de fora. Viu o buquê de lírios que alguém da produção de Barbara Walters havia colocado sobre a mesa de canto, onde costumava ficar um grande livro com capas da revista New Yorker.

Mas, acima de tudo, olhou para Alex, que estava sentado perto daquela sombra que parecia ela, limpo e recém-barbeado e exatamente como aparecia todas as manhãs, quando saía do banheiro e a deixava sem fôlego. Na televisão, as mãos dele não paravam quietas sobre o ombro dela. Ele estava dizendo ao mundo que Alex Rivers e sua esposa assistiam a desenhos na cama aos sábados pela manhã.

Meu Deus, Alex. Cassie lutou contra a vontade de chorar, de ficar em pé e tocar a televisão como se pudesse sentir a pele quente. Até vê-lo novamente, não havia percebido o que estava perdendo.

E então escutou a própria voz. Assustou-se, forçando-se para se afastar das reações de Alex e observar sua boca formando as palavras. Ela se mexeu desconfortavelmente na cadeira, percebendo que sua voz estava estranha, diferente da realidade.

- Pensei que ele fosse uma celebridade cheia de si impondo-se para mostrar quem estava no controle - Cassie escutou-se dizer -, e sinto em dizer que, a princípio, foi isso mesmo o que encontrei. Ela viu os olhos de Alex brilharem na mudança daquela frase, que de fato fazia com que ele parecesse um tolo. Apesar de ter acontecido semanas antes, Cassie sofreu. Tentou imaginar se o resto do mundo tinha podido ver aquela breve raiva sob a superfície; se haviam percebido que ela ficava um pouco inclinada para o lado esquerdo, longe de seu lado ferido; se eles viam o ferimento embaixo da manga de sua blusa.

Eles cortaram grande parte da entrevista, a parte em que Cassie falou. Na verdade, Barbara Walters terminava com um "Felizes para sempre" ao perguntar a Alex: "Por que Cassie?" e Alex havia olhado para a câmera e dito: "Ela foi feita para mim". Corte e o beijo rápido que Alex lhe dera ao final da entrevista, que algum editor havia congelado de modo que os lábios de Alex ficassem presos aos dela para sempre, mesmo quando Barbara Walters começou a encerrar para chamar o comercial.

Will olhou para Cassie. Ela estava olhando para o comercial de fraldas Pampers como se não conseguisse entender o fato de Alex ter desaparecido da tela e ainda estivesse pensando em como fazê-lo voltar.

Ele ficou em pé e caminhou para o bar, pedindo outra cerveja.

- E batatas ou qualquer coisa - Will disse. - A noite será bem longa hoje.

NÃO ACREDITO QUE ELE LEVOU OUTRA PESSOA. Cassie estava dizendo aquilo desde a montagem no início do Oscar, quando uma tal de Melanie saíra da mesma limusine que Alex. Ela havia bebido o segundo copo de água antes de Alex atravessar as portas do Dorothy Chandler Pavillion. - Que vaca! - ela sussurrou, enquanto acompanhava Alex, e apenas ele.

Parecia promissor: no primeiro grande prémio da noite, Jack Green havia ganhado o prémio de Melhor Ator Coadjuvante, e metaforicamente fez um brinde a Alex levantando sua pequena estátua dourada. A partir de então, por duas horas e meia, o nome do filme aparecia de vez em quando - fotografia, edição, trilha sonora. Will havia perdido as contas do número de Oscars que já haviam sido entregues na última hora, quando terminou sua sexta e última cerveja. Não sabia como Cassie continuava sentada, e ainda mais assistindo.

Ele abaixou a cabeça na mesa diante dela.

- Acorde-me nos últimos quinze minutos se ele ganhar alguma coisa interessante - Will disse.

Cassie assentiu. Passou o dedo pelo sal no fundo da tigela de amendoim.

- Sabe por que se chama Oscar? - ela disse algum tempo depois, para ninguém em especial. Uma secretária que trabalhava na Academia de Artes e Ciências Cinematográficas disse que ela se lembrava de seu tio Oscar. Não é a coisa mais idiota que já ouviu?

Por ter escutado o lamento em sua voz, Will abriu um olho. Lágrimas rolavam pelo rosto de Cassie; apesar de sua aparente força, estava sofrendo. Ele puxou a cadeira dela pelo chão cheio de serragem até tocar a lateral de seu corpo, e a abraçou. - Tudo bem - tentando imaginar por quanto tempo havia dormido, se Alex já havia perdido, se ele tinha perdido o grande momento.

- Não está tudo bem - Cassie disse. - Nunca vai ficar tudo bem. Eu devia estar sentada na segunda fileira ali. Eu devia ser aquela que seria mostrada sempre que a câmera corresse pela fileira.

- Veja pelo lado positivo - Will disse. - Você provavelmente estaria dormindo agora.

- Mas eu estaria dormindo lá - Cassie disse. - É a noite mais importante da vida dele e eu estou a milhares de quilómetros de distância.

Mas você não está lá - Will quis dizer. Você está aqui comigo. - Ele olhou para ela com tanta intensidade que ela parou de chorar e simplesmente olhou para ele.

E então eles anunciaram os indicados para Melhor Ator.

Com facilidade, Cassie distanciou-se de Will. Afastou o braço dele e debruçou os cotovelos na mesa, centímetros mais perto de seu marido. Quando a televisão mostrou uma cena de A história dele, o reflexo de Alex foi observado por Cassie entre as palmas abertas de suas mãos.

E o Oscar de Melhor Ator vai para...

Cassie parou de respirar. A luz da televisão banhou seu rosto, fazendo seus ângulos brilharem.

Alex Rivers.

Os olhos de Cassie brilharam, e com grande interesse ela observou Alex subir o corredor até o palco, onde aceitaria a estatueta. Will tentou imaginar se ela tinha consciência de que seu braço direito estava estendido na direção da televisão, como se ela fosse capaz de tocá-lo.

Ele não se importava nem um pouco com o Oscar de Alex Rivers, mas não conseguia desviar o olhar de Cassie. Achara que ela estava bonita quando chegou com sua caminhonete na casa de seus avós; mas, diante de seus olhos, ela havia se transformado em uma criatura de graça e brilho. Quando Alex apareceu na tela, ela ganhou vida.

Will nunca sentira tanta raiva em sua vida.

Quatro semanas antes, quando Cassie aparecera na porta de sua casa, ele havia visto evidências da raiva do ilustre Alex Rivers; compreendera o peso que ela tinha de carregar. Mas, até aquele momento, Will não fazia ideia de quanto dela Alex havia tomado.

O cabelo dourado de Alex era mais luminoso do que o Oscar, e Cassie observou seus dedos envolverem o corpo da estatueta. Ele estava olhando bem para ela.

- Gostaria de agradecer Herb Silver e a Warner Brothers, além de Jack Green e... - Cassie não se ateve ao que ele dizia, mas voltou sua atenção para as linhas de sua boca, rosada e bem desenhada e imaginou aqueles lábios sobre seu corpo. - Mas este prêmio é para a minha esposa, Cassie, que encontrou o roteiro e me convenceu de que a história seria algo que o público gostaria de ver, além de ser algo que eu precisava fazer. Ela está com seu pai hoje à noite, porque ele está doente e, quando conversei com ela algumas horas atrás, ela demonstrou tristeza por não poder estar aqui. Bem, eu estava um pouco nervoso, por isso não consegui dizer tudo o que queria antes de desligar. Eu queria dizer que Você poderia estar do outro lado do mundo, Cassie, e eu ainda assim estaria com você. - Ele olhou para a frente, para a multidão de rostos que o observavam. - Obrigado - ele disse e, de repente, foi embora.

Cassie o observou receber seus outros dois Oscars. Era, claramente, a noite de Alex Rivers, mas ele não deixara de mencionar o nome dela. Na segunda vez, ele disse ao mundo que a amava. Na terceira, ele sussurrou "Venha logo para casa" tão baixinho que Cassie tentou imaginar se mais alguém que assistia havia percebido.

Quando Will a levantou e a ajudou a sair do bar, ela tentou visualizar como sua noite teria sido se não estivesse ali. Teria vestido uma bela roupa - Alex teria cuidado disso - e, sempre que seu nome fosse chamado, ele teria se virado para ela e a tirado da cadeira com um abraço. Ela podia sentir a força de seu braço, a sensação de tocar seu terno, ao entrar no Spago e no The Gate com ele, circulando nas festas pós-Oscar. Ela seguraria duas estatuetas, ainda quentes pelo toque de Alex. Depois, eles iriam para casa e deixariam os prêmios no carpete e Alex a penetraria, quente, urgente, a essência do sucesso.

Mas, em vez disso, Cassie andou na noite fria de março, tonta pela exposição de estrelas acima e lembrou-se do que havia feito com sua vida.

Will observou sua expressão de tristeza. Ela havia chorado durante toda a transmissão, apesar de o esperto Alex ter dito aos vinte milhões de pessoas que o assistiam que sua vida girava ao redor da esposa. Caramba, ele admitira até que ela estava fora da cidade, apesar de ter enfeitado os fatos. Ele não era tolo, e sabia que ela estaria assistindo. Will teria dito que o discurso todo havia sido bem calculado, se não tivesse visto com os próprios olhos que Alex colocara em palavras a exata maneira como Cassie olhava para a televisão.

Alex provavelmente a amava, seja lá como, e Cassie parecia acreditar que isso tinha valor considerável. Mas Will pensou que morreria por dentro se visse os dois juntos de novo. Ela provavelmente se prenderia a Alex como se suas pernas não tivessem vida própria e Alex olharia para ela como, bem, como Will a observara a noite inteira.

- Aquilo foi bacana - Will disse de modo neutro, abrindo a porta do passageiro da caminhonete.

- É - Cassie disse. Estava muito triste.

- Seu marido levou todos os Oscars. É normal que você demonstre emoção. - Ele segurou os ombros dela, chacoalhando-a levemente. - Ele sente sua falta. É louco por você. Que diabos você tem?

Cassie deu de ombros, um tremor delicado que atingiu as palmas de Will.

- Acho que ainda gostaria de ter presenciado tudo aquilo de perto - ela admitiu.

Will explodiu.

- Há quatro semanas você não conseguia pensar em mais nada além de fugir. Você me mostrou os ferimentos que ele lhe causou nas costelas e no pescoço. Ou será que você se esqueceu desse lado de seu charmoso marido, exatamente como ele devia estar esperando que acontecesse quando você o assistisse hoje, para voltar se rastejando? - Ele olhou para Cassie, que estava em pé sem nada dizer, com os lábios levemente parados. - Pode acreditar em mim - ele disse. - Eu sei melhor do que niguém. Não dá para ter tudo o que se quer.

Ela olhou para ele como se nunca o tivesse visto antes e tentou dar um passo para trás. Mas Will não queria soltá-la. Queria que ela percebesse que ele tinha razão. Queria que Cassie fosse capaz de enxergar por baixo das belas embalagens que Alex lhe havia dado naquela noite por meio da televisão, que conseguisse vê-lo como ele de fato era. Queria que ela olhasse para ele - Will - da mesma maneira como olhava para Alex.

Will apertou os dedos no ombro de Cassie e pressionou seus lábios contra os dela. Frustrado, ele continuou, forçando a entrada de sua língua dentro de sua boca, até que, com a delicadeza de uma santa, ela permitiu seu toque. Ela o abraçou lentamente pela cintura, uma bandeira branca, huma entrega abnegada que tocou sua consciência.

Ele se afastou abruptamente, nervoso consigo mesmo pela falta de controle, nervoso com Cassie por simplesmente estar no lugar errado e na hora errada. A esposa de outro homem. Grávida. Caminhando a seu lado na caminhonete, acomodou-se diante do volante e girou a chave na ignição. Acendeu os faróis, que iluminaram Cassie. Ela estava paralisada. A mão pressionava os lábios; a aliança de casamento brilhava como uma profecia. A distância, Will não tinha certeza se ela tentava se livrar do gosto dele ou se tentava mantê-lo.

ALEX Rivers - O ATOR/diretor MAIS REQUISITADO de Hollywood no momento, um pouco depois das quatro horas - estava sentado em seu escritório na casa de Bel-Air. Olhou para as três estatuetas que havia disposto diante de si como alvos em um galpão de tiro. Que noite! Que grande noite!

Nunca desejara tanto estar bêbado, mas, por mais champanhe que tivesse consumido em homenagem a si mesmo, a embriaguez não o havia atingido. Havia saído da última festa há pouco mais de uma hora. Quando saíra, Melanie estava indo ao banheiro para cheirar cocaína com um estilista e Herb estava negociando o salário maior de Alex com um grupo de produtores. Os problemas com Macbeth foram repentinamente esquecidos; Alex voltava a ser um garoto de ouro. Quando parou na porta, todos estavam dizendo seu nome, mas ninguém percebera sua partida.

Tentou imaginar se Cassie o assistira e se repreendeu por pensar.

Aquela era a noite dele. Pelo amor de Deus, havia quanto tempo que ele trabalhava para aquilo acontecer? Por quanto tempo ficou provando a si mesmo? Ele passou as mãos pelas cabeças carecas das estátuas, impressionado pela maneira como elas pareciam reter o calor de seu toque humano.

Ele pegou seu primeiro Oscar, sentindo o peso em sua mão como faria com uma bola. Em seguida, envolveu a estatueta com os dedos. - Este é para você, maman - ele disse, e jogou o objeto pelo escritório com tamanha força que cortou o papel de parede e marcou o gesso com o impacto.

Ele pegou o segundo, que era para seu pai, e o lançou na mesma direção, gemendo de satisfação quando seus dedos soltaram o metal liso.

Ele pressionou os lábios, esboçando um sorriso, ao pegar o terceiro Oscar. O melhor para o final. Pegou o corpo estreito, pensando em sua esposa querida e dedicada, e impulsionou o braço para trás.

Não podia fazer aquilo. Com um som estranho, Alex caiu pesadamente em sua cadeira. Passou os dedos sobre a estatueta como se pedisse desculpas, como se estivesse sentindo a suave curva do pescoço de Cassie e de seus cabelos. Apertou as palmas das mãos nos olhos quando começaram a arder; abaixou a cabeça na mesa.

Melhor Filme, Melhor Ator, Melhor Diretor, Pior Marido. Alex já havia pensado que a arte imitava a vida, mas nunca sentira aquilo tão forte em sua alma. Seus discursos de agradecimento haviam sido cuidadosamente escritos, planejados palavra por palavra para pegar Cassie, onde quer que ela estivesse, para que voltasse para ele. Estava começando a perceber como sentia o que havia dito.

Ele acordaria no dia seguinte com centenas de ofertas de filmes e um salário de vinte milhões por cada um deles, mas não seria o suficiente. Nunca seria o suficiente. Ele trocaria tudo e viveria em uma caixa de papelão na praia se pudesse se livrar da parte de seu ser que causava tanto sofrimento a Cassie.

Nas sombras de seu escritório, Alex Rivers disse em voz alta o segredo que nenhuma das pessoas que ainda estavam aproveitando a festa na Sunset Boulevard sabia: ele não era ninguém.

Até que ela o tornasse completo.

Quando o telefone tocou ao seu lado, ele sabia que era ela. Pegou o telefone e esperou para escutar a voz de Cassie.

Não havia como ele saber a dificuldade que ela havia enfrentado para encontrar um telefone. Ela teve de passar por Will, que fingia estar dormindo no chão, mas que a deixara sair sem nada dizer. Teve de dirigir a caminhonete dele, sem permissão, até a igreja católica e acordar o padre, esperando que sua pele branca o convencesse de uma emergência inventada. Teve de esperar na linha com a telefonista, ansiosa, até finalmente conseguir entrar em contato com Bel-Air.

- Alex - ela sussurrou. Sua palavra foi um bálsamo. - Parabéns.

Já fazia tanto tempo, e ele estava tão chocado por seu discurso televisivo ter conseguido levá-la de volta a ele que ficou um tempo sem conseguir falar. Então, colocou os ombros para a frente, como se pudesse segurar a voz da esposa com seu corpo. - Onde você está? - ele perguntou.

Ela estava esperando aquela pergunta. Não queria revelar nada; só queria escutar Alex.

- Não vou lhe dizer. Não posso. Mas estou bem. E muito orgulhosa de você.

Alex percebeu que estava sorvendo a voz dela, guardando-a dentro de si para relembrar muitas vezes.

- Quando vai voltar? O que a fez ir embora?

- Ele controlou as emoções.

- Eu conseguiria encontrá-la, você sabia? - ele perguntou cuidadosamente. - Poderia fazer isso se quisesse.

Cassie respirou fundo.

- Você poderia - ela disse -, mas não vai.

- Esperou que ele a contradissesse e, quando ele ficou em silêncio, ela disse o que ele já sabia.

- Não vou voltar porque você quer, Alex. Só vou voltar porque eu quero.

Era mentira; se ele tivesse chorado e implorado, ela pegaria o próximo avião de volta para Los Angeles. Estava blefando, e Alex sabia disso também, mas sabia o quanto estava em jogo. Cassie nunca havia se escondido dele antes, de maneira alguma. E, se para garantir um final feliz ele tivesse de aceitar as regras dela, faria o que ela pedisse.

Então ele engoliu o orgulho e o fracasso.

- Está mesmo bem? - perguntou delicadamente.

Cassie enrolou o fio do telefone em seu pulso como se fosse uma pulseira.

- Estou bem - ela disse. Olhou para cima para a sombra do padre na porta. - Preciso ir agora.

Alex entrou em pânico, segurando o telefone com mais força.

- Vai ligar de novo? Logo?

Cassie pensou.

- Vou ligar de novo - ela disse, pensando no bebê e no que Alex tinha o direito de saber. - Telefonarei de novo quando quiser que venha me buscar.

Ela queria que ele fosse. Ela o queria.

- Estamos falando em dias? Semanas? - Alex perguntou. E sorriu: - Por que depois de hoje à noite minha agenda está lotada.

Cassie sorriu.

- Tenho certeza de que você vai saber o que é prioridade - ela disse. Hesitou antes de dar a Alex um presente para os meses que se estenderiam. - Sinto sua falta - ela sussurrou, sem sorrir. - Sinto muito a sua falta. - E desligou o telefone antes que ele conseguisse escutá-la chorando.

Alex olhou para seus Oscars. As provas de seu sucesso jogadas no chão, ferindo a madeira. A última estatueta estava ao lado do telefone. Cassie interrompera a ligação; tudo o que restara tinha sido um som seco. Alex não percebeu quando começou a chorar. Durante uma hora, segurou o telefone como se fosse um amuleto, mesmo quando a gravação lhe dizia sem parar para desligar e tentar de novo.

 

Cyrus havia repetido a terceira série oito anos, não por causa de sua inteligência limitada, mas porque nos anos 1920 as escolas da reserva não iam além disso. Ele tinha parcos conhecimentos de leitura e escrita, só sabia fazer contas de adição e subtração e não sabia soletrar as palavras. Sua especialidade era história - não a história do homem branco, como disse a Cassie, que as professoras missionárias tentavam fazê-los engolir com seus livros, mas a verdadeira história.

Como Dorothea passava muito tempo na cafeteria, Cassie sempre ficava sozinha com Cyrus. Tinha a sensação de que ele gostava da companhia; ele deixava de lado suas agulhas e às vezes ficava em silêncio quando caminhavam juntos, mas, na maior parte do tempo, ele conversava. Contava a ela histórias que haviam sido passadas a ele por seu pai - mitos indígenas, histórias de criança a respeito do Cavalo Louco, relatos quase testemunhais da Batalha de Little Bighorn e a tragédia em Wounded Knee, onde ocorreu a batalha entre índios e colonizadores que deixou muitos sioux mortos.

No dia anterior, Cassie havia pedido a Cyrus que a levasse a Paha Sapa, as Black Hills. Ela sabia que fósseis já haviam sido encontrados ali e que houvera controvérsias a respeito de retirá-los das terras sagradas da reserva. Não que ela planejasse começar uma enorme escavação, que o conselho tribal certamente impediria, mas queria, pelo menos, encontrar pistas que a levassem a acreditar que existia alguma coisa sob a superfície - as rochas erguidas, a vegetação crescida. Sentiu vontade de tirar vantagem do fato de viver entre os sioux, a poucos quilómetros de onde haviam sido enterrados seus ancestrais. Durante anos seus colegas tentavam obter acesso a lugares assim, e repetidamente eram proibidos.

Naquele dia, ela havia pegado emprestado o jipe de Abel Sabão e preparado um piquenique. Só por precaução, ela colocou dentro do veículo uma picareta e uma pá que Abel lhe oferecera. Cyrus entrara no jipe como um homem muito mais jovem.

- Sabia que as crianças sioux acreditam que o bicho-papão vive em Badlands? - ele perguntou.

Cassie sorriu.

- Vou tomar cuidado.

Mas várias horas depois, com a estranha paisagem de rochas diante deles, ficou fácil perceber por que as crianças acreditam em algo assim. Diferentemente dos picos e ápices da maioria das Black Hills, o Badlands, era como enormes rochas que com o tempo haviam se unido. O vento soprava pelos esparsos pinheiros que pontuavam a parte de cima da cadeia de montanhas e iam para dentro do vale como um redemoinho.

- Você vai descer? - Cyrus quis saber, ficando ao lado de Cassie, na beirada.

Cassie olhou para ele.

- Por quê? O senhor vai?

- Claro que não - Cyrus respondeu. - Consigo pensar em lugares melhores para morrer.

Ela sentiu um frio percorrer-lhe a espinha quando ele disse aquilo.

- O que quer dizer com isso? - ela perguntou, mas Cyrus já havia se afastado, indo para a parte de trás do jipe.

Ele voltou com a picareta e a pá e perguntou:

- Quer estas coisas?

Cassie assentiu e as colocou no cinto que pegara emprestado de Cyrus. Passara a precisar vestir as roupas de outras pessoas, uma vez que as suas não lhe serviam mais. Ela viu Cyrus pegar um pedaço de bolo de carne frio de dentro da cesta e se sentar com as pernas cruzadas diante dela. Ela pisou na beirada, firmando-se em uma rocha e sentindo se estava firme para começar a descer para dentro do vale. Passou as mãos sobre as paredes de pedra, suaves como mármore e tomadas por liquens.

- Deveria ter trazido uma camisa da Dança dos Fantasmas - Cyrus disse de algum ponto acima dela. - Assim, os espíritos do md não poderiam pegá-la.

- Boa ideia - Cassie disse, ofegante, sem entender sobre o que ele estava falando. - E depois que eu encontrar uma, vou ganhar uma nota preta vendendo-as para os pregadores do dia do juízo final na avenida das Estrelas, em Los Angeles. - Ela escorregou o pé em outra falha da escada natural, quase torcendo o tornozelo na superfície arredondada das rochas que formavam o chão do vale.

- Não ria - Cyrus disse. - Eram camisetas que os índios acreditavam que os tornariam invencíveis. Meu bisavô tinha uma. Elas foram moda nos anos 1880, parte de uma nova dança que trazia de volta guerreiros mortos e o búfalo, um mundo completamente novo sem o homem branco. - Cyrus ficou em pé e inclinou-se sobre a entrada do vale.

- Você vai comer o bolo de carne? - ele perguntou.

- Não - Cassie respondeu. Protegeu os olhos com as mãos. Ele estava a seis metros acima dela, olhando para baixo, como se seu interesse pudesse garantir a segurança dela. - Pode comer.

- Como eu estava dizendo, meu bisavô trouxe a Dança dos Fantasmas de um curandeiro paiute para os sioux. Ele tinha uma camiseta, pintada com o sol, a lua, as estrelas e as aves pega-rabudas. Dorothea a tem guardada em algum lugar. Se você estivesse vestindo a camisa, nenhum mal poderia lhe atormentar.

- Como um pé de coelho - Cassie disse, cavando com a picareta em um ponto elevado da rocha. Mesmo que encontrasse alguma coisa, ela pensou, provavelmente seria um mastodonte, não uma pessoa.

- É - Cyrus disse -, mas não funcionava como deveria. O exército branco pensava que não fosse grande coisa; os sioux deveriam estar planejando algum tipo de ataque contra eles. Por isso diziam ao povo que não sabiam fazer a Dança dos Fantasmas.

Cassie sentiu o sol atingir a parte de cima de sua cabeça e se lembrou de seus primeiros dias na Tanzânia com Alex, quando acreditara que nada poderia dar errado; que, verdadeiramente, eles eram invencíveis. Quem era ela para criticar uma camisa da Dança dos Fantasmas? O amor, pelo menos no início, podia ser um amuleto muito forte.

- Já ouviu falar de Touro Sentado? - Cyrus perguntou. - Foi assim que ele morreu. Ele defendia a Dança dos Fantasmas em Standing Rock, e os agentes do governo fizeram com que a polícia tribal o prendesse por isso. Seu próprio povo. - Cyrus balançou a cabeça. - Quando ele reagiu, começaram a atirar. Touro Sentado morreu e a maioria dos sioux que estavam com ele também.

Cassie virou o rosto quando Cyrus começou a rir; era o último som que ela esperava escutar em sua história. Ela interrompeu os golpes com a picareta.

- Agora, imagine só - Cyrus disse. - Todo mundo olhando ao redor, tentando entender o que havia acontecido, e de repente um cavalo aparece e começa a correr em círculo.

- O cavalo de Touro Sentado? - Cassie perguntou, curiosa.

Cyrus assentiu.

- Antes de ele vir para a reserva, Touro Sentado viajou com o show Wild West de Buffalo Bill Cody, e aquele pónei de circo havia sido um presente. Então, quando os tiros que mataram Touro Sentado foram dados, o cavalo começou a fazer isso. Parece que foi assim que eles começaram o show.

Cassie abaixara as mãos. Pegou-se escutando apenas a Cyrus, a sua história e o grito de um falcão a distância. Ela lentamente colocou sua picareta dentro do cinto, começando a subir o vale.

