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O FIM DA AVENTURA / Graham Greene
O FIM DA AVENTURA / Graham Greene

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O FIM DA AVENTURA

 

Uma história não tem princípio ou fim: escolhemos arbitrariamente um momento da experiência, de onde olhar para trás, ou olhar para diante. Digo «escolhemos», com o impreciso orgulho de um escritor profissional, de quem - quando a sério o consideram - louvam a capacidade técnica; mas será de facto por minha livre vontade que eu escolho essa negra e chuvosa noite de Fevereiro de 1946 e a visão de Henry Miles atravessando obliquamente o vasto rio de chuva, ou estas imagens me escolheram? É conveniente, e até conforme com as regras da minha arte, começar exactamente por aí; mas acreditasse eu então em um Deus, e também acreditara que uma mão me segurara o braço e alguém me sugerira: «Fala-lhe: ele ainda não te viu.»

 

Pois que razão tive eu para lhe ter falado? Se o ódio não é uma palavra demasiado grande para a usarmos em relação a um ser humano, eu odiava Henry - como odiava Sarah, sua mulher. E ele, ao que suponho, logo depois dos acontecimentos dessa noite, também começou a odiar-me: tanto quanto por vezes terá odiado a mulher e o outro, esse outro, em cuja existência, nessa época, éramos felizes bastante para não acreditar. E assim é isto um memorial de ódio muito mais que de amor; e, se eu vier a dizer algo em favor de Henry ou de Sarah, podem crer, já que escrevo contra o que sinto, por ser do meu orgulho profissional o preferir uma quase-verdade mesmo à expressão do meu quase-ódio.

 

Era estranho encontrar Henry na rua numa noite daquelas: ele apreciava o conforto e, no fim de contas - pensava eu -, possuía Sarah. Para mim o conforto é como uma recordação discordante da ocasião e do lugar: se se é um solitário prefere-se o desconforto. Havia conforto de mais mesmo no quarto de cama e na sala de estar em que eu morava, do pior lado - o sul - do Parque, entre as relíquias da mobília de outra gente. Pensara dar um passeio debaixo de chuva e beber qualquer coisa. O pequeno vestíbulo estava cheio de chapéus e sobretudos, e peguei num chapéu de chuva que não era o meu - o vizinho do segundo andar tinha visitas. Depois fechei atrás de mim a porta envidraçada e desci cuidadosamente as escadas bombardeadas em 1944 e nunca reparadas. Tinha razões para recordar esse momento e como o envidraçado, forte, feio e vitoriano, resistira ao abalo com uma segurança digna dos nossos avós.

 

Logo que comecei a atravessar a rua, verifiquei que o chapéu de chuva não era o meu, pois que metia água que me escorria pelo colarinho abaixo, e foi então que vi Henry. Tão facilmente eu pudera evitá-lo: não levava chapéu de chuva, e à luz do candeeiro via-lhe os olhos que a água cegava. As negras árvores sem folhas nada protegiam, estavam por ali como canos rotos; e a chuva pingava-lhe o severo chapéu escuro e descia-lhe pelo negro sobretudo de funcionário público. Podia ter-lhe passado mesmo ao lado sem que ele me visse, e, para maior segurança, bastaria afastar-me meio metro, mas disse: «Henry, quase nos não conhecemos, e vi-lhe os olhos iluminarem-se como se fôssemos dois velhos amigos.

 

«Bendrix, disse ele, afectuosamente, e todavia quem não diria que ele, e não eu, tinha motivos de ódio.

 

- Que anda você a fazer debaixo de chuva, Henry? Homens há com os quais sentimos um desejo irresistível de implicar: aqueles cujas virtudes não partilhamos. Respondeu evasivamente: - Oh, precisava de tomar ar -, e, durante uma súbita rabanada de vento e chuva, agarrou o chapéu justamente a tempo de lhe não ser levado para o lado norte.

 

- E Sarah, como vai? - perguntei eu, porque teria parecido absurdo não perguntar, embora nada me tivesse agradado mais do que ficar sabendo que ela estava doente, abatida, moribunda. Nesse tempo eu supunha que o sofrimento dela aliviaria o meu, e que, se ela morresse, eu me libertaria: não mais imaginaria todas as coisas que uma pessoa imagina nas minhas circunstâncias ignóbeis. E, pensava eu, se Sarah tivesse morrido, até era capaz de gostar daquele pobre triste.

 

Ele retorquiu: - Ora, foi a qualquer parte -, e saltou-me o diabo dentro da cabeça outra vez, fazendo-me lembrar outros dias em que, a outros inquiridores, ele teria respondido o mesmo, quando só eu sabia onde Sarah estava. - Bebe alguma coisa? perguntei, e qual não é o meu espanto ao vê-lo pôr-se em marcha a meu lado. Nunca tínhamos bebido juntos fora da casa dele.

 

- Há muito tempo que nos não vemos, Bendrix. - Por alguma razão sou um homem que toda a gente conhece pelo apelido: podia não ter sido baptizado, tal é o uso que os amigos dão ao pretensioso Maurice que os meus aliteratados pais me puseram.

 

- Há muito tempo.

 

- Deixe cá ver... há mais de um ano.

 

- Desde Junho de 1944 - disse eu.

 

- Desde essa altura... pois é. - Pateta, pensava eu, que não achas estranha uma ausência de ano e meio. Menos de quinhentos metros de relva - eis o que nos separava. Nunca lhe ocorrera perguntar a Sarah: «Que é feito de Bendrix? Não podíamos convidar o Bendrix?», e as respostas dela não lhe teriam parecido... estranhas, evasivas, suspeitas? Eu desaparecera-lhes da vista tão completamente como pedra caída a um poço. Creio que os círculos da água terão incomodado Sarah uma semana, um mês... mas, não havia dúvida, Henry usava os antolhos bem apertados. Odiara-lhos mesmo enquanto beneficiara deles, por saber que outros igualmente poderiam beneficiar.

 

- Ela foi ao cinema?

 

- Não... quase nunca vai.

 

- Costumava ir.

 

As Armas de Pontefract1 ainda conservavam as decorações do Natal, grinaldas e pingentes de papel, relíquias amarelas e cor de laranja de uma comercial alegria, e a patroa, ainda jovem, apoiava os peitos no balcão, fixando desdenhosamente os fregueses.

 

- Muito bonito - afirmou Henry, sem sentir que assim fosse, e ficou parado, a olhar em volta com um ar vago, uma timidez, à procura de onde pendurar o chapéu. Figuei com a

 

1 Pontefract: cidadezinha do Yorkshire. Nomes como este são imensamente comuns: não há povoado de Inglaterra com menos de dois a três botequins intitulados «Armas» de qualquer parte ou de alguém.

 

impressão de que o que ele, em matéria de tais lugares públicos, conhecia que mais se parecesse era o restaurante da Northumberland Avenue, onde almoçava com os colegas do Ministério.

 

- Que toma você?

 

- Não me desagradava um whisky.

 

- Nem a min, mas há-de tomar rum.

 

Sentámo-nos a uma mesa, ficámos mexendo vagarosamente nos copos: nunca me sobrara que dizer-lhe. Tenho dúvidas se alguma vez me teria interessado por conhecer bem Henry e Sarah, não fora haver começado em 1939 a escrever uma história cuja principal personagem era funcionário superior. Henry James disse uma vez, discutindo com Walter Besant, que uma rapariga suficientemente talentosa precisava apenas de passar diante das janelas da messe de um quartel da Guarda e de olhar para dentro, se quisesse escrever um romance acerca da Brigada, mas, quanto a mim, suponho que ela, a certa altura do livro, acharia preciso dormir com um dos guardas, que mais não fosse para verificar certos detalhes. Claro que eu não dormi com Henry, embora tenha feito a melhor coisa parecida; e, na primeira noite em que levei Sarah a jantar fora, era minha raciocinada intenção perscrutar os miolos da mulher de um funcionário público. Ela não sabia o que eu queria; estou certo de que me julgava genuinamente interessado pela sua vida familiar, e foi talvez o que lhe despertou a simpatia. A que horas almoçava Henry?, perguntava eu. Ia para a repartição de metropolitano, autocarro ou táxi? Trazia trabalho para casa? Tinha uma pasta timbrada com as armas reais? A nossa amizade floresceu ao calor do meu interesse: de tal modo lhe agradava que alguém tomasse Henry a sério. Henry era importante, assim importante como um elefante é importante, graças ao volume que ocupa: há vários tipos de importância irremediavelmente condenados à desconsideração. Henry era um importante secretário adjunto no Ministério das Pensões - que mais tarde viria a ser o Ministério da Segurança Interna. Segurança Interna - e eu costumava rir-me disto, depois, naqueles momentos em que odiamos o próximo e qualquer arma nos serve... Chegou uma altura em que deliberadamente eu disse a Sarah que escolhera Henry apenas com o propósito de copiar, e copiar para uma personagem que era o elemento cómico e ridículo no meu livro. Então foi que ela começou a detestar-me o romance. Era imensamente leal para com Henry (nunca pude negá-lo), e, nas horas sombrias em que o Diabo se apossava de mim e eu até detestava esse inofensivo Henry, servia-me do romance, inventava episódios demasiado obscenos para serem escritos... De uma vez que Sarah passara a noite inteira comigo (e eu esperara por isso como um escritor espera pela última palavra de um seu livro), eu despedaçara subitamente a ocasião única, com uma frase desastrada que dissolveu o ambiente do que, por vezes e durante horas, parecera um perfeito amor. Depois adormecera cerca das duas horas para acordar às três, e despertei Sarah pondo-lhe a mão no braço. Julgo que pensava recompor de novo tudo, até que a minha vítima voltou a cabeça e lhe vi o rosto rameloso, sonolentamente belo e prenhe de confiança. Esquecera a zanga, mas mesmo no seu esquecimento eu encontrei um novo motivo. Como são complicados os seres humanos, embora digam que um Deus nos fez, porque acho difícil conceber um Deus que não seja tão simples como uma equação resolúvel e tão transparente como o ar que respiramos. E disse-lhe: «Tenho estado acordado a pensar no capítulo quinto. Antes de qualquer reunião importante, o Henry costuma tomar algumas pastilhas contra o mau hálito?» Ela abanou a cabeça e principiou a chorar em silêncio e, é claro, eu fingi não compreender porquê - uma pergunta tão simples, que me preocupava a propósito da minha personagem, não estava a atacar o Henry, as mais distintas pessoas tomam às vezes pastilhas... E assim por diante. Ela continuou chorando e acabou por adormecer - dormia muito bem, e mesmo essa capacidade de bem dormir eu considerava ofensa adicional.

 

Henry bebeu rapidamente o seu rum, o olhar perdido miseravelmente por entre as grinaldas amarelas e cor de laranja. Perguntei: - Então, um feliz Natal?

 

- Muito agradável. Muito agradável.

 

- Em casa? - Henry olhou para mim como se a inflexão da minha voz lhe houvesse parecido estranha.

 

- Casa? Sim, pois claro.

 

- E Sarah, bem?

 

- Sim.

 

- Toma outro rum?

 

- É a minha vez.

 

Enquanto ele mandava vir as bebidas fui ao urinol. Havia frases nas paredes: «O raio que te parta, patrão, a ti e à tua esposa mamalhuda, «A todos... uma sífilis alegre e uma feliz gonorreia». Voltei logo às grinaldas de papel e ao barulho dos copos. As vezes, vejo-me insuportavelmente reflectido nos outros, e sinto então um enorme desejo de acreditar em santos, nas virtudes heróicas.

 

Repeti a Henry as duas frases que vira. Queria chocá-lo, e fiquei surpreendido quando ele me disse simplesmente:

- O ciúme é uma coisa terrível.

 

- Refere-se à frase da esposa mamalhuda?

 

- A ambas. Quando uma pessoa se sente desgraçada, inveja a felicidade dos outros. - Nada disto eu esperava que ele tivesse aprendido no Ministério da Segurança Interna. E cá está - nesta frase - o azedume a escorrer-me outra vez da caneta. Que triste coisa sem vida é este azedume! Se eu pudesse, escreveria com amor; mas se eu soubesse escrever com amor, seria outro homem: e nunca o teria perdido. E todavia, subitamente, por sobre a polida superfície da mesa, senti perpassar algo, algo não tão absoluto como o amor, talvez nada mais que um sentimento de camaradagem no infortúnio. E disse: - Sente-se desgraçado, Henry?

 

- Bendrix, estou preocupado.

 

- Diga o que é.

 

Julgo que era o rum que o fazia falar, ou tinha ele certa consciência de quanto eu sabia a seu respeito? Sarah era leal, mas, em relações como as nossas tinham sido, é inevitável não chegar a saber uma ou duas coisas... Eu sabia que ele tinha um sinal à esquerda do umbigo, porque uma marca, que eu próprio tinha, fizera com que Sarah se lembrasse do dele; eu sabia-o míope, e que não punha os óculos diante de estranhos (e eu era para ele ainda suficientemente estranho para nunca o ter visto com eles); eu sabia que ele gostava de tomar chá às dez; sabia mesmo dos seus hábitos íntimos. Estaria ele consciente de que eu já sabia tanto, que um facto a mais ou a menos não alterava o pé das nossas relações? E disse-me: - Ando preocupado com a Sarah, Bendrix.

 

A porta do bar abriu-se e pude ver a chuva que continuava fustigante. Um homenzinho entrou muito risonho e exclamou: Ora vivam todos! -, sem que ninguém respondesse.

 

- Mas ela está doente? Parece-me que você tinha dito...

 

- Não, não está. Não me parece que esteja. - E olhou desconfortàvelmente em volta: não estava no seu milieu. Reparei que tinha o branco dos olhos injectado; talvez que não pusesse os óculos tanto quanto precisava - há sempre tantas pessoas estranhas, ou talvez que fosse apenas o pernicioso efeito de lágrimas. - Bendrix, não posso falar aqui - disse ele, como se alguma vez tivesse tido o hábito de falar noutra parte. - Venha comigo a minha casa.

 

- Sarah já terá voltado?

 

- Não creio.

 

Paguei a despesa, o que foi mais um sintoma da perturbação de Henry - nunca aceitava com facilidade as franquezas dos outros. Era sempre o que, no táxi, tem o dinheiro a postos na palma da mão, enquanto os outros o procuram pelas algibeiras. O parque ainda escorria água, mas não estávamos longe da casa de Henry. Sob a janela Queen Anne, abriu a porta com a chave, e chamou, «Sarah, Sarah». Eu ansiava por uma resposta que ao mesmo tempo temia, mas ninguém respondeu. Ele disse:

- Ainda não veio. Entre para o escritório.

 

Eu nunca tinha estado no escritório dele: fora sempre um amigo de Sarah, e, se me encontrava com ele, era nos domínios dela, a salinha de estar desordenada onde nada tinha lugar planeado ou mesmo periódico, onde tudo parecia dizer respeito apenas à semana em curso, pois que a coisa alguma era permitido demorar-se como penhor de um gosto perdido ou de um sentimento passado. Tudo ali se gastava; exactamente ao contrário do que eu sentia no escritório de Henry, onde tudo parecia ter tido sempre muito pouco uso. Duvidei de se os volumes do Gibbon teriam sido jamais abertos, e por certo que as obras completas de Scott estavam ali, só porque - provavelmente haviam pertencido ao pai dele, como a cópia em bronze do Discóbolo. E, todavia, nesse quarto sem uso, ele sentia-se mais feliz porque era seu: algo possuído. E pensei com amargura e inveja: quem possui garantidamente uma coisa, nem precisa de a usar.

 

- Um whisky’? - perguntava Henry. Lembrei-me dos olhos dele, e pus-me a pensar em se ele não beberia mais do que bebia noutros tempos. Sem dúvida que as doses que ele serviu eram generosamente duplas.

 

- Então o que o preocupa, Henry? - Havia muito que eu abandonara o romance acerca do funcionário superior: já não andava à procura de elementos.

 

- Sarah - respondeu ele.

 

Ter-me-ia eu assustado, se ele me tivesse dito isto, de idêntico modo, dois anos antes? Não. Creio que teria sentido uma alegria imensa - tão inelutàvelmente nos cansamos de decepções. De bom grado houvera aceite lutar em campo aberto, que mais não fora por poder haver uma probabilidade, ainda que pequena, de, graças a um erro de táctica da parte dele, eu ganhar. E nunca houve, nem antes, nem depois, outro momento na minha vida em que eu tanto desejasse a vitória. Nunca senti um tão forte desejo, nem sequer de escrever um bom livro.

 

Olhou-me com os tais olhos vermelhos e disse: - Bendrix, tenho medo. - Já não podia continuar a falar-lhe de alto: era formado em miséria, andara na mesma escola que eu, e pela primeira vez pensei nele como em um igual. Recordo que havia, em cima da sua secretária, uma dessas velhas fotografias de cor castanha, numa moldura, o retrato do pai; e olhando para esse retrato reparei em como Henry se parecia com ele (havia sido tirado mais ou menos na mesma idade, os quarenta e tal anos) e em como se não parecia. Não era só o bigode que fazia diferença - era o vitoriano olhar confiante, o ar de estar no mundo como em sua casa, seguro das normas, e de súbito senti novamente a camaradagem benévola. Gostava mais dele do que teria gostado do pai (que fora funcionário do Tesouro). Éramos companheiros de viagem.

 

- De que é que você tem medo, Henry?

 

Deixou-se cair num cadeirão como se alguém o tivesse empurrado e disse com repulsa: - Bendrix, sempre pensei o pior, o verdadeiramente pior, que um homem pode pensar... - Noutros tempos eu teria ficado sobre brasas: era-me bem mais difícil, e quão infinitamente mais terrível, este sentimento de inocência.

 

- Você sabe, Henry, que pode confiar em mim. - Era possível, pensava eu, que ela tivesse guardado uma carta, embora eu tivesse escrito tão poucas. Todos os escritores correm este risco profissional. As mulheres tendem sempre para exagerar a importância dos amantes, e nunca prevêem o desagradável dia em que uma carta indiscreta pode aparecer assinalada com um «Interessante» num catálogo de autógrafos, e cotada a cinco xelins.

 

- Olhe então para isto - disse Henry.

 

Estendia-me uma carta: não era a minha letra. - Vá, leia - continuou. Era de qualquer amigo de Henry, que dizia: «Aconselho a pessoa que você deseja ajudar a dirigir-se a um tipo chamado Savage, em Vigo Street, 159. Acho-o muito capaz e discreto, e os empregados dele são menos repugnantes do que essa gente em geral costuma ser.»

 

- Henry, não percebo.

 

- Escrevi a este homem dizendo que um conhecido meu me pedira indicações acerca de agências particulares de investigação. É horrível, Bendrix. Com certeza que ele leu nas entrelinhas.

 

- Mas, na verdade, você...?

 

- Ainda não dei um passo, mas a carta aí tem estado em cima da secretária sempre a lembrar-me... Parece ridículo, não parece, que eu possa confiar inteiramente nela, em que a não lê, embora aqui entre, todos os dias, dúzias de vezes. Nem sequer a meto numa gaveta. E, contudo, não posso confiar nela... saiu a dar uma volta. Uma volta, Bendrix. - A chuva atravessara-lhe também o sobretudo, e ele aproximava a manga do lume do gás.

 

- Sinto muito.

 

- Você sempre foi um particular amigo dela, Bendrix. Dizem, não dizem, que o marido é sempre a última pessoa a saber... Quando esta noite o vi na rua, pensei que, se lhe contasse tudo e você se risse de mim, seria capaz de queimar esta carta.

 

E ali estava sentado, com o braço molhado estendido, e desviando de mim os olhos. Nunca senti menos vontade de rir, e, no entanto, pudesse eu, e teria gostado de me rir. Mas disse:

- Não é daquelas situações de que a gente se ri, apesar de que é inconcebível...

 

E ele perguntou-me com impaciência: - É inconcebível. Você julga-me doido, não julga...?

 

Um momento antes, de boa vontade me teria rido; agora, porém, que só me restava mentir, os velhos ciúmes voltavam. São marido e mulher a tal ponto uma só carne que, se detestamos a mulher, temos também de detestar o marido? A pergunta dele recordou-me como havia sido fácil enganá-lo: tão fácil, que ele parecia cúmplice na infidelidade da mulher, como um homem que, num quarto de hotel, deixando notas à vista, é cúmplice no roubo delas, e odiei-o exactamente por aquela qualidade que, outrora, facilitara o meu amor.

 

A manga do casaco fumegava-lhe em frente do gás, e ele repetiu, continuando a evitar-me os olhos: - É claro que bem vejo que você me considera doido.

 

Falou então o Diabo: - Não! Não o julgo doido, Henry.

 

- Quer dizer... Você quer de facto dizer... que é possível?

 

- Sem dúvida que é; Sarah é um ser humano. Comentou com indignação: - E eu sempre o supus amigo dela -, como se tivesse sido eu quem escrevera a carta.

 

- Mas é evidente - disse eu - que você a conhece muito melhor do que eu nunca a conheci.

 

- De certo modo - concordou com tristeza, e eu via que ele estava pensando em quais seriam os modos por que eu a teria conhecido melhor.

 

- Você perguntou-me, Henry, se eu o julgava doido. E eu só respondi que nada havia de absurdo no que você pensava. Nada disse contra Sarah.

 

- Bem sei, Bendrix, desculpe. Tenho dormido mal, ultimamente. Acordo de noite a pensar no que hei-de fazer com esta maldita carta.

 

- Queimá-la.

 

- Quem me dera ser capaz. - Ainda a conservava na mão, e, por instantes, cheguei a pensar que ia deitar-lhe fogo.

 

- Ou então ir procurar esse Savage - acrescentei.

 

- Mas eu não posso ir fingir, diante dele, que não sou eu o marido. Ora pense, Bendrix, estar sentado diante de uma secretária, na mesma cadeira onde se sentaram todos os outros maridos desconfiados, e contar a mesma história... E não há uma sala de espera, que temos de atravessar e onde temos de encarar uns com os outros? - É curioso, dizia eu comigo, quase se poderia toma-lo por um homem com imaginação. Senti a minha superioridade abalada, o que me reacordou o velho gosto de implicar, e disse: - Por que não mandar-me a mim, Henry?

 

- Você? - E de repente pareceu-me que fora demasiado longe, que o próprio Henry poderia começar a suspeitar.

 

- Sim - respondi eu, brincando com o perigo, pois que me importava agora que Henry soubesse alguma coisa do passado? Far-lhe-ia bem, talvez o ensinasse a dominar melhor a mulher. - Posso fingir que sou amante ciumento - continuei.

- Os amantes ciumentos são mais respeitáveis e menos ridículos que os maridos ciumentos. E estão garantidos pelo prestígio da literatura. Os amantes traídos são trágicos, nunca são cómicos. Pense em Troilo. Não perderei o meu amourpropre1 ao defrontar esse senhor Savage. - A manga de Henry já secara, mas ele conservava-a perto do lume, e o tecido principiava a crestar-se. - Você de facto faria isso por mim, Bendrix? - e havia lágrimas nos olhos dele, como se jamais tivesse esperado ou merecido esta suprema prova de amizade.

 

1 Em francês no texto.

 

Claro que faria. A sua manga está a arder, Henry.

 

Olhou para ela, como se pertencesse a outrem.

 

Mas é fantástico. Nem sei o que tenho estado a pensar.

 

Primeiro conto-lhe e depois peço-lhe... isto. Mas uma pessoa não pode espiar a própria esposa por intermédio de um amigo... e esse amigo fazer-se passar por amante dela.

 

- Oh, não é coisa que se faça - disse eu -, mas nem é adultério, nem roubo, nem deserção sob o fogo do inimigo. E as coisas que se não fazem são feitas todos os dias, Henry. É um aspecto da vida moderna. Eu próprio tenho feito muitas delas.

 

- Você é um bom tipo, Bendrix. O que eu precisava era desabafar... para aclarar as ideias - e desta vez aproximou realmente da chama a carta. Quando deixou cair o último pedaço no cinzeiro, eu recitei: - O nome era Savage e a morada Vigo Street, 159 ou 169.

 

- Esqueça isso. Esqueça o que eu lhe disse. Não tem pés nem cabeça. E ultimamente sofro muito de nevralgias. Hei-de ir ao médico.

 

- Ouvi a porta - observei. - A Sarah está a entrar.

 

- Oh - retorquiu ele -, deve ser a criada. Foi ao cinema.

 

- Não, eram os passos de Sarah.

 

Foi abrir a porta, e, automaticamente, o rosto dele ajustou-se às formas absurdas da delicadeza e do afecto. Sempre me irritara esta reacção mecânica à presença de Sarah, por nada significar - uma pessoa nem sempre está disposta a aceitar de bom grado a presença de uma mulher, mesmo que a ame, e eu acreditara em Sarah quando me dissera que eles nunca haviam estado apaixonados. Eram mais autênticas, suponho, as boas-vindas implícitas nos meus acessos de ódio ou suspeita. Ao menos para mim ela era senhora das suas acções - não um objecto doméstico que, como uma porcelana, precisasse de ser manuseado com cautela.

 

- Sá.. .rah - chamou ele. - Sá.. .rah -, espaçando as sílabas com insuportável insinceridade.

 

Como posso eu evocá-la, para uma pessoa estranha, tal qual parou no vestíbulo, ao fundo da escada, voltada para nós? Nunca fui capaz de descrever sequer as minhas personagens de ficção, a não ser pelos seus actos. Sempre julguei preferível que, num romance, o leitor fique livre de imaginar uma personagem a seu gosto - não pretendo fornecer-lhe ilustrações já prontas. E agora a minha própria técnica me trai, pois que não quero que outra mulher se substitua a Sarah, e sim que o leitor veja a testa larga e a boca impudente, a forma da cabeça; mas só consigo evocar uma vaga figura, envolta numa gabardine gotejante, a voltar-se para nós e a dizer: - O que é, Henry? - e logo a seguir: - Você?1 Sempre me tratara assim. «É você?», ao telefone. «Pode? Quer? Ah, sim?», a tal ponto que por momentos eu chegara idiotamente a pensar que só havia um «tu» no mundo e que era eu.

 

- Muito gosto em vê-la - disse eu, num dos meus momentos de aversão. - Então foi dar uma volta?

 

- Fui.

 

- Está uma noite imunda - acrescentei, acusadoramente; e Henry, por seu lado, mas com aparente ansiedade: - Estás toda molhada, Sarah. Qualquer dia apanhas um resfriamento que te rapa.

 

Uma frase feita, com o seu lastro de popular sabença, pode muitas vezes trazer ao diálogo uma nota súbita de fatalidade; e, todavia, tivéssemos sabido como ele falara verdade, ainda duvido que qualquer de nós tivesse sentido uma ansiedade autêntica, ao vê-la assim imiscuir-se abruptamente nos nossos nervos, na nossa desconfiança, no nosso ódio.

  

 

Não posso precisar quantos dias passaram. A minha antiga ansiedade voltara, e em tais trevas é tão impossível contar os dias como a um cego notar as variações da claridade. Foi ao sétimo ou no vigésimo primeiro dia que me resolvi a actuar? Vagamente recordo, e há três anos que isso foi, ter-lhe vigiado de longe a casa, da beira do lago ou do pórtico da igreja setecentista, aguardando o momento em que a porta se abriria e Sarah desceria os degraus sólidos, que os bombardeamentos haviam poupado. O momento propício, porém, nunca soou. Tinham acabado os dias de chuva e as noites eram gèlidamente belas, mas, como de um barómetro estragado, nem o homenzinho nem a mulher jamais saíam; não tornei mesmo a encontrar Henry ao escurecer atravessando o parque. Talvez sentisse vergonha do que me tinha dito, preconceituoso como era. É sarcàsticamente que escrevo este adjectivo, e, todavia, se me analiso, apenas encontro admiração e confiança nos preconceitos, assim à semelhança de quanto as aldeias, vistas da estrada onde os automóveis passam, tão sossegadas parecem com as suas pedras cobertas de colmo, e sugerem ideias de paz.

 

Lembro-me de ter, nesses obscuros dias ou semanas, pensado bastante em Sarah. Às vezes, acordava com uma sensação dolorosa, outras vezes alegre. Se uma mulher está o dia inteiro no nosso pensamento, não deveríamos ainda sonhar com ela de noite. Eu andava trabalhando num livro que não havia maneira de avançar. Bem escrevia quotidianamente as quinhentas palavras da praxe, mas as personagens não ganhavam vida. Como o descrever depende do que é superficial na nossa vida! Pode uma pessoa andar entretida a fazer compras, a pensar no imposto de rendimento, ou mesmo com palestras amenas, que a corrente do inconsciente prossegue imperturbável, resolvendo problemas e planeando o avanço: a gente senta-se vazia e desanimada à secretária, e, de súbito, as palavras chegam como se condensadas no ar, situações metidas num beco sem saída desenvolvem-se: o trabalho fora feito, enquanto dormíamos, fazíamos compras ou conversávamos com os amigos. Mas este ódio e esta suspeita, este desejo de destruição eram mais profundos que o livro neles é que o subconsciente trabalhava, até que, certa manhã, ao acordar, eu sabia como se o houvera planeado na véspera, que chegara o dia de ir procurar o tal Sr. Savage.

 

Que selecta colecção não constituem as profissões destinadas a inspirar confiança! Cada qual confia no seu advogado, no seu médico, no seu confessor (creio eu que é assim, quando se é católico); e à lista acrescentava eu agora o detective particular. A ideia de Henry acerca de quão desagradável seria ser observado pelos outros clientes era inteiramente falsa. O escritório tinha duas salas de espera, e fizeram-me entrar sozinho para uma delas. Era muito curiosamente diferente do que seria de supor em Vigo Street - tinha algo do ar bafiento dos gabinetes exteriores dos solicitadores, combinado com uma escolha mundana das matérias legíveis, muito afim da dos dentistas havia a Harper’s Bazaar, Life e um certo número de periódicos franceses -, e o tipo que me recebera era excessivamente atencioso e bem vestido. Puxou-me uma cadeira para junto do fogo e fechou cuidadosamente a porta. Senti-me como um doente, e creio que o era pelo menos o bastante para submeter-me ao famoso tratamento de choque do ciúme.

 

Em Savage, o que primeiro me chamou a atenção foi a gravata, que, por certo, era privativa de qualquer associação de «antigos alunos»; depois, reparei na sua tão bem barbeada face sob a ligeira camada de pó-de-arroz; e, por fim, a testa, de onde o cabelo, muito claro, fugia, e que, qual farol de compreensão, irradiava simpatia, anseio de servir. Notei que, ao apertar-me a mão, me torceu estranhamente os dedos. Seria talvez mação; tivesse eu correspondido, e provavelmente pagaria um preço especial.

 

- É o senhor Bendrix? - disse ele. - Faça o favor de sentar-se. Julgo que essa é a cadeira mais cómoda. - Ajeitou-me uma almofada, e, muito solícito, esperou a meu lado que eu me afundasse com êxito. Em seguida, puxou para o meu lado uma cadeira, como se se preparasse para tomar-me o pulso. - E agora, conte-me tudo à sua maneira. - Não vejo que outra maneira poderia eu para ele usar que não fosse minha. Senti-me embaraçado e aborrecido: não viera pedir-lhe simpatia, mas pagar-lhe, se não fossem muito caros os seus serviços.

 

Comecei assim: - Não sei qual é a sua tabela para vigilância; qual é?

 

O Sr. Savage delicadamente tocou na gravata de riscas. - Não se preocupe com isso, por enquanto. Esta consulta preliminar custa três guinéus, mas só se o senhor quiser continuar; de contrário, não custa absolutamente nada. Não acha que não há melhor reclamo do que... - e introduziu a frase feita como quem mete um termómetro - ...um cliente satisfeito?

 

Suponho que noutra situação, a comum, nos teríamos ambos comportado da mesma maneira e usado idênticas palavras. - Trata-se de um caso muito simples - e tive raivosamente a consciência de que Savage já sabia tudo, mesmo antes de eu começar a falar. Nada do que eu dizia lhe parecia estranho; e coisas que ele desenterrasse já teriam sido, nesse ano, postas a descoberto várias dúzias de vezes. Um médico não raro se desconcerta; mas o Sr. Savage era um especialista que só tratava de uma única doença, da qual conhecia todos os sintomas.

 

Com horrorosa delicadeza, disse: - Esteja à sua vontade, senhor Bendrix.

 

Eu principiava, como todos os doentes dele, a ficar confuso. E expliquei: - Na verdade, não há por onde dizer nada.

 

- Ah, isso é precisamente o que me compete! Diga-me apenas as suas impressões, a atmosfera... Presumo que estamos discutindo sua esposa?

 

- Exactamente... não.

 

- Mas pelo menos passa como tal?

 

- Não, engana-se completamente. É a mulher de um amigo meu.

 

- E foi ele quem o mandou cá?

 

- Não.

 

- Mas talvez o senhor e essa senhora sejam... íntimos?

 

- Também não. Só a vi uma vez, desde 1944.

 

- Receio não estar a compreender. O senhor disse-me que era um caso de vigilância.

 

Só então reparei a que ponto me irritara. E gritei-lhe: - Não se pode amar ou odiar tanto tempo? Não se engane. Sou mais um ciumento como todos os seus outros clientes. Não pretendo ser diferente, mas, no meu caso, há um atraso, sabe?

 

O Sr. Savage pousou a mão na minha manga, como se eu fora uma criança assustada. - Nada há de inferior no ciúme, Sr. Bendrix. Sempre o saúdo como sinal de verdadeiro amor. Ora, quanto a esta senhora que estamos discutindo, tem razões para supor que ela é... íntima de alguém, agora?

 

- O marido pensa que ela o engana. Tem encontros. Mente, quando diz onde esteve. Tem... segredos.

 

- Ah, segredos... muito bem.

 

- É claro que pode ser que não haja nada.

 

- A minha longa experiência, Sr. Bendrix, ensinou-me que quase invariavelmente... há. - E como se me tivesse acalmado o suficiente para prosseguir com o tratamento, Savage voltou à secretária e preparou-se para escrever. Nome. Morada. Profissão do marido. E de lápis em expectativa, perguntou: - O Sr. Miles está ao corrente desta entrevista?

 

- Não.

 

- O nosso empregado não deve ser visto por ele?

 

- Certamente que não.

 

- Isso complica as coisas.

 

- Talvez mais tarde eu lhe mostre os relatórios, não sei.

 

- Pode dar-me algumas indicações acerca da vida da casa? Têm criada?

 

- Têm.

 

- De que idade?

 

Não faço ideia. Talvez trinta e oito anos.

 

- Não sabe se ela namora?

 

- Não. E também não sei como se chama a avó dela.

 

O Sr. Savage ofereceu-me o seu sorriso paciente: por um momento pensei que planeava levantar-se da secretária e vir, com pancadinhas afáveis, sentar-me outra vez. - Vejo, Sr. Bendrix, que não tem tido qualquer experiência de investigações. Uma criada tem muita importância. Pode dizer-nos muita coisa acerca dos hábitos da dona da casa... se estiver disposta. Espantar-se-ia, meu caro senhor, com a importância que uma qualquer coisa tem, para o mais simples dos inquéritos. - Sem dúvida que, nessa manhã, estava comprovando a asserção, porque encheu páginas e páginas de estenografia garatujada e minúscula. Só uma vez interrompeu o curso das perguntas para inquirir: - Opõe-se o senhor a que, em caso de extrema necessidade, o meu empregado vá a sua casa? - Respondi que não me importava, e logo a seguir tive a sensação de que permitira a entrada de uma doença infecciosa no meu próprio quarto.

- Se pudesse evitar-se...

 

«É claro, é claro. Compreendo» e creio que de facto compreendia. E eu poderia ter dito que a presença do detective seria como poeira sobre os móveis ou manchas de humidade nos meus livros, que não surpreenderia ou irritaria o Sr. Savage. Costumo escrever em folhas soltas, com linhas, e muito limpas. A mínima nódoa inutiliza uma folha; e repentinamente senti a fantástica necessidade de fechar à chave o meu papel, na eventualidade de uma visita inoportuna. - Seria preferível que ele

me avisasse...

 

- Sem dúvida, mas nem sempre é possível. A sua morada senhor Bendrix, e o seu número de telefone?

 

- Não tenho telefone privativo. É uma extensão do da dona da casa.

 

- Os meus empregados são muito discretos. Quer relatórios semanais, ou prefere receber o inquérito só depois de concluído?

 

- Semanalmente. Pode ser que nunca mais acabe. E provavelmente não há que descobrir.

 

- Já foi muitas vezes ao médico, sem que o médico encontrasse alguma coisa? Não sei se sabe, meu caro senhor Bendrix, que o facto de uma pessoa sentir a necessidade dos nossos préstimos quase invariavelmente significa que há que relatar.

 

Creio que tive sorte em dar com este Sr. Savage. Fora recomendado como menos desagradável que os outros seus colegas; não obstante, a segurança dele era-me detestável. E, se atentarmos um pouco, não é um comércio digno a detecção de inocentes (porque os amantes são quase sempre inocentes). Não cometeram qualquer crime, estão perfeitamente convencidos de que nada fizeram de mal; «enquanto ninguém, a não ser eu, é atingido» é a velha cantata que têm na ponta da língua, e o amor, é claro que o amor desculpa tudo - assim supõem, e assim também eu supunha no tempo em que amava. Quando tratámos das custas, Savage foi supreendentemente comedido: três guinéus por dia e despesas pagas, «que sem dúvida careceriam de homologação». Explicou-mas como «o clássico café, não é verdade, e um homem tem de beber qualquer coisa». Emiti um frágil gracejo quanto a não homologar um whisky, mas o Sr. Savage não atingiu o humor contido. – De um caso sei eu - contou-me - em que um mês de pesquisas foi salvo por um whisky a tempo... o whisky mais barato que o meu cliente jamais pagou. - E explicou-me que alguns clientes gostam de receber comunicações diárias, mas eu respondi que me contentava com os relatórios semanais.

 

Todo aquele negócio se passara o melhor possível: quando me encontrei de novo em Vigo Street quase me convencera de que uma entrevista como aquela, mais tarde ou mais cedo, acontecia na vida de todos os homens.

 

 

Lembra-se de mais alguma coisa que possa ter interesse?» dissera Savage, e eu recordo: para um detective deve ser tão importante como para o romancista o acumular de materiais vulgares, de entre os quais poderá ser extraída a nota exacta. E quão dificilmente o extraí-la é a libertação do mais profundo ser! A enorme pressão do mundo exterior pesa em cima de nós, qualpeine forte et dure1. Neste caso, em que estou escrevendo a minha própria história, o problema não deixa de ser o mesmo, em pior - agora que os não invento, como os factos se multiplicam! Como posso eu dissociar os caracteres e o cenário denso - o jornal diário, a diária refeição, o tráfego barulhentamente a caminho de Battersea, as gaivotas vindas do Tamisa à procura de pão, o Verão precoce de 1939 brilhando no parque, as crianças deitando ao lago os barquinhos à vela enfim, um desses verões já condenados que precederam a guerra? Tento imaginar se, pensando muito, seria capaz de detectar, na reunião em casa de Henry, o futuro amante dela.

 

Em francês no texto.

 

Foi bebendo mau sherry, por causa da guerra de Espanha, que nos vimos pela primeira vez. Creio ter reparado em Sarah, porque ela era feliz; nesse tempo, o sentido da felicidade ia desaparecendo na tormenta que se aproximava. Encontrava-se nos bêbados e nas crianças, e raras vezes alhures. Simpatizei logo com ela, porque me disse ter lido os meus livros sem os misturar com a pessoa - e logo me senti tratado mais como um ser humano que como um escritor. Não fazia a mínima ideia de me apaixonar por ela. Antes de mais nada, era bonita, e mulheres bonitas, especialmente se ainda são inteligentes, provocam-me um agudo sentimento de inferioridade. Não sei se os psicólogos já classificaram o complexo de Cophetua, mas, pela minha parte, sempre senti dificuldade em experimentar desejos sexuais, sem a consciência de uma qualquer superioridade física ou mental. Dessa primeira vez, só reparei na beleza, no ar feliz, e na maneira, que ela tinha, de nos tocar com as mãos como se nos amasse. Apenas consigo recordar de que me disse uma coisa, além da frase já citada, pela qual começou - «Parece detestar muita gente.» Talvez que eu tenha discreteado petulantemente acerca dos meus camaradas nas letras. Não me lembro.

 

Que Verão aquele! Não vou tentar evocar exactamente o mês - teria de regressar tão dolorosamente àquilo tudo! -, mas recordo que saí da sala quente e cheia de gente, para um passeio pelo parque com Henry, depois de ter bebido demais muito mau sherry. O sol tombava já rente ao chão, fazendo empalidecer a relva. Na distância, as casas eram casas numa gravura vitoriana, pequenas, sossegadas, precisamente desenhadas: só ao longe uma criança chorava. A igreja setecentista erguia-se como um brinquedo na ilha de relva - e, em tão fixo tempo seco, o brinquedo podia ficar cá fora, nas trevas. Era a hora das confidências a estranhos.

 

Henry disse: - Poderíamos ser todos tão felizes!

 

- Pois é.

 

Senti por ele uma enorme simpatia, ali no meio do parque, fora da sua festa, com lágrimas nos olhos. E observei-lhe:

 

- Tem uma bela casa.

 

- Foi minha mulher quem a descobriu. Conhecera-o uma semana antes, noutra reunião, nesse

tempo, ele trabalhava no Ministério das Pensões, e eu cultivara-o por amor do meu material romanesco. Dois dias depois viera o convite. Soube mais tarde que Sarah o fizera mandar-mo. Perguntei-lhe: - Estão casados há muito tempo?

 

- Dez anos.

 

- Achei encantadora sua esposa.

 

- É uma companheira admirável - respondeu. Pobre Henry. Mas por que hei-de eu dizer «Pobre Henry»? Não tinha ele as cartas infalíveis - os trunfos da delicadeza, da humildade, da confiança?

 

- Tenho de voltar para casa. Não posso deixá-la sozinha com tudo, Bendrix - e pousara-me a mão no braço, como se nos conhecêssemos havia um ano. Teria aprendido com ela aquele gesto? Marido e mulher identificam-se progressivamente. Fomos andando lado a lado e, ao abrirmos a porta do vestíbulo, vi no espelho de um quarto duas pessoas separando-se como de um beijo - e uma delas era Sarah. Olhei para Henry. Ou não vira, ou não fizera caso... ou então, pensei ainda, que infeliz não deve ele ser!

 

Teria o Sr. Savage considerado relevante aquela cena? Soube depois que não fora um amante quem a beijara, mas um dos colegas de Henry no Ministério, cuja mulher fugira com um marinheiro na semana anterior. Sarah conhecera-o nesse mesmo dia, e parecia improvável que ele fizesse parte de uma cena de que eu fora tão decididamente excluído. O amor não leva assim tanto tempo a revelar-se.

 

Preferia ter deixado este passado em paz, porque, ao escrever de 1939, sinto todo o meu ódio que volta. E o ódio deve excitar as mesmas glândulas que o amor: pelo menos, produz os mesmos efeitos. Se não nos tivessem ensinado a interpretar a história da Paixão, seríamos capazes de, pelas acções deles, saber qual dos dois, o invejoso Judas ou o covarde Pedro, amava

Cristo?

 

 

Quando, regressado do Sr. Savage, cheguei a casa, e a minha senhoria me participou que a Sra. Miles me telefonara, senti a perturbação ansiosa que sempre sentia quando ouvia a porta da entrada fechar-se e os passos dela no vestíbulo. Alimentei a violenta esperança de que o ter-me visto dias antes lhe houvesse despertado não, é claro, o amor, mas um sentimento, uma recordação que me fosse possível manobrar. Nessa altura, pareceu-me que, se eu pudesse possuí-la uma vez mais - ainda que rápida, crua e insatisfatòriamente, ficaria de novo em paz: tê-la-ia então feito desaparecer do meu sistema, e poderia deixá-la, não ela a mim.

 

Era estranho, após dezoito meses de silêncio, marcar outra vez aquele número: Macaulay 7753, e mais estranho foi que eu tivesse de procurá-lo no meu livrinho de notas, por não estar certo do último algarismo. Fiquei sentado a ouvir o sinal de chamada, pensando em, se Henry já tivesse chegado do Ministério e atendesse, que lhe diria. Verifiquei, logo depois, que já nada havia de falso na verdade. As mentiras tinham-me abandonado, e sentia-me tão só como se fossem elas os meus únicos amigos.

 

A voz de uma criada de alta categoria repetiu dentro do meu ouvido o número. E eu perguntei: - A Sra. Miles está?

 

- A Sra. Miles?

 

- Não é de Macaulay 7753 que fala? - É.

 

- Quero falar com a senhora.

 

- Enganou-se no número - e desligou. Não me ocorrera que, com o tempo, também as pequenas coisas se alteram.

 

Procurei o nome na lista, mas era o velho número que lá estava: a lista havia mais de um ano que perdera a validade. Ia eu marcar Informações, tocou o telefone, e era Sarah em pessoa. Um tanto embaraçada, perguntava: - É você? - Nunca me chamara por qualquer dos meus nomes, e sentia-se desamparada agora, sem o auxílio das antigas expressões afectuosas. Eu respondi: - Fala Bendrix.

 

- Daqui Sarah. Não recebeu o meu recado?

 

- Oh, ia telefonar, mas tinha de acabar um artigo. E, a propósito, parece-me que não sei o número. Está na lista, não é verdade?

 

- Não. Ainda não. Mudou. Agora é Macaulay 6204. Queria perguntar uma coisa.

 

- Sim?

 

- Nada de extraordinário. Queria almoçar consigo, nada mais.

