Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
O FIM DA INFÂNCIA
O vulcão que fizera Taratua emergir das profundezas do Pacífico dormia agora há meio milhão de anos. Entretanto, dali a pouco, pensou Reinhold, a ilha seria banhada por incêndios muito mais violentos do que os que tinham assistido a seu nascimento. Olhou na direção da base de lançamento e percorreu com a vista a pirâmide de andaimes que ainda rodeava a Columbus. Setenta metros acima do chão, a proa da nave captava os derradeiros raios do sol poente. Seria uma das últimas noites que ela conheceria; em breve estaria flutuando ao sol eterno do espaço.
Reinava o silêncio ali, debaixo das palmeiras, no alto do espinhaço rochoso da ilha. O único som que vinha do Projeto era o chiado ocasional de um compressor de ar ou o grito distante de um trabalhador. Reinhold criara amizade por aquele bosque de palmeiras; quase todas as noites ia até ali, contemplar seu pequeno império. Entristecia-o pensar que explodiria em átomos, quando a Columbus subisse, com fúria e chamejando, rumo às estrelas.
A um quilômetro e meio para além dos recifes, o James Forrestal acendera seus holofotes e vasculhava as águas escuras. O sol desaparecera agora completamente e a célere noite tropical vinha, correndo, de leste. Reinhold pensou, não sem ironia, se acaso o porta-aviões estaria esperando encontrar submarinos russos tão perto da costa.
Como sempre que pensava na Rússia, lembrou-se de Konrad e daquela manhã da primavera cataclísmica de 1945. Mais de trinta anos se tinham passado, mas a lembrança daqueles últimos dias, em que o Reich se desmoronava sob as ondas do Leste e do Oeste, nunca se apagara. Parecia-lhe ver ainda os cansados olhos azuis de Konrad e a barba dourada que lhe crescia no queixo, ao se despedirem, com um aperto de mão, naquela massacrada aldeia da Prússia, entre fileiras intermináveis de refugiados. Fora uma despedida que simbolizara tudo o que desde então tinha acontecido com o mundo — a ruptura entre Oriente e Ocidente —, pois Konrad escolhera o caminho de Moscou. Reinhold julgara-o um idiota, mas agora não estava tão certo disso.
Durante trinta anos, partira do princípio de que Konrad morrera. Havia apenas uma semana que o Coronel Sand-meyer, do serviço secreto técnico, lhe dera a notícia. Não gostava de Sandmeyer e tinha a certeza de que o sentimento era recíproco. Mas nenhum dos dois deixava que isso interferisse no trabalho.
— Sr. Hoffmann — tinha dito o coronel, num tom expressamente oficial —, acabei de receber informações alarmantes de Washington. Trata-se, naturalmente, de informações secretas, mas resolvemos confiá-las à nossa equipe de engenheiros, para melhor fazê-los compreender a necessidade de acelerar os trabalhos. — Fizera uma pausa de efeito, que não impressionara Reinhold. A verdade é que ele já sabia o que viria a seguir.
— Os russos estão quase nos igualando. Têm um tipo de propulsão atômica que talvez seja ainda mais eficiente do que a nossa, e estão construindo uma nave nas margens do lago Baikal. Não sabemos em que ponto estão, mas o serviço secreto acha que a nave pode ser lançada ainda este ano. E o senhor sabe o que isso significa.
Sim, pensou Reinhold, eu sei. A corrida começou — e talvez não a vençamos.
— Sabe quem está chefiando a equipe deles? — perguntara, sem realmente esperar uma resposta. Para surpresa sua, o Coronel Sandmeyer estendera-lhe uma folha datilografada, e, logo em cima, ele deparara com o nome: Konrad Schneider.
— O senhor conheceu muitos desses homens em Peenemünde, não foi? — perguntara o coronel. — Talvez isso nos permita ter algum acesso aos métodos deles. Gostaria que o senhor nos desse notas sobre todos que puder: suas especialidades, as idéias brilhantes que possam ter tido, etc. Sei que é pedir muito, após tanto tempo, mas veja o que pode fazer.
— O único que interessa é Konrad Schneider — retrucara Reinhold. — Ele era brilhante. Os outros, apenas engenheiros competentes. Só Deus sabe o que ele fez nestes trinta anos. Não se esqueça de que provavelmente ele viu todos os nossos resultados, ao passo que nós não vimos nenhum dos dele. Isso lhe dá uma vantagem declarada.
Não dissera aquilo como crítica ao serviço secreto, mas Sandmeyer dera momentaneamente a impressão de ter ficado ofendido. Por fim, límítara-se a dar de ombros.
— A coisa funciona nos dois sentidos; o senhor mesmo me disse isso. Nossa livre troca de informações significa um progresso mais rápido, mesmo que abramos mão de alguns segredos. Os departamentos de pesquisa russos talvez nem saibam muitas vezes o que sua gente está fazendo. Vamos mostrar-lhes que a democracia pode chegar antes à Lua.
Democracia uma ova! pensou Reinhold, mas absteve-se de dizer isso. Um só Konrad Schneider valia bem um milhão de nomes numa lista eleitoral. E que teria Konrad feito durante todo aquele tempo, com os recursos da URSS a respaldá-lo? Quem poderia afiançar que, naquele exato momento, sua nave não estivesse já partindo da Terra?...
O sol, que desertara de Taratua, ainda estava alto sobre o lago Baikal, quando Konrad Schneider e o comissário-assis-tente para a ciência nuclear voltaram, caminhando lentamente, após assistir ao teste do motor. Seus ouvidos continuavam pulsando dolorosamente, embora os últimos ecos tivessem morrido do outro lado do lago uns dez minutos antes.
— Por que esse ar preocupado? — perguntou de repente Grigórievitch. — Você agora devia estar feliz. Dentro de um mês estaremos em marcha e os ianques vão se morder de raiva.
— Como sempre, você é otimista — replicou Schneider. — Embora o motor funcione, a coisa não é tão fácil assim. É certo que já não vejo obstáculos mais graves; estou, porém, preocupado com os relatórios que recebemos de Taratua. Já lhe disse que Hoffmann é brilhante e dispõe de bilhões de dólares. As fotos da nave não são muito nítidas, mas ela parece estar quase pronta. E sabemos que ele testou o motor há cinco semanas.
— Não se preocupe — riu Grigórievitch. — Eles é que vão ter uma surpresa e tanto. Não se esqueça de que nada sabem a nosso respeito.
Schneider ficou pensando se isso seria verdade, mas decidiu que era muito mais seguro não expressar dúvidas. Poderia fazer com que a mente de Grigórievitch enveredasse
por caminhos demasiado tortuosos e, se algo tivesse escapado, seria muito difícil explicar-se.
O guarda fez continência, ao vê-lo entrar no edifício da administração. Há quase tantos soldados no prédio, pensou Schneider, com amargura, quanto técnicos. Mas era assim que os russos agiam e, desde que não atrapalhassem seu trabalho, ele não tinha queixas. De um modo geral — com algumas exceções exasperantes — as coisas tinham corrido quase que inteiramente como esperara. Só o futuro poderia dizer quem tinha escolhido melhor, ele ou Reinhold.
Estava trabalhando em seu relatório final, quando o barulho de vozes gritando o interrompeu. Ficou um momento sentado, imóvel, à sua mesa, imaginando o que poderia ter perturbado a rígida disciplina do acampamento. Depois, encaminhou-se para a janela e, pela primeira vez na vida, soube o que era desespero.
As estrelas pareciam envolvê-lo, quando Reinhold desceu o pequeno morro. Ao longe, no mar, o Forrestal continuava a varrer a água com seus fachos de luz, enquanto na praia os andaimes em volta da Columbus se tinham transformado numa árvore de Natal iluminada. Apenas a proa da nave projetava uma sombra escura contra as estrelas.
Um rádio transmitia música de dança dos alojamentos e, inconscientemente, os pés de Reinhold começaram a marcar o ritmo. Tinha chegado quase à estrada estreita que beirava a areia, quando uma premonição, um movimento apenas vislumbrado, o fez parar. Intrigado, olhou da terra para o mar e de novo para a terra: decorreu algum tempo antes que ele tivesse a idéia de olhar para o céu.
Só então Reinhold Hoffmann soube, da mesma forma que Konrad Schneider e no mesmo momento, que tinha perdido a corrida. E soube que a tinha perdido não por uma questão de semanas ou meses, conforme temera, e sim de milênios. As sombras enormes e silenciosas, que cruzavam as estrelas, quilômetros e quilômetros acima de sua cabeça, estavam tão além de sua pequena Columbus quanto esta das canoas de troncos do homem paleolítico. Por um momento, que lhe pareceu eterno, Reinhold ficou a ver, como todo o resto do mundo, as grandes naves descerem, cheias de majestade — até que, por fim, seus ouvidos distinguiram o débil grito provocado por sua passagem através do ar rarefeito da estratosfera.
Não teve pena de ver o trabalho de uma vida ir por água abaixo. Esforçara-se para levar o homem às estrelas e, no momento em que ia consegui-lo, as estrelas — os indiferentes astros — tinham vindo a ele. Naquele momento, a história continha a respiração e o presente se separava do passado como um iceberg se solta da falésia-mãe gelada e sai navegando pelo mar, orgulhoso e solitário. Tudo quanto as épocas passadas haviam conseguido nada mais era agora: um pensamento apenas ecoava no cérebro de Reinhold:
A raça humana já não estava só.
A Terra e os Senhores Supremos
O secretário-geral das Nações Unidas estava imóvel junto à grande janela, olhando para o trânsito engarrafado da Rua 43. Às vezes, ficava pensando se seria bom para um homem trabalhar tão mais alto que os demais seres humanos. Manter distância era ótimo, mas podia-se descambar facilmente para a indiferença. Ou estaria ele apenas tentando racionalizar a raiva que sentia dos arranha-céus, raiva que persistia, mesmo após vinte anos de Nova York?
Ouviu a porta abrir-se atrás dele, mas não se virou quando Pieter van Ryberg entrou na sala. Houve a inevitável pausa, durante a qual Pieter olhou, com desaprovação, para o termostato, pois todo mundo dizia, brincando, que o secretário-geral gostava de viver numa geladeira. Stormgren esperou que o assistente viesse ter com ele e só então afastou o olhar do panorama familiar, mas sempre fascinante, que se avistava da janela.
— Estão atrasados — disse. — Wainwright deveria ter chegado há cinco minutos.
— Acabei de falar com a polícia. Ele traz uma grande comitiva e o trânsito ficou engarrafado. Deve chegar a qualquer momento.
Van Ryberg fez uma pausa e depois acrescentou, abruptamente: — Continua achando que é boa idéia falar com ele?
— Receio que seja um pouco tarde para recuar. Afinal de contas, concordei, embora você saiba que a idéia não partiu de mim.
Stormgren fora até sua mesa e brincava com seu famoso, peso de papéis de urânio. Não estava nervoso — apenas indeciso. Também estava satisfeito de que Wainwright se tivesse atrasado, pois isso lhe daria uma ligeira vantagem moral, quando se iniciasse a entrevista. Trivialidades desse tipo desempenhavam um papel mais importante nas relações humanas do que a lógica e a razão poderiam desejar.
— Aí estão eles! — disse, de repente, Van Ryberg, encostando o rosto na vidraça. — Estão vindo pela avenida. Acho que são uns três mil!
Stormgren pegou o caderno de notas e colocou-se ao lado de seu assistente. A aproximadamente um quilômetro de distância, uma pequena mas decidida multidão dirigia-se, lentamente, para o Edifício do Secretariado. Carregavam bandeiras, indecifráveis ao longe, mas cuja mensagem Stormgren conhecia bem. Não tardou que ouvisse, erguendo-se acima do barulho do trânsito, o canto, ameaçadoramente ritmado, de muitas vozes. Sentiu-se tomado por uma súbita onda de desagrado. O mundo já tinha tido mais do que sua dose de multidões em marcha e slogans indignados!
A passeata estava agora em frente ao edifício. Deviam saber que ele estava olhando, pois aqui e ali punhos se agitavam, de maneira pouco espontânea, no ar. Não o estavam desafiando, embora sem dúvida o gesto fosse para Stormgren ver. À maneira de pigmeus ameaçando um gigante, aqueles punhos cerrados estavam sendo brandidos contra o céu, cinqüenta quilômetros acima da cabeça dele — contra a reluzente nuvem de prata que era a nau capitânea da frota dos Senhores Supremos.
Muito provavelmente, pensou Stormgren, Karellen estava assistindo a tudo e se divertindo a valer, pois aquele encontro nunca teria tido lugar senão por instigação do supervisor.
Era a primeira vez que Stormgren se encontrava com o líder da Liga da Liberdade. Já não queria saber se a medida era acertada, pois os planos de Karellen muitas vezes eram por demais sutis para a compreensão humana. De qualquer maneira, Stormgren não achava que daí pudesse advir qualquer mal. Se se houvesse recusado a receber Wainwright, a liga teria usado o fato como uma arma contra ele.
Alexander Wainwright era um homem alto e de boa aparência, de quase cinqüenta anos. Stormgren sabia que ele era completamente honesto e, por conseguinte, duplamente perigoso. Contudo, a sua transparente sinceridade tornava difícil não gostar dele, fossem quais fossem os pontos de vista que se pudesse ter a respeito da causa que ele encarnava — e de alguns dos simpatizantes que ele atraíra.
Stormgren não perdeu tempo, após as breves e algo tensas apresentações de Van Ryberg.
— Suponho — disse ele — que o piincipal objetivo da sua visita seja protestar formalmente contra o plano da federação. Estou certo, não?
Wainwright assentiu gravemente.
— Realmente, senhor secretário. Como sabe, durante os últimos cinco anos temos procurado alertar a raça humana para o perigo que ela enfrenta. A tarefa tem sido difícil, porque a maioria das pessoas parecem satisfeitas em deixar que os Senhores Supremos governem o mundo conforme lhes pareça. Não obstante, mais de cinco milhões de patriotas, em cada país, assinaram a nossa petição.
— Não é um número considerável, para os dois bilhões e meio de habitantes do nosso mundo.
— Mas é um número que não pode ser ignorado. E, para cada pessoa que assinou, há muitas que sentem grandes dúvidas quanto à sensatez, para não falar na justiça, desse plano da federação. Até mesmo o Supervisor Karellen, com todos os seus poderes, não pode apagar mil anos de história com uma só penada.
— Que sabem as pessoas dos poderes de Karellen? — retrucou Stormgren. — Quando eu era criança, a Federação Européia era um sonho, mas, quando fiquei homem, ela já se tornara realidade. E isso foi antes da chegada dos Senhores Supremos. Karellen está apenas concluindo a obra que tínhamos iniciado.
— A Europa era uma entidade cultural e geográfica; o mundo, não: eis a diferença.
— Para os Senhores Supremos — replicou Stormgren, sarcástico —, a Terra provavelmente é muito menor do que a Europa parecia aos nossos pais e imagino que a visão deles seja mais amadurecida do que a nossa.
— Não sou propriamente contra a federação como um objetivo final, embora muitos dos meus seguidores possam não concordar. Mas acho que ela deve vir de dentro, e não ser imposta por forças de fora. Devemos resolver o nosso destino. Não deve haver mais interferência nos assuntos humanos!
Stormgren suspirou. Já tinha ouvido tudo aquilo mais de cem vezes e sabia que só podia dar a velha resposta, que a Liga da Liberdade se recusara a aceitar. Tinha fé em Kareílen e eles, não. Essa era a diferença básica e nada podia fazer a respeito. Felizmente, nada havia, também, que a Liga da Liberdade pudesse fazer.
— Deixe-me fazer-lhe algumas perguntas — disse ele. — Por acaso é capaz de negar que os Senhores Supremos trouxeram segurança, paz e prosperidade ao mundo?
— É verdade. Mas tiraram-nos a liberdade. Nem só de pão vive o homem.
— É, eu sei, mas esta é a primeira era em que o homem tem a certeza de conseguir ao menos isso. De qualquer maneira, qual a liberdade que perdemos, comparada com a que os Senhores Supremos nos deram pela primeira vez na história da humanidade?
— A liberdade de controlar as nossas próprias vidas, guiados por Deus.
Até que enfim, pensou Stormgren, chegamos ao ponto crucial. No fundo, trata-se de um conflito religioso, por mais que tentem disfarçá-lo. Wainwright nunca nos deixa esquecer que já foi padre. Embora já não use batina, a gente tem sempre a impressão de que ele está de colarinho clerical.
— No mês passado — recordou Stormgren — uma centena de bispos, cardeais e rabinos assinou uma declaração conjunta em apoio à política do supervisor. As religiões do mundo estão contra os senhores.
Wainwright sacudiu a cabeça em indignada negativa.
— Muitos dos líderes estão cegos: foram corrompidos pelos Senhores Supremos. Quando se aperceberem do perigo, pode ser demasiado tarde. A humanidade terá perdido a iniciativa, ter-se-á tornado uma raça dominada.
Fez-se silêncio por um momento, mas logo Stormgren replicou:
— Daqui a três dias, terei uma nova entrevista com o supervisor. Explicar-lhe-ei as suas objeções, pois é meu dever apresentar-lhe os pontos de vista do mundo. Mas isso não irá alterar nada, posso garantir.
— Há ainda outra coisa — disse lentamente Wainwright. — Temos muitas objeções aos Senhores Supremos, mas, acima de tudo, detestamos o segredo em que se envolvem. O senhor é o único ser humano que conseguiu falar com Karellen e, mesmo assim, nunca o viu! É de se admirar que duvidemos dos motivos dele?
— Apesar de tudo o que ele tem feito pela humanidade?
— Sim, apesar disso. Não sei o que achamos pior: a onipotência de Karellen ou o segredo de que ele se cerca.
Se não tem nada a esconder, por que nunca se mostra? Da próxima vez que falar com o supervisor, Sr. Stormgren, pergunte-lhe isso!
Stormgren ficou calado. Nada havia que ele pudesse retrucar a esses argumentos — nada, pelo menos, capaz de convencer o outro. Às vezes, pensava se ele próprio realmente se convencera.
Tratava-se, naturalmente, de operação muito pequena, do ponto de vista deles, mas, para a Terra, era a maior coisa que já tinha acontecido. As grandes naves tinham vindo das incógnitas profundezas do espaço, sem qualquer aviso prévio. Aquele dia fora inúmeras vezes descrito em ficção, mas ninguém tinha realmente acreditado que algum dia ele chegasse. Agora, porém, chegara: as formas reluzentes e silenciosas que pairavam sobre cada país eram o símbolo de uma ciência que o homem não sonharia sequer igualar senão dali a séculos. Durante seis dias, elas haviam flutuado, imóveis, sobre as cidades dos homens, sem dar a entender que sabiam da sua existência. Mas nem era preciso: não havia coincidência que pudesse ter levado aquelas possantes naves a pairar precisamente sobre Nova York, Londres, Paris, Moscou, Roma, Cidade do Cabo, Tóquio, Canberra. . .
Antes mesmo de se terem escoado aqueles seis terríveis dias, alguns homens haviam adivinhado a verdade. Aquela não era uma primeira tentativa de contato de uma raça que nada sabia a respeito dos homens. Dentro daquelas naves paradas e silenciosas, mestres em psicologia estudavam as reações da humanidade. Quando a curva de tensão atingisse o máximo, entrariam em ação.
Foi assim que, no sexto dia, Karellen, supervisor encarregado da Terra, se deu a conhecer ao mundo através de uma transmissão que cobriu todas as freqüências radiofônicas. Falou num inglês tão perfeito, que deu início a uma controvérsia destinada a dividir toda uma geração de um lado a outro do Atlântico. O contexto de sua fala foi ainda mais surpreendente do que sua emissão. Era a obra de um autêntico gênio, mostrando um domínio completo e absoluto dos assuntos humanos. Não podia haver dúvida de que sua erudição e seu virtuosismo, os estarrecedores aspectos de um conhecimento ainda inexplorado, tinham o fim deliberado de convencer os homens de que estavam na presença de um extraordinário poder intelectual. Quando Karellen terminara, as nações da Terra souberam que seus dias de precária soberania haviam chegado ao fim. Os governos internos, locais, continuariam retendo os seus poderes, mas, no campo mais amplo dos assuntos internacionais, as decisões supremas não mais caberiam aos humanos. Argumentações, protestos, tudo era inútil.
Dificilmente se poderia esperar que todas as nações do mundo se submetessem docilmente a uma tal limitação de seus poderes. Contudo, a resistência ativa apresentava sérias dificuldades, pois a destruição das naves dos Senhores Supremos, mesmo que possível, aniquilaria as cidades situadas abaixo delas. Não obstante, uma das principais potências fizera uma tentativa nesse sentido. Talvez os responsáveis por ela esperassem matar dois pássaros com um só míssil atômico, porquanto o seu alvo estava flutuando sobre a capital de uma nação vizinha e inimiga.
Quando a imagem da grande nave surgira na tela de televisão, na sala de controle secreto, o pequeno grupo de * oficiais e técnicos devia ter sido presa de muitas emoções. Se tivessem êxito — que ação tomariam as naves restantes? Poderiam também ser destruídas, permitindo à humanidade continuar no seu caminho? Ou desencadearia Karellen uma terrível vingança sobre os que tinham ousado atacá-lo?
A tela ficara subitamente branca quando o míssil se destruíra com o impacto, e a imagem passara imediatamente para uma câmara transportada por via aérea, a muitos quilômetros de distância. Na fração de segundo que decorrera, deveria ter-se formado uma bola de fogo, que devia estar enchendo o céu com suas chamas solares.
Mas nada disso acontecera. As grandes naves tinham continuado a pairar, banhadas pela luz crua do sol, na fronteira do espaço. Não só a bomba não conseguira acertá-las, como ninguém pudera jamais chegar a uma conclusão sobre o que acontecera ao míssil. Além do mais, Karellen não tomara qualquer atitude contra os responsáveis ou sequer demonstrara ter tido conhecimento do ataque. Ignorara-os com o maior desprezo, deixando-os preocupados com uma vingança que nunca se concretizou. Fora um tratamento muito mais efetivo e desmoralizante do que qualquer ação punitiva. O governo responsável caíra algumas semanas mais tarde, vítima de recriminações mútuas.
Houvera também alguma resistência passiva à política dos Senhores Supremos. Karellen contornara-a deixando que os implicados agissem como queriam, até descobrirem que só estavam se prejudicando com a recusa a cooperar. Só uma vez tomara medidas diretas contra um governo recalcitrante.
Durante mais de um século, a República da África do Sul fora centro de lutas raciais. De ambos os lados, homens de boa vontade tinham tentado chegar a um acordo que permitisse uma aproximação, mas tudo fora em vão — os temores e preconceitos estavam por demais enraizados para permitir qualquer cooperação. Governos sucessivos só haviam diferido no grau de tolerância. O país estava envenenado pelo ódio e pelas seqüelas de uma guerra civil.
Quando se tornou claro que nenhuma tentativa seria feita para pôr fim à discriminação, Karellen dera o aviso. Marcara apenas uma data e um prazo — nada mais. Isso causara apreensão, mas não propriamente medo ou pânico, pois ninguém acreditava que os Senhores Supremos tomassem qualquer atitude violenta, que envolvesse ao mesmo tempo inocentes e culpados.
E não tomaram. Aconteceu apenas que, quando o sol passou pelo meridiano da Cidade do Cabo, ele como que se apagou. Ficou apenas visível um fantasma pálido e arroxea-do, que não irradiava luz ou calor. Não se sabia como, no espaço, a luz do sol fora polarizada por dois campos atravessados, que evitavam a passagem de qualquer radiação. A área afetada era perfeitamente circular e tinha um diâmetro de quinhentos quilômetros.
A demonstração durou trinta minutos. Foi mais do que suficiente: no dia seguinte, o governo da África do Sul anunciava que todos os direitos civis seriam restituídos à minoria branca.
Excetuando-se esses incidentes isolados, a raça humana aceitara os Senhores Supremos como parte da ordem natural das coisas. Num espaço de tempo surpreendentemente curto, o choque inicial passou e o mundo continuou como antes. A maior mudança que um moderno Rip van Winkle teria notado, se acordasse de repente, seria uma certa expectativa, um olhar disfarçado, enquanto a humanidade esperava que os Senhores Supremos se deixassem ver e desembarcassem das suas reluzentes naves.
Cinco anos depois, a humanidade continuava esperando. Nisso, pensou Stormgren, estava a causa de tudo.
Quando o carro de Stormgren chegou ao campo de aterrissagem, havia o costumeiro círculo de curiosos, câmeras a postos. O secretário-geral trocou algumas palavras finais com seu assistente, pegou a pasta e atravessou pelo meio da roda de espectadores.
Karellen nunca o fazia esperar muito. Um súbito "Oh!" elevou-se da multidão ali reunida e uma bolha prateada deslocou-se, com enorme velocidade, no céu, acima deles. Uma rajada de ar fez esvoaçar a roupa de Stormgren quando a diminuta nave pousou a cinqüenta metros dali, flutuando delicadamente alguns centímetros acima do solo, como se temesse o contato com a Terra. Avançando lentamente na direção dela, Stormgren viu o já familiar franzido no casco metálico sem emendas, e, logo a seguir, a abertura que tanto intrigara os maiores cientistas do mundo surgiu diante dele. Passou por ela e penetrou no único compartimento da nave, iluminado com luz suave. A abertura fechou-se como se nunca tivesse existido, vedando a entrada de qualquer som e luz.
Cinco minutos mais tarde, voltou a se abrir. Não houvera sensação alguma de movimento, mas Stormgren sabia que estava agora a cinqüenta quilômetros acima da Terra, no interior da nave de Karellen. Estava no mundo dos Senhores Supremos: à sua volta, eles tratavam de seus misteriosos assuntos. Stormgren chegara mais perto deles do que qualquer outro homem; contudo, não sabia mais sobre sua natureza física do que os milhões de habitantes do mundo, lá embaixo.
A pequena sala de conferências ao fundo do curto corredor não tinha móveis, exceto uma única cadeira e a mesa, sob a tela de televisão. Propositadamente, nada dizia das criaturas que a tinham construído. A tela de televisão estava vazia, como sempre. Por vezes, em sonhos, Stormgren imaginara que ela de repente se acendia, revelando o segredo que atormentava o mundo. Mas o sonho nunca se tornara reali-dae: por trás daquele retângulo de escuridão, o mistério era completo. Mas havia também poder e sabedoria, uma imensa e tolerante compreensão para com a humanidade e, coisa absolutamente inesperada, um afeto bem-humorado pelas criaturazinhas que rastejavam lá embaixo, na Terra distante.
Através da grade oculta ouviu-se a voz calma e jamais apressada que Stormgren tão bem conhecia, embora o mundo só a tivesse ouvido uma vez em toda a sua história. Sua profundidade e ressonância davam a única pista que existia para a natureza física de Karellen, pois transmitiam uma impressionante idéia de tamanho. Karellen era grande — talvez muito maior do que um homem comum. Era verdade que alguns cientistas, após terem analisado a gravação da sua única fala, tinham sugerido que a voz saía de uma máquina. Mas isso era algo em que Stormgren jamais pudera acreditar.
— Sim, Rikki, eu escutei a entrevista de vocês. Que achou do Sr. Wainwright?
— É um homem honesto, mas muitos dos que o apoiam não o são. Que vamos fazer com ele? A liga em si não é perigosa, mas alguns dos extremistas que fazem parte dela advogam abertamente a violência. Estive pensando se não seria boa idéia colocar um guarda à porta de minha casa, embora espere que isso não seja necessário.
Karellen fingiu não ouvir, reação irritante que ele às vezes tinha.
— Faz um mês que os detalhes da Federação Mundial são do conhecimento geral. Houve algum aumento substancial nos sete por cento que são contra, ou nos doze por cento que "não sabem"?
— Ainda não. Mas isso não tem importância: o que me preocupa é o sentimento generalizado, mesmo entre seus simpatizantes, de que todo esse segredo deve chegar ao fim.
O suspiro de Karellen foi tecnicamente perfeito, embora lhe faltasse convicção.
— Também pensa assim, não?
A pergunta era tão retórica, que Stormgren não se deu ao trabalho de responder.
— Gostaria de saber se realmente se dá conta — continuou ele — da dificuldade que esse estado de coisas traz à minha missão.
— E à minha também — replicou Karellen, algo irritado. — Gostaria que as pessoas deixassem de pensar em mim como um ditador e se lembrassem de que sou apenas um funcionário, tentando administrar uma política colonial em cuja formação não tive voz ativa.
Uma insinuante descrição, pensou Stormgren, imaginando até que ponto seria verdadeira.
— Não pode ao menos dar-nos alguma razão para nunca aparecer? Nós não entendemos, irrita-nos e dá origem a mil e um boatos.
Karellen soltou uma das suas risadas profundas, demasiado ressonantes para serem cem por cento humanas.
— Que é que dizem de mim, agora? A teoria do robô ainda está de pé? Preferia ser uma massa de tubos eletrônicos a algo parecido com uma centopéia. Oh, sim, vi aquela caricatura que saiu no Chicago Tribune de ontem! Estou pensando em pedir o original.
Stormgren comprimiu os lábios. Havia ocasiões, pensou, em que Karellen encarava seus deveres com certa leviandade.
— A coisa é séria — disse ele, em tom de reprovação.
— Meu caro Rikki — retrucou Karellen —, só não levando a sério a raça humana é que consigo conservar os fragmentos que ainda possuo de meus outrora consideráveis poderes mentais!
Mesmo sem querer, Stormgren sorriu.
— Isso não me ajuda em nada, ajuda? Tenho de voltar e convencer meus irmãos homens de que, embora você não se mostre, nada tem a esconder. Não é trabalho fácil. A curiosidade é uma das mais fortes características humanas. Não vai poder desafiá-la eternamente.
— De todos os problemas com que nos defrontamos quando descemos à Terra, foi esse o mais difícil — admitiu Karellen. — Vocês confiaram em nossa sabedoria em outros assuntos; também podem, sem dúvida, confiar em nós agora.
— Eu confio em vocês — disse Stormgren —, mas Wainwright, não, e nem os que o apoiam. Serão eles culpados de interpretá-los mal, se vocês se recusam a mostrar-se?
O silêncio reinou durante um momento, mas logo Stormgren ouviu um leve ruído (seria um estalo?) que poderia ter sido causado pelo supervisor, movendo ligeiramente o corpo.
— Sabe por que Wainwright e os de seu tipo me temem, não sabe? — perguntou Karellen. Sua voz era agora sombria, como um grande órgão tocando no alto da nave central de uma antiga catedral. — Você encontrará homens como ele em todas as religiões do mundo. Sabem que nós representamos a razão e a ciência e, por mais confiança que tenham em suas crenças, temem que lhes derrubemos os deuses. Não necessariamente mediante um ato deliberado, mas de forma mais sutil. A ciência pode destruir a religião de duas maneiras: ignorando-a ou deitando abaixo seus dogmas. Ninguém jamais demonstrou, até onde eu saiba, a não-exis-tência de Zeus ou de Thor; mas hoje em dia eles têm poucos seguidores. Os Wainwright também temem que a gente conheça a verdade sobre as origens de suas fés. Há quanto tempo, pensam eles, vimos observando a humanidade? Teremos visto Maomé dar início a Hégira, ou Moisés dando aos judeus as Tábuas da Lei? Saberemos acaso o que há de falso nas histórias em que eles acreditam?
— E vocês sabem? — murmurou Stormgren, quase para si mesmo.
— Esse, Rikki, é o medo que os atormenta, embora eles jamais o confessem abertamente. Creia-me, não temos nenhum prazer em destruir a fé dos homens, mas nem todas as religiões do mundo podem estar certas, e eles sabem disso. Mais cedo ou mais tarde, o homem terá que ficar sabendo a verdade; o momento, porém, ainda não chegou. Quanto ao segredo de que nos cercamos, e que você corretamente acusa de agravar seus problemas, é assunto que escapa ao nosso controle. Lamento tanto quanto você a necessidade que nos leva a não nos mostrarmos, mas as razões são mais do que suficientes. Não obstante, procurarei conseguir uma declaração dos meus. . . superiores. . . que talvez o satisfaça e possa aplacar a Liga da Liberdade. Agora, que tal voltarmos à nossa agenda e começarmos de novo a gravar?
— Que tal? — perguntou Van Ryberg, ansioso. — Algum resultado?
— Não sei — respondeu Stormgren jogando os dossiês em cima da mesa e deixando-se cair na cadeira. — Karellen está no momento consultando seus superiores, sejam eles quem forem. Não quer fazer nenhuma promessa.
— Escute — disse Pieter, abruptamente —, acabei de ter uma idéia. Que motivo temos nós para crer que haja alguém além de Karellen? Suponha que todos os Senhores Supremos, como nós os batizamos, estejam aqui mesmo, na Terra, a bordo dessas suas naves? Podem não ter mais nenhum lugar para onde ir, mas querem esconder esse fato de nós.
— É uma teoria interessante — riu Stormgren —, mas que colide com o pouco que sei, ou penso que sei, a respeito dos antecedentes de Karellen.
— E que é que você sabe?
— Bem, ele costuma referir-se a sua posição aqui como algo temporário, mas que o impede de se dedicar a sua verdadeira ocupação, que julgo seja alguma forma de matemática. Certa vez, mencionei a citação de Acton sobre a corrupção pelo poder e a corrupção absoluta do poder absoluto. Quis ver como ele reagiria a isso. Deu uma de suas risadas cavernosas e disse: "Não há perigo de que tal aconteça comigo. Em primeiro lugar, quanto mais cedo eu terminar meu trabalho aqui, mais cedo poderei voltar a minha terra, que fica a muitos anos-luz daqui. Em segundo lugar, não tenho poderes absolutos. Sou apenas um supervisor". Naturalmente, ele podia não estar sendo sincero comigo. Isso eu nunca poderei saber.
— Ele é imortal, não é?
— Sim, por nosso padrões, embora haja algo no futuro que ele parece temer. Não posso imaginar o que seja. E é tudo o que sei a respeito dele.
— Não leva a muitas conclusões. Minha teoria é de que sua pequena frota se perdeu no espaço e está à procura de um novo porto. Ele não quer que a gente saiba quão poucos ele e seus camaradas são. Talvez todas essas naves sejam automáticas e não haja ninguém dentro delas. Talvez não passem de uma fachada imponente.
— Acho que você tem lido demasiada ficção científica — disse Stormgren.
Van Ryberg riu, meio velhacamente.
— A "Invasão que veio do espaço" não saiu exatamente conforme se esperava, hein? Minha teoria explicaria pelo menos por que Karellen nunca se mostra. Não quer que a gente saiba que não há mais Senhores Supremos.
Stormgren abanou a cabeça, em bem-humorado desacordo.
— Como de costume, suas explicações são por demais engenhosas para serem verdadeiras. Embora só possamos imaginar sua existência, deve haver uma grande civilização por trás do supervisor: uma civilização que há muito, muito tempo, conheça a humanidade. O próprio Karellen deve nos vir estudando há séculos. Veja, por exemplo, seu domínio do inglês. Ele me ensinou a falá-lo idiomaticamente!
— Você já descobriu algo que ele não saiba?
— Oh, sim, muitas vezes, mas só coisas triviais. Acho que ele tem uma memória perfeita, mas há coisas que não se deu ao trabalho de aprender. Por exemplo, o inglês é a única língua que ele compreende inteiramente, embora nos últimos dois anos tenha me falado um bocado em finlandês, só para mexer comigo. E ninguém aprende finlandês de uma hora para outra! É capaz de citar grandes trechos do Kalevala, ao passo que eu me envergonho de confessar que só conheço uns poucos versos. Sabe também as biografias de todos os estadistas vivos e, às vezes, consigo identificar as referências que ele utilizou. Seu conhecimento de história e de ciência parece total: você sabe o quanto já aprendemos com ele. Entretanto, tomados um por um, não creio que seus dotes mentais estejam muito além do alcance humano. Só que nenhum homem poderia fazer todas as coisas que ele faz.
— É mais ou menos a conclusão a que eu também cheguei — concordou Van Ryberg. — Podemos especular a respeito de Karellen, mas no fim acabaremos fazendo sempre a mesma pergunta: por que diabo ele não se mostra? Enquanto isso não acontecer, continuarei com minhas teorias e a Liga da Liberdade continuará fulminando.
Deitou um olhar rebelde para o teto.
— Uma noite destas, senhor supervisor, espero que algum repórter pegue um foguete para sua nave e entre pela porta dos fundos, com uma câmera. Que furo não seria!
Se Karellen estava escutando, não deu qualquer sinal. Mas a verdade é que nunca dava.
No primeiro ano de sua chegada, o advento dos Senhores Supremos tinha feito menos diferença do que seria de esperar para a vida dos humanos. Sua sombra estava em todo lado, mas era uma sombra discreta. Embora fossem poucas as grandes cidades da Terra onde os homens não pudessem ver uma das naves prateadas reluzindo contra o zênite, passado algum tempo elas começaram a ser encaradas com naturalidade, como se fossem o sol, a lua ou simples nuvens. A maioria dos homens provavelmente não se dava conta de que os seus cada vez melhores padrões de vida se deviam aos Senhores Supremos. Quando paravam para pensar nisso — o que era raro — percebiam que aquelas naves silenciosas tinham trazido a paz ao mundo pela primeira vez na história e sentiam-se gratos.
Mas eram benefícios negativos e não-espetaculares, aceitos e logo esquecidos. Os Senhores Supremos permaneciam distantes, escondendo seus rostos da humanidade. Karellen podia despertar respeito e admiração, mas não conquistar algo mais profundo, enquanto persistisse na sua atual política. Era difícil não ter ressentimento contra aqueles habitantes do Olimpo, que só falavam com o homem através de circuitos de radiotelex, na sede das Nações Unidas. O que se passava entre Karellen e Stormgren nunca era publicamente revelado, e às vezes o próprio Stormgren se perguntava por que seria que o supervisor considerava aqueles encontros necessários. Talvez achasse que precisava de contato direto pelo menos com um ser humano; talvez sentisse que Stormgren precisava dessa forma de apoio pessoal. Se a explicação era essa, o secretário-geral apreciava-a: não se incomodava com que a Liga da Liberdade se referisse a ele, desprezivelmente, como "o office boy de Karellen".
Os Senhores Supremos nunca tinham tido contato com nações ou governos individuais. Haviam tomado a Organização das Nações Unidas como a tinham encontrado, dado instruções para a instalação do equipamento de rádio necessário e transmitido suas ordens pela boca do secretário-geral. O delegado soviético fizera ver, corretamente e em inúmeras ocasiões, que aquilo não estava de acordo com a Carta. Karellen não parecia preocupado com isso.
Era realmente surpreendente que tantos abusos, tanta loucura e tantos males pudessem ter acabado com aquelas mensagens vindas do céu. Com a chegada dos Senhores Supremos, as nações ficaram sabendo que não precisavam mais temer umas às outras, e adivinharam — antes mesmo que a experiência fosse feita — que as armas existentes eram impotentes contra uma civilização capaz de servir de ponte entre os astros. Isso removera o maior obstáculo à felicidade dos homens.
Os Senhores Supremos pareciam bastante indiferentes às formas de governo, desde que não fossem opressivas ou corruptas. A Terra continuava com democracias, monarquias, ditaduras benevolentes, comunismo e capitalismo. Isso foi uma grande surpresa para muitas criaturas simplórias, profundamente convencidas de que o seu era o único modo de vida possível. Outros achavam que Karellen estava esperando apenas para introduzir um sistema que derrubaria todas as outras formas existentes de sociedade e por isso não se preocupara com pequenas reformas políticas. Mas, como todas as especulações a respeito dos Senhores Supremos, também essa era pura adivinhação. Ninguém conhecia os motivos deles — e ninguém sabia para que futuro eles estavam levando a humanidade.
Stormgren não estava dormindo bem, o que era estranho, pois em breve deveria ver-se para sempre livre das preocupações de seu cargo. Havia quarenta anos que servia à humanidade, havia cinco anos que servia aos Senhores Supremos e poucos homens poderiam olhar para trás e ver tantas ambições realizadas. Talvez fosse esse o problema: quando se aposentasse — e poderia viver anos aposentado —, não teria mais metas para lhe dar estímulo à vida. Desde que Martha morrera e os filhos haviam formado suas próprias famílias, os elos que o prendiam ao mundo pareciam ter enfraquecido. Também podia ser que ele estivesse começando a se identificar com os Senhores Supremos, tornando-se distante da humanidade.
Aquela era outra das muitas noites de insônia, em que seu cérebro parecia andar à roda, como uma máquina cujo sistema de controle tivesse falhado. Sabia que não adiantava tentar dormir, levantou-se, relutante. Vestindo o robe, saiu para o pequeno terraço de seu modesto apartamento de cobertura. Não havia um só de seus subordinados diretos que não possuísse uma residência muito mais luxuosa, mas aquele apartamento era mais do que suficiente para Stormgren. Chegara a uma posição em que nem bens pessoais, nem honrarias oficiais podiam acrescentar algo a sua estatura.
A noite era quente, de um calor quase opressivo, mas o céu estava claro e uma lua brilhante parecia pairar a sudoeste. A dez quilômetros de distância, as luzes de Nova York coruscavam no horizonte qual uma aurora congelada no ato de romper.
Stormgren ergueu os olhos acima da cidade adormecida, para as alturas às quais só ele, dentre todos os homens, subira. Embora estivesse muito longe, podia ver o casco da nave de Karellen, reluzindo ao luar. Ficou imaginando o que o supervisor estaria fazendo, pois não acreditava que os Senhores Supremos alguma vez dormissem.
Lá em cima, um meteoro cruzou a redoma do céu. Sua trilha luminosa permaneceu por algum tempo, mas logo desapareceu, deixando apenas as estrelas. O aviso foi brutal: dali a cem anos, Karellen continuaria a guiar a humanidade rumo à meta que só ele podia ver, mas dentro de quatro meses outro homem seria secretário-geral. O fato em si pouca importância tinha para Stormgren; significava, porém, que lhe restava muito pouco tempo, se esperava saber o que havia por trás daquela tela às escuras.
Só naqueles últimos dias ousara confessar que o segredo em torno dos Senhores Supremos estava começando a obcecá-lo. Até bem pouco tempo atrás, sua fé em Karellen mantivera-o livre de dúvidas; mas agora ele não podia deixar de admitir que os protestos da Liga da Liberdade estavam começando a fazer efeito sobre ele. Era verdade que toda a grita sobre a escravização do homem não passava de mera propaganda. Poucas pessoas acreditavam seriamente nisso, ou desejavam realmente voltar aos velhos tempos. Os homens tinham se acostumado ao governo imperceptível de Karellen — mas estavam ficando impacientes por saber quem os governava. E quem podia culpá-los por isso?
Embora fosse a maior de todas, a Liga da Liberdade era apenas uma das organizações que se opunham a Karellen e, conseqüentemente, aos humanos que cooperavam com os Senhores Supremos. As objeções e políticas desses grupos variavam muito: alguns baseavam-se num ponto de vista político, enquanto outros expressavam simplesmente um sentimento de inferioridade. Sentiam-se, com toda a razão, mais ou menos como um indiano culto do século XIX deveria ter se sentido, ao contemplar o raj britânico. Os invasores tinham trazido paz e prosperidade à Terra — mas quem poderia dizer qual seria o preço a pagar? A história estava longe de ser tranqüilizadora: até mesmo os mais pacíficos contatos entre as raças de níveis culturais muito diferentes tinham freqüentemente resultado na destruição da sociedade mais atrasada. As nações, como os indivíduos, podiam perder seu espírito de luta, quando confrontadas por um desafio ao qual não podiam corresponder. E a civilização dos Senhores Supremos, embora envolta em mistério, era o maior desafio que o homem já enfrentara.
A máquina fac-símile na sala ao lado emitiu um débil "clique", ao ejetar o sumário enviado, de hora em hora, pela Central de Notícias. Stormgren entrou e passou, meio desanimado, os olhos pelas folhas. No outro lado do mundo, a Liga da Liberdade inspirara uma manchete não muito original. O homem É governado por monstros? perguntava o jornal, e prosseguia: "Falando num encontro realizado hoje em Madras, o Dr. C. V. Krishnan, presidente da Divisão Oriental da Liga da Liberdade, disse o seguinte: 'A explicação para o comportamento dos Senhores Supremos é muito simples. O seu aspecto físico é tão estranho e repulsivo, que eles não ousam mostrar-se à humanidade. Desafio o supervisor a negar o que afirmo' ".
Stormgren pousou o jornal, aborrecido. Mesmo que a acusação fosse verdadeira, que interesse tinha? A idéia não era nova, mas nunca o preocupara. Não acreditava que existisse qualquer forma biológica, por mais estranha que fosse, que ele, com o tempo, não pudesse aceitar e talvez até achar bonita. O que importava não era o corpo, e sim a mente. Se conseguisse convencer Karellen disso, os Senhores Supremos talvez mudassem a sua política. Sem dúvida não podiam ser tão horrendos quanto os desenhos imaginativos que tinham enchido os jornais, logo após sua chegada à Terra! Contudo, não era apenas — e Stormgren sabia disso — consideração por seu sucessor o que o tornava ansioso por ver o fim daquele estado de coisas. Ele era suficientemente sincero para confessar que, em última análise, seu principal motivo era simples curiosidade humana. Acostumara-se a considerar Karellen como uma pessoa e nunca ficaria satisfeito enquanto não descobrisse que tipo de criatura ele era.
Quando, na manhã seguinte, Stormgren não chegou à hora de costume, Pieter van Ryberg ficou surpreso e algo irritado. Embora o secretário-geral muitas vezes fizesse alguns telefonemas antes de ir para o escritório, nunca deixava de avisar antecipadamente. Essa manhã, para piorar ainda mais as coisas, tinha havido vários recados urgentes para Stormgren. Van Ryberg ligou para meia dúzia de departamentos, tentando localizá-lo, e acabou desistindo, aborrecido.
Ao meio-dia, alarmado, resolveu mandar um carro até a casa de Stormgren. Dez minutos mais tarde, mais alarmado ficou ao ouvir uma sirene e ver um carro da polícia subir disparado a Alameda Roosevelt. As agências de notícias deviam ter amigos naquele veículo, porque, ao mesmo tempo em que Van Ryberg o via aproximar-se, o rádio anunciava ao mundo que ele já não era apenas assistente, e sim secretário-geral em exercício das Nações Unidas.
Se Van Ryberg não tivesse tantos problemas nas mãos, teria achado divertido ver as reações da imprensa ao desaparecimento de Stormgren. Durante todo aquele mês, os jornais do mundo se haviam dividido em dois grupos bem definidos. A imprensa ocidental, de modo geral, aprovava o plano de Karellen, transformando todos os homens em cidadãos do mundo. Os países do Leste, por outro lado, estavam passando por violentos, embora sintéticos, espasmos de orgulho nacional. Alguns eram independentes havia pouco mais de uma geração e sentiam-se despojados do que haviam conquistado. As críticas aos Senhores Supremos eram unânimes e enérgicas: após um período inicial de extrema cautela, a imprensa descobrira que podia desferir os ataques que quisesse contra Karellen, sem temor a represálias, e agora parecia querer exceder-se.
A maioria desses ataques, embora veemente, não era representativa da grande massa popular. Ao longo das fronteiras, em breve destinadas a desaparecer, o número de guardas tinha sido dobrado, mas os soldados olhavam-se uns aos outros com uma amizade ainda pouco articulada. Os políticos e os generais podiam gritar e bradar, mas a maioria silenciosa, os milhões que esperavam, achava que, dentro em pouco, um longo e sangrento capítulo da história chegaria ao fim.
E agora Stormgren sumira, ninguém sabia para onde. O tumulto cedeu de repente, quando o mundo percebeu que perdera o único homem através do qual os Senhores Supremos, por alguma estranha razão, falavam à Terra. Uma espécie de paralisia pareceu cair sobre a imprensa e os comentaristas radiofônicos. Em meio ao silêncio, porém, podia-se ouvir a voz da Liga da Liberdade, protestando inocência ansiosamente.
A escuridão era completa, quando Stormgren despertou. Durante um momento, o sono não o deixou aperceber-se da estranheza do fato. Mas, quando por fim acordou, sentou-se, sobressaltado, e tateou com a mão, à procura do interruptor ao lado de sua cama.
No escuro, a mão encontrou uma parede de pedra, nua e fria ao toque. Ficou gelado, o corpo e a mente paralisados pelo impacto do inesperado. Depois, mal acreditando em seus sentidos, ajoelhou-se na cama e começou a explorar, com as pontas dos dedos, aquela parede tão chocantemente estranha.
Havia apenas um momento que estava fazendo isso, quando se ouviu um súbito "clique" e uma parte da escuridão como que deslizou para um lado. Logo ele avistou um homem recortado contra um fundo pouco iluminado; depois, a porta tornou a fechar-se e a escuridão voltou a envolver tudo. A coisa aconteceu tão rapidamente, que ele não teve tempo de ver nada do quarto em que jazia.
Dali a um momento, sentiu-se ofuscado pela luz de uma potente lanterna elétrica. O facho de luz percorreu-lhe o rosto, fixou-se por um instante nele e depois mergulhou, iluminando toda a cama, que nada mais era, via ele agora, do que um colchão apoiado em tábuas grosseiras.
Em meio à escuridão, uma voz falou-lhe num inglês excelente, mas com um sotaque cuja origem Stormgren não conseguiu, a princípio, identificar.
— Ah, senhor secretário, fico satisfeito de ver que o senhor acordou. Espero que se sinta perfeitamente bem.
Algo nessa última frase chamou a atenção de Stormgren, fazendo com que as perguntas indignadas que ele estava a ponto de desferir lhe morressem nos lábios. Olhou para a escuridão e retrucou calmamente:
— Quanto tempo estive inconsciente? O outro riu.
— Vários dias. Prometeram-nos que não haveria reações posteriores. Folgo em ver que é verdade.
Em parte para ganhar tempo e em parte para testar suas reações, Stormgren pôs as pernas para fora da cama. Usava ainda a roupa de dormir, mas toda amassada e parecendo bastante suja. Ao se mexer, sentiu uma ligeira tontura — não o suficiente para ser desagradável, mas sim para convencê-lo de que realmente tinha sido dopado.
Virou-se para a luz.
— Onde estou? — perguntou indignado. — Wain-wright sabe disso?
— Não fique nervoso — respondeu a pessoa a sua frente. — Não vamos falar já dessas coisas. Imagino que esteja com muita fome. Vista-se e venha jantar.
O facho de luz deslizou pelo quarto e, pela primeira vez, Stormgren pôde fazer idéia das suas dimensões. Mal se podia dizer que fosse um quarto, pois as paredes pareciam abertas na rocha viva, se bem que tivessem sido desbastadas. Compreendeu que estava debaixo da terra, talvez a uma grande profundidade. E, se estivera inconsciente durante vários dias, podia encontrar-se em qualquer lugar do planeta.
A lanterna elétrica iluminou uma pilha de roupas, dobradas sobre uma mala de viagem.
— Deve chegar — disse a voz vinda do escuro. — Lavar roupa aqui é um problema, de modo que pegamos dois ternos seus e meia dúzia de camisas.
— Quanta consideração! — comentou Stormgren, sarcástico.
— Pedimos desculpas pela ausência de móveis e de luz elétrica. Este lugar é conveniente sob certos aspectos, mas não tem nenhum conforto.
— Conveniente para quê? — perguntou Stormgren, vestindo uma camisa. O contato do pano, seu velho conhecido, tranqüilizou-o surpreendentemente.
— Apenas conveniente — retrucou a voz. — E, a propósito, já que provavelmente vamos passar bastante tempo juntos, pode me chamar de Joe.
— Apesar da sua nacionalidade — replicou Stormgren —, porque você é polonês, não é? acho que seria capaz de pronunciar seu verdadeiro nome. Não pode ser pior do que muitos nomes finlandeses.
Fez-se uma breve pausa e a luz tremulou por um momento.
— Bem, eu devia ter esperado isso mesmo — disse Joe, em tom resignado. — O senhor deve ter muita experiência nesse tipo de coisa.
— É um hobby útil para um homem na minha posição. Aposto como você foi criado nos Estados Unidos, mas não saiu da Polônia até...
— Basta — disse Joe, com firmeza. — Parece que já terminou de vestir-se. Vamos indo.
A porta abriu-se assim que Stormgren se dirigiu para ela, sentindo-se satisfeito pela sua pequena vitória. Joe afastou-se para deixá-lo passar e Stormgren ficou pensando se o outro não estaria armado. Era quase certo que sim e, de qualquer maneira, não estaria só.