Lá em cima, sentou-se ao lado de Cyrus, esfregando os braços, tentando se lembrar de uma história que sua mãe pudesse ter lhe contado que tivesse ficado em sua mente. Mas tudo de que se lembrou foram histórias de uma graciosidade sulista que Cassie posteriormente descobriu que não havia existido, e a voz de sua mãe parando no meio de uma frase.

- Foi seu avô quem lhe contou isso? - Cassie perguntou.

Cyrus assentiu.

- Assim como eu contei a Will. E a você.

Cassie fez uma careta ao sentir uma dor na lateral da barriga. Seu corpo não era mais como tinha sido. Aquela criança começava a fazer suas exigências. Ela sorriu, apesar da dor, e ficou em pé.

- Podemos ir agora.

Cyrus olhou para ela com cuidado.

- Encontrou alguma coisa? - ele perguntou, procurando nos bolsos vazios dela a pá intocada.

No passado, para Cassie, a antropologia significava afastar algo fisicamente, mas agora a ideia de escavar nas Black Hills lhe dava um certo mal-estar. Começava a se perguntar se a escavação de uma cultura tinha de envolver a abertura da terra. Imaginou o bisavô de Cyrus girando em sua Dança dos Fantasmas; Touro Sentado sangrando no chão frio enquanto apenas um pónei de circo lhe homenageava; Will sentado no chão escutando aquela história pela voz de seu avô. Havia uma certa frase que os sioux usavam como um tipo de oração quando terminavam um ritual. Dorothea dizia essa frase da mesma maneira que casualmente dizia "saúde" depois de espirrar. Cassie franziu a testa, até se lembrar: Mitakuye ouasín. "Todos os meus parentes."

Cassie fechou os olhos e pensou nas histórias de Cyrus; mais uma vez pensou no cavalo dançando.

- Sim - ela disse. - Encontrei exatamente o que precisava.

ALEX PENSOU QUE O HOMEM PARECIA UM FURÃO. Tinha olhos castanhos pequenos e brilhantes e um nariz afilado que caía bem para Cassie, mas o deixava com cara de roedor. Ben Barrett. Ele estava dizendo ao repórter do Hard Copy que não havia chegado perto nem mesmo de uma gripe comum, muito menos do leito de morte em algum hospital de Alberta como dissera aquele mentiroso do Alex Rivers.

- Além disso - seu sogro dizia -, não recebi notícias de minha filhinha este ano. - Alguma parte havia sido editada, pois quando ele voltou para a tela, estava com os olhos vermelhos. Assentiu: - Ele está escondendo alguma coisa.

Alex respirou fundo e afundou-se o máximo que conseguiu na poltrona do escritório de Michaela. A alguns metros dele, Herb caminhava de um lado a outro, revirando todos os tablóides de supermercado, cada um deles com uma sugestão diferente acerca do que poderia ter ocorrido com Cassie, ideias que iam desde sequestro a assassinato, envolvendo Alex Rivers.

Não era grande novidade - Alex já tinha sido acusado de barbaridades antes -, mas Cassie estava longe havia dois meses, e aquele era seu pai. Quanto mais os rumores aumentavam, mais as revistas questionavam a calma e o silêncio de Alex. Um dos tablóides tinha até conseguido uma declaração do último investigador particular que Alex contratara, algo evasivo, mas Alex o despedira no mesmo instante por ter falado.

Cassie telefonara para ele uma vez, mas Alex não havia dito nada a ninguém. Havia aliviado o medo que ele estava sentindo pela segurança dela, mas não alterara seu plano de ação. Ele continuava com detetives procurando informações. Cassie dissera que telefonaria de novo, e talvez telefonasse, mas, se no meio do caminho Alex descobrisse seu paradeiro, iria atrás dela. Afinal, se ela tinha o direito de ir embora, ele também tinha o direito de convencê-la a voltar.

Michaela tinha sido a primeira a espalhar a desculpa que Cassie estava com o pai e, na época, por causa da pressão com o Oscar, parecia uma boa história. Quando os primeiros detetives não conseguiram pistas sobre onde ela estava, Alex começara a acreditar na própria mentira.

A fita com a gravação do Hard Copy foi pausada, e Michaela levantou de sua cadeira e desligou o videocassete.

- Pois é... - ela disse. - A merda bateu no ventilador.

Alex passou o dedo sobre o lábio superior, tentando não se sentir acuado. Herb inclinou-se em sua direção, tão perto que, quando gritou, Alex pôde ver gotículas de saliva na ponta de seu bigode.

- Tem ideia do que isso poderia lhe causar?

- Herb - eu disse com calma. - Acabei de ganhar três Oscars. As pessoas não vão se esquecer disso tão rapidamente.

Herb olhou para Alex, balançando a cabeça.

- Eles se lembram do que é ruim, do que é sensacionalista. Como, por exemplo, se o Melhor Ator cortou a esposa em pedacinhos e a enterrou no porão.

Alex ficou tenso.

- Dá um tempo - ele disse. Mas sua mente já estava a toda. Herb e Michaela o apoiariam, mas queriam a verdade. Iam querer saber por que Alex escondera a verdade deles.

Ele teria de fazer uma interpretação perfeita diante das duas pessoas que ele confiava o suficiente para permitir que o vissem sem proteção.

Michaela sentou-se na cadeira na frente dele como se tivesse todo o tempo do mundo. Acima dela, o ventilador de teto funcionava.

- Certo - ela disse, tamborilando os dedos na barriga. - Que porra está acontecendo?

Alex baixou o olhar, sem querer revelar toda a verdade, mas usando uma frase que eles nunca esperariam ouvir.

- A Cassie me deixou – ele disse, e permitiu que toda a dor que sentia e mantinha escondida fosse à tona novamente.

A ESTRUTURA DA TENDA DO SUOR FAZIA COM que Cassie se lembrasse de um mamute lanoso. Havia alguma coisa nas barras curvadas de madeira que faziam com que parecessem costelas, como se uma criatura houvesse entrado no meio da planície para morrer. Sentou-se no chão frio, abriu o caderno que trouxera no mês anterior e tirou um lápis do bolso de seu casaco. Procurando uma página em branco, ela observou os rabiscos que fizera para passar o tempo quando chegou: dimensões de crânios, imagens em 3D da mão, um desenho de um modelo de australopitecino que ela queria usar como cortesia em um de seus cursos. Mas, nas semanas que havia passado na reserva, seus desenhos haviam mudado. Não estava fazendo desenhos de esqueletos de sua pesquisa. Ali estava um desenho de Dorothea, dormindo na cadeira de balanço; e uma de um rebanho de búfalos que ela recriara das histórias de Cyrus; e outro, uma lembrança de um sonho no qual havia visto o rosto de seu bebê.

Talvez fosse a atmosfera simples de Pine Ridge que havia mudado sua maneira de desenhar. Em Los Angeles, havia tanto brilho por todos os lados que voltar ao básico era revigorante. Mas ali, onde havia pouca coisa além das terras e do céu, todas as palavras ditas, os relacionamentos desenvolvidos e desenhos feitos se transformavam em algo substancioso.

Cassie colocou o lápis atrás da orelha e analisou criticamente seu mamute e depois olhou para a estrutura de salgueiro que o inspirara. Era estranho olhar para as coisas e - em vez de reduzi-los a elementos de esqueletos, como ela havia aprendido - ver muito mais do que estava diante de seus olhos.

Estava tão distraída com seu mamute que não percebeu os passos atrás dela.

- Se isso for um ta-tánka - Cyrus disse -, está todo errado.

Cassie olhou para ele.

- É um mamute - ela explicou. - Não um búfalo.

Cyrus estreitou os olhos.

- Mamute - ele murmurou. - Seja lá o que você disser. - Ele balançou sua revista de palavras cruzadas diante dela. - Vai devolver meu lápis?

Cassie corou.

- Não queria roubá-lo. Não encontrei outros.

Cyrus fez um barulho e esticou a mão em direção a Cassie.

- Levante-se - ele suspirou. - Você vai congelar esse bebê.

Ela balançou a mão.

- Deixe-me fazer os marfins. Estou quase terminando. - Ela desenhou por mais um momento. - Pronto - Cassie disse, virando seu caderno para Cyrus. Ele olhou para o desenho da tenda que tinha um tronco e marfins saindo pela porta. - O que acha? - ela perguntou. Cyrus passou a mão sobre o rosto para esconder um sorriso. - Acho que parece uma tenda - ele disse. Esticou a mão para Cassie e a ajudou a ficar em pé.

- Sem imaginação - Cassie disse.

- Não é isso - Cyrus disse. - Por que as pessoas brancas olham para uma poça e tentam dizer que é o mar?

Cassie caminhou atrás dele.

- Talvez eu devesse assistir a uma cerimónia - ela sugeriu, acreditando que se parecesse não se importar, Cyrus concordaria com mais facilidade. Por ser uma antropóloga, havia convencido a si mesma de que seu interesse era puramente natural. Adoraria saber o que ocorria dentro daquelas estruturas, que eram provas para garotos que jejuavam sob os cuidados de curandeiros em um esforço de compreenderem a si mesmos. Ela havia visto a seriedade com que o filho mais velho de Linda Cachorro Risonho havia se preparado para o ritual. Ele havia voltado esgotado e exausto, mas muito feliz por dentro como se agora soubesse como unir os pedaços que formavam sua vida.

As coisas poderiam ser fáceis assim.

- Ecún picásni yeló - Cyrus disse. - É impossível.

- Seria uma pesquisa interessante...

- Não - Cyrus disse.

- Eu poderia ficar sentada...

- Não.

Cassie lançou-lhe um sorriso e por um momento Cyrus esqueceu que ela via animais pré-históricos em estruturas de tendas de suor, que ela estava usando todos os truques para entrar no círculo de um rito de passagem lakota. Ele pensou - não pela primeira vez - como era estranho que Cassie, que havia entrado em sua família, havia chegado até eles por meio de Will, que sempre quis sair dela.

Balançando a cabeça, Cyrus esticou os braços acima da cabeça. Deixou a revista de palavras cruzadas sobre a estrutura da tenda de suor e começou a caminhar para a encosta que se estendia a leste da casa.

- Léci uwo - ele disse. - Venha aqui. - Quando ele chegou a um pequeno aglomerado de árvores que descansavam à base de uma montanha maior, parou.

- Foi aqui que Will construiu sua tenda de suor - ele disse.

- Will? - Cassie perguntou, surpresa. - Não pensei que ele gostasse dessas coisas.

Cyrus deu de ombros. - Ele era jovem na época.

Ele nunca me contou - Cassie disse, e percebeu que apesar de Will conhecer detalhes íntimos da vida pessoal dela havia muita coisa sobre ele, Will Cavalo Alado, que ela não sabia. Ela tentou imaginar Will com a mesma idade do filho mais velho de Linda Cachorro Risonho, com seu cabelo preto e espesso solto pelas costas e seus músculos começando a tomar contornos masculinos. - Deu certo?

Cyrus assentiu.

- Mas ele nunca vai admitir - ele disse. - Na cabeça de meu neto, ser um índio é algo que pode ser descartado, como um casaco velho. - Ele estava em pé com o rosto virado ao vento, e Cassie observou quando ele ergueu as mãos como se precisasse impedir que o vento passasse depressa demais.

- Foi por isso que ele foi embora?

Cyrus virou-se para ela, seus olhos escuros alertas e críticos.

- Não acha que isso Will é quem deve lhe contar?

- Acho que é algo que Will tentaria não me contar - Cassie disse cuidadosamente.

Cyrus balançou a cabeça de maneira afirmativa, admitindo a verdade na frase de Cassie.

- Você sabe que a mãe de Will era wasicun wínyan como você - ele disse. - Sabe que Will trabalhou na polícia tribal antes de se mudar. - Ele deu um passo adiante, disposto a contar os segredos de seu neto a Cassie, porém sem querer olhar em seus olhos ao fazê-lo. - A polícia tribal é como qualquer outra polícia, acredito. Fazem as coisas de sempre - desfazem brigas domésticas, levam os bêbados para casa, impedem que os jovens fiquem bebendo cerveja no lago. E eles fecham os olhos para algumas coisas, se puderem - não querem que um deles tenha problema, por isso costumam dar mais avisos do que punições.

Ele continuou:

- Will era um bom policial. Estava trabalhando ali havia cinco anos, mais ou menos. Todos gostavam dele, e esse tipo de coisa era importante para Will. - Cassie assentiu; ela compreendia. - Cerca de cinco meses atrás houve um grande acidente na cidade de Pine Ridge. Motorista bêbado. Alguém perdeu o controle do carro, saiu da estrada, matou uma família de quatro pessoas e meteu o veículo em um poste de telefone na frente da loja geral. É claro que ele saiu ileso de dentro do carro.

Cyrus fechou os olhos, lembrando das sirenes dos carros da polícia que ele não conseguia esquecer; o sangue escuro na frente da camisa do neto quando ele voltara para a casa naquela noite.

- Há muito tempo os pais de Will foram mortos em um acidente de carro causado por um vendedor louco, wasicun e bêbado; por esse motivo ele foi criado por nós. Então, acho que ele sentiu alguma coisa muito forte quando viu aquele homem saindo de seu carro. Ele se aproximou do homem e começou a espancá-lo. Foram necessários mais três outros policiais para segurá-lo. Will foi despedido uma semana depois.

Indignada, Cassie virou-se para Cyrus. - Isso é ridículo. Ele poderia ter processado a polícia.

Cyrus balançou a cabeça.

- Muitas pessoas queriam que Will fosse embora. A família que morreu pertencia ao irmão de uma das professoras de ensino fundamental. Branca. E o motorista bêbado que Will quase matou era lakota. - Cyrus assoviou por entre os dentes da frente. - Uma família branca ser morta foi uma tragédia, com certeza, e não havia dúvidas de que o motorista embriagado, índio, branco ou de qualquer raça, iria para julgamento. Mas o que Will fez - perder o controle desse jeito - foi um erro. Ele não parecia ter um bom senso de prioridade. De repente, todos se lembraram de que ele é iyeska, metade branco, e parecia ter sido essa a metade no controle, uma vez que um índio sem misturas no sangue teria facilitado um pouco as coisas para o assassino.

- Como puderam ver isso como uma questão racial? - Cassie perguntou, cruzando os braços. - O que seus vizinhos devem pensar de mim? - Eles gostam de você - Cyrus respondeu. - Você se mistura com o povo. Não porque tenta, mas porque não tenta não se misturar. Will sempre construiu muros, sempre ficava desconfiado.

Cassie pensou em Will em Los Angeles, destacando-se da mesma maneira que fazia em Pine Ridge. Ela pensou nos belos objetos indígenas dentro de caixas em sua casa em Reseda. Pensou nele batendo no motorista embriagado até ferir as mãos, até ficar com sangue no uniforme, até ficar impossível dizer se o homem era lakota ou branco. Pensou no que poderia ter dito a ele se soubesse de tudo aquilo antes: que ela agora sabia, por experiência própria, que não se pode simplesmente fechar os olhos e fingir que uma parte de sua vida não existiu.

Sem pensar, Cassie abaixou-se e pegou um galho de salgueiro que havia se quebrado durante uma tempestade. Flexionou o galho em suas mãos, dobrando-o ao meio, testando sua resistência, pensando no que Cyrus lhe dissera. E quando o galho se quebrou, ela não se surpreendeu.

Will NÃO CONSEGUIA ESCAPAR DE Alex Rivers. Seu nome estava em todos os jornais, revistas, espalhado na área de revistas do supermercado. Já tinha visto seu rosto tantas vezes que apostava que conhecia os traços dele melhor do que Cassie. Já estava até começando a sentir pena do homem. Por causa de uma declaração feita pelo pai de Cassie, os rumores começaram a se espalhar. Cassie havia se tornado um grande caso de mistério e Alex sofria as consequências.

A matéria que estava lendo explicava que as empresas japonesas que estavam patrocinando o filme Macbeth haviam saído do negócio, deixando Alex como o único credor para o fracasso de quarenta milhões. Supostamente, seu apartamento de Malibu estava à venda. Os outros dois acordos que ele havia firmado para fazer outros filmes haviam sido desfeitos; seu silêncio a respeito do desaparecimento de Cassie estava sendo prejudicial, atribuído à sua culpa ou à doentia obsessão com sua carreira, que o cegava para todas as outras coisas. Havia até a fofoca de que o motivo pelo qual Alex Rivers, vencedor de vários Oscars, não tinha mais nada na cabeça se devia ao fato de ele beber demais e não conseguir encontrar um bom roteiro.

Will dobrou a revista pela metade e a colocou atrás do visor no carro da polícia.

- Quanto tempo falta? - ele perguntou, virando-se para Ramón, ainda seu parceiro.

Ramón enfiou o resto de seu sanduíche de ovo frito na boca e verificou seu relógio.

- Dez minutos - ele disse. - E estará na hora do show.

Naquela noite, ele havia sido mandado para um baile beneficente. Estava sendo realizado por uma organização cujo nome ele havia esquecido, e patrocinava uma causa muito válida: um rancho para crianças com deficiência no sul da Califórnia. Apesar disso, Will não acreditava que tinha de ganhar a vida daquele jeito.

O destaque da noite envolvia sete senhoras conhecidas da sociedade trajando vestidos cheios de contas e arranjos de cabeça de um metro e meio criados por diversos floristas do desfile do Concurso de Rosas. As mulheres desciam por uma passarela, sorriam, apesar das hastes de aço que o pescoço delas suportava e, supostamente, conseguiam muito dinheiro.

Will e Ramón estavam ali para manter a ordem.

O mais chocante era o fato de a presença deles ser necessária. Três horas antes de a confusão ter começado, um rapaz bem magro, com um crachá onde se lia Maurice, havia acusado outro florista de roubar suas aves-do-paraíso. Will teve de tirá-lo das costas do ladrão, depois de ele já ter destruído a armação de lírios.

- Vamos lá - Ramón disse, saindo do carro.

Will colocou seu boné bem abaixado diante dos olhos e caminhou em direção ao Beverly Wilshire Hotel. Disse a si mesmo que aquele não era apenas um trabalho como segurança. Pensou que logo se tornaria um detetive.

Ramón pegou uma das entradas e Will, a outra. As luzes foram diminuídas, a música tocou mais alto e então a primeira modelo surgiu.

Seu arranjo de cabeça era feito com cravos e trazia o ano 1993. Dava para ver como ela tinha dificuldade para caminhar. Atrás dela, em uma enorme tela, estavam os sorrisos banguelas de crianças carecas sobre cavalos; adolescentes com aparência doente.

Uma mulher, a mestre de cerimónias, surgiu atrás de Will, entregando a ele uma sacola repleta de pequenos pacotes embrulhados. - Aqui está sua sacola de produtos - ela disse. Ela sorriu para o palco. - Sempre espero que no ano seguinte serei escolhida. Como manequim, sabe? Uma segunda modelo apareceu na passarela. Ela estava cantando Hoorayfor Hollywood, e as violetas saindo de seus cabelos formavam uma câmera Panavision, com um rolo de filme de hera caindo por seus ombros.

Will pensou em Cassie. Tentou imaginar se ela já tinha ido a eventos daquele tipo com Alex; se já se sentira tão deslocada quanto ele. Silenciosamente, ao som da música, ele desembrulhou três dos pequenos presentes. Um vidro de perfume famoso, um par de óculos de sol estilo aviador e óleo de massagem comestível.

Do outro lado, Ramón aplaudia sem parar. Will olhou para os rostos dos que trajavam vestidos de cetim e ternos. Todas aquelas pessoas haviam sido moldadas, esculpidas, entalhadas, arrumadas, decoradas e coloridas. Eram belas e impecáveis embalagens; faziam um esforço descomunal para parecerem naturais.

Eram como todas as pessoas em Los Angeles.

Naquele rápido momento de clareza que acontece uma ou duas vezes na vida de uma pessoa, Will compreendeu que não devia estar ali. Lembrou-se de seus dias na polícia da tribo, onde havia prendido maridos agressivos e confiscado cerveja de adolescentes, pensando que a vida podia ser mais do que aquilo. E talvez fosse. Mas ali onde estava as coisas não eram muito diferentes do que em Dakota do Sul.

Estava tão ocupado observando a plateia que não soube o que o havia atingido. Mas a quarta modelo havia prendido seu salto em uma brecha na passarela e sem querer mexera a cabeça, soltando os grampos e a cola que prendiam uma fonte de flores a seu couro cabeludo. Will ficou enterrado sob um monte de rosas, lírios, papoulas e jasmins-de-madagascar. Ele escorregou nas pétalas e caiu de costas no chão.

Um grupo de médicos que trabalhavam no sul da Califórnia correram de suas mesas para saber se ele estava bem, mas não antes da modelo, que caiu da passarela sobre ele. Ficou esparramada sobre seu corpo, uma grande dama de cinquenta e poucos anos com lágrimas de fracasso nos olhos e um vestido curto demais.

- A senhora está bem? - Will perguntou com educação.

A mulher fungou delicadamente e então pareceu notá-lo. Ela sorriu sedutoramente, esticando a pele de seu rosto já repuxado.

- Oi, olá - ela disse, esfregando de propósito sua coxa entre as pernas dele.

E foi então que Will soube que estava voltando para casa.

TRÊS - DOIS - UM - BRANCO. A PROJEÇÃO DO filme na sala de exibição de Alex chegou ao fim, deixando ali, olhando para o nada. Ele apertou um botão de seu controle remoto e suspirou quando a sala ficou escura. Melhor dessa maneira, mais fácil.

Ele pegou a garrafa de J&B que estava ao lado dele e a virou, apenas para perceber que estava vazia; tinha terminado de beber o líquido em algum momento durante o ato III de Macbeth, quando percebera que os críticos tinham razão: o filme era horrível. Eles não poderiam nem mesmo distribuir cópias do filme para professoras de inglês.

Ele havia terminado a produção várias semanas antes; aquela era a primeira versão completa do filme. E não podia culpar os problemas de edição ruim; sabia que deveria ter cortado suas perdas meses antes. Mas, em Hollywood, isso significava admitir o fracasso e nenhum produtor que tivesse o olho no futuro poderia arcar com esse estigma. Por isso ele havia continuado com as gravações, rezando para que ficasse melhor do que ficara cena a cena.

Parecia, naqueles dias, que ninguém estava escutando as preces de Alex.

Ele esfregou os olhos, que ardiam constantemente.

- Todo mundo tem seus momentos ruins - ele disse em voz alta, experimentando as palavras. Há muito já devia ter tido a sua fase ruim. Não havia como ter sucesso durante dez anos sem sofrer nenhum desastre.

É claro que nem todos sofriam perdas em suas vidas pessoais e na carreira ao mesmo tempo.

Ele fechou os olhos e descansou a cabeça no encosto da cadeira. Voltou a ter oito anos, sentado fora do Deveraux, esperando que seu pai terminasse seu jogo de baralho. O dia estava muito quente, mas não era novidade. Todas as janelas do Beau estavam abertas, e ele conseguiu escutar o tilintar das garrafas de cerveja sendo colocadas sobre as mesas de madeira. As palmas e as risadas da garçonete ruiva quando Beau a beliscava; o bater das garras de caranguejos quando as pessoas limpavam seus pratos. O ritmo alegre do zydeco que vinha dos alto-falantes do lado de dentro e entrava na cabeça de Alex.

Não te sobrou nada para poupar seu filhinho - Alex escutou -, e ele não vale nada.

Ele ficou em pé e subiu os galhos baixos da árvore que ficava mais perto do Deveraux, molhando os pés descalços no pântano e esticou-se em um galho comprido. Seu pai devia ter perdido de novo, talvez até usado mais do que apenas o dinheiro que ele havia recebido com a pesca do camarão.

- Veja só, Lucien - seu pai disse. - Eu sou bom pra isso.

Atrás de seu pai, ele viu Beau balançar a cabeça levemente a Lucien, mas o homem gordo e careca simplesmente cruzou os braços sobre o peito e riu.

- Vai perder de novo, cher - ele disse -, mas não diga que sou mau perdedor. - Ele tirou um rolo de notas do bolso de sua camisa e deu algumas para o pai de Alex. Mas, antes que Andrew Riveaux pudesse pegar o dinheiro, Lucien o tirou de seu alcance. - Espere um pouco - ele disse. - Acho que se vou te pagar, você tem que se exibir para mim.

Com o restaurante todo rindo, Andrew Riveaux ficou em pé e balançou o traseiro na mesa de baralho. Ele rebolou, fez biquinho e agiu como uma prostituta até Lucien ficar com pena e entregar a ele o dinheiro. O rosto de Alex estava pressionado contra a janela o tempo todo. Sentiu ânsia de vómito, mas, mesmo assim, não conseguiu desviar o olhar.

Alex abriu os olhos. Ficou em pé e afastou as cortinas, acendendo todas as luzes da sala de projeção. Em seguida, pegou o telefone sem fio e ligou para o serviço de auxílio à lista no Maine. Pediu uma ligação a Benjamin Barrett.

- Alô?

Alex engoliu em seco.

- Senhor Barrett?

- Sim?

- Meu nome é Alex Rivers. Marido de Cassie. Houve uma inspiração longa e então silêncio, que Alex decidiu usar a seu favor. - Fiquei sabendo sobre o que o senhor disse e eu queria... bem, pedir desculpas por ter usado o senhor como desculpa alguns meses atrás.

- Você não sabe onde sua esposa está, não é?

Uma raiva repentina tomou conta de Alex com aquela demonstração paternal, uma vez que, em três anos de casados, o homem nunca os visitara, nunca os convidara para irem ao Maine, nunca telefonara nem mesmo para dizer oi.

- Não - ele disse, mantendo a voz em um tom normal. - Mas estou tentando. - Esfregou a mão pelo rosto. - Não faz ideia do quanto estou tentando.