 

- Pois sim. Com muito gosto. E quando?

 

- Não estará livre amanhã?

 

- Não. Amanhã, não. Não sei se está a ver, este artigo que não posso deixar de...

 

- Quarta-feira?

 

- Poderá ser quinta?

 

- Pode - respondeu, e quase discerni na resposta uma certa desilusão... a tal ponto o nosso orgulho nos engana.

 

- Então, encontrar-nos-emos no Café Royal à uma.

 

- Muito obrigada - disse ela, e, pelo tom de voz, era assim que se sentia. - Até quinta-feira.

 

- Até quinta-feira.

 

Fiquei com o auscultador na mão, contemplando o ódio como a alguém cretino e feio que não temos gosto em conhecer. Marquei o número, apanhei-a por certo ainda ao pé do telefone, e disse: - Sarah, pode ser amanhã. Tinha-me esquecido de uma coisa. No mesmo sítio, à mesma hora. - E ali sentado, com algo por que esperar, pensava de min para mim: recordo. É a isto que a esperança sabe.

 

 

Pousei o jornal em cima da mesa, e li e reli a mesma página, porque não queria olhar para a porta. Estava sempre a entrar gente, e não me aprazia ser daqueles que, por levantarem e baixarem a cabeça, denunciam uma expectativa idiota. Que temos nós a esperar, para temermos tanto o desapontamento? No jornal da tarde havia o crime do costume e uma desordem parlamentar por causa do racionamento dos açúcares, e Sarah estava atrasada cinco minutos. Foi pouca sorte minha, mas surpreendeu-me a olhar para o relógio. Ouvi-lhe a voz qque dizia:

- Desculpe. Vim de autocarro e o trânsito era muito.

 

- O metropolitano é mais rápido.

 

- Bem sei. Mas não queria chegar adiantada.

 

Muitas vezes me desconcertara ela com a verdade. Nos bons tempos do nosso amor, tentava fazê-la dizer mais que a verdade: que a nossa aventura não teria fim, que um dia haveriamos de casar. Não acreditaria, mas teria gostado de ouvir da sua boca essas palavras, talvez só para saborear o prazer de as rejeitar. Mas ela nunca jogava ao «como se», e, subitamente, desarmava a minha reserva com uma declaração de tal doçura e amplitude... Lembro-me que, uma vez em que eu ficara amargurado com a sua afirmação de que as nossas relações acabariam, ouvi logo depois, com alegria incrédula: «Nunca, nunca amei um homem como te amo a ti, e nunca mais tornarei a amar assim.» Pois era, não sabia, pensava eu, mas afinal também caía no mesmo jogo de acabar convencida.

 

Sentou-se ao meu lado e pediu um copo de cerveja: - Marquei uma mesa no Rule - disse eu.

 

- Não podemos ficar aqui?

 

- Sempre costumávamos lá ir.

 

- É verdade.

 

Talvez que, embora à nossa maneira, não estivéssemos muito à vontade, porque reparei que tínhamos atraído a atenção de um homenzinho sentado num sofá próximo. Tentei atrapalhá-lo, e foi fácil. Usava bigodes compridos e tinha olhos de corça, que se desviaram apressadamente: deu com o cotovelo no copo de cerveja, deitou-o ao chão, e ficou completamente confundido. Tive pena dele, porque me ocorreu que talvez me houvesse reconhecido pelos retratos: podia até ser um dos meus leitores. Estava com ele um rapazinho, e que crueldade é humilhar um pai na presença dos filhos! O rapaz corou até às orelhas, quando o criado se precipitou, e o pai começou a apresentar desculpas com propositada veemência.

 

E disse a Sarah: - Claro que pode almoçar onde quiser.

 

- É que nunca mais lá voltei.

 

- Nunca tinha sido um dos seus restaurantes, pois não?

 

- Vai lá muitas vezes?

 

- Dá-me jeito. Duas ou três vezes na semana.

 

Levantou-se repentinamente: - Vamos lá - e de súbito teve un acesso de tosse. Parecia uma tosse grande de mais para um tão pequeno corpo: e a testa perlava-se de suor, com o esforço de a fazer sair.

 

- Que coisa medonha.

 

- Oh, não é nada, desculpe.

 

- Táxi?

 

- Vamos antes a pé.

 

Quando se sobe Maiden Lane, há à esquerda um vão de porta e uma grade no chão, que passámos sem trocar palavra. Depois do nosso primeiro jantar, em que, interrogando-a acerca dos hábitos de Henry ela se sensibilizara com o meu interesse, beijara-a ali, um tanto desastradamente, a caminho do metropolitano. Não sei por que o fiz, a menos que a imagem no espelho me tivesse vindo à ideia, porque não nutria quaisquer intenções de amá-la: nem sequer tencionava tornar a encontrar-me com ela. Era demasiado bela para que a noção de acessibilidade me excitasse.

 

Mal nos sentámos, um dos criados antigos observou: - Há muito tempo que o senhor cá não vinha - e fiquei arrependido de ter mentido a Sarah.

 

- É que costumo ir para o andar de cima.

 

- E a senhora também há muito tempo...

 

- Há quase dois anos - respondeu ela, com a exactidão que eu às vezes detestava.

 

- Mas lembro-me que a senhora tomava sempre uma caneca.

 

- Tem boa memória, Alfred - o que o fez rebrilhar de prazer. Sempre tivera aquela habilidade para tratar com criadagem.

 

A comida interrompeu o palanfrório, e só quando terminámos a refeição ela me deu a entender o que a trouxera ali.

 

- Queria que almoçasse comigo, porque queria falar-lhe de Henry.

 

- Henry? - repeti, tentando esconder o desapontamento que transparecia na minha voz.

 

- Preocupa-me. Que impressão lhe fez naquela noite? Não lhe pareceu esquisito?

 

- Não reparei em nada.

 

- Queria pedir-lhe... Oh, bem sei como é uma pessoa ocupada... pedir-lhe que, de vez em quando, o procurasse. Julgo que se sente muito só.

 

- Consigo?

 

- Bem sabe que ele nunca deu muito por mim. Anos a fio.

 

- Talvez que tenha começado a dar pelas ausências.

 

- De hoje em dia saio pouco - e a tosse muito a propósito interrompeu aquela conversa. Quando o acesso acabou, já ela tivera tempo de preparar as jogadas seguintes, embora não fosse seu hábito evitar a verdade. - Está a trabalhar noutro livro? - Era como uma pessoa estranha, uma daquelas que a gente encontra numa reunião. Tal pergunta não a fizera ela, nem da primeira vez, depois do sherry sul-africano.

 

- Pois claro.

 

- Não gostei muito do último.

 

- Nessa altura foi preciso lutar para escrever... a paz que chegava... - E podia, do mesmo modo, ter dito: a paz que se ia embora.

 

- O meu receio era que voltasse às suas ideias antigas, que eu detestava. E muitas pessoas voltariam.

 

- Um livro leva-me um ano a escrever. Para vingança é um bocado comprido.

 

- Se ao menos soubesse como tinha tão pouco de que vingar-se...

 

- Estou a brincar. Fomos bem felizes os dois; mas somos pessoas crescidas, já sabíamos que, mais tarde ou mais cedo, tudo havia de acabar. E, como vê, agora somos capazes de nos encontrarmos para falar de Henry.

 

Paguei a conta e saímos, e uma vintena de metros abaixo lá estavam o vão de porta e a grade. Parei no passeio, e disse:

 

- Se não me engano vai para o Strand?

 

- Não, Leicester Square.

 

- Eu vou para o Strand. - Ela estava no vão da porta, e ninguém na rua. - Vamos despedir-nos aqui. Gostei muito de estar consigo.

 

- Sim.

 

- Telefone-me sempre que puder.

 

Aproximei-me dela: senti a grade debaixo dos pés. - Sarah

 

- disse. Desviou repentinamente a cabeça, como se estivesse a verificar se vinha gente, se havia tempo... mas, quando se voltou, a tosse apoderara-se dela. Dobrada no vão de porta, tossiu e tornou a tossir. Os olhos ficaram-lhe vermelhos. Den-

 

tro do casaco de peles, parecia um pobre animal acossado.

 

- Desculpe.

 

E eu disse com azedume, como se me tivessem roubado alguma coisa: - Isso precisa de ser tratado.

 

- É só uma tosse. - Estendeu-me a mão: - Adeus... Maurice. - O nome soou como um insulto. Respondi: - Adeus -, mas não lhe peguei na mão: afastei-me, apressadamente, sem olhar em volta, procurando aparentar que tinha pressa e me sentia aliviado, e, quando ouvi a tosse que recomeçava quisera ter sido capaz de assobiar uma cantiga, qualquer coisa saltitante, descuidada, feliz, mas não tenho ouvido nenhum

 

 

Quando somos novos, erguemos um sistema de trabalho que, julgamos nós, durará a vida inteira e resistirá a qualquer catástrofe. Durante cerca de vinte anos atingi muito provavelmente a média das quinhentas palavras por dia, trabalhando cinco dias por semana. Consigo assim um romance por ano, e sobra-me ainda tempo para rever e corrigir a cópia dactilografada. Sempre fui metódico, e, uma vez cumprido o trabalho diário, sou capaz de suspender a escrita mesmo com uma cena em meio. De vez em quando, durante o trabalho matinal, conto o que fiz, e inscrevo os centos de palavras no manuscrito. Nenhum editor precisa de contar cuidadosamente as minhas obras, porque lá está o número inscrito no rosto da cópia dactilografada - por exemplo, 83 764. Quando era novo, nem mesmo uma aventura amorosa me perturbava o horário. Uma dessas aventuras tinha de começar depois do almoço, e, por tarde que me metesse na cama - no caso, é claro, de me meter na minha -, sempre lia o que escrevera pela manhã, para dormir-lhe em cima. A própria guerra pouco me afectou. O coxear ligeiramente isentou-me do Exército, e, quando prestei serviço na Defesa Passiva, os meus camaradas agradeciam-me imenso o hábito de não querer para mim os sossegados quartos da manhã. Em consequência, adquiri uma reputação de zelo inteiramente falsa, porque todo o meu zelo era para a secretária, a folhinha de papel e a dose de palavras pingando vagarosamente e metodicamente da minha permanente. Foi necessário o advento de Sarah, para que se alterasse a disciplina que a mim próprio impusera. As bombas, entre os primeiros ataques diurnos e as de 1944, mantiveram-se nos convenientes hábitos nocturnos; mas muitas vezes era só durante as manhãs que via Sarah, pois que, da parte da tarde, nunca ela tinha a certeza de estar livre das várias amizades que, feitas as compras, desejavam companhia e conversa até que ao anoitecer se ouvissem as sereias. Quantas vezes ela vinha no lapso de tempo entre duas «bichas», e amávamo-nos entre a da frutaria e a do talho.

 

Era, porém, muito fácil, mesmo nessas condições, voltar ao trabalho. Enquanto se é feliz, suporta-se bem qualquer disciplina: foi a infelicidade que destruiu os meus hábitos de trabalho. Quando principiei a notar quanto questionávamos, quanto nervosamente me irritava com ela, passei a notar que o nosso amor estava condenado: o amor transformara-se numa aventura amorosa com princípio e fim. Poderia indicar o exacto momento em que essa situação começou, e um dia soube que seria capaz de conhecer previamente a hora final. Quando ela se ia embora, não era capaz de me dispor ao trabalho: rememorava o que havíamos dito um ao outro, e acabava confinando-me na cólera e no remorso. E, a todo o momento, sabia que estava precipitando os acontecimentos. Estava pondo fora, pondo fora!, da minha vida o único ser que eu amava. Era feliz todo o tempo que durasse a ilusão de que o amor perdura - creio mesmo que era agradável viver comigo, e daí que o amor se conservasse. O nosso amor era como uma criaturinha apanhada numa armadilha e esvaindo-se em sangue até à morte: eu tinha de fechar os olhos para torcer-lhe o pescoço.

 

Não me era possível trabalhar. Como já frisei, muito do trabalho do romancista se desenvolve no inconsciente; nessas profundidades, a última palavra está escrita mesmo antes de aparecer no papel a primeira de todas. Recordamos os pormenores da narrativa, não os inventamos. A guerra não perturbou essas cavernas submarinas, mas eis que me surgia algo infinitamente mais importante do que a guerra e do que o meu romance: o fim do amor. E era isto o que estava sendo executado, como uma história é escrita: a expressão acerada que a desfazia em lágrimas, e que parecia ter surgido nos lábios tão espontaneamente, fora afiada nessas cavernas profundas. O romance arrastava-se, mas o amor, como a inspiração, corria para o fim.

 

Não admira que ela não tenha apreciado o meu último livro. Foi escrito contra vontade, sem ânimo, sem outra razão que não a necessidade de viver. Os críticos disseram que era obra de um homem senhor do seu ofício: tudo o que me resta do que fora uma paixão. Pensei que a paixão voltaria com o romance seguinte, e a excitação despertaria de novo, ao recordar o que nunca soubera conscientemente; mas depois do almoço com Sarah, no Rule, não havia meio de retomar o trabalho. E cá estou eu - eu para cá, eu para lá, como se isto fosse a minha história, e não a de Sarah, de Henry e, é claro, de um terceiro que eu odiava sem conhecer ou mesmo acreditar na existência dele.

 

Tentara, sem resultado, trabalhar pela manhã; depois bebi de mais ao almoço, e a tarde ficou perdida; quando escureceu, deixei-me ficar por entre os vidros, com as luzes apagadas, e vendo para além do parque obscuro e plano as janelas iluminadas do lado norte. Fazia muito frio, e o meu aquecedor de gás só me aquecia se estivesse em cima dele, para então me queimar. Alguns flocos de neve passavam em frente dos candeeiros do lado sul e vinham, com dedadas espessas e húmidas, tocar-me na vidraça. Não ouvi a campainha retinir. A dona da casa bateu à porta, e disse: - Está ali um senhor Parkis à sua procura -, indicando por uma partícula gramatical a classe social do visitante. Nunca ouvira tal nome, mas respondi-lhe que mandasse entrar.

 

Onde vira eu já aqueles olhos docemente humildes, aqueles compridos bigodes fora de moda, pingões por acção do clima? Apenas acendera o candeeiro de mesa, e o homem aproximou-se procurando distinguir-me, sem conseguir extrair-me das sombras. E perguntou: - O Sr. Bendrix?

 

- Sou eu.

 

- Chamo-me Parkis -, como se isso adiantasse alguma coisa. Mas acrescentou: - O homem que trabalha para o Sr. Savage.

 

- Ah... sim. Sente-se. Quer fumar?

 

- Oh, não senhor... não fumo em serviço... excepto, é claro, para fins de disfarce.

 

- Mas não está em serviço agora, pois não?

 

- De certo modo... estou, sim senhor. Fui substituído apenas durante meia hora, para apresentar o meu relatório. O Sr. Savage disse que o queria semanal... e com as despesas.

 

_ E há alguma coisa que relatar? - Não tinha a certeza do que sentia, se desapontamento, se excitação.

 

Não se pode dizer que seja uma folha em branco - observou ele com complacência, e extraiu da algibeira um número incalculável de papéis e sobrescritos, para encontrar o que vinha ao caso.

 

- Faz favor de se sentar. Obriga-me a estar de pé.

 

- Como quiser. - Sentado, podia ver-me um pouco melhor: - Não o encontrei já em qualquer parte, ao senhor?

 

Eu tirara do sobrescrito a primeira folha: era a conta das despesas, escrita com uma letra muito certa, de colegial.

 

- Escreve muito correctamente.

 

- É o meu filho. Ando a treiná-lo na profissão. - E acrescentou apressadamente: - Não consigo nenhuma despesa dele, a menos que o deixe em serviço, como agora.

 

- Ah, ele está de serviço?

 

- Só enquanto apresento o meu relatório.

 

- Que idade tem ele?

 

- Já passa dos doze - respondeu, como se o rapaz fosse um relógio. - Um garoto pode ser útil, e não custa mais do que um jornal infantil, de quando em quando. E ninguém repara nele. Os rapazes são polidores de calçadas.

 

- Parece-me que é uma profissão imprópria para um garoto pequeno.

 

- Sim, mas, Sr. Bendrix, ele não atinge o significado exacto. E, se chego a ter de penetrar num quarto de cama, claro que o deixo à porta.

 

Pus-me a ler:

 

18 de Janeiro: dois jornais da tarde

2 de... regresso de metropolitano - café e bolos  

 

Vigiava-me cuidadosamente, enquanto eu lia, e disse:

- O café não era dos mais baratos, mas o que tomei foi o mínimo possível sem chamar a atenção.

 

19 de Janeiro: metropolitanos 2 s 4 d

cervejas de garrafa 3 s O d

cocktail 2s6d

caneca de cerveja l s 6 d

 

Voltou a interromper-me a leitura: - As cervejas pesam-me um pouco na consciência, porque, desastradamente, atirei com o copo ao chão. Mas estava um pouco nervoso, havia alguma coisa a relatar!... Está a ver, há muitas vezes semanas e semanas sem resultados, mas, agora, logo ao segundo dia...

 

Evidentemente que me lembrava dele, mais do seu rapaz envergonhado. E, a 19 de Janeiro, li (de relance vira que, a 18, não havia senão andanças insignificantes): «A pessoa em questão tomou um autocarro para Piccadilly Circus. Parecia agitada. Subiu Air Street até ao Café Royal, onde o cavalheiro a esperava. Eu e o meu rapaz...»

 

Não me deixava em sossego: - Como reparará, é outra letra. Nunca permito que o meu rapaz redija os relatórios, na eventualidade de haver qualquer coisa de carácter mais íntimo.

 

Tem muitos cuidados com ele - observei, e prossegui na leitura: «Eu e o meu rapaz sentámo-nos num sofá próximo. A pessoa em questão e o cavalheiro estavam obviamente muito chegados, tratando-se um ao outro com afectuosa sem-cerimónia, e parece-me que, a certa altura, chegaram a apertar as mãos debaixo da mesa. Não posso ter a certeza, mas a mão esquerda da pessoa em questão não se via, e a mão direita do cavalheiro também não, o que, em geral, significa um gesto desse género. Após uma breve e íntima conversa foram a pé para um sossegado e retirado restaurante, conhecido dos clientes por ”Rule” e, preferindo um sofá a uma das mesas de meio da sala, mandaram vir dois bifes de porco.»

 

- Os bifes de porco são importantes?

 

- Podem servir de indícios para identificação, se constituem um hábito.

 

- Não identificou então o homem?

 

- Vai ver, se fizer o favor de continuar a ler. Continuei: «Bebia ao balcão um cocktail, quando notei o pedido dos bifes, mas não me foi possível extrair dos criados ou da dama do balcão a identidade do cavalheiro. Embora as perguntas tivessem sido feitas de modo vago e descuidado, obviamente excitaram a desconfiança, e achei melhor ir-me embora. Todavia, entrando em relações com o porteiro do Teatro Vaudeville, foi-me possível manter em observação o restaurante.» Interrompi a leitura e perguntei: - Como conseguiu este conhecimento?

 

- No bar do Elmo de Bedford, vendo que as pessoas em questão estavam absorvidas pelos bifes de porco, e depois acompanhei-o ao teatro, cuja porta da caixa...

 

- Conheço o sítio.

 

- Procurei reduzir o relatório ao essencial.

 

- Muito bem.

 

E o relatório dizia: «Depois do almoço, as ditas pessoas seguiram por Maiden Lane e separaram-se à porta de uma frutaria. Tive a impressão que estavam sob o peso de uma intensa emoção e ocorreu-me que poderiam estar a despedir-se para sempre, o que, se me é permitido acentuá-lo, seria um feliz desenlace da minha missão.»

 

Voltou, com ansiedade, a interpor-se: - Desculpa-me, não é verdade, a nota pessoal?

 

- Pois claro.

 

- É que, mesmo na minha profissão, excelentíssimo senhor, às vezes sentimo-nos tocados, e eu simpatizei com a senhora... a pessoa em questão, quero eu dizer.

 

Voltei ao relatório: «Hesitei quanto a seguir o cavalheiro ou a pessoa em questão, mas decidi que as minhas instruções me não autorizavam a primeira hipótese. E, portanto, subordinei-me à segunda. Ela dirigiu-se, aparentemente muito agitada, para Charing Cross Road. E então entrou na National Portrait Gallery, onde se demorou apenas uns minutos...

 

- Há nisto alguma coisa digna de nota?

 

- Creio que não. Parece-me que se limitava a procurar um sítio onde sentar-se, porque logo a seguir entrou numa igreja.

 

- Uma igreja?

 

- Sim, senhor, uma igreja católica, em Maiden Lane. Está tudo aí. Mas não foi rezar. Foi só sentar-se.

 

- Até sabe isso?

 

__ Naturalmente que eu segui a pessoa em questão. Ajoelhei alguns bancos atrás, de maneira a parecer um crente a sério, e garanto-lhe que ela não rezou. Ela não é católica, pois não?

 

- Não.

 

- Era para estar sentada na penumbra, até sentir-se mais calma.

 

- Talvez fosse ao encontro de alguém.

 

- Não. Demorou-se três minutos e não falou com ninguém. Se me perguntar a opinião, sempre lhe direi que queria chorar à vontade.

 

- É possível. Mas, quanto às mãos, meu caro senhor Parkis, enganou-se.

 

- As mãos?

 

Aproximei-me da luz por forma a que o rosto ficasse melhor iluminado.

 

- Não pegámos nas mãos um do outro.

 

Tive pena dele, depois de me ter divertido à sua custa... tive pena de assarapantar uma criatura já de si tão tímida. Olhava-me com a boca um pouco aberta, como se houvesse recebido um golpe súbito e esperasse, paralisado, a facada seguinte. E eu disse: - Suponho que um engano como este, senhor Parkis, acontecerá muitas vezes. O Sr. Savage deveria ter-nos apresentado.

 

- De modo algum - respondeu desanimadamente. - A culpa foi minha. - Curvou a cabeça, e ficou ali sentado, contemplando o fundo do próprio chapéu, que tinha nos joelhos. Tentei animá-lo: - Não tem importância. Se olhar de fora, como espectador, até é muito divertido.

 

- Mas eu estou do lado de dentro, Sr. Bendrix   - * dando voltas ao chapéu, prosseguiu, numa voz tão húmida e lúgubre como o parque lá fora: - Não é com o Sr Savase que me preocupo. É um homem compreensivo como pou cos no nosso ramo. Preocupo-me com o meu filho. Está con” vencido que eu sou um grande exemplo... - Conseguiu pescar das profundas do desânimo um humílimo e lamentoso sorriso: - Bem sabe a que espécie de leituras eles se entregam. Nick Carter e companhia.

 

- Mas por que haveria ele de chegar a saber?

 

- Com uma criança é preciso falar francamente   e far-me-á perguntas. Há-de querer saber o que deu este serviço... E o serviço é o que ele está a aprender

 

- E não pode dizer-lhe que eu identifiquei o tal homem e que esta pista não interessa?

 

- Fico muito, muito grato pela sugestão, mas é preciso ter o maior cuidado. Não digo que a não siga mesmo com o meu rapaz, mas que pensará ele, se alguma vez, no decorrer da investigação, dá de cara com o senhor?

 

- Não há necessidade disso.

 

- Mas pode acontecer.

 

- E por que é que, durante este serviço, o não deixa em casa?

 

- Isso ainda é pior. Não tem mãe, estamos nas férias e eu sempre tenho aproveitado as férias para o treinar... com Pleno acordo do Sr. Savage. Não. Fiz uma triste figura não ha outro remédio senão reconhecer isto mesmo. Se ao menos o rapaz não fosse tão sério, mas o caso é que toma imensamente a peito qualquer deslize meu. Um dia, o Sr. Prentice... é o adjunto do Sr. Savage, homem um tanto duro... disse: «Outra escorregadela sua, Parkis.» Ora o rapaz ouviu. E abriu os olhos. - Levantou-se com ar enormemente decidido (quem somos nós para avaliar da coragem alheia?): - Afinal estou para aqui a roubar-lhe tempo com as minhas preocupações.

 

- Tive muito prazer, Sr. Parkis - respondi, sem ironia.

- Não se aflija pelo seu rapaz.

 

- Tem a cabeça da mãe - disse com tristeza. - Tenho de ir-me embora. Faz muito frio, embora eu haja descoberto, antes de vir, um sítio bem abrigado. Mas é tão zeloso que não se deixa ficar lá metido. Se não se importa... poderia rubricar as despesas, caso concorde com elas?

 

Da minha janela, vi-o afastar-se com o impermeável levantado e o chapéu coçado, enterrado na cabeça; a neve aumentara, e já ao pé do terceiro candeeiro parecia um boneco de neve, em que a terra transparece aqui e ali. Ocorreu-me então, com pasmo, que dez minutos haviam passado sem que eu tivesse pensado em Sarah ou no meu ciúme; humanizara-me o suficiente para atentar nas ralações dos outros.

 

 

O ciúme, ao que sempre supus, existe apenas quando há desejo. Os escritores do Velho Testamento gostavam imenso de empregar a expressão «um Deus cioso», e talvez fosse a sua rude e oblíqua maneira de exprimir a crença no amor de Deus pelo homem. Mas, julgo eu, há várias espécies de desejo. O meu desejo era então muito mais afim do ódio que do amor, e Henry, tinha eu razões para imaginar, segundo o que Sarah uma vez me dissera, havia muito que deixara de sentir por ela qualquer atracção física. E, todavia, nesse tempo, creio que ele era tão ciumento como eu. O desejo dele, porém, limitava-se a uma necessidade de convívio; pela primeira vez se sentia excluído da intimidade de Sarah; estava preocupado e desesperado

- não sabia o que se passava ou o que ia talvez acontecer. Vivia numa incerteza terrível. Até aqui, a sua tortura era superior à minha. Eu tinha a certeza de nada possuir. Não podia ter mais do que aquilo que perdera, enquanto que ele possuía a presença dela à mesa, o ruído dos seus passos nas escadas, o abrir e o fechar das portas, o beijo na face - duvido que houvesse então muito mais, mas, para o homem que morre à míngua, quanto não é já este pouco! E, naquele momento em que Parkis atravessava o parque fronteiro, nem sequer sabia que eu e Sarah havíamos sido amantes. Ao escrever esta palavra, a minha lembrança regressa irresistivelmente, contra minha vontade, ao ponto em que a dor começou.

 

Uma semana decorrera sobre o beijo fugidio de Maiden Lane, até eu chamar Sarah ao telefone. Ao jantar, ela dissera que Henry não gostava de cinema, e por isso raríssimas vezes ela ia. Exibia-se no Warner um filme extraído de um dos meus livros e, parte por ostentação, parte porque me parecia que o beijo, que mais não fosse por mera cortesia, deveria ter algumas consequências, e parte também porque eu continuava interessado na vida conjugal de um funcionário público, pedi a Sarah que viesse comigo.

 

- Não vale a pena convidar o Henry, pois não?

 

- De modo algum.

 

- Podia vir ter connosco para jantarmos juntos, depois do cinema?

 

- Traz agora muito trabalho para casa. Um maçador de um Liberal apresenta, na semana que vem, um aviso prévio no Parlamento sobre a questão das viúvas. - Quase podia dizer-se que foi esse Liberal (creio que um galês por nome Lewis) quem, para essa noite, nos fez a cama.

 

O filme não era bom; e, por vezes, doía-me terrivelmente ver situações que para mim haviam sido tão reais transformarem-se em «chapas» calistas de cinema. Estava desejando ter levado Sarah a outro sítio. Primeiro, ainda lhe dissera: - Não sei se sabe, isto não é o que eu escrevi -, mas não podia passar todo o tempo a dizer sempre o mesmo. Tocou-me com simpatia, e ficamos sentados de mãos dadas, com a inocência comum as crianças e aos amantes. De súbito e inesperadamente apenas por uns minutos, o filme reanimou-se. Esqueci que a historia era minha, e comovi-me autenticamente com uma pequena cena passada num restaurante barato. O rapaz mandara vir bifes de cebolada, e a rapariga hesitava uns instantes em servir-se da cebola porque o marido dela detestava o cheiro, e o rapaz ficava ofendido e furioso por imaginar a causa da hesitação, que lhe trazia ao espírito o inevitável beijo quando ela entrasse em casa A cena «dava»: eu tinha querido sugerir a paixão através de qualquer simples episódio vulgar, sem a mínima retórica de palavras ou de acção - e resultava Escassos feliz: isto era arte de escrever, nada mais me interessava no mundo. Queria voltar para casa e ler a cena outra vez- queria trabalhar em qualquer coisa de novo; queria, ai a que ponto eu quena, não ter convidado Sarah Miles para jantar.

 

Depois - havíamos voltado ao Rule e acabavam de servir-nos os bifes - ela riscaria disse. - Havia uma cena escrita por si

 

- Havia!

 

- A das cebolas?

 

- Sim. - E nesse preciso momento um prato de cebolas foi posto na mesa. E eu perguntei - nem me passara pela cabeça naquela tarde desejá-la: - E Henry não gosta de cebola?

 

- Nem pode ver tal coisa. E você gosta?

 

- Gosto. - Serviu-me e depois serviu-se

 

E possível alguém apaixonar-se por sobre um prato de cebolas? Parece que não: e, no entanto, era capaz de jurar que foi exactamente naquele momento que me apaixonei. Claro que não eram só as cebolas - mas o sentido súbito de uma mulher, e de uma franqueza que, mais tarde, tantas vezes me faria feliz ou desgraçado. Pus a mão debaixo da mesa e pousei-lha no joeIJio; e a mão dela veio segurar a minha: - Um belo bife -, disse eu; e soou-me como poesia a resposta dela: - O melhor que jamais comi.

 

Não a cortejei nem seduzi. Deixámos nos pratos metade do belo bife, na garrafa um terço de clarete, e saímos para Maiden Lane, ambos com a mesma intenção. Exactamente no mesmo sítio, ao pé do arco e da grade, beijámo-nos. E eu disse:

 

- Quero-te.

 

- Também eu.

 

- Não podemos ir para casa.

 

- Pois não.

 

Apanhámos um táxi ao pé da estação de Charing Cross, e çu disse ao condutor que nos levasse a Arbuckle Avenue - era o nome pelo qual eles conheciam Leinster Terrace, a correnteza de hotéis que havia do lado da estação de Paddington com nomes de categoria: Ritz, Carlton e outros que tais. As portas destes hotéis estava sempre abertas, e podia sempre arranjar-se a qualquer hora um quarto para passar uma ou duas horas. Há uma semana, fui tornar a ver o sítio. Metade desapareceu precisamente a metade onde estavam os hotéis foi despedaçada pelas bombas, e o lugar onde nos amámos naquela noite era um espaço no ar. Tinha sido o Bristol; no vestíbulo havia um feto num vaso, e uma governanta de cabelos azuis mostrara-nos o melhor quarto, um quarto eduardiano autêntico, com uma grande cama de casal dourada, cortinas de veludo vermelho e um espelho de corpo inteiro. (As pessoas que frequentavam Arbuckle Avenue nunca pediam camas separadas.) Recordo-me perfeitamente dos detalhes vulgares: como a gerente me perguntou se queríamos lá passar a noite; como o quarto, para pouca permanência, custava quinze xelins; como o contador eléctrico só admitia xelins e nós não tínhamos, nem um nem outro, uma moeda de xelim. Mas de nada mais me recordo -- como me pareceu Sarah pela primeira vez ou que fizemos, a não ser que ambos estávamos nervosos, e nos amámos mal. Não importava. Tínhamos começado - eis o ponto. A vida inteira estava então à nossa frente. Oh, ainda há uma outra coisa, que sempre recordo. À porta do nosso quarto («nosso quarto», meia hora depois), quando a beijei mais uma vez e lhe disse quanto detestava a ideia de ela voltar para Henry, Sarah respondeu-me:

- Não te rales. Está muito ocupado com as viúvas.

 

- Até a ideia de que ele te beija me desagrada.

 

- Não beija. Nada há que ele mais deteste que o cheiro a cebola.

 

Acompanhei-a até casa, e entrei. A luz brilhava por baixo da porta do escritório de Henry, e subimos a escada. Na sala de estar, apertávamos as mãos um contra o outro, sem coragem de nos separarmos; eu disse: - Ele sobe, não tarda nada.

 

- Podemos ouvi-lo - respondeu-me, e acrescentou com hórrenda lucidez: - Há um degrau que estala sempre.

 

Não tive tempo de tirar o sobretudo. Beijámo-nos, ouvi o estalar do degrau, e contemplei com tristeza a calma que havia no rosto dela quando Henry entrou. - Estávamos contando que subisses e nos oferecesses qualquer coisa.

 

E Henry: - Pois claro. Que há-de você tomar, Bendrix?

- Não, eu não tomava nada, eu tinha que fazer.

 

- Julgava que você me tinha dito que nunca trabalhava à noite.

 

- Oh, isto não conta. É uma crítica.

 

- Ao menos um livro com interesse?

 

- Nem por isso.

 

- Quem me dera ter esse poder de... explicar as coisas. Sarah acompanhou-me à porta e tornámos a beijar-nos.

 

Naquela altura era com Henry que eu simpatizava e não com Sarah. Como se todos os homens do passado e os homens do futuro projectassem as suas sombras no presente. - Que tens?

- perguntava-me ela. Era extremamente arguta em ler o sentido oculto num beijo, o murmúrio no cérebro.

 

- Nada. Telefono amanhã de manhã.

 

- Será melhor ser eu a telefonar - observou; e cautela, pensava eu, cautela, como ela sabe conduzir uma aventura destas, e lembrei-me do degrau que sempre... «sempre» fora a palavra que ela empregara... estalava.

 

 

O sentido da infelicidade é muito mais fácil de comunicar que o da felicidade. Parece que, na miséria, tomamos consciência da nossa própria existência, que mais não seja sob a forma de um monstruoso egoismo: esta minha dor é individual, este nervo que se crispa pertence-me e não a outro. Mas a felicidade aniquila-nos: perdemos a identidade. As expressões do amor humano têm sido usadas pelos santos para descrever a sua visão de Deus; e assim, creio eu, podemos nós usar os termos da oração, da meditação, da contemplação, para explicarmos a intensidade do amor que por certa mulher sentimos. Também nós submetemos a memória, o intelecto, a inteligência; também nós experimentamos a privação, a noche oscura, e às vezes, como recompensa, uma espécie de paz. O próprio acto do amor tem sido descrito como uma pequena morte, e os amantes também às vezes experimentam uma pequena paz. É ridículo eu dar comigo a escrever estas frases como se amasse o que afinal odeio. Por momentos, nem reconheço os meus próprios pensamentos. Que sei eu de expressões como «a noite obscura»; ou de orações sabe quem tem só uma? Herdei tudo isto, é o que é, como um marido que, por morte, se vê na inútil posse de roupas de mulher, perfumes boiões de creme... E, no entanto, havia a paz...

 

É assim que eu penso naqueles primeiros meses da guerra era uma paz de comédia em tempo de guerra idiota? Agora, parece-me que essa paz alonga os braços em conforto e segurança por sobre meses de ambiguidade e expectativa, mas por certo que, mesmo então, a paz terá sido pontuada pela incompreensão e suspeita. E assim como recolhi a casa, nessa primeira noite, sem alegria, apenas com uma sensação de resignada tristeza, assim voltei e tornei a voltar para casa nos outros dias, com a certeza de que eu era mais um de entre muitos homens - o amante entretanto preferido. Esta mulher, que tão obsessivamente amei, que, se acordava de noite, imediatamente deparava com o pensamento dela e não dormia mais, parecia dar-me todo o seu tempo. E eu, mesmo assim, não confiava: no acto do amor era eu capaz de manter-me arrogante, mas, ficando só, bastava-me olhar para um espelho, e logo via a dúvida com os traços de um rosto enrugado e uma perna coxa - eu, porquê? Havia sempre uns momentos em que não podíamos estar juntos idas ao dentista ou ao cabeleireiro, ocasiões em que Henry recebia, ou em que eles ficavam sós os dois. Não valia a pena dizer-me a mim mesmo que, em sua própria casa, ela não tinha qualquer oportunidade de me trair (com a presunção dos amantes, eu estava usando sempre esta palavra, que sugeria um não-existente dever), enquanto Henry trabalhava nas pensões das

 

1 Trata-se de um jogo com as expressões «phoney peace» e «phoney war», esta última o correspondente inglês da «drôle de guerre» dos franceses, para os primeiros meses da guerra de 1939. (N. do T.)

 

viúvas ou - porque, não tardou muito, já estava a tratar de outro assunto - na distribuição de máscaras antigas e no desenho de umas caixas de cartão a aprovar oficialmente: e não valia a pena, por que não sabia eu que é possível amar nas mais perigosas situações, desde que haja desejo? A desconfiança cresce com o êxito. Logo, na vez seguinte em que nos vimos, tudo se passou exactamente do modo que eu classificaria de impossível.

 

Acordei com a tristeza da última observação cautelosa, que ela fizera, ainda suspensa no meu espírito; mas, a menos de três minutos de acordar, a voz dela ao telefone dissipou-ma. Nunca conheci, nem antes nem depois, mulher mais hábil em transformar, com simplesmente falar ao telefone, um estado de espírito; e, de cada vez que entrava ou pousava a mão, recriava instantaneamente a confiança absoluta que em cada separação eu perdia.

 

- Olá, estás a dormir?

 

- Não. Quando posso estar contigo? Esta manhã?

 

- O Henry está constipado. Ficou em casa.

 

- Se ao menos pudesses cá vir...

 

- Não posso sair, tenho de atender o telefone.

 

- Só porque ele apanhou uma constipação?

 

Na noite anterior eu sentira por Henry amizade e simpatia, e já ele se tornava um inimigo a troçar, a detestar, a achincalhar à sucapa.

 

- É que perdeu completamente a voz.

 

Senti um pérfido gozo com a absurdidade daquela doença: um funcionário público sem pio, cochichando rouca e inefectivamente acerca de pensões de viúvas... - Mas não há qualquer maneira de estar contigo?

 

- Claro que há.

 

Houve um silêncio, é cheguei a supor que a ligação fora cortada. E disse: - Está lá... - É que ela estivera a pensar, apenas a pensar, cuidadosamente, firmemente, rapidamente, para me poder dar sem delongas a necessária resposta: - À uma, sirvo o Henry na cama. Podíamos comer uma sanduíche, nós, na sala de estar. Digo-lhe que tu queres falar-me sobre o filme... ou sobre essa tua história -, e mal ela desligou a sensação de confiança diluiu-se e... quantas vezes já não planeara ela as coisas assim? Quando cheguei lá a casa e toquei à campainha, senti-me um inimigo... ou um detective vigiando-lhe as palavras, como Parkis e o filho lhe vigiariam os passos alguns anos mais tarde. A porta abriu-se, e a confiança voltou.

 

Naquele tempo não se punha a questão de qual desejava o outro - o nosso desejo era o mesmo. O Henry teve o seu tabuleiro na cama, vestido com o seu roupão verde de lã, encostado a dois almofadões; e, no andar de baixo, no soalho duro, com uma simples almofada e a porta entreaberta, amámo-nos nós. E, quando o momento chegou, tive de pôr-lhe suavemente a minha mão na boca, para afogar aquele estranho, triste, irado grito de abandono, por temer que lá em cima Henry o ouvisse.

 

E pensar que eu me dispusera apenas a colher dela algumas informações! Acocorado no chão, ao lado dela, olhava, olhava, como se nunca mais tornasse a ver o que via - o cabelo de um indefinido castanho, esparso, como licor entornado, o suor na testa, a respiração ofegante como se tivesse ganho uma corrida e agora, qual jovem atleta, jazesse na exaustão da vitória.

 

E, nessa altura, o degrau estalou. Por instantes, nenhum de nós se moveu. As sanduíches estavam por comer em cima da mesa, os copos nem sequer haviam sido cheios. E ela disse baixinho: - Ele desceu a escada. - Sentou-se numa cadeira, pus-Ihe um prato nos joelhos e um copo ao lado.

 

- E se ele ouviu, ao passar?

 

- Não percebia o que era.

 

Devo ter mostrado incredulidade, porque ela explicou logo, com ternura magoada: - Coitado do Henry, isto nunca aconteceu nem uma vez, em dez anos. - Mas não estávamos muito seguros, e ficámos calados. A voz soou-me incerta e falsa, quando eu disse um tanto alto de mais: - Agrada-me que tenha apreciado a cena das cebolas - e Henry empurrou a porta e olhou para dentro. Trazia uma botija de água quente num saco de flanela parda. - Viva, Bendrix - cochichou.

 

- Não devias ter ido buscar isso - disse-lhe ela.

 

- Não quis incomodar.

 

- Estávamos conversando sobre o filme que fomos ver a noite passada.

 

E ele, baixinho para mim: - Espero que não lhe tenha faltado nada. - Depois, observou o vinho branco que Sarah tirara da garrafeira em minha honra: - Devias ter-lhe servido o de 23 - suspirou numa voz linear e sumiu-se, segurando a botija de água quente no saco de flanela, e de novo ficámos sós.

 

- Importas-te? - perguntei, e ela abanou a cabeça. Eu não sabia ao certo o sentido da minha pergunta... talvez pensasse que a visão de Henry houvesse suscitado remorso, mas Sarah possuía artes extraordinárias para eliminar o remorso. Ao contrário de todos nós, não a perseguia qualquer consciência de culpa. Em sua opinião, se uma coisa fora feita, fora feita, e o remorso morria com a própria acção. Acharia desagradável que Henry, se nos tivesse surpreendido, se encolerizasse por mais que uns instantes. Diz-se dos católicos que, no confessionário, se libertam da hipoteca do passado - e sem dúvida que, sob este aspecto, ela poderia ser classificada de católica nata, embora acreditasse etn Deus tanto como eu. Ou eu assim pensava, e já não sei.

 

Se este livro não consegue desenvolver-se rigorosamente, é porque estou perdido numa região ignota, e não tenho mapa. Muitas vezes duvido que seja verdade algo do que vou registando aqui. Naquela tarde, senti uma tão completa segurança quando subitamente ela me disse, sem que eu nada houvesse perguntado:

- Nunca amei ninguém ou nada como te amo a ti. - E era como se, ali sentada na cadeira, com uma sanduíche meio comida na mão, ela se estivesse entregando tão completamente como o fizera cinco minutos antes sobre o soalho. A maior parte de nós hesita em proferir uma tão decidida afirmação - é que recordamos e prevemos e duvidamos. Ela, porém, não tinha dúvidas. Apenas lhe importava o momento presente. Diz-se da eternidade que é, não uma extensão do tempo, mas uma ausência dele; e por vezes parecia que o abandono de Sarah atingia aquele estranho ponto matemático do infinito, um ponto sem dimensões, inocupante de espaço. Que importava o tempo - todo o passado e os outros homens que, de tempos a tempos (eis outra vez estas palavras), ela pudera ter conhecido, ou todo o futuro, no qual poderia repetir a mesma afirmação com a mesma intenção de verdade? Quando repliquei que também eu a amava assim, o mentiroso era eu, não ela, porque eu nunca perco a noção do tempo: para mim, o presente nunca está aqui, é sempre o ano passado ou a semana que vem.

 

E ela não mentira mesmo ao dizer: «Ninguém mais. Nunca mais.» Há no tempo contradições, é o que é, que não existem no tal ponto matemático. Ela tinha vima capacidade de amar tão superior à minha! - Eu não era capaz de assim fazer descer uma cortina em torno do momento presente, não podia esquecer, não podia deixar de temer. Mesmo no êxtase amoroso eu era como um polícia coleccionando indícios de um crime ainda não cometido, e, quando quatro anos mais tarde abri a carta de Parkis, tinha na memória, para aumentarem-me a amargura, todas as provas.

 

Prezado senhor», rezava a carta, «É com satisfação que lhe comunico que eu e o meu filho travámos relações amigáveis com a criada do n.° 17. Isto permitiu que o inquérito prosseguisse a velocidade superior, dado que me é possível uma vez por outra deitar uma olhadela à agenda da pessoa em questão, e assim estar de posse de alguns movimentos, bem como inspeccionar diariamente o conteúdo do cesto dos papéis da pessoa em questão, do qual aqui incluo um interessante espécime, cuja devolução com comentários me atrevo a solicitar. A pessoa em questão tem ainda um diário, mantido há anos, mas, por enquanto, a criada a quem daqui em diante, para maior segurança, me referirei como «o meu amigo», não pôde chegar-lhe, pois que tudo se passa como se a pessoa em questão o guardasse a sete chaves, o que pode ser ou não ser uma circunstância suspeita. Com excepção do importante espécime incluso, a pessoa em questão parece gastar uma grande parte do seu tempo não respeitando os encontros marcados, ao que se suporia, na agenda, a qual deve ser considerada uma falsa pista, embora seja pessoalmente incapaz de julgar pelo pior ou lançar suspeitas, num inquérito como este, em que a inteira verdade é o que se procura para bem de todos.»

 

Nem só a tragédia nos fere, também o grotesco tem as suas armas, mesquinhas e ridículas armas. Ocasiões havia em que eu me sentia tentado a meter pela boca abaixo do Sr. Parkis aqueles relatórios inúteis, evasivos e pomposos, e na presença do filho dele. Tudo se passava como se, no meu esforço para apanhar Sarah (mas com que fim? O de magoar Henry, ou o de magoar-me a mim próprio?), eu tivesse permitido que um palhaço viesse cambalhotar no meio da nossa intimidade. Intimidade. Até esta palavra me sabe aos relatórios do Parkis. Pois não escreveu ele uma vez: «Embora eu não tenha provas concretas de ter havido intimidades no n.° 16 de Cedar Road, sem dúvida que a pessoa em questão manifestou o intuito de despistar»? Mas isso foi depois. Por este relatório apenas fiquei sabendo que Sarah anotara por duas vezes ir ao dentista e ao cabeleireiro, e que não fora, se é que alguma vez pensara em ir; conseguira evadir-se à perseguição. E, então, voltando o charro documento do Sr. Parkis, escrito a tinta roxa em papel de bloco barato, na sua letrinha fina, deparei com a segura e nítida letra da própria Sarah. Não imaginara que a reconheceria quase dois anos mais tarde.