O corredor era parca e intermitentemente iluminado por lamparinas, e pela primeira vez Stormgren pôde ver Joe claramente. Era um homem dos seus cinqüenta anos e que devia pesar mais de cem quilos. Tudo nele era enorme, desde t o uniforme de batalha manchado, que podia ter vindo de meia dúzia de forças armadas, até o grande anel de sinete em sua mão esquerda. Um homem daquele tamanho provavelmente nem se daria ao trabalho de andar armado. Não seria difícil seguir-lhe a pista, pensou Stormgren, se conseguisse sair deste lugar. Sentiu-se um pouco deprimido ao lembrar-se de que Joe também devia estar perfeitamente cônscio disso.
As paredes do corredor, embora aqui e ali revestidas de concreto, eram quase que inteiramente de rocha viva. Não havia dúvida de que estavam numa mina abandonada e Stormgren pensou que poucas prisões seriam mais eficientes. Até então, o fato de ter sido seqüestrado não o preocupara grandemente. Achara que, acontecesse o que acontecesse, os imensos recursos dos Senhores Supremos não tardariam a localizá-lo e a resgatá-lo. Agora, porém, já não estava tão certo disso. Fora seqüestrado havia já vários dias — e nada acontecera. Devia existir um limite até mesmo para o poderio de Karellen e, se realmente estivesse enterrado ern algum continente remoto, nem toda a ciência dos Senhores Supremos poderia ser capaz de descobrir onde ele estava.
Havia mais dois homens sentados à mesa, na sala nua e mal iluminada. Olharam com interesse e certo respeito, ao verem Stormgren entrar. Um deles estendeu-lhe um embrulho com sanduíches, que Stormgren aceitou ansiosamente. Embora sentisse muita fome, teria preferido uma refeição mais completa, mas provavelmente os seus captores não tinham jantado mais do que aquilo.
Enquanto comia, olhou de relance para os três homens. Joe era, de longe, o que mais se destacava, e não só pelo tamanho. Via-se que os outros dois eram seus assistentes — indivíduos comuns, cujas origens Stormgren descobriria quando os ouvisse falar.
Tinham servido um pouco de vinho num copo não muito limpo e Stormgren bebeu-o para ajudar a descer o último sanduíche. Sentindo-se mais dono da situação, virou-se para o enorme polonês.
— Bem — disse ele —, que tal me explicar o que quer dizer tudo isso e que esperam conseguir?
Joe pigarreou.
— Gostaria de esclarecer uma coisa — falou. — Isso nada tem a ver com Wainwright. Ele vai ficar tão surpreso quanto os demais.
Stormgren já esperava por isso, embora não soubesse por que razão Joe confirmava suas suspeitas. Havia muito desconfiava da existência de um movimento extremista dentro — ou, por assim dizer, nas fronteiras — da Liga da Liberdade.
— Só por curiosidade — disse ele —, como foi que vocês me seqüestraram?
Não esperava uma resposta e ficou surpreendido com a presteza — quase ansiosa — com que o outro respondeu.
— Foi como num filme de suspense de Hollywood — disse Joe, entusiasmado. — Não tínhamos a certeza de que Karellen o vigiasse, de modo que tomamos certas precauções extremas. O senhor foi intoxicado por gás, colocado no con-dicionador de ar. . . até aí foi fácil. Depois, foi carregado para o carro; mais uma vez, nenhum problema. Tudo isso, devo dizer, não foi feito pela nossa gente. Contratamos profissionais para esse serviço. Karellen talvez os pegue, já esperamos por isso, mas não vai adiantar nada. Quando partiu de sua casa, o carro entrou num longo túnel, a menos de mil quilômetros de Nova York. Saiu, dentro do horário, na outra extremidade, ainda transportando um homem dopado e extraordinariamente parecido com o secretário-geral. Bem mais tarde, um grande caminhão, carregado de caixas metálicas, emergiu do lado oposto e dirigiu-se para um determinado aeroporto, onde as caixas foram postas a bordo de um avião-cargueiro, numa operação perfeitamente legal. Tenho a certeza de que os donos das caixas ficariam horrorizados se soubessem o emprego que lhes demos.
"Entretanto, o carro que realmente executou o serviço prosseguiu em sua missão despistadora, rumo à fronteira canadense. Talvez a essas horas Karellen o tenha interceptado; não sei e nem me interessa. Como vê — e espero que aprecie minha franqueza — todo o nosso plano dependia de uma única coisa. Temos a certeza de que Karellen pode ver e ouvir tudo o que acontece na superfície da Terra, mas, a menos que utilize magia e não ciência, não pode ver o que se desenrola debaixo dela. Assim, não vai saber do traslado dentro do túnel, pelo menos não antes que seja demasiado tarde. Naturalmente, corremos um risco, mas havia também uma ou duas outras garantias das quais não vou falar agora. Podemos precisar usá-las de novo e seria uma pena abrir o jogo."
Joe contara tudo aquilo com tal euforia, que Stormgren não pôde deixar de sorrir. No fundo, porém, sentia-se muito preocupado. O plano fora engenhoso e era bem possível que Karellen tivesse sido logrado. Stormgren nem sequer tinha a certeza de que os Senhores Supremos mantivessem qualquer forma de vigilância protetora sobre ele. Era evidente que Joe tampouco tinha essa certeza. Talvez por isso tivesse sido tão franco, talvez quisesse testar as reações de Stormgren. Muito bem, ele procuraria aparentar confiança, fossem quais fossem seus verdadeiros sentimentos.
— Vocês devem ser muito idiotas — disse com desprezo — se pensam que podem enganar os Senhores Supremos com tanta facilidade. De qualquer maneira, que vantagem tirarão de tudo isso?
Joe ofereceu-lhe um cigarro, que Stormgren recusou, acendeu um e sentou-se na beira da mesa. Ouviu-se um estalo e levantou-se mais que depressa.
— Os nossos motivos — disse ele — são mais do que óbvios. Esgotamos todos os argumentos e resolvemos recorrer a outros meios. Antes de nós, já houve vários movimentos clandestinos e até mesmo Karellen, por mais poderes que tenha, não vai achar fácil lidar conosco. Estamos dispostos a lutar pela nossa independência. Não me entenda mal. Não vai ser nada violento — pelo menos, a princípio —, mas os Senhores Supremos vão ter que empregar agentes humanos e nós podemos tornar as coisas muito difíceis para eles.
Começando por mim, pensou Stormgren. Ficou pensando se o outro lhe teria contado mais do que uma fração da história toda. Acreditariam realmente que aqueles métodos de gângsteres teriam alguma influência sobre Karellen? Por outro lado, não havia dúvida de que um movimento de resistência bem organizado podia tornar a vida um bocado difícil. Joe tinha posto o dedo no único ponto fraco do domínio dos Senhores Supremos. No fundo, todas as ordens deles eram executadas por agentes humanos. Se uma ação terrorista os levasse à desobediência, todo o sistema poderia ir por água abaixo. Era apenas uma longínqua possibilidade, pois Stormgren tinha confiança em que Karellen não tardaria a encontrar uma solução.
— Que é que vocês pretendem fazer comigo? — perguntou, por fim, Stormgren. — Sou um refém ou o quê?
— Não se preocupe, nós cuidaremos do senhor. Esperamos algumas visitas dentro de uns dias e, até lá, procuraremos tratá-lo da melhor maneira possível.
Acrescentou algumas palavras em sua língua e um dos outros dois puxou um baralho novinho em folha.
— Compramos este baralho especialmente para o senhor — explicou Joe. — Li recentemente no Time que o senhor era um ótimo jogador de pôquer. — A voz dele tornou-se subitamente grave. — Espero que tenha bastante dinheiro na carteira — disse, ansioso. — Não tivemos a idéia de olhar. Naturalmente, não podemos aceitar cheques.
Perplexo, Stormgren ficou olhando para seus captores. Depois, à medida que se foi apercebendo do aspecto humorístico da situação, teve a sensação de que todas as preocupações e responsabilidades de seu cargo lhe tinham sido tiradas dos ombros. De agora em diante, o fardo recairia sobre as costas de Van Ryberg. Acontecesse o que acontecesse, não havia nada, absolutamente nada, que ele pudesse fazer — e, agora, aqueles incríveis criminosos estavam ansiosos para jogar pôquer com ele!
Atirou a cabeça para trás e riu como havia anos não fazia.
Não havia dúvida, pensou Van Ryberg, sombriamente, de que Wainwright estava dizendo a verdade. Podia suspeitar de algo, mas não sabia quem tinha raptado Stormgren. Nem aprovava a idéia do seqüestro. Van Ryberg desconfiava de que os extremistas da Liga da Liberdade viessem há muito tempo fazendo pressão sobre Wainwright para que adotasse uma política mais ativa. Agora, tinham resolvido agir por conta própria.
O seqüestro fora muito bem organizado, isso ninguém podia contestar. Stormgren podia estar em qualquer ponto da Terra e parecia haver pouca esperança de descobrir onde. Contudo, algo tinha que ser feito, decidiu Van Ryberg, e depressa. Apesar de todas as caçoadas que fizera, ele tinha por Karellen um sentimento de temor e respeito. A idéia de ter que falar diretamente com o supervisor assustava-o, mas não parecia haver outra alternativa.
O Setor de Comunicações ocupava todo o andar superior do grande edifício. Fileiras de máquinas fac-símile, algumas silenciosas, outras trabalhando, perdiam-se na distância. Através delas passavam intermináveis dados estatísticos — números de produção, resultados de censos e toda a contabilidade de um sistema econômico mundial. Em algum lugar da nave de Karellen devia haver o equivalente daquela enorme sala — e Van Ryberg ficou pensando, com um arrepio na espinha, no tipo de formas que se movimentariam de um lado para outro, coletando as mensagens que a Terra enviava aos Senhores Supremos.
Mas nesse dia não estava interessado naquelas máquinas, nem na rotina que elas representavam. Dirigiu-se para a pequena sala particular na qual apenas Stormgren tinha licença para entrar. Segundo suas instruções, o trinco fora forçado e o chefe do Setor de Comunicações já estava lá, à espera dele.
— É um teletipo comum, com um teclado standard -— disse-lhe o chefe. — Há também uma máquina fac-símile, se o senhor quiser enviar fotos ou informações em forma de quadros, mas o senhor disse que não iria precisar disso.
Van Ryberg assentiu, distraído.
— Muito bem, obrigado — disse. — Não espero ficar aqui muito tempo. Tranque novamente a sala e me dê todas as chaves.
Esperou que o chefe do Setor de Comunicações saísse e depois sentou-se diante da máquina. Sabia que era raramente usada, já que quase todos os contatos entre Karellen e Stormgren tinham lugar durante as suas reuniões semanais. Como aquele era um circuito de emergência, esperava uma resposta rápida.
Após um momento de hesitação, começou a bater sua mensagem com dedos pouco práticos. A máquina ronronou suavemente e as palavras brilharam por alguns segundos na tela escurecida. Van Ryberg recostou-se na cadeira e esperou pela resposta.
Mais ou menos um minuto depois, a máquina começou de novo a ronronar. Como tantas vezes acontecera, Van , Ryberg se perguntou se o supervisor nunca dormiria.
A mensagem-resposta foi breve e desanímadora:
"NENHUMA INFORMAÇÃO. O ASSUNTO FICA INTEIRAMENTE A SEU CRITÉRIO. K."
Com bastante amargura e sem qualquer satisfação, Van Ryberg deu-se conta de quanta responsabilidade caíra sobre seus ombros.
Nos últimos três dias, Stormgren tivera oportunidade de fazer uma análise bastante acurada de seus captores. Joe era o único que tinha alguma importância. Os outros eram anônimos — a ralé que todos os movimentos ilegais costumam atrair. Os ideais da Liga da Liberdade nada significavam para eles: sua única preocupação era ganhar a vida com um mínimo de trabalho.
Joe era uma criatura bem mais complexa, embora por vezes parecesse a Stormgren um bebê gigante. Suas intermináveis partidas de pôquer eram pontilhadas de violentas discussões políticas e não demorou que Stormgren se apercebesse de que o enorme polonês jamais pensara seriamente nas causas pelas quais estava lutando. A emoção e o extremo conservadorismo obscureciam-lhe o pensamento. A longa luta que seu país travara pela independência condicionara-o de tal maneira, que ele ainda vivia no passado. Era uma espécie de sobrevivente, uma dessas pessoas que não sabem o que fazer com uma vida organizada. Quando o seu tipo desaparecesse, se é que alguma vez desapareceria, o mundo tornar-se-ia um lugar mais seguro mas muito menos interessante.
Já quase não havia dúvidas, no que dizia respeito a Stormgren, de que Karellen não conseguira localizá-lo. Tinha procurado blefar, mas não convencera seus captores. Estava quase certo de que o mantinham ali para ver se Karellen agiria, e agora, vendo que nada acontecera, podiam prosseguir com seus planos.
Stormgren não ficou espantado quando, quatro dias após sua captura, Joe lhe disse que esperasse visitas. Havia algum tempo que o grupo se mostrava cada vez mais nervoso, e o prisioneiro deduziu que os líderes do movimento, vendo que não havia mais perigo, viriam finalmente buscá-lo.
Já estavam à espera dele, reunidos ao redor da precária mesa, quando Joe o fez entrar na sala. Stormgren observou, divertido, que o seu carcereiro estava usando, de maneira ostensiva, uma enorme pistola, que antes nunca exibira. Os dois capangas tinham desaparecido e o próprio Joe parecia algo contido. Stormgren viu imediatamente que tinha agora diante dele homens de muito maior calibre e o grupo a sua frente lembrou-lhe uma foto que vira de Lênin e seus colaboradores, tirada nos primeiros dias da Revolução Russa. Havia a mesma força intelectual, a mesma determinação férrea, a mesma inexorabilidade naqueles seis homens. Joe e os da sua espécie eram inofensivos: ali estavam os cérebros ocultos da organização.
Com um breve aceno de cabeça, Stormgren dirigiu-se para a única cadeira vazia e procurou aparentar segurança. Ao se aproximar, o homem idoso e atarracado, sentado no outro extremo da mesa, inclinou-se para a frente e fixou nele os olhos cinzentos e penetrantes. Aquele olhar desconcertou de tal maneira Stormgren, que ele falou primeiro, coisa que não pretendia fazer.
— Suponho que tenham vindo discutir os termos de meu resgate. Quais são eles?
Reparou que, um pouco atrás, alguém anotava suas palavras num bloco de estenografia. Tudo muito comercial.
O líder replicou, num sotaque musical, que Stormgren identificou como sendo galês:
— Pode pôr as coisas assim, senhor secretário-geral, mas nós estamos interessados em informações, não em dinheiro.
Então é isso, pensou Stormgren. Ele era um prisioneiro de guerra e aquele era seu interrogatório.
— O senhor conhece nossos motivos — continuou o outro com sua voz suave. — Pode nos chamar um movimento de resistência, se quiser. Acreditamos que, mais cedo ou mais tarde, a Terra terá que lutar pela sua independência, mas compreendemos que essa luta só poderá utilizar métodos indiretos, como a sabotagem e a desobediência. O senhor foi seqüestrado em parte para mostrar a Karellen que não estamos brincando e somos bem organizados, mas principalmente porque o senhor é o único homem capaz de nos dizer algo sobre os Senhores Supremos. Sabemos que é um homem inteligente, Sr. Stormgren. Coopere conosco e terá de volta a liberdade.
— O que, exatamente, desejam saber? — perguntou cautelosamente Stormgren.
Aqueles olhos extraordinários pareciam penetrar-lhe a mente. Stormgren nunca vira olhos iguais. A voz cantada respondeu:
— Saber quem, ou o quê, são os Senhores Supremos! Stormgren por pouco não sorriu.
— Creiam — disse ele — que estou tão curioso por descobrir isso quanto os senhores.
— Isso quer dizer que responderá a nossas perguntas?
— Não prometo nada. Talvez.
Joe deixou escapar um suspiro de alívio e um sussurro de antecipação perpassou a sala.
— Temos uma idéia geral — continuou o outro — das circunstâncias em que o senhor se encontra com Karellen. Mas gostaríamos que as descrevesse minuciosamente, sem deixar de lado nenhum pormenor importante.
Não havia nada de mal naquilo, pensou Stormgren. Já o tinha feito muitas vezes e daria a impressão de que estava cooperando. Estava em presença de intelectos aguçados e talvez eles pudessem revelar-lhe algo de novo. Apreciariam qualquer informação que pudessem tirar dele — desde que lhes fosse útil. Stormgren não acreditava que pudesse prejudicar Karellen.
Apalpou os bolsos e retirou um lápis e um velho envelope. Desenhando ao mesmo tempo que falava, principiou:
— Sabem, sem dúvida, que uma pequena máquina voadora, sem quaisquer meios visíveis de propulsão, vem me buscar a intervalos regulares e me leva à nave de Karellen. Penetra o casco; devem ter visto os filmes telescópícos que foram tomados dessa operação. A porta volta a se abrir — se se lhe pode chamar uma porta — e eu entro numa pequena sala, com uma mesa, uma cadeira e uma tela. A disposição é mais ou menos a seguinte.
Empurrou o envelope para o velho galês, mas os estranhos olhos não se mexeram. Continuaram fixos no rosto de Stormgren: algo parecia ter mudado neles. Fizera-se silêncio na sala. Atrás de si, Stormgren ouvia Joe respirar forte.
Intrigado e aborrecido, Stormgren olhou bem para o outro e, ao fazê-lo, entendeu por fim. Foi tal sua confusão, que amassou o envelope numa bola de papel e calcou-a debaixo do sapato.
Sabia agora por que aqueles olhos cinzentos o tinham afetado tanto: o homem à sua frente era cego.
Van Ryberg não fizera mais tentativas de entrar em contato com Karellen. Grande parte do trabalho de seu departamento — a divulgação de informações estatísticas, as relações com a imprensa mundial e coisas afins — continuara como se nada tivesse acontecido. Em Paris, os advogados prosseguiam discutindo a redação de uma Constituição Mundial, mas de momento ele nada tinha com isso. Só dali a uma quinzena o supervisor queria ler a minuta final: se então não estivesse pronta, Karellen sem dúvida agiria como achasse conveniente.
E nada de notícias, ainda, de Stormgren.
Van Ryberg estava ditando, quando o telefone de emergências começou a tocar. Atendeu, impaciente, escutou, com espanto crescente, pousou o fone e correu para a janela. A distância, gritos de surpresa se elevavam das ruas e o trânsito estava se engarrafando.
Era verdade: a nave de Karellen, aquele símbolo imutável dos Senhores Supremos, já não estava no céu. Van Ryberg olhou para todos os lados, mas nem sinal da nave. Então, inesperadamente, foi como se se tivesse feito noite de repente. Vindo do norte, seu ventre negro como uma nuvem prenhe de trovoada, a grande nave voava, baixo, por sobre os arranha-céus de Nova York. Instintivamente, Van Ryberg recuou. Sabia quão enormes eram as naves dos Senhores Supremos — mas uma coisa era vê-las ao longe, no espaço, e outra, muito diferente, vê-las passar tão baixo, como se fossem nuvens tocadas pelo demônio.
Na escuridão daquele eclipse parcial, ficou olhando para a nave e para a sombra monstruosa que ela deitava, até desaparecer para os lados do sul. Não se ouvia qualquer ruído, nem mesmo um zumbido no ar, e Van Ryberg compreendeu que, apesar da aparente proximidade, a nave passara pelo menos a um quilômetro acima de sua cabeça. De repente, o edifício estremeceu, atingido pela onda de choque e ouviu-se o barulho de vidros partidos, de uma janela que batera com força.
Na sala, atrás dele, todos os telefones começaram a tocar, mas Ryberg não se mexeu. Permaneceu encostado ao peitoril da janela, sempre olhando para o sul, paralisado pela presença de um poderio ilimitado.
Stormgren falava e tinha a sensação de que sua mente operava ao mesmo tempo em dois níveis. Por um lado, tentava desafiar o homem que o capturara, ao passo que, por outro lado, esperava que o ajudassem a desvendar o segredo de Karellen. Era um jogo perigoso, mas, para sua surpresa, ele estava se divertindo.
O galês cego se encarregara da maior parte do interrogatório. Era fascinante ver aquele cérebro ágil tentar uma entrada após outra, testando e rejeitando todas as teorias que Stormgren havia tanto tempo abandonara. Por fim, endireitou-se na cadeira e suspirou.
— Continuamos na estaca zero — disse, resignado. — Queremos mais fatos e isso significa ação e não discussão. — Os olhos sem vida pareciam fitar Stormgren. Durante um minuto, tamborilou nervosamente na mesa, o primeiro sinal de insegurança que Stormgren observara. Depois, prosseguiu:
— Senhor secretário, estou um pouco surpreso de que nunca tenha feito qualquer esforço para saber mais a respeito dos Senhores Supremos.
— O que me sugere? — perguntou Stormgren friamente, procurando disfarçar seu interesse. — Já lhe disse que existe apenas uma saída da sala em que tenho as minhas entrevistas com Karellen, e ela leva diretamente de volta à Terra.
— Talvez seja possível — meditou o outro — desenvolver instrumentos que nos possam esclarecer algo. Não sou cientista, mas podemos pensar no assunto. Se lhe devolvermos a liberdade, o senhor concordaria em colaborar num plano desses?
— Permitam-me, de uma vez por todas — disse Stormgren, em tom zangado —, tornar a minha posição perfeitamente clara. Karellen está trabalhando para tornar o mundo unido e eu nada farei para ajudar seus inimigos. Quais são seus planos finais, não sei, mas acredito que sejam bons.
— Que provas concretas temos disso?
— Todas as suas atitudes, desde que suas naves surgiram em nossos céus. Desafio-os a mencionar um só ato que, em última análise, não tenha sido benéfico. — Storm-gren fez uma pausa, permitindo-se, por um momento, voltar atrás nos anos. Sorriu.
— Se quiser uma prova da, como direi, benevolência básica dos Senhores Supremos, pense naquele seu gesto contra a crueldade para com os animais, um mês depois de sua chegada. Se eu tinha alguma dúvida a respeito de Karellen, ela desapareceu depois disso, embora me tenha trazido mais problemas do que qualquer outra coisa que ele já fez!
E não estava exagerando, pensou Stormgren. Fora um incidente extraordinário, a primeira revelação de que os Senhores Supremos detestavam a crueldade. Isso e sua paixão pela justiça e pela ordem pareciam ser emoções dominantes em suas vidas, pelo menos até onde se podia julgá-los através de seus atos.
Fora a única vez que Karellen mostrara indignação ou, pelo menos, um simulacro disso. "Vocês podem matar-se uns aos outros, se quiserem", dissera a mensagem, "esse é um assunto entre vocês e suas leis. Mas se vocês matarem, exceto para comer ou em legítima defesa, os animais que compartilham de seu mundo, vocês terão que se haver comigo."
Ninguém tinha, na altura, se apercebido da extensão da ameaça ou do que Karellen poderia fazer para impor sua ordem. Mas não tinham precisado esperar muito.
A Plaza de Toros estava cheia, quando os matadores e seus ajudantes entraram na arena. Tudo parecia como de costume: o sol brilhante fazia refulgir os trajes de luces, a multidão saudou seus favoritos como sempre fazia. Contudo, aqui e ali, alguns rostos se voltavam, ansiosos, para o céu, para a forma prateada, cinqüenta quilômetros acima de Madri.
Os picadores tinham tomado seus lugares e o touro entrou, bufando, na arena. Os esquálidos cavalos, as ventas frementes de pavor, forçados pelos cavaleiros, aproximaram-se do inimigo. A primeira banderilla brilhou ao sol, penetrou no touro e, nesse momento, da Plaza de Toros se ergueu um grito como jamais se ouvira em toda a Terra.
Era o grito de dez mil pessoas, sentindo a dor da mesma ferida, dez mil pessoas que, uma vez recuperadas do choque, viram que estavam incólumes. Mas assim terminara aquela tourada, e todas as demais touradas, pois a notícia se espalhara rapidamente. Os aficionados tinham ficado tão abalados, que só um em dez pedira de volta o dinheiro da entrada. O Daily Mirror de Londres piorara ainda mais as coisas, sugerindo que os espanhóis adotassem o críquete como seu novo esporte nacional.
— O senhor pode ter razão — replicou o velho galês. — Talvez os motivos dos Senhores Supremos não sejam maus, de acordo com os seus padrões, que podem ocasionalmente coincidir com os nossos. Mas isso não impede que eles sejam usurpadores. Nós nunca lhes pedimos que viessem e virassem nosso mundo de cabeça para baixo, destruindo ideais — sim, e nações — que gerações e gerações de homens lutaram para proteger.
— Sou de um pequeno país, que teve de lutar para ter direito às suas liberdades — retrucou Stormgren. — Não obstante, sou a favor de Karellen. Vocês podem irritá-lo, podem inclusive retardar a conquista de seus objetivos, mas isso, no fim, não fará nenhuma diferença. Não duvido de que sejam sinceros. Compreendo seu temor de que as tradições e culturas dos pequenos países sejam destruídas com a criação do Estado Mundial. Mas enganam-se: não adianta agarrar-se ao passado. Mesmo antes da chegada dos Senhores Supremos, o Estado soberano já estava moribundo. Eles apenas apressaram seu fim. Ninguém agora pode salvá-lo, e ninguém deve tentar fazer isso.
Não houve resposta. O homem à sua frente não se mexeu nem falou. Ficou sentado, lábios entreabertos, os olhos sem visão agora também sem vida. A sua volta, os outros estavam igualmente imóveis, como que petrificados em atitudes estranhas. Com uma exclamação de horror, Stormgren pôs-se de pé e recuou em direção à porta. Nisso, o silêncio foi quebrado:
— Belo discurso, Rikki! Obrigado. Agora, acho que podemos ir.
Stormgren girou nos calcanhares e olhou para o corredor escurecido. Como que flutuando ao nível dos olhos, via-se uma pequena esfera — sem dúvida alguma, a fonte da misteriosa força que os Senhores Supremos tinham posto em ação. Era difícil dizer ao certo, mas Stormgren imaginou ouvir um leve zumbido, como o de uma colmeia num dia quente de verão.
— Karellen! Graças a Deus! Mas o que foi que você fez?
— Não se preocupe, eles estão bem. Pode-se dizer que estão paralisados, embora a coisa seja muito mais sutil do que isso. Estão simplesmente vivendo mil vezes mais lentamente do que o normal. Quando tivermos ido embora, eles nunca vão saber o que aconteceu.
— Vai deixá-los aqui, até a polícia chegar?
— Não. Tenho um plano muito melhor. Vou deixá-los sair.
Stormgren sentiu-se surpreendentemente aliviado. Deitou uma última olhadela para a pequena sala e seus petrificados ocupantes. Joe estava apoiado num só pé, olhando, estupidamente, para nada. De repente, Stormgren riu e enfiou a mão no bolso.
— Obrigado pela hospitalidade, Joe — disse. — Acho que vou deixar uma lembrança.
Passou em revista os pedaços de papel, até encontrar os números que procurava. Depois, numa folha razoavelmente limpa, escreveu com todo o cuidado:
"Banco de Manhattan
Pague a Joe a importância de cento e trinta e cinco dólares e cinqüenta cents (US$ 135.50).
Quando punha a tira de papel ao lado do polonês, a voz de Karellen perguntou:
— Quer me dizer o que você está fazendo?
— Nós, os Stormgren, sempre pagamos nossas dívidas. Os outros dois trapaceavam, mas Joe jogava limpo. Pelo menos, nunca o peguei roubando.
Sentiu-se muito alegre, quarenta anos mais jovem, ao se dirigir para a porta. A esfera metálica afastou-se para deixá-lo passar. Presumiu que fosse uma espécie de robô, o que explicava que Karellen tivesse podido chegar até ele, através das desconhecidas camadas de rocha.
— Ande em frente uns cem metros — disse a esfera, falando com a voz de Karellen. — Depois vire à esquerda até que eu lhe dê mais instruções.
Stormgren avançou a passo rápido, embora percebesse que não havia necessidade de se apressar. A esfera continuava a pairar no corredor, cobrindo-lhe a fuga.
Um minuto mais tarde, passou por uma segunda esfera, à espera dele numa curva do corredor.
— Ainda falta meio quilômetro — disse ela. — Conserve-se à esquerda até que nos voltemos a encontrar.
Por seis vezes encontrou as esferas, a caminho da saída. A princípio, ficou pensando se o robô não estaria dando um jeito de ficar sempre à frente dele; depois, achou que devia haver uma cadeia de esferas, formando um circuito completo nas profundezas da mina. À entrada, um grupo de guardas compunha uma peça de improvável estatuária, vigiados por outra das onipresentes esferas. Na vertente da colina, a alguns metros de distância, jazia a pequena máquina voadora na qual Stormgren fizera todas as suas viagens ao encontro de Karellen.
Stormgren ficou um momento piscando, ofuscado pela luz do sol. Viu então as máquinas utilizadas na mineração enferrujadas à volta dele e, mais além, uma ferrovia em ruínas, descendo pela encosta da montanha. Alguns quilômetros adiante, uma densa floresta cobria a base do morro e, muito ao longe, Stormgren distinguiu o brilho da água de um grande lago. Deduziu que devia estar em algum lugar da América do Sul, embora não soubesse dizer exatamente o que lhe dava essa impressão.
Enquanto subia para a máquina voadora, Stormgren pôde ver, pela ultima vez, a entrada da mina e os homens petrificados a sua volta. Depois, a porta selou-se atrás dele e, com um suspiro de alívio, afundou na poltrona habitual.
Esperou um pouco, até recuperar o fôlego; disse apenas:
— Então?
— Lamento não ter podido resgatá-lo antes, mas você compreende que era importante esperar que todos os líderes estivessem reunidos.
— Vai me dizer — explodiu Stormgren — que você sabia onde eu estava? Se eu soubesse. . .
— Não tire conclusões apressadas — atalhou Karellen. — Pelo menos, deixe-me acabar de explicar.
— Muito bem — replicou Stormgren, aborrecido. — Estou escutando. — Começava a suspeitar de que não passara de uma isca para pegar os outros.
— Mantive um, acho que o melhor termo talvez seja "rastreador" atrás de você, durante algum tempo — disse Karellen. — Embora seus amigos não se enganassem ao pensar que eu não podia segui-los debaixo da terra, pude seguir seu rastro até eles o trazerem para a mina. O traslado dentro do túnel foi engenhoso, mas, quando o primeiro carro deixou de dar sinais, o plano deles ficou claro e não demorou que você fosse novamente localizado. Depois, foi só esperar. Sabia que, tão logo eles tivessem a certeza de que eu ignorava seu paradeiro, os líderes viriam até aqui e eu poderia pegá-los todos de uma vez.
— Mas vai deixá-los sair!
— Até agora — explicou Karellen — eu não tinha maneira alguma de saber quem, dentre os dois bilhões e meio de homens que habitam este planeta, eram os verdadeiros cabeças da organização. Agora que eles foram localizados, posso segui-los em qualquer lugar da Terra e vigiar seus movimentos nos mais mínimos detalhes, se assim desejar. É muito melhor do que trancafiá-los. Se resolverem agir, denunciarão o resto de seus camaradas. Estão muito bem neutralizados e eles sabem disso. Seu resgate deve parecer-lhes inexplicável, pois você deve ter praticamente sumido ante os olhos deles.
E a risada sonora ecoou no pequeno compartimento.
— Sob certos aspectos, tudo não passou de uma comédia, embora com um fim sério. Não estou apenas preocupado com os membros dessa organização, tenho que pensar no efeito moral sobre os outros grupos.
Stormgren ficou um momento calado. Não ficara cem por cento satisfeito, mas compreendia o ponto de vista de Karellen e uma parte da sua indignação se dissipara.
— Foi uma pena ter acontecido nas minhas últimas semanas como secretário-geral — disse, finalmente. — Doravante, vou ter um guarda em minha casa. Pieter pode ser o próximo seqüestrado. Que tal ele se arranjou, por falar nisso?
— Observei-o durante toda a semana e evitei, delibe-radamente, auxiliá-lo. De modo geral, saiu-se muito bem, mas não é homem para tomar seu lugar.
— Sorte dele — disse Stormgren, ainda ressentido. — E, a propósito, já soube algo de seus superiores, a respeito de se mostrar? Tenho agora a certeza de que esse é o principal argumento invocado pelos seus inimigos. Disseram-me, repetidamente: "Nunca poderemos confiar nos Senhores Supremos enquanto não pudermos vê-los".
Karellen suspirou.
— Não, não soube de nada. Mas já sei qual será a resposta.
Stormgren não insistiu. Antes talvez tivesse insistido, mas agora um plano estava começando a se formar em sua mente. As palavras de seu interrogador não lhe saíam da memória. Sim, talvez se pudessem inventar instrumentos. . .
O que ele se recusara a fazer obrigado, poderia tentar fazer de livre e espontânea vontade.
Nunca teria ocorrido a Stormgren, até alguns dias antes, o que agora ele estava planejando. Aquele ridiculamente dramático seqüestro, que, em retrospecto, parecia um desses seriados de terceira classe da TV, tinha, provavelmente, influenciado em muito sua nova maneira de pensar. Pela primeira vez na vida, Stormgren fora exposto a um ato de violência física, em oposição às batalhas verbais travadas numa sala de conferências. O vírus devia ter-lhe entrado no sangue, ou então ele estava se aproximando mais depressa do que podia supor da segunda infância.
A curiosidade pura e simples era também um motivo poderoso, bem como a determinação de se vingar da brincadeira de que fora vítima. Não havia mais dúvidas de que Karellen o usara como isca e, mesmo que isso tivesse sido pela melhor das razões, Stormgren não se sentia inclinado a perdoar logo o supervisor.
Pierre Duval não mostrou surpresa quando Stormgren entrou, sem se anunciar, em seu gabinete. Eram velhos amigos e nada havia de extraordinário no fato de o secretário-geral fazer uma visita pessoal ao chefe da Secretaria de Ciência. Karellen certamente não acharia estranho se, por acaso, ele — ou um de seus subordinados — voltasse seus instrumentos de vigilância para essa secretaria.
Durante algum tempo, os dois amigos falaram de seu respectivo trabalho e trocaram fofocas políticas. Por fim, com alguma hesitação, Stormgren foi direto ao assunto. À medida que ele falava, o velho francês endireitava-se mais e mais em sua cadeira, ao mesmo tempo que as sobrancelhas iam subindo, milímetro a milímetro, até quase se confundirem com a raiz dos cabelos. Uma ou duas vezes deu a impressão de que ia falar, mas acabou desistindo.
Quando Stormgren terminou, o cientista olhou, nervosamente, em volta da sala.
— Acha que ele está ouvindo? — perguntou.
— Não creio que possa. Tem o que ele chama um "rastreador" atrás de mim, pretensamente para minha proteção. Mas não funciona debaixo da terra, uma das razões por que vim até esta sua masmorra. É protegida contra todas as formas de radiação, não é mesmo? Karellen não é nenhum mágico. Sabe onde estou, mas isso é tudo.
— Espero que você não se engane. Além disso, não haverá nenhum problema quando ele descobrir o que você está querendo fazer? Porque ele vai descobrir.
— Tenho que assumir esse risco. Além do mais, nós nos entendemos bem.
O físico ficou brincando com o lápis e olhando para o espaço.
— É um belo problema. Gosto dele — disse, por fim. Abriu uma gaveta e dela retirou um enorme bloco, o maior que Stormgren já vira.
— Muito bem — disse, escrevinhando furiosamente no que parecia ser uma espécie de estenografia particular. — Quero ter a certeza de estar de posse de todos os fatos. Diga-me tudo o que você puder a respeito da sala em que vocês têm essas entrevistas. Não se esqueça de nenhum detalhe, por mais trivial que possa parecer.
— Não há muito o que descrever. É uma sala de metal, com cerca de oito metros quadrados e quatro de altura. A tela tem aproximadamente um metro de lado e há uma mesa logo abaixo dela; vou desenhar para você, acho que é mais rápido.
Stormgren fez um esboço da salinha e deu o desenho a Duval. Ao fazer isso, lembrou-se, com um arrepio, da última vez em que o fizera. Ficou pensando no que teria acontecido com o galês cego e seus camaradas e como teriam eles reagido a sua inesperada partida.
O francês estudou o desenho e franziu a testa.
— Isso é tudo o que você me pode dizer?
— É. Duval fez uma careta.
— E a iluminação? Ou vocês ficam no escuro? E que me diz da ventilação, do sistema de aquecimento. . .
Stormgren sorriu, acostumado com as explosões do outro.
— O teto é inteiramente luminoso e, pelo que sei, o ar entra pelo mesmo lugar de onde vem a voz. Não sei por onde sai; talvez a corrente de ar se inverta a intervalos re-gulares, mas nunca notei isso. Não há sinais de qualquer aparelho de aquecimento, mas a sala está sempre numa temperatura normal.
— O que significa, se não me engano, que o vapor de água congelou, mas não o gás carbônico.
Stormgren fez o possível para não sorrir daquela piada mais do que velha.
— Acho que já lhe disse tudo — concluiu. — Quanto à máquina que me leva até a nave de Karellen, o compartimento em que viajo é parecido com o interior de um elevador. Se não fosse a poltrona e a mesa, podia ser um elevador.
Fez-se silêncio durante alguns minutos, enquanto o físico adornava seu bloco com meticulosos e microscópicos rabiscos. Olhando para ele, Stormgren não pôde deixar de pensar por que um homem como Duval — incomparavelmente mais brilhante, do ponto de vista intelectual, do que ele — nunca se projetara mais no mundo da ciência. Lembrou-se de um comentário venenoso e provavelmente injusto, feito por um amigo do Departamento de Estado norte-americano: "Os franceses produzem os melhores segundos lugares do mundo". Duval era o tipo de homem que exemplificava essa afirmação.
O físico balançou a cabeça, satisfeito, inclinou-se para a frente e apontou o lápis para Stormgren.
— O que o leva a pensar, Rikki — perguntou —, que a tela de visão de Karellen, como você a chama, é realmente o que parece ser?
— Sempre achei que fosse; é igualzinha a uma tela de televisor. Que mais poderia ser?
— Quando você diz que ela é igualzinha a uma tela de televisor, você sem dúvida quer dizer que é igualzinha às nossas, não?
— Claro.
— Acho isso, para começar, suspeito. Tenho a certeza de que os Senhores Supremos não usam nada tão grosseiro quanto uma tela de televisor: provavelmente, materializam as imagens diretamente no espaço. Mas por que razão Karellen se iria dar ao trabalho de utilizar um sistema de TV? A solução mais simples é sempre a melhor. Não lhe parece mais provável que sua "tela de televisor" nada mais seja do que uma camada de vidro?
Stormgren estava tão aborrecido consigo mesmo que ficou um momento calado, relembrando o passado. Desde o início, nunca desconfiara da história de Karellen — e, contudo, agora que olhava para trás, via que o supervisor nunca lhe dissera que utilizava um sistema de TV. Ele simplesmente partira desse princípio. Tudo não passara de uma ilusão psicológica e ele fora completamente ludibriado. Supondo-se, naturalmente, que a teoria de Duval fosse correta. Mas lá estava ele, de novo, tirando conclusões apressadas: ninguém até ali conseguira provar nada.
— Se você estiver certo — disse ele —, tudo o que tenho a fazer é quebrar o vidro. . .
Duval suspirou.
— Esses leigos! Você acha que a tal tela é feita de um material que se possa arrebentar sem explosivos? E, mesmo que você conseguisse, acha que Karellen respira o mesmo ar que nós? Não seria ótimo, para ambos, se ele vicejasse numa atmosfera de cloro?
Stormgren sentiu-se um verdadeiro imbecil. Devia ter pensado nisso.
— Bem, que é que você sugere? — perguntou algo exasperado.
— Quero pensar bem na coisa. Em primeiro lugar, temos que saber se minha teoria é correta e, se estiver, ter idéia do material de que é feita essa tela. Vou encarregar dois de meus homens disso. A propósito, imagino que você carregue uma pasta, quando se encontra com o supervisor, não? É essa mesma que você tem aqui?
— É.
— Acho que é suficientemente grande. Não queremos chamar a atenção, substituindo-a por outra, principalmente se Karellen já se acostumou a vê-la.
— Que é que você quer que eu faça? — perguntou Stormgren. — Que carregue um aparelho de raios X escondido?
O físico riu.
— Ainda não sei, mas vamos pensar em algo. Daqui a quinze dias vou poder lhe dizer.
Deu uma risadinha.
— Sabe o que me recorda tudo isso?
— Sei — respondeu Stormgren. — Da vez em que você construiu aparelhos de rádio clandestinos, durante a ocupação alemã.
Duval ficou desapontado.
— Bem, acho que já falei nisso uma ou duas vezes. Mas há uma outra coisa. . .
— O que é?
— Quando o pegarem, eu não sabia o que você queria fazer com o aparelho.
— O quê? Depois de tudo o que você disse sobre a responsabilidade social dos cientistas pelas suas invenções? Realmente, Pierre, estou decepcionado com você!
Stormgren pousou a grossa pasta com um suspiro de alívio.
— Graças a Deus isso está, finalmente, resolvido! — disse ele. — É estranho pensar que essas centenas de páginas vão determinar o futuro da humanidade. O Estado Mundial! Nunca pensei que pudesse vê-lo, em toda a minha vida!
Enfiou a pasta dentro de sua maleta de executivo, cujo fundo estava a menos de dez centímetros do retângulo escuro da tela. De vez em quando, seus dedos mexiam nos fechos, numa semiconsciente reação nervosa, mas não tencionava apertar o interruptor oculto enquanto o encontro não tivesse terminado. Havia a chance de que algo pudesse sair errado: embora Duval tivesse jurado que Karellen não detectaria nada, nunca se podia ter certeza.
— Você disse que tinha novidades para mim — continuou Stormgren, com maldisfarçada ansiedade. — É sobre. ..
— É — atalhou Karellen. — Recebi uma decisão algumas horas atrás.
Que quereria ele dizer com aquilo? pensou Stormgren. Era sem dúvida impossível que o supervisor se tivesse comunicado com sua terra distante, através dos incontáveis números de anos-luz que o separavam de sua base. Ou talvez — segundo a teoria de Van Ryberg — ele tivesse apenas consultado algum vasto computador, capaz de predizer o resultado de uma ação política.
— Não acho — continuou Karellen — que a Liga da Liberdade e seus partidários vão ficar muito satisfeitos, mas deverá ajudar a reduzir a tensão. Não vamos gravar isso, por falar no assunto.
"Diversas vezes você me disse, Rikki, que, por mais diferentes que fôssemos fisicamente, a raça humana logo se acostumaria conosco. Isso mostra falta de imaginação de sua parte. Talvez fosse verdade no seu caso, mas não deve esquecer que a maior parte do mundo está ainda muito longe de ser educada e é cheia de preconceitos e superstições que podem levar décadas para ser erradicados.
"Concordará em que conhecemos algo da psicologia humana. Sabemos, com bastante certeza, o que aconteceria se nos mostrássemos ao mundo em seu atual estágio de desenvolvimento. Não posso entrar em detalhes, mesmo com você, de modo que você precisa aceitar minha análise em confiança. Podemos, contudo, fazer uma promessa definitiva que deverá lhe dar alguma satisfação. Daqui a cinqüenta anos — ou seja, dentro de duas gerações — desceremos de nossas naves e a humanidade poderá finalmente ver como somos."
Stormgren ficou calado, meditando nas palavras do supervisor. A declaração de Karellen não lhe deu a satisfação que antes lhe teria proporcionado. Sentia-se algo confuso pelo seu sucesso parcial e, por um momento, sua resolução fraquejou. A verdade viria com o passar do tempo: seu plano era desnecessário e, talvez, imprudente. Se fosse avante com ele, seria apenas pela razão egoísta de que já não estaria vivo dali a cinqüenta anos.
Karellen devia ter percebido sua indecisão, pois prosseguiu:
— Sinto muito se isso o desaponta, mas pelo menos os problemas políticos do futuro próximo não serão de sua responsabilidade. Talvez você continue achando que nossos temores são infundados, mas, creia-me, temos tido provas convincentes do perigo de agirmos de outra maneira.
Stormgren inclinou-se para a frente, tomado pela emoção.
— Quer dizer que vocês já foram vistos pelo homem!
— Eu não disse isso — retrucou prontamente Karellen. — Seu mundo é o único planeta que nós supervisionamos.
Stormgren não estava disposto a se deixar levar tão facilmente.
— Tem havido muitas lendas, sugerindo que a Terra foi visitada no passado por outras raças.
— Eu sei. Li o relatório do Departamento de Pesquisas Históricas. Faz a Terra parecer a encruzilhada do universo.
— Pode ter havido visitas sobre as quais vocês nada sabem — disse Stormgren, ainda querendo jogar verde para colher maduro. — Embora isso não seja muito provável, pois vocês devem estar nos observando há milhares de anos.
— É, acho que não — replicou Karellen, fazendo o possível para não ajudar. Foi então que Stormgren tomou uma decisão.
— Karellen — disse ele, abruptamente —, vou redigir a declaração e enviá-la para que você a aprove. Mas reservo-me o direito de continuar a aborrecê-lo e, se vir uma oportunidade, farei o possível por descobrir seu segredo.
— Sei muito bem disso — retrucou o supervisor, com uma risada.
— E não se incomoda?
— Em absoluto, embora não tolere armas nucleares, gás venenoso ou qualquer outra coisa que possa pôr em risco nossa amizade.
Stormgren ficou pensando se Karellen teria desconfiado de algo. Por trás dos gracejos do supervisor, reconhecera uma nota de compreensão, ou mesmo — quem poderia dizer? — de encorajamento.
— Fico satisfeito de saber — replicou Stormgren, no tom de voz mais indiferente que conseguiu arrumar. Levantou-se, pondo ao mesmo tempo para baixo a tampa da maleta e fazendo o polegar deslizar pelo fecho.
— Vou fazer logo a minuta da declaração — repetiu — e mandá-la mais tarde, ainda hoje, pelo teletipo.
Enquanto falava, apertou o botão — e viu que todos os seus temores tinham sido infundados. Os sentidos de Karellen não eram mais sutis que os do homem. O supervisor não podia ter detectado nada, pois não houve mudança alguma em sua voz, ao se despedir e dizer as palavras em código que abriam a porta da câmara.
Mesmo assim, Stormgren sentia-se como um cleptomaníaco, saindo de uma loja de departamentos sob o olhar do detetive, e deu um grande suspiro de alívio quando a porta se selou atrás dele.
— Admito — disse Van Ryberg — que algumas de minhas teorias não tenham resultado muito corretas. Mas diga-me o que você pensa desta.
— Preciso dizer? — suspirou Stormgren. Pieter pareceu não ter ligado.
— Na verdade, a idéia não é minha — disse ele, modesto. — Tirei-a de uma história de Chesterton. Suponha que os Senhores Supremos estejam escondendo o fato de não terem nada a esconder?
— Isso me parece um pouco complicado — disse Stormgren, começando a interessar-se.
— O que eu quero dizer é o seguinte — continuou Van Ryberg, ansiosamente. — Eu acho que, fisicamente, eles são seres humanos como nós. Compreendem que nós toleramos ser governados por criaturas que imaginamos serem estranhas e superinteligentes. Mas, sendo a raça humana o que é, não toleraria ser mandada por criaturas da mesma espécie.
— Muito engenhoso, como todas as suas teorias — disse Stormgren. — Você deveria pôr-lhes números, para que eu pudesse identificá-las. As objeções que tenho a fazer a essa. . . — nesse momento, Alexander Wainwright entrou na sala.
Stormgren perguntou a si mesmo o que ele estaria pensando. Perguntou-se também se Wainwright teria estabelecido algum contato com os homens que o haviam seqüestrado. Duvidava disso, pois acreditava que Wainwright era sincero quando se manifestava contra a violência. Os extremistas de seu movimento tinham ficado completamente desacreditados e muito tempo se passaria antes que se ouvisse falar neles.
O líder da Liga da Liberdade ouviu com atenção, enquanto lhe liam a minuta. Stormgren esperava que ele apreciasse esse gesto, que tinha sido idéia de Karellen. Só dali a doze horas o resto do mundo saberia da promessa que fora feita a seus netos.
— Cinqüenta anos — disse Wainwright, pensativo. — É uma espera muito longa.
— Para a humanidade, talvez, mas não para Karellen
— replicou Stormgren. Só agora começava a se dar conta da inteligência da solução dos Senhores Supremos. Tinham-lhes dado a esperança de que eles precisavam e, ao mesmo tempo, desarmado a Liga da Liberdade. Stormgren não imaginava que a liga capitulasse, mas sua posição ficaria seriamente enfraquecida. Sem dúvida Wainwright também compreendia isso.
— Daqui a cinqüenta anos — disse ele amargamente
— o mal já estará feito. Os que poderiam lembrar-se de nossa independência estarão mortos: a humanidade terá esquecido sua herança.
Palavras. . . palavras vazias, pensou Stormgren. As palavras pelas quais os homens tinham outrora lutado e morrido e pelas quais nunca mais morreriam ou lutariam. E o mundo lucraria com isso.
Vendo Wainwright partir, Stormgren ficou pensando quantos problemas mais a Liga da Liberdade ainda causaria nos anos vindouros. Mas isso, pensou, aliviado, cairia sobre os ombros de seu sucessor.
Havia outras coisas mais que só o tempo curaria. Homens perversos podiam ser destruídos, mas nada podia ser feito com homens bons, que estivessem desiludidos.
— Aqui está sua pasta — disse Duval. — Como nova.
— Obrigado — retrucou Stormgren, inspecionando-a, não obstante, cuidadosamente. — Agora, que tal você me dizer do que se trata e o que vamos fazer a seguir?
O físico parecia mais interessado em seus próprios pensamentos.
— O que não posso entender — disse ele — é a facilidade com que nos saímos. Se eu fosse Kar. . .
— Mas você não é. Vamos ao que interessa, homem. Que foi que descobrimos?
— Ah, meu Deus, essas raças nórdicas, sempre tensas e excitáveis! — suspirou Duval. — Conseguimos bolar um tipo de radar de baixa potência. Além de ondas de rádio de freqüência muito alta, utiliza ondas infravermelhas, todas elas ondas que temos certeza de que nenhuma criatura poderia ver, por mais fantástica que fosse sua visão.
— Como é que vocês podem ter certeza disso? — perguntou Stormgren, intrigado, embora a contragosto, pelo problema técnico.
— Bem, não podemos ter certeza absoluta — admitiu Duval, relutantemente. — Mas Karellen pode vê-lo à luz normal, não é mesmo? De modo que os olhos dele devem ser semelhantes aos nossos, no que diz respeito ao alcance espectral. Seja como for, deu resultado. Conseguimos provar que hâ uma grande sala por trás daquela tela. A tela tem cerca de três centímetros de espessura e o espaço atrás dela mede pelo menos dez metros de largura. Não pudemos detectar qualquer eco da parede oposta, mas nem esperávamos isso, com a baixa potência que ousamos utilizar. Contudo, conseguimos isto.
Mostrou um pedaço de papel fotográfico, no qual havia uma única linha sinuosa. A certa altura, via-se como que o sinal de um pequeno terremoto.
— Está vendo isto? — Estou. O que é?
— Apenas Karellen.
— Meu Deus! Tem certeza?
— Quase absoluta. Está sentado, de pé, ou seja lá o que for, a cerca de dois metros, do outro lado da tela. Se a decomposição tivesse sido mais bem feita, poderíamos inclusive ter calculado seu tamanho.
Stormgren sentiu-se muito confuso, ao olhar para aquela inflexão escassamente visível. Até então, nunca houvera prova de que Karellen tivesse um corpo material. A prova continuava sendo indireta, mas ele aceitava sem questionar.
— A outra coisa que tivemos que fazer — disse Duval — foi calcular a transmissão da tela para luz comum. Julgamos ter uma idéia bastante razoável a respeito; de qualquer maneira, não interessa se ela não for cem por cento correta. Naturalmente, você sabe que não existe um vidro que só permita ver de um lado. Trata-se apenas de arrumar as luzes. Karellen senta-se numa sala às escuras: você é iluminado, mais nada. — Duval riu. — Bem, vamos alterar tudo isso!
Com o ar de um mágico tirando da cartola toda uma ninhada de coelhinhos brancos, abriu uma gaveta de sua mesa e tirou para fora uma lanterna enorme. A ponta se abria como um bocal bem largo, de modo que todo o aparelho lembrava um antigo bacamarte.
Duval riu.
— Não é tão perigoso quanto parece. Tudo o que é preciso fazer é encostar o bocal na tela e apertar o gatilho. Produz um raio muito poderoso, que dura dez segundos, tempo de sobra para fazê-lo girar em volta da sala e obter uma boa vista. A luz atravessará a tela, iluminando seu amigo.
— Não vai machucar Karellen?