O QUE eu NÃO ENTENDO - CASSIE DISSE OLHANDO para a coluna de fofocas que Will havia levado a ela - é por que meu pai mentiria e admitiria que me viu. Isso faz sentido para Alex, porque as pessoas vão perguntar, mas meu pai não tem nada a perder.

Exceto você - Will disse. - Você não faz ideia de como as coisas ficaram feias; do que as pessoas estão acusando Alex. Conivência. Assassinato, Até mesmo você - uma revista disse que você tinha um príncipe europeu como amante e que teria fugido com ele para a selva da África ou alguma coisa assim.

Cassie riu, esfregando a mão sobre sua barriga.

- Claro, claro.

Will não disse a ela o que queria dizer, que ela era bonita, mesmo estando fora de forma por estar grávida do filho de Alex.

- Eu pensei que Alex poderia ter dado dinheiro a seu pai - Ele disse.

Ela balançou a cabeça no mesmo instante.

- Ele não faria isso. - seu rosto ficou iluminado. - Ele provavelmente pensou que eu ficaria sabendo o que os jornais estavam dizendo sobre mim e não ia querer que eu me magoasse. Deve ter dito isso a meu pai, que voltou atrás em tudo o que disse sobre mim. - ela sorriu. - Não acha?

Will não achava, mas não conseguia fazer Cassie compreender aquilo.

- O mais engraçado é que de todas as histórias a respeito de vocês em Hollywood nenhuma conta a verdade.

Cassie começou a desenterrar uma pedrinha no chão.

- Isso porque ninguém quer acreditar - ela disse.

Eles estavam sentados fora da tenda de suor, dentro da qual estava acontecendo um casamento sioux. Will estava de volta havia uma semana, depois de pedir demissão em Los Angeles. Disse a Cassie que não pretendia ficar em Pine Ridge, mas que também não voltaria para Los Angeles. Acreditava que esperaria até que o bebê nascesse e, quando ela fosse embora, ele iria também.

Às vezes ele se permitia pensar que ela iria com ele.

Ele havia chegado a tempo de ver seu velho amigo traído, Horace, se casar. Havia muito tempo se desculpado, mas ficou surpreso ao descobrir que Horace nunca havia deixado a reserva. Na verdade, a mulher com quem ele estava se casando era uma sioux genuína.

Horace conhecera Cassie na cidade, no supermercado, que ele agora gerenciava. Ela tinha ido comprar ração para Wheezer, e precisou de ajuda para levar o saco para a caminhonete, onde Wheezer pulava sem parar na caçamba.

- Conheço esse cachorro - Horace dissera, e foi assim que eles perceberam que ambos conheciam Will.

Horace e Glenda estavam sentados dentro da tenda de suor com Joseph Cabanas ao Sol, o curandeiro. Ninguém além do padrinho estava por perto - os convidados chegariam depois para a cerimónia civil -, mas Horace havia convidado Cassie e Will. Este recebera a solicitação de manter os carvões em chamas no monte para que as pedras estivessem prontas quando Joseph as passasse dentro da aba de lona.

- Acho que eles estão saindo - Cassie sussurrou. Estava tentando não admitir, mas estava encantada. Aquilo era o mais próximo que ela havia chegado de um ritual lakota. A antropóloga física dentro dela ria do interesse; a antropóloga cultural dentro dela que ela havia enterrado dentro de si dizia que devia fazer anotações; mas a mulher dentro dela tinha visto apenas duas pessoas muito apaixonadas que haviam entrado na tenda do suor para selar seu compromisso.

Will havia passado as quatro últimas pedras a Joseph vinte minutos antes; eles haviam observado o vapor subir das beiradas da lona costurada. A aba foi aberta, e Joseph ficou em pé, idoso, curvado e completamente nu. Ele sorriu para Will e desceu o caminho que levava a um pequeno riacho.

Glenda foi a próxima e, depois, Horace. Nenhum dos dois parecia se importar por não estarem vestindo nada além de colares com fitas de cores vivas, cada uma significando um aspecto diferente do casamento - o relacionamento deles um com o outro, com Deus, com o planeta, com os filhos, com a sociedade.

- Ei - Will chamou, sorrindo. - Não vai beijar a noiva?

Mas Horace apenas deu um tapa no traseiro de Glenda e correu atrás dela em direção ao riacho. Suas fitas brilhavam como arco-íris na água.

Ao lado de Will, Cassie fungou. Ele virou o rosto dela de modo a ficar de frente para ele.

- Está chorando? - ele perguntou.

Cassie deu de ombros.

- Não consigo me controlar. Tenho chorado por qualquer coisa. - Ela olhou para a entrada aberta da tenda do suor, ainda com o vapor. - Todo casamento deveria ser assim - ela disse. - O noivo, a noiva e mais ninguém. E não há nada para esconder. - Ela se esforçou para ficar de joelhos e depois em pé, apertando a mão na parte baixa das costas. - Eu gostaria de me casar assim - ela disse suavemente.

A distância, Glenda ria, sua voz misturada com a do novo marido. Will ficou em pé ao lado de Cassie e olhou para onde ela olhava, tentando ver o que ela via. - Certo - ele disse.

- Quando?

Cassie virou-se para ele e sorriu.

- Ah, não sei. Na próxima terça-feira.

Will não disse nada, nem mesmo quando Cassie pegou em sua mão e o puxou para se sentar na barranca do riacho.

- Tanyan yahíyélo - ela disse hesitante. - Estou feliz por você ter vindo.

E, apesar de não ter conseguido dizer, sabia que também estava.

NAQUELE DIA, FAZIA QUATRO MESES COMPLETOS que Cassie havia desaparecido, três meses e seis dias desde sua ligação. Alex sentou-se na varanda do lado de fora do quarto, bebendo mais um drinque, tentando não sentir pena de si mesmo.

Ele já tinha estabelecido uma rotina, que envolvia repensar todas as lembranças que tinha de Cassie para que ela se tornasse quase real: Cassie debruçada sobre um osso em seu laboratório; Cassie fazendo piada da dança em estilo Elvis de um produtor, ou da mania de uma atriz anoréxica de estalar os dedos; os cabelos de Cassie espalhados sobre seus ombros enquanto ele beijava seu corpo até a sua barriga; e, sim, aquela que ele se forçava lembrar, Cassie enrolada seus pés, sangrando e ferida, mas ainda assim tentando acalmá-lo.

Havia feito uma promessa. Faria qualquer coisa para tê-la de volta. Procuraria um psicólogo. Procuraria fazer terapia em grupo. Ele até abriria seu coração no programa Entertainment Tonight. Sua reputação não poderia ficar mais manchada do que já estava e, por pior que fosse o escândalo da revelação da verdade, ainda assim não se compararia com a dor que Cassie havia tolerado durante anos. Ele dizia isso a si mesmo todas as vezes em que levava seu copo aos lábios, mas, é claro, era um brinde vazio. A pessoa que mais precisava ouvir aquilo ainda estava longe.

Ele escutou uma batida na porta do quarto e resmungou. Não estava com paciência para nenhum de seus funcionários. Eles faziam perguntas pelas quais Alex não se interessava nem um pouco, como o que ele queria para jantar e se seu compromisso com o senhor Silver ainda estava marcado.

- Vá embora - ele gritou. - estou trabalhando.

- Até parece - disse uma voz de mulher seguida por passos de sapatos de salto alto. Alex recostou a cabeça no encosto da cadeira e fechou os olhos, desejando que não tivesse reconhecido a voz. - Na verdade, tenho trabalhado mais do que você.

Ophelia ficou parada na frente dele, vestida com um terninho bege de linho e um chapéu de abas largas mais adequado para Ascot do que para Los Angeles. Ela se curvou e tirou o copo da mão de Alex e passou os dedos na barba por fazer de seu queixo.

- você está péssimo, Alex. Apesar de imaginar que você não tem recebido muitas visitas.

- Ophelia - ele suspirou. - O que diabos você quer comigo? Ophelia abaixou-se na frente de Alex para que pudessem se olhar no mesmo nível. Eles se entreolharam e nenhum dos dois desviou o olhar.

- Digamos que é de meu interesse saber como andam as coisas - ela disse. - Já faz quatro meses e Cassie ainda não entrou em contato comigo nem com você...

Antes que conseguisse lembrar de interpretar, Alex virou o rosto.

- Caramba! - Ophelia disse, boquiaberta. - Você recebeu notícias dela.

Alex balançou a cabeça e começou a cobrir seu erro com palavras.

- Alex - Ophelia interrompeu -, dá um tempo. - Ela ficou em pé e bateu as mãos com luvas brancas na coxa. - Eu vim aqui para reunir forças, mas você já encontrou Cassie. - Ela olhou para ele. - Então por que não está com ela?

- Ela não me disse onde estava - Alex admitiu. - Apenas que estava bem. E que vai voltar a ligar quando quiser voltar para casa.

- E você tem tentado localizá-la desde então? - ela inclinou a cabeça. - Claro que sim. Se você não estivesse preocupado com ela, poderia ter percebido que sua carreira toda está fadada ao fracasso. - Ela riu: um som claro e alto. - Ela telefonou para você. Certo. Talvez eu não estivesse dando crédito a quem deveria dar. Posso não gostar muito de você, mas Cassie parece gostar. Apesar de tudo. Por isso, posso acreditar que você também se importa com ela.

Alex baixou o olhar.

- Jesus Cristo - ele murmurou. - Diga logo o que quer.

Ophelia agachou-se ao lado de Alex e tirou o copo da mão dele.

- O que eu quero dizer é que você não merece Cassie, mas aparentemente ela não foi embora para sempre. E ela certamente não merece ver você assim quando voltar pela porta da frente. - Ela esvaziou o copo na ampla varanda e puxou Alex, arrastando-o para o quarto, diante do espelho que ficava acima de sua cômoda. Ela ficou atrás dele enquanto ele observava seus olhos vermelhos e pele amarelada e sentia os odores amargos do uísque e da autopiedade que tomavam suas roupas. - Alex - Ophelia disse, endireitando seus ombros e forçando-o a ficar em pé ereto. - Hoje é seu dia de sorte.

Will sentou-se em um canto escuro da tenda de Joseph Cabanas ao Sol, tentando imaginar onde um curandeiro de oitenta e sete anos poderia estar tão tarde da noite. Ele estava ali havia mais de uma hora; não sabia exatamente por que, mas queria conversar com o velho e sabia que tinha de ser logo.

Havia belos artefatos de contas pendurados na parede e uma peça comprida de pele de veado com um mural sobre o assassinato de um tal de Chippewa por um grupo sioux de caça. Havia montes de tabaco seco enrolado e sálvia nas dobradiças da porta. Um chalé de estrelas, que Joseph usava para as cerimónias de cura, estava jogado sobre uma cadeira de balanço Adirondack.

Era nela que Will estava sentado naquele momento, segurando a Grande Flauta Torcida que Joseph havia entalhado antes de Will nascer. Era um tubo retorcido de cedro, longo e grosso, pintado com a imagem de um cavalo. Tinha o poder de dar a um homem jovem poder sobre uma mulher jovem, e Will lembrou-se de Joseph contar a ele a história de como seduziu sua esposa. - Eu sonhei com a música - Joseph dissera - que vinha da alma dela. E, quando ela a escutou, deixou a tenda de seus pais e seguiu a melodia até perceber que estava apenas me seguindo.

Will passou os dedos pelos furos da flauta, pelo bocal e o levou à boca e assoprou uma vez, fazendo um som que lembrava o choro de um bezerro desmamado. Então, balançou-se, para a frente e para trás, batendo a flauta contra seu pulso, observando a lua escorregar pelas aberturas da porta da frente de Joseph.

Lembrou-se de um sonho que começava com trovão. Estava no meio de uma tempestade, a chuva batendo em seus ombros e costas nus, e gritava para que a corça se movesse. Ele sabia que o raio estava vindo, que atingiria o local onde ela estava, mas o animal estava parado, como se não tivesse notado a chuva. Ela era a criatura mais impressionante que Will já vira, com costas curvadas e correntes de dentes-de-leão ao redor de seus tornozelos. Uma estrada se abriu diante dele; ele viu que poderia caminhar para onde a corça estava ou ir para a direita, onde não chovia. Seria mais fácil virar-se e sair, e ele não queria ser levado pela chuva.

Começou a ir na direção da corça. Gritou, empurrou a criatura com os punhos e finalmente ela foi para o outro lado, ao sol. Will tentou seguir, mas naquele momento o raio que ele sabia que estava vindo caiu em suas costas, queimando-o e quebrando seus ossos. Ele caiu ao chão, surpreso de que pudesse haver tamanha dor no mundo, e sabia que a havia salvado.

Parou de chover, e ele levantou a cabeça - a única parte do corpo que ainda conseguia mexer - e encontrou a corça perto dele, cheirando a palma de sua mão. Então, a corça foi embora e Cassie estava ali, tocando-o, curando-o; e salva, por causa dele.

Will olhou para cima quando a porta se abriu. Joseph Cabanas ao Sol tirou o casaco e se sentou na beira de um banco de piquenique. Esperou que Will dissesse alguma coisa.

Will balançou a cabeça para apagar os pensamentos. Aquilo significaria voltar para Pine Ridge - não apenas fisicamente, mas em sua ton, sua alma. Então, mais uma vez, ele percebeu que não havia se encaixado melhor na Califórnia do que entre os sioux; talvez fosse seu destino ficar entre dois mundos pelo resto da vida, até que encontrasse algum oásis híbrido, como a casa que seus pais haviam criado.

Ele entregou a Joseph sua Grande Flauta Torcida. Havia apenas uma melodia que Cassie escutaria, porque ela a tocara milhares de vezes. Com os olhos brilhando, Will se inclinou na direção do curandeiro e perguntou como ele poderia tirar a dor dela.

 

Marjorie Dois Punhos desviou os olhos de um par de mocassins infantis que ela estava adornando e viu Cassie cometer outro erro.

- Hiyá - ela disse, apontando. - Se não se concentrar, terá de jogar tudo fora.

Cassie empurrou a agulha pelo couro macio, sabendo que não tinha facilidade com aquilo que aquelas mulheres idosas faziam com tanta habilidade, apesar da perda de visão e da artrite.

- Sinto muito - ela disse.

Rosalynn Estrela Branca olhou por cima de seus óculos.

- Ela sempre sente muito - ela disse.

Ao ouvir isso, Dorothea levantou a cabeça.

- Melhor sentir muito do que ser estúpida - ela disse diretamente a Rosalynn. - Ela tem outras coisas nas quais pensar.

Cassie escutou o que Dorothea dissera, mas não prestou muita atenção. Era o final da Lua do Amadurecimento da Cereja, o mês que ela chamava de julho, e seu bebê nasceria em questão de semanas. Estava pesada demais para andar, apesar de o peso do corpo não ser comparado ao peso da mente. A cada chute e movimento estranho dentro dela, Cassie se lembrava de Alex, de que ele ainda não sabia.

Ainda sentia saudades dele. Em seus sonhos, imaginava Alex perdoando-a, puxando-a para mais perto dele. Via o rosto dele na fila de depósito do banco em Rapid City; em um ponto de luz acima das Black Hills; refletido em uma poça de chuva. Tentava pensar nas coisas que ele diria quando ela mostrasse a ele seu filho ou sua filha, mas isso significava imaginar-se de volta a Los Angeles, longe das planícies, e isso ela não conseguia imaginar de forma alguma.

As coisas estavam mais confortáveis em casa. Não podia negar que ainda amava Alex e sempre amaria, mas tampouco podia esquecer que nos cinco meses passados em Pine Ridge tinha sido livre. Não passara suas tardes pensando no temperamento de Alex e agindo de acordo com seu humor. Não acordara no meio da noite, mais uma vez assustada por ter feito algo errado. Não fora agredida, ferida, marcada.

Certa vez, na cidade de Pine Ridge, ela havia visto um adolescente chutar um cachorro de rua que havia corrido com seu maço de cigarros depois de tirá-lo do bolso de trás de sua calça. O cachorro era velho e meio cego, provavelmente tinha sarna, mas Cassie havia corrido para se colocar entre o garoto e o vira-lata. Algumas pessoas da rua haviam rido, apontando para a moça grávida curvada sobre um cachorro sem raça, com a barriga perto do chão, sua voz repreendendo o garoto que havia causado a agressão.

- Witkowan - eles a haviam chamado. Mulher louca.

Mas para Cassie tinha sido instinto. Ela havia recriado a reserva como um tipo de espaço neutro, onde a segurança estava garantida. Ela não estava disposta a deixar sua imagem ser ameaçada.

Naqueles dias, Will nunca estava por perto - Cassie sentia que o Via ainda menos agora que ele havia se mudado temporariamente para Pine Ridge. Ele passava muito tempo com Joseph Cabanas ao Sol e não dizia nada a Cassie, exceto que ele estava finalmente aprendendo sobre o povo.

Cyrus, Dorothea e todos os outros estavam ocupados se preparando para o wacipi, uma grande cerimónia indígena no início do mês de agosto. Com alguns dos outros idosos, Cyrus saiu para procurar pelo choupo ramificado que seria usado como vara durante a Dança do Sol. Dorothea passava todo o seu tempo livre enlatando amoras silvestres em conserva e tónicos feitos com raízes, que ela planejava trocar na festividade pelas belas mantas e tapetes que outros faziam. Quando havia terminado de guardar suas mercadorias em uma grande caixa, disse a Cassie que estava indo para a cabana de Marjorie Dois Punhos para fazer bordados e pediu a Cassie que a acompanhasse para poder esquecer seus problemas.

Assim, Cassie reuniu-se pela terceira tarde seguida com um grupo de senhoras, sentindo-se cada vez mais deslocada sempre que estragava os bordados com contas sobre pulseiras, casacos e mocassins. Dorothea deixou de lado o saco que ela estava bordando e pegou a barra da manta de Rosalynn.

- Isso será um bom produto para troca - ela disse. - É a melhor parte do final de semana.

- Oh, eu não sei - Marjorie disse. - Apesar de estar velha demais para dançar, gosto de ver os jovens com suas fantasias. Gosto de escutar os tambores. Tão altos.

Dorothea riu.

- Talvez se Cassie ficar bem próxima de onde a música estiver sendo tocada, seu bebê venha antes.

Era a última coisa que Cassie queria que acontecesse. Não sabia nada sobre crianças; não pensara na realidade, como troca de fraldas, arrotos e aleitamento. Estava pensando no bebê mais como um meio para um fim, mas havia alguma coisa a respeito desse fim - a finalidade dele - que ela não queria ver.

A porta se abriu e, ali, moldado pela luz clara da chuva de verão, estava Will. Sem perceber o que estava fazendo, Cassie ficou em pé, deixando o mocassim que estava bordando cair ao chão, o que fez as contas se espalharem e entrarem entre as tábuas lisas de pinheiros.

- Oh! - Ela disse, abaixando-se como pôde para pegar o que havia caído.

- Já sei, já sei - Marjorie murmurou. - Você sente muito.

- Boa tarde, meninas - Will disse, sorrindo. - Como está indo? Dorothea deu de ombros.

- Vai acabar quando estiver pronto - ela disse.

Will sorriu: aquilo resumia sua filosofia de vida. Ele olhou para Cassie. - Pensei que você quisesse dar uma volta.

Marjorie ficou em pé e pegou as contas da mão de Cassie.

- Ótima ideia - ela disse. - Leve-a antes que ela destrua mais alguma coisa.

Dorothea olhou do neto para Cassie e de volta para o neto.

- Ela está temperamental - Dorothea avisou. - Talvez você possa ajudá-la a melhorar.

Era exatamente isso que Will planejara fazer. Imaginou que Cassie fosse ficar cada vez mais feliz por aqueles dias, sabendo que logo ficaria cerca de quinze quilos mais leve, mas ela parecia cada vez mais introspectiva. Quase como se, Will admitiu, ela já estivesse se separando deles.

Ele tinha uma chance, e estava chegando. No dia da grande cerimónia indígena, ele faria com que ela compreendesse. Mas enquanto isso não seria ruim fazê-la sorrir.

- O que me diz - ele insistiu.

Cassie apoiou o peso do corpo no outro pé. Há dias queria ver Will; estava inquieta; deveria estar pulando de alegria pela chance de se afastar daquele grupo maluco. - Qual era seu problema?

- Vamos nos molhar - ela disse. - Não podemos sair.

Os olhos de Will começaram a brilhar.

- Tudo bem - ele disse. - Vamos fazer outra coisa. - De repente, ele estava em pé no círculo de mulheres, tentando, desajeitadamente, abraçar Cassie. Ele começou a cantarolar e a girar Cassie em uma dança fora de ritmo de dois passos, pisando em mocassins e kits de costura com suas botas de caubói. Rosalynn, encantada, começou a cantar de maneira doce.

Cassie corou. Sem nenhum equilíbrio, ela se viu segurando-se aos ombros de Will para se apoiar. Mal viu Marjorie ficar em pé, sorrindo, para tirar sua cadeira do caminho quando Will a direcionou para a porta aberta.

Dorothea, Marjorie e Rosalynn ficaram reunidas na janela, observando o casal e batendo palmas, lembrando do passado, quando namoravam sob um cobertor ou quando chacoalhavam seus pacotes do futuro para tentar vê-los por dentro; talvez até já tivessem dançado na chuva. Cassie escutou o riso das mulheres idosas, um tipo totalmente distinto de música, que pareciam tão jovens quanto as gargalhadas de garotas.

Ela olhou nos olhos de Will enquanto eles passavam pela porta, indo para a tempestade. Pisando nas poças, ela pisava nos pés dele, sentia o bebê mexer em seu ventre, sentia a chuva fria secar em seu rosto. A chuva levava tudo embora. Por um momento adorável e molhado, Cassie de fato acreditou que tudo poderia continuar daquela maneira.

ENTRE A CASA DE MARJORIE DOIS PUNHOS e a sua, Dorothea sentou-se para pensar nas maneiras como a história se repetia. Não era que ela estava cansada, ou que a bolsa com seus bordados havia, de repente, ficado pesada demais. Era que, sem esperar, o espírito de Anne, sua falecida nora, passou a caminhar ao lado dela e sua respiração no pescoço de Dorothea a impedia de seguir adiante.

Zachary, o único filho de Dorothea, havia se apaixonado pela professora branca 36 anos antes, e apesar de nunca ter tido a intenção de magoar seu filho, Dorothea fizera tudo que estava a seu alcance para desfazer aquela atração. Deixara as raízes e folhas secas certas sob o colchão de Zachary; orara a seus espíritos; chegara até a consultar Joseph Cabanas ao Sol. Mas o relacionamento tinha de acontecer. Na verdade, no dia em que Anne deixara Pine Ridge para se distanciar de Zachary, no dia em que Zachary selara um cavalo e percorrera quilómetros atrás dela, Dorothea estava a apenas alguns metros, observando tudo e balançando a cabeça de maneira negativa.

Dorothea nunca teria admitido naquela época, mas Anne se tornou sua obsessão. Quando ficou claro que seu filho se casaria com ela independentemente do que ocorresse, Dorothea lhe dissera para não contar com sua presença no casamento. Mas fizera questão de observar com mais atenção a mulher que seria sua filha. Ficava do lado de fora da sala onde Anne lecionava para poder se familiarizar com sua voz e sua maneira de falar. Ela seguia a futura nora no mercado e observava os itens que ela comprava: talco, balas de gengibre, sombra azul. Ela ia aos órgãos governamentais e memorizava seus títulos, seu tipo sanguíneo, seu número de identidade.

Três dias antes do casamento, Anne adormecera sob um choupo do lado de fora da casa de Dorothea, enquanto esperava por Zachary. Dorothea se ajoelhou ao lado dela e tocou sua pele incrivelmente clara. Encantada, ficou ali por quase dez minutos, memorizando o mapa de veias claras que atravessavam o pescoço branco de Anne.

- O que está fazendo aqui? - Anne perguntou em inglês quando acordou.

- Posso fazer a mesma pergunta a você - Dorothea disse, falando lakota.

Anne esforçou-se para sentar, ciente de que a resposta "Esperando por Zack" não bastaria para a sogra.

- Eu o amo tanto quanto você - Anne respondeu.

- Esse poderia ser o problema - Dorothea rebateu.

Ela ficou em pé, pronta para voltar para a casa quando Anne disse em lakota:

- Gostaria que a senhora fosse ao casamento.

Dorothea, no mesmo instante, usou o inglês para dizer:

- Não colocaria meus pés em uma igreja de brancos.

- Mesmo assim - Anne disse casualmente:

- Vou vê-la lá. Dorothea se virou para perguntar:

- E como sabe disso?

- Porque nada a manteria afastada - Anne respondeu, sorrindo.

No dia do casamento, Cyrus havia implorado a Dorothea que reconsiderasse, mesmo que fosse apenas por Zach, mas ela continuou vestida com suas roupas de ficar em casa, sentada na velha poltrona. Assim que ele saiu, no entanto, ela se vestiu e caminhou para a estrada mais próxima, conseguindo uma carona para a cidade. Chegou à igreja e, como dissera, manteve-se do lado de fora, espiando por uma fresta nas paredes malfeitas de madeira. O ministro fazia a bênção final, depois que o estrago estava feito. Murmurando a si mesma, Dorothea observou a mão morena de Zachary apertar delicadamente a de sua nova esposa.

Quando Dorothea olhou para cima, Anne não estava olhando para o marido nem mesmo prestando atenção ao ministro. Estava meio virada para os fundos da igreja, olhando diretamente pela fresta na parede, para a sogra. Piscou.

Dorothea deu um passo para trás na rua de terra e então riu. Era a primeira de muitas vezes em que sua nora excedera suas expectativas. A primeira de muitas vezes em que Dorothea havia admitido a si mesma que gostava de Anne, que a respeitava muito e - agora que ela estava morta - quanto sentia sua falta.