 

Era apenas um pedaço de papel, alfinetado às costas do relatório; estava marcado com um grande A a lápis vermelho. E por baixo do A, Parkis escrevera: «É importante, com vista a possíveis desenvolvimentos, que todas as provas documentais sejam devolvidas para arquivo.» O papel fora salvo do cesto, e alisado cuidadosamente como o poderia ter sido pela mão de um apaixonado. E sem dúvida que fora destinado a um amante: «Não preciso escrever ou falar, sabes tudo muito antes disso, mas quando amamos, precisamos usar dos mesmos velhos meios que sempre usámos. Eu sei que apenas principio a amar, e já desejo abandonar tudo e todos por ti: só o medo e o hábito me detêm. Ó meu...» E era tudo. Aquilo saltava-me aos olhos, e não podia deixar de pensar em como me esquecera de todas as linhas dos bilhetes que ela outrora me escrevera. Não os teria eu guardado se neles tivesse ela alguma vez confessado tão inteiramente o seu amor por mim; e, por medo de que eu os guardasse, não tinha ela tido sempre, nesse tempo, o cuidado de escrever-me, como ela dizia, «nas entrelinhas»? Este último amor, porém, quebrara a gaiola das linhas. Recusara-se a ser mantido secretamente entre elas. Havia, lembro-me bem, uma palavra-código: «cebolas». Essa palavra fora autorizada a, na nossa correspondência, representar discretamente a nossa paixão. O amor tornou-se «cebolas», mesmo o próprio acto do amor era «cebolas». «Já desejo abandonar tudo e todos por ti» - e eu, com raiva, pensava: cebolas, no meu tempo era cebolas.

 

Escrevi «Nada a comentar» no fragmento, e meti-o num sobrescrito endereçado ao Sr. Parkis; mas, ao acordar de noite, era capaz de recitar de mim para mim aquilo tudo, e a palavra «abandonar» tomou vários aspectos de imagem física. Impossibilitado de dormir, uma recordação após outra me perseguia com ódio ou desejo: o cabelo dela espraiado no chão e o degrau estalando, um dia passado no campo, em que nos deitáramos num valado, escondidos da estrada, e eu via a geada no chão duro brilhar por entre as madeixas de cabelo, e em que, no momento da crise, um tractor se aproximou e o homem nem voltou a cabeça. Por que é que o ódio não esmaga o desejo? Eu teria dado tudo para adormecer. Ter-me-ia portado como um colegial, se acreditasse na possibilidade de um qualquer substituto. Mas houvera um tempo em que eu tentara encontrar um substituto, sem resultado.

 

Eu sou um ciumento - parece estúpido escrever isto, no que é, ao que julgo, um extenso registo de ciumeira: ciúme desse outro que Parkis andava tão desastradamente perseguindo. Agora que tudo isto pertence ao passado, apenas sinto ciúmes de Henry quando as recordações se tornam especialmente nítidas (porque garanto que, se tivéssemos sido casados, com a lealdade dela e o meu desejo, teríamos sido felizes a vida inteira), mas subsiste ainda o ciúme do meu rival - palavra melodramática esta, dolorosamente inadequada para exprimir a insuportável complacência, a segurança e o êxito, de que ele sempre goza. Às vezes penso que ele nem me reconhece como parte da pintura, e sinto um enorme desejo de chamar a atenção para mim, gritar-lhe aos ouvidos: «Não podes ignorar-me. Aqui estou eu. O que quer que tenha havido depois, Sarah amou-me.»

 

Sarah e eu costumávamos ter largas discussões por causa do ciúme. Eu até do passado tinha ciúmes, daquele passado de que ela me falava francamente quando lhe ocorria - as aventuras que nada significavam (à excepção, possivelmente, do inconsciente desejo de encontrar aquele espasmo final que Henry fora tão desgraçadamente incapaz de provocar). Ela era tão leal para com os amantes como para com Henry, mas aquilo mesmo que devera confortar-me (pois que, indubitavelmente, me era também leal) enfurecia-me. A certa altura, ela ria-se da minha cólera, recusando-se pura e simplesmente a toma-la a sério, exactamente como não tomava a sério a sua própria beleza; e do mesmo modo eu me enfurecia por ela se negar a ter ciúmes do meu passado ou do meu possível futuro. Eu não queria crer que o amor pudesse tomar outra forma que não a que em mini tinha: media o amor pela extensão do ciúme, e, é claro, por este padrão, Sarah de maneira alguma me tinha amor.

 

As discussões seguiam sempre o mesmo rumo; e apenas descrevo uma delas, porque, dessa vez, acabou em actos - um acto estúpido, sem qualquer saída, a não ser possivelmente a desta dúvida que sempre me surge quando começo a escrever, a sensação de que talvez quem tinha razão era ela e quem a não tinha era eu.

 

Lembro-me de ter dito, encolerizadamente: - Tudo isto não passa de um disfarce da tua velha frigidez. A mulher frígida nunca tem ciúmes, e tu simplesmente ainda não acertaste o passo pelas emoções humanas mais comuns.

 

Irritou-me que ela não protestasse: - Talvez tenhas razão. Só queria dizer que desejo que tu sejas feliz. Detesto que o não sejas. E não me importa o que faças, desde que te sintas feliz.

 

- O que tu queres é uma desculpa. Se eu me meter com alguém, achas que em qualquer altura podes fazer o mesmo.

 

- Isso não vem ao caso. O que eu quero é que sejas feliz, mais nada.

 

- Fazias-me a cama para outra?

 

- Talvez.

 

A insegurança, eis o pior que os amantes podem sentir: amiúde o mais sensaborão dos casamentos de conveniência será preferível. A insegurança perverte todos os significados, envenena a confiança. Numa cidade apertadamente assediada, qualquer sentinela é um traidor em potência. Muito antes do tempo do Sr. Parkis, eu experimentava Sarah: apanhava-a em mentiras, fugas que nada queriam dizer senão o medo que ela tinha de mini. Cada mentira ampliava-a eu até à traição, e mesmo na mais franca declaração lia ocultos sentidos. Porque não podia suportar a ideia de ela, que mais não fosse, apenas tocar outro homem, era o que temia constantemente; e via intimidades no mais casual movimento das suas mãos.

 

- Não preferes que eu seja feliz, a que seja desgraçada?

- perguntava-me com insuportável lógica.

 

- Antes queria morrer ou ver-te morta, a ver-te com outro homem. Não sou um tipo extravagante. O vulgar amor humano é assim. Pergunta a qualquer pessoa. E todos te hão-de dizer o mesmo, se é que alguma vez amaram. - E atirava-lhe: Quem ama é ciumento.

 

Estávamos no meu quarto. Tínhamos ido para lá, à hora mais segura, num fim de tarde primaveril, para nos possuirmos mais uma vez; com horas e horas diante de nós, gastei-as numa questão, e não chegou a haver que possuir. Sentada na cama, ela dizia: - Lamento tudo isto. Não queria arreliar-te. Deves ter razão. - Mas eu é que a não deixava em paz. Detestava-a, porque queria pensar que ela me não tinha amor: desejava pô-la fora da minha vida. E agora medito: que queixa tinha eu contra ela, amasse-me ou não? Durante quase um ano, fora-me leal, dera-me imenso prazer, conformara-se com os meus humores, e que lhe dera eu em troca, além de um prazer momentâneo? Eu entrara naquela aventura de olhos bem abertos, ciente de que um dia tudo acabaria; e, quando o sentimento de insegurança, a crença lógica nesse inevitável futuro descia sobre mim qual melancolia, atormentava e tornava a atormentar Sarah, como se quisesse obrigar esse futuro a mostrar-se ali à porta, indesejada e prematura visita. O meu amor e o meu medo agiam como consciência. Se acreditássemos no pecado, o nosso comportamento pouco teria diferido.

 

- Hás-de ter ciúmes de Henry - dizia eu.

 

- Não. Não é possível. Que disparate!

 

- Se visses o teu casamento em perigo...

 

- Seria impossível! - exclamou tão prontamente, que, considerando um insulto as suas palavras, saí pela porta fora, desci as escadas e me vi na rua. E pensava: mas tudo acaba nisto, em representar para mim próprio? Nem é preciso voltar para trás. Se posso arrancá-la da minha vida, não posso descobrir por aí um casamento pacato que dure indefinidamente? Talvez que então eu não sinta ciúmes por não amar para tanto: sentir-me-ia seguro... e a pena que eu tinha de mim, mais a minha fúria, passeavam de mãos dadas pelas avenidas crepusculares como dois doidos sem enfermeiro.

 

Quando principiei a escrever este livro, declarei que era uma história de ódio, mas não estou convencido. Talvez em mim o ódio seja tão deficiente como o amor. Agora mesmo levantei os olhos do papel, e vi, num espelho próximo da secretária, o meu próprio rosto; e perguntei a mim mesmo: será que o ódio tem aquele aspecto? Porque me lembrei daquela face que todos vimos na infância, olhando-nos do vidro das montras embaciado pelo nosso hálito, quando contemplávamos tão ansiosamente os resplandecentes objectos lá dentro inatingíveis.

 

Deve ter sido em qualquer altura, por Maio de 1940, que esta discussão se passou. A guerra ajudara-nos muito belamente, e foi assim que cheguei a considerá-la como uma espécie de cúmplice suspeito e inseguro da minha aventura. (Era deliberadamente que eu empregava o cáustico da palavra «aventura», com o que ela sugere de princípio e fim.) Parece-me que por esse tempo a Alemanha invadira os Países Baixos: a Primavera, como um cadáver, tinha o doce perfume das coisas condenadas, mas só dois factos práticos me interessavam - Henry fora transferido para a Segurança Interna e trabalhava até tarde; e a dona da minha casa, temerosa dos ataques aéreos, mudara-se para a cave, e já ninguém a via, debruçada no corrimão do andar de cima, farejando visitas indesejáveis. A minha vida em nada se alterara, devido ao meu defeito (tenho, em resultado de um acidente na infância, uma perna um pouco mais curta do que a outra); só quando os ataques aéreos começaram é que me senti na obrigação de servir na Defesa Passiva. Entretanto, era como se eu nada tivesse que ver com a guerra.

 

Nessa noite, ainda foi cheio de raiva e amargor que cheguei a Piccadilly. Mais do que tudo no mundo eu queria ofender Sarah. Queria arranjar uma mulher e possuí-la na mesma cama em que possuía Sarah; como se eu soubesse que a única maneira que tinha de humilhá-la era humilhar-me a mim próprio. Nesse tempo, àquela hora, as ruas eram sossegadas e obscuras, embora no céu sem lua perpassassem os raios dos holofotes. Não se viam as caras das mulheres, nos vãos de porta ou nas entradas dos abrigos ainda não utilizados. Tinham de fazer sinais, como pirilampos, com as lanternas de algibeira. Todo o caminho, até Sackville Street, as luzinhas se acendiam e apagavam. Dei comigo a pensar no que estaria Sarah fazendo naquele momento. Teria voltado para casa, ou teria ficado à espera do meu regresso incerto?

 

Uma mulher acendeu a sua lanterna: - Queres vir comigo amorzinho? - Abanei a cabeça, e segui para diante. Mais uns passos, e uma rapariga falava com um homem: ao iluminar o próprio rosto para que ele o visse, vislumbrei algo jovem, moreno, feliz, ainda intacto - um animal ainda inconsciente do cativeiro. Ultrapassei-os, e voltei para trás em direcção a eles; o homem deixou-a, quando me aproximei: - Queres tomar alguma coisa?

 

- E vem comigo depois?

 

- Claro.

 

- Então só uma bebida, num instante.

 

Entrámos no botequim do fim da rua e mandei vir dois whiskies; e, enquanto ela bebia, não era a cara dela que eu via mas a de Sarah. Mais nova, não teria mais de dezanove anos, mais bonita, podia dizer-se que mais pura, apenas porque havia nela muito menos que conspurcar: e descobri que a desejava tanto como a qualquer cão ou gato. Ia-me dizendo que tinha um lindo apartamento no último andar umas casas mais abaixo, a renda que pagava, a idade, onde nascera, como durante um ano trabalhara num café. Explicava-me que não ia com qualquer que lhe falasse, mas logo vira que eu era um cavalheiro. Tinha um canário chamado Jones, que era o nome do sujeito que lho dera. Passou a falar da dificuldade de arranjar alpista em Londres. E eu pensando: se Sarah ainda está no quarto, posso telefonar-lhe. Ouvi a rapariga perguntar-me se eu, acaso tivesse um jardim, me lembraria às vezes do canário dela. - Não se importa que eu pergunte, pois não?

 

Olhando para ela por sobre o meu copo, pensava em como era estranho que não sentisse por ela qualquer desejo. Era como se de súbito, após tantos anos promíscuos, eu tivesse atingido a idade adulta. A minha paixão por Sarah matara-me para sempre o simples desejo. Nunca mais seria capaz de gozar uma mulher que não amasse.

 

E, portanto, seguramente, não fora o amor que me trouxera até àquele botequim; a mim próprio, durante todo o caminho, eu me dissera que fora o ódio, como ainda digo, ao escrever esta narrativa, procurando expulsá-la definitivamente da minha vida, pois que sempre tinha pensado que, se ela morresse, a esqueceria.

 

Saí, deixando à rapariga o whisky por acabar e uma nota de libra para consolar-lhe o orgulho, e subi a New Burlington Street até à primeira cabina telefónica. Não tinha lanterna, e vi-me obrigado a marcar, fósforo a fósforo, todo o meu número. Depois, ouvi tocar, e, figurando-me onde o telefone estava em cima da secretária, sabia exactamente quantos passos teria Sarah de dar até ele, se estivesse sentada numa cadeira ou deitada na cama. Mas deixei tocar o telefone no quarto vazio, durante um meio minuto. Telefonei a seguir para casa dela, e a criada disse-me que ainda não tinha voltado. Imaginei-a vagueando pelo parque em pleno black-out - e não era então um lugar muito seguro; consultando o relógio, verifiquei que doido eu fora, pois que teríamos tido três horas para estarmos juntos. Regressei sozinho a casa e tentei ler um livro, mas estava atento ao telefone, que nunca tocou. O meu orgulho não me deixava telefonar outra vez. Acabei por me deitar e tomar uma dose dupla de sonífero, e a primeira voz que ouvi pela manhã foi a de Sarah ao telefone, falando-me como se nada tivesse acontecido. Até pousar o auscultador, que paz perfeita! - e logo o diabo me aprontou a ideia de que aquelas três horas perdidas nada significavam para ela.

 

Nunca percebi como é que as pessoas que são capazes de engolir a monumental improbabilidade de um Deus pessoal hesitam perante um pessoal Diabo. De que maneira eu tenho conhecido intimamente como esse demónio me manipula a imaginação! Nenhuma afirmação de Sarah estava à prova das suas pérfidas dúvidas, apesar de, geralmente, ele esperar que ela se fosse embora para as emitir. Preparava as nossas questões muito antes de acontecerem, não tanto por ser inimigo de Sarah, mas inimigo do amor - e não é isso que se supõe que o Diabo é? É-me possível imaginar que, se acaso houver um Deus que ame, o Diabo deve ser levado a destruir mesmo a mais frágil, a mais defeituosa imitação desse amor. Não teria ele medo de que o hábito de amar se enraizasse, e não tentaria apanhar-nos a todos no papel de traidores, para ajudá-lo a exterminar o amor? Se há um Deus que se serve de nós, e faz os seus santos com esta matéria que somos, também o Diabo terá as suas ambições; pode sonhar educar mesmo um tipo como eu, mesmo um pobre Parkis, para seus santos, aptos a, com um misticismo de empréstimo, destruir o amor onde quer que o encontremos.

 

Porque me pareceu descobrir no relatório seguinte de Parkis um entusiasmo autêntico pelo jogo do Diabo. Farejava por fim o amor e agora perseguia-o, com o filho às canelas como um rafeiro. Descobrira onde Sarah passava a maior parte do tempo: mais do que isso, sabia ao certo que eram sub-reptícias as visitas. E eu tinha de reconhecer que Parkis provara ser um detective astuto. Com a ajuda do filho, arranjara as coisas de maneira que a criada dos Miles estivesse na rua exactamente na ocasião em que a «pessoa em questão se dirigia para o n.o 16 de Cedar Road. Sarah parou e falou à criada, que naquele dia tinha a sua saída, e ela apresentou-lhe o Parkis mais novo. Sarah seguiu para diante e voltou a primeira esquina, onde o Parkis propriamente dito estava à espera. E viu-a dar uns passos e voltar para trás. Quando Sarah verificou que a criada e o pequeno haviam desaparecido, tocou à campainha do n.o 16. Parkis lançara-se imediatamente à descoberta dos habitantes do n.O 16. Não era lá muito fácil, com a casa dividida em andares e sem meio de saber qual das campainhas Sarah tocara. Prometia para daí a poucos dias um relatório final. O mais que ele podia fazer era, quando Sarah numa próxima vez saísse para ali, antecipar-se-lhe e pôr pó nas campainhas. «É claro que, à excepção do espécime A, não há qualquer prova de mau comportamento por parte da pessoa em questão. Se, com fé nestes relatórios, tais provas forem requeridas na previsão de um procedimento legal, necessário é, após um conveniente lapso de tempo, penetrar no quarto. Uma segunda testemunha, e que possa identificar a pessoa em questão, é então indispensável. Não é obrigatório surpreender em flagrante a pessoa em questão; uma certa desordem do vestuário e sintomas de agitação seriam suficientes perante os tribunais.»

 

O ódio assemelha-se muito ao amor físico: tem como ele os seus orgasmos, seguidos de períodos de saciedade. Pobre Sarah, pensava eu ao ler o relatório de Parkis - porque o orgasmo do meu ódio passava, e me sentia satisfeito. Até pena dela eu tinha, apanhada como a via. O seu único crime era o amor, e ali andavam o Parkis e o filho vigiando-lhe os passos, conspirando com a criada, empoeirando campainhas, planeando irrupções violentas onde talvez estivesse a única paz que ela então fruía. Cheguei a pensar em rasgar o relatório e mandar os espiões recolher a penates. E tê-lo-ia feito, se, por acaso, no clube de meia-tigela a que eu pertencia, não tivesse aberto um Tatler e visto o retrato de Henry. Henry estava sendo um homem ilustre: por ocasião das benesses do último Aniversário Real, recebera o C.B.E.’ pelos serviços prestados no Ministério; fora nomeado presidente de uma Comissão; e lá estava ele na estreia de gala de um filme

 

«Commander of the Order of the British Enpire. O grau de «comendador e mtermedio entre o de «oficial» e o de «cavaleiro» que dá direito ao título de

 

Sir. (N. do T.)

 

inglês chamado A Última Sereia, pálido e de olhos papudos, com Sarah pelo braço. Ela baixara a cabeça para evitar o clarão do fotógrafo, mas eu era capaz de reconhecer-lhe sempre o cabelo espessamente embaraçado, que resistia aos dedos ou os prendia. E, de súbito, desejei pousar nele a mão, tocá-lo, ao cabelo da cabeça e aos cabelos secretos, desejei-a deitada junto a mim, desejei voltar a cabeça no travesseiro e falar-lhe, desejei os quase imperceptíveis cheiro e sabor da sua pele - e tinha diante de min Henry encarando a objectiva do jornalista com a complacência e a segurança de um chefe de repartição.

 

Sentei-me sob a égide de uma cabeça de veado com que Sir Walter Besant presenteara o clube em 1898, e pus-me a escrever a Henry. Dizia-lhe que tinha uma coisa importante a discutir com ele, se podia almoçar comigo, num dia da semana seguinte, à sua escolha. Foi bem de Henry que me telefonasse muito prontamente, ao mesmo tempo sugerindo que fosse eu almoçar com ele - nunca conheci um homem menos à-vontade como convidado dos outros. Não recordo exactamente qual era a desculpa, que me irritou. Parece-me que gabava o vinho do Porto, especialmente bom, que havia no clube dele, mas a verdadeira razão era ser-lhe impossível dever um favor, mesmo a insignificância de uma refeição grátis. Mal imaginava o pouco que me ia ficar a dever. Marcara para sábado, dia em que o meu clube estava quase vazio. Os jornalistas dos diários não tinham jornal para publicar; os inspectores escolares recolhem ao lar em Bromley e Streatham; e nunca soube bem o que nesse dia acontece ao clero - possivelmente fica em casa a preparar o sermão dominical. Quanto a escritores (por quem o clube fora fundado), quase todos pendiam das paredes: Conan Doyle, Charles Garvice, Stanley Weyman, Nat Gould, e uma ou outra cara mais familiar e ilustre; os vivos contavam-se pelos dedos, e uma mão chegava. Sempre me senti como em casa no clube, dada a pequena probabilidade de encontrar um camarada nas letras.

 

Lembro-me que Henry mandou vir um Vienna steak - sinal da sua inocência. Suponho que julgava estar mandando vir e esperava que lhe aparecesse qualquer coisa como Wiener schnitzel. Longe, como estava, do seu solo familiar, não era capaz de comentar o que comia, e lá foi engolindo aquela pasta rosada. Veio-me à ideia a aparência pomposa perante os fotógrafos, e não intervim quando ele escolheu o Pudim Cabinet. Durante o horripilante almoço (naquele dia o clube ultrapassou-se), falámos aplicadamente de coisa nenhuma. Henry fez o possível por dar um carácter de segredo de Estado aos trabalhos da Comissão, que a imprensa diária relatava minuciosamente. Fomos tomar o café para o salão, e achámo-nos inteiramente sós diante do fogo, numa imensidade de sofás negros de crina. Eu pensava quão adequados à situação eram os chifres que ornavam as paredes, e, pousando os pés no fender de velho estilo, encurralei Henry no canto. E, enquanto mexia o café, perguntei: - Sarah como vai?

 

- Muito bem - respondeu Henry, evasivamente. Provava o Porto com cautela suspeitosa: não esquecera, suponho, o Vienna steak.

 

- Ainda está preocupado?

 

Levantou um olhar infeliz. - Preocupado?

 

- Estava preocupado. Foi o que me disse.

 

- Não me lembro. Ela tem passado bem -, disse, sem con-

vicção, e como se eu me estivesse referindo à saúde dela.

 

- Sempre chegou a consultar o tal detective?

 

- Julgava que você já se tivesse esquecido. Eu não andava bem. Está a ver... havia a preparação dos trabalhos da Comissão... Andava esgotado.

 

- Lembra-se que me ofereci para o procurar?

 

- Devíamos estar ambos um bocado em baixo. - Levantou os olhos para a velha chifralhada sobranceira, piscando os olhos para ler o nome do doador, e disse estupidamente: - Vocês têm aqui uma quantidade de cabeças. - Mas eu não o deixei fugir:

- Pois eu, uns dias depois, fui procurá-lo.

 

Pousou o cálice, e exclamou: - Bendrix, absolutamente, você não tinha o direito...

 

- Sou eu quem paga as despesas.

 

- É espantoso. - E levantou-se, mas eu tinha-o num canto de onde só se podia sair com um acto violento, e a violência não era o forte de Henry.

 

- Por certo que você gostará de ver esclarecidos os passos dela?

 

- Nada há a esclarecer. Quero sair daqui, por favor.

 

- Julgo que você devia ler os relatórios.

 

- Não tenho a mínima intenção...

 

- Então parece-me que devo eu ler-lhe a passagem acerca das visitas sub-reptícias. A carta de amor já eu devolvi aos detectives para efeitos de arquivo. Meu caro Henry, você tem sido muito levado.

 

Desta feita, pareceu-me que ia de facto bater-me. Se me tivesse batido, com que gosto eu teria ripostado! - Aquele alarve, a quem Sarah, à sua maneira, fora tantos anos tão estupidamente leal! Mas o secretário do clube entrou nesse momento. Era um homem de barbas grisalhas, colete cheio de nódoas, com um aspecto de poeta vitoriano, que, na realidade, apenas escrevia reminiscenciazinhas tristes de cães que outrora conhecera (Fiel para Sempre fora um grande êxito em 1912).

 

- Ah, Bendrix, há muito tempo que o não via por cá. - Apresentei-o a Henry, e ele, logo, com um a-propósito de barbeiro:

 

- Tenho lido os relatos todos os dias.

 

- Que relatos? - e ao menos uma vez o trabalho não lhe veio ao espírito, quando ouvia falar em relatos.

 

- Os da Comissão.

 

Depois de o homem se ir embora, Henry disse: - E agora faz favor de me dar os relatórios e de me deixar passar.

 

Devia ter estado a pensar, enquanto o secretário ali se demorava; por isso, entreguei-lhe o último dos relatórios. Atirou-o ao fogo e com o atiçador ajeitou-o melhor. Não pude deixar de reconhecer que o gesto tivera dignidade. - E que vai fazer? - perguntei.

 

- Nada.

 

- Não deitou os factos ao lume.

 

- O diabo que os carregue! - Eu que nunca o ouvira falar mal!

 

- Posso arranjar-lhe uma cópia, quando você quiser.

 

- Dá-me licença? - foi a resposta. O demónio conseguira o que queria, e sentia-me vazio de veneno. Tirei as pernas do fender e deixei-o passar. Saiu pelo clube fora, esquecendo-se do chapéu preto de abas reviradas, que eu vira vir pingando ao meu encontro, parecia que havia séculos, e só umas semanas antes.

 

Supusera apanhá-lo, ou pelo menos enxergá-lo, na longa perspectiva de Whitehall, e levei comigo o chapéu, mas não lhe encontrei rasto. Voltei para trás sem saber aonde ir. De hoje em dia é isto o pior do tempo - haver tanto. Meti o nariz na pequena livraria ao pé da estação do metropolitano de Charing Cross: estaria naquele momento Sarah pousando o dedo na campainha empoeirada, em Cedar Road, com o Parkis à espreita ao virar da esquina? Se fosse possível retroceder no tempo, creio que teria deixado Henry passar por mim, cego pela chuva. Mas principio a ter dúvidas sobre se algo que eu faça jamais alterará o curso dos acontecimentos. Henry e eu somos agora aliados à nossa maneira, mas estamos nós aliados contra uma onda infinita?

 

Atravessei a rua, passei os vendedores de fruta e entrei em Victoria Gardens. Ao ar cinzento e ventoso, não havia muita gente pelos bancos, e quase imediatamente vi Henry, embora levasse certo tempo a reconhecê-lo. Fora de casa, sem chapéu, parecia ter ingressado no número dos anónimos, dos desprotegidos da sorte, das pessoas que vêm dos subúrbios pobres e ninguém conhece - o velho que dá de comer aos pardais a mulher com um embrulho de papel pardo. E ali estava sentado com a cabeça curvada, contemplando os sapatos. Tão longa e tão exclusivamente eu tivera pena de min, que me parecia insólito ter pena do meu inimigo. Pousei cuidadosamente o chapéu no banco, ao lado dele, e ter-me-ia ido embora, se ele não tivesse levantado a cabeça e eu não tivesse visto que chorava. Que extenso caminho percorrido! Porque as lágrimas pertencem a outro mundo que não o das Comissões Oficiais.

 

- Lamento profundamente, Henry. - Como supomos esgueirar-nos à culpa só por um acto de contrição!

 

- Sente-se - ordenou Henry, com a autoridade das lágrimas, e eu obedeci. E ele disse: - Tenho estado a pensar. Foram amantes, Bendrix?

 

- Que autoriza você a supor...

 

- É a única explicação.

 

- Não sei a que você se refere.

 

- E é também a única desculpa, Bendrix. Não compreende que o que fez é... monstruoso? - Enquanto falava, voltava o chapéu e verificava a marca do fabricante. - Você, Bendrix, deve julgar-me um tremendo idiota, por nunca ter dado por isso. Por que é que ela me não deixou?

 

Era eu que havia de iniciá-lo no carácter da sua própria mulher? E o veneno principiou a actuar novamente. - Você tem bons rendimentos. É um hábito adquirido. Sempre é uma segurança.

- Ele ouvia muito a sério, atentamente, como se eu fosse uma testemunha comparecendo perante a Comissão e ajuramentada para prestar declarações. Prossegui azedamente: - Você não foi para nós um entrave maior do que tinha sido para os outros.

 

Houve mais outros?

 

_- Às vezes eu pensava que você sabia tudo e não se importava. Outras vezes sentia vontade de lhe contar... como estamos fazendo agora, tarde e a más horas. Queria dizer-lhe o que pensava de si.

 

- E que pensava?

 

- Que você era o alcoviteiro dela. Alcovitava para mim, alcovitava para os outros, e agora alcovitava para o último. O alcoviteiro eterno. Por que é que você não perde a paciência, Henry?

 

- Nunca soube.

 

- Alcovitou por ignorância. Por não saber ser homem para ela, que teve de procurar por outro lado; porque lhe deu oportunidades... Por ser um chato e um asno, e é por isso que um outro, que não é chato nem asno, a está gozando a esta hora em Cedar Road.

 

- Por que é que ela o deixou?

 

- Porque também eu me tornei um chato e um asno. Mas eu não o sou de nascença, Henry. Foi você quem me fez assim. Ela não o queria deixar, e eu tornei-me um chato, chateando-a com queixas e ciúmes.

 

E ele: - Toda a gente considera muito os seus livros.

 

- E de você dizem que é um presidente de comissões, de primeira ordem. Que importa para aqui o trabalho de cada um?

 

- Não sei de mais nada que importe - comentou tristemente, levantando os olhos para os cúmulos cinzentos que perpassavam por sobre a margem sul. As gaivotas voavam baixo sobre os batelões, e a torre da fundição erguia-se negra, na luz de Inverno, de entre os armazéns em ruínas. O homem que dava de comer aos pardais e a mulher com o embrulho de papel pardo tinham-se ido embora, e os vendedores de fruta, à porta da estação, gritavam como animais ao crepúsculo. Era como se as portadas se estivessem fechando no mundo inteiro; e não tardaria que todos ficássemos abandonados aos nossos próprios conselhos. - Não atino com a razão de você nunca nos ter procurado, durante todo este tempo - disse Henry.

 

- Suponho... de certo modo... que o nosso amor tinha chegado ao fim. E não havia outra coisa que soubéssemos fazer juntos. Ela podia fazer compras, cozinhar, dormir ao seu lado, mas só eu podia possuí-la.

 

- Ela é muitíssimo sua amiga - disse, como se fora sua obrigação consolar-me, como se fossem os meus olhos os que estavam vermelhos de lágrimas.

 

- Uma pessoa não se contenta com isso.

 

- Eu contentava.

 

- E eu queria que o amor continuasse sempre, sem diminuir nunca... - Nunca a ninguém eu falara assim, a não ser a Sarah, mas a resposta de Henry não foi a dela. Porque me respondeu: - Não é da natureza humana. Temos de contentar-nos... - que não era o que Sarah tinha dito; e ali sentado ao lado de Henry, em Victoria Gardens, vendo morrer o dia, recordei o fim de toda aquela «aventura».

 

Tinha-me dito - e foram quase as últimas palavras que lhe ouvi, antes de ter entrado no vestíbulo, a escorrer água, acabada de chegar da sua entrevista: - Não há de que ter tanto medo. O amor não acaba. Só porque deixámos de nos ver... - Já decidira tudo, embora eu apenas o soubesse no dia seguinte, quando o telefone me apresentou unicamente como que a boca aberta e silenciosa de alguém achado morto. E disse: - Querido, querido. As pessoas amam Deus, não amam, a vida inteira, sem O verem nunca?

 

- Não é um amor como o nosso.

 

- Às vezes julgo que não há outro amor. - Parece-me que deveria ter notado como ela estava já sob uma influência alheia: nunca me teria falado assim nos primeiros tempos da nossa ligação. Tínhamos tão alegremente acordado em eliminar Deus do nosso mundo. Apontava eu cuidadosamente com a lanterna para iluminar-lhe os passos pelo meu vestíbulo devastado, e ela ainda acrescentara: - Tudo há-de correr bem. Se nos amarmos muito.

 

- Eu cá não posso arranjar mais amor. O que há és tu que o tens.

 

- Não sabes, tu não sabes.

 

O vidro das janelas estalava debaixo dos nossos pés. Só o velho vitral vitoriano, na bandeira da porta, se aguentara. O vidro tornava-se branco, depois de esmigalhado, como o gelo que as crianças quebram nos campos e nas bermas dos caminhos. Ela repetira: - Não há de que ter medo. - E eu bem sabia que se não estava referindo a essas estranhas armas novas que, cinco horas depois, ainda continuavam a chegar do Sul, zumbindo como abelhas.

 

Fora em Junho de 1944, na primeira noite daquilo que mais tarde se chamou VI. Já estávamos desabituados de ataques aéreos. Com excepção de um curto lapso, em Fevereiro, nada houvera mais, depois que o blitz culminara nos grandes ataques finais de 1941. Assim, quando se ouviram as sereias e os primeiros projécteis apareceram, julgámos que alguns aviões tinham conseguido atravessar as barragens nocturnas. Quando, uma hora depois, ainda não ouvíramos o sinal de cessar o alarme, principiámos a sentir-nos desconsiderados. Lembro-me de ter dito a Sarah: - Distraíram-se. Não têm que fazer - e, nesse momento, deitados às escuras na minha cama, vimos a nossa primeira bomba voadora. Passou muito baixo sobre o parque, e tomámo-la por um avião em chamas, e ao seu peculiar zumbido grave pelo som de um motor desgovernado. Uma segunda veio, e depois uma terceira. Mudámos de opinião acerca das defesas.

- Estão a apanhá-los como tordos - disse eu -, é preciso que estejam doidos para continuarem a atacar. - Mas aquilo continuava, as horas passavam, a aurora tinha já despontado, e até nós, sozinhos, concluímos que se tratava de algo de novo. Quando o ataque começara, tínhamos acabado de nos deitar na cama. Naquela época, a morte não tinha importância - e, nos primeiros tempos, chegara mesmo a rezar-lhe pela vinda: o aniquilamento, o despedaçamento, que acabaria para sempre com o levantar, o vestir, o ver a lanterna dela atravessar para o outro lado, como a luz traseira de um carro afastando-se vagarosamente. Tenho muitas vezes pensado se a eternidade não poderia ser o prolongamento infinito do instante da morte; e o momento que eu teria escolhido, que ainda escolheria se ela fosse viva, seria o momento da entrega absoluta e do absoluto prazer, o momento em que era impossível questionar por ser impossível pensar. Já me lamentei das cautelas dela, e amargamente comparei o nosso uso da palavra «cebolas» com o escrito fragmentário que Parkis salvara do cesto; mas a leitura dessa carta ao meu ignoto sucessor ter-me-ia magoado menos, se eu não soubesse a que ponto ela era capaz de abandonar-se. Não, as VI não nos afectaram, enquanto não acabámos. Eu esgotara-me completamente, e estava deitado de costas, com a cabeça sobre o ventre dela, e o gosto dela - tão vago e subtil como água - na minha boca, quando um dos projécteis rebentou do outro lado do parque, e ouvimos os vidros estoirando.

 

- Parece-me que devíamos ir para a cave - disse eu.

 

- A dona da casa há-de lá estar. Não posso aparecer a ninguém.

 

Depois da posse, vem a ternura da responsabilidade, com que nos esquecemos de que, apenas amantes, de nada somos responsáveis: - Pode não estar cá. Vou lá abaixo ver.

 

- Não vás. Por favor, não vás.

 

- É um instante - uma frase que continuava a ser usada, embora naquele tempo soubéssemos que um instante podia muito bem vir a ser a eternidade. Vesti o roupão e dei com a lanterna de algibeira. Pouco precisava dela: o céu acinzentava-se, e, no quarto não iluminado, eu distinguia já as linhas do seu rosto.

- Não te demores.

 

Ao descer as escadas, ouvi o projéctil seguinte aproximando-se, e, logo a seguir, o súbito silêncio expectante de o motor parar. Não tivéramos ainda tempo de aprender que era esse o momento do perigo, de nos afastarmos do alcance dos vidros, de nos deitarmos no chão. Não cheguei a ouvir a explosão, e voltei a mim, cinco segundos ou cinco minutos depois, noutro mundo. Julgava-me ainda de pé, e a escuridão intrigava-me; alguém parecia estar-me assentando um punho gelado na cara, e a boca sabia-me ao gosto salgado do sangue. Por instantes, o meu espírito esteve livre de tudo, a não ser de uma sensação de cansaço, como se eu regressasse de uma viagem. Não tinha a mínima memória de Sarah, e por completo não sentia ansiedade, ciúme, incerteza, ódio: o meu espírito era como uma folha de papel, na qual alguém estivera a ponto de escrever uma mensagem de felicidade. E eu convencido de que, ao voltar-me a memória, a escrita prosseguiria e eu seria feliz.

 

Mas, quando a memória voltou, nada assim foi. Primeiro, deí-me conta de que estava deitado de costas e que o que balançava sobre mim, encobrindo-me a claridade, era a porta da rua: alguns escombros a seguravam suspensa uns centímetros acima do meu corpo, embora o mais cómico fosse eu depois ter verificado que ficara todo magoado desde os ombros aos joelhos, como se pela sombra dela. O punho que me acertara na cara era o puxador da porta, que me partira dois dentes. Depois de tudo isto, lembrei-me de Sarah, de Hemy e do temor de que o amor acabasse.

 

Consegui sair de debaixo da porta, e sacudi-me da poeira. Chamei para a cave, mas não estava lá ninguém. Pela entrada despedaçada via a luz parda da manhã, e tive a sensação de que um grande vazio se desprendia do vestíbulo em ruínas: reparei que uma árvore que, anteriormente, encobria a luz, simplesmente deixara de existir - nem havia sequer indícios de um tronco tombado. Ao longe, voluntários da Defesa Passiva apitavam. Subi as escadas. O primeiro lanço perdera o corrimão e tinha quase meio metro de caliça, mas o prédio, na verdade, pelos padrões daquela época, não sofrera grandemente: os vizinhos do lado é que haviam apanhado a bomba em cheio. A porta do meu quarto estava aberta e, de entreportas, vi Sarah; descera da cama e estava agachada no chão - com medo, supus. Parecia absurdamente jovem, como uma criança nua. Eu disse:

- Esta foi mesmo ao pé.

 

Voltou-se repentinamente e fitou-me apavorada. Não me passava pela cabeça que o roupão estava rasgado e todo coberto de caliça; o cabelo, tinha-o branco de pó, e havia sangue na minha cara e na boca. - Ó meu Deus - exclamou -, estás vivo!

 

- Pareces desapontada. Levantou-se e procurou as roupas.

 

- Não há pressa nenhuma de ir embora - disse eu. - Não deve tardar o fim do alarme.

 

- Tenho de ir.

 

- Não caem duas bombas no mesmo sítio - observei eu, mas automaticamente, porque era uma frase feita que o acaso muitas vezes desmentira.

 

- Estás ferido?

 

- Só dois dentes a menos, nada mais.

 

- Vem cá, deixa-me limpar-te a cara. - Acabara de vestir-se, antes de eu ter tempo de emitir outro protesto: nunca conheci uma mulher que mais depressa se vestisse. Lavou-me a cara devagarinho, com muito cuidado.

 

- Que estavas tu a fazer no chão? - perguntei.

 

- A rezar.

 

- A quem?

 

- A alguém que acaso exista.

 

- Teria sido mais útil teres descido ao fundo da escada. - A sisudez dela assustava-me. Queria quebrar-lhe aquela máscara.

 

- E desci.

 

- Não dei por isso.

 

- Não estava ninguém. A princípio, não te vi; só depois é que distingui um braço saindo de debaixo da porta. Julguei-te morto.

 

- Podias ter procurado verificar.

 

- Mas procurei. Não fui capaz de levantar a porta.

 

- Havia espaço para puxar por mim. A porta não estava assente. E eu teria recuperado os sentidos.

 

- Não percebo. Tive a certeza de que estavas morto.

 

- Não havia então muito por que rezar, ou havia? Pedir um milagre, hem?

 

- Quando se perdeu a esperança, podem pedir-se milagres. Os milagres acontecem aos pobres, não é verdade? E eu sentia-me sem nada.

 

- Fica até acabar o estado de alarme. - Abanou a cabeça e saiu pela porta fora. Segui-a pelas escadas abaixo, e comecei, contra vontade, a atormentá-la. - Torno a ver-te hoje à tarde?

 

- Não. Não posso.

 

- Amanhã, a qualquer hora...

 

- O Henry está de volta.

 

Henry, Henry, Henry - sempre aquele nome atravessado nas nossas relações, estragando todos os sentimentos de felicidade, de prazer, de regozijo, com o seu dobre de finados pelo amor, com o seu repique pela vitória da afeição e do hábito. - Não há de que ter tanto medo. O arnor não acaba... - e quase dois anos decorreram até àquele encontro no vestíbulo e ao «Você».

 

E claro que, durante alguns dias, alimentei esperanças. Foi só por coincidência, pensava eu, que o telefone não respondeu; e, quando uma semana depois, encontrei a criada e lhe perguntei pelos patrões e soube que Sarah estava no campo, disse comigo mesmo que, em tempo de guerra, as cartas perdem-se. Todas as manhãs ouvia as cartas caírem na caixa e deliberadamente não saía do quarto até que a dona da casa me trouxesse o correio. Depois não procurava entre as cartas - tinha de adiar a desilusão, manter, tão longamente quanto possível, viva a esperança; abria e lia cada carta por sua vez, e só ao chegar ao fim do monte é que era certo não ter nenhuma carta de Sarah. A vida ficava suspensa até à distribuição das quatro da tarde, e depois era preciso outra vez passar a noite.

 

Durante quase uma semana, não lhe escrevi: o orgulho não mo consentia, até que uma manhã o abandonei por completo, e escrevi ansiosa e amargamente, marcando o sobrescrito dirigido para o outro lado do parque com um «Urgente» e um pedido de busca. Não recebi resposta, e foi então que abandonei a esperança e me lembrei claramente do que ela me dissera.

 

«As pessoas amam Deus, não amam, a vida inteira, sem O verem nunca?» E pensava com raiva: arranja sempre maneira de ficar bem vista aos próprios olhos, mistura a religião com a deserção para dar um tom de nobreza ao caso. Não é capaz de reconhecer que agora prefere deitar-se com X.

 

Foi este o pior dos períodos: é da minha profissão imaginar, pensar por imagens. Cinquenta vezes ao dia e mal acordava de noite, o pano subia e a peça começava: sempre a mesma peça, Sarah entregando-se, Sarah com X, fazendo as mesmas coisas que havíamos feito juntos, Sarah beijando à sua maneira, Sarah arqueando-se no acto sexual e emitindo um grito como de dor, Sarah em abandono. Ao deitar, tomava pílulas para adormecer depressa, mas nunca encontrei pílulas que me fizessem dormir até pela manhã. Apenas as bombas voadoras me distraíam durante o dia: nos escassos segundos entre o silêncio e a explosão, o meu espírito ficava livre de Sarah. Três semanas decorreram, as imagens eram tão nítidas e frequentes como no primeiro dia, e não havia razão plausível para supor que jamais acabassem; comecei muito a sério a pensar em suicidar-me. Cheguei a marcar uma data, e principiei, quase com esperança, a economizar as pílulas soporíferas. No fim de contas, nada me obriga a suportar isto indefinidamente, dizia eu de mim para mim. A data chegou, a peça continuou, e não me matei. Não foi por cobardia: uma memória me prendeu - a recordação do ar de desapontamento no rosto de Sarah, quando voltara ao quarto depois da queda da VI. Não teria ela, no fundo do coração, desejado a minha morte, para que a nova ligação com o X lhe pesasse menos na consciência, porque tinha uma espécie de consciência elementar? Ora, se eu me matasse, ficava livre de pensar em mim; sem dúvida que, após uma ligação de quatro anos, sempre havia de pensar, mesmo com o X. Não ia dar-lhe tal satisfação. Se soubesse a maneira, havia de arreliá-la até ao máximo limite; a minha impotência enfurecia-me. Como a detestava!

 

Há, é claro, um termo para o ódio, como o há para o amor. Ao fim de seis meses, verifiquei que um dia houve, durante o qual não pensei em Sarah e me senti feliz. Não fora exactamente que o ódio tivesse terminado, porque logo entrara numa papelaria para comprar um postal ilustrado e escrever umas frases tão jubilantes, que acaso - quem sabe? - causassem uma momentânea dor; mas, mal acabara de escrever o endereço, havia perdido o desejo de ferir, e deixei cair o postal na rua. Era estranho como o ódio fora reacendido pelo encontro com Henry. Ao abrir o relatório seguinte do Parkis, lembro-me de que me interroguei sobre se também o amor podia reviver assim.

 

Parkis trabalhara bem: o pòzinho funcionara e o andar fora identificado - era o último andar do n.o 16 de Cedar Road, e os inquilinos uma Miss Smythe e o irmão, Richard. Seria a Smythe, como irmã, tão discreta como Henry o era entre os maridos? - e todo o meu snobismo latente foi despertado pelo y e pelo e final. Tinha então Sarah descido tão baixo que lhe servia um Smythe de Cedar Road? E seria ele o termo de uma extensa cadeia de amantes destes últimos dois anos, ou, quando eu o encarasse (e estava decidido a vê-lo menos vagamente do que nos relatórios de Parkis), estaria na presença do homem por quem, em Junho de 1944, ela me trocara?