— Não, se você apontar para baixo e só depois dirigir o bocal para cima. Isso dará tempo de ele adaptar os olhos, imagino que tenha reflexos como os nossos e não vamos querer cegá-lo.
Stormgren olhou para a arma com ar de dúvida e sopesou-a na mão. Nas últimas semanas, a consciência vinha-lhe pesando. Karellen sempre o tratara com inconfundível afeto, apesar de sua ocasional franqueza e, agora que a colaboração entre ambos estava chegando ao fim, ele não queria que nada viesse estragar esse relacionamento. Mas o supervisor fora devidamente avisado e Stormgren estava convencido de que, se pudesse escolher, Karellen havia muito se teria mostrado. Agora, a decisão caberia a ele: quando o derradeiro encontro dos dois terminasse, Stormgren olharia para o rosto de Karellen.
Isto é, se Karellen tivesse mesmo um rosto.
O nervosismo que Stormgren a princípio sentira há muito havia passado. Karellen estava praticamente falando sozinho, expressando-se por meio de sentenças complicadas, o que de vez em quando costumava fazer. Outrora, Stormgren tinha achado aquilo o mais maravilhoso e surpreendente dom de Karellen. Agora, já não lhe parecia assim tão maravilhoso, pois sabia que, como acontecia com a maior parte dos dotes mentais do supervisor, era o resultado do seu poder intelectual, e não de qualquer talento especial.
Karellen tinha tempo para se expressar de forma literária, quando diminuía o ritmo de seus pensamentos, de modo a poder acompanhar a cadência da fala humana.
— Você ou seu sucessor não precisam preocupar-se demasiado com a Liga da Liberdade, mesmo que ela venha a se recuperar de sua atual apatia. Esteve muito parada durante todo o mês passado e, embora venha a reviver, nos próximos anos não representará um perigo. Na verdade, como é sempre valioso saber o que seus opositores estão fazendo, a liga é uma instituição muito útil. Se alguma vez passar por dificuldades financeiras, talvez eu venha mesmo a subsidiá-la.
Stormgren estava habituado a nunca ter a certeza de que Karellen estivesse ou não brincando. Manteve a expressão impassível e continuou a ouvir.
— Em breve a liga verá cair por terra outro de seus argumentos. Tem havido muitas críticas, todas bastante infantis, à posição especial que você tem ocupado nestes últimos anos. Foi uma grande ajuda para mim, nos primeiros tempos de minha administração, mas agora que o mundo está marchando conforme planejei, acho que está na hora de mudar. No futuro, todos os meus contatos com a Terra serão indiretos e o cargo de secretário-geral voltará ao que era inicialmente. Durante os próximos cinqüenta anos, haverá muitas crises, mas todas passarão. O traçado do futuro está muito claro e um dia todas essas dificuldades serão esquecidas, mesmo por uma raça com uma memória tão boa como a sua.
As últimas palavras foram ditas com uma ênfase tão especial, que Stormgren ficou como que paralisado. Tinha a certeza de que Karellen nunca cometia gafes acidentais: até mesmo suas aparentes indiscrições eram calculadas. Mas não teve tempo de fazer nenhuma pergunta — que certamente não obteria resposta —, pois o supervisor logo mudou de assunto.
— Você muitas vezes me perguntou quais os nossos planos a longo prazo — prosseguiu ele. — A criação do Estado Mundial é, naturalmente, apenas o primeiro passo. Você viverá para assistir a ela, mas a mudança será tão imperceptível, que poucos se darão conta quando ela se operar. Depois disso, haverá um período de lenta consolidação, enquanto sua raça se prepara para nos conhecer. E então chegará o dia que lhes prometemos. Lamento que você já não esteja no mundo.
Stormgren tinha os olhos abertos, mas seu olhar estava fixo para além da escura barreira da tela. Olhava para o futuro, imaginando o dia que não chegaria a ver, quando as grandes naves dos Senhores Supremos descessem, finalmente, à Terra e se abrissem para o mundo.
— Nesse dia — continuou Karellen — a raça humana experimentará o que podemos chamar de descontinuidade psicológica. Mas não se fará sentir nenhum dano permanente: os homens dessa era serão mais estáveis do que os seus avós. Teremos sempre feito parte de suas vidas e, quando eles nos conhecerem, não lhes pareceremos tão estranhos quanto pareceríamos a vocês.
Stormgren nunca ouvira Karellen falar de maneira tão contemplativa, mas isso não constituiu surpresa para ele. Sabia que nunca "vira" mais do que algumas facetas da personalidade do supervisor: o verdadeiro Karellen era desconhecido e talvez nunca pudesse ser conhecido dos seres humanos. Uma vez mais, Stormgren teve a sensação de que os verdadeiros interesses do supervisor estavam muito longe e de que ele governava a Terra com uma fração apenas de sua mente, tão facilmente quanto um grande mestre de xadrez jogaria uma partida de damas.
— E depois disso? — perguntou Stormgren suavemente.
— Depois poderemos dar início à nossa verdadeira tarefa.
— Muitas vezes me perguntei qual seria ela. Organizar nosso mundo e civilizar a raça humana é apenas um meio, vocês devem ter também um objetivo. Será que alguma vez poderemos subir ao espaço, ver seu universo, e talvez ajudá-los em suas tarefas?
— Acho que pode dizer isso — falou Karellen, e sua voz mostrou uma tristeza tão inexplicável, que Stormgren ficou estranhamente perturbado.
— Mas e se, depois de tudo, sua experiência com o homem falhar? Tivemos casos assim, em nossos contatos com raças humanas primitivas. Sem dúvida vocês também conheceram fracassos. . .
— Sim — disse Karellen, tão baixo, que Stormgren mal pôde ouvi-lo. — Temos tido nossos fracassos.
— E o que fazem, quando isso acontece?
— Esperamos, e tentamos de novo.
Fez-se uma pausa de uns cinco segundos. Quando Karellen voltou a falar, suas palavras foram tão inesperadas que, por um momento, Stormgren não reagiu.
— Adeus, Rikki!
Karellen tinha-o ludibriado — provavelmente, já era demasiado tarde. A paralisia de Stormgren durou apenas um momento. Logo depois, com um movimento rápido e bem ensaiado, puxou para fora o flash-arma e disparou-o contra o vidro.
Os pinheiros desciam até quase a beira do lago, deixando apenas, na borda, uma estreita faixa de grama, de alguns metros de largura. Todas as tardes, quando não estava muito frio, Stormgren, apesar dos seus noventa anos, caminhava por essa tira até o ancoradouro, via o sol mergulhar na água e voltava para casa, antes que o vento frio da noite subisse da floresta. Aquele simples ritual dava-lhe muita satisfação e tencionava continuar a cumpri-lo enquanto tivesse forças.
Ao longe, por sobre o lago, algo se aproximava, voando baixo e rápido, vindo do oeste. Não era comum ver aviões por aqueles lados, a não ser os grandes aparelhos transpo-lares, que passavam muito alto, de hora em hora, dia e noite. Mas nunca havia sinais de sua passagem, exceto um ocasional rastro de condensação, contra o azul da estratosfera. O que agora vinha vindo era um pequeno helicóptero e não havia mais dúvida de que avançava na direção de Stormgren.
O ex-secretário-geral olhou para a praia e viu que não havia maneira de escapar. Deu de ombros e sentou-se no banco de madeira que havia à cabeceira do ancoradouro.
O repórter mostrou-se tão atencioso, que Stormgren ficou surpreso. Quase havia esquecido que não era apenas um velho estadista mas, mesmo fora de seu país, uma figura quase mítica.
— Sr. Stormgren — disse o intruso —, sinto muito vir incomodá-lo, mas gostaria de saber se o senhor teria algo a comentar sobre o que acabamos de ouvir a respeito dos Senhores Supremos.
Stormgren franziu ligeiramente a testa. Após todos aqueles anos, continuava, como Karellen, a não gostar daquele termo.
— Não acho — respondeu — que possa acrescentar muita coisa ao que já foi escrito.
O repórter olhava para ele com curiosa intensidade.
— Pois eu acho que sim. Acabamos de ter notícia de uma história muito estranha. Parece que há cerca de trinta anos um dos técnicos do Departamento de Ciências fabricou um notável aparelho para o senhor. Gostaríamos de saber se o senhor está disposto a nos contar algo a respeito.
Por um momento, Stormgren ficou calado, remoendo o passado. Não se espantava de que o segredo tivesse sido descoberto. Ao contrário, era de admirar que se tivesse mantido por tanto tempo.
Levantou-se e começou a andar ao longo do píer, com o repórter atrás dele.
— A história — disse — tem uma certa dose de verdade. Na minha última ida à nave de Karellen, levei comigo um aparelho, na esperança de poder ver o supervisor. Foi uma bobagem de minha parte, mas também eu tinha apenas sessenta anos!
Riu consigo mesmo e continuou:
— Não valia a pena você ter feito uma viagem tão longa por causa dessa história. Afinal, não resultou em nada.
— Quer dizer que o senhor não viu nada?
— Absolutamente nada. Receio que vocês tenham que esperar, mas, afinal de contas, faltam apenas vinte anos!
Apenas vinte anos. Sim, Karellen tivera razão. A essa altura, o mundo já estaria pronto, coisa que não acontecera quando ele contara a mesma mentira a Duval, havia trinta anos.
Karellen confiara nele e Stormgren não o traíra. Tinha quase a certeza de que o supervisor desde o início soubera de seu plano e previra todos os momentos do ato final.
Por que outro motivo a enorme cadeira já estava vazia, quando o círculo de luz a iluminara? Nesse mesmo momento, ele começara a girar a lanterna, temendo ser demasiado tarde. A porta de metal, com o dobro da altura de um homem, estava se fechando rapidamente, quando ele pela primeira vez a vira . . . fechando-se rapidamente, mas não suficientemente rápido.
Sim, Karellen confiara nele, não desejara que ele passasse o longo crepúsculo de sua vida atormentado por um mistério que jamais conseguiria desvendar. Karellen não ousara desafiar os poderes desconhecidos acima dele (seriam eles da mesma raça?), mas fizera tudo o que pudera. Se lhes havia desobedecido, eles nunca poderiam provar. Stormgren compreendera que essa fora a derradeira prova do afeto que Karellen lhe votava. Embora pudesse ser como o afeto de um homem por um cão dedicado e inteligente, nem por isso era menos sincero, e a vida dera a Stormgren poucas satisfações maiores do que essa.
"Tivemos os nossos fracassos."
Sim, Karellen, era verdade: e não teria sido você quem fracassara, antes do alvorecer da história do homem? Devia ter sido um fracasso e tanto, pensou Stormgren, para que os seus ecos atravessassem as eras, assombrando a infância de todas as raças humanas. Mesmo no espaço de cinqüenta anos, ser-lhe-ia possível vencer o poder de todos os mitos e lendas existentes no mundo?
Contudo, Stormgren sabia que não haveria um segundo fracasso. Quando as duas raças voltassem a se encontrar, os Senhores Supremos teriam conquistado a confiança e a amizade da humanidade e nem o choque do primeiro encontro poderia abalar esse trabalho. Marchariam juntas em direção ao futuro, e a tragédia desconhecida, que devia ter escurecido o passado, se perderia, para sempre, nos penumbrosos corredores da pré-história.
Stormgren esperava que, quando Karellen tivesse liberdade de voltar de novo à Terra, fosse um dia àquelas florestas setentrionais e se detivesse um pouco junto à sepultura do primeiro homem que fora seu amigo.
A Idade de Ouro
"Chegou o dia!", murmuravam as emissoras de rádio em mais de cem línguas. "Chegou o dia", diziam as manchetes de mais de mil jornais. Chegou o dia!, pensavam os câmeras, checando muitas vezes o equipamento reunido em volta do vasto espaço vazio no qual desceria a nave de Karellen.
Havia apenas uma nave, agora, flutuando sobre Nova York. Na realidade, como o mundo acabava de descobrir, as naves que se viam sobre as outras cidades do homem nunca tinham existido. No dia anterior, a grande frota dos Senhores Supremos dissolvera-se no nada, dispersando-se como se fosse neblina, sob o orvalho da manhã.
As naves de abastecimento, indo e vindo pelo espaço distante, tinham sido reais; mas as nuvens prateadas que haviam pairado, durante toda uma vida, sobre quase todas as capitais da Terra, tinham sido uma ilusão. Como essa ilusão fora criada, ninguém sabia dizer, mas parecia que cada uma dessas naves não passara de uma imagem da nave de Karellen. Não fora, porém, apenas um jogo de luzes, pois até o radar tinha sido logrado, e havia ainda homens vivos que juravam ter ouvido o estrépito do ar sendo rasgado pela frota, ao penetrar nos céus da Terra.
Mas isso não era importante: o que interessava era que Karellen já não sentia a necessidade de uma exibição de forças. Pusera de lado suas armas psicológicas.
"A nave está se movendo!" A notícia espalhou-se imediatamente por todos os cantos do planeta: "Está se dirigindo para oeste!"
A menos de mil quilômetros por hora, descendo lentamente das alturas vazias da estratosfera, a nave rumava para as grandes planícies e para o seu segundo rendez-vous com a história. Pousou obedientemente diante das câmeras e dos milhares de espectadores que se comprimiam, embora muito poucos pudessem ver mais do que os milhões reunidos em volta dos aparelhos de televisão.
O chão deveria ter estalado e estremecido sob o tremendo peso, mas a nave continuava presa às forças que lhe permitiam andar por entre as estrelas, e pousou tão suavemente como se fosse um floco de neve.
A parede curva, vinte metros acima do chão, deu a impressão de tremular e ondular: onde antes houvera uma superfície lisa e reluzente, aparecera uma grande abertura. Nada era visível dentro dela, mesmo aos olhos perscrutado-res das câmeras. Estava tão escuro quanto a entrada de uma caverna.
Uma escada larga e brilhante saiu do orifício e avançou na direção do solo. Parecia uma folha sólida de metal, com corrimãos de cada lado. Não tinha degraus; era inclinada e lisa como um escorregador e parecia impossível subi-la ou descê-la de maneira comum.
O mundo inteiro tinha os olhos fixos naquele pórtico escuro, esperando que algo aparecesse. Foi então que a voz, raramente ouvida, mas inesquecível, de Karellen ergueu-se de algum ponto escondido. Sua mensagem não poderia ser mais inesperada:
— Estou vendo algumas crianças aos pés da escada. Gostaria que duas delas subissem ao meu encontro.
Houve um momento de silêncio. Depois, um menino e uma menina saíram da multidão e encaminharam-se, com a maior naturalidade, para a escada e rumo à história. Outras os seguiram, mas pararam ao ouvir Karellen dizer, com uma risada:
— Duas serão suficientes.
Desejosas de aventura, as duas crianças — que não teriam mais que seis anos de idade — pularam sobre a plataforma de metal. Foi então que aconteceu o primeiro milagre.
Acenando alegremente para a multidão e para os pais aflitos — que, demasiado tarde, tinham provavelmente se lembrado da lenda do flautista de Hammelin — as crianças começaram a subir rapidamente a íngreme encosta. Mas suas pernas não se mexiam e logo se tornou claro que seus corpos estavam inclinados em ângulo reto com a estranha prancha, que parecia ter uma gravidade própria, capaz de neutralizar a da Terra. As crianças estavam ainda gozando aquela estranha experiência e imaginando o que as estaria atraindo para cima, quando desapareceram no interior da nave.
Um grande silêncio caiu sobre o mundo inteiro durante vinte segundos — embora, mais tarde, ninguém pudesse acreditar que tão pouco tempo se tivesse passado. Então, a escuridão da grande abertura deu a impressão de avançar, e Karellen surgiu à luz do sol. O menino estava sentado em seu braço esquerdo, a menina, no direito — ambos demasiado ocupados brincando com as asas de Karellen, para repararem na multidão que os olhava.
Foi um tributo à psicologia dos Senhores Supremos e a todos aqueles anos de cuidadosa preparação o fato de apenas algumas pessoas terem desmaiado. E, ainda, em todo o mundo, foram poucas as pessoas que sentiram o antigo terror perpassar-lhes, por um horrível instante, a mente, antes que a razão o banisse para sempre.
Não era uma ilusão. As asas encouradas, os pequenos chifres, a cauda eriçada — nada faltava. A mais terrível de todas as lendas criara vida, emergira do passado desconhecido. E contudo, lá estava, sorrindo, numa majestade de ébano, com a luz do sol fazendo brilhar o seu tremendo corpo e uma criança humana confiantemente pousada em cada braço.
Cinqüenta anos é tempo de sobra para modificar um mundo e sua gente a ponto de quase não serem reconhecidos. Tudo de que se precisa é um conhecimento profundo da estrutura social, uma visão clara do objetivo em mente. . . e poder.
Todas essas coisas os Senhores Supremos possuíam. Embora seu objetivo não fosse claro, seu conhecimento era evidente — bem como seu poder.
Esse poder revestia-se de várias formas, poucas das quais eram sequer compreendidas pelos povos cujos destinos os Senhores Supremos agora governavam. O poderio representado pelas suas grandes naves tinha sido suficientemente evidente para todo mundo poder ver. Mas, por trás daquela exibição de força latente, havia outras armas, muito mais sutis.
— Todos os problemas políticos — dissera, certa vez, Karellen a Stormgren — podem ser resolvidos pela correta aplicação do poder.
— Isso parece um comentário bastante cínico — retrucara Stormgren, em tom de dúvida. — É por demais parecido com "Força é justiça". No nosso passado, o uso do poder poucas vezes conseguiu resolver fosse o que fosse.
— A palavra-chave é "correto". Vocês nunca possuíram poder real ou o conhecimento necessário para aplicá-lo. Em todos os problemas, há maneiras eficientes e ineficientes de abordá-los. Suponhamos, por exemplo, que uma de suas nações, liderada por um fanático, tentasse rebelar-se contra mim. A resposta ineficiente a uma tal ameaça seriam bilhões de HP sob a forma de bombas atômicas. Se eu usasse bombas bastantes, a solução seria completa e definitiva. Mas seria também, como observei, ineficiente — mesmo que não tivesse nenhum outro efeito.
— E qual seria a solução eficiente?
— Uma que exigisse o poder de um pequeno transmissor de rádio, e nenhuma habilidade especial para operá-lo. Porque o que interessa é a aplicação do poder, e não sua quantidade. Quanto tempo você acha que a carreira de Hitler como ditador da Alemanha teria durado, se, aonde quer que ele fosse, uma voz estivesse sempre lhe falando baixinho ao ouvido? Ou se uma única nota musical, suficientemente alta para abafar todos os demais sons e não permitir o sono, lhe enchesse o cérebro noite e dia? Nada brutal, como vê. Mas, em última análise, tão destruidor como uma bomba de nêutrons.
— Entendo — disse Stormgren. — E não haveria lugar onde se esconder?
— Nenhum lugar onde eu não pudesse chegar com meus recursos, se achasse isso necessário. E é por essa razão que nunca terei de usar métodos realmente drásticos para manter minha posição.
As grandes naves não tinham, então, sido mais do que símbolos e agora o mundo sabia que todas, menos uma, não haviam passado de naves-fantasmas. Contudo, com sua presença apenas, tinham mudado a história da Terra. Agora, sua tarefa estava terminada e o que se haviam proposto repercutiria por séculos e séculos.
Os cálculos de Karellen tinham sido acurados. O choque da repulsa passara depressa, embora muitos se orgulhassem de não terem superstições — nunca, porém, foram capazes de enfrentar um só dos Senhores Supremos. Havia algo de estranho nisso, algo para além da razão e da lógica. Na Idade Média, as pessoas acreditavam no demônio e o temiam. Mas estávamos no século XXI: seria possível que, afinal de contas, existisse uma memória racial?
Presumia-se, naturalmente, que os Senhores Supremos, ou seres da mesma espécie, tinham entrado em violento conflito com o homem primitivo. O encontro devia ter ocorrido num passado remoto, pois não deixara vestígios na história. Era outro enigma, para cuja solução Karellen não ajudava em nada.
Embora já se tivessem revelado aos homens, os Senhores Supremos raramente saíam da nave remanescente. Talvez achassem a Terra fisicamente desconfortável para seu tamanho, e a existência de asas indicava que vinham de um mundo de gravidade bem mais baixa. Nunca eram vistos sem um cinturão cheio de mecanismos complicados que, conforme se acreditava, controlavam-lhes o peso e permitiam-lhes comunicar-se uns com os outros. A luz do sol resultava-lhes dolorosa e nunca ficavam mais de uns poucos segundos expostos a ela. Quando tinham que ficar ao ar livre durante um espaço maior de tempo, usavam óculos escuros, que lhes davam uma aparência algo incongruente. Embora parecessem capazes de respirar o ar terrestre, carregavam às vezes pequenos cilindros de gás, que utilizavam ocasionalmente.
Talvez esses problemas puramente físicos explicassem seu distanciamento. Somente uma pequena fração da raça humana já vira um Senhor Supremo em carne e osso e ninguém podia fazer idéia de quantos haveria a bordo da nave de Karellen. Nunca se tinha visto mais de cinco juntos, mas podia haver centenas, ou mesmo milhares deles, a bordo da enorme nave.
Sob muitos aspectos, o aparecimento dos Senhores Supremos criara mais problemas do que resolvera. Sua origem continuava desconhecida, sua biologia era fonte de intermináveis especulações. Em muitos assuntos, davam informações espontâneas, mas em outros seu comportamento podia ser descrito como misterioso. De modo geral, porém, isso não irritava senão os cientistas. O homem comum, embora preferisse não encontrar os Senhores Supremos, era-lhes grato pelo que tinham feito em prol do mundo.
Pelos padrões das eras anteriores, era uma verdadeira utopia. A ignorância, a doença, a pobreza e o medo tinham virtualmente deixado de existir. A lembrança da guerra diluía-se no passado, como um pesadelo se dispersa com o amanhecer; em breve, nenhum homem vivo se recordaria mais dessa experiência.
Com as energias da humanidade dirigidas para canais construtivos, a face do mundo fora refeita. Era, quase literalmente, um mundo novo. As cidades que haviam servido às gerações anteriores tinham sido reconstruídas — ou abandonadas e deixadas como cidades-museus, quando haviam cessado de ter utilidade. Muitas delas já tinham sido abandonadas, pois todo o sistema de indústria e comércio havia mudado completamente. A produção tornara-se quase cem por cento automática: as fábricas-robôs produziam bens de consumo em tão grande escala, que todas as necessidades comuns à vida eram virtualmente gratuitas. Os homens trabalhavam apenas para obter os artigos de luxo que desejavam
— ou não trabalhavam.
Era um mundo único. Os antigos nomes dos velhos países ainda eram usados, mas só como zonas postais. Não havia ninguém na Terra que não falasse inglês, que não soubesse ler, que não tivesse um aparelho de televisão, que não pudesse ir ao outro lado do planeta em vinte e quatro horas no máximo. . .
O crime praticamente desaparecera. Tornara-se ao mesmo tempo desnecessário e impossível. Quando ninguém sente falta de nada, não há por que roubar. Além do mais, todos os criminosos em potencial sabiam que não conseguiriam escapar à vigilância dos Senhores Supremos. Nos primeiros tempos de seu domínio, eles haviam interferido de maneira tão eficaz em favor da lei e da ordem, que a lição nunca mais fora esquecida.
Os crimes passionais, embora não inteiramente extintos, eram quase desconhecidos. Com a remoção de grande parte de seus problemas psicológicos, a humanidade estava muito mais sensata e menos irracional. O que nas eras anteriores se chamaria vício, agora não passava de excentricidade
— ou, na pior das hipóteses, maus costumes.
Uma das mudanças mais notáveis fora uma diminuição do ritmo louco que caracterizara o século XX. A vida era mais calma do que tinha sido durante gerações e gerações. Conseqüentemente, tinha menos atrativos para alguns, porém mais tranqüilidade para a maioria. O homem ocidental reaprendera — o que o resto do mundo jamais esquecera — que o ócio não era pecado, desde que não degenerasse na preguiça.
Fossem quais fossem os problemas que o futuro pudesse trazer, o tempo ainda não pesava nas mãos da humanidade. A educação era muito mais profunda e demorada. Poucas pessoas terminavam os estudos antes dos vinte — e esse era apenas o primeiro estágio, pois normalmente voltavam aos vinte e cinco para mais três anos, depois que as viagens e a experiência lhes tivessem alargado a mente. Além disso, a maioria seguia cursos de atualização durante toda a vida, sobre os assuntos que mais lhes interessavam.
Essa extensão do aprendizado para além do início da maturidade física propiciara muitas mudanças sociais. Algumas eram necessárias havia gerações, mas preferira-se, até então, ignorá-las ou fingir que não se precisava delas. Em particular, os hábitos sexuais — bem como a atitude para com eles — haviam sofrido uma alteração radical, graças a duas invenções, ambas, por ironia, de origem puramente humana, nada devendo aos Senhores Supremos.
A primeira era um anticoncepcional oral completamente infalível. A segunda, um método igualmente infalível — tanto quanto as impressões digitais e baseado numa análise muito acurada do sangue — de identificação do pai de qualquer criança. O efeito dessas duas invenções sobre a sociedade humana só poderia ser descrito como devastador e acabara por varrer os últimos vestígios da aberração puritana.
Outra grande mudança fora a extrema mobilidade da nova sociedade. Graças à perfeição do transporte aéreo, todo mundo podia ir para onde quisesse quando bem desejasse. Havia mais espaço nos céus do que jamais houvera nas estradas, e o século XXI repetira, em escala maior, o grande sonho americano de pôr uma nação sobre rodas. Dera asas ao mundo.
Mas não literalmente. O avião particular comum, ou carro aéreo, não tinha asas, nem quaisquer superfícies visíveis de controle. Até mesmo as lâminas giratórias dos velhos helicópteros haviam desaparecido. Contudo, o homem não descobrira a antigravidade; só os Senhores Supremos detinham esse segredo. Os carros aéreos dos homens eram impelidos por forças que os irmãos Wright teriam compreendido. A propulsão a jato, utilizada tanto diretamente, como sob a forma mais sutil de controle de camadas, impelia os aviões para a frente e os mantinha no ar. Os pequenos e onipresentes carros aéreos haviam derrubado, como nenhuma lei decretada pelos Senhores Supremos poderia ter feito, as últimas barreiras entre as diferentes tribos da humanidade.
Coisas mais profundas também tinham ocorrido. Tratava-se de uma era inteiramente secular. De todas as fés religiosas que haviam existido antes da chegada dos Senhores Supremos, apenas uma forma de budismo purificado — talvez a mais austera das religiões — sobrevivia ainda. Os credos baseados em milagres e revelações tinham caído por terra. Com a ascensão da educação, vinham se dissolvendo lentamente, mas, durante algum tempo, os Senhores Supremos não haviam tomado partido. Embora várias vezes pedissem a Karellen para manifestar-se sobre as religiões, ele só dizia que as crenças de um homem eram um assunto que só ao próprio homem dizia respeito, desde que não interferissem na liberdade dos outros.
Talvez as velhas fés tivessem perdurado ainda por várias gerações, se não fosse a curiosidade humana. Sabia-se que os Senhores Supremos tinham acesso ao passado e mais de uma vez os historiadores haviam apelado a Karellen para que desse a última palavra em alguma velha controvérsia. É possível que ele tivesse ficado cansado de tais perguntas, mas parece mais provável que soubesse perfeitamente qual seria o resultado de sua generosidade. ..
O instrumento que ele emprestara, em caráter permanente, à Fundação da História Mundial nada mais era do que um aparelho de televisão, com um complicado conjunto de controles, destinado a determinar coordenadas no tempo e no espaço. Devia ter estado ligado a uma outra máquina, muito mais complexa, operando com base em princípios que ninguém podia imaginar, a bordo da nave de Karellen. Era necessário apenas ajustar os controles para que se abrisse uma janela para o passado. Quase toda a história da humanidade, relativa aos últimos cinco mil anos, se tornava acessível num instante. A máquina não cobria eras anteriores e em todas elas havia vazios intrigantes, que podiam ter uma causa natural, ou serem devidos a uma censura por parte dos Senhores Supremos.
Embora sempre tivesse sido evidente, a qualquer espírito racional, ser impossível que todos os escritos religiosos existentes no mundo fossem verdadeiros, o choque foi, não obstante, profundo. Ali estava uma revelação que ninguém podia pôr em dúvida ou negar: ali, mostradas pela mágica da ciência dos Senhores Supremos, estavam as verdadeiras origens de todas as grandes religiões do mundo. Quase todas eram nobres e inspiradoras; mas isso não bastava. No espaço de alguns dias, todos os inúmeros messias da humanidade tinham perdido a divindade. À luz fria e desapaixonada da verdade, crenças que haviam sustentado milhões de pessoas, durante dois mil anos, evaporaram-se como o orvalho matinal. Todo o bem e todo o mal que tinham provocado foram, de uma hora para a outra, empurrados para o passado, destituídos de qualquer poder.
A humanidade perdera seus velhos deuses. Era agora suficientemente velha para precisar de deuses novos.
Embora poucos se dessem conta disso, a queda das religiões fora acompanhada por um declínio da ciência. Havia muitos técnicos, mas poucos se aventuravam para além das fronteiras do conhecimento humano. A curiosidade persistia e havia tempo para explorá-la, mas faltava o estímulo para as pesquisas científicas fundamentais. Parecia fútil passar toda uma vida pesquisando segredos que sem dúvida os Senhores Supremos já tinham desvendado eras antes.
Esse declínio fora parcialmente disfarçado por uma enorme florescência das ciências descritivas, como a zoologia, a botânica e a astronomia de observatório. Nunca houvera tantos cientistas amadores coligindo fatos para seu próprio gáudio; mas havia poucos teóricos correlacionando esses fatos.
O fim das lutas e dos conflitos de todas as espécies fora também o fim virtual da arte criadora. Havia miríades de executantes, amadores e profissionais, mas nenhuma obra significativa nos campos da literatura, da música, da pintura ou da escultura viera à luz durante toda uma geração. O mundo continuava vivendo das glórias de um passado que jamais voltaria.
Ninguém se preocupava com isso, exceto alguns filósofos. A raça humana estava por demais interessada em saborear a recém-descoberta liberdade, para ver além dos prazeres do presente. A utopia chegara finalmente; a sua novidade não fora ainda ameaçada pelo inimigo supremo de todas as utopias — o tédio.
Talvez os Senhores Supremos tivessem a resposta para isso, como para todos os demais problemas. Ninguém sabia — como tampouco não se sabia, uma geração após eles terem chegado, qual seu objetivo final. A humanidade acostumara-se a confiar neles e a aceitar, sem questionar, o altruísmo sobre-humano que durante tanto tempo mantivera Karellen e seus companheiros longe de seu mundo.
Quando Rupert Boyce mandou os convites para sua festa, expediu-os para os quatro cantos do mundo. Tomando, por exemplo, apenas os primeiros doze convidados, havia os Foster, em Adelaide, os Shoenberger, no Haiti, os Farran, em Stalingrado, os Moravia, em Cincinnati, os Invanko, em Paris, e os Sullivan, nas vizinhanças da ilha da Páscoa, mas uns quatro quilômetros abaixo, no leito oceânico. Rupert sentiu-se lisonjeado pelo fato de que, embora tivesse convidado apenas trinta pessoas, mais de quarenta apareceram. Só os Krause deram o bolo e isso porque se esqueceram de regular os relógios pela hora internacional e chegaram vinte e quatro horas depois.
Por volta do meio-dia, uma impressionante coleção de carros aéreos se acumulara no parque e os que chegassem mais tarde teriam que andar um bocado, depois de haverem encontrado um lugar onde pousar. Pelo menos, a distância lhes pareceria grande, sob aquele céu sem nuvens e a uma temperatura de mais de quarenta e dois graus centígrados. Os veículos ali reunidos iam desde os Flitterbugs para uma só pessoa até os Cadillacs familiares, que mais pareciam palácios aéreos do que pura e simplesmente máquinas voadoras. Nessa era, porém, nada se podia deduzir do status social dos convidados através de seus meios de transporte.
— Que casa feia! — comentou Jean Morrei, à medida que seu Meteor descia em espiral. — Parece uma caixa que alguém tivesse pisado.
George Greggson, que tinha uma ojeriza fora de moda pelos pousos automáticos, reajustou o controle de descida antes de responder:
— Não é justo julgar a casa deste ângulo. Vista do chão, deve ser muito diferente. Oh, céus!
— Que foi que houve?
— Os Foster estão aqui. Seria capaz de reconhecer aquela combinação de cores em qualquer lugar do mundo.
— Ora, você não precisa falar com eles, se não quiser. Essa é uma das vantagens das festas de Rupert, a gente sempre pode se esconder na multidão.
George escolhera um lugar onde aterrissar e estava se dirigindo para ele. Pousaram entre um outro Meteor e algo que nenhum dos dois foi capaz de identificar. Parecia muito rápido e, pensou Jean, muito desconfortável. Sem dúvida, concluiu ela, fora construído por um dos técnicos amigos de Rupert. Tinha idéia da existência de uma lei contra aquele tipo de coisa.
O calor atingiu-os como uma onda, mal puseram o pé fora do aparelho. Parecia sugar-lhes toda a umidade do corpo e George imaginou, inclusive, que sentia a pele estalando. Em parte era culpa deles, claro. Tinham saído do Alasca havia três horas e deviam ter se lembrado de ajustar a temperatura da cabina.
— Que lugar para se viver! — arquejou Jean. — Pensei que esse clima fosse controlado.
— E é — retrucou George. — Outrora, tudo isso era deserto, e olhe só agora. Venha, lá dentro deve estar melhor!
A voz de Rupert, uma voz de trovão, ressoou alegremente aos ouvidos deles. O anfitrião estava de pé, ao lado do avião, um copo em cada mão, olhando para eles com expressão divertida. Tinha que olhar do alto porque media aproximadamente quatro metros de altura. Além disso, era semitransparente. Podia-se ver através dele sem muita dificuldade.
— Isso é brincadeira que se faça com seus convidados! — protestou George. Tentou pegar os drinques, pondo-se nas pontas dos pés, mas suas mãos passaram através dos copos, claro. — Espero que você tenha algo de mais substancial para nos dar em casa!
— Não se preocupe! — riu Rupert. — É só dizerem o que vão querer, que tudo estará pronto quando vocês chegarem.
— Duas cervejas bem geladas! — respondeu logo George. — E não vamos demorar.
Rupert fez que sim com a cabeça, pousou um dos copos numa mesa invisível, ajustou um controle igualmente invisível e logo desapareceu de vista.
— Puxa! — exclamou Jean. — É a primeira vez que vejo um desses aparelhinhos em ação. Como foi que Rupert o conseguiu? Pensei que só os Senhores Supremos os tivessem.
— Você já soube de algo que Rupert quisesse e não conseguisse? — replicou George. — É mesmo um brinquedo para ele. Pode estar confortavelmente sentado em seu estúdio e dar a volta à África. Sem calor, sem insetos, sem se cansar, e com a geladeira sempre à mão. Que teriam achado disso Stanley e Livingstone?
O sol pôs ponto final à conversa até chegarem a casa.
Mal se aproximaram da porta de entrada (que não era fácil de distinguir do resto da parede de vidro), ela se abriu automaticamente, com uma fanfarra de trompetes. Jean desconfiou, corretamente, que não agüentaria mais ouvir aquela fanfarra antes que o dia tivesse terminado.
A atual Sra. Boyce recebeu-os no delicioso frescor do hall. Na verdade, ela era a principal razão da afluência dos convidados. Talvez a metade tivesse ido, de qualquer maneira, para ver a nova casa de Rupert, mas os indecisos haviam se decidido pelo que tinham ouvido dizer sobre a nova esposa de Rupert.
Só havia um adjetivo adequado para descrevê-la: estonteante. Mesmo num mundo onde a beleza era quase lugar-comum, os homens viravam a cabeça quando ela entrava numa sala. George calculou que tivesse um quarto de sangue negro; tinha feições gregas e o cabelo comprido e lus-troso. Apenas o escuro tom da sua pele — o muito usado termo "chocolate" era o único apropriado para ele — revelava sua ascendência mestiça.
— Vocês são Jean e George, não? — disse ela, estendendo a mão. — É um prazer conhecê-los. Rupert está preparando uns drinques complicados. Venham, vou apresentá-los aos outros.
Tinha uma linda voz de contralto, que causou arrepios em George, como se alguém estivesse acariciando sua espinha. Olhou nervosamente para Jean, que exibia um sorriso algo artificial, e finalmente recobrou a voz.
— M-muito prazer em conhecê-la — disse, gaguejando. — Acho que vai ser uma linda festa.
— Rupert sempre dá lindas festas — interveio Jean. Pelo jeito como sublinhou o "sempre", via-se perfeitamente que estava pensando "cada vez que se casa". George corou levemente e lançou a Jean um olhar de censura, mas a dona da casa não pareceu ter notado nada. Levou-os, toda sorrisos, para a sala principal, já meio cheia com os numerosos amigos de Rupert, o qual estava sentado junto ao que parecia ser uma unidade de controle de televisão. George presumiu que fosse aquele o aparelho que lhe tinha projetado a imagem ao encontro deles. Estava ocupado demonstrando a novidade e surpreendendo a mais dois convidados que acabavam de descer no estacionamento, mas fez uma pausa para cumprimentar Jean e George e pedir desculpas por ter dado as bebidas a outras pessoas.
— Tem mais por aí — disse, acenando vagamente com a mão, enquanto com a outra ajustava os controles. — Fiquem como em sua casa. Vocês conhecem quase todo mundo e Maia vai apresentá-los aos outros. Que bom vocês terem vindo!
— E você nos ter convidado — retrucou Jean, sem muita convicção. George já rumara para o bar e ela abriu caminho atrás dele, cumprimentando, de passagem, algum conhecido. Cerca de três quartos dos convidados eram perfeitos estranhos, coisa normal nas festas de Rupert.
— Vamos bisbilhotar — disse Jean, depois que tinham bebido e acenado para todos os conhecidos. — Quero dar uma vista de olhos na casa.
Com um mal disfarçado olhar para Maia Boyce, George concordou. Tinha no rosto uma expressão distante, de que Jean não estava gostando nada. Que chato, os homens serem fundamentalmente polígamos!. . . Mas, se não fossem... É, talvez fosse melhor assim.
George voltou rapidamente ao normal, enquanto bisbilhotavam as maravilhas da nova casa de Rupert. Parecia muito grande para apenas duas pessoas, mas era preciso contar com as festas e com os convidados. Havia dois andares, o superior consideravelmente maior, projetando-se sobre o térreo e dando-lhe sombra. O grau de mecanização era considerável e a cozinha lembrava a cabina de um avião de passageiros.
— Pobre Ruby! — disse Jean. — Adoraria essa casa!
— Pelo que ouvi dizer — retrucou George, que não simpatizava muito com a última Sra. Boyce —, ela está muito feliz com seu namorado australiano.
Como isso era do conhecimento geral, Jean não pôde desdizê-lo e resolveu mudar de assunto.
— É um bocado bonita, não acha?
George estava suficientemente alerta para evitar a armadilha.
— Acho que sim — replicou, com ar indiferente. — Para quem gosta de morenas.
— O que, se não me engano, não é o seu caso — disse Jean, docemente.
— Não seja ciumenta, querida — riu George, passan-do-lhe a mão no cabelo platinado. — Vamos dar uma olhada na biblioteca. Em que andar você acha que deve ficar?
— Deve ser aqui em cima: não há mais espaço embaixo. Além do mais, combina com a idéia geral. O living, a sala de jantar, os quartos, etc, ficam no andar térreo. Este é o departamento de diversões e jogos, embora eu continue achando uma loucura fazer a piscina no primeiro andar.
— Acho que deve haver alguma razão para isso — disse George, abrindo experimentalmente uma porta. — Rupert deve ter consultado arquitetos, quando construiu esta casa. Tenho a certeza de que não a construiu sozinho.
— É, você deve estar certo. Se tivesse, haveria quartos sem portas e escadas levando a nenhum lugar. Eu teria, medo de entrar numa casa que Rupert tivesse construído e planejado sozinho.
— Aqui estamos — disse George, com orgulho de navegador chegando a uma terra desconhecida. — A fabulosa Coleção Boyce no seu novo lar. Só queria saber quantos deles Rupert já leu!
A biblioteca estendia-se por toda a largura da casa, mas era dividida em meia dúzia de pequenas salas pelas grandes estantes que a cortavam e que continham, se George não estava em erro, cerca de quinze mil volumes — quase tudo o que de importante se publicara nos campos nebulosos da magia, da pesquisa psíquica, da adivinhação, da telepatia e de todos os fenômenos agrupados na categoria da parafísica. Um hobby bastante estranho, naquela idade da razão. Talvez fosse simplesmente uma forma de escapismo.
George notou o cheiro assim que entrou na biblioteca. Leve mas penetrante e não tão desagradável quanto intrigante. Jean também reparou e franziu a testa, no esforço de identificá-lo. Ácido acético, pensou George — ou algo muito parecido. Mas havia algo mais. . .
A biblioteca terminava num pequeno espaço aberto, onde só cabiam uma mesa, duas cadeiras e algumas almo-fadas. Devia ser ali que Rupert costumava ler. Alguém estava lendo agora, naquela luz tão fraca.
Jean abriu a boca e apertou a mão de George. Sua reação talvez fosse perdoável. Uma coisa era ver um noticiário na televisão, e outra, muito diferente, dar de cara com a realidade. George, que raramente se surpreendia com algo, mostrou-se logo à altura.
— Espero não o termos perturbado — disse, polidamente. — Não podíamos imaginar que alguém estivesse aqui. Rupert não nos disse. . .
O Senhor Supremo pousou o livro, olhou fixamente para eles e retomou a leitura. Nada havia de mal-educado naquilo, sabendo-se que era um ser capaz de ler, falar e, provavelmente, fazer várias outras coisas ao mesmo tempo.
Não obstante, aos olhos humanos, o espetáculo resultava perturbadoramente esquizofrênico.
— Meu nome é Rashaverak — disse o Senhor Supremo, amavelmente. — Acho que não estou sendo muito so-ciável, mas da biblioteca de Rupert é difícil fugir.
Jean conseguiu abafar um riso nervoso. O inesperado convidado estava, notou ela, lendo à velocidade de uma página a cada dois segundos. Não duvidava de que estivesse assimilando cada palavra e ficou pensando se não poderia ler um livro com cada olho. E aí — pensou consigo mesma — poderia também aprender braile, para poder ler com os dedos... A imagem mental era demasiado cômica e ela tratou de apagá-la entrando na conversa. Afinal de contas, não era todos os dias que se tinha a oportunidade de falar com um dos senhores da Terra.
George deixou-a falar, depois de tê-la apresentado, esperando que ela não cometesse nenhuma gafe. Da mesma forma que Jean, nunca tinha visto um Senhor Supremo em carne e osso. Embora socialmente lidassem com funcionários do governo, cientistas e técnicos, ele nunca ouvira falar da presença de um deles numa festa comum. Talvez aquela festa não fosse tão particular quanto parecia. O fato de Rupert possuir uma peça do equipamento dos Senhores Supremos também indicava isso e George começou a conjeturar que diabo estaria acontecendo. Teria de perguntar a Rupert, tão logo surgisse uma chance de falar e sós com ele.
Como as poltronas eram demasiado pequenas para ele, Rashaverak sentara-se no chão, aparentemente sem ligar para as almofadas, a um metro apenas de distância. Conseqüentemente, sua cabeça estava a dois metros apenas do chão, e George teve uma oportunidade única de estudar a biologia extraterrestre. Infelizmente, como pouco sabia a respeito de biologia terrestre, igualmente, não pôde constatar muito além do que já sabia. Apenas o peculiar, embora não desagradável, cheiro ácido era novidade para ele. Ficou pensando como não cheirariam os humanos para os Senhores Supremos, esperando que fosse melhor.
Não havia nada realmente antropomórfico a respeito de Rashaverak. George entendia por que, vistos ao longe, por selvagens ignorantes e apavorados, os Senhores Supremos podiam ter sido tomados por homens alados, dando origem ao retrato convencional do Demônio. De perto, porém, muito da ilusão desaparecia. Os pequenos chifres (para que serviriam? pensou George) até que estavam de acordo, mas o corpo não era nem de homem, de nenhum animal que a Terra houvesse conhecido. Oriundos de uma árvore evolutiva completamente estranha, os Senhores Supremos não eram nem mamíferos, nem insetos, nem répteis. Não se tinha sequer a certeza de que fossem vertebrados: sua cara-paça dura podia muito bem ser a sua única forma de sustentação.
As asas de Rashaverak estavam dobradas, de modo que George não podia vê-las claramente, mas a cauda, semelhante a um pedaço de mangueira encouraçada, enroscava-se debaixo dele. O famoso esporão da cauda, mais que uma ponta de flecha, parecia antes um grande diamante achatado. Seu propósito, dizia-se, era dar estabilidade ao vôo, como as penas da cauda de uma ave. Baseando-se nos escassos fatos conhecidos e em suposições como aquelas, os cientistas tinham concluído que os Senhores Supremos provinham de um mundo de baixa gravidade e atmosfera muito densa.
A voz de Rupert reboou, de repente, vinda de um alto-falante escondido:
— Jean! George! Onde diabo vocês estão? Apareçam! As pessoas estão começando a falar.
— Talvez seja melhor eu descer também — disse Rashaverak, pondo o livro de volta na estante. Fez isso muito facilmente, sem se levantar do chão, e George reparou, pela primeira vez, que ele tinha dois polegares em cada não, com cinco dedos no meio. Detestaria fazer contas, pensou George, com um sistema baseado no número 14.
De pé, Rashaverak era uma figura realmente impressionante e, quando o Senhor Supremo se curvava, para não bater no teto, tornava-se evidente que, embora estivessem ansiosos para se relacionar com os humanos, as dificuldades práticas seriam muitas.
Mais levas de convidados haviam chegado durante a última meia hora e a sala estava agora muito cheia. A entrada de Rashaverak só fez piorar as coisas, pois todo mundo que estava nas salas adjacentes correu para vê-lo. Rupert parecia satisfeitíssimo com a sensação causada. Jean e George é que não estavam muito satisfeitos, pois ninguém reparava neles. Mais do que isso, poucas pessoas podiam vê-los, pois eles estavam de pé, atrás do Senhor Supremo.
— Aproxime-se, Rashy, quero lhe apresentar o pessoal — berrou Rupert. — Sente-se aqui nesse sofá, para não ficar arranhando o teto.
A cauda enrolada sobre o ombro, Rashaverak atraves-
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sou a sala como um quebra-gelo abrindo caminho por entre os bancos. Quando se sentou ao lado de Rupert, a sala voltou a parecer maior e George deixou escapar um suspiro de alívio.
— Estava ficando com claustrofobia — disse ele. — Como terá Rupert conseguido que ele viesse? Parece que vai ser uma festa interessante!
— Imagine Rupert dirigindo-se a ele daquele jeito e em público! Mas ele não pareceu ligar. Tudo isso é muito estranho.
— Aposto como ligou. O problema é que Rupert gosta de se exibir e não tem o menor tato. Isso me lembra algumas das perguntas que você lhe fez.
— Como, por exemplo?
— Bem. . . "Há quanto tempo o senhor está aqui?" "Como se dá com o Supervisor Karellen?" "Gosta da Terra?" Francamente, querida! Não se fala com os Senhores Supremos dessa maneira!
— Não sei por quê. Acho que já é hora de alguém falar assim com eles.
Antes que a discussão azedasse, foram abordados pelos Schoenberger e logo ocorreu a fissão: as moças foram para um lado, a fim de discutir a Sra. Boyce, e os homens para o outro, a fim de falar também sobre a dona da casa, só que de um ponto de vista muito diferente. Benny Schoenberger, que era um dos mais velhos amigos de George, tinha muito a dizer sobre o assunto.
— Pelo amor de Deus, não diga a ninguém — pediu ele. — Ruth não sabe, mas fui eu quem apresentou Maia a Rupert.
— Ela me pareceu demasiado boa para Rupert — comentou George, invejoso. — A coisa não pode durar. Ela logo ficará farta dele. — A idéia pareceu animá-lo consideravelmente.
— Não acredite! Além de ser uma beldade, ela é uma ótima pessoa. Já era tempo de que alguém tomasse conta de Rupert, e ela é a mulher indicada para isso.
Rupert e Maia estavam agora sentados ao lado de Rashaverak, recebendo os convidados. As festas de Rupert raramente tinham um ponto focai, consistindo geralmente em meia dúzia de grupos independentes, preocupados com seus próprios interesses. Dessa vez, porém, toda a reunião convergia para um único centro de atração. George sentiu pena de Maia. Rashaverak conseguira eclipsá-la parcialmente.
— Olhe só! — disse ele, mordiscando um sanduíche. — Como Rupert terá conseguido a presença de um Senhor Supremo? Nunca ouvi falar de tal coisa, mas ele dá a impressão de que não há nada mais natural no mundo. Nem mencionou o fato quando nos convidou.
Benny riu.
— Mais uma de suas surpresas. Acho melhor você lhe perguntar. Mas não é a primeira vez que isso acontece. Karellen compareceu a festas na Casa Branca, no Palácio de Buckingham e. . .
— Bolas, isso é diferente! Rupert é um cidadão perfeitamente comum.
— E talvez Rashaverak seja um Senhor Supremo de segunda classe. Por que não pergunta?
— É o que vou fazer — disse George — tão logo pegue Rupert a sós.
— Acho que vai ter que esperar muito.
Benny tinha razão, mas, como a festa estava agora esquentando, era fácil ter paciência. A leve paralisia que o aparecimento de Rashaverak lançara sobre a assistência já desaparecera. Havia ainda um pequeno grupo à volta do Senhor Supremo, mas no resto da sala se tinham formado os habituais grupinhos e todo mundo se comportava naturalmente. Sullivan, por exemplo, descrevia sua mais recente pesquisa submarina a quem quisesse ouvi-lo, e eram muitos os interessados.
— Ainda não temos certeza — dizia — do tamanho que eles podem alcançar. Há um canyon, não longe de nossa base, onde mora um verdadeiro gigante. Vi-o de relance uma vez e calculo que seus tentáculos meçam quase trinta metros. Penso ir atrás dele na semana que vem. Alguém quer um bichinho de estimação realmente original?
Uma das mulheres soltou um gritinho de horror.
— Nossa! Fico arrepiada só de pensar! O senhor deve ser muito corajoso.
Sullivan pareceu surpreso.
— Nunca pensei nisso — retrucou. — Naturalmente, tomo minhas precauções, mas nunca me vi em perigo. Os polvos sabem que não podem me comer e, desde que eu não chegue muito perto, eles nunca me dão atenção. A maioria das criaturas marinhas deixam as pessoas em paz, desde que não se metam com elas.
— Mas mais cedo ou mais tarde — disse alguém — o senhor corre o risco de se deparar com uma que o julgue comestível.
— Bem — replicou Sullivan indiferentemente —, isso acontece de vez em quando. Procuro não as machucar, pois todo o meu empenho é fazer amigos. Por isso, ponho as turbinas à toda e quase sempre em um ou dois minutos me vejo livre. Quando estou com muita pressa, desfecho-lhes um choque de duzentos volts. Nunca mais se metem comigo.
Não havia dúvida de que se conhecia gente interessante nas festas de Rupert, pensou George, aproximando-se de outro grupinho. O gosto literário de Rupert podia ser especializado, mas suas amizades eram de todos os tipos.
Sem se dar ao trabalho de virar a cabeça, George podia ver um famoso produtor de filmes, um poeta menor, um matemático, dois atores, um engenheiro atômico, um guarda-florestal, o editor de um semanário, um funcionário do setor de estatísticas do Banco Mundial, um célebre violinista, um professor de arqueologia e um astrofísico. Não havia outros representantes da profissão de George, designer de estúdios de televisão, o que era uma boa coisa, pois ele não queria falar de trabalho. Gostava de sua profissão: pela primeira vez na história do homem, ninguém naquela era trabalhava em algo de que não gostasse. Mas George preferia trancar mentalmente as portas do estúdio ao fim de cada dia.
Conseguiu encurralar Rupert na cozinha, fazendo experiências com drinques. Era uma pena trazê-lo de volta à terra quando ele tinha nos olhos uma expressão tão distante, mas George sabia, quando necessário, ser implacável.
— Escute aqui, Rupert — começou ele, empoleírando-se na mesa. — Acho que você nos deve uma explicação.
— Hum — disse Rupert, pensativo, passando a língua em volta da boca. — Acho que botei demasiado gim.
— Não fuja pela tangente e não finja que não está sóbrio, porque sei muito bem que, você está. De onde veio esse seu amigo Senhor Supremo e que é que ele está fazendo aqui?