- Você sabe que, depois do acidente, Zach desistiu por sua causa - Dorothea disse em voz alta. - Ele não saberia viver sem você. - Ela sabia que as coisas seriam da mesma forma entre ela e Cyrus: assim que um deles entrasse no mundo espiritual, o outro morreria logo para que eles pudessem ficar juntos de novo. Dorothea levara anos para compreender, mas agora estava convicta: o amor era daquela forma. Não havia como separá-lo em preto e branco. Sempre voltava para o tom estranho e misturado de cinza.

CASSIE SENTOU-SE ao LADO DE Cyrus EM uma cadeira de praia dobrável na sombra, esperando pelo início da Dança do Sol. As quatro bandeiras no topo da vara sagrada balançavam ao vento: branca, amarela, vermelha e preta, como as quatro raças do homem. Uma águia sobrevoou tranquilamente a área, o que deixou os observadores animados.

- Bom presságio - Cyrus disse a Cassie.

Era o último dia da celebração indígena e Cassie estava encantada. Havia caminhado com Dorothea entre as pesadas mesas de negociação, escolhendo uma pulseira larga para si e um cobertor para seu bebê. Havia olhado dentro das barracas de lona montadas pelas famílias que viviam longe, surpresa pela justaposição de cocares de penas de águia e calças jeans Levfs, colocados lado a lado em cabides.

Aquele era o último dia da Dança do Sol, a dança mais sagrada das festividades, a única que exigia meses de preparação e treinamento dos participantes. Cyrus não havia lhe contado muito sobre aquilo, apenas que era uma cerimónia em louvor ao sol, um ritual para o crescimento e para a renovação. Durante os últimos três dias, Will havia sido um dos dançarinos, para surpresa e alegria de Cassie. Ela gostava de vê-lo vestido como os outros e girando ao redor da vara como seus ancestrais vinham fazendo havia anos.

- Não sei o que fez você fazer isso - ela disse a ele depois do primeiro dia de danças -, mas você é um ótimo índio quando quer. - E Will sorrira para ela, quase orgulhoso por se ver pelos olhos dela.

Cassie inclinou-se para a frente quando os homens preencheram o acampamento sagrado, liderados por Joseph Cabanas ao Sol. Assim como ele, todos vestiam longos kilts vermelhos compridos, os peitos pintados com tinta azul. Usavam coroas de sálvia na cabeça e carregavam apitos de ossos de águia. Cassie tentou chamar a atenção de Will quando ele passou por ela, para desejar-lhe sorte, mas ele manteve o rosto voltado para o céu.

Joseph Cabanas ao Sol caminhou até Will, esperando sob o galho ramificado de choupo. Ele murmurou alguma coisa em lakota e então ergueu um florete prateado. Por um momento, ele o manteve levantado e Cassie viu o sol refletir sua ponta polida e pontiaguda. Joseph inclinou-se mais perto de Will, cujas costas ficaram tensas. Apenas quando Joseph mostrou um segundo florete Cassie percebeu que o curandeiro havia rasgado a pele do peito de Will, e o sangue estava escorrendo por sua barriga.

Assim como os outros dançarinos, os dois floretes de Will estavam amarrados a pedaços de couro cru, que ficavam soltos do topo da vara sagrada. Com Joseph liderando todos eles, os homens começaram a dançar, de maneira muito parecida com que haviam feito nos outros três dias. Os tambores tocavam, mas o coração de Cassie batia mais forte. Ela estava tensa, segurando-se nos braços da cadeira, lívida.

- O senhor sabia - ela sussurrou a Cyrus, apesar de não tirar os olhos de Will. - O senhor sabia e não me contou.

Will rodou e cantou. Seu peito estava tomado de sangue, uma vez que sempre que rodavam, abriram as feridas. Cassie olhava horrorizada ao ver a pele se esticar ao máximo.

Cassie segurou no braço de Cyrus.

- Por favor - ela implorou. - Ele está se ferindo. O senhor tem que fazer alguma coisa.

- Não posso fazer nada - Cyrus disse. - Ele tem que fazer isso sozinho.

Cassie deixou as lágrimas escorrerem de seu rosto e se arrependeu de ter incentivado Will a aceitar seu lado lakota. Aquilo era bárbaro. Pensou nele em seu uniforme da Polícia de Los Angeles, com o boné enterrado na testa. Lembrou dele no pronto-socorro com ela, no dia em que a encontrara, os braços cruzados de preocupação. Pensou nele dançando com ela no dia da chuva, de seu bebê chutando entre eles.

- Por que essa dança? - ela sussurrou, pensando nas outras cerimónias a que assistira; aquelas que não envolviam automutilação. Virou a cabeça, chocada ao ver as pessoas ao redor sorrindo, gostando de ver o sofrimento alheio.

- Ele não está sofrendo - Cyrus murmurou. - Não por ele. - Apontou para o dançarino ao lado de Will. - Louis está fazendo a Dança do Sol para que sua filha sobreviva, apesar de seus rins estarem morrendo. Arthur Casca, à direita, tem um irmão que continua desaparecido em ação no Vietnã. - Virou-se para olhar para Cassie. - Os dançarinos sentem a dor para que alguém próximo a eles não tenha de senti-la.

Quando a dança terminou, Joseph Cabanas ao Sol saiu do círculo. Os homens começaram a girar e a puxar, lutando para se libertarem. Cassie ficou em pé, impotente, e sentiu a mão de Dorothea em sua perna.

- Não faça nada - disse Dorothea.

"Sofrer para que alguém não precisasse sofrer. Sacrificar seu corpo para o bem-estar de outra pessoa." Cassie viu o florete abrir mais uma ferida na pele de Will, viu o sangue escorrer pelo peito dele.

Ele olhava para ela. Cassie olhou para os olhos dele. A imagem dele sumiu e ela imaginou o próprio corpo sangrando e caído aos pés de Alex, uma válvula de escape para a raiva que nada tinha de ver com ela. Will estava apenas fazendo por Cassie o que ela passara anos fazendo por Alex. Quando a pele do peito de Will soltou-se dos floretes, Cassie gritou. Correu e ajoelhou-se ao lado dele, apertando as feridas em seu peito com a sálvia de sua coroa e depois com a barra de sua camisa. Os olhos dele estavam fechados e sua respiração estava rápida e rasa.

- Continua doendo - ela sussurrou. - Mesmo quando você faz isso por alguém, não impede que suas costelas se rachem ou que seus pulsos inchem, nem que seus cortes sangrem.

Will abriu os olhos. Ele esticou o braço para secar as lágrimas do rosto de Cassie.

- Você fez isso por mim - ela disse. - Fez isso para que doesse menos quando eu fizesse isso por ele. Will assentiu.

Entre lágrimas, Cassie riu.

- Se eu não o conhecesse bem, Will Cavalo Alado, eu diria que você está agindo como um grande índio.

Will sorriu para ela de maneira fraca.

- Vai entender - ele disse. Cassie afastou o cabelo do rosto dele. Passou os dedos com delicadeza perto de suas feridas. Nem mesmo Alex, que havia lhe oferecido o mundo, lhe dera tanto quanto Will.

DUAS SEMANAS DEPOIS DA DANÇA DO SOL, Cassie entrou em trabalho de parto. Teria tido tempo de se internar na clínica da cidade, mas queria ter seu filho em um local mais familiar. E então, dez horas depois, deitada na cama onde Cyrus, Zachary e Will haviam nascido, ela estava gritando a plenos pulmões.

Dorothea manteve-se aos pés da cama, medindo o progresso de Cassie. Will estava ao lado de Cassie, sentindo ela apertar sua mão.

- Menos de uma hora agora - Dorothea disse com orgulho. - O bebê está coroado.

- Vou sair - Will disse, tentando se soltar, mas Cassie não o deixou partir. Ele se sentira pouco à vontade, mas Cassie havia implorado. Ele talvez continuasse se recusando a ficar se Cassie não tivesse sofrido uma contração naquele exato momento, uma dor que quase a partira ao meio nos braços dele.

- Por favor - Cassie disse ofegante. - Não me deixe passar por tudo isso sozinha. - Ela agarrou a camisa de Will.

Mas então ela não mais conseguiu falar, porque sua barriga endureceu e a pressão extremamente potente forçava seu caminho para a metade inferior de seu corpo. Não seria ridículo se tivesse fugido para salvar a vida do bebê, e ela mesma morresse no final? Respirou profundamente e recostou-se novamente nos travesseiros de novo. "Eu compreendo você"- ela disse silenciosamente ao bebê. "Eu sei como é difícil passar de um mundo a outro."

Lá vem ele - Dorothea disse. Cassie conseguia sentir a pressão fria das pontas dos dedos de Dorothea rompendo a carne ao redor da cabeça do bebé. Lutou, enterrou as unhas na mão de Will e fez força.

Dez minutos depois, Cassie sentiu algo comprido e úmido escorregar entre suas coxas. Dorothea ergueu uma criança chorando.

- Hoksíla lubál Um menino! - ela disse. - Grande e saudável, apesar de ser um pouco demais para o meu gosto.

Cassie riu, esticando as mãos, percebendo, em primeiro lugar, as lágrimas nos cantos de seus olhos. Ela segurou o bebê, tentando encontrar uma posição confortável, sem saber exatamente como. O bebê abriu a boca e gritou.

- O som é o mesmo que você faz - Will murmurou e Cassie lembrou-se de que ele estava ali. Ele acariciou a nuca dela, levemente, encantado e sem saber se ela permitiria o carinho.

- Como se sente? - Will perguntou.

Cassie olhou para ele, procurando a palavra certa:

- Cheia.

- Bem, mas você parece bem mais vazia.

Cassie balançou a cabeça. Como poderia explicar? Depois de toda a saudade de Alex, não estava mais sozinha. Aquela coisinha chorosa a completava também, de uma maneira diferente.

Um menino. Um filho. Filho de Alex. Cassie pensou em nomes, tentando encontrar um que combinasse melhor com o bebê em seus braços. Ele havia virado o rosto para o seio dela, como se já soubesse o que queria.

- Você é igual ao seu pai - ela disse, mas logo percebeu que não era verdade. O rosto da criança era uma réplica em miniatura do seu, exceto pelos olhos, que eram, certamente, como os de Alex. Claros, com um brilho prateado.

Não havia nada de Alex na boca, no formato dos dedos e pés, no comprimento do tronco. Era quase como se a falta de contato houvesse diminuído as marcas de Alex em seu filho.

O bebê se aconchegou ainda mais a Cassie, exigindo seu calor. E ela pensou sobre como era seu único apoio - para ser alimentado e protegido agora e, mais tarde, para receber amor. Ele a procuraria quando fizesse seu primeiro desenho com giz de cera, pintando metade da mesa da cozinha também. Mostraria o cotovelo machucado acreditando que um beijo acabava com a dor. Abriria os olhos todas as manhãs e saberia, com aquela alegre certeza infantil, que Cassie estaria ali.

Ele precisava dela, e isso, Cassie percebeu, era a maneira pela qual ele mais se parecia com Alex.

Mas, dessa vez, precisar não seria sinónimo de ferir. Aquela era a sua segunda chance na vida. Ela e o bebê cresceriam juntos.

Will tocou a mão do bebê e observou seus dedinhos se fecharem como uma rosa de verão.

- Como ele vai se chamar?

A resposta ocorreu a Cassie tão rapidamente que ela logo percebeu que sempre a carregara consigo. Pensou na primeira vez em que havia sido amada por alguém que nada queria em troca. Alguém que lhe dera esperança suficiente para acreditar, anos depois, que Alex ainda podia mudar, que poderia existir alguém como Will, que um filho poderia vê-la como o seu mundo.

- Connor - ela disse. - O nome dele é Connor.

DUAS SEMANAS DEPOIS, CASSIE ESTAVA DE PÉ, alegre após carregar tanto peso extra por tanto tempo, não se acostumava com a leveza de seus passos. Mas também sabia que parte disso se dera graças à decisão que tomou horas depois do parto. Não tinha a intenção de ir embora, não imediatamente. Talvez depois de três meses, seis meses, talvez mais. Disse a si mesma que queria que Connor estivesse forte antes de fazer a viagem, e nenhum dos Cavalo Alado havia se contraposto à sua escolha. Na verdade, Cyrus havia lhe dado um cesto de bebê tradicional de presente e, quando passou pela sua cama, olhou em seus olhos e disse:

- Vai ser bom levá-lo ao evento indígena do ano que vem.

Ela ia entrar em contato com Alex como havia prometido; devia isso a ele, mas havia protelado por uma semana; depois, a caminhonete de Will havia quebrado e ela não teve como ir a Rapid City. Assim, livre de suas obrigações, sentou-se na porta da casa com Dorothea, debulhando ervilhas para o jantar.

Connor estava em seu cesto, protegido, acordado. Ele dormia a maior parte do dia, por isso Cassie ficou surpresa - ela acabara de amamentá-lo e ele continuava alerta, com os olhos claros observando a paisagem.

- Não quer dormir? - ela perguntou. Colocou uma ervilha na própria boca.

- Você - Dorothea a repreendeu. - Não teremos o suficiente para o jantar.

Cassie deixou sua tigela de lado e se esticou, deitando sobre as tábuas de pinheiros, olhando para o sol. Não conseguia olhar para ele sem pensar em Will, das cicatrizes rosadas que ainda podiam ser vistas em seu peito.

Connor começou a chorar, mas, antes que Cassie pudesse se sentar, Dorothea deu-lhe um tapinha na boca. Assustado, Connor arregalou os olhos e ficou em silêncio.

Dorothea tirou sua mão e olhou para Cassie, que a encarava, furiosa.

- Que diabos pensa que está fazendo? - Cassie disse.

Era estranho ficar tão irritada por outra pessoa, principalmente quando a maternidade era algo tão novo, como um vestido de festa bonito que se tira do guarda-roupa para provar, mas que não se sente à vontade para vesti-lo o dia inteiro.

- Ele estava chorando - Dorothea disse, como se aquilo explicasse tudo.

- Sim, estava - Cassie disse. - Os bebês choram.

- Não os bebês lakota - Dorothea respondeu. - Nós os ensinamos desde cedo.

Cassie pensou em todos os valores familiares arcaicos que encontrara na antropologia cultural, incluindo o princípio vitoriano de que as crianças devem ser vistas e não ouvidas. Ela balançou a cabeça.

Dorothea mostrou-se surpresa.

- Sei que isso costumava ser feito na época do búfalo, porque se um bebê assustasse um rebanho a tribo toda passaria fome. Não sei por que continuamos fazendo isso.

- Gostaria que não fizessem - Cassie disse, tensa. Mas estava pensando em todas as vezes em que havia ficado deitada ao lado de Alex no escuro, derramando lágrimas de dor. Ela se lembrava do som da mão dele ferindo-a e o ar que puxava para os pulmões, mas nunca do barulho do choro. Pensou na lição que havia aprendido em seu casamento: que, se você se mantivesse quieto e misturado ao pano de fundo, tinha menos chances de causar problemas.

Olhou para Connor, tranquilo, quieto. Um dia, a longo prazo, aquela seria uma habilidade de que ele poderia precisar.

A verdade daquele pensamento deixou Cassie arrasada.

CASSIE SENTOU-SE NO BANCO DO MOTORISTA do jipe de Abel Sabão, inclinada para a frente como se tivesse levado um murro no estômago. Ela havia pegado o veículo emprestado para ir ao mercado da cidade, que abrigava o telefone mais próximo. Ao conversar com Dorothea, ela percebeu que não mais podia postergar o inevitável. Telefonaria para Alex e contaria onde passara todo aquele tempo. Contaria a verdade e confiaria nele.

Pensando nisso, sentiu um pouco de insegurança. Não havia provas de que Alex havia mudado durante os últimos seis meses, nada que indicasse que ele não a atacaria - ou a Connor - durante um ataque de fúria. Ela havia deixado o marido para que seu bebê não sofresse antes de nascer. Como poderia pensar em levar o filho de volta agora?

Sua mente ficou confusa. Poderia deixar Connor com Dorothea e Cyrus e voltar sozinha para Alex, durante algum tempo, apenas até que visse que tudo havia mudado. Se fizesse isso logo, nos primeiros meses, talvez a criança nunca notasse a diferença. Mas não podia deixar seu filho. Não conseguiria se separar dele.

Ela saiu da caminhonete e caminhou para dentro da loja. Horace acenou enquanto ela passava pelos corredores cheios de mercadorias em direção ao telefone público. Durante vários minutos ela ficou parada, segurando o aparelho, como se ele tivesse o mesmo poder e impacto de uma arma carregada.

Quando escutou a voz de Alex do outro lado da linha, seu leite vazou. Cassie viu as manchas escuras se espalharem pela camiseta e desligou.

Alguns minutos depois, ela tentou de novo.

- Alô? - Alex disse, irritado.

- Sou eu - Cassie disse baixinho.

Ela escutou o barulho ao fundo - uma torneira sendo fechada ou talvez o rádio sendo desligado.

- Cassie. Deus. Foi você quem ligou agora há pouco? - A voz de Alex parecia chocada, alegre e aliviada, e ela percebeu outras emoções que não conseguiu decifrar.

- Não - ela disse. Dessa vez, não deixou que ele percebesse sua indecisão. - Você está bem?

- Cassie. - Alex disse. - Diga-me onde você está. - Fez-se um breve silêncio. - Por favor.

Ela passou o dedo pela fria cobra de metal que ligava o telefone ao aparelho.

- Preciso que me prometa algo, Alex.

- Cassie - ele disse em um tom de voz urgente. - Volte para casa. Não vai mais acontecer. Eu juro. Enviarei quem você quiser que a busque. Farei qualquer coisa.

- Essa não é a promessa de que preciso agora - Cassie disse, surpresa com os sacrifícios que ele parecia disposto a fazer a seu orgulho apenas para que ela retornasse. - Vou lhe dizer onde estou, porque não quero que se preocupe, mas quero ficar aqui mais um mês. Quero que jure para mim que não virá antes disso.

Ele tentou imaginar o que ela poderia estar fazendo que exigiria mais um mês: alguma atividade ilegal, um atraso em seu visto ou um adeus programado a um amante. Mas obrigou-se a escutar.

- Eu juro - ele disse, procurando por uma caneta. - Onde você está?

- Pine Ridge, Dakota do Sul - Cassie explicou. - Na reserva indígena.

- Na o quê? Cassie, como...

- É isso, Alex. Vou desligar agora. Voltarei a telefonar em um mês e veremos como e quando voltarei. Tudo bem?

"Não", ela conseguiu escutá-lo pensar. "Não está bem. Quero você aqui, agora, minha." Mas ele não disse nada e ela viu aquilo como um sinal de esperança. - Não vai quebrar sua promessa?

Ela o sentiu sorrir tristemente a tantos quilómetros distante.

- Chère - disse suavemente. - Dou minha palavra.

 

Cassie apertou-se contra o corpo quente e inquieto de Connor, colocando-o sobre a mesa de exames enquanto duas enfermeiras brancas esticavam os bracinhos dele para tirar sangue. Ela mantinha a cabeça abaixo da boca de Connor, que gritava sem parar, seu peito subindo e descendo em exageradas inspirações. Antes de começarem, as enfermeiras haviam perguntado se Cassie desejava sair da sala.

- Alguns pais não aguentam ver essas coisas - uma delas disse. - Mas Cassie apenas olhara para elas, incrédula. Mesmo que acabasse desmaiando em cima de seu filho, ficaria.

- Sou tudo que ele tem - ela disse, a melhor explicação que poderia dar.

Aquilo a estava matando. Não suportava ver seu pequeno ardendo em febre; não podia escutar os gritos que - mesmo depois de três semanas desde o nascimento dele - pareciam sair de dentro dela. Cassie observou as ampolas sendo enchidas com sangue, uma depois da outra.

- Está tirando demais - ela disse a ninguém. Não disse o que realmente estava pensando: "Tire o meu no lugar do dele".

O clínico-geral de Pine Ridge havia enviado os dois para o hospital em Rapid City.

- Pequeno demais, ele dissera. Alguma bactéria. Talvez pneumonia. As enfermeiras estavam pedindo ao laboratório que fosse realizado um hemograma completo. Em seguida, seriam tirados raios X. Eles manteriam Connor internado aquela noite, ou enquanto fosse preciso para baixar sua temperatura.

Cyrus, que a levara a Rapid City, estava esperando no piso inferior, na recepção, sem querer entrar ainda mais no hospital onde viu seu filho morrer. Por isso, quando o laboratório mandou resultados, Cassie se sentou em uma cadeira de metal, sozinha com Connor, com o bracinho furado pelo soro. Estava tomando antibiótico por via intravenal também. O médico havia dito que ele estava desidratado, e isso Cassie sabia ser verdade, uma vez que suas mamas estavam cheias e o leite já havia vazado em sua camisa. Connor havia adormecido exausto alguns minutos antes, e Cassie desejou que pudesse fazer a mesma coisa. Pensou em todas as vezes em que havia oferecido seu corpo a Alex para não vê-lo sofrer e balançou a cabeça negativamente ao pensar que, naquele momento, tiraria a dor do filho, se pudesse.

A porta da saleta se abriu e Cassie virou a cabeça com um olhar de cansaço e encontrou Will em pé sob o batente, os olhos arregalados e intensos, com a respiração ofegante.

- Meu avô telefonou - ele disse, - Eu vim assim que pude.

Ele viu Cassie, ereta, com os pés enrolados nas pernas da cadeira, abraçando Connor com força contra a barriga. Viu o soro na criança, a ponta da agulha que entrava na veia, a mancha de sangue no bracinho.

Cassie olhou para ele. Will tirou o chapéu e ajoelhou-se a seu lado, virando o rosto dela contra seu pescoço e escorregando os braços por baixo dela, num esforço de proteger Connor.

- Céye sni yo - ele disse. - Não chore. Está tudo bem. - Ele acariciou o cabelo dela e sentiu suas lágrimas encharcando a gola de sua camisa.

Os dedos de Cassie apertaram e soltaram sua camisa de cambraia. Will beijou o topo de sua cabeça, forçando-se a não lembrar do pai deitado ali, pálido e fraco em uma cama de hospital alguns andares abaixo. Ele passou os dedos nas dobras do pescoço de Connor, procurando sentir sua pulsação, e tentou agir como pensou que deveria em uma situação da qual nada sabia.

VOCÊ CONFIA EM MIM? - Will PERGUNTOU pela segunda vez.

Cassie olhou para ele do outro lado da proteção para isolamento do hospital, um tipo de bolha plástica que mantivera Cassie afastada de seu filho nos últimos dois dias. Apesar do Tylenol e do ibuprofeno, e dos banhos de esponja, a febre de Connor continuava muito alta. O médico chegou a dizer que não sabia o que fazer.

Cassie assentiu e observou o rosto de Will se abrir em um belo sorriso. Ele deu a volta, chegando ao lado de Cassie e ergueu as mãos sobre o plástico quente. Daquele ângulo, seus dedos bloquearam a visão de Cassie dos fios e tubos que invadiam o corpo de seu bebê. Ela olhou para Will como se ele já tivesse feito mágica.

- Faça o que tiver de ser feito - ela disse suavemente. - Qualquer coisa que acredite que vai ajudar.

O médico foi chamado e disse a Cassie que aquela não era uma boa ideia, mas ela simplesmente balançou a cabeça e foi um pouco para trás, procurando apoio, onde Will estava em pé. Ela observou as enfermeiras retirarem o soro de Connor. Quando ela segurou seu filho mais uma vez, ele abriu os olhos pela primeira vez em 48 horas.

Pelo menos leve isso - o médico disse, colocando na mão livre de Cassie um pequeno frasco de Tylenol para crianças. Ela assentiu, virou-se e saiu com Will do hospital que nada fizera pelo seu filho. Cuidadosamente entrou na caminhonete, tomando o cuidado de não perturbar a criança. E, assim que eles estavam na estrada, ela jogou o frasco do remédio pela janela.

NO MEIO DA NOITE, NA SALA DE ESTAR DOS CAVALO ALADO, eles aliviavam a febre do bebé com esponjas. Então, Cassie puxou sua camisola para o lado para que o bebé pudesse mamar. Will sentou-se diante dela, seus dedos acariciando a pele macia e quente das perninhas de Connor.

Eles colocaram o bebê no meio do sofá-cama quando ele caiu em um sono intranquilo e se sentaram, com as pernas encolhidas, cada um de um lado. Lá fora, soprou um vento frio e ouviu-se o barulho de um caminhão na escuridão.

- Está tudo pronto? - Cassie perguntou.

Will assentiu, passando a mão na nuca.

- Minha avó disse que está cuidando de tudo. - Começou a falar, mas hesitou e olhou para Cassie. - Não tenho o direito de lhe dizer o que fazer. Não sou o pai dele. Se não der certo, nunca vou me perdoar.

Estava tão concentrado em seus pensamentos que não notou Cassie saindo da cama, indo parar atrás dele. Sentiu que ela o tocava na nuca, incerta, passando os dedos por seus cabelos. E ficou tenso ao notar que Cassie tivera a iniciativa de tocá-lo.

Ele não se virou para olhar.

- O que está fazendo - ele disse, bravo por parecer irritado.

Quase imediatamente Cassie afastou sua mão e Will virou-se. Ela passou os braços ao redor do próprio corpo.

- Eu... eu precisava... - sua voz falhou e ela olhou para Will. - Só queria que alguém me abraçasse - ela disse. - Por favor.

O simples fato de Cassie ter pedido tal favor a ele quase fez com que Will caísse de joelhos, mas aquele "Por favor" no final da frase o deixou sem reação. Ficou em pé e a abraçou rapidamente, colocando-a contra seu quadril.