 

- Toco a campainha e entro por ali dentro, direito a ele,

 

como um marido enganado? - perguntei ao Sr. Parkis (que viera ter comigo a um A.B.C., a seu pedido, visto que, por trazer o rapaz, não podia entrar num bar).

 

- Acho que não, senhor Bendrix - e deitou uma terceira colherada de açúcar no chá. O filho estava sentado noutra mesa de onde nos não podia ouvir, diante de um copo de laranjada e de um brioche. Observava quantos entravam, ao sacudirem a neve fina, meio derretida, dos chapéus e dos sobretudos; perfurava-os com os olhos castanhos, vivos e redondos, como se tivesse de apresentar depois um relatório - e se calhar tinha, parte das lições de Parkis. - Está a ver - dizia este -, a menos que estivesse disposto a depor como testemunha de acusação, complicava-se tudo, juridicamente falando.

 

- Mas isto não há-de chegar à justiça.

 

- Acordo amigável?

 

- Falta de interesse. Uma pessoa não tem o direito de se ralar com um tipo chamado Smythe. Só gostava de o ver... mais nada.

 

- O mais seguro seria passar por um verificador dos contadores.

 

- Mas eu não posso disfarçar-me com um boné de pala.

 

- Compreendo os seus escrúpulos. É uma coisa que também eu procuro evitar. E preferiria que o meu rapaz, quando chegar a sua altura, assim proceda também. - Com os olhos tristes seguia todos os gestos do filho. - Ele queria um gelado, mas eu disse que, com este tempo, não - e estremeceu ligeiramente, como se pensar no gelo o arrepiasse. Não compreendi logo o que ele queria dizer, quando observou: - Cada profissão tem a sua dignidade própria.

 

- Empresta-me o seu pequeno?

 

- Se me garante que nada se passará de inconveniente

- assentiu dubitativamente.

 

- Não tenciono lá ir, quando lá estiver a senhora Miles. Esta cena é um espectáculo sem classificação especial.

 

- Mas para quê o rapaz?

 

- Para eu dizer que ele se sente mal. Enganamo-nos na porta. E com certeza que nos hão-de mandar entrar, para ele repousar um instante.

 

- Isso é uma coisa que o pequeno é capaz de fazer - disse Parkis com orgulho -, e ninguém resiste ao Lance.

 

- Chama-se Lance?

 

- De Lançarote. O da Távola Redonda.

 

- Essa agora! Mas é um episódio um tanto impróprio.

 

- Encontrou o Santo Graal.

 

- Isso foi Galaaz. Lançarote foi encontrado em flagrante, na cama, com a rainha Ginevra. - Que nos impele sempre a ferir os inocentes? A inveja? Parkis tristemente, olhando o filho como se o tivesse traído, suspirou: - Não sabia.

 

No dia seguinte - para desconsiderar o pai -, dei ao filho um gelado, em High Street, antes de irmos a Cedar Road. Henry Miles oferecia um cocktail, segundo informação do Parkis, e o caminho estava livre. Entregara-me o rapaz, depois de lhe ajustar o fato. O pequeno, em honra da primeira aparição pública ao lado de um cliente, vinha todo aperaltado, enquanto eu vestira o pior que tinha. Um pedaço de gelado de morango caíra da colher em cima das belas roupas. Eu, em silêncio, aguardava o esgotamento da última gota. E, então, inquiri: - Outro?

- Acenou afirmativamente. - Outra vez de morango?

 

- Baunilha - e, algum tempo depois, acrescentou: - Se faz favor.

 

Comeu, muito decidido, o segundo gelado, lambendo conscienciosamente a colher como se para remover as impressões digitais. De mãos dadas, quais pai e filho, dirigimo-nos então para Cedar Road. Tanto Sarah como eu não temos filhos, pensava. Não teria sido muito sensato casarmos, termos filhos, vivermos pacatamente juntos em monótona e doce paz, em vez deste negócio furtivo de luxúria e ciúme e de relatórios de Parkis?

 

Toquei a campainha para o último andar, em Cedar Road E disse para o rapaz: - Não te esqueças. Tu sentes-te mal.

 

- Se me oferecerem um gelado... - começou ele, recitando as recomendações do pai.

 

- Não oferecem.

 

Concluí que era Miss Smythe quem me abria a porta - uma mulher de meia-idade, com o cabelo grisalho e gasto, tão comum nos bazares de caridade. E perguntei: - Mora aqui o senhor Wilson?

 

- Não. É engano...

 

- E não sabe dizer-me se mora no andar de baixo?

 

- Não há ninguém neste prédio que se chame Wilson.

 

- Ora esta... E eu que trouxe de tão longe o pequeno, que está a sentir-se mal disposto...

 

Não me atrevi a olhar para o rapaz, mas, pelo ar com que Miss Smythe o contemplava, tive a certeza de que, silenciosa e eficientemente, estava representando o papel. O Savage deveria orgulhar-se de incluí-lo no seu pessoal.

 

- Deixe-o entrar e sentar-se um pouco - ofereceu Miss Smythe.

 

- É muita bondade sua.

 

Quantas vezes não teria Sarah atravessado esta porta e penetrado no pequeno vestíbulo desarrumado! Eis-me em casa do X. Presumivelmente, o chapéu mole castanho, pendurado no cabide, pertencia-lhe. Os dedos do meu sucessor - dedos que Sarah tocava - diariamente faziam rodar o puxador desta porta que agora se abria para a chama amarela do aquecedor a gás, lâmpadas de quebra-luz róseo alumiando a tarde pardacenta de neve, e uma imensidade de coberturas de cretone. - E se eu der ao seu pequeno um copo de água?

 

- É muita bondade sua - e lembrei-me de que já dissera a mesma frase.

 

- Ou sumo de laranja.

 

- Não se incomode.

 

- Sumo de laranja - disse o rapaz, com firmeza; e, mais uma vez, após longa pausa, veio o «se faz favor», já a senhora saía. Agora que estávamos sós, olhei para ele: parecia realmente doente, ali encolhido em cima do cretone. Se me não tivesse piscado o olho, eu chegaria a supor que, talvez... A Miss Smythe voltou com o sumo de laranja. E eu: - Diz muito obrigado, Arthur.

 

- Chama-se Arthur.

 

- Arthur James.

 

- É um nome antiquado.

 

- Somos uma família de gostos fora de moda. A mãe apreciava Tennyson.

 

- Já...?

 

- Já - respondi, olhando para o pequeno com comiseração.

 

- Deve ser uma companhia para o senhor.

 

- E uma preocupação. - Comecei a sentir-me envergonhado: ela era tão confiante, e que estava eu ali a fazer? Afinal não me encontrava com o X, e que satisfação colheria em encarar com o homem agora de serviço à cama? Mudei de táctica.

- Devo apresentar-me. Chamo-me Bridges.

 

- E eu, Smythe.

 

- Tenho a impressão de que já a encontrei em qualquer parte.

 

- Não me parece. Sou muito prevista.

 

- Talvez que nos tenhamos cruzado no parque.

 

- Vou até lá às vezes com o meu irmão.

 

- Acaso será um John Smythe?

 

- Não. Richard. Como se sente o menino?

 

- Pior - respondeu o Parkis Júnior.

 

- Acha que deveríamos meter-lhe o termómetro?

 

- Posso tomar mais sumo de laranja?

 

- Não lhe fará mal, pois não? - inquiria a Miss Smythe. Coitadinho!

 

- Mas já a maçámos bastante.

 

- O meu irmão não me perdoaria, se eu os não tivesse mandado entrar. Gosta muito de crianças.

 

- O seu irmão está em casa?

 

- Deve estar a chegar de um momento para o outro.

 

- De volta do emprego?

 

- Hum, o dia em que ele de facto trabalha é o domingo.

 

- É sacerdote? - perguntei com uma oculta malícia, e recebi a resposta desorientadora: - Mais ou menos. - Um ar de perturbação desceu entre nós como o pano cai, e ela, com os seus problemas pessoais, refugiou-se do outro lado. Levantava-se, quando a porta do vestíbulo se abriu, e entrou X. Na penumbra tive a sensação de deparar com uma boa cara de actor

- um rosto habituado a contemplar-se ao espelho, sinal de vulgaridade, e, com tristeza e sem alegria, pensei que Sarah bem podia ter melhor gosto. Logo depois, aproximou-se da luz das lâmpadas, e a mancha vermelha e encrespada, que descia do malar ao queixo, era quase um sinal de distinção - julgara-o mal: ele não podia, por certo, ter prazer em contemplar aquilo.

 

A senhora apresentou-nos: - O meu irmão Richard. O senhor Bridges . O pequenito do senhor Bridges não se sente bem. Disse-lhes para entrarem.

 

Apertou-me a mão, olhando para o rapaz; reparei na secura e calor da mão dele. - Eu já vi o seu pequeno.

 

- No parque?

 

- Talvez.

 

Era grande de mais para aquela sala: não emparelhava com os cretones. Ficaria a irmã aqui sentada, enquanto, noutro quarto, eles... ou mandavam-na fazer recados, para os deixar à vontade?

 

Enfim, vira o homem; e nada mais me demorava, a não ser as outras perguntas que o vê-lo me sugeria. Onde se haviam encontrado? Fora ela quem chamara a atenção dele? Que lhe achara ela de especial? Há quanto tempo e por quantas vezes eles...? Palavras havia, escritas por ela, que eu sabia de cor: «Não preciso escrever-te ou falar-te... Eu sei que apenas principio a amar, e já desejo abandonar tudo e todos por ti» - e levantei os olhos para a mancha cor de morango, pensando que nada é seguro: um marreco, um coxo, todos possuem o que espevita o amor.

 

- Qual foi o real motivo da sua visita? - e interrompeu-me o fio às ideias.

 

- Já disse a Miss Smythe... Um tipo chamado Wilson...

 

- Não me lembro de o ter visto, mas ao seu filho não é a primeira vez que o vejo. - Fez um gesto hesitante, como se intentasse tocar na mão do rapaz; nos olhos dele havia uma espécie de ternura abstracta. - Esteja à sua vontade comigo. Eu estou habituado a que me procurem, e apenas desejo ser útil.

 

A irmã explicou: - As pessoas são tão tímidas, às vezes! Eu só vinha à procura de um tipo chamado Wilson.

 

- Sabe muito bem que eu sei muito bem que esse tipo não existe.

 

- Se me emprestasse a lista telefónica eu poderia procurar a morada...

 

- Sente-se outra vez - e sorumbàticamente observava o pequeno.

 

- Tenho de me ir embora. O Arthur já se sente melhor, e o Wilson... - A ambiguidade dele perturbava-me.

 

- É claro que pode ir-se embora quando quiser, mas... se deixasse ficar o pequeno... por meia hora que fosse? Gostava de falar com ele. - Passou-me pelo espírito que ele reconhecera o ajudante de Parkis e se preparava para o interrogar. Respondi: - Pode perguntar-me tudo o que lhe quer perguntar. - De cada vez que voltava para mim o lado da cara que não tinha malha alguma, eu sentia a minha fúria crescer; e de cada vez que via a mancha vermelha escura, sentia-a diminuir, e custava-me a crer que pudesse haver luxúria no meio daqueles cretones floridos, com Miss Smythe preparando o chá. O desespero, porém, para tudo arranja sempre resposta, e segredou-me: «Gostarias mais que se tratasse apenas de puro amor?»

 

- Eu e o senhor já passámos a idade. Mas os mestres e os padres, esses, só agora principiaram a corrompê-lo com as mentiras do costume.

 

- Não sei que diabo quer dizer - exclamei, e logo acrescentei: - Desculpe - para Miss Smythe.

 

- Ora aí está, vê? O Diabo... E, se eu o fizesse perder a paciência, se calhar dizia «Meu Deus»...

tive a impressão de que o escandalizara: devia ser um pastor não-conformista: a irmã dissera que ele trabalhava aos domingos. Mas não era incrivelmente estranho que um homem daqueles fosse amante de Sarah?! E, de súbito, ela ficou diminuída a meus olhos e o nosso amor coberto de ridículo; ela própria me poderia servir de anedota num próximo jantar de cerimónia. Por instantes, fiquei livre dela. E o rapaz disse: - Estou agoniado. Posso tomar mais laranjada?

 

A mana Smythe observou: - Acho melhor não tomar mais.

 

- Não há dúvida. Tenho de o levar daqui. Estou-lhes muito grato. - Procurei no meu campo de visão a malha cor de morango. - Lamento muito, se de qualquer modo o ofendi. Foi por mero acaso. Acontece que não partilho as suas crenças religiosas.

 

Fitou-me surpreendido. - Mas não tenho nenhumas. Não acredito em nada.

 

- Julguei que...

 

- Detesto todos os alçapões. Desculpe. Bem sei, senhor Bridges, que estou a ser intrometido, mas muitas vezes me preocupa que as pessoas deixem, mesmo em expressões convencionais como «adeus», subsistir a superstição. Se ao menos eu pudesse crer que, para um neto meu, uma palavra como «deus», o sentido dela, será mais ininteligível que uma palavra em swahili.

 

- Tem um neto?

 

- Não tenho filhos - respondeu, com tristeza. - Invejo-lhe o seu. É um grande encargo e uma grande responsabilidade.

 

- Que queria perguntar-lhe?

 

- Queria que ele se sentisse aqui como em casa, para que tivesse gosto em voltar. Há tantas coisas que uma pessoa deseja dizer a uma criança! Como se criou o mundo. Falar da morte Queria purificá-lo de quantas mentiras lhe injectam na escola

 

- Um programa um tanto extenso para meia hora.

 

- Sempre se semeia alguma coisa.

 

E eu, maliciosamente: - Isso é dos Evangelhos.

 

- Oh, é que também eu estou corrompido. Não preciso que mo digam.

 

- E vem gente ter consigo, pela calada?

 

- O senhor havia de ficar espantado - interrompeu Miss Smythe - com a quantidade de pessoas que anseiam por uma mensagem de esperança.

 

- Esperança?

 

- Sim, esperança - proclamou ele. - Não vê a esperança que resultaria de toda a gente se convencer que não há mais nada senão o que temos neste mundo? Nem compensações adiadas, nem prémios, nem castigos. - O rosto dele, com a marca invisível, irradiava uma nobreza desvairada. - Nessa altura, principiaríamos a criar o céu aqui na terra.

 

- Antes disso, ainda há muito que explicar.

 

- Posso mostrar-lhe a minha biblioteca?

 

- A melhor biblioteca racionalista de Londres-Sul - anunciou a irmã.

 

- Não preciso ser convertido. Não acredito em nada. Só de vez em quando.

 

- Essas «vezes» e esses «quandos» é que me importam.

 

- O pior de tudo é que são os meus momentos de esperança.

 

- Orgulho disfarçado em esperança. Ou egoísmo.

 

- Parece-me que não têm nada a ver com isso... É uma coisa súbita, sem motivo, um perfume...

 

- Ah, a estrutura da flor, o argumento do projecto, toda essa história do relógio que pressupõe um relojoeiro... Isso já não se usa. Schwenigen, há vinte e cinco anos, liquidou esse argumento. Mostro-lhe já...

 

- Hoje, não. Tenho de levar o pequeno embora.

 

E outra vez o gesto de frustrada ternura, como de um amante desprezado. Subitamente, pensei: de quantos leitos de morte fora ele excluído? Senti que também eu queria comunicar-lhe uma mensagem de esperança, mas a face voltou-se e ficou-me visível só a arrogante efígie de actor. Preferia-o lamentável, despropositado, antiquado. Ayer, Russel - esses estão hoje em moda, mas tive as minhas dúvidas sobre se haveria muitos neo-positivistas na biblioteca dele. Devia ter só os Cruzados, não os libertos.

 

À porta - e notei que ele evitava a perigosa palavra «adeus»

- disparei-lhe em cheio na face impecável: - Havia de conhecer uma amiga minha, a senhora Miles. Está interessada... - e parei. Acertara em cheio, de facto. A mancha parecia propagar-se pelo rosto inteiro, e ouvi a irmã exclamar: - Sossega... enquanto ele se afastava abruptamente. Não havia dúvida de que o ferira, mas a dor era tão minha quanto dele. Quem me dera não ter acertado!

 

Cá fora, o filho do Parkis, agoniado de verdade, vomitou na valeta. E, enquanto ele vomitava, eu, ao lado dele...: Mas também este a perdeu? Isto não tem fim? Será preciso ainda descobrir um Y?

 

Foi de facto muito fácil, excelentíssimo senhor - dizia-me o Parkis. - Havia tanta gente, que a senhora Miles me tomou por um colega do marido, e ele supôs que eu era um conhecido dela.

 

- E que tal o cocktail, correu bem? - perguntei, rememorando o nosso primeiro encontro e a visão de Sarah com outro homem.

 

- Devo dizer que decorreu com esplêndido sucesso, mas a senhora é que não estava lá muito bem disposta. Uma tosse terrível, que ela tem... - Ouvia-o consoladamente: talvez que nessa festa não tivesse havido beijos e apalpadelas. Parkis pousou um embrulho de papel escuro em cima da minha secretária, e disse: - Pela criada soube qual era o quarto dela. Se alguém tivesse reparado, diria que procurava o W.C., mas ninguém deu por mim. E lá estava, em cima da secretária; devia ter estado a escrever. É claro que terá sido muito cautelosa, mas a minha experiência de diários ensina-me que sempre «eles» acabam por revelar tudo. As pessoas inventam codigozinhos, mas o senhor apanha logo isso. Ou então há coisas que não escrevem, mas o senhor não tardará em descobrir que l’ não está. - Enquanto ele falava, fui desembrulhando o livro, e abri-o. - É da natureza humana, prezado senhor, que se tenha um diário para não esquecer determinadas coisas. Se assim não fora, para que ter diários?

 

- Leu alguma coisa?

 

- Apenas para verificar a natureza dele, e do que li concluí que a senhora não era do género cauteloso.

 

- Não é deste ano - observei eu. - É de há dois anos.

 

Ficou varado.

 

- Mas serve para o que eu quero.

 

- Deve realmente servir... se a pessoa não se regenerou. O diário fora escrito num grande livro de contas, e a tão

 

minha familiar letra firme era cruzada pelos traços azuis e vermelhos. Não era regularmente quotidiano, e pude animar o Parkis: - Diz respeito a vários anos.

 

- Suponho que alguma coisa a terá levado a tirá-lo para fora e a lê-lo. - Será possível - dizia eu comigo - que alguma recordação minha, da nossa aventura, tenha hoje mesmo atravessado o espírito dela, que alguma coisa lhe tenha perturbado a paz? E ao Parkis disse: - Estou satisfeito, muito satisfeito, por isto me chegar às mãos. Sabe, parece-me que podemos agora regular as nossas contas.

 

- Espero que se sinta perfeitamente bem servido.

 

- Inteiramente.

 

- E que escreva isso mesmo ao Sr. Savage. Ele costuma receber queixas dos clientes, mas elogios é o que nunca ninguém escreve. Um cliente, quanto mais satisfeito fica, mais depressa quer esquecer, ver-se livre de nós. E é bem compreensível.

 

- Hei-de escrever.

 

- E muito lhe agradeço a maneira como tratou o meu pequeno. Ficou um pouco excitado, mas eu sei por que foi é difícil limitar os gelados a um rapaz como o Lance. Quase sem abrir a boca, já conseguiu que a gente lhe dê um. - Eu estava ansioso por começar a ler, mas o Parkis demorava-se. Talvez não confiasse realmente em que não o esqueceria, e desejava imprimir mais firmemente na minha memória os olhos de cão humilde, a bigodeira pelintra. - Queria dizer-lhe, meu caro Sr. Bendrix, que a nossa sociedade nos foi muito agradável, se, em tão tristes circunstâncias, posso usar tal expressão. Nem sempre trabalhamos para cavalheiros, mesmo quando usam títulos vários. Uma vez, um par do reino queria atirar-se a mim, quando lhe relatava as minhas observações, como se o culpado fosse eu. É desconsolador, ah muito! Quanto melhor nos desempenhamos do nosso dever mais depressa nos querem ver pelas costas.

 

Eu tinha plena consciência de o querer ver pelas costas, e as palavras dele fizeram-me sentir comprometido. E ele ia dizendo:

- Tenho estado a pensar que gostava de dar ao senhor uma pequena recordação... mas isso é exactamente o que não gostaria de receber... - Quão estranho é sentir que simpatizam connosco! Automaticamente provoca uma certa lealdade. Por isso, menti: - Sempre apreciei as nossas trocas de impressões.

 

- Que tão inauspiciosamente se iniciaram! Com que ridículo engano!

 

- Chegou a dizer ao seu rapaz?

 

- Cheguei, mas só alguns dias depois, por ocasião do êxito do cesto dos papéis. Esse êxito purificou-me.

 

Baixei os olhos para o livro, e li: «Tão feliz! M. volta amahã» Por momentos interroguei-me: quem será o M.? Como é estranho e pouco habitual pensar que fomos amados, que a nossa presença teve outrora o condão de estabelecer a divisória entre a felicidade e a tristeza!

 

- Mas se na verdade não leva a mal que lhe entregue uma recordação...

 

- Claro que não, senhor Parkis.

 

- É que tenho aqui uma coisa que poderá ser de muita utilidade e interesse. - Tirou da algibeira um objecto embrulhado em papel de seda, e, timidamente, fê-lo deslizar para mim sobre a secretária. Desembrulhei-o. Era um cinzeiro barato, com a marca do Hotel Metrópole, Brightlingsea. - Isso tem uma longa história. Recorda-se do caso Bolton?

 

- Não tenho ideia.

 

- Foi um grande escândalo, ao tempo. Lady Bolton, a criada e o homem. Apanhados todos juntos. Esse cinzeiro estava ao pé da cama. Do lado de Lady Bolton.

 

- O senhor deve ter o seu museuzinho.

 

- Devia ter entregado o cinzeiro ao Sr. Savage... Interessou-se muito pelo caso... mas ainda bem que não entreguei. Por certo que a inscrição provocará os comentários dos seus amigos, quando pousarem os cigarros, e a resposta será o Caso Bolton. E hão-de logo querer saber mais alguma coisa.

 

- É sensacional.

 

- Apenas a natureza humana, não é verdade? E o amor humano. É certo que fiquei surpreendido. Porque não esperava uma terceira pessoa. E o quarto não era grande nem de luxo. A minha senhora ainda então vivia, mas não me parecia conveniente contar-lhe pormenores. Essas coisas perturbavam-na

 

- Sem dúvida que conservarei a recordação.

 

- Se os cinzeiros falassem!

 

- É verdade.

 

Mas aquele pensamento profundo adiou o fim da conversa de Parkis. Um último aperto de mão um tanto pegajosa (talvez tivesse estado em contacto com a de Lance) - e sumira-se. E não era daqueles que contamos tornar a ver. Abri então o diário de Sarah. Pensei primeiro em ler aquele dia de Junho de

1944 em que tudo acabara, pois que, uma vez descoberta a razão, muitas outras datas havia que, comparadas com as do meu diário, me mostrariam exactamente como o amor de Sarah declinara. O que eu queria era considerar o diário mais um documento aduzido para um dos «casos» do Parkis, mas faltava-me a necessária calma, até porque, ao ler o diário, não encontrei o que esperava. O ódio, a suspeição, o ciúme haviam-me arrastado para tão longe, que lia as palavras dela como leria uma declaração de amor de uma estranha. Esperara copiosas provas contra ela - não a apanhara tantas vezes mentindo? - e tinha diante dos olhos, em escrita de que não podia duvidar como da voz dela, a perfeita resposta. Porque o que eu li primeiro foram as últimas páginas, e tornei a lê-las quando a elas cheguei, para ter a certeza. É tão estranho descobrirmos e acreditarmos que somos amados, quando sabemos que ninguém há digno de amor, a não ser um pai ou um Deus.

 

Nada ficou, quando acabámos, senão Tu. qualquer de nós. Podia ter passado a vida inteira desperdiçando, agora ou logo, um pouco de amor, colhendo-o aqui e ali, deste ou daquele homem. Mas, logo da primeira vez, no hotel perto de Paddington, havíamos consumido tudo quanto tínhamos. Tu estavas presente, ensinando-nos a dissipar, como ensinaste ao homem rico, para que um dia nada nos restasse senão este amor por Ti. És, todavia, bom demais para mim. Quando Te peço dor, ofereces-me paz. Dá-lha também. Dá-lhe a minha paz, que ele precisa mais dela que eu.

 

12 de Fevereiro de 1946

Há dois dias senti uma tal sensação de paz, de sossego, de amor! A vida ia ser novamente bela; mas, na noite passada, sonhei que subia por uma imensa escada para ao cimo dela me encontrar com Maurice. Ainda me sentia feliz, porque, ao atingir o cimo, íamos possuir-nos. Muito alto, avisei-o de que chegava, mas não foi a voz de Maurice que me respondeu, e sim a de um desconhecido, que ressoou como uma sereia de nevoeiro avisando os navios perdidos, e me assustou. E pensava mudou-se, foi-se embora, não sei onde ele está, e, ao descer as escadas, a água dava-me acima da cintura, e o vestíbulo estava opaco de nevoeiro. Acordei então. Perdi a paz. Continuo a desejá-lo como o desejava dantes. Apetece-me estar com ele a comer sanduíches. Quero estar com ele a beber num bar. Sinto-me cansada, farta de amarguras. Quero Maurice. Quero o vulgar e corrupto amor humano. Ó meu Deus, bem sabes quanto desejo desejar a dor que me ofereces, mas, neste momento, não. Afasta-a de mim por um instante, oferece-ma numa outra altura.

 

Depois disto, principiei a leitura pelo início do livro. Não escrevera todos os dias, e não me apetecia ler tudo o que ela escrevera. Os teatros a que fora com Henry, os restaurantes, as reuniões... toda a vida que eu totalmente ignorava tinha ainda o poder de me magoar.

 

12 de Junho de 1944

As vezes chego a cansar-me de tentar convencê-lo de que o amo e amarei para sempre. Mas ele pega nas minhas palavras e, como um advogado, vira-as do avesso. Sei que ele teme o deserto que o rodearia, se o nosso amor tivesse um fim, e não é capaz de imaginar que sinto exactamente o mesmo. O que ele diz em voz alta, digo-o eu de mim para mim e escrevo-o aqui. Que pode construir-se no deserto? Alturas há, depois de um dia em que nos possuímos muitas vezes, em que penso se não será possível atingir o fim do sexo; e bem sei que também ele pensa nisso e teme esse ponto em que o deserto começa. Que faremos no deserto, perdidos um do outro? Como, depois, continuar a viver? Tem ciúmes do passado e do presente e do futuro. O amor dele é como um cinto medieval de castidade: só quando está comigo, em mim, se sente seguro. Se ao menos eu conseguisse incutir-lhe segurança, amar-nos-íamos em paz, felizes, e não selvática e desordenadamente - e o deserto recuaria para além do horizonte. Talvez para a vida inteira.

 

Se se acredita em Deus, enche Ele o deserto?

 

Sempre desejei ser estimada ou admirada. Sinto uma terrí vel insegurança quando um homem me deixa, se perco uma amizade. Nem mesmo quero perder o marido. Quero tudo constantemente, tudo. Tenho medo do deserto. Deus ama-te dizem-nos nas igrejas, Deus é tudo. As pessoas que acreditam nisto não precisam de que as admirem, não precisam deitar-se com um homem, sentem-se seguras. Mas sou incapaz de me criar uma fé.

 

Todo o dia de hoje foi Maurice para mim encantador. Diz-me tantas vezes que nunca amou assim outra mulher. Julga que, dizendo-o muitas vezes, melhor me leva a acreditar. E eu acredito simplesmente porque o amo exactamente como ele a mim. Se deixasse de amá-lo, deixaria de acreditar no seu amor. Se amasse Deus, acreditaria então no Seu amor por mim. Não basta precisar de amor. É necessário amar primeiro, e não sei como. E eu preciso de amor, ai como preciso!

 

Todo o dia ele foi encantador. Uma única vez, ao ser mencionado o nome de outro homem, vi que os olhos dele se desviavam. Pensa que durmo com outros; e que importaria isso, ainda que fosse verdade? Se ele às vezes possui outra mulher, acaso me queixo? Não quero privá-lo das poucas companhias que arranja no deserto, se aí nos não podemos ter. Às vezes penso se virá o tempo em que ele me negue até um copo de água; é capaz de levar-me a um tão completo isolamento, que ficarei só, sem nada e sem ninguém - como um eremita, esses que nunca estão sós, ao que dizem. Sinto-me tão perplexa! Que estamos fazendo nós um do outro? Porque eu sei que lhe estou fazendo precisamente o mesmo que me faz a mim. Somos por instantes tão felizes, e nunca na vida conhecemos maior infelicidade. Tudo é como se ambos estivéssemos esculpindo a mesma estátua, talhando-a cada um na miséria do outro. Mas nem sequer sei que estátua é.

 

17 de Junho de 1944

Ontem fui a casa dele e fizemos o mesmo de sempre. Não tenho coragem de registar tudo isso, mas gostava de a ter, porque, enquanto estou escrevendo, é já amanhã, e tenho medo de chegar ao fim de ontem. Durante o tempo em que eu continuar escrevendo, ontem é hoje e ainda estamos juntos.

 

Quando ontem eu esperava por ele, havia oradores no parque: o do I. L. P.1, o do Partido Comunista, o homem que apenas conta piadas, e havia um homem que atacava o cristianismo. Sociedade Raciònalista de Londres-Sul ou outro nome assim.

 

Não era nada feio, se não fosse uma malha vermelho-escura que tinha numa das faces. O seu auditório era muito reduzido e sem

 

contraditores. Atacava algo que já morreu, não entendi para quê tanto esforço. Fiquei a ouvi-lo durante uns minutos: rebatia os argumentos da existência de Deus. Estava eu bem longe de saber que havia argumentos desses - a não ser esta necessidade cobarde de não estarmos sós.

 

Tive um medo súbito de que Henry tivesse mudado de ideias e mandasse um telegrama a avisar do regresso. Nunca sei que mais apavora - se o meu, se o desapontamento de Maurice. Em ambos produz o mesmo efeito: inventamos questões. Fico

 

Independent Labour Party. (N. do T.)

 

furiosa comigo mesma e ele furioso comigo. Voltei a casa, não havia telegrama nenhum, e cheguei com dez minutos de atraso ao encontro com Maurice; principiei a irritar-me comigo própria, para corresponder à cólera dele, e, inesperadamente, tratou-me muito bem.

 

Nunca tivéramos um tão longo dia, e ainda havia a noite inteira. Comprámos alface, pãezinhos, a ração de manteiga a vontade de comer não era muita, e fazia bastante calor. E está calor agora.: toda a gente diz «que Verão tão lindo», e eu vou num comboio ao encontro de Henry, e tudo acabou para sempre. Sinto-me assustada: é isto o deserto, e não há nada nem ninguém, por milhas e milhas em volta. Se estivesse em Londres, podia ser morta de um momento para o outro; mas, se estivesse em Londres, corria para o telefone e marcaria o único número que sei de cor. Muitas vezes me esqueço do meu: creio que Freud diria que o quero esquecer porque é também o de Henry. Mas eu amo Henry: quero que ele seja feliz. Só o detesto hoje, porque é feliz, não o somos nem eu nem Maurice, e ele não sabe nada. Dirá que pareço cansada e pensará que é a menstruação - já não se dá ao trabalho de ter em dia a contagem dos prazos.

 

Esta tarde as sereias tocaram - quero dizer na noite passada, mas que me importa? No deserto o tempo não existe. Eu posso, porém, sair do deserto quando quiser. Posso apanhar um comboio, voltar amanhã para casa, e chamá-lo ao telefone. Talvez que Henry ainda se demore, e passaríamos a noite os dois. Uma promessa não é assim tão importante - uma promessa feita a alguém que nunca vi, a alguém em cuja existência não acredito de facto. Ninguém saberá que não cumpri a promessa, excepto eu e Ele - e Ele não existe, pois não? Não pode existir. Não é possível coexistirem um Deus de caridade e este desespero.

 

Se eu voltasse para trás, onde estaríamos? Onde estávamos há um ano. Furiosos um com o outro por tementes do fim, preocupados com o que fazer da vida quando nada mais nos restasse. Não preciso preocupar-me - nada há já que temer. Isto é o fim. Mas, meu Deus, que farei deste desejo de amar?

 

Porque escrevo «meu Deus»? - se para mim ele não existe. Se existe, foi ele quem me incutiu a ideia da promessa, e detesto-o porque o fez. Detesto. De quando em quando, uma igreja ou um bar passam: o deserto está cheio de igrejas e de bares. E diversas lojas, e homens de bicicleta, e erva e vacas, e chaminés de fábrica. Vemos tudo no meio das areias, como vemos os peixes na água de um aquário. E Henry, no aquário, espera por mim, erguendo o focinho para o meu beijo.

 

Não prestámos atenção às sereias. Não tinham importância. Não temíamos morrer assim. Mas o ataque nunca mais acabava. Não era um ataque vulgar: os jornais ainda não o podem dizer, mas toda a gente sabe. Maurice desceu a escada, para ver se na cave estava alguém - tinha medo por mim, como eu tinha por ele. Eu sabia que ia acontecer alguma coisa.

 

Não havia dois minutos que ele saíra, rebentou uma bomba na rua. O quarto dele é para as traseiras e nada aconteceu senão a porta escancarar-se e cair caliça, mas eu sabia-o na parte da frente ao cair da bomba. Fui pela escada abaixo: estava cheia de destroços e corrimões partidos, e o vestíbulo era apenas confusão terrível. Primeiro, não vi Maurice, e só depois vi o braço que saía de debaixo da porta. Toquei-lhe na mão: seria capaz de jurar que era uma mão morta. Quando duas pessoas se amaram, não podem disfarçar a falta de ternura num beijo; como poderia eu, ao tocar-lhe na mão, não ter reconhecido a vida, se alguma houvesse ainda? Eu compreendi que, se lhe pegasse na mão e puxasse, o teria tirado, sem dificuldade, de sob a porta Claro que agora sei que tudo foi nervosismo. Fui enganada. Ele não estava morto. É-se responsável por uma promessa histérica? A que promessa se falta? Histérica me sinto agora, ao escrever tudo isto. Não há, porém, uma única pessoa a quem eu possa sequer dizer como sou infeliz, porque me perguntaria as razões, as dúvidas começariam, e eu deixava de cumprir. E tenho de cumprir, pois que devo poupar Henry. Ora - Henry que vá para o diabo, que vá para o diabo. Preciso de alguém que me aceite tal qual sou e não precise de mim. Se sou uma «pega» e uma mentira, não haverá quem ame uma pega e uma mentira? Ajoelhei no chão: sentia-me desesperada por ajoelhar, nem mesmo em criança o fizera - porque meus pais não acreditavam em orações, como eu não acredito. Não sabia que havia de dizer. Maurice estava morto. Extinguira-se. Não havia sequer uma alma. Mesmo a semi-felicidade que eu lhe dera, se retirara dele como o sangue retira. Nunca mais voltaria a ter uma oportunidade de ser feliz. Fosse com quem fosse: outra o poderia amar e tornar mais feliz do que eu, a oportunidade é que acabara. Ajoelhei, pousei a cabeça na cama e desejei acreditar. Meu Deus, dizia eu - e meu, meu, porquê? -, faz com que eu acredite. Não posso acreditar, não sei. Faz com que eu acredite. E dizia: sou uma prostituta, uma impostora, desprezo-me. Não tenho força de vontade. Faz-me acreditar. Apertei muito os olhos, fechei as mãos com muita força, até não sentir senão as unhas magoando-me, e disse que queria acreditar. Dá-lhe vida, e acreditarei. Dá-lhe uma última oportunidade. Deixa-o ser feliz. Faz isto, e eu acredito. Mas não bastava. Acreditar não dói. E, por isso, acrescentei: eu amo-o, e dou-Te o que quiseres em troca da sua vida. E muito baixinho disse: deixá-lo-ei para sempre, se o deixares viver, e enterrava mais e mais as unhas até sentir a pele romper-se. E continuei: as pessoas podem amar-se sem se ver, amam-Te sem Te ver a vida inteira - e ele apareceu à porta e estava vivo, e eu pensei: a agonia de viver sem ele começa, e desejei-o outra vez definitivamente morto, debaixo da porta.

 

9 de Julho de 1944

Vim no comboio das oito e meia com Henry. Uma carruagem de 1.a classe vazia. Henry lia em voz alta as actas da Comissão. Apanhámos um táxi em Paddington e deixei Henry no Ministério. Fi-lo prometer que voltaria para casa cedo. O condutor enganou-se e levou-me para o outro lado do parque, e passámos pelo número 14. A porta da rua, consertada; as janelas da frente com tábuas pregadas. É horrível sentirmo-nos mortos. Queremos estar outra vez vivos, seja como for. Quando cheguei a casa, havia correio atrasado que não tinha sido reexpedido, porque eu recomendara que nada reexpedissem. Velhos catálogos de livros, velhas contas, uma carta «urgente - reexpedir». Pensei abri-la, ver se eu ainda estava viva - e rasguei-a juntamente com os catálogos.

 

10 de Julho de 1944

Não quebrarei a minha promessa, pensava eu, se por acaso der de cara com Maurice no parque - o que me fez sair de casa a seguir ao pequeno-almoço, outra vez depois do almoço, e mais uma vez ao anoitecer, e andar por ali a ver se o via. Não podia demorar-me fora até depois das seis, porque Henry convidara pessoas para jantar. Os oradores lá estavam como em Junho, e o homem com a malha na cara continuava a atacar o cristianismo sem ninguém lhe ligar importância. Se ao menos ele conseguisse convencer-me que não é preciso manter uma promessa feita a alguém em cuja existência não acreditamos, que não há milagres, dizia eu a mim mesma, e estive a ouvi-lo uns momentos, mas todo o tempo olhava em volta, não fosse Maurice passar ali. Falou acerca da data de composição dos Evangelhos, explicando como o mais antigo ainda não fora escrito cem anos depois de ter nascido Cristo. Nunca imaginara que fossem tão antigos; o que eu não entendia era que interesse haveria em saber-se quando principiara a lenda.

 

A seguir, chamou a atenção para o facto de Cristo nunca nos Evangelhos se intitular Deus; que tivesse havido, porém, um homem chamado Cristo ou que importem os Evangelhos, que é tudo isso a comparar com esta angústia de esperar e não encontrar Maurice? Uma mulher de cabelo grisalho distribuía cartões com o nome dele, Richard Smythe, a morada em Cedar Road, e o convite para o procurar quem quisesse conversar em particular. Algumas pessoas recusavam o cartão e afastavam-se, como se a mulher estivesse a pedir; outras deixavam-nos cair na relva (e vi que ela os apanhava, por economia, suponho). Tudo aquilo era confrangedor: a malha vermelha, o falar de algo que não interessava ninguém, os cartões deixados cair como desprezadas ofertas de boa amizade. Meti o cartão na algibeira, e desejei que ele me tivesse visto guardá-lo.

 

Sir William Mallock veio jantar connosco. Foi um dos peritos de Lloyd George na Segurança Nacional, agora muito velho e importante. É claro que Henry já nada tem que ver com as pensões, mas mantém-se interessado por esses assuntos e gosta de recordar outros tempos. Não era nas pensões das viúvas que ele trabalhava, quando Maurice e eu jantámos juntos pela primeira vez e tudo começou? Henry principiou com Mallock uma infinita discussão, ilustrada com estatísticas, sobre se as pensões das viúvas, uma vez aumentadas de um xelim, atingiriam o mesmo nível de há dez anos. Discordavam acerca do custo de vida, e, de qualquer modo, porque ambos acordavam em que o país não podia suportar os encargos desse aumento, a discussão era bastante académica. Tinha de conversar com o chefe de Henry no Ministério da Segurança Interna, e não era capaz de descobrir outro assunto senão as VI, e, subitamente, ansiei contar a toda a gente como descera as escadas para dar com Maurice sepultado nos destroços. Queria dizer que estava nua pois não tivera, evidentemente, tempo de vestir-me. Sir William Mallock teria sequer voltado a cabeça? E Henry, ouvir-me-ia? Tem uma aptidão extraordinária para só ouvir o tema em discussão, e o tema que naquele momento se discutia era o índice do custo de vida em 1943. Eu estava nua, apetecia-me dizer, porque Maurice e eu toda a tarde tínhamos estado na cama.

 

Olhei para o superior actual de Henry. Era um homem de nariz torto, chamado Dunstan. A cara desconjuntada parecia um engano de cerâmica - uma cara de refugo. Se lhe dissesse isso, limitar-se-ia a sorrir: não ficaria triste ou indiferente, aceitaria, como uma das muitas coisas próprias do ser humano. Algo me dizia que me bastaria um ligeiríssimo passo, para que ele correspondesse. E porque não dá-lo?, pensava eu. Porque não hei-de fugir ao deserto, por meia hora que seja? Nada prometi acerca de outras pessoas, só de Maurice. Não posso passar o resto da vida sozinha com Henry, sem que ninguém se interesse pela minha pessoa ou se perturbe ao pé de min, ouvindo Henry conversar, fossilizando-me sob o gotejar da conversa como o chapéu de coco nas Grutas de Cheddar.

 

15 de Julho de 1944

Almocei com Dunstan no Jardin dês Gourmets. Disse-me que...

 

21 de Julho de 1944

Enquanto ele esperava por Henry, estivemos tomando alguma coisa, eu e Dunstan. Tudo acabou por...

 

22 de Julho de 1944

Jantei com D. Veio comigo até casa para tomar alguma coisa. Mas isto não serve para nada, para nada.

 

23 a 30 de Julho de 1944

  1. telefonou. Mandei dizer que não estava. E parti com Henry em viagem de inspecção. A Defesa Passiva na Inglaterra do Sul. Reuniões com os chefes da Defesa e os engenheiros municipais. Problemas de bombardeamentos. Problemas dos abrigos profundos. O problema de se fingir estar vivo. Henry e eu dormindo ao lado um do outro, todas as noites, como estátuas jacentes. No novo abrigo reforçado, em Bigwell-on-Sea, o chefe da Defesa beijou-me. Henry passara para a segunda câmara com o presidente da municipalidade e o engenheiro, e eu detive o outro, segurando-lhe um braço e perguntando-lhe qualquer coisa acerca dos beliches de ferro, uma idiotice, se não havia beliches duplos para as pessoas casadas. Tinha percebido que ele me queria beijar. Curvou-me contra um beliche, a ponto de o varão me fazer nas costas uma linha de dor, e beijou-me. Depois ficou tão atarantado, que me ri e lhe devolvi o beijo. Mas nada disto resulta. Será que nunca mais...? O presidente voltou com Henry, e dizia: «Num abrir e fechar de olhos, conseguimos meter aqui duzentas pessoas.» Nessa noite, enquanto Henry assistia a um jantar oficial, pedi a troncas o número de Maurice. Deitada na minha cama, esperei a ligação. E a Deus dizia: cumpri a promessa durante seis semanas. Não acredito em ti, não te amo, e cumpri a minha promessa. Se não volto à vida, hei-de ser uma mulher perdida, perdida e nada mais. Vou destruir-me deliberadamente. Cada ano que passe hei-de estar mais habituada. Preferes isso a que eu falte ao que prometi? Serei como essas mulheres que riem muito alto, estão bebendo com três homens e os tocam sem pudor. Já estou a desfazer-me.

 

Conservara o auscultador debaixo do braço, e a menina informou, «Vamos agora chamar». Disse a Deus: se ele responde, volto amanhã. Sabia muito bem que ele tinha o telefone ao pé da cama. Uma vez, a dormir, deitara-o eu ao chão. Uma voz de rapariga atendeu, «Está lá?» - e quase que desliguei. Desejara que Maurice fosse feliz, mas desejara que o fosse tão depressa? Senti-me um pouco agoniada, até recuperar o raciocínio, e então forcei-me a argumentar - e porque não? Deixaste-o, e querias que ele fosse feliz. «Posso falar com o senhor Bendrix?». Ninguém respondia. Quem sabe se nem ele queria que eu deixasse de cumprir a minha promessa: talvez tivesse encontrado alguém que vivesse com ele, comesse com ele, saísse com ele, dormisse com ele todas as noites até chegarem a ternura e o hábito, e atendesse o telefone. A voz então voltou: - O senhor Bendrix não está. Ausentou-se por algumas semanas. Emprestaram-me a casa.

 

Desliguei. Primeiro, senti-me feliz, e, logo a seguir, regressou a miséria. Não sabia onde ele estava. Perdêramos o contacto. No mesmo deserto, quem sabe se procurando os mesmos charcos, mas longe da vista, sozinhos sempre. Porque não seria um deserto, se estivéssemos juntos. E disse a Deus, «Estou a ver. Começo a acreditar em ti, e detestar-te-ei, se acreditar. Tenho inteira liberdade de quebrar a minha promessa, não tenho?, só não me assiste o poder de ganhar com isso alguma coisa. Deixas-me telefonar, e fechas-me a porta na cara. Deixas-me pecar, e roubas-me os frutos do pecado. Deixas-me tentar esquecer e não me permites que reencontre o prazer. Fazes com que eu abandone o amor, e vens depois queixar-te que não anseio por ti. Mas que esperas Tu de mim, meu Deus? Onde irei parar?