— Eu não lhe disse? — falou Rupert, — Pensei que tivesse dito a todo mundo. Não sei como você não ouviu. Ah, claro, você estava escondido na biblioteca. — Riu de uma maneira que George considerou ofensiva. — Foi a biblioteca que atraiu Rashy.
— Que extraordinário!
— Por quê?
George fez uma pausa, percebendo que precisaria de muito tato. Rupert tinha muito orgulho de sua coleção de livros.
— Bem, quando se pensa nos conhecimentos científicos dos Senhores Supremos, acho estranho que eles se interessem por fenômenos psíquicos e todas essas bobagens.
— Bobagens ou não — retrucou Rupert — eles estão interessados na psicologia humana e eu tenho alguns livros que podem ensinar-lhes muita coisa. Antes de eu me mudar para cá, um Subsenhor Supremo, ou seja lá o que for, entrou em contato comigo e perguntou se eu lhes podia emprestar cinqüenta dos meus volumes mais raros. Ao que parece, um dos guardiães da Biblioteca do Museu Britânico indicara-lhe meu nome. Acho que você pode adivinhar o que respondi.
— Não, não posso.
— Bem, respondi, muito delicadamente, que tinha levado vinte anos para formar minha biblioteca. Eles podiam consultar meus livros, mas teriam que consultá-los aqui. Foi assim que Rashy veio, e tem lido uns vinte volumes por dia. Gostaria de saber o que ele acha a respeito do que lê.
George pensou no caso, mas logo deu de ombros.
— Francamente — disse ele —, minha opinião a respeito dos Senhores Supremos caiu muito. Pensei que tivessem coisas melhores em que empregar seu tempo.
— Você é um materialista incorrigível, não? Não creio que Jean concorde com você. Mas, mesmo de seu ponto de vista todo prático, a coisa tem sentido. Sem dúvida você estudaria as superstições de qualquer raça primitiva com a qual tivesse que lidar!
— Pode ser — disse George, não totalmente convencido. O tampo da mesa era demasiado duro e ele pôs-se de pé. Rupert já tinha misturado os drinques a seu gosto e preparava-se para levá-los aos convidados. Vozes se erguiam, reclamando sua presença.
— Ei! — protestou George. — Antes que você suma, mais uma pergunta: como foi que se apoderou daquele apa-relhinho com que tentou nos assustar?
— Pechinchando. Mostrei como ele seria útil para um trabalho como o meu e Rashy transmitiu minha sugestão às autoridades competentes.
— Perdoe-me se não estou entendendo, mas qual é seu novo trabalho? Suponho que seja algo relacionado com animais.
— É isso mesmo. Sou um superveterinário. Minha clientela cobre cerca de dez mil quilômetros quadrados de
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selva e, já que meus pacientes não vêm a mim, eu preciso ir procurá-los.
— Isso é o que se chama um trabalho em período integral!
— Bem, é claro que a gente não precisa se incomodar com a arraia-miúda. Só com leões, elefantes, rinocerontes e outros que tais. Todas as manhãs, ajusto os controles para uma altura de cem metros, sento-me diante da tela e ponho-me a vasculhar as redondezas. Quando encontro algum animal em apuros, entro em meu avião e espero que minha maneira de atender dê certo. Às vezes, é um pouco complicado. Com os leões e animais afins, a coisa é fácil, mas tentar atingir um rinoceronte do alto, com um dardo anestésico, é o diabo!
— Rupert! — gritou alguém da sala ao lado.
— Veja o que você fez! Até me esqueci dos convidados. Tome, leve esta bandeja. Estes são os que têm vermute, não quero que se misturem com os outros.
Faltava pouco para o pôr-do-sol quando George encontrou o caminho para o telhado. Por muitas e excelentes razões, tinha uma leve dor de cabeça e sentiu vontade de fugir ao barulho e à confusão reinantes lá embaixo. Jean, que dançava muito melhor do que ele, parecia estar se divertindo imensamente e recusava-se a ir embora. Isso aborreceu George, que começava a sentir-se alcoolicamente amoroso, levando-o a procurar refúgio sob as estrelas.
Subia-se ao telhado — que na verdade era um terraço — pela escada rolante que levava ao primeiro andar e daí, pela escada em caracol, que circundava a instalação de ar condicionado. O avião de Rupert estava pousado numa das extremidades do terraço-telhado. A parte central era ajardinada — já com mostras de descaso — e o resto era simplesmente uma plataforma de observação, com algumas espre-guiçadeiras e cadeiras de lona. George deixou-se cair numa delas e olhou em volta, sentindo-se rei de tudo o que via.
A vista era realmente imponente. A casa de Rupert fora construída na beira de uma grande bacia, que descia, a leste, para os pântanos e lagos existentes a cinco quilômetros de distância. A oeste, a terra era plana e a selva quase chegava à porta dos fundos. Mas, para além da selva, a uma distância de pelo menos cinqüenta quilômetros, uma linha de montanhas estendia-se, como um grande paredão, para o norte e para o sul, até perder de vista. Os cumes estavam brancos de neve e as nuvens acima deles pareciam de fogo, à medida que o sol descia, completando os derradeiros cinco minutos de sua jornada diária. Olhando para aqueles remotos contrafortes, George sentiu-se subitamente sóbrio e insignificante.
As estrelas que surgiram, mal o sol se deitara, eram-lhe completamente estranhas. Procurou o Cruzeiro do Sul, mas em vão. Embora soubesse muito pouco de astronomia e só pudesse reconhecer algumas constelações, a ausência das estrelas familiares era perturbadora, o mesmo acontecendo com os ruídos que vinham da selva, parecendo ameaçadoramente próximos. Chega de ar fresco, pensou George. Vou voltar à festa antes que algum morcego-vampiro, ou algo igualmente agradável, resolva vir ver quem é este desconhecido.
Ia saindo, quando outro convidado emergiu do alçapão que dava para o telhado. A escuridão agora era tanta, que George não pôde ver quem era, de modo que falou: — Oi, também está farto da festa? — O companheiro invisível riu.
— Rupert está começando a passar seus filmes. Já vi todos — respondeu o outro.
— Quer um cigarro? — perguntou George.
— Aceito, obrigado.
À luz da chama do isqueiro — George gostava de tais antigüidades — pôde ver o outro, um jovem negro impressionantemente bonito, cujo nome George não guardara, como tampouco guardara os nomes dos outros vinte estranhos que estavam na festa. Contudo, parecia haver algo de familiar no rapaz e subitamente ele se lembrou:
— Não sei se fomos apresentados, mas você não é o novo cunhado de Rupert?
— Isso mesmo. Meu nome é Jan Rodricks. Todo mundo diz que eu e Maia somos iguais.
George ficou pensando se devia dar os pêsames a Jan pelo fato de se ter tornado cunhado de Rupert. Resolveu deixar que o infeliz descobrisse por si mesmo; afinal, era possível que Rupert, dessa vez, assentasse a cabeça.
— E eu sou George Greggson. É a primeira vez que você comparece a uma das famosas festas de Rupert?
— É. A gente fica conhecendo um bocado de pessoas, hein?
— E não só pessoas — acrescentou George. — Foi a primeira oportunidade que tive de conhecer socialmente um Senhor Supremo.
O outro hesitou um momento antes de responder, e George perguntou a si mesmo se teria tocado em algum ponto sensível. Mas a resposta nada revelou.
— Eu também nunca tinha visto um, exceto, é claro, na televisão.
A conversa terminou aí e, passado um momento, George percebeu que Jan queria ficar a sós. De qualquer maneira, estava esfriando, de modo que se despediu e voltou para a festa.
A selva estava agora em silêncio. Jan encostou-se à parede curva da instalação de ar condicionado. O único ruído que lhe chegava aos ouvidos era o murmúrio da casa, respirando através dos pulmões mecânicos. Sentiu-se completamente só como desejava estar. Sentiu-se também muito frustrado, coisa que não tinha o menor desejo de sentir.
Nenhuma utopia é capaz de satisfazer a todos o tempo todo. À medida que suas condições materiais melhoram, os homens vão se tornando descontentes com os poderes e as posses que antes lhes teriam parecido inacessíveis. E, mesmo quando o mundo exterior lhes concedeu tudo o que podia, ainda permanecem as demandas da mente e os desejos do coração.
Embora raramente apreciasse sua sorte, Jan Rodricks ter-se-ia sentido mais descontente ainda se houvesse vivido numa era anterior. Um século antes, sua cor teria sido uma tremenda desvantagem, um obstáculo quase intransponível. Hoje nada significava. A inevitável reação, que dera aos negros do início do século XXI um ligeiro sentimento de superioridade, já desaparecera. A palavra "negro" não era mais um tabu ou um insulto, e sim um termo usado por todo mundo, sem nenhum sentido pejorativo. Seu conteúdo emocional era igual ao de "republicano" ou "metodista", "conservador" ou "liberal".
O pai de Jan fora um escocês encantador mas algo fraco, que granjeara fama considerável como mágico profissional. Sua morte prematura, aos quarenta e cinco anos de idade, fora acelerada pelo consumo excessivo do mais famoso produto do seu país. Embora Jan nunca tivesse visto o pai bêbado, também não tinha a certeza de jamais tê-Io visto sóbrio.
A Sra. Rodricks, ainda viva, lecionava teoria das probabilidades na Universidade de Edimburgo. Exemplos típicos da extrema mobilidade do século XXI, a Sra. Rodricks, negra retinta, nascera na Escócia, ao passo que seu louro marido passara quase toda a sua vida no Haiti. Maia e Jan nunca tinham conhecido um lar, e sim oscilado entre as famílias dos pais, de um lado para outro como duas petecas. A coisa fora divertida, mas não ajudara a corrigir a instabilidade que ambos haviam herdado do pai.
Aos vinte e sete anos, Jan ainda tinha vários anos de estudos pela frente, antes de precisar pensar a sério numa carreira. Colara grau de bacharel sem qualquer dificuldade, num currículo que, um século antes, pareceria muito estranho. Suas principais matérias tinham sido a matemática e a física, mas estudara também filosofia e apreciação musical. Mesmo do ponto de vista exigente da época, ele era um pianista de primeira.
Dali a três anos, conquistaria o doutorado em engenharia física e astronomia. Para isso, teria de dar duro, mas Jan até gostava. Estudava na mais bonita — em termos de localização — universidade do mundo: a Universidade da Cidade do Cabo, situada aos pés do monte Mesa.
Não tinha preocupações materiais, mas não era feliz e não via cura para essa situação. Para piorar ainda mais as coisas, a felicidade de Maia — embora ele não abrigasse nenhum ressentimento contra a irmã — viera sublinhar a principal causa de seus problemas.
Jan sofria ainda da ilusão romântica — causa de tanta miséria e origem de tanta poesia — de que todo homem tem só um amor verdadeiro em toda a sua vida. Apaixonara-se, pela primeira vez e já não muito jovem, por uma dama mais conhecida pela sua beleza do que pela sua constância. Rosita Tisen afirmava — e não mentia — ter ainda nas veias sangue dos imperadores mandchus. Possuía muitos súditos, inclusive a maioria do corpo docente da Faculdade de Ciências do Cabo. Jan apaixonara-se pela sua beleza delicada, de flor, e o caso entre eles fora suficientemente sério para tornar o fim ainda mais doloroso. Jan não podia imaginar o que dera errado. . .
Naturalmente, acabaria se recuperando. Muitos outros homens tinham sobrevivido a catástrofes semelhantes sem danos irreparáveis, tinham até chegado ao ponto de dizer: "Não sei como pude sentir algo sério por uma mulher como essa!" Mas, para chegar a isso, ainda era preciso muito e, no momento, Jan estava de mal com a vida.
Sua outra fonte de infelicidade era bem mais difícil de remediar, pois resultava do impacto dos Senhores Supremos sobre suas ambições. Jan era um romântico, não só de coração mas também na maneira de pensar. Como tantos outros jovens, desde que a conquista do ar se tornara uma realidade, ele deixara seus sonhos e sua imaginação percorrerem os mares inexplorados do espaço.
Um século antes, o homem pusera o pé na escada, que o levaria às estrelas. Nesse exato momento — teria sido coincidência? — a porta de acesso aos planetas fora-lhe fechada na cara. Os Senhores Supremos haviam imposto poucas proibições a qualquer forma da atividade humana (as guerras eram, talvez, a maior exceção), mas as pesquisas espaciais tinham praticamente cessado. O desafio apresentado pela ciência dos Senhores Supremos era demasiado grande. Momentaneamente, ao menos, o Homem perdera o ânimo e voltara-se para outros campos de atividade. Não havia sentido em desenvolver a construção de foguetes espaciais, quando os Senhores Supremos tinham meios de pro-pulsão infinitamente superiores, baseados em princípios de que nunca haviam dado, sequer, uma idéia.
Algumas centenas de homens tinham ido à Lua, a fim de estabelecer um observatório lunar. Tinham viajado como passageiros de uma pequena nave, emprestada pelos Senhores Supremos, e impelida por foguetes. Era evidente que pouco se poderia deduzir de um estudo daquele veículo primitivo, mesmo que seus proprietários o entregassem, sem qualquer reserva, ao exame dos cientistas terrestres.
O homem continuava, portanto, a ser um prisioneiro de seu próprio planeta. Um planeta muito mais justo, mas muito menor do que um século antes. Ao abolirem a guerra, a fome e a doença, os Senhores Supremos tinham também abolido o espírito de aventura.
A lua, em ascensão, começava a pintar o céu oriental de um branco pálido. Lá em cima, Jan sabia, ficava a base principal dos Senhores Supremos, dentro dos contrafortes de Platão. Embora as naves de abastecimento sulcassem os céus havia setenta anos, só na época de Jan é que todo o segredo fora posto de lado e elas tinham começado a zarpar à vista da Terra. Através de um telescópio de duzentas polegadas, podiam-se ver claramente as sombras das grandes naves, projetadas pelo sol da manhã ou da tarde sobre quilômetros e quilômetros das planícies lunares. Como tudo o que os Senhores Supremos faziam tinha enorme interesse para a humanidade, suas idas e vindas eram cuidadosamente vigiadas e seu comportamento (mas não as razões que o determinavam) começava a poder ser traçado. Uma dessas grandes sombras sumira havia algumas horas. Isso significava, e Jan sabia, que uma nave dos Senhores Supremos estava flutuando no espaço, a alguma distância da Lua, preparando-se para iniciar viagem rumo à pátria longínqua e desconhecida.
Ele nunca vira uma dessas naves decolar rumo às estrelas. Quando as condições atmosféricas eram boas, isso era visível na metade do mundo, mas Jan nunca tivera essa sorte. Nunca se podia saber ao certo quando seria a partida; e os Senhores Supremos não anunciavam o fato. Decidiu esperar mais dez minutos e depois voltar à festa.
Que era aquilo? Apenas um meteoro, deslizando através de Eridanus. Jan descontraiu-se, descobriu que o cigarro se apagara e acendeu outro.
Já quase o tinha fumado quando, a meio milhão de quilômetros, a Stardrive partiu. Saindo do centro do luar, uma diminuta centelha começou a subir na direção do zêni-te. A princípio, tão lentamente, que mal se podia perceber, mas depois acelerando-se a cada segundo. À medida que subia, aumentava de brilho, até que de repente desapareceu de vista. Um momento depois, reapareceu, mais brilhante e veloz. Aparecendo e desaparecendo num ritmo próprio, subiu cada vez mais rápido, traçando uma linha de luz flutuante por entre as estrelas. Mesmo não se conhecendo a distância real, a impressão de velocidade era fantástica. Sabendo-se que a nave estava além da Lua, a mente maravilhava-se diante de tanta velocidade e energia.
Jan sabia que o que ele estava vendo era um subproduto insignificante dessa energia. A nave em si era invisível e já estava muito à frente daquela luz ascendente. Assim como um jato, voando a grande altura, pode deixar uma trilha de condensação atrás dele, assim a nave dos Senhores Supremos deixava a sua esteira. A teoria geralmente aceita — e não parecia haver dúvida a respeito — era de que a imensa aceleração da Stardrive causava uma distorção local do espaço. Jan sabia que o que estava vendo nada mais era do que a luz de estrelas distantes, visível sempre que as condições eram favoráveis. Era uma prova evidente da relatividade — o flectir da luz na presença de um campo de gravidade colossal.
Agora, a ponta daquela vasta e fina lente parecia mover-se mais lentamente, mas isso era apenas devido à perspectiva. Na realidade, a nave continuava ganhando velocidade: seu caminho estava apenas sendo pré-encurtado, à medida que ela se precipitava rumo às estrelas. Jan sabia que muitos telescópios estavam acompanhando seu movimento, que os cientistas da Terra procuravam desvendar os segredos da Drive. Já se tinham publicado dezenas de trabalhos sobre o assunto. Sem dúvida, os Senhores Supremos os haviam lido com o maior interesse.
A luz fantasma estava começando a desaparecer. Agora, não passava de um traço, apontando para o centro da constelação de Carina, como Jan sabia que ia acontecer. O mundo dos Senhores Supremos ficava para aquelas bandas, mas poderia englobar qualquer uma das milhares de estrelas naquele setor do espaço. Não havia como calcular sua distância do sistema solar.
Tudo terminara. Embora a nave mal tivesse iniciado sua viagem, os olhos dos homens nada mais podiam ver. Mas, no espírito de Jan, a memória daquela esteira luminosa continuava viva, continuaria brilhando enquanto ele tivesse ambições e desejos.
A festa terminara. Quase todos os convidados já haviam desaparecido nos céus e estavam agora viajando de volta aos quatro cantos do mundo. Restavam apenas algumas exceções.
Uma delas era Norman Dodsworth, o poeta, que se embriagara desagradavelmente, mas tivera a sensatez de perder a consciência antes que fosse necessário tomar alguma medida mais violenta. Fora colocado, sem muita deferência, no gramado, onde se esperava que uma hiena lhe propiciasse um rude despertar. Podia, pois, ser considerado praticamente ausente.
Os outros convidados que não haviam ido embora eram George e Jean. Por vontade de George, já teriam partido. Ele não via com bons olhos a amizade entre Rupert e Jean, mas não pelos motivos costumeiros. George orgulhava-se de ser um homem prático e racional, e considerava os interesses que aproximavam Jean de Rupert como não só infantis, naquela idade da ciência, mas também um pouco mórbidos. Parecia-lhe incrível que alguém acreditasse ainda no paranormal e o fato de ter encontrado Rashaverak na biblioteca abalara sua fé nos Senhores Supremos.
Era agora óbvio que Rupert planejara uma surpresa, provavelmente com a conivência de Jean. George resignou-se, antecipadamente, às bobagens que estavam para vir.
— Experimentei todo tipo de coisas antes de me decidir por isto — disse Rupert, cheio de si. — O grande problema é reduzir o atrito, de modo a conseguir completa liberdade de movimento. A velha mesa com copos em cima não é assim tão má, mas há séculos que vem sendo usada e eu tinha a certeza de que a ciência moderna podia fazer melhor do que isso. E eis o resultado. Aproximem as cadeiras. Tem certeza de que não quer participar também, Rashy?
O Senhor Supremo deu a impressão de hesitar durante uma fração de segundo, mas logo sacudiu a cabeça. (Teriam aprendido aquilo na Terra? pensou George.)
— Não, obrigado — respondeu ele. — Prefiro ficar olhando. Um outro dia, talvez.
— Muito bem, sempre há tempo de você mudar de idéia.
Há mesmo? pensou George, olhando sombriamente para o relógio.
Rupert reunira os amigos em volta de uma mesa pequena mas maciça, de forma perfeitamente circular. Tinha um tampo de plástico, que ele ergueu, de modo a revelar um mar reluzente de rolamentos esféricos, apertados uns contra os outros. George não conseguiu imaginar para que serviriam. As centenas de pontos de luz refletidos formavam um desenho fascinante e hipnótico, e ele sentiu-se ligeiramente tonto.
Ao aproximarem as cadeiras, Rupert pôs a mão debaixo da mesa e puxou um disco de uns dez centímetros de diâmetro, que colocou sobre a superfície dos rolamentos.
— Pronto! — disse ele. — Ponham os dedos em cima disso e vão ver que ele se move de um lado para outro, sem nenhuma resistência.
George olhou para aquilo com profunda desconfiança. Notou que as letras do alfabeto estavam dispostas a intervalos regulares — embora não em ordem — ao redor da circunferência da mesa. Além disso, havia os números de 1 a 9, espalhados ao acaso entre as letras, e dois cartões, com as palavras "sim" e "não", em lados opostos da mesa.
— Está me parecendo uma charlatanice — murmurou ele. — Não entendo como alguém pode levar isso a sério, na época em que vivemos. — Sentiu-se um pouco melhor, após esse protesto, dirigido tanto a Jean quanto a Rupert, que não pretendia ter mais do que um interesse puramente científico naqueles fenômenos. Tinha a mente aberta, mas não era crédulo. Jean, por outro lado. . . bem, George às vezes ficava um pouco preocupado com ela. Parecia acreditar, realmente, naquela história de telepatia e visão secundária.
Só depois de ter feito aquele comentário é que George se apercebeu de que ele implicava uma crítica a Rashaverak. Olhou nervosamente a sua volta, mas o Senhor Supremo não demonstrou qualquer reação. O que, naturalmente, nada provava.
Já todos tinham tomado suas posições. Sentados ao redor da mesa, no sentido dos ponteiros do relógio, estavam Rupert, Maia, Jan, Jean, George e Benny Schoenberger. Ruth Schoenberger estava sentada fora do círculo, com um bloco na mão. Tinha, segundo parecia, alguma objeção a participar ativamente daquilo, o que levara Benny a fazer alguns comentários sarcásticos a respeito de certas pessoas que ainda levavam o Talmud a sério. Não obstante, ela mostrava-se perfeitamente disposta a atuar como uma espécie de anotadora das mensagens.
— Agora, escutem — disse Rupert. — Tendo em vista os céticos, como George, vou logo de saída dizendo que, haja ou não algo de sobrenatural nisso, a verdade é que funciona. Pessoalmente, acho que há uma explicação puramente mecânica. Quando colocamos as mãos sobre o disco, mesmo que procuremos evitar influenciar seus movimentos, nosso subconsciente age por conta própria. Analisei muitas dessas sessões e nunca obtive respostas que alguém do grupo não tivesse também obtido ou adivinhado, embora às vezes não tivesse consciência disso. Não obstante, gostaria de realizar a experiência nessas. . . bem. . . circunstâncias peculiares.
A "Circunstância Peculiar" observava em silêncio, embora não com indiferença. George não pôde deixar de pensar no que Rashaverak estava achando de tudo aquilo. Seriam suas reações as de um antropólogo assistindo a algum rito religioso primitivo? Tudo aquilo era mais do que fantástico e George sentiu-se fazendo o papel mais idiota de toda a sua vida.
Se os outros também se sentiam idiotas, escondiam muito bem suas emoções. Apenas Jean estava vermelha e excitada, embora pudesse ser obra dos drinques.
— Tudo pronto? — perguntou Rupert. — Muito bem. — Fez uma pausa de impacto e depois, dirigindo-se a ninguém em particular, voltou a perguntar, na sua voz de trovão: — Há alguém aí?
George sentiu o prato sob seus dedos tremer ligeiramente. Não era de espantar, considerando-se a pressão exercida sobre ele pelas seis pessoas do círculo. Deslizou um pouco, como que rodopiando, e voltou a parar no centro da mesa.
— Há alguém aí? — repetiu Rupert. Num tom de voz mais comum, acrescentou: — Às vezes, leva de dez a quinze minutos para começar. Mas outras vezes. . .
— Psiu. . . — pediu Jean.
O prato estava se mexendo. Começou a oscilar entre os cartões marcados com sim e não. Com alguma dificuldade, George conseguiu abafar uma risada. O que provaria tudo aquilo, pensou, se a resposta fosse não? Lembrou-se da velha piada: "Não tem ninguém aqui senão nós, as galinhas, dona..."
Mas a resposta foi sim. O prato voltou velozmente para o centro da mesa. Parecia ter ganho vida e estar à espera da pergunta seguinte. A contragosto, George começou a ficar impressionado.
— Quem é você? — perguntou Rupert.
Não houve mais hesitação na escolha das letras. O prato disparava de um lado para o outro da mesa com tal rapidez, que George estava achando difícil manter os dedos em contato. Juraria que não estava contribuindo para que ele se movesse. Olhando de relance em volta da mesa, não viu nada de suspeito nos rostos dos amigos. Pareciam tão atentos, tão na expectativa, quanto ele.
— Eu sou todos — soletrou o prato e depois voltou ao seu ponto de equilíbrio.
— Eu sou todos — repetiu Rupert. — Uma resposta típica. Evasiva, mas estimulante. Provavelmente significa que nada há aqui exceto nossas mentes combinadas. — Fez uma pausa, enquanto pensava na pergunta seguinte, que não tardou a fazer:
— Você tem algum recado para alguém aqui?
— Não — respondeu prontamente o prato. Rupert olhou para os outros.
— Depende de nós. Às vezes, ele dá informações por sua espontânea vontade, mas desta vez vamos ter que fazer perguntas definidas. Alguém quer começar?
— Vai chover amanhã? — perguntou George, em tom de brincadeira.
Imediatamente o prato começou a oscilar entre a linha do sim-não.
— Foi uma pergunta idiota — comentou Rupert. — Em algum lugar vai estar chovendo e em outro, não. Não faça perguntas que dêem margem a respostas ambíguas.
George ficou sem graça e resolveu deixar que outra pessoa fizesse a pergunta seguinte.
— Qual a minha cor predileta? — perguntou Maia.
— Azul — foi a resposta imediata.
— Exatamente.
— Mas isso não prova nada. Pelo menos três das pessoas aqui presentes sabem disso — lembrou George.
— Qual a cor predileta de Ruth? — perguntou Benny.
— Vermelho.
— É verdade, Ruth?
A interpelada levantou os olhos do bloco.
— É. Mas Benny sabe disso e ele faz parte do círculo.
— Eu não sabia — retrucou Benny.
— Pois devia saber, já lhe disse não sei quantas vezes.
— Memória subconsciente — murmurou Rupert. — Isso costuma acontecer. Mas será que ninguém quer fazer alguma pergunta mais inteligente? Agora, que está tudo indo tão bem, não gostaria de que a coisa fosse por água abaixo.
Por estranho que pudesse parecer, a própria trivialidade do fenômeno estava começando a impressionar George. Estava certo de que não havia qualquer explicação sobrenatural; conforme Rupert dissera, o prato apenas respondia aos movimentos musculares e inconscientes de todos eles. Mas o fato em si era surpreendente. Ele nunca teria acreditado que se pudessem obter respostas tão rápidas e precisas. Procurou ver se podia influenciar o quadro, fazendo-o soletrar o seu nome. Obteve o G, mas foi só: o resto nada significava. Decidiu ser completamente impossível, para uma só pessoa, tomar o controle sem que o resto do círculo soubesse.
Passada meia hora, Ruth anotara mais de doze mensagens, algumas bem longas. De vez em quando havia um erro de ortografia ou de gramática, mas isso era raro. Qualquer que fosse a explicação, George convencera-se de que não estava contribuindo conscientemente para os resultados. Por diversas vezes, quando uma palavra estava sendo soletrada, ele antecipara a letra seguinte e, a partir daí, o significado da mensagem. Em cada ocasião, o prato tinha tomado uma direção inteiramente inesperada e soletrado algo totalmente diferente. Por vezes, até — já que não havia pausa para indicar o fim de uma palavra e o princípio da outra —, toda a mensagem parecia sem sentido até estar completa e Ruth tê-la repetido.
A experiência deu a George a sensação fantástica de estar em contato com uma estranha mente, independente e com um objetivo. E, contudo, não havia nenhuma prova conclusiva. Ás respostas eram tão triviais, tão ambíguas! O que, por exemplo, se podia deduzir de:
CREIANOHOMEMANATUREZAESTÁCOMVOCÊ.
Entretanto, às vezes havia indicações de verdades profundas, perturbadoras:
LEMBREMSEDEQUEOH0MEMNÃOESTÁSÓPERTODO HOMEMESTÁATERRADEOUTROS.
Mas, naturalmente, todo mundo sabia disso; contudo, quem poderia garantir que a mensagem não se referia apenas aos Senhores Supremos?
George estava ficando com muito sono. Era mais do que tempo, pensou, sonolento, de irem para casa. Tudo aquilo era muito intrigante, mas não levava a nada. Olhou em volta da mesa. Benny dava a impressão de sentir a mesma coisa, Maia e Rupert pareciam ter os olhos ligeiramente vidrados e Jean — bem, estava levando a coisa demasiado a sério. Sua expressão preocupava George; era quase como se tivesse medo de parar; e medo, também, de continuar.
Restava apenas Jan. George ficou imaginando o que ele pensaria das excentricidades do cunhado. O jovem engenheiro não fizera nenhuma pergunta, não mostrara surpresa diante das respostas. Parecia estar estudando o movimento do prato, como se fosse mais um fenômeno científico.
Rupert despertou-o da letargia em que ele parecia ter caído.
— Vamos fazer só mais uma pergunta — disse — e depois encerramos o expediente. Que tal você, Jan? Você ainda não perguntou nada.
Surpreendentemente, Jan não hesitou. Parecia ter pensado na pergunta havia muito tempo e estar apenas esperando a oportunidade. Olhou de relance para o vulto impassível de Rashaverak e depois perguntou em voz clara e firme:
— Que estrela é o sol dos Senhores Supremos? Rupert conteve um assobio de surpresa. Maia e Benny
não demonstraram qualquer reação. Jean fechara os olhos e parecia estar dormindo. Rashaverak inclinara-se para a frente, de maneira a poder olhar, para o círculo, por sobre o ombro de Rupert.
E o prato começou a mover-se.
Quando parou novamente, houve uma breve pausa e logo Ruth perguntou, com voz intrigada:
— Que quer dizer NGS 549672?
Não obteve resposta porque, no mesmo momento, George gritou, aflito:
— Ajudem-me, por favor. Acho que Jean desmaiou!
— Esse tal Boyce. . . — disse Karellen. — Diga-me tudo o que sabe a respeito dele.
Naturalmente, o supervisor não empregou essas palavras e os pensamentos que expressou eram muito mais sutis. Um ouvinte humano teria ouvido apenas como que um som rapidamente modulado, semelhante a um emissor Morse de alta velocidade. Embora muitas amostras da língua dos Senhores Supremos já tivessem sido gravadas, todas elas desafiavam qualquer análise, devido a sua extrema complexidade. A velocidade da transmissão tornava impossível a qualquer intérprete, mesmo que dominasse os elementos da língua, acompanhar a conversa normal dos Senhores Supremos.
O supervisor para assuntos da Terra estava de costas para Rashaverak, olhando para o abismo multicolorido do Grand Canyon. A dez quilômetros de distância, as paredes em terraço captavam toda a força do sol. Centenas de metros mais abaixo da encosta sombreada a cuja beira Karellen se achava, uma tropa de mulas descia, lentamente, para as profundezas do vale. Era estranho, pensou Karellen, o fato de tantos seres humanos aproveitarem ainda todas as oportunidades para um comportamento primitivo. Se quisessem, podiam chegar ao fundo do canyon numa fração de minuto e com um conforto muito maior, mas preferiam descer sacolejando, por trilhas que provavelmente eram tão inseguras quanto aparentavam.
Karellen fez um gesto imperceptível com a mão. Imediatamente, todo o panorama desapareceu de vista, deixando apenas uma sensação de indefinida profundeza. As realidades de seu cargo e de sua posição voltaram a ocupar o supervisor.
— Rupert Boyce é uma personalidade algo curiosa — respondeu Rashaverak. — Profissionalmente, é encarregado do bem-estar animal de uma importante seção da principal reserva africana. É muito eficiente e interessado em seu trabalho. Como tem que manter vigilância sobre milhares de quilômetros quadrados, emprestamos-lhe um dos quinze visores panorâmicos; naturalmente, com as salvaguardas de costume. Aliás, é o único visor com plena capacidade de projeção. Argumentou que precisava dela e nós concordamos.
— Quais os argumentos que alegou?
— Disse que desejava aparecer a vários animais selvagens, para que eles se acostumassem a vê-lo e não o atacassem quando ele lhes aparecesse em carne e osso. A teoria tem dado resultado com os animais que se baseiam mais na vista do que no faro; embora ele possa vir a ser morto por um deles. E, naturalmente, houve um outro motivo para lhe emprestarmos o aparelho.
— Torná-lo mais cooperativo?
— Exatamente. Constatei isso inicialmente porque ele possui uma das melhores bibliotecas do mundo de livros sobre parapsicologia e assuntos correlatos. Ele se recusou, embora delicadamente, a nos emprestar um só volume, de modo que o único jeito foi visitá-lo. Já li a metade dos livros de sua biblioteca. Um trabalhão e uma chatice.
— Posso imaginar — retrucou Karellen, secamente. — E descobriu alguma coisa no meio de todo esse lixo?
— Sim. Onze casos nítidos de constatação parcial e vinte e sete casos prováveis. Contudo, o material é tão seletivo, que não se pode usá-lo para fins de amostragem. E as provas estão tão confundidas com misticismo. . . talvez a principal aberração da mente humana.
— Qual a atitude de Boyce para com tudo isso?
— Finge ter a mente aberta e ser cético, mas é claro que nunca teria gasto tanto tempo e esforço para reunir aquela biblioteca, se não abrigasse uma fé subconsciente. Desafiei-o a negar isso e ele admitiu que eu talvez tivesse razão. Gostaria de encontrar uma prova convincente, por isso está sempre realizando experiências, embora finja serem apenas brincadeiras, jogos de salão.
— Tem certeza de que ele não desconfia de que nosso interesse seja mais do que acadêmico?
— Absoluta. Sob muitos aspectos, Boyce é extraordinariamente obtuso e simplório. Isso faz com que suas tentativas de pesquisar esse campo acabem sendo patéticas. Não há necessidade de qualquer ação especial no tocante a ele.
— Entendo. E essa moça que desmaiou?
— É o aspecto mais excitante do caso. É quase certo que Jean Morrei tenha sido o canal através do qual as informações passaram. Mas ela tem vinte e seis anos — demasiado velha para ser um contato primário, a julgar pela nossa experiência anterior. Deve ser, portanto, alguém muito chegado a ela. A conclusão é óbvia. Não podemos esperar muitos anos mais. Temos de transferi-la para a Categoria Púrpura: talvez ela seja o mais importante ser vivo.
— Vou fazer isso. E o rapaz que fez a pergunta? Terá sido mera curiosidade, ou teria ele algum outro motivo?
— Ele apareceu por acaso, a irmã acaba de casar com Rupert Boyce. Não conhecia nenhum dos outros convidados. Tenho certeza de que a pergunta não foi premeditada e sim inspirada pelas circunstâncias desusadas e, provavelmente, pela minha presença. Dados esses fatores, não é de surpreender que ele tenha agido como agiu. Seu grande interesse é a astronáutica: é secretário do Grupo de Viagens Espaciais da Universidade da Cidade do Cabo e, evidentemente, pretende dedicar-se a esse campo.
— Decerto fará uma carreira interessante. Entretanto, que atitude você acha que ele tomará e o que faremos a respeito dele?
— Sem dúvida tratará de fazer algumas averiguações, tão logo possa. Mas não há maneira de poder provar se a informação estava certa ou não e, graças à fonte em que foi obtida, é muito difícil que ele a torne pública. Mesmo que isso aconteça, acho que não afetará em nada as coisas.
— Vou avaliar ambas as situações — replicou Karellen. — Embora faça parte de nossas normas não revelar nossa base, não há maneira de que a informação possa vir a ser usada contra nós.
— Concordo. Rodricks vai ficar de posse de uma informação de exatidão duvidosa e sem nenhum valor prático.
— Assim parece — disse Karellen. — Mas não fiquemos tão certos disso. Os seres humanos são muito engenhosos e, freqüentemente, muito persistentes. Não é seguro subestimá-los e será prudente acompanhar a carreira do Sr. Rodricks. Vou pensar mais no assunto.
Rupert Boyce é que não pensou mais no assunto. Mal os convidados haviam partido, fazendo bem menos barulho do que de costume, ele voltara a colocar a mesa em seu canto. O leve véu alcoólico não lhe permitia fazer uma análise profunda do que tinha ocorrido e até os fatos estavam um pouco confusos em sua mente. Tinha uma idéia vaga de que algo de grande importância acontecera e a si mesmo perguntou se deveria ou não discutir isso com Rashaverak. Pensando melhor, achou que podia ser falta de tato. Afinal de contas, seu cunhado fora indiscreto e Rupert sentia-se vagamente aborrecido com Jan. Mas teria a culpa sido de Jan? De quem teria sido a culpa? Rupert lembrou-se de que a idéia da experiência fora sua e resolveu, na medida do possível, esquecer tudo.
Talvez ele tivesse feito algo se a última página do bloco de Ruth houvesse sido encontrada, mas na confusão ela desaparecera. Jan protestava inocência e ninguém poderia acusar Rashaverak. E ninguém se lembrava exatamente do que fora soletrado, apenas que não parecia ter nenhum sentido.
A pessoa mais imediatamente afetada fora George Greggson. Nunca poderia esquecer a sensação de terror, ao ver Jean desmaiar em seus braços. Aquilo a transformara, de repente, de uma companheira divertida num objeto de ternura e afeto. Desde tempos imemoriais as mulheres desmaiavam — muitas vezes premeditadamente —, e os homens invariavelmente reagiam da maneira desejada. O colapso de Jean fora absolutamente espontâneo, mas não poderia ter sido mais bem planejado. Naquele instante, conforme mais tarde constataria, George tomara uma das mais importantes decisões de sua vida. Jean era a mulher para ele, apesar de suas idéias estranhas e de seus amigos mais estranhos ainda. Não tencionava abandonar inteiramente Naomi, Joy, Elsa ou — como era mesmo o nome dela? — Denise. Mas estava na hora de algo mais permanente. Não tinha dúvidas de que Jean concordaria com ele, pois desde o início seus sentimentos eram mais do que óbvios.
Por trás de sua decisão, havia um outro fator, do qual ele não se dava conta. A experiência daquela noite diminuía seu desprezo e ceticismo pelos interesses peculiares de Jean. Embora ele não reconhecesse, removera a última barreira entre os dois.
Olhou para Jean, que jazia, pálida mas composta, na poltrona reclinável do carro aéreo. Embaixo, havia a escuridão; acima, as estrelas. George não tinha idéia de onde podiam estar, num raio de mil quilômetros — nem isso o preocupava. Era problema do robô que os estava guiando de volta a casa, onde aterrissariam, conforme anunciava o painel de controle, dentro de cinqüenta e sete minutos precisos.
Jean sorriu para ele e tirou delicadamente a mão da sua.
— Deixe-me restabelecer a circulação — pediu, esfregando as mãos. — Gostaria que você acreditasse em mim, quando lhe digo que estou perfeitamente bem.
— Que é que você acha que aconteceu? Sem dúvida se lembra de algo?
— Não, não me lembro de nada. Ouvi Jan fazer a pergunta e logo depois vi todo mundo aflito à minha volta. Acho que foi uma espécie de transe. Afinal de contas . . .
Fez uma pausa e resolveu não dizer a George que não era a primeira vez que aquilo acontecia. Sabia o que ele achava daqueles assuntos e não desejava aborrecê-lo e, talvez, perdê-lo para sempre.
— Afinal de contas o quê? — insistiu George.
— Nada, nada. Que será que o Senhor Supremo pensou de tudo o que aconteceu? Provavelmente demos-lhe mais material do que ele pretendia.
Jean estremeceu e seus olhos nublaram-se.
— Tenho medo dos Senhores Supremos, George. Não quero dizer que sejam maus ou qualquer bobagem dessas. Tenho certeza de que suas intenções são boas e de que estão fazendo o que julgam ser melhor para nós. Mas gostaria de saber quais seus verdadeiros planos.
George remexeu-se no assento.
— Desde que desceram à Terra que os homens se perguntam isso — falou. — Acho que nos dirão quando estivermos prontos para saber. E, francamente, não sou curioso. Além do mais, tenho coisas mais importantes em que pensar. — Voltou-se para Jean e agarrou-lhe as mãos.
— Que tal irmos até os arquivos amanhã e assinarmos um contrato por. . . digamos, cinco anos?
Jean olhou fixo para ele e decidiu que, de modo geral, o que via agradava-lhe.
— Pode ser por dez — retrucou.
Jan deu tempo ao tempo. Não havia pressa e ele queria pensar. Era quase como se temesse proceder a averiguações, ou não quisesse que a fantástica esperança que lhe viera à mente fosse rapidamente destruída. Enquanto ainda se mantivesse na incerteza, podia pelo menos sonhar.
Além disso, para tomar medidas mais concretas, teria de ir falar com a bibliotecária do observatório. Ela conhecia-o, e a seus interesses, e certamente ficaria intrigada com seu pedido. Talvez não fizesse diferença, mas Jan estava decidido a não deixar nada nas mãos do acaso. Dentro de uma semana teria uma oportunidade melhor. Sabia que estava sendo supercauteloso, mas isso dava um sabor extra ao que ia fazer. Jan também temia o ridículo tanto quanto qualquer coisa que os Senhores Supremos pudessem fazer para embaraçar-lhe os passos. Ninguém precisava saber da aventura em que ele ia se meter.
Tinha uma ótima razão para ir a Londres: a viagem fora programada havia semanas. Embora fosse demasiado jovem e pouco qualificado para ser um delegado, era um dos três estudantes que haviam conseguido acompanhar a delegação oficial ao congresso da União Astronômica Internacional. Tinha aproveitado uma das vagas, já que não ia a Londres desde criança. Sabia que muito poucos dos trabalhos a serem apresentados à uai teriam algum interesse para ele, mesmo que pudesse entendê-los. Na qualidade de delegado a um congresso científico, assistiria a conferências que prometiam ser palpitantes e passaria o resto do tempo trocando idéias com outros entusiastas ou, simplesmente, fazendo turismo.
Londres mudara imensamente nos últimos cinqüenta anos. Tinha agora menos de dois milhões de habitantes e cem vezes mais máquinas. Já não era um grande porto, pois, com todos os países produzindo quase tudo de que necessitavam, todo o comércio mundial fora alterado. Ainda havia coisas que alguns países faziam melhor do que outros, mas eram transportadas diretamente pelo ar para seus destinos. As rotas comerciais, que outrora convergiam para os grandes portos e, depois, para os grandes aeroportos, se tinham finalmente dispersado numa intrincada teia de aranha que cobria o mundo inteiro, sem ter pontos principais.
Não obstante, algumas coisas não tinham mudado. A cidade continuava sendo um centro administrativo, artístico e cultural. Sob esses aspectos, nenhuma das capitais do continente podia rivalizar com ela; nem mesmo Paris, apesar dos muitos protestos em contrário. Um londrino do século anterior poderia ainda se movimentar, pelo menos no centro da cidade, sem se perder. Havia novas pontes sobre o Tâmisa, mas erguidas nos velhos lugares. As enormes e sombrias estações ferroviárias tinham desaparecido — só havia estações, agora, nos subúrbios. Mas as Casas do Parlamento persistiam. O olho solitário de Nelson continuava a olhar para Whitehall. A cúpula de Saint Paul ainda se erguia por sobre Ludgate Hill, embora houvesse agora edifícios mais altos a ofuscá-la.
E a guarda ainda marchava diante do Palácio de Buckingham.
Todas essas coisas, pensou Jan, podiam esperar. Era tempo de férias e ele estava alojado, com os outros dois colegas, numa das hospedarias da universidade. Bloomsbury tampouco mudara no último século; continuava sendo uma ilha de hotéis e pensões, embora já não se apertassem uns contra os outros ou formassem tantas fileiras idênticas e intermináveis de tijolos cobertos de fuligem.
Foi só no segundo dia do congresso que Jan teve sua oportunidade. As principais comunicações estavam sendo lidas na grande sala de reuniões do Centro de Ciências, não longe do Concert Hall, que tanto contribuíra para transformar Londres na metrópole musical do mundo. Jan queria ouvir a primeira conferência do dia, que, segundo se dizia, deitaria por terra a teoria corrente da formação dos planetas.
Podia ser, mas Jan não sentiu que tivesse aprendido algo, ao sair após o intervalo. Desceu e procurou, no indicador, o que desejava saber.
Algum funcionário público dotado de senso de humor pusera a Real Sociedade de Astronomia no andar superior do grande edifício, um gesto que os membros do conselho agradeceram, pois lhes proporcionava uma vista magnífica do Tâmisa e de toda a parte norte da cidade. Não parecia haver ninguém ali, mas Jan, segurando seu cartão de sócio como se fosse um passaporte, para o caso de alguém lhe perguntar algo, não teve dificuldade em localizar a biblioteca.
Demorou quase uma hora para encontrar o que desejava e para aprender a manusear os grandes catálogos de estrelas, com seus milhões de verbetes. Ao chegar quase ao fim da procura, viu que estava ligeiramente trêmulo e ficou satisfeito de não haver ninguém por perto para notar seu nervosismo.
Pôs o catálogo de volta entre os outros e ficou muito tempo sentado, imóvel, olhando, sem ver, para a parede cheia de volumes. Depois, saiu lentamente para os corredores silenciosos, passou pelo escritório do secretário (havia alguém ali agora, desembrulhando pacotes de livros) e desceu a escada. Evitou o elevador, pois queria sentir-se livre e não confinado. Tinha pretendido assistir a outra conferência, mas isso agora já não tinha importância.
As idéias rodopiavam-lhe na mente, quando ele atravessou para junto da amurada e seus olhos acompanharam o Tâmisa no seu caminho, sem pressa, rumo ao mar. Era difícil para alguém educado na ciência ortodoxa aceitar a prova que lhe caíra agora nas mãos. Nunca teria certeza de que ela era verdadeira, mas a probabilidade era enorme. Andando lentamente ao longo da amurada, recapitulou os fatos um por um.
Primeiro: ninguém, na festa de Rupert, podia imaginar que ele iria fazer aquela pergunta. Ele próprio não sabia; fora uma reação espontânea às circunstâncias. Por conseguinte, ninguém podia ter preparado uma resposta, ou já tê-la pronta na mente.
Segundo: NGS 549672 provavelmente nada significava para ninguém, exceto para um astrônomo. Embora o Grande Censo Geográfico Nacional tivesse sido feito meio século antes, sua existência só era conhecida por alguns milhares de especialistas. E ninguém poderia ter dito, apenas pelo número, onde ficava a estrela correspondente.
Mas — e ali estava o terceiro fato, que só naquele momento descobrira — a pequena e insignificante estrela conhecida como NGS 549672 estava precisamente no lugar certo: no coração da constelação de Carina, no fim da trilha brilhante que ele próprio vira, poucas noites antes, saindo do sistema solar rumo às profundezas do espaço.
Era uma coincidência impossível. A NGS 549672 tinha que ser o mundo dos Senhores Supremos. Mas aceitar esse fato equivalia a violar todas as idéias que Jan tinha a respeito do método científico. Muito bem — deixar que elas fossem violadas. Ele precisava aceitar o fato de que a fantástica experiência de Rupert tinha, de alguma forma, apontado para uma fonte, até então desconhecida, do conhecimento.
Rashaverak? Essa parecia ser a explicação mais provável. O Senhor Supremo não fizera parte do círculo, mas isso era o de menos. Jan não estava' preocupado com o mecanismo da parafísica, mas apenas com os resultados.
Muito pouco se sabia sobre a NGS 549672. Nunca houvera nada que a distinguisse de um milhão de outras estrelas. Mas o catálogo dava sua magnitude, suas coordenadas e seu tipo espectral. Jan teria que fazer alguma pesquisa e uns cálculos simples. Feito isso, saberia, pelo menos aproximadamente, a que distância o mundo dos Senhores Supremos estava da Terra.
Um sorriso espalhou-se lentamente pelo rosto de Jan, enquanto ele se afastava do Tâmisa e se voltava para a fachada reluzentemente branca do Centro de Ciências. Conhecimento significava poder e ele era o único homem na Terra que sabia a origem dos Senhores Supremos. Como iria usar esse conhecimento ainda não sabia. Ficaria guardado em sua mente, esperando o momento decisivo.
A raça humana continuava a se refestelar no longo verão de paz e prosperidade. O inverno voltaria algum dia? Era difícil de acreditar. A idade da razão, prematuramente apregoada pelos líderes da Revolução Francesa, dois séculos e meio antes, chegara por fim. Dessa vez, não havia erro.
Naturalmente, havia senões, embora não fossem facilmente aceitos. Era preciso ser muito velho para perceber que os jornais, que o telecaster imprimia em cada casa, eram na realidade muito chatos. Já não havia as crises que outrora faziam manchetes. Não havia crimes misteriosos para intrigar a polícia e despertar num milhão de corações a indignação moral que muitas vezes não passava de inveja reprimida. Os poucos crimes que aconteciam nunca eram misteriosos. Bastava girar um botão e o crime podia ser reconstituído. O fato de existirem aparelhos capazes dessas façanhas causara, a princípio, considerável pânico entre as pessoas mais pacatas. Isso era algo que os Senhores Supremos, que haviam estudado quase todos os aspectos da psicologia humana, não haviam antecipado. Foi preciso ficar perfeitamente claro que ninguém poderia espionar seus semelhantes e que os pouquíssimos instrumentos colocados em mãos humanas ficariam sob estrito controle. O projetor de Rupert Boyce, por exemplo, não podia operar para além das fronteiras da reserva, de modo que ele e Maia eram as únicas pessoas dentro de seu raio de alcance.
Mesmo os poucos crimes sérios que ocorriam não recebiam atenção especial da imprensa, já que às pessoas bem-educadas não interessava ler as misérias dos outros.
A semana média de trabalho era agora de cerca de vinte horas, e essas vinte horas eram muito bem aproveitadas. Pouco trabalho se fazia que fosse rotineiro ou mecânico. A mente humana era demasiado valiosa para ser desperdiçada em tarefas que alguns milhares de transistores, algumas células fotoelétricas e um metro cúbico de circuitos impressos podiam realizar. Havia fábricas que funcionavam durante semanas sem serem visitadas por um único ser humano. Os homens eram necessários para tomar decisões, para planejar novos empreendimentos, para pesquisar avarias. Os robôs faziam o resto.
Tanto ócio, um século antes, teria criado problemas tremendos. Mas a educação e a instrução tinham vencido a maioria desses problemas, pois uma mente rica jamais cai no tédio. O padrão geral de cultura atingira um nível que outrora teria parecido fantástico. Não havia provas de que a inteligência da raça humana houvesse aumentado, mas pela primeira vez todos os homens dispunham de todas as oportunidades para utilizar ao máximo sua inteligência.
A maioria das pessoas possuía duas casas, em partes muito diferentes do mundo. Agora que as regiões polares haviam sido abertas, uma fração considerável da raça humana oscilava entre o Ártico e o Antártico com intervalos de seis meses, em busca do longo verão polar, em que nunca anoitece. Outros haviam preferido os desertos, subido às montanhas ou descido ao mar. Não havia lugar no planeta onde a ciência e a tecnologia não pudessem propiciar um lar confortável, desde que a pessoa quisesse.
Alguns dos mais excêntricos locais de habitação proporcionavam um pouco de emoção aos noticiários. Até na sociedade mais organizada sempre podem ocorrer acidentes. Talvez fosse bom sinal as pessoas acharem que valia a pena arriscar e, ocasionalmente, quebrar o pescoço por causa de uma villa no cume do Everest ou debruçada sobre as cataratas do Niagara. Em conseqüência, havia sempre alguém sendo salvo em algum lugar. Tornara-se quase um jogo, uma espécie de esporte planetário.
As pessoas podiam ter desses caprichos porque dispunham de tempo e dinheiro. A abolição das forças armadas duplicara, quase que imediatamente, a riqueza do mundo, e o aumento de produção fizera o resto. Por essa razão, era difícil comparar o padrão de vida do homem do século XXI com o de seus predecessores. Tudo era tão barato que as necessidades da vida eram grátis, consideradas como serviços públicos, da mesma forma que outrora as estradas, o fornecimento de água, a iluminação das ruas e os esgotos. Uma pessoa podia viajar para onde quisesse, comer o que desejasse, sem gastar dinheiro. Ganhara o direito a isso por ser membro produtivo da comunidade.
Havia, é claro, alguns vadios, mas o número de pessoas com a força de vontade necessária para viver em completa ociosidade é muito menor do que geralmente se supõe. Manter esses parasitas custava muito menos do que sustentar os exércitos de coletores de bilhetes, empregados de lojas, funcionários de bancos, corretores, etc, cuja principal função, do ponto de vista global, era trasladar itens de um livro para outro.