Depois de alguns minutos, Will deu um passo para trás, empurrando Cassie contra a beirada da cama. Ele deixou que ela se deitasse, de frente para o bebê, e então se deitou atrás dela. Deu suporte à sua cabeça com o braço e juntos eles observaram a respiração de Connor, irregular. Ele sussurrou palavras em lakota que sabia que Cassie não conseguiria entender, frases que ele pensou que havia esquecido muito tempo antes. Adormeceu dizendo waste cilake, "eu te amo" em sioux, e não escutou a última coisa que Cassie disse antes de adormecer. Ela estava olhando para Connor, para a ponta curvada de seu nariz e para a perfeição de suas unhazinhas e sentindo atrás de si o calor do corpo de Will, como uma rede de proteção. - Não - ela murmurara apesar do nó na garganta -, você não é o pai dele.

Joseph CABANAS ao SOL ESTAVA DEITADO no chão coberto por sálvia na sala de estar de Cyrus e Dorothea, enrolado em um cobertor de estrelas, fingindo estar morto. A mobília estava no quintal da frente, por isso havia muito espaço para os observadores até mesmo do lado de fora do quadrado sagrado delimitado por barbante. Eles se sentaram no chão, com as costas para as quatro paredes. Algumas das pessoas, Cassie conseguiu reconhecer como vizinhos; outras estavam ali simplesmente para oferecer apoio durante a cerimónia yuwipi, identificar e curar doenças.

Ao lado dela, Will apertou sua mão. Connor estava deitado em seu cesto e não havia melhorado desde que saíra do hospital de Rapid City. Já fazia quatro dias, quatro dias de febre forte e convulsões assustadoras e choros intermináveis. Quando Will dirigira para a casa de seus avós no final da noite passada, Dorothea o esperava na porta. Aproximou-se da caminhonete e esticou os braços para Connor, para que Cassie pudesse descer com facilidade. Ela estalou a língua e fez um gesto negativo com a cabeça.

- Pudera - ela disse. - Esse não é o tipo de doença que os remédios brancos conseguem curar.

O neto de Joseph, que às vezes cantava, estava entoando canções yuwipi e tocando o tambor cerimonial. Ficou diante do altar improvisado, sobre o qual estava o crânio de um búfalo, um bastão vermelho e preto, uma pena de águia e um rabo de veado. Não havia luz na sala, a menos que fossem consideradas as faixas de lua que entravam.

Cassie estava tonta e não sabia se era apenas por exaustão ou pelo cheiro da sálvia, que cobria o chão e era usada por todos os observadores em seus cabelos. Will, que fizera o melhor que podia para explicar a cerimónia a Cassie antes do começo, havia dito que a sálvia era a planta sagrada dos espíritos. Quaisquer mensagens que eles levassem a Joseph, o representante dos "mortos", seriam carregadas pela sálvia.

No vento inconstante da noite, sombras e sons preenchiam a sala de estar. Os barulhos eram altos e tensos, não humanos, urgentes.

- Os espíritos estão aqui - alguém disse, uma voz que Cassie nunca havia escutado, mas que poderia ter sido familiar, poderia até ser dela mesma. Assustou-se com o grito de uma águia e, apesar de ter semicerrado os olhos para ver melhor, não conseguia definir quem havia espalhado uma corrente de estrelas pelo teto. Manteve-se de braço dado a Will, com o outro braço envolvendo o cesto do bebê, como se temesse que alguma coisa o pudesse levar. Mas conseguiu escutar as risadinhas dele e, quando se virou, viu seu rosto claro e brilhante sendo acariciado por asas macias.

Quando a cerimónia terminou, as luzes foram acesas e Joseph Cabanas ao Sol estava se desenrolando de seu cobertor de estrelas. Ele afastou a sálvia da área de madeira, tomando o cuidado de dobrar o cobertor e reorganizar a coleção sobre o altar antes de partir em direção a Cassie. Mas, em vez de falar com ela, ele caminhou até o cesto de Connor e agachou-se diante dele. Apertou a mão contra a testa do bebê, em seguida pegou o pulso de Cassie e fez com que ela fizesse o mesmo.

Connor estava vermelho e suava, mas emitia sons suaves e felizes que acalmaram o coração de sua mãe. Sua febre havia desaparecido. Impressionada, Cassie virou-se para Joseph.

- Úyelo. - O pai dele está vindo. - Joseph disse simplesmente. - Assim como você, o corpo dele queimava de medo do desconhecido.

ATRÁS DA CORTINA FRANZIDA QUE SEPARAVA o quarto deles do restante da casa, Cyrus e Dorothea ainda estavam acordados. Eles estavam deitados de costas, olhando para o teto, com os dedos ossudos entrelaçados entre seus corpos.

- No que está pensando? - Dorothea sussurrou, tomando o cuidado para manter a voz baixa para não atrapalhar Cassie, Connor e Will, que dormiam na sala de estar. Ela passou os dedos sobre o braço de Cyrus, sentindo não a pele enrugada e flácida de idoso, mas o músculo forte de que ela se lembrava de sua juventude.

- Estou pensando na primeira vez em que a toquei - Cyrus disse. Dorothea corou e olhou para ele, surpresa, mas ele estava sorrindo.

Seu velho maluco - ela disse.

- Eu costumava passar as noites acordado pensando em maneiras de me livrar de sua avó - Cyrus disse. - Ela ia a todos os lugares onde você estava.

- Bem - Dorothea comentou. - Isso mantinha você afastado.

De repente, Cyrus riu. Dorothea rolou na direção dele, com o cabelo espalhando-se por seu peito e colocou a mão sobre a boca do marido.

- Quer acordá-los? - sussurrou, mas Cyrus continuou rindo.

- É que eu me lembro do que a idosa disse quando eu pedi seu conselho sobre como fazer você prestar atenção em mim. - Ele se apoiou em um cotovelo. - Ela me disse que o marido dela havia matado um búfalo em sua homenagem.

Não havia mais búfalos nos anos 1930 - Dorothea disse, sorrindo.

Cyrus sorriu.

- Sua mãe disse que aquele era um problema meu, não dela. - Ambos riram. - Pelo menos ela teve o bom senso de cochilar tempo suficiente para que pudesse dar um beijo em você - o velho disse. Ele se inclinou sobre Dorothea, tirando seu cabelo branco de sua testa, de forma parecida com que fizera da primeira vez. Aproximando-se, encostou seus lábios nos dela.

- Ela não estava dormindo - Dorothea murmurou contra a boca do marido. - Ela me contou no dia seguinte. Disse que estava cansada de ver você por perto o tempo todo, por isso pensou que seria melhor apressar as coisas.

Os olhos de Cyrus se arregalaram.

- Pensei que ela me detestasse.

Dorothea respondeu:

- Detestava também.

Ambos se deitaram de costas de novo, olhando para o teto e escutando o canto das corujas do lado de fora. A mão de Dorothea passeou por entre eles, procurando a do marido, e ela entrelaçou seus dedos nos dele. Pensou em Cassie deitada no sofá-cama, com o tempo passando diante dela como uma sentença de morte, enquanto esperava a chegada do marido. Pensou em como a vida da menina branca poderia ter sido se ela tivesse nascido cem anos antes, como a avó de Dorothea; se aquele Alex a tivera cortejado sob a proteção de um cobertor de pele de búfalo; se a agressão nunca tivesse ocorrido, porque ia contra a essência da tribo.

Cyrus apertou a mão dela, lendo sua mente.

- As coisas eram mais fáceis no passado.

Dorothea rolou em direção ao marido, escondendo o rosto contra os ossos de seu ombro para que ele não soubesse que ela estava prestes a chorar.

- Eram, sim - sussurrou.

DOROTHEA NÃO DISSE POR QUE NÃO FOI trabalhar no dia seguinte, mas Cassie sabia simplesmente pela maneira como ela ficou sentada em sua cadeira de balanço ao lado dela na varanda e esperou, sem se mexer, em uma silenciosa demonstração de apoio.

Ela também sabia que o momento havia chegado quando, logo depois do meio-dia, Dorothea disse, suavemente:

- uKoképe sni yo" - Não tema - e ficou em pé. O vento balançou sua saia ao redor dos tornozelos quando ela se posicionou ao lado da cadeira de Cassie, mas, quando o desconhecido Ford Bronco preto de Alex parou na frente da casa dos Cavalo Alado, ela já havia entrado.

Cassie sabia que ninguém sairia da casa e a perturbaria enquanto estivesse conversando com Alex. Nem Cyrus nem Dorothea, que acreditavam que isso era algo que ela tinha de fazer sozinha, nem Will, que estava sentado com Connor. Mas, por enquanto, era assim que Cassie preferia. As palmas de suas mãos estavam molhadas e ela as secou na parte da frente de seu vestido ao ficar em pé e caminhar na direção da cerca, tentando controlar-se.

Alex desligou o veículo e tirou os óculos de sol. Era Cassie. Era mesmo Cassie. Depois de meses de agonia, ele estava a três metros de sua esposa.

Ele saiu do carro e olhou para ela, que parecia ser melhor do que ele se lembrava. A imaginação que havia lhe servido tão bem como diretor começou a funcionar: ele imaginou o vento soprando os cabelos dela ao redor de seu rosto, com seus lábios se abrindo em um sorriso satisfeito, e seus pés se apressando pelos degraus de madeira abaixo. Imaginou sua pele macia contra as linhas do corpo dele; imaginou a si mesmo carregando-a para dentro da cabana e deitando-a nos lençóis mais brancos, penetrando-a.

- Alex - Cassie disse. Por ter sido avisada por Joseph Cabanas ao Sol a respeito da chegada de Alex, ela havia planejado a noite toda confrontá-lo. "Você mentiu", ela acusaria. "Você me deu a sua palavra." Mas fazia tanto tempo que eles não se viam que ela percebeu que sua raiva havia passado e olhou para ele da maneira que fazia assim que via o início de seus filmes - surpresa e tomada pela beleza dele, por sua imponência.

Ele parou diante da entrada, do outro lado da cerca onde ela estava, como se fosse o Romeu de sua Julieta. Então, ele esticou o braço, olhando para as suas mãos como se nunca tivesse visto nada parecido, e tocou sua pele com as pontas dos dedos.

Foi o contato físico, a entrada do ídolo na tela, que fez com que Cassie ficasse sobressaltada. Deu um pulo para trás como se tivesse levado um choque e deixou as lágrimas escorrerem por seu rosto. Pensou em Alex vestindo seu casaco e servindo vinho a ela na Tanzânia. Pensou nele usando uma fronha na cabeça para interpretar a senhora Macbeth em cima da mesa de canto. Pensou em Connor, prova viva de que a doce dor da união podia criar algo perfeito. E não se lembrou do motivo pelo qual deveria estar contrariada; ou por que, exatamente, ela havia ido embora.

E então Alex estava ao lado dela, abraçando-a. - Não chore - ele implorou.

- Por favor, Cassie, não chore.

- Não consigo controlar - ela disse, mas já com o rosto seco das lágrimas, pronta para fazer qualquer coisa para manter aquele tom lúgubre da voz dele.

Ele passava os dedos sobre o rosto dela, lembrando de seus traços. Em seguida sorriu e sentou-se no primeiro degrau da entrada, puxando-a para se sentar ao lado dele. Envolveu sua nuca e a beijou de maneira tão gentil que ela sentiu sua resistência se despedaçar como vidro; as mãos dele repousaram em pontos familiares, nas laterais de seus seios. A respiração dele era como uma canção antiga e lenta. Cassie descansou a testa contra a dele, reprimindo o medo que ela havia começado a associar com o mais leve toque dele, tranquilizando-se para pensar que as coisas seriam diferentes agora.

- Eu ainda tinha mais duas semanas - ela disse.

Alex apertou sua cintura.

- Foi mais difícil saber onde você estava e não poder vir do que não saber de nada. - Ele a beijou de novo. - Pensei que se viesse pessoalmente poderia argumentar.

- E se eu decidir continuar aqui? - ela perguntou.

Alex olhou para a planície.

- Então vou aprender a gostar de Dakota do Sul.

Cassie balançou a cabeça de maneira negativa. Não fazia sentido discutir algo que já estava feito; algo que ela sabia, bem no fundo, que havia desejado. Além disso, ela não podia exigir nada pela quebra de confiança, afinal, tinha Connor dentro da casa.

- E então? - Alex perguntou sorrindo. - O que fazemos agora?

Cassie sorriu de volta, aliviada, mais do que disposta a deixar as explicações para depois.

- Não sei. É você que lê todos os bons roteiros. O que acontece nos filmes?

Alex passou o solado da bota no degrau e olhou para baixo, mas não parou de esfregar o polegar sobre as costas da mão dela, como se quisesse lembrar que Cassie era de carne e osso.

- Geralmente, o herói e a heroína fogem juntos em direção ao pôr do sol.

Cassie mordeu o lábio inferior, como se estivesse pensando na possibilidade.

- Então ainda temos cerca de sete horas para ficar aqui na porta - ela disse.

Os olhos de Alex ficaram mais escuros:

- Talvez pudéssemos ir para dentro.

Cassie sabia exatamente o que ele estava pensando e riu em voz alta ao pensar em Alex entrando na sala de estar, esperando fazer amor, e encontrar Cyrus, Dorothea, Will e Connor encarando-o.

- Não acho que você vai querer fazer isso - ela disse. - Está um pouco lotado demais.

Alex franziu a testa, pensando nos malditos tablóides que acabaram com a reputação de Cassie quando ela partiu, relacionando-a a todos os homens, desde o xá do Irã a JKF Jr. Ele dizia a si mesmo que ela não estava vivendo com outro homem. Não poderia estar tão relaxada. Não o teria beijado daquela maneira. Não poderia ter feito aquilo.

- Você não vive sozinha? - ele perguntou delicadamente, mantendo a emoção fora de seu tom de voz.

Cassie negou.

Foi um pesadelo - ele disse. - Uma reserva é um lugar grande. Pensei que nunca fosse encontrá-la. Quando cheguei aqui ontem, ninguém queria me dizer onde você estava. Todos olhavam para mim e fingiam não falar meu idioma, ou então diziam que não era da minha conta. Qual é o problema dessas pessoas?

Cassie apenas balançou a cabeça. Pine Ridge era provavelmente o único lugar no mundo onde o grupo de defensores dela era mais do que o fã clube de Alex Rivers.

- Até que, por fim, acabei subornando um adolescente oferecendo a ele uma dose de uísque, e ele me ensinou o caminho até aqui. - Alex olhou ao redor. - Onde quer que "aqui" seja, exatamente.

- É a casa dos Cavalo Alado - Cassie disse, mas só quis dizer aquilo. Bateu as mãos sobre as coxas e abriu um largo sorriso. - E então - ela disse -, afastando-se de Alex. - O que tem feito desde a festa do Oscar?

Ela se virou para esperar sua resposta e deu de encontro com ele, que estava em pé a poucos centímetros dela.

- Não quero falar sobre mim - ele disse delicadamente, segurando seus ombros. - Sei muito bem o que fiz nos últimos seis meses - estava tentando me matar, da maneira lenta e venenosa: deixando minha carreira se perder e bebendo até cair porque você não estava por perto. - Suas mãos se abaixaram nas laterais do corpo e sua voz ficou tão baixa que Cassie precisou se inclinar para a frente. - Não sei exatamente o que a fez partir aquele dia - Alex disse -, mas faço ideia. E quero que saiba que eu farei tudo o que você quiser - vou até dormir em outro quarto. Mas, pelo amor de Deus, Cassie, diga que vai voltar para casa. - Ele olhou para ela, com os olhos marejados. - Você é uma grande parte de mim - ele disse. - Se for embora, pichouette, vou sangrar até morrer.

Cassie olhou para Alex, sentindo o mundo sair do eixo sob seus pés. Passara três anos com medo das maneiras com que Alex reagia a ela; agora, sentia medo de como reagiria a ele. Fizera um grande esforço para deixá-lo feliz; agora, ele estava oferecendo o mesmo a ela: terapia, aconselhamento, até celibato, porque pensava que isso a deixaria contente. Figurativamente, ele estava de joelhos diante dela - assim como ficara inúmeras vezes no passado.

Ela sentiu uma pontada de otimismo dentro de si, que lhe percorreu o corpo até ficar palpável. Colocou a mão no rosto de Alex, pensando em todas as vezes em que imaginara aquele momento: quando Alex começaria a cumprir suas promessas; quando começaria a mudar a vida deles; quando ele nunca arriscaria perdê-la outra vez.

Cassie secou as lágrimas de Alex, lisonjeada pelo fato de, aquele homem, que nunca chorava por ninguém, estar chorando por ela. Era diferente daquela vez. Ele percebera que ela tinha o poder de ir embora e, por causa disso, ela se tornara uma igual. Ele havia admitido que existia algo de errado entre eles. Estava dependendo dela para ser ajudado de novo, mas dessa vez o envolvimento dela não seria como vítima, mas, sim, como salvadora.

Ela sorriu para Alex.

- Quero lhe mostrar o que tenho feito desde minha partida - ela disse. Virando-se, abriu a porta da pequena casa, ignorando os olhares questionadores de Dorothea e Cyrus. Ela olhou para Will, mas apenas porque ele estava segurando o bebê. Seus olhos estavam sérios, seus lábios, tensos.

Cassie respirou profundamente e tirou Connor do ombro de Will. Saiu e fechou a porta, fazendo o bebê pular em seu colo para deixá-lo feliz. E então segurou Connor em seus braços, oferecendo-o.

- Este é Connor - ela disse. - O seu filho.

Alex deu um passo para trás. Não fez nenhum gesto para tocar a criança.

- Meu o quê?

Cassie puxou Connor para mais perto de seu peito.

- Seu filho - ela disse mais uma vez, tentando imaginar o que havia dado errado quando tudo começava a parecer ideal. - Eu estava grávida quando parti. A última vez que você... a última vez, percebi que precisava manter o bebê em segurança. Mas então veio a amnésia, voltando para onde eu tinha começado. Por isso precisei fugir de novo. - Ela olhou para o filho. - Eu nunca iria embora por sua causa, Alex. Só fui embora por causa do bebê.

O rosto de Alex ficou tenso. Seus sentidos estavam confusos, seus joelhos mal conseguiam manter seu peso. Um filho? Dele? Ele imaginou seu pai, olhando para ele quando um galho baixo de um cipreste o havia derrubado do barco, para dentro da lama do pântano. Lembrou-se daquele sorriso branco, do som amargo de seu riso ao esticar o braço para puxar Alex de volta para dentro da embarcação. Lembrou de ter detestado o fato de precisar segurar-se na mão do pai, por não haver outra alternativa.

- Não pense nisso, Alex - Cassie disse delicadamente. - Você não é como ele. Eu posso provar.

Alex olhou para cima quando Cassie colocava a criança em seus braços. Por reflexo, segurou Connor sob suas nádegas e ao redor dos ombros, balançando-o para cima e para baixo para evitar que chorasse. Seus dedos, aos poucos, envolveram a pele do bebê, acariciando-o. Conseguiu sentir o cheiro de sabão em pó da fralda, e talco, e algo que não soube decifrar, mas que seria o cheiro do cor-de-rosa, se a cor tivesse cheiro. Connor abriu os olhos brilhantes. Completamente assustado com a imagem daqueles espelhos, Alex riu. Tentou imaginar se já tinha sido segurado daquela maneira por seu pai, ou sua mãe, ou por qualquer outra pessoa. Tentou imaginar se, fazendo tudo direito desde o primeiro dia, era possível fazer toda a diferença do mundo.

ALEX QUERIA TER IDO PARA RAPID CITY NAQUELE mesmo instante para pegar o próximo avião para Los Angeles, mas Cassie havia dito que era impossível.

- Eu tenho amigos aqui, "responsabilidades". - Ela pousou a mão no braço dele ao dizer: - Se eu não posso ficar mais duas semanas, então espere até amanhã de manhã. - Ela percebeu o desapontamento nos olhos dele quando disse que não o acompanharia para o hotel na cidade, planejando, em vez disso, passar a noite na casa dos Cavalo Alado. Mas cumprindo sua nova promessa, Alex simplesmente assentiu, deu-lhe um beijo de despedida e prometeu que a encontraria, na manhã seguinte, na frente da escola de ensino fundamental.

Durante alguns minutos, Cassie ficou com Connor sobre seu ombro, observando o Ford Bronco de Alex desaparecer em uma nuvem de terra vermelha de Dakota. Depois, com o maior sorriso que conseguia, abriu a porta da casa.

Cyrus estava tricotando de novo, enquanto Dorothea fatiava um gengibre para usar no ensopado que faria no jantar. Will não estava por perto, o que a deixou surpresa, uma vez que a casa tinha apenas uma porta e ela e Alex haviam ficado diante dela o tempo todo. Dorothea levantou os olhos ao escutar a porta sendo fechada.

- Então você vai voltar para a cidade com ele - ela disse.

Cassie colocou Connor em seu cesto e sentou-se ao lado de Cyrus no sofá.

- Eu preciso ir - ela disse. - Não seria justo com ele se não fizesse isso.

Dorothea apontou a faca que segurava na direção de Cassie.

- Não me parece que ele tenha sido muito justo com você.

Cassie ignorou o comentário. No dia seguinte ela estaria de volta a Los Angeles. Iria para o seu escritório, antes de mais nada, e conversaria com Custer; depois, visitaria Ophelia. Discretamente telefonaria para uma central de informações ou um abrigo onde pudesse pedir nomes de terapeutas de renome na região. Teria de encontrar alguém que cuidasse de Connor... Naquele momento interrompeu seus pensamentos, rindo. Certamente alguém da equipe de Alex seria capaz de cuidar do bebê durante uma ou duas horas.

Mas a verdade era que ela não conhecia ninguém da equipe, naqueles três anos, como pudera conhecer Dorothea e Cyrus em apenas seis meses. E Will, bem, ela tentaria fazer com que ele compreendesse, mas sabia quão nervoso ele ficaria. Ela pensou nele levando-a por um curral em cima de um pónei de seis anos de idade, que pertencia a um primo, quando ela estava grávida, nele sentado ao lado dela no sofá quando sua bolsa estourou e encharcou sua calça jeans, de quando ele a fazia rir com suas histórias a respeito de ter multado Clint Eastwood por excesso de velocidade na Hollywood Boulevard. Às vezes, quando Connor ficava muito inquieto antes do jantar, Will era a única pessoa que conseguia fazer com que ele se acalmasse. Cassie tentou imaginar como ficaria sem Will e, de repente, as palavras dele vieram à sua cabeça: "Não dá para ter tudo o que se quer".

- Onde Will está? - ela perguntou.

- Saiu para correr - Cyrus disse. - Saiu pela janela porque não queria incomodá-los.

Cassie fez uma careta.

- O senhor pode cuidar um pouco de Connor? - ela pediu a Cyrus. - Vou tentar encontrá-lo. - Já havia caminhado com ele antes e conhecia todos os seus lugares favoritos.

Ela encontrou Will na floresta, em uma clareira à beira de um riacho. Ele estava sentado com os joelhos encolhidos ao peito, respirando profundamente.

- Oi - Cassie disse. Sentou-se ao lado dele, mas ele não se virou para olhá-la, nem demonstrou que a havia escutado. - Alex foi embora - ela disse hesitantemente e com isso Will virou a cabeça na direção dela.

- Ele foi para Los Angeles?

Cassie negou com a cabeça, envergonhada por tê-lo feito pensar aquilo pela maneira como falara.

- Voltou para Rapid City. Vai nos pegar amanhã cedo na cidade para irmos para o aeroporto.

Will tentou sorrir, mas seus olhos não se iluminaram.

- Então a que horas vamos encontrá-lo?

Cassie riu.

- Eu estava falando sobre mim e Connor. Até onde Alex sabe, você não existe.

Will virou a cabeça para a água e ficou sério.

- Por que não contou a ele? Talvez ele ficasse com ciúmes e viesse atrás de mim. Talvez eu pudesse lhe poupar de algumas costelas quebradas, outra briga...

- Pare - Cassie disse delicadamente, tocando o braço de Will. - Ele não é mais assim.

Will riu com ironia.

- Claro que não. O saco de pancadas dele está fora da cidade.

- Ele vai procurar ajuda. Admitiu que existe algo errado. Só preciso encontrar um terapeuta.

Will pegou um fio de grama.

- Não existem garantias - ele disse de modo seco. - Cachorro velho não aprende truques novos... você sabe como é. eO que você vai fazer quando ele começar a agredir o bebê?

Ele observou o rosto de Cassie paralisado pela ideia, algo que imaginou que ela vinha tentando evitar pensar. "ótimo", ele pensou, observando-a tentar manter os sentimentos sob controle, "deixe-me estragar as ilusões dela." Queria magoá-la. Queria vê-la chorar exatamente como ele por dentro.

- Ele não vai encostar em Connor - Cassie disse enfaticamente. - Isso seria muito parecido com o que ele viveu.

Will demonstrou sua contrariedade em silêncio.

Cassie ficou em pé, jogando sobre Will os pedaços de grama que estava arrancando e colocando no colo.

- O que há com você? - ela perguntou, com a voz embargada. - Pensei que você fosse meu amigo. Pensei que gostaria de me ver feliz.

"Eu quero", Will pensou. "Quero que seja feliz comigo."

- É engraçado - ele disse. - Você achava que a única maneira com a qual eu ficaria feliz seria se fizesse as coisas que você julgava serem as melhores para mim.

Cassie o encarou.

- O que quer dizer com isso?

- Você sabe. "Não dê as costas para seu lado sioux, Will." E pendurou meu patuá na parede de minha casa em Los Angeles para que eu tivesse de olhar para ele sempre que passasse.

- Você o tirou da parede - Cassie disse. - Como eu ia saber? - Ela mexeu em uma pedra com o dedo de seu pé. - Além disso, eu estava certa. Veja quanto você mudou desde que voltou para Pine Ridge - é óbvio que a única pessoa que se importa com o fato de você ser meio branco é você.

Will ficou em pé, olhando para Cassie.