 

Na escola, contaram-me de um rei - um dos Henriques, o que mandou assassinar Thomas Becket - que, ao ver incendiada pelos seus inimigos a terra onde nascera, e porque Deus lhe fizera tão grande mal, jurara: «Roubaste-me a cidade que eu mais amava, o lugar em que nasci e me criei, roubar-te-ei o que em mim mais amas.» É estranho como, dezasseis anos depois, me lembrei deste voto. Um rei o fez a cavalo há setecentos anos, e faço-o eu agora, num quarto de hotel de Bigwell-on-Sea, o Bigwell-Regis: vou roubar-te, meu Deus, o que em mim mais amas. Nunca soube de cor o Padre Nosso, mas esta oração sei eu será uma oração?... O que em mim mais amas.

 

E que amas Tu mais? Se eu acreditasse em ti, parece-me que acreditaria numa alma imortal: ora é isso o que tu amas? És realmente capaz de ver através dos corpos? Mesmo um Deus não pode amar qualquer coisa que não exista, não pode amar o que não vê. Quando olha para mim, verá alguma coisa que eu não veja? E deve ser digna de amor, se de facto a ama. É exigir muito que eu acredite que haja em mim algo digno de amor. Gosto que os homens me apreciem; isso não passa, porém, de uma treta que se aprende na escola - um mover de olhos, um tom de voz, um pousar da mão nos ombros ou na cabeça. Os homens, se pensam que os apreciamos, apreciam-nos pelo nosso bom gosto, e, quando nos apreciam, temos a ilusão de que por momentos há que apreciar. Tenho procurado viver a vida inteira nesta ilusão - um analgésico que me permite esquecer que sou uma prostituta e uma impostora. Onde encontras essa alma imortal de que tanto se tem falado? Não me custa a compreender que a encontres em Henry - o meu, é claro. É delicado bom, paciente. E que a encontres em Maurice, que julga odiar, e ama, ama todo o tempo. Mesmo os inimigos. Mas, nesta prostituta, nesta impostora, que encontras digno de amor? Dize-me, que tratarei logo de to roubar para sempre. Como é que o rei cumpriu a promessa? Quem me dera lembrar-me! Apenas recordo que deixou que os frades o chicoteassem sobre o túmulo de Becket. Isto não quer dizer nada; deve ter acontecido antes.

 

Também esta noite Henry não está comigo. Se eu descesse ao bar, arranjasse um homem, o levasse para a praia e me entregasse a ele nas dunas, roubar-te-ia o que mais amas? Mas não dá nada. Já não dá nada. Não te ofendo, desde que não sinta prazer. Tanto fazia cravar alfinetes em mim, como nessa gente que vive no deserto. O deserto. Quero alguma coisa que me dê prazer e te ofenda. Se assim não for, tudo é mortificação e como que expressão de fé. E convence-te, meu Deus, de que ainda não acredito em ti, ainda não acredito em ti.

 

12 de Setembro de 1944

Almocei no Peter Jones e comprei um candeeiro novo para o escritório de Henry. Um almoço muito digno, só com mulheres em volta. Não se enxergava um único homem. Era como que ser soldado de um regimento. Quase me senti em paz. Fui depois a um cinema de actualidades em Picadilly e vi ruínas da Normandia e a chegada de um político americano. Não tinha que fazer até Henry voltar, às sete. Bebi sozinha duas doses. E não me serviu de nada. Também preciso de deixar de beber? Se vou assim suprimindo tudo, como existirei? Eu era alguém que amava Maurice, se entregava a diversos homens e gostava da sua pinga. Que fica, se abandonamos tudo aquilo que nos faz sermos nós? Henry chegou. Era evidente que vinha contente por qualquer razão: e que queria que eu lhe perguntasse o que era - não perguntei. Acabou por mo dizer: - Vão recomendar-me para o O.B.E.1

 

- Que vem a ser isso?

 

Ficou um tanto desconcertado por eu não saber. Explicou-ne que o grau seguinte, um ano ou dois depois de ser chefe da sua repartição, seria o C.B.E.1 «e então, quando passar à reforma, fazem-me K.B.E.1»

 

- É muito confuso. Não podias usar sempre as mesmas iniciais?

 

- Não gostavas de ser Lady Miles? - perguntou-me, e eu pensava, desesperada, que tivera dado tudo no mundo para ser a Sra. Bendrix, e abandonara já essa esperança, para sempre. Lady Miles - que não tem amantes, nem bebe, e apenas conversa com Sir William Mallock sobre pensões. E todo esse tempo, onde estaria eu?

 

Na noite passada, estive a olhar para Henry, que dormia. Enquanto fui o que a lei considera a parte culpada, podia contemplá-lo afectuosamente, como se ele fora uma criança precisada da minha protecção. Agora que eu passara à categoria de inocente, fazia-me perder a cabeça. Tinha uma secretária que às vezes telefonava lá para casa: «Ó minha senhora, o H. M. está?» As secretárias usam sempre as insuportáveis iniciais, não por intimidade, mas por camaradagem. E vendo-o dormir, pensava: «H. M., H. M., His Majesty e a consorte de His Majesty.» No sono, de quando em vez sorria, um moderado e breve sorriso de funcionário, assim como a dizer: sim senhor, muito engraçado, mas é melhor voltarmos ao trabalho, não é verdade?

 

Uma vez perguntei-lhe: - Nunca tiveste uma aventura com uma secretária?

 

- Aventura?

 

- Aventura amorosa.

 

1 «Commanden> e «Knight» do «British Empire».

 

Não, é claro que não. Por que perguntas isso?

 

Sei lá! Estava a pensar.

 

- Nunca amei outra mulher - e mergulhou na leitura do jornal da noite. E eu não podia deixar de magicar: o meu marido é tão pouco atraente que nunca uma mulher o desejou? Excepto eu, bem entendido. Por certo o desejei, de uma maneira ou de outra, em tempos, mas já esqueci como foi, e era muito nova para saber o que preferia. Não está certo. Enquanto amava Maurice, amei Henry; e agora, agora que sou o que se chama uma boa alma, não amo ninguém. E muito menos a Ti.

 

8 de Maio de 1945

Fui até ao St. James’ Park ao fim da tarde, para ver as comemorações do dia da V.E.1 Havia sossego à beira das águas iluminadas, entre os Horse Guards e o Palácio. Ninguém gritava ou cantava ou aproveitava para se embriagar. As pessoas estavam sentadas na relva, aos pares, de mãos dadas. Julgo que se sentiam felizes, porque era enfim a paz e não haveria mais bombas. Disse a Henry: - Não gosto da paz.

 

- Não faço ideia de para onde vou ser transferido do Ministério da Segurança Interna.

 

- Para o da Informação? - perguntei, fazendo o possível por me interessar.

 

- Não, não, nem aceitava. Está cheio de funcionários eventuais. Que te parece o do Interior?

 

- Esse ou outro, Henry, uma vez que te agrade. - Apareceu então na varanda a Família Real, e a multidão cantou com muita compostura. Não eram chefes como Hitler, Staline, Churchill, Roosevelt, mas apenas uma família que não fizera mal a

 

1 ”Victory in Europe”.

 

ninguém. Desejei Maurice a meu lado. Recomeçar tudo. Queria pertencer também a uma família.

 

- Muito comovente, não achas? - observou Henry. - Ora bem, agora já podemos dormir sossegados. - Como se jamais tivéssemos feito de noite outra coisa que não dormir sossegados.

 

16 de Setembro de 1945

Tenho de tomar juízo. Há dois dias, esvaziando a malinha velha - Henry subitamente deu-me outra, como «lembrança da paz», e deve ter-lhe custado imenso dinheiro -, encontrei um cartão que dizia: «Richard Smythe, 16, Cedar Road, todos os dias das 4 às 6 para tratar em particular. Será bem recebido.» E disse comigo que já aturara bastante. Vou passar a usar outro remédio. Se este conseguir convencer-me de que nada chegou a haver, que o meu voto não conta, escreverei a Maurice, perguntando-lhe se quer recomeçar. Talvez deixe Henry. Não sei. Mas primeiro tenho de tomar juízo. Deixar-me de histerismos. Tem de ser. E fui bater à porta em Cedar Road.

 

Estou procurando recordar o que se passou. Miss Smythe serviu chá e depois deixou-me só com o irmão. Perguntou-me então quais eram as minhas preocupações. Eu sentada no sofá de cretone, e ele numa cadeira sem estofo, com um gato ao colo. Fazia festas ao gato, as mãos eram bastante bonitas, mas não gostei delas. Quase preferia a malha vermelha, conquanto ele se houvesse sentado por forma a voltar para min a face limpa.

 

- O senhor é capaz de me dizer o que lhe dá tamanha certeza de que Deus não existe?

 

Ele olhava para as próprias mãos que faziam festas ao gato e senti pena, porque tinha vaidade nelas. Se não fosse a marca na cara, quem sabe se a teria.

 

- Ouviu-me falar no parque?

 

- Ouvi.

 

- Lá, tenho de simplificar muito as coisas. Levar as pessoas a pensar por si próprias. Já começou a pensar por si própria?

 

- Creio que sim.

 

- Em que religião foi educada?

 

- Em nenhuma.

 

- Não é portanto cristã.

 

- Cristã... devo ter sido baptizada... é uma convenção social, pois não é?

 

- Se não tem fé, por que precisa de mim?

 

Sim, porquê? Não podia falar-lhe de Maurice debaixo da porta ou da minha promessa. Ainda não podia. E não era tudo, porque tenho feito imensas promessas que não cumpro. Qual a razão de esta promessa subsistir, como uma dessas jarras pavorosas que uma pessoa amiga nos oferece e que esperamos que a criada parta, enquanto ano após ano, a criada vai partindo objectos de estimação e poupando a jarra vaporosa? Nunca na verdade considerara aquela pergunta, e teve de repeti-la.

 

- Não estou certa de não acreditar. Mas não quero.

 

- Ora conte - e porque se esqueceu da beleza das mãos e voltou para mim a face horrivelmente malhada, embebido no desejo de ser útil, dei comigo a contar tudo: aquela noite, a bomba caindo, a promessa estúpida.

 

- E está de facto convencida de que talvez...

 

- Estou.

 

Pense nos milhares de pessoas que, neste momento, pelo mundo fora, estão rezando, sem que as suas orações sejam ouvidas.

 

- Havia milhares de pessoas morrendo na Palestina, quando Lázaro...

 

- Mas não acreditamos nessa história, pois não, nem eu nem você? - disse ele, com uma espécie de cumplicidade.

 

- Claro que não, mas têm acreditado milhões de pessoas. Por certo a acharam crível...

 

- As pessoas, quando se sentem emocionadas, não exigem que uma coisa seja crível, ou exigem?

 

- Também é capaz de explicar o amor?

 

- Pois sou. Nalguns, o desejo de possuir, como a avareza. Noutros, o desejo de entregar-se, perder o sentido da responsabilidade, o gosto de ser cortejado. Às vezes, apenas uma vontade de poder falar, aliviar o espírito com alguém que não se aborrecerá. O desejo de encontrar outra vez um pai ou uma mãe. E, é claro, subjacente a tudo, o impulso biológico.

 

É bem verdade, pensava eu, mas não haverá algo por cima de tudo isso? Tudo isso fui descobrindo em mim, em Maurice também, e, todavia, por muito que avançasse, não cheguei ao fim. - E o amor de Deus?

 

- É a mesma coisa. O homem cria Deus à sua própria imagem; nada mais natural, portanto, que o ame. Lembra-se, nas feiras, daqueles espelhos deformadores? O homem criou também o espelho que embeleza, no qual se vê amável, poderoso, justo e sábio. É essa a ideia que faz de si próprio. Reconhece-se mais facilmente aí que no espelho que deforma, em frente do qual se limita a rir; e como estima a imagem que o outro lhe devolve!

 

Enquanto falava de espelhos que embelezam e deformam eu não era capaz de atender ao que tratávamos, absorta na ideia de todo aquele tempo, durante o qual, desde a adolescência ele se vira ao espelho e procurara que os espelhos fossem de uma ou de outra das espécies, simplesmente conforme lhe expunha a cabeça. Por que não deixara crescer a barba o suficiente para esconder a marca? Seria que os pêlos não cresciam, ou que detestava realmente a verdade; e lá aparecia outra vez a palavra «amor», quando era tão evidente em quantos desejos podia ser dissociado o seu amor da verdade. Uma compensação para a ofensa de ter nascido assim, a vontade de poder; o desejo tanto maior de ser estimado quanto a pobre face maldita não inspiraria nunca uma atracção física. Possuiu-me um veemente apetite de lhe tocar com a mão, de o confortar com palavras de amor tão certas como a sua mágoa. Era tal qual o instante em que vira Maurice debaixo da porta. Sentia vontade de rezar: oferecer qualquer sacrifício especial pela sua cura, só nada tinha já que sacrificar.

 

E ele dizia: - Minha amiga, não meta nisto a ideia de Deus. Trata-se apenas do seu amante e do seu marido. Não misture uma coisa concreta com fantasmas.

 

- Mas como hei-de decidir... se afinal o amor não existe?

 

- Tem de escolher o que, ao fim e ao cabo, representar a solução mais feliz.

 

- Acredita na felicidade?

 

- Não acredito em nenhum absoluto.

 

A única felicidade que ele consegue - pensava eu - é a convicção de que é capaz de confortar, aconselhar, auxiliar, a suposição de que pode ser útil. É ela que o arrasta todas as semanas ao parque, para falar a pessoas que se afastam, nunca perguntam nada, deixam cair no chão os cartõezinhos. Quantas vezes terá de facto vindo alguém como hoje eu vim? E perguntei. Muita gente o procura?

 

- Não - o amor da verdade era-lhe maior que o orgulho.

 

- Há muito tempo que não vinha ninguém... é você a primeira.

 

- Fez-me bem conversar consigo. Esclareceu-me bastante.

 

- O único conforto que se lhe podia ofertar: alimentar-lhe a ilusão.

 

Timidamente, adiantou: - Se tivesse algum tempo livre, podíamos começar pelo princípio e chegar até à essência das coisas. Isto é, os argumentos filosóficos e as provas históricas.

 

Devo ter emitido qualquer resposta evasiva, porque ele acentuou: - É que é muito importante. Não devemos menosprezar os inimigos. Têm uma argumentação de peso.

 

- Têm?

 

- Não é que seja profunda, mas é capciosa.

 

E olhava-me ansioso. Creio que estaria perguntando a si mesmo se eu não seria mais uma daquelas pessoas que se vão embora. Parecia não pedir nada, quando me disse nervosamente: «Uma hora por semana. Far-lhe-ia muito bem.» E eu, para min: «Pois, na verdade, não tenho agora o tempo todo por conta? Se leio um livro ou vou ao cinema, nem vejo as letras nem sigo as imagens. O que sou e a minha miséria reboam-me nos ouvidos e enchem-me os olhos. Ao menos por um instante, esta tarde, esqueci tudo.» - Voltarei. Muito obrigada por gastar o seu tempo comigo - e estava atirando quanta esperança me era possível para o regaço dele, pedindo ao Deus de quem ele me prometia livrar, «que ao menos eu lhe sirva de alguma coisa».

 

2 de Outubro de 1945

Hoje fez muito calor e choveu a cântaros. Por isso fui àquela igreja escura, à esquina de Park Road, só para me sentar um pedaço. Henry estava em casa, e não me apetecia vê-lo. Procuro não me esquecer de ser atenciosa ao pequeno-almoço, atenciosa quando ele almoça em casa, atenciosa ao jantar, e às vezes esqueço-me, e é ele quem é atencioso comigo. Duas pessoas cumulando-se de atenções durante a vida inteira. Depois que entrei e me sentei é que reparei que era uma igreja católica, cheia de imagens e de péssima arte realista. Detestei as imagens, o crucifixo, a importância atribuída ao corpo humano. Do corpo humano e das suas exigências estava eu tentando fugir. Julgava ser possível conceber um qualquer Deus sem relação connosco, bastante vago, amorfo e cósmico, ao qual eu fizera uma promessa e que me retribuíra o prometido - algo que do vago penetrava na vida humana concreta, como um denso vapor deslocando-se por entre as cadeiras e as paredes. Um dia, também eu desse vapor faria parte - liberta de mim para sempre. E foi então que vim parar àquela igreja escura em Park Road, e vi os corpos nos altares à minha volta - as horrendas imagens de rosto complacente -, e lembrei-me de que os católicos acreditam na ressurreição do corpo, esse corpo que eu queria destruído para sempre. Com este meu corpo, tanto mal eu fizera. Como poderia desejar conservar mesmo uma parte dele por toda a eternidade - e, de súbito, veio-me à ideia uma das frases de Richard, acerca de os homens inventarem doutrinas que lhes contentem os desejos: e como ele se engana! Se me coubesse inventar uma doutrina seria a de que o corpo não renasce, que apodrece com os vermes pretéritos. É estranha a maneira que o nosso espírito tem de oscilar entre um extremo e o outro. Estará a verdade nalgum ponto intermédio da oscilação do pêndulo, um ponto onde ele não pára nunca, não na perpendicular, tão inevitável a meio, onde ele a fim vacila como uma bandeira após o vento, mas num certo ângulo, mais próximo de um extremo que do outro? Se por milagre o pêndulo parasse a 60°, poder-se-ia acreditar que ali residia a verdade. Pois bem, nas oscilações de hoje, em vez de pensar no meu corpo, pensei no de Maurice. Em certos traços que a vida lhe desenhou no rosto, e que tão pessoais são como umas letras do seu punho: numa cicatriz recente no ombro, que não teria, se uma vez não tivesse tentado proteger, de uma parede que caía, o corpo de outro homem. Não foi ele quem me disse por que estivera três dias no hospital: Henry é que me contou. Essa cicatriz fazia parte do carácter dele, como o ciúme. E - dizia eu - acaso anseio que esse corpo (o meu sim, mas o dele?) se vaporize, quando sei que quero que a cicatriz exista por toda a eternidade? E poderia o meu vapor amar a cicatriz? Comecei então a estimar o corpo que detestava, apenas para que ele pudesse amar a cicatriz. Podemos amar em espírito; mas será possível amar só em espírito? O amor alastra à medida que o tempo passa, e chegamos a amar até com as unhas insensíveis: mesmo com as roupas amamos, no prazer de uma manga se roçar noutra manga. Richard tem razão - pensava - quando diz que inventámos a ressurreição dos corpos porque precisamos deles; e, logo a seguir, reconheci como ele tinha razão; é tudo uma história de crianças com que nos consolamos uns aos outros - e deixei de detestar as imagens. Eram como más ilustrações a cores dos contos de Hans Andersen: como má poesia, que alguein precisou escrever, alguém não tão orgulhoso que a esconda para não expor a sua patetice. Percorri a igreja, contemplando-as uma a uma: em frente da pior de todas - não sei quem era - um homem de meia-idade rezava. Pousara o chapéu de coco ao lado dele e, no chapéu, embrulhado num papel, tinha aipo É claro que no altar estava também um corpo - tão familiar, mais familiar que o de Maurice, em que nunca atentara como corpo com tudo o que um corpo tem, mesmo as partes que um cendal cobria. Fez-me lembrar outro, que vi numa igreja de Espanha, e em que o sangue de tinta vermelha escorria dos olhos e das mãos. Ficara maldisposta. Henry queria que eu admirasse os pilares do século XV, mas não me sentia bem e só pensava em apanhar ar fresco. Parecia-me que aquele povo amava a crueldade. E um vapor não é susceptível de nos impressionar com sangue e gritos.

 

Quando saí para a praça, disse a Henry: - Não posso suportar estas chagas pintadas. - Henry mostrou-se muito razoável, como é sempre: - Pois se é uma religião materialista! Cheia de magia...

 

- A magia é materialista?

 

- Claro que é. Olho de lagarto, pata de rã, dedo de bebé nado-morto. Não arranjas coisa mais materialista. E, quanto à missa, ainda acreditam na transubstanciação.

 

Tudo aquilo eu sabia, mas de certo modo supunha que mais ou menos acabara com a Reforma, à excepção é claro das crendices dos pobres. Henry elucidou-me (quantas vezes não tem ele coordenado os meus pensamentos confusos): - O materialismo religioso não é exclusivo dos pobres. Alguns dos mais altos espíritos, como Pascal ou Newman, foram materialistas. Tão subtis para umas coisas, e tão grosseiramente supersticiosos noutras. Talvez que um dia saibamos a razão: é capaz de ser uma deficiência glandular.

 

E hoje, contemplando aquele corpo material naquela cruz material, pensava em como poderia o mundo pregar ali um vapor? Um vapor não sente prazer nem dor, evidentemente. Só a superstição me fizera crer que ele atendera as minhas orações. Meu Deus, tinha eu dito; e devera ter dito «Meu Vapor»? Aquela imagem na cruz, sim, ao exigir a minha gratidão - «Sofri isto por ti» -, mas um vapor... E Richard, no entanto, ainda acreditava em menos que um vapor. Detestava uma lenda, lutava contra ela, tomava-a a sério. Não seria possível detestar Hansel e Gretei, nem a casa de açúcar, como ele detestava o céu lendário. Em criança, ter-me-ia sido possível detestar a rainha má da Branca de Neve; Richard, porém, não chegava a detestar o Diabo fantástico. O Diabo não existia, Deus não existia, toda a aversão se concentrava na história boa, não na de maldade. Porquê? Ergui os olhos para aquele corpo mais que familiar, estorcendo-se em dores imaginárias, a cabeça pendente como a de um homem dormindo. Muitas vezes, pensei, detestei eu Maurice; tê-lo-ia detestado, se o não amasse também? Oh, meu Deus, se sou na verdade capaz de detestar-te, que significa isto?

 

Serei então materialista? - cogitava. Terei uma deficiência glandular que me torna alheia às coisas e às razões não-supersticiosas, que de facto importam - a Comissão de Caridade, o nível de vida, o aumento de calorias entre os trabalhadores? Sou materialista por acreditar na existência autónoma daquele homem de chapéu de coco, do metal daquela cruz, destas mãos com que não sei rezar? Suponhamos que Deus existe, supo nhamos que tinha um corpo como aquele: que mal há em acreditar que esse corpo existiu como o meu existe? Alguém o amaria ou odiaria, se ele nunca tivesse tido um corpo? Não me é possível amar um vapor que foi Maurice. É grosseiro, é bestial, é materialista, bem sei, mas que me impede de ser bestial e grosseira e materialista? Saí da igreja ardendo em raiva, e, por desafio a Henry e a todos os razoáveis e indiferentes, fiz o que vira as pessoas fazer nas igrejas de Espanha: molhei um dedo na chamada água-benta e tracei uma espécie de cruz na minha testa.

 

10 de Janeiro de 1946

Esta noite não fui capaz de ficar em casa, e saí debaixo de chuva. Lembrei-me de quando enterrara as unhas na palma das mãos, e, sem que eu soubesse, Tu viveste nessa dor. E eu disse-Te: «Dá-lhe vida», sem acreditar em Ti, e a minha descrença foi-Te absolutamente indiferente. Aceitaste-a em Teu amor como uma dádiva; e esta noite, com a chuva a ensopar-me o casaco e a roupa e a penetrar-me na pele, estremecendo de frio, pela primeira vez tudo foi como se quase Te amasse. Andei à chuva, debaixo das Tuas janelas, e apetecia-me ficar ali a noite inteira apenas para provar que, afinal, era capaz de aprender a amar, e já não temia o deserto porque Tu estás nele. Voltei para casa, e dei com Maurice ao lado de Henry. Pela segunda vez mo restituías: da primeira, odiei-Te e aceitaste em Teu amor esse ódio como havias aceitado a incredulidade, guardando-os para mais tarde mos poderes mostrar; e ambos nos rimos - como tantas vezes me ri com Maurice, dizendo: «Que estúpidos que fomos, lembras-te...?»

 

18 de Janeiro de 1946

Era a primeira vez, havia dois anos, que eu almoçava com Maurice - telefonara-lhe a pedir que viesse encontrar-se comigo, - e o meu autocarro demorou-se num engarrafamento de trânsito em Stockwell, e cheguei dez minutos atrasada. Tive, por um momento, o medo que sempre tinha noutros tempos, de que alguma coisa me estragasse o dia, que ele se zangasse comigo. Mas bem longe de mim a ideia de irritar-me primeiro. Como tantas outras coisas, a capacidade de irritação parecia ter morrido em mim. Queria vê-lo, e perguntar-lhe o que pensava de Henry. Porque o Henry tem andado estranho ultimamente. Não era dele sair e ir tomar qualquer coisa com Maurice. Henry só bebia em casa ou no clube. Pensava que ele se tivesse aberto com Maurice. Que insólito - se era a meu respeito que ele se preocupava. Desde que nos casámos, nunca houve como agora tão poucos motivos de preocupação. Quando, porém, me vi com Maurice, era como se não houvesse para estar com ele outra razão senão o estar com ele. De Henry, não descobri nada. De vez em quando, Maurice tentava magoar-me, e conseguia-o, porque estava na verdade a ofender-se a si próprio, e é-me insuportável assistir a esse espectáculo.

 

Faltei à minha promessa, almoçando com Maurice? Há um ano tê-lo-ia suposto, mas já não me parece. Nesse tempo, porque tinha medo, tomava as coisas demasiado ao pé da letra, além de que não sabia de que se tratava e não confiava no amor. Almoçamos no Rule, sentia-me feliz só por estar com ele. Apenas por um pouco me senti infeliz, ao despedir-me sobre a grade. Pensei que ele ia outra vez beijar-me, ansiava pelo beijo, e foi então que tive um ataque de tosse... e a oportunidade passou. Bem sabia, ao vê-lo afastar-se, que ia pensando de mim toda a casta de falsidades que o torturava, e fiquei triste por o saber triste.

 

Queria chorar sem ser vista, e entrei na National Portrait Gallery, mas era dia de colégios - havia imensa gente, e voltei para Maiden Lane e entrei naquela igreja tão sombria, onde mal se vê quem está ao nosso lado. Ali fiquei. Não estava ninguém, a não ser eu e um homenzinho que entrou e ajoelhou quietamente no banco atrás do meu. Lembrava-me da primeira vez que entrara numa daquelas igrejas e de como a detestara. Não rezei. Já tinha rezado uma vez, e de uma vez para sempre. Só dizia a Deus, como a meu pai o teria dito, se sequer me recordasse de ter tido um pai: «Meu Deus, estou cansada.»

 

3 de Fevereiro de 1946

Hoje vi Maurice sem que ele me visse. Ia a caminho do Armas de Pontefract, e segui atrás dele. Estivera cerca de uma hora em Cedar Road - uma longa e estirada hora, durante a qual fizera o possível por acompanhar os argumentos do Richard, coitado, e apenas conseguira descobrir nele algo de uma fé ao contrário. E possível ser-se tão sério, tão raciocinador, a propósito que não passa de uma lenda? Quando chegava a perceber alguma coisa, tratava-se de algum estranho facto que eu desconhecia e cuja conexão com o tema em discussão me não parecia clara. Como a prova de que houvesse realmente um homem chamado Cristo. Saí cansada e desanimada. Aproximara-me dele para libertar-me de uma superstição, e, de cada vez, o fanatismo dele me aprofundava mais a crença na superstição. Eu era-lhe útil, sem que ele me servisse de nada. Ou servia? Durante uma hora, eu mal pensara em Maurice - e ei-lo, de súbito, atravessando o fim da rua.

 

Segui-o todo o caminho, sem o perder de vista. Tantas vezes estivéramos juntos no Armas de Pontefract! Sabia onde ele se sentava, que mandava vir. Entro atrás dele - pensava eu mando vir o que eu mandava, ele volta-se, e tudo recomeça? As manhãs encher-se-me-ão de esperança, porque me é possível telefonar-lhe logo que Henry sai, e há tardes garantidas, quando Henry me disser que não volta cedo. E talvez que eu deixe o Henry. Já fiz o que pude. Não tenho fortuna para oferecer a Maurice, e os livros mal lhe dão com que a si se sustente mas só comigo à máquina de escrever podemos poupar em dactilografa cinquenta libras por ano. Não tenho medo de viver com dificuldades. Às vezes, é mais fácil talhar o frio conforme a roupa, que deitarmo-nos na cama que fizermos.

 

Fiquei à porta e vi-o dirigir-se ao balcão. Se ele se volta e me vê, disse a Deus, entro; mas não se voltou. Retomei vagarosamente o caminho de casa, sem conseguir deixar de pensar nele. Havia quase dois anos que éramos como dois estranhos. Deixara de saber o que ele fazia a esta ou àquela hora do dia - e maisuma vez não me era como estranho, porque, à semelhança do passado, eu sabia onde ele estava. Tomaria mais outra cerveja, e voltaria ao quarto, tão familiar, para escrever. Os hábitos quotidianos continuavam a ser os mesmos, e eu amava-os como se ama um velho casaco. Senti-me protegida pelos hábitos dele. Nunca gosto de mudanças.

 

E pensava: como posso fazê-lo feliz, quão facilmente! Ansiava por vê-lo rir de contente. Henry não estava em casa. Almoçava fora, depois da repartição, e telefonara-me a dizer que não voltaria antes das sete. Eu podia esperar até às seis e meia e telefonar então a Maurice. Dir-lhe-ia: «Volto para esta noite e para todas as outras. Estou farta de viver sem ti.» Faria a mala grande azul e a pequena castanha. Levaria roupa suficiente para um mês. Henry era uma pessoa educada e, ao fim de um mês, a questão legal estaria posta, o desgosto momentâneo já passado, e o que eu mais precisasse de casa havia tempo de o arranjar. Não haveria, de resto, um grande desgosto: não vivíamos como amantes. O casamento tornara-se um convívio amigo, e, passado algum tempo, o convívio amigo reatar-se-ia tal qual.

 

Senti-me, de súbito, livre e feliz. Atravessando o parque, dizia a Deus: Vou deixar de me ralar contigo, se existes ou não existes, se deste a Maurice uma segunda oportunidade ou se fui eu quem imaginou tudo. Talvez seja esta a segunda oportunidade que eu pedi. Vou fazê-lo feliz: é esta, meu Deus, a segunda promessa, e desafio-te a que me impeças, desafio-te.

 

Subi ao meu quarto, e principiei a escrever ao Henry. Querido Henry - o que me pareceu hipocrisia. Meu querido - era mentira. Tinha de ser como a um conhecido: Caro Henry. Assim escrevi, e depois: «Receio que te ofendas com o que vou dizer -te, mas durante cinco anos fui amante de Maurice Bendrix. Nestes últimos dois anos, deixámos de nos ver, sem resultado. Não posso viver feliz sem ele, e é por isso que me vou embora. Bem sei que há muito que não tenho sido uma boa esposa, e desde Junho de 1944 que não sou uma amante - e nenhum de nós ganhou com isso. Pensava eu que isto era uma aventura, que pouco a pouco e calmamente se desvaneceria, mas não foi. E amo hoje Maurice mais do que amava em 1939. Creio que me portei como uma criança; e agora compreendo que, mais tarde ou mais cedo, isto não podia continuar. Adeus, Deus te proteja.» Risquei o «Deus te proteja» tão profundamente que ele não pudesse ler. Soava a falso, e além disso Henry não acredita em Deus. Apeteceu-me depois escrever «Amor», mas a palavra parecia despropositada, embora eu a soubesse verdadeira. À minha maneira medíocre, sempre amo Henry.

 

Meti a carta num sobrescrito, e sublinhei que era «Estritamente Pessoal». Achei que assim faria com que Henry a não abrisse na presença de alguém - podia vir com algum amigo, e eu não queria humilhá-lo. Tirei para fora a mala e comecei a arrumar coisas; e de repente perguntei a mim mesma onde havia de pôr a carta. Logo vi onde deveria pô-la, mas preocupei-me com o facto de, por precipitação, me esquecer de colocá-la no vestíbulo - e Henry ficar eternamente à espera de que eu voltasse para casa. Por isso desci as escadas na intenção de a pôr no lugar devido. Quase acabara já de fazer as malas, faltava apenas dobrar um vestido de noite, e Henry não chegaria antes de meia hora.

 

Mal pousara a carta na mesa da entrada, ao cimo do correio da tarde, ouvi meter a chave à porta. Peguei outra vez na carta, não sei porquê, e Henry entrou. Parecia doente e aflito. «Oh, estás aqui?», e passou por diante de mim e entrou no escritório. Esperei um momento, e fui atrás dele. Dou-lhe agora a carta: vai ser precisa mais coragem - pensava. Quando abri a porta, vi-o sentado na cadeira ao pé do lume que nem sequer acendera, e chorava.

 

- O que é, Henry?

 

- Nada. Uma dor de cabeça muito forte, mais nada. Acendi-lhe o lume. - Vou buscar-te um comprimido.

 

- Não te incomodes. É melhor assim.

 

- Tiveste um dia muito trabalhoso?

 

- Oh, mais ou menos como sempre. Um bocado maçador.

 

- Com quem almoçaste?

 

- Com Bendrix.

 

- Bendrix?

 

- E por que não? Ofereceu-me de almoçar no clube dele. Um almoço horrível.

 

Passei para trás dele e pousei-lhe a mão na testa. Era um tanto estranho fazer aquilo momentos antes de o deixar para sempre. Ele costumava fazer-me o mesmo no princípio do nosso casamento, quando eu tinha enxaquecas terríveis por nada estar correndo como devia ser. Esqueci, por momentos, que apenas fingia que aquilo me aliviava. Mas ele pegou-me na mão, apertou-me contra a testa, e disse: - Amo-te. Sabes?

 

- Sei. - Era capaz de o odiar por ter dito aquilo: parecia invocar um direito. Se realmente me amasses, comportar-te-ias como qualquer outro marido enganado. Enfurecias-te, e a tua fúria libertar-me-ia, pensava eu.

 

- Não posso viver sem ti - acrescentou. Ai podes, podes, apeteceu-me protestar. Não seria conveniente, mas podes. Uma vez mudaste de jornal e logo te habituaste ao outro. Isso são palavras, palavras convencionais de um marido convencional que não significam nada: olhei então para o rosto dele no espelho, e vi que continuava a chorar.

 

- Henry, que se passa?

 

- Nada. Já te disse.

 

- Não acredito. Aconteceu-te alguma coisa no serviço? Com desusado azedume, exclamou: - Que podia acontecer aí?

 

- O Bendrix arreliou-te de qualquer maneira?

 

- Claro que não. De qual?

 

Quis retirar a mão, que ele segurou. Temia o que ele iria dizer: os insuportáveis remorsos que já estava provocando na minha consciência. Maurice deveria estar em casa: se Henry não tivesse chegado, estaria com ele dentro de cinco minutos. Veria felicidade em vez de amargura. A gente, se não vê a amargura, não acredita nela. À distância, é fácil ferir alguém. E Henry murmurou: - Minha querida, bem sei que não tenho sido um marido.

 

- Não sei o que queres dizer.

 

- Tenho sido uma maçada para ti. Os meus amigos são uns maçadores. Há muito que... bem sabes... nada temos em comum.

 

- Em qualquer casamento, mais tarde ou mais cedo tudo acaba. Somos bons amigos. - Era o meu plano de fuga. Logo que ele concordasse, dava-lhe a carta, dizia-lhe dos meus projectos, e saía pela porta fora. Ele, porém, não mordeu a isca, e aqui estou, com a porta outra vez fechada entre mim e Maurice.

 

Nesta feita, não posso, porém, deitar as culpas a Deus. Eu própria a fechei. Henry disse: - Não sou capaz de pensar em ti como apenas uma pessoa de amizade. Podemos passar sem um amigo - e olhou para mim do espelho, acrescentando: - Não me deixes Sarah. Aguenta-te só mais uns anos. Tentarei... mas nem sequer era capaz de imaginar que haveria de tentar. Bem melhor teria sido para ambos, que eu o tivesse deixado há alguns anos; agora, não posso feri-lo depois que o vi ali assim, e sempre o verei assim, porque vi a cor do seu desgosto.

 

- Não te deixarei. Prometo. - Outra promessa a cumprir, e mal a fiz, logo senti que me era impossível continuar a viver com ele. Ganhara, Maurice perdera - e odiei-o pela vitória ganha. E a Maurice também seria capaz de o odiar pela mesma razão? Subi a escada, rasguei a carta em pedaços tão pequenos que ninguém a pudesse reconstituir, a pontapés meti a mala debaixo da cama, porque me sentia demasiado esgotada para a desmanchar, e comecei a escrever tudo isto. A dor de Maurice transparece no que ele escreve: ouço-lhe bem os nervos estorcendo-se no meio das frases. Pois bem, se a dor faz o escritor, cá estou a treinar-me, Maurice. Quem me dera falar contigo, neste mesmo momento. Não posso falar com Henry. Não sou capaz de falar com ninguém. Meu Deus, que ao menos eu fale.

 

Ontem, comprei um crucifixo, barato e feio, porque foi comprado à pressa. Corei ao pedi-lo; e se alguém me via na loja?! Deviam ter vidros foscos nas portas, estas lojas, como as que vendem artigos de higiene. Fechada à chave no meu quarto, tiro-o do fundo da minha caixinha das jóias. Quisera saber uma oração que não metesse «eu», «eu», «eu». Vale-me. Que eu seja feliz. Que eu morra o mais depressa possível. Eu, eu, eu.

 

Que eu pense na malha da face de Richard. Que eu reveja o rosto de Henry, lavado em lágrimas. Que eu me esqueça de mim Ó meu Deus, quis amar - e o que eu fiz! Se tivesse amado antes teria sabido como amá-los a eles. Acredito em tudo. Acredito que nasceste. Acredito que morreste por nós. Acredito que és Deus. Ensina-me o amor. Não faz mal que doa. Que a minha dor continue, se diminui a deles. Se ao menos, meu Deus, pudeses descer da cruz por uns instantes e me deixasses ficar nela em teu lugar! Se como tu eu sofresse, poderia como tu aliviar.

 

4 de Fevereiro de 1946

Henry arranjou um dia livre. Não sei porquê. Almoçámos fora, fomos à National Gallery, depois jantámos cedo num restaurante e fomos ao teatro. Era como um pai que tivesse ido à escola buscar o filho para o levar a passeio. Mas ele é que é a criança.

 

5 de Fevereiro de 1946

Henry projecta uma viagem pelo estrangeiro, para a Primavera. Não consegue decidir-se entre os castelos do Loire e a Alemanha, que lhe serviria para escrever um relatório comparativo acerca do moral das populações submetidas aos bombardeamentos aéreos. Quem me dera que a Primavera nunca mais chegasse! E lá estou eu outra vez. Quero e não quero. Se Te amasse, amaria Henry com o seu astigmatismo, Richard com a sua malha, e não só Maurice. Se me julgo capaz de amar a tacanhez de Henry? Mas. se a lepra estivesse aqui, diante de mim, evitá-la-ia, por certo, como evito aproximar-me de Henry. É sempre o que é dramático que eu prefiro. Imagino-me pronta a suportar os teus cravos, e não aguento vinte e quatro horas de mapas e guias Michelin. Não sirvo para nada, meu Deus. Continuo a mesma prostituta e a mesma impostora. Varre-me do caminho.

 

6 de Fevereiro de 1946

Tive hoje uma cena terrível com Richard. Estava ele a falar-me das contradições existentes entre as várias igrejas cristãs, e eu a procurar segui-lo sem o conseguir muito bem, quando ele deu por isso e exclamou: - Mas, afinal, que vem aqui fazer?

 

- e, antes de pensar, eu respondi: - Vê-lo.

 

- Julguei que vinha esclarecer-se - disse ele, ao que notei que quisera dizer isso mesmo.

 

Vi que me não acreditara, julguei que se ofendera, se zangaria, mas não. Levantou-se da cadeira, veio sentar-se no sofá de cretone, a meu lado, do lado de que se não via a malha e disse:

 

- Significa tanto para mim o vê-la todas as semanas - e senti que ia tentar cortejar-me. Pousou a mão no pulso, e perguntou:

 

- Gosta de mim?

 

- Claro que gosto, Richard, de contrário não estava aqui.

 

- Quer casar comigo? - O orgulho fazia-o perguntar-me aquilo, como se me tivesse perguntado se queria tomar outra chávena de chá.

 

- O Henry poderia não concordar - disse eu, levando o caso para a brincadeira.

 

- Nada tem força de a separar de Henry? - E eu pensei furiosa: como podia ele esperar que fizesse por ele o que não fora capaz de fazer por Maurice?

 

- Sou casada.

- O que nem para mim, nem para si, constitui obstáculo.

 

- Ai não!... - Mais tarde ou mais cedo tinha de lhe dizer:

- Porque eu acredito em Deus e em tudo o mais. Foi você que me ensinou. Você e Maurice.

 

- Não percebo.

 

- Sempre me disse que foram os padres quem o ensinou a descrer. Pois no sentido contrário também dá resultado.

 

Pousou os olhos nas belas mãos que tinha... e lhe restavam. E disse muito baixo: - Não me importo com o que você crê. Pode acreditar, quanto a mim, em quantas tolices quiser. Amo -a, Sarah.

 

- Que lhe hei-de fazer?

 

- Amo-a bem mais do que detesto tudo isso. Se tivesse filhos seus, deixaria mesmo que mós pervertesse.

 

- Não diga isso.

 

- Não sou rico. Só lhe posso oferecer o abandono das minhas convicções.

 

- Bem sabe que amo outro, Richard.

 

- Se se julga ligada a essa promessa tola, é porque o não ama muito.

 

Respondi cansadamente: - Fiz quanto pude para quebrar a promessa, e não consegui.

 

- Julga que sou parvo?

 

- Porquê?

 

- Julga que esperava que gostasse de um homem assim? e voltou para mim a face vermelha e áspera. - Crê em Deus. É tão fácil! É bela. Não tem de que se queixar. Mas eu, posso eu amar um Deus que a uma criança dá isto?

 

- Meu caro Richard, não há nada que... - Fechei os olhos e pousei os lábios na malha. Senti-me por momentos agoniada, porque a deformidade me aflige e ele ficou quieto, deixou-me beijá-lo. E eu dizia comigo: estou beijando a dor, a dor é Tua, como o não é nunca a felicidade. Amo-Te nas Tuas dores. A pele quase me sabia a metal e a sal. E prosseguia: como és bom. Podias matar-nos de felicidade, e permites que na dor nos encontremos contigo.

 

Afastou-se de mim repentinamente, abri os olhos: - Adeus.

 

- Adeus, Richard.

 

- E não volte mais. Não posso suportar a sua compaixão.

 

- Não é compaixão.

 

- Fiz uma figura idiota.

 

Saí. Não valia a pena ficar. Não me era possível explicar-lhe como o invejava, que levava sobre si tão visível a marca da dor, por toda a parte, vendo-Te todos os dias no espelho, meu Deus, e não a esta mesquinha coisa humana a que chamamos beleza.

 

10 de Fevereiro de 1946

Não preciso escrever-Te ou falar-Te: foi assim que principiei, há tempo, uma carta para Ti, e tanta vergonha senti, que a rasguei, por me parecer absurdo escrever-Te uma carta, quando sabes tudo antes mesmo que eu o pense. Amei alguma vez Maurice tanto, antes de amar-Te? Ou foi a Ti quem de facto amei todo esse tempo? Toquei-Te, quando o tocava a ele? Podia terTe alguma vez tocado, sem o tocar primeiro a ele, tocá-lo como nunca toquei Henry ou alguém? E ele amou-me e possuiu-me como nunca a outra mulher. Mas era a min que amava, ou a Ti? Porque ele odiava em mim as coisas que Tu odeias. Estava do Teu lado, sempre, e não sabia. Querias a nossa separação, e também ele a queria. E trabalhava por ela com toda a cólera, todo o ciúme de que era capaz, com todo o amor que sentia. Porque me deu tanto amor e tanto amor eu lhe dei, que, em pouco tempo, nada ficou, quando acabámos, senão Tu. A qualquer de nós. Podia ter passado a vida inteira desperdiçando, agora e logo, um pouco de amor, colhendo-o aqui e ali, deste ou daquele homem. Mas, logo da primeira vez, no hotel perto de Paddington, havíamos consumido tudo quanto tínhamos. Tu estavas presente, ensinando-nos a dissipar, como ensinaste ao homem rico, para que um dia nada nos restasse senão este amor por Ti. És, todavia, bom de mais para mim. Quando Te peço dor, ofereces-me paz. Dá-lha também. Dá-lhe a minha paz, que ele precisa mais dela que eu.

 

12 de Fevereiro de 1946

Há dois dias, senti uma tal sensação de paz, de sossego de amor! A vida ia ser novamente bela; mas, na noite passada, sonhei que subia por uma imensa escada para ao cimo dela me encontrar com Maurice. Ainda me sentia feliz, porque, ao atingir o cimo, íamos possuir-nos. Muito alto, avisei-o de que chegava, mas não foi a voz de Maurice que me respondeu, e sim a de um desconhecido, que ressoou como uma sereia de nevoeiro avisando os navios perdidos, e me assustou. E pensava: mudou-se, foi-se embora, não sei onde ele está; e, ao descer a escada, a água dava-me acima da cintura, e o vestíbulo estava opaco de nevoeiro. Acordei antes. Perdi a paz. Continuo a desejá-lo como desejava dantes. Apetece-me estar com ele a comer sanduíches. Quero estar com ele a beber num bar. Sinto-me cansada, farta de amarguras. Quero Maurice. Quero o vulgar e corrupto amor humano. Ó meu Deus, bem sabes quanto desejo desejar a dor que me ofereces, mas, neste momento não. Afasta-a de mim por um instante, oferece-ma numa outra altura.