Cerca de um quarto da atividade total da raça humana era, segundo fora calculado, consumido agora em esportes de várias espécies, desde ocupações tão sedentárias como o xadrez, até esportes perigosos, como atravessar, esquiando, vales montanhosos. Um resultado inesperado fora a extinção dos esportistas profissionais. Havia demasiados amadores excepcionais e as condições econômicas alteradas tinham tornado obsoleto o velho sistema.
Depois do esporte, a maior indústria era agora a das diversões, em todos os seus setores. Durante mais de cem anos houvera gente que acreditara ser Hollywood o centro do mundo. Agora, tinham mais razão para crer nisso, embora se pudesse dizer que a maioria das produções cinematográficas de 2050 teriam parecido incompreensivelmente "difíceis" e "intelectuais" em 1950. Houvera algum progresso: a bilheteria já não reinava absoluta.
No meio de todas as distrações e diversões de um planeta que parecia estar a caminho de se transformar num vasto playground, havia os que ainda achavam tempo para repetir uma velha pergunta nunca respondida: — Para onde estamos indo?
Jan encostou-se no elefante e apoiou as mãos em sua pele áspera como um tronco de árvore. Olhou para as grandes presas e para a tromba curva, conservada pela habilidade do taxidermista num momento de desafio ou saudação. Que criaturas ainda mais estranhas, pensou, de mundos ainda desconhecidos iriam um dia olhar para aquele exilado da Terra?
— Quantos animais você mandou para os Senhores Supremos? — perguntou Jan a Rupert.
— Pelo menos cinqüenta, embora este seja o maior de todos. Magnífico, não acha? Os outros eram quase todos pequenos — borboletas, cobras, macacos, etc. No ano passado, consegui um hipopótamo.
Jan sorriu.
— É uma idéia mórbida, mas imagino que eles a essa altura tenham um belo grupo empalhado de Homo sapiens em sua coleção. Quem terá merecido essa honra?
— Talvez você tenha razão — retrucou Rupert, com indiferença. — Seria fácil consegui-los através dos hospitais.
— O que aconteceria — prosseguiu Jan, pensativo — se alguém se oferecesse para ir como um espécime vivo? Desde que, naturalmente, pudesse regressar.
Rupert riu, embora com simpatia.
— Isso é uma oferta? Posso transmiti-la a Rashaverak? Jan considerou a idéia por um momento, mas acabou
abanando a cabeça.
— Não. Estava apenas pensando em voz alta. Eles certamente recusariam. Por falar nisso, você tem visto Rashaverak?
— Telefonou-me há umas seis semanas. Tinha acabado de encontrar um livro que eu estava procurando. Muito gentil da parte dele.
Jan deu volta ao elefante empalhado, admirando a perícia que o imortalizara no instante de maior vigor.
— Você descobriu o que ele estava procurando? — perguntou. — É difícil conciliar a ciência dos Senhores Supremos com um interesse nas coisas ocultas.
Rupert olhou para Jan com certa suspeita, desconfiado de que o cunhado estivesse caçoando do seu hobby.
— A explicação dele pareceu-me adequada. Como antropólogo, estava interessado em todos os aspectos de nossa cultura. Lembre-se de que eles dispõem de muito tempo. Podem aprofundar-se mais do que qualquer pesquisador humano. Ler toda a minha biblioteca não deve ter sido nada para Rashy.
Talvez fosse uma resposta, mas Jan não ficara convencido. Pensara algumas vezes em confiar seu segredo a Rupert, mas sua natural prudência o impedira. Quando voltasse a se encontrar com seu amigo Rashaverak, Rupert provavelmente diria algo, a tentação seria muito grande.
— Aliás — disse Rupert, mudando abruptamente de assunto —, se você acha que essa é uma tarefa difícil, devia ver a missão que Sullivan recebeu. Prometeu mandar as duas maiores criaturas existentes na Terra, um cachalote e um polvo gigante. Vão ser exibidos travando um combate mortal. Já imaginou?
Jan não respondeu logo. A idéia que lhe viera à cabeça era demasiado ousada, demasiado fantástica para ser levada a sério. Contudo, devido à própria ousadia, talvez desse resultado.
— Que foi? — perguntou Rupert, aflito. — O calor está lhe fazendo mal?
Jan sacudiu a cabeça e voltou à realidade.
— Estou bem — respondeu. — Estava só pensando como os Senhores Supremos vão fazer para apanhar um presentinho desses.
— Ora — replicou Rupert —, uma dessas naves cargueiras que eles têm vai descer, abrir uma comporta e içar o presente para bordo.
— Foi exatamente o que pensei — disse Jan.
Podia ser a cabina de uma nave espacial, mas não era. As paredes estavam cobertas de medidores e instrumentos. Não havia janelas, apenas uma grande tela diante do piloto. O barco podia transportar seis passageiros, mas, no momento, Jan era o único a bordo.
Estava olhando atentamente para a tela, gravando cada paisagem daquela região estranha e desconhecida que lhe passava diante dos olhos. Desconhecida — sim, tão desconhecida quanto tudo o que ele pudesse encontrar para além das estrelas, se seu plano desse resultado. Estava indo para um reino de criaturas de pesadelo, que se comiam umas às outras em meio a uma escuridão jamais perturbada desde que o mundo começara. Era um reino acima do qual os homens vinham navegando havia milhares de anos; jazia a menos de um quilômetro das quilhas de seus navios, mas, até os últimos cem anos, eles tinham conhecido menos a seu respeito do que sobre a face visível da Lua.
O piloto estava descendo das alturas do oceano rumo à vastidão ainda inexplorada da bacia do Pacífico sul. Jan sabia que ele estava seguindo a grade invisível de ondas de som criadas por bóias colocadas ao longo do solo oceânico. Continuavam navegando tão acima desse chão quanto as nuvens acima da superfície da Terra. . .
Havia muito pouco para ver: os exploradores do submarino estavam vasculhando as águas em vão. A perturbação causada pelas turbinas provavelmente assustara os peixes menores. Se alguma criatura se aventurasse a ver o que era, seria suficientemente grande para não saber o que era medo.
A diminuta cabina vibrava de energia — a energia capaz de sustentar o imenso peso das águas sobre suas cabeças e de criar aquela pequena bolha de luz e ar dentro da qual os homens podiam viver. Se essa energia falhasse, pensou Jan, eles ficariam prisioneiros de um túmulo metálico, enterrados no fundo do leito oceânico.
— Hora de verificar a posição — disse o piloto. Apertou um conjunto de botões e o submarino desacelerou e acabou ficando imóvel, flutuando como um balão na atmosfera.
Não foi preciso mais que um momento para checar a posição na tela do sonar. Assim que acabou de fazer a leitura, o piloto sugeriu: — Antes de voltarmos a ligar os motores, vamos ver se conseguimos ouvir alguma coisa.
O alto-falante inundou o pequenino compartimento de um murmúrio baixo e contínuo. Não havia nenhum ruído especial que Jan pudesse distinguir. Era um zunido em que todos os sons pareciam ter-se misturado. Jan sabia que estava escutando a conversa de miríades de criaturas marinhas. Era como se estivesse no centro de uma floresta pululando de vida, só que, nesse caso, ele teria reconhecido algumas vozes. Aqui, nem um fio da tapeçaria sonora podia ser separado e identificado. Era tão estranho, tão diferente de tudo o que ele jamais vira ou ouvira, que sentiu um arrepio. E, contudo, fazia parte de seu mundo. . .
O grito perpassou o fundo sonoro como um relâmpago atravessando uma nuvem de tempestade. Logo se transformou numa espécie de lamento, num ulular que foi morrendo para se repetir, um momento mais tarde, vindo de uma fonte mais distante. Depois, um coro de gritos se elevou, num pandemônio que fez com que o piloto estendesse rapidamente a mão para o controle de volume.
— Que diabo foi isso? — perguntou Jan, espantado.
— Assustador, não? Um cardume de baleias a uns dez quilômetros de distância. Sabia que estavam por perto e achei que você gostaria de ouvi-las.
Jan estremeceu.
— E eu que sempre pensei que o mar fosse silencioso! Por que é que elas fazem tanto barulho?
— Acho que estão falando umas com as outras. Sulli-van pode lhe explicar, dizem que ele é capaz de identificar algumas baleias individualmente, embora eu ache difícil acreditar nisso. Ei, temos companhia!
Um peixe de mandíbulas incrivelmente grandes apareceu na tela. Parecia ser enorme, mas, como Jan não sabia qual a escala da imagem, era difícil dizer ao certo. Pendendo de um ponto logo abaixo das guelras, via-se uma espécie de barbatana ou anel, terminando num órgão inidentificável, em forma de sino.
— Estamos vendo o bicho ao infravermelho — disse o piloto. — Vamos olhar agora para a imagem normal.
O peixe desapareceu por completo, deixando apenas à vista o órgão pendente, que irradiava como que uma fosfo-rescência. Depois, embora apenas por um instante, a silhueta da criatura voltou a aparecer, enquanto uma linha de luzes se acendia ao longo de seu corpo.
— É um peixe-diabo ou peixe-pescador. Aquela é a isca que ele usa para atrair outros peixes. Fantástico, não? O que não entendo é o seguinte: por que é que a isca não atrai peixes capazes de comê-lo? Mas não podemos ficar aqui todo o dia. Veja-o fugir, quando eu ligar os motores.
A cabina voltou a vibrar, ao mesmo tempo em que a nave começava a andar. O grande peixe luminoso acendeu, de repente, todas as suas luzes num desesperado sinal de alarma e partiu, como um meteoro, rumo à escuridão do abismo.
Foi só passados mais de vinte minutos de lenta descida que os invisíveis fachos luminosos do radar explorador atingiram pela primeira vez o leito do oceano. Muito embaixo, desfilava uma cadeia de pequenas elevações, com os contornos curiosamente arredondados. As irregularidades que outrora podiam ter possuído havia muito se tinham atenuado pela constante chuva daquela massa aquática. Até ali, no meio do Pacífico, longe dos grandes estuários que arrastavam lentamente os continentes para o mar, essa chuva nunca cessava. Provinha dos flancos tempestuosos dos Andes, dos corpos de bilhões de criaturas vivas, da poeira de meteoros que tinham atravessado o espaço durante anos até virem repousar ali, naquela noite eterna, para assentarem as bases de futuras terras.
Os montes ficaram para trás. Conforme Jan podia ver nos mapas, eram como que postos fronteiriços de uma vasta planície, que jazia a uma profundidade demasiado grande para ser alcançada pelos exploradores.
O submarino continuava a descer suavemente. Agora uma outra imagem começava a se formar na tela. Devido ao ângulo de visão, Jan levou algum tempo para entender o que via. Percebeu então que estavam se aproximando de uma montanha submersa, que se erguia da planície escondida.
A imagem estava agora mais nítida. De perto, os radares conseguiam transmitir uma imagem quase tão clara quanto se fosse formada por ondas de luz. Jan pôde distinguir pequenos detalhes, ver os estranhos peixes que se perseguiam uns aos outros por entre as rochas. A certa altura, uma criatura de aspecto venenoso e mandíbulas abertas atravessou, nadando, uma abertura semi-oculta. Tão rapidamente, que o olhar não pôde seguir-lhe o movimento, um longo tentáculo estendeu-se e arrastou o peixe para seu triste destino.
— Já estamos perto — disse o piloto. — Daqui a um minuto, você vai poder ver o laboratório.
Estavam agora passando lentamente por sobre um pedaço de rocha que se projetava da base da montanha. A planície já estava ficando visível. Jan calculou que deviam estar apenas algumas centenas de metros acima do leito marinho. Viu então, mais ou menos um quilômetro à sua frente, um grupo de esferas equilibradas sobre tripés e ligadas por tubos. Lembravam os tanques de alguma fábrica de produtos químicos e realmente obedeciam aos mesmos princípios básicos. A única diferença era que ali as pressões exercidas vinham de fora e não de dentro.
— Que é aquilo? — perguntou de repente Jan, apontando com um dedo trêmulo para a esfera mais próxima, que tinha na parte superior algo semelhante a uma rede de tentáculos gigantes. Quando o submarino se aproximou, ele viu que terminavam numa grande bolsa polpuda, com um par de olhos enormes.
— Aquilo — disse o piloto, indiferente — deve ser Lúcifer. Alguém deve estar lhe dando de comer. — Apertou um botão e debruçou-se sobre a mesa dos controles.
— S2 chamando laboratório. Vou estabelecer ligação. Querem, por favor, enxotar seu bichinho de estimação?
A resposta não se fez esperar:
— Laboratório para S2. Ok, podem fazer contato. Lúcifer vai deixar o caminho livre.
As curvas paredes metálicas começaram a encher a tela. Jan viu pela última vez um braço gigantesco, cheio de vento-sas, afastar-se, ante a aproximação deles. Depois, ouviram-se um som cavo e uma série de ruídos metálicos à medida que as pinças procuravam os pontos de conexão sobre o casco liso e oval do submarino. Em poucos minutos o submarino estava encostado à parede da base, as duas portinholas de entrada se haviam encaixado e atravessavam o casco do submarino, como uma espécie de parafuso gigante e oco. Ouviu-se o sinal de "pressão igualada", as comportas se abriram e, com elas, a entrada para o Laboratório Fundo do Mar N.° 1.
Jan foi encontrar o Professor Sullivan num pequeno compartimento desarrumado, que parecia combinar os atributos de escritório, oficina e laboratório. Estava olhando, por um microscópio, para o que parecia ser uma pequena bomba. Presumivelmente, era uma cápsula de pressão, contendo algum espécime de vida do fundo do mar, ainda nadando, satisfeito, em suas condições normais de toneladas por centímetro cúbico.
— Muito bem — disse Sullivan, afastando-se do microscópio. — Como vai Rupert? E que podemos fazer por você?
— Rupert está ótimo — respondeu Jan. — Manda um abraço e diz que adoraria fazer-lhe uma visita, se não fosse a claustrofobia.
— É, ele se sentiria um bocado mal aqui embaixo, com cinco quilômetros de água em cima das costas. Por falar nisso, você não fica preocupado de ter tanta água por cima?
Jan deu de ombros.
— Tanto quanto se estivesse num avião estratosférico. Se algo saísse errado, o resultado, em qualquer dos casos, seria o mesmo.
— É assim que se deve pensar, mas pouca gente acha isso. — Sullivan ficou brincando com os controles de seu microscópio e depois deitou a Jan um olhar inquisidor.
— Fico muito satisfeito em lhe mostrar nosso laboratório — disse —, mas confesso que foi uma surpresa para mim seu pedido, transmitido por Rupert. Não entendi por que razão um sujeito como você, interessado no espaço, podia ter curiosidade por nosso trabalho. Será que não está indo na direção errada? — Riu, divertido. — Pessoalmente, nunca entendi por que tanta pressa de alcançar o espaço. Vão se passar séculos, antes que tenhamos tudo, aqui nos oceanos, perfeitamente demarcado e vasculhado.
Jan respirou fundo. Estava satisfeito de que Sullivan tivesse abordado o assunto, pois iria tornar-lhe a tarefa muito mais fácil. Apesar da brincadeira do ictiólogo, ambos tinham muito em comum. Não seria muito difícil conquistar a simpatia e conseguir a ajuda de Sullivan. Era um homem dotado de imaginação, ou nunca teria explorado aquele mundo submarino. Mas Jan teria de usar de cautela, pois o pedido que ia fazer era, para não dizer outra coisa, nada convencional.
Havia um fato que lhe dava certa confiança. Mesmo que Sullivan se recusasse a cooperar, sem dúvida guardaria o segredo de Jan. E ali, naquele pequeno escritório, no leito do Pacífico, parecia não haver perigo de que os Senhores Supremos — fossem quais fossem os estranhos poderes que possuíssem — pudessem ouvir o que eles falavam.
— Professor Sullivan — começou ele —, se o senhor estivesse interessado em explorar o oceano e os Senhores Supremos se recusassem a deixá-lo vir até aqui, como o senhor se sentiria?
— Muito aborrecido, sem dúvida.
— Tenho certeza de que sim. E suponha que o senhor tivesse uma chance de alcançar seu objetivo, sem que eles soubessem, o que faria? Aproveitaria a oportunidade?
Sullivan não hesitou:
— Claro. E discutiria depois.
Está em minhas mãos! pensou Jan. Não pode recuar agora, a menos que tenha medo dos Senhores Supremos. E duvido que Sullivan tenha medo de alguma coisa. Curvou-se sobre a mesa em desordem e preparou-se para apresentar seu caso.
Mas o Professor Sullivan não era bobo. Antes que Jan pudesse falar, seus lábios se torceram num sorriso irônico.
— Então é isso, hein? — disse ele pausadamente. — Muito interessante! Agora, pare com rodeios e me diga por que acha que devo ajudá-lo. . .
Numa era anterior, o Professor Sullivan teria sido considerado uma despesa excessiva. Suas pesquisas custavam tanto quanto uma pequena guerra; na verdade, ele podia ser comparado a um general, liderando uma eterna campanha contra um inimigo que nunca se cansava. O inimigo do Professor Sullivan era o mar, que o combatia com as armas do frio e da escuridão — e, acima de tudo, da pressão. Por sua vez, o professor lutava com a inteligência e a capacidade científica. Tinha conquistado muitas vitórias, mas o mar era paciente, podia esperar. Sullivan sabia que um dia cometeria um erro. Pelo menos, tinha o consolo de saber que nunca morreria afogado. Seria demasiado rápido para isso.
Quando Jan fizera o pedido, ele se recusara a comprometer-se, mas sabia qual seria sua resposta. Ali estava a oportunidade de uma experiência muito interessante. Era uma pena que ele nunca ficasse sabendo o resultado; entretanto, isso acontecia muitas vezes nas pesquisas científicas, e ele iniciara outros programas que levariam décadas para se completar.
O Professor Sullivan era homem corajoso e inteligente, mas, olhando para trás, tinha consciência de que sua carreira não lhe dera o tipo de fama que faz com que o nome de um cientista se projete pelos séculos afora. Ali estava uma chance, totalmente inesperada e, por isso, ainda mais atraente, de perpetuar seu nome nos livros de história. Não era uma ambição que ele confessasse a qualquer um, e, para lhe fazer justiça, teria ajudado Jan mesmo que sua participação na aventura permanecesse para sempre secreta.
Quanto a Jan, estava agora pensando melhor. Impelido pela sua descoberta, chegara até ali quase sem esforço. Fizera investigações, mas não dera nenhum passo ativo para transformar seu sonho em realidade. Dentro de alguns dias, porém, teria que escolher. Se o Professor Sullivan concordasse em cooperar, não teria como recuar. Seria obrigado a enfrentar o futuro que escolhera, com todas as suas implicações.
O que finalmente o decidiu foi pensar que, se deixasse passar aquela oportunidade incrível, nunca perdoaria a si mesmo. Passaria todo o resto de sua vida se lastimando — e nada poderia ser pior que isso.
A resposta de Sullivan chegou-lhe algumas horas mais tarde, e ele soube que a sorte estava lançada. Devagar, pois ainda tinha muito tempo, começou a pôr em ordem suas coisas.
"Querida Maia (assim começava a carta), isso vai ser, no mínimo, uma surpresa para você. Quando receber esta carta, eu já não estarei na Terra. Com isso não quero dizer que terei ido para a Lua, como tantos outros têm feito. Não; estarei a caminho do mundo dos Senhores Supremos. Serei o primeiro homem a deixar o sistema solar.
Vou dar esta carta ao amigo que me está ajudando. Ele vai guardá-la até saber que meu plano deu resultado — pelo menos, na sua primeira fase —, e que é demasiado tarde para que os Senhores Supremos interfiram. Eu estarei tão longe, e viajando a uma tal velocidade, que duvido que uma mensagem para que eu volte me possa alcançar. Mesmo que pudesse, acho pouco provável que a nave possa voltar à Terra. E duvido muito que eu seja tão importante assim.
Em primeiro lugar, deixe-me explicar-lhe o que me levou a isso. Você sabe que sempre me interessei por vôos espaciais e sempre me senti frustrado por nunca nos terem permitido ir a outros planetas, ou ficar sabendo algo sobre a civilização dos Senhores Supremos. Se eles não houvessem interferido, a essa altura talvez tivéssemos chegado a Marte e a Vênus. Admito ser igualmente provável que nos tivéssemos destruído com bombas de cobalto e com as outras bombas que o século XX estava desenvolvendo. Contudo, às vezes acho que devíamos ter tido a chance de fazer o que quiséssemos.
Provavelmente, os Senhores Supremos têm suas razões para nos manter como crianças em creche, razões talvez até excelentes. Mas, mesmo que eu soubesse quais são elas, duvido que isso fizesse muita diferença para meus sentimentos, ou para minhas ações.
Tudo começou naquela festa de Rupert. (Ele não sabe disso, embora no fundo tenha sido o responsável.) Lembra-se daquela sessão idiota que ele organizou e como ela terminou, quando aquela moça — esqueci o nome dela — desmaiou? Eu tinha perguntado de que estrela vinham os Senhores Supremos e a resposta foi NGS 549672. Eu não esperava qualquer resposta e, até então, considerara tudo uma brincadeira. Mas, quando descobri que aquele número figurava no catálogo de estrelas, resolvi investigar e vi que a estrela pertencia à constelação de Carina, e um dos poucos fatos que nós conhecemos a respeito dos Senhores Supremos é que eles vêm dessa direção.
Agora, não vou fingir que entendo como foi que essa informação chegou até nós, ou onde ela se originou. Alguém terá lido o pensamento de Rashaverak? Mesmo que tivesse, seria difícil que ele conhecesse o número de referência de seu sol em um de nossos catálogos. É um completo mistério e vou deixá-lo para que pessoas como Rupert o solucionem — se puderem! Para mim, basta aceitar a informação e agir baseado nela.
Observando a partida das naves dos Senhores Supremos, já sabemos bastante sobre a velocidade a que elas viajam. Deixam o sistema solar submetidas a uma aceleração tão alta, que se aproximam da velocidade da luz em menos de uma hora. Isso significa que os Senhores Supremos devem possuir qualquer tipo de sistema propulsor que atua igualmente em todos os átomos de suas naves, de modo que nada a bordo possa ser esmagado de uma hora para outra. Não sei por que utilizam acelerações tão colossais, quando dispõem de todo o espaço e poderiam demorar mais tempo para aumentar sua velocidade. Minha teoria é que elas são capazes, não sei como, de abastecer-se nos campos energéticos em volta das estrelas e por isso têm que acelerar e parar enquanto estão próximas de um sol. Mas tudo isso são meras conjecturas. . .
O fato importante foi eu ter sabido a distância que elas precisam cobrir e, por conseguinte, quanto tempo a viagem demora. A NGS 549672 fica a quarenta anos-luz da Terra. As naves dos Senhores Supremos chegam a mais de noventa e nove por cento da velocidade da luz, de modo que a viagem deve demorar quarenta anos do nosso tempo. E aí está o xis da questão.
Ora, como você talvez tenha ouvido dizer, coisas estranhas acontecem quando a gente se aproxima da velocidade da luz. O próprio tempo começa a fluir a um ritmo diferente, a passar mais devagar, de modo que, o que na Terra seriam meses, nas naves dos Senhores Supremos não serão mais do que dias. O efeito é fundamental: foi descoberto pelo grande Einstein há mais de cem anos.
Fiz alguns cálculos, baseados no que sabemos a respeito da Stardrive e usando os resultados, já estabelecidos, da teoria da relatividade. Do ponto de vista dos passageiros de uma das naves dos Senhores Supremos, a viagem a NGS 549672 não demorará mais de dois meses, embora, pelos padrões da Terra, se tenham passado quarenta anos. Sei que isso parece um paradoxo e, se for de algum consolo, fique sabendo que tem intrigado as maiores inteligências do mundo, desde que foi enunciado por Einstein.
Talvez esse exemplo lhe indique o tipo de coisa que pode acontecer e lhe dê um retrato mais nítido da situação. Se os Senhores Supremos me mandarem logo de volta à Terra, eu chegarei mais velho apenas quatro meses. Mas, aqui na Terra, oitenta anos se terão passado. De modo que, Maia, aconteça o que acontecer, estou me despedindo de você...
Poucos laços me prendem aqui, como você bem sabe, de maneira que posso partir com a consciência leve. Ainda não contei a mamãe; ela ficaria histérica e não posso enfrentar isso. É melhor assim. Embora eu tenha procurado ceder, desde que papai morreu. . . bem, não adianta voltar a falar em tudo isso!
Terminei meus estudos e disse às autoridades que, por razões familiares, estou me mudando para a Europa. Tudo ficou resolvido e você não precisa se preocupar com nada.
A essa altura, você deve estar pensando que estou louco, de vez que parece impossível a alguém penetrar numa das naves dos Senhores Supremos. Mas descobri um jeito. Não acontece muitas vezes e, depois disso, talvez nunca mais venha a acontecer, pois tenho a certeza de que Karellen não comete o mesmo erro duas vezes. Já ouviu falar na lenda do cavalo de madeira, que levou os soldados gregos para dentro de Tróia? Mas há uma história do Velho Testamento que é ainda mais parecida. . ."
— Sem dúvida você terá muito mais conforto do que Jonas — disse Sullivan. — Nunca se soube que ele contasse com luz elétrica ou instalações sanitárias. Mas vai precisar de um bocado de provisões e vejo que vai levar oxigênio. Acha que nesse pequeno espaço cabe o suficiente para uma viagem de dois meses?
Apontou com o dedo para os desenhos que Jan pusera sobre a mesa. O microscópio fazia as vezes de peso de papéis numa das pontas, ao passo que o crânio de algum estranho peixe segurava a outra.
— Espero que o oxigênio não seja necessário — retrucou Jan. — Sabemos que eles podem respirar nosso ar, mas não parecem gostar muito e talvez eu não consiga respirar o deles. Quanto aos suprimentos, a solução vai ser usar narcosamina. Assim que estivermos a caminho, vou me injetar uma dose que me ponha a nocaute durante mais ou menos seis semanas. A essa altura, estarei quase chegando. Na verdade, o que me preocupa não é a comida ou o oxigênio, e sim o tédio.
O Professor Sullivan fez que entendia.
— É, a narcosamina não é perigosa e pode ser dosada de acordo com as necessidades. Mas não se esqueça de ter bastante comida à mão — você vai estar faminto, quando acordar, e muito fraco. Imagine que você morra de fome por não ter força suficiente para abrir uma lata!
— Já pensei nisso — disse Jan, algo ofendido. — Vou utilizar açúcar e chocolate.
— Ótimo. Ainda bem que você pensou a fundo no problema e não o encara como algo de que pode desistir se não lhe agradar. É sua vida que vai estar em jogo, mas eu detestaria sentir que estou ajudando você a se suicidar.
Pegou no crânio e ergueu-o distraidamente nas mãos. Jan agarrou o desenho, a fim de evitar que se enrolasse.
— Felizmente — continuou o Professor Sullivan — você só vai precisar de um equipamento normal, e nossa oficina pode construí-lo em poucas semanas. E, se resolver mudar de idéia. . .
— Isso não vai acontecer — atalhou Jan.
" . . .medi todos os riscos que vou correr e parece não haver nenhuma falha no plano. Ao fim de seis semanas, sairei, como qualquer clandestino, e me entregarei. A essa altura — sempre no meu tempo — a viagem já estará quase terminada. Estaremos prestes a desembarcar no mundo dos Senhores Supremos.
Naturalmente, o que acontecerá então dependerá deles. Provavelmente, serei mandado de volta na próxima nave — mas, pelo menos, espero ver alguma coisa. Tenho uma câmara de quatro milímetros e milhares de metros de filme; não será minha a culpa se não puder usá-los. Mesmo na pior das hipóteses, terei provado que o homem não pode ser mantido para sempre em quarentena. Terei aberto um precedente que obrigará Karellen a tomar alguma medida.
Isso, minha querida Maia, é tudo o que tenho a lhe dizer. Sei que você não sentirá muita falta de mim. Vamos ser sinceros e confessar que nunca tivemos laços muito fortes de família, e agora que você está casada com Rupert, vai se sentir muito feliz em seu universo privado. Pelo menos, é o que desejo.
Adeus, então, e boa sorte. Espero conhecer seus netos — fale-lhes de mim, sim?
Seu irmão, Jan."
Quando Jan o viu pela primeira vez, achou difícil acreditar que não estava assistindo à montagem da fuselagem de um pequeno avião de carreira. O esqueleto de metal tinha vinte metros de comprimento, era aerodinâmico e estava cercado por andaimes, sobre os quais operários trabalhavam com suas ferramentas elétricas.
— Sim — disse Sullivan, respondendo à pergunta de Jan. — Utilizamos técnicas aeronáuticas comuns e a maioria desses homens trabalha na indústria de aviões. É difícil crer que uma coisa desse tamanho pudesse ter vida, não? Ou se atirar para fora da água, conforme os vi fazer.
Tudo aquilo era fascinante, mas Jan tinha outras coisas em mente. Seus olhos percorriam o enorme esqueleto, para ver se encontravam um bom esconderijo para sua pequena cela — o "caixão com ar-condicionado", como Sullivan o batizara. Num aspecto ficou tranqüilo: haveria espaço de sobra.
— O esqueleto parece quase completo — disse Jan. — Quando é que vocês vão acrescentar a pele? Suponho que já tenham caçado uma baleia, ou não saberiam de que tamanho fazer o esqueleto.
Sullivan achou muita graça no comentário.
— Não temos a menor intenção de pescar uma baleia. De qualquer maneira, elas não têm pele, no sentido comum da palavra. Não seria praticável envolver o esqueleto numa manta de vinte centímetros de espessura. Não, vai ser tudo imitado com plástico e depois pintado. Quando tivermos terminado, ninguém poderá notar a diferença.
Nesse caso, pensou Jan, o que os Senhores Supremos deveriam ter feito era tirar fotografias e fabricar eles próprios o modelo em tamanho real, lá no planeta deles. Mas talvez as naves de abastecimento voltassem vazias e uma pequena coisa, como um cachalote de vinte metros, nem fosse notada. Quem possuía tanto poder e tantos recursos não podia se preocupar com economias desse tipo. . .
O Professor Sullivan estava de pé, junto de uma das grandes estátuas que tanto haviam desafiado a arqueologia desde que a ilha da Páscoa fora descoberta. Rei, deus ou o que quer que fosse, o olhar da estátua parecia acompanhar o seu, enquanto ele apreciava seu trabalho. Sentia-se orgulhoso do que tinha feito: era uma pena que em breve fosse para sempre banido da vista dos homens.
O quadro podia muito bem passar pela obra de algum artista louco ou drogado. Contudo, era uma cópia exata da vida: a própria natureza era a artista. Poucos homens tinham visto aquela cena, até a televisão submarina ter chegado àquela perfeição; e, mesmo assim, apenas durante alguns segundos, nas raras ocasiões em que os gigantescos antago-nistas tinham surgido à superfície das águas. Aquelas batalhas eram travadas na noite eterna das profundezas oceânicas, onde os cachalotes caçavam sua comida — comida que se defendia a todo custo contra a perspectiva de ser tragada viva.
A comprida mandíbula inferior da baleia estava escancarada, mostrando dentes em serra, preparada para se fechar sobre a presa. A cabeça estava quase escondida sob o emaranhado de braços brancos e semeados de ventosas, com os quais o polvo gigante lutava desesperadamente pela vida. Marcas pálidas de ventosas, de uns vinte centímetros de diâmetro, tinham manchado a pele do cachalote, no lugar onde os tentáculos se haviam fechado. Um deles já tinha sido praticamente decepado e não podia haver dúvida do resultado final da batalha. Quando os dois maiores animais da Terra se defrontavam, a baleia era sempre a vencedora. Apesar de toda a força de sua floresta de tentáculos, a única esperança do polvo estava em fugir antes que aquela terrível mandíbula o serrasse em pedaços. Seus grandes e inexpressivos olhos, a meio metro de distância um do outro, fitavam o algoz — embora o mais provável fosse que nenhum dos dois pudesse ver o outro na escuridão do fundo do mar.
A peça media, ao todo, mais de trinta metros de comprimento e estava agora rodeada por cintas de alumínio, às quais fora conectado o guindaste. Tudo estava pronto, à espera da ordem dos Senhores Supremos. Sullivan rezava para que eles não demorassem; o suspense estava ficando excessivo.
Alguém saíra do escritório para a luz do sol, à procura dele. Sullivan reconheceu o chefe do escritório e caminhou a seu encontro.
— Olá, Bill, qual é o problema?
O outro segurava um formulário e parecia muito satisfeito.
— Boas notícias, professor! É uma honra para nós! O supervisor em pessoa quer ver nossa obra antes que seja despachada. Já pensou na publicidade que isso nos vai dar? Pode ajudar um bocado, quando pedirmos novas verbas. Estava mesmo esperando por uma coisa assim.
O Professor Sullivan engoliu em seco. Nunca fora contra a publicidade, mas dessa vez tinha medo de que ela fosse demasiada.
Karellen colocou-se junto à cabeça da baleia e olhou para o grande focinho e para a mandíbula em serrote. Disfarçando seu nervosismo, Sullivan tentava adivinhar os pensamentos do supervisor. Sua atitude não deixara entrever qualquer suspeita e a visita podia ser facilmente explicada como uma coisa perfeitamente normal. Mas Sullivan só ficaria sossegado quando ela terminasse.
— Não temos criaturas assim tão grandes em nosso planeta — disse Karellen. — É uma das razões por que lhes pedimos para reconstituir esse grupo. Meus compatriotas vão achá-lo fascinante.
— Com sua baixa gravidade — retrucou Sullivan —, pensei que vocês tivessem animais muito grandes. Afinal de contas, vocês são muito maiores do que nós!
— Sim, mas não temos oceanos. E no que diz respeito a tamanho, a terra nunca pode competir com o mar.
Isso era verdade, pensou Sullivan. E, pelo que ele sabia, aquele era um fato nunca dantes revelado sobre o mundo dos Senhores Supremos. Jan ficaria muito interessado em saber.
Naquele momento, o rapaz estava sentado numa caba-na, a um quilômetro dali, acompanhando a visita pelo binóculo. Dizia a si próprio que nada havia a temer. Nenhuma inspeção da baleia, por mais minuciosa que fosse, poderia revelar seu segredo. Mas havia sempre a probabilidade de que Karellen suspeitasse de algo, e lhes estivesse dando corda para se enforcarem.
A mesma suspeita crescia no espírito de Sullivan, enquanto o supervisor olhava para dentro da cavernosa goela.
— Na sua Bíblia — disse ele — há uma história extraordinária de um profeta hebreu, um certo Jonas, que foi engolido por uma baleia e transportado a salvo para a terra, após ter sido cuspido de um navio. Acha que pode ter havido alguma base real para tal lenda?
— Creio — respondeu Sullivan, cauteloso — que existe um caso comprovado de um pescador de baleias que foi engolido e depois vomitado sem que nada lhe acontecesse. Naturalmente, se tivesse permanecido dentro da baleia mais de alguns segundos, teria morrido sufocado. E deve ter sido uma sorte passar incólume pelos dentes. É uma história quase incrível, mas não impossível.
— Muito interessante — disse Karellen. Olhou por mais um momento para a grande mandíbula e depois passou para o polvo. Sullivan esperou que ele não tivesse ouvido seu suspiro de alívio.
— Se eu tivesse sabido o que iria se passar — disse o Professor Sullivan —, tê-lo-ia posto para fora do escritório, tão logo você começou a tentar me passar sua loucura.
— Sinto muito — replicou Jan. — Mas vamos nos sair bem.
— Assim espero. De qualquer maneira, boa sorte. Se quiser mudar de idéia, ainda tem pelo menos seis horas.
— Não vou precisar. Só Karellen pode me deter agora. Obrigado por tudo o que você tem feito. Se algum dia voltar e escrever um livro sobre os Senhores Supremos, vou dedicá-lo a você.
— Que belo. proveito vou tirar disso! — exclamou Sullivan. — Vou estar morto há anos. — Para sua surpresa e consternação, pois não era homem sentimental, percebeu que aquela despedida estava começando a afetá-lo. Ficara gostando de Jan durante as semanas em que tinham conspirado juntos. Além disso, começava a temer haver contribuído para um complicado suicídio.
Firmou a escada, enquanto Jan subia para a grande mandíbula, evitando as fileiras de dentes. À luz da lanterna elétrica, viu Jan voltar-se e acenar; depois ele sumiu dentro da caverna. Ouvia-se o ruído da comporta sendo aberta e fechada, e tudo ficou em silêncio.
Ao luar, que transformara a batalha numa cena de pesadelo, o Professor Sullivan encaminhou-se lentamente para seu escritório, pensando no que fizera e nas possíveis conseqüências. Só que disso, naturalmente, ele nunca teria notícia. Jan poderia voltar àquele mesmo lugar, sem ter gasto mais que alguns meses de sua vida para viajar à terra dos Senhores Supremos e regressar à Terra. Mas, se fizesse isso, seria do outro lado da barreira intransponível do tempo, pois se teriam passado oitenta anos.
As luzes acenderam-se no diminuto cilindro de metal, tão logo Jan fechou a porta interna da escotilha. Não pensou em mais nada; começou logo a verificar tudo. As provisões tinham sido embarcadas alguns dias antes, mas uma verificação final lhe daria tranqüilidade de espírito, garantindo-lhe não ter deixado nada por fazer.
Uma hora depois ele estava satisfeito. Recostou-se no sofá de espuma de borracha e recapitulou os planos que fizera. O único som audível era o leve zumbido do relógio calendário elétrico, que o avisaria quando a viagem chegasse ao fim.
Sabia que não podia esperar sentir nada ali, naquela cela, porque, fossem quais fossem as forças tremendas que impelissem as naves dos Senhores Supremos, por certo elas seriam perfeitamente compensadas. Sullivan verificara isso, sublinhando que sua obra podia se desfazer, se sujeita a mais do que algumas poucas gravidades. Seus "clientes" tinham-lhe assegurado de que não havia nenhum perigo quanto a isso.
Haveria, contudo, uma alteração considerável na pressão atmosférica. Isso não tinha importância, já que os modelos ocos podiam "respirar" através de vários orifícios. Antes de sair da cela, Jan teria de igualar a pressão, e presumira que a atmosfera dentro da nave dos Senhores Supremos fosse irrespirável. Uma simples máscara e um balão de oxigênio cuidariam disso; não havia necessidade de nada mais complicado. Se ele pudesse respirar sem ajuda mecânica, tanto melhor.
Não havia por que esperar mais; seria só um desgaste nervoso. Tirou para fora a pequena seringa, já cheia da solução que ele cuidadosamente preparara. A narcosamina fora descoberta durante pesquisas no campo da hibernação animal. Não era verdade — conforme popularmente se acreditava — que produzisse uma suspensão do processo vital. Tudo o que fazia era tornar mais lento esse processo, embora o metabolismo continuasse, a nível reduzido. Era como se alguém tivesse abafado o fogo da vida, de modo a que ele continuasse a arder às escondidas. Mas quando, após semanas ou meses, o efeito da droga se dissipasse, esse fogo irromperia de novo e o adormecido ressuscitaria. A narcosamina era perfeitamente inócua. A natureza utilizara-a durante um milhão de anos a fim de proteger muitos de seus filhos de um inverno sem comida.
E, graças a ela, Jan adormeceu. Não sentiu o puxão do guindaste, içando a enorme estrutura metálica para bordo da nave cargueira dos Senhores Supremos. Não ouviu as escotilhas se abrirem nem voltarem a se fechar para a viagem de trezentos bilhões de quilômetros. Não ouviu, a distância e através das possantes paredes da nave, o grito de protesto da atmosfera terrestre, à medida que a nave voltava, a grande velocidade, para seu elemento natural.
E também não sentiu a Stardrive subir.
A sala de conferências sempre ficava apinhada durante aquelas reuniões semanais, mas naquele dia estava tão cheia, que os repórteres tinham dificuldade em escrever. Pela centésima vez, comentavam uns com os outros a falta de consideração e o conservadorismo de Karellen. Em qualquer outra parte do mundo teriam podido trazer câmaras de TV, gravadores e todos os demais equipamentos de seu ofício altamente mecanizado. Mas ali tinham que se contentar com instrumentos tão arcaicos quanto lápis e papel — para não falar, por incrível que parecesse, na estenografia.
Houvera, é claro, várias tentativas de contrabandear gravadores. Haviam conseguido sair com eles, mas uma simples olhadela a seus interiores fumegantes tinha-lhes mostrado a futilidade da experiência. Todo mundo ficara entendendo por que sempre lhes tinham recomendado, no seu próprio interesse, que deixassem os relógios e demais objetos metálicos do lado de fora da sala de conferências. . .
Como se não bastasse a injustiça, Karellen gravava tudo. Repórteres acusados de descuido, ou mesmo de irresponsabilidade — embora isso fosse muito raro —, tinham sido convocados a comparecer perante os subordinados de Karellen, coisa nada agradável, e a ouvir com atenção as gravações do que o supervisor realmente dissera. Uma lição que não precisara ser repetida.
Era estranho como esses boatos se espalhavam. Não havia nenhum aviso prévio, mas a casa sempre ficava cheia quando Karellen tinha alguma declaração importante a fazer — o que acontecia, em média, duas ou três vezes por ano.
O silêncio caiu sobre a multidão quando a grande porta se abriu e Karellen encaminhou-se para o estrado. A luz, ali, era fraca — sem dúvida, parecida com a do sol distante dos Senhores Supremos —, de modo que o supervisor da Terra tinha tirado os óculos escuros que normalmente usava quando ao ar livre.
Respondeu ao coro de saudações com um formal "Bom dia a todos", e depois virou-se para a distinta figura à frente da assistência. O Sr. Golde, decano do Clube da Imprensa, bem podia ter sido o inspirador daquela piada do mordomo anunciando: — Três repórteres, mylord, e um cavalheiro do Times. — Trajava-se e comportava-se como um diplomata da velha escola: ninguém hesitaria em confiar nele e ninguém se arrependeria de tê-Io feito.
— Quanta gente, Sr. Golde! Deve haver escassez de notícias.
O cavalheiro do Times sorriu e pigarreou.
— Espero que possa corrigir essa situação, senhor supervisor.
Ficou a olhar para Karellen, enquanto este pensava na resposta. Parecia injusto que os rostos dos Senhores Supremos, rígidos como máscaras, não demonstrassem qualquer sinal de emoção. Os grandes olhos rasgados, com as pupilas muito contraídas, mesmo àquela fraca luz, fitavam os olhares francamente curiosos dos humanos como se não os vissem. Os dois orifícios de respiração, a cada lado das faces — se é que aquelas curvas afuniladas podiam ser chamadas faces —, emitiam um levíssimo assobio, quando os hipotéticos pulmões de Karellen respiravam o fino ar da Terra. Golde podia ver a cortina de minúsculos cabelos brancos esvoaçando para um lado e para outro, correspondendo à respiração rápida e de efeito duplo de Karellen. A opinião geral achava que eram filtros de poeira e muitas teorias relativas à atmosfera do mundo dos Senhores Supremos se haviam baseado apenas nesse fato.
— Sim, tenho algumas notícias para lhes dar. Como vocês devem saber, uma de minhas naves de abastecimento deixou recentemente a Terra e voltou a sua base. Acabamos de descobrir que havia um clandestino a bordo.
Mais de cem lápis estacaram subitamente. Mais de cem pares de olhos se fixaram em Karellen.
— Um clandestino, senhor supervisor? — perguntou Golde. — Podemos saber quem é ele e como conseguiu entrar a bordo da nave?
— O nome dele é Jan Rodricks. Estuda engenharia na Universidade da Cidade do Cabo. Outros detalhes vocês poderão descobrir sozinhos, através de seus eficientes canais.
Karellen sorriu. O sorriso do supervisor era uma coisa curiosa. Quase todo o efeito residia nos olhos. A boca, inflexível e sem lábios, quase não se mexia. Seria aquele, pensou Golde, outro dos muitos hábitos humanos que Karellen copiara com tanta habilidade? Porque o efeito final era, sem dúvida, o de um sorriso, e a mente humana prontamente o aceitava como tal.
— Quanto à maneira como ele entrou a bordo — prosseguiu o supervisor —, isso é secundário. Posso garantir-lhes, ou a qualquer outro astronauta em potencial, que não há possibilidade de se repetir o feito.
— O que vai acontecer com o rapaz? — insistiu Gol-de. — Vai ser mandado de volta à Terra?
— Isso escapa à minha jurisdição, mas espero que seja recambiado pela próxima nave. Acharia as condições lá demasiado estranhas para se sentir bem. E isso me recorda a razão principal desse nosso encontro.
Karellen fez uma pausa e o silêncio tornou-se ainda maior.
— Tem havido queixas, por parte dos elementos mais jovens e românticos da população terrestre, quanto ao fato de o espaço lhes ser vedado. Essa proibição obedeceu a um fim; não impomos proibições pelo prazer de fazê-las. Mas por acaso vocês alguma vez pensaram — se me perdoam a analogia algo desprimorosa — o que sentiria um homem da Idade da Pedra se, de repente, se encontrasse numa cidade moderna?
— Parece-me haver uma diferença básica — protestou o representante do Herald Tribune. — Nós estamos acostumados à ciência. Em seu mundo, há, sem dúvida, muitas coisas que podemos não entender, mas que não nos pareceriam mágicas.
— Tem certeza disso? — perguntou Karellen, tão baixo, que era difícil ouvir-lhe as palavras. — Há apenas um século entre a era da eletricidade e a do vapor, mas que faria um engenheiro da era vitoriana com um aparelho de televisão ou um computador eletrônico? E quanto tempo ele viveria, se começasse a tentar descobrir seu funcionamento? O abismo entre duas tecnologias pode ser tão grande, que se torne fatal.
(— Epa! — murmurou o repórter da Reuters para o da bbc. — Estamos com sorte. Ele vai fazer uma declaração política. Conheço bem os sintomas.)
— E há ainda outras razões pelas quais restringimos a raça humana à Terra. Vejam.
As luzes foram se apagando até desaparecerem. Ao mesmo tempo, uma opalescência leitosa se formou no centro da sala, congelando-se num rodamoinho de estrelas — uma nebulosa em espiral, vista de um ponto muito além de seu sol mais extremo.
— Jamais olhos humanos viram isto — disse a voz de Karellen, em meio à escuridão. — Vocês estão vendo seu próprio universo, a galáxia à qual seu sol pertence, a uma distância de meio milhão de anos-luz.
Fez-se um silêncio prolongado. Depois, Karellen continuou, numa voz que continha um elemento não inteiramente de pena nem precisamente de desprezo.
— A raça de vocês demonstrou notável incapacidade de resolver os problemas deste pequeno planeta. Quando chegamos, vocês estavam prestes a se destruir com os poderes que a ciência lhes havia intempestivamente propiciado. Sem nossa intervenção, a Terra seria hoje um deserto radiativo.
"Agora, vocês têm um mundo em paz e uma raça unida. Em breve serão suficientemente civilizados para governar seu planeta sem nossa ajuda. Talvez possam vir a resolver os problemas de todo um sistema solar — composto, digamos, de cinqüenta luas e planetas. Mas vocês acham mesmo que poderiam arcar com isto?"
A nebulosa expandiu-se. Agora, as estrelas pareciam correr individualmente, surgindo e desaparecendo tão rapidamente como fagulhas saindo de uma forja. E cada uma daquelas centelhas fugidias era um sol, com, quem poderia dizer, quantos mundos à sua volta?. . .
— Só nesta nossa galáxia — murmurou Karellen — há oitenta e sete bilhões de sóis. Esse número já lhes dá uma leve idéia da imensidão do espaço. Desafiando-o, vocês seriam como formigas tentando rotular e classificar todos os grãos de areia existentes em todos os desertos do mundo.
"A sua raça, em seu atual estágio de evolução, não se pode propor um tal desafio. Um de meus deveres tem sido protegê-los dos poderes e forças que jazem entre as estrelas — forças muito além de tudo o que vocês possam imaginar."
A imagem da galáxia, com suas nebulosas de fogo, desapareceu; a luz voltou ao súbito silêncio que envolvera a grande sala.
Karellen preparou-se para sair. A audiência terminara. Já na porta, parou e olhou para a assistência, ainda em silêncio.
— É algo difícil de aceitar, mas vocês precisam fazê-lo. Talvez um dia possam vir a ser donos dos planetas. Mas as estrelas não são para o homem.
"As estrelas não são para o homem." Sim, os homens não gostariam de que os portões celestes lhes fossem fechados na cara. Mas precisavam aprender a enfrentar a verdade — ou o máximo de verdade que se lhes podia, piedosamente, revelar.
Das solitárias alturas da estratosfera, Karellen olhou para o mundo e para as pessoas de que se havia, a contragosto, encarregado. Pensou em tudo o que estava por vir e no que aquele mundo se tornaria, dali a uns meros dez ou doze anos.
Nunca saberiam como tinham tido sorte. Durante toda uma geração, a humanidade alcançara o grau máximo de felicidade que qualquer raça poderia vir a conhecer. Fora uma Idade de Ouro. Mas essa era também a cor do ocaso, do outono; e só os ouvidos de Karellen podiam perceber os primeiros lamentos das tempestades de inverno.
Só Karellen sabia com que inexorável rapidez a Idade de Ouro se aproximava do fim.
A última geração dos na cara. Mas precisavam aprender a enfrentar a verdade — ou o máximo de verdade que se lhes podia, piedosamente, revelar.
Das solitárias alturas da estratosfera, Karellen olhou para o mundo e para as pessoas de que se havia, a contragosto, encarregado. Pensou em tudo o que estava por vir e no que aquele mundo se tornaria, dali a uns meros dez ou doze anos.
Nunca saberiam como tinham tido sorte. Durante toda uma geração, a humanidade alcançara o grau máximo de felicidade que qualquer raça poderia vir a conhecer. Fora uma Idade de Ouro. Mas essa era também a cor do ocaso, do outono; e só os ouvidos de Karellen podiam perceber os primeiros lamentos das tempestades de inverno.
Só Karellen sabia com que inexorável rapidez a Idade de Ouro se aproximava do fim.
A última geração
— Olhe para isto! — explodiu George Greggson, jogando o jornal para Jean. Apesar dos esforços dela para interceptá-lo, foi pousar bem no meio da mesa de café. Jean limpou pacientemente a geléia e leu o trecho que tanto indignara George, procurando mostrar também indignação. Geralmente, não conseguia, porque na maior parte das vezes concordava com os críticos. Costumava, porém, guardar para si mesma as opiniões heréticas e não apenas para manter a paz e o sossego. George estava perfeitamente pronto a aceitar elogios dela (ou de qualquer pessoa), mas, se Jean fizesse alguma crítica a seu trabalho, podia se preparar para ouvir um esmagador discurso sobre sua ignorância em matéria de arte.
Leu a crítica duas vezes e desistiu. Parecia-lhe muito favorável.
— Parece que ele gostou. Por que você está resmungando tanto?
— Por causa disto — rosnou George, indicando com o dedo o meio da coluna. — Leia de novo!
— "Foram particularmente refrescantes para os olhos os delicados tons de verde do cenário do número de balé." E daí?
— Daí que não eram tons de verde! Gastei um tempo enorme para conseguir aquele tom de azul! E tudo isso para quê? Ou algum maldito engenheiro da sala de controle estragou todo o equilíbrio das cores, ou esse idiota do crítico tem uma televisão com defeito. Ei, qual a cor que apareceu no nosso televisor?
— Não me lembro — confessou Jean. — A menina começou a gritar bem nessa hora e eu tive que ir ver o que havia.
— Oh! — murmurou George, aparentemente serenado. Mas Jean sabia que, a qualquer momento, outra explosão ocorreria. Quando, por fim, ela veio, foi surpreendentemente suave.
— Inventei uma nova definição para a TV — resmungou ele. — Cheguei à conclusão de que é um meio de dificultar a comunicação entre o artista e a audiência.
— E o que é que você pensa fazer? — retrucou Jean. — Voltar ao teatro?
— E por que não? — perguntou George. — É exatamente nisso que estou pensando. Sabe aquela carta que recebi do pessoal de Nova Atenas? Voltaram a escrever. Dessa vez vou responder.
— É mesmo? — disse Jean, alarmada. — Eles me parecem uma turma de malucos.
— Bem, só há um jeito de descobrir se são ou não. Pretendo ir visitá-los na próxima quinzena. Devo dizer que a literatura deles é perfeitamente sensata. E há muito boa gente lá.
— Se você pensa que vou começar a cozinhar num fogão de lenha ou me vestir de peles, está muito. . .
— Ora, não seja boba! Essas histórias não passam de boatos. A colônia tem tudo o que é preciso para uma vida civilizada. Só não há luxo. De qualquer maneira, faz uns dois anos que não vou ao Pacífico. Acho que vai ser uma boa mudança de ares para nós.