- O que quero saber é por que eu não posso esquecer minha história, mas você esquece a sua?

Cassie deu um passo para trás.

- Não sei do que está falando.

Will segurou seus ombros.

- Sabe, sim. Sabe que ele vai fazer o que fez antes, sabe que ele vai fazer de novo. Não pude fugir de meu passado, por mais que tenha tentado. Alex não pode, nem você.

Cassie sabia que o conselho que havia dado a Will podia ser aplicado à sua situação. Não existia nada que pudesse ser usado como guia para a sua vida, exceto seu passado. Não havia nova chance. Havia apenas a possibilidade de pegar os pedaços que alguém havia deixado.

- É exatamente para o meu passado que preciso voltar agora - Cassie disse, com a voz falhando.

DEPOIS DE PASSAR A MANHÃ DESPEDINDO-SE de Cyrus e Dorothea, Will levou Cassie e Connor para a cidade para que encontrassem Alex. Connor estava irrequieto no carro, e Cassie o entregou a Will, sabendo que Alex os observava do outro lado da rua e ficou feliz porque os choros de Connor haviam lhe dado uma desculpa para aquilo. Depois de tudo o que Will havia feito por ela e pela criança, sem nenhum egoísmo, ela não podia ir embora sem permitir que ele segurasse o menino uma última vez.

Eles haviam feito as pazes, mesmo que superficialmente. Cassie remexia no porta-luvas, fingindo procurar ali dentro alguma coisa sua. No outro assento, Will passava a mão nas costas frágeis de Connor. - Cassie sorriu alegremente.

- Bem... espero que me escreva e me diga onde está.

Will olhou para ela.

- Eu disse que vou fazer isso.

Cassie assentiu.

- Sim, você disse. - Ela esticou os braços e Will colocou o bebê no colo dela, com as mãos deles em contato. Em seguida, ela olhou para fora pela janela da frente do veículo, tentando guardar na lembrança o poste da bandeira na frente da escola, a terra vermelha nos pneus da caminhonete, o chapéu de Will torto em sua cabeça. - Vou sentir saudade deste lugar - ela disse.

Will riu.

- Espere dez minutos - ele disse. - É bem fácil de esquecer.

Cassie pegou a bolsa de fraldas de Connor pelas alças.

- Bem, então, vou sentir saudade de você.

Will disse sorrindo:

- Bem, isso vai levar mais de dez minutos.

Cassie inclinou-se para a frente no assento, abraçando Will. Ele retribuiu o abraço, tentando guardar na memória o leve cheiro de grama dos cabelos dela, a curva macia de seu ombro nu, o timbre de sua voz. Connor ficou pressionado entre os dois, como o coração dividido por dois irmãos siameses.

Foi Alex quem os afastou. Cassie escutou a voz grave dele pela janela aberta, onde ele estava agora.

- Sinto muito, mas não quero perder o voo - ele disse.

Will soltou Cassie. Olhou para Alex, assentindo. Tocou a bochecha do bebê.

- Obrigado - Alex disse graciosamente. Levantou o bebê dos braços de Cassie pela janela, como se soubesse que dessa maneira ela certamente sairia do carro. - Muito obrigado por tomar conta de minha família.

Minha família. Will estreitou os olhos. Não conseguiu dizer nada.

Alex colocou Connor em seu ombro e voltou a olhar para Will.

- Conheço você - disse simplesmente.

Will abriu um largo sorriso.

- Eu separei uma briga sua, certa vez. Eu trabalhava na Polícia de Los Angeles.

- Bem - Cassie disse entre eles, e Will olhou para ela. - Sempre pacificadora.

Ela não disse nada, mas também não saiu do veículo imediatamente. Em vez disso, eles ficaram naquele estado em que não precisava haver palavras. Eles se entreolharam. "Eu te amo", Will pensou.

"Eu sei", Cassie respondeu. Mas, enquanto ele ainda saboreava aquele pequeno triunfo, ela saiu da caminhonete e de sua vida.

QUANDO O VOO DOS Rivers LEVANTOU VOO DE Rapid City, Will estava mais bêbado do que nunca. Planejava estar inconsciente quando Cassie aterrissasse em Los Angeles com o marido e o filho.

Ele xingou a si mesmo por ter ajudado Cassie após ela sair daquele maldito cemitério. Xingou-se por ter largado o emprego na Polícia de Los Angeles, onde poderia ficar de olho nela. Na situação atual, ela tinha morrido para ele. Ou quase isso.

Foi isso que fez com que ele começasse a pensar. Havia uma prática comum entre o povo, a entrega, que ocorria no aniversário de morte de um parente. A família pesarosa demonstrava seu respeito pela pessoa falecida fazendo presentes e guardando alimentos e oferecendo-os como presente para o máximo de pessoas possível. Will se lembrava vagamente do ano em que seu pai morrera, como seus avós haviam economizado para fazer uma boa demonstração que provasse o quanto eles haviam amado o filho.

Ele se lembrou de que quando seu pai morreu, Joseph Cabanas ao Sol havia lhe dito a respeito da posse do fantasma, a maior cerimónia de entrega que surgira na época do búfalo. Para uma família que perdia um filho, apenas comida, peles e utensílios não bastavam. Além de tudo isso, o casal tinha de dar a outros membros da tribo seus cavalos, até mesmo as roupas do corpo, tudo como homenagem ao ente querido.

- Você deve entregar até doer - Joseph dissera.

Disposto, Will começou a procurar na caçamba de sua caminhonete, tirando coisas de pouco valor; apenas uma velha espingarda e um casaco de couro de carneiro que havia pertencido a seu pai. Dirigiu pela cidade como um louco, parando na casa de Bernie Colher, um vizinho de quem nunca gostou. Ele bateu na porta até ela abrir.

- Will - Bernie disse cuidadosamente, observando o cabelo desgrenhado de Will e as pontas soltas de sua camisa.

- Tenho algo para lhe dar, Bernie - Will disse, colocando a espingarda nas mãos do homem. - Sem segundas intenções.

Ele se virou antes de Bernie poder chamá-lo de volta, entrou na caminhonete e seguiu para a casa dos Cachorro Risonho.

Linda Cachorro Risonho sorriu quando o viu e balançou a mão diante de seu rosto, tentando afastar o cheiro do uísque. - Venha, Will. Vou lhe dar um pouco de café.

- Não quero café - Will disse. - Estou aqui para lhe dar algo. - Ele ergueu o casaco de pele de carneiro. - Pense em quantas crianças atravessarão o inverno com este casaco. É seu. Faça o que quiser com ele.

Rydell Dois Punhos recusou-se a ficar com a caminhonete, e Will se sentou em um pedaço de tronco diante da cabana de madeira e gritou como uma criança antes de decidir o que poderia fazer com as chaves. Deu a volta na casa até o espaço onde Rydell e Marjorie Dois Punhos deixavam seu vira-lata preso e passou o anel da chave pela coleira do cachorro sem nem mesmo acordá-lo.

A entrega havia sido bem-sucedida; ele estava começando a perceber. Correu pelas matas até a cabana de Joseph Cabanas ao Sol, sentindo-se mais leve do que nunca, em meses. Tirou o casaco enquanto corria. Deixou o chapéu em um varal, suas botas na frente da cabana de um desconhecido. Deu sua camisa a uma garotinha que estava arrastando um balde de água para a casa de seus pais.

Quando chegou à cabana de Joseph, estava vestindo apenas sua calça jeans, e tremia de frio. Pensou que, obviamente, não havia bebido o suficiente se continuava capaz de sentir a temperatura e se estava envergonhado demais para bater à porta do curandeiro e lhe entregar as últimas peças de roupa. Em vez disso, tirou as roupas, dobrando a calça jeans e o short, deixando-os bem dobrados diante da porta de Joseph.

Começou a correr para onde suas pernas o levavam. Ao pisar em galhos e pinhas, seus pés começaram a sangrar; ainda assim, ele continuou correndo. Era um animal. Era primitivo. Não conseguia pensar e não conseguia sentir. Chegou a um monte isolado que não reconheceu, jogou a cabeça para trás e chorou de dor.

Tinha apenas mais uma coisa para entregar, algo que sabia ser inútil, mas era alguma coisa mesmo assim. Will gritou as palavras em inglês e em lakota, várias vezes, soluçando e arranhando a própria pele quando precisava se lembrar quanto doía estar ali quando ela não estava. - Imacu yo - ele gritou aos espíritos. - Levem-me!

 

Os jornalistas e fotógrafos que esperavam na área de segurança do Aeroporto de Los Angeles estavam fazendo apostas.

- Ainda acho que ele se livrou dela - um homem do National Enquirer disse. - Debaixo de sete palmos de terra.

O jornalista da People fungou.

- Então para que fazer todo esse estardalhaço para anunciar a chegada deles em Los Angeles?

- Se querem saber - um cinegrafista disse -, acho que eles estão voltando juntos, mas ela não vai se mostrar muito feliz com isso. Acho que ele lhe ofereceu dinheiro. O que são alguns milhões se você tem a chance de voltar ao topo das bilheterias?

Uma repórter de entretenimento da NBC verificou seu batom, procurando borrões nas lentes refletivas de uma câmera. - Escrevam o que digo - ela disse enfaticamente.

- Alex Rivers já era. - Ela se virou para seus colegas, que se empurravam como animais no portão quando os alto-falantes anunciaram o pouso do voo 658 de Denver. - Não há nada que um homem possa fazer para deixar a mulher babando por ele de novo. Na verdade, independentemente da situação, ela o deixou, por que provavelmente ele não é o símbolo sexual que todos imaginávamos.

No salão da primeira classe, Cassie terminava de trocar a fralda de Connor. Alex sentou-se de frente para ela, com uma perna cruzada sobre o joelho. Segurava uma caneca de café.

- Vou ter de aprender a fazer isso - ele disse.

Cassie olhou para ele. Não conseguia imaginar as mãos de Alex fazendo algo tão comum quanto trocar as fraldas do filho.

- Isso, sim, seria um bom assunto para uma coletiva de imprensa - ela disse.

Ajeitando-se, Alex pousou a caneca na mesa.

- Você não se importa, certo?

Ele falava sobre os jornalistas que estavam aglomerados como urubus à espera de carniça. Alex a alertara a respeito da explicação que dariam à imprensa quando eles sobrevoavam as Montanhas Rochosas. E obviamente ela havia dito que compreendia - se era sua culpa, indiretamente, Alex estar perdendo popularidade em Hollywood, era sua obrigação melhorar sua imagem o máximo que pudesse. Ainda assim, ela não deixou de lembrar da última vez em que aterrissara no LAX com Alex, quase quatro anos antes, a primeira vez em que tivera uma leve noção de uma vida sem privacidade. Depois de tantos meses em Pine Ridge, era uma adaptação difícil de fazer.

- Não me importo - Cassie disse suavemente. Entregou o bebê a Alex. - Só gostaria que Connor não estivesse sendo usado.

- Não deixarei que os flashes das câmeras atinjam os olhos dele, e não permitirei que façam muitas perguntas. Prometo - Alex sorriu. - Encare isso como se fosse o primeiro teste de vídeo dele.

A porta da sala reservada foi aberta, e o corpanzil de Michaela Snow preencheu o espaço. Ela deu um brilhante sorriso a Alex, e então se virou para Cassie, analisando-a dos pés à cabeça

- Bom ver você de novo - ela disse de maneira fria e Cassie parou enquanto colocava as fraldas dentro da bolsa novamente.

- Michaela - ela disse, levantando o rosto com um sorriso verdadeiramente simpático.

Michaela olhou para ela por um instante, longo o suficiente para que Cassie percebesse, com constrangimento, seu vestido marrom velho e os tênis surrados - algo muito distante do que se esperava da esposa de Alex Rivers. Michaela se voltou a Alex novamente.

- Está quase pronto?

Cassie sentiu um frio na espinha ao perceber que a atitude de Michaela era uma prévia da recepção que ela receberia em Los Angeles, onde a maioria das pessoas que ela conhecia eram amigos e colegas de Alex. Aos olhos deles, Cassie havia abandonado Alex. Eles não conheciam a história toda, obviamente, e era nesse ponto que Cassie ficava de mãos atadas. Se defendesse suas ações revelando o fato de que Alex espancava sua esposa, faria com que a reputação dele mais uma vez fosse arrastada na lama. Mesmo que mencionasse isso e explicasse dizendo que ele estava disposto a conseguir ajuda profissional, ainda assim magoaria Alex, e se recusava a fazer isso novamente.

Olhou para Alex, que confundiu seu olhar assustado com medo de aparecer diante das câmeras e cuidadosamente a colocou em pé.

- Com certeza, a mulher que deu à luz sozinha no meio do nada não vai se deixar intimidar por um bando de repórteres curiosos.

- Eu não estava sozinha - ela disse de maneira defensiva. - Pegou Connor e começou a colocá-lo em seu cesto.

Alex virou-se para Michaela.

- Vamos encontrá-la lá fora em dez minutos. Quando a relações-públicas saiu, ele se virou para Cassie. - Por que não me deixa carregar isso e você segura o bebê? - sugeriu com gentileza.

Cassie olhou para a porta por onde Michaela acabara de sair. De maneira protetora, cruzou os braços. Estaria Alex com vergonha de suas roupas velhas? Ou por mostrar seu filho em um cesto de bebê sioux?

- Connor gosta do cesto - ela disse, hesitante, prendendo-se ao que havia lhe tornado familiar.

- Connor ama a mãe dele - Alex disse. Ele olhou para Cassie, seus olhos dizendo as palavras não expressadas: "E quero que todos o vejam com você." Ele esperou até que Cassie assentisse e deu um suspiro. Estava pisando em ovos, sabia disso, mas certamente Cassie sabia a importância de uma primeira impressão.

Alex reuniu o restante de suas bolsas e as pegou, passando as alças pelo ombro. Ele parou na porta e virou-se para Cassie.

- Obrigado.

- Pelo quê? - ela quis saber.

- Pelo que está prestes a fazer por mim. Por ter voltado.

Foi a emoção nos olhos dele que fez Cassie deixar seu medo de lado. Ela segurou a mão de Alex e suspirou.

AS FILEIRAS DE PONTOS PRETOS SE ESPALHAVAM diante dela, mas enquanto os jornalistas tiravam fotos e faziam suas gravações, Cassie manteve um sorriso preso ao rosto e os olhos grudados em Alex, como se estivesse se apaixonando por ele novamente.

- Reconheço - Alex estava dizendo de modo frio - que tem havido muita especulação a respeito do desaparecimento de minha esposa. - Ele a envolveu pela cintura. - Como podem ver, ela está viva, o que descarta uma das teorias de mau gosto que levantaram a meu respeito. E, como também podem ver, ela tem estado ocupada. Nosso filho, Connor, nasceu no dia 18 de agosto.

O jornalista do Enquirer mexeu a caneta no ar.

- Ele é seu? Alex ficou sério: - Não responderei a essa pergunta - ele disse.

- Então por que sua esposa fugiu? - um correspondente da Vanity perguntou.

- Ela não fugiu, eu a mandei embora. Queríamos ter um bebê em paz, sem que o mundo estivesse nos analisando. Alex diminuiu o tom de voz. - Vocês esperam como animais e fazem com que rumores se espalhem de tal maneira até começarem a ser mais importantes do que a verdade. Já pensaram nas vidas das pessoas que estão arruinando? Já pensaram no prejuízo que estão causando quando, para garantir a privacidade, forçam alguém a mandar a própria família para longe? Minha carreira já me torna uma pessoa pública. Vocês não precisam fazer isso. - Alex deu um passo na direção do grupo silencioso de jornalistas. - Antes de pensarem em destruir a vida de alguém, pensem em todos nós que estamos tentando construir a nossa.

Alex virou-se para Cassie, que se recuperou do choque da veemência do discurso dele e lançou-lhe um sorriso de apoio. Escorregou o braço pela sua cintura e eles desceram o salão, seguidos apenas pelos sons das câmeras distantes.

Bem depois de eles terem desaparecido de vista, os jornalistas continuaram boquiabertos, surpresos e abismados. Em vez de quebrar câmeras e puxar rolos de fotos, como alguns astros sabiam fazer, Alex Rivers conseguira envergonhar a todos eles com um tapa de pelica eficiente. Estava claro que ele não havia feito nada de mal à sua esposa. Era óbvio que ela continuava louca por ele. E bem diante deles estava a prova: um belo menininho com os olhos brilhantes de Alex Rivers.

A repórter da NBC fez um gesto para o cinegrafista e encontrou um lugar silencioso para poder gravar seus comentários. Tirou o pó compacto do bolso e arrumou o cabelo, virando-se para um representante da agência de notícias UPI ao lado dela, que ainda anotava informações sem parar.

- Não acredito - ela disse. - Ele se tornou um herói de novo. Cem milhões de pessoas passarão a nos ver como um grupo terrível, enquanto Alex Rivers e sua família saem como campeões, tentando ser pessoas normais e comuns.

Ela balançou a cabeça, confortando-se com o fato de que toda rede de notícias levaria uma lição de moral naquele dia, e levantou a mão para sinalizar que estava pronta para iniciar a gravação. Ajeitou os ombros.

- Hoje à noite, no LAX, a celebridade Alex Rivers revelou a resposta para o mistério envolvendo o desaparecimento de sua esposa, vários meses atrás. Apesar dos terríveis rumores espalhados pela imprensa, que afetavam de maneira negativa sua carreira em Hollywood, Rivers não revelou o paradeiro da esposa que, aparentemente, ele sempre soube. Cassandra Barrett Rivers retornou para Los Angeles hoje à noite escoltada pelo marido, trazendo consigo o filho recém-nascido de Rivers. Aqui, a repórter fez uma pausa significativa. - É triste perceber que no mundo de hoje um astro como Alex Rivers tem de enfrentar um falso escândalo simplesmente para garantir a privacidade de sua família - ela disse, cuidadosamente eximindo-se de culpa. - Só podemos esperar que, se Connor Rivers decidir seguir a carreira de seu ilustre pai, as coisas serão diferentes. Eu sou Marisa Thompson, da NBC News.

CASSIE FICOU NA FRENTE DO ESPELHO DO banheiro, passando os dedos sobre a pia de mármore verde e pelas torneiras douradas. Não conseguia entender qual era o sentido de tudo aquilo. O que lhe parecia luxuoso antes agora parecia completamente exagerado.

Ela entrou no quarto, aumentando o volume do monitor portátil da babá eletrônica que estava no quarto novo de Connor. Cassie ficara impressionada: nas horas em que ele passou fora para buscá-la, ele havia provindenciado que um dos quartos de hóspedes fosse decorado com papel de parede de carneiros gorduchos e vaquinhas, com portas e batentes pintados de um tom azul-vivo e cortinas azuis, da cor do céu, com nuvens nas janelas. Connor dormia em um berço branco.

Ela escutou o ritmo estável da respiração do pequeno. Não deveria se sentir surpreendida: Alex sempre era capaz de fazer o impossível.

A casa estava silenciosa; os funcionários haviam se retirado para dormir. Parecia haver menos pessoas e aquelas a quem ela reconhecera - como John e a secretária de Alex - foram educadas com ela, respeitando suaposição na casa, porém se esforçou para ser simpática. Ela ficou esperando que alguma empregada dissesse: "Que bom que a senhora voltou", ou que o chef tocasse seu braço e dissesse que havia sentido sua falta, mas essas coisas não aconteceram, e Cassie percebeu que se quisesse ganhar a todos novamente o primeiro amigo que teria de conquistar seria Alex.

Ela o encontrou no andar de baixo, em seu escritório, sentado em uma grande poltrona de couro, o corpo inclinado sobre uma lista de investimentos sobre a mesa. Em cima da mesa estavam os três Oscars que ele havia ganhado quando ela estava em Pine Ridge. Ela entrou na sala, fechando a porta.

Alex olhou para ela:

- Ele dormiu de novo?

Cassie assentiu.

- Pelas próximas horas.

Ela esticou o braço e pegou o Oscar no canto, passando os dedos sobre as costas e os braços cruzados da estatueta. Era muito mais pesado do que ela esperava.

- Eu fiquei muito orgulhosa de você. Desejei estar lá - ela disse.

- Também desejei que você estivesse lá.

Eles se olharam por muito tempo e então a mão de Alex envolveu a dela sobre o Oscar e o colocou na mesa. Ele a puxou para que se sentasse em seu colo.

Sentindo-se nervosa repentinamente, ela colocou a mão sobre os papéis da mesa.

- Quanto você vale? - perguntou brincando.

Alex desviou o olhar.

- Não tanto quanto valia quando você foi embora - ele disse. - Você deve ter percebido que nosso quadro de funcionários foi reduzido, e devo avisá-la de que nosso apartamento está à venda há alguns meses. Eu... eu perdi muito dinheiro produzindo Macbeth.

Mais uma vez Cassie se compadeceu do sofrimento pelo qual ele havia passado por resultado de seu desaparecimento. Tentando sorrir, ela segurou o queixo do marido para fazê-lo erguer a cabeça.

- O lado bom

Ela disse - é que aprendi muito sobre raízes e frutos. Não corremos o risco de morrer de fome.

Alex esboçou um sorriso.

- Não acho que estamos à beira da falência ainda. Mas eu me divertiria muito vendo você explorar Bel-Air.

Cassie abraçou Alex e pressionou o rosto contra o coração dele.

- Senti muito a sua falta - ela disse. Desejou que ele deixasse seus arquivos de lado e a levasse para o andar de cima. Desejou, no mínimo, que ele a beijasse.

- Tenho que lhe pedir um favor - Alex disse.

Cassie olhou para ele e sorriu, percebendo que ele estava lhe dando escolhas. Não havia dito que dormiria em outro quarto se ela quisesse? Obviamente ele só estava esperando por uma dica, uma pista, um carinho.

- Sei que você vai procurar... alguém. Um psiquiatra ou coisa assim. Só gostaria que você não saísse mencionando os fatos precipitadamente. Para alguém como Ophelia, ou o seu amigo policial de Dakota do Sul. - Ele baixou os olhos. - Só isso.

Cassie sentiu-se incomodada com aquelas palavras. Seria ele capaz de pensar que, depois de tudo que se mostrara disposto a fazer para conquistá-la novamente, ela pudesse feri-lo intencionalmente?

- Alex - Cassie murmurou. - Nunca contei nada a ninguém antes. Não é agora que o farei. - Ela acariciou o pescoço dele. - Também tenho um favor a lhe pedir. - Alex olhou para ela, com os olhos brilhando. - Queria saber se podemos ir para a cama.

Alex suspirou longamente. Encostou a cabeça de Cassie contra seu peito.

- Pensei que nunca fosse pedir.

ELE ESTAVA TÃO NERVOSO QUANTO um adolescente. Caminhando nu diante do espelho, pensou em Cassie deitada sob as cobertas a alguns metros dali, a uma distância curta do banheiro. Tentou imaginar se seu corpo havia mudado depois do nascimento de Connor. Tentou imaginar o que ela poderia estar vestindo, se não estivesse nua, e pensou que talvez devesse enrolar uma toalha na cintura. Talvez ela quisesse conversar antes. Na verdade, nem sabia se era possível fazer sexo tão pouco depois do nascimento do bebê.

Apoiando as mãos nos dois lados da pia, ele se inclinou para a frente, em direção ao espelho.

- Controle-se - disse em voz alta. Fechou os olhos e pensou em todas as cenas de amor que fizera ao longo dos anos, gravações e regravações com as mãos sobre os seios de belas mulheres e sua boca passando pela pele corrigida por maquiagem de todas elas. Ele conseguia agir naturalmente diante de uma plateia de cameramen, diretores, produtores, membros de apoio; mas com sua esposa e ninguém da produção por perto estava morrendo de medo de fazer alguma coisa errada. A verdade era que não existia mulher no mundo que o fizesse se sentir como se sentia com Cassie. Ela o tocava sem segundas intenções; ela dava tudo de si; ela o amava simplesmente por ele ser quem era.

Ele suspirou profundamente e abriu a porta do banheiro. Cassie estava sentada na cama, com os lençóis até seus ombros nus. Afastou os cobertores com um movimento de seus pés.

Alex se sentou na beirada da cama.

- O que eu fiz para merecê-la?

Cassie sorriu para ele.

- Tornou-se muito, muito sortudo. - Esticou um braço a ele para puxá-lo mais para perto, e o lençol caiu de seus seios. Alex viu rapidamente a pele macia, os mamilos escuros e amplos, antes de abraçá-la contra seu corpo.

- Nossa, é ótimo senti-la - ele sussurrou. Enterrou os dedos nos cabelos dela e a beijou, tentando se controlar para que tudo não acabasse rápido demais. Mas as mãos de Cassie pararam em sua cintura e abriram a toalha e, antes que ele conseguisse se conter, havia se posicionado entre suas pernas e a penetrado, gemendo.

Ele caiu sobre o peito dela, arrasado.

- Sinto muito. Estou me sentindo com quinze anos de novo - ele disse.

Cassie acariciou os cabelos dele.

- É bom saber que você estava ainda mais nervoso do que eu. - Ela ajeitou o quadril sob ele, e ele rolou para o lado para que ela não precisasse suportar o peso de seu corpo.

Ele olhou para o corpo da esposa, ainda com as marcas da gravidez, maior na cintura e na barriga.

- Estou gorda - ela disse.

- Está linda - Alex disse. Passou os dedos sobre uma estria em seu quadril. Podemos... fazer isso?

Cassie riu.

- É um pouco tarde para perguntar, não acha?

Alex balançou a cabeça.

- Não... quero dizer... eu a machuquei?

Cassie olhou para ele, que percebeu que a frase tinha um sentido muito mais amplo do que ele pretendera.

- Não - ela disse. - E não vai me machucar.

Ela sentiu Alex se mexendo a seu lado mais uma vez e esticou o braço para procurá-lo, mas ele colocou os braços de Cassie delicadamente ao lado da cabeça dela.