 

 

Não fui capaz de ler mais. Muitas e muitas vezes saltara, quando um trecho mais profundamente me doía. Quisera saber de Dunstan, embora não tanto; e, agora que lera, tudo se sumia no tempo, como na História uma data ominosa. Não tinha importância actual. O último dia do diário que eu possuía datava apenas de há uma semana. «Quero Maurice. Quero o vulgar e corrupto amor humano.»

 

É quanto posso dar-te, pensei. Não conheço outra espécie de amor, mas, se pensas que gastei todo esse amor, enganas-te. Ainda sobra para a vida de ambos, e lembrei-me daquele dia em que ela fizera a mala e eu estivera trabalhando aqui, sem saber que a felicidade andava tão perto. Alegrava-me não ter sabido, e alegrava-me sabê-lo agora. Agora podia eu agir. Dunstan não interessava. O homem do abrigo não interessava. Fui ao telefone e marquei o número dela.

 

Atendeu a criada. - Daqui fala Bendrix. Quero falar com a senhora. - Disse-me que esperasse. Sentia-me sem fôlego como se no fim de uma imensa corrida, enquanto aguardava a voz de Sarah. A voz que veio era, porém, a da criada, dizendo-me que a senhora tinha saído. Nem sei por que não acreditei. Deixe’ passar cinco minutos e então, com o lenço esticado sobre o bocal, tornei a telefonar.

 

- O senhor Miles está?

 

- Não está, não senhor.

 

- Posso então falar com a senhora? Daqui fala Sir William Mallock.

 

Sarah levou apenas um pequeno lapso de tempo a atender.

 

- Boa tarde. Daqui fala Sarah Miles.

 

- Bem sei, Sarah, conheço a voz.

 

- Tu... Julguei...

 

- Sarah... Vou ver-te.

 

- Não, por favor, não. Ouve Maurice. Estou de cama. É da cama que estou a falar.

 

- Tanto melhor.

 

- Não sejas doido, Maurice. É que eu estou doente.

 

- Mais uma razão para eu te ver. O que é que tens, Sarah?

 

- Oh, nada. Uma constipação teimosa. Ouve, Maurice...

- Acentuava as palavras muito devagar, como uma governanta dando ordens, e eu perdia a paciência. - Por favor, não venhas, que não posso encontrar-me contigo.

 

- Amo-te, Sarah, e vou.

 

- E eu saio. Fazes-me levantar da cama. - Se correr, pensava eu entretanto, levo quatro minutos a atravessar o parque, não tem tempo de se vestir. - Digo à criada que não deixe entrar ninguém.

 

- A tua criada não me parece de força para tanto. E eu tinha de ser posto fora, Sarah.

 

- Por favor, Maurice... Sou eu quem to pede. Há muito tempo que te não peço nada.

 

- Com excepção de um almoço.

 

- Maurice, não estou nada bem. Hoje, não me é possível ver-te. Para a semana que vem...

 

- O que mais tem havido é semanas. Quero ver-te já. Esta tarde.

 

- Mas porquê, Maurice?

 

- Porque tu me amas.

 

- Quem to disse?

 

- Não te importes. Preciso pedir-te que fujas comigo.

 

- Mas, Maurice, eu posso responder-te já pelo telefone. E a resposta é não.

 

- Pelo telefone não posso tocar-te, Sarah.

 

- Maurice, meu querido, por favor. Promete que não vens.

 

- Mas vou.

 

- Ouve, Maurice. Sinto-me muito mal. Tenho dores terríveis. Não me apetece sair da cama.

 

- Nem precisas.

 

- Juro que me levanto, me visto e saio de casa, a não ser que prometas...

 

- Isto vale para nós ambos, Sarah, muito mais do que uma constipação.

 

- Peço-te, Maurice, peço-te. Não tarda que o Henry chegue a casa.

 

- Pois que chegue. - E desliguei.

 

Era uma noite ainda pior do que aquela, um mês antes, em que me encontrara com Henry. Caía geada em vez da chuva de então: quase neve, os pingos afiados pareciam abrir caminho pelas casas da gabardine: escureciam os candeeiros do parque e era impossível correr, eu que não posso correr por causa da minha perna. Quem me dera ter trazido a lanterna do tempo da guerra, porque devo ter levado oito minutos a chegar à casa do outro lado. Precisamente na altura em que eu ia atravessar a rua, a porta abriu-se e Sarah saiu. Pensei, feliz: agora tenho-te. Sabia de certeza certa que, antes do fim da noite, estaríamos outra vez dormindo juntos. E, uma vez que reatássemos, tudo podia acontecer que não adiantava nada. Nunca a conhecera como agora, e nunca a amara tanto. Quanto melhor nos conhecemos, melhor nos amamos. Voltara ao caminho da confiança.

 

Sarah ia tão depressa, que nem me viu, debaixo da geada, a atravessar o largo arruamento. Voltou à esquerda, e afastava-se rapidamente. Há-de precisar de sentar-se em qualquer parte, e apanho-a então. Seguia-a a uns vinte metros de distância, mas nunca olhou para trás. Ia ao longo do parque, passou além do lago e da livraria bombardeada, como se se dirigisse para a estação do metropolitano. Se fosse preciso, havia de lhe falar mesmo num comboio cheio de gente. Desceu as escadas e dirigiu-se à bilheteira, mas esquecera-se da mala e não encontrou uma única moeda nas algibeiras - nem sequer os três meios pence que lhe teriam permitido andar para trás e para diante, na linha, até à meia-noite. Subiu outra vez as escadas, e atravessou a rua onde passavam os eléctricos. Uma porta fechara-se, mas o espírito obviamente lhe abrira outra. Eu triunfara. Ela tinha medo, mas não era de mim que tinha medo, e sim de si própria e do que ia acontecer, logo que nos encontrássemos. Convenci-me de que já ganhara a partida, e até sentia pela minha vítima uma certa piedade. Queria dizer-lhe: Não te aflijas, não há de que ter medo, vamos ser felizes, o pesadelo está a acabar.

 

E, então, perdi-a de vista. Confiara de mais, dera-lhe um grande avanço. Atravessara a rua uns vinte metros adiante de mim (a minha perna atrasara-me, a subir as escadas), um eléctrico meteu-se de permeio, desaparecera. Podia ter voltado à esquerda por High Street abaixo ou seguido em frente por Park Road, mas não a via. Não me afligi muito: se não a apanhava hoje, apanhá-la-ia amanhã. Agora que sabia a absurda história da promessa, agora que tinha a certeza de que ela me amava, sentia-me seguro. Se duas pessoas se amam, dormem juntas eis uma fórmula matemática, que a experiência humana verificou e comprovou.

 

Em High Street, havia um A.B.C.1 Não estava lá. Lembrei-me então da igreja da esquina de Park Road, e imediatamente compreendi que fora para lá. Entrei, e de facto lá estava sentada numa das naves laterais, ao pé de um pilar e de uma horrenda estátua da Virgem. Não rezava: ficara sentada, de olhos fechados. Só a via à luz das velas do altar da Virgem, porque estava muito escuro. Sentei-me atrás dela, como o Parkis, e esperei. Agora que sabia o fim da história, era capaz de esperar anos a fio. Tinha frio, estava molhado, e sentia-me imensamente feliz. Até podia olhar com comiseração para o altar e para a imagem vacilando nele. Ama-nos a ambos, pensei, mas, se houver luta entre uma imagem e um homem, eu sei quem ganha. Podia pousar-lhe a mão na anca ou a boca no seio: «ele» estava preso ao altar e não podia mexer-se para lutar pela sua causa.

 

1 Espécie de restaurante.

 

E, de repente, Sarah principiou a tossir, calcando o lado do peito com a mão. Vi que sofria, e não suportava vê-la sofrer abandonada. Aproximei-me, sentei-me ao lado, e pousei a minha mão no joelho dela, que tossia. Se ao menos, pensava eu, curássemos, tocando! Quando o acesso acabou, disse-me: - por favor, não podes deixar-me em paz?

 

- Nunca mais te deixarei.

 

- Mas que te aconteceu, Maurice? Naquele dia, durante o almoço, não estavas assim.

 

- Porque me sentia amargurado. Não sabia como tu me amavas.

 

- E por que julgas agora que eu te amo? - e deixava a minha mão pousada no joelho. Contei-lhe como o Parkis lhe roubara o diário, não queria que subsistisse entre nós a mínima mentira.

 

- Não foi bem feito. Não devias.

 

- Pois não. - Começou outra vez a tossir e depois, de cansaço, encostou o ombro a mim.

 

- Minha querida, tudo acabou. A expectativa, quero eu dizer. Vamos embora juntos.

 

- Não.

 

Passei o braço por trás dela, toquei-lhe o seio. - Isto é um recomeçar. Amei-te muito mal, Sarah. Foi a incerteza que fez tudo. Eu não confiava em ti. Não te conhecia o bastante. Agora, confio inteiramente.

 

Não me respondia, mas continuava encostada a mim. Era como dizer que sim. E eu prosseguia: - Vais ver como tudo há-de ser melhor. Voltas para casa, metes-te na cama durante uns dias, não precisas de viajar com um frio destes. Eu telefono todos os dias a saber como estás. Quando te sentires melhor, apareço para te ajudar a fazer as malas. Não ficaremos aqui. Tenho um primo no Dorsetshire que possui uma casinha sem ninguém, para onde podemos ir. Demorar-nos-emos por lá umas semanas a repousar. Conseguirei acabar o meu livro. Poderemos então tratar com os advogados. Ambos precisamos de repouso, eu e tu. Estou cansado, mortalmente cansado de viver sem ti, Sarah.

 

- Também eu. - Falou tão baixo, que eu não teria ouvido a frase, se fosse um estranho, se a não soubesse. Mas a frase era como uma melodia de assentimento, que ecoara ao longo das nossas relações, desde a nossa primeira entrevista no hotel de Paddington. «Também eu» pela solidão, pela amargura, pela desilusão, pelo prazer, pelo desespero: o direito de partilhar tudo.

 

- Dinheiro não vai haver muito, mas não há-de faltar. Encomendaram-me uma vida do general Gordon1, e o adiantamento chega para vivermos bem durante três meses. Nessa altura, posso entregar o romance e receber um adiantamento. Ambos os livros serão publicados este ano, e manter-nos-ão até que outro esteja pronto. Contigo, sou capaz de trabalhar. Sabes, não tarda, conseguirei vencer. Ainda hei-de ser um autor popular, o que tu hás-de detestar, e eu também, mas poderemos comprar coisas, fazer disparates, e havemos de divertir-nos, porque estaremos juntos.

 

1 O general Gordon (1833-1885) foi o célebre defensor de Cartum, um dos heróis do Império Britânico. A sua biografia, por Lytton Strachey, in Eminent Victorians é uma obra-prima de ironia.

 

E, subitamente, verifiquei que ela adormecera. Exausta pela fuga, adormecera no meu ombro, como tantas outras vezes, em táxis, em autocarros, num banco de jardim. Fiquei imóvel deixei-a dormir. Nada havia, na igreja obscura, que a perturbasse. As velas agitavam-se em torno da Virgem, e não estava mais ninguém na igreja. O incómodo, pouco a pouco crescente no meu braço, que suportava o peso dela, era o maior prazer que eu jamais conhecera.

 

Supõe-se que as crianças são influenciadas pelo que se lhes segreda quando dormem, e comecei então a falar baixinho a Sarah, de forma a não a acordar, com a esperança de que as palavras desceriam hipnòticamente ao seu inconsciente.

- Amo-te, Sarah. Nunca ninguém te amou como eu te amo. Vamos ser felizes. Henry não se importará, apenas sentirá o orgulho ferido, e as feridas do orgulho curam-se depressa. Há-de arranjar um novo hábito que te substitua... Talvez coleccione moedas gregas. Sarah, vamos viver juntos. Ninguém nos pode impedir. E tu amas-me, Sarah - e calei-me, a pensar se deveria comprar uma mala nova. Nisto, a tosse acordou-a.

 

- Adormeci.

 

- Tens de voltar para casa, Sarah. Estás gelada.

 

- Não é nada, Maurice. Não quero ir-me embora daqui.

 

- Está frio.

 

- Que me importa o frio. E está escuro. E na escuridão acredito em tudo.

 

- Então acredita em nós.

 

- É o que eu quero dizer. - Fechou outra vez os olhos; e eu, erguendo triunfante os olhos para o altar, como se «ele» fosse um rival de carne e osso: - Vês? Estes é que são os argumentos com que se ganha. - E cuidadosamente acomodei os meus dedos sobre o peito dela.

 

- Estás muito cansada, não estás?

 

- Muito.

 

- Não devias ter fugido de mim como fugiste.

 

- Não era de ti que eu fugia. - Afastou o ombro. - Maurice, agora, fazes favor, vai-te embora.

 

- Devias estar na cama.

 

- E lá estarei, não tarda. Não quero voltar para casa contigo. Quero despedir-me aqui.

 

- Promete que não te demoras.

 

- Prometo.

 

- E telefonas-me?

 

Acenou com a cabeça, mas eu, baixando os olhos para onde as mãos dela jaziam sobre o colo como coisas deitadas fora, vi-lhe os dedos cruzados. E perguntei, suspeitoso: - Estás a falar verdade? - Descruzei-lhe os dedos com os meus. - Não estás

planeando fugir-me outra vez, pois não?

 

- Maurice, meu amor, não tenho forças, não tenho. - E começou a chorar, batendo com os punhos nos olhos, como as crianças fazem.

 

- Desculpa. Vai-te embora. Por favor Maurice. Tem um pouco de dó.

 

Sempre se acaba por chegar ao fim das insistências e das teimas: e eu não podia continuar ali, com aquele apelo a ecoar-me nos ouvidos. Beijei-lhe o cabelo espesso e emaranhado - e, ao sair, os lábios dela pousaram-se-me, pegajosos e salgados, no canto da boca. - Que Deus te proteja - e era o que ela riscara da carta a Henry. Responde-se «adeus» ao adeus de alguém, a menos que nos chamemos Smythe, e foi automaticamente q» lhe retribuí a benção; e, ao voltar-me para trás, quando saía da igreja, vendo-a curvada no limiar do claror das velas, como um mendigo que veio aquecer-se um pouco, fui capaz de imaginar um Deus abençoando-a: ou um Deus amando-a. Ao principiar a escrever a nossa história, pensava eu que seria um catálogo de ódios; não sei como, porém, o ódio perdeu-se pelo caminho

- e apenas sei que, apesar dos seus erros e da sua instabilidade, Sarah foi melhor que muitas. É justo que um de nós tenha acreditado nela: que em si própria nunca ela acreditou.

 

Nos poucos dias seguintes, tive de fazer um grande esforço para dominar-me. Estava trabalhando para dois, dali em diante. Pela manhã, marcava a mim próprio uma tarefa mínima de setecentas e cinquenta palavras do romance, e conseguia habitualmente por volta das onze horas ter umas mil. O poder da esperança é extraordinário; o romance, que se arrastara por todo o ano passado, aproximava-se do fim. Eu sabia que Henry saía para o serviço cerca das nove e meia, e que a hora mais provável de ela me telefonar era entre essa hora e o meio-dia e meia. Henry voltara a vir almoçar a casa (segundo Parkis me dissera); antes das três não havia probabilidade de ela me telefonar. Revia o trabalho do dia e punha o correio em ordem, até ao meio-dia e meia hora, em que, embora com tristeza, ficava livre de expectativas. Até às duas e meia, na sala de leitura do Museu Britânico, tirava notas para a biografia do general Gordon. Não me absorvia, na leitura e nas notas, da mesma forma que na escrita do romance, e a lembrança de Sarah interpunha-se entre mim e a vida missionária na China. Por que me havia sido encomendada aquela biografia? pensava eu muitas vezes.

 

Teria sido melhor escolha a de um autor que acreditasse no Deus de Gordon. Era-me possível apreciar a obstinada demora em Cartum, a aversão pelos políticos instalados em segurança na pátria; mas a Bíblia em cima da mesa pertencia a outro mundo de ideias que não o meu - o mundo do amor. Talvez que o editor contasse que o meu tratamento cínico do cristianismo de Gordon provocaria um succès de scandale1. Não fazia a mínima intenção de lhe agradar nesse ponto: esse Deus era também o de Sarah, e eu não ia atirar pedras a uma sombra que ela supusesse amar. Durante este período, não sentia qualquer aversão por Deus - pois não provara eu, ao fim e ao cabo, ser o mais forte?

 

Certo dia, ao comer as minhas sanduíches, para as quais, não sei como, sempre a tinta da minha esferográfica consegue passar-se, uma voz familiar se me dirigiu da secretária oposta, no tom que convinha, respeitoso dos nossos colegas de trabalho.

- Espero que tudo corra bem, se o senhor me autoriza a intromissão pessoal.

 

Por cima do alçado da minha secretária vi os inesquecíveis bigodes. - Muito bem, muito obrigado, Parkis. É servido de uma sanduíche ilícita?

 

- Oh, não... Talvez não deva...

 

- Deixe-se disso. Suponha que entra na conta. - Com relutância, serviu-se de uma e, abrindo-a, observou, numa espécie de horror, como se tivesse aceitado uns cobres e descobrisse que eram ouro: - Mas é presunto do bom!

 

1 Em francês no texto.

 

- O meu editor mandou-me da América uma lata.

 

- Quanto lhe agradeço a sua bondade!

 

- Ainda tenho o seu cinzeiro, Parkis - sussurrei, porque o meu vizinho levantara para min uma cabeça furibunda.

 

- Tem apenas valor sentimental - segredou-me ele, sem resposta.

 

- E o seu rapaz, como vai?

 

- Sofre um bocado do fígado.

 

- Estranho vê-lo aqui. É trabalho? Com certeza que não está a vigiar um de nós? - Era-me difícil fazer ideia de que qualquer dos meus poeirentos companheiros de leitura - homens que usam barretinho e cachecóis em casa para se aquecerem, o indiano que dolorosamente perscrutava as obras completas de George Eliot, ou o tipo que dormia todos os dias com a cabeça pousada em cima dos mesmos livros - estivesse envolvido num drama de ciúme.

 

- Não!... Não é trabalho. Hoje é o meu dia de folga, e o rapaz voltou às aulas.

 

- E que está o senhor a ler?

 

- A gazeta dos tribunais do Times. Hoje, estou com o caso Russell. É que isto dá como que um fundo ao nosso trabalho. Alarga as vistas. Desvia a atenção do insignificante pormenor quotidiano. Eu conheci uma das testemunhas do caso. Trabalhámos uma vez no mesmo escritório. Pois bem, entrou na história, como eu já não entro.

 

- Oh, Parkis, nunca se sabe.

 

- Sabe, sim, prezado senhor. É o que tira a coragem. O caso Bolton foi o máximo que eu jamais consegui arranjar. A lei que proíbe que as provas de uma questão de divórcio sejam tornadas públicas foi um golpe fatal para os homens como eu. - nunca se refere a nós dizendo o nosso nome, e muitas vezes preconceituoso contra uma tão digna profissão.

- Nunca dei por isso - contestei, por simpatia. Até o Parkis me despertava a saudade. Era-me impossível vê-lo, sem pensar logo em Sarah. Voltei para casa, de metropolitano, com a esperança por companhia, e em casa, sentado, na mortal expectativa de que o telefone tocasse, vi a minha companheira partir mais uma vez: ainda não era naquele dia. Às cinco da tarde, marquei o número; porém, mal ouvi tocar, pousei o auscultador: talvez que Henry tivesse voltado mais cedo, e não podia mais falar-lhe, eu, o vencedor, desde que Sarah me amava e se preparava para o deixar. Mas uma vitória adiada pode, tanto como uma prolongada derrota, espatifar os nervos. Oito dias passaram, sem que o telefone tocasse. E não tocou às horas que eu contava, porque eram nove da manhã; e, quando atendi, foi Henry quem me falou.

 

- É o Bendrix? - Havia na voz dele não sei o quê de estranho, e eu pensava: será que ela lhe disse?

 

- Sim, sou eu.

 

- Aconteceu uma coisa horrível. E você tem de saber. Sarah morreu.

 

Nestas ocasiões, comportamo-nos tão convencionalmente! Eu só disse: - Lamento profundamente, Henry.

 

- Tem alguma coisa que fazer esta noite?

 

- Não.

 

- Então gostava que viesse tomar qualquer coisa. Não suporto a ideia de estar só.

 

 

Passei a noite em casa de Henry. Era a primeira vez que dormia em casa dele. Tinham um só quarto de hóspedes, e Sarah estava lá (mudara-se para ele uma semana antes, para não incomodar Henry com a tosse); por isso, dormi no sofá da sala onde nos havíamos possuído. Eu não queria passar a noite, foi ele quem me pediu.

 

Devemos ter bebido, eu e ele, garrafa e meia de whisky. Lembro-me de Henry dizer: - É estranho, Bendrix, como se não pode ter ciúme dos mortos. Morreu há umas horas apenas, e eu quis que você me fizesse companhia.

 

- Também não sobrava muito de que ter ciúme. Tudo acabara havia tanto tempo.

 

- Já não preciso desse género de consolações, Bendrix. Para nenhum de vós tudo acabara. E eu é que fui o homem da sorte. Que a tive comigo todos estes anos. Detesta-me.

 

- Não sei, Henry. Julguei que sim, mas não sei. Estávamos sentados no escritório dele, às escuras. O calorífico de gás não estava tão aberto que víssemos a cara um do outro, e eu só pelo tom de voz sabia quando Henry chorava De raiva, o Discóbolo fazia pontaria para nós.

 

- E como foi isto, Henry, conte.

 

- Lembra-se daquela noite em que nos encontrámos? Há três ou quatro semanas? Nessa noite apanhou ela uma constipação. Nunca se tratava de coisa nenhuma. Eu nem sequer sabia que lhe atacara o peito. Eram assuntos em que ela nunca falava.

- Nem escrevia no diário, pensei eu. Não havia nele uma única palavra a propósito de estar doente. Não tinha tido tempo de, no que escrevia, adoecer. - Ao fim, foi parar à cama, mas não era possível conservá-la deitada, e muito menos chamar o médico, não acreditava em médicos. Há uma semana, levantou-se e saiu. Deus sabe porquê ou até onde foi. Disse que precisava de exercício. Quando cheguei a casa, tinha ela saído. Não voltou antes das nove, molhada até aos ossos, pior que da outra vez. Devia ter andado horas e horas debaixo de chuva. Delirou toda a noite, a falar com alguém, não sei quem: nem eu, nem você, Bendrix. Depois disso, chamei o médico. E o médico disse que, se lhe tivesse sido possível dar-lhe penicilina uma semana antes, a teria salvo.

 

Nada tínhamos que fazer, um ao outro, senão ir bebendo whisky. E eu pensava no desconhecido em cuja peugada eu pagara ao Parkis para andar. Não - pensei -, não odeio Henry. Odeio-te a Ti, se acaso existes. Veio-me à ideia o que ela dissera a Richard Smythe, que fora eu quem a ensinara a acreditar. Não era capaz de imaginar como, mas só de pensar no que eu deixara perder-se, também a mim próprio odiava. Henry ia dizendo:

- Morreu hoje, às quatro da manhã. Eu não assisti. A enfermeira não me chamou a tempo.

 

__ E onde está a enfermeira?

 

- Despachou-se com muito desembaraço. Tinha outro caso de urgência, foi-se embora antes do almoço.

 

- Gostava de lhe poder ser útil.

 

- E é, só com estar aqui. Tem sido um dia medonho, Bendrix. É que, sabe, eu nunca tinha tratado de uma morte. Sempre supus, além disso, que morreria primeiro, e Sarah havia de saber o que havia de fazer. Se tivesse vivido até lá. De certo modo, é coisa de mulheres... como ter um filho.

 

- Mas o médico terá ajudado.

 

- Tem tido imenso trabalho, este Inverno. Telefonou para a agência funerária. Eu nem era capaz de saber a quem me dirigir. E nunca tivemos uma lista profissional. Mas um médico não diz nada quanto às roupas... as gavetas estão cheias. E os cremes, e os perfumes... não se pode simplesmente deitar tudo fora... Se ao menos ela tivesse uma irmã... - E calou-se, exactamente como na noite em que ele dissera «É a criada» e eu corrigira «É Sarah». Ficámos ouvindo os passos da criada pela escada acima. É extraordinário como, só com três pessoas dentro, uma casa pode estar vazia. Bebemos os whiskies, e eu servi outros. - Tenho imenso whisky em casa - disse Henry -, Sarah descobriu outra mina... - e calou-se outra vez. Todos os caminhos iam dar a ela. Não havia maneira de a evitarmos, nem por um instante. «Que Te obrigava a fazer-nos isto?», dizia eu comigo. «Se ela não tivesse acreditado em Ti, ainda estaria viva, e continuaríamos amantes.» Era triste e extravagante pensar que eu ficara descontente. Podia agora partilhá-la sossegadamente com Henry.

 

- E o enterro?

 

- Bendrix, nem sei o que hei-de fazer. Aconteceu uma cois muito esquisita. Quando delirava (e, é claro, que não estava portanto, em seu juízo), a enfermeira contou-me que ela pedia um padre. Pelo menos dizia: «Pai, Pai’», e não podia estar a chamar pelo pai dela. Nem o chegou a conhecer. A enfermeira sabia que não éramos católicos. E tratou-a muito bem. Acalmou-a. Mas eu estou preocupado, Bendrix.

 

Com azedume e cólera, pensei: Bem podias ter deixado o Henry em paz, coitado. Durante anos e anos, passámos sem Ti. Porque é que de repente desataste a meter o nariz em tudo, como um parente ignorado que cai dos antípodas?

 

- Se a gente vive em Londres, o mais fácil é a cremação. Mesmo antes da enfermeira mo dizer, já eu pensara em que ela fosse incinerada em Golders Green. O homem da agência falou para o crematório. Podem receber Sarah, depois de amanhã.

 

- Ela não estava em seu juízo - observei -, você não deve ligar importância ao que ela disse.

 

- Não sei se deva falar com um padre. Ela guardava consigo mesma tanta coisa! E, se calhar, convertera-se ao catolicismo, é o que me parece. Ultimamente, tinha um procedimento tão estranho!

 

- Não, Henry. Acreditava tanto nisso, como você ou eu.

- Queria-a reduzida a cinzas, queria poder dizer: «Ressuscita esse corpo, se és capaz»; o meu ciúme, ao contrário do de Henry, não acabara com a morte. Era como se ela continuasse viva, na companhia de um amante, a quem me preferira. Quem

 

1 Father, father - que tanto pode significar «padre católico», como «pai».

 

me dera poder mandar o Parkis atrás dela, interromper-lhe a eternidade!

 

- Tem a certeza?

 

- Absoluta Henry. - E tenho de ter cuidado (disse a mim mesmo). Nada de ser como o Richard Smythe, nada de odiar, porque, se de facto odeio, acabo acreditando, e, se acredito, que triunfo para Ti e para ela! Isto é tudo representação, esta falácia de vinganças e ciúmes: é para entreter a cabeça, esquecer o irremediável da morte. Apenas havia uma semana, bastava que eu lhe tivesse dito: «Lembras-te da primeira vez que estivemos nos braços um do outro, e que eu não tinha uma moeda para o contador do aquecimento?», e a cena surgiria ali, aos dois. Agora, aparecia, mas só a mim. Para sempre ela perdera todas as recordações: era como se morrendo, me tivesse roubado uma parte de mim. Perdia a minha individualidade. Era o primeiro passo da minha própria morte, este desaparecer das recordações, despegando-se como membros gangrenados.

 

- Detesto toda essa trapalhada de orações e coveiros, mas, se era o que Sarah queria, hei-de fazer o possível por arranjar tudo isso.

 

- Ela quis casar só no registo - disse eu -, não havia de querer o enterro na igreja.

 

- Pois não, também acho.

 

- Registo e cremação são coisas que jogam certas - e, na sombra, Henry ergueu a cabeça e procurou fixar-me, como se tivesse farejado a minha ironia.

 

- Deixe-me tratar de tudo - sugeri, do mesmo modo que, na mesma sala, ao pé do mesmo lume, eu me oferecera para procurar Savage.

 

- Muito obrigado, Bendrix. - E escorropichou, cuidados e equitativamente, a garrafa nos copos.

 

- É meia-noite. Você precisa dormir um bocado. Se puder

 

- O médico deixou-me umas pílulas. - Mas não queria ficar só. E eu sabia exactamente o que ele sentia, visto que eu, depois de passar um dia com Sarah, fazia tudo para adiar a solidão do meu quarto.

 

- Esqueço-me sempre de que ela morreu - disse Henry. Durante 1945, tivera eu uma idêntica experiência: esquecendo-me sempre, ao acordar, de que a nossa aventura acabara, e o telefone podia trazer-me todas as vozes, menos a dela. Estivera então para mim tão morta como agora. Um mês ou dois, este ano, um fantasma de esperança me atormentara, que jazia agora, e a dor não tardaria a sumir-se. Eu morreria um pouco mais todos os dias - e como desejara retê-la! Enquanto se sofre, vive-se.

 

- Vá para a cama, Henry.

 

- Tenho medo de sonhar com ela.

 

- Mas não sonha, se tomar as pílulas que o médico lhe deu.

 

- Quer tomar uma, Bendrix?

 

- Não.

 

- Não quer passar cá a noite? Está um tempo horroroso.

 

- Não me importo com o tempo.

 

- Fazia-me um grande favor.

 

- Então, fico.

 

- Vou buscar lençóis e cobertores.

 

- Não se incomode, Henry - disse, quando já ele saíra. Olhei para o chão de parquet, e lembrei-me do timbre exacto do grito dela. Na mesa em que ela escrevia as cartas, havia uma confusão de objectos, cada um dos quais, como um código, eu sabia interpretar. Nem sequer deitou fora - pensei - aquele seixo. Haviamo-nos rido da forma dele, e lá estava, de pisa-papéis. Que interessava aquilo a Henry, ou a garrafinha de um licor a que nenhum de nós ligara importância, ou o pedaço de vidro que o mar polira, ou o coelhito de pau que eu encontrara em Nottingham? E se eu levasse tudo aquilo comigo? Ou vão parar ao cesto dos papéis, quando Henry um dia, começar a limpeza... Mas suportaria eu a companhia deles?

 

Contemplava os objectos, e apareceu Henry, carregado de cobertores. - Esquecia-me dizer-lhe, Bendrix, se há alguma coisa que queira levar... Não me parece que ela tenha escrito umas últimas vontades.

 

- É uma delicadeza da sua parte.

 

- Sinto-me grato para com quem quer que a amasse.

 

- Se mo permite, fico com esta pedra.

 

- Ela guardava as coisas mais incríveis. Trouxe-lhe um pijama dos meus, Bendrix.

 

Henry esquecera-se de me trazer uma almofada; e, com a cabeça no estofo, quase sentia o cheiro dela. Desejava coisas que nunca mais teria - e não havia substituto. Não era capaz de dormir. Enterrei as unhas na palma das mãos, como ela fizera, para que a dor me impedisse o cérebro de funcionar - e o pêndulo do desejo oscilou esgotantemente de um extremo ao outro, o desejo de esquecer e o de lembrar, o de morrer e o de viver ainda um pouco mais. Até que adormeci. Subia Oxford Street, aflito porque tinha de comprar um presente, as lojas estavam todas cheias de jóias falsas, que brilhavam à luz indirecta. Às vezes, supunha ver uma coisa bonita e aproximava-me mais da montra, para a jóia, de perto, ser ainda mais falsa do que as outras - talvez um horrendo pássaro verde com olhos vermelhos a fingir de rubis. O tempo urgia, e eu corria de loja em loja Foi então que Sarah saiu de uma das lojas, e vi logo que me iria ajudar. «Compraste alguma coisa, Sarah?», «Aqui, não», respondeu-me, «mas, mais adiante, há umas garrafinhas muito engraçadas». «Não tenho tempo», implorei, «ajuda-me. Tenho de arranjar uma coisa qualquer, que amanhã é o dia dos anos».

 

«Não te aflijas. Sempre se arranja alguma coisa. Não te aflijas», e, subitamente, deixei de me afligir. Oxford Street acabava num imenso campo encinzeirado pela neblina, e eu ia de pés descalços, sozinho, pisando o chão humedecido, e, ao tropeçar num valado, acordei, ainda ouvindo o «Não te aflijas», como um murmúrio que se me houvesse alojado no ouvido, uma dessas distantes vozes de Verão que pertencem à infância.

 

À hora do pequeno-almoço, Henry ainda dormia, e a criada que Parkis subornara, trouxe-me, num tabuleiro, café e torradas. Abriu os cortinados, e a geada transformara-se em espesso nevão. Eu continuava embebido em sono e no contentamento do que sonhara, e surpreendi-me ao ver-lhe os olhos vermelhos de ter chorado. - Que tem você, Maud? - e só quando ela pousou o tabuleiro e saiu ofendida, é que acabei de regressar à casa vazia e ao não menos vazio mundo. Levantei-me e fui ao quarto de Henry. Ainda dormia sob a acção do soporífero, sorrindo como um cão, e tive inveja dele. Voltei para baixo e procurei comer uma torrada.

 

A campainha tocou, e ouvi que a criada levava alguém ao andar de cima - qualquer questão da agência funerária, pensei, porque ouvi baterem com a porta do quarto de hóspedes. Estava a vê-la morta o empregado: eu não vira, nem queria ver, como não teria querido vê-la nos braços de outro homem. Há pessoas que se excitam assim: eu, não. E não ia alcovitar por conta da morte. Procurei dominar-me: agora que tudo acabara de vez, tinha de começar pelo princípio. Se já me apaixonara, podia tornar a apaixonar-me. Mas não conseguia convencer-me: era como se eu tivesse feito dádiva de todo o desejo sexual que possuía. Outra campainhada. Que grande movimento ia naquela casa, enquanto Henry dormia. Mas a Maud veio ter comigo. - Está ali um sujeito a perguntar pelo senhor Miles, e eu não queria acordá-lo.

 

- Quem é?

 

- É aquele senhor amigo da senhora - e por uma única vez reconheceu a sua conivência na nossa empresa de investigação miserável.

 

- É melhor mandá-lo entrar - disse eu. E ali sentado na

sala de Sarah, metido num pijama de Henry, sabendo tanto dele quanto ele de mim nada sabia, sentia-me muito superior a Smythe. Olhou para mim atrapalhado, pingando neve para o chão. - Já nos encontrámos - observei -, sou amigo da senhora Miles.

 

- O senhor levava consigo um rapazito.

 

- É verdade.

 

- Vim procurar o senhor Miles.

 

- Sabe o que aconteceu?

 

- Por isso é que vim.

 

- Está a dormir. O médico deu-lhe umas pílulas. Foi um grande golpe para todos nós - acrescentei tolamente. Ele olhava em volta: em Cedar Road, surdindo do nada, ela deve ter sido tão impalpável como um sonho, julgo eu. Esta sala, porém, dava-lhe densidade: também era Sarah. A neve subia pouco a pouco no peitoril da janela, como se a fossem pondo às pàzadas. O quarto, como Sarah, estava sendo sepultado.

 

- Volto outra vez - e dirigiu-se tristemente para a porta de modo que a face malhada ficou voltada para mim. Foi ali que os lábios dela pousaram, pensei. Sempre se deixou levar pela piedade.

 

Smythe repetiu estupidamente: - Vim procurar o senhor Miles para lhe dizer quanto sinto...

 

- É costume, nestas ocasiões, escrever.

 

- Pensei poder ser útil de qualquer forma - desculpou-se, com desalento.

 

- Não precisa de converter o senhor Miles.

 

- Converter? - perguntou, espantado e confundido.

 

- Sim, ao facto de que nada mais resta dela. O fim. O aniquilamento.

 

Explodiu subitamente: - Queria vê-la, mais nada.

 

- Mas o senhor Miles nem sequer sonha que o senhor existe. Não é muito razoável, Smythe, ter cá vindo.

 

- Quando é o funeral?

 

- Amanhã, em Golders Green.

 

- Mas ela não havia de querer isso! - e apanhou-me de surpresa.

 

- Ela não acreditava em nada, nem mais nem menos do que o senhor diz que não acredita.

 

- Então ninguém sabe? Estava a converter-se ao catolicismo.

 

- Disparates.

 

- Escreveu-me. Já se decidira. Tudo quanto eu disse não serviu de nada. Começara a estudar... o catecismo. Não é o nome que lhe dão? - Ainda tinha, portanto, segredos. Também no «diário não falara disto, como não falara da doença. Que haveria mais para descobrir? Pensar nisto desesperava-me.

 

- Foi um golpe para si, não foi? - trocei eu, tentando transferir a minha dor.

 

- On, claro que fiquei irritado. Mas nem todos podemos acreditar nas mesmas coisas.

 

- Não era o que o senhor costumava dizer.

 

Olhou para mim, como se a minha hostilidade o intrigasse.

 

- O senhor, por acaso, não se chamará Maurice?

 

- Chamo.

 

- Ela falou-me em si.

 

- E eu li a seu respeito. Fez pouco de mim e do senhor.

 

- Comportei-me como um asno. - Com um dedo, tocou na malha vermelha. - Acha que eu a podia ver? - e ouvi os passos pesados do cangalheiro, que descia a escada.

 

- Está lá em cima. Primeira porta à esquerda.

 

- Se o senhor Miles...

 

- Não o acorda.

 

Quando voltou para baixo, já eu entretanto me vestira. Disse-me: - Muito obrigado.

 

- Não tem de quê. Ela pertence-me tanto como ao senhor.

 

- Eu não devia falar nisso... mas gostava que... eu sei que a amou. - E acrescentou, como se estivesse engolindo uma pílula amarga: - E ela amou-o a si.

 

- Afinal, o que é que quer dizer?

 

- Gostava que fizesse alguma coisa por ela.

 

- Por ela?

 

- Fazer-lhe um enterro católico. Ela havia de gostar.

 

- Mas o que é que isso adianta?

 

- Não creio que para ela adiante. Mas não custa nada ser generoso.

 

- E que tenho eu com isso?

 

- É que ela sempre me disse que o marido tinha muita consideração por si.

 

Estava cravando em mim demasiado o punhal do absurdo Apetecia-me espatifar com riso o ar fúnebre daquele quarto sepulto. Deixei-me cair no sofá e comecei a torcer-me de riso. Pensava em Sarah, morta no andar de cima, Henry dormindo com um sorriso pateta nos lábios, e no enamorado da malha vermelha discutindo o funeral com o amante que pagara ao Sr. Parkis para deitar pòzinhos na campainha dele. Ria, e as lágrimas còrriam-me pela cara abaixo. Uma vez, durante o blitz, vi um homem que ria diante da casa onde a mulher e os filhos fínham ficado desfeitos.

 

- Não percebo - disse Smythe. Tinha o punho cerrado, como se estivesse em guarda. Tanto havia que nenhum de nós percebia! A dor era qual explosão inexplicável que nos atirava para o outro. - Vou-me embora - e estendeu a mão esquerda para o puxador da porta. Ocorreu-me uma estranha ideia, pois que nunca tivera motivos para supor que ele fosse canhoto.

 

- Peço-lhe desculpa - disse eu. - Estou fora de min. Todos estamos. - Estendi-lhe a mão: ele hesitou, tocou-ma com a esquerda. - Smythe, que leva aí? Tirou alguma coisa do quarto dela? - Abriu a mão e mostrou-me uma mecha de cabelo. - Só isto.

 

- Não tinha o mínimo direito.

 

_ Ora, ela já não pertence a ninguém. - E eu, subitamente, via tal qual como era: um pouco de lixo esperando a vassoura da limpeza: quem quisesse um bocadinho de cabelo podia tirá-lo; e cortarem-se-lhe as unhas, também se podia, se cortar as unhas tivesse para alguém qualquer valor. Como os de um santo, os ossos dela podiam ser separados, caso alguém os pedisse. E não tardaria que ardesse, portanto que importância tinha que alguém levasse o que lhe apetecesse, enquanto era tempo? Que idiota eu fora durante três anos, supondo que de certo modo a possuíra! Não somos possuídos por ninguém, nem mesmo por nós próprios.

 

- Desculpe - repeti.

 

- Sabe o que ela me escreveu? - perguntou Smythe. Foi há quatro dias apenas - e eu pensei com tristeza que arranjara tempo para lhe escrever, mas não para me telefonar.

- Escreveu: «Reze por min. Não acha ridículo que me tenha pedido a niim para rezar por ela?

 

- E que fez você?

 

- Oh, quando soube que ela tinha morrido, rezei.

 

- E sabe alguma reza?

 

- Não.

 

- Não me parece que esteja lá muito certo rezar-se a um Deus em quem se não acredita.

 

Saí da casa atrás dele; não fazia sentido que eu ficasse até Henry acordar. Mais tarde ou mais cedo também Henry teria de encontrar-se a sós consigo próprio, como eu. Observava Smythe que atravessava o parque, adiante de mim. Um histérico. A descrença pode ser, afinal, tanto como a crença, um efeito da histeria. A humidade da neve, onde a passagem das pessoas a derretera, sentia-a eu nos pés, e recordava-me do orvalho do sonho. Quando, porém, tentei recordar a voz dela dizendo: «Não te aflijas», verifiquei que não tinha memória auditiva. Não era capaz de reproduzir-lhe mentalmente a voz. Nem mesmo em caricatura: por mais que me esforçasse por recordar, era uma voz anónima, uma qualquer voz de mulher. O processo de me esquecer dela principiara a desenvolver-se. Deveríamos guardar discos de gramofone, como guardamos retratos.

 

Subi os degraus partidos, e penetrei no vestíbulo. Só o vitral era o mesmo daquela noite de 1944. Ninguém sabe como começa coisa alguma. Sarah acreditara de facto que o fim começara no momento em que vira o meu corpo. Nunca teria admitido que o fim tivera início muito antes: as chamadas telefónicas por uma ou outra absurda razão, as questões que desencadeei, quando me apercebi do perigo de o amor terminar. Havíamo-nos deixado olhar para além do amor, mas só eu tivera consciência do caminho que estávamos trilhando. Se a bomba tivesse caído um ano antes, não teria ela feito aquela promessa. Teria ferido os dedos a tentar libertar-me. Quando chegamos ao termo dos seres humanos, precisamos de iludir-nos com a crença em Deus, como um gastrónomo, que exige, com a comida, mais complicados molhos. Contemplei o vestíbulo, nu como uma cela, pintado de um verde horroroso, e pensei: quis ela que eu tivesse uma segunda oportunidade, e ei-la - uma vida vazia, sem perfume, anti-séptica, uma vida de prisioneiro. Acusava-a, nem que tivessem sido de facto as orações dela a operar a transformação: que te fiz eu, para que me tenhas condenado a viver? De novos que eram, as escadas e o corrimão estalavam por ali acima. Nunca ela as subira. Até as reparações da casa faziam parte do esquecimento que se processava. Só um Deus exterior ao tempo pode lembrar-se, quando tudo se altera. E eu: amava ainda, ou apenas tinha saudades do amor?

 

Entrei no meu quarto, e, em cima da secretária, estava uma carta de Sarah.

 

Morrera havia vinte e quatro horas, e já tempo antes perdera a consciência. Como era possível uma carta demorar tanto a atravessar uma nesga de parque? E, logo depois, reparei que ela se enganara no número da porta, e ressumou em mim um pouco do velho azedume. Dois anos antes, não se teria esquecido do meu número.

 

Tão cruciante dor me causava a visão da letra dela, que por pouco não deitei a carta ao lume; a curiosidade foi, porém, mais forte que a dor. Era escrita a lápis, creio que por a ter estado a escrever na cama.

 

E dizia: «Meu querido Maurice - Pensei escrever-te naquela noite, logo depois de te teres ido embora, mas, ao chegar a casa, não me sentia bem e o Henry não me largou um momento. E escrevo em vez de telefonar. Não sou capaz de falar-te ao telefone, para ouvir a tua voz alterada, se eu te disser que não fujo contigo. Porque, Maurice, meu querido Maurice, não vou fugir contigo. Não sei como poderei viver em dor tamanha e tamanha ansiedade, e rezo a Deus constantemente para que tenha piedade de mim, me não prolongue a vida. Querido Maurice, porque eu quero levar a minha vida até ao fim, como qualquer outra pessoa. Dois dias antes de me telefonares, procurara eu um padre, e confessei-lhe a minha intenção de converter-me ao catolicismo. Falei-lhe na minha promessa e em ti. Disse-lhe que já não estava, para todos os efeitos casada com Henry. Não temos relações, desde o primeiro ano do nosso amor. E além disso, acrescentei eu, não é sequer um casamento, não se pode chamar matrimónio a um registo. Perguntei-lhe se não podia converter-me e casar contigo. Sabia que não te importarias de casar na igreja. Era cheia de esperança que eu lhe ia fazendo as várias perguntas; e era como se, abrindo as portadas de uma casa nova para ver a vista, desse em todas as janelas com uma parede nua. Não, não, não, dizia ele, não podia casar contigo, não devia continuar a ver-te, de forma alguma, se ia de facto converter-me ao catolicismo. Que vão todos para o diabo, foi o que eu pensei, e saí da sala onde estivera com ele, e atirei com a porta para mostrar o que pensava da padralhada. Estão de permeio entre nós e Deus, pensei, e Deus tem mais caridade e, na igreja, deparei com o crucifixo que ele lá tem, e pensei: é claro que é caridoso, simplesmente é uma caridade muito especial, que até parece castigo. Maurice, meu querido, sinto uma dor de cabeça pavorosa, quem me dera morrer! Quem me dera não ser tão forte como um cavalo] Não posso viver sem ti, e sei que um dia dou contigo no parque, e mando à fava Henry, Deus e o resto. Mas para quê, Maurice? Eu acredito em Deus acredito em tudo aquilo, nada há que eu não acredite, podiam subdividir a Santíssima Trindade em doze partes, que eu acreditaria na mesma. Podiam desenterrar alfarrábios comprovativos de que Cristo fora inventado por Pilatos para ser promovido, que eu continuaria a acreditar. Apanhei a fé como quem apanha uma doença. Caí nos braços dela, como caíra nos do amor. Nunca amara como te amei a ti, e nunca acreditei em nada como acredito agora. Tenho a certeza. Nunca tinha tido uma certeza. E passei a tê-la, quando apareceste àquela porta, com a cara cheia de sangue. De uma vez para sempre. Embora, nessa altura, eu o não tivesse sabido logo. Lutei contra a fé durante muito mais tempo que contra o amor, e toda a luta acabou. Maurice, meu amor, não te zangues. Sou uma prostituta e uma impostora, mas isto não é de uma ou de outra das coisas. Estava habituada a sentir-me segura de min própria e do que estava certo ou não, e tu ensinaste-me a insegurança. Varreste-me as mentiras e as ilusões como quem varre o lixo de uma rua para a passagem de alguém, alguém de grande categoria: e esse alguém veio, só tu foste quem limpou o caminho. Quando escreves, fazes o possível por ser exacto, ensinaste-me a desejar a verdade, e sempre me chamavas a atenção, se eu a não dizia. Pensas isso realmente, ou estás pensando que pensas? - era como perguntavas. Portanto, bem vês que a culpa é toda tua, Maurice, toda tua. Só peço a Deus que me deixe viver assim.»