— Nisso concordo com você — disse Jean. — Mas não pretendo ver o garoto e a menina transformados num casal de selvagens polinésios.
— Não há perigo — replicou George. — Isso eu lhe prometo.
E tinha razão, embora não do jeito que ele previa.
— Como deve ter notado, quando sobrevoou a colônia — disse o homenzinho, no outro lado da varanda —, ela consiste em duas ilhas, unidas por uma espécie de estrada. Esta é Atenas, à outra demos o nome de Esparta. É uma ilha rochosa e selvagem, um lugar ótimo para a prática de esportes. — Seu olhar caiu momentaneamente na cintura de George, que se remexeu, embaraçado, na cadeira de vime.
— A propósito, Esparta é um vulcão extinto. Pelo menos, é o que afirmam os geólogos.
"Mas voltemos a Atenas. A idéia da colônia, como já deve ter percebido, é formar um grupo cultural estável e independente, com tradições artísticas próprias. Devo lhe dizer que, antes de partirmos para a criação da colônia, passamos muito tempo pesquisando. Trata-se, realmente, de uma experiência de engenharia social, baseada numa matemática muito complexa, que não tenho a pretensão de compreender. Tudo o que sei é que os sociólogos matemáticos computaram o tamanho ideal da colônia, os tipos de pessoas que ela deveria conter e, acima de tudo, que tipo de constituição deveria ter, a fim de garantir uma estabilidade a longo prazo.
"Somos governados por um conselho de oito diretores, representando a produção, a energia, a engenharia social, as artes, a economia, as ciências, os esportes e a filosofia. Não há um presidente permanente. Cada um dos diretores ocupa a presidência num sistema de rotatividade, pelo espaço de um ano.
"Atualmente, nossa população ultrapassa um pouco os cinqüenta mil, quase o ideal. É por isso que continuamos aceitando recrutas. E, naturalmente, em certos campos mais especializados, ainda não somos auto-suficientes.
"Aqui, nesta ilha, tentamos salvar algo da independência humana, das tradições artísticas da humanidade. Não temos nada contra os Senhores Supremos; queremos simplesmente ter paz para poder seguir nosso caminho. Quando eles destruíram as velhas nações e o modo de vida que o homem conhecera desde o início da história acabaram com muitas coisas boas, juntamente com as más. O mundo é agora plácido, incaracterístico e culturalmente morto; nada de realmente novo foi criado desde a chegada dos Senhores Supremos. E a razão é mais do que óbvia. Não há mais nada por que lutar e existem demasiadas distrações e diversões. Já pensou que, todos os dias, umas quinhentas horas de rádio e televisão são transmitidas pelos vários canais? Se uma pessoa resolvesse não dormir e não fazer mais nada, mesmo assim não poderia acompanhar mais do que um vigésimo dos diversos tipos de diversão que nos são apresentados ao mero girar de um botão! Não admira que as pessoas se venham transformando em esponjas passivas — absorvendo e não criando. Sabia que o tempo médio passado por uma pessoa em frente da televisão é, agora, de três horas por dia? Em breve as pessoas não terão mais vida própria. Vão passar a vida acompanhando os diversos seriados e novelas apresentados pela televisão!
"Aqui em Atenas as diversões têm hora. Além disso, não são enlatadas, e sim ao vivo. Numa comunidade desse tamanho, é possível ter uma participação quase completa da audiência, com tudo o que isso representa para os executantes e os artistas. Aliás, contamos com uma ótima orquestra sinfônica, que pode ser cotada entre as seis melhores do mundo.
"Mas não quero que se deixe levar apenas pelas minhas palavras. Geralmente, os candidatos a membros de nossa colônia ficam aqui alguns dias para ver se gostam. Se se resolvem a vir para cá, damos-lhes uma bateria de testes psicológicos, que representam nossa principal linha de defesa. Cerca de um terço dos candidatos são rejeitados, quase sempre por razões que não se refletem sobre eles e que não teriam importância fora daqui. Os que passam voltam para arrumar suas coisas, antes de se estabelecerem definitivamente. Às vezes mudam de idéia a essa altura dos acontecimentos, mas isso é muito raro e quase sempre por razões pessoais, que escapam a seu controle. Nossos testes são agora, por assim dizer, cem por cento eficientes; as pessoas que passam são as que desejam mesmo vir para cá."
— E se alguém muda de idéia mais tarde? — perguntou Jean, apreensiva.
— Pode ir embora. Não há nenhum entrave. Já aconteceu uma ou duas vezes.
Fez-se longo silêncio. Jean olhou para George, que ali-sava, pensativo, as costeletas em moda nos círculos artísticos. Desde que não fechassem todas as portas atrás deles, ela não se preocupava. A colônia parecia um lugar bem interessante e não tão louco quanto ela temia. Além do mais, as crianças iam adorar. Foi isso, no fim, o que mais pesou.
Mudaram-se seis semanas mais tarde. A casa, de um só andar, era pequena, mas chegava para uma família que não pretendia ter mais que quatro membros. Todos os aparelhos básicos destinados a economizar esforços faziam parte da casa; pelo menos, pensou Jean, não havia o perigo de voltar à era da escravidão doméstica. Ficou, porém, um pouco preocupada ao descobrir que a casa tinha cozinha. Numa comunidade daquele tamanho, seria normal ligar para a Central de Alimentos, esperar cinco minutos e receber a refeição escolhida. A individualidade era uma grande coisa, mas Jean temia que fosse levada a extremos imprevisíveis. E se lhe coubesse fazer as roupas da família, além de lhes preparar as refeições? Mas não havia roca de fiar entre o lava-pratos automático e a tela de radar, de modo que a coisa não podia ser tão má assim. . .
Naturalmente, o resto da casa parecia ainda muito nu. Eles eram seus primeiros ocupantes e levaria algum tempo para que aquela aparência de coisa nova e desinfetada se transformasse num lar cheio de calor humano. Sem dúvida as crianças apressariam essa transformação. Já havia (embora Jean ainda não soubesse) uma pobre vítima de Jeffrey expirando na banheira, resultado da ignorância do garoto quanto à diferença fundamental entre água doce e água salgada.
Jean aproximou-se da janela ainda sem cortinas e olhou, através dela, para a colônia. Não havia dúvida de que era um lugar muito bonito. A casa erguia-se nas vertentes ocidentais da colina que dominava — graças à ausência de quaisquer rivais — a ilha de Atenas. A dois quilômetros para o norte, podia ver a passarela — uma faixa estreita, dividindo a água — que levava a Esparta. Essa ilha rochosa, com seu cone vulcânico ameaçador, contrastava de tal maneira com aquele lugar pacífico, que ela às Vezes se assustava, pensando que os cientistas poderiam enganar-se ao dizerem que o vulcão estava extinto e não voltaria a despertar e a engolfá-los a todos.
Uma silhueta cambaleante, subindo a vertente junto à sombra formada pelas palmeiras, sem ligar para a estrada, atraiu-lhe a atenção. Era George, voltando de sua primeira conferência. Estava na hora de pôr de lado os sonhos e se ocupar com as coisas da casa.
Um estrondo metálico anunciou a chegada da bicicleta de George. Jean ficou pensando quanto tempo levaria para os dois aprenderem a andar nela. Aquele era outro aspecto inesperado da vida na ilha. Não eram permitidos carros particulares, coisa, na verdade, desnecessária, pois a maior distância que se podia percorrer em linha reta era inferior a quinze quilômetros. Havia vários veículos a serviço da comunidade: caminhões, ambulâncias e carros de bombeiros, todos eles restritos, exceto em casos de emergência, a cinqüenta quilômetros por hora. Em decorrência disso, os habitantes de Atenas tinham ocasião de fazer um bocado de exercício, as ruas eram descongestionadas, e não havia acidentes de trânsito.
George beijou a mulher e deixou-se cair, com um suspiro de alívio, na poltrona mais próxima.
— Puxa! — exclamou, enxugando a testa. — Todo mundo me passou na subida da colina, de modo que espero me acostumar também. Acho que já emagreci uns dez quilos.
— Que tal foi seu dia? — perguntou Jean, como boa esposa. Esperava que George não estivesse tão exausto que não pudesse ajudá-la a tirar as coisas dos caixotes.
— Muito estimulante. Naturalmente, não me lembro da metade das pessoas que me foram apresentadas, mas achei-as todas muito agradáveis. E o teatro é tão bom quanto eu esperava. Vamos começar a trabalhar na semana que vem, montando a peça de Bernard Shaw Back to Methuse-lah. Vou ficar com os cenários. Vai ser uma novidade, não ter uma dúzia de pessoas me dizendo o que não posso fazer. É, acho que vamos gostar disso aqui.
— Apesar das bicicletas?
George reuniu energia suficiente para sorrir.
— É — disse ele. — Daqui a duas semanas, não vou nem notar que moramos numa colina.
Não acreditava no que dizia, mas não se enganava. Não obstante, passou-se mais um mês antes que Jean deixasse de lamentar a falta de um carro e descobrisse todas as coisas que se podiam fazer em sua própria cozinha.
Nova Atenas não tinha crescido natural e espontaneamente como a cidade cujo nome tomara de empréstimo. Tudo na colônia fora planejado e era resultado de muitos anos de estudos realizados por um grupo de homens extraordinários. Começara como uma conspiração aberta contra os Senhores Supremos, num desafio implícito a sua política, senão a seu poderio. A princípio, os patrocinadores da colônia tinham tido quase a certeza de que Karellen lhes frustraria os planos, mas o supervisor nada fizera — absolutamente nada. Isso não era tão tranqüilizador quanto se poderia esperar. Karellen dispunha de muito tempo; podia estar preparando um contragolpe retardado. Ou estar tão certo do fracasso do projeto, que não visse necessidade de tomar quaisquer medidas contra ele.
A maioria das pessoas previra o fracasso da colônia. Contudo, mesmo no passado, antes que houvesse um conhecimento real da dinâmica social, houvera muitas comunidades com finalidades especificamente religiosas ou filosóficas. Muitas delas tinham, era verdade, fracassado, mas algumas haviam conseguido sobreviver. E as bases de Nova Atenas pareciam seguramente assentes nos princípios da ciência moderna.
Havia muitas razões para escolher uma ilha como localização, principalmente de ordem psicológica. Numa era de transporte aéreo universal, o oceano não mais significava uma barreira física, mas ainda transmitia uma sensação de isolamento. Além disso, uma área limitada tornava impossível muita gente viver na colônia. A população máxima estava fixada em cem mil pessoas; mais do que isso deitaria por água abaixo as vantagens inerentes a uma comunidade pequena e compacta. Um dos objetivos dos fundadores era que todos os membros de Nova Atenas conhecessem os outros cidadãos que tivessem os mesmos interesses; e mais um ou dois por cento dos restantes também.
O homem que fora a mola mestra por trás da criação de Nova Atenas era um judeu. E, da mesma forma que Moisés, não vivera o suficiente para entrar em sua terra prometida, pois a colônia fora fundada dez anos após sua morte.
Nascera em Israel, a última nação independente a ser proclamada e, por conseguinte, a que durara menos tempo. O fim da soberania nacional fora sentido em Israel mais do que em qualquer outro lugar do mundo, pois é duro abrir mão de um sonho que levou tantos séculos de luta para se tornar realidade.
Ben Salomon não era fanático, mas as recordações de sua infância deviam ter pesado bastante na filosofia que ele queria pôr em prática. Lembrava-se do que o mundo fora, antes do advento dos Senhores Supremos, e não desejava voltar a ele. Da mesma forma que alguns outros homens inteligentes e bem-intencionados, ele apreciava tudo o que Karellen fizera em prol da raça humana, mas não se sentia feliz com os planos finais do supervisor. Seria possível, perguntava-se às vezes, que, apesar de sua formidável inteligência, os Senhores Supremos não compreendessem a humanidade e estivessem cometendo um erro terrível a pretexto do melhor dos motivos? E se, em sua paixão altruísta pela justiça e pela ordem, estivessem resolvidos a reformar o mundo, mas não percebessem que estavam destruindo a alma humana?
O declínio mal começara, mas os primeiros sintomas não eram difíceis de perceber. Salomon não era artista, mas tinha uma aguda percepção da arte e sabia que sua era não se podia igualar, em nenhum setor artístico, aos séculos anteriores. Talvez tudo entrasse em seus devidos eixos, quando o choque do encontro com a civilização dos Senhores Supremos houvesse passado. Mas talvez isso nunca acontecesse, e um homem prudente trataria de se precaver com uma apólice de seguros.
Nova Atenas era essa apólice. Seu estabelecimento levara vinte anos e custara alguns bilhões de libras decimais — por conseguinte, uma fração bastante pequena dos fundos existentes no mundo. Durante os primeiros quinze anos, nada acontecera; mas, nos últimos cinco, acontecera tudo.
A tarefa de Salomon teria sido impossível se ele não houvesse conseguido convencer um punhado dos mais famosos artistas do mundo quanto à viabilidade de seu plano. Tinham simpatizado com o projeto porque ele representava um estímulo a seus egos, e não porque fosse importante para a raça humana. Mas, uma vez convencidos, o mundo os escutara e lhes dera apoio moral e material. Por trás daquela fachada espetacular de talento, os verdadeiros arquitetos da colônia tinham traçado seus planos.
Uma sociedade consiste em seres humanos cujo com-portamento, como indivíduos, é imprevisível. Mas, tomando-se certo número de unidades básicas, determinadas leis começam a surgir, conforme foi descoberto, há muito tempo, pelas companhias de seguros. Ninguém pode dizer que indivíduos morrerão dentro de um determinado tempo, mas o número total de mortes pode ser previsto com considerável exatidão.
Existem outras leis, mais sutis, divisadas, no início do século XX, por matemáticos como Weiner e Rashavesky. Segundo eles, acontecimentos como as depressões econômicas, os resultados das corridas armamentistas, a estabilidade dos grupos sociais, as eleições políticas, etc, podiam ser analisados por meio de técnicas matemáticas. A grande dificuldade era o número enorme de variáveis, muitas delas difíceis de definir em termos numéricos. Não se podia traçar um sistema de curvas e declarar, de modo definitivo: "Quando se chegar a essa linha, vai haver guerra". E nunca se podiam prever acontecimentos tão inesperados como o assassinato de uma figura-chave ou os efeitos de uma nova descoberta científica; menos ainda de catástrofes naturais, como terremotos ou enchentes, que podiam ter um efeito muito profundo num grande número de pessoas e nos grupos sociais de que elas faziam parte.
Não obstante, podia-se conseguir muito, graças aos conhecimentos pacientemente acumulados durante os últimos cem anos. A tarefa teria sido impossível sem a ajuda dos computadores gigantes, capazes de realizar o trabalho de um milhar de calculistas humanos numa questão de segundos. Esses computadores tinham sido utilizados ao máximo quando a colônia fora planejada.
Mesmo assim, os fundadores de Nova Atenas só podiam providenciar o solo e o clima nos quais a planta desejada iria — ou não — florescer. Conforme o próprio Salomon observara: — Podemos ter a certeza do talento, mas só podemos rezar por genialidade. — A esperança era, porém, de que, numa solução tão concentrada, viessem a se realizar algumas reações interessantes. Poucos artistas prosperam na solidão e nada é mais estimulante que o entrechoque de espíritos com interesses similares.
Ainda era muito cedo para se ver se o grupo que trabalhava em pesquisas históricas corresponderia às esperanças de seus instigadores, cujo objetivo era restaurar o orgulho da humanidade por suas realizações. A pintura continuava em compasso de espera, o que vinha reforçar a opinião dos que achavam que as formas de arte estáticas, de apenas duas dimensões, já haviam esgotado todas as suas possibilidades.
Notava-se — embora não houvesse nenhuma explicação satisfatória para isso — que o tempo desempenhava um papel essencial nas mais bem-sucedidas realizações artísticas da colônia. Mesmo a escultura raramente era imóvel. Os volumes e as curvas de Andrew Carson, por exemplo, mudavam lentamente de forma à medida que eram contemplados, de acordo com desenhos complexos que a mente podia apreciar, mesmo que não fosse capaz de entendê-los inteiramente. Carson alegava, com uma certa dose de verdade, ter levado os móbiles do século anterior a sua forma mais extrema, conseguindo casar a escultura com o bale.
Grande parte das experiências musicais da colônia eram conscientemente relacionadas com o que se poderia chamar de "duração de tempo". Qual era a nota mais breve que a mente podia captar ou a mais longa que ela podia tolerar sem se entediar? O resultado poderia ser variado por condicionamento ou pelo uso de uma orquestração apropriada? Problemas como esses eram discutidos interminavelmente e as discussões não eram puramente acadêmicas. Tinham resultado em algumas composições extremamente interessantes.
Mas fora na arte do cinema de animação, com suas ilimitadas possibilidades, que Nova Atenas realizara suas mais bem-sucedidas experiências. Os cem anos decorridos desde a era de Walt Disney tinham deixado muito por fazer nesse ultraflexível meio de comunicação. Sob o aspecto puramente realista, os resultados muitas vezes não se podiam distinguir da fotografia, para grande desprezo dos que desenvolviam o cinema de animação seguindo linhas abstratas.
O grupo de artistas e cientistas que até ali fizera menos coisas era o que atraíra maior interesse e provocara maior alarma: o time que trabalhava na "identificação total". A história do cinema servia como pista para suas ações. Primeiro, o som, depois a cor, depois o estereoscópio, e depois o cinerama, tinham tornado o cinema cada vez mais parecido com a realidade. Como terminaria a história? Sem dúvida, o estágio final seria alcançado quando a audiência esquecesse que era uma audiência e resolvesse tomar parte na ação. Conseguir isso envolveria um estímulo de todos os sentidos e talvez, também, a hipnose, mas muitos acreditavam que valia a pena. Quando a meta fosse atingida, a experiência humana ficaria enormemente enriquecida. A pessoa poderia transformar-se — por algum tempo, ao menos — em outra pessoa e poderia tomar parte em qualquer aventura concebível, real ou imaginária. Poderia até virar planta ou animal, se fosse possível capturar e gravar as impressões de outras criaturas vivas. E, quando o "programa" terminasse, a pessoa teria adquirido uma recordação tão vivida quanto qualquer experiência de sua vida real — uma recordação impossível de ser distinguida da realidade.
As perspectivas eram fascinantes. Havia os que as achavam terríveis e esperavam que o empreendimento fracassasse. Mas sabiam, no fundo de seu coração, que, quando a ciência declarava uma coisa possível, não havia escapatória para sua eventual realização. . .
Assim era, portanto, Nova Atenas e esses eram alguns de seus ideais. Esperava vir a ser o que a velha Atenas teria sido, se houvesse contado com máquinas em vez de escravos, ciência em vez de superstição. Mas ainda era muito cedo para dizer se a experiência daria resultado.
Jeffrey Greggson era um dos habitantes da ilha que, por ora, não mostravam o menor interesse pela estética ou pela ciência, as duas principais preocupações de seus líderes. Mas aprovava a criação da colônia por motivos muito pessoais. O mar, nunca a mais de alguns quilômetros em qualquer direção, fascinava-o. A maior parte de sua curta vida fora passada longe do mar e ainda não estava acostumado à novidade de se ver rodeado de água. Era um bom nadador e de vez em quando saía com a turma, todos munidos de pés-de-pato e máscaras, para explorar as águas menos fundas da laguna. A princípio, Jean ficara preocupada, mas, depois de ter dado alguns mergulhos, perdera o medo do mar e de suas estranhas criaturas, e deixava Jeffrey se divertir à vontade, com a única condição de nunca mergulhar sozinho.
O outro membro da família Greggson que gostara da mudança era Fey, a bela cachorra golden retriever cujo dono, no papel, era George, mas que raramente se afastava de Jeffrey. O menino e a cadela eram inseparáveis durante o dia e — se Jean não se tivesse imposto — também durante a noite. Só quando Jeffrey saía com a bicicleta é que Fey ficava em casa, deitada diante da porta e olhando para a estrada com uma expressão triste, o focinho entre as patas. Aquele apego ao filho e não a ele aborrecia George, que pagara muito caro pelo pedigree de Fey. Parecia que ia ter que esperar pela próxima geração — dali a três meses — para ter um cão realmente seu. Jean pensava de outra maneira. Gostava de Fey, mas achava que um animal de estimação era mais do que suficiente.
Só Jennifer Anne ainda não sabia se gostava ou não da colônia. Isso não era de espantar, pois até ali nada vira do mundo além das paredes plásticas de seu berço, não suspeitando sequer da sua existência.
George Greggson não costumava pensar no passado. Estava demasiado ocupado com planos para o futuro, com seu trabalho e os filhos. Muito raramente se lembrava daquela noite na África e nunca falava dela com Jean. Por uma espécie de acordo tácito, evitavam tocar no assunto e, desde aquele dia, nunca mais tinham visitado os Boyce, apesar dos repetidos convites. Sempre tinham uma desculpa para não ir e, nos últimos tempos, ele deixara de convidá-los. Para surpresa geral, seu casamento com Maia parecia estar dando certo.
Um dos resultados daquela noite fora Jean ter perdido a vontade de investigar mistérios e atravessar as fronteiras da ciência. O fascínio ingênuo que a atraíra para Rupert e suas experiências desaparecera completamente. Talvez tivesse ficado convencida e não precisasse mais de provas. Geor-ge preferia não lhe perguntar. Também podia ser que as preocupações da maternidade lhe tivessem varrido do espírito esses interesses.
George achava que não havia por que se preocupar com um mistério que jamais poderia ser solucionado. Contudo, na quietude da noite, às vezes acordava e ficava pensando. Recordava seu encontro com Jan Rodricks, no terraço da casa de Rupert, e as poucas palavras que tinha trocado com o único ser humano que conseguira desafiar as leis dos Senhores Supremos. Nada, no reino do sobrenatural, pensava George, podia ser mais fantástico do que o fato puramente científico de que, embora quase dez anos se houvessem passado desde que ele falara com Jan, aquele ora distante viajante só estivesse mais velho alguns dias.
O universo era vasto, mas esse fato o apavorava menos do que seu mistério. George não era pessoa para pensar a fundo em tais assuntos, mas às vezes parecia-lhe que os homens eram como crianças, divertindo-se num playground cercado, protegido das terríveis realidades do mundo exterior. Jan Rodricks não gostava dessa proteção e fugira dela — para encontrar ninguém sabia o quê. Nesse assunto, George alinhava-se com os Senhores Supremos. Não tinha o menor desejo de enfrentar o que se escondia nas trevas desconhecidas, para além do pequeno círculo de luz formado pela lâmpada da ciência.
— Como é possível — queixou-se George — que Jeff nunca esteja em casa quando eu chego? Aonde é que ele foi hoje?
Jean levantou os olhos do tricô — ocupação arcaica, recentemente ressuscitada com grande sucesso. Na ilha, as modas iam e vinham com rapidez. O resultado daquela mania de fazer tricô era que todos os homens haviam recebido de presente suéteres coloridos, demasiado quentes para serem usados durante o dia, mas gostosos depois do anoitecer.
— Foi a Esparta com alguns amigos — respondeu Jean. — Prometeu voltar à hora do jantar.
— Vim para casa mais cedo para trabalhar — disse George. — Mas o dia está tão bonito, que acho que vou nadar um pouco. Que espécie de peixe você gostaria que eu trouxesse para o jantar?
George nunca pescara nada e os peixes da laguna não se deixavam apanhar. Jean ia dizer isso, quando a quietude da tarde foi abalada por um som forte que, mesmo naquela era de paz e tranqüilidade, ainda era capaz de gelar o sangue nas veias e causar arrepios de apreensão.
Era o grito de uma sirene, espalhando sua mensagem de perigo em círculos concêntricos, na direção do mar.
Durante quase cem anos, as pressões vinham aumentando lentamente, naquela escuridão ardente, debaixo do solo oceânico. Embora o canyon submarino tivesse sido formado havia muitas eras geológicas, as rochas torturadas nunca se reconciliaram com suas novas posições. Vezes sem conta as camadas estratificadas haviam estalado e mudado de posição, à medida que o peso inimaginável da água lhes perturbava o equilíbrio precário. Agora, estavam prontas para se mover de novo.
Jeff estava explorando as piscinas formadas pelas rochas, ao longo da estreita praia espartana — ocupação que nunca deixava de fasciná-lo. Nunca se podia prever que criaturas exóticas seriam encontradas, protegidas das ondas que avançavam eternamente pelo Pacífico para irem quebrar-se de encontro aos arrecifes. Era um país de conto de fadas para qualquer criança e, naquele momento, pertencia-lhe inteiramente, pois seus amigos haviam resolvido escalar os morros.
O dia estava calmo. Não soprava a menor brisa e até mesmo o eterno murmúrio para além dos arrecifes parecia ter cessado. Um sol escaldante pendia, baixo, do céu, mas o corpo cor de cobre de Jeff já estava imunizado contra seus ataques.
A praia, ali, não passava de uma estreita faixa de areia, inclinando-se, íngreme, na direção da laguna. Olhando para aquela água cristalina, Jeff viu as rochas submersas, que lhe eram tão familiares quanto as formações em terra. Cerca de dez metros mais abaixo, o esqueleto coberto de algas de uma velha escuna erguia-se para o mundo que deixara havia dois séculos. Jeff e seus amigos tinham muitas vezes explorado os restos do barco, mas suas esperanças de encontrar algum tesouro escondido não se haviam concretizado. Tudo o que tinham encontrado fora uma bússola coberta de crustáceos.
De repente, algo pareceu tomar conta da praia e sacudi-la. O tremor passou tão depressa, que Jeff ficou pensando se não o teria imaginado. Talvez tivesse sido vítima de uma tontura passageira, pois tudo a sua volta continuava como antes. A água da laguna permanecia calma, o céu, vazio de nuvens. Mas, então, algo muito estranho aconteceu.
Mais rapidamente do que qualquer maré, a água recuou da beira da praia. Jeff ficou olhando, muito intrigado mas sem nenhum medo, a areia molhada ficar a descoberto, brilhando ao sol. Acompanhou com o olhar o oceano em retrocesso, determinado a aproveitar ao máximo o milagre que abrira o mundo submarino a sua inspeção. O nível das águas baixara tanto, que o mastro partido do velho navio se erguia no ar, com as algas pendendo molemente dele. Jeff avançou ansioso por ver se descobria mais maravilhas.
Foi então que reparou no barulho que vinha dos arre-cifes. Nunca ouvira algo parecido, e parou para pensar, os pés descalços afundando lentamente na areia molhada. Um grande peixe debatia-se, em agonia, a poucos metros de distância, mas Jeff mal o notou. Todo ele estava alerta ao som, que aumentava, a sua volta.
Era um som gorgolejante, como o de um rio passando por um canal estreito. Era a voz do mar retrocedendo a contragosto, irado por perder, mesmo que apenas por momentos, as terras que lhe cabiam de direito. Através das graciosas ramificações de coral, por entre as escondidas cavernas submarinas, milhões de toneladas de água estavam sendo dragadas da laguna para a vastidão do Pacífico.
Muito em breve — e muito rapidamente — elas retornariam.
Horas mais tarde, uma das turmas de salvamento descobriu Jeff sobre um grande bloco de coral, que fora lançado vinte metros acima do nível normal da água. Não parecia assustado, embora estivesse aborrecido por ter perdido a bicicleta. Tinha também muita fome, já que a destruição parcial da estrada que unia as ilhas o impedira de voltar para casa. Ao ser salvo, estava pensando em nadar de volta a Atenas e, a menos que as correntezas tivessem mudado drasticamente, ele sem dúvida teria efetuado a travessia sem grande esforço.
Jean e George tinham testemunhado tudo o que acontecera quando o tsunami atingira a ilha. Embora os estragos tivessem sido grandes, principalmente nas regiões baixas de Atenas, não houvera nenhuma vítima. Os sismógrafos só tinham podido dar o alarma quinze minutos antes, mas isso fora o suficiente para que todo mundo saísse da zona de perigo. Agora, a colônia estava fazendo um inventário dos estragos e reunindo uma coletânea de lendas que, com os anos, se tornariam cada vez mais apavorantes.
Jean rompeu a chorar quando lhe devolveram o filho, pois estava convencida de que ele fora tragado pelo mar. Vira, com olhos cheios de horror, o negro paredão de águas encapeladas avançar, rugindo, do horizonte, e sufocar a base de Esparta num remoinho de espuma e borrifos. Parecia-lhe incrível que Jeff pudesse ter voltado para casa são e salvo.
Não era de espantar que ele não fosse capaz de fazer uma descrição racional do que acontecera. Só depois de ter comido e se deitado é que os pais ficaram sossegados.
— Agora durma, querido, e procure esquecer o que aconteceu — disse Jean. — Está tudo bem.
— Mas foi divertido, mãe — protestou Jeff. — Eu não senti medo.
— Ótimo — falou George. — Você é um garoto corajoso e ainda bem que não perdeu a cabeça e correu a tempo. Já ouvi falar nesses vagalhões causados pelas marés. Muita gente se afogou por se aventurar pela parte a descoberto da praia, levada pela curiosidade.
— Foi o que fiz — confessou Jeff. — Quem será que me ajudou?
— Como assim? Não havia ninguém com você. Os outros garotos estavam no alto do morro.
Jeff ficou intrigado.
— Mas alguém me disse para correr.
Jean e George entreolharam-se preocupados.
— Você está querendo dizer que imaginou ter ouvido alguém?
— Ora, não lhe faça tantas perguntas — disse Jean, um pouco apressada demais. Mas George era teimoso.
— Quero saber como foi. Diga-me o que aconteceu, Jeff.
— Bem, eu estava na praia, junto do navio afundado, quando a voz falou.
— Que foi que ela disse?
— Não me lembro bem, mas foi mais ou menos assim: "Jeffrey, corra para aquele morro o mais depressa que você puder. Se ficar aqui, morrerá afogado". Tenho certeza de que a voz me chamou Jeffrey, e não Jeff, de modo que não pode ter sido alguém que conheço.
— Foi uma voz de homem? E de onde ela veio?
— Parecia junto de mim. E era uma voz de homem. . . — Jeff hesitou e George instigou-o:
— Continue. Imagine que está de novo na praia e me diga exatamente o que foi que aconteceu.
— Bem, não era a voz de um homem comum. Parecia ser a voz de um homem muito grande.
— A voz não disse mais nada?
— Não, só quando comecei a subir o morro. Aí aconteceu outra coisa engraçada. Sabe o atalho que vai até o alto do morro?
— Sei.
— Eu estava correndo por ele acima, porque era o caminho mais rápido. Sabia o que estava acontecendo, tinha visto a onda avançar. Fazia um barulho horrível. Aí descobri que havia uma grande pedra no caminho. Não estava lá antes e eu não podia passar por cima dela.
— Deve ter sido derrubada pelo terremoto — disse George.
— Psiu! Continue, Jeff.
— Eu não sabia o que fazer e a onda estava se aproximando. Aí, a voz disse: ''Feche os olhos, Jeffrey, e ponha a mão diante do rosto". Achei engraçado, mas obedeci. Então, ouvi uma espécie de relâmpago — meu corpo estremeceu todo — e, quando abri os olhos, a pedra tinha sumido.
— Sumido?
— Isso mesmo, não estava mais lá. Comecei de novo a correr e foi aí que queimei a sola dos pés, porque o caminho estava pelando. A onda arrebentou contra o morro, mas não conseguiu me pegar, eu já estava muito acima. E é só. Desci quando já não havia mais ondas. Aí, vi que minha bicicleta tinha sumido e que a estrada tinha sido arrastada pelas águas,
— Não se preocupe com a bicicleta, querido — disse jean, apertando, comovida, a mão do filho. — A gente lhe dá outra. A única coisa que interessa é você estar são e salvo, e não como foi que aconteceu.
Naturalmente, isso não era verdade, pois a discussão começou tão logo Jean e George saíram do quarto das crianças. Apesar de não chegarem a uma conclusão, não deixou de ter seus efeitos. No dia seguinte, sem dizer nada a George, Jean levou o filho ao psicólogo infantil da colônia. O psicólogo ouviu com atenção a história de Jeff, que não parecia nada impressionado com o novo ambiente em que se encontrava. Depois, enquanto o garoto se recusava a catalogar os brinquedos na sala ao lado, o médico tranqüilizou Jean:
— Não há nada que sugira qualquer anomalia mental. A senhora não pode esquecer que ele passou por uma terrível experiência e se saiu notavelmente bem. É uma criança cheia de imaginação e provavelmente acredita na história que inventou, de modo que o melhor é aceitá-la e não se preocupar, a menos que venham a ocorrer outros sintomas. Se isso acontecer, avise-me imediatamente.
Nessa noite, Jean comunicou o veredicto ao marido. Ele não pareceu tão aliviado quanto ela esperava e Jean achou que isso se devia aos estragos que o terremoto causara a seu querido teatro. Limitou-se a resmungar "Ótimo" e a instalar-se numa poltrona, com o último número do Stage and Studio. Parecia ter perdido o interesse no caso e Jean sentiu-se vagamente irritada com ele.
Mas, três semanas mais tarde, no dia em que a estrada da ilha foi reaberta, George partiu, de bicicleta, rumo a Esparta. A praia continuava cheia de pedaços de coral e o próprio recife parecia ter sido partido. George ficou pensando quanto tempo as miríades de pacientes pólipos levariam para reparar os estragos.
Havia apenas um caminho para subir pela face do morro e, assim que recobrou o fôlego, George iniciou a escalada. Alguns pedaços secos de alga, presos entre as rochas, marcavam os limites alcançados pelas vagas.
Durante muito tempo, George Greggson ficou ali, parado naquele caminho solitário, olhando para as rochas fundidas sob seus pés. Tentou dizer a si mesmo que deviam ser vestígios do vulcão extinto, mas não tardou a pôr de lado essa tentativa de auto-sugestão. Seus pensamentos voltaram àquela noite, anos atrás, em que ele e Jean tinham participado daquela experiência idiota em casa de Rupert Boyce. Ninguém compreendera realmente o que tinha acontecido e George sabia que, de alguma maneira misteriosa, aqueles estranhos acontecimentos se relacionavam. Primeiro fora Jean, agora o filho dela. Não sabia se devia estar feliz ou ter medo e, do fundo de seu coração, elevou uma prece silenciosa:
— Obrigado, Karellen, pelo que você e seu povo fizeram por Jeff. Mas gostaria de saber por que o fizeram.
Desceu lentamente para a praia e as grandes gaivotas brancas esvoaçaram em volta dele, aborrecidas porque ele não trouxera comida para lhes dar.
O pedido de Karellen, embora fosse esperado desde que a colônia fora fundada, repercutiu como a explosão de uma bomba. Conforme todo mundo sabia, representava uma crise nos assuntos de Atenas, e ninguém poderia dizer se dali adviria algo de bom ou de mau.
Até então, a colônia seguira seu caminho sem qualquer interferência por parte dos Senhores Supremos. Tínham-na deixado completamente à vontade, da mesma forma que ignoravam a maior parte das atividades humanas, desde que não fossem subversivas nem ofendessem seus códigos de comportamento. Não se podia dizer ao certo se os objetivos da colônia eram ou não subversivos. Eram apolíticos, mas representavam um desejo de independência intelectual e artística. E, a partir daí, quem poderia dizer o que adviria? Os Senhores Supremos bem poderiam prever o futuro de Atenas mais claramente que os seus fundadores, e não o aprovar.
Naturalmente, se Karellen desejasse mandar um observador, inspetor ou que outro nome tivesse, nada poderiam fazer contra isso. Vinte anos antes, os Senhores Supremos tinham feito saber que não mais utilizariam seus meios de vigilância, de modo que a humanidade não mais precisava preocupar-se com estar sendo espionada. Contudo, o fato de esses meios ainda existirem significava que nada podia ser escondido dos Senhores Supremos, desde que eles quisessem ver o que estava acontecendo na Terra.
Alguns dos habitantes da ilha esperavam com ansiedade aquela visita, na qual viam uma oportunidade de resolver um dos problemas menores da psicologia dos Senhores Supremos — sua atitude para com as artes. Considerá-las-iam uma aberração infantil da raça humana? Eles próprios não teriam alguma forma de arte? Nesse caso, a visita teria propósitos puramente estéticos, ou os motivos de Karellen seriam menos inocentes?
Todas essas questões foram debatidas incessantemente, enquanto se ultimavam os preparativos para a chegada do supervisor. Nada se sabia a respeito dele, mas presumia-se que pudesse absorver cultura em quantidades ilimitadas. A experiência seria, pelo menos, tentada e as reações da vítima observadas com interesse por uma bateria de mentes aguçadas.
O atual presidente do conselho era o filósofo Charles Yan Sen, homem irônico mas bem-humorado, que ainda não chegara aos sessenta anos e estava, por conseguinte, no melhor da vida. Platão teria visto nele um exemplo do esta-dista-filósofo, embora Sen não simpatizasse muito com Platão, que acusava de ter adulterado grosseiramente as idéias de Sócrates. Charles Yan Sen estava entre os que pretendiam tirar o máximo proveito daquela visita, nem que fosse apenas para mostrar aos Senhores Supremos que os homens ainda tinham muita iniciativa e ainda não estavam, como ele dizia, "completamente domesticados".
Em Atenas, nada se fazia sem a aprovação de um comitê, essa marca registrada do sistema democrático. Alguém chegara mesmo a definir a colônia como um sistema de comitês que se entrosavam. Mas o sistema funcionava graças aos pacientes estudos dos psicólogos sociais que haviam sido os verdadeiros fundadores de Nova Atenas. Como a comunidade não era muito grande, todo mundo podia participar de seu governo e ser um cidadão no mais lato sentido da palavra.
Era quase inevitável que George, na qualidade de líder da hierarquia artística, fizesse parte do comitê de recepção. Mas ele quis ter a certeza disso e, para tal, tratou de mexer os cordõezinhos. Se os Senhores Supremos queriam estudar a colônia, George também queria estudá-los. Jean não se sentiu muito feliz com isso. Desde aquela noite na casa dos Boyce, sentira uma vaga hostilidade para com os Senhores Supremos, embora não pudesse dar nenhum motivo para isso. Apenas desejava não ter que lidar com eles, e um dos principais atrativos da ilha havia sido, para ela, sua independência. Agora, temia que essa independência fosse ameaçada.
O Senhor Supremo chegou sem qualquer cerimônia, num carro aéreo de fabricação humana, para desapontamento dos que esperavam algo mais espetacular. Podia ser o próprio Karellen, pois ninguém jamais conseguira distinguir ao certo um Senhor Supremo do outro. Todos pareciam saídos do mesmo molde. E talvez, graças a um processo biológico desconhecido, fossem mesmo.
Passado o primeiro dia, os habitantes da ilha deixaram de prestar muita atenção, quando o carro oficial percorria os pontos turísticos. O nome correto do visitante, Than-thalteresco, era demasiado difícil para ser usado correntemente, e não tardou que ele fosse batizado de "Inspetor", nome bastante bem dado, já que sua curiosidade e seu apetite por dados estatísticos eram insaciáveis.
Charles Yan Sen estava exausto quando, muito depois da meia-noite, reconduziu o Inspetor de volta ao carro aéreo que lhe servia de base. Não havia dúvida de que ele continuaria a trabalhar, varando a noite, enquanto seus humanos anfitriões tinham que se render à fraqueza do sono.
A Sra. Sen esperava, ansiosa, pelo marido. Formavam um casal feliz, apesar do hábito que ele tinha de, por brincadeira, chamá-la Xantipa sempre que tinham convidados. Ela havia muito ameaçara vingar-se preparando-lhe uma xícara de cicuta, mas, felizmente, essa erva era menos comum na nova do que na antiga Atenas.
— Que tal, foi um sucesso? — perguntou ela, mal o marido se sentou para comer algo.
— Acho que sim, mas a gente nunca pode ter certeza do que se passa dentro daqueles extraordinários cérebros. Ele mostrou-se interessado, fez elogios. A propósito, pedi-lhe desculpas por não o convidar a vir aqui. Ele retrucou que entendia perfeitamente e não tinha o menor desejo de bater com a cabeça em nosso teto.
— Que foi que você lhe mostrou hoje?
— O lado material da colônia, que ele não pareceu achar tão tedioso quanto eu. Fez toda espécie de perguntas que se possam imaginar sobre produção, como equilibrávamos nosso orçamento, quais os nossos recursos minerais, qual o índice de nascimentos, como obtínhamos os alimentos que consumíamos, etc. Felizmente, eu estava acompanhado do Secretário Harrison, que viera preparado com todos os relatórios anuais desde o início da colônia. Você precisava vê-los falar de estatísticas. O Inspetor pediu os relatórios emprestados e aposto que amanhã ele vai ser capaz de nos citar qualquer número. Acho esse tipo de exibição mental muito deprimente.
Bocejou e começou a comer sem grande apetite.
— Espero que amanhã seja mais interessante. Vamos visitar as escolas e a academia. E eu é que vou lhe fazer algumas perguntas. Gostaria de saber como é que os Senhores Supremos educam os filhos, partindo do princípio, naturalmente, de que os têm.
Para essa pergunta, Charles Sen não obteria resposta, mas, sobre outros pontos, o Inspetor não se fez de rogado. Evitava as perguntas embaraçosas de maneira magistral e, de repente, fazia confidencias inesperadas.
A primeira dessas "intimidades" ocorreu quando estavam saindo da escola que era um dos orgulhos da colônia. — Preparar esses espíritos jovens para o futuro é uma grande responsabilidade — comentou o Dr. Sen. — Felizmente, os seres humanos são muito resistentes; é preciso uma série de azares na infância para que a pessoa fique permanentemente marcada. Mesmo que nossos objetivos estivessem totalmente errados, nossas pequenas vítimas provavelmente se sairiam bem. E, como pôde ver, parecem muito felizes. — Fez uma pequena pausa e olhou, de relance, para a imponente figura de seu hóspede. O Inspetor estava completamente envolto numa fazenda prateada, de modo que nem um centímetro de seu corpo se expunha à luz ardente do sol. Por trás dos óculos escuros, o Dr. Sen podia ver os grandes olhos, fitando-o sem qualquer emoção, ou com emoções que ele jamais poderia compreender. — Imagino que nosso problema, no tocante à educação dessas crianças, seja muito semelhante ao de vocês, com relação à raça humana. Ou não é assim?
— Sob certos aspectos — admitiu, gravemente, o Senhor Supremo. — Sob outros, talvez pudéssemos ir buscar uma analogia na história das potências coloniais de vocês. Por esse motivo, os Impérios Romano e Britânico sempre nos interessaram muito. O caso da Índia é particularmente instrutivo. A principal diferença existente entre nós e os ingleses na Índia é que eles verdadeiramente não tinham motivos para estar lá — isto é, objetivos conscientes e não razões triviais e temporárias, como fazer comércio e hostilizar outras potências européias. Viram-se a braços com um império antes de saberem o que fazer com ele e só se sentiram felizes depois que se viram livres dele.
— Por acaso pretendem — perguntou o Dr. Sen, incapaz de resistir à oportunidade — ver-se livres de seu império quando acharem que está na hora?
— Sem a menor hesitação — retrucou o Inspetor.
O Dr. Sen não insistiu. A franqueza da resposta não era muito lisonjeira. Além disso, tinham chegado à academia, onde os pedagogos, reunidos, esperavam afiar o espírito em contato com um Senhor Supremo ao vivo.
— Como nosso distinto colega deve ter-lhe mencionado — disse o Professor Chance, decano da Universidade de Nova Atenas —, nosso principal objetivo é manter as mentes de nosso povo alerta e permitir-lhes desenvolver todas as suas potencialidades. Fora desta ilha — e seu gesto indicou e rejeitou o resto do mundo — receio que a raça humana haja perdido a iniciativa. Vive em paz e em abundância, mas não tem horizontes.
— Ao passo que aqui. . . — interrompeu o Inspetor. O Professor Chance, que não tinha senso de humor, mas uma vaga noção dessa falha, olhou, desconfiado, para o visitante.
— Aqui — continuou ele — não padecemos da velha obsessão de que o ócio é um pecado. Mas tampouco achamos que seja suficiente passar a vida como simples espectadores. Todo mundo nesta ilha tem uma ambição, que pode ser resumida de maneira muito simples. É fazer algo, por menor que seja, melhor do que qualquer outra pessoa. Naturalmente, é um ideal que nem todos atingimos. Mas, neste mundo moderno, já é uma grande coisa ter um ideal. Alcançá-lo é muito menos importante.
O Inspetor não pareceu inclinado a fazer comentários. Tinha tirado a roupa protetora, mas continuava usando os óculos escuros, mesmo à luz mortiça do salão de conferências. O decano ficou pensando se seriam mesmo necessários ou consistiriam em mera camuflagem. Sem dúvida, tornavam impossível a tarefa, já muito difícil, de ler os pensamentos dos Senhores Supremos. Não pareceu, contudo, objetar às afirmações algo desafiantes que lhe haviam sido feitas de modo tão direto, ou às críticas à política de sua raça com relação à Terra que elas implicavam.
O decano ia insistir no ataque, quando o Professor Sperling, chefe do Departamento de Ciências, resolveu entrar também na arena.
— Como o senhor sem dúvida sabe, um dos grandes problemas de nossa cultura tem sido a dicotomia entre artes e ciências. Gostaria muito de conhecer seus pontos de vista a respeito. Acha, por acaso, que todos os artistas sejam anormais? Que sua obra, ou, pelo menos, o impulso por trás dela, seja o resultado de alguma insatisfação psicológica profunda?
O Professor Chance pigarreou, aflito, mas o Inspetor apressou-se a responder:
— Já me disseram que todos os homens são, até certo ponto, artistas, que todo mundo é capaz de criar algo, mesmo que a um nível rudimentar. Ontem, em suas escolas, observei, por exemplo, a ênfase dada à criatividade no desenho, na pintura e na modelagem. O impulso pareceu-me universal, mesmo entre os que claramente se destinam às ciências. Por isso, se todos os artistas são anormais e todos os homens são artistas, estamos diante de um interessante silogismo. . .
Todos ficaram à espera de que ele prosseguisse. Mas, quando queriam, os Senhores Supremos sabiam dar mostras de um tato impecável.
O Inspetor passou no teste do concerto sinfônico com galhardia, o que não aconteceu com muita gente na platéia. A única concessão ao gosto popular fora a Sinfonia dos salmos, de Stravínski; o resto do programa era agressivamente moderno. Fossem, porém, quais fossem as opiniões, o desempenho da orquestra fora soberbo, pois a colônia se orgulhava de possuir alguns dos melhores músicos do mundo. Os diversos compositores rivais disputavam a honra de serem incluídos no programa, embora alguns cínicos duvidassem que isso fosse uma honra. Embora tudo o que se sabia indicasse o contrário, era possível que os Senhores Supremos não tivessem o menor ouvido musical.
Aconteceu, porém, que, após o concerto, Thanthalte-resco procurou os três compositores cujas obras haviam sido tocadas e os cumprimentou pelo seu "grande engenho", fazendo com que eles se retirassem com expressões satisfeitas mas vagamente intrigados.
Só no terceiro dia é que George Greggson teve a oportunidade de se encontrar com o Inspetor. O teatro programara uma espécie de pot-pourri — duas peças em um ato, um quadro representado por um cômico famoso e um número de balé. Tudo isso foi esplendidamente desempenhado e a previsão de um crítico — "Agora, pelo menos, vamos descobrir se os Senhores Supremos bocejam" — não se concretizou. Ao contrário, o Inspetor riu várias vezes e sempre nos momentos certos.
Entretanto, ninguém podia estar seguro. Ele podia estar também representando, acompanhando a apresentação apenas pela lógica, com suas estranhas emoções não tocadas, como um antropólogo que tomasse parte num rito primitivo. O fato de rir na hora certa e reagir da maneira esperada no fundo não provava nada.
Embora George tivesse a intenção de conversar com o Inspetor, sua tentativa fracassou. Depois do espetáculo, trocaram algumas palavras, mas o visitante foi conduzido para outro lado. Era impossível isolá-lo, afastá-lo de sua comitiva, e George foi para casa sentindo-se frustrado. Não tinha a certeza do que desejava dizer, mesmo que tivesse tido oportunidade, mas decerto teria dado um jeito de falar de Jeff. E, agora, perdera essa oportunidade.
Seu mau humor durou dois dias. O carro aéreo do Inspetor já se fora, em meio a protestos mútuos de consideração e estima, quando surgiu a questão. Ninguém se lembrara de interrogar Jeff, e o garoto devia ter pensado muito no assunto antes de falar com o pai.
— Papai — disse ele, antes de ir para a cama —, sabe esse Senhor Supremo que esteve aqui?
— Sei — respondeu George, aborrecido.
— Bem, ele foi à nossa escola e ouvi-o falar com alguns professores. Não deu para ouvir o que ele dizia, mas reconheci a voz. Foi ele quem disse para eu fugir, quando o vagalhão cobriu a praia.
— Você tem certeza? Jeff hesitou um momento.
— Não posso garantir, mas, se não foi ele, foi outro Senhor Supremo. Fiquei até pensando se deveria agradecer. Mas ele já foi embora, não foi?
— Já — respondeu George. — Acho que sim. Mas talvez você tenha outra oportunidade. Agora vá se deitar e não se preocupe mais com isso.
Assim que Jeff saiu da sala e Jenny acabou de tomar a rnamadeira, Jean voltou e sentou-se no tapete, ao lado da poltrona de George, encostando-se em suas pernas. Era um hábito que ele achava irritantemente sentimental, mas pelo qual não valia a pena brigar. Apenas tratava de espetar ao máximo os joelhos.
— Que é que você acha agora? — perguntou Jean numa voz cansada. — Acha que realmente aconteceu?
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— Aconteceu — replicou George —, mas talvez seja bobagem a gente se preocupar. Afinal de contas, a maioria cios pais se sentiria grata e, naturalmente, eu me sinto grato. A explicação pode ser muito simples. Sabemos que os Senhores Supremos ficaram interessados na colônia, de modo que devem tê-la estado observando com seus instrumentos, apesar da promessa que fizeram. Imagine que um estava nos observando e viu a vaga avançar. Seria a coisa mais natural avisar quem estivesse correndo perigo.
— Mas ele sabia o nome de Jeff, não se esqueça. Não, nós estamos sendo observados. Há algo de estranho em nós, algo que atrai a atenção deles. Sinto isso desde a festa em casa de Rupert. Engraçado, como aquela festa mudou nossa vida!
George olhou para ela com simpatia e nada mais. Esquisito como uma pessoa podia mudar tanto em tão pouco tempo. Tinha ternura por ela; afinal, dera-lhe dois filhos e fazia parte de sua vida. Mas, do amor que um certo George Greggson sentira a determinada altura por um sonho chamado Jean Morrei, o que ficara? Seu amor estava agora dividido entre Jeff e Jennifer de um lado e Carolle do outro. Não acreditava que Jean soubesse a respeito de Carolle, e pretendia contar-lhe tudo antes que alguém o fizesse, mas até então não tinha tido coragem.
— Muito bem, Jeff está sendo vigiado, ou melhor, protegido. Você não acha que deveríamos sentir orgulho disso? Talvez os Senhores Supremos tenham planejado um grande futuro para ele. Que espécie de futuro será?
Sabia que estava dizendo aquilo para tranqüilizar Jean. Ele próprio não se sentia preocupado, apenas intrigado, espantado. De repente, um outro pensamento lhe ocorreu, algo que lhe devia ter vindo à cabeça antes. Seus olhos voltaram-se automaticamente para o quarto das crianças.
— Será que só estão atrás de Jeff? — perguntou.
No devido tempo, o Inspetor apresentou seu relatório, que os habitantes da ilha dariam tudo para ver. Todos os dados estatísticos foram alimentar as memórias insaciáveis dos grandes computadores, que eram apenas alguns dos poderes invisíveis por trás de Karellen. Antes mesmo que esses impessoais cérebros eletrônicos tivessem chegado a suas conclusões, já o Inspetor fizera suas próprias recomendações.
Expressas através dos pensamentos e da língua da raça humana, seriam mais ou menos assim:
"Não precisamos tomar medidas em relação à colônia. É uma experiência interessante, mas que não pode, de maneira alguma, afetar o futuro. Suas realizações artísticas não nos dizem respeito e não há evidência de que as pesquisas científicas estejam enveredando por caminhos perigosos.
"Conforme os planos, pude ver os relatórios escolares do Paciente Zero sem despertar curiosidade. As estatísticas importantes estão anexas e pode-se observar que ainda não há sinais de um desenvolvimento fora do comum. Contudo, como se sabe, muitas vezes não ocorrem sintomas prévios.
"Conheci também o pai do paciente e tive a impressão de que ele desejava falar comigo. Felizmente, consegui evitar isso. Não há dúvida de que ele suspeita de algo, embora, naturalmente, não possa nunca suspeitar da verdade nem afetar, de qualquer maneira, os resultados.