- Não - ele disse. - Deixe-me fazer isso.

Ele começou a amá-la, centímetro por centímetro, e dessa vez queimou embaixo de sua pele. Quando ele a penetrou, Cassie viu por apenas um instante a essência de sua vida. Não havia casa, Oscar, Connor. Não existiam antigos segredos nem dor. Havia apenas Alex e Cassie. Lembrou como Alex

Rivers havia mexido com as coisas dentro dela como ela nunca imaginara; como ela sempre o amaria. E, com aquele começo brilhando com tanta força de novo, era difícil imaginar que durante meses ela o havia dispensado sem olhar para trás.

 

Acima de qualquer coisa, Hollywood sempre tinha sido inconstante, por isso foram necessários apenas alguns dias para que Alex fosse considerado, de novo, a propriedade mais badalada da cidade. Seu relacionamento de conto de fadas com Cassie havia amadurecido - ele agora era um astro de filmes com valores familiares, alguém disposto a sacrificar o sucesso de bilheteria e cancelar produções se elas interferissem no tempo que ele precisava passar com a esposa. De repente, o pária que aparentemente havia acabado com sua vida se transformou na celebridade com quem todas as pessoas dos Estados Unidos se identificavam, uma figura pública que só queria ser um cara comum.

A casa e o escritório de produção de Alex estavam abarrotados de presentes para Connor - bonés de times de beisebol, chocalhos e roupas dadas por fãs, talheres e conjuntos de papinha da Tiffany dadas pelos executivos dos estúdios, que incluíam bilhetes a Alex dizendo que andavam atrás dele fazia muito tempo. Roteiros eram enviados a ele aos montes; Herb Silver telefonava quatro vezes por dia para oferecer a ele produções para as quais estava sendo convidado para atuar e dirigir. Alex aceitava os presentes para o bebê - gostava de observar Cassie abrindo todos eles - e analisava rapidamente os roteiros, mas pretendia esperar antes de fechar outros acordos. Tinha coisas mais importantes para fazer antes.

- Ele sorriu - Alex disse certa manhã, segurando Connor como se fosse um troféu. Cassie sorriu e continuou caminhando na sala de jantar. - Espere. Posso fazer ele sorrir de novo.

Cassie rolou os olhos e tomou um gole de café.

- Talvez já esteja conseguindo fazer com que ele role quando eu chegar em casa.

Alex colocou o bebê em seu ombro e sorriu.

- Talvez eu consiga mesmo.

Estava começando a pensar que Cassie tivera razão. Ele vinha querendo contratar uma babá - afinal, era o que a maioria dos casais em sua posição fazia quando tinham filhos -, mas Cassie não queria saber desse assunto.

- Não quero que outra pessoa passe mais tempo com Connor do que eu - dissera com firmeza -, e esse assunto não é negociável. Combinara com Archibald Custer que tiraria um ano de licença. Seu coração não estava voltado para o trabalho de pesquisa, pois ela tinha Connor para lhe distrair e, além disso, outra pessoa vinha dando as suas aulas na faculdade.

Alex dissera que ela ficaria maluca de vontade de sair de casa depois de uma semana.

- Você vai ver - Cassie dissera. - Vou conhecer mais do que qualquer pessoa sobre os parques do bairro.

Até então, estava certa. Passava a maior parte do dia sentada com Connor, fazendo caretas para ele, mostrando a língua e contando historinhas que inventava. O único problema era que, observando os dois, Alex não sentia vontade de sair de casa. Começara a levar roteiros para casa e os lia na presença de sua esposa e de seu filho.

- A que horas vai voltar para casa? - Alex quis saber.

Cassie riu e pegou seu casaco.

- Por quê? Para você poder preparar o jantar? - Ela balançou a cabeça e o beijou no rosto. - Você está se transformando em um marido-doméstico, Alex.

Ele sorriu.

- Ninguém nunca me disse como era muito mais gratificante.

- Mas paga menos também - Cassie disse beijando a cabeça de Connor.

- Divirta-se com Ophelia - Alex disse.

- Ela vai me alugar pelas próximas três horas. Acredita que ela me perguntou se estar em Pine Ridge foi mais ou menos como a situação pela qual passou aquela mulher branca no filme Dança com lobos?

Alex riu.

- O que você disse a ela?

- Sem búfalo, mais neve e roupas piores. - Ela balançou a cabeça e atravessou a sala, desviando de uma empregada que trazia uma pilha de toalhas de mesa. Ao chegar à porta, voltou-se, mordeu o lábio e, conferindo para ver se o corredor estava vazio, perguntou: - Não se esqueceu de hoje à noite, não é?

Alex olhou para ela da maneira como sempre fazia ultimamente, como se não acreditasse que ela estava ali e que não voltaria algumas horas depois quando resolvesse sair.

- Não me esqueci - ele disse.

A DOUTORA JUNE TINHA SIDO A ÚNICA TERAPEUTA com quem Cassie conversara que não insistira que a única maneira com que uma esposa agredida podia mudar sua circunstância era se afastando fisicamente do marido. Ela contou a Cassie algo chamado síndrome da esposa espancada e disse que era uma doença, como o alcoolismo. E assim como com o alcoolismo, por meio de certos tipos de terapia, tanto os agressores quanto as vítimas podiam compreender seus problemas e as melhores maneiras de lidar com eles.

- Se você é um alcoólatra, precisa entender que nunca poderá beber novamente. Nem para comemorar o casamento de seu irmão, nem para se encaixar em um almoço de enegócios, nunca. Se você está sendo espancada - a doutora June disse, olhando para Cassie e depois para Alex -, ou agredindo, precisa compreender que os impulsos que permitiram que você entrasse nessas situações terão de ser canalizados para outro lugar se vocês pretendem continuar juntos.

Alex passou os dedos entre os de Cassie e apertou sua mão. A doutora June respirou profundamente.

- Também devem compreender que as possibilidades estão contra vocês. Mas mesmo que resolvessem se divorciar, sem terapia, é quase certo que Alex encontraria uma mulher com um tipo de personalidade como o de Cassie e descontaria sua fúria nela, e que Cassie procuraria alguém como Alex, que, por sua vez, a agrediria de novo. Independentemente do que acontecer, vocês estão dando um passo na direção certa. A primeira parte da terapia para vocês será conhecer outras pessoas como vocês, na mesma situação em que estiveram.

Cassie olhou para Alex, que estava olhando com um olhar calmo e claro à terapeuta que mudaria a vida deles. Ele não parecia nada nervoso - não por estar naquele consultório de móveis de carvalho e, agora, nem mesmo a respeito de admitir a um grupo de desconhecidos que agredia Cassie. Ela não gostou daquilo, pensando no futuro. Sabia que existia confidencialidade entre médico e paciente, mas não tinha certeza de que o mesmo fosse aplicado a membros dos grupos de apoio. E, obviamente, aquilo seria essencial para Alex.

- Está claro que vocês selaram um compromisso, o que acho ótimo - a doutora June disse. Ela checou uma prancha, e então olhou para Cassie.

- Posso colocá-la em um grupo de mulheres na quarta-feira à noite - ela disse. - E nosso grupo de homens se reúne aos domingos.

Não há problema - Alex disse.

GOSTEI DELA - CASSIE DISSE QUANDO ELES estavam indo dormir. - O que você achou?

Alex bocejou e apagou as luzes.

- Ela parece ser boa - ele disse.

- Ela não ficou surpresa quando você entrou no consultório - Cassie disse. - Não pediu autógrafo.

Alex deu de ombros.

- Ela vai ter meu autógrafo umas dez vezes - ele disse. - Sempre que eu enviar um cheque a ela.

No escuro, Cassie virou-se para Alex e pressionou as palmas de suas mãos contra o peito dele.

- Não se importa em falar sobre nós diante de outras pessoas?

Alex balançou a cabeça e curvou-se para beijar o seio da esposa. Conseguiu sentir o gosto de leite que seu filho deixara e sugou delicadamente, adorando a ideia de que ela pudesse alimentar os dois.

- E o restante das coisas que ela disse? - Cassie perguntou. Alex afastou-se dela, percebendo o medo em seu tom de voz. - E se fizermos parte da maioria e não conseguirmos ficar juntos?

Alex a abraçou e esfregou as mãos por suas costas.

- Não precisa se preocupar - ele disse simplesmente, porque nunca vou deixá-la.

ASSIM COMO AS OUTRAS SETE MULHERES EM seu grupo de terapia, Cassie era casada com um homem que agia maravilhosamente bem em 97% do tempo. Assim como as outras mulheres, Cassie havia passado mais tempo de sua infância tomando conta dos pais do que o contrário, mas nunca tinha sido valorizada por isso. E então havia conhecido seu marido. Ele tinha sido a primeira pessoa que fez com que ela se sentisse especial. Dizia que a amava, chorava quando a feria. Dizia que ela era capaz de cuidar dele e diminuir sua dor como nenhuma outra pessoa.

Assim como as outras sete mulheres, Cassie não queria que Alex a agredisse, mas sabia que não podia impedi-lo. Acreditava que, de certa forma, tinha culpa por não ser capaz de impedir aquilo. Sentiu pena dele. Conseguia convencer a si mesma de que aquilo nunca mais aconteceria, pois vinha resolvendo problemas havia tanto tempo em sua vida que, para seu bem-estar, simplesmente tinha de acreditar em sua capacidade de acertar tudo.

E havia recompensas. Flores, carinho e sorrisos apenas para ela. Quando ela acertava - quando não o irritava -, sua vida era melhor do que a de qualquer outra pessoa.

Mas assim como as outras mulheres, Cassie compreendia que não era normal ficar paralisada quando seu marido lhe tocava o ombro, já que não sabia se receberia um beijo ou um chute nas costelas. Compreendia que nem sempre era sua culpa. Que não tinha de ser mais infeliz do que feliz.

A doutora June sentou-se no círculo com as mulheres, muitas das quais, Cassie ficou surpresa ao perceber, eram bem vestidas e falavam bem. Esperava encontrar esposas de caminhoneiros, de pessoas que contavam com a ajuda do governo. Durante os primeiros minutos, ela ficou sentada em silêncio, dizendo apenas seu primeiro nome para se apresentar e observou os hematomas na clavícula da mulher diante dela.

A sessão daquela noite envolvia trocas de histórias. A doutora June queria que todas pensassem na primeira vez em que uma agressão havia ocorrido. Cassie escutou uma advogada contar a respeito de seu namorado, com quem vivia, que a mantivera trancada dentro do banheiro por 48 horas para impedi-la de sair com suas amigas. Outra mulher chorou quando descreveu o marido a arrastando de uma festa, onde a acusou de conversar demais com um vizinho, e então bateu nela na boca, até quebrar dois dentes e o sangue jorrar, de modo que ela não conseguisse mais falar. Outras contaram sobre objetos sendo atirados nelas, de ossos sendo quebrados, de socos em janelas de vidro.

Cassie foi a última, e olhou timidamente para a doutora June e começou a descrever a ocasião em que havia voltado de sua palestra em Chicago a respeito da mão. Falou lentamente sobre o atraso do avião, sobre as acusações do marido, perguntando onde ela estava, cuidadosamente omitindo qualquer informação que apontasse claramente para a carreira e real identidade de Alex. Sentia-se mais leve a cada palavra dita, como se estivesse carregando pedras em seu coração durante todos aqueles anos e estivesse, naquele momento, pronta para jogá-las fora. Quando terminou, depois de falar do bebê que perdera, ela estava chorando e a doutora June a abraçava.

Chocada com sua falta de controle, Cassie endireitou-se rapidamente. Secou o rosto e disse:

- Tenho um filho agora. - E completou, com mais suavidade, absolvendo Alex: - Da primeira vez, ele não soube.

Enquanto o grupo se separava, com cada mulher pegando suas coisas para ir para casa, Cassie esperou ficar sozinha com a doutora June e então tocou-lhe o ombro.

- Obrigada - Cassie disse, dando de ombros. - Não sei bem pelo que, mas... obrigada.

A psicoterapeuta sorriu.

- Vai ficar cada vez mais fácil à medida que você vier.

Cassie assentiu.

- Acho que esperava me sentir como se tivesse que me defender. Como se ninguém compreendesse como ainda consigo amar Alex depois do que ele fez. Pensei que fossem olhar para mim como se me julgassem uma maluca por estar aguentando isso há tanto tempo.

A doutora June assentiu.

- Todas já passamos por isso.

Cassie ficou surpresa.

- Você também?

- Fiquei casada com um homem que me espancou por dez anos - ela disse. - Por isso serei a última pessoa a julgar sua decisão de ficar. - Ela abriu a porta para que Cassie pudesse passar.

Cassie continuou olhando para a terapeuta.

- Eu... eu sinto muito. Nunca teria imaginado.

- Não é algo que fica claro em nossa testa, não é? - ela disse delicadamente.

Cassie concordou.

- Mas as coisas estão melhores agora? - perguntou, tentando obter o máximo de esperança que conseguisse para ela e Alex.

- Sim - a doutora June disse, suspirando. Olhou para Cassie por muito tempo. - Agora que estamos divorciados.

ALEX ESTAVA MEXENDO O QUADRIL, penetrando-a profundamente, beijando a curva do pescoço de Cassie, quando Connor começou a gritar pelo monitor ao lado da cama.

Os seios de Cassie estavam cheios e ela sentiu o leite escorrer pelas laterais quando Alex saiu de cima dela pela segunda vez naquela noite. Ele ficou deitado de barriga para cima, olhando para o teto, com a expressão séria.

- Pelo amor de Deus, Cassie, não consegue fazer com que ele se cale?

Mas ela já estava se enrolando em um robe de cetim salmão e indo em direção à porta.

- Volto em um minuto - ela disse.

Não havia acontecido nada; o bebê apenas havia perdido sua chupeta no berço. Ela esfregou as costas dele e observou seus gritos se transformarem em soluços, pensando em como ele era totalmente dependente.

Saindo do quarto na ponta dos pés, atravessou o corredor e voltou para o quarto. Alex estava parado, de costas para Cassie. Quando ela fechou a porta, ele não se mexeu.

Cassie entrou sob as cobertas e aconchegou-se no corpo de Alex.

- Onde estávamos?

- Meu Deus, Cassie! Não consigo começar e parar dessa maneira. Não consigo fazer uma refeição completa, não consigo dormir uma noite inteira, não consigo nem mesmo terminar de fazer amor com você sem ser interrompido por aquela criança.

Cassie disse:

- Aquela criança não está fazendo nada disso de propósito, Alex. Você não é o único pai do mundo. A vida de todo mundo muda com a chegada dos filhos.

- Nunca pedi para tê-lo.

A mão de Cassie parou sobre o quadril de Alex.

- Não pode estar falando sério.

Alex virou a cabeça para dizer:

- Se não quer contratar uma babá, então é melhor encontrar uma pessoa que cuide dele à noite. Não vou tolerar isso. Ou você contrata alguém ou vou para outro quarto. - Ele colocou um travesseiro sobre a cabeça.

Cassie pensou em algo que a doutora June havia dito na noite anterior, na sessão de grupo, algo a respeito dos traços de personalidade do agressor. Os maridos não querem que as esposas tenham amigas próximas. Não gostam da ideia de outra pessoa dividir a atenção da esposa, pois acreditam que elas são inteiramente deles.

Na sessão, Cassie havia pensado em Ophelia e na incapacidade de Alex de perdoá-la pelo único erro que ela havia cometido em relação a ele. Mas agora começava a analisar a explicação da doutora June de outra maneira.

Olhou para as mãos de Alex, segurando o travesseiro sobre a cabeça. Ele não tolerava ver alguém que precisava de Cassie tanto quanto ele. Nem mesmo o próprio filho.

- Alex - Cassie sussurrou. - Sei que ainda não dormiu. - Ela deu um tapinha em seu ombro e puxou o travesseiro de sua orelha. Alex reclamou e deitou de bruços. - Vou contratar alguém. Começarei a procurar amanhã.

Alex abriu os olhos e apoiou-se nos cotovelos. Abriu um amplo sorriso para ela e com os cabelos despenteados parecia uma criança.

- É sério? - Cassie assentiu e engoliu o nó de sua garganta. Escutou o som da respiração de Connor ao fundo, pelo monitor. - Ótimo - Alex disse, abraçando-a. - Eu estava começando a me sentir sendo deixado de lado.

Ele a beijou intensamente, tirando seu fôlego e sua razão.

- Não - ela sussurrou, ignorando as lágrimas nos cantos de seus olhos. - Nunca.

Querida Cassie,

Espero que você e Connor estejam bem e que você esteja feliz de volta a Los Angeles. Pine Ridge não é a mesma sem vocês dois. Na verdade, acho que o único motivo que estava me fazendo começar a gostar daqui era porque parecia diferente com a presença de vocês. Mais alegre, acredito. Não tão chato e sem graça.

Estou escrevendo porque prometi avisar quando tivesse conseguido um novo emprego. Dentro de uma semana eu me mudarei para Tacoma, Washington, e começarei a trabalhar no departamento de lá. Um dia desses, quando eu colocar juízo em minha cabeça, talvez fique em um lugar tempo suficiente para ser promovido.

Se você não estiver completamente chocada por Los Angeles, como fiquei quando fui morar aí, talvez pense em nós de vez em quando.

Sinto saudade do bebê. Sinto sua falta. É o pior tipo de dor.

Cuide-se, wasicun wínyan.

Will

 

Alex desligou o telefone e olhou para o relógio. Acabara de marcar um compromisso para se encontrar com Phil Kaplan dentro de uma hora para finalizar um acordo verbal para produzir o próximo filme que pretendia fazer. Havia encontrado o roteiro sem querer em uma pilha de materiais descartados; era muito valioso, mas tinha erros graves que ele pedira a um roteirista vencedor de um Oscar para consertar. Já estava sonhando com as cenas, dirigindo-as sem parar em sua mente. Havia anotado o nome de suas primeiras opções para os papéis principais em uma lista em seu bolso, para que discutisse o assunto com Phil.

É claro que se ele jantasse com Phil, perderia aquela terapia em grupo pela segunda semana seguida.

Cassie havia levado Connor para a praia com Ophelia e vários guarda-sóis; ela não ficaria sabendo imediatamente.

Alex pegou o telefone para telefonar para a doutora June, mas desistiu.

Havia prometido a Cassie.

Poderia remarcar com Phil.

Que, sem dúvida, já teria se comprometido com alguém amanhã de manhã.

Ele disse a si mesmo que nem sequer estaria pensando em faltar à terapia se não sentisse que aquele filme pudesse ser ainda mais bem-sucedido do que A história dele. E infelizmente tudo havia coincidido e estava acontecendo no mesmo dia, naquela tarde de domingo. Disse a si mesmo que dali a um ano, quando ganhasse o Oscar novamente, Cassie nem se lembraria do ocorrido.

Pegou o telefone de novo. Haveria outra sessão na semana seguinte e Cassie compreenderia.

Ela sempre compreendia.

NA QUARTA-FEIRA SEGUINTE, A DOUTORA JUNE chamou Cassie de lado na sessão em grupo das mulheres.

- Você deve perguntar a Alex se ele de fato está disposto a conseguir ajuda.

Cassie olhou para a terapeuta.

- É claro que está - ela disse, tentando imaginar o que o marido poderia ter dito durante as sessões que faria com que ela o criticasse. Quando ela havia perguntado a ele sobre as sessões, ele respondeu que estava tudo bem.

- Eu sei que você está - a doutora June disse. - Mas não é a mesma coisa. Compreeendo que ele tenha precisado faltar a uma sessão por compromissos de trabalho, mas duas na sequência eu acho um tanto exagerado. Se ele quer salvar o casamento com a terapia, deveria começar a comparecer.

- Ele não estava lá no domingo - Cassie disse lentamente, de repente compreendendo. Virou as palavras em sua mente, tentando imaginar onde Alex poderia ter ido, por que havia mentido. Olhando para cima, sorriu de maneira a se desculpar. - Ele acabou de fechar um trabalho muito importante. Tenho certeza de que as coisas serão diferentes agora.

- Cassie - dissse a doutora delicadamente -, você não precisa mais dar desculpas pelo comportamento dele.

Durante o longo trajeto para casa, ela conversou com John como sempre fazia. Entrou correndo na casa, chamando Alex com a voz tão alterada que encheu todos os cantos da sala com sua raiva.

Aqui - Alex disse.

Cassie abriu a porta do quarto e viu Alex sentado no sofá com um jornal aberto sobre seu colo. Havia uma garrafa de uísque entre as almofadas à sua direita.

- Está bebendo de novo - ela disse, tirando a garrafa dele e colocando-a no bar do outro lado do quarto. Ficou em pé com os braços cruzados, ao lado do chiqueirinho onde Connor estava.

Alex sorriu de maneira preguiçosa.

- Connor tomou sua mamadeira - ele disse. - Pensei que eu merecia uma também.

- Você não foi à sessão em grupo no último domingo - ela disse sem rodeios.

- Não - Alex admitiu, exagerando na pronúncia da palavra. - Estava ocupado reconstruindo minha carreira. Minha reputação. Aquela que você derrubou com tanta facilidade. - Ele ficou em pé e colocou o jornal nas mãos dela. - Este é o Informer de amanhã, pichouette. Chegou na porta de nossa casa em um envelope marrom. E não para nas manchetes. A história está na página 3, e é muito boa.

Cassie dobrou o jornal pela metade, olhando a primeira página, alex rivers enganado pelo filho fruto de traição de sua esposa. Havia uma foto tirada no aeroporto de Alex abraçando Cassie; e outra de Cassie com Will, entrando na delegacia meses antes, o dia em que Alex a buscara.

- Isso é ridículo - ela disse, começando a rir. - Não é possível que você acreditou nisso.

Alex voltou-se para ela com tanta rapidez que ela derrubou o jornal.

- Não interessa o que eu acredito. Interessa o que todos vão ler.

- Isto aqui não é a revista Time - Cassie disse. - Qualquer um que vir esta porcaria sabe que as histórias são absurdas. - Ela fez uma pausa. - Vamos processá-los e colocar o dinheiro no fundo de previdência de Connor.

Alex deu um passo à frente, segurando-a com força pelo braço.

- Eles estão citando a carta que ele escreveu para você, aquela que está lá em cima. Disseram que você vai encontrá-lo em Washington.

Por um momento ela pensou em como o bilhete de Will, que estava dentro de sua gaveta de roupas íntimas, havia se tornado algo de conhecimento público. Estava desapontada por alguém entre os funcionários ter divulgado seus assuntos pessoais, mas estava absolutamente chocada por Alex ter mexido em suas coisas.

- Não acha que vou embora, acha?

- Não - ele disse simplesmente -, porque eu a mataria antes. Cassie sentiu o clima pesar no quarto, pressionando suas têmporas e fazendo seus membros se mexerem lentamente. Encostou-se contra uma parede.

- Alex - ela disse com delicadeza -, escute o que digo. Olhe para Connor. - Ela esticou o braço para tocá-lo. - Eu te amo, eu voltei com você.

- Que merda! - Alex explodiu, seus olhos ficaram escuros. - Essa merda vai me seguir para sempre. Eu poderia ganhar qualquer prêmio do mundo e eles ainda assim arrastariam meu nome na lama com nossa vida particular. Vai ter sempre alguém olhando para aquele bebê com mais atenção do que deveria. - Ele agarrou Cassie pelos ombros e a jogou com força ao chão e depois passou a mão pelos cabelos. - Isso nunca teria acontecido se você não tivesse ido embora - ele disse e, apesar de Cassie ter rolado para longe dele, sentiu os chutes dele nas laterais de seu corpo e em suas costas, os punhos dele batendo em seus ombros e cabeça.

Quando tudo acabou e Cassie abriu os olhos, estava olhando para dentro do chiqueirinho de Connor. O bebê gritava assim como o corpo todo de Cassie. Seu rosto estava virado para o da mãe; para o de seu pai, que estava inclinado sobre o corpo de Cassie, chorando.

Quando Alex a tocou, Cassie ficou branca. O sangue escorria de sua orelha direita e ela percebeu que não estava escutando com aquele ouvido. Tirou Connor de seu cercadinho, acalmando-o, sussurrando para ele as coisas que costumava sussurrar a Alex. Olhou para o corpo do marido, bêbado e ajoelhado ao chão e começou a entender. Entendeu que pela primeira vez a raiva de Alex não havia sido desviada e dirigida a ela - tinha sido causada por ela. Que o resto de sua vida seria vivido com medo. Que seu filho veria Alex machucá-la várias e várias vezes e, sem querer, poderia crescer e se tornar como o pai. Que Alex, mesmo sem ter culpa, não conseguia cumprir suas promessas.

Ela atravessou o quarto e abriu a porta, olhando para John, que olhou por um instante prolongado para o sangue que escorria do rosto dela. Ela virou o rosto de Connor contra seu peito para que o bebê não visse, mas olhou mais uma vez para Alex, encurvado pela própria dor. E, da maneira com que as coisas mais comuns mudavam, Alex deixou de ser uma vítima. Tornou-se apenas patético.

CASSIE NÃO SOUBE DIZER SE ELE SABIA que ela estava chorando. Antes, quando aquilo acontecia, ela esperava ter a certeza de que o marido dormia para deixar as lágrimas escorrerem por seu rosto, em silêncio. Nunca fazia barulho, mas Alex conseguia escutar mesmo assim.

Ele queria tocá-la, mas sempre que tentava atravessar os intermináveis oito centímetros que os separavam não conseguia ir até o fim. Ele tinha sido o causador da dor. E se ela se afastasse dele, porque, afinal, sempre havia uma primeira vez, ele acreditava que ficaria arrasado.

Cassie - ele sussurrou. Silêncio. - Diga que não vai embora. Ela não respondeu.

Alex engoliu em seco.

- Vou à doutora June amanhã de manhã. Vou cancelar o filme. Deus, você sabe que eu faria qualquer coisa.