 

Era apenas isto. Parecia que tinha tido uma premonição de que as orações dela eram atendidas mesmo antes de proferidas

- pois que não principiara ela a agonizar naquela noite em que, voltando para casa debaixo de chuva, me encontrara com Henry? Se fosse um romance o que estou escrevendo, acabaria aqui: um romance, sempre pensei, tem de acabar nalgum sítio; começo, porém, a suspeitar de que, durante estes anos, o meu realismo falhou, porque, agora, nada na vida me parece ter fim. Dizem os químicos que a matéria nunca é destruída por completo, e os matemáticos que, se, ao atravessarmos um quarto, dermos sempre um passo que seja metade do anterior, jamais atingiremos a parede oposta - que optimista, portanto, eu não seria, se supusesse que esta história acabava aqui. Unicamente, como Sarah, quem me dera não ser tão forte como um cavalo.

 

Cheguei tarde ao enterro. Fora encontrar-me com um tipo chamado Waterbury, que ia escrever um ensaio sobre a minha obra, para uma dessas revistas de circulação restrita. Longamente sopesara se o veria ou não: de cor e salteado eu já sabia as frases pomposas do escrito, os ocultos significados que descobriria e de que eu não tinha consciência, como os defeitos em que eu estava farto de atentar. Ao fim e ao cabo, assumindo ares protectores, classificar-me-ia talvez um pouco acima de Maugham, porque Maugham chegou ao grande público, crime que eu ainda não cometi - por enquanto, pois que, embora eu detenha em muito pequeno grau o exclusivo dos insucessos, as revistinhas, como os mais hábeis detectives, têm um faro muito especial.

 

E afinal porque pensei sequer no caso? Não me apetecia ver o Waterbury, e muito menos me aprazia que escrevessem a meu respeito. Porque esgotei já o interesse pela minha própria obra: e ninguém me agrada louvando-me, ou me consegue ferir denegrindo-me. Quando principiei a escrever o romance do funcionário público, ainda me interessava por isso, mas, quando Sarah me deixou, vi a minha obra tal como era - um narcótico, tão vulgar como um maço de cigarros, para ajudar as pessoas a verem passar as semanas e os anos. Se a morte me extinguir de vez, como suponho acreditar, que importância tem que deixemos ficar os livros, em vez de garrafas, roupas ou jóias falsas?

- e, se é Sarah quem tem razão, quão pouco importante é a importância da arte! Pensei no Waterbury, creio eu, apenas por estar só. Antes do funeral, nada tinha que fazer: e precisava de me fortificar com uma bebida ou duas (que podemos deixar de nos interessar pela própria obra, mas não podemos deixar de nos preocupar com as convenções, e um homem não deve ir-se abaixo em público).

 

Waterbury esperava-me num sherry-bar para os lados de Tottenham Court Road. Vestia calças de bombazina preta, fumava cigarros ordinários, e tinha consigo uma rapariga muito mais alta e bem-parecida que ele, que usava calças semelhantes e fumava os mesmos cigarros. Era muito nova, chamava-se Sylvia, e via-se logo que se lançara em grandes aprendizagens que haviam sido iniciadas pelo Waterbury - ainda estava na altura de imitar o mestre. Eu matutava onde acabaria ela, com aquele aspecto, aqueles olhos francos e vivos, aquele cabelo doirado como as iluminações. Dali a dez anos lembrar-se-ia de Waterbury e do bar em Tottenham Court Road? Tive pena dele, que se sentia tão superior, tão patrono de nós ambos, e estava afinal em maus lençóis. Se eu quisesse, pensava eu, ao cruzar os olhos dela com os meus que levantara do copo, quando ele proferia um comentário pedante acerca do «monólogo interior», se eu quisesse, roubava-lha naquele mesmo momento. Os artigos dele ficavam no papel; os meus livros, porém, esses levavam encadernação. E ela sabia que eu lhe poderia ensinar muito mais E, apesar de tudo, que pobre diabo, que pateta alegre, ainda se permitia interrompê-la, quando ela emitia um simples comentário humano, sem pretensões intelectuais. Senti vontade de o avisar quanto ao futuro vazio, mas em vez disso, bebi outro copo e disse: - Não posso demorar-me muito. Tenho de ir a um funeral em Golders Green.

 

- Um funeral em Golders Green! - exclamou Waterbury.

- É digno de uma das suas personagens. Tinha de ser em Golders Green, não é verdade?

 

- Não fui eu quem escolheu o sítio.

 

- A vida imitando a arte...

 

- Era uma pessoa amiga? - perguntou Sylvia com simpatia, e Waterbury fulminou-a pelo despropósito.

 

- Era.

 

Eu bem a via imaginando - homem? mulher? que espécie de amizade? - e isso agradava-me. Porque eu era um ser humano e não apenas um escritor: um homem cujos amigos morriam, que ia a enterros, que sentia prazer e dor, que podia necessitar de consolação, e não simplesmente o hábil homem de letras cuja obra, conquanto patenteasse maior simpatia humana que a de Maugham, não podia, é claro, ser alinhada com a dele...

 

- Que pensa de Forster? - inquiriu Waterbury.

 

- Forster? Desculpar-me-á. Estava a pensar quanto tempo levaria daqui a Golders Green.

 

- Tem de contar com uns quarenta minutos - respondeu-me Sylvia. - Precisa de esperar por um comboio para Edgware.

 

- Forster - repetiu Waterbury, irritado.

 

- E à saída da estação tem de apanhar um autocarro - continuou Sylvia.

 

- Francamente, Sylvia, Bendrix não veio aqui para conversar sobre a maneira de ir a Golders Green.

 

- Desculpa, Peter, é que eu pensei...

 

- Conta até seis, antes de pensares, Sylvia - observou Waterbury. - E agora podemos voltar a E. M. Forster?

 

- E é preciso? - perguntei.

 

- Seria interessante, uma vez que pertencem a escolas tão diversas...

 

- E ele pertence a uma escola? Quanto a mim, não me supunha fazendo parte de alguma. Você está a escrever um manual?

 

Sylvia sorriu, e ele viu-a sorrir. Dali em diante, havia de afiar a faca, mas tanto se me dava. A indiferença e o orgulho parecem-se de tal forma que provavelmente me terá suposto orgulhoso.

 

- Tenho realmente de me ir embora.

 

- Mas mal se demorou aqui cinco minutos. E acho que é importante assentar neste artigo.

 

- E é importante para mim não chegar tarde a Golders Green.

 

- Não compreendo porquê.

 

- Eu vou até Hampstead - disse Sylvia. - Ensino-lhe o caminho.

 

- Não me disseste nada - comentou Waterbury, suspeitosamente.

 

- Sabes muito bem que às quartas-feiras vou visitar a minha mãe.

 

- Mas hoje é terça.

 

- Já não preciso de voltar amanhã.

 

- Agradeço-lhe muito - disse eu. - Precisava de compreender uma coisa.

 

- Num dos seus livros, usou o monólogo interior - atirou desesperadamente o Waterbury. - Por que abandonou esse método?

 

- Oh, sei lá. Por que nos mudamos de casa?

 

- Acha que foi um fracasso?

 

- Isso acho eu de todos os meus livros. Então, passe bem, Waterbury.

 

- Hei-de mandar-lhe o artigo - exclamou como se me ameaçasse.

 

- Obrigado.

 

- Não te demores, Sylvia. Olha que às seis e meia transmitem o Bartok.

 

Achámo-nos, eu e ela, nas ruínas de Tottenham Court Road.

 

- Obrigado por ter acabado com o encontro.

 

- Oh, bem vi que você se queria vir embora.

 

- Como é o seu apelido?

 

- Black.

 

- Sylvia Black, Soa bem. Quase bem de mais.

 

- Era pessoa de muita amizade?

 

- Sim.

 

- Sinto muito - e fiquei com a impressão de que ela sentia de facto. Ainda tinha muito que aprender quanto a livros e músicas, quanto a vestir-se e falar; mas não precisava de lições de humanidade. Desceu comigo ao metropolitano apinhado, e lá nos agarrámos ao pé um do outro. Senti-la contra mim fez-me recordar o desejo físico. Seria daqui em diante sempre assim? Não o desejo, mas apenas a lembrança dele. Voltou-se para dar lugar a uma pessoa que entrou em Goodge Street, e eu tinha a consciência da anca dela encostada à minha perna como se tem consciência de algo acontecido há algum tempo.

 

- É o primeiro enterro a que assisto - disse eu, para dizer alguma coisa.

 

- O seu pai e a sua mãe ainda são vivos?

 

- O meu pai é. Minha mãe morreu, estava eu no colégio. Ainda pensei que isso me valeria uns dias de férias, mas o meu pai entendeu que eu me impressionaria, não lucrei nada. A não ser ter sido dispensado na tarde em que a notícia chegou.

 

- Eu não gostava de ser incinerada.

 

- Prefere os vermes?

 

- Ah, isso prefiro.

 

As cabeças tínhamo-las tão próximas, que podíamos conversar a meia voz; o aperto, porém, não nos deixava olharmo-nos. Eu observei: - A mim, tanto me faz de uma maneira como de outra - e imediatamente fiquei meditando em por que mentira, visto que tinha «feito»,pois que devia ter «feito», se ao fim e ao cabo, fora eu quem convencera Henry a não enterrar Sarah.

 

Na tarde anterior, Henry vacilara. Telefonara-me a pedir que lá fosse. Era estranho como nos havíamos tornado íntimos, depois de Sarah desaparecer. Dependia agora de mim, como antes dependera de Sarah - eu era um familiar da casa. Cheguei mesmo a imaginar que, depois do enterro, me pediria para morar com ele, e a resposta que eu daria. Do ponto de vista de esquecer Sarah, não havia que escolher entre as duas casas: a ambas pertencera.

 

Quando cheguei, ainda ele estava entorpecido pelas drogas, ou ter-me-ia dado mais trabalho do que deu. No escritório, sentado na borda de uma cadeira de braços, muito empertigado, estava um padre: um homem de cara áspera e descarnada, por certo um daqueles Redentores de profissão que serviriam guisados no Inferno, aos domingos, na igreja sombria onde eu vira Sarah pela última vez. Era evidente que começara logo por discutir com Henry, o que vinha a propósito.

 

- O senhor Bendrix, o escritor. O Padre Crompton. O senhor Bendrix era um dos grandes amigos da minha mulher.

- Tive a impressão que o Padre Crompton já sabia. O nariz descia-lhe pela cara abaixo como um arcobotante; e eu pensava que, se calhar, era aquele mesmo homem quem fechara a porta da esperança na cara de Sarah.

 

Disse-me «Boa tarde», com tão mau modo, que senti que não devia estar muito enganado.

 

- O senhor Bendrix tem sido incansável nestas coisas todas - explicou Henry.

 

- Eu, se tivesse sabido, estava pronto a aliviá-lo de todas as canseiras.

 

Houvera um tempo em que eu detestara Henry. A minha aversão, agora, parecia mesquinha. Henry era, tanto como eu, uma vítima, e o vencedor era este homem possesso, e de colarinhos caricatos.

 

Eu disse logo: - Havia de ser difícil, pela certa. O senhor é contra a cremação.

 

- Podia ter arranjado uma sepultura católica.

 

- Ela não era católica.

 

- Manifestara intenção de o ser.      - E isso chega?

 

O Padre Crompton emitiu uma fórmula. Estendeu-a como uma nota de banco: - A Igreja reconhece o baptismo do desejo.

 

- E ali estava, no meio de nós, para quem pegasse nela. Ninguém se mexeu. O Padre Crompton prosseguiu para Henry:

 

- Ainda está a tempo de desistir. Eu tomo conta de tudo num tom de exortação, como se, dirigindo-se a Lady Macbeth, lhe prometesse um qualquer processo de branquear as mãos, superior às essências da Arábia.

 

Henry, de súbito disse: - Mas afinal que diferença faz? É certo que não sou católico, mas não vejo...

 

- Ela sentír-se-ia mais feliz...

 

- Mas porquê?

 

- A Igreja concede privilégios, senhor Miles, tal como exige responsabilidades. Há, para os nossos mortos, missas especiais. Regularmente, orações são ditas. Nós lembramo-nos dos nossos mortos - acrescentou, e eu, furioso, dizia comigo: como se lembram deles? Essas teorias estão muito certas... vocês pregam a importância do indivíduo. Até os nossos cabelos estão contados, segundo dizem, mas eu ainda sinto nas costas da minha mão os cabelos dela: e sou capaz de me lembrar da fina penugem na base da espinha dorsal, ao vê-la de barriga para baixo na minha cama. À nossa maneira, também nós nos lembramos dos nossos mortos.

 

Vendo que Henry fraquejava, menti com firmeza: - Não temos a mínima razão para supor que ela se tornaria católica.

 

Henry começou: - É certo que a enfermeira disse... - e eu interrompi: - No fim, não estava em seu juízo.

 

O Padre Crompton disse então: - Nunca me passaria pela cabeça incomodá-lo senhor Miles, sem um sério motivo.

 

- Recebi uma carta da senhora Miles, escrita menos de uma semana antes de morrer - ataquei. - Há quanto tempo a viu o senhor?

 

- Pela mesma altura. Há cinco ou seis dias.

 

- Acho muito estranho que, na carta, nem sequer se faça referência a isso.

 

- Talvez, senhor Bendrix, o senhor não lhe merecesse confiança.

 

- Talvez que o reverendo padre esteja a ser precipitado. As pessoas podem interessar-se pela sua religião, fazer perguntas acerca dela, sem que, necessariamente, estejam na intenção de converter-se. - E, imediatamente, mas para Henry: - De resto seria absurdo modificar agora fosse o que fosse. Há instruções dadas. Amigos avisados. E Sarah nunca foi fanática. Seria a última pessoa a querer que, por um capricho, se levantassem complicações. E, no fim de contas - prossegui, de olhos fitos em Henry -, será uma cerimónia convenientemente cristã. Não que Sarah fosse sequer cristã. Nunca vimos sintomas disso. Mas nada impede que você dê aqui ao Padre Crompton dinheiro para uma missa.

 

- Não é necessário. Já disse uma esta manhã. - E fez um lovimento com as mãos no regaço, a primeira quebra da sua rigidez: era como ver uma muralha sólida estremecer e inclinar-se, após cair a bomba. - Todos os dias, ao dizer missa, me lembrarei dela.

 

Henry, como quem arruma um assunto, disse com alívio:

- É muita bondade da sua parte, Reverendo - e mexeu, numa caixa de cigarros.

 

- Pode parecer despropositado e uma impertinência o que lhe vou dizer, senhor Miles, mas creio que o senhor não faz uma perfeita ideia de como era virtuosa a sua esposa.

 

- Era muito para min - disse Henry.

 

- Muita gente a amou - acrescentei eu.

 

O Padre Crompton voltou os olhos para mim, como um professor catedrático que ouve, do fundo da aula, qualquer pateta interrompê-lo.

 

- Talvez que não o bastante.

 

- Ora bem - assentei eu voltando ao que estávamos a discutir. - Não me parece possível alterarmos agora seja o que for. Além de que provocaria comentários. E você, Henry, não gostaria de falácias, pois não?

 

- Não, não.

 

- E há o anúncio no Times. Tinha de se publicar uma emenda. E as pessoas dão por isso, interrogar-se-iam. Afinal você não é uma pessoa qualquer, Henry. Havia que mandar telegramas. Muita gente terá já encomendado coroas a enviar para o crematório. Está a ver onde eu quero chegar, Reverendo...

 

- Não me parece que esteja a ver muito.

 

- O que o senhor pede não é razoável.

 

- O senhor deve ter uma tábua de valores muito extraordinária, senhor Bendrix.

 

- Mas por certo que o Reverendo não pensa que a incineração afecta a ressurreição do corpo?

 

- Evidentemente que não. Já expus as minhas razões. Se ao senhor Miles não parecem suficientemente fortes, não tenho mais nada a dizer. - Levantou-se da cadeira, e que feio era! Sentado, exibia pelo menos uma aparência de poder, mas, de pernas demasiado curtas para o tronco, ergueu-se inesperadamente pequeno. Era como se, repentinamente, se tivesse afastado imenso.

 

Henry desculpou-se: - Se o senhor tem vindo um pouco mais cedo... Mas, por favor, não julgue...

 

- Eu não julgo mal de si, senhor Miles.

 

- Talvez de mim? - perguntei com deliberada impertinência.

 

- Oh, não se aflija, senhor Bendrix. Quanto o senhor possa fazer já não a afecta. - Creio que o confessionário ensina um homem a conhecer o ódio. Estendeu a mão a Henry, e voltou-

 

-lhe as costas. Eu queria dizer-lhe: Engana-se a meu respeito. Não é Sarah quem eu odeio. E engana-se também acerca de Henry. O corruptor é ele, não eu. Queria defender-me - «Amei-a» - porque, sem dúvida, também no confessionário aprendem a distinguir esta emoção.

 

Hampsted é a próxima paragem - disse Sylvia.

- Tem de sair para visitar a sua mãe?

 

- Eu podia ir até Golders Green e ensinar-lhe o caminho. Não é costume visitá-la hoje.

 

- Seria uma caridade.

 

- Julgo que tem de apanhar um táxi, se precisa de chegar a tempo.

 

- Não importa muito, parece-me, não chegar ao princípio. Acompanhou-me até à porta da estação, e quis então voltar

para trás. Eu achava estranho que ela se tivesse incomodado tanto. Nunca em mim vira quaisquer qualidades de que uma mulher gostasse, e agora muito menos que nunca. A dor e o desapontamento são como o ódio: tornam os homens uns monstros de auto-complacência e azedume. E que egoístas fazem de nós! Eu nada tinha para dar a Sylvia: nunca seria um dos seus mestres, mas, só porque temia a meia hora seguinte, os rostos que espiariam a minha solidão, procurando dos meus modos concluir que relações haviam sido as minhas com Sarah, qual de nós deixara o outro, precisava do apoio da beleza de Sylvia.

 

- Não posso aparecer assim vestida - protestou ela, quando lhe pedi que me acompanhasse. Eu bem percebia a satisfação dela ao ver que a queria comigo. E sabia que, naquela altura, poderia tê-la roubado ao Waterbury. O tempo dele passara. Se eu quisesse, ficaria sozinho a ouvir o Bartok.

 

- Ficaremos para trás - dizia eu. - Você podia ser uma pessoa qualquer que andasse por ali.

 

- Ao menos são pretas - observou, referindo-se às calças. No táxi, deixei que a minha mão pousasse na perna dela como uma promessa, que não tinha afinal intenção de cumprir. A torre do crematório fumegava, e, nos arruamentos ensaibrados, a água jazia em meio geladas poças. Aproximava-se um grupo de desconhecidos - de uma incineração anterior, supus: traziam todos o ar alegre e espevitado de pessoas que saíram de uma reunião aborrecida e podem agora «sentir-se livres».

 

- É por aqui - informou Sylvia.

 

- Conhece isto muito bem?

 

- O papá foi queimado cá, há dois anos.

 

- Ao chegarmos à capela, já toda a gente se vinha embora. As perguntas de Waterbury sobre o monólogo interior haviam-me atrasado o tempo exacto. Senti uma estranha e convencional punhalada de desgosto - não olhara, afinal, Sarah «pela última vez», e pensei sombriamente que fora o fumo dela que eu vira pairar sobre os campos do arrabalde. Henry saiu sozinho, encandeado: estivera chorando, não reparou em mim. Eu não conhecia ninguém, a não ser Sir William Mallock, que trazia chapéu-alto. Olhou-me com reprovação, e afastou-se apressado. Havia uma meia dúzia de homens com ar de funcionários públicos. Seria Dunstan um deles? Não importava muito. Algumas mulheres haviam acompanhado os maridos. Essas, ao menos, estariam consoladas com a cerimónia - quase se adivinhava pelos chapéus delas: a extinção de Sarah permitia que se sentissem mais seguras.

 

- Sinto muito - disse Sylvia.

 

- Você não teve a culpa.

 

Se a tivéssemos embalsamado, pensava eu, nunca poderiam sentir-se seguras. O próprio cadáver seria sempre um padrão para julgá-las.

 

Smythe saiu e, patinhando precipitadamente no lamaçal, foi-se embora, sem falar a ninguém.

 

Ouvi uma mulher dizer: - Os Carters convídaram-nos para o fim-de-semana no dia dez.

 

- Quer que o acompanhe? - perguntou Sylvia.

 

- Não, não - respondi -, prefiro que fique por aqui. Aproximei-me da porta da capela e olhei para dentro. As

 

calhas de entrada na fornalha estavam, de momento, vazias, mas, enquanto as coroas iam sendo retiradas, já outras eram levadas para o interior. Uma mulher de idade ficara ajoelhada extemporaneamente, a rezar, como um actor de uma cena anterior, apanhado pelo inesperado subir do pano. Uma voz familiar, atrás de mim, disse: - É um prazer que o local faz triste vê-lo aqui, neste sítio onde os que partem são os que de facto partem.

 

- Também veio, Parkis! - exclamei.

 

- Vi a notícia no Times, e pedi ao Sr. Savage dispensa da tarde.

 

- Segue sempre as pessoas até tão longe?

 

- Ah, era uma grande senhora - explicou, com ares de censura. - Uma vez na rua perguntou-me o caminho, sem saber, é claro, por que razão eu ali estava. E na festa ofereceu-me um copo de sherry.

 

- Sherry sul-africano? - inquiri amargamente.

 

- Não sei, não sei, mas a maneira de oferecer... oh, não havia muitas como ela. O meu pequeno também... Passa a vida a falar nela.

 

- E como está ele de saúde, Parkis?

 

- Nada bem. Mesmo nada bem. Dores de estômago violentíssimas.

 

- Já o levou ao médico?

 

- Ainda não. Que eu acredito na reacção natural do organismo. Até certo ponto.

 

Olhei em volta, para as várias pessoas desconhecidas que todas haviam conhecido Sarah: - Quem é esta gente, Parkis?

 

- Aquela senhora nova, não conheço.

 

- Veio comigo.

 

- Queira desculpar. Aquele, lá ao longe, é Sir William Mailock.

 

- Esse, conheço.

 

- O sujeito que agora mesmo se desviou de uma poça é o director de serviço do senhor Miles.

 

- Dunstan?

 

- É o nome dele.

 

- O que você sabe, Parkis! - Julgara já morto o ciúme: supusera-me capaz de a partilhar com uma multidão de homens, se ela pudesse ao menos voltar à vida, e só ver Dunstan me acordara por instantes a antiga raiva. - Sylvia - disse eu alto, como se Sarah me pudesse ouvir -, vai jantar hoje a alguma parte?

 

- Prometi ao Peter...

 

- Peter?

 

- Waterbury.

 

- Esqueça-o.

 

Ouves-me?, perguntei a Sarah. Estás a ver-me? Ora vai vendo como eu me arranjo sem ti. E não é difícil - acrescentei. A minha fúria acreditava numa sobrevivência dela: só o meu amor sabia que ela já não existia mais do que um pássaro morto. Juntava-se gente de outro funeral, e a mulher, que estava ao pé das calhas, levantou-se atrapalhada, ao ver entrar outras pessoas. Por pouco, assistia à incineração de outrem.

- Mas você pode telefonar.

 

O ódio espraiava-se como tédio pela noite próxima. Comprometera-me: sem amor, teria de executar todos os gestos do amor. Senti-me culpado antes de cometer o crime, o crime de arrastar uma pessoa inocente para o meu cárcere. O acto sexual pode não significar nada, mas, quando se atingiu a minha idade, sabe-se que, em qualquer altura, pode vir a ser tudo. Eu estava seguro; naquela criança, porém, quem saberia dizer que nevroses eu provocaria? À noite, ao fim, possuí-la-ia brutalmente, e a minha própria brutalidade, e até a impotência, se impotência houvesse, chegariam para impressioná-la; ou possuí-la-ia habilmente, e a minha experiência igualmente a poderia prender. E implorei a Sarah: «Livra-me disto, livra-me, por ela, não por mim.»

 

Sylvia respondia-me: - Podia dizer que a minha mãe está doente. - Estava pronta a mentir: eis o fim de Waterbury. Coitado do Waterbury! Com aquela mentira, estabelecer-se-ia entre nós uma cumplicidade. E, de calças pretas, no meio das poças geladas, ali estava Sylvia - e, pensei eu, um futuro pode começar a partir daqui, completo e extenso. E tornei a pedir a Sarah: «Livra-me. Não quero voltar ao princípio, e magoá-la. Não sou capaz de amar. A não ser a ti. A não ser a ti.» E a velhota grisalha obliquou para mim, fazendo estalar o fino gelo.

 

- Não é o senhor Bendrix?

 

- Sou.

 

- Sarah falou-me no senhor - e, enquanto ela hesitava em continuar, surgiu-me a violenta esperança de que tivesse uma mensagem a comunicar-me, de que os mortos pudessem falar.

 

- Muitas vezes me disse... que era o seu melhor amigo.

 

- Fui um deles.

 

- Sou a mãe. - Nem sequer me passara pela cabeça que a mãe dela ainda vivesse: durante aqueles anos, houvera entre nós sempre tanto a dizer, que espaços inteiros das nossas vidas continuavam em branco como um mapa a ser preenchido mais tarde.

 

- O senhor não sabia de mim, pois não?

 

- Na verdade...

 

- O Henry não gostava de mim. Era um aborrecimento e mantive-me sempre afastada. - Falava calma e razoavelmente, e, todavia, as lágrimas corriam-lhe dos olhos inteiramente alheias. Os homens mais as respectivas esposas haviam-se retirado: e as outras pessoas passavam pelo meio de nós três para entrarem na capela. Só o Parkis se demorava, pensando talvez, ao que suponho, poder ser-me ainda útil, informar-me de mais alguma coisa; conservava-se, porém, a distância, por conhecer, segundo ele dizia, o seu lugar.

 

- Tenho um grande favor a pedir-lhe - anunciava a mãe de Sarah. Eu procurava lembrar-me do apelido dela: Cameron, Chandler, começava por um C. - Vim de Great Missenden, hoje, tão precipitadamente... - limpava as lágrimas com indiferença, como se estivesse a limpar a loiça. Bertram, o nome dela era Bertram.

 

- Sim, senhora Bertram.

 

- E esqueci-me de mudar o dinheiro trocado para a malinha preta.

 

- Estou ao seu dispor.

 

- Se me emprestasse uma libra, senhor Bendrix... Está a ver, tenho de jantar alguma coisa, antes de me ir embora. Hoje em Great Missenden, é o dia de as lojas fecharem mais cedo e limpou outra vez os olhos, enquanto falava. Algo nela me recordava Sarah: um positivismo na dor, talvez certa ambiguidade. Não teria ela cravado Henry de mais, a princípio? E disse-lhe: - Jante comigo.

 

- Seria muito incómodo para o senhor.

 

- Eu amei Sarah.

 

- Também eu.

 

Dirigi-me a Sylvia e expliquei: - É a mãe dela. Tenho de lhe oferecer de jantar. Desculpe. Posso telefonar-lhe e marcar outro encontro?

 

- Pois pode.

 

- Vem na lista?

 

- Vem o Waterbury - respondeu tristemente.

 

- Para a próxima semana.

 

- Terei muito gosto. - Estendeu-me a mão e disse «Adeus». Não era difícil ver que ela entendera que se tratava de uma coisa que perdera a oportunidade. Graças a Deus, não importava um vago desgosto e uma vaga curiosidade até à estação do metropolitano: depois, um jogo de palavras erradas com o Waterbury, por cima do Bartok. De novo ao pé da Sra. Bertram, achei-me mais uma vez a falar com Sarah: Como vês, amo-te o amor é que não tinha a mesma certeza, que o ódio, de ser ouvido.

 

Ao chegarmos ao portão do crematório, reparei que Parkis se sumira. Não o vira ir-se embora. Devia ter percebido que já não precisava dele.

 

Jantámos, a Sra. Bertram e eu, no Isola Bella. Eu não queria entrar em nenhum sítio onde tivesse estado com Sarah, e, é claro desatei logo a comparar aquele restaurante com todos os outros que havíamos frequentado juntos. Sarah e eu nunca bebíamos Chianti; o acto de o beber fazia-me lembrar desse facto. Podia ter mandado vir o nosso clarete favorito, que não teria pensado nela mais do que pensava. Mesmo o vazio estava cheio dela.

 

- Não gostei do serviço - disse a Sra. Bertram.

 

- Sinto muito.

 

- Tudo aquilo foi tão desumano. A despachar.

 

- Pareceu-me bem. E no fim de contas, sempre houve umas orações.

 

- E aquele sacerdote... era um sacerdote?

 

- Não o vi.

 

- Falou do Grande Todo. Levei tempo a entender. Julguei que ele dizia o Grande Tordo. - E começou a lacrimejar na sopa. - Quase desatei a rir, e o Henry viu-me. Bem sei que vai ser mais um argumento contra mim.

 

- Que opinião faz dele?

 

- É um homem muito mesquinho. - Limpou os olhos ao guardanapo e depois rapou furiosamente com a colher no prato da sopa, remexendo a massa. - Uma vez, tive de lhe pedir emprestadas dez libras, porque viera a Londres com demora e me esquecera da mala. Uma coisa que pode acontecer a qualquer pessoa.

 

- Claro que pode.

 

- Sempre me orgulhei de não ter uma única dívida, em parte nenhuma,

 

A conversa dela era como a rede do metropolitano. Desenvolvia-se em círculos e tangentes. Ao café, principiei a reparar nas estações recorrentes: a mesquinhez de Henry, a integridade dela em matéria financeira, o amor que nutria por Sarah, como o serviço fúnebre lhe desagradara, o Grande Todo - daqui certos comboios partiam para Henry.

 

- Foi tão cómico. Eu não queria rir-me. Ninguém estimou Sarah mais do que eu. - Como todos nós proclamamos sempre isto e nos enfurece ouvir o mesmo da boca dos outros! - O Henry nunca seria capaz de entender. É um homem muito seco.

 

Fiz um esforço enorme para desviar o assunto: - Não vejo que outro serviço fúnebre poderíamos ter tido.

 

- Sarah era católica. - Levantou o cálice de Porto e, de uma só vez, engoliu metade.

 

- Essa agora?!

 

- Oh, ela própria não sabia.

 

E, de súbito, inexplicavelmente, senti medo, como um homem que cometeu um crime perfeito e observa a primeira fenda na muralha da sua decepção. Quão profunda será ela? Poderá ser tapada a tempo?

 

- Não percebo uma palavra do que está a dizer.

 

- Sarah nunca lhe disse que eu fui católica... em tempos?

 

- Não.

 

- Também não era muito. Bem vê, o meu marido embirrava com essas coisas todas. Eu era a terceira mulher dele, e, quando no primeiro ano de casados me zangava, costumava dizer-lhe que não estávamos casados como devia ser. Ai, era um homem mesquinho - acrescentou mecanicamente.

 

- O ser católica a senhora não faz com que Sarah o seja.

 

Bebeu outro gole do vinho do Porto. - Nunca disse a ninguém. Parece-me que estou um pouco tonta. Acha que estou tonta, senhor Bendrix?

 

- Não está. Tome mais um cálice.

 

Enquanto o cálice não vinha, tentou desviar a conversa, mas não a deixei fugir.

 

- Que queria dizer com... Sarah era católica?

 

- Prometa-me que não vai contar a Henry.

 

- Prometo.

 

- Uma vez, tínhamos ido veranear para a Normandia. Sarah fizera dois anos. O meu marido costumava ir visitar Deauville.

 

Dizia ele, que eu sabia que ele ia visitar a primeira mulher. Eu andava tão triste! Fomos, Sarah e eu, passear pelas dunas fora. Sarah só queria sentar-se, mas eu dexava-a descansar um bocadinho, e depois andávamos para diante um pouco mais. E eu disse-lhe: «Isto é um segredo entre nós duas, Sarah.» Já então ela sabia guardar segredo... se lhe apetecia. Estava com medo de contar, mas foi uma boa vingança, não foi?

 

- Vingança? Não estou a perceber bem, minha senhora.

 

- Vinguei-me do meu marido, percebe? Não foi só por causa da primeira mulher. Já lhe contei, não contei, que ele não me deixava praticar o catolicismo? Havia tais cenas, oh, de cada vez que eu tentava ir à missa! E eu pensei: pois Sarah vai ser católica, e ele não há-de saber, que eu só lhe digo, se estiver muito zangada.

 

- E não disse?

 

- Ora... deixou-me logo um ano depois.

 

- E nessa altura ficou a senhora livre de praticar a sua religião?

 

- Oh... está a ver, eu não era o que se diz uma pessoa crente. E depois casei-me com um judeu, e também ele punha dificuldades. Dizem que os judeus são imensamente generosos. Não acredite. Oh, era um homem muito mesquinho.

 

- Mas, afinal, o que aconteceu na praia?

 

- Oh, está claro que não aconteceu na praia. Só quis contar como tínhamos ido passear. Deixei Sarah à porta e fui procurar um padre. Era preciso dizer umas mentiras... inocentes, hem... para explicar aquilo. Podia, não é verdade?, deitar as culpas para o meu marido. Contei que, antes de casar, ele prometera... e que faltara depois à promessa. Foi muito bom não ser capaz de falar bem francês. Se não sabemos as palavras certas, finge-se muito melhor que estamos a dizer a verdade. Seja como for, lá fez aquilo, e apanhámos o autocarro a tempo do almoço.

 

- Fez o quê?

 

- Baptizou-a catolicamente.

 

- É só isso? - perguntei com alívio.

 

- Bem... é um sacramento... ao que dizem.

 

- Cheguei a julgar que a senhora ia afirmar que Sarah era de facto católica.

 

- Ah, está a ver, lá isso era, o que é é que não sabia. Quem me dera que o Henry a tivesse enterrado como devia ser - e recomeçou outra vez com a grotesca pingadeira de lágrimas.

 

- Se nem a própria Sarah sabia, não pode a senhora queixar-se dele.

 

- Sempre desejei que aquilo pegasse. Como as vacinas.

 

- Mas com a senhora não parece que tenha pegado - não pude deixar de dizer, mas ela não se ofendeu. - Oh - respondeu-me -, sofri muitas tentações na minha vida. Tenho esperança de que, no fim, tudo se há-de endireitar. Sarah tinha muita paciência para me aturar. Era boa rapariga. Ninguém a estimou como eu a estimei. - Bebeu mais vinho do Porto.

 

- Se ao menos o senhor a tivesse conhecido como devia ser.

 

Sim... se ela tivesse sido criada no bom caminho, se eu não tivesse casado com homens tão mesquinhos, estou perfeitamente convencida de que ela havia de ser uma santa.

 

- Mas não pegoul - exclamei furiosamente, e chamei o criado para pedir a conta. Uma asa de um desses pássaros obscuros que sobrevoam os nossos túmulos provocou-me um calafrio pelas costas abaixo, ou talvez que eu tivesse apanhado um resfriamento no terreno gelado do crematório: se ao menos fosse um resfriamento tão mortal como o de Sarah!

 

Não pegou, repetia eu para mim mesmo a caminho de casa, no metropolitano, depois de ter depositado a Sra. Bertram em Marylebone e do empréstimo de mais três libras «porque amanhã é quarta-feira e não posso sair de casa por causa da mulher-a-dias». Coitada da Sarah, o que pegara tinha sido aquela cadeia de maridos e padrastos. A mãe ensinara-lhe, com suficiente clareza, que um homem não chega para a vida inteira; ela é que entendera a falsidade dos casamentos da mãe. E, quando se casara com Henry, casara por uma vez como eu desesperadamente sabia.

 

Mas tal ciência dela nada tinha que ver com a apressada cerimónia perto da praia. Não foste Tu quem pegou, disse eu ao Deus em quem não acreditava, esse Deus imaginário que Sarah supunha ter-me salvo a vida (e para que concebível propósito?), e que, mesmo da sua existência, ainda me arruinara a única felicidade profunda que eu jamais experimentara: oh, não, não foste Tu que pegou, porque teria sido bruxedo, e eu acredito em bruxedos ainda menos que em Ti: bruxedos são a tua cruz, a tua ressurreição dos corpos, a tua Santa Igreja Católica, a tua comunhão dos santos.

 

Deitado de costas, observava as sombras das árvores do parque alterarem-se no tecto. É pura coincidência, pensava, uma horrível coincidência a que, no fim, quase a fez regressar a Ti. Com uma pouca de água e umas rezas, não podes marcar para a vida inteira uma criança de dois anos. Se começasse a acreditar nisso, também podia acreditar na encarnação. Durante estes anos todos, não a possuíste: possuí-a eu. Acabaste por ganhar, não preciso que me lembres, mas ela não me estava a enganar contigo, quando se deitava comigo, nesta mesma cama, com este travesseiro por baixo das costas. Enquando dormia, estava eu a seu lado, e não Tu. E era eu quem penetrava nela, não eras Tu.

 

Escureceu por completo, a treva cobriu a cama, e sonhei-me numa feira, de espingarda em punho. Disparava contra umas garrafas que pareciam de vidro, mas como se estivessem revestidas de aço, as balas faziam ricochete nelas. Atirava e tornava a atirar, sem que uma garrafa se partisse; e, às cinco da manhã, acordei com a mesma ideia na cabeça; foste minha aqueles anos todos, e não Dele.

 

Fora uma brincadeira macabra o ter eu pensado que Henry me pediria para partilhar a casa dele. Não esperava realmente a oferta, e, quando ela surgiu, apanhou-me de surpresa. Até a sua visita, uma semana depois do enterro, me surpreendeu; nunca tinha vindo a minha casa. Tenho as minhas dúvidas sobre se alguma vez se aproximara mais do lado sul do que naquela noite de chuva em que o encontrei no parque. Ouvi tocar a campainha, e espreitei da janela, porque não estava disposto a receber visitas - passara-me pela cabeça que seria Waterbury com Sylvia. O candeeiro de ao pé do plátano, no passeio, mostrou-me o chapéu preto de Henry. Desci a escada e abri a porta. - Passei por aqui -, mentiu Henry.

 

- Entre.

 

Ficou sem saber por onde começar, enquanto eu extraía umas bebidas do armário. Até que disse: - Parece interessado no general Gordon.

 

- Querem que eu escreva uma Vida dele.

 

- E vai escrevê-la?

 

- Julgo que sim. Mas não tenho tido estes dias muita disposição para trabalhar.

 

- O mesmo se dá comigo.

 

- A Comissão ainda continua a funcionar?

 

- Continua.

 

- Sempre lhe dá que pensar.

 

- Dará? Sim, deve dar. Até ao intervalo do almoço.

 

- Seja como for, é um trabalho importante. Aqui tem o seu

sherry.

 

- Que não importa absolutamente a ninguém.

 

A que distância Henry estava da complacente fotografia do Tatler que tanto me irritara! Eu tinha voltado para baixo, em cima da secretária, um retrato de Sarah, ampliado de um instantâneo. Levantou-o: «Lembro-me de ter tirado isto.» Sarah dissera-me a mim que a fotografia fora tirada por uma amiga. Terá mentido para não me desgostar. No retrato, parecia mais nova e mais feliz, mas não mais encantadora que nos anos em que eu a conhecera. Bem quisera ter conseguido que o aspecto dela fosse aquele; o destino de um amante, porém, é assistir ao endurecimento da infelicidade, como um molde, em torno da mulher amada. Henry continuava: - Fiz tanta tolice para conseguir que ela sorrisse... O general Gordon é uma figura interessante?

- De certo modo.

 

Henry disse então: - A casa tem estado tão estranha estes dias... Procuro andar por fora quanto posso. Você não está livre, para jantar no clube?

 

- Tenho uma data de trabalho que preciso de acabar.

 

Olhou em volta. - Não tem aqui muito espaço para os seus livros.

 

- Pois não. Sou obrigado a guardar alguns debaixo da cama.

 

Pegou na revista que Waterbury me mandara, antes da entrevista: - Há espaço em minha casa. Você poderia ter praticamente um andar por sua conta. - Fiquei mudo de pasmo. E ele prosseguiu rapidamente, voltando as páginas do magazine, como se não estivesse interessado na própria sugestão...

- Pense nisso. Não precisa de decidir já.

 

- É muita bondade da sua parte, Henry.

 

- Era um favor que você me fazia, Bendrix. - E eu pensei: Por que não? Os escritores são considerados pessoas sem convenções. Sou mais agarrado a elas que um funcionário superior?

 

- Sonhei a noite passada - disse Henry - com todos nós.

 

- Sim?

 

- Não me lembro bem. Bebíamos juntos. Sentíamo-nos felizes. Quando acordei, não me parecia que ela estivesse morta.

 

- Eu agora não sonho com ela.

 

- Gostava que aquele padre tivesse feito o que queria.

 

- Teria sido absurdo, Henry. Ela era tão católica como eu ou você.

 

- Acredita na sobrevivência, Bendrix?

 

- Se quer dizer sobrevivência individual, não.

 

- Mas não se pode refutar, Bendrix.

 

- É quase impossível refutar seja o que for. Eu escrevo uma história. Como pode você provar que os acontecimentos nunca se deram, que as personagens não são reais? Ouça. Encontrei hoje no parque um homem com três pernas.

 

- Que horror! - exclamou Henry, muito sério. - Um aborto.

 

- E cobertas com escamas de peixe.

 

- Está a brincar.

 

- Mas prove que estou, Henry. Você pode refutar esta minha história tanto como eu posso refutar a existência de Deus. E simplesmente sei que é mentira, como você sabe que o que eu disse é mentira.

 

- Claro que há argumentos.

 

- Ora, eu sou capaz de inventar um argumento filosófico para apoiar a minha história, extraído, por exemplo, de Aristóteles.

 

Abruptamente, Henry voltou ao tema anterior. - Far-lhe-ia bem, se viesse morar comigo. Sarah dizia sempre que os seus livros não tinham o êxito que mereciam.

 

- Oh, a sombra do sucesso já está a cair em cima deles.

 

- Pensei no artigo de Waterbury. - Chega uma altura em que ouvimos os críticos molhando a pena para os aplausos... ainda o próximo livro não está escrito. É tudo uma questão de tempo.

 

- Falava assim, porque ainda não dispusera o meu espírito. Henry perguntou: - Não me guarda qualquer rancor, Ben-

 

dríx, pois não? Zanguei-me consigo no seu clube... por causa do tal homem. Mas que importância tem isso agora?

 

- Eu estava enganado. Não passava de um pateta de um racionalista de borra, com uma malha vermelha na cara. Esqueça essa coisa, Henry.

 

- Ela era boa, Bendrix. Há quem fale, mas era boa. E não teve culpa, enfim, se a não amei como devia. Você sabe como eu sou terrivelmente prudente, cauteloso. Não sou da massa de que se fazem os amantes. Ela precisava de alguém como você.

 

- Mas deixou-me. Passou além, Henry.

 

- Sabe que uma vez li um livro seu... Sarah fez-mo ler. Você descrevia uma casa depois de ter morrido nela uma mulher.

 

     - Hospedagem Ambiciosa.

 

- Era esse. Naquela altura, pareceu-me certo. Achei-o muito plausível, mas todo errado, Bendrix. Você descreve como o marido achava a casa pavorosamente vazia: andava de quarto em quarto, mudando as cadeiras, tentando criar uma ilusão de movimento, da presença de outrem. Chegava às vezes a servir-se de bebidas em dois copos.

 

       - Não me ocorre. Cheira-me um pouco a literatura.

 

     - Não está certo, Bendrix. Porque o mal reside em que a casa não parece vazia. Está a ver, muitas vezes, noutros tempos, eu regressava do serviço a casa, e ela andava por qualquer parte... talvez consigo. Chamava-a, não respondia. A casa estava então vazia. Quase esperava achar que me tivessem levado a mobília. Você sabe que a amei de verdade, a meu modo Bendrix. De cada vez que ela não estava, quando eu chegava a casa, temia deparar com uma carta à minha espera. «Caro Henry»... o género de coisas que se escrevem nos romances, sabe?

 

- Sei.