"Cada vez tenho mais pena dessa gente."
George Greggson teria concordado com o veredicto do Inspetor de que nada havia de fora do comum a respeito de Jeff. Apenas aquele intrigante incidente, tão surpreendente quanto um trovão isolado num dia calmo e límpido. Depois disso, nada mais acontecera.
Jeff tinha toda a energia e a curiosidade de um menino normal de sete anos. Era inteligente — quando queria ser —, mas não corria o perigo de vir a ser um gênio. Às vezes, pensava Jean, um pouco cansada, ele correspondia perfeitamente à definição clássica de um garoto: "um barulho cercado de sujeira". Não que fosse muito fácil constatar a sujeira, que precisava acumular-se durante bastante tempo antes de se destacar do tom bronzeado de Jeff.
Às vezes, ele era afetivo e carinhoso, outras, teimoso; podia ser reservado ou extrovertido. Não mostrava preferência pelo pai ou pela mãe, e a chegada da irmãzinha não provocara nele qualquer demonstração de ciúme. Sua ficha médica era imaculada: nunca em sua vida ficara um só dia doente. Mas, naquela era e naquele clima, isso não era in-comum.
Ao contrário de alguns garotos, Jeff não se aborrecia depressa na companhia do pai e nem procurava trocá-lo por companheiros de sua idade. Era evidente que herdara o talento artístico de George e desde muito pequeno se tornara freqüentador habitual dos bastidores do teatro existente na colônia. O teatro chegara mesmo a adotá-lo como sua mascote não-oficial, e ele tinha agora muita prática de oferecer flores a visitantes famosos, do palco e da tela.
Sim, Jeff era um garoto perfeitamente normal, dizia George para si mesmo, ao saírem para passeios a pé ou de bicicleta pela ilha. Conversavam, como quaisquer pai e filho em qualquer época — só que, naquela era, havia muito mais sobre quê falar. Embora Jeff nunca saísse da ilha, podia ver tudo o que queria do mundo através do olho mágico da tela de televisão. Como todos os membros da colônia, sentia certo desprezo pelo resto da humanidade. Eles eram a elite, a vanguarda do progresso. Elevariam a humanidade às alturas que os Senhores Supremos haviam alcançado — talvez, até, mais longe. Não amanhã, claro, mas um dia. . .
Não imaginavam que esse dia viria cedo demais.
Os sonhos começaram seis semanas mais tarde.
Na escuridão da noite subtropical, George Greggson flutuou lentamente até alcançar o nível da consciência. Não sabia o que o despertara e ficou um momento numa espécie de estupor. Depois, percebeu que estava só no quarto. Jean levantara-se e em silêncio dirigira-se ao quarto das crianças. Estava falando em voz baixa com Jeff, tão baixo que não se entendia o que ela dizia.
George saiu da cama e foi ter com ela. A menina tornara essas excursões noturnas bastante comuns, mas, quando ela chorava, ele acordava imediatamente. Aquilo era algo inteiramente diferente e George não sabia o que acordara Jean.
A única luz no quarto das crianças vinha dos desenhos a tinta fluorescente nas paredes. Mesmo assim, deu para ver Jean sentada ao lado da cama de Jeff. Voltou-se, ao ver o marido entrar, e murmurou: — Não acorde a menina.
— Que foi que houve?
— Senti que Jeff precisava de mim e acordei.
A simplicidade da afirmação fez com que George ficasse apreensivo. "Senti que Jeff precisava de mim." Como foi que você sentiu isso? pensou ele. Mas tudo o que perguntou foi:
— Ele tem tido pesadelos?
— Não tenho certeza — respondeu Jean —, agora parece estar bem. Mas, quando entrei no quarto, estava assustado .
— Eu não estava assustado, mamãe — retrucou uma vozinba indignada. — Mas era um lugar tão esquisito!
— Que lugar? — perguntou George. — Conte tudo.
— Tinha montanhas — disse Jeff, com ar de quem sonhava. — Eram tão altas! Mas não tinham neve em cima, como as outras montanhas que já vi. Algumas estavam ardendo .
— Você quer dizer que eram vulcões?
— Não. Estavam ardendo de cima até embaixo, com umas chamas gozadas, azuis. E, quando eu estava olhando, o sol apareceu.
— Continue, por que é que você parou? Jeff levantou os olhos intrigados para o pai.
— Essa é outra coisa que eu não entendo, papai. O sol apareceu tão depressa e era tão grande! A cor também era diferente: um azul lindo.
Fez-se um gélido e longo silêncio. Por fim, George perguntou baixinho: — Isso é tudo?
— É. Comecei a me sentir sozinho e foi então que mamãe veio e me acordou.
George acariciou o cabelo do filho com uma das mãos, enquanto com a outra apertava o robe contra o corpo. Sentiu-se de repente muito pequeno e cheio de frio. Mas nada disso transpareceu em sua voz, quando voltou a falar com Jeff.
— Foi só um sonho bobo. Você comeu demais no jantar. Esqueça tudo e procure dormir.
— Está bem, papai — disse Jeff. Pensou um momento e acrescentou: — Acho que vou tentar voltar lá.
— Um sol azul? — perguntou Karellen algumas horas mais tarde. — Isso deve ter facilitado a identificação.
— Sim — respondeu Rashaverak. — Trata-se, sem dúvida, de Alfanidon As montanhas Sulfurosas confirmam isso. E é interessante notar a distorção da escala do tempo. O planeta tem uma rotação lenta, de modo que ele deve ter observado muitas horas em poucos minutos.
— Foi tudo o que pôde descobrir?
— Sim, sem interrogar diretamente a criança.
— É, não podemos fazer isso. Os acontecimentos têm que seguir seu curso natural, sem nossa interferência. Quando os pais dele se dirigirem a nós, então talvez possamos interrogá-lo.
— Pode ser que eles nunca se dirijam a nós. E, se o fizerem, talvez seja demasiado tarde.
— Quanto a isso, receio nada podermos fazer. Nunca deveríamos esquecer este fato: que, nesses assuntos, nossa curiosidade não tem a menor importância. É menos importante ainda do que a felicidade da humanidade.
Estendeu a mão para desligar a conexão.
— Mantenha a vigilância, claro, e apresente-me os resultados. Mas procure não interferir.
Quando estava acordado, Jeff parecia o mesmo. Isso, pelo menos, pensou George, era algo que tinham que agradecer. Mas o medo crescia em seu coração.
Para Jeff, tudo aquilo não passava de uma brincadeira, que ainda não começara a assustá-lo. Um sonho era apenas um sonho, por mais estranho que fosse. Não mais se sentia sozinho nos mundos que o sono lhe abria. Só naquela primeira noite sua mente chamara por Jean, atravessando os abismos que os cercavam. Agora, ele penetrava sozinho e sem medo no universo que se abria diante de si.
Todas as manhãs, os pais o interrogavam e ele lhes contava tudo quanto conseguia recordar. Às vezes, as palavras lhe faltavam, ao tentar descrever cenas que não só estavam muito além de sua experiência, como também da imaginação do homem. Eles sugeriam-lhe palavras novas, mostravam-lhe gravuras e cores para refrescar-lhe a memória, e depois procuravam tirar conclusões baseadas em suas respostas. Muitas vezes não conseguiam chegar a nenhum resultado, embora tudo indicasse que, na mente de Jeff, os mundos com que ele sonhava fossem simples e nítidos. Simplesmente, ele era incapaz de comunicá-los aos pais. Não obstante, alguns eram bastante claros. . .
Espaço — nenhum planeta, nenhuma paisagem em volta, nenhum mundo sob os pés. Só as estrelas na noite avelu-dada e, pendendo contra elas, um grande sol vermelho, que batia como um coração. Enorme e tênue num dado momento, encolhia-se depois lentamente, ao mesmo tempo que ficava mais brilhante, como se um novo combustível viesse alimentar seu fogo interno. Passava por todo o espectro, até pairar à beira do amarelo. Depois, o ciclo se processava em sentido inverso, a estrela se expandia e ia esfriando, tornando-se outra vez uma nuvem em vermelho-vivo. . .
(— Variável de pulsação típica — disse Rashaverak, ansiosamente. — Vista sob uma tremenda aceleração de tempo. Não consigo identificá-la precisamente, mas a estrela mais próxima que se enquadra na descrição é Rhamsandron 9. Ou talvez seja Faranidon 12.
— Seja ela qual for — replicou Karellen —, ele está se afastando cada vez mais.
— E muito! — concordou Rashaverak. . .)
Podia bem ser a Terra. Um sol branco pairava num céu azul, sarapintado de nuvens que corriam, prenunciando tempestade. Uma colina descia, suavemente, para um oceano açoitado pelo vento voraz. Não obstante, nada se mexia: tudo parecia paralisado, como uma paisagem entrevista em meio ao clarão de um relâmpago. E longe, muito longe, no horizonte, erguia-se algo que não era da Terra — uma fileira de colunas nebulosas, afunilando-se ligeiramente à medida que se elevavam do mar e se perdiam entre as nuvens. Estavam espaçadas, com perfeita precisão, ao longo da beira do planeta — demasiado grandes para serem artificiais, mas por demais regulares para serem naturais.
(— Sideneus 4 e os Pilares da Aurora — disse Rashaverak, com espanto na voz. — Ele chegou ao centro do universo.
— E mal começou a viagem! — retrucou Karellen.) O planeta era completamente plano. Sua enorme gravidade havia muito esmagara, aplainando-as, as montanhas de sua fogosa juventude — montanhas cujos picos mais altos nunca tinham ultrapassado uns poucos metros de altitude. Contudo, nele havia vida, pois a superfície estava coberta de miríades de desenhos geométricos, que se arrastavam, moviam e mudavam de cor. Era um mundo de duas dimensões, habitado por seres que não teriam mais que uma fração de centímetro de espessura.
Em seu céu havia um sol como nenhum fumante de ópio poderia jamais ter imaginado, mesmo em seus mais loucos sonhos. Demasiado quente para ser branco, era como um fantasma nas fronteiras do ultravioleta, queimando seus planetas com radiações que seriam imediatamente fatais a todas as formas terrenas de vida. Numa extensão de milhões de quilômetros à sua volta desdobravam-se grandes véus de gás e poeira, fluorescendo em inúmeras cores, à medida que as rajadas de ultravioleta os perpassavam. Era uma estrela contra a qual o pálido sol da Terra teria parecido tão fraco quanto um vaga-lume ao meio-dia.
(— Hexanerax 2, não pode ser outra coisa — disse Rashaverak. — Apenas um punhado de nossas naves conseguiu alcançá-la, e nunca se atreveram a pousar. Afinal, quem poderia imaginar que pudesse existir vida nesses planetas?
— Está me parecendo — retrucou Karellen — que vocês, cientistas, não foram tão ao fundo da questão como pensavam. Se essas formas têm inteligência, o problema da comunicação promete ser interessante. Será que eles têm alguma noção da terceira dimensão?)
Era um mundo que nunca poderia ter conhecido o significado do dia e da noite, dos anos ou das estações, Seis sóis coloridos compartilhavam o céu, de modo que só havia mudanças de luz, jamais trevas. Através do choque de campos gravitacionais conflitantes, o planeta viajava ao longo dos arcos e das curvas de sua órbita inconcebivelmente complexa, nunca percorrendo o mesmo caminho. Cada momento era único: a configuração que os seis sóis assumiam agora nos céus não se repetiria nunca mais.
E mesmo assim existia vida. Embora o planeta pudesse ser calcinado pelos fogos centrais numa era e congelado em outra, mesmo assim abrigava inteligência. Os grandes cristais multifacetados formavam intrincados desenhos geométricos, imóveis nas eras de frio, crescendo lentamente, ao longo dos veios do minério, quando o mundo ficava de novo quente. Não importava que levasse mil anos para completar um pensamento. O universo era ainda muito jovem e o tempo estendia-se interminavelmente à frente deles . . .
(— Procurei em todos os nossos fichários — disse Rashaverak. — Não temos conhecimento de tal mundo, ou de uma tal combinação de sóis. Se ele existisse dentro de nosso universo, os astrônomos já o teriam detectado, mesmo que ficasse fora do alcance de nossas naves.
— Então ele saiu da galáxia.
— É. Sem dúvida não pode ir muito mais longe.
— Quem sabe? Está apenas sonhando. Quando acorda, continua o mesmo. É só a primeira fase. Saberemos logo que a mudança tiver início.)
— Já nos encontramos antes, Sr. Greggson — disse o Senhor Supremo gravemente. — Meu nome é Rashaverak. Sem dúvida o senhor se lembra.
— Sim — disse George. — Aquela festa em casa de Rupert Boyce. Acho que nunca vou esquecer. E achei que voltaríamos a nos encontrar.
— Diga-me, por que pediu essa entrevista?
— Acho que o senhor já sabe.
— Talvez, mas vai nos ajudar, se o senhor me disser com suas próprias palavras. Pode ficar surpreso com isso, mas também estou procurando entender e, sob certos aspectos, minha ignorância é tão grande quanto a sua.
George olhou para o Senhor Supremo sem esconder o espanto. Nunca lhe ocorrera isso. Subconscientemente, partira do princípio de que os Senhores Supremos possuíam todos os conhecimentos e todos os poderes — que tudo compreendiam e provavelmente eram os responsáveis pelas coisas que vinham acontecendo com Jeff.
— Deduzo — prosseguiu George — que tenham visto os relatórios que entreguei ao psicólogo da ilha, de modo que devem saber dos sonhos.
— Sim, sabemos.
— Nunca acreditei que fossem apenas frutos da imaginação de uma criança. Eram tão incríveis que (sei que isso parece ridículo) tinham que estar baseados em alguma coisa real.
Olhou ansiosamente para Rashaverak, não sabendo se devia esperar por uma confirmação ou uma negativa. O Senhor Supremo nada disse; simplesmente fitou-o com seus olhos grandes e tranqüilos. Estavam sentados quase diante um do outro, já que a sala — evidentemente planejada para tais entrevistas — tinha dois planos, ficando a enorme poltrona do Senhor Supremo quase um metro mais baixa do que a de George. Era um gesto amistoso para com os homens que pediam uma entrevista e raramente se sentiam à vontade.
— A princípio, ficamos preocupados, mas não alarmados. Jeff parecia perfeitamente normal quando acordava, e os sonhos não davam a impressão de perturbá-lo. Até que, uma noite. . . — hesitou e olhou, com ar de defesa, para o
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Senhor Supremo. — Nunca acreditei no sobrenatural. Não sou cientista, mas acho que existe uma explicação racional para tudo.
— E existe — confirmou Rashaverak. — Sei o que o senhor viu; eu estava observando.
— Sempre suspeitei disso. Mas Karellen havia prometido que os senhores nunca mais nos espionariam com seus instrumentos. Por que foi que quebrou essa promessa?
— Eu não a quebrei. O supervisor disse que a raça humana não mais ficaria sob vigilância. Essa promessa sempre foi mantida. Eu estava vigiando os seus filhos, não o senhor.
Passaram-se vários segundos antes que George entendesse as implicações das palavras de Rashaverak. Quando, por fim, compreendeu, seu rosto ficou branco.
— Quer dizer que?. . . — perguntou. A voz sumiu e ele teve que começar a frase de novo. — Então, em nome de Deus, meus filhos são o quê?
— Isso — respondeu Rashaverak solenemente — é o que estamos procurando descobrir.
Jennifer Anne Greggson estava deitada de costas, com os olhos fechados. Havia muito tempo que não os abria e nunca mais os abriria, pois para ela a vista era agora tão supérflua quanto para as criaturas que habitavam as profundezas escuras do oceano. Ela sentia o mundo que a rodeava; na verdade, sentia e pressentia mais do que isso.
Um reflexo permanecera de sua breve primeira infância, não se sabia como. O chocalho que antes a encantara soava agora incessantemente, marcando um ritmo complexo e sempre variado em sua cama. Um ritmo estranho, que despertara Jean e a levara, correndo, para o quarto das crianças. Mas não fora apenas o som que a fizera gritar por George.
Fora a visão daquele chocalho comum, de cores vivas, batendo no ar, a meio metro de qualquer suporte, enquanto Jennifer Anne, os dedos gorduchos entrelaçados, jazia, com um sorriso calmo no rosto.
Começara mais tarde, mas estava progredindo velozmente. Não tardaria a passar o irmão, pois tinha muito menos a desaprender.
— Fez bem em não tocar no brinquedo dela — disse Rashaverak. — Não acredito que pudesse tê-Io tirado do lugar. Mas, se tivesse conseguido, ela poderia ter ficado aborrecida. E então, não sei o que teria acontecido.
— Quer dizer — perguntou George, abatido — que os senhores não podem fazer nada?
— Não vou iludi-lo. Podemos estudar e observar, como já estamos fazendo. Mas não podemos interferir, porque não conseguimos entender.
— Então, que vamos fazer? E por que tudo isso aconteceu conosco?
— Tinha que acontecer com alguém. Não há nada de excepcional com vocês, como nada há com o primeiro nêu-tron que inicia a reação em cadeia numa bomba atômica. Acontece, pura e simplesmente, ser o primeiro. Qualquer outro nêutron teria servido; tal como com Jeffrey, poderia ter sido com qualquer outro. Chamamos a isso Penetração Total. Agora já não há nenhuma necessidade de guardar segredo, e ainda bem. Estávamos esperando que isso acontecesse desde que chegamos à Terra. Não havia maneira de sabermos quando e onde começaria, até que, por acaso, nos encontramos na festa de Rupert Boyce. Tive então quase a certeza de que os filhos de sua esposa seriam os primeiros.
— Mas. . . nessa altura ainda não estávamos casados. Não tínhamos nem. . .
— Eu sei. Mas a mente da Srta. Morrei foi o canal que, embora por um momento apenas, deixou passar conhecimentos que ninguém que estivesse vivo, naquela altura, poderia possuir. Só poderiam ter vindo através de uma outra mente, intimamente ligada à dela. O fato de ter sido uma mente por nascer não tem importância, pois o tempo é muito mais estranho do que o senhor possa pensar.
— Estou começando a entender. Jeff sabe dessas coisas, pode ver outros mundos e dizer de onde vocês vêm. Não sei como, Jean captou seus pensamentos, mesmo antes de ele ter nascido.
— A coisa é muito mais complicada do que isso, mas não creio que vocês possam alguma vez chegar muito mais perto da verdade. Através da história, sempre existiram pessoas com poderes inexplicáveis, que pareciam transcender o espaço e o tempo. Nunca os entenderam. Quase sem exceção, as tentativas de explicação foram ridículas. Eu sei, já li muito a respeito!
"Mas há uma analogia que é bem sugestiva e pode nos ajudar. Imagine que a mente de cada homem é uma ilha rodeada por oceanos. Cada mente parece estar isolada, mas na realidade estão todas ligadas pelo leito rochoso de que se originaram. Se os oceanos desaparecessem, seria o fim das ilhas. Todas passariam a fazer parte de um continente, mas sua individualidade teria desaparecido. É uma analogia que aparece freqüentemente na literatura de seu planeta.
"Pois bem, a telepatia, como vocês a chamam, é algo semelhante. Em circunstâncias propícias as mentes podem fundir-se e partilhar os conteúdos umas das outras, trazendo de volta memórias da experiência quando ficam de novo isoladas. Em sua forma mais elevada, esse poder não está sujeito às usuais limitações do tempo e do espaço. Foi por isso que Jean pôde transmitir os conhecimentos de seu filho por nascer."
Seguiu-se um longo silêncio, durante o qual George procurou assimilar aqueles surpreendentes pensamentos. A coisa estava começando a tomar forma. Era algo incrível, mas que tinha sua lógica. E explicava — se é que esse verbo podia ser usado para algo tão incompreensível — tudo o que acontecera desde aquela noite em casa de Rupert Boyce. Também explicava, ele via agora, a curiosidade de Jean pelo sobrenatural.
— Quem começou tudo isso? — perguntou George. — E aonde irá parar?
— Eis aí algo a que não podemos responder. Mas há muitas raças no universo e algumas descobriram esses poderes muito antes de sua espécie — ou a minha — surgir em cena. Têm estado à espera de que vocês se juntassem a elas, e agora o momento chegou.
— Então, qual o seu papel em tudo isso?
— É provável que, como a maioria dos homens, o senhor nos tenha sempre considerado como amos ou patrões. Mas não é verdade. Nunca fomos mais do que guardiães, cumprindo um dever que nos foi imposto. . . de cima. Esse dever é difícil de definir; talvez seja semelhante ao das par-teiras, assistindo um parto difícil. Estamos ajudando a trazer algo de novo e maravilhoso para o mundo.
Rashaverak hesitou. Durante um momento, foi quase como se ele não encontrasse as palavras.
— Sim, nós somos as parteiras. Mas somos estéreis. Nesse momento, George percebeu que estava diante de
uma tragédia muito maior que a sua. Era incrível — mas,
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de certa forma, justo. Apesar de todos os seus poderes e de seu brilho, os Senhores Supremos estavam numa espécie de beco sem saída evolutivo. Eram uma raça nobre e grande, superior, em quase todos os aspectos, à humanidade; entretanto, não tinham futuro e tinham consciência disso. Diante daquilo, os problemas de George pareceram, de repente, triviais.
— Agora sei — disse — por que vocês vigiaram Jef-frey. Ele foi a cobaia dessa experiência.
— Exatamente, embora a experiência estivesse fora de nosso controle. Não a começamos, procuramos apenas observar. Não interferimos, exceto quando foi necessário.
Sim, pensou George; o caso do vagalhão. Não podiam permitir que um espécime tão valioso fosse destruído. Mas logo sentiu vergonha de si próprio; uma tal amargura era indigna dele.
— Só mais uma pergunta — disse. — Que podemos fazer a respeito de nossos filhos?
— Aproveitar a companhia deles enquanto puderem — respondeu Rashaverak gravemente. — Não lhes pertencerão por muito tempo.
Era um conselho que podia ter sido dado a qualquer pai, em qualquer época — só que agora continha uma ameaça e um terror nunca sentidos.
Chegou o momento em que o mundo dos sonhos de Jeffrey já não era nitidamente separado de sua existência cotidiana. Ele já não ia à escola, e para Jean e George a rotina da vida também mudara inteiramente, como não tardaria a mudar nos quatro cantos do mundo dos homens.
Passaram a evitar os amigos, como se já soubessem que, em breve, nenhum deles os compreenderia. Às vezes, na quietude da noite, quando a maioria das pessoas já estava recolhida, saíam para dar grandes passeios a pé. Estavam agora mais unidos, como nos primeiros dias de seu casamento, unidos em face da tragédia ainda desconhecida, mas que não tardaria a desabar sobre eles.
A princípio, tinham experimentado um sentimento de culpa pelo fato de deixarem as crianças sozinhas em casa, mas agora percebiam que Jeff e Jennifer podiam cuidar de si mesmos de uma maneira que escapava à compreensão dos pais. Além do mais, os Senhores Supremos estavam vigilantes. Esse pensamento tranqüilizava-os: sentiam que não estavam a sós com seu problema, que olhos sábios e compassivos compartilhavam de sua vigília.
Jennifer dormia. Não havia outra palavra para descrever o estado em que ela mergulhara. Aparentemente, era ainda um bebê, mas à sua volta havia uma aura de poder latente tão assustador, que Jean não tinha mais coragem de entrar no quarto das crianças.
E não havia necessidade disso. O ser que fora Jennifer Anne Greggson ainda não estava completamente desenvolvido, mas mesmo naquele estado de crisálida adormecida já tinha suficiente controle do que a cercava para suprir suas necessidades. Jean tentara dar-lhe de comer, mas não conseguira. O ser alimentava-se quando queria e à sua maneira.
A comida desaparecia da geladeira de forma lenta e constante, mas Jennifer Anne nunca saía de seu berço.
O barulho do chocalho parará e o brinquedo jazia no chão do quarto, onde ninguém ousava tocá-lo, com medo de que Jennifer Anne voltasse a precisar dele. Às vezes, ela fazia com que a mobília se mexesse, formando desenhos, e George tinha a impressão de que a pintura fluorescente da parede brilhava mais do que nunca.
Ela não dava preocupações nem trabalho. A assistência deles, o amor deles já não a atingiam. Aquilo não podia demorar muito mais e, no tempo que lhes restava, apegavam-se desesperadamente a Jeff.
Ele também estava mudando, mas ainda os conhecia. O garoto, cujo crescimento haviam acompanhado desde as névoas informes da primeira infância, estava perdendo a personalidade, que se dissolvia, momento a momento, ante os olhos deles. Contudo, às vezes ainda lhes falava como antes, de seus brinquedos e dos amigos, como se não tivesse consciência do que o esperava. Mas a maior parte do tempo ele não os via, nem mostrava ter conhecimento da presença dos pais. Não mais dormia, como os pais eram forçados a fazer, apesar do desejo e da necessidade de desperdiçar o mínimo possível daqueles derradeiros momentos.
Ao contrário de Jenny, ele não parecia possuir poderes anormais sobre objetos físicos, talvez porque, sendo mais velho, tivesse menos necessidade deles. O que havia de estranho nele limitava-se a sua vida mental, da qual os sonhos eram agora apenas uma pequena parte. Ficava imóvel durante horas a fio, olhos cerrados, como se escutasse ruídos que ninguém mais pudesse ouvir. Sua mente estava absorvendo conhecimentos — vindos de algum lugar ou de algum tempo — que em breve avassalariam e destruiriam a criatura semi-formada que fora Jeffrey Angus Greggson.
E Fey ficava sentada, olhando, erguendo para ele uns olhos trágicos e intrigados, sem saber para onde o dono fora e quando voltaria para ela.
Jeff e Jenny haviam sido os primeiros, mas não demorou a que não estivessem mais sós. Como uma epidemia que se espalhasse rapidamente de país em país, a metamorfose contagiara toda a raça humana. Poupava quase todo mundo com mais de dez anos, ao passo que praticamente ninguém abaixo dessa idade escapava.
Era o fim da civilização, o fim de tudo o que os homens tinham conseguido, desde o começo do tempo. No espaço de alguns dias, a humanidade perdera seu futuro, pois o coração de qualquer raça é destruído e sua vontade de viver desaparece, quando os filhos lhe são tirados.
Não houve pânico, como teria acontecido um século antes. O mundo estava como que entorpecido, com as grandes cidades paradas e silenciosas. Apenas as indústrias vitais continuavam funcionando. Era como se o planeta estivesse de luto, chorando por tudo o que nunca mais haveria de vir.
E então, como fizera certa vez, numa era já esquecida, Karellen falou pela última vez à humanidade.
— Meu trabalho aqui está quase terminado — disse a voz de Karellen, através de um milhão de rádios. — Por fim, após cem anos, posso lhes dizer qual foi esse trabalho.
"Tivemos que esconder muitas coisas de vocês, da mesma forma que nos escondemos durante a metade de nossa estada na Terra. Sei que muitos de vocês achavam isso desnecessário. Já se acostumaram a nossa presença, não podem imaginar como seus ancestrais teriam reagido a ela. Mas, pelo menos, podem entender o que nos levou a nos escondermos, saber que tínhamos um motivo para o que fizemos.
"O segredo máximo que escondemos de vocês foi o objetivo de nossa vinda à Terra, coisa sobre a qual vocês nunca se cansaram de especular. Não podíamos revelá-lo porque o segredo não nos pertencia.
"Há um século, chegamos a seu mundo e os salvamos da autodestruição. Não creio que alguém possa negar esse fato, mas vocês nunca desconfiaram da verdadeira natureza dessa autodestruição.
"Como banimos as armas nucleares e os demais brinquedos mortíferos que vocês acumulavam em seus arsenais, o perigo da aniquilação física foi afastado. Vocês pensavam que esse fosse o único perigo. Quisemos que acreditassem nisso, mas não era verdade. O perigo maior que os confrontava era de um tipo inteiramente diferente — e não dizia respeito apenas à sua raça.
"Muitos mundos chegaram à encruzilhada do poder nuclear, evitaram o desastre final, continuaram a construir civilizações pacíficas e felizes, e foram depois destruídos por forças sobre as quais nada sabiam. No século XX, vocês começaram a mexer seriamente com essas forças. Foi por isso que se tornou necessário agir.
"Durante todo esse século, a raça humana foi se aproximando lentamente do abismo, sem sequer suspeitar de sua existência. Para atravessar esse abismo só há uma ponte. Poucas raças conseguiram encontrá-la sem ajuda. Algumas recuaram a tempo, evitando tanto o perigo quanto o feito em si. Seus mundos tornaram-se ilhas de contentamento sem esforço, sem qualquer papel na história do universo. Esse nunca seria o destino, ou a sorte, de vocês. Sua raça tinha demasiada vitalidade para isso. Teria mergulhado na ruína e arrastado outras consigo, pois vocês jamais teriam encontrado a ponte.
"Receio que grande parte do que eu tenho a dizer agora deva ser dito por meio de analogias. Vocês não têm palavras e nem conceitos para muitas das coisas que desejo lhes dizer — e seu conhecimento delas é também muito imperfeito.
"Para entender, precisam voltar ao passado e recuperar muita coisa que seus ancestrais teriam achado familiar, mas que vocês esqueceram — e que nós, em verdade, deliberada-mente os ajudamos a esquecer, pois toda a nossa estada aqui se baseou num vasto engano, num esconder de verdades que vocês não estavam preparados para enfrentar.
"Nos séculos anteriores a nossa vinda, seus cientistas descobriram os segredos do mundo físico e fizeram com que vocês passassem da energia do vapor à energia do átomo. Vocês descartaram todas as superstições; a ciência era a única religião da humanidade, o presente da minoria ocidental ao resto da raça humana, o destruidor de todas as outras crenças. As que ainda existiam, quando nós chegamos, já estavam moribundas. A opinião geral era de que a ciência podia explicar tudo. Não havia forças que escapassem a seu escopo, nem acontecimentos cuja explicação não se lhe pudesse imputar. A origem do universo podia ficar para sempre desconhecida, mas tudo o que acontecera depois obedecia às leis da física.
"Não obstante, seus místicos, embora perdidos nas próprias ilusões, viram parte da verdade. Há poderes mentais e poderes extramentais que sua ciência nunca poderia ter abrigado sem ficar definitivamente abalada. Através das idades, tem-se sabido de inúmeros fenômenos estranhos — teleci-nésia, telepatia, precognição — a que vocês deram nomes, mas que nunca conseguiram explicar. A princípio, a ciência ignorou-os, chegou mesmo a negar-lhes a existência, apesar do testemunho de cinco mil anos. Mas eles existem e nenhuma teoria do universo pode estar completa sem mencioná-los.
"Durante a primeira metade do século XX, alguns de seus cientistas começaram a investigar esses assuntos. Sem o saberem, estavam brincando com o fecho da caixa de Pandora. As forças que poderiam libertar transcendiam qualquer perigo que o átomo pudesse ter causado, porquanto os físicos só poderiam ter dado cabo da Terra, ao passo que os parafísicos poderiam ter levado o pandemônio também aos astros.
"Isso não podia acontecer. Não posso explicar a plena extensão da ameaça que vocês representavam. Não teria sido uma ameaça feita a nós e, por conseguinte, não a compreendemos. Digamos que vocês podiam ter-se tornado um câncer telepático, uma mentalidade maligna que, em sua inevitável dissolução, poderia ter envenenado outras mentes, bem maiores.
"E por isso viemos — ou melhor, fomos enviados — à Terra. Interrompemos seu desenvolvimento em todos os níveis culturais, mas principalmente no campo das pesquisas dos fenômenos paranormais. Tenho perfeita consciência de que também inibimos, pelo contraste entre nossas civilizações, todas as outras formas de realizações criativas. Mas isso foi um efeito secundário e não tem importância.
"Agora, devo dizer-lhes algo que vocês talvez achem surpreendente ou mesmo incrível. Todas essas potencialidades, todos esses poderes latentes, nós não os possuímos nem os compreendemos. Nossos intelectos são muito mais potentes do que os seus, mas existe algo em suas mentes que sempre nos escapou. Desde que chegamos à Terra que os estamos estudando. Aprendemos muito e vamos aprender ainda mais, mas duvido que alguma vez descubramos toda a verdade.
"Nossas raças têm muito em comum, e por isso fomos escolhidos para essa tarefa. Sob outros aspectos, representamos os fins de duas evoluções diferentes. Nossas mentes chegaram ao fim de seu desenvolvimento. O mesmo, em sua forma atual, aconteceu com as suas. Contudo, vocês podem dar o pulo para o próximo estágio e é nisso que reside a diferença entre nós. Nossas potencialidades estão exaustas, mas as suas ainda não foram exploradas. Estão relacionadas, de um modo que nós não entendemos, com os poderes que mencionei — os poderes que estão agora despertando em seu mundo.
"Atrasamos o relógio, fizemos com que vocês ficassem marcando tempo enquanto esses poderes se desenvolviam, até eles poderem sair pelos canais que estavam sendo preparados para esse fim. O que fizemos para melhorar seu planeta, para elevar seu padrão de vida, para trazer paz e justiça à Terra — tudo isso nós teríamos feito em quaisquer circunstâncias, de vez que éramos forçados a intervir nos assuntos da humanidade. Mas toda essa vasta transformação afastou-os da verdade e, portanto, veio ajudar o nosso objetivo.
"Somos seus guardiães — e nada mais. Várias vezes vocês devem ter querido saber qual a posição que minha raça ocupava na hierarquia do universo. Assim como estamos acima de vocês, também há algo acima de nós, servindo-se de nós para seus próprios fins. Nunca descobrimos o que é, embora há séculos sejamos seu instrumento e não ousemos desobedecer-lhe. Temos recebido ordens, ido para mundos em estágio primitivo de civilização, guiando-os por uma estrada que nunca poderemos trilhar — a estrada pela qual vocês estão agora seguindo.
"Repetidas vezes estudamos o processo que ajudamos a promover, esperando poder aprender a escapar de nossas limitações. Mas só conseguimos vislumbrar os vagos contornos da verdade. Vocês nos deram o nome de Senhores Supremos sem fazerem idéia da ironia desse título. Acima de nós está a Mente Suprema, utilizando-nos como o oleiro usa seu torno.
"E sua raça é a argila que está sendo torneada.
"Acreditamos — embora não passe de uma teoria — que a Mente Suprema esteja procurando crescer, estender seus poderes e aumentar seu conhecimento do universo. A essa altura, deve ser a soma de muitas raças e ter deixado muito para trás a tirania da matéria. Tem consciência da inteligência, onde quer que ela esteja. Quando soube que vocês estavam quase prontos, mandou-nos para cá, a fim de prepará-los para a transformação que ora vai acontecer.
"Todas as mudanças anteriores que sua raça conheceu levaram um tempo incalculável. Mas essa é uma transformação da mente, e não do corpo. Pelos padrões da evolução, será cataclísmica — instantânea. E já começou. Vocês têm que enfrentar o fato de que são a última geração do Homo sapiens.
"Quanto à natureza dessa mudança, muito pouco lhes podemos dizer. Não sabemos como ela se produz — que impulso aciona a Mente Suprema quando acha que o momento chegou. Tudo o que descobrimos foi que começa com um indivíduo — sempre uma criança — e depois se espalha explosivamente, como a formação de cristais em volta do primeiro núcleo, numa solução saturada. Os adultos não serão afetados, pois suas mentes já estão formadas de maneira inalterável.
"Daqui a alguns anos, tudo terá terminado e a raça humana se terá dividido em duas. Não há como retroceder, nem futuro para o mundo que vocês conhecem. Todas as esperanças e todos os sonhos de sua raça terminam aqui. Vocês deram à luz seus sucessores e é uma tragédia, mas nunca vão entendê-los, nem sequer poder se comunicar com as mentes deles. Na realidade, eles não terão mente igual à que vocês conhecem. Serão uma entidade única, assim como vocês são a soma de todas as suas células. Vocês não vão considerá-los humanos e não se enganarão.
"Disse-lhes tudo isso para que saibam o que os espera. Dentro de algumas horas, a crise recairá sobre nós. Minha missão e meu dever são proteger aqueles a quem fui enviado para guardar. Embora seus poderes estejam despertando, poderiam ser destruídos pelas multidões à sua volta — até mesmo pelos pais, quando eles se dessem conta da verdade. Preciso levá-los comigo e isolá-los, para proteção deles e sua. Amanhã, minhas naves darão início à evacuação. Não os culparei, se vocês procurarem interferir, mas será inútil. Poderes bem maiores que os meus estão agora despertando; não passo de um de seus instrumentos.
"E, depois, que é que vou fazer com vocês, sobreviventes, quando seu destino tiver sido cumprido? Talvez o mais simples e misericordioso fosse acabar com vocês, como vocês acabariam com um animal de estimação que estivesse mortalmente ferido. Mas não posso fazer isso. Seu futuro será escolhido por vocês mesmos, nos anos que lhes restam. Espero que a humanidade acabe descansando em paz, sabendo que não viveu em vão.
"Porque o que vocês terão trazido para o mundo pode ser muito estranho, pode não corresponder a nenhum de seus desejos ou esperanças, pode fazer com que suas maiores realizações pareçam brinquedos de criança, mas será algo maravilhoso, e vocês o terão criado.
"Quando nossa raça tiver sido esquecida, uma parte da sua continuará existindo. Não nos condenem, portanto, pelo que fomos obrigados a fazer. E lembrem-se; nós sempre os invejaremos."
Jean já havia chorado, mas agora não chorava. A ilha jazia, dourada ao sol inclemente e insensível, quando a nave surgiu lentamente à vista, por sobre os picos gêmeos de Esparta. Naquela ilha rochosa, não havia muito tempo, seu filho escapara da morte por um milagre que ela agora entendia muito bem. Às vezes, pensava se não teria sido preferível que os Senhores Supremos o houvessem deixado entregue a seu destino. A morte era algo que ela podia enfrentar, que ela já enfrentara: era a ordem natural das coisas. Mas aquilo era mais estranho que a morte — e mais definitivo. Até aquele dia, muita gente tinha morrido, mas a raça continuara.
As crianças não falavam nem se mexiam. Estavam espalhadas sobre a areia, não mostrando mais interesse umas nas outras do que nos lares que iam deixar para sempre. Muitos carregavam bebês demasiado pequenos para andar — ou que não desejavam acionar os poderes que tornavam o andar desnecessário. Porque, com toda a certeza, pensou George, se eram capazes de fazer a matéria inanimada se mover, podiam também movimentar os próprios corpos. Por que razão estavam as naves dos Senhores Supremos recolhendo todas elas?
Mas isso não tinha importância. Estavam indo embora e aquela era a maneira que escolhiam para ir. Foi então que George se lembrou de algo que lhe vinha mexendo com a memória. Em algum lugar, havia muito tempo, vira um documentário cinematográfico de um êxodo semelhante, ocorrido havia um século. Devia ter sido no início da Primeira Grande Guerra, ou da Segunda. Viam-se longas filas de trens, cheios de crianças, saindo lentamente das cidades ameaçadas, deixando para trás pais que muitos deles nunca mais voltariam a ver. Poucas choravam: algumas pareciam espantadas, segurando nervosamente seus pequenos pertences, mas a maioria parecia estar contemplando alguma grande aventura.
No entanto, a analogia era falsa. A história jamais se repetia. Os que agora estavam partindo já não eram crianças, fossem o que fossem. E, dessa vez, nunca mais se reuniriam aos pais.
A nave pousara à beira d'água, afundando na areia macia. Em perfeito uníssono, a linha de grandes painéis curvos ergueu-se e as pranchas de embarque estenderam-se na direção da praia, como se fossem línguas de metal. Os vultos espalhados e solitários começaram a convergir, a formar uma pequena multidão, semelhante a qualquer multidão humana.
Solitários? Por que teria ele pensado isso? perguntou George a si mesmo. Porque isso era justamente o que elas nunca mais seriam. Só as pessoas podem se sentir sós: só os seres humanos. Quando, por fim, as barreiras tivessem caído, a solidão desapareceria ao mesmo tempo que a personalidade. As inúmeras gotas de chuva se teriam misturado com o oceano.
Sentiu a mão de Jean aumentar a pressão sobre a sua, num súbito espasmo de emoção.
— Veja — murmurou ela. — Estou vendo Jeff. Junto à segunda porta.
A distância era grande e tornava-se bastante difícil dizer ao certo. George tinha como que uma névoa diante dos olhos, que lhe dificultava a visão. Mas, sim, era Jeff, ele tinha certeza disso. George podia agora reconhecer o filho, já com um pé na prancha metálica.
Jeff virou-se e olhou para trás. Seu rosto era apenas uma mancha branca. Àquela distância, não se podia dizer se ele estava reconhecendo os pais, se se estava lembrando de tudo o que deixava para trás, E George também nunca saberia se Jeff se voltara para eles por puro acaso, ou se sabia, naqueles derradeiros momentos em que ainda era filho deles, que os pais o estavam vendo passar para uma região onde jamais poderiam entrar.
As grandes portas começaram a fechar-se. Nesse momento preciso, Fey ergueu o focinho e soltou um uivo baixo e desolado. Levantou os belos olhos para George e ele percebeu que ela acabava de perder o dono. Agora ele já não tinha rival.
Para os que tinham ficado, havia muitos caminhos, mas apenas um destino. Havia os que diziam: "O mundo continua belo. Um dia, vamos ter que deixá-lo, mas para que apressar nossa partida?"
Mas outros, que tinham olhado mais para o futuro do que para o passado, e haviam perdido tudo o que fazia a vida digna de ser vivida, não desejavam ficar. Partiram sozinhos ou com amigos, segundo sua natureza.
Foi assim com Atenas. A ilha nascera do fogo; no fogo escolheu morrer. Os que desejavam partir, partiram, mas a maioria ficou, para esperar o fim entre os fragmentos de seus sonhos despedaçados.
Ninguém sabia quando seria. Contudo, Jean despertou na quietude da noite e ficou por um momento olhando para o reflexo que vinha do teto. Depois, estendeu o braço e agarrou a mão de George. Ele tinha um sono profundo, mas dessa vez acordou imediatamente. Não disseram nada, pois as palavras que seriam necessárias não existiam.
Jean já não estava assustada, nem sequer triste. Atingira como que uma calma em que as emoções já não a tocavam. Mas faltava ainda fazer uma coisa e ela sabia que o tempo mal chegaria.
Mesmo assim, sem dizer palavra, George seguiu-a através da casa em silêncio. Atravessaram a mancha de luar que entrava pelo estúdio, avançando tão silenciosamente quanto as sombras que ela formava, até chegarem ao deserto quarto das crianças.
Nada mudara. Os desenhos fluorescentes que George pintara com tanto cuidado continuavam a brilhar nas paredes. E o chocalho que pertencera a Jennifer Anne estava ainda onde ela o deixara cair, quando sua mente se voltara para a região ignorada que ora habitava.
Ela deixou os brinquedos, pensou George, mas os nossos vão conosco. Lembrou-se dos filhos dos faraós, cujas bonecas e contas de brinquedo tinham sido sepultadas com eles, cinco mil anos atrás. E assim seria agora. Ninguém mais, pensou, amará nossos tesouros; vamos levá-los conosco, não vamos nos separar deles.
Jean voltou-se lentamente para ele e pousou a cabeça em seu ombro. Ele enlaçou-a pela cintura e o amor que antes sentira voltou-lhe, não tão forte, mas nítido, como se fosse um eco vindo de montanhas distantes. Era demasiado tarde para dizer-lhe tudo o que lhe devia e os remorsos que ele sentia eram menos por suas traições do que pela passada indiferença.
Então, Jean disse baixinho: — Adeus, meu amor — e abraçou-o com força. George não teve tempo de responder, mas mesmo naquele derradeiro momento não pôde deixar de sentir-se espantado de ver como ela sabia que o momento tinha chegado.
Lá embaixo, nas rochas, os segmentos de urânio começaram a se aproximar, em busca da união que nunca alcançariam.
E a ilha ergueu-se ao encontro da alvorada.
A nave dos Senhores Supremos atravessou o coração de Carina, deslizando pela sua trilha meteórica. Iniciara a louca desaceleração em meio aos planetas exteriores, mas ao passar por Marte ainda possuía uma fração considerável da velocidade da luz. Aos poucos, os imensos campos em volta do Sol lhe iam absorvendo o impulso, enquanto, pelo espaço de um milhão de quilômetros mais atrás, as energias dispersas da Stardrive pintavam os céus de fogo.
Jan Rodricks estava voltando à Terra, seis meses mais velho, embora tivesse partido oitenta anos antes.
Dessa vez, já não era um clandestino, escondido numa câmara secreta. Estava atrás dos três pilotos (por que razão, pensava ele, precisariam de tantos?) olhando para a grande tela que dominava a sala de controles. As cores e formas que apareciam na tela nada significavam para ele; decerto forneceriam informações que, numa nave desenhada pelos homens, teria sido dada por meio de tabelas. Mas às vezes a tela mostrava os campos de estrelas circundantes e ele esperava que, em breve, mostrasse também a Terra.
Estava satisfeito de voltar para casa, apesar do esforço que fizera para sair de seu planeta. Naqueles poucos meses, Jan amadurecera. Vira tantas coisas, viajara tão longe, que estava desejoso de voltar a seu mundo. Compreendia agora por que os Senhores Supremos haviam proibido os homens de ir às estrelas. A humanidade ainda tinha muito que progredir, antes que pudessem desempenhar qualquer papel na civilização que ele vislumbrara.
Talvez — embora ele se recusasse a aceitar isso — a humanidade jamais pudesse vir a ser mais do que uma espécie inferior, conservada num zoológico distante pelos Senhores Supremos, na qualidade de guardiães. Talvez fosse isso o que Vindarten quisera dizer, ao prevenir Jan daquela maneira ambígua, pouco antes de sua partida. — Muita coisa pode ter acontecido — dissera ele — durante esse tempo, em seu planeta. Pode ser que você não reconheça seu mundo quando voltar a vê-lo.
Talvez não, pensou Jan. Oitenta anos era muito tempo e, embora ele fosse jovem e tivesse facilidade em se adaptar, poderia achar difícil entender todas as mudanças que se haviam processado. Mas de uma coisa ele estava certo — os homens gostariam de ouvir a história que ele tinha para contar e de saber o que ele pudera ver da civilização dos Senhores Supremos.
Tinham-no tratado bem, conforme ele esperara que fizessem. Da viagem de ida, nada soubera. Depois que a injeção deixara de fazer efeito e ele saíra da câmara onde se havia escondido, a nave já estava entrando no sistema dos Senhores Supremos. Saíra de seu fantástico esconderijo e descobrira, para seu alívio, que o balão de oxigênio não era necessário. O ar era espesso e pesado, mas podia respirar sem dificuldade. Fora dar consigo no enorme porão, iluminado a luz vermelha, da nave, entre inúmeros outros caixotes e demais bagagens que se poderia esperar encontrar numa nave espacial ou num navio. Levara quase uma hora para encontrar o caminho da sala de controles e se apresentar à tripulação.
A falta de surpresa mostrada intrigara-o. Sabia que os Senhores Supremos demonstravam poucas emoções, mas esperara alguma reação. Em vez disso, eles tinham continuado como se nada houvesse ocorrido, olhando para a grande tela e mexendo nos inúmeros botões de seus painéis de controle. Foi então que soube que estavam descendo, pois, de vez em quando, a imagem de um planeta — sempre maior, cada vez que aparecia — surgia na tela. Contudo, nunca havia a menor sensação de movimento ou aceleração, apenas uma gravidade perfeitamente constante, que ele calculava como sendo aproximadamente um quinto da da Terra. As imensas forças que impeliam a nave deviam ser compensadas com precisão.
Os três Senhores Supremos se haviam levantado ao mesmo tempo de seus assentos e ele soubera que a viagem terminara. Não falaram com seu passageiro ou um com o outro e, quando um deles lhe fez sinal para segui-los, Jan compreendeu algo em que não pensara antes. Talvez não houvesse ninguém ali, naquela ponta da enorme linha de suprimentos de Karellen, que entendesse uma única palavra de inglês.
Fitaram-no gravemente, quando as grandes portas se abriram diante de seus olhos ávidos. Aquele era o momento supremo de sua vida: ia ser o primeiro ser humano a olhar para um mundo iluminado por outro sol. A luz cor de rubi da NGS 549672 inundou a nave e diante dele surgiu o planeta dos Senhores Supremos.
Que tinha ele esperado? Não estava muito certo. Vastos edifícios, cidades com torres que se perdiam entre as nuvens, máquinas para além de tudo o que a imaginação poderia sonhar — nada disso o teria surpreendido. Mas o que ele vira fora uma planície incaracterística, estendendo-se para um horizonte demasiadamente próximo e quebrada apenas por mais três naves dos Senhores Supremos, a alguns quilômetros de distância.
Por um momento, Jan sentiu-se desapontado. Depois, deu de ombros, compreendendo que, afinal de contas, era de se esperar encontrar um espaçoporto numa região tão remota e desabitada quanto aquela.
Fazia frio, mas não a ponto de não se poder agüentar. A luz irradiada pelo grande sol vermelho, como que afundado no horizonte, era suficiente para os olhos humanos, mas Jan não sabia quanto tempo ele agüentaria sem a vista repousante dos verdes e dos azuis. Viu então um enorme e fino crescente, subindo no céu como se fosse um grande arco colocado ao lado do Sol. Ficou olhando para ele durante muito tempo, antes de compreender que a viagem ainda não tinha terminado. Aquele era o mundo dos Senhores Supremos. Esse devia ser seu satélite, a base a partir da qual suas naves operavam.
Eles o levaram para uma nave não maior que um avião de carreira terrestre. Sentindo-se como um pigmeu, subira para uma das grandes poltronas, a fim de tentar ver algo do planeta que se aproximava, através das janelas.
A viagem foi tão rápida, que mal teve tempo de observar alguns detalhes a respeito do globo que se estendia embaixo da nave. Aparentemente, mesmo ali, tão próximo de seu mundo, os Senhores Supremos utilizavam uma versão da Stardrive, pois numa questão de minutos atravessaram uma atmosfera funda e cheia de nuvens. Quando as portas se abriram, clandestino e tripulação saíram para uma câmara abobadada, com um teto que devia ter-se fechado rapidamente atrás deles, pois não havia sinal de qualquer entrada.
Passaram-se dois dias antes que Jan saísse daquele edifício. Era uma mercadoria inesperada e não pareciam ter lugar onde colocá-lo. Para piorar as coisas, nenhum dos Senhores Supremos entendia inglês. A comunicação era praticamente impossível e Jan compreendeu com amargura que entrar em contato com uma raça estranha não era tão fácil quanto a ficção indicava. A linguagem por sinais não deu resultado, pois dependia muito de um conjunto de gestos, expressões e atitudes que os Senhores Supremos e a humanidade não tinham em comum.
Seria uma grande frustração, pensou Jan, se os únicos Senhores Supremos que falavam sua língua estivessem na Terra. Só lhe restava esperar pelo melhor. Sem dúvida algum cientista, algum especialista em raças estrangeiras, surgiria para tomar conta dele! Ou seria tão sem importância que ninguém se incomodaria com ele?
Não havia como sair do edifício, pois as grandes portas não tinham controles visíveis. Quando um Senhor Supremo se aproximava, elas simplesmente se abriam. Jan tentara fazer o mesmo, erguera objetos no ar a fim de interromper qualquer raio controlador, tentara tudo o que lhe viera à mente, sem qualquer resultado. Ocorreu-lhe que um homem da Idade da Pedra, perdido numa cidade ou num edifício moderno, teria as mesmas dificuldades. Certa vez, procurara sair ao mesmo tempo que um Senhor Supremo, mas fora gentilmente obrigado a recuar. Como estava ansioso por não irritar seus anfitriões, não insistira.
Vindarten chegou antes que Jan começasse a se desesperar. O Senhor Supremo falava um inglês muito ruim e demasiado depressa, mas melhorara com extraordinária rapidez. Em poucos dias eles podiam conversar quase sem dificuldade sobre qualquer assunto que não exigisse vocabulário especializado.
Depois que Vindarten tomara conta dele, Jan não tivera mais preocupações. Tampouco tivera oportunidade de fazer o que desejava, pois quase todo o seu tempo era passado em reuniões com os cientistas dos Senhores Supremos, ávidos de levar a cabo testes obscuros, com instrumentos complicados. Jan não via com bons olhos aquelas máquinas e, após uma sessão com um certo aparelho de hipnose, ficara várias horas com uma horrível dor de cabeça. Estava perfeitamente de acordo em cooperar, mas não tinha a certeza de que os cientistas percebiam suas limitações, tanto mentais quanto físicas. Passou-se muito tempo antes que pudesse convencê-los de que precisava dormir a intervalos regulares.