- Eu sei.

Ele virou a cabeça na direção da voz dela, prendendo-se àquelas duas palavras como se delas dependesse a sua vida, sem conseguir enxergar Cassie, exceto pelas marcas de lágrimas em sua pele.

- Não posso perdê-la - ele disse, a voz embargada.

Cassie olhou para ele, seus olhos brilhando como os de um fantasma.

- Não, não pode - disse calmamente.

Ela segurou a mão dele, unindo-os. E naquele momento Alex deixou seu choro acontecer de novo, silenciosamente, assim como o de Cassie. Disse a si mesmo que era reconfortante saber que ele detestava a si mesmo ainda mais do que Cassie o detestava. Como castigo, tentou dormir, imaginando, em sequência, os rostos irados de seu pai, sua mãe, sua esposa e seu filho - todas as pessoas a quem ele havia decepcionado.

DESSA VEZ, ELA NÃO SE CONTEVE. MESMO SABENDO que Alex estava acordado a seu lado, Cassie chorou. Não se tratava apenas de ir embora, como Alex pensava. Tratava-se de liberdade. Ela poderia deixar Alex e nunca ser livre; era só lembrar do que havia acontecido quando ela partira para Dakota do Sul para ter Connor. Para de fato se separar, ela teria de fazer Alex sofrer tanto quanto ela sofria. Ele não a deixaria livre - de jeito nenhum - a menos que ela tomasse uma atitude que fizesse com que ele a odiasse. Portanto, teria de fazer o que vinha evitando escrupulosamente havia quatro anos: tornar-se uma das pessoas que o magoaram.

Tentou se convencer de que, se realmente se importasse com Alex, teria de forçar a ruptura, uma vez que usá-la como desculpa para a sua fúria só faria mal para ele a longo prazo. Não significaria que ela não precisava mais dele. E certamente não significaria que não o amava. Alex estava certo quando dizia que ambos eram feitos um para o outro: porém de uma maneira incompleta e doente.

Lembrou-se de Alex em pé na porta dos Cavalo Alado em Pine Ridge, dizendo que ela era parte dele. Lembrou-se dele com as mãos sobre as dela enquanto pescavam sem vara em um riacho frio do Colorado. Lembrou-se de quando se sentara ao lado dele, observando leões no Serengeti. Lembrou-se do gosto e do tato dele e do peso de sua pele contra a dela.

Não compreendia como havia chegado àquele ponto, no qual amava tanto a Alex que, literalmente, estava sendo morta.

Cassie observou a noite passar enquanto analisava as opções. Fechou os olhos e, para sua surpresa, viu Will e não Alex, amarrado a um varão sagrado durante a Dança do Sol. Sentiu o calor subindo da planície, escutou os tambores e os apitos. Pensou no momento em que Will se soltou, com as feridas na pele. Aquilo tinha sido extremamente doloroso, mas era a única maneira de ele se libertar.

O dano era permanente; sempre existiriam cicatrizes. Mas até mesmo as maiores marcas desapareciam com o tempo, até que ficasse difícil vê-las na pele, e a única coisa que restava era a lembrança de como havia sido dolorido.

Cassie segurou a mão de Alex, tentando memorizar a temperatura de sua pele, o cheiro e a sensação de tê-lo deitado a seu lado à noite. Aquelas eram as coisas que se permitiria guardar. Passou o polegar sobre as linhas suaves da palma da mão dele, acariciando uma desculpa pelo que estava prestes a fazer, e marcando sua despedida.

 

Por um terrível momento, Cassie olhou para os rostos ansiosos diante dela e pensou: "Eles não vão acreditar em mim." Pensou que apenas ririam. "Alex Rivers? Você só pode estar brincando", eles diriam. E então fechariam seus cadernos, rebobinariam as fitas das câmeras e a deixariam sozinha e envergonhada.

Engolindo o medo e o orgulho, ela se ajeitou na cadeira de metal do hotel que o concierge havia colocado ali para preparar a coletiva de imprensa. Ela passou a mão pelas pregas de sua saia azul-marinho. Parece uma estudante, haviam dito. Nada ousada, nada sensual. Como se tivesse atraído a atenção, a agressão.

Ao lado dela, em uma cadeira parecida, Ophelia estava segurando o bebê. Connor estava com soluços, sons curtos que faziam Cassie se lembrar de choro. Ela sabia que, com quase dois meses de idade, ele não podia entender e não se lembraria. Assim como sabia que sempre que ele a procurasse ela se lembraria do pai dele, ao ver aqueles olhos brilhantes.

Pigarreando, ela ficou em pé. Quase imediatamente a massa de jornalistas silenciou, prestando atenção como se fossem os soldados de um batalhão.

- Bom dia - Cassie disse, inclinando-se na direção do microfone, tocando-o levemente.

Fez-se um som alto. Cassie deu um passo para trás, assustada.

- Desculpem-me - ela disse, um pouco mais delicadamente. - Obrigada pela presença.

Pensou no absurdo que dissera, como se tivesse reunindo um grupo de amigas para um chá da tarde. Pensou em como teria sido muito mais fácil realizar uma reunião de amigos, em vez de estar se entregando incondicionalmente àquela matilha de cães famintos. Não tinha mais ilusões; Alex as destruirá duas noites antes. Aquelas pessoas não eram suas amigas, nunca tinham sido. Elas só a conheciam por causa de Alex; haviam concordado em estar ali apenas porque pensavam que ela diria algo sobre ele. Cassie era algo secundário para eles. Se os jornalistas chegassem a mencionar seu nome depois que tivessem conhecimento da história, ela seria pintada como um tipo de maluca lastimável, ou como uma idiota incapaz de ter se defendido durante todos aqueles anos.

Cassie abriu o pequeno pedaço de papel que havia lido centenas de vezes desde o café da manhã, sua declaração preparada para a coletiva. Ophelia a orientara a olhar nos olhos das pessoas, a modular a voz para um tom baixo e regular - truques de atores para parecerem mais simpáticos para uma plateia. Mas quando seus dedos se congelaram ao redor da folha com rebarbas, tremendo visivelmente, não conseguiu se lembrar de nada do que havia ensaiado. Então, começou a ler, dizendo cada palavra com um tom de insegurança, como uma criança de oito anos, ocupada demais em pronunciar os sons e não dando sentido ao que dizia.

- Meu nome é Cassandra Barrett. A maioria de vocês me conhece como esposa de Alex Rivers. Nós nos casamos no dia 30 de outubro de 1989, e nosso casamento tem sido alvo da atenção da imprensa em diversas ocasiões, e a mais recente delas foi no nascimento de nosso filho. No entanto, ontem, eu pedi o divórcio de Alex Rivers alegando extrema crueldade.

A afirmação, que acontecia menos de um mês depois da demonstração de felicidade que Alex e Cassie haviam feito no LAX, quando chegaram com Connor, gerou uma onda de sussurros entre os jornalistas, fazendo com que Cassie se sentisse sufocada. Ela se segurou no canto da mesa, atrapalhando-se com as últimas frases da folha. - Depois desta coletiva de imprensa, quaisquer perguntas podem ser feitas à minha advogada, Carla Bonanno, ou ao senhor Rivers. - Ela respirou profundamente. - Mas, para promover a verdade, estou disposta a responder a algumas das perguntas agora.

Várias pessoas ergueram as mãos diante de Cassie, tirando sua visão da câmera. Vozes se misturaram.

- senhora Barrett - um jornalista perguntou -, ainda está morando com Alex Rivers?

- Não - Cassie disse.

- Ele concordou com o divórcio?

Cassie olhou para sua advogada, sentada à esquerda.

- Os papéis serão apresentados hoje. Não espero que ele os conteste.

Outro jornalista tentou abrir caminho para a frente da multidão, balançando um microfone sob o tablado.

- Crueldade extrema não é justificativa para um divórcio - senhora Barrett. - Está exagerando as desculpas para pedir o divórcio e pôr as mãos no dinheiro?

Cassie arregalou os olhos ao tom depreciativo do jornalista, por sua audácia em fazer uma pergunta tão pessoal. Pelo amor de Deus, aquele era o casamento dela. O marido dela.

- Não pretendo tirar nada de Alex.

"Apenas eu mesma", ela pensou. - E não estou exagerando nas acusações. - Ela baixou o olhar, pensando que estava em um caminho sem volta. Cuidadosamente tirou as emoções de seu rosto e ergueu a cabeça de novo, olhando para tudo e para o nada ao mesmo tempo. - Fui agredida por Alex Rivers nos últimos três anos.

Sinto muito, sinto muito, sinto muito. As palavras passavam por sua mente e ela não sabia se o que pensava era para Deus, para Alex ou para si mesma. Sentiu o coração bater com tanta força que parecia estar levantando o tecido de sua blusa.

- Pode provar?

A pergunta tinha sido feita por uma mulher, e era mais suave do que a maioria das outras tinham sido, e talvez tenha sido por isso que Cassie fez o que decidiu fazer. Mantendo os olhos voltados para a porta no fundo da sala de conferência, lentamente ela abriu os três primeiros botões de sua blusa e afastou para o lado a tira do sutiã para revelar um hematoma grande e arroxeado. Tirou a blusa do cós da saia e a levantou até o estômago, virando-se levemente para que as costelas inchadas e cheias de marcas pudessem ser vistas.

A sala de conferência ficou tomada por flashes e por sons cacofônicos. Cassie ficou em pé, parada, controlando-se para não tremer, desejando estar em qualquer lugar, menos ali.

QUANDO ACORDOU NA MANHÃ SEGUINTE ao DIA EM QUE Alex a agredira, o lado dele da cama estava frio e as cobertas haviam sido esticadas. Por um momento, Cassie olhou para elas, para os travesseiros bem organizados. Talvez não tivesse acontecido. Talvez Alex não tivesse dormido ali.

Ela tomou um banho, deixando a água quente suavizar os pontos mais doloridos e foi ver Connor. A enfermeira da noite pegou o bebê para que Cassie pudesse amamentá-lo. Sentada na grande cadeira de balanço, ela olhou pela janela ao que prometia ser um belo dia na Califórnia.

- Vamos embora de novo - ela sussurrou ao filho. Em seguida, ficou em pé e o carregou para o trocador, abrindo as abas plásticas da fralda descartável e colocando uma limpa sob as nádegas da criança. Ela olhou para o corpinho dele: as pernas compridas e fortes; a barriga gordinha; as gordurinhas em seus braços que quase pareciam com os músculos de um homem adulto.

Quando a enfermeira voltou, Cassie sorriu para ela.

- Pode me fazer um favor? - ela pediu, instruindo a funcionária a encher uma bolsa com fraldas e diversas trocas de roupa, além de pijamas para Connor. E então, deixando Connor no moisés, desceu as escadas.

Não parou para tomar café na sala de jantar; não procurou por Alex na biblioteca nem no escritório. A verdade era que não se importava. Havia tomado sua decisão na noite anterior.

O plano que ela havia feito envolvia sua imagem pública. Afinal, era o que havia causado a briga na noite anterior. E, Cassie precisava admitir, sua imagem pública fazia tanto parte da vida dele como da dela, a esposa. Quando o garoto de ouro não mais parecesse tão dourado e quando ele descobrisse quem havia causado toda a comoção, ela estaria livre. Ou Alex teria de admitir suas acusações e ganhar a simpatia das pessoas ao pedir ajuda, ou teria de contra-atacar e desmentir a história dela, dizendo calúnias. Não importava o rumo que as coisas tomariam. De qualquer modo, o resultado arruinaria a vida de Alex; de qualquer modo, o resultado mataria Cassie.

Por que ela estava forçando Alex a deixar de amá-la, mas não conseguia deixar de amá-lo.

Ela abriu a porta da frente, caminhando descalça pelas escadas de mármore e pelo caminho comprido que levava às piscinas e às outras construções. Um dia, ela mostraria a Connor fotos daquele castelo e diria que por pouco ele não havia crescido como o príncipe de Hollywood. Ela caminhou para a segunda construção baixa e branca, o laboratório que Alex havia construído para ela logo depois do casamento.

Estava escuro e com cheiro de mofo; ela estivera ali durante alguns minutos desde que voltara para a residência, mas tinha muito o que fazer para Connor e não o deixava sozinho durante o dia dentro da casa. Acendendo a luz, ela viu o espaço cavernoso tomado pelas cores do passado: ossos amarelados e mesas metálicas brilhantes, instrumentos prateados e a terra vermelha.

Tentou imaginar como eram as paisagens de onde aqueles ossos haviam sido retirados. E o que as pessoas, donas daqueles esqueletos, faziam durante o dia. Percebeu que para alguém para quem a antropologia cultural tinha sido uma anátema, suas perguntas eram estranhas e desconhecidas. Parecia, de certa maneira, que a antropologia para Cassie havia sido uma exploração em uma sala pequena e fascinante, e ela puxou uma cortina, acreditando ser um armário, mas viu que se tratava de uma nova sala, duas vezes maior do que a primeira.

Ela sempre teria seu trabalho quando deixasse Alex - ele já existia antes e era parte dela, assim como Connor -, mas sua pesquisa nunca seria a mesma. Ela havia visto as possibilidades e, depois de Pine Ridge, não acreditava que poderia continuar olhando para os ossos soltos. Havia aprendido com os lakota que, apesar de uma pessoa ser feita de músculos, ossos e tecidos, era igualmente formada por seus hábitos na vida e pelas escolhas que fazia e as lembranças que deixava a seus filhos.

Antes de Cassie partir para Pine Ridge, estava estudando um crânio do Peru, enviado por um colega, no qual um disco claro de osso havia sido removido. O cientista que o enviara a ela queria sua opinião acerca da natureza do dano. Seria uma perfuração causada por uma pessoa - realizada durante uma operação para retirar parte como amuleto, ou para aliviar dores de cabeça - ou seria causado por algo natural? Cassie sentou-se à mesa de exame, analisando suas anotações para obter outras explicações. Feito por uma picareta durante a escavação. Pressão contínua de um objeto pontiagudo na cova. Erosão. Defeito congênito. Reação sifilítica.

Segurando a cabeça com as mãos, ela tentou imaginar o que um cientista pensaria a respeito do esqueleto dela, se fosse desenterrado daqui a milhões de anos. Será que ele passaria seus instrumentos sobre as costelas dela, trincadas, prejudicadas, mutiladas? Atribuiria o prejuízo aos ossos a algum escavador descuidado? À erosão? A seu marido?

Cassie enrolou o crânio em algodão e o colocou de volta na caixa. Usou serragem e jornal rasgado para fazer mais uma camada de proteção, com cuidado, como se o crânio ainda sentisse a dor do estrago causado. Sem imprimir uma carta formal, ela dobrou sua lista de observações. Não era a pessoa mais adequada para analisar aquilo. Não mais. Por isso, escreveu um bilhete do lado de fora, dizendo que não tinha tempo de estudar mais a espécie, desculpando-se pelos meses em que deixara o cientista esperando. Em seguida, colocou o bilhete e o crânio dentro da caixa e fechou a tampa com um grampeador.

Cassie levou a caixa para dentro da casa para enviá-la pelo correio, sentindo seu peso aumentar a cada passo. Tentou imaginar por que.

Cassie ficou confusa com tantas perguntas, pensando que mesmo se soubesse para onde iria a última coisa que faria seria deixar marcas para que a imprensa a seguisse.

- Estou de licença-maternidade de meu trabalho - ela disse lentamente. - Quanto a voltar ou não para a UCLA quando essa licença acabar, é uma decisão que tomarei mais adiante.

Um homem de casaco verde-oliva tirou seu chapéu:

- Vai permanecer em uma de suas outras residências?

Cassie negou com um movimento de cabeça. Mesmo que quisesse metade da riqueza e dos bens de Alex, como a lei da Califórnia lhe permitia ter, não permaneceria em nenhum lugar onde havia vivido com ele. No rancho, no apartamento e talvez até na Tanzânia, os ambientes estavam marcados pela imagem dos dois juntos. Ela hesitou, depois mordeu o lábio inferior.

- Tenho diversas opções - ela mentiu.

HAVIA LEVADO CONNOR PARA A CASA DE OPHELIA.

- Jesus - Ophelia disse quando abriu a porta. - Que diabos aconteceu com você?

Cassie não havia se preocupado em pentear o cabelo ou colocar maquiagem. Havia pegado as primeiras peças de roupa que pôde encontrar naquela manhã, que tinham sido uma camisa polo roxa e short de algodão com listras verdes e brancas.

- Ophelia, preciso de sua ajuda - ela disse simplesmente.

Durante todo o tempo em que explicou à amiga as partes sombrias de seus últimos três anos com Alex, e durante a meia hora que passou mostrando os ferimentos inchados de seu corpo, Cassie não chorou. Com o pé esquerdo, balançava o carrinho de Connor e respondia às perguntas de Ophelia. No final, Ophelia chorou por ela e telefonou para a amiga de uma amiga que tinha contato com uma boa advogada para cuidar do divórcio. Quando Cassie tentou recusar, Ophelia olhou para ela com desapontamento.

- Você pode não querer nem um centavo dele, mas tem algo que ele quer desesperadamente. Seu filho.

Ophelia foi aos cinco bancos onde Cassie e Alex tinham contas conjuntas e, usando os cartões nos caixas automáticos, havia sacado uma generosa quantia de cada um deles. Comprou fraldas e mamadeiras para Connor, uma vez que Cassie havia saído de casa deixando quase tudo.

Enquanto Ophelia estava fora, Cassie embalou Connor para que dormisse e o colocou sobre a cama que tinha sido dela quatro anos antes. Em seguida, foi para a sala de estar e fechou as cortinas, como se as pessoas já pudessem estar espiando. Pegou o telefone e discou o número do telefone público do mercado em Pine Ridge; o local administrado por Horace; o local de onde havia telefonado para Alex um mês e meio antes.

- Cassie! - Horace disse, e no fundo ela pôde escutar o barulho do trabalho dos idosos lakota encurvados sobre barris de grãos. Escutou os gritos das crianças correndo até o balcão, pedindo pelos chicletes gratuitos. - Toníktuka hwo? Como você está?

Pela primeira vez desde que pegara um táxi para sair da casa de Alex, Cassie deixou-se desanimar por um instante.

- Já estive melhor - ela admitiu com a voz fraca. - Horace, preciso de um favor.

UM POUCO DEPOIS DAS DEZESSEIS HORAS, quando Ophelia estava no parque com Connor, o telefone tocou. Cassie o atendeu com a mão trêmula.

- Alô? - ela disse, um pouco mais alto do que pretendera, pensando no que faria se escutasse a voz de Alex. Mas escutou a voz de Will, hesitante e distante em uma ligação ruim, dizendo o nome dela. Ela se curvou, suspirando de alívio.

- Cassie? - Will repetiu.

- Estou aqui. - Fez uma pausa, tentando reunir as palavras.

- O que ele fez? Vou matá-lo.

- Não - Cassie disse. - Não vai. Em Pine Ridge, com um adolescente empilhando sacos de grãos à sua esquerda, Will bateu o punho contra a parede. Sabia, mesmo sem ter sido informado, que Alex a agredira de novo. Ele havia percebido que o número de telefone que Horace havia lhe passado não era o de Cassie. Estava impotente, a centenas de quilómetros de distância, e esperou para saber o que ela queria, exatamente. Não se permitiu ter esperanças e não se permitiria fazer qualquer oferta, mas sabia que se ela pedisse ele a buscaria e a esconderia para sempre.

- Estou me divorciando - Cassie disse. - Vou realizar uma coletiva de imprensa.

Will encostou a testa no canto do telefone público. A imprensa de Hollywood a comeria viva quando ela destruísse Alex.

- Esqueça isso - ele disse. - Venha comigo para Tacoma.

- Não posso continuar fugindo. E não quero que você venha me salvar. - Cassie suspirou. - Acho que está mais do que na hora de eu salvar a mim mesma.

Mas, mesmo depois de dizer aquilo, seus ombros começaram a balançar e ela se afundou ainda mais entre as almofadas do sofá, como se não aguentasse mais ficar ereta.

- Cassie, querida, por que ligou para mim?

Estava soluçando tanto que não pensava que conseguiria falar.

- Porque estou com medo - ela sussurrou. - Estou com muito medo.

Will pensou em dizer que ela não estava sozinha; pensou em pegar um avião para Los Angeles e dirigir até onde ela estivesse e beijá-la até que seu medo desaparecesse e unisse seu corpo ao dele. Tentou imaginar como podia ser tão tolo de entregar seu coração a uma mulher que provavelmente amaria outro homem pelo resto de sua vida.

Mas, em vez disso, manteve a voz firme e clara.

- Cassie, tem um espelho por aí?

Ela sorriu.

- Ophelia tem três só no corredor.

- Bem... fique em pé diante de um deles.

Cassie fez uma careta.

- Isso é bobagem. Preciso de mais do que um exercício dramático idiota. - Mas obedeceu e parou diante de um espelho, analisando suas pálpebras inchadas, a mandíbula ferida.

- E então?

- Estou horrível - Cassie disse, esfregando os olhos e o nariz. - O que deveria estar vendo.

- A pessoa mais corajosa que conheço - Will disse.

Cassie aproximou o telefone da orelha, registrando a afirmação de Will. Lembrou-se de que, logo depois de se casar com Alex, ele telefonava para ela no escritório e, como adolescentes, eles conversavam durante horas a portas fechadas, discutindo como seria o futuro e falando sobre a sorte que haviam tido por terem se encontrado.

Cassie olhou para seu rosto no espelho.

- Nunca estive em Tacoma - ela disse e tentando sorrir, guardou as palavras de Will dentro de ssi e tirou delas a força dele.

- QUANDO AS AGRESSÕES TIVERAM INÍCIO?

- Você sabia que ele era violento antes de se casar?

Cassie deixou que as perguntas fossem feitas. Olhou para trás, para Ophelia e Connor, procurando apoio.

- Você o ama?

Não tinha de responder. Sabia disso. Mas queria. Se ia fazer o mundo ver Alex como um monstro, dependia dela também fazer com que o mundo o visse como um homem maravilhoso, gentil e carinhoso que a fizera se sentir completa.

A melhor saída, ela pensou, seria fazer piada da pergunta, como se tivesse sido absurda.

- Você pode perguntar isso a quase qualquer mulher deste país - Cassie disse delicadamente. E continuou: - Quem não o ama?

Ela olhou para a frente, procurando pelas fileiras de jornalistas como se estivesse procurando por alguém em especial, até que viu o homem nos fundos. Não percebera a presença dele antes, mas não estava prestando atenção. Ele vestia um casaco de lã com a gola puxada para cima, algo bem quente para aquele dia. O rosto dele estava bem enterrado perto do peito, e os olhos estavam escondidos por óculos de sol modelo aviador.

Alex olhou diretamente para Cassie e tirou os óculos. Colocou-os no bolso da frente do casaco. Cassie não desviou o olhar dele. Ele não estava bravo. Nem um pouco. Era como se compreendesse. Ela prendeu a respiração, procurando novamente para ver o que havia perdido, o que ele estava tentando lhe dizer.

- Mais uma pergunta - ela disse, olhando fixamente para o ponto onde Alex estava. "Por que dessa maneira? Por que agora? Por que nós?"

Ela apontou para um homem na fileira da frente na sala de conferência.

- Se pudesse dizer qualquer coisa a ele neste momento - o jornalista perguntou -, sem medo de retaliação da parte dele, o que diria?

Ela pensou ter visto lágrimas brilhando nos olhos de Alex, e ele ergueu a mão como se fosse tocá-la. "Não" Cassie pediu silenciosamente. "Se você fizer isso, posso aceitar." E dessa maneira, ele voltou a abaixar o braço, seus dedos passando pela lã grossa do casaco.

- Eu diria o que ele sempre me dizia - Cassie sussurrou a ele. - Eu não tive a intenção de magoá-lo.

Ela fechou os olhos para se recompor antes de dispensar as pessoas da imprensa que haviam se reunido a seu pedido. Quando os abriu novamente, ainda estava olhando para o ponto onde, segundos antes, Alex estivera, mas ele não estava mais lá. Ela balançou a cabeça como se quisesse limpá-la, e tentou imaginar se ele de fato estivera ali.

Sem mais nada dizer, ela se virou para a plateia, cuidadosamente colocando a blusa para dentro da saia. Os jornalistas continuaram tirando fotos e fazendo gravações dela saindo da sala de conferências do hotel: pegando seu bebê, passando a alça da bolsa pelo ombro, caminhando adiante.

Passou pelo salão de veludo vermelho com as pessoas começando a encará-la. Atravessando a porta giratória, ela saiu na calçada, puxando o ar com grandes inspirações.

Consegui, consegui, consegui. Os sapatos de Cassie pareciam ecoar essas palavras contra o concreto da calçada enquanto ela caminhava até o fim do quarteirão. Ela se movia com pressa, como se estivesse atrasada para um compromisso. O centro de Los Angeles era movimentado na hora do almoço. Parada na esquina, Cassie prendeu Connor ao peito enquanto passavam por homens de negócios, mensageiros com bicicletas e belas mulheres carregando sacolas de lojas.

Não foi nada específico que fez com que ela olhasse para cima. Nenhum barulho, nenhuma luz forte, nenhuma inspiração. Mas, naquele momento, passando pelo calor e pela fumaça no céu, havia uma águia voando em círculos. Ela esperou que alguém apontasse para o céu e percebesse, mas as pessoas apenas passavam rapidamente, concentradas em suas vidas.

Ela virou o rosto de Connor, para que ele também pudesse ver.

Cassie protegeu os olhos da luz do sol, observando a ave voar a leste. Muito tempo depois de a águia ter desaparecido, ela olhou para o céu sem limite; e apesar de o fluxo de pessoas ter aumentado ao seu redor, ela não perdeu o equilíbrio.

 

                                                                                Jodi Picoult  

 

                      

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