 

- E agora a casa nunca parece assim vazia. Não sei como lhi hei-de exprimir isto. Ela, porque está sempre ausente, nunca está ausente. Compreende, nunca está noutra parte. Não está a almoçar com ninguém, não foi ao cinema consigo. Não tem onde estar senão em casa.

 

- Mas em que casa?

 

- Oh, você tem que me desculpar, Bendrix. Ando nervoso... não durmo bem. O mais próximo possível de falar com ela é falar dela, e só posso falar dela consigo.

 

- Ela tinha muitos amigos. Sir William Mallock, Dunstan... - Não posso falar-lhes dela. Como não posso a esse Parkis.

 

- Parkis! - exclamei eu. Mas aquele homem pertencia para sempre à nossa vida?

 

- Contou-me que tinha estado numa festa que demos. As pessoas que Sarah desencantava! E disse-me que você também o conhecia.

 

- Mas o que queria ele?

 

- E afinal disse-me que ela tinha sido muito boa para o filho dele... saberá Deus quando. O rapaz está doente. Parecia querer qualquer recordação dela. Dei-lhe um ou dois dos seus velhos livros dos tempos de criança. Havia uma quantidade deles no quarto de Sarah, todos riscados a lápis. Era uma boa maneira de me ver livre dos livros. Não se pode mandar aquilo para o Foyle, não é verdade? Não vejo nenhum mal nisto, você vê?

 

- Não. Esse homem era o que eu arranjei para a vigiar, na Agência Savage.

 

- Santo Deus, se eu soubesse... Mas parecia de facto gostar muito dela.

 

- O Parkis é humano. E comove-se facilmente. - Percorri o meu quarto com o olhar: não haveria maior presença de Sarah lá de onde Henry vinha: talvez menor, por mais diluída.

 

- Vou viver consigo, Henry, mas você há-de deixar-me pagar renda.

 

- Alegra-me tanto, Bendrix. Mas a casa não é arrendada. Pode pagar parte das contribuições.

 

- Três meses de aviso para arranjar outro buraco, se você casar outra vez.

 

Tomou-me inteiramente a sério: - Nunca me heí-de lembrar disso. Não sou dos que devem casar. Fiz muito mal a Sarah, quando casei com ela. Sei-o agora.

 

E mudei-me para o lado norte do parque. Perdi uma semana de renda, porque Henry queria que eu viesse imediatamente, e paguei cinco libras pelo carrinho que me transportou os livros e a roupa. Fiquei com o quarto de hóspedes e Henry arranjou-me para escritório um quarto que era de arrumações, e havia uma sala de banho no andar de cima. Henry fez o seu quarto do antigo quarto de vestir, e o quarto que haviam partilhado, com as duas camas gélidas, foi deixado aos hóspedes que nunca vinham. Alguns dias depois comecei a ver o que Henry queria dizer de a casa nunca estar vazia. Eu trabalhava no museu até à hora de fechar, voltava para casa, esperava por Henry, e, geralmente, saíamos para beber um copo no Armas de Pontefract. Certa vez, Henry esteve ausente uns dias numa reunião em Bournemouth, e eu arranjei uma rapariga e trouxe-a comigo. Não serviu de nada. Percebi logo que estava impotente, e, para não a ofender, disse-lhe que prometera a uma mulher que amava jamais fazer aquilo com outra pessoa. Foi muito delicada e compreensiva: as prostitutas têm um grande respeito pelas coisas do sentimento. Não houvera, no meu espírito, qualquer intenção de vingança; apenas sentia tristeza por abandonar para sempre algo que tanto apreciara. A seguir, sonhei com Sarah, novamente nos possuíamos no meu velho quarto do outro lado do parque, e também desta vez nada aconteceu... só não houve no facto qualquer tristeza. Sentíamo-nos felizes e isentos.

 

Foi uns dias depois que, no meu quarto, ao abrir um armário, deparei com uma rima de livros infantis. Henry devia ter pilhado aquele armário para as ofertas ao filho de Parkis. Havia vários contos de fadas de Andrew Lang com as suas capas coloridas, vários volumes de Beatrix Potters, As Crianças da Nova Floresta, Golliwog no Polo Norte, e ainda um ou dois livros para mais idade - A Última Expedição do capitão Scott e os Poemas de Thomas Hood, este último colegialmente encadernado e com uma inscrição declarando que fora concedido a Sarah Bertram pelos seus méritos em Álgebra. Álgebra! Como a gente muda.

 

Nesse fim de tarde não pude trabalhar. Deitei-me no chão com os livros, e tentei compor ao menos certos traços nos meus espaços em branco da vida de Sarah. Há ocasiões em que um amante deseja ser também pai e irmão: tem ciúmes dos anos que não partilhou. O Golliwog no Polo Norte era provavelmente o mais antigo dos livros de Sarah, porque tinha sido completamente riscado, em todos os sentidos, desconexa e destrutivamente, a giz de cor. Num dos Beatrix Potters o nome fora escrito a lápis, com uma das grandes maiúsculas errada, de modo que estava assim: SAflAH. Nas Crianças da Nova Floresta, escrevera muito cuidadosamente, com requintes: «Este livro pertence a Sarah Bertram. Sem licença não se pode emprestar. O mal é seu se o roubar.» Tudo aquilo era comum a todas as crianças de sempre: sinais tão anónimos como as pegadas de passarinhos, que vemos no Inverno. E quando fechei o último livro, voltaram a estar cobertos pela poeira do tempo.

 

Tenho dúvidas se ela alguma vez leu os poemas de Hood: as páginas estavam tão imaculadas como quando o livro lhe fora entregue pela directora ou pelo convidado de honra. O caso é que, ao arrumar o livro no armário, um impresso caiu ao chão

- provavelmente o programa daquela mesma distribuição de prémios. Numa escrita para min reconhecível (até a nossa letra principia jovem e vai encorporando os cansados arabescos do tempo) havia o seguinte - «Que grande pessegada». Imaginei Sarah escrevendo aquilo e mostrando-o à vizinha, enquanto a directora se sentava, respeitosamente aplaudida pelos papás. Não sei porquê, outras palavras por ela escritas me vieram à cabeça, ao ver aquela frase de colegial, tão cheia de impaciência: «Sou uma prostituta e uma impostora.» Eu tinha nas mãos a inocência. Metia dó que ela tivesse vivido mais vinte anos para pensar assim de si própria. Uma prostituta e uma impostora. Seria uma frase que eu aplicara à descrição dela num momento de cólera? Sempre aceitara as minhas críticas: só os louvores escorriam sobre ela como a neve cai.

 

Virei a folhinha e li o programa do dia 23 de Julho de 1926: Música para as Festas Aquáticas, de Haendel, executada por Miss Duncan, do R. C. de M.; recitação de Vagueava solitário como a nuvem, de Wordsworth, por Beatrice Collins; Árias Tudor, pela Sociedade Alegria da Escola; recital de violino: a Valsa em lá bemol, de Chopin, por Mary Pippitt. A longa tarde de Verão de vinte anos antes prolongava as suas sombras até mim, e detestei a vida que tanto nos altera para pior. Naquele Verão, precisamente, começara eu o meu primeiro romancequanta excitação, quanta ambição e esperança, ao entregar-me ao trabalho: não era azedo, era feliz. Tornei a pôr o programa entre as páginas do não-lido livro e depositei o volume no armários sob o Golliwog e os Beatrix Potters. Éramos ambos felizes, apenas com dez anos e alguns distritos entre nós, nós que mais tarde nos juntaríamos sem outro motivo aparente que o de nos inflingirmos mutuamente tanta dor. Peguei na Última Expedição de Scott.

 

Fora esse um dos meus livros favoritos. Pareciam tão curiosamente de outra época este heroísmo, com só o gelo por inimigo, e este espírito de sacrifício que não implicava outras mortes além da própria. Duas guerras nos separavam deles. Olhei para as fotografias: as barbas e as lunetas fumadas, os montinhos de pedras cobertas de neve, o pavilhão Jack1, os garranos de longas crinas como penteados fora de moda no meio das rochas nuas. Mesmo as mortes tinham «data», e «datada» era a colegial que sublinhava, punha pontos de exclamação à margem, e que escrevera muito nitidamente como comentário à última carta de Scott: «E depois que há? Deus? - Robert Browning.» Já então, pensei, Ele lhe vinha ao espírito. Qual amante que sempre se aproveita de uma disposição momentânea; qual herói seduzindo-nos com as suas fantasias e as suas lendas. Arrumei o último livro e dei volta à chave.

 

«Union Jack» - a bandeira do Reino Unido.

 

Onde esteve você, Henry? - Era em geral o primeiro ao pequeno-almoço e às vezes tinha já saído de casa antes de eu descer; esta manhã, porém, o prato continuava intacto, e ouvi a porta da rua fechar-se devagarinho, antes de ele aparecer.

 

- Oh, fui dar uma volta - respondeu evasivamente.

 

- Passou a noite fora?

 

- Não. Claro que não. - E, para rebater a acusação, contou-me a verdade. - O Padre Crompton dizia hoje missa por alma de Sarah.

 

- Ainda continua com isso?

 

- Uma vez por mês. Achei que era delicado ir lá.

 

- Espero que ele não tenha sabido que você lá ia.

 

- Fui ter com ele no fim, para lhe agradecer. A verdade é que o convidei para jantar.

 

- Então, saio.

 

- Gostava que não saísse, Bendrix. No fim de contas, a seu modo, era um amigo de Sarah.

 

- Não lhe está a dar para a religião, pois não, Henry?

 

- Evidentemente que não. Mas eles têm o mesmo direito que eu à liberdade de opinião.

 

E o nosso homem veio jantar. Feio, desajeitado, desgracioso, com a sua venta de Torquemada, era o homem que afastara Sarah de mim. Apoiara-lhe aquela promessa absurda que deveria ter durado na memória o espaço de uma semana. Fora para a igreja dele que Sarah caminhara debaixo de chuva em busca de abrigo e recebera a morte em troca. Era-me difícil exibir nem que fosse a mais simples das atenções, e Henry teve que aguentar com o jantar. O Padre Crompton não estava habituado a comer fora de casa. Ficava-se com a impressão de cumprir um dever que lhe era difícil impor ao espírito. Conversa, tinha-a muito pouca, e as respostas caíam como árvores atravessadas na estrada.

 

- Calculo que terá por aqui muita pobreza? - dizia Henry, já cansado, por alturas do queijo. Tentara tanta coisa... a influência dos livros, o cinema, uma recente viagem a França, a possibilidade de uma terceira guerra.

 

- Isso não é um problema - replicou o Padre Crompton. Henry esforçava-se. - E a imoralidade? - perguntou, com a entoação ligeiramente falsa que não se evita ao proferir tal palavra.

 

- Nunca é um problema.

 

- Julguei que, talvez... o parque... à noite, vê-se...

 

- Isso acontece em qualquer terreno vago. E agora, de resto, estamos no Inverno. - E o tema ficou liquidado.

 

   - Mais queijo?

 

- Não, muito obrigado.

 

- Suponho que, numa zona como esta, terá uma certa dificuldade em conseguir dinheiro... para obras de caridade, é claro?

 

   - As pessoas dão o que podem.

 

- Toma um brandy com o café?

 

- Não, muito obrigado.

 

- Não repara que nós...

 

- Sem dúvida que não. Eu é que não durmo, se bebo; e tenho de levantar-me às seis.

 

- Para quê?

 

- Para dizer as minhas orações. Uma pessoa habitua-se. -Nunca fui capaz de rezar grande coisa - disse Henry -

 

desde rapaz. Costumava rezar para passar a jogar nas segundas categorias.

 

- E conseguiu?

 

- Joguei nas terceiras.

 

- Qualquer oração é melhor que nenhuma. Constitui, de certo modo, um reconhecimento do poder de Deus, uma espécie de louvor, suponho eu. - Não o ouvira, desde o princípio do jantar, dizer tanta coisa de uma vez.

 

- Por mim, seria capaz de supor - disse eu - que isso era assim como tocar na madeira ou evitar certos traços na rua. Pelo menos, nessa idade.

 

- Ora - respondeu-me -, não sou contrário a um pouco de superstição. Sempre dá às pessoas a ideia de que este mundo não é tudo. - E mostrou-me o nariz carrancudo. - Pode ser um princípio de sabedoria.

 

- É certo que a sua igreja explora bastante a superstição... o São Januário, as estátuas que sangram, as aparições da Virgem... toda essa história.

 

- A Igreja procura destrinçar. E não será mais inteligente acreditar que é possível acontecer qualquer coisa do que...

 

Tocaram à porta. Henry disse: - Dei licença à criada para se deitar. Se me permite, Reverendo?...

 

- Vou eu - e era uma feliz oportunidade de me ver livre daquela opressiva presença. Tinha a resposta pronta: quem fosse leigo não conseguia apanhá-lo, era como um conspirador que cansa à força de habilidade. Abri a porta e dei com uma mulher forte, de preto, estendendo um embrulho. Cheguei a pensar que era a nossa mulher-a-dias, até que ela perguntou: - O senhor é o senhor Bendrix?

 

- Sou.

 

- Venho entregar isto - e largou-me o embrulho nas mãos como se contivesse um explosivo.

 

- Quem o envia?

 

- O senhor Parkis. - Perplexo, virei o embrulho de todos os lados. Até me ocorreu que ele podia ter extraviado qualquer documentação que agora, demasiado tarde, me entregava. E eu queria esquecer-me do Parkis.

 

- Se me passasse um recibo? Mandaram-me entregar o embrulho em mão.

 

- Não tenho lápis... nem papel. E não estou para isso.

 

- É que eu sei como o senhor Parkis é a respeito de papeladas. Eu trago um lápis na mala.

 

Escrevi-lhe o recibo nas costas de um sobrescrito usado. Guardou-o cuidadosamente, e precipitou-se para fora como se quisesse ver-se a distância, tão depressa quanto possível. Fiquei no vestíbulo, sopesando aquele objecto. Henry, da sala de jantar, perguntou: - O que é, Bendrix?

 

- Um embrulho que o Parkis manda. - E a frase soou-me como um trava-línguas.

 

- Se calhar, devolve o livro.

 

- A esta hora? E é dirigido a mim.

 

- Mas então o que é? - Não me apetecia nada abrir o embrulho: não nos metêramos ambos ao trabalho de esquecer? Sentia-me já suficientemente castigado pela minha visita à Agência Savage. Ouvi a voz do Padre Crompton dizer: - Vão sendo horas de me retirar, Sr. Miles.

 

- Ainda é cedo.

 

Se me demorar fora da sala, pensei, não serei forçado a acrescentar a minha delicadeza à de Henry, e ele vai-se embora mais depressa. Abri o embrulho.

 

Henry tinha razão. Era um dos livros de contos de Andrew Lang, com uma folha de bloco metida entre as páginas. Uma carta de Parkis.

 

«Prezado Senhor Bendrix», e, julgando que era um bilhete de agradecimento, fui com impaciência ler as últimas frases: «Portanto, nestas circunstâncias, preferiria não ter o livro em casa, e, esperando que explicará ao senhor Miles que não há qualquer ingratidão da minha parte, creia sempre ao seu dispor o Alfred Parkis.»

 

Sentei-me no vestíbulo. Ouvi o Henry: - Não julgue que tenho um espírito estreito, Reverendo... - e principiei a ler, seguida, a carta de Parkis:

 

«Prezado Sr. Bendrix. Escrevo-lhe e não ao Sr. Miles, por estar certo da simpatia que entre nós surgiu da nossa íntima conquanto triste colaboração, e por o senhor ser pessoa dada às letras e habituado a acontecimentos estranhos. Como sabe, o meu rapaz tem ultimamente sofrido de violentas dores de barriga que, não sendo devidas à ingestão de gelados, cheguei a supor significassem apendicite. O médico aconselhou a operação, não tinha importância, mas sempre temi que o meu pobre filho fosse à faca, porque disso morreu a mãe, por negligência, estou certo, e que seria de min se, da mesma maneira, perdesse o meu rapaz? Ficaria completamente só. Perdoe-me estes pormenores todos, Sr. Bendrix, mas, na minha profissão, habituamo-nos a coordenar e explicar primeiro as coisas, não vá o juiz depois queixar-se de que lhe não comunicaram, convenientemente esclarecidos, os factos. E assim, na segunda-feira, disse ao médico que esperaríamos até ter a certeza. Não posso deixar de às vezes pensar que foi frio que ele apanhou enquanto observava a casa da Sra. Miles, que, perdoar-me-á que de passagem diga, era uma senhora de grande bondade, merecedora de que a deixassem em paz. Na minha vida, não se pode apreciar e escolher, mas, logo desde o primeiro dia em Maiden Lane, senti que antes queria ter de vigiar qualquer outra senhora. Seja como for, o meu rapaz ficou terrivelmente impressionado, quando soube que a senhora, coitada, falecera. Ela só lhe falara uma vez, mas meteu-se-lhe em cabeça, julgo eu, que a mãe tinha sido como ela, simplesmente não tinha, apesar de ter sido, a seu modo, uma boa mulher cuja falta sinto cada dia da minha vida. Ora, quando a temperatura atingiu 40°, o que é muito para um rapaz como ele, começou a falar à Sra. Miles tal como lhe falara na rua, e a dizer-lhe que estava a vigiá-la, o que evidentemente não foi o que ele disse, com a dignidade profissional que tão elevada já possui para a sua idade. Depois que ela se foi embora, principiou a chorar e adormeceu, mas, quando acordou ainda com a mesma temperatura, perguntou pelo presente que ela em sonhos lhe prometera. Por isso é que eu incomodei o Sr. Miles e o enganei, do que me envergonho, pois que não havia qualquer razão pro| fissional, e era só por causa do meu pequeno. Quando arranjei o livro e lho dei, ficou mais calmo. Mas eu estava muito aflito, porque o médico tinha dito que não se responsabilizava, que ele devia ir para o hospital na quinta-feira, e que, se houvesse uma cama vaga, o mandava nessa noite. Está a ver que eu nem conseguia dormir de aflição, pensando na minha saudosa mulher e no meu querido filho e com medo da operação. Não me envergonho de lhe dizer, Sr. Bendrix, que rezei com muito fervor. Rezei a Deus, depois rezei a minha mulher para que fizesse o que pudesse, pois que, se se vai para o Céu, ela foi, e pedi à Sra. Miles, caso lá estivesse, que também ajudasse. Se um homem feito é capaz de se entregar a estas coisas, Sr. Bendrix, compreender-se-á que o meu rapaz imagine outras. Quando, esta manhã, acordei, a temperatura dele baixara para 37,2°, e não sentia dores; o médico não encontrou, depois, sinais de inflamação, disse que podíamos aguardar, e o pequeno tem passado bem o dia inteiro.

Porém, ao médico, declarou que a Sra. Miles viera, lhe levara a , dor - tocando-o no lado direito da barriga, se me perdoa a indiscrição - e escrevera no livro umas palavras para ele. Mas o médico quer que ele se mantenha muito sossegado, e o livro excita-o. Portanto, nestas circunstâncias preferia não ter o livro em casa, e...»

 

Ao virar a carta, encontrei umpost-scriptum. «Há umas coisas escritas no livro, que qualquer pessoa reconhecerá que foram escritas há muitos anos, quando a Sra. Miles era uma menina pequena, simplesmente é o que não posso explicar ao meu rapaz, coitado, pois temo que as dores voltem. Com a maior consideração, A. P.» Folheei o volume, e lá estavam os gatafunhos a lápis de tinta, análogos aos que eu vira nos outros livros em que a menina Sarah Bertram compusera legendas várias.

 

Quando estive doente a minha mãe deu-me este livro de Lang Se alguém com saúde o roubar sentirá: «bangue!» Mas se alguém porventura adoecer Poderá tê-lo consigo para o ler.

 

Voltei, com o livro e a carta, à sala de jantar.

 

- O que era?- perguntou Henry.

 

   - O livro. Você chegou a ler o que Sarah tinha escrito, antes de o dar ao Parkis?

 

- Não. Porquê?

 

- Mera coincidência. Mas parece que não é preciso pertencer à igreja do Padre Crompton para ser supersticioso. - Entreguei a carta a Henry, que a leu e passou ao Reverendo.

 

- Não me agrada isto - comentou Henry. - Sarah morreu. E detesto vê-la assim referida por este e por aquele...

 

- Entendo perfeitamente. Sinto o mesmo.

 

- É como ouvir pessoas estranhas falar dela.

 

- Mas ninguém está a dizer mal - observou o Padre Crompton. Pousou a carta. - Tenho de me ir embora. - Não se mexeu, porém, de olhos fixos na carta em cima da mesa. E a inscrição? - perguntou.

 

Empurrei o livro para ele: - Oh, foi escrita há muitos anos. Escreveu coisas dessas em vários livros, como todas as crianças.

 

- Que estranho é o tempo! - disse o padre.

 

- A criança é que não distinguiu que isso fora escrito, não agora, mas no passado.

 

- Santo Agostinho perguntava-se de onde provinha o tempo. E disse que ele surgia do futuro, que ainda não existe, passava no presente, que não tem duração, e se sumia no passado, que deixou de existir. Não vejo por que razão havemos de compreender o tempo melhor que uma criança.

 

- Eu não queria dizer...

 

- Muito bem - e levantou-se. - Não deve tomar isto

muito a sério, Sr. Miles. Apenas prova como a sua esposa era virtuosa.

 

- Não adianta, pois não? Porque agora pertence ao passado, que deixou de existir.

 

- O homem que escreveu esta carta é bem sensato. Não há mal em rezar aos mortos, como o não há em rezar por eles. E repetiu: - Era virtuosa.

 

Subitamente, perdi a paciência. Suponho que o que principalmente me exasperou foi a complacência dele, a sua segurança de que nenhum argumento intelectual o perturbava, a presunção de um profundo conhecimento de alguém que apenas vira umas horas ou dias e nós havíamos conhecido durante anos. E exclamei: - Isso é o que ela não era.

 

- Bendrix - cortou Henry.

 

- Era capaz de levar à certa qualquer homem, mesmo que fosse um padre. Enganou-o e mais nada, Padre, como enganou o marido e me enganou a min. Era uma refinada intrujona.

 

- Nunca pretendeu ser o que não era.

 

- Não fui o único amante dela...

 

- Basta! - gritou Henry. - Você não tem o direito...

 

- Deixe-o - disse o Padre Crompton. - Deixe esse desgraçado desabafar.

 

- Não me ofereça a sua compaixão profissional! Guarde-a para os seus penitentes!

 

- O senhor não pode indicar-me de quem devo sentir compaixão.

 

- Entregava-se ao primeiro que lhe aparecesse. - Eu ansiava acreditar no que dizia, para que não houvesse de que ter saudades. Não mais continuaria amarrado a ela, onde quer que ela estivesse. Ficaria livre.

 

- E, quanto a penitências, não pode ensinar-me nada, Sr. Bendrix. Tenho vinte e cinco anos de confessionário. Quanto façamos, já alguns santos fizeram antes de nós.

 

- Só me arrependo de ter falhado. Vá para a sua gente! Vá para esse confessionário de um raio! Vá rezar nas contas!

 

- Encontra-me lá, sempre que precisar de mim.

 

- Eu precisar de si?! Não quero ser malcriado, mas eu não sou uma Sarah. Não sou!

 

Muito embaraçado, Henry disse: - Peço imensa desculpa.

 

- Não tem de quê. Eu sei quando um homem sofre. Não conseguia perfurar-lhe a casca de complacência. Atirei

 

com a cadeira e exclamei: - Engana-se. Isto não é tão subtil como o sofrimento. Eu não sofro, eu odeio. Odeio Sarah, porque era uma puta; odeio Henry, porque ela se agarrou a ele, e odeio a si e ao seu Deus imaginário, porque ambos no-la roubaram.

 

- O senhor sabe odiar - comentou o Padre Crompton.

 

Vinham-me as lágrimas aos olhos, por não ter força para ferir qualquer deles. - Vão todos para o diabo!

 

Bati com a porta e deixei-os lá dentro. Que aspergisse de teologia sagrada o Henry, pensei. Eu estou só. Quero estar só.

 

Se não posso ter-te, hei-de continuar só. Sou tão susceptível de crença como qualquer outro. Bastar-me-ia fechar os olhos da inteligência, durante o tempo suficiente, para acreditar que apareceste ao filho do Parkis, de noite, e o tocaste com os teus dedos que pacificam. No mês passado, no crematório, pedi-te que salvasses de mim aquela rapariga, e tu meteste a tua mãe de permeio. É o que eles podem dizer. O pior é que, se começo a acreditar nisto tudo, serei levado a acreditar no teu Deus, seria levado a amá-Lo. E antes amar os homens que te possuíram!

 

Preciso de me dominar, disse de mim para mim, ao subir as escadas. Sarah já morreu há muito tempo: uma pessoa não continua a amar os mortos com esta intensidade, só os vivos, e ela não está viva, não pode estar viva. Não devo supô-la viva. Deitei-me na cama, fechei os olhos e tentei dominar-me. Se a detesto tanto quanto às vezes a detesto, como posso amá-la? É possível, de facto, odiar e amar? Ou só a mim realmente eu odeio? Detesto os livros que escrevo pela vulgar habilidade, sem importância, com que são feitos; odeio o meu profissionalismo, tão guloso de documentar-se, que me dei a seduzir uma mulher que não amava, só pelos informes que poderia fornecer-me; odeio este corpo que gozou tanto, e que nunca foi capaz de exprimir o que o coração sentia; e odeio a desconfiança do meu espírito, que pôs o Parkis de atalaia, a deitar pòzinhos em campainhas de porta, a vascolejar cestos de papéis, a roubar-te os segredos.

 

Da gaveta da mesinha-de-cabeceira tirei o diário dela, abri-o ao acaso e, numa data de Janeiro findo, li: «Meu Deus, se realmente me fosse possível detestar-te, que sentido isso teria?» E eu pensei: odiar Sarah não é mais que amar Sarah, como odiar-me não é mais que a mim próprio amar. Não sou digno de ódio - Maurice Bendrix, autor de Ambiciosa Hospedagem, A Imagem Coroada, Sepultura à Beira-de-Água, Bendrix, o plumitivo. Nada - nem mesmo Sarah - é digno do nosso ódio, se Tu existes, a não ser Tu. «Às vezes eu pensava que odiava Maurice, mas odiá-lo-ia, se o não amasse também? Meu Deus, se realmente me fosse possível detestar-te...»

 

Lembrei-me de como Sarah rezara ao Deus em quem não cria, e falei à Sarah em quem não acreditava. Sacrificaste-nos a ambos, uma vez, para que eu voltasse à vida, mas que vida é esta, sem ti? Fica-te muito bem amar a Deus. Estás morta. Tem-no por conta. Mas eu estou farto de vida, e rebento de saúde. Se me dou a amar a Deus, não morro assim. Tenho de resolver este assunto. Tocava-te com as mãos, saboreava-te com a língua: não é possível amar-se e não fazer nada. Não serve para nada que me digas, como daquela vez em sonhos, que não me aflija. Se amasse assim, seria o fim de tudo quanto há. Amando-te, não me apetecia comer, não desejava outras mulheres; amando-O em Sua ausência, nada me dará prazer. Desinteressar-me-ei do meu trabalho, deixarei de ser Bendrix. Sarah, tenho medo.

 

Nessa noite, acordei às duas da manhã. Desci à despensa, comi umas bolachas e bebi água. Estava arrependido de ter falado de Sarah, como falara, diante de Henry. O padre dissera que nada podíamos fazer que um santo não tivesse feito já. O que pode ser verdade de assassínios e adultérios, os pecados espectaculares; mas algum santo jamais foi culpado de inveja e mesquinhez? O meu ódio era tão insignificante como o meu amor. Abri devagarinho a porta e espreitei Henry. Dormia, com a luz acesa e o braço diante dos olhos. Com os olhos tapados, o corpo dele era anónimo. Henry era apenas um homem – um de nós. Era como o primeiro soldado inimigo que um homem encontra num campo de batalha, morto e indistinguível, nem Branco, nem Vermelho, um ser humano à sua própria semelhança. Pousei duas bolachas ao pé da cama, para o caso de ele acordar, e apaguei-lhe a luz.

 

O meu livro não avançava grande coisa (e que perda de tempo me parecia o acto de escrever - mas em que havia eu de passar o tempo? e fui dar uma volta pelo parque para ouvir os oradores. Estava lá um homem de quem eu me lembrava, que me divertia imenso nos tempos de antes da guerra, e fiquei satisfeito por vê-lo de regresso ao seu poleiro. Nada tinha a comunicar, ao contrário dos oradores políticos ou religiosos. Era um ex-actor, e limitava-se a contar historietas e a recitar fragmentos em verso. Desafiava o auditório a apanhá-lo desprevenido, pedindo-lhe qualquer poesia. O Velho Nauta, gritava alguém, e ele logo, com grande ênfase, dava-nos uma das quadras. Um maroto qualquer dizia, «Soneto trigésimo segundo de Shakespeare», e ele recitava quatro versos ao acaso; e, se o maroto objectava, ele respondia, «A sua edição está errada». Dei uma vista de olhos pelo círculo dos ouvintes e vi Smythe. Talvez me tenha ele visto primeiro, pois que estava com o lado bonito da cara voltado para mim, o lado que Sarah não beijara; mas, se vira, evitou cruzar os olhos com os meus.

 

Por que razão me apetece sempre falar às pessoas que Sarah conheceu? Abri caminho até junto dele e disse, - Olá, Smythe -. Encostou o lenço ao lado defeituoso do rosto e voltou-se para mim. - Oh, é o senhor Bendrix.

 

- Depois do enterro, não tornei a vê-lo. - Estive fora.

 

     - Já não fala aqui?

 

     - Não. - Hesitou e depois acrescentou contra-vontade:

- Abandonei as oratórias públicas.

 

- Mas continua a receber em sua casa? - perguntei para o arreliar.

 

- Não, também me deixei disso.

 

- Espero que não tenha mudado de opiniões? Murmurou cabisbaixo: - Já não sei no que hei-de acreditar.

 

- Em nada. Era o mais certo.

 

- Era. - Principiou a afastar-se um pouco da multidão, e fiquei do lado infeliz. Não podia resistir à tentação de o mortificar mais um bocadinho: - Está com dor de dentes?

 

- Não. Porquê?

 

- Parece. Com esse lenço.

 

Não respondeu, e tirou o lenço. Não havia fealdade a esconder. A pele era fresca e nova, à excepção de uma mancha azulada, do tamanho de meia-coroa.

 

E disse: - É que me fartei de explicar isto às pessoas conhecidas que encontro.

 

- Descobriu um tratamento?

 

- Descobri. Já lhe disse que estive fora.

 

- Numa casa de saúde?

 

- Sim.

 

- Uma operação?

 

- Não foi bem isso. - E acrescentou de má vontade: - Foi por contacto...

 

- Crendices?

 

- Não tenho crença. E nunca iria a um curandeiro.

 

- Não sabia que isso tinha cura.

 

Respondeu vagamente, encerrando o assunto: - Métodos modernos. Eléctricos.

 

Voltei para casa e tentei aferrar-me ao livro. Quando começo a escrever, verifico que há sempre uma personagem que, obstinadamente, se não torna viva. Nada tem de psicologicamente falso, mas não se mexe, precisa de ser empurrada, é necessário arranjar-lhe um vocabulário próprio, toda a minha técnica, em anos de trabalho, há que empregá-la em conseguir que essa personagem pareça viva ao leitor. Às vezes, colho uma satisfação desconsolada, quando um crítico ma louva como a mais bem desenhada de todas as personagens da obra: se não tiver sido desenhada, por certo foi puxada pelos cabelos. Uma personagem destas pesa-me no espírito, sempre que eu me disponha ao trabalho, como uma refeição mal digerida pesa no estômago, e rouba-me, em qualquer cena em que toma parte, o prazer da criação. Nunca pratica um acto inesperado, nunca me surpreende, nunca trata de si. As outras personagens ajudam todas; aquela só atrapalha.

 

E, todavia, não se pode passar sem ela. Não me custa imaginar um Deus que, às vezes, a respeito de alguns de nós, sinta o mesmo. Os santos, supor-se-ia, em certo sentido criam-se a si próprios. Vivem por si. São capazes de um gesto ou de um dito surpreendente. Estão fora do enredo, não são por ele condicionados. Nós, porém, precisamos de ser empurrados. Temos a obstinação da não-existência. Estamos inextrincavelmente ligados ao enredo, e Deus cansadamente nos força, aqui e além, segundo a intenção que é a sua: personagens sem poesia, sem livre arbítrio, cuja única importância é que, algures, alguma vez, auxiliamos à composição de certa cena em que uma personagem viva se move e fala, e assim fornecemos talvez aos santos uma oportunidade de exercerem o livre-arbítrio deles.

 

Senti-me aliviado, ao ouvir fechar-se a porta e os passos de Henry no vestíbulo. Era uma desculpa para deixar de pensar. A personagem podia ficar na sua inércia até ao dia seguinte: era enfim a hora das Armas de Pontefract. Esperei que ele me chamasse (já, ao fim do mês, estávamos tão agarrados aos nossos hábitos como dois celibatários que tivessem vivido juntos anos a fio); não chamou, porém, e ouvi-o meter-se no escritório. Passado um tempo, fui procurá-lo: é que sentia a falta da bebida habitual.

 

Lembrei-me da vez em que o acompanhara a casa; estava sentado ali, preocupado e abatido, ao lado do Discóbolo esverdinhado - agora, todavia, olhando para ele, não sentia nem ciúme nem gosto.

 

- Bebe hoje alguma coisa, Henry?

 

- Sim, sim, claro que sim. Ia só mudar de sapatos. Tinha sapatos de andar na rua e outros de andar no campo, e o parque, para ele, era campo. Curvou-se para os atacadores: um nó havia que não conseguia desatar - era muito desajeitado. Aborreceu-se de insistir e atirou com o sapato. Apanhei-o e desfiz o nó.

 

- Obrigado, Bendrix. - Talvez aquela acção, ainda que insignificante, lhe tenha dado confiança. - Aconteceu-me hoje, na repartição, uma coisa muito desagradável.

 

- Conte lá.

 

- A senhora Bertram foi procurar-me. Não sei se você sabe quem é a senhora Bertram.

 

- Sei. Conhecemo-nos o outro dia. - Curiosa expressão... o outro dia, como se todos os dias fossem idênticos, à excepção de um.

 

- Nunca nos entendemos muito bem os dois.

 

- Foi o que ela me disse.

 

- Sarah portou-se sempre com muito tacto. Mantinha-a à distância.

 

- Foi pedir-lhe dinheiro emprestado?

 

- Pois foi. Queria dez libras... a história do costume: descida à cidade, compras, saída precipitada, bancos fechados... Bendrix, eu não sou mesquinho, mas irritam-me tanto os modos dela! Tem duas mil libras por ano, de rendimento. É quase tanto como eu ganho.

 

- E deu-lhas, você?

 

- Claro. Damos sempre, mas o mal foi eu não ter resistido a pregar-lhe um sermão. O que a enfureceu. Disse-lhe quantas vezes me pedira e quantas vezes me pagara... bem fácil de saber, só da primeira vez. Puxou do livro de cheques e declarou que ia passar-me um cheque na importância de quanto me devia, naquele mesmo momento. Estava tão furibunda, que tenho a certeza de que passava mesmo. Esquecera-se realmente de que gastara o último cheque do livro. Pensara humilhar-me e apenas conseguira humilhar-se a si própria, coitada. O que a fez ficar pior, evidentemente.

 

- E que disse ela?

 

- Acusou-me de não ter feito a Sarah um enterro decente.

 

Contou-me uma estranha história...

 

- Bem sei. Também ma contou, depois de um par de cálices de Porto. :                 

 

- Você julga que é mentira?

- Não.

 

- É uma extraordinária coincidência, não é? Baptizada aos dois anos de idade, e depois começar a regressar àquilo de que nem é possível ter qualquer recordação... É como uma infecção.

 

- Uma extravagante coincidência, como você diz. - Já uma vez fornecera a Henry as forças necessárias; não o ia agora abater. E prossegui: - Tenho dado conta de várias coincidências ainda mais estranhas. No ano passado, Henry, andava tão aborrecido que cheguei a coleccionar números de automóveis. Aprende-se com isso a apreciar as coincidências. Dez mil números possíveis e sabe Deus quantas combinações e, todavia, mais do que uma vez, numa paragem do trânsito, vi, lado a lado, os mesmos números.

 

- Pois é. Também creio que é assim.

 

- Nunca deixarei de acreditar em coincidências, Henry. O telefone estava a tocar no andar de cima: não o tínhamos ouvido, porque o interruptor estava desligado no escritório.

 

- Ai, santo Deus, santo Deus - suspirou Henry -, não me admirava nada se fosse essa mulher outra vez.

 

- Deixe tocar. - E a campainha calou-se, enquanto eu falava.

 

- Não é que eu seja mesquinho - disse Henry. - Não creio que, em dez anos, me tenha pedido emprestadas mais de cem libras.

 

- Venha daí à nossa cerveja.

 

- Claro que vou. Oh, não calcei os sapatos. - Curvou-se a calçá-los, e vi-lhe a careca no cimo da cabeça: era como se as preocupações tivessem aberto caminho por ali... e eu fora uma delas. - Não sei o que seria de mim sem você, Bendrix. Escovei-lhe do ombro uns pós de caspa. - Oh, Henry... - e, antes de nos mexermos, o telefone recomeçou a tocar.

 

- Não atenda - disse eu.

 

- É melhor atender. Nunca se sabe... - Levantou-se com os atacadores pendurados, e aproximou-se da secretária. - Está?... Miles. - Passou-me o auscultador, afirmando com alívio:

- É para si.

 

- Sim, Bendrix.

 

- Sr. Bendrix - proferiu uma voz masculina -, senti que tinha de lhe telefonar. Esta tarde não lhe disse a verdade.

 

- Mas quem fala?

 

- Smythe - respondeu a voz.

 

- Não percebo.

 

- Eu disse-lhe que tinha ido para uma casa de saúde. Nunca fui.

 

- Creia que se há coisa que me não interesse...

 

A voz dele vinha direita a mim, ao longo do fio. - Mas interessa. O senhor não está a prestar atenção. Ninguém me tratou a cara. Desapareceu tudo, repentinamente, de um dia para o outro.

 

- Como? Continuo a não...

 

E ele, com um pavoroso ar de cumplicidade: - O senhor e eu sabemos como. Não há que fugir. Não estava certo eu guardar segredo. Foi um... - mas desliguei o aparelho, antes que ele emitisse a palavra jornalística e idiota, a alternativa de «coincidência». Lembrei-me da mão direita dele fechada; lembrei-me da minha cólera por os mortos poderem ser tão retalhados, repartidos como as roupas que deixam. E pensei: ele é tão orgulhoso que sempre arranja uma revelação qualquer. Daqui a uma ou duas semanas, o Smythe andará apreguando no parque a face curada. Virá nos jornais: «Orador racionalista convertido por uma cura milagrosa.» Fiz o possível por concentrar toda a minha fé nas coincidências, e só conseguia pensar, e com inveja por não possuir nenhuma relíquia, na face miserável deitada a noite inteira sobre o cabelo dela.

 

- Quem era? - perguntou Henry. Hesitei por um momento em dizer-lhe, e logo depois pensei: Não. Ele não é seguro. E há-de entender-se com o Padre Crompton.

 

- Smythe. - Smythe?                          

 

- Esse tipo que Sarah costumava visitar.

 

- Que queria ele?

 

- Curou-se da malha, mais nada. Pedi-lhe para me dizer o nome do especialista. É que eu tenho um amigo...

 

- Enxertaram-lhe pele, se bem o entendo?

 

- Não sei ao certo. Li, não recordo onde, que estas marcas: são de origem histérica. Um tratamento misto de psiquiatria e de rádio. - Pareceria plausível. E talvez, ao fim e ao cabo, fosse a verdade. Outra coincidência, dois carros com o mesmo número; e, com uma sensação de cansaço, pensei: quantas mais coincidências haverá ainda? A mãe dela no enterro, o sonho do pequeno. Isto vai continuar todos os dias? Eu era como o nadador que se esgotou e sabe que a corrente é mais forte do que ele; mas, se me afogar, hei-de aguentar Henry ao cimo, até ao derradeiro momento. Não era afinal esse o meu dever de amigo?

- pois que, se esta coisa não for refutada, se vai parar aos jornais, quem poderá dizer onde irá ter? Lembrei-me das rosas de Manchester - uma fraude que levara muito tempo a ser reconhecida como tal. De hoje em dia, as pessoas são histéricas. Haveria caçadores de relíquias, e rezas e procissões. Henry não era um desconhecido; seria um escândalo enorme. E os jornalistas a fazerem perguntas sobre a vida dela, e a desenterrarem a história tola do baptismo nos arredores de Deauville. Já antevia os cabeçalhos, e os cabeçalhos provocariam mais «milagres». Era preciso matar aquilo à nascença.

 

Lembrei-me do diário na minha gaveta, no andar de cima: também isso tem de desaparecer, porque o podem interpretar à sua maneira. Era como se, para a guardar só para nós, tivéssemos de destruir-lhe os vestígios um a um. Os próprios livros infantis se haviam revelado perigosos. E havia fotografias - a que o Henry tirara: a imprensa não a apanharia. E Maud seria de confiança? Tínhamos tentado ambos construir um sucedâneo lar, e até isso estava ameaçado.

 

- E então a nossa cerveja? - perguntou Henry.

 

- Volto num instante.

 

Subi ao meu quarto e tirei da gaveta o diário. Arranquei-lhe a capa. Era dura: a trança de algodão resistia, e era o mesmo que arrancar os membros a um pássaro - eis o diário em cima da cama, um molho de papéis, sem asas, ferido. A última página ficara voltada para cima, e reli: «Estavas presente ensinando-no a dissipar, para que um dia nada mais nos restasse senão este amor por Ti. Mas Tu és bom de mais para mim. Quando Te peço dor, ofereces-me paz. Dá-lha também. Dá-lhe a minha paz que ele precisa mais dela do que eu.»

 

Nisso te enganaste, Sarah - pensei. Pelo menos uma das tuas orações não foi atendida. Não tenho paz, e não tenho amor, a não ser por ti, por ti. Sou um homem de ódio. Mas não sentia grandes aversões; chamava histéricos aos outros, e as minhas palavras é que eram exageradas. Bem lhes distinguia a falsidade. O que eu principalmente sentia era menos ódio que medo. Porque, se este Deus existe - pensava - e se até tu - com os teus apetites e os teus adultérios e as tímidas mentiras que costumavas dizer - podes mudar assim, todos nós podemos ser santos, desde que saltemos como tu saltaste, fechando os olhos e pulando de uma vez para sempre; se tu és santa, não é muito difícil ser santo. É uma coisa que Ele pode exigir de qualquer de nós, o pulo. Mas não hei-de pular. Sentado na cama, disse a Deus: Levaste-a, mas não me apanhaste ainda. Eu conheço a Tua astúcia. És Tu quem nos leva a uma altura, de onde nos ofereces o universo inteiro. E és um demónio, ó Deus, porque nos tentas a saltar. Eu, porém, não quero a Tua paz, nem quero o Teu amor. Eu queria algo muito simples e muito fácil: queria ter Sarah a vida inteira, e Tu levaste-a. Com os Teus grandes desígnios, arruinas a felicidade humana como o ceifeiro, nos campos, destrói um ninho de ratos: odeio-Te, Deus, odeio-Te, como se existisses.

 

Olhei para o monte de papéis. Mais impessoal do que uma mecha de cabelo. O cabelo pode tocar-se com os lábios ou com os dedos, e eu estava farto de espírito até à morte. Vivera para o corpo dela, e era o corpo dela o que eu queria. O diário, porém, era tudo quanto eu tinha; guardei-o, pois, no armário: não seria para Ele uma outra vitória destruí-lo e, sem ela, abandonar-me mais completamente? E disse a Sarah: muito bem, seja como queres. Acredito que vives e que Ele existe; será preciso, todavia, mais do que orações tuas para transformar em amor esta aversão que por Ele tenho. Roubou-me, e, como o rei de quem escreveste, roubar-lhe-ei o que em mim cobiça. A aversão, tenho-a na cabeça, e não na barriga ou na pele. Não pode ser removida como uma malha ou uma dor. Não te detestava e não te amava também? E não me detesto a mim próprio?

 

Disse para baixo, ao Henry: - Estou pronto - e dirigimo-nos lado a lado, pelo parque, para As Armas de Pontefract; as luzes ainda se não haviam acendido, os namorados juntavam-se nas intersecções dos caminhos, e do outro lado daquela relva estava a casa de degraus arruinados onde Ele me restituirá esta vida irremediavelmente mutilada.

 

- Estou sempre à espera destes nossos passeios ao fim do dia - observou Henry.

 

- Pois é.

 

E pensava: amanhã de manhã, telefonarei a um médico para perguntar se existe algum tratamento. E, logo a seguir, pensei: é melhor não; enquanto se não sabe, é possível imaginar inumeráveis remédios... Pousei a mão no braço de Henry, que segurei; tinha agora de ser mais forte por ambos, e ele ainda se não sentia seriamente aflito.

 

- São as únicas coisas por que ainda espero - acrescentou Henry.

 

Escrevi ao princípio que era isto um memorial de ódio; e, caminhando ali ao lado de Henry, em direcção ao copo de cerveja da tarde, descobri a única oração que parecia contentar a tristeza do Inverno: Ó meu Deus, já fizeste bastante, já me roubaste bastante, sinto-me por demais cansado e velho para aprender a amar, deixa-me em paz para sempre.

 

                                                                                Graham Greene  

 

                      

O melhor da literatura para todos os gostos e idades

 

 

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