Entre essas sessões, pôde ver algo da cidade e compreender quão difícil — e perigoso — seria, para ele, andar por ela. As ruas praticamente não existiam e não parecia haver transporte de superfície. Era um mundo de criaturas capazes de voar e que não temiam a gravidade. Não era raro deparar, sem o menor aviso, com um vertiginoso abismo de várias centenas de metros, ou descobrir que a única entrada para uma sala era uma abertura no alto da parede. Jan começou a perceber que a psicologia de uma raça dotada de asas tinha que ser forçosamente diferente da das criaturas terrenas.
Era estranho ver os Senhores Supremos voar, como se fossem grandes pássaros, por entre as torres de sua cidade, as asas movendo-se em batidas lentas e poderosas. E havia um problema científico. Aquele era um planeta grande — maior que a Terra. No entanto, sua gravidade era baixa e Jan não entendia por que razão tinha atmosfera tão densa. Interrogou Vindarten a respeito e ficou sabendo, como já desconfiava, que aquele não era o planeta originário dos Senhores Supremos. Tinham evoluído num mundo muito menor e depois conquistado aquele, mudando-lhe não só a atmosfera, como também a gravidade.
A arquitetura dos Senhores Supremos era sisudamente funcional; Jan não vira ornamentos, nada que não tivesse uma utilidade, embora muitas vezes ele não compreendesse qual seria ela. Se um homem da Idade Média tivesse visto aquela cidade de luz vermelha e os seres que se moviam nela, sem dúvida teria pensado que estava no inferno. Até mesmo Jan, com toda a sua curiosidade e seu espírito científico, às vezes dava consigo à beira de um terror irracional. A ausência de um único ponto de referência familiar pode enervar até mesmo a mente mais lúcida e fria.
E havia tanta coisa que ele não compreendia e que Vindarten não podia ou não queria explicar! O que eram aquelas luzes que apagavam e acendiam, e aquelas formas mutáveis, aquelas coisas que tremulavam através do ar, tão depressa que ele nunca podia estar certo de sua existência? Podiam ser algo tremendo e apavorante, ou tão espetacular e trivial quanto os cartazes luminosos da antiga Broadway.
Jan também sentia que o mundo dos Senhores Supremos era cheio de sons que ele não podia ouvir. Ocasionalmente, captava alguma complexa combinação rítmica, subindo e descendo pelo espectro audível, para terminar desaparecendo na margem superior ou inferior da audição. Vindarten não parecia entender o que Jan queria dizer ao se referir à música, de modo que esse problema nunca foi esclarecido satisfatoriamente.
A cidade não era muito grande, certamente bem menor do que Londres ou Nova York haviam sido quando em seu apogeu. Segundo Vindarten, havia vários milhares de cidades parecidas, espalhadas pelo planeta, cada qual planejada para algum fim específico. Na Terra, o mais próximo teria sido uma cidade universitária, só que ali o grau de especialização tinha ido muito mais longe. Jan não tardou a descobrir que toda aquela cidade era dedicada ao estudo de culturas estrangeiras.
Numa das primeiras saídas da cela nua em que Jan vivia, Vindarten levara-o ao museu. Fora para Jan uma espécie de estímulo psicológico encontrar-se num lugar cujo propósito ele podia entender plenamente. Se não fosse a escala em que fora construído, o museu bem poderia estar situado na Terra. Tinham levado muito tempo para alcançá-lo, descendo por uma grande plataforma, que se movia como um pistão, num cilindro vertical de comprimento desconhecido. Não havia controles visíveis e a sensação de aceleração, no início e no fim da descida, era notável. Presumivelmente, os Senhores Supremos não desejavam desperdiçar seus aparelhos compensadores de gravidade para fins domésticos. Jan ficou pensando se todo o interior daquele mundo não seria cheio de escavações. E por que teriam eles limitado o tamanho da cidade, estendendo-a subterraneamente, em vez de espraiá-la? Esse foi outro dos muitos enigmas que ele não conseguiu solucionar.
Podia-se passar toda uma vida explorando aquelas câmaras colossais. Ali estava guardado tudo o que fora trazido dos planetas, as realizações de muitas civilizações que Jan nem sequer podia imaginar. Mas não houvera tempo de ver muita coisa. Vindarten colocara-o cuidadosamente sobre um pedaço de chão que, à primeira vista, parecia um desenho ornamental. Mas Jan lembrou-se de que ali não havia ornamentos; e, ao mesmo tempo, algo invisível o agarrara e o empurrara para a frente. Logo ele se vira passando diante de grandes vitrinas, de vistas de mundos inimagináveis, a uma velocidade de vinte ou trinta quilômetros horários.
Os Senhores Supremos tinham resolvido o problema da fadiga de museu. Ali não havia necessidade de andar.
Deviam ter viajado vários quilômetros, quando o guia de Jan de novo o agarrou e, agitando as grandes asas, o arrancou do campo de ação da força que os estava impelindo. Diante deles havia um enorme salão, meio vazio e iluminado por uma luz familiar, que Jan não via desde que deixara a Terra. Era uma luz suave, de modo a não causar dor aos olhos sensíveis dos Senhores Supremos, mas era, sem dúvida alguma, a luz do Sol. Jan nunca teria acreditado que algo tão simples ou tão comum lhe pudesse despertar tanta saudade.
Estavam no salão dedicado à Terra. Caminharam alguns metros, passando por uma bela maquete de Paris, por tesouros de arte de uma dúzia de países, agrupados de qualquer maneira, por modernas máquinas de calcular e machados pa-leolíticos, por televisores e pela primeira turbina a vapor. Uma grande porta se abriu diante deles e entraram no gabinete do Curador para a Terra.
Seria a primeira vez que ele via um ser humano? pensou Jan. Teria alguma vez ido à Terra, ou seria apenas um dos muitos planetas a seu cargo, de cuja exata localização ele não estava certo? O fato é que não falava nem entendia inglês e Vindarten teve que servir de intérprete.
Jan passou várias horas ali, falando num gravador, enquanto os Senhores Supremos lhe apresentavam diversos objetos terrestres, muitos dos quais, para sua vergonha, ele não fora capaz de identificar. A ignorância de sua própria raça e de suas realizações era enorme. Ele gostaria de saber se os Senhores Supremos, apesar de todos os seus soberbos dotes mentais, seriam realmente capazes de compreender todas as peculiaridades da cultura humana.
Vindarten levara-o para fora do museu por um caminho diferente. De novo tinham flutuado-, sem esforço, através de grandes corredores abobadados, mas dessa vez por entre as criações da natureza, e não da mente consciente. Sullivan, pensara Jan, teria dado a vida para estar ali, para ver as maravilhas que a evolução tinha processado numa centena de mundos. Mas Sullivan, provavelmente, já estava morto. . .
Depois, sem qualquer aviso, viram-se numa galeria, ao alto de uma grande câmara circular, com aproximadamente cem metros de diâmetro. Como de costume, não havia parapeito de proteção e, por um momento, Jan hesitara em se aproximar da beira. Mas Vindarten estava bem na beirada, olhando calmamente para baixo, de modo que Jan avançou, cauteloso, ao encontro dele.
O chão estava apenas vinte metros abaixo — demasiado perto. Mais tarde, Jan teve a certeza de que seu guia não pretendera assustá-lo e fora tomado de surpresa pela sua reação, pois ele soltara um tremendo berro e pulara para trás, procurando não ver o que havia embaixo. Só quando os ecos de seu grito já tinham morrido na espessa atmosfera, é que ele tivera coragem de se aproximar de novo.
Naturalmente, não tinha vida — e não estava olhando fixo para ele, como pensara no primeiro momento de pânico. Ocupava quase todo o grande espaço circular e a luz cor de rubi brilhava e tremulava nas suas profundezas de cristal.
Era um olho de gigante.
— Por que você fez esse barulho? — perguntou Vindarten.
— Fiquei apavorado — confessou Jan.
— Mas por quê? Sem dúvida você não imaginou que pudesse haver algum perigo!
Jan ficou pensando se poderia explicar o que era um ato reflexo, mas resolveu nem tentar.
— Tudo o que é completamente inesperado é assustador. Até uma situação nova ser analisada, o melhor é presumir o pior.
O coração dele ainda batia violentamente, quando olhou, mais uma vez, para o monstruoso olho. Naturalmente, podia ser um modelo de olho, muitíssimo ampliado, como os micróbios e os insetos nos museus da Terra. Contudo, mesmo ao fazer a pergunta, Jan já sabia, com uma certeza horripilante, que não era um olho aumentado.
Vindarten pouco lhe soube dizer; aquele não era seu campo de conhecimento e a curiosidade não era seu fraco. Partindo da descrição do Senhor Supremo, Jan construiu mentalmente a imagem de uma besta ciclópica, vivendo em meio ao entulho asteroidal de algum sol distante, tendo seu crescimento inibido pela gravidade, dependendo, para comer e viver, do alcance e do poder de resolução de seu único olho.
Não parecia haver limites para o que a natureza era capaz de fazer, quando pressionada, e Jan sentiu um prazer irracional em descobrir algo que os Senhores Supremos não seriam capazes de dominar. Tinham trazido uma baleia da Terra, mas nada tinham podido fazer a respeito daquilo.
De outra feita, ele subira, subira, até as paredes do elevador passarem de opalescentes a transparentes como cristal. Sentia como se estivesse de pé, sem ter onde se apoiar, entre os mais altos picos da cidade, sem nada a protegê-lo do abismo. Mas não sentia mais vertigem do que se estivesse num avião, pois não havia sensação de contato com o chão distante.
Estava acima das nuvens, partilhando do céu com alguns pináculos de metal ou pedra. Qual um mar vermelho-rosado, a camada de nuvens rolava, lentamente, abaixo dele. Havia duas luas pálidas e minúsculas no céu, não longe do sol sombrio. Perto do centro daquele disco vermelho e inchado via-se uma pequena sombra escura, perfeitamente circular. Podia ser uma mancha solar ou uma outra lua em trânsito.
Jan foi avançando lentamente com o olhar ao longo do horizonte. A capa de nuvens estendia-se até a beira daquele mundo enorme, mas numa direção, a uma distância impossível de se calcular, havia uma mancha sarapintada, que podia ser formada pelas torres de uma outra cidade. Fitou-a durante muito tempo e depois continuou a olhar.
Quando já tinha dado meia-volta, viu a montanha. Não estava contra o horizonte, mas além dele — um único pico serrilhado, erguendo-se por sobre a beirada do mundo, as vertentes mais baixas escondidas como a parte maciça de um iceberg se oculta sob a linha d'água. Mesmo num mundo com gravidade tão baixa quanto aquela, parecia difícil acreditar que tais montanhas pudessem existir. Seria possível que os Senhores Supremos praticassem esportes em suas vertentes e voassem, como águias, em torno daqueles imensos contrafortes?
Então, aos poucos, a montanha começou a mudar de forma. Quando ele a vira pela primeira vez, ela era de um vermelho fosco e quase sinistro, com algumas marcas junto ao cume, que ele não podia distinguir nitidamente. Estava procurando focalizá-las, quando percebeu que elas estavam se mexendo. . .
A princípio, não pôde acreditar no que via. Depois, lembrou-se de que todas as suas idéias preconcebidas de nada valiam ali; não podia permitir que sua mente rejeitasse qualquer mensagem que os sentidos levassem para a câmara oculta do cérebro. Não devia procurar entender — apenas observar. A compreensão viria mais tarde, ou não viria nunca.
A montanha — continuava a pensar nela como montanha, pois não sabia de nenhuma outra palavra que servisse para defini-la — parecia ter criado vida. Lembrou-se daquele olho monstruoso, em sua câmara subterrânea — mas, não, isso era inconcebível. Não estava olhando para a vida orgânica. Suspeitava, mesmo, que não se tratasse de matéria, tal e qual a conhecia.
O vermelho-escuro estava ficando mais claro, transformando-se num tom mais gritante. Faixas de amarelo-vivo surgiram e, por um momento, Jan pensou estar olhando para um vulcão que vomitasse correntes de lava para a terra abaixo dele. Mas aquelas correntes, como podia ver, pelas manchas que iam e vinham, estavam subindo.
Agora, uma outra coisa estava subindo das nuvens de rubi, que rodeavam a base da montanha. Era um anel gigante, perfeitamente horizontal e circular, e tinha a cor de tudo o que Jan deixara para trás, pois nunca os céus da Terra tinham sido mais azuis. Em nenhum outro lugar do mundo dos Senhores Supremos tinha ele visto tons como aqueles e teve que engolir em seco, tomado de uma saudade intensa e de um terrível sentimento de solidão.
O anel alargava-se, à medida que ia subindo. Estava agora mais alto do que a montanha e seu arco estendia-se rapidamente para ele. Sem dúvida, pensou Jan, deve ser uma espécie de vórtice — um anel de fumaça, com muitos quilômetros de diâmetro. Mas não redemoinhava, conforme ele esperava, e não parecia esfumar-se mais à medida que aumentava de tamanho.
Sua sombra projetou-se muito antes que o anel propriamente dito se espalhasse, majestosamente, sobre sua cabeça, continuando a subir no espaço. Jan ficou a vê-lo até ele se transformar num fiozinho azul, difícil de se distinguir em meio à vermelhidão do céu. Quando, por fim, desapareceu, já devia ter muitos milhares de quilômetros de diâmetro. E ainda estava crescendo.
Olhou para trás, para a montanha. Estava agora dourada e sem nenhuma marca. Talvez fosse obra da imaginação — a essa altura, ele já acreditava em tudo —, mas parecia-lhe mais alta e estreita, além de girar como o funil de um ciclone. Só então, ainda estonteado e com o raciocínio quase apagado, ele se lembrou de sua máquina fotográfica. Ergueu-a ao nível do olho e mirou aquele impossível, estarre-cedor enigma.
Vindarten colocou-se, rapidamente, na linha de visão. Com implacável firmeza, suas grandes mãos cobriram a lente e forçaram-no a abaixar a câmara. Jan não tentou sequer resistir; teria sido inútil, mas ele sentiu um súbito medo mortal daquela coisa na beira do mundo e não quis mais nada com ela.
Não houve nenhuma outra coisa, em suas viagens, que não o deixassem fotografar, e Vindarten nunca dava explicações. Ao contrário, passava muito tempo fazendo com que Jan descrevesse, em detalhes, tudo o que vira.
Foi então que Jan percebeu que os olhos de Vindarten haviam visto algo totalmente diferente; e foi quando ele suspeitou, pela primeira vez, que os Senhores Supremos também tinham seus senhores.
Agora, ele estava voltando para a Terra, e todo o espanto, medo e mistério tinham ficado para trás. A nave parecia-lhe a mesma, embora tivesse a certeza de que não era a mesma tripulação. Por mais longas que fossem suas vidas, era difícil acreditar que os Senhores Supremos se afastassem voluntariamente de seu planeta para fazer viagens interestelares que demoravam décadas.
O efeito de relatividade tempo-dilatação operava, naturalmente, em ambos os sentidos. Os Senhores Supremos só envelheceriam quatro meses na viagem de ida e volta, mas quando voltassem, seus amigos estariam oitenta anos mais velhos.
Se assim tivesse desejado, Jan sem dúvida poderia ter ficado lá para o resto da vida. Mas Vindarten prevenira-o de que não haveria outra nave para a Terra durante vários anos e aconselhara-o a aproveitar a viagem. Talvez os Senhores Supremos compreendessem que, mesmo naquele relativamente curto espaço de tempo, a mente de Jan quase chegara ao fim de sua capacidade de absorção. Ou talvez sua presença prolongada pudesse ter sido inconveniente e eles não quisessem gastar mais tempo com ele.
Agora, isso já não tinha importância, pois a Terra estava ao alcance de sua vista. Já a vira centenas de vezes do alto, mas sempre através do olho mecânico e remoto da câmara de televisão. Agora, por fim, ele estava em pleno espaço, completando o último ato de seu sonho, e a Terra girava, lá embaixo, em sua eterna órbita.
O grande crescente verde-azulado estava em quarto crescente: mais de metade do disco visível continuava imerso em escuridão. Havia poucas nuvens — alguns bancos, espalhados ao longo da linha de ventos alísios. A calota ártica refulgia, mas não tanto quanto o ofuscante reflexo de sol no Pacífico norte.
Quem não o conhecesse, teria pensado que aquele era um mundo de água; o hemisfério visível quase não tinha terras. O único continente visível era a Austrália, uma neblina mais escura em meio à névoa atmosférica que cercava o planeta.
A nave estava entrando no grande cone de sombra da Terra. O brilhante crescente tremulou, encolheu-se num arco de fogo e sumiu. Embaixo, reinavam a noite e a escuridão. O mundo dormia.
Foi então que Jan percebeu o que estava errado. Havia terra, lá embaixo, mas onde estavam os brilhantes colares de luzes, onde o coruscar ofuscante das cidades dos homens? Em todo aquele hemisfério às escuras, não havia uma única luz para afastar a noite. Como num passe de mágica, tinham desaparecido, sem deixar vestígio, os milhões de quilowatts que outrora rivalizavam com as estrelas. Parecia-lhe estar olhando para a Terra como ela devia ter sido antes da chegada do homem.
Aquele não era o regresso que ele esperara. Nada podia fazer a não ser olhar, enquanto o medo do desconhecido crescia dentro dele. Algo acontecera — algo inimaginável. E, contudo, a nave continuava a descer, formando uma longa curva, na direção do hemisfério iluminado pelo Sol.
Não viu nada do pouso, pois a imagem da Terra de repente sumiu e foi substituída por uma combinação de luzes e linhas. Quando a imagem foi restaurada, já estavam em terra. Havia grandes edifícios a distância, máquinas movendo-se de um lado para outro e um grupo de Senhores Supremos observando-os.
Ouviu-se o ronco abafado do ar, enquanto a nave igualava a pressão ambiente e, depois, o som das grandes portas se abrindo. Jan não esperou; os calados gigantes ficaram a vê-lo, com tolerância ou indiferença, correr para fora da sala de controle.
Estava de volta a seu mundo, enfrentando a luz refulgente de seu Sol, respirando o ar que seus pulmões tão bem conheciam. A prancha de desembarque já fora descida, mas ele teve que esperar um momento, até que o clarão do sol não mais o cegasse.
Karellen estava um pouco afastado de seus colegas, ao lado de um grande veículo de transporte, carregado de caixotes. Jan não parou para pensar que estava reconhecendo o supervisor, nem ficou surpreso de vê-lo tal e qual o deixara. Essa era quase a única coisa que saíra como ele esperava.
— Tenho estado à sua espera — disse Karellen.
— Nos primeiros tempos — disse o supervisor — podíamos andar no meio deles sem correr perigo. Mas já não precisavam de nós. Nossa missão terminou quando os juntamos e lhes demos um continente só para eles. Veja.
A parede em frente de Jan desapareceu e ele ficou a olhar, de uma altura de algumas centenas de metros, para uma região agradavelmente arborizada. A ilusão era tão perfeita, que ele sentiu até uma momentânea vertigem.
— Isso foi cinco anos mais tarde, quando se iniciou a segunda fase.
Havia pessoas movendo-se, embaixo, e a câmara caiu sobre elas como uma ave de rapina.
— Você vai ficar deprimido — preveniu Karellen. — Mas lembre-se de que seus padrões não mais se aplicam. Você não está vendo crianças humanas.
Entretanto, foi essa a impressão que veio à mente de Jan e lógica alguma foi capaz de afastá-la. Podiam ser selvagens, participando de alguma complicada dança ritual. Estavam nus e imundos, os cabelos sujos tapando-lhes os olhos. Segundo os cálculos de Jan, deviam ter entre cinco e quinze anos de idade, mas todos se moviam com a mesma velocidade, precisão e completa indiferença para com o que os cercava.
Foi então que Jan lhes viu os rostos. Engoliu em seco e forçou-se a continuar olhando. Eram mais vazios do que os rostos dos mortos, pois até um cadáver tem alguma marca lavrada pelo tempo em suas feições, que fala apesar dos lábios inertes. Naqueles rostos, não havia mais emoção ou sentimento do que na expressão de uma cobra ou de um inseto. Os próprios Senhores Supremos eram mais humanos do que eles.
— Você está procurando por algo que já não existe — disse Karellen. — Lembre-se, eles não têm mais identidade do que as células de seu corpo. Mas, unidos, formam algo muito maior que você.
— Por que não param de se mexer?
— Demos-lhe o nome de Longa Dança — explicou Karellen. — Não dormem nunca e isso durou quase um ano. Trezentos milhões, movendo-se num desenho controlado, por sobre todo um continente. Analisamos vezes sem conta esse desenho, mas não significa nada, talvez porque só possamos ver a parte física, a pequena porção que está aqui, na Terra. Possivelmente, aquilo a que chamamos Mente Suprema continua treinando-os, moldando-os numa unidade, antes que possa absorvê-los.
— Mas de que se alimentam? E que acontece quando encontram obstáculos, como árvores, penhascos ou água?
— A água não fazia diferença, eles não podiam afogar-se. Quando deparavam com obstáculos, às vezes se machucavam, mas nem notavam. Quanto à comida, bem, tinham toda a caça e fruta de que precisavam. Mas agora essa necessidade acabou, como tantas outras, pois a comida é, sobretudo, uma fonte de energia e eles aprenderam a utilizar fontes maiores.
A imagem estremeceu, como se uma onda de calor passasse por cima dela. Quando voltou a ficar nítida, o movimento embaixo cessara.
— Veja agora — disse Karellen. — Três anos mais tarde.
As figurinhas, de aspecto tão pateticamente vulnerável, caso a pessoa não soubesse a verdade, estavam imóveis, espalhadas pelas florestas, vales e planícies. A câmara passou, incansável, de uma para outra: seus rostos já estavam se fundindo numa espécie de molde comum. Jan tinha certa vez visto algumas fotos obtidas com a superposição de dezenas de impressões, para produzir um rosto "médio". O resultado fora algo tão vazio, tão despido de caráter como aquele ali.
Pareciam estar dormindo, ou em transe. Tinham os olhos cerrados e não demonstravam ter mais noção do que os cercava do que as árvores sob as quais estavam. Que pensamentos, imaginou Jan, estariam ecoando através da complicada rede da qual suas mentes não eram agora mais — e, no entanto, tampouco menos — do que fios separados de uma grande tapeçaria? E uma tapeçaria, pensou ele, que cobria muitos mundos e muitas raças, e que continuava crescendo.
Tudo aconteceu com uma velocidade de entontecer a vista e o cérebro, Num momento, Jan olhava para uma terra bela e fértil, onde nada havia de estranho, exceto as inúmeras pequenas estátuas espalhadas — embora não a esmo — em todo o seu comprimento e toda a sua largura. E logo, num instante, todas as árvores e a relva, todas as criaturas vivas que tinham habitado aquela terra, desapareceram como por encanto. Ficaram apenas os lagos parados, os rios ser-penteantes, as colinas castanhas ora despidas de seu tapete verde e as figuras silenciosas, indiferentes, que tinham causado toda aquela destruição.
— Por que fizeram isso? — perguntou, boquiaberto, Jan.
— Talvez a presença de outras mentes os tenha perturbado, mesmo as mentes rudimentares das plantas e dos animais. Acreditamos que, um dia, possam achar o mundo material igualmente perturbador. E, então, quem sabe o que acontecerá? Agora você compreende por que nos afastamos, depois de termos cumprido nosso dever. Continuamos tentando estudá-los, mas nunca penetramos na terra deles, ou mesmo enviamos nossos instrumentos. Só ousamos observar do espaço.
— Isso foi há muitos anos — disse Jan. — Que foi que aconteceu desde então?
— Muito pouca coisa. Durante todo esse tempo, nunca se moveram, nem tomaram conhecimento dos dias ou das noites, dos verões ou dos invernos. Ainda estão testando seus poderes. Alguns rios mudaram de curso e há um que flui morro acima. Mas nada fizeram que pareça ter um propósito definido.
— E os ignoraram completamente?
— Sim, embora isso não seja de surpreender. A entidade da qual fazem parte sabe tudo a nosso respeito. Não parece ligar para as nossas tentativas no sentido de estudá-la. Quando quiser que a gente saia, ou tiver uma nova tarefa para nós, noutro lugar, vai tornar seus desejos mais do que óbvios. Até lá, permaneceremos aqui, de modo a que nossos cientistas possam reunir todos os conhecimentos possíveis.
Aquilo, então, pensou Jan, com uma resignação muito além de qualquer forma de tristeza, era o fim do homem. Um fim que nenhum profeta previra, um fim que repudiava tanto o otimismo quanto o pessimismo.
No entanto, até certo ponto era adequado; tinha a sublime inevitabilidade de uma grande obra de arte. Jan vislumbrara o universo em toda a sua tremenda imensidão e sabia, agora, que não era lugar para os homens. Percebia agora, por fim, quão vão fora, em última análise, o sonho que o atraíra às estrelas.
Pois o caminho para as estrelas se bifurcava e nenhuma das duas direções conduzia a uma meta que levasse em conta as esperanças ou os temores do homem.
No fim de um dos atalhos estavam os Senhores Supremos. Tinham preservado sua individualidade, seus egos independentes. Tinham noção de si próprios e o pronome "eu" tinha realmente significado em sua língua. Possuíam emoções, algumas das quais compartilhadas pela humanidade. Mas Jan sabia agora que estavam encurralados num beco sem saída, do qual nunca conseguiriam escapar. Suas mentes eram dez — ou talvez cem — vezes mais poderosas que as dos homens. No cômputo geral, porém, isso não fazia diferença. Eram igualmente vulneráveis, sentiam-se igualmente perplexos diante da inimaginável complexidade de uma galáxia de cem bilhões de sóis e de um cosmo de cem milhões de galáxias.
E no fim do outro caminho? Achava-se a Mente Suprema — fosse ela o que fosse —, que estava para o homem como o homem para as amebas. Potencialmente infinita, para além da mortalidade, há quanto tempo estaria absorvendo raça após raça, enquanto se alastrava pelas estrelas? Teria também desejos, objetivos dos quais tinha uma noção vaga, mas que talvez nunca pudesse atingir? Agora, tinha atraído para si tudo o que a raça humana jamais conseguira. Não era uma tragédia, era uma realização. Os bilhões de centelhas transitórias de consciência que tinham contribuído para formar a humanidade não mais tremulariam como vaga-lumes, destacando-se contra a noite. Mas não teriam vivido inteiramente em vão.
Jan sabia que o último ato ainda estava por vir. Podia acontecer amanhã, ou dali a séculos. Nem mesmo os Senhores Supremos tinham certeza de quando.
Agora, ele compreendia os propósitos que os haviam guiado, o que tinham feito com o homem e por que ainda estavam na Terra. Sentiu-se tomado de uma grande humildade para com eles, bem como de admiração pela paciência inflexível que os levara a esperar durante tanto tempo fora de seu mundo.
Nunca ficou sabendo a história toda da estranha simbiose entre a Mente Suprema e seus servidores. Segundo Rashaverak, na história de sua raça jamais houvera uma época em que a Mente Suprema não estivesse presente, embora não se tivesse servido deles enquanto não alcançaram uma civilização científica que lhes havia permitido atravessar o espaço para cumprir missões.
— Mas por que razão ela precisa de vocês? — perguntou Jan. — Com todos os seus enormes poderes, decerto poderia fazer tudo o que quisesse.
— Não — respondeu Rashaverak. — Também ela tem suas limitações. Sabemos que, no passado, tentou agir diretamente sobre as mentes de outras raças e influenciar-lhes o desenvolvimento cultural. Sempre fracassou, talvez devido à grande diferença existente. Nós somos os intérpretes, os guardiães. Ou, utilizando uma de suas outras metáforas, amanhamos a terra até o trigo estar pronto para a colheita.
A Mente Suprema colhe o trigo, e nós passamos para outra tarefa. É a quinta raça a cuja apoteose assistimos. De cada vez, aprendemos um pouco mais.
— E não se revoltam por serem utilizados como ferramentas pela Mente Suprema?
— A coisa tem algumas vantagens; além disso, ninguém dotado de inteligência se revolta contra o inevitável.
Isso, refletiu Jan com ironia, nunca fora aceito pela humanidade. Havia coisas para além da lógica que os Senhores Supremos nunca tinham compreendido.
— Parece estranho — continuou Jan — que a Mente Suprema os tenha escolhido para executar essa tarefa, quando vocês não têm nenhum sinal dos poderes parafísicos latentes na humanidade. Como é que ela se comunica com vocês e torna seus desejos conhecidos?
— Essa é uma pergunta a que não posso responder, e também não lhe posso dizer a razão porque não posso explicar. Um dia talvez você venha a saber uma parte da verdade.
Jan ficou um momento meditando sobre isso, mas sabia que não adiantava insistir. Teria que mudar de assunto e esperar obter a resposta por vias transversas, mais tarde.
— Muito bem — disse ele —, há uma outra coisa que vocês nunca explicaram. Quando sua raça chegou à Terra pela primeira vez, há muito, muito tempo, o que foi que deu errado? Por que vocês se haviam transformado num símbolo de medo e maldade?
Rashaverak sorriu. Não era capaz de sorrir tão bem quanto Karellen, mas era uma imitação razoável.
— Ninguém jamais adivinhou e agora você vai entender por que nunca lhes pudemos dizer. Havia só um acontecimento que podia causar um tremendo impacto sobre a humanidade, e esse acontecimento não teve lugar na aurora da história, mas no seu fim.
— Como assim? — perguntou Jan.
— Quando nossas naves penetraram em seus céus, há um século e meio, pela primeira vez nossas raças se encontravam, embora, naturalmente, nós os houvéssemos estudado a distância. Não obstante, vocês nos temeram e reconheceram, como já sabíamos que aconteceria. Não se tratava precisamente de uma recordação. Você já teve a prova de que o tempo é muito mais complexo do que sua ciência poderia imaginar. Porque essa memória, essa recordação, não era do passado e sim do futuro — dos anos finais, quando sua raça soube que tudo terminara. Fizemos o que pudemos, mas não foi um fim fácil. E, por estarmos presentes, identificamo-nos com a morte de sua raça. Sim, embora ela só fosse ocorrer dali a dez mil anos! Era como se um eco distorcido tivesse reverberado pelo círculo fechado do tempo, do futuro até o passado. Não chamemos a isso recordação e sim premonição.
Era difícil assimilar a idéia e Jan ficou um momento em silêncio. No entanto, já devia estar preparado, pois tivera provas suficientes de que causa e acontecimento podiam inverter sua seqüência normal.
Devia haver uma memória racial, independente do tempo. Para ela, futuro e passado eram como que a mesma coisa. Era por isso que, milhares de anos atrás, os homens já tinham vislumbrado uma imagem distorcida dos Senhores Supremos, através de uma névoa de medo e terror.
— Agora entendo — disse o último homem.
O último homem! Jan achava quase impossível pensar em si mesmo como sendo o último dos homens. Quando subira ao espaço, aceitara a possibilidade de um exílio eterno da raça humana e a solidão não tomara conta dele. À medida que os anos fossem passando, o desejo de ver outro ser humano poderia aumentar e dominá-lo, mas, por enquanto, a companhia dos Senhores Supremos evitava que ele se sentisse completamente só.
Tinham existido homens na Terra até dez anos atrás, mas eram sobreviventes degenerados, e Jan nada perdera por não os ter encontrado. Por razões que os Senhores Supremos não podiam explicar, mas que Jan suspeitava fossem principalmente psicológicas, não tinham nascido crianças para substituir as que se haviam ido. O Homo sapiens extinguira-se.
Era possível que, perdido numa das cidades ainda intactas, estivesse o manuscrito de algum Gibbson moderno, registrando os últimos dias da raça humana. Mas Jan não tinha a certeza de desejar lê-lo. Rashaverak já lhe dissera tudo o que ele queria saber.
Aqueles que não tinham acabado consigo próprios haviam procurado o esquecimento em atividades cada vez mais febris, em esportes suicidas e temerários, que podiam se confundir com guerras. À medida que a população fora velozmente diminuindo, os sobreviventes tinham procurado envelhecer unidos, como um exército derrotado, cerrando fileiras ao mesmo tempo em que batia, pela última vez, em retirada.
Aquele último ato, antes que o pano descesse para sempre, devia ter sido iluminado por clarões de heroísmo e devotamento, e escurecido por demonstrações de selvageria e egoísmo. Se terminara em desespero ou com resignação, era coisa que Jan nunca poderia saber.
Havia muito com que ocupar a mente. A base dos Senhores Supremos ficava a cerca de um quilômetro de uma villa deserta, e Jan passara meses dotando-a de equipamentos que trouxera da cidade mais próxima, a uns trinta quilômetros de distância. Voara até lá com Rashaverak, cuja amizade, segundo suspeitava, não era inteiramente altruísta. O psicólogo dos Senhores Supremos continuava a estudar o último espécime do Homo sapiens.
A cidade devia ter sido evacuada antes do fim, pois as casas e muitos dos serviços públicos continuavam em bom estado. Não seria preciso muito trabalho para restaurar os geradores, de modo a que as amplas ruas brilhassem novamente, dando a ilusão de vida. Jan cogitou disso, mas depois abandonou a idéia por achá-la demasiado mórbida. A principal coisa que ele não queria era chorar pelo passado.
Havia ali tudo o de que ele necessitava para se manter pelo resto da vida, mas o que mais queria era um piano eletrônico e algumas transcrições de Bach. Nunca tivera tanto tempo para dedicar à música quanto desejaria, e agora procuraria compensar. Quando não estava tocando, ouvia tapes de sinfonias e concertos, de modo que a villa nunca estava silenciosa. A música tornara-se seu talismã contra a solidão que, um dia, acabaria por atacá-lo.
Às vezes, dava grandes passeios pelos morros, pensando em tudo o que acontecera durante os poucos meses em que estivera longe da Terra. Nunca poderia supor, ao dizer adeus a Sullivan, havia oitenta anos terrestres, que a última geração da humanidade já estava no útero.
Que jovem louco ele fora! Mas, no fundo, não lamentava o que fizera; se tivesse ficado na Terra, teria testemunhado aqueles derradeiros anos, sobre os quais o tempo correra um véu. Em vez disso, dera um salto para o futuro e ficara sabendo as respostas a perguntas que nenhum outro homem jamais saberia. Sua curiosidade estava quase satisfeita, mas às vezes ele se perguntava por que seria que os Senhores Supremos continuavam à espera e o que aconteceria quando sua paciência fosse, por fim, recompensada.
Na maioria das vezes, porém, com a resignação que normalmente os homens só têm ao fim de uma vida longa e atarefada, ele sentava-se ao piano e enchia o ar com seu amado Bach. Talvez estivesse se iludindo, talvez fosse algum truque misericordioso da mente, mas Jan achava, agora, que era aquilo que ele sempre desejara fazer. Sua ambição secreta ousara, por fim, emergir para a luz forte da consciência.
Jan sempre fora um bom pianista; agora era o maior pianista do mundo.
Foi Rashaverak quem trouxe a notícia a Jan, mas ele já a adivinhava. Nas primeiras horas da manhã, um pesadelo o despertara e não conseguira mais dormir. Não se lembrava do sonho, o que era muito estranho, pois achava que todos os sonhos podiam ser lembrados se a pessoa fizesse força para isso imediatamente após acordar. Tudo quanto podia lembrar era que, no sonho, tornara a ser garotinho e estava numa vasta planície vazia, ouvindo uma voz ribombante, que falava uma língua desconhecida.
O sonho preocupara-o. Ficara pensando se não seria o primeiro sintoma da solidão atacando-lhe a mente. Inquieto, saíra da villa para o gramado mal cuidado.
A lua cheia banhava tudo de um luar tão brilhante, que ele podia ver perfeitamente. O imenso e reluzente cilindro da nave de Karellen estava atrás dos edifícios da base dos Senhores Supremos, pairando acima deles e reduzindo-os a proporções humanas. Jan olhou para a nave, tentando recordar as emoções que ela outrora despertara nele. Houvera um tempo em que fora como uma meta inatingível, um símbolo de tudo o que ele jamais esperara, realmente, alcançar. Agora não significava nada.
Como tudo estava quieto e calado! Naturalmente, os Senhores Supremos estavam tão ativos como de costume, mas, no momento, não havia sinais deles. Jan poderia estar sozinho na Terra; como, na verdade, estava. Olhou para a Lua, procurando ver algo familiar em que seus pensamentos pudessem descansar.
Havia os velhos e bem-lembrados mares. Penetrara quarenta anos-luz no espaço, mas nunca andara por aquelas planícies poeirentas e silenciosas, a menos de dois segundos-luz de distância. Por um momento, divertiu-se, tentando localizar a cratera Tycho. Quando a descobriu, achou estranho ver que essa mancha reluzente estava mais afastada da linha central do disco do que pensara. E foi então que se apercebeu de que o ovalado escuro do Maré Crisium estava faltando.
A face que seu satélite ora apresentava à Terra não era a que olhara para seu mundo desde o início da vida. A Lua começara a girar sobre seu próprio eixo.
Aquilo só podia significar uma coisa: do outro lado da Terra, naquele lugar, que tão rapidamente haviam arrasado, eles estavam emergindo de seu longo transe. Assim como uma criança, ao despertar, pode esticar os braços para saudar o dia, assim estavam eles flectindo os músculos e brincando com seus recém-descobertos poderes. . .
— Sua dedução é correta — disse Rashaverak. — Já não é prudente ficar aqui. Pode ser que eles nos ignorem, mas não podemos correr esse risco. Partiremos tão logo nosso equipamento seja embarcado, dentro de umas duas ou três horas.
Olhou para o céu, como se temendo que algum novo milagre acontecesse. Mas tudo estava em paz; a Lua desaparecera e apenas algumas nuvens esvoaçavam, bem alto, tocadas pelo vento de oeste.
— Não tem grande importância se eles mexerem com a Lua — acrescentou Rashaverak —, mas imagine se eles começarem a interferir com o Sol! Vamos deixar aqui alguns instrumentos, para podermos saber o que está acontecendo.
— Eu vou ficar — disse Jan abruptamente. — Já vi o suficiente do universo. Agora, só estou curioso de uma coisa: o destino de meu planeta.
O chão tremeu suavemente sob seus pés.
— Eu estava esperando isso mesmo — continuou Jan. — Se eles alterarem a rotação da Lua, o impulso angular será desviado para outro lugar. Quer dizer que a Terra está andando mais devagar. Não sei o que mais me intriga: se o como eles fazem isso, se o porquê.
— Ainda estão brincando — disse Rashaverak. — Que lógica há nos atos de uma criança? E, sob muitos aspectos, a entidade em que sua raça se transformou é uma criança. Não está ainda pronta a se fundir com a Mente Suprema. Mas não tardará a estar, e então a Terra será de vocês. Não completou a frase e Jan terminou-a para ele.
— Se, claro, a Terra ainda existir.
— Mesmo prevendo esse perigo, você prefere ficar?
— Prefiro. Há cinco — ou seis? — anos que estou na Terra. Aconteça o que acontecer, não me queixarei.
— Estávamos mesmo esperando — disse Rashaverak, devagar — que você preferisse ficar. Há algo que você pode fazer para nós. . .
O clarão da Stardrive foi diminuindo até morrer, num ponto qualquer além da órbita de Marte. Só ele, pensou Jan, percorrera aquela trajetória, dentre os bilhões de seres humanos que tinham vivido e morrido na Terra. E ninguém voltaria a percorrê-la.
O mundo era dele. Tudo aquilo de que precisava — todos os bens materiais que alguém pudesse jamais desejar — eram dele. Mas Jan já não estava interessado nisso. Não temia nem a solidão do planeta deserto, nem a presença que ainda perdurava ali, naqueles derradeiros momentos, antes de partir em busca de sua herança desconhecida. Na inconcebível esteira dessa partida, Jan não esperava que ele e seus problemas sobrevivessem por muito tempo.
Estava tudo bem. Fizera tudo o que desejava fazer, e arrastar uma vida sem objetivos, naquele mundo vazio, teria sido um anticlímax insuportável. Poderia ter partido com os Senhores Supremos, mas com que fim? Pois sabia, como ninguém tinha jamais sabido, que Karellen dissera a verdade, ao declarar que as estrelas não eram para o homem.
Deu as costas à noite e dirigiu-se para a vasta entrada da base dos Senhores Supremos. Seu tamanho não o afetava em nada; a imensidão já não tinha nenhum poder sobre seu espírito. As lâmpadas ardiam, vermelhas, alimentadas por energias que não se esgotariam tão cedo. De cada lado havia máquinas cujos segredos ele jamais desvendaria, abandonadas pelos Senhores Supremos em retirada. Passou por elas e subiu desajeitadamente os grandes degraus, até chegar à sala dos controles.
O espírito dos Senhores Supremos ainda continuava ali: suas máquinas ainda funcionavam, executando as ordens de seus donos agora distantes. Que poderia ele acrescentar, pensou Jan, às informações que elas estavam lançando ao espaço?
Subiu para a enorme cadeira e pôs-se tão à vontade quanto lhe era possível. O microfone, já ligado, estava a sua espera. Algo semelhante a uma câmara de televisão devia estar vigiando, mas Jan não conseguiu localizá-la.
Para além do console e seus esquisitos painéis de instrumentos, as amplas janelas olhavam para a noite estrelada, através de um vale dormindo sob uma lua pálida, e para a longínqua cadeia de montanhas. Um rio serpenteava pelo vale, brilhando aqui e ali, quando o luar incidia sobre algum trecho de água. Tudo tão pacífico! Devia ter sido assim quando o homem nascera, igual a seu fim.
Lá longe, quem poderia dizer a quantos milhões de quilômetros de espaço, Karellen estaria esperando. Era estranho pensar que a nave dos Senhores Supremos estava, naquele mesmo momento, se afastando da Terra a uma velocidade quase igual àquela em que seu recado viajaria. Quase igual, mas não igual. Seria uma maratona, mas suas palavras alcançariam o supervisor e Jan teria pago a dívida.
Até que ponto, pensou ele, Karellen planejara aquilo, e até onde teria sido uma improvisação magistral? Teria o supervisor deliberadamente permitido que ele penetrasse no espaço, havia quase um século, de modo a poder voltar e desempenhar o papel de que agora fora encarregado? Não, isso lhe parecia demasiado fantástico. Mas Jan tinha certeza de que Karellen estava envolvido num vasto e complicado complô. Mesmo executando ordens, estudava a Mente Suprema com todos os instrumentos de que dispunha. Jan suspeitava que não fosse apenas curiosidade científica o que inspirava o supervisor; talvez os Senhores Supremos sonhassem algum dia libertar-se daquela forma peculiar de escravidão, quando tivessem aprendido o suficiente a respeito dos poderes aos quais serviam.
Que Jan pudesse contribuir para aumentar esses conhecimentos com o que estava fazendo parecia-lhe difícil de acreditar. — Diga-nos tudo o que vir — pedira-lhe Rasha-verak. — A imagem que seus olhos virem será duplicada pelas nossas câmaras. Mas a mensagem que lhe penetrar a mente pode ser muito diferente e nos dizer muito. — Bem, ele procuraria fazer o máximo.
— Nada a relatar ainda — começou por dizer. — Há alguns minutos, vi o rastro de sua nave desaparecer no céu. A lua cheia acaba de passar e quase a metade de sua face familiar está agora afastada da Terra, mas acho que vocês já sabem disso.
Jan fez uma pausa, sentindo-se ligeiramente idiota. Havia algo de incongruente, até mesmo de absurdo, em tudo o que estava fazendo. A história chegara ao clímax, mas ele podia ser um comentador de rádio, descrevendo uma corrida de cavalos ou uma luta de boxe. Deu de ombros e afastou esse pensamento. Suspeitava que, em todos os momentos importantes, sempre houvesse um anticlímax — e não havia dúvida de que só ele podia sentir sua presença ali.
— Houve três pequenos tremores de terra nos últimos sessenta minutos — prosseguiu. — Eles devem ter um controle espantoso da rotação da Terra, mas ainda não é perfeito. . . Sabe, Karellen, vai ser muito difícil dizer-lhe algo que seus instrumentos já não lhe tenham dito. Teria sido útil me haverem dado alguma idéia do que esperar e por quanto tempo. Se nada acontecer, voltarei a falar daqui a seis horas, conforme combinado. . .
"Alô! Acho que eles estavam esperando que vocês se fossem. Está começando a acontecer algo. As estrelas estão ficando menos brilhantes. É como se uma grande nuvem estivesse subindo, a grande velocidade, e cobrindo todo o céu. Mas não se trata realmente de uma nuvem. Parece ter como que uma estrutura, posso ver uma nebulosa rede de linhas e faixas que não param de mudar de posição. É como se as estrelas estivessem emaranhadas numa gigantesca teia de aranha.
"A rede está começando a brilhar, a pulsar com a luz, exatamente como se estivesse viva. E suponho que esteja mesmo; ou será algo tão acima da vida quanto isso está acima do mundo inorgânico?
"O clarão parece estar passando para outro lado do céu, esperem um pouco, enquanto eu vou para a outra janela.
"Sim, eu já devia ter desconfiado. Há uma grande coluna de fogo como se fosse uma árvore incendiada, sobre o horizonte ocidental. Está a uma grande distância, ao redor do mundo. Sei de onde ela vem: eles estão finalmente a caminho, para se tornarem parte da Mente Suprema. Sua provação terminou. Estão deixando os últimos restos de matéria para trás.
"À medida que esse fogo sobe da Terra, vejo que a rede se torna mais firme e menos nebulosa. Em alguns lugares, parece quase sólida, mas as estrelas continuam a brilhar debilmente através dela.
"Acabo de me lembrar. Não é exatamente o mesmo, mas a coisa que vi irrompendo sobre seu mundo, Karellen, era muito parecida com isso. Seria também parte da Mente Suprema? Acho que vocês me ocultaram a verdade para que eu não tivesse idéias preconcebidas, para que eu pudesse ser um observador imparcial. Gostaria de saber o que suas câmaras lhe estão mostrando agora, para comparar com o que minha mente imagina que estou vendo!
"É assim que ela fala com vocês, Karellen, através de cores e formas como estas? Lembrei-me das telas de controle em sua nave e dos desenhos que apareciam nelas, falando-lhes numa espécie de linguagem visual que seus olhos podiam interpretar.
"Agora, a coisa se parece com as cortinas da aurora, dançando e tremeluzindo por entre as estrelas. Acho que é isso mesmo, uma grande tempestade aurorai. Toda a paisagem está iluminada; está mais claro do que se fosse dia — vermelhos, amarelos e verdes parecem perseguir-se através do céu, oh, não há palavras, não me parece justo que seja só eu a ver, nunca pensei que tais cores existissem. . .
"A tempestade está agora amainando, mas a grande teia de névoa contínua. Acho que a aurora foi apenas um subproduto das energias que estão sendo liberadas lá, na fronteira do espaço...
"Um minuto só, reparei em algo mais. Meu peso está diminuindo. Que quererá dizer isso? Deixei cair um lápis, e está caindo lentamente. Algo aconteceu com a gravidade, está vindo uma grande ventania, vejo as árvores agitando os galhos, lá embaixo, no vale.
"Naturalmente, a atmosfera está escapando. Paus e pedras estão se erguendo no céu, quase como se a própria Terra tentasse segui-los pelo espaço. Há uma grande nuvem de pó, levantada pelo vendaval. Está ficando difícil ver. . . talvez clareie daqui a pouco.
"É — já está melhor. Tudo o que é móvel foi arrancado, as nuvens de poeira desapareceram. Até quando este edifício resistirá? E está ficando cada vez mais difícil respirar, preciso procurar falar mais devagar.
"Posso ver de novo com nitidez. A grande coluna de fogo continua no mesmo lugar, mas está se estreitando, parece o funil de um furacão, prestes a dissolver-se nas nuvens. E, oh, é difícil descrever, mas agora mesmo senti uma grande onda de emoção percorrer-me. Não era alegria ou tristeza, uma sensação de ter conseguido. . . Será que foi obra de minha imaginação? Ou terá vindo de fora? Não sei.
"E, agora — isto não pode ser fruto da imaginação — o mundo parece vazio. Completamente vazio. É como se estivesse escutando rádio e a transmissão subitamente parasse. E o céu está de novo limpo — a teia de neblina sumiu. Para que outro mundo ela irá a seguir, Karellen? E vocês continuarão a servi-la?
"Estranho: tudo a minha volta está inalterado. Não sei por quê, mas pensei que. . ."
Jan estacou. Ficou um momento procurando as palavras e depois fechou os olhos, num esforço para se controlar. Não havia mais lugar para medo ou pânico. Ele tinha um dever a cumprir — um dever para com os homens e um dever para com Karellen.
Lentamente, a princípio, como um homem que acordasse de um sonho, recomeçou a falar:
— Os prédios à minha volta, o chão, as montanhas, tudo parece de vidro, posso ver através de tudo. A Terra está se dissolvendo, já quase não tenho peso. Vocês tinham razão: eles acabaram de brincar com os seus joguetes.
"Só faltam alguns segundos. As montanhas já estão se dissolvendo, como se fossem anéis de fumaça. Adeus, Karellen, Rashaverak, tenho pena de vocês. Embora não consiga entender, eu vi o fim de minha raça. Tudo o que nós alcançamos subiu em direção às estrelas. Talvez fosse isso o que as velhas religiões queriam dizer. Mas numa coisa erraram: pensavam que a humanidade era muito importante, mas somos apenas uma raça em. . . vocês sabem quantas? Só que agora nos transformamos em algo que vocês nunca serão.
"Lá se vai o rio. Mas o céu continua igual. Mal posso respirar. Estranho ver a Lua brilhando ainda, lá em cima. Ainda bem que a pouparam, mas ela agora vai se sentir solitária. . .
"Que luz! Vindo de baixo de onde estou, de dentro da Terra, brilhando para cima, através das rochas, do solo, de tudo, cada vez mais brilhante, ofuscante. . ."
Numa silenciosa concussão de luz, o coração da Terra liberou todas as energias que acumulara. Durante algum tempo, as ondas gravitacionais cruzaram e voltaram a cruzar o sistema solar, perturbando ligeiramente as órbitas dos planetas. Depois, os restantes filhos do Sol retomaram seus velhos caminhos, como rolhas que, flutuando num lago plácido, transpõem as diminutas ondulações causadas pela queda de uma pedra.
Nada sobrara da Terra; eles tinham sugado os últimos átomos de sua substância. Tinham-nos alimentado, através de sua inconcebível metamorfose, como o alimento contido num grão de centeio nutre a plantinha, enquanto ela sobe em direção ao Sol.
A seis bilhões de quilômetros além da órbita de Plu-tão, Karellen sentava-se diante de uma tela subitamente escurecida. A ficha estava completa, a missão, terminada; ele estava de partida para o mundo que deixara havia tanto tempo. O peso dos séculos abatia-se sobre ele, bem como uma tristeza que nenhuma lógica podia dispersar. Não lamentava o destino do homem: seu pesar era pela sua própria raça, para sempre privada da grandeza por forças que não podia vencer.
Apesar de tudo o que havia conseguido, pensou Karellen, apesar de seu domínio sobre o universo físico, seu povo não era melhor do que uma tribo que tivesse passado toda a sua existência numa planície plana e poeirenta. Ao longe estavam as montanhas, onde moravam o poder e a beleza, onde o trovão ribombava sobre as geleiras e o ar era limpo e puro. Lá, o Sol continuava a andar, transfigurando os picos com sua glória, quando a Terra, embaixo, estava imersa em escuridão. Mas eles só podiam olhar e maravilhar-se; jamais poderiam escalar aquelas alturas.
Entretanto, Karellen sabia que agüentariam firmes até o fim. Esperariam sem desesperar, fosse qual fosse o destino que lhes coubesse. Serviriam à Mente Suprema porque não tinham outro remédio, mas, mesmo servindo-a, não perderiam a alma.
A grande tela de controle iluminou-se, por um momento, de um sombrio tom de rubi. Sem qualquer esforço consciente, Karellen leu a mensagem que os desenhos transmitiam. A nave estava deixando os limites do sistema solar. As energias que impeliam a Stardrive estavam acabando depressa, mas já tinham feito seu trabalho.
Karellen ergueu a mão e a imagem mudou mais uma vez. Uma única estrela reluziu no centro da tela. Ninguém diria, àquela distância, que o Sol alguma vez tivesse possuído planetas, ou que um deles acabasse de se perder. Durante muito tempo, Karellen ficou olhando para aquele abismo, cada vez maior, ao mesmo tempo em que muitas recordações lhe passavam pela mente vasta e labiríntica. Numa despedida silenciosa, saudou os homens que conhecera, tivessem eles dificultado ou ajudado seus propósitos.
Ninguém ousou perturbá-lo ou interromper-lhe os pensamentos. Pouco depois, ele virava as costas para o Sol minguante.
Arthur C. Clarke
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